Memorias de um pobre diabo

By Bruno Seabra

The Project Gutenberg EBook of Memorias de um pobre diabo, by 
Bruno Henriques de Almeida Seabra

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Title: Memorias de um pobre diabo

Author: Bruno Henriques de Almeida Seabra

Release Date: April 6, 2010 [EBook #31906]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK MEMORIAS DE UM POBRE DIABO ***




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                                 MEMORIAS

                                    DE

                              UM POBRE DIABO

                                    POR

                            ARISTOTELES DE SOUSA.



                               RIO DE JANEIRO

                          LIVRARIA  LUSO-BRASILEIRA

                           30--RUA DA QUITANDA--30



MEMORIAS DE UM POBRE DIABO.



LIVRARIA BRAZILEIRA

DE

TANCREDO DE BARROS PAIVA

132, Rua do Lavradio, 132

Annuncia ás Terças-feiras no "Jornal do Commercio"



Typographia--PERSEVERANÇA--rua do Hospicio n. 91

1868



MEMORIAS

DE

UM POBRE DIABO

POR

ARISTOTELES DE SOUSA.



    ARISTOTELES DE SOUSA.

              _Do autor._



RIO DE JANEIRO

LIVRARIA LUSO-BRASILEIRA

30--RUA DA QUITANDA--30




Prologo.

Pobreza não é vileza. Aviados andariam os vicios se fizessem conta dos
pobres. Por não ser a pobreza vicio, fogem della, até os...
escriptores... E como esperar _um pobre diabo_ que outrem, que não elle,
escreva _suas memorias_?

Responda o respeitavel--Publico--, sujeito em quem nesta occasião não
descarrego a mais tremenda das descomposturas por amor á vazão deste
livrinho. Cá me fica ella, porém, de reserva para quando eu haja de
escrever algum _juizo critico_ sobre alheia obra.

Eis ahi o que é um _prologo_; em latim--_exordium_, em
francez--_avant-propos_, no alemão--_Einleitung_, no inglez...
_foolery_, e em as outras linguas como queiram, excepto no grego quê por
fôrça será _pro-logos_, de _logos_ discurso, _pró_ antecipado, para se
não dizer que embaço.

Este prologo e os capitulos seguintes são escriptos em portuguez, com
perdão do meu professor de grammatica.




PRIMEIRA PARTE.


CAPITULO I.

Vim á luz ao pôr do sol, minutos antes do toque das Ave-Marias. Hora
fresca. No anno em que nasci, não appareceu nenhum cometa por cima de
mim. Não requeri para _vir á luz_ e, ai de nós! se o nascimento
dependesse de um--_como requer!_--A esta hora meio mundo não teria feito
a barba.

Do dia do nascimento aos meus oito annos de idade, deram-se mil e uma
circumstancias; notem que não digo--_pormenores_ e aprendam a evitar um
_hespanholismo_.


CAPITULO II.

Aos doze annos lia, escrevia, contava e até _grammaticava_, se dou
crédito ao attestado do meu professor, que, nesse tempo, escrevia deste
modo--_proFeçôr_.

Ainda noje não atinei como aprendi a lêr, a escrever, a contar e a
grammaticar com um professor, que lia _Simeão da Nautica_ em vez de
_Simão de Nantua_, orthographava professor d'aquelle modo, contando
pelos dedos quando sommava 3+2+5?!

Tambem já não tinha medo de almas do outro mundo.


CAPITULO III.

Ouçam isto:

--Senhor meu sobrinho! abeire-se cá, sommemos as nossas contas. Ha dous
mezes esteve vossê de cama, em risco de morrer entrevado, consequencias
das suas sahidas de casa a deshoras; pondo novamente os pés na rua foi
contrahir uma divida na importancia de oitenta e cinco mil e quinhentos
réis; aqui tenho a nota:

    1 Vestido de cambraia de côr com babados... 15$000
    1 Chale de lã e sêda....................... 10$000
      Dinheiro pedido........................... 6$000
      Juros..................................... 2$000
    2 Pares de chinelas de saltinho............. 6$000
    1 Peça de morim francez..................... 8$000
    1 Vidro d'agua de Colonia................... 1$500
    1 Dito de Patchouly......................... 1$000
    1 Pente de tartaruga (imitação)............ 10$000
    1 Pote de pomada............................ 1$000
    1 Par de brincos (ouro de lei)............. 25$000
                                        Rs..... 85$500

pagos por mim ao Sr. Moreira, por honra das cinzas de meu irmão. Não
satisfeito com esta compra, que vossê diz ter feito para seu uso, como
se eu fosse algum pato, ave a mais estupida dos gallinheiros, tanto
assim que sempre ouvi chamar _pato_ a quem se deixa levar, sobretudo,
pelos _não me-deixes_ de certas mulheres; não satisfeito, dizia, ha oito
dias recebeu vossê uma _sova de peias_, em resposta aos desaforados
versos que dirigio á santa mulher do honrado visinho o Sr. Onofre. Somme
as parcellas, subtrahindo a _sova a seu favor_, e veja quanto me resta?
O embolso é a sua entrada para a escola de aprendizes marinheiros.... Vá
aprender a ser homem....

--E os meus estudos, tio? balbuciei.

--Os seus estudos! replicou elle; o que estuda vossê?

--Oh tio! o latim....

--Sim, o latim.... ha quatro annos anda vossê estudando o latim; e o que
sabe delle?

--Já declino os _nominativos_, tio....

Que vergonha! eu chegava aos 16 annos!


CAPITULO IV.

O excellente velho era homem de têmpera austera, não lia os jornaes. Se
os lesse teria visto que eu, apezar de haver gasto quatro annos para no
cabo chegar aos nominativos da _artinha_, por outro lado, dava provas do
meu talento.

N'aquella idade já o _Camarão_ e o _Lagarto_, periodicos _literarios_,
_artisticos_, _politicos_ e _burlescos_ publicados então, chamavam a
attenção dos leitores, o primeiro para o meu artigo intitulado _O homem
deve ser sceptico_ e o outro sobre a minha poesia--_Ella_ (á qual meu
tio alludio quando fallou na santa mulher do nosso honrado visinho o Sr.
Onofre).

O meu primeiro escripto que andou em letra redonda foi o artigo. Quem
conhece o gigante pelo dedo, conhecerá o artigo inteiro por este
começar:--«Eil-o cabisbaixo e taciturno fitando o horisonte da
existencia... Esqueleto de crenças resequidas, elle descrê da luz e das
trévas, de si e de todos, etc.»

O _Camarão_, sem inquirir como póde a gente _cabisbaixa_ fitar o
horisonte da existencia, e muito menos a que animal pertencera o
_esqueleto de crenças resequidas_, rematava o encomio ao artigo com
estas palavras de arromba:

«É de crêr que o joven e talentoso escriptor com o andar do tempo
modifique as doentias idéas, prematuramente bebidas nas fontes de
Benedicto Spinosa, J. J. Rousseau, Claudio Helvecio, e outros
materialistas. Asseveramos, no entanto, que se este artigo levasse o
nome de um destes autores--seria uma faisca electrica lançada no meio da
sociedade; tal é o vigor dos seus paradoxos...»

Muito obrigado, aos Srs. Redactores do _Camarão_.


CAPITULO V.

Quando escrevi--_O homem deve ser sceptico_, eu sabia onde ficava a
fonte de Helvecio, Rousseau, Spinosa e outros, que o _Camarão_ conhecia
igualmente, como no Japão a esta hora se sabe que hontem chegou o vapor
do Norte! Mas tal nomeada de literato consummado ganhei na opinião dos
ledores do _Camarão_, que a redacção do _Lagarto_, receiando
desequilibrar a prosperidade, poz logo á minha disposição todas as suas
columnas.

Respondi á offerta enviando a minha--_Ella_.

Tres dias depois, corria ella o mundo, inserta na 1.ª columna do 1.º
numero da 2.ª serie do periodico, levando na cabeça este chapelinho:

«--A redacção do _Lagarto_ sente ineffavel satisfação dando aos seus
assignantes a grata noticia de haver o muito talentoso, muito sympathico
e já assaz conhecido autor do--_Homem deve ser sceptico_, honrado as
humildes columnas do nosso periodico com o prestigio do seu invejavel
nome. A poesia abaixo inserta, verdadeiro primor da imaginação, fôra o
melhor padrão da gloria de Petrarcha, se Petrarcha a escrevesse.
Felicitamo-nos, pois, reconhecendo que o mavioso poeta deste torrão,
reune em si conjunctamente as qualidades dos cysnes do Senna, do Tejo,
de Thebas, de Albião, de Torento, da Ausonia, etc.»

Leiam a primeira estrophe _d'ella_:

    --Não sei dizer se a flôr da larangeira
    É tão formosa, tão gentil, tão bella,
    Como a flôr do jardim da phantasia,
    A flôr do meu amor, a minha--_Ella_...

Quem souber, diga.

Vim a saber mais tarde que cysne Ausonio queria dizer--Virgilio; cysne
de Torento--Torquato Tasso; Cysne de Albião--Miltão; cysne de
Thebas--Pindaro; cysne do Tejo--Camões; cysne do Senna--Lamartine; cysne
da... n'uma palavra, que todos os poetas tem o seu _quê de pato_.


CAPITULO VI.

Peroremos: meu tio não tentára torcer a minha vocação se lesse os
jornaes, ficando provado que se _ella_ fosse outra e não a pessoa da
Sra. D. Balbina, santa mulher do Sr. Onofre, de memoria não saudosa para
meus ossos, eu não teria levado a _sova de peias_ estreando na poesia.

--Do berço á tumba só padece o genio!


CAPITULO VII.

O irmão de meu pai não faltava quando promettia.

Era seu dizer de todos os dias que o _cumprimento devia andar nas ancas
do prometter_, (ditado da maior embirração dos ministros).

Prometteu-lhe no domingo, cumprio na segunda.

Sahia-me eu lepido com a _artinha_ debaixo do braço.

--Aonde vamos? pergunta.

--A aula; respondo.

--Não senhor, não é a aula, vamos para o arsenal de marinha... marche...

--Eu juro ao tio... gaguejei, esfregando os olhos com as costas da mão,
de ora em diante estudar, como se fosse um boi...

