A Casa dos Fantasmas - Volume I

By Luiz Augusto Rebello da Silva

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Luiz Augusto Rebello da Silva

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Title: A Casa dos Fantasmas - Volume I
       Episodio do Tempo dos Francezes

Author: Luiz Augusto Rebello da Silva

Release Date: May 5, 2008 [EBook #25330]

Language: Portuguese


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     *Nota de editor:* Devido à quantidade de erros tipográficos
     existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à
     versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com
     o original. No final deste livro encontrará a lista de erros
     corrigidos.

     Rita Farinha (Maio 2008)




VOLUMES PUBLICADOS


I--Ráusso por homizío
II--Odio velho não cança (1.^o)
III--Odio velho não cança (2.^o)
IV--A Mocidade de D. João V (1.^o)
V--A Mocidade de D. João V (2.^o)
VI--A Mocidade de D. João V (3.^o)
VII--A Mocidade de D. João V (4.^o)
VIII--A Mocidade de D. João V (5.^o)
IX--Lagrimas e thesouros (1.^o)
X--Lagrimas e thesouros (2.^o)
XI--A Casa dos Fantasmas (1.^o)
XVI--Othello--As redeas do governo
XVII--A mocidade de D. João V (drama).
XVIII--O amor por conquista (comedia)--O Infante Santo (fragmento).
XIX--Fastos da Egreja (1.^o)
XX--Fastos da Egreja (2.^o)
XXI--Fastos da Egreja (3.^o)
XXII--Fastos da Egreja (4.^o)




OBRAS COMPLETAS DE LUIZ AUGUSTO REBELLO DA SILVA
REVISTAS E METHODICAMENTE COORDENADAS


XI


ROMANCES E NOVELLAS--V


A CASA DOS FANTASMAS


EPISODIO DO TEMPO DOS FRANCEZES

2.^a EDIÇÃO

VOLUME I


LISBOA

Empreza da Historia de Portugal

_Sociedade editora_

LIVRARIA MODERNA
_R. Augusta, 95_

TYPOGRAPHIA
_45, R. Ivens, 47_

1908




A CAMILLO CASTELLO BRANCO


Seja-me licito, amigo, dedicar-lhe este esboço informe, fructo de
algumas horas de ocio. Quem melhor, do que o auctor de tantas
composições profundas na interpretação da vida, admiraveis na pintura do
coração e dos costumes contemporaneos, poderá desculpar o muito, que
falta n'este quadro para sair menos imperfeito, e ao mesmo tempo
apreciar em um, ou outro traço, os bons desejos e os esforços do auctor?

A epocha, que escolhi, pedia pincel mais fino, e tintas mais vivas.
Tentei vencer-me, e desenhal-a. Sei que fiquei mui inferior ao ideal,
que tinha concebido, e receio mesmo, que o enfado dos leitores castigue
a ousadia do commettimento. Espero, que o seu nome applaudido sirva de
escudo e de defensor ao modesto livro, de que elle vae ser o maior
ornamento.

Não o consultei para lhe offerecer este testemunho da minha antiga e
sincera amisade. Adivinhei a resposta, e ahi entrego em suas mãos mais
este orphão, que sae a correr o mundo. Deus lhe conceda a sorte
propicia, que elle não merece, mas que ás vezes uma boa sina proporciona
mesmo aos menos dignos.

Lisboa, 22 de Janeiro de 1865


                                          Luiz Augusto Rebello da Silva.





A CASA DOS FANTASMAS



I

Uma noite desabrida


Era de tarde. Tinham dado cinco horas, e o dia declinava rapidamente. O
mez de maio do anno 1808, anno assignalado de successos estrondosos na
peninsula, acabava, como tinha corrido quasi todo, entre diluvios de
chuva e ventanias. A noite, cujos primeiros veus já começavam a cobrir
as terras baixas, em quanto os derradeiros raios do sol esmoreciam na
corôa dos outeiros, avisinhava-se, toldada de castellos de nuvens, que
surgiam do sul, listrando o horizonte de barras cinzentas, rasgadas de
espaço em espaço pelos clarões dos relampagos.

O ar estava tepido, ou antes quente, e todos os ruidos se iam calando
uns após outros. A immobilidade das aguas, que não arrugava o mais leve
sopro; a das arvores, cujas copas pareciam petrificadas; e as sombras,
que avultavam mais pesadas de instante para instante, revestiam a
paizagem de um aspecto gelido. Uma lufada de vento, halito abrazado da
tormenta, passava solta por cima dos campos, acamando as hervas altas,
destoucando os arbustos, e saccudindo as ramas das oliveiras, dos
alamos, e das faias, e ia morrer distante no roncar soturno e rouco dos
trovões. Algumas gotas, raras e grossas, caiam então, e a luz, offuscada
por mais espessos vapores, sumia-se de subito para reviver depois, mas
timida e desmaiada, sem alegria e sem calor. As aves fugiam, cruzando-se
e pipitando; a solidão quasi que não tinha echos; e um silencio lugubre
precedia a grande voz da tempestade, que ia principiar dentro em pouco.

Apezar das ameaças da atmosphera, um viajante trocando o conchego de
povoação commoda pelas inclemencias do tempo, tinha-se despedido da
hospitaleira casa, aonde jantára, e mettendo o pé no estribo de pau, e
apertando as dobras da manta ribatejana, sem escutar os conselhos e
vaticinios amigaveis, estimulava a mula com as largas rosetas da
classica espora de correia, obrigando-a a espertar o passo por entre os
viçosos pampanos, hoje gloria e gala da nobre villa do Cartaxo.

Em breve deixou atraz de si as vinhas, que, a esse tempo, (cultura
nascente) apenas verdejavam em uma pequena parte do terreno, que se
carrega agora de seus cachos, e achando-se em plena charneca, extendeu
os olhos pela bella e vasta planicie, desatada por algumas leguas de
ermo, não triste, nem agreste, mas tocado de risonha suavidade, e
rodeado de longes tão puros e desafogados, que a alma se consola e
refrigera de extender por elle os olhos.

O aroma alpestre das plantas; aquelle pôr do sol entre nuvens; os
lamentos da procella ao sul; e o vago indeciso de todo o quadro
compunham um espectaculo de opposições tão firmes e tão bellas, que o
viajante, quasi sem o querer, se deixou arrebatar por elle, e
insensivelmente foi imbebendo a vista nas formosuras rusticas, que de
todos os lados o convidavam. Suas feições, de uma gentileza viril e
sympathica, não inculcavam tedio ou cansaço, mas impaciencia. A elevada
estatura não se encurvava sobre os arções, e as pupillas pretas e cheias
de fogo, se a miudo fitavam os trilhos enredados com estreitas fitas
sobre o verde sombrio da charneca, denunciavam mais receio de chegar
tarde a um ponto dado, do que temor de se ver assaltado pelo temporal no
meio da jornada.

A mula, que algumas horas de repouso tinham refrescado, como se
adivinhasse os desejos do amo, despejava o passo, e o caminho; mas a
noite e a cerração ainda corriam mais. Á claridade baça do crepusculo
seguiram-se as trevas; o céu forrou-se todo de negro; e os primeiros
furacões bramiram acompanhados de um trovão proximo. A chuva principiava
a fustigar de rajadas fortes o rosto do viajante, e a cegar-lhe a
estrada inundada dos dias anteriores, e arrombada em diversas partes. A
mula, apezar de afouta e vigorosa, atolava-se, tropeçando a miudo. Na
ponte da Asseca, a varzea, que ella corta, parecia um immenso paul,
cujas aguas a cheia despenhada dos altos empolava com sussurros, que,
unidos aos silvos do vento e aos ribombos da trovoada, enchiam de horror
e de estrepito aquella scena, tão repassada de grandeza e de magestade.

Á esquerda os olivaes pendurados dos montes, que se encandeiam até
Santarem, estorciam-se com o vendaval. Á direita os choupos e os
freixos, na beira dos vallados, vergavam tremulos e desgrenhados como se
mão gigante os dobrasse. O caminho parecia um mar, e os clarões, em que
os céus pareciam abrir-se, golfavam de repente o seu fulgor sinistro
sobre este painel, que o tenebroso manto da procella tornava logo depois
a esconder.

Atravessando a ponte, por onde enxurrava quasi uma torrente, o viajante
procurou orientar-se. Ajudou-o uma luz ao longe. Seguindo por ella, no
fim de dez minutos encontrou-se junto do vulto massiço de um palacio
arruinado, solitariamente erguido no meio das terras, e olhando quasi
como sentinella esquecida para um angulo da estrada. Em uma das seis
janellas sem caixilhos da fachada, através das fendas das portas de
dentro, ou antes das tábuas de forro pregadas em logar de vidros,
brilhava a luz que lhe servira de norte, e pelas gretas mal juntas das
frestas do andar terreo luzia o clarão de um grande brazeiro talvez
acceso na cozinha. Applicando o ouvido sentiam-se estalar no lume os
troncos humidos, e escutava-se o meio alarido de algumas vozes e
risadas.

--Ah! exclamou o cavalleiro, detendo a mula, e derrubando sobre a cara
por um gesto machinal as largas abas do chapéu de Braga, quebradas pela
chuva. Gente na casa Negra! Quem?!...

Depois de breves momentos pareceu tomar uma resolução, e a passo,
chapinhando na agua, como se passasse um ribeiro, desviou-se, atravessou
para o outro lado, e cozido com o monte subiu por vereda ingreme até um
alto a tres ou quatro tiros de espingarda de distancia. Pelos corregos,
a uma e outra parte, estrepitavam verdadeiros riachos saltando pelas
pedras, e um relampago, fuzilando e extendendo como um lençol de fogo
por cima das trevas, descubriu-lhe repentinamente a casinha caiada, de
dois sobrados, tecto esguio, e duas janellinhas, que buscava. Cercava-a
um muro baixo de pedras soltas. O ruido monotono de uma roda, e a queda
de uma especie de cascata, sobrepujando o esparralhar da chuva, e os
gemidos do vento mostraram-lhe que estava na azenha de cima, ou no
moinho da _Raposa_, como diziam os visinhos dos arredores.

Sem se apeiar, o viajante bateu com o conto ferrado do cajado de
marmeleiro por duas vezes tres pancadas na porta, e esperou. Não foi
necessario mais. Os latidos feros de um cão de guarda, e logo depois
vagarosos passos descendo a escada, advertiram-o de que fôra ouvido.

--Oh, de dentro! bradou.

--Quem bate?! perguntou uma voz cheia.

--Eu!

--Esse eu quem é?...

--Abre!...

--Pois não!... Ao mesmo tempo o ouvido fino do recem-chegado percebeu o
leve tinir dos fechos de uma espingarda a engatilhar-se.

--Antonio! Pelo rei e pela patria!...

--Ah?! Agora é outro cantar. Lá vou.

E calando o cão, que pulava, ladrando e rosnando como furioso,
desencostou a tranca, tirou o ferrolho, e a chave rangeu duas voltas na
fechadura. Abriu-se finalmente a porta.

--Então quem é? repetiu a mesma voz, em quanto a cabeça se arriscava
fóra no escuro, sem a mão largar a espingarda.

--Manuel Coutinho. Conheces-me agora? redarguiu o hospede, apeiando-se,
e expremendo do chapéu a agua a escorrer em bica, e saccudindo a manta,
que não estava menos ensopada.--Que diluvio! murmurava por entre dentes
ao mesmo tempo. Se continúa, nadam ámanhã os saveis na tua horta,
Antonio da Cruz!

--Que se lhe ha de fazer! Como v. s.^a vem!... Bemdito e louvado seja
Deus!...

--Amen! Elle seja comnosco e nos ajude, que bem o precisâmos; redarguiu
o mancebo, porque o seu rosto moreno, mas fresco, e o cabello preto não
inculcavam mais de vinte e quatro a vinte e cinco annos.

--Cuidei que me recebias a tiro! disse rindo, e mostrando duas fiadas de
dentes finos, alvos, e eguaes, que uma dama franceza lhe invejaria para
ornar um sorriso galanteador.

--Bem vê a noite?!... Depois a gente não sabe quem lhe quer mal, e uma
bala depressa entra... Cá me entendo!... D'ahi não esperava já por v.
s.^a!...

--Não me esperavas?... mas eu tinha dito!...

--É verdade, que disse. Mas choviam raios e coriscos e sempre cuidei que
se deixasse lá ficar em baixo. Dê-me a redea da mulinha. Então não sahiu
como se queria? Foi um ovo por um real. Entre v. s.^a e enxugue-se. Vou
cá á nossa arribana, com sua licença, arranjar a Ligeira, e é um ai em
quanto volto a accender-lhe o lume... Jesus! Santo Nome de Maria! Os
relampagos cegam. Parece que nos cae o céu esta noite na cabeça com a
bulha lá de cima!

Manuel Coutinho entrou. O interior da casa, muito seu conhecido, era de
apparencia singela e rustica. Suspensa do gancho preso em uma das vigas
do tecto a candeia allumiava-a escassamente, apezar de pequena. No meio
da parede do fundo rasgava-se a chaminé baixa e ladrilhada. Á direita
uma arca de pinho alta, sem fechadura, tinha em cima um cobertôr de
papa, e sobre elle enroscado com uma fisga aberta á vigilancia em cada
olho, o gato preto do moinho, tão absorvido na sua beatitude extatica, e
na sua pachorrenta immobilidade, que os latidos do cão amigo e alliado
domestico, e as vozes do dono, nem um movimento lhe tinham podido
arrancar! Á esquerda a barra de pinho pintado tremia sobre tres pés
validos. Na cabeceira um devoto registo do milagre da Senhora da
Nazareth correspondia a outro do glorioso confessor Santo Antonio,
pregado na parede com obreias. A manta sobre o enxergão e duas pelles de
carneiro compunham a roupa d'este catre de cenobita.

Á direita, em todo o comprimento da casa, viam-se empilhados muitos
sacos de trigo destinados á mó alveira da azenha. Os de milho jaziam
mais adeante em pilhas. A fina flôr da farinha escapando-se pelas
aberturas revoava ao menor abalo, polvilhando tudo em roda. Por cima de
algumas pelles de lebre e de coelho, extendidas a seccar na parede,
pendiam o polvorinho de chifre com o fundo, ou rodella de pau, e a bolsa
de couro, ou chumbeiro, attestado de munição e pederneiras. Em um
armario, vasado no muro, e resguardado com sua cortina de riscado azul,
luziam, como prata, pelo aceio, a chaleira e a almotolia de lata, e
acastellavam-se duas rumas de pratos. Dos lados, sumptuosidade rara (!),
duas caçarolas de folha de Flandres e cabos de ferro acompanhavam a
baixella de louça. Em uma prateleira por cima da chaminé a caixa da isca
e alguns tachos e frigideiras de barro esperavam a hora de serem
chamados a serviço activo.

Uma escada empinada, de degráus toscos, verdadeiro quebra-costas, subia
de um dos angulos para o andar de cima, aonde um alçapão erguido e
quadrado abria as fauces, como se quizesse engulir os que entrassem. Era
ahi a labutação principal do moinho. As mós, rodando e zoando,
ensurdeciam casadas no ruido somnolento com a queda da levada, que por
uma longa calha de pau descia da preza a ferir a roda, e d'esta,
saltando em cachões dos baldes, ia espadanar no canal, d'onde fugia
ainda espumante a regar as hortas e as terras dos visinhos.

Dois mochos de cerejeira brava, e uma poltrona de couro, roto e cossado,
rodeavam no sobrado de baixo uma velha mesa de pau, collocada no meio do
aposento por baixo da candeia de dois bicos. No meio d'ella um cangirão
de aza larga, bojudo e vidrado, com sua tampa de cortiça guardava a
agua-pé. Um copo de canada, limpo como crystal, um prato sobre toalha
alva, meia broa de milho com um garfo de cabo de pau ao lado, e uma
frigideira de sardinhas fritas annunciavam que a ceia do moleiro ía
começar, quando fôra chamado. A navalha de mola e de ponta, um rôlo de
tabaco de picar, e algumas aparas d'elle, assim como duas capas de papel
de cigarros, estavam dizendo tambem o que elle fazia pouco antes da
visita inopinada lhe bater á porta.

Vejamos agora que razão de estado attrahia o mancebo a tal hora e por um
tempo similhante áquella casa, e o que se passou alli n'esta noite
fecunda em incidentes para os personagens, que temos de metter em scena.




II

O moinho da Raposa


O mancebo approximou-se da mesa, picou do rôlo uma porção pequena,
enrolou o cigaro entre os dedos, e, depois de o accender á luz da
candeia, assentou-se em um dos mochos, com os cotovellos fincados na
tábua, e o rosto entre as mãos, não sem primeiro ter tirado do cinto um
par de pistolas inglezas e uma faca de matto hespanhola, encubertas com
as compridas abas do gabinardo, que trajava.

Antonio da Cruz appareceu instantes depois.

Era robusto, largo de hombros e de peitos, mas esbelto. Trigueiro, e
queimado do sol, as suas feições lembravam o typo arabe. Os beiços
grossos sorriam com franqueza, e, apezar de muito rasgada, tinha graça
na bôcca, mesmo quando descubria os trinta e dois dentes alvos e agudos,
como os do felpudo molosso, que saltava em volta d'elle. O cabello rente
e crespo cortado quasi em bico sobre a testa era negro como azeviche. O
nariz revirado na ponta dava certo chiste á physionomia; e nos olhos
pardos e vivos como scentelhas brincava uma expressão de finura natural
e de malicia jovial, que lhe caìa bem, e logo á primeira vista o faziam
bem quisto.

De mediana estatura, mas proporcionado, era tido por um dos homens mais
forçosos d'aquelles contornos. O seu nome servia de grito da guerra nas
aldeias contra a brutalidade dos valentões de arraial. Nas praças de
touros em Villa Franca, em Salvaterra, ou na capital nenhum forcado o
egualava em apanhar os bois de cara, ou de cernelha. A cavallo era um
centauro; a pé não tinha par no salto, ou na carreira; em mettendo a
espingarda ao rosto aonde punha o olho punha a bala. O seu cajado
manejado por mãos de mestre varria as feiras, zombando de facas e de
espadas.

Sobrio como um anachoreta, presentido e vigilante como um mohicano, o
seu maior defeito era ser impetuoso e assomado de mais. Em o sangue lhe
subindo á cabeça, e em principiando a picar-lhe a pelle com pontas de
alfinetes, segundo elle dizia, cegava-se, corria direito ao perigo, e,
sem attender a nada, atirava-se a um precipicio.

Temente a Deus, tinha tanto de bom amigo como de implacavel inimigo.
Portuguez e patriota extremo, amaldiçoava os francezes como jacobinos, e
chorava de saudade pelo principe regente, D. João, ao qual só vira duas,
ou tres vezes, em sua vida. Manuel Coutinho affeiçoou-se a este caracter
firme, honrado, e decidido. O moinho e a horta pertenciam ao mancebo, e
Antonio trazia-os de renda. Ligado á conspiração, por emquanto quasi
inoffensiva, urdida em Lisboa contra o governo de Junot, conspiração que
regia o _conselho_ denominado _Conservador_, secretamente instituido no
dia 5 de fevereiro d'aquelle anno para auxiliar a restauração do throno
legitimo e da independencia, Manuel Coutinho confiava no humilde
camponez, e communicava-lhe até recados de importancia. Executor
discreto d'estas missões arriscadas, Antonio da Cruz comportava-se
sempre com exemplar acerto, não só enganando o faro da policia de
Lagarde, cujos espiões corriam por toda a parte, mas supportando
resignado por amor de seu amo (assim lhe chamava), e da boa causa
desafios e remoques, que em outra occasião seguramente custariam caros
aos aggressores.

--Se não é hoje o fim do mundo, bradou elle entrando e saccudindo a agua
de cima de si, não sei quando o será! Mas o lume em um instantinho está
a arder. A lenha é secca. Ora, diga, meu amo: v. s.^a traz sua vontadica
de comer, não? Do Cartaxo aqui é um pedacito menos mau... e a chuva e o
vento cavam cá por dentro como enxada em nateiro...

--Não. Não me faças nada. Se o appetite vier aqui temos de mais. Agora o
lume sim.

--Essa é boa. Ha de perdoar; não senhor. Graças a Deus o Manuel nunca
foi torto, nem aleijado, e ainda esta manhã, antes de almoço, não perdeu
a polvora e o chumbo. Andavam aquelles fidalgos a saltar nas vinhas, e
trouxe-os no alforge. Como os quer?...

E apontava para os dois coelhos mortos e pendurados junto do almario.

--Guizo-lh'os de molho de vilão n'um abrir e fechar de olhos, e depois
ha de beber-lhe em cima um, ou dois copos de um vinhinho, que me deram,
e que fica a gente a chorar por mais...

--Já te disse. O vinho e os coelhos guarda-os para ámanhã. Agora melhor
me sabe este cigarro, do que todos os manjares. Accende o lume. Temos
que falar.

O mancebo suspirou como quem se sente opprimido de tristeza, e lucta em
vão por se vencer.

O Antonio da Cruz, curvo sobre a caixa da isca, a assoprar a chamma,
ouvia-o, e percebeu-o, mas calou-se. A mecha pegou, e d'ahi a um momento
levantava-se da lareira um clarão vivo e alegre, tingindo de vermelho as
paredes e os pobres moveis da casa.

--Bem! disse Manuel Coutinho. Isto já parece outra cousa! Senta-te, e
come!

--Salvo o respeito, saiba v. s.^a que não tem pressa.

--Tem. Come e despacha-te. Depois falaremos. É preciso sair logo...

--Ah! Então a cousa aperta? Para termos de saír por uma noite
d'estas!...

--Póde bem ser a ultima da vida de umas poucas de pessoas! exclamou o
mancebo, pondo-se em pé agitado.

--Melhor o ha de fazer Deus, senhor Manuel! redarguiu o moleiro com a
sua tranquillidade apparente, que illudia os que o conheciam mal. Com
sua licença! ajuntou sentando-se á mesa, e rompendo o assalto contra a
broa e as sardinhas, regadas de copiosas libações de agua-pé. Os sacos
pesam seis alqueires, e por aquella escada acima apalpam as costellas. Á
saude de v. s.^a! A minha pena é que não quizessse provar dos coelhos e
do vinho do convento de S. Francisco. Olhe que os padres sabem escolher
do fino!...

--Que gente era aquella, que esta noite vi na Casa Negra? perguntou
Manuel Coutinho, que as proezas gastronomicas de Antonio já não
maravilhavam, porque fôra testemunha d'ellas muitas vezes.

--Gente na Casa Negra? Na Casa Maldita?!... accudiu com a bôcca cheia, e
estremecendo.

--Sim! Vi luz em cima, na terceira janella, e ouvi risadas e vozes no
andar terreo. Não sabes o que será?!

--O meu padre Santo Antonio nos accuda! Cousas do demonio, que desde que
me entendo é o unico morador d'aquelle casarão! Mas v. s.^a está bem
certo!?... Gente a estas horas alli! Não póde ser!

--Tanto póde, que havia fogo na cosinha, e gente a rir, a falar, e a
aquecer-se a elle!

Antonio da Cruz enguliu á pressa o ultimo boccado, poz á bôcca cheio a
trasbordar o copo de agua-pé, e pousando-o vasio com um suspiro, tirou o
barrete e benzeu-se.

--Olhe, senhor, creia v. s.^a o que lhe digo! tornou meio atalhado.
Gente d'este mundo não era de certo. Por estes arredores não havia quem
se atrevesse!... Ah, Jesus, Santo Nome de Maria! accrescentou mais
pallido. Deram ainda agora, á noitinha, um tiro no Antonio Simões. Dizem
que o mataram; mas o corpo não appareceu! Querem ver que foi parar a
alma...

--Antonio! accudiu o amo um pouco severo. Alma que vae não volta! Isso
são medos de criança. Os hospedes da Casa Negra estão vivos, como eu, e
tu. Agora o que preciso saber, e já, é o que são e o que fazem alli!...

--Será o sargento Cabrinha, aquelle jacobino! Andou esta manhã pelo
sitio com as milicias. Só se fôr elle! O maldito ri-se de Deus e do
diabo. Ha de chegar-lhe a sua vez.

--Prendeu alguem?!...

--Dizem que sim, ahi para os sitios do Casal do Ouro.

--Ah! exclamou o mancebo. Capaz seria elle? Se fosse quem receio!...
Ouviste dizer?...

--Um velho e sua filha. Os nomes não m'os souberam dar.

--Nem é preciso! interrompeu Manuel Coutinho em voz soffocada, e com os
olhos inflammados. O infame Lagarde cumpriu a promessa. Verá se a de um
portuguez lhe fica atraz! Os nomes sei-os eu; dizia-m'os o coração antes
de aqui entrar. Mas!...

Conteve-se, e caíu em reflexão profunda. Antonio da Cruz, tambem de pé,
e animado, desde que sabia que não era com os demonios, ou com as almas
do outro mundo a contenda, esperava, olhando para a espingarda, que uma
palavra do amo lhe pedisse o apoio do seu braço.

--Depois de curta pausa, o mancebo, renovadas as escorvas das pistolas,
e cingida a faca de matto, virou-se para o seu confidente e disse-lhe:

--Queres saber como se chama o velho, que o sargento arrasta preso a
Santarem para o entregar á vingança dos francezes? É Paulo de Azevedo
Carvalho. E sua filha...

--A senhora D. Leonor?! A noiva de v. s.^a!... Jesus... Pobre menina!

--Buscam-o para o processar como rebelde desde o caso de Mafra.
Tinham-se escondido na Aramanha, e esse villão do sargento Cabrinha, por
trinta moedas prometteu entregal-o. Não o achando já alli, correu os
arredores, e de certo o foi encontrar no Casal do Ouro pela denuncia...

--Do Sapo! Foi o Sapo, aposto! Por isso o patife andava desde hontem de
orelha fita e focinho aguçado! Só ao moinho, aqui, veiu duas vezes! Ah!
Se eu soubera! Partia-lhe outra perna. Não importa. O que não se acaba
dia de S. Braz n'outro dia se faz. Não as perde.

--Antonio! Paulo de Azevedo não ha de entrar na cadeia da villa, nem na
de Lisboa. Esta noite a «Casa Negra» terá outra historia talvez mais
feia que juntar á sua. Aprompta-te! Á meia noite saímos. Pódes resar por
alma do sargento, se o encontro!




III

Duas paginas da historia d'este seculo


Antes de proseguirmos, para maior clareza d'esta mui veridica narração,
cujo fio poderia enredar-se com as explicações de todos os momentos,
pedimos venia ao leitor para resumir em breve noticia os acontecimentos,
que formam o fundo da pintura, ou antes do esboço, que nos propozemos
traçar.

A revolução franceza, representante das forças e interesses da
humanidade, herdeira não só das aspirações e esperanças, mas tambem das
dores e resentimentos de muitos seculos, saudada em 1789 com transportes
de jubilo, em 1793 já tinha convertido a innocencia do primeiro
enthusiasmo nos accessos febris de um patriotismo sombrio, dando o
espectaculo, novo e incrivel, dos maiores crimes a par dos rasgos mais
heroicos, e das virtudes mais sublimes.

Só e contra todos arremessou audaciosamente a luva aos adversarios de
fóra e ás facções internas. Decapitou no cadafalso a realeza; repelliu
os exercitos da Europa colligada; atravessou após elles as fronteiras
inimigas; suffocou nas provincias insurgidas as saudades e as iras do
regimen decaído; e vigorosa, mesmo ao saír do berço, sobreviveu aos
delirios e excessos da anarchia. Nada a detinha, nada a assombrava!
Admirada de uns, execrada do maior numero, mas invencivel,
precipitou-se, demolindo tudo no seu impeto, até, esvaída do sangue
vertido nos patibulos e nos campos de batalha, caír por fim, quasi sem
alentos, nos braços do mais illustre de seus capitães, d'aquelle de quem
Siéyés disséra com persuasão prophetica: «que seria o senhor, porque
sabia, queria, e podia tudo!»

A ordem restituida por elle, a victoria inseparavel de suas armas, o
esplendor de tantas acções applaudidas, os milagres de uma vontade, a
que ainda obedeciam os obstaculos e o destino, compozeram essa rara
epopêa, de que Napoleão I, grande como Cesar, ou maior talvez, foi ao
mesmo tempo o heroe e o assumpto.

Guiada pela providencia, a sua mão, ao passo que ia lavrando nas
primeiras paginas da historia d'este seculo as datas memoraveis, com que
se abriu sua agitada existencia, unia, pesada como a de Attila, gloriosa
como a de Carlos Magno, á queda do passado a transformação do presente.

A fortuna muitos annos constante seguiu-o de triumpho em triumpho, desde
as planicies da Italia, immortalizadas pela sua mocidade, até aos gelos
do norte para os quaes a sorte parecia attrahil-o, e aonde o clarão de
Moscow incendiada havia de illuminar depois os funeraes do imperio.

Marengo, Eylau, Essling, Wagram, e cem estações assignaladas pelos
prodigios do seu genio, viram a terra gemer abalada pelo galope dos
esquadrões; viram os thronos vacillar, ou alluirem-se; viram os
principios nóvos germinarem grávidos do futuro nos sulcos rotos pela
inundação, quando a onda vencida recolheu ao antigo leito! Abrazada em
odio, ou cortada de espanto, a Europa contemplava aquella epocha de
terremotos e de transfigurações, sobresaltando-se com os decretos da voz
soberana, que falava pela bôcca de bronze dos canhões, e inclinando-se
serva, mas fremente, na presença das aguias, que passavam e revolviam
profundamente o mundo das idéas e o mundo dos factos, desde as bases e
os limites das monarchias, desde o solo e a familia, até ao estado
physico e social, até á organização politica e economica.

N'esta lucta de gigantes, a França e a Inglaterra, travadas como dois
athletas, combatiam sem escolher as armas. Feriam-se sempre e em toda a
parte! Percebiam que o duello era mortal, e que só podia terminar pela
ruina de uma d'ellas. Aboukir e Trafalgar tinham assegurado a supremacia
dos mares ao leopardo britannico. A Austria impaciente, mas resignada, a
Prussia rendida em Jena, a Russia desenganada em Austerlitz e Friedland
proclamavam a vaidade da liga continental.

Mas Bonaparte, na maior elevação a que fôra dado subir, tocado o apogeu,
não foi superior á fragilidade humana. Os deslumbramentos da grandeza
trouxeram a vertigem. O abysmo chamou pelo abysmo. Esquecido de que só
Deus é omnipotente quiz e ousou tudo! Gerações inteiras immoladas
semearam de cadaveres o rasto de seus passos. Os povos amaldiçoavam-lhe
a ambição como flagello. As coroas, voando da cabeça dos reis legitimos,
arrancadas pelos furacões da guerra vinham cingir a fronte plebea dos
eleitos da gloria. Retalhando o corpo exanime das nacionalidades
desmembradas pela espada, edificou na areia, suppondo fundir em bronze
esses reinos e dynastias ephemeras, que um aceno tirou do nada, que os
seus revezes sepultaram para sempre.

Repartindo pelos irmãos e os generaes os diademas e os estados, queria
ter n'elles satrapas, e não soberanos. Murat em Napoles, Joseph em
Hespanha, Luiz na Hollanda, e Jeronymo na Westphalia representaram as
peripecias d'esta ultima e arriscada phase de uma grandeza, que na
usurpação dos sceptros e na provocação das antipathias populares
encontrou o precipicio, a queda, e a lição!

Portugal, no extremo occidente, abrigado pela distancia das revoluções,
que desmoronavam tudo ao meio dia e ao norte da Europa, não se eximiu
afinal de participar tambem, e com largo quinhão, das infelicidades, que
a nenhum paiz poupou a sorte. A iniciativa do marquez de Pombal,
interrompida pela morte do soberano, que vinte e sete annos o
sustentára, apezar das conspirações da nobreza, e da adversão da familia
real, acabou com o monarcha tão notavel pela firmeza. O poder do
ministro eclipsou-se com o ultimo suspiro do principe, e com elle
expiraram as tradições viris, e os commettimentos reformadores. Um
gabinete quasi todo composto de aulicos, sujeito ao veto do confessor
valido, substituiu o mando odiado do marquez; e este poude vêr ainda do
seu desterro a mão dos emulos alçada contra a arvore, que plantára,
arvore que apenas principiava a cobrir-se de flôres, e á qual a inveja
não deixou amadurecer os fructos.

A branda e devota indole da rainha atalhou em parte os bons desejos dos
homens, que se prezavam de ainda respeitarem as maximas do grande
reinado. José de Seabra, Martinho de Mello, e após elles D. Rodrigo de
Souza Coutinho queriam continuar no caminho encetado por Sebastião José
de Carvalho; porém divididos em partidos (o francez e o inglez),
offuscados pelas intrigas dos hypocritas, e detidos pelos escrupulos,
que assustavam a consciencia da filha de D. José I, luctavam muitas
vezes em vão com a corrente, e os seus esforços a miudo naufragaram
contra os artificios dos cortezãos, e contra as declamações dos beatos,
senhores de todas as avenidas do paço.

As providencias uteis, que honraram o governo de D. Maria I,
derivaram-se do predominio conquistado sobre o animo da rainha, sua
penitente, pelo arcebispo de Thessalonica, prelado isento de
preconceitos e ornado de virtudes. Mal elle desceu ao tumulo, a visão
terrivel dos patibulos, erguidos por seu pae, tornou-se uma allucinação
perenne, e as trevas da demencia apagaram para sempre a razão vacillante
da princeza.

D. João, seu filho, empunhou as redeas do Estado, primeiro sem titulo
expresso, depois com o de regente. Amigo da tranquillidade, avêsso a
complicações e lances arrojados, humano e bondoso, era todavia mais
sagaz e penetrante, do que supporia quem o conhecesse mal. Em suas mãos
a auctoridade soberana podia enfraquecer-se e rebaixar-se, como
aconteceu, mas ferir os subditos, ou irritar os alliados, não!

Comprada a preço de grandes sacrificios, a neutralidade foi a politica
preferida pela timidez do principe, e ao mesmo passo o arbitrio prudente
aconselhado pelas circumstancias. A republica tinha legado ao directorio
esta amizade inerte, mas facil de conservar; e Napoleão, mais altivo, ou
mais exigente, olhando quasi Portugal como colonia de Grã-Bretanha, não
encobria já no consulado as suas repugnancias pela dynastia de Bragança.

Dictando-lhe a paz em 1801, e obrigando-a a submetter-se a condições
injustas, nutriu acaso a esperança de que, não podendo executal-as, ella
lhe proporcionasse um pretexto? Não hesitando em animar a cobiça e a
rivalidade do gabinete de Madrid, queria costumal-o a invadir-nos as
fronteiras, offerecidas como pasto áquella ambição estimulada?

Seja o que fôr, a Hespanha tendo-se valido de nossas armas no
Roussillon, pagou-nos com ingratidões o soccorro, separando a sua causa
da nossa, unindo-se a Bonaparte para nos humilhar, e aproveitando a
sombra dos estandartes francezes para se apoderar de Olivença, que nunca
mais restituiu!

Na mente de Napoleão I, a idéa de precipitar do throno os Bourbons de
Hespanha, como os expulsára de Napoles e da Etruria, era idéa, que
lançára raizes firmes. No seu tribunal tambem a casa de Bragança era
condemnada por outras culpas. Accusava-a de seguir, como satellite, o
astro da Grã-Bretanha, e queixava-se de que usasse e abusasse da
neutralidade em beneficio dos interesses commerciaes dos inglezes, os
quaes, por meio da oppressiva utopia do bloqueio continental, cuidava
expellir dos mercados da Europa, fechando-lhes todos os portos desde
Lisboa até Cronstadt!

Inspirado occultamente por mr. Canning, o governo portuguez promettia
excluir o pavilhão britannico de suas praias, e não duvidava affiançar
uma declaração de guerra simulada; mas prender as pessoas e sequestrar
as fazendas dos subditos do rei Jorge, como exigia em nome da França o
seu ministro, mr. de Rayneval, era violencia, que as relações anteriores
e a ruina de grossos capitaes nacionaes e estrangeiros lhe prohibiam.
Recusou-a sem ostentação, mas com vigor.

Napoleão queria tudo, ou nada! Para elle Lisboa e o Porto eram como
puras feitorias britannicas, e, se não lh'as entregassem, estava
resolvido a mandar os seus soldados conquistal-as. Contava com a
repulsa, e no meio dos mil cuidados, que o salteavam então, acabava de
pôr o ultimo remate ao seu plano. O tractado secreto de Fontainebleau
assignado em 27 de outubro de 1807, affiançava-lhe pela cumplicidade da
Hespanha a estrada militar, de que precisava para realizar a invasão.

Junot, acampado em Salamanca á testa de vinte cinco mil homens promptos
á primeira voz, apenas aguardava as ultimas ordens. Duas divisões
castelhanas, uma de dez, outra de seis mil soldados, deviam coadjuvar as
operações do exercito francez, apoderando-se a primeira do Porto, do
Minho, e de Entre Douro e Minho, assenhoreando-se a segunda da provincia
do Alemtejo e do reino dos Algarves. O pacto ajustado entre Bonaparte e
Carlos IV, desmembrava o reino em proveito de ambos. O Principe da Paz
lucrava um estado independente de quatrocentas mil almas, composto das
provincias do sul, e denominado o principado do Algarve. A rainha viuva
do duque de Parma, filha querida do monarcha hespanhol, em compensação
da Etruria cedida ao gabinete de Saint-Cloud, recebia um reino de
oitocentos mil habitantes, formado de duas das provincias do norte, com
a cidade do Porto por capital, denominado o reino da Lusitania
Septentrional!

A marcha dos francezes correu tão rapida e atropellada, quanto era viva
e ardente a impaciencia do imperador!

Bonaparte ordenára, que entrassem a tempo de salvar das mãos dos
inglezes a nossa esquadra e os thesouros, que ella podia transportar
para a America. A familia real não o preoccupava tanto. Eram alguns
prisioneiros de menos a guardar! Nunca a obediencia foi tão fiel. Junot
voou! Passando a raia em Alcantara, precipitou-se, como torrente, por
meio do paiz, que o ciume da independencia e o amor aos principes
naturaes podia tornar-lhe todo hostil. A cada passo mil perigos o
advertiam da temeridade. Aqui eram serras alpestres, aonde um punhado de
homens resolutos facilmente o sepultaria com seus companheiros de armas!
Além eram solidões, aonde a falta de todos os recursos exaggerava as
miserias com que luctava desde que saíra de Salamanca!

