The Project Gutenberg EBook of A Casa dos Fantasmas - Vol II, by Luís Augusto Rebelo da Silva This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: A Casa dos Fantasmas - Vol II Episodio do Tempo dos Francezes Author: Luís Augusto Rebelo da Silva Release Date: September 13, 2008 [EBook #26605] Language: Portuguese *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A CASA DOS FANTASMAS - VOL II *** Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net *Nota de editor:* Devido à quantidade de erros tipográficos existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos. Rita Farinha (Set. 2008) OBRAS COMPLETAS DE LUIZ AUGUSTO REBELLO DA SILVA XII VOLUMES PUBLICADOS I--Ráusso por homizío II--Odio velho não cança (1.^o) III--Odio velho não cança (2.^o) IV--A Mocidade de D. João V (1.^o) V--A Mocidade de D. João V (2.^o) VI--A Mocidade de D. João V (3.^o) VII--A Mocidade de D. João V (4.^o) VIII--A Mocidade de D. João V (5.^o) IX--Lagrimas e thesouros (1.^o) X--Lagrimas e thesouros (2.^o) XI--A Casa dos Fantasmas (1.^o) XII--A Casa dos Fantasmas (2.^o) XVI--Othello--As redeas do governo XVII--A mocidade de D. João V (drama). XVIII--O amor por conquista (comedia)--O Infante Santo (fragmento). XIX--Fastos da Egreja (1.^o) XX--Fastos da Egreja (2.^o) XXI--Fastos da Egreja (3.^o) XXII--Fastos da Egreja (4.^o) OBRAS COMPLETAS DE LUIZ AUGUSTO REBELLO DA SILVA REVISTAS E METHODICAMENTE COORDENADAS XII ROMANCES E NOVELLAS--V A CASA DOS FANTASMAS EPISODIO DO TEMPO DOS FRANCEZES 2.^a EDIÇÃO VOLUME II LISBOA Empreza da Historia de Portugal _Sociedade editora_ LIVRARIA MODERNA | TYPOGRAPHIA _R. Augusta, 95 | 45, R. Ivens,_ 47 1908 A CASA DOS FANTASMAS I Quando Deus queria... do norte chovia A procissão do Corpo de Deus, em Lisboa, era talvez a festa religiosa mais solemne da cidade. Nossos avós, e sobre tudo nossas avós, preparavam-se para ella mezes antes, e nas vesperas do grande dia as costureiras, os alfayates, e os cabelleireiros viam-se doidos com as impertinencias, recados, e instancias. É que todas as sumptuosidades da mobilia, toda a prata mareada das baixellas, todo o recheio das arcas e armarios tinha de apparecer e luzir n'aquella bem vinda festividade, que abria as portas das casas e o seio das familias a uma verdadeira inundação de visitas, de conhecidos, e de curiosos. As janellas das ruas, por onde passava o prestito do bemaventurado S. Jorge, santo cavalleiro e general ao serviço de Portugal desde os tempos heroicos de el-rei D. João I, em odio a Castella e como pirraça ao senhor Santiago, convertiam-se em outros tantos camarotes armados de sanefas e listões de purpura nas vergas e ombreiras, forrados de colchas da India e de cobertas de seda da China. O copo de agua, que era costume offerecer aos convidados, despejava as lojas mais sortidas dos confeiteiros e conserveiros da moda. O jantar, ao qual se assentavam os hospedes mais aceitos, só com a vista fartaria a gula mais faminta. As galas devotas espertavam a emulação, e as bolsas mais discretas e apertadas não se negavam por excepção aos maiores sacrificios para que vestidos, joias, e toucados brilhassem ao menos uma vez no anno com esplendor digno da vaidade e ufania de seus donos. Instituida por Urbano IV, em 1264, na primeira quinta feira depois da festa da Trindade, afim de solemnizar o culto particular do Santissimo Sacramento, confirmada e ampliada por muitos Papas, a procissão do Corpo de Deus fôra sempre feita em Portugal com fausto e invenções notaveis nas terras principaes do reino. O brutesco acompanhamento, que a seguia na meia edade, e ainda no seculo XVI, tornava-a ao mesmo tempo um acto religioso e um espectaculo profano. A imaginação popular de nada se esquecia para que ella fosse unica e singular pela extravagancia das figuras e pela riqueza ostentada pelas corporações mechanicas em competencia e rivalidade umas com as outras. As naus e galés dos carpinteiros e calafates da Ribeira das naus, os anjos e gigantes dos merceeiros e boticarios, a torre e a serpe dos alfayates, o sagitario dos armeiros, uma nuvem de demonios de todos os feitios, e mil outras representações entresachadas de danças e folias, no meio das musicas mais desvairadas e dos instrumentos mais oppostos, como gaitas de folles, tambores, pandeiros, violas, córos de donzellas, flautas, e doçainas pastoris, tudo isto compunha, variava, e confundia o cortejo, o qual consumia quasi o dia todo nas ruas apinhadas de povo, e alegradas de alecrins e rosmaninhos. O senhor D. João V, o Salomão portuguez, creando a patriarchal em 1717, não omittiu em sua liberalidade a festa mais pomposa da côrte, e com espiritos regiamente devotos modificou o plano e accessorios da famosa procissão. Este grande acto inspirou a um dos mais respeitosos admiradores do prodigioso genio de sua magestade, a um dos eruditos irmãos Barbosas, um volume em folio de 240 paginas, obra monumental, que attesta ao mesmo passo a importancia do assumpto e a profunda philosophia do auctor. N'este livro, curioso em muitos trechos pelas noticias, que encerra ácerca da capital nos principios do seculo XVIII, veem narradas com escrupulosa miudeza as circumstancias, que mais preocuparam o augusto reformador e os seus conselheiros _circa sacra_. El-rei com mão firme supprimiu do solemne acto as figuras, e as danças, mas empalideceu talvez com o arrojo. O golpe era temerario. O povo a tudo indifferente, em materia de recreação ao Divino era zeloso e irritavel como um tribuno da plebe dos nossos dias. As chacotas, os andores, o baile das espadas, e a folia dos moleiros, por entre as visagens dos diabos sarapintados, e os uivos e bramidos das féras de papellão, serviam-lhe de opera comica, e foi necessaria grande firmeza de vontade, e toda a sabedoria de sua magestade, instruida pela sua larga experiencia das confrarias e irmandades, para o obrigar a contentar-se com os arcos, medalhas, columnas e louros, que ornavam o paço e as ruas do transito, e com a magra e dolorosa substituição de um anjo vestido de brocado, com suas azas de cambraia tesas de gomma e chapins altos, unico personagem, que sobreviveu de todos os vistosos e engraçados momos, que distraíam d'antes a procissão com seus esgares e jogralidades. A ausencia da côrte e da nobreza, a tristeza impaciente causada pelo jugo estrangeiro, e o receio, que vozes vagas faziam conceber de alguma explosão popular, não diminuiam, apesar d'isso, o alvoroço, nem a concorrencia. No palacio do governo as apprehensões eram mais vivas. Lagarde recebia de momento para momento avisos assustadores, e lia-os sobresaltado aos collegas. Herman meneava a cabeça com ar incredulo. Junot sorria-se e encolhia os hombros. A frivolidade do seu espirito e os arrebatamentos do seu genio não lhe offuscavam todavia a penetração natural. Conhecia e despresava as murmurações do vulgo, e confiava no seu valor, e no das tropas que lhe obedeciam. Sabia que as linguas e as ameaças eram mais intrepidas, do que as acções. Além d'isto o plano innocente dos honrados conspiradores de toga e rabicho tinha ferido o seu amor proprio, e por nenhum caso admittia que se julgasse, que elle queria furtar-se ás ciladas e assaltos theoricos do Conselho Conservador. «O perigo, exclamou, depois de larga discussão, vem do mar com os inglezes; está nas serras e desfiladeiros do norte com os camponezes armados! O que rosnam, ou vociferam aqui mercieiros obesos, frades apopleticos, e desembargadores tropegos, não vale uma escorva. O galope de um esquadrão seria de mais para os metter pelo chão abaixo. Lisboa não é Paris.» Lagarde suspirava, o ministro da guerra e da marinha limpava os vidros dos oculos, e o conde da Ega affectava ar heroico para não desmentir o elevado conceito, que suppunha merecer ao duque de Abrantes. O conselho dilatou-se, e terminou já pela noite dentro, dois dias antes da ceremonia, com uma transacção digna da prudencia insidiosa do intendente geral da policia. Não podendo alcançar que a procissão não saisse, Lagarde obteve ao menos que Junot a não acompanhasse, pegando ás varas do pallio, mas que se resignasse a vel-a passar da varanda do palacio da inquisição para, dizia o astucioso magistrado, não estimular a saudade e o ciume dos portuguezes, os quaes de certo se aggravariam se elle occupasse o lugar do principe regente e os ministros francezes o dos fidalgos expatriados! O general em chefe resistiu, porém cedeu. Receando que o accusassem de um rasgo de vaidade nescia, e que a ostentação da sua pessoa désse armas aos inimigos, não podia negar, egualmente, que, fóra do cortejo, lhe seria mais facil accudir para atalhar qualquer emoção provocada entre as multidões, que se acotovellavam, riam, e chasqueavam nas praças, e travessas da capital. Dispostas assim as cousas, amanheceu o appetecido dia. Os regimentos francezes ás quatro horas da madrugada formaram no Passeio publico, e a alegria marcial das musicas annunciou á cidade a grande solemnidade. Os raios do sol principiavam a beijar as grimpas dos telhados e as cruzes dos campanarios. As senhoras, que mal tinham repousado, sentadas em cadeiras, para não arrepiarem a symetria laboriosa dos toucados, começavam a enfeitar-se com as ricas modas escolhidas para esta occasião. As janellas, armadas como templos, guarneciam-se de damas e cavalheiros, mais curiosos ainda de se mostrarem, e de serem vistos, do que de gozarem o espectaculo, que servia de pretexto á reunião. Nas ruas, areadas e cobertas de espadanas e flores, enxameiava com zumbidos cada vez mais fortes a primeira irrupção de abelhas matutinas, saída do cortiço popular com os arreboes da aurora. A véstia de abas e o calção curto do saloio contrastavam tanto com a jaqueta de ramagem do campino, como o lenço e a capa das mulheres da cidade com as roupinhas a saia vermelha, e a carapuça das matreiras filhas de Friellas e Alcabideche. A pouco e pouco os enxames engrossaram, as mangas de povo cresceram, os zumbidos converteram-se em borborinho, e por entre as alas de tropas postadas desde S. Domingos até ao Terreiro do Paço, entrou a avultar, colleando similhante a serpe gigantesca e monstruosa, o immenso concurso, que esperava a procissão, e cujo sussurro perenne era cortado, ou avivado a miudo, por vaias brutescas, por estridulos pregões, e pelas corridas e contendas de algum Adão menos soffrido, que os gritos e queixas da sua Eva expunham aos apupos e sorriadas da plebe. Os repiques festivos dos sinos nas torres das parochias e conventos despenhavam sobre a cidade um verdadeiro alarido de notas metalicas, imitando com arte mais, ou menos boçal os cantos e melodias em voga nas serenatas e nas operas. A esta matinada pouco harmoniosa, e assás impertinente, rebate estrondoso do sagrado alvoroço das freguezias e communidades, respondiam as salvas do castello, dos navios, e das fortalezas. O jubilo espiritual da população traduzia-se em pragas, exclamações, e algazarras, em que não eram poupados pelo patriotismo escandecido dos zelosos os soldados de Napoleão, firmes e silenciosos como estatuas em seus pedestaes. Rebentaram gritos de alegria, moveu-se maior tropel de povo, e ondas encontradas, impellindo-se e remoinhando no adro de S. Domingos e no Rocio, deram o signal de que o prestito transpunha, emfim, os umbraes do templo. As bandeiras dos officios, na figura de grandes paineis suspensos de cordões de seda em compridas varas, tremulavam na testa do cortejo, representando entre ricas bordaduras a ouro e preciosas tarjas as imagens dos santos, que em sua vida haviam exercido o trabalho manual, de que eram advogados e protectores no paraizo. Atraz das bandeiras, oscillando sobre um formoso cavallo branco, vinha o vulto equestre de S. Jorge, precedido de trombeteiros montados e de tambores a pé, entre a furia sonorosa dos clarins e atabales. Um homem d'armas, robusto comparsa alugado para queimar dentro de uma pesada casca de ferro o sangue e a corpulencia, erguia o guião do cavalleiro santo sobre a lança, capitaneando, meio suffocado e tonto de vertigens, o vistoso apparato dos cavallos da casa de Bragança ricamente ajaezados, e levados á mão pelos moços das cavalhariças reaes. A imagem de S. Jorge vestia arnez, coxotes e grevas, e trazia na cabeça o gorro de velludo, que em tempos mais ditosos adornavam os diamantes do duque de Cadaval. Um pagem enfeitado de vistoso cocar de plumas, quasi tão alto como elle, acabava de figurar a ficção das emprezas militares do glorioso general, que nunca vira os campos de batalha portuguezes, por que nunca pelejou contra os inimigos da fé, ou da independencia na Peninsula. Seguiam-se as irmandades de Lisboa e do termo, os servos das diversas confrarias, e os farricoucos, amortalhados em hollandilhas da cabeça até os pés, todos sequiosos de alardearem sua compuncção anonyma. Eram perto de cem as irmandades e confrarias, que desfilavam em passo grave com suas tochas na mão e suas opas de variadas côres, trocando em voz baixa de umas para outras censuras e chascos nada caridosos ácerca do numero, ou negligencia de seus irmãos em Jesus Christo. No couce d'estes virtuosos auxiliares do altar, com os olhos baixos, e ademanes reverentes, caminhavam as communidades, Franciscanos, Ordens Terceiras, Trinos descalços, Agostinhos, Carmelitas, Capuchos, Capuchinhos, Arrabidos e innumeros outros ramos da frondosa arvore monastica, cujo tronco brotado da piedade e munificencia dos soberanos era alimentado pela devoção, ou pelos remorsos dos fieis. Transparecia o orgulho beato da santidade no rosto de muitos d'elles. Os religiosos de S. Domingos fechavam a rectaguarda da sacra milicia. Depois dos monges e mendicantes começava o clero regular, e apoz elle, debaixo da cruz patriarchal, todo o clero secular, os padres da congregação de S. Filippe Nery, os das Missões, e os parochos, curas, e presbyteros das freguezias de Lisboa, conegos, e as dignidades, e a curia ecclesiastica. Rematavam o longo e estendido sequito os conselhos e tribunaes da côrte, os fidalgos que residiam em Portugal, e os cavalleiros das ordens militares. As varas do pallio pegavam as pessoas mais nobres e conspicuas por sangue, empregos, e representação. Havia tres horas, que a procissão andava fóra, e ainda nenhum tumulto, ou perturbação justificára os presentimentos sinistros da policia. O povo olhava com enlevo para tudo, ajoelhava e batia nos peitos, e limitava a maldições abafadas a sua aversão aos francezes. Junot, que assistia da varanda do palacio do Rocio ao religioso acto, e cujos olhos indagadores não cessavam de espreitar o menor indicio de agitação, vendo tudo sereno e socegado, e os maus prognosticos desmentidos, ria-se já sem disfarce dos receios do intendente Lagarde, e perguntava-lhe em ar de mofa pelo nome dos malsins assustadiços, que tinham inventado a conspiração, talvez para os promover na falta de concorrentes ao logar, ainda vago, apezar da sua proclamação, de Camões do reino do Algarve! De repente o duque de Abrantes suspendeu-se. O riso gelou-se-lhe nos labios. Herman, que estava á sua direita, enfiou; e Lagarde, crescendo sobre os aprumados collarinhos, dilatou o pescoço fóra da gravata. Um olhar, em que se retratava ao mesmo tempo o receio e o triumpho fez comprehender em sua muda eloquencia ao general em chefe, que se rira cedo de mais da infallibilidade da policia. O que succedia, porém, n'este momento para assim mudarem de subito as scenas e as phisionomias? Estálara a revolução promettida? Tinham os conspiradores denunciados deixado cair a um signal, como no theatro do Salitre o imperador José II, as becas, as capas, os habitos, ou as sotainas, e appareciam metamorphoseados em actores de novas e segundas vesperas sicilianas? Ninguem podia dizer ainda. Da varanda de pedra, Junot e o seu cortejo viam e ouviam o tumulto, sentiam-n'o avultar, mas ignoravam as causas e os incidentes. As bandeiras dos officios dobravam já com todo o socego da rua Augusta para a rua do Ouro, dando a volta pelo Terreiro do Paço, e o pallio e o Sacramento saíam da egreja de S. Domingos, quando uma furiosa vaga de povo, encapellando-se inopinadamente, investe com o corpo da procissão na rua Augusta, envolvendo e afogando em suas ondas loucas as confrarias e communidades, derruba tudo no impeto irresistvel, corre infrene como inundação despenhada, como furacão vertiginoso, e por cima de todos os obstaculos galga invencivel até ao Rocio, aonde, similhante a rio caudaloso que se precipita, rasga por entre milhares de vultos o seu caminho! No meio da praça esta onda, repellida pela corrente opposta, golfada das portas de S. Domingos, vê-se entalada sem poder avançar, ou recuar, lucta com esforço desesperado, e por fim, semeando o terror e o espanto por toda a parte, vae acabar de se desfazer em redemoinhos, ou em pinhas oscillantes, que se quebram, e renovam á entrada das ruas e travessas por onde as multidões se escoam, fugindo feridas de demencia. Os clamores, os gritos de angustia, as interjeições de pavor cortam os ares, e ensurdecem os ouvidos. Mulheres e crianças arrastadas no tropel, meio suffocadas, pallidas e quasi moribundas, alçam em vão os braços supplicantes, e desapparecem perdidas depois nos rolos, que se ennovellam e arremessam a cada passo. A tropa, cujas alas vergam e se rompem com o embate da plebe, é cortada em todos os sentidos, e debalde tenta reunir-se. Os artilheiros desordenados cedem e desamparam as carretas. Colhida no centro do bulcão popular, a procissão rota e dispersa em mil fragmentos, que vozeam e se revolvem, como troços semi-vivos de um reptil, alastra as ruas de cruzes, de tochas, e de insignias, calcadas por milhares de pés. Frades, padres, magistrados, cavalleiros, irmãos, e penitentes bradam, imploram, atropellam-se, e ora dobados no ar, ora estatelados em terra, lividos, moidos, e descompostos pelejam por se arrancarem a este pelago tempestuoso, em que abafam, buscando por similhante forma refugio contra o perigo. O prelado, que trazia a custodia, e o pomposo sequito que rodeava o pallio, vê de repente a praça tornada um mar procelloso, e ouve sobre o clamor geral as vozes dos officiaes francezes mandando carregar as armas á guarda de granadeiros, e accender os morrões aos artilheiros da bateria postada junto do adro. Attonitos e paralyzados um instante, o medo presta-lhes azas depois. Luctam, repellem-se, volvem a traz, e rompendo, como cunha viva, por meio da multidão, que transborda do templo, vão cair uns sobre os outros de roldão na sacristia, deixando o pavimento juncado de thuribulos, de capas de asperges, de roquetes dilacerados, de chapéus de plumas, e de mantos das ordens militares. A cavallaria de Junot une as fileiras. As largas espadas dos soldados reluzem por cima das cabeças com lampejos terriveis. O povo agglomerado, entre a muralha que o atira sobre os cavallos, e o terror das armas, que o ameaçam, solta horriveis clamores, peleja por abrir passagem, e augmenta o ruido, o sossobro, e a confusão do tumulto immenso. Não ha pincel, nem tintas que possam desenhar quadro tão medonho! Os gemidos, os choros, as quedas, contrastam a cada minuto com os lances comicos e os episodios risiveis. O medo inspira os ardis mais burlescos. O desespero suggere os arbitrios mais violentos. As ruas e travessas proximas, similhantes a canaes rotos á furia das aguas, engolem e despejam incessantemente os bandos variegados dos fugitivos, entre os quaes a egualdade do terror acotovella os commendadores e os togados com o operario, o frade e o farricouco pelo judeu transido, ou pela collareja tão veloz nos passos, como solta de lingua e prompta de gestos. Capotes, cabelleiras, chinós, sapatos, abas de fardas e de casacas, canhões e gollas bordadas, lenços, cintos, farrapos, de todas as telas e de todos os matizes em fim, coalham este campo de batalha, aonde os mortos, felizmente, isto é os que baqueiam, resuscitam logo ao beijarem o chão, e se levantam para disputar celeridade aos mais ligeiros. No meio dos alaridos e dos estrepitos, do centro d'este cahos ruidoso de furias, bramidos, e uivos bestiaes, vozes tremulas e roucas de susto, em perguntas e replicas instantaneas, exclamam confusas e lugubres: «O terremoto! Os inglezes! As ruas minadas!» II De um argueiro um cavalleiro As vozes, o espanto, o terror, e o tumulto das ruas, todas as apparencias, em fim, inculcavam a cidade sublevada e as apprehensões de Lagarde confirmadas. O denodo e a presença de espirito de Junot não o atraiçoaram n'este lance. Descendo os degraus da escadaria á pressa, emquanto o intendente da policia se emparedava e calafetava no gabinete secreto, o duque de Abrantes atravessa intrepido por meio das ondas revoltas do povo, rompe pelo centro d'ellas até á egreja, corre á sacristia, e á força de estimulos e persuasões consegue arrancar d'aquelle asylo pouco seguro o prelado e os sacerdotes, que tremem de medo, e que julgam chegada a sua ultima hora. Chamando depois os padres, os fidalgos, e os cavalleiros das ordens militares e animando-os com as palavras e o exemplo, diz-lhes: --De que se receiam? O que temem? Não estou eu aqui? Não vêem os meus soldados firmes? Continuemos a procissão. Recompondo, do modo possivel depois, o prestito disperso manda saír o pallio, e acompanha-o a pé com o seu estado maior. Patrulhas fortes circulam ao mesmo tempo, e dispersam os mais pequenos ajuntamentos. O regimento 86.^o marcha com tanta precipitação, que leva o pão espetado nas bayonetas por carecer de vagar para comer o rancho! Qual fôra, porém, a origem do estrondoso successo? Nascêra de planos concertados pelos amigos da independencia, como cuidaram os francezes, ou rebentára espontaneo da agitação e do odio comprimido dos habitantes de Lisboa? Nem uma, nem outra cousa. Um grão de areia fez parar a roda. Um sopro desenfreou o temporal. A verdadeira causa do arruido colossal do dia 16 de junho de 1808 foi uma imprudencia policial do honrado sargento Cabrinha, e um esquecimento de lingua do seu virtuoso assessor Gaspar Preto, por alcunha o _Sapo_. Estes dois personagens, que não cabiam em si de vaidade, desde que os louvores do intendente geral da policia inflammaram o seu zelo pelo serviço da sua magestade o imperador e rei, succumbiram um instante á fraqueza dos grandes homens, e estiveram a ponto de fazer nadar a capital em sangue. Eis como se passou o notavel episodio. Já sabemos que o Antonio da Cruz, o Manuel Simões da Aramanha, e o João da Ventosa, obedientes como bons patriotas ás instancias do morgado de Penin, capitão de milicias de Rio Maior, tinham feito a jornada de companhia, e por um triz não apanharam em Villa Franca o sargento e o seu ajudante, que partiam para os denunciar a Lagarde. Os tres em Lisboa alojaram-se em uma casa conhecida do lavrador da ponte da Asseca, regalaram-se de bom vinho e de bons boccados, e esperaram resignados que a causa nacional lhes pedisse o auxilio do braço ou do cajado. Na madrugada do dia da procissão, muito antes do sol fóra, já o triumvirato ribatejano palmilhava as ruas com a curiosidade mais inoffensiva, e apenas se abriu a primeira taverna uma copiosa libação desjejuára os tres vastos estomagos, montados em diamante. Começou a concorrer gente, acabou a parada no Passeio publico, e desfilaram as tropas. Davam nove horas, e o fazendeiro da Aramanha, interpellando o João da Ventosa, perguntou alto aonde era o almoço, e se teriam tempo de o engulir antes da procissão? A resposta foi sumirem-se por uma travessa escusa, entrarem para uma especie de furna escura, immunda, e humida, e sentarem-se em mochos vacillantes á roda de uma mesa, cuja toalha bem mostrava nunca haver deixado os lençoes de vinho. Chiavam as appetitosas iscas de figado, e o cheiro exhalado das enfumadas frigideiras convidava o olfato dos freguezes. Quando os tres se levantaram d'este banquete plebeo, a procissão andava já no Rocio, e o Deus Baccho tambem lhes fazia a elles mil travessuras na vista e no equilibrio. Metteram hombros ao apertão, foram rompendo a murro e a calcadellas, mas á esquina da travessa da Assumpção encontraram resistencia tal, que se viram obrigados a ceder. As bandeiras dos officios fluctuavam nos ares, e uma linha cerrada de bayonetas, pouco condescendentes, não consentiu que os provincianos a atravessassem. O lavrador e seus amigos rosnaram algumas pragas, mas tiveram de as engulir em sêcco e de ficar. Antonio da Cruz, guapo e decidido, trajava bem suas galas domingueiras, e dava-se ares de moço mui desempenado debaixo das abas do chapéu novo de Braga. Vendo-o assim alegre e pimpão, meio encostado ao cajado, uma saloia, fresca e viçosa como as rosas do campo, pediu-lhe licença de passar para deante afim de ver melhor, e o moleiro officioso fez-lhe logar immediatamente, acto de cortezia recompensado por um sorriso, que descobriu indiscretamente as trinta e duas perolas, que escondiam uns beiços mais vermelhos, do que bagos de romã. Ao mesmo tempo o João da Ventosa e o Manuel Simões, encontrando-se hombro a hombro com um marchante conhecido, homiziavam-se com elle a furto no retiro de uma tasca chamada loja de bebidas, para onde os iniciados se introduziam por um corredor estreito, disfarçado no fundo da entrada da casa, deante da qual se achavam. Até aqui corrêra tudo admiravelmente, mas o demonio depressa as arma. O sargento, o _Sapo_, e uma quadrilha de beleguins da policia seguiam de longe o triumvirato innocente, desde as portas do Passeio publico. Haviam-n'o perdido de vista, quando á voz do almoço o robusto lavrador capitaneou a evolução, que levára os convivas ao sujo templo, aonde o Comus enfarruscado das iscas os detivera duas horas. Cabrinha recebêra ordem expressa de Lagarde de se apoderar dos tres amigos, e de os hospedar na cadeia, mas fôra egualmente admoestado para obrar com finura e sem ruido. Era a razão porque não se atrevêra a empolgal-os na rua, e no meio do povo, que seus gritos podiam alvorotar. Quando lhe desappareceram, como se a terra se tivesse sumido com elles, scismando um instante, disseminou logo depois a quadrilha em duas mangas. Uma partiu para o Rocio e foi postar-se á esquina do arco do Bandeira. A outra conservou-se na rua Augusta, vigiando-a. O _Sapo_, trepado em um frade de pedra, servia de vedeta. O Antonio da Cruz estava todo embebido nos colloquios e requebros de seu galanteio com a saloia, quando sentiu de repente, que lhe batiam no hombro. Virou-se, e deu de rosto com um sujeito magro e grelado, de chapéu arrombado, calções espigados, casaca de côr cambiante, e sapatos risonhos, que lhe disse muito manso ao ouvido, travando-lhe do braço. --Está preso! Venha commigo. Não faça bulha! Ao mesmo tempo outro escudeiro, baixo, roliço, olhos encarnados e chorosos, e nariz expansivo, cravejado de rubis assanhados, deitava-se-lhe ao outro braço, ao braço do cajado, pendurando-se quasi n'elle. N'um rapido relancear o moleiro descobriu a poucos passos, cozidos com as hombreiras da porta, por onde se tinham escoado os seus amigos, o sargento, o _Sapo_, e um terceiro quadrilheiro. Esta apparição revelou-lhe que era serio o caso. Soltando um assobio forte e prolongado, signal aos companheiros para se juntarem e accudirem, o Antonio, sem accusar a intenção na physionomia, sem levantar voz, ou grito, por um movimento secco dos hombros saccudiu de si os dois malsins, e empunhando-os já no ar pela gola assás madura das casacas cossadas e transparentes, cuspiu-os das mãos, colhidos em flagrante, cada qual para sua direcção. Ao arremesso momentaneo, o homem esguio e grelado, por ser mais leve, subiu mais alto, e veiu caír por elevação sobre as costas de um massiço prebendado, com os olhos escudados de oculos e palla verde, o qual estava explicando a duas sobrinhas boqui-abertas a lenda aurea de S. Crispim, pintado na bandeira dos sapateiros. O agarrador, grosso e baixo, mais pesado, voou rasteiro, deixando metade da gola, as costas, e uma aba da casaca no punho do moleiro, e foi bater, como pella despedida, no vulto enorme de certa dona viuva e namoradeira, notavel pelo toucado impossivel e alteroso, a qual occupava os ocios em tiroteio amoroso com um alferes da brigada da marinha, pessoa corpulenta, forçosa, e de maus narizes, cuja carranca um par de bigodes hirsutos e alastrados tornava ainda mais temerosa. O prebendado com a pancada afocinhou o chão, não sem trazer comsigo tambem de golpe o tambor mór de um dos regimentos, que por acaso seus braços extendidos empolgaram na ancia de se amparar. O militar francez, verdadeiro Alcides, arqueava n'aquelle instante o corpo com donaire, e dobrado para traz, firme nas pontas dos pés, aparava com a palma aberta o couto do bastão volteado com graça. A dona, impellida pelo esbirro-tortulho, soltou um grito agudo, desabando de chofre sobre o peito do seu Adonis. O volume era colossal, e o alferes desapercebido, não podendo suster de pé posto o pezo d'aquella montanha de ternura, que em cima d'elle o alluia, apalpou a calçada com as costas, mastigando uma blasphemia por entre as guias dos bigodes. O drama complicou-se então. Advertido pelo signal, o João da Ventosa deixára em meio o monstruoso caneco de vinho de Torres, que saboreava, e saltou da tasca vermelho e inflammado. A primeira figura, com que a fortuna o obsequiou, foi a figura patibular do sargento Cabrinha, o qual primeiro se offereceu ás iras do lavrador. Um murro capaz de fulminar um touro prostrou o espião sem sentidos sobre o lagedo. Nem o sacrificador, nem a victima tiveram tempo de proferir palavra. Ao mesmo tempo o marchante, que vinha atraz, colleando os beiços com a lingua, esbarrando com o quadrilheiro entufado em defeza do seu superior, despediu-o nos bicos dos sapatos, e remetteu-o ao meio da rua, aonde se espalmou sobre os pés gotosos de um frade arrabido, mestre e prégador, cujas rezas nasaes paralyzou o baque repentino. Finalmente, o Manuel Simões da Aramanha, que saíra em ultimo logar, como homem de consciencia, porque não quizera deixar o copo cheio, encarando com o _Sapo_, que se fazia pequeno como um verme a ver se escapava, calado, mas terrivel de gesto, alongou o braço com a rapidez e a força irresistivel da mola de aço, que resalta, e aferrando o aborto pela nuca, com um murro metteu-lhe os dentes e os queixos pelas guelas, e metade a rastos, metade por seu pé, seguiu com elle atordoado e alagado em sangue o rasto dos companheiros. Os tres cortaram depois intrepidos pelo meio da procissão alvoroçada, por entre as alas de tropa baralhadas, e pelo centro dos magotes de povo em remoinho, e entranhando-se por travessas e bêccos desertos esquivaram-se modestamente aos justos applausos de suas proezas. Cabrinha tornando a si, e os beleguins moidos e estirados, soltavam gritos espantosos, bradando pelo soccorro da justiça. Respondeu-lhes a bengala magistral do tambor mór, e a bainha de ferro da espada do alferes, vingando com raiva incansavel o riso e as vaias da queda desastrada no dorso dos delinquentes. O mais agil dos dois, o homem-grelo, fulo de dor, e cego de medo, para se furtar ao chuveiro de bastonadas, que não cessava de lhe afagar as costellas, atirou-se de um pulo, ao meio do prestito, abalroou um desditoso cruciferario banhado em suor, e encontrando-o em cheio, rolou com elle. Amotinou-se o vulgo, ferveram juras, ameaças, e punhadas, e um patriota, que espreitava a occasião, lembrou-se de açular a desordem, exclamando: «Fujam! fujam! Ahi vem os inglezes!» Não foi preciso mais. O espanto e o terror obraram prodigios. A multidão precipitou-se, e o tumulto tomou as proporções, que sabemos. Em quanto nos quarteirões da cidade baixa se representavam estas scenas, corriam os tres auctores do motim direitos ao caes hoje chamado da Areia. Chegados em poucos minutos viram uma falua do Riba-tejo de verga de alto, e o arraes, seu conhecido, metteu-os dentro sem mais perguntas. D'ahi a pouco navegavam rio acima, e o _Sapo_, sempre hypocrita e vil, estorcia-se aos pés dos inimigos triumphantes, chorando e supplicando, com prantos mulherís! Mas o Manuel Simões apontava-lhe para a cicatriz da bala, com que o ferira na cabeça, o João da Ventosa encolhia os hombros, e o Antonio da Cruz, grave e conciso, como um juiz do crime, mandava-o calar, jurando-lhe que a arvore e a corda estavam promptas, e não podiam esperar, e que a sua palavra, uma vez dada, havia de ser cumprida. O arraes e os marujos, um ao leme, e dois á proa, assobiavam como se não vissem, ou não ouvissem nada. O vento soprou de feição, e ás dez horas da noite a falua atracava a Villa Franca. III Um conciliabulo politico no anno de 1808 Voltemos á ponte da Asseca, de que ha tanto estamos ausentes. Vamos saber se o palacio arruinado conserva a sua reputação diabolica, e se o João da Ventosa, depois do façanhudo murro, que esboroou quasi a cabeça ao sargento Cabrinha, se recolheu são e salvo a seus lares, ou se a vingança do espião punido o obrigou a tomar ares mais fortes no exercito nacional do general Bernardim Freire. Avisinhemo-nos com certo resguardo. É noite, e ainda com o luar claro podem tomar-nos por francezes, e pescar-nos com alguma bala patriotica. Deram onze horas. Provavelmente o patrão e os creados dormem a somno solto esfalfados do trabalho da eira e dos carretos do celleiro. Não! Ha luz no quarto terreo. Espreitemos! Lá está o lavrador sentado com o sabido caneco ao lado, o bojudo cangirão defronte, e o eterno Manuel Simões a fazer-lhe a segunda. Estes pelo menos não emigraram para o Porto, nem mudaram de costumes. A opinião de que os tumultos do Corpo de Deus tinham sido obra de uma conspiração mallograda salvou das perseguições da policia os tres camponezes. Uma das pessoas, que podia denuncial-os, o sargento Cabrinha, agonizava no hospital accommettido de uma congestão cerebral, e com a perna esquerda partida e amputada, tudo fructos amargosos do funesto dia, que o céu destinára para castigo de seus crimes. Mesmo que escapasse da amputação e á febre, o que os facultativos duvidavam, todos prognosticavam que acabaria demente, ou nescio. Restava o Gaspar Preto, o _Sapo_, do qual nos despedimos a ultima vez, deixando-o entre as garras de dois inimigos resentidos e inexoraveis, o Antonio da Cruz e o fazendeiro da Aramanha. O que é feito d'elle? Tres dias depois as mulheres que iam ceifar ao campo, passando pelo alto do Valle, viram de longe balouçado pelo vento nos galhos da figueira do José Lopes, a mais elevada e formosa arvore dos contornos, um vulto, que á luz incerta e na meia treva do alvorecer, tomaram por espantalho pendurado para assustar os passaros. Palraram, discorreram, entre si as comadres e as visinhas ácerca d'aquella novidade, e acabaram por decidir, como verdadeiras pêgas curiosas, que o caso merecia exame. Subiram a encosta. Quando chegavam acima, rompia ainda pallido o primeiro raio de sol. Soltaram um grito de susto, e ataram as mãos na fronte! O espantalho era um homem enforcado! Quizeram fugir, mas o peccado de nossa mãe Eva deteve-as. Antes das linguas paroleiras tocarem a rebate no logar e nos arredores era indispensavel conhecer o infeliz. As mais velhas e resolutas armaram-se de valor, e approximaram-se. Outra exclamação, em que o espanto se revelava mais, do que o dó, chamou em volta d'ellas as raparigas. O padecente, que em vida fôra assaz feio, apparecia-lhes medonho n'este patibulo repentino com a cabeça pendente, a lingua fóra da bôcca, e os olhos esbugalhados e saidos das orbitas. Tinha as mãos amarradas atraz das costas e um rotulo no peito, que dizia: «Justiça de Deus! Por Judas!» As mulheres benzeram-se em silencio, e olharam umas para as outras. O medo curou-as por um instante da loquacidade. Apezar das contorsões, que desfiguravam o rosto da victima, e que a morte como que immobilizára, petrificando-as com sua rigidez, aquella cara, tantas vezes vista, não podia enganar a memoria das matronas e donzellas. Era o _Sapo!