Memorias de José Garibaldi, volume 1

By Giuseppe Garibaldi

The Project Gutenberg EBook of Memorias de José Garibaldi, volume I, by 
Giuseppe Garibaldi

This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most
other parts of the world at no cost and with almost no restrictions
whatsoever.  You may copy it, give it away or re-use it under the terms of
the Project Gutenberg License included with this eBook or online at
www.gutenberg.org.  If you are not located in the United States, you'll have
to check the laws of the country where you are located before using this ebook.

Title: Memorias de José Garibaldi, volume I
       Traduzidas do manuscripto original por Alexandre Dumas

Author: Giuseppe Garibaldi

Translator: Alexandre Dumas

Release Date: August 18, 2016 [EBook #52847]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK MEMORIAS DE JOSE GARIBALDI, VOL 1 ***




Produced by Júlio Reis, Leonor Silva and the Online
Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net.









                               MEMORIAS

                                  DE

                            JOSÉ GARIBALDI

                  TRADUZIDAS DO MANUSCRIPTO ORIGINAL

                                  POR

                            ALEXANDRE DUMAS


                       VOLUME I.--SEGUNDA EDIÇÃO


                             LISBOA--1860
                           EDICTOR A. P. C.
                             CHIADO, 83-85




                       [Ilustração: GARIBALDI.]




                         MEMORIAS DE GARIBALDI




                                PROLOGO


Como todo o presente tem ligação com o passado é impossivel começar
qualquer narração, ainda que seja a historia de um homem ou de um
successo, sem lançar os olhos para esse mesmo passado.

Obrigados pelo caracter aventureiro do homem de que começamos hoje a
publicar as memorias, seremos muitas vezes forçados a ir ao Piemonte,
patria de Garibaldi. Os homens de acção politica, quando pertencem
ao progresso, teem momentos de desalento, nos quaes como Anteo tem
necessidade para recobrar novas forças de tocar n'essa terra patria
que Bruto na sua fingida loucura beijava como a mãe commum. É pois mui
importante fazer um estudo rapido dos acontecimentos que tiveram logar
no Piemonte de 1820 a 1834, época em que começa esta historia.

As guerras da republica e as invasões do imperio tinham trazido á
Sardenha dous homens que haviam partido para o exilio ainda jovens e
voltavam velhos; eram dois irmãos, nos quaes terminava a posteridade
masculina dos duques de Saboia: fallamos de Victor Manuel I e Carlos
Felix.

Ambos reinaram.

O ramo mais novo da familia Saboia era representado pelo principe
de Carignan, que em 1823 fez como granadeiro do exercito francez a
campanha de Hespanha, tendo-se distinguido principalmente no Trocadéro.

Em 1840 n'uma audiencia que me concedeu mostrou-me o seu sabre de
granadeiro, e as dragonas de lã encarnada que conservava como reliquias
da mocidade.

Victor Manuel I subindo ao throno, que provavelmente não lhe fora dado
senão com esta condição, havia promettido aos soberanos seus alliados,
o não fazer ao seu povo, fossem quaes fossem as circunstancias, em que
se encontrasse a mais pequena concessão.

Mas o que era facil de prometter em 1815, era difficil de cumprir em
1821.

Desde 1820 os carbonarios haviam-se espalhado em toda a Italia. Em um
livro que é mais uma historia do que um romance, no _José Balsamo_
dissemos as origens do illuminismo e da franc-maçonaria.

Estes dois temiveis inimigos da realeza de que a divisa era L. P.
D. (_Lilia Pedibus Destrue_) tiveram uma grande parte na revolução
franceza. Swedenborg, de quem os adeptos assassinaram Gustavo III,
era mago. Quasi todos os jacobinos e grande numero de _cordeliers_
eram maçons, Philippe-Egalité era do grande oriente. Napoleão tomou a
maçonaria debaixo da sua protecção, mas protegendo-a, desvirtuou-a,
desviando-a dos seus fins, torcendo-a á sua conveniencia e fazendo
d'ella um instrumento de despotismo. Não foi esta a unica vez que se
forjaram cadeias com espadas.

José Napoleão foi grão-mestre da ordem, o archi-chanceller Cambacéres
grão-mestre adjunto. A imperatriz Josephina estando em Strasbourg em
1805, presidiu á festa da adopção da loja dos franc-maçons de Paris.
Por este mesmo tempo Eugenio Beauharnais era veneravel honorario da
loja de Santo Eugenio de Paris, e tendo vindo mais tarde á Italia com a
dignidade de vice-rei, o Grande Oriente de Milão o nomeou grão-mestre
e soberano conservador do supremo conselho do gráo XXXII, isto é,
concedeu-lhe a maior honra que segundo os estatutos da ordem se póde
dar.

Bernardotte era maçon, seu filho o principe Oscar foi grão-mestre
da loja sueca. Em differentes lojas de Paris foram successivamente
iniciados: Alexandre, duque de Wurtemberg, o principe Bernardo de
Saxe-Weimar, e até o embaixador persa Askeri-Khan. O presidente do
senado, conde de Lacépêde presidia ao grande Oriente de França de que
eram officiaes os generaes Kellermann, Massena, Soult, os principes,
os ministros e os marechaes, os officiaes, os magistrados, emfim todos
os homens notaveis pela sua gloria ou consideraveis pela sua posição
ambicionavam a honra de serem maçons. As proprias mulheres quizeram
ter as suas lojas maçonicas, nas quaes entraram M.mes de Vaudemont,
de Carignan, de Girardin, de Bosi, de Narbonne, e muitas outras
pertencentes á alta aristocracia franceza. Uma unica foi recebida, não
com o titulo de irmã, mas com o de irmão: foi a celebre Xaintrailles, a
quem o primeiro consul tinha dado a patente de chefe de esquadrão.[1]
Mas não era só em França que n'essa época florescia a maçonaria.

  [1] Giuseppe La Farina, Storia d'Italia.

O rei da Suecia, em 1811 instituiu a ordem civil da maçonaria.
Frederico Guilherme III da Prussia tinha, pelos fins do mez de julho
de 1800 approvado a constituição da grande loja de Berlin. O principe
de Galles não cessou de governar a ordem em Inglaterra, senão quando
em 1813 foi nomeado regente. Emfim no mez de fevereiro 1814, o rei da
Hollanda, Frederico Guilherme, declarou-se protector da maçonaria,
e permittiu que o principe real, seu filho acceitasse o titulo de
veneravel honorario da loja de Guilherme Frederico de Amsterdam.

Depois da volta dos Bourbons á França o marechal Bournonville pediu a
Luiz XVIII para collocar a maçonaria debaixo da protecção d'uma pessoa
da familia real; mas como Luiz XVIII era dotado de excellente memoria,
e não havia esquecido a parte que ella tinha tomado na catastrophe de
1793 recusou, dizendo que nunca consentiria que membro algum da familia
real, formasse parte de qualquer sociedade secreta fosse ella qual
fosse.

Na Italia a maçonaria cahiu com o dominio francez, mas em seu logar
vieram os carbonarios, que mostravam querer continuar o seu pensamento
libertador.

Duas outras seitas appareceram ao mesmo tempo.

Uma que se chamava a Congregação catholica apostolica romana, e a outra
a Consistorial.

Os socios da Congregação tinham, como signal de reconhecimento, um
cordelinho de seda amarella com cinco nós. Os pertencentes aos gráos
inferiores não fallavam senão de actos de piedade e benificencia. Dos
segredos da seita, conhecidos unicamente pelos altos dignatarios, só se
podia fallar quando se achavam presentes dois associados; se por acaso
um terceiro chegava, a conversação cessava immediatamente. A palavra de
passe dos confrades era _éleutheria_, isto é, _liberdade_, a palavra
secreta era _ode_, isto é, _independencia_.

Esta seita creada em França, entre os neo-catholicos, e a que
pertenceram muitos dos nossos melhores e mais constantes republicanos,
tinha atravessado os Alpes, chegado ao Piemonte e de lá á Lombardia.
Mas aqui foram infelizes, pois obtiveram poucos adeptos, não tardando
muito a extinguir-se, tendo os agentes de policia alcançado em Genova
os diplomas que se entregavam aos adeptos assim como os estatutos e
signaes de reconhecimento.

A consistorial era dirigida principalmente contra os austriacos. Á sua
frente se achavam os principaes principes da Italia que não pertenciam
á casa de Kabsbourg e era presidida pelo cardeal Gonsalvi. O unico
principe que não foi excluido foi o duque de Modena. Logo que esta
liga foi conhecida começaram as terriveis perseguições d'este principe
contra os patriotas. É que elle queria obter da Austria o perdão da
sua deserção, sendo necessario o sangue de Menotti seu companheiro na
conspiração para o alcançar.

Os consistoriaes queriam tirar a Italia a Francisco II e dividil-a
entre si.

Além de Roma e da Romania que elle guardava, o papa adquiria a Toscana.
A ilha de Elba e as Marchés passavam para o poder do rei de Napoles;
Parma, Pelazainge, e uma parte da Lombardia, com o titulo de rei ao
duque de Modena; Massa, Carrara, e Luca ao rei da Sardenha. Emfim o
imperador Alexandre da Russia que pela sua aversão á Austria protegia
esta conspiração, ou recebia Ancona, Civita-Vecchia, ou Genova para
poder ter um estabelecimento no Mediterraneo. Por esta fórma sem
se consultar a vontade dos povos nem as demarcações territoriaes,
dispunha-se de uma grande porção de almas, negando-se-lhe esse direito
de escolha a que a ultima creatura nascida no solo europeo tem direito.

Por felicidade um unico de todos estes projectos, o dos carbonarios,
parecia emanado de Deus e quasi a realisar-se.

Os carbonarios em quem unicamente havia esperança augmentavam
consideravelmente nas Romanias. Haviam-se reunido á seita dos guelfos
que tinham a sua séde em Ancona, e se apoiavam nos bonapartistas.

Luciano tinha sido elevado á dignidade de grão-mestre da ordem. Nas
reuniões secretas mostrava-se a necessidade de tirar aos padres o poder
que haviam alcançado; invocava-se o nome de Bruto e preparavam-se os
animos á revolta.

Em a noute de 24 de junho teve logar a revolução, obtendo o funesto
resultado que todas as primeiras tentativas d'este genero costumam
alcançar. Toda a religião que deve ter apostolos, começa por ter
martyres. Cinco carbonarios foram fuzilados, outros condemnados ás
galés perpetuamente, e alguns julgados menos culpados foram encerrados
por dez annos em uma fortaleza.

Então a seita tornando-se mais prudente mudou de nome, começando
a chamar-se a Sociedade Latina. Nesta occasião a mesma sociedade
conspirava na Lombardia, estendendo-se pelas outras provincias da
Italia. No meio d'um baile dado pelo conde Porgia em Rovigo o governo
austriaco fez prender muitas pessoas e declarou no dia seguinte
criminoso d'alta traição todo o individuo que se filiasse nas lojas dos
carbonarios.

Em Napoles foi aonde a rebellião appareceu com mais violencia. Cobetta
affirma na sua historia que o numero dos carbonarios era de 642:000 e
segundo um documento da chancellaria aulica de Vienna este numero ainda
está muito abaixo da verdade. «Os carbonarios nas Duas Sicilias diz
este documento contam mais de 800:000 adeptos, e não havendo policia
nem vigilancia possivel para evitar tal alistamento seria loucura
tentar anniquilal-os.»[2]

  [2] Storia Italia.--La Farina.

Ao mesmo tempo que a rebellião tinha logar em Napoles, Riego, outro
martyr que deixou um cantico de morte, tornado depois em canção de
victoria, levantava no 1.º de janeiro de 1820 a bandeira da liberdade,
e um decreto de Fernando VII annunciou que tendo-se manifestado a
vontade do povo, estava prompto a jurar a constituição proclamada pelas
côrtes geraes e extraordinarias de 1812.

As prisões abrindo-se deram um ministerio á Hespanha.

Fernando I de Napoles na sua qualidade de principe de Hespanha, devia,
ficando rei absoluto, jurar obediencia á constituição hespanhola.
Teve então logar uma grande rebellião na Calabria, em Capitanata e em
Palermo. O governo napolitano fraco, indeciso e desconfiado decretou
algumas refórmas insufficientes que não impediram o general Pepe
de fazer uma revolução. Napoles teve então como 1798, um governo
provisorio e uma camara de deputados.

Foi algum tempo depois que por sua vez rebentou a revolução piemonteza.
Na manhã de 10 de março o capitão conde Palma dando o grito de «o rei e
a constituição hespanhola» fez pegar em armas ao regimento de Genova.

No dia seguinte um governo provisorio estava estabelecido, e em nome do
reino de Italia declarava a guerra á Austria.

D'este modo a revolução partindo d'Ancona tinha chegado a Napoles
voltando a Turim. Tres volcões se tinham aberto na Italia sem contar a
Hespanha; agitando-se a Lombardia n'um triangulo de fogo.

O rei Victor Manuel havia promettido, como já dissemos, á santa
alliança não fazer ao seu povo nenhuma concessão.

No dia seguinte para ficar fiel á sua palavra, o rei Victor Manuel
abdicou em favor de seu irmão Carlos Felix que se achava então em
Modena, e nomeou regente o principe de Carignan, que foi depois o rei
Carlos Alberto.

Para todos os patriotas esta abdicação de um rei dedicado aos italianos
em um principe dominado pela côrte de Austria era uma grande desgraça.

Santa Rosa um dos primeiros promotores da rebellião diz:

    «A noute de 13 de março de 1821 foi bem fatal para minha
    patria. Foi n'essa noute que perdemos todas as nossas
    esperanças, foi n'essa noute que milhares de espadas erguidas
    para a defeza da patria se abaixaram. Com o rei Victor Manuel
    a patria estava no rei, ella se personalisava n'esse coração
    leal, e nós fazendo esta revolução, diziamos: «Coragem! O rei
    talvez um dia nos perdoe de o havermos feito senhor de seis
    milhões de italianos.»

Com Carlos Felix succedia exactamente o contrario. Estavam outra vez
debaixo do jugo da Austria, e viam-se obrigados a começar de novo os
seus trabalhos.

Comtudo toda a esperança ainda não estava perdida.

No dia 14 de março o principe de Carignan nomeado regente appareceu á
janella, e no meio dos vivas calorosos do povo proclamou a constituição
de Hespanha.

Como este facto devia ter no futuro grande importancia, como o principe
Carlos Alberto devia um dia desmentir o principe de Carignan, é
necessario não só citar o facto da constituição proclamada em alta voz,
mas tambem dar uma cópia do edital que foi affixado nos muros de Turim.

Eis a traducção fiel:

    «Nas circumstancias difficeis em que nos achamos é necessario
    sahir fóra dos limites que a nossa qualidade de regente nos
    impõe. O nosso respeito e submissão a sua magestade Carlos
    Felix, actual soberano, devia-nos obstar a que fizessemos
    alguma alteração nas leis fundamentaes do estado, até que
    soubessemos as intenções do nosso novo soberano, mas como as
    circumstancias imperiosas porque passamos são conhecidas por
    todos, e como queremos entregar ao novo rei um povo socegado e
    feliz e não despedaçado pela guerra civil, decidimos, ouvido
    o nosso conselho e na esperança de que sua magestade levado
    pelas mesmas considerações, revistirá a nossa deliberação da
    sua approvação soberana, que a constituição de Hespanha seja
    reconhecida como lei do estado, fazendo-se as alterações que o
    rei e a representação nacional entenderem.»

Eis o que os carbonarios tinham obtido cinco annos depois do seu
estabelecimento em Italia: uma constituição em Hespanha, outra em
Napoles, e outra no Piemonte.

Mas esta tendo sido a ultima em apparecer, foi a primeira a ser
destruida.

Em logar de voltar a Genova ou a Milão, em logar de approvar as
liberdades concedidas pelo principe de Carignan, o rei Carlos Felix
publicou no dia 3 de abril seguinte o edito que vamos ler:

    «_Sendo o dever de todo o subdito fiel sujeitar-se da melhor
    vontade á ordem de cousas estabelecidas por Deus e pelo
    exercicio da soberana authoridade, declaro que emanando o nosso
    poder só de Deus, só a nós pertence escolher os meios que
    julgarmos mais convenientes para chegar a qualquer fim, e que
    em consequencia não teremos como subdito fiel aquelle que se
    atrever a murmurar contra as medidas que julgarmos necessario
    adoptar, ficando conhecidos só como vassallos fieis aquelles
    que se submetterem immediatamente, impondo esta submissão como
    condicção para voltarmos aos nossos estados._»

Ao mesmo tempo que o rei Carlos Felix publicava este edito modelo de
cegueira e asneira, nomeava uma commissão militar encarregada de tomar
conhecimento dos crimes de traição, rebellião e insubordinação que
tinham sido commettidos.

Felizmente os principaes criminosos, isto é, aquelles de que os nomes
são hoje os mais gloriosos do Piemonte, haviam tomado a fuga.

A commissão nomeada por Carlos Felix não perdeu o tempo. Em cinco
mezes, cento e setenta e oito prisioneiros foram julgados. Setenta
e tres foram condemnados á morte e ao fisco, e os outros á prisão
e galés. Dos condemnados á morte sessenta eram contumazes e foram
enforcados em effigie.

Julgamos conveniente dizer os nomes d'esses homens para que se conheçam
aquelles que feriram esse poder estupidamente absoluto que desde
Tarquino não tem sabido abater senão as cabeças mais intelligentes e
elevadas.

Eram os tenentes Pavia e Ansaldi, o medico Ratazzi, o engenheiro
Appiani, o advogado Dossena, o advogado Lurri, o capitão Baroni, o
conde Bianco, o coronel Regis, o major Santa-Rosa, o capitão Lesio,
o coronel Caraglio, o major Collegno, o capitão Radice, o coronel
Morozzo, o principe della Cisterna, o capitão Ferraso, o capitão
Pachiarotte, o advogado Marochetti, o segundo tenente Auzzano, e o
advogado Ravina.

Ao todo seis officiaes superiores, trinta officiaes subalternos,
cinco medicos, dez advogados, e um principe, todos notaveis pela
intelligencia e pelas qualidades moraes.

Dois tinham sido presos e executados.

Eram o tenente de carabineiros João Baptista Lanari e o capitão Jacome
Garelli.

Um foi executado a 21 de julho, e o outro a 25 de agosto.

O principal criminoso era, sem duvida, Carlos Alberto, pois havia
proclamado a constituição, não como dizem os seus partidarios, _salvo a
approvação de Carlos Felix_, mais n'estes termos que estão mui longe de
serem reservados:

    «_Nella fiducia che sua Maesta il re, nosso dál eistesse
    considerazioni_ SARA PER RIVESTIRE _questa deliberazione della
    sua socrasia approvazione, la constituzione di Spagna_ SARA
    PROMULGATA ET OSSERVATA COM LEGE DELLO STATO.»

Por isso assim que o principe de Carignan recebeu a carta que lhe
participava a recusa do rei Carlos Felix, correu a Modena, mas o rei
recusou recebel-o e o duque mandou-o intimar para deixar os seus
estados.

O principe de Carignan retirou-se para Florença para o lado do grão
duque de Toscana.

Para Carlos Alberto não se tratava unicamente de um simples exilio, ou
d'um desvalimento momentaneo, mas sim da perda do throno do Piemonte.
Espalhou-se então que Carlos Felix legava a corôa ao duque de Modena, e
este que não a havia alcançado na conspiração dos principes italianos
contra a Austria, esperava esta vez realisar a sua ardente ambição.

O principe de Carignan disse ao conde de la Maison-Fort, nosso ministro
em Florença, qual era a sua posição, e este escreveu a Luiz XVIII
relatando-lhe tudo.

Eis um fragmento da carta d'este ministro:

    «Para despojar o principe de Carignan da sua herança é
    necessario chamar ao throno a duqueza de Modena, filha mais
    velha do rei Victor Manuel. Esta facilidade em affastar a nobre
    casa da Saboia de um throno por ella creado, esta ingratidão,
    exemplo do seculo em que vivemos, não póde ser partilhada
    pelo chefe de uma casa alliada com a Saboia dezoito vezes. A
    França pois não póde seguir esta politica, porque tem ao menos
    o direito de exigir a completa independencia do soberano que
    possue a chave da Italia.»

Luiz XVIII foi de opinião do seu ministro, e escreveu ao principe
offerecendo-lhe um refugio na côrte de França. A conducta de Luiz XVIII
era o mesmo que dizer--Não tem cousa alguma a receiar, tomo-o debaixo
da minha protecção e não consentirei que outro seja rei do Piemonte.

E na verdade um rei que havia dado a carta ao seu povo, não podia
criminar um principe por ter promettido uma constituição que não havia
reconhecido.

Das tres constituições creadas pelos carbonarios, uma, a do Piemonte
tinha sido logo anniquilada pelo rei Carlos Felix; a de Napoles havia
sido destruida pela invasão austriaca, e a terceira, a unica existente
ia desapparecer com a invasão franceza.

Era, pois, necessario ao principe de Carignan que havia proclamado a
constituição hespanhola em Turim ir combater essa mesma constituição a
Madrid.

Na realidade era uma posição difficil para o principe, mas a corôa do
Piemonte tinha muitos attractivos para elle se occupar de bagatellas.

O principe de Carignan occultou a vergonha debaixo da barretina de
granadeiro; fez a campanha de Hespanha e foi um dos vencedores de
Trocadéro. D'esta sorte quando Carlos Felix falleceu, 27 de abril de
1851, o principe de Carignan subiu ao throno, com o nome de Carlos
Alberto, tendo a vencer poucas difficuldades. A Austria que antes
queria ver no throno o seu archi-duque de Modena, enfureceu-se
e apresentou aos reis Carlos Alberto como um carbonario, e aos
carbonarios como um traidor.

A Austria mentia.

Carlos Alberto não era carbonario: a proclamação em que concedia a
constituição mostrava que a dava contra sua vontade.

Carlos Alberto não era um traidor, era um principe que ambicionando o
titulo de rei, não havia feito compromissos pessoaes. A vergonha de ir
abolir á Hespanha a constituição que tinha proclamado em Turim, tinha
desapparecido pela coragem do granadeiro: o soldado havia absolvido o
principe.

D'esta sorte a sua acclamação foi saudada com alegria pelos patriotas
italianos.

Del Pozzo escreveu-lhe de Londres aonde se achava refugiado:

    «Os meios termos e as medidas incompletas na politica
    não servem para cousa alguma: o Piemonte quer um rei
    constitucional.»

Outro patriota que guardou o incognito, escreveu-lhe de Marselha:

    «Colloque-se á frente da nação, escreva na sua
    bandeira--_União, liberdade e independencia_--declare se
    vingador e interprete dos direitos populares, trate de
    regenerar a Italia, livre-a dos seus inimigos, e cuidando
    no futuro dê o seu nome a um seculo, e seja o Napoleão da
    liberdade italiana.

    «Atire á Austria com a luva o nome da Italia, e estou certo que
    com este escudo fará prodigios. Appelle para tudo o que ha de
    grande e generoso na Peninsula. Uma mocidade ardente e corajosa
    impellida pelas duas paixões que fazem os heroes, o odio e a
    gloria, vive ha muito tempo com um só pensamento, e o seu mais
    ardente desejo é realisal-o.

    «Chame essa mocidade ás armas, ponha as cidades e fortalezas
    debaixo da guarda dos cidadãos, e livre por este modo de todo
    e qualquer cuidado que não seja o vencer, reuna em volta de si
    todos aquelles que sendo notaveis pela intelligencia e pelo
    valor estejam isemptos de paixões infames. Inspire confiança
    ao povo, dissipe todas as duvidas sobre as suas intenções,
    chamando para o seu lado os homens livres. Senhor, digo-lhe a
    verdade: os verdadeiros patriotas hão-de avalial-o pelas suas
    acções, mas sejam ellas quaes forem, esteja seguro de que a
    posteridade verá em V. M. o primeiro dos homens ou o ultimo dos
    tyrannos.

    «Escolha.»

O que na realidade torna os reis os escolhidos do Senhor é que só
a elles se escrevem similhantes cartas. Se Carlos Alberto tivesse
seguido os conselhos do seu mysterioso correspondente, teria sem duvida
começado por Goita, mas talvez não tivesse finalisado por Novara.

Carlos Alberto despresou estes conselhos, e em logar de entrar no largo
caminho que se lhe apresentava, metteu-se em uma estrada tortuosa
d'onde poucos teem saido incolumes.

Desde este momento o divorcio foi declarado entre o rei da Sardenha e
a joven Italia. A joven Italia! Foi por esta epocha que pela primeira
vez se pronunciaram estas tres palavras. De que se compunha ella então?
De José Mazzini o infatigavel promotor da união italiana. José Mazzini
apenas conhecido n'esta epocha por algumas publicações politicas
vendo-se perseguido pela policia havia-se refugiado em Marselha aonde
collocava a primeira pedra da sua grande empreza enviando com milhares
de difficuldades para o Piemonte os exemplares da sua _Joven Italia_.

A nobreza e o clero piemontez que se haviam apoderado do espirito de
Carlos Alberto, começaram a receiar pelo seu poder. Havia dois annos
que se tinham estabelecido na côrte, e por isso conheciam qual elle
era. Desconfiavam da politica duvidosa de Carlos Alberto, e tinham medo
que um dia lhe apparecesse, não alguma sombra de liberdade, mas sim uma
idéa ambiciosa. Sabiam que Carlos Alberto n'essas noites de febre, como
só os reis teem, sonhava com o throno da Italia.

Para alcançar esse throno seria necessario coadjuvar a revolução. O
throno de Italia não estava á disposição dos reis, mas sim do povo.

Era necessario collocar uma barreira entre elle e os patriotas.

Um dia alguem disse:

É tempo de lhe fazer derramar algum sangue.

No mesmo dia Carlos Alberto foi prevenido de que no exercito uma grande
conspiração se tramava com o fim de lhe tirar o throno.

Os factos foram desnaturados, os perigos exagerados. Attacaram todas as
fibras do homem e do principe para lhe dar esse ressentimento mortal de
que tinham necessidade esses homens que se intitulam os salvadores das
monarchias.

Uma commissão criminal extraordinaria foi creada em Turim para dirigir
todos os supplicios que tivessem logar no Piemonte.

Esta commissão decidiu que todos os accusados militares ou paisanos
seriam sentenciados por ella. Foi a primeira violação do codigo penal.

Por esta occasião é que se deu o facto memoravel que vamos relatar.

Um official que se assentava como juiz no conselho de investigação
fez algumas perguntas sobre principios de direito criminal a um
jurisconsulto. Este respondeu-lhe que a primeira base de toda e
qualquer lei, que a primeira regra de todo o codigo era:

    «Que um conselho de investigação militar se devia declarar
    incompetente para julgar cidadãos.»

--Isso é impossivel, disse o official, porque o general ordenou que nos
declarassemos competentes.

D'esta vez a base da lei, a regra do codigo foi a ordem do general.

O primeiro que manchou com o seu sangue o manto do novo rei, foi o cabo
Tamburelli, que foi fuzilado pelas costas, por haver commettido o crime
de lêr aos seus soldados a _Joven Italia_. O segundo foi o tenente
Tolla culpado por ter tido em seu poder livros sediciosos, e conhecendo
o author não o haver denunciado. Como Tamburelli foi fuzilado pelas
costas. Era uma engenhosa invenção da magistratura piemonteza para
assemelhar o supplicio do fuzilado ao da forca.

Já não era sufficiente matar, era preciso tambem deshonrar. A de 15 de
Junho foram tão bem fuzillados _pelas costas_ o sargento Miglio, José
Deglia e Antonio Gaortti.

Todos morreram com uma coragem admiravel.

Jacopo Rufini estava encerrado nas prisões da torre de Genova. Tentavam
tirar-lhe as forças por todos os meios possiveis: falto de comida e de
somno, sentia que se enfraquecia, não só physicamente, mas moralmente,
por isso resolveu não esperar que o collocassem entre a morte e a
vergonha, e receiando que chegado esse momento não tivesse forças
para escapar á morte, arrancou uma lança de ferro da porta da prisão,
afiou-a e degolou-se com ella.

Nas agonias da morte teve forças sufficientes para escrever na muralha
com letras de sangue:

    «Lego á Italia a minha vingança.»

Quando no dia seguinte entraram na prisão acharam-n'o morto.

Em Genova foram fuzilados Luciano Placenzo e Luiz Turfo.

Em Alexandria Domingos Ferrari, José Menardi, José Rigano, Assani
Costa, Giovanni Marini e depois Andrea Vochieri.

Escreveremos algumas linhas sobre Andrea Vochieri, assim como fizemos
de Jacopo Rufini.

Um condemnado d'Alexandria que escapou ás torturas de Fenestrelle,
deixou nas suas memorias a narração da agonia de Andrea Vochieri:

    «Tiraram-me, diz elle, fallando de si, os meus livros que
    se compunham de uma Biblia, de um livro de orações e de uma
    Historia dos Capuchos illustres do Piemonte. Depois pozeram-me
    ferros aos pés e conduziram-me a outra prisão mais humida mais
    escura e mais sordida que primeira. As janellas tinham duas
    ordens de grades e as portas cadêas dobradas. Esta prisão
    era proxima da do pobre Vochieri. Alguns buracos na parede
    permittiam-me ver tudo quanto ali se passava.

    «Estava deitado em um miseravel banco com ferros aos pés, dois
    guardas collocados ao lado com a espada núa, e uma sentinella
    armada com uma espingarda se achava á porta. Reinava n'este
    medonho carcere um silencio sepulchral e os soldados pareciam
    mais consternados do que o proprio prisioneiro. Dois frades
    capuchos vinham com curtos intervallos vel-o e exhortal-o.

    «Apesar da grande dôr que sentia em vêr aquelle martyr em
    similhante estado não podia deixar de o contemplar a todos os
    momentos. No fim de oito dias vieram buscal-o para o conduzir á
    morte.»

O que este prisioneiro não relata porque não o sabia, é que Vochieri
foi levado ao supplicio pelo caminho mais longo, sendo obrigado a
passar por defronte da casa aonde habitava sua irmã, sua esposa e seus
filhos. Esperavam que vendo tudo o que elle tinha de mais cara no mundo
perdesse a coragem e fizesse algumas revelações.

Vochieri sorriu tristemente:

--Esqueceram, disse elle, que ha no mundo uma coisa que adoro mais do
que esposa, irmã e filhos... é a Italia. Viva a Italia!

Voltando-se então para os guardas que o iam fuzilar, e que eram
condemnados das galés em logar de soldados, disse esta unica palavra:

--Vamos!

Quinze minutos depois cahia atravessado por seis ballas.

Havia n'essa época em Niza um mancebo de vinte e seis annos que vendo
correr este sangue fazia comsigo mesmo o juramento de consagrar toda a
sua vida ao culto d'essa liberdade pela qual morriam tantos martyres.

Esse mancebo era GARIBALDI.

                                                     =ALEXANDRE DUMAS.=




                         MEMORIAS DE GARIBALDI

                                   I

                               MEUS PAES


Nasci em Niza, a 22 de julho de 1807, não só na casa, mas no proprio
quarto em que nasceu Masséna. O illustre marechal era, como ninguem
ignora, filho de um padeiro. Nas lojas d'aquelle predio ainda hoje se
conserva uma padaria.

Antes de fallar a meu respeito seja-me permittido dizer duas palavras
de meus estimados paes de que o excellente caracter e profunda ternura
tanta influencia tiveram na minha educação e disposições physicas.

Meu pae, Domingos Garibaldi, natural de Chiavari, era como meu avô
maritimo. Vindo ao mundo o primeiro objecto que seus olhos viram foi o
mar, e era no mar que devia passar quasi toda a sua vida. Estava bem
longe de possuir os conhecimentos que são o apanagio dos homens da sua
classe, e principalmente do nosso seculo. Não havia formado a sua
educação em uma escóla especial, mas sim nos navios de meu avô.

Mais tarde capitaneou uma embarcação com grande felicidade. Soffreu
immensos incidentes uns felizes, outros desgraçados, e muitas vezes
ouvi dizer que nos poderia ter deixado mais bens de fortuna do que nos
legou.

Mas que importa isso! Meu pobre pae era livre de gastar como
intendesse um dinheiro tão laboriosamente ganho, e eu não lhe sou
menos reconhecido por esse facto. De mais ha uma coisa, de que estou
intimamente convencido e é, de que todo o dinheiro que dispendeu n'este
mundo o que gastou com a minha educação foi o que com mais prazer saín
das suas algibeiras apesar dos grandes sacrificios que para isso era
obrigado a fazer.

Não julguem por isto que a minha educação foi aristocratica. Meu
pae não me mandou ensinar gymnastica, jogo d'armas ou equitação. A
gymnastica apprendi-a trepando pelos cabos dos navios, e deixando-me
escorregar pelas enxarcias; a esgrima defendendo a minha cabeça e
tentando o melhor que podia quebrar a dos outros, e a equitação tomando
os exemplos dos primeiros cavalleiros do mundo, isto é, dos Gauchos.

O unico exercicio corporal da minha mocidade, para o qual tambem não
tive mestre, foi a natação. Não me lembro quando, e como aprendi a
nadar, mas julgo que sempre o soube, pois desconfio que nasci amphibio.
Assim não obstante o pouco prazer que tenho em me prodigalisar elogios,
como sabem todos aquelles que me conhecem, não posso deixar de dizer
que, sou um dos melhores nadadores existentes. Sendo conhecida a
confiança que tenho em mim é escuzado dizer que nunca hesitei em me
atirar á agua quando era necessario salvar um dos similhantes.

Entretanto se meu pae não me mandou ensinar todos estes exercicios a
culpa não foi sua, mas sim da epocha calamitosa porque atravessavamos.
N'estes tempos desgraçados o clero era o senhor absoluto do Piemonte,
e todos os seus esforços eram tornar os mancebos em frades inuteis e
mandriões em logar de cidadãos aptos para servirem a nossa desgraçada
patria. O amor profundo que me consagrava meu pobre pae, até lhe fazia
receiar que se eu recebesse alguma instrucção, isso me fosse funesto
para o futuro.

Rosa Raymundo, minha mãe, era, digo-o com bastante orgulho, o modelo
das mulheres. Todo o bom filho deve dizer o mesmo de sua mãe, mas
nenhum o dirá com mais justiça do que eu.

Um dos remorsos de toda a minha vida, talvez o maior, foi e será o
ter tornado desgraçados os seus ultimos dias! Só Deus sabe quanto ella
soffreu com a minha vida aventureira, porque só Deus sabe o immenso
amor que minha mãe me consagrava. Se em mim existe algum sentimento
bom, confesso-o, e com bastante ufania, é a ella a quem o devo. O seu
caracter angelico devia forçosamente deixar-me alguns vestigios. Não
será á sua piedade pelos desgraçados, á sua compaixão pelos infelizes,
que eu devo este amor pela patria, amor que me mereceu a affeição e
sympathia dos meus compatriotas?

Não sou supersticioso, mas devo dizer que nas circumstancias mais
criticas da minha vida, quando o oceano rugindo erguia o meu navio como
um pedaço de cortiça, quando as bombas assobiavam a meus ouvidos como
o vento da tempestade, quando as ballas cahiam em volta de mim como a
saraiva, via sempre minha pobre mãe ajoelhada aos pés do SENHOR orando
pelo filho das suas entranhas. Se algumas vezes mostrei uma coragem
de que muitos se admiraram, é porque estava convencido de que não me
succederia desgraça alguma quando tão santa mulher, quando similhante
anjo orava por mim.




                                  II

                        OS MEUS PRIMEIROS ANNOS


Os primeiros annos da minha mocidade foram passados, como são os de
todas as creanças, isto é, rindo e chorando sem saber porque, estimando
mais o prazer que o trabalho, os divertimentos que o estudo, e não
aproveitando, como devia ter feito, os sacrificios que meus paes faziam
por meu respeito. Cousa alguma extraordinaria aconteceu durante a minha
infancia. Tinha um excellente coração, sendo este um bem emanado de
Deus e de minha mãe. Escusado é dizer que os impulsos d'esse coração
eram por mim immediatamente satisfeitos. Tive sempre grande compaixão
por tudo o que era fraco e soffredor. Esta compaixão estendia-se
até aos animaes, ou antes começava por elles. Lembra-me de que um
dia apanhei um grillo e que levando-o para o meu quarto, ahi passei
alguns momentos brincando com elle, até que com essa inepcia ou antes
brutalidade da infancia lhe arranquei uma perna: a minha dôr foi tal,
que passei muitas horas encerrado no meu quarto chorando amargamente.

Outra vez indo a Var á caça com um primo meu, parei ao pé d'um profundo
fosso aonde as lavadeiras costumavam lavar a roupa e aonde n'aquelle
momento se achava uma pobre mulher lavando a sua. Não sei como, mas
esta desgraçada caiu no fosso. Apesar de ser mui novo--tinha então oito
annos--atirei-me á agua conseguindo salval-a. Conto este caso para
provar quanto é natural em mim um sentimento que me leva a soccorrer o
meu similhante, e para se conhecer o pouco valor que tem o fazel-o.

Entre os professores que tive n'esta epocha da minha vida, contam-se o
padre Giovanni e o senhor Arene, a quem eu conservo um reconhecimento
particular.

Com o primeiro aproveitei pouco, porque, como já disse, tinha mais
disposição para brincar e vadear, do que para trabalhar. Resta-me
sobre tudo o pesar de não haver estudado o inglez, como o teria podido
fazer, porque sendo o padre Giovanni de casa e quasi de familia, as
suas lições resentiam-se da muita familiaridade que entre nós existia.
Todas as vezes que sou obrigado a tractar com inglezes, que não são
poucas, este sentimento renova-se sempre. Ao segundo, optimo professor,
é a quem devo o pouco que sei, mas o que mais lhe agradeço, e porque
lhe serei eternamente grato, é haver-me ensinado a minha lingua materna
pela constante leitura da historia romana.

A grave falta de não ensinar ás creanças a lingua e historia patria é
frequentemente commettida em Italia, e principalmente em Niza, onde
a proximidade de França influe muitissimo na educação. É pois a esta
primeira leitura da nossa historia, e á persistencia com que meu irmão
mais velho, Angelo, me recommendava o seu estudo, que eu devo o pouco
que sei da sciencia historica e a facilidade de exprimir os meus
pensamentos.

Termino este primeiro periodo da minha juventude narrando um facto que,
apezar da sua pouca importancia dará uma idéa da minha disposição para
a vida aventureira.

Fatigado de estudar, e soffrendo muito pela vida sedentaria que era
obrigado a levar, propuz um dia a alguns dos meus companheiros que
fugissemos para Genova. A proposta foi logo approvada e desatando um
barco de pesca fizemo-nos de véla para o Oriente. Estavamos nas alturas
de Monaco quando um pirata, mandado por meu excellente pae nos apanhou
e entregou cheios de vergonha ás nossas familias. Um abbade que nos
havia visto foi o denunciante. D'este facto é que provavelmente vem as
poucas sympathias que sinto pelos abbades.

Os meus companheiros n'esta aventura eram, se bem me recordo, César
Parodi, Rafael de Andreis e Celestino Dermond.




                                  III

                      AS MINHAS PRIMEIRAS VIAGENS


«Oh! primavera, juventude do anno. Oh! juventude, primavera da vida!»
disse Metastasio, eu ajuntarei: Como tudo se aformosea ao sol da
juventude e da primavera!

Foi illuminado por esse bello sol que tu linda _Constanza_, primeiro
navio em que sulquei os mares, me appareceste. Os teus robustos
flancos, a tua elevada e ligeira mastreação, a tua espaçosa coberta,
e até o busto de mulher que se patenteava soberbo na tua prôa,
ficarão eternamente gravados na minha idéa! Como os teus marinheiros,
verdadeiros typos dos nossos Ligurios, se inclinavam graciosamente sob
os remos!

Com que alegria me dependurava na amurada para ouvir as suas canções
populares.

Cantavam canções de amor; ninguem então lhe ensinava outras, e estas
por mais insignificantes que fossem, enterneciam-me e arrebatavam-me.
Se esses cantos tivessem sido pela patria, talvez me enlouquecessem!
Quem lhe diria então que havia uma Italia? Quem lhe diria que tinhamos
uma patria a vingar e a tornar livre?

Ninguem!

Fomos educados e crescemos como judeus, isto é, na crença de que a vida
não tem senão um fim--fazer fortuna.

Em quanto olhava alegre para o navio em que ia embarcar, minha mãe
preparava, chorando, a minha bagagem.

A minha vocação era a vida aventureira do mar. Meu pae fez todo o
possivel para me tirar similhante idéa, a sua vontade era que eu
seguisse, uma carreira pacifica e sem perigos; que fosse padre,
advogado ou medico. Mas a minha persistencia o fez desistir, e o seu
amor cedeu á minha juvenil obstinação. Embarquei então na _Constanza_
de que era capitão Angelo Pesante o mais atrevido maritimo que tenho
conhecido. Se a nossa marinha tivesse tomado as proporções que se
podiam esperar, o capitão Pesante teria direito ao commando de um dos
nossos navios de guerra, e ninguem o teria excedido. Pesante nunca
commandou uma esquadra, mas que se dirijam a elle, e em breve tempo
já terá arranjado uma, desde as barcas até ás naus de tres pontos. Se
elle algum dia obtivesse uma tal commissão, posso assegurar que haveria
proveito e gloria para a patria.

Fiz a minha primeira viagem a Odessa. Estas viagens tornaram-se depois
tão communs e faceis que é inutil descrevel-as.

A minha segunda viagem foi a Roma, mas na companhia de meu pae que
tendo na minha primeira ausencia soffrido mortaes inquietações,
se tinha resolvido visto eu não querer ceder da minha teima, a
acompanhar-me.

Fizemos a viagem na sua tartana a _Santa Reparata_.

A Roma! Com que alegria eu partia! Já disse como pelos conselhos de
meu irmão e pelos cuidados do meu digno professor havia estudado,
a historia romana. Roma era para mim, admirador da antiguidade, a
capital do mundo. É verdade que se achava destruida, mas as suas
ruinas eram immensas, gigantescas e d'ellas sae a memoria de tudo
quanto é bello e grandioso. Roma foi não só a capital do mundo, mas
o berço d'essa religião santa que quebrou a cadêa dos escravos, que
ennobreceu a humanidade, d'essa religião de que os primeiros apostolos
foram os instituidores das nações, os emancipadores dos povos, mas
de que infelizmente os successores degenerados teem sido o flagello
da Italia, vendendo sua mãe, ou antes nossa mãe, aos estrangeiros!
Não! não! a Roma que eu via nos sonhos da minha mocidade não era só
a Roma do passado, mas tambem a do futuro, abrigando em seu seio a
idéa regeneradora de um povo perseguido pela inveja das outras nações,
porque nasceu grande e porque tem sempre marchado á frente dos povos,
guiados por ella á civilisação.

Roma! quando penso na sua desgraça, no seu abatimento, no seu martyrio,
parece-me superior a todo o mundo. Amava-a com todas as forças da
minha alma, não só nos combates soberbos da sua grandeza durante tres
seculos; mas até nos mais pequenos successos que eu recolhia no meu
coração como um precioso deposito.

O meu amor em logar de diminuir, tem augmentado com o desterro. Muitas
vezes, no outro lado dos mares, a tres mil leguas de distancia, pedia
ao SENHOR como uma graça especial o tornar a vêl-a. Finalmente, Roma
era para mim a Italia, porque eu não vejo a Italia senão na reunião dos
seus membros dispersos, e Roma é para mim o symbolo da unidade italiana.




                                  IV

                     AS MINHAS PRIMEIRAS AVENTURAS


Durante algum tempo naveguei na companhia de meu pae; depois fui a
Cagliari no bergantim _Etna_, de que era capitão José Gervino.

N'esta viagem presenciei uma horrivel catastrophe que me deixou
uma eterna recordação. Vindo de Cagliari, na altura do cabo Noli,
navegavamos na companhia de alguns navios, entre os quaes se achava
uma encantadora falua catalã. Depois de gosarmos dois ou tres dias de
um bello tempo, começámos a sentir algumas rajadas d'esse vento a que
os nossos marinheiros chamam _Libieno_, por que antes de chegar ao
Mediterraneo passa pelo deserto de Lybia. Impellido por elle o mar não
tardou a enfurecer-se, e tão furiosamente que nos arrastou para Vado.

A falua de que já fallei sustentou-se admiravelmente no começo da
tormenta, e não duvido dizer que todos nós receiando que a tempestade
augmentasse, desejavamos antes estar a bordo da falua, do que dos
nossos navios. Infelizmente a desgraçada embarcação estava destinada
a offerecer-nos um doloroso espectaculo: uma vaga horrivel a
cobriu, e em bem poucos instantes todos aquelles desgraçados foram
submergidos. A catastrophe tinha logar á nossa direita, e por isso nos
era absolutamente impossivel soccorrel-os. Os outros navios que nos
acompanhavam tambem se achavam na mesma impossibilidade. Nove pessoas
da mesma familia morreram á nossa vista, sem lhe podermos prestar o
mais leve soccorro. Algumas lagrimas appareceram nos olhos dos mais
endurecidos dos nossos marinheiros, mas o perigo proprio era tal que
ellas bem depressa seccaram. A tempestade abrandou, como se estivesse
satisfeita por haver immolado estas victimas; e chegamos a Vado sem
incídente.

De Vado parti para Genova, e de Genova voltei a Niza.

Então comecei uma serie de viagens ao Levante, durante as quaes fomos
tres vezes tomados e roubados pelos piratas. Duas vezes o fomos na
mesma viagem, o que tornou os segundos piratas mui furiosos, visto que
não nos encontravam cousa alguma para roubar. Foi n'estes ataques que
comecei a familiarisar-me com o perigo, e a vêr que sem ser Nelson,
podia como elle perguntar:--O que é o medo?

Foi n'uma destas viagens, no bergantim _Cortese_, capitão Barlasemeria,
que fiquei doente em Constantinopla. O navio foi obrigado a fazer-se
de véla, e prolongando-se a minha doença mais do que eu tinha julgado,
achei-me muito falto de recursos.

Como em todas as situações desgraçadas em que me tenho achado, sempre
encontrei alguma alma caridosa que me soccorresse, nunca pensei muito
na falta de dinheiro.

Entre essas almas caridosas encontrei uma que nunca esquecerei: é a
excellente senhora Luiza Sauvaigo, de Niza, que me fez convencer de que
as duas mulheres mais perfeitas do mundo, eram minha mãe e ella.

Luiza fazia a felicidade de um marido, excellente homem, e tratava com
uma admiravel intelligencia da educação de seus filhos.

Porque razão fallei agora de Luiza? É porque escrevendo para
satisfazer uma necessidade do coração, ella me dictou o que acabo de
lançar ao papel.

A guerra então existente entre a Porta Ottomana e a Russia contribuiu
a prolongar a minha estada na capital do imperio turco. Durante este
tempo e ignorando ainda como poderia alcançar recursos para viver,
fui admittido como preceptor em casa da viuva Timoni. Este emprego
foi-me dado sob recommendação de M. Diego, doutor em medicina, e a
quem dou aqui um voto de agradecimento pelo serviço que me prestou.
Estava, pois, preceptor de tres meninos. Assim fiquei muitos mezes,
até que a vontade de navegar vindo de novo, me embarquei no bergantim
_Notre-Dame-de-Grace_, de que tinha sido capitão Casanova.

Foi este o primeiro navio em que embarquei como capitão.

Não fatigarei o leitor fallando nas minhas viagens, em que nada de
extraordinario me succedeu, direi unicamente que atormentado sempre por
um profundo patriotismo, nunca cessei de perguntar noticias sobre a
ressurreição de Italia, mas infelizmente até á edade de vinte e quatro
annos todo o trabalho foi inutil.

Emfim, n'uma viagem a Taganrog veiu a bordo do meu navio um patriota
italiano, que me deu algumas noticias sob a maneira porque marchavam os
negocios de Italia.

Havia alguma esperança para o nosso desgraçado paiz.

Christovão Colombo, não foi mais feliz, quando perdido no meio do
Atlantico, e ameaçado pelos seus companheiros a quem havia pedido só
tres dias, ouviu gritar: «Terra», do que eu quando ouvi pronunciar a
palavra _patria_, e vi no horisonte o primeiro pharol preparado pela
revolução franceza de 1830.

Havia então homens que se occupavam da redempção da Italia!

Em outra viagem, transportei no _Clorinde_, a Constantinopla alguns
_Simoniacos_, conduzidos por Emilio Parrault.

Tinha ouvido fallar pouco na seita de «Saint-Simon»; sabia unicamente
que estes homens eram os apostolos perseguidos de uma nova religião.

Vendo em Parrault um patriota italiano, dei-lhe parte de todos os meus
pensamentos. Então durante essas noutes transparentes do Oriente, que,
como diz Chateaubriand, não são as trevas, mas unicamente a ausencia
do dia, debaixo d'esse ceu marchetado de estrellas, sobre esse mar de
que a brisa parecia cheia de inspirações generosas, discutimos, não só
as mesquinhas questões de nacionalidade nas quaes havia pensado muito,
questões restrictas á Italia, e a cada provincia--mas até a grande
questão da humanidade.

Este apostolo provou-me que o homem que defende a sua patria, ou que
ataca a dos outros, é no primeiro caso um soldado piedoso; injusto no
segundo,--mas o homem que tornando-se cosmopolita, adopta a todas por
patria e vae offerecer a sua espada e o seu sangue ao povo que lucta
contra a tyrannia, é mais que um soldado--é um heroe.

Teve então logar no meu espirito uma mudança repentina. Pareceu-me vêr
em um navio não o vehiculo encarregado de transportar mercadorias entre
os diversos paizes, mas o mensageiro do SENHOR. Havia partido avido
de emoções, e curioso por vêr cousas novas, e a mim mesmo perguntava
se esta idéa irresistivel que me perseguia não tinha horisontes mais
dilatados e por descobrir. Via esses horisontes atravez o longiquo véo
do futuro.




                                   V

                    OS ACONTECIMENTOS DE S. JULIÃO


O navio em que desta vez voltei do Oriente destinava-se a Marselha.

Chegando a esta cidade soube da revolução suffocada no Piemonte e dos
fuzilamentos de Chambéry, Alexandria e Genova.

Em Marselha travei relações intimas com Covi, que me apresentou a
Mazzini.

Então estava longe de suspeitar a grande communidade de principios
que um dia me uniria a Mazzini. Ninguem conhecia ainda o persistente
e obstinado pensador, que nem a propria ingratidão tem feito desistir
da grande obra que emprehendeu. Quando soube da morte de Vocchieri,
Mazzini tinha dado um verdadeiro grito de guerra.

Escreveu na sua _Joven Italia_: «Italianos, é tempo de nos juntarmos,
se queremos ficar dignos do nosso nome; e derramar o nosso sangue
amalgamando-o com o dos martyres piemontezes.»

Mas em França, em 1833, não se diziam impunemente d'estas cousas. Algum
tempo depois de lhe haver sido apresentado, e de lhe ter dito que podia
contar comigo, Mazzini, o eterno proscripto, era obrigado a deixar a
França e a retirar-se a Genova.

N'esta occasião o partido republicano parecia completamente morto na
França. Era um anno apenas decorrido: estavamos a 5 de junho,--alguns
mezes depois do processo dos combatentes do claustro Saint-Merry.

Mazzini havia escolhido este momento para fazer uma nova tentativa.

Os patriotas tinham respondido que estavam promptos, mas pediam um
chefe.

Pensaram em Romarino, ainda coberto de louros por causa das suas luctas
na Polonia.

Mazzini não approvava esta escolha, o seu espirito activo e profundo
prevenia-o contra os grandes nomes; mas a maioria queria Romarino, e
então Mazzini cedeu.

Chamado a Genova, Romarino acceitou o commando da expedição. Na
primeira conferencia com Mazzini foi convencionado que duas columnas
republicanas se deviam dirigir ao Piemonte, uma pela Saboia outra por
Genova.

Romarino recebeu quarenta mil francos para fazer face ás primeiras
despezas, e partiu com um secretario de Mazzini que ia encarregado de o
vigiar.[3]

  [3] Estes successos que tinham logar em um ponto aonde não
  estava Garibaldi, são aqui referidos unicamente para explicação
  historica, sendo extrahidos de Angelo Brofferio.

Todos estes acontecimentos tiveram logar em setembro de 1833; a
expedição devia ter logar em outubro.

Mas Romarino conduziu tudo de tal modo que a expedição não estava
prompta senão em janeiro de 1834.

Mazzini não obstante todas as tergivergencias do general tinha-se
mostrado firme.

Em fim a 31 de janeiro, Ramorino collocado na ultima extremidade por
Mazzini reuniu-se a elle em Genova, com dois outros generaes e um
ajudante de campo.

A conferencia foi triste, e mal annunciada por pessimos agouros.
Mazzini propoz que se occupasse militarmente a villa de S. Julião, onde
se achavam reunidos os patriotas saboyanos e os republicanos francezes,
que haviam adherido ao movimento.

Era em S. Julião que se devia levantar o grito de rebellião.

Ramorino era da opinião de Mazzini. As duas columnas deviam pôr-se
em marcha no mesmo dia: uma partiria de Caronge, e a outra de Nyon,
devendo esta atravessar o lago para se reunir á primeira na estrada de
S. Julião.

Ramorino ficava com o commando da primeira columna: a segunda estava
debaixo das ordens de Graboky.

O governo genovez receioso de se indispor, por um lado com a França,
por outro com o Piemonte, viu com maus olhos este movimento. Quiz
oppor-se á partida da columna de Caronge commandada por Romarino, mas o
povo sublevou-se, e o governo foi forçado a deixal-a marchar.

Não succedeu o mesmo com a que devia partir de Nyon.

Dous barcos se haviam feito de véla, levando um soldados, e o outro
armas.

Mandaram em sua perseguição um navio de guerra a vapor, que trouxe as
armas e aprisionou os soldados.

Ramorino não vendo chegar a tropa que se lhe devia juntar, em logar de
proseguir na sua marcha sobre S. Julião, começou a costear o lago.

Muito tempo se passou sem saber aonde iam. Não se conheciam as
intenções do general: o frio era intenso, e os caminhos estavam em um
estado deploravel.

Exceptuando alguns polacos, a columna era composta de voluntarios
italianos, impacientes pela hora do combate, mas que cançavam
facilmente pela extensão e difficuldade do caminho.

A bandeira italiana atravessou algumas pobres villas, nenhuma voz
amiga a saudou, não encontrando por toda a parte senão curiosos ou
indifferentes.

Fatigado pelos seus largos trabalhos, Mazzini que tinha trocado a
penna pela espingarda, seguia a columna: soffrendo uma febre ardente,
arrastava-se por aquelles asperos caminhos com a dôr escripta na fronte.

Já por varias vezes tinha perguntado a Ramorino quaes eram as suas
intenções, e que caminho seguia.

As respostas do general nunca o haviam satisfeito.

Chegaram a Carra e detiveram-se para ahi passar a noite; Mazzini e
Ramorino achavam-se na mesma camara.

Ramorino estava embrulhado na sua capa; Mazzini fixava sobre elle o seu
olhar sombrio desconfiado.

--Não é seguindo este caminho, disse elle com a sua voz sonora, tornada
mais vibrante pela febre, que temos a esperança de encontrar o inimigo.
Devemos ir ao seu encontro, e se a victoria é impossivel, provemos ao
menos á Italia que sabemos morrer.

--Não nos faltará nem o tempo, nem a occasião, respondeu o general,
para affrontar perigos inuteis: considero como um crime o expôr
inutilmente a flôr da mocidade italiana.

--Não ha religião sem martyres, respondeu Mazzini, fundemos a nossa,
ainda que seja com o nosso sangue.

Mal acabava de pronunciar estas palavras, que o estrondo da fuzilaria
se ouviu.

Ramorino deu um salto. Mazzini pegou n'uma carabina, agradecendo a Deus
o ter-lhe feito encontrar o inimigo. Mas este era o ultimo esforço da
sua energia: a febre devorava-o; os seus companheiros correndo de noite
pareciam-lhe fantasmas, a fronte escaldava-lhe, e a terra tremia-lhe
debaixo dos pés. Depois de alguns minutos de afflicção caíu desmaiado.

Quando voltou a si achou-se na Suissa, aonde os seus companheiros o
tinham conduzido com grande trabalho: a fuzilaria de Carra tinha sido
um rebate falso.

Ramorino declarou então que tudo estava perdido: recusou-se a ir mais
longe e ordenou a retirada.

Durante este tempo uma columna de cem homens, da qual faziam parte
um certo numero de republicanos francezes, partiu para Grenoble, e
atravessou a fronteira da Saboya.

O perfeito francez preveniu as auctoridades sardas: os republicanos
foram attacados de noute e de improviso, ao pé das grutas de Cobellos,
e dispersos depois d'um combate que durou uma hora.

N'este combate os soldados sardos fizeram dois prisioneiros. Angelo
Volantieri e José Borrel: conduzidos voluntariamente a Chamberg e
condemnados á morte, foram fuzilados na mesma terra aonde ainda estava
fumegante o sangue de Elfico Tolla.

Por este modo terminou aquella expedição.




                                  VI

                            O DEUS DOS BONS


Tinha tambem a minha parte a cumprir no movimento que devia ter tido
logar, e havia-a acceitado sem discutir.

Havia entrado no serviço do estado como marinheiro de primeira classe
da fragata _Eurydice_. A minha missão era alcançar proselytos para a
nossa causa, e para conseguir este fim tinha feito tudo quanto me era
possivel.

Dado o caso que o nosso movimento tivesse bom resultado, devia com
os meus companheiros apoderar-me da fragata e pôl-a á disposição dos
republicanos.

Não havia querido, impellido pelo ardor que sentia, limitar-me a este
papel. Tinha ouvido dizer que um movimento teria logar em Genova,
devendo por esta occasião apoderarem-se do quartel dos gendarmes
situado na praça de Sarzana. Deixei aos meus companheiros o cuidado
de se assenhorearem do navio, e proximo da hora em que devia rebentar
a rebellião de Genova deitei uma canôa ao mar e desembarquei na
alfandega, gastando poucos momentos a chegar á praça de Sarzana, onde,
como já disse, estava situado o quartel.

Esperei quasi uma hora, mas nenhum indicio de rebellião appareceu.
Bem depressa ouvi dizer que tudo estava perdido, havendo-se posto os
republicanos em fuga: dizendo-se tambem que varias prisões haviam sido
feitas.

Como não me tinha engajado na marinha sarda senão para ajudar o
movimento republicano, julguei inutil voltar a bordo do _Eurydice_,
começando a pensar nos meios de me pôr em fuga.

No momento em que fazia estas reflexões, alguma tropa prevenida sem
duvida do projecto de nos apoderarmos do quartel, começou a guarnecer a
praça.

Vi então que não havia tempo a perder. Refugiei-me em casa de uma
vendedeira de fructa e confessei-lhe a situação em que me achava.

A excellente mulher não fez nenhuma reflexão e escondeu-me nos quartos
interiores do seu estabelecimento. No dia seguinte procurou-me um fato
completo de camponez, e pelas oito horas da noite sahi, como se andasse
passeando, de Genova pela porta da Lanterne, começando então essa vida
de exilio, luto e perseguição, que, segundo todas as probabilidades,
ainda não finalisou.

Estavamos a 5 de fevereiro de 1834.

Abandonando os caminhos batidos e trilhados dirigi-me por atalhos para
as montanhas. Tinha bastantes jardins que atravessar, e muitos muros
que saltar. Felizmente estava familiarisado com estes exercicios, e
depois de uma hora de gymnastica achava-me fóra do ultimo jardim.

Encaminhado-me para Cassiopea, ganhei as montanhas de Sestri, e no fim
de dez dias, ou antes de dez noites; cheguei a Niza, dirigindo-me logo
a casa de minha tia, na praça da Victoria, a fim de que ella prevenindo
minha mãe lhe tirasse todos os cuidados.

Descancei um dia, e na noite seguinte parti acompanhado por dois
amigos, José Jaun, e Engelo Gostavini.

Chegados ao Var, achamol-o innundado pelas chuvas, mas para um nadador
como eu, não era isto um obstaculo. Atravessei-o metade a nado, metade
a vau.

Os meus dois amigos haviam ficado na outra margem. Disse-lhe adeus.

Estava salvo, ou quasi, como se vae vêr.

N'esta esperança dirigi-me a um corpo de guardas da alfandega;
disse-lhe quem era, e qual o motivo porque havia deixado Genova.

Os guardas disseram-me que era seu prisioneiro, até nova ordem, e que a
iam mandar pedir a Paris.

Julgando que acharia facilmente occasião de fugir, não fiz nenhuma
resistencia, e deixei-me conduzir a Grasse, e de Grasse a Draguignan.

Em Draguignan metteram-me em um quarto do primeiro andar, cuja janella
sem grades, dava para um jardim.

Aproximei-me d'ella como se quizesse vêr o jardim: da janella ao chão
havia a altura de quinze pés. Dei um salto, e em quanto os guardas,
menos ligeiros e estimando mais as pernas do que eu estimava as minhas,
saíam pela escada; ganhei-lhe muita dianteira embrenhando-me nas
montanhas.

Não conhecia o caminho, mas era marinheiro, e lendo no ceo, n'esse
grande livro, aonde estava habituado a lêr, orientei-me e dirigi-me a
Marselha. No dia seguinte de tarde cheguei a uma villa de que nunca
soube o nome, porque nem tive tempo para o perguntar.

Entrei n'uma estalagem. Um mancebo e uma mulher ainda joven estavam á
mesa esperando pela ceia.

Pedi alguma cousa de comer: desde a vespera que não havia tomado nenhum
alimento.

O dono da hospedaria convidou-me para ceiar na sua companhia e de sua
mulher. Acceitei.

A comida era boa, o vinho do paiz agradavel, e o fogo excellente.
Senti então um d'esses momentos de bem estar e felicidade, como só se
experimentam depois de se haver passado um perigo, e quando se julga
não haver mais nada a receiar.

O dono da hospedaria felicitou-me pelo meu bom appetite, e pelo meu
rosto alegre e prasenteiro.

Disse-lhe que o meu appetite não tinha nada de extraordinario,
porque não tinha comido havia dezoito horas e que o achar-me alegre
e satisfeito era por haver escapado talvez á morte no meu paiz--e em
França á prisão.

Tendo-me adiantado tanto, não podia fazer segredo do resto. O
estalajadeiro e sua mulher pareciam-me tão boas pessoas que lhe contei
tudo.

Então, com grande espanto meu, o estalajadeiro ficou pensativo.

--Que tem? lhe perguntei.

--É que depois da confissão que acaba de fazer, respondeu elle, não
tenho remedio senão prendel-o.

Dei uma grande gargalhada porque não tomei este dito ao serio, e demais
se o fosse eramos um contra um, e não havia no mundo um unico homem
que eu temesse.

--Bem, disse eu, mas como julgo que não tem muita pressa, peço-lhe que
me deixe ceiar com todo o descanço, pois temos muito tempo depois do
_dessert_. E continuei comendo sem mostrar a mais leve inquietação.

Infelizmente vi bem depressa que se o estalajadeiro tivesse necessidade
de ajudantes para realisar os seus projectos, esses ajudantes não lhe
faltavam.

A sua estalagem era o logar aonde toda a mocidade da villa se reunia ás
noutes para beber, fumar, e fallar da politica.

A sociedade do costume começava a reunir-se, e bem depressa estavam na
estalagem mais de doze mancebos, jogando as cartas, bebendo e fumando.

O estalajadeiro não tornou a fallar na minha prisão, mas tambem não me
perdia de vista.

É verdade que não tendo eu a mais pequena mala, não tinha cousa alguma
que lhe assegurasse o pagamento da minha despesa.

Como tinha na algibeira alguns escudos, fiz barulho com elles, o que
pareceu socegar o meu homem.

No momento em que um dos bebedores acabava, no meio dos applausos
geraes, de cantar uma canção, ergui o copo que tinha na mão:

--Agora pertence-me, disse eu:

E comecei a cantar o _Deus dos bons_.

Se não tivesse outra vocação teria podido fazer-me cantor, porque tenho
uma voz de tenor que cultivada alcançaria uma certa extensão.

Os versos de Beranger, a franquesa com que eram cantados, a
fraternidade do estribilho, a popularidade do poeta, arrebataram todo o
auditório.

Fizeram-me repetir dois ou tres couplets e abraçando-me todos quando
acabei, gritaram--Viva Beranger! Viva a França! Viva a Italia!

Depois de haver obtido tal successo era escusado pensar em prender-me;
o estalajadeiro conheceu isso porque nunca mais me fallou de tal,
ignorando eu por isso se elle fallava seriamente ou se zombava.

Passou-se a noite a cantar, jogar e a beber; e ao romper do dia todos
os meus companheiros da noite se offereceram para me acompanhar, honra
que acceitei sem difficuldade: caminhámos juntos seis milhas.

Com toda a certeza Beranger morreu sem saber o grande serviço que me
prestou.




                                  VII

              ENTRO AO SERVIÇO DA REPUBLICA DO RIO GRANDE


Cheguei a Marselha sem incidente, vinte dias depois de ter deixado
Genova.

Engano-me, um incidente, que li no _Povo Soberano_, me succedeu.

Estava condemnado á morte.

Era a primeira vez que tinha a honra de ver o meu nome impresso em um
jornal.

Como desde então era perigoso continuar a usar d'elle, comecei a
chamar-me Pane.

Fiquei alguns mezes occioso em Marselha, aproveitando-me da
hospitalidade do meu amigo José Paris.

Passado algum tempo consegui ser admittido como segundo commandante no
navio _Union_, capitão Gozan.

No domingo seguinte achando-me pelas cinco horas da tarde á janella com
o capitão, seguia com a vista um collegial em ferias que se divertia
no caes de Santo André a saltar de uma barca para outra, até que
faltando-lhe um pé caíu ao mar.

Estava vestido á _domingueira_, mas apesar d'isso, ouvindo os gritos
dados pela desgraçada creança arrojei-me á agua completamente vestido.
Duas vezes mergulhei inutilmente, mas á terceira fui mais feliz porque
o agarrei por debaixo dos braços, conseguindo trazel-o sem difficuldade
até á praia. Uma grande quantidade de povo ahi estava reunida, sendo eu
recebido no meio dos seus applausos e bravos.

Era um rapaz de quatorze annos que se chamava José Bambau. As lagrimas
de alegria e as bençãos de sua mãe pagaram-me largamente do banho que
tinha tomado.

Como o salvei debaixo do nome de José Pane, é provavel que se é ainda
vivo, nunca soubesse o verdadeiro nome de seu salvador.

Fiz na _Union_ a minha terceira viagem a Odessa, depois á volta
embarquei-me em uma fragata do bey de Tunis. Deixei-a no porto de
Goletta, voltando a Marselha em um brigue turco. Quando cheguei a esta
cidade encontrei-a quasi no mesmo estado que M. de Belzunce a viu em
1720 quando ali grassava a febre negra.

O cholera fazia então estragos horriveis.

Na cidade só existiam os medicos e as irmãs da caridade, quasi todo o
resto da população havia desertado e viviam nas quintas dos arrebaldes.
Marselha tinha o aspecto d'um vasto cemiterio.

Os medicos pediam os benevolos. É assim, como se sabe, que são chamados
nos hospitaes os enfermeiros voluntarios.

Offereci-me ao mesmo tempo que um rapaz de Trieste que voltou de Tunis
comigo. Estabelecemo-nos no hospital, e ahi partilhavamos as vigilias.

Este serviço durou quinze dias. No fim d'este tempo, como o cholera
diminuiu de intensidade e achava uma occasião favoravel de ver novos
paizes, embarquei-me, como segundo no brigue _Nantonnier_, de Nantes,
capitão Beauregard, que se achava proximo a partir para o Rio de
Janeiro.

Muitos dos meus amigos me teem dito que antes de tudo sou poeta.

Se para ser poeta é necessario escrever a _Iliada_, a _Divina Comedia_,
as _Meditações de Lamartine_, ou os _Orientaes_, de Victor Hugo, eu
não sou poeta: mas se para o ser é necessario passar horas e horas
a procurar nas aguas asuladas e profundas do mar os mysterios da
vegetação submarina, se é necessario ficar em extase diante da bahia do
Rio de Janeiro, de Napoles ou de Constantinopla, se é preciso pensar no
amor filial, nas recordações infantis, ou n'um amor juvenil no meio das
ballas e bombas, sem pensar que esse sonho ha-de acabar pela cabeça ou
por um braço quebrado--então sou poeta.

Recordo-me que um dia, durante a ultima guerra, não dormindo havia
quarenta horas, e morto de cançasso costeava Urbano e os seus doze mil
homens com os meus quarenta bersaglieri, os meus quarenta cavalleiros e
um milhar de homens armados na sua maioria pessimamente, seguia por um
pequeno atalho do outro lado do monte Orfano com o coronel Turr e cinco
ou seis homens, quando parei repentinamente, esquecendo a fadiga e o
perigo para ouvir um rouxinol.

Era uma noite magnifica. Sonhava ouvindo este amigo de infancia, que
um orvalho benefico e regenerador chovia em torno de mim. Os que me
rodeavam julgaram ou que hesitava no caminho a seguir, ou que ouvia
ao longe troar os canhões, ou os passos da cavallaria inimiga. Não!
Escutava um rouxinol que ha mais de dez annos, póde ser, eu não tinha
ouvido. Este extase durou não até que os que me rodeavam me tivessem
repetido duas ou tres vezes «General, ahi está o inimigo» mas até que
este rompendo o fogo fizesse desapparecer o meu encanto.

Quando depois de ter costeado os rochedos graniticos que occultam a
todas as vistas o porto, que os indios na sua linguagem expressiva
chamam Nelheroky, quer dizer, agua occulta, quando depois de haver
passado a estrada que conduz á nova bahia socegada como um lago; quando
na margem occidental d'esta bahia, vi elevar-se a cidade chamada
_Paus d'Assucar_, immenso rochedo conico que serve não de pharol,
mas de balisa aos navegantes, quando appareceu em volta de mim essa
natureza luxuriante de que a Africa e a Asia só me tinham dado uma
fraca idéa, fiquei maravilhado do espectaculo esplendido que meus olhos
contemplavam.

Foi no Rio de Janeiro que a minha boa estrella fez com que eu
encontrasse a coisa mais rara do mundo, isto é, um amigo.

Não tive necessidade de o procurar, não tivemos necessidade de nos
estudar, para nos conhecermos, encontramo-nos, trocamos um olhar e nada
mais; depois um sorriso, um aperto de mão, e Rossetti e eu eramos dous
irmãos.

Mais tarde terei occasião de dizer o que valia esta nobre alma; e não
obstante, eu, o seu maior amigo, seu irmão, o seu companheiro por tanto
tempo inseparavel, morrerei, póde ser, sem ter occasião de plantar uma
cruz no ponto ignorado da terra aonde repousam os restos deste generoso
e valente cidadão.

Depois de termos passado algum tempo na _ociosidade_--Chamo ociosidade
o estarmos Rossetti e eu, seguindo um modo de vida para que não
tinhamos disposição alguma--o acaso fez com que travassemos relações
com Zambecarri, secretario de Bento Gonçalves, presidente da republica
do Rio Grande, que se achava então em guerra com o Brasil. Ambos
estavam prisioneiros de guerra em Santa Cruz n'uma fortaleza que se
eleva á direita á entrada do porto d'onde chamam os navios á falla.
Zambecarri, filho do famoso areonauta perdido n'uma viagem á Syria e de
que nunca mais se ouviu fallar, apresentou-me ao presidente que me deu
a carta para poder piratear os navios brasileiros.

Algum tempo depois Bento Gonçalves e Zambecarri fugiram a nado chegando
livres de todo o perigo ao Rio Grande.




                                 VIII

                               CORSARIO


Armámos em guerra o _Mazzini_, pequeno navio de trinta toneladas, e
fizemo-nos ao mar com dezeseis companheiros de aventuras. Finalmente
eramos livres, navegavamos debaixo de um pavilhão republicano; emfim
eramos _corsarios_.

Com dezeseis homens de equipagem e um navio eramos capazes de declarar
a guerra a um imperio.

Sahindo do porto dirigi-me para as ilhas Marica, situadas a cinco ou
seis milhas da embocadura da barra. As nossas armas e munições estavam
occultas debaixo das carnes salgadas e da mandioca, unico alimento dos
negros.

Naveguei para a maior d'estas ilhas, que possue um ancuradouro, lancei
a ancora, saltei em terra e subi ao monte mais elevado.

Ahi estendi os braços com um sentimento de felicidade e orgulho
inexplicavel, dando um grito similhante ao da aguia quando paira no
mais alto dos ares.

O Oceano pertencia-me e eu tomava posse do meu imperio.

A occasião de o exercer não se fez esperar.

Em quanto estava como um passaro do mar, debruçado sobre o meu
observatorio, vi uma galeota navegando com o pavilhão brasileiro.

Mandei apromptar tudo para nos fazermos immediatamente ao mar, e desci
á praia.

Navegámos direitos á galeota que não julgava por certo correr tão
grande perigo a tres milhas da barra do Rio de Janeiro.

Abordando-a fizemo-nos conhecer, e intimámos o capitão para se render
immediatamente. Para sua justiça é necessario dizer que não fizeram a
mais pequena resistencia. Em poucos momentos estavamos a seu bordo.
Vi então dirigir-se-me um passageiro portuguez, que trazia na mão uma
caixa. Abriu-a, e mostrou-a cheia de diamantes, que me offereceu em
troca da vida.

Fechei a caixa e entreguei-lh'a, dizendo-lhe que a sua vida não corria
perigo algum, e que por consequencia, podia guardar os seus diamantes
para melhor occasião.

Não tinhamos tempo a perder, estavamos quasi debaixo do fogo das
baterias do porto. Transportámos as armas e munições para bordo da
galeota e affundámos o _Mazzini_ que como se vê, tinha tido uma curta,
mas gloriosa existencia.

A galeota pertencia a um rico negociante austriaco que habitava a ilha
Grande, situada á direita sahindo do porto, a quinze milhas de terra, e
estava carregada de café que era enviado á Europa.

O navio era para mim, por todos os motivos, uma excellente presa,
porque pertencia a um austriaco a quem eu tinha feito a guerra na
Europa, e a um negociante brasileiro domiciliado no Brasil a quem eu
fazia a guerra na America.

Dei á galeota o nome de _Farropilha_, derivado de _Farrapos_, nome que
no imperio do Brasil se dá aos habitantes das republicas da America do
Sul, assim como Filippe II chamava _mendigos de terra ou de mar_, aos
revoltosos dos Paizes Baixos.

Até então a galeota chamava-se _Luiza_.

O nome que lhe havia dado calhava perfeitamente. Os meus companheiros
não eram Rossettis, e devo confessar, que a figura de alguns d'elles,
não era satisfatoria; isto explica a rapida entrega da galeota e o
terror do portuguez que me offereceu os seus diamantes.

Durante todo o tempo que fui corsario dei ordem á minha gente para
a vida, honra e fortuna dos passageiros ser respeitada... ir dizer
debaixo de pena de morte, mas não devo dizer tal, porque não tendo até
hoje ninguem infringindo as minhas ordens, não tenho tido ninguem que
punir.

Depois de concluidos os nossos primeiros arranjos dirigi-me para
o Rio da Prata, e para dar o exemplo de respeito que eu queria se
tivesse no futuro pela vida, liberdade e bens dos passageiros, quando
cheguei á altura da ilha de Santa Catharina, um pouco abaixo do cabo
Itapoya, mandei deitar ao mar a lancha do navio e entregando tudo
quanto pertencia aos passageiros e alguns mantimentos os fiz embarcar
deixando-os livres de se dirigirem para onde quizessem.

Cinco pretos escravos da galeota e a quem eu havia dado a liberdade
engajaram-se como marinheiros.

Quando chegámos ao Rio da Prata, ancorámos em Maldonato pertencente á
republica oriental de Uruguay.

Fomos admiravelmente recebidos pela população e mesmo pelas
auctoridades, o que me pareceu de excellente agouro. Rossetti partiu
pois tranquilamente para Montevideo afim de ahi vender o nosso café e
apurar algum dinheiro.

Nós ficámos em Maldonato,--quer dizer á entrada d'esse magnifico rio
que na sua embocadura tem trinta leguas de largo--durante oito dias que
se passaram em festas continuas, que infelizmente estiveram para acabar
tragicamente. Oribe, que, na sua qualidade de chefe da republica de
Montevideo não reconhecia as outras republicas, deu ordem ao governador
de Montevideo para me prender e apoderar-se da galeota. Felizmente
o governador de Maldonato era um excellente homem que em logar de
executar a ordem que recebeu, o que não lhe teria sido difficil pela
pouca ou nenhuma desconfiança que eu tinha, mandou-me prevenir para que
levantasse ancora e partisse para o meu destino, se é que o tinha.

Prometti partir na mesma noite, mas antes tinha um negocio pessoal a
tractar em terra.

Tinha vendido, para comprar viveres, a um negociante de Montevideo
algumas saccas de café e algumas bijouterias, pertencentes ao nosso
austriaco. Mas ou porque o meu comprador fosse máu pagador, ou porque
tendo ouvido dizer que eu talvez fosse preso, julgasse que poderia
passar sem me pagar, ainda não me tinha sido possivel receber o meu
dinheiro. Sendo pois obrigado a partir n'aquella mesma noute, e
querendo entrar de posse do que me pertencia antes de deixar Maldonato,
não tinha tempo a perder.

Por conseguinte ás nove horas da noute mandei apparelhar, e mettendo
um par de pistolas na cintura, embrulhei-me na minha capa e dirigi-me
tranquillamente para casa do negociante.

Fazia um luar magnifico. Pouco distante da casa do meu homem vi-o á
porta tomando o fresco, elle tambem me viu e reconheceu, porque me fez
signal de me affastar, indicando-me por este modo que a minha vida
corria risco.

Fiz que não via, fui direito a elle, e por toda a explicação
apresentei-lhe uma pistola aos peitos:

--O meu dinheiro, lhe disse eu.

Quiz responder-me, mas quando lhe repeti pela terceira vez «o meu
dinheiro» fez-me entrar em sua casa, pagando-me logo os dois mil
patacões que me devia.

Metti de novo a pistola no cinturão, puz o sacco do dinheiro debaixo do
braço, e voltei ao meu navio sem me ter acontecido o menor incidente.

Ás onze horas da noute levantámos ancora.




                                  IX

                            O RIO DA PRATA


Ao romper do dia, com grande admiração nossa, estavamos no meio dos
cachopos das Pedras Negras.

Como me achava em tal situação é que eu não podería explicar. Não havia
dormido um minuto, não tinha deixado de olhar um momento para a costa,
consultando a todos os instantes a bussola, dirigindo-me pelas suas
indicações, e apezar d'isso achava-me no perigo que queria evitar.

Não havia momento a perder: o perigo era enorme: estavamos cercados por
todos os lados de cachopos. Saltei para a verga do traquete, e d'ahi
mandei orçar sobre bombordo, e em quanto se executava esta manobra foi
arrebatada pelo vento a nossa pequena gavea.

Do logar onde me achava dominava o navio e os recifes, podendo por
isso indicar o caminho que era necessario fazer seguir á galeota, que
do seu lado parecendo um ente animado, e conhecedora do perigo em
que estavamos, obedecia com toda a docilidade ao leme. No fim de uma
hora, durante a qual estivemos entre a vida e a morte, e em que vi
empallidecer os meus mais valentes marinheiros, estavamos salvos.

Depois de passado o perigo, quiz conhecer qual o motivo porque havia
sido lançado no meio d'esses terriveis cachopos, tão conhecidos dos
navegantes, tão bem indicados nas cartas maritimas, e a tres milhas dos
quaes julgava estar quando me achava no meio d'elles.

Consultei a bussola: continuava a divagar: teria pois naufragado, se
por infelicidade, amanhecendo, não tivesse conhecido o perigo:

Em pouco tempo tudo me foi explicado.

Quando sahi do navio para pedir os dois mil patacões ao meu comprador
do café, tinha mandado pôr no tambadilho os sabres e fuzís, para
estar prevenido no caso de algum ataque: executando a minha ordem, os
marinheiros tinham collocado as armas ao pé da bitácola.

Esta massa de ferro tinha attrahido a si a agulha, que como se sabe,
tem iman nas duas extremidades. Mandei pois tirar as armas, e a bussola
continuou a andar regularmente.

Proseguimos a nossa viagem chegando a Jesus-Maria, que do outro lado de
Montevideo está quasi na mesma distancia que Maldonato.

A unica novidade que ali nos succedeu, foi acabarem-se completamente
os viveres, por isso que não tinhamos tido tempo de os comprar antes
da nossa partida. Como não nos era possivel desembarcar, pelas ordens
dadas, era necessario lançar mão de algum expediente para arranjarmos
comestiveis.

Começámos a bordejar, sem comtudo nos affastarmos da costa.