Os rigores do inverno tempestuoso, as estradas arrombadas e cobertas de
agua, os campos inundados, a falta de viveres, e o odio dos moradores,
dizimavam suas fileiras rareadas pela fadiga, pela fome, e pelas
enfermidades. Tudo se conspirava para o punir e demorar a invasão; o
clima, os habitantes, e o territorio que se via obrigado a atravessar!

A firmeza do general triumphou. No dia 27 de novembro suas avançadas
batiam quasi ás portas de Arroios, e nas praias de Belem o principe
regente dava o ultimo beijamão aos vassallos consternados!

No caes e na praça não se via senão lagrimas e confusão. Os parentes
despediam-se, abraçados, como se não esperassem tornar a vêr-se. Os
escalares e bergantins carregavam para bordo as mobilias dos fidalgos e
as alfaias mais preciosas do paço e da patriarchal. Nas ruas apinhava-se
o povo attonito. Cercada do cortejo doloroso do infortunio, a familia
real era o alvo, em que se empregavam os olhos de todos.

No meio das damas, açafatas, camaristas, e criados, pallidos e
suffocados, o principe D. João, sua esposa a princeza D. Carlota, seus
filhos, e sua mãe a rainha D. Maria I, cujos gritos de demencia cortavam
o coração, diziam o ultimo adeus á terra do seu berço!

A multidão soluçava e estendia os braços em vão, como se quizesse
retel-os. Um decreto datado da vespera tinha declarado que os conselhos
pusillanimes prevaleciam. Em vez de chamar o reino ás armas, imitando o
valor de seus antepassados, D. João ia refugiar-se além do Atlantico, no
Rio de Janeiro, deixando nomeada uma regencia á qual deferia a triste
missão de abrir as portas da capital ás tropas inimigas.

Demorada no Tejo pelos temporaes, a esquadra portugueza só largou as
velas no dia 29. Nessa mesma noite arrastavam-se desfallecidos pelos
arrabaldes de Lisboa os invasores, cuja sombra sossobrára o peito de um
descendente de D. João I! Quasi nús, descalços, esmorecidos, recrutas
imberbes com as espingardas cobertas de ferrugem, inuteis, ou partidas,
os soldados do corpo de occupação infundiam mais dó e piedade, do que
temor e respeito no animo dos que os viam desfilar. Escudava-os, porém,
o nome de Napoleão com o seu prestigio. A hora dos desenganos ainda não
tinha batido.

Junot entrou no dia 30, hospedou-se no palacio do barão de Quintella, e
poz algumas auctoridades suas. No dia 13 de dezembro, depois de uma
parada no Rocio, a bandeira tricolor foi arvorada nas ameias do
castello. Começava o primeiro acto do attribulado drama, cujo desenlace
encerrou a capitulação de Paris, e a abdicação de Fontainebleau! As
tropas hespanholas acompanhavam os movimentos dos alliados. O general
Taranco apoderou-se do Porto; o marquez del Soccorro, senhor do
Alemtejo, adeantou-se até Setubal. As forças dos invasores cercaram-nos
por todas as partes.

Ás saudades cada vez mais vivas da dynastia desterrada, aos
resentimentos provocados pelo jugo estranho, que, arrogando-se fóros de
conquista em plena paz, cada dia era mais detestado, uniam-se os
aggravos e violencias inseparaveis de uma occupação, que só podia
sustentar-se pelo rigor.

Amanheceu finalmente o dia 13 de fevereiro de 1808, o qual, rasgando o
véu de todo, revelou sem disfarce os designios de Bonaparte. Rodeado de
soldados e canhões, ao som das salvas das fortalezas de mar e terra,
Junot proclamou sem hesitar a usurpação insolente de todos os direitos
da soberania. A casa de Bragança, disse elle no seu edital, acabou de
reinar. O imperador dos francezes será de ora em deante o protector e o
arbitro dos destinos da monarchia! Para consolar os portuguezes da perda
da independencia, o duque de Abrantes prometteu-lhes mil beneficios, e
assegurou-lhes que um dia até o Algarve e a Beira Alta haviam de ter o
seu Camões!

Os habitantes preferiam a epopea viva á epopea escrita, e poucos mezes
depois com a espada em punho recordavam as proezas de seus avós,
repellindo os estrangeiros.

As armas nacionaes picadas e substituidas pela aguia corsa, a
contribuição forçada, decretada em 7 de dezembro de 1807, e repartida
pelos moradores abastados de Lisboa, que nem o pretexto da resistencia
tinham offerecido á cubiça, irritando os animos excitaram tumultos na
capital e rixas em varias terras.

Correu sangue de parte a parte. Nas provincias os roubos impunes, os
desacatos da soldadesca nas egrejas, e as tropelias de tropas
licenciosas e pouco disciplinadas, ainda cansavam mais a paciencia
publica.

A sorte da capital e do Porto não era menos infeliz. Lagarde, detestado
pela sua tyrannia na Italia, e Perrot assaz inventivo em oppressões,
cobriam de uma rede de delatores os pontos, onde suppunham que podiam
abrigar-se os seus adversarios, faziam leilão publico da clemencia, e
abriam, ou cerravam as portas das prisões com chaves de ouro. Tinham
pressa de enriquecer!

Adivinhariam que o seu governo não havia de durar muito? Os factos
provaram mais esta vez ainda os perigos de tão errado systema. Filho da
violencia, apenas o desamparou a força que era o seu unico apoio,
despenhou-se nos abysmos, que elle proprio afundára.




IV

O bem soa, o mal voa


De ordinario voltam-se contra os poderes odiados os proprios meios
empregados para algemar os povos. As visitas domiciliarias, as buscas,
as denuncias, as multas, os encarceramentos, todos os instrumentos de
tortura moral, em fim, excogitados pelo genio assolador de Lagarde,
produziam effeitos contrarios aos que elle esperava colher, ulcerando o
orgulho nacional, enfurecendo as populações, e predispondo-as para
vingarem no primeiro ensejo todas as offensas de uma vez.

Em Mafra, aonde um conflicto casual custára a vida, ou o sangue a alguns
soldados de Junot, a crueldade da repressão, confiada ao general Loison,
acabou de exasperar os animos. O desditoso Jacintho Correia expiou com o
supplicio a culpa, quasi geral, da aversão aos invasores.

Estes rigores, longe de as firmarem, tornaram mais frageis as bases da
dominação estrangeira, que a todos os instante via desabar o edificio
vacillante do seu poder. As devassas e monterias ordenadas contra as
pessoas implicadas n'esta guerra surda, mas implacavel, ameaçando alguns
innocentes, apenas réos do horroroso delicto de aborrecerem a usurpação,
recrutou em favor da reacção patriotica numerosas e decididas adhesões.

Paulo de Azevedo Carvalho, que no «Moinho da Raposa» ouvimos citar como
uma das victimas da intendencia geral da policia, salvo quasi por
milagre, graças á rapidez da fuga, das garras dos emissarios de Lagarde,
vagueára de asylo em asylo, acossado de perto, mas sempre protegido,
desde Torres Novas até Santarem pela generosa cumplicidade, que lhe
patenteava todas as portas, do palacio até á choupana, apagando logo
depois com discreto silencio o menor vestigio de seus passos.

Uma imprudencia ajudou os que o perseguiam. Sua filha partiu de Torres
Vedras para ir encontrar-se com elle, e os olhos de argos da policia
seguiram-a na jornada até ao humilde casal, escondido nas mattas da
Aramanha, onde a esperava Paulo de Azevedo, e onde lhe abria os braços a
hospitalidade rude, mas sincera, do honrado fazendeiro Antonio Simões.

Disfarçados em mendigos ou em jornaleiros, os agentes de Lagarde
depressa descobriram o foragido no seio da casa rustica, em que se
abrigava. Assaltaram-a de noite com um cordão de milicias ás ordens de
Estevan Cabrinha sargento no regimento de Rio Maior, e capaz de vender o
sangue de mãe e irmãos, uma vez que o preço correspondesse. Falharam,
porém, todas as precauções. Cabrinha errou o salto. Avisados a tempo o
pae e a filha evadiram-se na vespera, e o sargento só colheu da ruidosa
diligencia as maldições de Antonio Simões, maldições e despresos, que
estava costumado a engulir, como ossos do officio, mas que registrava
cuidadosamente para as descontar aos devedores na hora opportuna.

D'esta vez a divida não esperou muito. Uma busca de contrabando sobre
denuncia falsa proporcionou-lhe o desejado pretexto. Antonio Simões da
Aramanha deu-lhe o gosto de entrar dias depois sob seus auspicios na
cadeia de Santarem, quasi arrependido da soltura de lingua, com que
tinha lançado em rosto ao perseguidor as lagrimas e a ruina das
familias, e os crimes contra a patria. O fazendeiro, todavia, não gemeu
nos ferros de el-rei, como se dizia então, sem jurar pelas costellas ao
malsim. Deante de testemunhas protestou moel-o com o cajado de
zambujeiro, especie de clava, que achatava um homem como uma bolacha, e
vozes chocalheiras avisaram o sargento da promessa caridosa. Cabrinha
enfiou. O intendente geral da policia Lagarde servia-se do mastim e
açulava-o contra o Ribatejo, não regateando ao mercenario venal as
recompensas; mas era duvidoso que podesse eximir-lhe o corpo do premio,
affiançado pela gratidão de muitas victimas.

Em quanto Paulo de Azevedo respirasse livre, o amor proprio e a bolsa de
Cabrinha padeciam, e não era elle homem que dormisse, quando o interesse
o chamava com voz activa. Suppondo o cavalleiro de Mafra ainda proximo,
deixou-o socegar por dias, e valendo-se da ardileza de um subalterno
sagaz, digno assessor de suas virtuosas emprezas, o coxo Gaspar Preto,
conhecido pela expressiva alcunha do _Sapo_, mandou-o bater os
arredores, na idéa de que a vista de lince do agente, com mais
facilidade desencantaria, ainda quente, o ninho aonde se refugiava a
presa.

Não se enganou. O _Sapo_, cujos brios avivára a esperança de rasoaveis
lucros, entrou sem demora em campanha, e tres dias depois trouxe-lhe a
agradavel nova de que o cavalheiro e sua filha se cobriam com o tecto
modesto de uma casa, pouco mais do que choupana, solitaria, e situada
nas abas da risonha povoação do Casal do Ouro no meio das vinhas e
olivedos, que o vestem de verdura.

O sargento não perdeu tempo. Apenou seis milicianos fieis ao copo e ao
cangirão, e, acompanhado por elles, prendeu de tarde e á traição a Paulo
de Azevedo e a Leonor. Temendo, porém, que o povo se alvoroçasse, apezar
das ameaças da trovoada metteu-se a caminho, não sem olhar a miudo para
traz, receioso, sobre tudo na charneca, de que a bala perdida de uma
espingarda lhe testemunhasse o reconhecimento grangeado por seus longos
e valiosos serviços!

O homem põe, e Deus dispõe! A fortuna que o protegêra, detendo Manuel
Coutinho no Cartaxo, sem o que teria encontrado o seu amigo e a sua
noiva presos, (lance de certo fatal ao sargento), mostrou-se logo
contraria a Cabrinha, não demorando uma hora, ou duas mais, tambem, o
temporal, o qual, perto da Ponte da Asseca rebentou com violencia tal,
que o constrangeu, á falta de melhor, e não sem grandes arrepios de medo
seus, e dos soldados, a descançar aquella noite no palacio arruinado,
temido na visinhança pelo significativo nome de _Casa Negra_, ou de
_Casa Maldita_.

O _Sapo_, entretanto, não ficára ocioso.

Sabendo que Antonio Simões da Aramanha fôra solto da cadeia de Santarem
por ordem do juiz de fóra, e que n'essa mesma tarde vinha dormir ao
Casal do Ouro, doeram-lhe de repente todos os ossos, como se o cajado
monumental lh'os triturasse, similhante a mangual na eira, e assentou
livrar-se a si e ao sargento da promettida sova, interceptando na
estrada o robusto fazendeiro com uma bala.

Esperou-o, pois, atraz de um vallado, em azinhaga escura e estreita, ao
anoitecer. Escutando o ruido de passadas cheias renovou a escorva,
engatilhou a espingarda, metteu-a á cara, e com a tranquillidade, com
que poderia desfechar sobre uma lebre, disparou por entre as ramas sobre
um vulto, que vinha dobrando a quina do caminho, e que soltando um grito
agudo baqueou por terra.

--Deus seja com a sua alma! exclamou o assassino, saltando o vallado, e
contemplando prostrado, e com o rosto banhado em sangue o corpo da
victima, que todavia conheceu pela estatura e pelo trajo ser Antonio
Simões da Aramanha.

--Está com Christo! ajuntou depois de olhar para elle instantes. Este já
não morde. Falta o Antonio da Cruz!... Tambem lhe ha de chegar a sua
vez!

Feito este responso, torcendo a perna, e apressando os saltos, em que
despejava mais caminho do que os sãos, o coxo passou por entre as
silvas, e atravessando pelas vinhas e hortas, veiu saír muito distante
do logar do crime, ao alto do valle.

Soou a noticia do tiro dado em Antonio Simões. As mulheres, que se
recolhiam do trabalho do campo, encontraram o corpo ensanguentado na
azinhaga, e correndo e clamando, tocaram a rebate com a historia do
homicidio por todas as portas. Juntou-se gente, accudiram alguns amigos,
que o morto contava na terra, e em procissão encaminharam-se ao sitio
aonde o desgraçado fazendeiro devia jazer, que era aonde a azinhaga
cortava entre a Ponte de Asseca e a Casa Negra.

Caso inaudito, e que fez erriçar de espanto as grenhas hirsutas dos
aldeões, por baixo dos barretes de lã e dos chapéus desabados! Nem rasto
da victima! Sómente duas poças de sangue, e a cama feita pelo cadaver na
terra molhada denunciavam a verdade das camponezas e a existencia do
delicto!

Quem roubára aquelle corpo á sepultura christã? Quem fôra o assassino? A
estas duas perguntas respondia a superstição, que só poderia ter sido o
inimigo do genero humano, porque a azinhaga não se via trilhada senão
dos pés curtos e deseguaes de um homem, que, fugindo, deixára
assignalada no vallado a feição dos joelhos. Aonde acabavam as passadas
fortes e largas dos sapatos de Antonio Simões não havia indicio de mais
nenhumas.

A chuva caíndo em torrentes, os relampagos allumiando as trevas de
clarões repentinos, e os trovões estalando uns após outros, depressa
dispersaram os curiosos, que a luz de dois archotes, saccudidos e
apagados pelo vento, não confortava muito contra os terrores do inferno,
sobre tudo em tão medonha noite.

Benzendo-se, e acotovellando-se uns aos outros, recolhiam-se transidos,
ensopados, e cheios de apprehensões, quando alguns mais audazes, que
tinham ousado arriscar a vista na direcção do palacio arruinado notaram,
que duas das janellas, sempre cerradas, deixavam transparecer por entre
as taboas mal juntas uma claridade livida, brilhante na escuridão como
os olhos de um demonio!

Esta ultima prova do poder sobrenatural do tentador foi tão decisiva
que, trocando o passo ligeiro pela mais despedida carreira, os bons dos
aldeãos, persuadidos de que Satanaz reunia na Casa Negra a sua côrte
plenaria, não pararam senão á porta da egreja parochial, chamando pelo
prior em altas vozes.

D'onde vinha ao palacio arruinado a má reputação, que afugentava de sua
visinhança os moradores dos logares proximos? Que trasgo, ou que duende
vexava com suas maleficas travessuras a casa ennegrecida pelo tempo, e
rodeada de eterna solidão?

Construida nos principios do seculo XVII, o gosto depravado do
architecto traduzia-se nos dois pavilhões lateraes, que acompanhavam o
corpo do edificio, esmagados pelos tectos, e massiços como duas
cidadellas, carregadas de tristeza. Revestidos de pesadas cantarias, com
as janellas estreitas e de volta baixa, e as portas abafadas de lavores
e ornamentos desgraciosos, o ar e a luz só a medo podiam circular pelas
immensas salas e pelos extensos e escuros corredores, em que se
repartia.

Solar desamparado, por mais de um seculo via-se as ervas crescerem nos
pateos e eirados, as eras enrolarem-se pelos muros gretados, e os
telhados verdejarem cobertos de plantas parasitas. Os anciãos mais
antigos na terra, não se lembravam de nunca terem visto o dono d'aquella
casa condemnada, e todos os annos os invernos, succedendo-se, e
penetrando pelas brechas não reparadas, accumulavam ruinas sobre ruinas,
estragos sobre estragos.

As lendas populares explicavam o destino singular d'aquelle palacio, o
qual de certo vira dias mais ditosos, quando as malvas e ortigas não
afogavam os canteiros de seus jardins, quando os entulhos não cegavam os
canos á fresca lympha, que jorrava em tórnos de agua crystallina para os
largos tanques de marmore, quando, finalmente, as colgaduras de couro e
os pannos de raz não pendiam em farrapos das paredes fendidas e
esverdeadas, e as manchas de humidade não desfiguravam os relevos e
molduras dos tectos.

Que horroroso crime expiava o palacio deserto, cujos vigamentos pôdres
estalavam com o peso de telhados arrombados, cujos moveis roidos de
caruncho se desfaziam no pó da velhice e do abandono?

Contava a tradição que dois irmãos rivaes haviam disputado a mão de uma
formosa dama, causa innocente do seu infortunio, e que o menos ditoso na
porfia, como Iago, convertêra em desespero a felicidade do competidor,
envenenando-lhe de suspeitas os amores. Não valeram prantos e supplicas
contra as allucinações do ciume! O sangue da esposa e o sangue do filho
innocente, doce fructo do seu enlace, vertido em um momento de delirio,
vingou os zelos do marido, que suppunha lavar com elle a nodoa do nome e
do brazão. Horas depois, mas sem remedio, descobriu-se a perfidia, e o
desgraçado caiu em si do delirio, e viu-se tornado o verdugo de si mesmo
e dos que mais estremecêra no mundo. O que passou n'aquella noite entre
os dois irmãos é segredo, que dorme com ambos na eternidade. Sómente ao
romper da aurora mais um cadaver descia ao jazigo da capella, e o
infeliz, sobrevivendo á morte de todos os affectos, e algoz de todos
elles, na edade de vinte e cinco annos, quando partiu para não voltar,
mettia horror á vista. Os cabellos e o rosto eram já os de um velho.
Bastaram poucas horas de remorso e de agonia para lhe consumirem a vida
e a mocidade.

O lucto do senhor cubriu a casa, theatro de tantos crimes. Deshabitada,
fugiam d'ella donos e creados como de um logar maldito. Sempre êrma, e
sempre muda, só os echos accordavam n'ella com o anniversario do
terrivel drama. O velho guarda, ao qual primeiro foram confiadas as
chaves, despertando sobresaltado por horas mortas, subiu ao andar nobre,
e caiu sem sentidos, paralyzado pela visão terrivel, que se lhe
representou alli.

Viu uma fórma branca e suave, com os cabellos esparzidos sobre o collo,
atravessar, chorando, as salas. Apertava ao peito uma creança
adormecida, e seguia-a outro espectro ameaçador com o punhal erguido.
Atraz, uma figura contemplava aquella scena rindo com satanica alegria.
Os lustres accesos por si mesmos entornavam torrentes de luz livida
sobre os aposentos. Os gemidos e soluços das victimas, o tinir dos
ferros, as risadas e as imprecações retratavam ao vivo o tremendo
espectaculo, em que o parricidio e o fratricidio tinham desempenhado os
principaes papeis. O velho enlouqueceu de terror.

Desde então ninguem mais quiz tomar conta do palacio. Os morgados
deixaram-o caír em ruinas a pouco e pouco, e quando os francezes
sequestraram por ausente os bens do fidalgo, aquellas paredes infamadas
não acharam comprador. O fisco não quiz para si senão a posse das
terras, e arrendou-as. Parece, todavia, que a invasão dos estrangeiros
excitára a cólera das potencias sobrenaturaes, porque nunca se tinham
mostrado tão malfazejas e ruidosas. Um allemão excentrico, apostando
hospedar-se alli uma noite inteira, foi achado ao amanhecer sem fala,
nem movimento, e seis mezes depois ainda tremia quando lhe lembravam a
aventura da Casa Negra.

Era, pois, desculpavel o susto dos aldeões. Vendo a luz coar-se através
d'aquellas janellas sempre escuras, e não achando o corpo de Antonio
Simões no sitio aonde fôra assassinado, tudo attribuiram aos maleficios,
e escudando-se com o amparo da egreja, invocaram a protecção do parocho,
persuadidos de que as iras divinas, provocadas pelas abominações dos
jacobinos, haviam quebrado a lousa das sepulturas, soltando os espiritos
das trevas para flagello e confusão dos inimigos de Deus e de el-rei.

Entretanto, cousa notavel (!) n'esta assembléa dos homens bons do logar,
como diria um foral de nossos avoengos, faltava o João da Ventosa, o
orador popular por excellencia, o Hortencio, o Eschino laureado
d'aquellas visinhanças! O que o detinha? Pouco timorato por indole, e
até para a epocha e para a educação assaz limpo de abusões, trazia de
renda as terras da Casa Negra, pegadas com uma horta sua; mas se alguem
lhe tocava na ruim visinhança do palacio, prendia-se-lhe de repente a
voz, e uma visagem avinagrada torcia-lhe o semblante. Era mais orthodoxo
n'este ponto, do que o cura. Os contos de visões e de almas penadas, que
repetia, não concorriam pouco para entreter o pavor dos companheiros de
copo e de touradas, os quaes se espantavam, de que elle tivesse animo
para metter o arado e a enchada em terras, que mais deviam reputar-se
vinculadas ao demonio, do que administradas pelo bondoso morgado, que as
disfructára.

Mas como as terras eram excellentes e criavam bem, e como, não sendo
affrontado por competidores, elle as trazia quasi pelo que queria dar
por ellas, o João da Ventosa continuava a amanhal-as, e a servir-se das
officinas do palacio, e até de algumas casas do andar terreo. Peccado de
avareza que as almas pias e tementes a Deus prognosticavam, que lhe
seria funesto um dia, arriscando-se a que o demonio, enfadado com o
atrevimento, levasse pelos ares n'um furacão os bois, as charruas, o
lavrador, os carros, e os telhados!

Nunca lhe viam o trigo e o milho na eira, que não rosnassem por entre
dentes: «Queira Deus que o meu compadre uma vez se não arrependa. De
parceria com o demo nunca ninguem medrou!» O João, como bom christão,
ouvia-os, suspirando, queixava-se da carestia dos tempos, que obrigava o
pobre a fazer pão até das pedras, e ia attestando de saccos o celleiro,
dizendo sempre que muitas noites não podia pregar olho com o alarido
infernal, que ía lá por cima.

Dadas estas informações essenciaes, que o leitor benevolo desculpará,
tornemos á nossa historia, e acompanhemos as diversas pessoas, que estão
em scena, esperando por nós, tanto no Moinho da Raposa, como na Casa
Maldita.

Quanto aos honrados aldeões, apinhados defronte da porta do reverendo
prior, não nos dê cuidado a sua inquietação. O parocho, consolando-os
com duas maximas em mau latim de orelha, prometteu-lhes exorcismar,
mesmo de longe o espirito maligno, e recommendou-lhes que se recolhessem
e abafassem depressa, porque a noite estava medonha, e o anno corria
infamado de pleurizes e catharraes. Dito isto lançou-lhes a benção da
janella, e foi sentar-se á mesa para não deixar esfriar a ceia. As
ovelhas imitaram o pastor, e meia hora depois, acalmado o alvoroço,
reinava na aldeia o mais profundo socego, apenas interrompido pelos
latidos de algum cão impertinente, e pelas rajadas da chuva e do vento,
com que a tempestade açoutava as copas das arvores, e fustigava os
telhados das casas.




V

Não ha atalho sem trabalho


Transportemo-nos sem demora ao andar baixo da Casa Negra.

As duas portas da fachada estão fechadas, mas um estreito postigo, que
abre para o pateo, apenas se acha cerrado. Entremos por elle, e,
seguindo o som das vozes, continuemos, apalpando no escuro as paredes,
que se esfarelam de humidade pelo comprido corredor.

É uma especie de dormitorio ladrilhado com portas á direita e á
esquerda, provavelmente accommodações dos creados do palacio, quando
fôra habitado. As taboas do tecto, podres e despregadas, ameaçam cahir
sobre a cabeça, e aqui e acolá montes de caliça dos muros esboroados
promettem um desabamento proximo. No topo uma porta derreia-se pendente
a meio cutelo do ultimo leme enferrujado.

Atravessemos depressa! Estamos em uma casa de abobada, fria e surda, com
duas frestas engradadas. Subamos aquelles tres degraus, e guiemo-nos
pela claridade baça, e pelo alarido que da extremidade de outro corredor
nos estão avisando de que na estancia immediata conversam, ou disputam
muitos homens.

No fim do corredor apercebem-se os vãos de duas escadas interiores,
cujas vigas e degraus carcomidos tremem de velhice. Uma fenda larga
racha ao meio a grossa parede, que as divide. Duas portas com travessas
cerram a entrada das escadas, lançadas dos lados em ramos divergentes
para o andar de cima.

Empurremos agora as taboas mal juntas de outra porta, que nos veda a
vista, e adeantemo-nos. O espectaculo que vamos presenciar vale a fadiga
a que nos sujeitámos.

É a cozinha, terrea e toda de abobada, com fornalhas ao fundo e chaminés
enormes. Uma immensa pia de pedra á direita, e uma mesa tambem de pedra
á esquerda, compunham a mobilia primitiva. Na lareira ardem e estalam
grossos troncos de arvores, cortadas em verdes, e á roda da chamma
afogueada e crepitante, sentam-se os novos hospedes do palacio. Pelas
tres janellas lateraes sem vidraças sopra o temporal ás rajadas, e a
chuva salpica dentro fustigada pelo vento; dos canos das chaminés, meio
alluidas, escorre a agua, e geme o vendaval, afogando os silvos em
sussurros prolongados. O clarão dos relampagos, golfando quasi sem
interrupção, allumia de phantasticos e subitos clarões as paredes e o
chão lageado da enfumnada, sombria, e vasta quadra.

No recanto, formado pelo angulo da chaminé, e pelo angulo de um grande
armario embocetado, esconde-se, quasi suspensa, uma escada de caracol,
toda de pedra, ainda menos mal conservada. Defronte da porta da sahida
dois arcos de volta mui baixa, parecidos a bôccas de furna, communicam
para a cave e para a arrecadação, ambas subterraneas e extensas.

Uma especie de lampião, em que são mais as folhas de papel azeitado, do
que os vidros, balouça-se pendente de cadeia de ferro presa no tecto.

Uma tosca mesa de quatro pés, coberta de toalha, cuja alvura
desappareceu debaixo da ramagem caprichosa das nodoas de vinho e de
gordura, levanta-se no meio da casa. Pratos e garfos, um tacho colossal
de migas com a classica colher de pau enterrada na appetitosa assorda;
dois cangirões de vinho, e canecos monstruosos, uma cesta de laranjas ao
pé de uma frigideira de queijos brancos, ladeiam a peça capital do
brodio campesino, um cabrito acerejado, rodeado de batatas, e credor de
tentar a gula do mais austero cenobita.

Finalmente, sobre a mesa de pedra, coberto com um capote de cabeções, do
talho pouco airoso dos chamados Josésinhos, com um tronco por
travesseiro, e um panno ensanguentado sobre a cara, jaz um vulto, que a
immobilidade rigida dos membros, e duas vellas uma aos pés, outra á
cabeceira, dizem claramente ser um cadaver.

De vez em quando os olhos dos que velam bem contra vontade o seu ultimo
somno, voltam-se para elle, e afastam-se rapidamente, como se temessem,
que a trombeta final, soando mais cêdo, o despertasse. O sargento
Cabrinha e o seu honrado confidente Gaspar Preto, o _Sapo_, as pessoas
conspicuas da assembléa nocturna, em que a nossa indiscreção introduz o
leitor, são as que olham mais a miudo, e de cada vez que fitam vista
n'aquelle corpo inerte, um calafrio arrepia-lhes a espinha dorsal, e um
suor de mau agouro, apezar da temperatura, borbulha na testa de ambas.
Dariam tudo por se verem a cem leguas da companhia d'aquelle morto, cujo
sangue o seu remorso, como que está avivando mais em manchas vermelhas
sobre o sudario, que lhes esconde o rosto.

Os principaes auctores concordam com o logar e com os accessorios.

Comecêmos pelo chefe, como é razão.

A physionomia de Estevam Cabrinha não desmente a reputação. Conta pelo
menos sessenta annos, mas póde melhor com elles, do que outros, menos
robustos, poderiam com quarenta. A testa esguia e deprimída lembra a
fronte felina, e a mobilidade de duas profundas rugas, cavadas logo por
cima dos sobrolhos, ainda torna mais sensivel a similhança. Faces
encovadas, beiços sorvidos, barba revirada, e por cima da pelle uma côr
assanhada de amora mansa, não lhe permittem suppor-se por certo nenhum
Cupido, nem seccar-se, como Narciso, de paixão pela belleza propria.

O nariz, adunco, em fórma de bico de papagaio, caía como apagador,
ornado de botões vinosos, sobre a bôcca. Os olhos, cujo raio visual se
torcia com sinistra expressão, tinham aquelle tom baço e frio de
pupillas, que revela quasi sempre as almas traiçoeiras. Curto de
pescoço, largo de hombros, e prendado com uma corcova assás volumosa,
imita nos movimentos lentos o pesado garbo do urso dos Alpes.

O ventre proeminente, e as pernas delgadas provam, que pouco tinha que
agradecer á providencia as graças do busto. Os cabellos hirsutos,
empastados na testa, alargam-se como duas orelhas derrubadas sobre as
fontes, e terminam por um rabicho esplendido de meio covado de comprido,
dançando enfeitado de seu laço de fita preta sobre a farda,
polvilhando-a de pós, e ensebando-a de banha.

Um bigode, quasi todo branco, espetado nas guias, como as sedas de um
chicote, e o resto da cara rapado e escanhoado cuidadosamente, afinam
perfeitamente o typo singular e repugnante d'este personagem funesto,
que as desgraças civis fizeram sobrenadar com as escumas sociaes, mas
que as galés cêdo, ou tarde, hão de recolher, como filho prodigo, se as
iras populares se lhes não anteciparem.

Trajava a farda de milicias, de panno azul ferrete, botões e vivos
brancos, abas de tesoura, e gola de espeque. Os calções de uniforme e as
polainas atraiçoavam-lhe a magreza das pernas. A espada de bainha preta
e copos de roca descançava fóra do boldrié a seu lado, e a alabarda,
insignia do posto, via-se encostada da outra parte.

O _Sapo_ merecia a alcunha. Teria trinta annos. Era todo branco-papel,
cara e cabellos, como se um moleiro o tivesse amortalhado em um sacco de
farinha, mas d'aquelle branco livido e sepulcral, que nos enoja e
repugna, quando contemplâmos qualquer reptil asqueroso. Uma queda em
pequeno tinha-lhe deixado em memoria a deslocação da perna esquerda,
que, torcida quasi em rosca de parafuso, o obrigava a andar aos saltos
como a rã, ou a agachar-se, como o animal immundo, cujo nome o baptismo
dos visinhos substituira ao seu.

Quasi sem nariz e beiços, vesgo, e da altura de um rapaz de nove annos,
não mostrava no rosto ponta de barba, e quando se ria escarnava as
gengivas e os dentes, de modo, que as mulheres lhe chamavam por escarneo
o bôcca de tubarão. Agil e matreiro, como a raposa, a sua actividade era
incansavel, a sua consciencia larga como o peccado, o seu coração duro
como um penhasco. Caçador dos mais destros, andarilho infatigavel apezar
das pernas, curioso e falador como um cento de comadres, ouvia, sabia, e
aproveitava tudo.

Accusavam-o de não perdoar aos outros a fealdade propria, e de se
felicitar com os alheios males. Auctor de alguns furtos industriosos,
espião e delator por officio, assassino por vocação, Gaspar Preto, como
o imperador romano, desejaria ao genero humano uma só cabeça para lh'a
decepar de golpe. Vestia calções curtos atacados sobre as meias de lã,
botas de couro branco e salto de prateleira, collete e vestia de
belbutina com botões ôccos de metal amarello, e cinta escarlate muito
apertada ao corpo.

A espingarda, sua fiel companheira, estava sempre á mão, e a tiracolo
encruzavam-se-lhe sobre o peito as correias do polvorinho e do
chumbeiro. A navalha de ponta e de cabo de osso, que trazia na cintura,
era afamada em toda a comarca pela habilidade, com que a jogava, ou com
que sabia atiral-a de arremesso aonde punha o alvo.

Os cinco homens da milicia e da ordenança, que acompanharam o sargento
na diligencia ao Casal do Ouro, não merecem menção especial. Aldeãos
corpulentos cabeceavam de somno ao calor do lume, e bocejavam de fome ao
tinir dos pratos, que um creado do João da Ventosa principiava a pôr em
cima da mesa. O João, sim, esse é que destaca de todo o grupo pela
figura, pelos gestos, e pelo aspecto na realidade digno de exame. Será
homem de quarenta e cinco annos, mas não inculca mais de trinta e oito.
Bem posto e proporcionado de membros, mais esbelto, do que robusto, á
primeira vista, mais engraçado, do que forçoso na apparencia. A cara
redonda e os beiços grossos e sensuaes, o olhar fino e malicioso, e a
bôcca cheia de riso, na sua mocidade tinham feito d'elle o enlevo e o
adonis das bellas e namoradas raparigas d'aquelles contornos; porém
debaixo d'estas fórmas quasi delicadas escondia elle vigor pouco vulgar,
assim como o sorriso meio travesso, que lhe bailava nos labios,
disfarçava uma firmeza e penetração mui pouco usuaes.

Sabia ler, escrever, e contar como um mestre--eschola. Se tivesse
nascido trinta annos depois, n'estes felizes tempos, era de certo juiz
eleito, regedor, vereador, e quem sabe (!) talvez mesmo deputado! Outros
muito peiores deu já á luz a urna rural. São os que, cerzindo umas abas
de paletó á jaqueta hereditaria, mascarram de interpellações boçaes e de
apoiados taurinos e beocios o extracto das sessões, acotovellando-se nos
aditos da tribuna.

O nosso amigo contentava-se, porém, com os seus trinta a quarenta moios
de colheita, com as vinte pipas de azeite, que expremia nos seus
lagares, com os toneis attestados de vinho puro e genuino, honra e
orgulho da sua adega, e com a vara de juiz de vintena, magistratura
exercida a contento de clero, nobreza e povo.

O João da Ventosa, ou João Bonito, como lhe chamavam as mulheres da sua
edade, gosava álém d'isso da fama de rico, pastava bons rebanhos na
charneca, fazia dinheiro de tudo, e abotoava-se com um bom par de
louras. Solteiro e jovial vivia só em companhia de um sobrinho de
quatorze annos, e de dois creados.

Ao pôr da tarde, vendo a trovoada armada, tinha ido de passeio rondar as
hortas e o olival, tinha deitado depois até ás abegoarias, e na volta de
uma das arribanas, por encurtar caminho, viera descair á azinhaga, aonde
a espingarda do _Sapo_ acabára de deitar por terra Antonio Simões da
Aramanha.

O estrondo do tiro, a hora e o grito do ferido obrigaram-n'o a apertar o
passo. Assim mesmo chegou tarde. O assassino já tinha saltado o vallado,
e o corpo do fazendeiro jazia prostrado. Era quasi noite, choviscava
rijo, e o ribombo dos trovões amiudava. Inclinou-se para o morto,
conheceu n'elle um amigo de vinte annos, exhalou um suspiro, rosnou uma
praga contra o homicida, e, depois de alguns momentos de hesitação,
levantou-o nos braços, como se o peso não o devesse ajoujar, e
deitando-lhe a cabeça sobre o hombro, sem vergar, encaminhou-se com elle
para casa. Á porta chamou o maioral e o abegão, e todos tres
transportaram o cadaver para a cozinha.

Duas horas depois batia á porta o sargento Cabrinha com os seus
milicianos, e da parte da justiça pedia agasalho por aquella noite para
elles e para os presos. O João da Ventosa, ao que parece, estava
occupado, porque os deixou repetir o recado terceira e quarta vez.

Por fim veiu abrir em pessoa, e desculpando-se com o mau tempo, metteu o
sargento na cozinha com os acolytos, e guiou Paulo de Azevedo ao andar
nobre, a um aposento mais bem reparado, aonde um leito antigo de
balaustres enroscados e baldaquino de seda carmezim, cama quasi regia,
parecia esperar por elle. O quarto de D. Leonor era ao lado, e
communicava por uma entrada baixa com o de seu pae. Cabrinha assistiu ao
aquartelamento dos presos, visitou o corredor e a escada, que era a que
dava para a cozinha, sondou a parede de duas portas entaipadas de
fresco, que abriam d'antes para o corpo do palacio, e não socegou senão
depois de ter fechado o cavalheiro de Mafra e sua filha a duas voltas de
chave nas duas camaras, que um official amigo do rendeiro havia separado
do resto da casa, enchendo de pedra e cal o vão das portas.

--A menos de não lhes nascerem azas de repente, murmurava o sargento,
para voarem, ou de passarem como espiritos através dos muros, os dois
estão seguros. A evasão pelas janellas, vista a altura, equivale a um
suicidio; e pela porta, mesmo que a arrombem, como não ha senão uma
escada e uma saida, e ambas vão dar á cozinha, aonde conto acampar,
qualquer tentativa serviria só de os tornar a metter nas goelas do lobo!

Tomadas todas as cautellas, que a prudencia aconselha, Estevam Cabrinha
desceu com o seu hospede, e principiou a apalpal-o, ácerca da
generosidade, que lhe suppunha de não consentir que elle e os seus
jejuassem só com o leve almoço, esmoido no largo passeio do Casal do
Ouro á Ponte da Asseca. João da Ventosa respondeu ás gargalhadas, que de
sua casa nunca saiam barrigas famintas, e gritando pelos creados, mandou
trazer luz e accender o lume.

N'este momento entrou o _Sapo_.

Rondando as visinhanças o virtuoso assessor do sargento achou a porta
meio cerrada, ouviu de fóra a voz aspera e roufenha do amo, e sem mais
ceremonia inseriu-se no texto, enfiou o corredor, e veiu farejar a ceia
e a pousada.

A manta, em que se enrolava, escorria como se fôra tirada de um tanque,
e as botas atascadas de barro denunciavam a larga excursão de que se
recolhia. Approximando-se de Cabrinha, tocou-lhe no hombro, e disse-lhe
ao ouvido duas palavras. O digno mandarim recuou sobresaltado, e não
poude conter uma exclamação em alta voz, exclamação de susto e de
alegria ao mesmo tempo, que não escapou á curiosa attenção, com que o
João da Ventosa espreitava e escutava com todos os sentidos vigilantes o
dialogo confidencial dos dois personagens, cujas proezas conhecia de
longa data.

As suspeitas, que desde o principio o tinham assaltado ácerca dos
verdadeiros auctores do homicidio da azinhaga, confirmaram-se.

Estevam Cabrinha era muito capaz de encommendar a morte do fazendeiro, e
Gaspar Preto muito obediente servo, em se tractando de um crime, para
elle os não accusar secretamente do delicto, e não vêr as mãos de ambos
tintas no sangue do seu amigo. Sabia a historia da prisão de Antonio
Simões, não ignorava a promessa indiscreta que elle fizera, de varejar
as costellas do sargento e do _Sapo_, e o mau conceito que formava
d'elles, auctorizava-o a crer que o tiro e a espera haviam partido de um
plano concertado com a deliberação e perversidade, que tanto
caracterizavam o coxo, e o seu Mecenas.

Mas se o sargento era jubilado em velhacaria, e se o seu fiel Achates
tinha estanhadas a alma e as faces, João da Ventosa lisongeava-se de os
codilhar a ambos em esperteza, e armára uma rede, em que haviam de cair
por força. Calou-se, pois, e esperou.

D'ahi a pouco o moço dos bois appareceu com o velho e cansado lampião,
cuja luz mortiça só começou a avivar-se depois de pendurado. Logo atraz
outro creado atirava ao chão com um grande feixe de matto secco, e
arrastando para a lareira dois cepos de oliveira, petiscava lume com o
fuzil, e incendiando tudo ateava uma labareda, cujos clarões, lambendo
as paredes da vasta chaminé, derramaram por toda a casa viva e repentina
claridade. De subito o sargento, que se achava com o _Sapo_ junto da
mesa de pedra, olhou, viu o corpo, e por um gesto machinal e
irresistivel extendeu a mão, e levantou o panno que lhe cobria o rosto.
A vista encandeou-se-lhe, os cabellos erriçaram-se-lhe, e um grito de
espanto truncou-se-lhe suffocado na garganta. As côres rubicundas
amorteceram-se, e, se não se ampara com a hombreira, resvalava redondo
no chão, tão fracos lhe fugiam os joelhos.

Gaspar Preto ainda revelou mais horror. Recuando até á parede com as
mãos abertas como para afugentar de si a visão terrivel, parecia
metter-se pelo muro dentro, com os cabellos em pé, as pupillas
envidraçadas, e tal convulsão em todo o corpo, que o frio de uma sezão
mortal não podéra ser maior.

Os milicianos boquiabertos contemplavam o cadaver, e a figura singular
de Estevam Cabrinha e do coxo, que não eram santos da devoção de nenhum
d'elles.

João da Ventosa sorria-se para dentro. Dir-se-hia que fulminava os dois
cumplices com o sombrio fulgor dos olhos. Um instante depois pousou a
vista, sereno e temperado, sabendo conter-se e dissimular para não se
prender no mesmo laço, que tecia aos outros.

Seguiram-se as explicações. O rendeiro com a voz macia, cujo timbre era
quasi feminil, e aquelle ar de rir bondoso, que encobria tanta cousa,
desculpou-se da triste companhia, que era obrigado a dar aos hospedes.

Tinha encontrado, disse elle, Antonio Simões morto, apenas o conhecia de
vista, mas não tivera animo de deixar o corpo de uma creatura de Deus
exposto no caminho toda a noite. Não havia outra casa decente, aonde
esperasse a sepultura christã, e o tempo e a hora não permittiam chamar
o padre, e deposital-o na egreja. Ao passo que explicava isto, o
compassivo João accendia de vagar duas vellas de cêra, amarelladas dos
ocios da gavêta, e cravando-as nos castiçaes de estanho amolgados, punha
uma aos pés e outra á cabeceira do morto, completando com todo o socego,
e de proposito, a exposição funebre, que arripiava os circumstantes, e
especialmente o sargento e seu confidente, constrangidos a associar toda
a noite o banquete e o somno dos vivos ao espectaculo do cadaver
ensanguentado da sua victima. Se ambos podessem ler na alma do homem,
que lhes estava falando, ainda haviam de tremer mais!

Na mente d'elle tudo isto apenas era prologo!




VI

Ressurreição de Lazaro


Decorreram minutos sem que as mandibulas de Estevam Cabrinha, deslocadas
pelo terror, podessem volver ao estado natural. Nem articulava, nem
balbuciava. Só a pouco e pouco é que se foi restaurando do susto, e
maldizendo o _Sapo_, o rendeiro, e aquella funesta casa, regougou meio
desvairado uma evasiva para desculpar o pavôr, que o accommettêra, e que
não era senhor de disfarçar.

Os seus nervos estavam tão delicados, que a vista do sangue e do
cadaver, tirava-o de si, e tornava-o mais fraco, do que uma mulher!
Entretanto fazia o possivel por ser homem; mas pedia por tudo o que
havia de santo no céu e na terra, que o não obrigassem a velar a noite
ao pé do morto, se em vez de um, não queriam enterrar dois cadaveres.

João da Ventosa affectou clemencia. Capitulando com os terrores do
sargento prometteu dar-lhe um quarto retirado no fundo do corredor,
depois da ceia. Pediu-lhe depois licença para ir cuidar dos hospedes
presos, que desejava receber como pessoas nobres, e que a má reputação
da casa por certo assustaria, sobre tudo na escuridão, e com o temporal
que parecia arrancar as arvores e os telhados. Cabrinha suspirou, e com
um aceno respondeu que sim. Sentia-se gelado, e o coração batia-lhe com
tal força, que parecia querer saltar fóra do peito.

O lavrador accendeu dois candieiros de latão amarello de tres bicos,
pesados e disformes, pendurou pela argola um em cada mão, e começou a
subir a escada, escoltado por Cabrinha, que apezar de meio tonto, e de
tartamudo de mêdo, sempre desejou certificar-se outra vez de que a
gaiola, como dissera antes, era solida, e não deixaria escapar os
passaros.

Um creado poz a toalha, trouxe queijos e pão, e reanimou o alento dos
milicianos, collocando triumphalmente em cima da mesa um bojudo cangirão
e dois canecos de estatura descommunal, destinados ás libações. Os
soldados chegaram-se a principio timidos, partiram e saborearam o
queijo, acharam-o excellente, provaram o vinho, que estava ainda coberto
da espuma da pipa espichada de proposito, e romperam o assalto,
esquecendo gradualmente o morto, o sargento, e o _Sapo_, o qual,
agachado como fera medrosa a um canto da chaminé, só dava signal de vida
nos estremecimentos, que lhe saccudiam os membros.

A demora de Cabrinha em cima foi grande. Quiz assistir a todos os
arranjos, que a velha servente do rendeiro determinou, e que ia
executando com a mão vagarosa por entre as orações resmungadas entre
dentes a Santa Barbara e a S. Simeão Stelita, advogados contra os
trovões.

Viu, pois, lançar nas camas os lençoes de linho fino e defumados,
recheio das arcas do lavrador; viu enfiar as fronhas e os travesseiros
de folhos com fitas azues; viu deitar as colchas de seda da India
matizadas, e pregar as cortinas dos leitos. Immovel e calado os seus
olhos vigiavam tudo, mas o seu espirito ausente estava ao pé do morto.
Finalmente os moços trouxeram a ceia em bandejas largas, e a creada
velha despediu o amo e o sargento, declarando que ficava e dormia perto
dos presos para os servir.

Cabrinha saiu atraz do seu amphytrião, fechou a porta, e metteu a chave
no bolso. Por este lado estava tranquillo. Restava a ceia com o cadaver
defronte. Essa é que se lhe representava um supplicio insupportavel; e
se não fosse o receio, com que o remorso ata a lingua dos criminosos,
teria pedido um pedaço de pão secco, um ou dois goles de vinho, e iria
para o meio da estrada esperar que nascesse o dia, mesmo em risco de uma
pancada de agua o ensopar, ou de um raio o fulminar. Não se atreveu,
porém. De cabeça baixa e passos incertos, sem ousar olhar, e não
podendo, todavia, apartar a vista da mesa de pedra, veiu sentar-se ao
brazeiro, do outro lado, defronte do _Sapo_. Ao mesmo tempo o João da
Ventosa consultava o immenso relogio de prata, e, vendo apontadas no
mostrador as dez horas, gritava pelos creados, que apressassem a ceia,
se não queriam que elle e seus honrados amigos morressem alli todos de
fraqueza.

--Vamos! exclamou. Andar! Esse cabrito não acaba de sair do lume,
mandriões? Para temperar umas migas será preciso chamar o cozinheiro do
patriarcha? Oh Pedro? As batatas cozam-n'as no borralho!... Ficam mais
gostosas. Dêem-me d'aquellas laranjas de casca fina do pomar de cima,
que eu apanhei hontem. Tirem o vinho da pipa nova! Bem basta a
inferneira que logo ahi vae em sendo meia noite! E então com esta visita
em casa! E apontava para o morto. É preciso que o demonio e as almas do
outro mundo, quando vierem, nos achem confortados e quentes de estomago,
limpos de coração, e lavados de consciencia... Que tal é esse vinhinho,
camarada? Ajuntou pedindo o caneco a um dos milicianos, ao qual o seu
discurso petrificára os movimentos, conservando a taça rustica a meia
distancia da mesa e da bôcca sem animo de a depor, ou de a sorver. Os
outros, pallidos e sobresaltados, olhavam espavoridos para as portas,
para as paredes, e para a mesa de pedra, e benziam-se, suppondo ver já
um espectro em cada canto.

--Vamos! ajuntou. Á nossa saude! E que Deus nos livre por muitos e bons
annos de um amigo, como encontrou aquelle que alli jaz! E emboccando o
caneco deixou cair do bico o vinho em fio dentro da bôcca á moda
hespanhola, engorgitando-o lentamente com delicias.

O brinde funebre produzira o seu effeito. O sargento poz-se em pé e
desabotoou tres botões da farda. Sentia-se a arder. O _Sapo_ agachou-se
mais, e ouviam-se-lhe distinctamente bater os dentes.

--A ceia! A ceia! Rapazes! clamava o lavrador acompanhando o rebate das
vozes com fortes punhadas em cima da mesa.

Os creados acossados por estas impaciencias, verdadeiras, ou fingidas,
saccudiram a preguiça, e a correr acabaram de pôr a mesa, a correr
trouxeram as migas e o cabrito, e a correr tambem vieram com as batatas
e as laranjas. O cangirão refrescado por segunda visita á adega estava
cheio até á borda.

--Vamos a ella? gritou o dono da casa. Senhor sargento, chegue-se para
os bons, e será um d'elles! sente-se do meu lado. Tu, meu _Sapo_, com
essa cara de alvaiade vae para alli. És curioso, e quero que me
espreites o defunto a ver se bole com a alegria dos vivos! Os camaradas
accommodem-se aonde poderem! Desculpem as colheres de pau e os garfos de
ferro. A pratita, que tinhamos, está em Lisboa; nos tempos, em que
vivemos, digam lá o que disserem, sempre é o mais seguro... Nada de
tristezas! Longe vá quem mal nos quer! Senhor sargento á nossa! É bom
copo, tenho ouvido, mas o João tambem não arreia. Encha-me esse caneco
até cima, e despeje-m'o de um trago, senão digo que o vinho é mau, ou
que debaixo de boa capa ruim bebedor!

Por um esforço heroico Estevam Cabrinha conseguiu obedecer. Não tinha
sêde, nem fome, tinha medo. A ceia era para elle um martyrio, sobre tudo
com as costas viradas para o cadaver, cuja sombra se lhe figurava a cada
momento alevantada por cima dos hombros. O _Sapo_ não padecia menor
tormento. Com o morto e a vista do sudario ensanguentado defronte
enlouquecia de terror e de afflicção. Suas pupillas dilatadas não podiam
despregar-se d'aquelle testemunho irrecusavel, que lhe avivava o crime
pela bôcca das feridas, por onde fugira a alma. Deixou de ver o que o
rodeava para vêr só a victima silenciosa, e ameaçadora. Poz-se-lhe um nó
na garganta, e um véu nos olhos. A primeira colhér, que levou á bôcca,
tornou-se-lhe de fel; o primeiro trago de vinho, que sorveu, soube-lhe a
sangue. Sentia tentações de se atirar pela porta fóra, desatando em uma
corrida louca; mas os pés estavam grudados ao chão e as pernas mal o
sustinham. A cada instante entrava-lhe pelos ouvidos o som dos passos de
Antonio Simões, e ouvia o grito que elle arrancára caindo ferido. O suor
escorria-lhe em bagas da testa, e os beiços tremulos denunciavam a
intensidade da agonia.

O lavrador observava, e dissimulava. O seu ar de riso e a sua
jovialidade cresciam á proporção, que iam aggravando-se as dores moraes
de ambos.

--Que é isso, _Sapo_? accudiu elle apertando os tratos ao mais culpado.
Que é feito d'aquella galhofa do outro dia, meu velho? Estás com cara de
enterro. Terás tu morte de homem ás costas, diabo?!!...

A esta interpellação directa, que o rendeiro disfarçou em uma risada
larga e sonora, o remorso fez saltar involuntariamente dos bancos o
sargento, e o seu cumplice, como se a voz do sangue chamasse por elles
no tribunal de Deus. Á pergunta: Cain que fizeste de Abel, ao brado que
a consciencia repetia aos dois, ambos tremeram, mas não poderam
responder: não fui eu! Sentiam-se tomados de espanto até ás mais fundas
cavernas do coração.

João da Ventosa, entendendo que não devia ir mais longe para não se
descobrir, e vendo os dois de pé, mudos, e pasmados, tractou de os
tranquillizar a seu modo, isto é, vertendo-lhes o terror nas veias por
outro modo.

--Sente-se, meu sargento! disse elle mettendo o hospede no coração com o
tom assucarado. Que vespa o mordeu? Os ares da casa não são bons, sei
muito bem; mas o que quer? A gente toma amor ao ninho, e depois não ha
quem o despegue d'elle. Não tenho mulher, nem filhos; nasceu-me aqui o
dente do siso, e... É melhor não tocar em cousas más. Mas sempre lhe
digo que ha noites! Ainda antes de hontem foi um reboliço lá por cima de
cadêas arrastadas, de soluços e gemidos, que vinham os sobrados
abaixo...

--E nunca viu nada, senhor João? atalhou um dos milicianos meio
engasgado com um pedaço de cabrito, que o susto causado pelas reflexões
caridosas do rendeiro lhe atravessára na garganta.

Estevam Cabrinha desabotoára todos os botões da farda, e pelas frestas
da camisa aberta mostrava o peito vellôso como o de um cerdo. Tinha os
cotovellos na mesa, a cabeça entre as mãos, e os olhos espantados.

Gaspar Preto recaira, sem poder reprimir-se, no tremor das primeiras
horas.

Aquelles dois entes, tão fortes contra a consciencia, tão esquecidos de
Deus e da justiça humana, desmaiavam como creanças deante da sombra do
seu crime e dos pavores do invisivel.

--Se não vi nada?... Oh! redarguiu o dono da casa, tornando-se serio de
repente, e fazendo suppor com a reticencia, que não tinha animo para
dizer tudo.

--Conte-nos isso! accudiu um dos comensaes, que não era dos menos
timidos, mas que era de certo dos mais curiosos.

--Para que? Para não dormirem umas poucas de noites?!... respondeu João
da Ventosa. É melhor falarmos de cousas alegres.

--Não. Não! Diga!

--Depois não se queixem! Faz hoje um anno, e justamente chovia e
trovejava como agora, que parecia que se acabava o mundo. Tinha uma
cadella de perdizes, que era um brinco, a Pomba. Faltou-me todo o dia, e
cuidei logo que ficaria fechada lá em cima. A esse tempo ainda eu não
tinha mandado tapar as duas portas dos quartos, que viu o sargento, e
aonde estão os presos. Peguei n'uma lanterna e subi. Atravessei tres
salas. Apitei, chamei a Pomba, não me respondeu, ella, coitadinha, que
em me ouvindo era toda saltos e alegria. Olhei por acaso para um canto
mais escuro, e vi... a pobre da bruta morta com a cabeça torcida!... Não
sei o que me passou pela vista, mas tive medo, medo deveras, juro-lhes.
Peguei no corpo da Pomba, e arrastando-me, e tropeçando, vim até á
porta, que hoje está entaipada. De repente um sopro forte apaga-me a
luz, um clarão bate-me nos olhos, e uma figura branca apparece-me tão
alta e transparente, que se via através das roupas e do corpo (se era
corpo!) como através de um vidro fino. Não posso dizer-lhes o que senti,
mas quiz gritar e faltou-me a voz, quiz benzer-me e caiu-me a mão, quiz
fugir e fiquei parado.

«O Fantasma fitou-me dois instantes com um olhar frio, que gelava e
disse-me: Desgraçado de ti se tivesses sangue nas mãos! Nenhum matador
sae vivo d'esta casa! Perdi os sentidos. Quando tornei a mim era dia, e
estava deitado na minha cama. Suppuz ter sido tudo sonho; mas a cadella
morta jazia aos pés do leito. Enterrei-a, fiz uma parede das duas
portas, e andei um mez como doudo, malucando no caso, que podia ser
peior... Fóra com historias negras! exclamou mudando de tom. Estamos
hoje aqui muitos, e graças a Deus nenhum de nós tem de lavar as mãos de
sangue, que vertesse. Vae dar meia noite! ajuntou tirando um relogio de
prata. É a hora da senzala principiar lá por cima. Não se assustem! O
vinho é bom, festejemol-o, e o que for soará. Nossa Senhora, minha
madrinha, não ha de desamparar-nos.»

A consolação acabou de petrificar o auditorio, que a narração já não
tinha estultificado pouco. O sargento e o seu assessor, ainda mais
enfiados, trocaram um olhar desvairado, e gemeram um suspiro. Era a sua
sentença que o espectro annunciára pela bôcca do lavrador? Os canecos
ficaram cheios sobre a mesa; o cabrito, meio escarnado, viu suspensas as
hostilidades, que ameaçavam deixal-o na ossada; e só o dono da casa
levou aos beiços, e exgotou a libação, que propozera. O volumoso relogio
de caixas de prata posto a seu lado, attrahia a vista anciosa de todos.
Era tão profundo o silencio, que se sentia a leve pancada da machina
trabalhando. Finalmente o ponteiro pousou-se nas doze horas, e o
lavrador, como se obedecesse a um impulso espontaneo e invencivel,
poz-se de pé, e exclamou:

--Meia noite! Deus seja comnosco!

N'este momento, como se a natureza quizesse associar os seu terrores á
scena alli representada, um furacão espantoso saccudiu e abalou todo o
palacio com rugidos prolongados, um trovão rebentou perpendicular com o
estrondo de cem canhões no meio de medonhos estalos, fazendo tremer a
terra, a casa encheu-se de luz electrica por um instante, e a chuva,
açoutando com o seu granizo rijo e batido os telhados e os muros,
enxurrou dos tectos pelas chaminés arrombadas, e veiu quasi extinguir o
lume, que esmoreceu em chispas lividas por entre ondas de fumo. Ao mesmo
tempo as duas portas pregadas com travessas á entrada das escadas, que
desciam para a cozinha, vieram a terra com fragor, o cadaver deitado
sobre a mesa ergueu meio corpo sobre o cotovello, e arrancou o panno
cruento, soltando um gemido lugubre, e uma figura de altura descommunal,
envolta em sudario branco e fluctuante, assomou ao limiar. Tudo isto
occorreu em menos de um segundo, acompanhado do ruido de ferros
arrastados, do tropel de passos e de quedas tumultuosas, e de um
verdadeiro clamor de vozes e gemidos no andar de cima.

Os milicianos apavorados hesitaram um instante immoveis. Depois
correndo, como loucos, investiram pelo corredor, e como rebanho
tresmalhado e perseguido por alcateas de lobos, sentiram de repente azas
nos pés, e voaram pela estrada inundada por entre os relampagos e por
baixo das aguas da tempestade, gritando misericordia!

O sargento ao som das portas, que desabavam, e deante da apparição
inopinada, sem saber já de si, e sem ver o morto alçar-se, trepou em
dois pulos a escada de pedra, metteu a chave na porta, e acoutou-se nos
aposentos dos presos, tão cego e attonito que atropellou na carreira a
velha servente na sua cama, e foi cair de bruços ao pé da mesa, aonde se
apagava em vascas a véla consumida de um castiçal.

O _Sapo_, que observámos paralyzado momentos antes, vendo surgir o
fantasma, sentiu todos os instinctos ferozes irritados, e pegando da
espingarda, e apontando-a n'um abrir e fechar de olhos, só volveu em si,
quando o cão bateu na pederneira, e esta faiscou, sem queimar a escorva,
deixando-lhe nas mãos uma arma inutil. Então, como o tigre que rompe a
jaula, arremetteu pelo corredor do dormitorio, e de lá, galgando o muro
baixo do pateo, sem se deter a buscar a porta nas trevas, achou-se no
campo, e precipitando-se por sebes e vallados, veiu parar sem folego,
sem voz, e sem consciencia de si ao pé do moinho da Raposa.

Finalmente o proprio espectro, primeira causa de todo o alvoroço, não
escapou ao contagio geral, e deu tambem parte de fraco. Vendo o morto
levantar-se e saccudir os véus funebres, assaltou-o tal convulsão de
mêdo, que, tapando os olhos com um grande grito, desabou no chão do alto
das andas, em que estribava. Teve razão ainda d'esta vez o adagio.
Virou-se o feitiço contra o feiticeiro!

Mas as peripecias d'esta dramatica noite não estavam terminadas. No
momento, em que, afogado em riso, o João da Ventosa accudia a levantar o
fantasma demolido pelo susto, o sargento Cabrinha despenhava-se pela
escada, bradando possesso de espanto. Não era sem causa!

Seguimol-o quando subia os degraus a dois e dois para se refugiar na
camara dos presos; vimol-o enrolar-se e tropeçar no corpo tolhido de
rheumatismos da tia Margarida, a qual, pobre mulher (!), acordada em
sobresalto pelos trovões, tiritava de joelhos em anagua de estopa,
benzendo-se, e invocando todos os santos da côrte do céu, quando aquelle
furacão humano se ennovellou com ella, e lhe fez das costas escabello.
Os gritos da servente, a motinada do palacio, que alli soava mais
proxima, desembriagaram um pouco do medo do andar de baixo o virtuoso
agente de Lagarde, mas exaltando-lhe os terrores excitados pelo andar de
cima. Percebeu que o asylo, que buscára, era peior do que o perigo, e
tractou de apressar a retirada.

Mas apezar dos accessos de valor, que lhe notámos, era malsim na alma e
nos ossos, e a curiosidade prevaleceu. Antes de fugir quiz verificar de
novo se os outros podiam fugir. A tremer pegou em uma véla e abriu as
cortinas da cama de Paulo de Azevedo. Recuou pasmado. Estava vasia!
Correu ao quarto immediato de Leonor; achou-o deserto! O unico preso,
que não se bolira, fôra a inoffensiva e tropega Margarida! O sargento
sentiu estalar uma cousa dentro do peito. Se tivesse coração diria que
era o coração! Não o tendo acabou de se lhe varrer o sizo, e ficou por
minutos estatico a contemplar aquella solidão, obra visivel do demonio.

Por fim este ultimo golpe e uns suspiros em tremulos, exhalados do outro
lado da parede, venceram esses restos de vigor, que ainda conservára.
Consumou o seu destino, e despejou o campo como os seus milicianos,
porém com menos felicidade. Quiz descer a escada, os pés atraiçoaram-o,
e mediu-a com as costellas de cima até baixo. Quando tornou a si com a
dor, e por ella conheceu que vivia ainda, os seus olhos horrorizados
perderam a luz de assombro e de pavor.

No meio da casa o Manuel Simões da Aramanha, de pé, encarava-o sombrio e
terrivel. Ao pé da mesa o fantasma branco, entrouxado nos lençoes,
extendia o braço direito em ar de ameaça. Atraz d'elles João da Ventosa,
mudo e inerte, e como gelado, apontava-lhe para o corredor, sem falar,
como se o convidasse a fugir. Não poude mais. Atou as mãos na cabeça e
caíu sem sentidos.




VII

Segredos em toda a parte


Os aposentos aonde Paulo de Azevedo Carvalho e sua filha foram
encerrados, em um dos torreões do palacio, eram dos mais bem
conservados. Os tectos não estavam arrombados; os filetes, que
guarneciam as molduras das paredes, forradas de pannos de Arraz, ainda
não tinham perdido de todo o ouro; e a humidade não acabára tambem de
desvanecer inteiramente as tintas dos quadros de caçadas, batalhas e
scenas campestres, representados na tela. Apezar de velhos e de
ennegrecidos, os moveis ainda resistíam em parte aos seculos e ao
caruncho.

O venerando leito de cabeceira de talha alta e columnas enroscadas
occupava o centro da primeira casa, e podia quasi dizer-se um edificio,
um monumento, pelo descommunal das proporções. Um pesado baldaquino de
seda desbotada cobria o céu da cama, e largas cortinas do mesmo estofo
desciam dos lados a arrastar pelo chão.

Defronte um tremó, que na sua mocidade brilhára pelo esplendor dos
dourados, mas que na velhice, ou antes na decrepidez, apenas se
recommendava por bellos relevos de folhas e flores, com um espelho de
Veneza em cima, comido e manchado no aço, sustentava duas jarras do
Japão da mais preciosa porcellana, infelizmente rachadas. Cadeiras de
braços, mutiladas, um velador alto desgrudado, um bofete de almofadas
com sua escrevaninha de prata mareada, olhando para o espelho,
completavam a mobilia.

Na segunda camara havia um leito mais singelo sem cortinas, e um espelho
embutido na parede, que enchia de alto a baixo um vão inteiro. O bofete
liso com tinteiro de bronze antigo, e as quatro cadeiras que constituiam
todo o seu adorno, não accusavam pouco os annos pelo estado de ruina; e
as colgaduras[1] de couro, rotas ou tão coçadas, que não tinham já côr
possivel, deixavam em parte nus os muros, provando que o tempo as
respeitara menos, do que aos pannos de Arraz do quarto principal.

O cavalheiro de Mafra mal correu a vista em redor de si. Sentou-se
deante do bofete da sala grande, molhou a penna na tinta grossa da
escrevaninha, e começou machinalmente a traçar linhas e dezenhos
informes em um papel. Desde o Casal do Ouro até alli não descerrára os
labios, nem para falar á companheira do seu infortunio; e só o ardor
sombrio das pupillas denunciava a ira, preferindo consumir calado as
tristezas a desafogal-as em vozes, ou em queixas. Leonor contemplou-o
silenciosa por alguns momentos, e, avisinhando-se depois nas pontas dos
pés, pousou-lhe na fronte annuviada um beijo, que a ternura humedeceu de
lagrimas.

Paulo, como se acordasse repentinamente, vendo no espelho o lindo rosto
debruçado sobre o seu estremeceu. Um sorriso melancholico adoçou-lhe a
expressão severa. Cedendo ao carinho de tão suaves caricias, e tornando
os olhos meigos, fitou-os cheio de enlevo na formosura da filha.
Cingindo-lhe depois o collo com os braços, cobria-lhe de osculos os
cabellos e a fronte, e procurou tranquillizar-lhe a inquietação.

Leonor era todo o seu amor e toda a sua familia. Se desejava sobreviver
ás desgraças da patria é porque não queria deixal-a orphã e desamparada
n'uma edade, em que as illusões armam tantos laços á candura e á
innocencia.

Mas as palavras do velho cavalheiro não o enganavam a elle, nem á
donzella. Quando para a consolar affirmára, que um vago presentimento
lhe augurava, que não chegaria a entrar na prisão da villa, via-a aberta
para o receber, e o conselho de guerra convocado para o sentenciar!
Quando lhe lembrava, que seus amigos não dormiam, e que Manuel Coutinho,
e dois d'elles, andavam perto, sorria-se por dentro da invenção, porque
ignorava se a sorte d'elles não seria egual, ou peior n'este momento!

Leonor ouvia-o com a incredulidade do affecto. O fino instincto das
almas, que são todas sentimento, é adivinharem os verdadeiros motivos
dos sacrificios generosos. Palpava a verdade, e tremia que o futuro
fosse ainda mais funesto. Mas dotada de caracter varonil vencia-se para
não atormentar seu pae, devorando os prantos, e comprimindo os soluços.

Á ceia a visita do lavrador, e a presença odiosa do sargento de
sentinella, como vimos, á hospitalidade do rendeiro, interromperam a
conversação cortada, com que os dois se distraíam, e apenas as portas
tornaram a fechar-se, e Margarida poz a mesa, o pae e a filha, tomada
uma refeição mais do que sobria, e já cansados de dissimular,
despediram-se e cada um se recolheu á sua camara.

A creada no mesmo instante fez a cama para si em um recanto, e fatigada
adormeceu mal a cabeça tocou no travesseiro.

Leonor aproximou-se então do espelho, lançou sobre as espaduas núas um
penteador de cassa, e principiou a desatar as tranças, que, desfeitas,
se encresparam em madeixas negras, envolvendo-a no mais luxuoso véu.
Duas lagrimas, duas perolas, avelludavam-lhe o olhar tocado de branda
ternura, e as pupillas, pretas e languidas, ás quaes aquella nuvem leve
de melancholia toldava um pouco o brilho, levantavam-se armadas
d'aquelle requebro meio tristeza, meio reflexão, que fala com tanta
eloquencia; e prende com tão irresistivel poder até os mais isentos. A
bôcca, pequena e graciosa, abria aos cantos duas covinhas assetinadas,
berços de lyrios aonde se embuscava a malicia espirituosa, tornando o
sorriso fascinador. Os dentes, ora appareciam finos e eguaes, como fios
de aljofres entre rubis, ora se escondiam, quando a phisionomia tomava a
expressão contemplativa e serena, que era o seu maior triumpho. O collo
esbelto, disputando alvura ás açucenas, pousava-se com graça; as faces e
a fronte douravam-se d'aquella transparente e mimosa côr, em que as
rosas nascem e desmaiam á mais leve commoção, radiosa carnação, que
tanto realça a belleza meridional, mesmo quando não cede ás mulheres do
norte a palma dos niveos encantos. O seio virginal palpitava
sobresaltado. A mão estreita e leve deslaçava impaciente os nós de fita
do justilho; e a estatura elegante e flexivel prestava-se em ondulações
airosas a todos os movimentos.

Um suspiro e um gesto, que exprimiam a tribulação do animo combatido de
apprehensões, e uma pausa, em que a vista se perdeu pelos idilios do
primeiro amor, revelavam as duas correntes encontradas, com que luctava
áquella hora. O que lhe dizia a ternura filial repetiam-n'o as lagrimas
lentas e silenciosas, vertidas quasi sem as sentir. O que anciava e
assustava a timidez da paixão entre hesitações e receios, mais fortes
que a vontade, retratava-o a repentina chamma da vista, e o extasis em
que o rosto se transfigurava subitamente, illuminado pelo duplo clarão
da esperança e do pudor. Quem podesse colher n'este instante o segredo
da sua alma só encontraria n'ella duas imagens--a do pae extremosamente
querido, e outra mais viva, mais occulta, e mais funda ainda, a de
Manuel Coutinho, que o pejo quasi encobria de si mesma, mas que uma
ternura invencivel avivava a cada palpitação do peito!

Leonor sentou-se ao bofete no desalinho da meia nudez, dobrou uma folha
de papel, e contemplou-a por momentos com a cabeça entre as mãos e a
vista vaga e esquecida. Depois, meneando a fronte, como se quizesse
sacudir o peso dos cuidados, inclinou-se para a mesa, soltou a penna
sobre o papel, e começou a retratar as tristezas do captiveiro e os
sonhos do coração.

Usando do privilegio concedido aos auctores de historias, tão veridicas
como esta, introduzir-nos-hemos n'este ninho virginal, e por cima do
hombro da linda escriptora ao qual o véu diafano das rendas mais faz
sobresaír o marfim polido e a fórma admiravel, iremos lendo á medida que
ella as escrever, as confidencias, que julga depositar unicamente no
seio da mais discreta e mimosa de suas amigas de infancia, de D.
Marianna de Sousa, mais velha um anno, e tambem desterrada com toda a
familia para longe do antigo solar de seus paes em Lisboa.

Escutemos a conversação travada a distancia entre ellas. É de crer que
nos diga mais, do que extensos commentarios ácerca dos principaes
personagens, cujas aventuras emprehendemos esboçar com a fidelidade e
escrupulo proprios de narradores inaccessiveis á fabula e á lisonja.


Leonor de Azevedo a D. Marianna de Sousa

«Minha freirinha!... Deixa-me dar-te mais esta vez ainda o doce nome da
nossa amisade! Escrevo-te das portas de uma prisão, e talvez, ai! tremo
dizel-o! dos primeiros degraus do cadafalso de meu pae. Realizou-se o
que eu tanto receiava. Lagarde descobriu o nosso asylo. Estamos em suas
mãos. Offendi-lhe o orgulho; é capaz de tudo; e conto com a vingança
promettida. Não me arrependo. No meu logar, Marianna, farias tu o mesmo,
e esperavas resignada a tua sorte... Se não fosse meu pae, pouco ou
nenhum caso faria d'elle... O despreso até mata a aversão, e de certo
ninguem o despresa tanto, e com mais rasão.

«Lagarde veiu a Mafra a um baile que lhe deram. Tentaram-lhe a cubiça as
terras e os vinculos, que hei de herdar, Deus queira que bem tarde (!),
e por desgraça poz os olhos em mim para enriquecer um parente, que não
conheço, que me não conhece tambem, mas que elle ousou dizer que me
adorava pelo retrato, que lhe fizera de mim... dos bens da minha casa é
mais provavel! Marianna, lês na minha alma, e bem pódes imaginar o
espanto em que fiquei, ouvindo de um estrangeiro esta proposta, que me
offendia na ternura filial e no amor proprio... Nem lhe respondi!
Encarei-o, e, levantando-me, deixei-o acabar a ultima cortezia e o
ultimo sorriso deante de uma cadeira vasia. Dizes que me pareço com meu
pae, e que a natureza errou em mim o sexo. Talvez. Nunca senti tantos
desejos de ser homem! Mulher, senão fosse o mundo!... Ha affrontas,
porque choro amargamente a nossa fraqueza!

«Lagarde tem maneiras e grande uso da sociedade. Não sossobrou com o
revés, começando a girar pelas salas como o convidado mais jovial. Notei
que não tirava a vista de mim, e preparei-me para segunda instancia. Não
tardou. Veiu tirar-me para dançar, louvou o meu toucado, o meu vestido,
a delicadeza das mãos, a graça e a alvura das rendas; achou-me linda e
seductora; extasiou-se de lhe responder algumas palavras em francez; e
falou-me com enthusiasmo dos elogios que tinham feito da minha voz...
Constrangi-me e escutei-o sem colera, sem impaciencia, mas com aquelle
sorriso que tu dizias ás vezes, que era cortante como fio de dois gumes.
Que remedio! Estavamos em scena, e elle é actor consumado. Depois, e no
fim de tudo, por acanhada e esquerda não queria deshonrar a nossa
educação do convento, nem dar-lhe motivos para que me tomassem pela
provinciana boçal e nescia, que ao principio cuidára encontrar...

«Acabada a dança, em que te affirmo sem vaidade, que não envergonhei as
lições do nosso mestre mr. de Lisieux, tão airoso com a sua cabelleira
empoada, casaca direita, e rabequinha de estojo, ao apartarem-se os
pares, convidou-me para darmos um passeio pelas salas. Inclinei-me, e
acceitei-lhe o braço. Démos algumas voltas, e no meio de uma d'ellas,
junto de um tremó carregado de flores, teve o despejo de renovar a
supplica, assim lhe chamou, em ar de riso, porém o tom e a expressão
diziam assaz que era uma ordem.

«Ouvi-o estremecendo. Não acreditas a jactancia, a soberba, e por baixo
do verniz das phrases, o modo imperioso, com que este sultão me atirava
o lenço em nome da felicidade do seu parente, e da minha, em nome da
gloria e ornamento dos bailes de París e das recepções das Tulherias,
que a rosa do occidente iria realçar com seus encantos!... Contive-me.
Subiu-me em ondas a côr ao rosto. Empallideci depois. Aquelle escarneo
era tão pungente, que me custava a supportal-o, sem lhe explicar ao
menos que o entendia. Mas contive-me, protesto que me contive a ponto de
me saltarem as lagrimas pelos olhos seccos! Não é possivel exprimir-te o
que padeci nos minutos que durou este supplicio. Foram annos de angustia
e de anciedade! Lagarde, como se adivinhasse, tocava em todas as partes
melindrosas da minha alma e offendia-as. Tornou-se por tal fórma
transparente a ironia, que se me figurava ouvil-o rir por dentro da
eloquencia, que estava gastando em convencer a herdeira sómente
cobiçada, para remir do naufragio a mocidade tempestuosa d'aquelle
sobrinho, arruinado e invisivel, cuja causa advogava.