_ o _Sapo_ garrotado! Satisfeito este ultimo instincto de sua indole, as mulheres dispersaram-se como um vôo de gralhas ao tiro do caçador, e esquecendo a ceifa e o jornal, correram, como loucas cada uma para sua parte, a fim de espalharem a noticia. O primeiro, que avistaram, e a quem a deram, foi ao Antonio da Cruz, que acharam assentado á porta do moinho, com o cigarro acceso na bôcca, e a espingarda ao lado. Escutou-as sem se alterar, saccudiu o lume com um piparote, e erguendo-se vagaroso e sereno, respondeu-lhes: --Então! São coisas! Deus escreve muitas vezes direito por linhas tortas! O velhaco não merecia uma, mas cem forcas. Fechou depois a porta, metteu a chave no bolso da vestia, e partiu direito a Santarem pela Ponte da Asseca sem olhar para traz. A isto se reduziu da sua parte a oração funebre do desgraçado malsim! O povo commentou, como costuma, o successo, repartiram-se os votos sobre a causa e os auctores da execução, porém nem um só dos patriarchas da aldeia se lembrou de boquejar no Antonio da Cruz. Os contrabandistas, como tinham os hombros largos, carregaram com todas as culpas, e a versão mais seguida foi que o desditoso _Sapo_ recebêra de alguns d'elles com capital e juros o premio de suas espertezas e denuncias. No emtanto os acontecimentos politicos adeantavam-se. A revolução do norte creára forças, e os francezes, acossados e repellidos de toda a parte pelas populações iradas, já não chamavam seu, senão ao terreno que pisavam. A derrota dos insurgidos do Alemtejo por Loison em Evora, o saque e o martyrio da cidade levada de assalto, longe de acalmarem os animos, exaltaram-n'os com a narração exagerada dos horrores perpetrados pelos francezes. O nome de Loison, já odioso, tornou-se execravel; e a sêde de vingança accendeu-se em todos os peitos, ardente e implacavel. Lisboa principiou a agitar-se. Os moradores mais abastados, fugindo ao jugo detestado dos estrangeiros, accolhiam-se ás provincias sublevadas. A cidade tornou-se um deserto. Em pleno dia as ruas eram silenciosas, como se a peste as houvesse despovoado. A falta de communicações com o norte e o sul do reino, e com o mar, elevou o custo dos generos a preços fabulosos, e a escacez do trabalho assentou a miseria e a fome no albergue do pobre e do operario. Os proprietarios não recebiam suas rendas, nem os empregados seus ordenados. Mais de vinte mil pessoas decentes, que viviam dos salarios da côrte e dos lucros do commercio, pediam agora esmola! Os habitantes ruraes, intimados para entregarem as espingardas, evadiam-se em grande numero com ellas, e iam engrossar a insurreição. Ninguem podia sair as portas de Lisboa sem passaporte. As bombas, os foguetes, e os fogos de artificio, alegria e paixão das festas e arraiaes, foram prohibidos. Emfim todas as oppressões e violencias se accumulavam para apressar as horas de dominio, que o governo francez ainda havia de contar, quasi reduzido á capital do reino e suas cercanias. Leiria, vendo o Porto, Braga, e Coimbra levantadas, quiz imital-as com mais zelo, do que prudencia. Os vaticinios patrioticos do morgado de Penin, excellente portuguez e pessimo soldado, não se tinham cumprido, senão na parte mais facil. O resto, o peior da empreza, encarregou-se o brigadeiro Margaron de o concluir por ordem de Junot. O ex-coronel de cavallaria e alcaide mór Rodrigo Crespo, e o coronel do regimento de milicias Isidoro Pinto Gomes, com um punhado de soldados indisciplinados, unidos ao capitão mór das ordenanças do termo, Manuel Carranca, sonharam uma restauração temeraria, decidiram o bispo a cantar um _Te Deum_ na egreja matriz, e passeiaram em triumpho entre acclamações estrepitosas o estandarte de Portugal. Vimos com que leviandade o major Alvaro e o morgado de Penin discutiam os seus planos de rebellião, como se os veteranos de Bonaparte fossem soldados de chumbo, ou de papelão. As avançadas inimigas, entrando em Rio Maior, despertaram os dois velhos crianças de suas illusões. O galope de seus cavallos, reputados os melhores da Extremadura, salvou-os de ficarem prisioneiros e trouxe-os já meio desenganados a Leiria, aonde a sua presença sobre-excitou as paixões, em vez de as aplacar. Todos juraram morrer defendendo os muros derrocados e o castello da terra natal; anoiteceu porém, e os heroes, conversando com o travesseiro, sentiram esfriar repentinamente os brios. O prelado recordou-se de que, ministro de um Deus de paz, devia abominar o sangue, e, cavalgando a mula episcopal, apartou-se a bom andar do sitio da tentação. Muitos dos granadeiros da independencia, que na vespera rachavam ainda os céus com féros brados, lembrados de que á noite todos os gatos são pardos, aproveitaram o escuro, e eliminaram-se sem ruido, mais cuidadosos da saude do corpo, do que do esplendor de suas armas. Ficou o povo, gente quasi inerme, alvoroçada, e inconstante. A primeira descarga inimiga varreu, como pó, essa plebe, e abriu as portas aos francezes. Como Achilles os lidadores de Leiria sobresaíram na ligeireza dos pés! Mas até os triumphos de Junot conspiravam a sua ruina. Cada derrota dos portuguezes levantava em favor da independencia milhares de braços. Quando um povo inteiro se torna inimigo, o seu nome é legião, e a fabula de Cadmo realiza-se. Evora e Leiria volveram logo a si, e Loison e os generaes estrangeiros recuaram. A ambição de Bonaparte cansára a fortuna, e Deus tinha designado a peninsula para theatro das primeiras licções dadas ao seu orgulho, e dos primeiros revezes experimentados pelas suas aguias. Encarando o bello sol das Hespanhas, a estrella do imperio sentiu esmorecer o brilho, e começou a declinar. Os adversarios irreconciliaveis, aos quaes o novo Cesar imaginou cerrar para sempre nossas praias, saltaram n'ellas como libertadores, e romperan essa guerra, alternada de victorias e revezes, que só havia de findar ás portas de París. Sir Arthur Wellesley á frente dos soldados embarcados em Cork, seguidos de perto pelas tropas de Sir John Moore, transportadas do Baltico, combinando as operações com o almirante Sir Charles Cotton, e com os generaes, que dirigiam a insurreição de Portugal, havia de pisar em breve a terra, aonde o esperavam tantos tropheos, marchando direito sobre Lisboa, decidido a arriscar em um só lanço a sorte de toda a lucta. O duque de Abrantes era uma alma bem temperada. Se as prosperidades entorpeciam a sua indole um pouco frivola, o infortunio, ou os perigos, encontravam-o sempre intrepido. As más noticias não o desalentaram. Decidido a disputar até á ultima escorva a capital do paiz, que por momentos julgára esquecido dos seus reis e da sua autonomia, não trepidou um momento, empregando todos os esforços para conservar Portugal engastado como joia inestimavel no diadema do conquistador. Para que a heroica decisão não desmentisse tão audaciosas esperanças, era necessario reunir em Lisboa todas as forças activas. Kellerman expelliu de Alcacer do Sal os bandos de guerrilhas, que a infestavam, evacuou Setubal, e veio coroar com suas tropas as eminencias de Almada. Todos os preparativos, ditados com vigor, correram rapidos. As prevenções compativeis com o pequeno numero de bayonetas, que lhe obedeciam, foram adoptadas a tempo. O general Graindorge defendeu a margem esquerda do Tejo. O regimento 47.^o guarneceu o forte da Trafaria, a torre do Bogio, e os navios fundeados. O regimento 66.^o occupou Cascaes. A legião do Meio Dia a torre de S. Julião da Barra. O regimento 26.^o cubriu Belem, o Bom Successo, e a Ericeira. O 15.^o Lisboa e Sacavem. O marechal Travou foi nomeado governador das armas da capital; o general Avril governador do castello de S. Jorge; e o conde de Novion, á testa da guarda da policia rareada pelas deserções, e quasi limitada ao seu estado maior, auxiliava a conservação da cidade, reputada por Junot como base essencial de todos os seus projectos. No dia 15 de agosto, anniversario do nascimento de Napoleão, o duque logar-tenente reuniu ainda nas salas do palacio da sua residencia, a nobreza, o clero, os magistrados, e os officiaes superiores, e recebeu-os com um rosto tão alegre e prazenteiro, como se Catilina não batesse quasi ás portas de Roma, ou como se o trovão dos canhões britannicos, já bem proximo, não acordasse os echos dos campos de batalha, aonde se ia jogar esta partida, que deu o signal a tantas tempestades na Europa! Eis o estado dos negocios, e pedimos venia ao leitor de o ter demorado tanto na Ponte da Asseca com esboço tão informe de noticias politicas e militares. Voltando atraz, e penetrando com elle discretamente no corredor, meio alluido do andar nobre do palacio _maldicto_, pedimos licença para o guiarmos pelo som das vozes, que parecem altercar em uma sala proxima, até o seio mesmo do congresso dos conspiradores, que alli pleiteiam competencias, e apuram alvitres afim de coadjuvarem as armas nacionaes e os progressos dos alliados. Era noite, já o dissemos, e noite adeantada. A lua alta nos ceus espalhava o seu clarão sobre as aguas dormentes da villa, e prateava de luz branca, franjando-as, as copas das oliveiras, trepadas pela encosta fronteira. Tinham dado onze horas, e havia duas que os oradores patriotas exgotavam toda a sua eloquencia sem se entenderem. A casa vasta, arruinada, com os tectos a cair, e os sobrados a desfazer-se de podridão, estava mais de metade mettida na escuridade quasi clara, que fazia a sombra das paredes luctando com a lua e as estrellas. Todas as janellas, que abriam para as hortas, sem vidraças, nem portas, deixavam coar livremente o ar, e os ruidos de fóra, tão sensiveis na solidão e no silencio nocturno. Na parte mais reparada, entre duas portas quasi penduradas das couceiras carcomidas pela ferrugem, via-se uma comprida mesa de pinho allumiada por enorme candieiro de latão de tres bicos, cuja chamma enfumada a aragem saccudia e ondeava. Á roda da mesa, ornada apenas de um tinteiro de pau immenso, de pennas resequidas, e de papel em branco, sentados em mochos toscos, viam-se alguns homens, tão diversos nos trajos e maneiras, como na physionomia e expressão. Na cabeceira, com a face recostada no punho, as palpebras quasi fechadas, e certo ar de imperio indolente, estava um ancião, que a farda de panno azul escuro com abotoadura e guarnições brancas, e dragonas de cachos, denunciavam como official superior de um dos corpos de milicias. Era o coronel Isidoro Pinto Gomes, que a espada do general Margaron não podéra alcançar em Leiria, e que o zelo attrahia a todos os conciliabulos patrioticos. O major Alvaro á direita d'elle, e o morgado de Penin á esquerda, ambos de uniforme, e com os capotes, com que se encobriam apezar da estação, abertos, ou derrubados para traz, compunham o que hoje diriamos a mesa da presidencia. Mais abaixo a farda verde comprida com vistas brancas e o chapeu armado de outro personagem accusavam com evidencia egual o seu cargo de capitão-mór de ordenanças. Manuel Carranca, tambem salvo por milagre do conflicto de Leiria, inflammava-se em um debate violento com uma pessoa, que o habito e o cordão, as bochechas redondas, a triplice rosca da barba, e o ventre empinado proclamavam logo como um dos mais apopleticos, irasciveis, e facciosos filhos de S. Francisco. Este padre, conhecido e respeitado como orador sagrado, pertencia ao convento de Santarem, e chamava-se fr. João Salgado. O segundo interlocutor, com o qual repartia os thesouros da dialectica, ainda moço, pallido, melancholico, e esbelto, sem lhe ceder uma pollegada de terreno, sorria-se dos clamores freneticos do reverendo, e parecia atiçal-os mesmo com prazer maligno, lançando no meio de suas apostrophes uma interjeição, ou uma exclamação repentina, que tinham a virtude de fazer saltar o theologo aos ares como uma mina carregada. Os outros conjurados ouviam calados, trocando apenas algum relancear de olhos, como no circo os espectadores comtemplam as vicissitudes da lucta entre dois campeões afamados, contentando-se com o espectaculo, e abstendo-se de o perturbar com os seus applausos, ou com a sua reprovação. --Os laços da prudencia humana não me prendem! exclamava o padre com o barretinho de seda arregaçado para a nuca, a calva purpurea, e o sobrolho franzido... Mais poderoso e forte do que todos os artificios mundanos é o Senhor dos exercitos!... Para vencermos os jacobinos basta a candura da pomba. --Cuidado com as garras do milhafre!... interrompeu pela terceira vez o mancebo pallido com um sorriso ironico. --Ao milhafre atira-se, sr. Mannel Coutinho, gritou o bellicoso servo de S. Francisco, ferindo a mesa com o punho cerrado. Bons caçadores temos, e se for preciso, Deus pela sua infinita misericordia fará um milagre em nosso favor. --Nada de milagres! accudiu o capitão-mór de ordenanças, Manuel Carranca, o qual, rouco de gritar, aproveitava o incidente para locupletar com duas valentes inspirações o pulmão estafado. Nada de milagres! Se v. s.^a rev.^{ma} julga, que os francezes fogem com estolas, hyssopes, e caldeirinhas de agua benta, engana-se redondamente. Vá a Leiria, e lá lhe dirão de que serviu o bello cantoxão do bispo e dos clerigos!... Safa! Tenho ainda nos ouvidos os bérros das peças de artilheria, e os alaridos d'aquelles malditos granadeiros... Pareciam gatos a marinhar e leões a arremetter... Esta apostrophe, sem desmaiar a resolução dos ouvintes, tornou mais grave o rosto de alguns. Houve até quem applaudisse com um aceno de cabeça assaz expressivo a rustica e quasi impia declaração do capitão-mór. As momices bellicosas e varias do franciscano começavam a aborrecel-os. Veremos no capitulo seguinte a verdade do adagio: Pela fructa se conhece a arvore! IV Reina a confusão no campo de Agramante Fr. João era o mais irado, ou antes, era o unico irado. O seu labio superior, extendido como tromba cresceu, e a barba de tres andares descaíu-lhe com o beiço de baixo quasi até o peito, signal manifesto de seu despreso. O suor da colera, colera de frade, oleosa e leveda, inundou-lhe a testa. As pupillas faiscavam. --Santo Deus! que ouço!... atalhou pondo-se em pé, hirto e furioso, e alçando os braços como se afagasse a peroração do melhor de seus sermões. É o sr. Manuel Carranca quem profere taes blasphemias, ou é algum inimigo de Deus e da patria?!... --Padre mestre! accudiu não menos irritado e furibundo o arguente interpellado, já tambem de pé. Não me tente a paciencia! Eu digo a verdade e não solto blasphemias. Pão pão, queijo queijo! Nunca tive trato com mouros, judeus, ou herejes, nem consinto que ponham nota na minha religião, entende?... --Se não quer ser lobo não lhe vista a pelle. Sou ministro de Deus, e não adulador de poderosos. Castigo os que erram! replicou o orador com um gesto inimitavel de desdem olympico. --Castiga? Diz que ha de castigar-me?!... bradou o capitão-mór livido e convulso de raiva. --Digo-lhe que já o castiguei, e que hei de continuar!... retorquiu o frade não menos rascivel crescendo dentro dos habitos. --A mim! Manuel Carranca, morgado e capitão-mór de ordenanças de Leiria, pae de familia, e homem de sessenta annos de edade?!... insistiu o outro suffocado, roxo, e com os punhos cerrados. --Quem o ouvisse não lhe faria doze annos! Uma criança não fala mais loucamente; concluiu fr. João encolhendo os hombros, limpando o suor, e sentando-se de golpe. --Sabe que mais, sôr padre? gritou quasi em delirio o aggredido. Tenho pena de o ver de saias. Senão!... Juro-lhe por alma de Eufrasia, minha santa companheira, que Deus tem, que deixava metade da pelle agarrada aos nós da corda, com que o havia fustigar!... Só o pugilato podia terminar a contenda, chegada a estes termos. Fr. João parecia possesso. Sentava-se, erguia-se, estorcia-se, clamava, e accusava, defendia-se, ameaçava, enternecia-se, e elle só fazia mais ruido, do que cem mendigos implorando voz em grita a caridade dos fieis. O seu adversario ria-se com despreso das contorsões do prégador, e repetia entre gargalhadas nervosas, quando uma pausa nos accessos do reverendo lh'o consentia: --Juro-lhe! Se os frades como as mulheres, não vestissem saias, o padre mestre saía esta noite d'aqui em carne viva! O auditorio escutava calado e neutro as imprecações dos contendores, ria-se das interjeições e dos trejeitos, e murmurava, porque se perdia em puerilidades similhantes um tempo precioso. A algazarra dos dois subiu, porém, a tal ponto, que o coronel de milicias, que dormitava talvez encostado ao punho, como insensivel ao ruido, que o cercava despertou meio sobresaltado, abriu metade das palpebras preguiçosas, e articulou em tom pausado sómente estas palavras: --Que vozeria é esta, senhores? Estamos á porta de algum açougue, ou em uma casa honesta, deliberando a bem da patria? Peço socego. Não foi preciso mais. Tudo emmudeceu. Isidoro Pinto Gomes era um ancião veneravel, nobre pelo sangue, exemplar pelas virtudes, e acatado geralmente. --Vamos! Proseguiu. Não é já cedo, e é preciso sem demora concluir! E correu a vista serena pelos collegas, detendo-a um pouco severa sobre o frade e o capitão-mór, que, sentados um defronte do outro, ainda se ameaçavam com os olhos. O sr. fr. João Salgado propunha que montassemos a cavallo, e partissemos d'aqui a levantar Santarem, Villa Franca, Leiria... --Todo o reino, sr. coronel. È facil! interrompeu o padre. --È fácil de fazer e difficil de sustentar, redarguiu Manuel Coutinho. Os francezes ainda estão em Abrantes e Lisboa... --É para os lançar fóra que eu queria que todos esses povos armados... --E vossa reverendissima conta acompanhar-nos e combater ao nosso lado? interrogou o coronel sempre com a mesma gravidade. --Certamente! exclamou o prégador menos enthusiasmado já. Com as minhas orações, com as armas espirituaes... Uma risada estrondosa de escarneo, desatada com insolencia pelo capitão-mór, estrangulou-lhe entre os dentes o resto do discurso. --Sr. Manuel Carranca, observou Isidoro Pinto, risadas não são razões. Queira reportar-se. Estamos em acto serio, e que póde custar a cabeça a todos nós... Continuemos! As armas espirituaes de grande auxilio nos poderão ser, porém infelizmente não bastam. Junot e os seus soldados pelejam com valentia, e não se dispersam com exorcismos. Sr. Manuel Coutinho, o seu voto? Vem de Lisboa, é militar, e tem prudencia. O que entende? --Que novos levantamentos nos atrazam em vez de nos adeantar. Os francezes são soldados, e bons soldados, força é confessal-o, e só por outros soldados podem ser vencidos. O povo tem desejos e vontade, mas falta-lhes disciplina... --_Deus super omnia_! exclamou o incorregivel fr. João. Não lhes queria estar na pelle se de Leiria até ás abas da capital toda a gente se levantasse contra elles. Só os nossos campinos e guardadores, que formoso esquadrão! De mais Lisboa está á primeira voz. Sei-o com certeza. O Conselho Conservador na primeira occasião atira pelos ares os inimigos de Deus e de el-rei... --Vossa reverendissima está enganado! respondeu o mancebo inalteravel, em quanto o frade rubro e arquejante esponjava com o lenço de algodão o suor da eloquencia, e sorvia uma apoz outra tres pitadas triumphantes de esturro. --Estou enganado?! bradou. Queira dizer em que? --Em tudo. Primeiro o povo não se levanta assim de repente e todo. Depois os campinos e guardadores não aturam uma carga de cavallaria ou o fogo da artilharia, a qual alcança longe, e mette medo. Por ultimo a cidade de Lisboa não se move!... --Ora essa! Muito mal nos iria então!... --Porque? Não marcham os inglezes de Montemór, ao pé de Coimbra? Confie mais n'elles, que sabem fazer a guerra. O general Bernardim Freire com as milicias e voluntarios tambem avança. O que queria de Lisboa? Uma revolução de paizanos? As baterias do castello e as bayonetas de Junot depressa a venceriam. Ninguem deseja mais a capital liberta, do que eu, como portuguez, como militar, e... Os outros motivos são só meus. Mas conheço a necessidade e resigno-me. A nossa causa ha de triumphar nos campos de batalha, e não nas ruas, e com tumultos. As victimas já não têem sido poucas. --Qual é então a sua opinião, sr. Manuel Coutinho? observou o coronel, calando com um volver de olhos imperioso a loquacidade do prégador, que abria a bôcca para replicar. O que devemos fazer? --A minha opinião é que montemos a cavallo, recrutemos o maior numero possivel de homens valentes, e que sem ruido nos vamos unir ao exercito de operações. O nosso posto é lá. --Muito bem! Sou do mesmo voto. O que dizem os senhores? --Que estamos promptos, disse o capitão-mór de ordenanças. Ardo em impaciencia de tirar uma desforra mestra da grande sova de Leiria... --E nós todos de tirarmos desforra da invasão! atalhou Isidoro Pinto com dignidade. Partiremos esta madrugada, e se Deus quizer seremos mais felizes d'esta vez. --Que gloria, senhores, para nós e para nossos descendentes! exclamou o morgado de Penin, cujo enthusiasmo facil de inflammar se exaltava n'estas occasiões. A patria libertada, Portugal triumphante!... --O que não rirá sua alteza real o principe regente, quando souber como nós por cá tractámos os francezes! Para mim o melhor dia da minha vida ha de ser o ditoso momento em que possa beijar os augustos pés do meu rei... Oh, se elle voltar, e ha de voltar, apezar de indigno filho de S. Francisco, irei com o povo puchar aos varaes da sua carruagem! E espraiando o zelo monarchico n'esta jaculatoria servil, o frade corria os olhos, de que já saltavam as lagrimas de uma alegria antecipada, pela assembléa soffrivelmente fria, ou quasi hostil á demonstração. --Sr. fr. João, disse o coronel de milicias, levantando-se, e alçando a cabeça com ar magestoso, se o principe D. João voltar, e Deus o traga depressa, deixe ás mulas de Alter, cujo é, o peso do seu coche. Essas mãos sagradas são para os officios divinos, e não para as tarefas dos cocheiros... --Mas! replicou o frade interdicto e atalhado com a licção. Não estamos todos aqui ajuramentados para verter até á ultima gota de sangue pelo principe e pela familia real?... Se não fosse isto e a santa religião tanto fazia Bonaparte como qualquer outro. --Eu lhe digo! redarguiu Isidoro Pinto. Sou portuguez e sou catholico. Como portuguez quero morrer livre aonde nasci; como catholico detesto os que adoram o meu Deus só com os labios, roubando e profanando os templos, prendendo e espoliando em Roma o vigario de Christo. Depois de Deus e da patria--mas só depois--é que vem para mim a restauração do throno de nossos reis... --Depois?! É singular! murmurou fr. João contrariado e aggressivo. --Pois não devia achar singular, redarguiu o coronel serenamente. E senão diga-me: Para que são os reis?... --Essa é boa! Para que são?!... Deus instituiu-os... --Como pastores, guardas, e defensores dos povos. E o que defendeu, ou guardou o principe regente? A sua pessoa, as suas alfaias, a sua segurança. A nós mandou-nos abrir as fronteiras, e entregou-nos manietados por uma ordem sua aos inimigos, de que fugia. --Nunca tal ouvi! clamou o prégador attonito. O que queria o sr. coronel que sua alteza fizesse em tão grande aperto? --O que fez D. João I e D. João IV. Que ficasse! Era a sua obrigação. Os reis não estão acima de todos para se esconderem dos perigos atraz dos ultimos vassallos, ou para esperarem que elles combatam e vençam na sua ausencia. --Que importa isso? Não estamos nós? --Importa muito! É verdade que estamos, mas elle falta; e em quanto sua alteza, que Deus guarde, saboreia a duas mil leguas d'aqui os ananazes e bananas da sua xacara de S. Christovam, choramos nós a liberdade perdida mettidos no captiveiro, em que nos deixou... --Mas sua alteza não se esqueceu de nós. O seu manifesto declarando a guerra á França!... --Ah sim! Bem sei! Declarou-lhes a guerra! Quem a sustenta? Nós e nossos filhos com o sangue vertido no campo e nos patibulos, com as casas saqueadas e reduzidas a cinzas, com os bens e a saude arruinados. A côrte festeja de longe o nosso valor. A Gazeta do Rio chama-nos heroes; porém!... Uns comem os figos, e aos outros arrebenta-se-lhes a bôcca. Acha isto justo, nobre, e bem feito? Se acha, faz mal, se concorda, calo-me. O principe e os titulares hão de voltar, quando lhes abrirmos as portas; em quanto houver perigo, não! Se os cavalheiros de provincia, se o clero, se o povo imitassem tanta ingratidão--tamanha vergonha--deixe-me chamar as cousas pelo seu nome, Portugal seria de Napoleão, de Junot, do principe da Paz, da Hespanha, de todos, emfim, menos de quem o desamparou para cuidar de si. Louvado Deus, se o rei fugiu, e desertou do throno, nós lembrámo-nos da nossa historia, dos nossos brios, e do nosso juramento. Esqueceremos apenas... que estamos combatendo sós! Quando o senhor D. João e os fidalgos se recolherem, nós, pobres e mutilados, mas honrados, iremos dar-lhe os parabens, e tornaremos logo para casa a ver se ainda salvamos do naufragio o pão de nossos filhos... Peço desculpa d'estas palavras, meus senhores! ajuntou, cortejando os conspiradores, que o tinham ouvido silenciosos, porém sympathicos. Sou velho, e os velhos têem o defeito ás vezes de falarem muito. Prometto emendar-me, porque a occasião é de acções, e não de palavras. Amanhã de madrugada partimos. Boas noites! São horas de descanço. Fr. João mettia dó. A sua filaucia oratoria, punida pelas sinceras e sisudas reflexões do coronel, tinha-se convertido em humildade, em mais do que humildade, em consternação. A verdade e a justiça das queixas, que ouvia, eram tão evidentes, que não lhe consentiam replica. Arrependido de as ter provocado, apertou com expressivo ardor a mão do velho cavalheiro, e com os olhos baixos e modos contrictos encaminhou-se ao aposento, em que o aguardava a cadeira, em que havia de repousar. Os seus amigos não tinham melhor leito. Os outros cavalheiros iam separar-se egualmente, quando os assustou o tropear de muitos cavallos caminhando a trote largo. Manuel Coutinho por uma fresta das tabuas, que tapavam uma das janellas rasgadas sobre a estrada, espreitou com precaução, e ao clarão do luar viu reluzir os cascos, e peitos de armas dos dragões francezes. Ao mesmo tempo uma voz forte dava a ordem de alto, e por um instante tudo caiu em silencio. Os conspiradores olharam uns para os outros e instinctivamente levaram a mão ao punho da espada. O mancebo continuava entretanto o seu exame sem se sobresaltar. --É uma escolta de seis homens, e acompanha dois officiaes! disse elle retirando-se. Somos doze, e os nossos creados que dormem na granja muitos mais e decididos. Apaguemos já a luz, vamos para o outro lado do palacio, e demos tempo ao lavrador de nos avisar. Naturalmente os francezes pedem hospedagem, e passam aqui a noite... --Se assim for! E a nossa jornada?! atalhou o capitão-mór de ordenanças. --A nossa jornada está primeiro do que elles! accudiu sorrindo-se Manuel Coutinho. Simplesmente o que póde acontecer é apresentarmo-nos com alguns prisioneiros ao exercito. --Excellente! Excellente! gritou a voz de trovão do morgado de Penin. Vamos a elles. Que nenhum escape! --Mais baixo, senhor morgado, mais devagar! Não acorde o leão que dorme. Os soldados é facil apanhal-os aonde ficam. Os officiaes ainda mais. O João decerto os mette nos quartos, que sabemos, e pela porta de espelho... Entretanto por causa das suspeitas, e porque esta casa ainda póde ser-nos util, sou de voto, que os assustemos e afugentemos com uma representação de fantasmas... e que á saída lhes demos a voz de presos. --Lá está o João da Ventosa com elles à fala! observou o major, que espreitava á janella: Apeiam-se! A ceia que os espera ha de custar-lhes a digerir. --Deram-nos tão mau almoço em Leiria, atalhou rindo o coronel, que lhes devemos esta ceia. Vamos ensaiar os nossos papeis. D'ahi a um momento estava deserta a vasta sala. Os conspiradores tinham desapparecido por uma porta falsa, aberta na parede com tal arte, que ninguem seria capaz de a descobrir. V Francezes á meia noite Em quanto Manuel Coutinho e seus amigos traçavam á pressa o plano, que acabámos de escutar, os dois officiaes francezes batiam, chamando o lavrador com a auctoridade de quem mandava. João da Ventosa e Manuel Simões conservavam-se ainda na mesma posição, mas os canecos tinham ido tantas vezes á fonte do cangirão, e o summo da cepa fôra tão seductor, que, apezar de suas dimensões respeitaveis, o alentado vaso estava quasi no fundo. A lingua começava a pegar-se ao céu da bôcca dos dois bebedores, e os olhos a piscarem-se. Ambos cabeceavam a compasso com aquelle sorriso beatifico e petrificado, proprio da embriaguez mansa, quando as pancadas rijas dos militares os despertaram em sobresalto. Saltaram de um pulo para o meio da casa. O baralho sebento e coçado do uso quotidiano, com que haviam jogado a bisca voou das mãos ao fazendeiro espavorido, e as cartas espalharam-se ao acaso pelo chão. As proezas contra os agentes de policia de Lisboa, e a execução summaria de Gaspar Preto, (o _Sapo_), eram dois espinhos, que não lhes deixavam a consciencia tranquilla. A todas as horas tremiam de ver a justiça á porta, sem animo todavia para fugir, o que acontece varias vezes. --O que será? balbuciava o robusto camponez da Aramanha. A modo que sinto patas de cavallos lá fóra. Arrastam espadas. Com mil cobras! Estaremos caídos na esparrella, sôr compadre? --Valha-o um milheiro... de lacraus, homem! retorquiu o companheiro de copo, affectando serenidade, porém mais morto, do que vivo tambem. Sempre se lembra de cousas!... Não é nada, aposto! Não ha de ser nada... --Deus queira! Mas olhe: não gosto nada de francezes á meia noite!... --Nem eu com a breca! Caluda! Batem como quem se despede. Os excommungados, se não abro, pregam-me com a porta dentro! Vamos! Alma até Almeida!... O que fôr soará. Você ouve? Fique-se ahi para esse canto, estire-se, durma, ou finja que dorme, e nem tugir, nem mugir. Deixe-me cá a mim com elles! Muito finos hão de ser se metterem os pés pelas algibeiras ao João!... Ahi vae! Ahi vae! Isto aqui não é nenhuma estalagem!... E rosnando, e gritando, o lavrador accudia o mais devagar, que lhe era possivel, contando os passos, tropegos das libações e do susto. A porta desaferrolhou-se por fim, as trancas rangeram e cairam, e o pobre João da Ventosa esteve quasi perdendo os sentidos, quando viu deante de si os dois officiaes francezes apeiados, e a escolta ainda a cavallo. Um tremor invencivel apoderou-se-lhe dos membros, e um suor frio, acompanhado de arrepios suspeitos pela espinha dorsal, acabou de o paralyzar. Em um instante passaram-lhe pela mente todas as conjecturas lugubres, que o medo podia forjar. Sentiu os ossos dos dedos estalados com os anginhos e os braços cortados com as cordas. Viu-se na enxovia comido de miseria, nas garras do escrivão e do carcereiro, dois abutres insaciaveis. Ouviu e respondeu aos interrogatorios; e, convencido do seu delicto, escutou a sentença de morte, entrou para o oratorio, e com os cabellos hirtos e a lividez do terror encarou o espectro pavoroso da forca... Olhava, e não via, movia os beiços, e não falava, procurava arrastar os pés, e elles parecia que tomavam raiz no chão! Foi um minuto de delirio e anciedade, mas um minuto de tal agonia, que a outro qualquer toda a cabeça se poria de certo branca. Entretanto era animoso, e recobrou-se. O sangue quasi gelado aqueceu, os espiritos acovardados restauraram-se. --Assim como assim, disse comsigo, melhor é acabar aqui de uma bala, ou de uma cutilada, do que nas mãos do carrasco. Vivo não me levam elles de casa, e muito inteiros não hão de ficar tambem. Veremos. Tomada esta prompta resolução, socegou mais, levantando os olhos para os recem-chegados. Os officiaes tinham-se arredado um pouco, e falavam a meia voz com o sargento. Quando voltaram, um d'elles, cujo ar aberto e espirituoso, rosto juvenil, e vista maliciosa não promettiam na apparencia nenhum executor de ordens severas, tocou-lhe então no braço, e na aravia arrevesada, com que os estrangeiros arremedam e estropiam de ordinario o idioma portuguez, exclamou: --Ah! Ah! O sr. lavrador é que é o dono da casa dos fantasmas? Venho fazer-lhe uma visita de proposito, e pedir-lhe que me arranje um quarto, aonde possa falar á vontade com os seus inquilinos, as almas do outro mundo. Mal sabe as curiosas cousas, que desejo perguntar-lhes... --A quem? bradou o João ainda vexado de receios. É escusado. Não sei nada. Póde prender-me, matar-me... --Prendel-o! Matal-o!... Quem lhe metteu essas loucuras na cabeça?... Sou capitão, e chamo-me Armand d'Aubry. Ouvi falar d'este palacio e dos fantasmas, que dão bailes e concertos á meia noite, e jurei convidar-me com este meu amigo para assistir a um d'elles... Diga-me senhor, tem bastante valimento na casa para me alcançar dos seus espectros o favor de se não incommodarem por amor de mim, e de me tractarem como pessoa da familia?... O lavrador não sabia se estava sonhando, se estava acordado, ou se aquelle homem era doido. Não o entendia, e fitando n'elle os olhos espantados contemplava-o boqui-aberto e quasi nescio de estupefacção. --A proposito! proseguiu o militar. Andámos um bom par d'estas suas leguas portuguezas, que são eternas e cançativas, e estamos caindo de fome e de somno. Póde dar-nos sem demora um pedaço de pão, um gole de vinho, e uma cama? Aonde poderei alojar os meus soldados?... --V. s.