A Casa dos Fantasmas - Volume II

By Luiz Augusto Rebello da Silva

The Project Gutenberg EBook of A Casa dos Fantasmas - Vol II, by 
Luís Augusto Rebelo da Silva

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org


Title: A Casa dos Fantasmas - Vol II
       Episodio do Tempo dos Francezes

Author: Luís Augusto Rebelo da Silva

Release Date: September 13, 2008 [EBook #26605]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A CASA DOS FANTASMAS - VOL II ***




Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online
Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net






     *Nota de editor:* Devido à quantidade de erros tipográficos
     existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à
     versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com
     o original. No final deste livro encontrará a lista de erros
     corrigidos.

                                                 Rita Farinha (Set. 2008)




OBRAS COMPLETAS

DE

LUIZ AUGUSTO REBELLO DA SILVA

XII




VOLUMES PUBLICADOS


    I--Ráusso por homizío
   II--Odio velho não cança (1.^o)
  III--Odio velho não cança (2.^o)
   IV--A Mocidade de D. João V (1.^o)
    V--A Mocidade de D. João V (2.^o)
   VI--A Mocidade de D. João V (3.^o)
  VII--A Mocidade de D. João V (4.^o)
 VIII--A Mocidade de D. João V (5.^o)
   IX--Lagrimas e thesouros (1.^o)
    X--Lagrimas e thesouros (2.^o)
   XI--A Casa dos Fantasmas (1.^o)
  XII--A Casa dos Fantasmas (2.^o)
  XVI--Othello--As redeas do governo
 XVII--A mocidade de D. João V (drama).
XVIII--O amor por conquista (comedia)--O Infante Santo (fragmento).
  XIX--Fastos da Egreja (1.^o)
   XX--Fastos da Egreja (2.^o)
  XXI--Fastos da Egreja (3.^o)
 XXII--Fastos da Egreja (4.^o)




OBRAS COMPLETAS DE LUIZ AUGUSTO REBELLO DA SILVA
REVISTAS E METHODICAMENTE COORDENADAS

XII

ROMANCES E NOVELLAS--V


A CASA DOS FANTASMAS

EPISODIO DO TEMPO DOS FRANCEZES


2.^a EDIÇÃO

VOLUME II




LISBOA
Empreza da Historia de Portugal
_Sociedade editora_

LIVRARIA MODERNA | TYPOGRAPHIA
_R. Augusta, 95  | 45, R. Ivens,_ 47

1908




A CASA DOS FANTASMAS




I

Quando Deus queria... do norte chovia


A procissão do Corpo de Deus, em Lisboa, era talvez a festa religiosa
mais solemne da cidade. Nossos avós, e sobre tudo nossas avós,
preparavam-se para ella mezes antes, e nas vesperas do grande dia as
costureiras, os alfayates, e os cabelleireiros viam-se doidos com as
impertinencias, recados, e instancias. É que todas as sumptuosidades da
mobilia, toda a prata mareada das baixellas, todo o recheio das arcas e
armarios tinha de apparecer e luzir n'aquella bem vinda festividade, que
abria as portas das casas e o seio das familias a uma verdadeira
inundação de visitas, de conhecidos, e de curiosos. As janellas das
ruas, por onde passava o prestito do bemaventurado S. Jorge, santo
cavalleiro e general ao serviço de Portugal desde os tempos heroicos de
el-rei D. João I, em odio a Castella e como pirraça ao senhor Santiago,
convertiam-se em outros tantos camarotes armados de sanefas e listões de
purpura nas vergas e ombreiras, forrados de colchas da India e de
cobertas de seda da China.

O copo de agua, que era costume offerecer aos convidados, despejava as
lojas mais sortidas dos confeiteiros e conserveiros da moda. O jantar,
ao qual se assentavam os hospedes mais aceitos, só com a vista fartaria
a gula mais faminta. As galas devotas espertavam a emulação, e as bolsas
mais discretas e apertadas não se negavam por excepção aos maiores
sacrificios para que vestidos, joias, e toucados brilhassem ao menos uma
vez no anno com esplendor digno da vaidade e ufania de seus donos.

Instituida por Urbano IV, em 1264, na primeira quinta feira depois da
festa da Trindade, afim de solemnizar o culto particular do Santissimo
Sacramento, confirmada e ampliada por muitos Papas, a procissão do Corpo
de Deus fôra sempre feita em Portugal com fausto e invenções notaveis
nas terras principaes do reino. O brutesco acompanhamento, que a seguia
na meia edade, e ainda no seculo XVI, tornava-a ao mesmo tempo um acto
religioso e um espectaculo profano. A imaginação popular de nada se
esquecia para que ella fosse unica e singular pela extravagancia das
figuras e pela riqueza ostentada pelas corporações mechanicas em
competencia e rivalidade umas com as outras. As naus e galés dos
carpinteiros e calafates da Ribeira das naus, os anjos e gigantes dos
merceeiros e boticarios, a torre e a serpe dos alfayates, o sagitario
dos armeiros, uma nuvem de demonios de todos os feitios, e mil outras
representações entresachadas de danças e folias, no meio das musicas
mais desvairadas e dos instrumentos mais oppostos, como gaitas de
folles, tambores, pandeiros, violas, córos de donzellas, flautas, e
doçainas pastoris, tudo isto compunha, variava, e confundia o cortejo, o
qual consumia quasi o dia todo nas ruas apinhadas de povo, e alegradas
de alecrins e rosmaninhos.

O senhor D. João V, o Salomão portuguez, creando a patriarchal em 1717,
não omittiu em sua liberalidade a festa mais pomposa da côrte, e com
espiritos regiamente devotos modificou o plano e accessorios da famosa
procissão. Este grande acto inspirou a um dos mais respeitosos
admiradores do prodigioso genio de sua magestade, a um dos eruditos
irmãos Barbosas, um volume em folio de 240 paginas, obra monumental, que
attesta ao mesmo passo a importancia do assumpto e a profunda
philosophia do auctor. N'este livro, curioso em muitos trechos pelas
noticias, que encerra ácerca da capital nos principios do seculo XVIII,
veem narradas com escrupulosa miudeza as circumstancias, que mais
preocuparam o augusto reformador e os seus conselheiros _circa sacra_.
El-rei com mão firme supprimiu do solemne acto as figuras, e as danças,
mas empalideceu talvez com o arrojo. O golpe era temerario. O povo a
tudo indifferente, em materia de recreação ao Divino era zeloso e
irritavel como um tribuno da plebe dos nossos dias.

As chacotas, os andores, o baile das espadas, e a folia dos moleiros,
por entre as visagens dos diabos sarapintados, e os uivos e bramidos das
féras de papellão, serviam-lhe de opera comica, e foi necessaria grande
firmeza de vontade, e toda a sabedoria de sua magestade, instruida pela
sua larga experiencia das confrarias e irmandades, para o obrigar a
contentar-se com os arcos, medalhas, columnas e louros, que ornavam o
paço e as ruas do transito, e com a magra e dolorosa substituição de um
anjo vestido de brocado, com suas azas de cambraia tesas de gomma e
chapins altos, unico personagem, que sobreviveu de todos os vistosos e
engraçados momos, que distraíam d'antes a procissão com seus esgares e
jogralidades.

A ausencia da côrte e da nobreza, a tristeza impaciente causada pelo
jugo estrangeiro, e o receio, que vozes vagas faziam conceber de alguma
explosão popular, não diminuiam, apesar d'isso, o alvoroço, nem a
concorrencia.

No palacio do governo as apprehensões eram mais vivas. Lagarde recebia
de momento para momento avisos assustadores, e lia-os sobresaltado aos
collegas. Herman meneava a cabeça com ar incredulo. Junot sorria-se e
encolhia os hombros. A frivolidade do seu espirito e os arrebatamentos
do seu genio não lhe offuscavam todavia a penetração natural. Conhecia e
despresava as murmurações do vulgo, e confiava no seu valor, e no das
tropas que lhe obedeciam. Sabia que as linguas e as ameaças eram mais
intrepidas, do que as acções. Além d'isto o plano innocente dos honrados
conspiradores de toga e rabicho tinha ferido o seu amor proprio, e por
nenhum caso admittia que se julgasse, que elle queria furtar-se ás
ciladas e assaltos theoricos do Conselho Conservador. «O perigo,
exclamou, depois de larga discussão, vem do mar com os inglezes; está
nas serras e desfiladeiros do norte com os camponezes armados! O que
rosnam, ou vociferam aqui mercieiros obesos, frades apopleticos, e
desembargadores tropegos, não vale uma escorva. O galope de um esquadrão
seria de mais para os metter pelo chão abaixo. Lisboa não é Paris.»

Lagarde suspirava, o ministro da guerra e da marinha limpava os vidros
dos oculos, e o conde da Ega affectava ar heroico para não desmentir o
elevado conceito, que suppunha merecer ao duque de Abrantes. O conselho
dilatou-se, e terminou já pela noite dentro, dois dias antes da
ceremonia, com uma transacção digna da prudencia insidiosa do intendente
geral da policia. Não podendo alcançar que a procissão não saisse,
Lagarde obteve ao menos que Junot a não acompanhasse, pegando ás varas
do pallio, mas que se resignasse a vel-a passar da varanda do palacio da
inquisição para, dizia o astucioso magistrado, não estimular a saudade e
o ciume dos portuguezes, os quaes de certo se aggravariam se elle
occupasse o lugar do principe regente e os ministros francezes o dos
fidalgos expatriados!

O general em chefe resistiu, porém cedeu. Receando que o accusassem de
um rasgo de vaidade nescia, e que a ostentação da sua pessoa désse armas
aos inimigos, não podia negar, egualmente, que, fóra do cortejo, lhe
seria mais facil accudir para atalhar qualquer emoção provocada entre as
multidões, que se acotovellavam, riam, e chasqueavam nas praças, e
travessas da capital.

Dispostas assim as cousas, amanheceu o appetecido dia. Os regimentos
francezes ás quatro horas da madrugada formaram no Passeio publico, e a
alegria marcial das musicas annunciou á cidade a grande solemnidade. Os
raios do sol principiavam a beijar as grimpas dos telhados e as cruzes
dos campanarios. As senhoras, que mal tinham repousado, sentadas em
cadeiras, para não arrepiarem a symetria laboriosa dos toucados,
começavam a enfeitar-se com as ricas modas escolhidas para esta
occasião. As janellas, armadas como templos, guarneciam-se de damas e
cavalheiros, mais curiosos ainda de se mostrarem, e de serem vistos, do
que de gozarem o espectaculo, que servia de pretexto á reunião.

Nas ruas, areadas e cobertas de espadanas e flores, enxameiava com
zumbidos cada vez mais fortes a primeira irrupção de abelhas matutinas,
saída do cortiço popular com os arreboes da aurora. A véstia de abas e o
calção curto do saloio contrastavam tanto com a jaqueta de ramagem do
campino, como o lenço e a capa das mulheres da cidade com as roupinhas a
saia vermelha, e a carapuça das matreiras filhas de Friellas e
Alcabideche. A pouco e pouco os enxames engrossaram, as mangas de povo
cresceram, os zumbidos converteram-se em borborinho, e por entre as alas
de tropas postadas desde S. Domingos até ao Terreiro do Paço, entrou a
avultar, colleando similhante a serpe gigantesca e monstruosa, o immenso
concurso, que esperava a procissão, e cujo sussurro perenne era cortado,
ou avivado a miudo, por vaias brutescas, por estridulos pregões, e pelas
corridas e contendas de algum Adão menos soffrido, que os gritos e
queixas da sua Eva expunham aos apupos e sorriadas da plebe.

Os repiques festivos dos sinos nas torres das parochias e conventos
despenhavam sobre a cidade um verdadeiro alarido de notas metalicas,
imitando com arte mais, ou menos boçal os cantos e melodias em voga nas
serenatas e nas operas. A esta matinada pouco harmoniosa, e assás
impertinente, rebate estrondoso do sagrado alvoroço das freguezias e
communidades, respondiam as salvas do castello, dos navios, e das
fortalezas. O jubilo espiritual da população traduzia-se em pragas,
exclamações, e algazarras, em que não eram poupados pelo patriotismo
escandecido dos zelosos os soldados de Napoleão, firmes e silenciosos
como estatuas em seus pedestaes. Rebentaram gritos de alegria, moveu-se
maior tropel de povo, e ondas encontradas, impellindo-se e remoinhando
no adro de S. Domingos e no Rocio, deram o signal de que o prestito
transpunha, emfim, os umbraes do templo.

As bandeiras dos officios, na figura de grandes paineis suspensos de
cordões de seda em compridas varas, tremulavam na testa do cortejo,
representando entre ricas bordaduras a ouro e preciosas tarjas as
imagens dos santos, que em sua vida haviam exercido o trabalho manual,
de que eram advogados e protectores no paraizo. Atraz das bandeiras,
oscillando sobre um formoso cavallo branco, vinha o vulto equestre de S.
Jorge, precedido de trombeteiros montados e de tambores a pé, entre a
furia sonorosa dos clarins e atabales. Um homem d'armas, robusto
comparsa alugado para queimar dentro de uma pesada casca de ferro o
sangue e a corpulencia, erguia o guião do cavalleiro santo sobre a
lança, capitaneando, meio suffocado e tonto de vertigens, o vistoso
apparato dos cavallos da casa de Bragança ricamente ajaezados, e levados
á mão pelos moços das cavalhariças reaes. A imagem de S. Jorge vestia
arnez, coxotes e grevas, e trazia na cabeça o gorro de velludo, que em
tempos mais ditosos adornavam os diamantes do duque de Cadaval. Um pagem
enfeitado de vistoso cocar de plumas, quasi tão alto como elle, acabava
de figurar a ficção das emprezas militares do glorioso general, que
nunca vira os campos de batalha portuguezes, por que nunca pelejou
contra os inimigos da fé, ou da independencia na Peninsula.

Seguiam-se as irmandades de Lisboa e do termo, os servos das diversas
confrarias, e os farricoucos, amortalhados em hollandilhas da cabeça até
os pés, todos sequiosos de alardearem sua compuncção anonyma. Eram perto
de cem as irmandades e confrarias, que desfilavam em passo grave com
suas tochas na mão e suas opas de variadas côres, trocando em voz baixa
de umas para outras censuras e chascos nada caridosos ácerca do numero,
ou negligencia de seus irmãos em Jesus Christo. No couce d'estes
virtuosos auxiliares do altar, com os olhos baixos, e ademanes
reverentes, caminhavam as communidades, Franciscanos, Ordens Terceiras,
Trinos descalços, Agostinhos, Carmelitas, Capuchos, Capuchinhos,
Arrabidos e innumeros outros ramos da frondosa arvore monastica, cujo
tronco brotado da piedade e munificencia dos soberanos era alimentado
pela devoção, ou pelos remorsos dos fieis. Transparecia o orgulho beato
da santidade no rosto de muitos d'elles. Os religiosos de S. Domingos
fechavam a rectaguarda da sacra milicia.

Depois dos monges e mendicantes começava o clero regular, e apoz elle,
debaixo da cruz patriarchal, todo o clero secular, os padres da
congregação de S. Filippe Nery, os das Missões, e os parochos, curas, e
presbyteros das freguezias de Lisboa, conegos, e as dignidades, e a
curia ecclesiastica. Rematavam o longo e estendido sequito os conselhos
e tribunaes da côrte, os fidalgos que residiam em Portugal, e os
cavalleiros das ordens militares. As varas do pallio pegavam as pessoas
mais nobres e conspicuas por sangue, empregos, e representação.

Havia tres horas, que a procissão andava fóra, e ainda nenhum tumulto,
ou perturbação justificára os presentimentos sinistros da policia. O
povo olhava com enlevo para tudo, ajoelhava e batia nos peitos, e
limitava a maldições abafadas a sua aversão aos francezes. Junot, que
assistia da varanda do palacio do Rocio ao religioso acto, e cujos olhos
indagadores não cessavam de espreitar o menor indicio de agitação, vendo
tudo sereno e socegado, e os maus prognosticos desmentidos, ria-se já
sem disfarce dos receios do intendente Lagarde, e perguntava-lhe em ar
de mofa pelo nome dos malsins assustadiços, que tinham inventado a
conspiração, talvez para os promover na falta de concorrentes ao logar,
ainda vago, apezar da sua proclamação, de Camões do reino do Algarve!

De repente o duque de Abrantes suspendeu-se. O riso gelou-se-lhe nos
labios. Herman, que estava á sua direita, enfiou; e Lagarde, crescendo
sobre os aprumados collarinhos, dilatou o pescoço fóra da gravata. Um
olhar, em que se retratava ao mesmo tempo o receio e o triumpho fez
comprehender em sua muda eloquencia ao general em chefe, que se rira
cedo de mais da infallibilidade da policia. O que succedia, porém,
n'este momento para assim mudarem de subito as scenas e as phisionomias?
Estálara a revolução promettida? Tinham os conspiradores denunciados
deixado cair a um signal, como no theatro do Salitre o imperador José
II, as becas, as capas, os habitos, ou as sotainas, e appareciam
metamorphoseados em actores de novas e segundas vesperas sicilianas?
Ninguem podia dizer ainda. Da varanda de pedra, Junot e o seu cortejo
viam e ouviam o tumulto, sentiam-n'o avultar, mas ignoravam as causas e
os incidentes.

As bandeiras dos officios dobravam já com todo o socego da rua Augusta
para a rua do Ouro, dando a volta pelo Terreiro do Paço, e o pallio e o
Sacramento saíam da egreja de S. Domingos, quando uma furiosa vaga de
povo, encapellando-se inopinadamente, investe com o corpo da procissão
na rua Augusta, envolvendo e afogando em suas ondas loucas as confrarias
e communidades, derruba tudo no impeto irresistvel, corre infrene como
inundação despenhada, como furacão vertiginoso, e por cima de todos os
obstaculos galga invencivel até ao Rocio, aonde, similhante a rio
caudaloso que se precipita, rasga por entre milhares de vultos o seu
caminho!

No meio da praça esta onda, repellida pela corrente opposta, golfada das
portas de S. Domingos, vê-se entalada sem poder avançar, ou recuar,
lucta com esforço desesperado, e por fim, semeando o terror e o espanto
por toda a parte, vae acabar de se desfazer em redemoinhos, ou em pinhas
oscillantes, que se quebram, e renovam á entrada das ruas e travessas
por onde as multidões se escoam, fugindo feridas de demencia.

Os clamores, os gritos de angustia, as interjeições de pavor cortam os
ares, e ensurdecem os ouvidos. Mulheres e crianças arrastadas no tropel,
meio suffocadas, pallidas e quasi moribundas, alçam em vão os braços
supplicantes, e desapparecem perdidas depois nos rolos, que se
ennovellam e arremessam a cada passo.

A tropa, cujas alas vergam e se rompem com o embate da plebe, é cortada
em todos os sentidos, e debalde tenta reunir-se. Os artilheiros
desordenados cedem e desamparam as carretas.

Colhida no centro do bulcão popular, a procissão rota e dispersa em mil
fragmentos, que vozeam e se revolvem, como troços semi-vivos de um
reptil, alastra as ruas de cruzes, de tochas, e de insignias, calcadas
por milhares de pés. Frades, padres, magistrados, cavalleiros, irmãos, e
penitentes bradam, imploram, atropellam-se, e ora dobados no ar, ora
estatelados em terra, lividos, moidos, e descompostos pelejam por se
arrancarem a este pelago tempestuoso, em que abafam, buscando por
similhante forma refugio contra o perigo.

O prelado, que trazia a custodia, e o pomposo sequito que rodeava o
pallio, vê de repente a praça tornada um mar procelloso, e ouve sobre o
clamor geral as vozes dos officiaes francezes mandando carregar as armas
á guarda de granadeiros, e accender os morrões aos artilheiros da
bateria postada junto do adro. Attonitos e paralyzados um instante, o
medo presta-lhes azas depois. Luctam, repellem-se, volvem a traz, e
rompendo, como cunha viva, por meio da multidão, que transborda do
templo, vão cair uns sobre os outros de roldão na sacristia, deixando o
pavimento juncado de thuribulos, de capas de asperges, de roquetes
dilacerados, de chapéus de plumas, e de mantos das ordens militares.

A cavallaria de Junot une as fileiras. As largas espadas dos soldados
reluzem por cima das cabeças com lampejos terriveis. O povo agglomerado,
entre a muralha que o atira sobre os cavallos, e o terror das armas, que
o ameaçam, solta horriveis clamores, peleja por abrir passagem, e
augmenta o ruido, o sossobro, e a confusão do tumulto immenso.

Não ha pincel, nem tintas que possam desenhar quadro tão medonho! Os
gemidos, os choros, as quedas, contrastam a cada minuto com os lances
comicos e os episodios risiveis. O medo inspira os ardis mais burlescos.
O desespero suggere os arbitrios mais violentos.

As ruas e travessas proximas, similhantes a canaes rotos á furia das
aguas, engolem e despejam incessantemente os bandos variegados dos
fugitivos, entre os quaes a egualdade do terror acotovella os
commendadores e os togados com o operario, o frade e o farricouco pelo
judeu transido, ou pela collareja tão veloz nos passos, como solta de
lingua e prompta de gestos.

Capotes, cabelleiras, chinós, sapatos, abas de fardas e de casacas,
canhões e gollas bordadas, lenços, cintos, farrapos, de todas as telas e
de todos os matizes em fim, coalham este campo de batalha, aonde os
mortos, felizmente, isto é os que baqueiam, resuscitam logo ao beijarem
o chão, e se levantam para disputar celeridade aos mais ligeiros. No
meio dos alaridos e dos estrepitos, do centro d'este cahos ruidoso de
furias, bramidos, e uivos bestiaes, vozes tremulas e roucas de susto, em
perguntas e replicas instantaneas, exclamam confusas e lugubres: «O
terremoto! Os inglezes! As ruas minadas!»




II

De um argueiro um cavalleiro


As vozes, o espanto, o terror, e o tumulto das ruas, todas as
apparencias, em fim, inculcavam a cidade sublevada e as apprehensões de
Lagarde confirmadas.

O denodo e a presença de espirito de Junot não o atraiçoaram n'este
lance. Descendo os degraus da escadaria á pressa, emquanto o intendente
da policia se emparedava e calafetava no gabinete secreto, o duque de
Abrantes atravessa intrepido por meio das ondas revoltas do povo, rompe
pelo centro d'ellas até á egreja, corre á sacristia, e á força de
estimulos e persuasões consegue arrancar d'aquelle asylo pouco seguro o
prelado e os sacerdotes, que tremem de medo, e que julgam chegada a sua
ultima hora.

Chamando depois os padres, os fidalgos, e os cavalleiros das ordens
militares e animando-os com as palavras e o exemplo, diz-lhes:

--De que se receiam? O que temem? Não estou eu aqui? Não vêem os meus
soldados firmes? Continuemos a procissão.

Recompondo, do modo possivel depois, o prestito disperso manda saír o
pallio, e acompanha-o a pé com o seu estado maior.

Patrulhas fortes circulam ao mesmo tempo, e dispersam os mais pequenos
ajuntamentos. O regimento 86.^o marcha com tanta precipitação, que leva
o pão espetado nas bayonetas por carecer de vagar para comer o rancho!

Qual fôra, porém, a origem do estrondoso successo? Nascêra de planos
concertados pelos amigos da independencia, como cuidaram os francezes,
ou rebentára espontaneo da agitação e do odio comprimido dos habitantes
de Lisboa? Nem uma, nem outra cousa. Um grão de areia fez parar a roda.
Um sopro desenfreou o temporal. A verdadeira causa do arruido colossal
do dia 16 de junho de 1808 foi uma imprudencia policial do honrado
sargento Cabrinha, e um esquecimento de lingua do seu virtuoso assessor
Gaspar Preto, por alcunha o _Sapo_. Estes dois personagens, que não
cabiam em si de vaidade, desde que os louvores do intendente geral da
policia inflammaram o seu zelo pelo serviço da sua magestade o imperador
e rei, succumbiram um instante á fraqueza dos grandes homens, e
estiveram a ponto de fazer nadar a capital em sangue. Eis como se passou
o notavel episodio.

Já sabemos que o Antonio da Cruz, o Manuel Simões da Aramanha, e o João
da Ventosa, obedientes como bons patriotas ás instancias do morgado de
Penin, capitão de milicias de Rio Maior, tinham feito a jornada de
companhia, e por um triz não apanharam em Villa Franca o sargento e o
seu ajudante, que partiam para os denunciar a Lagarde. Os tres em Lisboa
alojaram-se em uma casa conhecida do lavrador da ponte da Asseca,
regalaram-se de bom vinho e de bons boccados, e esperaram resignados que
a causa nacional lhes pedisse o auxilio do braço ou do cajado.

Na madrugada do dia da procissão, muito antes do sol fóra, já o
triumvirato ribatejano palmilhava as ruas com a curiosidade mais
inoffensiva, e apenas se abriu a primeira taverna uma copiosa libação
desjejuára os tres vastos estomagos, montados em diamante.

Começou a concorrer gente, acabou a parada no Passeio publico, e
desfilaram as tropas. Davam nove horas, e o fazendeiro da Aramanha,
interpellando o João da Ventosa, perguntou alto aonde era o almoço, e se
teriam tempo de o engulir antes da procissão? A resposta foi sumirem-se
por uma travessa escusa, entrarem para uma especie de furna escura,
immunda, e humida, e sentarem-se em mochos vacillantes á roda de uma
mesa, cuja toalha bem mostrava nunca haver deixado os lençoes de vinho.
Chiavam as appetitosas iscas de figado, e o cheiro exhalado das
enfumadas frigideiras convidava o olfato dos freguezes.

Quando os tres se levantaram d'este banquete plebeo, a procissão andava
já no Rocio, e o Deus Baccho tambem lhes fazia a elles mil travessuras
na vista e no equilibrio. Metteram hombros ao apertão, foram rompendo a
murro e a calcadellas, mas á esquina da travessa da Assumpção
encontraram resistencia tal, que se viram obrigados a ceder.

As bandeiras dos officios fluctuavam nos ares, e uma linha cerrada de
bayonetas, pouco condescendentes, não consentiu que os provincianos a
atravessassem. O lavrador e seus amigos rosnaram algumas pragas, mas
tiveram de as engulir em sêcco e de ficar.

Antonio da Cruz, guapo e decidido, trajava bem suas galas domingueiras,
e dava-se ares de moço mui desempenado debaixo das abas do chapéu novo
de Braga. Vendo-o assim alegre e pimpão, meio encostado ao cajado, uma
saloia, fresca e viçosa como as rosas do campo, pediu-lhe licença de
passar para deante afim de ver melhor, e o moleiro officioso fez-lhe
logar immediatamente, acto de cortezia recompensado por um sorriso, que
descobriu indiscretamente as trinta e duas perolas, que escondiam uns
beiços mais vermelhos, do que bagos de romã. Ao mesmo tempo o João da
Ventosa e o Manuel Simões, encontrando-se hombro a hombro com um
marchante conhecido, homiziavam-se com elle a furto no retiro de uma
tasca chamada loja de bebidas, para onde os iniciados se introduziam por
um corredor estreito, disfarçado no fundo da entrada da casa, deante da
qual se achavam.

Até aqui corrêra tudo admiravelmente, mas o demonio depressa as arma. O
sargento, o _Sapo_, e uma quadrilha de beleguins da policia seguiam de
longe o triumvirato innocente, desde as portas do Passeio publico.
Haviam-n'o perdido de vista, quando á voz do almoço o robusto lavrador
capitaneou a evolução, que levára os convivas ao sujo templo, aonde o
Comus enfarruscado das iscas os detivera duas horas.

Cabrinha recebêra ordem expressa de Lagarde de se apoderar dos tres
amigos, e de os hospedar na cadeia, mas fôra egualmente admoestado para
obrar com finura e sem ruido. Era a razão porque não se atrevêra a
empolgal-os na rua, e no meio do povo, que seus gritos podiam alvorotar.
Quando lhe desappareceram, como se a terra se tivesse sumido com elles,
scismando um instante, disseminou logo depois a quadrilha em duas
mangas. Uma partiu para o Rocio e foi postar-se á esquina do arco do
Bandeira. A outra conservou-se na rua Augusta, vigiando-a. O _Sapo_,
trepado em um frade de pedra, servia de vedeta.

O Antonio da Cruz estava todo embebido nos colloquios e requebros de seu
galanteio com a saloia, quando sentiu de repente, que lhe batiam no
hombro. Virou-se, e deu de rosto com um sujeito magro e grelado, de
chapéu arrombado, calções espigados, casaca de côr cambiante, e sapatos
risonhos, que lhe disse muito manso ao ouvido, travando-lhe do braço.

--Está preso! Venha commigo. Não faça bulha!

Ao mesmo tempo outro escudeiro, baixo, roliço, olhos encarnados e
chorosos, e nariz expansivo, cravejado de rubis assanhados,
deitava-se-lhe ao outro braço, ao braço do cajado, pendurando-se quasi
n'elle. N'um rapido relancear o moleiro descobriu a poucos passos,
cozidos com as hombreiras da porta, por onde se tinham escoado os seus
amigos, o sargento, o _Sapo_, e um terceiro quadrilheiro. Esta apparição
revelou-lhe que era serio o caso.

Soltando um assobio forte e prolongado, signal aos companheiros para se
juntarem e accudirem, o Antonio, sem accusar a intenção na physionomia,
sem levantar voz, ou grito, por um movimento secco dos hombros saccudiu
de si os dois malsins, e empunhando-os já no ar pela gola assás madura
das casacas cossadas e transparentes, cuspiu-os das mãos, colhidos em
flagrante, cada qual para sua direcção. Ao arremesso momentaneo, o homem
esguio e grelado, por ser mais leve, subiu mais alto, e veiu caír por
elevação sobre as costas de um massiço prebendado, com os olhos
escudados de oculos e palla verde, o qual estava explicando a duas
sobrinhas boqui-abertas a lenda aurea de S. Crispim, pintado na bandeira
dos sapateiros. O agarrador, grosso e baixo, mais pesado, voou rasteiro,
deixando metade da gola, as costas, e uma aba da casaca no punho do
moleiro, e foi bater, como pella despedida, no vulto enorme de certa
dona viuva e namoradeira, notavel pelo toucado impossivel e alteroso, a
qual occupava os ocios em tiroteio amoroso com um alferes da brigada da
marinha, pessoa corpulenta, forçosa, e de maus narizes, cuja carranca um
par de bigodes hirsutos e alastrados tornava ainda mais temerosa.

O prebendado com a pancada afocinhou o chão, não sem trazer comsigo
tambem de golpe o tambor mór de um dos regimentos, que por acaso seus
braços extendidos empolgaram na ancia de se amparar. O militar francez,
verdadeiro Alcides, arqueava n'aquelle instante o corpo com donaire, e
dobrado para traz, firme nas pontas dos pés, aparava com a palma aberta
o couto do bastão volteado com graça. A dona, impellida pelo
esbirro-tortulho, soltou um grito agudo, desabando de chofre sobre o
peito do seu Adonis. O volume era colossal, e o alferes desapercebido,
não podendo suster de pé posto o pezo d'aquella montanha de ternura, que
em cima d'elle o alluia, apalpou a calçada com as costas, mastigando uma
blasphemia por entre as guias dos bigodes.

O drama complicou-se então. Advertido pelo signal, o João da Ventosa
deixára em meio o monstruoso caneco de vinho de Torres, que saboreava, e
saltou da tasca vermelho e inflammado. A primeira figura, com que a
fortuna o obsequiou, foi a figura patibular do sargento Cabrinha, o qual
primeiro se offereceu ás iras do lavrador. Um murro capaz de fulminar um
touro prostrou o espião sem sentidos sobre o lagedo. Nem o sacrificador,
nem a victima tiveram tempo de proferir palavra. Ao mesmo tempo o
marchante, que vinha atraz, colleando os beiços com a lingua, esbarrando
com o quadrilheiro entufado em defeza do seu superior, despediu-o nos
bicos dos sapatos, e remetteu-o ao meio da rua, aonde se espalmou sobre
os pés gotosos de um frade arrabido, mestre e prégador, cujas rezas
nasaes paralyzou o baque repentino.

Finalmente, o Manuel Simões da Aramanha, que saíra em ultimo logar, como
homem de consciencia, porque não quizera deixar o copo cheio, encarando
com o _Sapo_, que se fazia pequeno como um verme a ver se escapava,
calado, mas terrivel de gesto, alongou o braço com a rapidez e a força
irresistivel da mola de aço, que resalta, e aferrando o aborto pela
nuca, com um murro metteu-lhe os dentes e os queixos pelas guelas, e
metade a rastos, metade por seu pé, seguiu com elle atordoado e alagado
em sangue o rasto dos companheiros. Os tres cortaram depois intrepidos
pelo meio da procissão alvoroçada, por entre as alas de tropa
baralhadas, e pelo centro dos magotes de povo em remoinho, e
entranhando-se por travessas e bêccos desertos esquivaram-se
modestamente aos justos applausos de suas proezas.

Cabrinha tornando a si, e os beleguins moidos e estirados, soltavam
gritos espantosos, bradando pelo soccorro da justiça. Respondeu-lhes a
bengala magistral do tambor mór, e a bainha de ferro da espada do
alferes, vingando com raiva incansavel o riso e as vaias da queda
desastrada no dorso dos delinquentes. O mais agil dos dois, o
homem-grelo, fulo de dor, e cego de medo, para se furtar ao chuveiro de
bastonadas, que não cessava de lhe afagar as costellas, atirou-se de um
pulo, ao meio do prestito, abalroou um desditoso cruciferario banhado em
suor, e encontrando-o em cheio, rolou com elle. Amotinou-se o vulgo,
ferveram juras, ameaças, e punhadas, e um patriota, que espreitava a
occasião, lembrou-se de açular a desordem, exclamando: «Fujam! fujam!
Ahi vem os inglezes!» Não foi preciso mais. O espanto e o terror obraram
prodigios. A multidão precipitou-se, e o tumulto tomou as proporções,
que sabemos.

Em quanto nos quarteirões da cidade baixa se representavam estas scenas,
corriam os tres auctores do motim direitos ao caes hoje chamado da
Areia. Chegados em poucos minutos viram uma falua do Riba-tejo de verga
de alto, e o arraes, seu conhecido, metteu-os dentro sem mais perguntas.
D'ahi a pouco navegavam rio acima, e o _Sapo_, sempre hypocrita e vil,
estorcia-se aos pés dos inimigos triumphantes, chorando e supplicando,
com prantos mulherís! Mas o Manuel Simões apontava-lhe para a cicatriz
da bala, com que o ferira na cabeça, o João da Ventosa encolhia os
hombros, e o Antonio da Cruz, grave e conciso, como um juiz do crime,
mandava-o calar, jurando-lhe que a arvore e a corda estavam promptas, e
não podiam esperar, e que a sua palavra, uma vez dada, havia de ser
cumprida. O arraes e os marujos, um ao leme, e dois á proa, assobiavam
como se não vissem, ou não ouvissem nada.

O vento soprou de feição, e ás dez horas da noite a falua atracava a
Villa Franca.




III

Um conciliabulo politico no anno de 1808


Voltemos á ponte da Asseca, de que ha tanto estamos ausentes.

Vamos saber se o palacio arruinado conserva a sua reputação diabolica, e
se o João da Ventosa, depois do façanhudo murro, que esboroou quasi a
cabeça ao sargento Cabrinha, se recolheu são e salvo a seus lares, ou se
a vingança do espião punido o obrigou a tomar ares mais fortes no
exercito nacional do general Bernardim Freire. Avisinhemo-nos com certo
resguardo. É noite, e ainda com o luar claro podem tomar-nos por
francezes, e pescar-nos com alguma bala patriotica.

Deram onze horas. Provavelmente o patrão e os creados dormem a somno
solto esfalfados do trabalho da eira e dos carretos do celleiro. Não! Ha
luz no quarto terreo. Espreitemos! Lá está o lavrador sentado com o
sabido caneco ao lado, o bojudo cangirão defronte, e o eterno Manuel
Simões a fazer-lhe a segunda. Estes pelo menos não emigraram para o
Porto, nem mudaram de costumes.

A opinião de que os tumultos do Corpo de Deus tinham sido obra de uma
conspiração mallograda salvou das perseguições da policia os tres
camponezes. Uma das pessoas, que podia denuncial-os, o sargento
Cabrinha, agonizava no hospital accommettido de uma congestão cerebral,
e com a perna esquerda partida e amputada, tudo fructos amargosos do
funesto dia, que o céu destinára para castigo de seus crimes. Mesmo que
escapasse da amputação e á febre, o que os facultativos duvidavam, todos
prognosticavam que acabaria demente, ou nescio.

Restava o Gaspar Preto, o _Sapo_, do qual nos despedimos a ultima vez,
deixando-o entre as garras de dois inimigos resentidos e inexoraveis, o
Antonio da Cruz e o fazendeiro da Aramanha. O que é feito d'elle?

Tres dias depois as mulheres que iam ceifar ao campo, passando pelo alto
do Valle, viram de longe balouçado pelo vento nos galhos da figueira do
José Lopes, a mais elevada e formosa arvore dos contornos, um vulto, que
á luz incerta e na meia treva do alvorecer, tomaram por espantalho
pendurado para assustar os passaros.

Palraram, discorreram, entre si as comadres e as visinhas ácerca
d'aquella novidade, e acabaram por decidir, como verdadeiras pêgas
curiosas, que o caso merecia exame. Subiram a encosta. Quando chegavam
acima, rompia ainda pallido o primeiro raio de sol. Soltaram um grito de
susto, e ataram as mãos na fronte! O espantalho era um homem enforcado!

Quizeram fugir, mas o peccado de nossa mãe Eva deteve-as. Antes das
linguas paroleiras tocarem a rebate no logar e nos arredores era
indispensavel conhecer o infeliz. As mais velhas e resolutas armaram-se
de valor, e approximaram-se. Outra exclamação, em que o espanto se
revelava mais, do que o dó, chamou em volta d'ellas as raparigas. O
padecente, que em vida fôra assaz feio, apparecia-lhes medonho n'este
patibulo repentino com a cabeça pendente, a lingua fóra da bôcca, e os
olhos esbugalhados e saidos das orbitas. Tinha as mãos amarradas atraz
das costas e um rotulo no peito, que dizia: «Justiça de Deus! Por
Judas!»

As mulheres benzeram-se em silencio, e olharam umas para as outras. O
medo curou-as por um instante da loquacidade. Apezar das contorsões, que
desfiguravam o rosto da victima, e que a morte como que immobilizára,
petrificando-as com sua rigidez, aquella cara, tantas vezes vista, não
podia enganar a memoria das matronas e donzellas. Era o _Sapo!_ o _Sapo_
garrotado!

Satisfeito este ultimo instincto de sua indole, as mulheres
dispersaram-se como um vôo de gralhas ao tiro do caçador, e esquecendo a
ceifa e o jornal, correram, como loucas cada uma para sua parte, a fim
de espalharem a noticia. O primeiro, que avistaram, e a quem a deram,
foi ao Antonio da Cruz, que acharam assentado á porta do moinho, com o
cigarro acceso na bôcca, e a espingarda ao lado. Escutou-as sem se
alterar, saccudiu o lume com um piparote, e erguendo-se vagaroso e
sereno, respondeu-lhes:

--Então! São coisas! Deus escreve muitas vezes direito por linhas
tortas! O velhaco não merecia uma, mas cem forcas.

Fechou depois a porta, metteu a chave no bolso da vestia, e partiu
direito a Santarem pela Ponte da Asseca sem olhar para traz. A isto se
reduziu da sua parte a oração funebre do desgraçado malsim!

O povo commentou, como costuma, o successo, repartiram-se os votos sobre
a causa e os auctores da execução, porém nem um só dos patriarchas da
aldeia se lembrou de boquejar no Antonio da Cruz. Os contrabandistas,
como tinham os hombros largos, carregaram com todas as culpas, e a
versão mais seguida foi que o desditoso _Sapo_ recebêra de alguns
d'elles com capital e juros o premio de suas espertezas e denuncias.

No emtanto os acontecimentos politicos adeantavam-se. A revolução do
norte creára forças, e os francezes, acossados e repellidos de toda a
parte pelas populações iradas, já não chamavam seu, senão ao terreno que
pisavam. A derrota dos insurgidos do Alemtejo por Loison em Evora, o
saque e o martyrio da cidade levada de assalto, longe de acalmarem os
animos, exaltaram-n'os com a narração exagerada dos horrores perpetrados
pelos francezes. O nome de Loison, já odioso, tornou-se execravel; e a
sêde de vingança accendeu-se em todos os peitos, ardente e implacavel.
Lisboa principiou a agitar-se. Os moradores mais abastados, fugindo ao
jugo detestado dos estrangeiros, accolhiam-se ás provincias sublevadas.
A cidade tornou-se um deserto. Em pleno dia as ruas eram silenciosas,
como se a peste as houvesse despovoado. A falta de communicações com o
norte e o sul do reino, e com o mar, elevou o custo dos generos a preços
fabulosos, e a escacez do trabalho assentou a miseria e a fome no
albergue do pobre e do operario. Os proprietarios não recebiam suas
rendas, nem os empregados seus ordenados. Mais de vinte mil pessoas
decentes, que viviam dos salarios da côrte e dos lucros do commercio,
pediam agora esmola! Os habitantes ruraes, intimados para entregarem as
espingardas, evadiam-se em grande numero com ellas, e iam engrossar a
insurreição. Ninguem podia sair as portas de Lisboa sem passaporte. As
bombas, os foguetes, e os fogos de artificio, alegria e paixão das
festas e arraiaes, foram prohibidos. Emfim todas as oppressões e
violencias se accumulavam para apressar as horas de dominio, que o
governo francez ainda havia de contar, quasi reduzido á capital do reino
e suas cercanias.

Leiria, vendo o Porto, Braga, e Coimbra levantadas, quiz imital-as com
mais zelo, do que prudencia. Os vaticinios patrioticos do morgado de
Penin, excellente portuguez e pessimo soldado, não se tinham cumprido,
senão na parte mais facil. O resto, o peior da empreza, encarregou-se o
brigadeiro Margaron de o concluir por ordem de Junot. O ex-coronel de
cavallaria e alcaide mór Rodrigo Crespo, e o coronel do regimento de
milicias Isidoro Pinto Gomes, com um punhado de soldados
indisciplinados, unidos ao capitão mór das ordenanças do termo, Manuel
Carranca, sonharam uma restauração temeraria, decidiram o bispo a cantar
um _Te Deum_ na egreja matriz, e passeiaram em triumpho entre
acclamações estrepitosas o estandarte de Portugal.

Vimos com que leviandade o major Alvaro e o morgado de Penin discutiam
os seus planos de rebellião, como se os veteranos de Bonaparte fossem
soldados de chumbo, ou de papelão. As avançadas inimigas, entrando em
Rio Maior, despertaram os dois velhos crianças de suas illusões. O
galope de seus cavallos, reputados os melhores da Extremadura, salvou-os
de ficarem prisioneiros e trouxe-os já meio desenganados a Leiria, aonde
a sua presença sobre-excitou as paixões, em vez de as aplacar. Todos
juraram morrer defendendo os muros derrocados e o castello da terra
natal; anoiteceu porém, e os heroes, conversando com o travesseiro,
sentiram esfriar repentinamente os brios. O prelado recordou-se de que,
ministro de um Deus de paz, devia abominar o sangue, e, cavalgando a
mula episcopal, apartou-se a bom andar do sitio da tentação. Muitos dos
granadeiros da independencia, que na vespera rachavam ainda os céus com
féros brados, lembrados de que á noite todos os gatos são pardos,
aproveitaram o escuro, e eliminaram-se sem ruido, mais cuidadosos da
saude do corpo, do que do esplendor de suas armas. Ficou o povo, gente
quasi inerme, alvoroçada, e inconstante. A primeira descarga inimiga
varreu, como pó, essa plebe, e abriu as portas aos francezes. Como
Achilles os lidadores de Leiria sobresaíram na ligeireza dos pés!

Mas até os triumphos de Junot conspiravam a sua ruina. Cada derrota dos
portuguezes levantava em favor da independencia milhares de braços.
Quando um povo inteiro se torna inimigo, o seu nome é legião, e a fabula
de Cadmo realiza-se. Evora e Leiria volveram logo a si, e Loison e os
generaes estrangeiros recuaram. A ambição de Bonaparte cansára a
fortuna, e Deus tinha designado a peninsula para theatro das primeiras
licções dadas ao seu orgulho, e dos primeiros revezes experimentados
pelas suas aguias. Encarando o bello sol das Hespanhas, a estrella do
imperio sentiu esmorecer o brilho, e começou a declinar.

Os adversarios irreconciliaveis, aos quaes o novo Cesar imaginou cerrar
para sempre nossas praias, saltaram n'ellas como libertadores, e
romperan essa guerra, alternada de victorias e revezes, que só havia de
findar ás portas de París. Sir Arthur Wellesley á frente dos soldados
embarcados em Cork, seguidos de perto pelas tropas de Sir John Moore,
transportadas do Baltico, combinando as operações com o almirante Sir
Charles Cotton, e com os generaes, que dirigiam a insurreição de
Portugal, havia de pisar em breve a terra, aonde o esperavam tantos
tropheos, marchando direito sobre Lisboa, decidido a arriscar em um só
lanço a sorte de toda a lucta.

O duque de Abrantes era uma alma bem temperada. Se as prosperidades
entorpeciam a sua indole um pouco frivola, o infortunio, ou os perigos,
encontravam-o sempre intrepido. As más noticias não o desalentaram.
Decidido a disputar até á ultima escorva a capital do paiz, que por
momentos julgára esquecido dos seus reis e da sua autonomia, não
trepidou um momento, empregando todos os esforços para conservar
Portugal engastado como joia inestimavel no diadema do conquistador.

Para que a heroica decisão não desmentisse tão audaciosas esperanças,
era necessario reunir em Lisboa todas as forças activas. Kellerman
expelliu de Alcacer do Sal os bandos de guerrilhas, que a infestavam,
evacuou Setubal, e veio coroar com suas tropas as eminencias de Almada.

Todos os preparativos, ditados com vigor, correram rapidos. As
prevenções compativeis com o pequeno numero de bayonetas, que lhe
obedeciam, foram adoptadas a tempo. O general Graindorge defendeu a
margem esquerda do Tejo. O regimento 47.^o guarneceu o forte da
Trafaria, a torre do Bogio, e os navios fundeados. O regimento 66.^o
occupou Cascaes. A legião do Meio Dia a torre de S. Julião da Barra. O
regimento 26.^o cubriu Belem, o Bom Successo, e a Ericeira. O 15.^o
Lisboa e Sacavem. O marechal Travou foi nomeado governador das armas da
capital; o general Avril governador do castello de S. Jorge; e o conde
de Novion, á testa da guarda da policia rareada pelas deserções, e quasi
limitada ao seu estado maior, auxiliava a conservação da cidade,
reputada por Junot como base essencial de todos os seus projectos.

No dia 15 de agosto, anniversario do nascimento de Napoleão, o duque
logar-tenente reuniu ainda nas salas do palacio da sua residencia, a
nobreza, o clero, os magistrados, e os officiaes superiores, e
recebeu-os com um rosto tão alegre e prazenteiro, como se Catilina não
batesse quasi ás portas de Roma, ou como se o trovão dos canhões
britannicos, já bem proximo, não acordasse os echos dos campos de
batalha, aonde se ia jogar esta partida, que deu o signal a tantas
tempestades na Europa!

Eis o estado dos negocios, e pedimos venia ao leitor de o ter demorado
tanto na Ponte da Asseca com esboço tão informe de noticias politicas e
militares. Voltando atraz, e penetrando com elle discretamente no
corredor, meio alluido do andar nobre do palacio _maldicto_, pedimos
licença para o guiarmos pelo som das vozes, que parecem altercar em uma
sala proxima, até o seio mesmo do congresso dos conspiradores, que alli
pleiteiam competencias, e apuram alvitres afim de coadjuvarem as armas
nacionaes e os progressos dos alliados.

Era noite, já o dissemos, e noite adeantada. A lua alta nos ceus
espalhava o seu clarão sobre as aguas dormentes da villa, e prateava de
luz branca, franjando-as, as copas das oliveiras, trepadas pela encosta
fronteira. Tinham dado onze horas, e havia duas que os oradores
patriotas exgotavam toda a sua eloquencia sem se entenderem. A casa
vasta, arruinada, com os tectos a cair, e os sobrados a desfazer-se de
podridão, estava mais de metade mettida na escuridade quasi clara, que
fazia a sombra das paredes luctando com a lua e as estrellas. Todas as
janellas, que abriam para as hortas, sem vidraças, nem portas, deixavam
coar livremente o ar, e os ruidos de fóra, tão sensiveis na solidão e no
silencio nocturno.

Na parte mais reparada, entre duas portas quasi penduradas das couceiras
carcomidas pela ferrugem, via-se uma comprida mesa de pinho allumiada
por enorme candieiro de latão de tres bicos, cuja chamma enfumada a
aragem saccudia e ondeava. Á roda da mesa, ornada apenas de um tinteiro
de pau immenso, de pennas resequidas, e de papel em branco, sentados em
mochos toscos, viam-se alguns homens, tão diversos nos trajos e
maneiras, como na physionomia e expressão.

Na cabeceira, com a face recostada no punho, as palpebras quasi
fechadas, e certo ar de imperio indolente, estava um ancião, que a farda
de panno azul escuro com abotoadura e guarnições brancas, e dragonas de
cachos, denunciavam como official superior de um dos corpos de milicias.
Era o coronel Isidoro Pinto Gomes, que a espada do general Margaron não
podéra alcançar em Leiria, e que o zelo attrahia a todos os
conciliabulos patrioticos. O major Alvaro á direita d'elle, e o morgado
de Penin á esquerda, ambos de uniforme, e com os capotes, com que se
encobriam apezar da estação, abertos, ou derrubados para traz, compunham
o que hoje diriamos a mesa da presidencia.

Mais abaixo a farda verde comprida com vistas brancas e o chapeu armado
de outro personagem accusavam com evidencia egual o seu cargo de
capitão-mór de ordenanças. Manuel Carranca, tambem salvo por milagre do
conflicto de Leiria, inflammava-se em um debate violento com uma pessoa,
que o habito e o cordão, as bochechas redondas, a triplice rosca da
barba, e o ventre empinado proclamavam logo como um dos mais
apopleticos, irasciveis, e facciosos filhos de S. Francisco. Este padre,
conhecido e respeitado como orador sagrado, pertencia ao convento de
Santarem, e chamava-se fr. João Salgado. O segundo interlocutor, com o
qual repartia os thesouros da dialectica, ainda moço, pallido,
melancholico, e esbelto, sem lhe ceder uma pollegada de terreno,
sorria-se dos clamores freneticos do reverendo, e parecia atiçal-os
mesmo com prazer maligno, lançando no meio de suas apostrophes uma
interjeição, ou uma exclamação repentina, que tinham a virtude de fazer
saltar o theologo aos ares como uma mina carregada. Os outros conjurados
ouviam calados, trocando apenas algum relancear de olhos, como no circo
os espectadores comtemplam as vicissitudes da lucta entre dois campeões
afamados, contentando-se com o espectaculo, e abstendo-se de o perturbar
com os seus applausos, ou com a sua reprovação.

--Os laços da prudencia humana não me prendem! exclamava o padre com o
barretinho de seda arregaçado para a nuca, a calva purpurea, e o
sobrolho franzido... Mais poderoso e forte do que todos os artificios
mundanos é o Senhor dos exercitos!... Para vencermos os jacobinos basta
a candura da pomba.

--Cuidado com as garras do milhafre!... interrompeu pela terceira vez o
mancebo pallido com um sorriso ironico.

--Ao milhafre atira-se, sr. Mannel Coutinho, gritou o bellicoso servo de
S. Francisco, ferindo a mesa com o punho cerrado. Bons caçadores temos,
e se for preciso, Deus pela sua infinita misericordia fará um milagre em
nosso favor.

--Nada de milagres! accudiu o capitão-mór de ordenanças, Manuel
Carranca, o qual, rouco de gritar, aproveitava o incidente para
locupletar com duas valentes inspirações o pulmão estafado. Nada de
milagres! Se v. s.^a rev.^{ma} julga, que os francezes fogem com
estolas, hyssopes, e caldeirinhas de agua benta, engana-se redondamente.
Vá a Leiria, e lá lhe dirão de que serviu o bello cantoxão do bispo e
dos clerigos!... Safa! Tenho ainda nos ouvidos os bérros das peças de
artilheria, e os alaridos d'aquelles malditos granadeiros... Pareciam
gatos a marinhar e leões a arremetter...

Esta apostrophe, sem desmaiar a resolução dos ouvintes, tornou mais
grave o rosto de alguns. Houve até quem applaudisse com um aceno de
cabeça assaz expressivo a rustica e quasi impia declaração do
capitão-mór. As momices bellicosas e varias do franciscano começavam a
aborrecel-os. Veremos no capitulo seguinte a verdade do adagio: Pela
fructa se conhece a arvore!




IV

Reina a confusão no campo de Agramante


Fr. João era o mais irado, ou antes, era o unico irado. O seu labio
superior, extendido como tromba cresceu, e a barba de tres andares
descaíu-lhe com o beiço de baixo quasi até o peito, signal manifesto de
seu despreso. O suor da colera, colera de frade, oleosa e leveda,
inundou-lhe a testa. As pupillas faiscavam.

--Santo Deus! que ouço!... atalhou pondo-se em pé, hirto e furioso, e
alçando os braços como se afagasse a peroração do melhor de seus
sermões. É o sr. Manuel Carranca quem profere taes blasphemias, ou é
algum inimigo de Deus e da patria?!...

--Padre mestre! accudiu não menos irritado e furibundo o arguente
interpellado, já tambem de pé. Não me tente a paciencia! Eu digo a
verdade e não solto blasphemias. Pão pão, queijo queijo! Nunca tive
trato com mouros, judeus, ou herejes, nem consinto que ponham nota na
minha religião, entende?...

--Se não quer ser lobo não lhe vista a pelle. Sou ministro de Deus, e
não adulador de poderosos. Castigo os que erram! replicou o orador com
um gesto inimitavel de desdem olympico.

--Castiga? Diz que ha de castigar-me?!... bradou o capitão-mór livido e
convulso de raiva.

--Digo-lhe que já o castiguei, e que hei de continuar!... retorquiu o
frade não menos rascivel crescendo dentro dos habitos.

--A mim! Manuel Carranca, morgado e capitão-mór de ordenanças de Leiria,
pae de familia, e homem de sessenta annos de edade?!... insistiu o outro
suffocado, roxo, e com os punhos cerrados.

--Quem o ouvisse não lhe faria doze annos! Uma criança não fala mais
loucamente; concluiu fr. João encolhendo os hombros, limpando o suor, e
sentando-se de golpe.

--Sabe que mais, sôr padre? gritou quasi em delirio o aggredido. Tenho
pena de o ver de saias. Senão!... Juro-lhe por alma de Eufrasia, minha
santa companheira, que Deus tem, que deixava metade da pelle agarrada
aos nós da corda, com que o havia fustigar!...

Só o pugilato podia terminar a contenda, chegada a estes termos. Fr.
João parecia possesso. Sentava-se, erguia-se, estorcia-se, clamava, e
accusava, defendia-se, ameaçava, enternecia-se, e elle só fazia mais
ruido, do que cem mendigos implorando voz em grita a caridade dos fieis.
O seu adversario ria-se com despreso das contorsões do prégador, e
repetia entre gargalhadas nervosas, quando uma pausa nos accessos do
reverendo lh'o consentia:

--Juro-lhe! Se os frades como as mulheres, não vestissem saias, o padre
mestre saía esta noite d'aqui em carne viva!

O auditorio escutava calado e neutro as imprecações dos contendores,
ria-se das interjeições e dos trejeitos, e murmurava, porque se perdia
em puerilidades similhantes um tempo precioso.

A algazarra dos dois subiu, porém, a tal ponto, que o coronel de
milicias, que dormitava talvez encostado ao punho, como insensivel ao
ruido, que o cercava despertou meio sobresaltado, abriu metade das
palpebras preguiçosas, e articulou em tom pausado sómente estas
palavras:

--Que vozeria é esta, senhores? Estamos á porta de algum açougue, ou em
uma casa honesta, deliberando a bem da patria? Peço socego.

Não foi preciso mais. Tudo emmudeceu. Isidoro Pinto Gomes era um ancião
veneravel, nobre pelo sangue, exemplar pelas virtudes, e acatado
geralmente.

--Vamos! Proseguiu. Não é já cedo, e é preciso sem demora concluir! E
correu a vista serena pelos collegas, detendo-a um pouco severa sobre o
frade e o capitão-mór, que, sentados um defronte do outro, ainda se
ameaçavam com os olhos. O sr. fr. João Salgado propunha que montassemos
a cavallo, e partissemos d'aqui a levantar Santarem, Villa Franca,
Leiria...

--Todo o reino, sr. coronel. È facil! interrompeu o padre.

--È fácil de fazer e difficil de sustentar, redarguiu Manuel Coutinho.
Os francezes ainda estão em Abrantes e Lisboa...

--É para os lançar fóra que eu queria que todos esses povos armados...

--E vossa reverendissima conta acompanhar-nos e combater ao nosso lado?
interrogou o coronel sempre com a mesma gravidade.

--Certamente! exclamou o prégador menos enthusiasmado já. Com as minhas
orações, com as armas espirituaes...

Uma risada estrondosa de escarneo, desatada com insolencia pelo
capitão-mór, estrangulou-lhe entre os dentes o resto do discurso.

--Sr. Manuel Carranca, observou Isidoro Pinto, risadas não são razões.
Queira reportar-se. Estamos em acto serio, e que póde custar a cabeça a
todos nós... Continuemos! As armas espirituaes de grande auxilio nos
poderão ser, porém infelizmente não bastam. Junot e os seus soldados
pelejam com valentia, e não se dispersam com exorcismos. Sr. Manuel
Coutinho, o seu voto? Vem de Lisboa, é militar, e tem prudencia. O que
entende?

--Que novos levantamentos nos atrazam em vez de nos adeantar. Os
francezes são soldados, e bons soldados, força é confessal-o, e só por
outros soldados podem ser vencidos. O povo tem desejos e vontade, mas
falta-lhes disciplina...

--_Deus super omnia_! exclamou o incorregivel fr. João. Não lhes queria
estar na pelle se de Leiria até ás abas da capital toda a gente se
levantasse contra elles. Só os nossos campinos e guardadores, que
formoso esquadrão! De mais Lisboa está á primeira voz. Sei-o com
certeza. O Conselho Conservador na primeira occasião atira pelos ares os
inimigos de Deus e de el-rei...

--Vossa reverendissima está enganado! respondeu o mancebo inalteravel,
em quanto o frade rubro e arquejante esponjava com o lenço de algodão o
suor da eloquencia, e sorvia uma apoz outra tres pitadas triumphantes de
esturro.

--Estou enganado?! bradou. Queira dizer em que?

--Em tudo. Primeiro o povo não se levanta assim de repente e todo.
Depois os campinos e guardadores não aturam uma carga de cavallaria ou o
fogo da artilharia, a qual alcança longe, e mette medo. Por ultimo a
cidade de Lisboa não se move!...

--Ora essa! Muito mal nos iria então!...

--Porque? Não marcham os inglezes de Montemór, ao pé de Coimbra? Confie
mais n'elles, que sabem fazer a guerra. O general Bernardim Freire com
as milicias e voluntarios tambem avança. O que queria de Lisboa? Uma
revolução de paizanos? As baterias do castello e as bayonetas de Junot
depressa a venceriam. Ninguem deseja mais a capital liberta, do que eu,
como portuguez, como militar, e... Os outros motivos são só meus. Mas
conheço a necessidade e resigno-me. A nossa causa ha de triumphar nos
campos de batalha, e não nas ruas, e com tumultos. As victimas já não
têem sido poucas.

--Qual é então a sua opinião, sr. Manuel Coutinho? observou o coronel,
calando com um volver de olhos imperioso a loquacidade do prégador, que
abria a bôcca para replicar. O que devemos fazer?

--A minha opinião é que montemos a cavallo, recrutemos o maior numero
possivel de homens valentes, e que sem ruido nos vamos unir ao exercito
de operações. O nosso posto é lá.

--Muito bem! Sou do mesmo voto. O que dizem os senhores?

--Que estamos promptos, disse o capitão-mór de ordenanças. Ardo em
impaciencia de tirar uma desforra mestra da grande sova de Leiria...

--E nós todos de tirarmos desforra da invasão! atalhou Isidoro Pinto com
dignidade. Partiremos esta madrugada, e se Deus quizer seremos mais
felizes d'esta vez.

--Que gloria, senhores, para nós e para nossos descendentes! exclamou o
morgado de Penin, cujo enthusiasmo facil de inflammar se exaltava
n'estas occasiões. A patria libertada, Portugal triumphante!...

--O que não rirá sua alteza real o principe regente, quando souber como
nós por cá tractámos os francezes! Para mim o melhor dia da minha vida
ha de ser o ditoso momento em que possa beijar os augustos pés do meu
rei... Oh, se elle voltar, e ha de voltar, apezar de indigno filho de S.
Francisco, irei com o povo puchar aos varaes da sua carruagem!

E espraiando o zelo monarchico n'esta jaculatoria servil, o frade corria
os olhos, de que já saltavam as lagrimas de uma alegria antecipada, pela
assembléa soffrivelmente fria, ou quasi hostil á demonstração.

--Sr. fr. João, disse o coronel de milicias, levantando-se, e alçando a
cabeça com ar magestoso, se o principe D. João voltar, e Deus o traga
depressa, deixe ás mulas de Alter, cujo é, o peso do seu coche. Essas
mãos sagradas são para os officios divinos, e não para as tarefas dos
cocheiros...

--Mas! replicou o frade interdicto e atalhado com a licção. Não estamos
todos aqui ajuramentados para verter até á ultima gota de sangue pelo
principe e pela familia real?... Se não fosse isto e a santa religião
tanto fazia Bonaparte como qualquer outro.

--Eu lhe digo! redarguiu Isidoro Pinto. Sou portuguez e sou catholico.
Como portuguez quero morrer livre aonde nasci; como catholico detesto os
que adoram o meu Deus só com os labios, roubando e profanando os
templos, prendendo e espoliando em Roma o vigario de Christo. Depois de
Deus e da patria--mas só depois--é que vem para mim a restauração do
throno de nossos reis...

--Depois?! É singular! murmurou fr. João contrariado e aggressivo.

--Pois não devia achar singular, redarguiu o coronel serenamente. E
senão diga-me: Para que são os reis?...

--Essa é boa! Para que são?!... Deus instituiu-os...

--Como pastores, guardas, e defensores dos povos. E o que defendeu, ou
guardou o principe regente? A sua pessoa, as suas alfaias, a sua
segurança. A nós mandou-nos abrir as fronteiras, e entregou-nos
manietados por uma ordem sua aos inimigos, de que fugia.

--Nunca tal ouvi! clamou o prégador attonito. O que queria o sr. coronel
que sua alteza fizesse em tão grande aperto?

--O que fez D. João I e D. João IV. Que ficasse! Era a sua obrigação. Os
reis não estão acima de todos para se esconderem dos perigos atraz dos
ultimos vassallos, ou para esperarem que elles combatam e vençam na sua
ausencia.

--Que importa isso? Não estamos nós?

--Importa muito! É verdade que estamos, mas elle falta; e em quanto sua
alteza, que Deus guarde, saboreia a duas mil leguas d'aqui os ananazes e
bananas da sua xacara de S. Christovam, choramos nós a liberdade perdida
mettidos no captiveiro, em que nos deixou...

--Mas sua alteza não se esqueceu de nós. O seu manifesto declarando a
guerra á França!...

--Ah sim! Bem sei! Declarou-lhes a guerra! Quem a sustenta? Nós e nossos
filhos com o sangue vertido no campo e nos patibulos, com as casas
saqueadas e reduzidas a cinzas, com os bens e a saude arruinados. A
côrte festeja de longe o nosso valor. A Gazeta do Rio chama-nos heroes;
porém!... Uns comem os figos, e aos outros arrebenta-se-lhes a bôcca.
Acha isto justo, nobre, e bem feito? Se acha, faz mal, se concorda,
calo-me. O principe e os titulares hão de voltar, quando lhes abrirmos
as portas; em quanto houver perigo, não! Se os cavalheiros de provincia,
se o clero, se o povo imitassem tanta ingratidão--tamanha
vergonha--deixe-me chamar as cousas pelo seu nome, Portugal seria de
Napoleão, de Junot, do principe da Paz, da Hespanha, de todos, emfim,
menos de quem o desamparou para cuidar de si. Louvado Deus, se o rei
fugiu, e desertou do throno, nós lembrámo-nos da nossa historia, dos
nossos brios, e do nosso juramento. Esqueceremos apenas... que estamos
combatendo sós! Quando o senhor D. João e os fidalgos se recolherem,
nós, pobres e mutilados, mas honrados, iremos dar-lhe os parabens, e
tornaremos logo para casa a ver se ainda salvamos do naufragio o pão de
nossos filhos... Peço desculpa d'estas palavras, meus senhores! ajuntou,
cortejando os conspiradores, que o tinham ouvido silenciosos, porém
sympathicos. Sou velho, e os velhos têem o defeito ás vezes de falarem
muito. Prometto emendar-me, porque a occasião é de acções, e não de
palavras. Amanhã de madrugada partimos. Boas noites! São horas de
descanço.

Fr. João mettia dó. A sua filaucia oratoria, punida pelas sinceras e
sisudas reflexões do coronel, tinha-se convertido em humildade, em mais
do que humildade, em consternação. A verdade e a justiça das queixas,
que ouvia, eram tão evidentes, que não lhe consentiam replica.
Arrependido de as ter provocado, apertou com expressivo ardor a mão do
velho cavalheiro, e com os olhos baixos e modos contrictos encaminhou-se
ao aposento, em que o aguardava a cadeira, em que havia de repousar. Os
seus amigos não tinham melhor leito.

Os outros cavalheiros iam separar-se egualmente, quando os assustou o
tropear de muitos cavallos caminhando a trote largo. Manuel Coutinho por
uma fresta das tabuas, que tapavam uma das janellas rasgadas sobre a
estrada, espreitou com precaução, e ao clarão do luar viu reluzir os
cascos, e peitos de armas dos dragões francezes. Ao mesmo tempo uma voz
forte dava a ordem de alto, e por um instante tudo caiu em silencio. Os
conspiradores olharam uns para os outros e instinctivamente levaram a
mão ao punho da espada. O mancebo continuava entretanto o seu exame sem
se sobresaltar.

--É uma escolta de seis homens, e acompanha dois officiaes! disse elle
retirando-se. Somos doze, e os nossos creados que dormem na granja
muitos mais e decididos. Apaguemos já a luz, vamos para o outro lado do
palacio, e demos tempo ao lavrador de nos avisar. Naturalmente os
francezes pedem hospedagem, e passam aqui a noite...

--Se assim for! E a nossa jornada?! atalhou o capitão-mór de ordenanças.

--A nossa jornada está primeiro do que elles! accudiu sorrindo-se Manuel
Coutinho. Simplesmente o que póde acontecer é apresentarmo-nos com
alguns prisioneiros ao exercito.

--Excellente! Excellente! gritou a voz de trovão do morgado de Penin.
Vamos a elles. Que nenhum escape!

--Mais baixo, senhor morgado, mais devagar! Não acorde o leão que dorme.
Os soldados é facil apanhal-os aonde ficam. Os officiaes ainda mais. O
João decerto os mette nos quartos, que sabemos, e pela porta de
espelho... Entretanto por causa das suspeitas, e porque esta casa ainda
póde ser-nos util, sou de voto, que os assustemos e afugentemos com uma
representação de fantasmas... e que á saída lhes demos a voz de presos.

--Lá está o João da Ventosa com elles à fala! observou o major, que
espreitava á janella: Apeiam-se! A ceia que os espera ha de custar-lhes
a digerir.

--Deram-nos tão mau almoço em Leiria, atalhou rindo o coronel, que lhes
devemos esta ceia. Vamos ensaiar os nossos papeis.

D'ahi a um momento estava deserta a vasta sala. Os conspiradores tinham
desapparecido por uma porta falsa, aberta na parede com tal arte, que
ninguem seria capaz de a descobrir.




V

Francezes á meia noite


Em quanto Manuel Coutinho e seus amigos traçavam á pressa o plano, que
acabámos de escutar, os dois officiaes francezes batiam, chamando o
lavrador com a auctoridade de quem mandava.

João da Ventosa e Manuel Simões conservavam-se ainda na mesma posição,
mas os canecos tinham ido tantas vezes á fonte do cangirão, e o summo da
cepa fôra tão seductor, que, apezar de suas dimensões respeitaveis, o
alentado vaso estava quasi no fundo. A lingua começava a pegar-se ao céu
da bôcca dos dois bebedores, e os olhos a piscarem-se. Ambos cabeceavam
a compasso com aquelle sorriso beatifico e petrificado, proprio da
embriaguez mansa, quando as pancadas rijas dos militares os despertaram
em sobresalto.

Saltaram de um pulo para o meio da casa. O baralho sebento e coçado do
uso quotidiano, com que haviam jogado a bisca voou das mãos ao
fazendeiro espavorido, e as cartas espalharam-se ao acaso pelo chão. As
proezas contra os agentes de policia de Lisboa, e a execução summaria de
Gaspar Preto, (o _Sapo_), eram dois espinhos, que não lhes deixavam a
consciencia tranquilla. A todas as horas tremiam de ver a justiça á
porta, sem animo todavia para fugir, o que acontece varias vezes.

--O que será? balbuciava o robusto camponez da Aramanha. A modo que
sinto patas de cavallos lá fóra. Arrastam espadas. Com mil cobras!
Estaremos caídos na esparrella, sôr compadre?

--Valha-o um milheiro... de lacraus, homem! retorquiu o companheiro de
copo, affectando serenidade, porém mais morto, do que vivo tambem.
Sempre se lembra de cousas!... Não é nada, aposto! Não ha de ser nada...

--Deus queira! Mas olhe: não gosto nada de francezes á meia noite!...

--Nem eu com a breca! Caluda! Batem como quem se despede. Os
excommungados, se não abro, pregam-me com a porta dentro! Vamos! Alma
até Almeida!... O que fôr soará. Você ouve? Fique-se ahi para esse
canto, estire-se, durma, ou finja que dorme, e nem tugir, nem mugir.
Deixe-me cá a mim com elles! Muito finos hão de ser se metterem os pés
pelas algibeiras ao João!... Ahi vae! Ahi vae! Isto aqui não é nenhuma
estalagem!...

E rosnando, e gritando, o lavrador accudia o mais devagar, que lhe era
possivel, contando os passos, tropegos das libações e do susto.

A porta desaferrolhou-se por fim, as trancas rangeram e cairam, e o
pobre João da Ventosa esteve quasi perdendo os sentidos, quando viu
deante de si os dois officiaes francezes apeiados, e a escolta ainda a
cavallo. Um tremor invencivel apoderou-se-lhe dos membros, e um suor
frio, acompanhado de arrepios suspeitos pela espinha dorsal, acabou de o
paralyzar. Em um instante passaram-lhe pela mente todas as conjecturas
lugubres, que o medo podia forjar. Sentiu os ossos dos dedos estalados
com os anginhos e os braços cortados com as cordas. Viu-se na enxovia
comido de miseria, nas garras do escrivão e do carcereiro, dois abutres
insaciaveis. Ouviu e respondeu aos interrogatorios; e, convencido do seu
delicto, escutou a sentença de morte, entrou para o oratorio, e com os
cabellos hirtos e a lividez do terror encarou o espectro pavoroso da
forca...

Olhava, e não via, movia os beiços, e não falava, procurava arrastar os
pés, e elles parecia que tomavam raiz no chão! Foi um minuto de delirio
e anciedade, mas um minuto de tal agonia, que a outro qualquer toda a
cabeça se poria de certo branca. Entretanto era animoso, e recobrou-se.
O sangue quasi gelado aqueceu, os espiritos acovardados restauraram-se.

--Assim como assim, disse comsigo, melhor é acabar aqui de uma bala, ou
de uma cutilada, do que nas mãos do carrasco. Vivo não me levam elles de
casa, e muito inteiros não hão de ficar tambem. Veremos.

