Musa Velha

By Francisco Palha

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Title: Musa Velha

Author: Francisco Palha

Release Date: January 31, 2009 [EBook #27940]

Language: Portuguese


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Produced by Pedro Saborano





MUSA VELHA

Porto: 1883--Typ. de A. J. da Silva Teixeira
62, Rua da Cancella Velha, 62


FRANCISCO PALHA

MUSA VELHA


PORTO

ERNESTO CHARDRON, EDITOR

1883


    _Virgem dos olhos negros, se em tua alma
    memoria inda conservas d'outro tempo,
    só tu entenderás porque este livro
    ousa ás trevas fugir, e o sol encara;
    mas como quem escreve e quem publica
    não perde tempo, nem dinheiro gasta
    para teus ocios entreter sómente,
    deixa-me vêr se á força de assignantes,
    de venda avulsa, exemplares de mofo,
    ha mais no mundo quem me entenda e leia._




_DONA MORTE_


Deu na tonta de entrar na minha escada
         á Dona Morte um dia.
         A pobre anda estafada
do continuo ceifar desde que ao nada
por divinaes processos da alchimia
         a terra foi roubada.

               *

Da comprida queixola desdentada
esta sentida nenia lhe saía:
          --Senhor! forte estopada!
Sem poisar a caveira o mundo corro.
Em toda a parte estou. A toda a hora
prostro alguem a meus pés, e geme, e chora
por minha culpa alguem! Nenhuma aurora,
          de luz nenhuma o jorro,
as orbitas vazias me alumia!...
Nunca uma esp'rança! nunca uma alegria!
Á dôr alheia pondo um suave termo
só a minha o não tem!... Só eu não morro
emquanto o mundo não tornar um ermo!...
Á obra! Á obra!--
                 E lepida subindo
          tocou a campainha:
um lugubre tocar que dava medo;
que não mais deixarei de estar ouvindo,
e fez com que eu então, muito em segredo,
          rezasse a ladainha.

               *

Era um simples aviso, pois que a porta
por si se escancarou e deu entrada
          áquella feia ossada
de vermes revestida, e negra, e torta,
de mim ha longo tempo enamorada.

          --Senhora Morte, viva!--
disse ao vêl-a, fingindo animo forte;
mas cá por dentro, como a sensitiva
n'haste as folhas retráe que lh'as não córte
          quem d'ella se aproxima
e levemente a mão lhe põe por cima,
cá por dentro a minh'alma, em pasmo estranho
por vêr-se em tão cruel extremidade,
foi-se encolhendo até ser do tamanho
          d'um reles feijão frade!

               *

          --Desculpe a impertinencia--
continuei.--Como é que usam tratal-a?
          Por tu? Por _Excellencia_
como é hoje tratada toda a gente?--
          «A mim é-me indifferente.
Não faz ninguem de tal miseria gala
no reino onde eu impero.»
                          Esta resposta
me deu a Dona Morte, e junto ao leito,
onde eu espreguiçava a mandrieira,
          chegou; puxou cadeira;
sentou-se gravemente, sobreposta
uma rótula n'outra.
                    Com effeito
mau é vêl-a!... peior á cabeceira!
E poz-me a fria mão aqui no peito.
«Que bons pulmões tens tu! e como pulsa
na tua idade o coração ainda
pelas paixões mundanas agitado!»
--Então...--volvi com voz menos convulsa--
inda tenho a viver um bom bocado?!--
          «Conforme. Tudo finda
quando me apraz e breve.»
                           --Se ao teu lado
para afastar-te eu não chamar a Siencia.--
«Dou-te um dôce que a chames! Cáe tu n'essa!
descobriste a maneira, tem paciencia,
de eu carregar comtigo mais depressa.»

--Banal! Banal! Cuidei que era outra coisa--
rosnei com meus botões.--Um vende bolas,
um palurdio qualquer vindo de Loiza,
da Lourinhã, do inferno, esta sandice
ancho diria qual a Morte a disse.

               *

Ella no entanto, um pé bamboleando,
co'as phalanges dos dedos descarnados
batendo sobre a tibia, ia soltando
          uns sons de castanholas
com que sóe convocar gatos pingados
ás grandes, funerarias cabriolas.
          Após pequena pausa
de subito se ergueu.
                     «Não ha remedio!
          Deixar-te vou por causa
d'uns ganchitos que tenho aqui no predio.
O cónego não dorme ha tres semanas.
Rouba-lhe o ar a suffocante angina
          que o peito dilacera.
Tem esgotado as provações humanas.
Na longa vida santamente austera
fez jus, coitado! á compaixão divina.
          Melhor que o da morphina,
premio á virtude, um somno lhe preparo
brando, quieto, sereno como um lago.
Apanha o padre agora! e apanha, é claro,
quem lhe abichar na Sé o logar vago.
O conego aviado, tenho uns planos
de ir tocar no ferrolho ao conselheiro.
Quero abater-lhe a prôa!... Setenta annos
          e sóbe inda lampeiro
outros tantos degraus!... Então córado!
          redondo!... Uma cereja!...
          E como se espenneja
quando vae pela rua engravatado,
para as moças olhando ás furtadellas
como quem diz: _Assim quisessem ellas!_
Chucha um pisco ao jantar; um pisco á ceia.
          Por não dormir de tarde
nem trazer nunca a barriguinha cheia
considera-se livre do meu jugo
          e d'isso faz alarde!
Pois tu vaes vêr, fradinho de sabugo!»

          Travou da arqueada foice;
disse-me:--«Adeus! Eu volto. Eu volto. Espera»:
          virou a espinha, e foi-se.

               *

Sim, que te espero! Aqui te aguardo, ó fera!

               *

Mal passado um minuto, instantes, penso,
portas a abrir-se, gente que subia
resmoneando latim, e cheiro a incenso,
o _opoponax_ da velha liturgia.

Desci. Curvei-me. Bemaventurado
aquelle que tem fé! Como um soldado,
firme em seu posto o conego morria.

               *

Volto a casa. Corri logo á janella.
Nos amplos ceus azues esmorecia
a luz d'um sol d'abril. Do floreo seio
perfumes exhalava a Primavera
fallando-me por modo que a entendia.
Quanto distava, quão diversa que era
          da outra scena aquella!
Então clamei: _Em ti, meu Deus, eu creio!_

Um mez depois alguem contar-me veio:
--Lá puxou o visinho aqui do lado!
Hontem, depois do chá e o rol escripto,
saíu da mesa, deu-lhe uma tontura,
rodopiou, caíu na sepultura
co'a paz na consciencia e o palito
no canto inda da bocca!--

                          No outro dia
foi-se o bom conselheiro, encaixotado,
          direito ao cemiterio.
          Na turba que o seguia
havia quem dissesse: _Um homem sério!_
          E tudo era acabado.

               *

Chega-me agora a vez. Prompto! Presente!
Prompto sou a marchar!... mas descontente.
Não que eu tema morrer. Quem morre inteiro?
Aquillo que me assusta, o que me aterra
é sómente a lembrança de que á terra,
tal qual se semeasse fava ou trigo,
          o bruto do coveiro
cantarolando, atirará commigo!

Eu, que respiro ao sol da liberdade,
fechado n'um segredo humido, immenso,
frio, escuro, por toda a eternidade!
Preso... amarrado ali! Meu nome inscripto
n'um livro negro, em folhas côr d'ict'ricia,
como se inscreve em notas de policia
o nome do gatuno a quem o apito
tranquillo não deixou bifar um lenço!
Numerado inda em cima! numerado
como um grilheta!... _O cento e trinta e cinco._
de cestos de cal virgem carregado
p'ra todo o sempre n'um caixão de zinco!...

               *

Não estou pelos autos. Não!... Protesto.
Quando a morte vier por este resto,
d'homem... de coisa... nem eu sei ao certo
isso que fui, que sou, para o que presto:
quando ella pois vier, e virá cedo...
          e vem... que a sinto perto,
ordeno que me estendam n'um penedo
da minha amada Cintra. Redivivo,
          á luz serena e pura
dos puros ceus, o misero captivo
reabrirá seus olhos porventura!
Inda lá teu amor, tua belleza,
a força me darão, tres _estrellinhas_,
para affrontar a idade, a natureza,
e triumphar do Eterno!
                       Com certeza
que nem sequer, leitor, tu adivinhas,
nem eu jámais direi de quem se trata.
Bem o desejas tu, lingua de prata!
Era um maná!

               *

             Ó sombra que fugiste,
que sem cessar procuro em toda a parte
          e não encontro nunca,
porque é que tu não voltas, e d'est'arte
de saudades a Dôr, teimosa, junca
          o meu caminho triste?!
Agora ao menos, anjo expatriado,
          em que eu por ti resumo
n'uma lagrima só as que hei chorado
dês que te dei minh'alma até est'hora,
porque é que tu não vens mostrar-me o rumo
          do ninho teu d'outr'ora?!
Vem! e guia-me tu n'este momento
á dôce paz do suspirado porto!
Foste na vida o meu maior tormento...
Ai! Sê na morte o meu maior conforto!




_POR FIM..._


Tu queres, Dorinda, queres
que eu tome os banhos da igreja?!
Não será melhor que esteja
de noite a fazer colheres,
de dia a apanhar carqueja?!

Pelo ceu! que o matrimonio
não é mais que pellourinho,
d'onde as barbas do visinho
vemos ardendo! demonio
disfarçado em Cupidinho.

O outono com seu cortejo
de folhas seccas no chão!
O eterno adeus á illusão!
O ultimo som do harpejo
que Amor tira ao coração!

O susto! a agonia! o trance
de ir vivendo sempre á espreita
se ha quem tornar-nos alcance,
pois tal historia deleita,
_altos_ heroes d'um romance.

E queres, Dorinda, queres
que eu tome os banhos da igreja?!
Para quê? Para que veja
que entre todas as mulheres
uma existe que sobeja?!

Não! e não! Viva o solteiro!
Aguia voando no espaço
sem ter certo o paradeiro,
e cravando as garras d'aço
nas pombas que vê primeiro!

Sae, e entra, e torna fóra
sem que ninguem lhe interrogue
onde foi, qual é a hora,
nem pecuinhas lhe jogue
sobre a provavel demora;

Sem que a esposa ciumenta,
Furia, Medusa, tormenta
de más caras, más respostas,
invente o que o diabo inventa:
dormir-se costas com costas.

E, depois, Madame Aline
rôa as unhas! Que se fine
entre rendas d'Alençon!
que o meu dinheiro não tine
p'ra que tu andes no tom!

Já vês que debalde queres
que eu tome os banhos da igreja.
Iça o pau da carangueja!
Nos turcos os escaleres,
e para o largo veleja!

Mas tambem... viver sósinho!
Sem fé... perdido... sem ninho...
Sem se erguer uma só voz
na aridez d'este caminho
a Deus orando por nós!!

Retornando ao lar deserto
achar tudo a _trochemoche_!...
O bahu sem chave e aberto
dizendo ao larapio:--_Entrouxe,
que você é que é o esperto!_--

Sempre mal fervida a sopa!
Sempre o café mal torrado!
Feita a passagem na roupa
deixando o dono enleiado
se foi a agulha se a choupa!

Se ainda, Dorinda, queres
que eu tome os banhos da igreja,
não descances na peleja,
que eu sou como os malmequeres:
_não e sim_. Louvado seja!

Ai! que é bom durante os ocios,
na fortuna e na miseria,
achar ao lado uma Egeria
que, em se fallando em negocios,
não tuja sobre a materia;

Que seja como a romana,
meio amor e meio roca;
não sáia nunca da toca
mais que uma vez por semana,
nem tinja o cabello d'óca;

Nem, quando a afiada foice
da vida o fio nos córte,
de rijo invective a Sorte,
e diga baixinho:--_Foi-se!
Quanto és minha amiga, ó morte!_--

E d'aqui outro consolo
melhor que maracujá
e que o dôce de tijolo:
ter quem, a rilhar n'um bolo,
nos julgue e chame papá!

Loura criancinha meiga,
para o pai mimo celeste,
e para o estranho uma peste
que emporcalha de manteiga
as calças que a gente veste.

Inda agora é que eu reparo
nos teus olhos, creatura!
São negros... d'um negro raro!
Negros como a noite escura
com seus quês d'um sol bem claro!

Alto o seio e pura neve
que mil desejos excita!
O pé delgadinho e breve;
e quanto a mão... Deus permitta
que a não tenhas muito leve.

Dá-me o teu braço, Dorinda.
Vamos aos banhos da igreja.
Certo é que não graceja
quem diz que os refrescos, linda,
curam toda a brotoeja.




_CARTA_

ao Conde D'Almedina, Inspector da Academia Real de Bellas-Artes,
que no estrangeiro sollicitou uma commenda para o author


Tratante d'inspector, cuidei-te amigo
e sácas-te a mangar assim commigo!
Traição! insidia! roubo! Eu, um pelintra
que nem posso comprar um burro em Cintra,
onde a commenda magna em chammas brilha
sobre o manto azulado de escumilha
que Deus usa no v'rão, e a natureza
ironica sorri da pequeneza
d'esta baixa comedia, eu--velho! eu--calvo!
á publica irrisão a servir d'alvo?!...
Qual foi meu crime? Qual? Era deveras
menos duro entregar-me inteiro ás feras.
Ridiculo não ha na gente morta.
Fôra uma vez um Palha!... A questão corta
e não se falla mais.--
                      Por não ter _guines_,
tratante d'inspector, não me apepines.

