A Illustre Casa de Ramires

By Eça de Queirós

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Title: A Illustre Casa de Ramires

Author: Eça de Queiroz

Release Date: October 22, 2007 [EBook #23145]

Language: Portuguese


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Eça de Queiroz


A Illustre Casa de Ramires


PORTO

LIVRARIA CHARDRON
De Lello & Irmão, editores
1900





Pertence no Brazil o direito de propriedade d'esta obra ao cidadão
Francisco Alves, livreiro editor no Rio de Janeiro, que, para a garantia
que lhe offerece a lei n.^o 496 de 1 d'Agosto de 1898, fez o competente
deposito na Bibliotheca nacional, segundo a determinação do art. 13.^o
da mesma Lei.

       *       *       *       *       *

_Porto_--_Imprensa Moderna_




A ILLUSTRE CASA DE RAMIRES




Obras do mesmo auctor:


*Revista de Portugal*. 4 grossos volumes      12$000
*As Minas de Salomão*, 1 volume                  600
*Os Maias*. 2 grossos volumes                  2$000
*O Crime do Padre Amaro*. Terceira edição
  inteiramente refundida, recomposta, e
  differente na fórma e na acção da edição
  primitiva, 1 grosso volume                   1$200
*O Primo Bazilio*. Terceira edição, 1 grosso
  volume.                                      1$000
*A Reliquia*, 1 grosso volume                  1$000
*O Mandarim*. Quarta edição, 1 volume            500
*Correspondencia de Fradique Mendes*, 1 volume   600

No prelo:

*A Cidade e as Serras.*




A ILLUSTRE CASA DE RAMIRES




I


Desde as quatro horas da tarde, no calor e silencio do domingo de Junho,
o Fidalgo da Torre, em chinellos, com uma quinzena de linho envergada
sobre a camisa de chita côr de rosa, trabalhava. Gonçalo Mendes Ramires
(que n'aquella sua velha aldêa de Santa Ireneia, e na villa visinha, a
aceada e vistosa Villa-Clara, e mesmo na cidade, em Oliveira, todos
conheciam pelo «Fidalgo da Torre») trabalhava n'uma Novella Historica,
_A Torre de D. Ramires_, destinada ao primeiro numero dos *Annaes de
Litteratura e de Historia*, Revista nova, fundada por José Lucio
Castanheiro, seu antigo camarada de Coimbra, nos tempos do Cenaculo
Patriotico, em casa das Severinas.

A livraria, clara e larga, escaiolada d'azul, com pesadas estantes de
pau preto onde repousavam, no pó e na gravidade das lombadas de
carneira, grossos folios de convento e de fôro, respirava para o pomar
por duas janellas, uma de peitoril e poiaes de pedra almofadados de
velludo, outra mais rasgada, de varanda, frescamente perfumada pela
madresilva que se enroscava nas grades. Deante d'essa varanda, na
claridade forte, pousava a mesa--mesa immensa de pés torneados, coberta
com uma colcha desbotada de damasco vermelho, e atravancada n'essa tarde
pelos rijos volumes da _Historia Genealogica_, todo o _Vocabulario_ de
Bluteau, tomos soltos do _Panorama_, e ao canto, em pilha, as obras de
Walter Scott sustentando um copo cheio de cravos amarellos. E d'ahi, da
sua cadeira de couro, Gonçalo Mendes Ramires, pensativo deante das tiras
de papel almaço, roçando pela testa a rama da penna de pato, avistava
sempre a inspiradora da sua Novella,--a Torre, a antiquissima Torre,
quadrada e negra sobre os limoeiros do pomar que em redor crescera, com
uma pouca d'hera no cunhal rachado, as fundas frestas gradeadas de
ferro, as ameias e a miradoira bem cortadas no azul de Junho, robusta
sobrevivencia do Paço acastellado, da fallada Honra de Santa Ireneia,
solar dos Mendes Ramires desde os meiados do seculo X.

Gonçalo Mendes Ramires (como confessava esse severo genealogista, o
morgado de Cidadelhe) era certamente o mais genuino e antigo fidalgo de
Portugal. Raras familias, mesmo coevas, poderiam traçar a sua
ascendencia, por linha varonil e sempre pura, até aos vagos Senhores que
entre Douro e Minho mantinham castello e terra murada quando os barões
francos desceram, com pendão e caldeira, na hoste do Borguinhão. E os
Ramires entroncavam limpidamente a sua casa, por linha pura e sempre
varonil, no filho do Conde Nuno Mendes, aquelle agigantado Ordonho
Mendes, senhor de Treixedo e de Santa Ireneia, que casou em 967 com Dona
Elduara, Condessa de Carrion, filha de Bermudo o _Gottoso_, Rei de Leão.

Mais antigo na Hespanha que o Condado Portucalense, rijamente, como
elle, crescera e se afamára o Solar de Santa Ireneia--resistente como
elle ás fortunas e aos tempos. E depois, em cada lance forte da Historia
de Portugal, sempre um Mendes Ramires avultou grandiosamente pelo
heroismo, pela lealdade, pelos nobres espiritos. Um dos mais esforçados
da linhagem, Lourenço, por alcunha o _Cortador_, collaço de Affonso
Henriques (com quem na mesma noite, para receber a pranchada de
cavalleiro, vellára as armas na Sé de Zamora), apparece logo na batalha
d'Ourique, onde tambem avista Jesus-Christo sobre finas nuvens d'ouro,
pregado n'uma cruz de dez covados. No cerco de Tavira, Martim Ramires,
freire de San-Thiago, arromba a golpes de acha um postigo da Couraça,
rompe por entre as cimitarras que lhe decepam as duas mãos, e surde na
quadrella da torre albarran, com os dous pulsos a esguichar sangue,
bradando alegremente ao Mestre:--«D. Payo Peres, Tavira é nossa! Real,
Real por Portugal!» O velho Egas Ramires, fechado na sua Torre, com a
levadiça erguida, as barbacans erriçadas de frecheiros, nega acolhida a
El-Rei D. Fernando e Leonor Telles que corriam o Norte em folgares e
caçadas--para que a presença da _adultera_ não macule a pureza extreme
do seu solar! Em Aljubarrota, Diogo Ramires o _Trovador_ desbarata um
troço de bésteiros, mata o Adiantado-mór de Galliza, e por elle, não por
outro, cahe derribado o pendão real de Castella, em que ao fim da lide
seu irmão d'armas, D. Antão d'Almada, se embrulhou para o levar,
dançando e cantando, ao Mestre d'Aviz. Sob os muros d'Arzilla combatem
magnificamente dois Ramires, o edoso Sueiro e seu neto Fernão, e deante
do cadaver do velho, trespassado por quatro virotes, estirado no pateo
da Alcaçova ao lado do corpo do Conde de Marialva--Affonso V arma
juntamente cavalleiros o Principe seu filho e Fernão Ramires, murmurando
entre lagrimas: «Deus vos queira tão bons como esses que ahi jazem!...»
Mas eis que Portugal se faz aos mares! E raras são então as armadas e os
combates de Oriente em que se não esforce um Ramires--ficando na lenda
tragico-maritima aquelle nobre capitão do Golpho Persico, Balthazar
Ramires, que, no naufragio da _Santa Barbara_, reveste a sua pesada
armadura, e no castello de prôa, hirto, se afunda em silencio com a náu
que se afunda, encostado á sua grande espada. Em Alcacer-Kebir, onde
dous Ramires sempre ao lado d'El-Rei encontram morte soberba, o mais
novo, Paulo Ramires, pagem do Guião, nem lezo nem ferido, mas não
querendo mais vida pois que El-Rei não vivia, colhe um ginete solto,
apanha uma acha d'armas, e gritando:--«Vai-te, alma, que já tardas,
servir a de teu senhor!»--entra na chusma mourisca e para sempre
desapparece. Sob os Philippes, os Ramires, amuados, bebem e caçam nas
suas terras. Reapparecendo com os Braganças, um Ramires, Vicente,
Governador das Armas d'Entre-Douro e Minho por D. João IV, mette a
Castella, destroça os Hespanhoes do Conde, de Venavente, e toma
Fuente-Guiñal, a cujo furioso saque preside da varanda d'um Convento de
Franciscanos, em mangas de camisa, comendo talhadas de melancia. Já,
porém, como a nação, degenera a nobre raça... Alvaro Ramires, valido de
D. Pedro II, brigão façanhudo, atordôa Lisboa com arruaças, furta a
mulher d'um Védor da Fazenda que mandára matar a pauladas por pretos,
incendeia em Sevilha depois de perder cem dobrões uma casa de tavolagem,
e termina por commandar uma urca de piratas na frota de Murad o
_Maltrapilho_. No reinado do Sr. D. João V Nuno Ramires brilha na Côrte,
ferra as suas mulas de prata, e arruina a casa celebrando sumptuosas
festes de Egreja, em que canta no côro vestido com o habito de Irmão
Terceiro de S. Francisco. Outro Ramires, Christovam, Presidente da Mesa
de Consciencia e Ordem, alcovita os amores d'el-rei D. José I com a
filha do prior de Sacavem. Pedro Ramires, Provedor e Feitor-mór das
Alfandegas, ganha fama em todo o Reino pela sua obesidade, a sua
chalaça, as suas proezas de glutão no Paço da Bemposta com o arcebispo
de Thessalonica. Ignacio Ramires acompanha D. João VI ao Brazil como
Reposteiro-Mór, negoceia em negros, volta com um bahú carregado de peças
d'ouro que lhe rouba um administrador, antigo frade capuchinho, e morre
no seu solar da cornada de um boi. O avô de Gonçalo, Damião, doutor
liberal dado ás Musas, desembarca com D. Pedro no Mindello, compõe as
empoladas proclamações do Partido, funda um jornal, o _Anti-Frade_, e
depois das Guerras Civis arrasta uma existencia rheumatica em Santa
Ireneia, embrulhado no seu capotão de briche, traduzindo para vernaculo,
com um lexicon e um pacote de simonte, as obras de Valerius Flaccus. O
pae de Gonçalo, ora Regenerador, ora Historico, vivia em Lisboa no Hotel
Universal, gastando as solas pelas escadarias do Banco Hypothecario e
pelo lagedo da Arcada, até que um Ministro do Reino, cuja concubina,
corista de S. Carlos, elle fascinára, o nomeou, (para o afastar da
Capital) Governador Civil de Oliveira. Gonçalo, esse, era bacharel
formado com um R no terceiro anno.

E n'esse anno justamente se estreou nas Lettras Gonçalo Mendes Ramires.
Um seu companheiro de casa, José Lucio Castanheiro, algarvio muito
magro, muito macilento, de enormes oculos azues, a quem Simão Craveiro
chamava o «Castanheiro Patriotinheiro», fundára um Semanario, a
*Patria*--«com o alevantado intento (affirmava sonoramente o Prospecto)
de despertar, não só na mocidade Academica, mas em todo o paiz, do cabo
Silleiro ao cabo de Santa Maria, o amor tão arrefecido das bellezas, das
grandezas e das glorias de Portugal!» Devorado por essa idéa, «a sua
Idéa», sentindo n'ella uma carreira, quasi uma missão, Castanheiro
incessantemente, com ardor teimoso de Apostolo, clamava pelos botequins
da Sophia, pelos claustros da Universidade, pelos quartos dos amigos
entre a fumaça dos cigarros,--«a necessidade, caramba, de reatar a
tradição! de desatulhar, caramba, Portugal da alluvião do
estrangeirismo!»--Como o Semanario appareceu regularmente durante tres
Domingos, e publicou realmente estudos recheiados de griphos e citações
sobre as _Capellas da Batalha_, a _Tomada d'Ormuz_, a _Embaixada de
Tristão da Cunha_, começou logo a ser considerado uma aurora, ainda
pallida mas segura, de Renascimento Nacional. E alguns bons espiritos da
Academia, sobretudo os companheiros de casa do Castanheiro, os tres que
se occupavam das cousas do saber e da intelligencia (porque dos tres
restantes um era homem de cacete e forças, o outro guitarrista, e o
outro «premiado»), passaram, aquecidos por aquella chamma patriotica, a
esquadrinhar na Bibliotheca, nos grossos tomos nunca d'antes visitados
de Fernam Lopes, de Ruy de Pina, d'Azurara, proezas e lendas--«só
portuguezas, só nossas (como supplicava o Castanheiro), que refizessem á
nação abatida uma consciencia da sua heroicidade!» Assim crescia o
Cenaculo Patriotico da casa das Severinas. E foi então que Gonçalo
Mendes Ramires, moço muito affavel, esvelto e loiro, d'uma brancura sã
de porcelana, com uns finos e risonhos olhos que facilmente se
enterneciam, sempre elegante e apurado na batina e no verniz dos
sapatos--apresentou ao Castanheiro, n'um domingo depois do almoço, onze
tiras de papel intituladas _D. Guiomar_. N'ellas se contava a velhissima
historia da castellã, que, emquanto longe nas guerras do Ultra-mar o
castellão barbudo e cingido de ferro atira a acha-d'armas ás portas de
Jerusalem, recebe ella na sua camara, com os braços nús, por noite de
Maio e de lua, o pagem de annellados cabellos... Depois ruge o inverno,
o castellão volta, mais barbudo, com um bordão de romeiro. Pelo villico
do Castello, homem espreitador e de amargos sorrisos, conhece a traição,
a macula no seu nome tão puro, honrado em todas as Hespanhas! E ai do
pagem! ai da dama! Logo os sinos tangem a finados. Já no patim da
Alcaçova o verdugo, de capuz escarlate, espera, encostado ao machado,
entre dous cepos cobertos de pannos de dó... E no final choroso da _D.
Guiomar_, como em todas essas historias do Romanceiro d'Amor, tambem
brotavam rente ás duas sepulturas, escavadas no êrmo, duas roseiras
brancas a que o vento enlaçava os aromas e as rosas. De sorte que (como
notou José Lucio Castanheiro, coçando pensativamente o queixo) não
resaltava n'esta _D. Guiomar_ nada que fosse «só portuguez, só nosso,
abrolhando do sólo e da raça!» Mas esses amores lamentosos passavam n'um
solar de Riba-Côa: os nomes dos cavalleiros, Remarigues, Ordonho,
Froylas, Gutierres, tinham um delicioso sabor godo: em cada tira
resoavam bravamente os genuinos: «_Bofé!... Mentes pela gorja!...
Pagem, o meu murzello!_...»: e através de toda esta vernaculidade
circulava uma sufficiente turba de cavallariços com saios alvadios,
beguinos sumidos na sombra das cugulas, ovençaes sopezando fartas bolsas
de couro, uchões espostejando nedios lombos de cêrdo... A Novella
portanto marcava um salutar retrocesso ao sentimento nacional.

--E depois (accrescentava o Castanheiro) este velhaco do Gonçalinho
surde com um estylo terso, masculo, de boa côr archaica... D'optima côr
archaica! Lembra até o _Bobo_, o _Monge de Cister_!... A Guiomar,
realmente, é uma castellã vaga, da Bretanha ou da Aquitania. Mas no
villico, mesmo no castellão, já transparecem portuguezes, bons
portuguezes de fibra e d'alma, d'entre Douro e Cavado... Sim senhor!
Quando o Gonçalinho se enfronhar dentro do nosso passado, das nossas
chronicas, temos emfim nas Lettras um homem que sente bem o torrão,
sente bem a raça!

_D. Guiomar_ encheu tres paginas da *Patria*. N'esse Domingo, para
celebrar a sua entrada na Litteratura, Gonçalo Mendes Ramires pagou aos
camaradas do Cenaculo e a outros amigos uma ceia--onde foi acclamado,
logo depois do frango com ervilhas, quando os moços do Camolino,
esbaforidos, renovavam as garrafas de Collares, como «o nosso Walter
Scott!» Elle, de resto, annunciára já com simplicidade um Romance em
dois volumes, fundado nos annaes da sua Casa, n'um rude feito de sublime
orgulho de Tructesindo Mendes Ramires, o amigo e Alferes-mór de D.
Sancho I. Por temperamento, por aquelle saber especial de trajes e
alfaias que revelára na _D. Guiomar_, até pela antiguidade da sua
linhagem, Gonçalinho parecia gloriosamente votado a restaurar em
Portugal o Romance Historico. Possuia uma missão--e começou logo a
passear pela Calçada, pensativo, com o gorro sobre os olhos, como quem
anda reconstruindo um mundo. No acto d'esse anno levou o R.

Quando regressou das ferias para o Quarto-Anno já não refervia na rua da
Mathematica o Cenaculo ardente dos Patriotas. O Castanheiro, formado,
vegetava em Villa Real de Santo Antonio: com elle desapparecera a
*Patria*: e os moços zelosos que na Bibliotheca esquadrinhavam as
Chronicas de Fernam Lopes e de Azurara, desamparados por aquelle
Apostolo que os levantava, recahiram nos romances de Georges Ohnet e
retomaram á noite o taco nos bilhares da Sophia. Gonçalo voltava tambem
mudado, de luto pelo pae que morrera em Agosto, com a barba crescida,
sempre affavel e suave, porém mais grave, averso a ceias e a noites
errantes. Tomou um quarto no Hotel Mondego, onde o servia, de gravata
branca, um velho creado de Santa Ireneia, o Bento:--e os seus
companheiros preferidos foram tres ou quatro rapazes que se preparavam
para a Politica, folheavam attentamente o _Diario das Camaras_,
conheciam alguns enredos da Côrte, proclamavam a necessidade d'uma
«Orientação positiva» e d'um «largo fomento rural», consideravam como
leviandade reles e jacobina a irreverencia da Academia pelos Dogmas, e,
mesmo passeando ao luar no Choupal ou no Penedo da Saudade, discorriam
com ardor sobre os dous Chefes de Partido--o Braz Victorino, o homem
novo dos Regeneradores, e o velho Barão de S. Fulgencio, chefe classico
dos Historicos. Inclinado para os Regeneradores, por que a Regeneração
lhe representava tradicionalmente idéas de conservantismo, de elegancia
culta e de generosidade, Gonçalo frequentou então o Centro Regenerador
da Couraça, onde aconselhava á noite, tomando chá preto, «o
fortalecimento da auctoridade da Corôa», e «uma forte expansão
colonial!» Depois, logo na Primavera, desmanchou alegremente esta
gravidade politica: e ainda tresnoitou, na taberna do Camolino, em
bacalhoadas festivas, entre o estridor das guitarras. Mas não alludio
mais ao seu grande Romance em dous volumes: e ou recuára ou se esquecera
da sua missão d'Arte Historica. Realmente só na Paschoa do Quinto-Anno
retomou a penna--para lançar, na *Gazeta do Porto*, contra um seu
patricio, o Dr. André Cavalleiro, que o Ministerio do S. Fulgencio
nomeára Governador civil de Oliveira, duas correspondencias muito
acerbas, d'um rancor intenso e pessoal, (a ponto de chasquear «a feroz
bigodeira negra de S. Ex.^a»). Assignara Juvenal, como outr'ora o pae,
quando publicava communicados politicos d'Oliveira n'essa mesma *Gazeta
do Porto*, jornal amigo, onde um Villar Mendes, seu remoto parente,
redigia a _Revista Estrangeira_. Mas lêra aos amigos no Centro--«os dous
botes decisivos que atirariam o Sr. Cavalleiro abaixo do seu Cavallo!» E
um d'esses moços serios, sobrinho do Bispo de Oliveira, não disfarçou o
seu assombro:

--Oh Gonçalo, eu sempre pensei que você e o Cavalleiro eram intimos! Se
bem me lembro quando você chegou a Coimbra, para os Preparatorios, viveu
na casa do Cavalleiro, na rua de S. João... Pois não ha uma amizade
tradicional, quasi historica, entre Ramires e Cavalleiros?... Eu pouco
conheço Oliveira, nunca andei para os vossos sitios; mas até creio que
Corinde, a quinta do Cavalleiro, pega com Santa Ireneia!

E Gonçalo enrugou a face, a sua risonha e lisa face, para declarar
seccamente que Corinde não pegava com Santa Ireneia: que entre as duas
terras corria muito justificadamente a ribeira do _Coice_: e que o Sr.
André Cavalleiro, e sobre tudo Cavallo, era um animal detestavel que
pastava na outra margem!--O sobrinho do Bispo saudou e exclamou:

--Sim senhor, boa piada!

Um anno depois da Formatura, Gonçalo foi a Lisboa por causa da hypotheca
da sua quinta de Praga, junto a Lamego, que certo fôro annual de dez
réis e meia gallinha, devido ao Abbade de Praga, andava empecendo
terrivelmente nos Conselhos do Banco Hypothecario;--e tambem para
conhecer mais estreitamente o seu Chefe, o Braz Victorino, mostrar
lealdade e submissão partidaria, colher algum fino conselho de conducta
Politica. Ora uma noite, voltando de jantar em casa da velha Marqueza de
Louredo, a «tia Louredo», que morava a Santa Clara, esbarrou no Rocio
com José Lucio Castanheiro; então empregado no Ministerio da Fazenda, na
repartição dos Proprios Nacionaes. Mais defecado, mais macilento, com
uns oculos mais largos e mais tenebrosos, o Castanheiro ardia todo, como
em Coimbra, na chamma da sua Idéa--«a resurreição do sentimento
portuguez!» E agora, alargando a proporções condignas da Capital o plano
da *Patria*, labutava devoradoramente na creação d'uma Revista quinzenal
de setenta paginas, com capa azul, os *Annaes de Litteratura e de
Historia*. Era uma noite de Maio, macia e quente. E, passeando ambos em
torno das fontes seccas do Rocio, Castanheiro, que sobraçava um rolo de
papel e um gordo folio encadernado em bezerro, depois de recordar as
cavaqueiras geniaes da rua da Misericordia, de maldizer a falta de
intellectualidade de Villa Real de Santo Antonio--voltou soffregamente á
sua Idéa, e supplicou a Gonçalo Mendes Ramires que lhe cedesse para os
*Annaes* esse Romance que elle annunciára em Coimbra, sobre o seu
avoengo Tructesindo Ramires, Alferes-mór de Sancho I.

Gonçalo, rindo, confessou que ainda não começára essa grande obra!

--Ah! murmurou o Castanheiro, estacando, com os negros oculos sobre
elle, duros e desconsolados. Então você não persistio?... Não permaneceu
fiel á Idéa?...

Encolheu os hombros, resignadamente, já acostumado, atravez da sua
missão, a estes desfallecimentos do Patriotismo. Nem consentio que
Gonçalo, humilhado perante aquella Fé que se mantivera tão pura e
servidôra--alludisse, como desculpa, ao inventario laborioso da Casa,
depois da morte do papá...

--Bem, bem! Acabou! _Proscratinare luzitanum est_. Trabalha agora no
verão... Para Portuguezes, menino, o verão é o tempo das bellas fortunas
e dos rijos feitos. No verão nasce Nun'Alvares no Bomjardim! No verão se
vence em Aljubarrota! No verão chega o Gama á India!... E no verão vae o
nosso Gonçalo escrever uma novellasinha sublime!... De resto os *Annaes*
só apparecem em Dezembro, caracteristicamente no Primeiro de Dezembro. E
você em tres mezes resuscita um mundo. Serio, Gonçalo Mendes!... É um
dever, um santo dever, sobretudo para os novos, collaborar nos *Annaes*.
Portugal, menino, morre por falta de sentimento nacional! Nós estamos
immundamente morrendo do mal de não ser Portuguezes!

Parou--ondeou o braço magro, como a correia d'um latego, n'um gesto que
açoutava o Rocio, a Cidade, toda a Nação. Sabia o amigo Gonçalinho o
segredo d'esta borracheira sinistra? É que, dos Portuguezes, os peores
despresavam a Patria--e os melhores ignoravam a Patria. O remedio?...
Revelar Portugal, vulgarisar Portugal. Sim, amiguinho! Organizar, com
estrondo, o reclamo de Portugal, de modo que todos o conheçam--ao menos
como se conhece o Xarope Peitoral de James, hein? E que todos o
adoptem--ao menos como se adoptou o sabão do Congo, hein? E conhecido,
adoptado, que todos o amem emfim, nos seus heróes, nos seus feitos,
mesmo nos seus defeitos, em todos os seus padrões, e até nas veras
pedrinhas das suas calçadas! Para esse fim, o maior a emprehender n'este
apagado seculo da nossa Historia, fundava elle os *Annaes*. Para berrar!
Para atroar Portugal, aos bramidos sobre os telhados, com a noticia
inesperada da sua grandeza! E aos descendentes dos que outr'ora fizeram
o Reino incumbia, mais que aos outros, o cuidado piedoso de o refazer...
Como? Reatando a tradição, caramba!

--Assim, vocês! Por essa historia de Portugal fóra, vocês são uma
enfiada de Ramires de toda a belleza. Mesmo o desembargador, o que comeu
n'uma ceia de Natal dois leitões!... É apenas uma barriga. Mas que
barriga! Ha n'ella uma pujança heroica que prova raça, a raça mais forte
_do que promette a força humana_, como diz Camões. Dois leitões,
caramba! Até enternece!... E os outros Ramires, o de Silves, o de
Aljubarrota, os de Arzilla, os da India! E os cinco valentes, de quem
você talvez nem saiba, que morreram no Salado! Pois bem, resuscitar
estes varões, e mostrar n'elles a alma façanhuda, o querer sublime que
nada verga, é uma soberba lição aos novos... Tonifica, caramba! Pela
consciencia que renova de termos sido tão grandes sacode este chocho
consentimento nosso em permanecermos pequenos! É o que eu chamo reatar a
tradição... E depois feito por você proprio, Ramires, que _chic_!
Caramba, que _chic_! É um fidalgo, o maior fidalgo de Portugal, que,
para mostrar a heroicidade da Patria, abre simplesmente, sem sahir do
seu solar, os archivos da sua Casa, velha de mais de mil annos. É de
rachar!... E você não precisa fazer um grosso romance... Nem um romance
muito desenvolvido está na indole militante da Revista. Basta um conto,
de vinte ou trinta paginas... Está claro, os *Annaes* por ora não podem
pagar. Tambem, você não precisa! E que diabo! não se trata de pecunia,
mas d'uma grande renovação social... E depois, menino, a litteratura
leva a tudo em Portugal. Eu sei que o Gonçalo em Coimbra, ultimamente,
frequentava o Centro Regenerador. Pois, amigo, de folhetim em folhetim,
se chega a S. Bento! A penna agora, como a espada outr'ora, edifica
reinos... Pense você n'isto! E adeus! que ainda hoje tenho de copiar,
para lettra christã, este estudo do Henriques sobre Ceylão... Você não
conhece o Henriques?... Não conhece. Ninguem conhece. Pois quando na
Europa, n'essas grandes Academias da Europa, ha uma duvida sobre a
Historia ou a Litteratura cingaleza, gritam para cá, para o Henriques!

Abalou, agarrado ao seu rolo e ao seu tomo--e Gonçalo ainda o avistou,
na porta e claridade da tabacaria Nunes, agitando o braço esguio
d'Apostolo deante d'um sujeito obeso, de vasto collete branco, que
recuava, com espanto, assim perturbado no quieto gozo do seu grosso
charuto e da doce noite de Maio.

O Fidalgo da Torre recolheu para o Bragança, impressionado, ruminando a
idéa do Patriota. Tudo n'ella o seduzia--e lhe convinha: a sua
collaboração n'uma Revista consideravel, de setenta paginas, em
companhia de Escriptores doutos, lentes das Escolas, antigos Ministros,
até Conselheiros d'Estado: a antiguidade da sua raça, mais antiga que o
Reino, popularisada por uma historia d'heroica belleza, em que com tanto
fulgor resaltavam a bravura e a soberba d'alma dos Ramires; e emfim a
seriedade academica do seu espirito, o seu nobre gosto pelas
investigações eruditas, apparecendo no momento em que tentava a carreira
do Parlamento e da Politica!... E o trabalho, a composição moral dos
vetustos Ramires, a resurreição archeologica do viver Affonsino, as cem
tiras de almaço a atulhar de prosa forte--não o assustavam... Não!
porque felizmente já possuia a «sua obra»--e cortada em bom panno,
alinhavada com linha habil. Seu tio Duarte, irmão de sua mãe (uma
senhora de Guimarães, da casa das Balsas), nos seus annos de ociosidade
e imaginação, de 1845 a 1850, entre a sua carta de Bacharel e o seu
Alvará de Delegado, fôra poeta--e publicára no *Bardo*, semanario de
Guimarães, um Poemeto em verso solto, o _Castello de Santa Ireneia_, que
assignára com duas iniciaes D.B. esse castello era o seu, o Paço
antiquissimo de que restava a negra torre entre os limoeiros da horta. E
o Poemeto cantava, com romantico garbo, um lance de altivez feudal em
que se sublimára Tructesindo Ramires, Alferes-mór de Sancho I, durante
as contendas de Affonso II e das senhoras Infantas. Esse volume do
*Bardo*, encadernado em marroquim, com o brazão dos Ramires, o açor
negro em campo escarlate, ficára no Archivo da Casa como um trecho da
Chronica heroica dos Ramires. E muitas vezes em pequeno Gonçalo
recitára, ensinados pela mamã, os primeiros versos do Poema, de tão
harmoniosa melancolia:

    Na pallidez da tarde, entre a folhagem
    Que o outomno amarellece...

Era com esse sombrio feito do seu vago avoengo que Gonçalo Mendes
Ramires decidira em Coimbra, quando os camaradas da *Patria* e das ceias
o acclamavam «o nosso Walter Scott», compôr um Romance moderno, d'um
realismo épico, em dous robustos volumes, formando um estudo ricamente
colorido da Meia-Edade Portugueza... E agora lhe servia, e com deliciosa
facilidade, para essa Novella curta e sobria, de trinta paginas, que
convinha aos *Annaes*.

No seu quarto do Bragança abrio a varanda. E debruçado, acabando o
charuto, na dormente suavidade da noite de Maio, ante a magestade
silenciosa do rio e da lua, pensava regaladamente que nem teria a
canceira d'esmiuçar as chronicas e os folios massudos... Com effeito!
toda a reconstruccão Historica a realisára, e solidamente, com um saber
destro, o tio Duarte. O Paço acastellado de Santa Ireneia, com as fundas
carcovas, a torre albarran, a alcaçova, a masmorra, o pharol e o balsão:
o velho Tructesindo, enorme, e os seus flocos de cabellos e barbas
ancestraes derramados sobre a loriga de malha; os servos mouriscos, de
surrões de couro, cavando os regueiros da horta; os oblatos resmungando
á lareira as _Vidas dos Santos_; os pagens jogando no campo do
tavolado--tudo resurgia, com veridico realce, no Poemeto do tio Duarte!
Ainda recordava mesmo certos lances: o truão açoutado; o festim e os
uchões que arrombavam as cubas de cerveja; a jornada de Violante Ramires
para o Mosteiro de Lorvão...

    Junto à fonte mourisca, entre os ulmeiros,
    A cavalgada pára...

O enrêdo todo com a sua paixão de grandeza barbara, os recontros bravios
em que se saciam a punhal os rancores de raça, o heroico fallar
despedido de labios de ferro--lá estavam nos versos do titi, sonoros e
bem balançados...

    Monge, escuta! O solar de D. Ramires
    Por si, e pedra a pedra se aluira,
    Se jámais um bastardo lhe pisasse,
    Com sapato aviltado, as lages puras!

Na realidade só lhe restava transpôr as formas fluidas do Romantismo de
1846 para a sua prosa tersa e mascula (como confessava o Castanheiro),
de optima côr archaica, lembrando o _Bobo_. E era um plagio? Não! A
quem, com mais seguro direito do que a elle, Ramires, pertencia a
memoria dos Ramires historicos? A resurreição do velho Portugal, tão
bella no _Castello de Santa Ireneia_, não era obra individual do tio
Duarte--mas dos Herculanos, dos Rebellos, das Academias, da erudição
esparsa. E, de resto, quem conhecia hoje esse Poemeto, e mesmo o
*Bardo*, delgado semanario que perpassára, durante cinco mezes, ha
cincoenta annos, n'uma villa de Provincia?...! Não hesitou mais,
seduzido. E em quanto se despia, depois de beber aos goles um copo
d'agua com bicarbonato de soda, já martellava a primeira linha do conto,
á maneira lapidaria da _Salammbô_:--«Era nos Paços de Santa Ireneia, por
uma noite d'inverno, na sala alta da Alcaçova...»

Ao outro dia, procurou José Lucio Castanheiro na repartição dos Proprios
Nacionaes, á pressa,--por que, depois d'uma conferencia no Banco
Hypothecario, ainda promettera acompanhar as primas Chellas a uma
Exposição de Bordados na livraria Gomes. E annunciou ao Patriota que,
positivamente, lhe assegurava para o primeiro numero dos *Annaes* a
Novella, a que já decidira o titulo--a _Torre de D. Ramires_:

--Que lhe parece?

Deslumbrado, José Castanheiro atirou os magrissimos braços, resguardados
pelas mangas d'alpaca, até á abobada do esguio corredor em que o
recebera:

--Sublime!... _A Torre de D. Ramires_!... O grande feito de Tructesindo
Mendes Ramires contado por Gonçalo Mendes Ramires!... E tudo na mesma
Torre! Na Torre o velho Tructesindo pratica o feito; e setecentos annos
depois, na mesma Torre, o nosso Gonçalo conta o feito! Caramba, menino,
carambissima! isso é que é reatar a tradição!

       *       *       *       *       *

Duas semanas depois, de volta a Santa Ireneia, Gonçalo mandou um creado
da quinta, com uma carroça, a Oliveira, a casa de seu cunhado José
Barrôlo, casado com Gracinha Ramires, para lhe trazer da rica livraria
classica que o Barrôlo herdára do tio Deão da Sé todos os volumes da
_Historia Genealogica_--«e (accrescentava n'uma carta) todos os
cartapacios que por lá encontrares com o titulo de «Chronicas do Rei
Fulano...» Depois, do pó das suas estantes, desenterrou as obras de
Walter Scott, volumes desirmanados do _Panorama_, a _Historia_ de
Herculano, o _Bobo_, o _Monge de Cistér_. E assim abastecido, com uma
farta rêsma de tiras d'almaço sobre a banca, começou a repassar o
Poemeto do tio Duarte, inclinado ainda a transpôr para a aspereza d'uma
manhã de Dezembro, como mais congenere com a rudeza feudal dos seus
avós, aquella lusida cavalgada de donas, monges e homens d'armas que o
tio Duarte estendera, atravez d'uma suave melancolia outomnal, pelas
veigas do Mondêgo...

    Na pallidez da tarde, entre a folhagem
    Que o outomno amarellece...

Mas, como era então Junho e a lua crescia, Gonçalo determinou por fim
aproveitar as sensações de calor, luar e arvoredos, que lhe fornecia a
aldeia--para levantar, logo á entrada da sua Novella, o negro e immenso
Paço de Santa Ireneia, no silencio d'uma noite d'Agosto, sob o
resplendor da lua cheia.

E já enchera desembaraçadamente, ajudado pelo *Bardo*, duas tiras,
quando uma desavença com o seu caseiro, o Manoel Relho, que amanhava a
quinta por oitocentos mil reis de renda, veio perturbar, na fresca e
noviça inspiração do seu trabalho, o Fidalgo da Torre. Desde o Natal o
Relho, que durante annos de compostura e ordem se emborrachava sempre
aos domingos com alegria e com pachorra, começára a tomar, tres e quatro
vezes por semana, bebedeiras desabridas, escandalosas, em que espancava
a mulher, atroava a quinta de berros, e saltava para a estrada,
esguedelhado, de varapáu, desafiando a quieta aldeia. Por fim, uma noite
em que Gonçalo, á banca, depois do chá, laboriosamente escavava os
fossos do Paço de Santa Ireneia--de repente a Rosa cozinheira rompeu a
gritar «Aqui d'El-rei contra o Relho!» E, atravez dos seus brados e dos
latidos dos cães, uma pedra, depois outra, bateram na varanda veneravel
da livraria! Enfiado, Gonçalo Mendes Ramires pensou no revólver... Mas
justamente n'essa tarde o creado, o Bento, descêra aquella sua velha e
unica arma á cozinha para a desenferrujar e arear! Então, atarantado,
correu ao quarto, que fechou á chave, empurrando contra a porta a
commoda com tão desesperada anciedade que frascos de crystal, um cofre
de tartaruga, até um crucifixo, tombaram e se partiram. Depois gritos e
latidos findaram no pateo--mas Gonçalo não se arredou n'essa noite
d'aquelle refugio bem defendido, fumando cigarros, ruminando um furor
sentimental contra o Relho, a quem tanto perdoára, sempre tão
affavelmente tratára, e que apedrejava as vidraças da Torre! Cêdo, de
manhã convocou o Regedor; a Rosa, ainda tremula, mostrou no braço as
marcas roxas dos dedos do Relho; e o homem, cujo arrendamento findava em
Outubro, foi despedido da quinta com a mulher, a arca e o catre.
Immediatamente appareceu um lavrador dos Bravaes, o José Casco,
respeitado em toda a freguezia pela sua seriedade e força espantosa,
propondo ao fidalgo arrendar a Torre. Gonçalo Mendes Ramires porém, já
desde a morte do pae, decidira elevar a renda a novecentos e cincoenta
mil réis:--e o Casco desceu as escadas, de cabeça descahida. Voltou logo
ao outro dia, repercorreu miudamente toda a quinta, esfarellou a terra
entre os dedos, esquadrinhou o curral e a adega, contou as oliveiras e
as cêpas: e n'um esforço, em que lhe arfaram todas as costellas,
offereceu novecentos e dez mil réis! Gonçalo não cedia, certo da sua
equidade. O José Casco voltou ainda com a mulher; depois, n'um domingo,
com a mulher e um compadre,--e era um coçar lento do queixo rapado, umas
voltas desconfiadas em torno da eira e da horta, umas demoras sumidas
dentro da tulha, que tornavam aquella manhã de Junho intoleravelmente
longa ao Fidalgo, sentado n'um banco de pedra do jardim, debaixo d'uma
mimosa, com a *Gazeta do Porto*. Quando o Casco, pallido, lhe veio
offerecer novecentos e trinta mil réis--Gonçalo Mendes Ramires
arremessou o jornal, declarou que ia elle, por sua conta, amanhar a
propriedade, mostrar o que era um torrão rico, tratado pelo saber
moderno, com phosphatos, com machinas! O homem de Bravaes, então,
arrancou um fundo suspiro, acceitou os novecentos e cincoenta mil reis.
Á maneira antiga o Fidalgo apertou a mão ao lavrador--que entrou na
cozinha a enxugar um largo copo de vinho, esponjando na testa, nas
cordoveias rijas do pescoço, o suor anciado que o alagava.

Mas, como entulhada por estes cuidados, a veia abundante de Gonçalo
estancou--não foi mais que um fio arrastado e turvo. Quando n'essa tarde
se accomodou á banca, para contar a sala d'armas do Paço de Santa
Ireneia por uma noite de lua--só conseguiu converter servilmente n'uma
prosa aguada os versos lisos do tio Duarte, sem relêvo que os
modernisasse, désse magestade senhorial ou bellesa saudosa áquelles
macissos muros onde o luar, deslisando atravez das rexas, salpicava
scentelhas pelas pontas das lanças altas, e pela cimeira dos morriões...
E desde as quatro horas, no calor e silencio do domingo de Junho,
labutava, empurrando a penna como lento arado em chão pedregoso,
riscando logo rancorosamente a linha que sentia deselegante e molle, ora
n'um reboliço, a sacudir e reenfiar sob a mesa os chinellos de
marroquim, ora immovel e abandonado á esterilidade que o travava, com os
olhos esquecidos na Torre, na sua difficillima Torre, negra entre os
limoeiros e o azul, toda envolta no piar e esvoaçar das andorinhas.

Por fim, descorçoado, arrojou a penna que tão desastrosamente emperrára.
E fechando na gavêta, com uma pancada, o volume precioso do *Bardo*:

--Irra! Estou perfeitamente entupido! É este calor! E depois aquelle
animal do Casco, toda a manhã!...

Ainda releu, coçando sombriamente a nuca, a derradeira linha rabiscada e
suja:

--«...Na sala altaneira e larga, onde os largos e pallidos raios da
lua...» Larga, largos!... E os pallidos raios, os eternos _pallidos
raios_!... Tambem este maldito castello, tão complicado!... E este D.
Tructesindo, que eu não apanho, tão antigo!... Emfim, um horror!

Atirou, n'um repellão, a cadeira de couro; cravou, com furor, um charuto
nos dentes;--e abalou da livraria, batendo desesperadamente a porta,
n'um tedio immenso da sua obra, d'aquelles confusos e enredados Paços de
Santa Ireneia, e dos seus avós, enormes, resoantes, chapeados de ferro,
e mais vagos que fumos.




II


Bocejando, apertando os cordões das largas pantalonas de seda que lhe
escorregavam da cinta, Gonçalo, que durante todo o dia preguiçára,
estirado no divan de damasco azul, com uma vaga dôr nos rins, atravessou
languidamente o quarto para espreitar, no corredor, o antigo relogio de
charão. Cinco horas e meia!... Para desannuviar, pensou n'uma caminhada
pela fresca estrada dos Bravaes. Depois n'uma visita (devida já desde a
Paschoa!) ao velho Sanches Lucena, eleito novamente deputado, nas
Eleições Geraes de Abril, pelo circulo de Villa Clara. Mas a jornada á
_Feitosa_, á quinta do Sanches Lucena, demandava uma hora a cavallo,
desagradavel com aquella teimosa dôr nos rins que o filára na vespera á
noite, depois do chá, na Assembleia da Villa. E, indeciso, arrastava os
passos no corredor, para gritar ao Bento ou á Rosa que lhe subissem uma
limonada, quando, atravez das varandas abertas, resoou um vozeirão de
grosso metal, que gracejando mais se engrossava, rolava pelo pateo,
n'uma cadencia cava de malho malhando:

--Oh sô Gonçalo! Oh sô Gonçalão! Oh sô Gonçalissimo Mendes Ramires!...

Reconheceu logo o _Titó_, o Antonio Villalobos, seu vago parente, e seu
companheiro de Villa Clara, onde aquelle homenzarrão excellente, de
velha raça Alemtejana, se estabelecera sem motivo, só por affeição
bucolica á villa. E havia onze annos que a atulhava com os seus
possantes membros, o lento rebombo do seu vozeirão, e a sua ociosidade
espalhada pelos bancos, pelas esquinas, pelas ombreiras das lojas, pelos
balcões das tabernas, pelas sachristias a caturrar com os padres, até
pelo cemiterio a philosophar com o coveiro. Era um irmão do velho
morgado de Cidadelhe (o genealogista), que lhe estabelecêra uma mesada
de oito moedas para o conservar longe de Cidadelhe--e do seu sujo
serralho de moças do campo, e da obra tenebrosa a que agora se
atrellára, a _Veridica Inquirição_, uma Inquirição sobre as bastardias,
crimes e titulos illegitimos das familias fidalgas de Portugal. E
Gonçalo, desde estudante, amára sempre aquelle Hercules bonacheirão, que
o seduzia pela prodigiosa força, a incomparavel potencia em beber todo
um pipo e em comer todo um anho, e sobretudo pela independencia, uma
suprema independencia, que, apoiada ao bengalão terrifico e com as suas
oito moedas dentro da algibeira, nada temia e nada desejava nem da Terra
nem do Céo.--Logo debruçado na varanda, gritou:

--Oh Titó, sóbe!... Sóbe emquanto eu me visto. Tomas um calice de
genebra... Vamos depois passear até aos Bravaes...

Sentado no rebordo do tanque redondo e sem agua que ornava o pateo,
erguendo para o casarão a sua franca e larga face requeimada, cheia de
barba ruiva, o Titó movia lentamente como um leque um velho chapéo de
palha:

--Não posso... Ouve lá! Tu queres hoje á noite cear no Gago, commigo e
com o João Gouveia? Vae tambem o Videirinha e o violão. Temos uma tainha
assada, uma famosa. E enorme, que eu comprei esta manhã a uma mulher da
Costa por cinco tostões. Assada pelo Gago!... Entendido, hein? O Gago
abre pipa nova de vinho, do Abbade de Chandim. Eu conheço o vinho. É
d'aqui, da ponta fina.

E Titó, com dous dedos, delicadamente, sacudio a ponta molle da orelha.
Mas Gonçalo, repuxando as pantalonas, hesitava:

--Homem, eu ando com o estomago arrazado... E desde hontem á noite uma
dôr nos rins, ou no figado, ou no baço, não sei bem, n'uma d'essas
entranhas!... Até hoje, para o jantar, só caldo de gallinha e gallinha
cosida... Emfim! vá! Mas, á cautela, recommenda ao Gago que me prepare
para mim um franguinho assado... Onde nos encontramos? Na Assembléa?

O Titó despegára logo do tanque, pousando na nuca o chapéo de palha:

--Hoje não me gasto pela Assembléa. Tenho senhora. Das dez para as dez e
meia, no Chafariz... Vae tambem o Videirinha com a viola. Viva!... Das
dez para as dez e meia! Entendido... E franguinho assado para S. Ex.^a,
que se queixa do rim!

E atravessou o pateo, com lentidão bovina, parando a colher n'uma
roseira, junto ao portão, uma rosa com que florio a quinzena de
velludilho côr d'azeitona.

Immediatamente Gonçalo decidira não jantar, certo dos beneficios
d'aquelle jejum até ás dez horas, depois de um passeio pelos Bravaes e
pelo valle da Riosa. E, antes de entrar no quarto para se vestir,
empurrou a porta envidraçada sobre a escura escada da cozinha, gritou
pela Rosa cozinheira. Mas nem a boa velha, nem o Bento por quem tambem
berrou furiosamente, responderam, no pesado silencio em que jaziam, como
abandonados, esses sombrios fundos de grande lage e de grande abobada
que restavam do antigo Palacio, restaurado por Vicente Ramires depois da
sua campanha em Castella, incendiado no tempo de El-Rei D. José I. Então
Gonçalo desceu dous degráos da gasta escadaria de pedra e atirou outro
dos longos brados com que atroava a Torre--desde que as campainhas
andavam desmanchadas. E descia ainda para invadir a cozinha quando a
Rosa acudio. Sahira para o pateo da horta com a filha da Crispola! não
sentira o Snr. Doutor!...

--Pois estou a berrar ha uma hora! E nem você nem Bento!... É por que
não janto. Vou cear a Villa Clara com os amigos.

A Rosa, do sonoro fundo do corredor, protestou, desolada. Pois o Sr.
Doutor ficava assim em jejum até horas da noite?--Filha d'um antigo
hortelão da Torre, crescida na Torre, já cozinheira da Torre quando
Gonçalo nascêra, sempre o tratára por «menino», e mesmo por «seu
riquinho» até que elle partio para Coimbra e começou a ser, para ella e
para o Bento, o «Sr. Doutor».--E o Sr. Doutor, ao menos, devia tomar o
caldinho de gallinha, que apurára desde o meio dia, cheirava que nem
feito no céo!

Gonçalo, que nunca discordava da Rosa ou do Bento, consentio--e já
subia, quando reclamou ainda a Rosa para se informar da Crispola, uma
desgraçada viuva que, com um rancho faminto de crianças, adoecera pela
Paschoa de febres perniciosas.

--A Crispola vae melhor, Sr. Doutor. Já se levanta. Diz a pequena que já
se levanta... Mas muito derreadinha...

Gonçalo desceu logo outro degráo, debruçado na escada, para mergulhar
mais confidencialmente n'aquellas tristezas:

--Olhe, oh Rosa, então se a pequena ahi está, coitada, que leve para
casa á mãe a gallinha que eu tinha para jantar. E o caldo... Que leve a
panella! Eu tomo uma chavena de chá com biscoitos. E olhe! Mande tambem
dez tostões á Crispola... Mande dois mil réis. Escute! Mas não lhe mande
a gallinha e o dinheiro assim seccamente... Diga que estimo as melhoras,
e que lá passarei por casa para saber. E esse animal do Bento que me
suba agua quente!

No quarto, em mangas de camisa, deante do espelho, um immenso espelho
rolando entre columnas douradas, estudou a lingua que lhe parecia
saburrosa, depois o branco dos olhos, receiando a amarellidão de bilis
solta. E terminou por se contemplar na sua feição nova, agora que rapára
a barba em Lisboa, conservando o bigodinho castanho, frisado e leve, e
uma môsca um pouco longa, que lhe alongava mais a face aquilina e fina,
sempre d'uma brancura de nata. O seu desconsolo era o cabello, bem
ondeado, mas tenue e fraco, e, apezar de todas as aguas e pomadas,
necessitando já risca mais elevada, quasi ao meio da testa clara.

--É infernal! Aos trinta annos estou calvo...

E todavia não se despegava do espelho, n'uma contemplação agradada,
recordando mesmo a recommendação da tia Louredo, em Lisboa:--«Oh
sobrinho! o menino, assim galante e esperto, não se enterre na
provincia! Lisboa está sem rapazes. Precisamos cá um bom Ramires!»--Não!
não se enterraria na provincia, immovel sob a hera e a poeira
melancolica das cousas immoveis, como a sua Torre!... Mas vida elegante
em Lisboa, entre a sua parentella historica, como a aguentaria com o
conto e oitocentos mil reis de renda que lhe restava, pagas as dividas
do papá? E depois realmente vida em Lisboa só a desejava com uma posição
politica,--cadeira em S. Bento, influencia intellectual no seu Partido,
lentas e seguras avançadas para o Poder. E essa, tão docemente sonhada
em Coimbra, nas faceis cavaqueiras do Hotel Mondego,--muito remota a
entrevia! Quasi inconquistavel, para além de um muro alto e aspero, sem
porta e sem fenda!... Deputado--como? Agora, com o horrendo S. Fulgencio
e os Historicos no Ministerio durante tres gordos annos, não voltariam
Eleições Geraes. E mesmo n'alguma Eleição Supplementar que possibilidade
lograria elle, que, desde Coimbra, bem levianamente, arrastado por uma
elegancia de tradições, se manifestára sempre Regenerador, no «Centro»
da Couraça, nas correspondencias para a *Gazeta do Porto*, nas verrinas
ardentes contra o chefe do Districto, o Cavalleiro detestavel?... Agora
só lhe restava esperar. Esperar, trabalhando; ganhando em consistencia
social; edificando com sagacidade, sobre a base do seu immenso nome
historico, uma pequenina nomeada politica; tecendo e estendendo a malha
preciosa das amizades partidarias desde Santa Ireneia até ao Terreiro do
Paço... Sim! eis a theoria explendida:--mas consistencia, nomeada,
affeições politicas, como se conquistam? «Advogue, escreva nos jornaes!»
fôra o conselho distrahido e risonho do seu chefe, o Braz Victorino.
Advogar em Oliveira, mesmo em Lisboa? Não podia, com aquelle seu horror
ingenito, quasi physiologico, a autos e papelada forense. Fundar um
jornal em Lisboa como o Ernesto Rangel, seu companheiro de Coimbra no
Hotel Mondego? Era façanha facil para o neto adorado da Snr.^a D.
Joaquina Rangel que armazenava dez mil pipas de vinho nos barracões de
Gaia. Batalhar n'um jornal de Lisboa? N'essas semanas de Capital, sempre
pelo Banco Hypothecario, sempre com as «primas», nem formára relações
duraveis e uteis nos dous grandes Diarios Regeneradores, a _Manhã_ e a
_Verdade_... De sorte que, realmente, n'esse muro que o separava da
fortuna só descobria um buraquinho, bem apertado mas serviçal--os
*Annaes de Litteratura e d'Historia*, com a sua collaboração de
Professores, de Politicos, até d'um Ministro, até de um Almirante, o
Guerreiro Araujo, esse tocante massador. Appareceria pois nos *Annaes*
com a sua _Torre_, revelando imaginação e um saber rico. Depois,
trepando da Invenção para o terreno mais respeitavel da Erudição, daria
um estudo (que até lhe lembrára no comboio, ao voltar de Lisboa!) sobre
as «Origens Visigothicas do Direito Publico em Portugal...» Oh, nada
conhecia, é certo, d'essas Origens, d'esses Visigodos. Mas, com a bella
historia da _Administração Publica em Portugal_ que lhe emprestára o
Castanheiro, comporia corrediamente um resumo elegante... Depois,
saltando da Erudição ás Sciencias Sociaes e Pedagogicas--por que não
amassaria uma boa «Reforma do Ensino Juridico em Portugal» em dous
artigos massudos, de Homem d'Estado?... Assim avançava, bem chegado aos
Regeneradores, construindo e cinzelando o seu pedestal litterario, até
que os Regeneradores voltassem ao Ministerio, e no muro se escancarasse
a desejada porta triumphal.--E no meio do quarto, em ceroulas, com as
mãos nas ilhargas, Gonçalo Mendes Ramires concluio pela necessidade de
apressar a sua Novella.

--Mas, quando acabarei eu essa _Torre_? assim emperrado, sem veia, com o
figado combalido?...

O Bento, velho de face rapada e morena, com um lindo cabello branco todo
encarapinhado, muito limpo, muito fresco na sua jaqueta de ganga,
entrára vagarosamente, segurando a infusa d'agua quente.

--Oh Bento, ouve lá! Tu não encontraste na mala que eu trouxe de Lisboa,
ou no caixote, um frasco de vidro com um pó branco? É um remedio inglez
que me deu o Sr. Dr. Mattos... Tem um rotulo em inglez, com um nome
inglez, não sei quê, _fruit salt_... Quer dizer sal de fructas...

O Bento cravou no soalho os olhos, que depois cerrou, meditando. Sim, no
quarto de lavar, em cima do bahú vermelho, ficára um frasco com pó,
embrulhado num pergaminho antigo como os do Archivo.

--É esse! declarou Gonçalo. Eu precisava em Lisboa uns documentos por
causa d'aquelle malvado fôro de Praga. E por engano, na balburdia, levo
do Archivo um pergaminho perfeitamente inutil! Vae buscar o rolo... Mas
tem cuidado com o frasco!

O Bento, cuidadoso, sempre lento, ainda enfiou os botões d'agatha nos
punhos da camisa do Sr. Doutor, e desdobrou sobre a cama, para elle
vestir, a quinzena, as calças bem vincadas, de cheviote leve. E Gonçalo,
retomado pela idéa de artigos para os *Annaes*, folheava, rente á
janella, a _Historia da Administração Publica em Portugal_, quando Bento
voltou com um rolo de pergaminho, d'onde pendia, por fitas roidas, um
sello de chumbo.

--Esse mesmo! exclamou o Fidalgo atirando o volume para o poial da
janella. É esse mesmo que eu enrolei no pergaminho para se não quebrar.
Desembrulha, deixa em cima da commoda... O Sr. Dr. Mattos aconselhou que
o tomasse com agua tepida, em jejum. Parece que ferve. E limpa o sangue,
desannuvia a cabeça... Pois eu muito necessitado ando de desannuviar a
cabeça!... Toma tu tambem, Bento. E dize á Rosa que tome. Todos tomam
agora, até o Papa!

Com cuidado, o Bento desenrolára o frasco, estendendo sobre o marmore da
commoda o pergaminho duro, onde a lettra do seculo XVI se encarquilhava
amarella e morta. E Gonçalo, abotoando o colarinho:

--Ora ahi está o que eu levo preciosamente para deslindar o fôro de
Praga! Um pergaminho do tempo de D. Sebastião... E só percebo mesmo a
data, mil quatrocentos... Não, mil quinhentos e setenta e sete. Nas
vesperas da jornada d'Africa... Emfim! serviu para embrulhar o frasco.

O Bento, que escolhera no gavetão um collete branco, relanceou de lado o
pergaminho veneravel:

--Naturalmente foi carta que El-rei D. Sebastião escreveu a algum
avosinho do Sr. Doutor...

--Naturalmente, murmurava o Fidalgo, deante do espelho. E para lhe dar
alguma cousa boa, alguma cousa gorda... Antigamente ter rei era ter
renda. Agora... Não apertes tanto essa fivella, homem! Trago ha dias o
estomago inchado... Agora, com effeito, esta instituição de Rei anda
muito safada, Bento!

--Parece que anda, observou gravemente o Bento. Tambem, o _Seculo_
affiança que os Reis estão a acabar, e por dias. Ainda hontem
affiançava. E o _Seculo_ é jornal bem informado... No de hoje, não sei
se o Sr. Doutor leu, lá vem a grande festa dos annos do Sr. Sanches
Lucena, e o fogo de vistas, e o brodio que deram na _Feitosa_...

Enterrado no divan de damasco, Gonçalo estendera os pés ao Bento que lhe
laçava as botas brancas:

--Esse Sanches Lucena é um idiota! Ora que arranjo fará a esse homem,
aos sessenta annos, ser deputado, passar mezes em Lisboa no Francfort,
abandonar as propriedades, deixar aquella linda quinta... E para quê?
Para rosnar de vez em quando «apoiado!» Antes elle me cedesse a cadeira,
a mim, que sou mais esperto, não possuo grandes terras, e gosto do Hotel
Bragança. E por Sanches Lucena... O Joaquim amanhã que me tenha a egoa
prompta, a esta hora, para eu ir á _Feitosa_ visitar esse animal... E
ponho então o fato novo de montar que trouxe de Lisboa, com as polainas
altas... Ha mais de dois annos que não vejo a D. Anna Lucena. É uma
linda mulher!

--Pois quando o Sr. Doutor estava em Lisboa elles passaram ahi, na
caleche. Até pararam, e o Sr. Sanches Lucena apontou para a Torre, a
mostrar á senhora... Mulher muito perfeita! E traz uma grande luneta,
com um grande cabo, e um grande grilhão, tudo d'oiro...

--Bravo!... Encharca bem esse lenço com agoa de Colonia, que tenho a
cabeça tão pesada!... Essa D. Anna era uma jornaleira, uma moça do
campo, de Corinde?

Bento protestou, com o frasco suspenso, espantado para o Fidalgo:

--Não senhor! A Snr.^a D. Anna Lucena é de gente muito baixa! Filha d'um
carniceiro d'Ovar... E o irmão andou a monte por ter morto o ferrador
d'Ilhavo.

--Emfim, resumiu Gonçalo, filha de carniceiro, irmão a monte, bella
mulher, luneta d'oiro... Merece fato novo!

       *       *       *       *       *

Em Villa-Clara, ás dez horas, sentado n'um dos bancos de pedra do
Chafariz, sob as olaias, o Titó esperava com o amigo João Gouveia--que
era o Administrador do Concelho da Villa. Ambos se abanavam com os
chapeus, em silencio, gozando a frescura e o sussurro da agua lenta na
sombra. E a «meia» batia no relogio da Camara, quando Gonçalo, que se
retardára na Assembléa n'um voltarete enremissado, appareceu annunciando
uma fome terrivel, «a fome historica dos Ramires», e apressando a marcha
para o Gago--sem mesmo consentir que o Titó descesse á tabacaria do
Brito, a buscar uma garrafa de aguardente de canna da Madeira, velha e
«da ponta fina...»

--Não ha tempo! Ao Gago! Ao Gago!... Senão devoro um de Vocês, com esta
furiosa fome Ramirica!

Mas, logo ao subirem a Calçadinha, parou elle cruzando os braços,
interpellando divertidamente o Sr. Aministrador do Concelho pelo
estupendo feito do _seu_ Governo... Então o _seu_ Governo, os _seus_
amigos Historicos, o _seu_ honradissimo S. Fulgencio--nomeavam, para
Governador Civil de Monforte, o Antonio Moreno! O Antonio Moreno, tão
justamente chamado em Coimbra Antoninha Morena! Não, realmente, era a
derradeira degradação a que podia rolar um paiz! Depois d'esta, para
harmonia perfeita dos serviços, só outra nomeação, e urgente--a da
Joanna Salgadeira, Procuradora Geral da Corôa!

E o João Gouveia, um homem pequeno, muito escuro, muito secco, de bigode
mais duro que piassaba, esticado n'uma sobrecasaca curta, com o chapeu
de coco atirado para a orelha, não discordava. Empregado imparcial,
servindo os Historicos como servira os Regeneradores, sempre acolhia com
imparcial ironia as nomeações de bachareis novos, Historicos ou
Regeneradores, para os gordos logares Administrativos. Mas, n'este caso,
sinceramente, quasi vomitára, rapazes! Governador Civil, e de Monforte,
o Antonio Moreno, que elle tantas vezes encontrára no quarto, em
Coimbra, vestido de mulher, de roupão aberto, e a carinha bonita coberta
de pó de arroz!...--E, travando do braço do Fidalgo, recordava a noite
em que o José Gorjão, muito bebedo, de cartola e com um revólver, exigia
furiosamente que o padre Justino, tambem bebedo, o casasse com o
Antoninho deante d'um nicho da Senhora da Boa Morte! Mas o Titó, que
esperava, floreando o bengalão, declarou áquelles senhores que se o
tempo sobejava para arrastarem assim na rua, a conversar de Politica e
d'indecencias--então voltava elle ao Brito, buscar a aguardentesinha...
Immediatamente o Fidalgo da Torre, sempre brincalhão, sacudiu o braço do
Administrador, e galgou pela Calçadinha, aos corcovos, com as mãos
fortemente juntas, como colhendo uma redea, contendo um cavallo que se
desboca.

E na sala alta do Gago, ao cimo da escada esguia e ingreme que subia da
taberna, a um canto da comprida mesa allumiada por dois candieiros de
petroleo, a ceia foi muito alegre, muito saboreada. Gonçalo, que se
declarava miraculosamente curado pelo passeio até aos Bravaes e pelas
emoções do voltarete em que ganhára desenove tostões ao Manoel
Duarte--começou por uma pratada d'ovos com chouriço, devorou metade da
tainha, devastou o seu «frango de doente», clareou o prato da salada de
pepino, findou por um montão de ladrilhos de marmellada: e atravez
d'este nobre trabalho, sem que a fina brancura da sua pelle se
afogueasse, esvasiou uma caneca vidrada de Alvaralhão, porque logo ao
primeiro trago, e com desgosto do Titó, amaldiçoára o vinho novo do
Abbade. Á sobremesa appareceu o Videirinha, «o Videirinha do violão»,
tocador afamado de Villa Clara, ajudante da Pharmacia, e poeta com
versos de amor e de patriotismo já impressos no *Independente
d'Oliveira*. Jantára n'essa tarde, com o violão, em casa do commendador
Barros, que celebrava o anniversario da sua commenda: e só acceitou um
copo d'Alvaralhão, em que esmagou um ladrilho de marmellada «para
adocicar a goella». Depois, á meia noite, Gonçalo obrigou o Gago a
espertar o lume, ferver um café «muito forte, um café terrivel, Gago
amigo! um café capaz de abrir talento no Sr. Commendador Barros!» Era
essa a hora divina do violão e do «fadinho». E já o Videirinha recuára
para a sombra da sala, pigarreando, affinando os bordões, pousado com
melancolia á borda d'um banco alto.

--A _Soledad_, Videirinha! pediu o bom Titó, pensativo, enrolando um
grosso cigarro.

Videirinha gemeu deliciosamente a _Soledad_:

    Quando fôres ao cemiterio
    Ai Soledad, Soledad!...

Depois, apenas elle findou, acclamado, e emquanto acertava as cravelhas,
o Fidalgo da Torre e João Gouveia, com os cotovellos na mesa, os
charutos fumegando, conversaram sobre essa venda de Lourenço Marques aos
Inglezes, preparada surrateiramente (conforme clamavam, arripiados de
horror, os jornaes da Opposição) pelo Governo do S. Fulgencio. E Gonçalo
tambem se arripiava! Não com a alienação da Colonia--mas com a
impudencia do S. Fulgencio! Que aquelle careca obeso, filho sacrilego
d'um frade que depois se fizera mercieiro em Cabecelhos, trocasse a
libras, para se manter mais dois annos no Poder, um pedaço de Portugal,
torrão augusto, trilhado heroicamente pelos Gamas, os Athaydes, os
Castros, os seus proprios avós--era para elle uma abominação que
justificava todas as violencias, mesmo uma revolta, e a casa de Bragança
enterrada no lodo do Tejo! Trincando, sem parar, amendoas torradas, João
Gouveia observou:

--Sejamos justos, Gonçalo Mendes! Olhe que os Regeneradores...

O Fidalgo sorrio superiormente. Ah! se os Regeneradores realisassem essa
grandiosa operação--bem! Esses, primeiramente, nunca commetteriam a
indecencia de vender a Inglezes terra de Portuguezes! Negociariam com
Francezes, com Italianos, povos latinos, raças fraternas... E depois os
bons milhões soantes seriam applicados ao fomento do Paiz, com saber,
com probidade, com experiencia. Mas esse horrendo careca do S.
Fulgencio!...--E no seu furor, engasgado, gritou por genebra, por que
realmente aquelle cognac do Gago era uma peçonha torpe!

O Titó encolheu os hombros, resignado:

--Não me deixaste ir buscar a aguardentesinha, agora aguenta... E a
genebra é ainda mais peçonhenta. Nem para os negros d'esse Lourenço
Marques que tu queres vender... Portuguezes indecentes, a vender
Portugal! Até o Sr. Administrador do Concelho devia prohibir estas
conversas...

Mas o Sr. Administrador do Concelho affirmou que as consentia, e
rasgadamente... Por que tambem elle, como Governo, venderia Lourenço
Marques, e Moçambique, e toda a Costa Oriental! E ás talhadas! Em
leilão! Alli, toda a Africa, posta em praça, apregoada no Terreiro do
Paço! E sabiam os amigos porquê? Pelo são principio de forte
administração--(estendia o braço, meio alçado do banco, como n'um
Parlamento)... Pelo são principio de que todo o proprietario de terras
distantes, que não póde valorisar por falta de dinheiro ou gente, as
deve vender para concertar o seu telhado, estrumar a sua horta, povoar o
seu curral, fomentar todo o bom torrão que pisa com os pés... Ora a
Portugal restava toda uma riquissima provincia a amanhar, a regar, a
lavrar, a semear--o Alemtejo!

O Titó lançou o vozeirão, desdenhando o Alemtéjo como uma pellicula de
terra de má qualidade, que, fóra umas legoas de campos em torno de Beja
e de Serpa, por um grão só dava dois, e, apenas esgaravetada, logo
mostrava o granito...

--O mano João tem lá uma herdade immensa, immensissima, que rende
trezentos mil réis!

O Administrador, que advogára em Mertola, protestou, encristado. O
Alemtejo! Provincia abandonada, sim! Abandonada miseravelmente, desde
seculos, pela imbecilidade dos governos... Mas riquissima, fertilissima!

--Pois então os Arabes... E qual Arabes! Ainda ha dias o Freitas Galvão
me contava...

Mas Gonçalo Mendes, que cuspira tambem a genebra com uma carantonha,
acudiu, n'um resumo varredor, condemnando todo o Alemtejo como uma
desgraçada illusão!

Estirado por sobre a mesa, o Administrador gritava:

--Você já esteve no Alemtejo?

--Tambem nunca estive na China, e...

--Então não falle! Só a vinha espantosa que plantou o João Maria...

--Quê! Umas cem pipas de zurrapa! Mas, n'outros sitios, legoas e legoas
sem...

--Um celleiro!

--Uma charneca!

E atravez do tumulto o Videirinha, repenicando com solitario ardor,
levado na torrente d'ais do «fado» da Ariosa, soluçava contra uns olhos
negros, donos do seu coração:

    Ai! que dos teus negros olhos
    Me vem hoje a perdição...

O petroleo dos candieiros findava: e o Gago, reclamado para trazer
castiçaes, surdio em mangas de camisa, detraz d'uma cortina de chita,
com a sua esperta humildade banhada em riso, lembrando a suas
Excellencias que passava da uma horasinha da noite... O Administrador,
que detestava noitadas, nocivas á sua garganta (de amygdalas loucamente
inflammaveis), puxou o relogio com terror. E rapidamente reabotoado na
sobrecasa, de chapéo côco mais tombado á banda, apressou o lento Titó,
por que ambos moravam no alto da Villa--elle defronte do Correio, o
outro na viella das Therezas, n'uma casa onde outr'ora habitára e
apparecera apunhalado o antigo carrasco do Porto.

O Titó porém não se aviava. Com o bengalão debaixo do braço, ainda
chamou o Gago ao fundo sombrio da sala estreita, para cochichar sobre o
embrulhado negocio d'uma compra de espingarda, soberba espingarda
Winchester, empenhada ao Gago pelo filho do tabellião Guedes d'Oliveira.
E, quando desceu a escadaria, encontrou á porta da taberna, no estendido
luar que orlava a rua adormecida, o Fidalgo da Torre e o João Gouveia
bruscamente engalfinhados na costumada contenda sobre o Governador Civil
de Oliveira--o André Cavalleiro!

Era sempre a mesma briga, pessoal, furiosa e vaga. Gonçalo clamando que
não alludissem deante d'elle, pelas cinco chagas de Christo, a esse
bandido, esse Snr. Cavalleiro e sobretudo Cavallo, mandão burlesco que
desorganizava o Districto! E João Gouveia muito teso, muito secco, com o
côco mais cahido na orelha, assegurando a inteligencia superior do amigo
Cavalleiro, que estabelecera limpeza e ordem, como Hercules, nas
cavallariças d'Oliveira! O Fidalgo rugia. E Videirinha, com o violão
resguardado atraz das costas, supplicava aos amigos que recolhessem á
taberna, para não alvorotar a rua...

--Tanto mais que defronte, coitada, a sogra do Dr. Venancio está desde
hontem com a pontada!

--Pois então, berrou Gonçalo, não venham com disparates que revoltam!
Dizer você, Gouveia, que Oliveira nunca teve Governador Civil como o
Cavalleiro!... Não é por meu pae! O papá já lá vae ha trez annos,
infelizmente. E concordo que não fosse boa auctoridade. Era frouxo,
andava doente... Mas depois tivemos o Visconde de Freixomil. Tivemos o
Bernardino. Você serviu com elles. Eram dois homens!... Mas este cavallo
d'este Cavalleiro! A primeira condição para a auctoridade superior d'um
Districto é não ser burlesca. E o Cavalleiro é d'entremez! Aquella
guedelha de trovador, e a horrenda bigodeira negra, e o olho
languinhento a pingar namoro, e o papo empinado, e o _pó-pó-poh_! É
d'entremez! E estupido, d'uma estupidez fundamental, que lhe começa nas
patas, vem subindo, vem crescendo. Oh senhores, que animal!... Sem
contar que é malandro.

Teso na sombra do immenso Titó, como uma estaca junto d'uma torre, o
Administrador mordia o charuto. Depois, de dedo espetado, com uma
serenidade cortante:

--Você acabou?... Pois, Gonçalinho, agora escute! Em todo o districto
d'Oliveira, note bem, em todo elle! não ha ninguem, absolutamente
ninguem, que de longe, muito de longe, se compare ao Cavalleiro em
intelligencia, caracter, maneiras, saber, e finura politica!

O Fidalgo da Torre emmudeceu, varado. Por fim sacudindo o braço, n'um
desabrido, arrogante desprezo:

--Isso são as opiniões d'um subalterno!

--E isso são as expressões d'um malcreado! uivou o outro, crescendo
todo, com os olhinhos esbugalhados a fuzilar.

Immediatamente entre os dois, mais grosso que um barrote, avançou o
braço do Titó, estendendo uma sombra na calçada:

--Olá! Oh rapazes! Que desconchavo é este? Vocês estão borrachos?...
Pois tu, Gonçalo...

Mas já Gonçalo, n'um d'esses seus impulsos generosos e amoraveis que tão
finamente seduziam, se humilhava, confessava a sua brutalidade,
sensibilisado:

--Perdoe você, João Gouveia! Sei perfeitamente que você defende o
Cavalleiro por amizade, não por dependencia... Mas que quer, homem?
Quando me fallam n'esse Cavallo... Não sei, é por contagio da besta,
orneio, atiro coice!

O Gouveia, sem rancor, logo reconciliado (porque admirava carinhosamente
o Fidalgo da Torre), deu um puxão forte á sobrecasaca e apenas observou
«que o Gonçalinho era uma flôr, mas picava...» Depois, aproveitando a
emoção submissa de Gonçalo, recomeçou a glorificação do Cavalleiro, mais
sobria. Reconhecia certas fraquezas. Sim, com effeito, aquelle modo
impertigado... Mas que coração!--E o Gonçalinho devia considerar...

O Fidalgo, de novo revoltado, recuou, espalmando as mãos:

--Escute você, oh João Gouveia! Por que é que você lá em cima, á ceia,
não comeu a salada de pepino? Estava divina, até o Videirinha a
appeteceu! Eu repeti, acabei a travessa... Por que foi? Por que você tem
horror physiologico, horror visceral ao pepino. A sua natureza e o
pepino são incompativeis. Não ha raciocinios, não ha subtilezas, que o
persuadam a admittir lá dentro o pepino. Você não duvida que elle seja
excellente, desde que tanta gente de bem o adora: mas você não póde...
Pois eu estou para o Cavalleiro como você para o pepino. Não posso! Não
ha molhos, nem razões, que m'o disfarcem. Para mim é ascoroso. Não vae!
Vomito!... E agora ouça...

Então Titó, que bocejava, interveio, já farto:

--Bem! Parece-me que apanhamos a nossa dóse de Cavalleiro, e valente!
Somos todos muito boas pessoas e só nos resta debandar. Eu tive senhora,
tive tainha... Estou derreado. E não tarda a madrugada, que vergonha!

O Administrador pulou. Oh Diabo! E elle, ás nove horas da manhã, com
commissão de recenseamento!... Para esmagar bem o amúo, cingiu Gonçalo
n'um rijo abraço. E, quando o Fidalgo descia para o Chafariz com o
Videirinha (que n'estas noites festivas de Villa Clara o acompanhava
sempre pela estrada até ao portão da Torre), João Gouveia ainda se
voltou, pendurado do braço do Titó no meio da Calçadinha, para lhe
lembrar um preceito moral «de não sei que philosopho»:

--«Não vale a pena estragar boa ceia por causa de má politica...» Creio
que é d'Aristoteles!

E até Videirinha, que de novo afinava a viola, se preparava para um
solto descante ao luar, murmurou respeitosamente por entre abafados
harpejos:

--Não vale a pena, Sr. Doutor... Realmente não vale a pena, por que em
Politica hoje é branco, ámanhã é negro, e depois, zás, tudo é nada!

       *       *       *       *       *

O fidalgo encolhera os hombros. A Politica! Como se elle pensasse na
Auctoridade, no Sr. Governador civil d'Oliveira--quando injuriava o Sr.
André Cavalleiro, de Corinde! Não! o que detestava era o homem--o falso
homem d'olho langoroso! Por que entre elles existia um d'esses fundos
aggravos que outr'ora, no tempo dos Tructesindos, armavam um contra o
outro, em dura arrancada de lanças, dois bandos senhoriaes...--E pela
estrada, com a lua no alto dos oiteiros de Valverde, em quanto no violão
do Videirinha tremia o choro lento do fado do Vimioso, Gonçalo Mendes
recordava, aos pedaços, aquella historia que tanto enchera a sua alma
desoccupada. Ramires e Cavalleiros eram familias vizinhas, uma com a
velha torre em Santa Ireneia, mais velha que o Reino--a outra com quinta
bem tratada e rendosa em Corinde. E quando elle, rapaz de dezoito annos,
enfiava enfastiadamente os preparatorios do Lyceu, André Cavalleiro,
então estudante do Terceiro-Anno, já o tratava como um amigo serio.
Durante as férias, como a mãe lhe dera um cavallo, apparecia todas as
tardes na Torre; e muitas vezes, sob os arvoredos da quinta ou passeando
pelos arredores de Bravaes e Valverde, lhe confiava, como a um espirito
maduro, as suas ambições politicas, as suas idéas de vida que desejava
grave e toda votada ao Estado. Gracinha Ramires desabrochava na flôr dos
seus dezeseis annos; e mesmo em Oliveira lhe chamavam a «flôr da Torre».
Ainda então vivia a governante ingleza de Gracinha, a boa Miss
Rhodes--que, como todos na Torre, admirava com enthusiasmo André
Cavalleiro pela sua amabilidade, a sua ondeada cabelleira romantica, a
doçura quebrada dos seus olhos largos, a maneira ardente de recitar
Victor Hugo e João de Deus. E, com essa fraqueza que lhe amollecia a
alma e os principios perante a soberania do Amor, favorecera demoradas
conversas de André com Maria da Graça sob as olaias do Mirante e mesmo
cartinhas trocadas ao escurecer por sobre o muro baixo da Mãe d'Agua.
Todos os domingos o Cavalleiro jantava na Torre:--e o velho procurador
Rebello já preparára, com esforço e resmungando, um conto de reis para o
enxoval da «menina». O pae de Gonçalo, Governador Civil de Oliveira,
sempre atarefado, enredado em Politica e em dividas, amanhecendo só na
Torre aos Domingos, approvava esta collocação de Gracinha, que, meiga e
romanesca, sem mãe que a velasse, creava na sua vida, já difficil, um
tropeço e um cuidado. Sem representar como elle uma familia de immensa
Chronica, anterior ao Reino, do mais rico sangue de Reis godos, André
Cavalleiro era um moço bem nascido, filho de general, neto de
desembargador, com brasão legitimo na sua casa apalaçada de Corinde, e
terras fartas em redor, de boa semeadura, limpas de hypothecas...
Depois, sobrinho de Reis Gomes, um dos Chefes Historicos, já filiado no
Partido Historico (desde o Segundo Anno da Universidade), a sua carreira
andava marcada com segurança e brilho na Politica e na Administração. E
emfim Maria da Graça amava enlevadamente aquelles reluzentes bigodes, os
hombros fortes de Hercules bem educado, o porte ufano que lhe
encouraçava o peitilho e que impressionava. Ella, em contraste, era
pequenina e fragil, com uns olhos timidos e esverdeados que o sorriso
humedecia e enlanguescia, uma transparente pelle de porcellana fina, e
cabellos magnificos, mais lustrosos e negros que a cauda d'um corcel de
guerra, que lhe rolavam até aos pés, em que se podia embrulhar toda,
assim macia e pequenina. Quando desciam ambos as alamedas da quinta,
miss Rhodes (que o pae, professor de Litteratura Grega em Manchester,
recheára de Mithologia) pensava sempre em «Marte cheio de força amando
Psyché cheia de graça.» E mesmo os criados da Torre se maravilhavam do
«lindo par!» Só a Snr.^a D. Joaquina Cavalleiro, a mãe de André, senhora
obesa e rabugenta, detestava aquella terna assiduidade do filho na
Torre, sem motivo pesado, só por «desconfiar da pinta da menina e
desejar nóra mais comesinha...» Felizmente, quando André Cavalleiro se
matriculava no Quinto Anno, a desagradavel matrona morreu d'uma
anasarca. O pae de Gonçalo recebeu a chave do caixão: Gracinha tomou
luto: e Gonçalo, companheiro de casa do Cavalleiro na rua de S. João, em
Coimbra, enrolou um fumo na manga da batina. Logo em Santa Ireneia se
pensou que o explendido André, libertado da pêca opposição da mamã,
pediria a «Flôr da Torre» depois do Acto de Formatura. Mas, findo esse
desejado Acto, Cavalleiro abalou para Lisboa--por que se preparavam
Eleições em Outubro, e elle recebera do tio Reis Gomes, então Ministro
da Justiça, a promessa de «ser deputado» por Bragança.

E todo esse verão o passou na Capital; depois em Cintra, onde o negro
langor dos seus olhos humidos amollecia corações; depois n'uma jornada
quasi triumphal a Bragança com foguetes e «vivas ao sobrinho do Sr.
conselheiro Reis Gomes!» Em Outubro Bragança «confiou ao dr. André
Cavalleiro (como escreveu o _Echo de Traz-os-Montes_) o direito de a
representar em Côrtes com os seus brilhantes conhecimentos litterarios e
a sua formosissima presença de orador...» Recolheu então a Corinde; mas
nas suas visitas á Torre, onde o pae de Gonçalo convalescia d'uma febre
gastrica que exacerbára a sua antiga diabetes, André já não arrastava
sofregamente Gracinha, como outr'ora, para as silenciosas sombras da
quinta, permanecendo de preferencia na sala azul, a conversar sobre
Politica com Vicente Ramires, que se não movia da poltrona, embrulhado
n'uma manta. E Gracinha, nas suas cartas para Coimbra a Gonçalo, já se
carpia de não correrem tão doces nem tão intimas as visitas do André á
Torre, «occupado, como andava sempre agora, a estudar para deputado...»
Depois do Natal o Cavalleiro voltou para Lisboa, para a abertura das
Côrtes, muito apetrechado, com o seu creado Matheus, uma linda egua que
comprára em Villa Clara ao Manoel Duarte, e dous caixotes de livros. E a
boa Miss Rhodes sustentava que Marte, como convinha a um heróe, só
reclamaria Psyché depois d'um nobre feito, uma estreia nas Camaras,
«n'um discurso lindo, todo flôres...» Quando Gonçalo, nas férias de
Paschoa, appareçeu na Torre, encontrou Gracinha inquieta e descorada. As
cartas do seu André, que se estreára «e n'um discurso lindo, todo
flôres...», eram cada semana mais curtas, mais calmas. E a ultima (que
ella lhe mostrou em segredo), datada da Camara, contava em tres linhas
mal rabiscadas «que tivera muito que trabalhar em commissões, que o
tempo se pozera lindo, que n'essa noite era o baile dos condes de
Villaverde, e que elle continuava com muitas saudades o seu fiel
André...» Gonçalo Mendes Ramires, logo n'essa tarde, desabafou com o
pae, que definhava na sua poltrona:

--Eu acho que o André se está portando muito mal com a Gracinha... O
papá não lhe parece?

Vicente Ramires apenas moveu, n'um gesto de vencida tristeza, a mão
descarnada d'onde a cada momento lhe escorregava o annel d'armas.

Por fim em Maio a sessão das Camaras terminou--essa sessão que tanto
interessára Gracinha, anciosa «que elles accabassem de discutir e
tivessem férias.» E quasi immediatamente ella em Santa Ireneia, Gonçalo
em Coimbra, souberam pelos jornaes que «o talentoso deputado André
Cavalleiro partira para Italia e França n'uma longa viagem de recreio e
d'estudo.» E nem uma carta á sua escolhida, quasi sua noiva!... Era um
ultraje, um bruto ultraje, que outr'ora, no seculo XII, lançaria todos
os Ramires, com homens de cavallo e peonagem, sobre o solar dos
Cavalleiros, para deixar cada trave denegrida pela chamma, cada servo
pendurado d'uma corda de canave. Agora Vicente Ramires, apagado e
mortal, murmurou simplesmente: «Que traste!» Elle em Coimbra, rugindo,
jurou esbofetear um dia o infame! A boa Miss Rhodes, para se consolar,
desembrulhou a sua velha harpa, encheu Santa Ireneia de magoados
harpejos. E tudo findou nas lagrimas que Gracinha, durante semanas, tão
desconsolada da vida que nem se penteava, escondeu sob as olaias do
Mirante.

E, ainda depois d'esses annos, a esta lembrança das lagrimas da irmã, um
rancor invadiu Gonçalo, tão redivivo que atirou para o lado, para sobre
as sebes da valla, uma bengallada, como se fossem ás costas do
Cavalleiro!--Caminhavam então junto á ponte da Portella, onde os campos
se alargam, e da estrada se avista Villa-Clara, que a lua branqueava
toda, desde o convento de Santa Thereza, rente ao Chafariz, até ao muro
novo do cemiterio, no alto, com os seus finos cyprestes. Para o fundo do
valle, clara tambem no luar, era a egrejinha de Craquêde, Santa Maria de
Craquêde, resto do antigo Mosteiro em que ainda jaziam, nos seus rudes
tumulos de granito, as grandes ossadas dos Ramires Affonsinos. Sob o
arco, docemente, o riacho lento, arrastando entre os seixos, sussurrava
na sombra. E Videirinha, enlevado n'aquelle silencio e suavidade
saudosa, cantava, n'um gemer surdo de bordões:

    Baldadas são tuas queixas,
    Escusados são teus ais,
    Que é como se eu morto fôra.
    E não me verás nunca mais!...

E Gonçalo retomára as suas recordações, repassava tristezas que depois
cahiram sobre a Torre. Vicente Ramires morrera n'uma tarde d'Agosto, sem
soffrimento, estendido na sua poltrona á varanda, com os olhos cravados
na velha Torre, murmurando para o padre Soeiro:--«Quantos Ramires verá
ella ainda, n'esta casa, e á sua sombra?...» Todas essas ferias as
consumiu Gonçalo no escuro cartorio, desajudado (por que o procurador, o
bom Rebello, tambem Deus o chamára), revolvendo papeis, apurando o
estado da casa--reduzida aos dois contos e trezentos mil reis que
rendiam os foros de Craquêde, a herdade de Praga, e as duas quintas
historicas, Treixedo e Santa Ireneia. Quando regressou a Coimbra deixou
Gracinha em Oliveira, em casa de uma prima, D. Arminda Nunes Viegas,
senhora muito abastada, muito bondosa, que habitava no Terreiro da Louça
um immenso casarão cheio de retratos d'avoengos e de arvores de costado,
onde ella, vestida de velludo preto, pousada n'um camapé de damasco,
entre aias que fiavam, perpetuamente relia os seus Livros de Cavallaria,
o _Amadis_, _Leandro o Bello_, _Tristão e Brancaflôr_, as _Chronicas do
Imperador Clarimundo_... Foi ahi que José Barrôlo (senhor d'uma das mais
ricas casas d'Amarante) encontrou Gracinha Ramires, e a amou com uma
paixão profunda, quasi religiosa--estranha n'aquelle moço indolente,
gorducho, de bochechas coradas como uma maçã, e tão escasso d'espirito
que os amigos lhe chamavam «o José Bacôco». O bom Barrolo residira
sempre em Amarante com a mãe, não conhecia o trahido romance da «Flôr da
Torre»--que nunca se espalhára para além dos cerrados arvoredos da
quinta. E, sob o enternecido e romanesco patrocinio de D. Arminda,
noivado e casamento docemente se apressaram, em tres mezes, depois d'uma
carta de Barrôlo a Gonçalo Mendes Ramires jurando--«que a affeição pura
que sentia pela prima Graça, pelas suas virtudes e outras qualidades
respeitaveis, era tão grande que nem achava no Diccionario termos para a
explicar...» Houve uma bôda luxuosa: e os noivos (por desejo de
Gracinha, para se não affastar da querida Torre), depois d'uma jornada
filial a Amarante, «armaram o seu ninho» em Oliveira, á esquina do largo
d'El-Rei e da rua das Tecedeiras, n'um palacete que o Bacôco herdára,
com largas terras, do seu tio Melchior, Deão da Sé. Dois annos correram,
mansos e sem historia. E Gonçalo Mendes Ramires passava justamente em
Oliveira as suas ultimas férias de Paschoa quando André Cavalleiro,
nomeado Governador Civil do Districto, tomou posse, estrondosamente, com
foguetes, philarmonicas, o Governo civil e o Paço do Bispo illuminados,
as armas dos Cavalleiros em transparentes no café da Arcada e na
Recebedoria!... Barrôlo conhecia o Cavalleiro quasi intimamente,
admirava o seu talento, a sua elegancia, o seu brilho Politico. Mas
Gonçalo Mendes Ramires, que dominava soberanamente o bom Bacôco, logo o
intimou a não visitar o Sr. Governador Civil, a não o saudar sequer na
rua, e a partilhar, por dever d'alliança, os rancores que existiam entre
Cavalleiros e Ramires! José Barrôlo cedeu, submisso, espantado, sem
comprehender. Depois uma noite, no quarto, enfiando as chinellas, contou
a Gracinha «a exquisitice de Gonçalo»:

--E sem motivo, sem offensa, só por causa da Politica!... Ora, vê tu! Um
bello rapaz como o Cavalleiro! Podiamos fazer um ranchinho tão
agradavel!...

Outro sereno anno passou... E n'essa primavera, em Oliveira, onde se
demorára para a festa dos annos de Barrôlo, eis que Gonçalo suspeita,
fareja, descobre uma incomparavel infamia! O impertigado homem da
bigodeira negra, o Sr. André Cavalleiro, recomeçára com soberba
impudencia a cortejar Gracinha Ramires, de longe, mudamente, em
olhadellas fundas, carregadas de saudade e langor, procurando agora
apanhar como amante aquella grande fidalga, aquella Ramires, que
desdenhára como esposa!

       *       *       *       *       *

Tão levado ia Gonçalo pela branca estrada, no rolo amargo d'estes
pensamentos, que não reparou no portão da Torre, nem na portinha verde,
á esquina da casa, sobre tres degráos. E seguia, rente do muro da horta,
quando Videirinha, que estacára com os dedos mudos nos bordões do
violão, o avisou, rindo:

--Oh, Sr. Doutor, então larga assim, a estas horas de corrida para os
Bravaes?

Gonçalo virou, bruscamente despertado, procurando na algibeira, entre o
dinheiro solto, a chavinha do trinco:

--Nem reparava... Que lindamente você tem tocado, Videirinha! Com lua,
depois de ceia, não ha companheiro mais poetico... Realmente você é o
derradeiro trovador portuguez!

Para o ajudante de Pharmacia, filho d'um padeiro d'Oliveira, a
familiaridade d'aquelle tamanho Fidalgo, que lhe apertava a mão na
botica deante do Pires boticario e em Oliveira deante das Auctoridades,
constituia uma gloria, quasi uma coroação, e sempre nova, sempre
deliciosa. Logo sensibilisado, feriu os bordões rijamente:

--Então, para acabar, lá vae a grande trova, Sr. Doutor!

Era a sua famosa cantiga, o _Fado dos Ramires_, rosario de heroicas
Quadras celebrando as Lendas da Casa illustre--que elle desde mezes
apurava e completava, ajudado na terna tarefa pelo saber do velho Padre
Soeiro, capellão e archivista da Torre.

Gonçalo empurrou a portinha verde. No corredor espirrava uma lamparina
mortiça, já sem azeite, junto ao castiçal de prata. E Videirinha,
recuando ao meio da estrada, com um «dlindlon» ardente, fitára a Torre,
que, por cima dos telhados da vasta casa, mergulhava as ameias, o negro
miradoiro, no luminoso silencio do ceu de verão. Depois para ella e para
a lua atirou as endeixas glorificadoras, na dolente melodia d'um fado de
Coimbra, rico em _ais_:

    Quem te v'rá sem que estremeça,
    Torre de Santa Ireneia,
    Assim tão negra e callada,
    Por noites de lua cheia...
      Ai! Assim callada, tão negra,
      Torre de Santa Ireneia!

Ainda suspendeu para agradecer ao Fidalgo, que o convidava a subir e
enxugar um calice de genebra salvadora. Mas retomou logo o descante,
ditoso em descantar, como sempre arrebatado pelo sabor dos seus versos,
pelo prestigio das Lendas, emquanto Gonçalo desapparecia--com folgazãs
desculpas ao Trovador «por cerrar a portinha do Castello...»

    Ai! ahi estás, forte e soberba,
    Com uma historia em cada ameia,
    Torre mais velha que o reino,
    Torre de Santa Ireneia!...

E começára a quadra a Muncio Ramires, _Dente de Lobo_, quando em cima
uma sala, aberta á frescura da noite, se allumiou--e o Fidalgo da Torre,
com o charuto acceso, se debruçou da varanda para receber a serenada.
Mais ardente, quasi soluçante, vibrou o cantar do Videirinha. Agora era
a quadra de Gutierres Ramires, na Palestina, sobre o monte das
Oliveiras, á porta da sua tenda, deante dos Barões que o acclamavam com
as espadas nuas, recusando o Ducado de Galiléa e o senhorio das Terras
d'Além-Jordão.--Que não podia, em verdade, acceitar terra, mesmo Santa,
mesmo de Galiléa...

    Quem já tinha em Portugal
    Terras de Santa Ireneia!

--Boa piada! murmurou Gonçalo.

Videirinha, enthusiasmado, entoou logo outra nova, trabalhada n'essa
semana--a do sahimento de Aldonça Ramires, Santa Aldonça, trazida do
mosteiro d'Arouca ao solar de Treixedo, sobre o almadraque em que
morrera, aos hombros de quatro Reis!

--Bravo! gritou o Fidalgo pendurado da varanda. Essa é famosa, oh
Videirinha! Mas ahi ha Reis de mais... Quatro Reis!

Enlevado, empinando o braço do violão, o ajudante da Pharmacia lançou
outra, já antiga--a d'aquelle terrivel Lopo Ramires que, morto, se
erguera da sua campa no Mosteiro de Craquêde, montára um ginete morto, e
toda a noite galopára atravez da Hespanha para se bater nas Navas de
Tolosa! Pigarreou--e, mais chorosamente, atacou a do _Descabeçado_:

    Lá passa a negra figura...

Mas Gonçalo, que abominava aquella lenda, a silenciosa figura degolada,
errando por noites de inverno entre as ameias da Torre com a cabeça nas
mãos--despegou da varanda, deteve a Chronica immensa:

--Toca a deitar, oh Videirinha, hein? Passa das tres horas, é um horror.
Olhe! O Titó e o Gouveia jantam cá na Torre, no Domingo. Appareça
tambem, com o violão e cantiga nova: mas menos sinistra... _Bona sera_!
Que linda noite!

Atirou o charuto, fechou a vidraça da sala--a «sala velha,» toda
revestida d'esses denegridos e tristonhos retratos de Ramires que elle
desde pequeno chamava as _carantonhas dos vovós_. E, atravessando o
corredor, ainda sentia rolarem ao longe, no silencio dos campos cobertos
de luar, façanhas rimadas dos seus:

    Ai! lá na grande batalha...
    El-Rei Dom Sebastião...
    O mais moço dos Ramires
    Que era pagem do guião...

Despido, soprada a vella, depois de um rapido signal da cruz, o Fidalgo
da Torre adormeceu. Mas no quarto, que se povoou de Sombras, começou
para elle uma noite revôlta e pavorosa. André Cavalleiro e João Gouveia
romperam pela parede, revestidos de cótas de malha, montados em
horrendas tainhas assadas! E lentamente, piscando o olho máo,
arremessavam contra o seu pobre estomago pontoadas de lança, que o
faziam gemer e estorcer sobre o leito de pau preto. Depois era, na
Calçadinha de Villa-Clara, o medonho Ramires morto, com a ossada a
ranger dentro da armadura, e El-rei Dom Affonso II, arreganhando afiados
dentes de lobo, que o arrastavam furiosamente para a batalha das Navas.
Elle resistia, fincado nas lages, gritando pela Rosa, por Gracinha, pelo
Titó! Mas D. Affonso tão rijo murro lhe despedia aos rins, com o guante
de ferro, que o arremessava desde a Hospedaria do Gago até á Serra
Morena, ao campo da lide, luzente e fremente de pendões e d'armas. E
immediatamente seu primo d'Hespanha, Gomes Ramires, Mestre de Calatrava,
debruçado do negro ginete, lhe arrancava os derradeiros cabellos, entre
a retumbante galhofa de toda a hoste sarracena e os prantos da tia
Louredo trazida como um andor aos hombros de quatro Reis!...--Por fim,
moido, sem socêgo, já com a madrugada clareando nas fendas das janellas
e as andorinhas piando no beiral dos telhados, o Fidalgo da Torre atirou
um derradeiro repellão aos lençoes, saltou ao soalho, abrio a vidraça--e
respirou deliciosamente o silencio, a frescura, a verdura, o repouso da
quinta. Mas que sêde! uma sêde desesperada que lhe encortiçava os
labios! Recordou então o famoso _fruit salt_ que lhe recommendára o Dr.
Mattos,--arrebatou o frasco, correu á sala de jantar, em camisa. E, a
arquejar, deitou duas fartas colheradas n'um copo d'agua da Bica-Velha,
que esvasiou d'um trago, na fervura picante.

--Ah! que consolo, que rico consolo!...

Voltou derreadamente á cama: e readormeceu logo, muito longe, sobre as
relvas profundas d'um prado d'Africa, debaixo de coqueiros susurrantes,
entre o apimentado aroma de radiosas flores que brotavam atravez de
pedregulhos d'oiro. D'essa perfeita beatitude o arrancou o Bento, ao
meio dia, inquieto com «aquelle tardar do Sr. Doutor.»

--É que passei uma noite horrenda, Bento! Pesadelos, pavores, bulhas,
esqueletos... Foram os malditos ovos com chouriço; e o pepino...
Sobretudo o pepino! Uma idéa d'aquelle animal do Titó... Depois, de
madrugada, tomei o tal _fruit salt_, e estou optimo, homem!... Estou
optimissimo! Até me sinto capaz de trabalhar. Leva para a livraria uma
chavena de chá verde, muito forte... Leva tambem torradas.

E momentos depois, na livraria, com um roupão de flanella sobre a camisa
de dormir, sorvendo lentos goles de chá, Gonçalo relia junto da varanda
essa derradeira linha da Novella, tão rabiscada e molle, em que «os
largos raios da lua se estiravam pela larga sala d'armas...» De repente,
n'uma rasgada impressão de claridade, entreviu detalhes expressivos para
aquella noite de Castello e de verão--as pontas das lanças dos esculcas
faiscando silenciosamente pelos adarves da muralha, e o coaxar triste
das rans nas bordas lodosas dos fossos...

--Bons traços!

Achegou de vagar a cadeira, consultou ainda no volume do *Bardo* o
Poemeto do tio Duarte. E, desannuviado, sentindo as Imagens e os Dizeres
surgirem como bolhas d'uma agua represa que rebenta, atacou esse lance
do Capitulo I em que o velho Tructesindo Ramires, na sala d'armas de
Santa Ireneia, conversava com seu filho Lourenço e seu primo D. Garcia
Viegas, o _Sabedor_, de aprestos de guerra... Guerra! Porque? Acaso
pelos cerros arraianos corriam, ligeiros entre o arvoredo, almogavares
mouros? Não! Mas desgraçadamente, «n'aquella terra já remida e christã,
em breve se crusariam, umas contra outras, nobre lanças portuguezas!...»

Louvado Deus! a penna desemperrára! E, attento ás paginas marcadas n'um
tomo da _Historia_ d'Herculano, esboçou com segurança a Epocha da sua
Novella--que abria entre as discordias de Affonso II e de seus irmãos
por causa do testamento d'El-Rei seu pae, D. Sancho I. N'esse começo do
Capitulo já os Infantes D. Pedro e D. Fernando, esbulhados, andavam por
França e Leão. Já com elles abandonára o Reino o forte primo dos
Ramires, Gonçalo Mendes de Souza, chefe magnifico da casa dos Souzas. E
agora, encerradas nos castellos de Monte-Mór e de Esgueira, as senhoras
Infantas, D. Thereza e D. Sancha, negavam a D. Affonso o senhorio real
sobre as villas, fortalezas, herdades e mosteiros, que tão copiosamente
lhes doára El-Rei seu pae. Ora, antes de morrer no Alcaçar de Coimbra, o
senhor D. Sancho supplicára a Tructesindo Mendes Ramires, seu collaço e
Alferes-Mór, por elle armado cavalleiro em Lorvão, que sempre lhe
servisse e defendesse a filha amada entre todas, a infanta D. Sancha,
senhora de Aveyras. Assim o jurára o leal Rico-Homem junto do leito
onde, nos braços do Bispo de Coimbra e do Prior do Hospital sustentando
a candeia, agonisava, vestido de burel como um penitente, o vencedor de
Silves... Mas eis que rompe a féra contenda entre Affonso II,
asperamente cioso da sua auctoridade de Rei--e as Infantas, orgulhosas,
impellidas á resistencia pelos freires do Templo e pelos Prelados a quem
D. Sancho legára tão vastos pedaços do Reino! Immediatamente Alemquer e
os arredores d'outros castellos são devastados pela hoste real que
recolhia das Navas de Tolosa. Então D. Sancha e D. Thereza appellam para
El-rei de Leão, que entra com seu filho D. Fernando por terras de
Portugal a soccorrer as «Donas opprimidas.»--E n'este lance o tio
Duarte, no seu _Castello de Santa Ireneia_, interpellava com soberbo
garbo o Alferes-Mór de Sancho I:

    Que farás tu, mais velho dos Ramires?
    Se ao pendão leonez juntas o teu
    Trahes o preito que deves ao rei vivo!
    Mas se as Infantas deixas indefezas
    Trahes a jura que déstes ao rei morto!...

Esta duvida, porém, não angustiára a alma d'esse Tructesindo rude e leal
que o Fidalgo da Torre rijamente modelava. N'essa noite, apenas recebera
pelo irmão do Alcaide d'Aveyras, disfarçado em beguino, um afflicto
recado da senhora D. Sancha--ordenava a seu filho Lourenço que, ao
primeiro arreból, com quinze lanças, cincoenta homens de pé da sua mercê
e quarenta besteiros, corresse sobre Monte-mór. Elle no emtanto daria
alarido--e em dous dias entraria a campo com os parentes de solar, um
troço mais rijo de cavalleiros acontiados e de frecheiros, para se
juntar a seu primo, o _Souzão_, que na vanguarda dos leonezes descia
d'Alva-do-Douro.

Depois logo de madrugada o pendão dos Ramires, o Açor negro em campo
escarlate, se plantára deante das barreiras gateadas: e ao lado, no
chão, amarrado á haste por uma tira de couro, reluzia o velho emblema
senhorial, o sonoro e fundo caldeirão polido. Por todo o Castello se
apressavam os serviçaes, despendurando as cervilheiras, arrastando com
fragor pelas lages os pesados saios de malhas de ferro. Nos pateos os
armeiros aguçavam ascumas, amaciavam a dureza das grevas e coxotes com
camadas d'estopa. Já o adail, na ucharia, arrolára as rações de vianda
para os dous quentes dias da arrancada. E por todas as cercanias de
Santa Ireneia, na doçura da tarde, os atambores mouriscos, abafados no
arvoredo, tararam! tararam! ou mais vivos nos cabeços, ratatam! ratatam!
convocavam os cavalleiros de soldo e a peonagem da mesnada dos Ramires.

No emtanto o irmão do Alcaide, sempre disfarçado em beguino, de volta ao
castello d'Aveyras com a boa nova de prestes soccorros, transpunha
ligeiramente a levadiça da carcova... E aqui, para alegrar tão sombrias
vesperas de guerra, o tio Duarte, no seu Poemeto, engastára uma sorte
galante:

    Á moça, que na fonte enchia a bilha,
    O frade rouba um beijo e diz _Amen_!

Mas Gonçalo hesitava em desmanchar com um beijo de clerigo a pompa
d'aquella formosa sortida d'armas... E mordia pensativamente a rama da
penna--quando a porta da livraria rangeu.

--O correio...

Era o Bento com os Jornaes e duas cartas. O Fidalgo apenas abriu uma,
lacrada com o enorme sinete d'armas do Barrôlo--repellindo a outra em
que reconhecera a lettra detestada do seu alfaiate de Lisboa. E
immediatamente, com uma palmada na mesa:

--Oh diabo! quantos do mez, hoje? quatorze, hein?

O Bento esperava com a mão no fecho da porta.

--É que não tardam os annos da mana Graça! De todo esqueci, esqueço
sempre. E sem ter um presentinho engraçado... Que secca, hein?

Mas na véspera o Manoel Duarte, na Assembléa, á mesa do voltarete,
annunciára uma fuga a Lisboa por tres dias, para tratar do emprego do
sobrinho nas Obras Publicas. Pois corria a Villa-Clara pedir ao snr.
Manoel Duarte que lhe comprasse em Lisboa um bonito guarda-solinho de
sêda branca com rendas...

--O snr. Manoel Duarte tem gosto; tem muito gosto! E então o Joaquim que
não selle a egoa; já não vou ao Sanches Lucena. Oh, senhores, quando
pagarei eu esta infame visita? Ha tres mezes!... Emfim, por dous dias
mais a bella D. Anna não envelhece; e o velho Lucena tambem não morre.

E o Fidalgo da Torre, que decidira arriscar o beijo folgazão, retomou a
penna, arredondou o seu final com elegante harmonia:

«A moça, furiosa, gritou: _Fu! Fu! villão!_ E o beguino, assobiando,
aligeirou as sandalias pelo corrego, na sombra das altas faias, emquanto
que por todo o fresco valle, até Santa Maria de Craquêde, os atambores
mouriscos, tararam! ratamtam! convocavam á mesnada dos Ramires, na
doçura da tarde...»




III


Durante a longa semana, nas horas da calma, o Fidalgo da Torre trabalhou
com afferro e proveito. E n'essa manhã, depois de repicar a sineta no
corredor, duas vezes o Bento empurrára a porta da livraria, avisando o
snr. Doutor «que o almocinho, assim á espera, certamente se estragava.»
Mas de sobre a tira d'almaço Gonçalo rosnava «já vou!»--sem despegar a
penna, que corria como quilha leve em agua mansa, na pressa amorosa de
terminar, antes do almoço, o seu Capitulo I.

Ah! e que canceira lhe custára, durante esses dias, esse copioso
Capitulo, tão difficil, com o immenso Castello de Santa Ireneia a
erguer; e toda uma edade esfumada da Historia de Portugal a condensar em
contornos robustos; e a mesnada dos Ramires a apetrechar, sem que
faltasse uma ração nos alforges, ou uma garruncha nos caixotes, sobre o
dorso das mulas! Mas felizmente, na vespera, já movera para fóra do
Castello o troço de Lourenço Ramires, em soccorro de Monte-mór, com um
vistoso coriscar de capellos e lanças em torno ao pendão tendido.

E agora, n'esse remate do Capitulo, era noite, e o sino de recolher
tangera, e a almenára luzira na Torre albarran, e Tructesindo Ramires
descera á sala terrea da Alcaçova para ceiar--quando fóra, deante da
carcova, com tres toques fortes annunciando filho-d'algo, uma bozina
apressada soou. E, sem que o villico tomasse permissão do Senhor, o
alçapão da levadiça rangeu nas correntes de ferro, rebombou cavamente
nos apoios de pedra. Quem assim chegava em dura pressa era Mendo Paes,
amigo de Affonso II e mordomo da sua Curia, casado com a filha mais
velha de Tructesindo, D. Theresa--aquella que, pelo ondeante e alvo
pescoço, pelo pisar mais leve que um vôo, os Ramires chamavam a _Garça
Real_. O Senhor de Santa Ireneia correra ao patim para acolher, n'um
abraço, o genro amado--«membrudo cavalleiro, com os cabellos ruivos, a
alvissima pelle da raça germanica dos visigodos...» E, de mãos
enlaçadas, ambos penetraram n'essa sala de abobada, allumiada por tochas
que toscos anneis de ferro seguravam, chumbados aos muros.

Ao meio pousava a massiça meza de carvalho, rodeada de escanhos até ao
topo, onde se erguia, deante d'um aspero mantel de linho coberto de
pratos de estanho e de picheis luzidios, a cadeira senhorial com o Açor
grossamente lavrado nas altas espaldas, e d'ellas suspensa, pelo
cinturão tauxeado de prata, a espada de Tructesindo. Por traz negrejava
a funda lareira apagada, toda entulhada de ramos de pinheiro, com a
prateleira guarnecida de conchas, entre bocaes de sanguesugas, sob dois
molhos de palmas trazidas da Palestina por Gutierres Ramires, o
_d'Ultramar_. Rente a um esteio da chaminé, um falcão, ainda emplumado,
dormitava na sua alcondora: e ao lado, sobre as lages, n'uma camada de
juncos, dois alões enormes dormiam tambem, com o focinho nas patas, as
orelhas rojando. Toros de castanheiro sustentavam a um canto um pipo de
vinho. Entre duas frestas engradadas de ferro, um monge, com a face
sumida no capuz, sentado na borda de uma arca, lia, á claridade do
candil que por cima fumegava, um pergaminho desenrolado... Assim Gonçalo
adornára a soturna sala Affonsina com alfaias tiradas do Tio Duarte, de
Walter Scott, de narrativas do _Panorama_. Mas que esforço!... E mesmo,
depois de collocar sobre os joelhos do monge um folio impresso em
Moguncia por Ulrick Zell, desmanchára toda essa linha tão erudita, ao
recordar, com um murro na mesa, que ainda a Imprensa se não inventára em
tempos de seu avô Tructesindo, e que ao monge lettrado apenas competia
«um pergaminho de amarellada escripta...»

E caminhando nos ladrilhos sonoros, desde a lareira até ao arco da porta
cerrado por uma cortina de couro, Tructesindo, com a branca barba
espalhada sobre os braços cruzados, escutava Mendo Paes, que, na
confiança de parente e amigo, jornadeára sem homens da sua mercê,
cingindo apenas por cima do brial de lã cinzenta uma espada curta e um
punhal sarraceno. Açodado e coberto de pó correra Mendo Paes desde
Coimbra para supplicar ao sogro, em nome do Rei e dos preitos jurados,
que se não bandeasse com os de Leão e com as senhoras Infantas. E já
desenrolára ante o velho todos os fundamentos invocados contra ellas
pelos doutos Notarios da Curia--as resoluções do Concilio de Toledo! a
bulla do Apostolo de Roma, Alexandre! o velho fóro dos Visigodos!... De
resto, que injuria fizera ás senhoras Infantas seu real irmão para assim
chamarem hostes Leonezas a terras de Portugal? Nenhuma! Nem regedoria
nem renda dos castellos e villas da doação de D. Sancho lhes negava o
senhor D. Affonso. O Rei de Portugal só queria que nenhum palmo de chão
portuguez, baldio ou murado, jazesse fóra de seu senhorio real. Escasso
e avido El-Rei D. Affonso?... Mas não entregára elle á senhora D. Sancha
oito mil morabitinos d'oiro? E a gratidão da irmã fôra o Leonez passando
a raia e logo cahidos os castellos formosos d'Ulgoso, de Contrasta,
d'Urros e de Lanhosello! O mais velho da casa dos Souzas, Gonçalo
Mendes, não se encontrára ao lado dos cavalleiros da Cruz na jornada das
Navas, mas lá andava em recado das Infantas, como moiro, talando terra
portugueza desde Aguiar até Miranda! E já pelos cerros d'Além-Douro
apparecera o pendão renegado das treze arruellas--e por traz, farejando,
a alcateia dos Castros! Carregada ameaça, e de armas christãs,
opprimindo o Reino--quando ainda Moabitas e Agarenos corriam á redea
solta pelos campos do Sul!... E o honrado Senhor de Santa Ireneia, que
tão rijamente ajudára a fazer o Reino, não o deveria decerto desfazer
arrancando d'elle os pedaços melhores para monges e para donas
rebeldes!--Assim, com arremessados passos, exclamára Mendo Paes, tão
acalorado do esforço e da emoção, que duas vezes encheu de vinho uma
conca de pau e d'um trago a despejou. Depois, limpando a bocca ás costas
da mão tremula:

--Ide por certo a Monte-mór, senhor Tructesindo Ramires! Mas em recado
de paz e boa avença, persuadir vossa senhora D. Sancha e as senhoras
Infantas que voltem honradamente a quem hoje contam por seu pae e seu
Rei!

O enorme senhor de Santa Ireneia parára, pousando no genro os olhos
duros, sob a ruga das sobrancelhas, hirsutas e brancas como sarças em
manhã de geada:

--Irei a Monte-mór, Mendo Paes, mas levar o meu sangue e o dos meus para
que justiça logre quem justiça tem.

Então Mendo Paes, amargurado, ante a heroica teima:

--Maior dó, maior dó! Será bom sangue de Ricos-homens vertido por más
desfórras... Senhor Tructesindo Ramires, sabei que em Canta-Pedra vos
espera Lopo de Baião, o Bastardo, para vos tolher a passagem com cem
lanças!

Tructesindo ergueu a vasta face--com um riso tão soberbo e claro que os
alões rosnaram torvamente, e, acordando, o falcão esticou a aza lenta:

--Boa nova e de boa esperança! E, dizei, senhor Mordomo-mór da Curia,
tão de feição e certa assim m'a trazeis para me intimidar?

--Para vos intimidar?... Nem o Senhor Archanjo S. Miguel vos intimidaria
descendo do céo com toda a sua hoste e a sua espada de lume! De sobra o
sei, senhor Tructesindo Ramires. Mas casei na vossa casa. E já que
n'esta lide não sereis por mim bem ajudado, quero, ao menos, que sejaes
bem avisado.

O velho Tructesindo bateu as palmas para chamar os sergentes:

--Bem, bem, a cear, pois! Á ceia, Frei Munio!... E vós, Mendo Paes,
deixai receios.

--Se deixo! Não vos póde vir damno que me anceie de cem lanças, de
duzentas, que vos surjam a caminho.

E, emquanto o monge enrolava o seu pergaminho, se acercava da
mesa--Mendo Paes ajuntou com tristeza, desafivelando vagarosamente o
cinturão da espada:

--Só um cuidado me pesa. E é que, n'esta jornada, senhor meu sogro, ides
ficar de mal com o Reino e com o Rei.

--Filho e amigo! De mal ficarei com o Reino e com o Rei, mas de bem com
a honra e commigo!

Este grito de fidelidade, tão altivo, não resoava no poemeto do tio
Duarte. E quando o achou, com inesperada inspiração, o Fidalgo da Torre,
atirando a penna, esfregou as mãos, exclamou, enlevado:

--Caramba! Aqui ha talento!

Rematou logo o Capitulo. Estava esfalfado, á banca do trabalho desde as
nove horas, a reviver intensamente, e em jejum, as energias magnificas
dos seus fortes avós! Numerou as tiras--fechou na gaveta á chave o
volume do *Bardo*. Depois á janella, com o collete desabotoado, ainda
lançou o brado genial n'um grave e rouco tom, como o lançaria
Tructesindo:--...«de mal com o Reino e com o Rei, mas de bem com a honra
e commigo!...» E sentia n'elle realmente toda a alma de um Ramires, como
elles eram no seculo XII, de sublime lealdade, mais presos á sua palavra
que um santo ao seu voto, e alegremente desbaratando, para a manter,
bens, contentamento e vida!

O Bento, que espalhára outro repique desesperado, escancarou a porta da
livraria:

--É o Pereira... Está lá em baixo no pateo o Pereira que quer fallar ao
Sr. Doutor.

Gonçalo Mendes franziu a testa, com impaciencia, assim repuxado
d'aquellas alturas onde respirava os nobres espiritos da sua raça:

--Que massada!... O Pereira... Que Pereira?

--O Pereira; o Manoel Pereira, da Riosa; o Pereira Brazileiro.

Era um lavrador, com casal na Riosa, chamado _Brazileiro_ por ter
herdado vinte contos de um tio, regatão no Pará. Comprára então terras,
trazia arrendada a _Cortiga_, a fallada propriedade dos condes de
Monte-Agra, envergava aos domingos uma sobrecasaca de panno fino, e
dispunha de sessenta votos na Freguezia.

--Ah! Dize ao Pereira que suba, que conversamos emquanto almóço... E põe
outro talher.

A sala de jantar da Torre, que abria por trez portas envidraçadas para
uma funda varanda alpendrada, conservava, do tempo do avô Damião, (o
traductor de Valerius Flaccus) dous formosos pannos d'Arraz
representando a _Expedição dos Argonautas_. Louças da India e do Japão,
desirmanadas e preciosas, recheiavam um immenso armario de mogno. E
sobre o marmore dos aparadores rebrilhavam os restos, ainda ricos, das
pratas famosas dos Ramires que o Bento constantemente areava e polia com
amor. Mas Gonçalo, sobretudo de verão, sempre almoçava e jantava na
varanda luminosa e fresca, bem esteirada, revestida até meio-muro por
finos azulejos do seculo XVIII, e offerecendo a um canto, para as
preguiças do charuto, um profundo canapé de palhinha com almofadas de
damasco.

Quando lá entrou, com os jornaes da manhã que não abrira, o Pereira
esperava, encostado a um grosso guarda-sol de panninho escarlate,
considerando pensativamente a quinta que, d'alli, se abrangia até aos
álamos da ribeira do Coice e aos outeiros suaves de Valverde. Era um
velho esgalgado e rijo, todo ossos, com um carão moreno, de olhos
miudinhos e azulados, e uma barbicha rala, já branca, entre dous enormes
collarinhos presos por botões de ouro. Homem de propriedade, acostumado
á Cidade e ao trato das Auctoridades, estendeu largamente a mão ao
Fidalgo da Torre, e acceitou, sem embaraço, a cadeira que elle lhe
empurrára para a mesa--onde dominavam, com os seus ricos lavores duas
altas enfusas de crystal antigo, uma cheia d'açucenas e a outra de vinho
verde.

--Então, que bom vento o traz pela Torre, Pereira amigo? Não o vejo
desde Abril!

--É verdade, meu Fidalgo, desde o sabbado em que cahiu a grande
trovoada, na vespera da eleição! confirmou o Pereira affagando o cabo do
guarda-sol que conservára entre os joelhos.

Gonçalo, n'uma esfaimada pressa do almoço, repicou a campainha de prata.
Depois rindo:

--E os seus votos, Pereira amigo, segundo o costume, lá foram para o
eterno Sanches Lucena, direitinhos, como os rios vão para o mar!

O Pereira tambem riu, com um riso agradado que lhe descobria os máos
dentes. Pois o circulo era uma propriedade do Sr. Sanches Lucena!
Cavalheiro de fortuna, homem de bem, conhecedor, serviçal... E então,
quando lhe calhava como em Abril o apoio do Governo, nem Nosso Senhor
Jesus Christo que voltasse á terra e se propuzesse por Villa-Clara
desalojava o patrão da _Feitosa_!

O Bento, vagaroso, de jaqueta de lustrina preta sobre o avental
resplandecente, entrava com um prato d'ovos estrellados, quando o
Fidalgo, que desdobrára o guardanapo, o amarrotou, arremessou com nojo:

--Este guardanapo já serviu! Eu estou farto de gritar. Não me importa
guardanapo rôto, ou com passagens, ou com remendos... Mas branquinho,
fresquinho cada manhã, a cheirar a alfazema!

E reparando no Pereira, que discretamente arredava a cadeira:

--O quê! Você não almoça, Pereira?...

Não, agradecia muito ao Fidalgo, mas n'essa tarde comia as sopas com o
genro nos Bravaes, que era festa pelos annos do netinho.

--Bravo! Parabens, Pereira amigo! Dê lá um beijo meu ao netinho... Mas
então ao menos um copo de vinho verde.

--Entre as comidas, meu Fidalgo, nem agua nem vinho.

Gonçalo farejára, arredára os ovos. E reclamou o «jantar da familia»,
sempre muito farto e saboroso na Torre, e começando por essas pesadas
sopas de pão, presunto e legumes, que elle desde creança adorava e
chamava as _palanganas_. Depois, barrando de manteiga uma bolacha:

--Pois francamente, Pereira, esse seu Sanches Lucena não faz honra ao
circulo! Homem excellente, decerto, respeitavel, obsequiador... Mas
mudo, Pereira! Inteiramente mudo!

O lavrador roçou vagarosamente pelas ventas cabelludas o lenço vermelho,
enrolado em bóla:

--Sabe as cousas, pensa com acêrto...

--Sim! mas pensamento e acêrto não lhe sahem de dentro do craneo! Depois
está muito velho, Pereira! Que edade terá elle? Sessenta?

--Sessenta e cinco. Mas de gente muito rija, meu Fidalgo. O avô durou
até aos cem annos. E ainda o conheci na loja...

--Como, na loja?

Então o Pereira, enrolando mais o lenço, estranhou que o Fidalgo não
soubesse a historia do Sanches Lucena. Pois o avô, o Manoel Sanches, era
um linheiro do Porto, da rua das Hortas. E casado tambem com uma moça
muito vistosa, muito farfalhuda...

--Bem! atalhou o Fidalgo. Isso é honroso para o Sanches Lucena. Gente
que engordou, que trepou... E eu concordo, Pereira, o circulo deve
mandar a Lisboa um homem como o Sanches Lucena, que tenha n'elle terra,
raizes, interesses, nome... Mas é preciso que seja tambem homem com
talento, com arrojo. Um deputado, que, nas grandes questões, nas crises,
se erga, transporte a Camara!... E depois, Pereira amigo, em Politica
quem mais grita mais arranja. Olhe a estrada da Riosa! Ainda em papel, a
lapis vermelho... E, se o Sanches Lucena fosse homem de berrar em S.
Bento, já o Pereira trazia por lá os seus carros a chiar.

O Pereira abanou a cabeça, com tristeza:

--Ahi talvez o Fidalgo acerte... Para essa estradinha da Riosa sempre
faltou quem gritasse. Ahi talvez o Fidalgo acerte!

Mas o Fidalgo emmudecera, embebido na cheirosa sopa, dentro d'uma
caçoila nova, com raminhos de hortelã. E então o Pereira, acercando mais
a cadeira, cruzou no rebordo da mesa as mãos, que meio seculo de
trabalho na terra tornára negras e duras como raizes--e declarou que se
atrevera a incommodar o Fidalgo, áquellas horas do almocinho, porque
n'essa semana começava um córte de madeiras para os lados de Sandim, e
desejava, antes que surdissem outros arranjos, conversar com S. Ex.^a
sobre o arrendamento da Torre...

Gonçalo reteve a colhér, num pasmo risonho:

--Você queria arrendar a Torre, Pereira?

--Queria conversar com V. Ex.^a. Como o Relho está despedido...

--Mas eu já tratei com o Casco, o José Casco dos Bravaes! Ficamos meio
apalavrados, ha dias... Ha mais de uma semana.

O Pereira coçou arrastadamente a barba rala. Pois era pena, grande
pena... Elle só no sabbado s'inteirára da desavença com o Relho. E, se o
Fidalgo não resalvava o segredo, por quanto ficára o arrendamento?

--Não resalvo, não, homem! Novecentos e cincoenta mil réis.

O Pereira tirou da algibeira do collete a caixa de tartaruga, e sorveu
detidamente uma pitada, com o carão pendido para a esteira. Pois maior
pena, mesmo para o Fidalgo. Emfim! depois de palavra trocada... Mas era
pena, porque elle gostava da propriedade; já pelo S. João pensára em
abeirar o Fidalgo; e, apezar dos tempos correrem escassos, não andaria
longe de offerecer um conto e cincoenta, mesmo um conto cento e
cincoenta!

Gonçalo esqueceu a sopa, n'uma emoção que lhe afogueou a face fina, ante
um tal accrescimo de renda--e a excellencia de tal rendeiro, homem
abastado, com metal no banco, e o mais fino amanhador de terras de todas
as cercanias!

--Isso é sério, oh Pereira?

O velho lavrador pousou a caixa de rapé sobre a toalha, com decisão:

--Meu Fidalgo, eu não era homem que entrasse na Torre para caçoar com V.
Ex.^a! Proposta a valer, escriptura a fazer... Mas se o arrendamento
está tratado...

Recolheu a caixa, apoiava a mão larga na meza para se erguer, quando
Gonçalo acudiu, nervoso, empurrando o prato:

--Escute, homem!... Eu, não contei por miudo o caso do Casco. Você
comprehende, sabe como essas cousas passam... O Casco veiu, conversamos;
eu pedi novecentos e cincoenta mil reis e porco pelo Natal.
Primeiramente concordou, que sim; logo adiante emendou, que não...
Voltou com o compadre; depois, com a mulher e o compadre, e o afilhado,
e o cão! Depois só. Andou ahi pela quinta, a medir, a cheirar a terra;
acho até que a provou. Aquellas rabulices do Casco!... Por fim, uma
tarde, lá gemeu, lá acceitou os novecentos e cincoenta mil reis, sem
porco. Cedi do porco. Aperto de mão, copo de vinho. Ficou de apparecer
para combinar, tratar da escriptura. Não o avistei mais, ha quasi duas
semanas! Naturalmente já virou, já se arrependeu... Para resumir, não
tenho com o Casco contracto firme. Foi uma conversa em que apenas
estabelecemos, como base, a renda de novecentos e cincoenta. E eu, que
detesto cousas vagas, já andava pensando em encontrar melhor homem!

Mas o Pereira coçava o queixo, desconfiado. Elle, em negocios, gostava
de lisura. Sempre se entendêra bem com o Casco. Nem por um condado se
atravessaria nos arranjos do Casco, homem violento, assomado. De modo
que desejava as cousas claras, para não surdir desgosto rijo. Não se
lavrára escriptura, bem! Mas ficára, ou não, palavra dada entre o
Fidalgo e o Casco?

Gonçalo Mendes Ramires, que findára apressadamente a sopa e enchia um
copo de vinho verde para se calmar, fitou o lavrador, quasi severamente:

--Homem, essa pergunta!... Pois se eu tivesse confirmado ao Casco
decisivamente a palavra de Gonçalo Ramires, estava agora aqui a tratar,
ou sequer a conversar comsigo, Pereira, sobre o arrendamento da Torre?

O Pereira baixou a cabeça. Tambem era verdade!... Pois, n'esse caso,
elle abria a sua tenção, claramente. E, como conhecia a propriedade, e
apurára o seu calculo--offerecia ao Fidalgo um conto cento e cincoenta
mil réis, sem porco. Mas não dava para a familia nem leite, nem
hortaliça, nem fructa. O Fidalgo, homem só, pouco se aproveitava. A
Torre, porém, casa antiga, enxameava de gentes e d'adherentes. Todos
apanhavam, todos abusavam... Emfim, esse era o seu principio. E de
resto, para a meza do Fidalgo e mesmo dos creados, bastava o pomar e a
horta de regalo... Que horta e pomar necessitavam trato mais geitoso:
mas elle, por amor do Fidalgo, e gosto seu, por lá passaria e tudo
luziria... Emquanto ás outras condições, acceitava as do antigo
arrendamento. E escriptura assignada para a outra semana, no sabbado...
Estava feito?

Gonçalo, depois de um momento em que pestanejou nervosa e tremulamente,
estendeu a mão aberta ao Pereira:

--Toque! Agora sim! Agora fica palavra dada!

--E nosso Senhor lhe ponha virtude, concluiu o Pereira, firmado no
immenso guarda-sol para se erguer. Então no sabbado, em Oliveira, para a
escriptura... Assigna V. Ex.^a ou o Sr. padre Soeiro?

Mas o fidalgo calculava:

--Não, homem, não póde ser! No sabbado, com effeito, estou em Oliveira,
mas são os annos da mana Maria da Graça...

O Pereira destapou de novo os maus dentes, n'um riso de estima:

--Ah! e como vae a snr.^a D. Maria da Graça? Ha que edades a não vejo!
Desde o anno passado, na procissão de Passos, em Oliveira... Muito boa
senhora! Muito dada! E o Sr. José Barrôlo? Pessoa excellente tambem, a
valer, o Sr. José Barrôlo... E que terra a d'elle, a _Ribeirinha_! A
melhor propriedade d'estas vinte leguas em redor. Linda propriedade! A
do André Cavalleiro que lhe está pegada, a _Biscaia_, não se lhe
compára--é como cardo ao pé de couve.

O Fidalgo da Torre descascava um pecego, sorrindo:

--Do André Cavalleiro nada presta, Pereira! Nem terra, nem alma!

O lavrador pareceu surprehendido. Elle imaginava que o Fidalgo e o
Cavalleiro continuavam chegados e amigos... Não em Politica! Mas
particularmente, como cavalheiros...

--O que? Eu e o Cavalleiro? Nem como cavalheiro nem como politico. Que
elle nem é cavalheiro nem politico. É apenas cavallo, e resabiado.

O Pereira ficou silencioso, com os olhos na toalha. Depois, resumindo:

--Então está entendido, no sabbado, na cidade. E, se não faz transtorno
ao Fidalgo, passamos pelo tabellião Guedes, e fica o feito arrumado. O
Fidalgo, naturalmente, vae para a casa da senhora sua mana...

--Sempre. Appareça você ás trez horas. Lá conversamos com o padre
Soeiro.

--Tambem ha que edades não encontro o Sr. padre Soeiro!

--Oh! esse ingrato, agora, raramente apparece na Torre. Sempre em
Oliveira, com a mana Graça, que é a menina dos seus encantos... Então
nem um calice de vinho do Porto, Pereira?... Bem, até sabbado. Não
esqueça o beijinho para o neto.

--Cá me vae no coração, meu Fidalgo... Ora essa! Pois consentia eu que
V. Ex.^a se levantasse? Sei perfeitamente a escada, e ainda passo pela
cozinha para debicar com a tia Rosa. Já desde o tempo do paesinho de V.
Ex.^a, que Deus haja, conheço bem a Torre!... E sempre m'esperancei de
trazer n'esta quinta uma lavoura a meu gosto, de consolar!

Durante o café, esquecido dos jornaes, Gonçalo gozou a excellencia
d'aquelle negocio. Duzentos mil réis mais de renda. E a Torre tratada
pelo Pereira, com aquelle amor da terra e saber de lavra que
transformára o chavascal do Monte-Agra n'uma maravilha de seára, vinha e
horta!... Além d'isso, homem abastado, capaz de um adeantamento. E eis
ahi mais uma evidencia do valor da Torre, esse affinco do Pereira em a
arrendar, elle tão apertado, tão seguro... Quasi se arrependia de lhe
não ter arrancado um conto e duzentos. Emfim, a manhã fôra fecunda! E,
realmente, nenhum accordo firmado o collava ao Casco. Entre elles apenas
s'esboçára uma conversa, sobre um arrendamento possivel da Torre, a
debater depois miudamente, n'uma base nova de novecentos e cincoenta mil
reis... E que insensatez se elle, por escrupuloso respeito d'essa
conversa esboçada, recusasse o Pereira, retivesse o Casco, lavrador de
rotina--dos que raspam a terra para comer, e a deixam cada anno
deperecendo, mais cançada e chupada!...

--Bento, traze charutos! E o Joaquim que tenha a egua sellada das cinco
para as cinco e meia. Sempre vou á _Feitosa_... Hoje é o dia!

Accendeu um charuto, voltou á livraria. E, immediatamente releu o final
magnifico: «De mal com o Reino e com o Rei, mas de bem com a honra e
commigo!»--Ah! como alli gritava a alma inteira do velho portuguez, no
seu amor religioso da palavra e da honra! E, com a tira d'almasso entre
os dedos, junto da varanda, considerou um momento a Torre, as poeirentas
frestas engradadas de ferro, as resistentes ameias, ainda inteiras, onde
agora adejava um bando de pombas... Quantas manhãs, ás frescas horas
d'alva, o velho Tructesindo se encostára áquellas ameias, então novas e
brancas! Toda a terra em redor, semeada ou bravia, decerto pertencia ao
poderoso Rico-Homem. E o Pereira, n'esse tempo colono ou servo, só
abordava o seu Senhor de joelhos e tremendo! Mas não lhe pagava um conto
cento e cincoenta mil réis de sonora moeda do Reino. Tambem, que diabo,
o vôvô Tructesindo não precisava... Quando os saccos rareavam nas arcas,
e os acostados rosnavam por tardança de soldo, o leal Rico-Homem, para
se prover, tinha as tulhas e as adégas dos Concelhos mal defendidos--ou
então, n'uma volta de estrada, o ovençal voltando de recolher as rendas
reaes, o bufarinheiro genovez com os machos ajoujados de trouxas. Por
baixo da Torre (como lhe contára o papá) ainda negrejava a masmorra
feudal, meio atulhada, mas com restos de correntes chumbadas aos
pilares, e na abobada a argola d'onde pendia a polé, e no lagedo os
buracos em que se escorava o potro. E, n'essa surda e humida cova,
ovençal, bufarinheiro, clerigos e mesmo burguezes de fôro uivavam sob o
açoite ou no torniquete, até largarem agonizando o derradeiro
morabitino. Ah! a ramantica Torre, cantada tão meigamente ao luar pelo
Videirinha, quantos tormentos abafára!...

E de repente, com um berro, Gonçalo agarrou de sobre a mesa um volume de
Walter Scott, que atirou sem piedade, como uma pedra, contra o tronco de
uma faia. É que descortinára o gato da Rosa cozinheira, trepado, d'unhas
fincadas n'um ramo, arqueando a espinha, para assaltar um ninho de
melros.

       *       *       *       *       *

Quando n'essa tarde o Fidalgo da Torre, airoso no seu fato novo de
montar, polainas de couro polido, luvas de camurça branca, parou a egua
ao portão da _Feitosa_--um velho todo esfarrapado, com longos cabellos
cahidos pelos hombros e immensas barbas espalhadas pelo peito,
immediatamente se ergueu do banco de pedra onde comia rodellas de
chouriço, bebendo d'uma cabaça, para o avisar que o Sr. Sanches Lucena e
a Sr.^a D. Anna andavam por fóra, de carruagem. Gonçalo pediu ao velho
que puchasse o ferro da sineta. E entregando um cartão ao moço, que
entreabrira a rica grade dourada, com um _S_ e um _L_ entrelaçados, sob
uma corôa de conde:

--O Sr. Sanches Lucena, bem?

O Sr. Conselheiro, agora, um pouquinho melhor...

--O que? Esteve doente?

--Pois o Sr. Conselheiro, aqui ha tres ou quatro semanas, andou muito
agoniado...

--Oh! Sinto muito... Diga ao Sr. Conselheiro que sinto muitissimo!

Chamou o velho que repicára a sineta para o recompensar com um tostão.
E, interessado por aquellas barbaças e melenas de mendigo de Melodrama:

--Vocemecê pede esmola por estes sitios?

O homem ergueu para elle os olhos sujos, avermelhados da poeira e do
sol, mas risonhos, quasi contentes:

--Tambem me chego pela Torre, meu Fidalgo. E, graças a Deus, lá me fazem
muito bem.

--Então quando lá voltar diga ao Bento... Você conhece o Bento?

Se conhecia! E a Snr.^a Rosa...

--Pois diga ao Bento que lhe dê umas calças, homem! Você assim, com
essas calças, não anda decente.

O velho riu, n'um riso lento e desdentado, mirando com gosto os sordidos
farrapos que lhe trapejavam nas canellas, mais denegridas e seccas que
galhos de inverno:

--Rôtinhas, rôtinhas... Mas o Sr. dr. Julio diz que me ficam assim bem.
O Sr. dr. Julio, quando lá passo, sempre me tira o retrato na machina.
Ainda na semana passada... Até com uns pedaços de grilhões dependurados
do pulso, e uma espada erguida na mão... Parece que para mostrar ao
Governo.

Gonçalo, rindo, picou a egua. Pensava agora em alongar por Valverde:
depois recolheria por Villa-Clara, e tentaria o Gouvêa a partilhar na
Torre um cabrito assado no espeto de cerejeira, para que elle na
vespera, na Assembléa, convidára o Manoel Duarte e o Titó. Mas ao
atravessar a «Cruz das Almas», onde a estrada de Corinde, tão linda, com
as suas filas d'alamos, crusa a ladeira de Valverde, parou--notando ao
fundo, para o lado de Corinde, como o confuso esbarro d'uma carrada de
lenha, e uma carriola d'açougue, e uma mulher de lenço escarlate
bracejando sobre a albarda d'um burro, e dous lavradores de enxada ás
costas. E, de repente, todo o encalhe se despegou--a mulher trotando no
seu burrinho, logo sumida n'uma volta de arvoredo; a carriola
solavancando n'um rolo leve de poeira; o carro avançando para a «Cruz
das Almas» a chiar tardamente; os cavadores descendo para uma chã
atravez das leiras de feno... Na estrada só restou, como desamparado, um
homem de jaqueta ao hombro, que se arrastava penosamente, coxeando.
Gonçalo trotou, com curiosidade:

--Que foi?... Vocemecê que tem?

O homem, com a perna encolhida, levantou para Gonçalo uma face
arrepanhada, quasi desmaiada, que reluzia sob as camarinhas de suor:

--Nosso Senhor lhe dê muito boas tardes, meu Fidalgo! Ora o que hade
ser? Desgraças d'esta vida!

E, gemendo, contou a sua historia.--Desde mezes padecia d'uma chaga n'um
tornozello, que não seccára, nem com emplastos, nem com pó de murtinhos,
nem com benzeduras... E agora andava arriba, na fazenda do Sr. dr.
Julio, a concertar um socalco, para ajudar um compadre tambem doente com
maleitas--e, zás, desaba um pedregulho, que tópa na ferida, leva a
carne, lasca o osso, o deixa n'aquella lastima!... Até rasgára a fralda
para ensopar o sangue e amarrar por cima o lenço.

--Mas assim não póde andar, homem! D'onde é vocemecê?

--De Corinde, meu Fidalgo. Manoel Sôlha, do logar da Finta. Até lá,
sempre me hei-de arrastar.

--E então, d'essa gente toda, que ahi estava ha bocado, ninguem o poude
ajudar?... Uma carriola, dous latagões...

Uma rija guinada, no teimoso esforço de firmar a perna, arrancou um
grito ao Sôlha. Mas sorriu, arquejando... Que queria o Fidalgo? Cada um,
n'este mundo, tem a sua pressa... Emfim, a rapariga do burro promettêra
passar pela Finta, para avisar. E talvez um dos seus rapazes apparecesse
na estrada com uma eguasita que elle comprára pela Paschoa--e que, por
desgraça, tambem mancava!...

Immediatamente, com um salto leve, o Fidalgo da Torre desmontou:

--Bem! Então, egua por egua, já vocemecê tem aqui esta...

O Sôlha embasbacou para Gonçalo:

--Ora essa! Santo nome de Deus!... Pois eu havia de ir a cavallo, e V.
Ex.^a a pé?

Gonçalo ria:

--Homem, com essas discussões de «eu a pé» e «você a cavallo», e «faz
favôr» e «não senhor», é que perdemos um tempo precioso. Monte, esteja
quieto, e trote para a Finta!

O outro recuava para a valleta da estrada, sacudindo a cabeça,
esgazeado, como no espanto de um sacrilegio:

--Isso é que não, meu senhor, isso é que não! Antes eu acabasse aqui á
mingoa, com a chaga em bolor!

Gonçalo bateu o pé, com auctoridade:

--Monte, que mando eu! Vocemecê é um lavrador de enxada, eu sou um
Doutor formado em Coimbra, sou eu que sei, sou eu que mando!

E o Sôlha, logo submisso ante aquella força deslumbrante do Saber
superior, agarrou em silencio a crina da egua, enfiou respeitosamente o
estribo, ajudado pelo Fidalgo, que, sem tirar as luvas brancas, lhe
amparava o pé entrapado e manchado de sangue.

Depois, quando elle repousou no sellim com um _ah!_ consolado:

--Então que tal?

O homem só murmurava o nome de Nosso Senhor, na gratidão e no assombro
d'aquella caridade:

--Mas isto é a volta do mundo... Eu aqui, na egua do Fidalgo! E o
Fidalgo, o Sr. Gonçalo Ramires, da Torre, a pé pela estrada!

Gonçalo gracejou. E, para entreter a caminhada, perguntou pela quinta do
Dr. Julio, que agora se arrojára a obras e plantações de vinha. Depois,
como o Manoel Sôlha conhecia o Pereira Brasileiro (que pensára em
arrendar as terras do Dr. Julio), conversaram sobre esse esperto homem,
sobre as grandezas da _Cortiga_. Já sem embaraço, direito no sellim, no
gosto d'aquella intimidade com o Fidalgo da Torre, o Sôlha esquecia a
chaga, a dôr que adormentára. E á estribeira do Sôlha, attento e
sorrindo, o Fidalgo estugava o passo na poeira branca.

Assim se avizinhavam da _Bica-Santa_, um dos sitios decantados
d'aquellas cercanias formosas. Ahi a estrada, cortada na encosta d'um
monte, alarga e fórma um arejado terraço, d'onde se abrange todo o valle
de Corinde, tão rico em casaes, em arvoredos, em seáras, em aguas. No
pendor do monte, coberto de carvalhos e de fragas musgosas, bróta a
fonte nomeada, que já em tempos d'El-Rei D. João V curava males
d'entranhas--e que uma devota senhora de Corinde, D. Rosa Miranda
Carneiro, mandou encanar desde o alto até a um tanque de marmore, onde
agora corre beneficamente, por uma bica de bronze, sob a imagem e
patrocinio de Santa Rosa de Lima. De cada lado do tanque se encurvam
dous compridos bancos de pedra, que a espalhada ramaria das carvalheiras
tolda de sombra e frescura. É um suave retiro onde se apanham violetas,
se comem merendas, e senhoras dos arredores se sentam em rancho, nas
tardinhas de domingo, escutando os melros, gozando a povoada, luminosa e
verdejante largueza do valle.

Antes porém de desembocar na _Bica-Santa_, e perto do logar do Serdal, a
estrada de Corinde quebra n'uma volta:--e, ahi, de repente, a egua
pulou, n'um reparo, que obrigou o Fidalgo da Torre, desconfiado da
pericia do Sôlha, a deitar a mão á caimba do freio. Fôra o encontro
inesperado d'uma carruagem--uma caleche forrada d'azul, com a parelha
coberta de rêdes brancas contra a môsca, e na almofada, têzo, um
cocheiro de bigode, farda de golla escarlate e chapéo de tópe amarello.
E Gonçalo mantinha ainda a egua pelo freio, como arrieiro serviçal em
trilho perigoso--quando avistou, sentado n'um dos bancos de pedra, junto
da Bica, com um chale-manta por cima dos joelhos, o velho Sanches
Lucena. Ao lado o trintanario, agachado, esfregava com um mólho d'herva
a botina que a bella D. Anna lhe estendia, apanhando o vestido de linho
crú, apoiando a outra mão, sem luva, na cinta vergada e fina.

A desconcertada apparição do Fidalgo da Torre, puxando pela rédea a sua
egua onde se escarranchava regaladamente um cavador em mangas de camisa,
alvorotou aquelle repousado e dormente recanto da _Bica_. Sanches Lucena
esbugalhava os olhos, esbugalhava os oculos, n'um arremesso de
curiosidade que o levantára, com o pescoço esticado, o chale-manta
escorregado para a relva. D. Anna recolheu bruscamente a botina, logo
empertigada, na gravidade condigna da senhora da _Feitosa_, retomando
como uma insignia o cabo d'ouro da luneta d'ouro, suspensa por um cordão
d'ouro. E até o trintanario ria pasmadamente para o Sôlha.

Mas já, com o seu desembaraço elegante, Gonçalo, n'um relance, saudára
D. Anna, apertava com fervor a mão espantada do Sanches Lucena, e,
alegremente se congratulava por aquelle encontro ditoso! Pois vinha
justamente da _Feitosa_! E ahi soubera com desgosto, por um moço da
quinta decerto exagerado, que o Sr. Conselheiro nas ultimas semanas
andára doente... E, então como estava? como estava?--Oh! a physionomia
era excellente!

--Pois não é verdade, Sr.^a D. Anna? O aspecto é excellente!

Com um leve requebro da cabeça, um fofo ondear do mólho de plumas
brancas sobre o chapéo de palha vermelha, ella volveu n'uma voz rolada,
lenta e gorda, que arripiou Gonçalo:

--O Sanches agora, graças a Deus, desfructa melhor saude...

--Um pouco melhor, sim, com effeito, muito agradecido a V. Ex.^a, Sr.
Gonçalo Ramires! murmurou o descarnado e corcovado homem, repuxando para
os joelhos o chale-manta.

E, com os oculos a luzir, cravados em Gonçalo, na curiosidade que o
abrazava, quasi lhe rosára a face afilada, mais amarella que um cirio:

--Mas, com perdão de V. Ex.^a! como é que V. Ex.^a anda por aqui, pela
estrada de Corinde, n'este estado, a pé, trazendo á rédea um lavrador de
enxada?...

Rindo, sobretudo para D. Anna, cujos olhos formosamente negros, d'uma
funda refulgencia liquida, tambem esperavam, serios e reservados,
Gonçalo contou o desastre do bom homem, que encontrára no caminho
gemendo, arrastando a perna escalavrada...

--De sorte que lhe offereci a minha egua... E até, se V. Ex.^a me
permitte, minha senhora, é necessario que eu combine com elle o resto da
jornada...

Rapidamente, voltou ao Sôlha, que, de novo acanhado ante os senhores da
_Feitosa_, com o chapeu na mão, encolhido sobre o sellim, como
attenuando a sua grandeza, logo se desestribou para desmontar. Mas já
Gonçalo lhe ordenava que trotasse para a Finta--e lhe mandasse a egua
por um dos seus rapazes, alli á Bica-Santa, onde elle se demorava com o
Snr. Conselheiro. E quando o Sôlha largou, saudando desabaladamente,
torcido, como impellido a seu pezar pelos acenos risonhos com que o
Fidalgo o despedia, o assombro do Sanches Lucena recomeçou:

--Ora uma cousa d'estas! Eu tudo esperaria, tudo, menos o Sr. Gonçalo
Mendes Ramires a trazer á rédea, pela estrada de Corinde, um cavador
d'enxada! É a repetição do Bom Samaritano... Mas para melhor!

Gonçalo gracejou, sentado no banco, junto de Sanches Lucena.--Oh! o Bom
Samaritano não merecera uma pagina tão amavel no Evangelho sómente por
offerecer o burro a um Levita doente: decerto mostrára virtudes mais
bellas...--E sorrindo para D. Anna, que, do outro lado de Sanches
Lucena, espalhava a luneta, com lentidão magestosa, pelas arvores e pela
Fonte que tão bem conhecia:

--Ha dous annos, minha senhora, que eu não tenho a honra...

Mas Sanches Lucena despediu um grito:

--Oh! Sr. Gonçalo Ramires! V. Ex.^a traz sangue na mão!

O Fidalgo reparou, espantado. Sobre a luva de camurça branca resaltavam
duas manchas arroxeadas:

--Não é sangue meu! foi naturalmente quando o Sôlha montou, e eu lhe
segurei o pé escalavrado...

Arrancou a luva, que arremessou para as hervas bravas, por traz do banco
de pedra. E continuando o sorriso:

--Com effeito, não tenho a honra de encontrar a V. Ex.^a, minha senhora,
desde o baile do barão das Marges, em Oliveira, o famoso baile de
Entrudo... Ha mais de dois annos, era eu estudante. E ainda me recordo
que V. Ex.^a estava vestida esplendidamente de Catharina da Russia...

E, emquanto a envolvia no sorrir dos olhos finos e meigos,
pensava:--«Formosa creatura! mas ordinaria! e que voz!...» D. Anna
tambem se recordava do baile dos Marges:

--O cavalheiro, porém, está equivocado. Eu não fui de Russa, fui de
Imperatriz...

--Sim, d'Imperatriz da Russia, de Grande Catharina... E com um gosto!
com um luxo!

Sanches Lucena voltou vagarosamente para Gonçalo os oculos d'ouro,
apontou um dedo alongado e livido:

--Pois tambem eu me lembro que sua mana, e minha senhora, a Sr.^a D.
Graça, trazia um trage de lavradeira de Vianna... Foi uma luzidissima
festa; nem admira; o nosso Marges é sempre primoroso... E desde essa
noite não tornei a encontrar a mana de V. Ex.^a em intimidade. Apenas de
longe, na missa...

De resto pouco residia agora em Oliveira, apesar de conservar a casa
montada, creadagem e cocheira--porque, ou culpa do ar ou culpa da agua,
não se dava bem na Cidade.

Gonçalo acalorou mais o seu interesse:

--Mas então, realmente, V. Ex.^a o que tem tido?

Sanches Lucena sorriu, com amargura. Os medicos, em Lisboa, não se
entendiam. Uns attribuiam ao estomago--outros attribuiam ao coração.
Portanto, aqui ou alli, viscera essencial atacada. E soffria crises--más
crises... Emfim, com a graça de Deus, e regimen, e leite, e descanço,
ainda esperava arrastar uns annos.

--Oh! com certeza! exclamou Gonçalo alegremente. E V. Ex.^a não pensa
que a estada em Lisboa, e as Camaras, e a Politica, a terrivel Politica,
o fatiguem, o agitem?...

Não, pelo contrario, Sanches Lucena passava toleravelmente em Lisboa.
Melhor mesmo que na _Feitosa_! Depois, gostava d'aquella distracção das
Camaras. E como conservava amigos na Capital, uma roda escolhida, uma
roda fina...

--Um d'esses nossos excellentes amigos, V. Ex.^a decerto conhece. Elle é
parente de V. Ex.^a... O D. João da Pedrosa.

Gonçalo, alheio ao homem, mesmo ao nome, murmurou polidamente:

--Sim, o D. João, decerto...

E Sanches Lucena, passando pelas suissas brancas a mão magrissima, quasi
transparente, onde reluzia um enorme annel d'armas de saphira:

--E não sómente o D. João... Outro dos nossos amigos é egualmente
parente de V. Ex.^a, e chegado. Muitas vezes temos fallado de V. Ex.^a,
e da sua casa. Que elle pertence tambem á primeira nobreza... É o
Arronches Manrique.

--Cavalheiro muito dado, muito divertido! accrescentou D. Anna, com uma
convicção que lhe alteou o peito, a que o corpete justo marcava a força
viçosa e a perfeição.

A Gonçalo tambem nunca chegára esse nome sonóro. Mas não hesitou:

--Sim, perfeitamente, o Manrique... De resto, eu tenho tantos parentes
em Lisboa, e vou tão pouco a Lisboa!... E V. Ex.^a, Sr.^a D. Anna...

Mas o Sanches Lucena insistia, deliciado n'aquella conversa de
parentescos fidalgos:

--V. Ex.^a, naturalmente, tem em Lisboa toda a sua parentella historica.
Assim eu creio que V. Ex.^a é primo do Duque de Lourençal... O Duarte
Lourençal! Elle não usa o titulo, por Miguelismo, ou antes por habito:
mas emfim é o legitimo Duque de Lourençal. É quem representa a casa de
Lourençal.

Gonçalo, sorrindo attentamente, desabotoára o fraque, procurava a sua
velha charuteira de couro.

--Sim, com effeito, o Duarte... Somos primos. Diz elle que somos primos.
E eu acredito. Entendo tão pouco d'arvores de costado!... De facto as
casas em Portugal andam muito cruzadas; todos somos parentes, não só
pelo lado d'Adão, mas pelos Godos... E V. Ex.^a, Sr.^a D. Anna, prefere
a estada em Lisboa?

Mas, reparando que escolhera um charuto, distrahidamente o trincára:

--Oh! perdão minha senhora... Ia fumar sem saber se V. Ex.^a...

Ella saudou, descendo as longas pestanas:

--O cavalheiro póde fumar; o Sanches não fuma, mas eu até aprecio o
cheiro.

Gonçalo agradeceu, enjoado com aquella voz redonda e gorda, aquelles
horrendos «_cavalheiro, o cavalheiro_!...» Mas pensava:--«que linda
pelle! que bella creatura!...» E Sanches Lucena, inexoravel, estendera o
dedo agudo:

--Pois eu conheço muito, não o Sr. D. Duarte Lourençal, não tenho essa
subida honra por ora, mas seu irmão, o Sr. D. Philippe. Cavalheiro
estimabilissimo, como V. Ex.^a decerto sabe... E depois, que talento...
Que talento, no cornetim!

--Ah!

--O quê! V. Ex.^a não ouviu seu primo, o Sr. D. Philippe Lourençal,
tocar cornetim?

E até a bella D. Anna se animou, com um sorriso languido dos beiços
cheios, mais vermelhos que cerejas maduras sobre o fresco rebrilho dos
dentes pequeninos:

--Oh! tóca ricamente! O Sanches gosta muito de musica; eu tambem... Mas,
como V. Ex.^a comprehende, qui na aldéa, com a falta de recursos...

Gonçalo, arremessando o phosphoro, exclamára logo, n'um sincero
interesse:

--Então, queria que V. Ex.^a ouvisse um amigo meu, que é verdadeiramente
sublime no violão, o Videirinha!...

Sanches Lucena estranhou o nome, a sua vulgaridade. E o Fidalgo,
singelamente:

--É um rapaz muito meu amigo, de Villa-Clara... O José Videira, ajudante
da Pharmacia...

Os oculos de Sanches Lucena cresceram de puro espanto:

--Ajudante da Pharmacia e amigo do Sr. Gonçalo Mendes Ramires!

Sim, desde estudante, dos exames do Lyceu. Até o Videirinha passava as
ferias na Torre, com a mãe, antiga costureira da casa. Tão bom rapaz,
tão simples... E na realidade, no violão, um genio!

--Agora tem elle uma cantiga admiravel que chamou o _Fado dos Ramires_.
A musica é com effeito um fado de Coimbra, um fado conhecido. Mas os
versos são d'elle, umas quadras engraçadas sobre cousas da minha Casa,
lendas, patranhas... Pois ficou sublime! Ainda ha dias na Torre, comigo
e com o Titó...

E a este nome, familiar e menineiro, Sanches Lucena mostrou outro
reparo:

--O Titó?

O Fidalgo ria:

--É uma velha alcunha d'amizade que nós damos ao Antonio Villalobos.

Então Sanches Lucena atirou ambos os braços, como se alguem muito
querido apparecesse na estrada:

--O Antonio Villalobos! Mas esse é um dos nossos fieis e bons amigos!
Cavalheiro estimabilissimo! Quasi todas as semanas nos faz o favor de
apparecer pela _Feitosa_...

E agora era o Fidalgo que pasmava ante essa intimidade a que nunca o
Titó alludira, quando no Gago, na Torre, na Assembléa, se berrava,
politicando, o nome do Sanches Lucena!

--Ah V. Ex.^a conhece...

Mas D. Anna, que se erguera bruscamente do banco, e, debruçada, recolhia
a luva e a sombrinha--lembrou ao marido o estriar lento da tarde, a
neblina subindo sempre áquella hora do valle aquecido:

--Sabes que nunca te faz bem... E tambem não faz bem á parelha, assim
parada, ha tanto tempo.

Immediatamente Sanches Lucena, receioso, puxára da algibeira um espesso
lenço de sêda branca para abafar o pescoço. E, receioso tambem pela
parelha, logo se arrancou pesadamente do banco de pedra, com um aceno
cançado ao trintanario para apanhar o chale, avisar o cocheiro. Mas
ainda atravessou, vergado e arrimado á bengala, para o parapeito que
resguarda a estrada sobre o despenhado pendor do monte, dominando o
valle. E confessava a Gonçalo que aquelle era, nos arredores da
_Feitosa_, o seu passeio preferido. Não só pela belleza do sitio, já
cantado pelo «nosso mavioso Cunha Torres»;--mas porque do terraço da
Bica, sem esforço, sentado no banco, avistava n'uma largueza terras
suas:

--Olhe V. Ex.^a... Para além d'aquelle souto, até á chã e ao comoro onde
está a casota amarella e por traz o pinhal, tudo é meu... O pinhal ainda
é meu... Acolá, do renque d'álamos para deante, depois do lameiro, é
tambem meu... Alli, do lado da ermida, pertence ao Monte-Agra... Mas,
mais para lá, passado o azinhal, pelo monte acima, é tudo meu!

O livido dedo, o braço escanifrado na manga de casimira preta, cresciam
por sobre o valle.--Além os pastos... Adeante os centeios... Depois o
bravio...--Tudo d'elle! E, por traz da magra figura alquebrada, de
chapéo enterrado na nuca, o abafo de seda subido até ás pallidas orelhas
quasi despegadas, D. Anna, esvelta, clara e sã como um marmore, com um
sorriso esquecido nos labios gulosos, o formoso peito mais cheio,
acompanhava a enumeração copiosa, affincava a luneta sobre os pastos, e
os pinhaes, e os centeios, sentindo já--tudo d'ella!

--E agora acolá, detraz do olival, concluiu Sanches Lucena com respeito,
é sitio seu, Sr. Gonçalo Mendes Ramires...

--Meu?...

--De V. Ex.^a, quero dizer, ligado á casa de V. Ex.^a. Pois não
reconhece?... Além, por traz do moinho, passa a estrada de Santa Maria
de Craquêde. São os tumulos dos seus antepassados... Passeio que eu
tambem ás vezes faço, e com gosto. Ainda ha um mez visitamos detidamente
as ruinas. E acredite que fiquei impressionado! Aquelle bocado de
claustro tão antigo, os grandes esquifes de pedra, a espada chumbada á
abobada por cima do tumulo do meio... É de commover! E achei muito
bonito, muito filial, da parte de V. Ex.^a, o ter sempre aquela lampada
de bronze accêsa de noite e de dia...

Gonçalo engrolou um murmurio risonho--porque não se recordava da espada,
nunca recommendára a lampada. Mas Sanches Lucena, agora, supplicava um
precioso favor ao snr. Gonçalo Mendes Ramires. E era que S. Ex.^a lhe
concedesse a honra de o conduzir na carruagem á Torre... Alvoroçadamente
Gonçalo recusou. Nem podia! combinára com o homem da perna dorida
esperar alli, na Bica, pela sua egoa.

--Mas fica aqui o meu trintanario, que leva a egoa de V. Ex.^a á Torre.

--Não, não, se V. Ex.^a me permitte, eu espero... Depois metto pelo
atalho da Crassa, porque tenho ás oito horas na Torre, á minha espera
para jantar, o Titó.

D. Anna, do meio da estrada, apressou logo o marido sacudidamente, com a
ameaça renovada da friagem, do relento... Mas, junto da caleche, Sanches
Lucena ainda emperrou para affirmar a Gonçalo, com a descarnada mão
sobre o encovado peito, que aquella tarde lhe ficava celebre...

--Porque vi uma cousa que poucas vezes se terá visto: o maior fidalgo de
Portugal, a pé pela estrada de Corinde, levando á rédea no seu proprio
cavallo um cavador de enxada!

Ajudado por Gonçalo, trepou emfim pesadamente ao estribo. D. Anna já se
enterrára nas almofadas, alçando entre as mãos, como uma insignia, o
cabo rebrilhante da luneta d'ouro. O trintanario tambem se entezou,
cruzou os braços: e a caleche apparatosa, com as manchas brancas das
rêdes dos cavallos, mergulhou no silencio e na penumbra da estrada, sob
a espalhada ramaria das faias.

«Que massada!» exclamou Gonçalo. E não se consolava de tarde tão linda
assim desperdiçada... Intoleravel, esse Sanches Lucena, com o Snr. D.
Fulano e o Snr. D. Sicrano, e a sua gula de «róda fina», e «tudo d'elle»
por collina e valle! A mulher, explendida péça de carne, como filha de
carniceiro,--mas sem migalha de graça ou alma. E que voz, Jesus, que
voz! Gente pedante e sabuja...--E agora só desejava recuperar a sua
egoa, galopar para a Torre, e desabafar com o Titó, familiar da
_Feitosa_! o seu ásco por toda aquella Sancharia.

A egoa não tardou, a tróte largo, montada pelo filho do Sôlha, que, ao
avistar o Fidalgo, saltou á estrada, de chapeu na mão, encouchado e
encarnado, balbuciando que o pae chegára bem, pedia a Nosso Senhor lhe
pagasse a caridade...

--Bem, bem! Recados a teu pae. Que estimo as melhoras. Lá mandarei
saber.

N'um pulo montára--galopava pelo facil atalho da Crassa. Mas, deante do
portão da Torre, encontrou um moço do Gago, com um bilhete do Titó,
annunciando que não podia jantar na Torre porque partia n'essa semana
para Oliveira!

--Que disparate! Para Oliveira tambem eu parto; mas janto hoje! Até
combinavamos, o levava na carruagem... Elle que ficou a fazer, o Snr. D.
Antonio?

O rapaz coçou pensativamente a cabeça:

--O Snr. D. Antonio passou lá por casa para eu trazer o bilhete ao
Fidalgo... Depois, creio que tem festa, porque entrou defronte no tio
Cosme fogueteiro, a comprar bichas de rabear...

Aquellas inesperadas bichas de rabear causaram logo ao Fidalgo uma
immensa inveja:

--E onde é a festa, sabes?

--Eu não sei, meu Fidalgo... Mas parece que é cousa rija, porque o Snr.
João Gouvêa encommendou lá ao patrão dous grandes pratos de bolos de
bacalhau.

Bolos de bacalhau! Gonçalo sentio como a amargura de uma traição:

--Oh! que animaes!

E de repente ideou uma vingança alegre:

--Pois se vires hoje o Snr. D. Antonio ou o Snr. João Gouvêa não te
esqueças de lhes dizer que sinto muito... Que eu tambem cá tinha á noite
na Torre uma festa. E havia senhoras. Vinha a Snr.^a D. Anna Lucena...
Não te esqueças, hein?

Gonçalo galgou as escadas rindo da sua invenção. Mas, n'essa noite, ás
nove horas, depois do arrastado e atochado jantar com o Manoel Duarte,
entrou na sala grande dos retratos, apenas allumiada pelo lampeão
dourado do corredor, para buscar uma caixa de charutos. E casualmente,
atravez da janella aberta, reparou n'um homem que, em baixo, rente da
sombra dos alamos, rondava, espreitava... Mais attento, imaginou
reconhecer os poderosos hombros, o andar bovino do Titó. Mas não, com
certesa! o homem trasia jaqueta e carapuço de lã. Curioso, abafando os
passos, ainda se abeirou da varanda. O vulto porém descera da estrada,
logo sumido sob as arvores d'uma quelha que contorna o Casal do Miranda,
e desemboca adiante, na Portella, junto das primeiras casas de
Villa-Clara.




IV


O palacete dos Barrôlos em Oliveira (conhecido desde o começo do seculo
pela Casa dos _Cunhaes_) erguia a sua fidalga fachada de doze varandas
no Largo d'El-Rei, entre uma solitaria viella que conduz ao Quartel e a
rua das Tecedeiras, velha rua mal empedrada, ladeirenta, opprimida pelo
comprido terraço do jardim, e pelo muro fronteiro da antiga cerca das
Monicas. E n'essa manhã, justamente quando Gonçalo, na caleche da Torre
puxada pela parelha do Torto, desembocava no Largo d'El-Rei, subia pela
Tecedeiras, dobrando a esquina dos Cunhaes, n'um cavallo negro de fartas
clinas, que feria as lages com soberba e garbo, o Governador Civil, o
André Cavalleiro, de collete branco e chapeu de palha. N'um relance, do
fundo da caleche, o Fidalgo ainda o surprehendeu levantando os
pestanudos olhos negros para as varandas de ferro do palacete. E pulou,
com um murro no joelho, rugindo surdamente--«que biltre!» Ao apear no
portão (um portão baixo, como esmagado pelo immenso escudo de armas dos
Sás) tão suffocada indignação o impellia que não reparou nas effusões do
porteiro, o velho Joaquim da Porta, e esqueceu dentro da caleche os
presentes para Gracinha, a caixa com o guardasolinho e um cesto de
flores da Torre coberto de papel de sêda. Depois em cima, na sala
d'espera, onde José Barrôlo correra, ao sentir nas lages do Largo
silencioso o estrepito do calhambeque, desabafou logo, arrebatadamente,
atirando o guarda pó para uma cadeira de couro:

--Oh senhores! Que eu não possa vir á cidade sem encontrar de cara este
animal do Cavalleiro! E sempre no Largo, defronte da casa! É sorte!...
Esse bigodeira não achará outro logar para onde vá caracolar com a
pileca?

José Barrôlo, um moço gordo, de cabello ruivo e crespo, com um buço
claro n'uma face mais redonda e córada que uma bella maçã, accudiu,
ingenuamente:

--Pileca?!... Oh, menino, tem agora um cavallo lindo! Um cavallo lindo,
que comprou ao Marges!

--Pois bem! É um burro feio em cima d'um cavallo bonito. Que fiquem
ambos na cavallariça. Ou que vão ambos pastar para as Devezas!

O Barrôlo escancarou a bôca larga e fresca, de soberbos dentes, n'um
lento pasmo. E de repente, com uma patada no soalho, vergado pela cinta,
rompeu n'uma risada que o suffocava, lhe inchava as veias:

--Essa é d'arromba! Não, essa é para contar no Club... Um burro feio em
cima d'um cavallo bonito! E ambos a pastarem!... Tu vens hoje rico,
menino! Olha que essa! Ambos a pastarem, com os focinhos na herva, o
Governador civil e o cavallo... É d'arromba!

Rebolava pela sala, com palmadas radiantes sobre a coxa obesa. E
Gonçalo, adoçado por aquella ovação que celebrava a sua facecia:

--Bem. Dá cá esses ossos, ou antes esses untos. E como vae a familia? A
Gracinha?... Oh! viva a linda flôr!

Era ella, com a sua ligeiresa airosa e menineira, os magnificos cabellos
soltos sobre um penteador de rendas, correndo alvoroçada para o irmão,
que a envolveu n'um abraço e em dous beijos sonoros. E immediatamente,
recuando, a declarou mais bonita, mais gorda:

--Positivamente estás mais gorda, até mais alta... É sobrinho?... Não?
nada, por ora?

Gracinha córou, com aquelle seu languido sorriso que mais lhe humedecia
e lhe enternecia a doçura dos olhos esverdeados.

--Se ella não quer, ella não quer! gritava o José Barrôlo, gingando, com
as mãos enterradas nos bolsos do jaquetão que lhe desenhava as ancas
roliças. A culpa não é cá do patrão... Mas ella não se decide!

O fidalgo da Torre reprehendeu a irmã:

--Pois é necessário um menino. Eu por mim não caso, não tenho geito: e
lá se vão d'esta feita Barrôlos e Ramires! A extincção dos Barrôlos é
uma limpeza. Mas, acabados os Ramires, acaba Portugal. Portanto, Snr.^a
D. Graça Ramires, depressa, em nome da nação, um morgado! Um morgado
muito gordo, que eu pretendo que se chame Tructesindo!

Barrôlo protestou, aterrado:

--O que? Turtesinho? Não! para tal sorte não o fabríco eu!

Mas Gracinha deteve aquelles gracejos picantes, desejosa de saber da
Torre, e do Bento, e da Rosa cosinheira, e da horta, e dos pavões...
Conversando, penetraram na outra sala, guarnecida de contadores da
India, de pesados cadeirões dourados de damasco azul, com tres varandas
sobre o Largo d'El-Rei. Barrôlo enrolou um cigarro, reclamou a historia
do Relho, da grande desordem. Tambem elle arranjára uma «pega» com o
rendeiro da _Ribeirinha_, por causa d'um córte de pinhal. Essa do Relho
porém fôra tremenda...

E Gonçalo, enterrado ao canto do fundo camapé azul, desabotoando
preguiçosamente o jaquetão de chaviote claro:

--Não! foi muito simples. Já ha mezes esse Relho andava bebedo, sem
despegar... Uma noite berrou, ameaçou a Rosa, agarrou n'uma espingarda.
Eu desci, e n'um instante a Torre ficou desembaraçada de Relhos e de
barulhos.

--Mas veio o Regedor, com cabos! accudio o Barrôlo.

Gonçalo saccudiu os hombros, impaciente:

--Veio o regedor? Veio depois, para legalisar! Já o homem abalára,
corrido. E como resultado arrendei a Torre ao Pereira, ao Pereira da
Riosa...

Contou esse negocio excellente, tratado na varanda, ao almoço, entre
dous copos de vinho verde. Barrôlo admirou a renda--gabou o rendeiro.
Assim Gonçalo descortinasse outro Pereira para a quinta de Treixedo,
terra tão generosa, tão mal amanhada!

Á borda do camapé, coberta pelos bellos cabellos que lavára n'essa manhã
e que cheiravam a alecrim, Gracinha comtemplava o irmão com ternura:

--E do estomago, andas melhor? Continuam as ceias com o Titó?

--Oh! esse animal! exclamou Gonçalo. Ha dias prometteu jantar na Torre,
até a Rosa assou um cabrito no espeto, magnifico... Depois falhou: creio
que teve uma orgia infame, com bichas de rabear. Elle vem esta semana a
Oliveira... E é verdade! vocês sabiam da intimidade do Titó com o
Sanches Lucena?

Historiou então, com exagero alegre, o encontro da Bica-Santa, o horror
que lhe causára a bella D. Anna, a descoberta inesperada d'essa
familiaridade do Titó na _Feitosa_.

Barrôlo recordou que uma tarde, antes do S. João, avistára o Titó,
deante do portão da _Feitosa_, a passear pela trela um cãosinho branco
de regaço...

--Mas o que eu não comprehendo, menino, é esse teu «horror» pela D.
Anna... Caramba! Mulher soberba! Um quebrado de quadris, uns olhões, um
peitoril...

--Calle essa bôca impura, devasso! gritou Gonçalo. Pois aqui ao lado da
sua mulher, que é a flôr das Graças, ousa louvar semelhante peça de
carne!

Gracinha rindo, sem ciumes, comprehendia «a admiração do José.»
Realmente, a Anna Lucena, que vistosa, que bella!...

--Sim, concedeu Gonçalo, bella como uma bella egoa... Mas aquella voz
gorda, papuda... E a luneta, os modos... E «o cavalheiro póde fumar, o
cavalheiro está enganado...» Oh! senhores, pavorosa!

Barrôlo gingava, deante do sophá, com as mãos nos bolsos da rabona:

--Uvas verdes, Snr. D. Gonçalo, uvas verdes!

O Fidalgo dardejou sobre o cunhado uns olhos ferozes:

--Nem que ella se me offerecesse, de joelhos, em camisa, com os duzentos
contos do Sanches n'uma salva d'ouro!

Sorrindo, vermelha como uma pionia, com um «oh» escandalisado, Gracinha
bateu no hombro de Gonçalo--que puxou por ella, galhofeiramente:

--Venha lá essa bochecha, e outra beijoca, para purificar! Com effeito,
só pensar na D. Anna arrasta a gente ás imagens brutaes... Dizias então
do estomago... Sim, filha, combalido. E ha dias mais pesado, desde o tal
cabrito no espeto e da companhia beberrona do Manoel Duarte. Tu tens cá
agua de Vidago?... Então, Barrôlinho, sê angelico. Manda trazer já uma
garrafinha bem fresca. E olha! pergunta se subiram um açafate e uma
caixa de papelão que eu deixei na caleche? Que ponham no meu quarto. E
não desembrulhes, que é surpreza... Escuta! Que me levem agua bem
quente. Preciso mudar toda a roupa... Estava uma poeirada por esse
caminho!

E quando o Barrôlo abalou, a rebolar e a assobiar, Gonçalo, esfregando
as mãos:

--Pois vocês ambos estão explendidos! E na harmonia que convem. Tu
positivamente mais fórte, mais cheia. Até pensei que fosse sobrinho. E o
Barrôlo mais delgado, mais leve...

--Oh, agora o José passeia, monta a cavallo, já não adormece tanto
depois de jantar...

--E a outra familia? A tia Arminda, o rancho Mendonça? Bem?... Padre
Sueiro, que é feito d'esse santo?

--Teve um ataquesito de rheumatismo, muito ligeiro. Agora bom, sempre no
Paço do Bispo, na Bibliotheca... Parece que se entretem a fazer um livro
sobre os Bispos.

--Bem sei, a Historia da Sé d'Oliveira... Pois eu tambem tenho
trabalhado muito, Gracinha! Ando a escrever um Romance.

--Ah!

--Um Romance pequeno, uma Novella, para os _Annaes de Litteratura e de
Historia_, uma Revista que fundou um rapaz meu amigo, o Castanheiro... É
sobre um facto historico da nossa gente... Sobre um avô nosso, muito
antigo, Tructesindo.

--Tem graça, que fez elle?

--Horrores. Mas é pittoresco... E depois o Paço de Santa Ireneia, no
século XII, em todo o seu explendor! Emfim uma bella reconstrucção do
velho Portugal e sobre tudo dos velhos Ramires. Has-de gostar... Não ha
amores, tudo guerras. Apenas, muito remotamente, uma das nossas
antepassadas, uma D. Menda, que eu nem sei se realmente existiu. Tem seu
chic, hein?... E tu comprehendes, como eu desejo tentar a Politica,
preciso primeiramente apparecer, espalhar o meu nome...

Gracinha sorria docemente para o irmão, no costumado enlevo:

--E agora tens alguma idéa? A tia Arminda lá continua sempre com a teima
que devias entrar na Diplomacia. Ainda ha dias... «Ai, o Gonçalinho,
assim galante, e com aquelle nome, só n'uma grande embaixada!»

Gonçalo despegára lentamente do vasto camapé, reabotoando o jaquetão
claro:

--Com effeito ando com uma idéa, ha dias... Talvez me viesse d'um
romance inglez, muito interessante, e que te recommendo, sobre as
antigas Minas de Ophir, _King Salomon's Mines_... Ando com idéas de ir
para a Africa.

--Oh Gonçalo, credo! Para a Africa?

O escudeiro entrára com duas garrafas de agua de Vidago, ambas
desarrolhadas, n'uma salva. Precipitadamente, para aproveitar o
«piquesinho», Gonçalo encheu um copo enorme de crystal lavrado. Ah! que
delicia d'agua!--E como o Barrôlo voltava, annunciando que cumprira as
ordens de S. Ex.^a:

--Bem! então logo conversamos ao almoço, Gracinha! Agora lavar, mudar de
roupa, que não paro com estas infames comichões...

Barrôlo acompanhou o cunhado ao quarto, um dos mais espaçosos e alegres
do Palacete, forrado de cretones côr de canario com uma varanda para o
jardim, e duas janellas de peitoril sobre a rua das Tecedeiras e os
velhos arvoredos do convento das Monicas. Gonçalo impaciente despiu logo
o casaco, saccudiu para longe o collete:

--Pois tu estás explendido, Barrôlo! Deves ter perdido tres ou quatro
kilos. São naturalmente os kilos que Gracinha ganhou... Vocês, se assim
se equilibram, ficam perfeitos.

Deante do espelho Barrôlo acariciava a cinta, com um risinho deleitado:

--Realmente, parece que adelgacei... Até sinto nas calças...

Gonçalo abrira o gavetão da rica commoda de ferragens douradas, onde
conservava sempre roupa (até duas casacas), para evitar o transporte de
malas entre os Cunhaes e a Torre. E ria, aconselhava o bom Barrôlo a
«adelgaçar» sem descanço, para belleza da futura raça Barrolica--quando
em baixo, na silenciosa rua das Tecedeiras as patas de um cavallo de
luxo feriram as lages em cadencia lenta.

Logo desconfiado, Gonçalo correu á janella, ainda com a camisa que
desdobrava. E era _elle_! Era o André Cavalleiro, que descia ladeando,
sopeando a rédea, para escarvar com garbo e fragor a rampa mal
empedrada. Gonçalo virou para o Barrôlo a face chammejante de furôr:

--Isto é uma provocação! Se este descarado d'este Cavalleiro passa outra
vez na maldita pileca, por debaixo das janellas, apanha com um balde
d'agua suja!...

Barrôlo, inquieto, espreitou:

--Naturalmente vae para casa das Louzadas... Anda agora muito intimo das
Louzadas... Sempre por aqui o vejo... E é para as Louzadas.

--Que seja para o inferno! Pois, em toda a cidade, não ha outro caminho
para casa das Louzadas? Duas vezes em meia hora! Grande insolente! Tem
uma chapada d'agua de sabão, pela grenha e pela bigodeira, tão certo
como eu ser Ramires, filho de meu pae Ramires!

Barrôlo beliscava a pelle do pescoço, constrangido ante aquelles
rancores ruidosos que desmanchavam o seu socego. Já, por imposição de
Gonçalo, rompera desconsoladamente com o Cavalleiro. E agora antevia
sempre uma bulha, um escandalo que o indisporia com os amigos do
Cavalleiro, lhe vedaria o Club e as doçuras da Arcada, lhe tornaria
Oliveira mais enfadonha que a sua quinta da _Ribeirinha_ ou da
_Murtosa_, solidões detestadas. Não se conteve, arriscou o costumado
reparo:

--Ó Gonçalinho, olha que tambem todo esse espalhafato só por causa da
Politica...

Gonçalo quasi quebrou o jarro, na furia com que o pousou sobre o marmore
do lavatorio:

--Politica! Ahi vens tu com a Politica! Por Politica não se atira agua
suja aos Governadores Civis. Que elle não é Politico, é só malandro!
Além d'isso...

Mas terminou por encolher os hombros, emmudecer, diante do pobre bacôco
de bochechas pasmadas, que, n'aquellas rondas do Cavalleiro pelos
Cunhaes, só notava o «lindo cavallo» ou «o caminho mais curto para as
Louzadas!...»

--Bem! resumiu. Agora larga, que me quero vestir... Do bigodeira me
encarrego eu.

--Então, até logo... Mas se elle passar nada d'asneiras, hein?

--Só justiça, aos baldes!

E bateu com a porta nas costas resignadas do bom Barrôlo, que, pelo
corredor, suspirando, lamentava o assomado genio do Gonçalinho, as
coleras desproporcionadas em que o lançava «a Politica.»

Em quanto se ensaboava com vehemencia, depois se vestia n'uma pressa
irada, Gonçalo ruminou aquelle intoleravel escandalo. Fatalmente, apenas
se apeava em Oliveira, encontrava o homem da grande guedelha,
caracolando por sob as janellas do palacete, na pileca de grandes
clinas! E o que o desolava era perceber no coração de Gracinha, pobre
coração meigo e sem fortaleza, uma teimosa raiz de ternura pelo
Cavalleiro, bem enterrada, ainda vivaz, facil de reflorir... E nenhum
outro sentimento forte que a defendesse, n'aquella ociosidade
d'Oliveira--nem superioridade do marido, nem encanto d'um filho no seu
berço. Só a amparava o orgulho, certo respeito religioso pelo nome de
Ramires, o medo da pequena terra espreitadeira e mexeriqueira. A sua
salvação seria o abandono da cidade, o encerrado retiro n'uma das
quintas do Barrôlo, a _Ribeirinha_, sobretudo a _Murtosa_, com a linda
matta, os musgosos muros de convento, a aldêa em redor para ella se
occupar como castellã benefica. Mas quê! Nunca o Barrôlo, consentiria em
perder o seu voltarete no Club, e a cavaqueira da tabacaria «Elegante»,
e as chalaças do Major Ribas!

Afogueado pelo calor, pela emoção, Gonçalo abriu a varanda. Em baixo, no
curto terraço ladrilhado, orlado de vasos de louça, precedendo o jardim,
Gracinha, ainda soltos os cabellos por cima do penteador, conversava com
outra senhora, muito alta, muito magra, de chapeu marujo enfeitado de
papoulas, que segurava entre os braços um repolhudo mólho de rosas.

Era a «prima» Maria Mendonça, mulher de José Mendonça, condiscipulo do
Barrôlo em Amarante, agora capitão do Regimento de Cavallaria
estacionado em Oliveira. Filha d'um certo D. Antonio, senhor (hoje
Visconde) dos Paços de Severim, devorada pela preoccupação de
parentescos fidalgos, de origens fidalgas, ligava sempre surrateiramente
o vago solar de Severim a todas as casas nobres de Portugal--sobre tudo,
mais gulosamente, á grande casa de Ramires: e, desde que o regimento se
aquartellára em Oliveira, tratára logo Gracinha por «tu» e Gonçalo por
«primo», com a intimidade especial, que convem a sangues superiores.
Todavia mantinha amisades muito seguidas e activas com brazileiras ricas
d'Oliveira--até com a viuva Pinho, dona da loja de pannos, que (segundo
se murmurava) lhe fornecia os dous filhos ainda pequenos de calções e de
jalecas. Tambem convivia intimamente, já na cidade, já na _Feitosa_, com
D. Anna Lucena. Gonçalo gostava da sua graça, da sua agudeza, da
vivacidade maliciosa que a agitava n'uma linda crepitação de galho,
ardendo com alegria. E quando, ao rumor da janella perra, ella levantou
os olhos lusidios e espertos, foi em ambos uma surpresa carinhosa:

--Oh prima Maria! Que felicidade, logo que chego e que abro a janella...

--E para mim, primo Gonçalo, que o não via desde a sua volta de
Lisboa!... Pois está mais lindo, assim de bigode...

--Dizem que estou lindissimo, absolutamente irresistivel! Até aconselho
á prima Maria que se não approxime muito de mim, para se não incendiar.

Ella deixou pender desoladamente nos braços o seu pesado molho de rosas:

--Ai Jesus, então estou perdida, que ainda agora prometti á prima Graça
jantar cá esta tarde!... Oh Gracinha, por quem és, põe um biombo entre
os dois!

Gonçalo gritou, pendurado da varanda, já deliciado com os chistes da
prima Maria:

--Não! enfio eu um _abat-jour_ pela cabeça para attenuar o meu
brilho!... E o maridinho, os pequenos? Como vae o nobre rancho?

--Vivendo, com algum pão e muita graça de Deus... Então até logo, primo
Gonçalo! E seja misericordioso!

E ainda elle ria, encantado--já a prima Maria depois de cochichar e
d'estalar dois beijos apressados na face de Gracinha, desapparecêra pela
porta envidraçada da sala com a sua elegancia esgalgada. Gracinha,
lentamente, subiu os tres degraus de marmore do jardim. Da varanda,
Gonçalo ainda avistou atravez da ramaria leve, entre as sebes de buxo, o
penteador branco, os fartos cabellos cabidos, relusindo no sol como uma
cascata de azeviche. Depois o negro brilho, as claras rendas,
desappareceram sob os loureiros da rua que conduzia ao Mirante.

Mas Gonçalo não se arredou d'entre as janellas, limando vagamente as
unhas, espreitando pelas cortinas, n'uma desconfiança, quasi n'um terror
que o Cavalleiro de novo surgisse na pileca--agora que Gracinha se
embrenhára para os lados d'esse commodo Mirante, construcção do seculo
XVIII, imitando um Templosinho do Amor, que rematava o longo terraço do
jardim e dominava a rua das Tecedeiras. Mas a calçada permanecia
silenciosa, sob as derramadas sombras de arvoredo do Palacete e do
Convento. E por fim decidiu descer, envergonhado da espionagem--certo
que a irmã não se mostraria ao Cavalleiro na varandinha do Mirante,
assim com os cabellos em desalinho, por cima d'um penteador.

E cerrava a porta, quando se encontrou deante dos braços do Padre
Sueiro, que o prenderam pela cinta com affago e respeito.

--Oh! meu ingratissimo Padre Sueiro! exclamava Gonçalo, batendo
ternamente nas gordas costas do Capellão. Então que feia acção foi esta?
Mais de um mez sem apparecer na Torre! Agora para o Sr. Padre Sueiro já
não ha Gonçalinho, ha só Gracinha...

Enternecido, quasi com uma lagrima a bailar nos mansos olhos miudos, que
mais negrejavam entre a frescura rozea da face roliça e a cabecinha
branca como algodão--Padre Sueiro sorria, fechando as mãos sobre o peito
da batina d'alpaca, d'onde surdia a ponta de um lenço de quadrados
vermelhos. E não lhe escasseára certamente o desejo d'ir á Torre. Mas
aquelle trabalhinho na Bibliotheca do Paço do Bispo... Depois o seu
rheumatismosito... Emfim a Sr.^a D. Graça sempre esperando S. Ex.^a, um
dia, outro dia...

--Bem, bem! acudiu alegremente Gonçalo, comtanto que o coração não se
esquecesse da Torre...

--Ah! esse! murmurou Padre Sueiro com commovida gravidade.

E pelo corredor de paredes azues, adornadas com gravuras coloridas das
batalhas de Napoleão, Gonçalo resumiu as novidades da Torre:

--Como o Padre Sueiro sabe, rebentou aquelle escandalo do Relho... E
ainda bem, porque conclui um negocio explendido. Imagine! Arrendei ha
dias a quinta ao Pereira Brazileiro, ao Pereira da Riosa, por um conto
cento e cincoenta mil réis...

O capellão suspendeu a pitada, que colhera n'uma caixa de prata dourada,
pasmado para o Fidalgo:

--Ora ahi está como as cousas se inventam! Pois por cá constou que V.
Ex.^a tratára com o José Casco, o José Casco dos Bravaes. Até no
Domingo, ao almoço, a Sr.^a D. Graça...

--Sim, interrompeu o Fidalgo com uma fugidia côr na face fina.
Effectivamente o Casco veio á Torre, conversámos. Primeiramente quiz,
depois não quiz. Aquellas cousas do Casco! Einfim, uma massada... Não
ficou nada decidido. E quando o Pereira, uma bella manhã, me appareceu
com a proposta, eu, inteiramente desligado, acceitei, e com que
alvoroço!... Imagine! Um augmento soberbo de renda, o Pereira como
rendeiro... O Padre Sueiro conhece bem o Pereira...

--Homem entendido, concordou o Capellão coçando embaraçadamente o
queixo. Não ha duvida. E homem de bem... Depois não havendo palavra dada
ao Cas...

---Pois o Pereira para a semana vem á cidade, atalhou apressadamente
Gonçalo. O Padre Sueiro previne o tabellião Guedes, e assignamos essa
bella escriptura. São as condições costumadas. Creio que ha uma reserva
a respeito da hortaliça e do porco... Emfim o Padre Sueiro deve receber
carta do Pereira.

E immediatamente, descendo a escada, passando o lenço perfumado pelo
bigode, gracejou com o capellão sobre o famoso _Fado dos Ramires_ em que
elle collaborava com o Videirinha. Oh! Padre Sueiro fornecera lendas
sublimes! Mas aquella de Santa Aldonça, realmente, fôra ataviada com
exageração... Quatro Reis a levarem a Santa aos hombros!

--São Reis de mais, Padre Sueiro!

O bom capellão protestou, logo interessado e serio, no amor d'aquella
obra que glorificava a Casa:

--Ora essa! Com perdão de V. Ex.^a... Perfeitissimamente exacto. Lá o
conta o Padre Guedes do Amaral, nas suas _Damas da Côrte do Ceu_, livro
precioso, livro rarissimo, que o Sr. José Barrôlo tem na Livraria. Não
especifica os Reis, mas diz quatro... «Aos hombros de quatro Reis e com
acompanhamento de muitos Condes.» Mas o nosso José Videira declarou que
não podia metter os Condes por causa da rima.

O Fidalgo ria, dependurando n'um cabide, ao fundo da escada, o chapeu de
palha com que descêra:

--Por causa da rima, pobres Condes... Mas o fado está lindo. Eu trago
uma copia para a Gracinha cantar ao piano... E agora outra cousa, Padre
Sueiro. O que se conta por ahi do Governador Civil, d'esse Sr. André
Cavalleiro?...

O capellão encolheu os hombros, desdobrando cautelosamente o seu vasto
lenço de quadrados vermelhos:

--Eu, como V. Ex.^a sabe, não entendo de Politica. Depois tambem não
frequento os cafés, os sitios onde se questiona Politica... Mas parece
que gostam.

No corredor um escudeiro gordo, de opulentas suissas ruivas, que Gonçalo
não conhecia, badalou a sineta do almoço. Gonçalo reparou, avisou o
homem que a Snr.^a D. Maria da Graça andava para o fundo do jardim...

--Entrou agora, Snr. D. Gonçalo! accudiu o escudeiro. E até manda
perguntar se V. Ex.^a deseja para o almoço vinho verde de Amarante, de
_Vidainhos_.

Sim, com certeza, vinho de _Vidainhos_. Depois sorrindo:

--Oh Padre Sueiro, previna este escudeiro novo que eu não tenho _Dom_.
Sou simplesmente Gonçalo, graças a Deus!

O capellão murmurou que todavia, em documentos da Primeira Dynastia,
appareciam Ramires com _Dom_. E, como Gonçalo parara deante do
reposteiro corrido da sala, logo o bom velho se curvou, com as suas
escrupulosas, reverentes ceremonias, para o Fidalgo passar.

--Então, Padre Sueiro, por quem é!

Mas elle, com apegado respeito:

--Depois de V. Ex.^a, meu senhor...

Gonçalo afastou o reposteiro, empurrou docemente o capellão:

--Padre Sueiro, já nos documentos da Primeira Dynastia se estabeleceu
que os Santos nunca andam atraz dos Peccadores!

--V. Ex.^a manda, e sempre com que graça!

Depois dos annos de Gracinha, uma tarde, pelas tres horas, Gonçalo,
recolhendo com Padre Sueiro d'uma visita á Bibliotheca do Paço do Bispo,
sentiu logo da antecamara o vozeirão do Titó, que rolava na sala azul em
trovão lento. Franziu vivamente o reposteiro--e sacudiu o punho para o
immenso homem que enchia um dos cadeirões dourados, estirando por sobre
as flôres do tapete umas botas novas de grossas tachas reluzentes:

--Oh infame!... Então n'outro dia assim me larga, sem escrupulo, depois
de eu lhe preparar um cabrito estupendo, assado n'um espeto de
cerejeira? E para quê?... Para uma orgia reles, com bolinhos de bacalhau
e bichinhas de rabear!

Titó não desmanchou a sua conchegada beatitude:

--Impossibilissimo. De tarde encontrei o João Gouveia no Chafariz. E só
então nos lembrámos de que eram os annos da D. Casimira. Dia sagrado!

Aquellas ceias de Villa-Clara, as tresnoutadas «pandegas» com violão,
impressionavam sempre Barrôlo, que as appetecia. E com o olho aguçado,
do canto da mesa onde esfarelava cuidadosamente pacotes de tabaco dentro
de uma terrina do Japão:

--Quem é a D. Casimira? Vocês em Villa-Clara descobrem uns typos...
Conta lá!

--Um monstro! declarou Gonçalo. Uma matronaça bojuda como uma pipa, com
um pêllo nojento no queixo. Vive ao pé do Cemiterio, n'um cacifro que
tresanda a petroleo, onde este senhor e as auctoridades vão jogar o
quino, e derriçar com umas serigaitas de cazabeque vermelho e de
farripas... Nem se póde decentemente contar deante do Snr. Padre Sueiro!

O capellão, que sem rumor se esbatera n'uma sombra discreta, entre os
franjados setins d'uma cortina e um pesado contador da India, moveu os
hombros n'um consentimento risonho, como acostumado a todas as fealdades
do Peccado. E, com pachorra, o Titó emendava o esboço burlesco do
Fidalgo:

--A D. Casimira é gorda, mas muito aceada. Até me pediu para eu lhe
comprar hoje, na cidade, uma bacia nova d'assento. A casa não cheira a
petroleo e fica por traz do convento de Santa Theresa. As serigaitas são
simplesmente as sobrinhas, duas raparigas alegres que gostam de rir e de
troçar... E o Snr. Padre Sueiro podia, sem medo...

--Bem, bem! atalhou Gonçalo. Gente deliciosa! Deixemos a D. Casimira,
que tem bacia nova para os seus semicupios... Vamos á outra infamia do
Sr. Antonio Villalobos!

Mas Barrôlo insistia, curioso:

--Não, não, conta lá, Titó... Noite d'annos, patuscada rija, hein?

--Ceia pacata, contou o Titó com a seriedade que lhe merecia a festa das
suas amigas. A D. Casimira tinha uma bella frangalhada com ervilhas. O
João Gouveia trouxe do Gago uma travessa de bôlos de bacalhau que
calharam... Depois, fogo de vistas na horta. O Videirinha tocou, as
pequenas cantaram... Não se passou mal.

Gonçalo esperava--irresistivelmente interessado pela ceia das Casimiras:

--Acabou, hein?... Agora a outra infamia, mais grave! Então o Snr.
Antonio Villalobos é intimo do Sanches Lucena, frequenta todas as
semanas a _Feitosa_, toma chá e torradas com a bella D. Anna, e esconde
tenebrosamente dos seus amigos estes privilegios gloriosos?...

--Sem contar, gritou o Barrôlo deliciosamente divertido, que lhe passeia
á trela os cãesinhos felpudos!

--Sem contar que lhe passeia á trela os cãesinhos felpudos! echoou
cavamente Gonçalo. Responda, meu illustre amigo!

O Titó remecheu o vasto corpo dentro do cadeirão, recolheu as botas de
tachas luzentes, afagou lentamente a face barbuda, que uma vermelhidão
aquecêra. E depois de encarar Gonçalo, intensamente, com um esforço de
sagacidade que mais o afogueou:

--Tu já alguma vez, por curiosidade, me perguntaste se eu conhecia o
Sanches Lucena? Nunca me perguntaste...

O Fidalgo protestou. Não! Mas constantemente na Assembleia, no Gago, na
Torre, elles berravam, em questões de Politica, o nome do Sanches
Lucena! Nada mais natural, até mais prudente, do que alludir o Snr. Titó
á sua intimidade illustre! Ao menos para evitar que elle, ou os amigos,
deante do Snr. Titó que comia as torradas da _Feitosa_, tratassem o
Sanches Lucena como um trapo!

O Titó despegou do cadeirão. E afundando as mãos nos bolsos da quinzena
d'alpaca, sacudindo desinteressadamente os hombros:

--Cada um tem sobre o Sanches a sua opinião... Eu apenas o conheço ha
quatro ou cinco mezes, mas acho que é serio, que sabe as cousas...
Agora, lá nas Camaras...

Gonçalo, indignado, bradava que se não discutiam os meritos do Snr.
Sanches Lucena--mas os segredos do Snr. Titó Villalobos! E o escudeiro
novo, avançando as suissas ruivas por uma fenda do reposteiro, annunciou
que o Snr. Administrador de Villa-Clara procurava Suas Ex.^{as}...

Barrôlo largou logo a terrina de tabaco:

--O Snr. João Gouveia! Que entre! Bravo! temos cá toda a rapaziada de
Villa-Clara!

E Titó, da janella onde se refugiara, lançou o vozeirão, mais troante,
abafando a importuna conversa do Sanches e da _Feitosa_:

--Viemos ambos! Por signal n'uma traquitana infame... Até se nos
desferrou uma das pilecas e tivemos de parar na Vendinha. Não se perdeu
tempo, que ha agora lá um vinhinho branco que é d'aqui da ponta fina!...

Beliscava a orelha. Aconselhava ruidosamente Barrôlo e Gonçalo a
passarem na Vendinha, para provar a pinga celeste.

--Até aqui o Snr. Padre Sueiro lhe atiçava uma caneca valente, apesar do
Peccado!

Mas João Gouveia entrou, encalmado, empoeirado, com um vinco vermelho na
testa, do chapeu e do calor--e abotoado na sobrecasaca preta, de calças
pretas, de luvas pretas. Sem folego, apertou silenciosamente pela sala
as mãos amigas que o acolhiam. E desabou sobre o camapé, implorando ao
amigo Barrôlo a caridade d'uma bebidinha fresca!

--Estive para entrar no café Monaco. Mas reflecti que n'esta grandiosa
casa dos Barrôlos as bebidas são de mais confiança.

--Ainda bem! Você que quer? Orchata? Sangria? Limonada?

--Sangria.

E, limpando o pescoço e a testa, amaldiçoou o indecente calor
d'Oliveira:

--Mas ha gente que gosta! Lá o meu chefe, o Snr. Governador Civil,
escolhe sempre a hora do calor para passear a cavallo. Ainda hoje... Na
repartição até ao meio dia; depois, cavallo á porta; e larga até á
estrada de Ramilde, que é uma Africa... Não sei como lhe não fervem os
miolos!

--Oh! acudiu Gonçalo, é muito simples. Se elle os não tem!

O administrador saudou gravemente:

--Já cá faltava com a sua ferroadasinha o Snr. Gonçalo Mendes Ramires!
Não comecemos, não comecemos... Este seu cunhado, Barrôlo, é bicho
indomesticavel! Sempre reponta!

O bom Barrôlo gaguejou, constrangido, que Gonçalinho em Politica não
dispensava a piada...

--Pois olhe! declarou o administrador, sacudindo o dedo para Gonçalo.
Esse Snr. André Cavalleiro, que não tem miolos, ainda esta manhã na
Repartição gabou com immensa sympathia os miolos do Snr. Gonçalo Mendes
Ramires!...

E Gonçalo, muito serio:

--Tambem não faltava mais nada! Para esse Governador Civil ser
perfeitamente absurdo só lhe restava que me considerasse um asno!

--Perdão! gritou o Administrador, que se erguera, desabotoando logo a
sobrecasaca, para commodidade da contenda.

Barrôlo acudio, afflicto, carregando nos hombros do Gouveia--para o
socegar e o repôr no camapé:

--Não, meninos, não! Politica, não! E então essa massada do
Cavalleiro... Vamos ao que importa. Você janta comnosco, João Gouveia?

--Não, obrigado. Já prometti jantar com o Cavalleiro. Temos lá o Ignacio
Vilhena. Vae lêr um artigo que escreveu para o _Boletim de Guimarães_
sobre umas fôrmas de fabricar ossos de martyres, descobertas nas obras
do convento de S. Bento. Estou com curiosidade... E a Snr.^a D. Graça,
bem? Quem eu não avistava havia mezes era o Snr. Padre Sueiro. Nunca
apparece agora pela Torre!... Mas sempre rijo, sempre viçoso. Oh, Snr.
Padre Sueiro, qual é o seu segredo para toda essa meninice?

Do seu canto, o capellão sorriu timidamente. O segredo? Poupar a
Vida--não a consumindo nem com ambições nem com decepções. Ora para
elle, louvado Deus, a vida corria muito simples e muito pequenina. E
fóra o seu rheumatismo...

Depois, córando d'acanhamento, atravez das sentenças evangelicas que lhe
escapavam:

--Mas mesmo o rheumatismo não é mal perdido. Deus, que o manda, sabe
porque o manda... Soffrer edifica. Por que enfim o que nós soffremos nos
leva a pensar no que os outros soffrem...

--Pois olhe, volveu com alegre incredulidade o Administrador, eu, quando
tenho os meus ataques de garganta, não penso na garganta dos outros!
Penso só na minha que me dá bastante cuidado. E agora a vou regalar
n'aquella bella sangria...

O escudeiro vergava, com a luzente bandeja de prata, carregada de copos
de sangria onde boiavam rodellinhas de limão. E todos se tentaram, todos
beberam, até Padre Sueiro, para mostrar ao Snr. Antonio Villalobos que
não desdenhava o vinho, dadiva amavel de Deus--pois como ensina Tibulo
com verdade, apezar de gentilico, _vinus facit dites animos, mollia
corda dat_, enrija a alma e adoça o coração.

João Gouveia, depois d'um suspiro consolado, pousou na bandeja o copo
que esvasiára d'um trago e interpellou Gonçalo:

--Vamos a saber! Então n'outro dia que historia phantastica foi essa
d'uma festa na Torre, com senhoras, com a D. Anna Lucena?... Eu não
acreditei quando o pequeno do Gago me encontrou, me deu o recado.
Depois...

Mas d'entre as cortinas da janella, onde acabava a sangria, Titó
novamente rebombou, interpellando tambem o Fidalgo:

--Oh sô Gonçalo! E o que me contou ha pouco o Barrôlo?... Que andavas
com idéas de abalar para a Africa?

Ao espanto de João Gouveia quasi se misturou terror. Para a Africa?... O
quê? Com um emprego para a Africa?...

--Não! plantar côcos! plantar cacau! plantar café! exclamava o Barrôlo,
com divertidas palmadas na côxa.

Pois Titó approvava a idéa! Tambem elle, se arranjasse um capital, dez
ou quinze contos, tentava a Africa, a traficar com o preto... E tambem
se fôsse mais pequeno, mais secco. Que homens do seu corpanzil,
necessitando muita comezaina e muita vinhaça, não aguentam a Africa,
rebentam!

--O Gonçalo sim! É chupado, é rijo; não carrega na agua-ardente; está na
conta para Africanista... E sempre te digo! Carreira bem mais decente
que essa outra por que tens mania, de deputado! Para que? Para palmilhar
na Arcada, para bajular Conselheiros.

Barrôlo concordou, com alarido. Tambem não comprehendia a teima de
Gonçalo em ser deputado! Que massada! Eram logo as intrigas, e as
desandas nos jornaes, e os enxovalhos. E sobretudo aturar os eleitores.

--Eu, nem que me nomeassem depois Governador Civil, com um titulo e uma
gran-cruz a tiracollo, como o Freixomil!

Gonçalo escutára, n'um silencio risonho e superior, enrolando
laboriosamente um cigarro com o tabaco do Barrôlo:

--Vocês não comprehendem... Vocês não conhecem a organisação de
Portugal. Perguntem ahi ao Gouveia... Portugal é uma fazenda, uma bella
fazenda, possuida por uma parceria. Como vocês sabem ha parcerias
commerciaes e parcerias ruraes. Esta de Lisboa é uma _parceria
politica_, que governa a herdade chamada Portugal... Nós os Portuguezes
pertencemos todos a duas classes: uns cinco a seis milhões que trabalham
na fazenda, ou vivem n'ella a olhar, como o Barrôlo, e que pagam; e uns
trinta sujeitos em cima, em Lisboa, que formam a _parceria_, que recebem
e que governam. Ora eu, por gosto, por necessidade, por habito de
familia, desejo mandar na fazenda. Mas, para entrar na _parceria
politica_, o cidadão portuguez precisa uma habilitação--ser deputado.
Exactamente como, quando pretende entrar na Magistratura, necessita uma
habilitação--ser bacharel. Por isso procuro começar como deputado para
acabar como parceiro e governar... Não é verdade, João Gouveia?

O Administrador voltára á bandeja das sangrias, de que saboreava outro
copo, agora lentamente, aos goles:

--Sim, com effeito, essa é a carreira... Candidato, Deputado, Politico,
Conselheiro, Ministro, Mandarim. É a carreira... E melhor que a
d'Africa. Por fim na Arcada, em Lisboa, tambem cresce cacau e ha mais
sombra!

Barrôlo no emtanto abraçára o hombro possante do Titó, com quem
mergulhou no vão da janella, n'uma confraternidade d'ideias, gracejando:

--Pois eu, sem ser dos taes _parceiros_, tambem mando nos bocados de
Portugal que mais me interessam por que me pertencem!... E sempre queria
vêr que esse S. Fulgencio, ou o Braz Victorino, ou lá os politicos do
Terreiro do Paço, se mettessem a dispôr nas minhas terras, na
_Ribeirinha_ ou na _Murtosa_... Era a tiro!

Encostado á vidraça, Titó coçava a barba, impressionado:

--Pois sim, Barrôlo! Mas você na _Ribeirinha_ e na _Murtosa_ tem de
pagar as contribuições que elles mandarem. E n'esses concelhos tem
d'aguentar as auctoridades que elles nomearem. E goza para lá d'estradas
se elles lh'as fizerem. E vende o carro de pão e a pipa de vinho com
mais ou menos proveito, segundo as leis que elles votarem... E assim
tudo. O Gonçalo não deixa de acertar. É o diabo! Quem manda é quem
lucra... Olhe! o maroto do meu senhorio em Villa-Clara, agora para o S.
Miguel, augmenta a renda da casa em que eu moro, um cochicho que ninguem
quer, por que mataram lá o carrasco, que ainda lá apparece... E o
Cavalleiro, esse, como _parceiro_, vive de graça n'este bello palacio de
S. Domingos, com cocheira, com jardim, com horta...

Barrôlo atirou um _chut_, de mão espalmada, abafando o vozeirão do Titó,
com medo que as regalias do Cavalleiro, assim proclamadas, renovassem as
furias de Gonçalo. Mas o Fidalgo não percebera, attento ao João Gouveia,
que, enterrado no camapé depois da sangria, novamente contava o seu
assombro, ao encontrar no chafariz, em Villa-Clara, o rapasola do Gago
com o recado da grande festa na Torre:

--E cheguei a desconfiar que realmente você désse festa, quando bateram
as nove, depois as nove e meia, e o Titó sem chegar para a ceia da D.
Casimira!... Bem, pensei, tambem recebeu recado e abalou para a Torre!
Por fim, apenas elle appareceu, de carapuço e de jaqueta, percebi que
fôra troça do Snr. D. Gonçalo...

Então o Fidalgo pasmou com uma inesperada, estranha suspeita:

--De carapuço e jaqueta? O Titó andava n'essa noite de carapuço e de
jaqueta?...

Mas bruscamente Barrôlo, da funda janella, lançou para dentro, para a
sala, um brado de pavor:

--Oh! rapazes! Santo Deus! Ahi veem as Louzadas!

João Gouveia saltou do camapé, como n'um perigo, reabotoando
arrebatadamente a sobrecasaca; Gonçalo, atarantado, esbarrou com o Titó
e o Barrôlo que recuavam, no terror de serem apercebidos atravez dos
vidros largos; até Padre Sueiro, prudente, abandonou o seu recanto onde
corria os oculos pela _Gazeta do Porto_. E todos, d'entre a fenda das
cortinas, como soldados na fresta de uma cidadella, espreitavam o Largo,
que o sol das quatro horas dourava por sobre os telhados musgosos da
Cordoaria. Do lado da rua das Pêgas, as duas Louzadas, muito esgalgadas,
muito sacudidas, ambas com manteletes curtos de seda preta e vidrilhos,
ambas com guardasoes de xadresinbo desbotado, avançavam, estirando pelo
largo empedrado duas sombras agudas.

As duas manas Louzadas! Seccas, escuras e garrulas como cigarras, desde
longos annos, em Oliveira, eram ellas as esquadrinhadoras de todas as
vidas, as espalhadoras de todas as maledicencias, as tecedeiras de todas
as intrigas. E na desditosa Cidade não existia nodoa, pécha, bule
rachado, coração dorido, algibeira arrasada, janella entreaberta, poeira
a um canto, vulto a uma esquina, chapeu estreado na missa, bolo
encommendado nas Mathildes, que os seus quatro olhinhos furantes
d'azeviche sujo não descortinassem--e que a sua solta lingoa, entre os
dentes ralos, não commentasse com malicia estridente! D'ellas surdiam
todas as cartas anonymas que infestavam o Districto: as pessoas devotas
consideravam como penitencias essas visitas em que ellas durante horas
galravam, abanando os braços escanifrados: e sempre por onde ellas
passassem ficava latejando um sulco de desconfiança e receio. Mas quem
ousaria rechaçar as duas manas Louzadas? Eram filhas do decrepito e
venerando General Louzada; eram parentas do Bispo; eram poderosas na
poderosa confraria do Senhor dos Passos da Penha. E depois d'uma
castidade tão rigida, tão antiga e tão resequida, e por ellas tão
espaventosamente alardeada--que o Marcolino do Independente as alcunhára
de _Duas Mil Virgens_.

--Não veem para cá! trovejou o Titó, com immenso allivio.

Com effeito no meio do Largo, rente á grade que circumda o antigo
Relogio-de-Sol, as duas manas paradas, erguiam o bico escuro, farejando
e espiando a Egrejinha de S. Matheus onde o sino lançára um repique de
baptisado.

--Oh, c'os diabos, que é para cá!

As Louzadas, decididas, investiam contra o portão dos Cunhaes! Então foi
um panico! As gordas pernas do Barrôlo, fugindo, abalaram, quasi
derrubaram sobre os contadores, os potes bojudos da India. Gonçalo
bradava que se escondessem no pomar. Desconcertado, o Gouveia rebuscava
com desespero o seu chapeu côco. Só o Titó, que as abominava e a quem
ellas chamavam o _Polyphemo_, retirou com serenidade, abrigando o Padre
Sueiro sob o seu braço forte. E já o bando espavorido se arremessára
sobre o reposteiro--quando Gracinha appareceu, com um fresco vestido de
sedinha côr de morango, sorrindo, pasmada, para o tropel que rolava:

--Que foi? Que foi?...

Um clamor abafado envolveu a dôce senhora ameaçada:

--As Louzadas!

--Oh!

Fugidiamente o Titó e João Gouveia apertaram a mão que ella lhes
abandonou, esmorecida. A sineta do portão tilintára, temerosa! E a fila
acavallada, onde Padre Sueiro rebolava a reboque, enfiou para a livraria
que o Barrôlo aferrolhou, gritando ainda a Gracinha, com uma inspiração:

--Esconde as sangrias!

Pobre Gracinha! Atarantada, sem tempo de chamar o escudeiro, carregou
ella para uma banqueta do corredor, n'um esforço desesperado, a pesada
salva--com que as Louzadas, se a descortinassem, edificariam por sobre a
cidade, e mais alta que a Torre de S. Matheus, uma historia pavorosa de
«vinhaça e bebedeira». Depois, offegando, relanceou no espelho o
penteado. E direita como n'uma arena, com a temeridade simples e risonha
dos antigos Ramires, esperou a arremettida das manas terriveis.

       *       *       *       *       *

No outro domingo, depois do almoço, Gonçalo acompanhou a irmã a casa da
tia Arminda Villegas, que na vespera, ao tomar (como costumava todos os
sabbados) o seu banho aos pés, se escaldára e recolhera á cama,
apavorada, reclamando uma junta dos cinco cirurgiões d'Oliveira. Depois
acabou o charuto sob as acacias do Terreiro da Louça, pensando na sua
Novella abandonada na Torre durante essas semanas, e no lance famoso do
Capitulo II que o tentava e que o assustava--o encontro de Lourenço
Ramires com Lopo de Bayão, _o Bastardo_, no valle fatal de Cantapedra. E
recolhia aos Cunhaes (porque promettera ao Barrôlo uma trotada a
cavallo, até ao Pinhal de Estevinha, para aproveitar a doçura do domingo
ennevoado) quando, na rua das Vellas, avistou o tabellião Guedes, que
sahia da confeitaria das Mathildes com um grosso embrulho de pasteis.
Ligeiramente, o Fidalgo atravessou logo a rua--emquanto o Guedes, da
borda do passeio, pesado e barrigudo, na ponta dos botins miudinhos
gaspeados de verniz, descobria, n'uma cortezia immensa, a calva,
emplumada ao meio pelo famoso tufo de cabello grisalho que lhe valera a
alcunha de «Guedes Pôpa»:

--Por quem é, meu caro Guedes, ponha o chapeu! Como está? Sempre féro e
moço. Ainda bem!... Fallou com o meu Padre Sueiro? O Pereira da Riosa,
por fim, só vem á cidade na quarta feira...

Sim! Sim! O Snr. Padre Sueiro passára pelo cartorio, para avisar--e elle
apresentava os parabens a S. Ex.^a pelo seu novo rendeiro...

--Homem muito competente, o Pereira! Já ha vinte annos que o conheço...
E olhe V. Ex.^a a propriedade do Conde de Monte-Agra! Ainda me lembro
d'ella, um chavascal; hoje que primor! Só a vinha que elle tem plantado!
Homem muito competente... E V. Ex.^a com demora?

--Dois ou tres dias... Não se atura este calor de Oliveira. Hoje,
felizmente, refrescou. E que ha de novo? Como vae a politica? O amigo
Guedes sempre bom Regenerador, leal e ardente, hein?

Subitamente o Tabellião, com o seu embrulho de doces conchegado ao
collete de seda preta, agitou o braço gordo e curto, n'uma indignação
que lhe esbraseou de sangue o pescoço, as orelhas cabelludas, a face
rapada, toda a testa até ás abas do chapeu branco orlado de fumo negro:

--E quem o não ha-de ser, Snr. Gonçalo Mendes Ramires? Quem o não ha-de
ser?... Pois este ultimo escandalo!

Os risonhos olhos de Gonçalo logo se alargaram, serios:

--Que escandalo?

O Tabellião recuou. Pois S. Ex.^a não sabia da ultima prepotencia do
Governador Civil, do Snr. André Cavalleiro?

--O quê, caro amigo?...

O Guedes cresceu todo sobre o bico dos botins pequeninos, e bojou, e
inchou, para exclamar:

--A transferencia do Noronha!... A transferencia do desgraçado Noronha!

Mas uma senhora, tambem obesa, de buço carregado, toda a estalar em
ricas e rugidoras sêdas de missa, arrastando severamente pela mão um
menino que rabujava, parou, fitou o Guedes--porque o digno homem com o
seu ventre, o seu embrulho, a sua indignação, atravancava a entrada das
Mathildes. Apressadamente, o Fidalgo levantou, para ella entrar, o fecho
da porta envidraçada. Depois, n'um alvoroço:

--O amigo Guedes naturalmente vae para casa. É o meu caminho. Andamos e
conversamos... Ora essa! Mas o Noronha... Que Noronha?

--O Ricardo Noronha... V. Ex.^a conhece. O pagador das Obras-Publicas!

--Ah! sim, sim... Então transferido? Transferido arbitrariamente?

Na rua das Brocas por onde desciam, no silencio, a solidão das lojas
cerradas, a colera do Guedes resoou, mais solta:

--Infamemente, Snr. Gonçalo Mendes Ramires, infamissimamente! E para
Almodovar, para os confins do Alemtejo!... Para uma terra sem recursos,
sem distracções, sem familias!...

Parára, com os doces contra o coração, os olhinhos esbugalhados para o
Fidalgo, coriscando. O Noronha! Um empregado trabalhador, honradissimo!
E sem Politica, absolutamente sem Politica. Nem dos Historicos, nem dos
Regeneradores. Só da familia, das tres irmãs que sustentava, tres
flôres... E homem estimadissimo na cidade, cheio de prendas! Um talento
immenso para a musica!... Ah! o Snr. Gonçalo Ramires não sabia? Pois
compunha ao piano cousas lindas! Depois precioso para reuniões, para
annos. Era elle quem organisava sempre em Oliveira as representações de
curiosos...

--Porque, como ensaiador, creia V. Ex.^a que não ha outro, mesmo na
capital... Não ha outro! E, zás, de repente, para Almodovar, para o
Inferno, com as irmãs, com os tarecos! Só o piano!... Veja V. Ex.^a só o
transporte do piano!

Gonçalo resplandecia:

--É um bello escandalo. Ora que felicidade esta de o ter encontrado, meu
caro Guedes!... E não se sabe o motivo?

De novo caminhavam demoradamente pelo passeio estreito. E o tabellião
encolhia os hombros, com amargura. O motivo! Publicamente, como sempre
n'estas prepotencias, o motivo era a conveniencia do Serviço...

--Mas todos os amigos do Noronha, por toda a cidade, conhecem o
verdadeiro motivo... O intimo, o secreto, o medonho!

--Então?

Guedes relanceou a rua, com prudencia. Uma velha atravessava, coxeando,
segurando uma bilha. E o tabellião segredou cavamente, junto á face
deslumbrada do fidalgo.--É que o Snr. André Cavalleiro, esse infame, se
encantára com a mais velha das irmãs Noronhas, a D. Adelina,
formosissima rapariga, alta e morena, uma estatua!... E repellido
(porque a menina, cheia de juizo, uma perola, percebera a intenção
villissima) em quem se vinga, por despeito, o Snr. Governador Civil? No
pagador! Para Almodovar com as meninas, com os tarecos!... Era o pagador
quem pagava!

--É uma bella maroteira! murmurou Gonçalo, banhado de gosto e riso.

--E note V. Ex.^a! exclamava o Guedes, com a mão gorda a tremer por cima
do chapeu. Note V. Ex.^a que o pobre Noronha, na sua innocencia, tão bom
homem, gostando sempre d'agradar aos seus chefes, ainda ha semanas
dedicára ao Cavalleiro uma valsa linda!... A _Mariposa_, uma valsa
linda!

Gonçalo não se conteve, esfregou as mãos n'um triumpho:

--Mas que preciosa maroteira!... E não se tem fallado? Esse jornal
d'opposição, o _Clarim d'Oliveira_, nem uma denuncia, nem uma
allusão?...

O Guedes pendeu a cabeça, descorçoado. O Snr. Gonçalo Ramires conhecia
bem essa gente do _Clarim_... Estylo--e estylo brincado, opulento... Mas
para assoalhar, assim n'um caso gravissimo como o do Noronha, a verdade
bem nua--pouco nervo, nenhuma valentia. E depois o Biscainho, o redactor
principal, andava a passar surrateiramente para os Historicos. Ah! O
Snr. Gonçalo Mendes Ramires não se inteirára? Pois esse torpissimo
Biscainho bolinava. De certo o Cavalleiro lhe acenára com posta... Além
d'isso, como provar a infamia? Cousas intimas, cousas de familia. Não se
podia apresentar a declaração da D. Adelina, menina virtuosissima--e com
uns olhos!... Ah! se fosse no tempo do Manoel Justino e da _Aurora de
Oliveira_!... Esse era homem para estampar logo na primeira pagina, em
letra graúda: «Alerta! que a Auctoridade superior do Districto tentou
levar a deshonra ao seio da familia Noronha!...»

--Esse era um homem! Coitado, lá está no cemiterio de S. Miguel... E
agora, Snr. Gonçalo Ramires, o despotismo campeia, desenfreado!

Bufava, arfava, esfalfado d'aquelle fogoso desabafo. Dobraram calados a
esquina das Brocas para a bella rua, novamente calçada, da Princeza D.
Amelia. E logo na segunda porta, parando, tirando da algibeira o trinco,
o Guedes, que ainda resfolgava, offereceu a S. Ex.^a para descançar.

--Não, não, obrigado, meu caro amigo. Tive immenso, immenso prazer, em o
encontrar... Essa historia do Noronha é tremenda!... Mas nada me espanta
do Snr. Governador Civil. Só me espanta que o não tenham corrido
d'Oliveira, como elle merece, com pancada e assuada... Emfim, nem toda a
gente boa jaz no cemiterio de S. Miguel... Até ámanhã, meu Guedes. E
obrigado!

Da rua da Princeza D. Amelia até o Largo de El-Rei, Gonçalo correu com o
deslumbramento de quem descobrisse um thesouro e o levasse debaixo da
capa! E ahi levava com effeito o «escandalo, o rico escandalo», que
tanto farejára, por que tanto almejára, para desmantelar o Snr.
Governador Civil na sua fiel cidade de Oliveira que lhe levantava arcos
de buxo! E, por uma mercê de Deus, o «rico escandalo» demoliria tambem o
homem no coração de Gracinha, onde, apezar do antigo ultraje, elle
permanecia como um bicho n'um fructo, esfuracando e estragando... E não
duvidava da efficacia do escandalo! Toda a cidade se revoltaria contra a
Authoridade femieira, que opprime, desterra um funccionario
admiravel--por que a irmã do pobre senhor se recusou á baba dos seus
beijos. E Gracinha?... Como resistiria Gracinha áquelle desengano--o seu
antigo André abrazado pela menina Noronha e por ella repellido com nôjo
e com mófa? Oh! o escandalo era soberbo! Só restava que estalasse, bem
ruidoso, sobre os telhados d'Oliveira e sobre o peito de Gracinha como
trovão benefico que limpa ares corrompidos. E d'esse trovão, rolando por
todo o Norte, se encarregava elle com delicia. Libertava a cidade d'um
Governador detestavel, Gracinha d'um sonho errado. E assim, com uma
certeira pennada, trabalhava _pro patria et pro domo_!

Nos Cunhaes correu ao quarto do Barrôlo, que se vestia trauteando o
_Fado dos Ramires_, e gritou atravez da porta com uma decisão
flammejante:

--Não te posso acompanhar á Estevinha. Tenho que escrever urgentemente.
E não subas, não me perturbes. Necessito socego!

Nem attendeu aos protestos desolados com que o Barrôlo accudira ao
corredor, em ceroulas. Galgou a escada. No seu quarto, depois de despir
rapidamente o casaco, de excitar a testa com um borrifo d'agua de
Colonia, abancou á mesa--onde Gracinha collocava sempre entre flores,
para elle trabalhar, o monumental tinteiro de prata que pertencera ao
tio Melchior. E sem emperrar, sem rascunhar, n'um d'esses soltos fluxos
de Prosa que brotam da paixão, improvisou uma Correspondencia rancorosa
para a *Gazeta do Porto* contra o Snr. Governador Civil. Logo o titulo
fulminava--_Monstruoso attentado_! Sem desvendar o nome da familia
Noronha, contava miudamente, como um acto certo e por elle testemunhado,
«a tentativa villôa e baixa da primeira Auctoridade do Districto contra
a pudicicia, a paz de coração, a honra de uma doce rapariga de dezeseis
primaveras!» Depois era a resistencia desdenhosa--«que a nobre creança
oppuzera ao Don Juan administrativo, cujos bellos bigodes são o espanto
dos povos!» Por fim vinha--«a desforra torpe e sem nome que S. Ex.^a
tomára sobre o zeloso empresado (que é tambem um talentoso artista),
obtendo d'este nefasto Governo que fosse transferido, ou antes arrojado,
cruelmente exilado, com a familia de tres delicadas senhoras, para os
confins do Reino, para a mais arida e escassa das nossas Provincias, por
o não poder empacotar para a Africa no porão sordido d'uma fragata!»
Lançava ainda alguns rugidos sobre «a agonia politica de Portugal». Com
pavor triste, recordava os peiores tempos do Absolutismo, a innocencia
soterrada nas masmorras, o prazer desordenado do Principe sendo a
expressão unica da Lei! E terminava perguntando ao Governo se cobriria
este seu agente--«este grotesco Nero, que como outr'ora o outro, o
grande, em Roma, tentava levar a seducção ao seio das familias melhores,
e commettia esses abusos de poder, motivados por lascivias de
temperamento, que foram sempre, em todos os seculos e todas as
civilisações, a execração do justo!»--E assignava _Juvenal_.

Eram quasi seis horas quando desceu á sala, ligeiro e resplandecente.
Gracinha martellava o piano, estudando o _Fado dos Ramires_. E Barrôlo
(que não se arriscára a um passeio solitario) folheava, estendido no
camapé, uma famosa _Historia dos Crimes da Inquizição_ que começára
ainda em solteiro.

--Estou a trabalhar desde as duas horas! exclamou logo Gonçalo,
escancarando a janella. Fiquei derreado. Mas, louvado seja Deus, fiz
obra de Justiça... D'esta vez o Snr. André Cavalleiro vae abaixo do seu
cavallo!

Barrôlo fechou immediatamente o livro, com o cotovello nas almofadas,
inquieto:

--Houve alguma coisa?

E Gonçalo, plantado deante d'elle, com um risinho suave, um risinho
feroz, remexendo na algibeira o dinheiro e as chaves:

--Oh! quasi nada. Uma bagatella. Apenas uma infamia... Mas para o nosso
Governador Civil infamias são bagatellas.

Sob os dedos de Gracinha o _Fado dos Ramires_ esmoreceu, apenas roçado,
n'um murmurio incerto.

O Barrôlo esperava, esgaseado:

--Desembucha!

E Gonçalo desabafou, com estrondo:

--Pois uma maroteira immensa, homem! O Noronha, o pobre Noronha,
perseguido, espesinhado, expulso! Com a familia... Para o inferno, para
o Algarve!

--O Noronha pagador?

--O Noronha pagador. Foi o infeliz pagador que pagou!

E, regaladamente, desenrolou a historia lamentavel. O Snr. André
Cavalleiro namoradissimo, todo em chammas pela irmã mais velha do
Noronha. E atacando a rapariga com ramos, cartas, versos, estropidos
cada manhã por deante da janella, a ladear na pileca! Até lhe soltára,
ao que parece, uma velha marafona, uma alcoviteira... E a rapariga, um
anjo cheio de dignidade, impassivel. Nem se revoltava, apenas se ria.
Era uma troça em casa das Noronhas, ao chá, com a leitura da versalhada
ardente em que elle a tratava de «Nympha, d'estrella da tarde...» Emfim
uma sordidez funambulesca!

O pobre _Fado dos Ramires_ debandou pelo teclado, n'um tumulto de
gemidos desconcertados e asperos.

--E eu não ter ouvido nada! murmurava o Barrôlo, assombrado. Nem no
Club, nem na Arcada...

--Pois, meu amiguinho, quem ouviu, e um famoso estampido, foi o pobre
Noronha. Arremessado para o fundo do Alemtejo, para um sitio doentio,
coalhado de pantanos. É a morte... É uma condemnação á morte!

A esta apparicão da Morte, surdindo dos pantanos, Barrôlo atirou uma
palmada ao joelho, desconfiado:

--Mas quem diabo te contou tudo isso?

O Fidalgo da Torre encarou o cunhado com desdem, com piedade:

--Quem me contou!? E quem me contou que D. Sebastião morreu em
Alcacer-Kebir?... São os factos. É a Historia. Toda Oliveira sabe. Por
acaso ainda esta manhã o Guedes e eu conversamos sobre o caso. Mas eu já
sabia!... E tenho tido pena. Que diabo! Não ha crime em se estar
apaixonado como o pobre André. Louco, perdido! Até a chorar na
Repartição, deante do Secretario Geral. E a rapariga ás gargalhadas!...
Agora onde ha crime, e horrendo, é na perseguição ao irmão, ao pagador,
empregado excellente, d'um talento raro... E o dever de todo o homem de
bem, que prese a dignidade da Administração e a dignidade dos costumes,
é denunciar a infamia... Eu, pela minha parte, cumpri esse bom dever. E
com certo brilho, louvado Deus!

--Que fizeste?

--Enterrei na ilharga do Snr. Governador Civil a minha bôa penna de
Toledo, até á rama!

O Barrôlo, impressionado, beliscava a pelle do pescoço. O piano
emmudecera: mas Gracinha não se movia do môcho, com os dedos
entorpecidos nas teclas, como esquecida deante da larga folha onde se
enfileiravam, na lettra apurada do Videirinha, as quadras triumphaes dos
Ramires. E subitamente Gonçalo sentiu n'aquella immobilidade suffocada o
despeito que a trespassava. Sensibilisado, para a libertar, lhe poupar
algum soluço escapando irresistivelmente, correu ao piano, bateu com
carinho nos pobres hombros vergados que estremeceram:

--Tu não dás conta d'esse lindo fado, rapariga! Deixa, que eu te
cantarolo uma quadra, á bôa moda do Videirinha... Mas primeiramente sê
um anjo... Grita ahi no corredor que me tragam um copo d'agua bem fresca
do Poço Velho.

Ensaiou as teclas, entoou versos, ao accaso, n'um esforço esganiçado:

    Ora na grande batalha,
    Quatro Ramires valentes...

Gracinha desapparecera por uma fenda do reposteiro, sem rumor. Então o
bom Barrôlo, que deante da sua terrina da India enrolava um cigarro com
pensativo cuidado, correu, desafogou, debruçado sobre Gonçalo, da
certeza que lentamente o invadira:

--Pois, menino, sempre te digo... Essa irmã do Noronha é um mulherão
soberbo! Mas o que eu não acredito é que ella se fizesse arisca. Com o
Cavalleiro, bonito rapaz, Governador civil?... Não acredito. O
Cavalleiro saboreou!

E com as bochechas lusidias d'admiração:

--Aquelle velhaco! Para cavallos e para mulheres não ha outro, em
Oliveira!




V


A *Gazeta do Porto*, com a Correspondencia vingadora, devia desabar
sobre Oliveira na quarta-feira de manhã, dia dos annos da prima Maria
Mendonça. Mas Gonçalo, ainda que não temesse (resalvado pelo seu
pseudonymo de _Juvenal_) uma briga grosseira com o Cavalleiro nas ruas
da Cidade, nem mesmo com algum dos seus partidarios servis e façanhudos
como o Marcolino do *Independente*--recolheu discretamente a Santa
Ireneia na terça-feira, a cavallo, acompanhado pelo Barrôlo até á
Vendinha, onde ambos provaram o vinho branco celebrado pelo Titó.
Depois, para recordar os logares memoraveis em que na sua Novella se
encontravam, com desastrado choque d'armas, Lourenço Ramires e o
Bastardo de Bayão--tomou o caminho que, atravessando os pomares da
espalhada aldêa de Canta-Pedra, entronca na estrada dos Bravaes.

N'um trote folgado passára á Fabrica de Vidros, depois o Cruzeiro sempre
coberto pelas pombas que esvoaçam do pombal da Fabrica. E entrava no
logar de Nacejas--quando, á janella d'uma casinha muito limpa, rodeada
de parreiras, appareceu uma linda rapariga, morena e fina, com jaqué de
panno azul e lenço de cambraieta bordada sobre fartos bandós ondeados.
Gonçalo, sopeando a egua, saudou, sorriu suavemente:

--Perdão, minha menina... Vou bem por aqui, para Canta-Pedra?

--Vae, sim senhor. Em baixo, á ponte, mette para a direita, para os
alamos. E é sempre a seguir...

Gonçalo suspirou, gracejando:

--Antes desejava ficar!

A moça corou. E o Fidalgo ainda se torceu no selim para gosar a fina
face morena, entre os dous craveiros da janellinha, na casa tão bem
caiada.

N'esse momento, ao lado, d'uma quelha enramada, desembocava um caçador
do campo, de jaleca e barrete vermelho, com a espingarda atravessada nas
costas, seguido por dois perdigueiros. Era um latagão airoso, que todo
elle, no bater dos sapatões brancos, no menear da cinta enfaixada em
seda, no levantar da face clara de suissas louras, transbordava de
presumpção e pimponice. N'um relance surprehendeu o sorriso, a attenção
galante do Fidalgo. E estacou, pregando sobre elle, com lenta
arrogancia, os bellos olhos pestanudos. Depois passou desdenhosamente,
sem se arredar da egua na ladeira estreita, quasi raspando pela perna do
Fidalgo o cano da caçadeira. Mas adiante ainda atirou uma tossidela
secca e de chasco--com um bater mais petulante dos tacões.

Gonçalo picou a egoa, colhido logo por aquelle desgraçado temor, aquelle
desmaiado arrepio da carne, que sempre, ante qualquer risco, qualquer
ameaça, o forçava irresistivelmente a encolher, a recuar, a abalar. Em
baixo, na ponte, desesperado contra a sua timidez, deteve o trote,
espreitou para traz, para a branca casa florida. O mocetão parára,
encostado á espingarda, sob a janella onde a rapariga morena se
debruçava entre os dous vasos de cravos. E assim encostado, depois de
rir para a moça, acenou ao Fidalgo, n'um desafio largo, com a cabeça
alta, a borla do barrete toda espetada como uma crista flammante.

Gonçalo Mendes Ramires metteu a galope pelo copado caminho d'alamos que
acompanha o riacho das Donas. Em Canta-Pedra nem se demorou a estudar
(como tencionava para proveito da sua Novella) o valle, a ribeira
espraiada, as ruinas do Mosteiro de Recadães sobre a collina, e no
cabeço fronteiro o moinho que assenta sobre as denegridas pedras da
antiga e tão fallada Honra d'Avellans. De resto o ceu, cinzento e
abafado desde manhã, entenebrecia para os lados de Craquede e de
Villa-Clara. Um bafo môrno remexeu a folhagem sedenta. E já gotas
pesadas se esmagavam na poeira--quando elle, sempre galopando, entrou na
estrada dos Bravaes.

Na Torre encontrou uma carta do Castanheiro. O patriota andava por saber
«se essa _Torre de D. Ramires_ se erguia emfim para honra das letras,
como a outra, a genuina, se erguera outr'ora, em seculos mais ditosos,
para orgulho das armas...» E accrescentava n'um
_Post-Scriptum_--«Planeio immensos cartazes, pregados a cada esquina de
cada cidade de Portugal, annunciando em letras de covado a apparição
salvadora dos *Annaes*! E, como tenciono prometter n'elles aos povos a
sua preciosa Novellasinha, desejo que o amigo Gonçalo me informe se ella
tem, á moda de 1830, um saboroso sub-titulo, como _Episodios do seculo
XII_, ou _Chronica do Reinado de Affonso II_, ou _Scenas da Meia-Idade
Portugueza_... Eu voto pelo sub-titulo. Como o sub-solo n'um edificio, o
sub-titulo n'um livro alteia e dá solidez. Á obra, pois, meu Ramires,
com essa sua imaginação feracissima!...»

Esta invenção de immensos cartazes, com o seu nome e o titulo da sua
Novella em letras de côres estridentes, enchendo cada esquina de
Portugal, deleitou o Fidalgo. E logo n'essa noite, ao rumor da chuva
densa que estalava na folhagem dos limoeiros, retomou o seu manuscripto,
parado nas primeiras linhas, amplas e sonoras, do Cap. II...

Atravez d'ellas, e na frescura da madrugada, Lourenço Mendes Ramires,
com o troço de cavalleiros e peonagem da sua mercê, corria sobre
Monte-Mór em soccorro das senhoras Infantas. Mas, ao penetrar no valle
de Canta-Pedra, eis que o esforçado filho de Tructesindo avista a
mesnada do Bastardo de Bayão, esperando desde alva (como annunciára
Mendo Paes) para tolher a passagem.--E então, n'esta sombria Novella de
sangue e homizios, brotava inesperadamente, como uma rosa na fenda d'um
bastião, um lance de amor, que o tio Duarte cantára no *Bardo* com
dolente elegancia.

Lopo de Bayão, cuja belleza loura de fidalgo godo era tão celebrada por
toda a terra d'Entre Minho-e-Douro que lhe chamavam o _Claro-Sol_, amára
arrebatadamente D. Violante, a filha mais nova de Tructesindo Ramires.
Em dia de S. João, no solar de Lanhoso, onde se celebravam lides de
toiros e jogos de tavolagem, conhecera elle a donzella explendida, que o
tio Duarte no seu Poemeto louvava com deslumbrado encanto:

    Que liquido fulgor dos negros olhos!
    Que fartas tranças de lustroso ebano!

E ella, certamente, rendera tambem o coração áquelle moço resplandecente
e côr d'ouro, que, n'essa tarde de festa, arremessando o rojão contra os
toiros, ganhára duas fachas bordadas pela nobre Dona de Lanhoso--e á
noite, no sarau, se requebrára com tão repicado garbo na dança dos
Marchatins... Mas Lopo era bastardo, d'essa raça de Bayão, inimiga dos
Ramires por velhissimas brigas de terras e precedencias desde o conde D.
Henrique--ainda assanhadas depois, durante as contendas de D. Tareja e
de Affonso Henriques, quando na curia dos Barões, em Guimarães, Mendo de
Bayão, bandeado com o Conde de Trava, e Ramires o _Cortador_, collaço do
moço Infante, se arrojaram ás faces os guantes ferrados. E, fiel ao odio
secular, Tructesindo Ramires recusára com áspera arrogancia a mão de
Violante ao mais velho dos de Bayão, um dos valentes de Silves, que pelo
Natal, na Alcaçova de S.^{ta} Ireneia, lh'a pedira para Lopo, seu
sobrinho, o _Claro-Sol_, offerecendo avenças quasi submissas d'alliança
e doce paz. Este ultraje revoltára o solar de Bayão--que se honrava em
Lopo, apezar de bastardo, pelo lustre da sua bravura e graça galante. E
então Lopo ferido doridamente no seu coração, mais furiosamente no seu
orgulho, para fartar o esfaimado desejo, para infamar o claro nome dos
Ramires--tentou raptar D. Violante. Era na primavera, com todas as
veigas do Mondego já verdes. A donosa senhora, entre alguns escudeiros
da Honra e parentes, jornadeava de Treixedo ao mosteiro de Lorvão, onde
sua tia D. Branca era abbadeça... Languidamente, no *Bardo*, descantára
o tio Duarte o romantico lance:

    Junto á fonte mourisca, entre os ulmeiros,
    A cavalgadura pára...

E junto aos ulmeiros da fonte surgira o _Claro-Sol_--que, com os seus,
espreitava d'um cabeço! Mas, logo no começo da curta briga, um primo de
D. Violante, o agigantado Senhor dos Paços d'Avellim, o desarmou, o
manteve um momento ajoelhado sob o lampejo e gume da sua adaga. E com
vida perdoada, rugindo de surda raiva, o Bastardo abalou entre os poucos
solarengos que o acompanhavam n'esta affouta arremettida. Desde então
mais fero ardera o rancor entre os de Bayão e os Ramires. E eis agora,
n'esse começo da Guerra das Infantas, os dois inimigos rosto a rosto no
valle estreito de Canta-Pedra! Lopo com um bando de trinta lanças e mais
de cem besteiros da Hoste Real. Lourenço Mendes Ramires com quinze
cavalleiros e noventa homens de pé do seu pendão.

Agosto findava: e o demorado estio amarellecera toda a relva, as
pastagens famosas do valle, até a folhagem de amieiros e freixos pela
beira do riacho das Donas que s'arrastava entre as pedras lustrosas, em
fios escassos, com dormido murmurio. Sobre um outeiro, dos lados de
Ramilde, avultava, entre possantes ruinas erriçadas de sarças, a
denegrida _Torre Redonda_, resto da velha Honra de Avellans, incendiada
durante as cruas rixas dos de Salzedas e dos de Landim, e agora habitada
pela alma gemente de Guiomar de Landim, a _Mal-casada_. No cabeço
fronteiro e mais alto, dominando o valle, o mosteiro de Recadães
estendia as suas cantarias novas, com o forte torreão, asseteado como o
d'uma fortaleza--d'onde os monges se debruçavam, espreitando, inquietos
com aquelle coriscar d'armas que desde alva enchia o valle. E o mesmo
temor acossára as aldeias chegadas--porque, sobre a crista das collinas,
se apressavam para o santo e murado refugio do convento gentes com
trouxas, carros toldados, magras filas de gados.

Ao avistar tão rijo troço de cavalleiros e peões, espalhado até á beira
do riacho por entre a sombra dos freixos, Lourenço Ramires soffreou,
susteve a leva, junto d'um montão de pedras onde apodrecia, encravada,
uma tosca cruz de pau. E o seu esculca que largára redeas soltas,
estirado sob o escudo de couro, para reconhecer a mesnada--logo voltou,
sem que frecha ou pedra de funda o colhessem, gritando:

--São homens de Bayão e da Hoste Real!

Tolhida pois a passagem! E em que desigualado recontro! Mas o denodado
Ramires não duvidou avançar, travar peleja. Sósinho que assomasse ao
valle, com uma quebradiça lança de monte, arremetteria contra todo o
arraial do Bastardo...--No emtanto já o adail de Bayão se adeantára,
curveteando no rosilho magro, com a espada atravessada por cima do
morrião que pennas de garça emplumavam. E pregoava, atroava o valle com
o rouco pregão:

--Deter, deter! que não ha passagem! E o nobre senhor de Bayão, em
recado d'El-Rey e por mercê de Sua Senhoria, vos guarda vidas salvas se
volverdes costas sem rumor e tardança!

Lourenço Ramires gritou:

--A elle, besteiros!

Os virotes assobiaram. Toda a curta ala dos cavalleiros de Santa-Ireneia
tropeou para dentro do valle, de lanças ristadas. E o filho de
Tructesindo, erguido nos estribões de ferro, debaixo do panno solto do
seu pendão que apressadamente o alferes saccára da funda, descerrou a
vizeira do casco para que lhe mirassem bem a face destemida, e lançou ao
Bastardo injurias de furioso orgulho:

--Chama outros tantos dos villões que te seguem que, por sobre elles e
por sobre ti, chegarei esta noite a Monte-Mór!

E o Bastardo, no seu fouveiro, que uma rêde de malha cobria, toda
acairelada d'ouro, atirava a mão calçada de ferro, clamava:

--Para traz, d'onde vieste, voltarás, bulrão traidor, se eu por mercê
mandar a teu pae o teu corpo n'umas andas!

Estes feros desafios rolavam em versos serenamente compassados no
Poemeto do Tio Duarte. E depois de os reforçar, Gonçalo Mendes Ramires,
(sentindo a alma enfunada pelo heroismo da sua raça como por um vento
que sopra de funda compina) arrojou um contra o outro os dous bandos
valorosos. Grande briga, grande grita...

--Ala! Ala!

--Rompe! Rompe!

--Cerra por Bayão!

--Casca pelos Ramires!

Através da grossa poeirada e do alevanto zunem os garruchões, as rudes
balas de barro despedidas das fundas. Almogavres de Santa-Ireneia,
almogavres da Hoste Real, em turmas ligeiras, carregam, topam, com
baralhado arremesso d'ascumas que se partem, de dardos que se cravam: e
ambas logo refogem, refluem--em quanto, no chão revolto, algum
mal-ferido estrebucha aos urros, e os atordoados cambaleando buscam, sob
o abrigo do arvoredo, a fresquidão do riacho. Ao meio, no embate mais
nobre da peleja, por cima dos corceis que se empinam, arfando ao peso
das coberturas de malha, as lisas pranchas dos montantes lampejam,
retinem, embebidas nas chapas dos broqueis:--e já, dos altos arções de
couro vermelho, desaba algum hirto e chapeado senhor, com um baque de
ferragens sobre a terra molle. Cavalleiros e infanções, porém, como n'um
torneio, apenas terçam lanças para se derribarem, abolados os arnezes,
com clamores de excitada ufania: e sobre a villanagem contraria, em quem
cevam o furor da matança, se abatem os seus espadões, se despenham as
suas achas, esmigalhando os cascos de ferro como bilhas de grêda.

Por entre a pionagem de Bayão e da Hoste Real Lourenço Ramires avança
mais levemente que ceifeiro apressado entre herva tenra. A cada arranque
do seu rijo murzello, alagado d'espuma, que sacode furiosamente a
testeira rostrada--sempre, entre pragas ou gritos por _Jesus!_ um peito
verga trespassado, braços se retorcem em agonia. Todo o seu afan era
chocar armas com Lopo. Mas o Bastardo, tão arremessado e affrontador em
combate, não se arredára n'essa manhã da lomba do outeiro onde uma fila
de lanças o guardava, como uma estacada: e com brados, não com golpes,
aquentava a lide! No ardor desesperado de romper a viva cerca Lourenço
gastava as forças, berrando roucamente pelo Bastardo com os duros
ultrajes de _churdo!_ e _marrano!_ Já d'entre a trama falseada do
camalho lhe borbulhavam do hombro, pela loriga, fios lentos de sangue.
Um lanço de virotão, que lhe partira as charneiras da greva esquerda,
fendera a perna d'onde mais sangue brotava, ensopando o forro d'estopa.
Depois, varado por uma frecha na anca, o seu grande ginete abateu,
rolou, estalando no escoucear as cilhas pregueadas. E, desembrulhado dos
loros com um salto, Lourenço Ramires encontrou em roda uma sebe erriçada
de espadas e chuços, que o cerraram--em quanto do outeiro, debruçado na
sella, o Bastardo bramava:

--Tende! tende! para que o colhaes ás mãos!

Trepando por cima de corpos, que se estorcem sob os seus sapatos de
ferro, o valente moço arremette, a golpes arquejados, contra as pontas
luzentes que recuam, se furtam... E, triumphantes, redobram os gritos de
Lopo de Bayão:

--Vivo, vivo! tomadel-o vivo!

--Não, se me restar alma, villão! rugia Lourenço.

E mais raivosamente investia, quando um calhau agudo lhe acertou no
braço--que logo amorteceu, pendeu, com a espada arrastando, presa ainda
ao punho pelo grilhão, mas sem mais servir que uma roca. N'um relance
ficou agarrado por peões que lhe filavam a gorja, emquanto outros com
varadas de ascuma lhe vergavam as pernas retesadas. Tombou por fim
direito como um madeiro;--e nas cordas com que logo o amarraram, jazeu
hirto, sem elmo, sem cervilheira, os olhos duramente cerrados, os
cabellos presos n'uma pasta de poeira e de sangue.

Eis pois captivo Lourenço Ramires! E, deante das andas feitas de ramos e
franças de faias em que o estenderam, depois de o borrifarem á pressa
com a agua fresca do riacho,--o Bastardo, limpando ás costas da mão o
suor que lhe escorria pela face formosa, pelas barbas douradas,
murmurava, commovido:

--Ah! Lourenço, Lourenço, grande dôr, que bem poderamos ser irmãos e
amigos!

Assim, ajudado pelo tio Duarte, por Walter Scott por noticias do
_Panorama_, compozera Gonçalo a mal-venturada lide de Canta-Pedra. E com
este desabafo de Lopo, onde perpassava a magua do amor vedado, fechou o
Cap. II, sobre que labutára tres dias--tão embrenhadamente que em torno
o Mundo como que se calára e se fundira em penumbra.

       *       *       *       *       *

Uma girandola de foguetes estoirou ao longe, para o lado dos Bravaes,
onde no Domingo se fazia a romaria celebrada da Senhora das Candeias.
Depois da chuva d'aquelles tres dias, uma frescura descia do ceu
amaciado e lavado sobre os campos mais verdes. E como ainda restava meia
hora farta antes de jantar, o Fidalgo agarrou o chapeu, e mesmo na sua
velha quinzena de trabalho, com uma bengalinha de canna, desceu á
estrada, tomou pelo caminho que s'estreita entre o muro da Torre e as
terras de centeio onde assentavam no seculo XII as barbacans da Honra de
Santa Ireneia.

Pela silenciosa vereda, ainda humida, Gonçalo pensava nos seus avós
formidaveis. Como elles resurgiam, na sua Novella, solidos e resoantes!
E realmente uma comprehensão tão segura d'aquellas almas Affonsinas
mostrava que a sua alma conservava o mesmo quilate e sahira do mesmo
rico bloco d'ouro. Porque um coração molle, ou degenerado, não saberia
narrar corações tão fortes, d'eras tão fortes:--e nunca o bom Manoel
Duarte ou o Barrôlo excellente entenderiam, bastante para lhes
reconstruir os altos espiritos, Martim de Freitas ou Affonso de
Albuquerque... N'esta fina verdade desejaria elle que os Criticos
insistissem ao estudar depois a _Torre de D. Ramires_--pois que o
Castanheiro lhe assegurára artigos consideraveis nas *Novidades* e na
*Manhã*. Sim! eis o que convinha marcar com relevo (e elle o lembraria
ao Castanheiro!)--que os Ricos Homens de Santa-Ireneia reviviam no seu
neto, senão pela continuação heroica das mesmas façanhas, pela mesma
alevantada comprehensão do heroismo... Que diabo! sob o reinado do
horrendo S. Fulgencio elle não podia desmantelar o solar de Bayão,
desmantelado ha seiscentos annos por seu avô Lionel Ramires--nem retomar
aos Mouros essa torreada Monforte onde o Antoninho Moreno era o languido
Governador Civil! Mas sentia a grandeza e o prestimo historico d'esse
arrojo que outr'ora impellia os seus a arrasar Solares rivaes, a escalar
Villas mouriscas: resuscitava pelo Saber e pela Arte, arrojava para a
vida ambiente, esses varões temerosos, com os seus corações, os seus
trajes, as suas immensas cutiladas, as suas bravatas sublimes: dentro do
espirito e das expressões do seu Seculo era pois um bom Ramires--um
Ramires de nobres energias, não façanhudas, mas intellectuaes, como
competia n'uma Edade d'intellectual descanço. E os jornaes, que tanto
motejam a decadencia dos Fidalgos de Portugal, deveriam em justiça
affirmar (e elle o lembraria ao Castanheiro!):--«Eis ahi um, e o maior,
que, com as fórmas e os modos do seu tempo, continua e honra a sua
raça!»

Através d'estes pensamentos, que mais lhe enrijavam as passadas sobre
chão tão calcado pelos seus--o Fidalgo da Torre chegára á esquina do
muro da quinta, onde uma ladeirenta e apertada azinhaga a divide do
pinheiral e da matta. Do portão nobre, que outr'ora se erguera n'esse
recanto com lavores e brazão d'armas, restam apenas os dois humbraes de
granito, amarellados de musgo, cerrados contra o gado por uma cancella
de taboas mal pregadas, carcomidas da chuva e dos annos. E n'esse
momento, da azinhaga funda, apagada em sombra, subia chiando, carregado
de matto, um carro de bois, que uma linda boeirinha guiava.

--Nosso Senhor lhe dê muito boas tardes!

--Boas tardes, flôrzinha!

O carro lento passou. E logo atraz surdio um homem, esgrouviado e
escuro, trazendo ao hombro o cajado, d'onde pendia um mólho de cordas.

O Fidalgo da Torre reconheceu o José Casco dos Bravaes. E seguia, como
desattento, pela orla do pinheiral, assobiando, raspando com a
bengalinha as silvas floridas do vallado. O outro porém estugou o passo
esgalgado, lançou duramente, no silencio do arvoredo e da tarde, o nome
do Fidalgo. Então, com um pulo do coração, Gonçalo Mendes Ramires parou,
forçando um sorriso affavel:

--Olá! É vossê, José! Então que temos?

O Casco engasgára, com as costellas a arfar sob a encardida camisa de
trabalho. Por fim, desenfiando das cordas o marmelleiro que cravou no
chão pela choupa:

--Temos que eu fallei sempre claro com o Fidalgo, e não era para que
depois me faltasse á palavra!

Gonçalo Ramires levantou a cabeça com uma dignidade lenta e
custosa--como se levantasse uma massa de ferro:

--Que está vossê a dizer, Casco? Faltar á palavra! em que lhe faltei eu
á palavra?... Por causa do arrendamento da Torre? Essa é nova! Então
houve por acaso escriptura assignada entre nós? Você não voltou, não
appareceu...

O Casco emmudecera, assombrado. Depois, com uma colera em que lhe
tremiam os beiços brancos, lhe tremiam as seccas mãos cabelludas,
fincadas ao cabo do varapau:

--Se houvesse papel assignado o Fidalgo não podia recuar!... Mas era
como se houvesse, para gente de bem!... Até V. S.^a disse, quando eu
acceitei: «viva! está tratado!...» O fidalgo deu a sua palavra!

Gonçalo, enfiado, apparentou a paciencia d'um senhor benevolo:

--Escute, José Casco. Aqui não é logar, na estrada. Se quer conversar
commigo appareça na Torre. Eu lá estou sempre, como vossê sabe, de
manhã... Vá ámanhã, não me encommóda.

E endireitava para o pinhal, com as pernas molles, um suor arripiado na
espinha--quando o Casco, n'um rodeio, n'um salto leve, atrevidamente se
lhe plantou diante, atravessando o cajado:

--O Fidalgo ha-de dizer aqui mesmo! O Fidalgo deu a sua palavra!... A
mim não se me fazem d'essas desfeitas... O Fidalgo deu a sua palavra!

Gonçalo relanceou esgaseadamente em redor, na ancia d'um soccorro. Só o
cercava solidão, arvoredo cerrado. Na estrada, apenas clara sob um resto
de tarde, o carro de lenha, ao longe, chiava, mais vago. As ramas altas
dos pinheiros gemiam com um gemer dormente e remoto. Entre os troncos já
se adensava sombra e nevoa. Então, estarrecido, Gonçalo tentou um
refúgio na ideia de Justiça e de Lei, que aterra os homens do campo. E
como amigo que aconselha um amigo, com brandura, os beiços resequidos e
tremulos:

--Escute, Casco, escute, homem! As coisas não se arranjam assim, a
gritar. Póde haver desgosto, apparecer o regedor. Depois é o tribunal, é
a cadeia. E você tem mulher, tem filhos pequenos... Escute! Se descobriu
motivo para se queixar, vá á Torre, conversamos. Pacatamente tudo se
esclarece, homem... Com berros, não! Vem o cabo, vem a enxovia...

Então de repente o Casco cresceu todo, no solitario caminho, negro e
alto como um pinheiro, n'um furor que lhe esbugalhava os olhos
esbraseados, quasi sangrentos:

--Pois o Fidalgo ainda me ameaça com a justiça!... Pois ainda por cima
de me fazer a maroteira me ameaça com a cadeia!... Então, com os diabos!
primeiro que entre na cadeia lhe hei-de eu esmigalhar esses ossos!...

Erguera o cajado...--Mas, n'um lampejo de razão e respeito, ainda
gritou, com a cabeça a tremer para traz, atravez dos dentes cerrados:

--Fuja, fidalgo, que me perco!... Fuja que o mato e me perco!

Gonçalo Mendes Ramires correu á cancella entalada nos velhos humbraes de
granito, pulou por sobre as taboas mal pregadas, enfiou pela latada que
orla o muro, n'uma carreira furiosa de lebre acossada! Ao fim da vinha,
junto aos milheiraes, uma figueira brava, densa em folha, alastrára
dentro d'um espigueiro de granito destelhado e desusado. N'esse
esconderijo de rama e pedra se alapou o Fidalgo da Torre, arquejando. O
crepusculo descera sobre os campos--e com elle uma serenidade em que
adormeciam frondes e relvas. Affoutado pelo silencio, pelo socego,
Gonçalo abandonou o cerrado abrigo, recomeçou a correr, n'um correr
manso, na ponta das botas brancas, sobre o chão molle das chuvadas, até
ao muro da Mãe d'Agua. De novo estacou, esfalfado. E julgando entrever,
longe, á orla do arvoredo, uma mancha clara, algum jornaleiro em mangas
de camisa, atirou um berro ancioso:--«Oh! Ricardo! Oh! Manoel! Eh lá!
alguem! Vai ahi alguem?...»--A mancha indecisa fundira na indecisa
folhagem. Uma rã pinchou n'um regueiro. Estremecendo, Gonçalo retomou a
carreira até ao canto do pomar--onde encontrou fechada uma porta, velha
porta mal segura, que abanava nos gonzos ferrugentos. Furioso, atirou
contra ella os hombros que o terror enrijára como trancas. Duas taboas
cederam, elle furou atravez, esgaçando a quinzena n'um prégo.--E
respirou emfim no agazalho do pomar murado, deante das varandas da casa
abertas á frescura da tarde, junto da Torre, da sua Torre, negra e de
mil annos, mais negra e como mais carregada d'annos contra a macia
claridade da lua-nova que subia.

Com o chapeu na mão, enxugando o suor, entrou na horta, costeou o
feijoal. E agora subitamente sentia uma colera amarga pelo desamparo em
que se encontrára, n'uma quinta tão povoada, exameando de gentes e
dependentes! Nem um caseiro, nem um jornaleiro, quando elle gritára, tão
afflicto, da borda da Mãe d'Agua! De cinco creados nenhum acudira,--e
elle perdido, alli, a uma pedrada da eira e da abegoaria! Pois que dois
homens corressem com paus ou enxadas--e ainda colhiam o Casco na
estrada, o malhavam como uma espiga.

Ao pé do gallinheiro, sentindo uma risada fina de rapariga, atravessou o
pateo para a porta alumiada da cosinha. Dois moços da horta, a filha da
Crispola, a Rosa, tagarellavam, regaladamente sentados n'um banco de
pedra, sob a fresca escuridão da latada. Dentro o lume estrallejava--e a
panella do caldo, fervendo, rescendia. Toda a colera do Fidalgo rompeu:

--Então, que sarau é este? Vocês não me ouviram chamar?... Pois
encontrei lá em baixo, ao pé do pinheiral, um bebedo, que me não
conheceu, veiu para mim _com uma foice_!... Felizmente levava a bengala.
E chamo, grito... Qual! Tudo aqui de palestra, e a ceia a cozer! Que
desaforo! Outra vez que succeda, todos para a rua... E quem resmungar, a
cacete!

A sua face chammejava, alta e valente. A pequena da Crispola logo se
escapulira, encolhida, para o recanto da cosinha, para traz da maceira.
Os dois moços, erguidos, vergavam como duas espigas sob um grande vento.
E emquanto a Rosa, aterrada, se benzia, se derretia em lamentações sobre
«desgraças que assim s'armam!»--Gonçalo, deleitado pela submissão dos
dois homens, ambos tão rijos, com tão grossos varapaus encostados á
parede, amansava:

--Realmente! sois todos surdos, n'esta pobre casa!... Além d'isso a
porta do pomar fechada! Tive de lhe atirar um empurrão. Ficou em
pedaços.

Então um dos moços, o mais alentado, ruivo, com um queixo de cavallo,
pensando que o Fidalgo censurava a frouxidão da porta pouco cuidada,
coçou a cabeça, n'uma desculpa:

--Pois, com perdão do fidalgo!... Mas já depois da saída do Relho se lhe
pôz uma travessa e fechadura nova... E valente!

--Qual fechadura! gritou, o Fidalgo soberbamente. Despedacei a
fechadura, despedacei a travessa... Tudo em estilhas!

O outro moço, mais desembaraçado e esperto, riu, para agradar:

--Santo nome de Deus!... Então, é que o fidalgo lhe atirou com força!

E o companheiro, convencido, espetando o queixo enorme:

--Mas que força! a matar! Que a porta era rija... E fechadura nova, já
depois do Relho!

A certeza da sua força, louvada por aquelles fortes, reconfortou
inteiramente o fidalgo da Torre, já brando, quasi paternal:

--Graças a Deus, para arrombar uma porta, mesmo nova, não me falta
força. O que eu não podia, por decencia, era arrastar ahi por essas
estradas um bebedo com uma foice até casa do Regedor... Foi para isso
que chamei, que gritei. Para que vossês o agarrassem, o levassem ao
Regedor!... Bem, acabou. Oh! Rosa, dê a estes rapazes, para a ceia, mais
uma caneca de vinho... A vêr se para outra vez se affoutam, se
apparecem...

Era agora como um antigo senhor, um Ramires d'outros seculos, justo e
avisado, que reprehende uma fraqueza dos seus solarengos--e logo perdôa
por conta e amor das façanhas proximas. Depois com a bengala ao hombro,
como uma lança, subio pela lobrega escada da cozinha. E em cima no
quarto, apenas o Bento entrára para o vestir, recomeçou a sua epopeia,
mais carregada, mais terrifica--assombrando o sensivel homem, estacado
rente da commoda, sem mesmo pousar a enfusa d'agoa quente, as botas
envernisadas, a braçada de toalhas que o ajoujavam... O Casco! O José
Casco dos Bravaes, bebedo, rompendo para elle, sem o conhecer, com uma
foice enorme, a berrar--«Morra, que é marrão!...» E elle na estrada,
deante do bruto, de bengalinha! Mas atira um salto, a foiçada resvala
sobre um tronco de pinheiro... Então arremette desabaladamente,
brandindo a bengala, gritando pelo Ricardo e pelo Manoel como se ambos o
escoltassem--e ataranta o Casco, que recua, se some pela azinhaga, a
cambalear, a grunhir...

--Hein, que te parece? Se não é a minha audacia, o homem positivamente
me ferra um _tiro de espingarda_!

O Bento, que quasi se babava, com o jarro esquecido a pingar no tapete,
pestanejou, confuso, mais attonito:

--Mas o Snr. Dr. disse que era uma foice!

Gonçalo bateu o pé, impaciente:

--Correu para mim com uma foice. Mas vinha atraz do carro... E no carro
trazia uma espingarda. O Casco é caçador, anda sempre d'espingarda...
Emfim estou aqui vivo, na Torre, por mercê de Deus. E tambem porque
felizmente, n'estes casos, não me falta decisão!

E apressou o Bento--porque com o abalo, o esforço, positivamente lhe
tremiam as pernas de cançasso e de fome... Além da sêde!

--Sobretudo sêde! Esse vinho que venha bem fresco... Do Verde e do
Alvaralhão, para misturar.

O Bento, com um tremulo suspiro da emoção atravessada, enchera a bacia,
estendia as toalhas. Depois, gravemente:

--Pois, Snr. Dr., temos esse andaço nos sitios! Foi o mesmo que succedeu
ao Snr. Sanches Lucena, na _Feitosa_...

--Como, ao Snr. Sanches Lucena?

O Bento desenrolou então uma tremenda historia trazida á Torre, durante
a estada do Snr. Doutor em Oliveira, pelo cunhado da Crispola, o Ruy
carpinteiro, que trabalhava nas obras da _Feitosa_. O Snr. Sanches
Lucena descêra uma tarde, ao lusco fusco, á porta do Mirante, quando
passam na estrada dous jornaleiros, bebedos ou facinoras, que implicam
com o excellente senhor. E chufas, risinhos, momices... O Snr. Sanches,
com paciencia, aconselhou os homens que seguissem, não se desmandassem.
De repente um d'elles, um rapazola, sacode a jaqueta do hombro, ergue o
cajado! Felizmente o companheiro, que se affirmára, ainda gritou:--«Ai!
rapaz, que elle é o nosso deputado!» O rapazola abalou, espavorido. O
outro até se atirou de joelhos deante do Snr. Sanches Lucena... Mas o
pobre senhor, com o abalo, recolheu á cama!

Gonçalo acompanhára a historia, seccando vagarosamente as mãos á toalha,
impressionado:

--Quando foi isso?

--Pois disse ao Snr. Dr.... Quando o Snr. Dr. estava em Oliveira. Um dia
antes ou um dia depois dos annos da Snr.^a D. Graça.

O Fidalgo arremessou a toalha, limpou pensativamente as unhas. Depois
com um risinho incerto e leve:

--Emfim, sempre serviu d'alguma coisa ao Sanches Lucena ser deputado por
Villa-Clara...

E já vestido, abastecendo a charuteira (porque resolvera passar a noite
na Villa, a desabafar com o Gouveia)--de novo se voltou para Bento, que
arrumava a roupa:

--Então o bebedo, quando o outro lhe gritou «Ai, que é o nosso
deputado,» cahiu em si, fugiu, hein?... Ora vê tu! Ainda vale ser
deputado! Ainda inspira respeito, homem! Pelo menos inspira mais
respeito que descender dos reis de Leão!... Paciencia, toca a jantar.

       *       *       *       *       *

Durante o jantar, misturando copiosamente o Verde e o Alvaralhão,
Gonçalo não cessou de ruminar a ousadia do Casco. Pela vez primeira, na
historia de Santa Ireneia, um lavrador d'aquellas aldêas, crescidas á
sombra da Casa illustre, por tantos seculos senhora em monte e valle,
ultrajava um Ramires! E brutamente, alçando o cajado, deante dos muros
da quinta historica!... Contava seu pae que, em vida do bisavô Ignacio,
ainda desde Ramilde até Corinde os homens dobravam o joelho nos caminhos
quando passava o Senhor da Torre. E agora levantavam a foice!... E
porque? Por que elle não se desfalcára submissamente das suas rendas em
proveito d'um façanhudo!--Em tempos do avô Tructesindo, villão de tal
attentado assaria, como porco montez, n'uma ruidosa fogueira, deante das
barbacans da Honra. Ainda em dias do bisavô Ignacio apodreceria n'uma
masmorra. E o Casco não podia escapar sem castigo. A impunidade só lhe
incharia a audacia: e assomado, rancoroso, n'outro encontro, sem mais
fallas, desfechava a caçadeira. Oh! não lhe desejava um mal duravel,
coitado, com dois filhos pequeninos--um que mamava. Mas que o
arrastassem á Administração, algemado, entre dois cabos de policia--e
que na triste saleta, d'onde se avistam as grades da cadeia, apanhasse
uma reprehensão tremenda do Gouveia, do Gouveia muito secco, muito
esticado na sobrecasaca negra... Assim se devia resguardar, por meios
tortuosos--pois que não era deputado, e que, com o seu talento, o seu
nome, essa espantosa linhagem d'avós que edificára o Reino, carecia o
prestigio d'um Sanches Lucena, o precioso prestigio que suspende no ar
os varapáus atrevidos!

Apenas findou o café, mandou pelo Bento avisar os dous moços da horta, o
Ricardo e o outro de queixo de cavallo, que o esperassem no pateo,
armados. Porque na Torre ainda sobrevivia uma «Sala d'armas»--cacifro
tenebroso, junto ao Archivo, onde se amontoavam peças aboladas
d'armaduras, um lorigão de malha, um broquel mourisco, alabardas,
espadões, polvarinhos, bacamartes de 1820, e entre esta poeirenta
ferralhagem negra tres espingardas limpas com que os moços da quinta, na
romaria de S. Gonçalo, atiravam descargas em louvor do Santo.

Depois, elle, encafuou o revólver na algibeira, desenterrou do armario
do corredor um velho bengalão de cabo de chumbo entrançado, agarrou um
apito. E assim precavido, aquecido pelo Verde e pelo Alvaralhão, com os
dous creados de caçadeira ao hombro, importantes e tesos, partiu para
Villa-Clara, procurar o Snr. Administrador do Concelho. A noite envolvia
os campos em socego e frescura. A lua nova, que alimpára o tempo, roçava
a crista dos outeiros de Valverde como a roda lustrosa d'um carro de
ouro. No silencio os rijos sapatões pregueados dos dous jornaleiros
resoavam em cadencia. E Gonçalo adiante, de charuto flammante, gosava
aquella marcha, em que de novo um Ramires trilhava os caminhos de Santa
Ireneia com homens da sua mercê e solarengos armados.

Ao começo da villa, porém, recolheu discretamente a escolta na taverna
da Serena: e elle cortou para o Mercado da Herva, para a Tabacaria do
Simões, onde o Gouveia, áquella hora, antes da partida da Assembléa,
costumava pousar, comprar uma caixa de phosphoros, considerar
pensativamente na vidraça as cautelas da Loteria. Mas n'essa noite o
Snr. Administrador faltára ao Simões costumado. Largou então para a
Assembléa: e logo em baixo, no bilhar, um sujeito calvo, que contemplava
as carambolas solitarias do marcador, espapado na bancada, de collete
desabotoado, mascando um palito--informou o Fidalgo da doença do amigo
Gouveia:

--Cousa leve, inflammação de garganta... V. Ex.^a de certo o encontra em
casa. Não arreda do quarto desde Domingo.

Outro cavalheiro porém, que remexia o seu café á esquina d'uma mesa
atulhada de garrafas de licôr, affiançou que o Snr. Administrador já
espairecera n'essa tarde. Ainda pelas cinco horas elle o encontrára na
Amoreira, com o pescoço atabafado n'uma manta de lã.

Gonçalo, impaciente, abalou para a Calçadinha. E atravessava o Largo do
Chafariz quando descortinou o desejado Gouveia, á porta muito alumiada
da loja de pannos do Ramos, conversando com um homemzarrão de forte
barba retinta e de guarda-pó alvadio.

E foi o Gouveia, que, de dedo espetado, investiu para Gonçalo:

--Então, já sabe?

--O quê?

--Pois não sabe, homem?... O Sanches Lucena!

--O quê?

--Morreu!

O fidalgo embasbacou para o Administrador, depois para o outro
cavalheiro, que repuxava na mão enorme, com um esforço inchado, uma luva
preta apertada e curta.

--Santo Deus!... Quando?

--Esta madrugada. De repente. «Angina pectoris,» não sei quê no
coração... De repente, na cama.

E ambos se consideraram, em silencio, no espanto renovado d'aquella
morte que impressionava Villa-Clara. Por fim Gonçalo:

--E eu ainda ha bocado, na Torre, a fallar d'elle! E, coitado, como
sempre, com pouca admiração...

--E eu! exclamou o Gouveia. Eu, que ainda hontem lhe escrevi!... E uma
carta comprida, por causa d'um empenho do Manoel Duarte... Foi o cadaver
que recebeu a carta.

--Boa piada! rosnou o sujeito obeso, que se debatia ferrenhamente contra
a luva. O cadaver recebeu a carta... Boa piada!

O Fidalgo torcia o bigode, pensativo:

--Ora, ora... E que edade tinha elle?

O Gouveia sempre o imaginára um completo velho, de setenta invernos.
Pois não! apenas sessenta, em Dezembro. Mas consumido, arrasado. Casára
tarde, com fêmea forte...

--E ahi temos a bella D. Anna, viuva aos vinte e oito annos, sem filhos,
naturalmente herdeira, com o seu mealheiro de duzentos contos... Talvez
mais!

--Boa maquia! roncou de novo o oupado homem que enfiára a luva, e agora
gemia, com as veias tumidas, para lhe apertar o colchete.

Aquelle cavalheiro constrangia o Fidalgo--ancioso por desafogar com o
Gouveia sobre «a vacatura politica,» assim inesperadamente aberta, no
circulo de Villa-Clara, pela brusca desapparição do Chefe tradicional. E
não se conteve, puchou o Administrador pelo botão da sobrecasaca para a
sombra favoravel da parede:

--Oh! Gouveia! então agora, hein?... Temos eleição supplementar... Quem
virá pelo circulo?

E o Administrador, muito simplesmente, sem se resguardar do homemzarrão
de guarda-pó, que, emfim enluvado, accendera o charuto, se acercava com
familiaridade--deduziu os factos:

--Agora, meu amigo, com o tio do Cavalleiro ministro da Justiça e o José
Ernesto ministro do Reino, vae deputado pelo circulo quem o André
Cavalleiro mandar. É claro... O Sanches Lucena manteve sempre o seu
logar em S. Bento por uma indicação natural do partido. Era aqui o
primeiro homem, o grande homem dos Historicos... Bem! Hoje, para decidir
o Governo, como falta a indicação natural do partido, que resta? O
desejo pessoal do Cavalleiro. Você sabe como o Cavalleiro é
regionalista. Pelo circulo pois, logicamente, sahe quem se apresente ao
Cavalleiro como um bom continuador do Lucena, pela influencia e pela
estabilidade territorial... N'outro circulo ainda se podia encaixar á
pressa um deputado fabricado em Lisboa, nas Secretarias. Aqui não! O
deputado tem de ser local e Cavalleirista. E o proprio Cavalleiro,
acredite você, está a esta hora embaraçado.

O gordalhufo murmurou com importancia, atravez do immenso charuto que
mamava:

--Amanhã já estou com elle, já sei...

Mas o Administrador emmudecera, coçava o queixo, cravando em Gonçalo os
olhos espertos, que rebrilhavam, como se uma ditosa idéa, quasi uma
inspiração, o illuminasse. E de repente, para o outro, que cofiava a
barba retinta:

--Pois, meu caro senhor, até além d'ámanha. Ficamos entendidos. Eu
remetto o cestinho dos queijos directamente ao Snr. Conselheiro.

Tomou o braço de Gonçalo, que apertou com impaciencia. E sem attender
mais ao homemzarrão, que saudava rasgadamente, arrastou o Fidalgo para a
Calçadinha silenciosa:

--Oh, Gonçalo, ouça lá... Vossê agora tinha uma occasião soberba! Você,
se quizesse, dentro de poucos dias, estava deputado por Villa-Clara!

O Fidalgo da Torre estacára--como se uma estrella de repente se
despenhasse na rua mal allumiada.

--Ora escute! exclamou o Administrador, largando o braço de Gonçalo,
para desenrolar mais livremente a sua idéa. Você não tem compromissos
serios com os Regeneradores. Você deixou Coimbra ha um anno, tenta agora
a vida publica, nunca fez acto definitivo de partidario. Lá uma ou outra
correspondencia para os jornaes, historias!...

--Mas...

--Escute, homem! Você quer entrar na Politica? Quer. Então, pelos
Historicos ou pelos Regeneradores, pouco importa. Ambos são
constitucionaes, ambos são christãos... A questão é entrar, é furar. Ora
você, agora, inesperadamente, encontra uma porta aberta. O que o póde
embaraçar? As suas inimisades particulares com o Cavalleiro? Tolices!

Atirou um gesto, largo e secco, como se varresse essas puerilidades:

--Tolices! Entre vocês não ha morte d'homem. Nem vocês, no fundo, são
inimigos. O Cavalleiro é rapaz de talento, rapaz de gosto... Não vejo
outro, aqui no districto, com quem você tenha mais conformidade de
espirito, de educação, de maneiras, de tradições... N'uma terra pequena,
mais dia menos dia, fatalmente, se impunha a reconciliação. Então seja
agora, quando a reconciliação o leva ás Camaras!... E repito. Pelo
circulo de Villa-Clara sahe deputado quem o Cavalleiro mandar!

O Fidalgo da Torre respirou, com esforço, na emoção que o suffocava. E
depois d'um silencio em que tirára o chapéo, abanára com elle,
pensativamente, a face descahida:

--Mas o Cavalleiro, como você disse, é todo local todo regional... Não
quererá impôr senão um homem como o Lucena, com fortuna, com
influencia...

O outro parou, alargou os braços:

--E então, você?... Que diabo! Você tem aqui propriedade. Tem a Torre,
tem Treixedo. Sua irmã hoje é rica, mais rica que o Lucena. E depois o
nome, a familia... Vocês, os Ramires, estão estabelecidos, com solar em
Santa Ireneia, ha mais de duzentos annos.

O fidalgo da Torre ergueu com viveza a cabeça:

--Duzentos?... Ha mil, ha quasi mil!

--Ora ahi tem! Ha mil annos. Uma casa anterior á monarchia. Pelo menos
coeva! Você é portanto mais fidalgo que o Rei! E então, isso não é uma
situação muito superior á do Lucena? Sem contar a intelligencia... Oh!
diabo!

--Que foi?

--A garganta... Uma picadita na garganta. Ainda não estou consolidado.

E decidiu logo recolher, gargarejar, porque o Dr. Macedo prohibira as
noitadas festivas. Mas Gonçalo acompanhava até á porta o amigo Gouveia.
E, conchegando o abafo de lã, o Administrador resumiu a sua idéa:

--Pelo circulo de Villa-Clara, Gonçalinho, sahe quem o Cavalleiro
mandar. Ora o Cavalleiro, creia você, tem immenso empenho de o eleger,
de o lançar na Politica. Se você portanto estender a mão ao Cavaleiro, o
circulo é seu. O Cavalleiro tem o maior, o maiorissimo empenho,
Gonçalinho!

--Isso é que eu não sei, João Gouveia...

--Sei eu!

E em confidencia, na solidão da Calçadinha, João Gouveia revelou ao
Fidalgo que o Cavalleiro anciava pela occasião de reatar a velha
fraternidade com o seu velho Gonçalo! Ainda na semana passada o
Cavalleiro lhe affirmára (palavras textuaes):--«Entre os rapazes d'esta
geração nenhum com mais seguro e mais largo futuro na Politica que o
Gonçalo. Tem tudo! grande nome, grande talento, a seducção, a
eloquencia... Tem tudo! E eu, que conservo pelo Gonçalo todo o carinho
antigo, gostava ardentemente, ardentissimamente, de o levar ás Camaras.»

--Palavras textuaes, meu amigo!... Ainda ha seis ou sete dias, em
Oliveira, depois do jantar, a tomarmos ambos café no quintal.

A face de Gonçalo ardia na sombra, devorando as revelações do
Administrador. Depois, com lentidão, como descobrindo candidamente todos
os recantos da sua alma:

--Eu, na realidade, tambem conservo a antiga sympathia pelo Cavalleiro.
E certas questões intimas adeus!... Envelheceram, caducaram, tão
obsoletas hoje como os aggravos dos Horacios e dos Curiacios... Como
você lembrou ha pouco, com razão, nunca se ergueu entre nós morte de
homem. Que diabo! Eu fui educado com o Cavalleiro, eramos como irmãos...
E acredite você, Gouveia! Sempre que o vejo, sinto um appetite doido,
mas doido, de correr para elle, de lhe gritar: «Oh! André! nuvens
passadas não voltam, atira para cá esses ossos!» Creia você, não o faço
por timidez... É timidez... Oh! não, lá por mim, estou prompto á
reconciliação, todo o coração m'a pede! Mas elle?... Porque, emfim,
Gouveia, eu, nas minhas Correspondencias para a _Gazeta do Porto_, tenho
sido feroz com o Cavalleiro!

João Gouveia parou, de bengala ao hombro, considerando o fidalgo com um
sorriso divertido:

--Nas Correspondencias? Que lhe tem você dito nas Correspondencias? Que
o Snr. Governador Civil é um despota, e um D. Juan?... Meu caro amigo,
todo o homem gosta que, por opposição politica, lhe chamem despota e D.
Juan. Você imagina que elle se affligiu? Ficou simplesmente babádo!

O fidalgo murmurou, inquieto:

--Sim! Mas as allusões á bigodeira, á guedelha...

--Oh! Gonçalinho! Bellos cabellos annellados, bellos bigodes torcidos,
não são defeitos de que um macho se envergonhe... Pelo contrario! Todas
as mulheres admiram. Você pensa que ridicularisou o Cavalleiro? Não!
annunciou simplesmente ás madamas e meninas, que lêem a _Gazeta do
Porto_, a existencia d'um mocetão esplendido que é Governador Civil
d'Oliveira.

E parando de novo (por que defronte, na esquina, luziam as duas janellas
abertas da sua casa), o Administrador estendeu o dedo firme para um
conselho supremo:

--Gonçalo Mendes Ramires, você ámanhã manda buscar a parelha do Torto,
salta para a sua caleche, corre á cidade, entra pelo Governo Civil de
braços abertos, e grita sem outro prologo:--«André, o que lá vae, lá
vae, venham essas costellas! E como o circulo está vago, venha tambem
esse circulo!»--E você, dentro de cinco ou seis semanas, é o Snr.
Deputado por Villa-Clara, com todos os sinos a repicar... Quer tomar
chá?

--Não, obrigado.

--Bem, então viva! Tipoia ámanhã e Governo Civil. Está claro, é
necessario arranjar um pretexto...

O fidalgo acudiu, com alvoroço:

--Eu tenho um pretexto! Não!... Quero dizer, tenho necessidade real,
absoluta, de fallar com o Cavalleiro ou com o Secretario Geral. É uma
questão de caseiro... Até por causa d'essa infeliz trapalhada o
procurava eu hoje a você, Gouveia!

E aldravou a aventura do Casco, com traços mais pesados que a
ennegreciam. Durante semanas, afferradamente, esse fatal Casco o
torturára para lhe arrendar a Torre. Mas elle tratára com o Pereira, o
Pereira Brazileiro, por uma renda explendidamente superior á que o Casco
offerecia a gemer. Desde então o Casco rugia, ameaçava, por todas as
tabernas da Freguezia. E, n'essa tarde, surde d'uma azinhaga, rompe para
elle, de varapau erguido! Mercê de Deus, lá se defendera, lá sacudira o
bruto, com a bengala. Mas agora, sobre o seu socego, sobre a sua vida,
pairava a affronta d'aquelle cajado. E, se o assalto se renovasse, elle
varava o Casco com uma bala, como um bicho montez... Urgia pois que o
amigo Gouveia chamasse o homem, o reprehendesse rijamente, o entaipasse
mesmo por algumas horas na cadeia...

O Administrador, que escutára palpando a garganta, atalhou logo, com a
mão espalmada:

--Governo Civil, caro amigo, Governo Civil! Esses casos de prisão
preventiva pertencem ao Governo Civil. Reprehensão não basta, com tal
féra!... Só cadeia, um dia de cadeia, a meia ração... O Governo Civil
que me mande um officio ou telegramma. Você realmente corre perigo. Nem
um instante a perder!... Amanhã tipoia e Governo Civil. Mesmo por amor
da Ordem Publica!

E Gonçalo, compenetrado, com os hombros vergados, cedeu ante esta
soberana razão da Ordem Publica:

--Bem, João Gouveia, bem!... Com effeito é uma questão de Ordem Publica.
Vou ámanhã ao Governo Civil.

--Perfeitamente, concluiu o Administrador puxando o cordão da campainha.
Dê recados meus ao Cavalleiro. E só lhe digo que havemos de arranjar uma
votação tremenda, e foguetorio, e vivas, e ceia magna no Gago... Você
não quer tomar chá, não? Então, boas noites... E olhe! D'aqui a dous
annos, quando você fôr ministro, Gonçalo Mendes Ramires, recorde esta
nossa conversa, á noite, na Calçadinha de Villa-Clara!

Gonçalo seguiu pensativamente por defronte do Correio; torneou a branca
escadaria da Egreja de S. Bento; metteu, alheado e sem reparar, pela
estrada plantada de acacias que conduz ao Cemiterio. E, n'aquelle alto
da Villa, d'onde, ao desembocar da Calçadinha, se abrange a largueza
rica dos campos desde Valverde a Craquêde--sentiu que tambem na sua
vida, apertada e solitaria como a Calçadinha, se alargára um arejado
espaço cheio d'interessante bulicio e de abundancia. Era o muro, em que
sempre se imaginára irreparavelmente cerrado, que de repente rachava.
Eis a fenda facilitadora! Para além reluziam todas as bellas realidades
que desde Coimbra appetecera! Mas...--Mas no atravessar da fenda fragosa
de certo se rasgaria a sua dignidade ou se rasgaria o seu orgulho. Que
fazer?...

Sim! seguramente! Estendendo os braços ao animal do Cavalleiro
conquistava a sua Eleição. O circulo, infeudado aos Historicos, elegeria
submissamente o Deputado que o chefe Historico ordenasse com indolente
aceno. Mas essa reconciliação importava a entrada triumphal do
Cavalleiro na quieta casa do Barrôlo... Elle vendia pois o socego da
irmã por uma cadeira em S. Bento! Não! não podia por amor de
Gracinha!--E Gonçalo suspirou, com ruidoso suspiro, no luminoso silencio
da estrada.

Agora porém, durante tres, quatro annos, os Regeneradores não trepavam
ao Governo. E elle, alli, atravez d'esses annos, no buraco rural,
jogando voltaretes somnolentos na Assembléa da Villa, fumando cigarros
calaceiros nas varandas dos Cunhaes, sem carreira, parado e mudo na
vida, a ganhar musgo, como a sua caduca, inutil Torre! Caramba! era
faltar cobardemente a deveres muito santos para comsigo e para com o seu
nome!... Em breve os seus camaradas de Coimbra penetrariam nos altos
Empregos, nas ricas Companhias; muitos nas Camaras por vacaturas
abençoadas como a do Sanches; um ou outro mesmo, mais audaz ou servil,
no Ministerio. Só elle, com talentos superiores, um tal brilho
historico, jazeria esquecido e resmungando como um côxo n'uma estrada
quando passa a romaria. E por quê? Pelo receio pueril de pôr a bigodeira
atrevida do Cavalleiro muito perto dos fracos labios de Gracinha... E
por fim esse receio constituia uma injuria, uma nojenta injuria, á
seriedade da irmã. Porque Portugal não se honrava com mulher mais
rigidamente seria, de mais grave e puro pensar! Aquelle corpinho
ligeiro, que o vento levava, continha uma alma heroica. O Cavalleiro?...
Podia sua exc.^a sacudir a guedelha com graça fatal, jorrar dos olhos
pestanudos a languidez ás ondas--que Gracinha permaneceria tão
inaccessivel e solida na sua virtude como se fosse insexual e de
marmore. Oh, realmente, por Gracinha, elle abriria ao Cavalleiro todas
as portas dos Cunhaes--mesmo a porta do quarto d'ella, e bem larga, com
uma solidão bem preparada!... E depois não se cuidava de uma donzella,
nem d'uma viuva. Na casa do Largo d'El-Rei governava, mercê de Deus,
marido brioso, marido rijo. A esse, só a esse, competia escolher as
intimidades do seu lar--e n'elle manter quietação e recato. Não! esse
receio de uma imaginavel fragilidade de Gracinha, da sua honrada, altiva
Gracinha--esse receio, perverso e louco, certamente o devia varrer, com
o coração desafogado e sorrindo.--E, na clara solidão da estrada,
Gonçalo Mendes Ramires atirou um gesto decidido e terminante que varria.

Restava porém a sua propria humilhação. Desde annos, ruidosamente,
conversando e escrevendo, em Coimbra, em Villa-Clara, em Oliveira, na
*Gazeta do Porto*--elle demolira o Cavalleiro! E subiria agora, de
espinhaço vergado, as escadarias do Governo Civil, murmurando o
seu--_peccavi, mea culpa, mea maxima culpa_?... Que escandalo na
cidade!--«O Fidalgo da Torre lá precisou e lá veio...» Era o
transbordante triumpho do Cavalleiro. O unico homem que no Districto se
conservava erguido, pelejando, trovejando as verdades--desarmava,
emmudecia, e encolhidamente se enfileirava no sequito louvaminheiro de
Sua Exc.^a! Bem duro!... Mas, que diabo, havia superiormente o interesse
do paiz!--E, tão admiravel lhe appareceu esta razão, que a bradou com
ardôr na mudez da estrada:--«Ha o paiz!...»

Sim, o paiz! Quantas reformas a proclamar, a realisar! Em Coimbra, no
quinto anno, já se occupára da Instrucção Publica--d'uma remodelação do
Ensino, todo industrial, todo colonial, sem latim, sem ociosas
bellas-lettras, creando um povo formigueiro de Productores e
d'Exploradores... E os camaradas, nos sonhos ondeantes de Futuro, quando
repartiam os Ministerios, concordavam sempre:--«O Gonçalo para a
Instrucção Publica!» Por essas ideas poderosas, pelo saber accumulado,
todo elle se devia á Nação--como outr'ora, pela força, os grandes
Ramires armados. E pela Nação cumpria que o seu orgulho de homem cedesse
ante a sua tarefa de cidadão...

Depois, quem sabe? Entre o Cavalleiro e elle afogadamente se enroscava
todo um passado de camaradagem, apenas entorpecido--que talvez revivesse
n'esse encontro, os enlaçasse logo n'um abraço penetrante, onde os
antigos aggravos se sumiriam como um pó sacudido... Mas para que
imaginar, remoer? Uma necessidade se sobrepunha, inilludivel--a de
comparecer logo de manhã em Oliveira, no Governo Civil, requerendo a
suppressão do Casco. D'essa pressa dependia o seu socego de vida e
d'intelligencia. Nunca elle lograria trabalhar na Novella, trilhar
folgadamente a estrada de Villa-Clara, sabendo que em torno o outro,
pelas quélhas e sombras, rondava com a espingarda. E para não regressar
aos costumes bravios dos seus avós, circulando atravez do Concelho entre
as carabinas dos creados, necessitava o Casco domado, immobilisado. Era
pois inadiavel correr ao Governo Civil, para bem da Ordem. E depois,
quando elle se encontrasse no gabinete do Cavalleiro, deante da mesa do
Cavalleiro--a Providencia decidiria...--«A Providencia decidirá!»

E ancorado n'esta resolução, o Fidalgo da Torre parou, olhou. Levado
pela quente rajada de pensamentos, chegára á grade do cemiterio da Villa
que o luar branqueava como um lençol estendido. Ao fundo da alameda que
o divide, clara na claridade triste, o escarnado Christo chagado e
livido, sobre a sua alta cruz negra, pendia, mais dolorido e livido no
silencio e na solidão, com uma tristissima lampada aos pés esmorecendo.
Em torno eram cyprestes, sombras de cyprestes, brancuras de lapides, as
cruzes rasteiras das campas pobres, uma paz morta pesando sobre os
mortos: e no alto a lua amarella e parada. Então o Fidalgo sentiu um
arripiado mêdo do Christo, das lousas, dos defuntos, da lua, da solidão.
E despedio n'uma carreira até avistar as casas da Calçadinha, por onde
descambou como uma pedra solta. Quando se deteve no Largo do Chafariz,
um môcho piava na torre da Camara, melancolisando o repouso de
Villa-Clara apagada e adormecida. Mais impressionado, Gonçalo correu á
taberna da Serena, recolheu os creados que esperavam jogando a bisca
lambida. E com elles atravessou de novo a Villa até á cocheira do
Torto--para recommendar que lhe mandassem á Torre, ás nove horas da
manhã, a parelha russa.

Atravez do postigo, que se abrira com cautella no portão chapeado, a
mulher do Torto gemeu, indecisa:

--Ai, meu Deus, não sei se poderá... Elle ás nove tem um serviço... Pois
não faria mais conta ao Fidalgo ahi pela volta das onze?

--Ás nove! berrou Gonçalo.

Desejava apear cêdo ao portão do Governo Civil para evitar a curiosidade
d'aquelles cavalheiros de Oliveira--que, depois do meio dia, se juntavam
na Praça, vadiando por debaixo da Arcada.

       *       *       *       *       *

Mas ás nove e meia Gonçalo, que até ao luzir da madrugada se agitára
pelo quarto n'um tumulto d'esperanças e receios--ainda se barbeava, em
camisa, deante do vasto espelho de coluninas douradas. Depois aproveitou
a caleche para deixar na _Feitosa_ os seus bilhetes de pezames á bella
viuva, á D. Anna. Ao meio dia, esfaimado, almoçou na Vendinha emquanto a
parelha resfolgava. E batia a meia depois das duas quando emfim se apeou
em Oliveira deante do portão do antigo convento de S. Domingos, ao fundo
da Praça, onde seu pae, quando Chefe do Districto, installára
faustosamente as repartições do Governo Civil.

Áquella hora, já na frescura e sombra da Arcada que orla um lado da
Praça (outr'ora _Praça da Prataria_, hoje _Praça da Liberdade_) os
cavalheiros d'Oliveira mais desoccupados, os «rapazes», preguiçavam, em
cadeiras de verga, á porta da Tabacaria Elegante e da loja do Leão.
Gonçalo, cautelosamente, baixára as cortinas verdes da caleche. Mas no
pateo do Governo Civil, ainda guarnecido de bancos monumentaes do tempo
dos frades, esbarrou com o primo José Mendonça, que descia a escadaria,
fardado. Foi um assombro para o alegre capitão, moço esvelto, de bigode
curto, picado levemente de bexigas.

--Tu por aqui, Gonçalinho! E de chapeu alto! Caramba, deve ser coisa
gorda!

O Fidalgo da Torre confessou, corajosamente. Chegava n'esse instante de
Santa Ireneia para fallar ao André Cavalleiro...

--Está elle cá, esse illustre senhor?

O outro recuou, quasi aterrado:

--Ao Cavalleiro?! É ao Cavalleiro que vens fallar?!... Santissima
Virgem! Então desabou Troia!

Gonçalo gracejou, corando. Não! não se passára desgraça epica como a de
Troia... De resto podia revelar ao amigo Mendonça o caso que o arrastava
á presença augusta de Sua Exc.^a o Snr. Governador Civil. Era um homem
dos Bravaes, um Casco, que, furioso por não conseguir o arrendamento da
Torre, o ameaçára, rondava agora a estrada de Villa-Clara de noite, á
espreita, com uma espingarda. E elle, não ousando «fazer alta e boa
justiça» pelas mãos dos seus creados, como os Ramires feudaes--reclamava
modestamente da Auctoridade Superior uma ordem para que o Gouveia
mantivesse dentro da legalidade e dos Mandamentos de Deus o façanhudo
dos Bravaes...

--Só isto, uma pequenina questão de paz publica... E então o grande
homem está lá em cima? Bem, até logo, Zézinho... A prima, de saude? Eu
naturalmente janto nos Cunhaes. Apparece!

Mas o capitão não despegava do degrau de pedra, abrindo pachorrentamente
a cigarreira de couro:

--E que me dizes tu á novidade? O pobre Sanches Lucena?...

Sim, Gonçalo soubera na Assembleia. Um ataque, hein?--Mendonça accendeu,
chupou o cigarro:

--De repente, com um aneurisma, a ler o _Noticias_!... Pois ainda ha
tres dias a Maricas e eu jantamos na _Feitosa_. Até eu toquei a duas
mãos, com a D. Anna, o quarteto do Rigoleto. E elle bem, conversando,
tomando a sua aguardentesinha de canna...

Gonçalo esboçou um gesto de piedade e tristeza:

--Coitado... Tambem ha semanas o encontrei na Bica-Santa. Bom homem, bem
educado... E ahi temos agora a bella D. Anna vaga.

--E o circulo!

--Oh, o circulo! murmurou o Fidalgo da Torre com risonho desdem. A mim
antes me convinha a viuva. É Venus com duzentos contos! Infelizmente tem
uma voz medonha...

O primo Mendonça accudiu, com interesse, uma convicção dedicada:

--Não! não! na intimidade, perde aquelle tom empapado... Não imaginas!
até um timbre natural, agradavel... E depois, menino, que corpo! que
pelle!

--Deve ficar explendida agora com o luto! concluiu Gonçalo. Bem,
adeusinho! Apparece nos Cunhaes... Eu corro ao Cavalleiro para que Sua
Exc.^a me salve com o seu braço forte!

Sacudiu a mão do Mendonça, galgou a escadaria de pedra.

Mas o capitão, que mettera para a travessa de S. Domingos, desconfiou
d'aquella historia d'ameaças, d'espingardas... «Qual! Aqui anda
Politica!» E quando, passada uma hora lenta, repenetrou na Praça e
avistou a caleche da Torre ainda encalhada á porta do Governo
Civil--correu á Arcada, desabafou logo com os dois Villa-Velhas, ambos
pensativamente encostados aos dois humbraes da Tabacaria Elegante:

--Vocês sabem quem está no Governo Civil?... O Gonçalo Ramires!... Com o
Cavalleiro!

Todos em roda se mexeram, como acordando, nas gastas cadeiras de
verga--onde os estendera somnolentamente o silencio e a ociosidade da
arrastada tarde de verão. E o Mendonça, excitado, contou que desde as
duas horas e meia Gonçalo Mendes Ramires, «em carne e osso», se
conservava fechado com o Cavalleiro, no Governo Civil, n'uma conferencia
magna! O espanto e a curiosidade foram tão ardentes que todos se
ergueram, se arremessaram para fóra dos Arcos, a espiar a bojuda varanda
do convento, sobre o portão--que era a do gabinete de Sua Excellencia.

Precisamente, n'esse momento, José Barrôlo, a cavallo, de calça branca,
de rosa branca na quinzena d'alpaca, dobrava a esquina da rua das
Vendas. E o interesse todo d'aquelles cavalheiros se precipitou para
elle, na esperança d'uma revelação:

--Oh Barrôlo!

--Oh Barrolinho, chega cá!

--Depressa, homem, que é caso rijo!

Barrôlo, ladeando, abeirou da Arcada: e os amigos immediatamente lhe
atiraram a nova formidavel, apertados em volta da egoa. O Gonçalo e o
Cavalleiro cochichando secretamente toda a manhã! A caleche da Torre á
espera, com a parelha adormecida! E já começavam a repicar os sinos da
Sé!

Barrôlo, n'um pulo, desmontou. E emquanto um garoto lhe passeava a
egoa--estacou entre os amigos, com o chicote detraz das costas, pasmando
tambem para a varanda de pedra do Governo Civil.

--Pois eu não sei nada! O Gonçalo a mim não me disse nada! affirmava
elle, assombrado. Tambem já ha dias não vem á cidade... Mas não me disse
nada! E da ultima vez que cá esteve, nos annos da Graça, ainda
destemperou contra o Cavalleiro!

A todos o caso parecia «d'estrondo!» E subitamente um silencio esmagou a
Arcada, trespassada d'emoção. Na varanda, entre as vidraças abertas
vagarosamente, apparecera o Cavalleiro com o Fidalgo da Torre,
conversando, risonhos, de charutos accesos. Os largos olhos do
Cavalleiro pousaram logo, com malicia, sobre os «rapazes» apinhados em
pasmo á borda dos Arcos. Mas foi um lampejar de visão. S. Ex.^a
remergulhára no gabinete--o Fidalgo tambem, depois de se debruçar da
varanda, espreitar a caleche da Torre. Entre os amigos rompeu um clamor:

--Viva! Reconciliação!

--Acabou a guerra das Rosas!

--E as correspondencias da _Gazeta do Porto_?...

--É que houve peripecia tremenda!

--Temos o Gonçalinho administrador d'Oliveira!

--Upa, Ex.^{mo} Snr., upa!

Mas de novo emmudeceram. O Cavalleiro e o Fidalgo reappareciam, n'uma
enfronhada conversa, que os deteve um momento esquecidos, na evidencia
da varanda escancarada. Depois o Cavalleiro, com uma familiaridade
carinhosa, bateu nas costas do Gonçalo--como se publicasse a sua
reconciliação diante da Praça maravilhada. E outra vez se sumiram,
n'esse passear conversado e intimo, que os trazia da sombra do gabinete
para a claridade da janella, roçando as mangas, misturando o fumo leve
dos charutos. Em baixo o bando crescia, mais excitado. Passára o Mello
Alboim, o Barão das Marges, o Dr. Delegado: e, chamados com ancia, cada
um correra, devorára esgazeadamente a novidade, embasbacára para o velho
balcão de pedra que o sol dourava. Os grossos ponteiros do relogio do
Governo Civil já se acercavam das quatro horas. Os dous Villa-Velhas,
outros «rapazes», estafados, retrocederam ás cadeiras de verga da
Tabacaria. O Dr. Delegado, que jantava ás quatro e soffria do estomago,
despegou desconsoladamente dos Arcos, supplicando ao Pestana seu visinho
«que apparecesse ao café, para contar o resto...» Mello Alboim, esse,
enfiára para casa, defronte do Governo Civil, na esquina do Largo: e da
janella, disfarçado por traz da mulher e da cunhada, ambas de chambres
brancos e de papelotes, sondava o gabinete de S. Ex.^a com um binoculo.
Por fim bateram, com estendida pancada, as quatro horas. Então o Barão
das Marges, na sua impaciencia borbulhante, decidiu subir ao Governo
Civil, «para farejar!...»

Mas n'esse momento André Cavalleiro assomava de novo á varanda--sózinho,
com as mãos enterradas no jaquetão de flanella azul. E quasi
immediatamente a caleche da Torre largou da porta do Governo Civil,
atravessou a Praça, com os stores verdes meio corridos, descobrindo
apenas, áquelles cavalheiros avidos, as calças claras do Fidalgo.

--Vae para os Cunhaes!

Lá o apanhava pois o Barrôlo! E todos apressaram o bom Barrôlo a que
montasse, recolhesse, para ouvir do cunhado os motivos e os lances
d'aquella paz historica! O Barão das Marges até lhe segurou o estribo.
Barrôlo, alvoroçadamente, trotou para o Largo d'El-Rei.

Mas Gonçalo Mendes Ramires, sem parar nos Cunhaes, seguia para a
Vendinha, onde decidira jantar, dando um descanço á parelha esfalfada. E
logo depois das ultimas casas da cidade subiu as stores, respirou
deliciosamente, com o chapeo sobre os joelhos, a luminosa frescura da
tarde--mais fresca e de uma claridade mais consoladora que todas as
tardes da sua vida... Voltava d'Oliveira vencedor! Furára emfim atravez
da fenda, atravez do muro! E sem que a sua honra ou o seu orgulho se
esgaçassem nas asperezas estreitas da fenda!... Abençoado Gouveia,
esperto Gouveia! E abençoada a esperta conversa, na vespera, pela
calçadinha de Villa-Clara!...

Sim, de certo, fôra custoso aquelle mudo momento em que se sentára
seccamente, hirtamente, á borda da poltrona, junto da pesada meza
administrativa de S. Ex.^a. Mas mantivera muita dignidade e muita
simplicidade...--«Sou forçado (dissera) a dirigir-me ao Governador
Civil, á Auctoridade, por um motivo de ordem publica...» E a primeira
avença partira logo do Cavalleiro, que torcia a bigodeira, pallido:--«
Sinto profundamente que não seja ao homem, ao velho amigo, que Gonçalo
Mendes Ramires se dirija...» Elle ainda se conservára retrahido,
resistente, murmurando com uma frieza triste:--«As culpas não são
decerto minhas...» E então o Cavalleiro, depois de um silencio em que
lhe tremera o beiço:--«Ao cabo de tantos annos, Gonçalo, seria mais
caridoso não alludir a culpas, lembrar somente a antiga amizade, que,
pelo menos em mim, se conservou a mesma, leal e séria.» A esta
sensibilisada invocação, elle volvera, com doçura, com indulgencia:--«Se
o meu antigo amigo André recorda a nossa antiga amizade, eu não posso
negar que em mim tambem ella nunca inteiramente se apagou...» Ambos
balbuciaram ainda alguns confusos lamentos sobre os desaccordos da vida.
E quasi insensivelmente se trataram por _tu_! Elle contou ao Cavalleiro
a torpe ousadia do Casco. E o Cavalleiro, indignado como amigo, mais
como Auctoridade, telegraphára logo ao Gouveia um mandado forte para
inutilisar o valentão dos Bravaes... Depois conversaram da morte do
Sanches Lucena, que impressionava o Districto. Ambos louvaram a belleza
da viuva, os seus duzentos contos. O Cavalleiro recordou a manhã, na
_Feitosa_, em que entrando pela porta pequena do jardim, a
surprehendera, dentro d'um caramanchão de rosas, a apertar a liga. Uma
perna divina! Ambos se recusaram, rindo, a casar com a D. Anna, apezar
dos duzentos contos e da divina perna...--Já entre elles se
restabelecera a antiga familiaridade de Coimbra. Era «tu Gonçalo, tu
André, oh menino, oh filho!»

E fôra André, naturalmente, que alludira á desapparição do Deputado do
Governo, á surpreza do circulo vago... Elle então, com indifferença,
estirado na poltrona, rufando com os dedos na borda da mesa, murmurára:

--Sim, com effeito... Vocês agora devem estar embaraçados, assim de
repente...

Mais nada! apenas estas indolentes palavras, murmuradas através do rufo.
E o Cavalleiro, logo, sem preparação, apressadamente, empenhadamente,
lhe offerecera o Circulo!--Pousára os olhos n'elle com lentidão, como
para o penetrar, o escutar... Depois, insinuante e grave:

--Se tu quizesses, Gonçalo, não estavamos embaraçados...

Elle ainda exclamára, com surpreza e riso:

--Como, se eu quizesse?

E o André, sempre com os olhos n'elle cravados, os largos olhos
lustrosos, tão persuasivos:

--Se tu quizesses servir o Paiz, ser deputado por Villa-Clara, já não
estavamos embaraçados, Gonçalo!

_Se tu quisesses_... E perante esta insistencia que rogava, tão sincera
e commovida, em nome do Paiz, elle consentira, vergára os hombros:

--Se te posso ser util, e ao Paiz, estou ás vossas ordens.

E eis a fenda transposta, a aspera fenda, sem rasgão no seu orgulho ou
na sua dignidade! Depois conversaram desafogadamente, passeando pelo
gabinete, desde a estante carregada de papeis até á varanda--que André
abrira, por causa d'um cheiro persistente de petroleo entornado na
vespera. André tencionava partir n'essa noite para Lisboa--para
conferenciar com o Governo, depois d'aquella inesperada desapparição do
Lucena. E, agora em Lisboa, imporia o querido Gonçalo como o unico
Deputado, depois do Sanches de Lucena, seguro e substancial--pelo nome,
pelo talento, pela influencia, pela lealdade. E eis a eleição
consummada! De resto (declarára o Cavalleiro, rindo) aquelle Circulo de
Villa-Clara constituia uma propriedade sua--tão sua como Corinde.
Livremente, poderia eleger o servente da Repartição que era gago e
bebado. Prestava pois um serviço esplendido ao Governo, á Nação,
apresentando um môço de tão alta origem e de tão fina intelligencia...
Depois accrescentára:

--Não tens a pensar mais na eleição. Vaes para a Torre. Não contas a
ninguem, a não ser ao Gouveia. Esperas lá, muito quietinho, telegramma
meu de Lisboa. E, recebido elle, estás Deputado por Villa-Clara,
annuncias a teu cunhado, aos amigos... Depois, no domingo, vens almoçar
comigo a Corinde, ás onze.

Então ambos se apertaram n'um abraço que fundiu de novo, e para sempre,
as duas almas apartadas. Depois, ao cimo da escadaria de pedra onde o
acompanhára, André, repenetrando timidamente no Passado, murmurou com um
riso pensativo:--«Que tens tu feito ultimamente, n'essa querida Torre?»
E, ao saber da Novella para os *Annaes*, suspirou com saudade dos tempos
de Imaginação e d'Arte em Coimbra, quando elle amorosamente lapidava o
primeiro canto d'um poema heroico, o _Fronteiro de Ceuta_. Emfim outro
abraço--e alli voltava deputado por Villa-Clara.

Todos esses campos, esses povoados que avistava da portinhola da
caleche, era elle que os representava em Côrtes, elle, Gonçalo Mendes
Ramires... E superiormente os representaria, mercê de Deus! Porque já as
idéas o invadiam, viçosas e ferteis. Na Vendinha, emquanto esperava que
lhe frigissem um chouriço com ovos e duas postas de savel, meditou, para
a Resposta ao Discurso da Corôa, um esboço sombrio e áspero da nossa
Administração na Africa. E lançaria então um brado á Nação, que a
despertasse, lhe arrastasse as energias para essa Africa portentosa,
onde cumpria, como gloria suprema e suprema riqueza, edificar de costa a
costa um Portugal maior!... A noite cerrára, ainda outras idéas o
revolviam, vastas e vagas--quando o trote esfalfado da parelha estacou
no portão da Torre.

Ao outro dia (terça feira) ás dez horas, o Bento entrou no quarto do
Fidalgo com um telegramma, que chegara á Villa de madrugada. Gonçalo
pensou com um deslumbrado pulo do coração:--«É do Governo!»--Era do
Pinheiro, gritando pela Novella. Gonçalo amarrotou o telegramma. A
Novella! Como poderia labutar na Novella, agora, todo na impaciencia e
no esforço da sua Eleição?... Nem almoçou socegadamente--retendo,
atravez dos pratos que arredava, um desejo desesperado de «contar ao
Bento.» E, sorvido o café n'um sorvo impaciente, atirou para
Villa-Clara, a desafogar com o Gouveia. O pobre administrador jazia de
novo no camapé de palhinha, com papas na garganta. E toda a tarde, na
estreita sala forrada de papel verde-gaio, Gonçalo exaltou os talentos
do André, «homem de governo e de idéas, Gouveia!»--celebrou o Ministerio
Historico, «o unico capaz de salvar esta choldra, Gouveia!»---desenrolou
vistosos Projectos de Lei que meditava sobre a Africa, «a nossa
esperança magnifica, Gouveia!»--Emquanto o Gouveia, estirado, só rompia
a mudez e a immobilidade, para murmurar chôchamente, apalpando o calor
das papas:

--E a quem deve vossê tudo isso, Gonçalinho?... Cá ao meco!»

Na quarta-feira, ao accordar, tarde, o seu pensamento saltou logo
soffregamente para o André Cavalleiro, que a essa hora, em Lisboa,
almoçava no Hotel Central (sempre, desde rapaz, André se conservára fiel
ao Hotel Central). E todo o dia, fumando cigarros insaciavelmente
atravez do silencio da casa e da quinta, seguiu o Cavalleiro nos seus
giros de Chefe de Districto, pela Baixa, pela Arcada, pelos
Ministerios... Naturalmente jantaria com o tio Reis Gomes, Ministro da
Justiça. Outro convidado certamente seria o José Ernesto, Ministro do
Reino, condiscipulo do Cavalleiro, seu confidente politico... N'essa
noite, pois, tudo se decidia!

--Ámanhã, pelas dez horas, tenho cá telegramma do André.

Nenhuma noticia chegou á Torre:--e o Fidalgo passou a lenta quinta feira
á janella, vigiando a estrada poeirenta por onde surdiria o moço do
telegrapho, um rapaz gordo que elle conhecia pelo bonné d'oleado e pela
perna manca. Á noitinha, intoleravelmente inquieto, mandou um moço a
Villa-Clara. Talvez o telegramma arrastasse, esquecido, pela mesa
d'aquella «besta do Nunes do Telegrapho!» Não havia telegramma para o
Fidalgo. Então ficou certo de surgirem em Lisboa difficuldades! E toda a
noite, sem socego, n'uma indignação que rolava e crescia, imaginou o
Cavalleiro cedendo mollemente a outras exigencias do
Ministro--acceitando com servilismo para Villa-Clara a candidatura
d'algum imbecil da Arcada, d'algum chulo escrevinhador do Partido!

Pela manhã injuriou o Bento por lhe trazer tão tarde os jornaes e o chá:

--E não ha telegramma, nem carta?

--Não ha nada.

Bem, fôra trahido! Pois nunca, nunca, aquelle infame Cavalleiro
transporia a porta dos Cunhaes! De resto, que lhe importava a burlesca
Eleição? Mercê de Deus que lhe sobravam outros meios de provar
soberbamente o seu valor--e bem superiores a uma ensebada cadeira em S.
Bento! Que miseria, na verdade, curvar o seu espirito e o seu nome ao
rasteiro serviço do S. Fulgencio, o obeso e horrendo careca! E resolveu
logo regressar aos cimos puros da Arte, occupar altivamente todo o dia
no nobre e elegante trabalho da sua Novella.

Depois de almoço ainda abancou, com esforço, remexeu nervosamente as
tiras de papel. E de repente agarrou o chapéo, abalou para Villa-Clara,
para o telegrapho. O Nunes não recebera nada para sua exc.^a!--Correu,
coberto de suor e pó, á Administração do Concelho. O snr. Aministrador
partira para Oliveira!... Positivamente vencera outra combinação--eis a
sua confiança burlada! E recolheu á Torre, decidido a tomar um desforço
tremendo do Cavalleiro por tanta injuria amontoada sobre o seu nome,
sobre a sua dignidade! Toda a abafada e enevoada Sexta-feira a consumio
amargamente meditando esta vingança, que queria bem publica e bem
sangrenta. A mais saborosa, mais simples, seria rasgar a bigodeira do
infame com chicotadas, na escadaria da Sé, um domingo, á sahida da
missa! Ao escurecer, depois do jantar que mal debicára, n'aquelle
despeito e humilhação que o pungiam, envergou o casaco para voltar a
Villa-Clara. Não entraria no Telegrapho--já com vergonha do Nunes. Mas
gastaria a noite na Assembléa, jogando o bilhar, tomando um alegre chá,
lendo risonhamente os Jornaes Regeneradores, para que todos recordassem
a sua indifferença--se por acaso, mais tarde, conhecessem a trama em que
resvalára.

Desceu ao páteo, onde as arvores adensavam a sombra do crepusculo
carregado de fuscas nuvens. E abria o portão, quando esbarrou com um
rapaz que s'esbaforia sobre a perna manca e gritava:--«É um telegramma!»
Com que voracidade lh'o arrancou das mãos! Correu á cozinha, ralhou
desabridamente á Rosa pela falta da luz tardia! E, com um phosphoro a
arder nos dedos, devorou, n'um lampejo, as linhas bemditas:--«_Ministro
acceita, tudo arranjado_...» O resto era o Cavalleiro lembrando que no
domingo o esperava em Corinde, ás onze, para almoçarem e conversarem...

Gonçalo Mendes Ramires deu cinco tostões ao moço do telegrapho--galgou
as escadas. Na livraria, á claridade mais segura do candieiro, releu o
telegramma delicioso. _Ministro acceita, tudo arranjado!_... Na sua
transbordante gratidão pelo Cavalleiro, ideou logo um jantar soberbo,
offerecido nos Cunhaes pelo Barrôlo, cimentando para sempre a
reconciliação das duas Casas. E recommendaria a Gracinha que, para mais
honrar a doce festa, se decotasse, pozesse o seu collar magnifico de
brilhantes, a derradeira joia historica dos Ramires.

--Aquelle André! que flôr, que rapaz!

       *       *       *       *       *

O relogio de charão, no corredor, rouquejou as nove horas. E só então
Gonçalo percebeu a densa chuva que alagava a quinta, e a que elle,
embebido na sua gloria, passeando pela livraria n'um luminoso rolo de
imaginações, não sentira o rumor sobre a pedra da varanda, nem sobre a
folhagem dos limoeiros.

Para se calmar, occupar a noite encerrada, deliberou trabalhar na
Novella. E realmente agora convinha que terminasse essa _Torre de D.
Ramires_ antes do afan da Eleição--para que em Janeiro, ao abrir das
Côrtes, surgisse na Politica com o seu velho nome aureolado pela
Erudição e pela Arte. Envergou o roupão de flanella. E á banca, com o
costumado bule de chá inspirador, repassou lentamente o começo do
Capitulo II--que o não contentava.

Era no castello de Santa Ireneia, n'aquelle dia de Agosto em que
Lourenço Ramires cahira no valle de Canta-Pedra, mal ferido e captivo do
Bastardo de Bayão. Pelo Almocadem dos peões, que, com o braço varado por
uma chuçada, voltára em desesperada carreira ao Castello, já Tructezindo
Ramires conhecia o desventuroso desfecho da lide.--E n'este lance o tio
Duarte, no seu poemeto do Bardo, com um lyrismo molle, mostrava o enorme
Rico-Homem gemendo derramadamente atravez da sala-d'armas, na saudade
d'esse filho, flôr dos Cavalleiros de Riba-Cavado, derrubado, amarrado
n'umas andas, á mercê da gente de Bayão...

    Lagrimas irrepresas lhe rebentam,
    Arfa o arnez c'o soluçar ardente!...

Ora, levado no harmonioso sulco do tio Duarte, tambem elle, nas linhas
primeiras do Capitulo, esboçára o velho abatido sobre um escanho, com
lagrimas relusentes sobre as barbas brancas, as duras mãos descahidas
como as de languida Dona--em quanto que nas lages, batendo a cauda, os
seus dois lebreus o contemplam n'uma sympathia anciada e quasi humana.
Mas, agora, este choroso desalento não lhe parecia coherente com a alma
tão indomavelmente violenta do avô Tructezindo. O tio Duarte, da casa
das Balsas, não era um Ramires, não sentia hereditariamente a fortaleza
da raça:--e, romantico plangente de 1848, inundára logo de prantos
romanticos a face ferrea de um lidador do seculo XII, d'um companheiro
de Sancho I! Elle porém devia restabelecer os espiritos do Senhor de
Santa Ireneia dentro da realidade epica. E, riscando logo esse descorado
e falso começo de Capitulo, retomou o lance mais vigorosamente, enchendo
todo o castello de Santa-Ireneia d'uma irada e rija alarma. Na sua
lealdade sublime e simples Tructezindo não cuida do filho--adia a
desforra do amargo ultraje. E o seu esforço todo se commette a apressar
os aprestos da mesnada, para correr elle sobre Montemor, e levar ás
Senhoras Infantas os soccorros de que as privára a embuscada de
Canta-Pedra! Mas quando o impetuoso Rico-Homem com o Adail, na
sala-d'armas, regia a ordem da arrancada--eis que os esculcas, abrigados
do calor d'Agosto nos miradouros, enxergam ao longe, para além do
arvoredo da Ribeira, coriscos d'armas, uma cavalgada subindo para
Santa-Ireneia. O Villico, o gordo e azafamado Ordonho, galga arquejando
aos eirados da torre albarrã--e reconhece o pendão de Lopo de Bayão, o
seu toque de trompas á mourisca, arrastado e triste no silencio dos
campos. Então arqueia as cabelludas mãos na bôca, atira o alarido:

--Armas, armas! que é gente de Bayão!... Besteiros, ás quadrellas!
Homens em chusma ás lavadiças da carcova!

E Gonçalo, coçando a testa com a rama da penna, rebuscava ainda outros
veridicos brados, de bravo som Affonsino--quando a porta da livraria
abriu cautellosamente, atravez d'aquelle perro rangido que o
desesperava. Era o Bento, em mangas de camisa:

--O Snr. Dr. não poderia descer cá baixo á cozinha?

Gonçalo embasbacou para o Bento, pestanejando, sem comprehender:

--Á cozinha?...

--É que está lá a mulher do Casco a levantar uma celeuma. Parece que lhe
prenderam o homem esta tarde... Appareceu ahi por baixo de agoa, com os
pequenos, até um de mama. Quer por força fallar com o Snr. Dr. E não se
calla, lavada em lagrimas, de joelhos com os filhos, que é mesmo uma
Ignez de Castro!

Gonçalo murmurou--«que massada!» E que contrariedade! A mulher, n'uma
agonia, entre gritos, arrastando os filhos supplicantes até ao portão da
Torre! E elle, nas vesperas da sua Eleição, apparecendo a todas as
freguezias enternecidas como um fidalgo deshumano!...--Atirou a penna
furiosamente:

--Que massada! Dize á creatura que me deixe, que se não afflija... O
Snr. Aministrador ámanhã manda soltar o Casco. Eu mesmo vou a
Villa-Clara, antes d'almoço, para pedir. Que se não afflija, que não
aterre os pequenos... Corre, dize, homem!

Mas o Bento não despegava da porta:

--Pois a Rosa e eu já lhe dissemos... Mas a mulherzinha não acredita,
quer pedir ao Snr. Dr.! Veio por baixo d'agoa. Até um dos pequenitos
está bem doentinho, ainda não fez senão tremer...

Então Gonçalo, sensibilisado, atirou á meza um murro que tresmalhou as
tiras da Novella:

--Ora se uma cousa d'estas se atura! Um homem que me quiz matar! E
agora, por cima, é sobre mim que desabam as lagrimas, e as scenas, e a
creança doente! Não se pode viver n'esta terra! Um dia vendo casa e
quinta, emigro para Moçambique, para o Transvaal, para onde não haja
massadas... Bem, dize á mulher que já desço.

O Bento approvou, com effusão:

--Pois se o Snr. Dr. lhe não custa... E como é para dar uma boa nova...
Sempre consola a pobre mulherzinha!...

--Lá vou, homem, lá vou! Não me masses tambem... Impossivel trabalhar
n'esta casa! Outra noite perdida!

Enfiou violentamente para o quarto, atirando as portas--com a ideia de
metter na algibeira do roupão duas notas de dez tostões que consolariam
os pequenos. Mas, deante da gaveta, recuou, vexado. Que brutalidade,
compensar com dinheiro creancinhas--a quem elle arrancára o pae,
algemado, para o trancar n'uma enxovia! Agarrou simplesmente n'uma
boceta de alperces seccos--dos famosos alperces do Convento de
Santa-Brigida de Oliveira, que na vespera lhe mandára Gracinha. E,
cerrando lentamente o quarto, já se arrependia da sua severidade, tão
estouvada, que assim desmanchava a quietação de um casal. Depois no
corredor, ante a chuva clamorosa que dos telhados se despenhava nas
lages do pateo, ainda mais doridamente se impressionou, com a imagem da
pobre mulher, tresloucada pela negra estrada, puxando os filhinhos
encharcados, moídos, contra a tormenta solta. E ao penetrar no corredor
da cozinha--tremia como um culpado.

Atravez da porta envidraçada sentiu logo a Rosa e o Bento consolando a
mulher, com palradora confiança, quasi risonhos. Mas os «ais» d'ella, os
ruidosos lamentos pelo «seu rico homem», resoavam, mais agudos, como a
rebater e a abafar toda a consolação. E apenas Gonçalo empurrou
timidamente a porta--quasi acuou no espanto e medo d'aquella afflicção
estridente que se arremessava para elle e para a sua misericordia! De
rojos nas lages, torcendo as magras mãos sobre a cabeça, toda de negro,
parecendo mais negra e dolorosa contra a vermelhidão do lençol estendido
que seccava ao lume forte da lareira--a creatura estalára n'um tumulto
de supplicas e gritos:

--Ai, meu rico Senhor, tenha compaixão! Ai, que me prenderam o meu
homem, que m'o vão mandar para a Africa degredado! Jesus, meus filhinhos
da minha alma que ficam sem pae! Ai, pelas suas almas, meu senhor, e por
toda a sua felicidade!... Eu sei que elle teve culpa! Aquillo foi
perdição que lhe deu! Mas tenha piedade d'estas creancinhas! Ai, o meu
pobre homem que está a ferros! Ai, meu rico Senhor, por quem é!

Com as palpebras humedecidas, agarrando desesperadamente, a boceta
d'alperces, Gonçalo balbuciava, atravez da emoção que o estrangulára:

--Oh mulher, socegue, já o vão soltar! Socegue! Já dei ordem! Já o vão
soltar!

E d'um lado a Rosa, debruçada sobre a escura creatura que gemia,
recomeçava docemente:--«Pois foi o que lhe dissemos, tia Maria! Logo
pela manhã, o vão soltar!»--E do outro o Bento, batendo na coxa, com
impaciencia:--«Oh mulher, acabe com esse escarceu! Pois se o Snr. Dr.
prometteu! Logo pela manhã o vão soltar!»

Mas ella não se calmava, com o lenço da cabeça desmanchado, uma trança
desprendida, soluçando e clamando atravez dos soluços:

--Ai que eu morro, se o não vejo solto! Ai perdão, meu rico Senhor da
minha alma!...

Então Gonçalo, que aquelle infindavel e obtuso queixume torturava, como
um ferro cravado e recravado, bateu o chinello nas lages, berrou:

--Escute, mulher! E olhe para mim! Mas de pé, de pé!... E olhe bem, olhe
direita!

Hirtamente erguida, atirando as mãos para as costas como a escapar
d'algemas que tambem a ameaçassem--ella arregalou para o Fidalgo os
olhos espavoridos, fundos olhos pretos, de fundas olheiras tristes, que
lhe enchiam a face rechupada e morena.

--Bem, perfeitamente! exclamava Gonçalo. E agora diga! Acha que tenho
bojo de lhe mentir, quando vocemecê está n'essa afflicção? Pois então
socegue, acabe com os gritos, que, sob minha palavra, ámanhã cedo, o seu
homem está solto!

E a Rosa e o Bento, ambos triumphando:

--Pois que lhe dizia a gente, creatura de Deus? Se o Snr. Dr. tinha
promettido... Ámanhã lá tem o homem!

Lentamente ella limpava as lagrimas, já silenciosas, á ponta do avental
negro. Mas, ainda desconfiada, com os tenebrosos olhos mais arregalados,
devorando Gonçalo. E o Fidalgo mandava com certeza a ordem, cedinho, de
madrugada?...--Foi o Bento que a convenceu, com violencia:

--Oh mulher, vossê até parece atrevida! Ora essa! Pois duvida da palavra
do Snr. Dr.?

Ella soltou o avental, baixou a cabeça, suspirou simplesmente:

--Ai, então muito obrigada, seja pela felicidade de todos...

E agora a curiosidade de Gonçalo procurava os pequenos que ella
acarretára desde os Bravaes atravez da chuva cerrada. A pequenina de
mama dormia com beatitude sobre a tampa de uma arca, onde a boa Rosa a
aconchegára entre mantas e fronhas. Mas o pequeno, de sete annos,
encolhido n'uma cadeira deante do lume, rente ao lençol que seccava,
seccando tambem, com a carinha afogueada de febre, tossia
despedaçadamente, n'um cabecear de somno e cançasso, a arquejar, a gemer
contra a tosse que o esfalfava. Gonçalo pousou a boceta de alperces na
arca, palpou a mão com que elle, sem cessar, raspava pela abertura da
camisa encardida o peito ainda mais encardido.

--Mas esta creanca tem febre!... E vossê, com uma noite d'estas, traz o
pequeno assim desde os Bravaes, mulher?

Da cadeirinha baixa, onde se sentára prostrada, ella murmurou, sem
erguer a magra face, torcendo a ponta do avental:

--Ai! era para que elles tambem pedissem, que estavam sem pae,
coitadinhos!

--Vocemecê é doida, mulher! E pretende talvez voltar para os Bravaes,
debaixo d'agoa, com as creanças?

Ella suspirou:

--Ai! volto, volto... Não posso deixar sózinha a mãe do meu homem, que
tem oitenta annos e está entrevada.

Então o Fidalgo cruzou descorçoadamente os braços--no embaraço d'aquella
aventura, em que, por culpa da sua ferocidade, se arriscavam duas
creanças. Mas a Rosa entendia que a pequenina, a de mama, não soffreria
com a caminhada, bem achegadinha ao collo da mãe, debaixo de uma manta
grossa. Agora o outro, com a tosse, com a febre...

--Esse fica cá! exclamou logo Gonçalo, decidido. Como se chama elle?
Manoel... Bem! O Manoel fica cá. E vá descançada, que a Sr.^a Rosa toma
cuidado. Precisa uma boa gemada, depois um bom suadoiro. Um d'estes dias
lá lhe apparece nos Bravaes, curado e mais gordo... Vá socegada!

De novo a mulher suspirou, no cançasso immenso que a invadira, a
amollecia. E sem resistir, no seu longo e abatido habito de submissão:

--Pois sim senhor, se o Fidalgo manda, está muito bem...

O Bento, entreabrindo a porta do pateo, annunciava uma «aberta», o
negrume a levantar. Gonçalo immediatamente apressou a volta aos Bravaes:

--E não tenha medo, mulher. Vae um moço da quinta com uma lanterna, e um
guarda chuva para abrigar a pequena... Escute! Vocemecê até podia levar
uma capa de borracha!... Oh Bento, corre, desce a minha capa de
borracha. A nova, a que comprei em Lisboa...

E quando o Bento trouxe o «impermeavel» de longa romeira, o lançou por
sobre os hombros da mulher, que o estofo rico intimidava, com o seu
ruge-ruge de seda--foi na cozinha uma divertida risada. O pranto
passára, como a chuva. Agora era uma visita amoravel, findando n'um
arranjo alegre d'agasalhos. A Rosa apertava as mãos, banhada de gosto:

--Assim é que vocemecê fica uma bonita Madama, hein!... Se fosse de dia,
olhe que se juntava gente!

A mulher sorria emfim, descoradamente, sem interesse:

--Ai! nem sei que pareço... Que avantesma!

Atravez do pateo, onde as acacias gottejavam docemente, Gonçalo
acompanhou o rancho até á porta do pomar, gritando ainda--«Agasalhem bem
a pequena!»--quando já a lanterna do moço se fundia na humida espessura
da noite acalmada. Depois, na cozinha, batendo contra as lages as solas
dos chinellos molhados, apalpou novamente o Manoelsinho, que adormecera
n'um somno rouquejado, torcido sobre as costas da cadeira.

--Tem pouca febre... Mas precisa um suadoiro forte. E, antes de o
cobrirem bem, um leite quente, quasi a ferver, com cognac... O que elle
precisava tambem era esfregado a côco... Que porcaria de gente! Emfim
fica para mais tarde, quando se curar... E agora, oh Rosa, mande acima
alguma cousa para eu cear, cousa solida, que não jantei, e o sarau foi
tremendo!

Na livraria, depois de mudar os chinellos, descançar, Gonçalo escreveu
ao Gouveia uma carta reclamando com commovida urgencia a liberdade do
Casco. E accrescentava:--«É o primeiro pedido que lhe faz o deputado por
Villa-Clara (comprimente!), porque acabo de receber telegramma do nosso
André, annunciando que «_tudo feito, ministro concorda, etc._» De sorte
que precisamos communicar! Queira pois vossa mercê vir jantar ámanhã a
esta sua Torre, á sombra do Titó e com acompanhamento de Videirinha.
Estes dous benemeritos são indispensaveis para que haja appetite e
harmonia. E rogo, Gouveia amigo, que os avise do festim, para me evitar
a remessa de circulares eloquentes...»

Lacrada a carta, retomou languidamente o manuscripto da Novella. E,
trincando a rama da penna, ainda procurou vozes, de bom sabor medieval,
para aquelle lance em que o Villico e as roldas enxergavam a cavalgada
do Bastardo, pela encosta da Ribeira, com refulgidos d'armas, sob o rijo
sol d'Agosto...

Mas a sua imaginação, desde a carta escripta ao Gouveia pelo «Deputado
de Villa-Clara» escapava desassocegadamente da velha Honra de Santa
Ireneia--esvoaçava teimosamente para os lados de Lisboa, da Lisboa do S.
Fulgencio. E o eirado da torre albarran, onde o gordo Ordonho gritava
esbaforido--incessantemente se desfazia como nevoa molle, para sobre
elle surgir, appetitoso e mais interessante, um quarto do Hotel Bragança
com varanda sobre o Tejo... Foi um allivio quando o Bento o apressou
para a ceia. E á mesa espalhou livremente a imaginação por Lisboa, pelos
corredores de S. Carlos, por sob as arvores da Avenida, atravez dos
antiquados palacios dos seus parentes em S. Vicente e na Graça, atravez
das salas mais modernas de cultos e alegres amigos--parando ás vezes
deante de visões que considerava com um riso deleitado e mudo. Alugaria
aos mezes, certamente, uma carruagem da Companhia. E para as sessões de
S. Bento sempre luvas côr de perola, uma flor no peito. Por commodidade
levava o Bento, bem apurado, com casaca nova...

O Bento entrou com a garrafa do cognac n'uma salva. Dera a carta ao
Joaquim da Horta com a recommendação de correr logo ás seis horas a casa
do Snr. Administrador, de se demorar na Villa por deante da Cadeia até
soltarem o Casco.

--E já deitamos o pequeno no quarto verde. Fica perto de mim, que tenho
o somno leve, se elle berrar... Mas já dorme regaladamente.

--Está socegado, hein? acudiu Gonçalo, sorvendo á pressa o calice de
cognac. Vamos vêr esse cavalheiro!

E tomou um castiçal, subiu ao quarto verde com o Bento, sorrindo,
abafando os passos pela estreita escada. No corredor, junto da poria,
n'um desbotado camapé de damasco verde, a Rosa dobrára carinhosamente a
roupa trapalhona do pequeno, o collete esgaçado, as calças enormes, só
com um botão. Dentro o leito de pau preto, vasto leito de ceremonia,
atravancava a parede forrada d'um velho papel avelludado de ramagens
verdes. Ao lado dos dous postes torneados, á cabeceira, pendiam dous
paineis, retratos de antigos Ramires, um Bispo obeso folheando um folio,
um formoso Cavalleiro de Malta, de barba ruiva, appoiado á espada, com
um laçarote de rendas sobre a couraça polida. E nos altos colchões o
Manoelzinho resonava, sem tosse, quieto, abafado pela grossura dos
cobertores, humedecido por um suor fresco e sereno.

Gonçalo, caminhando sempre de leve, repuxou cuidadosamente a dobra do
lençol. Desconfiado das janellas decrepitas, experimentou que não
entrasse traiçoeiro ar pelas gretas. Mandou pelo Bento buscar uma
lamparina, que arranjou sobre o lavatorio, com a luz esbatida por traz
d'uma vazilha. Ainda attentamente relanceou os olhos lentos pelo quarto,
para se assegurar do socego, do silencio, da penumbra, do conforto. E
sahiu, sempre na ponta dos pés, sorrindo, deixando o filho do Casco
velado pelos dous nobres Ramires--o Bispo com o seu Tratado, o
Cavalleiro de Malta com a sua pura espada.

Recolhendo do Tanque-Velho, do fundo da quinta, onde passára a calma,
depois do almoço, na frescura do arvoredo, entre susurros de agoas
correntes, a folhear um volume do _Panorama_--Gonçalo encontrou sobre a
mesa da livraria, com o correio de Oliveira, uma carta que o
surprehendeu, enorme, em papel almaço, fechada por uma obreia. E dentro
a assignatura, desenhada a tinta azul, era um coração chammejante.

N'um relance devorou as linhas, pautadas a lapis, d'uma lettra gorda,
arredondada com esmero:--«Caro e Ex.^{mo} Snr. Gonçalo Ramires. O
galante Governador civil do Districto, o nosso atiradiço André
Cavalleiro, passeiava agora coastantemente por deante dos Cunhaes,
olhando com ternura para as janellas e para o honrado brazão dos
Barrôlos. Como não era natural que andasse a estudar a architetura do
Palacete (que nada tem de notavel), concluiu a gente seria que o digno
Chefe do Districto esperava que V. Ex.^a apparecesse a alguma das
janellas do Largo, ou das que deitam para a rua das Tecedeiras, ou
sobretudo _no mirante do Jardim_, para reatar com V. Ex.^a a antiga e
quebrada amizade. Por isso muito acertadamente procedeu V. Ex.^a em
correr pessoalmente ao Governo Civil, e propor a reconciliação, e abrir
os braços generosos ao velho amigo, evitando assim que a primeira
Auctoridade do Districto continuasse a esbanjar um tempo precioso
n'aquelles passeios, de olhos pregados no Palacete dos fidalguissimos
Barrôlos. Enviamos portanto a V. Ex.^a os nossos sinceros parabens por
esse acertado passo que deve calmar as impaciencias do fogoso Cavalleiro
e redondar em beneficio dos serviços publicos!»

Revirando o papel nas mãos, Gonçalo pensou:

--É das Louzadas!

Ainda estudou a lettra, as expressões, descortinando que _redundar_ fora
escripto com um O, _architectura_ sem C. E rasgou furiosamente a grossa
folha, rosnando no silencio da livraria:

--Aquellas bebadas!

Sim, era d'ellas, das odiosas Louzadas! E essa origem mais o
aterrava--porque maledicencia, lançada por tão ardentes espalhadoras de
maledicencias, já certamente penetrára em todas as casas d'Oliveira,
mesmo na Cadeia, mesmo no'Hospital! E agora a cidade divertida, lambendo
o escandalo, relacionava perfidamente os rodeios do André pelos Cunhaes
com essa sua visita ao Governo Civil que assombrára a Arcada. Na ideia
pois d'Oliveira, e sob a inspiração das Louzadas--fôra elle, elle,
Gonçalo Mendes Ramires, que arrancára o Cavalleiro á sua Repartição, o
conduzira serviçalmente ao Largo d'El-Rei, lhe escancarára as portas do
Palacete até ahi rondadas e miradas sem proveito, e com sereno descaro
alcovitára os amores da irmã! Se taes desavergonhadas não mereciam que
lhes arregaçassem as sujas saias no meio da Praça, em manhã de Missa, e
lhes fustigassem as nadegas melladas, furiosamente, até que o sangue
ensopasse as lages!...

E, para maior damno, as apparencias todas se combinavam contra elle,
traidoramente! Essa insistencia de André, cocando Gracinha, estrondeando
a calçada em torno do Palacete, crescera, impressionava, justamente
agora, n'este Agosto, nas vesperas d'essa sua apparição á janella do
Governo Civil, que Oliveira commentava como um misterio historico. Que
inopportunamente morrera o animal do Sanches de Lucena! Mezes antes, nem
mesmo a malicia das Louzadas ligaria a sua reconciliação com André a um
cêrco amoroso que não começára, ou não andava tão murmurado. Tres ou
quatro mezes depois, André, sem esperança ante o Palacete inaccessivel,
certamente findaria os seus giros pelo Largo, de rosa ao peito! Mas não!
infelizmente quando esse André, com maior estrepito, ronda a porta
almejada--é que elle acode, e abraça o rondador, e lhe facilita a porta!
E assim a maledicencia das Louzadas encontrava uma base, a que todos na
cidade podiam palpar a substancia, e a solidez, e sobre ella se erigia
como Verdade Publica! Infames Louzadas!

Mas agora? O que? manter rigidamente as suas relações com o Cavalleiro
dentro da Politica, evitando escorregadias intimidades que o tornassem
logo nos Cunhaes, como outr'ora na Torre, o conviva desejado? Como
poderia? Desde que elle se reconciliava com André, logo e tão
naturalmente como a sombra segue a inclinação do ramo, se reconciliava
tambem o Barrôlo, seu cunhado e sua sombra... Mas como impôr ao Barrôlo
que a sua renovada familiaridade com o Cavalleiro se realisasse
unicamente dentro da Politica como dentro d'um Lazareto?--«Eu sou outra
vez o velho amigo do André, tu, Barrôlo, tambem--mas nunca o convides
para a tua mesa, nem lhe abras a tua porta!»--Imposição desconcertada,
de dura impertinencia--e que, na pequena Oliveira, logo os faceis
encontros, a simplicidade hospitaleira do Barrôlo, quebrariam como um
barbante poido... E depois que grotesca attitude a sua, hirto deante do
portão do Palacete, como um Archanjo S. Miguel, de bengala de fogo na
mão, para sustar a intrusão de Satanaz, Chefe do Districto! Mas tambem
que toda a cidade largasse a cochichar pelos cantos o nome de Gracinha
embrulhado ao nome de André, com o nome d'elle, Gonçalo, emmaranhado
atravez como o fio favoravel que os atára--era horrivel.

E na impaciencia d'esta difficuldade, de malhas tão asperas, que tanto o
feriam, terminou por esmurrar a meza, revoltado:

--Irra, que massada! São tudo massadas, n'estas terras pequenas e
coscovilheiras...

Em Lisboa quem se importaria que o Snr. Governador civil passeasse n'um
certo Largo--e que certo Fidalgo da Torre se reconciliasse com o Snr.
Governador Civil?... Pois acabou! Romperia soberbamente para diante,
como se habitasse Lisboa, desafogado de mexericos e de malignos olhinhos
a cocar. Era Gonçalo Mendes Ramires, da casa de Ramires! Mil annos de
nome e de solar! Dominava bem acima de Oliveira, de todas as suas
Louzadas. E não só pelo nome, louvado Deus, mas pelo espirito... O André
era seu amigo, entrava em casa de sua irmã--e Oliveira que estoirasse!

E nem consentiu que a suja carta das Louzadas desmanchasse a quieta
manhã de trabalho para que se preparára desde o almoço, relendo trechos
do Poemeto do Tio Duarte, folheando artigos do _Panorama_ sobre as
guerras de muralhas no seculo XII. Com um esforço d'attenção erudita
abancou, mergulhou a penna no tinteiro de latão que servira a trez
gerações de Ramires. E emquanto repassava as tiras trabalhadas, nunca o
Castello de Santa Ireneia lhe parecera tão heroico, de tão soberana
estatura, sobre tamanha collina d'Historia, sobranceando o Reino, que em
torno d'elle se alargava, se cobria de villas e messes, pelo esforço dos
seus castellões!

Temerosa, com effeito, se erguia a antiga Honra de Santa Ireneia, n'essa
Affonsina manhã d'Agosto e rijo sol, em que o pendão do Bastardo
surgira, entre fulgidos d'armas, para além dos arvoredos da Ribeira! Já
por todas as ameias se apinhavam os besteiros, espiando, encurvadas as
béstas. Das torres e adarves subia o fumo grosso do breu, fervendo nas
cubas, para despejar sobre os homens de Bayão que tentassem a escalada.
O Adail corria pelas quadrellas, relembrando as traças de defeza,
revistando os feixes de virotões, os pedregulhos d'arremesso. E no
immenso terreiro, por entre os alpendres colmados, surdiam velhos
solarengos, servos do forno, servos da abegoaria, que se benziam com
terror, puchavam pelo saião d'algum apressado homem de rolda, para
saberem da hoste que avançava. No emtanto a cavalgada passára a Ribeira
sobre a rude ponte de pau--já, por entre os alamos, serenamente se
acercava do Cruzeiro de granito, outr'ora erguido nos confins da Honra
por Gonçalo Ramires, o _Cortador_. E, no socego da manhã abrazada, mais
fundamente resoaram as buzinas do Bastardo, e o seu toque lento e triste
á mourisca...

Mas quando Gonçalo, enlevado no trabalho, tentava reproduzir, com termos
bem sonoros, avidamente rebuscados no _Diccionario de Synonimos_, o toar
arrastado das buzinas de Bayão--sentiu realmente, do lado da Torre, um
gemer de sons graves que crescia atravez dos limoeiros. Deteve a
penna--e eis que o _Fado dos Ramires_ s'eleva offertadamente da horta,
em serenada, para a varanda florida de madresilva:

    Ora, quem te vê solitaria,
    Torre de Santa Ireneia...

O Videirinha!--Correu alvoroçadamente á janella. Um chapeu côco tremulou
entre os ramos, um brado estrugio, acclamador:

--Viva o deputado por Villa-Clara! Viva o illustre deputado Gonçalo
Ramires!

No violão rompera triumphalmente o Hymno da Carta. Videirinha, alçado na
biqueira das botas gaspeadas de verniz, gritava--«Viva a illustre casa
de Ramires!» E por baixo do chapeu côco, sacudido com delirio, João
Gouveia, sem poupar a garganta, urrava--«Viva o illustre deputado por
Villa-Clara! Viva!»

Magestosamente, Gonçalo, alagado de riso, estendeu da varanda o braço
eloquente:

--Obrigado, meus queridos concidadãos! Obrigado!... A honra que me
fazeis, vindo assim, n'esse formoso grupo, o chefe glorioso da
Administração, o inspirado Pharmaceutico, o...

Mas reparou... E o Titó?

--O Titó não veio?... Oh João Gouveia, você não avisou o Titó?

Repondo sobre a orelha o chapeu côco, o Administrador, que arvorára uma
gravata de setim escarlate, declarou o Titó «um animal»:

--Estava combinado virmos todos trez. Até elle devia trazer uma duzia de
foguetes, para estalar aqui com o Hymno... A reunião era ao pé da
Ponte... Mas o animal não appareceu. Em todo o caso ficou avisado,
avisadissimo... E se não vier, é traidor.

--Bem, subam vocês! gritou Gonçalo. Eu n'um instante me visto. E, para
aguçar o appetite, proponho um vermouth, depois uma volta pela quinta
até ao pinhal!...

Immediatamente Videirinha, têso, empinando o violão, metteu pela rua
larga da horta, recoberta de parreira; e atraz João Gouveia atirava os
passos em cadencia nobre, alçando o guarda-sol como um pendão. Quando
Gonçalo entrou no quarto, berrando pelo Bento e por agoa quente--o _Fado
dos Ramires_ soava, em trinados heroicos, atravez do feijoal, por sob a
janella aberta onde seccava o lençol do banho. E eram as quadras
preferidas do Fidalgo, as quadras em que o grande avô Ruy Ramires,
sulcando os mares de Mascate n'uma urca, encontra trez fortes naus
inglezas, e, do alto do seu castello de prôa, vestido de gran-vermelha,
com a mão no cinto d'anta tauxeado d'ouro e pedras, soberbamente as
intima a que se rendam...

    Todo alegre, e a mão no cinto.
    Junto da Signa Real,
    Gritando ás naus--«Amainae
    Por El-Rei de Portugal!...»

Gonçalo abotoava á pressa os suspensorios, retomára o canto
glorificador--_Todo alegre, a mão no cinto_... _Junto da Signa
Real_...--E, atravez do esforço esganiçado, pensava que com tal linha
d'avós, bem podia desprezar Oliveira e as suas Louzadas horrendas. Mas o
trovão lento de Titó retumbou no corredor:

--Então esse deputado de Villa-Clara?... Já está a vestir a farda?

Gonçalo correu á porta do quarto, radiante:

--Entra, Titó! Os deputados já não usam farda, homem! Mas se a tivesse,
c'os diabos, ia hoje farda, e espadim e chapeu armado, para honrar
hospedes tão illustres!

O outro avançára vagarosamente, com as mãos nas algibeiras da rabona de
velludo côr d'azeitona, o vasto chapeu braguez atirado para a nuca,
desafogando a honesta face barbuda, vermelha de saude e sol:

--Eu, por farda, queria dizer libré... Libré de lacaio.

--Ora essa!?

E o outro mais retumbante:

--Pois o que vaes tu ser, homem, senão um sujeito ás ordens do S.
Fulgencio, _do horrendo careca_? Não lhe serves o chá, quando elle te
mandar; mas, quando elle te mandar votar, votas! Alli, direitinho, ás
ordens! «Oh Ramires, vote lá!» E Ramires, zás, vota... É de escudeiro,
homem, é de escudeiro de libré...

Gonçalo sacudiu os hombros, impaciente:

--Tu és uma creatura das selvas, lacustre, quasi prehistorica... Não
entendes nada das realidades sociaes!... Na sociedade não ha principios
absolutos!...

Mas o Titó, imperturbavel:

--E esse Cavalleiro? Tambem já é rapaz de talento? Tambem já governa bem
o Districto?

Então Gonçalo protestou, picado, com uma roseta forte na face. E quando
negára elle ao André talento ou geito de governar? Nunca! Só rira,
gracejando, da sua pompa, da bigodeira lustrosa... E de resto, o serviço
do Paiz exigia que por vezes se alliassem homens que nem partilhavam os
mesmos gostos, nem procuravam os mesmos interesses!

--E emfim o Snr. Antonio Villalobos vem hoje um moralista muito
terrivel, um Catão com quem se não pode jantar!... Ora foi sempre o
costume dos Philosophos muito rispidos fugir da sala do banquete onde
triumpha o devasso, e protestar comendo na cosinha!

Titó, serenamente, virou as costas magestosas.

--Onde vaes, ó Titó?

--Para a cosinha!

E, como Gonçalo ria, Titó, junto da porta, girando como uma torre que
gira, encarou o seu amigo:

--Sério, sério, Gonçalo! Eleição, reconciliação, submissão, e tu em
Lisboa ás cortezias ao S. Fulgencio, e em Oliveira de braço dado com o
André, tudo isso me parece que destoa... Mas emfim se a Rosa hoje se
apurou, não alludamos mais a cousas tristes!

E Gonçalo bracejava, de novo protestava--quando o violão resoou no
corredor, com as patadas bem marchadas do Gouveia, e o _Fado_ recomeçou,
mais meigo, mais glorificador:

    --Velha casa de Ramires,
    Honra e flor de Portugal!




VI


A casa do Cavalleiro em Corinde era uma edificação dos fins do seculo
XVIII, sem elegancia e sem arte, pintada d'amarello, lisa e vasta, com
quatorze janellas de frente, quasi ao meio d'uma quinta chã, toda de
terras lavradas. Mas uma avenida de castanheiros conduzia, com alinhada
nobreza, ao pateo da frente, ornado por dois tanques de marmore. Os
jardins conservavam a abundancia esplendida de rosas que os tornára
famosos--e lhes merecera em tempos do avô de André, o Desembargador
Martinho, uma visita da Snr.^a D. Maria II. E dentro todas as salas
reluziam d'asseio e ordem, pelos cuidados da velha governanta, uma
parenta pobre do Cavalleiro, a Snr.^a D. Jesuina Rollim.

Quando Gonçalo, que viera da Torre na egoa, atravessou a ante-sala,
ainda reconheceu um dos paineis da parede, fumarento combate de galiões,
que elle uma tarde rasgára jogando o espadão com André. Sob esse painel,
á borda do canapé de palhinha, esperava melancolicamente um amanuense do
Governo Civil, com a sua pasta vermelha sobre os joelhos. E d'uma porta
remota, ao fundo do corredor, André, avisado pelo creado, o fiel
Matheus, gritou alegremente:

--Oh Gonçalo, entra para cá, para o quarto! Sahi da tina... Ainda estou
em ceroulas!

E em ceroulas o abraçou, n'um generoso abraço de parabens. Depois, em
quanto se vestia, por entre as cadeiras atravancadas com o recheio das
malas--gravatas, peugas de sêda, garrafas de perfumes--conversaram do
calor, da jornada enfadonha, de Lisboa despovoada...

--Um horror! exclamava o Cavalleiro aquecendo um ferro de frisar á
lampada d'alcool. Todas as ruas da Baixa em obras, cobertas de caliça,
de poeirada. O Central enfestado de mosquitos. Muito mulato. Uma Tunis,
Lisboa!... Mas emfim, lá combatemos bravamente o bom combate!

Gonçalo sorria, do canto do divan onde se accommodára, entre uma pilha
de camisas de côr e outra de ceroulas com monogramma flammante:

--E então, Andrésinho, tudo arranjado, hein?

O Cavalleiro, deante do toucador, frisava com enlevado esmero as pontas
grossas do bigode. E só depois de o ensopar em brilhantina, d'acamar as
ondas da cabelleira rebelde, de se mirar, de se requebrar, assegurou a
Gonçalo, já inquieto, que a eleição ficára solida...

--Mas imagina tu! Quando appareci em Lisboa, no Ministerio do Reino,
encontrei o circulo promettido ao Pitta, ao Theotonio Pitta, o grande
homem da _Verdade_...

O Fidalgo pulou, despenhando a ruma de camisas:

--E então?...

E então elle mostrára muito asperamente ao José Ernesto a inconveniencia
de dispôr do Circulo como d'um charuto, sem o consultar, a elle,
Governador Civil--e dono do circulo... E como o José Ernesto se
arrebitava, alludia á conveniencia superior do Governo, elle logo,
estendendo o dedo firme:--«Pois Zésinho, flôr, ou trago o Ramires por
Villa-Clara, ou me demitto, e arde Troia!...» Espantos, escarceus,
berreiros--mas o José Ernesto cedêra, e tudo findou jantando ambos em
Algés com o tio Reis Gomes, onde á noite, ao «bluff», as senhoras lhe
arrancaram quatorze mil reis.

--Em resumo, Gonçalinho, precisamos conservar os olhos attentos. O José
Ernesto é rapaz leal, meu velho amigo. E depois conhece o meu genio...
Mas ha os compromissos, as pressões... E agora a novidade pittoresca.
Sabes quem se propõe contra ti, pelos Regeneradores?... Adivinha... O
Julinho!

--Que Julinho?... O Julio das photographias?

--O Julio das photographias.

--Diabo!

O Cavalleiro encolheu os hombros, com piedade:

--Arranja dez votos á porta da quinta, tira o retrato a todos os
taverneiros do circulo em mangas de camisa, e continua a ser o
Julinho... Não! só Lisboa me inquieta, a canalha politica de Lisboa!

Gonçalo torcia o bigode, desconsolado:

--Imaginei tudo mais solido, mais inabalavel... Assim com todas essas
intrigas, ainda surde trapalhada... Ainda lá não vou!

O Cavalleiro, ao espelho, esticava o fraque--que experimentára abotoado,
depois repuxadamente aberto sobre o collete de fustão côr de azeitona
onde, no trespasse largo, tufava a gravata de sedinha clara, prendida
por uma saphira. Por fim, encharcando o lenço com essencia de fêno:

--Nós estamos bem alliados, bem consagrados, não é verdade? Então, meu
caro Gonçalo, socega, e almocemos regaladamente!... Creio que este
fraque do nosso Amieiro assenta com certa graça, hein?

--Magnifico! affirmou Gonçalo.

--Bem. Então agora descemos ao jardim, para tu reveres os velhos poisos
e te florires com uma rosa de Corinde.

E logo no corredor, ornado de jarrões da India, de arcas de charão,
enlaçando o braço de Gonçalo, do seu recuperado Gonçalo:

--Pois, meu filho, aqui pisamos ambos de novo os nobres soalhos de
Corinde, como ha cinco annos... E nada mudou, nem um creado, nem uma
cortina! Agora, um d'estes dias, preciso visitar a Torre.

Gonçalo accudiu ingenuamente:

--Oh! a Torre está muito mudada... Muito mudada!

E um embaraçado silencio pesou--como se entre elles surgisse a imagem
entristecida da antiga quinta, no tempo dos amores e das esperanças,
quando André e Gracinha procuravam as ultimas violetas d'Abril, sob o
sorriso tutelar de Miss Rhodes, rente aos humidos muros da Mãe d'Agoa.
Ainda em silencio desceram a escada de caracol--por onde ambos outr'ora
se despenhavam cavalgando o corrimão. E em baixo, n'uma sala abobadada,
rodeada de bancos de madeira com as armas dos Cavalleiros nas espaldas,
André quedou deante da porta envidraçada do jardim, ondeou um gesto
desconsolado e languido:

--Eu tambem, agora, pouco appareço em Corinde. E, comprehendes bem que
não me reteem em Oliveira os cuidados da Administração... Mas este
casarão arrefeceu, alargou, desde a morte da mamã. Ando aqui como
perdido. E acredita, quando cá me demoro, são uns passeios tristonhos
por esses jardins, pela Rua Grande... Ainda te lembras da Rua Grande?...
Vou envelhecendo muito solitariamente, meu Gonçalo!

Gonçalo murmurou, por concordancia, sympathia renovada:

--Eu tambem m'aborreço na Torre...

--Mas tens outro genio!... E eu realmente sou um elegiaco.

Correu, com um esforço, o fecho perro da porta envidraçada. E limpando
os dedos ao lenço perfumado:

--Eu creio que Corinde, agora, só me encantava com grandes cerros
escalvados, grandes rochedos agrestes... Ás vezes, cá dentro d'alma,
necessito o ermo de S. Bruno...

Gonçalo sorria d'aquelle appetite ascetico, murmurado com preciosidade,
atravez da bigodeira torcida a ferro, resplandecente de brilhantina. E
no terraço, junto á balaustrada de pedra enramada d'hera, galhofou,
louvando o areado alinho, o relusente viço do jardim:

--Com effeito, para um discipulo de S. Bruno, que escandalo, todo este
asseio! Mas para um peccador como eu, que delicia!... O jardim da Torre
anda um chavascal.

--A prima Jesuina gosta de flôres. Tu não conheces a prima Jesuina? Uma
velha parenta da mamã, que governa agora a casa. Coitada! e com um
escrupulo, com um amor... Se não fosse a santa creatura, os porcos
fossavam nos canteiros... Meu filho, onde não ha saia, não ha ordem!

Desceram a escadaria redonda, por entre os vasos de louça azul que
trasbordavam de geranios, de secias, de canas da India. Gonçalo recordou
a vespera de S. João em que rolára por aquelles degraus, n'um trambulhão
tremendo, com os braços carregados de foguetes. E lentamente, atravez do
jardim, evocavam memorias da camaradagem antiga. Lá se conservava o
trapezio, dos tempos em que ambos cultivavam a religião heroica da
força, da gymnastica, do banho frio... N'aquelle banco, sob a magnolia,
lera uma tarde André o primeiro canto do seu Poema, o _Fronteiro
d'Arzilla_. E o alvo? O alvo onde se exerciam á pistola, para os futuros
duellos, inevitaveis na campanha que ambos meditavam contra o velho
Syndicato Constitucional?...--Oh! toda essa parte do muro, que pegava
com o lavadoiro, fôra derrubada depois da morte da mamã, para alargar a
estufa...

--De resto o alvo era inutil! accrescentou o Cavalleiro. Eu logo por
esse tempo entrei tambem no Syndicato... E agora entras tu, pela porta
que eu te abro!

Então Gonçalo, que colhêra e esmagava entre os dedos, para lhe sorver o
perfume, folhas de lucia-lima--acudiu com uma franqueza, que aquelle
desenterrar de recordações tornava mais penetrante e sentida:

--E eu desejo entrar, e ardentemente, bem sabes. Mas tu afianças a
eleição, com segurança? Não surgirá difficuldade, Andrésinho?... Esse
Pitta é um habil!

O Cavalleiro murmurou apenas, mergulhando os dedos nas cavas do collete:

--Da habilidade dos Pittas se ri a força dos Cavalleiros...

Por trez degraus de tijolo baixaram ao outro jardim, desafogado de
arvoredo e sombra, onde desabrochava desde Maio, com explendor, o tão
celebrado bosque de roseiras, orgulho da quinta de Corinde, que
deleitára uma Rainha. Aquelle facil desdem pelo Pitta confirmava a
segurança da Eleição. Gonçalo, caminhando respeitosamente como n'um
Museu, regou de louvores deslumbrados as rosas do Cavalleiro:

--Uma belleza, André, uma maravilha! Tens aqui rosas sublimes...
Aquellas repolhudas, além, que luxo! E estas amarellas? deliciosas!...
Olha este encanto! o ruborsinho a surdir, a raiar, do fundo das petalas
brancas... Oh, que escarlate! Oh, que divino escarlate!

O Cavalleiro cruzára os braços, com gracejadora melancolia:

--Pois vê tu! Tal é a minha solidão social e sentimental que, com todas
estas rosas abertas, não tenho a quem mandar um ramo!... Estou reduzido
a florir as Louzadas!

Um escarlate, mais vivo do que as rosas que gabava, cobriu as faces do
Fidalgo:

--As Louzadas! Oh que desavergonhadas!

André atirou ao seu amigo os lustrosos olhos, n'um inquieto reparo de
curiosidade:

--Por quê?... Desavergonhadas, por quê?

--Por quê? Por que o são! Pela sua natureza, e pela vontade de Deus!...
São desavergonhadas como estas rosas são vermelhas.

E o Cavalleiro, tranquillisado:

--Ah, genericamente... Com effeito têm immensa peçonha. Por isso eu as
cubro de rosas. E em Oliveira, todas as semanas, meu filho, tomo com
ellas um chá respeitoso!

--Pois não as amansas, rosnou o Fidalgo.

Mas o Matheus apparecêra nos degraus de tijolo com o guardanapo na mão,
a calva rebrilhando ao sol. Era o almoço. O Cavalleiro colheu para
Gonçalo uma «rosa triumphal»--e para si um «botão innocente...» E,
enflorados, subiam para o terraço entre o brilho e o perfume de outras
roseiras--quando o Cavalleiro parou com uma ideia:

--A que horas vaes tu para Oliveira, Gonçalinho?

O Fidalgo hesitou. Para Oliveira?... Não tencionava apparecer em
Oliveira, toda essa semana...

--Por quê? É urgente que vá a Oliveira?

--Pois certamente, filho! Ámanhã mesmo precisamos conversar com o
Barrôlo, combinarmos, por causa dos votos da Murtosa!... Meu querido
Gonçalo, não podemos adormecer. Não é pelo Julio, é pelo Pitta!

--Bem! bem! acudio logo Gonçalo, assustado. Parto para Oliveira.

--Por que então, continuava André, vamos ambos logo, a cavallo. É um
bonito passeio pelos Freixos, sempre com sombra... Tens talvez de mandar
á Torre, por causa de roupa...

Não! Gonçalo, para evitar a importunidade de malas, conservava nos
Cunhaes um bragal inteiro, desde a chinella até á casaca. E entrava em
Oliveira como o Philosopho Bias em Athenas--com uma simples bengala e
paciencia infinita...

--Delicioso! declarou André. Fazemos então logo a nossa entrada official
em Oliveira. É o começo da campanha.

O Fidalgo torcia o bigode, consternado, pensando nos risinhos perversos
das Louzadas, de toda a cidade, perante uma entrada tão apparatosamente
fraternal. E, quando o Cavalleiro recommendou ao Matheus que mandasse
apromptar o _Rossilho_ e a egoa do Fidalgo para as quatro horas e meia,
Gonçalo exagerou o seu receio do calor, da poeira. Antes partissem ás
sete, pela fresca! (Assim esperava penetrar em Oliveira
desapercebidamente, esbatido no crepusculo). Mas André protestou:

--Não, é uma secca, chegamos á noite. Precisamos entrar com solemnidade,
á hora da musica no Terreiro... Ás cinco, hein?

E Gonçalo, vergando os hombros sob a Fatalidade:

--Pois sim, ás cinco.

Na sala de jantar, esteirada, com denegridos paineis de flôres e fructas
sobre um papel vermelho imitando damasco, André occupou a veneranda
cadeira de braços do avô Martinho. O brilho das pratas, a frescura das
rosas n'uma floreira de Saxe, revelavam os desvelos da prima
Jesuina--que, com dôr d'entranhas n'essa manhã, não se vestira, almoçava
no quarto... Gonçalo louvou aquella elegante ordem, tão rara n'uma casa
de solteirão, lamentando a falta de uma prima Jesuina na Torre... E
André sorria deliciadamente, desdobrando o guardanapo, com a esperança
que Gonçalo contasse aos Barrôlos o confortavel luxo de Corinde. Depois,
picando com o garfo uma azeitona:

--Pois é verdade, meu querido Gonçalo, lá estive n'essa grande Capital,
depois um dia em Cintra...

O Matheus entre-abriu a porta para recordar a S. Ex.^a o amanuense do
Governo Civil, que esperava.

--Pois que espere! gritou S. Ex.^a.

Gonçalo lembrou que talvez o digno homem se impacientasse, com fome...

--Pois que almoce! gritou S. Ex.^a.

Aquelle secco desprezo de André pelo pobre empregado, esquecido no banco
d'entrada, com a sua pasta sobre os joelhos--constrangia o Fidalgo. E
espetando tambem uma azeitona:

--Dizias então, Cintra...

--Semsabor, resumiu André. Poeirada horrenda, femeaço mediocre... E já
me esquecia. Sabes quem lá encontrei, na estrada de Collares? O
Castanheiro, o nosso Castanheiro, o dos _Annaes_, de chapéo alto. Ergueu
logo os braços ao céo, desolado:--«E então esse Gonçalo Mendes Ramires
não me manda o romance?» Parece que o primeiro numero da Revista sae em
Dezembro, e elle precisa o original em começos d'Outubro... Lá me
supplicou que te saccudisse, que te recordasse a gloria dos Ramires. E
tu devias acabar a Novella... Até convem que, antes d'entrares na
Camara, appareça um trabalho teu, um trabalho serio, d'erudição forte,
bem portuguez...

--Pois convem! concordou vivamente Gonçalo. E á Novella só falta o
Capitulo quarto. Mas esse justamente demanda mais preparação, mais
pesquizas... Para o acabar precisava o espirito bem socegado, a certeza
d'esta infernal eleição... Não é o animal do Julio que me inquieta. Mas
a canalha intrigante de Lisboa... Que te parece?

Cavalleiro riu, estendendo de novo o garfo para as azeitonas:

--Que me parece, Gonçalinho? Que estás como uma creança pequena,
afflicta, com medo que te não chegue o prato de arroz doce. Socega,
menino, apanhas o teu arroz doce!... Mas com effeito, encontrei o José
Ernesto muito teimoso. Já existiam compromissos antigos com o Pitta. _A
Verdade_ tem sido furiosamente ministerial... E esse Pitta, agora quando
souber que lhe tapei Villa-Clara, arde em furor contra mim. O que me é
soberanamente indifferente; colerasinhas ou piadinhas do Pitta não me
tiram o appetite... Mas o José Ernesto admira o Pitta, necessita do
Pitta, está empenhado em pagar ao Pitta com um circulo... Ainda no
ultimo dia me disse na Secretaria, até lhe achei graça:--«Eu vejo que os
deputados por Villa-Clara morrem; ora se, por esse bom costume, o teu
Ramires morrer em breve, então entra o Pitta.»

Gonçalo recuou a cadeira:

--Se eu morrer!... Que animal!

--Oh, se morreres para o Circulo! atalhou o Cavalleiro rindo. Por
exemplo, se nos zangassemos, se ámanhã entre nós surgisse uma
dissidencia... Emfim o impossivel!

O Matheus entrava com a terrina de caldo de gallinha, que rescendia.

--A elle! exclamou André. E não se falle mais de Circulos, nem de
Pittas, nem de Julios, nem da negregada Politica!... Conta antes o
enredo da tua Novella... Historica, hein?... Meia-idade? D. João V?...
Eu, se tentasse agora um Romance, escolhia uma epocha deliciosa,
Portugal sob os Philippes...

       *       *       *       *       *

Os tres quartos, depois das seis, batiam no relogio sempre adeantado da
Egreja de S. Christovão, em Oliveira, quando André Cavalleiro e Gonçalo,
descendo da rua Velha, penetraram no Terreiro da Louça (agora _Largo do
Conselheiro Costa Barroso_).

Todos os Domingos, tocando n'um coreto que o Conselheiro, quando
Presidente da Camara, mandára construir sobre o velho Pelourinho
demolido, a charanga do Regimento ou a philarmonica _Lealdade_ tornavam
aquelle Largo o centro mais sociavel da quieta e caseira cidade. N'essa
tarde, porém, como começára no Convento de Santa Brigida o bazar
patrocinado pelo Bispo, as senhoras rareavam nos bancos de pedra e nas
cadeiras do Asylo espalhadas por sob as acacias. As Louzadas faltavam no
seu pouso reservado, superiormente escolhido para espiarem todo o
Terreiro, as casas que o cerram do lado de S. Christovão e do lado das
Trinas, a rua Velha e a rua das Vellas, a barraca da limonada, e até
outro retiro pudicamente disfarçado por uma canniçada de heras. E o
unico rancho conhecido, D. Maria Mendonça, a Baroneza das Marges, as
duas Alboins, conversavam com as costas para o Terreiro, junto da grade
de ferro que o limita sobre a antiga muralha--d'onde se dominam campos,
a cêrca do Seminario Novo, todo o pinhal da Estevinha e as voltas
lustrosas da ribeira de Crêde.

Mas entre os cavalheiros que trilhavam vagarosamente a alêa do Largo
denominada o «Picadeiro», gosando a _Marcha do Propheta_, o espanto
reviveu (apezar de todos conhecerem a reconciliação famosa do Governo
Civil) quando os dous amigos appareceram, ambos de chapéos de palha,
ambos de polainas altas, ao passo solemne das duas egoas--a de Gonçalo
airosa e baia de cauda curta á ingleza, a do Cavalleiro pesada e preta,
de pescoço arqueado, a cauda farta rojando as lages. Mello Alboim, o
Barão das Marges, o Dr. Delegado, pararam n'uma fila pasmada, a que se
juntou um dos Villa-Velhas, depois o morgado Pestana, depois o gordo
major Ribas com a farda desabotoada, rebolando e galhofando sobre
«aquella amigação...» O tabellião Guedes, o Guedes _pôpa_, derrubou a
cadeira no alvoroço com que se ergueu, indignado mas respeitoso,
descobrindo a calva n'uma cortesia immensa em que o chapeu branco lhe
tremia. E o velho Cerqueira, o advogado, que sahia do retiro encanniçado
d'hera e se abotoava, embasbacou, com os oculos na ponta do nariz
alçado, os dedos esquecidos nos botões das calças.

No emtanto os dous amigos, gravemente, seguiam pela correnteza de casas
que o palacete de D. Arminda Villegas domina, com o pesado brazão dos
Villegas na cimalha, as suas dez nobres varandas de ferro opulentadas
por cortinas de damasco amarello. Na varanda d'esquina, o Barrôlo e José
Mendonça fumavam, sentados em mochos de palhinha. E ao sentir as patas
lentas das egoas, ao avistar tão inesperadamente o cunhado--o bom
Barrôlo quasi se despenhou da varanda:

--Oh Gonçalo! Oh Gonçalo!... Vaes lá para casa?

E nem esperou uma certeza, berrou de novo, bracejando:

--Nós já vamos! Jantámos cá esta tarde... A Gracinha está lá em cima,
com a tia Arminda. Vamos já tambem! É um momento!

O Cavalleiro acenou risonhamente ao capitão Mendonça. Já Barrôlo
mergulhára com enthusiasmo para dentro dos damascos amarellos. E os dois
amigos, deixando pelo Terreiro aquelle sulco de espanto, penetraram na
rua das Vellas onde um Policia se perfilou com a mão no bonet--o que foi
agradavel ao Fidalgo da Torre.

O Cavalleiro acompanhou Gonçalo ao Largo d'El-Rei. Deante do Palacete um
homem de boina vermelha remoía no seu realejo o côro nupcial da _Lucia_,
espiando as janellas desertas. O Joaquim da Porta correu do pateo a
segurar a egoa do Fidalgo. Com um mudo sorriso o tocador estendera a
boina. E depois de lhe atirar um punhado de cobre--Gonçalo hesitou,
murmurou emfim, com embaraço e corando:

--Não queres entrar e descançar, André?...

--Não, obrigado... Então ámanhã ás duas, no Governo Civil, com o
Barrôlo, para combinarmos sobre os votos da Murtosa... Adeus, minha
flôr! Démos um bello passeio e espantamos os povos!

E S. Ex.^a, envolvendo o Palacete n'um demorado olhar, desceu pela rua
das Tecedeiras.

No seu quarto (sempre preparado, com a cama feita) Gonçalo acabava de se
lavar, de se escovar, quando Barrôlo se precipitou pelo corredor,
esbofado, soffrego--e atraz d'elle Gracinha, offegante tambem,
desapertando nervosamente as fitas escarlates do chapeu. Desde a tarde
em que Barrôlo «presenceára com os olhos bem acordados!» a palestra de
Gonçalo e de André na varanda do Governo Civil--fervera n'elle e em
Gracinha uma impaciencia desesperada por penetrar os motivos, a
encoberta historia d'aquella reconciliação surprehendente. Depois a fuga
de Gonçalo na caleche para a Torre, sem parar nos Cunhaes; a repentina
jornada do Cavalleiro a Lisboa; o silencio que sobre aquelle caso se
abatera mais pesado que uma tampa de ferro--quasi os aterrou. Gracinha á
noite, no Oratorio, murmurava atravez das resas distrahidas:--«Oh, minha
rica Nossa Senhora, que será?»--Barrôlo não ousára correr á Torre; mas
até sonhava com a varanda do Governo Civil, que lhe apparecia enorme,
crescendo, atravancando Oliveira, roçando já as janellas dos Cunhaes
d'onde elle a repellia com o cabo d'uma vassoura... E eis agora Gonçalo
e André que entram na cidade a cavallo, muito serenamente, ambos de
chapeus de palha, como companheiros constantes recolhendo d'um passeio!

Logo á porta do quarto, Barrôlo atirou os braços, rompeu aos brados:

--Então que tem sido tudo isto?... Não se falla n'outra coisa!... Tu com
o André!

Gracinha, arfando, tão vermelha como as fitas do chapeu, só balbuciava:

--E nem vens, nem escreves... Nós com tanto cuidado...

E mesmo rente da porta aberta, sem se sentarem, o Fidalgo aclarou o
«Mysterio», com a toalha ainda nas mãos:

--Uma cousa muito inesperada, mas muito natural. O Sanches Lucena
morreu, como vocês sabem. Ficou vago o circulo de Villa-Clara. É um
circulo por onde só póde sahir um homem da terra, com propriedade, com
influencia. O governo immediatamente me mandou perguntar, pelo
telegrapho, se eu me desejava propôr... Ora eu, no fundo, estou de bem
com os Historicos, sou amigo do José Ernesto... Estimava entrar na
Camara... Acceitei.

O Barrôlo esmagou a coxa com uma palmada triumphal:

--Então era certo, caramba!

O Fidalgo continuava, enxugando interminavelmente as mãos:

--Acceitei, está claro, com condições; e muito fortes. Mas acceitei...
N'este caso, como vocês sabem, convem que o candidato se entenda com o
Governador Civil. Eu, ao principio, não queria renovar relações. Instado
porém, muito instado de Lisboa, e por considerações superiores de
Politica, consenti n'esse sacrificio. Nas difficuldades em que se
encontra o paiz todos devem fazer sacrificios. Eu fiz esse... O André,
de resto, foi muito amavel, muito affectuoso. De sorte que estamos outra
vez amigos. Amigos politicos: mas muito bem, muito lealmente... Almocei
hoje com elle em Corinde, viemos juntos pelos Freixos. Uma tarde
linda!... Emfim renasceu a antiga harmonia. E a eleição está segura.

--Venham de lá esses ossos! berrou o Barrôlo, transportado.

Gracinha terminára por se sentar á borda do leito, com o chapeu no
regaço, enlevada para o irmão, n'um silencioso enternecimento em que os
seus doces olhos se humedeciam e riam. O Fidalgo, que se desprendera do
abraço do Barrôlo, dobrava a toalha com um vagar distrahido:

--A eleição está segura, mas precisamos trabalhar. Tu, Barrôlo, tens de
conversar tambem com o Cavalleiro. Já combinei. Ámanhã no Governo Civil,
ás duas horas. É necessario que vocês se entendam por causa dos votos da
Murtosa...

--Prompto, menino! o que vocês quizerem! Votos, dinheiro...

E Gonçalo, borrifando vagamente o jaquetão com agua de Colonia que
pingava no soalho:

--Desde o momento em que eu me reconciliei com o André, tudo acabou. Tu,
Barrôlo, immediatamente te reconcilias tambem...

Barrôlo quasi pulou, no seu deslumbramento:

--Pois está claro! E ainda bem, que eu gosto immensamente do Cavalleiro!
Até sempre teimava com Gracinha... «Oh senhores, esta tolice, por causa
da Politica!...»

--Bem! concluiu o Fidalgo. A Politica nos separou, a Politica nos
reune... É o que se chama a inconstancia dos Tempos e dos Imperios.

E agarrou Gracinha pelos hombros, com um beijo brincalhão, estalado em
cada face:

--A tia Arminda? Boa, da escaldadella? Já voltou ás façanhas de _Leandro
o Bello_?

Gracinha resplandecia, com o lento sorriso que se não desfizera, a
envolvia toda em claridade e doçura:

--A tia Arminda está melhor, já anda. Perguntou por ti... Mas, oh
Gonçalo, tu de certo queres jantar!

--Não, almocei tremendamente em Corinde... Vocês, como jantaram á hora
antiga da tia Arminda, ceiam, hein? Então logo ceio... Agora apenas uma
chavena de chá, muito forte!

Gracinha correu, no alvoroço de servir o heroe querido. E pela escada,
descendo com Barrôlo que o contemplava, o Fidalgo da Torre lamentou os
seus sacrificios:

--É verdade, menino, é uma massada... Mas que diabo! todos devemos
concorrer para tirar o paiz do atoleiro!

Barrôlo, maravilhado, murmurava:

--E sem dizeres nada... Assim á capucha! Assim á capucha!...

--E agora outra cousa, Barrôlo. Ámanhã, no Governo Civil, deves convidar
o André a jantar...

--Com certeza! gritou o Barrôlo. Jantar d'estrondo?

---Não, homem! Jantar muito quieto, muito intimo. Unicamente o André e o
João Gouveia. Telegraphas ao João Gouveia. Tambem pódes convidar os
Mendonças... Mas jantar muito discreto, só para conversarmos, para
firmar a reconciliação d'um modo mais sociavel, mais elegante.

Ao outro dia, no Governo Civil, Barrôlo e o Cavalleiro apertaram as mãos
com tanta singelleza, como se ambos, ainda na vespera, andassem jogando
o bilhar e caturrando no club da rua das Pêgas. De resto conversaram
summariamente sobre a Eleição. Apenas o Cavalleiro alludira com
indolencia aos votos de Murtosa--o bom Barrôlo quasi se engasgou, na
ancia de os offerecer:

--E o que vocês quizerem... Votos, dinheiro, o que vocês quizerem!...
Vocês digam! Eu vou para a Murtosa, e é comezaina, e pipa de vinho
aberta, e a freguezia inteira a votar no meio de foguetorio...

O Cavalleiro, rindo, amansou aquelle fervor faustoso:

--Não, meu caro Barrôlo, não! Nós preparamos uma eleição muito sobria,
muito socegada. Villa Clara elege Gonçalo Mendes Ramires deputado,
naturalmente, como o seu melhor homem. Não ha combate, o Julinho é uma
sombra. Portanto...

O Barrôlo persistia, radiante, gingando:

--Perdão, André, perdão! Lá isso vinhaça, e vivorio, e foguetorio, e
festança magna...

Mas Gonçalo, embaraçado, ancioso por suster a garrulice do Barrôlo, as
palmadas carinhosas com que elle se atufava na intimidade do Cavalleiro,
apontou para a mesa de S. Ex.^a:

--Tu tens que fazer, André. Vejo ahi uma papelada pavorosa... Não
roubemos mais tempo ao chefe illustre do Districto! Ao trabalho!

    Trabalhar, meu irmão, que o trabalho
    É André, é virtude, é valor!...

Agarrára o chapeu, acenando ao cunhado. Então Barrôlo, com as bochechas
a estalar de gosto, balbuciou o convite que firmaria a reconciliação
d'um modo sociavel e elegante:

--Cavalleiro, para conversarmos melhor, se você nos quizer dar o gosto
de vir jantar... Quinta feira, ás seis e meia... Nós, quando cá está o
Gonçalo, jantámos sempre mais tarde.

O Cavalleiro, que corára, agradeceu com discreta ceremonia:

--É para mim um immenso prazer, uma immensa honra...

E á porta da antesala onde os acompanhára, segurando o pesado reposteiro
de baeta escarlate com as Armas Reaes bordadas--supplicou ao Barrôlo que
pozesse os seus respeitos aos pés da snr.^a D. Graça...

Barrôlo, descendo a larga escadaria de pedra, limpava a testa, o
pescoço, humedecidos pela emoção. E no páteo desabafou:

--Muito sympathico este André! Rapaz franco, de quem sempre gostei...
Realmente estava morto que acabassem estas historias... E mesmo lá para
os Cunhaes, para a companhia, para o cavaco, que bella acquisição!

Quinta feira de manhã depois do almoço, no terraço do jardim onde
tomavam café, Gonçalo recommendou ao Barrôlo que «para accentuar mais
completamente a intimidade simples do jantar não pozesse casaca...»

--E tu, Gracinha, vestido afogado. Mas vestidinho claro, alegre...

Gracinha sorriu, indecisamente, continuando a folhear um _Almanach de
Lembranças_ estendida n'uma cadeira de verga, com um gatinho branco no
regaço.

Depois do alvoroço e pasmo de Domingo, ella apparentava agora um
desinteresse silencioso pela reconciliação que ainda abalava Oliveira,
pela Eleição, pelo jantar. Mas n'esses dias não socegára--tão impaciente
e sensivel que o bom Barrôlo incessantemente lhe aconselhava o grande
remedio da Mamã contra os nervos, «flôres d'alecrim, cosidas em vinho
branco.»

Gonçalo percebia claramente a perturbação em que a lançava aquella
entrada triumphal de André, do antigo André, na sua casa de casada, nos
Cunhaes. E para se tranquillisar evocava (como na estrada do cemiterio
em Villa-Clara) a seriedade de Gracinha, o seu rigido e puro pensar, a
altivez da sua almasinha heroica. N'essa manhã mesmo, todo no fresco e
soffrego cuidado da sua Eleição, só receava que Gracinha, por embaraço
ou cautella, acolhesse seccamente o Cavalleiro, o esfriasse no seu
renovado fervor pela casa de Ramires, no seu patrocinato Politico. E
insistiu, gracejando:

--Ouviste, Gracinha? Um vestido branco. Um vestidinho alegre, que sorria
aos hospedes...

Ella murmurou, mergulhada no seu _Almanach_:

--Sim, realmente, com este calor...

Mas Barrôlo bateu uma palmada na côxa. Que pena! que pena não ter em
Oliveira, «para o brinde de reconciliação», um famoso vinho do Porto, da
garrafeira da Mamã, preciosissimo, velhissimo, do tempo de D. João II...

--D. João II? rosnou Gonçalo. Está estragado!

Barrôlo hesitou:

--D. João II ou D. João VI... Um d'esses Reis. Emfim um vinho unico, do
seculo passado! Só restam á mamã oito ou dez garrafas... E hoje, era dia
para uma, hein?

O Fidalgo deu um sorvo lento ao café:

--O André, antigamente, tambem gostava muito d'ovos queimados...

Bruscamente Gracinha fechou o _Almanach_--e, com uma fuga e um silencio
que emmudeceram Gonçalo, sacudiu do collo o gato dorminhoco, atravessou
o terraço, desappareceu entre os teixos altos do jardim.

Mas á tarde, quando o Fidalgo occupou o seu logar na mesa oval, junto da
prima Maria Mendonça--logo notou, entre duas compoteiras, uma travessa
d'ovos queimados. Apesar de jantar tão intimo serviam, com a louça da
China, os famosos talheres dourados da baixella do tio Melchior. E duas
jarras de Saxe transbordavam de cravos brancos e amarellos, côres
heraldicas dos Ramires.

D. Maria, que não encontrára o querido primo desde os annos de Gracinha,
murmurou com um sorriso, uma grave cortezia, n'aquelle cerimonioso
silencio em que se desdobravam os guardanapos:

--Ainda lhe não dei os parabens, primo Gonçalo...

Elle acudiu, mechendo nervosamente nos copos:

--Chut! prima, chut! Hoje aqui, já está decidido, não se allude sequer a
Politica... Está muito calor para Politica.

Ella suspirou de leve, como desfallecida: Ai, o calor... Que horrivel
calor! Desde que entrára nos Cunhaes com aquelle vestido preto que «era
o seu pallio rico»--ainda não cessára de invejar a frescura do vestido
branco de Gracinha...

--Que bem que lhe fica! Está hoje linda!

Era um vestido liso de crepon branco, que aclarava, remoçava a sua graça
quasi virginal. E nunca realmente tanto prendera, assim clara e fina,
com os verdes olhos refulgindo como esmeraldas lavadas, uma ondulação
mais lustrosa nos pesados cabellos, um macio rubor transparente, todo um
fresco brilho de flôr regada, de flôr revivida, apesar do acanhamento
que lhe immobilisava os dedos ao erguer a colhér de prata dourada. E ao
lado, superiormente robusto e largo, com o peitilho arqueado como uma
couraça e cravejado de duas saphiras, uma rosa branca desabrochada na
lapella, André Cavalleiro, que recusára a sopa (oh, no verão nunca comia
sopa!) dominava a mesa, levemente commovido tambem, passando sobre o
reluzente bigode um lenço tão perfumado que afogava o perfume dos
cravos. Mas foi elle que encadeou a animação com risonhos queixumes
sobre o calor--o escandaloso calor d'Oliveira... Ah! que Purgatorio
abrasado--depois dos seus dois dias de Paraiso, na frescura deliciosa de
Cintra!

D. Maria Mendonça adoçou os espertos olhos para o Snr. Governador
Civil.--E então Cintra? Animada? Muitos ranchos á tarde, em Setiaes?
Encontrára a Condessa de Chellas--a prima Chellas?...

Sim, na Pena, na sua visita á Rainha, Cavalleiro conversára durante um
momento com a Snr.^a Condessa de Chellas...

--Ah! e a Rainha?...

--Oh, sempre encantadora...

A Snr.^a Condessa de Chellas, essa, um pouco magra. Mas tão amavel, tão
intelligente, tão verdadeiramente _grande dame_--não é verdade? E, como
se inclinára para Gracinha, com uma doçura infinita no simples mover da
cabeça--ella, perturbada, mais vermelha, balbuciou que não conhecia a
Condessa de Chellas...--D. Maria Mendonça accusou logo a inercia dos
primos Barrôlos, sempre encafurnados nos Cunhaes, sem nunca se
aventurarem a Lisboa no inverno, para conviver, para conhecer os
parentes...

--E a culpa é do primo José, que detesta Lisboa...

Oh não! Barrôlo não detestava Lisboa! Se podesse acarretar para Lisboa
as suas commodidades, o seu quarto, a sua cocheira, a boa agua do pomar,
a rica varanda sobre o jardim--até se regalava!

--Mas entalado n'aquelles quartinhos do Bragança... E depois a má
comida, o barulho... A Gracinha em Lisboa nunca dorme... E a massada das
manhãs?... Não ha nada que fazer em Lisboa, de manhã!

O Cavalleiro sorria para o Barrôlo, como enlevado na sua graça e razão.
Depois confessou que elle, apesar de habitar tambem (mercê do Estado!)
um palacete confortavel, e gozar tambem uma agua excellente, a finissima
agua do Poço de S. Domingos, lamentava que os deveres de Politica, a
disciplina de Partido o amarrassem a Oliveira. E toda a sua esperança
era a queda do Ministerio, para se libertar, passar tres mezes divinos
em Italia...

Do outro lado de Gracinha, João Gouveia (sempre acanhado e mudo deante
de senhoras) exclamou, n'um impulso d'amisade, de convicção:

--Pois, Andrésinho, vae perdendo a esperança! O S. Fulgencio não arreia!
Ainda cá te apanhamos uns tres ou quatro annos!

E insistiu, debruçado sobre Gracinha, n'um esforço d'amabilidade que o
esbraseava:

--O S. Fulgencio não arreia. Ainda cá temos o nosso André mais tres ou
quatro annos.

André protestava, com um requebro, as espessas pestanas quasi cerradas:

--Oh meu João! não me queiras mal, não me queiras mal!...

E teimava. Ah, com certeza! ainda que desertasse o seu partido (e que
importa em hoste poderosa uma lança ferrugenta?) esses mezes d'Italia no
inverno já os sonhára, já os preparava...--E a Snr.^a D. Graça não
permittia que elle a servisse d'um pouco de vinho branco?

Barrôlo estendeu o braço, com effusão:

--Oh Cavalleiro! eu tenho empenho em que você prove esse vinho com
cuidado... É da minha propriedade do Corvello... Faço muito gosto
n'elle. Mas prove com attenção!

S. Ex.^a provou com devoção, como se commungasse. E com uma cortezia
compenetrada para Barrôlo que reluzia de gosto:

--Uma delicia! uma verdadeira delicia!

--Hein? Não é verdade? Eu, para mim, prefiro este vinho do Corvello a
todos os vinhos francezes, os mais finos... Até alli o nosso amigo Padre
Sueiro, que é um Santo, o aprecia!

Silencioso, esbatido por traz d'uma das altas jarras de cravos, Padre
Sueiro corou, sorriu:

--Com muita agua, infelizmente, Snr. José Barrôlo... O gosto pede, mas o
rheumatismo não consente.

Pois José Mendonça, que não temia rheumatismos, atacava sempre
bravamente aquelle bemdito Corvello...

--Que lhe parece a você, João Gouveia?

Oh! João Gouveia já o conhecia, louvado Deus! E certamente nunca
encontrára em Portugal, como vinho branco, nenhum comparavel pela
frescura, pelo aroma, pela seiva...

--E cá lhe vou atiçando com fervor, Barrôlo amigo! Esta bella garrafa de
crystal vae de vencida!

Barrôlo exultava. O seu desgosto era que Gonçalo nunca honrasse «aquelle
nectar.»--Não! Gonçalo não tolerava vinhos brancos...

--E então hoje estou com uma d'estas sêdes que só me satisfaz vinho
verde, assim um pouco espumante, e com gelo... Que este de Vidainhos
tambem é do Barrôlo. Oh, eu não desprezo os vinhos da familia... Este
Vidainhos sinceramente o considero sublime.

Então Cavalleiro desejou provar esse sublime vinho verde da quinta de
Vidainhos, em Amarante. O escudeiro, a um aceno enthusiasmado do
Barrôlo, apresentou a Sua Ex.^a um copo esguio, especial para aquelle
vinho que espumava. Mas o Cavalleiro, acariciando o fresco copo sem o
erguer, repisou a idéa de ferias, de viagens, como accentuando o seu
cançasso e fastio d'Oliveira.--E sabia a Snr.^a D. Graça para onde elle
seguiria, depois da Italia, n'esse Inverno, se por caridade de Deus o
Ministerio cahisse?... Para a Asia Menor.

--E era uma viagem para que eu, com certesa, tentava o nosso Gonçalo...
Tão facil, agora, com os caminhos de ferro!... De Veneza a
Constantinopla um mero passeio. Depois, de Constantinopla a Smyrna, um
dia, dous dias, n'um vapor excellente. E d'ahi n'uma bôa caravana, por
Tripoli, pela antiga Sidonia, penetravamos em Galiléa... Galiléa! Hein
Gonçalo? Que belleza!

Padre Sueiro, suspendendo o garfo, lembrou timidamente--que em Galiléa o
Snr. Gonçalo Ramires pisaria terra que outr'ora, por pouco, pertencera á
sua Casa:

--Um dos antepassados de V. Ex.^a, Gutierres Ramires, companheiro de
Tancredo na primeira Cruzada, recuzou o ducado de Galiléa e de
Além-Jordão...

--Fez pessimamente! gritou Gonçalo, rindo. Oh, esse avô Gutierres andou
pessimamente! Por que não existia agora, n'este mundo, disparate mais
divertido do que eu Duque de Galiléa! O Snr. Gonçalo Mendes Ramires,
Duque de Galiléa e d'Além-Jordão!... Era simplesmente de rebentar!

Cavalleiro protestou, com sympathia:

--Ora essa! Por que?

--Não acredite! acudiu, com os olhos coruscantes, D. Maria Mendonça. O
primo Gonçalo, com todas estas graças, no fundo, é muitissimo
aristocrata... Mas terrivelmente aristocrata!

O Fidalgo da Torre pousou o copo de Vidainhos, depois d'um trago
saboreado e fundo:

--Aristocrata... Está claro que sou aristocrata. Sentiria com effeito
certo desgosto em ter nascido, como uma herva, d'outras hervas vagas.
Gósto de saber que nasci de meu pae Vicente, que nasceu de seu pae
Damião, que nasceu de seu pae Ignacio, e assim sempre até não sei que
Rei Suevo...

--Recesvinto! informou respeitosamente Padre Sueiro.

--Pois até esse Recesvinto. O peor é que o sangue de todos esses paes
não differe realmente do sangue dos paes do Joaquim da Porta. E que
depois do Recesvinto, para traz, até Adão, não tenho mais paes!

E, emquanto todos riam, D. Maria Mendonça, debruçada para elle, por traz
do leque largamente aberto, murmurou:

--O Primo está com esses deprezos... Pois eu sei d'uma senhora que tem a
maior admiração pela casa de Ramires e pelo seu representante.

Gonçalo enchia de novo o copo, com amor, attento á espuma:

--Bravo! Mas «convém distinguir», como diz o Manoel Duarte. Por quem tem
ella a verdadeira admiração, por mim ou pelo Suevo, pelo Recesvinto?

--Por ambos.

--Diabo!

Depois, pousando a garrafa, mais sério:

--Quem é?

Oh! ella não podia confessar. Não era ainda bastante velha para andar
com recadinhos de sentimento. Mas Gonçalo dispensava o nome--só desejava
as qualidades... Nova? Bonita?

--Bonita? exclamou D. Maria. É uma das mulheres mais formosas de
Portugal!

Espantado, Gonçalo lançou o nome:

--A D. Anna Lucena!

--Por quê?

--Por que mulher assim tão formosa, e vivendo n'estes sitios, e tão
conhecida da prima que lhe faz confidencias, só a D. Anna.

D. Maria, ageitando as duas rosas que lhe alegravam o corpete de sêda
preta, sorria:

--Talvez seja, talvez seja...

--Pois estou immensamente lisongeado. Mas ainda distingo, como o Manoel
Duarte. Se, da parte d'ella, essa sympathia toda é para o bom fim, não!
Não, santo Deus, não!... Mas se é para o mau fim, então, prima,
cumprirei honradamente o meu dever dentro das minhas forças...

D. Maria escondeu a face no leque, escandalisada. Depois, espreitando,
com os agudos olhos a faiscar:

--Oh primo, mas o bom fim é que convinha, por que a cousa é a mesma e
são duzentos contos a mais!

Gonçalo gritou d'admiração:

--Oh! esta prima Maria! Não ha em toda a Europa ninguem mais esperto!

Todos curiosamente anciaram por saber a nova graça da Snr.^a D. Maria.
Mas Gonçalo deteve as curiosidades:

--Não se póde contar. É casamento.

Então José Mendonça recordou a novidade picante que desde a vespera
remexia Oliveira:

--Por casamento!... Que me dizem ao casamento da D. Rosa Alcoforado?

Barrôlo, depois o Gouveia, até Gracinha, todos o proclamaram «um
horror.» Aquella perfeita rapariga, de pelle tão côr de rosa, de cabello
tão côr d'ouro, amarrada ao Teixeira de Carredes, um patriarcha
carregado de netos... Que desastre!

Pois ao Cavalleiro o casamento não parecia assim «desastrado.» O
Teixeira de Carredes, além de muito fino, de muito intelligente, era um
velho verdejante, quasi sem rugas--até bonito com aquelle contraste do
bigode escuro e da grenha riçada e branca. E na Snr.^a D. Rosa, com
todas as rosas da sua pelle e todo o ouro dos seus cabellos, dominava
«um não sei quê» de amollentado e de sorvado... Depois pouco esperta. E
pouco cuidadosa--sempre mal penteada, sempre mal pregada...

--Emfim, V. Ex.^{as} perdoem... Mas quem faz um casamento muito
desenxabido é o pobre Teixeira de Carredes.

D. Maria Mendonça considerava o Governador Civil com um espanto amavel:

--Pois se o Snr. Cavalleiro não admira a Rosinha Alcoforado, não sei
então que rapariga admire dentro do seu Districto...

Elle, logo, com galante rasgo:

--Mas, além de V. Ex.^{as}, não admiro ninguem! Realmente eu governo, em
Portugal, o Districto mais daprovido de belleza...

Todos protestaram. E a Maria Marges? E a pequena Reriz, da Riosa? E a
Mellosinho Alboim, com aquelles olhos?... Mas o Cavalleiro não
consentia, a todas demolia com um sarcasmo leve, ou pela pelle sem
frescura, ou pelo pisar desairoso, ou pelo provincianismo de gosto e
modos, sempre pela carencia das bellezas e graças que ornavam
Gracinha--lançando assim disfarçadamente, aos pés de Gracinha, um rôlo
de senhoras vencidas e amarfanhadas. Ella percebera a subtil adulação,
os seus olhos allumiaram com um fulgor mais enternecido o rubor que a
afogueava. Desejou repartir incenso tão accumulado--lembrou timidamente
outra belleza de que se orgulhava o Districto:

--A filha do Visconde de Rio-Manso, a Rosinha Rio-Manso... É linda!

O Cavalleiro triumphou com facilidade:

--Mas tem doze annos, minha senhora! Nem é rosinha, é botãosinho de
rosa!...

Quasi humildemente, Gracinha recordou a Luiza Moreira, filha d'um
lojista, muito admirada aos domingos na missa da Sé e no Terreiro da
Louça:

--É uma bella rapariga... Sobretudo a figura...

Cavalleiro triumphou ainda, com requebrada segurança:

--Sim, mas os dentes tortos, Snr.^a D. Graça! Os dentes acavallados! V.
Ex.^a nunca reparou... Oh! uma bôca muito desagradavel! E, além dos
dentes, o irmão, o Evaristo, com aquella cara mais chata que a alma, e a
caspa, e a porcaria, e o jacobinismo... Não ha mulher bonita com irmão
tão feio!

Mendonça estendera o braço, com outra curiosidade que occupava Oliveira:

--E por Evaristo!... Elle sempre funda o novo jornal republicano, o
_Rebate_?

O Snr. Governador Civil encolheu os hombros com uma ignorancia superior
e risonha. Mas João Gouveia, vermelho e luzidio depois da sua garrafa de
Corvello e da sua garrafa de Douro, affiançou que o _Rebate_ apparecia
em Novembro. Até elle conhecia o patriota que esportulava a «massa.» E a
campanha do _Rebate_ começava com cinco artigos esmagadores sobre a
Tomada da Bastilha.

O espanto de Gonçalo era como o Republicanismo alastrára em
Portugal--até na velhota, na devota Oliveira...

--Quando eu andava em preparatorios existiam simplesmente dois
republicanos em Oliveira, o velho Salema, lente de Rhetorica, e eu.
Agora ha partido, ha comité, ha dous jornaes... E ha mesmo o Barão das
Marges com a _Voz Publica_ na mão, debaixo da Arcada...

Mendonça não receava a Republica, gracejava:

--Ainda vem longe, muito longe... Ainda nos dá tempo de comermos estes
bellos ovos queimados.

--Deliciosos, murmurou o Cavalleiro.

--Sim, concordou Gonçalo, ainda temos tempo para os ovos... Mas que
rebente uma revolução em Hespanha, ou que morra o Reisinho na sua
menoridade, que naturalmente morre...

--Credo! Coitadinho! Pobre mãe! murmurou Gracinha sensibilisada.

Immediatamente o Cavalleiro a tranquillisou. Porquê, morrer o Reisinho
d'Hespanha? Os republicanos espalhavam boatos sombrios sobre os males da
excellente creança. Mas elle conhecia a realidade--assegurava á Snr.^a
D. Graça que, felizmente para a Hespanha, ainda reinaria um Affonso XIII
e mesmo um Affonso XIV. Em quanto aos nossos republicanos, esses... Meu
Deus! mera questão de guarda municipal! Portugal, nas suas massas
profundas, permanecia monarchico, de raiz. Apenas ao de cima, na
burguezia e nas escolas, fluctuava uma escuma ligeira, e bastante suja,
que se limpava facilmente com um sabre...

--V. Ex.^a, Snr.^a D. Graça, que é uma dona de casa perfeita, conhece
esta operação que se faz á panella do caldo... Escumar a panella. É com
uma colher. Aqui é com um sabre. Pois assim, com toda a simplicidade, se
clarifica Portugal. E foi isto que ainda ultimamente eu declarei a
El-rei.

Alteára a cabeça--o seu peitilho resplandecia, mais largo, como couraça
bastante rija para defender toda a Monarchia. E, no compenetrado
silencio que se alargou, duas rolhas de Champagne estalaram, por traz do
biombo, na copa.

Apenas o escudeiro, apressado, enchêra as taças--o Fidalgo da Torre com
uma gravidade que o sorriso adoçava:

--André, á tua saude. Não é ao Governador Civil, é ao amigo!

Todos os copos se ergueram n'um susuro acariciador. João Gouveia agitou
o seu, com especial effusão, gritando:--«Andrésinho, meu velho!» S.
Ex.^a apenas tocou de leve no calice de Gracinha. Padre Sueiro murmurou
as «graças.» E Barrôlo, atirando o guardanapo:

--Café aqui ou na sala?... Na sala estamos mais frescos.

Na sala grande, a sala dos velludos vermelhos, o lustre rebrilhava
solitariamente; pelas tres janellas abertas penetrava a serenidade da
noite quente, o recolhido silencio d'Oliveira; e em baixo, no Largo,
alguns sujeitos, mesmo duas senhoras de manta de lã branca pela cabeça,
pasmavam para aquella claridade de festa que jorrava dos Cunhaes. O
Cavalleiro e Gonçalo accenderam os charutos na varanda, respirando a
frescura escassa. E o Cavalleiro, com beatitude:

--Pois sempre te digo, Gonçalinho, que se janta sublimemente em casa de
teu cunhado!...

Gonçalo desejou que, no domingo, elle jantasse na Torre. Ainda restavam
umas garrafas de Madeira do tempo do avô Damião--a que se daria, com
soccorro do Gouveia e do Titó, um assalto heroico.

O Cavalleiro prometteu, já deliciado--tomando da pesada bandeja de
prata, que derreava o escudeiro, a sua chavena de café, sem assucar.

--E tu, com effeito, Gonçalo, agora não deves arredar da Torre. O teu
papel é todo de presença na localidade. O Fidalgo da Torre está no meio
das suas terras, por onde vae ser eleito para as Côrtes. É o teu
papel...

O Barrôlo com um riso enlevado, surdiu entre os dous amigos que enlaçou
ternamente pela cinta:

--E nós cá ficamos, ambos a trabalhar, o Cavalleiro e eu!...

Mas D. Maria, do canapé onde se enterrára, reclamou o primo Gonçalo
«para negocios.» Junto d'uma console, João Gouveia e Padre Sueiro,
remexendo o seu café, concordavam na necessidade d'um Governo forte. E
Gracinha, com o primo Mendonça, revolvia as musicas sobre a tampa do
piano, procurando o _Fado dos Ramires_. Mendonça tocava com corredio
brilho, composera valsas, um hymno ao Coronel Trancoso, o heroe de
Machumba--e mesmo o primeiro acto d'uma opera, _A Pegureira_. E como não
descortinavam o _Fado_ com as quadras do Videirinha--foi justamente uma
das suas valsas, a _Perola_, d'uma cadencia amorosa e cançada lembrando
a valsa do Fausto, que elle atacou, sem largar o charuto.

Então André Cavalleiro, que repenetrára vagarosamente na sala, repuxou o
collete, afagou o bigode, e avançando para Gracinha, com um modo meio
grave, meio folgazão:

--Se V. Ex.^a me quer dar a grande honra?...

Offerecia, abria os braços. E Gracinha, toda escarlate, cedeu, levada
logo nos largos passos deslisados que o Cavalleiro lançou sobre o
tapete. Barrôlo e João Gouveia correram a afastar as poltronas,
clareando um espaço, onde a valsa se desenrolou com o suave sulco branco
do vestido de Gracinha. Pequenina e leve, toda ella se perdia, como se
fundia, na força mascula do Cavalleiro, que a arrebatava em giros
lentos, com a face pendida, respirando os seus cabellos magnificos.

Da borda do canapé, com os finos olhos a fusilar, D. Maria Mendonça
pasmava:

--Mas que bem que valsa, que bem que valsa o Snr. Governador Civil!...

Ao lado Gonçalo torcia nervosamente o bigode, na surpreza d'aquella
familiaridade, assim renovada pelo Cavalleiro com tão serena confiança,
por Gracinha com tanto abandono... Elles torneavam, enlaçados. Dos
labios do Cavalleiro escorregava um sorriso, um murmurio. Gracinha
arfava, os seus sapatos de verniz reluziam sob a saia que se enrolava
nas calças do Cavalleiro. E Barrôlo, em extasi, quando elles o roçavam,
atirava palmas carinhosas, bradava:

--Bravo! Bravo! Lindamente!... Bravissimo!




VII


Gonçalo recolhia para o almoço depois d'um passeio no pomar percorrendo
a _Gazeta do Porto_, quando avistou no banco de pedra, rente á porta da
cosinha, onde a Rosa mudava o painço na gaiola do seu canario, o Casco,
o José Casco dos Bravaes, que esperava, pensativo e abatido, com o
chapeu sobre os joelhos. Vivamente, para se esquivar, remergulhou no
jornal. Mas percebeu a esgalgada magreza do homem, que surdia da sombra
da latada, avançava na claridade faiscante do pateo, hesitando, como
assustada... E, animado pela visinhança da Rosa, parou, forçando um
sorriso--em quanto o Casco enrolava nas mãos tremulas a aba dura do
chapeu, balbuciava:

--Se o Fidalgo me fizesse a esmola de uma palavra...

--Ah! é vossê, Casco! Homem, não o conheci... E então?

Dobrou o jornal, tranquillisado--gozando mesmo a submissão d'aquelle
valente que tanto o apavorára, erguido e negro como um pinheiro, na
solidão do pinheiral. E o Casco, engasgado, repuchava, esticava o
pescoço de dentro dos grossos collarinhos bordados--até que atirou toda
a alma n'uma supplica soluçada, retendo as lagrimas que marejavam:

--Ai, meu Fidalgo, perdôe por quem é! Perdôe, que eu nem lhe sei pedir
perdão!...

Gonçalo atalhou o homem, com generosidade e doçura. Elle bem o avisára!
Nada se emenda, a gritar, com o pau alçado...

--E olhe, Casco! Quando vossê me sahiu ao pinhal eu levava um revólver
na algibeira... Trago sempre um revólver. Desde que uma noite em
Coimbra, no Choupal, dous bebados me assaltaram, ando sempre á cautella
com o revólver... Pense você agora que desgraça se tiro o revólver, se
desfecho!... Que desgraça, hein?... Felizmente, n'um relance, pensei que
me perdia, que o matava, e fugi. Foi por isso que fugi, para não
desfechar o revólver... Emfim tudo passou. E eu não sou homem de
rancores, já esqueci. Comtanto que vossê, agora socegado e no seu juizo,
esqueça tambem.

O Casco amassava as abas do chapeu, com a cabeça derrubada. E sem a
erguer, sem ousar, rouco dos soluços que o entalavam:

--Pois agora é que eu me lembro, meu Fidalgo! Agora é que me ralo por
aquella doidice! Agora! depois do que o Fidalgo fez pela mulher e pelo
pequeno!...

Gonçalo sorriu, encolheu os hombros:

--Que tolice, Casco!... Pois a sua mulher apparece ahi n'uma noite
d'agua... E o pequenito doente, coitadito, com febre... Como vae elle, o
Manelsinho?

O Casco murmurou do fundo da sua humildade:

--Louvado seja Deus, meu senhor, muito sãosinho, muito rijinho.

--Ainda bem... Ponha o chapeu. Ponha o chapeu, homem! E adeus!... Vossê
não tem que agradecer, Casco... E olhe! Traga cá um dia o pequeno. Eu
gostei do pequeno. É espertinho.

Mas o Casco não se arredava, pregado ás lages. Por fim, n'um soluço que
rebentou:

--É que eu não sei como hei-de dizer, meu Fidalgo... Lá o dia de cadeia,
acabou! Tenho genio, fiz a asneira, com o corpo a paguei. E pouco
paguei, graças ao Fidalgo... Mas depois quando sahi, quando soube que a
mulher viera de noite á Torre, e que o Fidalgo até a embrulhára n'uma
capa, e que não deixára sahir o pequeno...

Estacou, afogado pela emoção. E como Gonçalo, tambem commovido, lhe
batia risonhamente no hombro, «para acabar, não se fallar mais n'essas
bagatellas...»--o Casco rompeu, n'uma grande voz dolorosa e quebrada:

--Mas é que o Fidalgo não sabe o que é para mim aquelle pequeno!...
Desde que Deus m'o mandou tem sido uma paixão cá por dentro que até
parece mentira!... Olhe que na noite que passei na cadeia da villa não
dormi... E Deus me perdôe, não pensei na mulher, nem na pobre da velha,
nem na pouquita terra que amanho, tudo ao desamparo. Toda a noite se foi
a gemer:--«ai o meu querido filhinho! ai o meu querido filhinho!...»
Depois quando a mulher, logo pela estrada, me diz que o Fidalgo ficára
com elle na Torre, e o deitára na melhor cama, e mandára recado ao
medico... E depois quando soube pelo snr. Bento que o Fidalgo de noite
subia a vêr se elle estava bem coberto, e lhe entalava a roupa,
coitadinho...

E arrebatadamente, n'um choro solto, gritando:--«Ai meu Fidalgo! meu
Fidalgo!...»--o Casco agarrou as mãos de Gonçalo, que beijava,
rebeijava, alagava de grossas lagrimas.

--Então, Casco! Que tolice!... Deixe homem!

Pallido, Gonçalo saccudia aquella gratidão furiosa--até que ambos se
encararam, o Fidalgo com as pestanas molhadas e tremulas, o lavrador dos
Bravaes soluçando, n'uma confusão. E foi elle por fim que, recalcando um
derradeiro soluço, se recobrou, desafogou da idéa que o trouxera, que de
certo fundamente o trabalhára, e que agora lhe enrijava a face e o gesto
n'uma determinação que nunca vergaria:

--Meu Fidalgo, eu não sei fallar, não sei dizer... Mas se d'hoje em
deante, seja para que fôr, o Fidalgo necessitar da vida d'um homem, tem
aqui a minha!

Gonçalo estendeu a mão ao lavrador, muito simplesmente--como um Ramires
d'outr'ora recebendo a preitezia d'um vassallo:

--Obrigado, José Casco.

--Entendido, meu Fidalgo, e que Deus nosso Senhor o abençôe!

Gonçalo, perturbado, galgou pela escadinha da varanda--emquanto o Casco
atravessava o páteo vagarosamente, com a cabeça bem erguida, como homem
que devêra e que pagára.

E em cima, na livraria, Gonçalo pensava com espanto:--«Ahi está como
n'este mundo sentimental se ganham dedicações gratuitamente!...» Por que
emfim! quem não impediria que uma criancinha com febre affrontasse de
noite uma estrada negra, sob a chuva e o vendaval? Quem a não deitaria,
não lhe adoçaria um grog, não lhe entalaria os cobertores para a
conservar bem abafada? E por esse grog e por essa cama--corre o pae,
tremendo e chorando, a offerecer a sua vida! Ah! como era facil ser
Rei--e ser Rei popular!

E esta certeza mais o animava a obedecer ás recommendacões do
Cavalleiro--a começar immediatamente as suas visitas aos Influentes
eleitoraes, essas aduladoras visitas que assegurariam á Eleição uma
unanimidade arrogante. Logo ao fim do almoço, mesmo sobre a toalha,
arredando os pratos, copiou a lista d'esses Magnates--por um rascunho
annotado que lhe fornecera o João Gouveia. Era o Dr. Alexandrino; o
velho Gramilde, de Ramilde; o Padre José Vicente, da Finta; outros
menores:--e o Gouveia marcára com uma cruz, como o mais poderoso e mais
difficil, o Visconde de Rio-Manso, que dispunha da immensa freguezia de
Canta-Pedra. Gonçalo conhecia esses senhores, homens de propriedade e de
dinheiro (com todos outr'ora o papá andára endividado)--mas nunca
encontrára o Visconde de Rio-Manso, um velho brazileiro, dono da quinta
da _Varandinha_, onde vivia solitariamente com uma neta de onze annos,
essa linda Rosinha que chamavam «o botão de Rosa», a herdeira mais rica
de toda a Provincia. E logo n'essa tarde, em Villa-Clara, reclamou ao
João Gouveia uma carta d'apresentação para o Rio-Manso:

O Administrador hesitou:

--Vossê não precisa carta... Que diabo! Vossê é o Fidalgo da Torre!
Chega, entra, conversa... Além d'isso na Eleição passada o Rio-Manso
ajudou os Regeneradores; de modo que estamos um pouco sêccos. O
Rio-Manso é um casmurro... Mas com effeito, Gonçalinho, convem começar
essa caça á popularidade!

N'essa noite, na Assembleia, o Fidalgo, encetando a «caça á
popularidade», acceitou um convite do Commendador Romão Barros (do
massador, do burlesco Barros) para o brodio faustoso com que elle
celebrava, na sua quinta da _Roqueira_, a festa de S. Romão. E essa
semana inteira, depois outra, as gastou assim por Villa-Clara, amimando
eleitores--a ponto de comprar horrendas camisas de chita na loja do
Ramos, de encommendar um sacco de café na mercearia do Tello, de
offerecer o braço no largo do Chafariz á nojenta mulher do bebedissimo
Marques Rosendo, e de frequentar, de chapeu para a nuca, o bilhar da rua
das Pretas. João Gouveia não approvava estes excessos--aconselhando
antes «boas visitas, com todo o _chic_, aos influentes sérios.» Mas
Gonçalo bocejava, adiava, na insuperavel preguiça de affrontar a
maledicencia rabujenta do velho Gramilde ou a solemnidade forense do Dr.
Alexandrino.

Agosto findava:--e por vezes, na livraria, Gonçalo, coçando
desconsoladamente a cabeça, considerava as brancas tiras d'almaço, o
Capitulo III da _Torre de D. Ramires_ encalhado... Mas quê! não podia,
com aquelle calor, com o afan da Eleição, remergulhar nas eras
Affonsinas!

Quando refrescavam as tardes lentas montava, alongava o passeio pelas
freguezias, não se descuidando das recommendações do
Cavalleiro--enchendo sempre o bolso de rebuçados d'avenca para atirar ás
creanças. Mas, n'uma carta ao querido André, já confessára que «a sua
popularidade não crescia, não enfunava...»--«Não! positivamente, velho
amigo, não tenho o dom! Sei apenas palestrar familiarmente com os
homens, comprimentar pelo seu nome as velhas ás soleiras das portas,
gracejar com a pequenada, e se encontro uma boeirinha de saiasita rota
dar cinco tostões á boeirinha para uma saiasita nova... Ora todas estas
cousas tão naturaes sempre as fiz naturalmente, desde rapaz, sem que me
conquistassem influencia sensivel... Necessito portanto que essa querida
Authoridade m'empurre com o seu braço possante e destro...»

Todavia já uma tarde, encontrando junto da Torre o velho Cosme de
Nacejas, e depois, n'um domingo, crusando ás _Ave-Marias_ na Bica-Santa
o Adrião Pinto do logar da Levada, ambos lavradores considerados e
remexedores d'eleições--lhes pedira os votos, desprendidamente e rindo.
E quasi se assombrára da promptidão, do fervor, com que ambos se
offereceram.--«Para o Fidalgo? Pois isso está entendido! Ainda que se
votasse contra o Governo, que é pae!»--E em Villa-Clara, com o Gouveia,
Gonçalo deduzia d'estas offertas tão acaloradas «a intelligencia
politica da gente do campo»:

--Está claro que não é pelos meus lindos olhos! Mas sabem que eu sou
homem para fallar, para luctar pelos interesses da terra... O Sanches
Lucena não passava d'um Conselheiro muito rico e muito mudo! Esta gente
quer deputado que grite, que lide, que imponha... Votam por mim por que
sou uma intelligencia.

E o Gouveia volvia, contemplando pensativamente o Fidalgo:

--Homem! quem sabe? Vossê nunca experimentou, Gonçalo Mendes Ramires.
Talvez seja realmente pelos seus lindos olhos!

       *       *       *       *       *

N'um d'esses passeios, n'uma abrazada sexta-feira, com o sol ainda alto,
Gonçalo atravessava o logarejo da Velleda, no caminho de Canta-Pedra. Ao
fim dos casebres que se apertam á orla da estrada alveja, muito caiada,
n'um terreiro defronte da Egreja, a taverna famosa "do Pintainho", onde
os caramanchões do quintal e a nomeada do coelho guizado attrahem vasto
povo nos dias da feira da Velleda. N'essa manhã o Titó, depois d'uma
madrugada ás perdizes, em Valverde, apparecera na Torre para almoçar,
urrando, d'esfomeado. Era sexta-feira--a Rosa preparára uma pescada com
tomates, depois um bacalhau assado, formidaveis. E Gonçalo, toda a tarde
torturado com sêde, mais resequido pela poeira da estrada, parou
avidamente deante do portão da venda, gritou pelo Pintainho.

--Oh meu Fidalgo!...

--Oh Pintainho! depressa! Uma sangria! Uma grande sangria bem fresca,
que morro...

O Pintainho, velhote roliço de cabello amarello, não tardou com o copo
appetitoso e fundo onde boiava, na espumasinha do assucar, uma rodella
de limão. E Gonçalo saboreava a sangria com ineffavel delicia--quando da
janella terrea da venda partiu um assobio lento, fino e trinado, como os
dos arrieiros que animam as bestas a beber nos riachos. Gonçalo deteve o
copo, varado. Á janella assomára um latagão airoso, de face clara e
suissas louras, que, com os punhos sobre o peitoril e a cabeça
levantada, n'um descarado modo de pimponice e desafio, o fitava
atrevidamente. E n'um lampejo o Fidalgo reconheceu aquelle caçador que
já uma tarde, no logar de Nacejas, ao pé da Fabrica de vidros, o mirára
com arrogancia, lhe raspára a espingarda pela perna, e ainda depois,
parado sob a varanda d'uma rapariga de jaqué azul, lhe acenára
chasqueando emquanto elle descia a ladeira... Era esse! Como se não
percebesse o ultraje--Gonçalo bebeu apressadamente a sangria, atirou uma
placa ao pobre Pintainho enfiado, e picou a fina egoa. Mas então da
janella rolou uma risadinha, cacarejada e troçante, que o colheu pelas
costas como o estalo d'uma vergasta. Gonçalo soltou a galope. E adiante,
sopeando a egoa no refugio d'uma azinhaga, pensava, ainda
tremulo:--«Quem será o desavergonhado?... E que lhe fiz eu, Santo Deus?
que lhe fiz eu?...» Ao mesmo tempo todo o seu ser se desesperava contra
aquelle desgraçado _mêdo_, encolhimento da carne, arrepio da pelle, que
sempre, ante um perigo, uma ameaça, um vulto surdindo d'uma sombra, o
estonteava, o impellia furiosamente a abalar, a escapar! Por que á sua
alma, Deus louvado, não faltava arrojo! Mas era o corpo, o traiçoeiro
corpo, que n'um arrepio, n'um espanto, fugia, se safava, arrastando a
alma--emquanto dentro a alma bravejava!

Entrou na Torre, mortificado, invejando a afouteza dos seus moços da
quinta, remoendo um rancor soturno contra aquelle bruto de suissas
louras, que certamente denunciaria ao Cavalleiro e enterraria n'uma
enxovia!--Mas, logo no corredor, o Bento lhe debandou os pensamentos,
apparecendo com uma carta «que trouxera um moço da _Feitosa_...»

--Da _Feitosa_?

--Sim senhor, da quinta do snr. Sanches Lucena, que Deus haja. Diz que
vinha de mandado das senhoras...

--Das senhoras!... Que senhoras?

Sem tarja de luto, a carta não era da bella D. Anna... Mas era de D.
Maria Mendonça, que assignava--«prima muito amiga, Maria Severim.» N'um
relance a leu, colhido logo por esta surpreza nova, distrahido da venda
do Pintainho e da affronta:--«Meu querido Primo. Estou ha tres dias aqui
com a minha amiga Annica, e como passou o mez inteiro do nojo e ella já
póde sahir (e até precisa porque tem andado fraca) eu aproveito a
occasião para percorrer estes arredores que dizem tão bonitos, e pouco
conheço. Tencionamos no Domingo visitar Santa Maria de Craquêde, onde
estão os tumulos dos antigos tios Ramires. Que impressão me vae
fazer!... Mas, ao que parece, além dos tumulos do claustro, ha outros,
ainda mais antigos, que foram arrombados no tempo dos Francezes, e que
ficam n'um subterraneo, onde se não póde entrar sem licença e sem que
tragam a chave. Peço pois, querido Primo, que dê as suas ordens para que
no Domingo possamos descer ao subterraneo, que todos affiançam muito
interessante, por que ainda lá restam ossos e armas. Se na Torre
houvesse uma senhora, eu mesma iria, para lhe fazer este pedido... Mas
não se póde visitar um solteirão tão perigoso. Case depressa!...
D'Oliveira boas noticias. Creia-me sempre, etc.»

Gonçalo encarou o Bento--que esperava, interessado com aquelle assombro
do Snr. Doutor:

--Tu sabes se em Santa Maria de Craquêde ha outros tumulos, n'um
subterraneo?

O assombro então saltou para o Bento:

--N'um subterraneo?... Tumulos?

--Sim, homem! Além dos que estão no claustro parece que ha outros, mais
antigos, debaixo da terra... Eu nunca vi, não me lembro. Tambem ha que
annos não entro em Santa Maria de Craquêde! Desde pequeno!... Tu não
sabes?

O Bento encolheu os hombros.

--E a Rosa não saberá?

O Bento abanou a cabeça, duvidando.

--Tambem vossês nunca sabem nada! Bem! Amanhã cêdo corre a Santa Maria
de Craquêde e pergunta na Egreja, ao sachristão, se existe esse
subterraneo. Se existir que o mostre no Domingo a umas senhoras, á
snr.^a D. Anna Lucena, e á snr.^a D. Maria Mendonça, minha prima
Maria... E que tenha tudo varrido, tudo decente!

Mas, repassando a carta, reparou n'um _Post-Scriptum_ em lettra mais
miudinha, ao canto da folha:--«No Domingo, não se esqueça, a visita será
_entre as cinco e cinco e meia da tarde_!»

Gonçalo pensou:--«Será uma entrevista?» E na livraria, atirando para uma
cadeira o chapeu e o chicote, assentou que era uma entrevista, bem
clara, bem marcada! E talvez nem existisse esse subterraneo--e Maria
Mendonça, com a sua tortuosa esperteza, o inventasse, como natural
motivo de lhe escrever, de lhe annunciar que no Domingo, ás cinco e
meia, a bella D. Anna e os seus duzentos contos o esperavam em Santa
Maria de Craquêde. Mas então a prima Maria não gracejára, em Oliveira?
Gostava d'elle, realmente, essa D. Anna?... E uma emoção, uma
curiosidade voluptuosa atravessaram Gonçalo á idéa de que tão formosa
mulher o desejava.--Ah! mas certamente o desejava para marido, por que
se o appetecesse para amante não se soccorria dos serviços da D. Maria
Mendonça--nem a prima Maria, apesar de tão sabuja com as amigas ricas,
os prestaria assim descaradamente como uma alcoviteira de Comedia! E
caramba! casar com a D. Anna--não!

E subitamente anciou por conhecer a vida da D. Anna! Aturára ella tantos
annos, em severa fidelidade, o velho Sanches? Sim, talvez, na _Feitosa_,
na solidão dos grandes muros da _Feitosa_--por que nunca sobre ella
esvoaçára um rumor, em terriolas tão gulosas de rumores malignos. Mas em
Lisboa?... Esses «amigos estimabilissimos» de que se ufanava o pobre
Sanches, o D. João não sei quê, o pomposo Arronches Manrique, o Philippe
Lourençal com o seu cornetim?... Algum de certo a attacára--talvez o D.
João, por dever tradicional do nome. E ella?... Quem o informaria sobre
a historia sentimental da D. Anna?

Depois, ao jantar, de repente pensou no Gouveia. Uma irmã do Gouveia,
casada em Lisboa com certo Cerqueira (arranjador de Magicas e empregado
na Misericordia) costumava mandar ao mano Administrador relatorios
intimos sobre todas as pessoas conhecidas d'Oliveira, de Villa-Clara,
que se demoravam em Lisboa--e que interessavam o mano ou por Politica,
ou por mexeriquice. E de certo, pela irmã Cerqueira, o querido Gouveia
conhecia miudamente os annaes da D. Anna, durante os seus invernos de
Lisboa, nas delicias da sua «roda fina».

N'essa noite, porém, o Administrador não apparecera na Assembleia. E
Gonçalo, desconsolado, recolhia á Torre--quando no Largo do Chafariz o
encontrou com o Videirinha, ambos sentados n'um banco, sob as olaias
escuras.

--Chegou lindamente! exclamou o Gouveia. Estavamos mesmo a marchar para
minha casa, tomar chá. Quer vossê, tambem?... Vossê costuma gostar das
minhas torradinhas.

O Fidalgo acceitou--apezar de cançado. E logo pela Calçadinha, enlaçando
o braço do Administrador, contou que recebera uma carta de Lisboa, d'um
amigo, com uma nova estupenda... O que?--O casamento da D. Anna Lucena.

O Gouveia parou, assombrado, atirando o côco para a nuca:

--Com quem?!

Gonçalo que inventára a carta--inventou o noivo:

--Com um vago parente meu, ao que parece, um D. João Pedroso ou da
Pedrosa. Muitas vezes o Sanches Lucena me fallou n'elle... Conviviam
muito em Lisboa...

Gouveia bateu com a ponta da bengala nas pedras:

--Não póde ser!... Que disparate! A D. Anna não ajustava casamento sete
semanas depois de lhe morrer o marido... Olhe que o Lucena morreu no
meado de Julho, homem! Ainda nem teve tempo de se acostumar á sepultura!

--Sim, com effeito! murmurou Gonçalo.

E sorria, sob uma doce baforada de vaidade--pensando que, sete semanas
depois de viuva, ella, sem resistir, calcando decencia e luto, lhe
offerecia a elle uma entrevista nas ruinas de Craquêde.

A mentira de resto, apesar de disparatada, aproveitára--porque, depois
de subirem á saleta verde do Administrador, o espanto recomeçou.
Videirinha esfregava as mãos, divertido:

--Oh snr. Dr., olhe que tinha graça!... Se a snr.^a D. Anna, depois
d'apanhar os duzentos contos do velhote, logo passadas semanas, zás, se
engancha com um rapazote novo...

Não, não!... Gonçalo agora, reparando, tambem considerava despropositada
a noticia do casamento, assim com o pobre Sanches ainda môrno...

--Naturalmente entre ella e esse D. João havia namorico, olhadella...
Por isso imaginaram. Com effeito, alguem me contou, ha tempos, que o tal
D. João se atirava valentemente, como cumpre a um D. João, e que ella...

--Mentira! atalhou o Administrador, debruçado sobre a chaminé do
candieiro para accender o cigarro. Mentira! Sei perfeitamente, e por
excellente canal... Em fim, sei por minha irmã! Nunca, em Lisboa, a D.
Anna deu azo a que se rosnasse. Muito séria, muitissimo séria. Está
claro, não faltou por lá maganão que lhe arrastasse a aza languida...
Talvez esse D. João, ou outro amigo do marido, segundo a boa lei
natural. Mas ella, nada! Nem ôlho de lado! Esposa romana, meu amigo, e
dos bons tempos romanos!

Gonçalo, enterrado no camapé, torcia lentamente o bigode, regalado,
recolhendo as revelações. E o Gouveia, no meio da sala, com um gesto
convencido e superior:

--Nem admira! Estas mulheres muito formosas são insensiveis. Bellos
marmores, mas frios marmores... Não, Gonçalinho, lá para o sentimento, e
para a alma, e mesmo para o resto, venham as mulheres pequeninas,
magrinhas, escurinhas! Essas sim!... Mas os grandes mulherões brancos,
do genero Venus, só para vista, só para museo.

Videirinha arriscou uma duvida:

--Uma senhora tão bonita como a snr.^a D. Anna, e com aquelle sangue,
assim casada com um velhote...

--Ha mulheres que gostam de velhotes por que ellas mesmas teem
sentimentos velhotes!--declarou o Gouveia, de dedo erguido, com immensa
auctoridade e immensa philosophia.

Mas a curiosidade de Gonçalo não se contentava. E na _Feitosa_? Nunca se
rosnára d'alguma aventura escondida? Parece que com o Dr. Julio...

De novo o Fidalgo inventava. De novo Gouveia, repelliu a «mentira»:

--Nem na _Feitosa_, nem em Oliveira, nem em Lisboa... De resto, é o que
lhe digo, Gonçalo Mendes. Mulher de marmore!

Depois, saudando, em submissa admiração:

--Mas, como marmore... Vossês, meninos, não imaginam a belleza d'aquella
mulher decotada!

Gonçalo pasmou:

--E onde a viu vossê decotada?

--Onde a vi decotada? Em Lisboa, n'um baile do Paço... Até foi
justamente o Lucena que me arranjou o convite para o Paço. Lá me
espanejei, de calção... Uma semsaboria. E mesmo uma vergonha, toda
aquella turba acavallada por cima dos buffetes, aos berros, a agarrar
furiosamente pedaços de perú...

--Mas então, a D. Anna?

--Pois a D. Anna uma belleza! Vossês não imaginam!... Santo nome de
Deus! que hombros! que braços! que peito! E a brancura, a perfeição...
De endoidecer! Ao principio, como havia muita gente, e ella estava para
um canto, acanhadota, não fez sensação. Mas depois lá a descobriram. E
eram correrias, magotes embasbacados... E «quem será?» E «que encanto!»
Todo o mundo perdidinho, até o Rei!

E um momento os tres homens emmudeceram na impressão do formoso corpo
evocado, que entre elles surgia, quasi despido, inundando com o
explendor da sua brancura a modesta sala mal alumiada. Por fim
Videirinha acercou a cadeira, em confidencia, para fornecer tambem a sua
informação:

--Pois, por mim, o que posso affirmar é que a snr.^a D. Anna é uma
mulher muito aceada, muito lavada...

E como os outros s'espantavam, rindo, de uma certeza tão
intima--Videirinha contou que todas as semanas apparecia um moço da
_Feitosa_, na botica do Pires, a comprar tres e quatro garrafas de agua
de Colonia portugueza, da receita do Pires.

--Até o Pires dizia sempre, a esfregar as mãos, que na Feitosa regavam
as terras com agua de Colonia. Depois é que soubemos pela creada... A
snr.^a D. Anna toma todos os dias um grande banho, que não é só para
lavar, mas para prazer. Fica uma hora dentro da tina. Até lê o jornal
dentro da tina. E em cada banho, zás, meia garrafa d'agua de Colonia...
Já é luxo!

Então Gonçalo sentiu como um aborrecimento de todas aquellas revelações
do Administrador, do ajudante da Pharmacia, sobre os decotes e as
lavagens da linda mulher que o esperava entre os tumulos dos Ramires
seculares. Saccudiu o jornal com que se abanava, exclamou:

--Bem! E passando a cantiga mais séria... Oh Gouveia, vossê que tem
sabido do Dr. Julio? O homem trabalha na eleição?

A creada entrára com a bandeja do chá. E em torno da mesa, trincando as
torradas famosas, conversaram sobre a Eleição, sobre os informes dos
Regedores, sobre a reserva do Rio-Manso--e sobre o Dr. Julio, que
Videirinha encontrára nos Bravaes pedinchando votos pelas portas,
acompanhado por um môço com a machina photographica ás costas.

Depois do chá Gonçalo, cançado e já provido «de revelações», accendeu o
charuto para recolher á Torre.

--Vossê não acompanha, Videirinha?

--Hoje, Snr. Dr., não posso. Parto de madrugada para Oliveira, na
diligencia.

--Que diabo vae vossê fazer a Oliveira?

--Por causa d'uns sapatos de praia e d'um fato de banho lá da minha
patrôa, da D. Josepha Pires... Tenho de os trocar nos Emilios, levar as
medidas.

Gonçalo ergueu os braços, desolado:

--Ora vejam este paiz! Um grande artista, como o Videirinha, a carregar
para Oliveira com os sapatos de banho da patrôa Pires!... Oh Gouveia!
quando eu fôr deputado precisamos arranjar um bom logar para o
Videirinha, no Governo Civil. Um logar facil e com vagares, para elle
não esquecer o violão!

Videirinha córou de gôsto e de esperança--correndo a despendurar do
cabide o chapéo do Fidalgo.

Pela estrada da Torre, os pensamentos de Gonçalo esvoaçaram logo, com
irresistida tentação, para D. Anna--para os seus decotes, para os
languidos banhos em que se esquecia lendo o jornal. Por fim, que
diabo!... Essa D. Anna assim tão honesta, tão perfumada, tão
explendidamente bella, só apresentava, mesmo como esposa, um feio
_senão_--o papá carniceiro. E a voz tambem--a voz que tanto o arripiára
na Bica-Santa... Mas o Mendonça assegurava que aquelle timbre rolante e
gordo, na intimidade, se abatia, liso e quasi doce... Depois, mezes de
convivencia habituam ás vozes mais desagradaveis--e elle mesmo, agora,
nem percebia quanto o Manoel Duarte era fanhoso! Não! mancha teimosa,
realmente, só o pae carniceiro. Mas n'esta Humanidade nascida toda d'um
só homem, quem, entre os seus milhares d'avós até Adão, não tem algum
avô carniceiro? Elle, bom fidalgo, d'uma casa de Reis d'onde Dynastias
irradiavam, certamente, escarafunchando o Passado, toparia com o Ramires
carniceiro. E que o carniceiro avultasse logo na primeira geração, n'um
talho ainda afreguezado, ou que apenas s'esfumasse, atravez d'espessos
seculos, entre os trigesimos avós--lá estava, com a faca, e o cepo, e as
postas de carne, e as nodoas de sangue no braço suado!...

E este pensamento não o abandonou até á Torre--nem ainda depois, á
janella do quarto, acabando o charuto, escutando o cantar dos ralos. Já
mesmo se deitára, e as pestanas lhe adormeciam, e ainda sentia que os
seus passos impacientes se embrenhavam para traz, para o escuro passado
da sua Casa, por entre a emmaranhada Historia, procurando o
carniceiro... Era já para além dos confins do Imperio Visigodo, onde
reinava com um globo d'ouro na mão o seu barbudo avô Recesvinto.
Esfalfado, arquejando, transpozera as cidades cultas, povoadas de homens
cultos--penetrára nas florestas que o mastodonte ainda sulcava. Entre a
humida espessura já crusára vagos Ramires, que carregavam, grunhindo,
rezes mortas, molhos de lenha. Outros surdiam de tocas fumarentas,
arreganhando agudos dentes esverdeados para sorrir ao neto que passava.
Depois por tristes ermos, sob tristes silencios, chegára a uma lagôa
ennevoada. E á beira da agoa limosa, entre os canaviaes, um homem
monstruoso, pelludo como uma féra, agachado no lodo, partia a rijos
golpes, com um machado de pedra, postas de carne humana. Era um Ramires.
No ceu cinzento voava o Açor negro. E logo, d'entre a neblina da lagôa,
elle acenava para Santa Maria de Craquêde, para a formosa e perfumada D.
Anna, bradando por cima dos Imperios e dos Tempos:--«Achei o meu avô
carniceiro!»

       *       *       *       *       *

No Domingo, Gonçalo acordou com uma «esperta ideia!» Não correria a
Santa Maria de Craquêde com uma pontualidade sofrega, ás cinco horas (as
cinco horas marcadas no _Post-Scriptum_ da prima Maria)--mostrando o seu
alvoroço em encontrar a tão bella e tão rica D. Anna Lucena! Mas ás seis
horas, quando findasse a romaria das senhoras aos tumulos, appareceria
elle indolentemente, como se, recolhendo d'um passeio pelas frescas
cercanias, se recordasse, parasse nas ruinas para conversar com a prima
Maria.

Logo ás quatro horas porém se começou a vestir com tantos esmeros, que o
Bento, cançado das gravatas que o Snr. Dr. experimentava e arremessava
amarfanhadas para o divan, não se conteve:

--Ponha a de sedinha branca, Snr. Dr.! Ponha a branca, que lhe fica
melhor! E refresca mais, com este calor.

Na escolha d'um ramo para o casaco ainda requintou, juntando as côres
heraldicas dos Ramires, um cravo amarello com um cravo branco. Ao
portão, apenas montára na egoa, temeu que as senhoras (não o encontrando
no Claustro) encurtassem a visita, estugou o trote pelo atalho da
Portella. Depois adiante, ao desembocar na antiga estrada real, soltou
n'um galope impaciente que o branqueou de poeira.

Só retomou um passo indifferente, ao acercar da linha do Caminho de
Ferro, onde um carro de lenha e dois homens esperavam deante da
cancella, que se fechára para a lenta passagem d'um trem carregado de
pipas. Um d'esses homens, d'alforge aos hombros, era o Mendigo--o
vistoso Mendigo que passeava por aquellas aldeias a rendosa magestade
das suas barbaças de Deus fluvial. Erguendo gravemente o chapéo de
vastas abas, desejou ao Fidalgo a companhia de Nosso Senhor.

--Então hoje a ganhar a rica vida por Craquêde?...

--Cá me arrasto ás vezes para a passagem do comboio d'Oliveira, meu
Fidalgo. Os passageiros gostam de me vêr de pé no talude, correm sempre
ás janellas...

Gonçalo, rindo, recordou que o encontro d'aquelle ancião precedia sempre
um encontro seu com a bella D. Anna.--«Quem sabe? pensou. É talvez o
Destino! Os antigos pintavam assim o Destino, com longas barbas e longas
guedelhas, e o alforge ás costas contendo as sortes humanas...»--E com
effeito ao cabo do pinheiral silencioso, que estiradas resteas de sol
docemente douravam--avistou a caleche da _Feitosa_, parada sob uma
carvalha, com o cocheiro fardado de negro dormitando na almofada. A
estrada real de Oliveira costeia ahi o antigo adro do mosteiro de
Craquêde, queimado pelo fogo do céo, n'aquella irada tempestade que
chamam _de S. Sebastião_, e que aterrou Portugal em 1616. Uma herva
agora alfombra o chão, crescida e verde, entre os poderosos troncos dos
castanheiros velhissimos. A Egrejinha nova alveja, bem caiada, ao fundo
da ramaria: e, ligada a ella por um muro esbrechado que densa hera
veste, tomando todo o lado nascente do Terreiro--sobe, enche ainda
magnificamente o céo lustroso, a fachada da Egreja do vetusto Mosteiro,
suavemente amarellecida e brunida pelos tempos, com o seu immenso portal
sem portas, a rosacea desmantelada, e esvasiados os nichos
d'enterramento onde outr'ora se estiraçavam as imagens dos fundadores,
Froylas Ramires e sua mulher Estevaninha, condessa d'Orgaz, por alcunha
a _Queixa-perra_. Duas casas terreas povoam o lado fronteiro do
adro--uma limpa, com as hombreiras das janellas pintadas d'azul
estridente, a outra deserta, quasi sem telhado, afogada na verdura d'um
quinteiro bravo onde gira-soes resplandecem. Um pensativo silencio
envolvia o arvoredo, as altivas ruinas. E nem o quebrava, antes
serenamente o emballava, o susurro d'uma fonte, que a estiagem
adelgaçára em fio lento, e mal enchia o seu tanque de pedra, toldado
pela pallida e rala folhagem d'um chorão muito alto.

O trintanario da _Feitosa_, ao enxergar o Fidalgo, saltou risonhamente
da borda do tanque onde picava tabaco, para segurar a egoa. E Gonçalo,
que desde pequeno não penetrava nas ruinas de Craquêde, seguia por um
carreirinho cortado na relva, attentamente, encantado com aquella
romantica solidão de lenda e verso, quando, sob o arco do portal,
appareceram as duas senhoras voltando do velho Claustro. D. Maria
Mendonça, com a sua sacudida vivacidade, agitou logo o guarda-sol de
xadrezinho, semelhante ao vestido, cujas mangas, tufando desmedidamente
nos hombros, lhe vincavam mais a elegancia esgalgada. E ao lado, na
claridade, D. Anna era uma silenciosa e esvelta fórma negra, de lã negra
e d'escumilha negra, onde apenas transparecia, suavisada sob o véo
negro, a brancura explendida da sua face sensual e séria.

Gonçalo correra, erguendo o chapéo de palha, balbuciando o seu «prazer
por aquelle encontro...» Mas já D. Maria o reprehendia, sem lhe
consentir a fabula do «encontro»:

--O primo não é nada amavel, nada amavel...

--Oh prima!...

--Pois sabia que vinhamos, pela minha carta! E nem está á hora aprazada,
para fazer as honras, como devia...

Elle, rindo, com o seu desembaraço airoso, negou esse dever! Aquella
casa não era sua, mas do Bom Deus! Ao Bom Deus competia «fazer as
honras»--acolher tão doces romeiras com algum milagre amavel...

--E então, gostaram? V. Ex.^a, Snr.^a D. Anna, gostou das ruinas?...
Muito interessantes, não é verdade?

Através do véo, com uma lentidão que a espessa renda negra tornava mais
grave, ella murmurou:

--Eu já conhecia... Vim cá uma tarde, com o pobre Sanches que Deus haja.

--Ah...

Áquella evocação do pobre morto, Gonçalo sumira todo o sorriso, com
polida tristeza. Mas D. Maria Mendonça acudio, atirando um dos seus
magros gestos, como para arredar a sombra importuna:

--Ai! não imagina o que gostei, primo! É d'appetite todo o claustro...
Logo aquella espada enferrujada, chumbada por cima do tumulo... Não ha
nada que impressione como estas cousas antigas... Oh primo, e pensar que
estão alli antepassados nossos!

O sorriso de Gonçalo de novo lampejou, alegre e acolhedor, como sempre
que D. Maria se empurrava com desesperada gula para dentro da Casa de
Ramires. E gracejou, affavelmente. Oh, antepassados... Simples punhados
de cinsa vã!--Pois não era verdade, Snr.^a D. Anna?... Realmente! quem
conceberia que a prima Maria, tão viva, tão sociavel, tão engraçada,
descendesse d'uma poeira tristonha guardada dentro d'uma pia de pedra?
Não! não se podia ligar tanto _ser_ a tanto _não-ser_...--E como D. Anna
sorria, n'uma vaga concordancia, encostando as duas mãos fortes e muito
apertadas na pellica negra ao alto cabo d'aljofar da sombrinha, elle
atalhou com interesse:

--V. Ex.^a está talvez cançada, Snr.^a D. Anna?

--Não, não estou cançada... Ainda vamos mesmo entrar na capella, um
bocadinho... Eu nunca me canço.

E pareceu a Gonçalo que a voz da formosa creatura não rolava do papo,
tão grossa e gorda--mas que se afinára, adoçada e velada pelo luto
d'escomilha e lã, como esses grossos e rolantes rumores que a noite e o
arvoredo adelgaçam. Mas D. Maria confessou o seu immenso cançasso! Nada
a esfalfava como visitar curiosidades... E além d'isso a emoção, a ideia
de heroes tão antigos!

--Se nos sentassemos n'aquelle banco, hein? É muito cedo para
recolhermos, não é verdade, Annica? E está tão agradavel n'este socego,
n'esta frescura...

Era um banco de pedra, rente ao muro esbrechado que a hera afogava. Em
torno a relva crescia, mais silvestre e florida com os derradeiros
malmequeres e botões d'ouro que o sol d'Agosto poupára. Um aromasinho
fino, d'algum jasmineiro emmaranhado na hera, errava, adocicava a serena
tarde. E na rama d'um alamo, defronte do portão da Capella, duas vezes
um melro cantára. Gonçalo sacudiu todo o banco cuidadosamente, com o
lenço. E sentado na ponta, junto de D. Maria, louvou tambem a frescura,
o recolhimento d'aquelle cantinho de Craquêde... E elle que nunca se
aproveitára de refugio tão santo, e quasi seu, nem mesmo para um almoço
bucolico! Pois agora certamente voltaria fumar um charuto, revolver
ideias de paz sob a paz das carvalheiras, na visinhança dos vovós
mortos... Depois, com uma curiosidade:

--É verdade, prima! E o subterraneo?

Oh! não existia subterraneo!... Sim, existia--mas entulhado, sem
sepulturas, sem antiguidades. E o sachristão logo lhes affiançára que
«não valia a pena sujarem as saias...»

--É verdade, oh Annica, déste alguma cousa ao sachristão?

--Oh filha, dei cinco tostões... Não sei se foi bastante.

Gonçalo assegurou que se pagára sumptuosamente ao sachristão. E, se
prevesse tamanha generosidade da Snr.^a D. Anna, agarrava elle um mólho
de chaves, até enfiava uma opa preta, para mostrar--e para embolsar...

--Pois é o que devia ter feito! exclamou D. Maria, com um corisco nos
espertos olhos. E decerto se lhe davam os cinco tostões! Porque sempre
sería mais instructivo que o homemsinho, que mascava, não sabia nada!...
Semelhante morcão! E eu com tanta curiosidade por aquelle tumulo aberto,
com a tampa rachada... O môno só soube resmungar que «eram historias
muito antigas lá do Fidalgo da Torre...»

Gonçalo ria:

--Pois essa historia por acaso sei eu, prima Maria! Sei agora pelo _Fado
dos Ramires_, o fado do Videirinha...

D. Maria Mendonça levantou as compridas mãos aos céos, revoltada com
aquella indifferença pelas tradições heroicas da Casa. Conhecer sómente
os seus Annaes desde que elles andavam repicados n'um fado!... O primo
Gonçalo não se envergonhava?

--Mas por quê, prima, porquê? O fado do Videirinha está fundado em
documentos authenticos que o Padre Sueiro estudou. Todo o recheio
historico foi fornecido pelo Padre Sueiro. O Videirinha só poz as rimas.
Além d'isso antigamente, prima, a Historia era perpetuada em verso e
cantada ao som da lyra... Em fim quer saber esse caso do tumulo aberto,
segundo as quadras do Videirinha? Eu sempre conto! Mas só para a Snr.^a
D. Anna, que não soffre d'esses escrupulos...

--Não! acudiu D. Maria. Se o Videirinha tem essa auctoridade historica
então conte tambem para mim, que sou da Casa!

Gonçalo, por gracejo, tossio, passou o lenço pelos beiços:

--Pois eis o caso! N'esse tumulo habitava, naturalmente morto, um dos
meus avós... Não me lembro o nome, Gutierres ou Lopo. Creio que
Gutierres... Emfim, lá jazia quando foi da batalha das Navas de
Tolosa... A prima Maria conhece a batalha das Navas, os cinco reis
mouros, etc... Como o tal Gutierres soube da batalha não contam os
versos do Videirinha. Mas, apenas lá dentro lhe cheirou a carnificina,
arromba o tumulo, sahe por este pateo como um desesperado, desenterra o
seu cavallo que fôra enterrado no adro onde agora crescem estes
carvalhos, monta n'elle todo armado, e, Cavalleiro morto sobre cavallo
morto, larga a galope através da Hespanha, chega ás Navas, arranca a
espada, e destroça os mouros... Que lhe parece, Snr.^a D. Anna?

Dedicára a historia a D. Anna, procurando nos seus bellos olhos a
attenção e o interesse. E ella, que a furto, através do decôro
melancolico a que se esforçava, adoçára o sorriso, attrahida e levada,
murmurou apenas:--«Tem graça!»--D. Maria, porém, quasi esvoaçou sobre o
banco de pedra, n'um extasis:--«Lindo! Lindo! Que poesia!... Oh! uma
lenda de todo o appetite!»--E, para que Gonçalo desenrolasse ainda a
graça do seu dizer, outras maravilhas da sua Chronica:

--Conte, primo, conte... E voltou para Craquêde esse tio Ramires?

--Quem, prima, o Gutierres?... Ou fosse elle tolo! Apenas se apanhou
livre da massada da sepultura não appareceu mais em Santa Maria de
Craquêde. O tumulo vasio, como está, e elle por Hespanha n'uma pandega
heroica!... Imagine! um defunto que por milagre se safa do seu jazigo,
d'aquella postura eterna, tão apertada, tão esticada!...

Subitamente emmudeceu, lembrando o Sanches Lucena, tambem esticado no
seu caixote de chumbo, sob o seu vistoso jazigo d'Oliveira...--D. Anna
baixára a face, mais sumida no véo, esfuracando a herva com a ponta da
sombrinha. E a esperta D. Maria, para desfazer a sombra impertinente que
de novo os roçára, rompeu n'outra curiosidade, que ainda se encadeava na
nobreza dos Ramires:

--É verdade! Sempre me esquece de lhe perguntar. O primo ainda tem
muitos parentes em França... Talvez tambem não saiba?

Sim! Gonçalo, casualmente, conhecia essa historia dos seus parentes de
França--apezar de que o Videirinha os não cantára no Fado!

--Então conte! Mas que seja historia alegre!

Oh, não era prodigiosamente divertida! Um avô Ramires, Garcia Ramires,
acompanhára nas suas famosas jornadas o Infante D. Pedro, o filho
d'El-Rei D. João I... A Prima Maria sabia--o Infante D. Pedro, o que
correu as Sete Partidas do mundo... Pois o Infante D. Pedro e os seus
fidalgos, de volta da Palestina, pousaram um anno inteiro na Flandres,
com o Duque de Borgonha. Até se celebraram então festas maravilhosas,
com um banquete que durou sete dias, e que anda nos compendios da
Historia de França. Onde ha danças ha amores. A avô Ramires sobejava
imaginação e arrojo... Fôra elle que deante de Jerusalem, no Valle de
Josaphat, lembrára que se erguesse um _signal_ para que o Infante e os
seus companheiros de romagem se reconhecessem no grande Dia de Juizo.
Depois, naturalmente, bello mocetão, de barba negra e cerrada á
Portugueza... Emfim casára com uma irmã do Duque de Clèves, uma tremenda
Senhora, sobrinha do Duque de Borgonha e Brabante. Mais tarde, através
d'essas ligações, uma avó Ramires, já viuva, casou tambem em França com
o conde de Tancarville. Esses Tancarvilles, Gran-Mestres de França,
possuiam o mais formidavel castello da Europa, e...

D. Maria bateu as palmas, rindo:

--Bravo! lindamente! Sim, senhor!... Então o primo que se gaba de não
saber nada de fidalguias... Olhe como conhece pelo miudo a historia
d'esses grandes casamentos! Hein, Annica?... É uma Chronica viva!

Gonçalo vergou os hombros, confessou que se occupára de toda essa
heraldica historia por um motivo bem rasteiro--por miseria!...

--Por miseria?

--Sim, prima Maria, por penúria de moeda, de cobres...

--Conte! conte! Olhe, a Annica está anciosa...

--Quer saber, Snr.^a D. Anna?... Pois foi em Coimbra, no meu segundo
anno de Coimbra. Os companheiros e eu chegamos a não juntar entre todos
um vintem. Nem para cigarros! Nem para o sagrado decilitro de carrascão
e as tres azeitonas do dever... Um d'elles então, rapaz muito engraçado,
de Melgaço, surdiu com a idéa estupenda de que eu escrevesse aos meus
parentes de França, a esses Clèves, a esses Tancarvilles, senhores de
certo immensamente ricos, e sollicitasse, com desembaraço, um
emprestimosinho de trezentos francos.

D. Anna não conteve um riso, sinceramente divertido:

--Ai! tem muita graça!

--Mas não teve resultado, minha senhora... Já não existem Clèves, nem
Tancarvilles! Todas essas grandes familias feudaes findaram, se fundiram
n'outras casas, até na Casa de França. E o meu padre Sueiro, apezar de
todo o seu saber genealogico, nunca conseguiu descobrir quem as
representava com bastante affinidade para me emprestar, a mim parente
pobre de Portugal, esses trezentos francos.

Aquella penuria de Gonçalo, de tamanho fidalgo, quasi enternecera D.
Anna:

--Ora estarem assim sem vintem! Quem soubesse... Mas tem graça! Essas
historias de Coimbra teem sempre muita graça. O D. João de Pedrosa, em
Lisboa, tambem contava muitas...

D. Maria Mendonça, porém, através d'essa facecia d'estudantes,
descortinára outra prova inesperada da grandeza dos Ramires. E
immediatamente a estendeu deante de D. Anna com habilidade:

--Ora vejam!... Todas essas grandes casas de França, tão ricas, tão
poderosas, acabaram, desappareceram. E cá no nosso Portugalsinho ainda
dura a casa de Ramires!

Gonçalo acudiu:

--Acaba agora, prima!... Não olhe para mim assim espantada. Acaba
agora... Pois se eu não caso!

Então D. Maria recuou o magro peito--como se esse casamento do primo
dependesse de doces influencias, que convinha se trocassem bem
chegadamente, sem Marias Mendonças de permeio no estreito banco com
grandes mangas bufantes tolhendo as correntes de effluvio. E sorria,
quasi languidamente:

--Ora não casa... Mas por quê, primo, por quê?

--Por que não tenho geito, prima. O casamento é uma arte muito delicada
que necessita vocação, genio especial. As Fadas não me concederam esse
genio. E se me dedicasse a semelhante obra, ai de mim! com certeza a
estragava.

D. Anna, como se outra idéa a occupasse, puxára lentamente do cinto o
relogio preso por uma fita de cabello. E D. Maria insistia, recusava os
motivos do Fidalgo:

--São tolices. O primo que gosta tanto de creanças...

--Gosto, gosto muito de creancas, até de creancinhas de mama. As
creanças são os unicos seres divinos que a nossa pobre humanidade
conhece. Os outros anjos, os d'azas, nunca apparecem. Os santos, depois
de santos, ficam na Bemaventurança a preguiçar, ninguem mais os enxerga.
E, para concebermos uma ideia das cousas do céo, só temos realmente as
creancinhas... Sim, com effeito, prima, gosto muito de creanças. Mas
tambem gosto de flôres, e não sou jardineiro, nem tenho geito para a
jardinagem.

E D. Maria com uma faisca no olhar promettedor:

--Socegue, que ainda vem a aprender!

Depois, para D. Anna que se esquecera na contemplação do relogio:

--Achas que vão sendo horas? Então, se queres, entramos na Capella... Oh
primo, veja se está aberta.

Gonçalo correu, empurrou a porta da Capella. Depois acompanhou as duas
senhoras pela pequenina nave soalhada, entre delgados pilares recobertos
de uma cal aspera e crua--que recamava tambem as paredes lisas, apenas
guarnecidas, na sua rigida nudez, por lithographias de Santos dentro de
caixilhos de pinho. Deante do altar as senhoras ajoelharam--a prima
Maria enterrando a face nas mãos juntas como n'um vaso de Piedade.
Gonçalo dobrou o joelho de leve, engrolou uma Ave-Maria.

Depois voltou para o adro, accendeu um cigarro. E, pisando lentamente a
relva, considerava quanto a viuvez melhorára D. Anna. Sob o negrume do
luto, como n'uma penumbra que esfuma a grosseira deselegancia das
cousas, todos os seus defeitos se fundiam--os defeitos que tanto o
horripilavam na tarde da Bica Santa, o rolar gordo da voz, o peito
empinado, a ostentação de burgueza ricassa pinguemente repimpada na
vida. Até já nem dizia--«o cavalheiro!» E alli, no adro melancolico de
Craquêde, certamente parecia interessante e desejavel.

As senhoras desciam os dois degraus da Capella. Um melro esvoaçou na
ramagem dos alamos. E Gonçalo encontrou o lampejo dos olhos serios de D.
Anna que o procuravam.

--Peço perdão de não lhes ter offerecido agua benta á sahida, mas a
concha está secca...

--Jesus, primo, que Egreja tão feia!

D. Anna arriscou, com timidez:

--Depois das ruinas e dos tumulos, até parece pouco religiosa.

A observação impressionou Gonçalo, como muito fina. E junto d'ella,
demorando os passos com agrado, sentia, esparzido pelos seus movimentos,
pelo roçar do vestido, um aroma tambem fino, que não era o da horrenda
agua de Colonia da botica do Pires. Em silencio, sob a ramagem das
carvalhas, caminharam para a caleche, onde o cocheiro se aprumára, bem
estilado, tirando o chapeu. Gonçalo notou que elle rapára o bigode. E a
parelha reluzia, atrelada com esmero.

--E então, prima Maria, ainda se demora pelos nossos sitios?

--Sim, primo, mais uns quinze dias... A Annica é tão amavel, quiz que eu
trouxesse os pequenos. O que elles se têm divertido na quinta, não
imagina!

D. Anna murmurou, sempre séria:

--São muito engraçados, fazem muita companhia... Eu tambem gosto muito
de creanças.

--Ai, a Annica adora creanças! accudiu D. Maria com fervor. O que ella
atura os pequenos! Até joga com elles o mafarrico.

Perto da caleche, Gonçalo pensou que outra volta pelo adro, mais lenta,
com a D. Anna e o seu fino aroma, seria doce, n'aquelle socego da tarde
que findava, tingida de tão lindas côres de rosa sobre os pinheiraes
escurecidos. Mas já o trintanario se acercava segurando a sua egoa. E D.
Maria, depois de admirar e acariciar a egoa, chamou o primo
discretamente--para saber a distancia da _Feitosa_ a Treixedo, a outra
quinta historica dos Ramires.

--A Treixedo, prima?... Cinco legoas fartas, com maus caminhos.

E immediatamente se arrependeu, antevendo um passeio, um novo encontro:

--Mas na estrada ultimamente andaram obras. E é muito bonito sitio, n'um
alto, com um resto de muralhas... Treixedo era um castello enorme... Na
quinta ha uma lagôa entre arvoredo antigo... Oh! sitio delicioso para um
pic-nic!

D. Maria hesitou:

--É um pouco longe, veremos, talvez.

E como D. Anna esperava em silencio--Gonçalo abriu a portinhola, tomou
ao trintanario as rédeas da egoa. D. Maria Mendonça, no seu
contentamento por tão proveitosa tarde, sacudiu ardentemente a mão do
primo jurando «que ia apaixonada por Craquêde!» D. Anna mal roçou os
dedos de Gonçalo, acanhada e córando.

Sózinho, com a rédea da egoa enfiada no braço, Gonçalo sorria. Na
verdade, n'essa tarde, D. Anna não lhe desagradára. Outros modos, outra
singeleza grave, outra doçura na sua possante belleza de Venus rural...
E aquella observação sobre a Capella, «pouco religiosa» depois das
ruinas seculares do claustro, era uma observação fina. Quem sabe? Talvez
sob carne tão sensual se escondesse uma natureza delicada. Talvez a
influencia d'outro homem, que não o estupidissimo Sanches, desenvolvesse
na filha explendida do carniceiro qualidades de muito encanto... Oh,
evidentemente, a observação sobre os tumulos e a sua religiosidade
emanando da Lenda e da Historia--era fina.

E então tambem o tomou a curiosidade de visitar esse claustro onde não
entrára desde pequeno--quando ainda a Torre conservava as suas
carruagens montadas e a romantica Miss Rhodes escolhia sempre o passeio
de Craquêde para as tardes pensativas d'outomno. Puxou a egoa, transpoz
o portal, atravessou o espaço descoberto que fôra a nave--atulhado de
caliça, de cacos, de pedras despegadas da abobada e afogadas nas hervas
bravas. E pela brecha d'um muro a que ainda se amparava um pedaço
d'altar--penetrou na silenciosa crasta Affonsina. Só d'ella restam duas
arcadas em angulo, atarracadas sobre rudes pilares, lageadas de
poderosas lages poidas que n'essa manhã o sachristão cuidadosamente
varrera. E contra o muro, onde rijas nervuras desenham outros arcos,
avultam os sete immensos tumulos dos antiquissimos Ramires, denegridos,
lisos, sem um lavor, como toscas arcas de granito, alguns pesadamente
encravados no lagedo, outros pousando sobre bolas que os seculos
lascaram. Gonçalo seguia um carreiro de tijolo, rente aos arcos,
recordando quando elle outr'ora e Gracinha pulavam ruidosamente por
sobre essas campas, em quanto no pateo do claustro, entre as pilastras
tombadas e a verdura das ruinas, a boa Miss Rhodes agachada procurava
florinhas silvestres. Na abobada, sobre o mais vasto tumulo, lá
negrejava chumbada a espada, a famosa espada, com a sua corrente de
ferro pendendo do punho, a folha roida pela ferrugem das longas idades.
Sobre outro lá ardia a lampada, a estranha lampada mourisca, que não se
apagára desde a tarde remota em que algum monge, com uma tocha de
sahimento, silenciosamente a accendera... Quando se accendera ella, a
eterna lampada? Que Ramires jazeriam n'esses cofres de granito, a que o
tempo raspára as inscripções e as datas, para que n'ellas toda a
Historia se sumisse, e mais escuramente se volvessem em leve pó sem nome
aquelles homens de orgulho e de força?... Depois na ponta do claustro
era o tumulo aberto, e ao lado, derrubada em dous pedaços, a tampa que o
esqueleto de Lopo Ramires arrombára para correr ás Navas de Tolosa e
bater os cinco Reis mouros. Gonçalo espreitou para dentro, curiosamente.
A um canto da funda arca alvejava um montão d'ossos, limpos e bem
arrumados! Esquecera o velho Lopo, na sua pressa heroica, esses poucos
ossos, já despegados do seu esqueleto?... O crepusculo cerrára, e com
elle uma melancolica sombra que se adensava sob as abobadas da crasta,
cobria de tristeza morta aquella jazida de mortos. Então Gonçalo sentiu
a desolada solidão que o envolvia, o separava da vida, alli desgarrado,
e sem soccorro entre a poeira e a alma errante dos seus avós temerosos!
E de repente estremeceu, no arripiado mêdo de que outra tampa estalasse
com fragor e atravez da fenda surdissem lividos dedos sem carne! Repuxou
desesperadamente a egoa pelo muro desmantelado, nas ruinas da nave pulou
para o selim, e varou n'um trote o portal, galgou o adro com ancia--só
socegou ao avistar, ao fim do pinhal, a cancella do Caminho de Ferro
aberta, e uma velha que a passava tangendo o seu burro carregado
d'herva.




VIII


Ao fim da semana Gonçalo, que desde a visita a Santa Maria de Craquêde
arrastava o remorso incommodo da sua preguiça, do tão longo abandono da
Novella--recebeu de manhã, ao sahir do banho, uma carta do Castanheiro.
Era curta:--e declarava ao amigo Gonçalo que, se em meado de Outubro não
chegassem a Lisboa tres Capitulos do original, elle, com pezar seu e da
Arte, publicaria no primeiro numero dos Annaes, em vez da _Torre de D.
Ramires_, um drama do Nuno Carreira n'um acto, intitulado _Em Casa do
Temerario_... «Apezar de drama e de phantasia (accrescentava) convem á
indole erudita dos Annaes por que este _Temerario_ é Carlos o Temerario,
e a acção toda, fortemente tecida, se passa no Castello de Peronne, onde
se encontram nada menos que Luiz XI de França, e o nosso pobre Affonso
V, e Pero da Covilhan que o acompanhava, e outros figurões de rija
estatura historica. Imagine!... Está claro, o _chic_ supremo seria
_Tructezindo Mendes Ramires_ contado pelo nosso Gonçalo Mendes Ramires!
Mas, pelo que vejo, esse _chic_ supremo está impedido por uma indolencia
suprema. _Sunt Lacrymae Revistarum_!»

Gonçalo atirou a carta, gritou pelo Bento:

--Leva para a livraria chá verde, forte, com torradas. Hoje só almoço
tarde, ás duas... Talvez nem almoce!

E, enfiando o roupão de trabalho, decidiu amarrar á banca, como um
captivo ao remo, até que rematasse esse difficil Capitulo III, onde
resaltava o barbaro e sublime rasgo do avô Tructezindo. Não, que diabo!
não lhe convinha perder a apparição da Novella em tão proveitoso
momento, nas vesperas da sua chegada a Lisboa, quando para a influencia
Politica e para o prestigio social necessitava d'esse brilho que,
segundo o velho Vigny, «uma penna de aço accrescenta a um elmo dourado
de Fidalgo...» Felizmente, n'essa luminosa manhã em que as agoas da
horta fartamente cantavam, elle sentia tambem a veia borbulhando,
contente em se soltar e correr. Depois da visita á crasta de Craquêde a
sua imaginação concebia menos ennevoadamente os seus avós Affonsinos:--e
como que os palpava emfim no seu viver e pensar desde que contemplára os
grandes tumulos onde se desfaziam as suas grandes ossadas.

Na Livraria retomou com appetite, depois de lhes sacudir a poeira, as
tiras da Novella sobre que emperrára, n'aquelle atarantado lance de
susto e alarme--quando o Villico, o velho Ordonho, reconhecia o pendão
do Bastardo surgindo á borda da Ribeira do Coice entre o coriscar de
lanças empinadas, passando a antiga ponte de madeira, e, um momento
sumido na verdura dos alamos, de novo avançando, alto e tendido, até ao
rude Cruzeiro de pedra de Gonçalo Ramires o _Cortador_... O gordo
Ordonho então, atirando o brado de--«Prestes, prestes! que é gente de
Bayão!»--descambava pelo escalão da muralha como um fardo que rola.

No emtanto Tructezindo Ramires, no empenho d'aprestar a sua mesnada e
abalar sobre Montemór, regera já com o Adail a ordem da arrancada,
mandando que as buzinas soassem mal o sol batesse na margella do Poço
grande. E agora, na sala alta da Alcaçova, conversava com o seu primo de
Riba-Cavado e costumado camarada d'armas, D. Garcia Viegas--ambos
sentados nos poiaes de pedra d'uma funda janella, onde uma bilha d'agoa
com o seu pucaro refrescava entre vasos de manjaricão. D. Garcia Viegas
era um velho esgalgado e agil, d'escuro carão rapado, com uns miudos
olhos coruscantes--que merecêra a alcunha de _Sabedor_ pela viveza e
succulencia do seu dizer, as suas infinitas manhas de guerra, e a prenda
de fallar latim mais doutamente que um Clerigo da Curia. Convocado por
Tructezindo, como os outros parentes de solar, para engrossar a mesnada
dos Ramires em serviço das infantas, corrêra logo a Santa Ireneia
fielmente com o seu pequeno poder de dez lanças--começando por saquear
no caminho a herdade de Palha-Cã, dos de Severosa, que andavam com
pendão alto na Hoste Real contra as Donas opprimidas. Tão rijamente se
apressára que, desde a madrugada, apenas comêra sobre a sella, em
Palha-Cã, duas rodelas dos chouriços roubados. E com a sêde da afogueada
correria, ainda na emoção de tão amarga nova, a derrota de Lourenço
Ramires seu afilhado, novamente enchia d'agoa o pucaro de barro--quando
pela porta da sala de armas, que tres cabeças de javali dominavam,
rompeu o velho Ordonho esbaforido:

--Snr. Tructezindo! Snr. Tructezindo Ramires! o Bastardo de Bayão passou
a Ribeira, vem sobre nós com grande troço de lanças!

O velho Rico-Homem saltou do poial. E arremessando a mão cabelluda,
cerrada com sanha, como se já pela gorja empolgasse o Bastardo:

--Pelo Sangue de Christo! em boa hora vem que nos poupa caminho! Hein,
Garcia Viegas? A cavallo e sobre elle...?

Mas, rente aos tropegos calcanhares de Ordonho, correra um Coudel de
Besteiros, que gritou dos humbraes, saccudindo o capello de couro:

--Senhor! Senhor! A gente de Bayão parou ao Cruzeiro! E um cavalleiro
moço, com um ramo verde, está deante das barbacans, como trazendo
mensagem...

Tructesindo bateu o sapato de ferro sobre as lages, indignado com tal
embaixada mandada por tal villão...--Mas Garcia Viegas, que d'um sorvo
enxugára o pucaro, recordou serenamente e lealmente os preceitos:

--Tende, tende, primo e amigo! Que, por uso e lei d'aquem e d'além
serras, sempre mensageiro com ramo se deve escutar...

--Seja pois! bradou Tructesindo. Ide vós fóra ás barreiras com duas
lanças, Ordonho, e sabei do recado!

O Villico rebolou pela denegrida escada de caracol até ao patim da
Alcaçova. Dous accostados, de lança ao hombro, recolhendo d'alguma
rolda, conversavam com o armeiro, que sarapintára de amarello e
escarlate cabos d'ascumas novas e as enfileirava contra o muro para
seccarem.

--Por ordem do Senhor! gritou Ordonho. Lança direita, e commigo ás
barbacans, a receber mensagem!...

Ladeado pelos dous homens que se aprumaram, atravessou as barreiras; e
pelo postigo da barbacan, que uma quadrilha de besteiros guardava, sahiu
ao terreiro da Honra, largueza de terra calcada, sem relva ou arvore,
onde se erguiam ainda as traves carcomidas d'uma antiga forca, e se
amontoavam agora, para os concertos da Alcaçova, ripas de madeira, e
grossas cantarias lavradas. Depois, sem arredar do humbral, empinando o
ventre entre os dous accostados, bradou ao moço Cavalleiro, que esperava
sob o rijo sol, sacudindo os moscardos com o seu ramo d'amoreira:

--Dizei de que gente sois! e a que vindes! e que credencia trazeis!...

E como arqueára logo a mão inquieta sobre a orelha--o Cavalleiro,
serenamente, entalando o ramo entre o coxote e o arção, arqueou tambem
os dous guantes relusentes d'escamas na abertura do casco, bradou:

--Cavalleiro do solar de Bayão!... Credencia não trago que não trago
embaixada... Mas o Snr. D. Lopo ficou além ao Cruzeiro, e deseja que o
nobre senhor da Honra, o Snr. Tructezindo Ramires, o escute do eirado da
barbacan...

O Villico saudou--recolheu pela poterna abobadada da torre albarran,
murmurando para os dous accostados:

--O Bastardo vem a tratar o resgate do Snr. Lourenço Ramires...

Ambos rosnaram:

--Feio feito.

Mas, quando Ordonho offegante se apressava para a Alcaçova, encontrou no
pateo Tructezindo Ramires--que, na irada impaciencia d'aquellas delongas
do Bastardo, descera, todo armado. Sobre o comprido brial de lã
verde-negra, que recobria a vestidura de malha, as suas barbas
rebrilhavam, mais brancas, atadas n'um grosso nó como a cauda d'um
corcel. Do cinturão tauxeado de prata pendia a um lado o punhal recurvo,
a bozina de marfim--ao outro uma espada gôda, de folha larga, com alto
punho dourado onde scintillava uma pedra rara trazida outr'ora da
Palestina por Gutierres Ramires, o _d'Ultramar_. Um sergente conduzia
sobre uma almofada de couro os seus guantes, o seu capello redondo, de
vizeira gradada, como usára El-Rei D. Sancho: outro carregava o immenso
broquel, da fórma d'um coração, revestido de couro escarlate, com o Açôr
negro rudemente pintado, esgalhando as garras furiosas. E o Alferes,
Affonso Gomes, seguia com o guião enrolado na funda de lona.

Com o velho Rico-Homem descêra D. Garcia Viegas, e os outros parentes do
Solar--o decrepito Ramiro Ramires, um veterano da tomada de Santarem,
torcido pelos rheumatismos como a raiz de um roble, e arrimando os
passos tremulos, não a um bastão, mas a um chusso; o formoso Leonel, o
mais moço dos Samoras de Cendufe, o que matára os dois ursos nos brejos
de Cachamúz e que tão bem trovava; Mendo de Briteiros, o das barbas
vermelhas, grande queimador de bruxas, lêdo arranjador de folgares e
danças; e o agigantado Senhor dos Paços de Avellim, todo coberto, como
um peixe fabuloso, de escamas que reluziam. Como o sol se acercava da
margella do Poço grande, marcando a hora da arrancada sobre
Monte-mór--já, dos fundos alpendres que escondiam os campos do tavolado,
os cavallariços puxavam os ginetes de guerra, com as suas altas sellas
pregueadas de prata, as ancas e os peitos resguardados por coberturas de
couro franjado que rojavam nas lagens. Por todo o Castello se espalhára
que o Bastardo, depois da lide fatal aos Ramires, correra de
Canta-Pedra, ameaçava a Honra:--e debruçados dos passadiços que ligavam
a muralha aos contrafortes da Alcaçova, ou mettidos por entre os
engenhos d'arremesso que atulhavam as corredoiras, os moços da ucharia,
os servos das hortas, os villões acolhidos para dentro das barbacans,
espreitavam o Senhor de Santa Ireneia e aquelles Cavalleiros fortes, com
anciedade, tremendo do assalto dos de Bayão e d'essas horrendas bolas de
ferro, cheias de fogo, que agora as mesnadas Christãs arrojavam tão
destramente como as hordas Sarracenas.--No emtanto com a sua gorra
esmagada contra o peito, Ordonho, arfando, apresentava a Tructesindo o
recado do Bastardo:

--É cavalleiro moço, não traz credencia... O Snr. Bastardo espera ao
Cruzeiro... E pede que o attendaes da quadrella das barbacans...

--Que se acerque pois! gritou o velho. E com quantos queira dos villões
que o seguem!

Mas Garcia Viegas, o _Sabedor_, sempre avisado, com a sua esperta
mansidão:

--Tende, primo e amigo, tende! Não subaes vós á tranqueira antes que eu
me assegure se Bayão nos vem com arteirice ou falsura.

E entregando a sua pesada lança de faia a um donzel, enfiou pela escada
soturna da Torre albarran. Em cima no eirado, sussurrando um _chuta!
chuta!_ á fila de besteiros que guarnecia as ameias, attenta e com a
bésta encurvada--penetrou no miradouro, espiou pela setteira. O arauto
de Bayão galopára para o Cruzeiro, que uma selva movediça de lanças
rodeava coriscando. E curto recado lançou--porque logo, no seu fouveiro
acobertado por uma rêde de malha acairellada d'ouro, Lopo de Bayão
despegou do denso troço de cavalleiros, com a viseira erguida, sem lança
ou ascuma de monte, e ociosas sobre o arção da sella mourisca as mãos
onde se enrodilhavam as bridas de couro escarlate. Depois, a um toque
arrastado de buzina, avançou para as barbacans da Honra, vagarosamente,
como se acompanhasse um sahimento. Não movera o seu pendão amarello e
negro. Apenas seis infanções o escoltavam, tambem sem lança ou broquel,
com sobrevestes de panno rôxo sobre os saios de malha. Atraz quatro
alentados besteiros carregavam aos hombros umas andas, toscamente
armadas com troncos de arvores, onde um homem jazia estirado, como
morto, coberto, contra o calor e os moscardos, por leves folhagens de
acacia. E um monge seguia n'uma mula branca, segurando misturadamente
com as rédeas um crucifixo de ferro, sobre que pendia a orla do seu
capuz e uma ponta de barba negra.

Da setteira, mesmo sem descortinar por entre a camada de ramagens a face
do homem estendido nas andas, o _Sabedor_ adivinhou Lourenço Ramires, o
doce afilhado que tanto amára, que tão bem ensinára a terçar lanças e a
treinar falcões. E cerrando os punhos, gritando surdamente--«Bem
prestos! bésteiros, bem prestos!»--desceu a escura escadaria, tão
arremessado pela colera e pela magoa que o seu elmo cavamente bateu
contra o arco da porta, onde o esperava Tructesindo com os Cavalleiros
parentes.

--Senhor primo! bradou. Vosso filho Lourenço está deante das barreiras
da Honra deitado sobre umas andas!

Com um rosnar d'espanto, um atropelo dos sapatos de ferro sobre as lages
sonoras, todos seguiram pela poterna da albarran o Rico Homem--até ao
escadão de madeira que se empurrava contra a quadrella das barbacans. E,
quando o enorme velho surdio no eirado, um silencio pesou, tão ancioso,
que se sentia para além do vergel o chiar triste e lento da nora e o
latir dos mastins.

No terreiro, em frente á cancella gateada, o Bastardo esperava, immovel
sobre o seu ginete, com a formosa face bem levantada, a face de
_Claro-sol_, onde as barbas anelladas, cahindo nas solhas do arnez,
rebrilhavam como ouro novo. Vergando o capello d'ouropel, saudou
Tructesindo com gravidade e preito. Depois alçou a mão, que descalçára
do guante. E n'um considerado e sereno fallar:

--Senhor Tructesindo Ramires, n'estas andas vos trago vosso filho
Lourenço, que em lide leal, no valle de Canta-Pedra, colhi prisioneiro e
me pertence pelo foro dos Ricos-Homens d'Hespanha. E de Canta-Pedra
caminhei com elle para vos pedir que entre nós findem estes homizios e
estas feias brigas que malbaratam sangue de bons Christãos... Senhor
Tructesindo Ramires, como vós venho de Reis. De D. Affonso de Portugal
recebi a pranchada de Cavalleiro. Toda a nobre raça de Bayão se honra em
mim... Consenti em me dar a mão de vossa filha D. Violante, que eu quero
e que me quer, e mandae erguer a levadiça para que Lourenço ferido entre
no seu solar e eu vos beije a mão de pae.

Das andas, que estremeceram sobre os hombros dos besteiros, um
desesperado brado partio:

--Não, meu pae!

E hirto na borda do eirado, sem descrusar os braços, o velho Tructesindo
retomou o brado--que por todo o terreiro da Honra rolou, mais arrogante
e mais cavo:

--Meu filho, antes de mim, te respondeu, villão!

Como se uma pontoada de lança lhe topasse o peito, o Bastardo vacillou
na alta sella: e, colhido pelo repuxão das rédeas, o seu fouveiro recuou
alteando a testeira dourada. Mas, a um novo arremesso, repulou contra a
cancella. E Lopo de Bayão erguido sobre os estribos, gritava com ancia,
com furor:

--Snr. Tructesindo Ramires, não me tenteis!...

--Arreda, villão e filho de villôa, arreda!--clamou soberbamente o
velho, sem desprender os braços de sobre o levantado peito, na sua rija
immobilidade e teima, como se todo o corpo e alma fossem de rijo ferro.

Então o Bastardo, arrojando o guante contra o muro da barbacan, rugio,
chammejante e rouco:

--Pois pelo sangue de Christo e pela alma de todos os meus te juro, que
se me não dás n'este instante essa mulher que eu quero e que me quer,
sem filho ficas, que por minhas mãos, deante de ti e nem que todo o Céo
accuda, lhe acabo o resto da vida!

Já na mão lhe lampejava um punhal. Mas n'um impeto de sublime orgulho,
um impeto sobrehumano, em que cresceu como outra escura torre entre as
torres da Honra, Tructesindo arrancára a espada:

--Com esta, covarde! com esta! Para que seja puro, não vil como o teu, o
ferro que atravessar o coração de meu filho!

Furiosamente, com as duas possantes mãos, arremessou a espada, que
rodopiou silvando e faiscando, se cravou no duro chão, onde tremia,
ainda faiscava, como se uma colera heroica tambem a animasse. E no mesmo
relance, com um urro, um salto do ginete, o Bastardo, debruçado do
arção, enterrára o punhal na garganta de Lourenço--em golpe tão cravado
que o esguicho do sangue lhe salpicou a clara face, as barbas d'ouro.

Depois foi uma bruta abalada. Os quatro besteiros sacudiram para o chão
as andas, o corpo morto enrodilhado nos ramos--e atiraram pelo terreiro,
como lebres em clareira, atraz do monge que se agachava agarrado ás
crinas da mula. N'uma curta desfilada o Bastardo, os seis cavalleiros,
gritando o alarme, mergulharam no arraial que estacára ao Cruzeiro. Um
tumulto remoinhou em torno ao devoto pilar. E em rodilhado tropel a
mesnada desenfreou para a Ribeira, varou a velha ponte, logo ennublada
em pó e sumida para além do arvoredo, n'um fugidio coriscar de
capellinas e de lanças apinhadas.

Uma alta grita, no emtanto, atroára as muralhas de Santa Ireneia!
Virotes, flechas, balas de fundas assobiavam, despedidas no mesmo
furioso repente, sobre o bando de Bayão:--mas apenas um dos besteiros
que carregára as andas tombou, estrebuchando, com uma flecha na ilharga.
Pela cancella das barreiras já Cavalleiros e donzeis d'armas se
empurravam desesperadamente para recolher o corpo de Lourenço Ramires. E
Garcia Viegas, os outros parentes, galgaram ao eirado da barbacan,
d'onde Tructesindo se não arredára, rigido e mudo, fitando as andas e
seu filho estatelado com ellas sobre o terreiro da sua Honra. Quando, ao
rumor, elle pesadamente se voltou--todos emmudeceram ante a serenidade
da sua face, mais branca que as brancas barbas, d'uma morta brancura de
lapide, com os olhos resequidos e côr de braza, a latejar, a refulgir,
como os dous buracos d'um forno. Com a mesma sinistra serenidade, tocou
no hombro do velho Ramiro, que tremia arrimado ao seu chusso. E n'uma
vagarosa e vasta voz:

--Amigo! cuida tu do corpo de meu filho, que a alma ainda hoje, por
Deus! lh'a vou eu socegar!...

Afastou aquelles senhores emmudecidos d'assombro e d'emoção--e baixou
pela gasta escada de madeira, que rangia sob o peso do enorme Rico-Homem
carregado de ira e dôr.

N'esse momento, entre besteiros e serviçaes que se atropellavam--o corpo
de Lourenço Ramires transpunha o portello das barbacans, segurado pelo
formoso Leonel e por Mendo de Briteiros, ambos affogueados de lagrimas e
rouquejando ameaças furiosas contra a raça de Bayão. Atraz o tropego
Ordonho gemia, abraçado á espada de Tructesindo, que apanhára no chão do
Terreiro e que beijava como para a consolar. Á borda do fosso uma
aveleira espalhava a sombra leve n'um bronco taboão pregado sobre
toros--d'onde, aos domingos, com o adanel dos besteiros, Lourenço
dirigia os jogos de bésta e frecha, distribuindo fartamente as
recompensas de bolos de mel e de vinho em picheis. Sobre essas taboas o
estiraram--recuando todos depois, em quanto aterradamente se benziam. Um
cavalleiro de Briteiros, temendo por aquella alma desamparada e sem
confissão, correra á capella da Alcaçova procurar Frei Muncio. Outros,
rodeando toda a muralha até ao Baluarte-Velho, gritavam, com
desesperados acenos, para o torreão escalavrado, onde, como um môcho,
habitava o Physico. Mas o certeiro punhal do Bastardo acabára o denodado
Lourenço, flor e regra de cavalleiros por toda a terra de Riba-Cavado...
E que lastimoso e desfeito--com suja terra na face, a garganta empastada
de sangue negro, as malhas do saio rotas sobre os hombros e embebidas
nas carnes retalhadas, e nua, sem grêva, toda inchada e rôxa, a perna
ferida em Canta-Pedra, onde mais sangue e lama se empastavam!

Tructesindo descia, lento e rigido. E as seccas brazas dos seus olhos
mais se incendiam, em quanto, atravez do dorido silencio, se acercava do
corpo de seu filho. Deante do banco ajoelhou, agarrou a arrefecida mão
que pendia; e, junto á face manchada de sangue e terra, segredou, de
alma para alma, n'um abafado murmurio, que não era de despedida mas
d'alguma suprema promessa, e que findou n'um beijo demorado sobre a
testa, onde uma restea de sol rebrilhou, dardejada d'entre as folhas da
aveleira. Depois erguido n'um arrebate, atirando o braço como para
n'elle recolher toda a força da sua raça, gritou:

--E agora, senhores, a cavallo, e vingança brava!

Já pelos páteos, em torno da Alcaçova, corria um precipitado fragor
d'armas. Aos asperos commandos dos almocadens as filas de besteiros,
d'archeiros, de fundibularios, rolavam dos adarves dos muros para cerrar
as quadrilhas. Rapidamente, os cavallariços da carga amarravam sobre o
dorso das mulas os caixotes do almazem, os alforges da trebalha. Pelas
portas baixas da cosinha, peões e sergentes, antes de largar, bebiam á
pressa uma conca de cerveja. E no campo das barreiras os cavalleiros,
chapeados de ferro, carregadamente se içavam, com a ajuda dos donzeis,
para as altas sellas dos ginetes--logo ladeados pelos seus infanções e
acostados, que aprumavam a lança sobre o coxote assobiando aos lebreus.

Emfim o Alferes, Affonso Gomes, saccou da funda e desfraldou o pendão
n'um embalanço largo em que as azas do Açor negrejaram, abertas, como
soltando o vôo enfurecido. O grito agudo do Adail resoára por toda a
cerca--_ala! ala!_ De cima de um marco de pedra, junto ao postigo do
barbacan, Frei Muncio estendia as magras mãos ainda tremulas, abençoava
a hoste. Então Tructesindo, sobre o seu murzello, recebeu do velho
Ordonho a espada, de que tão terrivelmente se apartára. E estendendo a
reluzente folha para as torres da sua Honra como para um altar, bradou:

--Muros de Santa Ireneia, não vos torne eu a vêr, se em tres dias, de
sol a sol, ainda restar sangue maldito nas veias do traidor de Bayão!

E, escancaradas as barreiras, a cavalgada tropeou em torno ao pendão
solto,--em quanto, na torre d'Almenara, sob o parado explendor da sésta
d'Agosto, o sino grande começava a tanger a finados.

       *       *       *       *       *

Quando Gonçalo á tarde, enterrado na poltrona á varanda, releu este
Capitulo de sangue e furor sobre que se esfalfára durante a semana,
pensou «que o lance impressionaria.»

Sentiu então o appetite de recolher sem demora os louvores merecidos--e
de mostrar a Gracinha e ao Padre Sueiro os tres Capitulos completos
antes de remetter o manuscripto para os *Annaes*. E mesmo lhe
convinha--porque a erudição archeologica do Padre Sueiro forneceria
talvez algum traço novo, bem Affonsino, que mais avivasse aquella
resurreição da Honra de Santa-Ireneia e dos seus senhores formidaveis.
Immediatamente resolveu partir de manhã para Oliveira com o seu
trabalho--que, depois de esmiuçado pelo Padre Sueiro, confiaria ao
procurador de D. Arminda Viegas para elle o copiar n'aquella sua formosa
lettra, tão celebrada em todo o Districto, e apenas egualada (nas
maiusculas) pela do Escrivão da Camara Ecclesiastica.

Sacudia já da poeira uma antiga pasta de marroquim para transportar a
Obra amada--quando o Bento empurrou a porta, ajoujado com uma cesta de
vime que uma toalha de rendas cobria.

--Um presente.

--Um presente... De quem?

--Da _Feitosa_, das senhoras.

--Bravo!

--E com uma carta, que vem pregada na toalha.

Com que curiosidade Gonçalo despedaçou o sobrescripto! Mas, apezar de
lacrado com um pomposo sello d'Armas, apenas continha linhas a lapis
n'um bilhete de visita da prima Maria Mendonça:--«Hontem ao jantar
contei quanto o primo Gonçalo gosta de pêcegos sobretudo aboborados em
vinho, e a Annica toma por isso a liberdade de lhe mandar esse cestinho
de pêcegos da _Feitosa_, que como sabe são fallados em todo o
Portugal... Mil saudades.»--Gonçalo imaginou logo no fundo da cesta,
debaixo dos pêcegos, docemente escondida, uma cartinha da D. Anna!

--Bem! São pêcegos... Deixa ahi sobre uma cadeira...

--Era melhor que os levasse já para a copa, Snr. Dr., para os arrumar na
prateleira...

--Deixa sobre a cadeira!

Apenas o Bento cerrára a porta, estendeu no chão a toalha, entornou
cuidadosamente por cima os pêcegos formosos que perfumavam a livraria.
No fundo da cesta encontrou apenas folhas de parra. Levemente
desconsolado, cheirou um pêcego. Depois considerou que os pêcegos,
arranjados por ella, com parra que ella apanhára na latada, sob toalha
que ella escolhera no armario, formavam na sua mudez cheirosa um
recadinho sentimental. Ainda agachado na esteira, comeu o pêcego:--e
recollocou os outros na cesta para os levar a Gracinha.

Mas, ao outro dia, ás duas horas, já com a parelha do Torto engatada á
caleche, já com as luvas calçadas para a jornada d'Oliveira, recebeu uma
inesperada visita--a visita do Snr. Visconde de Rio-Manso. Descalçando
as luvas o Fidalgo pensava:--«O Rio-Manso! Que me quererá esse
casmurro?»--Na sala, pousado á beira do canapé de velludo verde e
esfregando os joelhos, o Visconde contou que de volta de Villa Clara e
deante do portão da Torre vencera o seu teimoso acanhamento para
apresentar os seus respeitos ao Snr. Gonçalo Ramires. E não só para esse
gostoso dever--mas tambem (como soubera que S. Ex.^a se propunha
Deputado pelo Circulo) para lhe offerecer na freguezia de Canta-Pedra o
seu prestimo e os seus votos...

Gonçalo, risonho e pasmado, saudava, torcia embaraçadamente o bigode. E
o Visconde de Rio-Manso não estranhava aquelle pasmo por que de certo o
Snr. Gonçalo Ramires o conhecêra sempre como ferrenho Regenerador... Mas
então! Elle pertencia á geração, agora bem rareada, que antepunha aos
deveres da Politica os deveres da gratidão:--e além da sympathia que lhe
merecia o Snr. Gonçalo Ramires (pelo que constava em todo o Districto do
seu talento, da sua affabilidade, da sua caridade) tambem conservava
para com S. Ex.^a uma divida de gratidão, ainda aberta, não por
indifferença, mas por timidez...

--V. Ex.^a não adivinha, Snr. Gonçalo Mendes Ramires?... Não se lembra?

--Não, realmente, Snr. Visconde, não me...

Pois uma tarde o Snr. Gonçalo Mendes Ramires passava a cavallo pela
quinta da _Varandinha_, quando a sua neta, brincando no terraço (aquelle
terraço gradeado d'onde se curva uma magnolia), deixou escapar uma péla
para a estrada. O Snr. Gonçalo Mendes Ramires, rindo, apeou
immediatamente, apanhou a péla, e, para a restituir á menina debruçada
da grade, abeirou a egoa do muro depois de montar--e com que ligeiresa e
garbo!...

--V. Ex.^a não se lembrava?

--Sim, sim, agora...

Pois no ladrilho do terraço, rente da grade, pousava um jarro cheio de
cravos. O Snr. Gonçalo Mendes, depois de gracejar com a menina (que,
louvado Deus, não era acanhada!) pediu um cravo, que ella escolheu--e
que lhe deu, toda séria, como uma senhora. E elle, que observára da
janella do seu quarto, pensava:--«Ora ahi está! Este Fidalgo da Torre,
um tão grande Fidalgo, que amavel!»--Oh S. Ex.^a não tinha que rir e
corar... A gentileza fôra grande--e a elle, avô, parecêra immensa! Mas
não ficára sómente na péla apanhada...

--O Snr. Gonçalo Mendes Ramires não se recorda?...

--Sim, Snr. Visconde, com effeito, agora...

Pois, logo no outro dia, o Snr. Gonçalo Mendes Ramires mandára da Torre
um precioso cesto de rosas, com o seu bilhete, e n'uma linha este
gracejo:--«Em agradecimento d'um cravo, rosas á Snr.^a D. Rosa.»

Gonçalo quasi pulou na cadeira, divertido:

--Sim, sim, Snr. Visconde, perfeitamente!.. Agora me recordo!

Pois desde essa tarde elle sempre almejára por uma opportunidade de
mostrar ao Snr. Gonçalo Mendes Ramires o seu reconhecimento, a sua
sympathia. Mas que! era timido, vivia muito retirado... N'essa manhã
porém, em Villa Clara, soubera pelo Gouveia que S. Ex.^a se apresentava
deputado pelo Circulo. Apezar de ser eleição tão segura, já pela
influencia do Snr. Ramires, já pela influencia do Governo, logo
pensára--«Bem, ahi está a occasião!» E, agora offerecia a S. Ex.^a, na
freguezia de Canta-Pedra, o seu prestimo e os seus votos.

Gonçalo murmurou, enternecido:

--Realmente, Snr. Visconde, nada me podia sensibilisar mais do que uma
offerta tão espontanea, tão...

--Sou eu que me sensibiliso por V. Ex.^a acceitar. E agora não fallemos
mais n'esse meu pobre prestimo e n'esses meus pobres votos... Pois V.
Ex.^a tem aqui uma veneravel vivenda.

E como o Visconde alludia ao desejo, já n'elle antigo, de admirar de
perto a famosa torre, mais velha que Portugal--ambos desceram ao pomar.
O Visconde, com o guarda-sol ao hombro, pasmou em silencio para a torre;
reconheceu (apezar de liberal) o prestigio que resulta d'uma tão alta
linhagem como a dos Ramires; e gabou sinceramente o laranjal. Depois,
sabendo que o Pereira da Riosa arrendára a quinta, invejou ao Snr.
Ramires tão cuidadoso e honrado rendeiro...--Deante do portão, o
_char-à-bancs_ do Visconde esperava, atrelado de duas mulas lustrosas e
nedias. Gonçalo admirou as mulas. E, abrindo a portinhola, supplicou ao
Snr. Visconde que beijasse por elle a mãosinha da Snr.^a D. Rosa.
Commovido, o Visconde confessou uma ousadia, uma esperança--e era que S.
Ex.^a um dia, á sua escolha, parasse em Canta-Pedra, jantasse na quinta,
para conhecer mais intimamente a menina da péla e do cravo...

--Mas com immensa honra!... E desde já me proponho a ensinar á Snr.^a D.
Rosa, se ella o não sabe, o jogo da péla á antiga portugueza.

O Snr. Visconde saudou, banhado de gosto e riso, com a mão sobre o
coração.

Gonçalo, trepando as escadas, murmurava:--«Oh senhores, que sympathico
homem! E que generoso homem, que paga rosas com votos! Ora vejam como ás
vezes, por uma pequenina attenção, se ganha um amigo! Com certeza, para
a semana vou a Canta-Pedra jantar!... Homem encantador!»

E foi n'um ditoso estado d'alma que accommodou na caleche a pasta de
marroquim com o manuscripto, o cesto sentimental dos pêcegos da D.
Anna--e accendeu um charuto, e saltou á almofada, e tomou as redeas para
lançar, n'um trote alegre até Oliveira, a parelha branca do Russo.

No largo d'El-Rey, antes d'apear, perguntou logo ao Joaquim da Porta
noticias dos senhores. Os senhores todos muito bem, graças a Deus... O
Snr. José Barrôlo partira de manhã a cavallo para a quinta do Snr. Barão
das Marges, só recolhia á noite...

--E o Snr. Padre Sueiro?

--O Snr. Padre Sueiro, creio que está para casa da Snr.^a D. Arminda...

--E a Snr.^a D. Graça?

--A Snr.^a D. Graça desceu ha um bocadinho grande para o Mirante, de
chapeu... Naturalmente ia á Egreja das Monicas.

--Bem. Leva esse cesto de pêcegos e dize ao Joaquim da Copa que o ponha
na mesa, assim mesmo no cesto, com as folhas... E que me subam ao quarto
agoa quente.

O relogio de parede, na sala de espera, gemia preguiçosamente as cinco
horas. O palacete repousava n'um claro silencio. E depois da poeira e
dos solavancos da estrada, pareceu mais doce a Gonçalo a frescura do seu
quarto com as quatro janellas abertas sobre o jardim regado e sobre a
cerca das Monicas. Cuidadosamente, guardou logo n'uma gaveta da commoda
a pasta preciosa de marroquim. Uma creada de olhos repolhudos entrára
com o jarrão d'agua quente:--e o Fidalgo, como sempre, chasqueou a moça
sobre os lindos sargentos de Cavallaria, cujo quartel tentador dominava
o lavadouro da quinta, e retinha as raparigas da casa ensaboando todo o
dia com paixão. Depois ainda se demorou, mudando o fato empoeirado,
assobiando vagamente, encostado á varanda sobre a callada rua das
Tecedeiras. O sino das Monicas lançou um lindo repique... E Gonçalo,
enfastiado da sua solidão, decidiu descer pelo terraço do jardim, e
surprehender Gracinha nas suas devoções, na Egrejinha.

Em baixo, no corredor, crusou o Joaquim da Copa:

--Então o Snr. Barrôlo hoje não janta?

--O Snr. Barrôlo foi jantar com o Snr. Barão das Marges, na quinta...
São os annos da menina. Naturalmente só recolhe á noite.

Gonçalo, no jardim, ainda tardou por entre os alegretes, compondo para o
casaco um ramo de flôres ligeiras. Depois rodeou a estufa, sorrindo da
porta com que o Barrôlo a enriquecera, uma porta envidraçada, arqueada
em ferradura, com um monogramma de côres rutilantes: e metteu pela rua
que conduzia ao repuxo, coberta de silencio e penumbra pela rama
enlaçada dos seus altos loureiros. Adiante, circumdado de bancos de
pedra, d'arvores de aroma e flôr, cantava dormentemente o fino repuxo
n'um tanque redondo, de borda larga, onde s'espaçavam grossos vasos de
louça branca com o brazão ramalhudo dos Sás. Certamente na véspera ou de
manhã se lavára o tanque, por que na agoa muito transparente, sobre as
lages muito claras, nadavam com redobrada vivacidade, em lampejos
rosados, os peixes que Gonçalo assustou mergulhando e agitando a
bengala. E d'aquella borda do tanque já elle avistava ao fundo de outra
rua, debruada de dhalias abertas, o Mirante--uma construcção do seculo
XVIII, simulando um Templosinho grego, côr de rosa desbotada, com um
gordo Cupido sobre a cupula, e janellinhas de rocalha entre o meio
relevo das columnas canelladas por onde trepavam jasmineiros.

Gonçalo arrancou, como costumava, folhas d'um ramo de lucia-lima, para
esmagar e perfumar as mãos: e continuou para o Mirante, vagarosamente,
por entre as dhalias apinhadas. Na allea, novamente ensaibrada, os
sapatos finos de verniz que calçára pousavam sem rumor no saibro molle.
E assim, n'um silencio de sombra indolente, se acercou do Mirante--e
d'uma das janellinhas que, mal cerrada, conservava corrida por dentro a
persiana de taboinhas verdes. Rente d'essa janella era a escada de
pedra, que, do elevado e comprido terraço sobre que se estendia o
jardim, communicava com a encovada rua das Tecedeiras, quasi em frente á
Capella das Monicas. E Gonçalo, sem pressa, descia--quando, atravez da
persiana rala, sentiu dentro do Mirante um susurro, um cochichar
perturbado. Sorrindo, pensou que alguma das creadas da casa se refugiára
n'esse Templosinho de Amor com um dos sargentos terriveis de
Cavallaria... Mas, não! impossivel! Pois se, momentos antes, Gracinha
roçára aquella janella e pisára aquella escada, no seu caminho para as
Monicas! E então outra idéa o varou como uma espada--e tão dolorosa que
recuou com terror da beira do Mirante d'onde ella perversamente o
assaltára. Já porém uma desesperada curiosidade a agarrára, o
empurrava--e collou a face á persiana com a cautella d'um espião. O
Mirante recahira em silencio--Gonçalo temia que o trahissem as pancadas
do seu coração... Santo Deus! De novo o murmurio recomeçára, mais
apressado, mais turbado. Alguem supplicava, balbuciava:--«Não, não, que
loucura!»--Alguem urgia, impaciente e ardente:--«Sim, meu amor! sim, meu
amor!» E a ambos os reconheceu--tão claramente como se a persiana se
erguesse e por ella entrasse toda a vasta claridade do jardim. Era
Gracinha! Era o Cavalleiro!

Colhido por uma immensa vergonha, no atarantado pavor de que o
surprehendessem junto do Mirante e da torpeza escondida--enfiou pela rua
das dhalias, encolhido, com os sapatos leves no saibro molle, costeou o
repuxo por sob a ramaria dos arbustos, remergulhou na escuridão dos
loureiros, deslisou surrateiramente por traz da estufa--penetrou no
socego do Palacete. Mas o murmurio do Mirante ainda o envolvia, mais
desfallecido, mais rendido--«Não, não, que loucura!... Sim, sim, meu
amor!...»

Abalou atravez das salas desertas como uma sombra acossada; escorregou
abafadamente pela escadaria de pedra, varou o portão n'uma carreira,
espreitando, com medo do Joaquim da Porta. No Largo parou, deante da
grade do relogio do sol. Mas o susuro do Mirante errava por todo o Largo
como um vento enroscado, raspando as lages, batendo as barbas dos Santos
sobre o portal da Egreja de S. Matheus, redemoinhando nos telhados
musgosos da Cordoaria...--«Não, não, que loucura! Sim, sim! meu amor!»
Então Gonçalo sentiu a anciedade desesperada d'escapar para longe, para
immensamente longe do Largo, do Palacete, da cidade, de toda aquella
vergonha que o trespassava. Mas uma carruagem?... Pensou na alquilaria
do Maciel, a mais retirada, para além das ultimas casas, na estrada do
Seminario. E cosido com os muros baixos d'essas ruas pobres, correu,
mandou engatar uma caleche fechada.

Emquanto esperava á porta, n'um banco, passou pela estrada uma lenta
carroça com moveis, panellas de cosinha, um grande colxão onde se
alastrava uma nodoa. Bruscamente Gonçalo recordou o divan que guarnecia
o Mirante. Era enorme, de mogno, todo coberto de riscadinho, com mollas
lassas que rangiam. E de repente o murmurio recomeçou, cresceu, rolando
com fragor de trovão por sobre os casebres visinhos, por sobre a cerca
do Seminario, por sobre Oliveira espantada:--«Não, não, que loucura!
Sim, sim, meu amor!»

Com um salto, Gonçalo gritou para dentro, para a cavallariça escura:

--Então, que inferno! não acaba, essa carroagem?

--Já a largar, meu Fidalgo.

No relogio da Piedade sete horas batiam--quando elle se atirou para a
caleche, e fechou as _stores_ pêrras, e se enterrou no fundo, bem
sumido, esmagado, com a sensação que o Mundo tremera, e as mais fortes
almas se abatiam, e a sua Torre, velha como o Reino, rachava, mostrando
dentro um montão ignorado de lixo e de saias sujas.




IX


Á porta da cosinha, saccudindo um sobrescripto já amarrotado, Gonçalo
ralhava com a Rosa cosinheira:

--Oh Rosa! pois tanto lhe recommendei que não escrevesse á mana
Graça?... Que teimosa! Então não arranjavamos a pequena, sem essas
lamurias para Oliveira? Graças a Deus, a Torre é larga bastante para
mais uma creancinha!

É que morrera a Crispola--a desgraçada viuva, visinha da Torre, que com
um rancho miudo de dous pequenos, tres raparigas, definhava no catre
desde a Paschoa. E agora Gonçalo, que mantivera o casebre em fartura,
andava accommodando as pobres creanças--já por cuidado d'elle muito
aceadamente vestidas de luto. A rapariga mais velha (tambem Crispola),
sempre encafuada na cosinha da Torre, passava regularmente a «ajudanta
da Rosa», com soldada. Um dos rapazes, de doze annos, espigado e
esperto, tambem Gonçalo o empregava na Torre como andarilho, para os
recados, com fardeta de botões amarellos. O outro, molle e ranhoso, mas
com o geito e o amor de carpinteirar, já Gonçalo, sob o patrocinio da
tia Louredo, o collocára em Lisboa, na Officina de S. José. D'uma das
outras raparigas se encarregava a mãe de Manoel Duarte, amoravel senhora
que habitava uma quinta formosa junto a Treixedo, e adorava Gonçalo de
quem se considerava «_vassalla_». Mas para a mais novinha e a mais
fraquinha não se arranjava amparo solido. A Rosa lembrára então--«que
certamente a Snr.^a D. Maria da Graça recolheria a creaturinha...»
Gonçalo rosnára com seccura:--«Oh! por uma côdea mais de pão não se
necessita encommodar a _cidade d'Oliveira_!» Rosa, porém, enlevada na
obra, desejando para pequerrucha tão franzina e loira o agasalho d'uma
senhora, escrevera a Gracinha, pela esmerada lettra do Bento, uma
verbosa carta com o pedido, e toda a historia lamentosa da Crispola, e
louvores devotos á caridade do Snr. Doutor. E era a resposta de
Gracinha, demorada mas enternecida, com a recommendação «de lhe mandarem
logo a pobre creança»--que impacientava o Fidalgo.

Por que, desde a tarde abominavel do Mirante, estranhamente se apoderára
d'elle uma repugnancia quasi pudica em communicar com os Cunhaes! Era
como se esse Mirante e a torpeza abrigada dentro das suas paredes côr de
rosa empestassem o jardim, o palacete, o Largo d'El-Rei, toda a cidade
d'Oliveira, e elle agora, por aceio moral, recuasse ante essa região
empestada onde o seu coração e o seu orgulho suffocavam... Logo depois
da sua fuga recebera do bom Barrôlo uma carta espantada:--«Que têlha foi
essa? Porque não esperaste? Eu, quando voltei á noite da quinta do
Marges, até fiquei com cuidado. E não imaginas como a Gracinha anda
nervosa! Soubemos da partida, por acaso, por um cocheiro do Maciel. Já
hoje comemos os pêcegos, mas não comprehendemos!...»--Gonçalo respondeu
seccamente n'um bilhete:--«Negocios». Depois recordou que deixára na
gaveta do seu quarto o manuscripto da Novella: e mandou um moço da
quinta, de madrugada, com um recado quasi secreto ao Padre Sueiro, «para
que entregasse a pasta ao portador, bem embrulhada, sem contar aos
senhores...» Entre a Torre e os Cunhaes só desejava separação e
silencio.

E nos encerrados dias que passou na Torre (sem se arriscar a
Villa-Clara, no terror de que a vergonha do seu nome já andasse rosnada
pelo estanco do Simões ou pelo armazem do Ramos) não cessou de vibrar
n'uma colera espalhada que a todos varava... Colera contra a irmã que,
calcando pudor, altivez de raça, receio dos escarneos d'Oliveira, tão
facil e estouvadamente como se calcam as flôres desbotadas d'um tapete,
correra ao Mirante, ao macho da bigodeira, apenas elle lhe acenára com o
lenço almiscarado! Colera contra o Barrôlo, o bochechudo bacôco, que
empregava os seus bacôcos dias celebrando o Cavalleiro, arrastando o
Cavalleiro para o Largo d'El-Rei, escolhendo na adega os vinhos mais
finos para que o Cavalleiro aquecesse o sangue, ageitando as almofadas
de todos os camapés para que o Cavalleiro saboreasse estiradamente o seu
charuto e a graça presente de Gracinha! Emfim colera contra si, que,
pela baixa cubiça de uma cadeira em S. Bento, abatera a unica muralha
segura entre a irmã e o homem da marrafa lusente--que era a sua
inimizade, aquella escarpada inimizade, sempre, desde Coimbra, tão
rijamente reforçada e recaiada!... Ah! todos tres horrendamente
culpados!

Depois uma tarde, enfastiado da solidão, ousou um passeio por
Villa-Clara. E reconheceu que na Assembleia, no estanco do Simões, na
loja do Ramos, os amores de Gracinha eram certamente tão ignorados como
se passassem nas profundidades da Tartaria. Immediatamente a sua alma
doce, agora socegada, se abandonou á doçura de tecer desculpas subtis
para todos os culpados d'aquella queda triste... Gracinha, coitada, sem
filhos, com tão mollengo e ensosso marido, alheia a todos os interesses
da intelligencia, indolente mesmo para uma costura ou bordado--cedêra,
que mulher não cederia? á credula e primitiva paixão que lhe brotára na
alma, n'ella se enraizára, lhe déra as suas unicas alegrias do mundo e
(influencia ainda mais poderosa!) lhe arrancára as suas unicas lagrimas!
O Barrôlo, coitado, era o Bacôco--e como o «pilriteiro» da cantiga,
incapaz de mais nobres fructos, só produzia os «pilritos» da sua
Bacoquice. E elle, coitado d'elle, pobre, ignorado, irresistivelmente se
rendera á fatal Lei d'Accrescentamento, que o levára, como a todos leva
na ancia de fama e fortuna, a furar precipitadamente pela porta casual
que se abre, sem reparar na estrumeira que atravanca os humbraes... Ah
realmente todos bem pouco culpados deante de Deus que nos creou tão
variaveis, tão frageis, tão dependentes de forças por nós ainda menos
governadas do que o Vento ou do que o Sol!

Não, irremissivelmente culpado,--só o outro, o malandro da grenha
ondeada! Esse, em toda a sua conducta com Gracinha, desde estudante,
mostrára sempre um egoismo atrevido, só punivel como puniam os antigos
Ramires, com a morte depois dos tormentos, e a carcassa posta aos
corvos. Em quanto lhe agradou, na ociosidade dos longos estios, um
namoro bocolico sob os arvoredos da Torre--namorára. Quando considerou
que uma mulher e filhos lhe atravancariam a vida ligeira--trahira. Logo
que a antiga bem amada pertenceu a outro homem--recomeçára o cerco
languido para colher, sem os encargos da paternidade, as emoções do
sentimento. E apenas esse marido lhe entreabre a sua porta--não se
demora, fende brutamente sobre a preza! Ah como o avô Tructesindo
trataria villão de tal villania! Certamente o assava n'uma rugidora
fogueira deante das barbacans--ou, nas masmoras da Alcaçova, lhe entupia
as guellas falsas com bom chumbo derretido...

Pois elle, neto de Tructesindo, nem sequer podia, quando encontrasse o
Cavalleiro nas ruas d'Oliveira, carregar o chapeu sobre a testa e
passar! A menor diminuição n'essa intimidade tão desastradamente
reatada--seria como a revelação da torpeza ainda abafada nas paredes do
Mirante! Toda Oliveira cochicharia, riria.--«Olha o Fidalgo da Torre!
Mette o Cavalleiro nos Cunhaes com a irmã, e logo, passadas semanas,
rompe de novo com o Cavalleiro! Houve escandalo, e gordo!»--Que delicia
para as Lousadas! Não, ao contrario! agora devia ostentar pelo
Cavalleiro uma fraternidade tão larga e tão ruidosa--que, pela sua
largueza e o seu ruido, inteiramente tapasse e abafasse o sujo enredo
que por traz latejava. Fingimento torturante--e imposto pela honra do
nome! O sujo enredo bem guardado entre os mais densos arvoredos do
jardim, na mais cerrada penumbra do Mirante!--e por fóra, ao sol, nas
praças d'Oliveira elle sempre com o braço carinhosamente enlaçado no
braço do Cavalleiro!

Os dias rolavam--e no espirito de Gonçalo não se estabelecia serenidade.
E sobretudo o amargurava sentir que era forçado a essa intimidade
vistosa com o Cavalleiro--tanto pelo cuidado do seu nome, como pela
conveniencia da sua Eleição. Toda a sua altivez por vezes se
revoltava:--«Que me importa a Eleição! Que valor tem uma encardida
cadeira em S. Bento?...» Mas logo a secca Realidade o emmudecia. A
Eleição era a unica fenda por onde elle lograria escapar do seu buraco
rural; e, se rompesse com o Cavalleiro, esse villão, vezeiro a
villanias, immediatamente, com o appoio da horda intrigante de Lisboa,
improvisaria outro Candidato por Villa-Clara... Desgraçadamente elle era
um d'esses seres vergados que _dependem_. E a triste dependencia d'onde
provinha? Da pobreza--d'essa escassa renda de duas quintas, abastança
para um simples, mas pobreza para elle, com a sua educação, os seus
gostos, os seus deveres de fidalguia, o seu espirito de sociabilidade.

E estes pensamentos lenta e capciosamente o empurraram a outro
pensamento--á D. Anna Lucena, aos seus duzentos contos... Até que uma
manhã encarou corajosamente uma possibilidade perturbadora:--casar com a
D. Anna!--Por que não? Ella claramente lhe mostrára inclinação, quasi
consentimento... Por que não casaria com a D. Anna?

Sim! o pae carniceiro, o irmão assassino... Mas tambem elle, entre
tantos avós até aos Suevos ferozes, descortinaria algum avô carniceiro;
e a occupação dos Ramires, atravez dos seculos heroicos, consistira
realmente em assassinar. De resto o carniceiro e o assassino, ambos
mortos, sombras remotas, pertenciam a uma Lenda que se apagava. D. Anna,
pelo casamento, subira da Populaça para a Burguesia. Elle não a
encontrava no talho do pae, nem no velhacouto do irmão--mas na quinta da
_Feitosa_, já Rica-Dona, com procurador, com capellão, com lacaios, como
uma antiga Ramires. Ah! sinceramente, toda a hesitação era pueril--desde
que esses duzentos contos, de dinheiro muito limpo, de bom dinheiro
rural, os trazia com o seu corpo, mulher tão formosa e séria. Com esse
puro ouro, e o seu nome, e o seu talento, não necessitaria para dominar
na Politica a refalsada mão do Cavalleiro... E depois que vida nobre e
completa! A sua velha Torre restituida ao esplendor sobrio d'outras
eras; uma lavoura de luxo no historico torrão de Treixedo; as viagens
fecundas ás terras que educam!... E a mulher que fornecia estes regalos
não lhes amargava o goso, como em tantos casamentos ricos, com a sua
fealdade, os seus agudos ossos, ou a sua pelle relentada... Não! Depois
do brilho social do dia não o esperava na alcova um mostrengo--mas
Venus.

E assim, lentamente trabalhado por estas tentações, mandou uma tarde um
bilhete á prima Maria, á _Feitosa_, pedindo--«para se encontrarem, sós,
n'algum passeio dos arredores, por que desejava ter com ella uma
_conversasinha_ séria e intima...» Mas tres immensos dias se
arrastaram--e não appareceu a almejada carta da _Feitosa_. Gonçalo
concluiu que a prima Maria, tão esperta, farejando a natureza da
_conversasinha_ e sem uma certeza para o alegrar, retardava, se
recusava. Atravessou então uma desolada semana, remoendo a melancolia
d'uma vida que sentia ôca e toda feita d'incertezas. O orgulho, um pudor
complicado, não lhe consentiam voltar a Oliveira, ao quarto d'onde
implacavelmente avistaria, por sobre o arvoredo, a cupula do Mirante com
o seu gordo Cupido:--e quasi o arrepiava a idéa de beijar a irmã na face
que o outro babujára! Sobre a Eleição descera um silencio de abobada--e
outra repugnancia, mais acerba, lhe vedava escrever ao Cavalleiro. João
Gouveia gozava as suas férias na Costa, de sapatos brancos, apanhando
conchinhas na praia. E Villa-Clara não se tolerava n'esse meado ardente
de Septembro--com o Titó no Alemtejo onde o levára uma doença do velho
Morgado de Cidadelhe, o Manoel Duarte na quinta da mãe dirigindo as
vindimas, e a Assembleia deserta e adormecida sob o innumeravel susurro
das moscas...

       *       *       *       *       *

Para se occupar e atulhar as horas, mais que por dever ou gosto d'Arte,
retomou a sua Novella. Mas sem fervor, sem veia agil. Agora era a
sanhuda arrancada de Tructesindo e dos seus cavalleiros, correndo sobre
o Bastardo de Bayão. Lance difficultoso--reclamando fragor, um
rebrilhante colorido Medieval. E elle tão molle e tão apagado!...
Felizmente, no seu Poemeto, o Tio Duarte recheára esse violento trecho
de bem apinceladas paisagens, d'interessantes rasgos de guerra.

Logo na Ribeira do Coice, Tructesindo encontrava cortada a machado a
decrepita ponte, cujos rotos barrotes e taboões carcomidos entulhavam no
fundo a corrente escassa. Na sua fuga o Bastardo acautelladamente a
desmantelára para deter a cavalgada vingadora. Então a pesada hoste de
Santa Ireneia avançou pela esguia ourela, ladeando os renques de choupos
em demanda do vau do Espigal... Mas que tardança! Quando as derradeiras
mulas de carga choutaram na terra d'além-ribeira já a tarde se adoçava,
e nas poças d'agua, entre as poldras, o brilho esmorecia, umas ainda
d'ouro pallido, outras apenas rosadas. Immediatamente Dom Garcia Viegas,
o _Sabedor_, aconselhou que a mesnada se dividisse:--a peonagem e a
carga avançando para Montemor, esgueirada e callada, para esquivar
recontros; os senhores de lança e os besteiros de cavallo arrancando em
dura carreira para colher o Bastardo. Todos louvaram o ardil do
_Sabedor_: e a cavalgada, aligeirada das filas tardas de archeiros e
fundibularios, largou, soltas as rédeas, atravez de terras ermas, depois
por entre barrocaes, até aos _Tres-Caminhos_, desolada chan onde se
ergue solitariamente aquelle carvalho velhissimo que outr'ora, antes
d'exorcisado por S. Froalengo, abrigava no sabbado mais negro de
Janeiro, ao clarão d'archotes enxofrados, a Grande Ronda de todas as
bruchas de Portugal. Junto do carvalho Tructesindo sopeou a arrancada:
e, alçado nos estribos, farejava as tres sendas que se trifurcam e se
encovam entre asperos, lobregos cerros de bravio e de tojo. Passára ahi
o Bastardo malvado?... Ah! por certo passára e toda a sua
maldade--porque no respaldo d'uma fraga, junto a tres cabras magras
retouçando o matto, jazia, com os braços abertos, um pobre pastorinho
morto, varado por uma frecha! Para que o triste cabreiro não soprasse
novas da gente de Bayão--uma bruta setta lhe atravessára o peito
escarnado de fome, mal coberto de trapos. Mas por qual das sendas se
embrenhára o malvado? Na terra solta, raspada pelo vento suão que rolava
d'entre-montes, não appareciam pegadas revoltas de tropel fugindo. E, em
tal solidão, nem choça ou palhoça d'onde villão ou velha alapada
espreitassem a levada do bando... Então, ao mando do Alferes Affonso
Gomes, tres almogavres despediram pelos tres caminhos á descoberta--em
quanto os Cavalleiros, sem desmontar, desafivelavam os morriões para
limpar nas faces barbudas o suor que os alagava, ou abeiravam os ginetes
d'um sumido fio d'agua que á orla da chan se arrastava entre ralo
caniçal. Tructesindo não se arredou de sob a ramada do carvalho de S.
Froalengo, immovel sobre o murzello immovel, todo cerrado no ferro da
sua negra armadura, as mãos juntas sobre a sella e o elmo pesadamente
inclinado como em magua e oração. E ao lado, com as colleiras errissadas
de prégos, as sangrentas linguas penduradas, arquejavam, estirados, os
seus dous mastins.

Já no emtanto a espera se alongava, inquieta, enfadonha--quando o
almogavre que mettera pela senda de Nascente reappareceu n'um rolo de
poeira, atirando logo o alarde de longe, com a ascuma alta. A hora
escassa de carreira avistára num cabeço uma hoste acampada, em arraial
seguro, rodeado d'estaca e valla!...

--Que pendão?

--As treze arruellas.

--Deus louvado! gritou Tructesindo, que estremeceu como acordando. É D.
Pedro de Castro, _o Castellão_, que entrou com os Leonezes e vem pelas
senhoras Infantas!

Por esse caminho pois não se atrevera o Bastardo!... Mas já pela senda
de Poente recolhia outro almogavre contando que entre-cerros, n'um
pinhal, topára um bando de bufarinheiros genovezes, retardados desde
alva, por que um d'elles esmorecera com mal de febres. E
então?...--Então, pela borda do pinheiral apenas passára em todo o dia
(no jurar dos genovezes) uma companhia de truões voltando da feira de
Grajelos. Só restava pois o trilho do meio, pedregoso e esbarrancado
como o leito enxuto d'uma torrente. E por elle, a um brado de
Tructesindo, tropeou a cavalgada. Mas já o crepusculo tristissimo
descia--e sempre o caminho se estirava, agreste, soturno, infindavel,
entre os cerros de urze e rocha, sem uma cabana, um muro, uma sebe,
rasto de rez ou homem. Ao longe, mais ao longe, emfim, enchergaram a
campina arida, coberta de solidão e penumbra, dilatada na sua mudez até
a um ceu remoto, onde já se apagava uma derradeira tira de poente côr de
cobre e côr de sangue. Então Tructesindo deteve a abalada, rente
d'espinheiros que se torciam nas lufadas mais rijas do suão:

--Por Deus, senhores, que corremos em pressa vã e sem esperança!... Que
pensaes, Garcia Viegas?

Todo o bando se apinhára: e uma fumarada subia dos ginetes arquejantes
sob as coberturas de malha. O _Sabedor_ estendeu o braço:

--Senhores! O Bastardo, antes de nós, galgou d'escapada essa campina
além, e metteu a Valle-Murtinho para pernoitar na Honra de Agredel, que
é bem afortalezada e parenta de Bayão...

--E nós, pois, D. Garcia?

--Nós, senhores e amigos, só nos resta tambem pernoitar. Voltemos aos
_Tres-Caminhos_. E de lá, em boa avença, ao arraial do Snr. D. Pedro de
Castro, a pedir agasalho... A par de tamanho senhor encontraremos mais
fartamente que nos nossos alforges o que todos, christãos e brutos,
vamos necessitando, cevada, um naco de vianda, e de vinhos tres golpes
rijos...

Todos bradaram com alvoroço:--«Bem traçado! bem traçado!...»--E de novo,
pelo barranco pedregoso, a cavalgada trotou pezadamente para os
_Tres-Caminhos_--onde já dous corvos se encarniçavam sobre o corpo do
pastorinho morto.

Em breve, ao cabo do caminho do Nascente, no cabeço alto, alvejaram as
tendas do arraial, ao clarão das fogueiras que por todo elle fumegavam.
O Adail de Santa Ireneia arrancou da bosina tres sons lentos annunciando
Filho-d'Algo. Logo de dentro da estacada outras businas soaram, claras e
acolhedoras. Então o Adail galopou até ao vallado, a annunciar ás
atalaias postadas nas barreiras, entre luzentes fogos d'almenara, a
mesnada amiga dos Ramires. Tructesindo parára no corrego escuro, que o
pinheiral cerrado mais escurecia movendo e gemendo no vento. Dous
cavalleiros, de sobreveste negra e capuz, logo correram pelo pendor do
outeiro--bradando que o Snr. D. Pedro de Castro esperava o nobre senhor
de Santa Ireneia e muito se prazia para todo seu regalo e serviço!
Silenciosamente Tructesindo desmontou; e com D. Garcia Viegas, e Leonel
de Çamora e Mendo de Briteiros e outros parentes de solar, todos sem
lança ou broquel, descalçados os guantes, galgaram o cabeço até á
estacada, cujas cancellas se escancararam, mostrando na claridade
incerta dos fogareus sombrios magotes de peões--onde, por entre os
bassinetes de ferro, surdiam toucas amarellas de mancebas e gorros
enguisalhados de jograes. Apenas o velho assomou aos barrotes dous
infanções, sacudindo a espada, bradaram:

--Honra! honra! aos Ricos-Homens de Portugal!

As trompas misturavam o clangor rispido aos rufos lassos dos tambores. E
por entre a turba, que calladamente recuára em alas lentas, avançou,
precedido por quatro cavalleiros que erguiam archotes accesos, o velho
D. Pedro de Castro, _o Castellão_, o homem das longas guerras e dos
vastos senhorios. Um corselete d'anta com lavores de prata cinjia o seu
peito já curvado, como consumido por tamanhas fadigas de pelejar e
tamanhas cubiças de reinar. Sem elmo, sem armas, appoiava a mão
cabelluda de rijas veias a um bastão de marfim. E os olhos encovados
faiscavam, com affavel curiosidade, na requeimada magreza da face, de
nariz mais recurvo que o bico d'um falcão, repuxada a um lado por um
fundo gilvaz que se sumia na barba crespa, aguda e quasi branca.

Deante do senhor de Santa Ireneia alargou vagarosamente os braços. E com
um grave riso que mais lhe recurvou, sobre a barba espetada, o nariz de
rapina:

--Viva Deus! Grande é a noite que vos traz, primo e amigo! Que não a
esperava eu de tanta honra, nem sequer de tanto gosto!...

       *       *       *       *       *

Ao rematar este duro Capitulo, depois de tres manhãs de trabalho,
Gonçalo arrojou a penna com um suspiro de cansaço. Ah! já lhe entrava a
fartura d'essa interminavel Novella, desenrolada como um novello
solto--sem que elle lhe podesse encurtar os fios, tão cerradamente os
emmaranhára no seu denso Poema o Tio Duarte que elle seguia gemendo! E
depois nem o consolava a certeza de construir obra forte. Esses
Tructesindos, esses Bastardos, esses Castros, esses _Sabedores_, eram
realmente varões Affonsinos, de solida substancia historica?... Talvez
apenas oucos titeres, mal engonçados em erradas armaduras, povoando
inveridicos arraiaes e castellos, sem um gesto ou dizer que datassem das
velhas edades!

E ao outro dia não reuniu em todo o seu ser coragem para retomar aquella
sofrega correria dos de Santa Ireneia sobre o bando escapadiço de Bayão.
De resto já remettera tres Capitulos da Novella--já calmára as ancias do
Castanheiro. Mas a ociosidade mais lhe pesou n'essa semana, arrastada
pelos canapés ou por entre os buxos do jardim, fumando e tristemente
sentindo que a Vida lhe fugia em fumo. Para o enervar accrescia um
aborrecimento de dinheiro--uma lettra de seiscentos mil réis, do
derradeiro anno de Coimbra, sempre reformada, sempre avolumada, e que
agora o emprestador, um certo Leite, d'Oliveira, reclamava com dureza. O
seu alfaiate de Lisboa tambem o importunava com uma conta pavorosa,
atulhando duas laudas. Mas sobretudo o desolava a solidão da Torre.
Todos os alegres amigos dispersos pela beira-mar ou nas quintas. A
Eleição encalhada como uma barca no lodo. A irmã de certo com o _outro_
no Mirante. Até a prima Maria desattendendo ingratamente o seu timido
pedido d'uma «conversasinha.» E elle no seu quente casarão, sem energia,
immobilisado n'uma inercia crescente, como se cordas o travassem, cada
dia mais apertadas--e d'homem se volvesse em fardo.

Uma tarde no seu quarto, vagaroso e sombrio, sem mesmo parolar com o
Bento, acabava de se vestir para montar a cavallo, espairecer n'um
galope pelos caminhos de Valverde--quando o pequeno da Crispola (já
estabelecido na Torre como pagem, de fardeta de botões amarellos) bateu
esbaforidamente á porta.--Era uma senhora que parára ao portão, dentro
d'uma carruagem, pedia ao Fidalgo para descer...

--Não disse o nome?

--Não, senhor. É uma senhora magra, puxada a dous cavallos, com redes...

A prima Maria! Com que alvoroço correu, agarrando no cabide do corredor
um velho chapeu de palha! E em baixo foi como se contemplasse a Deusa da
Fortuna na sua roda ligeira.

--Oh prima Maria, que surpreza!... Que felicidade!

Debruçada da portinhola da carruagem (a caleche azul da _Feitosa_), D.
Maria Mendonça, com um chapeu novo enramalhetado de lilazes, desculpou
atrapalhadamente e rindo o seu silencio. Recebera a carta do primo muito
atrasada... Sempre o fatal carteiro, tropego e bebedo... Depois uns dias
muito atarefados em Oliveira com a Annica, que preparava para o inverno
a casa da rua das Vellas.

--E finalmente, como devia uma visita em Villa-Clara á pobre Venancia
Rios, que tem estado doente, achei mais simples e mais completo parar na
Torre... E então?

Gonçalo sorria, embaraçado:

--Então, nada de grave, mas... É que desejava conversar comsigo... Por
que não entra?

Abrira a portinhola. Ella preferia passear na estrada. E ambos
s'encaminharam para o velho banco de pedra que os alamos abrigavam em
frente ao portão da Torre. Gonçalo sacudiu com o lenço a ponta do banco.

--Pois, prima Maria, eu desejava conversar... Mas é difficil, tão
difficil!... Talvez o melhor seja atacar a questão brutalmente.

--Ataque.

--Então lá vae!... A prima acha que eu perco o meu tempo se me dedicar á
sua amiga D. Anna?

Pousada de leve á borda do banco, enrolando attentamente a seda preta do
guardasolinho, Maria Mendonça tardou, murmurou:

--Não, acho que o primo não perde o seu tempo...

--Ah! acha?

Ella considerava Gonçalo, gozando a sua perturbação e anciedade.

--Jesus, prima!... Diga alguma cousa mais!

--Mas que quer que lhe diga mais? Já lhe declarei em Oliveira. Ainda sou
muito nova para andar com recadinhos de sentimento. Mas acho que a
Annica é bonita, é rica, é viuva...

Gonçalo arrancou do banco, erguendo os braços, em desolação. E, como D.
Maria tambem se erguera, ambos seguiram pela tira de relva que orla os
alamos. Elle quasi gemia, desconsolado:

--Ora bonita, viuva, rica... Para conhecer esses grandes segredos não a
incommodava eu, prima!... Que diabo! seja boa rapariga, seja franca! A
prima sabe, de certo já ambas conversaram... Seja franca. Ella tem por
mim alguma sympathia?

D. Maria parou, murmurou, riscando com a ponta do guardasolinho o trilho
amarellado da relva:

--Pois está claro que tem...

--Bravo! Então, se d'aqui a um tempo, passados estes primeiros mezes de
luto, eu me declarasse, me...

Ella dardejou a Gonçalo os espertos olhos:

--Santo Deus, como o primo por ahi vae, a galope... Então é uma paixão?

Gonçalo tirou o seu velho chapeu de palha, passou lentamente os dedos
pelos cabellos. E n'um immenso e triste desabafo:

--Olhe, prima! É sobretudo a necessidade de me accommodar na vida! Pois
não lhe parece?

--Tanto me parece que lhe indiquei o bom poizo... E agora adeus, passa
das cinco horas. Não me quero demorar por causa dos creados.

Gonçalo protestou, supplicou:

--Mais um bocadinho!... É tão cedo! Só outra cousa, com franqueza. Ella
é boa rapariga?

D. Maria voltára, ao cabo do renque d'alamos, recolhendo á caleche:

--Uma pontinha de genio, para animar a existencia. Mas muito boa
rapariga... E uma dona de casa admiravel! O primo não imagina como anda
a _Feitosa_. A ordem, o acceio, a regularidade, a disciplina... Ella
olha por tudo, até pela adega, até pela cocheira!

Gonçalo esfregou radiantemente as mãos:

--Pois se d'aqui a um anno se realisar o grande acontecimento hei de
gritar por toda a parte que foi a prima Maria que salvou a casa de
Ramires!

--Por isso eu trabalho, para servir o brazão e o nome! exclamou ella,
saltando ligeiramente para a caleche, como se fugisse, arremessada
aquella clara confissão.

O trintanario trepára á almofada. E em quanto os cavallos folgados
largavam, aos corcovos, D. Maria ainda gritou:

--Sabe quem encontrei em Villa Clara? O Titó!

--O Titó?...

--Chegou do Alemtejo, vem jantar comsigo. Eu não o trouxe na carruagem
por decencia, para o não comprometter...

E a caleche rolou--entre os risos e os doces acenos com que ambos se
afagavam, n'aquella nova concordancia mais calorosa d'uma conspiração
sentimental.

Gonçalo largou logo alegremente para Villa-Clara, ao encontro do Titó. E
já o alvoroçava a idéa de colher do Titó, intimo da _Feitosa_,
informações sobre a D. Anna, o seu genio, os seus modos. A prima Maria,
por amor dos Ramires (sobretudo, coitada, para proveito dos Mendonças!),
idealisava a noiva. Mas o Titó, o homem mais veridico do Reino, amando a
Verdade com a antiga devoção de Epaminondas, apresentaria D. Anna sem um
enfeite nem um desenfeite. E o Titó... Ah! sob o seu vozeirão troante, a
sua indolencia bovina, o Titó possuia um espirito muito attento, muito
penetrante.

Logo á Portella os dous amigos s'encontraram. E, apesar de separação tão
curta, o abraço foi estrondoso.

--Oh sô Gonçalão!...

--Oh Titósinho querido! tens feito cá uma falta enorme!... E teu irmão?

O mano melhor, mas arrasado. Muito cartapacio e muito fêmea para velho
de sessenta annos. E elle lá o avisára:--«Mano João, mano João! olhe que
assim sempre agarrado aos papeis velhos e ás cachopas novas, o mano
rebenta!»

--E por cá? Essa eleição?

--A eleição agora para outubro, nos começos d'outubro... De resto,
semsaboria universal. Gouveia na Costa, Manoel Duarte na vindima... Eu
seccadote, murchote, sem veia, até sem appetite.

--Olha que eu venho jantar e convidei o Videirinha.

--Bem sei, já me disse a prima Maria, que parou um bocado na Torre...
Ella está na _Feitosa_ com a D. Anna.

Durante um momento repisou sobre a intimidade da prima Maria na
_Feitosa_, com a tentação de desabafar, logo alli na estrada, sobre o
inesperado romance que desabrochára. Mas não ousou! Era um angustiado
acanhamento, como a vergonha de cubiçar assim todos os restos do pobre
Lucena--o Circulo e a viuva.

Então, conversando do Alemtejo e do mano João (que contára muitas
antigualhas massadoras sobre a genealogia dos Ramires), desceram da
Portella á Torre, com tenção de estirar o passeio até aos Bravaes. Mas,
na Torre, Gonçalo desejou avisar a Rosa dos dous convivas inesperados,
senhores de tão poderoso garfo. Entraram pela porta do pomar onde um fio
lento d'agoa s'atardava nos regueiros. Aos brados galhofeiros do Fidalgo
a Rosa accudio, limpando as mãos ao avental. O que! dous convidados!
Mesmo quatro, e mais valentes, que graças a Deus nosso Senhor o
jantarinho sobrava! Ainda de tarde comprára a uma mulher da Costa um
cesto de sardinhas, graudas e gordas que regalavam!... O Titó reclamou
logo uma fritada tremenda de sardinha e ovos. E os dois amigos
atravessavam o pateo--quando Gonçalo reparou no Bento, escarranchado no
banco da latada, deante d'uma tigella, e areando com enthusiasmo um
castão de prata lavrada, que emergia de dentro d'uma toalha enrolada
como d'uma bainha.

--Que castão é esse, Bento? assim embrulhado?

O Bento lentamente saccou da toalha torcida um chicote, escuro e
comprido, com tres arestas afiadas como as d'um florete.

--Nem o Snr. Dr. sabia! Estava no sotão. Agora de tarde andava lá a
escarafunchar por causa d'uma ninhada de gatos, e detraz d'um bahu dou
com umas esporas de prateleira e com este arrôcho...

Gonçalo estudou o macisso castão de prata, sacudio a fina vara que
zinia:

--Explendido chicote... Oh Titó, hein?... Afiado como um cutello. E
antigo, muito antigo, com as minhas armas... De que diabo é feito?
baleia?

--De cavallo-marinho... Uma arma terrivel. Mata um homem... O mano João
tem um, mas com castão de metal... Mata um homem!

--Bem, rematou Gonçalo. Limpa e põe no meu quarto, Bento! Passa a ser o
meu chicote de guerra!

Á porta do pomar ainda encontraram o Pereira da Riosa, de quinzena de
cutim deitada aos hombros. Em breve, no dia de S. Miguel, o Pereira
tomava emfim a lavra da Torre. E Gonçalo gracejou, mostrando ao Titó o
lavrador famoso. Eis o homem! eis o grande homem que se preparava a
tornar a Torre uma fallada maravilha de ceára, vinha e horta! O Pereira
coçava a barba rala:

--E tambem a enterrar bom dinheiro! Emfim um gosto sempre valeu mais que
um vintem! E o Fidalgo, como patrão, merece terra em que os olhos se
esqueçam de regalados!...

--Oh, Snr. Pereira! rebombou o Titó. Então não se esqueça de cuidar dos
melões. É uma vergonha! Nunca na Torre se comeu um bom melão!

--Pois para o anno, assim Deus nos conserve, já V. Ex.^a comerá na Torre
um bom melão!

Gonçalo abraçou ainda o esperto lavrador--e apressou para a estrada,
decidido a desenrolar toda a confidencia ao Titó, na solidão favoravel
do arvoredo dos Bravaes. Mas, apenas recomeçaram a caminhada, o mesmo
enleio o travou--quasi temendo agora as informações do Titó, homem tão
sevéro, de Moral tão escarpada. E todo o demorado giro pelos Bravaes o
findaram sem que Gonçalo desafogasse. O crepusculo descera, molle e
quente, quando recolheram--conversando sobre a pesca do savel no
Guadiana.

Defronte do portão da Torre Videirinha esperava, dedilhando o violão na
penumbra dos alamos. Como a noite se conservava abafada, sem uma aragem,
jantaram na varanda, com dous candieiros accesos. Logo ao desdobrar o
guardanapo o Titó, vermelho e espraiado sobre a cadeira, declarou «que
graças ao Senhor da Saude, a sede era boa!» Elle e Gonçalo praticaram as
usadas façanhas de garfo e de copo. Quando o Bento servio o café uma
immensa e lustrosa lua nova surgia, ao fundo da quinta escura, por traz
dos outeiros de Valverde. Gonçalo, enterrado n'uma cadeira de vime,
accendeu o charuto com beatitude. Todos os tedios e incertezas d'essas
semanas se despegavam da sua alma como cinza apagada, brevemente
varrida. E foi sentindo menos a doçura da noite, que um sabor melhor á
vida desanuviada, que exclamou:

--Pois, senhores, agora, está uma delicia!...

Videirinha, depois d'um curto cigarro, retomára o violão. Atravez da
quinta, pedaços de muros caiados, algum trilho de rua mais descoberto, a
agua do Tanque-Grande, rebrilhavam ao luar que resvalava dos cerros; e a
quietação do arvoredo, da claridade, da noite, penetravam n'alma com
adormecedora caricia. Titó e Gonçalo saboreavam o famoso cognac de
Moscatel, preciosa antigualha da Torre, silenciosamente enlevados no
Videirinha--que recuára para o fundo da varanda, se envolvera em sombra.
Nunca o bom cantador ferira as cordas com inspiração mais enternecida.
Até os campos, o ceu inclinado, a lua cheia sobre as collinas, escutavam
os queixumes do _fado_ da Ariosa. E no escuro, sob a varanda, o pigarro
da Rosa, os passos abafados dos creados, algum sumido riso de rapariga,
o bater das orelhas d'um perdigueiro--eram como a presença d'um povo
suavemente attrahido pelo descante formoso.

Assim a noite se alongou, a lua subio com solitario fulgor. Titó, pesado
do brodio, adormecêra. E como sempre, para findar, Videirinha atacou
ardentemente o _Fado dos Ramires_:

    Quem te verá sem que estremeça,
    Torre de Santa Ireneia,
    Assim tão negra e callada
    Por noites de lua cheia...

E lançou então uma quadra nova, que trabalhára n'essa semana com amor
sobre uma erudita nota do bom Padre Sueiro. Era a gloria magnifica de
Paio Ramires, Mestre do Templo--a quem o Papa Innocencio, e a Rainha
Branca de Castella, e todos os Principes da Christandade supplicam que
se arme, e corra em dura pressa, e liberte S. Luiz Rei de França,
captivo nas terras de Egypto...

    Que só em Paio Ramires
    Põe agora o mundo a esperança...
    Que junte os seus Cavalleiros
    E que salve o Rei de França!

E por este avô e tal façanha até Gonçalo se interessou--acompanhando o
canto, n'um tremulo esganiçado, de braço erguido:

    Ai, que junte os seus cavalleiros
    E que salve o Rei de França!...

Ao rolar mais forte do côro Titó descerrou as palpebras, arrancou do
canapé o corpansil immenso--e declarou que marchava para Villa Clara:

--Estou derreado! Sempre em jornada e sem dormir, desde hontem ás quatro
da manhã que larguei de Cidadelhe... Caramba, dava agora, como aquelle
rei grego, um crusado por um burro!

Então Gonçalo, animado pelo cognac, tambem se ergueu com uma resolução
quasi alegre:

--Oh Titó, antes de sahires anda cá dentro que quero fallar comtigo a
respeito d'um caso!

Agarrára um dos candieiros, penetrou na sala de jantar onde errava o
cheiro de magnolias morrendo n'um vaso. E ahi, sem preparação, com os
olhos bem decididos, bem cravados no Titó--que o seguira arrastadamente,
ainda se espreguiçava:

--Oh Titó, ouve lá e sê franco. Tu ias muito á _Feitosa_... Que te
parece aquella D. Anna?

Titó, que despertára como ao rebentar d'um morteiro, considerou Gonçalo
com assombro:

--Ora essa! Mas a que proposito?...

Gonçalo atalhou, na pressa de colher rapidamente uma certeza:

--Olha! Eu para ti não tenho segredos. N'estas ultimas semanas houveram
ahi umas conversas, uns encontros... Emfim, para resumir, se d'aqui a
tempos eu pensasse em casar com a D. Anna, creio que ella, por seu lado,
não recusava. Tu ias á _Feitosa_. Tu sabes... Que tal rapariga é ella?

Titó crusára os braços violentamente:

--Pois tu vaes casar com a D. Anna?

--Homem, não vou casar. Não sigo esta noite para a Egreja. Por ora quero
só informações... E de quem as posso ter, mais francas e mais seguras,
do que de ti, que és meu amigo e que a conheces?

Titó não descrusára os braços--levantando para o Fidalgo da Torre a face
honesta e sevéra:

--Pois tu pensas em casar com a D. Anna, tu, Gonçalo Mendes Ramires?...

Gonçalo atirou um gesto de impaciencia e fartura:

--Oh! se me vens com a fidalguia e com o Paio Ramires...

O Titó quasi berrou, na sua indignação:

--Qual fidalguia! É que um homem de bem, como tu, não pensa em casar com
uma creatura como ella!... Fidalguia?... Sim! Mas fidalguia d'alma e de
coração!

Gonçalo emmudeceu, trespassado. Depois, com uma serenidade a que se
forçára, argumentou, deduzio:

--Bem! tu então sabes outras cousas... Eu por mim sei que ella é bonita
e rica: sei tambem que é séria, por que nunca sobre ella se rosnou nem
aqui nem em Lisboa: são qualidades para se casar com uma mulher... Tu
agora affianças que se não pode casar com ella. Portanto sabes outras
cousas... Dize.

Foi então o Titó que emmudeceu, immovel deante do Fidalgo como se o laço
d'uma corda o colhesse e o travasse. Por fim, soprando, com um esforço
enorme:

--Tu não me chamaste para eu depôr como testemunha... Em principio, sem
explicações, perguntas se podes casar com essa mulher. E eu, sem
explicações, em principio, declaro que não... Que diabo queres mais?

Gonçalo exclamou, revoltado:

--Que quero? Pelo amor de Deus, Titó!... Suppõe tu que estou doidamente
apaixonado pela D. Anna, ou que tenho um interesse immenso em casar com
ella... Que não estou, nem tenho: mas suppõe! N'esse caso não se desvia
um amigo d'um acto em que elle está tão fundamente empenhado, sem lhe
apresentar uma razão, uma prova...

Assim apertado Titó baixou a cabeça, que coçou com desespero. Depois
acobardadamente, para escapar, adiou a contenda:

--Olha, Gonçalo, eu estou muito estafado. Tu não vaes a esta hora para a
Egreja: e ella menos, que o outro marido ainda não arrefeceu na cova.
Então ámanhã conversamos.

Atirou duas passadas enormes, empurrou a porta da varanda, berrando pelo
Videirinha:

--São que horas, Videira! Toca a abalar, que não dormi desde Cidadelhe.

Videirinha, que preparava com esmero um grog frio, esvasiou
atabalhoadamente o copo, recolheu o violão precioso. E Gonçalo não os
deteve, esfregando silenciosamente as mãos, amuado com aquella recusa do
Titó tão desamiga e teimosa. Como sombras atravessaram uma sala onde
dormia, esquecida desde os Ramires do seculo XVIII, uma espineta de
charão. No patamar da escada que conduzia á portinha verde, Gonçalo,
para os allumiar, erguera um castiçal. Titó accendeu um cigarro á vela.
A sua mão cabelluda tremia.

--Então, entendido... Appareço ámanhã, Gonçalo.

--Quando quizeres, Titó.

E no secco assentimento do Fidalgo transparecia tanto despeito--que Titó
hesitou nos estreitos degraus que atulhava. Por fim desceu pesadamente.

Videirinha, já na estrada, considerava o ceu, a luminosa serenidade:

--Que linda noite, snr. Doutor!

--Linda, Videirinha... E obrigado. Vossê hoje tocou divinamente!

Gonçalo entrára na sala dos retratos, pousára apenas o castiçal--quando,
por baixo da varanda aberta, o vozeirão do Titó retumbou:

--Oh Gonçalo, desce cá abaixo.

O Fidalgo rolou pelos degraus com soffreguidão. Para além dos alamos, no
luar da estrada, Videirinha afinava o violão. E apenas a face do Fidalgo
surdio na claridade da porta o Titó, que esperava com o chapéo para a
nuca, desabafou:

--Oh Gonçalo, tu ficaste amuado... É tolice! E entre nós não quero
sombras. Então lá vae! Tu não podes casar com essa mulher por que ella
teve um amante. Não sei se antes ou depois d'esse teve outro. Não ha
creatura mais manhosa, nem mais disfarçada. Não me venhas agora com
perguntas. Mas fica certo que ella teve um amante. Sou eu que t'o
affirmo: e tu sabes que eu nunca minto!

Bruscamente metteu á estrada, com os possantes hombros vergados. Gonçalo
não se movera de sobre os degraus de pedra, deante dos mudos alamos,
como elle immoveis. Uma palavra passára, irreparavel, no macio silencio
da noite e da lua--e eis o alto sonho que elle construira sobre a D.
Anna e a sua belleza e os seus duzentos contos despenhado no lodo!
Lentamente subio, repenetrou na sala. Por cima da chamma alta da vela,
n'um painel fusco, uma face acordára, uma secca, amarellada face, de
altivos bigodes negros, que se inclinava, attenta como reparando. E
longe, Videirinha espalhava pelos campos adormecidos os ingenuos versos
celebrando a gloria tamanha da Casa illustre:

    Que só em Paio Ramires
    Põe agora o mundo esperança...
    Que junte os seus cavalleiros
    E que salve o Rei de França!...




X


Até noite alta Gonçalo, passeando pelo quarto, remoeu a amarga certeza
de que sempre, atravez de toda a sua vida (quasi desde o collegio de S.
Fiel!), não cessára de padecer humilhações. E todas lhe resultavam de
intentos muito simples, tão seguros para qualquer homem como o vôo para
qualquer ave--só para elle constantemente rematados por dôr, vergonha ou
perda! Á entrada da vida escolhe com enthusiasmo um confidente, um
irmão, que traz para a quieta intimidade da Torre--e logo esse homem se
apodéra ligeiramente do coração de Gracinha e ultrajosamente a abandona!
Depois concebe o desejo tão corrente de penetrar na Vida Politica--e
logo o Acaso o fórça a que se renda e se acolha á influencia d'esse
mesmo homem, agora Auctoridade poderosa, por elle durante todos esses
annos de despeito tão detestada e chasqueada! Depois abre ao amigo,
agora restabelecido na sua convivencia, a porta dos Cunhaes, confiado na
seriedade, no rigido orgulho da irmã--e logo a irmã s'abandona ao antigo
enganador, sem lucta, na primeira tarde em que se encontra com elle na
sombra favoravel d'um caramanchão! Agora pensa em casar com uma mulher
que lhe offerecia com uma grande belleza uma grande fortuna--e
immediatamente um companheiro de Villa-Clara passa e segreda:--«A mulher
que escolheste, Gonçalinho, é uma marafona cheia d'amantes!» De certo
essa mulher não a amava com um amor nobre e forte! Mas decidira
accommodar nos formosos braços d'ella, muito confortavelmente, a sua
sorte insegura--e eis que logo desaba, com esmagadora pontualidade, a
humilhação costumada. Realmente o Destino malhava sobre elle com rancor
desmedido!

--E por quê? murmurava Gonçalo, despindo melancolicamente o casaco. Em
vida tão curta, tanta decepção... Porquê? Pobre de mim!

Cahio no vasto leito como n'uma sepultura--enterrou a face no
travesseiro com um suspiro, um enternecido suspiro de piedade por
aquella sua sorte tão contrariada, tão sem soccorro. E recordava o
presumpçoso verso do Videirinha, ainda n'essa noite proclamado ao
violão:

    Velha casa de Ramires
    Honra e flor de Portugal!

Como a flor murchára! Que mesquinha honra! E que contraste o do
derradeiro Gonçalo, encolhido no seu buraco de Santa Ireneia, com esses
grandes avós Ramires cantados pelo Videirinha--todos elles, se Historia
e Lenda não mentiam, de vidas tão triumphaes e sonoras! Não! nem sequer
d'elles herdára a qualidade por todos herdada atravez dos tempos--a
valentia facil. Seu pae ainda fora o bom Ramires destemido--que na
fallada desordem da romaria da Riosa avançava com um guardasol contra
tres clavinas engatilhadas. Mas elle... Alli, no segredo do quarto
apagado, bem o podia livremente gemer--elle nascera com a _falha_, a
falha de peor desdouro, essa irremediavel fraqueza da carne que,
irremediavelmente, deante de um perigo, uma ameaça, uma sombra, o
forçava a recuar, a fugir... A fugir d'um Casco. A fugir d'um malandro
de suissas louras que, n'uma estrada e depois n'uma venda o insulta sem
motivo, para meramente ostentar pimponice e arreganho. Ah vergonhosa
carne, tão espantadiça!

E a Alma... N'essa calada treva do quarto bem o podia reconhecer tambem,
gemendo. A mesma fraqueza lhe tolhia a Alma! Era essa fraqueza que o
abandonava a qualquer influencia, logo por ella levado como folha secca
por qualquer sopro. Por que a prima Maria uma tarde adoça os espertos
olhos e lhe aconselha por traz do leque que se interesse pela D.
Anna--logo elle, fumegando d'esperança, ergue sobre o dinheiro e a
belleza de D. Anna uma presumpçosa torre de ventura e luxo. E a Eleição?
essa desgraçada Eleição? Quem o empurrára para a Eleição, e para a
reconciliação indecente com o Cavalleiro, e para os desgostos d'ahi
manados? O Gouveia, só com leves argucias, murmuradas por cima do
cache-nez desde a loja do Ramos até á esquina do Correio! Mas que! mesmo
dentro da sua Torre era governado pelo Bento, que superiormente lhe
impunha gostos, dietas, passeios, e opiniões e gravatas!--Homem de tal
natureza, por mais bem dotado na Intelligencia, é massa inerte a que o
Mundo constantemente imprime fórmas varias e contrarias. O João Gouveia
fizera d'elle um candidato servil. O Manuel Duarte poderia fazer d'elle
um beberrão immundo. O Bento facilmente o levaria a atar ao pescoço, em
vez d'uma gravata de seda, uma colleira de couro! Que miseria! E todavia
o Homem só vale pela Vontade--só no exercicio da Vontade reside o goso
da Vida. Por que se a Vontade bem exercida encontra em torno
submissão--então é a delicia do dominio sereno: se encontra em torno
resistencia--então é a delicia maior da lucta interessante. Só não sahe
goso forte e viril da inercia que se deixa arrastar mudamente, n'um
silencio e macieza de cera... Mas elle, elle, descendendo de tantos
varões famosos pelo Querer--não conservaria, escondida algures no seu
Ser, dormente e quente como uma braza sob cinza, uma parcella d'essa
energia hereditaria?... Talvez! nunca porém n'esse pêco e encafuado
viver de Santa Ireneia a fagulha despertaria, resaltaria em chamma
intensa e util. Não! pobre d'elle! Mesmo nos movimentos da Alma onde
todo o homem realisa a liberdade pura--elle soffreria sempre a oppressão
da Sorte inimiga!

Com outro suspiro mais se enterrou, s'escondeu sob a roupa. Não
adormecia, a noite findava--já o relogio de charão, no corredor, batera
cavamente as quatro horas. E então, atravez das palpebras cerradas, no
confuso cançasso de tantas tristezas revolvidas, Gonçalo percebeu,
atravez da treva do quarto, destacando pallidamente da treva, faces
lentas que passavam...

Eram faces muito antigas, com desusadas barbas ancestraes, com
cicatrizes de ferozes ferros, umas ainda flammejando como no fragor de
uma batalha, outras sorrindo magestosamente como na pompa d'uma
gala--todas dilatadas pelo uso soberbo de mandar e vencer. E Gonçalo,
espreitando por sobre a borda do lençol, reconhecia n'essas faces as
veridicas feições de velhos Ramires, ou já assim comtempladas em
denegridos retratos, ou por elle assim concebidas, como concebera as de
Tructesindo, em concordancia com a rijeza e explendor dos seus feitos.

Vagarosas, mais vivas, ellas cresciam d'entre a sombra que latejava
espessa e como povoada. E agora os corpos emergiam tambem, robustissimos
corpos cobertos de saios de malha ferrugenta, apertados por arnezes
d'aço lampejante, embuçados em fuscos mantos de revoltas prégas,
cingidos por faustosos gibões de brocado onde scintillavam as pedrarias
de collares e cintos;--e armados todos, com as armas todas da Historia,
desde e clava gôda de raiz de roble errissada de puas, até ao espadim de
sarau enlaçarotado de seda e ouro.

Sem temor, erguido sobre o travesseiro, Gonçalo não duvidava da
realidade maravilhosa! Sim! eram os seus avós Ramires, os seus
formidaveis avós historicos, que, das suas tumbas dispersas corriam, se
juntavam na velha casa de Santa Ireneia nove vezes secular--e formavam
em torno do seu leito, do leito em que elle nascera, como a Assembleia
magestosa da sua raça resurgida. E até mesmo reconhecia alguns dos mais
esforçados, que agora, com o repassar constante do Poemeto do tio Duarte
e o Videirinha gemendo fielmente o seu «fado», lhe andavam sempre na
imaginação...

Aquelle além, com o brial branco a que a cruz vermelha enchia o
peitoral, era certamente Gutierres Ramires o _d'Ultramar_, como quando
corria da sua tenda para a escalada de Jerusalem. No outro, tão velho e
formoso, que estendia o braço, elle adivinhava Egas Ramires, negando
acolhida no seu puro solar a El-Rei D. Fernando e á adultera Leonor!
Esse, de crespa barba ruiva, que cantava sacudindo o pendão real de
Castella, quem, senão Diogo Ramires, _o Trovador_, ainda na alegria da
radiosa manhã d'Aljubarrota? Deante da incerta claridade do espelho
tremiam as fôfas plumas escarlates do morrião de Paio Ramires, que
s'armava para salvar S. Luiz Rei de França. Levemente balançado, como
pelas ondas humildes d'um mar vencido, Ruy Ramires sorria ás naus
inglezas que ante a prôa da sua Capitanea submissamente amainavam por
Portugal. E, encostado ao poste do leito, Paulo Ramires, pagem do Guião
d'El-Rey nos campos fataes de Alcacer, sem elmo, rota a couraça,
inclinava para elle a sua face de donzel, com a doçura grave d'um avó
enternecido...

Então, por aquella ternura attenta do mais poetico dos Ramires, Gonçalo
sentio que a sua Ascendencia toda o amava--e da escuridão das tumbas
dispersas accudira para o velar e soccorrer na sua fraqueza. Com um
longo gemido, arrojando a roupa, desafogou, dolorosamente contou aos
seus avós resurgidos a arrenegada Sorte que o combatia e que sobre a sua
vida, sem descanço, amontoava tristeza, vergonha e perda! E eis que
subitamente um ferro faiscou na treva, com um abafado brado:--«Neto,
doce neto, toma a minha lança nunca partida!...» E logo o punho d'uma
clara espada lhe roçou o peito, com outra grave voz que o
animava:--«Neto, doce neto, toma espada pura que lidou em Ourique!...» E
depois uma acha de coriscante gume bateu no travesseiro, offertada com
altiva certeza:--«Que não derribará essa acha, que derribou as portas
d'Arzilla?...»

Como sombras levadas n'um vento transcendente todos os avós formidaveis
perpassavam--e arrebatadamente lhe estendiam as suas armas, rijas e
provadas armas, todas, atravez de toda a Historia, ennobrecidas nas
arrancadas contra a Moirama, nos trabalhados cercos de Castellos e
Villas, nas batalhas formosas com o Castelhano soberbo... Era, em torno
do leito, um heroico reluzir e retinir de ferros. E todos soberbamente
gritavam:--«Oh neto, toma as nossas armas e vence a Sorte inimiga!...»
Mas Gonçalo, espalhando os olhos tristes pelas sombras ondeantes,
volveu:--«Oh Avós, de que me servem as vossas armas--se me falta a vossa
alma?...»

Acordou, muito cedo, com a enredada lembrança d'um pesadello em que
fallára a mortos:--e, sem a preguiça, que sempre o amollecia nos
colchões, enfiou um roupão, escancarou as vidraças. Que formosa manhã!
uma manhã dos fins de Septembro, macia, lustrosa e fina; nem uma nuvem
lhe desmanchava o vasto, o immaculado azul; e o sol já pousava nos
arvoredos, nos outeiros distantes, com uma doçura outomnal. Mas, apesar
de lhe respirar allentamente o brilho e a pureza, Gonçalo permaneceu
toldado de sombras, das sombras da véspera, retardadas no seu espirito
opprimido, como nevoas em valle muito fundo. E foi ainda com um suspiro,
arrastando tristonhamente as chinellas, que puxou o cordão da campainha.
O Bento não tardou com a infusa da agoa quente para a barba. E
acostumado ao alegre acordar do Fidalgo tanto estranhou aquelle
silencioso e enrugado mover pelo quarto, que desejou saber se o Snr.
Doutor passára mal a noite...

--Pessimamente!

Bento declarou logo, com vivacidade e reprovação--que certamente fizera
mal ao Snr. Doutor tanto cognac de moscatel. Cognac muito adocicado,
muito excitante... Bom para o Snr. D. Antonio, homemzarrão pesado. Mas o
Snr. Doutor, assim nervoso, nunca devia tocar n'aquelle cognac. Ou
então, meio calice escasso.

Gonçalo ergueu a cabeça, na surpreza de encontrar logo ao começo do seu
dia e tão flagrante, aquelle dominio que todos sobre elle se
arrogavam--e de que tanto se lastimava, atravez de toda a amarga noite!

Eis ahi o Bento mandando--marcando a sua ração de cognac! E justamente o
Bento insistia:

--O Snr. Doutor bebeu mais de tres calices. Assim não convém... Eu
tambem tive culpa em não tirar a garrafa...

Então, perante despotismo tão declarado, o Fidalgo da Torre teve uma
brusca revolta:

--Homem, não dês tantas leis. Bebo o cognac que preciso e que quero!

Ao mesmo tempo, com a ponta dos dedos, experimentava a agua na infusa:

--Esta agua está morna! exclamou logo. Já me tenho fartado de dizer!
Para a barba, preciso sempre agua a ferver.

O Bento, gravemente, mergulhou tambem o dedo na agua:

--Pois esta agua está quasi a ferver... Nem para a barba se necessita
agua mais quente.

Gonçalo encarou o Bento com furor. O que! mais objecções, mais leis!

--Pois vá immediatamente buscar outra agua! Quando eu peço agua quente,
pretendo que venha em cachão. Irra! tanta sentença!... Eu não quero
moral, quero obediencia!

O Bento considerou Gonçalo atravez d'um espanto que lhe inchára a face.
Depois, lentamente, com magoada dignidade, empurrou a porta, levando a
infusa. E já Gonçalo se arrependia da sua violencia. Coitado, não era
culpa do Bento se a vida lhe andava a elle tão estragada e sacudida!
Depois, em casa tão antiga, não destoava a tradição dos antigos aios. E
o Bento com perfeito rigor lhes reproduzia a rabugice e a lealdade! Mas
ascendencia, e livre fallar bem lhe cabiam--bem os merecia por tão
longa, tão provada dedicação...

O Bento, ainda vermelho e inchado, voltava com a infusa fumegante. E
Gonçalo logo docemente, para o adoçar:

--Dia muito bonito, hein, Bento?

O velho rosnou, ainda amuado:

--Muito bonito.

Gonçalo ensaboava a face, rapidamente, na impaciencia de reatar com o
Bento, de lhe restabelecer a supremacia amoravel. E por fim mais doce,
quasi humilde:

--Pois se achas o dia assim bonito, dou um passeio a cavallo antes
d'almoço. Que te parece? Talvez me faça bem aos nervos... Com effeito,
aquelle cognac não me convém... Então, Bento, faze o favor, grita ahi ao
Joaquim que me tenha a egoa prompta immediatamente. Com certeza me
acalma, uma galopada... E no banho agora a agua bem esperta, bem quente.
Tambem me acalma a agua quente. Por isso necessito sempre agua bem
quente, a ferver. Mas tu, com essas tuas velhas idéas... Pois todos os
medicos o declaram. Para a saude agua quente, bem quente, a sessenta
graus!

E depois do rapido banho, em quanto se vestia, abriu mais familiarmente
ao velho aio a intimidade das suas tristezas:

--Ah! Bento, Bento, o que eu verdadeiramente precisava para me calmar,
não era um passeio, era uma jornada... Trago a alma muito carregada,
homem! Depois estou farto d'esta eterna Villa-Clara, da eterna Oliveira.
Muito mexerico, muita deslealdade. Precisava terra grande, distracção
grande.

O Bento, já reconciliado, enternecido, lembrou que o Snr. Doutor
brevemente, em Lisboa, encontraria uma linda distracção, nas Côrtes.

--Eu sei lá se vou ás Côrtes, homem! Não sei nada, tudo falha... Qual
Lisboa!... O que eu necessito é uma viagem immensa, á Hungria, á Russia,
a terras onde haja aventuras.

O Bento sorriu superiormente d'aquella imaginação. E apresentando ao
Fidalgo o jaquetão de velvetina cinzenta:

--Com effeito, na Russia parece que não faltam aventuras. Anda tudo a
chicote, diz o _Seculo_... Mas aventuras, Snr. Doutor, até a gente as
encontra na estrada... Olhe! o paesinho de V. Ex.^a, que Deus haja, foi
lá em baixo deante do portão que teve a bulha com o Dr. Avelino da
Riosa, e que lhe atirou a chicotada, e que levou com o punhal no
braço...

Gonçalo calçava as luvas d'anta, mirando o espelho:

--Pobre papá, coitado, tambem teve pouca sorte... E por chicote, ó
Bento, dá cá aquelle chicote de cavallo marinho que tu hontem areaste.
Parece que é uma boa arma.

       *       *       *       *       *

Ao sahir o portão, o Fidalgo da Torre metteu a egoa, sem destino, n'um
passo indolente, pela estrada costumada dos Bravaes. Mas no Casal Novo,
onde dous pequenos jogavam á bola debaixo das carvalheiras, pensou em
visitar o Visconde de Rio-Manso. Certamente lhe concertaria os nervos a
companhia de tão sereno e generoso velho. E, se elle o convidasse a
almoçar, gastaria os seus cuidados visitando essa fallada quinta da
_Varandinha_ e cortejando «o botão de Rosa».

Gonçalo recordava apenas confusamente que o terraço da _Varandinha_
dominava uma estrada plantada de choupos, algures, entre o logar da
Cerda e a espalhada aldêa de Canta-Pedra, E tomou o caminho velho que
desce das carvalheiras do Casal Novo, e penetra no valle, entre o cabeço
d'Avellan e as ruinas do Mosteiro de Ribadaes, no solo historico onde
Lopo de Bayão derrotára a mesnada de Lourenço Ramires... Ora enterrada
entre vallados, ora entre toscos muros de pedra solta, a vereda seguia
sem belleza, e cansativa: mas as madresilvas nas sebes, por entre as
amoras maduras, rescendiam: o fresco silencio recebia mais frescura e
graça dos fremitos d'aza que o roçavam; e tanto era o radiante azul nos
ceus serenos que um pouco do seu rebrilho e serenidade s'instillava
n'alma. Gonçalo, mais desannuviado, não se apressava: na Egreja dos
Bravaes, quando elle passára ao Casal Novo, batiam apenas as nove horas:
e depois de costear um lameiro d'herva magra parou a accender
pachorrentamente um charuto, rente da velha ponte de pedra que galga o
riacho das Donas. Quasi secca pela estiagem, a agoa escura mal corria,
sob as folhas largas dos nenufares, por entre os juncaes que a
atulhavam. Adiante, á orla d'um hervaçal, no abrigo d'uma moita
d'alamos, relusiam as pedras d'um lavadouro. Na outra margem, dentro
d'um velho bote encalhado, um rapazito, uma rapariguinha conversavam
profundamente, com dous molhos d'alfazema esquecidos nos regaços.
Gonçalo sorriu do idyllio--depois teve uma surpreza descobrindo, no
cunhal da ponte, rudemente entalhado, o seu Brazão-d'Armas, um Açor
enorme, que alargava as garras ferozes. Talvez aquellas terras outr'ora
pertencessem á Casa:--ou algum dos seus avós beneficos construira a
ponte, sobre torrente então mais funda, para segurança dos homens e dos
gados. Quem sabe se o avô Tructesindo, em memoria piedosa de Lourenço
Ramires, vencido e captivo nas margens d'aquella Ribeira!

O caminho, para além da ponte, alteava entre campos ceifados. As mêdas
lourejavam, pesadas e cheias, por aquelle anno de fartura. Ao longe, dos
telhados baixos d'um logarejo, vagarosos fumos subiam, logo desfeitos no
radiante ceu. E lentamente, como aquelles fumos distantes, Gonçalo
sentia que todas as suas melancolias lhe escapavam da alma, se perdiam
tambem no azul lustroso... Uma revoada de perdizes ergueu o vôo d'entre
o restolho. Gonçalo galopou sobre ellas, gritando, sacudindo o seu forte
chicote de cavallo-marinho, que zenia como uma fina lamina.

Em breve o caminho torceu, costeando um souto de sobreiros, depois
cavado entre silvados com largos pedregulhos aflorando na poeira;--e ao
fundo o sol faiscava sobre a cal fresca d'uma parede. Era uma casa
terrea, com porta baixa entre duas janellas envidraçadas, remendos novos
no telhado e um quinteiro que uma escura e immensa figueira assombreava.
N'uma esquina pegava um muro baixo de pedra solta, continuado por uma
sebe, onde adiante uma velha cancella abria para a sombra d'uma ramada.
Defronte, no vasto terreiro que se alargava, jaziam cantarias, uma pilha
de traves; passava uma estrada, lisa e cuidada, que pareceu a Gonçalo a
de Ramilde. Para além, até a um distante pinheiral, desciam chãs e
lameiros.

Sentado n'um banco, junto da porta, com uma espingarda encostada ao
muro, um rapaz grosso, de barrete de lã verde, acariciava pensativamente
o focinho d'um perdigueiro. Gonçalo parou:

--Tem a bondade... Sabe por acaso qual é o bom caminho para a quinta do
Snr. Visconde de Rio-Manso, a _Varandinha_?

O rapasote ergueu a face morena, de buço leve, remechendo vagamente no
carapuço.

--Para a quinta do Rio-Manso... Siga pela estrada até á pedreira, depois
á esquerda a seguir, sempre rente da varzea...

Mas n'esse instante assomava á porta um latagão de suissas louras em
mangas de camisa, a cinta enfaixada em seda. E Gonçalo, com um
sobresalto, reconheceu logo o caçador que o injuriára na estrada de
Nacejas, o assobiára na venda do Pintainho. O homem relanceou
superiormente o Fidalgo. Depois, com a mão encostada á humbreira,
chasqueou o rapasote:

--Oh Manoel, que estás tu ahi a ensinar o caminho, homem! Este caminho
por aqui não é para asnos!

Gonçalo sentiu a pallidez que o cobriu--e todo o sangue no coração, n'um
tumulto confuso, que era de medo e de raiva. Um novo ultrage, do mesmo
homem, sem provocação! Apertou os joelhos no sellim para galopar. E a
tremer, n'um esforço que o engasgava:

--Vossê é muito atrevido! É já pela terceira vez! Eu não sou homem para
levantar desordens n'uma estrada... Mas fique certo que o conheço, e que
não escapa sem lição.

Immediatamente, o outro agarrou a um cajado curto e saltou á estrada,
affrontando a egoa, com as suissas erguidas, um riso de immenso desafio:

--Então cá estou! Venha agora a lição... E para diante é que Vossê já
não passa, seu Ramires de merd...

Uma nevoa turvou os olhos esgaseados do Fidalgo. E de repente, n'um
inconsciente arranque, como levado por uma furiosa rajada de orgulho e
força, que se desencadeava do fundo do seu ser, gritou, atirou a fina
egoa n'um galão terrivel! E nem comprehendeu! O cajado sarilhára! A egoa
empinava, n'uma cabeçada furiosa! E Gonçalo entreviu a mão do homem,
escura, immensa, que empolgava a camba do freio.

Então, erguido nos estribos, por sobre a immensa mão, despediu uma
vergastada do chicote silvante de cavallo-marinho, colhendo o latagão na
face, de lado, n'um golpe tão vivo da aresta aguda que a orelha pendeu,
despegada, n'um borbutar de sangue. Com um berro o homem recuou,
cambaleando. Gonçalo galgou sobre elle, n'outro arremesso, com outra
fulgurante chicotada, que o apanhou pela bôca, lhe rasgou a bôca,
decerto lhe espedaçou dentes, o atirou, urrando, para o chão. As patas
da egoa machucavam as grossas coxas estendidas,--e, debruçado, Gonçalo
ainda vergastou, cortou desesperadamente face, pescoço, até que o corpo
jazeu molle e como morto, com jorros de sangue escuro ensopando a
camisa.

Um tiro atroou o terreiro! E Gonçalo, com um salto no selim, avistou o
rapasote moreno ainda com a espingarda erguida, a fumegar, mas já
hesitando aterrado.

--Ah, cão!

Lançou a egoa, com o chicote alto:--o rapaz, espavorido, corria
lentamente através do terreiro, para saltar o vallado, escapar para as
varzeas ceifadas!

--Ah cão, ah cão! berrava Gonçalo. Estonteado, o rapaz tropeçára n'uma
viga solta. Mas já se endireitava, largava, quando o Fidalgo o alcançou
com uma cutilada do chicote no pescoço, logo alagado de sangue.
Estendendo as mãos incertas, ainda cambaleou, abateu, estalou contra a
aresta d'um pilar, a cabeça mais sangue jorrou. Então Gonçalo, a
arquejar, deteve a egoa. Ambos os homens jaziam immoveis! Santo Deus!
Mortos? D'ambos corria o sangue sobre a terra secca. O Fidalgo da Torre
sentia uma alegria brutal. Mas um grito espantado soou do lado do
quinteiro.

--Ai que mataram o meu rapaz!

Era um velho que corria da cancella, n'uma carreira agachada, rente com
a sebe, para a porta da casa. Tão certeiramente o Fidalgo arremessou a
egoa, para o deter--que o velho esbarrou contra o peitoril que arfava
coberto de suor e d'espuma. E ante o inquieto animal escarvando, e
Gonçalo alçado nos estribos, com a face chammejante, o chicote a
descer--o velho, n'um terror, desabou sobre os joelhos, gritou
anciadamente:

--Ai, não me faça mal, meu Fidalgo, por alma de seu pae Ramires.

Gonçalo ainda o manteve assim um momento, supplicante, a tremer, sob o
justiceiro faiscar dos seus olhos:--e gosava soberbamente aquellas
callosas mãos que se erguiam para a sua misericordia, invocavam o nome
de Ramires, de novo temido, repossuido do seu prestigio heroico. Depois,
recuando a egoa:

--Esse malandro do rapazola desfechou a caçadeira!... Vossê tambem não
tem boa cara! Que ia vossê correndo para casa? Buscar outra espingarda?

O velho alargou desesperadamente os braços, offerecia o peito, em
testemunho da sua verdade:

--Oh meu Fidalgo, não tenho em casa nem um cajado!... Assim Deus me
ajude e me salve o rapaz!

Mas Gonçalo desconfiava. Quando descesse agora pela estrada de Ramilde,
bem poderia o velho correr ao casebre, agarrar outra caçadeira,
desfechar traiçoeiramente. E então com a presteza d'espirito que a lucta
afiára concebeu contra qualquer emboscada, um ardil seguro. E até n'um
relance sorrio recordando «traças de guerra», de D. Garcia Viegas, o
_Sabedor_.

--Marche lá deante de mim, sempre a direito, pela estrada!

O velho tardou, sem se erguer, aterrado. E batia com as grossas mãos nas
coxas, n'uma ancia que o engasgava:

--Oh meu Fidalgo, oh meu fidalgo! mas deixar assim o rapaz sem
acordo?...

--O rapaz está só atordoado, já se mecheu... E o outro malandro
tambem... Marche vossê!

E ao irresistivel mando de Gonçalo, o velho, depois de sacudir
demoradamente as joalheiras, começou a avançar pela estrada, vergado
deante da egoa, como um captivo, com os longos braços a bambolear,
rosnando, n'um rouco assombro:--Ai como ellas se armam! Ai Santo nome de
Deus, que desgraça! A espaços estacava, esgaseando para Gonçalo um olhar
torvo onde negrejava medo e odio... Mas logo o commando forte o
empurrava: «Marche!...» E marchava. Adiante, onde se erguia um cruseiro
em memoria do Abbade Paguim, assassinado, Gonçalo reconheceu um largo
atalho para a estrada dos Bravaes que chamavam o _Caminho da Moleira_. E
para ahi enfiou o velho, que no pavor d'aquella asinhaga solitaria,
pensando que Gonçalo o afastava de caminhos trilhados para o matar
commodamente, rompeu a gemer. «Ai que isto é o fim da minha vida! Ai
Nossa Senhora, que é o fim da minha vida!» E não cessou de gemer,
emmaranhando os passos tropegos, até que desembocaram na estrada alta
entre taludes escarpados, revestidos de giesta brava. Então de repente,
com outro terror, o homem bruscamente revirou, atirando as mãos ao
barrete:

--Oh meu senhor, o Fidalgo não me leva preso?...

--Marche! Corra! Que agora a egoa trota!

A egoa trotou--o velho correu, desengonçado, arquejando como um folle de
forja. Uma milha galgada, Gonçalo parou, farto do captivo, da lenta
marcha. De resto antes que o homem agora corresse a casa, e agarrasse
uma arma, e virasse para o alcançar, se desforrar--entraria elle, n'um
galope solto, o portão da Torre! Então bradou, com o sobr'olho duro:

--Alto! Agora pode voltar para traz... Mas, antes: Como se chama aquelle
seu logar?

--A Grainha, meu fidalgo.

--E vossê como se chama, e o rapaz?

O velho com a boca aberta, esperou, hesitou:

--Eu sou João, o meu rapaz Manoel... Manoel Domingues, meu Fidalgo.

--Vossê naturalmente mente. E o outro malandro, de suissas louras?

D'um folego, o velho gritou:

--Esse é o Ernesto de Nacejas, o valentão de Nacejas, que chamam o
_Caça-abraços_, e que tanto me desencaminhou o rapaz...

--Bem! Pois diga lá a esses dous marotos que me atacaram a pau e a tiro,
que não ficam quites sómente com a sova, e que agora têm de se entender
com a Justiça... Ella lá irá! Largue!

Do meio da estrada, Gonçalo ainda vigiou o velho que abalára, forçando
as passadas derreadas, limpando o suor que lhe pingava. Depois, pela
conhecida estrada, galopou para a Torre.

E ia levado, galopando n'uma alegria tão fumegante, que o lançava em
sonho e devaneio. Era como a sensação sublime de galopar pelas alturas,
n'um corcel de lenda, crescido magnificamente, roçando as nuvens
lustrosas... E por baixo, nas cidades, os homens reconheciam n'elle um
verdadeiro Ramires, dos antigos na Historia, dos que derrubavam torres,
dos que mudavam a configuração dos Reinos,--e erguiam esse maravilhado
murmurio que é o sulco dos fortes passando! Com razão! com razão! Que
ainda de manhã, ao sahir da Torre, não ousaria marchar para um rapazola
decidido que brandisse um varapau... E depois, de repente, na solidão
d'aquella casa terrea, quando o bruto das suissas louras lhe atira a
suja injuria--eis um _não sei quê_ que se desprende dentro do seu ser, e
transborda, e lhe enche cada veia de sangue ardido e lhe enrija cada
nervo de força destra, e lhe espalha na pelle o desprezo e a dôr, e lhe
repassa fundamente a alma de fortaleza indomavel... E agora alli
voltava, como um varão novo, soberbamente virilisado, liberto emfim da
sombra que tão dolorosamente assombreára a sua vida, a sombra molle e
torpe do seu mêdo! Por que sentia que, agora se todos os valentões de
Nacejas o affrontassem n'um rijo erguer de cajados--esse _não sei quê_,
lá dentro, no seu ser, de novo se soltaria, e o arremessaria, com cada
veia inchada, cada nervo retesado, para o delicioso fragor da briga!
Emfim era _um homem_! Quando em Villa Clara o Manuel Duarte, o Titó com
o peito alto, contassem façanhas, já elle não enrolaria encolhidamente o
cigarro--encolhido, mudo não sómente pela ausencia desconsoladora das
valentias, mas sobretudo pela humilhante recordação das fraquezas. E
galopava, galopava apertando furiosamente o cabo do chicote, como para
investidas mais bellas. Para além dos Bravaes, mais galopou, ao avistar
a Torre. E singularmente lhe pareceu, de repente, que a sua Torre, agora
_mais sua_, e que uma affinidade nova fundada em gloria e força, o
tornava mais senhor da sua Torre!

       *       *       *       *       *

Como para acolher Gonçalo mais dignamente, o portão grande, sempre
cerrado, offerecia uma entrada triumphal com os dous pesados batentes
escancarados. Elle atirou a egoa para o meio do pateo, bradando:

--Oh Joaquim! Oh Manoel! Eh lá! um de vossês!

O Joaquim surdiu da cavallariça, de mangas arregaçadas, com uma esponja
na mão.

--Oh Joaquim, depressa! Apparelha o Rocilho, corre a um sitio na estrada
de Ramilde, a que chamam a Grainha... Tive agora lá uma grande desordem!
Creio que dei cabo de dous homens... Ficaram n'uma poça de sangue! Não
digas que vaes da Torre, que te podem atacar! Mas sabe o que succedeu,
se estão mortos... Depressa, depressa!

O Joaquim, estonteado, remergulhou na cavallariça escura. E de cima
d'uma das varandas do corredor, partiram exclamações assombradas:

--Oh Gonçalo, o que foi?! santo Deus! o que foi?!

Era o Barrôlo. Sem desmontar, sem surpresa ante a apparição do Barrôlo,
Gonçalo atirou logo para a varanda a historia da bulha, tumultuosamente.
Um malandro que o insultára... Depois outro, que desfechou a
caçadeira... E ambos derribados sob as patas da egoa, n'uma poça de
sangue...

O Barrôlo despegou da varanda--e n'outro relance, investia pelo pateo,
com os curtos braços a boiar, enfiado. Mas então? mas então?... E
Gonçalo, desmontando, tremulo agora do cançasso e da emoção, esmiuçou
mais lances... Na estrada de Ramilde! Um valentão que o injuriou! A esse
rasgára a bôca, decepára a orelha... Depois o outro, um rapasola,
desfecha uma carabina... Elle corre, tão vivamente o colhe com uma
cutilada que o estira, para cima d'uma pedra, como morto...

--Uma cutilada?

--Com este chicote, Barrôlo! Arma terrivel!... Bem dizia o Titó!...
Estou perdido se não levo este chicote.

Esgaseado, Barrôlo remirava o chicote. Sim, com effeito ainda manchado
de sangue.--Então Gonçalo attentou no chicote, no sangue... Sangue de
gente! sangue fresco, que elle arrancára!... E por entre o seu orgulho,
uma piedade passou que o empallideceu:

--Que desgraça, vejam que desgraça!

Esquadrinhou vivamente o fato, as botas, no horror de nodoas de sangue,
que o salpicassem. Sim, santo Deus! sangue na polaina!... E
immediatamente anciou por se despir, se lavar,--galgou a escada, com o
Barrôlo que enxugava o suor, balbuciava:--«Ora uma d'essas! E de
repente! Assim na estrada!...» Mas no corredor, subindo n'uma carreira
da cosinha, appareceu Gracinha, pallida, com a Rosa atraz, que enterrava
os dedos entre o lenço e o cabello n'um pavor mudo.

--Que foi, Gonçalo? Jesus, que foi?!

Então, encontrando Gracinha junto d'elle, na Torre, n'esse momento
magnifico do seu orgulho, depois de tão rijo perigo vencido, Gonçalo
esqueceu o André, o Mirante, as sombrias humilhações, e no abraço em que
a colheu, nos fortes beijos que atirou á face querida, todo o seu amuo
se fundio em ternura. Com ella ainda chegada ao coração, suspirou de
leve, como uma creança cançada. Depois apertando as duas pobres mãos
tremulas, com um lento, enternecido sorriso, em quanto os olhos se lhe
humedeciam de confusa emoção, de confusa alegria:

--Pois foi o diabo, filha! Uma desordem horrivel, eu que sou tão pacato!
imagina tu...

E pelo corredor recomeçou para Gracinha, que arfava, e para a Rosa,
estarrecida, a historia do encontro, e o sujo ultrage, o tiro que
falhára e os malandros lacerados a chicote, e o velho marchando como um
captivo, a gemer pela estrada de Ramilde. Apertando o peito, n'um
desmaio, Gracinha murmurou:

--Ai, Gonçalo! E se um dos homens estivesse morto!

O Barrôlo, mais vermelho que uma pionia, berrou logo que taes malandros
mereciam ricamente a morte! E mesmo feridos, ainda necessitavam castigo
tremendo d'Africa! O Gouveia! era necessario mandar a Villa-Clara,
avisar o Gouveia!... Mas largas passadas ávidas abalaram o soalho--e foi
o Bento, que se ergueu deante de Gonçalo, bracejando n'uma ancia:

--Então, Snr. Doutor?... Diz que uma grande desordem!...

E á porta do escriptorio, onde todos pararam, novamente attentos, a
historia recomeçou, especialmente para o Bento, que a bebia, n'um lento
riso de gosto, crescendo, inchando, com os olhinhos humidos a reluzir,
como se tambem triumphasse. Por fim, triumphou, com estrondo:

--Foi o chicote, Snr. Doutor! O que serviu ao Snr. Doutor, foi o chicote
que eu lhe dei!

Era verdade. E Gonçalo, commovido, abraçou o velho aio, que n'uma
excitação, gritava para a Rosa, para Gracinha, para o Barrôlo:

--O Snr. Doutor deu cabo d'elles!... Aquelle chicote mata um homem!...
Os malvados estão mortos!... E foi o chicote! Foi o chicote que eu dei
ao Snr. Doutor!

Mas Gonçalo reclamava agua quente para se lavar da poeira, do suor, do
sangue... E o Bento correu, berrando ainda pelo corredor! depois pelas
escadas da cosinha--«que fôra o chicote! o chicote, que elle déra ao
Snr. Doutor!» Gonçalo entrára no quarto, acompanhado pelo Barrôlo. E
pousou o chapeu sobre o marmore da commoda, com um immenso _ah_
consolado! Era o consolo immenso de se encontrar, depois de tão violenta
manhã, entre as doces cousas costumadas, pisando o seu velho tapete
azul, roçando o leito de pau preto em que nascera, respirando pelas
vidraças abertas, onde as ramagens familiares das faias s'empurravam na
aragem para o saudar. Com que gosto se acercou do espelho de columnas
douradas, se mirou e se remirou, como a um Gonçalo novo e tão melhorado,
que nos hombros reconhecia mais largueza, e até no bigode um arquear
mais crespo.

E foi ao arredar do espelho, topando com o Barrôlo, que subitamente
despertou n'uma curiosidade immensa:

--Mas, oh Barrôlo, como é que vos encontro esta manhã na Torre?

Resolução da vespera, ao chá. Gonçalo não apparecia, não escrevia...
Gracinha a matutar, inquieta. Elle tambem espantado d'aquelle sumiço
depois do cesto dos pêcegos. De modo que ao chá, pensando tambem que a
parelha necessitava uma trotada, lembrára a Gracinha:--«Vamos nós amanhã
á Torre? no phaeton?»

--Além disso precisava fallar comtigo, Gonçalo... Tenho andado
aborrecido.

O Fidalgo juntou duas almofadas no divan, onde se enterrou:

--Como aborrecido?... Aborrecido por que?...

Barrôlo, com as mãos nos bolsos da rabona de flanella, que lhe cingia as
ancas gordas, considerou as flôres do tapete, melancolicamente:

--É uma grande secca! A gente não póde confiar em ninguem... Nem ter
familiaridades!...

N'um lampejo Gonçalo imaginou o Cavalleiro e Gracinha mostrando
estouvadamente nos Cunhaes, como outr'ora entre os arvoredos da Torre, o
sentimento que os dominava. E presentiu um desabafo, alguma queixa
triste do pobre Barrôlo, amargurado por suspeitas, talvez por
intimidades que espreitára. Mas a emoção suprema da sua batalha, sumira
para uma sombra inferior os cuidados que, ainda na vespera, o opprimiam:
todas as difficuldades da vida lhe appareciam agora, de repente,
n'aquelle frescor da sua coragem nova, tão faceis d'abater como os
desafios dos valentões; e não se assustou com as confidencias do
cunhado, bem seguro d'impôr áquella alma submissa de bacôco a confiança
e a quietação. Até sorriu, com indolencia:

--Então, Barrolinho? Succedeu alguma peripecia?

--Recebi uma carta.

--Ah!

Gravemente Barrôlo desabotoou o jaquetão, puxou do bolso interior uma
larga carteira, de couro verde e lustroso, com monogramma d'ouro. E foi
a carteira que elle mostrou a Gonçalo, com satisfação.

--Bonita, hein? Presente do André, coitado... Creio que até a mandou vir
de Paris. O monogramma tem muito chic.

Gonçalo esperava, espantado. Emfim o bom Barrôlo tirou da carteira uma
carta--já amarrotada, depois alisada. Era, n'um papel pautado, uma
lettra miudinha que o Fidalgo apenas relanceou, declarando logo com
segurança:

--É das Louzadas.

E leu, vagarosamente, serenamente, com o cotovello enterrado na
almofada: «Ex.^{mo} Snr. José Barrôlo.--V. Ex.^a apesar de todos os seus
amigos o alcunharem de _Zé bacôco_, mostrou agora muita espertesa,
chamando de novo para a sua intimidade e de sua digna esposa o gentil
André Cavalleiro, nosso Governador Civil. Com effeito a esposa de V.
Ex.^a, a linda Gracinha, que n'estes ultimos tempos andava tão murcha e
até desbotada (o que a todos nos inquietava) immediatamente reflorio, e
ganhou côres, desde que possue a valiosa companhia da primeira
auctoridade do districto. Portou-se pois V. Ex.^a como marido zeloso, e
desejoso da felicidade e boa saude de sua interessante esposa. Nem
parece rasgo d'aquelle que toda a Oliveira considera como o seu mais
illustre pateta! Os nossos sinceros parabens!»

Gonçalo guardou muito socegadamente na algibeira aquella carta que, dias
antes, o lançaria em infinita amargura e furia:

--É das Louzadas... E tu déste importancia a semelhante babuseira?

O Barrôlo repontou, com as bochechas abrazadas:

--Se te parece! Sempre embirrei com bilhetinhos anonymos... E depois
essa insolencia a respeito dos amigos me chamarem BACÔCO... Grande
infamia, hein? Tu acreditas?... Eu não acredito! mas lança sizania entre
mim e os rapazes... Nem voltei ao Club... Bacôco! Porquê? Por que eu sou
simples, sempre franco, disposto a arranchar... Não! se os rapazes no
Club me chamam bacôco pelas costas, caramba, mostram ingratidão! Mas eu
não acredito! Rebolou pelo quarto, desconsoladamente, as mãos cruzadas
sobre as gordas nadegas. Depois, estacando deante do divan, d'onde
Gonçalo o considerava, com piedade:

--Em quanto ao resto da carta é tão estupido, tão atrapalhado que ao
principio nem comprehendi. Agora percebo... Querem dizer que a Gracinha
e o Cavalleiro teem namoro... É o que me parece que querem dizer! Ora vê
tu que disparate! Até a intimidade do Cavalleiro é mentira. O pobre
rapaz, desde que lá jantou, só appareceu tres ou quatro vezes, á noite,
para a manilha, com o Mendonça... E agora abalou para Lisboa.

Então o Fidalgo pulou, de surpresa.

--O quê! o Cavalleiro foi para Lisboa?

--Pois partiu ha tres dias!

--Com demora?

--Com demora, com grande demora... Só volta no meado d'outubro para a
Eleição.

--Ah!

Mas o Bento rompeu pelo quarto, com o jarro d'agua quente, duas toalhas
de rendas, ainda n'uma excitação que o azafamava. Deante do espelho,
lentamente Barrôlo reabotoava o jaquetão:

--Bem, até logo, Gonçalinho. Eu desço á cavallariça, visitar a parelha.
Não imaginas! desde Oliveira, sem descanso, uma trotada explendida. E
nem um pello suado! Tu guardas a carta?

--Guardo, para estudar a lettra.

Apenas Barrôlo cerrára a porta--o Fidalgo recomeçou com o Bento a
deliciosa historia da briga, revivendo as surprezas e os rasgos,
simulando os arremessos da egoa, arrebatando o chicote para representar
as cutiladas silvantes, que arrancavam febra e sangue... E de repente,
em ceroulas:

--Oh Bento, traze o meu chapeu... Estou desconfiado que a bala roçou
pelo chapeu.

Ambos remiraram, esquadrinharam o chapeu. O Bento, no seu encarecimento
da façanha, achava a copa amolgada--até chamuscada.

--A bala passou de raspão, Snr. Doutor!

O Fidalgo negou, com a modestia grave d'um forte:

--Não! Nem de raspão!... Quando o malandro desfechou já o braço lhe
tremia... Devemos agradecer a Deus, Bento. Mas eu realmente não corri
grande perigo!

Depois de vestido, Gonçalo, passeando no quarto, releu a carta. Sim,
certamente das Lousadas. Mas agora essa maledicencia, soprada com tão
sordida maldade sobre as pobres bochechas do Barrôlo, não causava
damno--antes servia, quasi beneficamente, como a braza d'um ferro, para
sarar um damno. O pobre Barrôlo apenas se impressionára com a revelação
da sua bacoquice, essa ingrata alcunha posta pelos rapazes amigos, em
galhofas ingratas do Club e debaixo dos Arcos. A outra insinuação
terrivel, Gracinha reverdecendo ao calor amoroso do Cavalleiro, essa mal
a comprehendera, escassamente a attendera n'um desdem distrahido e
candido. Mas a carta que assim silvava por sobre o bom Barrôlo como
flecha errada--acertava em Gracinha, feriria Gracinha no seu orgulho, no
seu impressional pudor, mostrando á pobre tonta como o seu nome e mesmo
o seu coração, já arrastavam enxovalhadamente, pela rasteira mexeriquice
das Lousadas!... Certesa tão humilhadora não apagaria um sentimento--que
se não apagava com humilhações mais intimas, tanto mais dolorosas. Mas
estimularia a sua reserva e o seu desconfiado recato:--e agora que André
se afastára para Lisboa, operaria n'ella, surdamente, solitariamente,
sem que a presença tentadora lhe desmanchasse a influencia socegadora e
salutar. Assim o torpe papel aproveitava a Gracinha como um aviso
temeroso pregado na parede. E rancorosamente preparada pelas duas femeas
para desencadear nos Cunhaes escandalo e dôr--talvez restabelecesse, na
ameaçada casa, quietação e gravidade.--Gonçalo esfregou as mãos
pensando--que em tão ditosa manhã talvez até esse mal redundasse em bem!

--Oh Bento, onde está a Snr.^a D. Graça?

--A menina subiu agora ha pouco para o seu quarto, Snr. Doutor.

Era o seu quarto de solteira, claro e fresco sobre o pomar, onde ainda
se conservava o seu leito de linda madeira embutida, um toucador
illustre que pertencera á Rainha D. Maria Francisca de Saboya, e o
sophá, as cadeiras de casimira clara em que Gracinha bordára, n'um
arrastado labor d'annos, o Açor negro dos Ramires. E sempre que voltava
á Torre Gracinha gostava de reviver no seu quarto, as horas de solteira,
remexendo as gavetas, folheando velhos romances inglezes na estantesinha
envidraçada, ou simplesmente da varanda contemplando a querida quinta
estendida até aos outeiros de Valverde, a verde quinta, tão misturada á
sua vida que cada arvore lhe susurrava, cada recanto de verdura era como
um recanto do seu pensamento.

Gonçalo subiu--bateu á porta cerrada com o antigo aviso:--«Licença para
o mano!» Ella correu da varanda, onde regava nos seus antigos vasos
vidrados plantas sempre renovadas e cuidadas pela Rosa com carinho. E
desabafando logo do pensamento que a enchia:

--Oh Gonçalo! mas que felicidade nós virmos á Torre, justamente hoje,
que te succedeu cousa tamanha!

--É verdade, Gracinha, grande sorte! E não me admirei nada de te vêr...
Era como se ainda vivesses na Torre e te encontrasse no corredor... Quem
estranhei foi o Barrôlo! E no primeiro momento depois de desmontar,
pensava assim, vagamente: «mas que diabo faz aqui o Barrôlo? como diabo
se acha aqui o Barrôlo?...» Curioso, hein? Foi talvez que, depois da
desordem, me senti remoçado, com um sangue novo, e me julguei no tempo
em que desejavamos uma guerra em Portugal, e nós cercados na Torre, sob
o nosso pendão, o _nosso terço_ atirando bombardas aos hespanhoes...

Ella ria, lembrada dessas imaginações heroicas. E com o vestido entalado
entre os joelhos recomeçou a lenta rega dos seus vasos--em quanto
Gonçalo, encostado á varanda, considerando a Torre, retomado pela ideia
d'uma concordancia mais intima, que desde essa manhã se estabelecera
entre elle e aquelle heroico resto da Honra de Santa Ireneia, como se a
sua força, tanto tempo quebrada, se soldasse emfim firmemente á força
secular da sua raça.

--Oh Gonçalo! tu deves estar muito cançado! Depois d'essa verdadeira
batalha...

--Não, cançado não... Mas com fome. Com fome, e com uma sêde explendida!

Ella pousou logo o regador, sacudindo as mãos alegremente:

--Pois o almoço não tarda!... Já andei a trabalhar na cosinha, com a
Rosa, n'uma pescada á hespanhola... É uma receita nova do Barão das
Marges.

--Então insonsa, como elle.

--Não! até picante: foi o Snr. Vigario Geral que lh'a ensinou.

E como, deante do toucador da Rainha Maria Francisca, ella arranjava á
pressa os ganchos do cabello, para aproveitar a solidão favoravel,
apressou com um esforço, a confidencia que o commovia:

--E em Oliveira? Lá por Oliveira!

--Em Oliveira, nada... Muito calor!

Gonçalo, movendo os dedos lentos pela moldura do espelho, fino
entrelaçamento de açucenas e louros, murmurou:

--Eu sei apenas das Lousadas, das tuas amigas Lousadas. Continuam em
plena actividade...

Gracinha negou candidamente:

--As Lousadas? Não! Nem teem apparecido.

--Mas teem tecido!

E como os verdes olhos de Gracinha se alargaram, sem comprehender,
Gonçalo arrancou vivamente da algibeira a carta que guardára, que agora
lhe pesava, como uma chapa de ferro:

--Olha, Gracinha! Mais vale desabafarmos! Ahi tens o que ellas ha dias
escreveram a teu marido...

N'um relance, Gracinha devorou as linhas terriveis. E com ondas de
sangue nas faces, apertando as mãos n'uma afflicção, um desespero, em
que o papel amarfanhou:

--Oh Gonçalo! pois...

Gonçalo accudio:

--Não! o Barrôlo não se importou! Até se rio! E eu tambem, quando elle
me entregou esse papelucho... E a prova que ambos o consideramos uma
mexeriquice insensata, é que eu t'o mostro tão francamente.

Ella esmagava a carta nas mãos juntas e tremulas, pallida agora e
emmudecida pelo espanto, retendo grandes lagrimas que rebrilhavam. E
Gonçalo commovido, com gravidade, com ternura:

--Mas tu, Gracinha, sabes o que são terras pequenas. Sobre tudo
Oliveira! Precisas muito cuidado, muita reserva... Ai de mim! De mim vem
a culpa. Reatei relações que nunca se deviam reatar... Bem me tenho
arrependido! E acredita! por causa d'essa situação tão falsa e tão
perigosa, que eu creei, levianamente, por ambição tola, passei aqui na
Torre dias amargurados... Até nem m'atrevia voltar a Oliveira. Hoje, não
sei porquê, depois d'esta aventura, parece que tudo se esbateu,
s'afundou para uma grande sombra... Emfim já não me arde tão em braza no
coração... Por isso desabafo assim, serenamente.

Ella desatou n'um solto, doloroso choro em que a sua fraca alma se
desfazia. Com redobrada ternura Gonçalo abraçou os pobres hombros
vergados que os soluços espedaçavam. E foi com ella toda refugiada no
seu peito, que ainda a aconselhou, docemente:

--Gracinha, o passado morreu, e todos precisamos, para honra de todos,
que continue morto. Pelo menos que por fóra, em cada gesto teu, pareça
bem morto! Sou eu que t'o peço, pelo nosso nome!...

D'entre os braços do irmão, ella gemeu com infinita humildade:

--Mas elle até foi embora!... Nem quiz estar mais em Oliveira!

Gonçalo acariciou a acabrunhada cabeça que de novo se escondera contra o
seu peito, contra elle se apertava, como procurando a fresca
misericordiosa que dentro sentia brotar:

--Bem sei. E isso me mostra que tens sido forte... Mas precisas muita
reserva, muita vigilancia, Gracinha!... E agora socega. Não fallemos
mais, nunca mais, n'este incidente... Por que foi apenas um _incidente_.
E que eu provoquei, ai de mim, por leviandade, por illusão. Passou, está
esquecido! Socega, descança. E quando desceres traze os olhos bem
seccos.

Lentamente a desprendera dos braços, onde ella se arraigava como ao
abrigo mais certo e á consolação mais desejada. E sahia, engasgado pela
emoção, recalcando tambem as lagrimas... Um gemido timido, supplicante,
ainda o reteve.

--Gonçalo! mas tu pensas...

Elle voltou, de novo a abraçou, a beijou na testa lentamente:

--Eu penso que tu, agora bem avisada, bem aconselhada, vaes mostrar
muita dignidade, muita firmeza.

Rapidamente abalou, cerrou a porta. E na escada estreita, escassamente
allumiada por uma claraboia baça, limpava as palpebras, quando esbarrou
com o Barrôlo, que procurava Gracinha, para apressar o almoço.

--A Gracinha já desce! atabalhoou o Fidalgo. Está a lavar as mãos! Já
desce!... Mas antes do almoço vamos á cavallariça. Devemos uma visita á
egoa, a essa querida egoa que me salvou!

--É verdade, caramba! concordou logo Barrôlo revirando nos degraus, com
enthusiasmo. Precisamos visitar a egoa... Grande, briosa, hein! Mas
aposto que ficou mais suada que as minhas... Imagina! uma trotada
d'aquellas, desde Oliveira, e nem um pello molhado! Grandes egoas!
Tambem, o que eu as ólho, o que as trato!

Na cavallariça, ambos affagaram a egoa. Barrôlo lembrou que se
mimoseasse com uma ração larga de cenoura. Depois--para que Gracinha,
com vagar se calmasse,--o Fidalgo arrastou o Barrôlo ao pomar e á
horta...

--Tu não vens á Torre ha perto de seis mezes, Barrolinho! Precisas vêr,
admirar progressos. Anda agora por aqui a mão forte do Pereira da
Riosa...

--Imagino! grande homem, o Pereira! Mas eu tenho uma fome, Gonçalinho!

--Tambem eu!

Uma hora batia quando entraram na varanda onde a mesa esperava, florida
e em festa--e Gracinha, á beira do divan, percorria pensativamente a
velha _Gazeta do Porto_. Apesar de muito banhados, os seus bellos olhos
conservavam um ardor: e para o justificar, e o seu modo abatido, logo se
lastimou, córando, d'uma enxaqueca. Eram as emoções, o perigo de
Gonçalo...

--Tambem eu tenho dôr de cabeça! declarou o Barrôlo, rondando a mesa.
Mas a minha vem da fome... Oh filhos, é que estou desde as sete da manhã
com uma chavena de café e um ovo quente!

Gonçalo repicou a campainha. Mas quem rompeu pela porta envidraçada,
esbaforido, escancarando a bocca n'um riso immenso, foi o Joaquim, o
moço da cavallariça que voltava da Grainha.

Gonçalo atirou os braços, soffrego:

--Então?! então?!

--Pois lá estive, meu Fidalgo! exclamou o Joaquim com o peito a estalar
d'importancia. E vae por lá um povoleu, todos já sabem! Uma rapariga dos
Bravaes espreitou tudo, de dentro do quinteiro... Depois correu,
badalou... Mas o velho, o tal Domingues que mora na casa, e o filho,
abalaram ambos. E o rapaz, ao que dizem, pouco ferido. Se cahio, sem
sentidos, foi com o susto. O Ernesto de Nacejas, esse sim, santo nome de
Deus, apanhou. Lá o levaram em braços para casa d'um compadre alli ao
pé, na Arribada. Parece que fica sem orelha, e que fica sem bocca!...
Pois por todos aquelles sitios era o ai-jesus das moças!... E logo lá o
carregam para o Hospital de Villa Clara, que na casa do Compadre não
pode sarar. Um povoleu, e todos dão a rasão ao Fidalgo. O tal Domingues
era malandro. E o Ernesto, esse ninguem o podia enxergar! Mas todos lhe
tinham medo... O Fidalgo fez uma limpeza!

Gonçalo resplandecia. Ah! Ainda bem! que não passára damno mais forte,
que belleza perdida do D. Juan de Nacejas!

--E então o povo por lá, a fallar, a olhar para o sitio?

--Pois o povo não se arreda! E a mostrar o sangue, no chão, e as pedras
por onde se atirou a egoa do Fidalgo... E agora até contam que foi uma
espera, e que desfecharam tres tiros ao Fidalgo, e que depois adiante no
pinhal ainda saltaram tres homens mascarados que o Fidalgo
escangalhou...

--Eis a lenda que se forma! declarou Gonçalo.

O Bento apparecera com uma larga travessa fumegante. O Fidalgo affagou
risonhamente o hombro do Joaquim. E em baixo a Rosa que abrisse, para o
almoço da familia, duas garrafas de vinho do Porto, velho. Depois com a
mão nas costas da cadeira murmurou gravemente:--Pensemos um momento em
Deus, que me tirou hoje d'um grande perigo!

Barrôlo pendeu a cabeça, reverente. Gracinha, atravez d'um leve suspiro,
pensou uma leve oração. E desdobravam os guardanapos; Gonçalo acclamava
a travessa de pescada á hespanhola--quando o pequeno da Crispola
empurrou ainda a porta envidraçada «com um telegramma, que viera da
Villa!» Uma inquietação deteve os garfos. A manhã correra com tantas
agitações e espantos! Mas já um sorriso de gosto, de triumpho, se
espalhára na fina face de Gonçalo:

--Não é nada... É do Castanheiro, por causa dos capitulos do Romance que
eu lhe mandei... Coitado! Bom rapaz!

E, recostado na cadeira, recitou vagarosamente o telegramma, que os seus
olhos affagavam:--«Capitulos romance recebidos. Leitura feita amigos.
Enthusiasmo! Verdadeira obra prima! Abraço!...»

Barrôlo, com a bocca cheia, bateu as palmas. E Gonçalo, sem reparar na
travessa da pescada que Bento lhe apresentava, mas enchendo o copo de
vinho verde, com uma vaga tremura, um sorriso ditoso que não se
dissipava:

--Emfim, boa manhã... Grande manhã!

Gonçalo, apesar das insistencias de Gracinha e do Barrôlo, não os
acompanhou para Oliveira--no desejo de acabar, durante essa semana, o
derradeiro Capitulo da Novella, e depois cerrar o preguiçoso giro de
visitas aos influentes Eleitoraes do Circulo. Assim rematava a Obra
d'Arte e a obra de Politica,--e cumpria, Deus louvado, a tarefa d'esse
verão fecundo!

Logo n'essa noite retomou o manuscripto da Novella--e na margem larga
lançou a data, uma nota:--«_Hoje, na freguesia da Grainha, tive uma
briga terrivel com dous homens que me assaltaram a pau e tiro, e que
castiguei severamente..._» Depois, com facilidade atacou o lance de
tanto sabor medieval, em que Tructesindo Ramires, correndo no rasto do
Bastardo, penetrava, ao espalhado e fumarento clarão dos archotes, no
arraial de D. Pedro de Castro.

Com grave amisade acolhia o velho homem de guerra aquelle seu primo de
Portugal, que lhe trouxera a sua forte mesnada, de Santa Ireneia, quando
os Castros combateram um grande poder de Mouros em Enxarez de Sandornin.
Depois, na vasta tenda, reluzente d'armas, tapizada de pelles de leão e
d'urso, Tructesindo contava, ainda a arfar de dôr represa, a morte de
seu filho Lourenço, ferido na lide de Canta-Pedra, acabado á punhalada
pelo Bastardo de Bayão, deante das muralhas de Santa Ireneia, com o sol
no ceu alto a olhar a traição! Indignado, o velho Castro esmurraçou a
mesa, onde um rosario d'ouro se misturava a grossas peças de xadrez;
jurou pela vida de Christo, que, em sessenta annos d'armas e surpresas
nunca soubera de feito mais vil! E agarrando a mão do senhor de Santa
Ireneia, ardentemente lhe offereceu, para a empreza da santa vingança, a
sua hoste inteira--tresentas e trinta lanças, vasta e rija peonagem.

--Por Santa Maria! Formosa arrancada! bradou Mendo de Briteiros com as
vermelhas barbas a flammejar de gosto.

Mas D. Garcia Viegas, o _Sabedor_, entendia que para colherem o Bastardo
vivo, como convinha a uma vingança vagarosa e bem gosada, mais utilmente
serviria uma calada e curta fila de cavalleiros, com alguns homens de
pé...

--Porquê, D. Garcia?

--Porque o Bastardo, depois de se aligeirar, junto da Ribeira, da
pionada e carriagem correra, com a mira em Coimbra, para se acolher á
força da Hoste Real. N'essa noite, com o seu esfalfado bando de lanças,
pernoitára certamente no solar de Landim. E com o luzir da alva, para
encurtar, certamente retomava a galopada pelo velho caminho de Miradães,
que trepa e foge atravez das lombas do Caramulo. Ora elle, Garcia
Viegas, conhecia para deante do _Poço da Esquecida_, certo passo, onde
poucos cavalleiros, e alguns bésteiros, bem postados por entre o bravio,
apanhariam Lopo de Bayão como lobo em fojo...

Tructesindo, incerto e pensativo, mettia os dedos lentos pelos fios da
barba. O velho Castro duvidava, preferindo que se pozessse batalha ao
Bastardo em campo bem liso onde se avantajassem tantas lanças já
aprestadas, que depois correriam em alegre levada a assolar as terras de
Bayão. Então Garcia Viegas rogou aos seus primos d'Hespanha e de
Portugal que sahissem ao terreiro, deante da tenda, com fartura de
tochas para bem se allumiarem. E ahi, no meio dos cavalleiros curiosos,
á claridade dos lumes inclinados, D. Garcia vergou o joelho, riscou
sobre a terra, com a ponta d'uma adaga, o roteiro da _sua caçada_ para
lhe comprovar a belleza... D'além castello Landim, largaria com a alva o
Bastardo. Por aqui, quando a lua nascesse, abalariam elles, com vinte
cavalleiros dos Ramires e dos Castros, para que lidadores d'ambas as
mesnadas gosassem a lide. Além, se postariam, alapados no mattagal,
besteiros e peões de frecha. Por traz, d'este lado, para entaipar o
Bastardo, o senhor D. Pedro de Castro, se com tão gostosa ajuda elle
honrasse o Senhor de Santa Ireneia. Adiante, acolá, para colher pela
gorja o villão, o Snr. D. Tructesindo que era o pae e Deus mandava fosse
o vingador. E alli, na estreitura o derrubariam e o sangrariam como um
porco--e como o sangue era vil, a um tiro de bésta encontrariam agua
farta para lavar as mãos, a agoa do _pégo das Bichas_!...

--Famosa traça! murmurou Tructesindo convencido.

E D. Pedro de Castro bradou atirando um faiscante olhar aos Cavalleiros
d'Hespanha:

--Vida de Christo, que se meu tio-avô Gutierres tivera por Coudel aqui o
snr. D. Garcia, não lhe escapavam os de Lara quando levaram o Rei
Menino, na grande carreira, para Santo Estevam de Gurivaz!... Entendido
pois, primo e amigo! E a cavallo, para a monteria, mal reponte a lua!

E recolheram as tendas--que já nas fogueiras lourejavam os cabritos da
ceia, e os uchões acarretavam, d'entre os carros da sarga, os pesados
odres de vinho de Tordesillas.

Com a ceia no arraial (grave e sem ruido, por que um luto velava o
coração dos hospedes) Gonçalo terminou, n'essa noute, o seu capitulo IV,
lançando á margem outra nota:--«Meia noite... Dia cheio. Batalhei,
trabalhei.--». Depois no seu quarto, em quanto se despia, traçou todo o
alvoroto da briga curta em que o Bastardo como lobo em fojo quedaria
captivo, á mercê vingadora dos de Santa Ireneia... Mas de manhã, antes
d'almoço, ao abancar com gosto para o trabalho--recebeu dous
telegrammas, que o desviaram deliciosamente da correria contra o
Bastardo de Bayão.

Eram dois telegrammas d'Oliveira, um do Barão das Marges, outro do
capitão Mendonça--ambos com parabens ao Fidalgo «por assim escapar de
tão terrivel espera, destroçando os valentões de Nacejas.» O Barão das
Marges accrescentava:--«_Bravissimo! É d'heroe!_»

Gonçalo, enternecido, mostrou os telegrammas ao Bento. A nova da sua
façanha, pois, já se espalhára, impressionára Oliveira,

--Foi o Snr. José Barrôlo que contou! acudiu o Bento. E o Snr. Dr. verá!
o Snr. Dr. verá... Até no Porto se vão assombrar!

Ao bater meio dia, rompeu pelo corredor, com estrondo, o immenso Titó,
acompanhado pelo João Gouveia que chegára na vespera á tarde da Costa,
soubera da aventura na Assembleia, corria á Torre, como amigo para o
abraço, antes de comparecer, como Auctoridade, para o auto. Então
Gonçalo, ainda nos braços do Gouveia, pediu generosamente, «que se não
procedesse contra os bandidos...» O Administrador recusou, decidido e
secco, proclamando o principio da Ordem, e necessidade d'um escarmento
rijo, para que Portugal não recuasse aos tempos barbaros do João Brandão
de Midões. Elle e Titó almoçaram na torre:--e Titó, á sobremesa, lembrou
galhofeiramente a conveniencia d'um brinde, e bramou elle o brinde,
comparando Gonçalo ao elefante, «sempre bom, que tanto aguenta, e de
repente, zás, esmaga o mundo!»

Depois João Gouveia accendendo um grande charuto reclamou a
representação veridica da desordem, com os pulos, os gritos, para elle
se compenetrar como auctoridade. Então atravez da varanda, reviveu a
historia heroica, simulando com o chicote sobre o divan (que terminou
por esgaçar) os golpes que arremessára imitando os tombos meio
desmaiados do valentão de Nacejas, quando já o sangue o alagava. O
Administrador e o Titó visitaram na cavallariça a egoa historica; e no
pateo, Gonçalo ainda lhes mostrou as duas polainas de couro seccando ao
sol, lavadas do sangue que as salpicára.

Deante do portão João Gouveia bateu gravemente no hombro do Fidalgo:

--Gonçalo, vossê deve apparecer esta noite na Assembleia...

Appareceu--e foi acolhido como o vencedor d'uma batalha illustre. No
bilhar, por proposta do velho Ribas, flammejou um grande punche---e o
Commendador Barros, afogueado, teimava que no domingo se celebrasse em
S. Francisco um Te-Deum de graças, de que elle costearia as despezas,
com orgulho, caramba! Á sahida, acompanhado pelo Titó, pelo Gouveia,
pelo Manoel Duarte, por outros socios, encontraram o Videirinha--que não
pertencia á Assembleia, mas rondava, esperando o Fidalgo para lhe lançar
duas trovas do _Fado_, improvisadas n'essa tarde, em que o exaltava
acima dos outros Ramires, da Historia e da Lenda!

O rancho quedou no chafariz. O violão gemeu, com amor. E o cantar do
Videirinha, elevado da alma, varou a muda ramagem das olaias:

    Os Ramires d'outras eras
    Venciam com grandes lanças,
    Este vence com um chicote,
    Vêde que estranhas mudanças!

    É que os Ramires famosos,
    Da passada geração,
    Tinham a força nas armas
    E este a tem no coração!

A tão requebrado conceito--os amigos romperam em vivas a Gonçalo, á Casa
de Ramires. E o Fidalgo recolhendo á Torre, commovido, pensava:

--É curioso! Esta gente toda parece gostar de mim!...

Mas que emoção quando, de manhã cedo, o Bento o acordou com um
telegramma de Lisboa! Era do Cavalleiro--que «soubera pelos jornaes
attentado, lhe mandava enthusiastico abraço pela felicidade e pela
valentia!» Gonçalo berrou, sentado na cama:

--Caramba! então os jornaes em Lisboa já fallam, Bento! o caso anda
celebrado!

Certamente celebrado!--por que durante o delicioso dia, o moço do
Telegrapho, esbaforido sobre a perna manca, não cessou d'empurrar o
portão da Torre, com outros telegrammas, todos de Lisboa, da Condessa de
Chellas; de Duarte Lourençal; dos Marquezes de Cója _felicitando_; da
tia Louredo com «parabens ao destemido sobrinho»; da marqueza
d'Esposende «esperando que o caro primo tivesse agradecido a Deus!»... E
o ultimo do Castanheiro, com exclamações:--_Magnifico! Digno de
Tructesindo!_--Gonçalo, pela livraria, erguia os braços, estonteado:

--Santo nome de Deus! mas que terão dito os jornaes?

E, por entre os Telegrammas, accudiam os cavalheiros dos arredores, os
influentes,--o Dr. Alexandrino, aterrado, antevendo um regresso ao
Cabralismo; o velho Pacheco Valladares de Sá, que não se espantára do
seu nobre primo, por que sangue de Ramires, como sangue de Sás, sempre
ferve; o padre Vicente da Finta, que com os seus parabens, offereceu um
cestinho de cachos do seu famoso moscatel tinto; e por fim o Visconde de
Rio-Manso, que agarrado a Gonçalo, soluçou, no enternecimento quasi
ufano de que a briga assim rompesse, na estrada, quando «o querido
amigo, o amigo da sua Rosa» se encaminhava para a _Varandinha_. Gonçalo,
afogueado, banhado de riso, abraçava, recontava pacientemente a façanha,
acompanhava até ao portão aquelles cavalheiros, que ao montar as egoas,
ao entrar nas caleches, sorriam para a velha Torre, escura e rigida, na
doce claridade da tarde de Setembro, como saudando, depois do heroe, o
secular fundamento do seu heroismo.

E o Fidalgo, galgando as escadas para a livraria, de novo murmurava,
estonteado:

--Que terão dito os jornaes de Lisboa?

Nem dormiu, na anciedade de os devorar. Quando o Bento, em alvoroço,
rompeu pelo quarto com o correio--Gonçalo saltou, arrojou o lençol, como
se abafasse. E logo no _Seculo_, soffregamente percorrido, encontrou o
telegramma d'Oliveira, contando o assalto! os tiros disparados! a
immensa coragem do Fidalgo da Torre, que com um simples chicote... O
Bento quasi arrebatou o _Seculo_ das mãos tremulas do Fidalgo, para
correr á cosinha, bramar á Rosa a noticia gloriosa!

De tarde, Gonçalo correu a Villa-Clara, á Assembleia, para devorar os
outros jornaes de Lisboa, os do Porto. Todos contavam, todos celebravam!
A _Gazeta do Porto_, attribuindo o attentado a Politica, ultrajava
furiosamente o Governo. O _Liberal Portuense_, porém, relacionava «com
certas vinganças dos republicanos d'Oliveira, o pavoroso attentado que
quasi causára a morte d'um dos maiores fidalgos de Portugal e d'Hespanha
e d'um dos mais pujantes talentos da nova geração!» Os jornaes de
Lisboa, glorificavam sobre tudo «a coragem explendida do Snr. Gonçalo
Ramires.» E o mais ardente era a _Manhã_, n'um verboso artigo (de certo
escripto pelo Castanheiro), recordando as heroicas tradições da Casa
illustre, esboçando as bellezas do Castello de Santa Ireneia e
terminando por affirmar que «agora, se esperava com redobrada anciedade
a apparição da novella de Gonçalo Ramires, fundada sobre um feito de seu
avô Tructesindo no seculo XII, e promettida para o primeiro numero dos
*Annaes de Litteratura e de Historia*, a nova Revista do nosso querido
amigo Lucio Castanheiro, esse benemerito restaurador da Consciencia
heroica de Portugal!»--As mãos de Gonçalo, ao desdobrar os jornaes,
tremiam. E o João Gouveia, tambem soffrego, devorando tambem os artigos,
por sobre o hombro do Fidalgo, murmurava, impressionado:

--Vossê, Gonçalinho, vae ter uma votação tremenda!

Depois n'essa noute, recolhendo á Torre, Gonçalo encontrou uma carta que
o perturbou. Era de Maria de Mendonça, n'um papel perfumado, com o mesmo
perfume que tão docemente espalhava D. Anna, pelo adro de Santa Maria de
Craquêde:--«Só esta manhã soubemos o grande perigo que passou, e ficamos
_ambas_ muito commovidas. Mas ao mesmo tempo eu (e não só eu) muito
vaidosa da magnifica coragem do primo. É d'um verdadeiro Ramires! Eu não
vou ahi abraçal-o (com risco de me comprometter e _fazer invejas_) por
que um dos meus pequenos, o Neco, anda muito constipado. Felizmente não
é cousa de cuidado... Mas aqui todos, até os pequenos, anciamos por vêr
o heroe, e não creio que houvesse nada d'extraordinario, nem _d'um lado_
nem _d'outro_, em que o primo por aqui apparecesse além d'amanhã (quinta
feira) pelas tres horas. Davamos um passeio na quinta, e até se
merendava, á boa e velha moda dos nossos avós. Está dito? Muitos
comprimentos, _muitos_, da Annica, e o primo creia-me, etc.»--Gonçalo
sorriu, pensativamente, considerando a carta, recebendo o aroma. Nunca a
prima Maria lhe empurrára, tão claramente, a D. Anna para os braços... E
como D. Anna se deixava empurrar, prompta, e d'olhos cerrados... Ah, se
fosse somente para a alcova! Mas ai! era tambem para a Egreja. E de novo
sentia aquelle vozeirão do Titó, nos degraus da portinha verde com a lua
cheia por cima dos olmos negros: «Essa creatura teve um amante, e tu
sabes que eu nunca minto?»

Então tomou lentamente a penna, respondeu a D. Maria Mendonça:--«Querida
prima--Fiquei muito enternecido com o seu cuidado, e os seus
enthusiasmos. Não exaggeremos! Eu não fiz mais que correr a chicote uns
valentões que me assaltaram a tiro. É façanha facil para quem tenha,
como eu, um chicote excellente. Emquanto á visita á _Feitosa_, que me
seria tão agradavel, não a posso realisar com fundo pezar meu, nem na
quinta-feira, nem mesmo por todo este mez... Ando occupadissimo com o
meu livro, a minha Eleição, a minha mudança para Lisboa. A era dos
cuidados sérios soou severamente para mim,--cerrando a doce era dos
passeios e dos sonhos. Peço que apresente á Snr.^a D. Anna os meus
profundos respeitos. E com muitas amisades para si, e bons desejos pelo
restabelecimento d'esse querido Neco, espero me creia sempre seu
dedicado e grato primo, etc.»

Fechou vagarosamente a carta. E batendo o seu sinete d'armas sobre o
lacre verde, pensava:

--Assim aquelle maroto do Titó me rouba dusentos contos!...

       *       *       *       *       *

Durante toda essa macia semana dos fins de Setembro, Gonçalo trabalhou
no Capitulo final da sua Novella.

Era emfim a madrugada vingadora em que os Cavalleiros de Santa Ireneia,
reforçados pelas mais nobres lanças da mesnada dos Castros,
surprehendiam, no bravio desfiladeiro marcado por Garcia Viegas, o
_Sabedor_, o bando de Bayão, na sua açodada corrida sobre Coimbra...
Briga curta e falsa, sem destro e brioso terçar d'armas, mais semelhante
a montaria contra um lobo do que a arremettida contra um Filho-de-Algo.
E assim a desejára Tructesindo, com ruidosa approvação de D. Pedro de
Castro, por que não se cuidava de combater um inimigo, mas de colher um
matador.

Antes do luzir d'alva, o Bastardo abalára do castello de Landim, em dura
pressa e com tão descuidada segurança, que nem almogavar nem coudel lhe
atalayavam os trilhos. As cotovias cantavam quando elle, em aspero
trote, penetrou por essa brecha, entalada entre escarpas de penedia e
urze, que chamam a _Racha do Moiro_, desde que Mafoma a fendeu para que
escapassem as adagas christans de El-Rei Fernando, o _Magno_, o Alcaide
moiro de Coimbra e a monja que elle arrebatára á garupa. E apenas pela
esguia greta enfiára a derradeira lança da fila--eis que da outra
embocadura do valle surde o cerrado troço dos cavalleiros de Santa
Ireneia, que Tructesindo guia, com a viseira erguida, sem broquel,
sacudindo apenas uma ascuma de monte como se folgadamente andasse em
caçada. Da selva arredada que os encobria, rompem por traz as lanças dos
Castros, ristadas e cerrando a brecha mais densamente que as puas d'uma
levadiça. Do recosto dos cerros róla, como reprêsa solta, uma rude e
escura peonagem! Colhido, perdido, o Bastardo terrivel! Ainda arranca
furiosamente a espada, que redomoinhando o corôa de coriscos. Ainda com
um fero grito arremette contra Tructesindo... Mas bruscamente, d'entre
um escuro magote de fundeiros baleares, parte ondeando uma corda de
canave, que o laça pela gargalheira, o arranca n'um brusco sacão da sela
mourisca, o derriba, sobre pedregulhos em que a sua larga espada se
entala e se parte rente ao punho dourado. E emquanto os cavalleiros de
Bayão aguentam assombradamente o denso cerco de lanças, que os
envolvera--um rôlo de peões, em dura grita, como mastins sobre um cerdo,
arrastam o Bastardo para a lomba do outeiro, onde lhe arrancam broquel e
adaga, lhe despedaçam o brial de lã rôxa, lhe quebram os fechos do elmo,
para lhe cuspirem na face, nas barbas côr de ouro, tão bellas e de tanto
orgulho!

Depois a mesma bruta matula o iça, amarrado, para sobre o dorso d'uma
possante mula de carga, o estende entre dous esguios caixotes de
virotões, como rez apanhada ao recolher da montaria. E servos da
carriagem ficam guardando o Cavalleiro soberbo, o _Claro-Sol_ que
allumiava a casa de Bayão, agora entaipado entre dois caixotes de pau,
com cordas nos pés, e cordas nas mãos, e n'ellas espetado um triste ramo
de cardo--emblema da sua traição.

No emtanto os seus quinze Cavalleiros juncavam o chão, esmagados sob o
furioso cerco de lanças que os investira--uns hirtos, como adormecidos,
dentro das negras armaduras, outros torcidos, desfeitos, com as carnes
retalhadas, pendendo horrendamente entre malhas rotas dos lorigaes. Os
escudeiros, colhidos, empurrados a pontoada de chuço para a boca d'uma
barroca, sem resgate ou mercê, como alcateia immunda de roubadores de
gado, acabaram, decepados a macheta pelos barbudos estafeiros leonezes.
Todo o valle cheirava a sangue como um pateo de magarefes. Para
reconhecer os companheiros do Bastardo, uma turma de cavalleiros
desafivelava os gorjaes, as viseiras, arrancando furtivamente as
medalhas de prata, os bentos, saquinhos de reliquias, que todos traziam
como bem-tementes. N'uma face, de fina barba negra, que uma espuma
sangrenta manchava, Mendo de Briteiros reconheceu seu primo Sueiro de
Lugilde com quem, pela fogueira de S. João, folgára tão docemente e
bailára no castello de Unhello,--e vergado sobre a alta sella rezou,
pela pobre alma sem confissão, uma devota Ave-Maria. Fuscas, tristonhas
nuvens, abafavam a manhã d'Agosto. E afastados á entrada do valle, sob a
ramagem d'um velho azinheiro, Tructesindo, D. Pedro de Castro, e Garcia
Viegas, o _Sabedor_, decidiam que morte lenta, e bem dorida e viltosa,
se daria ao Bastardo, villão de tão negra vilta.

Contando assim a sombria emboscada com o gemente esforço de quem empurra
um arado por terra pedreira--gastára Gonçalo essa doce semana de
Setembro. E no sabbado, cedo, na livraria, com os cabellos ainda
molhados do banho de chuva, esfregava as mãos deante da banca--porque
certamente com duas horas de attento trabalho, findaria antes d'almoço a
sua Novella, a sua Obra! E todavia esse final, quasi o repellia, com o
seu sujo horror. O tio Duarte no seu Poemeto apenas o esboçára, com
esquiva indecisão, como nobre Lyrico que ante uma visão de bruta
ferocidade solta um lamento, resguarda a Lyra, e desvia para sendas mais
doces. E, ao tomar a penna, Gonçalo tambem, realmente lamentava que seu
avô Tructesindo não matasse outr'ora o Bastardo, no fragor da briga, com
uma d'essas cutiladas maravilhosas, e tão doces de celebrar, que racham
o cavalleiro e depois racham o ginete, e para sempre retinem na
Historia.

Mas não! Sob a folhagem do azinheiro, os tres cavalleiros combinavam com
lentidão uma vingança terrifica. Tructesindo desejára logo recolher a
Santa Ireneia, alçar uma forca deante das barbacans, no chão em que seu
filho rolára morto, e n'ella enforcar, depois de bem açoitado, como
villão, o villão que o matára. O velho D. Pedro de Castro, porém,
aconselhava despacho mais curto, e tambem gostoso. Para que rodear por
Santa-Ireneia, desbaratar esse dia d'Agosto na arrancada que os levava a
Montemór, a soccorro das Infantas de Portugal? Que se estendesse o
Bastardo amarrado sobre uma trave, aos pés de D. Tructesindo, como porco
pelo Natal, e que um cavallariço lhe chamuscasse as barbas, e depois
outro, com facalhão de ucharia, o sangrasse no pescoço,
pachorrentamente.

--Que vos parece, Snr. D. Garcia?

O _Sabedor_ desafivelára o casco de ferro, limpava nas rugas o suor e a
poeira da lide:

--Senhores e amigos! Temos melhor, e perto tambem, sem delongas de
cavalgada, logo adiante destes cerros, no _Pego das Bichas_... E nem
torcemos caminho, que de lá, por Tordezello e Santa Maria da Varge,
endireitamos a Montemór, tão direitos como vôa o corvo... Confiae em
mim, Tructesindo! Confiae em mim, que eu arranjarei ao Bastardo tal
morte e tão vil, que d'outra egual se não possa contar desde que
Portugal foi condado.

--Mais vil que forca, para cavalleiro, meu velho Garcia?

--Lá vereis, senhores e amigos, lá vereis!

--Seja! Mandae dar ás bozinas.

Ao commando d'Affonso Gomes, o Alferes, as bozinas soaram. Um troço de
besteiros e de estafeiros Leoneses rodearam a mula que carregava o
Bastardo amarrado e entalado entre dois caixotes. E acaudilhada por D.
Garcia, a curta hoste metteu para o _Pego das Bichas_, em desbando, com
os senhores de lança espalhados, como em marcha de folgança e paz, (?) e
todos n'uma rija fallada recordando, entre gabos e risos, as proezas da
lide.

A duas leguas de Tordezello e do seu castello formoso, se escondia entre
os cerros o _Pego das Bichas_. Era um lugar de eterno silencio e de
eterna tristeza. Em esmerados versos lhe marcára o tio Duarte a desolada
asperidão:

    Nem trillo d'ave em balançado ramo!
    Nem fresca flôr junto de fresco arroio!
    Só rocha, mattagal, ribas soturnas,
    E em meio o _Pego_, tenebroso e morto!...

E quando os primeiros cavalleiros, galgada a lomba d'um cerro, o
avistaram, na melancholia da manhã nevoenta, emmudeceram da larga
fallada, repucharam os freios, assustados ante tão aspero ermo, tão
propicio a Bruxas, a Avantesmas e a Almas penadas. Deante do escalavrado
barranco, por onde os ginetes escorregavam, ondulava uma ribanceira,
aberta com charcos lamacentos, quasi chupados pela estiagem, luzindo
pardamente, por entre grossos pedregulhos e o tojo rasteiro. Ao fundo, a
meio tiro de bésta, negrejava o _Pego_, lagoa estreita, lisa, sem uma
ruga n'agua, duramente negra, com manchas mais negras, como lamina
d'estanho onde alastrasse a ferrugem do tempo e do abandono. Em torno
subiam os cerros, eriçados de matto bravio e alto, sulcados por trilhos
de saibro vermelho como por fios de sangue que escoresse, e rasgados no
alto por penedias lustrosas, mais brancas que ossadas. Tão pesado era o
silencio, tão pesada a soledade, que o velho D. Pedro de Castro, homem
de tanta jornada, se espantou:

--Feia paragem! E voto a Christo, a Santa Maria, que nunca antes de nós,
n'ella entrou homem remido pelo baptismo.

--Pois, Snr. D. Pedro de Castro! accudiu o _Sabedor_, já por aqui se
moveu muita lança, e luzida, e ainda em tempos do Conde D. Sueiro, e de
vosso rei D. Fernando, se erguia n'aquella beira d'agua, uma castellania
famosa! Vêde além!--E mostrava na ponta do pego, fronteira ao barranco,
dous rijos pilares de pedra, que emergiam da agua negra, e que chuva e
vento polira como marmores finos. Um passadiço de traves, sobre estacas
limosas e meio apodrecidas, atava a margem ao mais grosso dos pilares. E
a meio d'esse rude esteio pendia uma argola de ferro.

No emtanto já o tropel da peonagem se espalhára pela ribanceira. D.
Garcia Viegas desmontou, bradando por Pero Ermigues, o Coudel dos
bésteiros de Santa Ireneia. E, ao lado do ginete de Tructesindo, risonho
e gozando a surpreza, ordenou ao Coudel que seis dos seus rijos homens
descessem o Bastardo da mula, o estirassem no chão, o despissem, todo
nú, como sua mãe barregã o soltára á negra vida...

Tructesindo encarou o _Sabedor_, franzindo as sobrancelhas hirsutas:

--Por Deus, D. Garcia! que me ides simplesmente afogar o villão, e sujar
essa agua innocente!...

E alguns Cavalleiros, em redor, murmuraram tambem contra morte tão
quieta e sem malicia. Mas os miudos olhos de D. Garcia giravam,
lampejavam de triumpho e gosto:

--Socegae, socegae! Velho estou certamente, mas ainda o senhor Deus me
consente algumas traças. Não! Nem enforcado, nem degolado, nem
afogado... Mas chupado, senhores! Chupado em vida, e de vagar, pelas
grandes sanguesugas que enchem toda essa agua negra!

D. Pedro de Castro, maravilhado, bateu o guante nas solhas do coxote:

--Vida de Christo! Que ter n'uma hoste o Snr. D. Garcia, é ter
juntamente, para marchas e conselho, enrolados n'um só, Annibal e
Aristoteles!

Um rumor d'admiração correu pela hoste:

--Boa traça, boa traça!

E Tructesindo, radiante, bradava:

--Andar, andar, bésteiros! E vós, senhores, recuae para a lomba do
cerro, como para palanque, que vae ser grande a vista! Já seis bésteiros
descarregavam da mula o Bastardo amarrado. Outros cercavam, com mólhos
de cordas. E, como magarefes para esfolar uma rez, toda a rude turma se
abateu sobre o malfadado, arrancando por cordas que desatavam a
cervilheira, o saio, as grevas, os sapatões de ferro, depois a grossa
roupa de linho encardido. Agarrado pelos compridos cabellos, filado
pelos pés, onde se cravavam agudas unhas no furor de o manter, com os
braços esmagados sob outros grossos braços retêsos, o possante Bastardo
ainda se estorcia, urrando, cuspindo contra as faces confusas da
matulagem um cuspo avermelhado, que espumava!

Mas, por entre o escuro tropel que o cobria, o seu corpo, todo despido,
branquejava, atado com cordas mais grossas. Lentamente o seu furioso
urrar esmorecia, arquejado e rouquenho. E um após outro se erguiam os
bésteiros, esfalfados, bufando, limpando o suor do esforço.

No emtanto os Cavalleiros d'Hespanha, de Santa Ireneia, desmontavam
cravando o couto das lanças entre o tojo e as pedras. Todos os recostos
dos outeiros se cubriam da mesnada espalhada, como palanques em tarde de
justa. Sobre uma rocha mais lisa, que dous magros espinheiros toldavam
de folha rala, um pagem estendera pelles d'ovelha para o Snr. D. Pedro
de Castro, para o senhor de Santa Ireneia. Mas só o velho _Castellão_ se
accommodou, para uma repousada delonga, desafivelando o seu corselete de
ferro tauxeado d'ouro.

Tructesindo permanecera erguido, mudo, com os guantes apoiados ao punho
da sua alta espada, os olhos fundos ávidamente cravados na tenebrosa
lagôa que, com morte tão fera e tão suja, vingaria seu filho... E pela
borda do _Pego_, peões, e alguns cavalleiros d'Hespanha, remexiam com
virotões, com os coutos das ascumas, a agua lodosa, na curiosidade das
negras bichas escondidas, que o povoavam.

Subitamente a um brado de D. Garcia, que rondava, toda a chusma de peões
amontoada em torno ao Bastardo se arredou:--e o forte corpo appareceu,
nú e branco, sobre a terra negra, com um denso pello ruivo nos peitos, a
sua virilidade afogada n'outra matta de pello ruivo, e todo ligado por
cordas de canave que o inteiriçavam. N'aquella rigidez de fardo, nem as
costellas arfavam--apenas os olhos refulgiam, ensanguentados,
horrendamente esbugalhados pelo espanto e pelo furor. Alguns cavalleiros
correram a mirar a aviltada nudez do homem famoso de Bayão. O senhor dos
Paços d'Argelim mofou, com estrondo:

--Bem o sabia, por Deus! Corpo de manceba, sem costura de ferida!...

Leonel de Çamora raspou o sapato de ferro pelo hombro do malfadado:

--Vêde este _Claro-Sol_, tão claro, que se apaga agora, em agua tão
negra!

O Bastardo cerrava duramente as palpebras,--d'onde duas grossas lagrimas
escaparam, lentamente rolaram... Mas um agudo pregão resoou pela
ribanceira:

--Justiça! Justiça!

Era o Adail de Santa Ireneia, que marchava, sacudia uma lança, atroava
os cerros:

--Justiça! justiça que manda fazer o Senhor de Treixedo e de Santa
Ireneia, n'um perro matador!... Justiça n'um perro, filho de perra, que
matou vilmente, e assim morra vilmente por ella!...

Trez vezes pregoou por deante da hoste apinhada nos cerros. Depois
quedou, saudou humildemente Tructesindo Ramires, o velho Castro,--como a
julgadores no seu Estrado de julgamento.

--Aviae, aviae! bradava o Senhor de Santa Ireneia.

Immediatamente, a um commando do _Sabedor_, seis bésteiros, com as
pernas embrulhadas em mantas da carga, ergueram o corpo do Bastardo como
se ergue um morto enrolado no seu lençol, e com elle entraram na agua,
até ao mais alto pilar de granito. Outros, arrastando molhos de cordas,
correram pelo limoso passadiço de traves. Com um alarido d'_aguenta!
endireita! alça!_ n'um desesperado esforço o robusto corpo branco foi
mergulhado n'agua até ás virilhas, arrimado ao mais alto pilar, depois
n'elle atado com um longo calabre que, passando pela argola de ferro, o
suspendia, sem escorregar, tão seguro e collado como um rôlo de vela que
se amarra ao mastro. Rapidamente os bésteiros fugiram d'agoa,
desentrapando logo as pernas, que palpavam, raspavam no horror das
bichas sugadoras. Os outros recolheram pelo passadiço, n'uma fila que se
empurrava. No Pego ficava Lopo de Bayão bem arranjado para a vistosa
morte lenta, com a agoa que já o afogava até ás pernas, com cordas que o
enroscavam até ao pescoço como a um escravo no poste; e uma espessa
mecha dos cabellos louros laçada na argola de ferro, repuxando a face
clara, para que todos n'ella gozassem largamente a humilhada agonia do
_Claro-Sol_.

Então o attento da hoste, esperando espalhada pelos recostos dos cerros,
mais entristeceu o enevoado silencio do ermo. A agoa jazia sem um
arrepio, com as suas manchas, negras como uma lamina d'estanho
enferrujado. Entre as cristas das rochas, archeiros postados pelo
_Sabedor_, atalaiavam, para além, os descampados. Um alto vôo de gralha
atrevessou grasnando. Depois um bafo lento agitou as flamulas das lanças
cravadas no tojo denso.

Para despertar, aviar a lentidão das bichas, alguns peões atiravam
pedras á agoa lodosa. Já alguns cavalleiros hespanhoes rosnavam
impacientes com a delonga, n'aquella cova abafada. Outros, descendo
agachados a borda da lagôa, para mostrar que falladas bichas nunca
acudiriam, mergulhavam lentamente, n'agoa negra, as mãos descalçadas,
que depois sacudiam, rindo, e mofando o _Sabedor_... Mas de repente um
estremeção sacudiu o corpo do Bastardo; os seus rijos musculos, no
furioso esforço de se desprenderem, inchavam entre as cordas, como
cobras que se arqueiam; dos beiços arreganhados romperam, em rugidos, em
grunhidos, ultrages e ameaças contra Tructesindo covarde, e contra toda
a raça de Ramires, que elle emprasava, dentro do anno, para as labaredas
do Inferno! Indignado, um Cavalleiro de Santa Ireneia agarrou uma bésta
de garrunche, a que retesou a corda.

Mas D. Garcia deteve o arremesso:

--Por Deus, amigo! Não roubeis ás sanguesugas nem uma pinga d'aquelle
sangue fresco!... Vêde como veem! vêde como veem!

Na agoa espessa, em torno ás coxas mergulhadas do Bastardo, um fremito
corria, grossas bolhas empolavam,--e d'ellas, mollemente, uma bicha
surdio, depois outra e outra, lusidias e negras, que ondulavam, se
collavam á branca pelle do ventre, d'onde pendiam, chupando, logo
engrossadas, mais lustrosas com o lento sangue que já escorria. O
Bastardo emmudecera--e os seus dentes batiam estridentemente. Enojados,
até rudes peões desviaram a face cuspindo para as urzes. Outros, porém,
chasqueavam, assuavam as bichas, gritando--_a elle, donzellas! a elle!_
E o gentil Çamora de Cendufe, clamava rindo contra tão ensossa morte!
Por Deus! Uma apostura de bichas, como a enfermo d'almorreimas. Nem era
sentença de Rico-Homem--mas receita d'herbanista moiro!

--Pois que mais quereis, meu Leonel? acudio alegremente o _Sabedor_,
resplandecendo. Morte é esta para se contar em livros! E não tereis este
inverno serão á lareira, por todos os solares de Minho a Douro, em que
não volte a historia d'este Pego, e d'este feito! Olhae nosso primo
Tructesindo Ramires! Formosos tratos presenceou de certo em tão longo
lidar d'armas!... E como goza! tão attento! tão maravilhado!

Na encosta do outeiro, junto do seu balsão, que o Alferes cravára entre
duas pedras, e como elle tão quêdo, o velho Ramires não despregava os
olhos do corpo do Bastardo, com deleite bravio, n'um fulgor sombrio.
Nunca elle esperára vingança tão magnifica! O homem que atára seu filho
com cordas, o arrastára n'umas andas, o retalhára a punhal deante das
barbacans da sua Honra--agora, vilmente nú, amarrado tambem como cerdo,
pendurado d'um pilar, emergido n'uma agoa suja, e chupado por
sanguesugas, deante de duas mesnadas, das melhores d'Hespanha, que
miravam, que mofavam! Aquelle sangue, o sangue da raça detestada, não o
bebia a terra revolta n'uma tarde de batalha, escorrendo de ferida
honrada, atravez de rija armadura--mas, gota a gota, escuramente e
mollemente se sumia, sorvido por nojentas bichas, que surdiam famintas
do lodo e no lodo recahiam fartas, para sobre o lodo bolsar o orgulhoso
sangue que as enfartára. N'um charco, onde elle o mergulhára, viscosas
bichas bebiam socegadamente o cavalleiro de Bayão! Onde houvera homizio
de solares fundado em desforra mais dôce?

E a fera alma do velho acompanhava, com inexoravel goso, as sanguesugas
subindo, espalhadamente alastrando por aquelle corpo bem amarrado, como
seguro rebanho pela encosta da collina onde pasta. O ventre já
desapparecia sob uma camada viscosa e negra, que latejava, relusia na
humidade morna do sangue. Uma fila sugava a cinta, encovada pela ancia,
d'onde sangue se esfiava, n'uma franja lenta. O denso pello ruivo do
peito, como a espessura d'uma selva, detivera muitas, que ondulavam, com
um rasto de lodo. Um montão ennovelado sangrava um braço. As mais
fartas, já inchadas, mais relusentes, despegavam, tombavam mollemente:
mas logo outras, famintas, se aferravam. Das chagas abandonadas o sangue
escorria delgado, represo nas cordas, d'onde pingava como uma chuva
rala. Na escura agoa boiavam gordas postemas de sangue esperdiçado. E
assim sorvido, ressumando sangue, o malfadado ainda rugia, atravez
ultrages immundos, ameaças de mortes, de incendios, contra a raça dos
Ramires! Depois, com um arquejar em que as cordas quasi estalavam, a
bocca horrendamente escancarada e avida, rompia aos roucos urros,
implorando _agoa, agoa!_ No seu furor as unhas, que uma volta de amarras
lhe collára contra as fortes côxas, esfarrapavam a carne, cravavam-se na
fenda esfarrapada, ensopadas de sangue.

E o furioso tumulto esmorecia n'um longo gemer cançado--até que parecia
adormecido nos grossos nós das cordas, as barbas relusindo sob o suor
que as alagára como sob um grosso orvalho, e entre ellas a espantada
lividez d'um sorriso delirado.

No emtanto já na hoste derramada pelos cerros, como por um palanque, se
embotára a curiosidade bravia d'aquelle supplicio novo. E se acercava a
hora da ração de meridiana. O Adail de Santa Ireneia, depois o Almocadem
Hespanhol, mandaram soar os anafins. Então todo o áspero ermo se animou
com uma faina d'arraial. O almazem das duas mesnadas parára por detraz
dos morros, n'uma curta almargem d'herva, onde um regato claro se
arrastava nos seixos, por entre as raizes de amieiros chorões. N'uma
pressa esfaimada, saltando sobre as pedras, os peões corriam para a fila
dos machos de carga, recebiam dos uchões e estafeiros a fatia de carne,
a grossa metade d'um pão escuro: e, espalhados pela sombra do arvoredo,
comiam com silenciosa lentidão, bebendo da agoa do regato pelas concas
de pau. Depois preguiçavam, estirados na relva,--ou trepavam em bando
pela outra encosta dos morros, através do matto, na esperança
d'atravessar com um virote alguma caça erradia. Na ribanceira, deante da
lagôa, os cavalleiros, sentados sobre grossas mantas, comiam tambem, em
roda dos alforges abertos, cortando com os punhaes nacos de gordura nas
grossas viandas de porco, empinando, em longos tragos, as bojudas
cabaças de vinho.

Convidado por D. Pedro de Castro, o velho _Sabedor_ descançava,
partilhando d'uma larga escudella de barro, cheia de _bolo papal_, d'um
bolo de mel e flôr de farinha, onde ambos enterravam lentamente os
dedos, que depois limpavam ao forro dos morriões. Só o velho Tructesindo
não comia, não repousava, hirto e mudo deante do seu pendão, entre os
seus dous mastins, n'aquelle fero dever de acompanhar, sem que lhe
escapasse um arrepio, um gemido, um fio de sangue, a agonia do Bastardo.
Debalde o _Castellão_, estendendo para elle um pichel de prata, gabava o
seu vinho de Tordesillas, fresco como nenhum d'Aquilat ou de Provins,
para a sede de tão rija arrancada. O velho Rico-Homem nem attendera:--e
D. Pedro de Castro, depois de atirar dous pães aos alões fieis,
recomeçou discorrendo com Garcia Viegas sobre aquelle teimoso amor do
Bastardo por Violante Ramires que arrastára a tantos homizios e furores.

--Ditosos nós, Snr. D. Garcia! Nós a quem a edade e o quebranto e a
fartura já arredam d'essas tentações... Que a mulher, como m'ensinava
certo Physico quando eu andava com os moiros, é vento que consola e
cheira bem, mas tudo enrodilha e esbandalha. Vêde como os meus por ellas
penaram! Só meu pae, com aquella desvairança de zelos, em que matou a
cutello minha dôce madre Estevaninha. E ella tão santa, e filha do
Imperador! A tudo, tudo leva, a tonta ardencia! Até a morrer, como este,
sugado por bichas, deante d'uma hoste que merenda e mofa. E por Deus,
quanto tarda em morrer, Snr. D. Garcia!

--Morrendo está, Snr. D. Pedro de Castro. E já com o demo ao lado para o
levar!

O Bastardo morria. Entre os nós das cordas ensanguentadas todo elle era
uma ascorosa aventesma escarlate e negra com as viscosas pastas de
bichas que o cobriam, latejando com os lentos fios de sangue que de cada
ferida escorriam, mais copiosos que os regos d'humidade por um muro
denegrido.

O desesperado arquejar cessára, e a ancia contra as cordas, e todo o
furor. Molle e inerte como um fardo, apenas a espaços esbogalhava
horrendamente os olhos vagarosos, que revolvia em torno com enevoado
pavor. Depois a face abatia, livida e flaccida, com o beiço pendurado,
escancarando a bocca em cova negra, d'onde se escoava uma baba
ensanguentada. E das palpebras novamente cerradas, entumecidas, um muco
gotejava, tambem como de lagrimas engrossadas com sangue.

A peonagem, no emtanto, voltando da ração, reatulhava a ribanceira,
pasmava, com rudes chufas para o corpo pavoroso que as bichas ainda
sugavam. Já os pagens recolhiam manteis e alforges. D. Pedro de Castro
descera do cabeço com o _Sabedor_ até á borda da agoa lodosa, onde quasi
mergulhava os sapatos de ferro, para contemplar, mais de cerca, o
agonisante de tão rara agonia! E alguns senhores, estafados com a
delonga, afivelando os gibanetes, murmuravam:--«Está morto! Está
acabado!»

Então Garcia Viegas gritou ao Coudel dos Bésteiros:

--Ermigues, ide vêr se ainda resta alento n'aquella postema.

O Coudel correu pelo passadiço de traves, e arrepiado de nojo palpou a
livida carne, acercou da bocca, toda aberta, a lamina clara da adaga que
desembainhára.

--Morto! morto!--gritou.

Estava morto. Dentro das cordas que o arroxeavam o corpo escorregava,
engilhado, chupado, esvasiado. O sangue já não manava, havia coalhado em
postas escuras, onde algumas bichas teimavam latejando, relusindo. E
outras ainda subiam, tardias. Duas, enormes, remexiam na orelha. Outra
tapava um olho. O _Claro-Sol_ não era mais que uma immundice que se
decompunha. Só a madeixa dos cabellos louros, repuxada, presa na argola,
relusia com um lampejo de chamma, como rastro deixado pela ardente alma
que fugira.

Com a adaga ainda desembainhada, e que sacudia, o Coudel avançou para o
Senhor de Santa Ireneia, bradou:

--Justiça está feita, que mandastes fazer no perro matador que morreu!

Então o velho Rico-Homem atirando o braço, o cabelludo punho, com
possante ameaça, bradou, n'um rouco brado que rolou por penhascos e
cerros:

--Morto está! E assim morra de morte infame quem traidoramente me
affronte a mim e aos da minha raça!

Depois, cortando rigidamente pela encosta do cerro, atravez do matto, e
com um largo aceno ao Alferes do Pendão:

--Affonso Gomes, mandae dar as bozinas. E a cavallo, se vos praz, Snr.
D. Pedro de Castro, primo e amigo, que leal e bom me fostes!...

O _Castellão_ ondeou risonhamente o guante:

--Por Santa Maria, primo e amigo! que gosto e honra os recebi de vós. A
cavallo pois se vos praz! Que nos promette aqui o Snr. D. Garcia vêrmos
ainda, com sol muito alto, os muros de Monte-mór.

Já a peonagem cerrava as quadrilhas, os donzeis d'armas puxavam para a
ribanceira os ginetes folgados que a vasta agua escura assustava. E, com
os dous balsões tendidos, o Açor negro, as Treze Arruellas, a fila da
cavalgada atirou o trote pelo barranco empinado, d'onde as pedras soltas
rolavam. No alto, alguns cavalleiros ainda se torciam nas sellas para
silenciosamente remirarem o homem de Bayão, que lá ficava, amarrado ao
pilar, na solidão do Pego, a apodrecer. Mas quando a ala dos bésteiros e
fundibularios de Santa Ireneia desfilou, uma rija grita rompeu, com
chufas, sujas injurias ao «perro matador». A meio da escarpa, um
bésteiro, virando, retezou furiosamente a bésta. A comprida garruncha
apenas varou a agua. Outra logo zinio, e uma bala de funda, e uma setta
barbada,--que se espetou na ilharga do Bastardo, sobre um negro novello
de bichas. O Coudel berrou: «cerra! anda!» A récua das azemolas de carga
avançava, sob o estralar dos lategos: os moços da carriagem apanhavam
grossos pedregulhos, apedrejavam o morto. Depois os servos carreteiros
marcharam, nos seus curtos saios de couro crú, balançando um chuço
curto:--e o capataz apanhou simplesmente esterco das bestas, que chapou
na face do Bastardo sobre as finas barbas d'ouro.




XI


Quando Gonçalo, estafado e já todo o ardor bruxuleando, retocou este
derradeiro traço da affronta--a sineta no corredor repicava para o
almoço. Emfim! Deus louvado! eis finda essa eterna _Torre de Ramires_!
Quatro mezes, quatro penosos mezes desde Junho, trabalhára na sombria
resurreição dos seus avós barbaros. Com uma grossa e carregada lettra,
traçou no fundo da tira *Finis*. E datou, com a hora, que era do
meio-dia e quatorze minutos.

Mas agora, abandonada a banca onde tanto labutára, não sentia o
contentamento esperado. Até esse supplicio do Bastardo lhe deixára uma
aversão por aquelle remoto mundo Affonsino, tão bestial, tão deshumano!
Se ao menos o consolasse a certeza de que reconstituira, com luminosa
verdade, o ser moral d'esses avós bravios... Mas que! bem receava que
sob desconcertadas armaduras, de pouca exactidão archeologica, apenas
s'esfumassem incertas almas de nenhuma realidade historica!... Até
duvidava que sanguesugas recobrissem, trepando d'um charco, o corpo d'um
homem, e o sugassem das côxas ás barbas, em quanto uma hoste mastiga a
ração!... Emfim, o Castanheiro louvára os primeiros Capitulos. A
Multidão ama, nas Novellas, os grandes furores, o sangue pingando: e em
breve os *Annaes* espalhariam, por todo o Portugal, a fama d'aquella
Casa illustre, que armára mesnadas, arrasára castellos, saqueára
comarcas por orgulho de pendão, e affrontára arrogantemente os Reis na
curia e nos campos de lide. O seu verão, pois, fôra fecundo. E para o
coroar, eis agora a Eleição, que o libertava das melancolias do seu
buraco rural...

Para não retardar as visitas ainda devidas aos Influentes, e tambem para
espairecer, logo depois d'almoco montou a cavallo--apezar do calor, que
desde a vespera, e n'aquelle meado d'outubro, esmagava a aldeia com o
refulgente peso d'uma canicula d'Agosto. Na volta da estrada, dos
Bravaes um homem gordo, de calça branca enxovalhada, que s'apressava,
bufando, sob o seu guarda-sol de panninho vermelho, deteve o Fidalgo com
uma cortezia immensa. Era o Godinho, amanuense da Administração. Levava
um officio urgente ao Regedor dos Bravaes, e agora corria á Torre de
mandado do Snr. Administrador...

Gonçalo recuou a egoa para a sombra d'uma carvalha:

--Então que temos, amigo Godinho?

O Snr. Administrador annunciava a S. Ex.^a que o maroto do Ernesto, o
valentão de Nacejas, em tratamento no Hospital d'Oliveira, melhorára
consideravelmente. Já lhe repegára a orelha, a bocca soldava... E, como
se procedeu á querella, o patife passava da enfermaria para a cadeia...

Gonçalo protestou logo, com uma palmada no selim:

--Não senhor! Faça o obsequio de dizer ao Snr. João Gouveia que não
quero que se prenda o homem! Foi atrevido, apanhou uma dóse tremenda,
estamos quites.

--Mas Snr. Gonçalo Mendes...

--Pelo amor de Deus, amigo Godinho! Não quero, e não quero... Explique
bem ao Snr. João Gouveia... Detesto vinganças. Não estão nos meus
habitos, nem nos habitos da minha familia. Nunca houve um Ramires que se
vingasse... Quero dizer, sim, houve, mas... Emfim explique bem ao Snr.
João Gouveia. De resto eu logo o encontro, na Assembleia... Bem basta ao
homem ficar desfeiado. Não consinto que o apoquentem mais!... Detesto
ferocidades.

--Mas...

--Esta é a minha decisão, Godinho.

--Lá darei o recado de V. Ex.^a

--Obrigado. E adeus!... Que calor, hein!

--De rachar, Snr. Gonçalo Mendes, de rachar!

Gonçalo seguiu, revoltado pela ideia de que o pobre valentão de Nacejas,
ainda moído, com a orelha mal soldada, baixasse á sordida enxovia de
Villa-Clara, para dormir sobre uma taboa. Pensou mesmo em galopar para
Villa-Clara, reter o zelo legal do João Gouveia. Mas perto, adeante do
lavadoiro, era a casa d'um Influente, o João Firmino, carpinteiro e seu
compadre. E para lá trotou, apeando ao portal do quinteiro. O compadre
Firmino largára cedo para a Arribada, onde trabalhava nas obras do lagar
do Snr. Esteves. E foi a comadre Firmina que correu da cosinha, obesa e
lusidia, com dous pequenos dependurados das saias e mais sujos que
esfregões. O Fidalgo beijou ternamente as duas faces ramelosas:

--E que rico cheiro a pão fresco, oh comadre! Foi a fornada, hein? Pois
então grande abraço ao Firmino. E que se não esqueça! A Eleição vem para
o outro Domingo. Lá conto com o voto d'elle. E olhe que não é pelo voto,
é pela amisade.

A comadre arreganhava os dentes magnificos n'um regalado e gordo
riso:--«Ai o Fidalgo podia ficar seguro! Que o Firmino já jurára, até ao
Snr. Regedor, que para o Fidalgo era todo o sitio a votar, e quem não
fosse a amor ia a pau.» O Fidalgo apertou a mão da comadre--que do
degrau do quinteiro, com os dous pequenos enrodilhados nas saias, e o
gordo riso mais embevecido, seguiu a poeira da egoa como o sulco d'um
Rei benefico.

E depois nas outras visitas, ao Cerejeira, ao Ventura da Chiche,
encontrou o mesmo fervor, os mesmos sorrisos luzindo de gosto. «O que!
para o Fidalgo! Isso tudo! E nem que fosse contra o Governo!»--Na tasca
do Manoel da Adega, um rancho de trabalhadores bebia, já ruidoso, com as
jaquetas atiradas para cima dos bancos: o Fidalgo bebeu com elles,
galhofando, gosando sinceramente a pinga verde e o barulho. O mais
velho, um avejão escuro, sem dentes, e a face mais engilhada que uma
ameixa secca, esmurrou com euthusiasmo o balcão:--«Isto, rapazes, é
fidalgo que, quando um pobre de Christo escalavra a perna, lhe empresta
a egoa, e vae elle ao lado mais d'uma legua a pé, como foi com o Sôlha!
Rapazes! isto é Fidalgo para a gente ter gosto!» As _saudes_ atroaram a
venda. E quando Gonçalo montou, todos o cercavam como vassallos
ardentes, que a um aceno correriam a votar,--ou a matar!

Em casa do Thomaz Pedra, a avó Anna Pedra, uma velha entrevada, muito
velha e tremula, rompeu a choramigar por o seu Thomaz andar para o
Olival quando o Fidalgo o visitava. «Que aquillo era como visita de
santo!»

--Ora essa, tia Pedra! Peccador, grande peccador!

Dobrada na cadeirinha baixa, com as farripas brancas descendo do lenço,
pela face toda chupada de gelhas e pelluda, a tia Anna bateu no joelho
agudo:

--Não senhor! não senhor! que quem mostrou aquella caridade pelo filho
do Casco, merece estar em altar!

O Fidalgo ria, beijocava pequenadas encardidas, apertava mãos asperas e
rugosas como raizes, accendia o cigarro á braza das lareiras,
conversando, com intimidade, das molestias e dos derriços. Depois, no
calor e pó da estrada, pensava:--«É curioso! parece haver amisade,
n'esta gente!»

Ás quatro horas, derreado, decidiu cessar o giro, recolher á Torre pela
estrada mais fresca da _Bica Santa_. E passára o logarejo do Cerdal,
quando na volta aguda do Caminho, rente ao souto de azinheiros, quasi
esbarrou com o Dr. Julio, tambem a cavallo, tambem no seu giro, de
quinzena d'alpaca, alagado em suor, debaixo d'um guarda-sol de sêda
verde. Ambos detiveram as egoas, se saudaram amavelmente.

--Muito gosto em o vêr, Snr. Dr. Julio...

--Egualmente, com muita honra, Snr. Gonçalo Ramires...

--Então tambem na tarefa?...

O Dr. Julio encolheu os hombros:

--Que quer V. Ex.^a? Se me metteram n'esta! E sabe V. Ex.^a como isto
acaba?... Acaba em eu mesmo, no outro Domingo, votar em V. Ex.^a.

O Fidalgo riu. Ambos se debruçaram, para se apertarem as mãos com
alegria, com estima.

--Que calor este, Snr. Dr. Julio!

--Horroroso, Snr. Gonçalo Ramires... E que massada!

Assim o Fidalgo empregou essa semana nas visitas aos Eleitores--«os
grandes e os miudos.» E dois dias antes da Eleição, n'uma sexta-feira á
tarde, com um tempo já macio e fresco, partiu para Oliveira--onde
chegára, na vespera, o André Cavalleiro, depois da sua tão longa, tão
fallada demora em Lisboa.

Nos Cunhaes, apenas saltára da caleche, logo se enfureceu ao saber, pelo
bom João da Porta--«que as Snr.^{as} Louzadas estavam em cima, de
visita, com a Snr.^a D. Graça...»

--Ha muito?

--Já lá estão pegadas ha meia hora boa, meu senhor.

Gonçalo enfiou surrateiramente para o seu quarto, pensando:--«Que
desavergonhadas! Chegou o André, veem logo cocar!» E já se lavára,
mudára o fato cinzento,--quando o Barrôlo appareceu, esbaforido,
desusadamente radiante, de sobrecasaca, de chapeu alto, com as bochechas
accesas, alvoroçadamente radiantes:

--Eh, seu Barrôlo, que janota!

--Parece bruxedo! gritou o Barrôlo, depois d'um abraço, que repetiu, com
desacostumado fervor. Estava agora mesmo para te mandar um telegramma,
que viesses...

--Para quê?

O Barrôlo gaguejou, com um riso reprimido que o illuminava, o inchava:

--Para quê? P'ra nada... Quero dizer, para a Eleição! Pois a Eleição é
além d'ámanhã, menino! O Cavalleiro chegou hontem. Agora volto eu do
Governo Civil. Estive no Paço com o Snr. Bispo, depois passei pelo
Governo Civil... Optimo, o André! Aparou o bigode, parece mais moço. E
traz novidades... Traz grandes novidades!

E o Barrôlo esfregava as mãos, n'um tão faiscante alvoroço, com tanto
riso escapando dos olhos e da face relusente, que o Fidalgo o encarou
curioso, impressionado:

--Ouve lá, Barrolinho! Tu tens alguma cousa boa para me annunciar?

Barrôlo recuou, negou com estrondo, como quem bruscamente fecha uma
porta. Elle? Não! Não sabia nada! Só a Eleição! Na Murtosa votação
tremenda...

--Ah! pensei, murmurou Gonçalo. E a Gracinha?

--A Gracinha tambem não!

--Tambem não quê, homem? Como está? Simplesmente como está?

--Ah! está com as Louzadas. Ha mais de meia hora, aquellas bebedas!...
Naturalmente por causa do Bazar do Asylo Novo... Esta massada dos
Bazares... E ouve lá, Gonçalinho! Tu ficas até Domingo?

--Não, volto ámanhã para a Torre.

--Oh!...

--Pois dia d'Eleicão, homem! devo estar em casa, no meu centro, no meio
das minhas freguezias...

--É pena, murmurou o Barrôlo. Logo se sabia juntamente com a Eleição...
Eu dava um jantar tremendo...

--Logo se sabia, o quê?

O Barrôlo emmudeceu, com outro riso nas bochechas, que eram duas brazas
gloriosas. Depois novamente gaguejou, gingando:

--Logo se sabia... Nada! O resultado, o apuramento. E grande brodio,
grande foguetorio. Eu, na Murtosa, abro pipa de vinho.

Então Gonçalo risonhamente prendeu o Barrôlo pelos hombros:

--Dize lá, Barrolinho. Dize lá. Tu tens uma cousa boa para contar ao teu
cunhado.

O outro escapou, protestando com alarido: Que teima, que tolice. Elle
não sabia nada. O André não lhe contára nada!

--Bem, concluiu o Fidalgo, certo de um amavel mysterio, que pairava.
Então descemos. E se essas carraças das Louzadas ainda estiverem lá
pegadas, manda dizer pelo escudeiro á sala, bem alto, á Gracinha, que
cheguei, que lhe desejo fallar immediatamente no meu quarto: com esses
monstros não ha considerações.

O Barrôlo balbuciou, hesitando:

--O Snr. Bispo gosta d'ellas... Muito amavel commigo, ainda ha pouco, o
Snr. Bispo.

Mas, logo nas escadas, sentiram o piano, Gracinha cantarolando. Já se
libertára das Louzadas. Era uma antiga canção patriotica da Vendeia, que
outr'ora na Torre, ella e Gonçalo entoavam com emoção, quando os
inflammava o amor fidalgo e romantico dos Bourbons e dos Stuarts:

    Monsieur de Charette a dit à ceux d'Ancenes
      "Mes Amis!...
    Monsieur de Charette a dit...

Gonçalo franziu vagarosamente o reposteiro da sala, rematando a
estrophe, com o braço erguido como uma bandeira:

      "Mes amis!
    Le Roy va rammener les Fleurs de Lys!"

Gracinha saltou do mocho, n'uma surpresa.

--Não te esperavamos! imaginei que passavas a Eleição na Torre... E por
lá?

--Na Torre, tudo bem, com a ajuda de Deus... Mas eu com trabalho
immenso. Acabei o meu romance; depois visitas aos Eleitores.

Barrôlo, que não socegava pela sala, rompeu para elles, com o mesmo riso
suffocado:

--Queres tu saber, Gracinha? Tem estado este homem, desde que chegou,
n'uma curiosidade, a ferver. Imagina que eu tenho uma boa nova, uma
grande nova para lhe contar... Eu não sei nada, a não ser a Eleição!
Pois não é verdade, Gracinha?

Gonçalo, muito serio, prendeu o queixo da irmã:

--Sabes tu, dize lá.

Ella sorriu, córada... Não, não sabia nada, só a Eleição.

--Dize lá!

--Não sei... São tolices do José.

Mas então, ante aquelle sorriso fraco, rendido, que confessava--o
Barrôlo não se conteve, desafogou como um morteiro estoira.--Pois bem!
sim! com effeito!--Grande novidade! Mas o André, que a trouxera de
Lisboa, fresquinha a saltar, queria elle, só elle, causar a surpresa a
Gonçalo...

--De modo que eu não posso! Jurei ao André. A Gracinha sabe, que eu já
lhe contei hontem... Mas tambem não póde, tambem jurou. Só o André. Elle
vem logo tomar chá, e rebenta a bomba... Que é uma bomba! e graúda!

Gonçalo, roído de curiosidade, murmurou simplesmente, encolhendo os
hombros:

--Bem, já sei, é uma herança! Tens quinze tostões d'alviçaras, Barrôlo.

Mas durante o jantar e depois na sala tomando café, emquanto Gracinha
recomeçára as velhas canções patrioticas, agora as jacobitas, em louvor
dos Stuarts--Gonçalo anciou pela apparição do Cavalleiro. Nem receava
que a esse encontro se misturasse amargura, despeito suffocado. Todo o
seu furor contra o Cavalleiro, acceso na dolorosa tarde do Mirante,
revolvido na Torre durante torturados dias, logo se dissipára lentamente
depois da sua tocante conversa com a irmã, na manhã historica da briga
da Grainha. Gracinha então, com grandes lagrimas de pureza e de verdade,
jurára reserva, retrahimento. Gonçalo, abandonando Oliveira, mostrava
tambem uma resistencia louvavel contra o sentimento ou a vaidade que o
transviára. Demais elle não podia romper novamente com o Cavalleiro,
andando ainda nos mexericos e espantos d'Oliveira aquella reconciliação
ruidosa que chamára o Cavalleiro á intimidade dos Cunhaes. E por fim de
que valiam furores ou magoas? Nenhum rugir ou gemer seu annullariam o
mal que se consummára no Mirante--se porventura se consummára. E assim
toda a cólera contra o André se dissipára n'aquella sua leve e doce
alma, onde os sentimentos, sobretudo os mais escuros, os mais
carregados, sempre facilmente se desfaziam como nuvens em ceu de
estio...

Mas quando, perto das nove horas, o Cavalleiro penetrou na sala,
vagaroso e magnifico, com o bigode encurtado mas mais retorcido, uma
gravata vermelha entufando estridentemente no largo peito que entufava,
Gonçalo sentiu uma renovada aversão por toda aquella petulancia recheada
de falsidade--e apenas poude bater mollemente, desenxabidamente, nas
costas do velho amigo, que o apertava n'um abraço d'apparatosa ternura.
E em quanto André, torcendo as luvas claras, languidamente enterrado na
poltrona que o Barrôlo lhe achegou com carinho, contava de Lisboa e de
Cascaes, tão alegre, e partidas de _bridge_ e da Parada e
d'El-Rei--Gonçalo revivia a tarde do Mirante, o seu pobre coração a
bater contra a persiana mal fechada, a bruta supplica murmurada atravez
d'aquelles bigodes atrevidos, e emmudecera, como empedernido,
esmigalhando nervosamente entre os dentes o charuto apagado. Mas
Gracinha conservava uma serenidade attenta, sem nenhum dos seus
chammejantes rubores, dos seus desgraçados enleios de modo e gesto,
apenas levemente secca, d'uma seccura preparada e posta. Depois André
alludira muito desprendidamente ao seu regresso a Lisboa, depois da
Eleição, «porque o tio Reis Gomes, o José Ernesto, esses crueis amigos,
lhe andavam atirando para os hombros todo o trabalho da Nova Reforma
Administrativa.»

Entre elle e Gracinha, separados por um curto tapete, parecia cavada uma
funda legua de fosso, onde rolára, se afundára todo aquelle romance do
verão, sem que na face d'ambos restasse um afogueado vestigio do seu
ardor. E Gonçalo, insensivelmente contente pela apparencia, terminou por
abandonar a cadeira onde se impedernira, accendeu o charuto na vela do
piano, perguntou pelos amigos de Lisboa. Todos (segundo o Cavalleiro)
anciavam pela chegada de Gonçalo.

--Lá encontrei tambem o Castanheiro... Enthusiasmado com o teu Romance.
Parece que nem no Herculano, nem no Rebello existe nada tão forte, como
reconstrucção historica. O Castanheiro prefere mesmo o teu realismo
epico ao do Flaubert, na _Salammbô_. Emfim, enthusiasmado! E nós, está
claro, ardendo por que appareça a sublime obra.

O Fidalgo córou profundamente, murmurando--«Que tolice!» Depois roçou
pela poltrona em que se enterrava o André, afagou suavemente o largo
hombro do André:

--Pois, tens feito cá muita falta, meu velho! Ha dias passei em Corinde,
tive saudades...

Então o Barrôlo, que não socegava, vermelho, a estoirar rebolando pela
sala, espiando ora o Cavalleiro, ora o Gonçalo, com um riso mudo e
avido, não se conteve mais, gritou:

--Bem, basta de prologos... Vamos lá agora á grande surpresa, André! Eu
tenho estado toda a tarde a rebentar... Mas emfim, jurei e calei! