Othello

By Gustave Dubarry and William Shakespeare

The Project Gutenberg EBook of Othello, by Gustave Dubarry

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Title: Othello

Author: Gustave Dubarry

Translator: D. Alda de Sousa

Release Date: April 7, 2009 [EBook #28526]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OTHELLO ***




Produced by Pedro Saborano







                                OTHELLO




        Editor e proprietario, F. A. de Miranda e Sousa.
        Comp. e imp. na typ. da Empreza Lusitana Editora,
        pertencente ao editor C. do Ferregial, 23--LISBOA.




                                G. DUBARRY


                                  OTHELLO


                         _Trad. de D. Alda de Sousa_




                                  LISBOA
                          EMPREZA LUSITANA EDITORA
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                            Rua Rodrigo Silva, 7




I

O rapto


Era a epoca mais feliz e florescente da aristocratica Republica de
Veneza. As esquadras disputavam vantajosamente aos turcos a supremacia
no Mediterraneo, e nas costas gregas, Rhodes e Chypre unidas ao feliz
povo da poderosa Senhoria, diziam eloquentemente ao ottomano que não era
nada facil arrancar a presa ao leão de S. Marcos, quando este a colhera
nos seus afilados dentes.

Vivia-se por então no tempo em que a espada não podia enferrujar dentro
da bainha, pois nos breves intervallos durante os quaes os exercitos não
luctavam de povoado em povoado, de nação em nação, os individuos, sem
distincções de cathegorias nem de classes, inventavam mil pretextos para
guerrearem entre si, receosos talvez de olvidarem no repouso o manejo
das armas.

Por causa d'isto e tambem com receio dos innumeraveis «_briganti_» e
roubadores de bolsas que, durante a noute, vagueavam pela poetica cidade
dos canaes, nem todos se atreviam a transitar por ella fóra de horas,
pois estavam certos de que nada bom encontrariam nas suas escuras e
mysteriosas ruas.

Eis porque causava certa extranheza ver a tranquilidade com que dois
cavalleiros, jovens e de elegante porte, se bem que tal elegancia fosse
mais notavel no que aparentava menos edade, conversavam passeando pela
solitaria praça de S. Marcos á uma hora da madrugada d'uma noute de
inverno.

Devemos ponderar que a tranquilidade, a que acabamos de alludir,
referia-se sómente ao facto dos cavalleiros não recearem dos perigos
nocturnos que os ameaçavam em tal sitio e a horas tão mortas da noute;
por outro lado, os dois homens pareciam dominados por viva agitação, a
julgar pela vehemencia dos gestos e pela animação com que sustentavam o
seguinte dialogo:

--Digo-te, meu caro Yago, que semelhante coisa é impossivel, dizia o
mais novo e de melhor apparencia dos dois interlocutores, tão impossivel
como o Adriatico poder devolver a sua Senhoria o Doge o annel que este
lhe deu no dia das suas nupcias.[1]

    [1] Allude á cerimonia que celebravam os Doges no dia do seu
    advento, e no qual simulavam casar com o Adriatico arrojando para o
    mar uma preciosa joia, que era o annel de nupcias.

--Pois eu asseguro-te, nobre Rodrigo, replicou o mais velho dos
cavalleiros, que trajava á militar e ostentava a divisa de alferes, que
vi com os meus poprios olhos tua prima Desdemona, ha pouco mais de uma
hora, fugir de casa do pae, o senador Brabancio, e saltar para uma
gondola, onde a esperava esse maldito africano, que Deus confunda.

--Pois bem, os teus olhos trahiram-te, apresentando á tua fantasia como
real o que não era mais do que um sonho. Ah! as garrafas de vinho de
Chypre que bebeste esta noute, tiveram mais força do que a tua
resistencia de bebedor habituado ás libações, e puzeram-te completamente
borracho, respondeu de mau humor aquelle a quem o seu companheiro dava o
nome de Rodrigo.

--Dizem, e com razão, que de namorado a tonto não vae mais do que um
passo! exclamou o alferes Yago em tom desdenhoso.

--Porque dizes isso? porguntou com altivez Rodrigo. Tratas acaso, de
insultar-me?

--Deus me livre de tal coisa, respondeu Yago. Queres dizer-me o que
ganharia com isso?

--Seja pelo que fôr, o facto é que me chamaste tonto.

--Não, disse que estavas enamorado, e desafio a que o negues.

--Seria inutil, pois sabei-o tão bem como eu, confessou Rodrigo. Mas
deixemo-nos de discussões inuteis e vamos ao que importa. Se o que me
acabas de dizer não é uma infame mentira ou estupida fantasia de bebado;
se a minha prima Desdemona esqueceu a honra de sua familia, o respeito e
as cans de seu pae, toda a sua juventude de pudor e recato que a
tornavam a donzella mais pura de Veneza; se esqueceu tudo isto, repito,
para lançar-se nos braços d'esse mouro de rude linguagem e de rosto
enegrecido, como qualquer infame Messalina, preciso será crer de hoje
para sempre que a mulher, desde que nasce, é materia affeiçoada para o
vicio e o ser mais ignobil que existe sobre a terra.

--Enganas-te, nobre Rodrigo, e a tua paixão e ciumes fazem-te ver as
cousas, augmentadas até á exageração ridicula, replicou tranquilamente
Yago. A mulher, na realidade, não é boa nem má, pura ou impura, mas
simplesmente mulher e, como tal, joguete das circumstancias. A culpa do
que succede não a tem ella, mas sim o velho tonto do pae que, depois de
a ter encerrada como monja durante dezessete annos, deixou entrar em
casa Othello com a mais ampla liberdade, consentiu que visitasse tua
prima, conversasse com ella no mais absoluto isolamento, e, emfim,
cruzou tranquilamente os braços, emtanto que o lobo rondava
incessantemente em redor da ovelha.

--Mas, replicou Rodrigo irritado, quem poderia suppôr que uma joven tão
innocente e virginal como Desdemona, podesse chegar a enamorar-se de um
homem negro e feio como esse maldito mouro?

--Outro qualquer que não tivesse sido um velho imbecil como teu tio
Brabancio, ou um namorado cego como tu, teria suspeitado que esse mouro,
precisamente pelo que tem de extraordinario, poderia chegar a deslumbrar
e a seduzir a donzella, como realmente succedeu. Ignoras por ventura,
continuou Yago animando-se emquanto fallava, que ninguem conhece Othello
melhor do que eu, e que é este exactamente o motivo do odio mortal que
lhe tenho? Esse homem é feio, concordo; de rude linguagem e desabridas
maneiras, mas nasceu como o leão para dominar e vencer, onde quer que se
encontre; a alma d'elle é grande como o espaço e profunda como o abysmo;
o coração é de gigante, e n'elle os sentimentos humanos, com tudo quanto
ha de leal e de nobre, desenvolvem-se até assumirem proporções do sobre
natural; junta a isto uma vida romantica, cheia de peripecias
emocionantes e curiosissimas, sustentada á custa de uma lucta constante
com os homens, com as feras e até com os elementos; emfim, um homem de
sangue real, realeza moura, mas que vale tanto como outra qualquer, um
homem de sangue real, repito, que perde seus paes, é vendido como
escravo, foge atravez do deserto e, sem outras armas do que a coragem
pessoal, a força d'um hercules, se assenhoreia das selvas virgens, das
quaes desaloja os tigres e os leopardos: que depois se apresenta entre
os homens e pratica com elles o mesmo que com os temiveis moradores dos
bosques; que chega a Veneza quando a Republica está a ponto de tornar-se
provincia de Constantinopla, e, com o seu valor lendario e o seu talento
de general a salva, destroe os inimigos e devolve todo o brilhante
esplendor á vacilante Magestade. Pensa em tudo isto, repito, apresenta
tal homem prodigioso a uma rapariga de desessete annos, enamorada, como
todas, do maravilhoso poetico, do extraordinario, e á fé de cavalleiro
te juro, que a fealdade e a rudeza materiaes d'um mouro desapparecerão
ante os olhos da virgem innocente, para não lhe deixar ver mais do que o
lado poetico da varonil e sobrehumana figura do heroe, ante a qual
surgem empequenecidos até ao ridiculo, os peralvilhos loiros e
affemininados que tenha visto pisar até então as alcatifas dos seus
salões.

--A julgar pela discripção que acabas de fazer de Othelo, não parece
senão que estás tão enamorado d'elle como minha propria prima Desdemona,
ponderou sarcasticamente Rodrigo.

--Porquê? replicou Yago com maior sarcasmo. Porque o conheço e conservo
o senso commum necessario para poder apreciar no seu justo valor as
qualidades d'esse homem e dar conta exacta da influencia que taes
qualidades podem exercer no coração d'uma joven? Que disparate suppôr
que eu amo Othello! Pelo contrario, odeio-o com todas as forças da minha
alma e de boa vontade inventaria qualquer novo tormento para vel-o
morrer na mais horrorosa das agonias. Preferiu-me a esse florentino,
Miguel Cassio, a quem nomeou seu tenente, deixando que eu, com o
estupido pretexto de que ignoro a estrategia militar, continue sempre
alferes, o que é peor ainda. Fallando francamente, não tenho base firme
para fundar as minhas suspeitas, mas chegou-me a parecer que o maldito
mouro e minha mulher, Emilia, dormiram mais de uma vez no mesmo leito
que paguei para celebrar as bodas. Só esta suspeita faz com que sinta
todos os martyrios do inferno nas entranhas e deseje vingar-me de
Othello, de maneira que cause horror ao proprio Deus das vinganças. Por
isso te procurei esta noute, accrescentou o alferes fixando em Rodrigo
os olhos chammejantes. Estás apaixonado por tua prima Desdemona, e o
homem que eu odeio roubou-ta; pois bem, se me promettes fazer tudo
quanto te disser cegamente e sem discutir as minhas indicações,
garanto-te que Othello pagará o seu crime e Desdemona acabará por
arrojar-se nos teus braços sincera e profundamente arrependida do que
fez.

--Devéras? Não me enganas? esclamou Rodrigo louco de alegria.

Juro-o! respondeu Yago com um gesto de convicção; se me obedeceres em
tudo, antes de um mez Desdemona será tua.

--Que tenho a fazer para tanto? perguntou Rodrigo disposto aos maiores
sacrificios para conseguir o amôr da prima.

--Primeiro, disse Yago, que nunca perdia a presença de espirito, ganhar
o tempo que temos perdido discutindo aqui como dois tontos, ou como dois
homens despreoccupados, que não teem nada a fazer, quando cada minuto
que se perde é um seculo, difficil de recuperar.

E no relogio de S. Marcos soaram n'esse momento duas horas.

--Já duas horas! esclamou Yago, arrastando comsigo o amigo, emquanto
fallava. É bastante tarde e ainda precisamos de correr muito!

--Onde me conduzes? perguntou Rodrigo desconfiado, mas seguindo
docilmente o alferes.

--Ao palacio de teu tio, para communicar ao pobre velho a sua deshonra e
a fuga da filha, se é que elle ainda não deu por tal, como é provavel,
pois deve dormir a estas horas, ajuntou Yago.

--Mas vamos provocar um escandalo! replicou o primo de Desdemona, a
quem, como cavalleiro que era repugnava semelhante especie de delação.

--É isso precisamente o que nós necessitamos: um escandalo, disse Yago,
sem deixar de arrastar o amigo. Um escandalo que fira o orgulho e a
vaidade de um dos senhores mais poderosos de Veneza, e que obrigue o
Doge a castigar o culpado com todo o rigor que exigem a gravidade da
falta e as duras leis da Republica. Basta-me tanto para vêr satisfeito o
meu odio, continuou o miseravel com feroz sorriso, depois Othello será
destituido do seu posto de general e de todas as honras, como auctor de
um delicto que attentou contra a dignidade de um dos membros do Senado,
sem contar as penas corporaes que cahirão sobre elle e que serão
verdadeiramente terriveis, pois conheço bem a justiça veneziana e sei
que é inexoravel n'este ponto.

E, ao proferir taes palavras, Yago ria com um riso sedento de sangue.

Entretanto chegaram ao magnifico palacio do senador Branbancio e, depois
de baterem ruidosamente á grande porta de entrada, obrigaram a criada a
despertar o amo, que deixou o leito e recebeu os nocturnos visitantes
com a vontade que pode suppor-se.

Mas esta má vontade não tardou em converter-se em estupefacção levada
até á atonia, que por sua vez se transformou n'uma indignação que esteve
a pontos de o enlouquecer, quando o sobrinho o informou da fuga da joven
e virginal Desdemona, rapto que se negou obtinadamente a acreditar, a
começo, mas que em breve poude ver comprovado, depois de pessoalmente
percorrer todos os cantos do palacio com a mesma minuciosidade que
empregaria se, em vez de procurar uma mulher, se tratasse de um objecto
menos que imperceptivel.

Era que o infeliz velho tinha ante os olhos a realidade e recusava
admittil-a, ditoso ainda com a illusão de que tudo aquillo não era mais
do que um pesadelo horrivel, do qual não tardaria a despertar.

Assim, quando lhe foi impossivel duvidar e que teve de se render
fatalmente á evidencia, a sua dôr não conheceu limites e, no cumulo da
desesperação, amaldiçoou a filha e todas as mulheres chamando-lhes
encarnação viva de Lusbel, da qual tinham até a infernal formosura;
renegou o ceu e a terra e não deixou de lastimar-se e blasfemar até que,
vencido pelo peso da propria afflicção, sómente lhe ficaram energias
para lamentar com soluços convulsivos a immensa desgraça que acabava de
cahir-lhe na encanecida cabeça.

Passada a angustiosa crise, reanimou-se um pouco, e com as forças
voltou-lhe o orgulho e a altivez de patricio venesiano; a partir d'este
momento só pensou em vingar o ultrage recebido, para o que era preciso,
antes de mais nada, apoderar-se do autor da sua deshonra, do infame que
lhe roubara a filha.

Por conseguinte e sabendo por Yago que Othello se encontrava áquellas
horas nas margens do Adriatico, e não longe do porto, onde estava
ancorada a galera destinada a transportal-o nas suas expedições
guerreiras, reuniu a toda a pressa alguns soldados, e pondo-se
animosamente á frente da pequena escolta, ordenou a seu sobrinho e a
Yago que o guiassem até o sitio onde poderia encontrar o raptor de
Desdemona.

Rodrigo prestou-se de bom grado a acompanhal-o; mas o alferes, que tinha
razões sufficientes para recear que o mouro o visse em companhia dos que
iam perseguil-o, allegou tão plausiveis e logicos motivos, que o
vingativo e furioso pae consentiu em que marchasse deante de elles,
precedendo-os a boa distancia, para que quando a ameaçadora comitiva
chegasse onde estava Othello, elle se encontrasse já ao lado do chefe,
ao qual teria entretanto explicado satisfatoriamente a sua ausencia.

Assim fizeram, com effeito, adeantando-se Yago a passo largo, pelo
caminho mais curto e seguindo-o lentamente, Brabancio, Rodrigo e os
homens de armas que os acompanhavam.

Precisamente no momento em que Yago se apresentava ao general, recebia
este uma embaixada do Doge, que, apesar do adiantado da hora, estava
presidindo ao Conselho dos Dez convocado a toda a pressa para assumpto
de vital interesse da Republica e que exigia a presença immediata do
general ante o Conselho.

--Está bem, respondeu gravemente Othello aos emissarios do Doge que
acabavam de dar-lhe esta ordem. Já os sigo; para fallar verdade,
preferia aguardar o dia de amanhã para tratar negocios graves; pois
asseguro-lhes, senhores, que esta noute tenho mais coração do que
cabeça. Mas o Estado está acima de tudo e obedeço o sua senhoria.
Partamos.

--Alto ahi, perro traidor, ladrão de honras, corruptor de donzellas!
gritou uma voz colerica e cheia de ira, no momento em que o mouro e os
commissionados do Doge se punham a caminho.--Pára ou mato-te como o
miseravel que és! Que fizeste de minha filha? Vamos, responde, infame
Restitue-me Desdemona!

Ao encontrar-se cara a cara com Brabancio, que, como já terão advinhado
os leitores, era quem o increpava tão asperamente, o mouro ficou
preplexo por um instante e sem saber, realmente, que partido tomar, pois
era a primeira vez na sua vida que ouvia um homem insultal-o de tal
modo. Mas recuperando acto continuo o sangue frio, dominou a situação
com um simples esforço da poderosa vontade e respondeu brandamente ao
velho:

--Senhor, reprimi a vossa colera, que não tem razão de ser, pois nem eu
sou ladrão de honras, e menos ainda corruptor de donzellas. Vossa filha
seguiu-me esta noute voluntariamente, como está disposta a confessál-o,
e, apesar de ha tres horas ser minha mulher, permanece todavia tão pura
como os anjos do céu. Juro-o pela minha espada!

--Mentes como um cão! gritou fóra de si o velho. Minha filha não te
seguiria de boa vontade e ainda menos se prestaria a ser esposa de um
infame hereje como tu! Recorres a tão estupida desculpa para te livrares
de cahir nas minhas mãos. Mas enganas-te, miseravel! continuou irritado
Brabancio, avançando um passo mais para Othello, enganaste, se julgas
ser-te facil escapar á justiça e á minha vingança. Vês estes homens que
me acompanham? accrescentou voltando-se e apontando com o braço hirto
para os companheiros; pois bastará um signal meu para te arrancarem com
os seus punhaes a alma do corpo, se vacilas um só momento em me
seguires.