Eu amo a sombra fria. Odeio a moda.
No bulicio d'um baile anda-me á roda
a caixa do miolo; um labyrintho
onde, perdido, entontecer-me sinto.
Moem-me as praxes; pesam-me etiquetas,
e tudo sei rasgar... menos baetas.
Por mais que mire uns outros enfeitados,
tão contentes de si, e tão coitados
que julgam ser alguem!, não sei... não acho
nem honra nem razão no berbicacho
dourado, reluzente, sol d'esmalte,
do qual em cada raio não ressalte,
ante luz de gloriosa eternidade,
um feito illustre a bem da humanidade.

D'outro modo o que é? Um mau bocado
de pão de rala a cães famintos dado:
d'um réles charlatão a taboleta,
na qual, quem passa, lê: _Dom Paparrêta!_
ou lê inda peior!
                  Mette-me á bulha,
terás aqui o rol de quanto pulha
_grande_ se fez tal qual se torna grande
o bácoro a fossar e a comer lande.
_Ai! no me pique usted!_ Sob o arminho
busca, e talvez encontres pergaminho
lavrado a ferro e sangue, fresco ainda,
nos coiros fuscos de infeliz cabinda.
Nem titulos pomposos nem veneras
valem dez reis furados n'estas eras.
Hoje o premio a heroes dá-se ao dinheiro.
Importa lá se é falso ou verdadeiro?!
Comprou? Correu? O mais é tudo historia.
Nem o nome villão fica em memoria.
Uma coisa é escalracho, outra--papoila.
Onde era a nódoa poz-se a lentejoila.

Ha excepções, bem sei. Dou-lhes apreço.
Morro d'amor por essas que eu conheço;
mas como a estes raros não pertenço,
e menos inda aos outros, o bom senso
manda que eu te agradeça os teus favores
e ria da mercê.
                Quando tu fores,
saudade ao peito, encasacado, sério,
despedir-te de mim no cemiterio,
verás que desço á terra, oh! vista horrenda!
nusinho tal qual vim; e por commenda
inerte o coração, gasto da vida
na rude, pertinaz, obscura lida.

Tu mesmo então, artista d'olho fino,
dirás á turba:
               «Emfim o peregrino
na paz eterna vai dormir agora!
Andou mettido a vida inteira á nora
d'este poço sem fundo de miserias.
Abusava do riso, das pilherias,
e d'outras coisas mais em que não fallo.
Foi Job em vez de ser Sardanapálo.
Uma _raia_ da Sorte. Ella faz d'isto:
dá impérios ao démo, a cruz ao Christo.
Mas resta-nos, amigos, um consolo:
tudo seria... excepto um grande tolo.»




_REQUERIMENTO_


          Meu Couto Monteiro,
          senhor da Justiça
que nunca, que eu saiba, saíu do tinteiro,
e pae dos famintos que engolem á missa
o corpo sem mancha do santo Cordeiro.
          Não rondo as arcadas
          fazendo-te esperas.
          Não subo as escadas
que ascendem aos atrios das altas espheras,
levando no bolso memoria sebenta
que ha mais de mil annos requer um despacho,
nem ponho o toutiço, já calvo aos cincoenta,
          em ar de tapete,
          em ar de capacho,
          no teu gabinete.
Só quero dizer-te que tenho defronte
          da casa onde habito
          um sino maldito.
          Não sei se t'o conte...
De dia, de noite, ao sol, ao luar,
          não faz outra coisa
          senão badalar!
          Nem elle repoisa
nem deixa na rua ninguem repoisar!...

Ha quem me assevere que o demo mofino
          montado no sino
          se foi baloiçar!...
Baloiça-te, pêrro! Engendra um badalo
          do vil pé caprino
          e dá-lhe um estalo!
          e dá-lhe a matar!
Não tremas, sabujo! que o sino foi bento;
mas sabes que as bençãos são cruzes no ar;
          levou-lh'as o vento.

Entrasse em teus ossos o meu rheumatismo;
roesse a medulla; por noites e dias
chumbasse-te o corpo n'um duro colchão;
          então saberias,
          ó filho do abysmo,
          verias então
          se assim te mexias!

          O caso é que tu
commigo caçôas e ris dos doutores,
          pois nunca tens dôres,
e nem te constipas! e, mais, andas nu!

Parece impossivel! Dá volta á cabeça!
Eu cá, homem serio, que gema e padeça;
          que em vindo janeiro
me rape um catarrho!... E haver um brejeiro
          que passa o inverno
          sem chuvas nem lamas!
          quentinho nas chammas
          do próvido inferno!
          rival do Eterno!
eterno elle mesmo! Sagaz Providencia,
e és da justiça, do amor és a essencia!

Bem sei que o tal sino foi feito, fundido
na terra dos cirios, da Carta, do hymno,
          d'aquelles quarenta
          de pêllo na venta
          que ao reino opprimido
quebraram algemas d'um jugo ferino;
e a Carta era um mytho, são presas do olvido
os nomes e as glorias de heroes legendarios
se os sinos dormirem nos seus campanarios
          qual dorme a memoria
dos feitos illustres nas sombras da Historia.
Ó Couto Monteiro, se a Carta está morta,
          o que é que lhe importa,
que importa aos guerreiros em pó transformados,
          que toque ou não toque
nas torres da Graça, da Sé, de S. Roque,
o sino importuno masurkas e fados?!
Nem isso os aquece, nem ha desafôro
qual este que os templos agora profana
passando dos palcos aos orgãos do côro,
aos sinos de igrejas, a copla mundana.

Nem tu me perguntes: «Quem é que armarieis
          com mais alegria
que o meigo innocente, do somno lethal
          que á treva o prendia,
nos braços do Christo resurge immortal?
Qual voz, como aquella, dos vivos implora
por alma dos mortos a prece final?»
Por isso!... por isso, meu Couto Monteiro!
O vil não repica, nem geme, nem chora,
senão por aquelles que teem dinheiro!

Que nasça, que viva, que durma na valla
quem é pobresinho, sem festas nem dobres!
O sino só tange conforme a tabella,
só diz:--_Baptisou-se_, dos mortos só falla
          se o manda o _sob'rano_
          do reino dos cobres,
          a libra amarella!
No ceu, felizmente, vigora outra escala
na qual os primeiros são elles--os pobres,
e poucos ricassos, que vão por engano.

Se és, qual eu julgo, christão verdadeiro.
          Meu Couto Monteiro,
é justo que ponhas no prego o sineiro
          que á patria com fome
          propines uns nacos
          de sino em patacos:
          verás como os come.




_PREFACIO D'UM LIVRO INEDITO_


Mamãsinha impertinente,
não te ponhas com tolices.
Faze como se não visses
se vires a filha innocente
lendo as minhas criancices.

Deixa vãs prohibições
se este meu livro não queres
escondido entre colchões,
que é onde escondem mulheres
livros, cartas, e... orações.

Depois, o livro que ensina?
Muita coisa boa e má
que ha de fazer a menina
porque tu, que és menos fina,
as fizeste ao seu papá.

E sendo condão fatal
que a filhinha, que tu crias
com pretensões a Vestal,
siga o exemplo das tias
pela influencia carnal;

Ao vêr servir de palito
n'este meu livro erudito
tanta gente, ha de hesitar;
e á cova irá de palmito...
se a morte cêdo a levar.

Deixa-te pois de tolices,
mamãsinha impertinente.
Faze como se não visses
se vires a filha innocente
lendo as minhas criancices.




_MAL POR MAL..._


Eu trago em minh'alma afflicta
revolto mar de agonias.
Tedio da vida os meus dias,
as minhas noites, agita.

Ó minhas crenças d'outr'ora,
dôces amigas da infancia,
a que longinqua distancia
do meu peito andaes agora!

N'esta cerração escura
assim me deixaes sósinho!
e sem que volteis ao ninho
baixarei á sepultura!

De mim te acerca bem perto,
ó morte! No estreito abraço
vôa commigo no espaço,
leva-me d'este deserto!

Mas se na mansão infinda,
onde librar-me tencionas,
nos dão as mesmas taponas
com que a sorte aqui nos brinda;

Se esguio velhote avaro
n'essas alturas se encontra,
com seu barrete de lontra,
olhar e sorriso ignaro;

De fallas mansas, beato
para vêr se os santos pobres,
saudosos dos magros cobres,
lhe vão empenhar o fato;

Se o operario, se o povo
crê tambem que o mundo em ruina
ha de saír da officina
corrigido e mundo novo.

E em lutas, que são eternas
por lhe ser eterna a peia,
quebrar pretende a cadeia
e quebra a si proprio as pernas;

Se n'esse logar bemdito
pisamos a mesma lama
que sobre a terra se chama
--_O Asmodeu_,--_O Mosquito_--;

Se é Mercurio almiscarado
o filho de Compostella;
se por ventura um Alviella
tem lá de ser encanado;

Se o Milhão é quem impera;
se se fez Deus o egoismo;
se ha dôres de rheumatismo,
e nas vinhas phylloxera:

Fecha, ó anjo, as negras azas!
que em tal apuro, olha o rente!
tanto faz morrer a gente
como mudar-se de casas!




_A UMA CREATURA_


Que tens tu a dizer do teu destino?
Que mal... que mal te fez, ingrata, a sorte?
Desunhas-te a comer queijo londrino;
        na polka és a mais forte;
essa fulva cabeça de leôa
não passa d'avellã; por isso és goso
do bravo rapazio de Lisboa.
Preludias na _banza_ um _rigoroso_
que os mortos ergue, as campas despovôa.
Desmamadinho já, em salto airoso,
balando, os longos ecos atordôa
        o teu futuro esposo.
Calçando o largo pé na estreita bota
encaixaste o Rocio na Bitesga.
Capaz és tu de entrar, sendo janota,
        no ceu... por uma nesga.

Trazes um _dogue_ ao collo... Tens na tia
_chaperon_ e banqueiro. Anda estafada
a velha e mais a burra. A orthographia
comtigo, ao vêr as duas, não quer nada.
Quem de môlho as barbas não poria
vendo a barba visinha incendiada?!
Dás á lingua durante o santo dia,
        e bates na criada!

A coisa mais feliz de quanto existe
és tu portanto. E dás então cavaco,
maldizes, blasphemando, o mundo triste!
        e chamas-lhe velhaco!

O mundo?! O mundo o que é? Por mim supponho
ser apenas ironica pilheria
que Jehovah soltou quando, risonho,
pretendeu descansar de empreza séria.
Ha n'elle o encanto espiritual do sonho.
Ha n'elle o encanto vil da vil materia.
Faz rir e faz chorar, o Triboulet medonho!
        a divinal miseria!

A graça toda está n'estas _nuances_;
nas sombras e na luz com que prepara
da dôr e do prazer os varios lances
        o velho Dulcamára;

Nunca viste Neptuno carrancudo
pendurar-se nas azas da procella,
roçar as cãs no ceu e em silvo agudo
dar por mortalha ao barco a solta vela?
Agora não o vês sereno e mudo
como a brincar na praia se ennovella?
Pois similhante ao mar no mundo é tudo.
        Resigna-te, donzella.

E tudo ha de acabar, o mar e o mundo.
Até do meu amor a intensidade
sumir-se irá no pelago profundo
        da fria eternidade!

Eu escrevi--_amor_?! Fiz mal. É grego;
é grego para ti: peior,--sãoskrito;
e tu nas linguas mortas não dás rego.
Se um dia, por acaso, o pequenito
traquinas e cruel, alado e cego,
tentasse dar-te um golpe... era bonito!
Fugiria a gritar: _Armas que emprego
        não entram no granito!_

Tu partilha não tens na dôce herança
dos anjos que voaram! Antro escuro
a tua alma será! Nenhuma esp'rança!--
        nenhum extasis puro!

Como quando ao romper da rôxa aurora
deslisando na valsa doidejante
soltas da trança a rosa que descora,
de si te apartará n'um só instante
o louco turbilhão que te enamora.
Pallido o rosto, o seio palpitante,
ao ceu perguntarás na dôr d'ess'hora
        se a morte vem distante!

O vácuo! a saciedade! o horror das trevas!
Ninguem ao pé da cruz no teu calvario!
Por só cortejo ao cemiterio levas
        um padre mercenario!

Nem esse volta lá. Rezou, e a prece,
em mau latim, por bons tostões foi paga.
O fardo que largou mais não merece.
Recebe por adeus grosseira praga
d'um coveiro que o some, e breve esquece.
Grão d'areia que foste ao mar co'a vaga,
quem te busca depois? Quem te conhece?
        Teu fim quem é que indaga?

Se é tempo, ó transviada, atraz teus passos!
Abre o teu coração. A fé te anime.
Não ha na vida mais estreitos laços.
        Amor tudo redime.

Vêl-o-has dissipar a nevoa densa
que o teu dia transforma em noite escura.
Respeitada serás. Trarás, suspensa
de teus vermelhos labios, a ventura;
que eu não sei de ninguem a quem não vença
puro amor abraçado á formosura.
Serás mulher,--é essa a recompensa,
em vez de _creatura_.

Se mover-te consegue esta palestra
manda morrer o cão no Instituto;
compra cartilha e pedra, e prova á mestra
        que vales mais que o bruto.

Depois reforma a tia. Irá na Graça
accender ao Senhor trezentos lumes
por tirar-lhe do lombo essa carraça.
Vê-se livre da espada de dois gumes
que a burra lhe sangrava, e na carcassa
vasto caminho abria a vãos queixumes.
Menina, já que estás co'a mão na massa,
        reforma os teus costumes.

E como incerto é sempre o bem futuro
e póde arrepender-se o arrependido,
vae lá pondo, á cautela, no seguro
        o nome do marido.




_ALÉM DA CAMPA_

(Imitação do hespanhol)


N'um povo, perto de Cintra,
foi o rev'rendo prior
em fria cova depor
o cadaver d'um pelintra
mesmo ao pé d'um seu crédor.

Apenas se viram juntos
por toda a vida sem fim
romperam n'um tal chinfrim
que, dizem velhos defuntos,
ser virgem um caso assim.

«Vossê pague! ai que vae torta!»
gritava o crédor.--Com quê?--
gemia o outro.--Não vê
que entrei nú aquella porta
porque nú me poz vossê?!--

E n'este rosnar eterno,
n'este diz tu direi eu,
o crédor, que era judeu,
enreda o outro n'um inferno
como o inferno em que viveu.

Se em meu derradeiro instante
eu tiver crédor voraz,
permitte, ó Deus, se te apraz,
que por cá fique o tratante
p'ra que eu, morto, viva em paz.




_A JULIO CESAR MACHADO_

que em folhetim do _Diario de Noticias_ dirigira ao author
phrases benevolas


Ó Julio, ó meu amigo, o que disseste?
Fallar em nós?! Fallar em mim?! Na peste
d'esse Parnaso ignobil de ha trinta annos?
Fui um asno sem tom, nem som, nem furo;
uma coisa p'r'ahi entre os humanos
como entre o trigo o joio; um insensato
cuidando toda a vida que o futuro
se faz sómente como o faz o gato
por noites janeirinhas, e o menino
d'onde ha de vir ridente, e róseo, e puro,
é da raiz... do verso alexandrino!
Tu verás, se viveres. O destino
se condôa de ti a tempo e a horas,
que eu já não temo nada. N'esta idade
quanto mais o doutor me põe escoras
mais depressa galopo á Eternidade.
No dia em que florir a ideia nova
nem restos ha de mim na escura cova.
Depois...
          Pensando bem, ás vezes julgo
que não deve ser mau vêr estes numes
na faina redemptora! E, mais, o vulgo
já não crê n'outro Deus! Os bons costumes
vão apanhar por fim um São Martinho
qual nunca lhes foi dado... excepto em vinho
que embrutece a razão! Pois com certeza
leva uma _razzia_ o Torres e o Cartaxo!
Ou bem que a gente é gente ou que é um cacho!
D'amor, que é velho, temos conversado!
Rua com elle! Amor é uma fraqueza.
É velho e cego, e não espera luas,
e quando lhe appetece faz das suas,
e são as suas d'elle o vil peccado!
Basta cortar-lhe bem a ponta da aza
e triumpha a moral. Rapaziada,
nunca mais andarás no mundo em braza
        atraz da tua amada!

Mudei de metro como d'alimaria
muda Tinoco, o bravo, na tourada,
pois quanto em verso a fórma fôr mais vária
        menor é a massada.

Calcule-se o porvir pelo presente.
        Nós somos democratas;
        e fique o ponto assente.
_Noventa e tres_ é tudo quanto, em datas,
        a Historia nos tem dado
mais nobre, e santo, e digno de imitado.

        Amor... e guilhotina!
Luz d'uma aurora, d'um incendio chamma!
_Mayonnaise_ de sangue e de doutrina!
Quanto o homem sublima e quanto o infama!
        _Noventa e tres_ e a França!
Eis o lemma, eis o exemplo, a viva esp'rança.

Anda tu cá, ó lemma, que te quero!
Dom Bertholdinho a dar-se um ar de Nero!
Somos, sim, democratas... á capucha;
Marats de sêda frouxa; uma chalaça
com Marselheza indigena,--a _Cachucha_.
        Palavra! que tem graça!

Que o bom senso, tão raro! nos acuda;
        nos tome um dia a sério!
Não ha Sebastião nenhum da Arruda,
        suando phalansterio,
que não mande estampar nos seus bilhetes
armas ducaes, brazões de pataratas!
Morremos por trincar a monarchia;
mas trincamos-lhe a ceia e os sorvetes
emquanto lá do ceu Deus não envia
novo maná... de instituições baratas!...
Uns typos! Bons, pacatos, sem ter odios
nem bombas... a não ser de Santo Antonio,
bombas de luxo, bombas só de estrondo;
indo buscar pretextos para brodios
        a casa do demonio,
        e quando os não achamos
nem dentro em nossa casa nem na estranha,
calçado a polimento o pé redondo,
vazio o coração, repleta a entranha,
vêr desfilar a procissão de Ramos.
E n'este ambiente, em pleno Rilhafolles,
no ardor da Saturnal, sonhaste, ó Julio,
que um velho gordo, com as carnes molles,
        sem ter outro peculio
além do rheumatismo, sertanejo,
viria em _petit-maitre_ dar aos folles
do outr'ora enamorado realejo?

Desde que o maganão do deus Cupido
não tem na aljava setta que me fira,
        passou-me do sentido
tudo quanto em rapaz tanto sentira.
Rabisaltona musa é hoje em dia
quem me ampara e conforta, e quem me inspira.
Quando fugir, morri. Outra alegria
qual te foi dada a ti, sol na velhice,
conceder-m'o não quiz quem bem podia.
        E fez uma tolice.
Eu sei se a fez, ou não; modestia á parte.

E só para dizer-te uma palavra
d'affecto e gratidão moí d'est'arte
a tua paciencia! Antes do Lavra
        subisses a calçada,
ou lesses uma peça premiada.
Era muito, bem sei; mas era menos.

Obrigado, meu Julio. Isto, em resumo,
devera ter escripto. O mais é fumo.
Deixa-o seguir no espaço o ignoto rumo,
e dá saudades minhas aos pequenos.




_DIES IRAE_


É novembro, e faz um frio!
Eu então é que ando em braza!
Pudera! se o senhorio
me pede a renda da casa!

Réles cobre em vão recruto
no lidar da vida insano.
Desertam n'um só minuto
as vis poupanças d'um anno.

Embora á carne dê tratos,
á velha carne exigente,
deixando passar os pratos
sem pôr nos piteus o dente;

Embora esguia quinzena
traga já no extremo fio,
e córte a rara melena
só pelas calmas, no estio:

Não coalha esta formiga
nem grão, nem sequer paveia!
Sempre na mesma fadiga,
enche... vasa... o pé da meia!

Sob o teimoso aguaceiro
de tanta renda de casas,
depennado, em meu poleiro,
metto a cabeça nas azas.

Cança o sorrir da ventura;
o rigor da sorte cança;
só por entre o que não dura
vae sempre durando a esp'rança.

Eu espero a moradia,
onde de graça me acoite,
no seio da terra fria;
nas sombras da infinda noite!

Ao menos no eterno gelo,
nos fundos antros escuros,
não terei por pesadêlo
meus senhorios futuros!

Um é Deus: a esse um amigo
satisfaça em padre-nossos.
Outro é o verme: eu cá o espigo
dando-lhe em paga os meus ossos.




_O MEU TINTEIRO_


Era em agosto. O norte, desabrido,
mugindo como um toiro, sacudia
os troncos do arvoredo. Ia-se o dia:
um dia d'amarguras tão comprido
que eu cheguei a pensar que a Eternidade
nas chammas infernaes já me envolvia!
Por meu mal terminou! que um outro veio
depois d'aquelle, e foi peior mil vezes!
A minha irmã, á dôce companheira
da longinqua, saudosa mocidade,
coubera, nova ainda, a feliz sorte
de ter, após tres longos, tristes mezes
d'um filho haver perdido, achado a morte.

Antes d'ella expirar, á cabeceira,
em torno do seu leito, se agrupára
tudo quanto durante a vida inteira
fôra por ella amado, e tanto a amára.
Eu, fingindo sorrir, assim dizia:

«Agora estás melhor. No rosto as rosas
da antiga primavera! Olhos em fogo!
Uns olhos como d'antes! Vês, Maria,
que estás melhor agora?! Em desafogo
respira o peito já! Estas nervosas
dão vontade de rir! Que espalhafato!
Um cortejo de coisas! Raça estranha!
Por isso o outro fez com que a montanha
désse, aturdindo a terra, á luz um rato!
Vae a galope a enferma que melhora.
Ámanhã, ou depois, saltarás fóra
d'essa importuna cama. O que te cança
é ter o corpo ahi. Vamos a Piza
passar o inverno todo. Alli serenos
são sempre os ceus. Alli tepida a briza
dá vida a um velho! Então a uma criança!

«Tontinha é o que tu és! que estás chorando!
sem que saibas porquê, aposto, ao menos!
Iremos todos, grandes e pequenos!
Quasi uma romaria, um cirio, um bando
d'alegres passarinhos chilreando
por essa Europa além! Tu, pregoando:
_Quem quer saude? Quem? Vende-se e dá-se!_
irás distribuindo, co'a mão cheia
d'essas papoilas, um _bouquet_ vermelho
que pouco e pouco a desbotada face
ha de tingir-te e... até fazer-te feia!»

--Iremos todos, sim!--fraca, tossindo,
a pobre interrompeu:--Sim!... Vamos _indo_.
É então ámanhã que eu d'aqui saio?
Depressa ámanhã vem! Dá-me esse espelho.
Se tu não mentes devo estar um Maio!--
Mirando-se, volveu:--A minha pena
é que... _ellas_... me não vejam n'este instante
em que finda a comedia e deixo a scena!
Se eu não soubesse que este mundo é um sonho;
se trouxesse o meu Deus de mim distante;
como este despertar fôra medonho!--

Depois foi repartindo as suas prendas
por quantos eram lá.

                     --A ti... primeiro.
Lego-te... dou-te... aquelle meu tinteiro.
Tu fazes versos. Sei que não te emendas;
sempre te serve aquillo!--

                           Desde ess'hora,
e já lá vão cumpridos bons trinta annos,
quando me engano a mim n'esses enganos
da musa brincalhona, raro mólho
a penna folgazã que me não traga
nos bicos uma lagrima.

                       Ai!... Eu ólho...
aos abysmos do mar pergunto: «A vaga,
que eu vi sumir-se, onde é?»

                             E o mar afaga
a praia em que a deixei, e vae-se embora,
e volta, e vae! mas não responde; chora.




_A VENUS NOVA_


Não, Rachel, não desvario.
Venus, o estylo é antigo,
os seus dotes repartio
bem largamente comtigo.

Deu-te esse corpo divino!
esses seios palpitantes!
Fosse eu inda pequenino
e tu minh'ama! Que instantes!

Por ser branca e por ser loira
tem o loiro em menos preço;
por isso te deu da moira
o negro cabello espesso.

Chega aos olhos... De repente
vê que não tem na palheta
côr nenhuma refulgente
para imitar um planeta.

Corre logo á fonte limpa;
e procedeu com acerto
que em ocios não se repimpa
quem se encontra em duro aperto.

«Ó dôce noite», ella exclama.
«Tu tens estrellas a esmo.
Duas quero em rubra chamma,
quasi soes; dois soes. É o mesmo.»

A Noite, que é velha fina,
e foi sempre a Venus dada,
responde:--Minha menina,
só para a outra fornada.--

«Pois ao forno! e já! que eu pago!»
A Noite, ouvindo-a, lampeira.
A estrada de São Thiago
deitou logo na caldeira.

Fogo ao lado, e fogo ao centro!
Quando a fervura era viva
o sete-estrello p'ra dentro!
e folhas de sensitiva!

Ao cabo de poucas horas
em duas orbitas fundas
despejou duas auroras
com que est'alma em luz inundas.

Venus pulou de contente;
mas depois... (que são mulheres!)
disse á outra em tom plangente:
«Adeus!... O que tu quizeres!...

«Fizeste-a fresca! Eu reinava.
Era no Olympo a mais bella.
Passei de rainha a escrava.
A Venus agora... é ella!»




