Côrte na aldeia e noites de inverno (Volume II)

By Francisco Rodrigues Lobo

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Title: Côrte na aldeia e noites de inverno (Vol.II)


Author: Francisco Rodrigues Lobo

Release date: January 25, 2024 [eBook #72793]

Language: Portuguese

Original publication: Lisboa: Comp. Nacional Ed, 1890

Credits: Rita Farinha, Laura Natal and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)


*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK CÔRTE NA ALDEIA E NOITES DE INVERNO (VOL.II) ***


                            [Illustration]


                         BIBLIOTHECA UNIVERSAL
                           ANTIGA E MODERNA

                            CÔRTE NA ALDEIA
                                   E
                           NOITES DE INVERNO




                                  POR

                       FRANCISCO RODRIGUES LOBO




                               VOLUME II


                         16.ª SERIE--NUMERO 63


                            [Illustration]


                                LISBOA
                      COMPANHIA NACIONAL EDITORA
             Successora de DAVID CORAZZI e JUSTINO GUEDES
                        40--Rua da Atalaya--52
           FILIAES: Praça de D. Pedro, 127, 1.º andar, PORTO
                  38, rua da Quitanda, Rio de Janeiro
                                 1890




                                LISBOA

               TYPOGRAPHIA DA COMPANHIA NACIONAL EDITORA


                        _309, Rua da Rosa, 309_

                                 1890




                            CÔRTE NA ALDEIA

                                   E

                           NOITES DE INVERNO




                              DIALOGO IX

                 DA PRATICA E DISPOSIÇÃO DAS PALAVRAS

                             (Continuação)


--De maneira (disse D. Julio) que temos averiguado que falar vulgar,
e propriamente, é falar bem: e na verdade, da boa linguagem a
principal parte é a clareza; e o mais d’ella consiste em fugir d’esses
atoleiros. Mas ainda eu tenho por peior de todos o da prolixidade,
de cujas partes se tocou o principal na noite passada.--Ha muitos
homens (proseguiu Leonardo) tão palavrosos, que vos não deixam tomar
carta na conversação; e são tão amigos de levarem um comprimento até
o fundo, que nem com o silencio vos defendeis dos seus; e é vicio, de
que se ha de fugir como de peste da discrição. E já me occorreu por
que razão chamariam aos faladores _paroleiros_, ou _homens de
parola_; que posto que a phrase seja italiana, lhe acho uma mais
secreta galanteria; e é que, como a lingua de Italia é mais copiosa,
ornada, e comprida nas razões; aos que na nossa falam muito, áquella
semelhança chamaram _homens de parola_, como se lhe chamaram
_italianos_.--Boa está a derivação (tornou o fidalgo) porém
vamos á brevidade, que eu me não atrevera a culpar, se agora vos não
ouvira.--Não sou eu o primeiro (respondeu elle) que o disse; que
já o poeta se queixou que quando queria ser breve ficava escuro. E
verdadeiramente a pratica comprida não a comprehende a memoria; e a
mais breve do necessario cega o entendimento; e ha muitos, que, por
abreviarem o que dizem, não declaram o que querem: que posto que a
brevidade seja louvada, e por ella se avantajassem os laconicos na
linguagem dos outros gregos, o cortezão nem ha de dizer as cousas em
tres palavras, nem em trezentas.--Dizeis bem como em tudo (accudiu o
doutor) que ha alguns, que, por quererem atar tudo em um feixe (como
disse o proverbio) desconcertam o que com poucas palavras mais podia
ser bem dito: e muito se me parece esse erro de abreviar com o de
enfeitar as palavras, que é como perder um por carta de menos, outro
por a ter de mais. Posto que o mesmo vicio (proseguiu elle) se tratou
a noite que falámos das cartas, não o deixarei passar agora sem outra
lembrança, porque é um trabalho não sómente escusado, mas odioso,
que a pratica artificiosa embaraça aos que sabem pouco, e não agrada
mais ao discreto, e serve de nevoa para as cousas que se tratam; que
com o ornamento das razões se perde muitas vezes o sentido principal
d’ellas: e é tão culpavel o feitio, que n’isso se perde, como o que as
mulheres usam em desmentir as graças da natureza com fingida formosura,
que nunca aos bem entendidos pode parecer verdadeira. E deixando esta
parte, passemos á principal, e que mais pertence ao discreto, que é não
se descuidar com a confiança; porque ha muitos, que de confiados em sua
sufficiencia, falam por si, e não pesam as palavras com o receio, que
para bem ha de ser sempre a balança d’ellas. E assim hora dizem algumas
pouco decentes á honestidade da conversação; outras, escandalosas a
algum dos ouvintes; outras, que, por serem fóra de tempo, perdem o
logar, e elle na opinião dos que escutam o que com muitos outros tem
alcançado.

O primeiro descuido da confiança, e o que fica mais em descredito do
cortezão, é quando entre mulheres principaes usa de algumas palavras
que ou no som ou na materia, offendam a honestidade de seu estado;
culpa, em que cahem muitos confiados, mórmente nas visitas de
desposorios e nascimento de filhos, e em outras semelhantes, em que é
mais necessario ao discreto as redias na mão, porque elle não perca os
estribos e a ellas se não mude a côr. E tambem sou de opinião que antes
fuja de dizer algumas cousas que de lhes mudar o nome, como chamar
ás pernas _sustinentes_ ou _andadeiras_; porque, nomeando
estas partes das mulheres deante d’ellas, não é cortezia.--Parece
(perguntou Pindaro) que nomeando logo as pernas dos homens não será
erro, ainda que seja deante d’ellas?--Não (respondeu elle) porque nas
mulheres é parte occulta, e nos homens manifesta; e o trajo de cada
um ensina esta cortezia: e muitos ha, que, de escrupulosos n’ella dão
em disparates: como me contaram ha pouco de um mestre de grammatica,
que, desculpando-se um discipulo seu que não viéra ao estudo, porque
aquelle dia parira sua mãe, o mandou castigar, dizendo que em publico
não se haviam de falar palavras mal soantes á honestidade. E outros,
que fazem cortezia de mudarem os nomes ás cavalgaduras, e por se
desencontrarem de um _asno_, darão mil rodeios.--N’iso tem elles
muita razão (acudiu D. Julio) porque não vi eu peior azar que esse
encontro. E devia de ser inventada esta maneira de cortezia, por não
nomearem _asno_ deante de algum que o parecesse, por guardar a
advertencia do rifão, _em casa de ladrão não lembrar baraço_:
sendo assim, que nos animaes nojentos, e as sevandijas nomeam por o
seu nome, ainda que isto não usára eu entre donas e damas delicadas, a
quem com menos occasião se enoja o estomago.--Mui bem trazida está essa
lembrança (proseguiu Leonardo) e continuando com as outras, me parece
que o segundo descuido é quando o discreto fala, ou allega latins entre
pessoas que o não sabem, ou que não tem obrigação de o entender, como
são mulheres: ou conta deante d’ellas historias da India, ou de outras
regiões remotas, onde esteve, dizendo as cousas com muitas palavras dos
nomes proprios d’aquellas partes; que ha alguns, que em colhendo na
pratica Ormuz, Malaca ou Sofala, não sabem dar um passo sem palanquins,
bajús, catanas, bois, larins e bazarucos; e outras palavras, que deixam
em jejum o entendimento dos ouvintes, sem os seus por isso ficarem
melhor acreditados. O ultimo descuido e mais perigoso, é que motejando
em materia que possa offender a terceiro, não advirta, antes de falar,
se está na presença a quem toque por sangue ou amizade a offensa que se
faz ao ausente, ainda que seja em materia leve; ou se está alli outro
do mesmo estado de que se murmura, do mesmo cargo, vicio ou costume;
que, não tendo esta vigilancia, lhe poderia nascer da sua graça uma
resposta.--Pois se offereceu (disse D. Julio) falardes em graça, dando
côr de que na murmuração se acha mais certa, estimarei saber que é
o que chamam _sal_ os discretos, que é um termo de falar muito
ordinario entre elles.--A resposta d’isso (tornou Leonardo) está por
conta do doutor, que parecem esquecidos da noite passada: com elle o
haveis de haver; que eu vou já dando fim ao que me cahiu em sorte.--Sou
contente (disse o doutor) de me chamardes por parte n’esta pergunta
do sr. D. Julio por o servir a elle, e dar occasião a Solino de saber
a vantagem que n’isso nos tem a todos. Primeiramente o sal, a quem um
auctor chamou _conducto de todos os outros_, é o que dá sabor, e
faz appetite ao desejo para todos elles.--Muito se parece n’isso com a
fome (acudiu Solino).--Assim é (disse o doutor) porém tem demais que
os conserva e sustenta com sua força; pelos quaes attributos Homero e
Platão chamaram ao sal _divino_: e assim como os mantimentos sem
elle não obrigam a vontade; assim tambem por elle (como disse Plinio)
significamos os effeitos do animo; chamando _homem sem sal_,
pratica sem elle, _riso em sosso_, e ainda _formosura sem
sal_, como escreveu Catullo, de Quincia que pintando-a formosa,
branca e comprida, diz que em toda aquella figura não havia uma pedra
de sal. De maneira que, conforme a este sentido, o sal é uma graça,
e composição da pratica, do rosto ou do movimento do andar, que faz
as pessoas apraziveis. E esta, segundo alguns, particularmente se
declara no que obriga a riso e alegria, com um modo de murmuração leve.
D’onde Seneca disse que o sal da conversação dos amigos não havia de
ter dentes: e assim como os mantimentos que tem mais sal, fazem maior
sede a quem os come; assim a conversação que tem mais d’elle, é mais
appetitosa e desejada dos ouvintes: e como sem sal todas as iguarias
são semsabores e desgostosas, assim a pratica onde a sua graça
falta, é puro fastio. Porém, quanto a mim, o que da tenção d’estes
auctores convém mais com o seu modo de falar, _sal_ quer dizer
_graça_, que é o contrario da frieza e semsaboria: e dizemos do
gracioso que é salgado; e do bemdito que tem muito sal, e do que o
não é, que não tem nenhum.--Porque razão (perguntou Feliciano) sendo
o sal cousa tão excellente, os egypcios não queriam usar d’elle em
nenhum mantimento, e até o amassavam sem sal, tendo-o por inimigo?--Os
egypcios o faziam (respondeu elle) por lhes parecer que observavam
n’isso a castidade, attribuindo á virtude do sal a fecundidade e o
appetite carnal, por razão do calor, a cujo respeito fingiram os poetas
que Venus nascera do sal, que é da espuma marinha; e alguns naturaes
disseram que só com comerem e usarem muito do sal, concebiam alguns
animaes. Outro auctor diz que os egypcios o faziam por sobriedade e
abstinencia, tirando o sabor e gosto ás iguarias, em lhe não deitarem
sal: mas a verdade é que, se elles o tinham por inimigo da vida, não
ha cousa n’ella mais saborosa: porque as duas cousas que a sustentam,
como escreveu um auctor grave, são sal e sol: e ainda depois da morte
o sal conserva os corpos sem corrupção e os sustenta inteiros sem
deixar apartar os membros da sua compostura: por as quaes propriedades
o fizeram os antigos symbolo da amizade (como diz Pierio Valeriano nos
seus jeroglificos) que ella, assim como o sal, tempera todas as cousas
da vida entre os humanos. E a primeira cousa que se punha aos amigos na
mesa era o sal; costume que ainda agora se usa, posto que se não saiba
em muitas partes a razão d’elle; nem a porque se enojam e enfadam os
hospedes, de se derramar o sal pela meza; que n’este nosso reino querem
fazer particular agouro dos Mendoças, sendo a causa geral: porque lhes
parecia aos antigos que se apartava e perdia a amizade, entornando-se
o sal, que na mesa fazia a figura d’ella. E á semelhança tinham por
boa sorte derramar-se o vinho, que, como era symbolo da alegria e
contentamento, desejavam que entre todos se espalhasse. Com isto tenho
dito do sal o que me perguntastes, posto que, para lhe dar mais
solidos louvores, o pudéra levar á Escriptura Sagrada, onde não
só significa _confederação_ e _amizade_, mas por elle se entende a
doutrina evangelica; e aos mesmos apostolos e prégadores d’ella chama
Christo _sal_. E pois para falar d’este tomei mais tempo do que
quizera, é bem que vos deixe livre este, que fica, para que todos
nos aproveitemos de vos ouvir.--Pouco pudéra eu dizer (respondeu
Leonardo) se não fosse acostado á vossa erudição e auctoridade. E
do sal me não fica outra cousa que advertir mais, que haver-se de
maneira com elle o cortezão que não seja a pratica toda de graças, nem
sem ella: se não uma certa liga, com que se componha o galante e o
sizudo, que é uma differença, que sempre fiz do engraçado ao gracioso;
porém como isto ha de ser em conformidade das materias, occasiões e
pessoas com que se pratica, não posso dar a isso regra ordenada. Fica
além d’isto que advertir ao discreto a mecanica geral dos termos,
e nomes dos principaes instrumentos com que se exercitam as artes
mais nobres, como a pintura, esculptura, architectura, arithmetica,
astrologia e musica: saber as peças e os nomes d’ellas, com que se
arma um cavalleiro: as que pertencem ao jaez e arreio de um cavallo:
os logares, ordens e disposição de um esquadrão formado: o maneio
militar de uma galé bogante: os nomes de um edificio bem fabricado,
e de uma fortaleza bem guarnecida: saber a côr e o nome a todas as
pedras de valia: os quilates do ouro; o peso dos metaes, a melhoria
d’elles; e outras cousas semelhantes a estas, que, como andam sempre
na praça ordinaria da conversação, não é justo que faltem ao discreto
palavras, com que mostre que tem conhecimento de todas. Com estas
lembranças me hei por despedido d’esta materia, posto que fiquem de
fóra algumas cousas d’ella, como são contos, historias e novellas dos
cortezãos, e agudeza de ditos; que cada uma pedia mais compridas horas
de pratica: porém com a minha voz tenho a todos cançados, sem eu ficar
ocioso.--O das historias (disse Pindaro) podeis vós, senhor, dilatar,
mas não vos escusareis de as dizer, mórmente quando pela inculca,
que de mim fizestes, me importa mais que a todos saber o particular
d’ellas.--Fiquem essas guardadas para ámanhã (disse Solino) e se
temeis que até então se damnem, obrigae ao doutor que do muito sal,
que aqui lançou, á minha conta deite n’ellas algum.--Boa lembrança
foi (acudiu o doutor) eu confesso a culpa de não applicar o que disse
á vossa graça e galantaria, que é o sal com que vos convidei, e que a
todas as praticas d’esta nossa conversação faz parecer agradaveis e
saborosas a todo o entendimento.--Vós, senhor doutor, replicou elle, me
tendes feito um saleiro com vossos louvores; e com a vangloria d’elles
não me tenho por seguro no assento de qualquer logar.--Se entornardes
o sal (acudiu Pindaro) não será a primeira vez que déstes má conta
da amizade.--De confiado na minha (tornou elle) falaes contra o que
entendeis d’ella, que mais se acredita nas obras que nas palavras.--A
verdade é (disse Leonardo) que sois bom amigo, ainda que com muito sal;
e que sem encarecimento vos podiam chamar o mesmo nome.--Ainda (disse
elle) me haveis aqui de converter em sal.--Antes (acudiu Pindaro) no
que disse Marco Varrão que o sal era a alma do porco; e eu sei, e todos
da vossa graça, e ninguem dará fé que tenhaes alma.--Essa (tornou
Solino) está agora no purgatorio de vos ouvir: e porque estes senhores
já com uns bocejos dissimulados dão signaes de que tem necessidade de
repouso, fique a demasia para ámanhã.

Todos então se levantaram mostrando que ainda o faziam com pouca
vontade, porque nas praticas de gosto primeiro cansam os sentidos, que
os desejos.




                               DIALOGO X

             DA MANEIRA DE CONTAR HISTORIAS NA CONVERSAÇÃO


Depois que os amigos se apartaram, e D. Julio se recolheu a casa para
repousar, achou n’ella uma occasião de desasocego, que lhe fez perder
o somno. Porque lhe trouxe novas um creado, a que tinha encommendada
a diligencia, que o prior se partia na manhã seguinte para a cidade,
acompanhando aquella formosa peregrina para o recolhimento da clausura
a que de tão longe estava affeiçoada: e como elle o ficou tanto de
sua vista, e corrido comsigo mesmo dos poucos extremos, que por ella
fizera, determinou com a occasião de caçador (que já fôra principio
d’aquella ventura) fazer-se encontradiço no caminho, e acompanhar
ao prior até o fim da jornada: para o que tirou a luz aos melhores
concertos de campo que tinha, e o vestido e galas mais louçãs, com
que podia apparecer n’aquelle disfarce, usando o mesmo nos creados
que levava. Ao outro dia pôz em execução este pensamento: e deixando
para seu tempo o successo que teve, os da conversação o não souberam
todo aquelle dia: e quando veiu a noite, que o acharam menos, houve
quem désse novas de como o encontrára n’aquella empreza; e com esta
occasião começaram a pratica, e disse o doutor:--Sempre ouvi que os
cuidados de amor em peitos generosos sahem com seus extremos ao longe;
e que então se forçam quando os outros sugeitos desconfiam. Aquelles
encarecimentos de meu amigo D. Julio, aquelle silencio e segredo,
aquelle respeito de cortezia tão encolhido, parece que apanhava pedras
para melhor tempo; e n’este costuma a fazer seus lanços este diabinho
do amor, porque tem outros da sua parte, á conta de estorvarem seu bom
proposito.--Segundo isso (disse Solino) receiaes que a que engeitou
principes mais louros que salmonetes, acceite agora um fidalgo retirado
na aldeia, d’onde sahe com as galantarias mais penujentas, que
marmelo temporão.--Muitas damas (tornou elle) que engeitaram grandes
senhores, não desprezaram grande amor: e outras, a quem offenderam
procedimentos ingratos, estimaram de sugeitos mais humildes devidas
cortezias.--Não façamos (acudiu Leonardo) offensa aos ausentes; nem
a ella demos por arrependida, nem a D. Julio por tão namorado: porém
maiores cousas houve no mundo. Tudo podia tecer o amor, e acabar a
ventura: e se essa cahira á conta de D. Julio, outra pudera ser peior
empregada.--Não estou bem (disse Solino) com a ventura dos casamentos
por amores.--Será (respondeu Feliciano) por estardes mal nas muitas,
que por elles se alcançaram: e bem pudéra eu a essa conta trazer alguma
historia de notavel exemplo, se estas horas não estiveram promettidas a
outro exercicio.--Antes a materia, que hontem ficou por acabar (disse
Pindaro) era como se havia de haver o cortezão nos contos e historias;
e vem a vossa a tempo, que servirá de exemplo, e, o que sobre ella se
disser, de doutrina.

--Ainda que isso parece mais concerto de amigos falados (disse
Solino) que occasião, digo que tendes justiça, e sou de parecer que
vá de historia: mas praza a Deus que não caiaes no atoleiro, de que
vos desviastes a primeira noite da nossa conversação.--Bem sabeis
(respondeu elle), que _em ribeiro grande saltar de traz_: e assim
primeiro hei de vêr as balizas de meu companheiro, do que caia nas
vossas mãos.--Enganaes-vos (replicou Solino), que menos seguro vae
o cego do que o moço que o guia.--Não aperteis tanto com os amigos
(acudiu Leonardo), ouçamos ao licenciado a sua historia; e quando as
pellas vierem a Pindaro, elle as tornará á vossa vista, e direis o
que entenderdes.--Outra cousa espero eu (accrescentou o doutor), e é
que haveis de passar pela lei que ordenardes, contando tambem a vossa
historia, da qual se ha de devassar como das mais: e, por dilatarmos
esta menos, diga o licenciado, e declare se vende a sua historia por
verdadeira.--Por tal a conto (respondeu elle) e de um auctor mui
approvado e verdadeiro, e é a seguinte:

“Na côrte do imperador da Allemanha Oton III, d’este nome, que foi
a mais florente, e frequentada de principes, que houve muitos annos
antes, e depois n’aquelle imperio, assistia, com grande satisfação
de suas partes, Aleramo, filho do duque de Saxonia, mancebo de pouca
edade, e de muita gentileza, magnanimo, esforçado, liberal, e tão
cheio de graças naturaes, que n’elle, como em um thesouro, parece
que as depositara todas a natureza. Tinha o imperador uma filha da
mesma edade, e de tanta formosura, que, sem o que a sorte devia a seu
nascimento, merecia ter o imperio do mundo: e se em a belleza tinha
esta vantagem a todas as damas de Allemanha, ainda lh’a fazia muito
maior na discrição, aviso e galanteria. Aleramo, que no serviço do
imperador tinha sempre á vista aquelle despertador de pensamentos
altos, e que, além dos que a grandeza de seu sangue lhe permittia nos
olhos de Adelazia (que este era o nome da princeza) ia aprendendo
pouco a pouco a lhe querer muito, foi descobrindo esta vontade, até
que foi testemunha de seus effeitos a propria causa. Não se houve
por offendida d’este amor Adelazia, por lhe parecer devido á sua
gentileza, e natural em um coração magnanimo, e generoso; maiormente
que na vista, e fama de Aleramo achava tudo o que podia desejar para
um emprego amoroso, ainda que a desegualdade dos estados o defendesse.
Foi elle accrescentando o amor, e este gerando atrevimentos, que são as
salamandras que n’este fogo se criam; e ella, depois de batalhar com os
receios largamente, descobriu ao mancebo sua vontade, encommendando,
na fé do que lhe queria, o segredo d’ella, porque bastava para total
destruição de suas vidas uma leve suspeita, que o imperador tivesse de
seus amores. Continuou muito tempo este segredo, sem ser entendido; e
pouco a pouco se apurava a paciencia d’estes dois amantes, tratando em
uma amorosa correspondencia seus cuidados, sem outros mensageiros, ou
secretarios mais que os seus olhos: eram estes comtudo sem esperança,
por quão alheio o imperador estava de consentir n’elles; parecendo-lhe
pouco, para os merecimentos d’aquella filha, dar-lhe por esposo o mais
rico e poderoso dos reis christãos, quanto mais um filho menor de um
seu vassallo. Mas como o poder de amor se mostra em ter em menos conta
a maior grandeza, fez tanto com Adelazia, que, esquecendo todos os
interesses, offertas e esperanças da fortuna, se determinou de fugir
com Aleramo, que, sem respeitar o perigo, se offereceu ao que sua
senhora ordenasse. Escolhido o tempo e occasião opportuna, levando
ella comsigo as joias de preço que tinha, e elle as cousas de valor
que pôde grangear, sahiram da côrte, e andaram em pouco espaço de
tempo tanto caminho, quanto lhes foi necessario para pôr em salvo as
vidas, a que a ira de Oton ameaçava: o qual achando menos a filha, a
quem queria mais que a tudo o da vida, esteve a risco de a perder com
sentimento; e mandou logo atalhar as estradas, e caminhos de toda a
Europa com bandos e pregões de grandes promessas a quem descobrisse, ou
désse novas do roubador de Adelazia: mas ella e seu esposo caminhando
a pé contra a parte de Italia em habito de peregrinos, foram ter ao
condado de Tirol: e porque o temor de serem conhecidos os desviava
sempre do povoado, vieram na montanha a poder de salteadores, que
roubando-lhes as joias e dinheiro, que traziam, lhes deixaram sómente
as vidas sujeitas a tão grande miseria e pobresa, que lhes foi
necessario, para poder sustental-as, andarem pedindo esmola por toda
Lombardia de logar em logar, já tão mudados de seu parecer, e gentileza
com os trabalhos, que a mudança lhes pudera escusar os de seu receio.
Resolvendo-se comtudo de não fazerem assento em Milão, nem em outra
cidade imperial, se foram viver a umas montanhas entre Asti e Savona,
onde amor e a necessidade lhes ensinaram com os trajos vis a conformar
exercicio de que vivessem, que era cortando lenha n’aquelles bosques,
fazerem carvão, que vendiam nos logares d’aquelle districto; e com esse
sustentavam em vivas brasas o verdadeiro amor, que lhes dava a vida.
Alli com a riqueza, de que elle os tinha satisfeitos, contentes de tão
saborosa necessidade, com habitos humildes, nomes mudados, e corações
conformes, houveram sete filhos varões, que logo nos rostos o pareciam
ser de paes illustres, e de um tão amoroso ajuntamento. O maior
d’elles, a quem pozeram nome Guilhelmo, começou logo na sua puericia
a ajudar a seus progenitores n’aquella miseria, levando o carvão e
lenha a vender a Asti, Savona, Alba, e a outros muitos logares, que por
alli havia: e como a sua generosa, e natural inclinação vencia a razão
daquelle estado miseravel, em que se criára, do que com seu trabalho
ganhava n’aquello trato, um dia comprava um punhal, outro uma espada,
outro um cão de caça, sem que valessem ao generoso pae as reprehensões
com que o persuadia do que convinha mais para sua pobresa. Passaram
alguns dias, quando elle veiu com o emprego de todo o cabedal, que
levára, em um gavião, a que estava muito affeiçoado, mostrando-o a
Adelazia, que com muitas lagrimas lhe disse estas razões: “Bem sei,
meu amado Guilhelmo, que com a culpa d’esta tua estranha demasia quer
a natureza em parte emendar a fortuna, deitando-lhe em rosto os bens,
que te tirou, com o emprego que te ensina a fazer d’estes: mas, se é de
animos generosos edificar torres altivas sobre a humildade, não é menor
grandeza obedecer ao tempo, e dar logar á sorte, emquanto a sua ira se
executa em nossa miseria. Se o espirito te inclina a voar mais alto,
lembra-te, filho meu, que não foram menores os pensamentos de quem vive
com as azas tão encolhidas n’este deserto; e que esse exercicio, que
desejas, não convém com o que usas, tão necessario a teu pae e mãe, que
tambem no imperio de Allemanha poderam ter logares mais levantados,
se amor quizera. Tem compaixão de mim e d’esta misera pobresa, em que
vivo; e antes para sustentar teus pequenos irmãos, e esta mãe, que com
tantas difficuldades te criou, emprega teu cuidado, que tomar outros
tão improprios a esta vida, quão naturaes a teu generoso sangue e
pensamento. E pois os thesouros, que a sorte me guardava, se tornaram
neste carvão, de que agora vivo, não levantes com elle chammas de
vaidade, que venham a espalhar as faiscas d’este fogo por Allemanha,
em cuja opinião está já sepultado nas cinzas frias.” Interneceu-se o
illustre moço com as maternas lagrimas; e entendendo que não podia
continuar n’aquella vida, nem resistir á sua inclinação, d’alli a
poucos mezes desappareceu da montanha, e se foi ao campo imperial
fazer soldado; e n’elle em pouco tempo cresceu tanto no esforço e
opinião dos homens, que já entre elles e do mesmo imperador era mui
conhecido. Sentiram Adelazia e seu marido a ausencia d’este filho
com grandes extremos, assim por o grande amor, como porque n’aquelle
seu trato humilde os ajudava: mas emquanto os outros irmãos menores
se exercitavam no officio, que elle deixára, ía Guilhelmo na guerra
dando claros signaes de seu nascimento; e veiu a ser por seu valor tão
acceito a seu avô, que para o accrescentar a dignidades, e logares,
que por sua pessoa merecia, lhe perguntou quem foram seus paes? Ao que
elle respondeu, que eram vivos, allemães de nascimento, mas que viviam
pobremente em as montanhas de Savona, posto que não desmereciam por
sangue, e ascendencia terem um filho honrado. Desejoso Oton de saber
a verdade, e já encaminhado da ventura do animoso mancebo, mandou com
elle um particular valido seu para que ambos em companhia troxessem á
côrte o pae, e mãe de Guilhelmo com sua familia. Era este privado mui
chegado parente de Aleramo: e sabendo no caminho do moço quem era, com
um novo espanto e alegria ficou enleado, abraçando com muitas lagrimas
ao sobrinho. Chegaram em poucos dias ás montanhas de Savona, á porta da
morada pobre dos ricos amantes; e d’alli chamando-o pelo seu proprio
nome, causou em toda a humilde morada estranha turbação e sobresalto.
Sahiu primeiro fóra, e cheia de um frio temor Adelazia; e conhecendo o
filho, que com os ricos vestidos e galas de soldado fazia parecer em
tudo maior sua gentilesa, com infinitas lagrimas de alegria o abraçou;
chamando ao marido, com os mesmos effeitos o festejou; e conheceu ao
primo, em quem o tempo não fizera a mudança, que n’elle os trabalhos
de tão estreita vida. Recolheram os hospedes com o agasalhado de sua
pobresa. Vieram de noite os filhos de vender a sua mercadoria; e
foram n’elles e nos paes tantas as lagrimas de contentamento, que nem
davam logar ás palavras, nem ás cortezias. Sabida depois a vontade do
imperador, e que era forçado obedecer ao seu mandado, pondo nas mãos da
fortuna e nos olhos da piedade real sua esperança, d’alli a poucos dias
caminharam; que os leves apparatos da pobresa lhe faziam mais faceis as
jornadas, e muito seguros os caminhos. Chegaram á côrte: e lançados aos
pés do imperador, elle conheceu de improviso sua filha, e Aleramo: e
vendo a fecunda geração d’aquelles sete filhos, que podiam na formosura
competir com os planetas, com grande contentamento, e que nadava
nas aguas dos seus olhos, os recebeu, perdoando aos paes a culpa,
e dando aos netos a satisfação da miseria padecida em seus tenros
annos. A Guilhelmo creou marquez de Monferrato, ao segundo de Savona,
ao terceiro de Saluzzo, ao quarto de Sena, ao quinto de Inciza, ao
sexto de Ponzão, ao setimo do Bosque. E d’estes sete marquezes nasceu
generosa descendencia, que enriqueceu Italia, a qual ficou devendo a
gloria d’esta nobreza ao verdadeiro amor destes dois amantes: que,
ainda que elle encaminhe por asperas difficuldades estes successos,
sempre o fim, que por meio de suas obras se alcança, é glorioso.

--Maravilhosa é a historia para exemplo (disse o doutor) e tambem
poderá servir d’elle no como se devem contar outras semelhantes, com
boa discrição das pessoas, relação dos acontecimentos, razão dos
tempos e logares e uma pratica por parte de alguma das figuras, que
mova mais a compaixão e piedade; que isto faz dobrar depois a alegria
do bom successo.--Sómente (acudiu Leonardo) me pareceu comprida,
sendo a materia d’ella muito breve.--Essa differença (lhe tornou
Feliciano) me parece que se deve fazer dos contos ás historias; que
ellas pedem mais palavras que elles, e dão maior logar ao ornamento
e concerto das razões levando-as de maneira, que vão affeiçoando o
desejo dos ouvintes: e os contos não querem tanto de rhetorica; porque
o principal, em que consistem, é a graça do que fala, e na que tem
de seu a cousa que se conta.--Não sou contra esse parecer (disse o
doutor); mas antes de averiguarmos a demasia, deixemos logar a que
Pindaro comece a sua historia, e não lhe lancemos deante preceitos que
lhe façam receio.--Necessaria me era (disse elle) grande confiança para
vencer os que tenho, sem me crescerem outros de novo: porque, se antes
de ouvir a Feliciano tomára esta empreza, tivera um atrevimento menos
culpavel; mas agora será despejo a minha ousadia.--Eu sou (disse elle)
o que me corro da desculpa; e posto que me vinha bem que estes senhores
acceitassem qualquer das vossas para não ficar tão manifesta a vantagem
que me fazeis, não quero que com essa fingida humildade castigueis a
confiança, com que me offereci.--Melhor me está obedecer que competir
(tornou Pindaro); quero contar uma historia semelhante á vossa, só para
me aproveitar do modo que n’ella tivestes: se eu acertar, a vós se deve
o louvor de tudo; e se me perder, tambem sereis culpado, por a força
que agora me fazeis.