Tinham-me contado que se os bois fossem homens seriam grandes letrados.

--Para boi caminha vossê, replica elle, que para bezerro não lhe falta
nada.

Já estavamos no meio da rua. E a mulher do Sr. Onofre na janella.

Nem de caso pensado, meu tio foi em direitura. Eu tinha desejado o
contrario... n'aquelle dia bastava eu desejar, para succeder ás avessas,
fosse o que fosse.


CAPITULO VIII.

--Bom dia, vizinha; disse elle parando a um metro de distancia.

--Deus lhe dê o mesmo; respondeu ella.

--O vizinho Onofre, está?

--Sahio.

--Tinha a dar-lhe boa noticia.

--Que noticia é, então?

--A da entrada deste _meco_ para a companhia de aprendizes
marinheiros... além de outros, pelo atrevimento... a vizinha bem sabe...

Para encobrir o pudor, que me colorio as faces, abri a artinha fingindo
declinar o _servus servi_, observando de esguelha a vizinha.

--Por isso não vá agora o vizinho, acudio ella medindo as palavras,
desencaminhar o moço dos estudos.... sabe que... repelli o
atrevimento... Disse--_repelli_--em tom menor.

--Desencaminhado anda elle, ha muito tempo, tornou meu tio... Ainda
hontem, fui saber no mercado que o nome deste madraço já corre em
_letras_ de _fórma_.

O Sr. Onofre apontou na esquina.

Patife!


CAPITULO IX.

--Perguntava pelo vizinho.

--Apre! diz o Sr. Onofre, já não se póde em dias de hoje comer
farinha... cára como o assucar... Como vai o rapazete? (continua,
dirigindo-me a palavra).

Não me pude conter. Tudo quanto quizesse, menos rapazete diante da
mulher.

--Sr. Onofre, investi, veja como falla!... Rapazete foi o senhor quando
tinha 16 annos; eu aos 16 annos não sou rapazete, sou um homem de muito
talento e escriptor de boa nota e como tal reconhecido pelo _Camarão_ e
pelo _Lagarto_, fique sabendo, se não sabe lêr. Se o senhor me chama
rapazete porque não tenho barbas, saiba que não faço caso de cabellos,
desses distinctivos do toucinho ordinario, e que não tenho barbas porque
não as quero ter. E de mais, assim como ha mulheres as quaes não sendo
do genero masculino têm barbas, de igual modo, ha homens os quaes não
sendo do genero feminino não as têm...

Os circumstantes pasmaram.

De relance, pensei que meu tio gostara da resposta, quando... zás...
atira-me uma tapona, verdadeira tapona, tapona com todos os ff e rr e
mais esta addenda:

--Leve, malcriado, para môlho do _Camarão_ mais do seu _Lagarto_.


CAPITULO X.

Atirando o Antonio Pereira pelos ares, deixando voar o chapéo, deitei a
correr pela rua fóra, enfiando-me pelo primeiro becco, como navio
fugindo do temporal pela primeira enseada.

Abençoado becco!

Abençoadas pernas!

Abençoados oitenta e cinco mil e quinhentos réis, pagos por meu tio ao
Sr. Moreira!

Abençoado tambem seja o dito Sr. Moreira, pelo bom conceito, que fez do
meu credito!

Bem empregados oitenta e cinco mil e quinhentos réis dispendidos
comtigo,--Aurora!


CAPITULO XI.

Na aurora da vida, ao alvorecer do amor, a primeira mulher que amei
chamava-se--Aurora!

Como é poetica esta coincidencia, e como ficou bem phraseada! Quando eu
for homem celebre ahi fica o thema para uma Epopéa.

Aurora morava no becco!

Relatei-lhe a occurrencia, guardando reserva ácerca da tapona.

Para ganhar mais no seu coração, fallei nos oitenta e cinco mil e
quinhentos réis, acrescentando, se eu tal adivinhára houvera empenhado
na loja do Sr. Moreira todos os teres e haveres de meu tio.

O galanteio influe naturalmente no coração da mulher, soube aos 16
annos, antes de saber latim, e, conseguintemente, antes de lêr Ovidio.

O numero do _Camarão_ onde vinha inserto o meu artigo _O homem deve ser
sceptico_, e o do _Lagarto_ onde vinha a _Ella_, andavam comigo como
talismans. Tirei do bolso o _Lagarto_ e dei a Aurora para lêr os versos,
declarando serem feitos quando pensava n'ella.

A rapariga ainda ignorava mais essa prova de amor, (que tão cara me
sahira quando a dei á visinha).

A ultima quadra commoveu-a de uma vez: tambem era o _sentimentalismo_
metrificado.

Que peito de mulher não commoverá esta quadra:

    «Sê minha? Serei teu.... abre-me os braços....
    Voemos deste mundo.... Sacuras
    Fujamos do paul.... vamos, querida,
    Fazer o nosso ninho nas alturas?!

Aurora lia soletrando palavra por palavra. Quando acabou de lêr eu
estava com fome. Davam tres horas da tarde:


CAPITULO XII.

Eu contava 16 annos.

Aurora cerca de 26.

Meu tio ignorava o rumo, que eu tomara, em seguida a tapona; Aurora não
tinha a quem désse contas do rumo e nem quem lhe désse taponas.

Eu precisava de _credito_ no coração de Aurora; Aurora _creditava_ meu
amor...

N'uma palavra, se me afiançam dous dias, tão saudosos, como os que
passei ao abrigo de Aurora, vá feito, aceito uma tapona de tres em tres
dias... Não posso ser mais rasoavel.


CAPITULO XIII.

Verdade lizas diziam os antigos, diziam elles: _hospede ao terceiro dia
fede._

Na casa do proprio amor, tres dias depois, não cheira o hospede.

Ao quarto dia, me disse Aurora:

--Não te amuas comigo?

--Porque? perguntei.

--Se eu te disser a verdade?

--Não.

--És um _empecilho_...

--Só?

--E é pouco?

Era de facto assaz. Puz-me a pensar.

--No que pensas? tornou ella.

--Na cousa mais simples deste mundo.

--Qual?

--N'um chapéo...

--Por fallares em chapéo, de quem será um, que anda pelo sotão?

--Poderá ser meu... anda vêr...

A rapariga não se deixou rogar. Lesta foi, lesta voltou.

--É justamente meu, clamei, antes de pôr o chapéo na cabeça.

O chapéo era tanto meu como de quem me ouve. Ficava-me na cabeça por
muito obsequio.

--Acautela-te, acudio Aurora, olha que elle quer subir...

--Aurora, lhe disse com seriedade, toma um beijo... é tudo quanto posso
dar-te, como lembrança de minha gratidão...

Ao proferir a palavra gratidão--cresceu-me o nó da garganta.

--Não me deves nada, meu querido, respondeu a meia voz. Eu sinto muito
mas... tu sabes...

--Sei... tens razão... adeus...

Beijamo-nos...

--Tornas ao tio?

--Torno.

Sahi.

--Pois, se tornares ao tio, rematou ella fechando a porta, apparece por
aqui de quando em quando...

--Se tornares ao tio, repeti a mim mesmo, sim! se tornares ao tio, isto
é, quando tiveres casa, a minha estará as tuas ordens... Agradecido,
Aurora.

No entanto, Aurora tinha coração.

Assim houvesse ella juizo.


CAPITULO XIV.

Entrei em casa com cara de quem voltava da missa.

Meu tio estava almoçando.

--Quem é? perguntou ouvindo os meus passos, e sem volver os olhos.

--Sou eu... tio... respondi, entre dentes.

--Quem?

--O Sr. moço; respondeu por mim Nicoláo.

--Senta-te, meu filho; o almoço não se diminuio, nem o jantar... nem o
amor. Disse com natural bondade.

A minha cadeira estava como d'antes á sua esquerda, o talher e o prato
no lugar do costume.

Sentei-me e cruzei os braços como um penitente.

Meu tio continuou a almoçar sem dar palavra.

Eu tinha almoçado no becco...

Nicoláo trouxe a nata, sobremesa que meu tio nunca dispensava ao almoço.
Regeitou-a. O preto carregou as sobrancelhas admirado. Pôz-lhe o café na
chicara; sorveu-o e, emfim, levantou-se.

Levantei-me tambem.

--Agora venha esta sobremesa, melhor que todas as natas, disse abrindo
os braços.

Atirei-me n'elles como o prodigo nos de seu pae.

Solucei devéras, pela primeira vez em dias de minha vida.

Tambem pela primeira vez a modo que vi lagrimas nos olhos de meu tio.

Este capitulo ia tomando fórma de _eça_?


CAPITULO XV.

Nasceram-me n'aquelle dia os dentes do siso.

Oito mezes depois, fui examinado e aprovado _cum laude_ em latim e
francez. Após dous annos, em geographia e historia, philosophia,
rhetorica e lingua tupy. Presidio aos exames um bispo.

As pitadas de algebra e geometria, inglez, physica e chimica, tomei-as
mais tarde aqui no Rio de Janeiro.

Reunindo tudo o que sei, fico sabendo conscienciosamente que careço
aprender tudo de novo, menos o methodo de passar por sabio.


EPILOGO DA PRIMEIRA PARTE.

Os ultimos dias dos meus dezenove annos correram nesta côrte.

Meu tio já havia fallecido quando deixei o torrão natal:

A santa mulher do Sr. Onofre enviuvado segunda vez:

O redactor em chefe do _Camarão_, pedido demissão de supplente de
delegado de policia, por desaccordo politico com o redactor do
_Lagarto_, que se fizera genro do delegado.

Se as cousas não pararam alli, a esta hora o delegado está avô de alguns
netos, estes inspectores de quarteirão e a Sra. Balbina viuva pela
quinta vez.

Mulher de nome Balbina, perca as esperanças, comigo não casa.




SEGUNDA PARTE.


CAPITULO I.

Devo muito ao Rio de Janeiro, não é por estar na sua presença.

Ha um sentimento que eleva o cão acima de muitos homens: o
reconhecimento do bem que se lhe faz.

Verdade, verdade; por esse lado, corro parelhas com a parentella de
Pythagoras, cada vez mais numerosa, apezar das _bolas_.

Quando cheguei a esta capital, contava ella apenas _seis peccados
mortaes_; dias depois, prefazia o numero dos indicados na cartilha.