«Perguntarás, talvez, porque não fiz o que já tinha feito, porque o não
deixei? Não me atrevi. Meu pae estava perto; Manuel Coutinho tambem;
olhavam para nós, e ao menor signal que me escapasse, castigavam alli
mesmo o insolente! Vê tu o meu enleio e o meu martyrio! Quando se
afastaram, respirei. Podia mostrar a Lagarde, que a estatua vivia e
tinha brios para vingar a dignidade do seu sexo. Inflammou-se-me a vista
com a ira, fitando-a n'elle com um desdem tão altivo e firme que o
obriguei a calar-se de repente no meio das lisonjas impertinentes.
Percebi que não esperava tanto, e que se perturbava. Retirando então o
meu braço, dei dois passos atraz, e medi-o da cabeça aos pés com aquelle
olhar scintillante e frio ao mesmo tempo, que me achaste duas vezes, e
que depois contavas, sorrindo, que era o mais fero e fulminante olhar,
que nunca viras, porque gelava e queimava ao mesmo tempo. Não sei se foi
esse, ou outro peior, o que sei é que recuou lentamente e quasi pasmado
deante d'elle, como deante da ponta de uma espada; e quando lhe
respondi, que preferia a cella do mais austero convento, a pobreza, a
mendicidade até, á ignominia de me vêr em leilão na praça, á vergonha de
acceitar o nome de um homem, que nem ao menos guardava as exterioridades
hypocritas de um galanteio, julgando-me tão pouco que se propunha amar e
pedir esposa por terceiro, vi-o fazer-se branco como a tira da camisa,
esconder o sorriso nos cantos da bôcca, e olhar-me direito e serio como
deve olhar-se para alguem, quando recebemos uma injuria grave. Mas
polido, mesmo na sua colera foi senhor de si, e mordendo os beiços com
tal furia que lhe espirrou o sangue d'elles, cortejou-me, e retirou-se.
Á roda de mim tremiam todos. Eu levantára a voz, e tinha-o constrangido
a curvar a fronte deante de muitos. Foi o que não me perdoou.

«Todas as nossas desgraças datam d'esta noite. Jurou humilhar-me, mas
não o consegue. Livre, ou em ferros, o desprezo será egual... Antes a
clausura, antes a vida errante que levo ha mezes, antes as estreitezas
de uma prisão, do que a infamia de um laço apertado sem amor pela
avidez! Lagarde não tornou a falar-me. Sómente poucos dias depois, sahi
a cavallo, e encontrei-o com Loison, general maneta, que dizem ainda
mais perverso. Pararam para me vêr passar. Sabes que sou cavalleira, e
que um animal fogoso não me assusta. Montava a Estrella, a egua valida
de meu pae, e apenas os descobri, larguei-lhe a redea, e atravessei como
uma seta por meio d'elles. Saudaram-me, correspondi, e dentro em pouco
já não os avistava. Foi na vespera dos tumultos das Caldas e da
emboscada de Mafra. No dia seguinte, dia de terror e afflicção para os
habitantes, estava achado o pretexto que havia de manchar de sangue o
poder dos estrangeiros.

«O que nos reserva o futuro? Não ignoras quanto meu pae é altivo e
decidido. Se a sua vida dependesse de uma palavra, de um passo, que
reputasse de quebra para a honra, ou para os brios, preferiria morrer
mil vezes... Sei o que elle ha de fazer como se o estivesse vendo. Ha de
dizer a verdade, toda a verdade; ha de expor-se... Meu Deus! Parte-se-me
o coração, e não tenho animo de cuidar!... Não! Não! A providencia não o
póde permittir! Marianna!... As lagrimas que estou chorando, a dôr que
padeço são tão crueis, que ha momentos, em que a razão me foge. E Manuel
Coutinho?! Ainda me assusta mais!... Em sabendo a nossa prisão... com o
seu genio impetuoso e aquella intrepidez de cavalleiro andante, porque é
um verdadeiro paladino perdido n'estes dias de Junots e Lagardes, é
capaz de entrar só em Santarem para nos arrancar dos ferros á luz do sol
e deante de todos. Não rias?! Não creias que estou pintando de
imaginação um heroe de novella!... Perguntas-me desde quando o amei, e
se foi necessario o fulgor de Marte para vencer a isenção de Juno!?
Entendo-te! Viras contra mim as palavras, que eu soltava na ingenuidade
do orgulho, quando a inexperiente educanda te divertia com seus
encarecimentos de desdem pelas fraquezas apaixonadas. Ouve! Amei-o logo,
amei-o com extremo apenas o vi. Mal nos olhámos, sorrimos, e
conhecemo-nos sem lucta, sem resistencia, sem juras, nem protestos. Elle
sentiu que era meu; eu entreguei-lhe o coração com tanta confiança, como
se nos tivessemos creado juntos desde a infancia. Marianna!... Se és a
amiga, que eu creio, has de estimal-o tambem, e approvar a minha
escolha. Asseguro-te que o merece. Aquelle rosto nobre e gentil, mas um
pouco triste, é o espelho do seu caracter. Meu pae, e mais não é facil
em affeições e elogios, admira-o, e não vê por outros olhos em muitas
cousas. A palavra de Manuel Coutinho, que o não lisonjeia, que até o
contraria em algum dos habitos e idéas mais arraigadas, vale um
juramento para elle. Entre estes dois affectos, tão doces e acerbos,
reparte-se-me a alma, rasga-se-me em duas, e não ouso dizer-te a ti, a
mim propria, qual é maior, ou mais absoluto!...

«Accusas-me de dissimulada?! Não te encobri nada. Lês nos meus segredos
como em livro aberto. Amo, como não se torna a amar, como não imaginava
que podesse amar-se... Digo-te sem disfarce o que occultaria a outra, e
tu ingrata (!) ainda tens animo de me arguir! ...Lembras-te d'aquellas
nossas madrugadas nas Salesias, entre as rosas e jasmins do jardim, e os
vôos dos passarinhos, que chalreando não nos deixavam um instante?!...
Não tens saudades d'ellas e das brandas illusões, com que nos
embalavamos no meio das flores d'esses dias tão curtos, ai (!) e tão
depressa desvanecidos?! Com que dôr melancholica e agradavel, os estou
recordando, sobre tudo agora!... Como a esperança nos fazia palpitar!...
Que desejos pueris, que planos impossiveis, que doces contestações, e
que amuos logo esquecidos entre dois beijos! O nosso mundo era tão
pequeno, que alli principiava e acabava então!

«Meu pae, militar e arrebatado, a rogos meus ficou em casa. Por vezes o
vi ir direito á sua espada, e suspender-se com os olhos arrazados de
agua. O que o prendia era o receio de me deixar orphã, era a certeza de
que se arriscaria sem proveito. Que dia aquelle, e sobre tudo que
noite!... Os francezes em bandos pelas ruas alvoroçavam a terra com
vozes, affrontas, e tiros. Duas vezes as balas das espingardas vararam
as portas das nossas janellas. Sobre a madrugada appareceu Manuel
Coutinho. Vinha pallido e desfigurado. Nenhum de nós se tinha tambem
deitado. Chamou meu pae de parte, falaram em segredo, e minutos depois,
ás escuras, e sem ruido, fugiamos pelas hortas, e montavamos a cavallo.
Rompia o sol, quando entrámos em Torres Vedras, e só alli me disseram
que a nossa casa estava cercada, e que Lagarde expedira de Lisboa ordem
de prisão contra meu pae. Não lhe custou a implical-o na devassa, e
contava provavelmente fazer de mim o penhor da sua clemencia...

«Desde então trocámos o socego domestico pela vida attribulada, que ha
mezes nos não consente uma hora de repouso. Acossados, como feras,
vagueando de homizio em homizio, e de solidão em solidão, por toda a
parte a hospitalidade dos que nos accolhiam, não sem risco, nos foi leal
e caridosa. Rodeados de espias, inculcados aos delatores como presa
digna de subido premio, achámos na bondade rude, mas sincera, dos
casaes, corações de ouro, que nos agazalharam com o maior carinho, e
almas compadecidas, que nos ajudaram a supportar o peso da desgraça.

«Os mais pobres foram tão honrados como os ricos. Ninguem nos trahiu.
Perseguidos como réos de grandes crimes, todos os braços se abriram para
nos receber, todas as portas se fecharam cuidadosamente para nos
guardar... Descansámos, por fim, mas á porta de uma prisão, e nas mãos
de inimigos implacaveis! Meu pae dormia, e nem teve tempo de se
defender... Estimei! Já que havia de ser, foi melhor assim! Chegámos a
tempos em que é delicto até o valor! Um malvado, cego e venal
instrumento de Lagarde, descobriu o nosso ultimo asylo, e prendeu-nos á
traição...

«Com que socegada ignorancia te ouvia eu pintar a vida, que nos
aguardava fóra das grades da nossa prisão dourada!... Com que vaidade
infantil me compadecia das fragilidades das donzellas, cegas de amor,
que tudo arriscam por seguir o eleito da sua alma!... Castigou-me Deus!
Sou mais escrava, mais timida deante da minha fraqueza, do que nenhuma!
A ternura, que sinto por elle é tão grande, que me quebra a vontade e o
orgulho.

«Felizmente adoro um homem digno do meu coração. Mas se o não fosse!
Marianna! Não me vejas córar, não me vejas cobrir o rosto de pejo! Se o
não fosse... Perdôa! hei de ter animo de confessar a verdade, amava-o do
mesmo modo, sei que o amava tanto, porque mais é impossivel!... E agora
terás dó de mim?! Falarás ainda da soberba, que me fazia idolo
indifferente a todos os cultos?!...

«Cheguei áquelle excesso, em que parece que o coração não vive senão do
que é de outrem, do que o amor, que inspira e domina tudo, quer dar-lhe
quasi por esmola! A minha luz, todas as minhas esperanças, todo o
futuro, pendem de um olhar, de um sorriso, de uma palavra d'elle!... Vê
como o préso, e como deixei de ser a mesma!... Ha cinco annos, quando
iamos sentar-nos debaixo das madresilvas do caramanchão do convento, em
quanto as nossas amigas passavam, correndo e saltando com os seus risos
descuidados, porque suspiravas tu, e por mais que eu interrogasse a
minha alma, porque a achava sempre muda e insensivel!?... O que foi que
me acordou d'aquelle somno tranquillo, d'aquella apathia dos sentidos,
que só despertam com o primeiro alvoroço, quando entre jubilos e
sobresaltos o peito começa a agitar-se? Não sei se outras são assim.
Vivo desde que principiei a amar. Até ahi dormia. Era uma estatua! O meu
coração como que esperava _por elle_ para se abrir e brotar essa flor
tão mimosa, que um nada queima, tão rara que uma vez só na vida a
sentimos pelo perfume, pela alegria, pelo esplendor... Desejava ser
formosa, ser princeza, ser rainha, ser tudo, para elle subir, e eu me
saber invejada. Que loucuras! Vê! Agora mesmo estou perguntando, sem
querer, ao espelho baço e empanado da minha prisão, por esta noite
medonha de trovões, se me acha ainda bella?!...»

Neste ponto terminavam as confidencias. Leonor nem acabára de formar as
ultimas lettras. Quando, entre o meio sorriso e as rozas avivadas, de
que a travessura da revelação lhe animára o semblante, ergueu de repente
os olhos para o espelho, a que alludia na carta, pasmou, estremeceu de o
vêr mover-se lentamente com a moldura, e entre-abrir-se como uma porta.
Outra, menos varonil, teria soltado vozes de terror; ella não. Fez-se
pallida, sentiu-se fria, porém não articulou palavra, nem deixou escapar
um grito. De pé, tremula, com os olhos fitos e algum tanto dilatados
pelo espanto, aguardou a aventura, que esta singularidade lhe promettia.
Não esperou muito. O espelho girou, rangendo um pouco, e á entrada da
passagem occulta, que fechava, appareceu uma figura com um castiçal na
mão, avultando á medida que se adeantava e que a luz mortiça da véla lhe
batia no corpo, desfazendo a escuridade. Era um homem de carne e osso, e
não um fantasma. Podia ser um salteador, um assassino, ou um indiscreto,
não era de certo uma alma penada. A donzella respirou. Apezar da
fortaleza do seu espirito a visão tinha-lhe paralyzado os membros, e o
coração, pulando descompassado, trahia o susto, que os labios a custo
disfarçavam. O desconhecido trajava de preto, vinha envolto em um capote
de cabeções, e as largas abas do chapéu enchiam-lhe o rosto de sombras.
Quando percebeu que Leonor o contemplava, levou o dedo á bôcca e
recommendou silencio. No movimento de braço o capote descobriu os canos
luzentes de duas pistolas passadas em um cinto de couro, e a bainha de
uma espada larga e curta.

A filha de Paulo de Azevedo deixou-o approximar de si sem denunciar
terror. Só falava com a vista, e desvanecido o primeiro sobresalto, o
que o semblante exprimia era a curiosidade natural, excitada pela
visita, que, por tal modo e a taes deshoras se via obrigada a receber. O
hospede punha entretanto os pés no sobrado, roto e carunchoso, com tanto
resguardo, e pisava com tão grande subtileza, que os passos eram surdos,
como se caminhasse por cima de lã. Chegando ao pé d'ella, encarou de
perto a formosura intrepida, que sem receio olhava para elle firme, e um
sorriso alegrou a sua physionomia carregada, certo ar de sincera
admiração inculcou que não contára encontrar tanto valor.

--Vejo que não me enganaram! murmurou ao ouvido de Leonor. Tem mais
animo, do que muitos homens. É digna do que tentâmos para a salvar e a
seu pae!

--Mas quem é?... D'onde vem?... Como está aqui?!... perguntou a donzella
atropelladamente, mas no mesmo tom submisso.

--Somos tres. Os meus companheiros esperam no fim do corredor, que
desembocca n'esta porta secreta. Pertencemos ao conselho conservador de
Lisboa, soubemos da prisão de seu pae, e seguimos os milicianos de
longe. O lavrador, que traz esta casa de renda, é nosso, e ensinou o
modo de entrarmos aqui. Temos caminho facil para fugir.

--Ah! E Manuel Coutinho veiu tambem?... accudiu Leonor córando.

--Não! Pouco ha de tardar. Está perto, e mandou-se-lhe recado... Mas os
momentos são preciosos. Não podemos demorar-nos aqui. Quer ir acordar
seu pae sem bulha e dizer-lhe?...

--Já! Vou immediatamente. São dois minutos em quanto volto com elle.

--Pois sim. Aqui espero.

De feito, instantes depois Leonor tornava com Paulo de Azevedo, e este
apertava silenciosamente a mão ao desconhecido, que lhe dizia em voz
baixa:

--Venha! Temos os cavallos promptos e tudo a postos. Simão da Costa e
Nuno do Rio, seus amigos, estão alli dentro, Manuel Coutinho vem já
caminho da Ponte... São mais de onze horas. Ás duas saímos, se a noite
lhe mette menos medo, que a cadeia de Santarem...

--Quando quizer. Para onde?...

--Para Lisboa. Para o covil do Lobo. Aonde menos cuidem que póde estar,
ahi será o mais seguro.

Paulo inclinou a cabeça e seguiu-o com sua filha.

O espelho fechou-se. Quando o sargento veiu não achou nem o rasto de
seus presos.




VIII

Entre os bastidores


Lá sabemos como Leonor e seu pae conseguiram evadir-se sem as chaves da
prisão saírem do bolso do carcereiro. Agora cumpre-nos explicar a
resurreição dos mortos na casa maldita, e esboçar em duas palavras a
biographia do intrepido espectro, que, mascarado em alma do outro mundo
para assustar os valorosos milicianos da comarca, ás ordens do sargento,
baqueou das andas abaixo, transido de pavôr, por achar o defunto, de pé
tendo-o visto entrar em braços dos creados.

Nos acontecimentos d'esta infausta noite para os agentes da policia
franceza, o morto-vivo e o espectro medroso representaram um papel, que
os torna dignos de nos demorarmos com elles por algum tempo.

Principiemos pelo honrado fazendeiro, cuja desastrada sina choram em
côro as visinhas e as comadres da aldeia. Como o encontramos de repente
são e escorreito com profundo terror dos sicarios, que se julgavam
livres do seu nodoso cajado de marmeleiro? Que santo obrou o milagre de
levantar da sepultura este Lazaro de japona para confusão e ruina dos
inimigos? Como dormiu elle no reino das sombras tantas horas, e só
accordou, como ao rebate da trombeta final, com o dobre fatidico da meia
noite, hora fadada a visões, a trasgos e a feitiços?

As tres perguntas são razoaveis, e a curiosidade do leitor é natural.
Desejariamos de bom grado asseverar-lhe, sem faltar á verdade, que o
sabido condão do palacio deserto fôra o auctor de todos os prodigios,
porém somos obrigados a confessar como sinceros chronistas, que até aqui
o maravilhoso e o sobrenatural só existiram na imaginação escandecida de
alguns dos actores, que pozemos em scena. Tudo o que passou se explica
perfeitamente sem ser preciso prevalecermo-nos da má reputação da Casa
Negra.

Em primeiro logar o Manuel Simões não resurgiu á sexta hora de entre os
mortos, embora padecesse sob o poder do sargento Cabrinha, porque para
resuscitar era necessario estar morto, e elle nunca chegou a fallecer! A
bala do _Sapo_ roçou-lhe pela testa, ferindo-o de raspão, e lançando-o
por terra sem sentidos; mas não penetrou na cabeça.

Quando vieram as mulheres, e entoaram em roda do seu corpo as nenias
costumadas, principiava elle a voltar a si; e quando o João da Ventosa
se approximou, suando e esbaforido, porque do alto de um cabeço ouvira o
tiro, e dois minutos depois descobrira no luz-que-fusque o _Sapo_,
correndo em saltos de gafanhoto com a espingarda na mão, já achou o
corpulento fazendeiro sentado no chão, muito tonto ainda como se
recolhesse de alguma feira, ou romaria, porém sem lesão grave, e
apalpando escrupulosamente todos os ossos e costellas.

--Ah! Ah! Compadre! gritou o rendeiro extendendo a mão ao amigo e
contentissimo de o ter vivo. Com que então os caçadores andam pelo
sitio, e fizeram-lhe alvo da cabeça? Safa demonio! ajuntou
examinando-lhe a fronte mais de perto. Escapou mesmo por uma unha
negra!... O maldito tinha-lhe vontade, e não queria perder a polvora.
Upa!... Póde vir outra ameixa detraz do vallado, e custar-nos mais a
engulir... Se foi só isso não é nada. Mas!...

--Ainda não foi d'esta, sôr compadre, e se eu soubesse quem me fez a
esmola... com seiscentos milheiros... de cobras!... Moia-lhe os ossos
com este cajado mais moidos que pimenta em almofariz... Patife!
Atirou-me como a um lobo! Ah, sôr João, vossa mercê acaso veria quem foi
o alma ruim?!... Parece que tenho dentro da cabeça a mó do moinho a
zoar, e que me anda tudo á roda! Ora esta!...

--Olhe compadre, o melhor é mudarmos de pouso; depois falaremos. Alli em
baixo, na fonte, ata um lenço molhado na cabeça, e lá em casa lhe
diremos o que vimos. Agarre-se a mim, não tenha vergonha. Forte
historia!

--Antonio me não chame eu, sôr compadre, se me ficar inteiro uma semana
o ladrão, que me pregou esta bala! Hei de achal-o, mas que haja de
descer vestido e calçado em busca d'elle aos infernos...

--Não será preciso, homem!... Agarra-o cá em cima sem ir tão longe. Mas
ha de fazer o que eu disser.

--Pois vá! Olhe que o dito, dito! Isto não se leva a rir.

--Tem razão, compadre; vamos. Trago cá uma idéa!... Emfim! O que for
soará...

Os dois pozeram-se a caminho, porém muito devagar, porque Manuel Simões
de cinco em cinco passos cambaleava com vertigens, a que chamava
nobremente vagados. Era noite fechada, quando avistaram a Ponte da
Asseca, e a casa. Chovia e trovejava que mettia mêdo.

O João da Ventosa, que em todo o tempo não soltára palavra, labutando,
contava elle depois, com a sua idéa, virou-se então para o fazendeiro e
disse-lhe que se deitasse e se fingisse morto emquanto ía chamar os
creados.

--Que me deite e faça morto, salva tal logar?! Oh sôr compadre?!
exclamou o ferido. E para quê com um milheiro de cobras?...

--Para apanhar a raposa e as gallinhas na capoeira. Você não sabe,
homem!? Não vê que se quem lhe atirou atinar que perdeu a bala muda-se
com vento fresco, e nunca mais lhe pomos os olhos em cima...
Estire-se-me já n'esse chão, não venha alguem. Nem trus, nem buz! Pela
lingua morre o peixe.

--Ora essa!... Sempre tem cousas, este sôr compadre! Com que então ainda
em cima quer que me espoje n'este charco, e que feche a bôcca a
cadeado?... Vá lá! Por esta não esperava eu. Arrenego!

--Viu pescar á linha sem anzol, sôr casmurro? Vamos. Esse corpanzil já
por terra, e caluda! Não me demoro.

Manuel Simões, resmungando, e praguejando, sempre se foi deitando no
sitio mais enchuto.

Minutos depois tornou o compadre com o maioral e o abegão, em grandes
lastimas por tamanha desgraça, e levaram-o por morto em braços até á
cozinha da casa, aonde o vieram encontrar, como vimos, os dois
assassinos.

Os creados, apezar de conhecerem por experiencia a força herculea do
João da Ventosa, benziam-se de que elle tivesse carregado só com aquelle
corpo, tão pesado, desde a azinhaga, como lhes disséra. Sentiam os
braços derreados só de o trazerem de tão perto!

O lavrador mandou accender fogo, e pôr agua ao lume; pediu um alentado
cangirão de vinho, uma tigela de assucar mascavado, e chamou de parte a
tia Margarida, ministro feminino de todas as repartições domesticas da
granja, para lhe confiar o occorrido, exigindo o maior segredo. A velha
esconjurou-se, louvou a Deus pelo milagre visivel, e saíu, trotando e
rosnando, para fazer a cama ao fazendeiro em um vão escuro, e desviar da
cozinha a vista e as orelhas dos curiosos.

Seguiu-se um entre-acto bacchico, durante o qual a agua quente e o
assucar serviram de pretexto ao vinho, o qual representou a parte
principal. Estava já menos de meio o cangirão, quando a voz esganiçada
de José Vardasca, diabrete de quinze annos, sobrinho do rendeiro, em
altercação com o contralto enrouquecido da tia Margarida, obrigou os
dois campeões a suspender as hostilidades. Manuel Simões amarrou o lenço
manchado de sangue á roda da testa, de modo que lhe cobrisse a cara, e
extendeu-se sobre a mesa de pedra. Um feixe de palha serviu-lhe de
cabeceira, e uma manta cobriu-o até aos pés.

Ensaiada assim a peça, João da Ventosa abriu a porta, e com
um--Olá!--que fez tremer as paredes, poz termo ao dueto da velha e do
rapaz.

José Vardasca não vinha só. Acompanhava tres sujeitos, envoltos em
capotes de baetão grosso de gola alta, cobertos com sombreiros de abas
derrubadas, os quaes esperavam fóra da porta, no escuro, que elle désse
ao tio o seu recado.

Ao que parece os viajantes eram conhecidos do rendeiro, porque apenas o
rapaz lhe disse, quasi ao ouvido, algumas palavras, este correu sem
chapéu apezar da chuva, e encaminhou-se para elles. Ninguem ouviu o que
falaram, mas os creados viram desapparecer o amo e os hospedes por
detraz do muro da horta, e recolher-se passado um pedaço o João da
Ventosa só, em ar de quem se não tinha cansado com o passeio. As
conjecturas dos servos não foram adeante. Cuidaram que elle saíra a
metter os tres embuçados no atalho da azinhaga, e se acaso se admiraram
foi, sendo tão largo e generoso, de lhes não ter dado agasalho em sua
casa por uma noite, em que a agua era tanta, diziam os rusticos, que a
podiam os cães beber de pé!

Mas o lavrador sabia melhor do que elles o que fazia. E nós, que não
somos de segredos, e que não receiamos que a policia dos francezes nos
tome contas em 1864, das conspirações de 1808, não duvidaremos revelar
as razões do seu procedimento.

Os tres sujeitos eram nada menos do que tres delegados do conselho
conservador de Lisboa, associação composta de patriotas dedicados á
restauração da independencia e do throno legitimo, e decididos a todos
os sacrificios para arrojarem da sua terra os soldados de Bonaparte.
Tinham atado relações em todo o Ribatejo com os homens que podiam
ajudal-os em seu arriscado proposito, e haviam partido dias antes da
capital para se reunirem em Santarem com Manuel Coutinho e alguns
cavalheiros do Sardoal, Leiria, Pernes e Rio Maior, no intento de
assoprarem de mais perto a irritação popular, e de irem dispondo os
animos para a sublevação geral, que meditavam, apenas as cousas lhes
proporcionassem ensejo favoravel.

João da Ventosa, assim como o Manuel da Cruz, e outros visinhos,
iniciados em parte do plano, executavam com cega fidelidade todas as
ordens emanadas d'este governo occulto e revolucionario, que na ausencia
da familia real, e em presença do jugo estrangeiro, representava para
elles a unica e verdadeira auctoridade do paiz.

O rendeiro, pois, assim que os tres desconhecidos lhe repetiram as
palavras, que serviam de senha aos amigos da liberdade--pelo rei e pela
patria--largou tudo, e offereceu-se logo para o que mandassem com a
maior submissão.

A reputação diabolica da Casa Negra, guardava-a por tal modo da
curiosidade, que nenhum refugio mais seguro podiam encontrar os
conspiradores, não só para pernoitar, mas afim de celebrarem as
conferencias. Explicaram os seus desejos ao lavrador, e este, que o medo
dos fantasmas não vexava, guiou-os pela horta a uma entrada secreta,
disfarçada com um tapume de tábuas, e introduziu-os nas salas e
aposentos do primeiro andar do palacio. Accendeu luz com o fuzil,
ensinou-lhes alguns dos segredos dos quartos e corredores, e prometteu
trazer-lhes vinho e refrescos.

A chegada do sargento e dos presos, espertando a imaginação do malicioso
rendeiro, e a coincidencia de abrigar debaixo do mesmo tecto a victima e
os assassinos, suscitou-lhe a idéa de salvar Paulo de Azevedo e sua
filha das garras dos agentes de Lagarde, castigando ao mesmo tempo a
perversidade de Cabrinha e do seu acolyto. Avisou os delegados do
conselho de Lisboa, ajustou com elles a maneira de fazer evadir o
cavalheiro de Mafra e Leonor, condemnou o fazendeiro á immobilidade,
assegurando-lhe em premio da sua paciencia as delicias da vingança, e
para não omittir nenhum episodio distribuiu ao travesso José Vardasca o
papel conspicuo de phantasma branco, marcando a todos a meia noite, como
a hora mais opportuna para o feliz exito do drama.

Sabemos qual foi o resultado. Os milicianos fugindo, o _Sapo_ correndo
até perder o folego, e o sargento estatelado sem sentidos no meio da
cozinha! O que se tornou mais difficil foi calar os berros do intrepido
José Vardasca, assombrado com a vista do fazendeiro, e convencel-o de
que não estava com um defunto, mas com um homem vivo e inteiro. O rapaz
não se rendeu á evidencia, senão depois que viu e apalpou como S. Thomé.

O sargento, cujos ossos ameaçou por umas poucas de vezes o cajado, ou
antes a clava de Manuel Simões, e que o João da Ventosa não trabalhou
pouco por salvar ainda d'esta vez, o sargento, desmaiado e inerte, foi
levado para cima de um catre e vigiado por um dos moços com ordem de
chamar o lavrador assim que abrisse os olhos. O fazendeiro da Aramanha,
mal rompia a aurora, tomando o conselho do compadre, montou n'uma egua,
e partiu para casa a descançar, não sem primeiro rezar um responso ás
costellas do virtuoso Cabrinha e ao pescoço de Gaspar Preto, aonde quer
que os encontrasse.

O sargento esteve duas horas sem accordo. Quando voltou a si não via
senão fantasmas em redor da cama. Custou a socegal-o.

O que mais abalára aquella alma seraphica fôra a fuga dos seus presos!
Não podia conceber como lhe tivessem escapado, e na sua dor pharisaica
arrepellava as melenas, e blasphemava como um possesso, jurando contra
Satanaz, contra a Casa Maldita, e contra si. Mesmo de noite quiz saír.
Pediu o cavallo, outro espectro na transparencia e magreza, e
cravando-lhe as esporas voou a Santarem, talvez na esperança de ainda
pôr a mão em cima da presa.

Voltemos agora á Azenha de Cima, aonde deixámos Manuel Coutinho e o
Antonio da Cruz, esperando pelas horas mortas da noite afim de
emprehenderem a campanha planeada por ambos.

Apezar da chuva caudal e dos relampagos, o moço do moinho, garoto leve
como um ginete, que via de noite como os gatos, e era capaz de entrar
pela bôcca de uma manilha, tinha sido mandado pelo amo á descoberta até
á Casa Negra com ordem expressa de não se deixar agarrar, e de espreitar
em roda com a sua curiosidade habitual. O rapaz partiu a correr, como se
a agua lhe não batesse em cima ás torrentes, e uma hora depois voltava
com a noticia de que os presos estavam na Casa Maldita, de que o
sargento, o _Sapo_, e os milicianos ceiavam regaladamente com o João da
Ventosa, e de que o corpo do Manuel Simões fôra recolhido pelo lavrador,
e jazia com uma véla aos pés e outra á cabeceira na mesma cozinha, aonde
o beleguim emerito e seus sequazes se estavam banqueteando.

Em toda esta chronica, narrada pelo moço com incrivel volubilidade, o
que mais socegou o animo de Antonio da Cruz foi a certeza, de que o
cadaver do fazendeiro da Aramanha não desapparecêra, como se dizia, por
artes do demonio. Estava prompto a medir-se e a arcar com uma companhia
inteira de milicias, mas o inimigo do genero humano tremia só de cuidar
que poderia encontrar-se com elle um só instante!

--Ah José! disse depois de certa pausa. Então o sôr João da Ventosa é
que levantou o corpo do Manuel e o levou para casa?... Estás bem certo?
Viste?...

--Com estes dois que ha de comer a terra, respondeu elle, fazendo uma
cruz com os dedos, e beijando-a. Assim me Deus salve a minha alma. Ah
patrão, que _diluivo_ de agua que vae por ahi abaixo! Parece que quer
alagar-se hoje o mundo. Credo!...

--É verdade! accudiu o moleiro. Vens um pinto... Vamos! Que tal te sabia
um trago, ou dois de agua pé, ein? A roupa não te pesa e estás tiritando
que parece que te apanhou uma sezão...

O liquido medido com largueza pagou os trabalhos do moço, e o amo
despediu-o logo depois, em quanto Manuel Coutinho passeiava de um lado
para o outro inquieto e murmurando por entre dentes algumas palavras.

--Antonio! observou o mancebo, parando de repente defronte do moleiro, e
encarando-o firme. Atreves-te a ires commigo á Casa Negra, para
enxotarmos de lá o sargento e a sua quadrilha? Elles são oito, ou nove,
mas nós dois bem armados e decididos?!...

--Valemos por dez ou doze. Vá feito, senhor! A espingarda é de dois
canos e a choupa está amolada... V. s.^a quer a outra espingarda? É um
instante em quanto se carrega?

--Não!... Sim!... Carrega! Guardarei as pistolas e a espada para o fim
se for preciso.

--Quer que vamos já?... Sinto uns formigueiros n'este braço, que não me
deixam senão quando assentar em cheio duas boas lambadas nas costas do
sargento e na cabeça d'aquelle alma ruim do _Sapo_...

--Não as perdem, mas espera!... Que bebam até caír. Nós os faremos
erguer. Podes fumar homem!

--Com sua licença.

O dialogo acabou aqui. Manuel Coutinho sentou-se com a cabeça entre os
punhos e os cotovellos na mesa, scismando, e o Antonio poz-se com todo o
vagar a carregar e escorvar a espingarda. Depois foi ver as mós se
tinham grão, abriu o ladrão da presa, e quando tornou, veiu encontrar
ainda o patrão na mesma posição com o relogio deante de si e os olhos
cravados nos ponteiros.

--Agora! exclamou o mancebo levantando-se com impeto. É meia noite!
Esperam por nós. Vamos! E cobrindo-se com a manta, que o Antonio
extendera a enxugar ao lume, passou as pistolas no cinto, apertou o
boldrié da espada mais alto, e pegou na espingarda.

O moleiro ainda se apromptou mais depressa. Enrolou-se na manta, cobriu
com ella a coronha e os fechos da clavina, metteu-a debaixo do braço
esquerdo, e empunhou com a mão direita o inseparavel varapau rematado
pela choupa. No momento, em que estava dando volta á chave da porta um
immenso clarão livido abriu os céus, o outeiro illuminou-se de fulgores
sinistros, e a casa tremeu com a terra ao ribombo do trovão
perpendicular. Apezar da sua intrepidez os dois recuaram quasi
assombrados até ao meio do aposento: Santa Barbara! bradou o Antonio
benzendo-se. Jesus! clamou o amo ao mesmo tempo. Ficaram immoveis ambos
olhando um para o outro.

--Deixemos passar a maior, senhor! disse d'ahi a instantes o vigoroso
aldeão. Ella anda mesmo por cima da nossa cabeça...

--Pois sim. Deixemos! redarguiu Manuel Coutinho sentando-se no banco
defronte da porta.

Minutos depois outro relampago menor allumiou o campo, e á luz d'elle
viram vir correndo ennovellado direito ao moinho um vulto, que mais
parecia na velocidade um furacão, do que um homem.

--Oh lá! disse em voz cheia o moleiro. Castelhanos por aqui á meia
noite?! Quem temos? É bom vêr sempre!...

Não teve tempo para mais, do que para se desviar, extender o braço, e
segurar pela golla o impetuoso vulto, tão cego na partida, que se elle
não se arreda a tempo, colhe-o pelos peitos, despedido como uma bala de
canhão, e atira-o ao chão, porque trazia força para arrombar portas e
paredes.

--Ah, sô amigo, aonde vamos com tanta pressa? exclamou o Antonio, o qual
affeito a apanhar na praça os bois de cara, amarrava ao limiar com o
vigoroso pulso o desconhecido, que, estafado e convulso, estacou
arquejante e sem poder falar.

Manuel Coutinho, callado e quasi indifferente, havia-se approximado da
porta, e contemplava a scena, como quem só desejava, que ella se não
prolongasse. Antonio da Cruz adivinhou a impaciencia do mancebo, e
voltando-se para elle disse-lhe:

--É um instantinho, meu amo! Entretanto amaina mais a chuva... mas nadar
por estas horas com mouros na costa, nada!... Vamos, patrão, desate-me
já a lingua, como desatava as pernas pelo cabeço arriba, e diga para ahi
quem é, e o que faz correndo por esta linda noite até á porta da gente
de bem!... Vamos, desembuche, senão!...

--Sou... Sou...

--É! É... Quem? Cousa boa, não decerto. Com a breca! Entre que lhe
queremos ver o focinho á candeia. Melros ás escuras podem saír
morcegos!...

E ao mesmo passo arrastava para dentro da cozinha o vulto, que
escorrendo em agua, e cortado de frio e medo, nem lhe resistia, nem
tinha animo para articular palavra. Apenas lhe metteu a luz ao rosto, o
moleiro, fitando-o, voou de um salto á porta, fechou-a, e voltando-se
para Manuel Coutinho, disse-lhe com um riso amarello:

--Aposto que v. s.^a não é capaz de adivinhar quem o diabo nos trouxe
por aqui? Sabe quem é este cara de fuinha?...

--Nunca o vi. Não o conheço.

--Pois olhe que perde!... Isto é o maior heroe cá dos sitios... Nem mais
nem menos, do que o sôr Gaspar Preto, por alcunha o _Sapo_!...

--O _Sapo_? Já te ouvi esse nome... Será?!...

--O maior ladrão e traidor da cafila dos jacobinos... Oh, mas por aqui a
esta hora, não é natural! O sargento Cabrinha não anda longe, aposto!...
Este velhaco é o seu braço direito...

--Percebo!... bradou o mancebo, deitando tambem a mão ao _Sapo_, e
saccudindo-o de modo, que se repetisse, ameaçava desconjuntal-o.
Antonio! Não o deixes escapar! Foi Deus que o trouxe...

--Deus?!... Antes o demonio, cujo é!... Não importa. Veiu por guloso?
Pagará as dividas que tem na minha conta. Se havia de ser ámanhã é hoje.
Gaspar! Toma sentido! Se não me respondes direito, por alma de minha mãe
te juro, e sabes que nunca jurei em vão, que deixas aqui a pelle pelos
nós d'essa corda, ou os ossos na vara do meu cajado...

--Sôr Antonio, por quem é!...

--Por quem sou mesmo. Prometti, e costumo cumprir.

--Nunca lhe fiz mal...

--Hum! Nem bem!... Vamos! Cabeça alta e lingua solta. D'onde vens?

--Da Casa Negra, aonde appareceu o demonio ao sargento, a mim, e aos
milicianos.

--Ah! Ah! accudiu Manuel Coutinho. Deixa-me perguntar. Este fio póde
levar-nos longe.

Interrogado pelo mancebo, entre o pavor dos espectros e o medo das
ameaças de Antonio da Cruz, Gaspar Preto fez uma confissão geral tão
sincera, que até o segredo do tiro dado em Manuel Simões lhe saltou
quasi todo da bôcca sem se sentir. O pavor ensandecia-o.

--E affirmas não estar já ninguem na casa, senão os presos?

--Ninguem, a todos os vi fugir, como lebres...

--E o sargento?

--Desappareceu. Foi o primeiro.

--Bem! Agora nós! atalhou o moleiro. O que vinhas tu aqui cheirar
ante-hontem? Se disseres a verdade não te toco.

--Eu!... Eu!...

--Tu sim!

--Vinha ver... se havia gente de fóra por cá!... redarguiu o malsim
contido pelo olhar firme de Antonio, e estorcendo-se como se lhe
estivessem dando tratos.

--Ora graças a Deus! Já confessas!... Vinhas então como espia! Está bom.
Outra pergunta. Quem foi ao Casal do Ouro? Fala!...

--Eu!... Suspirou tremulo o miseravel.

--Quem te mandou?

--O sargento... Que eu por mim!...

--Bem sei. Vamos a outra historia. Esta tarde deram um tiro no Manuel
Simões?... Vê bem! Quem foi? Olha lá se mentes!...

Gaspar sentiu dobrarem-se-lhe os joelhos, fugir-lhe a vista, e
zumbirem-lhe os ouvidos. Esbugalhou os olhos, e por mais que quizesse
não poude pronunciar uma syllaba.

--Quem deu o tiro, quero saber! repetiu o moleiro, meneando o varapau e
encarando o assassino com terrivel gesto.

--Não sei... Não sei...

--Sabes e viste. Essa cara de réo o está confessando. Fala. Quem foi?

--Eu!... por descuido...

--Descuidos teus, já sei. É o que suppunha. Agora vê lá!... O sargento
não te tinha dito nada?...

Houve uma pausa longa. O _Sapo_ chorava, supplicava, mas não redarguia á
interrogação.

--V. s.^a já viu esmagar uma osga contra uma parede? bradou o Antonio
fuzilando-lhe as pupillas, e convulso de cholera. Pois vae ver.
Juro-lhe, se este cão se cala um minuto, que deixa os miolos n'aquelle
muro.

--Pelo amor de Deus!... Sôr Antonio não me deite a perder!...

--O sargento sabia?... replicou o outro alçando o cajado.

--Jesus!... Não me mate!

--Sabia ou não?...

--Sabia!... rosnou o malsim quasi sem sentidos de terror.

--Quanto te prometteu... pelo tiro? Conheço-te. Tu de graça não o
disparavas.

--Agora isso não! Póde matar-me, mas não confesso.

--Eu matar-te?... Para que? O carrasco não come pão de graça.

--Então entrega-me?!...

--Com anginhos nos dedos e ferros aos pés. Juro-te! Dize a verdade,
homem. Do mal o menos. Quanto te prometteu? Olha que a corda, que ha de
pendurar-te na forca, já está fiada e torcida...

--Se eu disser não me descobre?

--Não! O teu crime te descobrirá. Quanto?

--Seis moedas...

--Por conta, ou ao todo?

--Por conta. As outras seis... havia dar-m'as em Lisboa... quando
levassemos os presos.

--Ah! Agora repara. Vamos ás nossas contas. Gaspar, devo-te uma sova
mestra pelo natal passado e outra por este entrudo. Bem te has de
lembrar por quê!... Mas perdôo-te, tudo, e até no tiro dado em Manuel
Simões não hei de boquejar... se juras fazer ao sargento o que elle te
mandou fazer aos outros...

--Matal-o?!... exclamou o _Sapo_, cuja vista feroz se inflammou.

--Não, maldito! A justiça que o mate, quando o sentencear!

--Então?!...

--Quero que vejas, que ouças, e que me digas tudo quanto elle fizer?
Percebeste?

--Sim senhor...

--Vê lá. Se te escorrega um pé, ou a lingua, e eu o sei... guarda-te!

--Não ha de ter razão de queixa. Sou-lhe muito obrigado.

--Não me dês mel pelos beiços, que não sou abelha. Cuidado commigo.
Depois!...

--Já lhe disse. Fique descançado.

--Fico, fico! Não tem duvida. Agora vens comnosco á Casa Negra.

--Oh, sôr Antonio, por alma de sua mãe, pela sua boa sorte, tudo quanto
mandar, menos isso... Sirvo-o de rastos, estou prompto a lamber o chão
aonde pozer os pés, mas tornar alli... isso não!

--Ah! Tens medo do diabo?...

--Mate-me, entregue-me, faça de mim o que quizer, mas não volto lá.

E as feições repulsivas do malsim exprimiam por tal modo o medo e o
espanto, e revelavam uma resolução tão decidida de se expor a tudo para
não obedecer, que Manuel Coutinho disse algumas palavras ao ouvido de
Antonio da Cruz.

--Pois bem, esperarás por nós. Ahi te deixo agua pé e brôa. Mas sentido!
Olha que te quero encontrar á volta!... Forte homem! Ter pavor assim de
almas do outro mundo!...

--Ah! sôr Antonio! Se você visse!... O fantasma branco alto como um
cypreste crescer para si, e o defunto sentar-se de repente e olhar... Ai
Jesus! Parece que os estou vendo ainda! Quando me lembro cuido que
enlouqueço!...

--Está bom! Está bom! Até logo! Com que viste o defunto e o fantasma?...
insistia o moleiro serio e apprehensivo, olhando para o amo com certo
enleio.

--Como o estou vendo a você, sôr Antonio. Credo!...

Manuel Coutinho encolheu os hombros, conchegou o capote e saíu. O
Antonio não teve mais remedio senão seguil-o, mas apezar de todo o seu
valor benzeu-se, e o coração batia-lhe mais rijo no peito, do que se
visse um touro partir contra elle enfurecido.




IX

Que talvez podesse servir de prologo


Deixemos descançar por um pouco os heroes d'esta mui veridica historia,
em quanto corremos rapidamente os olhos pelos successos, de que a
Peninsula foi theatro n'este periodo memoravel.

Sem um resumido esboço, dos factos, que servem de fundo e de moldura ao
quadro, difficilmente formará o leitor exacta idéa d'elle.

Os francezes, como dissemos, tinham atravessado as provincias, e entrado
na capital com o nome de amigos. Retirando-se com a esquadra para o
Brazil, o principe regente entregára em suas mãos o reino sem defeza. As
ultimas ordens de sua alteza, datadas de 26 de novembro de 1807, ordens
pacificas e conciliadoras, abrindo-lhes as fronteiras, ajudaram mais,
que as armas, os generaes de Bonaparte a superar os obstaculos da
invasão.

Junot confessou-o nas primeiras proclamações! A obediencia, tão elogiada
por elle, e dictada pelas circumstancias, ainda não encerrava os
ressentimentos, que tornaram depois vacillante e precario o dominio
estrangeiro.

O regimen absoluto, que as reformas do marquez de Pombal não conseguiram
remoçar, adoecia de incuravel decrepidez. Muitos homens illustrados, que
o grandioso espectaculo dos acontecimentos advertia, suspiravam por uma
renovação, que não podia nunca ser inspirada, bem o sabiam elles por
experiencia, nem pelas idéas, nem pela iniciativa de um governo caduco.

Esta illusão de animos generosos durou pouco. Os que amavam sinceramente
a patria depressa se desenganaram da vaidade das promessas dos
conquistadores.

Estes, apenas se reputaram seguros, arrancaram a mascara, e pozeram
termo ás complacencias. Assim que viu reunidos e repousados os corpos
dispersos por longas e precipitadas marchas; assim que os soldados lhe
pareceram restaurados da fome, das inclemencias da estação, e da
aspereza do transito o general em chefe cançou-se de dissimular, falando
com a altivez de vencedor aos que o tinham recebido como hospede!

Foi então geral o sobresalto. Os actos despoticos e oppressivos
dir-se-íam calculados para irritar o ciume e o amor proprio do paiz. As
guardas de Lisboa confiadas só aos francezes; o emprestimo forçado
imposto ao commercio com o praso de vinte dias; a insolencia do famoso
decreto de Milão condemnando como sujeito a resgate o reino que não fôra
conquistado; as armas reaes picadas do frontão dos edificios publicos; e
a bandeira nacional arriada no castello e nas fortalezas, e substituida
pelos estandartes tricolores, foram outros tantos erros dos dominadores,
que a saudade da independencia registrou como ultrajes.

Desde o dia 13 de dezembro, em que Junot rodeado de pompas guerreiras,
mandára baixar o pavilhão das quinas deante das aguias do Sena, nunca
mais houve paz entre a nação offendida e os invasores. A luva ficou
desd'esse dia no chão por falta de chefe, que a levantasse; porém,
decorridos mezes, Portugal erguia-se para responder á provocação,
envidando valor egual aos brios.

Atraz da occupação da pequena monarchia, que o orgulho do gabinete de
Saint Cloud estava ainda longe de suppor, que podesse tornar-se em breve
um dos inimigos implacaveis de sua ambição, pouco se dilatou a invasão
de toda a Hespanha. Assignando o tractado de Fontainebleau, que repartia
os membros de Portugal entre os Bourbons, os francezes, e o principe da
Paz, auctorizando a entrada de quarenta mil soldados em seus dominios,
Carlos IV não percebeu que firmava a propria abdicação.

Bonaparte anciava um pretexto para realizar os seus designios.
Deram-lh'o os enredos aulicos, o nucleo de descontentes, de que se
rodeava o principe das Asturias, depois Fernando VII, e a má vontade de
todas as classes contra o ministro omnipotente, valido do monarcha e
amante da rainha; deram-lh'o egualmente a miseria, a inquietação, a
decadencia geral, e o presentimento de immensas catastrophes.

As dissensões da côrte, filhas da lucta do herdeiro da corôa com os
soberanos e com o privado, D. Miguel de Godoy, e a indiscreta revelação
dos aggravos reciprocos, levada ao tribunal do imperador, para este
sentenciar como arbitro a familia real, ajoelhada a seus pés,
facilitaram a occasião appetecida por Napoleão I, precipitando a queda
do ministro entre violencias e tumultos, coagindo a abdicação de Carlos
IV, e apressando a saída de Fernando VII para Bayona.

Vendo por terra o diadema dos Bourbons de Hespanha Bonaparte não o
restituiu a Carlos IV, nem a Fernando VII, cingiu-o na fronte de seu
irmão, o rei de Naples, escolhido para reinar entre bayonetas sobre a
monarchia de Izabel a Catholica. Os principes despojados resignaram-se,
mas a Hespanha protestou. Madrid insurgida deu o exemplo. Murat cuidou
suffocar a sublevação pelo terror dos supplicios. Illudiu-se. O sangue
vertido na capital em 2 de maio tornou irreconciliavel a nova conquista
com o imperio. A nação respondeu aos canhões, aos fuzis, e ás execuções
militares com a resolução indomita, que as adversidades confortam, e os
triumphos exaltam.

A ira fez soldados os habitantes da Peninsula. O odio da servidão
resuscitou os dias de Viriato e de Sertorio. Cada rochedo, cada tronco,
de arvore, cada balsa escondeu um inimigo; e para repellir os
oppressores até os velhos saccudiam os gelos da edade como mancebos, e
as crianças pelejavam como homens. Por um, que expirava, erguiam-se mil.
N'esta nova seára de Cadmo o ferro, tocando a terra, levantava legiões
de heroes. O chão fugia debaixo dos pés aos veteranos da Italia e do
Egypto, e a espada dos marechaes, quebrada sem gloria, ameaçava em vão
as fragas de um territorio, que, alastrado de cadaveres, e abrazado
pelas armas e pelos incendios, até cuspia de si os ossos do estrangeiro,
negando-lhes a paz do tumulo!

Oviedo, a antiga e venerada côrte das Asturias, recordando, que suas
montanhas tinham sido berço e asylo da renascença christã, alçou ousada
o seu estandarte. Cadix e Sevilha acompanharam-n'a. Granada e Valencia
insurgiram-se logo depois. Toledo, Santander de Biscaya, Saragoça,
Tortosa, e Galliza, não ficaram atraz. Dentro em pouco os esquadrões
francezes, encanecidos nas luctas d'esta epocha de prodigios, já não
chamavam seu mais do que ao terreno aonde combatiam.

As juntas de salvação e defeza, á medida que as terras se iam
sublevando, exprimiam o seu pensamento de porfiada resistencia. Filhas
legitimas da revolução, os revezes e os sacrificios não as desanimavam.
Diversas e oppostas muitas vezes no caracter e nos costumes, nenhuma
trahiu o seu juramento. Preferindo para mortalha da Hespanha os muros
voados e as torres arrazadas das praças de guerra e das antigas cidades,
todas rejeitaram a clemencia injuriosa, que lhes promettia o perdão em
troca do soberbo dominio a que a Europa quasi inteira curvava então a
cerviz.

Os successos correram como a impaciencia dos contendores.

A invasão, que talára a provincia de Granada, derrotadas por Castaños as
tropas imperiaes, foi obrigada a retroceder. A capitulação de Bailen
quebrou o prestigio das legiões invenciveis. Os francezes, acossados de
posto em posto, tiveram de evacuar Madrid, e recuando deante do impeto
da nação armada, só pararam ás margens do Ebro. Os capitães mais ousados
aprendiam, finalmente, a conhecer, que vale mais o esforço de um povo
unanime, do que a espada feliz do mais do maior homem de armas.

A junta central de Aranjuez, composta de deputados de todas as
provincias, constituiu-se como representante de Fernando VII, captivo em
Valençay, e assumiu a suprema direcção, conferida pelas necessidades e o
heroismo pelo paiz. A Inglaterra, senhora por tanto tempo do sceptro dos
mares, disputando a Napoleão em todos os campos de batalha a primazia no
continente, ouviu de repente os clamores dos descendentes de Pelaio, e
contemplando o arrojo, com que elles se atreviam contra o poder que
desmaiava os monarchas mais poderosos, estremeceu de jubilo, e saudou
n'este commettimento audaz a aurora do dia de Waterloo.

Em Portugal, apezar de não ser menos vivo e intenso o odio, não foi tão
prompta a explosão. Mas a chamma, por calar debaixo de cinzas, não
rompeu por isso com menor violencia.

No dia 5 de fevereiro de 1808, na occasião, em que as auctoridades
francezas se reputavam mais firmes, reuniram-se encobertamente em Lisboa
seis homens, que nenhuma distincção hierarchica apontava para chefes,
mas que a firmeza da vontade e o despreso dos perigos recommendam ao
louvor da posteridade. Chamavam-se Matheus Augusto, José Maximo Pinto da
Fonseca Rangel, José Carlos de Figueiredo, Antonio Gonçalves Pereira e
André da Ponte de Quental da Camera. Juraram na presença de Deus
empregar as forças, os bens, e a vida com fervor até conseguirem
restituir ao principe regente, a sua corôa, e á patria o seu esplendor e
liberdade.

Juntavam-se ás oito horas da noite alternadamente uns em casa dos
outros, e desde logo se occuparam de minar o chão debaixo dos passos dos
invasores, descobrindo no meio do seu cortejo os illudidos e os coactos
para os descriminar dos vendidos e traidores, e sondando o animo dos
officiaes militares, dos magistrados, e dos ecclesiasticos para indagar
a sua disposição, apurando aquelles com que podia contar.

Esboçada a conspiração, e protegida por inviolavel segredo, principiaram
os primeiros conjurados a attrahir outros, engrossando o numero dos
cumplices. Á policia, regida por Lagarde, chegaram cedo os echos d'esta
empreza, que, tomando corpo á proporção que os acontecimentos
caminhavam, era já na primavera de 1808 uma verdadeira potencia,
fortificada pelos votos concordes do patriotismo portuguez, e pela
coadjuvação de valiosos auxiliares recrutados nas fileiras do exercito
nacional, nas casas mais illustres da fidalguia, e nas classes
respeitadas do clero, da toga, e do commercio.

Quando Junot embarcou em virtude da capitulação de Cintra, só os cabeças
de bando, representantes, perante o Conselho Conservador, da multidão
dos adherentes, excediam de _cento e oitenta_, e os homens, de que
podiam dispor, não baixavam de tres, ou quatro mil, com sete peças de
artilheria, 370 cavallos do regimento da Luz, e da guarda real da
policia, 112 officiaes avulsos, e 710 bayonetas!

Saltemos agora as semanas, que nos separam dos meiados de junho de 1808,
e observemos o estado das cousas já bastante alterado no curto espaço de
sete mezes.

Determinára a Providencia que do excesso dos males, que flagellaram a
Peninsula se gerassem as causas, de que primeiro renasceu a
independencia, e depois a liberdade. As scenas de Bayona, e a repressão
cruel dos tumultos de Madrid despertaram a Hespanha do somno, em que a
falsa alliança dos francezes a embalava. Badajoz sublevou-se a par de
outras terras importantes no dia 30 de maio, e á sua voz principiou a
provincia do Alemtejo a agitar-se. Ao norte a Galliza, com os bellos
portos do Ferrol e da Corunha, e a sua população briosa e accumulada,
não hesitou egualmente em saccudir o jugo.

Os dez mil hespanhoes aquartelados no Porto, que depois da morte do
general Taranco obedeciam ao marechal de campo D. Domingos Ballesta,
receberam ordem da junta para recolherem, aprisionando o general
Quesnel, governador militar da cidade, e todos os officiaes e soldados,
de que podessem apoderar-se.

Ballesta executou a ordem, e chamando as auctoridades da segunda capital
do reino, perguntou-lhes, antes de partir, por quem se decidiam? Pela
patria, responderam alguns.

O castello de S. João da Foz, de que era major Raymundo José Pinheiro,
arvorou a bandeira portugueza, e a guarnição communicou com o brigue
inglez _Eclipse_, o qual esperava os acontecimentos, cruzando proximo da
costa. O povo não se moveu. A occasião ainda não estava madura.

Os timidos conselhos do brigadeiro Luiz de Oliveira prevaleceram. O
Porto tornou a submetter-se ao governo de Napoleão I.

A 9 de julho chegou a Lisboa a noticia da insurreição das tropas
hespanholas e da prisão de Quesnel.

O perigo eminente estimulou o duque de Abrantes.

A divisão Caraffa, composta de seis batalhões de infanteria, de um
regimento de cavallaria, e de algumas baterias de artilheria, ardia em
desejos de imitar seus irmãos de armas, provocada pelos emissarios
expedidos a toda a pressa de Sevilha e Badajoz. Junot antecipou-se.
Vinte e quatro horas depois os soldados de Fernando VII, presos e
desarmados, embarcavam para bordo dos pontões francezes, e sómente
poucas companhias do regimento de Murcia e alguns hussards do Maria
Luiza conseguiam escapar-se.

Por meio d'este golpe ousado o general em chefe, retaliando as
hostilidades dos patriotas, soube refrear a tempo as impaciencias e a
animosidade dos habitantes irritados. Loison saíu a 17 de Almeida sobre
o Porto com a sua columna, afim de se oppor ás tentativas da Junta de
Galliza, e a 20 passava o Douro no Pezo da Regua. Mas o dia das iras
populares tinha alvorecido. Rodeado por todas as partes de inimigos
invisiveis, que fuzilavam suas tropas por traz das vinhas e dos
rochedos, pendurados sobre a corrente torva e arrebatada do rio, volveu
já sobre a noite ao Pezo da Regua, e tornou a vadear o Douro para a
outra margem, abençoando a precipitação boçal dos camponezes, que o
salvára quasi por milagre de uma ruina completa.

O Minho e Traz os Montes, sublevadas em massa, acabavam de empunhar as
armas, proclamando a independencia. Mais alguns passos de Loison além de
Mesãofrio, mais prudencia e calculo da parte dos aggressores, e a
columna franceza encontrava a sepultura n'aquelles penhascos e
desfiladeiros immortalizados pela sua derrota!

Em quanto Junot quebrava por um lance audacioso a espada nas mãos dos
batalhões de Caraffa, Manuel Jorge Gomes Sepulveda, tenente general, e
governador militar do norte, em edade provecta, acclamava a restauração
da dynastia de Bragança, e era seguido pelas terras mais notaveis das
duas provincias.

No dia 18 a revolução rebentou no Porto, e no dia 19 foi nomeada a
primeira junta portugueza, cujo papel havia de ser tão importante nos
successos, que se precipitavam. Coimbra Pombal, e Leiria seguiram o
exemplo do Porto, e a insurreição crescendo e alargando-se, batia pouco
depois ás portas de Lisboa, ameaçando o dominio estrangeiro, tanto pelo
lado do norte, como pelo lado do sul. Desde os Algarves até Evora e Beja
levantou-se o mesmo grito de exterminio correspondido por milhares de
vozes.

Antes de combater a insurreição a ferro, o duque de Abrantes chamou em
seu auxilio o braço ecclesiastico, convidando-o a fulminar as populações
armadas.

Uma pastoral do cabido patriarchal representou como crime e peccado
inexpiavel a resistencia ao grande e invencivel Napoleão, declarando a
culpa sujeita a excommunhão maior sem prejuizo das penas temporaes. Esta
profanação sacrilega serviu só de aviltar aos olhos do paiz os ministros
do altar, que não se envergonhavam de offerecer o incenso do templo e o
beijo de Judas contra a liberdade á vontade despotica dos oppressores.
Os raios mal forjados nas sacristias caíram frios e inermes deante da
resolução e da perseverança dos que pelejavam pela patria, e a famosa
proclamação ao Divino, despresada como merecia, não roubou ás fileiras
nacionaes um só defensor.

A resposta de Bonaparte em Bayona á deputação portugueza foi mais
eloquente para fazer de nós soldados, do que as excommunhões dictadas no
quartel general francez. O imperador, julgando a occupação de Portugal
legitima depois da partida da familia de Bragança, tractava o pequeno
reino desamparado com os rigores devidos a uma colonia ingleza!

Era a sua idéa e a sua politica. Pouco lhe importavam o amor e a
confiança dos novos subditos. Não os temia nem o preoccupava o que havia
de dispor afinal ácerca do seu destino. Junot, que os conhecia melhor,
tinha procurado attrahil-os, e chegára a linsongear-se com a esperança
de os adormecer a ponto de lhes riscar da memoria as saudades da
dynastia e da independencia. A obediencia imposta pela força
afigurava-se-lhe esquecimento, e nos seus officios ao ministro da guerra
o governador de Paris traduzia os vivas venaes da plebe ao sabor dos
seus desejos, pintando a nação tranquilla, submissa, e satisfeita. A
explosão das provincias e os murmurios da capital vieram depressa
acordal-o d'este sonho!

Olhou. Não viu em volta de si, senão odios mal reprimidos, ou adhesões
falliveis e compradas. A pobreza e a miseria, filhas do bloqueio, que
paralysava o commercio, tornavam ainda mais critica a sua posição. O
cambio do papel moeda subira a 31 e a 32 por cento; o pão custava 75
réis o arratel. A carestia dos generos, tornando a vida difficil e
dolorosa para as classes indigentes, aggravava o descontentamento geral.
A Junta dos Tres Estados, reunida para pedir um rei a Napoleão,
proporcionou ao juiz do povo José de Abreu Campos, a occasião appetecida
de manifestar os verdadeiros sentimentos do paiz, desenganando o duque
de Abrantes, de que se achava só e detestado com o seu exercito no meio
de populações hostis, que suspiravam pela hora de restaurar a liberdade
e o throno de seus principes.

No mez de junho estavam dissipadas todas as illusões. Admirado do arrojo
com que paizanos quasi sem defeza se arriscavam ao encontro de legiões
aguerridas, Junot exclamava: «Portuguezes! Que delirio é o vosso? Em que
abysmo de males vos despenhaes? Ao cabo de sete mezes de paz e harmonia,
porque razão correis ás armas?» Concluindo com a lei marcial, ameaçava
as villas e cidades com o saque e o incendio, e os cidadãos com a morte!

Se estivesse mais lembrado da sua juventude deveria recordar-se do modo
por que a França respondêra heroicamente aos que lhe apontaram a espada
ao peito dizendo o mesmo.




X

Tolda-se o tempo


Transportemo-nos um pouco antes dos successos esboçados nas paginas
antecedentes aos paços da inquisição, situados no Rocio de Lisboa, aonde
hoje ergue o seu frontão votado ás Musas o theatro de D. Maria II. Em
algumas das salas e aposentos do antigo palacio dos Estáos, restaurado
pelo marquez de Pombal, assentou Lagarde as repartições da policia geral
do reino. Era justo! Ao lado do santo officio da fé o santo officio da
usurpação. As duas inquisições fraternalmente hospedadas uma a par da
outra não podiam offender-se do acaso que as unia! Soldados da guarda
real da policia, corpo fundado e disciplinado pelo conde de Novion,
emigrado francez que as victorias de Bonaparte e a invasão de 1807
lançaram outra vez nos braços dos seus compatriotas, guardavam as portas
de fóra, ou de espadas em punho vigiavam os corredores e camaras, que
precediam o quarto reservado aonde o proconsul se encerrava com os seus
confidentes.

Deixemos passar esses vultos, que pisam os sobrados nas pontas dos pés,
escorregando quasi como sombras. São rodas secundarias da machina. O
olhar enviezado e inquieto, o rosto meio escondido na dobra do capote, e
a humildade rasteira denunciam, sem necessidade de mais exame, os
delatores obscuros, ou os agentes provocadores, destacados nas ruas e
praças, ou nas tavernas para escutar e repetir os clamores de indignação
das multidões. Esperemos que algum personagem de elevada gerarchia
appareça, e nos introduza no gabinete discreto e só accessivel a poucos
eleitos, aonde o magistrado estrangeiro conta as pulsações do coração de
Portugal, e segue com a vista fria e penetrante os estremecimentos de
cholera, ou de impaciencia do paiz, cançado da oppressão e envergonhado
do silencio, em que a supporta ha sete mezes!

O general Junot, governador de Paris, entra pelo braço do conde da Ega,
seguido de seus ajudantes de campo. O ministro Herman, encarregado dos
negocios do reino e da fazenda, ex-commissario imperial, não se demora
atraz d'elle. Lunyt, secretario d'estado da marinha e da guerra já os
tinha precedido. A concorrencia de taes pessoas inculca acontecimento
notavel, e é de crer que o conselho se não separe sem que alguma
providencia venha esclarecer o segredo dos ultimos dias e dos ultimos
sucessos. Quem nos abrirá caminho até ao famoso reposteiro, que deante
da entrada da sala vedada representa para os profanos o papel de véu de
Pythagoras? As sentinellas, immoveis como estatuas, velam fieis ás
ordens recebidas. Os porteiros, em ar protector, ou mysterioso, despedem
os pretendentes e os importunos. Um cordão de empregados corta á
curiosidade todos os passos. Gritou-se, porém ás armas. O uniforme de um
official superior reluz na extremidade de extenso corredor. Os
subalternos inclinam-se profundamente, e respondem em voz submissa ás
perguntas imperiosas, que lhes dirige. Acompanhemos este iniciado. É o
capitão de mar e guerra Magendie, commandante da marinha. Seguindo-o,
temos a certeza de não encontrar obstaculos.

Quando o recem-chegado franziu o reposteiro de panno escarlate orlado de
branco, no meio do qual campêa uma aguia azul colossal, e empurrou de
leve um dos batentes da porta, a discussão já se havia travado, segundo
parecia, menos placida, do que promettiam os annos e auctoridade dos
diversos membros do governo, sentados á roda da comprida mesa, coberta
de couro, e cingida até ao chão de um rodapé de tela encarnada. A mesa
occupava o centro da casa. Junot, facil de conhecer pela estatura, boa
presença, e garbo do porte, achava-se em pé junto da cabeceira, com o
rosto inflammado, e a mão no punho da espada. Lagarde, á sua esquerda,
analyzava com o olhar prescrutador todas as physionomias, traçando com a
penna sobre uma folha de papel algumas palavras soltas. Pallido, ou
antes livido, retratava no rosto a astucia unida á expressão repulsiva
de um cynismo cruel e glacial.

Herman, á direita do general em chefe, sereno, aprazivel, e delicado,
com um lapis entre os dedos enfeitados de anneis, justificava ao
primeiro volver de olhos a reputação de melindre e de primor, merecida
desde que se estreára na carreira publica exercendo as funcções de
consul em Portugal. Vestia em todo o apuro da moda do seu tempo. Casaca
de lemiste talhada á franceza com botões de metal e golla alta, collete
branco aberto, que deixava sobresaír a finissima cambraia da camisa e da
tira engommadas em pregas miudissimas, calções de seda, meia a estalar
na perna, sapatos e fivelas de ouro cravejadas. Um espadim curto de
bainha dourada pendia-lhe da cinta, e uma caixa de rapé, mais preciosa
pelo lavor, do que pela qualidade, aberta a seu lado, e consultada a
miudo pelos dedos distrahidos de Junot, recommendava-se pela admiravel
miniatura, cercada de aljofres, que lhe ornava a tampa.

O conde da Ega, cuja intimidade no quartel general do largo do Quintella
as murmurações populares explicavam de um modo pouco airoso, e que dias
depois havia de substituir o Principal Castro na pasta da justiça,
escutava de pé, e com mostras de não pequeno sobresalto, talvez
provocado pelo desassocego da consciencia, a leitura nasal, lenta, e
accentuada, que Lunyt secretario de estado continuava sem mudar de tom,
estudando de vez em quando por baixo dos oculos de ouro o effeito
produzido no animo dos ouvintes.

A entrada de Magendie, accolhida por uma exclamação de alegria do duque
de Abrantes, por uma cortezia de Herman entre dois sorrisos, e por um
gesto de urbanidade de Lagarde, foi como o signal da explosão até ahi
contida das paixões e receios mal reprimidos. Todos diriam que o
Conselho aguardava a sua chegada para arrancar a mascara, que o
suffocava, dando largas á expressão sincera dos verdadeiros sentimentos.

--Bem vindo, capitão Magendie! A sua demora fazia-nos temer que
faltasse. O aviso chegou-lhe tarde?...

--Não foi o aviso, general! Mas a esquadra de sir Carlos Cotton
appareceu outra vez á barra, e julguei prudente ir a bordo das fragatas
_Carlota_ e _Benjamin_...

--E então?! interrompeu Lunyt, pondo de parte o papel que lia, e
encarando o capitão de mar e guerra.

--Fosquinhas por ora! respondeu este encolhendo os hombros.
Entretanto...

--Podem encobrir planos de hostilidade? atalhou Herman, sorvendo com
pausa uma pitada, e dispersando depois com um piparote os grãos que
tinham saltado sobre a tira alvissima da camisa.

--É possivel. Os inglezes animados pela sublevação dos hespanhoes,
meditam desembarques na peninsula, accudiu Lagarde em ar grave.

--Veremos se em terra são felizes como no mar! observou o conde da Ega.

--Mesmo no mar, redarguiu Magendie, espero que não hão de forçar-nos a
barra sem deixarem nos escolhos um par de navios. Temos de observação
entre as torres a fragata _Graça Phenix_ e mais dois vasos de alto
bordo, artilhados, mas incapazes de navegar; em Belem estão fundeadas
tres charruas...

--Bem! Bem! tornou Junot. Duvido que rocem as barbas pela bôcca de
nossos canhões, Magendie! Oxalá que todas as tempestades nos viessem só
do mar... O peior de tudo, senhores, é que o chão treme debaixo dos pés,
e...

--Que a traição vela á nossa cabeceira? Notou Lunyt, limpando os vidros
dos oculos, e falando no mesmo tom lento e nasal, com que lia.

--É verdade, Lagarde! Conspira-se, trama-se, e não nos dizieis nada!...

--Para que? Quando uma nação inteira está conjurada, general, a policia
passa, vê, e dissimula. Prisões e devassas, de que serviriam, senão de a
irritar mais? Descobrir o que ella quer, tirar-lhe os pretextos, e
escolher a occasião de ferir a muitos de uma vez pelo terror do mesmo
golpe, eis o segredo dos que sabem dominar.

--Sim! Bem sei! É a theoria de Fouchet, do duque de Otranto!...

--E para este caso a unica aproveitavel. O que diria o sr. conde da Ega,
tão nosso amigo...

--Eu!... Pois eu!...

--Se lhe mettessemos no castello, ou nas torres dez, ou doze parentes de
toga, e de espada, que estão conspirando a esta hora mesmo contra o
governo de sua magestade o imperador e rei?!... proseguiu o intendente
com o seu riso agudo e estridulo, similhante ao som do córte de uma
serra.

--Ah! Os parentes do sr. conde de Ega tambem são contra nós?!... notou
Junot vagarosamente.

--E os da senhora condessa ainda mais!... observou Lagarde trespassando
o general com a vista afiada e ironica.

Uma nuvem escureceu a fronte do duque de Abrantes. Aquella seta viera
cravar-se-lhe direita no peito. O guerreiro destemido, coroado tantas
vezes pela victoria no meio de proezas heroicas, era accusado de
excessiva sensibilidade perante o bello sexo; e a formosa condessa da
Ega, segundo se dizia, graças a seus enlevos e encantos, tinha
conseguido tornal-o escravo do menor de seus caprichos.

O general inclinou a cabeça, correu os dedos pela fronte annuviada, como
se quizesse saccudir com o gesto pensamentos importunos, e, sem
responder á allusão, levantou-se, e deu alguns passos pela casa, talvez
para ter tempo de se assenhorear de si, vencendo a commoção. Os olhos
dos outros vogaes do conselho fitaram-se no semblante do conde da Ega
por um movimento irresistivel. Sem resultado! Ayres de Saldanha, por
calculo, ou por ignorancia, não denunciava na physionomia, senão a
indifferença apathica, prova real da mais virtuosa confiança. Herman e
Lagarde trocaram um sorriso fino, que não abonava a sua credulidade na
innocencia apparente do fidalgo portuguez.

N'este momento a mão de um ajudante de ordens arredou as prégas do
pesado reposteiro, e sem proferir palavra entregou a Junot dois maços
cuidadosamente lacrados. O duque recebeu-os tambem calado, e veiu
sentar-se na ampla cadeira de braços, d'onde se erguêra minutos antes.
Emquanto rompia o sobrescripto do primeiro, e corria os olhos pelo
volumoso officio, era facil notar no seu rosto, de ordinario sereno e
intrepido, a apprehensão causada por noticias desagradaveis. Antes de
passar á leitura do segundo maço, e de lhe rasgar a capa, os que o
conheciam assustaram-se, apercebendo-se de certa hesitação momentanea,
notavel em caracter tão firme, porque seguramente inculcava mais do que
sobresalto, ou torvação. Ao mesmo tempo recebia Lagarde um papel
fechado, que não lhe causava menor cuidado, do que os dois officios ao
general. Houve um minuto, ou dois de profundo e ancioso silencio.

--Nome de Deus! exclamou o duque de Abrantes incapaz de conter as
paixões, e amarrotando irado o papel. Verifica-se o que sempre
prognostiquei. Não me quizeram attender, decidiram tudo em Paris sem
entender nada, e agora cá estamos nós para carregar com o peso de todas
as culpas!... Quantas vezes os avisei e lhes disse a verdade! Deram
finalmente aos inglezes o campo de batalha porque tanto suspiravam; não
contentes fizeram suas alliadas duas nações inteiras. Veremos agora como
desatam o nó!

E recostando os cotovellos na mesa, e a cabeça entre as mãos, sem fazer
caso do espanto excitado pelas suas phrases, abysmou-se em sombria
meditação.

--O que é? O que succedeu?... perguntava o conde da Ega a Herman.

--Pouco viverá quem o não souber! redarguiu o malicioso diplomata,
encolhendo os hombros. Rapaziadas dos portuguezes, aposto!...

--Mais do que rapaziadas, senhor Herman! atalhou o intendente geral da
policia, que de livido se tornára verde, cujas pupillas chammejavam,
cujo sorriso era uma contorsão diabolica. Estamos sobre um vulcão.

--Apagado! replicou o ministro do reino inalteravel. Esta gente de
Lisboa não é para emprezas altas. Queixa-se com saudades, fala, ameaça,
mas por fim faz-se d'ella o que se quer. Em lhes não tocando nos seus
lausperennes, nos seus frades, e nas suas procissões, todos andam mansos
como borregos... Estes não me mettem medo a mim; oxalá!...

--Medo! accudiu Junot, levantando-se de um pulo, com o rosto incendido,
e os olhos scintillantes! Medo! Quem fala em medo!? Para enxotar como um
rebanho de ovelhas toda essa plebe, toda essa espuma... basta o meu
cavallo e o meu chicote!...

--Nem tanto, senhor duque! observou Magendie. Os portuguezes são homens
e soldados. Mais de uma vez o têem provado. Perguntae aos hespanhoes...
e ao senhor conde da Ega, que hão de conhecel-os.

Herman sorriu-se. O conde parecia petreficado. A injuria do general em
chefe feria-o no rosto como golpe de mão aberta. O coração indignado
convidava-o a repellil-a, porém o servilismo tapava-lhe a bôcca. Não
acertava com o que fizesse. Calado deshonrava-se; falando
arriscava-se... Calou-se!

Junot caíu depressa em si. O seu animo era generoso, embora cedesse aos
impetos do sangue, facil de inflammar, provocando paroxismos de cholera,
que os seus intimos deploravam, porque frisavam quasi por loucura
frenetica. As palavras de Magendie advertiram-n'o. Recuperando-se da
embriaguez da raiva, volveu ás maneiras cultas e urbanas, que tantas
affeições lhe grangeavam, mesmo entre os adversarios.

--Senhor capitão Magendie, a plebe não é a nação. Os portuguezes são
para muito; pena é que não os soubessem aproveitar, em quanto era
tempo!... O erro não o commetti eu. Este povo é bom, generoso, e
paciente... Podiamos, deviamos ajudal-o a regenerar-se... Preferimos
tractal-o como vencido, e fazer d'elle um inimigo!... Paciencia!
Colheremos os fructos que semeámos. Lagarde! Herman! Magendie! Vamos ter
a guerra!... O segundo acto da tragedia começa em Portugal. A Hespanha
deu-nos o primeiro... Loison escapou milagrosamente aos montanhezes
sublevados no Marão, em Amarante, e em Chaves!...

--Se escapou é o essencial! Os bandos populares sem cabeça depressa se
dispersam. Observou Lagarde.

--É verdade. Mas o chefe existe. Manuel Gomes de Sepulveda acclamou em
Traz-os-Montes o principe regente...

--Um velho de mais de oitenta annos, tropego, e quasi cego!?... accudiu
Lunyt sorrindo.

--Acrescentae, porém, velho mas habil general, valente, e adorado!... As
provincias do norte estão, ou estarão todas em armas dentro de oito
dias. Miranda, Villa Real, Moncorvo, e Guimarães já o seguiram, ou vão
seguil-o...

--Temos o Porto, e em quanto for nosso, facilmente daremos a mão aos
nossos exercitos de Hespanha, interrompeu Herman.

--O Porto!... Lêde!... E passando o officio ao ministro do reino, Junot,
em quanto este o lia a meia voz aos collegas, passeiava agitado, medindo
a sala em todo o comprimento.

--O Porto? É tarde! já não lhe accudimos. Hoje, ou ámanhã subleva-se, e
dá o exemplo. Coimbra não se demora. Contae com ella insurgida. Não nos
lisongeemos com illusões...

--O mal, comtudo, não é irremediavel! Sejamos fortes! exclamou Magendie.
As nossas tropas devem ter vencido em Hespanha, e...

--As nossas tropas não venceram, foram vencidas! Tornou o general em
chefe sombrio, e mordendo os beiços. A fortuna vira-nos as costas. As
divisões aguerridas recuam sobre o Ebro. O rei José saíu de Madrid.
Estamos sós e sem retirada no meio de um reino irritado e adverso...