“Manfredo, mancebo bem nascido, a quem em gentileza e discrição
ficavam muito inferiores todos os de sua edade, na casa do imperador
Constantino III, cujo cortezão era, teve tanta ventura nos olhos de
Eurice, filha de Constancio, que depois succedeu no imperio, que lhe
parecia a ella que não podia esperar dos fados maior ventura, que a
de o alcançar por seu esposo, e gosar em qualquer estado humilde o
fructo de sua affeição; triumpho que o amor alcança da vaidade com
o favor dos espiritos mais illustres e levantados. O mancebo alheio
d’estes pensamentos, porém obrigado das mostras que lhe revelavam
aquella affeição, determinou de lhe não ser ingrato; porque além
da grandeza de estado, que na opinião dos homens avalia melhor os
merecimentos naturaes da cousa amada, era Eurice tão formosa, que
de quem no sangue lhe fosse egual merecia os maiores extremos de
affeição. Não fazia comtudo Manfredo os que desejava, porque como
entendido sabia o risco, em que punha a vida, se se publicasse na
côrte este segredo: e posto que não via caminho de poder tirar algum
fructo de seu amor, o sustentava sem esperanças com toda a fé, que a
Eurice era devida. Passou algum tempo até que em ambos a grande força
do amor venceu a razão, e triumphou a vontade do entendimento de
Manfredo, que sem outro conselho fugiu com a sua Eurice, em companhia
de dois creados que o serviam, de cuja fidelidade tinha feito prova
da experiencia. Passaram a Italia: tomaram primeiro terra no reino de
Napoles, d’onde foram a Ravena, e d’alli ao districto de Modena, onde
agora chamam Mirandola, que eram n’aquelle tempo montanhas incultas,
habitadas sómente de alguns pastores: entre estes começaram a viver
os dois amantes guardando gado, e fazendo verdadeiros os bem fingidos
amores pastoris: tendo, em logar dos paços reaes, tanques e jardins
de Constantino, as humildes cabanas, a natural verdura dos floridos
valles, e a cristallina corrente das claras fontes: e a troco das
galas, sedas e toucados galantes, que deixaram, os simplices vestidos
da montanha, as capellas de flôres e boninas, e os surrões e cajados
de guardadores: alli pisando com um generoso desprezo a vaidade,
livres de ingratos ciumes e enganosas suspeitas, gosavam de seu puro
querer, e verdadeiro, sem haver outra cousa que perturbasse aquelle
contentamento, mais que o receio de serem por algum modo conhecidos.
Manfredo, pouco a pouco desbaratando por via d’aquelles dois creados
algumas joias de preço, foi comprando gados e propriedades n’aquellas
montanhas em tanta copia que veiu a ser o mais rico morador que n’ellas
havia: e por sua riqueza, prudencia e pessoa era tão respeitado e
querido de todos, que, como se fôra senhor d’elles lhe obedeciam.
Já n’este tempo de sua prosperidade tinha da formosa Eurice copiosa
geração; porque do primeiro parto lhe nasceram tres filhos bellissimos,
que com os trajos e nomes d’aquella montanha se crearam. Depois lhe
foram nascendo cinco, que com a melhoria de seu estado accrescentou
nos nomes, chamando a um d’elles do seu proprio; e a duas filhas a uma
Eurice e outra Constancia. Com esta generosa familia, e sem outros
cuidados, n’aquella doce e amada companhia passavam alegremente a
vida sem sobresaltos. Tendo depois Constancio o governo do imperio,
passou com grande exercito á Italia, e assentou arraial junto á cidade
de Aquileia, aonde todos os povos italianos lhe mandaram por seus
embaixadores dar a obediencia. Juntaram-se os moradores de Modena e
de seus contornos, e elegeram para esse cargo a Manfredo considerando
sua gentileza, cortezania e entendimento, e o poder ir com melhor
tratamento de sua pessoa e creados. Houve elle de acceitar o cargo,
seguro de ser já conhecido de nenhum dos que em outro tempo haviam
tratado, com a mudança dos annos, e da vida que tinha n’aquella
aspereza. Mas Eurice com amor e esperança duvidosa, com mil receios
deante, lhe dizia: “Não sei, meu querido esposo, que desejo me anima
a que consinta n’essa vossa jornada, temendo n’ella tantos perigos
assim de serdes conhecido de meu pae, a quem tanto offendestes, como
de me deixardes só n’esta montanha, onde vossa presença me sustenta a
vida, tendo-me tão mal acostumada, que nem saberei viver uma hora sem
vós, nem estar em mim, em quanto vos detiverdes em Aquileia: comtudo
um certo presagio da ventura me aconselha que não tema este damno: e
considero que não fôra muito menor, se me levareis em vossa companhia,
para que quando a sorte quizesse que, sendo do imperador descoberto
o nosso segredo, vos accommettesse a sua ira, ou o movessem minhas
lagrimas á piedade, ou, havendo de haver algum risco com vossa vida, a
padecesse a minha de um mesmo golpe. Aconselhae-me, caro Manfredo, o
que farei, tomando as minhas partes contra vossa propria determinação;
que me não deixa amor fazer a escolha; nem os receios em que tropeço
me dão caminho e logar para que acerte. Porque se a ventura me busca
para me restituir o que deixei em seu poder, quando no querer do
amor puz minhas esperanças, não quero faltar-lhe pelo que vos quero:
e se pelo contrario quer tomar vingança do despreso com que tratei
suas prosperidades, justo é que se desvie dos castigos quem se soube
esconder de seus favores.“--Estas e outras palavras piedosas lhe dizia
Eurice; a que elle com outras de muita segurança respondia, e a animava
a que não podia temer nenhum successo desencaminhado; desfazendo-lhe
com boas razões o seu feminino receio: com estas e outras de muito amor
e saudade se despediram. Ella ficou chorando sua ausencia: elle chegou
a Basyléa; e houve-se com tanto aviso e cortezania na embaixada, que
o imperador lhe ficou affeiçoado, e o fez gentil homem de sua casa,
mandando-lhe que ficasse n’ella em seu serviço com promessas e palavras
mui compridas. Houve Manfredo de acceitar o novo cargo, por não mover
alguma suspeita que sahisse em seu damno. Escreveu logo a Eurice o que
passava; e ella começou com novo sentimento e devidos extremos a chorar
sua ausencia e sua privança; mal, que só sabe receiar quem conhece a
mudança e perigo de vontades; que sempre as mais levantadas são mais
mudaveis e ligeiras, e os da inveja que sempre como sombra acompanha
os validos. O imperador cada dia cobrava a Manfredo maior affeição,
achando no seu entendimento e humildade tudo o que em todos buscava;
elle admittido nos conselhos e nas occasiões de maior importancia ia
crescendo; mas como estes bens lhe impediam o maior da vida, que era
a sua Eurice, não recebia d’elles contentamento, nem os tinha por
ventura. A mulher da mesma maneira vivia em pena naquella montanha,
que d’antes lhe parecia um paraiso terrestre; e como sentia egualmente
os cuidados de Manfredo e a sua ausencia, para o alliviar dos da
côrte, lhe mandou Fantulo e Manfredo seus filhos menores a visital-o,
porque a estes mostrava elle maior affeição; e eram elles taes por
seu parecer, que a todos os que os vissem a mereciam. O pae ainda
que com amorosos extremos os festejou; combatido de um novo receio,
estava turbado, porque era o do seu nome tão parecido a Constancio, que
temia que na vista désse occasião de alguma lembrança que descobrisse
o segredo de sua culpa. E como a vinda dos meninos foi sabida de
muitos, e o imperador os havia de vêr pela graça que já tinha a seu
pae, elle mesmo se quiz oppôr ao perigo, e lh’os foi apresentar com
toda a humildade. O avô os recebeu com estranha alegria; que ás vezes
a natureza com estes effeitos descobre os segredos do tempo, e acaba
o que não póde levar ao fim a industria humana. O pae como discreto
sabia escolher as occasiões; que este é o mais verdadeiro toque do
entendimento. Entrando com o imperador e com os filhos em um aposento
particular, lançado a seus pés lhe disse estas palavras: “Não é
justo, poderoso senhor, que á conta de salvar a vida, e de escusar
n’ella o castigo que meus erros merecem, tire a esses innocentes o
merecimento e o favor de vossa graça, com que agora podem tornar atraz
a fortuna: e assim com a confiança em vossa piedade e menos seguro
ao perdão, que obrigado do muito que vos devo, confesso minha culpa,
pedindo com estes meninos misericordia, que para si e para sua mãe e
irmãos estão com caricias pueris grangeando a vossa vontade. Sabei,
piedoso senhor, que são netos vossos, filhos de Eurice, vossa filha e
meus; que, sendo desposado com ella secretamente, por fugir ao rigor
da vossa ira, vivo ha tantos annos nas asperas penedias e incultas
montanhas de Modena, fazendo penitencia de minha ousadia com o mesmo
amor, que foi o culpado. Se esta confissão, com o pesar de vos haver
offendido, merece que useis commigo de brandura, lançado a vossos pés
peço perdão, tomando por padrinhos a estes caros penhores do sangue
vosso: e se pelo contrario se ha de empregar o vosso rigor em sujeito
tão vencido, aqui me tendes com a vontade offerecida para os maiores
tormentos da crueldade.” O imperador com um estranho sobresalto ficou
enleiado sem saber determinar: e pondo os olhos n’aquelles bellos
retratos da sua Eurice, abrandou a ira, com que os havia de pôr em
Manfredo, reconhecendo-os por seus netos, e perdoando ao pae a culpa
commettida. Depois foi elle proprio ás montanhas a vêr a Eurice, e á
venturosa progenie que creára; a quem com muitas lagrimas de alegria
recebeu em sua graça: e alli fez a Manfredo conde e marquez de todo
aquelle districto, que fica entre os rios Pado, Tanaro e Sequia,
dando-lhe poder para edificar villas, castellos e cidades, que
accrescentasse a seu senhorio: mandou que elle, seus netos, e todos da
sua descendencia, trouxessem por armas a aguia negra dos imperadores.
E por admiravel progenie da sua Eurice pôz á terra Miranda, que depois
chamaram vulgarmente Mirandola. Manfredo e sua mulher em vida de
Constancio seguiram a côrte com grande accrescentamento de estados: e
depois que falcou no imperio, se recolheram ao seu marquezado, fazendo
muitas povoações e cidades, em que seus filhos succederam, alliando-se
depois com todos os potentados de Italia e de Allemanha, que dão ainda
verdadeiro testemunho de que os casamentos por amor nem podem ser
extranhados da natureza, nem desfavorecidos, por a maior parte, da
ventura.

--Ambos (disse Solino), me parece que podereis partir a fogaça, porque
vos houvestes de maneira, que o que se atrever a julgar a melhoria,
tomará tão difficultosa empreza, como seria a de querer agora competir
com a boa linguagem e modo que tivestes.--Entendo (tornou Leonardo) que
chegais braza á vossa sardinha: mas não a haveis de tirar do fogo com
a mão do gato, nem livrar a vossa obrigação, com a que nós tenhamos
de dar a Feliciano e Pindaro louvores tão bem merecidos. Nenhuma
razão tendes para não fazer no terreiro vossa cortezia.--Eu sou de
voto (disse o doutor), que lhe aceitemos qualquer escusa, porque a
sua rhetorica serve mais aos contos, que ás historias, segundo disse
o Licenciado.--Grande aggravo se lhe faz (disse Pindaro) em o tirarem
da conta dos historiadores, que elle se confessou por esse, e por
affeiçoado aos livros de cavallarias; e além dos seus contos engraçados
sabe tantas historias, que a ser figura de arithmetica, poderá ser
conto de contos.--Bem sei (respondeu Solino) que me sommais para me
diminuir: ainda que a meu pesar confesso que, se a historia de cada um
de vós me cahira nas mãos, houvera de sahir d’ellas com mais
bordões, e muletas do que tem uma casa de romaria, porque me não
escapam termos das velhas, nem remendos dos descuidados que lhe
não misture.--Quando menos (disse o doutor) ouçamos isso, ficará á
vossa conta o exemplo do que se ha de fugir, pois os dois amigos nos
ensinarão a acertar.--Tambem errar por obrigação é difficultoso,
(replicou elle) mas aceito o partido, por vender por alheios meus
erros proprios. E ouvi o que passa: farei de um peão dama, e de um
conto historia por ser mais breve:

“Dizem que era um rei: vem este rei casou por amores com a filha de
um seu vassallo: era ella tão formosa que podia por sua belleza ser
confiada, pois por essa alcançára o ser rainha: mas sem lhe valerem
esses privilegios deu em tão ciosa, que bem a mão não dava o marido um
passo que ella não acompanhasse com as suspeitas; assim que apertavam
estas tanto com ella, que já mais vivia em paz com seu gosto. Vem ella,
e por vencer esta desconfiança vai, e manda secretamente chamar uma
feiticeira, que n’aquella terra havia de muita fama, em cujo engano
achavam os namorados uma botica de remedios para seus males. Assim
que dizia: esta feiticeira por lhe vender mais cara sua diligencia,
feitas algumas fingidas, metteu em cabeça á boa da rainha que o marido
amava com grande extremo a uma criada sua, que ella pintou logo a
mais galante, airosa e bem assombrada que havia no paço. Quando ella
aquillo ouviu ficou guarde-nos Deus! como uma mulher transportada, e
sem sangue; por maneira, que prometteu áquella feiticeira que lhe faria
e aconteceria, se desaffeiçoasse ao rei d’aquelles amores, e empregasse
n’ella todos os seus: a outra, que não queria mais que aquillo, vede
vós como ficaria contente; vem, e promette á rainha que lhe daria
tres aguas conficionadas de tal maneira, que uma, tanto que el-rei a
provasse, bebesse logo os ventos por ella, e lhe quizesse mais que o
lume dos olhos, com que a via; a outra, que, em a rainha a bebendo,
parecesse a seu marido o maior extremo de formosura que havia no mundo;
a terceira que, tanto que a dama a bebesse, a desfigurasse de maneira,
que a todos aborrecesse a sua vista. As palavras não eram ditas, a
rainha lhe deu muitos haveres, e fez grandes mercês e promessas; que
muito facil é de enganar a que deseja aquillo, com que lhe mentem. Vai
a feiticeira d’alli a poucos dias, e traz aquellas aguas conficionadas,
encarecendo muito a virtude, e segredo d’ellas: mas ou porque lhes
errou a tempera, ou porque todas se resolvem n’estas boas obras, a
mudança que ella queria que houvesse na vontade, e nos pareceres,
lhe houveram de fazer na vida; que a peçonha, que é sempre material
dos seus unguentos, penetrou de maneira que os teve a todos tres em
passamento; e a bom livrar ficaram d’ahi a poucos dias sem juizo. Ainda
bem a feiticeira não soube o damno que fizera, e que, por não trazer
a mão certa n’aquelles adubos, podia vir a estado de a pôrem nas da
justiça, desappareceu. Eis senão quando se juntaram todos os medicos
eminentes, que havia no Reino; e depois de muitos mezes de cura, (olhai
vós quantas se fariam a taes pessoas) foram pouco e pouco cobrando os
sentidos e entendimentos; e com a força do mal lhes cahiu a todos o
cabello da cabeça sem lhes ficar um só. E não foi tão ruim o partido,
como era ter cabeça sem elle quem antes o trazia sem ella. Tornando ao
meu proposito, tanto que a rainha se viu tão desfigurada, conhecendo
o desatino que fizera, dando todas as culpas a amor, confessou seu
erro, a criada sua innocencia, e o rei sua desgraça: d’alli adiante,
conformando-se com o exemplo daquelle successo fizeram vida sem ciumes:
que d’elles e de casamentos por amores não escapam senão ou com as mãos
nos cabellos, ou com elles pellados.”

Festejáram os amigos a historia de Solino, porque se conformava no modo
e acção de falar com o que dizia; e como tinha graça, até os erros lhes
pareciam bem. E assim lhe disse o doutor:--Tudo vos succede a pedir por
boca, porque na vossa até o exemplo do que nos outros enfada tem graça
para dar contentamento; e posto que as duas historias passadas foram
tão primas, não desdizem d’ellas os vossos bordões.--Se eu não tivera o
de vossa auctoridade para me sustentar (respondeu elle) manquejára em
tudo.--Em nada (proseguiu elle) haveis de mister favor alheio, e menos
n’este particular, em que entrais com todo o cabedal que requer uma
historia, que é _boa linguagem, discrição natural, relação ordenada,
praticas com piedade, successos com brevidade, sentenças com que se
auctorise, e graça com que se conte_. Porém são horas de deixarmos
esta, e darmos as suas ao repouso da noite.

Com isto se levantaram continuando com a mesma pratica até á escada;
que das coisas, que dão satisfação á vontade, não se sabem despedir as
razões.




                              DIALOGO XI

         DOS CONTOS, E DITOS GRACIOSOS E AGUDOS NA CONVERSAÇÃO


No dia seguinte, antes das horas em que os amigos se haviam de
ajuntar para a conversação, Leonardo e os mais tiveram recados de D.
Julio, em que lhes fazia a saber que chegara doente, e que tinha por
hospede ao prior com outro irmão seu: que receberia de todos grande
mercê em quererem juntar-se aquella noite em sua casa, porque só com
este remedio daria allivio ao mal que trouxera da cidade. Elles, que
(além de a petição ser justa) eram interessados em sua saúde, amigos
e obrigados a o visitarem, ouviram que lhe deviam obedecer. Solino
acompanhou a Leonardo: e não faltaram no caminho murmurações discretas,
nem em o doutor, e os estudantes juizos temerarios. Acharam a D. Julio
na cama, o prior junto a ella, e o irmão, que era homem mancebo, bem
afigurado, e que no trajo vestia mais ao soldado, que ao cortezão.
Sentados todos depois de lhe fazerem cortezia, e comprimentos devidos,
disse Leonardo:--Bem me parece, senhor D. Julio, que estaes já tão
aldeão com a nossa companhia, que vos apalpam os ares da cidade; e que
os regalos d’ella fizeram que o senhor prior se esquecesse d’aquella
sua estalagem tão cheia de vontade para o servir.--Onde vós estaes
(respondeu D. Julio) é a côrte; e a falta d’esta me podia fazer aldeão.
Do senhor prior fazer a troca por esta noite, tive eu a culpa; porque
com esta condição acceitei em terra alheia a sua pousada nas casas do
sr. Alberto seu irmão, a quem tambem obriguei a que me fizesse esta
mercê.--Não me desculpo (accudiu o prior) porque tudo o sr. D. Julio
tomou á sua conta: porém em occasião estaes de haver muitas, em que
mudeis o queixume, fazendo-o antes de minha importunação sobeja, que
d’essa falta: porque vem apostado meu irmão, pelo que lhe contei, a
perder poucas noites d’esta aldeia, em quanto as tiverdes tão boas
como duas que me aconteceram.--Assim (disse o doutor) serão ellas
melhores, porque com vossa presença, autoridade e discrição, e com
favores seus, ficarão melhor assombradas; terá saúde este fidalgo, e
então vos convidaremos para a primeira; que ainda não sabemos de que
vem maltratado.--Do meu achaque (disse elle) tive eu a culpa, que me
entreguei hontem mais, do que era razão, na ceia; porque foi de pescado
e marisco, e doces; e como cresceu com a novidade o appetite, quiz-se
forrar á custa do estomago de quantas vezes nos faltam semelhantes
regalos n’este logar; e certo que tive um accidente muito rijo, e não
podia com o cansaço, que me deixou sem vossa vista, e d’estes senhores;
e por isso me vali do atrevimento do recado.--O allivio (disse o
doutor) é tanto em favor nosso, que, a ser menor o mal, consentiramos
n’elle.--Maiormente (accudiu Solino) se é o que eu cuido, que como
experimentado de ordinario, julgo mais a enfermidade pelo pulso, que
pela informação.--Não parece que vol-o deve offerecer quem a tem tão
boa de vossa malicia, (tornou o fidalgo).--Antes estou tão emendado
em alguma, que vol-o pareceu (replicou Solino) que já não suspeito
senão o que é.--Tarde vos mettestes n’essa recoleta (disse o doutor)
e os que em velhos começam a ser bons, pouco tempo lhes fica para
usarem da virtude.--Não sei logo (lhe respondeu elle) como, sabendo
isso, vos descuidastes tanto, que nunca para uma murmuração vos achei
descalço.--Parece-me (disse D. Julio) que será bom que o mais fraco
aparte esta briga com pedir que me façaes mercê de me dizer em que
se passou hontem entre vós a noite.--Parte (disse Solino) em cuidar
em como passarieis o dia, e na grande falta que nos fizestes; a
outra em dizer como se haviam de contar as historias na conversação;
e n’aquella se disseram duas para negaças, e uma para espantalho;
ficou para continuar a materia de contos graciosos, ditos agudos e
galantes: tereis vós saude logo, e nós com ella gosto para proseguir,
e ouvirão estes senhores o que não cuidaram.--Não me ponhaes vós isso
em dilação (disse o fidalgo) que antes em quanto mal disposto quero,
como dizem, accrescentar esta noite á vida; e se m’a desejaes como
amigo, sabei que n’isto a tenho.--Se como a doente (respondeu Solino)
vos houverem de fazer a vontade, não sei se fôra esta. Com tudo, ao
menos para divertir, comece o doutor; que eu aqui trago as armas, com
que costumo accudir a esta guerra; e cada um diga o seu conto, e conte
o seu dito, encommendando a todos que riam do que eu disser, porque
é vicio, dos que cuidam que tem graça, a desconfiança.--Tambem essa
me parece, (accudiu o doutor) e dando-vos a obediencia por servir ao
senhor D. Julio: A noite, em que nos faltou sua presença, se tocou
n’esta conversação o modo que havia de ter o discreto em contar uma
historia; fugindo muitos vicios, e bordões que os nescios tem n’ellas
introduzidos; e como em dependencia d’esta materia se falou nos
contos galantes, que tem d’ellas muito grande differença; pois elles
não consistem em mais, que em dizer com breves e boas palavras uma
cousa succedida graciosamente. São estes contos de tres maneiras:
uns fundados em descuidos, e desattentos: outros em mera ignorancia:
outros em engano e subtileza. Os primeiros e segundos tem mais graça,
e provocam mais a riso, e constam de menos razões, porque sómente se
conta o caso, dizendo o cortezão com graça propria os erros alheios. Os
terceiros soffrem mais palavras, porque deve o que conta referir como
se houve o discreto com o outro que o era menos, ou que na occasião
ficou mais enganado. E porque n’isto declaram menos as regras, que os
exemplos, diga cada um o seu; que eu, por desimpedir o caminho, quero
que passe por conto o que me aconteceu ha poucos dias:

“Fui a casa de um letrado meu amigo, a quem achei mui colerico, tirando
pelas orelhas ao seu moço, que se desculpava, chorando, que não sabia
de uns oculos, por que perguntava: olhei, e vi que tinha uns no nariz
presos; perguntei-lhe se eram aquelles: o letrado ficou corrido,
porque, tendo-os nos olhos, os não via; e o moço queixoso, porque as
suas orelhas pagavam a pena que as do letrado mereciam.”

--Esse desattento (disse Leonardo) é muito ordinario nos escrivães que
buscarão duas horas na mesa, e nos papeis a penna que trazem na orelha.
Mas para desattento, e descuido: o que n’este logar aconteceu ha muitos
annos a um cortezão que aqui vivia, que tendo uns amores humildes, que
tratava com muito segredo, tinha um relogio de peito que trazia tão
esperto, e bem temperado, que fazia horas quasi a todos os moradores
d’este logar. Desattentou, e estando com elle ao pescoço uma noite em
casa da delinquente, deu o relogio meia noite: e ás escuras manifestou
a toda a visinhança a verdade, que até então escondera dos olhos, e
suspeitas de todos.--Ainda (disse o prior) me parece peor o successo de
um meu conhecido, que em um bairro de pouca visinhança tinha em Lisboa
amores com uma moça que lhe estava já affeiçoada; falava-lhe de noite
de uma janella, e ambos se temiam de outra, d’onde um visinho de parede
em meio os espreitava: por se livrar d’este inconveniente, deu-lhe
a moça ponto para uma noite lhe falar de mais perto, entrando pela
janella, fazendo primeiro certo signal, com que ella havia de accudir.
Buscou elle para isto uma noite chuvosa, e escura, poz sua escada,
subiu; e errando a barreira, foi bater e fazer o signal na janella de
que se vigiavam. Accudiu o visinho, e abrindo-a, viu o namorado seu
erro á candeia; e com o sobresalto d’esta desgraça, cahiu com a escada
e com o segredo na lama.

Festejáram todos o conto com muito riso. E disse Solino:--N’este
mesmo logar conheci um galante, que falava muitas noites de pé da
janella a uma dama, com quem tinha amores; e assim em vendo visinhança
recolhida, e logar quieto, disfarçando-se com os moveis, que para
aquelle mister tinha apparelhados, vigiando todos os portos por onde
podiam contraminar a cautella do seu segredo, se vinha ao posto. Uma
noite, que lhe não coube vez senão perto da madrugada, falando a moça
com elle, sentiu dentro reboliço; e por não ser sentida, pediu-lhe que
se encobrisse com a sombra, e que ella tornaria a lhe fazer signal,
como tudo se aquietasse. Sentou-se elle em uma pedra; e a moça vendo o
negocio mal parado, por desmentir algumas suspeitas se foi lançar na
cama: o galante, que como estava trasnoitado achou branda a em que se
recolhera, adormeceu com tão boa vontade, que já alto dia foi achado
como Leandro na praia de Césto, dormindo com o trajo de outras horas,
espada núa, e rodela mal vestida, sem dar acordo; até que, depois de
estar á vergonha, um amigo o recolheu a casa, e a dama padeceu a esta
conta muitas, que costumam a ser o ganho d’estes empregos.

Com egual alegria foi recebido este conto, que o do prior: e disse
Leonardo a Feliciano, e a Pindaro, que pois elles tinham dado exemplo
dos contos de descuido, e desattento, a elles ambos tocavam os da
ignorancia.--Não nos guardastes para bom logar (tornou Pindaro) porque
mais convinha aos mancebos contarem descuidos e desattentos dos velhos,
que ignorancias suas: mas para que saibaes que não faltam umas e outras
culpas n’essa edade, me não escuso.

Um homem de melhor parecer e estatura, que entendimento, se apartou
a viver alguns annos longe da cidade em um monte, onde além de tratar
pouco do culto de sua pessoa, com o ar dos matos, o discurso da edade,
e algumas enfermidades que tivera, estava do rosto e das feições mui
dissimilhado; vindo depois com nova occasião a viver á terra, d’onde
sahira, querendo-se vestir, e concertar ao galante, mandou que lhe
comprassem um espelho: fez o creado dilligencia, e não achou nenhum
de que se satisfizesse o amo, tendo provado muitos, ou quasi todos os
que havia: e perguntando-lhe porque os engeitava, respondeu: “Porque
fazem tão mau rosto, e tão avelhantado, que se não pode um homem
de bem vêr a elles; e ha poucos annos que os havia n’esta terra tão
excellentes, que me faziam o rosto como de um anjo.” Riu-se o moço
dizendo entre si: “Mais se desconhece meu amo por ignorante, que por
mal visto; pois ao espelho põe a culpa que tiveram montes, e a edade.”

--Outro (disse Feliciano) tão fraco de animo como de entendimento,
passando em sua casa de uma para outra, com uma porcelana de sangue
que levava para certo effeito, acertou de tropeçar na porta por onde
entrava, e entornou-se-lhe o sangue pelas mãos: e accudindo logo com
ellas ao chapéo, que lhe cahia, encheu a testa de sangue que lhe
corria em gôttas sobre o rosto: um filho, que olhando para elle o viu
ensanguentado, começou com grandes gritos e choros a chamar sua mãe;
a qual, tanto que achou o marido d’aquella maneira, com as mãos nos
cabellos pranteava sua desaventura: elle ouvindo os gritos de todos,
sem saber o que era, cahiu esmorecido na casa, onde podera morrer de
nescio, como outros morrem de mal feridos.

Pareceu muito galante, e provocou a todos riso o conto de Feliciano;
e proseguiu o doutor dizendo:--Os contos da ignorancia tem mais graça,
que os da malicia; e assim dizia um discreto que só a parvoice com
auctoridade era sem sabor; que não pode ser maior galanteria, que um
engeitar ao sirgueiro o chapéo porque não tinha a rosa para deante,
podendo-a elle voltar para onde quizesse: o outro espantar-se muito
de lhe não tingirem umas meias negras de verde, sendo assim que havia
pouco tempo que umas verdes lhe tingiram de negro: e o outro, que para
não perder a chave do cadeado, a metteu dentro na canastra encourada
antes de o fechar; e depois lhe foi necessario quebrar a elle, ou
romper a ella para tirar a chave: e muitas semelhantes, que contar
agora seria infinito.--Ainda (accudiu D. Julio) haveis de dar licença
ao conto de um meu conhecido, que ouvindo falar que havia antipodas,
e que andavam com os pés para os nossos, o não pude persuadir de que
modo podia estar esta gente, sem cahir de cabeça abaixo, andando ás
avessas.--Todos esses (disse Leonardo) são extremados; porém os de
engano, se tem menos occasião de provocar a riso, tem a graça mais viva
na subtileza e malicia; e quando a materia é graciosa, levam a todos
os outros muita vantagem. “Um amigo meu era mui regalado de doces;
e no tempo das flôres e das fructas mandava fazer em sua casa muita
variedade d’elles: uma das creadas, com que se servia, era tão gulosa,
que, em vendo boccados a enxugar, não se aquietava até tomar a sua
ração, que era cercealos a todos como a reales. Desejando o senhor de
saber qual dos seus moços, ou creadas, lhe fazia aquella travessura,
mandou fazer certos boccados com azebre, cobertos de assucar; e, postos
ao sol, deu mais logar á moça, que accudindo ao reclamo, fez seu lanço;
e como logo se quiz aproveitar do ponto, foi tão grande o amargor na
bôcca, que o não poude encobrir: fazendo muitas diligencias, começou
a dar signaes, e a agastar-se: o amo fingindo suspeitas de peçonha,
metteu toda a casa em revolta, e a moça em desconfiança, fazendo-a
beber azeite, e tomar outros defensivos: porém como elle não podia
encobrir o riso de a tomar na empreza com aquelle engano, entendeu
ella o que seria; e por remediar sua falta, fingindo estar atribulada,
disse que lhe declarassem se morria, porque havia de deixar culpado
quem a convidara com aquelle doce, por ella não descobrir os que lhe
vira muitas vezes furtar dos taboleiros: e d’este modo remedeou seu
erro, deixando ao amo na mesma duvida que tinha d’antes.”--Um estudante
(disse Feliciano) que entre outros era hospede em casa de um amigo,
jazendo todos na cama, por ser o tempo de verão, elle que era menos
corrido, que engraçado, lhes disse: Não se riam vossas mercês tanto do
meu pé, que apostarei que ha na companhia outro peior: cada um fiado
nos seus, zombava, e sahia á aposta, de maneira que a fizeram que,
se elle o mostrasse, ganharia certo preço, ou perderia outra egual
valia: feita a aposta, tirou elle o pé esquerdo, que tinha escondido,
que por calçar mais dois pontos, que o outro, tinha os dedos em
arcos, tão tortos, e cheios de cravos, e o pé de joanetes, que não
parecia natural: e assim ganhou, com muito riso de todos, o que tinha
apostado.“--Outro estudante do meu tempo (proseguiu Pindaro) passando
parte de uma noite de inverno em casa de um amigo, que morava perto do
rio, choveu tanta agua, e cresceu com tanta furia o Mondego, que lançou
por fóra, e fez ilha das casas do estudante: o hospede esperava que o
convidasse a ficar; e o amigo não tinha essa vontade, porque temia a
roupa de alguns males contagiosos, que d’elle suspeitava: estiveram
assim grande espaço da noite, sem cessar a chuva, até que o senhor da
casa começou a bocejar, e o hospede a se despir: e perguntando-lhe o
amigo para que se despia? respondeu: Que ou para nadar, ou para se
lançar na cama. Vendo-se elle apertado, respondeu: Pois assim é; alli
tendes uma taboa, ou vos salvae nella, ou fazei d’ella cama em que
vos lanceis.”--Esse conto (accudiu Solino) tem o pé em duas raias,
ou parte com dois termos, que consta de dito, e de feito; mas passe
sem sello, por ser vosso.--Signal é (respondeu elle) que vos não deve
direitos. Então gabaram todos os contos, e disse o doutor:--Além
d’estas tres ordens de contos, de que tenho falado, ha outros muito
graciosos, e galantes, que, por serem de descuidos de pessoas, em que
havia em todas as cousas de haver maior cuidado, nem são dignos de
entrar em regra, nem de serem trazidos por exemplo: a geral é que o
desattento, ou a ignorancia d’onde menos se espera, tem maior graça.
Atraz dos contos graciosos se seguem outros de subtileza, como são
furtos, enganos de guerra, outros de medos, phantasmas, esforço,
liberdade, desprezo, largueza, e outros semelhantes, que obrigam mais
a espanto, que a alegria; e posto que se devem todos contar com o
mesmo termo, e linguagem, se devem n’elles usar palavras mais graves
que risonhas.--Não era essa materia (disse D. Julio) para se passar
por ella tão apressadamente; porém já que no fim da noite, em que me
eu apartei, se tratava do sal; parece que sinto menos a falta da que
perdi, com vos achar ainda agora n’esta graça, como dependencia do que
então se falou; que não a pode haver melhor acceita que a dos ditos
agudos e galantes: assim que não havemos de consentir que o doutor se
divirta para outra cousa.--Eu não posso (disse elle) sahir de vosso
gosto; porém a materia não era para tão de repente, nem para tão breve
tempo como se requere que seja o da visita. Porque primeiramente,
_dito_, na significação portugueza tomamos por cousa bem dita,
ou seja grave, como o são as sentenças; ou aguda, e maliciosa, como
o são as de que agora tratamos: e chama-se _dito_, porque dizem
uma só palavra, ou muito poucas muito de entendimento, de graça, ou
de malicia. E deixando a sentença, que terá em outro dia o seu logar,
os ditos agudos consistem em mudar o sentido a uma palavra para dizer
outra cousa, ou em mudar alguma lettra, ou accento á palavra para lhe
dar outro sentido; ou em um som e graça, com que nas mesmas cousas
muda a tenção do que as diz: e de uns e outros os mais engraçados,
e excellentes são os de respostas; porque além de estas serem mais
apressadas, e tão de repente, que tomam entre portas o entendimento;
tem materia sem suspeita nas perguntas.

Dos da primeira especie não tem pouca graça os que dizem sobre os nomes
proprios, como aconteceu a um cortezão, que, perguntando a um amigo
pelo nome de uma dama da côrte, a quem visitavam infinitos galantes,
lhe respondeu que se chamava N. do Valle. Deve ser (tornou elle) o de
Josaphat, segundo a gente que corre para esta parte. Nenhuma me parece
(replicou o outro) que vem a juizo; porque nem ella o tem, nem os que
a buscam.--Esse dito (disse o prior) tem a graça dobrada em ambas as
pessoas: porém um cortezão galante, e de muita idade, visitando a uma
sobrinha sua, que estava desposada com um N. do Carvalhal, homem muito
velho, e senhor de um morgado rico, lhe disse: Sobrinha, o que vos mais
releva é que tireis d’esse tronco algum enxerto, que fique preso; por
isso não vos descuideis; e quando não puder ser de Carvalhal, seja de
Cornicabra. “Todos festejáram muito o dito: e proseguiu Leonardo:--Um
amigo meu tinha uma amiga muito magra e comprida, a que chamavam N.
Quaresma; e queixando-se uma sexta feira de falta de pescado, lhe
disse outro: Quem se atreve a uma Quaresma tão estreita e comprida,
porque receia uma sexta feira? Porque (respondeu elle) tenho a quaresma
por carnal, e a sexta feira por dia de quaresma.--A graça na mudança
das letras, ou accento (disse D. Julio) não é pouco galante; como
aconteceu a um mancebo, que vendo uma moça á janella, que lhe pareceu
bem, sem ter d’ella outra noticia a namorava, mui embebido em sua
gentilesa: passou um amigo, que vendo-o acenar lhe disse: Que quereis
a essa moça? Se ella quizesse (respondeu elle) tomal-a por minha dama.
Cuidei (tornou o outro) que por ama; porque há poucos mezes que pariu.
Tambem por esse caminho me parece gracioso o dito de uma mulher, que
não tratava bem de obras a honra de seu marido, e elle muito mal de
palavras a de toda sua visinhança: era o seu nome d’elle N. Ramos; e
pondo-se um dia em praticas com a mulher, começou a contar com ella
todos os cornudos que havia no seu bairro: a mulher com raiva da sua
má natureza, a cada passo dizia: Erramos marido; tornai a contar, que
falta um. Elle, que entendia mal o remoque, sem se meter na conta, a
tornava a fazer de novo muitas vezes.--Ainda que o dito é mui sabido
(tornou Pindaro) não vem fóra da razão n’este logar; nem se deve negar
tambem a outro, de um cortezão engraçado, que levando-o um alcaide
preso diante de certo julgador, por trazer seda contra a pragmatica;
e allegando que era homem nobre; lhe disse o juiz, que, pois o era,
porque não trazia o que devia?--Antes (respondeu elle) o faço assim,
porque ainda devo tudo o que trago. Sabei, senhor (tornou elle) que
se vos fez a divida maior, pois o tomam por perdido.--Por perdido
(disse elle) m’o poderá tomar seu dono: mas pois vossa mercê o quer
julgar ao alcaide, requeiro que lhe passe com seus encargos.--Outros
ditos ha engraçados a essa similhança (proseguiu o doutor) que só na
mudança dos sentidos das coisas (como já disse) tem a galanteria; como
o que aconteceu ha poucos mezes a uma donzella, que servio seis a uma
Dona mui miseravel de condição, a qual a despediu sem mais galardão,
que um vestido de serguilha, a que chamam cilicio. E perguntando-lhe
uma senhora: Como vos pagou N. o tempo que a servistes? Pagou-me
(respondeu a moça) como um confessor, com este cilicio, e seis mezes
de pão, e agua.” E porque disse que de uns, e outros os melhores
consistiam na graça de uma boa resposta; e quasi todos, os que aqui
se disseram, o parecem, me quero declarar assim com razões, como com
algum exemplo, que as declare. Resposta aguda ha, que como esta, e
outras, que ficam ditas, agradam muito, porem não incluem a brevidade
das que fazem a sentença com as palavras da pergunta. “Um cortezão
fallando de outro, que alcançára por sua valia muitos logares honrados,
e perdera um, em que tinha empenhado todo o seu cabedal, por ser de
humilde geração, perguntava a um amigo: Se N. sempre acertou até
agora em suas pretenções, como n’esta, que mais lhe importava, errou?
Respondeu o outro: foi por baixo.” “A outro, que vivera muito tempo na
privança de um senhor com grande prosperidade, vendo-o depois um amigo
em estado miseravel, lhe perguntou: Como de tanta altura descestes
da graça de N. a esta miseria? Ao que elle respondeu: Cahi.”--Ainda
(disse o irmão do prior) que em querer dar minha razão seja atrevido,
a profissão de soldado me desculpa; entre os quaes até a temeridade
é digna de louvor. Mas em Flandres, onde andei na milicia hespanhola
alguns annos, acudiam muitos doutores catholicos, e outros scismaticos
encobertos, a umas conclusões, que havia em uma cidade pequena, de
theologia: certos frades de S. Francisco, aos quaes não davam logar
suas enfermidades para poderem caminhar a pé, iam em asnos. Passando
por elles alguns do outro bando em mulas muito luzidas, e auctorisadas;
um d’estes por motejar aos menores, lhes perguntou: Aonde vão os
asnos? Respondeu um frade velho: Nas mulas: e com uzar da agudeza, na
sua mesma pergunta os envergonhou, mudando o sentido a uma palavra
d’ella. Gabaram todos o dito, e o commedimento do novo companheiro;
e continuou o doutor:--Temos tratado dos contos graciosos, e ditos
agudos, e galantes, com exemplos muito a proposito da sua differença;
fica para dizer o como na pratica se deve usar d’elles; e posto que
me tirava d’este trabalho o conhecimento que tenho da sufficiencia
dos que estão presentes, como eu n’esta materia aponto as regras mais
para as aprender, que para me seguirem, é necessario tocar ao menos
o que d’ella me parece: e assim como dizem que muito ensina o que
bem pergunta, assim se póde dizer que muito aprende o que deante dos
mestres ensina. Os contos e ditos galantes devem ser na conversação
como os passamanes, e guarnições nos vestidos, que não pareça que
cortaram a seda para ellas, senão que cahiram bem, e botaram com a
côr da seda, ou do panno, sobre que os puzeram; porque ha alguns, que
querem trazer o seu conto a remo, quando lhe não dão vento os com
que pratica; e ainda que com outras coisas lhe cortem o fio, torna
a teia, e o faz comer requentado, tirando-lhe o gosto e graça que
podia ter, se cahira a caso e a proposito, que é quando se falla na
materia da que elle trata; ou quando se contou outro similhante. E se
convém muita advertencia e decóro para os dizer, outra maior se requer
para os ouvir; porque ha muitos tão sôfregos do conto ou dito, que
sabem, que, em ouvindo começar a outrem, ou se lhe adiantam, ou vão
ajudando a versos como se fora psalmo: o que a mim me parece notavel
erro; porque, posto que a um homem lhe pareça que contará aquillo
mesmo, que ouve, com mais graça, e melhor termo, se não ha de fiar de
si, nem sobre essa certesa se querer melhorar do que o conta; antes
ouvir, e festejar com o mesmo applauso, como se fora a primeira vez
que o ouvisse, porque muitas vezes é prudencia fingirem algumas coisas
ignorancia.--Agora vos digo (accudiu Solino) que não se deve pouco a
quem sabe passar essa dor sem dar signaes d’ella; porque, saber um
homem o que o outro conta ás vezes mal e sujamente, e estar feito
pedra, é peior que darem-lho com uma na cabeça; e cuidei que só aos
prégadores lhes era concedido esse privilegio, por fallarem sem lhes
haver outrem de responder: porém haveis de consentir que haja n’isso
uma excepção; e é que quando algum disser o conto, ou dito com algum
erro, o possa emendar e advertir o que o viu passar, ou esteve presente
quando succedeu.--Em tal caso (respondeu o doutor) piedosamente o
consentirei, se o que conta, ou lhe tirar a graça principal, ou errar
as pessoas e o sujeito. Tambem não sou de opinião que, se um homem
souber muitos contos ou ditos de uma mesma materia, em que fallou,
os traga todos ao terreiro, como jogador que levou rufa de um metal;
mas que deixe logar aos outros, e não queira ganhar o de todos, nem
fazer a conversação só comsigo.--Parece-me (disse Solino) que vos
ficou por tratar uma especie de ditos graciosos, que muitas vezes não
tem o peior logar na galanteria da conversação. E porque, ficando
fóra das vossas regras, os podem tomar d’aqui adeante por perdidos, a
mim me releva por o meu particular saber o como o discreto se ha de
haver n’elles; que são os de similhanças, a que commummente chamam
_apódos_; que, se são bem appropriados, dão sal á pratica, e gosto
aos ouvintes.--Tendes muita razão (respondeu elle) que ainda que deixei
de fóra outros muitos por os metter nas regras dos que nomeei, que a
esses estava mais obrigado de trazer a exemplo, e ao menos considerar
que se não hão de buscar de proposito, que seria fazer da graça
chocarrice; antes hão de ser trazidos tanto a caso, que sejam mettidos
na pratica como translações d’ella, fugindo de alguns, que escandalizem
em pouco, ou em muito, a parte de que se trata; e seja exemplo de como
Pindaro comparou as minhas casas, que, por serem pequenas, muitas,
e bem guarnecidas, lhes chamou _gavetas de escriptorio_.--E
Solino (accudiu Pindaro) disse que fizereis aquelle estojo para vos
recolherdes na velhice.--Não tenho eu por menos galante (disse elle) o
que, vendo a gelozia de Solino com cinco, ou seis meninas com habitos
de freiras de S. Francisco, lhe chamou _capoeira de rolas_. E a
um moço do Licenciado, que aqui anda muito pequeno e magro, com uma
espada muito comprida, _frangão espetado_.--Mais me parece (disse
Solino) esse moço _cabos da espada_, que homem com ella. Mas a
uma moça muito louca, a que todos sabemos o nome, que tem o rosto da
côr dos cabellos, e ainda com uns mantéos engommados de azul, chamou
um galante _porcelana de ovos doces_.--A essa, disse (D. Julio)
chamaram tambem pampilho, e rosto de alambre. Porém, se nos houvermos
de espalhar n’estas similhanças, e passarem de mão em mão, não haverá
quem nos desapegue da materia.--Antes me parecia a mim (disse Solino)
que assim dos contos galantes, ditos engraçados, e apódos rizonhos,
se ordenasse que em uma d’estas noites, tomando um proposito, cada um
contasse a elle o seu conto, e dissesse o seu dito; e seria um modo
extremado para se tirar outro novo alivio de caminhantes, com melhor
traça que o primeiro.--Fique a vosso cargo essa (tornou Leonardo) para
outro dia; e agora não demos má noite ao doente, nem aos hospedes ruim
agazalho.--Este (disse o prior) é o melhor, que podia pintar o meu
desejo; e suspeito que por vingança fizestes a noite mais breve: mas o
que d’ella perder, determino cobrar na de amanhã, porque a obrigação,
que tenho, de obedecer ao senhor D. Julio me faz esquecer até as de meu
estado. E se a do outro dia não fora de domingo, ainda n’ella gosara
o interesse de mercês suas, e das honras vossas.--Com esse (respondeu
Leonardo) de havermos de ter ao senhor Alberto, e a vós por mais espaço
n’este logar, dissimularei o queixume, que de ambos tinha.--Da minha
culpa (tornou Alberto) darei toda a satisfação; porque nem pelas do
prior, nem por sua conta, hei de perder a honra, e mercê d’essa vontade.

N’isto se começaram os mais a levantar. E perguntando a D. Julio
se estava melhorado do seu achaque, respondeu que não sentia outra
pena n’aquelle tempo mais, que o que perdera de tão boa conversação;
dando-se por mui obrigado do favor da visita, que, posto que aos
illustres se deve em tudo respeito, obediencia, e cortezia, nenhum a
sabe melhor estimar, que o generoso.




                              DIALOGO XII

                             DAS CORTEZIAS


Depois que os amigos se despediram, os hospedes ficaram gabando a
D. Julio a graça e bom termo de falar, de todos os que entravam
n’aquella conversação; dizendo que em tal aldeia se podiam ensaiar os
que quizessem apparecer na côrte apercebidos, approvando a maneira
que se tinha de discursar sobre cousas tão miudas e tão esquecidas,
sem causa, dos cortezãos. D. Julio lhe relatou algumas materias, de
que tinham tratado aquelles dias, que ao soldado deixaram cobiçoso;
e foram n’esta pratica tomando tantas horas emprestadas ao repouso,
que, para se entregarem d’elle pela manhã, se levantaram da cama
para a mesa: tiveram o doente e os hospedes suas visitas; e quando
veiu a noite, já os amigos estavam juntos em sua casa, com gosto de
Leonardo que o pediu a todos elles. E D. Julio para lhes pagar esta
diligencia no em que elle sabia que mais desejavam a satisfação, lhes
disse:--Não parece razão que á conta da cortezia, com que dissimulaes
commigo, me encerre eu com o que sei que desejaes de ouvir com muito
cuidado. Quero agora acudir aos remoques de Solino, e á curiosidade
dos mais, que lançáram juizos temerarios sobre a minha jornada; e para
que não esconda nenhuma das cousas que passei, a conto deante de tão
abonadas testemunhas. Soube (e não quero dizer que acaso), porque o
procurei de proposito, o dia, em que o sr. prior levava para a cidade
aquella religiosa peregrina; que por ter tantas cousas do céo, deixou
todas as da terra, vencidas com seu despreso, e acanhadas e humildes
com sua formosura. E assim por o acompanhar a elle em obra de tanto
merecimento, como por vêr despedir de todas as pretenções humanas quem
em tantas partes e extremos era divina; e na resolução sua e desengano
vêr o das esperanças, que o desejo podia fundar em sua gentileza:
me fiz encontradiço no caminho, onde me dei por obrigado a chegar
até á cidade, fingindo que alli de novo soubera sua determinação.
Conheceu ella ser eu o mesmo que na fonte da serra a encontrára; e
lembrada e agradecida da cortezia e respeito com que a tratei, sem
saber quem fosse, me pagou com a brandura de seus olhos a alma que
n’elles perdi quando a olhava n’aquelle desvio. Disse-lhe o sr. prior
quem eu era, accrescentando do seu o que agora fico a dever á sua
cortezia: e conhecendo a extrangeira a sua vontade, me fez muitas
mercês e favores pelo caminho; que, a não ser aquelle o derradeiro,
que havia de fazer no mundo, me pudéra eu encher de vaidade para os
não trocar por todos os interesses d’elle. O que n’ella vi foi o que
já me ouvistes; e posto que o decóro e respeito com que a levavam, não
accrescentou graças á sua formosura, lhe dava outro valor differente,
como o engaste de ouro bem lavrado o costuma dar ás pedras finas. Ficou
entregue ao céo com quem se parecia, e os olhos, que alli deixaram
as saudades e desenganos. Não foram estas occasiões de minha doença,
que não costuma a ser tão leve a que d’elles se gera: e assim póde
fazer em mim maiores effeitos a sua lembrança.--Da vossa parte (disse
o prior) tendes contado o que passastes: porém d’aquella extrangeira
pudéra eu dizer muito mais; que só no que lhe ouvi se podia conhecer
quanto estimou o bom termo da vossa cortezia, e muito mais esta segunda
de a acompanhardes.--A primeira de a deixar sem companhia (tornou o
fidalgo) me foi a mim mais custosa. E ainda que diz o rifão antigo,
que _cortezia e falar bem custo pouco, e val muito_, não se
podia dizer pela minha.--Antes sim (disse o soldado) pois vos rendeu
tanto, e vós não mettestes mais cabedal, que dar logar á razão, onde
o não podia ter o appetite. E posto que a cortezia tem muito grande
logar entre os portuguezes, porque no comedimento fazem vantagem a
muitas outras nações; no falar bem, segundo o sentido d’esse rifão,
acham elles a difficuldade; porque dizel-o dos seus proprios naturaes
lhes não custa pouco (que é uma culpa que nos arguem com razão os
extrangeiros) na qual peccamos contra o principal termo da cortezia.
Mas certamente que uma e outra era devida áquella gentil senhora,
de cuja riqueza e estado eu, como fronteiro que fui daquella ilha,
pudéra dar informação; e a vi tão obrigada e desejosa de se mostrar
agradecida ao sr. D. Julio, que excedia o modo da sua brandura e
receio.--Já desejo (disse o doutor) que passemos d’esta romaria; e não
sei eu melhor occasião, que falar em cortezias, assim extrangeiras
como naturaes; que é materia que beta muito bem com as das noites
passadas.--Quem haverá (respondeu Alberto) que não approve a vossa
escolha? que, além de vir a pratica a proposito das que entre nós
se trataram, temos presente o sr. prior, a quem está melhor, que a
todos, o cargo de nos fazer cortezãos por doutrina, assim como o póde
ensinar a todos com o exemplo.--São os meus habitos (disse elle) tão
alheios do estylo cortezão, que estão culpando a vossa inculca, e o
atrevimento que eu desejo tomar para vos obedecer; porém tenho por
menor erro cahir em muitos n’esta empreza, que desobedecer em todas ao
vosso mandado: mas com tal condição, que acudaes vós, por cortezia,
aos descuidos que eu n’ellas fizer, porque então não terei receio de
falar, nem estes senhores pejo ou fastio de me ouvir. E falando em
este nome de _cortezia_, é um vocabulo particular que entre nós
tem a significação mui larga, porque no seu verdadeiro sentido ainda
é mais estreito que o latino, que é _urbanidade_ derivado de
_urbs_, que quer dizer _cidade_; e assim é o comedimento e
bom modo dos que vivem n’ella em differença dos aldeãos; e cortezia
é dos que seguem a côrte, em differença de uns e outros. Porém na
significação generica este nome comprehende estas tres especies de
cortezia: _Ceremonia_, que é a veneração com que tratamos as
cousas sagradas da egreja e dos ministros d’ella, que pertence á côrte
ecclesiastica do papa, dos bispos e dos outros prelados inferiores:
_Cortezia_, que é a que se tem aos reis, principes, senhores,
titulos e ministros reaes: _Bom ensino_, que é a inclinação,
reverencia e comedimento, que se costuma entre os eguaes, ou sejam de
maior ou de menor qualidade. E deixando de tratar das duas primeiras e
de outras duas, que muitos põem no segundo genero, que é _cortezia
militar_, a que chamam _ordem_, usada nos exercitos, esquadrões
e alojamentos; e a outra _naval_, que se usa nas frotas, armadas
e navegações, porque umas e outras tem regras e leis declaradas,
tratarei sómente do bom ensino. Para o que me parece advertir que da
ceremonia se derivou a cortezia, e d’ella o bom ensino, descendo
por degraus como o mostram os exemplos de uma e outra; que como os
reis e principes se endeosaram com a vaidade, foram tomando muito na
cortezia do que era devido só a Deus; e porque egualmente os inferiores
quizeram parecer-se com os reis, foram tambem contrafazendo os seus
estylos na cortezia, a qual consiste em tres cousas, na moderação, na
inclinação e nas palavras: e trazendo o exemplo de cada uma com seus
principios, a Deus falamos com os joelhos em terra por cerimonia, aos
reis com o esquerdo posto no chão por cortezia, aos eguaes com elle
dobrado, tornando o pé atraz por bom ensino: a Deus beijamos o chão
ou o assento do altar, onde está posto; ao papa o pé; ao rei a mão
(posto que a alguns da gentilidade costumam ainda beijar o joelho).
Entre os eguaes beijamos a mão com que tocamos a sua, e de palavras
as de todos. Nas palavras se quizeram os reis levantar mais com os
titulos divinos: e de _mercê_ e _senhoria_, que era o seu
proprio logar, subiram a _alteza_, que era só de Deus; e depois
a _magestade_; e ainda, se se poderam chamar _divindade_, e
_omnipotencia_, me parece que o fizeram. Aos eguaes tratamos de
_mercê_, como que fomos tomando o que os reis deixaram; e ficou-se
o _vós_, e a brandura d’elle para os amigos, e para os mal
ensinados. _Bom ensino_ é tratamento de homens bem doutrinados,
ou por experiencia da côrte e cidade, ou por ensino de outros que
n’ella viveram. A _inclinação_ consiste em abaixar a cabeça, ou
a descobrir, em dobrar os joelhos ou os pôr em terra, em inclinar a
vista, ou a desviar do com quem se fala. A _moderação_ em se
mostrar mais humilde em beijar primeiro a mão, em dar o melhor logar ao
que fazemos a reverencia, ou, para melhor dizer, em tomar de tudo menos
do que nos cabia. As palavras ellas mesmas declaram quaes são da côrte
na conformidade do proverbio, ou sentença com que começamos, que é
falar bem do terceiro, dizendo o que faça em seu favor, e escutando com
cortezia em quanto ouvimos o que fala: fóra outra cortezia de palavras,
a que chamam _cumprimentos_, de que por ora não determino tratar.
Esta cortezia no exterior differe mui pouco da virtude da humildade, e
tem o mesmo fruito entre os homens da terra, que o Evangelho promette
no céo aos humildes, que é serem levantados; porque tambem para os
vangloriosos e arrogantes é grangearia o bom ensino e comedimento,
porque assim são mais bemquistos, acceitos e respeitados dos menores.
Tem esta virtude da cortezia, ou bom ensino (a quem tambem Marco
Tullio chama _virtude_) quatro escolas principaes, em que se
exercita, que são o _encontro_, a _visita_, a _mesa_ e a
_conversação_: os dois termos, em que se sustenta, são humilhar-se
uma das partes, e a outra querer-se melhorar na humildade; porque
quanto um mais se aproveita d’ella, mais obriga ao outro a se querer
mostrar bem ensinado. No encontro do caminho da visita, ou do passeio,
é a regra entre os eguaes, que o que vem, ou está melhorado de logar,
seja o primeiro na cortezia, assim da fala como do chapéo ou mesura:
como, se vem andando, e o outro está parado, se vem a cavallo, e o
outro está, ou vem a pé; e se ambos andam, e um vem da mão direita, ou
do logar mais alto; e da mesma maneira o que está em terra, casa ou
logar seu, seja o primeiro que accommetta a cortezia.--D’esse termo de
cortezia (disse Leonardo) temos uma historia antiga em Portugal, que
nos póde servir de exemplo e auctoridade para ella. Conta a chronica de
el-rei D. Fernando de Portugal que, quando elle e el-rei D. Henrique
de Castella falaram no Tejo em dois bateis, houve de ambas as partes
duvida em qual d’elles seria o primeiro que falasse; e el-rei de
Castella se resolveu em ser o primeiro por ter Lisboa de cerco, e estar
na guerra de melhor condição que el-rei D. Fernando; sendo assim que,
por ser em terra de Portugal, havia elle de ser o primeiro: e assim
lhe disse: _Mantenha-vos Deus, senhor rei de Portugal_; porque
estes eram os cumprimentos d’aquella boa edade.--O mesmo (acudiu o
doutor) entendia el-rei D. Filippe, o Sabio, quando com tanto excesso
de cortezias recebeu no seu reino a el-rei D. Sebastião seu sobrinho na
jornada de Guadalupe, onde na fala e mesura foi sempre o primeiro, como
eu posso mostrar de uma relação que tenho da mesma jornada: e tambem
se alcança da visita que o infante D. Luiz fez ao imperador Carlos
V quando, dando-lhe a deanteira na entrada de uma porta, o infante,
não se podendo escusar, arremetteu a huma tocha com que ia deante um
creado, porque era de noite, e foi allumiando ao imperador, para tambem
o vencer na cortezia que com elle usára.--O mesmo (disse Feliciano)
aconteceu a uma pessoa de não tanta qualidade, porém de sangue
illustre, que, dando-lhe um titular a deanteira na entrada de uma porta
travessa de uma egreja, elle se voltou a elle com agua benta fazendo o
officio de seu capellão.--Todos esses lances e outros semelhantes são
estratagemas e finezas de cortezia (respondeu o prior) das quaes eu me
não esquecerei no seu logar. E proseguindo a materia, a visita tem tres
termos de cortezia, que são: o _recebimento_, o _assento_
e o _acompanhamento_ da despedida. O _recebimento_ é sahir
o visitado fóra da casa, onde ha de tomar a visita, até á sala,
para na entrada dar a deanteira e melhoria ao que o vem visitar. O
_assento_, dar o seu ao hospede, e tomar outro egual á sua mão
esquerda, sem ser o primeiro que se assente. O _acompanhamento_ da
despedida é sahir com elle até á casa onde o recebeu, tomando sempre
a sua mão esquerda, dando-lhe d’este modo a melhoria na entrada,
logar e passeio.--O descuido dos ignorantes (respondeu Leonardo) tem
pervertido essas regras tão verdadeiras; ou, ao menos, embaraçado
pela sua má correspondencia: porque no receber das visitas ha alguns,
que são como pesos de lagar, que se levantam devagar e se assentam de
pressa: e a um dos taes disse um cortezão: que era bom para testemunho
falso, porque o não levantariam. Outro disse a um titular: que menos
era para senhor que para vassallo; porque nunca se levantaria. Já no
recebimento ha muitos que se ficam atraz dos paus, por não deixarem
a casa só, e assim dão cinco, e fazem o mesmo no acompanhamento da
despedida: a cujo proposito cabe aquelle dito excellente de um senhor
tão illustre por sangue, como por entendimento n’este reino; que
vizitando a um legado do papa vindo de pouco a Lisboa, na despedida
deu com elle mui poucos passos ao sahir da casa; e elle tomando-o pela
mão, o trouxe adeante dizendo: “Para italiano faz V. S. muito pouco
exercicio.” Porém declarae-me se nas vizitas falaes tambem das que se
costumam a fazer a enojados e enfermos: porque serão necessarias outras
regras muito differentes.--Não podia eu (disse o prior) fazer essa
mistura sem grande confusão e enleio. Mas d’ellas e das que se fazem a
donas e donzellas, e outras semelhantes, determino particularmente dar
meu voto debaixo da censura de vosso entendimento; e agora seguindo
a minha determinação: A terceira escola da cortezia é a mesa, em a
qual as regras são muitas; porém muito ordinarias e conhecidas. A
primeira é do assento, a segunda do serviço, a terceira das iguarias,
a quarta das graças depois de comer. O assento, em mesa de muitos, é o
primeiro logar o topo, a que chamam _cabeceira_, que fica á mão
direita dos outros; entendendo que ha de ficar uma das partes da mesa
livre para o serviço dos ministros d’ella: e quando é do menos gente,
sempre o que agasalha toma por cortezia o logar da mão esquerda. No
serviço o primeiro é dar agua ás mãos, em que sempre se ha de preferir
o hospede; e andam n’isto já os servidores tão apurados, que não fica
aos convidados logar mais que de algum leve comprimento. O segundo
(entre os amigos) é o fazer o senhor da casa para cada um dos outros os
pratos, que se hão de dividir na mesa, melhorando ao hospede na escolha
de cada cousa, a que podem chamar _cortezia mimosa_. O comer ha
de ser sem sofreguidão, sem mostra de gula nem demasiado appetite; e
tambem não mostrar uma frieza cheia de fastio, que é desagradecer a
comida e a vontade do que lh’a offerece. O beber seja sem pressa, e
com tento, não levantando o copo nem o pucaro, quando outrem o tem na
bôcca; salvo onde se usar a differente cortezia dos extrangeiros, que
se convidam a beber em um mesmo tempo. O que está á mesa não ha de
falar sempre em quanto os outros comem, nem comer em quanto os outros
falam. E de uma maneira e outra, o que se disser não seja cousa que
possa enojar o estomago ou diminuir o gosto dos convidados. Tambem deve
cada um acabar de comer quando os mais, ainda que lhe tivessem vantagem
na brevidade. As graças pertencem primeiro ao dono da casa; e aos
hospedes a cortezia depois d’ellas; que é uma maneira de agradecimento
cortezão. E posto que pudéra calar estas miudezas por mui sabidas (como
outras que deixo pela mesma razão) tenho alguma de falar n’ellas em
quanto me servem para ao deante.--Antes de ess’outras (acudiu Solino)
me quero eu metter como cebolinha em restea; que, se até agora’não
pescava em tanto fundo, porque a conversação obriga aos costumes, e eu
estou ha tantos annos pelos d’esta aldeia; para as cousas da mesa tenho
feito outro aranzel de cortezia: e posto que n’ella e na humildade
dizem que _abaixo fica quem se não adeanta_, como as cousas de
comer, e de proveito se atravessam com a vaidade d’este estylo, tenho
outra regra mui differente, por que me rejo, registada nos livros dos
rifães e proverbios das velhas, e encommendadas á memoria do meu moço,
com muito cuidado, distincta por _itens_, muito importantes á
quietação, e socego da vida de uma aldeia. Primeiramente: melhorar o
hospede por assento, e a mim no mantimento: dar-lhe nas cortezias o
que a mim nas iguarias: elle o primeiro no prato, e a mim o melhor
boccado: Se fôr pouco o vinho, beba eu deante; que quem leva a primeira
não fica sem ella: Se fôr pouco o pão, tel-o eu na mão, por não pôr
nas da cortezia o que folgo de ter na minha: Não tirar prato de deante
sem vir outro, que m’o alevante: Em quanto outrem apara, fingir que
não vejo a faca: Se os outros falarem muito, dizer, os amens: porque
_ovelha, que bala, boccado perde_. Em quanto tiver fome, zombar
de quem não come: E quando tiver sede, lembral-a a quem não bebe.
E quanto em todas as mais entradas e sahidas, como são o _lavar
das mãos_, _mesuras_ e _prolfaças_, liberal como nas eiras. E
a verdade é que o verdadeiro cumprimento em que se declaram
os demais, e que serve de lei mental a todos, é: _Todo sou vosso,
tirando fazenda e corpo_. E passando da mesa, seguem logo outras
regras não menos respeitosas, como são: No acudir ao perigo, fingir-se
manco: Na cama pequena, deitar no meio: No logar estreito correr
deante; que quem vem tarde, mal se agasalha: Ribeiro grande, saltar
de traz; que a verdadeira discrição é experimentar na cabeça alheia:
e a mais trilhada parvoice é _não cuidei_.--Não vos desfaçaes
d’essa doutrina (disse Leonardo) que é a melhor regra de viver em paz
sobre a face da terra, que quantas andam nas cartilhas antigas.--Eu
(tornou o prior) não defendo aquella seita aos que a quizerem seguir,
respeitando mais a commodidade que a cortezia. E deixando esta eleição,
a ultima escola é a da conversação; que se entende no passeio, na
roda ou na visita. O passeio, quando é de dois ou tres, voltam com os
rostos sempre eguaes (não virando as costas um ao outro, como costumam
os extrangeiros) e os que recebem em uma volta á mão direita, a dão na
outra aos que trouxeram á esquerda. Se são muitos, ou se dividem no
meio ao voltar para ficarem todos de rosto; ou, se ha logar para isso,
voltam em ala, ficando o primeiro da mão direita o ultimo da esquerda
na volta do passeio: o que entra de novo faz primeiro cortezia aos que
andam n’elle. E elles abrindo-o, lhe devem offerecer no meio o logar
da mão direita; que elle não acceitará, senão o ultimo da esquerda,
por não romper a ala; e porque na volta fica logo com o que na entrada
lhe offerecem. Na roda ou ajuntamento se usa o mesmo; porém é para
advertir a obrigação de cada um, para levantar do chão qualquer cousa
que caia aos companheiros, como são luvas, contas, livro, chapéo,
lenço e outras semelhantes; e, quanto a mim, esta obrigação de acudir
a alçal-a é do visinho da mão direita.--N’isso (respondeu Solino) me
releva pordes taxa certa, pelas cabeçadas que vi dar a muitos que
acudiam juntos a essa cortezia: e tenho-me sempre com o primeiro que
se alevanta; mórmente na roda onde todos os cabos são de palheta.--O
que eu aconselhára (replicou o prior) é que, commettendo um, cessassem
os mais, deixando o cumprimento ao dono da cousa.--Pois não é esse
o termo (disse Leonardo) dos menos delicados na cortezia, assim no
passeio, e roda, como na visita: e não só nas cousas, que cahem a caso,
mas nas que se arremessam, ou com que tiram de proposito. E deixando
o que aconteceu a um cortezão mancebo, que atirando-lhe uma dama, em
castigo de um atrevimento, com um chapim, elle o beijou, e lh’o tornou
a offerecer, e com este lanço a obrigou a d’alli adeante o ter em mais
conta: um principe de sangue real d’este reino, andando á caça de
montaria com um rei d’elle, se lhe adeantou a dar uma lançada em um
porco montez, parecendo-lhe que se lhe mettia em o meio do perigo, por
atalhar algum da vida de seu rei. Porém elle, que era mal soffrido, com
paixão atirou ao principe com a lança: e elle apeando-se a levantou,
e beijando-a lh’a tornou a offerecer; e com isto venceu a colera do
rei, e o obrigou a vergonhoso arrependimento.--Ainda agora (disse
Solino) lhe eu houvera de deixar passar a ira; que _quem se guardou
não errou_: e _á furia de senhor terra em meio_: e posto que
lhe succedeu bem a cura, não houvera eu de provar a mezinha; que com
estes perde o bem fazer a cento por um, que é o que com Deus se ganha.
E porque no passeio se me offereceu uma duvida, pergunto: Quando um
se diverte dos com que vae passeando, e fica carta atraz falando com
alguem que passou e o deteve; ou em outro caso semelhante; que regra
se ha de seguir?--Pararem os outros á vista (respondeu o prior) e
elle, quando tornar, fazer sua cortezia, e entrar no passeio, tomando
o logar mais humilde, como tenho dito.--E se passearem a cavallo
(replicou elle) e a mula de um dos mantenedores se parou a ourinar, e
os companheiros foram adeante, é obrigado o que torna á têa a fazer
cortezia em nome da sua mula?--Isso não (tornou o prior) porque no
primeiro caso a cortezia é uma satisfação da tardança: e o segundo é um
acto de um bruto irracional, que não merece ser desculpado. Com isto
me parece que tenho tocado o que é o cantochão da cortezia, em cujo
contraponto ha cem mil galanterias e extremos, que não cabem em regras
tão limitadas; como tambem o seriam para as cortezias, que consistem
em palavras, a que se não póde pôr limite.--Vós (disse o doutor)
tendes tratado a materia com muita curiosidade: e posto que fica assás
auctorisada com razões tão verdadeiras, costumes tão approvados, e,
o que mais é, com experiencia vossa; quero eu accrescentar o que li,
mais por me fazer figura no em que vós sois auctor, que por mostrar que
o posso ser em alguma cousa sem favor vosso. E porque me lembra que
na divisão fizestes á inclinação a principal parte d’ella, me pareceu
dizer alguma cousa de sua antiguidade: porque já os Hebreus, Persas,
Gregos e Romanos usaram inclinar a cabeça por cortezia, como contam
Josepho, Plutarco, Eliano e outros auctores graves: e esta reverencia
faziam em signal de humildade, confessando fraqueza, e menos poder
ante aquelle a cujo valor se abatiam: posto que dos Romanos, Alexandre
Severo, successor do Heliogábalo, não consentiu que ninguem lhe fizesse
esta cortezia, havendo-a por lisonja; antes mandava lançar de sua
presença a quem a usava (como escreve Lampridio) dizendo que só a Deus
se devia aquella inclinação. Os de Thebas, se sabiam que algum dos
seus inclinasse a cabeça a pessoa humana, o castigavam rigorosamente:
e esta lei pôz em grande confusão a Ismenias, que elles mandaram por
embaixador a Artaxerxes (como na sua vida o escreve Plutarco) o qual
estando já na sala para falar ao rei, lhe disse um capitão, chamado
Tithraustes, que se não havia de fazer ao rei a inclinação que os
Persas costumavam, que lhe désse a elle o recado, e que faria em seu
nome a embaixada. Elle não querendo fiar de outrem o que lhe fôra
encommendado, entrando a falar ao rei, deixou cahir um annel que trazia
no dedo; e abaixando-se a o levantar, fez a inclinação dos persas sem
poder ser culpado dos Thebanos.--Essa inclinação (disse o prior) de
inclinar a cabeça, dobrar os joelhos, ou pôl-os em terra, e extendendo
o braço para a pessoa, a que queremos venerar, beijar a mão propria,
é ceremonia antiquisima, que só a Deus se fazia; e assim se colhe de
muitos logares da escriptura, como é no livro V dos Reis, capitulo
XIX, no de Job capitulo XXXI, e no Deuteronomio capitulo XVII. O que
tambem alguns gentios usaram, como lêmos em Plinio livro XXVIII,
capitulo II. E d’aqui creio que se derivou este uso, que entre nós ha,
do _beijo as mãos de V. M._--O costume de beijar a mão (respondeu
o doutor) entre os Romanos antigos foi dos escravos a seus senhores.
Mas Plutarco conta que, depois que Catão deu fim á sua milicia,
despedindo-se d’elle os soldados com muitas lagrimas, e extendendo-lhe
as capas e os vestidos por onde passava, lhe beijavam a mão; e d’aqui
começaram os livres a usar esta cortezia; de que logo lançaram mão os
pretendentes para grangearem animos e vontades alheias, como Seneca diz
na Epistola CXVIII. E logo os imperadores modernos mandaram que seus
vassallos lhes beijassem a mão, como escreve Pomponio Leto: e os reis
da Hespanha o puzeram por ordenação, como se vê nas leis de el-rei D.
Affonso nas leis de Castella livro V, titulo XXV, pag. IV. E d’aqui
se derivou o _beijo as mãos de V. M._, que é confessar-se por
escravo ou vassallo d’aquelle, a quem se faz a cortezia.--Essa (acudiu
Solino) me custa a mim bem pouco: porque não gasto n’ella mais que
palavras, e essas com as abreviaturas de agora são já muito menos. O
que me a mim cansa é o tirar o chapéo, que me fazem de despeza as boas
correspondencias de forros, e caireis, a fóra os damnos do feltro; o
que Deus sabe e eu o sinto; e não me pesára saber d’onde teve principio
este mal que padeço.--O chapéo (respondeu o doutor) era entre os
romanos signal de nobreza, e symbolo da liberdade; e quando a queriam
significar, pintavam um chapéo, como se vê nas moedas de Claudio, de
Antonio e de Galba. E assim quando libertavam aos escravos, lhes davam
chapéo, como refere Pierio Valeriano nos seus jeroglificos, livro XL,
onde tambem affirma que os escravos, que se vendiam por maus costumes
e ruins partes que tinham, os punham em almoeda com chapéo na cabeça,
em signal que seu senhor o não queria por escravo, nem se obrivava
a fiar sua má natureza. De sorte que o descobrir um homem a cabeça,
e tirar o chapéo ao outro, é confessar-se por seu escravo; e a esta
cortezia responde a de chamarmos senhores aos eguaes e maiores com que
tratamos, e ainda os inferiores.--Pois eu vos affirmo (disse Solino)
que a muitos tiro o chapéo, de que não quizera parecer escravo; e esses
m’o fazem trazer tal, que parece dos que o são. Comtudo me fizestes
mui grande mercê em me descobrir essa razão e a de outra cousa em que
eu já cansei algumas vezes o pensamento, que era saber o porque os
chucarreiros se cobrem deante dos principes, e, sendo gente tão vil
gosam de tão grande preeminencia; e agora entendo que deve ser por
estarem no andar dos escravos, que se vendem por ter más manhas, que
se vendem com chapéo para serem por elle conhecidos.--Mais me parece a
mim (acudiu D. Julio) que é pelo pouco caso que se faz da sua cortezia;
ou porque se entenda que, assim como tem aquella liberdade, tem outras
para falarem o que não é licito aos homens cortezãos bem disciplinados.
Porém não sei a causa, porque nos esquecemos da cortezia a que chamam
_cumprimentos_, que n’esta edade tem chegado á mór perfeição de
encarecimento que póde ser.--Nisso (disse Feliciano) se acredita ella
muito pouco, e menos os que usam muito d’elles; que á falta de verdades
e de obras, se introduziram no mundo os cumprimentos, que são um
engano desaforado de toda a jurisdicção; conforme ao rifão que diz, que
_palavras de cortezia não obrigam a pessoa_.--Parece-me (tornou D.
Julio) que tornamos á sentença, com que se começou a pratica, em quanto
diz que _falar bem val muito, e custa pouco_: o que á letra se
entende dos cumprimentos, pois que custam tão pouco, que ninguem por
elles fica obrigado.--Não digamos mal d’elles (disse Solino) que são a
melhor cousa do mundo, salvo que perderam reputação como as sardinhas,
que, por as haver sempre e custarem baratas, as não estimam; e não
era a materia dos cumprimentos para ficar de fora n’esta occasião.--A
noite (respondeu o doutor) é a que não basta a tanto; e n’esta me não
atrevo eu a vos acompanhar mais: e assim me haveis de dar licença que
me recolha.