Uma manhã descobri na distancia de quasi quatro milhas uma casa, que
pelo seu aspecto me pareceu uma herdade. Mandei ancorar o mais perto
possivel da praia, e como não tinha escaler, porque, como já disse,
havia dado o meu aos individuos que tinham desembarcado em Santa
Catharina, arranjei uma jangada com uma mesa e alguns tonneis, e armado
com um croque, embarquei n'esta embarcação de novo gosto com um unico
marinheiro, que sem ser meu parente tinha comtudo o nome de Garibaldi:
o seu pronome era Mauricio.

O navio estava seguro por duas amarras, em consequencia dos ventos
pampeiros que eram mui violentos.

Eis-me pois no meio dos recifes não navegando, mas sim dançando em cima
de uma mesa, arriscado a todos os momentos a ser submergido. Depois
de termos praticado maravilhosos trabalhos de equilibrio, conseguimos
encalhar na praia. Deixei Mauricio encarregado de guardar a jangada, e
desembarquei.




                                   X

                        AS PLANICIES ORIENTAES


O espectaculo que então se me offereceu á vista, e que admirava pela
primeira vez, teria, para ser dignamente descripto, necessidade da
penna de um poeta ou do pincel de um pintor. Via ondular na minha
frente como as vagas de um mar solidificado os immensos horisontes
das--planicies orientaes--assim chamadas porque estão no lado oriental
do rio Uruguay, que vae lançar-se no rio da Prata, defronte de
Buenos-Ayres, abaixo de Colonia. Era, posso jural-o, um espectaculo
cheio de novidade para um homem chegado do outro lado do Atlantico, e
sobre tudo para um italiano, nascido em um paiz em que é difficultoso
vêr um palmo de terra sem encontrar uma casa ou alguma obra dos homens.

Ali pelo contrario existia unicamente a obra de Deus, tal como havia
sahido das suas mãos no dia da creação.

Era uma vasta, uma immensa campina, e o seu aspecto que é o de um
tapete de verdura e flores, não muda senão nas margens do ribeiro
Arroga, onde se elevam balanceando ao vento encantadores grupos de
arvores com folhas luxuriantes.

Os cavallos, os bois, as gazellas, as avestruzes são, á falta de
creaturas humanas os habitantes d'essas immensas solidões, que só são
atravessadas pelos gauchos, esses centauros do novo mundo, como para
dar a entender a essas turbas de animaes selvagens que Deus lhe deu um
senhor... Mas esse senhor, como o veem passar os touros, as avestruzes,
as gazellas! É a quem protestará primeiro contra a sua supposta
dominação: o touro pelos seus mugidos, a avestruz e a gazella pela fuga.

Esta vista fez-me pensar na patria, onde quando passa o austriaco
que os opprime, os homens, essas creaturas creadas á imagem de Deus,
cumprimentam-no e se curvam, não ousando dar os mesmos signaes de
independencia que os animaes selvagens dão á vista do gaucho.

SENHOR, até quando permittireis tão grande aviltamento da vossa
creatura!?

Deixemos o velho mundo, tão triste e aviltado, e voltemos ao novo, tão
joven, e tão cheio de esperanças!

Como é bello o cavallo das planicies orientaes, com os seus jarretes
estendidos, com as ventas fumantes, com os seus labios que nunca
sentiram a friesa do aço! Como respiram livremente debaixo do contacto
da sua clina e juba, os seus flancos que nunca foram apertados pelo
joelho dos cavalleiros, nem ensanguentados pelas suas esporas! Como é
soberbo quando reune, chamando pelos seus rinchos a sua horda de eguas
dispersas e que verdadeiro sultão do deserto, evita, fugindo em sua
companhia, a presença dominadora do homem!

Oh! maravilha da natureza! Milagre da creação! Como heide exprimir a
emoção que á vossa vista experimentou esse corsario de vinte e cinco
annos, que pela primeira vez estendia os braços para a immensidade.

Mas como esse corsario estava a pé, nem o touro nem o cavallo o
reconheciam por um homem. Nos desertos da America o cavallo é
um complemento do homem, e sem o saber, o ultimo dos animaes.
Primeiramente pararam estupefactos pela minha vista, mas bem depressa
desprezando sem duvida a minha fraqueza, aproximaram-se de mim a tal
ponto que sentia o rosto humedecido pela sua respiração. Ninguem
deve ter receio do cavallo, animal nobre e generoso; mas todos devem
desconfiar do touro, animal dissimulado e traiçoeiro. As gazellas
e avestruzes depois de terem, como os cavallos e touros, mas mais
circumspectamente, feito o seu reconhecimento, partiram rapidas como a
flecha, e chegando ao alto d'um montezinho voltaram-se para verem se
eram perseguidas.

N'este tempo, isto é, pelos fins de 1834 e principios de 1835, esta
parte do terreno oriental estava ainda virgem de toda a guerra; eis o
motivo porque ali se encontrava tanta quantidade de animaes selvagens.




                                  XI

                               A POETISA


Continuei dirigindo-me para uma _estancia_.[4] Ahi encontrei só a
mulher do _capataz_.[5] Como não podia vender-me ou dar um boi sem
consentimento de seu marido, era necessario esperar a sua volta. Demais
era tarde e antes do dia seguinte não se podia conduzir o animal até ao
mar.

  [4] Nome das herdades na America do Sul.

  [5] Dono do estabelecimento.

Ha momentos na vida de que a recordação ao mesmo tempo que elles se
affastam continúa vivendo e augmentando na nossa memoria e tão bem
que sejam quaes forem os outros successos da nossa existencia, essa
recordação só se apaga com a morte. Era destino meu encontrar no meio
d'este deserto, esposa de um homem quasi selvagem uma mulher de uma
educação cultivada, uma poetiza sabendo pelo coração Dante, Petrarcha e
Tasso.

Depois de ter esgotado toda a minha sciencia na lingua hespanhola,
fiquei agradavelmente surprehendido, ouvindo-a responder-me em
italiano, convidando-me graciosamente a assentar-me, em quanto seu
marido não chegava. No meio da nossa conversação, a minha encantadora
hospedeira, perguntou-me se eu conhecia as poesias de Quintana, e
ouvindo a minha resposta negativa, fez-me presente de um volume d'essas
poesias, dizendo-me que m'o dava para apprender por sua causa o
hespanhol. Perguntei-lhe então se era poetisa.

--Ha alguem, me respondeu, que diante d'esta natureza não seja poeta?

E sem se fazer rogar recitou-me muitos trechos de poesias suas em que
achei muito sentimento e uma grande harmonia. Teria passado toda a
noite a escutal-a sem me lembrar de Mauricio que me esperava guardando
a meza-jangada, mas a entrada do marido fez cessar o lado poetico para
me chamar ao fim material da minha visita. Disse-lhe o que queria e foi
combinado que no dia seguinte me venderia e levaria á praia um boi.

Ao romper do dia despedi-me da minha bella poetisa e fui ter com
Mauricio. O pobre diabo tinha passado a noite o melhor que poude,
mettido entre os quatro toneis, e muito inquieto por meu respeito,
receiando que eu tivesse sido devorado pelos tigres, muito communs
n'esta parte da America e menos inoffensivos que os cavallos e os
touros.

No fim de alguns momentos appareceu o capataz trazendo um boi ao
laço. Em poucos momentos o animal foi morto e esquartejado, tal é a
habilidade que os homens do sul teem para estas obras de sangue.

Faltava transportar o boi, cortado em pedaços e leval-o para o navio,
isto é, a mil passos de distancia, pelo menos, tendo de atravessar os
cachopos onde se despedaçavam as ondas furiosas.

Mauricio e eu démos começo á nossa empreza.

Já sabem como era construida a jangada que nos devia conduzir a bordo:
uma meza com um tonel amarrado a cada pé, um pau no centro, que vindo
do navio, tinha servido para suspender os nossos vestidos, e que
voltando devia conduzir os viveres sustentando-os ao de cima da agua.

Deitámos a jangada ao mar, pozemo-nos em cima, e Mauricio com uma vara
na mão, e eu com um croque, começámos a manobrar temdo agua até aos
joelhos, porque o peso que a jangada levava era excessivo.

A nossa manobra executou-se com grandes applausos do americano e da
tripulação da galeota, que fazia ardentes votos, póde ser, não pela
nossa salvação, mas sim pela da carne que conduziamos. A nossa viagem
ao principio foi feliz, mas chegamos a uma linha de cachopos que nos
era necessario atravessar, achámo-nos por duas vezes quasi submergidos.

Felizmente atravessamo-la sem novidade.

Mas livres dos cachopos, estavamos em perigo mais imminente.

Não encontravamos o fundo com os nossos croques, e por conseguinte era
impossivel dirigir a embarcação. Alem d'isso a corrente tornando-se
mais violenta, á medida que avançamos no rio, arrojava-nos para longe
da galeota.

Pareceu-me chegado o momento de atravessar o Atlantico parando só em
Santa Helena ou no Cabo da Boa Esperança.

Os nossos companheiros, se nos quizessem apanhar, não tinham senão o
recurso de largarem as velas. Foi o que fizeram, e como o vento estava
de terra a galeota bem depressa nos alcançou.

Passando junto de nós os nossos companheiros, lançaram-nos um cabo.
Amarramos com elle a jangada ao navio, e depois de termos içado todos
os viveres é que Mauricio e eu subimos. Em seguida içámos a meza que
foi reintregada no seu logar na casa do jantar, não tardando muito a
exercer as suas funcções habituaes.

Vendo o appetite com que os nossos companheiros atacaram a carne, que
com tanto trabalho tinhamos alcançado, consideramo-nos sufficientemente
recompensados das nossas fadigas.

Alguns dias depois comprei por trinta escudos a canoa d'um navio que
cruzava n'estas paragens.

Estivemos ainda este dia á vista do pico de Jesus Maria.




                                  XII

                               O COMBATE


Tinhamos passado a noite ancorados, quasi seis milhas, ao meio dia
do pico de Jesus Maria, em frente dos barrancos de S. Gregorio. Uma
pequena brisa do norte começava a apparecer quando vimos vir do lado de
Montevideo duas barcas que julgámos serem amigas; mas como não tinham
o pavilhão encarnado, signal convenciado entre nós, julguei prudente
o fazer-me de vela em quanto os esperava. Além d'isso mandei pôr no
tombadilho os mosquetes e sabres.

Esta precaução, como se vae vêr não foi inutil. A primeira barca
continuava a avançar unicamente com tres homens á vista; chegada
ao alcance do porta-voz, o que nos parecia o chefe disse que nos
rendessemos e ao mesmo tempo o convez da barca encheu-se de homens
armados que sem nos dar o tempo de responder á sua intimação começaram
o fogo. Dei o grito de «Ás armas» e agarrei n'um fuzil, depois
respondendo a este cumprimento conforme podia, e como estavamos com
todo o pano mandei.--Ás vélas de diante.

Não sentindo a galeota obedecer ao leme com a docilidade costumada,
voltei-me e vi que a primeira descarga tinha morto o marinheiro que
n'aquella occasião ia ao leme, e que era um dos nossos valentes.
Chamava-se Florentino e tinha nascido em uma das nossas ilhas.

Não havia tempo a perder. O combate estava travado com todo o furor. O
lanchão, é o nome que dão á qualidade dos barcos com que combatiamos, o
lanchão tinha-nos abordado pela direita e alguns dos seus marinheiros
haviam já saltado no nosso barco, mas por felicidade alguns golpes de
fuzil e sabre nos livraram d'elles.

Depois de ter coadjuvado os meus companheiros a repellir esta abordagem
agarrei no leme que se achava sem governo por causa da morte de
Florentino. Infelizmente no momento em que o agarrava para executar uma
manobra uma balla atravessou-me o pescoço ferindo-me entre a orelha e a
carotida, fazendo-me cahir sem conhecimento.

O resto do combate que durou uma hora, foi sustentado por Luiz
Carniglia, piloto, e por Pascoal Sodola, Giovani Lamberti, Mauricio
Garibaldi e dous maltezes. Os italianos fizeram prodigios de valor, mas
os estrangeiros e os cinco negros fugiram para o porão. Emfim o inimigo
fatigado de nossa defeza e tendo uma dezena de homens fóra de combate
fugiu, em quanto que nós tendo apparecido algum vento continuámos a
subir o rio.

Ainda que tivesse tornado a mim, fiquei completamente inerte e inutil
durante o resto do combate.

Confesso, as primeiras impressões que senti abrindo os olhos, foram
deliciosas. Podia dizer que havia sido morto e que tinha resuscitado,
tanto o meu desmaio foi profundo. Entretanto esse sentimento de bem
estar foi bem depressa abafado pelo conhecimento da situação em que
nos achavamos. Ferido mortalmente, não tendo a bordo quem possuisse
o menor conhecimento geographico, mandei buscar a carta, e com muita
difficuldade pois, me achava com a vista coberta com um véo que me
parecia o da morte, indiquei com o dedo Santa Fé no Rio Parana. Só
Mauricio é que uma unica vez tinha feito uma viagem ao rio da Prata;
para todos nós eram pois completamente estranhas aquellas paragens.
Os marinheiros aterrados--os italianos, devo dizel-o, não partilhavam
estes sentimentos ou pelo menos sabiam occultal-os--e receiando serem
presos e considerados como piratas, desertaram na primeira occasião que
se lhe apresentou. Em quanto esperavam por este momento, em cada barco,
em cada canoa, em cada tronco d'arvore fluctuante viam um navio inimigo
enviado em sua perseguição.

O cadaver do nosso desgraçado camarada foi deitado ao mar, com as
cerimonias costumadas n'estas occasiões, por que durante muitos dias
não podemos desembarcar em parte alguma.

Este genero de enterramento não era muito do meu agrado, e sentia por
elle uma grande repugnancia, talvez por me julgar proximo a ter igual
sorte. Confessei esta aversão a Luiz Carniglia.

No momento em que lhe fazia esta confissão vieram-me á lembrança estes
versos de Foscolo:

«Uma pedra, um unico signal que difference os meus ossos d'aquelles que
a morte semea todos os dias na terra e no Oceano.»

O meu pobre amigo chorava promettendo não me deixar lançar á agua. Quem
sabe se apesar do seu desejo teria podido executar a sua promessa. O
meu cadaver serviria então para matar a fome a algum lobo marinho, ou
caiman. Não tornaria a vêr a Italia, não me teria batido por ella, que
era a minha unica esperança!

Quem diria ao meu caro Luiz que antes d'um anno era eu que o veria
rolando pelos cachopos, desapparecer no mar, e que procuraria debalde
o seu cadaver, para cumprir a promessa que elle me havia feito, de
o sepultar na terra e collocar na sua ultima morada uma cruz que o
recommendasse á oração dos viandantes. Pobre Luiz! durante a minha
longa e cruel enfermidade fostes tu que tivestes sempre por mim um
carinho paternal.




                                 XIII

                            LUIZ CARNIGLIA


Vou dizer algumas palavras sobre o meu pobre amigo Luiz. E porque é
um simples marinheiro não lhe hei-de dedicar algumas linhas? Porque
elle não é... Oh! posso assegural-o, a sua alma era bastante nobre
para sustentar em todas as circumstancias a honra italiana: nobre para
affrontar todas as tormentas, nobre emfim para me proteger, e para
cuidar de mim, como se fosse seu filho! Quando estava deitado no meu
leito de agonia, abandonado por todos, e delirava com o delirio da
morte, era Luiz que sentado á cabeceira do meu leito com a dedicação e
paciencia de um anjo não se affastava de mim um instante senão para ir
chorar e occultar as suas lagrimas. Os seus ossos espalhados no Oceano
mereciam um monumento onde o proscripto reconhecido podesse um dia
dizer as suas virtudes aos seus concidadãos, devolvendo-lhe as lagrimas
piedosas que me consagrou.

Luiz Carniglia era de Deiva, pequeno paiz do Levante. Não havia
recebido instrucção litteraria, mas suppria esta falta por um
maravilhoso intendimento. Privado de todos os conhecimentos nauticos
que são necessarios aos pilotos, governava os navios até Gualeguay com
a sagacidade e felicidade de um piloto consumado. No combate que acabo
de referir, foi a elle que principalmente devemos o não ter cahido
nas mãos do inimigo: armado de um machado estava sempre no logar onde
havia maior perigo sendo por este modo o terror dos assaltantes. De
uma estatura elevada e mui robusta reunia uma grande agilidade a um
extraordinario valor. Dotado de uma grande bondade nas cousas da vida,
possuia o raro dom de se fazer amar por todos. Infelizmente todos os
melhores filhos da nossa desgraçada patria teem morrido como este em
terra estrangeira esquecidos e sem ter quem derrame uma lagrima por
elles!




                                  XIV

                              PRISIONEIRO


Fiquei desanove dias recebendo unicamente os cuidados de Luiz Carniglia.

No fim d'este tempo chegámos a Gualeguay.

Tinhamos encontrado na embocadura do Ibiqui, um navio commandado por D.
Lucas Tantalo, excellente homem que teve toda a sorte de cuidados por
mim prestando-me o que julgava ser-me util na minha posição.

Acceitámos os seus presentes com grande prazer, porque não tinhamos a
bordo senão café que era o nosso unico alimento. Davam-me pois café
a todos os momentos sem se importarem se isso era ou não conveniente
para a minha doença. Comecei por ter uma febre assustadora acompanhada
por uma grande difficuldade de engolir fosse o que fosse, o que não
admirava, porque a balla atravessando-me o pescoço de lado a lado
tinha passado entre as vertebras cervicaes e a pharinge. Decorridos
oito dias n'este estado afflictivo, a febre havia diminuido, sentindo
grandes melhoras.

D. Lucas tinha feito mais: partindo, deu-me cartas de recommendação
para Gualeguay,--fazendo o mesmo a um seu passageiro chamado Arraigada,
biscainho, que se achava estabelecido na America--e particularmente
para o governador da provincia d'Entre-Rios, D. Paschal Echague, a quem
por ter de fazer uma viagem, deixou o seu proprio medico, D. Romão
Delarea, joven argentino, de muito merito, que examinando a minha
ferida, e tendo sentido a balla do lado opposto áquelle por que tinha
entrado, fez a extracção com toda a habilidade, tratando-me durante
algumas semanas, isto é até ao meu completo restabelecimento, com os
cuidados mais affectuosos e desinteressados.

Fiquei seis mezes em Gualeguay em casa de D. Jacintho Andreas, que
teve, bem como a sua familia, por mim os maiores cuidados.

Infelizmente estava quasi prisioneiro. Não obstante a boa vontade
do governador Echague, e o interesse que por mim tinha a população
de Gualeguay, era obrigado a esperar a resolução do dictador de
Buenos-Ayres que não decidia cousa alguma.

O dictador de Buenos-Ayres era n'esta occasião Rosas, de quem tratando
de Montevideo, terei occasião de fallar mais de vagar.

Curado da minha ferida, comecei a dar alguns passeios, que por ordem
da authoridade eram mui limitados. Em troca do meu navio confiscado
davam-me um escudo por dia, o que na realidade era muito para um paiz
em que sendo tudo mui barato quasi se não gasta dinheiro: mas tudo isto
não valia a minha liberdade.

Provavelmente esta despeza d'um escudo por dia parecia muito elevada ao
governador, porque em differentes occasiões me foram feitas offertas de
se me favorecer a fuga, mas as pessoas que me faziam essas offertas,
eram, sem o saberem, agentes provocadores! Diziam-me que o governo
veria a minha fuga sem grande pesar. Não era pois necessario fazer
grande violencia para que eu adoptasse uma resolução de que ja havia
formado o projecto. O governador depois da partida de D. Paschoal, era
um certo Leonardo Millan, que não me havia até áquella épocha mostrado
nem interesse, nem odio, não tendo pois o mais pequeno motivo para me
queixar d'elle.

Resolvi então fugir, começando logo os meus preparativos, afim de estar
prompto na primeira occasião que se me apresentasse. Uma noute de
tempestade dirigi-me para casa d'um excellente homem que costumava de
quando em quando ir visitar, e que habitava a tres milhas de Gualeguay.

Dei-lhe parte da minha resolução, pedindo-lhe que me procurasse um
guia e cavallos, esperando chegar a uma «estancia» pertencente a um
inglez, situada na margem esquerda do Parana, onde eu provavelmente
encontraria algum barco que me transportasse incognito a Buenos-Ayres
ou Montevideo. O guia e os cavallos foram arranjados, e começámos a
andar por meio dos campos para não sermos descobertos. Tinhamos que
caminhar cincoenta e quatro milhas, podendo vencer perfeitamente este
espaço em meia noute.

Quando rompeu o dia estavamos á vista de Ibiqui, na distancia de meia
milha do rio. O guia disse-me então que parasse ali em quanto elle ia
saber que caminho deviamos seguir.

Fiquei pois só.

Apeei-me, amarrei as redeas do cavallo ao tronco de uma arvore e
deitei-me, esperando assim durante duas ou tres horas, até que vendo
que o meu guia não apparecia, levantei-me resolvido a ir pessoalmente
informar-me, quando repentinamente ouvi por detraz de mim um tiro.
Voltei-me e vi um destacamento de cavallaria que me perseguia de sabre
em punho. Estavam já entre o meu cavallo e eu, era pois impossivel
defender-me ou fugir.

Entreguei-me.




                                  XV

                              A APOLEAÇÃO


Ligaram-me as mãos atraz das costas, pozeram-me a cavallo, e depois
ligaram-me tambem os pés como o haviam feito ás mãos, sujeitando-os á
cilha do animal.

Foi n'este estado que cheguei a Gualeguay, onde, como se vae vêr, me
esperava um peor tratamento.

Ainda hoje, e já são passados bastantes annos, estremeço quando penso
n'esta circumstancia da minha vida.

Conduzido á presença de Leonardo Millan fui intimado por elle para
denunciar quem me havia fornecido os meios de effectuar a minha fuga.
É escusado dizer que não fiz tal confissão, pois declarei que só eu a
tinha arranjado e executado. Então como me achava ligado e Leonardo não
tinha cousa alguma a temer, aproximou-se de mim e começou a bater-me
nas faces com o chicote. Depois renovou as suas perguntas, não sendo
mais feliz que da primeira vez.

Mandou-me conduzir á prisão, e disse em voz baixa algumas palavras ao
ouvido d'um dos guardas.

Estas palavras eram a ordem de me applicar a tortura.

Chegando á camara que me estava destinada, os guardas deixaram-me as
mãos ligadas atraz das costas, collocaram-me nos pulsos uma nova corda,
e passaram a outra extremidade a uma trave, suspendendo-me a quatro ou
cinco pés do chão.

Então Leonardo entrou na prisão e perguntou-me de novo se estava
resolvido a dizer a verdade.

A unica vingança que podia tomar era cuspir-lhe no rosto, e assim o fiz.

--Quando o prisioneiro, disse elle retirando-se, quizer declarar
quem foram os seus cumplices, mandem-me chamar, e depois de fazer a
confissão podem pol-o no chão.

Depois sahiu.

Fiquei duas horas n'esta horrivel posição. O peso do meu corpo
sobrecarregava nos meus punhos ensanguentados e nos meus hombros
deslocados.

Parecia-me estar sobre brasas.

A todos os momentos pedia agua, e os meus guardas mais humanos que
o meu carrasco davam-me, mas ella não me matava a sede devoradora
que soffria. Pode-se fazer uma idéa dos meus padecimentos, lendo as
torturas que se inflingiam aos prisioneiros na idade media. No fim de
duas horas os meus guardas tendo piedade do meu estado, ou julgando-me
morto desceram-me.

Cahi no chão sem movimento.

Era uma massa inerte, sem outro sentimento que o de uma profunda e muda
dôr--era quasi um cadaver.

N'este estado sem eu saber o que faziam de mim metteram-me nos cepos.

Tinha andado com as mãos e pés ligados atravez de pantanos cincoenta
milhas. Os mosquitos numerosos e enraivecidos n'esta estação tinham-me
tornado o rosto e as mãos n'uma grande chaga. Havia soffrido durante
duas horas horriveis torturas, e quando tornei a mim achei-me ligado a
um assassino.

Ainda que não tivesse dito uma unica palavra, no meio dos meus atrozes
soffrimentos, D. Jacintho Andreas tinha sido preso. Os habitantes do
paiz estavam cheios de espanto.

Em quanto a mim senão fossem os cuidados de uma mulher que foi para
mim um anjo de caridade teria succumbido a tão atrozes soffrimentos.
Despresando todo o perigo, vinha ver-me todos os dias, trazendo-me o
que eu necessitava.

Chamava-se Allemand.

Poucos dias depois o governador vendo que eram inuteis todas as
tentativas que fazia para me obrigar a fallar, e convencido que
eu morreria antes de denunciar um dos meus amigos, não querendo
provavelmente tomar sobre si a responsabilidade da minha morte
mandou-me para a capital da provincia Bagada. Fiquei dois mezes na
prisão no fim dos quaes o governador me mandou dizer que me era
permitido sahir livremente da provincia. Ainda que eu tenho opiniões
oppostas a Echague e que por mais de uma vez, depois d'esse dia,
tenha combatido contra elle não devo occultar as obrigações de que
lhe sou devedor e ambicionava hoje ter occasião de lhe provar todo o
reconhecimento que lhe consagro pelos serviços que me prestou.

Mais tarde o acaso fez cahir nas minhas mãos os chefes militares da
provincia de Gualeguay e todos foram postos em liberdade sem se lhe
fazer a menor offensa, nem a elles nem ás suas propriedades.

Em quanto a Leonardo Millan nunca o quiz vêr com receio que a sua
presença, fazendo-me recordar do que havia soffrido me obrigasse a
praticar alguma acção indigna de mim.




                                  XVI

                   VIAGEM NA PROVINCIA DO RIO GRANDE


Em Bajada embarquei n'um bergantim italiano, capitão Ventura. Este
maritimo homem recommendavel a todos os respeitos, tratou-me sempre
com a maior generosidade e cavalheirismo. Conduziu-me á embocadura
do Iguassu, affluente do Parana, ahi passei para bordo de um barco,
capitaneado por Pascoal Carbone, que se destinava a Montevideo.

Estava então em maré de ventura; Carbone obsequiou-me tambem
admiravelmente.

A fortuna, assim como as infelicidades vem sempre em grandes porções;
estas haviam finalisado para mim; aquellas começavam a affluir sem
interrupção.

A minha proscripção continuava em Montevideo. A resistencia que
empregára contra os lanchões e a perda que lhes haviamos causado era
para isso pretexto plausivel. Fui então obrigado a esconder-me em casa
de Pazante aonde me conservei por espaço de um mez.

Comtudo a minha reclusão tornava-se supportavel, por que era suavisada
pelas visitas de muitos compatriotas, que em tempo de prosperidade e de
paz tinham vindo estabelecer-se no paiz e exerciam para com os amigos
do velho mundo a mais generosa hospitalidade. A guerra, e sobretudo
o cerco de Montevideo veiu mudar a posição da maior parte d'elles e
de feliz que era tornou-l'ha não só má, porém pessima. Pobres homens!
bastantes vezes os deplorei, e desgraçadamente não podia fazer mais do
que lamental-os!

Passado um mez, era tempo de seguirmos viagem; parti com Rossetti para
o Rio Grande; a nossa jornada devia ser e foi feita a cavallo, o que me
deu muito prazer. Viajavamos á _escotero_.

Darei uma pequena explicação sobre esta maneira de viajar, que pela sua
rapidez deixa bem longe a posta por mais ligeira que ella seja.

Sejam dois, tres ou quatro os viajantes, vão acompanhados por vinte
cavallos habituados a seguir os que vão montados; quando depois alguns
dos cavalleiros vê que o seu cavallo está fatigado, apeia-se, passa o
selim e os arreios para um dos que vem livres, e segue a galope tres
ou quatro leguas; depois toma outro, e assim successivamente os vae
mudando até chegar ao seu destino; os cavallos cançados, mesmo tendo
de seguir os outros, recuperam forças, porque vão livres de selim e do
cavalleiro.

O pouco tempo que os cavalleiros gastam n'estas mudas, os cavallos o
aproveitam para comerem alguma herva e beberem agua, se por acaso a
encontram; as verdadeiras rações são duas vezes ao dia, pela manhã e á
noite.

D'este modo chegámos a Piratini, séde do governo do Rio Grande; a
capital da provincia é Porto Allegre, porém como estava occupada pelos
imperiaes, o governo republicano estabelecera-se em Piratini.

Piratini é realmente um dos mais bellos paizes do mundo; divide-se em
duas regiões; uma de planicies e a outra montanhosa.

As planicies verdadeiramente tropicaes produzem a banana, a cana
d'assucar, e a laranja. Junto aos troncos das suas arvores, e por
entre as plantas arrasta-se a serpente cascavel, a serpente negra, e a
serpente coral; ali, como na India, vê-se saltar o tigre, o jaguar, a
puma, e o leão inoffensivo, de dimensões eguaes a qualquer dos enormes
cães do monte de S. Bernardo.

A região montanhosa é temperada como o meu bello clima de Niza;
colhe-se o bom pecego, a pera, a ameixa, e toda a qualidade de fructos
da Europa, encontram-se as magnificas florestas, das quaes nenhuma pena
seria capaz de fazer exacta descripção, com os seus pinheiros direitos
como os mastros dos navios, e d'altura de duzentos pés, e dos quaes
talvez cinco ou seis homens não podessem abraçar o tronco. Á sombra
d'esses pinheiros vegetam os taquares, canas gigantescas que chegam a
oitenta pés d'altura, e das quaes na base não excedem a grossura do
corpo d'um homem; existe tambem ali a _barba de pau_, litteralmente
dita a barba das arvores, que entrelaçando-se multiplicadamente
fórma espeços bosques; nas vastas planicies chamadas campestres
estendem-se cidades inteiras, como Cima da Serra, Vaccaria, Lages; não
tres cidades, mas tres provincias; população caucasiana, de origem
portugueza, e essencialmente hospitaleira.

O viajante não tem precisão de dizer nem de pedir coisa alguma; entra
em qualquer habitação, vae direito á camara dos hospedes; os criados
apparecem, sem que sejam chamados, descalçam-o e lavam-lhe os pés.
Fica ali por quanto tempo quer, e quando lhe appetece retira-se sem
despedir-se nem agradecer; e apesar d'esta descortesia, outro que venha
depois d'elle não é recebido com menos agrado.

É a juventude da natureza, o erguer da humanidade.




                                 XVII

                           A LAGOA DOS PATOS


Chegando a Piratini, fui magnificamente recebido pelo governo da
republica. Bento Gonçalves--verdadeiro cavalleiro andante do seculo
de Carlos-Magno, irmão, pelo coração, dos Oliveiros e dos Roldões
vigoroso, agil e leal como elles, verdadeiro centauro, manejando um
cavallo como ainda não vi manejar senão ao general Netto--modelo
completo para um cavalleiro--estava ausente e em marcha com uma brigada
de cavallaria, para atacar Silva Tanaris, chefe imperial, que tendo
atravessado o canal de S. Gonçalo, infestava esta parte da provincia
Piratini, séde do governo republicano, e pequena villa encantadora pela
sua posição e cabeça de districto do mesmo nome, guarnecida por uma
população bellicosa e essencialmente dedicada á causa da liberdade.

Na ausencia d'aquelle general, foi o ministro da fazenda quem me fez as
honras da cidade.

Agora uma palavra respectivamente ao Rio Grande, o qual, por este
nome, poderia suppor-se situado ao longo de um grande rio, ou um rio
propriamente dito.

O Rio Grande é o Lago dos Patos, e terá trinta leguas de extensão.
Além de alguns baixos muito fundos, dos quaes mais tarde fallaremos, é
em toda essa extensão bastante profundo e povoado por caimans; sendo
formado por cinco rios, os quaes vindo terminar na extremidade do
norte, apresentam a disposição de cinco dedos da mão, da qual a palma é
o fim do lago.

Ha um ponto d'onde se descobrem perfeitamente esses cinco rios, e que
por essa razão se chamava _Viamão_--Vi a mão.

Viamão mudara, porém de nome, e chamava-se _Settembrina_ em
commemoração de haver sido em setembro proclamada a republica.

Achava-me em Piratini sem ter em que me occupar; pedi então para fazer
parte da columna de operações, que se dirigia sobre S. Gonçalo, e era
commandada pelo presidente da republica.

Foi então que pela primeira vez vi aquelle valente, gosando alguns
dias a sua intimidade. Era realmente o filho querido da natureza--que
lhe havia prodigalisado tudo o que torna o homem um verdadeiro
heroe.--Bento Gonçalves teria então sessenta annos. Alto, esvelto,
montava a cavallo, como já disse, com um garbo e agilidade admiraveis.
N'aquella posição ninguem o julgaria com mais de vinte e cinco
annos.--Valente e feliz, não teria hesitado um momento, como um
cavalleiro de Arioste, em atacar um gigante: tivesse elle a estatura de
Polyphemo ou a armadura de Ferragus.

Fôra um dos primeiros a levantar o grito de guerra, não com vistas
de ambição pessoal, mas como qualquer outro belligerante filho
d'aquelle povo. Na campanha passava como o mais infimo habitante das
campinas; isto é, com a carne assada e agua pura.--No dia em que nos
encontrámos pela primeira vez, convidou-me para o seu banquete frugal;
e conversámos com tanta familiaridade como se fossemos companheiros de
infancia e eguaes em posição. Com taes dotes naturaes e adquiridos,
Bento Gonçalves era o idolo de seus concidadãos; porém cousa estranha,
foi quasi sempre infeliz nas emprezas guerreiras; o que me faz
acreditar que o acaso é superior ao genio para os successos da guerra,
e para a fortuna dos heroes.

Acompanhei a columna até Camodos,--passagem do canal de S. Gonçalo que
liga a lagôa dos Patos a Meryn.

Silva Tanaris havia-se retirado precipitadamente, logo que soube da
aproximação de uma columna do exercito republicano.

Não podendo alcançal-o, o presidente retrocedeu. Fiz outro tanto,
tomando o caminho de Piratini.

N'esta occasião recebemos noticia da batalha de Rio Pardo, na qual o
exercito imperial fôra completamente destroçado pelos republicanos.




                                 XVIII

                   ARMAMENTO DE LANCHÕES EM CAMACUA


Fui encarregado do armamento de dois lanchões que existiam nas aguas do
Camacua, rio que corre quasi parallelo e a pouca distancia do canal de
S. Gonçalo, e que como este vae desaguar no lago dos _Patos_.

Reuni alguns marinheiros vindos de Montevideo a outros que achei no
Piratini, completando ao todo uns trinta homens de diversas nações.
Infelizmente para elle tambem ali se achava o meu caro Luiz Carniglia.
Tinhamos um outro recruta francez de estatura collossal, bertão, por
nascimento, a que chamavamos João-Grande, e outro por nome Francisco,
verdadeiro corsario, e digno _irmão da costa_.

Chegando a Camacua, encontrámos ahi o americano John Griggs, que
habitando n'uma herdade pertencente a Bento Gonçalves estava
encarregado de vigiar o acabamento de dois _sloops_.

Fui nomeado chefe d'essa frota ainda em construcção, com o posto de
capitão-tenente. Era curioso aquelle methodo de construcção que fazia
honra á bem conhecida persistencia dos americanos. Ia procurar-se
á madeira a uma parte e o ferro a outra; dois ou tres carpinteiros
cortavam e apparelhavam aquella, um mulato forjava o ferro. Foi assim
que se fabricaram os dois _sloops_, desde os pregos até aos circulos de
ferro dos mastros.

No fim de dois mezes a esquadrilha estava prompta. Cada um dos vasos
foi armado com duas peças de bronze; quarenta negros ou mulatos foram
aggregados aos trinta europeus, formando d'esse modo duas equipagens
que comprehendiam setenta homens.

O lote dos lanchões seria um de dezoito, outro de doze a quinze
tonelladas.

Tomei o commando do mais forte a que puzemos o nome de _Rio-Pardo_.

John Griggs foi encarregado do segundo, que se chamou--_O Republicano_.

Rossetti tinha ficado em Piratini, incumbido da redacção do jornal _O
Povo_.

Começaram então as nossas correrias pelo lago dos Patos. Passaram-se
alguns dias sem fazermos mais do que prezas insignificantes.

Os imperiaes tinham, para fazer frente aos nossos dois _sloops_, de
vinte e oito tonelladas, trinta navios de guerra e um barco a vapor.

Porém nós tinhamos a nosso favor os baixios das aguas.

O lago não era navegavel para os grandes barcos, se não n'uma especie
de canal que seguia ao longo da sua margem do oriente.

No lado opposto succedia o contrario, porque o solo era cortado em
declive, e nós mesmos viamo-nos ás vezes encalhados antes de tocar na
margem.

Os bancos d'areia estendiam-se pela lagôa á similhança dos dentes de um
pente, e só havia de bom que esses dentes eram bastante affastados uns
dos outros.

Quando eramos forçados a encalhar, e os canhões dos navios de guerra ou
do vapor nos incommodavam, dizia:

--Ávante, meus patos, saltemos á agua.

E os meus patos cahiam n'agua, e á força de braços erguiam o lanchão,
transportando-o para o outro lado do banco de areia.

No meio de todos estes pequenos acontecimentos tomámos um barco
ricamente carregado que foi conduzido immediatamente para a costa
occidental do lago, junto a Camacua, aonde o queimamos depois de
havermos tirado tudo o que era aproveitavel.

Foi esta a primeira preza que fizemos, mas que valeu bem o trabalho; e
alegrou a nossa marinha. Todos tiveram a sua parte nos despojos, e com
um fundo reservado mandei fazer uniformes para todos os meus bravos.

Os imperiaes, que até ali nos haviam desprezado, não perdendo
occasião de escarnecer-nos, começaram a comprehender qual era a nossa
importancia no lago, e trataram de empregar grande numero de navios
para protegerem o seu commercio.

A vida que passavamos era laboriosa e cercada de perigos, em razão
da superioridade numerica dos inimigos; mas ao mesmo tempo essa vida
era encantadora, pittoresca, e muito em harmonia com o meu caracter.
Não eramos unicamente maritimos, seriamos tambem cavalleiros no caso
de necessidade. No momento de perigo encontrariamos quantos cavallos
quizessemos, e formariamos um esquadrão se não elegante, ao menos
temivel.

Nas margens da lagôa encontravam-se estancias que, pela aproximação
da guerra, tinham sido abandonadas pelos proprietarios, aonde achamos
muita abundancia de gado cavallar e o necessario para o seu sustento;
por outro lado nas herdades existiam terrenos cultivados, aonde
colhiamos abundancia de trigo, batata doce, e muitas vezes excellentes
laranjas; que são as melhores de toda a America do Sul.

A gente que me acompanhava verdadeira tropa cosmopolita era composta
de homens de todas as côres e de todas as nações. Tratava-os com
uma bondade, de que talvez parecessem pouco dignos, porém posso
affirmar uma coisa: é que nunca tive motivo de arrepender-me d'essa
bondade--todos obedeciam á minha primeira ordem e nunca me fatigaram,
nem me vi na necessidade de os punir.




                                  XIX

                          A ESTANCIA DA BARRA


Sobre o Camacua, aonde tinhamos o nosso pequeno arsenal, e d'onde
sahira a frota republicana, habitavam occupando uma grande extensão de
terreno as familias dos irmãos de Bento Gonçalves, assim como outros
parentes mais affastados; innumeraveis rebanhos se apascentavam n'esta
magnifica planicie que a guerra havia respeitado, porque se achava ao
abrigo do seu poder destruidor.

As producções agricolas achavam-se ali agglomeradas em tanta
abundancia, como não tenho idéa de vêr em parte alguma da Europa.

Já disse em outra parte que em nenhum logar do mundo se encontra
hospitalidade mais franca e cordeal do que n'este paiz; e foi o que nós
achámos em todas as familias, nas quaes existia por nós a mais decidida
sympathia.

As estancias que por estarem mais proximas ao rio, e por esperarmos
ser ahi mais bem recebidos, procuravamos de preferencia para nos
hospedarmos, eram as de D. Anna e D. Antonia, irmãs do presidente.
Aquella situada á margem do Camacua, e esta nas do Arroyo Grande.

Não sei se por effeito da minha imaginação, ou por um privilegio dos
meus vinte e seis annos, tudo ali era encantador aos meus olhos, e
posso assegurar que nenhuma época da minha vida está como esta tão
ligada ao meu pensamento, e nada se me apresenta mais fascinador do que
este periodo que recordo com prazer.

A casa de D. Anna era para mim um verdadeiro paraiso; posto que já não
fosse joven, esta bella senhora conservava comtudo um caracter alegre.