^a está em sua casa! redarguiu por fim o lavrador, respirando mais desafogado. Queira entrar. Eu chamo já a velha e os creados, que estão dormindo. É um instante em quanto se lhes fazem as camas e se arranja alguma cousa para ceiarem. Sem ceremonia entrem camaradas! Tragam os cavallos á redea e venham commigo. Graças a Deus temos aonde aquartelar um regimento... Safa! accrescentou limpando depois o suor da testa com as costas da mão. A gente não ganha para sustos! Sempre cuidei!... Ah! E os outros lá de cima? E os creados d'elles que estão na granja da encosta? Com a breca! Se dão com a lingua nos dentes vae tudo por ares e ventos. Valha-me Deus!... Se eu nunca hei de acabar de ser tôlo! Já minha avó me dizia: João, para que te mettes tu a dobar meadas alheias?! Não ha remedio. É preciso fazer das fraquezas forças. E juntando o exemplo ao preceito, a sua voz taurina fez saltar em um momento, e pôr de pé os moços e a governante, accender o lume, e preparar tudo para que a hospitalidade promettida aos dragões francezes correspondesse á fartura e largueza, de que se prezava. --Sabeis que este palacio negro e a caír faria a fortuna de um auctor de novellas tragicas? observou em francez o companheiro de Armand, o tenente Lassagne. Se os espectros o vexam, como se diz, devêmos confessar que escolheram scena propria para seus terrores. --Espero antes de nos separarmos, atalhou d'Aubry na mesma lingua, que d'esta vez as almas do outro mundo é que hão de ter medo e fugir. Sei de uma excellente receita para isso. --Ah! Ah! E o nosso sargento, curtido em trinta campanhas, o que diz do demonio e seus saquazes? --Roberto?!... Ri-se e encrespa os bigodes. Tanto lhe faz combater os austriacos e os prussianos, como os mamelucos, ou os subditos de sua magestade infernal Satanaz I. É capaz de disparar á queima-roupa sobre Asmodeu em pessoa. --Ha de ser curioso! O meu receio unico é que os phantasmas se recolham aos bastidores e addiem a representação. N'esse caso os logrados seriamos nós.... --De certo!... Mas tenho motivos para crer que a noite de hoje entra no programma diabolico. A demora em abrir a porta, a perturbação d'este lavrador que me parece um contra-regra soffrivel de visões e espectros, certo ar de mysterio e de desconfiança, tudo me faz suppor, que apenas deitarmos a cabeça no travesseiro... teremos logo de a levantar para nos entendermos com as almas do outro mundo. Aposto que lá em cima os ensaiadores andam já a tombos com o averno, ou com o purgatorio?! --Talvez! Então este casarão é o quartel general?... --De todos os conspiradores, desertores, e foragidos, que nos fazem a honra de detestar o nome francez como estrangeiro, como jacobino, e como herege! Podeis estar seguro! Se dessemos busca ás salas e corredores arruinados do andar nobre, punhamos a mão, juro-vos, sobre o ninho ainda quente d'esses escandecidos patriotas, que se tornam invisiveis, sempre que podem, para nos darem detraz dos muros e vallados os bons dias e as boas noites com as balas das espingardas. Meu tio, o intendente Lagarde, não hesitava, e a esta hora já tinha uma nuvem de beleguins e soldados a cercar tudo, e a farejar e aforoar os cantos e desvãos... Eu... creio mais nas minhas pistolas e na minha espada, do que nos laços e ardis da policia, e ha tres noites que sonho a fio com delicias na probabilidade de um duello, ou de um combate com uma legião de fantasmas... Entrou n'este instante o João da Ventosa, e os creados, multiplicando-se, pozeram a mesa, interrompendo o dialogo dos dois officiaes. A ceia não tardou, e o lavrador, por calculo, ou por generosidade, viu-se claramente, que desejava estimular por todos os modos a sêde dos hospedes, convidando-os a libações repetidas, que a natural sobriedade de Lassagne, e a prudencia de Armand tiveram o cuidado de conter dentro de limites rasoaveis. Apezar dos louvores encarecidos, com que o rustico Amphitryão encarecia os productos da colheita ribatejana, e a despeito da qualidade fina e capitosa do licor, os dois militares honraram o Baccho portuguez com summa circumspecção. O amigo de Manuel Simões, pouco satisfeito, ao que parecia, e forçado nos ultimos entrincheiramentos, ergueu-se para ir pessoalmente escolher na adega duas garrafas, uma de Madeira, e outra do Porto, capazes, affiançava elle, de vencer o jejum de um cenobita, a immobilidade de um morto, e a frieza de um velho. --Sentido! murmurou d'Aubry quasi ao ouvido do tenente. Os espectros, segundo noto, são eruditos. Leram Virgilio, Horacio, e Vegecio. Este aldeão medita uma nova edição do cavallo de Troia em formato reduzido. O que elle vae buscar não é vinho, é somno para nos ter á sua disposição... --Nos meus dias de taful e de rapaz talvez se arrependesse, porque me atreveria a beber o mar! disse Lassagne sorrindo, e retorcendo entre os dedos as guias do bigode louro. --Ah! Leão! Meu querido Leão! Muito verdadeiro é o adagio que diz: viaja para aprenderes. Quem havia de suppor, que, sem sermos Samsão, vinhamos encontrar em umas ruinas da Ponte da Asseca esta parodia dos artificios biblicos de Dalilla? --Oh! accudiu o tenente rindo. Dalilla de vestea, calções, e varapau?! --Porque não? O habito não faz o monge. Álerta! Ahi vem o nosso homem, e suspeito que a adega, como a famosa caverna de não sei que santo, ha de ter uma bôcca aberta para o inferno. Deus me perdoe, se o calumnio, porém creio firmemente, que elle foi saber a senha dos fantasmas para o espectaculo d'esta noite. As duas garrafas continham na realidade o licor precioso das colheitas rivaes das vinhas do Douro e dos cachos insulanos, e tinham sido escolhidas por um entendedor emerito. Os officiaes festejaram-as com o alvoroço, que mereciam suas qualidades e seus annos, simulando mesmo certa turbulencia, que a um observador mais habil, do que o João da Ventosa, pareceria mais do que suspeita, se attentasse para a expressão maliciosa dos olhos de Aubry, e para o sorriso ironico engatilhado nos labios de Lassagne. Tudo tem comtudo um termo, e davam tres quartos para a meia noite, quando os dois francezes, entre bocejos, e dando mostras de excessivo peso na cabeça, pediram treguas, e manifestaram o desejo de descançar das fadigas da jornada e dos effeitos narcoticos da campanha bacchica. O lavrador accendeu dois castiçaes de casquinha, e mais vacillante, do que elles, porque não se poupára durante o combate para os estimular, guiou-os pela escada interior aos dois quartos, aonde, como sabemos, já tinha aquartellado Leonor e seu pae na famosa noite, immortalizada pelas proezas do sargento Cabrinha e de seus milicianos. --Viva Deus! exclamou Aubry, rindo, depois de corresponder ás boas noites e offerecimentos encarecidos do patrão, de fechar logo a porta a duas voltas de chave, e de ouvir o ruido dos passos do rendeiro a descer a escada. Viva Deus! Estamos nas covas de Salamanca, e aposto que separados apenas por uma parede da sala regia aonde os fantasmas dão as suas audiencias. Lassagne! Ha mezes passaveis por ser a primeira pistola e a mais fina espada do regimento. Não deixeis ficar mal a destreza n'estas ruinas, porque vos affirmo, que, vivos ou mortos, os que entrarem n'este quarto, pela janella, pelo sobrado, pelo tecto, ou pelos muros, não saem d'aqui sem dizer d'onde vem, e para onde vão. --Virão elles? replicou o outro official, encolhendo os hombros com o usal sorriso. Receio que algum diabrete os avise... Não receieis. Não faltam. Diz-m'o o coração. A fortuna tem sido madrasta commigo, e deve-me tanto, que de certo não me nega o gosto de ver e apalpar um espectro, e de lhe perguntar noticias dos... inglezes, do general Bernardim Freire, ou de algum guerrilha emboscado perto d'aqui! Se vos parecer deixaremos para depois o itinerario do purgatorio e os fogachos do inferno.... --Impio! respondeu o seu interlocutor em tom jovial. E não quereis que nos chame esta gente jacobinos e herejes?! Em que acreditaes? --Em Deus, que nos ouve; em Jesus, que nos remiu; na immortalidade, que ha de unir-nos em espirito aos que amámos e chorâmos n'este desterro chamado vida! retorquiu o mancebo de repente serio e quasi melancholico. Mas!... São horas de apreciarmos os colchões das camas, e de dormirmos um instante com os olhos abertos. Lassagne tendes o somno pesado?... --Leve como um açor! Um nada me desperta. --Bello! Eu tambem. Por esse lado não ha que temer. Agora as pistolas. Optimo! As escorvas estão seccas e ardem bem. Tende sempre as armas á mão. Boas noites! Deus permitta que os fantasmas se não arrependam. Estou ancioso de os conhecer. E o estouvado, rindo e espreguiçando-se, apertou a mão do amigo, pousou as pistolas á cabeceira sobre um velador, e deitando-se vestido em cima do leito, cerrou os olhos. Lassagne imitou-o. D'ahi a um momento resonavam ambos. Teria passado uma hora, e jazia tudo em profundo socego, quando Aubry, que na realidade tinha o somno esperto de uma ave, accordou ao ruido lento dos gonzos enferrujados da porta falsa, que abria sobre o seu quarto, disfarçada com o velho espelho porta pela qual vimos verificada a evasão de Paulo de Azevedo mezes antes. O mancebo tinha conservado a véla accesa, e ao primeiro som esfregando os olhos, e reassumindo os espiritos perturbados, sentou-se na cama, correndo a vista por todo o aposento afim de perceber d'onde partia o assalto. Um instante bastou para formar exacta idéa d'elle. A porta resistia de velhice, mas, gemendo, cedia sempre, e o espelho recuava. O sobrinho de Lagarde saltou de manso á casa, engatilhou as pistolas, e com ellas nas mãos, e a espada núa debaixo do braço, pé ante pé, encaminhou-se á entrada do quarto, em que repousava Lassagne. Achou-o erguido tambem, e armado. Com o dedo sobre os labios recommendou-lhe silencio. Os dois apenas trocaram um gesto. Não era preciso mais. Estavam entendidos. Aubry encobriu-se com o cortinado do leito; Lassagne atraz do vão da porta, e ambos aguardaram que os espectros acabassem de vencer os obstaculos. Queriam desenganar-se finalmente por seus olhos da verdadeira significação das mysteriosas apparições, que vinham visital-os. Não esperaram muito! VI Uma visão pouco sobrenatural O espelho continuava a desviar-se, girando de vagar, descobrindo a porta secreta. De repente dois vultos embuçados apontaram á entrada, e com passos subtís adeantaram-se cautelosos. Atraz d'elles, como sentinella no seu posto, ficou uma terceira figura com meio corpo na escuridão e meio corpo frouxamente allumiado pelo escasso clarão da lanterna, que trazia, a qual aclarava os tres personagens enroupados de mais para a estação e assás pesados e volumosos para passarem por espiritos. --Dormem! Estão apanhados! disse o primeiro em voz submissa. --A luz?! respondeu o segundo. Aonde está o outro francez?... --Ahi! Segure-o sem bulha. Este fica por minha conta! --Bem! Deram algumas passadas surdas, abriu o primeiro as cortinas da cama de Aubry, correu o segundo com a vista o leito deserto de Lassagne. Recuaram. Os officiaes, não só não dormiam, como tinham desapparecido! --Fugiram! exclamou o vulto mais alto, levantando a voz. --Manuel Coutinho! Sr. Manuel Coutinho! gritou o mais baixo. Fomos sentidos. Os jacobinos pozeram-se ao fresco! --Por onde? Não póde ser! Procurem bem! accudiu o amante de Leonor, que era quem guardava a porta falsa. --È verdade! Os nossos vélam! Fóra tudo está quieto!... --De certo, sr. morgado! atalhou o capitão-mór. A esta hora os dragões estão apanhados como coelhos na rede. Mas aonde se sumiram então os homens?!... N'este momento ouviu-se um silvo forte e prolongado da banda da estrada, e dispararam-se dois, ou tres tiros quasi debaixo das janellas. --Que é isto? bradou Manuel Coutinho. Estaremos vendidos? --Não, meus senhores, não estão! accudiu Aubry, soltando-se de repente das cortinas, que o escondiam, e cortejando com extrema urbanidade os conspiradores. Ao mesmo tempo Lassagne apparecia aos umbraes da entrada do quarto grave e silencioso. As armas, que os officiaes traziam nas mãos, provavam, que vinham apercebidos e dispostos para um encontro. Houve um momento de pausa, durante o qual os cinco personagens reunidos por modo tão singular se mediram e encararam sem proferir palavra. --Conversemos, senhores! disse por fim o sobrinho de Lagarde. Não imaginam a impaciencia, que tinha em os encontrar aqui. Andei doze leguas a cavallo, sem resfolegar, e que leguas, santo Deus! para ter o gosto de conversarmos cinco minutos!... --Talvez se arrependa! bradou o morgado, carregando o sobrolho, e fazendo o gesto de buscar no cinto as pistolas. --Nada de imprudencias, por quem é!... atalhou Aubry, de repente serio, e apontando as suas, acção que Lassagne imitou serenamente. Não comecemos a narração pelo epilogo, erro crasso de rhetorica, segundo affirmava o padre Laly, sabio professor do meu collegio. Tambem trazemos com que responder, e menos mal. Deixemos, porém, as explicações de polvora e bala para o fim se não nos entendermos. É melhor!... --Pois bem, seja! redarguiu Manuel Coutinho. Caímos em uma emboscada, e... --E não sabe se o feitiço se virou contra o feiticeiro? interrompeu, rindo, o official. Parece-me que sim. Queiram sentar-se, meus senhores... --Estamos bem! O que temos a dizer em duas palavras se acaba!... exclamou o capitão-mór, que as maneiras polidas, mas zombeteiras d'Aubry irritavam excessivamente. --Quem sabe?! tornou o mancebo, fitando-o com ironia, e torcendo entre os dedos e com graça as guias do bigode. A mobilia não é opulenta, mas as cadeiras chegam. De mais soldados com pouco se contentam. Queiram sentar-se. Muito bem! proseguiu depois de os ver sentados. Posso saber o motivo a que devo a felicidade d'esta visita? O meu nome é Armand d'Aubry, capitão do 1.^o de dragões da guarda... --Ah! exclamou Manuel Coutinho com certo sobresalto, Armand d'Aubry?!... --Exactamente. O meu companheiro chama-se o sr. Leão Lassagne, tenente do mesmo corpo, conhecido dos austriacos, prussianos e hespanhoes pela firmeza dos golpes e certeza do tiro... Aqui o morgado e o capitão-mór enfadados da prolixidade dos cumprimentos olharam um para o outro encolhendo os hombros. Manuel Coutinho, frio e reportado, ouvia, sem desafinar a expressão intrepida do rosto, este prologo cerimonioso de Aubry, não se dignando mesmo patentear o menor indicio de impaciencia. O official francez percebia maravilhosamente tudo o que passava pela mente dos interlocutores, porém, simulando ingenuidade maliciosa, divertia-se em ter suspensa aquella anciosa curiosidade. --Ser-me-ha licito, agora, que dei conta de mim e do meu amigo, perguntar o nome dos cavalheiros, que nos honram com a sua presença?... --De certo! redarguiu Manuel Coutinho, inclinando-se levemente. Se nos cobrimos com as trevas da noite é porque somos opprimidos, e ainda não soou a hora de combatermos á luz do dia. Este senhor é o morgado de Penin, administrador de uma das casas mais nobres e ricas da provincia. Aquelle é o senhor capitão-mór de ordenanças de Leiria, Manuel Carranca, pessoa distincta e estimada pelo nome e qualidades... Eu chamo-me Manuel Coutinho, appellido não de todo obscuro, e fui desligado do regimento, aonde servia como capitão... Bem vê, sr. d'Aubry, que está em excellente companhia, e que, apezar da hora, não entrou em nenhuma caverna de salteadores... --Oh! Pelo amor de Deus! Quem se lembrou nunca de tal?!... Seria importuno se insistisse em perguntar ainda a razão, porque tres cavalheiros tão amaveis nos fizeram o favor de perturbar o nosso somno, roubando aos espectros d'este palacio o segredo das visões theatraes? --Nada mais justo! retorquiu o amante de Leonor. Precisavamos da casa para nós, e não queriamos ser vistos, nem seguidos... --E então, como o sr. Aubry muito bem disse, occorreu-nos roubar aos espectros o segredo d'esta porta. Vinhamos... --Prender os dois officiaes que julgavam adormecidos, na boa fé da hospitalidade portugueza?!... --Hospitalidade forçada! É verdade, vinhamos, deplorando que a guerra nos coagisse a incommodar duas pessoas, que tanto careciam de repouso. Felizmente d'esse remorso estamos absolvidos. Não interrompemos o somno de viajantes cansados; encontrámos a vigilancia de militares affeitos a todos os rebates dos campos... --Mil vezes obrigado por tanta benevolencia! replicou Aubry, pagando ironia com ironia n'este duello cortez, que espantava o morgado e o capitão-mór, mais propensos aos argumentos de ferro e pau, do que aos tiros dos epigrammas. --E agora? interrogou Aubry, cuja alegria se apagou, convertida subitamente a expressão risonha em aspecto quasi severo. --Agora?! redarguiu Manuel Coutinho, levantando-se com os seus amigos, e cortejando-o em ar resoluto. Agora, como não podemos espaçar mais a partida, e decidimos vencer todos os obstaculos, offerecemos ao sr. d'Aubry e ao sr. Lassagne as nossas desculpas pelo incommado, que lhes causámos, pedimos-lhes que não nos disputem a passagem, e como seria mais do que imprudencia deixar na rectaguarda inimigos tão valentes á testa de uma força, vemo-nos constrangidos a rogar-lhes, que nos entreguem as suas espadas... --Ah! atalhou o official com um sorriso amargo. Não pede pouco. Pelo que vejo chegámos... --Áquellas explicações mais vivas, accudiu o mancebo, de que nos falou no principio da nossa conversação... Creia que sinceramente o sinto... --Oh! Não se afflija, por quem é! Estamos mais longe d'isso, do que cuida. Pois, na realidade suppoz, que dois officiaes armados e apercebidos haviam de ceder deante de tres homens?... --Somos dez e quasí todos militares. Não ha deshonra. Veja! De feito os outros conspiradores attrahidos pela demora acabavam de apparecer á porta secreta, e, entrando, rodearam em um instante os dois francezes, socegados e pacificos, como se tudo fosse pura ficção theatral. --Agora nós!... Ouça! observou d'Aubry. Lassagne não são os passos do sargento Roberto? Abri a porta! D'ahi a um momento assomava á entrada o vulto colossal e herculeo do novo protogonista, o qual parou aprumado e hirto, com a mão na palla da barretina, e o rosto invadido quasi todo por bigodes e suissas enormes, aguardando de pé, respeitosamente, que o interrogassem. Os conspiradores eram todos olhos e ouvidos. --Quantos prezos Roberto? perguntou o official. --Doze! Meu capitão! --Armados? --Até aos dentes. --O meio esquadrão? --Parte cérca o palacio, parte está na ponte e á bôcca da estrada do Cartaxo. --Houve resistencia? --Dois tiros, mas não feriram ninguem. --Aonde está o lavrador d'esta casa? --Fugiu pelas vinhas com outro paizano. --Que ordens déstes aos dragões? --As vossas. Fogo sobre quem tentasse fugir pelas janellas, ou pelas portas. Quartel a quem se rendesse. --Bem! Desembainhae a espada. Vigilancia! Prompto á primeira voz! Meus senhores ouviram? accrescentou, virando-se para os cavalheiros portuguezes, e cruzando os braços. --Tudo! respondeu o coronel de milicias Isidoro Pinto Gomes, adeantando-se, e fitando no mancebo os olhos placidos e firmes. --E o que fazem? --O mesmo que o senhor official de certo contava fazer... Passâmos! retorquiu o coronel sem elevar a voz, e tão manso de gesto e de physionomia, como se estivesse tractando de cousas indifferentes. --Por entre as balas e as espadas dos meus dragões?!... --Tanto vale aqui, como mais adeante! replicou intrepidamente Manuel Coutinho. Principiâmos vinte e quatro horas mais cedo. --Muito bem! Mas de que serve verterem tantas pessoas illustres o sangue debalde? A honra fica salva, e o sacrificio... --É inutil, ia dizer? Perdôe-me a interrupção, sr. d'Aubry! A honra do soldado talvez ficasse salva perante o numero, porém a de portuguezes, que juraram pelejar pela patria, de certo não! Viemos aqui para morrer por ella!... Se tivessemos por nós a força usavamos d'ella sem escrupulo... Faça o mesmo. A fortuna traiu-nos aos primeiros passos. Que importa? Estas armas empunhadas para sermos livres não hão de ser-nos arrancadas senão com a vida... --É a sua ultima resolução? --É! --E a de todos nós! ajuntou o coronel, apertando a mão do mancebo, animado assim como o morgado, o capitão-mór, e os outros portuguezes pela eminencia do perigo. --Muito a meu pezar sou obrigado a oppôr-me. Lassagne! Roberto! Firmes! nem um passo, senhores! exclamou. Queiram atirar primeiro! Damos-lhe o partido que nossos avós deram aos inglezes em Fontenoy!... --Talvez houvesse meio de evitar!... murmurou ao ouvido do coronel a voz tremula de fr. João, cujo rosto apopletico convertêra de repente em pallidez suspeita as assanhadas côres. --Nenhuma! respondeu sêcco e irado Isidoro Pinto. Se tem medo retire-se, entregue-se, faça o que quizer, mas deixe-nos! Vamos! Abram-nos caminho, senhores francezes! Esta é a nossa terra, e havemos de passar, ou acabar n'ella! E o velho official, venerando pelos cabellos brancos e pelo ardor nobre, que lhe restituia os brios juvenis, com a espada na direita, e uma pistola engatilhada na esquerda, seguido dos companheiros, avançou contra Lassagne e Roberto, em quanto Manuel Coutinho por calculo, ou por acaso, se achava deante do capitão d'Aubry. O conflicto parecia inevitavel. --Logar! bradou o mancebo portuguez com um gesto de ameaça. As pupillas do official francez despediram dois relampagos; o seu rosto tomou terrivel aspecto. Foi só por um instante. Inclinando a espada, e reprimindo a colera, disse ao adversario pasmado da mudança: --Agradeça a Deus! A lembrança de um anjo suspende-me o braço! Alto! accrescentou em voz sonora e cheia. Um momento! Senhor Manuel Coutinho sabe quem eu sou? --É o sobrinho do intendente Lagarde, do homem que... --Não diga mais. Sei que está offendido e que tem razão de o estar. Mas!... A roupa suja lava-se em familia. É o noivo de D. Leonor? Aquelle a quem ella prometteu e jurou amar?... --Sou, porque?... --Porque fui sem o saber causa innocente de suas lagrimas. Sinto encontral-o aqui. Podia, se fosse vil, prevalecer-me do acaso. Quero que me fique conhecendo. Quero mostrar-lhe que sou digno do honrado nome de meu pae. Se o deixar saír para onde vai? --Para o exercito de sir Arthur Wellesley. É lá o meu posto. Replicou Manuel sem hesitar. --Adivinhava a resposta. Pode ir! Lá nos encontraremos como inimigos, mas como inimigos que se estimam. --E os meus companheiros? perguntou o mancebo pasmado de tanta generosidade. --Os seus companheiros?! Bem! É justo! Que se recolham com os espectros, e que esperem. Deixem-me partir a mim e aos meus dragões. Lassagne e Roberto são discretos e fieis. Se for preciso dirão que não viram nada. --A sua mão sr. d'Aubry!? insistiu Manuel Coutinho commovido e com os olhos humidos. Quero apertal-a cheio de admiração pela grande alma, que se nos acaba de revelar. Em todas as occasiões, succeda o que succeder, lembre-se de que tem um amigo, um irmão em mim! --Menos no campo de batalha? accudiu o official sorrindo. --Lá mesmo! Se as armas lhe forem contrarias.... --Obrigado, mas!... E quem sabe?! A fortuna póde cansar-se um dia. Uma pergunta. Paulo de Azevedo!?... --Continua preso e vae ser julgado. --Meu tio enganou-me então? É o mesmo! Ainda estamos a tempo. Hei de cumprir a minha promessa. Sr. Manuel Coutinho, se não tornarmos a ver-nos, diga aos seus amigos, diga a D. Leonor... que fiz o meu dever. Agora adeus. Os seus amigos que se retirem já! A scena dos espectros, ajuntou volvendo ao gracejo proprio da indole jovial, ia-se tornando tragica. D'aqui a duas horas parto. Siga depois a sua sorte, e não se ria muito de mim, quando se recordar dos lances d'esta noite. A proposito, aquelle reverendo que vejo tremulo entre os seus, é o capellão da guerrilha? Parece-me pouco bellicoso! E voltando-se para Lassagne e para o sargento, immoveis assim como os conspiradores, em quanto durára a conversação com Manuel Coutinho, d'Aubry disse-lhes com o seu ar de riso habitual: --Meus amigos, estes senhores, que por muito enroupados no verão tomavamos por homens friorentos, são na realidade espectros, e vão desapparecer. Já lhes agradeci o favor da visita, e depois da explicação, que acabo de ter, creio que se convenceram de que era perigoso passeiar fóra de horas por este mundo. Lassagne! Logo vos explicarei o enigma. Roberto! Mandai soltar os presos da granja. Partimos dentro de duas horas. Senhores fantasmas! A sua visita causou-me o maior prazer, mas espero que seja a ultima. Muito boas noites! Queiram dar recados da minha parte ás almas de meus parentes, que encontrarem no purgatorio! Um momento depois Lassagne e d'Aubry achavam-se outra vez inteiramente sós nos quartos, o tenente abraçava o seu companheiro d'armas pelo nobre rasgo, que ennobrecia mais o seu caracter, do que uma victoria. A magnanimidade é a mais alta e a mais sublime das virtudes do guerreiro. VII Primeiros clarões de um grande dia A Gran-Bretanha entrou por fim em campo. Sir Arthur Wellesley, cujo nome, conhecido então apenas pelas campanhas da India, em breve os revezes de Napoleão haviam de tornar famoso, avançava das praias do Figueira, pela estrada de Coimbra e de Pombal, com treze mil infantes, duzentos cavallos, e dezoito canhões. As forças nacionaes, organizadas, ás ordens do general Bernardim Freire, não excediam de seis mil bayonetas e de seiscentos homens de cavallaria. Nos dias 10 e 11 de agosto os alliados occuparam Leiria, e no dia 12 descansavam em Pombal as tropas portuguezas. Mas se os nossos e os inglezes eram ainda poucos, atraz d'elles vinha a nação inteira. Os casaes e aldeias despovoavam-se; os povos accudiam á beira das estradas, saudando com suas acclamações os libertadores. A capital, ainda sujeita ao jugo, tremia de raiva entre as armas que lhe tolhiam resgatar-se. As proclamações de Wellesley e de Cotton, apezar da severidade vigilante de Lagarde, zombavam da policia, penetravam em todas as casas, e lidas com avidez e enthusiasmo inflammavam o patriotismo. Os olhos voltavam-se sofregos para o Tejo, esperando de um momento para outro ver ondear o estandarte britannico nos topes dos mastros. Os ouvidos credulos transformavam a cada instante o mais leve rumor longiquo nas sonhadas descargas, que haviam de annunciar a catastrophe á usurpação. A victoria do marechal Bessiéres em Rio Sêcco pouco avivára o prestigio offuscado pela derrota e capitulação de Dupont em Andujar. O rei Joseph, como já dissémos, apenas entrado com a sua côrte em Madrid logo se vira constrangido a retroceder até as margens do Ebro. A posição de Junot não podia ser mais precaria nem arriscada. Os seus vinte mil soldados, repartidos pelos presidios e hospitaes, entre o paiz irado, que não lhes concedia quartel, e que os assaltava de todas as partes, entre os treze mil inglezes, que seguidos de perto por outros vinte mil de sir John Moore e de sir Hew Dalrymple, entre o bloqueio das esquadras britannicas, no mar, e a aggressão violenta, em terra, do odio armado de tres milhões de habitantes, achavam-se limitados á capital e ao territorio, que pizavam, sentindo fugir tudo debaixo dos pés, sem esperança de auxilio, sem caminho aberto á retirada. O duque de Abrantes mostrou-se digno dos feitos heroicos, que ennobreceram a sua carreira. Adoptando as providencias, que o aperto aconselhava, e tomando Lisboa por base de operações, cuidou logo em concentrar o numero necessario para arremessar as tropas britannicas vencidas e escarmentadas outra vez ás aguas. Não lhe sobrava outro recurso! Havia de atravessar duzentas leguas por terrenos montanhosos, com alguns rios caudaes a vadear, e populações insurgidas a disputar-lhe o passo, renovando a temeridade de Xenophonte e dos dez mil, ou tinha de sair ao encontro dos inimigos, feril-os de espanto pela rapidez dos golpes, e anniquilal-os, tornando-lhes funestas pela grandeza do desastre, as praias que buscavam! Junot optou pelo ultimo arbitrio. A execução, porém, não correspondeu ao que exigiam imperiosamente as circumstancias. Mandou sair o general Laborde para observar os inglezes, e atalhar o progresso de sua marcha. Chamou de Almeida Loison, e determinou-lhe o itinerario. Finalmente reuniu e organizou na capital todas as reservas, disposto a confiar a sorte da invasão ao atrevido lance de uma batalha. Accusam-n'o entretanto de não ter sabido attrahir a victoria. Laborde partiu a 6 de agosto á frente do regimento 70.^o, de dois esquadrões do 27.^o de caçadores a cavallo, e de cinco peças. Thomiéres, que defendia Obidos e Peniche com o 2.^o ligeiro, e um batalhão do 4.^o de suissos, havia de unir-se-lhe em Alcobaça no dia 11. N'esse mesmo dia chegava Loison a Thomar, contando-se que a 14 ou a 15, o mais tardar, se acharia em Alcoentre para coadjuvar seus companheiros de armas.[1] Laborde era official distincto pela intrepidez e aptidão. Avisado de que as tropas britannicas e portuguezas estavam em Leiria, a poucas horas sómente das suas, retirou a 14 sobre a Roliça, legua e meia atraz, reforçando a guarnição de Peniche com o 4.^o batalhão de suissos, postando em um moinho sobre a esquerda do Arnoia outro batalhão, e estendendo até ao Cadaval e Bombarral tres companhias do 62.^o para darem as mãos a Loison, o qual não devia demorar-se. Sabendo os francezes do outro lado da Serra de Minde, conservou-se o exercito do general Bernardim Freire em Leiria apezar das instancias de sir Arthur. Este, não recebendo dos nossos mais do que o auxilio de mil e quatrocentas bayonetas e duzentos e sessenta cavallos, proseguiu apezar d'isso o movimento offensivo. No dia 14 aquartelou-se em Alcobaça, e no dia 15 dormiu nas Caldas. Um combate entre as suas avançadas e o batalhão francez postado junto do moinho sobre o Arnoia, advertiu-o da proximidade dos soldados de Napoleão. Fiel ao seu caracter circumspecto, deteve-se até ao dia 16, talvez indeciso por falta de informações. Da Roliça ás Caldas medem-se tres leguas de distancia. As duas povoações campeiam nos extremos, norte e sul da vasta bacia, rasgada ao oeste, no meio da qual se ergue a villa de Obidos, notavel pelo aqueducto e pelo castello mourisco. A estrada de Lisboa cortava uma planicie arenosa até á Roliça, aonde um ramal de collinas se destaca da serra principal, correndo limitado por um ribeiro até á Columbeira. Ao primeiro volver de olhos dir-se-hia que findavam alli todas as communicações. A estrada perdida em um desfiladeiro sinuoso e estreito quasi que desapparecia da vista, não principiando a alargar-se, senão passada a Azambujeira dos Carros. Laborde occupava a planicie desde a Roliça até poucos metros adeante da Columbeira. No dia 17 de agosto, ás nove horas da manhã, um tiroteio nos postos da direita deu o primeiro rebate da visinhança dos inglezes. Eram elles, de feito, marchando em numero de perto de onze mil, com a disciplina e serenidade que lhes grangeou os louros depois festejados em toda a guerra da Peninsula. As tropas de Laborde, na maior parte recrutas quasi imberbes, nunca tinham entrado em fogo. A vista marcial d'aquelle exercito, que avançava silencioso, detendo-se a espaços para reformar as filas rotas pelos obstaculos do terreno, e continuando depois, firme e ordenado, como se houvesse de figurar em uma parada, por força havia de commover e sobresaltar soldados bisonhos, que apenas contavam dois mil e quinhentos homens, comprehendidas as tres companhias destacadas sobre a direita. Laborde não esmoreceu. A planicie, attendida a desegualdade de forças, não podia defender-se. Cedendo á necessidade mandou então guarnecer as fortes posições situadas nas costas da Columbeira pelo regimento 70.^o, em quanto á testa do 2.