Com isto se levantaram todos, e deram boas noites; e, depois de
recolhidos, gastaram em o desejo da que se seguia o mesmo espaço que
d’aquella poupavam; que muitas vezes a recreação dos sentidos vence a
necessidade do repouso que os suspende.




                             DIALOGO XIII

                DO FRUCTO DA LIBERALIDADE E DA CORTEZIA


Tendo Feliciano e seu companheiro por cousa sem duvida que se
havia de tratar a materia dos cumprimentos a noite seguinte; e que
já d’aquella ficavam encetados para se haverem de proseguir; se
aperceberam de exemplos, historias e razões mui escolhidas, com que
lhes pareceu que deixariam a perder de vista os cortezãos velhos, em
cuja mocidade é certo que se usa menos d’esta alquimia de palavras
fóra da tenção mental de quem as offerece. Com este fundamento se
chegaram ao outro dia com muita confiança: e juntos os amigos, disse
o soldado:--Foi para mim tão saborosa a conversação da noite passada,
que até a lembrança d’ella antepuz ao repouso; e sem poder entrar em
o do somno me lembrou uma historia famosa que succedeu a um capitão
nosso portuguez n’aquellas partes do norte, procedida de uma cortezia
sua bem empregada, que lhe rendeu graça com as damas extrangeiras
e naturaes, inveja nos companheiros, e nos contrarios, gloriosa
fama com louvor, e honra da nação portugueza. E como algum dia der
logar o nosso exercicio, a hei de contar n’esta companhia em prova
do muito preço e valor, que tem a cortezia com a gente generosa e
illustre.--Certo (disse o doutor) que será bem errada cousa dilatarmos
esta historia para mais tarde; que, posto que a todo o tempo as
vossas o gastam mui bem aos ouvintes, agora tem ella o seu, e sahe
bafejando á mesma materia que temos entre as mãos, maiormente que,
como seja em favor e honra do nome portuguez, não consentirá o sr.
D. Julio na tardança.--Antes (respondeu elle) se não accudíreis com
tanta pressa, me quizera já queixar da dilação: porque, por a materia,
por a historia, e por ser o sr. Alberto o que a ha de contar, obriga
por mil caminhos o meu desejo; e do d’estes senhores tenho a mesma
opinião.--Não é errada (disse Feliciano) no que pertence á minha
escolha.

E porque todos vieram na mesma vontade, começou o soldado:

“Um capitão portuguez, que nas guerras do Norte com singular esforço
fez seu nome conhecido no mundo, e sua fama immortal na memoria d’elle;
e que não representava menos na presença de sua vista, do que dava a
conhecer a experiencia do valor de seu braço, com as mais partes de
juizo, e galanteria, que pode desejar um cortezão; cessando por razão
da entrada do inverno o exercicio da guerra, escolheu, ou lhe coube
em sorte, para alojar as suas companhias, um districto das terras do
inimigo, que eram aldeias sem defensão. Acertaram estas ser de uma
senhora flamenga, donzella de muita qualidade; a qual vendo o damno sem
reparo, que a seus vassallos se apparelhava, além de com a assistencia
dos Hespanhoes perder o interesse das rendas que colhia, e de que se
sustentava; não sabendo que meio tivesse contra este mal, lhe veiu á
imaginação de com as armas, mais poderosas por brandura, que por rigor,
conquistar a cortezia do capitão, de cuja liberalidade e nobreza estava
bem informada e satisfeita: e fiando de uma donzella, e de um rustico
mensageiro o segredo do que queria, lhe mandou uma carta, que vinha a
comprehender as razões que se seguem:

“Se o valor e grandeza de vosso animo vence a cubiça e crueldade de
inimigo, confiada estou que o não queiraes ser de uma dama illustre,
cujo dote, pelos successos da guerra, poz na vossa mão a ventura: e
pois o ganho de me despojardes d’elle é tão pequeno, que nem basta
para agazalhardes bem os vossos soldados; perdoae antes a essas
fracas aldeias com brandura, havendo que ganhaes com ella o coração
de uma mulher nobre, que em quanto viver vos ficará captiva (trophéo
differente do que se pode esperar de um rustico alojamento), e pois
de quem sois, e da fama que vos abona e engrandece se não espera que
queiraes perseguir a uma dama rendida a vosso nome, dae-me liberdade
para que em o de meus vassallos, para quem a peço, vos offereça os
mantimentos, que ha n’esse pobre senhorio; que então será mais vosso,
quando eu o possuir com o favor e mercê, que de vós espero, etc.”

O capitão, que, além do valoroso animo que tinha, sabia conhecer o
muito que em semelhantes lanços se ganhava; lendo a carta se alegrou
por extremo, como quem achara occasião de se mostrar gentil-homem a tão
illustre e discreta senhora: e traçando primeiro o como melhor poderia
responder com effeito a seus rogos; mandando vestir o rustico que
trouxe a carta, e fazendo-se-lhe o agazalho e tratamento que, por quem
o mandava, lhe era devido, sem respeitar a incommodidade do que para os
seus não tinha, respondeu em maneira semelhante:

“Ainda as armas me não deram maior gloria que esta ventura: porque
tenho por tão grande a de vos servir, que estimára em menos dominar um
grande senhorio da terra, que ficar agora por guarda e defensor das
vossas, as quaes tomo tanto á minha conta, que não sómente lhe tirarei
a oppressão dos soldados que lhe causavam receio, mas farei que nenhuns
outros lhe possam fazer offensa. Perdei, senhora, o cuidado d’ella; e
crêde que saberei estimar o vosso dote mais que a propria vida. E se á
custa d’ella quizerdes conquistar bens da fortuna, que egualem o preço
das graças que vos deu a natureza, elle será mais copioso, e eu não
ficarei menos satisfeito. Por as mercês, que me offereceis, vos beijo
as mãos; porém n’ellas as renuncio; porque mais quero parecer a estes
companheiros contrario vencido, que amigo obrigado.”

Não se satisfez o capitão com responder tanto a gosto d’aquella dama;
mas ordenou juntamente que, quando tivesse a carta, lhe chegassem as
novas do que por a sua fazia; e para isto escreveu a um capitão, que
alli perto se alojára; do qual tendo licença, se foi para elle com os
seus soldados, aos quaes com regalos, vantagens, favores, e cortezias
ia satisfazendo a falta do alojamento que deixaram. Soube isto a dama,
cujo nome era Floriza; e vencida do primor da obra, e das palavras
da carta do Luzitano, o começou a amar por informações que cada hora
lhe trazia a sua fama; que estas costumam a ser mais favorecidas,
que as da presença. Esta desejava ella de vêr extranhamente; porém a
difficuldade de contrario lh’a fazia impossivel. Accommetteu por vezes
fazer-lhe presentes, a que elle nunca deu logar; antes n’aquelles,
que libertára, havia poucas pessoas que não experimentassem favores
e boas obras do capitão, todo o tempo, que durou a visinhança do
seu alojamento. Passado o inverno, tornaram a continuar as guerras
d’aquella fronteira, muito mais intricadas e perigosas, que as que
haviam precedido: e como n’ellas o capitão buscava sempre as occasiões
de maior risco; porque o seu esforço o punha sobre o animo dos mais
guerreiros; na defensão de um posto, que lhe quiz ganhar o inimigo,
ficou elle mui mal ferido, porém o contrario desbaratado, e com muitos
soldados menos. Chegou a fama do successo á agradecida senhora, que o
sentiu por extremo; e desejosa de fazer algum, com que manifestasse a
pena que tinha de seu damno, determinou de (com salvo conducto) passar
ao campo contrario a o visitar: e havida a licença, sem levar comsigo
mais que duas creadas, atravessou em um coche o arraial. Sendo d’isto
avisado o capitão, preveniu os seus soldados para com bellicas alegrias
receberem e festejarem a sua chegada. E mandando entrar algumas
companhias de guarda, lh’a fizeram a ella com grinaldas de fogo sobre
os morriões, e com bombas em os piques, que parece que ardiam até a
empunhadura da manopla; e outros foguetes e invenções de polvora muito
apraziveis. Sahiu ella do coche á porta da tenda do capitão, vestida
de uma téla verde, semeada de borboletas de ouro, que lhe estava muito
bem; porque dava graça á neve do seu rosto, que com a afronta d’aquelle
atrevimento se enchera de rosas encarnadas; os olhos tão alegres, que
parece que se vinham rindo das estrellas, como os cabellos o poderam
fazer do sol, se elle já não estivera escondido de pura inveja. Sobre
elles trazia uma rede de prata, cujos laços se rematavam com perolas
á maneira de camarinhas; e da parte esquerda tres plumas altas, uma
branca e duas encarnadas, presas a um camafeu: sobre os pensamentos das
orelhas rosas de flôres perfiladas de ouro, e pendurado em cada uma um
Cupido, que quebrava o arco sobre um diamante; no pescoço uma volta
pequena com pontas de aljofares muito miudos, e uma gargantilha de uns
passarinhos de ouro com os peitos de esmeraldas. As creadas vestiam
de setim amarello gualde, com guarnição de prata. O Portuguez, posto
que não quizera mostrar descuido no que convinha para se entender, que
no ornamento militar, e cortezão da sua pessoa, e tenda não faltava,
como estava ferido, e incapaz de se valer das galas; converteu tudo
em pavilhão rico, armação custosa, e trophéos de armas, que faziam a
tenda muito agradavel, e auctorisada. D’alli com grande acatamento e
inclinação, e com os olhos cheios de alvoroço festejou a boa chegada
da formosa e discreta Floriza, que com as palavras accrescentou
infinitas graças á sua formosura. Durou a visita grande espaço com
mil finezas, e extremos de cortezia. E posto que o capitão com as
feridas estava desfigurado, representava no brio e modo de seu parecer
a gentileza de sua pessoa, sem a desculpa, que uns olhos affeiçoados
offerecem com a parte offendida. A dama se lhe rendeu de maneira,
que o mostrava na vista, empregando na sua muitas vezes os olhos. E
por não ter mais tempo, suspensos os que esperavam vêr o successo da
visita, lhe deu fim com nova graça: e voltando por onde viera, achou a
mesma guarnição, e ordem nos soldados, que quando entrára. Logo entre
elles e nos mais do exercito se praticou a causa d’aquelle excesso e
novo extremo de cortezia, havendo que a que o capitão tinha com ella
usado o merecia. Porém não fez termo aqui o seu desejo; que depois de
ausente, mandando por muitas vezes a visital-o na convalescença das
feridas com que o vira, já de todo livre d’ellas, lhe escreveu Floriza,
dizendo que, pois o vira em tal estado, e n’elle lhe parecera tão bem
a sua gentileza, lhe pedia um retrato seu, tirado no campo em que elle
fôra mais gentil-homem, e se contentára mais de suas partes. Elle, que
em nada perdia o cuidado de se mostrar cortez, se mandou retratar no
estado em que recebera a sua visita: e n’este lhe mandou o retrato,
escrevendo-lhe que, só quando merecera a ventura de a vêr, se tivera
por galhardo, e gentil-homem; e que não sómente n’aquella occasião,
mas em todas as mais, que se lhe representasse aquelle bem, seria de
si contente, e satisfeito. E tambem procurou logo ter da mesma senhora
outro retrato no mesmo trajo, com que o viera visitar, tirado por o
natural, com muito artificio, sem ella ter noticia d’esta diligencia,
senão depois que era manifesto que o capitão o tinha na sua tenda
mui venerado. E sobre um e outro se tratavam de recados com muitas
gentilezas e cortezias, com a fama das quaes se accrescentou tanto a
formosura e discrição de Floriza, que d’alli adeante era mais conhecida
e requestada assim dos nobres do exercito, como dos senhores comarcãos,
com que as suas terras avisinhavam. Sobre todos os mais entrou nesta
affeição um gentil soldado filho do conde de Hieme, fidalgo, de cujo
esforço, brio, e gentileza havia no campo geralmente muita satisfação,
e em muitos soldados nobres não menor inveja. Este se determinou que
na primeira occasião, que houvesse de assalto, havia de fazer mais
do possivel por se encontrar, e provar as armas com o hespanhol, a
quem Floriza mostrava tão declarada affeição. Porém como esta escolha
havia de ser da sorte, e não da sua vontade, succedeu que a primeira
occasião, que houve, de poderem vir ás armas, foi sobre o contrario
querer ganhar um posto para se entrincheirar n’elle, e fazer sombra
a uma mina secreta, que para seus intentos ordenava. Foi revelado
este ao general; e com um dissimulado apercebimento tomou ás mãos os
inimigos, entre os quaes captivou o gentil soldado, que se desejava
assignalar n’aquella fronteira escurecendo a fama do Luzitano, a quem
invejava. Elle, que já sabia d’aquella pretenção, fez muita diligencia
para que ficasse depositado em seu poder; o que alcançou facilmente.
E tratando-o logo com termos de excessiva brandura, e affabilidade, o
tinha mais como hospede mimoso, que como preso vencido. De sorte que
enleado elle lhe perguntou a causa, porque lhe fazia tantas mercês,
podendo-o tratar como seu escravo, e ao menos do modo que o costumam
fazer os capitães aos mais vencidos. “Eu (lhe disse o portuguez) vos
trato como companheiro, por saber que, fóra da obrigação de Marte, nas
de Cupido servimos ambos a um senhor: e sei que ainda n’esta egualdade
me tendes muita vantagem, porque alcançaes na presença o premio de
vossos extremos; e eu ausente faço só emprego de meus desejos; e por
esta via me podera obrigar a inveja a má tenção, que em vós já fez o
ciume. Porém como da senhora Floriza não pretendo mais, que ser ella
amada, e servida como merece; e sei de vossa qualidade, e valor que
sois digno sujeito da sua formosura, como a cousa já sua vos quiz
antes offerecer a casa, que o campo: n’esta estareis servido, não como
mereceis, e eu desejo, mas á medida das incommodidades da malicia, de
que já tendes experiencia.” Não sómente espantado, mas corrido ficou
o illustre mancebo do bom termo e gentileza do capitão: e pondo os
olhos n’elle com o animo mais affeiçoado, que o com que partira do
arraial, lhe disse: “Tão alcançado estou do meu engano, quão vencido
e obrigado de vossa cortezia: e já, senhor, não desejarei liberdade
d’esta prisão mais, que para ser mais vosso quando fôr meu: e agora
vejo quão bem adivinhava o meu receio em me fazer que temesse a vossa
competencia, só por o que a vossa fama lhe descobria; mas agora, pelo
que sei da presença, não só confessarei o muito que ella acredita, mas
que deve ainda muito mais ao vosso valor, e d’elle serei eu a mais fiel
testemunha ante a senhora Floriza.” Eu, “senhor soldado (respondeu
elle) no serviço d’esta senhora não pretendo mais, que, conhecendo-a
por tal, não faltar a seu credito, honra, e satisfação, e conhecer ella
de mim, junto com esta verdade, que não sou ingrato á mercê que me
faz. E muito melhor satisfaço a esta obrigação em lhe gabar o muito
que vos deve, e o quão acertada será a sua eleição, escolhendo-vos
por esposo, que em me mostrar competidor com vossos pensamentos. Com
este presupposto podeis usar da minha vontade, e companhia sem receio,
nem ciume. E se vós tiverdes confiança, e ella me der licença que
eu seja terceiro de se effeituar esta pretenção, d’aqui prometto de
fazer extremos por facilitar brevemente o meio de vossa liberdade.”
O soldado cada hora mais vencido, e devedor a tão bom procedimento,
se lhe lançava aos pés, sem saber cousa que respondesse n’este mesmo
intento. Tratou logo de sua soltura; a qual se fez brevemente com todos
os mais, que n’aquella occasião ficaram presos; trocando-se por outros
hespanhoes, que tambem havia no campo contrario. Por elle e em seu
favor escreveu á formosa e agradecida Floriza, que com esta fineza de
nova cortezia dobrou sua affeição: e vendo que elle era o que lhe havia
escolhido tal esposo, o acceitou por esse, ficando ambos unidos em
aquella fiel amisade do cortez Lusitano, que sempre conservaram, posto
que nos limites de contrario a respeito de seu rei; que estes são os
poderes da cortezia, que não só vence e obriga os mais barbaros animos
do mundo, mas faz concordia e firme liança em corações tão inimigos.

--Excellente me pareceu a historia (disse o doutor) e ainda mais
porque nos dá motivo para uma questão, que pode fazer esta noite mais
agradavel, se a estes senhores parecer tão bem o meu voto como a
historia do sr. Alberto. A isso responderam todos que o queriam seguir
e obedecer: e, juntamente gabaram com muita satisfação aquelle exemplo
de cortezia: e pedindo ao doutor que continuasse o que queria dizer,
elle o fez em a maneira seguinte:--Pois são tão grandes os interesses
da cortezia, e com exemplos, e razões tão approvado entre os bem
nascidos o emprego d’ella, parecia-me a proposito esta pergunta, e é:
“Com qual de duas cousas se obriga e grangeia mais o animo dos homens,
se com a liberalidade, se com a cortezia? e os effeitos que cada uma
d’ellas faz para este fim?” Bem pareceu aos amigos a questão: e depois
que a approvaram, accudiu o prior:--Pouca duvida me parece que pode
haver em apartar estas virtudes; porque, a meu parecer, a cortezia
é sómente um effeito da liberalidade: e assim fica correndo melhor a
pergunta d’este outro modo: Qual obriga mais os animos agradecidos, se
o liberal da fazenda, se o que o é na cortezia? Porque a liberalidade
é um habito do animo, que o move a dar aos benemeritos o que está na
mão do liberal, ou pedindo-lh’o outrem, ou offerecendo-o elle: e isto
pode ser dinheiro, cortezia, honra, logar, e outras cousas muitas.--Boa
é essa razão (respondeu elle) porém com os vossos mesmos livros hei
de sustentar a minha; que, conforme define Santo Agostinho, liberal
é o que dá sem obrigação de lei, nem de promessa, e sem esperança de
satisfação do que deu. E Santo Thomaz diz que a liberalidade é uma
virtude, que sabe dispender as riquezas em bom uso. E Aristoteles de
todo desempeça a questão, dizendo que é virtude, que com o dinheiro,
e fazenda se mostra benefica aos homens. E d’este modo não pode a
cortezia ser effeito da liberalidade; que ha muitos cortezãos pouco
liberaes, e alguns liberaes pouco cortezãos.--Posto que me atrevo a
muito (disse Feliciano) hei de dar entre as vossas minha razão com a
de alguns auctores, que chamaram á liberalidade _humanidade_:
porque verdadeiramente as obras de cada uma parecem muito eguaes,
se ellas o não são; porque accudir ao pobre, dar ao benemerito, ser
affavel, brando, e piedoso é humanidade; e os mesmos effeitos obra o
liberal. E se a humanidade é a mesma cousa que a liberalidade, esta é a
cortezia. E não o comprova menos o que escreve Aristoteles quando diz
que a liberalidade pelo affecto se chama _benignidade_, e pelo
effeito _beneficencia_: e vem a ser ambas uma mesma virtude.--Isso
não (tornou o prior) mas diz Santo Agostinho que são companheiras
liberalidade, humanidade, e clemencia. E por esta auctoridade sua,
fundado nas mais razões que me ajudavam, tinha a opinião que o doutor
não consente.--Os exemplos (tornou elle) nos mostrarão o engano; e
a differença descobrirá a verdade. Primeiramente, o liberal, posto
que o seja com a limitação que os auctores escrevem, que é dar ao
necessitado, e benemerito o que ha de mister, sem que haja de sentir em
si a falta do mesmo que deu; todavia fica sem a fazenda, ou dinheiro,
que tem dado; e no que recebe fica viva a obrigação e a divida do que
recebeu: e o cortez nem fica sem a honra que deu, nem o a quem honrou
a fica devendo, sendo digno da mesma cortezia, e mostrando-se a ella
agradecido. Pela mesma maneira tambem a humanidade nem é cortezia,
nem liberalidade; porque ás vezes consiste em perdoar, e não já em
dar, e em compadecer-se de males alheios, sem fazer n’elles despesa
alguma; e em outros actos semelhantes: e d’este modo me parece que está
bastantemente mostrada a differença, para tratarmos agora da que faz o
cortez ao liberal em vencer e obrigar os animos agradecidos.--Parece-me
(disse Leonardo) que da verdade da differença está dito o que baste,
para que já o sr. D. Julio tome á sua conta dizer qual faz mais amavel,
servido, respeitado e famoso a um cortezão, se o fazer cortezias, se
o dispensar riquezas? E quem de cada uma d’estas cousas tem tanto
exercicio, não lhe ha de faltar experiencia para tratar d’ellas com
muitas vantagens.--As que me daes (tornou elle) quizera eu acreditar
e merecer; e n’esta materia me vinha melhor ouvir para aprender,
que falar para me escutarem: mas ainda que fique corrido, quero ser
obediente. E tratando primeiro do liberal, me parece que o pode ser de
duas maneiras; ou liberal por condição, e natureza, ou por prudencia,
e entendimento; que é o que costuma a encher os vasios, e supprir as
faltas d’ella. O liberal por natureza poucas vezes guarda a regra da
vossa definição: porque não sabe negar, nem tratar de escolher; e
mais consiste o acto da sua virtude no que lhe pede, que n’elle que
ha de conceder.--Esses liberaes (disse Solino) são perigosos, e antes
lhes chamara prodigos: porque ás vezes entornam o que haviam de dar,
empregando-o em sujeitos depravados.--Com tudo isso (respondeu Pindaro)
não faltou um auctor grave, que disse que o liberal não é obrigado a
essa escolha: antes que fazer mercês a muitos, ainda que indignos, é
obrigal-os a que as mereçam.--Tambem (replicou elle) quereis dizer
que não será prodigo dando o que ha de mister.--Ao menos (tornou
Pindaro) não direi que deixou de ser liberal: e Pomponio diz que é
proprio do liberal não olhar, nem respeitar a si mesmo, senão aos que
ha de accudir.--Pois a esse (disse Solino) almagrai-o por ladrão,
ou por mentiroso: porque o que dá mais, do que pode, sem respeitar
o que a si se deve, é necessario que furte a outrem para o poder
fazer; e o que promette, ou concede mais do que tem, é forçado mentir
a quem prometteu. De sorte que com estes dois vicios mal pode caber
a virtude.--Eu (proseguiu D. Julio) darei á vossa duvida satisfação,
repugnando um pouco á minha natureza por accudir á doutrina, e verdade
dos escriptores; que pelo meu voto, para dar a quem o merece, se pode
roubar a quem sem merecimentos o possue. E tornando ao meu ponto, o
liberal por natureza quer fazer bem a todos, e não negar a nenhum dos
que lhe pedem; mas temperando com a prudencia a condição, dá segundo o
que tem: escolhe primeiro os que merecem, e o tempo e occasiões, em que
aproveite o que dá. O que é liberal por entendimento, muitas vezes faz
mercancia da liberalidade; e assim, posto que com ella obriga mais, lhe
elevem menos: porque se muitas vezes a emprega nos que merecem quasi
todas, busca os que hão de ser publicos pregoeiros do que deu. D’onde
nasce que ha muitos senhores, que aos benemeritos faltam com as mercês,
pelas empregarem em o chucarreiro que as publique, no espadachim que
as encareça, no farçante que as mostre, no extrangeiro que as passe de
um para outro reino, e ás vezes na dama que as assoalhe. O primeiro se
faz amavel a todos; o segundo famoso a muitos; porém um obriga melhores
animos, e adquire mais certos amigos que o outro; um compra corações,
o outro enganos; porém ambos com a liberalidade prendem a vontade dos
homens. O que se viu na sua miseria favorecido põe facilmente a vida
por quem lhe deu a fazenda; onde ouve falar n’elle, o acredita: onde vê
ir contra sua honra, o defende; na sua presença se humilha; ouvindo o
seu nome, se alegra; e servindo-o se deleita e satisfaz. Para isto
me não pareceu fraco conselho o que um auctor deu em culpa a um
principe nosso. Porém serve aos liberaes por entendimento, e que não tem
riquezas demasiadas para o poderem ser. E a culpa é que dera a muitos,
e que a nenhum dera muito. E se isto no rei foi vicio, a mim me parece
que nos senhores de menor logar é acertada cautella: porque basta que
um tenha recebida uma obra boa para se obrigar a dizer bem de quem lh’a
fez; e com muitas empenhando a muitos, terá a todos por devedores, e
pregoeiros de sua largueza: tirando os de tão má natureza, que com a
peçonha da lingua corrompem o bem que lhe fizeram: que para estes nem
bastam os bens de Cresso, nem a condição de Alexandre.

E deixando exemplos antigos e modernos, com que posso provar o
muito que póde a liberalidade para atar, vencer e adquirir animos
agradecidos: com tudo me parece que tem muitas vantajens o cortez
ao liberal: e a razão é; que a gente, que se obriga do soccorro do
interesse, é de muito menor condição, que a que se cativa da cortezia;
e quanto é maior ganho ser a esta amavel, que a outra acceito, tanto
vence a cortezia á liberalidade para o effeito que dizemos. O pobre,
o humilde, o necessitado, o perseguido, o homiziado, o vagabundo e o
taful estimam mais vezes a fazenda que lhe dais, que a cortezia que
lhe fazeis: porque o seu ponto não é de honra, senão de interesse. Mas
o honrado, o nobre, o cavalheiro, o cortezão, o brioso, o discreto
e o rico antes quer que o honreis, que não que o enriqueçais. Os
grandes com cortezias roubam os corações dos menores, quando com maior
liberalidade d’ellas os favorecem: porque o animo generoso, posto que
sente muito a estreitesa propria, mais lhe custa o despreso alheio,
por não perder a opinião que de si tem á conta do com que lhe faltou
a fortuna. Contam que um principe hespanhol tinha um creado seu, a
quem queria muito, e de cuja fidelidade confiava mais, conhecendo-o
por verdadeiro, fiel, honrado e brioso: e encarecendo-lhe o principe
a confiança que d’elle tinha, lhe perguntou: N. por que preço me
fizereis uma traição? Ao que elle respondeu: A vós, senhor, por nenhum
preço; mas por um despreso muito me receára de mim mesmo. De outro
ouvi contar que, honrando com favor em publico a um creado seu, a quem
não pagava bem os ordenados de seu serviço, e outras dividas caseiras;
querendo depois o mesmo senhor fazer a conta d’estas obrigações, lhe
respondeu o creado: Vós, senhor, me deveis o com que cuidastes que me
pagaveis; e agora vos devo eu dares-me o que me não promettestes, e o
que eu tinha em maior estimação: por isso fazei livro novo, riscando
as lembranças passadas, que só as presentes o serão na minha memoria,
na qual conheço que vos devo muito. De maneira que o que é nobre, ou
tem partes que o sejam, mais abraça a cortezia que o proveito. E certo
que até aos senhores vãos, e ambiciosos de serem endeosados está melhor
esta liberalidade, que outra alguma: porque é grangearia não só para
ser amado, mas para ser buscado e servido: porque sendo amavel por
ella a todos, cada um o acompanha, o grangea, o louva, o acredita e
deseja de lhe dar quanto tem; porque só tal homem lhe pareça digno de
ter tudo. Tambem declaro que o cortez ha de ter a eleição do liberal,
para não levar a todos por a mesma medida, mas distribuir conforme a
razão os effeitos do dom, que lhe deu a natureza. E tem tal força de
obrigar a cortezia, que não sómente a faz ao que a recebe, senão ainda
aos que a vêem fazer, por satisfação, por imitação, por inveja, e por
outros caminhos. Uma infante n’este reino tinha uma creada de não
muita qualidade, porém de tantas partes, gentileza e discrição, que a
antepunha a muitas que a serviam com melhor foro do que esta tinha,
que era moça da camara. Desejando a senhora grangear-lhe a ventura e
graça dos cortezãos, uma vez que viu a sua casa acompanhada d’elles,
mandou em publico que lhe chamassem aquella creada, nomeando-a; e
que lhe trouxesse papel e escrevaninha. Como isto era officio, que
pertencia ás damas, veiu a moça; e esteve parada com o que trazia,
esperando que o viesse tomar da sua mão quem tinha a cargo de o
offerecer á infante: a qual tornando-a a chamar lhe disse em maneira
que todos ouviram: Chegai; que, ainda que o officio seja de outrem,
não podeis ter por estranho o que mereceis. E em quanto a moça esteve
de joelhos, e a senhora escrevendo, lhe falava com o rosto cheio
de alegria, dizendo-lhe entre outras coisas: O intento, que n’isto
tenho, posto que logo o não saibas, d’aqui a pouco o virás a saber.
Foi assim; que, vendo os cortezãos o caso que a infante d’ella fazia,
um de muita qualidade a pediu para sua esposa, e se casou com ella,
movendo-se de vêr aquella cortezia, para o que um copioso dote o não
obrigára.--Extremamente provastes vossa tenção (disse o doutor) e me
parece certo que essa é a verdade, que se ha de ter n’esta materia
da cortezia: porque não póde a vileza do interesse egualar-se com a
nobreza e magnanimidade da honra.--Galante coisa é (arguiu Solino)
quereres vós temperar todas as panellas, e falar sempre á vontade
ao senhor D. Julio, o qual n’esta occasião acudiu por si, para nos
culpar a nós: porém elle e vós me dareis licença para que tire á luz
uns embargos, que tenho a essa resolução; em os quaes entendo provar
que só a liberalidade, no dispender faz amaveis aos liberaes, e aos
devedores cativos. E se dizeis que não são estes os nobres; ouvi aos
poetas que subiram mais a corda, dizendo que dadivas venciam homens,
e obrigavam Deuses: e o rifão diz, que quebram pedras. Boa cousa é a
cortezia, mas nenhuma comparação tem com a liberalidade. Falaes-me em
quem dá o seu para soccorrer a outrem, no que soccorre ao aperto, á
falta, á occasião, e á necessidade: que coisa poz aos homens entre as
estrellas, se não o saberem dar? que só isto leva após si os homens, as
feras, os animaes e as aves. O outro Plafon andava o seu nome no bico
dos passaros pelos outeiros, e coruchéos da cidade de Ephezo, porque
sustentava á sua custa as mesmas aves. E vós quereis que o outro, que
não lança agua a pintos, só com uma inclinação dobrada, uma mesura
rebatida, e umas palavras doces leve as lampas a um liberal? E além
d’isto, como póde ser que obrigue e ganhe mais o que emprega menos?
e que vença o cortez com uma barretada o que mereceu um liberal com
obra tão custosa, como é dispender fazenda? Alexandre, Tito, Fabio,
Flaminio, Tullo Hostilio, e outros similhantes, não deixaram assombrado
o mundo com sua grandesa, e vencido o tempo com sua fama por cortezes,
senão por liberaes: porque a cortezia não satisfaz mais que a vaidade;
e a largueza acode ao principal da vida. E de mim confesso, como povo,
que antes quero um descortez liberal, que um cortezão miseravel: porque
esses cameleões da cortezia, que se sustentam com os ares d’ella, não
são tão firmes como cuidais; nem ás vezes falam de fartos; e póde
ser que não enjeitáram os comprimentos de contado, e que renunciaram
facilmente os da urbanidade cortezã.--Não falta na companhia (disse
Leonardo) quem queira defender a vossa parte, e a do liberal: porém
uma duvida tenho, e é que esses, que de maior liberalidade fizeram
extremos no mundo, todos eram prodigos como Alexandre, Tito, e
outros similhantes.--Na dignidade real (disse D. Julio) cabem todas
as grandezas sem a limitação com que tratamos d’esta virtude; que
Alexandre dava cidades, e talentos, sem que esses lhe pudessem fazer
falta: o que nos menores tem muita differença; porque o modo n’elles
sustenta a virtude para que (como diz S. Jeronymo) com a muita
liberalidade não pereça a liberalidade: e nos reis e monarcas a tenção
acredita a obra, se é feita de arrogancia, e benignidade; porque o
liberal sempre acha desculpa para haver de fazer mercês como Alexandre,
que a Perilo se desculpa, conformando-se com quem era para não culpar
a demasia do que lhe dava: e a Xenocrates, que lhe diz que não lhe são
necessarios os cincoenta talentos que lhe manda, responde que, se tem
amigos, para elles os ha mister, pois a elle não bastaram as riquezas
de Dario para os que tinha. E pelo contrario Antigono, a quem Diogenes
pedia um talento, se escuzou dizendo que pedia muito para philozopho;
e pedindo-lhe um dinheiro, disse que era pouco para dar um rei. De
maneira, que o que o avaro busca para negar, acha o generoso para
fazer mercês, que, conforme ao que diz Marco Tullio, são grilhões da
liberdade dos homens. E porque é tarde, me dai por desobrigado d’estes.

Com isto se levantáram todos; e Pindaro, e Feliciano o fizeram
assás descontentes com a magua dos seus conceitos mal logrados; que
quando, depois de escolhidos, não vem a lume, deixam o entendimento
arrependido, a memoria queixosa, e a vontade offendida.




                              DIALOGO XIV

                          DA CRIAÇÃO DA CÔRTE


Porque todas as cousas de novo na primeira vista contentam mais, e
com maior razão a quem vive na aldeia, em a qual a continuação das
que se offerecem de ordinario deleitam pouco quando não enfastiam
muito: estavam os amigos tão affeiçoados ao irmão do prior pela sua
arte, e bom modo de falar e proceder, que vieram ao dia seguinte muito
alvoroçados a o buscar nas horas costumadas, offerecendo-lhe cada um
por seu caminho aquelle desejo, a que elle por todos se sabia mostrar
muito obrigado. Depois de darem fim aos cumprimentos, que levam
sempre a vanguarda n’estas batalhas, lhes disse Pindaro:--Posto que o
natural de cada um é a principal parte que o favorece, para em todos
os exercicios se melhorar na communicação dos outros homens; nenhuma
escola me parece melhor para os bem nascidos, que a milicia. E ainda
que me não ensinasse a experiencia esta verdade, claramente a conheço
no exemplo de muitos soldados, com que me achei em occasiões; e sobre
todos do senhor Alberto, que parece um exemplar, e espelho, em que se
pode vêr um perfeito homem de guerra, e de côrte, pelo que de ambas
colheu, aperfeiçoando a doutrina d’ellas com a clareza do seu engenho
e a disposição, e vantagem de seu entendimento.--Eu desejo merecer
(respondeu elle) a boa opinião, com que me honraes deante d’estes
senhores, e logo a pago mal com a desacreditar tanto á vista d’elles:
pelo que me era necessario accudir a essa falta com nova desculpa,
dizendo que ha olhos que de argueiros se pagam; e que mais favorece um
engano, que muitas verdades, porque bastava no vosso ter ventura para a
alcançar em tão honrada conversação. Porém devo attribuir aos louvores
da milicia os de que me fazeis mercê; e d’elles, como soldado, tirarei
a minha parte; ainda que tendes tantas, que, quando o sejaes n’esta
competencia, terão as lettras muita vantagem ás armas.--Não são de
pouca estima os cumprimentos (accudiu Leonardo) se continuar com estes
principios o discurso que se pode fazer sobre a differença da creação
da côrte, da milicia, e das universidades, que são os tres exercicios
nobres, em que os homens se occupam, apuram e engrandecem; e n’elles
se pode gastar a noite com muita satisfação dos presentes, pois assim
pode cada um saber muitas cousas das que convém ao particular de sua
profissão.--Entendo (disse D. Julio) que escolhestes bem, e que vos
cabe o primeiro logar para tratar da côrte: ao senhor Alberto o segundo
para dizer da milicia: ao doutor Livio o terceiro para falar das
universidades. E se eu n’este voto parecer atrevido, confiança me deu a
liberdade da nossa conversação, e o costume dos mais. “Todos approvaram
a escolha de Leonardo, e a repartição de D. Julio. Porém Solino não
ficou tão satisfeito que se calasse, antes disse para D. Julio:--Vós,
por vos forrardes do trabalho, fintastes os outros. E posto que não se
pode ir contra eleição tão acertada, se o ensino da côrte se houver
de pintar pela tempera velha, e tratar sómente do canto chão, de seus
estilos, e gentilezas, ninguem dará melhor conta d’isto que o senhor
Leonardo; porque se achou no paço ainda em tempo que eramos troianos, e
viu luzir o que agora está cheio de ferrugem. Mas se houver de falar ao
moderno, em que é tudo de outra freguezia, receio que lhe fique muito
por dizer.--O mesmo receio tenho eu (tornou Leonardo) porém não são
os males e bens da côrte tão pouco antigos como vos parece; que já no
meu tempo havia os mesmos queixumes de agora: porém ha tanto que dizer
d’ella, que de necessidade hão de passar muitos pela malha a quem vive
ha muitos annos n’este desvio, e que no remanso do descuido da vida
afogou todas as lembranças d’ella; e assim houvera o senhor D. Julio de
passar esta obrigação a outrem que dê melhor conta d’ella.--Não faço
eu as minhas tão erradas (respondeu elle) que vos desobrigue.” A isto
ajudaram todos os presentes; e Leonardo começou d’esta maneira:

--Quatro maneiras de exercicios ha na côrte, que para todas as cousas
civis fazem um homem politico, cortez e agradavel aos outros. A
primeira é o trato dos principes, e a communicação das pessoas que
andam junto a elles: n’esta consiste o principal do a que chamamos
_Côrte_, que é conhecimento d’aquelle supremo tribunal da terra,
do rei, ou principe a quem pertence mandar, como a todos os inferiores
obedecer na conformidade das leis, por que se governam. Traz isto o
estado e serviço do mesmo rei, e dos seus, a obediencia, a cortezia,
a inclinação, a mesura, a discrição no falar, a policia no vestir, o
estylo no escrever, a confiança no apparecer, a vigilancia no servir,
a gentileza e bisarria, que para os logares publicos se requer. O
trato do principe no paço, na mesa, no conselho, na caça, nos caminhos
e occasiões, como se grangeam os validos, se visitam os grandes, e
como se hão de haver os cortesãos, para communicar a uns, e outros. O
segundo exercicio é o decóro, e veneração, com que se servem as damas;
e d’este se alcança todo o bom procedimento, e perfeição cortezã, que
pode desejar o homem bem nascido: porque sobreleva muito do serviço
real, e com muitas vantagens faz a um cortezão discreto, cortez,
advertido, galante, airoso, bem trajado, extremado na cortezia, no
dito, na graça, no mote, na historia e galanteria: este o faz ser
bom ginete nas praças, bem visto nas salas, bem ouvido nos saraus,
e bem acreditado nos ajuntamentos. E como o serviço das damas é
o mais apurado exame para se conhecerem sujeitos honrados, ellas
graduam e auctorizam os homens; e do seu voto toma a fama informações
para os fazer grandes na opinião de todos. O terceiro exercicio é a
communicação dos estrangeiros: porque como os que assistem nas côrtes
ou são homens de muito sangue e qualidade, ou de muita prudencia e
valor, ou de muita confiança e riqueza, sempre d’elles se colhe uma
doutrina mui avantajada para o cortezão, que é saber as gentilesas de
outras côrtes, as leis de outros reinos, a belleza e serviço de outras
damas, o estylo de outros reis, e finalmente os costumes e institutos
de outras gentes. Esta variedade deleita e enriquece o entendimento e
a memoria do que é bem nascido. O quarto exercicio é o soffrimento e
diligencia dos pretendentes, que, para tirarem fructo de seus serviços,
acções e requerimentos, se recolhem ao amparo dos grandes, ao favor dos
ministros, á companhia dos criados, e se sujeitam a todos os encontros
e avisos, que padece quem pede, sustentados no doce engano de uma
esperança, que lhes sáe muitas vezes mentirosa. Sobre estas quatro
maneiras de exercicio de côrte poderei discorrer o que baste para vos
enfadar este serão, se o doutor, como costuma, interpozer a auctoridade
de suas lettras na falta de minha sufficiencia, e Solino com addições
de sua graça a der a minhas advertencias.--Essa humildade (tornou elle)
como é demasiada, argue soberba, quando a respeito do doutor não seja
adulação. Vós podeis falar ás duas mãos como em jogo de bola, e buscaes
padrinho! E com tudo isso, se eu vir azas, por onde pegue, direi meu
dito.--Assim o faremos todos (disse o doutor) e com isto proseguiu
Leonardo:--A pessoa real é a cabeça da republica, como escreve
Plutarco; e nenhuma cousa na terra ha sobre ella mais que a lei, a
que deve obedecer; e ella fica sendo lei para todos os inferiores
para a imitação dos costumes e virtudes, que no principe estão mais
certas que em outra pessoa particular, de maneira que fica sendo uma
lição viva e continua, para os que assistem em sua côrte, na religião,
na observancia das leis, na excellencia das virtudes, na reformação
dos costumes, na moderação das paixões, na justiça, na clemencia, na
liberalidade, na modestia, na magnanimidade e na constancia. E tanto é
melhor a doutrina do seu exemplo, quanto de mais alto logar ensina a
todos. E posto que houve e ha muitos reis (a que convém mais o nome de
tyrannos) a que sua depravada natureza desvia d’estas condições reaes,
que juntamente com a corôa, e sceptro se lhe communicam: pela maior
parte os reis se sujeitam mais á lei e á razão, que os que, obrigados
de forçoso poder, não podem evitar o castigo de seus erros. E ainda o
mesmo nome e superioridade de rei lhes põem em certo modo condição de
serem os mais perfeitos entre os homens, para os regerem e mandarem;
que para o primeiro se requer muita prudencia, para o segundo grande
auctoridade.--Os reis por eleição (disse o doutor) d’essa maneira o
começaram a ser no mundo; e pela excellencia de suas pessoas alcançavam
o titulo que agora compete aos reis por nascimento. Os Persas não
podiam eleger rei, que não fôsse mui douto na arte magica, como escreve
Tullio no 1.º _de Diviniatione_. Os Médos escolhiam por rei, como
conta Strabo, liv. II, o que aos outros excedia em forças naturaes. Os
Catheos, povo da India, como escreve Deodoro, liv. 17, não subiam á
dignidade real, senão o que em gentilesa e formosura de corpo excedesse
aos mais: e a mesma eleição faziam os de Meroe, como escreve Pomponio
Mela. Os de Libia davam o titulo de rei ao que na velocidade do correr
deixasse atraz a todos. E, como conta Herodoto, os Gordios tinham por
digno do mando e titulo de rei o que fôsse mais grosso o comprido,
e tivesse o pescoço mais levantado, deduzindo da grandeza do corpo
a excellencia do animo, que para exercitar tão grande nome lhe era
necessario: de modo que todos estes e outros povos entendiam que o
ser rei convinha ao homem mais excellente n’aquella parte, que elles
julgavam por melhor de todas, segundo a opinião em que viviam.--Esses
(respondeu Leonardo) imitavam a natureza na superioridade que deu
aos animaes por forças, velocidade e ligeireza. Porém entre os que
são governados por razão, e policia, parece que era devido o nome
de rei ao que no entendimento fizesse vantagem aos outros homens. E
assim Platão chamou bem-aventurada á republica, onde os philosophos
reinassem, ou os principes philosophassem. E Seneca disse que era edade
de ouro a em que os sabios reinaram. E Vegecio, no liv. 1 da Milicia,
escreve que nenhuma cousa convém mais ao rei, que a sabedoria; pelo que
Salomão não pediu a Deus outra cousa para reinar.--É verdade (disse o
doutor) porém os reis, que succedem aos reinos por herança, não podem
ser eguaes no entendimento e prudencia; mas com a dos que por elles
governam vem a alcançar esta perfeição; d’onde nasceu o proverbio
antigo de Atheneo que _o rei tem muitos olhos, e muitas orelhas_,
pois ouve, e vê pelos ministros que governam o seu estado: E como diz
Tullio, se é real cousa mandar, não o é menos escolher doutos e famosos
varões, por quem se governem: e ainda os reis, que foram mais sabios
(ou por este respeito tidos por esses) procuraram ter comsigo os mais
afamados homens de seu tempo, de cujo conselho se valessem. Anthioco
mostrou a Hannibal quanto se presava de favorecer os sabios em sua
côrte. E Theodozio o Magno dizia que o rei quando comia, caminhava,
governava, e se retirava, se não havia de achar sem homens sabios: o
que tambem Lampridio escreve de Marco Aurelio. E d’este conhecimento
nasceu a Dionysio mandar a Lydia a buscar o philosopho Platão: e aos
reis do Egypto mandarem por seus embaixadores buscar o poeta Menandro.
Por esta razão Frontino Filosofo foi tão grande pessoa na côrte do
imperador Antonino; e Dion Sofista na de Trajano; Euripides na de
Archelau rei de Macedonia; e outros muitos, que não bastara esta noite
para os contar. E assim, como tendes mostrado, sempre a pessoa real é
uma lição viva que por si, e seus sabios, e ministros está ensinando
a todos os inferiores. Além do que o mesmo rei, por necessidade, e
quasi por força, ha de ser nos costumes mais puro que todos os seus,
por viver mais registradamente que elles, constrangido de sua mesma
dignidade; o que mostra bem Xenofonte na disputa de Hieron tyranno
com Symonides sobre a vida regia, e particular: e tambem as mesmas
leis os obrigam mais a elles, que aos particulares. Os reis do Egypto,
como conta Diodoro Siculo, por lei não podiam beber mais que uma certa
medida mui limitada, de que não passavam, porque com algum excesso
não fizessem desordens. Os Athenienses, segundo affirma Alexandre de
Alexandro liv. 3, tinham lei, que condemnava á morte o rei, que com o
demasiado vinho se alienasse. Os Indios, de que escreve Atheneo, cujo
rei davam em guarda a certo numero de donzellas, ordenaram que, se
algumas d’aquellas o achasse com vinho demasiado fóra de seu juizo,
e o matasse, esta fôsse desposada com o successor, a quem vinha o
reino. Os Macinenses, como o seu rei fazia algum erro no governo, não
lhe davam de comer aquelle dia. Os Persas faziam ao seu rei estar
escondido no interior das casas, para nem vêr mulheres, nem ser muito
tratado dos homens, como conta Herodoto liv. 3. De maneira que por
razão, lei e força os principes são mais observantes das leis divinas,
e humanas, mais sobrios, temperados, recolhidos e honestos. Além de
que, sendo menos vistos, são mais respeitados, como ensina Aristoteles
no livro _do Mundo_, em que conta do rei de Persia, que estava
encerrado em um castello com tres muros, e que se não mostrava senão
a poucos de seus amigos: como tambem dá a entender a Escriptura,
falando da prerogativa dos sete sabios da Persia, que viam ao seu rei,
e que cada dia tinha novas de todo o seu imperio.--Deixados (disse
Leonardo) esses exemplos tão antigos, e costumes tão louvaveis e
excellentes da gentilidade; os principes por creação, e natureza são
mais benignos, liberaes, magnanimos, justos, animosos e verdadeiros,
que os outros homens, e dotados pela maior parte d’aquellas virtudes,
a que por excellencia chamamos reaes. E como é proprio dos homens de
bom nascimento e inclinação aspirarem ás cousas mais altas, e desejarem
vantagem e melhoria dos outros; tendo diante de si, e no alto da vista
um espelho tão claro como é o seu principe, a elle se estão vestindo e
enfeitando d’ellas; primeiro e melhor os que o vêem de mais perto; e
depois os que por communicação d’estes participam da mesma doutrina.

Ao rei por assistencia lhe ficam mais perto os favorecidos, e officiaes
de sua casa, que os grandes, e titulares. Porém estes, como primeiros
por dignidade, se preferem a todos. D’estes se aprende o logar que
tem na casa real, nas côrtes, nas jornadas, na guerra e em outras
occasiões: a familia de que são, o appellido que tem: se os seus
titulos são de juro, se de mercê: e os bens que tem de patrimonio, e da
corôa: logo o que toca aos officios maiores do rei, em que occasiões
não faltam, e nas em que precedem uns a outros: e assim os filhamentos,
e moradias do mordomo mór: as entradas do porteiro mór: os pertos
do camareiro mór: as praças, provimentos, e penas do monteiro mór:
as aves, e ministros do caçador mór: as capitanias do guarda mór:
os potros, e jaezes do estribeiro mór: os privilegios do almotacé
mór: as vias do correio mór: e os particulares dos mais officios da
côrte; assim os ecclesiasticos de capellão mór, e esmoler, e deão;
os da guerra, como condestavel, alferes mór, almirante, marechal, e
meirinho mór.--Não era fóra de proposito (accudiu D. Julio) tratar
mais miudamente de cada um d’estes cargos, e das obrigações e origem
d’elles, e de outros menores, que agora com differentes nomes se
accrescentaram no serviço real de Hespanha.--A esse desejo (tornou
elle) satisfarei eu em outra noite; que agora nem da obrigação, que
tomei, me atrevo a sahir com minha honra.--Com essa promessa (replicou
D. Julio) eu fico contente, e vós podeis ir adeante.--Faço-o (disse
Leonardo) por me desobrigar mais depressa. E falando dos privados e
favorecidos do principe, tambem são dos mestres principaes que ensinam
a viver os particulares, assim no adquirir a graça do senhor, como em a
sustentar, usar d’ella, avalial-a, e encarecel-a aos cortezãos: porque
assim como a privança é vidrenta e perigosa, assim os meios, por que se
conserva, são muito subtis, e delicados: e posto que o eleger privado
está na vontade do senhor, a diligencia faz n’esta parte muitas vezes
o officio da natureza; que se, conforme a sentença de um sabio, _a
semelhança é raiz da affeição_, tambem _a diligencia é mãe da boa
ventura_. Os reis é cousa muito antiga e certa terem privados: e a
Providencia Divina o ordenou assim para o remedio de muitos, e allivio
da pessoa real: quando elles são varões de valor, justiça, e bondade,
como para este officio se requerem (que de outro modo seria cahir
peçonha na fonte, de que bebe todo o povo, como escreveu discretamente
o nosso bom portuguez Francisco de Sá de Miranda) a estes se inclina de
ordinario, ou por semelhança de partes, ou satisfação d’ellas, com uma
natural sympathia, que concilia este amor. Se o principe é affeiçoado
a armas, se a amores, se a gentilezas, se a forças, se a caça, ou a
montaria, se a musica, ou a poesia, ou outras artes, e disciplinas,
contentam-lhe os que tem essas mesmas partes, ou se inclinam a ellas.
E assim o que entra n’esta pretenção, que é dos que andam mais perto
do serviço do principe, o primeiro, que estuda, é a sua natureza,
inclinação, e costume, para se ajustar, ou avizinhar com o seu gosto,
e se fingir aquelle que lhe convém ser para o contentar: e porque os
homens até a seus proprios defeitos são affeiçoados, maiormente os
principes, a quem chega mais tarde o desengano d’elles, até n’estes
o imita o que sabe grangear a sua vontade; como ouvi contar de um
favorecido de Filippe rei de Macedonia, que se fingia coxo de uma
perna, porque el-rei o era de outra; outro se finge curto da vista,
outro indisposto, e outro se faz pallido e descorado, achando que o rei
tem os mesmos accidentes: no andar, no falar, no olhar, no vestir, e
em todas as acções o imita; aprende a arte, o jogo, o exercicio em que
o rei se occupa, para que, sendo n’elle extremado, seja muitas vezes
escolhido, e faça degraus á sua pretenção; entristece-se, e se alegra
segundo ao mesmo rei a que grangea. E ainda passam adeante como a
Carizosopho, privado de Dionysio, que estando o rei em conversação com
alguns da côrte, e movendo-se entre elles grande riso, o favorecido,
que estava apartado d’elles, se começou a rir desentoadamente: e
perguntando-lhe Dionysio de que se ria, respondeu, que porque imaginava
que as cousas, de que o via rir, seriam de gosto. Se entende que no
jogo o principe se alegra com ganhar, deixa-se perder; se estima ser
gabado, busca rodeios para que, sem parecer de proposito, trate de
seus louvores. E de um ouvi eu contar que as mesmas historias, que ao
principe ouvia, das cousas de seu gosto, e das gentilezas, e esforço de
sua mocidade, lh’as tornava d’ahi a tempos a referir, dizendo que as
ouvira de outras pessoas; encarecendo-as, accrescentando-as, e pondo
de casa o que movesse a mais gosto, e vangloria o mesmo Principe. Não
faltar na continuação de sua presença (como Aristipo Cyreneo) que nem
á necessaria deixava ir a Dionysio sem o acompanhar. E quando com
estas, e outras diligencias alcança a graça do rei, é outro novo, e
maior trabalho sustental-a; que é o cuidado com que todos os privados
se desvelam, porque não comem com gosto, não bebem com quietação, não
dormem com descanço, não vivem sem receio. E entre outras advertencias
me parecem muito principaes, e excellentes as que aponta o bispo de
Mondonhedo no seu _Aviso de Privados_: convém a saber, que o
favorecido não descubra ao principe tudo o que cuida; que lhe não
mostre tudo o que tem; que não tome tudo o que deseja; que não diga
tudo o que sabe; que não faça tudo o que pode; que não negoceie
para si, nem para outrem fora de tempo; e que em todos se incline e
favoreça a parte justa, para que com conhecida sem razão não arrisque
o logar de sua privança. Atraz d’isto se seguem os ciumes de seus
competidores, o cuidado de os apartar da vista, e da communicação do
principe: e ainda os de que mais se receie, trabalhar de os ausentar
da côrte com despachos, dadivas e mercês do mesmo senhor, dourando com
ellas a pirola de sua dissimulada tenção. Para o que é notavel exemplo
o de uma historia que conta o cardeal Navarro no seu tratado _da
Murmuração_, de um Fr. Francisco de Mendania seu natural, muito
aceito ao imperador Carlos V; ao qual senhor privado, que se receava de
sua valia, persuadiu com grandes louvores do frade que seria de muita
importancia nas Indias Occidentaes para converter a gentilidade por
sua admiravel doutrina, e bom modo de persuadir: e d’esta maneira com
capa de amigo o fez prover com o bispado de Nicaragua, desterrando-o
da vista, e lembrança do Imperador, e d’ahi a poucos mezes da propria
vida. Outro valido, que não teve este meio para deitar da côrte um
gentil-homem, que alcançava graça com o rei, e que nenhum cargo quiz
acceitar fora de sua vista, espreitando occasião de uma enfermidade
sua, se falou com o medico que o curava, e fez que o persuadisse que
viviria mui pouco, se assistisse n’aquelle logar, onde a côrte estava,
por ser muito contrario a seus achaques. Elle vendo que se atravessava
a vida com a privança, procurou de proposito o que antes enjeitara mil
vezes, e se sahiu da presença do principe, deixando ao privado livre
de ciumes. Tambem importa muito que o favorecido, depois de estar na
graça do senhor se lhe não queira egualar, ou adeantar por opinião
em alguma parte, de que elle se preze; nem mostrar-se mais discreto,
mais valente, mais bem visto, mais airoso, mais acceito a damas, e em
outras partes semelhantes; que é cousa, que os reis soffrem muito mal.
El-rei D. João o II, e el-rei D. Sebastião não queriam que em fôrças,
e valor se lhe egualasse nenhum vassallo, como se collige de muitas
historias suas; e el-rei D. Manuel no entendimento: o que tambem se
prova d’aquella historia, referida de Antonio Peres, que lhe succedeu
ao mesmo rei com o conde de Sortelha D. Luiz da Silveira, a quem mandou
que fizesse uma carta para o papa sobre certa materia de importancia,
dizendo que elle faria outra minuta para de ambas escolherem a mais
acertada: succedeu que, trazendo o conde a sua a el-rei, pareceu tão
bem, que não lhe quiz mostrar a que fizera, e assignou a do conde:
elle descontente d’este successo se foi a casa, e fez uma pratica a
seus filhos, dizendo que cada um buscasse sua vida; porque já el-rei
tinha entendido que sabia mais que elle. Assim que o mais alto logar da
privança se sustenta com os maiores extremos da humildade em respeito
do mesmo senhor; porém para os de fora lhe é necessaria uma ostentação,
e ufania, que mereça mais seus poderes, e quebre os animos que podiam
ter com elle competencia, para se não atreverem a capitular seus
erros, e a contrastar sua valia. E abreviando esta materia, por ser
mui larga, se aprende tambem dos cortezãos, assim dos ministros, como
dos continuos da côrte, aos quaes pela communicação dos superiores, e
exemplo do principe convém serem modestos, sobrios no comer, cortezes
no tratar, discretos no falar, polidos no vestir, honrados no gastar,
bem creados no conversar, e amaveis a todo o genero de pessoa: e tem
mais d’estas partes os que por creação da meninice tomaram este leite,
como são os filhos dos que no mesmo serviço gastaram a vida. Esta é a
primeira escola, em que os homens aprendem o que pertence á profissão
de homem de côrte.--O segundo exercicio (disse o prior) me parece que
é o mesmo que tendes mostrado, advertindo mais algumas poucas cousas
que são particulares do serviço das damas. O decóro e primor, com que
ellas se tratam (respondeu Leonardo) n’este reino, principalmente
as que assistem no paço, parece que em certo modo conserva aquella
preeminencia, que os egypcios lhe deram, que com o exemplo do bom
governo de Isis reinavam as mulheres, porque em presença, e ausencia
os cortezãos as nomeiam por senhoras, se lhes descobrem, e ajoelham
como a deusas, lhes fazem festas, jogos, justas, e torneios como a
Deidades, estão pendurados de seus favores, e respostas, como de
oraculos; as acompanham como a cousas sagradas; se vestem, ornam e
enfeitam pelas agradar; se desvelam pelas servir; se apuram, para as
merecer, no esforço, na gentileza, na galantaria, no dito discreto,
no escripto avisado, no mote galante, na endecha subtil, no soneto
conceituoso; por ellas se ensaiam para o sarau, no dançar, no falar,
no acompanhar, e no offerecer; por ellas se apressam nas occasiões, de
jornadas, de creados, e librés, galas, e ginetes; por ellas continuam
e passeiam á vista das janellas, atravessam as salas á sua conta,
e rodeiam o terreiro do paço mil vezes por seu gosto; por ellas se
offerecem a todo o perigo: porque qual é, que um servidor de damas não
ache facil por amor d’ellas? que palavras diz? que extremos receia? que
esquivanças não soffre? que riquezas estima? que chimeras não finge?
que occasiões não busca? vela de noite, não descança de dia, não se
entristece com a pena, não desconfia com o desengano, não faz conta de
aggravos, nem estima desprezos, não cura de vinganças, e emfim tudo é
veneração e humildade, com que as engrandece. E d’esta escola de seu
serviço (como no principio disse) sahem os homens tão apurados no que
convém á honra, primor, e discrição, que se não pode esperar d’elle
vilania em nenhuma cousa. E porque falta a Portugal ha tantos esta
creação, tem tão pouca muitos filhos dos illustres do reino, que livres
d’este aprazivel, e honrado senhorio, ficaram no de sua vontade.
E posto que a minha era dilatar mais esta materia, nem pela edade,
nem pela confiança tenho licença.--Essa vos deram todos facilmente
(disse então o irmão do prior) e eu de melhor vontade a procurara
para com as damas honrar, e engrandecer as armas: contento-me porém
que vos hei de ter presente para as duvidas, e perguntas, que se me
podem offerecer.--Em tudo (respondeu elle) estaes vós tão avantajado,
que mais podeis mover duvidas para me envergonhar, que para saberes
alguma cousa de novo; e assim de corrido, e de corrida me passo ao
terceiro exercicio da communicação dos extrangeiros, da qual se não
alcança menos doutrina, que de todos os exercicios cortezãos. Quatro
generos de gente extranha costuma a assistir nas côrtes dos principes.
A primeira reis, principes, e senhores, e homiziados, que por alguma
occasião vem a acolher-se a seu amparo, ou por adversa fortuna ficam
debaixo de seu senhorio. O segundo são embaixadores, com os nobres e
ministras, que os acompanham. O terceiro gentis-homens, que vem a saber
a grandeza dos reinos extranhos. O quarto mercadores, que por razão do
commercio e correspondencia vem a assentar nas praças principaes do
mundo, que são as mais das vezes onde os reis assistem. E todas estas
quatro condições de gente são de muita importancia para se colher
d’ella muito fructo. Primeiramente facil é de julgar a varia noticia
de costumes e condições de gentes e dos ritos e leis de provincias,
que os cortezãos portuguezes alcançaram com a vinda de tantos reis e
principes extrangeiros, assim infieis, como catholicos, á côrte d’este
reino, quantos reis, e senhores da Barbaria, da Ethiopia, e de outras
partes da Africa, da India, de Maluco, e de Japão, e de outras remotas
partes do mundo; e que cousa apurou mais a côrte d’el-rei D. João o I,
que a vinda a ella do duque de Alencastre irmão d’el-rei Richarte de
Inglaterra, a cujo respeito houveram os doze portuguezes em Londres
aquella celebrada victoria em favor das damas? Pois os mais homiziados
e queixosos, que se ampararam á sombra do principe, pela maior parte
são homens de valor, sangue, e esforço. Os embaixadores, do que
d’elles temos dito, se collige o de quanta importancia sejam para dar
exemplo. Os gentis-homens, que por curiosidade vem a saber o estilo
e gentilezas de côrtes extranhas, esta mesma diligencia os acredita;
e além d’isto é de presumir que tenham visto, ouvido e sabido muito
de reinos alheios: de modo, que de uns e de outros se colhe grande
doutrina para a conversação civil, e perfeição do homem bem nascido;
porque cada um conta da côrte, trajo, modo, e estilo do seu reino, a
maneira de reger, governar, julgar, tratar, e peleijar da sua nação:
d’elles se aprende as excellencias particulares, e os defeitos das
provincias, e de que as suas gentes são mais notadas: como a gentileza
de França, a furia de Inglaterra, a fortaleza de Allemanha, o siso de
Lombardia, as cautelas de Toscana, a fidelidade de Milão, a presumpção
de Esclavonia, a conta e trato de Genova, a destreza de Bretanha, a
caridade de Borgonha, a continencia de Picardia, a justiça de Veneza,
a magnanimidade de Roma: e logo a crueldade de Hungria, a infidelidade
de Turquia, a lisonja de Grecia, as zombarias de Piemonte, a luxuria
de Catalunha, e a golodice de Barbaria. Pois dos mercadores se não
colhe tambem pequeno fructo: porque, deixando o que pertence á conta,
peso, medida, correspondencia, confiança, credito, verdade e razão, se
alcança do commercio das provincias o que falta em muitas partes; e as
em que ha todas as cousas, que por via dos mercadores se communicam, e
os portos, caminhos, e escalas de todo o mundo: por elles se conhecem
as pedras finas, drogas, roupas, e materiaes de medicinas da India
Oriental; as pedras, aljofar, porcelanas, e alcatifas da China; o ouro
de Sofala; como no Occidente de Dalmacia, e Germania; e na França
o celebrado de Tolosa: a prata de Nova Hespanha, e de Saxonia, e
Sardenha: o metal de Corintho, e Chipre: o estanho, cobre, e arame de
Flandres, e Inglaterra: o ferro, aço, e chumbo de Cantabria e Sicilia:
o marfim da India, Brazil, e Ethiopia: as lãs de Bretanha, Calabria,
Calcedonia, e França: o algodão, cheiros, e myrrha de Arabia, Pancaia,
e Assyria: as télas e sedas de Persia: o alabastro de Napoles: as
martas, e arminhos de Polonia, e Moscovia: o papel e vidros de Veneza:
o assucar de India, Brazil, e ilhas de Portugal: o coral de India e
Marselha: courames, madeiras, vinhos, e trigo das ilhas do Oceano, que
pertencem á conquista dos portuguezes: e muitas outras cousas, que
querer agora contar fôra infinito; e por o não parecer este discurso,
tratarei brevemente de quatro exercicios dos pretendentes da côrte:
materia mui larga, que pedia mais tempo, e muito importante a todos,
porque do seu cuidado, diligencia e soffrimento se pode colher uma
lição universal para todo o estado, e condição de pessoa, pois nenhuma
ha a que não seja necessario desvelar-se, negocear e soffrer para
effeito de dar alcance ao que deseja. E como n’este tempo os homens
estão já desenganados de quão pouco valem merecimentos, que (por elles
o não serem) vieram a chamar valia ás adherencias; e lhes tem mostrado
a experiencia a verdade d’aquelle rifão, que _cada um dança segundo
os amigos que tem na salla_; e que só põe em pé os serviços quem
os arrima a boa parede, por mais arrastados que andassem na opinião
da gente. Já nenhum pretendente discreto faz tanto cabedal d’elles
como de ministros que o ouçam, creados que o admittam, amigos que o
lembrem, ricos que o abonem, terceiros que o cheguem, e peitas que o
despachem. Para o que o avisado, depois de fazer o signal da cruz á sua
pretenção, primeiro sabe os que valem com o principe, depois d’isto
os que tem logar e entrada com os privados: logo conhecer os creados
mais mimosos; em sabendo a sala do valido, tomal-a de empreitada, ser
continuo no passeio d’ella; onde a todos a primeira cortezia, e a
mais humilde seja a sua; o riso sempre na bôca, os offerecimentos na
lingua, os olhos no seu intento; dar o melhor logar a todos, porque
acaso não falte a algum que pode ser em seu favor; não se aparte da
vista do que grangea; faça-se encontradiço onde o veja; na egreja tomar
o logar da porta; na salla a sahida; no acompanhamento o deanteiro,
para parar onde fique tomando os olhos do privado, para que assim, ou
com a continuação mereça, ou com a importunação o despache: usar do
trajo limpo, mas não custoso: o comer leve, mas concertado, porque
arguem moderação com gravidade: o falar sempre á vontade do ministro,
dizendo os amens a todas suas orações, mostrar-se ao favor humilde, á
representação agradavel, á esperança contente, ao desengano confiado:
falar a todos no seu negocio, porque muitas vezes acerta com um, de
que elle não esperava abrir caminho a seu despacho; saber dos que
tiveram os outros, e valer-se da queixa dos mal galardoados, para que,
antepondo-lhe os seus merecimentos, approve a justiça e favor, que
lhes fizeram. E no que toca á moderação das paixões naturaes, ninguem
as traz mais registadas que o pretendente; porque dos cinco sentidos
e tres potencias usa d’esta maneira. Vê tudo, e olha pouco; vigia,
porque, como dizem, _a quem vela tudo se lhe revela_; mas com os
olhos no que procura dissimula o que vê, ouve, e não escuta: e assim as
más respostas dos ministros cançados, ou insolentes não o escandalisam,
antes lhe mostra alegria fazendo do escandalo materia de agradecimento;
cheira de longe o que receia; e dissimula, fingindo confiança no que
merece: apalpa, e tenta todos os meios de seu remedio, e finge-se
ignorante a tudo o que releva; põe o gosto no de quem o favorece,
para não fazer mais que o que lhe contente: a memoria occupa-se em
relatar seus serviços, e obrigações fingidas, por vêr se assim as
pode ter verdadeiras: esquece-se do entendimento para não sentir, e
para tambem com elles obedecer; porque o que pretende é muitas vezes
prudencia fingir ignorancia, accommodar a vontade com a sua em um
voluntario e forçoso captiveiro; a d’aqui nasce que os que pretendem
vivem em pobreza, porque não podem ter proprio emquanto dependem de
favores alheios; em obediencia, porque a tem com tanta sujeição, que,
se ao senhor deseja parecer creado, ao creado quer parecer escravo, e
ao amigo, e parente servidor; fazendo-se com todos os ventos para o
contentar; em castidade, porque a sua inquietação e cuidado não dão
logar aos de amor, que se criam em pensamentos ociosos, que além do
pretendente ser humilde, liberal, cortez, paciente, discreto, comedido,
sombrio, advertido; casto, diligente, e temperado, a sua cortezia é
mais apurada, a sua discrição mais advertida, a sua liberalidade mais
prodiga, a sua offerta mais timida, a sua queixa mais moderada, a sua
paciencia mais humilde, o seu louvor mais encarecido, a sua voz mais
baixa, a sua razão melhor encaminhada. Emfim é ornado de todas as
partes boas, de que se pode prezar o homem bem nascido quando as tenha
por natureza, e costume, como os pretendentes as fingem e guardam por
necessidade. Com isto me deveis haver por desobrigado do cargo, que
me déstes; e posto que as horas, que são passadas da noite, culpam a
minha tardança, a materia a pedia; ainda que o desejo de não enfadar me
aconselhasse outra cousa.--Tendes dito todas tão bem (respondeu elle)
que a pratica, e a noite pareceu breve. Com isso vamos a descançar
para na guerra de ámanhã entrarmos mais esforçados.--N’essa me dou já
por vencido (disse elle).--E eu por atalhado (accudiu Roberto) e todos
se despediram com os olhos n’aquella côrte pintada, que ainda com as
sombras da verdadeira enganava os sentidos.




                              DIALOGO XV

                         DA CREAÇÃO NA MILICIA


Solino foi o primeiro que a noite do outro dia buscou aos amigos
em casa de D. Julio; e elle, e os hospedes lhe agradeceram muito a
diligencia. E o prior (que lhe não era pouco affeiçoado) disse:--Bem
me parece que não fez a edade falta no vosso animo, ainda que as cãs
queiram desacreditar as forças, pois sois o primeiro que acudis á
guerra.--Como esta (respondeu elle) ha de ser em alojamento, primeiro
apparecem as barbacãs, que os soldados.--N’ellas (acudiu Alberto) está
o mais seguro presidio contra os perigos; e tendo eu hoje as vossas da
minha parte, temerei pouco as que tiver contra mim n’esta occasião.--Em
muitas (replicou Solino) me releva mostrar que sou vosso, por dar boa
conta da razão com que de mim faz alguma o sr. D. Julio; que, como
sabe melhor o que se vos deve, me terá por rustico, se não pagar com
esta vassallagem o que mereceis.--Nada haverá (disse D. Julio) que
commigo vos desacredite, mórmente para um cumprimento, segundo agora
vos vi armado para elles.--Pois se vae a falar verdade (tornou elle)
eu vos affirmo que de nenhum inimigo desejo tanto fugir como de um
cumprimento; porém ha alguns, que tomam a um homem como em becco sem
sahida, onde o faz animoso a necessidade; e á minha acudistes vós
agora com essa interlocutoria; que já minha _copia verborum_
ia dando os fios.--Se com esses me armaes a que vol-o gabe (disse
elle) estaes enganado; que me importa poupar o cabedal para outra
occasião.--Bem sabeis vós (tornou elle) que em nenhuma me quero gabado,
antes; praguejado como Adem; porque se é verdade (como diz Pindaro) que
tenho a graça na murmuração, como a cobra a peçonha no rabo; quando
me põem o pé n’elle, sei morder com mais subtileza, que na doçura de
um cumprimento abemolado, de que já a mercê arda tão estylada a puras
sincopas e signalefas que parece tisica, e não sei se, de o estar nas
palavras, o anda agora nas obras dos senhores.--Ruim agouro foi para
uma e outra cousa (disse o prior) escreverem-a sempre em breve letra
por parte: e certo que nenhuma cousa era tão necessaria ás mercês de
agora, como o _mantenha-vos Deus_ do tempo antigo. Porém, se me
não engano, ouço já os vossos aventureiros, que vem falando alto.--Eu
tambem sou com elles (disse Solino) e conheço a Pindaro no riso, que
sempre entra com chocalhada como picadeiro. A esta pratica atalhou a
chegada d’elles, que com mais compridas desculpas do que foi a tardança
se assentaram. E porque Solino tinha um galeote vestido, que trouxera
por razão do frio, lhe disse Pindaro: nem de côrte, nem de milicia vos
vestistes hoje; e não parece razão que em actos tão solemnes venhaes
de caça a casa do sr. D. Julio.--O melhor seria (respondeu Solino) que
me cortasseis vós agora de vestir, pois não tendes boa tesoura; e já
sabeis que as ruins fazem a bôcca torta aos alfaiates. Porém já que
vinheis de côrte para esta casa, onde ha tanta, porque antes de vêr o
meu gabão rieis tão alto d’elle?--Vingado estaes (acudiu Feliciano) e o
certo é que, se faltardes á milicia, nunca vos faltará a malicia.--Se
nos mettermos por ella (disse Leonardo) não ficará tempo para que o
sr. Alberto satisfaça á obrigação de nos ensinar a boa creação, que se
adquire com as armas.--E se eu com as do vosso entendimento (tornou
elle) não soccorrer a minhas faltas, mal me irá n’esta batalha:
porém como as mais das instrucções da policia militar dependem, ou
se parecem com as da côrte, do que d’estas dissestes tão doutamente
me aproveitarei agora, pondo sómente de meu cabedal a differença. E
assim me parece que a creação da milicia leva a todas as outras grandes
vantagens por quatro fundamentos; que cada um d’elles apura mais aos
homens bem nascidos, que o trato da côrte e o exercicio das escolas.
O primeiro é, que a honra é a fonte de todo o bom ensino, policia,
procedimento e valor; e esta que mais nasce, se cria e conserva na
guerra, que em nenhuma outra parte: e assim os reis, que são o primeiro
logar, d’onde aprendem os seus inferiores, e d’elles passa a doutrina
a todo o vulgo, primeiro os fez a milicia que os tivessem as côrtes:
e o primeiro, que houve no mundo, que foi Nembrot, na guerra tomou o
nome, e assentou com elle o seu imperio em Assyria; e de então todos,
os que por fio de geração não succederam, as armas lhes deram titulo,
corôa, sceptro e senhorio; e depois d’elles o tiveram pelo mesmo modo
os potentados, duques, marquezes, condes, barões e ricos homens, que
nas conquistas, instituições, ou restaurações de reinos, fizeram obras
heroicas: e d’elles passaram a seus descendentes os appellidos, armas,
insignias, senhorios, terras, vassallos, jurisdicções, liberdades,
honras e rendas que engrandecem a nobreza. O segundo fundamento é o
rigor, com que na milicia se conserva a lei da policia, bom termo,
primor e procedimento; porque se commettem muitas vezes ás armas as
faltas e emendas que a estes tocam; e onde o erro é tão arriscado, é
a vigilancia e advertencia muito pontual; e por este respeito andam
os soldados tão vistos nas miudezas e particulares da cortezia, que
nenhum ponto perdem, nem deixam perder. O terceiro é a continuação do
soffrimento, e da paciencia militar, que em tudo se adeanta com grande
differença a pretendentes, creados ministros, no que é com maior risco
da vida, ora seja marchando, ora navegando, ora em alojamento, ora em
campanha, pelas incommodidades de sitios, gasalhados e mantimentos; e
pelas continuas vigilias, que fazem por lei o repouso tão limitado,
como o póde fazer por curiosidade o mais estudioso. O quarto fundamento
é a variedade das terras e provincias que vê, as diversas nações e
gentes com que trata; que é a creação mais importante para o homem
bem nascido, e que na côrte ou nas escolas se não póde adquirir tão
facilmente. E para que, ao menos imitando a ordem do sr. Leonardo, dê
alguma a minhas razões, discursarei com maior brevidade, que satisfação
sobre estes quatro fundamentos, fazendo o principal de minha confiança
no favor que d’elle, e de todos estes senhores espero.--Até o tomar
na graça (acudiu Solino) ambos levastes um mesmo vento, senão quanto
ao sr. Leonardo metteu mais traquetes e cevadeiras: e se isto até
ao fim fôr em arremedados, póde ser que entre eu na musica antes de
muitos dias.--De boa vontade (disse o doutor) vos passarei eu o de
ámanhã.--Não o hei de pedir (respondeu elle) por alvará de renunciação,
que será difficultoso o consentimento d’estes senhores; buscarei logar
vago: e porque me entalei n’este em ruim tempo, o quero deixar ao sr.
Alberto.--Pareceis-me n’elle tão bem (tornou elle) que já me esquecia
de o cobrar; porém, já que me daes licença, o primeiro fundamento é
que a honra se apura e sustenta mais na guerra que na côrte e nas
escolas: este me parece que se prova melhor com uma sentença que diz
que _a boa fama é o patrimonio na milicia_; porque a honra, o
ser, o preço e a riqueza de um soldado, não consiste no appellido de
sua familia, na herança de seus avós, na riqueza e morgado de seu
pae, nem outros juros, tenças e rendas de que tenha esperança; senão
na opinião em que está tido entre os amigos e contrarios, segundo
seu valor e merecimentos. E se é certo que a verdadeira honra não
consiste nas estatuas dos antigos, nem nos pavezes e escudos em que se
conserva a memoria dos principios da nobreza, senão na virtude, valor,
magnanimidade e exforço proprio; só o soldado é filho de suas obras,
e se póde chamar honrado por si mesmo, sem por roubo, emprestimo ou
herança se chamar nobre: porque os que de nascimento o são, e pelas
armas o merecem ser, assim honram a seus passados, melhoram e obrigam
a seus descendentes. E os que de principios humildes chegaram por seu
braço a merecer titulos, grandezas e senhorios, dão felice principio
a sua familia, e tambem a reinos, potentados e casas, que os ficam
em seus successores eternisando, como por maravilhosos exemplos dos
antigos conhecemos; e por experiencia dos modernos se vê cada dia.
Ptolomeu de soldado de uma companhia do exercito de Alexandre, veiu
por seu valor a ser rei do Egypto. Dario e Artaxerxes por esforço e
merecimentos proprios, sendo de mais humilde nascimento, alcançaram o
sceptro e corôa real dos Persas. Valentiniano e Justino imperadores
de Roma, nascendo rusticos e pastores, por o braço vieram a merecer
aquelle supremo titulo da grandeza humana. Viriato e Tamorlão, de
pastores, caçadores e soldados vieram a ser, um imperador dos Scythas,
o outro governador e general dos Luzitanos: e outros mais modernos,
como foi Primislau rei de Bohemia, Francisco Esforcia duque de Milão, e
outros muitos; e na milicia presente de Flandres, França, Allemanha e
Inglaterra, na de Asia, e na do Oriente, e da Nova Hespanha, conheço eu
por vista, e sei por nome, e da fama de muitos soldados, que, sendo de
escuro nascimento, por sua extremada valentia e esforço se fizeram tão
claros e illustres, e como taes tem os cargos importantes, os logares,
honras e vantagens da milicia. De maneira que, pois a honra é uma
universidade, em que se aprendem todos os bons termos, procedimentos e
cortezias; e esta está fundada na milicia, onde entre as armas nasce,
com ellas se ganha, apura e sustenta; n’ella deve estar mais apurado
o fructo de sua disciplina. O segundo fundamento é o rigor com que os
erros contra a policia se castigam na guerra; de que nasce a vigilancia
e cuidado, com que os soldados se disvellam para andarem apontados
até em miudezas, de que na côrte se descuidam os mais advertidos para
a differença que ha, cortando-se á espada o maio que cresce ao que é
pouco cultivado no bom ensino e procedimento; de modo que, mais periga
um homem em uma descortezia ás vezes, que em uma batalha. E assim o
falar composto, o responder brando, o perguntar com tento, o tratar
do ausente, o defender ao amigo, e o falar do contrario, cada cousa
tem na guerra suas leis estabelecidas, em cuja execução se procede com
todo o rigor; o dos particulares d’ellas nasceram os desafios e duellos
tão justamente reprovados na republica catholica, quanto na barbara
opinião antiga bem recebidos, como foi na dos reis de Lombardia, que
reduziram o duello a dezoito casos das leis: o o imperador Frederico
a quatro; e Filippe rei de França a tres: e Frotanio rei de Dacia fez
lei que toda a contenda que havia de ser em juizo, se averiguasse
pelas armas. E como o descuido que o soldado tem na cortezia, a soltura
na palavra, a má correspondencia no procedimento, a liberdade com que
fala do ausente e do contrario, está sujeita a dar satisfação por
um caminho tão breve: qualquer soldado pratico está mais advertido
que o melhor cortezão no bom ensino, respeito e brandura com que ha
de tratar aos homens.--A verdade é (disse o doutor) que os soldados
conversam com toda a brandura e bom termo: e já Platão disse que o bom
soldado devia de ser como o cão; para os domesticos e conhecidos muito
fagueiro; e contra os inimigos arriscado e valente. Porém o duello é
cousa muito mais antiga, e que se não inventou para essas miudezas que
dizeis: porque, conforme a opinião dos legistas, é um combate e batalha
particular de corpo a corpo para provar alguma cousa duvidosa, da qual
o que sahe vencedor se entende que provou o que queria, como o desafio
de Menelau com Paris, de Enéas com Diomédes, de Ajax com Heitor; os
duellos de Lucio Sicinio Dentato, que oito vezes á vista dos dois
exercitos sahiu vencedor; o de Tito Manlio Torquato, e de Lucio Emilio
com o capitão dos Samnitas; de Alexandre Magno com Póro rei da India,
o de Scanderbhec com Zayá, e Tambrá valorosos Persas: o de Roe rei
de Dacia com Hudingo duque de Saxonia: e muitos dos nossos valorosos
Luzitanos em muitas partes do mundo, o de Alvaro Gonçalves Coutinho o
Magrisso em Flandres; o de Alvaro Vasques de Almada conde de Abranches
em França; o de Duarte Brandão cavalleiro da Garrotea em Inglaterra;
o de Gonçalo Ribeiro em Castella; o de D. Francisco de Almeida em
Granada: e muitos outros no Oriente, na Asia e em Barbaria.--Não são
esses (respondeu Alberto) os duellos reprovados de que agora tratei,
que modernamente se usam, e se definem por differente modo, e por todos
com bastantissima causa se defendem; que os de que falaes assim, como
são batalhas singulares de corpo a corpo, se usavam de cento a cento,
vinte a vinte, dez a dez e doze a doze, como foram os portuguezes de
Inglaterra. Duellos, segundo a definição moderna, é um combate de
homens, que despresando as leis, querem averiguar por seu braço o que
toca á sua honra ou opinião, movidos do interesse de a sustentarem,
ou de vangloria, arrogancia, inimisade ou vingança: e d’estes usa na
milicia a furto das leis e generaes, que com muito rigor os castigam:
procedendo todos sobre miudezas e pontos as mais vezes impertinentes,
introduzidos pela bizarria e fonfarria soldadesca, pendendo do que
disse, calou, passou, respondeu, olhou, se gabou? se ficou melhor nas
palavras, se alguma era escura, e ficou mal entendida? sobre perguntas,
declarações, satisfações e respostas, e outras cousas, que, por não
merecerem ser tratadas, antes com razão reprehendidas, deixo de dizer.
Mas a conclusão, para o meu intento, é que na milicia andam as leis
da cortezia, e procedimentos mais ajustadas com a razão, que em outra
parte alguma, por meio d’este rigor, que faz aos que militam levarem
muitas vantagens. O terceiro fundamento é a paciencia e soffrimento
dos soldados, que creados no trabalho, e incommodidade d’aquella vida,
é o maior de todos os estados; trazendo sempre como grilhões o peso
das armas: que se o proverbio diz que _quem traz no dedo o annel
apertado, faz para si voluntaria prizão_, quanto maior o será o
cossolete, o morrião, o pique, o mosquete e o arcabuz, traz isto trazer
o somno registrado pelas leis do tambor, acudir ao seu quarto no melhor
do repouso; e no maior escuro, e geada do inverno, passear á sombra
das nuvens carregadas de agua, sem mais luz que a dos relampagos, e
mais lume que a do murrão; e ter por cama a terra, que de ordinario
serve aos soldados, que se alojam no campo, ou fronteira dos inimigos.
E se d’el-rei D. Affonso Henrique, do condestavel D. Nuno Alvares
Pereira, do condestavel D. Pedro de Menezes, e de outros generaes
portuguezes lêmos, que muitos annos inteiros dormiam as noites sem
despirem a malha, e couraças com que pelejavam de dia: que colxões lhes
podiam servir para tão asperos lençóes, se não fossem as carretas da
artilheria, o espigão dos muros, e o reparo das trincheiras e barbacãs?
Pois se a sobriedade e temperança é tão gabada nos bons costumes pelos
muitos que d’ella nascem, quem póde ser mais temperado e sobrio que
o soldado, do qual tantas vezes a necessidade é cosinheira, o escudo
ou cossolete a mesa, o morrião o pucaro, e fome a iguaria? E deixando
as famosas, que houve no mundo, de que os auctores escreveram, que
todas couberam em sorte aos soldados; qual se não ha de presumir que
aconteça onde ha muita gente junta, da qual tudo se receia e nada se
fia? E se em alguma gente se conserva o costume dos mantimentos da
primeira edade, que eram fructas das arvores e legumes dos campos,
só na da milicia acontece muitas vezes: não tratando ainda da guerra
naval, que com maiores incommodidades e perigos da vida se exercita;
nem nos cêrcos, onde mais vezes a necessidade da fome a põe em
almoeda. Atraz d’estes extremos de soffrimento se segue a obediencia
militar, que é o esteio em que se sustenta o principal peso da guerra,
devida e guardada pelo mais valoroso soldado ao menor e mais humilde
official do exercito, havendo n’elle tantos, como são general do
exercito, coroneis, capitães, tenentes, governadores, mestre de campo,
sargentos-móres, generaes de infanteria, de cavallaria, capitães de
gente de armas, capitães de cavallos ligeiros, generaes e capitães
de artilheria: fóra os particulares, alferes, sargentos, cabos de
esquadra, e outros officiaes não combatentes, como são provedor geral,
commissario geral, furriel mór, barrachel, thesoureiros, collateraes,
pagadores, e meirinhos, e outros muitos.

E em o que toca ao governo de cada um, nenhum soldado desobedece na
ordem, na estancia, no concerto, no acometter, retirar, assistir,
reconhecer, vigiar, e em todos os mais actos militares: e ainda que
se lhes atravesse deante o rosto da morte, o despresa por acodir á
obediencia de quem tem a seu cargo mandallo. E faltando esta sujeição,
totalmente se destruirão os exercitos, conforme aquella sentença,
que _o maior inimigo, que ha na guerra, é a discordia entre os
proprios soldados_: e assim se perderão muitos campos, e armadas,
por a inconveniencia dos capitães, e a discordia, e desobediencia
dos inferiores. De modo que, por ser esta experiencia tão approvada,
vieram os reis, e generaes, a castigar bons successos, quando fóra da
obediencia, e ordem militar se conseguiram; enjeitando aos vencedores
a ventura, e castigando a ousadia, com que traspassaram a lei da
milicia, como eu vi acontecer algumas vezes. Ha além d’esta outra
obediencia não menos importante nos soldados, que é a do segredo;
que vence ao maior que se deve aos negocios civis, e cortezãos: este
se usa nos desenhos, intentos, avisos, estratagemas, ciladas, e até
em o dar o nome ordinario da vigia; que tudo se guarda com inviolavel
observancia. Assim que em tudo o soffrimento, e obediencia do soldado,
muitas vezes alcança na guerra mais merecimentos que o seu esforço. E
todas estas leis, costumes, e sujeição fazem a um homem tão apurado,
polido, discreto, amavel, secreto, brando e animoso, que deixa atraz
a todos os que nos outros exercicios se adiantam. O quarto fundamento
é a communicação dos estrangeiros, e a vista de differentes terras, e
provincias, que o fazem sciente, pratico e visto nos costumes, ritos,
e reinos estranhos: porque um exercito se compõe de gente de muitas
nações, que por soldo, irmandade, soccorro, pacto ou visinhança se
ajudam uns aos outros: e assim capitães como soldados, cada um por
competencia, não sómente quer assinalar seu nome, e honrar a sua
nação, mas engrandecer os costumes, gentilezas, trajo, e galas da
sua patria, contando ainda as guerras e empresas de seus naturaes,
as grandesas da sua provincia, e outras miudesas, que nem pela lição
escripta se pode comprehender tão facilmente. Pois a vista, que é só
a que de todo satisfaz o animo, e enriquece o entendimento, ninguem a
tem mais varia que o soldado, ora seja navegando, ora em presidios fóra
de sua patria, aprendendo nas alheias todo o bom termo de proceder,
de obrigar, grangear, servir, e de se ennobrecer, apurando a sua
gentileza, e partes no serviço das damas, sua liberalidade com ellas,
e com os soldados: a policia no seu trajo, e bizarria; a discrição
na sua pratica; e todos os outros costumes, que á vista de tantas
testemunhas exercita, conquistando honra com o esforço, amigos com o
bom procedimento, servidores com a liberalidade, a affeição das damas
com a gentilesa; fama entre os estranhos, nome com seus naturaes,
merecimentos com o rei; que, quando sejam mal galardoados da ventura,
não lhe póde essa tirar o seu verdadeiro preço, que é o louvor que á
virtude se deve. Tambem não é para despresar na discrição do soldado,
antes muito para engrandecer, a relação dos successos, e occasiões,
em que se achou, e contar as coisas d’elles com mais propriedade que
os cortezãos, e escriptores; pintando o campo em ordem, a cabeça do
esquadrão, o rosto, as alas, os lados, e as costas d’elle, o logar das
insignias e bandeiras, e dos instrumentos, artilharia e bagagem, a
guarnição dos mosqueteiros, as mangas dos arcabuzeiros, as companhias
dos alabardeiros, archeiros, bésteiros, escopeteiros, e piqueiros;
dispondo nos combates cada uma d’estas coisas em razão, e termo
militar. E egualmente no assalto, ou defensão, ou fortalesa, saber dos
fortes os bastiões, torres, muralhas, ameias, barbacans, parapeitos,
corredores, bombardeiras, séteiras, torreões, baluartes, terraplenos,
platafórmas, trincheiras, praça de baluartes, respiradouros,
casamata, rebelins, vias secretas, porta mestra, porta falsa, ponte
levadissa, cavas, minas, fóssos, reparos, contrafortes, contraminas
e contrareparos, e outros nomes, e serviço de coisas, em que só os
experimentados nas armas podem falar propriamente: pelo que tenho o
exercicio d’ellas por mais excellente para o homem bem nascido, que
todos os outros.--Vós (disse Solino) canonisastes hoje aos soldados, e
engrandecestes sobre todas a vossa profissão. E são tão boas as razões
com que o fizestes, que se assim foram os seus costumes d’elles, não
vos podia ninguem contradizer; nem eu o fizera agora, se tratáreis do
que todos vemos em vossa pessoa; mas pela differença de outras, com que
eu tratei, correndo tantos lares, e estalagens, como João de espera
em Deus, haveis-me de dar licença que mostre o avesso a essa pintura,
e diga que a milicia um é homicidio commum, uma escola de todos os
vadios, e ociosos do mundo. E os soldados não são outra coisa, que
soldados pagos, e armados em damno da republica, roubadores de honras,
ladrões de fazendas, blasfemos, jogadores, insolentes, espadachins,
matadores, rufiães, adulteros, sacrilegos, incestuosos, e perjuros, e
cheios de todos os mais vicios, e maldades abominaveis, considerados na
liberdade soldadesca, e em sujeitos tão perdidos, como o são os mais
dos que se lançam por o caminho da milicia; de sorte que, se alguns
saem tão bem doutrinados como vós, os mais são tão differentes, que
desmerecem vossos louvores.--Bem sei (respondeu Alberto) que não posso
provar commigo o que tenho dito dos soldados; mas podéra allegar com
outros, que me fazem grandes vantagens; e com ellas me desobrigaram,
se os tivera presentes, ou dos que aqui o estão foram conhecidos: e
tambem é coisa clara que vos não faltarão muitos, com que proveis o
que dissestes: porém fallo dos soldados honrados, que são os termos em
que se deve tratar do fructo da sua profissão.--Pouca razão (acodio
o doutor) mostrou Solino no seu arguir: porque primeiramente, a arte
militar é muito approvada para a conservação da republica; e já
Platão disse que era n’ellas tão necessaria como a agricultura; e os
erros dos viciosos, e depravados não podem desacreditar a profissão,
nem tirar merecimento aos bem disciplinados, e generosos: que se
houvermos de fazer essa consideração em todos os exercicios, nenhum
ha sem egual desconto: porque se no da côrte, em que falou Leonardo
tão discretamente, quizermos escolher os perdidos, acharemos que são
mais que os aproveitados; e o mesmo proverbio declara que são a maior
parte, em quanto diz que a côrte é para privados, e para homens mal
acostumados; e o mesmo, e peior acontece nas escolas. De maneira que
a boa creação da milicia se deve entender sómente nos bem creados,
a quem a honra obriga a que se queiram avantajar do vulgo; e não em
os que fazem d’ella tão pouco cabedal, que empregam o de seu animo,
e saber em cousas indignas de homens bem nascidos, occupando-os em
latrocinios, forças, traições, maldades, enganos, e infamias.--Não me
péza (disse Solino) senão porque me gabáram de valente quando aqui
cheguei, para me não dar por vencido de duas razões tão fracas como
as vossas; e com tudo me hei de calar até vos colher em um duello,
em que eu escolha as armas, que vos não hão de valer as de quantos
bachareis degolaram o mundo.--Guardae-lhe (disse D. Julio) esse animo
vingativo para ámanhã, e virá mais a tempo.--Não já para mim (lhe
tornou Solino) porque tem da sua parte muito favor, não sómente o de
Solino, pelo que lhe importa, mas de Pindaro que tem estillada a quinta
essencia dos louvores escolasticos, e não ha travessa, nem beco sem
sahida nas lettras, de que não possa fazer um mappa mui copioso.--E
achaes (tornou D. Julio) que é isso mau para letrado?--Antes o tenho
por muito bom (disse Solino), prazerá a Deus que virá elle a saber ao
que agora cheira, e assim o espero: que, posto que estes estudantes
mancebos entornam ás vezes tudo no caminho, elle foi sempre pelo mais
acertado.--Tambem a mim me parece agora (acodiu Alberto) acabar o meu
discurso na vossa differença: para o que peço a estes senhores que me
hajam por desobrigado de ir por diante.--Se estivera em mim (respondeu
Leonardo) o poder obrigar-vos a dizer mais, como está o gosto, e desejo
de vos ouvir, não sei se vos deixara despedir tão de pressa: porem deve
ser tarde; porque já o era quando aqui viemos, por uma occupação que
me deteve mais do que queria.--Não me parece a mim (disse D. Julio)
que é tarde, nem entendi que estava tanto no fim a nossa pratica, que
não podesse fazer algumas perguntas, como costumo, de algumas miudezas
que o sr. Alberto passou por muito visto n’ellas, como eram alguns
particulares, e differenças na ordem da infanteria, e cavallaria, e
muitas da milicia naval.--Porque essas cousas tocavam menos ao meu
intento (respondeu elle) passei tanto por ellas: mas quando outro dia
tiveres gosto de ouvil-as, terei eu muito pouco trabalho em as relatar.

N’este tempo, porque os mais estavam já levantados, se despediram. E
Solino se foi pendurando em palavras de galanteria com o doutor com
tanta graça, que desejaram os companheiros poderem fazer o caminho mais
comprido; que, por muito que o seja, a boa conversação o faz parecer
breve, e desejado.




                              DIALOGO XVI

                        DA CREAÇÃO DAS ESCOLAS


Estava tão desejoso e alvoroçado Pindaro para na creação escolastica
passar aquellas duas columnas, que Leonardo e Alberto levantáram no
estreito limite da policia civil, que, imaginando que lhe fugia o
tempo, sem o dar ao doutor, para vir com elle, obrigou a Feliciano
a que se fossem mais cedo a casa do D. Julio, dizendo-lhe pelo
caminho:--Certo que não desejei cousa como alliviar ao doutor do
trabalho d’esta empresa; que, posto que a sua auctoridade culpa o meu
atrevimento, tambem o amor, que tenho ás sciencias, o favorece.--Muito
bem estivera na vossa mão (respondeu elle) por quão boa a tendes para
tudo: porém não desejeis de a tirar da sua; porque até em aquillo, que
eu sei muito melhor que outros, quizera antes ouvir aos que sabem mais,
que escutarem-me elles: e a razão é, que, além de aos antigos estar tão
bem a confiança, como aos mancebos o receio, vou pesando o que lhes
ouço com o que eu tinha para dizer, e faço mais certo juiso de meu
cabedal para outras occasiões. E n’este appetite me parecestes homem
que sabe a historia que ouve contar, que se adianta nos passos d’ella
ao que a vai dizendo, e por mostrar que a sabe, faz perder o gosto ao
que a ouve, e o feitio a quem a relata. Lanço é de habil essa prestesa,
e ferir lume com qualquer golpe; mas de sizudo dissimular as faiscas.

Não vos abataes a todo o passaro, ainda que seja da vossa ralé, que
não haverá quem queira caçar com vosco.--Mas quereis (tornou o amigo)
que me fizesse mar morto, sem levantar ondas quando me vem o vento
tão fresco: muito repugna a agudeza do engenho á paciencia de um
fleugmatico como vós, que não sei dobrar as mãos quando a pélla me vem
pular aos pés; e cedo vereis se tem razão a minha cubiça.--Perto estaes
(disse Feliciano) do desengano, e muito mais perto da casa de D. Julio.

N’esta pratica chegaram a ella, e não muito depois os companheiros,
e como Solino, em entrando, os vio sentados, disse logo:--Todavia
viestes deante para mostrares que ereis os mordomos da festa: e muito
confiados na eloquencia, e auctoridade do doutor, vos parecerá que
tendes a fogaça em casa, e eu cuido o contrario, se eu entrar na lucta,
e vos não valer; que o dia, que se prega de um Santo, é elle o maior
de todos.--Não sei que tendes contra as lettras (disse Leonardo) que,
sendo tão grande amigo de Pindaro, vos picaes sempre contra a sua
profissão.--Dir-vos-hei (respondeu Solino) o d’onde isso nasce; e é
que as lettras não posso negar que são cousa boa, mas assentam as mais
vezes sobre ruim papel; e como é feito de trapos, tenho achado tantos
n’elles, que me aborrecem.--Melhor dissereis trampas, (tornou elle).
Porém no amigo que por vos fizeram?--Ir-se-me todo em lettras (replicou
Solino)--Não é razão (accudiu o doutor) que vos adeanteis tanto
para me tomar a estrada: deixae-me primeiro falar, que eu vos darei
tempo quando me quizeres arguir; que, por mais que se apure a vossa
murmuração, não pode diminuir os quilates e preço das sciencias.

--Pede razão o doutor (disse D. Julio) e porque elle e os mais
desejavam de o ouvir, fizeram silencio; e elle começou d’esta
maneira:--Duas cousas me envergonham n’esta empreza, que a puderam
facilitar em outro sujeito, a clareza manifesta da muita vantagem
que tem a creação das escolas a todas as outras. A segunda poder
mostrar deante com exemplos vivos o que hei de provar com razões menos
sufficientes, e que sempre á sua vista ficarão limitadas. Porém para
accudir á obrigação, em que me puzeram, deixo a que tenho ás lettras,
que era não pôr em disputa, como cousa duvidosa, o seu merecimento,
e a muita differença que faz o estudo d’ellas a todos os outros
exercicios; porque as escolas, e universidades do mundo, que foram
instituidas para o governo e conservação d’elle, são o coração dos
reinos, onde estão fundadas, do qual sáem as operações principaes
para o regimento da vida civil. E se, como diz Cassiodoro, ha tanta
distancia do que alcançou sciencia ao idiota, como de homem ao que
o não é: julgae quanto importe a creação das escolas, onde todas se
aprendem, em differença de outras profissões, em que só por experiencia
e communicação chegam algumas sombras das vivas côres da sabedoria.
Esta é a razão, porque Diogenes buscava um homem entre os que o
pareciam: e o porque disse do que viu estar sentado sobre um penedo
_que estava pedra sobre pedra_. E assim como os metaes, que entre
ellas se criam, sáem brutos, e toscos e desconhecidos, até que por
via da fundição e beneficio da arte tem lustro, preço e merecimentos,
assim a forja, em que se apuram os homens, e se põem nos quilates
com que hão de ter a valia que a este nome se deve, são escolas, nas
quaes da mesma maneira, que por alchimia de cobre se faz ouro, n’ellas
de um idiota, e quasi bruto se faz homem com saber, merecimentos, e
sufficiencia para se avantajar do vulgo. E começando da grammatica
das linguas, que é o primeiro degrau das lettras, ou, como disse um
auctor grave, a primeira porta por que se entra a todas as sciencias,
com cujo beneficio ellas se conservam, e se perpetúa a memoria das
coisas; ainda que, como escreve Quintiliano, tem mais de trabalho, que
de ostentação; é, como diz Izidoro, o fundamento de todas as artes
liberaes, e disciplinas nobres. A esta dividem alguns em artificial,
historica, e propria: que a primeira ensina o concerto, e disposição
das lettras, com que escrevemos; a ortographia, e propriedade das
palavras que falamos; a segunda, e terceira pertencem ao conhecimento
dos logares, e obras dos historiadores, e poetas, e a explicação do
que n’elles por antiguidade, e differença da lingua está escuro e
duvidoso, mórmente nas tres linguas hebraica, grega, latina, das quaes
triumphando a carreira dos annos deixou em muitas edades differença.
Na primeira da hebraica e chaldêa. Na segunda na grega commum, attica,
dorica, laconica, e eloica. A terceira em prisca, latina, romana, e
mixta: e em umas e outras, e na propria de cada um ensina a grammatica
a pronunciação das lettras, o som, e accento diverso das palavras, a
distincção das vogaes, e consoantes, e a ordem de falar com pureza, e
policia. E se este primeiro degrau é tão necessario aos homens, que
parece que sem o conhecimento d’esta arte lhes não é licito abrir os
beiços; que será levantar-se, e subir ao cume mais alto das sciencias,
e disciplinas nobres? O segundo degrau d’esta escada é a logica, arte,
que ensina a distinguir e fazer differença do falso ao verdadeiro, e
do torpe ao honesto; e como o entendimento é causa do obrar, assim o
é ella do entender: é o peso, e balança, em que se conhecem todas as
cousas leves, e pesadas; arte, que não sómente ensina a saber a verdade
de todas as cousas, mas a poder manifestal-a aos que mentem; reduzindo
a dez cabeças, ou predicamentos, toda a variedade de cousas que o mundo
tem, achando o verdadeiro modo de definir a todas ellas, e descobrindo
os generos, especies, differenças, substancias, e accidentes; esta
ensina diversos modos de arguir, provar e sustentar o que concebemos
no entendimento: pelos quaes officios é esta arte tão celebrada, que
Platão, e depois d’elle Santo Agostinho a fizeram parte da philosophia,
dividindo-a em moral, natural e racional. Aristoteles, Scoto, e outros
lhe chamam sciencia, e instrumento de saber: de cujo testemunho, e
verdade se alcança que sem o conhecimento d’ella não pode um homem
falar seguro entre os outros. E posto que ha tão boas disposições
de entendimentos, que naturalmente discorrem, e conhecem sem favor
da doutrina estas miudezas; comtudo sem o favor da arte escurece ás
mais vezes a clareza do engenho. O terceiro logar é da rhetorica,
que ensina a falar bem, e a persuadir aos ouvintes com razões bem
concertadas ao intento do que pratica, não fazendo o fundamento na
verdade do que diz, senão no concerto, e semelhança da razão, com
que obriga, e move. E porque d’esta arte se fala mais diffusamente
n’esta conversação em favor da linguagem portugueza, passarei d’ella
á poesia, arte tão nobre, e desejada, que, trabalhando sempre os
invejosos por escurecer seu preço, lhe não puderam tirar o que hoje
tem na opinião e exercicio dos principaes senhores de Hespanha: e
bastava para o seu grande valor ser conhecido ter n’ella o fundamento
toda a philosophia, pois Plutarco conta, e Aristoteles confessa que
todos os philosophos, e suas diversas seitas se derivaram das poesias
de Homero: e não só deu principio a ella, mas Prometheu, Lino, Muzeu,
e Orfeu, e esses mesmos, e outros deram fundamento ás deidades, que
os antigos ritos da gentilidade veneravam. E deixando a recommendação
de seus louvores para quem com vivo exemplo pode tratar d’elles,
dizendo de sua perfeição, e grandeza o que eu em tão limitadas horas
não posso dignamente declarar; passarei á mathematica: e, como a parte
principal d’ella, á geometria, arte tão excellente, e tão necessaria
ao cortezão, que favorece todas as boas partes que n’elle se requerem;
e tão natural ao sabio, que Platão tinha na entrada da sua escola um
letreiro que dizia: _não entre n’esta casa homem, que não saiba
geometria_. E Filo Hebreu diz d’ella, que é princeza, e mãe de todas
as disciplinas. E Francisco Patricio na sua republica, soccorro, e
presidio de todas as artes. E Platão escreve d’ella estes louvores, que
levanta o animo, e pensamento ao estudo da verdadeira philosophia, o
que é necessaria para a conquista de todas as disciplinas, favorecendo
a arte militar no formar dos campos, dispôr os esquadrões, recolher
e dividir as companhias, sustentando a cosmographia em suas medidas,
a architectura em suas proporções, a arithmetica, e musica em seus
numeros, e a outras infinitas; medindo em todas ellas as fórmas,
espaços, grandezas, medidas, corpos, pesos, e todas as cousas que
d’elles se compõem; e de medida de agua, vento, terra, nervos, cordas,
e cousas semelhantes, como torres, fortalezas, relogios, moinhos, e
instrumentos de musica; consta de linhas rectas, curvas, flexuosas,
perpendiculares, planas, parallelas, e de angulos, rectilineo,
curvilineo, direito, agudo, e obtuso; finalmente de superficie,
circulo, circumferencia, centro, diametro, e outros nomes, e termos
naturaes d’aquella arte, que na pratica commum parecerão peregrinos, e
de que é bem que o homem cortezão se não ache alheio. Atraz d’esta se
segue sua companheira a astrologia, sciencia tão levantada, que penetra
da terra os segredos das estrellas, tratando do mundo em universal, e
em particular, das espheras, dos orbes, do movimento, e curso d’elles:
das estrellas fixas, e de seus aspectos: da theorica dos planetas:
dos eclypses do sol, e da lua: dos eixos, ou pólos celestes: dos
climas, e hemispherios: de circulos diversos excentricos, epyciclos,
retrogrados, raptos, accéssos, e recéssos, e outros semelhantes: e
de outros muitos movimentos pertencentes aos céos, e ás estrellas,
de cujo curso, e estações de tempos se faz natural juizo das cousas
futuras tocantes á agricultura, e navegação, não admittindo a especie
supersticiosa dos mathematicos, que é a astrologia judiciaria. E
passando d’esta á philosophia, sem cujo conhecimento parece que os
homens não podem alcançar perfeição alguma; é tão levantada, que lhe
chama Santo Izidoro, no II das suas Etymologias, sciencia de todas
as cousas divinas, e humanas, em quanto é possivel ao homem alcançar
d’ellas. E Platão diz que ella é o maior bem, que Deus concedeu aos
homens: porque ella é a lei da vida, a estrada da virtude, a fortaleza
contra os vicios; a fórma das acções humanas, o lume de nossas obras,
a ordem dos pensamentos internos, regra do entendimento, a mestra dos
nossos costumes, e descobridora dos segredos elementares: mas comtudo
não chegou a conhecer a philosophia christã, a qual envolve as tres
virtudes theologaes, cujo proprio officio é o que escuramente Platão
tocou em seus louvores: e finalmente a contemplação de todas as cousas
supremas do céo: e para as da terra ella é a chave que abre os segredos
da natureza: que ensina a viver com disciplina; que destroe os erros,
e aclara a confusão, e trevas do entendimento; une as differenças;
restitue o governo com ordem; rege as cidades com justiça; e administra
as nações com sabedoria. E repartindo estes attributos seus pelas
cinco partes, em que se divide, physica, ethica, economica, politica,
metaphysica; a primeira trata dos principios naturaes, e movimentos,
quietação, finito, logar, vacuo, tempo, especies de movimento, medidas
do tempo, até chegar ao primeiro e supremo movedor de tudo. A ethica
se emprega na composição dos costumes, e na moderação das paixões
humanas, em que consiste a felicidade da nossa vida. A economica ensina
o governo, e regimento particular da casa, familia, mulher, filhos, e
criados. A politica dá os preceitos á legitima ordem, e governo das
republicas, reinos, e cidades, assim em razão dos que mandam, como dos
que obedecem. A esta chamou Isocrates _alma das cidades_; porque
n’ellas faz o mesmo officio, que a alma em um corpo. E Socrates lhe
chamou _sciencia dos principes_; porque a elles mais, que aos
outros homens, pertence o conhecimento d’ella. A metaphysica trata
das cousas, por altissimas, segregadas de toda a materia sensivel,
e ainda intelligivel do modo que os bons metaphysicos n’esta divina
sciencia praticam. Finalmente considera as fórmas separadas, passando
da contemplação das da natureza á das sobrenaturaes; das corporeas,
das idéas, dos atomos, da materia prima, da introducção das fórmas,
do fado, da eternidade do céo, dos transcendentes, das intelligencias
assistentes ás espheras celestes. De modo, que só nos principios moraes
d’esta sciencia está fundada toda a doutrina da côrte, e da milicia,
que nas noites dos dias atraz se tem mui doutamente praticado. Na
physica que é, como tenho dito, a primeira parte da philosophia, está
fundada a arte da medicina, que assim pelo importante sujeito em que
se emprega, como pelas artes, e sciencias, que lhe ajunta, e encadeia,
é o conhecimento d’ella mui digno do homem sabio, e bem nascido. Esta
se divide em empirica, methodica, dogmatica, ou racional. A primeira é
fundada sómente na experiencia dos remedios, nas virtudes das hervas,
pedras, plantas, e animaes. A segunda considera sómente a substancia
das enfermidades, sem respeitar conjuncção, tempo, logar, região,
edade, natureza, ou habito. A terceira, não despresando a experiencia,
nem a razão dos exemplos d’ella, abraça tambem as naturaes, em que está
fundada a arte. Na ethica politica tiveram principio as nobilissimas
profissões, e sciencias das leis civis, e sagrados canones, e derivadas
d’estas fontes da philosophia, e do direito natural, e divino.