Tomada esta prompta resolução, socegou mais, levantando os olhos para os
recem-chegados. Os officiaes tinham-se arredado um pouco, e falavam a
meia voz com o sargento. Quando voltaram, um d'elles, cujo ar aberto e
espirituoso, rosto juvenil, e vista maliciosa não promettiam na
apparencia nenhum executor de ordens severas, tocou-lhe então no braço,
e na aravia arrevesada, com que os estrangeiros arremedam e estropiam de
ordinario o idioma portuguez, exclamou:

--Ah! Ah! O sr. lavrador é que é o dono da casa dos fantasmas? Venho
fazer-lhe uma visita de proposito, e pedir-lhe que me arranje um quarto,
aonde possa falar á vontade com os seus inquilinos, as almas do outro
mundo. Mal sabe as curiosas cousas, que desejo perguntar-lhes...

--A quem? bradou o João ainda vexado de receios. É escusado. Não sei
nada. Póde prender-me, matar-me...

--Prendel-o! Matal-o!... Quem lhe metteu essas loucuras na cabeça?...
Sou capitão, e chamo-me Armand d'Aubry. Ouvi falar d'este palacio e dos
fantasmas, que dão bailes e concertos á meia noite, e jurei convidar-me
com este meu amigo para assistir a um d'elles... Diga-me senhor, tem
bastante valimento na casa para me alcançar dos seus espectros o favor
de se não incommodarem por amor de mim, e de me tractarem como pessoa da
familia?...

O lavrador não sabia se estava sonhando, se estava acordado, ou se
aquelle homem era doido. Não o entendia, e fitando n'elle os olhos
espantados contemplava-o boqui-aberto e quasi nescio de estupefacção.

--A proposito! proseguiu o militar. Andámos um bom par d'estas suas
leguas portuguezas, que são eternas e cançativas, e estamos caindo de
fome e de somno. Póde dar-nos sem demora um pedaço de pão, um gole de
vinho, e uma cama? Aonde poderei alojar os meus soldados?...

--V. s.^a está em sua casa! redarguiu por fim o lavrador, respirando
mais desafogado. Queira entrar. Eu chamo já a velha e os creados, que
estão dormindo. É um instante em quanto se lhes fazem as camas e se
arranja alguma cousa para ceiarem. Sem ceremonia entrem camaradas!
Tragam os cavallos á redea e venham commigo. Graças a Deus temos aonde
aquartelar um regimento... Safa! accrescentou limpando depois o suor da
testa com as costas da mão. A gente não ganha para sustos! Sempre
cuidei!... Ah! E os outros lá de cima? E os creados d'elles que estão na
granja da encosta? Com a breca! Se dão com a lingua nos dentes vae tudo
por ares e ventos. Valha-me Deus!... Se eu nunca hei de acabar de ser
tôlo! Já minha avó me dizia: João, para que te mettes tu a dobar meadas
alheias?! Não ha remedio. É preciso fazer das fraquezas forças.

E juntando o exemplo ao preceito, a sua voz taurina fez saltar em um
momento, e pôr de pé os moços e a governante, accender o lume, e
preparar tudo para que a hospitalidade promettida aos dragões francezes
correspondesse á fartura e largueza, de que se prezava.

--Sabeis que este palacio negro e a caír faria a fortuna de um auctor de
novellas tragicas? observou em francez o companheiro de Armand, o
tenente Lassagne. Se os espectros o vexam, como se diz, devêmos
confessar que escolheram scena propria para seus terrores.

--Espero antes de nos separarmos, atalhou d'Aubry na mesma lingua, que
d'esta vez as almas do outro mundo é que hão de ter medo e fugir. Sei de
uma excellente receita para isso.

--Ah! Ah! E o nosso sargento, curtido em trinta campanhas, o que diz do
demonio e seus saquazes?

--Roberto?!... Ri-se e encrespa os bigodes. Tanto lhe faz combater os
austriacos e os prussianos, como os mamelucos, ou os subditos de sua
magestade infernal Satanaz I. É capaz de disparar á queima-roupa sobre
Asmodeu em pessoa.

--Ha de ser curioso! O meu receio unico é que os phantasmas se recolham
aos bastidores e addiem a representação. N'esse caso os logrados
seriamos nós....

--De certo!... Mas tenho motivos para crer que a noite de hoje entra no
programma diabolico. A demora em abrir a porta, a perturbação d'este
lavrador que me parece um contra-regra soffrivel de visões e espectros,
certo ar de mysterio e de desconfiança, tudo me faz suppor, que apenas
deitarmos a cabeça no travesseiro... teremos logo de a levantar para nos
entendermos com as almas do outro mundo. Aposto que lá em cima os
ensaiadores andam já a tombos com o averno, ou com o purgatorio?!

--Talvez! Então este casarão é o quartel general?...

--De todos os conspiradores, desertores, e foragidos, que nos fazem a
honra de detestar o nome francez como estrangeiro, como jacobino, e como
herege! Podeis estar seguro! Se dessemos busca ás salas e corredores
arruinados do andar nobre, punhamos a mão, juro-vos, sobre o ninho ainda
quente d'esses escandecidos patriotas, que se tornam invisiveis, sempre
que podem, para nos darem detraz dos muros e vallados os bons dias e as
boas noites com as balas das espingardas. Meu tio, o intendente Lagarde,
não hesitava, e a esta hora já tinha uma nuvem de beleguins e soldados a
cercar tudo, e a farejar e aforoar os cantos e desvãos... Eu... creio
mais nas minhas pistolas e na minha espada, do que nos laços e ardis da
policia, e ha tres noites que sonho a fio com delicias na probabilidade
de um duello, ou de um combate com uma legião de fantasmas...

Entrou n'este instante o João da Ventosa, e os creados,
multiplicando-se, pozeram a mesa, interrompendo o dialogo dos dois
officiaes. A ceia não tardou, e o lavrador, por calculo, ou por
generosidade, viu-se claramente, que desejava estimular por todos os
modos a sêde dos hospedes, convidando-os a libações repetidas, que a
natural sobriedade de Lassagne, e a prudencia de Armand tiveram o
cuidado de conter dentro de limites rasoaveis. Apezar dos louvores
encarecidos, com que o rustico Amphitryão encarecia os productos da
colheita ribatejana, e a despeito da qualidade fina e capitosa do licor,
os dois militares honraram o Baccho portuguez com summa circumspecção. O
amigo de Manuel Simões, pouco satisfeito, ao que parecia, e forçado nos
ultimos entrincheiramentos, ergueu-se para ir pessoalmente escolher na
adega duas garrafas, uma de Madeira, e outra do Porto, capazes,
affiançava elle, de vencer o jejum de um cenobita, a immobilidade de um
morto, e a frieza de um velho.

--Sentido! murmurou d'Aubry quasi ao ouvido do tenente. Os espectros,
segundo noto, são eruditos. Leram Virgilio, Horacio, e Vegecio. Este
aldeão medita uma nova edição do cavallo de Troia em formato reduzido. O
que elle vae buscar não é vinho, é somno para nos ter á sua
disposição...

--Nos meus dias de taful e de rapaz talvez se arrependesse, porque me
atreveria a beber o mar! disse Lassagne sorrindo, e retorcendo entre os
dedos as guias do bigode louro.

--Ah! Leão! Meu querido Leão! Muito verdadeiro é o adagio que diz: viaja
para aprenderes. Quem havia de suppor, que, sem sermos Samsão, vinhamos
encontrar em umas ruinas da Ponte da Asseca esta parodia dos artificios
biblicos de Dalilla?

--Oh! accudiu o tenente rindo. Dalilla de vestea, calções, e varapau?!

--Porque não? O habito não faz o monge. Álerta! Ahi vem o nosso homem, e
suspeito que a adega, como a famosa caverna de não sei que santo, ha de
ter uma bôcca aberta para o inferno. Deus me perdoe, se o calumnio,
porém creio firmemente, que elle foi saber a senha dos fantasmas para o
espectaculo d'esta noite.

As duas garrafas continham na realidade o licor precioso das colheitas
rivaes das vinhas do Douro e dos cachos insulanos, e tinham sido
escolhidas por um entendedor emerito. Os officiaes festejaram-as com o
alvoroço, que mereciam suas qualidades e seus annos, simulando mesmo
certa turbulencia, que a um observador mais habil, do que o João da
Ventosa, pareceria mais do que suspeita, se attentasse para a expressão
maliciosa dos olhos de Aubry, e para o sorriso ironico engatilhado nos
labios de Lassagne. Tudo tem comtudo um termo, e davam tres quartos para
a meia noite, quando os dois francezes, entre bocejos, e dando mostras
de excessivo peso na cabeça, pediram treguas, e manifestaram o desejo de
descançar das fadigas da jornada e dos effeitos narcoticos da campanha
bacchica. O lavrador accendeu dois castiçaes de casquinha, e mais
vacillante, do que elles, porque não se poupára durante o combate para
os estimular, guiou-os pela escada interior aos dois quartos, aonde,
como sabemos, já tinha aquartellado Leonor e seu pae na famosa noite,
immortalizada pelas proezas do sargento Cabrinha e de seus milicianos.

--Viva Deus! exclamou Aubry, rindo, depois de corresponder ás boas
noites e offerecimentos encarecidos do patrão, de fechar logo a porta a
duas voltas de chave, e de ouvir o ruido dos passos do rendeiro a descer
a escada. Viva Deus! Estamos nas covas de Salamanca, e aposto que
separados apenas por uma parede da sala regia aonde os fantasmas dão as
suas audiencias. Lassagne! Ha mezes passaveis por ser a primeira pistola
e a mais fina espada do regimento. Não deixeis ficar mal a destreza
n'estas ruinas, porque vos affirmo, que, vivos ou mortos, os que
entrarem n'este quarto, pela janella, pelo sobrado, pelo tecto, ou pelos
muros, não saem d'aqui sem dizer d'onde vem, e para onde vão.

--Virão elles? replicou o outro official, encolhendo os hombros com o
usal sorriso. Receio que algum diabrete os avise...

Não receieis. Não faltam. Diz-m'o o coração. A fortuna tem sido madrasta
commigo, e deve-me tanto, que de certo não me nega o gosto de ver e
apalpar um espectro, e de lhe perguntar noticias dos... inglezes, do
general Bernardim Freire, ou de algum guerrilha emboscado perto d'aqui!
Se vos parecer deixaremos para depois o itinerario do purgatorio e os
fogachos do inferno....

--Impio! respondeu o seu interlocutor em tom jovial. E não quereis que
nos chame esta gente jacobinos e herejes?! Em que acreditaes?

--Em Deus, que nos ouve; em Jesus, que nos remiu; na immortalidade, que
ha de unir-nos em espirito aos que amámos e chorâmos n'este desterro
chamado vida! retorquiu o mancebo de repente serio e quasi melancholico.
Mas!... São horas de apreciarmos os colchões das camas, e de dormirmos
um instante com os olhos abertos. Lassagne tendes o somno pesado?...

--Leve como um açor! Um nada me desperta.

--Bello! Eu tambem. Por esse lado não ha que temer. Agora as pistolas.
Optimo! As escorvas estão seccas e ardem bem. Tende sempre as armas á
mão. Boas noites! Deus permitta que os fantasmas se não arrependam.
Estou ancioso de os conhecer.

E o estouvado, rindo e espreguiçando-se, apertou a mão do amigo, pousou
as pistolas á cabeceira sobre um velador, e deitando-se vestido em cima
do leito, cerrou os olhos. Lassagne imitou-o. D'ahi a um momento
resonavam ambos.

Teria passado uma hora, e jazia tudo em profundo socego, quando Aubry,
que na realidade tinha o somno esperto de uma ave, accordou ao ruido
lento dos gonzos enferrujados da porta falsa, que abria sobre o seu
quarto, disfarçada com o velho espelho porta pela qual vimos verificada
a evasão de Paulo de Azevedo mezes antes. O mancebo tinha conservado a
véla accesa, e ao primeiro som esfregando os olhos, e reassumindo os
espiritos perturbados, sentou-se na cama, correndo a vista por todo o
aposento afim de perceber d'onde partia o assalto.

Um instante bastou para formar exacta idéa d'elle. A porta resistia de
velhice, mas, gemendo, cedia sempre, e o espelho recuava.

O sobrinho de Lagarde saltou de manso á casa, engatilhou as pistolas, e
com ellas nas mãos, e a espada núa debaixo do braço, pé ante pé,
encaminhou-se á entrada do quarto, em que repousava Lassagne.

Achou-o erguido tambem, e armado. Com o dedo sobre os labios
recommendou-lhe silencio. Os dois apenas trocaram um gesto. Não era
preciso mais. Estavam entendidos.

Aubry encobriu-se com o cortinado do leito; Lassagne atraz do vão da
porta, e ambos aguardaram que os espectros acabassem de vencer os
obstaculos. Queriam desenganar-se finalmente por seus olhos da
verdadeira significação das mysteriosas apparições, que vinham
visital-os. Não esperaram muito!




VI

Uma visão pouco sobrenatural


O espelho continuava a desviar-se, girando de vagar, descobrindo a porta
secreta. De repente dois vultos embuçados apontaram á entrada, e com
passos subtís adeantaram-se cautelosos. Atraz d'elles, como sentinella
no seu posto, ficou uma terceira figura com meio corpo na escuridão e
meio corpo frouxamente allumiado pelo escasso clarão da lanterna, que
trazia, a qual aclarava os tres personagens enroupados de mais para a
estação e assás pesados e volumosos para passarem por espiritos.

--Dormem! Estão apanhados! disse o primeiro em voz submissa.

--A luz?! respondeu o segundo. Aonde está o outro francez?...

--Ahi! Segure-o sem bulha. Este fica por minha conta!

--Bem!

Deram algumas passadas surdas, abriu o primeiro as cortinas da cama de
Aubry, correu o segundo com a vista o leito deserto de Lassagne.

Recuaram. Os officiaes, não só não dormiam, como tinham desapparecido!

--Fugiram! exclamou o vulto mais alto, levantando a voz.

--Manuel Coutinho! Sr. Manuel Coutinho! gritou o mais baixo. Fomos
sentidos. Os jacobinos pozeram-se ao fresco!

--Por onde? Não póde ser! Procurem bem! accudiu o amante de Leonor, que
era quem guardava a porta falsa.

--È verdade! Os nossos vélam! Fóra tudo está quieto!...

--De certo, sr. morgado! atalhou o capitão-mór. A esta hora os dragões
estão apanhados como coelhos na rede. Mas aonde se sumiram então os
homens?!...

N'este momento ouviu-se um silvo forte e prolongado da banda da estrada,
e dispararam-se dois, ou tres tiros quasi debaixo das janellas.

--Que é isto? bradou Manuel Coutinho. Estaremos vendidos?

--Não, meus senhores, não estão! accudiu Aubry, soltando-se de repente
das cortinas, que o escondiam, e cortejando com extrema urbanidade os
conspiradores.

Ao mesmo tempo Lassagne apparecia aos umbraes da entrada do quarto grave
e silencioso. As armas, que os officiaes traziam nas mãos, provavam, que
vinham apercebidos e dispostos para um encontro.

Houve um momento de pausa, durante o qual os cinco personagens reunidos
por modo tão singular se mediram e encararam sem proferir palavra.

--Conversemos, senhores! disse por fim o sobrinho de Lagarde. Não
imaginam a impaciencia, que tinha em os encontrar aqui. Andei doze
leguas a cavallo, sem resfolegar, e que leguas, santo Deus! para ter o
gosto de conversarmos cinco minutos!...

--Talvez se arrependa! bradou o morgado, carregando o sobrolho, e
fazendo o gesto de buscar no cinto as pistolas.

--Nada de imprudencias, por quem é!... atalhou Aubry, de repente serio,
e apontando as suas, acção que Lassagne imitou serenamente. Não
comecemos a narração pelo epilogo, erro crasso de rhetorica, segundo
affirmava o padre Laly, sabio professor do meu collegio. Tambem trazemos
com que responder, e menos mal. Deixemos, porém, as explicações de
polvora e bala para o fim se não nos entendermos. É melhor!...

--Pois bem, seja! redarguiu Manuel Coutinho. Caímos em uma emboscada,
e...

--E não sabe se o feitiço se virou contra o feiticeiro? interrompeu,
rindo, o official. Parece-me que sim. Queiram sentar-se, meus
senhores...

--Estamos bem! O que temos a dizer em duas palavras se acaba!...
exclamou o capitão-mór, que as maneiras polidas, mas zombeteiras d'Aubry
irritavam excessivamente.

--Quem sabe?! tornou o mancebo, fitando-o com ironia, e torcendo entre
os dedos e com graça as guias do bigode. A mobilia não é opulenta, mas
as cadeiras chegam. De mais soldados com pouco se contentam. Queiram
sentar-se. Muito bem! proseguiu depois de os ver sentados. Posso saber o
motivo a que devo a felicidade d'esta visita? O meu nome é Armand
d'Aubry, capitão do 1.^o de dragões da guarda...

--Ah! exclamou Manuel Coutinho com certo sobresalto, Armand d'Aubry?!...

--Exactamente. O meu companheiro chama-se o sr. Leão Lassagne, tenente
do mesmo corpo, conhecido dos austriacos, prussianos e hespanhoes pela
firmeza dos golpes e certeza do tiro...

Aqui o morgado e o capitão-mór enfadados da prolixidade dos cumprimentos
olharam um para o outro encolhendo os hombros. Manuel Coutinho, frio e
reportado, ouvia, sem desafinar a expressão intrepida do rosto, este
prologo cerimonioso de Aubry, não se dignando mesmo patentear o menor
indicio de impaciencia.

O official francez percebia maravilhosamente tudo o que passava pela
mente dos interlocutores, porém, simulando ingenuidade maliciosa,
divertia-se em ter suspensa aquella anciosa curiosidade.

--Ser-me-ha licito, agora, que dei conta de mim e do meu amigo,
perguntar o nome dos cavalheiros, que nos honram com a sua presença?...

--De certo! redarguiu Manuel Coutinho, inclinando-se levemente. Se nos
cobrimos com as trevas da noite é porque somos opprimidos, e ainda não
soou a hora de combatermos á luz do dia. Este senhor é o morgado de
Penin, administrador de uma das casas mais nobres e ricas da provincia.
Aquelle é o senhor capitão-mór de ordenanças de Leiria, Manuel Carranca,
pessoa distincta e estimada pelo nome e qualidades... Eu chamo-me Manuel
Coutinho, appellido não de todo obscuro, e fui desligado do regimento,
aonde servia como capitão... Bem vê, sr. d'Aubry, que está em excellente
companhia, e que, apezar da hora, não entrou em nenhuma caverna de
salteadores...

--Oh! Pelo amor de Deus! Quem se lembrou nunca de tal?!... Seria
importuno se insistisse em perguntar ainda a razão, porque tres
cavalheiros tão amaveis nos fizeram o favor de perturbar o nosso somno,
roubando aos espectros d'este palacio o segredo das visões theatraes?

--Nada mais justo! retorquiu o amante de Leonor. Precisavamos da casa
para nós, e não queriamos ser vistos, nem seguidos...

--E então, como o sr. Aubry muito bem disse, occorreu-nos roubar aos
espectros o segredo d'esta porta. Vinhamos...

--Prender os dois officiaes que julgavam adormecidos, na boa fé da
hospitalidade portugueza?!...

--Hospitalidade forçada! É verdade, vinhamos, deplorando que a guerra
nos coagisse a incommodar duas pessoas, que tanto careciam de repouso.
Felizmente d'esse remorso estamos absolvidos. Não interrompemos o somno
de viajantes cansados; encontrámos a vigilancia de militares affeitos a
todos os rebates dos campos...

--Mil vezes obrigado por tanta benevolencia! replicou Aubry, pagando
ironia com ironia n'este duello cortez, que espantava o morgado e o
capitão-mór, mais propensos aos argumentos de ferro e pau, do que aos
tiros dos epigrammas.

--E agora? interrogou Aubry, cuja alegria se apagou, convertida
subitamente a expressão risonha em aspecto quasi severo.

--Agora?! redarguiu Manuel Coutinho, levantando-se com os seus amigos, e
cortejando-o em ar resoluto. Agora, como não podemos espaçar mais a
partida, e decidimos vencer todos os obstaculos, offerecemos ao sr.
d'Aubry e ao sr. Lassagne as nossas desculpas pelo incommado, que lhes
causámos, pedimos-lhes que não nos disputem a passagem, e como seria
mais do que imprudencia deixar na rectaguarda inimigos tão valentes á
testa de uma força, vemo-nos constrangidos a rogar-lhes, que nos
entreguem as suas espadas...

--Ah! atalhou o official com um sorriso amargo. Não pede pouco. Pelo que
vejo chegámos...

--Áquellas explicações mais vivas, accudiu o mancebo, de que nos falou
no principio da nossa conversação... Creia que sinceramente o sinto...

--Oh! Não se afflija, por quem é! Estamos mais longe d'isso, do que
cuida. Pois, na realidade suppoz, que dois officiaes armados e
apercebidos haviam de ceder deante de tres homens?...

--Somos dez e quasí todos militares. Não ha deshonra. Veja!

De feito os outros conspiradores attrahidos pela demora acabavam de
apparecer á porta secreta, e, entrando, rodearam em um instante os dois
francezes, socegados e pacificos, como se tudo fosse pura ficção
theatral.

--Agora nós!... Ouça! observou d'Aubry. Lassagne não são os passos do
sargento Roberto? Abri a porta!

D'ahi a um momento assomava á entrada o vulto colossal e herculeo do
novo protogonista, o qual parou aprumado e hirto, com a mão na palla da
barretina, e o rosto invadido quasi todo por bigodes e suissas enormes,
aguardando de pé, respeitosamente, que o interrogassem. Os conspiradores
eram todos olhos e ouvidos.

--Quantos prezos Roberto? perguntou o official.

--Doze! Meu capitão!

--Armados?

--Até aos dentes.

--O meio esquadrão?

--Parte cérca o palacio, parte está na ponte e á bôcca da estrada do
Cartaxo.

--Houve resistencia?

--Dois tiros, mas não feriram ninguem.

--Aonde está o lavrador d'esta casa?

--Fugiu pelas vinhas com outro paizano.

--Que ordens déstes aos dragões?

--As vossas. Fogo sobre quem tentasse fugir pelas janellas, ou pelas
portas. Quartel a quem se rendesse.

--Bem! Desembainhae a espada. Vigilancia! Prompto á primeira voz! Meus
senhores ouviram? accrescentou, virando-se para os cavalheiros
portuguezes, e cruzando os braços.

--Tudo! respondeu o coronel de milicias Isidoro Pinto Gomes,
adeantando-se, e fitando no mancebo os olhos placidos e firmes.

--E o que fazem?

--O mesmo que o senhor official de certo contava fazer... Passâmos!
retorquiu o coronel sem elevar a voz, e tão manso de gesto e de
physionomia, como se estivesse tractando de cousas indifferentes.

--Por entre as balas e as espadas dos meus dragões?!...

--Tanto vale aqui, como mais adeante! replicou intrepidamente Manuel
Coutinho. Principiâmos vinte e quatro horas mais cedo.

--Muito bem! Mas de que serve verterem tantas pessoas illustres o sangue
debalde? A honra fica salva, e o sacrificio...

--É inutil, ia dizer? Perdôe-me a interrupção, sr. d'Aubry! A honra do
soldado talvez ficasse salva perante o numero, porém a de portuguezes,
que juraram pelejar pela patria, de certo não! Viemos aqui para morrer
por ella!... Se tivessemos por nós a força usavamos d'ella sem
escrupulo... Faça o mesmo. A fortuna traiu-nos aos primeiros passos. Que
importa? Estas armas empunhadas para sermos livres não hão de ser-nos
arrancadas senão com a vida...

--É a sua ultima resolução?

--É!

--E a de todos nós! ajuntou o coronel, apertando a mão do mancebo,
animado assim como o morgado, o capitão-mór, e os outros portuguezes
pela eminencia do perigo.

--Muito a meu pezar sou obrigado a oppôr-me. Lassagne! Roberto! Firmes!
nem um passo, senhores! exclamou. Queiram atirar primeiro! Damos-lhe o
partido que nossos avós deram aos inglezes em Fontenoy!...

--Talvez houvesse meio de evitar!... murmurou ao ouvido do coronel a voz
tremula de fr. João, cujo rosto apopletico convertêra de repente em
pallidez suspeita as assanhadas côres.

--Nenhuma! respondeu sêcco e irado Isidoro Pinto. Se tem medo retire-se,
entregue-se, faça o que quizer, mas deixe-nos! Vamos! Abram-nos caminho,
senhores francezes! Esta é a nossa terra, e havemos de passar, ou acabar
n'ella!

E o velho official, venerando pelos cabellos brancos e pelo ardor nobre,
que lhe restituia os brios juvenis, com a espada na direita, e uma
pistola engatilhada na esquerda, seguido dos companheiros, avançou
contra Lassagne e Roberto, em quanto Manuel Coutinho por calculo, ou por
acaso, se achava deante do capitão d'Aubry. O conflicto parecia
inevitavel.

--Logar! bradou o mancebo portuguez com um gesto de ameaça.

As pupillas do official francez despediram dois relampagos; o seu rosto
tomou terrivel aspecto. Foi só por um instante. Inclinando a espada, e
reprimindo a colera, disse ao adversario pasmado da mudança:

--Agradeça a Deus! A lembrança de um anjo suspende-me o braço! Alto!
accrescentou em voz sonora e cheia. Um momento! Senhor Manuel Coutinho
sabe quem eu sou?

--É o sobrinho do intendente Lagarde, do homem que...

--Não diga mais. Sei que está offendido e que tem razão de o estar.
Mas!... A roupa suja lava-se em familia. É o noivo de D. Leonor? Aquelle
a quem ella prometteu e jurou amar?...

--Sou, porque?...

--Porque fui sem o saber causa innocente de suas lagrimas. Sinto
encontral-o aqui. Podia, se fosse vil, prevalecer-me do acaso. Quero que
me fique conhecendo. Quero mostrar-lhe que sou digno do honrado nome de
meu pae. Se o deixar saír para onde vai?

--Para o exercito de sir Arthur Wellesley. É lá o meu posto. Replicou
Manuel sem hesitar.

--Adivinhava a resposta. Pode ir! Lá nos encontraremos como inimigos,
mas como inimigos que se estimam.

--E os meus companheiros? perguntou o mancebo pasmado de tanta
generosidade.

--Os seus companheiros?! Bem! É justo! Que se recolham com os espectros,
e que esperem. Deixem-me partir a mim e aos meus dragões. Lassagne e
Roberto são discretos e fieis. Se for preciso dirão que não viram nada.

--A sua mão sr. d'Aubry!? insistiu Manuel Coutinho commovido e com os
olhos humidos. Quero apertal-a cheio de admiração pela grande alma, que
se nos acaba de revelar. Em todas as occasiões, succeda o que succeder,
lembre-se de que tem um amigo, um irmão em mim!

--Menos no campo de batalha? accudiu o official sorrindo.

--Lá mesmo! Se as armas lhe forem contrarias....

--Obrigado, mas!... E quem sabe?! A fortuna póde cansar-se um dia. Uma
pergunta. Paulo de Azevedo!?...

--Continua preso e vae ser julgado.

--Meu tio enganou-me então? É o mesmo! Ainda estamos a tempo. Hei de
cumprir a minha promessa. Sr. Manuel Coutinho, se não tornarmos a
ver-nos, diga aos seus amigos, diga a D. Leonor... que fiz o meu dever.
Agora adeus. Os seus amigos que se retirem já! A scena dos espectros,
ajuntou volvendo ao gracejo proprio da indole jovial, ia-se tornando
tragica. D'aqui a duas horas parto. Siga depois a sua sorte, e não se
ria muito de mim, quando se recordar dos lances d'esta noite. A
proposito, aquelle reverendo que vejo tremulo entre os seus, é o
capellão da guerrilha? Parece-me pouco bellicoso!

E voltando-se para Lassagne e para o sargento, immoveis assim como os
conspiradores, em quanto durára a conversação com Manuel Coutinho,
d'Aubry disse-lhes com o seu ar de riso habitual:

--Meus amigos, estes senhores, que por muito enroupados no verão
tomavamos por homens friorentos, são na realidade espectros, e vão
desapparecer. Já lhes agradeci o favor da visita, e depois da
explicação, que acabo de ter, creio que se convenceram de que era
perigoso passeiar fóra de horas por este mundo. Lassagne! Logo vos
explicarei o enigma. Roberto! Mandai soltar os presos da granja.
Partimos dentro de duas horas. Senhores fantasmas! A sua visita
causou-me o maior prazer, mas espero que seja a ultima. Muito boas
noites! Queiram dar recados da minha parte ás almas de meus parentes,
que encontrarem no purgatorio!

Um momento depois Lassagne e d'Aubry achavam-se outra vez inteiramente
sós nos quartos, o tenente abraçava o seu companheiro d'armas pelo nobre
rasgo, que ennobrecia mais o seu caracter, do que uma victoria. A
magnanimidade é a mais alta e a mais sublime das virtudes do guerreiro.




VII

Primeiros clarões de um grande dia


A Gran-Bretanha entrou por fim em campo. Sir Arthur Wellesley, cujo
nome, conhecido então apenas pelas campanhas da India, em breve os
revezes de Napoleão haviam de tornar famoso, avançava das praias do
Figueira, pela estrada de Coimbra e de Pombal, com treze mil infantes,
duzentos cavallos, e dezoito canhões. As forças nacionaes, organizadas,
ás ordens do general Bernardim Freire, não excediam de seis mil
bayonetas e de seiscentos homens de cavallaria. Nos dias 10 e 11 de
agosto os alliados occuparam Leiria, e no dia 12 descansavam em Pombal
as tropas portuguezas.

Mas se os nossos e os inglezes eram ainda poucos, atraz d'elles vinha a
nação inteira.

Os casaes e aldeias despovoavam-se; os povos accudiam á beira das
estradas, saudando com suas acclamações os libertadores. A capital,
ainda sujeita ao jugo, tremia de raiva entre as armas que lhe tolhiam
resgatar-se. As proclamações de Wellesley e de Cotton, apezar da
severidade vigilante de Lagarde, zombavam da policia, penetravam em
todas as casas, e lidas com avidez e enthusiasmo inflammavam o
patriotismo. Os olhos voltavam-se sofregos para o Tejo, esperando de um
momento para outro ver ondear o estandarte britannico nos topes dos
mastros. Os ouvidos credulos transformavam a cada instante o mais leve
rumor longiquo nas sonhadas descargas, que haviam de annunciar a
catastrophe á usurpação. A victoria do marechal Bessiéres em Rio Sêcco
pouco avivára o prestigio offuscado pela derrota e capitulação de Dupont
em Andujar. O rei Joseph, como já dissémos, apenas entrado com a sua
côrte em Madrid logo se vira constrangido a retroceder até as margens do
Ebro.

A posição de Junot não podia ser mais precaria nem arriscada. Os seus
vinte mil soldados, repartidos pelos presidios e hospitaes, entre o paiz
irado, que não lhes concedia quartel, e que os assaltava de todas as
partes, entre os treze mil inglezes, que seguidos de perto por outros
vinte mil de sir John Moore e de sir Hew Dalrymple, entre o bloqueio das
esquadras britannicas, no mar, e a aggressão violenta, em terra, do odio
armado de tres milhões de habitantes, achavam-se limitados á capital e
ao territorio, que pizavam, sentindo fugir tudo debaixo dos pés, sem
esperança de auxilio, sem caminho aberto á retirada.

O duque de Abrantes mostrou-se digno dos feitos heroicos, que
ennobreceram a sua carreira.

Adoptando as providencias, que o aperto aconselhava, e tomando Lisboa
por base de operações, cuidou logo em concentrar o numero necessario
para arremessar as tropas britannicas vencidas e escarmentadas outra vez
ás aguas.

Não lhe sobrava outro recurso!

Havia de atravessar duzentas leguas por terrenos montanhosos, com alguns
rios caudaes a vadear, e populações insurgidas a disputar-lhe o passo,
renovando a temeridade de Xenophonte e dos dez mil, ou tinha de sair ao
encontro dos inimigos, feril-os de espanto pela rapidez dos golpes, e
anniquilal-os, tornando-lhes funestas pela grandeza do desastre, as
praias que buscavam! Junot optou pelo ultimo arbitrio. A execução,
porém, não correspondeu ao que exigiam imperiosamente as circumstancias.

Mandou sair o general Laborde para observar os inglezes, e atalhar o
progresso de sua marcha. Chamou de Almeida Loison, e determinou-lhe o
itinerario. Finalmente reuniu e organizou na capital todas as reservas,
disposto a confiar a sorte da invasão ao atrevido lance de uma batalha.
Accusam-n'o entretanto de não ter sabido attrahir a victoria.

Laborde partiu a 6 de agosto á frente do regimento 70.^o, de dois
esquadrões do 27.^o de caçadores a cavallo, e de cinco peças. Thomiéres,
que defendia Obidos e Peniche com o 2.^o ligeiro, e um batalhão do 4.^o
de suissos, havia de unir-se-lhe em Alcobaça no dia 11. N'esse mesmo dia
chegava Loison a Thomar, contando-se que a 14 ou a 15, o mais tardar, se
acharia em Alcoentre para coadjuvar seus companheiros de armas.[1]

Laborde era official distincto pela intrepidez e aptidão. Avisado de que
as tropas britannicas e portuguezas estavam em Leiria, a poucas horas
sómente das suas, retirou a 14 sobre a Roliça, legua e meia atraz,
reforçando a guarnição de Peniche com o 4.^o batalhão de suissos,
postando em um moinho sobre a esquerda do Arnoia outro batalhão, e
estendendo até ao Cadaval e Bombarral tres companhias do 62.^o para
darem as mãos a Loison, o qual não devia demorar-se.

Sabendo os francezes do outro lado da Serra de Minde, conservou-se o
exercito do general Bernardim Freire em Leiria apezar das instancias de
sir Arthur. Este, não recebendo dos nossos mais do que o auxilio de mil
e quatrocentas bayonetas e duzentos e sessenta cavallos, proseguiu
apezar d'isso o movimento offensivo. No dia 14 aquartelou-se em
Alcobaça, e no dia 15 dormiu nas Caldas. Um combate entre as suas
avançadas e o batalhão francez postado junto do moinho sobre o Arnoia,
advertiu-o da proximidade dos soldados de Napoleão. Fiel ao seu caracter
circumspecto, deteve-se até ao dia 16, talvez indeciso por falta de
informações.

Da Roliça ás Caldas medem-se tres leguas de distancia. As duas povoações
campeiam nos extremos, norte e sul da vasta bacia, rasgada ao oeste, no
meio da qual se ergue a villa de Obidos, notavel pelo aqueducto e pelo
castello mourisco. A estrada de Lisboa cortava uma planicie arenosa até
á Roliça, aonde um ramal de collinas se destaca da serra principal,
correndo limitado por um ribeiro até á Columbeira. Ao primeiro volver de
olhos dir-se-hia que findavam alli todas as communicações. A estrada
perdida em um desfiladeiro sinuoso e estreito quasi que desapparecia da
vista, não principiando a alargar-se, senão passada a Azambujeira dos
Carros. Laborde occupava a planicie desde a Roliça até poucos metros
adeante da Columbeira.

No dia 17 de agosto, ás nove horas da manhã, um tiroteio nos postos da
direita deu o primeiro rebate da visinhança dos inglezes. Eram elles, de
feito, marchando em numero de perto de onze mil, com a disciplina e
serenidade que lhes grangeou os louros depois festejados em toda a
guerra da Peninsula.

As tropas de Laborde, na maior parte recrutas quasi imberbes, nunca
tinham entrado em fogo. A vista marcial d'aquelle exercito, que avançava
silencioso, detendo-se a espaços para reformar as filas rotas pelos
obstaculos do terreno, e continuando depois, firme e ordenado, como se
houvesse de figurar em uma parada, por força havia de commover e
sobresaltar soldados bisonhos, que apenas contavam dois mil e quinhentos
homens, comprehendidas as tres companhias destacadas sobre a direita.

Laborde não esmoreceu. A planicie, attendida a desegualdade de forças,
não podia defender-se. Cedendo á necessidade mandou então guarnecer as
fortes posições situadas nas costas da Columbeira pelo regimento 70.^o,
em quanto á testa do 2.^o ligeiro da artilheria, e da cavallaria, cobria
a entrada do desfiladeiro, transportando assim o theatro da lucta com
mais favoraveis condições.