^o ligeiro da artilheria, e da cavallaria, cobria a entrada do desfiladeiro, transportando assim o theatro da lucta com mais favoraveis condições. Executou-se a evolução com celeridade e na melhor ordem. As novas posições dos francezes, quasi inaccessiveis, offereciam aos inimigos cinco barrancos em rampas asperas, afogadas em murtas, sargaços e arbustos alpestres. Wellesley, da sua parte, tambem não hesitou, mandando atacal-a formando em cinco columnas. O combate feriu-se e durou quatro horas. O valor das duas nações, travadas afinal corpo a corpo no continente, ostentou n'elle todos os brios. Trepando as encostas debaixo de uma chuva de balas deixando em cada passo vestigios do sangue vertido, e semeando de cadaveres o terreno conquistado, os inglezes chegaram a coroar uma vez de seus estandartes a crista das alturas; mas a furia guerreira dos legionarios de Bonaparte, avivada pelo exemplo dos chefes, depressa transformou para os soldados de Wellington o meio triumpho em desastroso revez. Precipitados nas pontas das bayonetas pelo impeto irresistivel dos contrarios, atropellados uns sobre os outros na descida, ou antes na queda, os alliados despenharam-se, como torrente que maior torrente impelle, até á planicie, espiando os jubilos momentaneos e o ardor temerario. Assim mesmo o leopardo britannico, recuando, levou nas garras provas palpaveis das perdas irreparaveis dos adversarios. Mais de quinhentos francezes, prostrados no campo, mortos ou feridos, attestavam qual fôra de parte a parte a braveza do encontro. Ao mesmo tempo a vista penetrante de Laborde, seguindo a marcha das duas columnas, que sir Arthur tinha enviado desde o começo da acção para lhe tornear as posições divisou a do major-general Fergusson já proxima da Azambujeira. Fôra loucura insistir mais. A retirada principiou. Á testa dos melhores soldados, Laborde repellia os inglezes, detendo-os por meio de descargas á queima roupa, soltando sobre elles o galope fogoso dos caçadores a cavallo, ou arrancando nos gumes dos ferros de seus recrutas, tornados veteranos, os atiradores britannicos, a cada instante dispersos, e quasi acossados até debaixo do fogo das grandes massas, que os protegiam. O terrivel estampido e os pelouros dos dezoito canhões de Wellesley não calaram senão tarde o fogo das cinco peças do general francez. Nem um instante o passo firme e seguro de seus batalhões se accelerou deante do perigo a cada instante mais terrivel. Fazendo alto para reunir as tres companhias destacadas sobre a direita só entrou em Runa depois de as unir a si, conservando até ao fim a mais inabalavel firmeza. Foi um nobre e formoso espectaculo este prologo curto, mas heroico, da guerreira epopeia, cujas paginas a gloria havia de inscrever nos muros voados e nos campos assolados de Portugal e da Hespanha. Armand d'Aubry, sempre ao lado de Laborde, de Brenier, ou de Arnaux, assimilhava-se áquelles semi-deuses de Homero, que petrificavam legiões inteiras pelo terror do seu braço. Voando na frente dos mais ousados por entre os clarões das bôccas de bronze a vomitarem ondas de metralha, envolto em fumo, e cuspindo de si invulneravel os pelouros dos fuzis, como o leão africano cospe as frechas encrespando a juba, o mancebo, multiplicando-se, apparecia em toda a parte, e em toda a parte a sua presença, similhante ao furacão das batalhas, rasgava largas brechas nas fileiras contrarias. Mil vezes a morte, desafiada em poucas horas, não se atreveu a tocal-o; e contemplando o sorriso, que lhe brincava nos labios, quando a um grito d'elle o esquadrão levantava comsigo tempestades de ferro e de fogo, dir-se-hia, que, para este homem, verdadeiro centauro, as rapidas e pungentes commoções, e a brava alegria das pelejas eram um prazer, uma sensação deliciosa, um enlevo! Manuel Coutinho, que as ordens de Wellesley prendiam junto do estado-maior, admirando de longe a valentia radiosa do moço official, invejou-lhe em mais de um rasgo a galhardia, tremendo ter de lhe chorar a queda. Quando a noite, descendo, envolveu em seus veus a agitada scena, em que gemiam tantas dores, e em que tantas victimas agonizavam, o amante de Leonor ainda por entre as sombras avistou na ultima carga o sobrinho de Lagarde, rodeado do relampaguear de cem fuzis, arremessando contra elles o peito do cavallo. Como se a fadiga de um dia inteiro fosse repouso para elle, invencivel nos arções, d'Aubry assignalava o cruento caminho da retirada com o afuzilar tremulo da espada por entre clamores dos que o fogoso corsel calcava aos pés! As aguias feridas principiaram alli a encolher as azas e os vôos. O sol ardente da Peninsula, cegando-as, precipitou-as palpitantes dos ninhos sobre as rochas vivas da terra, que suppunham escravizar para sempre! Em quanto a guerra erguia na Roliça o primeiro padrão de uma lucta, que havia de ensanguentar por annos as Hespanhas, Junot procurava realçar com as pompas officiaes os derradeiros dias do seu dominio. O anniversario de Napoleão foi solemnizado pomposamente, e os cortezãos da fortuna, um pouco desmaiados com as noticias do desembarque dos inglezes e da sublevação das provincias, ainda ouviram da bôcca do general em chefe promessas e illusões de conforto, que, se não os tranquillizaram, lhes minoraram ao menos as apprehensões. Herman engulia o sorriso, parecendo despedir-se com os olhos da bella capital, pela qual já ia quasi esquecendo a patria. Luyt, preoccupado, expedia ordens, meneando a cabeça com tristeza. Finalmente, Lagarde, sombrio e taciturno, recolhia-se como Pythagoras atraz da cortina mysteriosa do seu antro, e, prevendo a catastrophe, arrependia-se de não deixar aos portuguezes ainda mais pesadas memorias da sua administração. Assim mesmo o paço de Queluz lembra-se bastante d'elle! O duque de Abrantes partiu para o exercito, depois de concertar com o general Thiébault, seu chefe de estado maior, as ultimas disposições da breve campanha, que iam encetar. O rosto de Junot disfarçava mal o receio de que a sua ausencia apressasse a explosão dos sentimentos mal comprimidos da capital. Desguarnecida a cidade, podiam as naus britannicas forçar a barra, e os habitantes vingar em uma hora a aversão e offensas de muitos mezes. Aos cuidados do governo juntavam-se no animo do general em chefe outras magoas, talvez mais pungentes. Os formosos olhos, que lhe sorriam no meio do esplendor, ser-lhe-iam fieis na adversidade, ou bastaria um revez para lhe roubar com os prestigios do poder corações, que tinham jurado amal-o sempre até á morte?!... Mas a voz do dever chamava-o; foi obrigado a obedecer. A 15 de agosto, á noite, marchou á testa do regimento de granadeiros, de um batalhão do 82.^o, do 3.^o provisorio de dragões, e de uma bateria de dez peças. Parou em Villa Franca, e a 17 seguiu vagaroso na direcção do Cercal, quatro leguas distante da Roliça, aonde o despertou o echo amortecido do canhão disparado no primeiro campo da batalha d'esta guerra. Deixemol-o rodear-se de exploradores, e estimular com suas ordens cheias de instancias a marcha de Loison e de Thiébault, para não arriscar a lucta senão com todas as forças reunidas contra sir Arthur Wellesley. Transportemo-nos no emtanto e sem demora do Cercal e Torres Vedras ao palacio do Rocio, e entremos na sala do conselho, aonde deliberam os membros do governo. O que então se passava alli não era menos curioso e importante, do que o que occorria debaixo da barraca do quartel general nas vesperas da acção decisiva, que se planeava. Em ambos os theatros o dedo da Providencia escrevia em lettras de fogo a sublime palavra de Deus, suprema consolação dos que padecem, terror infinito dos oppressores! VIII Ralham as comadres descobrem-se as verdades Voltemos á mesma sala, onde assistimos ha dias nos paços da Inquisição ao conselho de governo, presidido pelo duque de Abrantes. As figuras, que vamos encontrar, são ainda as mesmas. Só falta o general em chefe já a caminho para se collocar á testa do exercito. Á direita da sua cadeira vazia, senta-se o conde da Ega, nomeado conselheiro do governo, e encarregado da pasta da justiça por decreto de 1 de julho, em virtude da demissão do Principal Castro. Á esquerda, mas de pé, e com indicios evidentes de summa agitação, está Lagarde, não só pallido, mas verde de bilis concentrada, todo convulso, e amarrotando com grande ira um papel entre as mãos. Francisco Antonio Herman, sempre apurado no trajo e primoroso nas joias e galas pessoaes, corre pela vista, quasi sem a ler, uma folha coberta de algarismos, resumo pouco agradavel do ultimo balanço do erario. Luyt, com a barba quasi em cima da mesa, e os oculos assestados, faz voar a penna em linhas miudas, enchendo varios diplomas e interrompendo-se com frequencia para menear a cabeça em ar de hesitação, ou para espreitar por baixo dos oculos a posição e os modos das pessoas, que o rodeiam. Dois personagens mais completam o quadro. O primeiro é o capitão Magendie, de grande uniforme, passeando silencioso, e medindo o aposento em largas passadas de um a outro extremo. O segundo, que apresentâmos ao leitor pela primeira vez, chama-se mr. Juffré, merece a reputação de estelionario, que o flagella, passa com razão pela harpia mais ávida de todo o bando de abutres, que espicaçam o corpo quasi moribundo de Portugal, e honra-se e faz vida essencialmente de ser cunhado de um general. No momento, em que entrámos, a discussão, acalorada, tinha-se interrompido de salto com a chegada de Lagarde, o qual rebentára do antro da policia grávido de cuidados, de apprehensões, e de pessimas noticias. Apenas acabou de balbuciar o prologo da elegia dos infortunios consummados e das desgraças imminentes, alguns dos ministros, como petrificados, sumiram-se nas cadeiras, pozeram a vista no chão, ou cairam n'aquellas sombrias meditações ácerca da fatalidade, de que o vulto dramatico de Hamlet é a personificação sublime. O menos sensivel na apparencia aos revezes e receios era Herman. O sorriso, é verdade, tornou-se-lhe contrafeito, as faces desmaiaram um pouco, e o brilho das pupillas esmoreceu visivelmente; porém nenhum outro symptoma accusou n'elle enleio, ou perplexidade. Magendie, official intrepido, mas pouco affeito a dissimulações diplomaticas, tinha exhalado a primeira explosão de colera, descarregando uma punhada furiosa sobre o bofete, e ornando o gesto violento de uma rajada de pragas maritimas de sabor alcatroado excessivamente forte para o paladar e delicadeza nervosa do auditorio. Partiu depois direito á parede de fundo da casa, encetando o passeio peripatetico, annotado de murmurios surdos, em que viemos colhel-o. O ministro da guerra e da marinha, o incomparavel Luyt, vivia em um resfriamento perenne, e era quasi impossivel concluir cousa alguma da expressão apathica e insignificante, por calculo, do seu rosto immovel e descorado. Escrevia, olhava, tornava a escrever, sacudia o arieiro, e sobretudo não perdia palavra, nem movimento dos collegas. Dir-se-hia um automato funccionando em quanto lhe durava a corda. Quem não queria, nem sabia enganar o observador menos perspicaz era de certo o conde da Ega. O honrado fidalgo retratava no semblante, sem o menor disfarce, a tragedia do partido, que tinha abraçado. Ignorâmos se começára já para elle o arrependimento, e se lamentava a docilidade, que o fizera mais francez, do que alguns ministros de Napoleão; mas ousâmos asseverar que as faces jaspeadas de malhas lividas, o luto das feições contraídas, e o profundo desalento, que respirava a sua mudez glacial, exprimiam uma grande agonia moral, e equivaliam a um bilhete de pesames aos protectores, e a uma certidão de obito passada á causa imperial na Peninsula! Finalmente mr. Juffré, especie de peão fidalgo da côrte do duque de Abrantes, verdadeira, mas rachitica estatua de Nabuco invertida, com bases de prata, e cabeça de barro, ora sobre um pé, ora sobre o outro, recuava, pulava, e adeantava-se em saltinhos de pulga industriosa, com o chapeu na mão direita, a bengala na esquerda, e dois lenços ricamente bordados e almiscarados a rebentarem pelos bolsos da casaca côr de pinhão. Um risinho amarello, meio enfiado, tremia-lhe nos cantos dos labios, delgados e sumidos, revelando indiscretamente, que aquella bôcca voraz, era rasgada, como a do tubarão de orelha a orelha. O nariz expansivo e recurvo, como bico de ave da rapina, quasi que arremettia com os beiços, invadindo-os; e os dentes finos, juntos, e agudos, assimilhavam-se a duas serras parallelas. Anão de estatura, enfeitado como uma imagem, recendente a aromas como um pivete, dir-se-hia a alma do Judeu de Veneza no estojo dourado de um pintalegrete de quarenta annos! As luvas estalavam-lhe nas mãos, os calções modelavam o algodão que chumaçava as coxas, e a meia de seda exgotava os poderes da elasticidade para não trahir, abrindo-se, o segredo da perna artificial d'este Nemorino em edição correcta. A testa immensa e esguia, como que escorregava para a nuca, acabando aonde principiava o chinó, que, forcejando por ser louro, sahira, comtudo, quasi alaranjado, arqueando as sanefas graciosas do mais vistoso topete. Os olhos azues, da tinta das más porcelanas japonezas, volviam-se cheios de vivacidade, armando ciladas quasi constantes á formosura, ou á riqueza, duas conquistas em que seu dono os empregava com summo gosto. N'este momento, um véu de inquieta tristeza assombrava a sympathica physionomia de mr. Juffré. A vista penetrante e obliqua do homunculo estava de sentinella á leitura, de que o ministro Herman se distraía a miudo, e inculcava ao mesmo tempo a desconfiança, e a cubiça luctando com o medo e a avareza. --Emfim! exclamou por fim Herman, sorvendo com pausa uma pitada. Até que temos os inglezes á porta!... --Diga dentro de casa, e quasi senhores d'ella, que diz a verdade! redarguiu Lagarde meio suffocado. Ouçam o resto. Ainda não li tudo. Vejam como Wellesley e Cotton rematam a proclamação: «O nobre esforço contra a tyrannia e usurpação da França será sustentado pelas forças unidas de Portugal, Hespanha e Inglaterra; e para o exito feliz de causa tão justa e gloriosa os designios de sua magestade britannica são eguaes aos que nos animam»... Ah! proseguiu animando-se, os traidores sabem que nos achâmos sobre um barril de polvora, e lançam fogo ao rastilho, calculando pelo relogio a hora de nos fazerem voar!... --Mas a policia apanhou de certo os agentes, e arrancou as proclamações? accudiu Luyt sem levantar a cabeça, nem a penna do papel, e com a accentuação fria e nasal, que lhe era propria. --A policia, senhor Luyt, atalhou o intendente colerico, fulminando o ministro com a vista accesa em chammas, a policia não possue o dom de ubiquidade, nem os cem braços de Briareu... Esta madrugada todas as esquinas amanheceram forradas de pasquins e de impressos incendiarios. Arrancaram-se muitos. Pois bem! Á tarde já lá estavam outros!... --Se não serve ao menos para isso, de que vale então a policia? repetiu o fleugmatico ministro da marinha, continuando a escrever. --De que serve?!... Serviu, bradou Lagarde enfurecido, para não cairmos umas poucas de vezes nos laços dos conspiradores! Inaudita pergunta! De que serve a policia! De accordar os que dormem, de velar pela ordem, de conter e reprimir os maus sentimentos de uma população que nos detesta. Achais pequeno milagre conservarmos ainda Lisboa, quando o reino todo se levanta e os inglezes marcham contra nós?!... De que serve a policia?! É boa! Serve para isto!... Ao mesmo passo mr. Juffré, vendo Herman pousa a folha coberta de algarismos, interpellava-o em tom meio submisso, meio agastado. --Então?! O que diz?... --É exacto. Estão escripturados e dados em entrada por emprestimo, a trinta dias, vencendo juro de 15 por cento os seus cento e trinta contos... --Bem! Agora a ordem para os receber do erario?... --É inutil. --Inutil! Porque?! interrogou o argentario sobresalto. --Porque no erario não ha real. Todo o dinheiro, que existia, levou-o o duque na caixa militar... --Ah! Malditos inglezes! Mas! E o penhor? A prata da egreja de S. Roque, que está na Moeda, e que s. ex.^a o general meu cunhado me affiançou?... --Por ordem do duque restituiu-se outra vez á egreja. Póde ir lá buscal-a... se lh'a derem. --Mas n'esse caso estou roubado, despido, e nú! Caí nas garras de uma quadrilha de salteadores! berrou o uzurario, ao qual as palavras mansas do ministro quasi arrancavam a alam aos pedaços com tenazes em braza. --Modere-se sr. Juffré. Veja aonde está e a quem fala... --Falo ao salteador que me espoliou! O sr. Herman rouba-me e escarnece-me. --Engana-se. Está fazendo a satyra do duque de Abrantes. São d'elle as ordens de que se queixa. Eu obedeci. --Pois então clamo e juro, que s. ex.^a o duque é tão bom, ou peior do que o sr. Herman. --Olhe, atalhou o ministro, muito sereno, monte a cavallo e vá dizer-lh'o a elle. Fica além d'isso mais perto dos seus cento e trinta contos de réis. O que não lhe prometto, se o duque lhe ouvir metade das palavras, com que me está regalando a mim, é que não lhe pague capital e juros com um chicote na cara ás vergalhadas... --Que insolencia! Ousa dizer-me?! exclamou Juffré fulo e convulso. --Um conselho! Não torne a falar aqui em ladrões. Não acorde o cão que dorme. Observou Herman, olhando de revez para Lagarde, e apunhalando o uzurario com o sorriso. --Porque? É capaz de insinuar? atalhou o outro já em voz baixa. Sou capaz de me lembrar, sim senhor, e muita gente commigo. Fazem-lhe hoje trezentos contos, e quando veiu para aqui não trazia treze francos. Quem o ignora? Cuida que todos são esquecidos? O sr. Juffré e outros similhantes foram a vergonha e o opprobrio do nosso governo. Deus queira que não sejam tambem os instrumentos da sua ruina. Adeus! O conselho tem cousas sérias de que tractar, e a mesa dos publicanos é lá fóra. Vá! --Miseravel! Salteador! gritou o homunculo roxo de ira, cerrando os punhos, e crescendo contra o ministro, cuja frieza motejadora o exasperava. Mas a raiva converteu-se-lhe logo em susto, quando sentiu a larga e pesada mão de Magendie a ferral-o pela gola e pelo fundo dos calções, leval-o pelos ares até á porta, abril-a com o pé, e despedil-o como um fardo, accrescentando no fim de todo este drama em acção: --Desprezivel sanguesuga! Se aqui voltas protesto cortar-te e salgar-te as orelhas, a unica cousa que não é postiça em ti! O argentario calado e tremulo ergueu-se moido, reparou á pressa os ultrajes das roupas amarrotadas, e desceu as escadas rabiando como buscapé acceso em arraial. Depois d'esta proeza, pouco heroica pela qualidade da victima, o capitão Magendie approximouse da meza, e fitando Lagarde, disse-lhe com a concisão militar, que lhe era usual: --Quem espalhou as proclamações?... --Não se sabe. Ha indicios... replicou Lagarde assumindo o seu ar mysterioso. --Quem as trouxe de bordo da nau ingleza? insistiu o official, continuando o interrogatorio. --Ignora-se ainda, mas suppõe-se! respondeu o intendente um pouco turvado. --Quaes são os agentes dos sublevados do norte em Lisboa?... --Tracta-se de os descobrir, porèm!... --Não sabeis nada então? --È verdade. Nada certo. --Muito bem! Se não sabeis nada certo, se para vós tudo são trevas e ignorancia, tinha razão mr. Luyt. De que serve a policia? De engulir dinheiro e denuncias, e de fazer render os serviços que não faz. Não nos quebreis, pois, mais os ouvidos com os vossos malsins surdos, cegos, immundos, e famintos, e fazei-nos o obsequio de nos deixar discutir em paz. --Oh! exclamou Lagarde livido e convulso de ira. Tractas-me como se fosse um verme. Sois acaso Napoleão o grande!? Cuidais que hei de supportal-o? Sou magistrado independente, e não recebo ordens, nem censuras senão dos superiores... --De mais tendes recebido dos inferiores, mas peitas e dinheiro. Até nas enxovias e prostibulos se diz que bateis moeda! Olhai bem para mim! Toda a minha riqueza consiste n'estas dragonas, em cem francos que trago no bolso, e nos copos de prata da minha espada. Não levarei de Portugal senão mais alguma cicatriz, e um nome honrado. Se vos atreveis a asseverar o mesmo, aqui está a minha mão, apertai-a, estou prompto a pedir-vos mil desculpas. Se não ousais!... Sumi nas trevas com os vossos morcegos toda a historia da policia de Lisboa, e não faleis de collo alto aos que vos conhecem e se envergonham de vos têr por compatriota. Lagarde espumava. Immovel de colera e espanto cada phrase do capitão feria-o no rosto e na consciencia como um açoute. A sua posição era tão falsa e dolorosa, que Herman compadecido quiz pôr-lhe termo. --Vamos, senhores, exclamou, deliberemos e não questionemos. Hoje os minutos valem horas. Lagarde! Receiais algum tumulto na capital? --Não. Apezar de contar com pouca força respondo sobre minha cabeça pela tranquillidade de Lisboa, se os inglezes não entrarem. --E eu respondo sobre a fé e honra de meus canhões, que os inglezes não passam as torres! acudiu Magendie. As minhas proclamações de polvora e bala agradam-lhes menos ainda, do que as suas de papel nos lisongeam a nós. --Excellente! tornou o ministro do reino. Então por esse lado podemos estar descançados. Mas os inimigos, é provavel, que não queiram perder de todo o lanço, e hão de trabalhar. Dão-me cuidado os inglezes tão proximos, e os odios vivos de toda esta gente. O general partiu com o melhor das tropas. Novion avisa-me de que a guarda da policia já desertou quasi toda. Só hontem fugiram sessenta soldados. Se acaso se levanta um tumulto repentino, e é facil, com que havemos de contar?!... Lagarde encolheu os hombros e calou-se. O conde da Ega estremeceu e fez-se mais pallido. Luyt, com a penna suspensa, e os olhos parados atraz dos vidros dos oculos, respondeu a meia voz: --Com umas segundas vesperas sicilianas!... --Em que todos seremos assassinados?! interrogou Herman affectando serenidade, porém um pouco tremulo. Meus senhores, parece-me que o caso merece ser examinado. Estou prompto a verter o sangue no campo, pelejando como soldado, mas a idéa de uma affrontosa morte, dos ultrages e supplicios, de que nos ameaça a vingança de uma plebe de canibaes, aterra-me, não o encubro. Confesso mais. Falta-me o valor para a encarar com intrepidez! Lagarde, vamos! Reanimai-vos. Os homens são para as occasiões. Que imaginastes para conter e enfrear o populacho, que murmura, e que o canhão de Wellesley, ou de Cotton póde dispertar e enfurecer?... --O terror! O reinado do terror! Só o medo póde salvar-nos! redarguiu o intendente sombrio e fitando os collegas. --O terror?! Renovar as scenas de 1793 em Lisboa? Levantar o patibulo em permanencia?!... --Sim! O estado de sitio em todo o seu rigor! Não foi já decretado? O verdugo e o cadafalso são a razão extrema da autoridade contra o povo. --Mas as horrorosas execuções de partidos inteiros, de classes adversas quasi em massa, que nos propondes o que salvaram em Paris? Já vos esqueceu o famoso dia de thermidor?... --Não! Salvaram a França das armas dos alliados, cobriram as fronteiras de recrutas, que luctaram como veteranos, assegurando o triumpho e unidade da republica. Achais pouco? Reparais nas manchas de sangue?!... --Dizei nas torrentes, é mais exacto... --Sim! Mas esse sangue, embora jorrasse innocente muito, confirmou a liberdade, e tornou a França grande, invencivel e temida. Robespierre, Saint Just, e Carrier, os chefes e os proconsules succumbiram afinal, e foram arrastados no rolo furioso da tempestade, desenfreada por elles? A expiação do systema foi o mesmo patibulo aonde o tinham architectado? Que importam tres, ou quatro cabeças mais no cesto da guilhotina, quando tantos resultados abonam a logica inexoravel, que o dictou? Estamos quasi sós no meio de uma nação insurgida e irritada, que a saudade da independencia e de seus principes subleva, que a dor e a ira das offensas exaspera!... Os inglezes bloqueiam-nos por mar, e accommettem-nos por terra! A nossa sorte é vencermos, acabar aqui, ou passarmos por cima de montões de ruinas e de cadaveres. Não temos quartel a dar, nem a receber! Na falta de forças seja o terror a nossa espada! Na falta de todo o apoio seja o cadafalso a nossa força!... --Para que o sangue das victimas nos afogue? Para que o luto de um povo assassinado macule de eterno opprobrio o lustre de nossas armas?!... exclamou Hermam erguendo-se com impeto, severo, e indignado. Não! mil vezes não! Esse crime inutil, porque apressaria só a nossa queda, fôra a sentença de morte da honra franceza. A civilização, que representâmos, esconderia o rosto de vergonha. O imperio teria de córar deante d'esse anachronismo sanguinario. O anno de 1808 não é o anno de 1793. Podem tental-o; mas eu não lançarei essa grande nodoa sobre mim e sobre a patria. Os vencedores de Austerlitz por meu voto nunca hão de vestir a opa vermelha do carrasco... --Veremos como os guerrilhas e os sicarios do principe regente vos agradecem! Quando virdes o punhal sobre o coração, ou o trabuco apontado ao peito... --Poderá tremer no homem o que é fragil, por ser barro e limos, redarguiu o ministro com um gesto de suprema elevação moral, mas a consciencia, ao menos, não ha de accusar-me n'essa hora suprema! Alguns mezes menos de vida não valem o sangue de milhares de innocentes, a infamia do meu nome, o opprobrio da minha memoria. --N'esse caso, accudiu Lagarde, lavo as mãos de tudo, e não respondo... --Respondo eu! interrompeu Magendie, que escutava o dialogo havia minutos, e que de pé e silencioso, mas cheio de impaciencia, a custo reprimia a colera. Respondo eu! As taboas de proscripção não hão de aviltar-nos. Somos soldados e temos armas. Se Lisboa se insurgir, os canhões dos meus navios e os machados dos meus marinheiros chegam ainda para varrer, como pó levantado, as espumas da plebe enfurecida e indisciplinada, sr. Lagarde! O reinado do terror, o arremedo das carnificinas de 1793, não se ha de fazer em Lisboa, em quanto uma bala me não varar o coração. Nunca o sangue dos patibulos, que eu saiba, que eu consinta, salpicará as aguias, que beijámos como symbolo da honra... Sei porque lhe occorreu exhumar do arsenal infamado dos dias mais funestos da revolução o cadafalso de Robespierre! Tem mais sede de ouro, do que de sangue, a sua idéa é mais de vingança, de cubiça, do que de medo! Se fossemos agora ao castello de Lisboa, talvez achassemos a explicação do plano, que nos propõe!... --Sr. Magendie! É a terceira vez que hoje me affronta n'esta casa! bradou o intendente enraivecido, mas pallido de susto deante dos relampagos, que despediam os olhos do capitão. --Acha? Uma já devia ser de mais! Quer a reparação? Está a minha espada ás suas ordens... --A sua espada?! Desafia-me?! A occasião podia ser mais opportuna. --Creia que nunca lhe fiz a injuria de suppor, que podia encontrar um homem no sr. Lagarde. Estava zombando quando falei na minha espada; é arma que não conhece. Se fosse uma mordaça, e fossem algemas?!... --Senhores! Senhores! Por quem são! accudiu o conde da Ega interpondo-se. --A minha paciencia, atalhou o intendente, limpando dos labios a escuma, e empregando vãos esforços para vencer a convulsão nervosa, a minha longanimidade não se altera com estas provocações grosseiras proprias de uma educação de tarimba... --Agradecido pela clemencia, meu fidalgo! redarguiu Magendie, inclinando-se ironicamente. Mas o plebeu, que se levantou da tarimba, e poz estas dragonas présa os brios como um ducado. Quereis saber porque este homem de bem queria fazer de todos nós assassinos, e dos soldados da França verdugos? Eu vol-o digo em duas palavras! Machinou casar a filha de um cavalheiro rico de Mafra com Armand d'Aubry seu sobrinho. A donzella resistiu, e o sr. Lagarde vingou-se accusando falsamente o pae, sepultando-o em um carcere, e dando a escolher á filha a morte d'elle, ou um resgate infame a troco da sua mão e dos seus bens! Encontrou duas almas nobres; Aubry rejeitou o pacto; a filha não se quiz vender para salvar a velhice de um militar, deshonrando-lhe os cabellos brancos... O sr. Lagarde não se deu por vencido, e trabalhou para si. A esta hora achar-se-ha um agente seu na prisão do cavalheiro, que se chama Paulo de Azevedo, e ha de já ter-lhe intimado a decisão final de pagar trinta contos de réis até ámanhã, ou de ouvir a sentença de um conselho de guerra, e de aparar no peito as balas de um pelotão na praça do castello! Eis o verdadeiro motivo do santo zelo que o inflamma. O reinado do terror sería para elle uma chuva de ouro, ou de sangue, segundo a docilidade das victimas!... --Calumnia! Infame calumnia! exclamou Lagarde branco e tremulo de colera. --A accusação é grave, sr. Magendie! observou Herman, que se poz em pé assim como os collegas, e que leu no rosto demudado do intendente, apezar de todo o cynismo d'elle, vehementes indicios da culpa. Veja o que acaba de asseverar! Allude a um magistrado, a um homem que mereceu a confiança do imperador. Provará o que affirmou? --Se houver alguem que ouse repetil-o deante de mim, interrompeu Lagarde suffocado, consinto que me condemnem! --Acceito! disse Magendie. Ouvirá a confirmação da verdade, e de uma bôcca insuspeita. Aubry!... A porta abriu-se, e Armand appareceu aos umbraes, pallido e resoluto. --Meu tio, disse depois de saudar o conselho com uma cortezia, jurei-lhe que seria punido se não remediasse o mal, e aqui estou para cumprir a promessa. Na presença de Deus e dos homens, por alma de meus paes, assevero e juro que o capitão Magendie disse a verdade e só a verdade! Agora, que deante de vós, e de todos os que me escutam prestei testemunho á consciencia, curvae a cabeça, e arrependei-vos, porque, por vossa propria bôcca estais condemnado! O tom, em que Aubry falou, inculcava maior tristeza, do que ira. Lagarde petrificado deixou pender a fronte e murmurou: --Tambem tu, Armand!... --Fiz o meu dever. Sois irmão de minha mãe, mas da herança de meu pae, o que acima de tudo préso é a honra do nome, e essa, já vol-o tinha dito, hei de sepultal-a commigo pura no campo da batalha, aonde posso caír e morrer hoje, ou ámanhã! Meus senhores, adeus. Pedí a Deus que exalte as nossas armas! Ditas estas palavras saíu sereno e grave, deixando todos pasmados e silenciosos. IX O pae e a filha --Trinta contos! É um sacrificio grande, bem sei, mas a vida e a liberdade valem mais. As provas estão em nossas mãos. Se as abrirmos, o conselho de guerra ámanhã... --Condemna-me á morte?!... --Sem duvida nenhuma. O capitão de mar e guerra Magendie, nomeado para o presidir, passa por severo e intractavel. Os outros officiaes, sobre tudo mr. Etienne, estão resentidos, e entendem que um exemplo é indispensavel... --Bem! E o capitão Magendie e os outros officiaes sabem o que me propõe? --Deus nos accuda! Pois isto são segredos de chocalheiros?! O que lhe estou dizendo ficará entre tres pessoas. O senhor Lagarde, o senhor Paulo de Azevedo, e eu. Vamos! Decida-se. O tempo vôa. O conselho reune-se ámanhã ás nove horas do dia, e esta noite hão de ser-lhe presentes, ou negados os documentos. --Uma palavra ainda! Leonor sabe?... --Para que a haviamos de affligir? A sr.^a D. Leonor, como boa filha, ha de achar tudo justo e rasoavel; mas se for preciso... --Pois senhor... Quer dizer-me o seu nome? --Simão... Simão basta. --Pois, sr. Simão, a minha resposta é simples. Não acceito. Estamos em Portugal, e não nas roças do Brazil. Sou innocente, nunca tive medo da morte, e não compro por nenhum preço esses curtos e attribulados dias, que ainda posso viver. Diga isto a quem o mandou. --Veja! Medite! Olhe que depois não tem remedio. --Vejo a infamia, e não me admira. Tractam-nos como captivos, e pedem-nos o resgate? O meu, ao menos, não hão de leval-o d'aqui. Antes as balas dos inimigos da minha patria no peito, do que atirar um real ás mãos immundas dos falsos magistrados, que vendem o sangue. --Ha de arrepender-se. --É commigo. Não se incommode a convencer-me. --Mas a sr.^a D. Leonor?!... --É filha de soldado. Poupe-lhe a sua piedade. Não gaste mais em vão um tempo precioso; talvez ache em outra parte alguem mais docil. Lance a derrama, colha na rêde o que apanhar, mas, por Deus! livre-me da sua presença e das suas propostas. Está-me fugindo a paciencia por instantes!... --A sr.^a D. Leonor vem ahi... --Minha filha?!... --Sim. Vem vêl-o, e despedir-se talvez. Sabe o que o ameaça. Foi avisada. Dou-lhe uma hora para a abraçar e falarem. Póde revelar-lhe a minha proposta. Aqui volto logo... --É escusado. Tenho uma palavra só. --Não importa. Deixe! A firmeza inspira-me interesse. Gosto dos homens da sua rijeza. Seria pena se!... --Se eu me não quizesse comprar por trinta contos?... --É verdade. O que são trinta contos para um cavalheiro rico? --Nada! São sómente uma infamia e uma covardia. O senhor Simão acha natural, e não era de esperar outra coisa; eu unicamente sinto ter as mãos atadas, e não poder estampar a resposta nas faces do villão que me suppoz capaz de tal deshonra. Queira sair! --Não tenha esse genio! Não lhe levo a mal o desafogo. A gente quando se entala doe-lhe e grita, mas depois vem a reflexão... --Saia! Não vê que me faz horror e asco? --Jesus! Que palavras! Eu saio, eu saio! Não se escandeça. Socegue! O que lhe estou dizendo é para seu bem. Até logo! Abrace sua filha, lembre-se de que tudo tem remedio, menos a morte, e caia em si. Acha cara por trinta contos a protecção que lhe offerecemos?! É a vida, é a liberdade!... Estas palavras foram já ditas de fóra da porta chapeada da prisão. Um impeto de Paulo de Azevedo apressou a retirada do mellifluo procurador das veniagas da policia. O agente, cujos modos e indole de certo denunciou logo ao leitor o dialogo, que acabàmos de escutar, seria homem de cincoenta annos. Baixo, livido, e anafado, com uma cabelleira cravada até á testa, uma pala verde deante dos olhos, e um tom aflautado e mavioso, pertencia áquella especie de algozes, que abraçam a victima com o riso nos labios, e que a dilaceram, consolando-a com phrases dulcissimas. Mas a physionomia abjecta e repugnante não podia enganar ninguem. A providencia traduzira fielmente em suas feições ignobeis a perfidia e a traição. Aguazil promovido por mil torpezas á jerarchia de espião em chefe e de confidente de Lagarde, vociferava contra sua maldade até a plebe dos malsins, seus humildes subditos. As lagrimas e os tractos eram para elle um prazer suave; e armado de dentes até o umbigo, a sua avidez insaciavel, mas inventiva, achára artes de devorar até a pobreza e a miseria, tornando suas tributarias as enxovias, as galés, e a prostituição. Nunca Paulo d'Azevedo alcançára sobre si maior victoria, do que reprimindo os accessos de colera, em que por vezes o sangue lhe subiu ao rosto, e abstendo-se de corrigir, alli mesmo, e por sua mão, o emissario descarado da venalidade do intendente geral da policia. A lucta custou-lhe, porém, esforços, que depois lhe quebraram o animo. Leonor, entrando, assustou-se de o ver sentado, ou antes prostrado, com o rosto entre as mãos, e a alma e o coração tão trespassados, que de desfallecimento quasi havia perdido todo o accordo. Para o despertar do lethargo doloroso foi necessario, que a mão delicada e a voz affectuosa da filha despertassem a ternura em seu peito quasi insensivel á força de oppressão. --Meu pae! Meu querido pae! exclamou a donzella, cingindo-lhe os braços ao collo, e beijando-o extremosa e arrebatada. --És tu Leonor! Minha Leonor! Ai filha! Que saudades e que tristezas desde que nos separámos! --Então! São trabalhos com que Deus quer provar a nossa resignação. Louvemos a sua bondade e confiemos na sua justiça. --Nunca duvidei d'ellas. Submisso e conforme com a vontade do Altissimo espero que Elle disponha de mim. Já sabia que vinhas, que te davam licença... --Disse-lh'o aquelle homem de preto, que saiu, quando entrei?... --Disse. E nunca os ferros me pesaram tanto como ha pouco. Não imaginas o que elle me propoz?!... --Da parte de Lagarde? Adivinho! Um casamento para mim?!... --Um casamento para ti?! bradou Paulo erguendo-se convulso. Pois o infame atreveu-se a pedir a tua mão?... --Tranquillize-se, meu pae, não era para elle. N'esse ponto ao menos fez-me justiça, accudiu a donzella sorrindo. --Então para quem? --Para um sobrinho seu, Armand d'Aubry, militar, moço, e digno de estima pelas qualidades. --E tu? interrogou o pae, fitando-a. --Respondi que não! redarguiu Leonor serenamente. Como a minha mão era o pretexto de um resgate, e o que Lagarde cubiçava eram os meus bens, offereci-lhe os que herdei de minha mãe em troca da vossa liberdade. --Fizeste mal! disse o cavalheiro severo, mas commovido. E o sobrinho, esse Aubry, tão vil como o tio, extendeu logo a mão, e acceitou o preço? Vens pedir o meu consentimento?! --O sobrinho, meu pae, alma grande e nobre, tudo, rejeitou a minha mão e os meus bens, redarguiu a donzella. --Ah! Tanta generosidade em um francez!... Espanta-me! Acaba! --Tenho concluido. Aubry pediu-me perdão da vileza do tio, e jurou proteger-nos... --De graça? Duvido! Verás que não! insistiu Paulo, meneando a cabeça com ar incredulo. Representou um lance de theatro, talvez ensaiado em casa para figurar de homem de brios, e a esta hora estará rindo-se com Lagarde da tua simplicidade em o acreditar. --Não julgo, meu pae, que se ria de mim com Lagarde, porque rompeu com elle. --Apparencias! --Verdades! E a prova é que se Manuel Coutinho, o coronel de milicias de Leiria, e muitos outros não gemem hoje em uma prisão, á generosidade de Aubry o devem. --Ah! Conta-me essa historia. Quero sabel-a. Leonor expoz-lhe então os successos, que o leitor já conhece, e terminou manifestando a sua confiança nas promessas do official francez. --É um procedimento nobre! Quasi que tenho pena que a acção fosse de um francez. Não gosto de dever a inimigos. Não importa. De hoje em deante esse mancebo é sagrado para nós como um parente. Agora, Leonor, chega-te mais para mim. Quero ver-te mais de perto. Estás pallida, muito pallida, mas fica-te bem. Cada vez mais linda! E havia de um estrangeiro levar-me a joia da minha alma por uns mezes mais, ou menos de velhice cansada?! És o retrato de tua sancta mãe--não nos olhos!--os teus são mais pretos e formosos e os cabellos tambem! Senta-te aqui nos meus joelhos. Agora um beijo, muitos beijos!... Ha tanto tempo que te não via, filha! Não imaginas como a tua falta me fazia velho! Dize-me, ajuntou com um sorriso humido das lagrimas, que estavam a saltar, e os amores, como vão os nossos amores? Manuel Coutinho adora-te como tu mereces, não? É sempre escravo dos caprichos da sua noiva? Quero saber tudo!... --Meu pae! accudiu ella córando cheia de rubor, e escondendo a face no hombro do ancião. Por isso mesmo, porque sou teu pae, é que pergunto. Bem! Bem! Se Deus quizer hão de ser muito felizes ambos! Mas disseram-me que vinhas despedir-te... --Despedir-me?! exclamou a donzella sobresaltada. Despedir-me porque?! A condessa da Ega alcançou-me licença para entrar aqui, e vim logo. Sabe as noticias, as grandes noticias que ha, e que já são certezas? --Não sei nada, filha. Não falo senão com os guardas, que são francezes, e bem vês... --Que hão de encobrir tudo. Pois ouça. Tenho muito que lhe contar. Alegre-se, e diga se não tenho razão de lhe pedir alviçaras. A narração feita pela donzella com as mãos entre as do pae, com os lindos olhos accesos em enthusiasmo, e fitos nos d'elle, e com o rosto inflammado nas risonhas côres da esperança, a pouco e pouco foi communicando a Paulo de Azevedo o ardor e o jubilo, que exaltavam aquelle animo juvenil. Suspenso dos labios queridos da filha, quando ella lhe pintou a insurreição de Traz-os-Montes, o cavalheiro não poude conter-se, que não exclamasse: --Ah! Sepulveda! Que invejas hão de ter muitos mancebos aos teus oitenta annos!... Quando lhe descreveu o Algarve, Coimbra, Leiria, e o Alemtejo sublevados, e desafiando com as armas na mão a pericia dos francezes, o antigo official, levantando-se, e córando de prazer, bradou: --Portugal! Julgavam-te morto, e até queriam rasgar e repartir entre si a tua mortalha?! Bom é que lhes mostres que vives, como viveram nossos antepasados. Aljubarrota, Valverde, o Canal, e Montes Claros foram a licção dos invasores de hontem, assignala o teu valor em novos campos de batalha para terror e castigo dos invasores de hoje! Continúa, Leonor! A amante de Manuel Coutinho, proseguindo, contou-lhe a chegada e o desembarque de sir Arthur Wellesley, a marcha do exercito nacional ás ordens de Bernardim Freire, o combate da Roliça, e a saída de Junot ao encontro das tropas britannicas. --Louvado sejaes, Senhor, pela grandeza insondavel de vossa justiça! exclamou o ancião, inclinando reverente a fronte, e erguendo as mãos. Do grão de areia formaste a montanha, que se levanta contra os soberbos, dos fracos e desamparados compões a força, que ha de subjugal-os. Leonor! Junot será vencido! Diz-m'o o coração, diz-m'o a vontade do céu manifestada em tantos prodigios. Ditosos olhos os que virem romper a aurora do grande dia da nossa liberdade, que já sinto proximo! --Então, meu pae, não lhe dizia eu, que o nosso captiveiro estava a findar por pouco?! --O teu, filha, o da patria, e ainda bem! O meu!... --O vosso tambem. Porque não?! accudiu ella, abraçando-o. --Talvez acabe mais cedo mesmo! Quem sabe! Não importa. No fim de tudo?! murmurou comsigo. Possa o meu sangue, como expiação, lavar as ultimas nodoas da culpa, por que este reino foi castigado! --Senhor Paulo! Passou a hora! O que me diz? Está mais socegado. Volveu á serenidade que tão bem lhe fica? Era a voz aflautada do agente de Lagarde, cuja cabeça de reptil se arriscava, toda olhos e ouvidos, por entre a porta aberta sem ruido. O cavalheiro estremeceu e descórou. Cresceu-lhe a ira, e investindo contra elle obrigou-o a desapparecer. Um clarão sombrio, que faiscou ao mesmo tempo de suas pupillas, exprimiu toda a sua raiva. --Ah! bradou elle. Ainda este homem aqui!... --Quer que entre? perguntou o delator sempre escudado com a porta. --Entre! Leonor, és filha de militar. Tens animo e constancia, bem sei. Ouças o que ouvires, não te assustes, não digas uma palavra. Voltando-se para o confidente da policia, cujo sorriso oleoso parecia grávido de mysterios e de insinuações, accrescentou depois: --Veiu propor-me ainda agora, que eu comprasse a minha vida por trinta contos. Já lhe respondi, e repito deante de minha filha: se estivesse solto, seu amo pagaria a affronta, a que teve a covardia de se atrever contra um preso! Captivo, e em poder de inimigos, tenho só livre a alma para protestar, e para dizer que prefiro mil vezes a morte á infamia de pesar o meu sangue a ouro nas balanças iniquas de um salteador e de um espião. Póde sair! --Sr.^a D. Leonor, gritou Simão, não deixe seu pae assassinar-se por uma teima! E o agente, simulando compuncção hypocrita, quasi se lançára de joelhos aos pés da donzella, que se desviou enojada. O sr. Paulo não lhe disse nada, agora vejo! O conselho de guerra julga-o ámanhã ás dez horas; e a sua sentença... é de morte! Offereci-lhe salval-o por uma quantia. Quer á força sacrificar-se! Commetter um crime, um suicidio! Diga-lhe!... --Que o meu coração se despedaça de o perder, mas que a minha alma se arrebata de admiração com a sua nobre recusa? É isto o que quer que eu diga? Para quê?! Ha muito que meu pae e eu nos conhecemos!... --Oh! minha senhora! Cuidei que amava mais seu pae, do que trinta contos de réis! observou o espia ferindo todos os alvos. --Meu pae fez o seu dever. Rejeitou o pacto infame. Eu cumpro o meu, dizendo-lhe que nunca tive tanto orgulho em me chamar sua filha. --Mas! A sentença é infallivel e executa-se logo. Ámanhã á tarde terá de orar sobre um cadaver! Veja que está matando seu pae! --Silencio! clamou o cavalheiro indignado e terrivel de aspecto. Assassino és tu, mas da honra dos homens, e até da fraqueza de uma senhora. Vai-te! Perdes aqui o tempo, não achas compradores, e podes encontrar... Por Deus! Não me tentes mais! --Tenha dó de si! insistiu o agente, recuando deante do ancião, mas orando sempre em nome dos trinta contos. Não se fie em vans esperanças. Ninguem o salva senão nós, minha senhora! O capitão Magendie, conhecido pela severidade, é o presidente do conselho de guerra, e a vida de seu pae... O honrado Simão aqui estacou com o resto da phrase estrangulado na garganta. Uma larga mão, desabando-lhe sobre o hombro com o peso de um rochedo, acachapou-o debaixo do seu vigoroso impulso. Ao mesmo passo uma voz aspera e imperiosa dizia-lhe com ironica intenção: --Chamavas pelo capitão Magendie, creio eu. Aqui está o capitão Magendie! Repete deante d'elle o que dizias nas suas costas! Quero saber se ousavas fazer-me cumplice do infame pacto de sangue, que vieste propor! Fala! Paulo de Azevedo e sua filha contemplaram attonitos e cheios de assombro a subita intervenção d'aquelle homem, que um erro de officio do espia, deixando a porta da prisão aberta atraz de si, introduzira no momento mais interessante do drama, de que eram auctores e personagens. --Fala que mando eu! repetiu o capitão, saccudindo o delator livido, tremulo, e mudo de terror. O cavalheiro e Leonor começavam já a compadecer-se do infeliz Simão, muito parecido n'este instante a um chacal colhido nas garras do leão. --Fala, ou morres aqui mesmo! bradou pela terceira vez o capitão de mar e guerra. Quero ouvir e saber tudo! N'este momento as faces de Leonor afoguearam-se do mais vivo carmim. Uma figura nova acabava de entrar em scena. Era Armand d'Aubry. O mancebo approximou-se d'ella com um sorriso, cortejou Paulo de Azevedo, disse-lhe o seu nome, e beijando a mão á donzella com respeito, disse-lhe: --Não é verdade, minha senhora, que já me accusava de vanglorioso, ou de esquecido?... --Eu, senhor d'Aubry! Que direito tinha para isso? --A minha palavra dada. --Sei que é escravo d'ella; mas ás vezes ha razões... --Nenhuma póde desculpar um descuido, que eu confesso, e que podia ter sido fatal. Fiei-me na palavra... de um homem que a trahiu, e descancei de mais. Felizmente chego ainda a tempo! Um grito agudo de dor arrancado ao virtuoso Simão pelos dedos de ferro de Magendie interromperam n'este ponto a conversação. D'Aubry, adeantando-se, interpoz-se entre a victima e o militar irritado. --Magendie! disse meio serio, meio a sorrir-se, quereis esmagar esse verme debaixo dos tacões das botas?!... --Não! Fôra vergonha e opprobrio! Mas o miseravel invocava o meu nome, quando entrei! Quero saber o que ousou inventar! --Deixe-o! accudiu Leonor, dando alguns passos para o capitão. O que elle propunha não deshonra o sr. Magendie. --Espero que não se atrevesse a implicar-me nas torpezas, que vinha aqui negociar. Se o fez... juro pela minha espada que lhe arranco a lingua mentirosa... --Não! Não! atalhou a donzella. Falou só da severidade do sr. Magendie, e da sentença de morte que ha de proferir ámanhã contra meu pae. --Eu! Ah! Pois tiveste a insolencia de fazer de mim carrasco? Serás punido! E arremettendo contra o espia, inerte e transido, serviu-lhe as costellas de tres, ou quatro pranchadas, que retiniram, seguindo-se umas ás outras com a velocidade do raio. --Magendie! Basta! Deixa esse desgraçado! clamou Armand, sustendo-lhe o braço já alçado para repetir a correcção. --Sáe! ajuntou arrastando o delator quasi pela gola da casaca, e lançando-o fóra. Se te demoras... não levas um osso inteiro. Simão desappareceu, lastimado do corpo, e dorido da alma, pelo exito pessimo da sua missão. --Minha senhora, disse d'Aubry com nobreza. Os instantes são preciosos. O general Junot, que não é tão mau, como o odio dos portuguezes o crê, informado de tudo--porque não lhe occultei nada--assignou a ordem de soltura de seu pae sob palavra sómente, de que o sr. Paulo de Azevedo não ha de pegar em armas contra as tropas de sua magestade o imperador e rei n'esta ocasião. Fui talvez temerario, mas obriguei-me em nome do preso. Se me excedi, como só eu respondo... --Meu pae! Meu querido pae! Livre! Solto!... exclamou Leonor apertando o ancião nos braços. Obrigada sr. Armand! Obrigada! --Sr. d'Aubry! redarguiu o cavalheiro, vencendo a custo a commoção, e não soltando do coração a filha amorosamente cingida ao peito, a palavra, que deu, é como se fosse minha. Não abusarei da sua generosidade. Verei de longe os successos, mas não estranhe, não me leve a mal, que suspire pela victoria dos meus compatriotas... --É tão natural! O que hei de estranhar? Sr.^a D. Leonor! Se lhe disserem que Armand d'Aubry ficou no campo, lembre-se d'elle, lembre-se do homem, que, não podendo merecel-a, quiz ao menos eximir-se ao seu despreso. --Despreso!? Porque nos fez Deus nascer tão separados, sr. d'Aubry! --Paciencia, accudiu o mancebo com um sorriso contrafeito. Seja minha irmã! E se em suas orações não póde pedir a Deus que faça triumphar a minha causa, rogue-lhe ao menos que me dê a morte gloriosa do soldado. Adeus! Lembre-se alguma vez de mim sem odio. Magendie são horas! Se quereis ser dos primeiros na batalha... a cavallo, e a galope! X Antes de se levantar o panno Junot sobresaía no valor heroico. Era a imagem viva dos paladinos cantados pelo Ariosto. O peso das responsabilidades acurvava-lhe, porém, o animo, e as complicações do governo afrouxavam-lhe a vontade. Soldado sem emulo na intrepidez facilmente se offuscava no gabinete, ou no conselho, aonde a sua estrella esmorecia com frequencia. Grande, quando não era o primeiro, sentia vacillar nas mãos o leme do Estado no exercicio da suprema auctoridade. Accrescentemos, para sermos justos, que a culpa das infelicidades foi menos sua, do que filha das ordens que o subjugaram de longe, e das circumstancias que o opprimiram de perto. A invasão de Portugal e a usurpação da Hespanha, dois attentados agravados por meios ardilosos, assignalaram os primeiros passos de Napoleão I para o precipicio, d'onde se despenhou poucos annos depois. A casa de Bragança e a dynastia dos Bourbons, duas realezas desamparadas, dois cadaveres (na opinião do conquistador), uma fugida na America, outra expiando em Vincennes as scenas de Bayonna, apenas lhe mereceram que lançasse sobre ambas o seu manto de abelhas para as sepultar! Riscadas do livro de ouro dos soberanos pela espada, suppoz erradamente o moderno Cesar, que tambem acabariam de se extinguir no amor dos subditos, como tinham desapparecido a um aceno seu do theatro agitado da epocha. Cegueira! Captivos os principes ou ausentes, a saudade e os brios das nações armaram contra elle adversarios mais terriveis. Pela primeira vez se encontrou com os povos, e a sua fortuna começou a empallidecer desde então. Com estes novos adversarios a tactica e a disciplina quasi que eram vans; as victorias consumiam os vencedores; e cada gotta de sangue, que tingia a terra, levantava uma legião de inimigos. A alliança das revoluções populares com a causa dos monarchas proscriptos mudou todas as condições da lucta. As derrotas não provaram nada em favor dos invasores; pelo contrario os revezes anniquilavam exercitos completos. O exemplo de Bailén viera demonstral-o. O duque de Abrantes via tremer em Portugal pelos alicerces o edificio da dominação franceza, e apprehensões rasoaveis diziam-lhe que, desabando elle de repente, podia colhel-o debaixo das ruinas, e aos seus companheiros de armas. D'este receio se originaram os maiores erros, que lhe censuram n'esta campanha. Se não contrahiu a tempo as forças repartidas pelos presidios do reino, é porque temeu, aos primeiros rebates do canhão inglez, que Lisboa lhe escapasse, e que as praças, chaves, de provincias populosas, lhe cerrassem as portas, obrigando-o a escolher entre a morte do soldado e a capitulação affrontosa de Dupont. De dois males inevitaveis optou pelo menor. A furia guerreira de seus granadeiros podia talvez supprir a inferioridade do numero; mas, sublevada a capital, e perdidas as fortalezas, todas as esperanças de retirada se desvaneciam. Foi o que o decidiu. Sir John Moore abicára com o seu corpo de tropas ás praias da Figueira. Sir Harry Burrard, Clinton, e Murray com suas brigadas já avistavam as costas de Portugal. Demorar-se em repellir Wellesley equivalia a deixar engrossar pela juncção a vaga ameaçadora dos contrarios. Junot lembrou-se, de que não era costume seu recuar, e arremessando a luva aos inmigos com tantas probabilidades contra si, confiou talvez, em que um dos ultimos raios do sol de Austerlitz viria illuminar mais um dia de triumpho para as armas francezas. Calculadas pelos mappas, as tropas francesas no dia 15 de julho ascendiam a vinte e seis mil homens; porém, um mez depois, quando se contaram as praças presentes para as metter em linha, apenas appareceram dez mil soldados effectivos! As marchas forçadas de julho pela Extremadura e Alemtejo, as fadigas e ardores do clima tinham devorado quasi tres mil prostrados nos leitos dos hospitaes. Cinco mil e seiscentos occupavam Almeida, Elvas, Palmella, Peniche e Santarem. Dois mil e quatrocentos guardavam Lisboa; mil continham a bordo dos navios os prisioneiros hespanhoes: e os tres mil restantes vigiavam os fortes, as baterias, e as torres levantadas nas duas margens do Tejo. O duque, partindo para abrir a campanha, já tarde conheceu, que em vez de conservar sobre os inglezes a superioridade indispensavel para os ferir e arrancar no momento dado, sacrificára ao proposito secundario de assegurar a defeza do rio e das fortificações do reino a sorte das aguias imperiaes, avistando-se com Wellington na proporção de um contra dois, ou peior ainda, depois do desembarque das quatro mil e duzentas bayonetas dos brigadeiros Anstruther e Ackland, desembarque operado durante o dia e parte da noite de 20 de agosto. Apezar d'isso, resolveu Junot, não só pelejar, mas sahir ao encontro de sir Arthur, e combatel-o aonde o encontrasse. O astro do imperio resplandecia ainda sobre a Europa, e as victorias, companheiras fieis dos capitães de Buonaparte, apenas em Hespanha lhe negavam um, ou outro sorriso. Mas a fortuna principiava já a cansar-se, e o genio de Napoleão, unico digno de a dominar, faltava n'este instante critico aos batalhões desterrados no extremo occidente pela sua ambição. Foi em Torres Vedras, que o duque de Abrantes concentrou todo o exercito, e que, passando-lhe revista, encontrou só onze mil e quinhentos soldados, mesmo arrolando os não combatentes. Duas divisões de infanteria commandadas por Delaborde e Loison, uma reserva de granadeiros, e uma divisão de cavallaria ás ordens de Margaron, em força de mil e duzentos homens, caçadores a cavallo, e dragões, em quatro regimentos de dois esquadrões cada um, com vinte e seis bôccas de fogo, regidas pelo general Taviel, compunham todo o poder militar, de que dispunha o logar-tenente de Napoleão I na vespera da batalha, em que se iam travar braço a braço as duas nações ha tantos annos emulas, e cada dia mais implacaveis no designio de se supplantarem, como se uma devesse necessariamente offuscar a outra, ou como se a Europa não offerecesse espaço sufficiente a ambas para existirem e prosperarem. Sir Arthur Wellesley, nos exordios da sua carreira na Peninsula, logo revelou as qualidades que o habilitavam a competir com os mais illustres capitães sem desafiar um d'aquelles immensos desastres, que immortalizam nas paginas da epopeia napoleonica o infortunio de tantos generaes. Concedendo pouco, ou nada, ao acaso, e não estribando as combinações nos rasgos duvidosos de temerarias emprezas, concebêra o seu plano com a prudencia fria, que sempre em tudo caracterizou seus calculos. Prevendo que, senhores de Lisboa, os francezes podiam atravessar o Tejo sem obstaculo, assoberbar as provincias do sul, e communicarem, por via d'ellas, com a fronteira hespanhola, e não querendo arriscar-se a um revez possivel no ataque de Torres Vedras, determinára tornear o exercito do duque de Abrantes por um movimento audaz, cortando a marchas forçadas pela estrada de Mafra, e chegando adeante d'elle ás portas da capital. A sir John Moore cumpria ao mesmo passo descer de Coimbra e occupar Santarem, vedando tambem por este lado a retirada dos contrarios. Estavam expedidas as ordens n'este sentido, e marcados o dia e a hora, em que haviam de principiar a executar-se. Mas sir Harry Burrard, tenente general mais antigo, e segundo commandante das tropas britannicas, afferrou no dia 20 de agosto a enseiada de Maceira, e Wellesley foi immediatamente a bordo conferenciar com elle, e expor-lhe o verdadeiro estado das operações. Sir Harry não formava exacto juizo das forças de Junot, nem sabia apreciar as difficuldades, que podiam oppor-lhe. Ignorava tudo. A tenacidade da resistencia de Laborde na Roliça infundia-lhe receios, e antes de se medir com os francezes quiz ter proximos os onze mil auxiliares de sir John Moore, ordenando a sir Arthur, que se sustentasse no terreno, aonde acampára, e expedindo avisos sobre avisos aos navios fundeados no porto da Figueira para que o desembarque de suas tropas se realizasse nas proximidades da Lourinhã. As posições occupadas por Wellesley eram seguras e pouco accessiveis. O Vimeiro assenta-se no regaço de um valle banhado pelas aguas do Maceira. Ao norte altea-se em seios sinuosos um ramal de collinas, cortado da parte de leste por uma quebrada rota em largo barranco. A estrada da Lourinhã atravessa por cima dos cabeços d'esta cordilheira passando pelos casaes de Fontanel e da Ventosa. Nas costas do Vimeiro, ligadas quasi as primeiras casas da povoação com suas faldas, ergue-se uma montanha, meio vestida de arvores e matas, meio nua e escalvada. De seu topo annuviado descobriam-se os caminhos e sendas, torcidas em diversas direcções para Torres Vedras. Sobranceira a esta elevação, enlaçando-se os montes, e empinando-se uns por cima dos outros, corre a serrania, a qual em ondulações, mais ou menos asperas, se prolonga quasi a beijar o mar, abraçando do lado de oeste todo o espaço comprehendido entre a margem esquerda do Maceira e a orla da costa. Seis brigadas ás ordens de Hill, Crawford, Ackland, Nightingale e Fergusson, com as avançadas sobre a estrada de Mafra, guarneciam as alturas com oito peças de artilheria, em quanto as brigadas Anstruther e Fane, com meia bateria de 9 e meia bateria de 6 defendiam a montanha. A cavallaria guardava as bôccas do valle, e um piquete de portuguezes e de _riflemen_ observava a estrada da Lourinhã. Eis a disposição do acampamento inglez antes das vedetas dispararem os primeiros tiros. O duque de Abrantes não mandára reconhecer o exercito inimigo, e sabia apenas pela noticia dos destacamentos de cavallaria, que tinham batido o terreno como exploradores, que elle estava reunido no Vimeiro, e que de noite se tinham visto arder tres linhas de fogueiras. A impaciencia natural e a necessidade não lhe consentiram maior informação. Instava com elle tudo para que precipitasse o encontro decisivo. Lisboa, agitada e descontente, podia libertar-se de um momento para outro, sopeando a pequena guarnição que a refreava. Os inglezes tinham tudo a lucrar, e elle tudo a perder com a demora. Em circumstancias assim apuradas, o melhor conselho era combater logo, sem escolher o campo, sem contar o numero. Suas instrucções foram promptas e audazes. A cavallaria com o grosso da infanteria marchou no dia 20 á noite pelo desfiladeiro, que de Torres Vedras desemboccava no ponto, aonde se bifurcavam as estradas do Vimeiro e da Lourinhã. Aos primeiros clarões do dia 21 Armand d'Aubry, e o capitão Magendie, os quaes em poucas horas de trote rasgado tinham vencido as sete leguas, que os separavam do campo francez, encontraram já os corpos em descanso a legua e meia dos postos avançados de sir Arthur, o qual não inculcava haver-se apercebido ainda de sua visinhança. Do sitio, aonde as tropas respiravam da rapidez de marcha, ás eminencias por cima da povoação do Vimeiro, encoberta com relevo do terreno, alargava-se uma charneca, toda areia e rochas, que em ingremes pendores baixava por uma parte até ao barranco no fundo do qual se apinhavam os tectos da aldeia de Toledo, e pela outra vinha quasi tocar as bordas do Maceira, cuja corrente preguiçosa scintillava no seu leito, illuminada dos raios nascentes do sol, que já em todo o seu esplendor dourava os cumes dos montes, recortados no celeste azul e transparente, inundando de jorros cada vez mais vivos de luz os terraços e as encostas das montanhas, os valles e os desfiladeiros, aonde as sombras mais tempo luctam com a claridade matutina. Junot avançou direito ás alturas, com a cavallaria na vanguarda, com a infanteria formada em columnas de duas brigadas, e com a artilheria nos intervallos. D'Aubry recebeu ordem ao mesmo tempo de avisar o coronel do 3.^o provisorio de dragões para que, atravessando a quebrada perto da aldeia de Toledo, se elevasse até ao moinho de vento de Fontanel, e ahi extendesse as filas brilhantes de seus cavalleiros pela corôa dos serros, cortando a estrada do Vimeiro á Lourinhã. A vista do bello regimento, campeando descoberto no posto, que lhe fôra designado, deu o primeiro signal da batalha. A manhã rompia serena e clara. Sir Arthur Wellesley, que n'este dia principiou a saír da meia obscuridade para as paginas luminosas da historia, rodeado de um luzido estado maior, mettia o pé no estribo, quando chegaram as primeiras noticias do inimigo. A physionomia do general, placida e firme, não denunciava em nenhuma nuvem os cuidados do commando. D'ahi a pouco a cavallo, silencioso, e attento, todos o viram consultar com o oculo os horizontes nas direcções d'onde deviam surgir os contrarios, enviando de curtos em curtos espaços a todo o galope um ajudante encarregado de suas ordens. O socego profundo da natureza, o riso das plantas ainda frescas dos orvalhos nocturnos, os vôos rasteiros das aves, e os murmurios brandos da corrente, contrastavam com os ruidos do campo, nuncios e precursores da procella, de que a ira dos homens inflammaria em breve aquelles pacificos contornos. Entre o primeiro sobresalto da presença dos inimigos, e os primeiros rebates interpoz-se longa pausa. De parte a parte os exercitos, como dois luctadores antes de entrarem no circo espreitaram os movimentos um do outro, calculando todas as vantagens. Antevendo o ataque pela frente e a esquerda de suas posições, sir Arthur destacou para as alturas da estrada da Lourinhã a brigada Fergusson, e logo atraz as de Nightingale, de Ackland, e de Bowes. Em breve a montanha do Vimeiro, em que ha pouco se accumulavam reunidas as forças de seis brigadas, appareceu quasi desguarnecida, não conservando mais que os tres regimentos de infanteria de reserva, confiados á pericia do general Hill. As tropas portuguezas, ás quaes se tinham aggregado recentemente sessenta soldados de cavallaria da policia, capitaneados por Manuel Coutinho, duzentos artilheiros de Valença, fugidos da praça de Peniche, o coronel de milicias de Leiria, o morgado de Penim, e outros voluntarios, postados a principio no valle, foram logo mandados subir tambem a encosta, para formarem na planura do monte com a brigada Crawford. O duque de Abrantes acompanhou estes movimentos da esquerda dos inglezes, ordenando as manobras correspondentes. A brigada Brenier, por ser a mais proxima, adeantou-se em auxilio do 3.^o de dragões, e a brigada Solignac, que seguia em columna a de Brenier, carregou egualmente sobre a direita com seis peças de artilheria. Assim, antes de ferida a peleja, metade das forças britannicas operava na estrada da Lourinhã, opposta a um terço pouco mais, ou menos, do exercito francez; mas a differença era notavel. O movimento de Junot, inopinado e fortuito, deixára grande distancia entre a direita reforçada e o principal corpo do exercito, em quanto os inglezes, pelo contrario, se ligavam concentricamente, não aproveitando menos os cinco regimentos de Bowes e Ackland ao general Fergusson, do que á defeza do Vimeiro, cujo aspecto infundia respeito até aos veteranos pela sua apparencia marcial. O espectaculo dos dois exercitos, avisinhando-se um do outro, era bello e grandioso. A infanteria ingleza com os seus uniformes escarlates, dragonas brancas de lã, e barretinas largas de couro ornadas de pennachos de varias côres, desfilava a marche-marche cerrando filas, e mettendo em fórma. Duas linhas, cujas oscillações, cessando de repente se converteram na immobilidade da firmeza, postadas nos contrafortes e terraços da montanha, dominavam em amphitheatro as ladeiras aprumadas por onde os soldados de Junot haviam de avançar. Por cima d'ellas, mais atraz, e na rectaguarda das posições, ainda os serros se coroavam de bayonetas. Era a terceira linha extendida pela brigada do general Hill! Os canos luzentes das espingardas, e os ferros de lança dos estandartes scintillavam; as chapas douradas dos capacetes da cavallaria, os peitos de aço e as espadas nuas dos soldados, faiscavam, deslumbrando. De intervallo a intervallo, no cume de um pico mais alto, na cabeça de uma collina mais elevada, reluziam as peças de bronze assestadas, e ainda silenciosas. O galope dos esquadrões, ennovellando-se a distancia entre rolos de pó, a brava alegria dos clarins, o desafio das trombetas, o rufar dos tambores juntos ás harmonias guerreiras das musicas, ao ondear das bandeiras soltas ao vento, e ao galope dos corseis dos ajudantes e generaes, cruzando a paizagem em todos os sentidos, compunham um quadro animado e vívido, que levava apoz si os olhos e a vontade, incendiando de enthusiasmo os animos mais timidos e indifferentes. Ia romper-se a batalha. Armand d'Aubry, rodeando com a vista todo o campo, como o falcão paira dos espaços sobre a presa, disse para Lassagne, cujo sorriso parecia convidar os perigos: --Julio! Dias como este nunca mais esquecem! Olha como os inglezes nos aguardam! Faz gosto vel-os assim de marmore em suas linhas, e saber que a nossa espada fará calar em breve os rugidos d'aquellas bôccas de bronze em que Wellesley confia para nos deter!... Logo verá de que lhe valem! --Se as calarmos! redarguiu o tenente. Os soldados que alli temos, não se afugentam como guerrilhas. --Melhor! Quanto mais cara, mais gloriosa será a victoria! Quando mandará o duque romper o baile?! Sinto uma impaciencia!... --Escutai! Eil-o que principia! atalhou Lassagne. Se a fortuna proteger as armas da França, este dia póde ser um grande dia! E largando as redeas, os dois partiram a bom correr para o posto, que haviam de occupar, e aonde Magendie e outros officiaes esperavam já por elles. XI A batalha Deram oito horas da manhã. Um silencio profundo afogou de repente todos os estrepitos e todas as vozes nos dois campos. Similhante á pausa abafada, que precede os gemidos da procella, em breve iam rebentar d'este silencio momentaneo, todas as tempestades, que o odio e as paixões encerram. A fortaleza das posições do Vimeiro, e a valentia dos defensores promettiam aos soldados de Junot disputada lucta. Apezar d'isso as massas accumuladas nas eminencias, nem suspenderam, nem paralysaram, o seu esforço. A divisão Laborde começou o ataque. N'esse momento, como se á ira dos homens se antepozessem as consolações do ceu, ouviu-se o repique longiquo, mas claro, de uma sineta, na capella da aldeia, convidando os fieis á oração. Logo apoz reboou, immensa e prolongada, acclamação festiva dos batalhões francezes. Era a brigada Thomières, que a passo ordinario, e com os estandartes desenrolados, partia intrepida a escalar as escarpas da montanha, d'onde tres linhas inabalaveis juravam repellil-a. Cobria-lhe a frente uma nuvem de atiradores. Os reparos dos canhões, rodando nos flancos, abalavam o chão, confundindo com o tropear da marcha o seu rolar soturno. O espaço, que separava os contendores, depressa se encurtou; o vulto da columna depressa se estreitou tambem, e diminuiu na distancia. Uma orla de fumo alvacento, franjada de relampagos, elevou-se lentamente da testa da linha no meio de detonações repetidas. Ao mesmo tempo os tambores, as trombetas, as gaitas escocezas, as cornetas, e os cheios sonoros dos instrumentos bellicos romperam em harmonia guerreira do centro das brigadas inglezas. Encostando as coronhas ao hombro, com os murrões accesos junto ao ouvido das peças, os soldados de Wellesley acceitavam resolutos o desafio das aguias francezas. D'ahi a um momento ao trovão da artilheria juntava-se o estampido de milhares de fuzis. A montanha, silenciosa e fria até então, vestiu-se de clarões lividos, e uma densa nuvem de fumo, baixa e quasi immovel, véu sinistro, escondeu os combatentes da vista anciosa dos espectadores. De instante em instante novas explosões atroavam o campo, e por entre os rolos de pó e as fumaradas dos tiros faiscaram como fitas tortuosas de lume as descargas dos batalhões. Os pelouros, bastos como granizo, silvaram, varejando as fileiras. As balas de artilheria, cortando o ar, e zumbindo, vinham enterrar-se, escarvando o solo aos pés das companhias, ou, rasgando-lhes e esmigalhando-lhes as filas, abriam por meio d'ellas cruentas e largas brechas, assignalando no chão juncado de cadaveres e moribundos o seu rasto destruidor. Pendurados das ingremes ladeiras, ouvindo por cima das cabeças estourar a voz de bronze dos canhões, sentindo debaixo dos pés retremer e escorregar a terra, no meio de uma atmosphera ardente, ora atropellados pelos que a morte despenha adeante das pontas dos alcantis, ora impellidos pelo tropel impaciente dos que atraz d'elles bramem e se apinhoam na subida, os soldados do regimento 26.^o, respondendo com a audacia do silencio á tempestade vomitada das cristas das alturas, alcançam por fim a aresta da montanha, conquistam a beira da planura, e arremessam-se como leões raivosos, em linhas crespas, contra a muralha de aço, que lhes oppõem o 5.^o regimento inglez. Foi como o encontro de duas nuvens carregadas de electricidade. A meia distancia uns dos outros, os canos das espingardas inclinam-se, dois relampagos immensos lambem a face das columnas, e o ruido de duas descargas quasi unisonas ribomba de cerro em cerro até aos valles. As vozes dos chefes por cima dos mil rumores da peleja, e o tinir do ferro nos pelotões calando bayonetas soam distinctamente durante a curta pausa, que se segue. Depois, violentos estremeções sacodem os membros convulsos dos dois corpos gigantes, e n'um abrir e fechar de olhos ambos se precipitam um contra o outro, esperando suffocar-se n'este abraço, em que toda a sua colera ruge frenetica. A cortina de fumo, que os encobre, adelgaçando, rarea-se um pouco, e o duello temeroso dos dois regimentos, arcando peito a peito, com os ferros apontados ao coração, brilha por momentos em toda a sua magestade! Loison e Charland, com os batalhões 32.^o e 82.^o já a esse tempo estavam travados com tres dos regimentos de sir Arthur, o 97.^o o 43.^o e o 52.^o. As linhas britannicas, abaladas pelo furioso embate, vacillam, encurvando-se. O impetuoso encontro das companhias francezas, sulcando-as, e mutilando-as em partes, cuida um momento tel-as arrancado, desordenadas e vencidas, do solo a que a disciplina parece arraigal-as. Mas a confusão dura apenas minutos! As filas confundidas reconstruem-se, e os assaltos vertiginosos dos guerreiros de Thomières e Loison quebram-se em vão contra a firmeza admiravel d'aquelle rochedo humano! O sangue ensopa o chão, amortecendo o ruido dos carros e reparos, e o estrupido medonho dos pés dos combatentes. A chamma das bôccas dos canhões e fuzis cresta o rosto dos mais avançados. Fileiras sobre fileiras, minadas pelo bater incessante dos pelouros, escorregam no solo humido de carnificina, e prostram-se depois para não se levantarem, conservando apenas, aqui, e acolá, de pé, um ou outro soldado, sentinella perdida, que sobrevive ao estrago commum. De lado a lado mordem o pó os mais valentes. O coronel Pillet e o general Charland, feridos, multiplicam as ordens e o esforço. O tenente coronel Peytavy adormece do somno dos fortes. Os inglezes pelejam com pouco enthusiasmo, mas com tenacidade indomita. Sem retirada, a derrota equivale para elles a um desastre sem nome. Nas suas costas aprumam-se despenhadeiros a pique; a seus pés ronca o mar enfurecido! Wellesley sabe-o, mas conta com os obstaculos naturaes, e com o valor e o numero de suas tropas. As columnas de Junot não são assás profundas para varrerem na ponta das bayonetas as tres linhas, que têem defronte. Kellermann desdobra os batalhões da reserva a dois tiros de peça do Vimeiro. O duque d'Abrantes, perto d'elle, contempla o progresso dos ataques de Delaborde e Loison. Uma ordem sua manda marchar em auxilio dos dois generaes o 2.^o de granadeiros, commandado pelo coronel Sainte-Claire. Avançando em columna, e em pelotões, o regimento costêa a quebrada, que baixa á direita para o barranco, aonde passa a estrada do Vimeiro a Toledo. Os inglezes, desopprimidos das forças de Delaborde, constrangidas a recuar, respiram por instantes, recuperando-se á pressa dos golpes precedentes. Avistando os inimigos, que se adeantam, são suas disposições promptas e decisivas. Os artilheiros assestam contra elles as bôccas de dezoito canhões e obuzes, e dando-lhes fogo a um tempo cobrem o terreno de projectis. As balas ôccas dos obuzes, enfiando filas inteiras, vem rebentar como bombas e granadas no centro dos segundos pelotões. Cuidam que o espanto e o terror dissiparam o ataque, e que os francezes cedem sem entestar com suas linhas! Illusão! Mal protegido pelos frouxos tiros das baterias da primeira divisão e da reserva, investindo por baixo de uma chuva de balas, que o consome, o regimento, como se entrasse em parada, prosegue inalteravel, semeando de mortos e feridos todo o caminho, e pagando com torrentes de sangue cada passo adeantado. Os que se aprestam a rechaçal-o, sentindo-o acercar, sem o ver, pelo som cada vez mais forte da marcha, vencem a custo o sobresalto inspirado por aquelle silencio ameaçador, grávido da vingança de tantas perdas. Finalmente as pontas das bayonetas relampejam sobranceiras ás cristas da montanha, e as companhias, desfilando a cincoenta toezas da planura, principiam a formar-se em batalha. De repente, espectaculo doloroso, porém cheio de grandeza(!), um mar de fogo irrompe de todos os lados, e envolta em chammas a pequena columna oscilla, arqueja, relucta ainda, mas em vão e alue-se por fim, crivada pelas descargas convergentes da mosquetaria de seis regimentos! As explosões das peças acompanham o trovão rolante das descargas, os clamores do combate, e as ameaças dos tambores e cornetas. Os cavallos de trem da artilheria franceza extendem-se uns após outros, deixando os reparos desmontados. Os coroneis Foy e Prost pugnam debalde, e salpicam de sangue os canhões emmudecidos. Os primeiros pelotões de infanteria varridos pelo tufão de metralha desapparecem fulminados, e quando o fumo, que cega o campo, se desvanece, do bello e soberbo regimento, cujos brios os contrarios mesmo haviam applaudido, apenas restam reliquias, que em troços dilacerados se derivam fugitivas pela encosta, golfando de todos os membros o sangue de mil feridas! Kellerman, que seguíra o 2.^o de granadeiros com o 1.^o regimento, ás ordens do coronel Morancin, atravessado o barranco, fôra encontrar-se de rosto com a brigada de Ackland. Sir Arthur, notando cuidadoso este movimento contra o centro, e receando pela povoação do Vimeiro, tractára de anniquilar sem demora o novo ataque. As tropas britannicas baixaram em forças duplas sobre a columna de Kellermann, e flanquearam-n'a. Não contente ainda com a fuzilaria cerrada, que dizima as fileiras contrarias, o general inglez arroja sobre ellas o impetuoso choque de quatrocentos cavallos do 20.^o de dragões ligeiros, da guarda de policia portugueza, e dos voluntarios da Beira Alta e Extremadura. Os granadeiros, colhidos no meio de um verdadeiro furacão de ferro, antes de poderem formar quadrado, vêem reluzir sobre as cabeças os sabres dos dragões e as espadas da cavallaria portugueza, á qual a voz e o exemplo de Manuel Coutinho, do coronel de milicias de Leiria, do morgado de Penin, e dos outros cavalheiros, que dias antes encontrámos no palacio da Asseca, infundem animo superior a maiores emprezas. As aguias rojam no pó pela primeira vez, e o amante de Leonor, alcançando a preço de ferimento leve a gloria de tomar um dos estandartes fadados até então pela victoria é saudado com vivas e felicitações pelos soldados, ebrios de enthusiasmo. Os granadeiros acutilados dispersam-se deante dos cavalleiros, que os perseguem, alastrando o terreno de victimas, destroços, e captivando quasi a cada passo os que fogem, arremessando as armas. --Safa com a calma! brada um dos officiaes portuguezes, que a farda, a estatura herculea, e a voz atroadora denunciam de longe ser o bellicoso patriota, o major Alvaro. Trago os miolos assados dentro d'esta barretina, d'esta maldita panella. Forte asneira! Pôrem á cabeça da gente um cantaro que peza arrobas! Trago a camisa pegada ao corpo de suor! --Que dia, meu amigo, que grande dia! disse o capitão-mór de ordenanças de Leiria, Manuel Carranca, limpando junto d'elle a testa com a aba verde da farda, e restabelecendo o equilibrio ameaçado pela carreira do cavallo, um pouco fogoso de mais talvez para a sua pericia equestre. Não sinto já o braço de jogar cutiladas a estes cães, sr. Alvaro! Respiremos um instante! --Pouco os acúa! Não me estejam a fazer de um agreiro um cavalleiro! accudiu o alcaide-mór Rodrigo Crespo com a serenidade de um veterano callejado. Isto de que os senhores se admiram não é nada em comparação do que foi pelo Roussillon! Se caíssem sobre um quadrado a espirrar fogo por todos os lados, e crespo de bayonetas como um ouriço, então veriam. Mas estes granadeiros, que se derretem como alcôrce mal os cavallos lhes fungam ás barbas?! Historia!... Olhe, sr. Isidoro Pinto! ajuntou, voltando-se para o coronel de milicias, que acabava de sofrear o ginete, e que o escutava. Olhe como Manuel Coutinho, vae guapo na frente. Corre que desapparece! Ah, rapazes, rapazes! --Bom sangue não mente! redarguiu o velho cavalheiro, resguardando a vista do sol com a mão curva, e contemplando o espectaculo terrivel e variado, que se descortinava no campo por todas as partes. --Ah, meu coronel! exclamou o major Alvaro escarlate de fadiga e de regozijo. Tenho engulido mais de dois alqueires de terra, ando todo n'um lago, mas juro-lhe por todos os sanctos da côrte do ceu, que não trocava por um condado a alegria d'esta hora... Como elles fogem! Parecem gamos! Ah senhores francezes, cheira-lhes a esturro a nossa polvora? Bravo! Lá apanharam os inglezes um pelotão quasi inteiro! Fortes covardes!... --Não diga isso, senhor Alvaro! atalhou o coronel Isidoro Pinto. Agradeça a Deus o que estamos presenciando, e antes de tempo não cante victoria! Os francezes são valentes soldados, e aqui mesmo o estão mostrando. Fogem estes, e quem sabe, talvez d'aqui a nada tenhamos de fugir tambem. Agora por elles, e logo por nós. São sortes da guerra. --Qual fugir, nem meio fugir! gritou Rodrigo Crespo, rindo desentoadamente. Mas espera! Que é aquillo lá em baixo! E alçando-se nos estribos apontava para a linha de arvores de um pequeno bosque, copado sobre a esquerda, d'onde principiavam a enrolar-se certas ondas suspeitas de poeira, avultando, como nuvem que desponta e se desdobra, em corpo numeroso. --Aquillo?! O que é aquillo? berrou o major Alvaro depois de fitar por um pouco a vista de lince no ponto designado. Aquillo são francezes. É uma emboscada de cavallaria jacobina. Estamos lambidos, com mil diabos!... --Fale mais devagar, observou o experimentado alcaide-mór. Noticias d'estas não se gritam por cima dos telhados. É verdade, são francezes, e com peças montadas e atiradores na frente! Formam em columna e em pelotões á saída do bosque! Temos festa!... Rapazes! Alto! accrescentou virando-se para o meio esquadrão de voluntarios que o seguia. Apparece um grosso de cavallaria inimiga pelo flanco! Sentido! Toca a reunir ao tenente coronel Taylor. E o alcaide-mór, collocando-se á testa do meio esquadrão, ajuntava friamente voltado para o major e para o capitão-mór: --O sr. Isidoro Pinto tinha razão. Vamos receber uma carga a fundo, e receio que a nossa gente a não supporte. A confusão desordenada, em que a cavallaria ingleza corre no alcance dos granadeiros, póde ser-nos fatal. Em todo caso... somos portuguezes. Aqui havemos de vencer ou morrer! --Viva o principe regente! Viva a santa religião! bradou o major floreteando a pesada espada, e atirando a barretina ao ar. --Viva Portugal, e sejamos homens! exclamou o coronel sereno e intrepido, mettendo o cavallo ao lado do do alcaide-mór. --Eil-os comnosco! gritou Manuel Carranca. Deus me perdôe! Como vem feros! Se não fosse vergonha dizia, que mettem medo... de longe! --Póde dizer, que não lhe fica mal. Mais d'estes lances tenho eu visto na minha vida, e confesso-lhe que estimaria achar-me agora em outra parte... São ossos do officio, não ha remedio senão roel-os. Paciencia! A conjectura do velho official era exacta. Vendo disperso pelo fogo das brigadas e pelo ferro dos dragões inglezes e da guarda da policia o bello regimento de Morancin, o general Margaron, emboscado desde o romper da manhã com toda a divisão de cavallaria franceza, deu por fim o signal do ataque, signal, que Armand de Aubry, Lassage, e muitos outros officiaes, não menos impacientes do que elles, aguardavam cheios de ira, e mordendo os beiços. O formoso quadro, que offereciam á vista os pelotões, desfilando a trote de entre as arvores, cobertos por uma linha de atiradores, e trazendo nos flancos as bôccas de fogo chamadas da reserva, ao passo que enlevava os olhos, confrangia o coração. De momento para momento apertava o perigo dos alliados soltos em carreira desenfreada após os vencidos. Avançando em duas columnas, uma composta da guarda do general em chefe e do regimento 26.^o de caçadores a cavallo, ás ordens do principe de Salm-Salm, a outra formada dos regimentos 4.^o e 5.^o de dragões, na frente dos quaes galopavam Margaron, os majores Leclerc, Theron, e todo o estado maior, os esquadrões francezes, desenvolvendo-se, arremettem com os estandartes altos, e as espadas núas, no meio da brava alegria dos clarins, direitos a uma eminencia, que precisam vencer para dominar o campo. Similhantes a duas serpes monstruosas, suas columnas enroscam-se, colleando pelas veredas da encosta, e subindo, ora entumecem, ora estiram os anneis luzentes pelas voltas sinuosas, precedidas dos relampagos, que fuzilam as bôccas das peças, do trovão, com que a artilheria annuncia a sua presença, e da cortina de fumo, que ondeia e paira sulcada de coriscos, sobre a ladeira opposta pela qual já se precipitam os atiradores, investindo-a. Vendo-os accommetter assim vistosos e intrepidos, o tenente coronel Taylor olhou em redor de si, e apontando para elles exclamou: _splendid_! Soldado applaudia a bizarra apparencia de outros soldados dignos do seu valor! Firme deante da ameaça d'aquelle golpe sua voz resoa em brados viris superior a todos os ruidos. Indifferente aos perigos, vôa, ora a um, ora a outro lado, ordenando e confortando os seus. Os clarins britannicos e portuguezes respondem altivos ao desafio guerreiro do inimigo. As nossas bandeiras tremulam com orgulho deante das bandeiras oppostas. Retrocedendo em ondas loucas do alcance, que os attraíra, os portuguezes e os dragões britannicos entram nas fileiras uns após outros, e a ordem de batalha reconstrue-se sobre o terreno já cavado pelas balas dos francezes. Manuel Coutinho e os officiaes unem os esforços aos do valente capitão inglez e acodem á confusão inevitavel d'este momento de sobresalto. --Eil-os partem! exclama o amante de Leonor, vendo a cavallaria contraria arremessar-se a todo o galope. --Ávante! A elles, dragões! Bradou Taylor, largando as redeas, e soltando o fogoso ginete, cujas crinas ondeantes açoutam o ar. Foi como o encontro de dois vulcões rolando ennovelados por cima da terra, que parecia gemer e vergar opprimida com a tempestade de homens e cavallos, cujo estrondo abafado recresce á medida, que as duas muralhas de ferro se approximam. O chão embebe-se rapido debaixo dos pés dos corseis. Já não é senão uma estreita orla entre dois rolos de pó. O sol bate de chapa sobre a planicie. As armas scintillam despedindo clarões sinistros. A distancia desapparece! As primeiras filas topam em cheio. Um grito, uma explosão, um estrondo horrendo, assonancia de mil clamores e de mil estrepitos, acompanha o medonho choque! As fileiras baralham-se, e a peleja individualiza-se. Os pelotões atiram-se uns contra os outros como vagas furiosas e encapelladas, estourando no meio d'aquelle mar agitado. Com as redeas nos dentes, os cavallos empinados, e a pistola, ou o sabre em punho, n'este duello immenso composto de mil combates parciaes, cada qual busca um contendor e logo o esquece, derrubado e nas ancias da morte, ou distraído no ardor da nova provocação. Ao fuzilar das espadas juntam-se as detonações, a chamma fugaz dos tiros disparados á queima roupa, e os jorros de fogo que illuminam a frente das baterias. A atmosphera suffoca. Ao alento fumegante dos cavallos, nitrindo de colera, une-se a respiração abrazada dos homens, cujos olhos relampejam, cujo odio encanecido em momentos devora o adversario alçado deante d'elles. O sangue gotteja das armas e dos uniformes. Gemidos e brados acompanham a agonia e a vingança. Por meio d'esta scena de furia e delirio feroz atravessam ginetes sem dono com as crinas soltas, e cruzam esvaindo-se pelas feridas corseis arrastando presos dos estribos os cavalleiros moribundos. A lucta é toda de força e destreza. Deslumbra a vista o faiscar incessante dos golpes. As fileiras raream-se. As vozes dos chefes retumbam por cima do concerto horrendo dos combatentes travados como feras no circo. D'Aubry, fiel á sua palavra, mais parecia buscar a morte, do que a gloria. O seu braço fere infatigavel; o seu peito offerece-se descoberto ás balas e ao ferro. Por onde passa, os mais fortes e audazes, recuam, ou caem. Manuel Coutinho, ao lado de Taylor, viu-o atirar o cavallo ao encontro do coronel, saír intacto e invulneravel do arremesso de cem contrarios, e avisinhar-se com a espada alta sobre o commandante inglez. Sentindo fugir-lhe o campo, e divisando rotas, ou desordenadas suas fileiras, Taylor accommette quasi só os inimigos com aquelle supremo desdem do perigo, feição heroica do seu caracter. Poucos dragões e alguns portuguezes ainda o rodeam, porém já desfallecidos. Os esquadrões britannicos recuam e fazem já meia volta, retirando-se surdos ás ordens e á desesperação dos capitães. Lassagne e o coronel inglez encontram-se um defronte do outro por um d'esses acasos, que a guerra tantas vezes arrasta. D'Aubry luctava perto por abrir caminho, mas se podia ver o combate, não podia soccorrer o companheiro de armas. De subito a espada do tenente francez faiscou baixando a cravar-se no hombro esquerdo de Taylor, que a dor faz vacillar nos arções, mas ao qual a ira, restituindo o alento, presta novas forças. Um golpe terrivel depressa o vinga, e Lassagne, varado de uma estocada pelos peitos, baquêa do cavallo em terra. --Adeante! clama a voz do coronel, apertando os joelhos ao cavallo, e floreteando o sabre. Não poude dizer mais. Uma bala suspende-o na carreira. A mão inerte solta as redeas, a espada núa escapa-lhe dos dedos, e o corpo seguro na sella por segundos oscilla e prostra-se afinal sem vida. A bala tinha-lhe atravessado o coração! Manuel Coutinho olhou e empallideceu. Na mão de Armand d'Aubry fumegava ainda a pistola, que disparára o tiro. A queda de Taylor acabou de abalar os soldados já vacillantes. Alguns d'elles comtudo, cercam d'Aubry, accesos em raiva e esquecem tudo para saciar o odio, que os abraza. Triste com a perda do amigo, insensivel á propria morte, o mancebo quasi que mal lhes disputa a existencia. Já o sangue lhe corre de largas feridas, já a espada lhe treme na guarda, já um véu principia a turvar-lhe a vista, quando de repente vê a larga folha de um sabre ameaçar-lhe a fronte, outro ferro antepor-se e aparar a golpe, e uma voz conhecida bradar-lhe: --Rende-te! Entregou a espada já sem ver a quem, e fechou os olhos. Quando tornou a abril-os, achou-se debaixo do tecto de uma barraca de lona ingleza, com o cirurgião-mór de um corpo britannico ao lado, e Manuel Coutinho á cabeceira. A batalha tinha terminado. A brigada Solignac na estrada da Lourinhã, e a brigada Crenier na assomada da Ventosa haviam tentado tambem de balde a ventura das armas. A fortuna de Wellesley foi mais poderosa. As posições do Vimeiro, immortalizadas pela firmeza dos alliados, repelliram todos os ataques. No fim de duas horas e meia de fogo, os francezes contaram fóra de combate mil e oitocentos homens entre mortos e feridos, bastantes prisioneiros, entre elles o general Brenier, e treze peças de campanha perdidas, com vinte e tres carros de munições. O duque de Abrantes, salva a honra, inclinou-se deante da adversidade, e ordenou a retirada. Restava-lhe morrer, capitular, ou abrir pelo meio dos inimigos a retirada. A sorte compadecida não quiz que elle encontrasse um tumulo em Portugal, aonde quasi possuira um throno. Por mão dos proprios adversarios lhe franqueou as portas da patria. XII Sol entre nuvens Voltemos áquella casa tão risonha do campo do Ourique, aonde ouvimos as imprecações de Manuel Coutinho, as palavras prudentes do bispo de Malaca, e a resposta de Leonor ás propostas de Lagarde. Apenas decorreram algumas semanas, mas os successos precipitaram-se, e tudo mudou de aspecto. Entremos sem ruido pela alcova, cujas portas de vidraça, recatadas pelo reposteiro de seda, abrem sobre a sala, aonde vimos a filha de Paulo de Azevedo jurar ao seu amante eterno amor. Os moveis e o adorno do aposento são ainda os mesmos. Os raios do sol afagam de luz dourada as avezinhas, que saltam nas gaiolas, e beijam as corollas das flores, cujos variados matizes sobresaem, marchetando os bellos ramos, que enfeitam as antigas jarras japonezas em cima do marmore dos tremós. O gato valido dormita enrolado sobre o seu coxim de lã. A agulha continúa esquecida, picando a tela na folha começada mezes antes no bastidor. Lá está aberta a «Imitação de Christo» na pagina, que Leonor lia, quando a entrada de Manuel Coutinho a veiu interromper. Além se descobrem, junto do espelho de talha alta, os outros livros, fieis companheiros da donzella, nas suas horas de tristeza e solidão! Tudo parece o mesmo, e, todavia não sei que invisivel e indiscreto delator logo revela aos olhos, que o infortunio e as magoas já não humedecem de suas lagrimas aquellas paredes, aonde já se respira conforto e alegria. Soam passos e vozes na rua mais proxima do jardim. A areia range debaixo dos pés de tres pessoas, que se encaminham lentamente para a meia laranja rasgada deante da escada de pedra. Todas tres são nossas conhecidas. No meio, mais grave e preoccupado, do que o vimos nos dias de oppressão e de risco, vem o veneravel bispo de Malaca. Conserva ainda o bondoso sorriso e a serena expressão do semblante, mas um véu de melancholia lança-lhe algumas sombras sobre o rosto. Á sua direita Manuel Coutinho com o braço esquerdo ao peito parece escutar com impaciencia as phrases, que Paulo de Azevedo solta com vehemencia, todo inflammado em ira. --Não, Manuel, não me convence! exclamava o velho cavalheiro colerico. A capitulação de Cintra é um opprobrio para nós, e uma infamia para quem a assignou! Se foi para nos tractarem como conquista sua, para nos venderem a honra e a fazenda a retalho, excusavam os inglezes de vir a Portugal. Estrangeiros por estrangeiros cá tinhamos o Junot. Ladrões por ladrões cá estavam Lagarde e Juffré. Não era necessario encommendarem-se os Trant, os Dalrymple, e os Ackland!... --Não vá tão longe, sr. Paulo de Azevedo, não seja injusto! accudiu o bispo, interpondo-se mansamente. Louve a Deus pelas maravilhas da nossa restauração, e não se afflija tanto com o mais. Tudo tem remedio. --De mais, observou Manuel Coutinho, estou certo de que os alliados já conhecem o seu erro, e hão de cedo emendar o mal. Sir Arthur Wellesley disse... --Tão bom é elle, como os outros! interrompeu Paulo, levantando a voz. Manuel Coutinho é muito moço. Conto mais annos e mais experiencia. Lembre-se de que tambem os francezes entraram aqui com pés de lã, e depois... --Pois cuida?! É impossivel!... --Cuido, sim, senhor. Não sei o que acham os estrangeiros n'esta tira de terra, mas a verdade é que todos a cubiçam, hespanhoes, francezes e inglezes! Mas se estes de agora imaginam representar ao vivo a fabula da ostra e dos litigantes talvez se arrependam. Não hão de comer a polpa e dar as cascas a Bonaparte e ao principe regente! Em Portugal ainda ha fouces roçadouras e espingardas caçadeiras por essas choupanas para exterminar hereges e traidores!... --Socegue! Pois julga que o governo inglez havia de cair na loucura de querer apoderar-se do reino!? atalhou o bispo sorrindo-se. Os generaes alliados não nos tractaram bem, concedo. Faltaram ao respeito devido á rainha, nossa senhora, dispondo sem audiencia nossa, do que pertence á sua corôa; mas suppor que o fizessem com o ruim sentido de substituir a sua usurpação á de França, não posso crel-o! --Creia o que quizer, senhor bispo; mas saiba que o illude a sua bondade natural. Senão diga-me: Estamos hoje a dez de setembro. Ha oito dias, que o Tejo se vê coalhado de navios de transporte e de vazos de guerra inglezes. Que bandeira tremula em S. Julião, nos fortes, em Paço d'Arcos, e em Belem? Uma commissão de estrangeiros, em que só figura por esmola um portuguez, abriu balcão no largo do Loreto n.^o 8, para tomar conta das mobilias dos paços reaes, das repartições publicas, e dos objectos furtados dos arsenaes, como de cousas inteiramente suas! Os francezes acampam nas praças com as peças carregadas! Os inglezes estão quasi ao lado d'elles! Pode dar-me noticia de Bernardim Freire e do exercito portuguez? Sabe aonde pára? Não o pozeram fóra, a elle, que era de casa, para se metterem a si de dentro?!... --É verdade! respondeu Manuel Coutinho um pouco enleiado, porque a amisade e respeito ao velho cavalheiro o prendiam por um lado, em quanto pelo outro se lhe figuravam exageradas suas queixas e apprehensões. Mas a capitulação foi negociada e assignada entre Junot e os alliados! Talvez seja essa a causa da falta do nosso general n'este momento. --E essa falta, attestada pelo protesto, que elle de certo ha de fazer como bom portuguez e bom soldado, é a maior accusação, que existe, contra a insolencia, com que somos tractados! bradou Paulo de Azevedo com os olhos scintillantes. Pois dispõe-se assim da soberania, da independencia, da honra, dos interesses, e da segurança de um reino amigo sem chamar ás conferencias o general, que o representa, e que empunha as armas para os sustentar?! Aonde estariam a esta hora Wellesley, Dalrymple, Beresford, e Moore, se as nossas villas e cidades se não sublevassem, e se o nosso exercito lhes não cobrisse a marcha sempre? A bordo dos navios, ou vencidos e afogados no mar! São muito esquecidos estes senhores inglezes! --E aonde estariamos nós, tambem, accudiu Manuel Coutinho, por fim irritado, se esses inglezes, que o sr. Paulo de Azevedo quasi amaldiçôa, como inimigos, não combatessem pela nossa liberdade na Roliça e no Vimeiro? Julga que as milicias de Bernardim Freire, e os Terços tumultuosos eram capazes de desalojar De Laborde, ou de vencer Junot? Quer que sejamos injustos? Todos viram o que succedeu. Foi ainda hontem! O sangue vertido pelos estrangeiros em nossa defeza está vivo e fresco. Não lhe parece cedo para começarmos a ser ingratos?!... --Ingratos?! Ah! Manuel Coutinho não esperava similhantes palavras da sua bôcca! Pois já se namorou tanto dos estrangeiros n'estes poucos dias, que lhe esqueçam as offensas da patria escarnecida, vilipendiada?... --Ajudei a vingal-as no campo, sr. Paulo de Azevedo! redarguiu o mancebo com alguma altivez. O que digo vi-o por meus olhos. O meu sangue correu tambem alli! Se defendo os inglezes é porque os admirei como soldados, e juro que não receio d'elles, que se nos convertam em inimigos. Acredite! Agora podemos confessar a verdade. As sublevações das provincias não expulsavam os francezes de Portugal! --É tambem o meu voto! disse o bispo, pondo a mão no hombro do velho cavalheiro, e persuadindo-o mais pela amenidade do sorriso e dos modos, do que com as palavras. Nós sós contra tropas firmes e disciplinadas podiamos ennobrecer de victimas o martyriologio nacional; mas vencer parece-me que não. Vamos, meu amigo. Melhor o fará Deus! Estamos em suas mãos, e Elle por sua infinita misericordia não ha de levantar de cima d'este reino a protecção visivel, com que nos está soccorrendo. Não vae tudo tão bem como devia ir? Fomos offendidos e aggravados? Paciencia! Do mal o menos. --Paciencia! exclamou o pae de Leonor já mais brando. Paciencia?! Sinto arder o sangue nas veias, e o pejo nas faces, quando leio as proclamações e editaes d'esses libertadores, que mandam como se não tivessemos patria, rei, e independencia! Os francezes riem-se de nós como de crianças enganadas. Lagarde entrouxa e enfarda as riquezas de Queluz. Junot tracta do Castello de S. Jorge, e embarca caixotes e caixotes cheios de preciosidades. Os traidores, que nos venderam, vão saír com elle ricos e impunes, e não nos levam amarrados com gargalheiras de ferro ao pescoço para nos venderem, como negros, talvez porque não têem navios para tanta gente!... N'este momento os tres chegavam defronte da escada. No alto, entre os humbraes da porta, despontava, pallida e graciosa, a figura delicada de Leonor, envolta em um penteador de rendas, com um meigo sorriso nos labios. --Alli está a nossa irmã da caridade, a nossa fada! Leio nos seus olhos melhores noticias dos enfermos! accudiu o bispo, acenando risonho á donzella, que esperasse, e começando a subir os degraus com a pausa da edade. Manuel Coutinho córou de alvoroço, e a sua vista, em um relance, disse tantos segredos amorosos ao coração palpitante, que voava para elle, que as faces de Leonor se avivaram de instantaneo rubor. Paulo de Azevedo, no peito do qual principiavam a applacar-se as iras murmurando ainda, apenas fitou a filha, sentiu de repente o animo de todo sereno, e as mais grossas nuvens dissipadas. A alegria intima espraiou-se-lhe pelo rosto, e com a bôcca cheia de riso, exclamou ainda do meio dos canteiros de flores: --Ah! Ah! Pelo que vejo levantámo-nos com a aurora e saímos fresca e viçosa com ella?! Manuel, que fizeste á tua noiva, que não te fala? Temos amuos, ou estaes hoje deveras mal, filhos? Os dois amantes, sorrindo-se, trocaram um volver de olhos tão suave e enlevado, que os anjos custodios de ambos, se não fossem tão puros espiritos, teriam inveja ás felicidades da terra. Paulo percebeu e sorriu-se tambem, offerecendo o braço a Manuel ainda ferido no braço esquerdo, e contuso em uma perna, para o ajudar a subir. Ao mesmo passo ameaçava com o dedo a Leonor, accrescentando: --Bem! Muito bem! Entendo! Estão apostados para enganar o pobre velho, que já não sabe de si, nem dos outros? Pois sim! Quer saber, sr. bispo? Estes dois innocentes, que não pestanejam deante de nós, que não dizem uma palavra com medo de que o ar os toque, vou jurar, que já se viram e se falaram hoje da janella?! Adivinhei? Sim, ou não, Manuel Coutinho? --Adivinhou metade. Já nos vimos, é verdade. Agora falarmos não. Para que? --De certo! atalhou o cavalheiro rindo com malicia. Se não me esqueci do meu tempo de rapaz, para que deu Deus olhos aos amantes, senão para dizerem tudo callados? Vamos! São mais do que horas de almoço. O passeio e a disputa abriram-me o appetite! E d'Aubry? Passou melhor a noite? O accesso não voltou? --Não, meu pae. Graças a Deus, está salvo. Disse-o o medico ainda ha pouco. --Ah! o doutor Thomaz esteve por aqui? Não me chamaram?! Com que então temos homem? Estimo immenso. D'Aubry, apezar de jacobino, é uma perola, e sou seu amigo verdadeiro. Aquelle coração... --É um nobre e grande coração, sr. Paulo, um coração de ouro! atalhou Manuel Coutinho. Devemos-lhe muito, e ainda bem que o acaso me trouxe pela mão ao sitio em elle de proposito se estava deixando matar!... --E o outro francez, o tenente Lassagne? observou o bispo depois de beijar Leonor na testa com paternal carinho. Tenho por elle tanta sympathia!... --Está livre de perigo tambem, disse-o o doutor, redarguiu Leonor. --Podem pezar-se ambos a cêra, que no estado, em que os vi entrar aqui nas macas, não cuidei nunca que escapassem. É verdade, que reis não eram tractados com mais desvelo. Leonor! Nasceste mesmo para mulher de um capitão. Foste uma enfermeira exemplar. --Devia-o ser, meu pae. Não foi d'Aubry quem abriu as portas da sua prisão e enxugou as nossas lagrimas? Manuel lembrou-se, e, salvando-o, verteu por elle o seu sangue. Eu! Havia de fazer menos e ser ingrata? Quando voltar a França, não ha de dizer, que a nossa memoria foi mais curta, do que o beneficio. Achou em Manuel um irmão... --E em ti uma irmã! Muito bem! Elle merece-o. Sabes a minha pena? É aquelle maldito Lagarde! Porque ha de Aubry ser sobrinho de similhante velhaco?! Se não fosse isso! Antes do senhor intendente nos dizer adeus, havia de ajustar com elle as minhas contas! Entremos. Com aguas passadas não moem moinhos. Os tres entraram, e em quanto elles almoçam e conversam, informaremos nós o leitor em duas palavras dos acontecimentos a que alludiram no jardim, quando os encontrámos. A batalha do Vimeiro provou ao duque de Abrantes, que lhe escasseavam as forças para arrancar os inglezes de Portugal. Kellermann, acompanhado de dois esquadrões de cavallaria, apresentou-se no quartel general inglez, e aproveitando habilmente a timidez e a falta de tacto de sir Hew Dalrymple, negociou com elles a famosa capitulação de 30 de agosto, que tomou o nome de villa Cintra, aonde foi assignada, e que feriu ao mesmo tempo o orgulho britannico e o amor proprio nacional, murchando metade dos louros da victoria, e esmorecendo o enthusiasmo, com que Portugal abria os braços aos alliados, e os acclamava restauradores da sua independencia! Os francezes por ella obrigaram-se a evacuar o reino com armas e bagagens, não como prisioneiros, mas como tropas em armas, que os navios britannicos haviam de desembarcar em Rochefort, podendo servir na guerra apenas entrados na sua patria. As praças de guerra deviam ser entregues aos soldados inglezes! Ao exercito era livre transportar comsigo, além da artilheria e do trem, a caixa militar, e tudo o que pertencesse aos corpos e aos chefes! Os feridos e doentes ficaram entregues ao cuidado do governo inglez. Junot prometteu concentrar as suas divisões a duas leguas de Lisboa, e o general em chefe sir Hew a tres leguas. A convenção affiançou de mais a segurança e a impunidade das pessoas addictas ao dominio dos invasores, e a troca de todos os prisioneiros desde o começo das hostilidades. Dos portuguezes, do seu rei, dos seus direitos, nem uma palavra! Foi como se não existissem! Nem os ouviram, nem os attenderam! O general Bernardim Freire de Andrade, aggravado do completo esquecimento ou antes do desprezo, com que viu omittida a sua patria n'estas memoraveis estipulações, protestou contra ellas em 14 de setembro, e suas justas queixas, inseridas nas folhas de Londres, exacerbaram ainda mais a indignação do povo inglez. A capitulação, condemnada como um acto vergonhoso, mereceu o stygma, de que a flagellou a soberba imprecação de Byron em um dos cantos de _Child Harold_. O duque de Abrantes affrontou a adversidade com valor, e houve-se com destreza antes, e depois do revés. Escarneceram-o por mandar illuminar Torres Vedras na vespera da batalha, festejando antecipadamente o triumpho! As luminarias eram para illudir e conter as iras da capital. Recolhido de novo á côrte, á testa de suas tropas, a impaciencia dos habitantes, por mais que o desejasse, não poude ler o annuncio do desastre no seu rosto impenetravel. Sereno e intrepido conservou seguras até ao ultimo instante as chaves! A anciedade attribulou muitos dias o animo dos moradores. Lagarde e a Policia, caso raro (!) alcançaram entreter as incertezas, encobrindo a noticia da convenção. Os primeiros signaes da liberdade proxima deu-lh'os sómente em 2 de setembro a entrada dos navios britannicos no Tejo. O exercito francez principiou a embarcar por divisões, e com elle se abrigaram egualmente debaixo dos estandartes estrangeiros os portuguezes compromettidos, que o odio publico apodava de jacobinos. A bandeira dos alliados hasteava-se em S. Julião e nos fortes das margens do rio, em Paço de Arcos, e em Belem! Os inglezes acampavam em Arroyos e no Campo de Santa Anna, tomando posse dos quarteis, á medida, que os regimentos de Junot os despejavam. Todos estes movimentos, e a vigilancia militar e hostil, com que os francezes se guardavam nas praças com as peças carregadas á bôcca das ruas e os murrões accesos, despertavam as esperanças dos nossos, inflammando o seu zelo, reprimido do maior impeto pelos avisos de sir Carlos Cotton, enviados de bordo da nau _Hybernia_, e pelos conselhos prudentes de alguns patriotas respeitados. Ao povo tudo isto se representava um sonho. Aos homens sisudos doiam no orgulho nacional as condições da capitulação, mas temperava-se a magoa d'ellas com a idéa de estar por um fio a queda da usurpação. D'Aubry e Lassagne, perigosamente feridos no Vimeiro, salvos por Manuel Coutinho, e transportados para a casa hospitaleira do bispo de Malaca, graças aos disvelos do mancebo, tornando a si do agudo padecimento, souberam que veriam de novo a França em breve. Seria sem saudade da terra que iam deixar? XIII Conclusão --Então ainda duvida? Somos livres. Não lhe dizia eu que estavamos nas mãos de Deus?!.. --Ainda bem que acabou assim, sr. bispo, ainda bem! Mas sou teimoso. Os inglezes portaram-se mal. Não os defenda. Dão ao céu o que o demonio não quiz... --Valham-me os Santos Martyres de Marrocos, sr. Paulo de Azevedo! Nada o contenta. Nem este dia de gloria e de jubilo, em que todos parecemos loucos!?... --Olhe! Quem vai de certo contente é o Junot. Leva ao seu imperador um exercito que devia ficar prisioneiro... --Se o derrotassemos!... --Derrotavamos de certo. Não tinha retirada. E o traficante de Lagarde, que sae a barra cheio, como um ovo, de tudo o que roubou com as garras da policia. A proposito, viu d'Aubry? Como supportou elle a noticia?... --Da capitulação? Como um homem de brios e de grandes espiritos. --E conta partir, e deixar-nos? Que remedio! Sabe que ha de fazer-me falta. Estava costumado aos seus ditos joviaes, e agora!... --Sente a separação? Tambem eu e elle a não sentimos pouco. Lassagne foi com Manuel Coutinho ao quartel general inglez apresentar-se, e tirar guia para o enbarque. Está muito pallido, mas fica-lhe bem. Excellente rapaz! --Vamos nós dar tambem uma volta pela cidade. Apezar de tudo... accrescentou sorrindo, a alegria do povo, mais ou menos, sobe sempre á cabeça dos que não se illudem com as apparencias. O dia 15 de setembro será por muito tempo um dia memoravel nas recordações da patria. --Ora ainda bem que o ouço falar assim. Vamos. E os dois saíram pela porta do jardim. D'Aubry ao mesmo tempo achava-se no vão de uma janella da sala, onde víra Leonor pela primeira vez. Mais desmaiado e mais consumido de physionomia, do que antes dos ferimentos, os olhos conservavam, todavia, o antigo brilho, offuscado n'este momento por um véu de contemplativa melancholia. Tinha na mão um volume aberto, estava de pé, e julgando-se só fugia-lhe a vista com o pensamento das paginas mortas do livro para as paginas vivas das ultimas semanas da existencia. Duas lagrimas furtivas, e a magoada expressão do rosto, revelavam, que, se o corpo convalescia da molestia, a alma traspassada de occultos espinhos ainda continuava enferma. De repente uns dedos melindrosos, tocando-lhe no hombro ao de leve, fizeram-o estremecer. Sem ver adivinhou que era Leonor. A côr afogueou-lhe as faces subitamente, e um sorriso contrafeito passou-lhe pelos labios, mais triste, do que a propria dor immobil. --Que é isto?! accudiu a donzella, fitando-o compassiva e carinhosa. O meu doente aqui, e só, com os olhos no céu, e, Deus me perdoe (!) ainda humidos de pranto!? O que teve Armand? Que mal lhe fizemos para estar assim magoado? Offendi-o sem saber, offendeu-o alguem d'esta casa innocentemente?!... --Offender-me, sr.^a D. Leonor! Os anjos deixam saudades e não aggravos! Estava-me lembrando dos ditosos dias que passei aqui... --Ditosos?! Entre dôres, e moribundo?! --Ditosos sim. Que eram as dôres para mim, quando a tinha a meu lado, imagem suave da consolação e do affecto? O corpo parecia morto, estava quasi morto, mas se soubesse o que o espirito vivia e sonhava então!... Delirios de enfermo! Illusões que a realidade cura... cruelmente, é verdade, ou que só o tumulo acaba muitas vezes!... --Não diga isso. O que chama illusões são realidades, todos aqui dariamos a vida, que lhe devemos, para o vermos salvo e satisfeito. Creio que apesar de se ver entre estranhos... --Estranhos?! Não me faça ingrato, que não lh'o mereço. Nunca houve mais extremosos amigos! Deus, compadecido da minha solidão, quiz dar-me antes de morrer, porque me diz o coração que o primeiro campo de batalha será a minha sepultura, a alegria de possuir no seu affecto o que a morte de meus paes me roubou na infancia desamparada. Leonor! Consinta que repita assim o seu doce nome. Disse-me um dia que era minha irmã!... --Acha que o não fui, que o não sou já?! atalhou ella com um sorriso meigo. --Não! Porque me salvou da morte, quando a eu buscava e ella vinha? Minha irmã! Que distancias, que inimigos, e que esquecimento dentro em dias a vão apartar para sempre do triste ferido! É noiva, ámanhã será esposa! Póde caber no seu peito com o amor... de outro, a memoria do estrangeiro, que lhe passou deante apenas como sombra, que lhe deu occasião de provar os thesouros admiraveis da mais piedosa compaixão?!... E, proferindo estas vozes apaixonadas, o mancebo, pallido, e quasi desvairado, suffocava-se em cada phrase, porque a dôr lhe cortava o peito. Leonor entristecia-se de o ouvir. Aquelles gemidos eram mais do que amisade, eram gritos de uma ternura delirante, que a vontade em vão luctava por conter. Em cada suspiro, em cada palavra gottejava o sangue da alma. A donzella commovida fez-se de repente pallida, como elle; e afogando em um sorriso superficial os sentimentos, que principiavam a combatel-a, respondeu, affectando a serena innocencia da ignorancia: --Somos irmãos, não o disse já? Devo-lhe tanto, que nas orações, nas supplicas, que elevo ao céu, não posso, não sei, separar do nome de meu pae, do nome e do extremo... do que ha de ser meu marido, o nome estimado de Armand d'Aubry! A minha alma é maior do que suppõe. Cabem n'ella amor de mulher, affecto de filha, e amisade de irmã!... --Leonor! Se eu ousasse!... Se quizesse adivinhar? atalhou o sobrinho de Lagarde, em cujas pupillas faiscou momentaneamente um clarão de esperança. É um segredo, que o meu coração calla e recolhe em si, mas que o devora como alguns venenos corroem o vaso que os encerra... --E envergonha-se de o confessar? accudiu ella tremula do estado, em que o via, e receiosa da palavra imprudente, proxima a saltar dos labios do mancebo. Cuida que não adivinho o motivo da sua tristeza, a razão das lagrimas, que esconde, e que são o orgulho da nossa amisade?!... --Ah! Calle-se, Leonor. Calle-se! Não vê que se me espedaça o coração de ouvil-a falar assim!... --Das saudades, que leva d'aqui, e que nos deixa?! proseguiu a filha de Paulo de Azevedo no mesmo tom, mas fria e tremula por dentro da dôr e anciedade comprimida de Aubry. Não se envergonhe d'ellas! Tambem eu as sinto como irmã... --É tão pouco! mumurou Armand quasi desfallecido e a meia voz. Depois, cobrindo o rosto com as mãos, e suspirando, conservou-se por algum tempo mudo. Quando ergueu por fim a fronte, a vista era já mais firme e socegada, e o sorriso doloroso menos cortante. --Perdoe-me, Leonor, affligi-a, bem sei. Somos irmãos, só irmãos, nada mais! Não podemos ser senão irmãos!... O que disse--o que pensei um momento--foram sonhos, foram delirios. Esqueçamol-os. Não conheci minha mãe. Apenas se inclinou sobre o meu berço para se despedir de mim com um beijo e voar ao seio dos anjos. Nunca amei do coração senão agora! É falso! Nem agora! A minha paixão, a minha esposa, foi sempre a gloria, não quero, não devo ter outra, e ha de ser. O tumulo é o leito nupcial que ella abre aos que a adoram. Se lhe disserem breve, que este amor, o da gloria, me custou a vida, dê-me uma lagrima e uma memoria! Manuel Coutinho não o póde estranhar. Os mortos não causam ciume aos vivos!... --Jesus! Aubry! Que tristes idéas! Magoam-n'o os festejos populares? Se quer vamos para outra casa, aonde se ouçam menos! --Não! Não! A maior dor passou. Veja! Quero outra vez ser o estouvado, que a obrigava a rir-se de suas eternas distracções! Sae? Mal conto por minutos as horas que tenho de a ver ainda! Não vê que roubar-m'os é quasi um delicto? Recaí nos galanteios francezes, pasto usual de suas ironias. D'esta doença é que me não curo!... Leonor meneou a cabeça. A voz e o gesto desmentiam as palavras. Armand amava-a, e fiel á lealdade jurada e á amisade de Manuel Coutinho, arguia-se do sentimento invencivel como de um crime. A entrada de Lassague, do seu amante, e do cavalheiro de Mafra trouxe diversão salutar á violenta coacção dos dois. Nem um, nem outro podiam já dissimular. --Bravo! gritou da porta Paulo de Azevedo. Não sabes Leonor? A bandeira branca, a bandeira sem mancha, já tremula no castello e nas fortalezas! Os vivas nas ruas da baixa atrôam tudo. Os foguetes em girandolas sobem e estalam nos ares. Os repiques dos sinos, as salvas de artilheria no rio, coalhado de navios e botes, e nas torres, ensurdecem. Os montes da cidade estão negros de gente. É um delirio, uma loucura! Deram-me mais de cem abraços, e não sei ainda a quem os devo! Somos livres. Temos rei e patria!... Manuel Coutinho dentro de tres dias quero que seja meu filho. Temos a dispensa concedida e o padre de casa, o nosso santo bispo. D'Aubry! Deixe rir e cantar os rapazes! Não faça caso. Quando vier a paz geral... venha comer comnosco a Lisboa as broas do natal!... Armand, ouvindo anunciar para tão breve o casamento de Leonor, tinha-se tornado livido como um cadaver, e vacillára. A vista cobriu-se-lhe de nuvens, e se Lassagne o não amparasse, não se sustinha de pé. A donzella, á qual Manuel Coutinho apertava a mão com namorado enlevo, leu a desesperação nos olhos do official francez, e sentiu quasi remorsos do amor que o matava a elle. Silenciosa e pallida inclinou a fronte, e sepultou no peito o suspiro, que ia jà a soltar indiscretamente. D'Aubry venceu-se de pressa. Tornando-se a si, adivinhou o que encerrava de affectuoso e nobre o silencio da noiva, e resolveu corresponder-lhe com generosidade egual. Pegando na mão de Manuel e de Leonor, e unindo-as, disse ao velho cavalheiro com um sorriso: --Sr. Paulo de Azevedo! Este dia de jubilo para Portugal não me entristece. Nós o vingaremos, como soldados, em outros campos. Consinta que na hora de partir, e de lhe dizer adeus para sempre, eu beije a mão de minha irmã, e que estreite nos braços o irmão que me salvou!... E depois de abraçar Manuel, os seus labios tocaram por instantes a bella mão de Leonor. A donzella, sentindo caír sobre ella uma lagrima ardente, que lhe escaldou a alma, refugiou-se confusa e anciosa contra o peito do esposo promettido. --Aubry! Não acceito desculpas. Ha de ser dos nossos, assista ao casamento de minha filha! --É impossivel! redarguiu Armand com tristeza, logo dissipada pelo impeto affectado do seu genio jovial. As nupcias de Manuel fizeram-me lembrar, de que tambem tenho uma noiva, a gloria, noiva que espera por mim para consumar o meu destino. Leonor, adeus. É melhor despedirmo-nos já d'aqui... até á eternidade! ajuntou em voz sumida. --Armand! respondeu ella no mesmo tom. Fique! Não vê que a morte, que deseja, é um suicidio?! --Não. É um dever. Adeus. Lassagne! Quando em França nos recordarmos de Portugal... a doce imagem do anjo, que nos salvou, sempre gravada no peito, será a companheira e a consoladora de nossas saudades. Manuel Coutinho! A sua felicidade com a esposa, que vae ter, é para ser invejada até do céu. Não importa, merece-a. Nunca encontrei maior alma, nem coração mais puro. Sr. Paulo de Azevedo! Ficam-lhe dois filhos para amparo da sua velhice. Quer lançar uma benção sobre o terceiro, que não tornará a ver talvez, mas que jura amal-o sempre? O cavalheiro commovido apertou-o nos braços, beijou-o como filho, e arrancando-se a custo ao doloroso enlace, exclamou: --D'Aubry! Se Deus me tivesse dado um filho assim?! Adeus. Não se demore. Faltar-me-ia o animo. Não quero... vel-o partir. Um momento depois Lassagne e Armand volviam para aquella casa um derradeiro e sentido olhar. O primeiro levava só vivas as saudades; o segundo deixava n'ella para sempre metade da sua alma e a alegria de toda a vida. Silenciosa e triste, Leonor seguiu-os com a vista até desapparecerem. Depois enxugou as lagrimas a furto, e suffocou os suspiros. Teria receio de amar de mais o irmão que fugia d'ella para não entristecer a sua felicidade!? Quem se atreverá a decifrar os mysterios do coração feminino? A guerra da independencia prolongou-se. Armand e Manuel Coutinho, pelejando debaixo de bandeiras oppostas, não se encontraram. Paulo de Azevedo e sua filha falavam a miudo do official francez, que o seu coração não sepultára com a ausencia, e o avô, fazendo saltar nos braços o primeiro neto, fructo mimoso do afortunado enlace, muitas vezes repetia com os olhos humidos: Deus te faça um homem, como teu pae, ou como Armand d'Aubry! Quando a batalha de Waterloo encerrou a ultima pagina da epopeia maravilhosa do primeiro imperio, Manuel, que subíra por suas proezas a um posto elevado no exercito, e que teve a gloria de não assistir obscuro áquelle derradeiro feito de armas, levantou do campo o coronel d'Aubry, moribundo e varado de balas nos quadrados da velha guarda. A morte d'esta vez quizera accudir, mas vagarosa e incerta, ao chamamento do mancebo. Tres mezes depois Armand pelo braço do esposo de Leonor batia de novo á porta da casa, de que se despedira sem esperanças de a tornar a ver. A sua presença, festejada por Paulo de Azevedo e pela filha, como verdadeira ventura domestica, avisou a serena alegria, em que se escoavam os ditosos dias dos seus amigos. D'Aubry mostrava ter esquecido na lucta de gigantes da épocha o louco amor, que lhe apressára annos antes a saída de Portugal. Nem um gesto, nem uma palavra revelaram da sua parte a menor fraqueza! Sómente, ao apartar-se, já na vespera de embarcar para Londres, é que o segredo foi revelado por um gemido mais alto do coração. Leonor, sempre discreta, simulou não o entender, mas percebeu que o francez partia para não voltar! A antiga ferida continuava aberta, seria sem remedio d'esta vez? FIM DO SEGUNDO E ULTIMO VOLUME DA «CASA DOS FANTASMAS» NOTAS AO SEGUNDO VOLUME I As chacotas os andores, o baile das espadas etc. pag. 7 A festa do Corpo de Deus, instituida em 1264 pelo Papa Urbano IV, para dar a Jesus Christo culto particular, era solemnizada nas villas e cidades principaes do reino com exquisitas invenções de figuras, danças, e folias. A procissão saía na primeira quinta-feira, depois da festa da Santissima Trindade, attraindo os olhos, e enlevando a imaginação do povo pelo esplendor e pompa, de que se rodeava. As noticias impressas mais antigas, que sobrevivem ácerca d'ella, encontram-se nas _Dissertações Chronologicas_ de João Pedro Ribeiro, e no _Novo Regimento para o governo da mesa da bandeira de S. Jorge, fundada nas cartas, alvarás e lembranças do antigo regimento, que se queimou pelo terremoto de 1755_, publicado pelos habeis archivistas da camara municipal de Lisboa, em cujo cartorio se guarda. No seu romance intitulado o _Monge de Cister_, com tanta rasão admirado como primoroso modelo da novella historica, descreve o sr. A. Herculano (tomo II e pag. XVII) a procissão de corpus referida ao anno de 1384; reinado de D. João I; e o quadro do poeta, desenhado do natural, é tão perfeito e verdadeiro, que vemos resuscitadas e vivas n'elle as feições do grande espectaculo religioso da meia edade n'este dia. João Pedro Ribeiro, no tomo III das _Dissertações Chronologicas_, doc. LII pag. 153, insere um alvará datado de 16 de agosto de 1630, pelo qual o rei ordena, que os tribunaes do Porto acompanhem de futuro a procissão do Corpo de Deus da mesma fórma, que a tinham acompanhado n'este anno. No tomo IV das _Dissertações_ (doc. XIII a XVI.) publica duas cartas da rainha regente D. Catharina, uma datada de 30 de maio de 1560, e a outra de 13 de maio de 1561, nas quaes dicta alguns preceitos ácerca do modo e fórma de reger a procissão na cidade do Porto, e de cohibir as representações deshonestas e escandalosas, introduzidas n'ella. Outras duas cartas, uma de el rei D. Filippe III, escripta em Aranjuez em 15 de maio de 1607, outra dirigida ao juiz, vereadores e procurador da camara da cidade do Porto, pelo marquez de Castello Rodrigo em 18 de maio de 1608, (doc. XV e XVI), tractando do mesmo assumpto, respondem ás queixas do bispo D. Fr. Gonçalo de Moraes, e providenceiam ácerca d'ellas. Finalmente o _Regimento feito pelos officiaes da camara da cidade do Porto para a procissão de corpus com o parecer do Dr. Antonio de Cabral, chanceller da Relação_, regimento approvado pelo alvará de 15 de julho de 1621, encerra o plano de distribuição das figuras, córos, danças, folias, monstros, chacotas, imagens, anjos, demonios, andores, charolas, communidades, clero, e tribunaes, que haviam de acompanhar o prestito, determinando o logar, que lhes cabia n'elle, e a ordem em que tinham de caminhar. No _Regimento Novo_ de Lisboa, que já citámos, diz-se que a primeira vez, que o sr. S. Jorge saiu com o seu estado na procissão foi no anno de 1387 por ordem expressa de D. João I. No reinado de D. João III, em 1538, o prestito era tão vistoso e variado pela singularidade e invenções das figuras, e pela opulencia e riqueza que ostentavam as corporações mechanicas, que não admirava que se despovoassem os arrabaldes e até as provincias para assistir a tão sumptuosa festa. Em tempos mais proximos havia toirada no dia da procissão. D. João V, instituindo a Patriarcal em 1717, decretou nova fórma á procissão de corpus, tornada menos profana e mais devota. A grande pompa e o immenso cortejo, que a ennobreceu no anno de 1719, proporcionou fecundo thema á eloquencia do incansavel irmão Barbosa Machado, auctor da obra a que se refere o texto. II O resto, o peior da empreza, encarregou-se o brigadeiro Margaron de o concluir por ordem de Junot, etc., pag. 29. Coimbra sublevou-se contra os francezes no dia 22 de junho, formando logo para sua defeza a legião academica, composta dos estudantes ás ordens do vice-reitor. O Porto tinha-se levantado no dia 18, dando o exemplo a toda a provincia do Minho. O Algarve insurgiu-se a 16. A provincia da Beira não se demorou tambem. Dentro de poucos dias o incendio tinha-se extendido a todo o reino, tornando-se geral. Os francezes conservavam guardas avançadas em Pombal e Leiria. Quinze estudantes e um cabo conceberam o projecto de desalojar, e sairam com esse intento de Coimbra no dia 28 de junho. Perto de Leiria foram accommettidos por vinte e dois dragões de Junot; travou-se a peleja; a cavallaria inimiga cedeu, e communicou o panico ao resto da força postada á entrada da ponte. Esta, recuando, dispersou-se, ferida de terror. O governo francez, offendido do atrevimento, decidiu dar um exemplo severo, castigando Leiria. O general Margaron partiu de Lisboa á frente de dois batalhões, de quatro companhias escolhidas, e de seis peças de artilheria, incumbido da execução marcial decretada contra a cidade. A columna provou logo em Alcoentre o seu ardor de vingança. Tomando o innocente cirio da Ameixieira por um tropel de guerrilhas, Margaron manda armar uma embuscada por traz de um pinhal, e o chefe de esquadrão Salm-Salm investe, intrepido e implacavel, os aldeãos devotos, como se fossem leões embravecidos. Aos primeiros tiros caem por terra banhados em sangue o gaiteiro e o prégador. Depois são assassinados indistinctamente homens, mulheres, e crianças. A fuga salva o maior numero da furia dos vencedores, cujos despojos n'esta batalha incrivel são duas bandeiras de Nossa Senhora, expostas como tropheus no quartel general. O boletim de 7 de julho teve a ingenuidade de commemorar como derrota de um exercito de rebeldes esta carnificina do povo inerme! No dia 5 uniu-se o general Thomiéres com 800 homens a Margaron, e marcharam ambos contra Leiria A cidade passou, como é de crer, dos fogosos arrebatamentos de jubilo patriotico a uma sombria apprehensão dos males, que a ameaçavam. Não contava para se defender, senão com os brios já desalentados de algumas companhias de ordenanças, que haviam principiado a organizar-se sob o commando do coronel de cavallaria Rodrigo Barba Allardo, alcaide mór. O capitão mór, Manuel Trigueiros, auxiliava-o com mais zelo, que pericia, e o coronel de milicias Isidoro dos Santos Ferreira procurava reanimar o esforço de todos com seus discursos. Era pouco para arrostar em fortificações, nem meios solidos de resistencia o valor disciplinado dos soldados do exercito da Gironda. A noite, e a noticia do que occorrêra em Alcoentre, acabaram de arrefecer o enthusiasmo amortecido dos moradores. Rodrigo Barba, os magistrados, e o bispo, não julgando prudente, desarmados, como se viam, affrontar as iras dos inimigos, evadiram-se sem ruido durante a calada das trevas. Quando rompeu o dia, apenas oitocentos homens da plebe, e duzentas ordenanças de espingardas e chuços se atreveram com temeridade louca a disputar sem chefes a entrada da cidade aos francezes. Margaron deu-lhes as honras de guerreiros consumados, tomando as disposições, que poderia exigir uma força regular e numerosa. Avançou contra Leiria com as tropas divididas em duas álas e a artilheria no centro. Disparados os primeiros canhões, e dadas as primeiras descargas de mosqueteria, o povo fugiu em confusão, e os francezes apoderaram-se da cidade com perda de um homem morto e de dois feridos! Os vencedores despregaram então toda a crueldade contra velhos, mulheres, e crianças, que imploraram debalde a sua misericordia, e metteram toda a povoação a ferro e saque. O principe de Salm-Salm sobresaiu com ferocidade n'esta campanha contra prisioneiros inermes. O palacio episcopal, a Sé, e os templos foram roubados; as egrejas desacatadas; as casas particulares invadidas e despojadas. O resultado foi incenderem-se mais os odios, e recrudescer a resistencia nacional. (Vid. general Foy tomo II liv. VIII). III O duque de Abrantes mostrou-se digno dos feitos heroicos, que ennobreceram a sua carreira etc. pag. 68. A vida de Junot comporia quasi um romance. Nascido em 23 de outubro de 1771 contava trinta e sete annos em 1808. Estudante do collegio de Châtillon, quando rebentou a revolução, alistou se como voluntario em uma companhia de granadeiros, e combateu com denodo em defeza da patria. O valor temerario e arrebatado grangeou-lhe no quartel a alcunha do _Tempestade_; mas a sua elevação começa em Toulon. Bonaparte conheceu-o e apreciou-o alli, e nunca mais deixou de o proteger. As proezas com que sobresaiu nas campanhas de Italia e do Egypto, e a dedicação pessoal, que sempre votou a Napoleão I, apressaram a sua carreira. Nomeado governador de Paris depois do dia IX thermidor, e casado com Mademoiselle Permon, cuja casa frequentára com Bonaparte em dias menos felizes, subiu rapidamente os postos. Em 1804 achava-se coronel general dos hussards. Embaixador em Lisboa e condecorado por D. João, principe regente com a gran-cruz de Christo, saiu da côrte portugueza em outubro de 1805 sem licença, e veiu apresentar-se a Bonaparte nas vesperas da batalha de Austerlitz, aonde realçou a antiga valentia em mais de um rasgo brilhante. Em julho de 1806 foi nomeado governador de Paris e commandante da primeira divisão militar. Prodigo e singular nos appetites, não havia ouro que o saciasse. Os excessos repentinos e fulminantes da sua ira assustavam até os amigos mais intimos. Napoleão escolheu-o para capitanear o exercito, que invadiu Portugal em 1807, e a principio não teve rasão de se arrepender. A sua marcha rapida sobre Lisboa pelas montanhas da Beira mereceu os louvores dos militares, e justificou o titulo de duque de Abrantes, com que o imperador o recompensou. A convenção de Cintra não interrompeu a carreira de Junot. Na Hespanha, na Allemanha, e outra vez em Portugal, mas ás ordens de Massena, a sua espada não ficou ociosa. Ferido gravemente no rosto durante a guerra da Peninsula recolheu-se a Paris. Depois da campanha de 1812, em que o imperador o censurou de irresoluto em um dos seus boletins, a rasão do duque de Abrantes principiou a vacillar, e em Veneza acabou de se abysmar nas sombras da demencia. Transportado para casa de seu pae, em Montbard, falleceu a 22 de julho de 1813 de um accesso violento de febre depois de uma dolorosa amputação. Junot não era soldado rude e grosseiro. Gentil e urbano, sabia attrahir pelas maneiras, e era susceptivel de sentimentos elevados e de acções nobres. Intrepido e intelligente, se os perigos e a morte o não faziam recuar, o pezo das responsabilidades acurvando-lhe com frequencia o animo, tornava-o inferior a si proprio nas posições eminentes. Nascêra para ser o segundo e nunca para ser o primeiro nas arriscadas funcções do governo. Os erros, que lhe estranham mais, derivaram-se todos d'esta incapacidade natural. Cultor das boas artes, e dotado de gosto e critica judiciosa, a sua bibliotheca encerrava os mais bellos exemplares das edições de Bodoni e Didot impressas em velino. Em Lisboa, entre as cousas raras, que tomou para si, figuravam a famosa Biblia ornada das miniaturas de Julio Clovio e alguns quadros preciosos. Junot morreu aos quarenta e dois annos, tendo vivido por seus vicios e fadigas quasi tres edades de homem. Os costumes dissolutos, que, longe de encobrir, parecia alardear, a avidez pouco escrupulosa, com que se maculou em diversos lances, o fausto e as prodigalidades, de que se rodeava, e as furias momentaneas de um genio assomado, raiando quasi em demencia empanaram e diminuiram a gloria conquistada pelo seu valor de paladino em campos de batalha memoraveis. Sua mulher, a duqueza de Abrantes, não foi menos celebre como escritora e como dama espirituosa. DOCUMENTOS N.^o 1 *Tratado secreto concluido em Fontainebleau entre o imperador dos francezes e el-rei de Hespanha* Napoleão por graça de Deus, etc., etc., etc., havendo lido e examinado o tractado concluido e assignado em Fontainebleau em 27 de outubro pelo general de divisão, Miguel Duroc, nosso mordomo mór, etc., etc., em virtude dos plenos poderes que para esse fim lhe démos, com D. Eugenio Izquierdo de Ribera y Lesaun, conselheiro d'estado honorario de sua magestade el-rei de Hespanha, egualmente munido de plenos poderes de seu soberano, cujo tractado está concebido na fórma seguinte: Sua magestade o imperador dos francezes, rei de Italia, etc., etc., e sua magestade catholica el-rei de Hespanha, desejando de sua livre vontade regular os interesses dos dois estados, e determinar a sorte futura de Portugal de uma maneira congruente com a politica de ambas as nações, nomearam para seus ministros plenipotenciarios, a saber: Sua magestade o imperador dos francezes ao general de divisão Miguel Duroc, mordomo mór de sua imperial casa, etc., e sua magestade catholica el-rei de Hespanha a D. Eugenio Izquierdo de Ribera y Lesaun, seu conselheiro d'estado honorario, etc., os quaes, depois de haverem trocado seus plenos poderes, convieram em o seguinte: Artigo 1.^o As provincias d'entre Douro e Minho com a cidade do Porto serão dadas com toda a sua propriedade e soberania a sua magestade el-rei de Etruria, com o titulo de rei da Lusitania septentrional. Art. 2.^o A provincia do Alemtejo e reino do Algarve serão dados com toda a sua propriedade e soberania ao principe da Paz, para os possuir com o titulo de principe dos Algarves. Art. 3.^o As provincias da Beira, Traz-os-Montes e Extremadura portugueza permanecerão em deposito até á paz geral, em que d'ellas então se disporá, conforme as circumstancia, e pela maneira que for determinada pelas altas partes contratantes. Art. 4.^o O reino da Lusitania septentrional será possuido pelos descendentes, herdeiros de sua magestade el-rei de Etruria, conforme as leis de successão observadas pela familia reinante de sua magestade catholica. Art. 5.^o O principado dos Algarves será hereditario na descendencia do principe da Paz, segundo as leis de successão, vigentes em a familia reinante de sua magestade el-rei de Hespanha. Art. 6.^o Por falta de descendente, ou legitimo herdeiro de el-rei da Lusitania septentrional, ou do principe dos Algarves será a investidura d'estes dois paizes garantida a sua magestade catholica, com a condição porém de que nunca ficarão reunidos em a mesma pessoa, nem á corôa de Hespanha. Art. 7.^o O reino da Lusitania septentrional e o principado dos Algarves reconhecem tambem como protector a sua magestade; e os soberanos d'estes paizes nunca poderão fazer a guerra, ou a paz sem o seu consentimento. Art. 8.^o No caso que as provincias da Beira, Traz-os-Montes, e Extremadura portugueza, conservadas como em sequestro, forem pela paz geral restituidas á casa de Bragança por troca de Gibraltar, Trindade, e outras colonias, que os inglezes hão conquistado aos hespanhoes e a seus alliados, o novo soberano d'estas provincias contrahirá para com sua magestade el-rei de Hespanha as mesmas obrigações, que ligam á sua augusta pessoa el-rei da Lusitania septentrional e o principe dos Algarves. Art. 9.^o Sua magestade el-rei de Etruria cede com toda a sua propriedade e soberania o reino de Etruria a sua magestade o imperador dos francezes, rei da Italia. Art. 10.^o Logo que se leve a effeito a occupação definitiva das provincias de Portugal, os principes respectivos, que d'ellas tomarem posse, nomearão entre si commissarios para demarcar os convenientes limites. Art. 11.^o Sua magestade o imperador dos francezes, rei da Italia, garante a sua magestade catholica el-rei de Hespanha a possessão de seus estados na Europa ao sul dos Pyrenéos. Art. 12.^o Sua magestade o imperador dos francezes, rei da Italia, annue a reconhecer sua magestade catholica, el-rei de Hespanha, como imperador das duas Americas, quando sua magestade catholica se resolver a tomar este titulo, o que terá logar pela paz geral, ou dentro de tres annos o mais tardar. Art. 13.^o Fica entendido entre as altas partes contratantes, que ellas repartirão egualmente entre si as ilhas, colonias, e mais possessões maritimas de Portugal. Art. 14.^o O presente tractado ficará secreto: será ratificado e as ratificações se trocarão em Madrid vinte dias o mais tardar depois da data em que foi assignado. Feito em Fontainebleau. _Duroc.--E. Izquierdo._ (_E logo por baixo_). Approvámos e approvâmos, pelas presentes ratificações o antecedente tractado, e todos, e cada um dos artigos que n'elle se contém. Declarâmos que fica acceito, ratificado e confirmado, e promettemos que será inviolavelmente observado. Em fé do que assignâmos com o nosso proprio punho as presentes ratificações, depois de lhe havermos feito pôr o nosso sêllo imperial. Fontainebleau aos 29 de outubro de 1807. NAPOLEÃO. O ministro dos negocios estrangeiros. _Champagny._ O ministro secretario d'estado. _H. B. Marat._ N.^o 2 EDITAL. O principe regente nosso senhor foi servido mandar remetter á mesa do desembargo do paço o decreto do teor seguinte. Tendo sido sempre o meu maior desvelo conservar em meus estados, durante a presente guerra, a mais perfeita neutralidade pelos reconhecidos bens que d'ella resultavam aos vassallos d'esta corôa; com tudo não sendo possivel conserval-a por mais tempo, e considerando, outrosim, o quanto convem á humanidade a pacificação geral: Houve por bem acceder á causa do continente, unindo-me a sua magestade o imperador dos francezes, rei de Italia, e a sua magestade catholica, com o fim de contribuir, quanto em mim fôr, para a acceleração da paz maritima. Por tanto, sou servido ordenar, que os portos d'este reino sejam logo fechados á entrada dos navios, assim de guerra, como mercantes, da Grã-Bretanha. A mesa do desembargo do paço o tenha assim entendido e faça executar, mandando affixar este por edital, e remetter a todos os logares, aonde convier, para que chegue á noticia de todos. Palacio de Mafra em vinte de outubro de mil oitocentos e sete.