E se, como disse Solon, a republica, que não tinha leis, semelhava
um monstro, que não tinha mais que o parecer humano; assim se pode
imaginar o homem, que não tiver noticia d’ellas, que, por serem tão
importantes ao mundo, endeusaram os antigos todos os inventores
d’ellas, como Saturno, Belo, Minos, Pheaco, Solon, Licurgo, e outros
muitos: e os nossos maiores fizeram leis segundo a differença dos
estados; não umas sós, por que todos se governassem, mas convenientes
ao genero da vida que cada um tomava. E assim os que apartados do
gremio da republica civil se empregam no serviço da egreja, obedecem
ás leis que os summos pontifices, e os concilios dos padres ordenaram,
que são os Canones Sagrados: porém os seculares se governam pelas leis,
e ordenações, que os seus reis fizeram, ou confirmaram; recorrendo em
os casos, a que os particulares não alcançam, ás leis imperiaes dos
romanos, e disposição do direito commum. E de quererem confundir esta
tão necessaria differença os perfidos scismaticos, negando auctoridade
ás leis allumiadas pelo Espirito Santo, na cega confusão das suas,
que fundam em sua depravada liberdade, vivem em escuras trevas:
sendo como disse Tullio as leis vinculo da republica, fundamento, e
segurança da liberdade, e fonte da justiça. E por vos não parecer que
na minha profissão particular me extendo muito, deixo o que d’ellas
pudera dizer, que é infinito, começando dos primeiros legisladores
até o estado presente, em que esta profissão está tão levantada, e
ennobrecida. E só pela reformação do imperador Justiniano estão em seus
volumes escriptas doze mil e setecentas e sete leis, tiradas de muitas
mais que confusamente estavam nos livros romanos derramadas. E subindo
da metaphysica á divina theologia, fundada sobre a verdade evangelica,
se apura um homem, e chega ao mais alto a que se pode levantar o
entendimento humano. Esta se divide em escolastica, e escriptura: a
primeira é a que com argumentos fortes, razões demonstrativas, e provas
invenciveis, disputa contra os hereges, e infieis, em todos os dogmas
importantes á verdade da Fé Catholica Romana: como é da Trindade, e
Omnipotencia de Deus, da presença divina, da predestinação, do livre
arbitrio, da graça, da justificação, da gloria; do peccado, das penas,
do logar do Purgatorio, dos Sacramentos, e dos Artigos de nossa
Fé. A Escriptura consiste na interpretação, e exposição da Sagrada
Escriptura, segundo os quatro principaes sentidos d’ella, que são
literal, moral, tropologico, e anagogico: com cuja noticia dada aos
homens por meios da sciencia, como antes foi dada por revelação aos
prophetas, apostolos, e santos padres, não só dão perfeição ao sabio,
mas o fazem parecer uma semelhança de Deus na terra. E supposta esta
grandeza das sciencias, com cujo lume fica tão claro o entendimento
humano como tenho dito, que outra cousa é universidade, que uma côrte
especulativa, em a qual se sabe o que nas dos reis se executa; onde
á vista dos doutores prudentes, na lição dos mestres escolhidos, na
communicação dos nobres bem acostumados, na conversação modesta dos
religiosos, está o nobre em uma continua lição de policia, tendo por
palmatoria de seus erros a vergonha de os commetter á vista de tantos
censores d’elles; ajudando a advertencia de lhes fugir a curiosidade
com que se espreitam, e a liberdade com que se reprehendem: pois a
entrada nas escolas, a assistencia nas aulas, qualquer pequeno descuido
se rebate com os pés dos que n’ellas assistem, obrigando a todos á
compostura do rosto, á quietação do corpo, á modestia do trajo, á
pontualidade na cortezia, ao cuidado no falar, e não se querer algum
fazer singular entre os outros. Tem as escolas além d’estes um bem,
que favorece esta opinião, e é que de ordinario os que as buscam,
ou são filhos segundos, e terceiros da nobreza do reino, que por
instituições dos morgados de seus avós ficaram sem heranças, e procuram
alcançar a sua pelas lettras; ou são filhos dos homens honrados, e
ricos d’elle, que os podem sustentar com commodidade, nos estudos; ou
religiosos escolhidos nas suas provincias, por de mais habilidade,
e confiança para as lettras, e assim fica sendo a gente mais creada
do reino; differença, que não pode haver na côrte, e na milicia. E á
vista de tantas vantagens, sem tratar de outras particularidades menos
importantes, me parece que tenho mostrado o quanto seja mais, que todos
os outros exercicios, proveitoso o das lettras, pedindo por a dignidade
d’ellas ao prior, e a Pindaro, e Feliciano, que tomem á sua conta
aperfeiçoar o que eu não soube dizer, pois o exemplo de suas partes é
a mais legitima prova de minhas razões.--As vossas (respondeu o prior)
menos dão logar a glosas, que a invejas; e se essa me deixara dizer
os louvores que vos devo, renovára no vosso sujeito os das escolas,
pois n’ellas nos mostrastes o que sois, que é um mappa de todas as
sciencias, tão perfeito, distincto, e intelligivel, que parece que as
pode medir qualquer rasoado entendimento; porque recolhidas em vós
como em proprio centro estão na sua altura.--Esta vantagem (accudiu
Feliciano) tem os que sabem perfeitamente, que não é só para si, mas
para ensinarem aos com que falam. Certo estava eu que o doutor sabia
de tudo o que disse, não só os termos, e fundamentos, mas ainda o mais
difficultoso, e substancial de todas as artes, e sciencias: mas o
praticar dellas de modo, que eu as entendesse, é graça de seu saber,
e não sufficiencia do meu engenho.--Tambem essa sua submissão (disse
Leonardo) é grande prova dos merecimentos de vossa habilidade, que
a essa nada ficaria escuro, senão o que por culpa de quem falasse
estivera confuso: porém em mim se vêem mais os poderes do doutor,
que o posso agora parecer no que lhe ouvi.--A isto (accudiu Solino)
_todos dizem amen, amen, sinò D. Sancho que calla_. Pindaro
está descontente, pois que emudeceu: se o deixarem, elle vos fará
guerra.--Para que a quereis commigo (respondeu Pindaro) se as razões
e a occupação da noite é do doutor? a elle podeis contradizer; que
para o que calla não servem argumentos.--Bem sei (replicou elle)
onde estão os páus; mas quizera costear a bolla por este rodeio, que
todos os lettrados sois como cerejas, que se vem após uma todas as
outras.--Ahi não ha cousa boa sem contradicção (disse D. Julio) ouçamos
as de Solino, e veremos quem tem lebre.--E por vós correrdes esta (lhe
disse elle) metteis os cães na mouta, e quereis (como dizem) tirar
a sardinha com a mão do gato: na vossa tendes a faca, e o queijo,
cortae, que não falta por onde: que eu não tenho nenhuma cousa
contra o doutor, salvo se elle me deixar com os outros do seu
gráu que o não merecem; que eu farei um _A_, _B_, _C_, por onde á
primeira vista lhe conheçam logo as lettras.--Já desde hontem (disse
o doutor) os tendes ameaçado; e eu consenti no desafio: não sei agora
a causa, porque o temeis.--Porque (disse elle) tendes no campo muitos
padrinhos da vossa parte, que o são minhas n’esta demanda. Porém
dae-me licença, que em boa paz vá botando a rasoura a esses louvores
das sciencias que accogulastes; e sabereis que de cento não ha um
lettrado, que não traga cascavél, por onde lhe conheçaes a altura em
que anda como furão; e se o tirardes do bairro de sua profissão, se
perde na metade da hora do dia, como em bêcco sem sahida: para o que
eu tenho um astrolabio excellente, que me deu a experiencia em penhor
do serviço de alguns annos sem galardão, que ainda o tempo me deve.
Primeiramente, como o vós virdes falar por _secundum quid_ e
metter a _materia prima_, e dividir _em abstracto_, accudindo
a um _ergo_, e a _fortiori_, assentae-m’o por logico: mas se
vos falar em _superficie plana_, e _figura quadrilatera_,
_corpo rotundo_, _semicirculos_, e outras semelhantes cousas,
entendei que é geómetra, se o ha no mundo. Se vos disser dos _nervos
opticos, dos meatos, intestinos, veias mezeraicas, palpitações,
sufocações, apoplexias, ophtalmias_, matriculae-m’o na medicina:
se vos desandar com uns pontinhos das regras de direito, que são os
anexins dos juris-consultos, e falar em _ad rem, e jus in re, e em
liti pendente, e in rei veritatem, in foro exteriori_, e outros
verbos d’esta linhagem, não escapa de jurista. Ora os theologos, que
pela preeminencia, e grandeza de sua profissão tem logar apartado aos
dois lanços se alevantam da conversação com a materia dos anjos, e
dos auxilios, e outras, em que vos deixam o entendimento em jejum,
sem darem um bordo á commum, e civil conversação dos cortezãos. Pois
se qualquer d’estes, que digo, acerta de ser official de grammatica,
além de debruar tudo de versos de Ovidio, e de sentenças de Plauto e
de Terencio, por levar o portuguez arrastro até o fazer latim,
fala por _septe_, _docto_, _scripto_, e _benigno_. De maneira
que para bem, e conservação da lingua portugueza, e para se não
corromper de todo, me parecia que se houveram de arruar os lettrados;
que receio, se se misturam, que em poucos annos nos achemos em uma
certa Babylonia.--Não cuidei (disse o doutor) que estaveis hoje tão
venial; a isso chamam morder na capa: esperava eu que viesseis com
algum libello mais rigoroso contra os lettrados; que essas palavras,
que se lhes pegam dos termos das mesmas sciencias, não são defeituosas,
ainda que não sejam vulgares; porque muitas vezes significam mais
propriamente que as outras.

--Bem esteve o libello (replicou Solino), mas se lhe quereis uns
artigos accumulativos, com a auctoridade d’um auctor moderno, diz elle
que tres cousas deu Deus ao homem de maior estima, que os letrados lhe
tem deitado a perder, que são corpo, fazenda e consciencia: o corpo
os medicos que com suas purgas, xaropes e sangrias, nem a invenção
da polvora foi mais prejudicial que elles para a vida. A fazenda os
legistas, que com demandas, embaraços e conluios a põem cada dia em
passamento, sem haver entre a poeira de suas encontradas opiniões quem
enxergue a verdade: e ainda para si proprios vereis poucos medicos
sãos; e nenhum legista vencer demanda sua. Dos da consciencia não
quero tratar por ser cousa perigosa: mas ha muitos que fazem por esta
parte grande damno. E posto que isto não é culpa das sciencias, senão
dos letrados, elles tiraram a innocencia fóra do couce, e abriram de
par em par as portas á malicia, semeando enganos e hypocrisias, de
que andam mais inçadas as escolas, que de nanteos de fêsto: isto é
quanto á linguagem e aos costumes: que na policia do vestir, a sua
anda fóra do roteiro dos cortezãos; porque o letrado que se quer
trajar galante, como não sabe por uso, segue extremos; porque ou traz
a espada que lhe dá com os cabos nas virilhas, ou tão alta que lhe vem
comer á bôcca; e por fazer addições ao vestir de modo accrescenta de
novo que se conhecem na côrte os estudantes entre os outros homens,
como podengos de agua pela guedelha: e pelo costume do barrete, ou
tiram o chapéo de meio a meio, ou o penduram pela ponta do cairel,
como em tenda de sirgueiro.--Bem sei (disse o prior) que quem vos
agora fôr á mão dará nova materia á vossa habilidade: mas sem embargo
de todas as culpas que arguis aos letrados, que eu agora não trato
de defender, por vos não ajudar a vós e offender a elles, vós sabeis
a differença que elles fazem aos outros homens, que não aprenderam;
pois sem habilidade, exercicio e doutrina não se alcança sabedoria,
de maneira que muitos idiotas não fazem um letrado.--Tambem eu sei
(respondeu Solino) que muitos letrados não fazem um homem cortezão;
e que este ás vezes vence em pouco tempo o que elles trabalharam em
muitos annos: porque além de ser comprido o caminho das sciencias
por preceitos, e breve por exemplos, o cortezão, que o é, põe de sua
parte maior desejo de saber uma cousa que o estudante: e é certo que
alli tem maior força o engenho onde está mais prompta a vontade: e
no que toca aos letrados pudera eu agora trazer um par de historias
em meu favor, que cabiam n’este proposito.--A essas (disse Leonardo)
não faltará logar em nenhum tempo, porém é gastado parte do d’esta
noite: e pois esta foi das lettras, não mettamos contra ellas maior
cabedal.--Agora (acudiu Pindaro) lhe destes jogo, porque lhe parece
que nos perdoou aquellas historias; sendo cousa clara que toda a sua
opinião nasceu de uns principios de grammatica que teve; que, depois de
ferrugentos n’aquella edade, os alimpou com a cinza do borralho d’esta
aldeia para se levantar contra os que sabem; sendo sua murmuração
puras fezes de idiota; e se o virem entre os rusticos do termo falar
latins, notar prégações, aconselhar em demandas, e applicar medicinas
a enfermos, dirão que é manta de retalhos das escolas, e presa-se de
dizer mal do que acredita.--Já parece (respondeu Solino) que tomastes
folego, que estaveis mui mortal: a verdade é que não sois agudo, senão
quando vos dou quatro fios sêccos na minha sufficiencia; e de a eu ter
para tudo, me nasce abranger aonde vós não chegaes; que, segundo a
capacidade dos que aprenderem, aproveita a doutrina dos que ensinam: e
sabei outra cousa, que se não póde chamar sabio o que não conhece os
nescios, e d’estes que nenhum se conhece a si.--_No se maten tales
dos_ (disse Leonardo) deixemos as letras em paz, e a Solino com seu
credito; que são horas de partirmos esta briga, e acabar por hoje a
conversação.--Em todas me é de proveito o vosso favor (disse Pindaro)
e mais agora que estava colerico contra meu amigo; que, ainda que o
não pareça no modo com que me encontra, eu o sou seu na verdade com
que o amo, e estimo suas cousas.--Amisade (respondeu elle) quando é
segura não periga, nem quebra em tão pequeno salto; que nem por este
deixaremos de ir juntos para casa. E querendo os mais levantar-se,
começaram alguns a fazer juizo das duas noites passadas com aquella:
porque cada um era interessado na profissão que se seguia, se calaram
deixando a eleição ao voto de quem o tiver desapaixonado, se ha algum
que ao menos na inclinação o não seja á côrte, armas e lettras, de
cujo fructo, se são muitos os queixosos por parte da ventura, nenhum
ha que da sua propria sufficiencia se mostre descontente.--Eu o estou
de mim (disse o doutor) porque esta madrugada determino fazer um
caminho á cidade, em que me hei de deter alguns poucos de dias, e esses
hei de ter de penitencia na falta de tão boas noites: e para isto
peço licença ao sr. D. Julio.--Porque consentir n’essa (respondeu D.
Julio) é obedecer-vos, o faço muito á minha custa, com tal condição,
que volteis com muita brevidade, que sem vós nem podem estas praticas
ir deante, nem deixarei de sentir agora muito mais a falta de vossa
conversação, partindo-se ámanhã, como determina, para a sua egreja o
sr. prior.--D’essa maneira (acudiu Solino) faço conta que se dividiram
os dialogos das noites de inverno, e que ficam servindo esta, e as
passadas de uma primeira parte d’ellas, que se continuará com a vossa
boa vinda; e em tanto se apurarão os entendimentos e a linguagem para
materias e sujeitos mais escolhidos que sejam proveitosos e agradaveis
aos ouvintes.--Em muitas outras cousas (disse Leonardo) soffrêra eu
intervallos, mas n’esta conversação os sinto agora por extremo; por
isso, já que n’ella nos tendes bem acostumados, não tardeis muito.--Até
nos gostos (tornou o doutor) a muita continuação causa fastio; pelo que
os auctores discretos, por não cansarem com elle o juizo dos curiosos,
dividem seus volumes em partes, e essas em capitulos e outras divisões,
que com a novidade e brevidade, facilitem a leitura.--Fazem elles muito
bem (disse Solino) que ha uns livros sem estalagens, tão compridos
como leguas do Alemtejo, que os deixa um homem muitas vezes no signal
da cruz, por se não atrever a os levar de um trago. E tambem os poetas
nas suas comedias, que são mais proprias para recreação e passatempo,
dividiram a obra em actos, a que agora chamam jornadas, e essas
repartiram em scenas; e por divertir da gravidade e decóro das pessoas
introduzidas, inventaram os comicos modernos entremezes e bailes. Não
vos detenhaes muito, e tornaremos ao nosso exercicio com maior desejo e
melhor cuidado.--Eu o terei (respondeu elle) de fazer pouca tardança;
que o interesse me não deixará cahir em descuido, quanto mais esta nova
obrigação em que me pondes.

Dizendo isto se levantou, e os mais o vieram acompanhando, feita
primeiro cortezia ao senhor da casa, e aos hospedes que ficaram
n’ella. Em quanto com a falta daquelles assistentes a houve tambem na
conversação das noites que se seguiram, será justo que descansemos
um pouco da continuação d’este estylo; que se ao gosto dos curiosos
leitores fôr bem acceito, sahirá brevemente á luz outro volume de
dialogos, que espera vêr o successo dos primeiros; pois esta virtude de
escrever não tem no auctor d’elles outro fructo mais, que a satisfação
dos animos affeiçoados a seus escriptos, aos quaes com o trabalho de
suas obras deseja pagar a vontade e opinião com que acreditam.


                       FIM DA “CÔRTE NA ALDEIA”




                                ECLOGA

                   CONTRA O DESPRESO DAS BOAS ARTES


                                ECLOGA

                   CONTRA O DESPRESO DAS BOAS ARTES

                      (=Bieito, Aleixo, Corino.=)


  BIEITO

  Uma novilha dourada,
  Que anda naquella floresta
  Com uma estrella na testa
  Silva branca e remendada,

  Viste, Aleixo, d’onde veio,
  Que anda alli sem companhia?

  ALEIXO

  Quiçais se derramaria,
  Será d’algum gado alheio.

  Para nós se vem chegando,
  E se eu tenho ainda o meu tino.
  A novilha é de Corino,
  E o pastor anda-a buscando.

  É n’estes pastos extranha,
  Veio ha pouco a seu curral,
  Acha-se no campo mal,
  E foge para a montanha.

  BIEITO

  E d’onde houve aquella rez.
  Que elle poucas vacas cria?

  ALEIXO

  Ganhou-a n’uma porfia
  Nas festas, que Ergasto fez.

  Houve então grão desafio
  Em lucta, canto, e louvores,
  Venceu todos os pastores
  Da serra, e d’além do rio.

  BIEITO

  Muito sabe, mui bem canta,
  Muito faz quem se lhe atreve:
  Como dança! como é leve!
  Que voz tem! como a levanta!

  Viu, correu muitas aldeias,
  Viveu numa, e n’outra parte;
  E com ser só na nossa arte,
  Sabe o muito das alheias.

  E segundo tenho ouvido,
  Já elle houve outro cuidado
  Bem longe de guardar gado
  Com o nosso trajo, e vestido.

  Foi na villa dos melhores:
  Mas uma dor bem sentida
  Fez que deixasse essa vida,
  E buscasse a dos pastores.

  Mas ainda quando se eguala
  Com o nosso modo aldeão,
  D’outra sorte dá razão,
  D’outra sorte canta, e fala.

  ALEIXO

  Digo-te que assim parece;
  Que logo na arte, e no geito
  Tem uma graça, um respeito,
  Que aos pastores nos fallece.

  Vêl-o? assoma na ladeira;
  Anda o bom pastor sem tino,
  Chamo por elle, ah Corino.

  BIEITO

  Não responde com canceira.

  Cá anda a tua estrellada.
  Para nós vem, já nos vê:
  Façamos que um pouco estê
  Com nosco n’esta abrigada.

  Que uma hora do seu falar,
  E um lanço do seu saber,
  Nem é para se perder,
  Nem é para se pagar.

  CORINO

  Deus vos salve: venho morto.

  ALEIXO

  Senta-te descançarás.

  CORINO

  Corri todo o valle atraz,
  E ainda agora tomei porto.

  ALEIXO

  Tens a novilha segura;
  Descansa e descuida d’ella.

  CORINO

  Folgo de achal-a, e perdel-a
  Já não tenho em má ventura.

  Porque é tão grande interesse
  O de vossa companhia,
  Que de ganho ficaria
  Quando de todo a perdesse.

  Ha muito que estais aqui?

  BIEITO

  Já sol fóra nos juntámos,
  E até gora não cantámos:
  Foi dita esperar por ti.

  CORINO

  Eu não sei negar-me: agora
  Vedes que venho cansado,
  Que não me quero rogado:
  Cantára, se isto não fôra.

  Faz seu officio a edade,
  Sou já velho, a voz fallece:
  Mas se a vontade merece,
  Tendes bem certa a vontade.

  BIEITO

  Toma alento; então nos dá
  O que sem te ouvir não temos;
  Que a vaca nós a traremos.
  E t’a levaremos lá.

  Faze-nos prazer que ouçamos
  Aquelle cantar primeiro,
  Que te ouvimos no ribeiro
  Quando acaso te topamos;

  Que mui gabado, e mui raro
  Para a coisa de que trata.

  CORINO

  Canto emfim: que quem dilata
  Dizem que quer vender caro.

  E pois que em al não mereço,
  Quero colher d’isto o fruito.

  BIEITO

  Tudo o que dizes val muito,
  Mas isso só não tem preço.

  (_Canta Corino_)

      “Aqui nesta montanha,
  Aonde este trajo humilde, e despresado
  Dos homens não se extranha;
  Aonde só com um cajado,
  Vence a fortuna um pobre desarmado;

  Aonde não tem valia
  As mais custosas pedras do Oriente,
  E as riquezas que cria
  O mar, que ousadamente
  Commetteu cubiçosa, e cega gente;

  Aqui n’esta rudeza
  Só de humildes pastores escolhida,
  Aonde a natureza,
  Já menos offendida,
  Dá doce amparo á desejada vida;

  Aqui meu desengano
  Góso contente, e minha liberdade,
  Livre d’aquelle dano
  Da cega vaidade,
  Que corrompeu nos homens a vontade;

  Aqui de burel grosso
  Me vestirei contente, e esquecido
  D’aquelle traje nosso
  Tão vão, tão mal trazido,
  Dos primeiros principios esquecido.

  Qual entre a concha amada
  A tartaruga tem quieto abrigo,
  Não se teme de nada,
  E no maior perigo,
  Escondida entre si, vive comsigo;

  Tal o meu pensamento
  Não quero que á ventura o logar deva;
  Que não ha mór isento.
  Nem que melhor se atreva,
  Que o que tudo, que tem, comsigo leva.

  Qual cobra na espessura,
  Que deixa entre os espinhos esquecida
  A velha vestidura,
  E d’ella já despida,
  Como anguia no mar, renova a vida;

  Assim quando me vejo
  Que começo a viver n’esta mudança,
  Contento meu desejo,
  Troco minha esperança,
  Não quero mais de enganos, que a lembrança.

  A cauta cotovia,
  Vendo o ligeiro imigo, o voo nega;
  N’elle não se confia,
  Com a terra se apega,
  Porque ali com as azas não lhe chega.

  D’esta arte se defende
  O Pastor despresado da ventura,
  Que ella sempre pretende
  Descer da mór altura
  Quem cuida que no alto se assegura.

  Da lã d’este meu gado
  Coberto escaparei, terei socego;
  Que n’ella disfarçado,
  Em perigo mais cego,
  Escapou do gigante o cauto grego.

  E o meu desejo acceso,
  Que encontrando a razão mal se empregava,
  Ponha em mãos do despreso
  Os bens que procurava,
  Da liberdade minha, que era escrava.

  Adeus doces enganos;
  Já parece razão que vos despida,
  Viveis ha muitos annos,
  Deixae-me agora a vida,
  Que, em quanto a vós tivestes, foi perdida.”

  BIEITO

  Ah! Corino, quem podera
  Dizer agora o que sente,
  Se, só com te vêr prezente,
  A voz não lhe emmudecera.

  Confesso que estou culpado,
  Mas não só de atrevido:
  Mil vezes te tenho ouvido,
  E só agora escuitado.

  Quem te trouxe entre pastores,
  Aonde esta vida t’extranha?
  Que póde dar-te a montanha,
  Senão rusticos louvores?

  Quem não sabe conhecer-te,
  Como saberá presar-te?
  Mas ainda acertaste em parte,
  Pois vinhas para esconder-te.

  Não fieis da serra tanto;
  Que al vai de vêl-a a sentil-a:
  Torna pastor para a villa,
  E serás na villa espanto.

  Não apouques ao teu muito,
  Não vivas n’estas aldeias,
  Aonde entre as ramas alheias
  Se não conhece o seu fruito.

  CORINO

  Louvores mal empregados,
  Quando as partes são presentes,
  Menos deixam de contentes.
  Pastor, que de envergonhados.

  Porém te affirmo, Bieito,
  Que n’estas nossas montanhas
  Ás boas partes, e manhas
  Se tem ainda algum respeito.

  Que eu já na villa tratei
  Muitos mezes, muitos annos,
  Trouxe d’ella os desenganos,
  Com que aos matos me tornei.

  Aprendi muito, e bradavam
  Os mestres para ensinar-me:
  Ensinaram-me a queixar-me,
  Porque todos se queixavam.

  Depois de ter conhecido
  Homens, e o seu proceder,
  Aprendi a me esquecer
  De quanto tinha aprendido.

  Ouvi gabar esta vida,
  Este trajo, este cajado;
  Busquei-a agora obrigado
  Da que já tinha perdida.

  Que ainda cá por esta serra
  Se ama o saber; se deseja,
  Lá não lhe deixa a inveja,
  Lugar, em que estê na terra.

  Não se tecem já coroas
  Para as partes estimadas;
  Entre nós de envergonhadas
  Se encolhem as artes boas.

  Saber, e conhecimento
  Fazem já desmerecer;
  De sorte, que o não saber
  Serve de merecimento.

  Assim que é melhor partido,
  Ao que busca o que convém,
  Enterrar partes se as tem,
  E andar dos outros vestido.

  BIEITO

  Á fé que não dizes mal
  Quem m’o disse hora? qual dia?
  Que o bem que perde a valia,
  Porque entre os homens não val.

  Cresce a virtude louvada,
  A planta favorecida,
  A vontade agradecida,
  E a parreira alevantada.

  Fui domingo a vêr a lucta,
  E outros com grande alvoroço;
  Vim encantado d’um moço,
  Que alli cantava em disputa.

  Dos pastores mais gabados
  Tinha á roda mais de mil,
  Que ao som do seu rabil
  Estavam como enlevados.

  Perguntei, vendo occasião,
  Onde, e que gado guardava,
  Entre nós? que eu n’isto dava
  Primeira fé de affeição.

  Eis quando alli se murmura,
  Que se ia d’estas aldeias
  A buscar terras alheias,
  Ou buscar n’ellas ventura.

  Engeitou-lhe a natureza
  O bem de seu natural;
  Então sustenta-se mal
  A arte onde se despresa.

  CORINO

  As hervas que os gados pascem,
  E as flôres que os olhos vem,
  Mais poderes do sol tem,
  Que não da terra onde nascem.

  O grão, que na varzea cresce,
  Com humidade arrebenta:
  O sol cria, o chão sustenta,
  Levanta-se e reverdece.

  O enxerto já crescido
  Com o sol, e agua accommodada,
  Se cae sobre elle a geada,
  Secca-se murcho, encolhido.

  O bom natural é parte,
  Que o despreso desanima:
  Como a cousa não se estima,
  Não podes d’ella prezar-te.

  Vi eu d’isto uma pintura
  Com arte e modo extremado;
  E se inda estou bem lembrado,
  Tinha ella esta figura:

  Um mancebo que encaminha
  Vôar com desejo acceso,
  D’uma mão atado um peso,
  Na outra umas azas tinha;

  Uma livre, outra sujeita,
  E dizia a lettra assim:
  Se esta pésa contra mim,
  Est’outra que me aproveita?

  Quanto melhor parecera
  Valer menos tudo o mais,
  E que ás partes naturaes
  A mão, e o favor se déra!

  Em que se hão de conhecer
  Os homens, se n’isto não?
  Que em forças vence o leão,
  E outro animal qualquer.

  Nas partes que o mundo présa,
  Quantas feras vão deante,
  No corpo, gesto e semblante
  Nas forças, na ligeiresa?

  Só no saber as vencemos,
  Com elle as senhoreamos;
  E quantos n’isto encontramos,
  Que nos vencem, não soffremos.

  D’isto, em que o mundo se pôz,
  Nasce já que os animaes
  No que eram tão deseguaes,
  Nos podem vencer a nós.

  Não posso ter soffrimento
  N’esta queixa, e não me val;
  Que acanha um baixo metal
  A um subido entendimento.

  Os homens como pintura
  Falam só com o que apparece:
  Cada um monta e merece
  Pelas mostras da figura.

  Dizem que já n’outra edade
  Falaram os animaes,
  (E eu creio que por signaes
  Inda hoje falam verdade).

  Ouvi cantar como então
  Se fez valente, e temido
  Um vil jumento escondido
  Nos despojos de um leão.

  Emquanto de longe o viam
  Os outros, fugiam d’elle;
  Eram milagres da pelle
  Do rei, a que elles temiam.

  Quiz falar, buscou seus damnos,
  Que os outros com raiva crúa
  Fazem pagar pela sua
  Da outra pelle os enganos.

  Quantos ha na nossa aldeia
  Leões e lobos fingidos,
  Que houveram de andar despidos,
  Se não fôra a pelle alheia!

  Sem sabor, sem consciencia
  Andam com ella entre nós,
  Conhecem-os pela voz,
  Honram-os pela apparencia.

  BIEITO

  O bom tempo é já perdido;
  N’este de agora, em que estamos,
  Taes somos, que nos mostramos
  Ou no tracto, ou no vestido.

  Vendem-se as mostras de fóra;
  Al era no tempo antigo;
  Deus dê repouso a Rodrigo,
  D’isso canta, e d’isto chora.

  Eram tempos deseguaes,
  Tratava a sorte melhor;
  Se ás partes davam louvor,
  Não lhe negavam o mais.

  Se Franco cantava bem,
  Era por isso estimado:
  E hoje quiçaes que é culpado
  Por essa parte que tem.

  CORINO

  Muitos annos ha que dura
  O queixume em toda a parte,
  De vêr que não póde a arte
  Vencer em tudo a ventura.

  Mas se houve alguns queixosos
  N’esses bons tempos passados,
  Quantos houve levantados?
  Quantos houve venturosos?

  Com muitos provára o dito;
  Mas calo-os, porque em respeito
  Contar poucos é defeito,
  E todos fora infinito.

  Não demos culpa á edade
  Com tudo que é desacerto:
  Temos a causa mais perto,
  Porque é nossa enfermidade.

  Que estes desprezos que vemos,
  Do bom saber, da boa arte,
  Não se usa em toda a parte,
  Que al na terra onde nascemos.

  Nas outras ainda se présa;
  (E não sei se diga mais)
  Nós, e os nossos naturaes
  Somos de má natureza.

  Queremos grão mal ao bem,
  (Se isto se póde dizer)
  Sómente pelo querer
  A quem o merece, e tem.

  Verás um pastor, dotado
  De mil graças excellentes,
  Andar entre as nossas gentes
  Assim como homiziado.

  Descontente, e mal vestido,
  De encolhido não se atreve;
  E assim como o homem, que deve,
  Sempre só, sempre escondido.

  E a causa, que lhe sobeja,
  Porque traz em companhia
  Saber, que é mercadoria,
  Que deve muito á inveja.

  Coitado do passarinho,
  Que nasceu no valle escuso,
  Aonde nem canta por uso,
  Nem ha quem lhe saiba o ninho.

  Coitado do que nasceu
  N’esta nossa terra ingrata,
  Que tão mal conhece e trata
  Bens da sorte, e dons do céo.

  Que o mais honrado, e mais dino
  Pelas partes naturaes,
  Não lhe serve de ser mais,
  Senão de ser mais mofino.

  Sempre cae, sempre periga:
  No que ama, no que procura
  Faz-lhe acintes a ventura,
  Que é declarada inimiga.

  De tudo lhe nega o fruito:
  Se com pouco se sustenta,
  É-lhe do pouco avarenta;
  E se de muito, é de muito.

  Agua, Fogo, Terra e Ar,
  Sol, Estrellas, Austro e Norte,
  Tudo lhe negára a sorte,
  Se lh’o pudéra negar.

  E os homens por condição,
  Ao que devem mór corôa,
  Se lhe vem vir sorte boa,
  Vão-lhe mil vezes á mão.

  E qualquer que a causa seja,
  É bem baixo o fundamento
  Ou de fraco entendimento,
  Ou de mui forçosa inveja.

  Vão mil por este caminho
  De erros qu’eu contar não posso:
  Pesa-nos do bem que é nosso,
  Quando o vêmos n’um vizinho.

  Ouvir qualquer extrangeiro
  Falar de seus naturaes,
  Dá d’elles tão bons signaes,
  Que o não tem por verdadeiro.

  Falem-vos n’um natural,
  Dizeis faltas que não tem:
  Mente o outro para bem;
  Nós mentimos para mal.

  Deixemos para outra dia
  Os queixumes, que é já hora;
  Que a meu pesar deixo agora
  A elles, e a companhia.

  ALEIXO

  Da tua é para sentir
  A perda: mas bens não duram,
  Porque os muitos, que os procuram,
  Os tem affeito a fugir.

  Comtigo iremos andando,
  Que isto tambem foi partido:
  E pois o valle é comprido,
  Bem podemos ir cantando.

  Que eu quero da minha parte
  Mostrar que na voz me atrevo:
  E se não pago o que devo,
  Mostro que não sei pagar-te.

  CORINO

  Tu farás como eu presumo,
  Que é como o melhor da aldeia;

  ALEIXO

  Ante ti quem não receia?
  Quanto mais eu, que o costumo.

  Vamos, qu’eu quero ir deante:
  Por este caminho estreito
  Torna a novilha, Bieito.

  CORINO

  Chega manso, não se espante.


                         FIM DO SEGUNDO VOLUME




                                INDICE


  DIALOGO IX--Da pratica e disposição das palavras                     3

  DIALOGO X--Da maneira de contar historias na conversação             9

  DIALOGO XI--Dos contos, e ditos graciosos e agudos na conversação   24

  DIALOGO XII--Das cortezias                                          37

  DIALOGO XIII--Do fructo da liberalidade e da cortezia               49

  DIALOGO XIV--Da creação da côrte                                    63

  Dialogo XV--Da creação na milicia                                   79

  DIALOGO XVI--Da creação das escolas                                 90

  Ecloga contra o despreso das boas artes                            107




                           =NOTAS DO EDITOR=

Os erros tipográficos evidentes foram corrigidos.

A pontuação, a hifenização e a ortografia foram tornadas
consistentes quando uma preferência predominante foi encontrada no
texto original; caso contrário, não foram alterados.

As aspas irregulares foram corrigidas quando a mudança era evidente e,
caso contrário, foram deixadas de acordo com o original.




        
            *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK CÔRTE NA ALDEIA E NOITES DE INVERNO (VOL.II) ***
        

    

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Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg™

Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of
computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It
exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations
from people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s
goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will
remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg™ and future
generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see
Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org.

Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification
number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by
U.S. federal laws and your state’s laws.

The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West,
Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up
to date contact information can be found at the Foundation’s website
and official page at www.gutenberg.org/contact

Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread
public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine-readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment. Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements. We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance. To SEND
DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state
visit www.gutenberg.org/donate.

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg web pages for current donation
methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations. To
donate, please visit: www.gutenberg.org/donate.

Section 5. General Information About Project Gutenberg™ electronic works

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project
Gutenberg™ concept of a library of electronic works that could be
freely shared with anyone. For forty years, he produced and
distributed Project Gutenberg™ eBooks with only a loose network of
volunteer support.

Project Gutenberg™ eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in
the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not
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facility: www.gutenberg.org.

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