O africano contemplou fixamente, durante um segundo, o encolorizado pae
de Desdemona, e no bronzeado rosto deixou transluzir uma expressão terna
e compassiva; depois ergueu a poderosa cabeça com um gesto de leão e
lançou um olhar de supremo desprezo aos homens que acompanhavam
Brabancio.

Em seguida respondeu com voz meiga e socegada:

--São poucos, senhor, para obrigar Othello a que faça o que não quer,
emquanto estas duas mãos possam manejar uma espada ou estrangular um
homem, e ao pronunciar estas palavras, o mouro estendeu os atleticos
braços n'um tal gesto, que todos, até o proprio velho, retrocederam um
passo e soffreram uma especie de calafrio que lhes chegou até aos ossos;
são poucos, repito; seriam necessarios mais homens e, sobre tudo, homens
de tempera, differente d'esses que vos acompanham. Mas ha outras razões
mais poderosas, continuou o formidavel africano com a mesma brandura até
ali mantida, que vos impedirão agora de pôr mão sobre mim.

--Quaes? rugiu o velho cego pela ira. Julgas por ventura que te vaes
livrar com as tuas valentias?

--Não, respondeu friamente Othello; livro-me pelo menos agora, porque
assim é a vontade do Doge, que acaba de chamar-me para que compareça sem
a menor demora ante o Conselho dos Dez, o qual, presidido por elle, se
acha reunido n'este momento para tratar de assumpto de gravissimo
interesse para o Estado, e a respeito do qual, segundo parece,
necessitam conhecer a minha opinião. Agora bem; proseguiu dizendo o
mouro deliberadamente, ousarieis oppôr-vos á vontade do Doge e do
conselho, e tolher que se executassem as suas ordens, que, como sabeis,
são sagradas na Republica, expondo-vos, talvez a pôr em perigo a
segurança do Estado?

--Ceus! Fallarás verdade? exclamou Brabancio desesperado ao ver que a
presa estava prestes a escapar-lhe.

--Estes cavalleiros podem responder-te, affirmou o mouro, indicando os
commissionados do Doge, que permaneciam a poucos passos de distancia,
testemunhas mudas da acalorada scena.

--Assim é, nobre Brabancio, affirmou o que parecia ser o chefe do grupo.
Quanto acaba de dizer o general é absolutamente verdade.

O velho senador pareceu ficar um momento atordoado com o peso da
noticia.

Mas, de prompto, ergueu a cabeça, os olhos faiscaram-lhe com a viva
satisfação da vingança satisfeita, e perguntou ao chefe dos
commissionados:

--Disseste que o Doge está n'este momento presidindo ao Conselho dos
Dez?

--Assim o disse e assim é, nobre Brabancio; respondeu o interpelado.

--Pois bem, n'esse caso, continuou o pae de Desdemona, que melhor
accasião do que esta para exorál-o a que faça justiça? Por muito grave
que seja o assumpto que presentemente o occupa, não poderá sel-o tanto
que o impeça de ouvir a queixa de um senador da Republica, sobre tudo de
um senador da minha ascendencia, contra um bandido que o Estado abrigou
incautamente, no seu seio. Ides á presença do Doge, não é assim? Pois
bem, eu vou tambem e assim ganharei tempo, em vez de o perder, como
suppuz. Já vês, concluiu o raivoso velho dirigindo-se a Othello, que não
ha poder humano que te livre da minha vingança! Vamos ter com o Doge e
pedir-lhe justiça!

E todos formando um grupo compacto abandonaram as margens do Adriatico e
perderam-se lentamente nos solitários e tenebrosos labyrintos da poetica
cidade dos canaes.




II

Othello


Apezar da gravidadade das circumstancias, o Doge não poude conter uma
exclamação de surpreza ao ver entrar Brabancio na sala onde se celebrava
o conselho, acompanhando Othello, sem que para isso trouxesse ordem sua.
Lançou pois, um olhar colerico ao velho senador e perguntou severamente:

--Quem se atreve a desobedecer d'este modo á minha vontade e ás leis da
Republica, que prohibem a entrada na sala do Conselho a todo aquelle que
não tenha ordem expressa de comparecer ante mim?

--Eu, Senhoria--respondeu em tom firme, e attitude respeitosa o pae de
Desdemona.--Eu, que venho pedir-vos justiça para o irreparavel ultraje
que lançaram nas minhas cans e no meu nome de patriota.

--Tão urgente é o caso e tão imperioso e vehemente o teu desejo de ver
reparado o agravo que recebeste, para olvidando toda e qualquer
consideração, entrares n'este recinto sagrado para todos os cidadãos da
Republica?--replicou o Doge com enfado.

--A Vossa prudente e sabia rasão julgará por si mesma--disse Brabancio
sem se deixar intimidar pela attitude severa do Doge, attitude que se
reflectia nos dez membros do Conselho. E, acto continuo, indicando a
Othello que permanecia de pé a seu lado.--Este homem, que a Republica
acolheu em hora aziaga para todos, acabou de roubar-me a filha,
deshonrando-a, deshonrando-me tambem e lançando uma mancha indelevel
sobre toda a nobreza veneziana, sobre o nobre nome que me orgulho de
usar. Justiça, Senhoria, contra tamanho criminoso! justiça, se não
quereis que eu renegue a propria terra em que nasci!

--Tranquillisa-te, bom Brabancio--respondeu o Doge com benevolencia--se
é certa a accusação que acabas de fazer contra esse homem, contra esse
habil e heróico general que mais de uma vez tem dado provas da
generosidade do seu coração, salvando a Republica, eu te prometto, como
cavalleiro veneziano e como magistrado supremo do Estado, que justiça te
será feita! Bem disseste affirmando que o ultraje que recebeste recae
sobre todos os teus compatriotas. Mas sabes, prudente velho, que os
momentos actuaes são em extremo solemnes e as circumstancias
gravissimas? Os turcos dirigem-se contra ilha de Chypre, com uma
poderosa esquadra, e d'ella se apoderárão, facilmente se não realizarmos
um verdadeiro milagre de vontade e de força. Agora bem--proseguiu o
Doge, com convicção.--Sabes o que significa para Veneza a perda da ilha
de Chypre? Significa ver-se reduzida a Rodas no Archipelago; é a ruina
do seu commercio com a Grecia e com toda a parte oriental da Europa; é o
principio da decadencia do seu poder no Mediterraneo, e quando Genova,
Florença e o Pontificado saibam isto, cahirão sobre a orgulhosa soberana
do Adriatico como um bando de abutres sobre uma aguia ferida e enferma,
para repartir os seus restos e insultar a sua passada grandeza. Immensa
e justa é a tua dor, pobre velho, mas ante as calamidades que ameaçam a
Republica, tu, varão sabio e prudente, responde: que significa a
desgraça de um individuo, de uma familia, de uma dôr pessoal por grande
que seja, comparada com o soffrimento de um povo?

--Perdoe-me a Vossa Senhoria e o sabio Conselho, respondeu humildemente
o velho; ignorava as terriveis noticias que me acabaes de communicar e
cega-me a dôr e a soberba. Soffra eu e os meus mil vezes, dado que se
salve a Republica! Se a pessoa que a póde salvar é esse homem, terminou
indicando Othello, desde este momento retiro a minha accusação e
esperarei pacientemente, para lavar a mancha cahida sobre o meu nome,
que venham melhores tempos! Veneza e a Republica acima de tudo!

E, ao dizer estas palavras, o nobre velho pareceu verdadeiramente
transfigurado pelo generoso enthusiasmo que lhe trasbordava do coração,
enthusiasmo que se communicou instantaneamente a todos os circumstantes,
exceptuando Othello, que permaneceu sereno e frio como estatua de
bronze. Mas apenas acabou de fallar o pae de Desdemona, e antes que o
Doge tivesse tempo de responder-lhe, agradecendo a nobreza da sua
conducta, como pensava fazel-o, o mouro estendeu o braço direito, como
dando a entender que queria pedir a palavra, e ao ver que os membros do
Conselho inclinavam a cabeça, com um gesto de approvação, começou com
voz grave e pausada:

--O sabio e prudente Conselho, assim como a Senhoria que o preside, vão
perdoar-me expôr a minha opinião a respeito de tudo quanto succede, sem
que previamente me tenham auctorizado para tanto.

--Era o que pensava agora fazer, pois não foste chamado para outra
cousa, heroico Othello, disse o Doge com benevolencia; falla pois, com
liberdade absoluta.

--Primeiro que tudo, proseguiu o general, occupar-me-hei, como é de
justiça, do mais importante; quer dizer do que diz respeito ao Estado;
depois tratarei da accusação que este velho acaba de lançar contra mim.
Nada receiem! Serei breve, muito breve, porque pouco, na realidade,
tenho de dizer com respeito aos dois assumptos. Por outro lado não é
este o momento opportuno para dispensarmos palavras, mas sim de
praticarmos actos; além d'isto a minha linguagem é rude e desataviada de
galas.

«A Senhoria de Veneza e o sabio Conselho ignoram decerto que a unica
eloquencia de que posso orgulhar-me é a das acções.

--Precisamente aquella de que hoje necessita a Republica, observou o
Doge gravemente.

--Pois tel-a-ha, respondeu Othello com convicção absoluta. O que tenho a
dizer com relação aos turcos que buscam apoderar-se da ilha de Chypre,
reduz-se a isto: Montano, a quem deixei como governador na ilha, com
plenos poderes para que me substituisse durante curta ausencia, é um
militar valente como ha poucos e experimentado como nenhum; adora Chypre
como um filho adora a mãe, apesar de não ter nascido lá; dispõe de bons
elementos de combate e, por muito vigoroso que seja o ataque dos turcos,
saberá resistir durante alguns dias, os sufficientes para que, sahindo
eu esta mesma noute ou, para melhor dizer, esta manhã, de Veneza, tenha
tempo de surprehender os otomanos antes de que logrem pôr nas torres da
ilha o estandarte da meia lua.

--E crês, general, perguntou anciosamente o Doge, que dispões de
bastantes recursos para dominar e vencer o grande contingente de homens
de guerra e armamento naval com que, segundo noticias fidelissimas
recebidas, os turcos se aprestam para a lucta?

--Essas noticias exageram, ou mentem, replicou friamente Othello. O
sultão está gravemente empenhado nas guerras com Castella e com Papa, e
não pode dispor de grandes elementos de combate. Que Montano resista
sómente oito dias, que me sejam favoraveis os ventos, e respondo pela
minha cabeça, que a Republica conservará em seu poder Chypre e dará uma
nova e forte lição ao seu constante e teimoso inimigo, que o manterá na
reserva durante muito tempo. Othello, que nunca mentiu, jura-o pela sua
lealdade ao Estado.

E o altivo africano contemplou com tão fria serenidade os individuos do
Conselho, que estes sentiram que a confiança, uma confiança absoluta,
voltava a renascer-lhes nos corações.

--Assim pois, perguntou o Doge ao mouro, partirás hoje mesmo para
Chypre?

--Apenas o sol doire com os seus raios o extremo do mastro real do meu
navio, a quilha d'este rasgará as ondas orgulhosas do Adriatico em
direcção á ilha, respondeu Othello. Mas antes, Senhoria, ordena-me o
coração e a lealdade responder ás accusações d'este velho e deixar
terminado este assumpto. Peço-vos que não me negueis o favor de me
ouvirdes e de fallar agora mesmo na causa que vou submetter ao vosso
recto juizo, Senhoria; porque, apesar de tudo, poderia morrer na nova
empreza que vou emprehender e por cousa nenhuma do mundo quereria que
pezasse sobre o meu nome a affronta que Brabancio acaba de lançar sobre
elle com as suas palavras, ante o Conselho...

--Falla pois, Othello--disse o Doge, com deferencia;--mas, como ha pouco
disseste, procura ser breve, o mais breve que te seja possivel, porque
não ignoras que o tempo urge e os momentos perdidos são preciosos.

--A brevidade convem a todos--disse o africano;--porém mais a mim do que
a ninguem, porque d'ella depende o exito do meu plano de batalha e da
sorte da minha existencia. Não receieis pois, Senhoria, e escutem,
ouçam-me todos, com os corações de homens e toda a consciencia de
magistrados, porque é a minha honra, a minha vida e a minha felicidade
que jogo n'este momento.

Calou-se o mouro e, durante alguns instantes, pareceu como abstrahido em
meditação dolorosa; depois, erguendo a altiva e bronzeada fronte com o
gesto leonino que lhe era peculiar, olhou cara a cara para o Doge e para
os individuos do Conselho com olhos nos quaes se reflectia toda a
lealdade do seu grande caracter, e começou em voz grave e pausada, que
condizia perfeitamente com a soberba majestade da attitude:

Barbancio accusou-me ante vós, Senhoria, de que esta noute lhe raptei a
filha para deshonral-a e deshonral-o a elle e a toda a nobreza da
Republica.

--E assim é; atreve-te a negál-o! gritou fóra de si o velho senador, a
quem a recordação do rapto da filha despertara toda a colera que,
durante momentos, havia parecido abandonál-o.

--Nego-o, porque não é verdade--respondeu friamente Othello--Desdemona
deixou esta noute a casa de seu pae para seguir-me, para acompanhar seu
esposo, porque meia hora depois de ter pisado o tapete da minha gondola,
enlaçava-se com o meu o seu destino ante os altares.

--É mentira, uma infame mentira!--rugiu o velho--A minha filha não póde
ser a esposa de um cão hereje como tu!

--Tanto póde, que o é--affirmou categoricamente o mouro, sem perder nem
por um momento o sangue frio.--Além d'isso, não casou com um hereje,
pois creio no Deus dos christãos, porque é o Deus da mulher que adoro.

--Então é porque a enlouqueceste, porque a embruxaste com feiticerias e
artes magicas!--exclamou Brabancio no paroxismo da ira. D'outro modo, é
admissivel que uma donzella tão pura, tão formosa e delicada como
Desdemona, se enamorasse de um horrivel negro como tu?

D'esta vez as palavras do colerico velho feriram por certo alguma fibra
sensivel e devéras intima do coração de Othello, porque a côr bronzeada
do mouro branqueou durante um segundo, e o general, erguendo mais ainda
o alto e poderoso busto, murmurou com voz moderada, mas na qual, apesar
de tudo, se sentia vibrar um furacão de sentimentos ignorados.

--Sempre a mesma phrase! Um horrivel negro! Como se ha-de enamorar uma
virgem, bella e pura como Desdemona, de um horrivel monstro como
Othello! Ignoro, senhor--continuou o africano dirigindo-se d'esta vez ao
senador,--se as mulheres veem mais longe e mais profundo do que os
homens, mas para dita nossa e honra sua é preciso acreditar que sim, e
que a vossa filha viu a minha alma. A minha alma, ouvem, senhores? que é
a de um homem como vós, como a vossa, velho implacavel, como a de todos
os homens brancos emfim, e que ainda talvez valha mais do que a de
muitos d'esses, porque está firmemente temperada na desventura e na
lucta pela existencia.! Uma lucta horrivel, espantosa capaz de
aniquillar, o melhor coração de toda a nobreza veneziana á
qual--continuou com gesto de leão,--egualo, se não supero em raça,
porque se ella nasceu em berço doirado, o brilho de uma corôa real
illuminou meu nascimento. Sim, orgulhoso nobre; sou, quando menos, teu
egual, porque descendo de reis, e sou teu superior em valor moral,
porque estou purificado pela desgraça. Vencidos meus paes por um
inimigo, não tão poderoso, porem mais astuto e mais cobarde do que
elles, fui vendido com meus escravos, como um egual de taes miseraveis.
Sim, o leão foi comprado revolto e mettido entre uma jaula de cães; mas
a escravatura não se fez para os leões e eu fugi da minha jaula matando
os guardas e correndo para o deserto, que era o meu ambiente natural.
Ali lutei com as féras para disputar-lhes o alimento, e digo-te
sinceramente que ellas são mais leaes e mais nobres na luta do que a
maioria dos homens com quem tenho deparado antes e depois de vencel-as.
Mais tarde, farto da solidão, fui de povo em povo, de nação em nação, e
desde o estreito de Gibraltar até ao dos Dardanelos, reguei o caminho
com sangue de cobardes e lagrimas de corações agradecidos. Quando, por
ultimo, o Destino me trouxe para entre os vossos, a Republica tremia
como presa prestes a ser devorada pelo turco, pelo genovez, pelo
florentino, pelo romano, por todos os seus inimigos, emfim. E eu
firmei-a; derrotei aquelles que queriam a sua queda para a fazerem em
pedaços, dei estabilidade á Republica vacilante, e a minha mão
acostumada a apertar sem tremer a garganta dos tigres, cravou no ponto,
mais alto da Europa a bandeira de Veneza.

«Que sangue haverá, pois, na cidade de S. Marcos que possa
envergonhar-se de se misturar com o meu?

Calou-se o mouro por um momento, e por toda a salla pareceu vibrar a sua
potente voz. Othello continuou, sempre dirigindo-se a Brabancio:

--Tua filha sabia tudo isto, sim, sabia-o, porque eu proprio lh'o havia
contado; conhece a minha historia, leu em meus olhos e bebeu nas minhas
palavras a formidavel e sangrenta epopeia da minha vida; viu-me tal qual
sou, e não como me veem os outros, como tu me vês, cego pela ira, e, em
vez de achar em mim o monstro a que te referes, viu apenas o homem de
coração, que sabe triumphar do Destino e dos homens, e começou por
admirar-me, como um ser que valia mais do que todos os fatuos inuteis e
vadios que a rodeavam; para concluir, amou-me com o mesmo amor profundo
e infinito com que eu a amo. Este é todo o nosso crime, e por elle peço
que nos julguem--terminou dizendo, dirigindo-se ao Doge e aos membros do
Conselho.

--Tudo quanto disseste nada é mais do que palavras e só
palavras!--gritou Brabancio desesperado, pois temia que o prestigio que
rodeava Othello inclinasse em seu favor os que tinham de o julgar.--«Os
factos fallarão mais alto do que tudo quanto possas dizer em teu abono!
Minha filha! Confessa onde occultaste Desdemona! Minha filha que
compareça ante vós, senhores, e ella desmentirá essa ridicula novella
que acaba de contar-vos este homem, para disfarçar o indigno recurso de
que se valeu para desvairar o cerebro e annular a vontade de uma virgem
pura e innocente como a propria innocencia!

--É justo--assentiu o Doge, dirigindo-se a Othello.--a tua causa está
bem apresentada e melhor defendida por ti mesmo; mas para tratarmos
d'ella equitativamente, é necessario ouvir as duas partes. Diz, pois,
onde se encontra Desdemona, e nós a faremos comparecer sem perda de
tempo para deixar ultimado este assumpto. Porque urge aclarál-o até ao
fim; se és realmente, como julgamos, digno da confiança que em ti
deposita a Republica, ao enviar-te hoje de novo a defendel-a contra os
seus inimigos, ou se terá razão o senador em te accusar com a aspereza
com que acaba de fazel-o; em tal caso, as leis do estado, que podem
alcançar a minha propria senhoria, haviam de alcançar-te tambem, fatal e
necessariamente. Responde, general, onde está Desdemona?

--A dois passos d'aqui, e nada mais facil, para vós, de que mandal-a
comparecer aqui e ouvirdes de seus labios as palavras que hão-de
perder-me ou salvar-me, visto que daes mais valor ao testemunho de uma
mulher do que ao juramento de um homem--respondeu Othello n'um tom de
sentida amargura.

--Como!--exclamou o Doge tão surprehendido como todos os circumstantes,
e sem prestar attenção na maneira como o mouro pronunciára as ultimas
palavras.--Dizes que está aqui Desdemona?

--Sim--respondeu o general--disse.

--Suponho--replicou gravemente o Doge,--que não ignoras que o sitio em
que te encontras é o menos a proposito para gracejos?

--Não gracejo nunca--respondeu com certo desdém Othello--Quando me
dispuz a seguir os individuos que me enviaste, e depois de ter ouvido
Brabancio insultar-me e ameaçar-me com pedir-vos justiça contra mim este
mesma noute, considerei, como era logico, que necessitaria apresentar a
melhor e a unica testemunha de confiança que póde fallar em meu favor.
Por conseguinte, pedi ao meu tenente Cassio que fosse onde estava
Desdemona e lhe rogasse em meu nome que o acompanhasse aqui, dizendo-lhe
do que se tratava. Ora bem; como estou convencido de que Cassio terá
cumprido as minhas ordens, pois é fiel e amigo até á morte, e jámais
desobedeceu a quem serve, respondo como já disse, que bastará que que
mandeis chamar Desdemona para que esta compareça ante o Conselho.

Com effeito, apenas o Doge deu a um porteiro ordem de que mandasse
entrar na sala a filha do senador Brabancio, esta apareceu vestida de
branco, com o traje de noiva que talvez não tivesse tido tempo ainda de
tirar. Surgiu bellissima na sua pallidez, e serena e firme como estatua
de Diana.

Brabancio e todos os circumstantes, exceptuando Othello, soltaram uma
exclamação de surpreza e assombro, ao vel-a apparecer como visão
celestial, e o Doge disse-lhe com voz affectuosa:

--Approxima-te, preciosa Desdemona, e nada receis, porque a lei e o
cavalheirismo te protegem!

A joven aproximou-se com passo certo e firme da mesa do Conselho, sem
parecer fixar a attenção em Othello nem no proprio pae, e parando a
respeitosa distancia dos juizes, perguntou:

--Que deseja sua Senhoria de mim?

--Que respondas, sob juramento, ás perguntas que vou fazer-te, sem que o
medo ou o pezo, nem nenhuma outra consideração humana, te façam occultar
a verdade. Comprehendeste?

--Perfeitamente--respondeu com sangue frio Desdemona--Devo advertir-vos,
Senhoria, de que não tenho de que recear, e menos de que me envergonhar,
e que os meus labios jámais se mancharam com a mentira.

--Acredito e applaudo-te com toda a minha alma--disse o Doge com
benevolencia--Agora, responde: conheces esse homem que está a tua
direita?--e apontou, indicando Othello.

--Sim, Senhoria, conhece-o e amo-o, porque é meu esposo ante Deus e ante
os homens, ha tres horas; juro-o por Christo crucificado, assim como
juro que esta noute, por minha propria vontade e sem que ninguem me
compellisse nem sequer aconselhasse, abandonei a casa de meu pae para o
seguir.

--Mentira! gritou o velho senador desvairado pela colera--Essa mulher
está louca, completamente louca! Se assim não fosse, nunca se atreveria
a dizer, deante de mim, seu pae, semelhantes vergonhas.

--Não são vergonhas, pae e senhor meu--replicou respeitosa mas
firmemente a joven;--mas simples verdades: deixei a casa paterna para
seguir meu marido, como, ha muitos annos, tu abandonaste aquella que era
tua para seguir tua mulher.

--Maldita, maldita sejas, filha desalmada e sem coração! Aborreço-te e
amaldiçoo-te, e nunca mais tornarás a vêr teu pae! Juro-o pelos santos
Evangelhos e pela fidalguia da minha raça. Adeus para sempre, e que a
minha maldição te persiga por toda a parte!

E completamente transtornado pela desesperação e pela ira que o
suffocava, o implacavel velho abandonou, tremendo e cambaleando, a sala
do conselho.

--Não chores, preciosa Desdemona, disse o Doge affectuosamente á joven,
ao vel-a enxugar as lagrimas que lhe inundavam as faces nacaradas.--A
colera de teu pae, ainda que injusta até certo ponto, é no entanto
explicavel.

«Mas espero que tão depressa recobre a tranquilidade e o sangue frio,
reflectirá e conquistarás de novo todo o seu carinho. No entanto,
continuou dirigindo-se a Othello, devolvo-te a estima e a confiança que
sempre tive no teu valor e na tua bem provada lealdade. Damos, pois, por
terminado este enfadonho assumpto, e dispoe-te a emprehender viagem sem
perda de tempo.

--Viagem! exclamou Desdemona estupefacta. Como, Senhoria! Ides affastar
assim de mim, tão de repente, o meu esposo, deixando-me na solidão e no
abandono mais desconsoladores?

--Assim é necessario, linda Desdemona! respondeu o Doge n'um tom
compassivo. Crê que o lamento com toda a minha alma, mas exige-o a
salvação e a honra da Republica.

--E onde o mandaes? perguntou a triste desposada com a maior amargura.

--A Chypre, que está ameaçada pelos turcos, e onde faz falta a presença
do general mais habil e valente que tem o estado, disse o Doge.

--Pois bem, respondeu a joven n'um tom de resolução inquebrantavel--irei
tambem com elle a Chypre. Não diz o Apostolo que a mulher deve seguir o
marido? Pois eu opponho-me com toda a minha alma a separar-me d'aquelle
que a Providencia collocou no meu caminho.

--Mas, e os perigos a que te vaes expor, indo na sua companhia? observou
o Doge.

--Não me importam. Seguil-o-hia, embora soubesse que caminhava para a
morte, respondeu a corajosa joven.

O Doge consultou Othello com o olhar, e este sentindo-se tacitamente
apoiado pela poderosa Senhoria, atreveu-se a dizer:

--Realmente, não vejo inconveniente em que minha esposa me siga, visto
não receiar os perigos que vamos correr juntos. Por outro lado, a mulher
de um guerreiro deve ser animosa, e além d'isto a sua presença, longe de
diminuir ou quebrantar o meu valor ou os meus talentos militares,
multipolical-os-ha até o infinito. Por consequencia, se sua Senhoria e o
sabio e prudente Conselho não se oppõem a tal resolução, levarei minha
esposa comigo á ilha de Chypre, para onde partirei d'aqui a uma hora.
Mas, proseguiu, olhando para Desdemona, para poupar os riscos da viagem,
peço ao Conselho que me auctorize a levar comigo todos os officiaes que
me são dedicados e que estão acostumados a combater sob as minhas
ordens. De este modo, se morrer em qualquer recontro com os turcos
durante a expedição, sei que o meu tenente Cassio e o meu alferes Iago,
que são meus irmãos de armas, velarão por minha mulher, como faria sua
propria mãe.

Assim ficou combinado e, passada uma hora, Othello e Desdemona, com os
officiaes favoritos do general, embarcaram em direcção á ilha de Chypre.

O que todos ignoravam a bordo, exceptuando o alferes Iago, que nem o
confessou á propria mulher, Emilia, aia de Desdemona, era que, no mesmo
navio que albergava os dois felizes esposos, ia tambem o nobre Rodrigo,
sobrinho de Brabancio e primo de Desdemona, da qual estava loucamente
apaixonado, e a cuja posse não renunciava, apezar de Iago lhe haver dado
a noticia de que n'aquella madrugada se realisára o matrimonio da joven.

Mas o alferes de Othello, dotado do maior cynismo, constando que o seu
nobre amigo se desesperava, renunciando para sempre ao objecto da sua
paixão ao comtemplal-o nos braços de outro, riu-se d'elle e quasi o
obrigou a que o acompanhasse a Chypre, disfarçado de marinheiro,
promettendo-lhe que, se, como havia dito antes, não lhe desobedecesse em
coisa alguma, e muito menos lhe negasse o ouro que corrompe todas as
consciencias, arranjaria tudo de fórma a n'um prazo curto, que nunca
excederia um mez, a candida e innocente prima cahiria, louca de amor,
nos braços do apaixonado primo.

Mas, o que pretendia o mizeravel com tudo isto, era, sómente, enriquecer
á custa das joias e do dinheiro de que havia obrigado a prover o ingenuo
Rodrigo, e ter este como uma corda mais no arco, para quando chegasse o
momento de disparar a envenenada flecha destinada a despedaçar o coração
do homem generoso que o acolhera sob a sua protecção e lhe déra a sua
amizade e o seu carinho, bem longe de suppôr que abrigava no seio a
vibora, que depois havia de causar-lhe a morte com a mordedura venenosa.

Mas não nos adeantemos aos acontecimentos, e sigamos passo a passo o
curso da terrivel tragedia que chegou a immortalizar a perfidia de um
invejoso e os ciumes de um amante, cujo unico crime consistiu em ser
propenso ás paixões, e dispôr de tempera superior áquella em que está
forjada a vulgaridade dos homens.




III

Em Chypre


Duas outras galeras com um bom numero de soldados e infinidade de
apetrechos de guerra, acompanhavam a capitanea que levava a insignia de
Othello, e na qual este ia com Desdemona, os officiaes e o sobrinho de
Brabancio, disfarçado de marujo.

Com estes tres barcos, sómente, contava o general africano defrontar a
poderosa esquadra turca, no caso de dar-se um recontro mais do que
provavel, visto que os ottomanos, a avaliar pelas ultimas noticias
recebidas no momento do embarque, deviam já navegar nas aguas de Chypre.

Mas o heroismo e o talento militar de Othello suppriam tudo, e as
tripulações dos tres navios confiavam tão cegamente no chefe, que quasi
desejavam esse recontro em vez de o recear.

Não obstante, a situação aggravou-se ao terceiro dia de viagem, até
tornar-se desesperada, pois que furiosa tempestade fez sossobrar as duas
galeras que acompanhavam a capitanea, e taes destroços causou n'esta,
que, deixando-a raza como um pontão e pouco menos do que sem governo,
pois o leme soffreu tambem graves avarias e as obras mortas ficaram
feitas em pedaços, converteu-a em débil joguete das encrespadas e
gigantescas ondas, que a faziam dançar sobre as espumosas cristas como
fragil casca de nós.

Ninguem, no emtanto, perdeu a coragem durante aquelle calamitoso transe,
apezar de todos estarem firmemente convencidos de que soára para elles a
ultima hora. Era que o exemplo de coragem e sangue frio de Othello e
sobretudo de Desdemona, que não se apartou do esposo um só momento
durante o perigo, seguindo-o por toda a parte com o sorriso nos labios e
resolvida a morrer com elle, communicára-se a todos, e ninguem, ainda
que a sentisse, queria dar provas de fraqueza, alli onde uma mulher era
a primeira a fazer galla do mais extraordinario heroismo.

Mas, por ultimo, no dia seguinte, e depois da noite verdadeiramente
horrorosa aquietaram-se os elementos, o furacão diminuiu a furia e foi
pouco a pouco acalmando até converter-se em brisa suave e acariciadora.
O mar, que durante vinte horas mortaes parecera um Leviathan furioso,
transformou-se, por fim, em Iago tranquillo.

Os afortunados viajantes, salvos por verdadeiro milagre, não tardaram em
encontrar, junto da desmantelada embarcação, terriveis e numerosos
indicios dos destroços que havia causado em taes paragens a formidavel
tormenta.

Uma coisa, não obstante, feriu a viva imaginação de Othello. Extranhou
ver a excessiva abundancia de cadaveres, restos de navios feitos em
pedaços e destroços de toda a especie que fluctuavam sobre as ondas.

Chegou um momento em que a ideia d'esses despojos o atormentára de tal
modo, que teve necessidade de communical-a a alguem, pois queria a todo
o transe ouvir, a tal respeito, outra opinião.

Chamou por isto o tenente Cassio e o alferes Iago, e sentando-se com
elles na tolda do navio, disse-lhes, mostrando o mar, que cada vez
apparecia mais juncado de cadaveres:

--Que me dizeis d'isto? Certo deve ter succedido grande catastrophe,
pois de outro modo não se explica que haja tantas victimas e tantos
restos de navios destroçados. Que opinião é a vossa?

--Se fosse a esquadra turca?--atreveu-se a insinuar o tenente Cassio
olhando para o chefe, em cujos olhos surprehendeu um relampago de
alegria, ao ver que encontrava alguem, e nada menos do que um homem
ponderado, que pensava como elle.

--Neptuno foi tão propicio durante a vossa viagem, general, disse por
sua vez Iago com servil adulação, que não admiraria nada que levasse a
protecção que vos dispensou até ao extremo de livrar-vos sem combate dos
vossos inimigos.

--De qualquer maneira, respondeu Othello, sorrindo affavelmente ao
alferes, seja ou não a Providencia que nos auxiliou, é indubitavel que
não podemos queixar-nos da sorte, e que esta corôaria dignamente a sua
obra e, ao chegar a Chypre, encontrassemos comprovada a opinião do
tenente Cassio que, seja dito com franqueza, foi tambem a minha.

Não tiveram de esperar pela chegada a Chypre para saberem da destruição
da esquadra turca, de modo innegavel.

N'aquelle mesmo dia encontraram uma lancha tripulada por seis naufragos,
todos soldados otomanos, os quaes, depois de serem recolhidos no navio e
tratados com todos os cuidados e attenções que a sua lamentavel situação
exigia, agradecidos á generosidade que Othello usava para com elles, lhe
contaram minuciosamente todos os detalhes da espantosa catastrophe, na
qual desapparecera toda a esquadra, exceptuando duas embarcações que,
partidas e sem léme, acabaram por perder-se no horizonte á vista dos
naufragos, sem que pudessem dizer o que fôra d'ellas; mas a julgar pelo
deploravel estado em que as havia posto a tempestade, era mais do que
provavel que houvessem acabado por ser tambem tragadas pelo Oceano.

Julgue-se, pois, a impressão que tão faustas noticias fariam nos ditosos
viajantes, que viam desapparecer n'um minuto os perigos que ameaçavam a
Republica de Veneza, para elles mil vezes mais temiveis e angustiosos,
pois lhes tinham ameaçado até então a popria vida.

Quando por fim a desarvorada galera capitanea fez a sua entrada
triumphal no bellissimo porto da ilha de Chypre, onde já era tambem
conhecida a destruição da esquadra turca, o regosijo e a alegria não
tiveram limites; Othello e Desdemona foram recebidos com o fervente
enthusiasmo que só se tributa aos heroes, e toda a população distincta
da ilha, com o governador Montano á frente, correu a visital-os ao
palacio em que se haviam installado, para tributar-lhes sincera e franca
homenagem de admiração e de estima.

Othello, pela sua parte, ao assumir, n'aquella mesma tarde, o comando
supremo de Chypre, decretou em nome da Republica veneziana festas geraes
durante todo o resto do dia e até á meia noute, para que o povo
celebrasse, cada qual consoante a sua vontade e gosto, o ter-se livrado,
tão feliz como inopinadamente, do terrivel e feroz inimigo que
pretendera apoderar-se da ilha.

Em seguida, e apenas anoiteceu, retirou-se para o Palacio em companhia
de Desdemona, pedindo a Montano para ainda fazer as suas vezes durante a
noute, pois alem de estar fatigado, devido á accidentada viagem, era
essa tambem a primeira noite em que, desde que se unira a Desdemona,
podia encontrar-se a sós e tranquillo com a formosa e virginal esposa.

Montano, como póde suppor-se, accedeu promptamente ao desejo do general
governador de Chypre, offerecendo-lhe cumprir o seu encargo de vigiar
cuidadosamente os guardas durante a noute, tanto para acudir ás
desordens e escandalos resultantes de todas as festas populares, como
para não abandonar a vigilancia do porto que, não obstante o desastre
casual soffrido pelos turcos, era presa demasiado cubiçada por elles
para se descurar, um momento que fosse, observando com semelhante
prevenção o famoso e prudente proverbio latino _si vis pacem, para
bellum_, que deve ser sempre a divisa de todo o bom militar.

Caiu a noute sobre Chypre com os melhores auspicios e em meio da alegria
de todos os seus habitantes que, já livres das tristes preoccupações que
os haviam atormentado até ali se entregaram inteiramente ao gozo das
festas que haviam organizado.

Ao dizermos todos os habitantes, devemos descontar dois muito nossos
conhecidos, que já não participavam do regosijo commum, e recolhidos
n'um angulo do edificio que servia de quartel á guarda encarregada da
vigilancia do porto, conversavam animadamente e em voz baixa de assumpto
que, a julgar pelo aspecto e gestos de ambos os interlocutores, devia
ser de grande interesse para elles.

Estes dois personagens eram Iago, o alferes de Othello e o seu nobre
companheiro Rodrigo, sobrinho de Barbancio e desprezado amante de
Desdemona, o qual não deixára ainda o disfarce de marinheiro, por assim
o ter aconselhado o amigo, como medida de prudencia.

O dialogo que segue porá os nossos leitores ao corrente do assumpto que
tratavam, e que, como já terão advinhado, não era outro senão o dos
desditosos amores da ingenua victima do alferes.

--A avaliar por quanto pude ver desde que sahi de Veneza, dizia Rodrigo
ao companheiro, asseguro-te que, se não fôres o proprio diabo em pessoa,
te será difficil que eu consiga o amor da minha bella prima, que dia a
dia me parece mais enamorada do horroroso marido.

--Trouxeste comtigo todas as joias e quanto dinheiro podeste reunir,
segundo prometteste? perguntou tranquillamente Yago, sem dar a menor
attenção ás palavras do amigo.

--Nas minhas malas tenho todas as alfaias de familia, que valem para
cima de dez mil escudos de ouro, e quasi outro tanto em moedas novas
venezianas e genovezas, respondeu Rodrigo.

--Com menos de metade se comprava, seduzia e conquistava uma rainha,
ainda que abrigasse no seio um coração mais duro que as afiadas garras
do leão de S. Marcos, disse o alferes em cujos olhos brilhou um clarão
de cobiça, ao ouvir as palavras do companheiro.

--Não proponho comprar Desdemona, replicou este, por duas razões: a
primeira porque a conheço bem e estou certo que não é mulher que se
venda; e a segunda porque receberia um amor que se daria por dinheiro e
não por natural correspondencia á paixão que inspira a mulher amada.

--Ta! ta! ta! cantarolou cynicamente Yago, tudo isso são cantatas, bôas,
quando muito, para servir de assumpto a rimances cantados por
trovadores, depois de opipara ceia em noute de festa. A tua bella prima
é como todas as mulheres, e todas as mulheres são como as andorinhas.
Namoram-se de tudo quanto brilha; por isso tua prima se enamorou de
Othello, porque a seus olhos brilhou mais do que todos os nobres
venezianos, devido ao inegavel esplendor das suas maravilhosas proezas.

--Que devo então fazer? perguntou Rodrigo, contemplando Yago com
irritação não isenta de espanto. Não me asseguraste que Desdemona está
enamorada do marido?

--Nem mais, nem menos, respondeu fleugmaticamente Yago. Mas, por
dizer-te que está enamorada, não significa semelhante affirmação que o
esteja sempre. O amor de tua prima, nobre Rodrigo, crê piamente no que
digo, pois sou homem de experiencia, não é amor verdadeiro, mas
ficticio; o que poderiamos chamar amôr de imaginação.

--Como! exclamou, cada vez mais surprehendido, o joven veneziano.

--O que acabo de proferir, continuou o alferes, é precisamente a phrase
approximada e perdoa que me gabe ao dizer-te que muito feliz fui em a
ter encontrado: um amor de imaginação. O brilho que vê em Othello, e que
a deslumbrou, não é outra coisa senão o que se vê nos heroes dos
romances, que é precisamente como se apresenta o marido aos olhos de
Desdemona. Ella vê o heroe, sempre o heroe. Pergunta-lhe pelo homem, e
não saberá responder-te.

--Porquê? perguntou Rodrigo, verdadeiramente interessado.

--Simplesmente porque o homem não existe para ella nem, felizmente para
o que respeita a Othello, se preoccupa de procural-o; no dia em que tal
faça, o marido está perdido e o mesmo será no dia em que o encontre.

--Não te comprehendo, interrompeu o joven veneziano, que, como todos os
seus eguaes d'essa epocha, estava pouco habituado a torturar o cerebro,
sentia enorme confusão perante semelhante embroglio para elle
inintelligivel.

--Porque não queres comprehender-me, replicou Yago com a mesma
tranquilidade do gato que brinca cem o rato. E se não, continuou
dizendo, ouve-me attentamente e verás como te explico tudo, em quatro
palavras, verás como entendes: tua prima é mulher, não é verdade?

--Essa é de cabo de esquadra! exclamou irritado Rodrigo. Pois que outra
coisa poderia ser?

--Não te abespinhes, homem, não te abespinhes! De vagar se vae ao longe
e nao tardarei em chegar onde quero, disse o alferes que, semelhante
n'isto a todos os miseraveis, se comprazia em atormentar a victima.
Responde: é mulher ou não?

--Quem duvida?

--Ninguem, por certo. Ora como mulher, necessitará de um homem que lhe
satisfaça as exigencias do organismo; um homem que ame fisicamente,
entendes-me agora, alma de cantaro? _fisicamente_, porque o amor
_fisico_ é o unico que póde convir á vida de uma mulher, quando as
paixões imaginativas e novelescas, como a agora experimentada por ella,
se evaporam e fogem ante a fortaleza brutal dos gritos da carne.

--Bem, de accordo, respondeu Rodrigo que ia começando a comprehender o
companheiro.--Mas aonde queres tu ir parar com todas essas philosophias?

--Simplesmente a uma conclusão que não admitte duvidas: tua prima está
hoje satisfeita e enamorada porque não vê mais do que o lado poetico do
marido, e ainda não se fixou na cara, linguagem, gestos, e no mais que
n'elle existe de tosco, de selvagem e de brutal. Mas como o seu amor não
póde alimentar-se de sonhos, e um beijo dado por uns labios humidos e
vermelhos vale mais para uma mulher do que toda a poesia do mundo, no
dia em que esse tigre africano despertar torpemente a carne da mulher, o
que n'este momento está fazendo, asseguro-te que, ou não ha senso commum
sobre a terra, ou apenas Desdemona se inteire do que então ignorava,
quer dizer, de que tem sexo, o negro estará perdido para ella, completa
e irremediavelmente perdido. Talvez, nas suas horas de tédio, o recorde
e até careça d'elle, como se recorda e se carece, em determinados
momentos, de uma historia interessante ou de um fragmento de poema; mas,
durante os parentesis da realidade, que são os maiores da vida,
precisamos todos, e ella tambem, coisa mais substanciosa e mais pratica:
o gastrónomo, carne fresca e appetitosa que desfaça nos dentes; e o
amante, carne mais fresca e mais appetitosa que lhe palpite nos braços!
Já vês que n'este pobre mundo tudo é questão de carne, meu caro amigo!
Ah! ah! ah!

E, ao dizer estas palavras o miseravel soltou uma gargalhada cynica e
estrepitosa, gozando em desfolhar, uma a uma, as poucas flôres da
illusão que ainda vicejavam no coração de Rodrigo.

--Assim, pois, continuou dizendo quando acabou de rir, confia em mim e
não tortures a cabeça com supplicios inuteis.

«A noiva de Othello será tua, porque assim jurei e não falto nunca aos
meus juramentos, disse com um sorriso de escarneo quasi imperceptivel. E
proseguiu acto continuo:

«Apenas terás de me ir entregando joias e dinheiro, á medida que eu vá
pedindo, para captivar com ellas o coração de minha mulher, que é o anjo
da guarda do Paraiso, e seduzir tambem a coração de Desdemona. Já vês
que sou imparcial na minha opinião com respeito a mulheres, terminou o
mizeravel, pois que não sendo a minha das peores, não lhe dou mais valor
do que positivamente tem.

--E julgas, realmente, que Desdemona se deixará captivar por fim, com
dadivas e presentes? perguntou o infeliz apaixonado, cuja certeza a
respeito da virtude da prima começava a fraquejar, combatida
simultaneamente pelos proprios desejos e pelas perfidas theorias do ruim
amigo.

--Dá tempo ao tempo e depois te convencerás do que digo, proseguiu Iago
com a firmeza de quem tem certo o triumpho.

«Dá-me tudo o que te pedir e deixa o resto por minha conta. Não te
preoccupes mais com tal assumpto e presta attenção, e ao dizer estas
palavras baixou a voz e adoptou uma attitude mysteriosa; ha outra coisa
e outra pessoa que constituem um grande perigo para os teus amores.

--Que queres dizer?--perguntou Rodrigo sobresaltado.

«Explica-te mais claramente porque os teus enigmas apenas servem para me
atormentar.

--Não tens reparado na assiduidade com que o tenente Cassio segue para
toda a parte Desdemona, e na singular preferencia que esta lhe dispensa
constantemente, mesmo na presença do esposo?

--É certo! exclamou Rodrigo empallidecendo; até agora ainda não tinha
dado importancia a semelhantes detalhes; mas acabas de abrir-me os
olhos, e não ha duvida que tens razão de sobra para assim fallares. Que
infame! acabará, talvez, por entender-se com Cassio, procurando n'elle o
homem a que ha pouco te referias? Se assim fôr, posso perder as ultimas
esperanças, pois o meu amor não se verá jámais correspondido!

--Enganas-te, porque estou eu aqui para o evitar respondeu Iago,
fingindo carinho affectuoso.--Tenho o meu plano. Esta noute preciso que
me ajudes, para varrer esse empecilho, de fórma que não torne a
molestar-nos em vida.

--Como?--perguntou Rodrigo.

--É muito simples; primeiro que tudo, é perciso fazer que Cassio, perca
a estima de que desfructa junto de Othello, e que este o demitta do seu
posto de tenente, para dar-m'o. D'este modo, affastado para sempre do
general, não terá pretexto para approximar-se de Desdemona e todas as
suas seducções e artificios resultarão completamente inuteis. Entretanto
eu, investido nas funcções do meu novo cargo, poderei converter-me em
sombra do mouro e, por conseguinte, de tua prima, e não me parece
necessario encarecer as vantagens que poderás tirar d'isto para os teus
amores.

--É certo!--exclamou o moço veneziano, contemplando com admiração e
gratidão o amigo--Mas como te vais arranjar para levar a cabo o teu
plano e em que poderei auxiliar-te?

--Da maneira seguinte: d'aqui a uma hora, pouco mais ou menos, vou cear
em companhia de Montano e de Cassio no quartel que existe n'este mesmo
edificio. O tenente é tão mau bebedor que não póde resistir a um só copo
do riquissimo vinho d'esta ilha. Ora bem; hei de fazer o possivel para
que beba dois ou tres, o que bastará para o embriagar como a qualquer
mendigo e, em seguida, busca sahir-lhe ao caminho e, sem o provocar,
farás que te dirija algum insulto, cousa que não será difficil, porque
quando está bebedo, é aggressivo. Replicar-lhe-has acto continuo e
continuarás discutindo até conseguires que te bata. Como farás tudo
isto, procurando não te affastares do quartel, onde se effectuará a
ceia, gritarás de modo que Montano e eu possamos ouvir-te. Então
acudiremos ambos, eu occupar-me-hei de ti, e deixaremos que os dois se
entendam, na certeza de que Cassio, homem sereno e senhor de si quando
está no estado normal, é indiabradamente provocador e insultante quando
se embriaga, o que lhe succede poucas vezes na vida, e não deixará de
puchar pela espada para responder com ella ás amigaveis indicações que
lhe dirija Montano; fará sangue, certamente, e então entrarei eu em
scena para armar tal escandalo, que Othello terá de inteirar-se
necessariamente do caso. Ora bem; como não transigiria nem com o proprio
filho em pontos de disciplina, surprehenderá Cassio em falta grave,
precisamente no momento de guarda, e affirmo-te que o teu provavel rival
não tornará a pôr no peito a divisa de tenente, que passará a ser minha,
e que, a partir d'esta noute, poderás viver completamente tranquillo.

--E estás bem seguro do teu plano?--perguntou Rodrigo ao alferes, quando
este acabou de narrar o infame projecto, que o joven veneziano escutára
com profunda attenção.

--Certissimo--respondeu Iago--Só preciso que prestes o serviço que te
peço.

--Conta comigo--prometteu o sobrinho de Brabancio, decidido a tudo para
conseguir o amor de Desdemona.

--Então, mãos á obra--respondeu o alferes levantando-se e apertando a
mão do companheiro.--N'este mesmo sitio estás perfeitamente para fazeres
quanto te indiquei, porque Cassio sahirá por aquella porta--apontou,
indicando uma que havia a poucos metros de distancia.--Espera-o aqui,
executa fielmente as minhas instruções, e não duvides de que o triumpho
será nosso.

E, acto continuo, o miseravel despediu-se do ingenuo Rodrigo e correu a
pôr em pratica o diabolico plano que concebera, não para ajudar o
companheiro nos seus amores, como promettera, mas para perder um
innocente a quem invejava, e supplantal-o no posto e no affecto de
Othello.

      *      *      *      *      *

Duas horas depois, o sino de alarme tocava desabaladamente no quartel
situado junto da doca do porto, pondo em alvoroço toda a ilha, que
começava a entregar-se ao somno passada a agitação da festa, e obrigando
a saltar do leito, em sobresalto, o proprio Othello, que repousava
docemente entre os bellissimos braços de Desdemona.




CAPITULO IV

O traidor


A minuciosa exposição que Yago fizéra a Rodrigo do plano que tinha
in-mente, bastaria para que os nossos leitores tivessem noticia exacta
de quanto havia succedido durante as duas horas que passaram desde a
separação dos dois amigos até o momento em que o inesperado toque do
sino de alarme levou a inquietação e o desassocego a todos os habitantes
de Chypre, incluindo n'este numero o proprio Othello.

Mas, se, para maior clareza da narração é imprescindivel por um lado
conhecer a descripção pormenorisada do succedido e assim chegar ao
desenlace d'esta tragica historia sem uma solução de continuidade que
prejudicaria notavelmente a comprehensão dos factos; pelo outro, seria
impossivel, omittindo tal narração, seguir passo a passo as
interessantes e accidentadas peripecias do complicado drama cuja base
principal assenta na ambição e na inveja de uma alma perversa, nascida
para a infamia e para o crime.

Assim, sigamos Iago no momento em que, ao separar-se do primo de
Desdemona, entrou no quartel onde, á entrada, o estavam esperando para a
ceia o tenente Cassio e o nobre Montano, governador da ilha de Chypre e
representante da Republica Veneziana, na ausencia de Othello.

--Boa noite, prudente Cassio; saude e prosperidade, illustre Montano,
cumprimentou o alferes ao entrar, dirigindo-se aos companheiros e
superiores.

--Graças a Deus que vieste; julgavamos que tivesses esquecido que te
esperavamos! exclamou Cassio ao vêr entrar o amigo.

--Pelo que prevejo, interrompeu Montano esboçando um sorriso malicioso,
este bom Iago, apezar de ter uma esposa deveras formosa, não faz má cara
ás mulheres do proximo, especialmente quando são jovens lindas; e como
abundam em Chypre as que reunem estas duas qualidades, graças sejam
dadas ao Amôr e a Venus, certamente se atrazou, dando uma volta pelas
ruas da ilha, com o perverso proposito de render alguns corações mais do
seu gosto.

--Acertaria no alvo o vosso gracejo, se visasseis o nosso tenente, que
tem, na verdade, fama de irresistivel com as bellas, replicou Iago
esboçando um sorriso intencionado, de que só elle percebeu a
transcendencia. Quanto a mim detesto as saias, por instincto de
conservação, e não trocaria uma só garrafa de bom vinho de Chypre por
todas as mulheres casadas, viuvas ou solteiras, que vivem na ilha.

--Parece-me, Iago, observou Cassio affectuosamente, que acabas de fazer
duas affirmações duplamente exaggeradas: uma, aquella em que alludes á
minha boa estrella junto das bellas, que seja dito de passagem, só
existe na tua imaginação, pois confesso-te que, até agora, não tenho na
minha folha de serviços uma só conquista que valha referencia.