--Com a rubrica do principe regente nosso senhor.--Para que chegue á noticia de todos, se mandou affixar este edital.--Lisboa 22 de outubro de 1807.--_José Federico Ludovici_. N.^o 3 O governador de Paris, primeiro ajudante de campo de sua magestade o imperador, e rei, general em chefe, grão-cruz da ordem de Christo de Portugal. Habitantes do reino de Portugal.--Um exercito francez vae entrar no vosso territorio. Elle vem para vos tirar do dominio inglez, e faz marchas forçadas para livrar a vossa bella cidade de Lisboa da sorte de Copenhague. Mas será d'esta vez illudida a esperança do vosso perfido governo inglez. Napoleão, que fitou seus olhos na sorte do continente, viu a preza que os tyrannos dos mares antecipadamente devoravam em seu coração, e não soffrerá que ella cáia em seu poder. O vosso principe declarou a guerra á Inglaterra. Nós pois fazemos causa commum. Habitantes pacificos dos campos, nada receieis. O meu exercito é tão bem disciplinado, como valoroso. Eu respondo, sobre a minha honra, pelo seu bom comportamento. Ache elle por toda a parte o agazalho, que lhe é devido, como a soldados de Napoleão o grande. Ache elle, como tem direito a esperar, os viveres de que tiver precisão; mas sobre tudo o habitante dos campos fique socegado em sua casa. Eis o que eu vos prometto. Guardar-vos-hei minha palavra. Todo o soldado do exercito francez, que fôr achado roubando, será punido com o mais rigoroso castigo. Todo o individuo de qualquer ordem que seja, que tiver percebido alguma contribuição injustamente, será conduzido perante um conselho de guerra, para ser julgado segundo todo o rigor das leis. Todo o individuo do reino de Portugal, não sendo soldado da tropa de linha, que se apanhar fazendo parte de qualquer ajuntamento armado, será arcabuzado. Todo o individuo convencido de ser chefe de ajuntamento, ou de conspiração, tendente a armar os cidadãos contra o exercito francez, será arcabuzado. Toda a cidade, villa, ou aldêa, em que se derem tiros de espingarda contra a tropa franceza, será queimada. Toda a cidade, villa ou aldêa, em cujo territorio fôr assassinado um individuo pertencente ao exercito francez, pagará uma contribuição, que não poderá ser menor que tres vezes o seu rendimento annual. Os quatro habitantes principaes servirão de refens para o pagamento da somma; e para que a justiça seja exemplar, a primeira cidade, villa, ou aldêa, onde fôr um francez assassinado, será queimada, e arrasada inteiramente. Mas eu quero persuadir-me que os portuguezes hão de conhecer os seus verdadeiros interesses; que auxiliando as vistas pacificas do seu principe, nos receberão como amigos; e que particularmente a bella cidade de Lisboa me verá com prazer entrar em seus muros á frente de um exercito, que só a póde preservar de ser preza dos eternos inimigos do continente. Dada no meu quartel general d'Alcantara aos 17 de novembro de 1807.--_Junot._ N.^o 4 DECRETO Tendo procurado por todos os meios possiveis conservar a neutralidade, de que até agora tem gozado os meus fieis e amados vassallos, e apezar de ter exhaurido o meu real erario, e de todos os mais sacrificios a que me tenho sujeitado, chegando ao excesso de fechar os portos dos meus reinos aos vassallos do meu antigo e leal alliado o rei da Grã-Bretanha, expondo o commercio dos meus vassallos á total ruina, e a soffrer por este motivo grave prejuizo nos rendimentos da minha corôa: vejo que pelo interior do meu reino marcham tropas do imperador dos francezes e rei de Italia, a quem eu me havia unido no continente na persuasão de não ser mais inquietado, e que as mesmas se dirigem a esta capital: E querendo eu evitar as funestas consequencias, que se pódem seguir de uma defeza, que seria mais nociva que proveitosa, servindo só de derramar sangue em prejuizo da humanidade, e capaz de accender mais a dissensão de umas tropas que tem transitado por este reino com o annuncio e promessa de não commetterem a menor hostilidade; conhecendo egualmente que ellas se dirigem muito particularmente contra a minha real pessoa, e que os meus leaes vassallos serão menos inquietados, ausentando-me eu d'este reino: Tendo resolvido, em beneficio dos mesmos meus vassallos, passar com a rainha minha senhora e mãe, e com toda a real familia para os Estados da America, e estabelecer-me na cidade do Rio de Janeiro até a paz geral. E considerando mais quanto convem deixar o governo d'estes reinos n'aquella ordem, que cumpre ao bem d'elles e de meus povos, como cousa a que tão essencialmente estou obrigado, tendo n'isto todas as considerações que em tal caso me são presentes: Sou servido nomear para na minha ausencia governarem e regerem estes meus reinos o marquez de Abrantes, meu muito amado e prezado primo, Francisco da Cunha de Menezes, tenente general dos meus exercitos; o principal Castro do meu conselho e regedor das justiças; Pedro de Mello Breiner do meu conselho que servirá de presidente do meu real erario, na falta e impedimento de Luiz de Vasconcellos e Sousa, que se acha, impossibilitado com as suas molestias; D. Francisco de Noronha, tenente general dos meus exercitos e presidente da mesa da consciencia e ordens; e na falta de qualquer d'elles o conde monteiro mór, que tenho nomeado presidente do senado da camara, com a assistencia dos dois secretarios, o conde de Sampaio, e em seu logar D. Miguel Pereira Forjaz, e do desembargador do paço e meu procurador da corôa, João Antonio Salter de Mendonça, pela grande confiança que de todos elles tenho e larga experiencia que elles têem tido das cousas do mesmo governo; tendo por certo que os meus reinos e povos serão governados e regidos por maneira que a minha consciencia seja desencarregada, e elles governadores cumpram inteiramente a sua obrigação em quanto Deus permittir que eu esteja ausente d'esta capital, administrando a justiça com imparcialidade, distribuindo os premios e castigos conforme os merecimentos de cada um. Os mesmos governadores o tenham assim entendido, e cumpram na fórma sobredita, e na conformidade das instrucções que serão com este decreto por mim assignadas, e farão as participações necessárias ás repartições competentes. Palacio de Nossa Senhora da Ajuda em vinte e seis de Novembro de mil oitocentos e sete. Com a rubrica do principe regente nosso senhor. N.^o 5 *Instrucções a que se refere o meu real decreto de 26 de novembro de 1807* Os governadores, que houve por bem nomear pelo meu real decreto da data d'estas, para na minha ausencia governarem estes reinos, deverão prestar o juramento do estylo nas mãos do cardeal patriarcha, e cuidarão com todo o desvelo, vigilancia e actividade na administração da justiça, distribuindo-a imparcialmente, e conservando em rigorosa observancia as leis d'este reino. Guardarão aos nacionaes todos os privilegios, que por mim, e pelos senhores reis meus antecessores se acham concedidos. Decidirão á pluralidade de votos as consultas, que pelos respectivos tribunaes lhes forem apresentadas, regulando-se sempre pelas leis e costumes do reino. Proverão os logares de letras, e os officios de justiça e fazenda, na fórma até agora por mim practicada. Cuidarão em defender as pessoas e bens dos meus leaes vassallos, escolhendo para os empregos militares as que d'elles se conhecerem serem benemeritas. Procurarão, quanto possivel fôr, conservar em paz este reino, e que as tropas do imperador dos francezes e rei de Italia sejam bem aquarteladas, e assistidas de tudo que lhes fôr preciso, em quanto se detiverem n'este reino, evitando todo e qualquer insulto, que se possa perpetrar, e castigando-o rigorosamente, quando aconteça; conservando sempre a boa harmonia, que se deve practicar com os exercitos das nações, com as quaes nos achâmos unidos no continente. Quando succeda, por qualquer modo, faltar algum dos ditos governadores elegerão á pluralidade de votos quem lhe succeda. Confio muito da sua honra e virtude, que os meus povos não soffrerão incommodo na minha ausencia, e que, permittindo Deus que volte a estes meus reinos com brevidade, encontre todos contentes, e satisfeitos, reinando sempre entre elles a boa ordem e tranquillidade, que deve haver entre vassallos, que tão dignos se tem feito do meu paternal cuidado. Palacio de Nossa Senhora da Ajuda em vinte e seis de novembro de mil oitocentos e sete.--_Principe._ N.^o 6 *Decreto do Bonaparte impondo uma contribuição de guerra a Portugal* Napoleão, etc., etc., temos ordenado e ordenâmos o seguinte: Artigo 1.^o Uma contribuição extraordinaria de guerra de cem milhões de francos[2] será lançada sobre o reino de Portugal pelo resgate das propriedades particulares, qualquer que seja a denominação d'ellas. Art. 2.^o Esta contribuição será repartida por provincias e concelhos, segundo os respectivos meios, o que ficará a cargo do general em chefe do nosso exercito, que dará todas as providencias para ser promptamente cobrada. Art. 3.^o Sequestrar-se-hão todos os bens pertencentes á rainha, ao principe regente, e aos demais principes que disfructarem qualquer apanagio. Art. 4.^o Serão egualmente sequestrados todos os bens dos que acompanharam o principe regente no acto de abandonar o paiz, se não regressarem ao reino até 15 de fevereiro de 1808. Dado no palacio real de Milão em 23 de dezembro de 1807. NAPOLEÃO N.^o 7 *A deputação portuguesa enviada junto a sua magestade o imperador dos franceses e rei da Italia, protector da confederação do Rheno, aos compatriotas* A confiança que depositastes no grande principe, junto ao qual temos a honra de ser interpretes dos vossos sentimentos, e dos vossos votos, foi inspirada, menos pelo conhecimento dos interesses da patria, do que pelo desejo de confiar a decisão da nossa sorte ao poderoso genio, que, tendo restaurado o seu paiz, deu uma nova constituição á Europa. O tempo que nos demorámos na fronteira do imperio francez, e que precedeu a chegada de sua magestade imperial e real, cabalmente nos mostrou o imperio, que o grande monarcha exerce nos corações de todos. As acclamações cada vez mais vivas de seus subditos nos annunciaram o momento, em que devia completar-se a felicidade d'elles e começar a nossa. Sua magestade imperial e real concedeu o primeiro dia da sua chegada a Bayona aos seus subditos (este é o tributo ordinario do seu desvelo para com elles), e dignou-se conceder-nos o segundo. Sua magestade imperial e real conhecia, ainda mesmo antes de lh'as expormos, a vossa posição, as vossas necessidades e tudo quanto vos interessa. Se alguma cousa póde egualar o seu genio, é a elevação da sua alma e a generosidade dos seus principios. Ao passo, que sua magestade imperial e real se dignava falar-nos das nossas circumstancias politicas com affabilidade verdadeiramente paternal, fazia as reflexões mais interessantes ácerca da nossa felicidade, e manifestava os principios mais elevados a respeito do uso dos direitos que as circumstancias lhe deram. Não foi como conquistador que sua magestade imperial e real entrou no nosso territorio, nem como tal quer que o seu exercito ahi permaneça. O imperador sabe que nunca tivemos guerra com sua magestade imperial e real. Pela grande distancia, que separa a nossa patria do seu imperio, não póde sua magestade imperial e real vigiar sobre ella com a mesma attenção, com que vigia os outros Estados seus, e com que, satisfazendo a todas as necessidades d'elles satisfaz tambem o amor que sua magestade imperial e real consagra aos que têem a fortuna de ser seus subditos: seguem-se muitos inconvenientes da delegação de uma grande auctoridade em paizes mui distantes. Sua magestade imperial e real não nutre desejo algum de vingança, nem mostra rancor ao principe, que, nos governava, nem á sua real familia. Sua magestade imperial e real occupa-se de objectos mais nobres, e não tracta senão de nos ligar com as outras partes da Europa ao grande systema continental, do qual devemos fechar o ultimo annel: tracta de nos livrar da influencia estrangeira que nos dominou tantos annos: o imperador não póde consentir uma colonia ingleza no continente: o imperador não póde nem quer deixar aportar a Portugal o principe, que o deixou, confiando-se na protecção de navios inglezes. Sua magestade imperial e real, considerando a vossa situação, houve por bem declarar-nos que a nossa sorte dependia de nós; isto é, do espirito publico que mostrassemos, com o qual nos unissemos ao systema geral do continente, e concorressemos para os acontecimentos já preparados, assim como da nossa vigilancia e da firmeza, com que repellissemos as sugestões e intrigas que são de esperar, e que, sem proveito real para os que forem auctores, ou objectos d'ellas só pódem causar a nossa desgraça. Estes são os signaes por onde sua magestade imperial e real quer julgar se somos ainda dignos de formar uma nação capaz de sustentar no throno o principe, que nos governar, e de occupar entre as nações o logar que nos compete, ou se, devemos ser confundidos com aquella, cuja posição mais se approxima de nós mas de quem tão grandes motivos nos afastam. Vereis com reconhecimento e admiração nestas sabias disposições os profundos conhecimentos de sua magestade imperial e real, que não quer decidir a sorte de um Estado, senão conforme os seus desejos manifestados por factos. Cumpre aos magistrados e ás pessoas mais auctorizadas que existem entre vós, cumpre a vós todos dar a maior publicidade ás beneficas intenções de sua magestade imperial e real. Esperâmos pois que confirmareis os protestos que lhe fizemos em vosso nome. Quando um grito unanime, arrancado no fundo dos nossos corações, mostrou o desejo que tinhamos de ser uma nação, então mais do que nunca nos julgámos dignos interpretes dos vossos sentimentos. O imperador, que depois de tantas tempestades soube fazer da sua patria o primeiro paiz do mundo, deverá conhecer que a nossa não merece ser o ultimo. Sua magestade imperial e real conhece as privações que a interrupção momentanea do commercio vos faz supportar: vosso estado a este respeito é o mesmo que o do resto da Europa e que o da America; é consequencia de uma lucta, cujo futuro resultado vos póde compensar os trabalhos do tempo actual; tambem não esqueceu a sua magestade imperial e real a coacção, em que vos poz a entrada de um exercito estrangeiro. O imperador deseja ardentemente prevenir que esta desgraça se renove. Affigiu assáz seu coração o pezo da contribuição que opprime Portugal: a sua bondade lhe dictou a promessa de a reduzir conforme fosse compativel com os nossos haveres. Os portuguezes, que estavam prisioneiros em França, graças á clemencia do imperador, gozam já da liberdade. Sua magestade imperial e real nos auctoriza para que vos participemos as suas intenções, certos que ellas excitarão em vós a maior gratidão e o mais sincero desejo de lhe corresponderdes. Continuaremos a preencher junto a sua magestade imperial e real, e conforme suas ordens, uma missão que não tem difficuldades, pois que a bondade do imperador se une á sua sabedoria para simplificar os nossos maiores interesses. Bayona, 27 da Abril de 1808==(_assignados_) marquez de Penalva==marquez de Marialva==D. Nuno Caetano Alvares Pereira de Mello==marquez de Valença ==marquez de Abrantes==marquez de Abrantes, D. José==conde do Sabugal==Francisco, bispo de Coimbra==conde de Arganil==José, bispo, inquisidor geral==visconde de Barbacena==D. Lourenço de Lima==D. José, prior mór da ordem militar de S. Bento de Aviz==Joaquim Alberto Jorge==Antonio Thomaz da Silva Leitão. N.^o 8 *Representação feita em Lisboa na junta dos tres Estados pelos pseu-deputados de todas as classes* Ordenando o general Junot que na junta dos tres Estados se ajuntassem os deputados de todas as ordens civis para expressarem o voto geral da nação, em consequencia do que a deputação portugueza havia communicado na sua carta escrita do Bayonna em 27 de abril de 1808, foram nomeados por esta conferencia secreta os seguintes: _Pelo clero_. O principal Miranda, decano. O principal Noronha, seu immediato. _Pela nobreza_. O conde de Peniche, que presidia no conselho de fazenda. D. Francisco Xavier de Noronha, presidente da meza da consciencia e ordens. _Pela municipalidade e povo_. O desembargador João José de Faria da Costa Abreu Guião, que presidia no senado da camara. O desembargador Luiz Coelho Ferreira Faria, seu immediato. O juiz do povo. O escrivão do povo. _Pela ordem da magistratura_. O desembargador Nicolau Esteves Negrão, chanceller mór do reino. O desembargador Lucas de Seabra da Silva, chanceller da caza da supplicação. Estes dez deputados, juntando-se aos da junta dos tres Estados, que então eram o conde da Ega, que presidia por ser titulo mais antigo, o conde de Almada, e o conde de Castro Marim filho, todos elles assim reunidos, formularam de commum accordo a seguinte representação: Senhor:--Os representantes da nação portugueza, conhecida nos annaes do mundo, e celebre, atrevemo-nos a dizêl-o, pelas suas conquistas e pela sua fidelidade, teem a honra de apresentar-se ao throno augusto de vossa magestade imperial e real. Os acontecimentos extraordinarios, senhor, que agitaram a Europa toda comprehenderam Portugal: uma politica mal entendida fez a esta nação victima innocente dos males que tem experimentado. A consideração dos interesses e relações que formam o presente systema federativo da Europa, e as disposições beneficas de vossa magestade para com Portugal, nos fazem conceber as mais lisongeiras esperanças de futura felicidade, accolhendo-nos debaixo da magnifica protecção do heroe do mundo, do arbitro dos reis e dos povos, que só póde cicatrizar as feridas da patria, defendel-a do perigo da escravidão, e dar-lhe, entre as potencias da Europa, aquelle logar distincto, que as profundas vistas politicas de vossa magestade lhe tem desde já, como esperâmos, designado. As circumstancias do tempo presente e a probabilidade do que ha de vir nos faz conceber a causa dos males que temos soffrido e o unico remedio a que devemos recorrer. Interpretes e depositarios dos votos da nação, em nome de toda ella rogâmos e aspirâmos a formar um dia parte da grande familia, de que vossa magestade é pae benefico e soberano poderoso, e nos lisongeâmos, senhor, que ella merece tal graça. Ninguem melhor do que o representante de vossa magestade, o general em chefe do exercito de Portugal, e com elle todo o seu exercito, póde dar maiores testemunhos do espirito publico, que anima uma nação, que apezar dos maiores sacrificios e privações, que as actuaes circumstancias lhe têem feito experimentar, nada foi capaz de a fazer afrouxar em os sentimentos de admiração, de respeito e de gratidão que todos nós professâmos a vossa magestade, antes pelo contrario a intriga, as insinuações d'aquelles que se oppõem ao nosso socego, e o pessimo exemplo dos nossos visinhos não fizeram mais do que augmentar estes mesmos sentimentos, desenvolvendo aquelle antigo germen de affeição, que sempre subsistiu entre estas duas nações, lembrando-se os portuguezes de que o seu primeiro soberano fôra o conde D. Henrique, principe francez. Achâmo-nos, pois, plenamente convencidos de que Portugal não póde conservar a sua independencia, animar a sua energia e o caracter de sua propria dignidade, sem recorrer ás benevolas disposições de vossa magestade. Ditosos seremos se vossa magestade nos considerar dignos de ser contados no numero de seus fieis vassallos; e quando pela nossa situação geographica, ou por outra qualquer razão, que a alta consideração de vossa magestade tenha concebido não possamos lograr esta felicidade, seja vossa magestade quem nos dê um principe da sua escolha, ao qual entregaremos, com inteira e respeitosa confiança, a defeza das nossas leis, dos nossos direitos, da nossa religião e de todos os mais sagrados interesses da patria. Debaixo dos auspicios da Providencia, debaixo da gloriosa protecção de vossa magestade e do governo tutelar, que respeitosa e unanimemente supplicâmos, nos lisongeâmos esperar, senhor, que Portugal assegurado para sempre da affeição do maior dos monarchas, e unido por uma mesma constituição politica aos destinos da França, verá renascer os ditosos dias da sua antiga grandeza; a sua prosperidade será solida como a vossa gloria, eterna como o vosso nome. Lisboa, 24 de maio de 1808. _Copiada do Correio Braziliense_--Vol. 13.^o fl. 738. _N. B._ Foi esta mensagem assignada pelo conde da Ega, como presidente d'aquella commissão secreta, e bem assim por todos os titulares e mais fidalgos que se achavam em Lisboa, á excepção do marquez das Minas, o unico que a isso se recusou. Os signatarios de modo algum representavam a nação, com cujos interesses pouco se importavam; tinham apenas em mira obter de Napoleão a conservação das regalias e privilegios que Filippe II e D. João IV haviam confirmado a seus antepassados. A _Junta dos Tres Estados_, de que era presidente o conde da Ega, só tinha attribuições administrativas, não se parecendo em cousa alguma com as antigas côrtes do reino. O juiz do povo foi obrigado a assignar esta representação contra a qual havia a principio protestado. N.^o 9 *Projecto para a constituição de Portugal* Lembrando-se os portuguezes, de que são de raça franceza, como descendentes dos que conquistaram este bello paiz aos mouros em 1147, e que devem á França, sua mãe patria, o beneficio da independencia que recobraram como nação em 1640, solicitos recorrem cheios de respeito e gratidão á paternal protecção que o maior dos monarchas ha por bem outorgar-lhes. Dignando se o immortal Napoleão patentear-nos a sua vontade por orgão de nossos deputados, quer que sejamos livres, e que nos liguemos com indissoluveis laços ao systema continental da familia europea, quer as nações, que compõem esta grande familia vivam unidas, e que prestes possam gosar das delicias de uma prolongada paz, á sombra dos sabios governos fundados nas grandes bazes da legislação e da liberdade maritima e commercial. É portanto do nosso peculiar interesse, assim como dos outros povos confederados, que a nossa deputação continue a ser junto a sua magestade imperial e real a interprete de nossos unanimes votos e que lhe diga: Senhor! desejamos ser ainda mais do que eramos quando abrimos o Oceano a todo o universo; Pedimos uma constituição e um rei constitucional, que seja principe de sangue de vossa imperial familia; Dar-nos-hemos por felizes se tivermos uma constituição em tudo similhante á que vossa magestade imperial e real houve por bem outorgar ao grão-ducado de Varsovia, com a unica differença de que os representantes da nação, sejam eleitos pelas camaras municipaes, a fim de nos conformarmos com nossos antigos usos; Queremos uma constituição, na qual, á similhança de Varsovia, a religião catholica, apostolica, romana seja a religião do Estado; em que sejam admittidos os principios da ultima concordata entre o imperio francez e a santa sede; pela qual sejam livres todos os cultos e gozem da tolerancia civil e de exercicio publico; em que todos os cidadãos sejam eguaes perante a lei; em que o nosso territorio europeu seja dividido em oito provincias, assim a respeito da jurisdicção ecclesiastica, como da civil, de maneira que só fique havendo um arcebispo e sete bispos; em que as nossas colonias, fundadas por nossos avós, e com o seu sangue banhadas, sejam consideradas como provincias, ou districtos, fazendo parte intregante do reino, para que seus representantes, desde já designados, achem em a nossa organização social os logares que lhes pertencem, logo que venham, ou possam vir occupal-os; em que haja um ministerio especial para dirigir e inspeccionar a instrucção publica; em que seja livre a imprensa, por quanto a ignorancia e o erro tem originado a nossa decadencia; em que o poder executivo seja assistido nas luzes de um conselho d'Estado, e não possa obrar senão por meio de ministros responsaveis; em que o poder legislativo seja exercido por duas camaras com a concorrencia da auctoridade executiva; em que o poder judicial seja independente, o codigo de Napoleão posto em vigor, e as sentenças proferidas com justiça, publicidade e promptidão; em que os empregos publicos sejam exclusivamente exercidos por nacionaes que melhor os merecerem, conforme o que se acha determinado no artigo 2.^o da constituição polaca; em que os bens de mão morta sejam postos em circulação; em que os impostos sejam repartidos segundo as posses e fortuna de cada um sem excepção alguma de pessoa ou classe e da maneira que mais facil e menos oppressiva fôr para os contribuintes; em que toda a divida publica se consolide e garanta completamente visto, haver recursos para lhe fazer face. Queremos egualmente que a organização pessoal da administração civil, fiscal e judicial, seja conforme o systema francez, e por conseguinte se reduza o numero immenso de nossos funccionarios; mas desejâmos e pedimos que todos os empregados que ficarem fóra dos quadros recebam sempre os ordenados, ou pelo menos uma proporcionada pensão, _e que nas vacaturas tenham preferencia a outros quaesquer_. Era sem duvida inutil lembrar esta medida de equidade ao grande Napoleão; mas como sua magestade imperial e real quer conhecer a nossa opinião em tudo o que nos convem, evidentemente nos prova que é mais pae do que soberano nosso, dignando-se consultar seus filhos, e prestar-lhes os meios de serem felizes. _Viva o imperador!_ N.^o 10 O general em chefe do exercito francez em Portugal, em nome de sua magestade o imperador dos francezes, rei de Italia, e em observancia das suas ordens, decreta: Artigo 1.^o O reino de Portugal será d'aqui por diante administrado todo inteiro, e governado em nome de sua magestade o imperador dos francezes, rei de Italia, pelo general em chefe do exercito francez em Portugal. Art. 2.^o O conselho de regencia, creado por sua alteza real o principe do Brazil, no momento em que este principe abandonou o reino de Portugal, fica supprimido. Art. 3.^o Haverá um conselho de governo, presidido pelo general em chefe, composto de um secretario de Estado encarregado da administração do interior, e das finanças, com dois conselheiros de governo, um encarregado da repartição do interior, e outro encarregado da repartição das finanças. De um secretario de Estado encarregado da repartição da guerra, e da marinha, com um conselheiro de governo encarregado da repartição da guerra, e da marinha. De um conselheiro de governo encarregado da justiça, e dos cultos, com o titulo de regedor. Haverá um secretario geral do conselho encarregado dos archivos. Art. 4.^o Os senhores corregedores das comarcas, juizes de fóra, juizes do crime e juizes ordinarios; os desembargadores dos differentes tribunaes, o senado da camara de Lisboa, a junta do commercio, as diversas camaras, o presidente do terreiro público, em uma palavra, todos os encarregados da administracção publica são conservados, á excepção das reducções que o interesse publico mostrar que é necessario fazerem-se pelo tempo adeante, e das mudanças nos objectos relativos a seus cargos, que a nova organização do governo julgar indispensaveis. Art. 5.^o Mr. Herman é nomeado secretario do Estado, encarregado da repartição do interior e das finanças. D. Pedro de Mello é nomeado conselheiro de governo, da repartição do interior. O senhor d'Azevedo da repartição das finanças. Mr. Lhuitte é nomeado secretario de Estado, encarregado da guerra e da marinha. O sr. conde de São Paio é nomeado conselheiro de governo, da repartição da guerra, e da repartição da marinha. O senhor principal Castro é nomeado conselheiro de governo encarregado da justiça e dos cultos, com o titulo de regedor. Mr. Viennez-Vaublanc é nomeado secretario geral. Art. 6.^o Haverá em cada provincia um administrador geral com o titulo de corregedor mór, encarregado de dirigir todos os ramos da administração, de vigiar sobre os interesses da provincia, de indicar ao governo os melhoramentos que devem fazer-se, tanto a respeito da agricultura, como da industria; devendo corresponder-se sobre qualquer d'estes objectos com o secretario de Estado da competente repartição, e com o regedor, pelo que pertencer á justiça, e ao culto. Haverá egualmente em cada provincia um official general encarregado de manter a ordem, e a tranquillidade: as suas funcções são puramente militares; mas nas ceremonias publicas, terá seu logar á direita do corregedor mór. Haverá um corregedor mór na provincia da Estremadura, que residirá em Coimbra, e um corregedor mór na cidade de Lisboa, e seu termo, o qual será demarcado de uma maneira exacta. Art. 7.^o O presente decreto será impresso, e affixado em todo o reino, para ter força de lei. O secretario de Estado do interior, e das finanças, o secretario de Estado da guerra, e da marinha, e o regedor são encarregados de sua execução, cada um pela parte que lhe toca. Dado no palacio do quartel general no primeiro de fevereiro de 1808.==_Junot_. N.^o 11 O governador de Paris, primeiro ajudante de campo de S. M. o imperador e rei, general em chefe decreta: Da data d'este em deante todos os actos publicos, leis, sentenças, etc., etc., de qualquer natureza que sejam, que até agora se faziam e processavam em nome de S. A. R. o principe regente de Portugal, principiarão pela fórmula seguinte: _Em nome de S. M. o imperador dos francezes, rei de Italia, protector da confederação do Rheno_. Todos os actos administrativos, e na execução, relativos a qualquer decreto, ou ordem, emanados do actual governo, terão, além da fórmula acima, a seguinte: _E em consequencia do decreto, ou das ordens de sua excellencia o governador de Paris, primeiro ajudante de campo de S. M., e general em chefe do exercito francez em Portugal._ A formula empregada pelo governo, será: _Em nome de S. M. o imperador dos francezes, rei de Italia, protector da confederação do Rheno, ouvido o conselho do governo:_ (quando o conselho tiver sido consultado.) _O governador de Paris, primeiro ajudante de campo de S. M., general em chefe do exercito francez em Portugal_, DECRETA. E quando não tiver havido deliberação no concelho, a fórmula será: _Em nome de S. M. o imperador dos franceses_, etc., etc.. _O governador de Paris_, etc., etc., _decreta ou ordena_: O sello do governo será o mesmo do imperio francez, com esta leganda: _Governo de Portugal_. O secretario de Estado do interior, e das finanças, o secretario de Estado da guerra, e da marinha, e o regedor, são encarregados da execução do presente decreto, cada um pela parte que lhe toca. Dado no palacio no quartel general no primeiro de fevereiro de 1808. INDICE I--Quando Deus queria... do norte chovia 5 II--De um argueiro um cavalleiro 17 III--Um conciliabulo politico no anno de 1808 25 IV--Reina a confusão no campo de Agramante 36 V--Francezes á meia noite 46 VI--Uma visão pouco sobrenatural 56 VII--Primeiros clarões de um grande dia 67 VIII--Ralham as comadres descobrem-se as verdades 77 IX--O Pae e a filha 92 X--Antes de se levantar o panno 105 XI--A batalha 116 XII--Sol entre nuvens 131 XIII--Conclusão 142 Notas ao segundo volume 151 Documentos 157 *Notas:* [1] Vidé General Foy, _Histoire de la Guerre de la Peninsule_ livro IX. _Dêpeches et ordres du jour du Feld Marechal duc de Wellington_, (Recueil choisi) N.^o 228-261. _Successos de Portugal, ou Prodigiosa Restauração da Lusitania Feliz_. Por um Portuguez. Lisboa 1809 pag. 17 e seguintes. [2] Em consequencia da deputação enviada a Bonaparte foi esta contribuição reduzida a 50 milhões de francos. Lista de erros corrigidos Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos: +----------+---------------------+----------------------+ | | Original | Correcção | +----------+---------------------+----------------------+ |#pág. 18| imperader | imperador | |#pág. 27| Antonia | Antonio | |#pág. 27| assentados | assentado | |#pág. 29| lovantadas | levantadas | |#pág. 48| asssim | assim | |#pág. 58| ?adre | padre | |#pág. 64| Aquella | Aquelle | |#pág. 64| tanto | tanta | |#pág. 65| seria | se ria | |#pág. 75| vagarosa | vagaroso | |#pág. 78| personagem | personagens | |#pág. 80| um imagem | uma imagem | |#pág. 85| ter pôr | têr por | |#pág. 92| entres | entre | |#pág. 93| preco | preço | |#pág. 96| reguendo-se | erguendo-se | |#pág. 100| palavras | palavra | |#pág. 106| proscripto | proscriptos | |#pág. 110| meia baterio | meia bateria | |#pág. 111| guarmição | guarnição | |#pág. 126| Eil--os | Eil-os | |#pág. 128| ásua | á sua | |#pág. 128| os alento | o alento | |#pág. 146| pedemos | podemos | |#pág. 175| _Itatia_ | _Italia_ | +----------+---------------------+----------------------+ Foram mantidas as variações de nomes próprios. End of the Project Gutenberg EBook of A Casa dos Fantasmas - Vol II, by Luís Augusto Rebelo da Silva *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A CASA DOS FANTASMAS - VOL II *** ***** This file should be named 26605-8.txt or 26605-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/6/6/0/26605/ Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. 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Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License (available with this file or online at http://gutenberg.org/license). Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email [email protected]. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at http://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director [email protected] Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit http://pglaf.org While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: http://pglaf.org/donate Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: http://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.