Tinha em sua companhia uma familia inteira, emigrada de Pelotas,
cidade da provincia, da qual era chefe o doutor Paulo Ferreira; tres
meninas que rivalisavam nos encantos, eram o perfeito ornamento d'este
delicioso recinto. Uma d'essas jovens, Manuela, era a senhora absoluta
do meu coração: sem esperança de poder possuil-a, ainda assim não podia
deixar de a amar. Era desposada de um dos filhos de Bento Gonçalves.

Em um momento de perigo tive occasião de conhecer que não era
totalmente indifferente á dama dos meus pensamentos; e a certeza que
obtive da sua sympathia serviu a minorar o desgosto de nunca dever
pertencer-me.

Geralmente as mulheres do Rio Grande são bellas, e os meus
homens tornaram-se facilmente escravos d'essas bellezas; porém
conscienciosamente affirmo que nenhum d'elles tinha pelo seu idolo um
culto tão puro e desinteressado como eu por Manuela. Portanto, todas as
vezes que um vento contrario, uma borrasca ou uma expedição nos levava
ao Arroyo Grande ou a Camacua, era para nós dia de festa; o pequeno
bosque de Firiva, que indica a entrada para aquella, ou o pomar das
larangeiras que occulta o caminho para a ultima, eram sempre saudados
por uma triplicada salva de _hourras_, que mostravam a força do nosso
enthusiasmo amoroso.

Um dia, depois de havermos puchado para terra as nossas embarcações,
descançavamos na estancia de D. Antonia, irmã do presidente, a pouca
distancia de uma d'essas choupanas, aonde salgam e defumam a carne, ás
quaes dão no paiz o nome de _galpon de chargueada_, quando me vieram
dizer que o coronel João Pedro de Abreu, appellidado _Mouringue_, isto
é, Foinha, em consequencia de ser muito astucioso, havia desembarcado
a duas ou tres leguas de distancia, com setenta homens de cavallaria e
oitenta de infanteria.

Havia probabilidade para acreditar esta noticia, porque depois da
tomada do barco que haviamos queimado depois de nos assenhorearmos do
mais precioso que elle tinha, sabiamos que Mouringue jurara tirar uma
boa vingança.

Esta noticia encheu-me de alegria.

Os homens commandados pelo coronel Mouringue eram mercenarios allemães
ou austriacos aos quaes ainda eu não estava enfastiado de fazer pagar
a divida que todo o bom italiano tem contrahido com os seus irmãos da
Europa.

Eramos sessenta ao todo; porém eu conhecia bem esses sessenta homens,
e com elles era capaz de fazer frente não só a cento e cincoenta
austriacos, mas a trezentos.

Tratei de destacar espias para todos os lados e fiquei com uns
cincoenta homens junto a mim.

Os dez ou doze que enviara a explorar terreno, voltaram, e disseram a
uma voz:

--Não vimos cousa alguma,

Havia então um denso nevoeiro, e foi protegido por elle que o inimigo
poude subtrahir-se ás suas pesquisas.

Resolvi não confiar unicamente na intelligencia humana, e quiz
interrogar tambem o instincto dos animaes.

Ordinariamente, quando qualquer expedição d'este genero se aproxima,
e homens d'outros sitios vem preparar uma emboscada junto a alguma
estancia, os animaes que sentem ruido estranho, dão signaes de
inquietação, e quem tacitamente os interroga, raras vezes se engana.

Os cavallos espalhados pela minha gente, começaram a andar mui
socegados em torno da estancia, manifestando assim que nada de novo se
passava nas proximidades.

Portanto acreditando que não havia surpreza a temer, ordenei á minha
gente que arrumasse as armas, todavia carregadas, e as munições nos
cabides que mandara construir dentro da arribana, e dei-lhes o exemplo
de segurança, começando a almoçar, e convidando-os a fazer outro tanto.

Por costume, nunca se faziam rogar para este convite.

Graças a Deus, tambem nunca as munições de bocca nos faltavam.

Terminado o almoço, mandei cada um a tratar da sua occupação.

Toda a minha gente trabalhava do mesmo modo que comia; isto é, sempre
com boa vontade: não se fazendo rogar: uns foram para os lanchões que
estavam sobre a praia, afim de tratarem de algum arranjo de que elles
carecessem, outros dirigiram-se á forja, estes a buscar madeira para
queimar, e aquelles finalmente para a pesca.

Fiquei eu só e o mestre cosinheiro, que havia estabelecido a sua
cosinha á luz do dia, em frente da arribana, e ahi vigiava as nossas
marmitas.

Quanto a mim, saboreava voluptuosamente o meu _mate_, especie de chá do
Paraguay, que se toma de uma cabaça com o auxilio de um canudo de vidro
ou de pau.

Comtudo, não duvidava que o coronel Fuinha, sendo natural do paiz,
tivesse com a sua astucia illudido a vigilancia da minha tropa, não
causando a sua presença sobresalto aos animaes, e que estaria talvez
com os seus cento e cincoenta austriacos deitado em algum bosque a
quinhentos ou seiscentos passos de nós.

Repentinamente, com grande admiração minha, ouvi por detraz de mim,
tocar a carregar.

Voltei-me.

Infanteria e cavallaria carregavam ao gallope; cada cavalleiro trazia
um homem na garupa. Os que não tinham cavallos corriam a pé agarrados
ás crinas. Dei um salto e achei-me no _galpon_; fui seguido pelo
cosinheiro mas o inimigo estava tão proximo de nós que no momento em
que eu transpunha o liminar da porta, senti o chapeu atravessado por
uma lança.

Ja disse que os fuzis estavam carregados na grade da mangedoura. Tinha
sessenta.

Agarrei em um e descarreguei-o, depois um segundo, e um terceiro, com
tanta rapidez, que não se poderia julgar que me achava só, e com tanta
felicidade que tres homens cahiram.

Tres outros tiros se succederam aos primeiros, e como atirava ao grupo,
todos eram funestos.

Se o inimigo, tivesse a idéa de assaltar o _galpon_ estaria tudo
acabado, mas o cosinheiro tinha-se-me unido e fazia tambem fogo, de
modo que o coronel Fuinha, apesar de toda a sua esperteza, julgou que
todos nós estavamos reunidos.

Por consequencia retirou-se para uns cem passos de distancia do
alpendre, e começou a fazer alguns tiros de quando em quando.

Foi o que me salvou.

Como o cosinheiro não era bom atirador, e na nossa situação cada tiro
perdido era uma falta irreparavel, disse-lhe que se entertesse em
carregar os fuzis que eu os iria descarregando.

Estava intimamente convencido de que a minha gente, suspeitando já
que o inimigo tinha desembarcado, e ouvindo o estrondo da fuzilaria,
comprehenderia tudo e viria em meu auxilio.

Não me enganava.

O meu bravo Luiz Carniglia foi o primeiro que appareceu atravez as
nuvens de fumo que existiam entre o _galpon_ e a tropa inimiga que
fazia um fogo infernal.

Depois d'elle appareceram Ignacio Bilbao, biscainho, e um italiano
chamado Lourenço. N'um momento estavam a meu lado, e começaram a
imitar-me o melhor que poderam; depois chegaram Eduardo Mutru,
Nascimento Raphael e Procopio--estes dois ultimos eram negros--e
Francisco da Silva. Queria em logar de escrever no papel, gravar no
bronze os nomes d'estes valentes companheiros, que no numero de treze
se me reuniram combatendo durante cinco horas cincoenta inimigos.

O inimigo tinha-se apoderado de todas as casas e barracas que nos
rodeavam, fazendo-nos d'ahi um fogo terrivel. Alguns dos seus soldados
haviam subido aos telhados de que tiraram as telhas, disparando-nos
tiros pelos buracos e lançando-nos fachinas accesas. Mas em quanto uns
apagavam as fachinas, e outros respondiam á fuzillaria, dois ou tres
cairam mortos pelo mesmo buraco que haviam feito. Tinhamos praticado
com as nossas bayonetas algumas setteiras na muralha do _galpon_, e por
ahi faziamos fogo quasi cobertos.

Pelas tres horas o negro Procopio deu um tiro que teve um exito feliz:
quebrou um braço ao coronel Moringue. No mesmo momento o coronel tocou
a retirada, e partiu levando os feridos, mas deixando quinze mortos no
campo da batalha.

Dos meus companheiros tive cinco feridos e tres mortos. Custou-me pois
oito homens esta refrega, que foi uma das mais serias em que me tenho
achado.

Estes combates eram tanto mais funestos para nós que não tinhamos
nem medico nem cirurgião. As feridas ligeiras eram pensadas com agua
fresca, renovando-se este medicamento o maior numero de vezes possivel.

Rossetti, que por acaso se achava com os seus companheiros em Camacua,
não se nos pôde reunir, com grande pesar seu. Sendo perseguidos e
não tendo armas, foram obrigados uns a passar o rio a nado, outros a
entranharem-se na floresta: um unico foi descoberto e morto.

Este combate tão perigoso e que teve tão feliz resultado, deu uma
grande confiança aos meus homens e aos habitantes d'este lado do paiz,
expostos ha muito tempo ás excursões d'este inimigo aventureiro e
intrepido.

Moringue foi na realidade o chefe mais habilitado que tiveram os
imperiaes. Era muito apto para estas emprezas, e devo dizer que sempre
se tinha conduzido com uma finura que lhe teria merecido o appellido de
_Fuinha_, se já o não tivesse.

Nascido no paiz, que como já disse, conhecia perfeitamente, e dotado de
uma astucia e intrepidez a toda a prova, causou graves prejuizos aos
republicanos, e o imperio do Brazil deve-lhe sem duvida alguma a melhor
parte na submissão d'esta corajosa provincia.

Celebrámos a nossa victoria. D. Antonia deu em nossa honra uma festa na
sua estancia, distante doze milhas do _galpon_, em que tinha tido logar
o combate.

Foi n'esta festa que eu soube que uma linda menina, constando-lhe o
perigo que eu corria, havia impallidecido e perguntado com toda a
anciedade noticias minhas. Esta noticia foi mais agradavel para mim,
do que a victoria sanguinolenta que poucos momentos antes tinha ganho.
Como me achava soberbo e feliz por lhe pertencer, ainda que não fosse
senão pelo pensamento. Devia pertencer a outro, mas a sorte havia-me
destinado essa flor do Brazil, que eternamente chorarei. Não era só
nos prazeres e alegrias que a encontrava sempre a meu lado, foi na
adversidade que eu conhecia o quanto valia o nobre coração da mãe de
meus filhos.

Annita! cara Annita!




                                  XX

                      EXPEDIÇÃO A SANTA CATHARINA


Depois d'este successo nada de importante nos succedeu no lago dos
Patos.

Começámos a construcção de dois novos lanchões. Os elementos primarios
tinham-se achado na preza antecedente, e em quanto á sua confecção
eramos coadjuvados valorosamente pelos habitantes da visinhança.

Tinham-se apenas acabado e armado os dois novos navios de guerra,
quando fomos avisados para nos juntarmos ao exercito republicano que
então sitiava Porto-Alegre, capital da provincia. O exercito e nós não
fizemos cousa alguma em quanto estivemos n'esta parte do lago.

Não obstante este cerco era dirigido por Bento Manuel em quem todos
reconheciam um grande merito como soldado, como general e como
organisador. Foi este que depois trahindo os republicanos se passou aos
imperiaes.

Pensava-se então na expedicção de Santa Catharina. Fui convidado para
tomar parte n'ella, debaixo das ordens do general Canavarro.

Havia no cumprimento d'este projecto uma grande difficuldade que era
o sahirmos da lagôa, visto que a embocadura estava guardada pelos
imperiaes.

Na margem meridional estava a cidade fortificada do Rio Grande do
Sul, e na margem septentrional S. José do Norte, cidade mais pequena,
mas fortificada tambem. Estas duas praças, bem como Porto Alegre,
achavam-se em poder dos imperiaes tornando-se por isso senhores da
entrada e sahida do lago. Possuiam, é verdade, unicamente estas duas
praças, mas ellas eram bastante importantes pela sua posição.

Para homens como os que tinha debaixo das minhas ordens não havia
comtudo coisa alguma impossivel.

Formei então o seguinte plano de guerra. Os dous mais pequenos lanchões
ficavam na lagôa, sendo seu chefe o excellente maritimo Zeferino
d'Ultra. Eu com os outros dous lanchões tendo debaixo das minhas ordens
Griggs e os melhores dos nossos aventureiros acompanharia a expedição
operando por mar em quanto o general Canavarro operava por terra.

Era um bello plano, mas era mui difficil pela sua execução.

Propuz então que se construissem duas carretas d'um tamanho e solidez
necessaria para collocar em cada uma d'ellas um lanchão, devendo-se
atrelar a cada carreta o numero de cavallos e bois sufficientes para as
poderem puchar.

A minha proposta foi adoptada, e fui encarregado de lhe dar execução.

Pensando então maduramente n'este projecto fiz-lhe as seguintes
modificações.

Mandei construir por um habil carpinteiro chamado Abreu oito enormes
rodas de uma solidez a toda a prova para poderem sustentar o
extraordinario peso que devia supportar.

N'uma das extremidades do lago--a que é opposta ao Rio Grande do
Sul--isto é, ao noroeste, existe no fundo de um barranco um pequeno
ribeiro que corre do lago dos Patos ao lago Tramandai, ao qual
tratavamos de transportar os dous lanchões.

Fiz descer a este barranco um dos nossos carros, depois levantámos o
lanchão até que aquelle estivesse em cima do carro. Cem bois mansos
foram atrelados, e vi então com grande satisfação o maior dos nossos
lanchões caminhar como se fosse uma penna.

O segundo carro desceu por sua vez, e como no primeiro obtivemos um
exito feliz.

Os habitantes gosaram então d'um espectaculo curioso e desusado, isto
é, verem dois navios em cima de duas carretas, e puxados por duzentos
bois, atravessarem cincoenta e quatro milhas, isto é, dezoito leguas,
sem a menor difficuldade, sem o mais pequeno incidente.

Chegados á margem do lago Tramandai os lanchões foram deitados ao mar
do mesmo modo porque tinham sido embarcados. Necessitavam de alguns
pequenos reparos, que no fim de tres dias estavam concluidos.

O lago Tramandai é formado por aguas que tem a sua fonte nos montes
d'Epinasso, e finalisa-o no Atlantico. É pouco fundo, pois nas maiores
enchentes só tem quatro ou cinco pés d'agua. N'esta parte da costa
reinam sempre grandes tempestades.

O estrondo que o mar faz batendo n'estes rochedos, que os marinheiros
chamam cavallos, por causa da espuma que fazem voar em roda d'elles,
ouve-se a muitas milhas de distancia, e muitas vezes é tomado pelo
rumor da tormenta.




                                  XXI

                          PARTIDA E NAUFRAGIO


Promptos a partir esperámos pela maré cheia, sahindo ás quatro horas da
tarde.

Foi n'esta occasião que soubemos apreciar o bem que nos resultava
da pratica que tinhamos de navegar entre os rochedos. Não obstante
esta pratica, não sei hoje dizer porque audaciosa ou antes porque
habil manobra chegámos a tirar os nossos navios d'entre os rochedos,
ainda que tivessemos, como já disse, escolhido a maré cheia. O fundo
necessario para navegarmos faltava-nos por toda a parte, foi pois só
ao cair da noite que os nossos esforços obtiveram um resultado feliz
conseguindo deitar ancora no Oceano.

Julgo conveniente dizer que os nossos navios foram os primeiros que
sahiram do lago Tramandai.

Ás oito horas da noite levantámos ancora e começámos a nossa viagem.

No dia seguinte pelas tres horas da tarde tinhamos naufragado na
embocadura do Aserigua, rio que tem a sua nascente na serra Espinasso,
e que se lança ao mar na provincia de Santa Catharina, entre as torres
e Santa Maura.

De trinta homens da equipagem, dezeseis affogaram-se.

Direi em duas palavras como aconteceu esta terrivel catastrophe.

No momento da nossa partida, o vento do meio dia começava a apparecer.
Corriamos parallelos á costa. O _Rio Pardo_ tinha, como já disse,
trinta homens de equipagem, uma peça de doze, uma grande porção de
caixas, e outros objectos de toda a especie, que tinhamos levado por
precaução, por não sabermos o tempo que estariamos no mar, e a que
praia chegariamos, e qual seriam as circumstancias em que estaria essa
praia no momento em que nos dirigiamos para um paiz inimigo.

O lanchão achava-se pois mui subcarregado, e as vagas cobrindo-o de
minuto em minuto, ameaçavam submergil-o. Resolvi então aproximar-me
da costa e tomar terra na parte que me pareceu accessivel; mas o mar
que ia sempre crescendo, não nos deixou escolher a posição que nos
convinha, e uma vaga enorme nos arremeçou para a costa.

Estava n'essa occasião na parte mais elevada do mastro do traquete,
d'onde esperava descobrir uma passagem atravez os rochedos. O lanchão
inclinou-se sobre o estribordo e eu fui lançado a trinta pés de
distancia.

Ainda que estivesse n'uma posição perigosa, a confiança que tinha nas
minhas forças como nadador, fez com que não pensasse um unico momento
na morte, e tendo comigo alguns companheiros, que não eram marinheiros,
e que momentos antes tinha visto deitados no tombadilho e mui enjoados;
em logar de nadar para a costa, comecei a reunir uma parte dos
objectos, que pela sua ligeireza promettiam conservar-se á superficie,
e comecei a empurral-os para o navio gritando aos meus homens que se
lançassem ao mar e que apanhassem alguns d'aquelles objectos, tratando
de ganhar a costa que se achava na distancia de uma milha. O navio
tinha-se afundado, mas a mastreação conservava-o com os seus flancos de
bombordo fóra de agua.

O primeiro que eu vi agarrado ás enxarcias foi Eduardo Mutru um
dos meus melhores amigos: atirei-lhe um fragmento da escotilha
recommendando-lhe que o não alargasse.

Este estando quasi salvo, lancei os olhos para o navio.

Vi então o meu caro e corajoso Luiz Carniglia. Estava ao leme no
momento da catastrophe, e havia ficado agarrado á popa do navio.
Infelizmente estava n'esta occasião vestido com uma jaqueta de uma
enorme roda. Não havia tido tempo de a tirar, não podendo por isso
nadar em quanto a tivesse vestida. Vendo que me dirigia para elle
começou a gritar.

--Agarra-te bem, lhe respondi, que já te dou soccorro.

Subindo ao navio como o teria podido fazer um gato, cheguei ate junto
d'elle; agarrei-me com uma mão a uma borda, e com a outra tirando da
algibeira uma faca que infelizmente cortava pessimamente, comecei
a rasgar as costas da jaleca. Tinha quasi finalisado esta minha
ardua tarefa, e Carniglia estava quasi salvo, quando um golpe de mar
horrivel, envolvendo-nos fez em pedaços o navio e lançou ao mar os
homens que ainda se conservavam a bordo.

Carniglia foi tambem precipitado e não tornou a apparecer.

Lançado ao fundo do mar como um projectil, voltei á superficie todo
aturdido, mas tendo uma unica idéa--a de soccorrer ao meu charo Luiz.
Comecei a nadar em volta da carcassa do navio chamando-o em altos
gritos, mas elle não me respondeu. Esse bom amigo que já me tinha salvo
a vida, tinha morrido sem eu o poder soccorrer.

No momento em que abandonava a esperança de salvar Carniglia, lancei
os olhos em volta de mim. Por uma graça especial de Deus, n'este
momento de agonia para todo o mundo, não pensei um unico momento em mim
tratando unicamente dos outros.

Vi então os meus companheiros nadando para a praia, separados uns dos
outros segundo a sua agilidade ou força. Alcancei-os em um momento
e animando-os com os meus gritos, passei-lhe adiante, sendo um dos
primeiros a atravessar os rochedos, cortando para isso vagas tão altas
como montanhas.

Puz pé em terra. Mas a dôr por perder o meu pobre Carniglia,
deixando-me indifferente sobre a minha propria sorte, dava-lhe uma
força invencivel.

Apenas tinha posto pé em terra que me voltei movido por uma derradeira
esperança.

Póde ser, ir vêr Luiz.

Interroguei todas essas figuras assustadas, mas todas me davam a mesma
resposta. Já não me restava esperança alguma.

Vi então Eduardo Mutru, que depois de Carniglia era quem eu
estimava mais, e a quem tinha passado um fragmento da escotilha
recommendando-lhe que se agarrasse com toda a força. A violencia das
vagas tinha-lhe, sem duvida, tirado este apoio. Ainda nadava, mas pela
convulsão dos seus movimentos indicava a extremidade a que se achava
reduzido. Já disse como o amava, era pois o segundo irmão que ia perder
no mesmo dia. Não quiz em um momento perder tudo o que mais presava
no mundo. Lancei ao mar os restos do navio que me tinham servido para
ajudar a ganhar a praia, e lancei-me de novo ao mar, indo novamente
affrontar um perigo ao qual tinha poucos momentos antes escapado. No
fim d'um minuto só algumas braças me separavam de Eduardo.

--Coragem... Coragem, lhe disse eu.

Vã esperança, vãos esforços! No momento em que encaminhava para elle o
pedaço de madeira salvadora desappareceu.

Dei um grito, e mergulhei. Depois não encontrando o meu pobre amigo
julguei que teria vindo á superficie. Voltei tambem: Ninguem! Mergulhei
de novo e de novo voltei ao cimo d'agua. Dei gritos desesperados, mas
tudo foi em vão. Eduardo Mutru tinha tambem sido engolido por esse
Oceano que elle não tinha tido receio de atravessar para, unindo-se-me,
servir a causa dos povos.

Ainda um martyr da liberdade italiana que não teve um tumulo, uma cruz!

Os cadaveres dos dezeseis afogados que nós contamos n'este desastre,
fieis companheiros das minhas aventuras, foram arremeçados pelas vagas
a mais de trinta milhas de distancia para o norte. Procurei então entre
os quatorze que haviam escapado e que n'este momento estavam na praia,
um rosto amigo, uma figura italiana.

Nenhuma!

Os seis italianos que me acompanhavam estavam mortos. Carniglia, Mutru,
Staderini, Nadonne e Giovanni... Não me recordo do nome do sexto.

Peço perdão á patria por o haver esquecido, bem sei que escrevo estas
memorias doze annos depois d'estes successos terem logar, bem sei que
muitos acontecimentos tão terriveis como o que acabo de descrever, tem
tido logar na minha vida; bem sei que vi cair uma nação, e que tentei
defender uma cidade; bem sei que perseguido, exilado, e tratado como um
animal feroz, depuz no tumulo a mulher a quem amava mais que a propria
vida, bem sei que depois de fechado o seu tumulo fui obrigado a fugir
como os condemnados de Dante; bem sei que não tenho um asylo, e que do
extremo d'Africa onde me acho, olho para essa Europa que me repelle
como um bandido, apesar de não ter tido até hoje senão um pensamento,
um amor--a patria; sei tudo isto, mas não obstante devia-me lembrar
d'esse nome.

E comtudo não o sei!!

Tanger, março de 1857.--_G. G._




                                 XXII

                              JOÃO GRIGGS


Os melhores nadadores tinham succumbido! Sem duvida confiando na
sua habilidade, não se tinham querido apoderar dos restos do navio,
esperando suster-se na agua sem este soccorro, em quanto que ao
contrario, entre os que via sãos e salvos estavam alguns americanos que
em muitas occasiões tinha visto embaraçados, por terem de atravessar um
pequeno rio de dez a doze pés de largo.

Parecia-me isto estranho, e comtudo era a verdade.

O mundo era para mim um deserto.

Assentei-me na praia, e encostando a cabeça ás mãos julguei que ia
chorar.

No meio da minha atonia ouvi um gemido.

Lembrei-me então que não obstante serem-me esses homens desconhecidos,
visto que eu era seu chefe no combate e no naufragio, devia tambem
sel-o na desgraça.

Ergui a cabeça.

--Que tem, perguntei, e quem se queixa?

Duas ou tres vozes me responderam:

--Tenho frio.

Eu que até então não tinha pensado em tal, comecei tambem a sentil-o.

Levantei-me e enchugei-me. Alguns dos meus companheiros estavam já
assentados ou deitados para nunca mais se levantarem.

Chamei em meu auxilio os mais vigorosos, e obriguei os que se achavam
tolhidos a erguerem-se. Peguei-lhe por uma mão, e disse aos que ainda
não haviam perdido totalmente as forças que fizessem outro tanto,
gritando:

--Corramos!

E dei ao mesmo tempo o exemplo.

No principio sentimos uma grande difficuldade, ou para melhor dizer,
uma grande dôr por sermos obrigados a fazer mover os nossos membros
tolhidos pelo frio, mas em pouco tempo começámos a sentir algum calor.

Entregámo-nos durante uma hora a este exercicio. No fim d'este espaço,
o nosso sangue aquecendo tinha recomeçado a sua circulação.

Estavamos então perto do rio Aserigue. Dirigimo-nos pela sua margem
direita, e a quatro milhas encontrámos uma estancia, e n'ella a
hospitalidade que existe sempre em todas as casas americanas.

O nosso segundo lanchão, commandado por Griggs, chamado o _Seival_,
um pouco maior que o _Rio Pardo_, mas de construcção differente, póde
luctar contra a tempestade, seguindo a sua viagem.

É necessario dizer que Griggs era um excellente maritimo.

Não sei se ámanhã serei obrigado a deixar o asylo, onde me acho
actualmente. Não sei pois se mais tarde terei occasião de dizer d'este
excellente e valeroso mancebo tudo o que penso d'elle, vou pois,
aproveitando esta occasião, pagar o tributo que devo á sua memoria.

Pobre Griggs! tenho apenas dito duas palavras a seu respeito, e comtudo
onde encontrei eu um homem mais corajoso e com melhor caracter?
Nascido d'uma familia rica, tinha vindo offerecer o seu ouro, a sua
intelligencia, e o seu sangue á republica nascente, dando-lhe tudo
quanto havia offerecido. Um dia chegou uma carta d'um dos seus parentes
da America do Norte, convidando-o a ir receber uma herança enorme.
Mas Griggs já havia recebido a mais bella herança que se póde dar a um
homem de convicção e fé,--a corôa do martyrio. Tinha morrido defendendo
um povo desgraçado, mas generoso e valente.

E eu que tinha visto tantas mortes gloriosas, vi o corpo do meu
infeliz amigo cortado em dois como o tronco de um carvalho pela hacha
do lenhador. Um tiro de metralha o tinha ferido na distancia de vinte
passos, no dia em que com um dos meus companheiros, largando o fogo á
esquadrilha, por ordem do general Canavarro, subi ao navio de Griggs
que acabava de ser litteralmente fulminado pela esquadra inimiga.

Oh! liberdade! liberdade! que rainha da terra se póde encher de orgulho
por ter um cortejo de heroes como tu tens no ceu!!




                                 XXIII

                            SANTA CATHARINA


Felizmente a parte da provincia de Santa Catharina onde haviamos
naufragado, tinha-se tambem revoltado contra o imperador, logo que
souberam da aproximação das tropas republicanas. Em logar pois de
encontrar inimigos, achamos alliados, em logar de sermos combatidos
fomos festejados, e obtivemos em um momento todos os meios de
transporte de que aquelles pobres habitantes podiam dispôr.

O capitão Balduino offereceu-me o seu cavallo, e pozemo-nos
immediatamente em marcha para alcançar a guarda avançada do general
Canavarro, commandada pelo coronel Teixeira, que se dirigia a toda a
pressa sobre o lago de Santa Catharina, esperando surprehendel-o.[6]

  [6] A provincia de Santa Catharina foi dada em dote pelo
  imperador a sua irmã, quando ella casou com o principe de
  Joinville.

Devo confessar que não tivemos grande difficuldade em nos apoderarmos
da pequena cidade que precede o lago e que por isso tem o seu nome.
A guarnição fugiu precipitadamente, e tres pequenos navios de guerra
renderam-se depois de um fraco combate. Passei então com os meus
naufragos para bordo da goleta _Itaparika_, que estava armada com sete
canhões.

Durante os primeiros dias d'esta occupação, a fortuna parecia ter feito
um pacto com os republicanos. Não temendo uma invasão tão repentina
da nossa parte, de quem só tinham noticias de quando em quando, os
imperiaes tinham mandado guarnecer aquella povoação com soldados, armas
e munições. Mas estas cahiram em nosso poder, porque chegaram depois de
estarmos senhores da cidade.

Os habitantes tratavam-nos como irmãos e libertadores, titulo que
infelizmente não soubemos justificar em quanto estivemos n'esta
povoação amiga.

Canavarro estabeleceu o seu quartel general em Santa Catharina,
chamada pelos republicanos _Giuliana_, por que tinham ali entrado no
mez de julho. O general permittiu a creação de um governo provincial
de que foi presidente um sacerdote veneravel, que exercia um grande
prestigio no povo. Rossetti com o titulo de secretario do governo era
verdadeiramente a sua alma. Rossetti estava talhado para todos os
empregos!

Tudo marchava ás mil maravilhas. O coronel Teixeira com a sua columna
avançada tinha perseguido o inimigo até o encerrar na capital da
provincia, apoderando-se de quasi todo o paiz. Por toda a parte eramos
recebidos com os braços abertos, e todos os dias se nos juntavam
desertores imperiaes.

O general Canavarro traçava magnificos planos. Rude na apparencia,
excellente no fundo, tinha o costume de dizer que do lago de Santa
Catharina sahiria a hydra que devoraria o imperio, e talvez tivesse
razão se houvessem olhado para esta expedição com mais juizo e
attenção. Infelizmente as nossas maneiras orgulhosas para com os
habitantes e a insufficiencia dos meios que tinhamos á nossa disposição
fizeram perder o fructo d'esta brilhante campanha.




                                 XXIV

                              UMA MULHER


Nunca havia pensado no casamento, visto que me considerava incapaz de
ser um bom marido por causa da minha grande independencia de caracter
e decidida paixão pelas aventuras. Ter mulher e filhos parecia
humanamente impossivel ao homem que consagrou a sua vida a um principio
de que o successo, por mais completo que seja, não póde deixar nunca
o socego necessario a um chefe de familia. O destino havia decidido o
contrario: depois da morte de Luiz, Eduardo e dos meus outros amigos,
achava-me n'um isolamento completo, parecendo-me existir só no mundo.

Não me havia ficado um só d'esses amigos de que o coração tem
necessidade como a vida de alimento. Os que tinham escapado, eram
como já disse, estrangeiros. Eram sem duvida dotados de um excellente
coração, mas conhecia-os á pouco tempo para ter com elles grande
intimidade. N'esse espaço enorme que aquella terrivel catastrophe
tinha feito em volta de mim, sentia a necessidade d'uma alma que me
amasse, porque sem essa alma, a existencia era-me insuportavel, quasi
impossivel. Havia, é verdade, encontrado Rossetti, isto é, um irmão;
mas Rossetti obrigado pelos deveres do seu emprego não podia viver
comigo, vendo-o apenas uma vez por semana. Tinha pois necessidade
d'alguem que me amasse. A amisade é fructo do tempo, e é por isso
necessario muitos annos para amadurecer, em quanto que o amor é como o
relampago, filho muitas vezes da tempestade. Mas que importava! Não sou
eu dos que preferem as tempestades á bonança e socego d'alma.

Era pois uma mulher que se me tornava necessaria, só uma mulher
me podia curar, uma mulher quer diser, o unico refugio, um anjo
consolador, a estrella da tempestade. A mulher é uma divindade que
nunca se implora em vão, especialmente quando se é desgraçado.

Era com este incessante pensamento que, do meu camarote a bordo do
_Itarapika_, voltava sem cessar o meu olhar para a terra. D'ahi
descobria formosas meninas occupadas em differentes trabalhos
domesticos. Uma d'ellas, principalmente, attraia-me a attenção.
Mandaram-me desembarcar e immediatamente me encaminhei para a
casa sobre que ha tanto tempo se fixava o meu olhar. O coração
batia-me apressado, mas tinha formado uma d'essas resoluções que
uma vez tomadas, nunca mais enfraquecem.--Um homem convidou-me a
entrar,--teria-o feito ainda mesmo que elle o prohibisse--tinha-o
visto uma vez--vi sua filha e disse-lhe: «Virgem pertences-me!»
Havia por estas simples palavras creado um laço que só a morte podia
quebrar.--Tinha encontrado um thesouro prohibido, mas de tal preço!...
Se houve uma falta commettida, a responsabilidade só a mim pertence;
se foi uma falta, unirem-se dois corações, despedaçando a alma de um
innocente.

Mas ella está morta e elle vingado--Onde conheci a grandeza da minha
falta?--Na embocadura do Cridam no dia em que esperando disputal-a
á morte, lhe apertava convulsivamente o pulso para contar as suas
ultimas pulsações, absorvendo o seu alento fugitivo...... Beijava os
seus labios muribundos, e apertava nos meus braços um cadaver chorando
lagrimas de desesperação.[7]

  [7] Quando acabei de lêr este capitulo fiquei admirado de o vêr
  pouco comprehensivel. Voltei-me para Garibaldi, e disse-lhe:

  --Lê isso, acho ahi uma grande falta.

  Lêu, e depois de um momento de silencio, disse-me suspirando:

  --É necessario que isso fique como está.

  Dous dias depois recebi um manuscripto intitulado--_Annita
  Garibaldi_.




                                  XXV

                              O CRUZEIRO


O general tinha determinado que eu sahisse com tres navios armados
para atacar as bandeiras imperiaes que crusavam na costa do Brasil.
Preparei-me para cumprir esta ardua tarefa, reunindo todos os elementos
necessarios ao meu armamento. Os meus tres navios eram o _Rio Pardo_,
commandado por mim--a _Cassapara_, por Griggs, ambos goletas e o
_Seival_ commandado pelo italiano Lourenço. A embocadura do lago estava
bloqueada pelos navios de guerra imperiaes, mas apesar d'isso sahimos
de noute e sem ser incommodados.--Annita, então companhia de toda a
minha vida, e por consequencia, de todos os meus perigos, tinha querido
acompanhar-me.

Chegados á altura de Santos, encontrámos uma corveta imperial,
que durante dois dias, nos deu caça inutilmente. No segundo dia
aproximamo-nos da ilha do _Abrigo_ onde tomámos duas sumacas carregadas
de arroz. Continuámos o cruzeiro e fizemos mais algumas prezas. Oito
dias depois da nossa partida dirigi-me para o lago.

Não sei porque, tinha um sinistro presentimento do que ali se passava,
visto que antes da nossa partida já um certo descontentamento se
manifestava contra nós. Estava além d'isso prevenido da aproximação
d'um corpo consideravel de tropas, commandadas pelo general Andréa a
quem a pacificação do Pará, tinha dado uma grande reputação.

Na altura da ilha de Santa Catharina, quando voltavamos, encontrámos
um patacho de guerra brasileiro.--Tinha unicamente comigo dous navios
o _Rio Pardo_ e o _Seival_, porque a _Cassapara_ havia muitos dias
que se tinha separado de nós por causa d'um grande nevoeiro. Quando
descobrimos o navio inimigo estava na nossa prôa, por isso não havia
meio de o evitar. Navegámos então direitos a elle e o atacámol-o
resolutamente. Começámos o fogo e o inimigo respondeu-nos, mas
este combate teve um exito mediocre por causa do muito mar.--O seu
resultado foi a perda de algumas das nossas presas, porque os seus
commandantes assustados pela superioridade do inimigo baixaram os
pavilhões.--Outros deram á costa.

Uma só das nossas presas foi salva. Era capitaneada por Ignacio Bilbáo,
o nosso bravo biscainho que o conduzio a Imbituba, que então se achava
em nosso poder. O _Seival_ tendo a peça desmontada e fazendo agua,
tomou o mesmo caminho, e eu fui obrigado a seguil-os por que estava com
mui poucas forças para andar só no mar.

Entrámos em Imbituba, impellidos pelo nordeste. Com este vento
era-nos impossivel entrar no lago e com certeza os navios imperiaes
estacionados em Santa Catharina, informados pelo _Andorinha_, assim se
chamava o navio de guerra com que tinhamos combatido, não tardariam a
vir atacar-nos; era pois necessario prepararmo-nos para o combate. O
canhão desmontado do _Seival_ foi içado n'um promontorio que fechava
a bahia do lado do levante, e ahi construimos uma bateria coberta com
cestões.

Com effeito no dia seguinte ao apparecer da aurora vimos tres navios
dirigindo-se para nós. O _Rio Pardo_, começou então um combate mui
desigual, porque os imperiaes nos eram mui superiores em numero.

Havia querido desembarcar Annita, mas ella não tinha consentido, e como
do fundo da minha alma admirava a sua coragem e me achava orgulhoso
pelo seu valor, cedi aos seus rogos.

O inimigo favorecido na sua manobra pelo vento que então fazia,
manteve-se á véla canhoneando-nos furiosamente. Podia d'esta maneira
aproveitar todos os seus canhões dirigindo todo o seu fogo contra a
nossa goleta. Nós, pelo nosso lado, combatiamos com a mais obstinada
resolução e como estavamos tão perto que nos podiamos servir das nossas
clavinas; as perdas eram de parte a parte importantes. As nossas
comtudo eram mais numerosas em razão da inferioridade numerica, e a
coberta ja se achava cheia de mortos e feridos. Apesar de tudo isto,
apesar do flanco do nosso navio estar crivado de ballas, da nossa
mastreação ter avaria, estavamos resolvidos a não ceder deixando-nos
matar até ao ultimo. É verdade que eramos conservados n'esta resolução
pela vista da amazona brasileira que estava a bordo. Annita, que, como
ja disse, não havia querido desembarcar, tinha tambem tomado parte no
combate, e com a clavina na mão coadjuva-nos admiravelmente. Eramos
tambem, devo dizel-o, perfeitamente sustentados pelo bravo Manuel
Rodrigues, commandante da nossa bateria de terra.

O inimigo estava mui encarniçado especialmente contra a goleta.
Muitas vezes durante este combate, aproximou-se tanto que julguei hia
abordal-a, o que me dava muito prazer, porque estavamos preparados para
tudo.

No fim de cinco horas de uma lucta terrivel, o inimigo, com grande
admiração nossa, retirou-se. Soubemos depois que a morte do capitão da
_Bella-Americana_ tinha sido a causa.

Tive durante este combate uma das mais vivas e crueis emoções da minha
vida. Annita achava-se de sabre em punho em cima do tombadilho animando
os meus homens. Repentinamente uma balla a derribou e a dous dos meus
camaradas. Corri para ella, julgando não encontrar mais que um cadaver,
mas Annita levantou-se sãa e salva; os dous homens estavam mortos;
suppliquei-lhe então que descesse para a camara.

--Sim, vou descer, me disse ella, mas é para enxutar os poltrões que lá
se foram esconder.

E bem depressa tornou a apparecer trazendo adiante de si dous ou tres
marinheiros envergonhados por serem menos bravos que uma mulher.

Passámos o resto do dia a sepultar os mortos e a reparar as avarias,
que não eram pequenas, causadas á goleta pelo fogo do inimigo. No dia
seguinte os imperiaes não appareceram, porque sem duvida se preparavam
para algum novo ataque; vendo isto embarcámos o nosso canhão e
levantando ancora pela noite, dirigimo-nos para o lago.

Quando o inimigo deu pela nossa partida, começou a perseguir-nos, mas
só no dia seguinte é que nos poude enviar algumas ballas que não nos
causaram prejuizo algum. Entrámos, pois, sem outro incidente no lago
onde fomos festejados pelos nossos que se admiravam de termos escapado
a um inimigo tão superior em numero.




                                 XXVI

                            SAQUE DE IMERUI


Outros acontecimentos nos esperavam no lago.

Como o inimigo continuava a avançar por terra, e em tal numero que
era loucura o tentar resistir-lhe, e como por outro lado as nossas
tolices e brutalidades nos tinham indisposto com os habitantes de
Santa Catharina que estavam promptos a revoltarem-se e a reunirem-se
aos imperiaes, tendo-se já rebellado a cidade de Imerui, situada na
extremidade do lago, foi-me determinado pelo general Canavarro que
fosse castigar este desgraçado paiz, pelo ferro e pelo fogo: vi-me
obrigado obedecer a esta ordem.

Como os habitantes e a guarnição tinham feito preparativos de defeza
pelo lado do mar, desembarquei então a tres milhas de distancia,
e assaltei-os, no momento em que menos o esperavam, pelo lado da
montanha. Surprehendida e batida a guarnição, foi posta em fuga,
achando-nos senhores da cidade.

Desejo não só para mim, para todos os individuos, o não receber uma
ordem igual á que eu tinha recebido, e que era por tal modo terminante,
que não havia meio de a illudir. Ainda que existam longas e prolixas
relações de acontecimentos iguaes, julgo impossivel que a mais terrivel
se aproxima da verdade. Deus me perdôe! mas não tenho em toda a minha
vida, successo que me deixasse tão amargas recordações como o saque
de Imerui. Ninguem póde fazer idéa do que soffri para alcançar que,
deixando livre a pilhagem, não se attentasse contra a vida de pessoa
alguma, limitando a destruição ás coisas inanimadas, alcancei o que
pertendia, mas emquanto ás propriedades foi impossivel evitar a
desordem. Nem a authoridade de commandante, nem os castigos poderam
alcançar coisa alguma. Cheguei a ameaçal-os com a volta do inimigo.

Espalhei o boato de que elle tendo recebido reforços vinha atacar-nos;
mas tudo foi inutil, e na verdade, se o inimigo tornasse atraz
achando-nos assim debandados teria-nos, sem muita difficuldade,
anniquillado. Infelizmente, a cidade ainda que pequena, tinha muitos
armazens cheios de vinho e licôres, de modo, que exceptuando-me, porque
não bebo senão agua, e alguns officiaes que consegui conservar ao pé de
mim, tudo se achava embriagado. Além d'isso os meus soldados eram na
sua maioria recrutas, homens que eu apenas conhecia, e por conseguinte
indisciplinados. Cincoenta soldados determinados atacando-nos de
improviso teria-nos desbaratado. Emfim á força de ameaças e esforços
consegui reembarcar estes animaes selvagens.

Conduziram a bordo alguns viveres e objectos salvos da pilhagem,
destinados á divisão e voltamos ao lago.

Durante este tempo o coronel Teixeira com a sua vanguarda retirava-se
diante do inimigo que avançava rapido e vigoroso.

Quando chegámos ao lago, começavam a conduzir as bagagens á margem
direita, e bem depressa os soldados deviam seguil-as.




                                 XXVII

                            NOVOS COMBATES


Tive muito que fazer no dia em que se effectuou a passagem da divisão
para a margem meridional, porque, se o exercito era pouco numeroso
as bagagens pareciam não ter fim.--Na parte mais estreita do rio a
corrente redobrava de violencia.--Trabalhámos pois desde o nascer do
sol até ao meio dia para fazer passar a divisão.

Pelo meio dia começou a apparecer a flotilha inimiga, composta de vinte
e duas vélas. Combinavam os seus movimentos com a tropa de terra, e
traziam a bordo além de equipagem grande numero de soldados. Subi á
montanha mais proxima para observar o inimigo, e vi immediatamente que
o seu plano era reunir as suas forças á entrada do lago. Dei logo parte
ao general Canavarro que no mesmo momento deu as ordens convenientes,
mas não obstante essas ordens os nossos homens não chegaram a tempo
de defender a entrada do lago. Uma bateria que haviamos construido
na embocadura do lago e que era dirigida pelo bravo Capotto resistiu
fracamente, pois não tinha senão peças de pequeno calibre, e alem
d'isso mal servidas por artilheiros inhabeis. Os nossos tres pequenos
navios estavam reduzidos á metade da equipagem, porque a outra metade
tendo sido mandada para terra para coadjuvar a passagem das tropas, não
se nos juntou, deixando-nos sós para combater um tão temivel inimigo.

Durante este tempo o inimigo ajudado pelo vento e mare vinha para nós
com toda a força. Dirigi-me então a toda a pressa para o meu posto a
bordo do _Rio Pardo_, onde já a minha corajosa Annita tinha começado
o combate, apontando e dando ella mesmo fogo á peça de que se tinha
encarregado, animando com a voz e o exemplo os meus companheiros um
pouco atemorisados.

O combate foi horrivel e mais mortifero que se poderia julgar. Tive
poucos mortos, porque, como já disse, metade da equipagem estava em
terra, mas dos seis officiaes que estavam nos tres navios só eu escapei
são e salvo.

Todas as nossas peças estavam desmontadas, mas o combale continuou á
clavina e não cessámos de atirar em quanto o inimigo passou por diante
de nós. Durante o combate Annita ficou sempre ao meu lado, no posto
mais perigoso, não querendo nem desembarcar nem aproveitar-se de nenhum
alivio, e despresando mesmo o inclinar-se como faz o homem mais bravo,
quando vê a mecha aproximar-se do canhão inimigo.

Soffrendo mil cuidados por a vêr exposta a tantos perigos, julguei
encontrar um meio de affastar.

Ordenei-lhe, foi necessario uma ordem, para me obedecer que fosse pedir
reforço ao general dando-lhe a minha palavra de que se me enviasse
esse reforço entraria no lago perseguindo os imperiaes e tratando-os
de tal maneira que elles não pensariam em desembarcar, embora tivesse
que largar o fogo á sua flotilha. Obriguei Annita a prometter-me que
ficaria em terra enviando-me a resposta por um homem seguro; mas com
bastante pesar meu foi Annita, que trouxe a resposta do general:

«Não tinha soldados para me mandar, e ordenava-me que não largasse o
fogo á esquadra inimiga, mas que viesse para a terra salvando as armas
e munições.»

Obedeci. Então debaixo de um fogo que não cessou um momento,
conseguimos fazer transportar a terra as armas e munições. Foi Annita
quem á falta de officiaes dirigiu esta operação em quanto eu passando
de um navio a outro collocava no logar mais inflamavel de cada um
d'elles, o fogo que o devia devorar.

Foi uma missão terrivel que me fez passar uma triplece revista de
mortos e feridos. Era um verdadeiro açougue de carne humana; andava-se
por cima de montões de cadaveres. O commandante do _Itaparika_ João
Henriques de la Laguna estava deitado no meio de dous terços da sua
equipagem com uma balla que lhe tinha feito no meio do peito um buraco
por onde podia entrar perfeitamente um braço. O pobre João Griggs
tinha, como já disse, o corpo separado em dois por um tiro de metralha.
Fiquei suffocado, com a vista de similhante espectaculo, e perguntei a
mim mesmo como poderia ter escapado.

N'um momento uma nuvem de fumo envolveu os nossos navios e os nossos
bravos tiveram ao menos uma sepultura digna d'elles.

Em quanto tinha comprido a minha obra de destruição, Annita pela sua
parte havia cumprido a sua de salvação. Para transportar á praia todas
as nossas armas e munições fez talvez vinte viagens ao navio passando
constantemente debaixo do fogo do inimigo. Andava n'um pequeno barco
com dois remadores, e os pobres diabos curvavam-se o mais possivel,
para evitar as ballas.

Annita pelo contrario na pôpa, no meio da metralha, estava direita e
socegada como uma estatua de Pallas, e Deus que me cobria com uma das
suas mãos, estendia-lhe tambem essa protecção.

Era noite fechada quando tendo reunido todos os marinheiros que
haviam escapado, me juntei com a nossa divisão, e nos retirámos para
o Rio Grande seguindo o mesmo caminho que alguns mezes antes tinhamos
atravessado com o coração cheio de esperança e procedidos pela
victoria.




                                XXVIII

                               A CAVALLO


No meio das peripecias da minha aventureira existencia, tenho tido
sempre horas bem agradaveis, e ainda que esta em que me achava não
parecesse á primeira vista fazer parte das que me tem deixado uma grata
lembrança, foi ao menos cheia de emoções.

Á testa de alguns homens, resto de tantos combatentes, que tinham com
justa rasão merecido o titulo de bravos, caminhava a cavallo, orgulhoso
dos vivos, orgulhoso dos mortos, e quasi orgulhoso de mim mesmo. Ao meu
lado hia a rainha da minha alma, a mulher digna de toda a admiração.
Estava lançado n'uma carreira mais attrahente do que a de marinha: que
me importava pois, como o philosopho grego, não possuir senão o que
tinha comigo? Que me importava servir uma republica pobre, que não
pagava a ninguem, e de que ainda que fosse rica, eu não teria acceitado
cousa alguma? Não tinha ao lado um sabre, uma clavina passada atravez
do arção do meu cavallo? Não tinha perto de mim Annita, o meu thesouro,
caracter tão ardente como o meu pela liberdade dos povos? Não encarava
ella os combates como um divertimento, como uma simples distracção? O
futuro sorria-me sempre afortunado, e quanto mais se me apresentavam
selvagens e desertas as solidões americanas, mais deliciosas e bellas
me pareciam.

Continuámos a retirar para as Torres, limite das duas provincias onde
estabelecemos o nosso acampamento. O inimigo contentou-se em retomar o
lago, não nos perseguindo.

A divisão Cunha que vinha da provincia de S. Paulo, juntando-se com a
divisão Andrea, dirigiam-se para _Cimo da Serra_, provincia da montanha
pertencente ao Rio Grande.

Os montanhezes nossos amigos, pediram soccorro ao general Canavarro,
que mandou em seu auxilio uma expedição ás ordens do coronel Teixeira.
Fizemos parte d'esta expedição. Recebidos pelos serraminhos,
commandados pelo coronel Aranha, batemos completamente o inimigo em
Santa Victoria. Cunha affogou-se no rio Pelatos e a maior parte das
suas tropas ficou prisioneira.

Esta victoria poz debaixo do dominio da republica as duas provincias de
Vaccaria e das Lages, e nós entramos em triumpho na principal povoação
d'esta ultima.

A noticia da invasão imperial tinha feito acordar o partido brasileiro,
e Mello, chefe inimigo, tinha enviado a esta provincia o seu corpo de
cavallaria, composto quasi de quinhentos homens.

O general Bento Manoel, encarregado de o atacar não o tinha podido
fazer por causa da sua retirada, contentando-se em enviar o coronel
Portinko em perseguição de Mello que se dirigia sobre S. Paulo.

A posição que occupavamos e as nossas forças, permettia-nos não só
oppor-nos á passagem de Mello, mas tambem de o anniquillar. Mas a
fortuna não o quiz: o coronel Teixeira incerto se o inimigo vinha
por Vaccaria ou por Coritibani, dividiu a sua tropa em dois corpos,
enviando o coronel Aranha a Vaccaria com a melhor cavallaria, em quanto
que nós com a infanteria e só com alguns soldados de cavallaria,
tirados quasi todos dos prisioneiros inimigos, nos dirigimos para
Coritibani. Foi este o caminho que tomou o inimigo.

Esta divisão das nossas forças foi-nos fatal: a recente victoria, o
caracter ardente do nosso chefe, e as noticias que tinhamos do inimigo
fizeram com que o desprezassemos mais do que merecia.

Em tres dias de marcha chegámos a Coritibani, e acampámos a pouca
distancia de Maromba por onde julgavamos que deviam passar os
imperiaes. Collocamos um posto na praia e sentinellas nos sitios que
julgamos convenientes, e ficamos mui descançados.

Em quanto a mim, o habito que tinha d'estas guerras fez com que, como
se costuma dizer, dormisse com um olho aberto e outro fechado.

Pela meia noite o posto que se achava na praia, foi atacado e com tanta
furia que os nossos soldados tiveram apenas tempo de fugir trocando
alguns tiros com o inimigo.

Quando senti o primeiro tiro puz-me logo a pé dando o grito de «Ás
armas.» Em poucos minutos todos estavamos promptos para o combate.
Algum tempo depois de nascer o dia o inimigo appareceu, e tendo passado
o rio parou a alguma distancia formado em batalha. Vendo o numero
superior do inimigo o coronel Teixeira deveria ter expedido correios
para chamar em seu auxilio a segunda divisão, mas Teixeira temendo
que elle se retirasse sem ter occasião de combater, lançou-se no
combate importando-se pouco da sua inferioridade numerica e da posição
vantajosa que o inimigo occupava.

Este aproveitando-se das irregularidades do terreno tinha estabelecido
a sua linha de batalha n'uma collina mui elevada, diante da qual
existia um vale profundo obstruido por muitos abrolhos tinha além
d'isso embuscado nos seus flancos alguns pelotões. Teixeira ordenou o
ataque que começou com todo o vigor. O inimigo então fingiu retirar-se.
Os nossos soldados começaram a perseguil-os sem cessar a fazillaria,
mas repentinamente foram atacados pelos pelotões embuscados que elles
não tinham visto e que tomando-os pelos flancos os obrigaram a passar
o vale em desordem. Perdemos n'este combate um dos nossos melhores
officiaes, Manoel N...... que era mui estimado pelo chefe. A nossa
linha, bem depressa organisada de novo atacou o inimigo com tal
impetuosidade, que foi posto em retirada.

O numero de mortos e feridos de parte a parte foi pouco numeroso,
porque as tropas que tomaram parte no combate foram diminutas.

O inimigo retirou-se com precipitação e nós fomos em sua perseguição
com grande encarniçamento. Infelizmente como tinhamos pouca cavallaria
não podémos perseguir a sua que fugia a todo a galope. Aproximando-se
do _Passo de Maromba_ o chefe da nossa vanguarda o major Jacintho
participou ao coronel que o inimigo fazia passar em uma grande desordem
o rio aos seus bois e cavallos, o que provava de que elle queria
continuar a retirar-se. Teixeira não hesitou um momento; ordenou ao
nosso pequeno esquadrão que mettesse a galope, recommendando-me que o
seguisse o mais de perto possivel com a minha infanteria.

A retirada do inimigo não era comtudo senão uma astucia, e infelizmente
esta astucia teve para nós terriveis resultados. Por causa das
irregularidades do terreno e pela precipitação com que o tinha
atravessado o inimigo achou-se fóra da nossa vista e chegando ao rio,
havia, como nos tinha participado o major Jacintho, passado para a
outra banda os bois e cavallos, mas os soldados tinham ficado occultos
por detraz de collinas que os escondiam completamente á nossa vista.

Tomadas estas precauções e tendo deixado um pelotão para sustentar a
sua linha de atiradores, os imperiaes, sabendo da nossa imprudencia
em deixar a infanteria na retaguarda, fizeram uma contra-marcha e
repentinamente os seus esquadrões appareceram no cimo de um valle.

O nosso pelotão que perseguia o inimigo na sua fuga simulada, foi o
primeiro a conhecer o laço, mas infelizmente não teve tempo para o
evitar. Atacado pelos flancos foi completamente destroçado. Os tres
outros esquadrões de cavallaria tiveram a mesma sorte, não obstante a
coragem e resolução de Teixeira e de alguns de nossos officiaes do Rio
Grande: em alguns momentos a nossa cavallaria estava espalhada em todas
as direcções.

Os soldados de cavallaria eram, como já disse, na sua maioria,
prisioneiros de Santa Victoria, e tinhamos feito mal em contar tanto
com elles, porque na realidade não podiam ser muito affeiçoados á
nossa causa, e além d'isso sendo soldados novos vindos da provincia,
estavam pouco acostumados a andar a cavallo. Assim logo que teve logar
o primeiro choque, fugiram.

Montado n'um excellente cavallo, depois de ter excitado a minha
infanteria a marchar o mais rapidamente possivel, tinha-lhe tomado a
frente e chegado ao alto de uma collina, d'ahi vi o triste resultado
d'este combate.

Os meus infantes fizeram todo o possivel para chegar a tempo, mas tudo
foi em vão. Do alto da eminencia onde me achava julguei que era muito
tarde para que elles nos podessem dar a victoria, mas muito cedo para
ainda a não julgarmos perdida.--Chamei uma duzia dos meus antigos
companheiros, os mais ligeiros e mais bravos, e deixando o major
Peixoto encarregado dos restantes, tomei com este punhado de valentes,
uma forte posição no cimo d'uma collina fortificada por muitas
arvores.--D'ahi fizemos frente ao inimigo, que conheceu que ainda não
era totalmente vencedor, e servimos de ponto de apoio aquelles dos
nossos que não tinham perdido completamente a coragem.--O coronel veiu
para o nosso lado com alguns cavallos depois de ter obrado milagres de
coragem.--O resto de infanteria uni-se-nos então e a defeza começou
terrivel e mortifera.

Fortes na nossa posição e no numero de setenta e tres lutamos com
vantagem. O inimigo tendo falta de infanteria e pouco habituado a
combater contra esta arma dava cargas inutilmente: quinhentos homens de
excellente cavallaria, brilhante e orgulhosa pela victoria cançaram-se
inutilmente diante de um punhado de homens sem alcançar vantagem
alguma. Comtudo apesar d'esta vantagem momentanea era necessario não
dar ao inimigo tempo de reunir as suas forças, de que a metade estava
ainda empregada a perseguir os nossos fugitivos, e sobre tudo era
necessario procurar um refugio mais seguro do que aquelle em que nos
achavamos.--Uma floresta se nos apresentava á vista na distancia de
quasi uma milha; começámos então a nossa retirada dirigindo-nos para
ella.--Em vão o inimigo tentava romper o nosso quadrado, em vão nos
dava repetidas cargas, quando o terreno o permettia, tudo foi inutil.

Foi para nós uma grande fortuna, o estarem os officiaes armados de
clavinas, e como todos eramos homens aguerridos, conservamo-nos unidos
fazendo face ao inimigo por qualquer lado que se apresentava e recuando
em excellente ordem, fazendo um fogo terrivel e bem dirigido, ganhámos
o nosso refugio onde o inimigo não se atreveu a penetrar. Uma vez
na floresta encontrámos um claro e sempre unidos e de fuzil na mão,
esperámos pela noute.

O inimigo gritava-nos a todos os momentos--_Rendam-se_, mas nós só lhe
respondiamos com o silencio.




                                 XXIX

                              A RETIRADA


Chegada a noute preparámo-nos para partir, sendo o nosso disignio o
tomar novamente o caminho das Lages. A maior difficuldade que tinhamos
a vencer, era o transportar os feridos. O major Peixoto não nos podia
coadjuvar, porque tinha um pé atravessado por uma balla.

Pelas dez horas da noute, estando os feridos accommodados o melhor
possivel, começámos a nossa marcha, abandonando o crado e seguindo
a linha da floresta, que sendo a maior que existe talvez no mundo,
se estende do rio Prata aos Amazonas, coroando os cumes da serra
Espinasso, sobre uma extensão de trinta graus de latitude: não conheço
a sua extensão em longitude, mas deve ser immensa.

As tres provincias de Cima da Serra, Vaccaria e Lages, são segundo
julgo ter já dito situadas no crados d'esta floresta. Coritibani,
especie de colonia, estabelecida pelos habitantes de Coritiba situada
no districto das Lages, provincia de Santa Catharina era o theatro do
episodio que estou contando: costeavamos pois o nosso bosque isolado,
para nos aproximarmos o mais possivel da floresta, tratando de nos
juntarmos á divisão de Aranha, que se havia infelizmente separado de
nós.

Á sahida do bosque aconteceu-nos um d'esses successos que provam como
o homem é filho das circumstancias e o poder que tem um terror panico
ainda sobre os mais corajosos. Marchavamos em silencio, como convinha á
nossa situação dispostos a combater o inimigo se se oppozesse á nossa
retirada. Um cavallo que se achava na durela da floresta sentindo a
pouca bulha que faziamos tomou medo e fugiu.

Ouviu-se então gritar uma voz:

--É o inimigo!

No mesmo momento os setenta e tres homens que tinham resistido a
quinhentos com tanta coragem que se podia dizer que haviam sido os
vencedores, tomáram medo e começaram a fugir dispersando-se de tal modo
que foi uma felicidade o não ter algum dos nossos acordado o inimigo
dando-lhe o signal de alarme.

Consegui com muito trabalho reunir alguns d'elles ao qual pouco a pouco
se foi juntando o resto, de modo que ao raiar da aurora estavamos na
aurela da floresta dirigindo-nos para as Lages.

O inimigo que não havia dado pela nossa fuga, procurou-nos inutilmente
no dia seguinte.

No dia do combate o perigo tinha sido grande, a fadiga enorme, a fome
imperiosa, a sede ardente, mas era necessario combater, combater pela
vida e esta idéa dominava todas. Mas uma vez na floresta tudo mudou.
Faltavam todas as coisas e a miseria não tendo a distracção do perigo
fez-se sentir terrivel, cruel, insupportavel. A falta de viveres, o
abatimento de todos, as feridas de alguns, e a carencia dos meios de as
tratar, lançaram-nos na desanimação.

Ficámos quatro dias sem encontrar senão raizes e julgo desnecessario
descrever a fadiga que tivemos para achar n'esta floresta um caminho
onde não existia o mais pequeno atalho e onde a natureza mui fecunda
faz a cada passo encontrar barrancos enormes.

Alguns dos meus homens desertaram desesperados e tivemos grande
trabalho para os juntarmos e impor-lhes respeito. Não existia senão um
unico recurso para dissipar esta desanimação e fui eu que o encontrei.
Disse a todos que lhe dava a liberdade de se retirarem para onde
quizessem, ou de continuarem a marchar unidos e em corpo, protegendo
os feridos e defendendo-se mutuamente. O remedio foi efficaz. Desde
que cada um foi livre de fazer o que quizesse ninguem pensou mais em
desertar e a confiança voltou a todos.

Cinco dias depois do combate encontrámos uma _picada_, atalho de
largura d'um homem, e raras vezes de dois que nos conduziu a uma casa
onde nos refrescámos matando dois bois.

Continuámos o nosso caminho para as Lages onde chegámos n'um dia de
perfeito inverno.




                                  XXX

                   ESTADA NAS LAGES E NOS ARRABALDES


Este bom paiz das Lages que nos tinha festejado tanto, quando eramos
victoriosos, havia quando recebeu a noticia da nossa derrota mudado
de opinião, e alguns dos mais resolutos tinham restabelecido o poder
imperial. Estes fugiram á nossa aproximação, e como a maior parte
d'elles eram negociantes, tinham deixado os seus armazens providos
de muitos objectos. Foi uma providencia, por que julgámos poder sem
remorsos aproveitar-nos das mercadorias dos nossos inimigos, e graças á
variedade do commercio que exerciam melhorar muito a nossa posição.

Entretanto Teixeira escreveu a Aranha ordenando-lhe que se nos unisse,
tendo por este tempo a noticia da chegada do coronel Portinko que tinha
sido enviado por Bento Manoel para seguir esse mesmo corpo de Mello,
encontrado desgraçadamente por nós em Coritibani.

Tinha servido sinceramente na America a causa dos povos, e havia lá
sido como na Europa o adversario do absolutismo. Tenho algumas vezes
admirado os homens, muitas lamentado, mas nunca odeado. Quando os
tenho encontrado egoistas e tratantes, tenho posto o seu egoismo
e trantantisse de parte, mettendo-o na conta da nossa desgraçada
natureza. Como estou afastado duas mil leguas do logar onde estes
acontecimentos tiveram logar, e já são passados doze annos póde-se
por isso acreditar na minha imparcialidade. Digo-o tanto pelos meus
amigos como pelos meus inimigos; eram intrepidos filhos do continente
americano.

Era uma audaciosa empreza o defender Lages contra um inimigo dez vezes
superior, e além d'isso orgulhoso pela recente victoria. Separados
d'elle pelo rio Canoas, que nós não tinhamos podido guarnecer
sufficientemente, esperámos durante muitos dias a juncção de Aranha
e Portinko, e durante este periodo o inimigo foi sustentado por um
punhado de homens, atacando-o logo que nos chegaram os reforços, mas
foi elle que se retirou sem acceitar o combate para a provincia visinha
de S. Paulo, aonde esperava encontrar um poderoso soccorro.

Foi n'esta circumstancia que eu verifiquei os vicios geralmente
imputados ao exercito republicano, que se compunha de homens cheios de
patriotismo e coragem, mas que não ficam juntos ás bandeiras, senão
quando o inimigo os ameaça, abandonando-as quando este se affasta. Este
costume foi quasi a nossa ruina, e poderia causar a nossa perda n'estas
circumstancias, porque se o inimigo tivesse mais paciencia, teria
podido destruir-nos totalmente.

Os serraminos foram os primeiros a abandonar as fileiras. Os soldados
de Portinko em breve os seguiram. Note-se bem que os desertores não só
levavam os seus cavallos, mas os da divisão. Em poucos dias as nossas
forças se separaram com tanta rapidez que fomos obrigados a abandonar
Lages, retirando-nos para a provincia do Rio Grande, temendo a presença
d'esse inimigo, que tinha sido obrigado a fugir diante de nós, e de que
a fuga nos tinha feito vencedores.

Que estes exemplos sirvam aos povos que querem ser livres, e que
não é com flores, festas e illuminações que se combatem os soldados
aguerridos do despotismo, mas com soldados mais disciplinados e mais
aguerridos do que elles, não querendo para generaes os que não são
capazes de disciplinar um povo depois de o haver sublevado.

É verdade que tambem ha povos que não merecem a pena de serem
sublevados: a gangrena não tem cura.

O resto das nossas forças assim dissimadas--quando estavam privadas
das cousas mais necessarias e principalmente de vestidos--privação
terrível na aproximação do inverno sombrio e rude n'estas regiões
elevadas,--o resto das nossas forças, começou a desmoralisar-se e a
pedir para se retirarem para suas casas. Teixeira foi obrigado a ceder
a essa exigencia, e ordenou-me de descer a montanha e de me reunir ao
exercito, em quanto se preparava a fazer outro tanto. Esta retirada
foi rude por causa da escabrosidade dos caminhos e das hostilidades
occultas dos habitantes da floresta, inimigos encarniçados dos
republicanos.

Em numero de setenta, pouco mais ou menos, descemos a _Picada di
Peloffo_--já disse o que era uma picada--e tivemos que affrontar
emboscadas repetidas e imprevistas que nós atravessamos com uma
felicidade incrivel devida á resolução dos homens que eu commandava, e
um pouco á confiança que geralmente inspiro aos que me seguem. O atalho
que atravessavamos era tão estreito que unicamente podiam passar dois
homens a par, e como o inimigo era nascido no paiz, por isso conhecedor
do terreno, emboscava-se nos sitios mais favoraveis, rodeando-nos
e dando gritos horriveis, em quanto que um circulo de chammas nos
cercava, sem que nós podessemos vêr os atiradores, que felizmente
faziam mais barulho do que obra. De resto a união que os meus homens
tiveram no perigo foi tal que apenas alguns foram feridos, tendo só um
cavallo morto.

Estes acontecimentos fazem recordar as florestas encantadas de Tasso,
aonde as arvores viviam.

Chegámos então a _Mala-Casa_ aonde se achava Gonçalves, que reunia as
funcções de presidente ás de general em chefe.




                                 XXXI

                          BATALHA DE TAQUARI


O exercito republicano preparava-se para se pôr em marcha. O inimigo
depois da derrota de Rio Pardo, tinha-se refeito em Porto Alegre,
d'onde tinha sahido debaixo das ordens do velho general Georgio, e
havia estabelecido o seu acampamento nas praias de Cahé, aonde esperava
a juncção do general Calderon, que com um corpo consideravel de
cavallaria se lhe devia reunir.

O grande inconveniente da dispersão das tropas republicanas quando
não estavam em face do inimigo, dava-lhe facilidade em tudo que elle
queria emprehender, de modo que no momento em que o general Netto, que
commandava as forças, teve reunido um numero sufficiente de soldados
para bater Calderon, este tinha já reunido no Cahe a maior parte do
exercito imperial.

Era absolutamente indispensavel ao presidente se queria bater o
inimigo, o reunir-se á divisão Netto, e foi por isto que elle levantou
o cerco. Esta manobra e a juncção que se lhe seguiu, tiveram um
feliz resultado e fizeram grande honra á capacidade militar de Bento
Gonçalves. Partimos de Mala-Casa com o exercito, tomando a direcção de
Leopoldo, passando a duas milhas das forças inimigas, e depois de dous
dias e duas noites de marcha continua, nas quaes quasi que não comemos
nem bebemos chegámos perto de Taquari onde encontrámos o general Netto
que nos procurava.

Disse que haviamos passado quasi sem comer, e disse a verdade. Logo que
o inimigo soube da nossa aproximação, marchou resolutamente ao nosso
encontro e muitas vezes nos alcançou em quanto descançavamos um momento
e estavamos occupados a assar alguma carne, nosso unico alimento.
Por dez vezes estando a comida quasi prompta as sentinellas gritavam
ás armas, e era por isso necessario ir combater em logar de jantar ou
almoçar. Emfim fizemos alto em Pinheirinho a seis milhas de Taquari, e
ahi tomámos todas as disposições para o combate.

O exercito republicano forte de mil homens de infanteria e cinco mil
de cavallaria, occupava as alturas do Pinheirinho, montanha coberta
de pinhos, como indica o seu nome, pouco elevada, mas dominando as
montanhas visinhas. A infanteria estava no centro commandada pelo
velho coronel Crezungio. A ala direita obedecia ao general Netto e a
ala esquerda a Canavarro. As duas alas eram compostas unicamente de
cavallaria que sem exaggeração era a melhor do mundo. A infanteria era
tambem excellente, e o desejo de começar o combate era geral.

O coronel Santo Antonio formava a reserva com um corpo de cavallaria.

O inimigo do seu lado tinha quatro mil homens de infanteria, tres mil
de cavallaria e algumas peças. Estava do outro lado da pequena torrente
que nos separava e a sua apparencia era longe de ser miseravel. O
exercito compunha-se das melhores tropas do imperio commandadas por um
general velho e experimentado.

O general inimigo tinha até então marchado ardentemente em nossa
perseguição, e havia tomado todas as posições para um ataque em quanto
as suas peças metralhavam a nossa cavallaria. Os nossos valentes da
primeira brigada ás ordens de Netto, tinham tirado os sabres da bainha
e não esperavam senão pelo signal para se lançarem aos dous batalhões
que tinham atravessado a corrente. Estes bravos estavam convencidos
que ficavam victoriosos porque nunca nem elles nem Netto tinham sido
batidos. A infanteria collocada em divisões no alto da colina, e
coberta pelas curvas do terreno, estava anciosa pelo momento do combate.

Os terriveis lanceiros de Canavarro tinham já feito um movimento
envolvendo o flanco direito do inimigo, obrigando-o por isso a mudar de
posição, mudança que se tinha feito em desordem.

Este corpo de lanceiros composto na sua maioria de negros libertos
da republica, e escolhidos entre os melhores domadores de cavallos de
provincia, tinha unicamente os officiaes superiores brancos, e nunca
o inimigo tinha visto as costas d'estes filhos da liberdade. As suas
lanças que eram maiores do que o ordinario, os seus rostos pretos
como azeviche, os seus robustos membros e a sua perfeita disciplina
tornava-os o terror dos inimigos.

A voz animadora do chefe já havia feito tremer todos aquelles corações.
«Que todos combatam como se tivessem quatro corpos para defender a
patria e quatro almas para a amar, havia dito esse valente, que tinha
todas as qualidades de um grande capitão menos a felicidade.

Quanto a nós sentiamos, por assim dizer, as palpitações da batalha,
e tinhamos a certeza de ganhar a victoria. Nunca em minha vida tinha
visto um mais bello, mais magnifico espectaculo. Collocado no centro da
nossa infanteria, no alto da collina descobria todo o campo de batalha.
As planicies sobre as quaes iam ficar tantos cadaveres, estavam
semeadas de plantas baixas e raras, não fazendo pois nenhum obstaculo
nem aos movimentos estrategicos nem ao olhar que os seguia, e podia
dizer que aos meus pés em poucos momentos seriam resolvidos os destinos
da maior parte do continente americano.

Esses corpos tão compactos, tão unidos uns aos outros vão ser dispersos
e derrotados? Todos esses homens serão em um momento cadaveres? Toda
essa bella e vigorosa mocidade verá destruidas as suas mais bellas
esperanças? Vamos! Tocae fanfarras, troae canhões, e que tudo seja
decidido como em Zama, Pharsale e Actium.

Mas não era ainda n'esta planicie que devia ter logar o combate. O
general inimigo intimidado pela forte posição que occupavamos e pela
nossa firmeza, hesitou e fez repassar o rio aos dois batalhões, tomando
a defensiva em logar da offensiva. O general Caldeira tinha sido morto
no começo do combate e d'ahi provinha, talvez, a hesitação de Georgio.
No momento em que elle não nos atacava, não deviamos nós atacal-o?
Tal era a opinião da maioria. Seriamos bem succedidos? Travando-se
o combate nas condições primitivas e conservando a nossa excellente
posição todas as probabilidades eram por nós, mas abandonando-as para
seguir um inimigo que nos era quatro vezes superior em infanteria, era
necessario dar a batalha no outro lado da corrente.

Era escabroso, ainda que tentador.

Passámos todo o dia em frente do inimigo, fazendo conjecturas e
disparando alguns tiros.

Tinham-se-nos acabado os comestiveis, e a infanteria principalmente
soffria muito com essa falta. A agua tambem se nos tinha acabado, e
a sua falta era-nos mais sensivel que a dos viveres. Á nossa vista
existia uma grande quantidade d'agua, mas que infelizmente se achava em
poder do inimigo. Por fortuna os nossos soldados estavam habituados a
soffrer toda a sorte de privações, e por isso uma só queixa sahia dos
seus labios--era a demora em começar o combate.

Ó italianos, italianos, no dia em que sejaes unidos e sobrios, no
dia em que possaes soffrer todas as privações como os habitantes do
continente americano, o estrangeiro, estae certo, não escravisará a
vossa patria, nem enxovalhará os vossos lares. N'esse dia a Italia
terá retomado o seu logar não só no meio; mas á frente das nações do
universo.

Durante a noite o velho general Georgio tinha desapparecido, e ao raiar
da aurora foi em vão que o procurámos; só ás dez horas, quando se
dissipou o forte nevoeiro, foi que o avistámos nas posições de Taquari.

Pouco tempo depois fomos avisados de que a sua cavallaria atravessava
o rio. Os imperiaes estavam pois em completa retirada, era necessario
atacal-os e o nosso general não hesitou.

A cavallaria inimiga havia atravessado o rio, protegida por alguns dos
navios imperiaes, mas a infanteria tinha ficado na margem esquerda,
protegida por esses mesmos navios e pela floresta, sendo por isso a
sua posição a mais vantajosa possivel. A nossa segunda brigada de
infanteria, composta do terceiro e vigessimo batalhão, era a destinada
a começar o combate, effectuando-o com a sua costumada bravura. Mas
o inimigo era tão superior em numero que estes bravos, depois de
terem praticado prodigios de valor, foram obrigados a retirarem-se,
sustentados pela segunda brigada e primeiro batalhão de artilharia--sem
canhões--e de marinha. O combate foi terrivel, especialmente na
floresta onde o estrondo da fuzilaria e arvores despedaçadas, no meio
d'um espesso fumo, parecia o d'uma infernal tempestade.

De cada lado não contámos menos de quinhentos mortos e feridos. Os
cadaveres dos nossos valentes republicanos foram até encontrados
na ribanceira do rio, para onde elles tinham arrojado o inimigo.
Infelizmente estas perdas foram sem resultado relativamente á sua
importancia, porque logo que começou a retirada da segunda brigada a
batalha finalisou.

Tendo chegado a noite o inimigo pôde tranquillamente acabar de passar o
rio.

No meio das brilhantes qualidades, das quaes julgo ter já fallado,
citarei alguns dos deffeitos do general Bento Gonçalves: o mais
deploravel d'entre elles era uma certa hesitação, razão provavel dos
resultados funestos das suas operações. Teria sido melhor que em logar
de lançar esses quinhentos homens tão inferiores em numero aos que
elles atacavam, tivessem enviado não só toda a infanteria, mas tambem
a sua cavallaria, a pé, visto que a difficuldade do terreno não lhe
permittia combater a cavallo: uma tal manobra teria certamente dado em
resultado uma esplendida victoria, e fazendo perder pé ao inimigo nós
conseguiriamos lançal-o no rio; mas infelizmente o general teve receios
de aventurar toda a sua infantaria, a unica que elle teve, e que teve a
republica.

Em todo o caso o resultado foi para nós pessimo, porque não sabiamos
como reparar as faltas que havia soffrido a infanteria, arma em que o
inimigo nos era mui superior, e se achava todos os dias recebendo novos
reforços.

O inimigo ficou na margem direita de Taquari, e por isso senhor de todo
o campo. Nós tomámos então o caminho de _Mala-Casa_.

Todas estas falsas manobras peioraram a situação da republica. Voltámos
a S. Leopoldo e a Settembrina e depois ao nosso antigo acampamento de
_Mala-Casa_, que foi abandonado em alguns dias pelo da _Bella-Vista_.

Uma operação concebida n'este tempo pelo general, teria podido pôr-nos
em excellente posição, se a fortuna tivesse, como devia, secundado os
esforços d'este homem tão superior e tão desgraçado.




                                 XXXII

                      ASSALTO A S. JOSÉ DO NORTE


O inimigo, para poder fazer as suas correrias pelos campos, havia
sido obrigado a desguarnecer de infanteria as suas praças fortes.
Principalmente S. José do Norte tinha um pequeno numero de soldados.

Esta praça, situada na margem septentrional da embocadura da lagôa dos
Patos, era uma das chaves da provincia, não só commercialmente, mas
politicamente; a sua posse teria mudado completamente a nossa posição,
que n'esta occasião era bem aterradora; a sua tomada tornava-se, pois,
mais que util, era necessaria. A cidade encerrava objectos de toda
a qualidade, indispensaveis para o vestuario dos soldados, que do
nosso lado estavam no mais deploravel estado. Não só por esta razão,
mas tambem por dominar o unico porto da provincia, S. José do Norte,
merecia que fizessemos todos os esforços para nos apoderarmos d'ella,
mas tambem porque só d'este lado se encontrava a _atalaia_, isto é, o
mastro dos signaes dos navios, que servia para lhe indicar a profundura
das aguas na embocadura.

N'esta expedição succedeu infelizmente o mesmo que tinha acontecido em
Taquari. Preparada com admiravel sciencia e profundo segredo, perdeu-se
todo o trabalho por se ter hesitado em dar o ultimo golpe.

Uma marcha forçada de oito dias, a vinte e cinco milhas por dia, nos
conduziu defronte dos muros da praça.

Era uma d'essas noites de inverno, durante as quaes um abrigo e um
bom fogo são um beneficio da Providencia, e os nossos pobres soldados
da liberdade, esfaimados, vestidos de pedaços, tolhidos pelo frio e
gelados pela chuva d'uma horrivel tempestade, avançavam silenciosos
contra os fortes e trincheiras guarnecidas de soldados.

A pouca distancia das muralhas os cavallos dos chefes foram confiados á
guarda d'um esquadrão de cavallaria commandado pelo coronel Amaral, e
todos nos preparámos para o combate.

O _quem vive_ da sentinella foi o signal do assalto, e a resistencia
foi pequena e de pouca duração sobre as muralhas. Á hora e meia
da manhã démos o assalto, e as duas horas estavamos senhores das
trincheiras e de tres ou quatro fortes que as guarneciam, e que foram
tomados á bayoneta.

Senhores das trincheiras e dos fortes, tendo entrado na cidade parecia
impossivel que ella nos escapasse. Entretanto ainda esta vez o que
parecia impossivel nos estava reservado.--Uma vez dentro dos muros, uma
vez nas ruas de S. José, os nossos soldados julgaram que tudo estava
acabado, e a maior parte se dispersou, arrastada pelo appetite da
pilhagem. Durante este tempo os imperiaes voltando a si da sua surpreza
reuniram-se n'um bairro que se achava fortificado. Ahi os fomos atacar,
mas repelliram-nos. Os chefes procuravam por todos os lados os soldados
para continuar no ataque, mas era inutil, porque se se encontravam
alguns, eram carregados dos despojos, ou bebados, ou tendo quebrado os
fuzis á força de despedaçar as portas das casas.

O inimigo do seu lado não perdia o tempo: muitos navios de guerra que
se achavam no porto tomaram posição, varrendo com o fogo dos seus
canhões as ruas onde nos achavamos. Pediu-se soccorro a Rio Grande do
Sul, cidade situada na margem opposta da embocadura dos Patos, emquanto
um unico forte que haviamos desprezado servia de refugio ao inimigo.
O primeiro d'estes fortes, o do imperador, do qual a tomada nos tinha
custado um glorioso e mortifero assalto, foi destruido por uma explosão
terrivel de polvora, que nos matou bom numero de soldados.--Emfim
o mais glorioso dos triumphos estava mudado, ao meio dia, na mais
vergonhosa retirada, e os verdadeiros amigos da liberdade choravam de
desesperação.

A nossa perda, comparativamente á nossa situação, foi enorme.

Desde este momento a nossa infanteria não foi senão um esqueleto;
emquanto á pouca cavallaria que tinha vindo na expedição serviu para
proteger a retirada.

A divisão entrou nos seus quarteis da Bella-Vista, e eu fiquei em S.
Simão com a marinha.

Todos os meus soldados estavam reduzidos a quarenta homens, contando
tambem os officiaes.




                                XXXIII

                                ANNITA


O motivo da minha partida para S. Simão teve por fim, o mandar fazer
algumas d'essas canôas, construidas d'um só tronco d'arvore, com a
ajuda das quaes eu queria abrir communicações com a outra parte do
lago. Mas durante os mezes que eu ahi fiquei, as arvores promettidas
não chegaram, e o nosso projecto por consequencia não se pôde realisar.
Como eu tinha um grande horror pela ociosidade, não podendo construir
barcos, dediquei-me a ensinar cavallos. Em S. Simão havia uma grande
quantidade de poltros que me serviram para fazer cavalleiros dos meus
marinheiros.

S. Simão era uma bella e espaçosa herdade, que se achava então
abandonada. Pertencia ao conde de S. Simão, antigamente exilado, e de
quem os herdeiros estavam tambem exilados como inimigos da republica.
Eu não sei se elle era ainda parente do famoso conde de S. Simão,
fundador d'essa religião de que os adeptos me tinham iniciado na
paternidade universal; mas n'esta occasião, como a familia de S. Simão
era considerada por nós como inimiga, tratámos a sua herdade como uma
conquista; isto é, apoderámo-nos das casas para ahi habitarmos, e dos
animaes domesticos que ahi havia para fazermos o nosso sustento.

Os nossos unicos divertimentos eram ensinar os nossos poltros, ou, para
melhor dizer, os poltros dos S. Simonnianos.

Foi n'esta occasião que a minha chara Annita deu á luz o primeiro
filho. Em logar de lhe dar o nome d'um santo, dei-lhe o nome d'um
martyr.

Chamou-se Menoti.

Nasceu a 16 de setembro de 1840, exactamente no mesmo dia em que fazia
nove mezes que tinha tido logar o combate de Santa Victoria. A sua
apparição n'este mundo sem accidente, era um verdadeiro milagre depois
das privações e dos perigos soffridos por sua mãe. Essas privações e
esses soffrimentos de que eu ainda não fallei, afim de não interromper
a minha narração, devem aqui achar logar, e é do meu dever fazer
conhecer se não ao mundo, ao menos a alguns amigos que lerem este
jornal a admiravel creatura que perdi.[8]

  [8] É escusado repetir que estas Memorias tinham sido escriptas
  por Garibaldi unicamente para serem lidas por alguns amigos.

Annita, como sempre, tinha querido seguir-me e havia-me acompanhado na
campanha que acabavamos de fazer, e que acabo de contar.

O leitor deve lembrar-se que reunidos aos serraminnos, commandados pelo
coronel Aranha, nós batemos em Santa Victoria o brigadeiro Cunha, e de
tal modo que a divisão inimiga foi completamente destruida. Durante o
combate Annita, a cavallo no meio do fogo, era espectadora da victoria
e derrota dos imperiaes. Foi ella n'esse dia o anjo providencial dos
nossos feridos, porque não tendo nós nem cirurgião nem ambulancia, eram
curados, sabe Deus como, por nós mesmos. Esta victoria submetteu de
novo, pelo menos momentaneamente, as tres provincias, Lages, Vaccaria
e de Cima da Serra á authoridade da republica, e já contei como no fim
d'alguns dias entrámos triumphantes em Lages. O exito do combate de
Coritibani longe esteve de ser egual.

Já disse a maneira por que, apesar da bravura de Teixeira, a nossa
cavallaria foi rota, e como com os meus sessenta e tres infantes me vi
cercado por mais de quinhentos homens de cavallaria inimiga. Annita
devia n'este dia assistir ás mais terriveis peripecias da guerra. A
muito custo submettendo-se ao papel de simples espectadora do combate,
Annita apressava a marcha das munições receiosa de que os cartuxos
faltassem aos combatentes: com effeito o fogo que nos viamos obrigados
a fazer era tão violento que dava margem a suppor-se, com toda a
razão, que se as nossas munições não fossem renovadas bem depressa,
não teriamos um unico cartuxo; com este fito aproximava-se do logar
onde o combate era mais renhido, quando um esquadrão de vinte cavallos
inimigos perseguindo alguns dos nossos que fugiam, cairam de improviso
sobre os soldados que conduziam a bagagem.

Excellente cavalleira, e montando um admiravel cavallo, bem poderia
Annita ter fugido; mas dentro d'esse peito de mulher batia o
coração d'um heroe: em logar de fugir animava os nossos soldados a
defenderem-se, e n'um momento se viu cercada pelos imperiaes.

Annita enterrou as esporas no ventre do cavallo, e d'um salto passou
pelo meio do inimigo, não tendo recebido mais do que uma unica balla
que lhe atravessou o chapeo e levou parte dos cabellos, sem lhe
tocar no craneo. Talvez ella podesse fugir se o cavallo não caisse
ferido mortalmente por outra balla, e sendo obrigada a render-se foi
apresentada ao coronel inimigo. Sublime de coragem no perigo, Annita
maior vulto tomava ainda, se é possivel, na adversidade; de sorte que
na presença d'esse estado maior maravilhado do seu arrojo, mas que
não teve o bom gosto de occultar diante de uma mulher o orgulho da
victoria. Annita repelliu com uma rude e desdenhosa altivez algumas
palavras que lhe fizeram antever um tal ou qual despreso pelos
republicanos, e tão vigorosamente combateu com a palavra como já o
fizera com as armas. Annita julgava que eu tinha morrido. N'esta
persuasão pediu e obteve licença de ir ao campo de batalha procurar o
meu corpo no meio dos cadaveres. Qual a ventesma infernal passeando
sobre campina ensanguentada, Annita errou só e por muito tempo
procurando aquelle que ella receiava de encontrar, voltando os mortos
que tinham caido de rosto para a terra, e nos quaes pelo fato ou pela
altura ella imaginava terem alguma similhança comigo.

Foram inuteis as suas pesquisas, era a mim pelo contrario que sorte
reservava a dôr suprema de banhar com as minhas lagrimas suas faces
gelidas, e quando esse momento de angustia chegou impossivel me foi de
lançar um punhado de terra, uma flor, ao menos sobre a cova onde jazia
a mãe de meus filhos.

Desde que Annita esteve segura de que eu existia, não teve senão um
pensamento, o de fugir, e a occasião não tardou a apresentar-se-lhe.
Aproveitando-se do delirio do inimigo victorioso, passou para uma
casa perto d'aquella onde a tinham prisioneira, e ahi, sem ser
reconhecida, uma mulher a recebeu e protegeu. O meu capote, que eu
havia abandonado para ter os movimentos mais livres, e que tinha caido
em poder de um soldado inimigo, foi por ella trocado pelo seu, que era
de grande valor. Quando chegou a noute Annita lançou-se na floresta
e desappareceu. Era necessario possuir um coração de leão para assim
se arriscar. Só quem já viu as immensas florestas que cobrem os cimos
de Espinasso, com os seus pinheiros seculares que parecem destinados
a sustentar o ceo, e que são as columnas d'esse esplendido templo da
natureza, as gigantescas cannas que povoam os intervallos e que estão
cheias de animaes ferozes e de reptis de que a mordedura é venenosa,
poderá fazer uma idea dos perigos que ella correu, e das difficuldades
que teve a vencer. Felizmente Annita ignorava o que era medo. De
Caritibani a Lages são vinte legoas. Como ella atravessou esses bosques
impenetraveis, só, e sem alimentos, só Deus o sabe.

Os poucos habitantes d'esta parte da provincia que ella tinha a
atravessar eram hostis aos republicanos, e logo que souberam da
nossa derrota armaram-se e fizeram emboscadas sobre muitos pontos, e
principalmente nas _picadas_ que os fugitivos tinham a atravessar de
Caritibani ás Lages.

Nos _cabecaes_, isto é, nos sitios quasi impraticaveis destes atalhos,
teve logar uma horrivel carnagem nos nossos desgraçados companheiros.
Annita atravessou de noite estes sitios perigosos, e ou fosse a sua boa
estrella ou a admiravel resolução com que os atravessou, o seu aspecto
fez sempre fugir os assassinos, que fugiam, diziam elles, perseguidos
por um ser mysterioso!

Na realidade era estranho ver esta valente mulher, montada n'um ardente
cavallo, pedido e obtido n'uma casa onde havia recebido a hospitalidade
durante uma noite de tempestade, galopando por cima dos rochedos á
claridade dos relampagos. Quatro cavalleiros collocados na passagem
do rio Canoas, fugiram á vista d'esta visão, escondendo-se atraz
das moitas que guarnecem o rio. Durante este tempo Annita chegara á
margem do rio, tornado mui tempestuoso por causa das muitas cheias, e
atravessou-o, não como o tinha feito dias antes, n'um excellente barco,
mas sim a váu, animando com a voz o seu magnifico cavallo.

As ondas precipitavam-se furiosas, não n'um estreito espaço, mas n'uma
extensão de quinhentos passos, e apesar d'isso Annita chegou sãa e
salva á outra margem.

Uma chavena de café foi o unico alimento que a intrepida viajanta tomou
durante os quatro dias que gastou em alcançar na Vaccaria a tropa do
coronel Aranha.

Foi ahi que nos encontramos, Annita e eu, depois de uma separação de
oito dias e de nos julgarmos mortos.

Que alegria não foi a nossa! Maior foi ainda a que senti no dia em que
Annita, na peninsula que fecha a lagoa dos Patos do lado do Atlantico,
deu á luz n'uma casa que nos dava hospitalidade o meu querido Menotti,
que veiu ao mundo com uma cicatriz na cabeça procedida pela queda do
cavallo que tinha dado sua mãe.

Renovo aqui mais uma vez os meus agradecimentos ás excellentes pessoas
que nos deram esta hospitalidade, assegurando-lhe um reconhecimento
eterno. No campo onde nos faltavam todas as cousas mais necessarias,
e onde eu não lhe teria podido dar um unico lenço, Annita não teria
podido triumphar n'este momento supremo onde a mulher tem tanta
necessidade de forças e cuidados.

Decidi-me então a fazer uma viagem a Settembrina para ahi comprar
muitas cousas de maior urgencia que faltavam aos meus entes queridos.
Tinha ali bons amigos, e entre elles um excellente homem chamado
Blingini. Comecei então a minha viagem atravez os campos innundados,
onde eu tinha a agua até ao ventre do cavallo; passei por meio d'um
campo antigamente cultivado chamado _Rocha velha_, onde encontrei o
capitão de lanceiros Maximo, que me recebeu perfeitamente. Acceitei a
sua hospitalidade durante dois dias, por causa do pessimo tempo não me
deixar continuar a jornada.

No fim d'elles quiz partir, apesar de todos os esforços que fez o bom
capitão para me conservar na sua companhia.

Mas o fim para que tinha partido era para mim mui sagrado para que me
demorasse mais, e não obstante as observações d'este bom amigo, puz-me
a caminho por essas planicies que pareciam um vasto lago. Na distancia
de algumas milhas, ouvi do lado que acabava de deixar o estrondo da
fuzilaria, concebi então algumas suspeitas cheias de angustias, mas não
podia voltar atraz.

Cheguei a Settembrina onde comprei os objectos de que tinha
necessidade, e sempre inquieto por essa fuzilaria que tinha ouvido,
puz-me logo a caminho para São Simão. Descançamos em Rocha Velha, onde
soube a causa d'esse estrondo que tinha ouvido e o triste acontecimento
que tinha tido logar no mesmo dia da minha partida.

Morinque--o mesmo que me havia surprehendido em Camacua e que eu e os
meus quatorze homens tinhamos obrigado a fugir com um braço quebrado,
tinha surprehendido o capitão Maximo, todos os seus soldados feitos
prisioneiros, e a maior parte das seus cavallos tambem tomados, e os
mais mortos.

Morinque havia effectuado esta surpreza com alguns navios de guerra e
infanteria. Embarcou depois a infanteria, e dirigiu-se com a cavallaria
para o Rio Grande do Norte, espantando pelo caminho todas as pequenas
guerrilhas republicanas, que julgando-se em segurança se haviam
espalhado pelo territorio; entre elles achavam-se os meus marinheiros
que foram obrigados a refugiar-se na floresta.

O meu primeiro grito foi como se deve julgar: «Annita! onde está
Annita?»

Annita doze dias depois de ter tido o seu feliz successo, tinha sido
obrigada a montar a cavallo, e meio nua, com o seu pobre filho nos
braços, tinha sido obrigada a refugiar-se na floresta.

Não encontrei pois no _rancho_ nem Annita, nem os nossos hospedeiros,
mas alcancei-os na ourela d'um bosque onde elles se conservavam não
sabendo onde se achava o inimigo, nem se ainda tinham alguma cousa a
receiar d'elles.

Voltamos a São Simão, e ahi nos demoramos algum tempo, depois mudamos
o nosso acampamento, estabelecendo-nos na margem esquerda do Capivari,
isto é, no mesmo sitio onde um anno antes tinhamos transportado
os nossos lanchões em carros para a expedição de Santa Catharina,
expedição que tão mau exito teve.

N'essa occasião tinha sentido bastantes esperanças que infelizmente
haviam desapparecido.

O Capivari é formado de differentes riachos que tem a sua nascente nos
lagos numerosos que guarnecem a parte septentrional da provincia do Rio
Grande, sobre as costas do mar e sobre a vertente oriental da cadea de
Espinasso. Toma este nome da _capinara_, especie de canniços muito
communs na America meridional e que nas Colonias se chamam _capineios_.

De Capivari e de Sangrador d'Abreu canal que serve de communicação
entre um charco e um lago onde tinhamos reunidas com muito trabalho
algumas canôas, fizemos algumas viagens á costa occidental do lago,
estabelecendo communicações entre as duas margens e transportando os
passageiros.




                                 XXXIV

                     LEVANTA-SE O CERCO.--ROSSETTI


Comtudo a situação do exercito republicano peiorava de dia para dia;
as suas necessidades augmentavam e os seus recursos diminuiam. Os dois
combates de Taquari e S. José do Norte tinham dizimado a infanteria que
apezar de ser pouco numerosa era um poderoso recurso para as operações
de cerco. As grandes necessidades animavam as deserções, as populações
como succede n'estas guerras mui prolongadas cançavam, e foram atacadas
de uma suprema indifferença, começando nós então a conhecer que estava
proximo o momento de tudo se acabar.

N'este estado de cousas os imperiaes fizeram propostas que, ainda que
vantajosas para os republicanos foram por estes recusadas. Esta recusa
augmentou o descontentamento dos mais desgraçados, e por conseguinte da
parte mais fatigada do exercito e do povo, sendo decidido que o cerco
seria abandonado e que todos se retirariam.

A divisão Canavarro de que faziam parte os marinheiros foi designada
para começar o movimento e abrir as passagens da serra, occupadas pelo
general Labattue, francez ao serviço do imperador. Bento Gonçalves com
o resto do exercito formaria a retaguarda.

A guarnição republicana de Settembrina devia seguir-nos, mas não pôde
executar este movimento, porque surprehendida pelo famoso Morinque a
cidade foi tomada.

Foi ahi que morreu o meu caro Rossetti.

Tendo caido do cavallo, depois de ter praticado prodigios de valor,
ferido perigosamente, e intimado para se render, preferiu antes que o
matassem do que entregar a sua espada.

Ainda uma outra ferida para o meu coração. Já fallei muitas vezes de
Rossetti, sabe-se pois como o amava, seja-me pois permittido dizer
á Italia o que já tenho dito tantas vezes: Oh! Italia, minha mãe,
acabamos de perder, eu um dos meus irmãos mais caros, e tu um dos teus
filhos mais generosos.

Era natural de Genova. Havia sido, por paes que conheciam pouco o
seu caracter, destinado á vida ecclesiastica, quando era um dos mais
ardentes patriotas italianos que tenho conhecido. Inclinado á vida
aventureira e não podendo respirar na Italia, partiu para o Rio de
Janeiro onde foi negociante e corretor; mas não tendo Rossetti nascido
negociante, era uma planta exotica dando-se mal na terra do agio e
calculo, não porque elle não fosse dotado de uma intelligencia fina e
apta a enriquecer-se de todos os conhecimentos, mas porque Rossetti
era o mais italiano de todos os italianos, isto é, o mais generoso e
prodigo dos homens, e com taes _vicios_ não se faz fortuna, mas antes
se caminha a grandes passos para a ruina.

Foi o que aconteceu com Rossetti.

Bom para com todos, a sua casa achava-se franca para toda a gente,
e especialmente para os italianos desgraçados. Não esperava que os
proscriptos o fossem procurar, era elle que os ia encontrar, esgotando
assim em pouco tempo os seus recursos. Bem desgraçado, esse coração
do anjo não podia ver soffrer um italiano. Se o não podia soccorrer
immediatamente, fazia-o esperar na sua pobre cabana, e corria as
ruas da cidade, e não entrava em sua casa senão quando trazia algum
soccorro para aquelle ou aquelles que o esperavam. É verdade que a sua
bondade, a sua franqueza e a sua lealdade o tinham tornado estimado de
todos, e por isso quando se achava n'estes piedosos embaraços, todos o
coadjuvavam com prazer.

A batalha de Tarifa teve logar, e os republicanos foram batidos pelos
imperiaes; Bento Gonçalves e os principaes chefes feitos prisioneiros,
e conduzidos ao Rio de Janeiro. Entre elles achava-se o nosso capitão
Zambecarri, com quem travamos relações, segundo já disse, nas prisões
de Santa Cruz. Fallou-se de nos fazermos corsarios, e desde esse
momento Rossetti e eu não tivemos um minuto de descanço em quanto
não nos lançamos no Occeano com a bandeira republicana. Rossetti
encarregou-se de tudo e alcançou o fim que pertendiamos.

Os leitores sabem o resto, porque desde esse momento não nos perdemos
de vista.

Infelizmente não ha um canto da terra onde não descansem os ossos de um
italiano generoso, devendo por isso a Italia cobrir-se de luto e não
encher-se de gloria. Pobre Italia, tu sentirás verdadeiramente a sua
falta no dia em que tentares arrancar o teu cadaver aos corvos que o
devoram.




                                 XXXV

                          A PICADA DAS ANTAS


Esta retirada emprehendida na estação invernosa, por um paiz montanhoso
e debaixo de uma chuva incessante foi a mais terrivel e mais desastrosa
que tenho visto.

Conduziamos por precaução algumas vaccas, sabendo perfeitamente que no
caminho que tinhamos a atravessar não encontrariamos comestiveis alguns.

Retirando-nos, seguiamos a divisão do general Labattue, mas
infelizmente sem a podermos alcançar. Só os selvagens manifestavam
as suas sympathias por nós, atacando-lhe a guarda avançada. Tivemos
occasião de vêr de perto esses homens da natureza que não nos foram
hostis.

Annita durante esta retirada de tres mezes soffreu toda a casta de
privações e incommodos com um stoicismo e uma coragem admiravel.

É necessario ter algum conhecimento das florestas d'esta parte do
Brazil para fazer idéa das privações soffridas por uma porção de homens
sem meios de transporte, e tendo unicamente por recurso o _laço_, arma
mui util nas planicies cobertas de animaes, mas perfeitamente inutil
n'essas expessas florestas abundantes em tigres e leões.

Para a nossa desgraça ser ainda maior, os rios muito proximos uns dos
outros n'estas florestas virgens engrossavam cada vez mais. A horrivel
chuva que nos perseguia não cessava de cair, acontecendo muitas vezes
que uma parte dos nossos soldados se achavam entre duas correntes de
agua e ahi ficavam privados de todo o alimento, morrendo muitos de
fome, e principalmente as mulheres e creanças que não podiam supportar
tanto as privações. Era uma carnagem mais horrivel do que a de uma
sanguinolenta batalha.

A nossa pobre infanteria principalmente soffria muito mais, porque não
tinha como a cavallaria o recurso de matar os cavallos. Poucas mulheres
e menos creanças sairam vivas da floresta. As poucas que escaparam
foram salvas pelos cavalleiros que tendo a felicidade de conservar os
cavallos, tiveram dó d'aquelles pequenos entes, abandonados por suas
mães mortas de fome, frio e fadiga.

Annita tremia com a idéa de perder o nosso Menoti, que foi salvo
unicamente por milagre. Nos sitios mais perigosos, e na passagem dos
rios, conduzia o nosso pobre filho, de tres annos de edade, suspenso
ao meu pescoço por um lenço, podendo aquecel-o d'este modo com o meu
alento. De doze mulas e cavallos com que tinha entrado na floresta, e
que eram destinadas ao meu serviço, não tinha podido salvar mais que
duas mulas e dois cavallos, as demais tinham morrido de fome ou de
fadiga. Para completar a nossa desgraça, os guias tinham-se perdido no
caminho, o que foi a causa principal dos nossos sofrimentos na temivel
floresta das Antas.

Quanto mais andavamos, menos viamos chegar o fim d'esta picada maldita.
Fiquei muito longe dos meus companheiros, com duas mulas horrivelmente
fatigadas, e que eu esperava salvar, fazendo-as caminhar mui devagar e
sustentando-as com folhas de taquaras a que Taquari deve o seu nome.
Durante este tempo enviei Annita adiante com um criado e meu filho,
afim de que elle procurasse o fim d'esta interminavel floresta e algum
alimento.

Os dois cavallos que eu havia deixado a Annita e que ella montava
simultaneamente, foi quem nos salvaram. Ella achou o fim da floresta e
ahi encontrou um piquete dos meus bravos soldados assentados a um bello
fogo, o que não era commum pelo tempo que fazia.

Os meus companheiros que por felicidade tinham conservado alguns
vestidos de lã, embrulharam n'elles a creança, aquecendo-a e
chamando-a por este modo á vida, quando já a pobre mãe começava a
perder todas as esperanças. Mas ainda não é tudo: estes excellentes
rapazes começaram então a procurar com uma grande sollicitudde alguns
alimentos, que elles não tinham procurado para si, mas que agora
procuravam por minha causa.

O que d'entre todos prestou a minha esposa e filho os primeiros e mais
efficazes soccorros foi Mangio: que o seu nome seja abençoado.

Tinha tido grande difficuldade em salvar os meus dois cavallos, e por
fim vi-me na necessidade de abandonar os dois pobres animaes esfalfados
e aguados, sendo obrigado, apezar do estado miseravel em que me achava,
a atravessar o resto da floresta a pé.

No mesmo dia encontrei minha mulher e filho e soube então o que os meus
companheiros tinham feito por causa d'ella.

Nove dias depois da nossa entrada na floresta conseguimos sair! Poucos
officiaes tinham conseguido salvar os seus cavallos. O inimigo que nos
precedia, fugindo diante de nós, tinha deixado duas peças de artilheria
na picada; mas de que nos serviriam ellas? Faltavam todos os meios de
transporte e póde ser que ellas ainda estejam no mesmo logar em que as
vi.

As tempestades pareciam conscriptas na floresta. Apenas saimos d'ella e
nos aproximamos de Cima da Serra e de Vaccaria que o bom tempo começou,
caindo então em nosso poder alguns bois, que indemnisando-nos do nosso
longo jejum nos fizeram esquecer a fadiga, a fome e a chuva.

Ficámos na Vaccaria alguns dias, esperando pela divisão de Bento
Gonçalves, que se nos uniu em completa desordem, e com menos um terço
dos soldados.

O infatigavel Morinque sabendo da retirada d'esta divisão, tinha
começado a perseguil-a, sem descanço, atacando-a em todas as occasiões,
alliando-se para esta obra de destruição aos montanhezes, sempre hostis
aos republicanos. Todos estes successos deram tempo a Labattue a fazer
a sua retirada, e depois a sua juncção com o exercito imperial, tendo
apenas, apezar d'isto, algumas centenas de homens á sua disposição.
Então as mesmas dificuldades que haviam existido para nós, appareceram
para elles que tiveram além d'isso a vencer um obstaculo imprevisto, e
que eu noto por causa da sua raridade.

O general Labattue tendo que atravessar no seu caminho dois bosques
chamados de Mattos, ahi encontrou algumas d'essas tribus indigenas
chamadas de _Bragis_, que são as mais selvagens que se conhecem no
Brazil. Estas tribus sabendo da passagem dos imperiaes, armaram-lhe
tres ou quatro emboscadas, fazendo-lhe grande mal. Em quanto a nós não
nos causaram a mais pequena inquietação e ainda que houvesse no caminho
muitos d'esses alçapãos, que os indios collocam na passagem dos seus
inimigos, todos se achavam descobertos em logar de estarem disfarçados
com ramos de arvores, segundo o costume.

Durante a curta paragem que fizemos na ourela de um d'esses bosques
gigantescos, appareceu-nos uma mulher, que na sua mocidade tinha sido
roubada pelos selvagens, e que havia aproveitado a nossa presença para
fugir.

A pobre mulher achava-se n'um deploravel estado.

Como não tinhamos então nenhum inimigo a atacar ou de quem fugissemos,
continuamos a nossa marcha mui vagarosamente, porque não possuiamos
cavallos, e era necessario ir domando os poltros.

O corpo de lanceiros republicanos, tendo ficado completamente
desmontado, foi tambem obrigado a lançar mão dos poltros.

Era na verdade um explendido espectaculo, sempre novo, ainda que
repetido todos os dias, o vêr esses jovens e robustos negros que
mereciam o epitheto de domadores de cavallos que Virgilio dá a Pelops.
Era necessario vêl-os saltar sobre esses selvagens filhos do deserto,
que não conheciam nem freio, nem selim, agarrando-se ás crinas, e
correndo pelas planicies, até que cedendo ao homem o quadrupede se
confessava vencido. Mas a lucta era longa, e o animal não se rendia
senão depois de ter exgotado todas as forças em se desembaraçar do seu
tyranno, que do seu lado admiravel de agilidade e coragem, o apertava
entre os joelhos, como entre duas tenazes, não o deixando senão depois
de o ter domado.

Tres dias são sufficientes a um bom domador de cavallos para que o
animal o mais rebelde possa sofrer o freio.

Raramente, comtudo os poltros são bem domesticados pelos soldados,
sobretudo nas marchas onde os muitos afazeres impedem os domadores de
lhe prestar todos os cuidados necessarios.

Tendo passado os _Mattos_ atravessámos a provincia das Missões,
dirigindo-nos para Cruz Alta, capital d'esta pequena provincia, depois
de Cruz Alta dirigimo-nos a S. Gabriel onde se estabeleceu o quartel
general, e edificaram barracas para o acampamento do exercito.

Seis annos d'esta vida de aventuras e perigos não me tinham fatigado
em quanto era só, mas actualmente que tinha uma pequena familia, a
separação de todos os meus antigos conhecimentos, a ignorancia completa
em que me achava ha tantos annos sobre o estado da minha familia,
fizeram nascer o desejo de me aproximar de um ponto onde podesse
receber noticias de meu pae e minha mãe, porque se tinha por um momento
esquecido essas ternas affeições, ellas appareciam de novo. Tambem não
tinha noticias da minha outra mãe, da Italia!

Decidi então ir a Montevideo; ao menos temporariamente. Pedi pois
licença ao presidente, assim como para levar alguns bois, de que a
venda devia servir para me sustentar durante a jornada.




                                 XXXVI

                           CONDUCTOR DE BOIS


Eis-me pois _truppiere_, isto é conductor de bois.

Em consequencia n'uma estancia chamada o _Casal das Pedras_, com a
authorisação do ministro da fazenda, consegui reunir em vinte dias e
com grande difficuldade novecentos bois, quasi todos selvagens. Maiores
dificuldades me esperavam ainda durante o caminho onde encontrei
obstaculos quasi invenciveis. O maior de todos foi o Rio-Negro, onde
tive quasi perdido todo o meu capital. Da passagem do rio, da minha
inexperiencia no meu novo mister, e sobre tudo da rapina de certos
_capatazes_, mercenarios que tinha alugado como conductores, salvei
com muito custo quinhentos bois, que visto o mau sustento e o pessimo
caminho foram julgados incapazes de chegar ao seu destino.

Resolvi em consequencia matal-os e tirar-lhe as pelles, que vendi,
ficando-me livres de toda a despeza uns trezentos escudos que serviram
para fazer face ás primeiras necessidades da minha familia.

É aqui que devo mencionar um encontro que me deu um dos meus mais
charos e melhores amigos.

Aproximando-me de S. Gabriel, na retirada que acabavamos de fazer,
tinha ouvido fallar de um official italiano, dotado de grande valor e
intelligencia, que, exilado como carbonario se tinha batido em França
no dia 5 de junho de 1832, e depois no Porto durante o cerco que ahi
houve por causa da guerra entre os dois irmãos D. Pedro e D. Miguel,
vindo depois offerecer-se ao serviço das jovens republicas da America
do Sul.

Contavam-se a seu respeito cousas tão extraordinarias que muitas vezes
disse:

--Quando encontrar esse homem, ha-de ser meu amigo.

Chamava-se Anzani.

Chegando á America, tinha-se apresentado com uma carta de recommendação
a dois dos seus compatriotas MM.*** negociantes em S. Gabriel, que
tinham feito d'elle o seu _factotum_.

Anzani exercia todos os empregos, caixeiro, guarda-livros, homem de
confiança, emfim era o bom genio d'esta casa.

Como todos os homens fortes e corajosos, Anzani era socegado e dotado
de um excellente genio.

A casa commercial de que elle se tinha tornado director era uma d'essas
casas como se acham unicamente na America do Sul, isto é vendendo tudo
o que é possivel imaginar.

A villa onde residiam os nossos dois compatriotas era infelizmente
proxima da floresta que servia de refugio a essas tribus de indios de
que já dissemos algumas palavras no capitulo precedente.

Um dos chefes d'estes indios tinha-se tornado o terror d'esta pequena
villa, á qual vinha duas vezes por anno, com a sua tribu, roubando
quanto queria sem encontrar a menor resistencia.

Primeiramente veiu acompanhado por duzentos ou trezentos homens, depois
com cem, depois com cincoenta, segundo elle tinha visto augmentar o
terror estabelecendo o seu poder, e depois sentindo-se o senhor tinha
vindo só, e dava as suas ordens que eram obedecidas, como se por
detraz de si tivesse a sua tribu prompta a assassinar aquelle que lhe
recusasse obedecer.

Anzani tinha ouvido fallar d'este homem e tinha escutado tudo o que
se dizia a seu respeito, sem manifestar a sua opinião sobre a audacia
d'este chefe selvagem e sobre o terror que inspirava a sua ferocidade.

Este terror era tamanho que quando se ouvia dizer o _chefe dos Mattos_
todas as janellas se fechavam, e todas as portas se trancavam como se
na villa andassem alguns cães damnados.

O indio estava habituado a estes signaes de terror, que lisongeavam o
seu orgulho, escolhia a porta que queria vêr aberta, batia--abrindo-se
logo com a rapidez do relampago--e roubava tudo sem encontrar a menor
resistencia.

Havia justamente dois mezes que Anzani dirigia a casa de commercio nos
seus maiores como menores detalhes, quando se ouviu o grito terrivel:

--O chefe dos Mattos!

Como o costume, portas e janellas fecharam-se precipitadamente.

Anzani estava só em casa arranjando as contas da semana, e não julgando
que o estrondoso annuncio que acabavam de fazer valesse a pena de se
incommodar ficou assentado á sua mesa, com as janellas e portas abertas.

O indio parou espantado diante d'essa casa que no meio do terror geral
que causava a sua chegada, se conservava indifferente á sua apparição.

Entrou e viu encostado ao balcão um homem que socegadamente fazia as
suas contas. Parou diante d'elle de braços cruzados e olhando-o com
espanto.

Anzani levantou a cabeça.

Anzani era a politica em pessoa.

--Que quer meu amigo? perguntou elle ao indio.

--Como! que quero?! disse este.

--Sem duvida, disse Anzani, quando se entra n'um armazem é que se quer
comprar alguma cousa.

O indio começou a rir.

--Pelo que vejo não me conheces? perguntou ele a Anzani.

--Como queres que te conheça, se é a primeira vez que te vejo!

--Sou o chefe dos Mattos, replicou o indio, mostrando no seu cinto um
arsenal composto de quatro pistollas e um punhal.

--Então que queres?

--Beber.

--O que?

--Um copo de agua-ardente.

--Não ha nada mais facil; paga primeiro e depois tens a agua-ardente
que quizeres.

O indio começou a rir de novo.

Anzani franziu as sobrancelhas.

--Em logar de me responder, tornas de novo a rir. Não acho isso mui
politico. Previno-te, pois, que se isso succede outra vez ponho-te fóra
da porta.

Anzani tinha pronunciado estas palavras com tal firmeza, que outro
qualquer homem que não fosse o indio teria comprehendido com quem tinha
a tratar.

Talvez o selvagem houvesse comprehendido, mas não o deu a conhecer.

--Já te disse que me desses um copo de agua-ardente, repetiu elle
batendo com o punho no balcão.

--E eu já te disse que o pagasses primeiro, disse Anzani, quando não,
não a bebes.

O indio deitou um olhar colerico a Anzani, mas o olhar d'este encontrou
o seu,--o relampago havia encontrado o relampago.

Anzani dizia muitas vezes:

--A unica força que existe é a moral. Olhae fixa e obstinadamente o
homem que vos encarar, se elle abaixar os olhos, estaes senhor d'elle,
mas se pelo contrario sois vós que os abaixaes estaes perdido.

O olhar de Anzani tinha um irresistivel poder. Foi o indio que foi
vencido, e conhecendo a sua inferioridade, e furioso d'este poder
desconhecido, quiz ganhar animo bebendo.

--Está bem, disse elle, ahi tens meia piastra, da-me de beber.

--É obrigação minha servir quem me paga, disse tranquilamente Anzani.

E deu ao indio um copo de agua-ardente.

O indio bebeu.

--Outro, disse elle.

Anzani deu-lhe outro copo.

O indio bebeu-o como o primeiro.

--Ainda outro, disse elle.

Em quanto Anzani teve dinheiro suficiente para se pagar da despeza do
indio, não lhe fez nenhuma observação, mas quando o bebedor já não
tinha dinheiro para pagar, cessou de encher-lhe o copo.

--Então? perguntou o selvagem.

Anzani fez-lhe a sua conta.

--Depois? insistiu o selvagem.

--Depois?... Como não tem dinheiro, não bebe mais agua-ardente,
respondeu Anzani.

O indio tinha formado bem o seu calculo. Os cinco ou seis copos de
agua-ardente que havia bebido, tinham-lhe dado a coragem que havia
perdido com o olhar de Anzani.

--Agua-ardente, disse elle levando a mão a uma das pistollas,
agua-ardente, ou morres.

Anzani que já previa o final d'esta scena, estava preparado. Tinha
cinco pés e nove pollegadas, e era dotado de uma força e agilidade
pasmosa. Apoiou a mão no balcão e saltando para o outro lado deixou-se
cair sobre o indio, agarrando-lhe o punho direito.

O selvagem não poude aguentar o choque e caiu; Anzani não o largou e
poz-lhe o pé no peito.

Então agarrando com a mão esquerda a mão direita do indio, tornando-lhe
por isso inoffensiva a arma, Anzani tirou-lhe do cinto as pistollas
e punhal, que espalhou pelo armazem, e arrancando-lhe a pistolla da
mão, quebrou-lhe o cano na cabeça e na cara, e julgando que o selvagem
já se achava bem castigado foi empurrando-o aos pontapés até á porta
deitando-o no meio de um grande lamaçal.

O indio levantou-se com muita difficuldade e fugiu, mas em tal estado
que nunca mais tornou a apparecer em S. Gabriel.

Anzani havia feito debaixo do nome de Ferrari a guerra de Portugal.
Com este nome tinha-se conduzido admiravelmente, ganho a patente de
capitão e recebido duas graves feridas: uma na testa, outra no peito, e
tão graves que no fim de dezeseis annos morreu por causa d'ellas.

A ferida da cabeça era um golpe de sabre que lhe tinha aberto o craneo.

A do peito foi uma balla que lhe tinha ficado no pulmão, e de que mais
tarde lhe nasceu uma phtisica pulmonar.

Quando se lhe fallava dos prodigios de coragem que tinha praticado
debaixo do nome de Ferrari, sorria-se e dizia que elle e Ferrari eram
dois entes differentes.

Infelizmente não podia, ao mesmo tempo que attribuia os seus prodigios
de valor a um ente imaginario, trespassar-lhe as duas feridas.

Tal era o homem de quem me haviam fallado, e a quem eu desejava
conhecer e ter por amigo.

Em S. Gabriel soube que tinha ido tratar de alguns negocios a sessenta
milhas de distancia. Montei então a cavallo para o procurar.

No caminho, na margem de um pequeno rio, encontrei um homem, com o
peito nú lavando uma camisa--vi que era este o homem que procurava.

Dirigi-me a elle, estendi-lhe a mão e disse-lhe quem era.

Desde este momento fomos irmãos.

Já não estava na casa de commercio, e como eu havia entrado ao serviço
da republica do Rio Grande. Era commandante de infanteria da divisão de
João Antonio, um chefe republicano dos mais conhecidos. Como eu deixava
o serviço e dirigia-se aos _saltos_.

Depois de um dia passado juntos, demos os nossos _adresses_ respectivos
e combinámos que não emprehenderiamos movimento algum importante sem o
participarmos mutuamente.

Seja-me permittido narrar um facto que dá bem a conhecer a nossa
miseria e a nossa fraternidade.

Achava-me tão pobre como Anzani em camisas, em quanto que elle tinha
mais um par de calças.

Dormimos no mesmo quarto, mas Anzani partiu antes de romper o dia e sem
se despedir.

Quando accordei encontrei sobre o meu leito o melhor dos seus dois
pares de calças.

Conhecia apenas Anzani, mas era um d'esses homens que se apreciam á
primeira vista, e tanto que quando entrei ao serviço da republica de
Montevideo e fui encarregado de organisar a legião italiana, o meu
primeiro cuidado foi escrever-lhe convidando-o a vir acompanhar-me.

Veiu com effeito e desde esse dia não nos deixamos mais, até que elle
tocando na terra de Italia morreu entre os meus braços.




                                XXXVII

           PROFESSOR DE MATHEMATICA E CORRETOR DE COMMERCIO


Em Montevideo dirigi-me a casa de um dos meus amigos chamado Napoleão
Castellini. Ao seu excellente coração sou devedor de muito, para jámais
me esquecer, assim como a G. D. Cunes,--amigo de toda a minha vida,--e
aos irmãos Antoninho e Giovanni Risso.

Gastos os poucos escudos que me tinham produzido as minhas pelles de
bois, e para não ficar com minha mulher e filho ás sopas dos meus
amigos, emprehendi duas industrias que, devo confessal-o, chegavam
apenas para satisfazer as minhas necessidades.

A primeira era corretor de fazendas. A segunda era a de professor de
mathematica, na casa do estimavel Paulo Semidei.

Este modo de vida durou até á minha entrada na legião oriental.

Os negocios do Rio Grande começavam a estabelecer-se e a arranjar-se,
não tendo eu pois nada a esperar d'este lado. A republica oriental--é
assim que se chamava a republica de Montevideo--sabendo que me achava
livre não tardou em me offerecer uma occupação mais em harmonia com os
meus meios e com o meu caracter, do que a de professor de mathematica e
corretor.

Offereceram-me e acceitei o commando da corveta--_Constituição_.

A esquadra oriental achava-se debaixo das ordens do coronel Cosse, e a
de Buenos-Ayres ás ordens do general Brown.


           [Ilustração: _Lith. de Castro, Poço Novo N.º 33._
                            FRANCISCO 2.º]




                              MONTEVIDEO

Quando o viajante chega da Europa n'um d'esses navios, que os primeiros
habitantes do paiz tomavam por casas volantes, o que vê--logo que o
marinheiro de vigia grita: «Terra» são duas montanhas.

Uma que é a cathedral, e a outra ornada de um pharol, que é a montanha
do _Cerro_.

Á medida que o viajante se aproxima das torres da cathedral, de que
os ornatos de porcellana brilham ao sol, o viajante vê os _mirantes_
sem numero e de fórmas variadas que ornam todas as casas, depois essas
mesmas casas, encarnadas ou brancas, com os seus terraços, depois ao pé
do Cerro, as _salgadoras_, vastos edificios onde se salgam as carnes;
e emfim ao fundo da bacia, á borda do mar as encantadoras _quintas_,
delicia e orgulho dos habitantes onde elles vão passar todos os
domingos e dias de festa.

Então se deitaes a ancora, entre o Cerro e a cidade, dominada, por
qualquer ponto de vista que a olheis, pela sua gigantesca cathedral,
se a canôa vos leva para a praia, puchada por seis valentes remadores,
se de dia encontraes pelas estradas grupos de encantadoras mulheres
vestidas de amazonas, se de tarde atravez as janellas abertas, deitando
para a rua torrentes de luz e harmonia, ouvis os sons do piano e de
outros instrumentos, é que estaes em Montevideo, a vice-rainha d'esse
rio de prata, de que Buenos-Ayres pretende ser a rainha, e que se lança
no Occeano por uma embocadura de oitenta leguas.

Foi João Dias o que no principio de 1516 descobriu as praias da Prata.
A primeira cousa que o marinheiro de quarto avistou foi o Cerro, e
cheio de alegria exclamou em latim:

--_Montem video!_

Sendo este o nome que ficou á republica, de que vamos rapidamente
escrever a historia.

João Dias, já com bastante orgulho de haver no anno passado descoberto
o Rio de Janeiro, não gosou por muito tempo da sua gloria.

Tendo deixado na bahia dois dos seus navios, e havendo subido o rio
Prata com o terceiro, confiando nos signaes de amizade que lhe fizeram
os indios, caiu n'uma emboscada sendo morto, despadaçado e devorado na
margem do rio, que em memoria d'este triste acontecimento tem o nome de
_Solis_.

Estes indios anthropóphagos pertenciam á tribu dos Charruas que era
senhora do paiz, como na extremidade opposta do grande continente o
eram os Hures e os Sioux.

Os hespanhoes foram pois obrigados a edificar Montevideo no meio de
combates, que se renovavam todos os dias e todas as noites, contando
por isso Montevideo apenas cem annos, apezar de ter sido descoberto em
1516.

Pelo fim do ultimo seculo, appareceu um homem que promoveu aos
senhores primitivos da costa uma guerra de exterminação, em que foram
aniquilados.

Tres ultimos combates--em que collocaram entre si suas mulheres e
filhos, e caíam sem recuar um passo--viram desapparecer os seus ultimos
restos, e monumentos d'esta derrota suprema; o viajante póde ainda vêr
ao pé da montanha _Augua_ os ossos dos ultimos Charruas.

Este novo Mario era Jorge Pacheco, pae do general Pacheco e Obes de
quem, como já dissemos, tivemos todos estes promenores.

Mas os selvagens destruidos deixaram a Pacheco inimigos mais ferozes,
mais perigosos, e mais inexterminaveis que os indios, visto que
aquelles eram sustentados, não por uma crença religiosa, que todos
os dias ia enfraquecendo, mas, pelo contrario, por um interesse
material que ia augmentando sensivelmente. Estes inimigos eram os
contrabandistas do Brazil.

O systema prohibitivo era a base do commercio hespanhol. Havia pois
uma guerra encarniçada entre o exercito e os contrabandistas, que ou
pela estrategia ou pela força tentavam introduzir no territorio de
Montevideo as suas sedas e tabaco.

A lucta foi longa, encarniçada e mortal. D. Jorge Pacheco dotado de
uma força herculea, de um talhe gigantesco, e de uma grande finura,
tinha alcançado--pelo menos assim o julgava--não a aniquillar os
contrabandistas, como havia feito aos Charruas, mas a affastal-os da
cidade, quando repentinamente tornaram a apparecer mais atrevidos,
mais activos, e reunidos como nunca em roda de uma vontade unica, tão
poderosa, tão corajosa, e tão intelligente como podia ser a do general
Pacheco.

Pacheco mandou espiões por toda a parte a informarem-se do motivo
d'esta reapparição.

Todos voltaram pronunciando um unico nome:

--Artigas!

Quem era este Artigas?

Um mancebo de vinte a vinte e cinco annos, bravo como um velho
hespanhol, esperto como um Charrua, e agil como um _gaucho_: tinha tres
raças senão no sangue ao menos no espirito. Começou então uma lucta
admiravel de esperteza e força entre o general e o contrabandista, mas
um era moço e todos os dias a sua força augmentava, o outro não era
velho, mas estava já cançado.

Durante quatro ou cinco annos Pacheco perseguiu Artigas, batendo-o
por toda a parte por onde apparecia; mas Artigas derrotado não era
nem morto, nem feito prisioneiro, e no dia seguinte começava de novo
a lucta. Pacheco cansou primeiro e como um d'esses romanos da antiga
republica, que sacrificavam o seu orgulho ao bem do paiz, disse ao
governo que resignava os seus poderes com a condição que Artigas
seria nomeado general em seu logar, porque só Artigas podia acabar a
destruição dos contrabandistas.

O governo acceitou, e como esses bandidos romanos que se submettem ao
poder do papa e passeam venerados na cidade de que foram o terror,
Artigas fez a sua entrada triumphal em Montevideo, e começou a obra de
destruição para que havia sido chamado.

Estes factos tiveram logar cincoenta e oito ou sessenta annos antes
dos acontecimentos em que Garibaldi vae tomar parte, mas como nós
somos author dramatico e não podemos deixar de começar um drama por um
prologo, vamos dar a conhecer aos leitores, homens e terras que lhe são
bem desconhecidos.

Artigas tinha então vinte e sete ou vinte e oito annos, tendo na época
em que o general Pacheco me deu estes detalhes noventa e tres annos,
vivendo ignorado n'uma pequena quinta pertencente ao presidente do
Paraguay. Hoje provavelmente já tem morrido.

Era um mancebo bello e bravo, e que representava um dos tres poderes
que reinaram em Montevideo.

Jorge Pacheco era o typo do valor cavalheiresco do velho mundo, que
atravessou os mares com Colombo, Pizarro e Fernando Cortez. Artigas
era o homem do campo, e podia representar, o que chamavam o partido
nacional, collocado entre os portuguezes e hespanhoes, isto é entre os
estrangeiros que se tinham tornado portuguezes e hespanhoes, pela sua
habitação nas cidades onde tudo fazia lembrar os costumes portuguezes e
hespanhoes.

Ainda havia um terceiro typo e mesmo uma terceira potencia que foi o
flagello de todos e de que é necessario dizer duas palavras.

Este terceiro typo é o gaucho, a quem Garibaldi chama o centauro do
novo mundo.

Na França chamamos gaucho a tudo quanto vive n'estas vastas planicies,
mas commettemos um erro: o capitão Head da marinha ingleza, foi o
primeiro a pôr em moda esta mania de confundir o gaucho com o habitante
do campo, que na sua soberba repelle não só a similhança, mas até a
comparação.

O gaucho é o bohemio do novo mundo. Sem terras, sem casa, sem familia,
possue por toda a fortuna um casaco, um cavallo, uma faca e o laço.

A faca é a sua arma, o laço a sua industria.

A nomeação de Artigas foi recebida com satisfação por todos, excepto
pelos contrabandistas, e ainda se achava occupando este alto cargo
quando rebentou a revolução de 1810, revolução que tinha por fim, e que
obteve, destruir o dominio hespanhol no novo mundo.

Esta revolução começou em 1810 em Buenos-Ayres e acabou em Bolivia na
batalha de Ayacuncho em 1824.

O chefe das forças independentes era então o general Antonio José de
Soure, e tinha cinco mil homens ás suas ordens.

O general em chefe das tropas hespanholas era D. José de Laserna, o
ultimo vice-rei do Peru, e commandava onze mil homens.

Os patriotas não possuiam senão uma unica peça, eram um contra dois,
e achavam-se completamente desprovidos de munições, e de provisões de
boca. Não tinham remedio senão esperar, assim o fizeram, e quando foram
atacados ficaram vencedores.

Foi o general patriota Aleixo Cordova que começou o combate.
Commandava mil e quinhentos homens. Poz a bandeira na ponta da espada e
gritou:

--Ávante!

--A marche marche, ou no passo ordinario? perguntou um official.

--No passo da victoria, respondeu elle.

N'essa mesma tarde todo o exercito hespanhol tinha capitulado, e
achava-se prisioneiro d'aquelles que o tinham sido seus.

Artigas havia sido um dos primeiros a festejar a revolução. Tinha-se
posto á testa do movimento, e por sua vez offereceu a Pacheco o
commando, como annos antes elle o havia feito.

Esta troca ia-se talvez operar quando Pacheco foi surprehendido na Casa
branca, no Uruguay, por marinheiros hespanhoes, e ficou seu prisioneiro.

Artigas continuou a sua tarefa libertadora. Em pouco tempo expulsou os
hespanhoes do campo de que se havia tornado rei, reduzindo-os a serem
senhores unicamente de Montevideo, que podia apresentar uma séria
resistencia, visto ser a segunda cidade fortificada da America.

A primeira era S. João de Ulloa.

Em Montevideo achavam-se refugiados todos os partidarios dos
hespanhoes, protegidos por um exercito de quatro mil homens. Artigas
sustentado pela alliança de Buenos-Ayres começou o cerco da cidade, mas
um exercito portuguez veiu em auxilio dos hespanhoes e Artigas teve de
retirar-se. Em 1812 Montevideo soffreu novo cerco. O general Rondeau
commandava as forças de Buenos-Ayres e Artigas as dos patriotas, e
foram estes que de novo cercaram a cidade.

O cerco durou vinte e tres mezes, tendo logar no fim d'este tempo uma
capitulação que entregou a capital da futura republica oriental aos
sitiantes, commandados então pelo general Alvear.

Porque razão era então general em chefe Alvear e não Artigas? Vamos
dizel-o.

É que no fim de vinte mezes de cerco, depois de tres annos de contacto
entre os homens de Buenos-Ayres e os de Montevideo, as differenças de
habitos, de costumes, e direi mesmo de raças, que tinham sido causa
de simples desintelligencias, haviam-se tornado em motivos de odios
mortaes.

Artigas, como Achilles havia-se retirado desapparecendo pelos campos
tão seus conhecidos no tempo da sua mocidade em que exercia o mister de
contrabandista.

O general Alvear tinha-o substituido, sendo general em chefe dos
_Portenos_, na occasião em que Montevideo se entregou.

_Portenos_ é o nome que dão aos naturaes de Buenos-Ayres, e _Orientaes_
aos de Montevideo.

Tentaremos explicar as differenças que ha entre os _Portenos_ e os
_Orientaes_.

O habitante de Buenos-Ayres fixado no paiz ha trezentos annos na pessoa
de seus avós, perdeu desde o fim do primeiro seculo da sua existencia
na America, todas as tradicções da mãe patria, isto é da Hespanha.
Os habitantes de Buenos-Ayres são hoje tão americanos, como o eram
antigamente os indios que d'ali expulsaram.

O habitante de Montevideo, ao contrario, existindo apenas ha um seculo
no paiz,--sempre na pessoa de seus avós, bem entendido--não teve o
tempo de esquecer que é de raça hespanhola. Tem o sentimento da sua
nova nacionalidade, mas sem ter esquecido as tradicções da velha
Europa, em quanto que o de Buenos-Ayres, se affasta todos os dias da
Europa para entrar na barbaria.

O paiz não deixa de ter sua influencia, sobre este movimento retrogrado
de um lado, progressivo do outro.

A população de Buenos-Ayres, espalhada em areaes immensos, com
habitações muito affastadas umas das outras, em sitios completamente
desprovidos de agua, e de todos os objectos necessarios, e habitando
cabanas mal construidas, ganha um caracter sombrio, insociavel e
bulhento. As suas tendencias dirigem-se para os indios selvagens
das fronteiras, com os quaes elles negoceiam em todos os objectos
que trazem dos sitios onde a civilisação ainda não penetrou, e são
completamente desconhecidos aos europeus, dos quaes recebem em troca
agua-ardente e tabaco que levam para as grandes planicies dos pampas,
de que tomaram o nome, ou a quem póde ser deram o seu.

A população de Montevideo, pelo contrario, possue um bello paiz,
cortado por muitos rios. Não possue vastos bosques, não tem grandes
florestas, como a America do Norte, mas as margens dos seus rios são
ornadas de bellas e magestosas arvores. Possue além d'isso bellos
edificios, e a terra produz todo o necessario para o seu sustento. As
suas casas, quintas e herdades são proximas umas das outras, e o seu
caracter franco e hospitaleiro, é inclinado a essa civilisação de que a
aproximação do mar lhe conduz continuamente.

Para a população de Buenos-Ayres o typo da perfeição é o indio a
cavallo.

Para a de Montevideo é o europeo apertado na sua casaca, na sua gravata
e nas botas de polimento.

Os naturaes de Buenos-Ayres tem a pertenção de serem os primeiros da
America em elegancia. Teem mais imaginação que os de Montevideo, e os
primeiros poetas que a America conheceu, nasceram em Buenos-Ayres.
Varela e Lafinur. Domingos e Marmol são poetas portenos.

O habitante de Montevideo é menos poetico, mas mais socegado e mais
firme nas suas resoluções e nos seus projectos. Se o seu rival tem
a pertenção de ser o primeiro em elegancia, elle tem a de o ser
na coragem. Entre os seus poetas figuram de Hidalgo, de Berro, de
Figueira, e João Carlos Gomes.

As mulheres de Buenos-Ayres tambem teem a pretenção de serem as mais
bellas da America meridional desde Lemairé até ao Amazonas.

Póde ser que na realidade o rosto das mulheres de Montevideo seja menos
formoso que o das suas visinhas, mas as suas fórmas são maravilhosas.

Ha pois entre os dois paizes;

Rivalidade de coragem e elegancia, entre os homens;

Rivalidade de belleza e elegancia, entre as mulheres;

Rivalidade de talento entre os poetas, esses hermaphroditas da
sociedade, colericos como os homens, caprichosos como as mulheres e
simples muitas vezes como as creanças mais innocentes.

Havia pois, como se vê por tudo que acabamos de dizer, motivos
sufficientes para as relações serem interrompidas entre Montevideo e
Buenos-Ayres, entre Artigas e Alvear.

Não foi unicamente uma separação, que teve logar, mas sim uma guerra.

Todos os elementos de antipathia foram dirigidos contra os homens
de Buenos-Ayres pelo antigo chefe de contrabandistas. Pouco lhe
importavam então os meios, de que tinha a servir-se, com tanto que
alcançasse o seu fim que era expulsar do paiz os Portenos.

Foi então que Artigas reunindo todos os recursos que lhe offerecia o
paiz, se poz á testa d'esses bohemios da America que se chamam gauchos.

A guerra que fazia Artigas tinha alguma cousa de santa; assim nada
lhe podia resistir, nem o exercito de Buenos-Ayres, nem o partido
hespanhol, que sabia perfeitamente que a entrada de Artigas em
Montevideo, era a substituição da força brutal á intelligencia.

Os que tinham previsto esta volta á barbaria não se haviam enganado.
Pela primeira vez homens vagabundos, por civilisar, e sem organisação,
viam-se formando um exercito e com um general. Durante a dictadura de
Artigas teve logar um periodo que tem alguma analogia com o nosso de
1793. Montevideo viu o reinado do homem dos pés nús, dos _casoncillos_
fluctuantes, da _chiripa_ escosseza, do _puncho_ despedaçado, e com o
chapeu deitado sobre a orelha seguro pelo _barlipo_.

Então Montevideo foi testemunha de scenas inauditas grotescas, e
algumas vezes terriveis. Muitas vezes as primeiras classes da sociedade
foram reduzidas á impotencia, Artigas tendo de menos a crueldade e de
mais a coragem, tornou-se então o que mais tarde devia ser Rosas.

A dictadura de Artigas teve não obstante muitas cousas de brilhante e
nacional. Uma foi a lucta de Montevideo contra Buenos-Ayres, em que
Artigas derrotou sempre as forças d'este paiz e de que fez cessar a
influencia e a resistencia ao exercito portuguez que invadiu o paiz em
1815.

O pretexto d'esta invasão foi a desordem da administração de Artigas
e a necessidade de salvar os povos visinhos de desordens eguaes, que
podia fazer nascer entre elles o contagio do exemplo. Estas desordens
tinham no mesmo paiz, dobrado a opposição que fazia o partido da
civilisação. As classes elevadas sobre tudo desejavam do coração uma
victoria que substituisse o dominio portuguez a esse dominio nacional
que trazia a brutal tyrannia da força material. Comtudo não obstante
os ataques portenos e dos portuguezes, Artigas resistiu quatro annos,
dando tres batalhas, e vencido retirou-se para Entre rios, isto
é para o outro lado do Uruguay. Ahi, apezar de se achar fugitivo,
Artigas representava ainda, se não pelas suas forças, ao menos pelo
seu nome, um poder respeitavel, quando Ramiro seu tenente se revoltou,
contra elle, collocando-se á frente da terça parte das suas forças, e
derrotando-o de modo que lhe tirou toda a esperança de reconquistar a
sua posição perdida, obrigando-o a sair d'este paiz aonde como Anteo,
parecia ganhar novas forças todas as vezes que ahi tocava.

Foi então que, egual a uma d'essas trombas que se evaporam, depois
de ter deixado a desolação e as ruinas na sua passagem, Artigas
desappareceu retirando-se para o Paraguay, onde, como já dissemos, em
1848 na época em que Garibaldi defendia Montevideo, vivia ainda tendo
noventa e tres ou noventa e quatro annos, gosando de todas as suas
faculdades intellectuaes e de quasi todas as suas forças.

Artigas vencido não fez opposição ao dominio portuguez que se
estabeleceu no paiz, e o barão de Laguna francez de origem foi seu
representante em 1825. N'este anno Montevideo como todas as possessões
portuguezas da America foram cedidas ao Brazil.

Montevideo foi então occupado por um exercito de oito mil homens e tudo
parecia assegurar ao imperador a sua pacifica posse.

Foi então que um natural de Montevideo, proscripto, residente em
Buenos-Ayres, reuniu trinta e dois companheiros proscriptos como elle,
e decidiram que dariam a liberdade á patria ou que morreriam.

Este punhado de patriotas embarcou em duas canoas e desembarcou no
Grande Areal.

O chefe chamava-se João Antonio Lavalleja.

Lavalleja havia de antecipação tido relações com um proprietario do
paiz que devia no momento do seu desembarque, ter os cavallos promptos.
Assim logo que desembarcou enviou-lhe um mensageiro, que lhe trouxe
em resposta que tudo estava descoberto, que os cavallos haviam sido
roubados e que Lavalleja e os seus companheiros não tinham outro
partido a tomar senão embarcarem de novo e o mais depressa possivel,
devendo dirigir-se para Buenos-Ayres.

Mas Lavalleja respondeu que não partia, pois não podia, nem queria
recuar, e ordenando aos remadores de voltarem para Buenos-Ayres sem
elle, tomou posse, no dia 19 de abril, de Montevideo em nome da
liberdade.

No dia seguinte os trinta valentes que tinham apanhado alguns cavallos,
com o consentimento de seus donos, pozeram-se em marcha para a capital,
mas foram encontrados por um destacamento de cavalleiros, de que
quarenta eram brazileiros e cento e sessenta orientaes.

Eram commandados por um antigo irmão de armas de Lavalleja, o coronel
Jurien. Lavalleja podia evitar o combate, mas não o quiz e marchou
direito aos duzentos cavalleiros, e pediu uma entrevista ao coronel
antes de entrar em combate.

--Que quer e que vem aqui fazer? perguntou Jurien a Lavalleja.

--Venho libertar Montevideo do dominio estrangeiro, respondeu
Lavalleja, se tem as minhas idéas acompanhe-me, se não, entregue-me as
suas armas, ou prepare-se para o combate.

--Não comprehendo o que querem dizer essas palavras = _entregue-me as
suas armas_, respondeu o coronel, e espero que ninguem m'as ha-de
explicar.

--Então tome o commando dos seus soldados, e vamos vêr por quem é Deus.

--Veremos, disse Jurien.

E partiu a galope a unir-se aos seus soldados.

Mas no mesmo momento Lavalleja desenrolou a bandeira nacional, azul,
branca e encarnada e immediatamente os cento e sessenta orientaes
passaram para o seu lado.

Os quarenta brazileiros foram feitos prisioneiros.

A marcha de Lavalleja para Montevideo foi uma verdadeira marcha
triumphal, de que o resultado foi que a republica oriental, proclamada
pela vontade e enthusiasmo de um povo inteiro, tomou logar entre as
nações.




                                 ROSAS


Durante estes acontecimentos engrandecia-se um nome que mais tarde
devia ser o terror da federação argentina.

Pouco depois da revolução de 1810 um mancebo de quinze a dezaseis
annos saía de Buenos-Ayres, abandonando a cidade e dirigindo-se para o
campo. Ia muito perturbado e caminhava apressadamente.

Este mancebo chamava-se João Manoel Rosas.

Porque esta creança, este fugitivo abandonava a casa onde havia
nascido? Porque ia pedir um asylo aos habitantes dos montes? É porque
acabava de insultar sua mãe, como mais tarde devia insultar a sua
patria; ia perseguido pela maldição paterna.

Este successo, sem nenhuma importancia para os acontecimentos d'aquelle
paiz, esqueceu bem depressa no meio de factos mais serios que então
tiveram logar, e em quanto todos os antigos companheiros do fugitivo
se reuniam debaixo do estandarte da independencia para combater os
hespanhoes, Rosas, andava pelos _pampas_ entregando-se á vida dos
gauchos, adoptando o seu vestuario e costumes, tornando-se um dos
melhores cavalleiros e um dos homens mais habeis d'essas immensas
planicies, no manejo do laço e da bola, de sorte que vendo-o tão habil
n'estes exercicios selvagens, quem não o conhecesse não o tomaria por
um habitante da cidade, nem por um _pueblero_ fugitivo, mas por um
verdadeiro gaucho.

Rosas entrou primeiramente como _peon_, isto é jornaleiro, em uma
estancia, depois foi _capataz_,--Garibaldi já nos explicou o que era um
_capataz_--chegando depois a _mayordomo_.

N'esta qualidade governava os bens da poderosa familia Anchorena. É
d'ahi que começa a sua fortuna como proprietario.

Sendo o nosso designio fazer conhecer Rosas debaixo de todos os
aspectos; vamos dizer qual era a situação do seu espirito no meio dos
acontecimentos que então tinham logar.

Rosas tinha estado em Buenos-Ayres durante os prodigios praticados
pela revolução contra a Hespanha. Então quem tinha coragem procurava
a celebridade no campo da batalha, quem tinha instrucção procurava-a
nos conselhos. Rosas era ambicioso de celebridade, mas qual era a que
elle poderia esperar? Que nome poderia adquirir, elle que não tinha nem
coragem para se apresentar no campo da batalha, nem instrucção alguma
para adquirir um nome entre os homens da sciencia? A todos os momentos
ouvia proferir a seu lado alguns nomes que se haviam tornado celebres.
Eram como ministros, Rivadaria, de Pasos, de Aguerro, como guerreiros,
Saint-Martin, de Baléarés, de Rodrigues, e de Las Heras.

E todos estes nomes de que o ruido, vindo da cidade, ia achar éco nas
solidões dos campos, todos estes nomes avivavam o seu odio contra essa
cidade que tendo triumphos para todos, não tinha para elle senão o
exilio.

Já n'esta época Rosas pensava no futuro e preparava-o. Errando pelos
pampas, confundido com os gauchos, fazia-se o companheiro da miseria do
povo, elogiando os prejuizos do homem das planicies, excitando-o contra
os cidadãos, demonstrando-lhe a superioridade do numero e diligenciando
fazer-lhe comprehender que quando quizessem os habitantes do campo,
seriam senhores da cidade.

Os annos foram passando, até que chegamos a 1820.

Foi então que Rosas começou a apparecer, apoiado na influencia que
havia adquirido nos habitantes das planicies.

Já vimos o que se passou em Montevideo. Vejamos agora o que se passou
em Buenos-Ayres.

A milicia de Buenos-Ayres rebellou-se contra o governador Rodrigues.
Então um regimento das milicias do campo, _los colorados de las
Conchas_ entraram na cidade, em 5 de outubro de 1820, tendo á sua
frente um coronel, que era conhecido em Buenos-Ayres, e que conhecia
Buenos Ayres.

Este coronel era Rosas.

No dia seguinte as milicias do campo, e as milicias da cidade vieram ás
mãos, mas n'esse dia o coronel não estava á frente do regimento.

Uma violenta dôr de dentes, que Rosas deixou de soffrer assim que
finalisou o combate, affastava-o, com grande pezar, do campo da
batalha. E porque não teria elle razão? Octavio tambem teve um grande
ataque de febre no dia da batalha de Actium.

Rosas parecia-se muito com Octavio; mas mais tarde Octavio foi Augusto,
o que segundo todas as probabilidades nunca será Rosas.

Esta entrada em Buenos-Ayres foi a unica expedição guerreira em que
Rosas tomou parte durante toda a sua vida politica.

Foi então que Rivadavia, já mui conhecido, foi nomeado ministro do
reino, tomando a direcção de todos os negocios.

Rivadavia era um d'esses homens de genio, como apparecem no meio das
revoluções durante os dias de tormenta. Havia viajado muito na Europa,
possuindo uma instrucção universal, e parecendo animado do mais ardente
e puro patriotismo. Infelizmente a vista da civilisação europea, que
tinha estudado em Paris e Londres havia-lhe feito nascer falsas idéas
da sua applicação a um povo que não tendo por detraz de si dez seculos
de luctas sociaes, não as podia admittir.

Rivadavia queria dobrar a marcha do tempo e fazer o mesmo pela America
que Pedro o Grande havia feito pela Russia; mas não tendo á sua
disposição os meios de Pedro foi obrigado a desistir das suas intenções.

Póde ser que com mais alguma esperteza Rivadavia as tivesse alcançado,
mas censurava os homens pelos seus habitos e certos habitos são uma
nacionalidade e outros um orgulho. Escarnecia os trajes americanos,
manifestando a sua repugnancia pela _jaqueta_, o seu desprezo pela
_chiripa_, o vestuario do homem dos campos, e como ao mesmo tempo
não occultava a sua preferencia pela casaca e bota de polimento,
despopularisou-se pouco a pouco, e sentiu o poder prestes a escapar-lhe.

E não obstante que de beneficios não fez ao seu paiz em troca d'esses
vestidos ridiculos que lhe queria tirar? A sua administração foi a mais
prospera que Buenos-Ayres teve. Foi elle que fundou a universidade,
os liceos, e que introduziu nas escolas o ensino mutuo. Durante a sua
administração, muitos sabios foram chamados da Europa, as artes foram
protegidas, desenvolvendo-se muito, emfim Buenos-Ayres era chamada a
Athenas da America do Sul.

Já fallámos da guerra de Buenos-Ayres em 1826. Para sustentar esta
guerra, Buenos-Ayres fez sacrificios enormes, exgotando as suas
finanças, e enfraquecendo por esse motivo muito as molas da sua
administração.

Exgotadas as finanças, enfraquecido o governo, as revoluções começaram.

Já dissemos que em Buenos-Ayres como em Montevideo, o campo e a cidade
nunca estavam em harmonias de opiniões, como nunca o estavam em
harmonias de interesse.

Buenos-Ayres fez uma revolução.

Immediatamente o campo fez uma revolução, e dirigindo-se sobre
Buenos-Ayres, invadiu a cidade e fez o seu chefe governador.

Este chefe era Rosas.

Vamos fechar o parenthesis, aberto algumas paginas atraz.

Em 1830 Rosas foi eleito governador pela influencia dos habitantes do
campo, não obstante a opposição da cidade, que elle encontrou meia
policiada pela administração de Rivadavia.

Então Rosas, o gaucho, tentou reconciliar-se com a civilisação,
parecendo querer esquecer os costumes selvagens adoptados por elle até
então: a serpente queria mudar de pelle.

Mas a cidade resistiu ás suas tentativas, e a civilisação recusou
receber o transfuga que se havia passado para o campo da barbaria.
Rosas mostrava-se revestido de um uniforme, e immediatamente os
militares perguntavam em que campo de batalha havia elle ganho aquellas
dragonas. Fallava n'uma reunião, e logo os homens intelligentes
perguntavam entre si onde tinha elle ido aprender aquelle estylo;
quando apparecia n'um passeio, as mulheres designando-o com o dedo
diziam: «Ahi vae o gaucho disfarçado!»

Os tres annos do seu governo passaram-se n'esta lucta mortal para o
seu orgulho, e póde ser que a estas torturas moraes que lhe fizeram
soffrer n'este periodo, seja devida a sua ferocidade. D'esta maneira
quando resignou o poder e desceu a escada do palacio, com a alma cheia
de odio, e o coração de fel, sabendo que desde então não havia alliança
possivel com a cidade, foi ter de novo com os seus fieis gauchos, e as
suas estancias de que era o senhor, com a intenção de um dia entrar
de novo em Buenos-Ayres, como Scylla, que elle não conhecia e de quem
provavelmente nunca havia ouvido fallar, havia entrado em Roma, com a
espada n'uma mão e uma tocha m outra.

Para alcançar este fim vejamos o que elle fez. Pedia ao governo que lhe
concedesse um commando qualquer no exercito que ia combater os indios
selvagens. O governo que o temia julgou affastal-o concedendo-lhe este
favor, e deu-lhe todas as tropas de que podia dispôr, esquecendo que se
enfraquecia mettendo todo o poder nas mãos de Rosas.

Este logo que se achou á frente do exercito fez uma revolução em
Buenos-Ayres, fez-se chamar ao poder que não acceitou senão com grandes
condições, porque tinha ás suas ordens todo o exercito, e entrou em
Buenos-Ayres com a dictadura mais absoluta de que se tem conhecimento,
isto é _com toda la suma del poder publico_--com toda a extensão do
poder publico.

O governador que elle fez cair, ou antes que elle precipitou era o
general João Romão Baleace, um dos homens que tinha mais trabalhado
na guerra da independencia, e um dos chefes do partido federal de
que Rosas se dizia o sustentaculo. Baleace era um nobre coração e a
sua fidelidade á patria era proverbial. Havia acreditado em Rosas e
tinha trabalhado muito para a sua elevação. Baleace foi o primeiro
sacrificado por Rosas, morrendo proscripto e quando o seu cadaver
repassou a fronteira, protegido pela morte, Rosas recusou á sua
familia, não as honras funebres que eram devidas a um ex-governador,
mas as simples ceremonias a quem todo o cidadão tem direito.

Em 1833 foi que começou o verdadeiro poder de Rosas. No seu primeiro
governo, cheio de dissimulação, não tinha apresentado os seus
instinctos de crueldade, que fizeram depois d'elle uma celebridade
de sangue. Este primeiro periodo não tinha sido marcado senão pelo
fuzilamento do major Monteiro e dos prisioneiros de S. Nicolau. Comtudo
não devemos esquecer que foi n'esta época que tiveram logar muitas
mortes sombrias e subitas, d'essas mortes de que a historia inscreve a
data com tinta encarnada no livro das nações.

D'esta maneira desappareceram dois chefes de que a influencia poderia
fazer alguma sombra a Rosas. As mortes de Arbolito e de Molina tiveram
logar n'esta época. O mesmo aconteceu, segundo nos parece, aos dois
consules que acompanharam Octavio na sua primeira batalha contra
Antonio.

Daremos mais alguns detalhes de Rosas que ainda não nos appareceu
senão como dictador, mas tendo já alcançado um poder como poucos homens
tem exercido n'uma nação.

Em 1833, Rosas contava trinta e nove annos. Tinha o aspecto europeo,
cabellos louros, olhos azues, e uma presença soffrivel. Não usava
nem de barbas, nem de bigodes. O seu olhar seria bello se se podesse
examinar, mas Rosas havia-se habituado a não olhar de frente, nem os
seus amigos nem os seus inimigos, porque sabia que n'um amigo existe
quasi sempre um inimigo disfarçado. A sua voz era doce, e, quando tinha
necessidade de agradar a sua conversação tinha muito de attrahente.
A sua reputação de cobarde é proverbial, e a de esperto é universal.
Adorava as mystificações, sendo esta a sua grande occupação antes de se
entregar aos negocios serios. Uma vez chegado ao poder, não foi senão
uma distracção, que eram brutaes como a sua natureza.

Citemos um ou dois exemplos:

Uma tarde que devia jantar na companhia de um dos seus amigos, occultou
o vinho destinado a beber-se e deixou unicamente no bofete uma garrafa
do famoso licor de Leroy, que para ser completamente celebre só lhe
falta ser descuberto no tempo de Moliere. O amigo procurando o vinho
só achou a garrafa de Leroy e encontrando-lhe um gosto mui agradavel,
bebeu-a toda. Rosas não bebeu se não agua, e partiu logo que acabou o
jantar para a sua estancia.

Durante a noite o amigo de Rosas soffreu dores infernaes. Rosas riu
muito d'este seu innocente brinquedo, se elle tivesse morrido, Rosas
teria, sem duvida, rido muito mais.

Quando recebia algum cidadão em uma das suas estancias, fazia-o montar
em cavallos muito fogosos e a sua alegria era conforme a gravidade da
queda que o cavalleiro dava.

No palacio do governo achava-se sempre rodeado de loucos e de imbecis,
e no meio dos negocios mais serios conservava este singular cortejo.
Quando sitiava Buenos-Ayres, em 1829, tinha a seu lado quatro d'estes
pobres diabos, que havia feito monges, tornando-se em virtude do seu
poder, seu prior. Chamavam-se frei Biqua, frei Chaja, frei Lechuza, e
frei Biscacha. Rosas gostava muito de confeitos, tendo-os sempre de
todas os qualidades na sua tenda.

Os monges que tambem gostavam muito de confeitos, roubavam alguns de
quando em quando. Rosas então chamava-os a todos e os monges que sabiam
o que lhe custaria a mentir, confessavam o crime.

Immediatamente o culpado era despojado dos vestidos e fustigado pelos
seus tres companheiros.

Todos conheciam em Buenos-Ayres o seu mulato Eusebio, e para isso muito
concorreu Rosas que em um dia de recepção publica, teve a idéa de fazer
o mesmo que a condessa Dubarry fazia com o preto Zamora.

Eusebio vestido de governador recebeu os cumprimentos das authoridades,
em logar do seu _senhor_.

Não obstante a amizade que Rosas tinha a Eusebio, teve um dia a
lembrança de lhe fazer uma _brincadeira_, como costumavam ser todas
as que esta boa alma inventava. Fingiu que acabava de ser descoberta
uma conspiração, contra elle, de que o chefe era Eusebio. O fim
d'esta conspiração era matar Rosas. Eusebio foi preso apezar dos seus
protestos de innocencia. Rosas dominava os juizes a tal ponto que elles
não se importavam se o accusado era ou não innocente. Rosas accusava, e
elles julgaram e condemnaram Eusebio á morte.

Eusebio soffreu todos os preparativos do supplicio. Confessou-se, e
sendo depois conduzido ao logar do supplicio, ahi encontrou o carrasco
e seus ajudantes, e quando este _brinquedo_ estava quasi a terminar
tragicamente, appareceu Rosas que disse a Eusebio estar sua filha
Manuelita apaixonada por elle, e que por isso lhe perdoava, com a
condição de a desposar.

É inutil dizer que Eusebio não morrendo do supplicio esteve quasi a
morrer de medo.

Vamos agora dizer aos nossos leitores quem era como mulher esta
Manuelita que a Providencia tinha collocado ao pé de seu pae como um
bom anjo, de que a principal occupação, durante toda a sua vida, foi
repetir todos os dias a palavra _perdão_, alcançando-o muitas vezes.

Manuelita é hoje uma mulher de quarenta annos que por dedicação por
seu pae, e póde ser, que talvez pela missão que recebeu do ceu, se tem
conservado solteira, pelo menos até 1850, época em que a perdemos de
vista.

Manuelita não era precisamente uma mulher encantadora, mas era bella,
com uma figura distincta, dotada de um tacto profundo, coquette como
uma parisiense, e muito preoccupada, sobre tudo do effeito que produzia
nos estrangeiros.

Manuelita foi muito calumniada, o que era muito natural por ser filha
de Rosas, isto é, do homem sobre o qual convergiam todos os odios. Era
accusada de ter herdado os sentimentos crueis de seu pae, e de ter,
como a filha do papa Borgia, esquecido o amor filial por outro mais
terno e menos christão.

Tudo isto é falso. Manuelita ficou solteira por duas razões: a primeira
porque Rosas sentia muitas vezes a necessidade de ser amado, e sabia
que o unico amor real, dedicado, infinito, sobre que podia contar era
o de sua filha. Manuelita ficou solteira porque, talvez, nos seus
sonhos de realeza, Rosas, hoje simples particular, vivendo num canto da
Inglaterra, via no futuro brilhar para Manuelita alguma alliança mais
aristocratica do que aquellas a que poderia então aspirar.

Tanto a historia deve ser severa para com Rosas, tanto, a menos de
ser injusta, deve ser cheia de indulgencia para com Manuelita, a quem
todos que a conhecem fazem justiça, reconhecendo o que dizemos como uma
verdade. Manuelita foi o dique eterno, que fazia parar a colera de seu
pae. Quando creança tinha um meio muito extravagante para obter d'elle
a graça que pedia.

Fazia despir completamente o mulato Eusebio, arreiando-o como um
cavallo, e calçava uns lindos sapatos com esporas. Eusebio punha as
mãos no chão, e Manuelita montava-se-lhe nas costas, fazendo caracolar
o seu bucephalo humano diante de seu pae que ria muito d'este singular
brinquedo, concedendo a Manuelita o perdão que implorava.

Mais tarde quando ella comprehendeu que não podia empregar este meio,
apezar de ser tão efficaz, começou a pôr em pratica a obra de Mecena ao
pé de Augusto, quando elle lhe lançava as suas tabuas nas quaes estava
escripto: _Surge, carnifex_! Mas Manuelita procedia de outra maneira,
porque conhecendo seu pae perfeitamente, sabia as vaidades secretas que
era necessario fazer vibrar, e por isso muitas vezes alcançava o que
pedia.

Manuelita era ao mesmo tempo a rainha e escrava de seu pae.
Administrava a casa, cuidava de Rosas, e encarregada de todas
as relações diplomaticas era o verdadeiro ministro dos negocios
estrangeiros de Buenos-Ayres.

Assim como Rosas era um ente á parte, que não se confundia com pessoa
alguma na sociedade, Manuelita era tambem uma creatura não só estranha
no meio de todas, mas mesmo estranha a todas, e que viveu n'este mundo
solitaria, longe do amor dos homens e da sympathia das mulheres.

Rosas tambem tinha um filho chamado João, mas que nunca seguiu a
politica de seu pae, e uma filha que ainda creança casou, sendo hoje
uma casta esposa e mãi feliz, tendo um nome, o de seu marido, honrado e
respeitado por todos.

Tendo alcançado o poder, o grande trabalho de Rosas, foi anniquilar a
federação.

Lopes o seu fundador, cahiu doente. Rosas mandou-o vir para
Buenos-Ayres e tornou-se seu enfermeiro.

Lopes morreu envenenado.

Quiroga, o chefe da federação, que havia escapado são e salvo de
vinte batalhas, e de quem a coragem e lealdade era proverbial, morreu
assassinado.

Cullen, o conselheiro da federação, foi nomeado governador de Santa
Fé. Rosas improvisou uma revolução, e Cullen foi entregue a Rosas pelo
governador de São Thiago.

Cullen foi fuzillado.

Todos os homens notaveis no partido federal tiveram a mesma sorte que
tinham tido na Italia os homens de consideração durante o dominio dos
Borgias. Pouco a pouco, Rosas, empregando os mesmos meios que Alexandre
VI e seu filho Cesar, conseguiu reinar na republica argentina, que
apezar de reduzida a uma perfeita unidade, conserva ainda o nome
pomposo de federação, e vae talvez, ser inimiga dos _unitarios_.

Diremos algumas palavras dos homens que acabamos de nomear, fazendo
reviver algum tempo os seus spectros accusadores, o que dará alguma
idéa da scena de Shakespeare no _Ricardo 3.º_, antes do combate.

Havia n'esses homens uma especie de selvajaria politica que é digna de
ser conhecida.

Fallemos primeiramente do general Lopes. Uma unica anedocta, dará não
sómente idéa d'este chefe, mas fará conhecidos os homens com quem elle
tinha a tratar.

Lopes era governador da Santa Fé, e tinha em Entre Rios um inimigo
pessoal, o coronel Ovando, que em seguida a uma revolta foi conduzido
prisioneiro ao general Lopes.

O general almoçava. Recebeu perfeitamente Ovando e convidou-o a
almoçar. A conversação travou-se entre elles como entre dois convivas,
aos quaes uma egualdade de condições tivesse ordenado a mais perfeita
cortezia.

Comtudo no meio da conversação, Lopes exclamou:

--Coronel, se eu tivesse cahido nas suas mãos, como cahiu nas minhas e
isto no momento em que almoçasse, que faria?

--Convidal-o-ia para almoçar, como v. ex.ª acaba de fazer.

--E depois?

--Mandava-o fuzillar.

--Estimo muito que pense do mesmo modo que eu. Acabando de almoçar será
fuzillado.

--Se não se quer demorar muito, póde ser já.

--Não, não, acabe de comer descançado, não tenho muita pressa.

E continuaram a almoçar com todo o descanço, e tendo concluido:

--Julgo ser tempo, disse Ovando.

--Agradeço-lhe o não haver esperado que eu o lembrasse, respondeu Lopes.

Depois chamando o seu camarada.

--O piquete está prompto? perguntou elle.

--Sim, meu general, respondeu o soldado.

Então voltando-se para Ovando:

--Adeus, coronel, disse Lopes.

--Adeus, não; mas sim até á vista, porque não se vive muito tempo
quando se fazem guerras como as nossas.

E cumprimentando Lopes sahiu. Cinco minutos depois, o estrondo de uma
descarga annunciou a Lopes que o coronel Ovando havia entregue a alma a
Deos.

Passemos a Quiroga.




                               QUIROGA


Este é mais nosso conhecido. A sua reputação atravessando os mares, fez
echo em Paris, e a moda apoderou-se d'elle: de 1820 a 1823 todos tinham
capotes á Quiroga e chapeus á Bolivar. É provavel que nem um nem outro
tivessem usado dos capotes e chapeus que os seus admiradores adoptaram
a duas mil leguas de distancia.

Quiroga, como Rosas, era tambem camponez e havia servido, na sua
mocidade, como sargento no exercito de linha contra os hespanhoes.

Retirado ao seu paiz natal, a Rioja, entrou nos partidos internos, e
tornado-se senhor do paiz, lançou-se na lucta das differentes facções
da republica, e foi n'estas luctas que se mostrou pela primeira vez á
America.

No fim de um anno, Quiroga era a espada do partido federal, e é talvez
o unico homem que tenha obtido similhantes resultados pela simples
applicação do seu valor pessoal. O seu nome tinha alcançado um tal
prestigio que só elle valia muitos exercitos.

A sua grande tactica no meio dos combates, era chamar para o pé de si o
maior numero de perigos, e quando repentinamente dava o grito de guerra
brandindo na mão essa longa lança que era a sua arma predilecta, os
mais bravos faziam conhecimento com o medo.

Quiroga era cruel, ou antes feroz, mas na sua ferocidade havia sempre
alguma cousa de grande e generoso. Era a ferocidade do leão e não a do
tigre.

Quando o coronel Pringles, um dos seus maiores inimigos, foi feito
prisioneiro e assassinado, o seu assassino apresentou-se a Quiroga, seu
chefe, julgando ter ganho uma boa recompensa.

Quiroga deixou-lhe contar o seu crime, e mandou-o fuzillar.

Uma outra vez dois officiaes pertencentes ao partido inimigo foram
feitos prisioneiros pelos soldados de Quiroga que lembrando-se do
castigo do seu camarada, os conduziram sãos e salvos á presença do seu
chefe.

Quiroga offereceu-lhe abandonar as suas bandeiras, servindo debaixo das
suas ordens.

Um acceitou, outro recusou.

--Está bem, disse elle ao que havia acceitado, montemos a cavallo e
vamos vêr fuzillar o seu camarada.

Aquelle sem fazer a menor observação, apressou-se a obedecer, e
conversou todo o caminho alegremente com Quiroga de quem se julgava já
ajudante de campo, em quanto o seu camarada cercado por um piquete, com
as armas carregadas, marchava tranquillamente para a morte.

Chegado ao logar destinado para a execução, Quiroga mandou ajoelhar o
official que tinha recusado trahir o seu partido, e disse-lhe que se
preparasse para morrer, e quando o viu prompto:

--Vamos, disse Quiroga, ao pobre official que se julgava já morto, és
um bravo.--Monta no cavallo do teu camarada e parte.

E designava o cavallo do renegado.

--E eu? perguntou este.

--Tu, respondeu Quiroga, não precisas cavallo porque vaes morrer.

E apezar das supplicas que lhe fez em favor do seu camarada, aquelle a
quem acabava de dar a vida, mandou-o fuzillar.

Quiroga só foi vencido uma vez, e essa pelo general Paz, o Fabio
americano. Duas vezes destruiu o exercito de Quiroga nas terriveis
batalhas de Tablada e Oncativo. Era um bello espectaculo para esses
jovens republicanos o vêr a arte, a tactica e a estrategia em lucta
contra a coragem indomavel e a vontade de ferro de Quiroga. Mas uma vez
o general Paz foi feito prisioneiro, a cem passos do seu exercito, e
desde essa época Quiroga foi invencivel.

Terminada a guerra entre o partido unitario e o partido federal,
Quiroga emprehendeu uma viagem ás provincias interiores sendo na
volta, attacado em Barrancallaco por trinta assassinos, que fizeram
fogo sobre a carroagem. Quiroga que se achava n'esta occasião doente,
estava deitado, na carroagem, tendo-lhe por isso atravessado o peito
uma balla. Apesar d'isso Quiroga levantou-se pallido e ensanguentado e
abriu a portinhola. Vendo-o em pé, apezar de estar quasi cadaver, os
assassinos fugiram; mas Santos Peres, seu chefe, dirigiu-se a Quiroga
e dando-lhe um golpe na cabeça acabou de o matar.

Então os assassinos voltaram e acabaram a obra começada. Eram os irmãos
Renafé, commandantes em Cordova que de accordo com Rosas dirigiam esta
expedição. Mas Rosas tinha tido todo o cuidado de affastar de si todas
as suspeitas, de modo que ninguem julgou fosse elle um dos cumplices em
similhante morte, podendo por isso tomar o partido do que tinha feito
assassinar, perseguindo os assassinos que foram presos, julgados, e
fuzillados.

Falta Cullen.

Cullen, que tinha nascido em Hespanha, havia-se estabelecido na
cidade de Santa Fé, onde se tinha ligado com Lopes, sendo depois seu
ministro e director na politica. A immensa influencia que Lopes teve na
republica argentina, desde 1820 até á sua morte em 1833, fez de Cullen
uma personagem muito importante. Quando nos dias de sua desgraça, Rosas
proscripto emigrou para Santa Fé, recebeu de Cullen toda a especie
de serviços, mas esses serviços não poderam fazer esquecer ao futuro
dictador que Cullen era um dos homens que queriam acabar com o reinado
da arbitrariedade na republica argentina. Comtudo soube occultar o seu
odio a Cullen debaixo das apparencias da maior amizade.

Pela morte de Lopes, Cullen foi nomeado governador da Santa Fé
consagrando-se a fazer grandes melhoramentos na provincia, e em
logar de se mostrar inimigo da França, mostrou por esta nação muitas
sympathias, considerando que a sua alliança era um grande passo para
as suas idéas civilisadoras. Então Rosas promoveu uma revolução, que
appoiou publicamente, sendo coadjuvado por alguma tropa. Cullen vencido
refugiou-se na provincia de Santiago del Estero, que governava o seu
amigo Ibarra. Rosas, que destruindo a federação tinha já declarado
Cullen _selvagem unitario_, entabolou negociações com Ibarra afim de
lhe entregar Cullen.

Durante muito tempo estas negociações não obtiverão resultado algum,
julgando-se Cullen, seguro pela confiança que tinha no seu amigo, mas
um dia foi preso pelos soldados de Ibarra e conduzido a Rosas que o
mandou assassinar no meio do caminho, porque disse elle n'uma carta
dirigida ao governador de Santa Fé que tinha succedido a Cullen, o seu
_processo estava feito pelos seus crimes que eram conhecidos por todos_.

Cullen era dotado d'uma conversação agradavel e d'um coração generoso.
A sua influencia sobre Lopes foi sempre empregada a evitar toda a
especie de rigor, e foi em resultado d'esta influencia que o general
Lopes, não obstante as supplicas de Rosas, não consentiu em mandar
fuzillar um unico dos prisioneiros da campanha de 1831, campanha que
poz em seu poder os chefes mais importantes do partido unitario.

Cullen possuia uma instrucção superficial e os seus talentos eram
mediocres.

Foi d'esta sorte que Rosas, o unico que talvez não teve nenhuma gloria
militar, entre os chefes do partido federal, se desembaraçou dos
chefes d'este partido, ficando desde então a pessoa mais importante da
republica argentina, e senhor absoluto de Buenos Ayres.

Então Rosas tendo alcançado todo o poder, commeçou a sua vingança
contra as classes elevadas que até então o tinham despresado. No meio
das personagens mais aristocratas e mais elegantes mostrava-se sempre
vestido de jaqueta, ou sem gravata. Aos seus bailes a que presidia com
sua mulher e filha, não eram convidados senão os carreiros, sapateiros,
etc. Um dia abriu o baile dançando com uma escrava, e Manuelita com um
gaucho.

Mas não foi só d'esta maneira que elle puniu a soberba cidade, porque
proclamou o terrivel principio:

    «_o que não está comigo é contra mim_»

E desde então todo o homem que lhe desagradava foi classificado de
_selvagem unitario_, e o que uma vez Rosas havia designando por este
nome não tinha mais direito nem á vida nem á honra.

Então para por em pratica as theorias de Rosas, organisou-se debaixo
dos seus auspicios a famosa sociedade MAS-FORCA, isto é, ainda ha
forca. Esta sociedade era composta de tudo quanto havia de peor na
sociedade.

N'ella se achavam filiados por ordem superior o chefe da policia, os
juizes de paz, e todos aquelles que deviam vigiar pela ordem publica.
Por este meio quando os membros d'esta sociedade entravam em casa de
qualquer cidadão, para a roubar ou assassinar o seu proprietario, era
escusado chamar em seu auxilio a policia, porque ninguem corria a
soccorrer a desgraçada victima. Estas excursões tinham logar quasi
sempre de dia, tanto era o receio dos criminosos.

E quer o leitor alguns exemplos? Vamos dal-os, por que não é costume
nosso fazer uma accusação sem a provar.

Os elegantes de Buenos-Ayres tinham n'esta época o habito de trazer os
bigodes de modo que pareciam formar um U, e isto era sufficiente para
a sociedade dos MAS-FORCA, debaixo do pretexto de que o U queria dizer
unitario, se apoderar do desgraçado, rapando-lhe a cara com navalhas
mal afiadas, de modo que a carne vinha juntamente aos pedaços com os
cabellos. Depois de praticarem esta barbaridade, abandonavam a victima
aos caprichos da populaça, que muitas vezes continuava esta brincadeira
até dar a morte áquelle desgraçado.

As mulheres do povo começavam a usar nos cabellos a fita encarnada
chamada _mono_. Um dia a Mas-forca collocada ás portas das principaes
egrejas, marcou com um ferro em brasa todas as mulheres que entravam ou
sahiam sem ter a tal fita.

Tambem não era uma cousa extraordinaria o ver uma mulher despojada dos
seus vestidos e açoitada no meio da rua, e isto porque ella trazia
um lenço, um vestido um enfeite qualquer, no qual havia a cor azul
ou verde. O mesmo succedia com os homens da mais elevada posição,
sendo apenas necessario para elles correrem os maiores perigos que se
apresentassem em publico de casaca ou com uma gravata.

Ao mesmo tempo que as pessoas, sem duvida designadas á muito, e que
pertenciam ás classes superiores da sociedade perseguidas por uma cruel
vingança, eram victimas d'estas violencias, centenas de cidadãos eram
encarcerados, e isso só porque as suas opiniões não estavam em harmonia
com as do dictador. Ninguem conhecia o crime porque era preso, mas isso
tambem era desnecessario, visto ser conhecido de Rosas. Do mesmo modo
que o crime ficava desconhecido, tambem o julgamento era considerado
inutil, e todos os dias as prisões para poderem dar entrada a novas
victimas, eram despojadas de algumas d'ellas que erão fuziladas. Estes
fuzilamentos tinham logar de noute, sendo a cidade constantemente
accordada de sobresalto.

De manhã, cousa horrivel que nem mesmo em França se viu durante os
terriveis dias de 1793, os carreiros apanhavão tranquillamente os
cadaveres dos assassinados e hiam ás prisões buscar os dos que tinham
sido fuzillados, e conduzindo-os a um grande fosso onde eram todos
lançados, sem que fosse permittido aos parentes das victimas o vir
reconhecel-as e prestar-lhe as ultimas honras funebres.

Ainda não é tudo: os carreiros que conduzião estes restos deploraveis
annunciavam a sua chegada por terriveis gracejos que faziam fechar
todas as portas e fugir a população. Muitas vezes decepavam a cabeça
do tronco, enchendo cestos com ellas, e offerecendo-as depois aos
tranzuentes assustados.

Bem depressa o calculo se juntou á barbaridade, o fisco á morte.

Rosas comprehendeu que o meio de se conservar no poder era crear em
volta de si interesses inseparaveis dos seus.

Então mostrou a uma parte da sociedade metade da fortuna da outra
dizendo-lhe--É tua.

A partir d'este momento a ruina dos antigos proprietarios de
Buenos-Ayres foi consumada, começando os amigos de Rosas a obter
grandes fortunas.

O que não tinha ousado pensar nenhum tyranno, o que não tinha vindo á
idéa de Nero, foi executado por Rosas: depois de haver assassinado o
pai prohibiu ao filho o deitar luto. A lei que continha esta prohibição
foi proclamada e fixada nas esquinas, e bem necessaria foi, porque
quando não, tudo em Buenos Ayres andaria de luto!

Os excessos d'este despotismo admiraram alguns estrangeiros e sobre
tudo alguns francezes. Rosas cansou a paciencia de Luiz Felippe,
paciencia bem reconhecida, e logo depois teve lugar o primeiro bloqueio
pela esquadra franceza.

Entretanto as classes elevadas tão mal tractadas, commeçarão a fugir
de Buenos Ayres e para encontrar um asylo refugiaram-se no estado
oriental, onde a maioria da cidade proscripta achou hospitalidade.

Foi em vão que a policia de Rosas redobrou de vigilancia, foi em vão
que uma lei prohibio de morte a emigração, foi em vão que a essa morte
se juntaram os mais crueis detalhes, porque Rosas conheceu bem depressa
que a morte só não era sufficiente; o terror e o odio que inspirava
Rosas eram mais fortes que os meios inventados por elle, e a emigração
augmentava d'uma maneira espantosa a todos os momentos. Para realisar
a fuga de toda uma familia, era só necessario encontrar um barco que
a podesse transportar. Encontrado elle, pai, mãe, filhos, irmãos, ahi
se lançavam, abandonando casa, bens, fortuna, e todos os dias, se via
chegar ao estado oriental, isto é a Montevideo algumas d'essas barcas
cheias de passageiros tendo por unica fortuna o fato que levavam em
cima de si.

Nenhum d'esses fugitivos teve de se arrepender da confiança que tinham
posto na hospitalidade do povo oriental, pois essa hospitalidade foi
como o teria sido a d'uma republica antiga; hospitalidade como devia
esperar o povo argentino d'amigos, ou antes d'irmãos, que tantas vezes
tinham combatido unidos para repellir os inglezes, hespanhoes ou
brasileiros,--inimigos communs, inimigos estrangeiros--menos perigosos
comtudo do que esse que havia nascido no meio d'elles.

Os argentinos chegavão em grande quantidade, e erão esperados no
porto pelos habitantes, que escolhiam em rasão dos seus recursos
pecuniarios, ou do tamanho da sua casa os emigrados que podiam
recolher. Então viveres, dinheiro, fato, tudo era posto á disposição
d'esses desgraçados, até que elles tivessem alcançado alguns
recursos, no que todos os coadjuvavão. Elles do seu lado reconhecidos
entregavam-se ao trabalho, afim de alliviar o fardo que impunhão aos
seus hospedes, dando-lhe assim os meios de receber novos fugitivos.
Para poderem praticar tão nobre acção, as pessoas mais habituadas ao
luxo trabalhavão nos misteres mais infimos, enobrecendo-se tanto mais a
occupação a que se entregavam era em opposição com o seu estado social.

Foi por este modo que os mais bellos nomes da republica argentina
figuram na emigração.

Lavallée, a espada mais brilhante do seu exercito, Florencio Varella,
o seu mais bello talento, Aguero, um dos seus primeiros homens de
estado; Echaverria, o seu Lamartine; La Vega, o Bayardo do exercito das
Andes; Guttierez, o feliz cantor das glorias nacionaes; Alsina o grande
advogado e illustre cidadão, pertencem ao numero dos emigrados, assim
como apparecem Saenz, Valente, Molino, Torres, Ramos, Megia, grandes
proprietarios; como apparecem, Rodrigues, o velho general dos exercitos
da independencia, e unitario; Olozabal, um dos mais bravos d'esse
exercito das Andes de que dissemos ter sido La Vega o Bayardo. Rosas
perseguia igualmente o _unitario_ e o _federal_, não se preocupando
senão de se desembaraçar de todos os que podiam ser um obstaculo á sua
dictadura.

É á hospitalidade concedida aos homens que elle perseguia que deve ser
attribuido o odio de Rosas ao Estado oriental.

Na épocha a que nos referimos a presidencia da republica era exercida
pelo general Fructuoso Rivera.

Rivera era camponez, como Rosas, como Quiroga; unicamente os seus
instinctos erão humanitarios o que o fazia inimigo de Rosas. Como
homem de guerra, a bravura de Rivera não podia ser excedida; como
chefe de partido a sua generosidade não podia ser igualada. Durante
trinta e cinco annos figurou nas scenas politicas do seu paiz. Quando
a revolução contra a Espanha começou, Rivera sacrificou a sua fortuna,
por que não era só generoso, era prodigo.

Do mesmo modo que Rivera era prodigo para com os homens, Deus tinha
sido prodigo para com elle. Era um bello cavalheiro, em todo o sentido
da palavra hespanhola _caballero_, que comprehende ao mesmo tempo o
soldado e o gentilhomem, de estatura elevada, de olhar prescutador,
conversando com graça, e attraindo todos por um gesto particular
que só lhe pertencia, sendo por isso o homem mais popular dos
Estados orientaes. Mas se Rivera como homem era mui apreciavel, como
administrador nunca houve nenhum que desorganisasse mais os recursos
pecuniarios d'uma nação. Assim como havia destruido a sua fortuna
particular, destruiu a fortuna publica, não para se enriquecer, mas
porque homem publico tinha conservado todos os habitos do homem
particular.

Na epocha que descrevemos, essa ruina ainda não se fazia sentir:
Rivera, commeçava a sua presidencia, e estava rodeado dos homens mais
notaveis do paiz: Obez, Herrero, Vasques, Alvares, Ellauri, Luiz
Eduardo Peres, erão verdadeiramente senão seus ministros ao menos seus
directores, e com estes homens tudo o que era progresso, liberdade e
prosperidade, estava promettido a este bello paiz.

Obez, o primeiro dos amigos de Rivera era um homem d'um caracter
respeitavel. O seu patriotismo, o seu talento eminente, a sua
instrucção profunda o collocaram no numero dos grandes homens da
America, e para que nada faltasse á sua popularidade, morreu no exilio
victima do systema de Rosas no Estado oriental.

Luiz Eduardo Peres, era o Aristides de Montevideo. Republicano severo,
patriota exaltado, consagrou a sua longa existencia á virtude, á
liberdade, e ao seu paiz.

Vasquez, homem de talento e instrucção, rendeu os primeiros serviços ao
seu paiz no cerco de Montevideo, na guerra contra a Hespanha e acabou a
sua carreira durante o cerco contra Rosas.

Herrera, Alvares, e Ellauri cunhados de Obez, não ficaram atraz dos que
temos nomeado. Foram deffensores dedicados do Estado oriental, e de
toda a causa americana, sendo por isso os seus nomes mui respeitados em
todo o territorio americano.




                             MANUEL ORIBE


A presidencia de Rivera finalisou em 1834. O general Manuel Oribe
foi quem lhe succedeu, por influencia do proprio Rivera que contava
ter n'elle um amigo e continuador do seu systema. Com effeito Manuel
Oribe tinha sido nomeado general por Rivera, e havia feito parte da
precedente administração, como ministro da guerra.

Oribe pertencia ás primeiras familias do paiz. O seu espirito era
fraco, a sua intelligencia acanhada, explicando-se por isso a sua
alliança com Rosas, a quem se entregou totalmente, sem pensar que essa
alliança trazia comsigo a perda d'essa mesma independencia pela qual
tantas vezes havia combatido.

Como general a sua incapacidade era incompleta. As suas paixões tinham
a violencia das organisações nervosas e arrastavam-n'o á crueldade.
Como particular era um homem honesto.

Como administrador foi mais economico que Rivera e não se lhe pode
censurar o ter augmentado o defficit do thesouro, e comtudo é a
elle que cabe toda a responsabilidade da ruina do Estado oriental.
Esquecendo que para ser chefe de partido, não é sufficiente só o querer
sel-o, recusou o ficar alliado do grande partido nacional de que Rivera
era chefe. Querendo formar um partido seu, excitou a desconfiança de
todos e espantado pela sua fraqueza lançou-se nos braços de Rosas.
Ainda que o tratado tivesse ficado secreto todos conheceram esta
alliança pelas hostilidades secretas do governo contra a emigração
argentina e como todos detestavão o systema de Rosas, o paiz seguiu
Rivera, quando elle em 1836 se collocou á frente d'uma revolução contra
Oribe.

Não obstante essa revolução em que tomou parte quasi todo o paiz, Oribe
resistiu até 1838.

Oribe deixou a presidencia por renuncia feita officialmente perante as
camaras e sahiu do paiz tendo pedido ás mesmas camaras licença para se
retirar.

Rosas, vendo-o abandonar a sua posição, obrigou-o a protestar contra
essa renuncia, e reconhece-o como chefe do paiz de que havia sido
expulso. Foi o mesmo do que se Luiz Filippe, tivesse em Clermont
reconhecido o duque de Bordeos como vice-rei da republica franceza.

Em Montevideo zombaram ao principio d'essa excentricidade do dictador,
mas elle preparava-se para mudar esses risos em lagrimas.

A consequencia natural da conducta de Rosas era a guerra entre as duas
nações.

Esta guerra foi horrivel.

Oribe, a quem alguns dos nossos jornaes, pagos por Rosas, chamaram o
_illustre_ e o _virtuoso_ Oribe, foi ao mesmo tempo general e carrasco.

Mostremos aos leitores algumas d'essas paginas de sangue publicadas
pela _America do Sul_, e nas quaes vem registados dez mil assassinatos.

Tomemos ao acaso alguns dos relatorios feitos a Rosas pelos seus
agentes e officiaes.

O general D. Marianno Achaque serve no exercito contrario a Rosas,
defende S. João e no dia 22 de agosto de 1841 rende se depois de
quarenta e oito horas de resistencia. D. José Ramires official de Rosas
transmitte então ao governo de S. João o relatorio official d'este
successo. Copiaremos estas linhas:

    _Tudo se acha em nosso poder, mas com perdão e garantia para
    todos os prisioneiros. Entre elles está um filho de Lamadrid._

Agora leia-se o numero 2067 do _Diario da tarde_ de Buenos Ayres, de
22 de outubro de 1841, e em opposição do documento official de José
Ramires, que assegura a vida dos prisioneiros, veja o leitor o seguinte:

                               Desaguedero, 22 de setembro de 1841.

    «_O selvagem unitario Marianno Acha foi hontem decapitado e a
    sua cabeça exposta ao publico._

                                      Assignado: _Angelo Pacheco._»

É necessario não confundir este Pacheco, tenente de Rosas com seu primo
Pacheco y Obes um dos seus inimigos mais encarniçados.

O leitor deve lembrar-se que no relatorio de Ramires se acha esta frase.

    «_Entre os prisioneiros está um filho de Lamadrid._»

Veja-se a _Gazeta Mercantil_, numero 5703, de 20 de abril de 1842 e
ahi se encontrará esta carta escripta por Mazario Benavides a D. João
Manoel Rosas:

                                      Miraflore 7 de abril de 1842.

    «Em um despacho precedente, dei-lhe parte dos motivos porque
    conservava o selvagem Gyriaco Lamadrid, mas sabendo que
    elle se tinha dirigido a muitos chefes da provincia para os
    resolver a tomar a sua defesa, mandei assim que cheguei a Rioja
    _decapital-o, assim como o salvagem unitario Manoel Julião
    Frias, natural de Santiago_.

                                   Assignado: _Mazario Benavides._»

Manoel Oribe á testa dos exercitos de Rosas encarregados de submetter
as provincias Argentinas, derrotou, a 15 de abril de 1842, no
territorio de Santa-Fé as forças commandadas pelo general João Paulo
Lopes.

Entre os prisioneiros encontra-se o general D. João Martins.

Lêde esse fragmento d'uma carta d'Oribe:

    «No quartel general de Banancas de Cosonda 17 de abril de
    1842.--Trinta e tantos mortos e alguns prisioneiros, entre as
    quaes se achava _João Martines a quem hontem mandei decepar a
    cabeça_.

                                        Assignado: _Manoel Oribe._»

Se ainda tendes em vosso poder a _Gazeta mercantil_, vêde o numero
5903, de 20 de setembro de 1842, e ahi encontrareis um relatorio
official de Manuel Antonio Saravia, empregado no exercito de Oribe.

Este relatorio contém uma lista de desasete individuos, de que um era
chefe de batalhão e outro capitão, que foram prisioneiros em Numayan,
soffrendo ahi o _castigo ordinario da pena de morte_.

Voltemos ao _illustre_ e _virtuoso_ Oribe, numero 3007 do _Diario da
tarde_, onde vem o seguinte a proposito da batalha de Monte Grande.

                 «Quartel general no Ceibal 14 de setembro de 1841.

    «Entre os prisioneiros foi encontrado o traidor selvagem
    unitario, ex-coronel Facundo Borda, que _foi executado
    immediatamente, com outros pertendidos officiaes de cavallaria
    e infanteria_.

                                                   _Manoel Oribe._»

Oribe estava feliz; um traidor lhe entregou o governador de Tucuman e
os seus officiaes. Eis como elle annuncia esta noticia a Rosas.

                    «Quartel general de Métau 3 de outubro de 1841.

    «Os selvagens unitarios que me entregaram o commandante
    Sandoval e que são Marion, o pertendido governador general
    de Tucuman, Avellanieda, o pertendido coronel J. M. Villela,
    o capitão José Espejo, e o tenente Leonardo de Sousa, _foram
    immediatamente executados na forma ordinaria_, á excepção
    de Avellanieda a quem ordenei que cortassem a cabeça, sendo
    exposta ao publico na praça de Tucuman.

                                                   _Manoel Oribe._»

Agora passemos a outro carrasco de Rosas.

    «Casamarca 29 do mez de Rosas 1841. A S. Excellencia o senhor
    governador Arredondo.

    «Depois de duas horas de fogo a infanteria foi passada á
    espada, e a cavallaria posta na mais completa desordem.

    «O general conseguiu escapar-se pela serra de Ambaste com
    trinta homens, mas foi perseguido e apanhado e a sua cabeça
    será bem depressa exposta na praça publica, assim como já o
    estão as dos perteadidos ministros Gonçalves Dulce e Espeche.

    «Viva a federação!

                                             Assignado: _M. Maza._»

    «_Lista dos selvagens unitarios pertendidos chefes e officiaes
    que foram executados depois da acção de 29_:

    «Coronel: Vicente Mercao.

    «Commandantes: Modesto, Villafane, João Pedro Ponce, Damasio
    Arias, Manoel Lopes, Pedro Rodrigues.

    «Chefes de batalhão; Manoel Riso, Santiago da Cruz.

    «Capitães: João de Deus Ponce, José Salas, Pedro Araujo,
    Izidoro Ponce, Pedro Barros.

    «Ajudantes: Damario Sarmento, Eugenio Novillo, Francisco
    Quinteros Daniel Rodrigues.

    «Tenente: Domingos Dias.

                                             Assignado: _M. Maza._»

Apresentaremos mais esta carta de Maza, para depois voltarmos a Rosas.

                                 «Casamarca, 4 de novembro de 1841.

    «Já lhe disse que pozemos em completa desordem o selvagem
    unitario Cubas, e que era perseguido, esperando ter em breve
    em meu poder a cabeça do bandido. Foi com effeito prisioneiro
    no Cerro das Ambastes, e a sua cabeça está exposta na praça
    publica da cidade.

    «Depois da acção foram feitos prisioneiros dezenove officiaes
    que seguiam Cubas. _Não dei quartel._ O triumpho foi completo.

                                                        _M. Maza._»

Vejamos de passagem no _Boletim de Mendonça_ n.º 12, esta carta
escripta no campo de batalha d'Arroyo Grande e dirigida ao governador
Aldao pelo coronel D. Jeronymo Costa.

    «Fizemos prisioneiros mais de cento e cincoenta officiaes que
    foram executados immediatamente.»

Todo o fogo de artificio tem o seu ramalhete, terminaremos pelo seu
ramalhete este fogo de artificio de sangue.

Prometti fallar de novo em Rosas, e vou agora cumprir a minha promessa.

O coronel Zelallaran foi morto e a sua cabeça offerecida a Rosas que
passou tres horas a dar-lhe pontapés. N'esse momento soube que um
outro coronel, irmão d'armas do primeiro, havia sido feito prisioneiro.
No primeiro momento teve tenção de o mandar fuzillar, mas depois
mudou de resolução, e condemnou-o a ter doze horas por dia, durante
tres dias, essa cabeça cortada em cima de uma meza que se devia achar
collocada na sua frente.

Rosas mandou fuzillar na praça de S. Nicolau alguns dos prisioneiros do
general Paz.

Entre elles estava o coronel Vedela antigo governador de S. Luiz; no
meio do supplicio o filho do condemnado lançou-se nos braços de seu pae.

--Fuzillae ambos, disse Rosas.

E o pae e o filho expiraram nos braços um do outro.

Rosas mandou conduzir a uma das praças de Buenos Ayres oitenta
prisioneiros indios, e em pleno dia e na presença de todos os mandou
matar a estocadas.

Camilla O'Gorman menina de dezoito annos e oriunda d'uma das principaes
familias de Buenos-Ayres, foi seduzida por um padre de vinte e quatro,
e fugiram ambos de Buenos-Ayres, refugiando-se n'uma pequena villa de
Corrientes onde passando por esposos, estabeleceram uma pequena escola.
Corrientes cahe em poder de Rosas, e os dous fugitivos reconhecidos
por um padre e denunciados por elle a Rosas, são presos e conduzidos a
Buenos-Ayres, onde sem julgamento Rosas os mandou fuzillar.

--Mas, diz alguem a Rosas, Camilla está gravida!

--Baptisae o ventre, diz Rosas, que como _excellente christão_, quer
salvar a alma do menino.

Esta cerimonia executada, Camilla O'Gorman foi fuzillada.

Tres ballas atravessaram os braços da desgraçada mãe que os havia
estendido para proteger seu filho...

Depois d'isto como diremos que a França se pronunciou em favor de Rosas?

E com effeito o tratado de 1840 assignado pelo almirante Mackan, firmou
então o poder de Rosas, deixando só a republica oriental engagada na
lucta.

Foi então que appareceu Garibaldi na sua volta do Rio Grande.

D'um lado Rosas e Oribe, isto é, a força, a riqueza, o poder combatendo
pelo despotismo.

Do outro lado, uma pequena republica, uma cidade arruinada, um thesouro
exhausto, um povo sem recursos, não podendo pagar aos seus defensores,
mas combattendo pela liberdade.

Garibaldi não hesitou; e encaminhou-se para os deffensores da liberdade.

Agora abandonamos a penna para lhe deixarmos contar a historia d'esse
cerco, que como o de Troia, durou nove annos.


                        FIM DO PRIMEIRO VOLUME


       *       *       *       *       *


                                ÍNDICE

          PROLOGO                                               5
       I  MEUS PAES                                            25
      II  OS MEUS PRIMEIROS ANNOS                              27
     III  AS MINHAS PRIMEIRAS VIAGENS                          29
      IV  AS MINHAS PRIMEIRAS AVENTURAS                        31
       V  OS ACONTECIMENTOS DE S. JULIÃO                       34
      VI  O DEUS DOS BONS                                      38
     VII  ENTRO AO SERVIÇO DA REPUBLICA DO RIO GRANDE          42
    VIII  CORSARIO                                             45
      IX  O RIO DA PRATA                                       48
       X  AS PLANICIES ORIENTAES                               50
      XI  A POETISA                                            52
     XII  O COMBATE                                            55
    XIII  LUIZ CARNIGLIA                                       57
     XIV  PRISIONEIRO                                          58
      XV  A APOLEAÇÃO                                          60
     XVI  VIAGEM NA PROVINCIA DO RIO GRANDE                    62
    XVII  A LAGOA DOS PATOS                                    65
   XVIII  ARMAMENTO DE LANCHÕES EM CAMACUA                     67
     XIX  A ESTANCIA DA BARRA                                  69
      XX  EXPEDIÇÃO A SANTA CATHARINA                          75
     XXI  PARTIDA E NAUFRAGIO                                  77
    XXII  JOÃO GRIGGS                                          81
   XXIII  SANTA CATHARINA                                      83
    XXIV  UMA MULHER                                           85
     XXV  O CRUZEIRO                                           87
    XXVI  SAQUE DE IMERUI                                      90
   XXVII  NOVOS COMBATES                                       91
  XXVIII  A CAVALLO                                            94
    XXIX  A RETIRADA                                           98
     XXX  ESTADA NAS LAGES E NOS ARRABALDES                   100
    XXXI  BATALHA DE TAQUARI                                  103
   XXXII  ASSALTO A S. JOSÉ DO NORTE                          108
  XXXIII  ANNITA                                              110
   XXXIV  LEVANTA-SE O CERCO.--ROSSETTI                       116
    XXXV  A PICADA DAS ANTAS                                  118
   XXXVI  CONDUCTOR DE BOIS                                   122
  XXXVII  PROFESSOR DE MATHEMATICA E CORRETOR DE COMMERCIO    128
          MONTEVIDEO                                          130
          ROSAS                                               139
          QUIROGA                                             150
          MANUEL ORIBE                                        158


       *       *       *       *       *


  Nota do Transcritor


  Pontuação e hifenização foram normalizados.

  O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso
  em 1860. A ortografia originais foi mantida com exceção de alguns
  erros óbvios.

  Palavras em itálico e frases são apresentados por em torno do
  texto com sublinhados (_itálico_).

  O índice foi adicionado.








End of the Project Gutenberg EBook of Memorias de José Garibaldi, volume I, by 
Giuseppe Garibaldi

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK MEMORIAS DE JOSE GARIBALDI, VOL 1 ***

***** This file should be named 52847-8.txt or 52847-8.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        http://www.gutenberg.org/5/2/8/4/52847/

Produced by Júlio Reis, Leonor Silva and the Online
Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net.

Updated editions will replace the previous one--the old editions will
be renamed.

Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright
law means that no one owns a United States copyright in these works,
so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United
States without permission and without paying copyright
royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part
of this license, apply to copying and distributing Project
Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm
concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark,
and may not be used if you charge for the eBooks, unless you receive
specific permission. If you do not charge anything for copies of this
eBook, complying with the rules is very easy. You may use this eBook
for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports,
performances and research. They may be modified and printed and given
away--you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks
not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the
trademark license, especially commercial redistribution.

START: FULL LICENSE

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full
Project Gutenberg-tm License available with this file or online at
www.gutenberg.org/license.

Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project
Gutenberg-tm electronic works

1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or
destroy all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your
possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a
Project Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound
by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the
person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph
1.E.8.

1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement. See
paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this
agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm
electronic works. See paragraph 1.E below.

1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the
Foundation" or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection
of Project Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual
works in the collection are in the public domain in the United
States. If an individual work is unprotected by copyright law in the
United States and you are located in the United States, we do not
claim a right to prevent you from copying, distributing, performing,
displaying or creating derivative works based on the work as long as
all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope
that you will support the Project Gutenberg-tm mission of promoting
free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg-tm
works in compliance with the terms of this agreement for keeping the
Project Gutenberg-tm name associated with the work. You can easily
comply with the terms of this agreement by keeping this work in the
same format with its attached full Project Gutenberg-tm License when
you share it without charge with others.

1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work. Copyright laws in most countries are
in a constant state of change. If you are outside the United States,
check the laws of your country in addition to the terms of this
agreement before downloading, copying, displaying, performing,
distributing or creating derivative works based on this work or any
other Project Gutenberg-tm work. The Foundation makes no
representations concerning the copyright status of any work in any
country outside the United States.

1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1. The following sentence, with active links to, or other
immediate access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear
prominently whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work
on which the phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the
phrase "Project Gutenberg" is associated) is accessed, displayed,
performed, viewed, copied or distributed:

  This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and
  most other parts of the world at no cost and with almost no
  restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it
  under the terms of the Project Gutenberg License included with this
  eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the
  United States, you'll have to check the laws of the country where you
  are located before using this ebook.

1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is
derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not
contain a notice indicating that it is posted with permission of the
copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in
the United States without paying any fees or charges. If you are
redistributing or providing access to a work with the phrase "Project
Gutenberg" associated with or appearing on the work, you must comply
either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or
obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg-tm
trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any
additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms
will be linked to the Project Gutenberg-tm License for all works
posted with the permission of the copyright holder found at the
beginning of this work.

1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including
any word processing or hypertext form. However, if you provide access
to or distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format
other than "Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official
version posted on the official Project Gutenberg-tm web site
(www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense
to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means
of obtaining a copy upon request, of the work in its original "Plain
Vanilla ASCII" or other form. Any alternate format must include the
full Project Gutenberg-tm License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works
provided that

* You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
  the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
  you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed
  to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he has
  agreed to donate royalties under this paragraph to the Project
  Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid
  within 60 days following each date on which you prepare (or are
  legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty
  payments should be clearly marked as such and sent to the Project
  Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in
  Section 4, "Information about donations to the Project Gutenberg
  Literary Archive Foundation."

* You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
  you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
  does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
  License. You must require such a user to return or destroy all
  copies of the works possessed in a physical medium and discontinue
  all use of and all access to other copies of Project Gutenberg-tm
  works.

* You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of
  any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
  electronic work is discovered and reported to you within 90 days of
  receipt of the work.

* You comply with all other terms of this agreement for free
  distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project
Gutenberg-tm electronic work or group of works on different terms than
are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing
from both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and The
Project Gutenberg Trademark LLC, the owner of the Project Gutenberg-tm
trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
works not protected by U.S. copyright law in creating the Project
Gutenberg-tm collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm
electronic works, and the medium on which they may be stored, may
contain "Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate
or corrupt data, transcription errors, a copyright or other
intellectual property infringement, a defective or damaged disk or
other medium, a computer virus, or computer codes that damage or
cannot be read by your equipment.

1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from. If you
received the work on a physical medium, you must return the medium
with your written explanation. The person or entity that provided you
with the defective work may elect to provide a replacement copy in
lieu of a refund. If you received the work electronically, the person
or entity providing it to you may choose to give you a second
opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If
the second copy is also defective, you may demand a refund in writing
without further opportunities to fix the problem.

1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS', WITH NO
OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT
LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of
damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement
violates the law of the state applicable to this agreement, the
agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or
limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or
unenforceability of any provision of this agreement shall not void the
remaining provisions.

1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in
accordance with this agreement, and any volunteers associated with the
production, promotion and distribution of Project Gutenberg-tm
electronic works, harmless from all liability, costs and expenses,
including legal fees, that arise directly or indirectly from any of
the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this
or any Project Gutenberg-tm work, (b) alteration, modification, or
additions or deletions to any Project Gutenberg-tm work, and (c) any
Defect you cause.

Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of
computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It
exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations
from people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future
generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see
Sections 3 and 4 and the Foundation information page at
www.gutenberg.org



Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by
U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is in Fairbanks, Alaska, with the
mailing address: PO Box 750175, Fairbanks, AK 99775, but its
volunteers and employees are scattered throughout numerous
locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt
Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to
date contact information can be found at the Foundation's web site and
official page at www.gutenberg.org/contact

For additional contact information:

    Dr. Gregory B. Newby
    Chief Executive and Director
    [email protected]

Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment. Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements. We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance. To SEND
DONATIONS or determine the status of compliance for any particular
state visit www.gutenberg.org/donate

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations. To
donate, please visit: www.gutenberg.org/donate

Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project
Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be
freely shared with anyone. For forty years, he produced and
distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of
volunteer support.

Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in
the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not
necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper
edition.

Most people start at our Web site which has the main PG search
facility: www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.