--Nunca é tarde quando a sorte nos sorri, replicou astutamente Iago.

«Ha quem assegure que estás a caminho de entrar por assalto n'uma praça
que mais de um nobre veneziano, teu compatriota, invejaria.

--Não te comprehendo, respondeu Cassio com estupefacção tão profunda
como sincera retratada no semblante.

--Saibamos, saibamos que praça é essa e veremos se é digna de disputal-a
o bello Cassio! exclamou alegremente Montano.

--Se elle guarda segredo, não sou eu que tenho o direito de desvendal-o,
disse hypocritamente o alferes.

--Guardo segredo porque não sei a que aventura te referes, respondeu
Cassio de boa fé. Explica-te, peço, porque conseguiste intrigar-me.

--Modestia, pura modestia, discreção levada até á mudez! disse rindo o
alferes. Cassio, felicito-te porque és um cavalleiro digno de ter vivido
nos bons tempos do rei Arthur. Mas, continuou, dando deliberadamente
outro rumo á intencional charada, cada vez me convenço mais de que o
mundo está cheio de paradoxos e nós proprios o somos.

--Porquê? perguntou Montano com estranheza.

--Nada mais simples, respondeu Iago. Vocês esperavam-me com impaciencia,
o que evidentemente accusa um apetite devorador; por minha parte tambem
declaro que não vinha menos resolvido a entender-me com uma boa ceia.
Pois bem, em vez de aproveitarmos o tempo predispondo o estomago com
meia duzia d'essas veneraveis garrafas que nos escutam, para entrarmos
depois heroicamente pelos manjares, estamol'o perdendo lastimosamente,
fallando de mulheres, isto é, do assumpto menos substancial e mais
perigoso que pode tratar-se entre cavalleiros.

--Indubitavelmente esta noute estás pouco amavel e galanteador para as
damas, valente Iago, respondeu Montano rindo.

--Nem mais nem menos do que n'outras occasiões e nem menos nem mais do
que o merecem, disse Iago.

E passando em revista meticulosa as garrafas poeirentas que se viam
sobre a mesa artisticamente posta, pegou n'uma de respeitavel
antiguidade, a julgar pelo aspecto e pela marca que ostentava na rolha,
abriu-a e encheu de riquissimo e perfumado vinho os copos dos
companheiros e o d'elle. Seguidamente e sem dizer palavra, bebeu-o de um
trago e fez estalar a lingua com a placida expressão de um bebedor
satisfeito.

Montano fez com o copo o mesmo que Iago fizera com o d'elle; mas o
tenente Cassio contentou-se com leval-o aos labios e humedecel-os
ligeiramente com o dourado nectar.

--Como! exclamou Iago apparentando indignação e assombro ao ver que o
seu amigo voltava a por sobre a mesa o copo tão cheio como o levantára.
Não bebes comnosco, ou não aprecias este vinho, herdeiro directo da
sagrada ambrosia com que Jupiter obsequiava de vez em quando os seus
amigos do Olympo? ignoras, por ventura, desgraçado, que o vinho de
Chypre foi consagrado pela historia, atravez dos seculos, até que
vencendo o seu rival Falerno, teve a honra de toldar com frequencia o
cerebro de Alexandre, de produzir as gloriosas alegrias de Alcibiades,
de servir de vehiculo para o veneno que matou Britanico e de inspirar os
versos de Nero e os pontapés que o imperial artista dava em Popêa para a
expulsar dos festins, quando o estorvava nos seus desabafos amorosos com
os mancebos romanos? Ignoravas isto, infeliz? Pois bem, é um peccado de
lesa ignorancia, indesculpavel n'um homem ponderado como tu; mas, apesar
de tudo, Montano e eu perdoamos-te com a melhor vontade do mundo, dado
que honres o historico vinho como nós o honramos.

--Nunca bebo! respondeu gravemente Cassio.

--Porquê? perguntou com curiosidade Montano. É talvez algum juramento?

--Não, respondeu o tenente; a minha repugnancia em beber obedece sómente
a que o vinho me ataca de tal modo a cabeça, que basta um copo para
transtornar-me por completo e fazer de mim um homem absolutamente
diverso de que sou no estado normal.

--Mas ceando, aventurou Iago, é outra coisa, e affirmo que não te
succederá mal algum. Além d'isso, proseguiu alegremente para animar o
companheiro, estás entre amigos e, se a bebedeira te der para dormir,
mandar-te-hemos deitar n'um fôfo e confortavel leito, ou então
rir-nos-hemos se te der para nos insultar.

--Um homem embriagado é um ente desprezivel, e por cousa alguma d'este
mundo consentiria em chegar a semelhante e lastimoso estado.

--Pois bem, disse deliberadamente Iago; ceêmos; de qualquer forma,
affirmo que saberei obrigar-te a brindar comnosco, dado o caso que o
nosso exemplo não te leve por motu proprio a provar o historico nectar.

Acto continuo serviram-se os primeiros pratos, e durante minutos apenas
se ouviu o ruido produzido pelos dentes ao triturarem os tenros ossos
das presas que devoraram.

Inesperadamente Iago levantou-se e enchendo os dois copos que ainda
estavam vasios, pegou no d'elle e brindou:

--Pelo feliz matrimonio do nosso general e para que nunca veja
perturbado com a mais ligeira nuvem o céu de seus amores com a bella
Desdemona.

E dirigindo-se a Cassio, accrescentou:

--Atreve-te a recusar este brinde, e asseguro-te que Othello nunca te
perdoará a descortezia, se um dia vier a sabel'a.

Cassio vacillou um segundo; mas, instado por Montano, que juntou os seus
rogos aos do alferes, pegou no copo e bebeu-o de um trago dizendo:

--Á saude do general, e pela eterna felicidade do seu matrimonio!

E em seguida cahiu na cadeira, sombrio e taciturno, como arrependido de
ter quebrado tão facilmente a resolução de permanecer sobrio.

Continuou a ceia, animada pela pittoresca conversação do alferes e pela
alegria natural e espontanea de Montano, e, passado algum tempo, o
primeiro voltou a erguer-se, encheu novamente os trez copos, e disse
levantando o seu:

--Brindemos pela gloria e prosperidade de Veneza e pelo triumpho das
suas armas sobre todos os inimigos!

Montano e elle emborcaram os copos d'um só trago; mas o tenente, sem
despejar o seu, disse em tom resoluto:

--D'esta vez não beberei, já lhes fiz a vontade, apezar de contrariado,
e por isso espero que não insistam mais.

--Prevês o que se dirá, replicou Iago, sem dar importancia ás palavras
do amigo, quando se souber, e saber-se-ha comcerteza, porque as paredes
teem ouvidos, que não quizeste brindar pela gloria de Veneza, depois de
ter brindado pela felicidade do homem que te protege? Pois toda a gente
affirmará, continuou, sem parecer notar o olhar colérico que lhe dirigia
o companheiro, que não passas d'um adulador egoista, que pretende afagar
os poderosos, para medrar á sombra d'elles, e que, como florentino
afinal, te importa pouco que a Republica triumphe ou seja derrotada
pelos seus inimigos.

Cassio cravou no miseravel um olhar ameaçador e apertando
convulsivamente os queixos um contra o outro, como para conter as
palavras que estavam prestes a escapar-lhe dos labios, pegou no copo e
bebeu nervosamente até á ultima gôtta.

Outra vez proseguiu a scena, e foi então Montano quem, excitado já pelas
libações, ainda que bastante senhor de si, encheu os tres copos e disse
apresentando o seu:

--Pela total ruina do poderio turco, e para que o leão de S. Marcos
destroce, definitivamente, nas suas garras, a orgulhosa meia lua!

O tenente Cassio, sem que em tal momento tivesse ninguem que o
provocasse, foi o primeiro a tocar no copo do nobre anfitrião.

Mas, apenas bebeu o vinho que continha, soltou uma blasphemia, e
cravando no alferes os olhos esgazeados, cuspiu-lhe á cara este insulto:

--Iago, és um miseravel!

Immediatamente arremessou o copo contra o solo e sahiu, cambaleando.

--É melhor seguil-o, pois vae em mau estado e pode praticar qualquer
disparate! observou prudentemente Montano.

--Não te preoccupes com elle, illustre amigo, replicou Iago com
indifferença. Já desabafou commigo e agora irá direitinho deitar-se e
curtir a bebedeira.

«Conheço-o perfeitamente, pois ha muito tempo que o acompanho e sei que
isto lhe succede com frequencia.

--Como! exclamou Montano admirado. Pois não nos affirmou que nunca bebe?

--Ora! respondeu o miseravel. Isso dizem por causa do general todos os
bebedos que resistem pouco e teem, além de medo, mau vinho!

«Aposto dez escudos de ouro em como terás encontrado em tua vida muitos
homens, que, como Cassio, teem, poderiamos assim chamar-lhe, o pudor da
bebedeira, porque, quando recobram a razão, se envergonham da conducta
que tiveram durante o estado de embriaguez.

«Isto, porem, rematou Iago, com malevola intenção, não os impede de
tornar a beber, fazendo-se algo rogados para cobrir as apparencias e
desculpar o juramento que costumam fazer a miudo, e de que se
arrependessem nas occasiões opportunas.

--É certo! disse Montano convencido. Confesso, porém, ter chegado a
acreditar ser Cassio um homem de caracter, incapaz das ridiculas pechas
dos espiritos fracos. Desprezo os homens que não teem o valor da
convicção das suas qualidades e dos seus vicios, e nunca pensei que o
tenente de Othello pertencesse a semelhante classe de individuos.

--Porque não o conheces, volveu perfidamente Iago. Quanto a mim, estou
habituado a estas scenas, e, como sempre que bebe, me insulta, ouço os
ultrages como quem escuta a chuva. Isto te foi dado observar ha pouco.

--Sem duvida, disse Montano n'um tom affectuoso. Bem pode dizer esse
bebedo que tem em ti um verdadeiro amigo.

--Sim, estimo-o, respondeu Iago, e prefiro, por isso, que desabafe
comigo, a que o faça com outro qualquer; pois o insulto poderia
acarretar-lhe desgosto sério, como já por vezes tem estado a ponto de
succeder-lhe, quando não me encontro junto d'elle.

--Mas, pôe-se de tal modo quando bebe? Perguntou Montano.

--É verdadeiramente insupportavel; para qualquer outro que não tenha a
minha paciencia, torna-se aggressivo e turbulento, e não ha meio de
reprimir-lhe as insolencias senão castigando-o severamente.

--N'esse caso, observou Montano em tom de pezar, repito que fizemos mal
em o deixar sair d'aqui... Quem sabe, se...

Não poude terminar a phrase, porque n'aquelle momento faziam-se ouvir,
não longe d'ambos, os gritos espantosos de um homen que pedia auxilio
desesperadamente, e antes que tivessem tempo de se refazerem da
surpreza, entrou na sala, com flecha, um individuo vestido de
marinheiro, que vinha seguido de perto pelo tenente Cassio. Este
proferia a tropel blasphemias e maldições agitando a espada que
empunhava.

--Hei de espetar-te como um frango, meu grande tratante! gritou o
tenente ao entrar em casa, apóz o marinheiro, o qual, como já terão
adivinhado não era outro senão Rodrigo, que havia seguido fielmente as
instrucções dadas por Iago para a execução do plano.

--Socorro, socorro, que me mata! gritou Rodrigo com voz que reboou por
todo o edificio, despertando os homens de armas.

--Alto ahi, amigo Cassio! exclamou Montano severamente. O que fazes não
é proprio de cavalleiro!

--Se ha aqui alguem que não seja cavalleiro, esse és tu, covarde
defensor de malandrins, respondeu gritando Cassio, emquanto ameaçava de
tal modo Montano com a ponta da espada, que o defensor de Chypre teve de
dar um salto para traz e arrancar da que trazia para defender-se, pois
corria o risco de ter o peito atravessado pela lamina do adversario.

Limitou-se, porém, a aparar os ataques furiosos que lhe dirigia o
tenente, completamente fóra de si, emquanto Rodrigo, Iago e os soldados
que haviam acudido, armavam tal barulho com as exclamações e gritos, que
o escandalo não tardou em propagar-se desde o porto até ás primeiras
ruas da ilha cujos pacificos habitantes perguntavam assustados o que se
passava, julgando-se ameaçados por qualquer invasão de turcos.

Entretanto seguia Montano defendendo-se dos ataques do tenente. Mas, num
movimento que fez, ao aparar terceira estocada, teve a desgraça de
ferir-se, ficando a descoberto, e recebendo em pleno peito a ponta da
espada do adversario, que se lhe enterrou duas pollegadss na carne.

Cahiu no solo o nobre patriota, emtanto que os soldados conseguiam
desarmar Cassio, que ficára como attonito ao ver Montano por terra.
Entretanto Iago escapou-se sem ser visto e logrou assim chegar até o
sitio onde estava a sineta de alarme, pela qual puxou furiosamente por
bom espaço de tempo.

Os repetidos e violentos toques acabaram de pôr em alvoroço toda a ilha,
cujos moradores saltavam apressados dos leitos, tomados do maior panico.

Armou-se uma confusão indescriptivel, e um dos primeiros a abandonar o
repouso e armar-se foi Othello, que, depois de acalmar quanto possivel a
inquietação de Desdemona, sahiu do palacio, seguido de alguns officiaes,
para inquirir as causas de semelhante escandalo nocturno.

Não tardou em averiguar que a origem do reboliço partira do corpo da
guarda situado no porto; e quando, ao apresentar-se alli, encontrou
Montano ferido, Cassio desarmado e preso de um atordoamento
indiscriptivel, que lhe impedia dar qualquer explicação, e Iago
lamentando-se tragicamente do occorrido, ficou profundamente admirado;
não tardou, porém, em succeder ao assombro uma cólera tal, que fez
estremecer de terror quantos conheciam os terriveis arrebatamentos de
tal homem, exceptuando o alferes que, longe de atemorizar-se ao ver o
general dementado pela colera, sentiu o maior jubilo, enforçando-se
todavia para não o dar a conhecer, porque, por muito, que devesse
regosijar-se ao ver o exito alcançado pelo seu infame plano, a
manifestação mais ligeira de tal regosijo teria sido uma imprudencia que
lhe podia custar cara.

Conseguintemente, em vez de se mostrar satisfeito, accentuou mais ainda
a tristeza da attitude e o tom das lamentações, e quando Othello lhe
ordenou severamente que o informasse de todo o occorrido, o miseravel
fez um relato permenorisado, tratando de desculpar apparentemente o
amigo, mas, na realidade, aggravando de tal modo a sua conducta e as
consequencias possiveis do escandalo a que havia dado logar em taes
circumstancias, empregando phrases tão campciosas como intencionadas,
lamentando com tão bem simulada sinceridade que por uma ligeira
imprudencia, segundo elle dizia, se tivesse chegado até ao extremo de
tocar o sino de alarme e interrompido o somno do seu general; fez
resaltar, em seguida, com, tão perfida astucia, o desastroso effeito que
a grave ferida do nobre compatriota podia causar nos habitantes da ilha,
ainda que, segundo accrescentou, Cassio nunca fizera tal cousa a não ser
sob o imperio da embriaguez; apresentou n'uma palavra, tão avultados os
factos, fingindo diminuil-os, que, quando acabou a narração,
condimentada com protestos de lealdade para com Othello e de sincero
affecto para Cassio, o general completamente enganado pelas palavras do
traidor, e muito mais irritado contra o tenente do que antes de ter
ouvido Iago, estendeu-lhe afectuosamente a mão, e disse:

--Vejo que te conduzes para comigo com a mesma prudencia e fidelidade de
sempre, emquanto este homem, e indicou Cassio que permanecia a alguma
distancia, aguardando ordens e já completamente sereno, abusa da minha
confiança pelo modo indigno como procedeu esta noute.

«Pois bem: saberei dar a cada um o que em justiça lhe corresponde. Tu,
meu bom e fiel Iago, não continuarás muito tempo sendo alferes,
prometto; e quanto ao que diz respeito, accrescentou levantando a voz e
dirigindo-se a Cassio, a partir d'este momento ficas exonerado do teu
cargo de tenente e privado da minha amizade, de que tão indigno te
mostraste.

--Mas general, tratou de intervir hipocritamente Iago, emquanto lhe
brilhava nos olhos um fugitivo relampago de infernal alegria, vêde que o
castigo é excessivo para a falta!

--Se é, ou não só me compéte julgal-o, replicou Othello. Silencio e
acompanha-me ao Palacio.

E, levando após si o traidor e o jubiloso alferes, Othello abandonou o
corpo da guarda, deixando Cassio, entregue á desesperação que lhe
causava o ignominioso castigo que acabava de soffrer e ver-se privado do
affecto e estima de um homem a quem realmente amava como a irmão.




V

O lenço


Montano, cujo ferimento não era tão grave como todos haviam imaginado,
principalmente como Iago havia feito suppôr a Othello, foi o primeiro em
interceder a favor de Cassio para que se não attentasse contra a
liberdade do tenente deposto; e esta intercessão, unida aos costumes da
epocha, infinitamente mais tolerantes de que os actuaes especialmente
com os que diziam respeito ás questões sangrentas derimidas entre
cavalleiros, foi o sufficiente para que ninguem se preoccupasse com o
desditoso official e o deixassem viver tranquillo.