--Ah! disse Herman empallidecendo. N'esse caso a partida é arriscada.
Não a julgo, porém, perdida.

--Nem eu! Mas contemos um pouco, se nos apraz, com os inglezes. Em
Gibraltar acha-se sir Hew Dalrymple com o corpo do general Spenser. Em
Cork, na Irlanda, vão embarcar nove mil soldados. A esquadra de sir
Charles Cotton anda cruzando deante da foz do Douro, e das bahias do
Tejo e do Mondego. De um instante para outro podemos ter de pelejar com
o povo e com as tropas do rei George... N'esse caso!...

--Ameaça-nos a capitulação de Dupont em Bailen?!... accudiu Lagarde,
batendo com o punho cerrado sobre a mesa. Oh!...

--Nunca!... Pelo menos em quanto eu viver! exclamou Junot com um gesto
admiravel de firmeza. Luctaremos! A derrota não é menos gloriosa, que o
triumpho, quando o campo de batalha proclama o heroismo dos vencidos...
Poderemos ao menos contar com a obediencia de Lisboa? A capital em nosso
poder póde ser ao mesmo tempo segura base de operações, e precioso
penhor para o infortunio. Lagarde! Chegou o momento. Respondeis pela
tranquillidade de Lisboa?...

Houve um momento de silencio. O intendente geral da policia, atalhado,
olhava para o papel, que lhe tinham trazido, e conservava ainda aberto,
e para o general, e hesitava.

--Que nova desgraça nos ameaça!? accudiu o duque arrebatado. Hoje é o
dia das fatalidades? Falae! Estou preparado para tudo. Que dizeis de
Lisboa?...

--Que respondo por ella, como por mim!... balbuciou Lagarde tremulo.

Bem! Não é preciso mais. Dás-nos a alavanca de Archimedes!...

--Só depois de ámanhã em deante!... concluiu o intendente engasgado, e
convulso.

--Ah! E hoje porque não?! exclamou Junot, que os revezes pareciam
reanimar á medida que se accumulavam. Nome de Deus! Não sois medroso.
Conheço-vos! Esse papel trouxe-vos a cabeça de Medusa? Que segredo
terrivel encerra? Vamos! Vencei a consternação, e dizei-nos o que ha. O
peior perigo, é o perigo encoberto. Quero saber!

E o duque de Abrantes assentou-se com a fronte erguida, os olhos
brilhantes, e um sorriso intrepido nos labios. Era assim que elle
costumava affrontar a morte nas batalhas.

Lagarde principiou em voz baixa a leitura. Era o plano de uma revolução
traçada para rebentar no dia seguinte depois da procissão do Corpo de
Deus.

Os auctores d'este commettimento, todos membros do Conselho Conservador
de Lisboa, tinham sido denunciados á policia em differentes occasiões,
mas poupados como conspiradores theoricos e inoffensivos. A ousadia do
trama excedia, porém, d'esta vez quanto podia prever-se de audaz e
decidido. O rompimento havia de começar de tarde, ás seis horas, muito
depois de concluida a festa religiosa. Junot devia ser preso no caminho
do palacio de Anadia para o Rato, as guardas do Rocio, do Terreiro do
Paço, de S. Domingos, de Santa Clara, e do quartel general, atacadas e
desarmadas, e o Castello rendido por assalto, ou por algum artificio de
guerra. As tropas francezas privadas do seu chefe, e surprehendidas,
seriam obrigadas a depor as armas em virtude das ordens dictadas ao
duque de Abrantes pelos seus carcereiros. O povo e os soldados
portuguezes coadjuvariam a revolta occupando as ruas e as praças.

O assombro dos vogaes do governo durante a communicação, que acabâmos de
resumir, custaria a descrever. A gravidade das physionomias tornou-se
mesmo tão solemne, que ia degenerando quasi em comica. O unico ouvinte
desassombrado e de sangue frio era o duque de Abrantes. A idéa de se ver
colhido ao anoitecer no seu transito costumado pelos cumplices do
Conselho Conservador, affigurou-se-lhe por tal modo absurda, que,
recostado no espaldar da cadeira, desatou o riso em frouxos, suspendendo
a leitura, e desengatilhando de sua expressão severa o rosto dos que a
sua hilaridade não admirava menos, do que o plano de sublevação forjado
para a capital.

--Admiravel! Sublime!... clamava Junot estorcendo-se entre risadas.
Parece-me que os estou vendo d'aqui a esses illustres conspiradores de
rabicho e samarra, decidindo á pluralidade de votos o theor das ordens,
que hei de escrever depois de prisioneiro!... Mas é um entremez puro o
que esta boa gente imaginou: art.^o 1.^o O general Junot será
apprehendido, e ao mesmo tempo as guardas do Terreiro do Paço e do
Rocio!... art.^o 2.^o (porque o não puzeram tambem?) O presente decreto
será registado nos livros da chancellaria da Junta Provisoria!
Excellente! Deixae-me rir, Lagarde. Sois um homem unico para desterrar
tristezas.

Herman, Lunyt, e o intendente olhavam uns para os outros, pasmados, e
não sabiam se deviam conservar-se serios, ou imitar o general. Magendie,
militar e resoluto, ria a ponto de lhe saltarem as lagrimas dos olhos. O
plano peccava pela ingenuidade. Os innocentes conspiradores fundavam
todo o edificio de suas esperanças na prisão de Junot, e essa prisão era
justamente o que lhes esquecêra assegurar. O duque de Abrantes, cujo
valor todos respeitavam, os seus ajudantes, e a escolta de cavallaria
que sempre o acompanhava, não cairiam de leve em uma cilada de poucos
homens, e para o esperar em grande numero, vigiadas como estavam as
ruas, parecia duvidoso que meia hora depois não se achassem recolhidos
na cadeia os Scevolas incumbidos d'este prologo essencial no grande
drama da restauração da patria.

--Herman! O vosso voto sobre esta farça que terrificou Lagarde!...

--O plano é fraco, porém a intenção...

--De intenções, boas, más, e pessimas está calçado o inferno! Tendes
acaso receio de me vêr preso no meio das becas dos conspiradores, suando
medo por todos os poros, e ordenando aos meus valentes soldados que
entreguem as espadas e espingardas aos milicianos de Lisboa!?... Que
gente admiravel a do vosso Conselho Conservador, Lagarde! Respeitae-os
como se respeita a innocencia. Conjurados assim inventam-se, quando se
não acham, e guardam-se debaixo de redomas de vidro... Art.^o 1.^o O
general Junot será apprehendido! Nada mais! Que bella concisão spartana!
Ah! Ah!... Quem serve de espirito santo a este cenaculo? Algum macrobio?
Alguma reliquia do tempo do marquez de Pombal, aposto?... A conspiração
dá ares de quinhentista. Foi desenterrada de certo de algum archivo!...

--Informam-me que José de Seabra no principio déra alguns conselhos, mas
que hoje...

--Não quer saber d'elles para nada!?... É evidente! José de Seabra, duas
vezes ministro de estado, sisudo, e espirituoso, morria de vergonha se
visse o seu nome ligado a similhante satyra do senso commum... Art.^o
1.^o O general Junot!... Desculpem, mas é incrivel! Os desembargadores e
os padres de Lisboa cuidam que um general francez é algum passaro raro,
que se apanha e mette na gaiola para o ensinar a cantar o hymno
nacional!?... Lagarde! Prohibo-vos de tocar nos veneraveis juizes,
fidalgos, frades, abbades e negociantes, de que se compõe este
bemaventurado Conselho. Dae graças a Deus pela sua existencia, e não os
incommodeis. D'alli não vem de certo mal! Oxalá que Sepulveda fizesse
parte d'elle, esperando pela minha prisão para se sublevar. O Porto
ainda poderia salvar-se!

--Mas, general, o dia de ámanhã parece-me critico, observou o
intendente, que o riso e os motejos do duque tinham confortado pouco.
Não é só gente da capital a que sae ás ruas. Os arrabaldes e o Ribatejo
despovoam-se, e talvez fosse mais prudente prohibir a procissão, e
prender por algumas horas os cabeças conhecidos dos arruidos
populares...

--Pela gloria do imperador! Enlouqueceis, senhor Lagarde?!...
Assustam-vos tanto os planos ridiculos de uns poucos de dementes, que
vos não envergonha o argumento de fraqueza, que dariamos, escondendo-nos
com medo dos frades e das irmandades de Lisboa? A procissão ha de saír.
Nada de prisões! Os nossos soldados trazem polvora e bala nas patronas.
É quanto basta!... Meus senhores, hoje, o general Junot, depois das seis
horas da tarde sae do palacio da Anadia para o Rato, e vae ser
apprehendido. Ah! Ah! Está encerrado o conselho. Herman enfeitae-vos bem
ámanhã. Tereis de pegar a uma das varas do palio. Magendie não deixeis
_apprehender_ os nossos navios. Lagarde, mandae saber ao hospital se ha
logares vagos na casa dos orates; os vossos amigos do Conselho
Conservador acabam todos lá. Lunyt, vinde commigo; tenho que vos
communicar... isto é se não receiais que o general Junot _seja
apprehendido_ no caminho para o largo do Quintella. Ah! Ah!... Senhor
conde da Ega acceita um logar na minha carruagem?... Note que lhe
offereço um posto perigoso.

E o duque saíu precedido por Magendie e acompanhado do conde e do
secretario de estado da guerra e da marinha. Herman e Lagarde, que
ficaram atraz, olharam um para o outro, interrogando-se com a vista e
com o gesto.

--O que devo fazer? perguntou o intendente.

--Nada. É o melhor!

--Mas!...

--Meu querido senhor Lagarde, o homem que ha de prender Junot... não
está de certo no Conselho Conservador de Lisboa! Redarguiu o ministro
rindo. Socegue!

Momentos depois o intendente tocava a campainha, e por ordem sua um
porteiro introduzia no gabinete o sargento Cabrinha e o seu assessor
Gaspar Preto, por alcunha o _Sapo_.

Saberemos a seu tempo o que alli vinham fazer aquellas duas boas almas.




XI

Achilles e Nestor


Em quanto no palacio do Rocio se representava a scena, a que assistiu o
leitor, em uma casa, situada quasi no arrabalde, perto de Campo de
Ourique, no qual trabalham ranchos de operarios sem repouso a levantar
um acampamento militar para as tropas francezas, que Junot recolhe das
provincias, e concentra na capital, iremos encontrar alguns dos
personagens, que deixámos na Ponte de Asseca, n'aquella tempestuosa
noite, que viu as proezas do sargento Cabrinha, a evasão de Paulo de
Azevedo, e as artes diabolicas do astuto lavrador João da Ventosa.

Estava formoso o dia, mas quente. Nem um leve sopro de aragem meneava as
cortinas de caça, que por detraz das quatro janellas da frontaria
substituiam os modernos e elegantes _stores_. A casa, de um só andar,
caiada de branco, pintada de verde claro em todas as portas, grades,
hombreiras, e maineis respirava aceio e alegria. Um muro baixo rodeava o
jardim, d'onde as rozas de trepar, as baunilhas, e outras plantas,
subindo pelas paredes, vinham debruçar do espigão seus festões floridos
e recendentes.

Um preto quasi anão, grosso, roliço, com a carapinha semeada de cans,
indicio de provecta edade, e brincos de prata nas orelhas, acabava de
varrer, gemendo e rosnando, os tres degraus de pedra, que desciam da
porta da entrada para a viella quasi deserta.

No jardim a areia, fina e vermelha, das ruas, orladas de buxos
recortados, rangia debaixo dos pés de duas pessoas, que passeavam,
conversando em voz submissa. No angulo, que olhava para as terras, um
mirante entrelaçado de caracoleiros e jasmins, offerecia em seus bancos
de cortiça commodo assento aos que desejassem recrear a vista,
espairecendo-a pelos largos horisontes, que d'alli se descobriam.

--Não perca o animo nas vesperas da victoria, senhor Manuel Coutinho!
Lembre-se de quem é, e creia mais em si, e em nós... deixe-me ter tambem
um momento de vaidade!... Deus ha de ser por este reino, e não ha de
permittir...

O homem que proferia estas palavras era um velho de aprazivel aspecto,
trajado em habitos ecclesiasticos, inculcando na phisionomia, na voz, e
nas maneiras, a prudencia que dão os annos, e a experiencia do mundo
unida á confiança e ao enthusiasmo sereno, que nascem do coração, que
ardem com viveza aquecidos pelo calor de uma alma generosa, e que os
gelos da edade nem amortecem, nem apagam.

O sorriso meigo e tranquillo, que lhe franzia os labios, contrastava de
visivel modo com as sombras de profunda tristeza, que escureciam o rosto
do amante de Leonor de Azevedo, e com a expressão de desalento retratada
em suas feições abatidas.

Quem attentasse, todavia, com mais cuidado no semblante palido do
mancebo, e sobre tudo no fulgor dos olhos, que despediam por vezes
lampejos quasi sinistros, denunciando as intimas commoções, logo
percebia, que, se um assomo repentino de duvida, ou desconforto podéra
abalar por instantes a energia d'aquella forte vontade, depressa a
reacção a havia de despertar do lethargo, e que pouco depois, em logar
de ser necessario reanimal-a, todo o poder da persuasão seria pequeno
para a conter dentro de limites razoaveis.

--Deus?!... exclamou Manuel Coutinho, respondendo á ultima phrase do
ancião, e volvendo ao céu, limpido e azul, um olhar de amarga
desesperação. Não se esqueceu Elle de nós? Não está com os inimigos do
seu nome e da nossa liberdade?!...

--Não diga isso. Caia em si. Não vê que accusa a divina justiça? Deixe-a
caminhar...

--Coxa e lenta como a dos homens?!... Senhor bispo! Sou moço e militar,
desculpe-me, mas não posso supportar com paciencia christã o espectaculo
de tantas miserias e de tantos crimes!... Fala na justiça de Deus?!
Aonde estava ella, quando o Vigario de Christo, arrancado por mãos
sacrilegas da sua cadeira, foi como seu divino Mestre arrastado de
prisão em prisão, de opprobrio em opprobrio, por turbas de soldados á
voz de Bonaparte?...

--Estava no Calvario, como no dia em que padeceu o Redemptor! Continue!

--Ah! E porque dorme ella, quando nações inteiras choram escravas o seu
martyrio, e banhadas em sangue invocam a morte nos campos talados, nas
cidades saqueadas, nos patibulos e nos carceres, a morte, unica
esperança que lhes resta, depois de roubados os seus altares, de
incendiadas as suas moradas, de infamadas suas esposas e filhas, e de
dispersas como vil pó as cinzas de seus paes e de seus avós?!...

--Quem lhe diz, que dorme, e não que aguarda a sua hora? Quantos seculos
durou a perseguição da egreja e a tyrannia dos Cesares?... E hoje,
d'esse colosso romano, que assoberbava o mundo, o que sobrevive? Ruinas,
memorias, e a cruz triumphante alçada no Vaticano!... Tranquillize-se,
conforme-se, espere...

--Que espere!... Mas elles, os verdugos, os malvados, acaso esperam?
Paulo de Azevedo, duas vezes salvo por nós, escapou por fim aos laços do
infame Lagarde? Está no castello, bem sabe, e o conselho de guerra, que
ha de julgal-o, tem sêde do seu sangue... Hoje, ámanhã, de uma hora para
a outra, as balas de um pelotão!... Não tenho animo de o imaginar!...
Vel-o morto, assassinado, e não poder valer-lhe!... E sua filha, a
desgraçada, que já não tem lagrimas que verter, que sente a todos os
instantes no coração o frio da morte, ameaçando o que mais ama e
estremece n'este mundo?!... E hei de esperar?! Resignar-me! Deixal-o
morrer?!...

--Ha de esperar, sim. Que remedio!... Paulo de Azevedo está em perigo,
porém ainda não morreu...

--É verdade. Mas para o salvar?!...

--Havemos de empregar todas as nossas forças.

--Oh! accudiu o mancebo, cujo desespero rompeu por fim em dolorosa
ironia. Hão de salval-o! Contam assaltar o castello, prender Junot, e
colher Lagarde como um lobo no seu antro?!... Lagarde!... O auctor de
todos os nossos infortunios!... ajuntou em voz cava e com terrivel
expressão. Pelo menos esse não se rirá impune, festejando o ultimo
suspiro da sua victima. Lagarde pertence-me. Sou o seu juiz, e a minha
justiça não coxêa, nem dorme, como a da Providencia.

--Não blaspheme, e escute, se póde! Os dias da usurpação estão contados.
Quem sabe! Ámanhã mesmo talvez troquemos o lucto da escravidão pelas
galas...

--Sonho! Irrisão!... bradou Manuel Coutinho saccudindo com força o braço
do seu interlocutor. Aonde estão os homens para isso? Bastaria o som de
um tambor para os espantar, e Junot conhece-os. Cuida que dou fé ás
proclamações e aos conciliabulos do Conselho Conservador? Becas,
sotainas, velhos fracos, negociantes, e frades, que tremem da sua
sombra, ousarão nunca medir-se com os soldados de Bonaparte em um
combate?!... Senhor bispo de Malaca, se palavras e balas de papel
matassem, então sim, mas!...

--Manuel Coutinho, a dor torna-o injusto. Essas becas e esses frades são
mais fortes, do que os soldados em volta de suas bandeiras. Lembre-se de
que puzemos a cabeça em cima do cepo, e de que estamos resignados a
padecer!... Não esperava que o escarneo caísse da sua bôcca sobre nós!
Aprende-se mais depressa a morrer com ruido no meio do fogo e dos
alaridos de uma batalha, do que a aguardar o algoz sobre os degraus do
cadafalso?... E ninguem sabe melhor se elle póde ferir, e se todos
estamos decididos a jogar a cabeça n'esta partida... em que apostámos
honra, bens, e vida pela patria...

--Sei, mas o povo cala-se e obedece. Lisboa chora e supporta. O reino...

--O reino accordou, e não torna a adormecer. Por isso lhe disse que
estavamos nas vesperas da victoria...

--O reino accorda?! Mas eu ignoro tudo!... Senhor bispo de Malaca!...
Compadeça-se da minha impaciencia. Bem vê! Estou quasi louco! Conte com
o meu braço, com o meu sangue. Ha alguma esperança?...

--Ha mais do que esperanças, ha factos. Prepare-se! dentro em pouco o
seu posto será nas fileiras de seus compatriotas, no exercito da
independencia. Leia! Adore os designios profundos da Providencia.

Manuel Coutinho, arrancando-lhe quasi da mão o papel, que lhe offerecia,
correu-o todo em um relance de olhos, e apenas o sentido lhe penetrou a
intelligencia, o sangue em ondas affluiu ás faces, as pupillas
faiscaram, e uma expressão de jubilo, e de enthusiasmo subito avivou-lhe
as feições.

--O norte sublevado!... murmurava lendo, e detendo-se, como se julgasse
impossivel o que lia. O Porto talvez levantado a esta hora!
Traz-os-Montes e o Minho ámanhã, ou depois em armas!... Os inglezes em
Cork, ou já no mar para desembarcarem!...

E o suor borbulhava-lhe na fronte, e a vista scintillante devorava cada
lettra do escripto.

--Meu Deus! Se isto é sonho, ou delirio meu, fazei que nunca desperte
d'elle.

--Então, filho, disse o bispo sorrindo-se com mansidão, ainda acha que a
justiça divina coxêa, e dorme? Arrepende-se agora da sua pouca fé?! Pois
bem! Já vê que as becas e as sotainas ainda valem alguma coisa. O
milagre fez-se, e um bispo é quem ha de no Porto presidir, ao governo do
reino restaurado. Sei-o de certeza.

--Seguiu-se uma pausa curta, durante a qual os olhos e as mãos do
mancebo se elevaram ao céu em um gesto sublime de gratidão e de crença
fervorosa. Depois a cabeça inclinou-se, a vista fitou-se no chão, os
braços descaíram e duas lagrimas de dor e de alegria saltaram do
coração, e correram vagarosas pelas faces.

O bispo contemplava o rosto do amante de Leonor de Azevedo, e traduzia
com a perspicacia dos annos e da reflexão os signaes fugitivos da lucta
das paixões.

Por fim venceu a razão. Manuel Coutinho, como se quebrasse de repente a
prisão, que lhe paralyzava as faculdades, serenado o semblante, acabou
de exhalar em um suspiro a maior oppressão, que lhe confrangia o peito.

--Fui temerario, senhor bispo. Falei mal de Deus e dos homens! Cegou-me
o orgulho, e deixei-me arrastar pelas loucuras da tristeza. Desesperei
da Providencia no momento em que ella nos accudia!...

--Só Deus é grande, filho! O que somos, e o que podem os nossos juizos
falliveis em presença da sabedoria eterna?! Arrepende-se? É o essencial.
Vamos ao que importa. Já viu D. Leonor?...

--Não! Faltou-me o valor. O que havia de dizer áquella infeliz, ferida
de tantos golpes a um tempo?... A imagem do patibulo de seu pae, visão
lugubre e incessante, segue-a por toda a parte. Nos seus olhos leio o
desespero e a morte. Amo-a, senhor bispo, amo-a desde a infancia, como
não amei minha mãe, como não estremeço meus irmãos, como não adoro... ia
soltar uma blasphemia!... Enlaçadas desde a meninice pela mesma ternura
nossas duas almas ha muito que não fazem senão uma. O que ella sente e
chora, as suas lagrimas de sangue, caem-me todas, ardentes como fogo,
aqui, dentro do peito, e escaldam-m'o. O véu branco da noiva será em
breve o negro fumo da orphã, e viuva sem chegar a ser esposa, sei,
adivinho, que um claustro começará a abrir-lhe a sepultura, aonde ella,
aonde nós havemos de descançar ambos!... Não sem eu me vingar primeiro!

--Manuel Coutinho, deixe a Deus o cuidado de punir! Socegue! A voz da
liberdade, a voz da patria chamam por nós. Seja homem! Seja soldado! Tem
uma espada, não faça d'ella um punhal, arma de traidores!... Leonor está
mais tranquilla, mais resignada. Vi-a hoje, e já falámos a seu
respeito...

--E ella?!... Disse-lhe?! Espera?!...

--Disse-me tudo e espera. Paulo de Azevedo não morreu, e havemos de
salval-o. Tenha mais fé. Não atormente com os delirios da sua paixão a
existencia propria, e aquella alma sensivel e melindrosa, que treme que
uma imprudencia, venha abismar no mesmo naufragio os dois amores da sua
vida!... Se não fosse o seu genio arrebatado confiava-lhe um segredo,
que Leonor se não atreveu nunca a dizer-lhe, porque receia os impetos da
sua cholera, mas que havia por outro lado de aplacar-lhe a afflicção...

--Diga-me tudo, senhor bispo. Prometto, juro vencer o meu genio.

--Veja lá! Dá-me a sua palavra de cavalheiro de fazer o que eu lhe
aconselhar depois?...

--Dou. O segredo?...

--A vida de Paulo de Azevedo não corre por ora risco. É o penhor com que
Lagarde tenta extorquir a D. Leonor uma promessa de casamento...

--Oh o infame!... E eu aqui de braços cruzados!...

--Se me não me escuta, calo-me. Lembre-se da sua promessa.

--Sou mudo. Sou uma estatua.

--Bom! Saiba, pois, que o intendente da policia imaginou enriquecer um
sobrinho arruinado, dotando-o com os bens da filha de Paulo de Azevedo.
Pediu-lhe a mão em Mafra ha mezes, foi repellido, e vingou-se
perseguindo o cavalheiro e sua filha...

--Assim a causa de todas as desgraças sou eu!?... atalhou o mancebo
impetuoso. Leonor e seu pae padecem por amor de mim, e no meio de seus
prantos e do lucto da sua alma aquelle anjo nem uma queixa soltou ainda
contra o algoz da sua vida! Porque sou eu que a torno infeliz e
inconsolavel!... Hei de mostrar-me digno do sacrificio! Hei de...

--Comece por se mostrar digno das minhas confidencias, escutando-as.
Observou o bispo com um sorriso. Lagarde ameaça Paulo de Azevedo,
tem-lhe a espada suspensa de um fio sobre a cabeça para vencer a filha;
mas no fim é tão interessado como nós em conservar vivo o unico fiador
de suas esperanças!... O conselho de guerra não se reune, e mesmo que
chegue a ser convocado, a sentença não passa do papel.

--E Leonor?!...

--Altiva e varonil redobra as resistencias. Mesmo ao pé do cadafalso de
seu pae prefere morrer com elle, creio, a comprar-lhe o perdão por um
preço vil...

--Bem sei! O seu coração envergonha o de muitos homens!... Como se chama
o sobrinho de Lagarde, esse noivo feito á força, cujo papel, tão nobre
(!) entra como parte principal na tragedia de nossas desventuras?...
accrescentou Manuel Coutinho em voz lenta e sombria, a que um toque de
ironia cruenta avivava a expressão.

--Porque o pergunta?

--Para ajustar no mesmo dia todas as minhas contas.

--Já se esqueceu da sua promessa?

--Não! Mas!...

--Quando for tempo de o desligar d'ella sem perigo seu e nosso... então
falarei. Agora não. Sabe que ámanhã, depois da procissão do Corpo de
Deus, se esperam grandes novidades?

--Aonde?... Se soubesse a minha impaciencia?!...

--Em Lisboa. Aonde queria que fosse?...

--E contam commigo?... Qual é o posto que hei de occupar?...
Asseguro-lhe que só por cima do meu cadaver...

--Sei muito bem. Guarde para si a noticia, vá ver Leonor, demore-se
pouco, porque ella espera uma visita, ou antes duas...

--Visitas!... De quem?...

--Segredo de estado. Depois saberá...

--Porém!...

--Não insista. Se podesse dizer-lh'o, cuida que me calava? A proposito!
Se por acaso estiver lá em cima, quando elles... digo, quando as visitas
chegarem, jura pela sua honra obedecer em tudo a Leonor, e voltar aqui
pela escada do meu gabinete?...

--Mas!... Tantas precauções fazem-me suppor!...

--Supponha o que quizer. Jura?...

--A minha confiança na sua virtude é tal, que de olhos fechados me
entrego em suas mãos. Juro!

--Não ha de arrepender-se. Sem isso não o deixava subir...

--Mas padre, mas senhor bispo! Essas visitas são então de inimigos?...

--Talvez! E então?! Cobre-os, quem quer que sejam, o tecto d'esta casa,
recebo-as como hospedes, é quanto basta, julgo!...

--Oh! Dava metade da minha vida por adivinhar...

--O caso não merece o sacrificio!... Deixe instruir o processo, deixe
informar os juizes, e quando lhe chegar a sua vez... nós o chamaremos.

--Obrigado! Como instrumento cego?!...

--Não. Como um coração generoso, como um amigo seguro, porém...
perigoso. Estamos perdendo tempo! Leonor espera-o. Nem uma palavra do
que se conversou aqui, e sobre tudo recorde-se do que jurou...

--Hei de cumprir a minha palavra como homem de honra, mas depois, sr.
bispo!...

--Depois... O que Deus quizer! Dá o mundo tantas voltas em poucas horas,
Manuel Coutinho, que nos deitâmos rapazes, e ás vezes accordamos velhos.
Deixe andar os homens e as cousas. Creia no tempo. É grande medico.
Adeus! Vou tractar de uma doença, que dá maior cuidado... Portugal está
enfermo e não póde esperar.

E despedindo-o com um sorriso e um aceno de mão cheio de bondade, o
velho prelado entrou para um aposento terreo, cujas portas de vidraças
abriam sobre o jardim, em quanto o mancebo voltou em busca da escada de
pedra, que subia para as salas do primeiro andar.




XII

Arcades ambo!


--Está certo do que affirma? Veja lá!... A policia não gosta de
representar papeis tristes, e um erro nas circumstancias actuaes póde
ter consequencias... Repita! Viu os homens? Sabe o seu intento?...

--Vi, sim senhor! Largava a falua quando eu cheguei, e por um triz me
não apanham!... Sempre curti um medo! A gente não ganha para sustos...

--Está bom! E como soube que vinham para a revolução, que os inimigos de
sua magestade o imperador e rei tramaram para ámanhã durante a procissão
do corpo de Deus? Olhe bem! Não se allucine...

--Não ha engano, não senhor. Aqui trago quem ouviu tudo. Gaspar,
chega-te! S. ex.^a dá licença. Dize para ahi o que saccaste do bucho ao
alarve do Paulo Penedo, e o que ouviste na Ponte da Asseca.

--Ah! Este homem ouviu?!... Bem! Então que fale.

O dialogo, que estamos escutando, tinha-se travado, como o leitor já
percebeu de certo, entre o intendente Lagarde, o sargento Cabrinha, e o
seu assessor Gaspar Preto.

Os honrados malsins, farejando a denuncia lucrativa, corriam de Villa
Franca, aonde se haviam transportado a cavallo, e traziam nos alforges
nada menos do que uma boa conspiração para attrahir sobre si a chuva de
ouro, com que o ministro francez costumava recompensar os serviços
relevantes dos seus agentes.

Ainda que o sargento desempenhasse o papel principal, manda a verdade
que se diga, que a gloria do descobrimento pertencia de direito ás
longas e afiadas orelhas do seu digno assessor. Fôra o _Sapo_, apezar de
meio homiziado depois da prisão de Paulo de Azevedo, devida, como
sabemos, á sua traiçoeira actividade, quem, espreitando os passos do
Antonio da Cruz e do João da Ventosa, e as idas e voltas nocturnas dos
embuçados, que frequentavam a casa arruinada da Ponte da Asseca,
principiára a desconfiar de que as ruidosas cavalhadas das almas do
outro mundo nas salas desertas do palacio encobriam planos politicos.

Para melhor se certificar, provou Gaspar, que não roubára a alcunha por
que era conhecido.

Cozeu-se, como o _Sapo_, com as pedras caídas, que do lado da porta do
João da Ventosa pegavam com o tapume, por onde elle introduzia as
visitas, segundo vimos atraz, nos quartos do primeiro andar, penou frios
e fomes, tiritou de mêdo mais de cem vezes, mas por fim conseguiu o seu
fim.

Seis dias antes da festa do Corpo de Deus, ás onze horas da noite, por
um luar esplendido, colheu em flagrante tres dos fantasmas, que tanto
desejava avistar, e teve a rara felicidade de os conhecer a todos.

Viu-os entrar. Ficou firme no seu posto. A divindade protectora dos
mexericos segredava-lhe que se os olhos tinham alcançado muito, os
ouvidos ainda podiam obter mais. A sua paciencia merecia premio, e o
demonio, cujo era, não lh'o negou.

Quando se ía já sentindo quasi inteiricado de jazer enroscado, como a
serpente, os conspiradores saíram. Principiava a aclarar a madrugada. Um
d'elles, o capitão de milicias de Rio Maior, dotado de uma voz de baixo
profundo, voltando-se para os outros, disse-lhes:

--Façam-me uma fogueira bem vistosa lá pelos sitios de Leiria, e
assem-me n'ella esses hereges e jacobinos, que os de aqui ficam por
minha conta! Não havemos de ser menos que os de Bragança e Villa Real!
Viva o principe regente, nosso senhor!

Os poderes do orgão vocal do herculeo capitão eram tão extensos, que
este desafogo innocente do seu patriotismo seria assaz perigoso, se a
solidão e a noite o não cubrissem. Entretanto os amigos, menos
intrepidos, recommendaram-lhe prudencia, e o gigante, docil como uma
creança, submetteu-se, encolhendo os hombros, a estes conselhos timidos.
O morgado de Penin e outro cavalheiro apartaram-se então um pouco. Quiz
o acaso que fosse para o lado, justamente, em que o virtuoso Gaspar se
occultava; e o terror do malsim subiu tal ponto, que esteve um instante
para o trahir!

Vendo de repente o Antonio da Cruz, o João da Ventosa, e o Manuel da
Aramanha, o resurgido, tão proximos do seu covil, que bastaria um
d'elles extender o braço para o agarrar, não foi senhor de si. Vinham
atraz dos personagens principaes, e tudo inculcava que não vinham por
curiosos. O _Sapo_, frio de neve, e todo um calafrio de medo,
ennovellou-se n'uma bola para occupar menos espaço, e fez a Nossa
Senhora da Saude a promessa solemne de uma missa e de uma perna de cêra
se permittisse, que nenhum dos cinco désse com elle alapado n'aquella
toca, seguro de que, se escapasse por milagre ao alentado varapau do
ex-assassinado fazendeiro, a bala da espingarda, que o moleiro trazia ao
hombro, não o erraria de certo em nenhum caso.

Os conspiradores estavam longe de se supporem espiados, e traziam outros
cuidados.

Voltando-se para Antonio da Cruz, o morgado disse-lhe:

--Já sabes! No dia de Corpo de Deus has-de estar em Lisboa. És lá
preciso!

--Se meu amo mandar!

--De certo. Mas sei que manda. O Paulo Penedo não tarda com as ordens...
E você, sôr João da Ventosa, deixa-se ficar por cá, ou acompanha tambem
o Antonio á côrte?

--Eu, sôr morgado, lá por ir, ia; mas assim sem saber o que a gente lá
vae fazer?!...

--Ora! Vae dar um passeio, vêr a procissão, que se despovoam aldêas e
logares para accudir a ella... e depois!... Adivinha-me este dedo, que o
seu cajado talvez não fique por lá parado!... Gosta dos francezes?...

--Como o diabo da cruz, senhor! Pelo amor que lhes eu tenho... e o bem
que me fizeram!...

--Pois vá, homem, que póde ser que não perca o seu tempo. Ás vezes
d'onde menos se espreita sae coelho...

--V. s.^a que diz isso!... Está bom. Não é preciso mais. Senhor mandar,
preto obedecer!... E tu, Antonio Simões, estás ahi sem atar nem desatar?
Porque não vens com o Antonio e commigo á festa? Tens medo dos
francezes, homem?

--Salva tal logar, sôr compadre! Mas que quer você que eu vá fazer á
côrte pregado no meio das ruas como uma estaca? Com mil cobras? Se por
lá bispasse o alma ruin do sargento, ou aquelle excommungado _Sapo_,
ainda, ainda; mas qual! sumiu-se a terra com elles!...

--Qual sumiu! Aposto um almude dobrado contra duas canadas singelas em
como as duas osgas estão pegadas em alguma parede de Lisboa...

--Veja lá, sôr compadre! Se tem palpite n'isso é outra cousa: pernas a
caminho. N'um sopro deito o albardão á égua... Não morro quieto se não
racho de meio a meio aquelles dois patifes.

--O _Sapo_ fica por minha conta, atalhou o moleiro. Prometti-lh'o e hei
de cumprir. Você, sôr João, que me diz da figueira de José Lopes, alli
em cima, no alto do logar?

--Ora essa! Que é boa arvore. Porque?...

--Pois juro-lhe que dá figos de enforcado para o anno. Antonio me não
chame eu se não pendurar do pescoço em um dos ramos o judas do Gaspar
Preto antes do dia do natal!...

--Você sempre tem cousas, sôr Antonio!

--Vá com o que lhe digo. De mais, pouco ha de viver quem o não vir.

--Então, rapazes? atalhou o morgado, que estivera conversando a meia voz
durante o colloquio dos tres. Quem vae a Lisboa?...

--Saberá v. s.^a que nós todos tres!

--Ora assim é que é. Gosto de os vêr de feição. Bebam por lá um copo, ou
dois, de vinho á minha saude, e outro á do principe regente, nosso
senhor, o qual, querendo Deus, muito cedo teremos n'estes reinos para
gloria da patria e da santa religião!...

E o morgado, assim como os ouvintes, desbarretaram-se com toda a
reverencia como bons catholicos e vassallos fieis e respeitosos.

--Adeus, Antonio, proseguiu. Recados a teu amo! Diz-lhe que nós cá
estamos, e que o que fêr soará. Sôr João! Volte depressa. A caldeira
está ao lume, ha de ferver, e póde ser necessaria a casa...

--Quando v. s.^a mandar, sôr morgado.

--Olhe! Se no meio da procissão, ou depois, houver algum barulho, não me
metta as mãos nas algibeiras. Dê-lhes com alma, desanque-me os jacobinos
moa-m'os como farinha, hein?...

--Vá v. s.^a descançado.

--Vou! Vou! Vocês não deixam mal o Ribatejo. Até á volta. São horas.

Os tres de fóra foram buscar os cavallos, e d'ahi a pouco desappareciam
a galope pela Ponte da Asseca. O lavrador e os seus amigos recolheram-se
tambem logo. D'ahi a instantes resonavam a somno solto.

Quem não tinha vontade de dormir era o _Sapo_, o qual, arrastando-se do
esconderijo, fulo de terror, respirava a custo, estirando os braços,
mais morto do que vivo.

A ameaça do Antonio da Cruz soava-lhe nos ouvidos como um dobre funebre,
e por vezes sentia já em imaginação os gorgomillos tão apertados como se
lh'os estreitasse a promettida e fatal corda!

A reputação merecida do moleiro de não quebrar palavra dada fazia-o de
mil côres, e a voz da consciencia, que só o susto tinha o condão de
accordar de véras, advertia-lhe, que provocára, não uma, porém cem
vezes, o castigo.

Não vendêra elle ao sargento o segredo do asylo em que se homiziava
Paulo de Azevedo, abusando da hospitalidade de Antonio da Cruz, o qual,
tendo-o poupado, o julgára grato? Não fôra causa da prisão do Cavalheiro
de Mafra, da magoa de Leonor, e do desespero de Manuel Coutinho? Agora
mesmo, não colhêra um segredo, que podia custar a vida e a liberdade a
tantas pessoas?

Gaspar era logico. Convencido de que a sentença proferida era
irrevogavel, tractou de se eximir aos seus rigores pelos meios usuaes,
isto é, accumulando novas traições. Coxeando e rastejando partiu para a
villa, aonde amanheceu á porta do sargento, cuja cholera exacerbada pela
certeza de ter servido de alvo á irrisão na famosa noite dos fantasmas,
soube artificiosamente exaltar. O _Sapo_ acabou de o petrificar,
narrando-lhe as ameaças do Antonio Simões da Aramanha, e o plano,
interceptado por elle, de grandes tumultos em Lisboa durante, ou depois
da procissão do Corpo de Deus.

A noticia valia o seu pezo em ouro, e Cabrinha decidiu-se a ser em
pessoa o portador d'ella.

A chegada de Paulo Penedo, emissario de Manuel Coutinho para chamar o
moleiro em seu nome á capital, confirmou as informações do agente.
Gaspar, a troco de pão, queijo, vinho, arrancou sem difficuldade ao
camponez boçal quanto elle vira e ouvira do patrão em Lisboa.
Separou-se, deixando-o convencido de que o amante de Leonor de Azevedo
não tinha mais leal amigo.

Depois d'esta ultima proeza, os dois malsins começaram a jornada até
Villa Franca, aonde haviam de embarcar, o sargento ardendo em
impaciencia de cingir na fronte os louros, e de sepultar no bolso as
peças de 7$500, que Lagarde não cisava aos que o serviam zelosamente: o
_Sapo_, cujas vigilias eram cada noite mais tormentosas, acompanhando o
patrono a Lisboa, primeiro para se afastar o mais possivel da figueira
do alto do Valle, depois, para ter o gosto de vêr mettidos na enxovia do
Limoeiro, graças á sua honrada lingua, o Antonio da Cruz, o João da
Ventosa, e o Antonio Simões.

Já os ouvimos confessar ao intendente da policia, que por um instante
não caíram na bôcca do lobo em Villa Franca, e encontrando-os no
gabinete do ministro, no exercicio de suas funcções, convem notarmos,
que tinham sido activos no desempenho da sua missão, como homens fieis
aos interesses proprios, e devotos da causa que abraçavam.

Lagarde escutára com attenção o depoimento lucido e conciso, que o
_Sapo_, sem trepidar, lhe recitou, como licção aprendida de cór,
admirando a prodigalidade, com que a natureza favorecêra este ente quasi
disforme e rachitico, que, encarado á primeira vista, não promettia,
senão fraqueza e estulticia.

Depois de tomar algumas notas, consultando um, ou dois papeis, e
tornando-os a encerrar nas gavetas do bofete, o intendente conservou-se
silencioso por momentos, scismando profundamente.

--A conspiração existe, dizia elle comsigo. Aqui estão as provas d'ella;
mas quem ha de persuadir o duque, e vencer o seu amor proprio? A leitura
d'aquelle maldito plano atrazou-nos!... Não importa. Deixal-os rir! A
mim compete-me velar para que riam sem perigo.

Virando-se depois para os agentes, que aguardavam calados as suas
ordens, acrescentou:

--Sargento! Estamos na pista de um trama complicado. Fique em Lisboa com
este homem, e procure hoje de tarde o meu secretario Loisy. Elle lhe
dirá o que ha de fazer.

Estas palavras, e o gesto do ministro avisaram os dois, de que a
audiencia estava terminada. Saíram logo, mas ainda Lagarde não tinha
tido tempo de percorrer com os olhos um papel, que acabavam de lhe
entregar, abriu-se uma porta particular, e entrou no escriptorio um
mancebo, de rosto jovial, vinte oito annos de edade, e figura esbelta,
realçada pelo uniforme de official de cavallaria, trajado com garbo. Era
seu sobrinho Armand de Aubry.




XIII

Dois parentes


O intendente accolheu o recem-chegado com um sorriso, e extendeu-lhe a
mão com amizade. Aubry apertou-lh'a sem ceremonia, encarou-o com ar
malicioso por momentos, e disparou-lhe depois na cara a mais longa e
estrepitosa risada, que de certo tinham ouvido aquellas paredes, desde
que a Santa Inquisição reinava dentro d'ellas.

--Ah! Ah! exclamou fazendo esforços em vão para se reprimir. Que duas
figuras unicas, que duas corujas agoureiras acabo de encontrar no
corredor!... Pelo que vejo a procissão de ámanhã leva anjos, demonios,
serpentes, e até estafermos do mais curioso feitio. Estes dois são
magnificos. Sobre tudo um... o mais baixo. É admiravel!

--Porque? atalhou Lagarde.

--Porque, meu tio? A pergunta é rara! Aquella cabeça de anão, aquella
cara de papel, e os saltos de rã da perna coxa promettem á festa um
palhaço soberbo. Por quanto se aluga aquelle senhor? Juro-lhe que vale
quanto pesa... em cobre. Dou-lhe os parabens! Foi um achado. Posso saber
o que elle custa á policia de sua magestade o imperador e rei?!...

E o official dizendo isto ria como um louco, afagando o bigode louro, e
saccudindo o pó das botas de montar com a ponta do junco flexivel, que
trazia na mão.

--Não custa barato, Armand! redarguiu o intendente, sorrindo-se tambem.
Aquelle anão, assim mesmo contrafeito e ridiculo como te pareceu...

--Esse _pareceu_ é delicioso, meu tio! Continue. Sou todo ouvidos.

--Vale mais do que muitos homens guapos e bem postos.

--Quem tal diria! Então é um diamante bruto?...

--Talvez. Dentro em pouco vel-o-has chefe...

--Chefe? Muito bem. E de que tenciona invental-o chefe? Acaso a policia
conta distraír os portuguezes de suas saudades, armando tablados ao ar,
e escripturando polichinellos?

--Não! redarguiu Lagarde um pouco enfadado dos motejos do sobrinho. A
policia aspira a funcções mais modestas. Lisboa, esta cidade immunda
como as do Oriente, começa já a ser outra cousa... As ruas...

--Tá! Tá! Meu tio. Esse elogio dos serviços da policia, na sua bôcca é
capaz de abrandar as pedras... das mesmas ruas. A proposito!
Denuncio-lhe os cães vadios. Resistem ás ordens como janizaros. Hontem á
meia noite estivemos em perigo de sermos devorados, eu, e o meu cavallo!
Que morte para um official do exercito imperial!... Diga-me: o anão, de
que tractâmos, será nomeado executor da alta justiça contra as matilhas
famintas? A cara do personagem é de um verdadeiro Herodes, e não
desmente o officio. Puah! O maldito sempre deixou aqui um cheiro
patibular!...

--Armand! Não te cansaste ainda?!...

--Oh! Cuida meu tio, que os assumptos recreativos se encontram a cada
canto n'esta boa terra? O que admiro mais é a sua longanimidade. Parece
incrivel! Aturar fechado n'este gabinete dias, semanas, e mezes, entre
cachos de malsins e grinaldas de larapios aposentados! Santo Deus! Que
emanações asquerosas. É de engulhar até o estomago a um tubarão!...

--Ainda! Armand, o que sinto mais, do que a triste sociedade, que sou
obrigado a admittir...

--Diga tristissima, meu tio, que não diz senão a verdade. Os melhores
dir-se-íam desenterrados das enxovias, ou das galés...

--Então! O que deploro, mais do que isso, é essa tua leviandade
incuravel. O homem, que estás escarnecendo, prestou-nos a ambos um
serviço relevante...

--Não sabia. Pelo que observo o precioso aborto accumula as funcções de
palhaço ás de nigromante? Faz magia branca nas ferias. Excellente!

--Ah, Aubry! Quando te verei um momento serio e preoccupado dos deveres
da tua posição?

--Quando uma bala me varar o peito, ou a cabeça. Se não levasse a vida a
rir e a folgar, entre dois amores, um que hoje foge para volver ámanhã,
outro que arrebata e embriaga; o amor dos sentidos e o amor da gloria;
cuida que valia a pena de a arrastar de desengano em desengano, de revez
em revez até aos rheumatismos, e aos defluxos asthmaticos da velhice?
Por alma de meu pae! Nasci e hei de acabar com esta sina. Sou assim
feito. Não tem remedio! Mas apezar de rir muito, de chorar pouco, e de
preferir o lado comico ao aspecto lugubre da existencia, ajuntou,
tornando-se um tanto grave, creia que este coração, facil em se
alvoroçar com a promessa de uns bellos olhos pretos, azues, ou verdes, a
côr é indifferente uma vez que sejam formosos (!), é incapaz de trahir a
honra e a amizade, ou de se aviltar por nenhum preço...

--Bem sei. Por isso te estimo. Desejava-te só menos estouvado. Não póde
ser? accrescentou sorrindo-se involuntariamente do gesto negativo do
sobrinho. Paciencia! Escuta-me. Aquelle homem, que saiu d'aqui ha
pouco... Não rias! ao qual ignoro porque pozeram a alcunha de _Sapo_...

--Quem seria o philosopho que tão bem chrismou o reptil? Preciso
abraçal-o! O _Sapo_?! Mas é verdadeiramente um sapo o seu homem, meu
tio! Bom! Não se agaste. Já me calo. Passo a estar serio e aprumado como
uma estatua... Diga!

--Aquelle homem... foi quem descobriu o asylo de Paulo de Azevedo, e
entregou á policia a sorte do cavalheiro, do qual depende...

--Cuidei que lhe tinha escapado! interrompeu o mancebo. Pareceu-me
ouvir-lhe dizer que duas vezes...

--O tivemos nas mãos, e que nos escorregou por ellas, zombando de nossas
diligencias? É verdade. Não te enganaste. Mas á terceira fomos mais
felizes. Estava escondido aqui mesmo em Lisboa, e mandei-o prender... O
sargento Cabrinha, um dos meus agentes mais activos, e este _Sapo_, que
ainda promette ser melhor...

--Ah, meu tio, fale-me de tudo menos d'esse miseravel. Deploro vêl-o
convertido em Plutarco de similhante monstro...

--Pois sim. Mas attende-me. Lavemos agora um pouco a nossa roupa suja em
familia. O que te resta dos bens de tua casa?...

--Dividas e credores, replicou Armand com um sorriso stoico sublime.

--Nada mais?...

--Acha pouco? Dividas desassocegadas e credores inquietos!... Tenho com
que me entreter toda a minha vida.

--Um!... Pois de todas as propriedades, que herdaste, mobilias, ouro,
prata... não possues absolutamente nada?!...

--Nada!... O ouro a que posso chamar meu... e assim mesmo só por uma
audaciosa figura de rhetorica, porque o não paguei ainda... trago-o aos
hombros... são as dragonas!

--Ah! Então o naufragio foi completo!?... E com que contas para o
futuro?...

--Essa é boa! Conto com os meus vinte e oito annos, com esta figura
soffrivel, com a saude á prova de todas as fadigas, que devo á minha
compleição, e que tem sido o desespero dos medicos, e com o acaso de uma
bala, ou de uma proeza, que me eleve em patente, ou me deixe no campo
como muitas outras buxas de canhão, que valem menos do que eu.

--És louco!...

--Sou philosopho!

--Talvez! Mas dize! Eras filho unico. Teus paes deixaram-te...

--A sua benção e alguns punhados de escudos nas gavetas. Que quer, meu
tio?! As Aspasias de París, as Sylphides do corpo de baile, e as Musas
da opera vendem os sorrisos caros. Não imagina!... E sorriram tanto, e
com tal graça para mim, que as mãos abriram-se-me sem as sentir...
Quando caí na realidade... sabia de cór todas as piruetas e saltos de
Vestris, todos os passeios e casas de pasto de mais fama, e podia dar
licções de gosto e de ouvido a todas as platéas civilizadas... Mas nem
um real no bolso para afugentar o demonio! Encolhi os hombros e fiz-me
soldado.

--Bem sei. Porém a herança de tua tia?!...

--Santa e excellente velha!... Saltam-me as lagrimas dos olhos ainda
quando me recordo d'ella! A herança da boa tia veiu nas poucas horas de
melancholia, que tenho penado em minha vida.

--Isso não explica!... Lembro-me de ter ouvido falar em terras...

--Oh, de certo. Um bom par de geiras... Eram muito fracas. Vendi-as por
economia.

--Mattas e pinhaes!?...

--Magnificos!... Eram muito sombrios. Troquei-os a dinheiro para me não
entristecerem.

--Uma casa de residencia vasta com jardins?...

--A casa era humida e constipava-me. Os jardins precisavam de muito
amanho, e não apparecia jardineiro. Desfiz-me da casa e dos jardins.

--Uma mobilia antiga, mas rica?!

--Custava-me muito caro o transporte, cedi-a.

--Percebo!... N'esse caso estás?...

--Como diz o livro de Job: Nú saí do ventre de minha mãe, e despido de
bens da fortuna descerei á cova.

--Admiro o teu sangue frio. Não te parece já tempo de assentar, e de
mudares de vida...

--Conforme a mudança! Saltar da agua fria para caír no fogo, não sei se
é peior.

--Armand! É necessario cazares, e que o dote de tua mulher...

--Chegue para remendar a capa esburacada do mendigo?!

--Mais do que isso. É preciso que dê para uma capa nova.

--Não digo que não. Mudarei ainda de pelle. Estou prompto.

--Estimo. Falei-te na filha de Paulo de Azevedo...

--É moça?...

--Dezoito annos.

--Feia como uma herdeira, ou desastrada como as morgadas?...

--Não. Linda, airosa, e gentil como uma parisiense.

--Santo Deus!... E esse thesouro, essa fada, mimo de todas as
perfeições, guardou até hoje o seu coração livre á espera de um
perdulario, de um estouvado, que nunca viu?! Meu tio! Sabe que o unico
ridiculo, de que tenho medo, é da sorriada merecida de Jorge Dandin?...

--Repito. É uma menina séria, prendada, e espirituosa...

--Não duvido. Antes isso! A ingenuidade de Agnés sempre me assustou
muito! Essa menina... Mathilde?... Clara?...

--Leonor! Leonor de Azevedo...

--É verdade! Leonor!... Essa Leonor não estava justa a cazar com um
cavalheiro, tambem fidalgo, official, capitão, creio eu, do segundo
regimento do Porto, licenciado depois do tumulto das Caldas?... Se não
erro, elle chama-se?...

--Manuel Coutinho! accudiu o intendente. Não houve nunca promessa de
cazamento, enganas-te. As duas familias davam-se muito. O que poderia
existir era algum namorico, alguns requebros naturaes... innocentes...

--Sim! Sim! Muito innocentes. Sabe que nunca me resolvi a calçar sapatos
de defuncto, e que de sapatos de vivos gosto ainda menos?... Uma
pergunta, meu tio?... Hei de ser sempre noivo por procuração? Conta
cazar-me sem eu vêr nunca minha mulher... nem até no oratorio da
policia?...

Lagarde piscou os olhos, assoou-se com ruido, e coçou depois ao de leve
a ponta do nariz aquilino. Eram os gestos, que n'elle inculcavam
hesitação e perplexidade.

--Cazares sem vêr tua mulher?! exclamou rindo constrangido. Pelo amor de
Deus! Quem te metteu isso na cabeça?

--Cuidei! Como os principes cazam pelos retratos...

--Has de vêl-a, adoral-a, e agradecer-me de mãos postas a escolha.

--Estou certo, meu tio. Porém!... Como o meu voto me parece essencial
desejo dal-o em consciencia. Quando me apresenta a D. Leonor?...

--Um dia cêdo! Ámanhã talvez! redarguiu o intendente, agitando-se, e
estorcendo-se na cadeira, como se o assento fossem brazas.

--E porque não ha de ser hoje. Sou tão curioso!...

--Hoje! Sem a avisar! De mais tenho que despachar... Espero...

--O honrado sargento, ou o palhaço talvez?!... Vamos. Decida-se. Hoje,
ou nunca! _Alea jacta_! como nós diziamos no collegio. Os bons palpites
aproveitam-se. O matrimonio é um grilhão de ferro coberto de flôres...
Quem sabe se ámanhã eu terei medo da felicidade conjugal, e me
arrependerei? Seja docil! Deixe-me vêr hoje esse portento encoberto...

--Pois bem! Faça-se a vontade ao teimoso, contestou Lagarde, depois de
alguns instantes de reflexão, tirando o relogio do bolso, e
consultando-o. São dez horas. Ao meio dia aqui te espero.

--Viva o melhor dos tios! bradou Armand, rindo, e abraçando-o. Diz o
rifão: em quanto venta molha a véla! Quero remar com a maré. É verdade
que na Ponte da Asseca, em um casarão arruinado, apparecem aventesmas, e
que um troço de milicianos debandou por uma noite de tempestade, fugindo
de um fantasma?...

--Porque?

--Nunca tive a honra de conversar particularmente com nenhum espectro, e
desejava certas informações sobre o paraizo e sobre o purgatorio...

--Os fantasmas da Ponte da Asseca sabes o que são? accudiu o ministro
agastado. Um bando de conspiradores, que a policia vae desmascarar e
punir.

--Jesus, que ares tragicos, meu tio! Pela sua vida não represente de
tyranno. O papel cai-lhe mal. Dê-me essa missão a mim. Adoro as
aventuras, e Cazote é o meu idolo... Quem sabe se irei lá encontrar
algum diabo amoroso?

--Pois bem, irás! atalhou Lagarde sorrindo. Mas já te previno. O que lá
acharás são morgados lorpas, e rebeldes endurecidos. Agora adeus. Não te
esqueças. Ao meio dia em ponto!

--Ao meio dia em ponto! respondeu o sobrinho, saudando-o, e saindo.




XIV

Amor


Quando Manuel Coutinho assomou aos umbraes da porta do aposento, acabava
Leonor de lêr uma carta de seu pae, escripta com a firmeza de animo, que
tornava tão nobre o caracter do velho cavalheiro. Da sua prisão do
castello, com a morte eminente e a vingança de poderosos inimigos
suspensa sobre a cabeça, falava Paulo a sua filha com o mesmo socego,
com que o faria solto e desaffrontado. Nem uma queixa! Nem um indicio de
tristeza, ou desalento! Ausente em uma viagem longa, ou distraído em uma
partida de caça, não tractaria com indifferença mais soberana as
vigilias e amarguras do carcere.

Dizia-lhe que o seu processo, apressado a principio pelo odio, agora
coxeava, retido por mão occulta. Zombava da vigilancia, com que era
guardado, attribuindo-a á scena comica da sua evasão no palacio da Ponte
da Asseca.

Perguntava-lhe por Manuel Coutinho, e pedia-lhe que recommendasse ao
mancebo muita paciencia e conformidade, e resignação para atravessar os
dias dolorosos do captiveiro. Finalmente, lembrava-lhe em estylo risonho
alguns episodios de suas peregrinações pelas aldeias e casaes do
Ribatejo, assegurando-a, de que o descanso do corpo e a serenidade do
espirito iam obrando n'elle o prodigio de o transformarem, de seco e
agil, em um ente mais obeso, mais corpulento, e mais oleoso, do que fr.
Raymundo, frade notavel em Mafra pela estatura agigantada, pela
estupidez, e pela voracidade.

Aonde a sua ternura extremosa se denunciava, e a alma stoica deixava
perceber a ferida dos espinhos da saudade, era nos conselhos dados á
donzella, e nos gracejos constrangidos, com que a motejava ácerca da
alvura da tez e das rosas pallidas, tão festejadas no seu rosto,
deplorando que o sol, as geadas, e a vida alpestre de uns poucos de
mezes as tivessem queimado! Rogava-lhe ironicamente, que aprendesse de
alguma dama franceza o segredo d'aquella frescura artificiosa, que só
ellas sabiam fabricar para engano da edade, e conservação de successivas
gerações de adoradores.

Apezar do tom jovial, a carta era mais triste do que se respirasse
sincera melancholia. Leonor, avaliando o coração paterno pelo seu,
sentiu correrem-lhe as lagrimas e empanar-se-lhe a vista á proporção que
a ía lendo. Dotada, tambem, de indole varonil e soffredora adivinhava
facilmente as apprehensões e os tormentos, que aquellas lettras
escondiam, e quasi revia por baixo d'ellas as nodoas do pranto suffocado
por uma vontade forte.

A donzella recostava-se em uma marqueza de palhinha. O braço nù do
cotovello para baixo descansava em um velador entre duas jarras de
porcelana cheias de rozas e madresilvas. Duas portas de vidraças abertas
sobre o jardim, para onde se descia por escada de poucos degraus
deixavam entrar a luz em jorros. A sala era atapetada de esteira, e
estava ornada de alguns paineis de paizagem, pendentes das paredes
estucadas. Nos vãos das portas duas gaiolas douradas encerravam aves
africanas de vistosas plumagens. Em cima do marmore de um tremó, entre
flores, jazia esquecido o livro, que tivera na mão pouco antes de rasgar
anciosa o sobrescripto da carta, que viera interrompel-a. A um lado, no
bastidor, sobre a tela repregada notava-se ainda a agulha picando a
talagarça na petala delicada da ultima flor, cujo matiz deixára em meio.
Um vidro de peixes, de cores cambiantes, enfeitava a mesa fronteira ao
tremó e ao espelho.

--A filha de Paulo de Azevedo vestia de escuro sem affectação. Um
corpete, dos que então se chamavam _Mimosos_, de seda preta com
guarnições singelas, e cintura curtissima, desenhava mal a rara
elegancia d'aquelle corpo esbelto, moldado pelas graças. Uma fita larga,
com laço e pontas caidas, unia-o á saia de tafetá de cauda alta, orlada
com uma barra de requifes; mas a saia, segundo a moda do tempo, não era
menos desairosa do que o corpete; e n'esta nossa epocha de crinolines e
balões de verga de aço a magreza da roda, e a estreiteza do córte, que a
cingia aos membros quasi a ponto de accusar de mais as fórmas, faria
estalar de riso um conciliabulo de modistas e petimetres. Uma singela
cruz de coral, encastoada em ouro, e suspensa de um fio de aljofres
debruçava-se sobre o collo de neve, que um poeta sem exageração
denominaria verdadeiro collo de garça. O penteado, não menos singular
para os nossos dias, que o feitio do trajo, era todo de anneis
irregulares, acompanhando a testa em figura quasi de diadema, e
rematando no alto da cabeça por uma flor natural cravada nas tranças.
Sapatos de setim de entrada muito baixa, cobriam ou antes descobriam o
pé mais breve e mais lindo, que um estatuario poderia desejar para
modelo das extremidades de uma Hebé. A manga do corpete desnudava todo o
braço, que na pureza e correcção das linhas não desmentia a formosura do
semblante, o enlevo namorado dos olhos, e a expressão nobre, quasi
altiva, e apesar d'isso ingenua e suave da physionomia.

Vendo-a assim reclinada, com os atomos dourados do sol a brincar-lhe nos
cabellos, com a meiga pallidez, que um carmin fugaz e transparente
apenas córava por momentos, e com aquella melancholia tão feiticeira
pousada na vista, perdida com o pensamento bem longe de si e de tudo o
que a cercava, um pagão, se a contemplasse de repente, hesitaria entre
Juno e Diana, mas de certo não equivocaria sua belleza casta com os
encantos mais faceis da lasciva deusa de Paphos.

Manuel Coutinho, que a amava, que desde a infancia a vira crescer em
annos e attractivos, deteve-se suspenso de admiração, não se atrevendo a
despertal-a do enlevo com o ruido de seus passos. Mas o coração tem
sentidos mais subtis, que os ordinarios. Sem o vêr, sem ter percebido a
sua chegada, Leonor adivinhou que era elle, e a sua alma, fugindo á dor,
logo voou a encontral-o. Um suspiro á flor dos labios, um sorriso em que
a magoa e o jubilo se fundiam, duas lagrimas congeladas, tremendo nas
pestanas, disseram ao mancebo, que o sonho se quebrára, e que a amante,
baixando das illusões do devaneio, volvia ás realidades doces, mas bem
tristes, da existencia, e da paixão.

Leonor olhou para elle. N'este simples volver de olhos disse tudo,
calados os labios, mas cheia de luz a vista radiosa. Um rubor, que
esmorecia, e breve tornava a avivar-se, denunciou ao mesmo tempo o
sobresalto da alegria e as tremulas palpitações do peito. O mancebo, não
menos rendido, porém mais impetuoso, soltou a alma em um suspiro de
entranhavel affecto, prostrando-se-lhe aos pés e, adorando-a, quasi como
se adora a Deus. O que ambos falaram mudos n'este momento só póde
concebel-o quem já gosou tambem as delicias por vezes acres das
expansões do primeiro amor. Á donzella ria a esperança na bôcca e nas
pupillas. Ao amante, olvidados os zelos e amarguras das confidencias,
que acabára de escutar, tumultuavam no seio agitado as commoções, como
vão e vem as ondas inquietas espumando sobre a areia.

Por fim a mão estreita e melindrosa extendeu-se para o obrigar a
erguer-se. Um beijo ardente, seguido de mil osculos, n'essa mão que não
fugiu, affrontou de novas e vivas cores as faces da filha de Paulo de
Azevedo.

Desviando com um gracioso gesto de infinita brandura o amante ajoelhado,
e constrangendo-o a levantar-se com o imperio só dos olhos. Leonor
disse-lhe:

--Veiu tarde!... Não imagina o cuidado com que o esperava!...

--Leonor! Leonor! exclamou Manuel Coutinho incapaz de se vencer. Jure-me
que não dará nunca a outro esta mão, que tenho nas minhas, como penhor
da nossa ventura...

--Juramentos?! Já se não contenta com menos? Não crê em mim?!...

--Como em Deus!

--É de mais agora. Basta a fé... Teve noticias de meu pae? Será possivel
ao menos demorar a sentença? que o ameaça. Quando me lembro!... Manuel!
E nós aqui n'estes colloquios, quando elle.. geme desamparado, e se
prepara para a morte... que será tambem a minha, porque, se o perder,
sei que não posso, que não hei de sobreviver-lhe!...

--Não diga isso. Seu pae está mais perto da liberdade, do que da
morte...

--Quem lh'o disse? Elle escreveu-me. Aqui está a carta; mas só confia em
Deus! Ha alguma novidade? Veja que padeço ha tantos dias, chorando quasi
orphã aquella vida, que é tudo para mim... Diga! Devo ter ainda
esperança?...

--Deve!... O bispo, e sua irmã não lhe contaram nada?...

--Não! Mas o que ha? Ouvil-o-hei da sua bôcca... A boa nova será para
mim mais risonha!

--O Porto vae acclamar o principe regente. Sepulveda sublevou as
provincias do norte! O Alemtejo e o Algarve fazem e farão o mesmo!... Os
francezes acossados retiram sobre Lisboa de toda a parte!...

--Seja para sempre glorificado o vosso nome, meu Deus! exclamou a bella
enthusiasta, caindo de joelhos, e erguendo as mãos. Os ferros do
captiveiro são asperos e pesados e a minha alma, ferida e cega de
prantos, nem já a vista se atrevia a elevar ao ceu para vos pedir
justiça!... O dia da liberdade começa a raiar. Manuel! O seu posto não é
aqui, é ao lado de nossos irmãos que pelejam e morrem pela patria...

--Bem sei. Parto em dois dias. Vinha dizer-lh'o.

--Perdoe-me. Tenho pressa de vêr meu pae! Quero dever-lhe o seu
resgate... As damas antigamente mandavam os cavalleiros correr
aventuras, e não os premiavam senão coroados de louros. Quer ser meu
cavalleiro?... ajuntou com um sorriso e em um tom irresistivel.

--Não o sou já? Que votos póde fazer que eu não cumpra?

--Vá! A empreza é gloriosa. Ajudará a restaurar a patria, a restituir o
throno ao seu rei legitimo, e um pae extremoso aos braços da sua
filha!... Porque não sou homem?! Nunca invejei tanto uma espada!...

--Quem sabe, accudiu o mancebo sorrindo, se os dias das amazonas não
voltarão!...

--Porque o diz zombando?... Cuida que me faltaria o valor?... Estou
louca! Desculpe! De balde quero dissimular a minha fraqueza mais do que
posso. Elles são briosos; hão de combater aqui como combateram em toda a
parte... Quantas victimas! Quanto sangue! Manuel! Não seja temerario!
Quero tornar a vel-o!... Oh! se uma bala, se um golpe!...

--Deus será comnosco. Havemos de vencer. Anime-se!

--E eu?!... Ficarei só entre dois amores, que são toda a minha
esperança, entre duas saudades, que prendem toda a minha alma! Só! Não
sem outra companhia mais do que receios e cuidados, sem outras armas
senão as minhas lagrimas e orações!... Attentando, depois, na confissão
que acabava de soltar, vermelha de pejo como uma roza, cobriu o rosto, e
o pranto, rebentando, principiou a deslisar-se-lhe por entre os dedos. O
mancebo, exaltado, lançou-se outra vez a seus pés, e em vozes suffocadas
e incoherentes repetiu-lhe mil protestos. A final, Leonor levantou a
face orvalhada d'aquellas lagrimas tão suaves para ambos, e os bellos
olhos sorriram humidos, como o sol de abril por entre chuveiros finos.
Uma vista longa e apaixonada beijou com ineffavel delirio a vista do
amante, que se sentia desfallecer de jubilo, e que sem forças para
exprimir com palavras o alvorço, amiudava os osculos frementes nas mãos,
que tremiam, entregando-se a seus carinhos.

--Leonor! disse depois de alguns momentos. Agora póde vir a morte, póde
redobrar o infortunio, achar-me-hão forte! Sei que sou amado! Levo
commigo a confissão da sua ternura!...

--Ingrato! accudiu ella com meigo requebro. Era preciso que um instante
de dor, mais poderoso que o pejo, lhe dissesse o que devia ter
adivinhado!?... Não sabia que a ninguem, a mais ninguem... depois de meu
pae, tenho a affeição...

--Porque não diz o amor!... Teme ver-me feliz?!...

--Pois sim! O amor! redarguiu, alçando a fronte com nobre altivez, e
fitando no mancebo um olhar de indizivel e terno orgulho. Porque hei de
encobrir o que sinto; porque hei de negar o que não posso esconder?
Amo!... Desde a nossa infancia jurei que não teria outro esposo. Não é
crime escutar o coração! Amo-o, Manuel Coutinho!...

--Leonor!...

--Agora ouça! Antes de partir, volte aqui. Deante de Deus estamos
unidos. Quero dar-lhe uma prenda, que nos recorde a alegria triste
d'este dia!... A guerra vae a principiar. A sua ausencia póde ser
larga... Hei de supportal-a com toda a constancia, hei de ser digna
mulher de um soldado!... Volte! Lembre-se de que deixa n'esta solidão
metade da sua alma em troca da minha que leva toda... Quero vêl-o
victorioso, coberto de gloria, mas!... Que eu não fique viuva sem ser
esposa! Tem outra amante que vae servir, a patria! Sacrifique por
ella... tudo... tudo! menos a vida que me pertence! Adeus agora! Preciso
de socegar o animo para uma visita, que espero, e da qual depende talvez
a sorte de meu pae...

--Lagarde!?... atalhou Manuel Coutinho irado e sombrio de repente.
Porque se sujeita a ouvir esse monstro, auctor de nossas desgraças?

--Porque o meu dever o manda. Cuida que ha sacrificio, que me custe,
para salvar meu pae? Oxalá que viesse pedir-me todo o meu sangue em
preço do sangue d'elle!

--Sabe o que Lagarde quer exigir-lhe pela soltura do sr. Paulo de
Azevedo? perguntou o mancebo tremulo e pallido.

--Sei! contestou ella serenamente.

--E conta responder-lhe?!... interrompeu o amante ancioso.

--Não lhe disse que o amava? Duvida do meu coração, ou da minha fé!?
Pela vida de meu pae estou prompta a immolar tudo, menos... a honra do
seu nome, que é sagrada, e a minha alma, que é livre... O esposo, que
posso ter, já o escolhi.

--Obrigado, Leonor, pela doce promessa! Partirei tranquillo... Mas,
então porque escuta Lagarde? Com que espera movel-o?...

--É o meu segredo. Todos os sacrificios, menos um! Tudo menos vender-me,
ou aviltar-me!... Não ouviu rodar uma carruagem? É a d'elle! Sáia por
aquella porta... Não! Não! ajuntou, notando a agitação do amante. Não
lhe devo occultar nada! Entre para aquelle gabinete!... Mas jure-me, que
ouça o que ouvir, veja o que vir, mesmo que eu fosse ameaçada... o seu
braço, a sua voz, a sua presença, é como se estivessem ausentes...

--Juro! Mas se elle ousar!...

--Não ousa! De mais, sei, e posso defender-me! Creia em mim. Agora vá!
Um momento! Deixe-me colher forças para o combate!... E pousando-lhe na
fronte os labios de rosa afagou-lh'a com um beijo.

--Leonor!... exclamou elle ebrio de jubilo.

--Recompense-me! Seja homem! Hoje a nossa arma é a paciencia. Não o
sente? Sobe a escada... Vá! Nem um gesto, nem uma palavra! Responde pela
vida de meu pae!

E impellindo-o com maviosa brandura obrigou-o a entrar para o gabinete,
cuja porta de vidraças recatavam duas cortinas de seda despregadas quasi
até ao chão.

Depois, levando a mão ao peito, como se quizesse contel-o, alçou a vista
com expressão sublime e magoada, e aguardou que a porta se abrisse.

Não tardou. Lagarde d'ahi a um instante appareceu entre os umbraes.




XV

Cubiça e Nobreza


O intendente geral da policia era homem de sala. No tracto usual ninguem
o excedia em delicadeza.

Apenas apontou ao limiar, inclinando-se profundamente, adeantou-se com o
chapéu na mão. Com o sorriso estereotypado nos labios beijou a mão, que
Leonor de pé, séria, e grave, nem lhe estendeu, nem lhe recusou.

Seguiu-se uma pausa curta durante a qual a vista do ministro se cruzou
com a da donzella, frias e penetrantes ambas como duas espadas.

A um aceno cortez da filha de Paulo de Azevedo, offerecendo-lhe cadeira,
Lagarde escusou-se com o gesto, ajuntando logo risonho:

--Minha senhora... Venho como supplicante mover a piedade da belleza
deshumana, e os supplicantes não se assentam em presença dos juizes.

--Vem mover a minha piedade, ou offerecer-me a sua?! accudiu a donzella
em tom ironico. Não mudemos os papeis! A supplicante devo ser eu. O
vencedor não veiu aqui dictar-me as condições na idéa de me achar
resignada a escutal-as e a submetter-me?!... Não o incommoda ficar de
pé?...

--Não, minha senhora. Tenho de pedir licença para lhe apresentar outra
visita...

--Outra visita?!

--Meu sobrinho...

--Seu sobrinho?!...

--Era tempo, não lhe parece?...

--Eu!...

--Percebo! É-lhe indifferente? Consinta que junte duas palavras. Quer
que lhe fale como amigo?...

--Se póde!... Receio tanto o intendente geral da policia!...

--Não receie. Seja menos injusta. Desejo-lhe bem. Respeito a sua
firmeza, préso os seus sentimentos de filha extremosa, e sei que se
quizer ha de fazer a felicidade do marido que preferir.

--Tantos louvores, sr. Lagarde!... Ha quantos mezes me avalia assim?
accudiu Leonor sorrindo, mas tornando-se logo séria. Confesse que tenho
motivos fortes para suppor o contrario. Costuma tractar, como nos
tractou a nós, as pessoas que lhe merecem bom conceito?!...

--Ah, cruel!... volveu o ministro, córando um pouco, porém disfarçando a
torvação momentanea com o riso. As setas são agudas, e essa mão mimosa
aponta-as com uma certeza! Pois bem! Se fiz o mal, posso ao menos
dar-lhe remedio... O conselho de guerra ámanhã, ou depois, reune-se para
julgar seu pae... A sentença depende das provas, e as provas principaes
estão nas minhas mãos. De mais, Lunyt, o secretario de estado dos
negocios da guerra, é meu amigo intimo... Já vê! Se eu interceder e
ajudar... o sr. Paulo de Azevedo sae absolvido e solto...

--Bem o sei, redarguiu a donzella. Quererá o sr. Lagarde?...

--Duvída?! Porque tem tão pouca fé?...

--Porque não acredito facilmente em conversões repentinas. Perseguiu-nos
sem tregua, não socegou em quanto não teve meu pae em ferros, e hoje...
offerece-me ser o seu protector!?... Ha grande mysterio n'isto, não o
negue!... Temo que exija tanto da minha gratidão em premio, que eu não
deva acceitar!

--Nada escapa á sua agudeza! Quer saber tudo? Tem razão. Joguemos liso.
Posso interessar-me, e ser ouvido, falando a favor do pae da noiva de
Armand, de meu sobrinho; mas percebe muito bem, por maiores que fossem
os meus desejos de servir, que o empenho não teria a mesma força, se o
mettesse em beneficio de estranhos... de pessoas desaffectas ao governo
de sua magestade o imperador e rei. Agora permitte que meu sobrinho
entre? Espera as suas ordens n'aquella saleta...

--Pois sim. Uma palavra antes, sr. Lagarde. É a noiva, ou é o dote, o
que mais o tenta n'este negocio?!...

--Oh, minha senhora, que pergunta! Que offensa!... O dote?!... Não faz
mal, de certo o dote, a riqueza nunca se despreza; porém o thesouro
d'essa linda mão!...

--Supponha que... em troca da sua... como hei de dizer?

--Diga amisade, minha senhora, amisade sincera. Fale affoutamente!...

--Talvez seja muito. Benevolencia parece mais natural... Supponha, pois,
que em troca da sua benevolencia eu cedia o dote, e guardava a _linda_
mão... que é já de outro, e que em nenhum caso, aconteça o que
acontecer... darei a seu sobrinho?...

Leonor falava serena, e sorrindo-se, porém a voz e o tom affirmavam
assás, que a proposta era positiva, e que a resolução tomada seria
inabalavel. Lagarde franziu o sobrolho, raspou com o dedo a ponta do
nariz, cortejou-a em silencio, e reconcentrou-se por instantes como quem
reflectia.

--O dote sem a mão?! disse por fim lentamente, e esbrugando as palavras
como se as pezasse. Julga, minha senhora, que seria possivel?...

--Depende da minha vontade, e estou prompta.

--Não me entendeu! É uma esmola, que nos quer fazer a meu sobrinho e a
mim, ou uma peita, com que espera subornar o ministro?...

A interrogação parecia aspera; porém o olhar e a voz não podiam ser mais
amaveis. Leonor concebeu esperanças.

--Nem uma, nem outra cousa! É um testemunho de reconhecimento.
Protesto-lhe que dos tres a mais agradecida serei eu.

--Esquece-lhe, que o mundo dirá, que me vendi!... Não pode ser! Uma
esposa não se nota que seja generosa, porém uma estranha!... Minha
senhora, não decida nada sem o conhecer. Armand está aqui. É moço, é
gentil, é brioso. Merece-a. Sei que o accusam de ser um pouco estouvado
e perdulario. Não o defendo. São defeitos que o matrimonio corrigirá.
Veja-o!... Tome tempo!... Não me julgue tão mau como dizem os meus
inimigos. Tudo ha de compor-se.

--Deus permitta! replicou a filha de Paulo de Azevedo.

Mas a sua phisionomia espirituosa traduzia perfeitamente, sem os
disfarçar, a malicia e o despreso, com que assistia ao combate da avidez
e da cubiça na alma de Lagarde, impaciente de receber o que lhe
promettiam, mas preso ainda, apezar do cynismo, pelos escrupulos de um
resto de decoro e de respeito da sociedade. Talvez, que não o
embaraçasse pouco n'este conflicto a idéa, que formava do caracter do
sobrinho, e a apprehensão de que elle recusasse favores, cuja origem o
cobriria de opprobrio.

--Deus quer o nosso bem, e ha de permittir!... atalhou o magistrado,
todo brandura e delicadeza. Sobre tudo se fizermos da nossa parte...

--Da minha tudo, menos!...

--Não diga isso!... Esse _menos_ é que precisamos que desappareça. Meu
sobrinho é um cavalheiro...

--Affiança-m'o?... N'esse caso estou socegada. O _menos_ virá d'elle!...

Uma sombra escureceu o rosto do intendente. Ainda não lhe occorrêra esta
hypothese, e um estremecimento nervoso avisou-o, de que ella podia
converter-se em obstaculo insuperavel. Que certeza tinha de que Aubry
annuisse ao pacto infame, que procurava extorquir, fazendo da cabeça de
Paulo de Azevedo o penhor da docilidade de sua filha?

--Não imaginemos coisas tristes! redarguiu contrafeito. Seu pae,
lembre-se, está preso, e em vesperas de ser sentenciado...

--Meu pae, tornou a donzella altiva, saberá morrer, que lh'o ensinaram
os seus antepassados; o que nunca soube, nem ha de aprender na velhice,
é a vender o sangue da sua alma, a ventura e a dignidade de sua filha
para salvar a vida.

--N'esse caso!... Mas o pobre Armand!... Falámos tanto d'elle que por
fim esqueceu-nos! Como ha de estar impaciente. Tinha um desejo tão
ardente de vir aqui!... Ah, ri-se? Não acredita?!... Pois é verdade. Dá
licença?!...

E sem aguardar mesmo o aceno secco de cabeça, com que Leonor respondeu,
Lagarde, precipitando-se direito á porta, cortou com esta saída theatral
a conversação no ponto, em que ameaçava tornar-se tempestuosa. Em quanto
elle saia, a donzella enxugou á pressa duas lagrimas, reprimidas até
então pelo orgulho, e inclinou a fronte como se lhe faltasse o vigor
para supportar mais. Durou só um momento esta fraqueza. Um minuto depois
erguia a face, e tornava a obrigal-a a exprimir a frieza glacial do
papel forçado, que se via constrangida a representar. Um rapido volver
de olhos á porta de vidraças, detraz da qual Manuel Coutinho escutava, e
um suspiro ancioso foram os ultimos signaes do seu desalento.

O intendente entrava com o sobrinho.

Vendo-o, Leonor córou, e fez-se logo, pallida.

O mancebo, contemplando-a, sentiu-se vencido de repente, e conheceu que
aquella bella e doce imagem se lhe gravára profundamente no coração. A
tristeza resignada, que respiravam as feições da donzella, a sua vista
magoada, mas serena e quasi severa, e a casta e graciosa elegancia do
porte, acabaram de o render. O semblante, em que um momento antes sorria
zombeteira a mofa do conquistador, seguro do triumpho, desarmou-se
instantaneamente da expressão quasi insolente, e inclinando-se,
perturbado, e reverente, Armand saudou a filha de Paulo de Azevedo como
poderia saudar uma rainha no seu throno.

--Aqui vem a seus pés mais este captivo, minha senhora! exclamou o
intendente no estylo refinado e galanteador da côrte franceza.
Compadeça-se d'elle. Não consinta que suspire em vão!

Armand empallideceu. Não era com gracejos vulgares e pueris, que elle
agora desejava expressar á donzella a admiração. O official, de
ordinario tão solto e audacioso, já não achava phrases que pintassem o
estado da sua alma. Mas se os labios eram mudos, falavam os olhos, e o
proprio enleio significou uma homenagem á amante de Manuel Coutinho.

--Veja como a adora! proseguiu Lagarde, que, sem o querer, representava
o papel comico de um tutor de entremez. Que victoria, minha senhora! Fez
como Cesar, viu, e venceu!...

--Ah! interrompeu Leonor, deixando cair de alto sobre o tio e o sobrinho
uma vista ironica e aguda, que os gelou a ambos, porque o despreso e o
escarneo, que exprimia, traspassava.

--Meu tio!... murmurou Armand confuso, e recuando como ferido de uma
bala.

Houve uma breve pausa. O ministro estudava um exordio, que o salvasse
dos apuros do lance, em que se mettêra, amaldiçoando interiormente
Aubry, cuja falsa delicadeza começava a assustal-o. A filha de Paulo de
Azevedo, em pé, branca como uma estatua de alabastro, mas imperiosa,
amparava o corpo gentil com a mão no espaldar da cadeira e n'esta
posição, cheia de dignidade, aguardava silenciosamente, que um dos dois
ousasse dizer-lhe tudo.

O mancebo, que a interjeição de Leonor fizera córar até á raiz dos
cabellos, e que a vista de tantas graças e enlevos cada vez seduzia
mais, esperava ancioso, que o intendente, auctor do enredo, lhe rompesse
o caminho, temendo adivinhar na mudez e no ar soberano e offendido da
bella portugueza um trama, que a honra o obrigasse a desmentir.

--Armand, minha senhora, disse por fim Lagarde, que o amor proprio e a
cubiça forçavam a insistir, encarrega-me de lhe pedir, que se digne
receber os testemunhos de seu respeito e adoração.

--Sempre como procurador?!... atalhou ella com um sorriso ironico.

--Em pessoa, minha senhora, em pessoa!... Se não veiu mais cedo é que...

--Meu pae não estava ainda quasi no oratorio, e o sr. Lagarde temia que
a filha fosse menos docil?

--Oh!... bradou Armand, encarando o ministro severamente, e
adeantando-se impetuoso. Minha senhora, balbuciou depois, se aqui vim
foi attrahido por uma doce esperança, que vejo ter sido chimerica...
Posso saber o que meu tio quiz fazer, valendo-se do meu nome? Presinto
um segredo de violencia, talvez de iniquidade, mas, juro-lhe pela minha
honra, que estou innocente... que sou incapaz de acceitar a sua mão, que
me faria bem ditoso, agora o sinto, se livremente m'a não désse.
Peço-lhe a verdade! Ao menos não me condemne sem me ouvir!...

Lagarde não soube conter-se. Um raio, que lhe estalasse de repente sobre
a cabeça, não o teria desfigurado tanto. Empregado o ardil classico do
famoso quadro do sacrificio de Ephigenia, escondeu metade da cara no
lenço de assoar, pedindo a Deus que um alçapão propicio se lhe abrisse
debaixo dos pés para o sumir da vista irritada dos personagens, cujas
explicações previu, que iam desmascaral-o inteiramente.

Leonor, escutando as nobres palavras de Aubry, recompensou-as com um
olhar sympathico. O semblante perdeu a expressão severa, e a voz, meiga
e commovida, vibrou harmoniosa, como um canto suave, no peito agitado do
official francez.

--Agradecida! redarguiu offerecendo-lhe pela primeira vez a mão, que
elle beijou estremecendo. Não tenho que lhe perdoar... Agora vejo! O sr.
Lagarde... como hei de dizer toda a verdade!? O sr. Lagarde prendeu meu
pae, accusou-o, e tem suspensa sobre a sua vida a espada de um conselho
de guerra... Tinha-me falado ha mezes n'este casamento... A minha recusa
aggravou-o... e hoje, aqui mesmo, veiu propor-me salvar meu pae se eu
consentisse...

--Oh, meu tio! interrompeu o mancebo fulminando o intendente com os
olhos, e vermelho de colera e pejo. Não diga mais, minha senhora.
Adivinho a resposta. Regeitou!...

--Regeitei! continuou a donzella. A minha mão pertence a outro; o meu
amor não se vende.

--Nem o meu nome se infama! rugiu Aubry tremulo de raiva. Sr. Lagarde
agradeça ao sangue, que nos corre nas veias, a minha paciencia! Se não
fosse! E suffocado em ira apertou os punhos, e levou-os á fronte.
Lagrimas de indignação rebentaram de seus olhos seccos. O intendente
parecia petrificado.

--Offereci o dote sem a noiva; proseguiu Leonor. Era o meu resgate. Oh,
perdoe sr. Aubry, não o conhecia ainda. Depois que o ouço... não lhe
faria a affronta de suppor...

--Vê! accudiu o official, colhendo o ministro do braço, e saccudindo-o
com furia. Vê a que me expoz?!... Meu tio, tenho vergonha, queima-me os
labios dar-lhe este nome! Quem lhe deu o direito e a ousadia de arrastar
o meu, o nobre appellido de meus virtuosos paes pelo lodo de suas
torpezas?! Sou pobre, accrescentou voltando-se convulso para a filha de
Paulo de Azevedo, mas a pobreza supportada com valor, com alegria, como
eu a supportei sempre, não desdoura, engrandece. Hoje não possuo outras
riquezas, senão o orgulho da propria indigencia, que nunca ajoelhou, o
respeito do nome sem macula que herdei, e esta espada... que póde
abrir-me o caminho da gloria, ou o da sepultura!... Nunca me passou pela
idéa, que houvesse no mundo um coração tão vil e corroido, que se
atrevesse a cuspir no meu rosto e sobre as cinzas dos que mais amei a
injuria de me aviltar ausente a especulações infames!... Socegue, minha
senhora! Todos os thesouros da terra, depois d'isto, não me obrigavam a
acceitar a sua mão, ainda que m'a offerecesse.

--Louco! D. Quixote! Nescio!... rosnou Lagarde, ao qual a generosa
declaração do mancebo restituiu a voz, e redobrou a ira de se ver
descoberto e punido.

--Senhor Lagarde! disse Armand, cravando n'elle um olhar sombrio. Sei
que devo parecer-lhe nescio e estouvado. Glorio-me da censura. O que me
faria córar eternamente seria um elogio... depois do que acabo de ouvir.

--Senhor Aubry, observou Leonor, creia que nunca hei de esquecer a
nobreza do seu caracter. Aonde quer que a fortuna o leve... conte com a
minha amisade. Não sou ingrata. Se meu pae escapar...

--Ah! exclamou o mancebo. Esquecia-me! Senhor Lagarde! ajuntou, travando
rijo do braço ao ministro, que se ia desviando para se evadir
desapercebido. Uma palavra antes de sair! Os vinculos do nosso
parentesco estão rotos de hoje em deante. Quer que o mundo ignore os
motivos? Ponho uma condição a esse sacrificio da minha parte!...

--Condições?!... interrompeu o intendente, ameaçando o sobrinho e Leonor
com os olhos e com o gesto.

--Condições, sim! atalhou o mancebo friamente. Offereço-lhe o seu
perdão, e a minha indifferença...

--Offereces-me o teu perdão? É admiravel! Que me importa o teu
perdão?...

--Em troca de um acto de generosidade... forçada. Bem vê que lhe faço
justiça, e que digo _forçada_, proseguiu Aubry, contendo-o, e
dominando-o com a vista.

--Oh! exclamou Lagarde, rindo convulso e constrangido. A scena era para
se ver no theatro francez! Enlouqueceste Armand?!...

--Não! redarguiu Aubry, cerrando os dentes e crescendo para elle
indignado. Não enlouqueci! Mas ninguem até hoje me affrontou
impunemente. Em tres dias o pae d'esta senhora ha de estar absolvido e
solto...

--Ah! É de mais! accudiu o ministro affectando intrepidez, porém
assustado. E se não estiver? póde acontecer que as tuas ordens não sejam
cumpridas á risca. Se não estiver pódes dizer-me o que farás?
Accommettes a policia, fuzilas o conselho de guerra, ou assaltas os
moinhos de vento de Monsanto?!...

--Por Deus, senhor Lagarde, não tente a minha paciencia! bradou o
official empallidecendo de colera, em quanto as pupillas scintillantes
faiscavam mil ameaças. Se não estiver livre e absolvido... como lhe
mando!... ouve? juro-lhe pela santa memoria de minha mãe, á qual deve só
n'este momento a vida! que ámanhã o nome mais infame do imperio será o
seu!...

O intendente fez-se branco e recuou, lendo na vista inflammada do
sobrinho o odio e o despreso.

--Armand! exclamou balbuciando, renegas o teu sangue por estranhos?!
Unes-te aos inimigos da tua patria contra mim!?...

--Os inimigos combatem-se com as armas na mão, não se salteam nos
corredores da policia, pedindo-lhes a bolsa, ou a vida!... Fez-me córar
de vergonha! A maior injuria, que podia irrogar-me, era suppor alguem
que eu fosse cumplice de mercados tão vilões...

--És uma criança! Julgas o mundo pelos romances!...

--Basta! clamou o mancebo. Quer acaso convencer-me?! Se não obedecer ao
que lhe disse, que é o desaggravo da minha honra ultrajada, não se
admire do que eu fizer!...

--Do que fizeres! Ameaças?! Crês que te receio?... Em eu te desamparando
cuidas que vales alguma cousa?! rugiu o intendente exasperado.

--Hei de valer sempre o que vale um nome honrado! Não preciso de mais.
Repito. Tome bem sentido! Se o pae de D. Leonor não for solto em tres
dias...

--Não é. Que mais?! atalhou o ministro, cruzando os braços.

--O general Junot e o conselho do governo saberão como se enriquece o
intendente geral da policia! Vou revelar-lhes tudo. Então veremos.

--Tu! Meu sobrinho! exclamou Lagarde retrocedendo fulminado.

--Eu! Seu sobrinho por minha desgraça. Escolha agora.

Voltou-se depois para Leonor, que o dialogo tornára immovel, e
acrescentou:

--Minha senhora, adeus. Levo d'aqui a admiração da sua formosura, e a
magoa de ter sido causa innocente de suas lagrimas. Sei que me perdoa, e
que me fica estimando. Não peço mais. Socegue. Mesmo sem o dote, o
senhor Lagarde ha de servir seu pae... Elle sabe que eu costumo cumprir
a minha palavra. Vamos, ajuntou apontando a saída ao ministro com um
gesto imperioso. O luto entrou comnosco n'esta casa... É tempo de
deixarmos que a alegria e a tranquillidade voltem.

E quasi obrigando Lagarde a retirar-se, lançou sobre Leonor um olhar de
apaixonado enlevo, inclinou-se com um suspiro, e desappareceu.

--Manuel Coutinho, disse a donzella, erguendo a fronte de repente,
depois de alguns momentos de silencio, ouviu tudo?...

--Tudo, redarguiu elle, que não se demorou em vir lançar-se de novo a
seus pés.

--Então sabe a divida que hoje contrahi... que ambos contrahimos com
Armand de Aubry. Espero que a vida d'elle lhe seja tão sagrada...

--Como a de um irmão, respondeu Manuel. É uma grande alma.

--Alviçaras! Alviçaras! Senhora D. Leonor! Gritou a voz do bispo do lado
do jardim. Os inglezes estão a desembarcar. O nosso captiveiro pouco
durará se Deus quizer.

E o prelado entrou afadigado e tremulo de jubilo no aposento, aonde os
dois lhe abriam os braços não menos alvoroçados.


FIM DO PRIMEIRO VOLUME




NOTAS AO PRIMEIRO VOLUME


I

     O poder do ministro eclipsou-se com o ultimo suspiro do principe e,
     com elle expiraram as tradições viris e os commettimentos
     reformadores... pag. 24.

O governo do marquez de Pombal abrangeu todo o reinado de el rei D. José
I. Varios, e mais ou menos parciaes, foram os juizos dos contemporaneos
ácerca da administração severa, intolerante, e absoluta, mas a muitos
respeitos fecunda e reorganizadora de Sebastião José de Carvalho e
Mello. A obra, que emprehendeu, o rejuvenescimento da unidade monarchica
sustentado pelo apoio das classes medias devia encontrar, e de feito
encontrou, a opposição dos privilegios, dos abusos, das hypocrisias, e
do fanatismo. No paço a familia real, nos gremios puritanos da nobreza
os fidalgos mais poderosos, nas corporações religiosas a companhia de
Jesus, declararam guerra mortal e incessante ao ministro, aos seus
actos, e ás suas tendencias. Para a familia real Sebastião José de
Carvalho era quasi um inimigo da força e da consciencia do rei. Para a
nobreza arrogante e affeita a dominar o poder despotico de um ministro,
que não acurvava as vontades, ou as leis ao aceno imperioso dos eleitos
de sangue azul era um peão fidalgo, insolente e soberbo, que importava
derrubar e punir o mais depressa possivel. Finalmente, para os jesuitas,
cuja influencia dilatada nos ultimos annos de valimento durante o
reinado de D. João V, não consentia emulos, e muito menos peias, os
planos atrevidos do secretario d'Estado, representando ameaças e perigos
perennes para a prosperidade da sociedade, equivaliam a um cartel, que a
todo o transe convinha acceitar e concluir pela derrota do orgulhoso sob
pena de aplanar aos adversarios os caminhos do triumpho.

A firmeza do rei, o prestigio que a auctoridade monarchica possuia
ainda, e a intrepidez do ministro venceram estas resistencias
colligadas. Por que preço, porém? Que o digam os carceres e prisões
povoadas de suspeitos, réos apenas muitos d'elles de alguma opinião mais
livre. Que respondam os processos, as alçadas, os degredos, e os
supplicios, paginas luctuosas de um governo inexoravel e vingativo.
Copiando do cardeal de Richelieu até as perfidias cruentas, Pombal
assignalou com um rasto patibular as principaes estações da sua
administração. Por fim escorregou e caiu no sangue vertido muitas vezes
sem necessidade. Os horrores, que afogaram nos tratos e crueldades da
praça de Belem a famosa conspiração de 1758, a expulsão dos jesuitas; os
castigos atrozes contra os tumultuarios do Porto; a execução de João
Baptista-Pelle; o encarceramento prompto e perpetuo de quantos podia
receiar como rivaes, ou como censores pelo nome, pela integridade, pela
jerarchia, ou pela sciencia são nodoas indeleveis e accusadoras, que não
apagam o merecido elogio de outros actos, nem a recta e desassombrada
apreciação de suas reformas uteis e opportunas.

O marquez de Pombal tentava em parte o impossivel. Não admira, por isso,
que na queda arrastasse comsigo quasi tudo o que nos monumentos do seu
governo era fragil, instavel, e transitorio. A monarchia pura tinha
envelhecido muito e depressa para ser exequivel salval-a por meio da
transfusão de idéas e principios repugnantes á sua índole, contrarios
aos preconceitos e crenças do povo e das classes elevadas, e sem base
firme em que assentasse uma construcção duravel. Os tres reinados de D.
Affonso VI, D. Pedro II e D. João V adeantaram a tal ponto a caducidade,
que os milagres do genio, e os prodigios da vontade o mais que poderam
conseguir foi suspender a dissolução espaçando até ao fim do reinado
seguinte a revolução eminente. O ministro absoluto serviu-se em muitas
occasiões do poder como de uma arma cega e demolidora, e a ferro e fogo
imaginou transformar a sociedade decrepita e moribunda em uma sociedade
nova, e vigorosa e viril, filha legitima das grandes idéas philosophicas
fadadas á conquista do futuro. Suas leis e seus esforços provam a
elevação do pensamento e a intensidade dos bons desejos; mas do que elle
decretou ficou de pé sómente o corpo logo tornado cadaver. O espirito...
não eram aquelles ainda os dias da sua victoria nem os seus meios de
persuasão. Por isso com o ultimo suspiro de D. José I baqueou não só o
poder, mas subverteram-se em grande parte até as idéas representadas
pelo marquez de Pombal.


II

     Um gabinete quasi todo composto de aulicos, sujeito ao voto do
     confessor valido substituiu o mando odiado do marquez... pag. 24.

A rainha D. Maria I contava, quando subiu ao throno, quarenta e tres
annos de edade. Nascida e educada para reinar houve um momento, em que
seu pae, segundo se affirma, concebeu a idéa de proclamar a lei salica,
cingindo a corôa na fronte juvenil do principe D. José. Acclamada em 13
de maio de 1777 com D. Pedro III, esposo e tio, o primeiro acto do seu
governo foi um acto de clemencia. Mandou abrir as prisões e soltar os
presos d'Estado. Chamou dos longos desterros, em que jaziam, a muitos
varões respeitaveis pelos annos, pelo caracter, e pela jerarchia. Menos
feliz do que Richelieu e Colbert o marquez de Pombal assistiu vivo ás
exequias do seu poder e á demolição da sua obra.

Demittido dos principaes empregos exercidos por largo tempo, teve o
marquez por successores na presidencia do real erario o marquez de
Angeja, cuja lealdade D. José I attestára espontaneamente recolhendo-se
a sua casa na fatal noite de 3 de setembro de 1778; na secretaria
d'Estado dos negocios do reino, o visconde de Villa Nova da Cerveira; na
dos negocios estrangeiros e da guerra Ayres de Sá; e na repartição da
marinha e ultramar Martinho de Mello e Castro.

Estes cavalheiros não eram homens obscuros, ou ineptos, mas qualquer
d'elles estava longe da vigorosa iniciativa de Sebastião José de
Carvalho, e todos juntos confundiam e atavam, mais do que desenredavam e
esclareciam, as resoluções.

A consciencia timida da rainha, o genio apoucado de seu marido, as
insinuações hypocritas dos beatos, que se apoderaram logo de todas as
avenidas do paço e começaram a influir na direcção dos negocios, não
concorreram pouco para tornar o novo reinado uma quasi restauração de
tudo quanto o marquez de Pombal intentára destruir, ou modificar.

Combatida de escrupulos suggeridos por falsos devotos a rasão da rainha
principiou logo a vacillar, e á prudencia e caracter limpo de allusões
do seu confessor o arcebispo de Thessalonica, D. Fr. Ignacio de S.
Caetano, é que ella deveu não se afogar mais cedo nas trevas da
demencia.

O governo de D. Maria I não foi, comtudo, um governo absolutamente
estacionario e inimigo de reformas. Se o risco das grandes cousas
traçadas pelo marquez de Pombal assustava a capacidade menos elevada dos
ministros, que lhe succederam, todos elles ao menos manifestaram bons
desejos e rectas intenções, seguindo, ainda que muito de longe, o
espirito moderno, que alvorecia em França, e cujos clarões ainda se não
haviam convertido nos relampagos deslumbrantes, que precederam a
revolução de 1789; ou nas tempestades medonhas, que revelaram as
subversões de 1792 e 1793.

Modesto nas idéas e nos commettimentos, o gabinete da rainha creou a
junta do codigo civil, cujos trabalhos nunca viram a luz da estampa;
fundou a Academia Real das sciencias; estabeleceu os estudos de
primeiras lettras e humanidades nos claustros das corporações regulares;
instituiu a casa Pia para asylo das creanças orphãs; dotou as aulas de
Fortificação e a Academia de Marinha; e decretou novas estradas e meios
de as executar sob a direcção de José Diogo de Mascarenhas Netto.

A entrada de D. Rodrigo de Sousa Coutinho no ministerio em principios de
1797, por morte de Martinho de Mello, introduziu na administração um
elemento activo, emprehendedor, e dedicado por indole e tendencias a
arriscar planos mais vastos e mais altos muitas vezes, do que o
consentiam as circumstancias e as forças debilitadas da monarchia.


III

     Os tres sujeitos eram nada menos, do que tres delegados do
     _conselho conservador de Lisboa_, associação composta de patriotas
     dedicados á restauração da independencia, etc., pag. 88.

A existencia d'esta sociedade secreta politica não é uma invenção. Saiu
á luz dos prelos da imprensa regia um opusculo de 24 paginas de 8^o, com
a seguinte denominação _Catalogo por copia extrahido do original das
sessões e actas feitas pela sociedade de portuguezes, dirigida por um
conselho intitulado CONSELHO CONSERVADOR DE LISBOA, e installada n'esta
mesma cidade em 5 de fevereiro de 1808; tendo se unido os installadores
em 21 de janeiro do mesmo anno para tractar da restauração da patria_.

O conselho fundou-se em 5 de fevereiro de 1808 com seis socios que eram:
G... Matheus Augusto, José Maximo Pinto da Fonseca Rangel, José Carlos
de Figueiredo, Antonio Gonçalves Pereira, André da Ponte do Quental da
Camara; José Maximo da Fonseca foi nomeado secretario. O local das
reuniões decidiu-se que fosse alternadamente a casa de cada um dos
adeptos. A hora das conferencias ás 8 da noite.

A formula do juramento adoptada era esta: «Na nossa presença, oh
immenso, Sempiterno, Omnipotente Deus, creador do Universo, estando em
nosso accordo, sem constrangimento, ou duvida, livres e deliberados
jurámos tractar de hoje em deante com todo o possivel disvelo, fervor,
prudencia, e firmeza a causa nobilissima da religião da patria e do
throno applicando para isso nossas forças, talentos, bens e vida até
conseguirmos entregar este a seu dono o PRINCIPE REGENTE e áquelles o
esplendor, a liberdade, a gloria. Este juramento seja para sempre o
fundamento da nossa honra e da nossa felicidade, que chame sobre nós a
benção divina e os applausos da nossa posteridade: a violação d'elle,
pelo contrario, attrairá sobre nós as maldições do céu e da terra; a
vileza para nós e para os nossos descendentes.»

Na setima sessão prestaram este juramento um pouco theatral o coronel de
cavallaria Alvaro Xavier de Povoas e Fernando Romão da Costa Athaide
Teive. D'ahi em deante cresceu todos os dias o numero dos socios e
associados. Na sessão de 25.^o constituiu-se o _conselho conservador_ á
pluralidade de votos e ficou composto dos seguintes deputados e
adjuntos: o bispo de Malaca D. Francisco, o D. abbade de Belem fr.
Manuel de Mesquita, o arcediago do Funchal Manuel Joaquim de Sousa, o
beneficiado Joaquim José da Costa, o marquez de Angeja D. João, o conde
de Rio Maior, o visconde da Bahia, o desembargador Sebastião José de
Sampaio, o brigadeiro Antonio Marcelino da Victoria, os coroneis Lemos,
Lacerda, e Raposo, o tenente coronel Costa Athaide, o major Antonio
Marcelino Soares, e todos os mais socios approvados e admittidos. João
Carlos de Saldanha Oliveira e Daun, hoje duque de Saldanha, entrou
tambem no conselho inscripto sob numero 27. Consta da relação publicada
a pag. 87 do opusculo.

O conselho desde 5 de fevereiro até ao 1.^o de outubro de 1808, em que
se dissolveu, celebrou quarenta e duas sessões. O numero dos socios
ajuramentados subia a 183. O dos auxiliares abonados por varios d'elles
elevava-se a 959, além do concurso de tropa e povo, com que contava para
o caso de um rompimento.

Os planos de sublevação, as proclamações, os avisos ao almirante inglez
sir Charles Cotton, e os projectos da sociedade não corriam tão secretos
como elle imaginava.

A policia franceza suspeitava, pelo menos, se não conhecia plenamente a
organização d'este nucleo; porém não julgou prudente proceder contra
elle, temendo-se talvez mais de um processo ruidoso em circumstancias
criticas, do que dos tramas pouco bellicosos e activos dos
conspiradores. É o que se deprehende de um trecho da _Historia da Guerra
da Peninsula_ do general Foy.


IV

     Muitos homens illustrados, que o grandioso espectaculo dos
     acontecimentos advertia, suspiravam por uma renovação, que nunca
     podia ser inspirada, bem o sabiam por experiencia, nem pelas idéas,
     nem pela iniciativa de um governo caduco pag. 101.

Allude-se no texto ao plano de uma constituição similhante á que
Napoleão I concedêra ao grão-ducado de Varsovia, plano concebido,
segundo affirma o general Foy, no liv. II da sua _Histoire de la Guerre
de la Peninsule_, por alguns patriotas portuguezes, desejosos de
colherem ao menos da intrusão estrangeira os beneficios da liberdade.

O general Foy cita como auctores principaes do plano o desembargador
Francisco Duarte Coelho, o doutor Ricardo Raymundo Nogueira, reitor do
Collegio dos Nobres, e o conego Simão de Cordes Brandão, lente de
direito natural e das gentes na Universidade de Coimbra, e insere nas
provas sob a lettra _J_ o projecto de codigo politico, que então se
queria pedir a Bonaparte. (Tomo II, edição de Paris pag. 38 e seguintes
e pag. 469 e seguintes).

José Acurcio das Neves (_Historia da Invasão dos Francezes em Portugal_
tomo II) transcreve egualmente o documento, porém não diz claramente a
quem elle deve ser attribuido; mas o auctor da _Historia de El-Rei D.
João VI_, vertida em portuguez (Lisboa typographia Patriotica 1838 a
pag. 189-191), depois de nos dar tambem o projecto, accrescenta, que
esta mensagem fôra dirigida pelo doutor Gregorio José de Seixas de
accordo com muitas pessoas distinctas por engenho e representação.
Entretanto o padre José Agostinho de Macedo, como nota o sr. Innocencio
Francisco da Silva no tomo VII do seu _Diccionario Biliographico_ pag.
276, accusou em mais de um logar de suas obras a Simão de Cordes,
lançando-lhe em rosto o haver sido um dos que no fim do seculo passado
maior impulso tentáram dar á maçonaria em Portugal, e principalmente em
Coimbra, aonde chegára a organizar algumas lojas.

O bispo de Vizeu no _Elogio Historico_ fórma juizo absolutamente opposto
do procedimento e doutrinas de Simão de Cordes.

Sejam, porém, as que aponta o general Foy, ou outros auctores, o
projecto de constituição redigiu-se e corre hoje impresso. Restava o
mais difficil. Era necessario achar pessoa auctorizada, que se decidisse
a apresental-o. Acceitou a missão arriscada o juiz do povo, que era
então um tanoeiro chamado José de Abreu Campos, notavel pela firmeza e
integridade. Mais de um lance de nobre ousadia confirma esta opinião
formada com justiça ácerca do seu caracter.

Quando o conde da Ega foi incumbido por Junot de aggregar aos membros da
_Junta dos Tres Estados_ os representantes denominados dos braços da
nação para lhes extorquir em simulacro de côrtes um voto de adhesão, o
juiz do povo protestou contra os actos da assembléa, como illegaes e
emanados de corpo incompetente. Quando as quinas foram picadas e
substituidas pela aguia corsa, Abreu Campos negou-se a apagal-as da
cabeça da sua vara.

O juiz do povo correspondeu ás esperanças depositadas n'elle. Intimado
para assignar com o clero e a nobreza, em nome do povo, a mensagem de 24
de maio de 1808 (provas de _l'Histoire de la guerre de la Peninsule_,
par le general Foy. Paris 1827, tom. II, pags. 467-469) o honrado
tanoeiro, protestando contra o acto por nullo e abjecto, e contra os que
o practicavam por incompetentes, apresentou o projecto de constituição
composto em fórma de petição dirigida ao imperador, e appellou para o
voto do paiz representado em côrtes.

Esta voz isenta proclamando a emancipação politica offendeu os ouvidos
do duque de Abrantes. O juiz do povo, chamado ao quartel general, foi
asperamente reprehendido, e varias pessoas, suspeitas de liberaes,
mandadas sair de Lisboa.

Prevaleceu assim a mensagem servil dictada á simulada junta da nação.
José Sebastião de Saldanha partiu encarregado de a apresentar a Napoleão
I. Achando, porém, já interceptadas as communicações da Hespanha com a
França, recolheu a Lisboa sem ter podido passar adeante da cidade
Rodrigo.


V

     Deixemos passar esses vultos, que pisam os sobrados nas pontas dos
     pés, escorregando quasi como sombras. São rodas secundarias da
     machina, pag. 111 e 112.

O general Junot, intitulando-se nos seus actos governador de Paris,
primeiro ajudante de campo de S. M. o imperador e rei, e general em
chefe do exercito invasor, compôz desde principio e da maneira seguinte
o pessoal do governo em Lisboa:

Por decreto datado de Lisboa no 1.^o de dezembro de 1807, nomeou
Francisco Antonio Herman commissario do governo francez junto do
conselho do reino de Portugal, o qual lhe daria conta de todas as suas
deliberações, podendo assistir a ellas, querendo, e assignar as actas.
Por decreto de 3 de dezembro, do mesmo anno foi Herman incumbido tambem
da administração geral da fazenda. Em 8 de dezembro foi encarregado o
general Laborde do commando superior de Lisboa e o conde de Novion do
commando das armas da cidade. O marquez de Alorna recebeu a nomeação de
inspector geral e commandante das tropas nas provincias de Traz
os-Montes, Beira e Extremadura (22 de dezembro de 1807).

J. J. Magendie já exercia as funcções de commandante em chefe da marinha
em 1 de março de 1808, como consta de um aviso seu aos officiaes da
arma, e aos empregados do porto de Lisboa, expedido n'essa data. P.
Lagarde foi nomeado intendente geral da policia do reino em 25 de março
de 1808, por decreto de Junot, referendado pelo secretario de Estado dos
negocios do interior e da fazenda, Francisco Antonio Herman. Por
decretos da mesma data nomeou Junot corregedor-mór da Extremadura a mr.
Pepin Bellisle, auditor do conselho de Estado, da provincia do Alemtejo
a mr. Lafond, e da provincia de entre Douro e Minho a Taboureau, ambos
tambem auditores do conselho de Estado. Quintella foi feito
corregedor-mór da Beira.

O decreto, que approvou as instrucções dictadas a estes novos
magistrados, sahiu com a data de 2 de abril de 1808. Por decreto de 16
de abril do mesmo anno foi Lagarde nomeado conselheiro do governo para
assistir ás sessões do conselho. A 16 de abril já o general Junot havia
recebido de Napoleão o titulo de duque de Abrantes.




INDICE


A Camillo Castello Branco      5
I--Uma noite desabrida      7
II--O moinho da Raposa      15
III--Duas paginas da historia d'este seculo      21
IV--O bem soa, o mal voa      32
V--Não ha atalho sem trabalho      43
VI--Ressurreição de Lazaro      55
VII--Segredos em toda a parte      67
VIII--Entre os bastidores      83
IX--Que talvez podesse servir de prologo      100
X--Tolda-se o tempo      111
XI--Achilles e Nestor      127
XII--Arcades ambo!      138
XIII--Dois parentes      147
XIV--Amor      156
XV--Cubiça e Nobreza      166




UM REINADO TRAGICO

(Complemento da HISTORIA DE PORTUGAL)

Por * * *

Edição Popular e Illustrada

Com grande numero de retratos dos homens contemporaneos, e de gravuras
representativas dos acontecimentos mais notaveis do reinado de D. Carlos

Attendendo a instantes pedidos de muitos dos assignantes da nossa
*Historia de Portugal*, resolveu esta Empreza publicar um novo livro
que, embora seja como que o complemento d'aquella--e por isso
absolutamente egual em formato, papel, etc.--será no emtanto
completamente independente dos anteriores volumes, e no qual, sob o
titulo de *Um Reinado Tragico*, se fará a descripção de todos os
successos politicos que vão desde o _ultimatum_ de 11 de janeiro de 1890
até aos tragicos acontecimentos de 1 de fevereiro de 1908, que
determinaram a subida ao throno portuguez do rei D. Manuel II.

Publicação em fasciculos semanaes de 16 paginas, in-4.^o grande, ao
preço de

60 RÉIS

ou a tomos mensaes de 5 fasciculos, ao preço de

300 RÉIS




FLOS SANCTORUM

Vida de todos, os santos e martyres do Christianismo

SEGUINDO, DIA A DIA, A ORDEM DA SUA COMMEMORAÇÃO PELA EGREJA

Trabalho de compilação e de synthese, feito sobre os mais modernos e
conscienciosos estudos

PELO

Rev. Dr. SANTOS FARINHA

Bacharel formado em theologia pela Universidade de Coimbra e parocho
collado da freguezia de Santa Izabel, de Lisboa

Illustrado com centenares de gravuras

Cada fasciculo semanal de 2 folhas de 8 paginas cada, in-4.^o grande,
contendo pelo menos 2 gravuras,

60--REIS--60

Cada tomo mensal de 5 fasciculos, ou 80 pag., grande formato, contendo
numerosas gravuras,

300--REIS--300

DIRIGIR OS PEDIDOS Á

EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL

SOCIEDADE EDITORA

Livraria Moderna--Rua Augusta, 95, Lisboa

TYPOGRAPHIA--45, RUA IVENS, 47


Notas:

[1] Eram pannos lavrados, ou lisos, que vestiam as paredes. Tambem se
usavam de couro.

Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:



  +----------+------------------+-------------------+
  |          |     Original     |    Correcção      |
  +----------+------------------+-------------------+
  |#pág.  15 | hombos           | hombros           |
  |#pág.  17 | á                | é                 |
  |#pág.  26 | nosas            | nossas            |
  |#pág.  27 | Bonapart         | Bonaparte         |
  |#pág.  29 | anino            | animo             |
  |#pág.  31 | presa            | pressa            |
  |#pág.  33 | ruidasa          | ruidosa           |
  |#pág.  33 | costumudo        | costumado         |
  |#pág.  44 | cava             | cave              |
  |#pág.  53 | do               | de                |
  |#pág.  57 | Pedr             | Pedro             |
  |#pág.  64 | inop nada        | inopinada         |
  |#pág.  68 | quatros          | quatro            |
  |#pág.  68 | e                | o                 |
  |#pág.  78 | acabavaentão     | acabava então     |
  |#pág.  79 | da mesmo         | do mesmo          |
  |#pág.  84 | naural           | natural           |
  |#pág. 108 | noneada          | nomeada           |
  |#pág. 110 | setes            | sete              |
  |#pág. 122 | os que os        | que os            |
  |#pág. 127 | Azevdo           | Azevedo           |
  |#pág. 156 | attribindo-a     | attribuindo-a     |
  |#pág. 180 | do               | dos               |
  |#pág. 185 | segunda          | segundo           |
  +----------+------------------+-------------------+





End of the Project Gutenberg EBook of A Casa dos Fantasmas - Volume I, by 
Luiz Augusto Rebello da Silva

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A CASA DOS FANTASMAS - VOLUME I ***

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receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
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provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
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providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

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including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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