_O LOBO E O CÃO_

Traducção da fabula de Lafontaine--Le Loup et le Chien


Não tinha um lobo mais que a pelle e o osso.
Signal é que de orelha arrebitada
bem vigilante andava a canzoada.
Encontra o lobo um dógue forte, grosso,
nutrido, luzidio, uma belleza!
que distraído abandonára a estrada.
        Sorri-lhe a nedia preza!
Saltar-lhe logo ali, fazêl-a em postas
o seu desejo fôra. Dura empreza!
A lucta era infallivel. Voltar costas
não usam perros quando são valentes,
e, mais, os brutos! dão ás vezes cabo
do fero contendor! Diabo!... Diabo!
Então aquelle, com aquelles dentes!

               *

Humilde o lobo, pois, encolhe a cauda;
chega-se ao cão; abaixa-lhe a cabeça;
puxa conversa; diz que folga em vêl-o,
que deixe que elle admire, que elle applauda
topal-o assim... e com tão bom cabello!...
e rijo! e gordo! Um frade! Uma abbadessa!

«Esplendido senhor»,--o cão responde;--
«de vós depende o ter igual gordura.
      Fugí dos bosques, onde
      por teima da desgraça
de fome e frio só achaes fartura,
vós, senhor lobo, e a vossa pifia raça.
Dias e dias sem comerem nada!
e lá por festas, raras, esquecidas,
um petisquinho conquistado á espada,
      tragado ás escondidas!
      Ahi é certa a morte!
      Furtae-vos a seus braços!
      Seguí... seguí meus passos;
tereis outro destino e melhor sorte.»
      --Mas como?--volve o lobo.
--Fazer então que devo?--
                         «Bagatella:
nem morte d'homem nem de egreja roubo;
simplesmente estas coisas: não dar tregoa
á _santa_ gente rôta, mendicante,
bordão n'uma das mãos, n'outra a tigela,
que vem inda a distancia d'uma legoa
e já tresanda a essencia de tratante.
Lamber as mãos ao dono; ser submisso...
_dar cóca_, é o termo proprio, ao dono e a todo
quanto bicho careta houver em casa.
Salario apanhareis que vos apraza:
ossos das aves, rodas de chouriço,
restos vindos da mesa, e tudo a rôdo!
Até uns _tagatés_ em cima d'isso!»

               *

Tendo prestado ao cão attento ouvido
      o lobo, coitadinho!
com perspectiva tal enternecido
não tugiu nem mugiu, mas fez beicinho.

               *

Iam caminho já do povoado
quando o lobo notou que no pescoço
      o cão era pellado.
--Que tens ahi?--pergunta em alvoroço.
      «Nada, que eu saiba.»
                           --Nada?!--
                                     «Frioleira.»
--Mas afinal o que é?--
                       «Ora!... A colleira
com que á noite me prendem junto á porta...»
--Prender-te?!--o lobo exclama.--Não saes fóra,
não corres livre pela terra inteira
quando te dá na gana, e a toda a hora?--
      «Nem sempre. Isso que importa?!»
--Tanto importa que toda a trincadeira
com que me acenas, um thesouro embora,
por tal preço não quero.--
                          O lobo finda;
põe-se logo na perna, e corre ainda.




_DEUS E O AMOR_

(1870)


No ceu, cabisbaixo, o Amor
um d'estes dias entrava.
O pobresito levava
impressa no rosto a dôr
e as settas todas na aljava.

Ao vêl-o o Eterno exclama:
«Que vens tu fazer aqui?!»
--De Lysia, meu Deus, fugi
porque lá vivo da fama;
os meus freguezes perdi.

Busca a moça um noivo rico
sem lhe importar nada mais.
_São fumo as paixões e os ais;
pintos, nina. Apanha o mico!--_
lhe bradam os proprios paes.

Por isso, feito o consorcio,
sae da egreja o par fiel,
e o noivo compra papel
para requ'rer o divorcio,
passada a lua de mel.

Torto já, e á vara larga,
o fino _dandy_ seduz.
O mais que faz o lapuz
quando em finezas se alarga
é roncar: _Que tal te eu puz!_

Do patrio amor todo o fogo
traduz-se no _venha a mim_.
Quem faz d'um jornal pasquim,
sem trunfos entra no jogo
e sae-se trunfo por fim.

Bellini foi-se!... não presta.
Da harmonia a nata, a flôr,
veio encontrar successor
no _Fado_, que é o rei da festa,
o canto que faz _furor_!--

A virgem martyr Cecilia,
ao ouvir blasphemia tal,
ataca o _si_ natural,
e, pedindo um chá de tilia,
cae em deliquio mortal.

Sem reparar no que passa
soluça o Amor e diz:
--Murcha pende a flôr de liz.
Jaz prostrada na desgraça
a patria de São Luiz!

O Krupp a morte semeia
de Sarbruck até Sedan,
e París, a cortezã,
nas garras da fome anceia!
Que serás, França, ámanhã?!

Pois n'estes dias sombrios
a velha Europa sagaz,
cuidando ter um antraz,
fez ataduras e fios
em vez de fazer a paz!

Lisboa, toda vergonhas,
e orgulhosa, e esmoler,
atraz ficar-lhe não quer
e desata a fazer _monhas_;
mas fios, nem um, sequer!

Acima da humanidade
ha n'esse bom Portugal
o novilho e o boi real.
A dôce fraternidade
anda nos paus do animal.

De meu seio a pura chamma
deixa, ó Deus, arder aqui.
De Lysia a correr fugi
porque lá já ninguem ama
nem mesmo, Senhor, a ti!

Nem mesmo! que sem respeito
tonsurado berrador
troveja em voz de Stentor,
batendo murros no peito,
que o teu braço é vingador;

Que ao reino teu infinito,
á mansão da eterna luz,
tua mão, Senhor, não conduz
quem fez o enorme delicto
de ignorar que houve Jesus;

Que tu, meu Deus, que és o forte
que destruiu Jericó,
que és a Justiça... tu só,
habitas n'aquella córte;
encarnas no immundo pó!

E para acabar o quadro,
para lhe dar mais unção,
afoga o impio sermão
junto á cruz que está no adro
em ondas de carrascão!

No templo teu, Pae divino,
apparato theatral!
Em redoma de crystal
vestido Jesus Menino
de _chéché_ do Carnaval;

E o alvo lirio, Maria,
a pura depois de mãe,
caracoes e rolos tem
como usava a minha tia
quando ia ao Paço em Belem!

No altar-mór o scenario
que effeito fazendo está!
Pallida a lua... acolá!...
Além a cruz... o Calvario...
Fóra, author! Bravo, Rambois![1]

Na nave central--cavaco;
e no côro, ai! pobre fé!
latagões côr de café
uivando dentro d'um sacco:
--Sou o Barba-Azul! Olé!--

A catholica Judêa,
o christianismo pagão,
ousa mais! Põe em acção
do Homem-Deus a epopêa
na sensual procissão!

Ás enfeitadas janellas
corre a curiosa avidez.
_Fazem cauda._ Esperam vez
como se elles e ellas
fossem vêr um entremez!

Depois começa o serviço.
Olho aqui... e olho lá...
no seu _tudo_, e no papá
que embirra co'o tal derriço
por andar no _b-a-ba_.

Namorando as carnes núas
do que vae no floreo andor,
outras dizem:--«Salvador,
se todas são como as tuas
quem não será peccador?!»

Emquanto se eleva o incenso
na caprichosa espiral,
o garoto, essa vestal
dos vates de hoje, no lenço
faz mão baixa e no metal.

E, manso, por entre o grupo
da ondulante multidão,
serpenteia a procissão.
Rumoreja em torno o apupo.
Consternam-se alma e razão.

Que brutos cêpos são esses?
Vae Deus ali? Christo nú
posto a par do _manitú_,
homens dos torpes int'resses,
filhos glotões de Esaú?!...

Tartufo os impetos doma.
Vive agachado o chacal
a espreitar se o olhar fatal
de Filippe á voz de Roma
lampeja no Escurial!

Fiar n'elle!... O incendio lavra
occulto. Na escuridão
forja de novo o grilhão
á consciencia, á palavra,
a satanica legião.

Em teu nome o lar deserto!...
O pranto manando a flux!...
Morta a esp'rança! Extincta a luz!
e da cruz contra o liberto
mudada em punhal a cruz!--

Largamente aqui respira
sêcca a lingua e falto de ar,
que o terno Amor, a fallar,
não é como os de Tavira:
--dá-lhe... dá-lhe até 'stoirar!--

Mas, depois, como o Vesuvio
irrompe. Ao rosto gentil
assoma a raiva, e febril
bate o pé; grita;--um diluvio
manda ao infame covil!

Outro diluvio! incessante
a subir... subir... até
que não fique nada em pé!
nem possa nenhum farçante
fazer arca e ser Noé!--

Deus, que os seus ouvidos presta
ás queixas que Amor lhe faz,
sorri e diz: «Ó rapaz,
um _T_ escripto na testa
porventura me verás?

Eu dei-lhes a lei sublime
nas alturas do Sinai.
Se contra a lei, contra o pae,
conspira Lysia--no crime
do crime o castigo vae.

Triumpha o Milhão, e Hero
não houve mais que uma só?
O Creso do oiro em pó
a flauta fará de Nero,
e da flauta um bom cipó.

E se os maridos, tontinho,
fugindo ás esposas vão,
deixa-os lá. Por fim terão,
em vez do calor do ninho,
os gêlos da solidão.

A vida passa ligeira;
e, quando a morte vier,
qual d'elles é que não quer
dôce oração derradeira
entre beijos de mulher?!

Ai!... Acabar longe d'isto!...
sem perdão!... sem paz!... e meu
sem ser nenhum!... Galileu,
tu que fizeste?... Ó Christo,
teu sangue que fructos deu?!...

Fiz de ti a rósea aurora
da universal redempção;
inda após o teu clarão
o Deus cêpo é o Deus que adora
a proterva multidão!

Pois para amar-me é preciso
mais que os olhos alongar
pelos ceus, por terra, e mar?
mais que o pallôr indeciso
d'uma noite de luar?!

Pois n'esses milhões de mundos,
que girar no espaço fiz,
não falla tudo? não diz
em seus canticos jucundos:
--Senhor! Senhor, existis?!--

Erriça o leão a coma?
Nas sombras do Escurial
ergue a pedra sepulchral
de Filippe a astuta Roma?...
Erga!... e surja o rei fatal!...

Antro, e fera, e vil Tiberio,
tudo no pó sumirei!...
que dos reis eu sou o rei,
e as chaves do meu imperio
a mão nenhuma entreguei!

Perdes o tempo, creança!
Se o perdes, meu doido Amor!
Sei quanto és enganador!
quanto és feroz na vingança
e folgas da alheia dôr!

És vendado, és cego, e ousas
como se visses fallar?!
Pois has de á terra voltar.»--
E o pae de todas as cousas
foi-lhe os olhos desvendar.

Então o dôce fedelho,
tão dôce como cajú,
repara em si... vê-se nú...
faz-se azul... faz-se vermelho
como um monco de perú.

Depois a fugir desata
pelas ethereas regiões.
Atraz d'elle as maldições
de quanta velha beata
foi ao ceu... por alçapões.

Que o ceu que estamos mirando
occultas entradas tem,
e sem fiscal! Inda bem.
A não ser por contrabando
já lá não entra ninguem.

Vôa... vôa... É mesmo um raio
rapido o espaço a rasgar.
Vôa... Á força de voar
perde o alento, e n'um desmaio
vem no chão co'as azas dar!

N'essa noite a authoridade
metteu, zelosa qual é,
o menino em São José;
mas ninguem crê na cidade
que a sciencia o ponha em pé.

Quem tem os dias contados
mais viver não póde, não.
É do amor finda a missão
dês que os fundos, bem cotados,
valem mais que o coração.

[1] Pronuncie _Ramboá_.




_ENTEADA_


Casou segunda vez certo sujeito
que sempre á viuvez torceu a cara.
Deixára-lhe uma filha o velho leito,
e mimo egual o novo lhe offertára.

Quando eu as conheci, uma era forte,
córada, alegre, brincalhona, viva;
pallida a outra, triste, pensativa,
como quem traz em si a dôr e a morte.

Das duas a mais nova, a que é sadía,
a lapis, n'um papel, graciosos traços
d'um corpo de mulher hontem fazia.
No fim as palmas bate, e, erguendo os braços,

«Olha a mamã!» gritou, «De longe basta...
basta vêl-a d'ahi!... Não será ella?»--
Volve-lhe a outra em voz que o sangue gela:
--_Agora pinta lá uma madrasta!_--

Miserrimos poetas que nós somos!
Por mais inspiração que nos abraze,
por mais phantasiar tomos e tomos
não valem juntos, não, aquella phrase.




_N'UM ALBUM_

Por essa existencia fóra
nosso caminho é diff'rente.
Eu vou por onde se chora;
tu por onde canta a gente.
Tu chegas; tu vens agora;
tu sobes qual sobe a aurora;
eu, tal qual o sol poente,
desço... desço!... Vou-me embora.




_RAPHAELA_


I

Era em março, e a Folia,
dando o braço ao Carnaval,
entrava em _Dona Maria_.
Não sei que idea fatal
me levou tambem á festa.

Sei que fui. Sei que vestia
_dominó_ côr de giesta,
e que a mascara, que ao rosto
trago presa todo o dia,
eu trocára, ébrio de gosto,
por outra que não mentia.


II

Ia a noite em mais de meio
quando os pés na sala puz.
Os gritos, a dança, a luz
que os novos encanta, e creio
que mais os velhos seduz,
tocaram-me o coração
por tão estranha maneira,
que a não ter ali á mão
as costas d'uma cadeira,
dava co'as minhas no chão.
Persuadiam-me que a Sorte
quer que o homem seja egual
sómente perante a morte,
e vi eu que o Carnaval
tinha o mesmo poder forte!

Junto a mim o sôr _Sovela_,
disfarçado em lord inglez,
trata por _tu_ o freguez,
que n'outro _tu_ se nivela
com quem as botas lhe fez.
Ao longe o sujo vadio
que, para impingir á gente
um bilhete do _Pão quente_,
corre a Baixa e o Rocio
dando _Excellencias_ a rodo,
agora vestido á turca,
_turca_ por dentro elle todo,
grunhindo sem tom nem som
paga depois da mazurka
ponche ardente a quem tem _Dom_.
N'aquelle canto escondido
o calvo e gordo marido
ás moças falla d'amor;
e como deve o traidor
pela traição ser punido,
n'outro canto anda a mulher
a brincar co'o deus Cupido...
dê o brinquedo o que dér!
Cada flôr, rosa ou jasmim,
com seu calix entreaberto
embalsama este jardim,
e ás abelhas que andam perto
como que as oiço dizer:
--Oh! Bebei dôce prazer
que rendida vos offerto!--

Isto é vida! Isto aqui, sim!
que a humilde e santa egualdade
o mundo mergulha emfim
no sol da eterna verdade!...


III

«Boas noites, dominó.»
--Só isso me dizes?--
                     «Só.
--Pois desde já te requeiro
que ámanhã fiques na cama,
e manda o teu travesseiro
dar umas voltas por cá.
Na chalaça, no epigramma,
as lampas te levará.--
«Quem de espirito é tão fino
devêra ser mais cortez.»
--Vestiu-se de peregrino
a cortezia...--
               «Talvez
d'essa longa romaria
a que foi não voltaria!»
--Assim parece. Não vês?!


IV

Quem me descobre a razão
d'esta infame grosseria?...
Consultando minha tia,
disse-me ella:--És um ratão!
Coisas tuas!...--
                 «Coisas minhas?!
Ora essa!»
          --De quem são?
Se teu pae sem ter gallinhas
te deu boa creação?!--
Mais ainda me condemna
ser a mulher que offendi
segunda Venus de Milo!
Que remorso o que eu senti,
e que nó no gorgomilo,
quando, absorto, o que era vi!...
Que ao fallar olhei... Por Christo!
juro que olhei sem ter visto.


V

Como usa a formosa filha
da formosa Andaluzia,
sob a elegante mantilha
pelos hombros lhe caía
de negro e farto cabello
a madeixa ondeada e crespa.
Na cinturinha de vespa...
Alto lá! De vespa, não;
que é corriqueira a figura
e tola a comparação.--
A cintura... Se lhe chamo
só delgada--aqui d'el-rei!
porque é prosa. Ah! Já sei.
Delgadinha como um ramo
que sustém duas laranjas...
E da voz os sons tão finos
com que os hei de comparar?
Com voz d'anjos pequeninos,
travêssos, loiros, meninos
que andam no ceu a cantar,
aos quaes não tira o chapeu
este pobre filho d'Eva
emquanto Deus o não leva
a conhecel-os no ceu?!...
Impossivel!... Pois com quê?...

Deixe-se lá d'essas franjas,
ruim poeta! Você
não sabe que a natureza
faz coisas de tal belleza
que um homem, se logra vêl-as,
ha de pasmado ficar,
e pasmar... pasmar... pasmar;
mas não tentar descrevêl-as?!


VI

Qual a timida gazella
que no prado anda brincando
estremece e foge quando
sente rumor perto d'ella,
assim Dona Raphaela...
Podia chamar-lhe Jónia,
Mathilde, Elisa ou Antonia.
Era o mesmo. Á mulher bella
todo o nome fica bem.
Toma-lhe a graça, a frescura:
participa da candura
de su'alma... se é que a tem.

Que a minha airosa andaluza
como a gazella fugio,
se o não disse a casta musa
que me inspira, o leitor pio
(não ha _calemburgo_ aqui)
certo de si para si
a crêl-o não se recusa;
mas o que o leitor ignora
é que eu proprio, eu que ind'agora
lhe dissera: _Vae-te embora_,
ao vêl-a fugir fiquei
triste, só, desamparado
como o valido d'um rei
quando cae em desagrado!...

Ai! se o pensamento é vário
mais varía o coração.
Coração--Contradicção--
affirma-me o diccionario
que dois synonymos são.


VII

Amar depois que trinta annos
nos pesam sobre o cachaço;
quando os frios desenganos
guias são do incerto passo
que nos vae levando á campa;
quando a edade a correr vem
e nas faces nos estampa
oitenta rugas, ou cem!
amar sem crenças; amar
sem possuir attractivos;
é padecer, é penar
dôres do inferno entre os vivos.

Sabia-o; mas se fadado
fôra eu já para essa dôr!
e diz Garrett, o doutor
em taes materias versado,
que ninguem foge ao seu fado!
Funesto foi sempre o meu!
Est'alma, que Deus me deu,
em quantos affectos nutre
que devorou Prometheu!.


VIII

Da rósea estancia em que mora
com seu limpido clarão,
sorrindo, ao ceu vinha a aurora
soltar do prégo as azelhas
d'onde pende a escuridão
sobre chaminés e telhas.

A festival harmonia
pouco e pouco esmorecêra;
e co'a luz do novo dia
d'outra oschestra a afinação
mais altos cantos rompêra,
pois que entre os rocios do orvalho
levantára escopro, e malho,
um hymno de gratidão
ao Deus, author do trabalho.

Este aranzel, espremido
n'uma phrase clara e chã,
quer dizer:--era manhã,
e a solfa dos caldeireiros
matava o bicho do ouvido
na rua Augusta aos parceiros.


IX

Cheguei a casa. Quem ama
tambem dorme o seu bocado;
nem ha nada como a cama
para amor ser bem tratado.
Vêde as ratices do mundo!
Sentados no mesmo throno
amor, que é vida;--e o somno,
que da morte é irmão segundo!...

Em tão doloroso trance
é praxe no bom romance
surgir a pallida insomnia
beliscando a cachimonia
do que ás paixões não se poupa;
mas eu, que sigo outra lei,
fui-me enroscando na roupa,
e dormi. Fiz mais: sonhei.

Sonhei, sim. O que é sonhar?
É fugir do captiveiro
d'esta bola sublunar.
A noss'alma, que gemia
entre os ferros, encontrar
a paz, o amor, a alegria,
vivo, real, verdadeiro,
o mundo da phantasia.
É n'um divinal momento
conquistar, possuir, haver
o que nunca o pensamento,
por mais audaz, ousou crêr
que um dia á mão nos viria.
Sonhar é vêr palpitante
a toda a luz da existencia
o pae, os filhos, a amante
que a morte apartou de nós!

Ouvir-lhes a dôce voz...
interromper essa ausencia
eterna, a eterna saudade
que nos deixára o perdêl-os!
Sonhar é esta piedade
do ceu pelas nossas dôres;
esta mão cheia de flôres
que Deus esparge nos gelos!--
Tudo mais são pesadelos.

Pois eu sonhei, e não digo
o sonho que tive então.
Não por ser segredo, não,
que á terra desça commigo;
mas quem tem, como eu, vergonha,
mesmo ao leitor seu amigo
nem sempre diz o que sonha.


X

No outro dia ao almoço,
frugal almoço invejado
ao pobre e triste empregado
a quem aos mezes o Estado
permitte rilhar um osso,
muitas vezes esbrugado;
no outro dia a Gertrudes,
velha magra, feia, teza,
inda cheia, á portugueza,
de calvas e de virtudes,
as quentes papas de milho
veio pôr-me sobre a meza.

A mim a quem nada escapa
logo ali me deu no gôto
O vêl-a andar n'um sarilho
a peneirar-se, e á socapa
sorrindo com ar garôto.

--Gertrudes, que historia é esta?--
E ella a rir.
             --De que ri?!...--
A rir-se mais.
              --Temos festa!
Vae grande baralha aqui
se me não diz, como quero,
porque essa bocca escancára,
e se desengonça, e rebola...
Ella, atalhando:
                «Salero!
Soy, señorito, española!»

Figurem-se a minha cara!!
A visão, a Raphaela
com quem ha pouco sonhára,
o bello typo andaluz,
a flôr de um dia... era ella
saída das mãos do Cruz![2]


XI

A moral d'este meu conto
implica artigos de fé:

        1.º

Quem vê masc'ra não vê rosto.

        2.º

Belleza vista de dia
dê-se-lhe sempre o desconto
de trinta por cento em cré.

        3.º

Depois do sol se haver posto
até a Virgem Maria
precisa ser vista ao pé.

        4.º

Mesmo assim, inda que perto,
não se diga nunca ao certo
que se está longe da Sé.

[2] Guarda-roupa.




_AS MINHAS MEMORIAS_

Á Exc.ma Snr.ª D. A. F. Pinto


Nasci. Vivi. Foi meu cruel destino
ser inutil, vulgar, emquanto moço.
De dôr em dôr, cançado peregrino,
chego á triste velhice sem conforto.
Nunca pude saber o que era tino,
como a bolsa não soube o que é _caroço_.

Quando voltares hei de ser um morto.




_ESTRELLA CADENTE_


Ella não tinha ainda os seus vinte annos.
Eu já cincoenta, ou mais. Poucos enganos
podia haver na conta. Trouxe-a ao cóllo!
Não fôra um pólo em frente do outro pólo;
mas, inda assim, contando-se este caso,
dir-se-ia ao certo: Era uma vez o Occaso,
e era uma vez a Aurora...
                          Não sei como
n'um bello dia, por ser vedado o pomo,
por ser appetitoso, finalmente
não sei porquê!... por eu ser um demente...
por ser ella o retrato da que é morta...
fosse lá porque fosse!--Isso o que importa
n'um bello dia--amei-a!... Uma doença
que a gente apanha quando menos pensa.

               *

Sorriam de piedade os meus amigos
todos á uma, e os novos e os antigos.
Nas salas bichanava-se em cochichos:
«Ora, o ginja! aparando inda os esguichos
com que o _bisnaga_ amor! Atraz da pomba,
o perfido lacrau!»
                    Deitavam tromba
os outros pretendentes. Um barulho
por nada. Então porquê?! Por um arrulho?...
Um simples suspirar?... Pois que mau era
brotar-me em pleno inverno a primavera?...
Durava pouco?... Tanto quanto dura
em toda a terra tudo o que é ventura.
Engeita-se por isso?...
                        A minha idade?!
Fui de Mathusalem socio e confrade.
Adão dizia ao vêr-me: _Olá, compadre!_
Contemporaneo eu sou do eterno Padre.
Não ha mais nada acima. Querem isto?...
O Padre, o velho, foi mais tarde o Christo.
Ondas d'amor jorrou d'aquelle peito.
Remiu. Salvou. Pôz termo ao longo pleito
entre as trevas e a luz, e, porque vinha
em nome só do amor, annos que tinha
ninguem lh'o perguntou.
                        Sinceramente:
ha rugas dentro d'alma?!...

               *

                            Impenitente
morrera n'esta fé; sobre o Evangelho
jurára que mais ama o que é mais velho;
se o ponto da questão, o delicado,
outro não fôra; um velho ser amado!
Aqui é que me dóe!
                   É necessario
primeiro formular um questionario.
Menos se quer á flôr, menos se trata,
por ser de argilla o vaso e não de prata?
Aqui... além... embora onde estiveres...
não és, ó flôr, a mesma?... e das mulheres,
--não digo já de todas; mas d'algumas--
igualmente o _boudoir_ tu não perfumas?...
Não busca asylo a crença, a christandade
não presta o culto seu á Divindade
no templo secular, de negro aspecto,
humida arcada, abobadas por tecto,
como na alegre ermida redourada,
quente aos raios do sol, sempre inundada
de jubilos e festa?!... Amor travêsso,
só por vêr para dentro, vê do avêsso?

               *

Não te illudas, ó louco! A Providencia
dependente do amor fez a existencia.
Para estimulo a amor fez a belleza,
o viço, a força, quanto com certeza
tu já não tens. Por isso no concurso
aos vagos corações a pelle do urso,
a penna luzidia do bom pato,
dão por si preferencia ao candidato.
Esta a verdade crua. O sentimento
depois é que se faz. É-lhe fermento,
é mister que primeiro insuffle a arteria,
e n'ella o sangue injecte, a vil materia.
A bocca, um pé, a guia d'um bigode
mais que as almas em fogo sempre póde.
E tu não valsas!... tu não tens bocca
o _argot_ da moda, a phrase insossa e ôca!
Por mais _ciré_, torcido, repintado,
que o teu bigode vá... bigodeado
és tu que ficas, velho! a torto e a esmo!

Justo e fatal!... Fatal e justo é o mesmo.

No chão não rojes teus cabellos brancos
n'um desespero ignobil! Para arrancos,
para entrares no inferno como o Dante,
a dôr da tua cólica é bastante.
Outras não queiras, outras não procures
improprias já de ti. Não; em nenhures
rejuvenesce o Fausto; e, dês que ha mundo,
quem disse um velho--disse um moribundo.

               *

Ella não tinha ainda os seus vinte annos.
Por não tel-os vivia n'uns enganos
que eu não devia ter nos meus cincoenta.
Distraída commigo olhou attenta
para um moço qualquer. Nem eu me lembro
do nome d'elle já! Era em setembro.
Isso sei eu. Que noite!... Estou a vêl-a!
Ultima noite azul!... Rasto d'estrella,
curva de luz nos amplos ceus cadente,
illuminar-nos veio de repente.
Ella assustou-se, e disse: _Dieu te garde!_

Pouco tempo depois, horas mais tarde,
tal qual a estrella, em rapido trajecto,
no mundo novo entrou d'um novo affecto.




_AO ACTOR JOÃO ANASTACIO ROSA_

que, na sua officina de sapateiro, mandára fazer para uso do author
umas botas impermeaveis


Boas botas com effeito!
Ha que tempos que te eu digo
que, de pequeno, o teu geito
é ser sapateiro, amigo!

Afóra o bico da moda,
que é moda o _bico_ hoje em dia,
quem da terra andasse á roda
_mestre_ assim não toparia.

E lá no mar,--tens ratices!--
com ellas por sobre as ondas
anda a gente como Ulysses
nas aguas das Trabisondas.

O povo grita: Milagre!--;
teus filhos:--Estamos salvos!--;
e tu com graxa e vinagre
vaes enganando os papalvos.

Queima a Sciencia as pestanas
buscando o que seja aquillo;
e nem passadas semanas
conclue que é sebo de grillo!

Tu proprio chuchas no dedo,
_avis rara_, ó _raio_ d'ave;
pois ao fechar teu segredo
perdeste-lhe o tino e a chave.

Seja qual fôr teu systema,
graxa só ou graxa e sebo,
eu, indigena na gemma,
applaudo o que não percebo.

De tão prodigioso invento
só entendo, e não é pouco,
que ou me saíste um portento
ou és rematado louco!

Mas que importa qual diploma
um logar nos dá na Historia?
Toda a estrada leva a Roma.
Por atalhos vae-se á gloria.

É certo que ao fim da vida
a luz do provir é tua:
luz accêsa sem torcida!...
porta aberta com gazua!--

Vê quanto o sec'lo é fecundo!
Vê; regista em tuas notas.
Em poucos annos ao mundo
botou dois homens das botas!




_ÁS RÃS PEDINDO REI_

Traducção da fabula de Lafontaine--Les Grenouilles


Viviam certas rãs n'um charco immundo
em republica plena. Era um pagode!
Tal qual uns democratas que ha no mundo
julgando que a republica, no fundo,
outra coisa não é senão a gente
fazer o que bem quer e quanto póde,
a rã tripudiava impunemente.
Todos os dias era certo o choque
entre o batrachio forte, intransigente,
e parte da nação já descontente
que a Jupiter pedia ou rei ou roque.

      O deus fez-lhe a vontade.
Largou-lhe lá do ceu um rei pacato,
      de summa gravidade.

Das alturas tombando, o rei na quéda
      fez tal espalhafato,
que as fêmeas em pavor, os machos fulos,
aquellas saltitando, estes aos pulos,
como é uso das rãs nas grandes crises,
cada qual a gritar:--arreda! arreda!--
entre os juncaes, no lôdo, nas raizes
dos salgueiraes se enreda.

               *

Por longo tempo em seus esconderijos
das rãs esteve homiziado o povo.
Transformaram-se em medo os regosijos
da antiga bacchanal. Gigante novo
cuidavam ser o rei que o ceu lhes déra.
Não ousavam sequer saír da tóca;
pois, não raro, os instinctos maus da fera
por imprudente a presa é que os provoca.

Já n'essas eras muito a pêllo vinha
dizer: _Cautela e caldos de gallinha..._

O rei era um pedaço de madeira.
Nem mais, nem menos.
                     N'uma bella tarde
uma das rãs, por ser menos covarde
      ou mais bisbilhoteira,
tirou-se de cuidados, manso e manso
na flôr das aguas surge, e ás guinadinhas
      com muito tento e geito
      do cêpo se aproxima.
Após ella vem outra... e outra... aos centos.
Vendo que o rei não sae do seu ripanso,
rodeiam-no; coaxam: _Salta acima!..._
      e coaxado e feito!...

O rei, temido outr'ora, ás pecuinhas
d'essa chusma villã se vê sujeito.
      Em rapido momento
sobre elle a malta audaz se encarapita,
e faz do bom monarcha um bom assento.
Nem chus nem bus! Calado que nem porta,
qual fôra n'outros tempos!...
                              Isto irrita.
Rompem as rãs então n'uma algazarra
      que o pantano atordôa,
os fios d'alma a quem as ouve corta.
«Leva d'aqui, ó Jove, esta almanjarra
que nem mexe, nem pune, nem perdôa,
e mais parece uma alimaria morta,
      cabide d'uma c'rôa,
em vez de nosso rei--nossa vergonha!»
Vae Jupiter que faz? Uma cegonha,
das muitas que possue, logo destaca,
e manda que das rãs ponha e disponha,
n'uma das mãos o queijo e n'outra a faca.
Ora a cegonha, apenas em seu throno
dona das rãs se vê e sem ter dono,
diz comsigo:
            --Nasci dentro d'um folle!
Quem tira agora o papo da miseria
sempre sou eu!...--
                   Passeia toda séria,
perna aqui... perna além, n'um andar molle,
e quanta rã apanha quanta engole.

               *

Geral consternação o charco enluta.
      Renovam-se as lamurias:
que o rei é doido e tem ás vezes furias;
que, doido ou não, o povo trata á bruta;
por fim, que faça o deus formal promessa
d'outro rei que as não coma tão depressa!
      O Jupiter tonante
d'est'arte lhes responde:
                          «Inutil prece!
Dei-vos um rei tranquillo, inoffensivo,
que nem sempre se tem nem se merece:
      um rei que era um regalo!
Foi vêl-o e pôl-o pela barra fóra!
Dei-vos segundo: um genio um pouco vivo...
      um pouco extravagante...
      Meninas, aguental-o!
Era bom o primeiro e foi-se embora.
      É mau este de agora.
Contentae-vos com elle, ó meus endezes,
pois venha quem vier... peior mil vezes.»




_ONZE DE NOVEMBRO_


É noite de São Martinho,
rival do velho Noé.
Cae agua em logar de vinho,
e--milagre!--o meu visinho
entra em casa por seu pé!...

Memorias do alegre santo,
porque é que tanto duraes
se eu já nem bailo nem canto
dês que me deram quebranto
as peças originaes?!

Até as caras meninas,
socias minhas na funcção,
rosas, d'antes, purpurinas,
por muito favor--cravinas...
d'Ambrosio cravinas são.

Martinho, ao que chega a gente!
Ellas feitas uns pasteis
de carne velha e doente;
eu comprando cada dente
por tres e quatro mil reis!

Bem me toucaram taes flôres!
Bem com ellas me touquei!
Da cabeça agora as dôres
quem m'as faz são os tenores,
as portarias, e a lei!

A lei!... a eterna cantiga!
o eterno sarapatel!
Na nossa edade, e na antiga,
lá para uns certos--espiga;
lá para uns outros--papel.

Só uma córta direito:
só a lei da morte é egual.
Para calcular-lhe o effeito
vou, deitado no meu leito,
dormir um somno real.




_ASSIM É QUE EU GÓSTO D'ELLA!_


Eu nunca fui poeta. Era loucura
mostrar depois de velho pretensões
quando as não tive em horas de ventura,
de tão dôces, mas breves, illusões.

Então era a minh'alma que gemia
no vago anceio d'onde nasce o amor;
mas hoje sei que amor no mesmo dia
nasce, esmorece, e morre como a flôr.

Da meiga briza o tépido bafejo,
a rosa perfumada, o pôr do sol,
as nuvens d'oiro,--esplendido cortejo
do astro-rei, a voz do rouxinol;

Esse hymno immenso com que a terra exprime
viva saudade pela extincta luz,
se para mim então era sublime,
ai! que já por meu mal me não seduz!

Quando contemplo agora o fim da tarde,
quando ao sumir-se no crystallino mar
o facho accêso sobre as ondas arde
e vae depois nas ondas mergulhar;

Sabeis vós o que penso em tal instante?
--Vêde a que prosa vil isto chegou!--
Sabeis vós o que penso?'... o que lamento?...
O dia mais de vida que passou.

    De vida, sim, meus senhores,
    que não ha pechincha egual!
    Só algum sarrafaçal
    em horas de maus humores
    grunhirá sombrio e rouco
    que pelo seu fim anhela!
    Eu cá por mim acho pouco
    e morro d'amores por ella!

    A vida saboreada
    de um certo modo que eu sei.
    Nem limpa-botas nem rei;
    trazer camisa lavada;
    bem lavada a consciencia;
    libras velhas na algibeira;
    ter um trem e por decencia
    um garoto na trazeira.

    Cadeiras... todas de braços,
    fôfas como pão de ló.
    Nunca dar ponto sem nó
    nem pôr ponto em dar abraços.
    Caçadas... feitas no prato,
    e sobre a caça café.
    Charutos... dos de contracto
    _Lib'ra nos!_ antes galé.

    Vejam se eu dava o cavaco
    ou se quebrava o toutiço
    por ser tudo quebradiço
    n'este mundo como um caco!
    Em se quebrando... acabou-se.
    Ora, adeus! Fortes lamechas!
    Era bonito se fosse
    ficando tudo p'ra mechas!

    Amor de marrafa branca
    como o cão e a cadellinha
    sempre fiel! Que gracinha!...
    Ao chá por baixo da banca
    dando ternas pizadellas
    que as meias deixam de luto,
    que fazem vêr as estrellas,
    e provam que o par é bruto.

    Ter sempre o mesmo barbeiro
    e sempre o mesmo topete!...
    Á mesa do voltarete
    defronte o mesmo parceiro!...
    O molle ser sempre o molle!...
    sempre esperto o serigaita!...
    Na mesma gaita de folle
    soprar quem sopra tal gaita!...

    Quem pensa assim... ai! coitado!
    ou perdeu todo o juizo,
    ou se tem dente do sizo
    pelo alveitar foi achado.
    Para mim que sou amante
    do que muda e do que mexe,
    como havia ser seccante
    o tal mundo de escabeche!

    Beijar nos pulsos a algema
    com que Amor nos manietava;
    amanhã mandal-a á fava;
    a belleza eis do systema.
    Ser hoje amigo do Brito,
    amanhã sêl-o dos Soisas!...
    Viajar hoje no Egypto;
    vêr ámanhã novas coisas!

    Isto, sim, que é prazer certo!
    Quem julgar que assim não presta
    diga adeus a esta festa
    que o cemiterio está perto!
    Pois póde haver tolerancia
    na China, aqui, ou em Gôa
    com quem defende a constancia
    que é a maçada em pessoa?!

    Aqui d'el-rei porque mente
    toda a humana geração!...
    Grande pena!... pois então,
    se mente, mente-lhe a gente.
    Por mentira, mentirola.
    Por esparrella, esparrella.
    Assim vae esta charola:
    assim é que eu gosto d'ella!

    Dizem que a vida os assusta
    porque em tudo encontram móca;
    que o bem a todos não toca,
    que a Justiça não é justa.
    Eu, por mim, quero-a mais larga,
    que, se acaso um dia fôr
    parar-lhe ás mãos, menos carga
    sobre os hombros me ha de pôr.

    E se o bem me não tocar
    tambem uma vez sómente,
    ferro commigo no quente
    e, lá, desato a chorar.
    Não é mau. Dou de conselho
    a quem quizer divertir-se
    que chore em frente do espelho
    e por força acaba a rir-se.

    Chorar é bom! Quem me dera
    nos tempos que já lá vão
    quando, moço, o coração,
    ao romper a primavera
    sobresaltado tremia,
    e da terra toda em flôr
    juntava á meiga harmonia
    doces lagrimas d'amor!

    Se á vida não acham geito
    porque todos têm chorado,
    cá para mim vem barrado
    quem lhe põe este defeito.
    Elles que foram pequenos
    e contra as lagrimas chiam,
    de _lacrima christi_ ao menos
    um copo não beberiam?

    Tal resmuneia e se queixa
    que as filhas não fecha a mãe;
    que a mãe namora tambem,
    e mais que torna e que deixa!
    Ih! Jesus!... Que gritaria!
    Se a mãe as filhas fechasse,
    nenhuma as portas abria.
    Ai de quem as arrombasse!

    Caturras! Se ha quem supponha
    nas politicas regiões
    que inda póde haver Catões
    sendo tão rara a vergonha!...
    O galante é que no jogo
    cada qual puxa o seu trunfo
    quando sem armas nem fogo
    alcançar póde o triumpho!

    Deploram republicanos
    que lhes tosquiam as azas?
    Pois vão lá p'ra suas casas
    fazer dos creados--manos.
    Os outros temem que os thronos
    se despedacem? Demonio!
    Não lhes resta ainda, monos,
    os thronos de Santo Antonio?--

    Tudo aqui se remedeia;
    tudo tem facil saída
    se as honras dermos á vida
    d'um jantar ou d'uma ceia.
    Quem tentar pôl-a a direito
    perde o tempo e a razão
    porque luta peito a peito
    com phantastica visão.

Eu nunca fui poeta. Agora vêdes
que menos do que nunca aspiro a sêl-o.
Se espalmar-me tentei pelas paredes
do teu Parnaso, Apollo, vae-me ao pêllo!

Põe-me nú se conservo n'este fato
algum resto de parvoas pretensões,
já que o mundo como é, o mundo ingrato,
despir-me soube as dôces illusões.

Dormi. Sonhei. Do sonho hoje acordado
na prosa da verdade emfim caí;
mas como tudo tem sempre um bom lado
ganhei gordura se illusões perdi.




_EM CINTRA_


        Tal qual como o sacrista,
o velho Catecismo soletrando,
        primeiro se espreguiça;
cabeceia depois de quando em quando;
        por fim já não atina
se ha tres, se um cento d'inimigos d'alma;
        meninos e doutrina,
        rosnando manda á missa;
engendra um travesseiro da batina;
deita-se e dorme emquanto dura a calma:
farto da vida fui-me estiraçando
n'este alcantil, onde aves de rapina
        fizeram ninho outr'ora.
        Ao longe o sol declina;
        já sobre as ondas arde.
        Soltando a voz sonora
n'um murmurio suave expira a tarde.

Ai! quem me dera aqui morrer agora!...
Não ha somno melhor!... Somno?... Sería?...
Eu penso que não é, que sentiria
em torno do meu sêr, do meu sêr novo,
uma coisa qualquer que a phantasia
não ousa precisar, á qual aspiro,
para a qual vou fugindo, que me chama,
na qual hei de caír como em seu giro
alado insecto vae caír na chamma.

Não é tolice, não. Quem n'este mundo
diria afoito ao sabio mais profundo,
se n'esse tempo o mundo sabios tinha,
que dentro da gallinha estava um ovo
e dentro d'aquelle ovo outra gallinha?...
Assim succede em tudo. Muda a fórma;
as condições variam da existencia;
mas, por mais que a materia se transforma,
intacta se conserva sempre a essencia.
Logo: hei de viver. Ter consciencia
d'aquillo que então fôr!...

                UM CORVO (_que fende o espaço, grasnando_)

                            Senil demencia!
Sobre essa rocha estoira como um ôdre:
        terás a mesma sorte
        de tudo quanto é pôdre.
        Serei eu só bastante
para fazer-te o corpo n'um farrapo.
Que vida has de viver desde esse instante
        mettido no meu papo?
Aonde a consciencia?... o sentimento?...
        Perante a Eternidade
        tu duras um momento.
        Serviste o pensamento
        da grande Divindade;
        depois!... Depois da morte
        não és coisa que importe
        do mundo ao movimento.

                UMA ANDORINHA (_chilreando em roda da penedia_)

        Ai! terra onde nasci!
        Ai! dôce patria minha!
        tão longe eu sou de ti!...

        Saudosa do palmar,
        aqui, pobre avesinha,
        errante a voltear.

        Um dia... qual--não sei...
        um dia, em vindo o inverno,
        de novo á patria irei.

        Então sob o docel
        d'aquelle azul eterno,
        nos plainos meus d'Argel

        Emfim serei feliz!
        Nenhuma primavera
        roubar-me ao meu paiz

        Jamais conseguirá!...
        Uma outra pátria, espera,
        tambem te surrirá.

                UM SAPO (_no fundo do valle_)

        Cantigas! boas cantigas
        lá por cima oiço cantar.
        Do que vae cá pela terra
        entendem mais as formigas,
        sabem mais reptis na serra
        que os passarinhos no ar.

        Deixa piar a andorinha.
        Bem facilmente se ad'vinha
        a tua sorte futura.
        Tu és, amigo, a doninha.
        É teu sapo a sepultura.

        Cantigas! Boas cantigas!
        Quem trinca, trinca; trincou.
        As doninhas que hei papado
        por mais figas, figas, figas
        que as outras me têm armado,
        ninguem d'aqui m'as levou!

                O PINHAL (_ao longe_)

        N'um cantico dolente
        meus hymnos rumorejo.
É Deus que passa em mim; o Deus que eu vejo
em tudo o que palpita, e vive, e sente.
        Ó balsamica rosa,
quando a fragrancia exhalas docemente
        da petala mimosa;
        lá quando do teu seio,
tepido ninho d'um amor fremente,
        irrompem n'um gorgeio
        maternas alegrias,
é Deus que passa, o rosto surridente,
        cercado de harmonias.

                O SINO DA PENA

                    Dong!...
                    Dong!...
                    Dong!...

        UM VELHO QUE VAE NA ESTRADA (_tirando o barrete_)

            Avè, Maria,
            cheia de graça...

                O SINO

                    Dong!...
                    Dong!...
                    Dong!...
N'estas auras subtis do fim do dia
--descobri-vos, mortaes!--é Deus que passa.
                    Dong!...
                    Dong!...
                    Dong!...

Desde a remota edade á edade hodierna
Descrença e Fé por esse mundo fóra
vão em perpetua luta caminhando.
Da Sciencia os cartapacios consultando
em Deus não crê, não crê na vida eterna
quem da eterna sciencia tudo ignora.
Sei d'alguns que não crêem... porque é moda...
por ser qualquer idea contrabando
em casco avariado. Finalmente,
crêr, ou não crêr, a certos pouco importa,
        por isso que incommoda
andar com seus botões pensando a gente
no fim que ha de levar depois de morta.

Eu á Sciencia estranho e bom jarreta,
eu que penso em morrer, por ser um vivo
que fecha a mala e puxa da gorgeta,
encontro ás minhas maguas lenitivo
crendo que ambas as coisas não são pêta.
Tudo em roda de mim é o grande effeito
d'uma causa maior, cuja existencia
dois principios envolve fatalmente;
        amor e omnipotencia:
poder que salva; amor sempre clemente.

Isto me fique ao menos! Hei mudado
de pensar e sentir bastantes vezes.
Só não pude sentir nem ter pensado
ser o mundo um curral, e nós--as rezes.




_PEDINDO O INDULTO_

D'UM ALUMNO MILITAR

que em 1872 foi expulso do Lyceu de Lisboa por não haver restituido a
outro alumno um livro que lhe pedira emprestado


Misericordia!... Um rapaz
sem reflexão e sem tino, que
é da milicia e inda traz
reles buço de menino,
brincando pede e sonega
um mau livro a um mau collega.
O facto é grave! A moral
traja luto!... Esta noticia
corre por maneira tal
que até chegou á policia!

Desloca a pedra angular
do social edificio!...
Cheira a Communa!... Pelo ar,
em busca d'um outro officio,
paira e pia a disciplina!...
Ai de nós! que é certa a ruina
se um braço potente e audaz
não suspende o cataclysmo!...
Corte-se fundo o antraz!
Dôa e pelle o sinapismo!

Assim se fez. Lá no ceu
ha quem nos proteja ainda.
A lei pune. O infame reu
cae prostrado, e o p'rigo finda.
Sabia a lei no monstro fere
_Cartouche e Robert Macaire._
N'um golpe os reduz a pó!
Da dupla calamidade,
descascando um ovo só,
livra e salva a humanidade!

Os relaxados sandeus
dizem:--Não valia a pena.--
Mas é que a Lei, pygmeus,
não raciocina, condemna.
E raciocinasse!... O pepino
não se torce em pequenino?
Aprender nos livros quiz?
Quiz illustrar a sua farda?
Fique burro, que o paiz
gosta que o sirvam d'albarda.

A vergonha, a nodoa, o que é?
O que foi sempre. Esta é fina!
Um pinguinho de rapé
que se tira com benzina:
um nada... que inhabilita:
a letra fatal escripta
com ferro em braza na mão!
E n'este abysmo se lança
sem piedade e sem razão
uma inconsciente creança!...

Melhor livro alguem pilhou
sem ninguem lhe gritar:--Larga!--
Lambeu; os beiços limpou;
e poz-se de mão na ilharga!
Não! que o melro d'alto canta!
e quando ás vezes se espanta
fazem-no Deus, tal crereis?
Uno e bis trino,--isto é sério,
pois sendo os ministros seis
é só elle um ministerio!

O supplicante, senhor,
cartista puro, em presença
dos factos que vem de expôr,
pede o indulto e a recompensa
que o pobre rapaz merece.
É fundada a sua prece
em ser a Lei coisa igual:
e, sendo, já me contento,
se não póde ser mar'chal
façam-no ao menos sargento.




_PROCESSO_

1875


_LIBELLO_

                            _Le cynisme de l'apostasie._
                                              (Berryer).

Que graçolas são essas, senhor Palha?
Que estulto riso sobre tudo espalha?
Costuma attribuir-se a pouco siso
O séstro folião do eterno riso.
E cuidou tirar joias d'um thesouro?
Cuidou ter dito bocadinhos d'ouro?
Pilherias de matar, chistes d'arromba?
Pois nunca embalde co'a razão se zomba,
E com ella zombou no seu escripto.
Uma coisa é _espirito_, outra _esprito_.
Já vê que me refiro á carta-asneira
Abrindo aos disparates a torneira
Nas illustres columnas do _Illustrado_.
Quanto fôra melhor estar calado!
A defeza enterrou-lhe a protegida,
Ha patronos assim; hoje é perdida
A causa da Madama. Andou de leve
Em tudo quanto disse, e nunca teve
Hora mais infeliz. Veja: primeiro
O seu grande argumento é--_dá dinheiro!_
Que miseria inaudita! D'esse modo
Bota abaixo a moral do mundo todo.
Ó venenos subtis, ó ferros finos.
Quem maldirá a mão dos assassinos
Se vós rendeis milhões? Ó lupanares
Da vil prostituição, nos seus cantares
Passou-vos Palha carta de limpeza.
Lucraes muito por dia? Santa empreza.
Não quer saber de mais; o merecimento
Afére-o pelo ganho; isto é nojento.
A moral, a virtude, que lhe importa?
O caso está em quanto rende a porta,
A corrupção geral é que o deleita
Dês que possa ser fonte de receita.
A arte mascarou-se em traficante,
A arte é _chilrear_ e vêr sonante.
E houve quem berrasse, e inda hoje berra,
Contra o barbaro interesse da Inglaterra
Envenenando a China? Que patetas!
Não haviam mugir á vacca as tetas?
Se vem sangue no tarro que tem isso?
O sangue tambem faz bello chouriço.
E fresquinha a _Madama_, e curto o fato?
Diz elle que o reparo é caricato.
Pois quanto mais a filha mostra a perna
E a linguagem mais cheira a taberna
Mais acode o concurso hoje em Lisboa
Que até na _côrte_, em gripho, inda resôa
A fama de Cascaes e os lindos _fados_
Que por lá se dançaram, e os trinados
Da banza afidalgada; haja folgança
Que n'este mundo ha só prazer e pança.
Na insulsa peça o Palha chocarreiro
Só dá voto de peso ao bilheteiro;
Com este é tudo bom. Frivolidades.
Phrases regateiraes, e necedades;
A praça da Figueira, emfim, na scena.
Sem um dito sequer que faça pena
De não lembrar depois; eis o encanto
Do Palha da Trindade; e faz-lhe espanto
Que os da _Nação_ não saltem d'alegria,
E ratos diz que são de _Sacristia_...
Alto lá, senhor Palha, mais decencia.
Não se emporcalhe assim _Vossa Excellencia_.
Não bula na _Nação_, que o trouxe ao collo,
Que passa por ingrato, além de tolo.
Pois não andou por lá de noite e dia?
Não foi rato tambem na sacristia?
Então o dizer mal mui mal lhe fica;
Embora n'outra parte arme a futrica.
O bonito é caluda. Se hoje adora
O que d'antes queimára, rôa agora
Nas lonas do theatro, chupe azeite
Dos candieiros da rampa, mas não deite
Só por na corrupção viver contente
Má fama da que fôra sua gente.
Que mal lhe fez á bolsa, em que só pensa,
A antiga tradição, a antiga crença?
Desertou; e bem viu que foi tranquillo.
Nenhum tiro se deu a perseguil-o.
Nenhuma voz se ergueu bradando--raca--,
Nem ninguem lhe puxou pela casaca.
Virou-a como quiz; e nem as trovas
D'aquelle _José Paes de Torres Novas_
Ninguem lhe recordou: assim, nem pio,
Que mais calvo o farão, e inda faz frio.
Se seu honrado pae resuscitasse
Como o rubor lhe subiria á face
Vendo o filho truão na patria cara
Cuspir injurias, com facecia ignara;
Vendo o filho nos tempos em que vamos
Morder insano a procissão de Ramos!
Que tem, que póde ter gambia obscena,
Em anzol de patacos sobre a scena,
Com pia procissão, qualquer que seja,
Dês que tem por escudo a Santa Egreja?
Como o tal velho Palha encresparia
O sobr'olho a toda esta porcaria?
Vêr seu filho gabando os assobios
D'amoladinhos vãos e de vadios;
Censurar a gravata séria e lisa;
O _pé fresco_ exaltar; gente em camisa;
Ser-lhe, emfim, tudo antigo de quizilia
E comicos só ter como familia!...
Ó manes venerandos e _embécados_
Dos Desembargadores, sois trocados
Na voz do filho e neto, em sêde d'ouro.
Por titeres do palco! Forte estouro
Levava o tal amigo se surgia
Toda a Palha anciã, se não morria
De vergonha outra vez, que é coisa dura
Ver por nossos mordida a sepultura!
Mas basta, senhor Palha, e se inda a fome
Lhe exige mais roer, roa em seu nome.

                               (_A Nação_).


_CONTRARIEDADE_

                                _.......... e nunca teve
                                Hora mais infeliz....._

                                        (V. Exc.ª mesmo).

Cantor das duzias, teu rosto
porque é que encobres assim?
Quem és tu? Es Arlequim?
Es o Furioso de Ariosto?
Es o Roberto Pimpim?

És um anão Torquemada
com pretensões a Vestal,
fructo da copla carnal
do author da _Besta esfolada_
e do esfolado animal?...

Não és coisa alguma d'estas?
Então, ó santinho, o que és?
Pedes p'r'a missa das dez,
ou tocas órgão nas festas
e dás aos folles co'os pés?

Pela linguagem rasteira
comtigo decerto dou.
Se pae não és, és avô
da que chamas regateira,
da propria filha da Angot.

E a neta engeitas?... e á neta
condemnas a phrase chã?
Que cheira mal a hortelã
dizêl-o póde, pateta,
a vil cebola albarrã?

É franca? P'ra sempre o seja.
Vale mais ter esse dom
que ser beato e maçon
e berrar que é contra a Egreja
_colhér e trolha!..._ Chiton!

Mostra uma perna? Essa é boa!
Olhem lá co'o que elle vem!
Mostrou uma? Pois tambem
você percorre Lisboa
mostrando as quatro que tem.

Ó sociedade corrupta!...
Ó moralista infeliz!...
que viste a perna da actriz
e em vez de beber cicuta
vaes beber... ao chafariz!

Eu sei que o mundo é doente.
Tem um scirro que o corroe.
Além d'isso ao fraco heroe
doe-lhe inda a raiz do dente
que foi arrancar a Alcoy.

Ao mais pequeno symptoma
que indique augmento do mal
recresce a faina geral.
Com papas lhe acode Roma
na região temporal;

Dá-lhe sangrias Castella;
põe-lhe um cauterio o allemão,
emquanto mata o capão
e ferve á pressa a panella
a Italia no seu vulcão.

Em França a magna assemblea
revôlta, ignara, loquaz,
discute se é agua raz
ou se é forca a panacea
n'este momento efficaz.

Seguindo o fraterno impulso,
o frio, sizudo inglez
chega-se ao leito do endez
e diz, tomando-lhe o pulso:
_Inda não vae d'esta vez._

E o pai da magra Siberia,
o grande doutor Moscow,
da casa de Deus avô
brama:--_Pois se a coisa é séria,
ó rapazinhos, lá vou._

Mas tu co'os teus alfarrabios
e com teu surriso alvar
é vêr, apalpar, e... obrar.
Podera! Que valem sabios
onde apparece o alveitar?...

Assim, receitas á antiga:
«Dois grãos de moral... de Adão,
que andou nú e foi burlão.
Com elles faça uma figa,
raspe, e metta de infusão.

«Deite depois disciplinas
com ponta de pita e nó.
Misture São Pedro em pó,
e co'as minhas proprias clinas
fomente o enfermo sem dó.

«Note bem. Rigor na dieta
de acepipes liberaes.
Não cheirar sequer jornaes.
Se a cura for incompleta
dê-lhe mais... e mais... e mais!»

O mau, o peior, o diabo,
ó cego Miramolim,
é que essa droga ruim
por um triz que já deu cabo
do mundo vezes sem fim.

Não faças mais medicina
que o tempo gastas em vão;
e, se és tolo ou charlatão,
grunhe contra a tua sina,
mas contra mim, isso não.

Porque andei lá na botica
de _avantal_ e braços nús,
porque os xaropes compuz,
mais e mais se justifica
meu tédio pelo alcaçuz.

E se a _Nação_ me deu mama,
se ao collo trazer-me quiz,
porque estranhas se lhe eu fiz
no regaço e p'ra tal ama
o que faz todo o petiz?!

Sob a campa que os encerra
deixa tranquillos os meus.
Não chames, rei dos pygmeus,
para as contendas da terra
aquelles que estão com Deus.

Do seu tempo honradamente
seguiram costume e lei.
Com ser do meu provarei
que amo a patria, a minha gente,
e o seu exemplo imitei.

E se algum, velha maluca,
surgisse da eterna paz,
de provar-me era incapaz,
que os olhos estão na nuca;
que o _direito_ é andar p'ra traz.


_SENTENÇA_

Estes autos correndo folha a folha,
d'elles fica provado á saciedade
que tem bolha a _Nação_, e que tem bolha
      o Palha da Trindade.
Marfára-se o jornal só porque em scena
      mostrára certa artista
uma das pernas gordas, e essa--obscena.
O Palha redarguiu: que era uma pena
      e, mais, uma injustiça
tratar como se fôra de corista
a perna d'uma actriz--das de mão cheia;
      --que a perna era a cubiça
      do velho jornalista;
--que o ferro d'elle, o ferro... era que a meia
cobrisse aquella gambia tão roliça;
      por fim--que era um sacrista...
insulto enorme a quem ajuda á missa!

      Ás partes deu-se vista
da perna questionada. Era postiça.

Recalcitra a _Nação_, accesa em febre:
--que fôra burla torpe, e facto novo
em terra portugueza, dar-se ao povo
      um gato em vez de lebre.
--Que falsa ou verdadeira a perna fosse,
de rama d'algodão, ou simples cana,
sempre era perna, e _gratis_ dava um dôce
a quem de lhe morder não désse a gana.
      D'ahi a grave offensa
á pureza moral da raça humana;
      a indignação immensa
d'uma sã consciencia ultramontana!
--Que o Palha tambem fôra antigamente
      irmão na sacristia
levantando a ração, conforme a havia,
      e sempre com bom dente.
      --Que lá n'um bello dia
fugira como um burro cacilheiro
sem lhe gritarem: _Chó!..._ Que santa gente!

Que o réles emprezario, tendo o fito
      nas cruzes do dinheiro,
      trazia todo inteiro,
aos pinchos, dentro em si, um vil cabrito:
a fórma d'animal mais predilecta
      do Belzebuth maldito
quando a noss'alma empanzinar projecta.
--Que os paes, avós, emfim toda a Palhada
que jaz na cova, qual vivera, honrada,
      por causa da tal perna
      ficára condemnada
d'uma eterna vergonha á dôr eterna.
O réo contesta, e diz:
                      --Que era verdade
      haver por lá andado;
      mas n'uma tal edade
que não chegára nunca a ser ferrado.
      --Que o tinham n'um cerrado
onde brotava apenas a Saudade;
      constante era a estiagem;
      o ceu caliginoso;
de lagrimas sómente a beberagem;
por festa o cardo; espinhos só por goso.
--Que tiritando ali, aguado o pêllo,
      extincto o movimento,
transportado se vira n'um momento
ás pávidas mansões do eterno gêlo.
--Que, lá muito de longe, a Liberdade
      lhe fez então negaças.

«Tens frio?... Vem. Aqueço. A escuridade
é de razão deixal-a á sepultura,
veu das caveiras, manto das carcassas!
Chama-te a luz! a luz que vem da altura
dos iriados ceus!... Surge!... Caminha!...
Quanto mais caminhar a humanidade
do espirito de Deus mais se avisinha.»

Apoz da seducçáo d'aquelle canto,
      ouvindo aquelles hymnos,
homem por elles feito, erguida a fronte,
partira ancioso em busca do horisonte
onde, envolvida em nimbos purpurinos,
      c'roada d'amaranto,
      a deusa refulgia.
Partira. Fôra. E não se arrependia.

Conspurcal-a pretendem? Na passagem
cospem-lhe insultos? Baixam-lhe a pagode
o templo augusto? Arrastam-na á voragem?
Ella é pura sempre; é sempre forte!
Póde velar seu rosto; só não póde,
sem que renasça, captival-a a morte!

E disse mais. E disse d'esta sorte:
--Que mesmo ao Santo Padre, e mais é santo,
não faz o dinheirinho um mau cabello...
nem, em nome de Pedro, recebêl-o.
Para engeital-o, em menospreço tel-o,
nas mãos como José largar-lhe o manto,
um pobre peccador e Belisario,
      seria necessario
      que fosse um dromedario;
      que fosse um gran camêlo!

--Que exhibir uma perna no theatro
não era nada comparado ás quatro
sobre as quaes a _Nação_ a qualquer hora
vae, cabisbaixa, manquejando legoas
por esse paiz fóra.

      --Que em seu rancor profundo,
sendo christã, não dera ao menos tregoas
áquelles que dormiam descançados
      nas sombras do outro mundo!...
      Coitados!...
                   Sim; coitados!
Empenharam-se juntos na batalha
em pró do mesmo rei. Nos mesmos fossos
o mesmo pó morderam. Na mortalha
nem isso lhes valeu!
                     Ai! pobres ossos!

Ouvidos por tal fórma ambos os lados;
e
      --Sendo mais que certo
que a folha authora, os olhos pondo em Christo,
por um cantinho d'elles já tem visto
pernas no palco, e pernas mais ao perto,
sem que torça o nariz ou mostre nojo;
--Não podendo a Moral chegar tão longe
que exija a cada canto um Varatojo,
nem de cada mortal engendre um monge
      dormindo sobre o tojo;
e
  Visto que a _Nação_ no seu ataque
foi rude, e foi cruel, e deu motivo
      do Palha ao fogo vivo
      que a poz, no ardor do saque,
pouco mais, pouco menos, como um crivo;

--Sendo que o Palha, embora na defeza,
      faltou ás leis da guerra
contundindo a _Nação_ prostrada em terra;
inutil, bestial, impia fereza,
inda em cima aggravada na certeza
de estar sovando um martyr;
                            Attendendo
a ter o mesmo reu a consciencia
      do mal que procedia
quando, esquecendo a antiga convivencia
      por futil ninharia,
em vez de lhe deitar logo um remendo
se poz a esg'ravatar na porcaria;
Manda a Justiça, a cega, a que é machucha,
      a pomba immaculada,
      a fossil que nem chucha
nem consente sequer em ser chuchada;
ordena a incorruptivel,--Deus lhes valha!...
que vejam bruxa os dois! Veja uma bruxa
a bruxa da _Nação_! Veja outra o Palha.

Assim, condemno os dois da vida airada.

Em castigo ao jornal seja o Libello,
n'um livro, publicado. E que o releia,
(pequena penitencia ao grande excesso!)
quem á bilis soez abriu a veia.
Saibam-lhe a fel, e trinque-os sempre á ceia,
os fructos do seu odio!
                        Dal-o ao prelo,
dar-se a si mesmo em elzevir impresso,
jungidos ambos, presos n'um só elo,
do Palha a pena seja, e o seu flagello!

      Na mesma falta incursos,
e n'outra falta ainda, a de recursos,
paguem os dois as custas do processo.




_INDICE_


Dona Morte

Por fim

Carta ao Conde d'Almedina, Inspector da Academia Real de Bellas-Artes,
que no estrangeiro sollicitou uma commenda para o author

Requerimento

Prefacio d'um livro inedito

Mal por mal

A uma creatura

Além da campa

A Julio Cesar Machado, que em folhetim do _Diario de Noticias_ dirigira
ao author phrases benevolas

Dies iræ

O meu tinteiro

A Venus nova

O lobo e o cão

Deus e o Amor

Enteada

N'um album

Raphaela

As minhas memorias

Estrella cadente

Ao actor João Anastacio Rosa que, na sua officina de sapateiro, mandára
fazer para uso do author umas botas impermeaveis

Ás rãs pedindo rei

Onze de Novembro

Assim é que eu gósto d'ella!

Em Cintra

Pedindo o indulto d'um alumno militar que em 1872 foi expulso do Lyceu
de Lisboa por não haver restituido a outro alumno um livro que lhe
pedira emprestado

Processo (1875)

    Libello

    Contrariedade

    Sentença





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To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
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Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
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