Executou-se a evolução com celeridade e na melhor ordem. As novas
posições dos francezes, quasi inaccessiveis, offereciam aos inimigos
cinco barrancos em rampas asperas, afogadas em murtas, sargaços e
arbustos alpestres. Wellesley, da sua parte, tambem não hesitou,
mandando atacal-a formando em cinco columnas. O combate feriu-se e durou
quatro horas. O valor das duas nações, travadas afinal corpo a corpo no
continente, ostentou n'elle todos os brios. Trepando as encostas debaixo
de uma chuva de balas deixando em cada passo vestigios do sangue
vertido, e semeando de cadaveres o terreno conquistado, os inglezes
chegaram a coroar uma vez de seus estandartes a crista das alturas; mas
a furia guerreira dos legionarios de Bonaparte, avivada pelo exemplo dos
chefes, depressa transformou para os soldados de Wellington o meio
triumpho em desastroso revez. Precipitados nas pontas das bayonetas pelo
impeto irresistivel dos contrarios, atropellados uns sobre os outros na
descida, ou antes na queda, os alliados despenharam-se, como torrente
que maior torrente impelle, até á planicie, espiando os jubilos
momentaneos e o ardor temerario.

Assim mesmo o leopardo britannico, recuando, levou nas garras provas
palpaveis das perdas irreparaveis dos adversarios. Mais de quinhentos
francezes, prostrados no campo, mortos ou feridos, attestavam qual fôra
de parte a parte a braveza do encontro. Ao mesmo tempo a vista
penetrante de Laborde, seguindo a marcha das duas columnas, que sir
Arthur tinha enviado desde o começo da acção para lhe tornear as
posições divisou a do major-general Fergusson já proxima da Azambujeira.
Fôra loucura insistir mais. A retirada principiou.

Á testa dos melhores soldados, Laborde repellia os inglezes, detendo-os
por meio de descargas á queima roupa, soltando sobre elles o galope
fogoso dos caçadores a cavallo, ou arrancando nos gumes dos ferros de
seus recrutas, tornados veteranos, os atiradores britannicos, a cada
instante dispersos, e quasi acossados até debaixo do fogo das grandes
massas, que os protegiam. O terrivel estampido e os pelouros dos dezoito
canhões de Wellesley não calaram senão tarde o fogo das cinco peças do
general francez. Nem um instante o passo firme e seguro de seus
batalhões se accelerou deante do perigo a cada instante mais terrivel.
Fazendo alto para reunir as tres companhias destacadas sobre a direita
só entrou em Runa depois de as unir a si, conservando até ao fim a mais
inabalavel firmeza.

Foi um nobre e formoso espectaculo este prologo curto, mas heroico, da
guerreira epopeia, cujas paginas a gloria havia de inscrever nos muros
voados e nos campos assolados de Portugal e da Hespanha. Armand d'Aubry,
sempre ao lado de Laborde, de Brenier, ou de Arnaux, assimilhava-se
áquelles semi-deuses de Homero, que petrificavam legiões inteiras pelo
terror do seu braço. Voando na frente dos mais ousados por entre os
clarões das bôccas de bronze a vomitarem ondas de metralha, envolto em
fumo, e cuspindo de si invulneravel os pelouros dos fuzis, como o leão
africano cospe as frechas encrespando a juba, o mancebo,
multiplicando-se, apparecia em toda a parte, e em toda a parte a sua
presença, similhante ao furacão das batalhas, rasgava largas brechas nas
fileiras contrarias.

Mil vezes a morte, desafiada em poucas horas, não se atreveu a tocal-o;
e contemplando o sorriso, que lhe brincava nos labios, quando a um grito
d'elle o esquadrão levantava comsigo tempestades de ferro e de fogo,
dir-se-hia, que, para este homem, verdadeiro centauro, as rapidas e
pungentes commoções, e a brava alegria das pelejas eram um prazer, uma
sensação deliciosa, um enlevo!

Manuel Coutinho, que as ordens de Wellesley prendiam junto do
estado-maior, admirando de longe a valentia radiosa do moço official,
invejou-lhe em mais de um rasgo a galhardia, tremendo ter de lhe chorar
a queda.

Quando a noite, descendo, envolveu em seus veus a agitada scena, em que
gemiam tantas dores, e em que tantas victimas agonizavam, o amante de
Leonor ainda por entre as sombras avistou na ultima carga o sobrinho de
Lagarde, rodeado do relampaguear de cem fuzis, arremessando contra elles
o peito do cavallo. Como se a fadiga de um dia inteiro fosse repouso
para elle, invencivel nos arções, d'Aubry assignalava o cruento caminho
da retirada com o afuzilar tremulo da espada por entre clamores dos que
o fogoso corsel calcava aos pés!

As aguias feridas principiaram alli a encolher as azas e os vôos. O sol
ardente da Peninsula, cegando-as, precipitou-as palpitantes dos ninhos
sobre as rochas vivas da terra, que suppunham escravizar para sempre!

Em quanto a guerra erguia na Roliça o primeiro padrão de uma lucta, que
havia de ensanguentar por annos as Hespanhas, Junot procurava realçar
com as pompas officiaes os derradeiros dias do seu dominio.

O anniversario de Napoleão foi solemnizado pomposamente, e os cortezãos
da fortuna, um pouco desmaiados com as noticias do desembarque dos
inglezes e da sublevação das provincias, ainda ouviram da bôcca do
general em chefe promessas e illusões de conforto, que, se não os
tranquillizaram, lhes minoraram ao menos as apprehensões. Herman engulia
o sorriso, parecendo despedir-se com os olhos da bella capital, pela
qual já ia quasi esquecendo a patria. Luyt, preoccupado, expedia ordens,
meneando a cabeça com tristeza. Finalmente, Lagarde, sombrio e
taciturno, recolhia-se como Pythagoras atraz da cortina mysteriosa do
seu antro, e, prevendo a catastrophe, arrependia-se de não deixar aos
portuguezes ainda mais pesadas memorias da sua administração. Assim
mesmo o paço de Queluz lembra-se bastante d'elle!

O duque de Abrantes partiu para o exercito, depois de concertar com o
general Thiébault, seu chefe de estado maior, as ultimas disposições da
breve campanha, que iam encetar. O rosto de Junot disfarçava mal o
receio de que a sua ausencia apressasse a explosão dos sentimentos mal
comprimidos da capital. Desguarnecida a cidade, podiam as naus
britannicas forçar a barra, e os habitantes vingar em uma hora a aversão
e offensas de muitos mezes. Aos cuidados do governo juntavam-se no animo
do general em chefe outras magoas, talvez mais pungentes. Os formosos
olhos, que lhe sorriam no meio do esplendor, ser-lhe-iam fieis na
adversidade, ou bastaria um revez para lhe roubar com os prestigios do
poder corações, que tinham jurado amal-o sempre até á morte?!...

Mas a voz do dever chamava-o; foi obrigado a obedecer. A 15 de agosto, á
noite, marchou á testa do regimento de granadeiros, de um batalhão do
82.^o, do 3.^o provisorio de dragões, e de uma bateria de dez peças.
Parou em Villa Franca, e a 17 seguiu vagaroso na direcção do Cercal,
quatro leguas distante da Roliça, aonde o despertou o echo amortecido do
canhão disparado no primeiro campo da batalha d'esta guerra.

Deixemol-o rodear-se de exploradores, e estimular com suas ordens cheias
de instancias a marcha de Loison e de Thiébault, para não arriscar a
lucta senão com todas as forças reunidas contra sir Arthur Wellesley.
Transportemo-nos no emtanto e sem demora do Cercal e Torres Vedras ao
palacio do Rocio, e entremos na sala do conselho, aonde deliberam os
membros do governo. O que então se passava alli não era menos curioso e
importante, do que o que occorria debaixo da barraca do quartel general
nas vesperas da acção decisiva, que se planeava.

Em ambos os theatros o dedo da Providencia escrevia em lettras de fogo a
sublime palavra de Deus, suprema consolação dos que padecem, terror
infinito dos oppressores!




VIII

Ralham as comadres descobrem-se as verdades


Voltemos á mesma sala, onde assistimos ha dias nos paços da Inquisição
ao conselho de governo, presidido pelo duque de Abrantes. As figuras,
que vamos encontrar, são ainda as mesmas. Só falta o general em chefe já
a caminho para se collocar á testa do exercito.

Á direita da sua cadeira vazia, senta-se o conde da Ega, nomeado
conselheiro do governo, e encarregado da pasta da justiça por decreto de
1 de julho, em virtude da demissão do Principal Castro. Á esquerda, mas
de pé, e com indicios evidentes de summa agitação, está Lagarde, não só
pallido, mas verde de bilis concentrada, todo convulso, e amarrotando
com grande ira um papel entre as mãos. Francisco Antonio Herman, sempre
apurado no trajo e primoroso nas joias e galas pessoaes, corre pela
vista, quasi sem a ler, uma folha coberta de algarismos, resumo pouco
agradavel do ultimo balanço do erario. Luyt, com a barba quasi em cima
da mesa, e os oculos assestados, faz voar a penna em linhas miudas,
enchendo varios diplomas e interrompendo-se com frequencia para menear a
cabeça em ar de hesitação, ou para espreitar por baixo dos oculos a
posição e os modos das pessoas, que o rodeiam.

Dois personagens mais completam o quadro. O primeiro é o capitão
Magendie, de grande uniforme, passeando silencioso, e medindo o aposento
em largas passadas de um a outro extremo. O segundo, que apresentâmos ao
leitor pela primeira vez, chama-se mr. Juffré, merece a reputação de
estelionario, que o flagella, passa com razão pela harpia mais ávida de
todo o bando de abutres, que espicaçam o corpo quasi moribundo de
Portugal, e honra-se e faz vida essencialmente de ser cunhado de um
general.

No momento, em que entrámos, a discussão, acalorada, tinha-se
interrompido de salto com a chegada de Lagarde, o qual rebentára do
antro da policia grávido de cuidados, de apprehensões, e de pessimas
noticias. Apenas acabou de balbuciar o prologo da elegia dos infortunios
consummados e das desgraças imminentes, alguns dos ministros, como
petrificados, sumiram-se nas cadeiras, pozeram a vista no chão, ou
cairam n'aquellas sombrias meditações ácerca da fatalidade, de que o
vulto dramatico de Hamlet é a personificação sublime.

O menos sensivel na apparencia aos revezes e receios era Herman. O
sorriso, é verdade, tornou-se-lhe contrafeito, as faces desmaiaram um
pouco, e o brilho das pupillas esmoreceu visivelmente; porém nenhum
outro symptoma accusou n'elle enleio, ou perplexidade. Magendie,
official intrepido, mas pouco affeito a dissimulações diplomaticas,
tinha exhalado a primeira explosão de colera, descarregando uma punhada
furiosa sobre o bofete, e ornando o gesto violento de uma rajada de
pragas maritimas de sabor alcatroado excessivamente forte para o paladar
e delicadeza nervosa do auditorio. Partiu depois direito á parede de
fundo da casa, encetando o passeio peripatetico, annotado de murmurios
surdos, em que viemos colhel-o.

O ministro da guerra e da marinha, o incomparavel Luyt, vivia em um
resfriamento perenne, e era quasi impossivel concluir cousa alguma da
expressão apathica e insignificante, por calculo, do seu rosto immovel e
descorado. Escrevia, olhava, tornava a escrever, sacudia o arieiro, e
sobretudo não perdia palavra, nem movimento dos collegas. Dir-se-hia um
automato funccionando em quanto lhe durava a corda. Quem não queria, nem
sabia enganar o observador menos perspicaz era de certo o conde da Ega.
O honrado fidalgo retratava no semblante, sem o menor disfarce, a
tragedia do partido, que tinha abraçado. Ignorâmos se começára já para
elle o arrependimento, e se lamentava a docilidade, que o fizera mais
francez, do que alguns ministros de Napoleão; mas ousâmos asseverar que
as faces jaspeadas de malhas lividas, o luto das feições contraídas, e o
profundo desalento, que respirava a sua mudez glacial, exprimiam uma
grande agonia moral, e equivaliam a um bilhete de pesames aos
protectores, e a uma certidão de obito passada á causa imperial na
Peninsula!

Finalmente mr. Juffré, especie de peão fidalgo da côrte do duque de
Abrantes, verdadeira, mas rachitica estatua de Nabuco invertida, com
bases de prata, e cabeça de barro, ora sobre um pé, ora sobre o outro,
recuava, pulava, e adeantava-se em saltinhos de pulga industriosa, com o
chapeu na mão direita, a bengala na esquerda, e dois lenços ricamente
bordados e almiscarados a rebentarem pelos bolsos da casaca côr de
pinhão.

Um risinho amarello, meio enfiado, tremia-lhe nos cantos dos labios,
delgados e sumidos, revelando indiscretamente, que aquella bôcca voraz,
era rasgada, como a do tubarão de orelha a orelha. O nariz expansivo e
recurvo, como bico de ave da rapina, quasi que arremettia com os beiços,
invadindo-os; e os dentes finos, juntos, e agudos, assimilhavam-se a
duas serras parallelas.

Anão de estatura, enfeitado como uma imagem, recendente a aromas como um
pivete, dir-se-hia a alma do Judeu de Veneza no estojo dourado de um
pintalegrete de quarenta annos! As luvas estalavam-lhe nas mãos, os
calções modelavam o algodão que chumaçava as coxas, e a meia de seda
exgotava os poderes da elasticidade para não trahir, abrindo-se, o
segredo da perna artificial d'este Nemorino em edição correcta.

A testa immensa e esguia, como que escorregava para a nuca, acabando
aonde principiava o chinó, que, forcejando por ser louro, sahira,
comtudo, quasi alaranjado, arqueando as sanefas graciosas do mais
vistoso topete. Os olhos azues, da tinta das más porcelanas japonezas,
volviam-se cheios de vivacidade, armando ciladas quasi constantes á
formosura, ou á riqueza, duas conquistas em que seu dono os empregava
com summo gosto. N'este momento, um véu de inquieta tristeza assombrava
a sympathica physionomia de mr. Juffré. A vista penetrante e obliqua do
homunculo estava de sentinella á leitura, de que o ministro Herman se
distraía a miudo, e inculcava ao mesmo tempo a desconfiança, e a cubiça
luctando com o medo e a avareza.

--Emfim! exclamou por fim Herman, sorvendo com pausa uma pitada. Até que
temos os inglezes á porta!...

--Diga dentro de casa, e quasi senhores d'ella, que diz a verdade!
redarguiu Lagarde meio suffocado. Ouçam o resto. Ainda não li tudo.
Vejam como Wellesley e Cotton rematam a proclamação: «O nobre esforço
contra a tyrannia e usurpação da França será sustentado pelas forças
unidas de Portugal, Hespanha e Inglaterra; e para o exito feliz de causa
tão justa e gloriosa os designios de sua magestade britannica são eguaes
aos que nos animam»... Ah! proseguiu animando-se, os traidores sabem que
nos achâmos sobre um barril de polvora, e lançam fogo ao rastilho,
calculando pelo relogio a hora de nos fazerem voar!...

--Mas a policia apanhou de certo os agentes, e arrancou as proclamações?
accudiu Luyt sem levantar a cabeça, nem a penna do papel, e com a
accentuação fria e nasal, que lhe era propria.

--A policia, senhor Luyt, atalhou o intendente colerico, fulminando o
ministro com a vista accesa em chammas, a policia não possue o dom de
ubiquidade, nem os cem braços de Briareu... Esta madrugada todas as
esquinas amanheceram forradas de pasquins e de impressos incendiarios.
Arrancaram-se muitos. Pois bem! Á tarde já lá estavam outros!...

--Se não serve ao menos para isso, de que vale então a policia? repetiu
o fleugmatico ministro da marinha, continuando a escrever.

--De que serve?!... Serviu, bradou Lagarde enfurecido, para não cairmos
umas poucas de vezes nos laços dos conspiradores! Inaudita pergunta! De
que serve a policia! De accordar os que dormem, de velar pela ordem, de
conter e reprimir os maus sentimentos de uma população que nos detesta.
Achais pequeno milagre conservarmos ainda Lisboa, quando o reino todo se
levanta e os inglezes marcham contra nós?!... De que serve a policia?! É
boa! Serve para isto!...

Ao mesmo passo mr. Juffré, vendo Herman pousa a folha coberta de
algarismos, interpellava-o em tom meio submisso, meio agastado.

--Então?! O que diz?...

--É exacto. Estão escripturados e dados em entrada por emprestimo, a
trinta dias, vencendo juro de 15 por cento os seus cento e trinta
contos...

--Bem! Agora a ordem para os receber do erario?...

--É inutil.

--Inutil! Porque?! interrogou o argentario sobresalto.

--Porque no erario não ha real. Todo o dinheiro, que existia, levou-o o
duque na caixa militar...

--Ah! Malditos inglezes! Mas! E o penhor? A prata da egreja de S. Roque,
que está na Moeda, e que s. ex.^a o general meu cunhado me affiançou?...

--Por ordem do duque restituiu-se outra vez á egreja. Póde ir lá
buscal-a... se lh'a derem.

--Mas n'esse caso estou roubado, despido, e nú! Caí nas garras de uma
quadrilha de salteadores! berrou o uzurario, ao qual as palavras mansas
do ministro quasi arrancavam a alam aos pedaços com tenazes em braza.

--Modere-se sr. Juffré. Veja aonde está e a quem fala...

--Falo ao salteador que me espoliou! O sr. Herman rouba-me e
escarnece-me.

--Engana-se. Está fazendo a satyra do duque de Abrantes. São d'elle as
ordens de que se queixa. Eu obedeci.

--Pois então clamo e juro, que s. ex.^a o duque é tão bom, ou peior do
que o sr. Herman.

--Olhe, atalhou o ministro, muito sereno, monte a cavallo e vá
dizer-lh'o a elle. Fica além d'isso mais perto dos seus cento e trinta
contos de réis. O que não lhe prometto, se o duque lhe ouvir metade das
palavras, com que me está regalando a mim, é que não lhe pague capital e
juros com um chicote na cara ás vergalhadas...

--Que insolencia! Ousa dizer-me?! exclamou Juffré fulo e convulso.

--Um conselho! Não torne a falar aqui em ladrões. Não acorde o cão que
dorme. Observou Herman, olhando de revez para Lagarde, e apunhalando o
uzurario com o sorriso.

--Porque? É capaz de insinuar? atalhou o outro já em voz baixa.

Sou capaz de me lembrar, sim senhor, e muita gente commigo. Fazem-lhe
hoje trezentos contos, e quando veiu para aqui não trazia treze francos.
Quem o ignora? Cuida que todos são esquecidos? O sr. Juffré e outros
similhantes foram a vergonha e o opprobrio do nosso governo. Deus queira
que não sejam tambem os instrumentos da sua ruina. Adeus! O conselho tem
cousas sérias de que tractar, e a mesa dos publicanos é lá fóra. Vá!

--Miseravel! Salteador! gritou o homunculo roxo de ira, cerrando os
punhos, e crescendo contra o ministro, cuja frieza motejadora o
exasperava.

Mas a raiva converteu-se-lhe logo em susto, quando sentiu a larga e
pesada mão de Magendie a ferral-o pela gola e pelo fundo dos calções,
leval-o pelos ares até á porta, abril-a com o pé, e despedil-o como um
fardo, accrescentando no fim de todo este drama em acção:

--Desprezivel sanguesuga! Se aqui voltas protesto cortar-te e salgar-te
as orelhas, a unica cousa que não é postiça em ti!

O argentario calado e tremulo ergueu-se moido, reparou á pressa os
ultrajes das roupas amarrotadas, e desceu as escadas rabiando como
buscapé acceso em arraial.

Depois d'esta proeza, pouco heroica pela qualidade da victima, o capitão
Magendie approximouse da meza, e fitando Lagarde, disse-lhe com a
concisão militar, que lhe era usual:

--Quem espalhou as proclamações?...

--Não se sabe. Ha indicios... replicou Lagarde assumindo o seu ar
mysterioso.

--Quem as trouxe de bordo da nau ingleza? insistiu o official,
continuando o interrogatorio.

--Ignora-se ainda, mas suppõe-se! respondeu o intendente um pouco
turvado.

--Quaes são os agentes dos sublevados do norte em Lisboa?...

--Tracta-se de os descobrir, porèm!...

--Não sabeis nada então?

--È verdade. Nada certo.

--Muito bem! Se não sabeis nada certo, se para vós tudo são trevas e
ignorancia, tinha razão mr. Luyt. De que serve a policia? De engulir
dinheiro e denuncias, e de fazer render os serviços que não faz. Não nos
quebreis, pois, mais os ouvidos com os vossos malsins surdos, cegos,
immundos, e famintos, e fazei-nos o obsequio de nos deixar discutir em
paz.

--Oh! exclamou Lagarde livido e convulso de ira. Tractas-me como se
fosse um verme. Sois acaso Napoleão o grande!? Cuidais que hei de
supportal-o? Sou magistrado independente, e não recebo ordens, nem
censuras senão dos superiores...

--De mais tendes recebido dos inferiores, mas peitas e dinheiro. Até nas
enxovias e prostibulos se diz que bateis moeda! Olhai bem para mim! Toda
a minha riqueza consiste n'estas dragonas, em cem francos que trago no
bolso, e nos copos de prata da minha espada. Não levarei de Portugal
senão mais alguma cicatriz, e um nome honrado. Se vos atreveis a
asseverar o mesmo, aqui está a minha mão, apertai-a, estou prompto a
pedir-vos mil desculpas. Se não ousais!... Sumi nas trevas com os vossos
morcegos toda a historia da policia de Lisboa, e não faleis de collo
alto aos que vos conhecem e se envergonham de vos têr por compatriota.

Lagarde espumava. Immovel de colera e espanto cada phrase do capitão
feria-o no rosto e na consciencia como um açoute. A sua posição era tão
falsa e dolorosa, que Herman compadecido quiz pôr-lhe termo.

--Vamos, senhores, exclamou, deliberemos e não questionemos. Hoje os
minutos valem horas. Lagarde! Receiais algum tumulto na capital?

--Não. Apezar de contar com pouca força respondo sobre minha cabeça pela
tranquillidade de Lisboa, se os inglezes não entrarem.

--E eu respondo sobre a fé e honra de meus canhões, que os inglezes não
passam as torres! acudiu Magendie. As minhas proclamações de polvora e
bala agradam-lhes menos ainda, do que as suas de papel nos lisongeam a
nós.

--Excellente! tornou o ministro do reino. Então por esse lado podemos
estar descançados. Mas os inimigos, é provavel, que não queiram perder
de todo o lanço, e hão de trabalhar. Dão-me cuidado os inglezes tão
proximos, e os odios vivos de toda esta gente.

O general partiu com o melhor das tropas. Novion avisa-me de que a
guarda da policia já desertou quasi toda. Só hontem fugiram sessenta
soldados. Se acaso se levanta um tumulto repentino, e é facil, com que
havemos de contar?!...

Lagarde encolheu os hombros e calou-se. O conde da Ega estremeceu e
fez-se mais pallido. Luyt, com a penna suspensa, e os olhos parados
atraz dos vidros dos oculos, respondeu a meia voz:

--Com umas segundas vesperas sicilianas!...

--Em que todos seremos assassinados?! interrogou Herman affectando
serenidade, porém um pouco tremulo. Meus senhores, parece-me que o caso
merece ser examinado. Estou prompto a verter o sangue no campo,
pelejando como soldado, mas a idéa de uma affrontosa morte, dos ultrages
e supplicios, de que nos ameaça a vingança de uma plebe de canibaes,
aterra-me, não o encubro. Confesso mais. Falta-me o valor para a encarar
com intrepidez! Lagarde, vamos! Reanimai-vos. Os homens são para as
occasiões. Que imaginastes para conter e enfrear o populacho, que
murmura, e que o canhão de Wellesley, ou de Cotton póde dispertar e
enfurecer?...

--O terror! O reinado do terror! Só o medo póde salvar-nos! redarguiu o
intendente sombrio e fitando os collegas.

--O terror?! Renovar as scenas de 1793 em Lisboa? Levantar o patibulo em
permanencia?!...

--Sim! O estado de sitio em todo o seu rigor! Não foi já decretado? O
verdugo e o cadafalso são a razão extrema da autoridade contra o povo.

--Mas as horrorosas execuções de partidos inteiros, de classes adversas
quasi em massa, que nos propondes o que salvaram em Paris? Já vos
esqueceu o famoso dia de thermidor?...

--Não! Salvaram a França das armas dos alliados, cobriram as fronteiras
de recrutas, que luctaram como veteranos, assegurando o triumpho e
unidade da republica. Achais pouco? Reparais nas manchas de sangue?!...

--Dizei nas torrentes, é mais exacto...

--Sim! Mas esse sangue, embora jorrasse innocente muito, confirmou a
liberdade, e tornou a França grande, invencivel e temida. Robespierre,
Saint Just, e Carrier, os chefes e os proconsules succumbiram afinal, e
foram arrastados no rolo furioso da tempestade, desenfreada por elles? A
expiação do systema foi o mesmo patibulo aonde o tinham architectado?
Que importam tres, ou quatro cabeças mais no cesto da guilhotina, quando
tantos resultados abonam a logica inexoravel, que o dictou? Estamos
quasi sós no meio de uma nação insurgida e irritada, que a saudade da
independencia e de seus principes subleva, que a dor e a ira das
offensas exaspera!... Os inglezes bloqueiam-nos por mar, e
accommettem-nos por terra! A nossa sorte é vencermos, acabar aqui, ou
passarmos por cima de montões de ruinas e de cadaveres. Não temos
quartel a dar, nem a receber! Na falta de forças seja o terror a nossa
espada! Na falta de todo o apoio seja o cadafalso a nossa força!...

--Para que o sangue das victimas nos afogue? Para que o luto de um povo
assassinado macule de eterno opprobrio o lustre de nossas armas?!...
exclamou Hermam erguendo-se com impeto, severo, e indignado. Não! mil
vezes não! Esse crime inutil, porque apressaria só a nossa queda, fôra a
sentença de morte da honra franceza. A civilização, que representâmos,
esconderia o rosto de vergonha. O imperio teria de córar deante d'esse
anachronismo sanguinario. O anno de 1808 não é o anno de 1793. Podem
tental-o; mas eu não lançarei essa grande nodoa sobre mim e sobre a
patria. Os vencedores de Austerlitz por meu voto nunca hão de vestir a
opa vermelha do carrasco...

--Veremos como os guerrilhas e os sicarios do principe regente vos
agradecem! Quando virdes o punhal sobre o coração, ou o trabuco apontado
ao peito...

--Poderá tremer no homem o que é fragil, por ser barro e limos,
redarguiu o ministro com um gesto de suprema elevação moral, mas a
consciencia, ao menos, não ha de accusar-me n'essa hora suprema! Alguns
mezes menos de vida não valem o sangue de milhares de innocentes, a
infamia do meu nome, o opprobrio da minha memoria.

--N'esse caso, accudiu Lagarde, lavo as mãos de tudo, e não respondo...

--Respondo eu! interrompeu Magendie, que escutava o dialogo havia
minutos, e que de pé e silencioso, mas cheio de impaciencia, a custo
reprimia a colera. Respondo eu! As taboas de proscripção não hão de
aviltar-nos. Somos soldados e temos armas. Se Lisboa se insurgir, os
canhões dos meus navios e os machados dos meus marinheiros chegam ainda
para varrer, como pó levantado, as espumas da plebe enfurecida e
indisciplinada, sr. Lagarde! O reinado do terror, o arremedo das
carnificinas de 1793, não se ha de fazer em Lisboa, em quanto uma bala
me não varar o coração. Nunca o sangue dos patibulos, que eu saiba, que
eu consinta, salpicará as aguias, que beijámos como symbolo da honra...
Sei porque lhe occorreu exhumar do arsenal infamado dos dias mais
funestos da revolução o cadafalso de Robespierre! Tem mais sede de ouro,
do que de sangue, a sua idéa é mais de vingança, de cubiça, do que de
medo! Se fossemos agora ao castello de Lisboa, talvez achassemos a
explicação do plano, que nos propõe!...

--Sr. Magendie! É a terceira vez que hoje me affronta n'esta casa!
bradou o intendente enraivecido, mas pallido de susto deante dos
relampagos, que despediam os olhos do capitão.

--Acha? Uma já devia ser de mais! Quer a reparação? Está a minha espada
ás suas ordens...

--A sua espada?! Desafia-me?! A occasião podia ser mais opportuna.

--Creia que nunca lhe fiz a injuria de suppor, que podia encontrar um
homem no sr. Lagarde. Estava zombando quando falei na minha espada; é
arma que não conhece. Se fosse uma mordaça, e fossem algemas?!...

--Senhores! Senhores! Por quem são! accudiu o conde da Ega
interpondo-se.

--A minha paciencia, atalhou o intendente, limpando dos labios a escuma,
e empregando vãos esforços para vencer a convulsão nervosa, a minha
longanimidade não se altera com estas provocações grosseiras proprias de
uma educação de tarimba...

--Agradecido pela clemencia, meu fidalgo! redarguiu Magendie,
inclinando-se ironicamente. Mas o plebeu, que se levantou da tarimba, e
poz estas dragonas présa os brios como um ducado. Quereis saber porque
este homem de bem queria fazer de todos nós assassinos, e dos soldados
da França verdugos? Eu vol-o digo em duas palavras! Machinou casar a
filha de um cavalheiro rico de Mafra com Armand d'Aubry seu sobrinho. A
donzella resistiu, e o sr. Lagarde vingou-se accusando falsamente o pae,
sepultando-o em um carcere, e dando a escolher á filha a morte d'elle,
ou um resgate infame a troco da sua mão e dos seus bens! Encontrou duas
almas nobres; Aubry rejeitou o pacto; a filha não se quiz vender para
salvar a velhice de um militar, deshonrando-lhe os cabellos brancos... O
sr. Lagarde não se deu por vencido, e trabalhou para si. A esta hora
achar-se-ha um agente seu na prisão do cavalheiro, que se chama Paulo de
Azevedo, e ha de já ter-lhe intimado a decisão final de pagar trinta
contos de réis até ámanhã, ou de ouvir a sentença de um conselho de
guerra, e de aparar no peito as balas de um pelotão na praça do
castello! Eis o verdadeiro motivo do santo zelo que o inflamma. O
reinado do terror sería para elle uma chuva de ouro, ou de sangue,
segundo a docilidade das victimas!...

--Calumnia! Infame calumnia! exclamou Lagarde branco e tremulo de
colera.

--A accusação é grave, sr. Magendie! observou Herman, que se poz em pé
assim como os collegas, e que leu no rosto demudado do intendente,
apezar de todo o cynismo d'elle, vehementes indicios da culpa. Veja o
que acaba de asseverar! Allude a um magistrado, a um homem que mereceu a
confiança do imperador. Provará o que affirmou?

--Se houver alguem que ouse repetil-o deante de mim, interrompeu Lagarde
suffocado, consinto que me condemnem!

--Acceito! disse Magendie. Ouvirá a confirmação da verdade, e de uma
bôcca insuspeita. Aubry!...

A porta abriu-se, e Armand appareceu aos umbraes, pallido e resoluto.

--Meu tio, disse depois de saudar o conselho com uma cortezia, jurei-lhe
que seria punido se não remediasse o mal, e aqui estou para cumprir a
promessa. Na presença de Deus e dos homens, por alma de meus paes,
assevero e juro que o capitão Magendie disse a verdade e só a verdade!
Agora, que deante de vós, e de todos os que me escutam prestei
testemunho á consciencia, curvae a cabeça, e arrependei-vos, porque, por
vossa propria bôcca estais condemnado!

O tom, em que Aubry falou, inculcava maior tristeza, do que ira. Lagarde
petrificado deixou pender a fronte e murmurou:

--Tambem tu, Armand!...

--Fiz o meu dever. Sois irmão de minha mãe, mas da herança de meu pae, o
que acima de tudo préso é a honra do nome, e essa, já vol-o tinha dito,
hei de sepultal-a commigo pura no campo da batalha, aonde posso caír e
morrer hoje, ou ámanhã! Meus senhores, adeus. Pedí a Deus que exalte as
nossas armas!

Ditas estas palavras saíu sereno e grave, deixando todos pasmados e
silenciosos.




IX

O pae e a filha


--Trinta contos! É um sacrificio grande, bem sei, mas a vida e a
liberdade valem mais. As provas estão em nossas mãos. Se as abrirmos, o
conselho de guerra ámanhã...

--Condemna-me á morte?!...

--Sem duvida nenhuma. O capitão de mar e guerra Magendie, nomeado para o
presidir, passa por severo e intractavel. Os outros officiaes, sobre
tudo mr. Etienne, estão resentidos, e entendem que um exemplo é
indispensavel...

--Bem! E o capitão Magendie e os outros officiaes sabem o que me propõe?

--Deus nos accuda! Pois isto são segredos de chocalheiros?! O que lhe
estou dizendo ficará entre tres pessoas. O senhor Lagarde, o senhor
Paulo de Azevedo, e eu. Vamos! Decida-se. O tempo vôa. O conselho
reune-se ámanhã ás nove horas do dia, e esta noite hão de ser-lhe
presentes, ou negados os documentos.

--Uma palavra ainda! Leonor sabe?...

--Para que a haviamos de affligir? A sr.^a D. Leonor, como boa filha, ha
de achar tudo justo e rasoavel; mas se for preciso...

--Pois senhor... Quer dizer-me o seu nome?

--Simão... Simão basta.

--Pois, sr. Simão, a minha resposta é simples. Não acceito. Estamos em
Portugal, e não nas roças do Brazil. Sou innocente, nunca tive medo da
morte, e não compro por nenhum preço esses curtos e attribulados dias,
que ainda posso viver. Diga isto a quem o mandou.

--Veja! Medite! Olhe que depois não tem remedio.

--Vejo a infamia, e não me admira. Tractam-nos como captivos, e
pedem-nos o resgate? O meu, ao menos, não hão de leval-o d'aqui. Antes
as balas dos inimigos da minha patria no peito, do que atirar um real ás
mãos immundas dos falsos magistrados, que vendem o sangue.

--Ha de arrepender-se.

--É commigo. Não se incommode a convencer-me.

--Mas a sr.^a D. Leonor?!...

--É filha de soldado. Poupe-lhe a sua piedade. Não gaste mais em vão um
tempo precioso; talvez ache em outra parte alguem mais docil. Lance a
derrama, colha na rêde o que apanhar, mas, por Deus! livre-me da sua
presença e das suas propostas. Está-me fugindo a paciencia por
instantes!...

--A sr.^a D. Leonor vem ahi...

--Minha filha?!...

--Sim. Vem vêl-o, e despedir-se talvez. Sabe o que o ameaça. Foi
avisada. Dou-lhe uma hora para a abraçar e falarem. Póde revelar-lhe a
minha proposta. Aqui volto logo...

--É escusado. Tenho uma palavra só.

--Não importa. Deixe! A firmeza inspira-me interesse. Gosto dos homens
da sua rijeza. Seria pena se!...

--Se eu me não quizesse comprar por trinta contos?...

--É verdade. O que são trinta contos para um cavalheiro rico?

--Nada! São sómente uma infamia e uma covardia. O senhor Simão acha
natural, e não era de esperar outra coisa; eu unicamente sinto ter as
mãos atadas, e não poder estampar a resposta nas faces do villão que me
suppoz capaz de tal deshonra. Queira sair!

--Não tenha esse genio! Não lhe levo a mal o desafogo. A gente quando se
entala doe-lhe e grita, mas depois vem a reflexão...

--Saia! Não vê que me faz horror e asco?

--Jesus! Que palavras! Eu saio, eu saio! Não se escandeça. Socegue! O
que lhe estou dizendo é para seu bem. Até logo! Abrace sua filha,
lembre-se de que tudo tem remedio, menos a morte, e caia em si. Acha
cara por trinta contos a protecção que lhe offerecemos?! É a vida, é a
liberdade!...

Estas palavras foram já ditas de fóra da porta chapeada da prisão. Um
impeto de Paulo de Azevedo apressou a retirada do mellifluo procurador
das veniagas da policia. O agente, cujos modos e indole de certo
denunciou logo ao leitor o dialogo, que acabàmos de escutar, seria homem
de cincoenta annos. Baixo, livido, e anafado, com uma cabelleira cravada
até á testa, uma pala verde deante dos olhos, e um tom aflautado e
mavioso, pertencia áquella especie de algozes, que abraçam a victima com
o riso nos labios, e que a dilaceram, consolando-a com phrases
dulcissimas.

Mas a physionomia abjecta e repugnante não podia enganar ninguem. A
providencia traduzira fielmente em suas feições ignobeis a perfidia e a
traição. Aguazil promovido por mil torpezas á jerarchia de espião em
chefe e de confidente de Lagarde, vociferava contra sua maldade até a
plebe dos malsins, seus humildes subditos. As lagrimas e os tractos eram
para elle um prazer suave; e armado de dentes até o umbigo, a sua avidez
insaciavel, mas inventiva, achára artes de devorar até a pobreza e a
miseria, tornando suas tributarias as enxovias, as galés, e a
prostituição.

Nunca Paulo d'Azevedo alcançára sobre si maior victoria, do que
reprimindo os accessos de colera, em que por vezes o sangue lhe subiu ao
rosto, e abstendo-se de corrigir, alli mesmo, e por sua mão, o emissario
descarado da venalidade do intendente geral da policia. A lucta
custou-lhe, porém, esforços, que depois lhe quebraram o animo. Leonor,
entrando, assustou-se de o ver sentado, ou antes prostrado, com o rosto
entre as mãos, e a alma e o coração tão trespassados, que de
desfallecimento quasi havia perdido todo o accordo. Para o despertar do
lethargo doloroso foi necessario, que a mão delicada e a voz affectuosa
da filha despertassem a ternura em seu peito quasi insensivel á força de
oppressão.

--Meu pae! Meu querido pae! exclamou a donzella, cingindo-lhe os braços
ao collo, e beijando-o extremosa e arrebatada.

--És tu Leonor! Minha Leonor! Ai filha! Que saudades e que tristezas
desde que nos separámos!

--Então! São trabalhos com que Deus quer provar a nossa resignação.
Louvemos a sua bondade e confiemos na sua justiça.

--Nunca duvidei d'ellas. Submisso e conforme com a vontade do Altissimo
espero que Elle disponha de mim. Já sabia que vinhas, que te davam
licença...

--Disse-lh'o aquelle homem de preto, que saiu, quando entrei?...

--Disse. E nunca os ferros me pesaram tanto como ha pouco. Não imaginas
o que elle me propoz?!...

--Da parte de Lagarde? Adivinho! Um casamento para mim?!...

--Um casamento para ti?! bradou Paulo erguendo-se convulso. Pois o
infame atreveu-se a pedir a tua mão?...

--Tranquillize-se, meu pae, não era para elle. N'esse ponto ao menos
fez-me justiça, accudiu a donzella sorrindo.

--Então para quem?

--Para um sobrinho seu, Armand d'Aubry, militar, moço, e digno de estima
pelas qualidades.

--E tu? interrogou o pae, fitando-a.

--Respondi que não! redarguiu Leonor serenamente. Como a minha mão era o
pretexto de um resgate, e o que Lagarde cubiçava eram os meus bens,
offereci-lhe os que herdei de minha mãe em troca da vossa liberdade.

--Fizeste mal! disse o cavalheiro severo, mas commovido. E o sobrinho,
esse Aubry, tão vil como o tio, extendeu logo a mão, e acceitou o preço?
Vens pedir o meu consentimento?!

--O sobrinho, meu pae, alma grande e nobre, tudo, rejeitou a minha mão e
os meus bens, redarguiu a donzella.

--Ah! Tanta generosidade em um francez!... Espanta-me! Acaba!

--Tenho concluido. Aubry pediu-me perdão da vileza do tio, e jurou
proteger-nos...

--De graça? Duvido! Verás que não! insistiu Paulo, meneando a cabeça com
ar incredulo. Representou um lance de theatro, talvez ensaiado em casa
para figurar de homem de brios, e a esta hora estará rindo-se com
Lagarde da tua simplicidade em o acreditar.

--Não julgo, meu pae, que se ria de mim com Lagarde, porque rompeu com
elle.

--Apparencias!

--Verdades! E a prova é que se Manuel Coutinho, o coronel de milicias de
Leiria, e muitos outros não gemem hoje em uma prisão, á generosidade de
Aubry o devem.

--Ah! Conta-me essa historia. Quero sabel-a.

Leonor expoz-lhe então os successos, que o leitor já conhece, e terminou
manifestando a sua confiança nas promessas do official francez.

--É um procedimento nobre! Quasi que tenho pena que a acção fosse de um
francez. Não gosto de dever a inimigos. Não importa. De hoje em deante
esse mancebo é sagrado para nós como um parente. Agora, Leonor, chega-te
mais para mim. Quero ver-te mais de perto. Estás pallida, muito pallida,
mas fica-te bem. Cada vez mais linda! E havia de um estrangeiro levar-me
a joia da minha alma por uns mezes mais, ou menos de velhice cansada?!
És o retrato de tua sancta mãe--não nos olhos!--os teus são mais pretos
e formosos e os cabellos tambem! Senta-te aqui nos meus joelhos. Agora
um beijo, muitos beijos!... Ha tanto tempo que te não via, filha! Não
imaginas como a tua falta me fazia velho! Dize-me, ajuntou com um
sorriso humido das lagrimas, que estavam a saltar, e os amores, como vão
os nossos amores? Manuel Coutinho adora-te como tu mereces, não? É
sempre escravo dos caprichos da sua noiva? Quero saber tudo!...

--Meu pae! accudiu ella córando cheia de rubor, e escondendo a face no
hombro do ancião.

Por isso mesmo, porque sou teu pae, é que pergunto. Bem! Bem! Se Deus
quizer hão de ser muito felizes ambos! Mas disseram-me que vinhas
despedir-te...

--Despedir-me?! exclamou a donzella sobresaltada. Despedir-me porque?! A
condessa da Ega alcançou-me licença para entrar aqui, e vim logo. Sabe
as noticias, as grandes noticias que ha, e que já são certezas?

--Não sei nada, filha. Não falo senão com os guardas, que são francezes,
e bem vês...

--Que hão de encobrir tudo. Pois ouça. Tenho muito que lhe contar.
Alegre-se, e diga se não tenho razão de lhe pedir alviçaras.

A narração feita pela donzella com as mãos entre as do pae, com os
lindos olhos accesos em enthusiasmo, e fitos nos d'elle, e com o rosto
inflammado nas risonhas côres da esperança, a pouco e pouco foi
communicando a Paulo de Azevedo o ardor e o jubilo, que exaltavam
aquelle animo juvenil. Suspenso dos labios queridos da filha, quando
ella lhe pintou a insurreição de Traz-os-Montes, o cavalheiro não poude
conter-se, que não exclamasse:

--Ah! Sepulveda! Que invejas hão de ter muitos mancebos aos teus oitenta
annos!...

Quando lhe descreveu o Algarve, Coimbra, Leiria, e o Alemtejo
sublevados, e desafiando com as armas na mão a pericia dos francezes, o
antigo official, levantando-se, e córando de prazer, bradou:

--Portugal! Julgavam-te morto, e até queriam rasgar e repartir entre si
a tua mortalha?! Bom é que lhes mostres que vives, como viveram nossos
antepasados. Aljubarrota, Valverde, o Canal, e Montes Claros foram a
licção dos invasores de hontem, assignala o teu valor em novos campos de
batalha para terror e castigo dos invasores de hoje! Continúa, Leonor!

A amante de Manuel Coutinho, proseguindo, contou-lhe a chegada e o
desembarque de sir Arthur Wellesley, a marcha do exercito nacional ás
ordens de Bernardim Freire, o combate da Roliça, e a saída de Junot ao
encontro das tropas britannicas.

--Louvado sejaes, Senhor, pela grandeza insondavel de vossa justiça!
exclamou o ancião, inclinando reverente a fronte, e erguendo as mãos. Do
grão de areia formaste a montanha, que se levanta contra os soberbos,
dos fracos e desamparados compões a força, que ha de subjugal-os.
Leonor! Junot será vencido! Diz-m'o o coração, diz-m'o a vontade do céu
manifestada em tantos prodigios. Ditosos olhos os que virem romper a
aurora do grande dia da nossa liberdade, que já sinto proximo!

--Então, meu pae, não lhe dizia eu, que o nosso captiveiro estava a
findar por pouco?!

--O teu, filha, o da patria, e ainda bem! O meu!...

--O vosso tambem. Porque não?! accudiu ella, abraçando-o.

--Talvez acabe mais cedo mesmo! Quem sabe! Não importa. No fim de tudo?!
murmurou comsigo. Possa o meu sangue, como expiação, lavar as ultimas
nodoas da culpa, por que este reino foi castigado!

--Senhor Paulo! Passou a hora! O que me diz? Está mais socegado. Volveu
á serenidade que tão bem lhe fica?

Era a voz aflautada do agente de Lagarde, cuja cabeça de reptil se
arriscava, toda olhos e ouvidos, por entre a porta aberta sem ruido. O
cavalheiro estremeceu e descórou. Cresceu-lhe a ira, e investindo contra
elle obrigou-o a desapparecer. Um clarão sombrio, que faiscou ao mesmo
tempo de suas pupillas, exprimiu toda a sua raiva.

--Ah! bradou elle. Ainda este homem aqui!...

--Quer que entre? perguntou o delator sempre escudado com a porta.

--Entre! Leonor, és filha de militar. Tens animo e constancia, bem sei.
Ouças o que ouvires, não te assustes, não digas uma palavra.

Voltando-se para o confidente da policia, cujo sorriso oleoso parecia
grávido de mysterios e de insinuações, accrescentou depois:

--Veiu propor-me ainda agora, que eu comprasse a minha vida por trinta
contos. Já lhe respondi, e repito deante de minha filha: se estivesse
solto, seu amo pagaria a affronta, a que teve a covardia de se atrever
contra um preso! Captivo, e em poder de inimigos, tenho só livre a alma
para protestar, e para dizer que prefiro mil vezes a morte á infamia de
pesar o meu sangue a ouro nas balanças iniquas de um salteador e de um
espião. Póde sair!

--Sr.^a D. Leonor, gritou Simão, não deixe seu pae assassinar-se por uma
teima! E o agente, simulando compuncção hypocrita, quasi se lançára de
joelhos aos pés da donzella, que se desviou enojada. O sr. Paulo não lhe
disse nada, agora vejo! O conselho de guerra julga-o ámanhã ás dez
horas; e a sua sentença... é de morte! Offereci-lhe salval-o por uma
quantia. Quer á força sacrificar-se! Commetter um crime, um suicidio!
Diga-lhe!...

--Que o meu coração se despedaça de o perder, mas que a minha alma se
arrebata de admiração com a sua nobre recusa? É isto o que quer que eu
diga? Para quê?! Ha muito que meu pae e eu nos conhecemos!...

--Oh! minha senhora! Cuidei que amava mais seu pae, do que trinta contos
de réis! observou o espia ferindo todos os alvos.

--Meu pae fez o seu dever. Rejeitou o pacto infame. Eu cumpro o meu,
dizendo-lhe que nunca tive tanto orgulho em me chamar sua filha.

--Mas! A sentença é infallivel e executa-se logo. Ámanhã á tarde terá de
orar sobre um cadaver! Veja que está matando seu pae!

--Silencio! clamou o cavalheiro indignado e terrivel de aspecto.
Assassino és tu, mas da honra dos homens, e até da fraqueza de uma
senhora. Vai-te! Perdes aqui o tempo, não achas compradores, e podes
encontrar... Por Deus! Não me tentes mais!

--Tenha dó de si! insistiu o agente, recuando deante do ancião, mas
orando sempre em nome dos trinta contos. Não se fie em vans esperanças.
Ninguem o salva senão nós, minha senhora! O capitão Magendie, conhecido
pela severidade, é o presidente do conselho de guerra, e a vida de seu
pae...

O honrado Simão aqui estacou com o resto da phrase estrangulado na
garganta. Uma larga mão, desabando-lhe sobre o hombro com o peso de um
rochedo, acachapou-o debaixo do seu vigoroso impulso. Ao mesmo passo uma
voz aspera e imperiosa dizia-lhe com ironica intenção:

--Chamavas pelo capitão Magendie, creio eu. Aqui está o capitão
Magendie! Repete deante d'elle o que dizias nas suas costas! Quero saber
se ousavas fazer-me cumplice do infame pacto de sangue, que vieste
propor! Fala!

Paulo de Azevedo e sua filha contemplaram attonitos e cheios de assombro
a subita intervenção d'aquelle homem, que um erro de officio do espia,
deixando a porta da prisão aberta atraz de si, introduzira no momento
mais interessante do drama, de que eram auctores e personagens.

--Fala que mando eu! repetiu o capitão, saccudindo o delator livido,
tremulo, e mudo de terror.

O cavalheiro e Leonor começavam já a compadecer-se do infeliz Simão,
muito parecido n'este instante a um chacal colhido nas garras do leão.

--Fala, ou morres aqui mesmo! bradou pela terceira vez o capitão de mar
e guerra. Quero ouvir e saber tudo!

N'este momento as faces de Leonor afoguearam-se do mais vivo carmim. Uma
figura nova acabava de entrar em scena. Era Armand d'Aubry. O mancebo
approximou-se d'ella com um sorriso, cortejou Paulo de Azevedo,
disse-lhe o seu nome, e beijando a mão á donzella com respeito,
disse-lhe:

--Não é verdade, minha senhora, que já me accusava de vanglorioso, ou de
esquecido?...

--Eu, senhor d'Aubry! Que direito tinha para isso?

--A minha palavra dada.

--Sei que é escravo d'ella; mas ás vezes ha razões...

--Nenhuma póde desculpar um descuido, que eu confesso, e que podia ter
sido fatal. Fiei-me na palavra... de um homem que a trahiu, e descancei
de mais. Felizmente chego ainda a tempo!

Um grito agudo de dor arrancado ao virtuoso Simão pelos dedos de ferro
de Magendie interromperam n'este ponto a conversação.

D'Aubry, adeantando-se, interpoz-se entre a victima e o militar
irritado.

--Magendie! disse meio serio, meio a sorrir-se, quereis esmagar esse
verme debaixo dos tacões das botas?!...

--Não! Fôra vergonha e opprobrio! Mas o miseravel invocava o meu nome,
quando entrei! Quero saber o que ousou inventar!

--Deixe-o! accudiu Leonor, dando alguns passos para o capitão. O que
elle propunha não deshonra o sr. Magendie.

--Espero que não se atrevesse a implicar-me nas torpezas, que vinha aqui
negociar. Se o fez... juro pela minha espada que lhe arranco a lingua
mentirosa...

--Não! Não! atalhou a donzella. Falou só da severidade do sr. Magendie,
e da sentença de morte que ha de proferir ámanhã contra meu pae.

--Eu! Ah! Pois tiveste a insolencia de fazer de mim carrasco? Serás
punido! E arremettendo contra o espia, inerte e transido, serviu-lhe as
costellas de tres, ou quatro pranchadas, que retiniram, seguindo-se umas
ás outras com a velocidade do raio.

--Magendie! Basta! Deixa esse desgraçado! clamou Armand, sustendo-lhe o
braço já alçado para repetir a correcção.

--Sáe! ajuntou arrastando o delator quasi pela gola da casaca, e
lançando-o fóra. Se te demoras... não levas um osso inteiro.

Simão desappareceu, lastimado do corpo, e dorido da alma, pelo exito
pessimo da sua missão.

--Minha senhora, disse d'Aubry com nobreza. Os instantes são preciosos.
O general Junot, que não é tão mau, como o odio dos portuguezes o crê,
informado de tudo--porque não lhe occultei nada--assignou a ordem de
soltura de seu pae sob palavra sómente, de que o sr. Paulo de Azevedo
não ha de pegar em armas contra as tropas de sua magestade o imperador e
rei n'esta ocasião. Fui talvez temerario, mas obriguei-me em nome do
preso. Se me excedi, como só eu respondo...

--Meu pae! Meu querido pae! Livre! Solto!... exclamou Leonor apertando o
ancião nos braços. Obrigada sr. Armand! Obrigada!

--Sr. d'Aubry! redarguiu o cavalheiro, vencendo a custo a commoção, e
não soltando do coração a filha amorosamente cingida ao peito, a
palavra, que deu, é como se fosse minha. Não abusarei da sua
generosidade. Verei de longe os successos, mas não estranhe, não me leve
a mal, que suspire pela victoria dos meus compatriotas...

--É tão natural! O que hei de estranhar? Sr.^a D. Leonor! Se lhe
disserem que Armand d'Aubry ficou no campo, lembre-se d'elle, lembre-se
do homem, que, não podendo merecel-a, quiz ao menos eximir-se ao seu
despreso.

--Despreso!? Porque nos fez Deus nascer tão separados, sr. d'Aubry!

--Paciencia, accudiu o mancebo com um sorriso contrafeito. Seja minha
irmã! E se em suas orações não póde pedir a Deus que faça triumphar a
minha causa, rogue-lhe ao menos que me dê a morte gloriosa do soldado.
Adeus! Lembre-se alguma vez de mim sem odio. Magendie são horas! Se
quereis ser dos primeiros na batalha... a cavallo, e a galope!




X

Antes de se levantar o panno


Junot sobresaía no valor heroico. Era a imagem viva dos paladinos
cantados pelo Ariosto. O peso das responsabilidades acurvava-lhe, porém,
o animo, e as complicações do governo afrouxavam-lhe a vontade. Soldado
sem emulo na intrepidez facilmente se offuscava no gabinete, ou no
conselho, aonde a sua estrella esmorecia com frequencia. Grande, quando
não era o primeiro, sentia vacillar nas mãos o leme do Estado no
exercicio da suprema auctoridade.

Accrescentemos, para sermos justos, que a culpa das infelicidades foi
menos sua, do que filha das ordens que o subjugaram de longe, e das
circumstancias que o opprimiram de perto. A invasão de Portugal e a
usurpação da Hespanha, dois attentados agravados por meios ardilosos,
assignalaram os primeiros passos de Napoleão I para o precipicio, d'onde
se despenhou poucos annos depois.

A casa de Bragança e a dynastia dos Bourbons, duas realezas
desamparadas, dois cadaveres (na opinião do conquistador), uma fugida na
America, outra expiando em Vincennes as scenas de Bayonna, apenas lhe
mereceram que lançasse sobre ambas o seu manto de abelhas para as
sepultar! Riscadas do livro de ouro dos soberanos pela espada, suppoz
erradamente o moderno Cesar, que tambem acabariam de se extinguir no
amor dos subditos, como tinham desapparecido a um aceno seu do theatro
agitado da epocha. Cegueira! Captivos os principes ou ausentes, a
saudade e os brios das nações armaram contra elle adversarios mais
terriveis. Pela primeira vez se encontrou com os povos, e a sua fortuna
começou a empallidecer desde então. Com estes novos adversarios a
tactica e a disciplina quasi que eram vans; as victorias consumiam os
vencedores; e cada gotta de sangue, que tingia a terra, levantava uma
legião de inimigos.

A alliança das revoluções populares com a causa dos monarchas
proscriptos mudou todas as condições da lucta. As derrotas não provaram
nada em favor dos invasores; pelo contrario os revezes anniquilavam
exercitos completos. O exemplo de Bailén viera demonstral-o. O duque de
Abrantes via tremer em Portugal pelos alicerces o edificio da dominação
franceza, e apprehensões rasoaveis diziam-lhe que, desabando elle de
repente, podia colhel-o debaixo das ruinas, e aos seus companheiros de
armas. D'este receio se originaram os maiores erros, que lhe censuram
n'esta campanha.

Se não contrahiu a tempo as forças repartidas pelos presidios do reino,
é porque temeu, aos primeiros rebates do canhão inglez, que Lisboa lhe
escapasse, e que as praças, chaves, de provincias populosas, lhe
cerrassem as portas, obrigando-o a escolher entre a morte do soldado e a
capitulação affrontosa de Dupont. De dois males inevitaveis optou pelo
menor. A furia guerreira de seus granadeiros podia talvez supprir a
inferioridade do numero; mas, sublevada a capital, e perdidas as
fortalezas, todas as esperanças de retirada se desvaneciam. Foi o que o
decidiu.

Sir John Moore abicára com o seu corpo de tropas ás praias da Figueira.
Sir Harry Burrard, Clinton, e Murray com suas brigadas já avistavam as
costas de Portugal. Demorar-se em repellir Wellesley equivalia a deixar
engrossar pela juncção a vaga ameaçadora dos contrarios. Junot
lembrou-se, de que não era costume seu recuar, e arremessando a luva aos
inmigos com tantas probabilidades contra si, confiou talvez, em que um
dos ultimos raios do sol de Austerlitz viria illuminar mais um dia de
triumpho para as armas francezas.

Calculadas pelos mappas, as tropas francesas no dia 15 de julho
ascendiam a vinte e seis mil homens; porém, um mez depois, quando se
contaram as praças presentes para as metter em linha, apenas appareceram
dez mil soldados effectivos! As marchas forçadas de julho pela
Extremadura e Alemtejo, as fadigas e ardores do clima tinham devorado
quasi tres mil prostrados nos leitos dos hospitaes. Cinco mil e
seiscentos occupavam Almeida, Elvas, Palmella, Peniche e Santarem. Dois
mil e quatrocentos guardavam Lisboa; mil continham a bordo dos navios os
prisioneiros hespanhoes: e os tres mil restantes vigiavam os fortes, as
baterias, e as torres levantadas nas duas margens do Tejo.

O duque, partindo para abrir a campanha, já tarde conheceu, que em vez
de conservar sobre os inglezes a superioridade indispensavel para os
ferir e arrancar no momento dado, sacrificára ao proposito secundario de
assegurar a defeza do rio e das fortificações do reino a sorte das
aguias imperiaes, avistando-se com Wellington na proporção de um contra
dois, ou peior ainda, depois do desembarque das quatro mil e duzentas
bayonetas dos brigadeiros Anstruther e Ackland, desembarque operado
durante o dia e parte da noite de 20 de agosto. Apezar d'isso, resolveu
Junot, não só pelejar, mas sahir ao encontro de sir Arthur, e combatel-o
aonde o encontrasse. O astro do imperio resplandecia ainda sobre a
Europa, e as victorias, companheiras fieis dos capitães de Buonaparte,
apenas em Hespanha lhe negavam um, ou outro sorriso. Mas a fortuna
principiava já a cansar-se, e o genio de Napoleão, unico digno de a
dominar, faltava n'este instante critico aos batalhões desterrados no
extremo occidente pela sua ambição.

Foi em Torres Vedras, que o duque de Abrantes concentrou todo o
exercito, e que, passando-lhe revista, encontrou só onze mil e
quinhentos soldados, mesmo arrolando os não combatentes. Duas divisões
de infanteria commandadas por Delaborde e Loison, uma reserva de
granadeiros, e uma divisão de cavallaria ás ordens de Margaron, em força
de mil e duzentos homens, caçadores a cavallo, e dragões, em quatro
regimentos de dois esquadrões cada um, com vinte e seis bôccas de fogo,
regidas pelo general Taviel, compunham todo o poder militar, de que
dispunha o logar-tenente de Napoleão I na vespera da batalha, em que se
iam travar braço a braço as duas nações ha tantos annos emulas, e cada
dia mais implacaveis no designio de se supplantarem, como se uma devesse
necessariamente offuscar a outra, ou como se a Europa não offerecesse
espaço sufficiente a ambas para existirem e prosperarem.

Sir Arthur Wellesley, nos exordios da sua carreira na Peninsula, logo
revelou as qualidades que o habilitavam a competir com os mais illustres
capitães sem desafiar um d'aquelles immensos desastres, que immortalizam
nas paginas da epopeia napoleonica o infortunio de tantos generaes.
Concedendo pouco, ou nada, ao acaso, e não estribando as combinações nos
rasgos duvidosos de temerarias emprezas, concebêra o seu plano com a
prudencia fria, que sempre em tudo caracterizou seus calculos. Prevendo
que, senhores de Lisboa, os francezes podiam atravessar o Tejo sem
obstaculo, assoberbar as provincias do sul, e communicarem, por via
d'ellas, com a fronteira hespanhola, e não querendo arriscar-se a um
revez possivel no ataque de Torres Vedras, determinára tornear o
exercito do duque de Abrantes por um movimento audaz, cortando a marchas
forçadas pela estrada de Mafra, e chegando adeante d'elle ás portas da
capital. A sir John Moore cumpria ao mesmo passo descer de Coimbra e
occupar Santarem, vedando tambem por este lado a retirada dos
contrarios.

Estavam expedidas as ordens n'este sentido, e marcados o dia e a hora,
em que haviam de principiar a executar-se. Mas sir Harry Burrard,
tenente general mais antigo, e segundo commandante das tropas
britannicas, afferrou no dia 20 de agosto a enseiada de Maceira, e
Wellesley foi immediatamente a bordo conferenciar com elle, e expor-lhe
o verdadeiro estado das operações. Sir Harry não formava exacto juizo
das forças de Junot, nem sabia apreciar as difficuldades, que podiam
oppor-lhe. Ignorava tudo. A tenacidade da resistencia de Laborde na
Roliça infundia-lhe receios, e antes de se medir com os francezes quiz
ter proximos os onze mil auxiliares de sir John Moore, ordenando a sir
Arthur, que se sustentasse no terreno, aonde acampára, e expedindo
avisos sobre avisos aos navios fundeados no porto da Figueira para que o
desembarque de suas tropas se realizasse nas proximidades da Lourinhã.

As posições occupadas por Wellesley eram seguras e pouco accessiveis. O
Vimeiro assenta-se no regaço de um valle banhado pelas aguas do Maceira.
Ao norte altea-se em seios sinuosos um ramal de collinas, cortado da
parte de leste por uma quebrada rota em largo barranco. A estrada da
Lourinhã atravessa por cima dos cabeços d'esta cordilheira passando
pelos casaes de Fontanel e da Ventosa. Nas costas do Vimeiro, ligadas
quasi as primeiras casas da povoação com suas faldas, ergue-se uma
montanha, meio vestida de arvores e matas, meio nua e escalvada. De seu
topo annuviado descobriam-se os caminhos e sendas, torcidas em diversas
direcções para Torres Vedras. Sobranceira a esta elevação, enlaçando-se
os montes, e empinando-se uns por cima dos outros, corre a serrania, a
qual em ondulações, mais ou menos asperas, se prolonga quasi a beijar o
mar, abraçando do lado de oeste todo o espaço comprehendido entre a
margem esquerda do Maceira e a orla da costa.

Seis brigadas ás ordens de Hill, Crawford, Ackland, Nightingale e
Fergusson, com as avançadas sobre a estrada de Mafra, guarneciam as
alturas com oito peças de artilheria, em quanto as brigadas Anstruther e
Fane, com meia bateria de 9 e meia bateria de 6 defendiam a montanha. A
cavallaria guardava as bôccas do valle, e um piquete de portuguezes e de
_riflemen_ observava a estrada da Lourinhã.

Eis a disposição do acampamento inglez antes das vedetas dispararem os
primeiros tiros.

O duque de Abrantes não mandára reconhecer o exercito inimigo, e sabia
apenas pela noticia dos destacamentos de cavallaria, que tinham batido o
terreno como exploradores, que elle estava reunido no Vimeiro, e que de
noite se tinham visto arder tres linhas de fogueiras. A impaciencia
natural e a necessidade não lhe consentiram maior informação. Instava
com elle tudo para que precipitasse o encontro decisivo. Lisboa, agitada
e descontente, podia libertar-se de um momento para outro, sopeando a
pequena guarnição que a refreava. Os inglezes tinham tudo a lucrar, e
elle tudo a perder com a demora. Em circumstancias assim apuradas, o
melhor conselho era combater logo, sem escolher o campo, sem contar o
numero.

Suas instrucções foram promptas e audazes. A cavallaria com o grosso da
infanteria marchou no dia 20 á noite pelo desfiladeiro, que de Torres
Vedras desemboccava no ponto, aonde se bifurcavam as estradas do Vimeiro
e da Lourinhã. Aos primeiros clarões do dia 21 Armand d'Aubry, e o
capitão Magendie, os quaes em poucas horas de trote rasgado tinham
vencido as sete leguas, que os separavam do campo francez, encontraram
já os corpos em descanso a legua e meia dos postos avançados de sir
Arthur, o qual não inculcava haver-se apercebido ainda de sua
visinhança.

Do sitio, aonde as tropas respiravam da rapidez de marcha, ás eminencias
por cima da povoação do Vimeiro, encoberta com relevo do terreno,
alargava-se uma charneca, toda areia e rochas, que em ingremes pendores
baixava por uma parte até ao barranco no fundo do qual se apinhavam os
tectos da aldeia de Toledo, e pela outra vinha quasi tocar as bordas do
Maceira, cuja corrente preguiçosa scintillava no seu leito, illuminada
dos raios nascentes do sol, que já em todo o seu esplendor dourava os
cumes dos montes, recortados no celeste azul e transparente, inundando
de jorros cada vez mais vivos de luz os terraços e as encostas das
montanhas, os valles e os desfiladeiros, aonde as sombras mais tempo
luctam com a claridade matutina.

Junot avançou direito ás alturas, com a cavallaria na vanguarda, com a
infanteria formada em columnas de duas brigadas, e com a artilheria nos
intervallos. D'Aubry recebeu ordem ao mesmo tempo de avisar o coronel do
3.^o provisorio de dragões para que, atravessando a quebrada perto da
aldeia de Toledo, se elevasse até ao moinho de vento de Fontanel, e ahi
extendesse as filas brilhantes de seus cavalleiros pela corôa dos
serros, cortando a estrada do Vimeiro á Lourinhã.

A vista do bello regimento, campeando descoberto no posto, que lhe fôra
designado, deu o primeiro signal da batalha.

A manhã rompia serena e clara. Sir Arthur Wellesley, que n'este dia
principiou a saír da meia obscuridade para as paginas luminosas da
historia, rodeado de um luzido estado maior, mettia o pé no estribo,
quando chegaram as primeiras noticias do inimigo. A physionomia do
general, placida e firme, não denunciava em nenhuma nuvem os cuidados do
commando. D'ahi a pouco a cavallo, silencioso, e attento, todos o viram
consultar com o oculo os horizontes nas direcções d'onde deviam surgir
os contrarios, enviando de curtos em curtos espaços a todo o galope um
ajudante encarregado de suas ordens. O socego profundo da natureza, o
riso das plantas ainda frescas dos orvalhos nocturnos, os vôos rasteiros
das aves, e os murmurios brandos da corrente, contrastavam com os ruidos
do campo, nuncios e precursores da procella, de que a ira dos homens
inflammaria em breve aquelles pacificos contornos.

Entre o primeiro sobresalto da presença dos inimigos, e os primeiros
rebates interpoz-se longa pausa. De parte a parte os exercitos, como
dois luctadores antes de entrarem no circo espreitaram os movimentos um
do outro, calculando todas as vantagens.

Antevendo o ataque pela frente e a esquerda de suas posições, sir Arthur
destacou para as alturas da estrada da Lourinhã a brigada Fergusson, e
logo atraz as de Nightingale, de Ackland, e de Bowes. Em breve a
montanha do Vimeiro, em que ha pouco se accumulavam reunidas as forças
de seis brigadas, appareceu quasi desguarnecida, não conservando mais
que os tres regimentos de infanteria de reserva, confiados á pericia do
general Hill.

As tropas portuguezas, ás quaes se tinham aggregado recentemente
sessenta soldados de cavallaria da policia, capitaneados por Manuel
Coutinho, duzentos artilheiros de Valença, fugidos da praça de Peniche,
o coronel de milicias de Leiria, o morgado de Penim, e outros
voluntarios, postados a principio no valle, foram logo mandados subir
tambem a encosta, para formarem na planura do monte com a brigada
Crawford.

O duque de Abrantes acompanhou estes movimentos da esquerda dos
inglezes, ordenando as manobras correspondentes.

A brigada Brenier, por ser a mais proxima, adeantou-se em auxilio do
3.^o de dragões, e a brigada Solignac, que seguia em columna a de
Brenier, carregou egualmente sobre a direita com seis peças de
artilheria. Assim, antes de ferida a peleja, metade das forças
britannicas operava na estrada da Lourinhã, opposta a um terço pouco
mais, ou menos, do exercito francez; mas a differença era notavel. O
movimento de Junot, inopinado e fortuito, deixára grande distancia entre
a direita reforçada e o principal corpo do exercito, em quanto os
inglezes, pelo contrario, se ligavam concentricamente, não aproveitando
menos os cinco regimentos de Bowes e Ackland ao general Fergusson, do
que á defeza do Vimeiro, cujo aspecto infundia respeito até aos
veteranos pela sua apparencia marcial.

O espectaculo dos dois exercitos, avisinhando-se um do outro, era bello
e grandioso. A infanteria ingleza com os seus uniformes escarlates,
dragonas brancas de lã, e barretinas largas de couro ornadas de
pennachos de varias côres, desfilava a marche-marche cerrando filas, e
mettendo em fórma. Duas linhas, cujas oscillações, cessando de repente
se converteram na immobilidade da firmeza, postadas nos contrafortes e
terraços da montanha, dominavam em amphitheatro as ladeiras aprumadas
por onde os soldados de Junot haviam de avançar. Por cima d'ellas, mais
atraz, e na rectaguarda das posições, ainda os serros se coroavam de
bayonetas. Era a terceira linha extendida pela brigada do general Hill!
Os canos luzentes das espingardas, e os ferros de lança dos estandartes
scintillavam; as chapas douradas dos capacetes da cavallaria, os peitos
de aço e as espadas nuas dos soldados, faiscavam, deslumbrando. De
intervallo a intervallo, no cume de um pico mais alto, na cabeça de uma
collina mais elevada, reluziam as peças de bronze assestadas, e ainda
silenciosas.

O galope dos esquadrões, ennovellando-se a distancia entre rolos de pó,
a brava alegria dos clarins, o desafio das trombetas, o rufar dos
tambores juntos ás harmonias guerreiras das musicas, ao ondear das
bandeiras soltas ao vento, e ao galope dos corseis dos ajudantes e
generaes, cruzando a paizagem em todos os sentidos, compunham um quadro
animado e vívido, que levava apoz si os olhos e a vontade, incendiando
de enthusiasmo os animos mais timidos e indifferentes.

Ia romper-se a batalha. Armand d'Aubry, rodeando com a vista todo o
campo, como o falcão paira dos espaços sobre a presa, disse para
Lassagne, cujo sorriso parecia convidar os perigos:

--Julio! Dias como este nunca mais esquecem! Olha como os inglezes nos
aguardam! Faz gosto vel-os assim de marmore em suas linhas, e saber que
a nossa espada fará calar em breve os rugidos d'aquellas bôccas de
bronze em que Wellesley confia para nos deter!... Logo verá de que lhe
valem!

--Se as calarmos! redarguiu o tenente. Os soldados que alli temos, não
se afugentam como guerrilhas.

--Melhor! Quanto mais cara, mais gloriosa será a victoria! Quando
mandará o duque romper o baile?! Sinto uma impaciencia!...

--Escutai! Eil-o que principia! atalhou Lassagne. Se a fortuna proteger
as armas da França, este dia póde ser um grande dia!

E largando as redeas, os dois partiram a bom correr para o posto, que
haviam de occupar, e aonde Magendie e outros officiaes esperavam já por
elles.




XI

A batalha


Deram oito horas da manhã. Um silencio profundo afogou de repente todos
os estrepitos e todas as vozes nos dois campos. Similhante á pausa
abafada, que precede os gemidos da procella, em breve iam rebentar
d'este silencio momentaneo, todas as tempestades, que o odio e as
paixões encerram.

A fortaleza das posições do Vimeiro, e a valentia dos defensores
promettiam aos soldados de Junot disputada lucta. Apezar d'isso as
massas accumuladas nas eminencias, nem suspenderam, nem paralysaram, o
seu esforço. A divisão Laborde começou o ataque. N'esse momento, como se
á ira dos homens se antepozessem as consolações do ceu, ouviu-se o
repique longiquo, mas claro, de uma sineta, na capella da aldeia,
convidando os fieis á oração. Logo apoz reboou, immensa e prolongada,
acclamação festiva dos batalhões francezes. Era a brigada Thomières, que
a passo ordinario, e com os estandartes desenrolados, partia intrepida a
escalar as escarpas da montanha, d'onde tres linhas inabalaveis juravam
repellil-a.

Cobria-lhe a frente uma nuvem de atiradores. Os reparos dos canhões,
rodando nos flancos, abalavam o chão, confundindo com o tropear da
marcha o seu rolar soturno. O espaço, que separava os contendores,
depressa se encurtou; o vulto da columna depressa se estreitou tambem, e
diminuiu na distancia. Uma orla de fumo alvacento, franjada de
relampagos, elevou-se lentamente da testa da linha no meio de detonações
repetidas. Ao mesmo tempo os tambores, as trombetas, as gaitas
escocezas, as cornetas, e os cheios sonoros dos instrumentos bellicos
romperam em harmonia guerreira do centro das brigadas inglezas.
Encostando as coronhas ao hombro, com os murrões accesos junto ao ouvido
das peças, os soldados de Wellesley acceitavam resolutos o desafio das
aguias francezas.

D'ahi a um momento ao trovão da artilheria juntava-se o estampido de
milhares de fuzis. A montanha, silenciosa e fria até então, vestiu-se de
clarões lividos, e uma densa nuvem de fumo, baixa e quasi immovel, véu
sinistro, escondeu os combatentes da vista anciosa dos espectadores. De
instante em instante novas explosões atroavam o campo, e por entre os
rolos de pó e as fumaradas dos tiros faiscaram como fitas tortuosas de
lume as descargas dos batalhões. Os pelouros, bastos como granizo,
silvaram, varejando as fileiras. As balas de artilheria, cortando o ar,
e zumbindo, vinham enterrar-se, escarvando o solo aos pés das
companhias, ou, rasgando-lhes e esmigalhando-lhes as filas, abriam por
meio d'ellas cruentas e largas brechas, assignalando no chão juncado de
cadaveres e moribundos o seu rasto destruidor.

Pendurados das ingremes ladeiras, ouvindo por cima das cabeças estourar
a voz de bronze dos canhões, sentindo debaixo dos pés retremer e
escorregar a terra, no meio de uma atmosphera ardente, ora atropellados
pelos que a morte despenha adeante das pontas dos alcantis, ora
impellidos pelo tropel impaciente dos que atraz d'elles bramem e se
apinhoam na subida, os soldados do regimento 26.^o, respondendo com a
audacia do silencio á tempestade vomitada das cristas das alturas,
alcançam por fim a aresta da montanha, conquistam a beira da planura, e
arremessam-se como leões raivosos, em linhas crespas, contra a muralha
de aço, que lhes oppõem o 5.^o regimento inglez. Foi como o encontro de
duas nuvens carregadas de electricidade. A meia distancia uns dos
outros, os canos das espingardas inclinam-se, dois relampagos immensos
lambem a face das columnas, e o ruido de duas descargas quasi unisonas
ribomba de cerro em cerro até aos valles.

As vozes dos chefes por cima dos mil rumores da peleja, e o tinir do
ferro nos pelotões calando bayonetas soam distinctamente durante a curta
pausa, que se segue. Depois, violentos estremeções sacodem os membros
convulsos dos dois corpos gigantes, e n'um abrir e fechar de olhos ambos
se precipitam um contra o outro, esperando suffocar-se n'este abraço, em
que toda a sua colera ruge frenetica.

A cortina de fumo, que os encobre, adelgaçando, rarea-se um pouco, e o
duello temeroso dos dois regimentos, arcando peito a peito, com os
ferros apontados ao coração, brilha por momentos em toda a sua
magestade!

Loison e Charland, com os batalhões 32.^o e 82.^o já a esse tempo
estavam travados com tres dos regimentos de sir Arthur, o 97.^o o 43.^o
e o 52.^o. As linhas britannicas, abaladas pelo furioso embate,
vacillam, encurvando-se. O impetuoso encontro das companhias francezas,
sulcando-as, e mutilando-as em partes, cuida um momento tel-as
arrancado, desordenadas e vencidas, do solo a que a disciplina parece
arraigal-as. Mas a confusão dura apenas minutos! As filas confundidas
reconstruem-se, e os assaltos vertiginosos dos guerreiros de Thomières e
Loison quebram-se em vão contra a firmeza admiravel d'aquelle rochedo
humano!

O sangue ensopa o chão, amortecendo o ruido dos carros e reparos, e o
estrupido medonho dos pés dos combatentes. A chamma das bôccas dos
canhões e fuzis cresta o rosto dos mais avançados. Fileiras sobre
fileiras, minadas pelo bater incessante dos pelouros, escorregam no solo
humido de carnificina, e prostram-se depois para não se levantarem,
conservando apenas, aqui, e acolá, de pé, um ou outro soldado,
sentinella perdida, que sobrevive ao estrago commum.

De lado a lado mordem o pó os mais valentes. O coronel Pillet e o
general Charland, feridos, multiplicam as ordens e o esforço. O tenente
coronel Peytavy adormece do somno dos fortes. Os inglezes pelejam com
pouco enthusiasmo, mas com tenacidade indomita. Sem retirada, a derrota
equivale para elles a um desastre sem nome. Nas suas costas aprumam-se
despenhadeiros a pique; a seus pés ronca o mar enfurecido! Wellesley
sabe-o, mas conta com os obstaculos naturaes, e com o valor e o numero
de suas tropas. As columnas de Junot não são assás profundas para
varrerem na ponta das bayonetas as tres linhas, que têem defronte.

Kellermann desdobra os batalhões da reserva a dois tiros de peça do
Vimeiro. O duque d'Abrantes, perto d'elle, contempla o progresso dos
ataques de Delaborde e Loison. Uma ordem sua manda marchar em auxilio
dos dois generaes o 2.^o de granadeiros, commandado pelo coronel
Sainte-Claire. Avançando em columna, e em pelotões, o regimento costêa a
quebrada, que baixa á direita para o barranco, aonde passa a estrada do
Vimeiro a Toledo. Os inglezes, desopprimidos das forças de Delaborde,
constrangidas a recuar, respiram por instantes, recuperando-se á pressa
dos golpes precedentes.

Avistando os inimigos, que se adeantam, são suas disposições promptas e
decisivas.

Os artilheiros assestam contra elles as bôccas de dezoito canhões e
obuzes, e dando-lhes fogo a um tempo cobrem o terreno de projectis. As
balas ôccas dos obuzes, enfiando filas inteiras, vem rebentar como
bombas e granadas no centro dos segundos pelotões. Cuidam que o espanto
e o terror dissiparam o ataque, e que os francezes cedem sem entestar
com suas linhas! Illusão! Mal protegido pelos frouxos tiros das baterias
da primeira divisão e da reserva, investindo por baixo de uma chuva de
balas, que o consome, o regimento, como se entrasse em parada, prosegue
inalteravel, semeando de mortos e feridos todo o caminho, e pagando com
torrentes de sangue cada passo adeantado. Os que se aprestam a
rechaçal-o, sentindo-o acercar, sem o ver, pelo som cada vez mais forte
da marcha, vencem a custo o sobresalto inspirado por aquelle silencio
ameaçador, grávido da vingança de tantas perdas.

Finalmente as pontas das bayonetas relampejam sobranceiras ás cristas da
montanha, e as companhias, desfilando a cincoenta toezas da planura,
principiam a formar-se em batalha. De repente, espectaculo doloroso,
porém cheio de grandeza(!), um mar de fogo irrompe de todos os lados, e
envolta em chammas a pequena columna oscilla, arqueja, relucta ainda,
mas em vão e alue-se por fim, crivada pelas descargas convergentes da
mosquetaria de seis regimentos! As explosões das peças acompanham o
trovão rolante das descargas, os clamores do combate, e as ameaças dos
tambores e cornetas. Os cavallos de trem da artilheria franceza
extendem-se uns após outros, deixando os reparos desmontados. Os
coroneis Foy e Prost pugnam debalde, e salpicam de sangue os canhões
emmudecidos. Os primeiros pelotões de infanteria varridos pelo tufão de
metralha desapparecem fulminados, e quando o fumo, que cega o campo, se
desvanece, do bello e soberbo regimento, cujos brios os contrarios mesmo
haviam applaudido, apenas restam reliquias, que em troços dilacerados se
derivam fugitivas pela encosta, golfando de todos os membros o sangue de
mil feridas!

Kellerman, que seguíra o 2.^o de granadeiros com o 1.^o regimento, ás
ordens do coronel Morancin, atravessado o barranco, fôra encontrar-se de
rosto com a brigada de Ackland. Sir Arthur, notando cuidadoso este
movimento contra o centro, e receando pela povoação do Vimeiro, tractára
de anniquilar sem demora o novo ataque. As tropas britannicas baixaram
em forças duplas sobre a columna de Kellermann, e flanquearam-n'a. Não
contente ainda com a fuzilaria cerrada, que dizima as fileiras
contrarias, o general inglez arroja sobre ellas o impetuoso choque de
quatrocentos cavallos do 20.^o de dragões ligeiros, da guarda de policia
portugueza, e dos voluntarios da Beira Alta e Extremadura.

Os granadeiros, colhidos no meio de um verdadeiro furacão de ferro,
antes de poderem formar quadrado, vêem reluzir sobre as cabeças os
sabres dos dragões e as espadas da cavallaria portugueza, á qual a voz e
o exemplo de Manuel Coutinho, do coronel de milicias de Leiria, do
morgado de Penin, e dos outros cavalheiros, que dias antes encontrámos
no palacio da Asseca, infundem animo superior a maiores emprezas. As
aguias rojam no pó pela primeira vez, e o amante de Leonor, alcançando a
preço de ferimento leve a gloria de tomar um dos estandartes fadados até
então pela victoria é saudado com vivas e felicitações pelos soldados,
ebrios de enthusiasmo.

Os granadeiros acutilados dispersam-se deante dos cavalleiros, que os
perseguem, alastrando o terreno de victimas, destroços, e captivando
quasi a cada passo os que fogem, arremessando as armas.

--Safa com a calma! brada um dos officiaes portuguezes, que a farda, a
estatura herculea, e a voz atroadora denunciam de longe ser o bellicoso
patriota, o major Alvaro. Trago os miolos assados dentro d'esta
barretina, d'esta maldita panella. Forte asneira! Pôrem á cabeça da
gente um cantaro que peza arrobas! Trago a camisa pegada ao corpo de
suor!

--Que dia, meu amigo, que grande dia! disse o capitão-mór de ordenanças
de Leiria, Manuel Carranca, limpando junto d'elle a testa com a aba
verde da farda, e restabelecendo o equilibrio ameaçado pela carreira do
cavallo, um pouco fogoso de mais talvez para a sua pericia equestre. Não
sinto já o braço de jogar cutiladas a estes cães, sr. Alvaro! Respiremos
um instante!

--Pouco os acúa! Não me estejam a fazer de um agreiro um cavalleiro!
accudiu o alcaide-mór Rodrigo Crespo com a serenidade de um veterano
callejado. Isto de que os senhores se admiram não é nada em comparação
do que foi pelo Roussillon! Se caíssem sobre um quadrado a espirrar fogo
por todos os lados, e crespo de bayonetas como um ouriço, então veriam.
Mas estes granadeiros, que se derretem como alcôrce mal os cavallos lhes
fungam ás barbas?! Historia!... Olhe, sr. Isidoro Pinto! ajuntou,
voltando-se para o coronel de milicias, que acabava de sofrear o ginete,
e que o escutava. Olhe como Manuel Coutinho, vae guapo na frente. Corre
que desapparece! Ah, rapazes, rapazes!

--Bom sangue não mente! redarguiu o velho cavalheiro, resguardando a
vista do sol com a mão curva, e contemplando o espectaculo terrivel e
variado, que se descortinava no campo por todas as partes.

--Ah, meu coronel! exclamou o major Alvaro escarlate de fadiga e de
regozijo. Tenho engulido mais de dois alqueires de terra, ando todo n'um
lago, mas juro-lhe por todos os sanctos da côrte do ceu, que não trocava
por um condado a alegria d'esta hora... Como elles fogem! Parecem gamos!
Ah senhores francezes, cheira-lhes a esturro a nossa polvora? Bravo! Lá
apanharam os inglezes um pelotão quasi inteiro! Fortes covardes!...

--Não diga isso, senhor Alvaro! atalhou o coronel Isidoro Pinto.
Agradeça a Deus o que estamos presenciando, e antes de tempo não cante
victoria! Os francezes são valentes soldados, e aqui mesmo o estão
mostrando. Fogem estes, e quem sabe, talvez d'aqui a nada tenhamos de
fugir tambem. Agora por elles, e logo por nós. São sortes da guerra.

--Qual fugir, nem meio fugir! gritou Rodrigo Crespo, rindo
desentoadamente. Mas espera! Que é aquillo lá em baixo!

E alçando-se nos estribos apontava para a linha de arvores de um pequeno
bosque, copado sobre a esquerda, d'onde principiavam a enrolar-se certas
ondas suspeitas de poeira, avultando, como nuvem que desponta e se
desdobra, em corpo numeroso.

--Aquillo?! O que é aquillo? berrou o major Alvaro depois de fitar por
um pouco a vista de lince no ponto designado. Aquillo são francezes. É
uma emboscada de cavallaria jacobina. Estamos lambidos, com mil
diabos!...

--Fale mais devagar, observou o experimentado alcaide-mór. Noticias
d'estas não se gritam por cima dos telhados. É verdade, são francezes, e
com peças montadas e atiradores na frente! Formam em columna e em
pelotões á saída do bosque! Temos festa!... Rapazes! Alto! accrescentou
virando-se para o meio esquadrão de voluntarios que o seguia. Apparece
um grosso de cavallaria inimiga pelo flanco! Sentido! Toca a reunir ao
tenente coronel Taylor.

E o alcaide-mór, collocando-se á testa do meio esquadrão, ajuntava
friamente voltado para o major e para o capitão-mór:

--O sr. Isidoro Pinto tinha razão. Vamos receber uma carga a fundo, e
receio que a nossa gente a não supporte. A confusão desordenada, em que
a cavallaria ingleza corre no alcance dos granadeiros, póde ser-nos
fatal. Em todo caso... somos portuguezes. Aqui havemos de vencer ou
morrer!

--Viva o principe regente! Viva a santa religião! bradou o major
floreteando a pesada espada, e atirando a barretina ao ar.

--Viva Portugal, e sejamos homens! exclamou o coronel sereno e
intrepido, mettendo o cavallo ao lado do do alcaide-mór.

--Eil-os comnosco! gritou Manuel Carranca. Deus me perdôe! Como vem
feros! Se não fosse vergonha dizia, que mettem medo... de longe!

--Póde dizer, que não lhe fica mal. Mais d'estes lances tenho eu visto
na minha vida, e confesso-lhe que estimaria achar-me agora em outra
parte... São ossos do officio, não ha remedio senão roel-os. Paciencia!

A conjectura do velho official era exacta. Vendo disperso pelo fogo das
brigadas e pelo ferro dos dragões inglezes e da guarda da policia o
bello regimento de Morancin, o general Margaron, emboscado desde o
romper da manhã com toda a divisão de cavallaria franceza, deu por fim o
signal do ataque, signal, que Armand de Aubry, Lassage, e muitos outros
officiaes, não menos impacientes do que elles, aguardavam cheios de ira,
e mordendo os beiços.

O formoso quadro, que offereciam á vista os pelotões, desfilando a trote
de entre as arvores, cobertos por uma linha de atiradores, e trazendo
nos flancos as bôccas de fogo chamadas da reserva, ao passo que enlevava
os olhos, confrangia o coração. De momento para momento apertava o
perigo dos alliados soltos em carreira desenfreada após os vencidos.

Avançando em duas columnas, uma composta da guarda do general em chefe e
do regimento 26.^o de caçadores a cavallo, ás ordens do principe de
Salm-Salm, a outra formada dos regimentos 4.^o e 5.^o de dragões, na
frente dos quaes galopavam Margaron, os majores Leclerc, Theron, e todo
o estado maior, os esquadrões francezes, desenvolvendo-se, arremettem
com os estandartes altos, e as espadas núas, no meio da brava alegria
dos clarins, direitos a uma eminencia, que precisam vencer para dominar
o campo.

Similhantes a duas serpes monstruosas, suas columnas enroscam-se,
colleando pelas veredas da encosta, e subindo, ora entumecem, ora
estiram os anneis luzentes pelas voltas sinuosas, precedidas dos
relampagos, que fuzilam as bôccas das peças, do trovão, com que a
artilheria annuncia a sua presença, e da cortina de fumo, que ondeia e
paira sulcada de coriscos, sobre a ladeira opposta pela qual já se
precipitam os atiradores, investindo-a.

Vendo-os accommetter assim vistosos e intrepidos, o tenente coronel
Taylor olhou em redor de si, e apontando para elles exclamou:
_splendid_! Soldado applaudia a bizarra apparencia de outros soldados
dignos do seu valor! Firme deante da ameaça d'aquelle golpe sua voz
resoa em brados viris superior a todos os ruidos. Indifferente aos
perigos, vôa, ora a um, ora a outro lado, ordenando e confortando os
seus.

Os clarins britannicos e portuguezes respondem altivos ao desafio
guerreiro do inimigo. As nossas bandeiras tremulam com orgulho deante
das bandeiras oppostas. Retrocedendo em ondas loucas do alcance, que os
attraíra, os portuguezes e os dragões britannicos entram nas fileiras
uns após outros, e a ordem de batalha reconstrue-se sobre o terreno já
cavado pelas balas dos francezes. Manuel Coutinho e os officiaes unem os
esforços aos do valente capitão inglez e acodem á confusão inevitavel
d'este momento de sobresalto.

--Eil-os partem! exclama o amante de Leonor, vendo a cavallaria
contraria arremessar-se a todo o galope.

--Ávante! A elles, dragões! Bradou Taylor, largando as redeas, e
soltando o fogoso ginete, cujas crinas ondeantes açoutam o ar.

Foi como o encontro de dois vulcões rolando ennovelados por cima da
terra, que parecia gemer e vergar opprimida com a tempestade de homens e
cavallos, cujo estrondo abafado recresce á medida, que as duas muralhas
de ferro se approximam.

O chão embebe-se rapido debaixo dos pés dos corseis. Já não é senão uma
estreita orla entre dois rolos de pó.

O sol bate de chapa sobre a planicie. As armas scintillam despedindo
clarões sinistros. A distancia desapparece! As primeiras filas topam em
cheio. Um grito, uma explosão, um estrondo horrendo, assonancia de mil
clamores e de mil estrepitos, acompanha o medonho choque!

As fileiras baralham-se, e a peleja individualiza-se. Os pelotões
atiram-se uns contra os outros como vagas furiosas e encapelladas,
estourando no meio d'aquelle mar agitado. Com as redeas nos dentes, os
cavallos empinados, e a pistola, ou o sabre em punho, n'este duello
immenso composto de mil combates parciaes, cada qual busca um contendor
e logo o esquece, derrubado e nas ancias da morte, ou distraído no ardor
da nova provocação. Ao fuzilar das espadas juntam-se as detonações, a
chamma fugaz dos tiros disparados á queima roupa, e os jorros de fogo
que illuminam a frente das baterias.

A atmosphera suffoca. Ao alento fumegante dos cavallos, nitrindo de
colera, une-se a respiração abrazada dos homens, cujos olhos relampejam,
cujo odio encanecido em momentos devora o adversario alçado deante
d'elles. O sangue gotteja das armas e dos uniformes. Gemidos e brados
acompanham a agonia e a vingança. Por meio d'esta scena de furia e
delirio feroz atravessam ginetes sem dono com as crinas soltas, e cruzam
esvaindo-se pelas feridas corseis arrastando presos dos estribos os
cavalleiros moribundos. A lucta é toda de força e destreza. Deslumbra a
vista o faiscar incessante dos golpes. As fileiras raream-se. As vozes
dos chefes retumbam por cima do concerto horrendo dos combatentes
travados como feras no circo.

D'Aubry, fiel á sua palavra, mais parecia buscar a morte, do que a
gloria. O seu braço fere infatigavel; o seu peito offerece-se descoberto
ás balas e ao ferro. Por onde passa, os mais fortes e audazes, recuam,
ou caem. Manuel Coutinho, ao lado de Taylor, viu-o atirar o cavallo ao
encontro do coronel, saír intacto e invulneravel do arremesso de cem
contrarios, e avisinhar-se com a espada alta sobre o commandante inglez.

Sentindo fugir-lhe o campo, e divisando rotas, ou desordenadas suas
fileiras, Taylor accommette quasi só os inimigos com aquelle supremo
desdem do perigo, feição heroica do seu caracter. Poucos dragões e
alguns portuguezes ainda o rodeam, porém já desfallecidos. Os esquadrões
britannicos recuam e fazem já meia volta, retirando-se surdos ás ordens
e á desesperação dos capitães.

Lassagne e o coronel inglez encontram-se um defronte do outro por um
d'esses acasos, que a guerra tantas vezes arrasta. D'Aubry luctava perto
por abrir caminho, mas se podia ver o combate, não podia soccorrer o
companheiro de armas. De subito a espada do tenente francez faiscou
baixando a cravar-se no hombro esquerdo de Taylor, que a dor faz
vacillar nos arções, mas ao qual a ira, restituindo o alento, presta
novas forças. Um golpe terrivel depressa o vinga, e Lassagne, varado de
uma estocada pelos peitos, baquêa do cavallo em terra.

--Adeante! clama a voz do coronel, apertando os joelhos ao cavallo, e
floreteando o sabre.

Não poude dizer mais. Uma bala suspende-o na carreira. A mão inerte
solta as redeas, a espada núa escapa-lhe dos dedos, e o corpo seguro na
sella por segundos oscilla e prostra-se afinal sem vida. A bala
tinha-lhe atravessado o coração!

Manuel Coutinho olhou e empallideceu. Na mão de Armand d'Aubry fumegava
ainda a pistola, que disparára o tiro. A queda de Taylor acabou de
abalar os soldados já vacillantes. Alguns d'elles comtudo, cercam
d'Aubry, accesos em raiva e esquecem tudo para saciar o odio, que os
abraza. Triste com a perda do amigo, insensivel á propria morte, o
mancebo quasi que mal lhes disputa a existencia. Já o sangue lhe corre
de largas feridas, já a espada lhe treme na guarda, já um véu principia
a turvar-lhe a vista, quando de repente vê a larga folha de um sabre
ameaçar-lhe a fronte, outro ferro antepor-se e aparar a golpe, e uma voz
conhecida bradar-lhe:

--Rende-te!

Entregou a espada já sem ver a quem, e fechou os olhos.

Quando tornou a abril-os, achou-se debaixo do tecto de uma barraca de
lona ingleza, com o cirurgião-mór de um corpo britannico ao lado, e
Manuel Coutinho á cabeceira.

A batalha tinha terminado. A brigada Solignac na estrada da Lourinhã, e
a brigada Crenier na assomada da Ventosa haviam tentado tambem de balde
a ventura das armas. A fortuna de Wellesley foi mais poderosa. As
posições do Vimeiro, immortalizadas pela firmeza dos alliados,
repelliram todos os ataques. No fim de duas horas e meia de fogo, os
francezes contaram fóra de combate mil e oitocentos homens entre mortos
e feridos, bastantes prisioneiros, entre elles o general Brenier, e
treze peças de campanha perdidas, com vinte e tres carros de munições. O
duque de Abrantes, salva a honra, inclinou-se deante da adversidade, e
ordenou a retirada.

Restava-lhe morrer, capitular, ou abrir pelo meio dos inimigos a
retirada. A sorte compadecida não quiz que elle encontrasse um tumulo em
Portugal, aonde quasi possuira um throno. Por mão dos proprios
adversarios lhe franqueou as portas da patria.




XII

Sol entre nuvens


Voltemos áquella casa tão risonha do campo do Ourique, aonde ouvimos as
imprecações de Manuel Coutinho, as palavras prudentes do bispo de
Malaca, e a resposta de Leonor ás propostas de Lagarde. Apenas
decorreram algumas semanas, mas os successos precipitaram-se, e tudo
mudou de aspecto.

Entremos sem ruido pela alcova, cujas portas de vidraça, recatadas pelo
reposteiro de seda, abrem sobre a sala, aonde vimos a filha de Paulo de
Azevedo jurar ao seu amante eterno amor. Os moveis e o adorno do
aposento são ainda os mesmos. Os raios do sol afagam de luz dourada as
avezinhas, que saltam nas gaiolas, e beijam as corollas das flores,
cujos variados matizes sobresaem, marchetando os bellos ramos, que
enfeitam as antigas jarras japonezas em cima do marmore dos tremós.

O gato valido dormita enrolado sobre o seu coxim de lã. A agulha
continúa esquecida, picando a tela na folha começada mezes antes no
bastidor. Lá está aberta a «Imitação de Christo» na pagina, que Leonor
lia, quando a entrada de Manuel Coutinho a veiu interromper. Além se
descobrem, junto do espelho de talha alta, os outros livros, fieis
companheiros da donzella, nas suas horas de tristeza e solidão! Tudo
parece o mesmo, e, todavia não sei que invisivel e indiscreto delator
logo revela aos olhos, que o infortunio e as magoas já não humedecem de
suas lagrimas aquellas paredes, aonde já se respira conforto e alegria.

Soam passos e vozes na rua mais proxima do jardim. A areia range debaixo
dos pés de tres pessoas, que se encaminham lentamente para a meia
laranja rasgada deante da escada de pedra.

Todas tres são nossas conhecidas. No meio, mais grave e preoccupado, do
que o vimos nos dias de oppressão e de risco, vem o veneravel bispo de
Malaca. Conserva ainda o bondoso sorriso e a serena expressão do
semblante, mas um véu de melancholia lança-lhe algumas sombras sobre o
rosto. Á sua direita Manuel Coutinho com o braço esquerdo ao peito
parece escutar com impaciencia as phrases, que Paulo de Azevedo solta
com vehemencia, todo inflammado em ira.

--Não, Manuel, não me convence! exclamava o velho cavalheiro colerico. A
capitulação de Cintra é um opprobrio para nós, e uma infamia para quem a
assignou! Se foi para nos tractarem como conquista sua, para nos
venderem a honra e a fazenda a retalho, excusavam os inglezes de vir a
Portugal. Estrangeiros por estrangeiros cá tinhamos o Junot. Ladrões por
ladrões cá estavam Lagarde e Juffré. Não era necessario encommendarem-se
os Trant, os Dalrymple, e os Ackland!...

--Não vá tão longe, sr. Paulo de Azevedo, não seja injusto! accudiu o
bispo, interpondo-se mansamente. Louve a Deus pelas maravilhas da nossa
restauração, e não se afflija tanto com o mais. Tudo tem remedio.

--De mais, observou Manuel Coutinho, estou certo de que os alliados já
conhecem o seu erro, e hão de cedo emendar o mal. Sir Arthur Wellesley
disse...

--Tão bom é elle, como os outros! interrompeu Paulo, levantando a voz.
Manuel Coutinho é muito moço. Conto mais annos e mais experiencia.
Lembre-se de que tambem os francezes entraram aqui com pés de lã, e
depois...

--Pois cuida?! É impossivel!...

--Cuido, sim, senhor. Não sei o que acham os estrangeiros n'esta tira de
terra, mas a verdade é que todos a cubiçam, hespanhoes, francezes e
inglezes! Mas se estes de agora imaginam representar ao vivo a fabula da
ostra e dos litigantes talvez se arrependam. Não hão de comer a polpa e
dar as cascas a Bonaparte e ao principe regente! Em Portugal ainda ha
fouces roçadouras e espingardas caçadeiras por essas choupanas para
exterminar hereges e traidores!...

--Socegue! Pois julga que o governo inglez havia de cair na loucura de
querer apoderar-se do reino!? atalhou o bispo sorrindo-se. Os generaes
alliados não nos tractaram bem, concedo. Faltaram ao respeito devido á
rainha, nossa senhora, dispondo sem audiencia nossa, do que pertence á
sua corôa; mas suppor que o fizessem com o ruim sentido de substituir a
sua usurpação á de França, não posso crel-o!

--Creia o que quizer, senhor bispo; mas saiba que o illude a sua bondade
natural. Senão diga-me: Estamos hoje a dez de setembro. Ha oito dias,
que o Tejo se vê coalhado de navios de transporte e de vazos de guerra
inglezes. Que bandeira tremula em S. Julião, nos fortes, em Paço
d'Arcos, e em Belem? Uma commissão de estrangeiros, em que só figura por
esmola um portuguez, abriu balcão no largo do Loreto n.^o 8, para tomar
conta das mobilias dos paços reaes, das repartições publicas, e dos
objectos furtados dos arsenaes, como de cousas inteiramente suas! Os
francezes acampam nas praças com as peças carregadas! Os inglezes estão
quasi ao lado d'elles! Pode dar-me noticia de Bernardim Freire e do
exercito portuguez? Sabe aonde pára? Não o pozeram fóra, a elle, que era
de casa, para se metterem a si de dentro?!...

--É verdade! respondeu Manuel Coutinho um pouco enleiado, porque a
amisade e respeito ao velho cavalheiro o prendiam por um lado, em quanto
pelo outro se lhe figuravam exageradas suas queixas e apprehensões. Mas
a capitulação foi negociada e assignada entre Junot e os alliados!
Talvez seja essa a causa da falta do nosso general n'este momento.

--E essa falta, attestada pelo protesto, que elle de certo ha de fazer
como bom portuguez e bom soldado, é a maior accusação, que existe,
contra a insolencia, com que somos tractados! bradou Paulo de Azevedo
com os olhos scintillantes. Pois dispõe-se assim da soberania, da
independencia, da honra, dos interesses, e da segurança de um reino
amigo sem chamar ás conferencias o general, que o representa, e que
empunha as armas para os sustentar?! Aonde estariam a esta hora
Wellesley, Dalrymple, Beresford, e Moore, se as nossas villas e cidades
se não sublevassem, e se o nosso exercito lhes não cobrisse a marcha
sempre? A bordo dos navios, ou vencidos e afogados no mar! São muito
esquecidos estes senhores inglezes!

--E aonde estariamos nós, tambem, accudiu Manuel Coutinho, por fim
irritado, se esses inglezes, que o sr. Paulo de Azevedo quasi amaldiçôa,
como inimigos, não combatessem pela nossa liberdade na Roliça e no
Vimeiro? Julga que as milicias de Bernardim Freire, e os Terços
tumultuosos eram capazes de desalojar De Laborde, ou de vencer Junot?
Quer que sejamos injustos? Todos viram o que succedeu. Foi ainda hontem!
O sangue vertido pelos estrangeiros em nossa defeza está vivo e fresco.
Não lhe parece cedo para começarmos a ser ingratos?!...

--Ingratos?! Ah! Manuel Coutinho não esperava similhantes palavras da
sua bôcca! Pois já se namorou tanto dos estrangeiros n'estes poucos
dias, que lhe esqueçam as offensas da patria escarnecida,
vilipendiada?...

--Ajudei a vingal-as no campo, sr. Paulo de Azevedo! redarguiu o mancebo
com alguma altivez. O que digo vi-o por meus olhos. O meu sangue correu
tambem alli! Se defendo os inglezes é porque os admirei como soldados, e
juro que não receio d'elles, que se nos convertam em inimigos. Acredite!
Agora podemos confessar a verdade. As sublevações das provincias não
expulsavam os francezes de Portugal!

--É tambem o meu voto! disse o bispo, pondo a mão no hombro do velho
cavalheiro, e persuadindo-o mais pela amenidade do sorriso e dos modos,
do que com as palavras. Nós sós contra tropas firmes e disciplinadas
podiamos ennobrecer de victimas o martyriologio nacional; mas vencer
parece-me que não. Vamos, meu amigo. Melhor o fará Deus! Estamos em suas
mãos, e Elle por sua infinita misericordia não ha de levantar de cima
d'este reino a protecção visivel, com que nos está soccorrendo. Não vae
tudo tão bem como devia ir? Fomos offendidos e aggravados? Paciencia! Do
mal o menos.

--Paciencia! exclamou o pae de Leonor já mais brando. Paciencia?! Sinto
arder o sangue nas veias, e o pejo nas faces, quando leio as
proclamações e editaes d'esses libertadores, que mandam como se não
tivessemos patria, rei, e independencia! Os francezes riem-se de nós
como de crianças enganadas. Lagarde entrouxa e enfarda as riquezas de
Queluz. Junot tracta do Castello de S. Jorge, e embarca caixotes e
caixotes cheios de preciosidades. Os traidores, que nos venderam, vão
saír com elle ricos e impunes, e não nos levam amarrados com
gargalheiras de ferro ao pescoço para nos venderem, como negros, talvez
porque não têem navios para tanta gente!...

N'este momento os tres chegavam defronte da escada. No alto, entre os
humbraes da porta, despontava, pallida e graciosa, a figura delicada de
Leonor, envolta em um penteador de rendas, com um meigo sorriso nos
labios.

--Alli está a nossa irmã da caridade, a nossa fada! Leio nos seus olhos
melhores noticias dos enfermos! accudiu o bispo, acenando risonho á
donzella, que esperasse, e começando a subir os degraus com a pausa da
edade.

Manuel Coutinho córou de alvoroço, e a sua vista, em um relance, disse
tantos segredos amorosos ao coração palpitante, que voava para elle, que
as faces de Leonor se avivaram de instantaneo rubor.

Paulo de Azevedo, no peito do qual principiavam a applacar-se as iras
murmurando ainda, apenas fitou a filha, sentiu de repente o animo de
todo sereno, e as mais grossas nuvens dissipadas. A alegria intima
espraiou-se-lhe pelo rosto, e com a bôcca cheia de riso, exclamou ainda
do meio dos canteiros de flores:

--Ah! Ah! Pelo que vejo levantámo-nos com a aurora e saímos fresca e
viçosa com ella?! Manuel, que fizeste á tua noiva, que não te fala?
Temos amuos, ou estaes hoje deveras mal, filhos?

Os dois amantes, sorrindo-se, trocaram um volver de olhos tão suave e
enlevado, que os anjos custodios de ambos, se não fossem tão puros
espiritos, teriam inveja ás felicidades da terra.

Paulo percebeu e sorriu-se tambem, offerecendo o braço a Manuel ainda
ferido no braço esquerdo, e contuso em uma perna, para o ajudar a subir.
Ao mesmo passo ameaçava com o dedo a Leonor, accrescentando:

--Bem! Muito bem! Entendo! Estão apostados para enganar o pobre velho,
que já não sabe de si, nem dos outros? Pois sim! Quer saber, sr. bispo?
Estes dois innocentes, que não pestanejam deante de nós, que não dizem
uma palavra com medo de que o ar os toque, vou jurar, que já se viram e
se falaram hoje da janella?! Adivinhei? Sim, ou não, Manuel Coutinho?

--Adivinhou metade. Já nos vimos, é verdade. Agora falarmos não. Para
que?

--De certo! atalhou o cavalheiro rindo com malicia. Se não me esqueci do
meu tempo de rapaz, para que deu Deus olhos aos amantes, senão para
dizerem tudo callados? Vamos! São mais do que horas de almoço. O passeio
e a disputa abriram-me o appetite! E d'Aubry? Passou melhor a noite? O
accesso não voltou?

--Não, meu pae. Graças a Deus, está salvo. Disse-o o medico ainda ha
pouco.

--Ah! o doutor Thomaz esteve por aqui? Não me chamaram?! Com que então
temos homem? Estimo immenso. D'Aubry, apezar de jacobino, é uma perola,
e sou seu amigo verdadeiro. Aquelle coração...

--É um nobre e grande coração, sr. Paulo, um coração de ouro! atalhou
Manuel Coutinho. Devemos-lhe muito, e ainda bem que o acaso me trouxe
pela mão ao sitio em elle de proposito se estava deixando matar!...

--E o outro francez, o tenente Lassagne? observou o bispo depois de
beijar Leonor na testa com paternal carinho. Tenho por elle tanta
sympathia!...

--Está livre de perigo tambem, disse-o o doutor, redarguiu Leonor.

--Podem pezar-se ambos a cêra, que no estado, em que os vi entrar aqui
nas macas, não cuidei nunca que escapassem. É verdade, que reis não eram
tractados com mais desvelo. Leonor! Nasceste mesmo para mulher de um
capitão. Foste uma enfermeira exemplar.

--Devia-o ser, meu pae. Não foi d'Aubry quem abriu as portas da sua
prisão e enxugou as nossas lagrimas? Manuel lembrou-se, e, salvando-o,
verteu por elle o seu sangue. Eu! Havia de fazer menos e ser ingrata?
Quando voltar a França, não ha de dizer, que a nossa memoria foi mais
curta, do que o beneficio. Achou em Manuel um irmão...

--E em ti uma irmã! Muito bem! Elle merece-o. Sabes a minha pena? É
aquelle maldito Lagarde! Porque ha de Aubry ser sobrinho de similhante
velhaco?! Se não fosse isso! Antes do senhor intendente nos dizer adeus,
havia de ajustar com elle as minhas contas! Entremos. Com aguas passadas
não moem moinhos.

Os tres entraram, e em quanto elles almoçam e conversam, informaremos
nós o leitor em duas palavras dos acontecimentos a que alludiram no
jardim, quando os encontrámos.

A batalha do Vimeiro provou ao duque de Abrantes, que lhe escasseavam as
forças para arrancar os inglezes de Portugal. Kellermann, acompanhado de
dois esquadrões de cavallaria, apresentou-se no quartel general inglez,
e aproveitando habilmente a timidez e a falta de tacto de sir Hew
Dalrymple, negociou com elles a famosa capitulação de 30 de agosto, que
tomou o nome de villa Cintra, aonde foi assignada, e que feriu ao mesmo
tempo o orgulho britannico e o amor proprio nacional, murchando metade
dos louros da victoria, e esmorecendo o enthusiasmo, com que Portugal
abria os braços aos alliados, e os acclamava restauradores da sua
independencia!

Os francezes por ella obrigaram-se a evacuar o reino com armas e
bagagens, não como prisioneiros, mas como tropas em armas, que os navios
britannicos haviam de desembarcar em Rochefort, podendo servir na guerra
apenas entrados na sua patria. As praças de guerra deviam ser entregues
aos soldados inglezes! Ao exercito era livre transportar comsigo, além
da artilheria e do trem, a caixa militar, e tudo o que pertencesse aos
corpos e aos chefes! Os feridos e doentes ficaram entregues ao cuidado
do governo inglez. Junot prometteu concentrar as suas divisões a duas
leguas de Lisboa, e o general em chefe sir Hew a tres leguas. A
convenção affiançou de mais a segurança e a impunidade das pessoas
addictas ao dominio dos invasores, e a troca de todos os prisioneiros
desde o começo das hostilidades. Dos portuguezes, do seu rei, dos seus
direitos, nem uma palavra! Foi como se não existissem! Nem os ouviram,
nem os attenderam!

O general Bernardim Freire de Andrade, aggravado do completo
esquecimento ou antes do desprezo, com que viu omittida a sua patria
n'estas memoraveis estipulações, protestou contra ellas em 14 de
setembro, e suas justas queixas, inseridas nas folhas de Londres,
exacerbaram ainda mais a indignação do povo inglez. A capitulação,
condemnada como um acto vergonhoso, mereceu o stygma, de que a flagellou
a soberba imprecação de Byron em um dos cantos de _Child Harold_.

O duque de Abrantes affrontou a adversidade com valor, e houve-se com
destreza antes, e depois do revés. Escarneceram-o por mandar illuminar
Torres Vedras na vespera da batalha, festejando antecipadamente o
triumpho! As luminarias eram para illudir e conter as iras da capital.
Recolhido de novo á côrte, á testa de suas tropas, a impaciencia dos
habitantes, por mais que o desejasse, não poude ler o annuncio do
desastre no seu rosto impenetravel. Sereno e intrepido conservou seguras
até ao ultimo instante as chaves!

A anciedade attribulou muitos dias o animo dos moradores. Lagarde e a
Policia, caso raro (!) alcançaram entreter as incertezas, encobrindo a
noticia da convenção. Os primeiros signaes da liberdade proxima
deu-lh'os sómente em 2 de setembro a entrada dos navios britannicos no
Tejo. O exercito francez principiou a embarcar por divisões, e com elle
se abrigaram egualmente debaixo dos estandartes estrangeiros os
portuguezes compromettidos, que o odio publico apodava de jacobinos. A
bandeira dos alliados hasteava-se em S. Julião e nos fortes das margens
do rio, em Paço de Arcos, e em Belem! Os inglezes acampavam em Arroyos e
no Campo de Santa Anna, tomando posse dos quarteis, á medida, que os
regimentos de Junot os despejavam.

Todos estes movimentos, e a vigilancia militar e hostil, com que os
francezes se guardavam nas praças com as peças carregadas á bôcca das
ruas e os murrões accesos, despertavam as esperanças dos nossos,
inflammando o seu zelo, reprimido do maior impeto pelos avisos de sir
Carlos Cotton, enviados de bordo da nau _Hybernia_, e pelos conselhos
prudentes de alguns patriotas respeitados.

Ao povo tudo isto se representava um sonho. Aos homens sisudos doiam no
orgulho nacional as condições da capitulação, mas temperava-se a magoa
d'ellas com a idéa de estar por um fio a queda da usurpação.

D'Aubry e Lassagne, perigosamente feridos no Vimeiro, salvos por Manuel
Coutinho, e transportados para a casa hospitaleira do bispo de Malaca,
graças aos disvelos do mancebo, tornando a si do agudo padecimento,
souberam que veriam de novo a França em breve. Seria sem saudade da
terra que iam deixar?




XIII

Conclusão


--Então ainda duvida? Somos livres. Não lhe dizia eu que estavamos nas
mãos de Deus?!..

--Ainda bem que acabou assim, sr. bispo, ainda bem! Mas sou teimoso. Os
inglezes portaram-se mal. Não os defenda. Dão ao céu o que o demonio não
quiz...

--Valham-me os Santos Martyres de Marrocos, sr. Paulo de Azevedo! Nada o
contenta. Nem este dia de gloria e de jubilo, em que todos parecemos
loucos!?...

--Olhe! Quem vai de certo contente é o Junot. Leva ao seu imperador um
exercito que devia ficar prisioneiro...

--Se o derrotassemos!...

--Derrotavamos de certo. Não tinha retirada. E o traficante de Lagarde,
que sae a barra cheio, como um ovo, de tudo o que roubou com as garras
da policia. A proposito, viu d'Aubry? Como supportou elle a noticia?...

--Da capitulação? Como um homem de brios e de grandes espiritos.

--E conta partir, e deixar-nos? Que remedio! Sabe que ha de fazer-me
falta. Estava costumado aos seus ditos joviaes, e agora!...

--Sente a separação? Tambem eu e elle a não sentimos pouco. Lassagne foi
com Manuel Coutinho ao quartel general inglez apresentar-se, e tirar
guia para o enbarque. Está muito pallido, mas fica-lhe bem. Excellente
rapaz!

--Vamos nós dar tambem uma volta pela cidade. Apezar de tudo...
accrescentou sorrindo, a alegria do povo, mais ou menos, sobe sempre á
cabeça dos que não se illudem com as apparencias. O dia 15 de setembro
será por muito tempo um dia memoravel nas recordações da patria.

--Ora ainda bem que o ouço falar assim. Vamos.

E os dois saíram pela porta do jardim.

D'Aubry ao mesmo tempo achava-se no vão de uma janella da sala, onde
víra Leonor pela primeira vez. Mais desmaiado e mais consumido de
physionomia, do que antes dos ferimentos, os olhos conservavam, todavia,
o antigo brilho, offuscado n'este momento por um véu de contemplativa
melancholia.

Tinha na mão um volume aberto, estava de pé, e julgando-se só fugia-lhe
a vista com o pensamento das paginas mortas do livro para as paginas
vivas das ultimas semanas da existencia. Duas lagrimas furtivas, e a
magoada expressão do rosto, revelavam, que, se o corpo convalescia da
molestia, a alma traspassada de occultos espinhos ainda continuava
enferma.

De repente uns dedos melindrosos, tocando-lhe no hombro ao de leve,
fizeram-o estremecer. Sem ver adivinhou que era Leonor. A côr
afogueou-lhe as faces subitamente, e um sorriso contrafeito passou-lhe
pelos labios, mais triste, do que a propria dor immobil.

--Que é isto?! accudiu a donzella, fitando-o compassiva e carinhosa. O
meu doente aqui, e só, com os olhos no céu, e, Deus me perdoe (!) ainda
humidos de pranto!? O que teve Armand? Que mal lhe fizemos para estar
assim magoado? Offendi-o sem saber, offendeu-o alguem d'esta casa
innocentemente?!...

--Offender-me, sr.^a D. Leonor! Os anjos deixam saudades e não aggravos!
Estava-me lembrando dos ditosos dias que passei aqui...

--Ditosos?! Entre dôres, e moribundo?!

--Ditosos sim. Que eram as dôres para mim, quando a tinha a meu lado,
imagem suave da consolação e do affecto? O corpo parecia morto, estava
quasi morto, mas se soubesse o que o espirito vivia e sonhava então!...
Delirios de enfermo! Illusões que a realidade cura... cruelmente, é
verdade, ou que só o tumulo acaba muitas vezes!...

--Não diga isso. O que chama illusões são realidades, todos aqui
dariamos a vida, que lhe devemos, para o vermos salvo e satisfeito.
Creio que apesar de se ver entre estranhos...

--Estranhos?! Não me faça ingrato, que não lh'o mereço. Nunca houve mais
extremosos amigos! Deus, compadecido da minha solidão, quiz dar-me antes
de morrer, porque me diz o coração que o primeiro campo de batalha será
a minha sepultura, a alegria de possuir no seu affecto o que a morte de
meus paes me roubou na infancia desamparada. Leonor! Consinta que repita
assim o seu doce nome. Disse-me um dia que era minha irmã!...

--Acha que o não fui, que o não sou já?! atalhou ella com um sorriso
meigo.

--Não! Porque me salvou da morte, quando a eu buscava e ella vinha?
Minha irmã! Que distancias, que inimigos, e que esquecimento dentro em
dias a vão apartar para sempre do triste ferido! É noiva, ámanhã será
esposa! Póde caber no seu peito com o amor... de outro, a memoria do
estrangeiro, que lhe passou deante apenas como sombra, que lhe deu
occasião de provar os thesouros admiraveis da mais piedosa
compaixão?!...

E, proferindo estas vozes apaixonadas, o mancebo, pallido, e quasi
desvairado, suffocava-se em cada phrase, porque a dôr lhe cortava o
peito. Leonor entristecia-se de o ouvir. Aquelles gemidos eram mais do
que amisade, eram gritos de uma ternura delirante, que a vontade em vão
luctava por conter. Em cada suspiro, em cada palavra gottejava o sangue
da alma.

A donzella commovida fez-se de repente pallida, como elle; e afogando em
um sorriso superficial os sentimentos, que principiavam a combatel-a,
respondeu, affectando a serena innocencia da ignorancia:

--Somos irmãos, não o disse já? Devo-lhe tanto, que nas orações, nas
supplicas, que elevo ao céu, não posso, não sei, separar do nome de meu
pae, do nome e do extremo... do que ha de ser meu marido, o nome
estimado de Armand d'Aubry! A minha alma é maior do que suppõe. Cabem
n'ella amor de mulher, affecto de filha, e amisade de irmã!...

--Leonor! Se eu ousasse!... Se quizesse adivinhar? atalhou o sobrinho de
Lagarde, em cujas pupillas faiscou momentaneamente um clarão de
esperança. É um segredo, que o meu coração calla e recolhe em si, mas
que o devora como alguns venenos corroem o vaso que os encerra...

--E envergonha-se de o confessar? accudiu ella tremula do estado, em que
o via, e receiosa da palavra imprudente, proxima a saltar dos labios do
mancebo. Cuida que não adivinho o motivo da sua tristeza, a razão das
lagrimas, que esconde, e que são o orgulho da nossa amisade?!...

--Ah! Calle-se, Leonor. Calle-se! Não vê que se me espedaça o coração de
ouvil-a falar assim!...

--Das saudades, que leva d'aqui, e que nos deixa?! proseguiu a filha de
Paulo de Azevedo no mesmo tom, mas fria e tremula por dentro da dôr e
anciedade comprimida de Aubry. Não se envergonhe d'ellas! Tambem eu as
sinto como irmã...

--É tão pouco! mumurou Armand quasi desfallecido e a meia voz.

Depois, cobrindo o rosto com as mãos, e suspirando, conservou-se por
algum tempo mudo. Quando ergueu por fim a fronte, a vista era já mais
firme e socegada, e o sorriso doloroso menos cortante.

--Perdoe-me, Leonor, affligi-a, bem sei. Somos irmãos, só irmãos, nada
mais! Não podemos ser senão irmãos!... O que disse--o que pensei um
momento--foram sonhos, foram delirios. Esqueçamol-os. Não conheci minha
mãe. Apenas se inclinou sobre o meu berço para se despedir de mim com um
beijo e voar ao seio dos anjos. Nunca amei do coração senão agora! É
falso! Nem agora! A minha paixão, a minha esposa, foi sempre a gloria,
não quero, não devo ter outra, e ha de ser. O tumulo é o leito nupcial
que ella abre aos que a adoram. Se lhe disserem breve, que este amor, o
da gloria, me custou a vida, dê-me uma lagrima e uma memoria! Manuel
Coutinho não o póde estranhar. Os mortos não causam ciume aos vivos!...

--Jesus! Aubry! Que tristes idéas! Magoam-n'o os festejos populares? Se
quer vamos para outra casa, aonde se ouçam menos!

--Não! Não! A maior dor passou. Veja! Quero outra vez ser o estouvado,
que a obrigava a rir-se de suas eternas distracções! Sae? Mal conto por
minutos as horas que tenho de a ver ainda! Não vê que roubar-m'os é
quasi um delicto? Recaí nos galanteios francezes, pasto usual de suas
ironias. D'esta doença é que me não curo!...

Leonor meneou a cabeça. A voz e o gesto desmentiam as palavras. Armand
amava-a, e fiel á lealdade jurada e á amisade de Manuel Coutinho,
arguia-se do sentimento invencivel como de um crime.

A entrada de Lassague, do seu amante, e do cavalheiro de Mafra trouxe
diversão salutar á violenta coacção dos dois.

Nem um, nem outro podiam já dissimular.

--Bravo! gritou da porta Paulo de Azevedo. Não sabes Leonor? A bandeira
branca, a bandeira sem mancha, já tremula no castello e nas fortalezas!
Os vivas nas ruas da baixa atrôam tudo. Os foguetes em girandolas sobem
e estalam nos ares. Os repiques dos sinos, as salvas de artilheria no
rio, coalhado de navios e botes, e nas torres, ensurdecem. Os montes da
cidade estão negros de gente. É um delirio, uma loucura! Deram-me mais
de cem abraços, e não sei ainda a quem os devo! Somos livres. Temos rei
e patria!... Manuel Coutinho dentro de tres dias quero que seja meu
filho. Temos a dispensa concedida e o padre de casa, o nosso santo
bispo. D'Aubry! Deixe rir e cantar os rapazes! Não faça caso. Quando
vier a paz geral... venha comer comnosco a Lisboa as broas do natal!...

Armand, ouvindo anunciar para tão breve o casamento de Leonor, tinha-se
tornado livido como um cadaver, e vacillára. A vista cobriu-se-lhe de
nuvens, e se Lassagne o não amparasse, não se sustinha de pé. A
donzella, á qual Manuel Coutinho apertava a mão com namorado enlevo, leu
a desesperação nos olhos do official francez, e sentiu quasi remorsos do
amor que o matava a elle. Silenciosa e pallida inclinou a fronte, e
sepultou no peito o suspiro, que ia jà a soltar indiscretamente. D'Aubry
venceu-se de pressa.

Tornando-se a si, adivinhou o que encerrava de affectuoso e nobre o
silencio da noiva, e resolveu corresponder-lhe com generosidade egual.
Pegando na mão de Manuel e de Leonor, e unindo-as, disse ao velho
cavalheiro com um sorriso:

--Sr. Paulo de Azevedo! Este dia de jubilo para Portugal não me
entristece. Nós o vingaremos, como soldados, em outros campos. Consinta
que na hora de partir, e de lhe dizer adeus para sempre, eu beije a mão
de minha irmã, e que estreite nos braços o irmão que me salvou!...

E depois de abraçar Manuel, os seus labios tocaram por instantes a bella
mão de Leonor. A donzella, sentindo caír sobre ella uma lagrima ardente,
que lhe escaldou a alma, refugiou-se confusa e anciosa contra o peito do
esposo promettido.

--Aubry! Não acceito desculpas. Ha de ser dos nossos, assista ao
casamento de minha filha!

--É impossivel! redarguiu Armand com tristeza, logo dissipada pelo
impeto affectado do seu genio jovial. As nupcias de Manuel fizeram-me
lembrar, de que tambem tenho uma noiva, a gloria, noiva que espera por
mim para consumar o meu destino. Leonor, adeus. É melhor despedirmo-nos
já d'aqui... até á eternidade! ajuntou em voz sumida.

--Armand! respondeu ella no mesmo tom. Fique! Não vê que a morte, que
deseja, é um suicidio?!

--Não. É um dever. Adeus. Lassagne! Quando em França nos recordarmos de
Portugal... a doce imagem do anjo, que nos salvou, sempre gravada no
peito, será a companheira e a consoladora de nossas saudades. Manuel
Coutinho! A sua felicidade com a esposa, que vae ter, é para ser
invejada até do céu. Não importa, merece-a. Nunca encontrei maior alma,
nem coração mais puro. Sr. Paulo de Azevedo! Ficam-lhe dois filhos para
amparo da sua velhice. Quer lançar uma benção sobre o terceiro, que não
tornará a ver talvez, mas que jura amal-o sempre?

O cavalheiro commovido apertou-o nos braços, beijou-o como filho, e
arrancando-se a custo ao doloroso enlace, exclamou:

--D'Aubry! Se Deus me tivesse dado um filho assim?! Adeus. Não se
demore. Faltar-me-ia o animo. Não quero... vel-o partir.

Um momento depois Lassagne e Armand volviam para aquella casa um
derradeiro e sentido olhar. O primeiro levava só vivas as saudades; o
segundo deixava n'ella para sempre metade da sua alma e a alegria de
toda a vida.

Silenciosa e triste, Leonor seguiu-os com a vista até desapparecerem.
Depois enxugou as lagrimas a furto, e suffocou os suspiros.

Teria receio de amar de mais o irmão que fugia d'ella para não
entristecer a sua felicidade!?

Quem se atreverá a decifrar os mysterios do coração feminino?


A guerra da independencia prolongou-se. Armand e Manuel Coutinho,
pelejando debaixo de bandeiras oppostas, não se encontraram. Paulo de
Azevedo e sua filha falavam a miudo do official francez, que o seu
coração não sepultára com a ausencia, e o avô, fazendo saltar nos braços
o primeiro neto, fructo mimoso do afortunado enlace, muitas vezes
repetia com os olhos humidos: Deus te faça um homem, como teu pae, ou
como Armand d'Aubry!

Quando a batalha de Waterloo encerrou a ultima pagina da epopeia
maravilhosa do primeiro imperio, Manuel, que subíra por suas proezas a
um posto elevado no exercito, e que teve a gloria de não assistir
obscuro áquelle derradeiro feito de armas, levantou do campo o coronel
d'Aubry, moribundo e varado de balas nos quadrados da velha guarda. A
morte d'esta vez quizera accudir, mas vagarosa e incerta, ao chamamento
do mancebo. Tres mezes depois Armand pelo braço do esposo de Leonor
batia de novo á porta da casa, de que se despedira sem esperanças de a
tornar a ver.

A sua presença, festejada por Paulo de Azevedo e pela filha, como
verdadeira ventura domestica, avisou a serena alegria, em que se
escoavam os ditosos dias dos seus amigos. D'Aubry mostrava ter esquecido
na lucta de gigantes da épocha o louco amor, que lhe apressára annos
antes a saída de Portugal. Nem um gesto, nem uma palavra revelaram da
sua parte a menor fraqueza! Sómente, ao apartar-se, já na vespera de
embarcar para Londres, é que o segredo foi revelado por um gemido mais
alto do coração. Leonor, sempre discreta, simulou não o entender, mas
percebeu que o francez partia para não voltar! A antiga ferida
continuava aberta, seria sem remedio d'esta vez?




FIM DO SEGUNDO E ULTIMO VOLUME DA «CASA DOS FANTASMAS»




NOTAS AO SEGUNDO VOLUME


I


     As chacotas os andores, o baile das espadas etc. pag. 7


A festa do Corpo de Deus, instituida em 1264 pelo Papa Urbano IV, para
dar a Jesus Christo culto particular, era solemnizada nas villas e
cidades principaes do reino com exquisitas invenções de figuras, danças,
e folias. A procissão saía na primeira quinta-feira, depois da festa da
Santissima Trindade, attraindo os olhos, e enlevando a imaginação do
povo pelo esplendor e pompa, de que se rodeava.

As noticias impressas mais antigas, que sobrevivem ácerca d'ella,
encontram-se nas _Dissertações Chronologicas_ de João Pedro Ribeiro, e
no _Novo Regimento para o governo da mesa da bandeira de S. Jorge,
fundada nas cartas, alvarás e lembranças do antigo regimento, que se
queimou pelo terremoto de 1755_, publicado pelos habeis archivistas da
camara municipal de Lisboa, em cujo cartorio se guarda.

No seu romance intitulado o _Monge de Cister_, com tanta rasão admirado
como primoroso modelo da novella historica, descreve o sr. A. Herculano
(tomo II e pag. XVII) a procissão de corpus referida ao anno de 1384;
reinado de D. João I; e o quadro do poeta, desenhado do natural, é tão
perfeito e verdadeiro, que vemos resuscitadas e vivas n'elle as feições
do grande espectaculo religioso da meia edade n'este dia.

João Pedro Ribeiro, no tomo III das _Dissertações Chronologicas_, doc.
LII pag. 153, insere um alvará datado de 16 de agosto de 1630, pelo qual
o rei ordena, que os tribunaes do Porto acompanhem de futuro a procissão
do Corpo de Deus da mesma fórma, que a tinham acompanhado n'este anno.
No tomo IV das _Dissertações_ (doc. XIII a XVI.) publica duas cartas da
rainha regente D. Catharina, uma datada de 30 de maio de 1560, e a outra
de 13 de maio de 1561, nas quaes dicta alguns preceitos ácerca do modo e
fórma de reger a procissão na cidade do Porto, e de cohibir as
representações deshonestas e escandalosas, introduzidas n'ella.

Outras duas cartas, uma de el rei D. Filippe III, escripta em Aranjuez
em 15 de maio de 1607, outra dirigida ao juiz, vereadores e procurador
da camara da cidade do Porto, pelo marquez de Castello Rodrigo em 18 de
maio de 1608, (doc. XV e XVI), tractando do mesmo assumpto, respondem ás
queixas do bispo D. Fr. Gonçalo de Moraes, e providenceiam ácerca
d'ellas. Finalmente o _Regimento feito pelos officiaes da camara da
cidade do Porto para a procissão de corpus com o parecer do Dr. Antonio
de Cabral, chanceller da Relação_, regimento approvado pelo alvará de 15
de julho de 1621, encerra o plano de distribuição das figuras, córos,
danças, folias, monstros, chacotas, imagens, anjos, demonios, andores,
charolas, communidades, clero, e tribunaes, que haviam de acompanhar o
prestito, determinando o logar, que lhes cabia n'elle, e a ordem em que
tinham de caminhar.

No _Regimento Novo_ de Lisboa, que já citámos, diz-se que a primeira
vez, que o sr. S. Jorge saiu com o seu estado na procissão foi no anno
de 1387 por ordem expressa de D. João I. No reinado de D. João III, em
1538, o prestito era tão vistoso e variado pela singularidade e
invenções das figuras, e pela opulencia e riqueza que ostentavam as
corporações mechanicas, que não admirava que se despovoassem os
arrabaldes e até as provincias para assistir a tão sumptuosa festa. Em
tempos mais proximos havia toirada no dia da procissão.

D. João V, instituindo a Patriarcal em 1717, decretou nova fórma á
procissão de corpus, tornada menos profana e mais devota. A grande pompa
e o immenso cortejo, que a ennobreceu no anno de 1719, proporcionou
fecundo thema á eloquencia do incansavel irmão Barbosa Machado, auctor
da obra a que se refere o texto.


II


     O resto, o peior da empreza, encarregou-se o brigadeiro Margaron de
     o concluir por ordem de Junot, etc., pag. 29.


Coimbra sublevou-se contra os francezes no dia 22 de junho, formando
logo para sua defeza a legião academica, composta dos estudantes ás
ordens do vice-reitor. O Porto tinha-se levantado no dia 18, dando o
exemplo a toda a provincia do Minho. O Algarve insurgiu-se a 16. A
provincia da Beira não se demorou tambem. Dentro de poucos dias o
incendio tinha-se extendido a todo o reino, tornando-se geral.

Os francezes conservavam guardas avançadas em Pombal e Leiria. Quinze
estudantes e um cabo conceberam o projecto de desalojar, e sairam com
esse intento de Coimbra no dia 28 de junho. Perto de Leiria foram
accommettidos por vinte e dois dragões de Junot; travou-se a peleja; a
cavallaria inimiga cedeu, e communicou o panico ao resto da força
postada á entrada da ponte. Esta, recuando, dispersou-se, ferida de
terror.

O governo francez, offendido do atrevimento, decidiu dar um exemplo
severo, castigando Leiria. O general Margaron partiu de Lisboa á frente
de dois batalhões, de quatro companhias escolhidas, e de seis peças de
artilheria, incumbido da execução marcial decretada contra a cidade.

A columna provou logo em Alcoentre o seu ardor de vingança. Tomando o
innocente cirio da Ameixieira por um tropel de guerrilhas, Margaron
manda armar uma embuscada por traz de um pinhal, e o chefe de esquadrão
Salm-Salm investe, intrepido e implacavel, os aldeãos devotos, como se
fossem leões embravecidos. Aos primeiros tiros caem por terra banhados
em sangue o gaiteiro e o prégador. Depois são assassinados
indistinctamente homens, mulheres, e crianças. A fuga salva o maior
numero da furia dos vencedores, cujos despojos n'esta batalha incrivel
são duas bandeiras de Nossa Senhora, expostas como tropheus no quartel
general. O boletim de 7 de julho teve a ingenuidade de commemorar como
derrota de um exercito de rebeldes esta carnificina do povo inerme!

No dia 5 uniu-se o general Thomiéres com 800 homens a Margaron, e
marcharam ambos contra Leiria A cidade passou, como é de crer, dos
fogosos arrebatamentos de jubilo patriotico a uma sombria apprehensão
dos males, que a ameaçavam. Não contava para se defender, senão com os
brios já desalentados de algumas companhias de ordenanças, que haviam
principiado a organizar-se sob o commando do coronel de cavallaria
Rodrigo Barba Allardo, alcaide mór. O capitão mór, Manuel Trigueiros,
auxiliava-o com mais zelo, que pericia, e o coronel de milicias Isidoro
dos Santos Ferreira procurava reanimar o esforço de todos com seus
discursos. Era pouco para arrostar em fortificações, nem meios solidos
de resistencia o valor disciplinado dos soldados do exercito da Gironda.

A noite, e a noticia do que occorrêra em Alcoentre, acabaram de
arrefecer o enthusiasmo amortecido dos moradores. Rodrigo Barba, os
magistrados, e o bispo, não julgando prudente, desarmados, como se viam,
affrontar as iras dos inimigos, evadiram-se sem ruido durante a calada
das trevas. Quando rompeu o dia, apenas oitocentos homens da plebe, e
duzentas ordenanças de espingardas e chuços se atreveram com temeridade
louca a disputar sem chefes a entrada da cidade aos francezes. Margaron
deu-lhes as honras de guerreiros consumados, tomando as disposições, que
poderia exigir uma força regular e numerosa. Avançou contra Leiria com
as tropas divididas em duas álas e a artilheria no centro. Disparados os
primeiros canhões, e dadas as primeiras descargas de mosqueteria, o povo
fugiu em confusão, e os francezes apoderaram-se da cidade com perda de
um homem morto e de dois feridos!

Os vencedores despregaram então toda a crueldade contra velhos,
mulheres, e crianças, que imploraram debalde a sua misericordia, e
metteram toda a povoação a ferro e saque. O principe de Salm-Salm
sobresaiu com ferocidade n'esta campanha contra prisioneiros inermes. O
palacio episcopal, a Sé, e os templos foram roubados; as egrejas
desacatadas; as casas particulares invadidas e despojadas. O resultado
foi incenderem-se mais os odios, e recrudescer a resistencia nacional.
(Vid. general Foy tomo II liv. VIII).


III


     O duque de Abrantes mostrou-se digno dos feitos heroicos, que
     ennobreceram a sua carreira etc. pag. 68.


A vida de Junot comporia quasi um romance.

Nascido em 23 de outubro de 1771 contava trinta e sete annos em 1808.
Estudante do collegio de Châtillon, quando rebentou a revolução, alistou
se como voluntario em uma companhia de granadeiros, e combateu com
denodo em defeza da patria. O valor temerario e arrebatado grangeou-lhe
no quartel a alcunha do _Tempestade_; mas a sua elevação começa em
Toulon. Bonaparte conheceu-o e apreciou-o alli, e nunca mais deixou de o
proteger.

As proezas com que sobresaiu nas campanhas de Italia e do Egypto, e a
dedicação pessoal, que sempre votou a Napoleão I, apressaram a sua
carreira. Nomeado governador de Paris depois do dia IX thermidor, e
casado com Mademoiselle Permon, cuja casa frequentára com Bonaparte em
dias menos felizes, subiu rapidamente os postos. Em 1804 achava-se
coronel general dos hussards. Embaixador em Lisboa e condecorado por D.
João, principe regente com a gran-cruz de Christo, saiu da côrte
portugueza em outubro de 1805 sem licença, e veiu apresentar-se a
Bonaparte nas vesperas da batalha de Austerlitz, aonde realçou a antiga
valentia em mais de um rasgo brilhante.

Em julho de 1806 foi nomeado governador de Paris e commandante da
primeira divisão militar. Prodigo e singular nos appetites, não havia
ouro que o saciasse. Os excessos repentinos e fulminantes da sua ira
assustavam até os amigos mais intimos. Napoleão escolheu-o para
capitanear o exercito, que invadiu Portugal em 1807, e a principio não
teve rasão de se arrepender. A sua marcha rapida sobre Lisboa pelas
montanhas da Beira mereceu os louvores dos militares, e justificou o
titulo de duque de Abrantes, com que o imperador o recompensou.

A convenção de Cintra não interrompeu a carreira de Junot. Na Hespanha,
na Allemanha, e outra vez em Portugal, mas ás ordens de Massena, a sua
espada não ficou ociosa. Ferido gravemente no rosto durante a guerra da
Peninsula recolheu-se a Paris. Depois da campanha de 1812, em que o
imperador o censurou de irresoluto em um dos seus boletins, a rasão do
duque de Abrantes principiou a vacillar, e em Veneza acabou de se
abysmar nas sombras da demencia. Transportado para casa de seu pae, em
Montbard, falleceu a 22 de julho de 1813 de um accesso violento de febre
depois de uma dolorosa amputação.

Junot não era soldado rude e grosseiro. Gentil e urbano, sabia attrahir
pelas maneiras, e era susceptivel de sentimentos elevados e de acções
nobres. Intrepido e intelligente, se os perigos e a morte o não faziam
recuar, o pezo das responsabilidades acurvando-lhe com frequencia o
animo, tornava-o inferior a si proprio nas posições eminentes. Nascêra
para ser o segundo e nunca para ser o primeiro nas arriscadas funcções
do governo. Os erros, que lhe estranham mais, derivaram-se todos d'esta
incapacidade natural. Cultor das boas artes, e dotado de gosto e critica
judiciosa, a sua bibliotheca encerrava os mais bellos exemplares das
edições de Bodoni e Didot impressas em velino. Em Lisboa, entre as
cousas raras, que tomou para si, figuravam a famosa Biblia ornada das
miniaturas de Julio Clovio e alguns quadros preciosos.

Junot morreu aos quarenta e dois annos, tendo vivido por seus vicios e
fadigas quasi tres edades de homem. Os costumes dissolutos, que, longe
de encobrir, parecia alardear, a avidez pouco escrupulosa, com que se
maculou em diversos lances, o fausto e as prodigalidades, de que se
rodeava, e as furias momentaneas de um genio assomado, raiando quasi em
demencia empanaram e diminuiram a gloria conquistada pelo seu valor de
paladino em campos de batalha memoraveis.

Sua mulher, a duqueza de Abrantes, não foi menos celebre como escritora
e como dama espirituosa.




DOCUMENTOS


N.^o 1

*Tratado secreto concluido em Fontainebleau entre o imperador dos
francezes e el-rei de Hespanha*


Napoleão por graça de Deus, etc., etc., etc., havendo lido e examinado o
tractado concluido e assignado em Fontainebleau em 27 de outubro pelo
general de divisão, Miguel Duroc, nosso mordomo mór, etc., etc., em
virtude dos plenos poderes que para esse fim lhe démos, com D. Eugenio
Izquierdo de Ribera y Lesaun, conselheiro d'estado honorario de sua
magestade el-rei de Hespanha, egualmente munido de plenos poderes de seu
soberano, cujo tractado está concebido na fórma seguinte:

Sua magestade o imperador dos francezes, rei de Italia, etc., etc., e
sua magestade catholica el-rei de Hespanha, desejando de sua livre
vontade regular os interesses dos dois estados, e determinar a sorte
futura de Portugal de uma maneira congruente com a politica de ambas as
nações, nomearam para seus ministros plenipotenciarios, a saber: Sua
magestade o imperador dos francezes ao general de divisão Miguel Duroc,
mordomo mór de sua imperial casa, etc., e sua magestade catholica el-rei
de Hespanha a D. Eugenio Izquierdo de Ribera y Lesaun, seu conselheiro
d'estado honorario, etc., os quaes, depois de haverem trocado seus
plenos poderes, convieram em o seguinte:

Artigo 1.^o As provincias d'entre Douro e Minho com a cidade do Porto
serão dadas com toda a sua propriedade e soberania a sua magestade
el-rei de Etruria, com o titulo de rei da Lusitania septentrional.

Art. 2.^o A provincia do Alemtejo e reino do Algarve serão dados com
toda a sua propriedade e soberania ao principe da Paz, para os possuir
com o titulo de principe dos Algarves.

Art. 3.^o As provincias da Beira, Traz-os-Montes e Extremadura
portugueza permanecerão em deposito até á paz geral, em que d'ellas
então se disporá, conforme as circumstancia, e pela maneira que for
determinada pelas altas partes contratantes.

Art. 4.^o O reino da Lusitania septentrional será possuido pelos
descendentes, herdeiros de sua magestade el-rei de Etruria, conforme as
leis de successão observadas pela familia reinante de sua magestade
catholica.

Art. 5.^o O principado dos Algarves será hereditario na descendencia do
principe da Paz, segundo as leis de successão, vigentes em a familia
reinante de sua magestade el-rei de Hespanha.

Art. 6.^o Por falta de descendente, ou legitimo herdeiro de el-rei da
Lusitania septentrional, ou do principe dos Algarves será a investidura
d'estes dois paizes garantida a sua magestade catholica, com a condição
porém de que nunca ficarão reunidos em a mesma pessoa, nem á corôa de
Hespanha.

Art. 7.^o O reino da Lusitania septentrional e o principado dos Algarves
reconhecem tambem como protector a sua magestade; e os soberanos d'estes
paizes nunca poderão fazer a guerra, ou a paz sem o seu consentimento.

Art. 8.^o No caso que as provincias da Beira, Traz-os-Montes, e
Extremadura portugueza, conservadas como em sequestro, forem pela paz
geral restituidas á casa de Bragança por troca de Gibraltar, Trindade, e
outras colonias, que os inglezes hão conquistado aos hespanhoes e a seus
alliados, o novo soberano d'estas provincias contrahirá para com sua
magestade el-rei de Hespanha as mesmas obrigações, que ligam á sua
augusta pessoa el-rei da Lusitania septentrional e o principe dos
Algarves.

Art. 9.^o Sua magestade el-rei de Etruria cede com toda a sua
propriedade e soberania o reino de Etruria a sua magestade o imperador
dos francezes, rei da Italia.

Art. 10.^o Logo que se leve a effeito a occupação definitiva das
provincias de Portugal, os principes respectivos, que d'ellas tomarem
posse, nomearão entre si commissarios para demarcar os convenientes
limites.

Art. 11.^o Sua magestade o imperador dos francezes, rei da Italia,
garante a sua magestade catholica el-rei de Hespanha a possessão de seus
estados na Europa ao sul dos Pyrenéos.

Art. 12.^o Sua magestade o imperador dos francezes, rei da Italia, annue
a reconhecer sua magestade catholica, el-rei de Hespanha, como imperador
das duas Americas, quando sua magestade catholica se resolver a tomar
este titulo, o que terá logar pela paz geral, ou dentro de tres annos o
mais tardar.

Art. 13.^o Fica entendido entre as altas partes contratantes, que ellas
repartirão egualmente entre si as ilhas, colonias, e mais possessões
maritimas de Portugal.

Art. 14.^o O presente tractado ficará secreto: será ratificado e as
ratificações se trocarão em Madrid vinte dias o mais tardar depois da
data em que foi assignado.

Feito em Fontainebleau.


                                                  _Duroc.--E. Izquierdo._


(_E logo por baixo_). Approvámos e approvâmos, pelas presentes
ratificações o antecedente tractado, e todos, e cada um dos artigos que
n'elle se contém. Declarâmos que fica acceito, ratificado e confirmado,
e promettemos que será inviolavelmente observado. Em fé do que
assignâmos com o nosso proprio punho as presentes ratificações, depois
de lhe havermos feito pôr o nosso sêllo imperial.

Fontainebleau aos 29 de outubro de 1807.

                                                  NAPOLEÃO.


O ministro dos negocios estrangeiros.

                                                  _Champagny._


O ministro secretario d'estado.

                                                  _H. B. Marat._



N.^o 2

EDITAL.


     O principe regente nosso senhor foi servido mandar remetter á mesa
     do desembargo do paço o decreto do teor seguinte.


Tendo sido sempre o meu maior desvelo conservar em meus estados, durante
a presente guerra, a mais perfeita neutralidade pelos reconhecidos bens
que d'ella resultavam aos vassallos d'esta corôa; com tudo não sendo
possivel conserval-a por mais tempo, e considerando, outrosim, o quanto
convem á humanidade a pacificação geral: Houve por bem acceder á causa
do continente, unindo-me a sua magestade o imperador dos francezes, rei
de Italia, e a sua magestade catholica, com o fim de contribuir, quanto
em mim fôr, para a acceleração da paz maritima. Por tanto, sou servido
ordenar, que os portos d'este reino sejam logo fechados á entrada dos
navios, assim de guerra, como mercantes, da Grã-Bretanha. A mesa do
desembargo do paço o tenha assim entendido e faça executar, mandando
affixar este por edital, e remetter a todos os logares, aonde convier,
para que chegue á noticia de todos. Palacio de Mafra em vinte de outubro
de mil oitocentos e sete.--Com a rubrica do principe regente nosso
senhor.--Para que chegue á noticia de todos, se mandou affixar este
edital.--Lisboa 22 de outubro de 1807.--_José Federico Ludovici_.


N.^o 3


     O governador de Paris, primeiro ajudante de campo de sua magestade
     o imperador, e rei, general em chefe, grão-cruz da ordem de Christo
     de Portugal.


Habitantes do reino de Portugal.--Um exercito francez vae entrar no
vosso territorio. Elle vem para vos tirar do dominio inglez, e faz
marchas forçadas para livrar a vossa bella cidade de Lisboa da sorte de
Copenhague. Mas será d'esta vez illudida a esperança do vosso perfido
governo inglez. Napoleão, que fitou seus olhos na sorte do continente,
viu a preza que os tyrannos dos mares antecipadamente devoravam em seu
coração, e não soffrerá que ella cáia em seu poder. O vosso principe
declarou a guerra á Inglaterra. Nós pois fazemos causa commum.

Habitantes pacificos dos campos, nada receieis. O meu exercito é tão bem
disciplinado, como valoroso. Eu respondo, sobre a minha honra, pelo seu
bom comportamento. Ache elle por toda a parte o agazalho, que lhe é
devido, como a soldados de Napoleão o grande. Ache elle, como tem
direito a esperar, os viveres de que tiver precisão; mas sobre tudo o
habitante dos campos fique socegado em sua casa.

Eis o que eu vos prometto. Guardar-vos-hei minha palavra.

Todo o soldado do exercito francez, que fôr achado roubando, será punido
com o mais rigoroso castigo.

Todo o individuo de qualquer ordem que seja, que tiver percebido alguma
contribuição injustamente, será conduzido perante um conselho de guerra,
para ser julgado segundo todo o rigor das leis.

Todo o individuo do reino de Portugal, não sendo soldado da tropa de
linha, que se apanhar fazendo parte de qualquer ajuntamento armado, será
arcabuzado.

Todo o individuo convencido de ser chefe de ajuntamento, ou de
conspiração, tendente a armar os cidadãos contra o exercito francez,
será arcabuzado.

Toda a cidade, villa, ou aldêa, em que se derem tiros de espingarda
contra a tropa franceza, será queimada.

Toda a cidade, villa ou aldêa, em cujo territorio fôr assassinado um
individuo pertencente ao exercito francez, pagará uma contribuição, que
não poderá ser menor que tres vezes o seu rendimento annual.

Os quatro habitantes principaes servirão de refens para o pagamento da
somma; e para que a justiça seja exemplar, a primeira cidade, villa, ou
aldêa, onde fôr um francez assassinado, será queimada, e arrasada
inteiramente.

Mas eu quero persuadir-me que os portuguezes hão de conhecer os seus
verdadeiros interesses; que auxiliando as vistas pacificas do seu
principe, nos receberão como amigos; e que particularmente a bella
cidade de Lisboa me verá com prazer entrar em seus muros á frente de um
exercito, que só a póde preservar de ser preza dos eternos inimigos do
continente. Dada no meu quartel general d'Alcantara aos 17 de novembro
de 1807.--_Junot._


N.^o 4

DECRETO


Tendo procurado por todos os meios possiveis conservar a neutralidade,
de que até agora tem gozado os meus fieis e amados vassallos, e apezar
de ter exhaurido o meu real erario, e de todos os mais sacrificios a que
me tenho sujeitado, chegando ao excesso de fechar os portos dos meus
reinos aos vassallos do meu antigo e leal alliado o rei da Grã-Bretanha,
expondo o commercio dos meus vassallos á total ruina, e a soffrer por
este motivo grave prejuizo nos rendimentos da minha corôa: vejo que pelo
interior do meu reino marcham tropas do imperador dos francezes e rei de
Italia, a quem eu me havia unido no continente na persuasão de não ser
mais inquietado, e que as mesmas se dirigem a esta capital: E querendo
eu evitar as funestas consequencias, que se pódem seguir de uma defeza,
que seria mais nociva que proveitosa, servindo só de derramar sangue em
prejuizo da humanidade, e capaz de accender mais a dissensão de umas
tropas que tem transitado por este reino com o annuncio e promessa de
não commetterem a menor hostilidade; conhecendo egualmente que ellas se
dirigem muito particularmente contra a minha real pessoa, e que os meus
leaes vassallos serão menos inquietados, ausentando-me eu d'este reino:
Tendo resolvido, em beneficio dos mesmos meus vassallos, passar com a
rainha minha senhora e mãe, e com toda a real familia para os Estados da
America, e estabelecer-me na cidade do Rio de Janeiro até a paz geral. E
considerando mais quanto convem deixar o governo d'estes reinos
n'aquella ordem, que cumpre ao bem d'elles e de meus povos, como cousa a
que tão essencialmente estou obrigado, tendo n'isto todas as
considerações que em tal caso me são presentes: Sou servido nomear para
na minha ausencia governarem e regerem estes meus reinos o marquez de
Abrantes, meu muito amado e prezado primo, Francisco da Cunha de
Menezes, tenente general dos meus exercitos; o principal Castro do meu
conselho e regedor das justiças; Pedro de Mello Breiner do meu conselho
que servirá de presidente do meu real erario, na falta e impedimento de
Luiz de Vasconcellos e Sousa, que se acha, impossibilitado com as suas
molestias; D. Francisco de Noronha, tenente general dos meus exercitos e
presidente da mesa da consciencia e ordens; e na falta de qualquer
d'elles o conde monteiro mór, que tenho nomeado presidente do senado da
camara, com a assistencia dos dois secretarios, o conde de Sampaio, e em
seu logar D. Miguel Pereira Forjaz, e do desembargador do paço e meu
procurador da corôa, João Antonio Salter de Mendonça, pela grande
confiança que de todos elles tenho e larga experiencia que elles têem
tido das cousas do mesmo governo; tendo por certo que os meus reinos e
povos serão governados e regidos por maneira que a minha consciencia
seja desencarregada, e elles governadores cumpram inteiramente a sua
obrigação em quanto Deus permittir que eu esteja ausente d'esta capital,
administrando a justiça com imparcialidade, distribuindo os premios e
castigos conforme os merecimentos de cada um. Os mesmos governadores o
tenham assim entendido, e cumpram na fórma sobredita, e na conformidade
das instrucções que serão com este decreto por mim assignadas, e farão
as participações necessárias ás repartições competentes. Palacio de
Nossa Senhora da Ajuda em vinte e seis de Novembro de mil oitocentos e
sete.

Com a rubrica do principe regente nosso senhor.


N.^o 5

*Instrucções a que se refere o meu real decreto de 26 de novembro de
1807*


Os governadores, que houve por bem nomear pelo meu real decreto da data
d'estas, para na minha ausencia governarem estes reinos, deverão prestar
o juramento do estylo nas mãos do cardeal patriarcha, e cuidarão com
todo o desvelo, vigilancia e actividade na administração da justiça,
distribuindo-a imparcialmente, e conservando em rigorosa observancia as
leis d'este reino.

Guardarão aos nacionaes todos os privilegios, que por mim, e pelos
senhores reis meus antecessores se acham concedidos.

Decidirão á pluralidade de votos as consultas, que pelos respectivos
tribunaes lhes forem apresentadas, regulando-se sempre pelas leis e
costumes do reino.

Proverão os logares de letras, e os officios de justiça e fazenda, na
fórma até agora por mim practicada.

Cuidarão em defender as pessoas e bens dos meus leaes vassallos,
escolhendo para os empregos militares as que d'elles se conhecerem serem
benemeritas.

Procurarão, quanto possivel fôr, conservar em paz este reino, e que as
tropas do imperador dos francezes e rei de Italia sejam bem
aquarteladas, e assistidas de tudo que lhes fôr preciso, em quanto se
detiverem n'este reino, evitando todo e qualquer insulto, que se possa
perpetrar, e castigando-o rigorosamente, quando aconteça; conservando
sempre a boa harmonia, que se deve practicar com os exercitos das
nações, com as quaes nos achâmos unidos no continente.

Quando succeda, por qualquer modo, faltar algum dos ditos governadores
elegerão á pluralidade de votos quem lhe succeda. Confio muito da sua
honra e virtude, que os meus povos não soffrerão incommodo na minha
ausencia, e que, permittindo Deus que volte a estes meus reinos com
brevidade, encontre todos contentes, e satisfeitos, reinando sempre
entre elles a boa ordem e tranquillidade, que deve haver entre
vassallos, que tão dignos se tem feito do meu paternal cuidado.

Palacio de Nossa Senhora da Ajuda em vinte e seis de novembro de mil
oitocentos e sete.--_Principe._


N.^o 6

*Decreto do Bonaparte impondo uma contribuição de guerra a Portugal*


Napoleão, etc., etc., temos ordenado e ordenâmos o seguinte:

Artigo 1.^o Uma contribuição extraordinaria de guerra de cem milhões de
francos[2] será lançada sobre o reino de Portugal pelo resgate das
propriedades particulares, qualquer que seja a denominação d'ellas.

Art. 2.^o Esta contribuição será repartida por provincias e concelhos,
segundo os respectivos meios, o que ficará a cargo do general em chefe
do nosso exercito, que dará todas as providencias para ser promptamente
cobrada.

Art. 3.^o Sequestrar-se-hão todos os bens pertencentes á rainha, ao
principe regente, e aos demais principes que disfructarem qualquer
apanagio.

Art. 4.^o Serão egualmente sequestrados todos os bens dos que
acompanharam o principe regente no acto de abandonar o paiz, se não
regressarem ao reino até 15 de fevereiro de 1808.

Dado no palacio real de Milão em 23 de dezembro de 1807.


                                                     NAPOLEÃO



N.^o 7

*A deputação portuguesa enviada junto a sua magestade o imperador dos
franceses e rei da Italia, protector da confederação do Rheno, aos
compatriotas*

A confiança que depositastes no grande principe, junto ao qual temos a
honra de ser interpretes dos vossos sentimentos, e dos vossos votos, foi
inspirada, menos pelo conhecimento dos interesses da patria, do que pelo
desejo de confiar a decisão da nossa sorte ao poderoso genio, que, tendo
restaurado o seu paiz, deu uma nova constituição á Europa.

O tempo que nos demorámos na fronteira do imperio francez, e que
precedeu a chegada de sua magestade imperial e real, cabalmente nos
mostrou o imperio, que o grande monarcha exerce nos corações de todos.

As acclamações cada vez mais vivas de seus subditos nos annunciaram o
momento, em que devia completar-se a felicidade d'elles e começar a
nossa.

Sua magestade imperial e real concedeu o primeiro dia da sua chegada a
Bayona aos seus subditos (este é o tributo ordinario do seu desvelo para
com elles), e dignou-se conceder-nos o segundo. Sua magestade imperial e
real conhecia, ainda mesmo antes de lh'as expormos, a vossa posição, as
vossas necessidades e tudo quanto vos interessa. Se alguma cousa póde
egualar o seu genio, é a elevação da sua alma e a generosidade dos seus
principios.

Ao passo, que sua magestade imperial e real se dignava falar-nos das
nossas circumstancias politicas com affabilidade verdadeiramente
paternal, fazia as reflexões mais interessantes ácerca da nossa
felicidade, e manifestava os principios mais elevados a respeito do uso
dos direitos que as circumstancias lhe deram. Não foi como conquistador
que sua magestade imperial e real entrou no nosso territorio, nem como
tal quer que o seu exercito ahi permaneça. O imperador sabe que nunca
tivemos guerra com sua magestade imperial e real. Pela grande distancia,
que separa a nossa patria do seu imperio, não póde sua magestade
imperial e real vigiar sobre ella com a mesma attenção, com que vigia os
outros Estados seus, e com que, satisfazendo a todas as necessidades
d'elles satisfaz tambem o amor que sua magestade imperial e real
consagra aos que têem a fortuna de ser seus subditos: seguem-se muitos
inconvenientes da delegação de uma grande auctoridade em paizes mui
distantes. Sua magestade imperial e real não nutre desejo algum de
vingança, nem mostra rancor ao principe, que, nos governava, nem á sua
real familia. Sua magestade imperial e real occupa-se de objectos mais
nobres, e não tracta senão de nos ligar com as outras partes da Europa
ao grande systema continental, do qual devemos fechar o ultimo annel:
tracta de nos livrar da influencia estrangeira que nos dominou tantos
annos: o imperador não póde consentir uma colonia ingleza no continente:
o imperador não póde nem quer deixar aportar a Portugal o principe, que
o deixou, confiando-se na protecção de navios inglezes.

Sua magestade imperial e real, considerando a vossa situação, houve por
bem declarar-nos que a nossa sorte dependia de nós; isto é, do espirito
publico que mostrassemos, com o qual nos unissemos ao systema geral do
continente, e concorressemos para os acontecimentos já preparados, assim
como da nossa vigilancia e da firmeza, com que repellissemos as
sugestões e intrigas que são de esperar, e que, sem proveito real para
os que forem auctores, ou objectos d'ellas só pódem causar a nossa
desgraça. Estes são os signaes por onde sua magestade imperial e real
quer julgar se somos ainda dignos de formar uma nação capaz de sustentar
no throno o principe, que nos governar, e de occupar entre as nações o
logar que nos compete, ou se, devemos ser confundidos com aquella, cuja
posição mais se approxima de nós mas de quem tão grandes motivos nos
afastam. Vereis com reconhecimento e admiração nestas sabias disposições
os profundos conhecimentos de sua magestade imperial e real, que não
quer decidir a sorte de um Estado, senão conforme os seus desejos
manifestados por factos. Cumpre aos magistrados e ás pessoas mais
auctorizadas que existem entre vós, cumpre a vós todos dar a maior
publicidade ás beneficas intenções de sua magestade imperial e real.
Esperâmos pois que confirmareis os protestos que lhe fizemos em vosso
nome.

Quando um grito unanime, arrancado no fundo dos nossos corações, mostrou
o desejo que tinhamos de ser uma nação, então mais do que nunca nos
julgámos dignos interpretes dos vossos sentimentos. O imperador, que
depois de tantas tempestades soube fazer da sua patria o primeiro paiz
do mundo, deverá conhecer que a nossa não merece ser o ultimo.

Sua magestade imperial e real conhece as privações que a interrupção
momentanea do commercio vos faz supportar: vosso estado a este respeito
é o mesmo que o do resto da Europa e que o da America; é consequencia de
uma lucta, cujo futuro resultado vos póde compensar os trabalhos do
tempo actual; tambem não esqueceu a sua magestade imperial e real a
coacção, em que vos poz a entrada de um exercito estrangeiro. O
imperador deseja ardentemente prevenir que esta desgraça se renove.

Affigiu assáz seu coração o pezo da contribuição que opprime Portugal: a
sua bondade lhe dictou a promessa de a reduzir conforme fosse compativel
com os nossos haveres. Os portuguezes, que estavam prisioneiros em
França, graças á clemencia do imperador, gozam já da liberdade.

Sua magestade imperial e real nos auctoriza para que vos participemos as
suas intenções, certos que ellas excitarão em vós a maior gratidão e o
mais sincero desejo de lhe corresponderdes.

Continuaremos a preencher junto a sua magestade imperial e real, e
conforme suas ordens, uma missão que não tem difficuldades, pois que a
bondade do imperador se une á sua sabedoria para simplificar os nossos
maiores interesses.

Bayona, 27 da Abril de 1808==(_assignados_) marquez de Penalva==marquez
de Marialva==D. Nuno Caetano Alvares Pereira de Mello==marquez de
Valença ==marquez de Abrantes==marquez de Abrantes, D. José==conde do
Sabugal==Francisco, bispo de Coimbra==conde de Arganil==José, bispo,
inquisidor geral==visconde de Barbacena==D. Lourenço de Lima==D. José,
prior mór da ordem militar de S. Bento de Aviz==Joaquim Alberto
Jorge==Antonio Thomaz da Silva Leitão.


N.^o 8

*Representação feita em Lisboa na junta dos tres Estados pelos
pseu-deputados de todas as classes*

Ordenando o general Junot que na junta dos tres Estados se ajuntassem os
deputados de todas as ordens civis para expressarem o voto geral da
nação, em consequencia do que a deputação portugueza havia communicado
na sua carta escrita do Bayonna em 27 de abril de 1808, foram nomeados
por esta conferencia secreta os seguintes:

_Pelo clero_. O principal Miranda, decano. O principal Noronha, seu
immediato.

_Pela nobreza_. O conde de Peniche, que presidia no conselho de fazenda.
D. Francisco Xavier de Noronha, presidente da meza da consciencia e
ordens.

_Pela municipalidade e povo_. O desembargador João José de Faria da
Costa Abreu Guião, que presidia no senado da camara. O desembargador
Luiz Coelho Ferreira Faria, seu immediato. O juiz do povo. O escrivão do
povo.

_Pela ordem da magistratura_. O desembargador Nicolau Esteves Negrão,
chanceller mór do reino. O desembargador Lucas de Seabra da Silva,
chanceller da caza da supplicação.

Estes dez deputados, juntando-se aos da junta dos tres Estados, que
então eram o conde da Ega, que presidia por ser titulo mais antigo, o
conde de Almada, e o conde de Castro Marim filho, todos elles assim
reunidos, formularam de commum accordo a seguinte representação:

Senhor:--Os representantes da nação portugueza, conhecida nos annaes do
mundo, e celebre, atrevemo-nos a dizêl-o, pelas suas conquistas e pela
sua fidelidade, teem a honra de apresentar-se ao throno augusto de vossa
magestade imperial e real.

Os acontecimentos extraordinarios, senhor, que agitaram a Europa toda
comprehenderam Portugal: uma politica mal entendida fez a esta nação
victima innocente dos males que tem experimentado. A consideração dos
interesses e relações que formam o presente systema federativo da
Europa, e as disposições beneficas de vossa magestade para com Portugal,
nos fazem conceber as mais lisongeiras esperanças de futura felicidade,
accolhendo-nos debaixo da magnifica protecção do heroe do mundo, do
arbitro dos reis e dos povos, que só póde cicatrizar as feridas da
patria, defendel-a do perigo da escravidão, e dar-lhe, entre as
potencias da Europa, aquelle logar distincto, que as profundas vistas
politicas de vossa magestade lhe tem desde já, como esperâmos,
designado. As circumstancias do tempo presente e a probabilidade do que
ha de vir nos faz conceber a causa dos males que temos soffrido e o
unico remedio a que devemos recorrer.

Interpretes e depositarios dos votos da nação, em nome de toda ella
rogâmos e aspirâmos a formar um dia parte da grande familia, de que
vossa magestade é pae benefico e soberano poderoso, e nos lisongeâmos,
senhor, que ella merece tal graça. Ninguem melhor do que o representante
de vossa magestade, o general em chefe do exercito de Portugal, e com
elle todo o seu exercito, póde dar maiores testemunhos do espirito
publico, que anima uma nação, que apezar dos maiores sacrificios e
privações, que as actuaes circumstancias lhe têem feito experimentar,
nada foi capaz de a fazer afrouxar em os sentimentos de admiração, de
respeito e de gratidão que todos nós professâmos a vossa magestade,
antes pelo contrario a intriga, as insinuações d'aquelles que se oppõem
ao nosso socego, e o pessimo exemplo dos nossos visinhos não fizeram
mais do que augmentar estes mesmos sentimentos, desenvolvendo aquelle
antigo germen de affeição, que sempre subsistiu entre estas duas nações,
lembrando-se os portuguezes de que o seu primeiro soberano fôra o conde
D. Henrique, principe francez.

Achâmo-nos, pois, plenamente convencidos de que Portugal não póde
conservar a sua independencia, animar a sua energia e o caracter de sua
propria dignidade, sem recorrer ás benevolas disposições de vossa
magestade. Ditosos seremos se vossa magestade nos considerar dignos de
ser contados no numero de seus fieis vassallos; e quando pela nossa
situação geographica, ou por outra qualquer razão, que a alta
consideração de vossa magestade tenha concebido não possamos lograr esta
felicidade, seja vossa magestade quem nos dê um principe da sua escolha,
ao qual entregaremos, com inteira e respeitosa confiança, a defeza das
nossas leis, dos nossos direitos, da nossa religião e de todos os mais
sagrados interesses da patria.

Debaixo dos auspicios da Providencia, debaixo da gloriosa protecção de
vossa magestade e do governo tutelar, que respeitosa e unanimemente
supplicâmos, nos lisongeâmos esperar, senhor, que Portugal assegurado
para sempre da affeição do maior dos monarchas, e unido por uma mesma
constituição politica aos destinos da França, verá renascer os ditosos
dias da sua antiga grandeza; a sua prosperidade será solida como a vossa
gloria, eterna como o vosso nome.

Lisboa, 24 de maio de 1808.

_Copiada do Correio Braziliense_--Vol. 13.^o fl. 738.


_N. B._ Foi esta mensagem assignada pelo conde da Ega, como presidente
d'aquella commissão secreta, e bem assim por todos os titulares e mais
fidalgos que se achavam em Lisboa, á excepção do marquez das Minas, o
unico que a isso se recusou. Os signatarios de modo algum representavam
a nação, com cujos interesses pouco se importavam; tinham apenas em mira
obter de Napoleão a conservação das regalias e privilegios que Filippe
II e D. João IV haviam confirmado a seus antepassados. A _Junta dos Tres
Estados_, de que era presidente o conde da Ega, só tinha attribuições
administrativas, não se parecendo em cousa alguma com as antigas côrtes
do reino. O juiz do povo foi obrigado a assignar esta representação
contra a qual havia a principio protestado.


N.^o 9

*Projecto para a constituição de Portugal*


Lembrando-se os portuguezes, de que são de raça franceza, como
descendentes dos que conquistaram este bello paiz aos mouros em 1147, e
que devem á França, sua mãe patria, o beneficio da independencia que
recobraram como nação em 1640, solicitos recorrem cheios de respeito e
gratidão á paternal protecção que o maior dos monarchas ha por bem
outorgar-lhes. Dignando se o immortal Napoleão patentear-nos a sua
vontade por orgão de nossos deputados, quer que sejamos livres, e que
nos liguemos com indissoluveis laços ao systema continental da familia
europea, quer as nações, que compõem esta grande familia vivam unidas, e
que prestes possam gosar das delicias de uma prolongada paz, á sombra
dos sabios governos fundados nas grandes bazes da legislação e da
liberdade maritima e commercial. É portanto do nosso peculiar interesse,
assim como dos outros povos confederados, que a nossa deputação continue
a ser junto a sua magestade imperial e real a interprete de nossos
unanimes votos e que lhe diga:

Senhor! desejamos ser ainda mais do que eramos quando abrimos o Oceano a
todo o universo;

Pedimos uma constituição e um rei constitucional, que seja principe de
sangue de vossa imperial familia;

Dar-nos-hemos por felizes se tivermos uma constituição em tudo
similhante á que vossa magestade imperial e real houve por bem outorgar
ao grão-ducado de Varsovia, com a unica differença de que os
representantes da nação, sejam eleitos pelas camaras municipaes, a fim
de nos conformarmos com nossos antigos usos;

Queremos uma constituição, na qual, á similhança de Varsovia, a religião
catholica, apostolica, romana seja a religião do Estado; em que sejam
admittidos os principios da ultima concordata entre o imperio francez e
a santa sede; pela qual sejam livres todos os cultos e gozem da
tolerancia civil e de exercicio publico; em que todos os cidadãos sejam
eguaes perante a lei; em que o nosso territorio europeu seja dividido em
oito provincias, assim a respeito da jurisdicção ecclesiastica, como da
civil, de maneira que só fique havendo um arcebispo e sete bispos; em
que as nossas colonias, fundadas por nossos avós, e com o seu sangue
banhadas, sejam consideradas como provincias, ou districtos, fazendo
parte intregante do reino, para que seus representantes, desde já
designados, achem em a nossa organização social os logares que lhes
pertencem, logo que venham, ou possam vir occupal-os; em que haja um
ministerio especial para dirigir e inspeccionar a instrucção publica; em
que seja livre a imprensa, por quanto a ignorancia e o erro tem
originado a nossa decadencia; em que o poder executivo seja assistido
nas luzes de um conselho d'Estado, e não possa obrar senão por meio de
ministros responsaveis; em que o poder legislativo seja exercido por
duas camaras com a concorrencia da auctoridade executiva; em que o poder
judicial seja independente, o codigo de Napoleão posto em vigor, e as
sentenças proferidas com justiça, publicidade e promptidão; em que os
empregos publicos sejam exclusivamente exercidos por nacionaes que
melhor os merecerem, conforme o que se acha determinado no artigo 2.^o
da constituição polaca; em que os bens de mão morta sejam postos em
circulação; em que os impostos sejam repartidos segundo as posses e
fortuna de cada um sem excepção alguma de pessoa ou classe e da maneira
que mais facil e menos oppressiva fôr para os contribuintes; em que toda
a divida publica se consolide e garanta completamente visto, haver
recursos para lhe fazer face.

Queremos egualmente que a organização pessoal da administração civil,
fiscal e judicial, seja conforme o systema francez, e por conseguinte se
reduza o numero immenso de nossos funccionarios; mas desejâmos e pedimos
que todos os empregados que ficarem fóra dos quadros recebam sempre os
ordenados, ou pelo menos uma proporcionada pensão, _e que nas vacaturas
tenham preferencia a outros quaesquer_.

Era sem duvida inutil lembrar esta medida de equidade ao grande
Napoleão; mas como sua magestade imperial e real quer conhecer a nossa
opinião em tudo o que nos convem, evidentemente nos prova que é mais pae
do que soberano nosso, dignando-se consultar seus filhos, e prestar-lhes
os meios de serem felizes. _Viva o imperador!_


N.^o 10


     O general em chefe do exercito francez em Portugal, em nome de sua
     magestade o imperador dos francezes, rei de Italia, e em
     observancia das suas ordens, decreta:


Artigo 1.^o O reino de Portugal será d'aqui por diante administrado todo
inteiro, e governado em nome de sua magestade o imperador dos francezes,
rei de Italia, pelo general em chefe do exercito francez em Portugal.

Art. 2.^o O conselho de regencia, creado por sua alteza real o principe
do Brazil, no momento em que este principe abandonou o reino de
Portugal, fica supprimido.

Art. 3.^o Haverá um conselho de governo, presidido pelo general em
chefe, composto de um secretario de Estado encarregado da administração
do interior, e das finanças, com dois conselheiros de governo, um
encarregado da repartição do interior, e outro encarregado da repartição
das finanças.

De um secretario de Estado encarregado da repartição da guerra, e da
marinha, com um conselheiro de governo encarregado da repartição da
guerra, e da marinha.

De um conselheiro de governo encarregado da justiça, e dos cultos, com o
titulo de regedor.

Haverá um secretario geral do conselho encarregado dos archivos.

Art. 4.^o Os senhores corregedores das comarcas, juizes de fóra, juizes
do crime e juizes ordinarios; os desembargadores dos differentes
tribunaes, o senado da camara de Lisboa, a junta do commercio, as
diversas camaras, o presidente do terreiro público, em uma palavra,
todos os encarregados da administracção publica são conservados, á
excepção das reducções que o interesse publico mostrar que é necessario
fazerem-se pelo tempo adeante, e das mudanças nos objectos relativos a
seus cargos, que a nova organização do governo julgar indispensaveis.

Art. 5.^o Mr. Herman é nomeado secretario do Estado, encarregado da
repartição do interior e das finanças.

D. Pedro de Mello é nomeado conselheiro de governo, da repartição do
interior.

O senhor d'Azevedo da repartição das finanças.

Mr. Lhuitte é nomeado secretario de Estado, encarregado da guerra e da
marinha.

O sr. conde de São Paio é nomeado conselheiro de governo, da repartição
da guerra, e da repartição da marinha.

O senhor principal Castro é nomeado conselheiro de governo encarregado
da justiça e dos cultos, com o titulo de regedor.

Mr. Viennez-Vaublanc é nomeado secretario geral.

Art. 6.^o Haverá em cada provincia um administrador geral com o titulo
de corregedor mór, encarregado de dirigir todos os ramos da
administração, de vigiar sobre os interesses da provincia, de indicar ao
governo os melhoramentos que devem fazer-se, tanto a respeito da
agricultura, como da industria; devendo corresponder-se sobre qualquer
d'estes objectos com o secretario de Estado da competente repartição, e
com o regedor, pelo que pertencer á justiça, e ao culto.

Haverá egualmente em cada provincia um official general encarregado de
manter a ordem, e a tranquillidade: as suas funcções são puramente
militares; mas nas ceremonias publicas, terá seu logar á direita do
corregedor mór.

Haverá um corregedor mór na provincia da Estremadura, que residirá em
Coimbra, e um corregedor mór na cidade de Lisboa, e seu termo, o qual
será demarcado de uma maneira exacta.

Art. 7.^o O presente decreto será impresso, e affixado em todo o reino,
para ter força de lei.

O secretario de Estado do interior, e das finanças, o secretario de
Estado da guerra, e da marinha, e o regedor são encarregados de sua
execução, cada um pela parte que lhe toca.

Dado no palacio do quartel general no primeiro de fevereiro de
1808.==_Junot_.


N.^o 11


     O governador de Paris, primeiro ajudante de campo de S. M. o
     imperador e rei, general em chefe decreta:


Da data d'este em deante todos os actos publicos, leis, sentenças, etc.,
etc., de qualquer natureza que sejam, que até agora se faziam e
processavam em nome de S. A. R. o principe regente de Portugal,
principiarão pela fórmula seguinte: _Em nome de S. M. o imperador dos
francezes, rei de Italia, protector da confederação do Rheno_.

Todos os actos administrativos, e na execução, relativos a qualquer
decreto, ou ordem, emanados do actual governo, terão, além da fórmula
acima, a seguinte: _E em consequencia do decreto, ou das ordens de sua
excellencia o governador de Paris, primeiro ajudante de campo de S. M.,
e general em chefe do exercito francez em Portugal._

A formula empregada pelo governo, será: _Em nome de S. M. o imperador
dos francezes, rei de Italia, protector da confederação do Rheno, ouvido
o conselho do governo:_ (quando o conselho tiver sido consultado.)

_O governador de Paris, primeiro ajudante de campo de S. M., general em
chefe do exercito francez em Portugal_, DECRETA.

E quando não tiver havido deliberação no concelho, a fórmula será: _Em
nome de S. M. o imperador dos franceses_, etc., etc..

_O governador de Paris_, etc., etc., _decreta ou ordena_:

O sello do governo será o mesmo do imperio francez, com esta leganda:
_Governo de Portugal_.

O secretario de Estado do interior, e das finanças, o secretario de
Estado da guerra, e da marinha, e o regedor, são encarregados da
execução do presente decreto, cada um pela parte que lhe toca.

Dado no palacio no quartel general no primeiro de fevereiro de 1808.




INDICE


   I--Quando Deus queria... do norte chovia             5
  II--De um argueiro um cavalleiro                     17
 III--Um conciliabulo politico no anno de 1808         25
  IV--Reina a confusão no campo de Agramante           36
   V--Francezes á meia noite                           46
  VI--Uma visão pouco sobrenatural                     56
 VII--Primeiros clarões de um grande dia               67
VIII--Ralham as comadres descobrem-se as verdades      77
  IX--O Pae e a filha                                  92
   X--Antes de se levantar o panno                    105
  XI--A batalha                                       116
 XII--Sol entre nuvens                                131
XIII--Conclusão                                       142
Notas ao segundo volume                               151
Documentos                                            157




*Notas:*

[1] Vidé General Foy, _Histoire de la Guerre de la Peninsule_ livro IX.
_Dêpeches et ordres du jour du Feld Marechal duc de Wellington_,
(Recueil choisi) N.^o 228-261. _Successos de Portugal, ou Prodigiosa
Restauração da Lusitania Feliz_. Por um Portuguez. Lisboa 1809 pag. 17 e
seguintes.

[2] Em consequencia da deputação enviada a Bonaparte foi esta
contribuição reduzida a 50 milhões de francos.

Lista de erros corrigidos


Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


  +----------+---------------------+----------------------+
  |          |      Original       |      Correcção       |
  +----------+---------------------+----------------------+
  |#pág.   18| imperader           | imperador            |
  |#pág.   27| Antonia             | Antonio              |
  |#pág.   27| assentados          | assentado            |
  |#pág.   29| lovantadas          | levantadas           |
  |#pág.   48| asssim              | assim                |
  |#pág.   58| ?adre               | padre                |
  |#pág.   64| Aquella             | Aquelle              |
  |#pág.   64| tanto               | tanta                |
  |#pág.   65| seria               | se ria               |
  |#pág.   75| vagarosa            | vagaroso             |
  |#pág.   78| personagem          | personagens          |
  |#pág.   80| um imagem           | uma imagem           |
  |#pág.   85| ter pôr             | têr por              |
  |#pág.   92| entres              | entre                |
  |#pág.   93| preco               | preço                |
  |#pág.   96| reguendo-se         | erguendo-se          |
  |#pág.  100| palavras            | palavra              |
  |#pág.  106| proscripto          | proscriptos          |
  |#pág.  110| meia baterio        | meia bateria         |
  |#pág.  111| guarmição           | guarnição            |
  |#pág.  126| Eil--os             | Eil-os               |
  |#pág.  128| ásua                | á sua                |
  |#pág.  128| os alento           | o alento             |
  |#pág.  146| pedemos             | podemos              |
  |#pág.  175| _Itatia_            | _Italia_             |
  +----------+---------------------+----------------------+

Foram mantidas as variações de nomes próprios.





End of the Project Gutenberg EBook of A Casa dos Fantasmas - Vol II, by 
Luís Augusto Rebelo da Silva

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A CASA DOS FANTASMAS - VOL II ***

***** This file should be named 26605-8.txt or 26605-8.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        http://www.gutenberg.org/2/6/6/0/26605/

Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online
Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net


Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.

Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties.  Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark.  Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission.  If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy.  You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research.  They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks.  Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.



*** START: FULL LICENSE ***

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
http://gutenberg.org/license).


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.