Não vim prefazer o setimo, como já pensaram; foi o ministerio n. 7, que
se criou depois da minha chegada.

De haver a minha estrella influido para essa _criação_, é que não é
nenhum juizo temerario, caipora depois de mim, só eu mesmo.

Isto não é politica.

Lembro-me que o programma do _Camarão_ rematava assim (_vide esse
periodico n. 1, I.ª colum. ultimas linhas_).

«Não somos politicos; a politica é uma escada; os _tolos_ são os degráos
por onde os _ladinos_ sobem....»

Bem bonita definição.

«Não somos _tão tolos_, continuava a rezar o programma, que de nós
deixemos fazer degráos, nem _tão ladinos_ que queiramos subir.»

Linda epigraphe para a testa de um _jornal_ intitulado _O modesto_.

E, pois, nunca fui _tão tolo_ nem _tão ladino_, isto é, _politico_.

O que eu aspirava _ex-corde_, dos _seios da alma_, como hoje dizem,
dando a alma a propriedade de _amas de leite_, era ser _literato_.


CAPITULO II.

Ser literato... fosse como fosse, custasse o que custasse, desse no que
desse, era o meu diuturno desejo.

Sahi do torrão natal no firme proposito de estudar _mathematicas_ e os
primeiros livros que comprei nesta côrte foram o _Diccionario poetico_,
por Candido Lusitano e o das _Rimas_ por Beltrano de Tal Guerreiro.

Eu era um _montão de poetas_ a um só tempo, não se enganara o _Lagarto_.

Todas as paixões me ferviam dentro da alma, como a um tempo fervem
muitas panellas n'um só fogão.

Na segunda feira, eu era poeta sceptico e crente; na terça, ascetico e
materialista; na quarta, pudico e licencioso, e d'ahi até o domingo,
mais seis poetas extremamente oppostos.

Animações choviam.

Os _jornaes diarios_ e _periodicos_, a partir dos mais rispidos e
terminando na benevolentissima _Marmota Fluminense_, me gritavam
_avante_!

Se eu dava á luz uma poesia recendendo scepticismo--é Byron, é
Voltaire... diziam elles; se asceticismo--é o novo padre Caldas, é
Racine (pai e filho), é o nosso David... se materialismo--é, outra vez,
Byron, Piron, Parny... se tristeza--André Chénier e mais quatro; se
facecia--é Bocage, Diniz e não sei quaes mais... se pudicicia e amor,
não tem que vêr,--é Bernardim Ribeiro e até Sapho! se epigramma--é
Juvenal, é Marcial, é Nicoláo Tolentino e mais tres vivos, sendo um
destes o meu amigo Faustino Xavier de Novaes... se... o menos que me
chamaram foi Homero!

E o echo repercutia pelos angulos do imperio--Homero!

Estavam cumpridas as prophecias do _Camarão_ mais do _Lagarto_: na minha
vanguarda não se via outro literato mais consummado.

E quando ao por do sol, do postigo das minhas aguas-furtadas, eu
percorria in mente as paginas da literatura de todas as nações partindo
do 1.º até o 19.º seculos, eu desdenhava os genios com a sobranceria do
Pão d'Assucar contemplando as microscopicas ilhas dispersas pelo oceano,
como pés de repolhos á tona d'agua.


CAPITULO III.

Aos vinte e dous annos colleccionei meus manuscritos que, impressos,
dariam tres volumes, inclusive versos e prosas, romances e dramas,
comedias e algumas maximas.

Dirigia-me ao prélo com os originaes do primeiro volume (poesias),
quando encontrei o maior enthusiasta e admirador do genio que o céo
cobre, moço de 25 annos de idade, bacharelado em letras pelo collegio de
Pedro II.

--Que andas fazendo, meu poeta? perguntou elle.

--Vou á typographia, respondi.

--O que estás imprimindo?

--As minhas obras, disse enchendo a bocca....

--Meus parabens, a ti e ao Brazil. Ora, graças a Deus! vamos ter uma
literatura patria.

Enguli a pilula sem difficuldade, como outros muitos a--tem engulido
depois de mim.

--Quantos volumes?

--Tres.

--Só?! clamou admirado.

Como se aos vinte e dous annos de idade tres volumes de asneiras não
bastassem.

--E quando sahem?

--Breve, aqui levo os originaes do primeiro volume.

--Permittes?....

--Pódes vêr.

O bacharel, meu amigo e enthusiasta, depois de varrer duas vezes com os
olhos os originaes, assim se exprimio, como quem entendia do riscado.

--O titulo abrange o _totum_; direi até--este titulo foi inspirado e
leu.

                             «_Horas incertas
                         Versos, prosas e comedias,
                       Dramas, maximas e pensamentos
                                    do
                                 Exilio._»

--É como digo, proseguio; isto que é saber achar um titulo. Horas
incertas! quanta profundeza nestas duas palavras _horas incertas!..._ Se
as horas da vida são incertas, mais incertas são as horas do genio....

(Sim, porque o genio não tem horas certas, é da sua indole não saber
nunca a quantas anda.)

--Concedes-me uma observação.

--Faze-a.

--Gósto de tudo isto, tudo isto é grande, menos a epigraphe. Esta
epigraphe não cabe nas obras de um genio.... E leu a epigraphe:

    «Joios da adolescencia levados á praça pela precisão.»

--Joios! chamar joios a um celeiro de trigo são! e depois, levados á
praça pela precisão! que significa isto?

--Eu te explico....

--Não pergunto por ignorar o teu pensamento; sinto-lhe a essencia; sei o
que tu queres dizer: levados á praça pela precisão, todos entenderão a
elipse, pela precisão de... voar... sim, de voar, porque o genio precisa
voar como a aguia, como o condor. Os malevolos, porém e invejosos cujas
linguas não poupam os genios, esses dirão ser a precisão de dinheiro,
apezar de todos saberem que tu de dinheiro não precisas...

Estavam adiantados! era justamente do que eu mais precisava[1].

--Ou precisas? perguntou com ar de quem responderia sentir muito não me
poder servir na occasião, se lhe eu respondesse pela affirmativa.

--Ora... desdenhei. Eu lá careço de dinheiro!

--Se precisas, tornou animadamente, não faças ceremonia comigo.

E sem esperar pelo _muito obrigado_, continuou.

--O estylo é o homem, disse Buffon; por minha vez tambem digo: o nome do
autor é a epigraphe do seu livro; tu não te deves rebaixar deitando
outra epigraphe nas tuas obras que não teu proprio nome.

Á vista disto, chegando ao prélo borrei a epigraphe.


CAPITULO IV.

Já se achava quasi finda a impressão do primeiro volume, quando em um
bom dia recebi este bilhete traçado a lapis:

«Illm. Sr.--Vou suspender a impressão das suas poesias, até que V. S.
satisfaça a importancia de 113$500 das ultimas folhas impressas.»

Subi ás nuvens. O recadinho vinha escripto no reverso da prova de uma
das minhas mais mimosas poesias.

Tomei a penna e desanquei o recado com esta resposta:

«Illm. Sr.--Que eu deva não admira, todos os autores celebres têm
contrahido dividas com a imprensa, e sabem todos que a machina inventada
por Guttemberg não é simplesmente machina de imprimir, é tambem _machina
de abonar o credito dos homens_. O que, porém, admira até os calcanhares
é um sectario de Guttemberg menospresar a seiva, digamos assim, de que
se nutre a imprensa, isto é, os fructos da intelligencia. V. S. é um
renegado, queira perdoar. Commetteu crime de leza-literattura-nacional
traçando o seu recado nas costas, digo, no reverso da prova da minha
poesia intitulada a _Piroga_! Suspenda, portanto, a continuação da
impressão do meu volume, até minha segunda ordem.»

Levou a lição!


CAPITULO V.

Em verdade, eu devia ao prélo cento e treze mil e quinhentos réis.

Do que me gabo hoje é que, actualmente nas typographias, o credito dos
escriptores não monta áquella quantia.

--Diabo!.. ruminei, alguns jornaes já annunciaram o proximo
apparecimento de minhas poesias: se não satisfaço a conta pára a
impressão; se a impressão pára, começam os typographos a decorar os
versos impressos... elles então que são _cantadores de modinhas_! e
decorados, adeus novidade! Ruminando na solucção do imprevisto embaraço,
fui interrompido pelo padre Severino. Conhecem-o?

Eu tambem já o-conhecia.

O reverendo entrou pelo meu habitaculo clamando:

    --Leva-me preso comtigo
    N'um fio dos teus cabellos!

--Glose este motte, meu poeta.

Nós já nos não respeitavamos.

--Ouça isto, foi proseguindo:

    Não se sabe apartar quem ama e pena,
    E quem nisto é mais fraco, este é mais forte;
    A dôr da mesma morte é mais pequena,
    Que quem morre melhora muito a sorte;
    Quem morre acaba o mal, quê toda a pena
    Dura co'a vida sem passar da morte:
    Maior pena padece o que está ausente,
    Pois morre de saudade e morto sente.

--O que acha?

--Que li algures...

--Onde homem? isto é meu e muito meu. Pensa vossê que só faz versos? Por
mais prosa que a gente seja, batendo-lhe devéras o coração, torna-se
poeta. Adivinhe o que me succedeu?

--Suspenderam-lhe as ordens...

--Assim fosse; cousa mais seria; partio para a Bahia a Mariquinhas...

--Qual dellas? o padre falla em tantas...

--A da rua da Lapa, a unica Mariquinhas, que tenho confessado, de olhos
azúes. O marido foi removido.

--Coitado do homem!

--Faça idéa do meu pezar ao receber esta noticia, chegando hontem de
Petropolis.

--Avalio!

--Vossê, deve escrever um artigo contra o ministerio, tosando a valer o
ministro da fazenda. Isso é cousa que se pratique, remover d'aqui para
alli e sem porquê um pobre empregado publico?

--E de mais a mais casado!...

--E querem moralidade, e exigem honradez da pobreza obrigando-a a fazer
sacrificios... escreva o artigo, mostre tambem saber prosa.

--Mas, padre, porque não o-escreve vossê, que é o interessado?

--Muito obrigado! então vossê porque não é padre, não se interessa pelos
seus semelhantes?