Mas, como se comprehenderá, esta tranquilidade só podia referir-se ao
que representava a segurança pessoal de Cassio; o que pouco lhe
importava, preoccupado como estava, até á desesperação, pelo castigo que
lhe haviam imposto: o mais doloroso que poderia ter soffrido,
especialmente se levarmos em conta que a esse castigo ia unida, como
dissemos no capitulo presente, a privação da amizade e da estima do
chefe.

Cassio, pois, não parecia o mesmo desde a amaldiçoada noute em que se
desenrolaram os lamentaveis factos que narrámos; concentrando-se
constantemente no desconsolo e na tristeza mais profunda, permanecia
sempre só, fugindo do convivio e da vista das pessoas e, mais do que de
ninguem, do infame Iago; pois que uma especie de presentimento o fazia
advinhar, ainda que muito vagamente, a parte activa que o miseravel
tomára em todos os acontecimentos.

Não obstante, um dia em que segundo o costume que havia adoptado desde a
noute fatal, se entregava aos seus solitarios passeios á beira mar, viu
approximar-se o alferes de Othello, o qual se lhe dirigia com o sorriso
nos labios.

Em tal sitio, onde não havia nenhuma casa, era impossivel a Cassio
occultar-se, escapulir-se, ou responder com despreso ao cumprimento que
lhe dirigiu o alferes; tal procedimento constituiria imprudencia
perigosa, tanto mais que carecia de base solida em que apoiar as
vehementes suspeitas que contra elle abrigava.

Por conseguinte fez das tripas coração, como se diz vulgarmente, e,
ainda que com instintiva e invencivel repugnancia, correspondeu ao
amigavel sorriso de Iago e apertou a mão que este lhe estendia, e que de
boa vontade esmagaria entre os dedos.

Em breve a repulsão e antipathia começaram a dissipar-se lentamente,
para dar logar á surpresa e ao assombro, quando ouviu fallar o alferes,
que se expressava d'este modo:

--Acredita, caro Cassio, que lamento o succedido, ainda mais
profundamente que tu; pois não ha duvida de que, em rigor, eu sou o
unico causador de tudo o que deu motivo a tão lamentavel occorrencia,
com a minha insistente imprudencia, obrigando-te a que bebesses.
Conhecendo-te como te conheço e sabendo o inimigo que és do vinho, e que
não resistes a um só copo, o meu dever era evitar a todo o transe a
tentação de brindar, em vez de induzir-te estupidamente a tal. Foi o que
fiz, em má hora para todos. Perdoa-me, pois, como me perdoou Montano, de
cujo ferimento sou o verdadeiro culpado, ainda que indirectamente, e ao
qual já dei as explicações que devia para justificar-te a seus olhos
como mereces; perdoa-me, repito, e acredita que, se á custa do meu
sangue pudesse evitar por completo o occorrido e fazer desapparecer as
suas consequencias, fal-o-hia de boa vontade.

Cassio deixou fallar Iago sem o interromper, e embora as palavras do
alferes causassem n'elle á medida que o traidor as proferia, a extranha
impressão que dissemos anteriormente, limitou-se a responder com visivel
frialdade:

--Bem! Quem se lembra já de semelhante cousa? O que está feito, está
feito, e o melhor que podemos fazer é esquecer.

--Não, por Deus, querido Cassio!

«Eu, pelo menos, longe de esquecer, devo recordar constantemente, para
que, servindo-me de exemplo esta rematada asneira, me impeça de para o
futuro praticar outra egual. Depois, proseguiu alegremente, isso de o
facto não ter remedio parece mais conforme com o fatalismo do nosso
general, do que com a grandeza de criterio de um sabio florentino como é
o tenente Cassio.

--Já não sou tenente de Othello, replicou Cassio com tristeza. Estavas
presente quando me depoz e me negou a sua amizade.

--Se o não és, não tardarás em sel-o de novo, affirmou intencionalmente
Iago.

--Que queres dizer?--perguntou Cassio, cada vez mais surprehendido e
começando a arrepender-se finalmente de ter suspeitado da amisade do
alferes.

--Quero dizer--respondeu este dando-se ares de protecção carinhosa para
com o antigo camarada,--que conheces mal os homens e que és demasiado
leviano para te entregar á desesperação.

--Que conheço mal os homens?--exclamou Cassio corando, pois que
adivinhava a quem a phrase intencional do amigo visava.

--Sim, conhecel-os mal--insistiu Iago--e desconfiaste de mim. Vamos,
confessa--accrescentou batendo affectuosas palmadas no hombro do amigo.

--Juro-te...--replicou Cassio.

--Não jures--interrompeu-o o alferes--porque mentirias, e isso é indigno
de ti. Mas para vingar-me como devo da maneira como pensaste a meu
respeito, vou castigar-te dizendo que, á força de atormentar o cerebro
procurando a maneira de remediar efficazmente todo o occorrido, estou
seguro de ter dado com um meio que, não só te devolverá o posto, mas que
te ganhará tambem de novo a amisade e a estima de Othello.

--Como! exclamou Cassio, admirado, estreitando agradecido a mão do
alferes.

--Muito simplesmente--respondeu este--por meio de Desdemona.

--De Desdemona? Não te comprehendo--disse Cassio.

--Pois a coisa não pode ser mais clara--replicou Iago com convicção
absoluta.--Vejamos: não foste tu, durante muito tempo, o unico
confidente dos amores de Othello e da bella filha de Brabancio?

--Certamente--respondeu Cassio, mas ignoro como podeste saber isso, que
é segredo para toda a gente.

--Menos para minha mulher Emilia--rectificou Iago--pois Desdemona não
tem segredos para ella. Mas, adiante; fallemos do que importa. Assim
pois, a esposa do nosso general deve estar, e está, profundamente
agradecida, pois deve-te primeiro que tudo, a felicidade de que
disfructa e o amor de Othello. Além d'isto, consta-me que tem em grande
estima o teu cavalheirismo e o teu talento, e que te aprecia tanto
quanto póde apreciar outro homem uma mulher apaixonada do marido.

--É certo--concordou ingenua e modestamente Cassio--que Desdemona me
distinguia entre os outros officiaes do seu esposo. Mas d'esta
distincção á sympathia que dizes dispensar-me, ha muita distancia, e
creio que a tua grande estima por mim, te faz exagerar e não pouco.

--As mulheres não sabem equivocar-se, nem exagerar n'este
sentido--replicou perfidamente Iago--e a minha assegurou-me o que te
acabo de dizer, por tel-o ouvido dos proprios labios de Desdemona.

«Que dizes agora a isto?

--Digo--respondeu Cassio, córando, pois sem saber porquê sentia a
vaidade ferida com as palavras do bandido--que mesmo que assim fosse,
qual a vantagem que me advirio?

--Ainda o perguntas?--inquiriu Iago, simulando a mais perfeita
admiração. Perdoa dizer-te que és o mais innocente dos mortaes, pois só
uma candidez como a tua póde ignorar que, quem como tu, tem pela sua
parte a mulher, conta tambem sem duvida, com o marido.

--De que forma?--perguntou Cassio, sem comprehender onde queria chegar
Iago, que não fazia mais do que seguir a linha que traçára ao infame
plano para envenenar o coração de Othello e anniquillar-lhe a
existencia, destruindo a felicidade que elle encontrava no amor da
esposa.

--Assombra-me a tua innocencia, ingenuo Cassio! exclamou
Iago.--Perguntas-me de que modo has de arranjar-te para chegares até
Othello tendo por mediadôra Desdemona?

--Sim, pergunto--confirmou, porque não vejo meio de me approximar da
esposa do general, estando-me prohibida, ainda que tacitamente, a
entrada no palacio.

--Indubitavelmente, se não tivesses quem te ajudasse--respondeu o
miseravel--não te seria muito facil, não. Mas quem conta, como tu, com
amigos resolvidos a tudo para te ajudar, consegue o que quer, se tem a
coragem precisa para ganhar a partida.

--Como!--exclamou Cassio reconhecidissimo--Acaso tu?...

--Eu, precisamente não,--interrompeu-o o alferes; mas sim minha mulher,
que, compadecida de ti e convencida pelas minhas supplicas, cedeu, a
proporcionar-te uma entrevista com Desdemona, que sabe o que se passou e
pende para o teu lado.

--E accedeu a receber-me?--perguntou anciosamente o tenente.

--Ás primeiras palavras que Emilia lhe disse intercedendo por
ti--respondeu Iago,--e accrescentou que te receberia com muito gosto e
que, com maior ainda, intercederia por ti junto do esposo, convencida
d'antemão que alcançará o perdão da tua falta, fazendo que sejas
reintregrado no posto de tenente.

--E quando julgas que lhe poderei fallar?--interrogou Cassio, com
justificada impaciencia.

--Quando te agradar; agora mesmo, se quizeres--disse Iago.

--Agora mesmo?--exclamou Cassio surprehendido.--Está então prevenida da
minha provavel entrada no Palacio?

--Desde esta manha, segundo me informou minha mulher. Apenas chegues,
Emila conduzir-te-ha á sua presença.

O leal e ingenuo Cassio estreitou carinhosamente entre os braços o
ignobil amigo, e disse-lhe com a voz tremula de commoção:

--Perdoa-me, caro Iago, pois tinhas razão quando disseste que chegára a
duvidar de ti! Perdoa-me, repito, pois se soubesses que só e desgraçado
me encontrava!...

--Não fallemos mais em tal!--interrompeu Iago dando-se ares protectores.
Eu teria pensado o mesmo, e talvez não tivesse tido a nobreza de o
confessar, como acabas de fazer. Esqueçamos, pois, essas criancices,
occupemo-nos sómente da tua completa rehabilitação junto de Othello.
Estás decidido a fallar com Desdemona esta noite?

--Quando quizeres--respondeu Cassio, que se sentia tornar á vida desde
que, com as palavras do falso amigo, lhe havia dado entrada no coração a
esperança.

--Pois vamos, e não percamos tempo--disse Iago tomando o braço do
camarada e encaminhando-o para o Palacio.--Consta-me que Othello não se
encontra agora no Palacio e, por conseguinte, não póde haver occasião
tão opportuna como esta para encontrar Desdemona só e poderes fallar da
tua causa com o maior enthusiasmo; ainda que, como já te informei, pouco
terás a dizer, porque a esposa do general é em teu favor e defenderá a
questão até conseguir ganhal-a, sem duvida alguma.

--Tenho um escrupulo--observou Cassio, parando, em seguida, e obrigando
Iago a deter-se.

--Qual?--perguntou este, franzindo ligeiramente as sobrancelhas, porque
se Cassio não se prestasse a seguil-o, cahiria pela base todo o edificio
do infame projecto que tramára para acabar de perder quantos lhe eram
odiosos.

--Se Othello--respondeu Cassio,--sabe que visitei o palacio e fallei com
a esposa a occultas, isto longe de predispol-o em meu favor,
irrital-o-ha mais ainda contra mim do que já está. Perderemos então
terreno, em logar de o ganhar.

--Em primeiro logar--ponderou astutamente Iago,--Desdemona se
encarregará de lhe explicar satisfactoriamente tudo, com o que ficará
bastante justificada a tua conducta; depois, este passo acabará de o
convencer de que estás decidido a tudo para recuperar a sua estima e
affecto.

«Além de que--terminou--o mais provavel, poderemos dizer o quasi certo,
é que não chegue a saber da tua visita ao castello, pois entrarás por
uma porta occulta e minha mulher estará esperando, para levar-te á
presença de Dedemona, sem que possa surprehender-te nenhum corioso
indiscreto. Já vês, que tudo está bem preparado e que não tens nada a
recear.

Para fallarmos a verdade, tal mysterio, tal jogo de palavras e de
precauções para afinal penetrar clandestinamente e como um ladrão na
moradia do seu antigo general, nada menos que para fallar a Desdemona
sem consentimento do esposo, não acabaram de convencer o leal e honrado
official de Othello; mas como, apesar de tudo, não tinha por onde
escolher e queria a todo o custo recuperar o cargo perdido e a affeição
do chefe, deixou-se levar docilmente pelo infame amigo até ao palacio do
governador, no qual entrou, como havia dito Iago, por uma porta occulta,
junto da qual o deixou o alferes, affirmando-lhe que o viria buscar mais
tarde para que o puzesse ao corrente do resultado da entrevista, ainda
que este não podia ser senão completamente satisfatorio.

Conforme disséra Iago, Emilia esperava Cassio por detraz da tal porta, e
apenas o tenente entrou, conduziu-o, atravez de corredores e galerias
estreitas, até aos aposentos de Desdemona, sem que ninguem suspeitasse
da sua mysteriosa visita ao Palacio.

A pura e formosissima esposa de Othello, que realmente apreciava Cassio,
cujas excellentes qualidades conhecia e estimava, bem como a cega
dedicação do official pelo mouro, recebeu-o affectuosamente, ouviu-o com
a attenção e benevolencia de uma irmã e prometteu alcançar o perdão de
Othello, ao qual fallaria em seu favor n'aquella propria noute,
explicando-lhe a verdadeira causa do succedido, e apresentando o
cavalheiroso e leal Cassio tal como este realmente era, e não como o
havia feito apparecer aos olhos de todos e, principalmente aos do
general, um conjuncto de circumstancias desgraçadas.

Cassio, derramando lagrimas de gratidão, ajoelhou ao despedir-se, para
beijar a mão da sua protectora, vendo, louco de alegria, que voltava a
brilhar para elle o sol da esperança.

Desgraçadamente, no momento em que pousava os labios na nivea mão de
Desdemona appareceu Othello ao fundo do largo corredor que dava accesso
ao salão em que se encontravam a esposa e o tenente.

O general, que vinha acompanhado de Iago, estremeceu violentamente ao
ver Cassio de joelhos ante a esposa e beijando-lhe a mão.

A colera que experimentou só póde comparar-se ao indescriptivel assombro
que lhe tomou os sentidos durante alguns momentos, deixando-o cravado no
mesmo sitio e sem poder pronunciar uma só palavra. Quando tornou a si e
seguiu avançando até onde se encontrava sua esposa, Cassio já tinha
desaparecido, pois que a inesperada presença do general desconcertou-o
de tal modo, que, sem prever as consequencias da sua fuga, nem atender a
outra cousa do que ao receio de se encontrar frente a frente com Othello
depois do imprudente passo que acabava de dar, abandonou o salão
precipitadamente, sem dar attenção ás observações de Desdemona, que o
aconselhava a ficar.

--Desde quando é permittido a esse bebedo e mal educado cavalheiro
entrar em minha casa sem eu saber e atrever-se nada menos do que a
beijar de joelhos a mão de minha esposa? perguntou Othello á jóven, em
tom irado.

--Cassio não é nenhum bebedo e tão pouco mau homem respondeu docemente
Desdemona. Pelo contrario, é o amigo mais fiel e mais leal que tens, e
ha muito tempo que o provou, ajuntou ella olhando para Othello
intencionadamente e alludindo aos valiosos serviços que o official havia
prestado a ambos durante o periodo dos seus amores em Veneza e ás
occultas do senador Brabancio, seu pae.

--Sei perfeitamente o que devo a respeito da lealdade d'esse e de todos
os meus amigos, replicou brutalmente o mouro, sem necessidade de que
ninguem mo recorde.

«De hoje em diante prohibo-te terminantemente que recebas nos teus
aposentos qualquer homem sem o meu consentimento e, muito menos,
individuos que, com a sua desprezivel e escandalosa conducta, se
tornaram culpados do meu justo despreso.

--De boa vontade te obedecerei n'isto como em tudo, e não receberei
jamais nenhum homem sem que tu me auctorises a tanto, respondeu com
doçura angelical a bella esposa do ciumento e apaixonado mouro. Mas, por
esta vez, te rogo, meu querido amigo, que perdoes a Cassio e lhe
devolvas a estima e o affecto que d'antes lhe dedicavas e que tanto
merece.

--Não quero, entendes? não quero tornar a ouvir pronunciar em minha
casa, e muito menos aos teus labios, o nome de tal homem. Ouves? Pois
bem, aconselho-te que não o esqueças, pois não gosto de repetir as
ordens que dou, rugiu Othello.

--Não esquecerei, esposo meu, disse Desdemona, sem perder nem um
instante a inalteravel doçura. Mas asseguro-te que, tu, tão prudente e
generoso sempre, és injusto n'esta occasião com o pobre Cassio.

--Outra vez? gritou o mouro fóra de si. E sentindo que a cólera que o
dominava o arrastava a uma brutalidade, da qual teria de arrepender-se,
abandonou precipitadamente o quarto, dizendo com voz agitada para o
alferes: Segue-me, Iago!

O infame não fez repetir a ordem, e sahiu na esteira do general, não sem
fazer um profundo e servil cumprimento a Desdemona.

Quando se encontrou no corredor só com Othello, começou a murmurar em
voz baixa:

--Que imprudentes! Quem o tivera advinhado! Chama-se a isto jogar com a
propria vida!

Othello, que apezar da ira que o dementava, ouvira perfeitamente as
insidiosas palavras do alferes, que com tal proposito as havia dito,
embora apparentando fallar para si, agarrou violentamente Iago pelo
pescoço, de tal modo que esteve a ponto de o estrangular e
perguntou-lhe:

--Que dizes, mizeravel? quem são os imprudentes e os que jogam com a
vida?

«Atrever-te-hias a suspeitar, infame, de minha esposa, da minha
Desdemona?!

«Falla, cão, ou morrerás ás minhas mãos, aqui mesmo!

Iago não respondeu, pela simples rasão de que não podia fallar, apertado
como estava entre os ferreos dedos do furioso africano.

Mas, levando a mão ao bolso, tirou d'elle um lenço de seda, bordado nos
quatro cantos, e estendeu-o a Othello, emquanto fitava eloquentemente o
marido de Desdemona.

Este retrocedeu alguns passos, como horrorisado, e fixando no lenço um
olhar de louco, murmurou com phrases entrecortadas, a voz cheia de
angustia:

--Como! O meu lenço!

«O lenço que era uma reliquia de minha mãe e de que fiz presente a
Desdemona como a joia mais preciosa que possuia! A melhor prenda dos
nossos amores em mãos extranhas!...

«D'onde o roubaste, traidor?--gritou a Iago, prompto a lançar-se de novo
a elle.

--Cassio! Cassio é que o tinha e tirei-lh'o! apressou-se a responder o
alferes, receando realmente pela sua vida, ao vêr a espantosa attitude
de Othello.

--Tinha-o Cassio?--rugiu o mouro.

«Ira de Deus! Mas isso é impossivel! Impossivel!

«Mentes, traidor, infame! Diz-me que mentes ou te arranco as entranhas!

--Não o posso dizer, general, porque sou demasiado fiel para vos
enganar.

«Esse lenço, que nunca vos mostraria, a não ser n'um caso especial como
o de hoje, para salvar a minha vida, tirei-o a Cassio, repito, e a elle
o havia entregado Desdemona alguns dias depois do vosso casamento. Eu
proprio, que estava occulto, a alguma distancia, pois suspeitava
d'ambos, lh'o vi dar!

«Juro-vos que daria a vida para não despedaçar o vosso coração como o
faço n'este momento; mas ordenais-me que falle e não tenho outro remedio
senão obedecer.

Othello, cuja bronzeada pelle se havia posto repentinamente côr de
cinza, quiz pronunciar algumas palavras, mas não poude; arrancou a gola
do gibão que o apertava, soltou uma especie de suspiro rouco, como o
estertor da agonia, e o seu athletico corpo de gigante cahiu sobre o
tapete, debil, apesar das herculeas forças, para resistir ao furioso
furacão das selvagens paixões que a intriga do infame Iago lhe
desencadeára na alma.

O miseravel, ao ver cahir o desditoso esposo de Desdemona, esboçou um
sorriso horrivel e murmurou entre dentes:

Isto vae ás mil maravilhas, e já falta pouco para o fim.

«Que bruto, hein? Se não venho preparado com o lenço, matava-me com
certeza! Verdade seja que isto adeantou os successos, que nada perdi com
passo!

«Agora vamos chamar soccorro, pois não quero que morra antes de que
tenha despachado os outros e eu arredondado a minha fortuna, para o que
tenho á mão esse imbecil de Rodrigo e o cargo de tenente que deixou vago
esse outro imbecil de Cassio.

E, ditas estas palavras com sangue frio e cynismo espantosos, junto do
inanimado corpo de Othello, o traidor revestiu uma apparencia de dôr e
de lastima que teria invejado o mais habil farçante do tempo, e foi
correndo em busca de soccorros para a sua infeliz e crédula victima.




CAPITULO VI

Os embaixadores


A terrivel crise soffrida por Othello, em consequencia das infames
calumnias urdidas por Iago e que apresentavam a pura e innocente
Desdemona como vil adultera, determinou no arrebatado mouro uma
congestão cerebral, que durante alguns dias o teve prostrado no leito,
entre a vida e a morte.

Restabelecido, por fim, graças á rigorosa organisação e, mais do que
tudo, aos assiduos e ternos cuidados que lhe prodigalisou Desdemona, que
o não abandonou um só instante, nem mesmo para entregar-se ao
imprescindivel descanso, poude deixar o leito e, n'esse mesmo dia em que
se levantou, mandou chamar aos seus aposentos Emilia, mulher de Iago, e
por meio de supplicas e de ameaças tratou de arrancar a confissão da
culpabilidade de Desdemona julgando acertadamente que, se esta tinha, em
verdade, algum segredo punivel, o conheceria, sem duvida, a esposa do
alféres, que mais do que uma simples creada da filha de Brabancio, havia
sido sempre a sua mais intima companheira e fiel amiga, dispondo, como
tal, da absoluta confiança da joven.

Mas, por mais que fizesse para obrigar a Emilia a fallar contra a
supposta adultera, como a confidente d'esta nada tinha que dizer contra
ella, nada disse, e, pelo contrario, mostrou-se profundamente
surprehendida a começo, chegando até a indignar-se, quando se convenceu
de que Othello duvidava, mais ainda, estava convencido da traição de
Desdemona.

Em vão se esforçou o mouro por fazer com que a nobre mulher proferisse
uma só palavra, que désse vulto e alimento e fortificasse os crueis
ciumes que lhe mordiam as entranhas; em vão lhe fallou de Cassio e das
suppostas intimidades d'este com a esposa. Emilia negou redondamente,
pela salvação da sua alma, que existissem taes intimidades, chegando no
grande affecto que devotava a Desdemona a increpar Othello por offender
a sua ama e amiga com tão miseraveis suspeitas.

Isto fez chegar ao cumulo a irritação e cólera do apaixonado e ciumento
africano, o qual, julgando que a serva encobria Desdemona e que, por
tanto, fazia causa commum contra elle para atraiçoar o seu amor e lançar
inextinguivel mancha no seu nome, acabou por insultar furiosamente
Emilia, expulsando-a do aposento com terriveis ameaças e promettendo-lhe
que não tardariam em se arrepender do que elle chamava infame conducta
de alcoviteira e encobridora.

A fiel e leal criada foi-se chorando com verdadeiro desgosto, e, sem
perder um minuto, dirigiu-se ao encontro da ama, á qual referiu o que
acabava de succeder-lhe e o que lhe dissera Othello.

Estavam assim conversando, ouvindo Desdemona a Emilia com o doloroso
espanto que pode calcular-se facilmente, quando, de repente, as duas
mulheres ficaram estupefactas, ao vêr entrar o mouro no aposento.

--Como supponho, disse com rapidez Othello, dirigindo-se a Desdemona,
que já haveis fallado mais do que é necessario, e sobre tudo, mais ainda
do que para minha honra e para minha tranquilidade convem, creio que
essa mulher poderá retirar-se, pois tenho necessidade de fallar a sós
comtigo.

--Retira-te Emilia, disse a joven com doçura para a sua creada de
quarto. Se precisar de ti chamarei.

A dama de companhia sahiu immediatamente dirigindo um cumprimento
carinhoso a Desdemona e quasi sem olhar para Othello, ao qual semelhante
attitude irritou mais do que estava.

--Já vejo, começou dizendo com mal reprimida colera, que não te
preoccupas a ensinar aos criados o respeito que devem a teu esposo.

--Perdoa a Emilia, respondeu carinhosamente Desdemona; respeita-te e
estima-te, como te respeitam e estimam aqui todos, começando por mim e
acabando no ultimo dos teus servidores. Mas hoje está nervosa e muito
contrariada, como eu propria estou, devido á entrevista que teve comtigo
e que me contou, pormenorisadamente.

--Felicito-te por teres servos tão leaes, respondeu sarcasticamente
Othello. Já não posso dizer outro tanto.

--Queixas-te injustamente, observou a joven, porque, repito: ninguem
aqui faz distincção alguma, senão em teu favor, pois seria eu a primeira
a não a consentir.

--Mil graças! respondeu Othello com o mesmo sarcasmo com que
anteriormente se havia expressado. Já vejo que não tenho razão de me
queixar, e que sou o mais injusto dos homens e o mais contradictorio dos
maridos.

--Não quiz dar-te a entender semelhante cousa; mas se assim o fiz mesmo
contra minha vontade, perdoa-me, disse humildemente Desdemona.

--Estás perdoada, respondeu o mouro seccamente; e logo accrescentou
mudando o tom da voz que tentou tornar o mais indifferente possivel: Ha
poucos dias, ao cahir sem sentidos no pavimento, molestei um pouco a mão
direita; a começo não me doia nada e por isso nada tambem disse até
hoje; agora doe-me bastante e agradecer-te-hia que atasses em redor
d'ella qualquer coisa, um lenço... aquelle de seda de que te fiz
presente em Veneza, dizendo-te que o guardasses como reliquia, porque
era de minha mãe.

Desdemona poz-se pallida como morta ao ouvir o esposo expressar-se de
tal maneira. O lenço em questão havia-se extraviado dias antes, e
receando os arrebatamentos do caracter de Othello, occultára-lhe tamanha
perda, pois não ignorava que o marido sentia por essa recordação de sua
mãe, unica que possuia, verdadeira veneração. Calcule-se pois o terror
que experimentaria em tal momento, sabedora por Emilia, e pelo que
pessoalmente observava no esposo, da má predisposição que elle tinha
contra ella, devida a furiosos e injustificados ciumes. Dizer-lhe
n'aquelle instante que perdera o lenço, era dispor-se a desencadear
contra ella todas as terriveis tempestades d'aquelle temperamento
arrebatado até á ferocidade; por outro lado mentir, inventar qualquer
fábula que justificasse a falta do lenço, seria tão inutil como indigno
da nobreza e da lealdade do seu caracter. Por conseguinte só poude
responder, com voz balbuciante, e sentindo que um suor gelado lhe
banhava todo o corpo:

--O lenço de seda!... O lenço de tua mãe!... Olha... tenho-o tão bem
guardado, que perderia demasiado tempo em dar com elle!... Outro
qualquer te servira de egual modo!... Não te parece?...

E a infeliz tremia, olhando o esposo com olhos aterrorizados, e sentindo
que ia desmaiar se a espantosa situação se prolongasse demasiado tempo.

--Quero o lenço de seda! Quero-o agora mesmo! respondeu Othello com
implacavel aspereza.

--Mas, atreveu-se todavia a accrescentar a infeliz Desdemona, não te
disse?...

--O lenço! rugia o terrivel mouro arrebatado já pela selvagem explosão
dos ciumes. A desventurada tremeu até ao intimo d'alma; começou o pranto
a banhar-lhe as nacaradas faces e, tapando o bellissimo rosto com as
mãos, cahiu de joelhos aos pés do cruel marido, balbuciando entre
convulsivos soluços:

--Perdão! Perdão! meu querido Othello!... Perdi-o!... não sei que foi
feito d'elle!...

--Oh! infame!... confessas, finalmente! accrescentou rugindo
furiosamente o terrivel ciumento, acaba de vez a tua confissão,
miseravel adultera, vil prostituta!... Dize que o não perdeste; que,
pelo contrario o déste ao teu amante, ao traidor que enganava a minha
amizade, roubando-me a honra; ao cobarde por quem tinhas, ainda ha
poucos dias, a desvergonha e o cynismo de interceder, chegando o teu
impudor a defender-lhe as crapulosas e indignas bebedeiras!...

«Confessa, infame, confessa ou te afogo entre as minhas mãos de ferro,
feitas para estrangular féras como tu, que tens coração de tigre! ouves,
miseravel?! Confessa ou te mato!...

E o formidavel africano, convertido já n'um d'esses irracionaes a que
vinha de referir-se, apertou entre as herculeas mãos o gracil e delicado
corpo da esposa, a qual, apovorada, abateu a delicada e branquissima
garganta sobre o peito, cerrou os meigos e bellos olhos e, soltando
debil suspiro, ficou inerte nos braços do temivel esposo.

Ao ligeiro grito desprendido dos labios da joven ao perder o
conhecimento, succedeu acto continuo a repentina entrada de Emilia no
aposento. Conhecedora do vehemente caracter de Othello, previra, ainda
que apenas em parte, as consequencias da conversação do mouro com a
innocente esposa, e não se affastára muito do quarto.

Sem embargo, a mulher do traidor alferes nunca previra até onde chegaria
a selvagem paixão do africano, e ao ver nas terriveis mãos de Othello o
corpo inanimado da querida ama, julgou que elle a tinha matado e,
começou a gritar desesperadamente, rompendo em violentos soluços e
increpando o ciumento marido com os mais horriveis improperios:

Othello, cujos olhos se injectaram de sangue, e cujo bronzeado rosto
instantaneamente se pôz quasi branco, sentiu desejos irresistiveis de
arrojar-se sobre Emilia e estrangulal-a; mas, dominando os impulsos
ferinos com supremo esforço da vontade, conseguiu vencer-se e,
abandonando o desmaiado e precioso corpo que ainda conservava entre as
mãos, lançou á criada um olhar de ameaça feroz e sahiu precipitadamente
do aposento, como se temesse não ser senhor de si, caso n'elle
permanecesse mais algum tempo.

Emilia ficou, pois, só com Desdemona, a qual levantou do chão com o
delicado esmero de mãe, e, depois de a deitar no leito, prodigalisou-lhe
todos os cuidados que considerou necessarios para a fazer recuperar os
sentidos.

Quando a infeliz voltou a si do deliquio, rompeu em amargo e copioso
pranto, o que lhe desafogou um tanto o angustiado coração. Depois, em
vez de se mostrar indignada contra o implacavel esposo, começou a
desculpal-o aos olhos de Emilia, que continuava dirigindo-lhe os
insultos mais violentos.

--Meu pobre Othello--terminou dizendo a pura e nobre Desdemona.

«Soffre mais ainda do que eu, porque me ama apaixonadamente, e julga-me
culpada, devido a um erro fatal, que é preciso aclarar a todo o custo.

Ditas estas palavras, que lhe punham em relevo toda a angelical
formosura da alma, fechou os olhos e, o seu delicado organismo, rendido
por fim, por tantas e tão violentas emoções, cahiu n'um profundo somno,
que era o melhor lenitivo que podia achar n'esse instante a desventurada
para acalmar a dôr que lhe atormentava a alma...

Entretanto Othello dirigia-se para os seus aposentos particulares, com o
proposito de encerrar-se n'elle e poder desafogar melhor, no isolamento
a raiva e os ciumes que lhe mordiam cruelmente o coração.

Mas, apenas penetrou no salão que lhe servia de gabinete, encontrou-se,
cheio de admiração, na presença completamente inesperada em tão
dolorosos momentos de quatro cavalleiros venezianos, que acabavam de
chegar á ilha de Chypre e o estavam esperando.

De novo conseguiu o mouro dominar as violentas agitações e as crueis
torturas da alma, e, depois de trocados os primeiros cumprimentos,
perguntou ao mais velho dos quarto, e que parecia ser o chefe, o motivo
de tão inesperada como grata visita.

Este, que era o senador Graciano, irmão de Brabancio e tio por
conseguinte de Desdemona, começou por abraçar affectuosamente Othello e
depois, em voz grave e repousada, expressou-se d'esta forma:

--O Doge, em nome do illustre e sabio Conselho dos Dez, nos manda aqui,
valente general, como encarregados de exprimir o agradecimento de sua
agradecida Magestade e de toda a Republica pelos valiosos serviços que,
n'este momento, como sempre, prestaste a Veneza, no exercicio do teu
governo de Chypre.

«Em seguida proseguiu mais gravemente ainda Graciano, ordena-nos que te
façamos saber que o Conselho e sua Senhoria necessitam de ti com grande
urgencia, para encarregar-te de nova expedição de vital interesse para o
Estado.

«Não devemos demorar muito tempo a nossa partida, e por isso, apenas
tenhamos descançado das fadigas da viagem, que foi penosa e accidentada
em extremo, sahiremos da ilha para Veneza, onde terás a gentileza de
acompanhar-nos. Isto tardará tres ou quatro dias, o maximo, tempo
sufficiente para que possas tomar as disposições que consideres
opportunas para o melhor governo de Chypre, do qual, por ordem expressa
do Conselho, encarregarás o tenente Cassio, que de ti tem sempre
merecido os melhores elogios quando se te offerece occasião de
fazer-lh'os. Eis quanto tinhamos a dizer-te em nome do Doge e do
illustre Conselho dos Dez, valente Othello. Está pois cumprido o objecto
da nossa embaixada, e agora, rogamos-te encarecidamente ordenes o que
necessario for para que possamos desfructar a tua generosa hospitalidade
e entregarmo-nos ao repouso de que tanto carecemos.

Um raio que tivesse cahido aos pés de Othello não lhe produziria maior
espanto do que o que lhe causou o breve discurso proferido pelo
emissario da Magestade. A principio ficou como que aturdido; mas não
tardou em readquirir o sangue frio, e respondendo como poude ao senador
Graciano, prometteu obedecer, como sempre, ás ordens do Doge e do
illustre Conselho.

Seguidamente deu as instrucções necessarias para que installassem os
embaixadores nos seus respectivos aposentos.

Depois, quando conseguiu ficar só, sorriso extranho, cheio de ironia e
de odio, entreabriu-lhe os grossos labios; mandou chamar immediatamente
Yago, e apenas este chegou, disse-lhe sem mais preambulos:

--Ouve-me com todas as tuas faculdades, e sem te admirares de cousa
alguma, nem perder o tempo em exclamações inuteis. Fixa bem na memoria o
que te vou dizer e obedece á risca.

--Já sabeis, illustre general--respondeu servilmente Yago--que sou para
vós um cão fiel, e que daria de boa vontade a vida se fosse necessario,
para servir-vos.

--Sei, e como chegou agora o momento de pôr á prova a tua amisade por
mim, por isso te chamei.

O alferes tremeu, pois ignorava onde queria chegar o terrivel Othello;
mas fazendo das fraquezas forças respondeu com voz firme:

--Mandai e obedecerei.

--Acabo de receber uma embaixada de Veneza, que me ordena, em nome da
Senhoria, que saia de Chipre, sem demora, para a cidade de S. Marcos.

--Como!--exclamou Yago profundamente surprehendido, apesar da ordem que
havia recebido de Othello, de que o não interrompesse.

--Ainda não é tudo--respondeu o mouro com sarcastica amargura, sem fazer
caso da exclamação do alferes--O Doge ordena-me tambem que deixe o
tenente Cassio encarregado do governo de Chypre.

O infame Yago pôz-se livido de inveja, e tão violenta foi a impressão
que n'elle causaram as palavras de Othello que se atreveu a
perguntar-lhe:

--E que tenciona fazer, general? Obedecer á Senhoria?

--Não poderei obedecer, ainda que quizesse--respondeu Othello sorrindo
ferozmente,--porque os embaixadores partirão dentro em tres ou quatro
dias, e esta mesma noite morrerá Cassio de uma punhalada que tu mesmo te
encarregarás de dar-lhe.

Brilharam de infernal alegria os olhos do alferes, que se limitou a
responder:

--Sou vosso em corpo e alma. Cassio morrerá esta noite....

Mas accrescentou vacillando, porem resolvido a todo o custo a saber o
que ganharia de semelhante missão:

--Que pensaes fazer, no que vos diz respeito?

--A seu tempo o saberás--respondeu seccamente o mouro.--Agora, vae-te,
pois já disse o que tinha a dizer e esta mesma noite, seja a que horas
fôr, te espero para que me dês conta da morte do infame ladrão da minha
felicidade e da minha honra.

Pronunciadas estas ultimas palavras, Othello despediu Yago com um gesto,
e acto continuo abandonou o quarto.

Apenas se viu só, Yago sorriu com expressão de odio e de ambição
satisfeita, e murmurou entre dentes:

--Amanhã, a estas horas, serei tenente e talvez governador da ilha, pois
saberei obrigar Othello a que me pague bem a morte de Cassio; quanto a
este não serei eu que o hei de matar, mas sim esse imbecil de Rodrigo,
ao qual offerecerei a posse immediata de Desdemona se a livrar do
official que sempre a está importunando com as suas instantes e
vergonhosas declarações; assegurar-lhe-hei que isto me disse ella
propria, e que se ainda se não entregou, foi porque teme que Cassio
venha a sabel-o e, para vingar-se, conte tudo ao marido. Que o diabo me
leve se o estupido Rodrigo não acredita na fabula e não mata o rival!
Para tanto facilitar-lhe-hei occasião oportuna, marcando a Cassio uma
entrevista na praia ás 11 horas da noite de hoje. Rodrigo matal-o-ha com
uma punhalada á traição e eu, que ficarei presenciando a scena,
denuncial-o-hei á justiça...--Não, interrompeu o miseravel.--Isto é
perigoso, porque o imbecil poderia fallar, e não me convém, pois toda a
gente saberia então que o illudi para apoderar-me de todas as suas joias
e dinheiro. O melhor, é depois de matar Cassio, matal-o a elle tambem, o
que me será facil, porque é muito menos perigoso do que o outro. Assim
está bem--terminou dizendo com expressão satisfeita.--Está resolvido: de
tal guisa livro-me d'esse parvo que já começa a incommodar-me, e já não
tenho nada a temer de Cassio, podendo em troca cobrar o preço da sua
morte, sem o menor risco para a minha pessoa...

E Yago dispoz-se a ir procurar Rodrigo sem perda de tempo, para começar
a pôr em execução o seu infame plano; mas, antes de abandonar o palacio
do governador, enviou a Cassio um soldado encarregado de lhe dizer que o
esperasse ás onze horas da noite na praia, pois tinha que communicar-lhe
uma noticia de grande interesse para elle.

--Aposto a cabeça em como não faltará--disse o miseravel--regosijando-se
antecipadamente com o resultado que ia obter da nova e dupla infamia
acabada de planear.




CAPITULO VII

Crime e Castigo


Avança a noite e os relogios de Chypre dão pausada e gravemente as dez
badaladas.

Na alcova de Desdemona, a joven e bella esposa do governador da ilha
dispunha-se a deitar-se ajudada carinhosamente pela mulher de Yago, tão
fiel e leal servidora, como falso e traidor era para o general africano
o infame marido.

--Emilia, disse com voz de infinita doçura a filha de Brabancio;
enfeita-me muito e põe-me bonita para dormir. Tenho um presentimento
estranho, tão extranho como doloroso, que não me abandona desde esta
tarde, e que me annuncia que este vae ser o meu ultimo somno.

--Que loucura! exclamou a criada, tratando de se mostrar alegre aos
olhos da ama. Desprezai, senhora, esses tristes e lugubres
presentimentos e pensai sómente, pelo contrario, em que vos esperam dias
cheios de aventura, pois sois ainda muito nova e a vida começa agora
para vós.

--Sim, respondeu melancolicamente Desdemona, mas has de concordar que
começa de maneira bem dolorosa! Que será de mim sem o amor de meu
esposo?

--Vosso esposo, disse Emilia com gesto de convicção;--não tardará em
arrancar pelas proprias mãos a negra venda que hoje lhe tapa os olhos, e
que o impede de ver todo o thesouro de virtudes e de felicidades que em
vós possue! Então voltará ainda mais enamorado do que nunca, e depois
vereis, minha querida ama, como esses maus pensamentos que hoje vos
atormentam, não tardarão a converter-se em sonhos côr de rosa.

--Queira Deus que não te enganes! respondeu Desdemona, soltando um
profundo suspiro, que pareceu aliviar-lhe um tanto o coração opprimido
pela angustia.

--Não me engano, tenho a certeza,--insistiu Emilia alegremente.--Vereis
como esta mesma noite o vosso esposo virá ver-vos e implorar o vosso
perdão, e ao contemplar-vos tão formosa como os anjos de céu, cahirá de
joelhos ante vós arrependido da sua conducta. Como estaes linda, minha
senhora!--continuou olhando para a joven com sincera admiração, depois
de dar-lhe uns ultimos toques no toucado.--Agora, dormi e sonhai com
dias melhores, porque os bons sonhos trazem comsigo a ventura, segundo
affirmam.

Dizendo estas palavras, Emilia ajudou a joven a deitar-se; apanhou em
seguida as roupas que estavam cahidas, pelo aposento, e olhando
cuidadosamente em torno de si, para convencer-se que tudo ficava em
ordem, deu as boas noites e abandonou em silencio o quarto, que apenas
ficou illuminado pela vaga e febril luz de uma lampada de azeite.

Haviam transcorrido dez minutos, e já os preciosos olhos da joven
começavam a cerrar-se, vencidos pelo somno, quando a mesma porta por
onde sahira Emilia se entreabriu suave e lentamente, e na hombreira
appareceu a alta e soberba figura de Othello.

O mouro avançou com lentidão até ao leito onde repousava a esposa que,
ao advinhar, melhor do que via, a sua presença, deu um debil grito de
alegria e estendeu os nús e marmoreos braços ao marido, exclamando
amorosamente:

--Tu aqui! meu querido Othello! Vens dar-me o teu perdão pela desgraçada
perda do lenço?

--Rezaste esta noite, Desdemona? perguntou o general com gravidade meiga
e triste, que tinha algo de tragica.

--Sim, esposo meu, respondeu a innocente Desdemona; esta noite, como
todas, fiz as minhas orações do costume. Mas, porque me fazes tal
pergunta?--interrogou a infeliz começando a sentir-se presa de vago
terror, ao ver a sombria e implacavel expressão retratada no semblante
do marido.

--Porque vaes morrer depois de findarem os cinco minutos que te concedo
para encommendares a Deus a tua alma!--respondeu Othello inexoravel.

--Deus! Que dizes? exclamou a joven, sentando-se no leito, como
surprehendida pelo espanto e julgando ter ouvido mal.

--Digo que vaes morrer e que aproveites o tempo que te dou para
encommendar a tua alma a Deus, repetiu o mouro com frialdade que fazia
tanto damno como o de uma folha de aço. E accrescentou logo: Se o
proprio Deus houvesse baixado á terra para me annunciar que morrerias ás
minhas mãos, teria duvidado de Deus; já vês se tinha ou não fé no teu
carinho! Mas tu atraiçoaste essa fé, e por isso mereces a morte.
Sim--continuou implacavelmente o terrivel mouro, exaltando-se á medida
que fallava, e sem fazer caso do tremor e da mortal lividez que se viam
na desventurada e innocente Desdemona;--sim, mereces e vaes justamente
morrer. Mas, por que ainda te amo, apezar de tudo, e vim sem armas,
porque não quero derramar o teu sangue, que sempre será precioso para
mim, morrerás estrangulada ás minhas mãos, entre estas mãos que com tão
ardente amôr te acariciaram nos dias felizes para mim. Vês como te amo,
Desdemona? Sim, amo-te, e ainda te perdoaria, se tanto fosse possivel!
Mas não é! Não, não é, porque atraiçoaste o meu amôr com um amigo
desleal e infame, e porque, não contente com tal crime, para o qual não
existe misericordia possivel, urdiste, de cumplicidade certamente com o
miseravel, uma indigna traição no intuito de que me chamassem a Veneza e
vos deixasse aqui a ambos em completa liberdade para gosarem a infamia
praticada.

«Ah! ah! ah! gargalhou o formidavel africano, rindo como um louco.

«Já vês que, apezar da nobre ingenuidade do meu caracter, que me
entregou de corpo e alma nas tuas mãos, não é tão facil enganar-me, e
que immediatamente advinhei tudo. Sim, proseguiu, recobrando a terrivel
expressão de implacavel dureza, advinhei, mas o vosso plano não dará o
exito appetecido. Ouves?--perguntou, interrompendo-se para escutar as
badaladas dos relogios que marcavam a hora. São onze horas e n'este
momento cae o teu amante sob o punhal de um fiel servidor meu! E como
passaram os cinco minutos que te concedi para que encommendasses tua
alma, chegou tambem para ti a hora da morte!

A infeliz Desdemona quiz fallar, pedir, supplicar misericordia ao
terrivel esposo, fazer protestos da sua innocencia, salvar a vida,
emfim, porque a morte horrorizava-a e a tal ponto que a fazia tremer e
bater os dentes como se tivesse febre; mas tudo foi inutil, porque só
teve tempo de lançar um grito desesperado, estridente, horrivel e que
havia de se ouvir em todos os aposentos do immenso palacio, alterando
com a infinita angustia das suas dolorosas vibrações o profundo silencio
da noite.

Os férreos dedos do mouro apertavam ferozmente a delicada e branquissima
garganta da innocente vitima, quebrou-se a columna vertebral com um
estalido horrivel e o precioso corpo, abandonado instantaneamente a si
proprio, sob o impulso do invencivel horror que ao ouvir o espantoso
estalido acommetteu immediatamente o verdugo, cahiu pesadamente sobre o
leito flexivel e desarticulado, como pesada massa.

Aterrado da propria obra, com os cabellos erriçados e os olhos
horrivelmente dilatados pelo espanto, Othello retrocedeu ante o cadaver
da infeliz esposa, tratando, talvez, de fugir para apagar da vista o
tremendo espectaculo. Mas, n'esse instante abriu-se com violencia a
porta do aposento e appareceu Emilia que, desolada e quasi nua, correu
para o leito de Desdemona, gritando;

--Senhora! Que vos aconteceu? Respondei, por Deus, respondei!

--Para traz, miseravel encobridora! rugiu Othello, recobrando toda a sua
selvagem crueldade, á vista da mulher que julgava cumplice no supposto
adulterio da victima. E continuou, agarrando por um braço Emilia: Sim,
morreu, e morreu ás pressões de minhas mãos vingadoras, como tu agora
vaes morrer, infame, para que não fique no mundo nenhuma testemunha, da
minha deshonra!

E o vingativo africano dispunha-se a sacrificar tambem ao terrivel odio
aquella nova victima que o destino lhe deparava. Mas, por fortuna para a
fiel criada de Desdemona, n'aquelle momento e attrahidos, primeiro por o
grito que lançou ao morrer a innocente esposa de Othello, e depois pelos
que havia soltado a mulher de Iago, penetraram no quarto Graciano e os
tres companheiros da embaixada, o traidor alferes, causa de toda essa
espantosa tragedia, e, por ultimo, entraram varios soldados amparando
nos braços Cassio, ferido e que havia exigido que o levassem a todo o
transe á presença de Othello sem perda de um minuto, pois em breve
morreria e queria fallar com o general antes de exhalar o ultimo
suspiro.

Ao vêr entrar tanta gente no aposento, e especialmente ao encontrar-se
em presença do veneravel Graciano, tio de Desdemona, Othello retrocedeu
instintivamente alguns passos e deixou em liberdade Emilia.

Esta correu, como louca, para os recem-chegados, e gritou, rompendo em
soluços:

--Matou a minha ama, senhores, o infame matou-a!

--Sim, confessou sombria e altivamente Othello, dirigindo um olhar de
desafio a todos os presentes, matei-a, porque sou o unico juiz da minha
honra e eu proprio sentenciei a culpada!

--Mentira! gritou de novo Emilia. Senhores, não acrediteis! A infeliz
Desdemona era tão pura e innocente como os anjos do céu, e levava a
incomparavel bondade de sua alma até ao extremo de amar com todas as
energias do seu coração o seu proprio verdugo!

--Tu é que estás mentindo, infame impostora! rugiu Othello, que tremeu
até ao mais intimo d'alma ao entrever a possibilidade da innocencia da
esposa pela maneira convicta com que fallára a dama. E accrescentou
tirando do bolso o lenço de seda, que guardava como prova accusadora:
Atrever-te-has a negar que conheces esta prova do criminoso adulterio?
Este lenço deu-o minha esposa ao amante, a esse infame Cassio, que o
proprio inferno repelliu, pois que ainda o vejo aqui com vida!

Ao ver o lenço, Emilia ficou convertida em estatua; pôz-se livida como
um cadaver, as pupilas pareceram querer-lhe saltar das orbitas, e
exclamou horrorisada:

--O lenço de seda! O lenço que roubei a Desdemona!

--Que roubaste?--exclamou Othello enlouquecido e julgando ter ouvido
mal.--É mentira! Foi minha esposa que o deu a Cassio como prenda dos
seus criminosos amores!

--Proximo a entregar a alma a Deus interveio com debil e apagada voz o
antigo official de Othello--Juro pela minha salvação que nunca vi
semelhante lenço nas minhas mãos e que Desdemona te era tão fiel como
póde ser a mulher mais pura do mundo!

«Juro tambem, continuou fallando com grande custo,--que morro victima de
um erro teu, general, e assassinado por ordem d'esse infame, que não se
atrevendo a atacar-me, enviou um instrumento seu, o qual logrou enganar
por meio de outra calumnia, e que, depois de ferir-me, acaba de morrer
ás minhas mãos, confessando tudo! Juro, por ultimo, accrescentou Cassio,
cada vez com voz mais debil,--que sempre te amei como a um pae, como ao
morrer te quero ainda, e que Desdemona, tão innocente e pura como um
anjo, não foi outra cousa para mim do que foi para toda a gente; um
coração cheio de bondade e de doçura! Juro-o por tudo quanto existe de
sagrado!...

E o antigo tenente de Othello cahiu sem sentidos nos braços dos soldados
que o amparavam.

--E eu juro--exclamou por sua vez Emilia, encarando Othello, que
permanecia atonito, como se tivesse recebido um profundo golpe; juro que
esse homem disse a verdade, que minha ama era pura como um raio de sol e
innocente como uma criança; que Cassio nunca teve em suas mãos esse
lenço, e que fui eu que o roubei a Desdemona, obrigada a tal acto por
meu marido e fazendo-o jurar que com elle não prejudicaria ninguem!
Juro-o pela memoria de meus paes!

Succedeu então uma cousa verdadeiramente horrivel.

Iago, ao vêr o caminho que tomavam para elle as coisas, fôra
approximando-se lentamente da porta para se escapulir sem ser visto.
Mas, no momento em que Emilia se calou, Othello saltou sobre elle com a
agilidade e a força de um leopardo, e arrancando-lhe a propria espada,
enterrou-lh'a nas entranhas até aos copos. Em seguida, voltando-se para
onde estava Graciano, e tirando o punhal que o velho senador trazia
pendente do cinto cravou-o no proprio peito até ao cabo e cahiu sobre o
leito em que jazia o cadaver de Desdemona, á qual deu a alma n'um beijo
com o ultimo suspiro.

A dupla acção do formidavel e ciumento mouro havia sido tão rapida, que
quando os circumstantes, refeitos do assombro, quizeram intervir, já
estava consumada a tragedia.

FIM




INDICE

     Cap.                    Pag.
     I--O rapto                5
     II--Othello              19
     III--Em Chypre           37
     IV--O traidor            53
     V--O lenço               67
     VI--Os embaixadores      83
     VII--Crime e castigo     97




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both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
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work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


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