    _Non sibi soli se natum homo_
    _Meminerit..._

Seja menos egoista meu poeta, e glose o motte:

    Leva-me preso comtigo
    N'um fio dos teus cabellos,

que é para eu remetter com aquella oitava a Mariquinhas. Quero uma
decima triste, triste como o _miserere_.

--Temos outra. Pois se o padre é quem está triste, porque não compõe a
glosa?

--Porque tenho que pregar um sermão na quinta-feira, o vapor sahe amanhã
para a Bahia e hoje é terça.

--Pois eu, reverendo, não terei cabeça para glosar motte algum, emquanto
não resolver este problema: cento e treze mil e quinhentos réis, que
devo, estão para o que tenho, como o que tenho está para X...

E ficamos a olhar um para o outro, durante cinco minutos.


CAPITULO VI.

--É como conto, tornei interrompendo o silencio, devo cento e treze mil
e quinhentos réis e não possuo um real para chamariz dos outros.

--A quem deve?

--Á typographia onde estou imprimindo as minhas poesias.

--Vossê ha de ter algum amigo, que lhe empreste essa quantia, nem por
isso é grande.

--Empresta-m'a o padre?

--Eu? pobre de mim! Meu caro, nós os padres não ganhamos, como
vulgarmente se pensa, mundos e fundos. Quantas vezes tenho, em vez de
encommendar á Deus, encommendado ao diabo algumas almas... uma
encommendação por dous mil réis só feita ao diabo! Já não se póde viver
nesta côrte, acredite-me, encommendando; e por fallar nisto, vou vêr se
fallo ao vigario capitular, quero conseguir ao menos, a nomeação de
vigario encommendado. Até breve, meu poeta. Tomára já vêl-o em outra
posição.

E sahio.

E que me dizem?...


CAPITULO VII.

Suggerio-me á mente uma ideia a visita do padre. Havia elle, dias antes,
publicado um estirado artigo relativamente á instrucção publica e com
particularidade á _desmoralisação do clero_. Quanto a esta não sei se
fallou de cadeira, lá quanto á instrucção deixou impressas mil
barbaridades.

--Se o conselho da instrucção publica, pensei, mandasse admittir nas
escolas as minhas maximas? E porque não? As de La Rochefoucauld são
muito sediças; as do marquez de Maricá inadmissiveis por extensas; as de
Vauvenargues ninguem ainda leu; as do conselheiro Bastos ultramontanas
exageradas; as de Montesquieu são carapuças politicas; as... as minhas
são modernas... e, approvadas pelo conselho da instrucção publica,
editores não faltarão.

Estava dada solução ao embaraço dos cento e treze mil e quinhentos;
vendi, in-mente, a primeira edição das maximas.

Nesse mesmo dia fiz o requerimento ao conselho da instrucção publica
remettendo os originaes. As sommas das maximas montava ao numero 1250,
sendo algumas rimadas e outras anotadas--entre parenthesis.

Apreciem-me por esse lado, emquanto avio a lavadeira, que chega a pello.


CAPITULO VIII.

A VIDA:--A vida é um _pique-nique_, e nós, ainda os mais refinados
caloteiros, havemos de pagar o nosso _escote_ á morte.

(Para these dos sermões de quarta feira de cinza não conheço outra. O
_memento homo_ já não produz nada...)


VERDADE:--Uma verdade é uma mentira ás avessas.

(Difinição a mais clara possivel).


DISPENSA:--[2] A mulher que pensa
               Engorda a dispensa.

(E a familia toda. Na casa das minhas avós até as baratas da dispensa
eram gordas, não fallando nos ratos).


AMOR:--O amôr
       Não tem côr.

(Neguem, se são capazes).


AMAR:--Quem ama perdoa,
       E não vive á toa.


CIDADÃO:--O cidadão deve ser para a patria o que o menino é para a escola.

(Conhecem moralista mais governista?)


FALLAR:--Quanto menos fallares ao jantar,
         Menos fome terás ao ceiar.

(Lição altamente economica).


CHÁ DO VISINHO:--Ha pessoas que tem quebrado muitas abas de chapéo fino
e sujado muitas luvas de pellica--pela obrigação de uma chicara de chá
do visinho.

(Conheço tres duzias).


PROSPERIDADE HUMANA:--Prosperaria mais a humanidade, se os padres
semeassem trigo em vez de absurdos.

(Não creio nisso; escrevi a maxima para bolir com o padre Ventura, que
então ainda vivia.)


CONDECORAÇÕES:--Se as condecorações estimulassem o caracter para o bem,
a esta hora no Brasil não haveria máos caracteres.

(Negarei a paternidade desta maxima, quando fôr commendador).


BAPTISMO:--O baptismo só é util pelo lado da estatistica.

(Esta é para bolir com o padre Severino.)


ATHEO:--O atheo é um ente tão desprezivel, que, não achando entre os
homens quem queira ser seu inimigo, faz-se inimigo de Deus.

(Esta salva as memorias da condemnação do index).

& & & & & & & & & & & &


CAPITULO IX.

Primeiro que as maximas obtivessem despacho, recebi da minha terra uma
carta do muito probo Sr. Silva, cognominado pelo vulgo o _tira pelle_,
negociante com armazem de _seccos e molhados_ na travessa da Forquilha.

Recommendo este estabelecimento aos que procuram do bom e barato.

O vulgo, que sempre ha de mostrar ser vulgo, cousa baixa e vil e mais
baixa e mais vil depois das eleições concluidas, cognominára _tira
pelle_ a esse honrado cavalheiro por um facto, que, em seu nome,
justificarei.

O Sr. Silva nunca tirou nem pretendeu tirar o couro, quanto mais a
pelle, á ninguem.... obrigaram-o a isso.

O meu amigo, actualmente negociante matriculado, começou a vida
refinando assucar. Honra lhe seja feita, antes principiar a vida
refinando assucar do que leval-a ao cabo na qualidade de refinado vadio,
ou refinadissimo velhaco.

Achava-se certa vez na sua labutação, quando apparece na cosinha um
individuo, que entrou pela casa como se fosse o dono.

--Sr. Silva! diz o individuo com má catadura.

--Bom dia, Sr. Alves, acode o laborioso refinador; e foi continuando a
mecher o tacho com a grande escumadeira.

--Não temos cá bons dias! replica Alves. Quero que diga, quantas arrobas
de mascavo-claro mandei refinar.

--Cinco, respondeu o refinador.

--Justas, cinco; e quantas enviou?

--Quatro e meia.

--Justas, quatro e meia. Quatro e meia, sim, quatro e meia.... porém,
duas e meia de assucar e as outras do que, Sr. Silva?

--Tambem de assucar, está claro.

--De assucar.... de assucar, êim, Sr. Silva? Digo-lhe, todavia, que
entendo de refinação....

--Não duvido.

--Duvide ou não duvide, o que digo, digo. E quando digo que cinco
arrobas de assucar são cento e sessenta libras, é porque sei que uma
arroba, seja lá do que fôr, tem trinta e duas libras. Ora, sendo certo,
como é incontestavel, que cada arroba de mascavo-claro perde na
refinação, quando muito cinco libras, é porque tambem sei que em cinco
arrobas perderá vinte e cinco, já que a taboada quer que cinco vezes
cinco sejam vinte e cinco.

--Noves fóra sete, diz rindo-se Silva.

--Não preciso que o senhor me ensine a tirar os _noves fóra_, o que
preciso é saber como é isto....

--O que? pergunta o outro.

--Que devendo eu, por consequencia, receber quatro arrobas e sete libras
de assucar refinado, recebi quatro arrobas e meia?

--Está-se mettendo pelos olhos; é que mandei nove libras de mais,
segundo a sua taboada.

--A taboada não é minha, Sr. Silva! brada Alves, enfurecendo-se mais. A
taboada é de todo o mundo, entendeu?

--Entendi... entendi... responde o meu amigo com santa calma.

--O que é meu é o calculo, e, conforme calculei, entre as quatro e meia
arrobas de assucar, foram duas de arêa, fique sabendo de arêa...

--De arêa? acode o refinador cahindo das estrelas; essa agora é sua...
ou então o portador...

--Não temos aqui portador nem portadores. Os meus caixeiros são homens
de bem, e o senhor devia saber que, sendo meu freguez o presidente da
camara, mais dia menos dia, eu seria multado pela sua... e engulio a
palavra.

--Solte a palavra... brada Silva.

--A palavra é ladroeira, responde Alves.

--Então sou ladrão? Diga, se é capaz, sou ou não sou?

Alves não se intimidou e asseverou;

--É, é, e é ladrão, e ladrão refinado...

O meu amigo não podia ser mais prudente do que o foi até alli. A
prudencia, porém, tem o seu termo. Alves não previu que, obrigando o
honrado refinador a sahir fóra do termo da prudencia uma pollegada,
sugeitava-se a receber, como recebeu, na cara a escumadeira impregnada
de assucar em calda a ferver. Sem esperar repetição da dóse, Alves sahio
vendendo mel ás canadas.

Quinze dias depois tinha a mesma cara, menos a pelle.

Propalado o caso, deu-se ao meu amigo o cognome citado, que nada teve
com a substituição do assucar trocado por arêa, como prova a carta a
qual me repórto.


CAPITULO X.

Eis a carta em capitulo separado.

«Illm. Sr. (_Historica._)

                                                    Presadissimo amigo.

«Inclusa remetto a V. S. uma letra saccada a seu favor sobre a casa
Souto & C., dessa côrte, obsequio que faço a sua madrinha de baptismo,
viuva do seu padrinho, ultimamente fallecido. Sendo-lhe deixada em
testamento pelo dito fallecido, pelo que aceite os meus pezames, a
quantia de 450$000, a letra vai saccada no valor de 437$820 por
_subtração_ a que tenho direito de 12$180, sendo:

    Direito de confiança, 2%.............. 9$000
    Sello e seguro desta.................. 1$180
    Papel e expediente.................... 2$000
                Somma.................... 12$180

«Poupe o seu dinheiro, meu amigo, olhe que muito custa _havel-o_.

                                          «Sou seu amigo e criado.»

Não foi elle quem grifou a palavra subtracção.


CAPITULO XI.

Quando o conselho da instrucção publica deu este despacho ao meu
requerimento: «_Junte o supplicante folhas corridas_», eu já não
precisava de editor para as maximas.--Resgatado da imprensa o meu 1.º
volume já corria pelo mundo.

Estava saboreando a leitura do mais pomposo elogio, que jámais se teceu
a nenhum outro homem de letras, quando entrou o Sr. Gusmão. O Sr. Gusmão
era typographo e trabalhava na officina onde se imprimio o volume. Vinha
buscar os originaes do segundo.

--Meu caro Sr. Gusmão, assente-se, então como vai?

--Remendando a vida.

--Já leu o meu livro?

--Sim, senhor.

--Francamente, como o-acha?

--Volumoso...

--Volumoso, sim, quasi que abrange trezentas paginas. Já comecei a urdir
um poema heroico.

--Que titulo?

--Homem, ainda não sei; talvez lhe ponha o titulo em lingua indigena,
quero vêr se desperto a literatura nacional.

--É muito preciso.

--Se o-é. O Sr. Gusmão entende de poesias?

--Gosto de lêr, sim, senhor.

--De qual genero gosta mais?

--De todos, sendo a poesia boa.

--Gosta do meu genero?

--Qual é?

--São todos, pois os jornaes não disseram que eu primo em todos os
generos? Então não leu o meu livro?

--O senhor sabe, lêr é um caso e compôr é outro. Na qualidade de
compositor li-o quando o-compunha, na qualidade, de leitor, propriamente
dito, ainda não o-li.

--Então não sabe dizer se os versos são bons, se as rimas ricas, se é
corrente a grammatica, se ha ideia...

--Mas V. S. deve estar contente com a opinião dos jornaes.

--Contentissimo. De cada vez que leio um elogio releio o volume, e
quando acabo de relêr a este tenho vontade de escrever outro.

--Lá isso ha de ter.

--Diga com franqueza, nem de passagem notou tal ou qual defeito?

--Ninguem anda isento delles.

--Nos versos?

--A sua metrificação é regular.

--Nas rimas?

--As rimas são toleraveis, excepto algumas como, por exemplo, _nuvem_
com _houve_...

--E que diz da dicção?

--A dicção...

--Seja franco, eu não sou parente daquelle cura, que foi amo de
Gil-Braz.

--Como pede franqueza direi que, se não fosse a grammatica, o livrinho
podia passar incolume, mas a sua grammatica é muito differente d'aquella
por onde aprendi.

--Aprendi pela do Lobato.

--Então é a mesma. Queira vêr os originaes do segundo volume.

--Ainda não os-reuni todos, volte amanhã, se não fôr incommodo. Quer
fumar, offereço-lhe um charuto de Havana.

--Não senhor, obrigado, eu não fumo se não charutos de vintem.

Eu fiquei _fumando_...


CAPITULO XII.

De que lado estava a verdade, do Sr. Gusmão ou dos jornaes? Afinal de
contas, o typographo tinha razão. Entretanto, a primeira parte do meu
_celeiro de bom trigo_, no conceito do meu amigo bacharel, estava
esgotada!

Hoje, quando corro os olhos pelo exemplar que, por castigo, releio uma
vez na semana, dirijo ao creador este acto de contricção: «Meu Deus e
meu Senhor! por serdes vós, quem sois, permitti que os irmãos deste
exemplar caiam todos n'uma padaria e passem para as fornalhas como
auxiliares da lenha, que nesse dia cosinhe os pães! São elhas por elhas,
Senhor, trigo cosinhando trigo. Amen.»


CAPITULO XIII.

Ao outro dia recebi o Sr. Gusmão entre os braços.

--Entre, meu amigo, assente-se e conversemos. Ainda aqui está o charuto
de Havana, aceite-o.

--Obrigado, mas não aceito, insistio o homem. Penso diversamente dos
outros; o que não posso sustentar todos os dias, não alardeio uma vez.
Demais, habituado a fumar charutos de vintem, sabem-me a _pessimos_ os
de tostão para cima.

--Respeito o seu modo de pensar. Dou-lhe parte que suspendo a publicação
das minhas obras.

--Então tomou a peito a opinião de um typographo?

--E o typographo não póde ter opinião aceitavel, não póde saber
grammatica?

--Que opinião póde ter o homem, que anda de ventanilha? Lá quanto a
grammatica devia saber. Onde me vê, com o pouco que entendo della, tenho
salvo a reputação futura de muitos escriptores, aliás intelligencias
brilhantes, emendando-lhes, quando componho seus originaes, erros de
tirar couro e cabello...

--Ora, Sr. Gusmão, porque não emendou os meus?

--O senhor desejava um volume de trezentas paginas e se eu corrigisse os
seus descuidos não ficava o livro com cem....

Apre! tambem esta foi de tirar couro e cabello!


EPILOGO DA SEGUNDA PARTE.

Ahi vai em italico o que devo ao Rio de Janeiro; saiba o Imperio todo:

--Devo o conhecimento do Sr. Gusmão,--que me mandou
aprender--grammatica--depois dos jornaes me haverem--chamado--Homero--!

Cautela com as reputações.




TERCEIRA PARTE.


CAPITULO I.

Cheguei ao estado de dizer com o philosopho grego:

    «_Omnia mea mecum porto._»

Ignoro se os gregos fallavam latim no tempo de Bias.

Cifravam-se as minhas posses em 25 annos de idade e na roupa do corpo,
sendo que essa já estava fóra da moda.

O melhor excitante para o fastio do espirito é, incontestavelmente, a
privação. Essa é a razão porque no vigor da idade não são os desejos
vehementissimos, como aos 90 annos, na decrepitude, quando já se não
póde com um gato morto, para não dizer _gata_... e isso por ser a
privação, em todos os sentidos, irreparavel. Induza-se d'ahi o gráo da
minha excitação, privado de meios com os quaes satisfizesse desejos,
que, como vespas damnadas, me agrilhoavam por todos os modos e em todos
os sentidos?!

Silencio, bocca!...


CAPITULO II.

Sem credito literario diante dos meus proprios olhos--abertos pelo bom
senso do typographo Gusmão; sem abono-monetario diante de todos os olhos
fechados pelas minhas circumstancias; eu andava a pleno ar a procura de
um meio, que me arredasse do precipicio para cujas bordas já me
encaminhava--o jogo. Eu teria calado no fundo desse abysmo, se houvesse
tido para a primeira parada.

Capitulos da altura deste não indigestam. Digerem como sorvas, e fazem
render um livro...


CAPITULO III.

Todas as mulheres deviam collocar na alcova de orações um nicho, e
dentro delle o busto de Aristophanes. Ao mordaz atheniense são ellas
obrigadas pela reforma do meu juizo a seu respeito. Antes de lêr
_Lysistrata_, meu pensar era que as mulheres rezavam pela cartilha da
Sra. Balbina.

Emendei-me, dando rédeas ao amor.

Amei com impeto! como o leão seria capaz de amar, se as leôas das
brenhas soubessem como as das cidades--encarentar favores...

O amor! o amor! Dizem que não come! se não comesse não se alojaria no
coração--que fica ás portas do estomago.

Montaigne já o-chamava _sêde da mocidade_.

Da sêde á fome vai só um passo.


CAPITULO IV.

    «Eu sempre ouvi dizer:--frade nem vivo,
    Nem morto e nem pintado na parede.--
    A rasão deste dito salta aos olhos;
    O que frades, outr'ora, não fizessem
    Incumbir ao diabo era debalde:
    E as chronicas referem muitos casos
    De quináos, que ao diabo os frades deram.
    Mas verdade verdade, o frade de hoje,
    Labéo das frias cinzas de Epicuro,
    Não chega ao calcanhar do velho frade.»

    Repetindo em voz alta estas blasphemias,
    Os olhos affinquei n'um poento quadro,
    Meu fiel companheiro no deserto
    Em que a mão da fortuna me lançára.

    O quadro figurava um frei Rotundo,
    Nutrido e nédio, rindo-se á sorrélfa
    Da feia carantonha do diabo,
    Que raivoso mordia um par de dados.

    Mingúa a humanidade a pouco e pouco!
    Já se não topa mais um frei Bojudo
    Estillando gordura ao sol em pino.
    Que ditosa panella, a de outros tempos,
    Onde cahisse o lenço de Alcobaça
    Que limpasse o cachaço de algum frade!
    Sahia a olha convertida em banha.
    Hoje o frade, sequer, sabe o Larraga
    Ou Brillat-Savarin. Dantes o frade
    Era um poço ambulante de sciencias.
    E os costumes? e o lar? se bem me lembro,
    Algures li que, vós, ditosos monges,
    Fostes, nas priscas eras dos conventos,
    Pesadelo de todos os maridos,
    E horror! horror! horror! das raparigas!

    «Illustre Guardião (clamo inspirado)
    Tu mais que Belphegor sagaz nos tramas,
    Mais roliço e mais sabio, tu me ensina
    O meio de sahir destes apuros!»

    Avalie-se agora o que eram frades
    Em tempos que lá vão,--que desenhados
    Inda fazem milagres. Repentino
    Me occorre um pensamento de alta monta.


CAPITULO V.

Escrevi esta epistola:

«Senhora.--Vós sois a belleza, de mimosos contornos; eu sou o bello, de
rudes musculos. Vós sois a bonina, que murcha ao primeiro raio do sol;
eu sou o sol, que o diluvio não apagou. Vós sois a debil pastorinha
avergada ao peso dos trevos com que se enfeita; eu sou o vigoroso
camponez, que leva as costas um boi sem lhe sentir o peso. Senhora!
meditai nestas parabolicas palavras! e se julgardes ser a força o amparo
da fraqueza, respondei em carta fechada com endereço a ***, que eu mesmo
a-irei tirar da latinha do escriptorio do _Jornal do Commercio_.»

O remate estragou a epistola.


CAPITULO VI.

Eram oito horas e meia da noite, subi e desci a rua do Ouvidor.

Nenhum _ignotus Deus!_ nenhuma mulher com cara de entender a epistola!

Mas eu confiava na inspiração!

As transeuntes levavam todas a reboque um marido ou cousa com semelhança
disso.

Eram nove e meia. Ainda nada.

Mas o frade não me sahia da mente!

--Dar-se-ha o caso, reflecti, que hoje seja a noite tão sómente dos
casados?

Entendamo-nos. Queria dizer, a noite de sómente passeiarem os casados;
nós sabemos que todas as noites são delles, _quand-même_...

Puz-me a olhar através dos vidros os livros expostos á venda na casa
Garnier.

D'ahi a pouco, chega e pára a outra vidraça uma mulher _só_... Só digo
eu, não contando o cãosinho felpudo, que a-seguia.

Era um animalsinho com ar inoffensivo e prasenteiro e cara de quem não
aceitaria, se lhe mandassem, um cartel. Começa a mão do frade!

Olhou... olhou... (ella e não o cão), e entrou na livraria. Ouvi-a dizer
em francez de Racine:

--_Les Femmes, par Alphonse Karr?_

--É justamente a mulher, que eu sonhava, disse a mim mesmo; mulher que
lêsse o autor de _La pêche.... en eau douce... et en eau salée...._
Abeirei-me á porta.

Deram-lhe o livro; folheou-o, pagou-o sem questionar o preço, deu
boa-noite e sahio.

Fóra da loja, tomei-lhe a frente, comprimentei-a com acatamento,
rogando-lhe aceitasse a carta.

--Quem é o senhor? e donde vem essa carta? perguntou meio desdenhosa.

--É tudo um mysterio, respondi. Lendo a carta saberá.

--Ah! cheira a mysterio? pois sim, dê-m'a, eu gosto dos mysterios.

Tomou-a e partio com ar senhoril. E viva o frade!

Ao desapparecer na turbamulta, aproximou-se-me um permanente pedindo-me
o charuto para acender um cigarro.

--Camarada, lhe disse, eu não inventei a polvora, porque nasci depois
della inventada.

Elle concordou, rosnando:

--Polvora! polvora! que diabo é polvora?


CAPITULO VII.

Doze horas depois fui ao escriptorio do _Jornal_; lá estava uma cartinha
com a minha senha. Constava de duas linhas bem traçadas, quanto á
essencia; quanto á calligraphia, nunca vi peóres gregotins.

«Sr. ***.--Ora queira Deus e Deus queira vos não mettais em camisa de
onze varas! Rua do Conde n....»

Resposta mais laconica e expressiva, só um couce, mal comparada.

Sem perder os estribos da confiança, em presença de tamanha ameaça, fui.

Eram onze horas da manhã, duas horas depois de feita a digestão dos que
almoçam ás nove.


CAPITULO VIII.

Ha trinta minutos.

--Que idade tendes? pergunta ella.

--Vinte e cinco annos; respondo.

--Como sois moço!... Meu marido morreu dessa idade.

--É lei da natureza, que se morra de toda idade.

Proferi o axioma na intenção de afugentar qualquer idéa negra, que, por
ventura, viesse perturbar a interlocução.

--É facto, concordou, accrescentando, como quem a si propria dava
desculpa: tambem elle era muito franzino...

E de esguelha, pela oitava vez, medio-me com os olhos de alto a baixo.

Neste ensejo, tomei-me o pulso. Deitava 105 pulsações por minuto. Eu na
vespera almoçára mão de vacca.


CAPITULO IX.

    Ha dous mezes.
        Deu-se garrote á prudencia.
    Reina o commumnismo.
        Folga Épicuro.
    Vai tudo de afogadilho.
        O trem assovia.
    Tenha o leitor paciencia.
        Escasseiam-me trégoas.

Isto é prosa.


CAPITULO X.

Chamava-se Monica; nome que não anda na bocca de todos, e a essa
vantagem reune a de ser esdruxulo.

Casára aos vinte nove annos de idade com um rapaz de vinte e quatro; e
enviuvou no anno seguinte. Tudo isto foi muito natural, sendo mais
natural a morte do rapaz.

Não era bonita, era sympathica. Não era sabia como D. Maria Caetana
Agnezi, mas era intelligente; e mais _espiritada_ do que espirituosa.
Neste ponto trivialissima.

Lia o portuguez corrente como um juiz de paz, e trazia o francez em
sarilho. Tocava a _saloia_ ao piano, e nutria a presumpção de saber
contar.

Quando a-conheci seus progenitores já haviam levado a breca.

Pretendeu-a na viuvez um capitalista, tambem viuvo.

Monica accedeu á licita pretenção. Nas vesperas das bodas,
revelou-se-lhe o noivo com queda para a literatura-_funda_, ao lêr um
artigo, inserto não sei em qual periodico, onde, _ad-rem_, o escriptor
citava este aphorismo de Balzac:


«_Un mari ne doit jamais s'endormir le premier ni se réveiller le
dernier._»


Seguia-se a traducção, o pomo da discordia: «_O marido não deve pegar no
somno antes da mulher e nem acordar depois della._»

--Como isto é fundo! exclamou o capitalista, chamando a attenção da
noiva para o conselho em portuguez.

--E o senhor, perguntou Monica, no seu tempo de casado seguio isso á
risca?

--Como seguiria, se é agora que sei disto?! Ah! se eu em outro tempo
adivinhára... e engasgou-se com o resto. Mas, proseguio, cá me fica no
canhenho; conselhos como estes não se perdem.

Confessemos, o capitalista não andava corrente com o _Codigo do
Bom-Tom_. Declarar á noiva que um aphorismo de tal jaez lhe ficava no
canhenho, foi falta de tino imperdoavel.

Monica, que lia Alphonse Karr e tencionava dar um pulo até á França para
comprimentar o autor das _Guêpes_, com o que o Sr. Alphonse Karr, por
sem duvida, muito se lisongearia, não contendeu.

Na manhã do dia seguinte pespegou ao capitalista em carta este
_bofetão_:

«Senhor.--Toda a noite considerei no conselho de hontem e não me
convenci que seja o marido quem deva pegar no somno depois da mulher e
acordar antes della, por muitas e longas razões com as quaes eu encheria
uma resma de papel, se quizesse argumentar. Tendo V. S. no seu canhenho,
tomado nota do conselho, pol-o-ha em pratica depois de casado;
achando-me em opposição a semelhante pratica, desisto do meu
compromisso. V. S. está livre, disponha do seu coração. Prefiro a
_monogamia_ ás desavenças do lar.

                                                 «Sua criada

                                                   «MONICA.»

Quando um homem recebe nas bochechas um recado destes, é mister que
saibam todos o seu nome.

O capitalista chamava-se Joaquim.


CAPITULO XI.

O Sr. Joaquim leu, releu e treleu a carta. Ao depois chamou o
guarda-livros.

--Sô Pinto? chegue-se, faça favor.

Pinto aproxima-se.

--Que palavra é esta? pergunta mostrando a Pinto a segunda palavra do
remate da carta.

Pinto arregalou os olhos, soletrou a palavra e leu--_monógámia_... e
repetio separando as syllabas: Mo-nó-gá-mi-a... Isto não é palavra,
decidio.

--A mim tambem me parece que não é, concordou o Sr. Joaquim, cuja
intelligencia dava pelo estalão da do outro.

Pinto voltou aos livros.

O Sr. Joaquim garatujou;


«Senhora.--Eu quando digo as cousas é porque sei. Não é debalde que sou
viuvo. O meu pezar é ter aberto os olhos quando a mulher fechou os seus.
O conselho do periodico é fundo como um poço, e os periodicos quando
dizem as cousas--são como eu--sabem o que dizem. Estou no mesmo pé. A
mulher ha de pegar no somno antes do marido e acordar depois delle, sem
esta condição saia não me torna a entrar em casa. A palavrinha monogamia
não leva a resposta devida por não ser palavra.

«E temos conversado.»


Monica revelou-me este episódio uma vez quando lhe disse andar perto de
querer casar com ella.

No fim da narração, pendi para a opinião do Sr. Joaquim.

Não sei porque, mais tarde, fizeram barão a este homem, que tanto senso
parecia ter!


CAPITULO XII.

Não fui eu, propriamente dito, que cahi na graça da viuva.

Disse-me ella:

--Á primeira vista antipathisei com o teu focinho. Cahio-me no gôto o
teu singular modo de amar. Fui sempre enfermiça do desejo de ser amada
por um _exquisito_, um original fosse em que fosse. Meu marido foi um
homem como os mais, media pela bitola geral. Não se lhe notava
particularidade alguma, que o destacasse do _chavão_ commum. Tu me
pareceste um homem raro, a julgar pela tua carta.

E case-se um homem _commum_?!

--Tenho desmentido a tua espectativa? perguntei.

--Vais descahindo... vais... ha dias a esta parte: respondeu.

De facto, eu descahia a ôlho.

Que querem?

_L'amour use vite les hommes; il soutient longtemps les femmes..._

Aphorismo é isto.


CAPITULO XIII.

Balzac limpe as mãos á parede.

«É mais facil, diz elle, ser-se amante do que marido, por isso que é
mais difficil ter-se espirito todos os dias do que, de quando em quando,
amabilidades para dizer».

E quando o amante, meu caro Sr. Balzac, no meu caso, á guisa de marido,
cohabita com a amante, é facil ter espirito todos os dias?

Nem uma nem outra cousa. Eu já não tenho que dizer a Monica.

No capitulo passado não briguei com ella por evitar a descripção da
queréla. E se não fosse o medico, a botica, o padre, a confissão e
depois o enterro, e em seguida as missas e no fim, tres dias de
nôjo--matava-a neste.


CAPITULO XIV.

Uma tarde, no largo de S. Francisco de Paula, no espaço onde plantaram o
actual lampeão, que lá existe com ar de vedeta desarmada, encontrando-me
com o meu velho amigo Simphoriano, o unico que possuo com este nome, me
disse elle:

--Que tens tu? estás pallido como uma abobora?

Simphoriano é filho de uma provincia do Norte, cujos naturaes chamam
_pallidas_ ás aboboras _maduras_.

--Falta de sangue, meu caro; o sangue se me aguou todo, depois da
ictericia, respondi.

Elle sabia que essa doença me acommettera havia dous annos.

--E a magreza? replicou.

--Que queres? transpira-se muito neste Rio de Janeiro... o sol
derrete...

--Fosse essa a causa...

--Não sei de outra.

--Disse-me o Patricio (Patricio era um _trocatintas_ do meu
conhecimento), que tu _sacrificas em demazia ás graças_...

--És tu quem sacrifica a verdade á peta, trepliquei, pelo gostinho de
alardeares certa illustração. Quem ainda não sabe que Platão aconselhava
ao discipulo Xenócrates, austero, como Newton, nos costumes, a
sacrificar ás graças? Ouve o que do mesmo Xenócrates disse o padre José
Agostinho na _Viagem extatica_:

    «Da belleza inimigo e da ternura,
    Xenócrates descubro austero e triste,
    Vergonhoso baldão da especie humana,
    Que nem ao vivo scintilar de uns olhos,
    Nem ao mago sorriso deslizado
    De um labio, côr de purpura, ou de rosas,
    Ou aos aureos anneis de tranças de ouro,
    Da natureza escuta a voz suave,
    E sopro avivador, que atêa o fogo,
    Tão grato ao coração, que é delle a vida;
    Fogo, que até do mar no abysmo fundo
    Sujeita a seu imperio equóreos monstros,
    E a sanguinario tigre, indocil sempre,
    Amar ensina, e conhecer ternura.»

--Isto disse o padre, como entendedor que era, na _Viagem extatica_ que,
ao depois, crismou com o nome de _Newton_ emendando entre outros, este
verso, que tu nem ninguem recitará sem ao principio latir o seu pouco:

    OU AOS AUREOS--anneis de tranças de ouro.

--Concorda, prosegui, não me achaste descalço. Agora o suppores que
abuso do _sacrificio_ é outro engano. O _nequid nimis_--equivalente ao
preceito de Hippocrates:

«_Omne nimium naturae inimicum est_» foi sempre a minha divisa.

Houve excepção....

Simphoriano ia tomando a mão.

Atalhei-o, já esquentado.

--Andas sempre a prasmar contra os que sacrificam ás graças. Quererás
ser tido na conta dos ditos Xenócrates e Newton ou de Kan, Vico, W. Pitt
ou Carlos XII?

Pensas que ignoro que Mirabeau morreu aos quarenta e dous annos em
consequencia do abuso desse sacrificio e que pela mesma consequencia
morreria Bichat, a quem Bourg levantou uma estatua, se não morresse em
1802 aos trinta e um annos, da queda que deu descendo as escadas do
_Hotel de Dieu_ cujo medico era? Vês que ás apalpadellas não ando nos
factos da historia, e será bom que percas o sestro de _literato á la
violeta_.

Com effeito, Simphoriano era boa creatura, mas não soltava tres palavras
sem citar dous ditos ou nomes de homens celebres, seus conhecidos--pelos
catalagos dos livros.

E eu sem saber o cabo que darei a Monica?!


CAPITULO XV.

--Estás sufficientemente barbado, proseguia de outra feita o meu amigo.
A ultima de mão que a natureza dá ao homem são as barbas....

Isto dito em francez--passava a proverbio.

--Portanto, continuava elle, és homem feito, em todos os sentidos.

--Em sentido algum, nunca deixei....

--Não me atrapalhes e nem comeces a zombar, senão, calo-me. Trata-se de
cousa séria; sou mais velho, sou teu amigo, ouve-me.

--Sou todo ouvidos, falla.

--Bem. Estás perto dos trinta annos...

--Cinco annos distante...

--Aos vinte e cinco já se tem andado quazi meio caminho da vida. Na
outra metade precisamos pôr todo o cuidado. D'aqui a vinte e cinco annos
serás velho, e esse espaço de tempo, além de curto, passa com a
velocidade do vento. Em que te occupas presentemente? Dás pasto á
ociosidade abusando da tua compleição.... vives, portas a dentro, com
uma desgraçada, que te suga a seiva da mocidade e até os brios...

--Alto lá....

--E os brios, sim. Que esperas do futuro? o menospreço publico--a mais
digna herança dos _chichisbéos_....

--Perdôa-me, atalhei-o, senão arrebento. De accordo com o _Diccionario
do amor_, chichisbéo é, commummente, um celibatario maduro, namorador
assiduo, servo de uma mulher casada com todos os _onus_ do marido,
excepto os _lucros_... Ora;--não me deves metter na conta dos
celibatarios, por que, ha dous dias, posso dizer, cheguei á idade
rébora, juridicamente fallando; e quanto á _graça_ a quem _sacrifico_ é
viuva e o homem, que foi seu marido, já está livre dos onus...
Applica-me outro substantivo, menos esse.

--Como enxergas tudo, rematou Simphoriano murchamente, pelo prisma da
facecia, tua alma--tua palma, adeus.

E desappareceu na primeira esquina da rua o unico amigo, que eu possuia
com aquelle nome.


CAPITULO XVI.

Cocegaram-me o arrependimento aquellas palavras.

Cocegar era o unico verbo cuja falta se sentia na lingua portugueza.
Criei-o, ahi fica. Não m'o-estraguem.

Percorri com os olhos o horizonte do meu futuro. Trevas e só trevas...
nenhum vagalume, no espaço!

Cheguei a casa com vontade de brigar.

Monica, que não levou ainda a breca, estava risonha, como um dia de
primavera.

Eu levava o inverno dentro d'alma.

--Chegas a proposito, disse acariciando-me; lê esta cartinha.

Tomei-a e li sem desfranzir as sobrancelhas:


«Senhora Dona Monica.

«Participo-lhe, para seu castigo, que tirei o _diploma_ de barão,
ficando a senhora sem ser barôa por querer pegar no somno depois de
mim...»


--De quem é esta carta? bufei, arremessando-a precipitadamente ao
soalho, sem terminar a leitura.

--De quem ha de ser? do Joaquim, respondeu Monica.

--Qual Joaquim?

--O Joaquim do aphorismo, aquelle capitalista... mas estás pallido e a
ranger os dentes! que tens?

--Remorsos, senhora! respondi já de cothurnos. Remorsos, perfida, tres
vezes perfida! Era assim que tu correspondias ao meu amor! era assim!
entretendo relações pela surdina com esse Sr. Joaquim, que já é barão!
Com que cara hei de sahir á rua?!

--Vossê endoideceu, homem! diz ella, rindo-se a bandeiras despregadas.

--Doido!... sim, mulher, endoideci... com um _endoideceu_ é que se
desculpa o escandalo!! Mulheres! mulheres! todas são a mesma estampa...

    --Com flores o punhal disfarçam rindo!

--Ande vêr a minha mala, senhora, quero sahir desta casa...

--Qual mala nem pêra mala! objectou com despreso ironico; vossê quando
entrou nesta casa não trouxe a mala, se é que algum dia a-teve.

Tolerei a vergalhada sem replicar.

--Quer sahir, saia, proseguio, ingrato de um dardo! não me deixa
saudades; e saiba que já não estou em Paris por sua causa; ainda tenho
com que pagar a passagem.

--Pois, não a-demorarei mais. O paquete parte a vinte e cinco, estamos a
dezoito, sobejam-lhe sete dias para arrumar os bahús. Boa-viagem. Se
encontrar no Mabille o Alphonse Karr, dê-lhe lembranças minhas.

E sahi.

E lá vai a Monica...


CAPITULO XVII.

Cahia a noite e a chuva.

Não se me dava a queda da noite, importava-me a queda da agua.

Eu não tinha guarda-chuva.

Identificando o corpo com as paredes das casas, cheguei ao _Restaurant_
do Mangini ensopado como uma garoupa de escabeche, pois que fallei em
restaurant.

Por felicidade das tres quatro partes do genero humano, se a agua da
chuva tem a propriedade de ensopar o facto, este tem a de enxugar
passado o preciso tempo. Panno para mangas tinha eu aqui, se quizesse
mostrar até onde chego em physica.

Assentei-me junto a uma meza, onde não dava em cheio a luz.

Nenhum dos caixeiros do estabelecimento fez conta da minha
_humida-individualidade_.

Cheguei no momento em que um sujeito, galhardamente vestido á moderna,
travava razões com um dos caixeiros. Dizia elle, calçando as luvas e
olhando de travez para a nota da despeza, que fizera:

--Oh! senhor! esta conta está exacta? em que despendi essa enorme somma?
nem no hotel da Europa.

--V. S. veja a lista, acodia o caixeiro.

--Vêr o que, homem? pois eu quando como, olho lá o preço das iguarias?
peço o que quero, porque não venho a estas casas comer de graça, fique
sabendo, mas isto é um roubo.

--Confira pela lista e verá que lhe não levamos um vintem de mais...

--Não sou conferente de casas de pasto, ouvio? bradou o homem com nobre
altivez. Confira vossê.

O proprietario do estabelecimento que se achava ao balcão, dirige-se ao
cavalheiro, e com bons modos, lhe disse que se não amofinasse, que a
conta estava exacta, mas se não queria pagar--seria o mesmo.

--Tenho muito dinheiro, alardeou o freguez; não preciso do seu jantar.
Nem ando comendo nos _botequins_; se entrei neste, antes foi para
esperar que passasse a chuva do que para outro fim. Almoço, janto e ceio
no hotel da Europa, porém, não quero ser roubado, não estamos na
Siberia.

Ein, Siberia?

--Pois, senhor, a chuva já passou, V. S. não deve nada, respondeu o
proprietario.

--Então, não reforma a conta?

--Está exacta.

--Ah! está exacta! pois sim, já disse que não estamos na Siberia, adeus.

E partio.

O dono da casa aproximou-se-me dizendo;

--Veja isto; um homem, que calça luvas de pellica, almoça, janta e ceia
no hotel da Europa, sahe d'aqui deixando o debito de dous mil setecentos
e sessenta réis. Ha de vêr que é sustentado por alguma...

Não o-deixei acabar, todo o corpo se me arrepiou...

--Um calix de cognac!


CAPITULO XVIII.

Sorvendo a ultima gota do licor, affigurou-se-me Monica arrumando as
malas.

--Monica vai para Paris, disse entre mim. O Sr, Joaquim já é barão... e
eu aqui fico, sem eira nem beira... nem ao menos sou commendador!...
Paris! todos fallam em Paris e eu mesmo já o-descrevi em verso, sem
ainda lá ter ido:

    Paris! Paris! Paris! terra de encantos,
    Eterno, ebri-festante paraiso,
    Aonde os risos de prazer são tantos,
    Que só é sério quem não tem juizo!...

As melhores descripções são devidas aos que pintam lugares, que nunca
viram. Isto já passa em julgado e, passará a anexim, quando apparecer o
meu romance passado om Djirjeh, no alto Egypto, aonde não pretendo
jámais pizar.


CAPITULO XIX.

Decidido a mudar de rumo, fui levar essa nova a Simphoriano.

Entrei pé ante pé. O meu amigo estudava. Simphoriano ainda acreditava
que, para se saber alguma cousa, fosse mister--queimar as pestanas.
Toleirão por esse lado.

Não se convencia que a _sapience-moufle_ do filho de Gargantua é a que
mais _apanha_ neste abençoado torrão, aonde de meia em meia braça se
esbarra a gente com um Dr. Tubal Holoferne.

Isto não offende a ninguem... É pura inveja.


CAPITULO XX.

--Boa noite, Simphoriano!

--Ah!... Sê bem vindo.

--Deus te pague. O que fazes?

--Nada; estou lendo.

--A _Historia de Cezar_, por Napoleão?

--Leio Humboldt.

--Perdes o tempo: Humboldt não sabia nada, foi um pessimo copista de
Plinio.

--Sim? quando leste Plinio?

--Nunca, e nem Humboldt e nem precisava para formar o meu juizo.

--Achaste a pedra philosophal?

--Nem nada. Ouvi dizer que Plinio estudava a natureza; depois me
disseram que o mesmo fez Humboldt. Logo, tudo quanto este fez copiou do
outro, isto é logico. Seja lá no que fôr, segue este methodo e farás
figura, passando por sabio. Ideias associadas, Humboldt foi barão e o
Sr. Joaquim tambem já o-é. E, passando a inscrever o nome na
nobiliarchia deste Imperio, julgou-se com direito de enviar um epigramma
á _graça_ á qual não _sacrificarei_ mais, o que te participo, sob a
condição de uma hospedagem por esta noite, senão vou dormir ao relento.

E narrei o succedido.

Simphoriano pulou de contentamento.

Fallou em _regeneração_ (palavrinha a mais elastica dos tempos
modernos), citando todos os moralistas das cinco partes do globo,
inclusive um poeta de nome Sadi ou Saadi, que elle jurou ser perso e eu
suppunha italiano, por acabar o nome em--_i._--

Prasmou contra o meu passado aconselhando-me a cuidar do futuro.

--Vejo por ahi muitos futuros á feição do meu desejo, mas os homens não
me protegem.

--Homem, sentenciou o meu amigo, é aquelle que é o que quer ser e não o
que os outros querem que elle seja. Toma nota disto. Arrima-te na
perseverança; faze della bastão e caminha. Caminha... e se encontrares
obstaculos, que te empeçam os passos, desanda-lhes a perseverança.
Tornam a apparecer adiante? torna a dar. Dá, dá de rijo, dá a valer, não
te doam os pulsos e verás se chegas a ser o que quizeres.

Copiei a receita para matar os obstaculos, mas em vez de bastão comprei
um guarda sol, que tambem guarda da chuva e serve de bengala sendo
preciso.


CAPITULO XXI.

Por desobriga de minha consciencia, respondi á mofa do Sr. Joaquim.
Exigia a lembrança do passado que eu vingasse a viuva da affronta do
capitalista. Mandei-lhe a resposta. Ignoro se elle a-recebeu e se Monica
chegou a ter conhecimento da remessa feita em seu nome.

Disse-lhe:


                                  _Illm. e Exm. Sr. Joaquim, barão._

«E tenho observado que, ha trinta annos a esta parte, essa molestia
(_empanturração_) só aos burros cançados e a _certos barões_
acommette... (Dr. Gomez d'Eça. Art. Veterinaria; cap. XXV, § II--;
edição de Simão Thadeo Ferreira. Lisboa 1718)»

                                                    Sua criada

                                                      «MONICA.»

E ficamos, de uma vez para sempre, livres della e do barão, que já se me
ia apegando.

Abrenuntio!


CAPITULO XXII.

Até esta data, comigo ainda não se verificou a sentença _si vis potes_.
Ha quatro annos--_quero_--succeder na herança de uma velha rica e
nenhuma ainda morreu, que se lembrasse de mim. Isto é o menos.

_Quero_--que o tabellião, em cujo cartorio sou _copista_,--augmente _dez
vintens_ no meu salario de mil réis e em vão tenho querido isto--ha
quarenta e oito mezes.

Não obstante, vislumbro ainda muitas esperanças, mormente, quando
considero que o mesmo Simphoriano _quiz_ ser e _foi_ condecorado pelos
relevantes serviços, que prestou ao Brazil no Paraguay aonde nunca poz
os pés!... (É facto).

Tambem o padre Severino _quiz_ ser vigario e _foi_,--e a população da
freguezia... _cresce_...


EPILOGO DA TERCEIRA E ULTIMA PARTE.

Agua vai!

Quem em dias de sua vida não pregou um calote?

Esperava o leitor que os meus conhecidos morressem apunhalados, e,
sabidas as contas, apenas falleceram dous, em consequencia dos remedios
das boticas!

Fallei em bodas e o Sr. Joaquim roeu-nos a corda.

Moraes no seu diccionario, a proposito da palavra--_boi_, cita estes
versos:

    Coisas ha hi que passam sem ser cridas,
    E coisas cridas ha nunca passadas...

E eu, a proposito do amor, fui mais laconico que o _veni, vidi, vici_;
tantas vezes citado e nem uma só comprehendido!

Puz em scena um enthusiasta do genio e não me referi ao--_stultorum
infinitus est numerus_ de Salomão!

Abiquei o Parnaso e não arenguei á cerca da impropriedade deste
decasyllabo de Francisco Manoel:

    _Capri-barbi-corní-pedes-felpudos!_

Agatanhei Plinio e não trouxe á balha o livro 7.º cap. 9.º onde diz que
a--_gloria para uma mulher é suspender das orelhas duas perolas_!

Notei Pantagruel e não aproveitei este remate de um discurso, (vai a um
de fundo):

                                  _dos
                                  poros
                                   dos
                                  nossos
                                 corações,
                                 transuda
                                    a
                                   mais
                                   pura
                                 essencia,
                                   que
                                   póde
                                   ser
                                respirada
                                   pelo
                                 olfacto
                                    da
                                  patria;_[3]

para analysar o _Tratado do Sublime_ do conselheiro da rainha Zenobia!

Embarquei Monica para a França e não lhe besuntei os labios com o adeus
de Scipião ao sahir de Roma:

_Ingrata patria, non possidebis ossa mea!_

Tropecei no _commumnismo_ e nem patavina com referencia á _Republica_ de
Platão, ou á _Utopia_ do Moro, ou á _Civitas solis_ de Thomaz de
Campanella, o Calabrez, que nunca li.

Obviei... É tarde.

Ah! se não fosse tarde! Só na applicação, que Monica fez da palavra
_monogamia_ (que não é palavra, conforme decidiram o capitalista e o seu
guarda-livros), tinhamos materia para um in-folio, se, ácinte, eu
pretendesse revoltar contra mim trezentos e sessenta e cinco doutores,
pelo minimo. Mas é que tenho teiró ás inimizades.

E os plagiatos? Neste ponto o reverendo padre Severino fôra como um
Potosi. Tem-lhe custado caro alguns! Rendeu-lhe, por exemplo, tres mezes
de cama esta odesinha copiada, assignada e enviada a quem não a
inspirara.

              A M....
    (_O original dizia--A R...._)

    Não cumpriste o promettido,
          Teu marido,
    Teu marido t'o-privou!
    Não te salva essa desculpa...
          Teve a culpa,
    Teve a culpa--quem faltou.
              ---
    Teu marido... oh que embaraço
          Erro crasso;
    Erro crasso, e provo-o já;
    Elle velava ou dormia:
          Que fazia?
    Que fazia, dize lá?
              ---
    Se velava e... cobiçoso...
          Desejoso...
    Desejoso em... te ameigar...
    Entre os braços te-prendia;
          Não podia,
    Não te-podia... _obrigar_...
              ---
    Se dormia--estava morto.
          Franco o _porto_...
    Franco o porto estava então...
    Mas, não dormia; velava,
          Devorava...
    Devorava o meu _quinhão_...
              ---
    Adormeceste cançada,
          Fatigada,
    Fatigada... Deus do Céo!
    Elle tambem--fatigado,
          Do seu lado,
    A teu lado adormeceu!
              ---
    E eu? lá ao sereno exposto!
          Dando o gôsto,
    Dando o gosto ao meu rival,
    De me vêr magro... e desfeito,
          Pelo effeito,
    Effeito... da catarrhal!
              ---
    Não cumpriste o promettido!
          Teu marido,
    Teu marido t'o-privou;
    Não te salva essa desculpa:
          Teve a culpa
    Quem com elle se _fartou_...

Pobre pastor!

Verificou-se-lhe no lombo o rifão--guardado está o bocado para quem o
hade comer.

Eu compuz as estrophes e elle comeu a... sova!

Antes assim! que lhe faça bom proveito.

                          ...........

Leitor!... talvez não acredites e no entanto assim é: vou passar a limpo
uma escriptura!

Se alguma vez eu escrever as minhas aventuras, abarrotar-te-hei de
_pasteis_....


_P. S._

POSTERIDADE!

--Fallei a puro esmo em quanto disse.... da minha pessoa. Quando
escreveres a minha biographia procura em outra fonte os apontamentos,
senão irás de gatinhas como até esta data em todas as mais... tens ido.


FIM.


    [1] E se ha ahi quem saiba de algum remedio, que repare essa doença,
    annuncie pelos jornaes, por especial favor a uma creatura sugeita,
    desde aquella época até hoje, aos seus accessos.

    [2] Quartinho escuro onde se guardam viveres. Em a dona da casa
    sendo desconfiada é difficil perder a chave.

    [3] Vide supplemento do _Jornal do Commercio_ de 16 de maio de 1866,
    _correspondencias do Norte_.






End of the Project Gutenberg EBook of Memorias de um pobre diabo, by 
Bruno Henriques de Almeida Seabra

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including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
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Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
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remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
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permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
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     Chief Executive and Director
     [email protected]


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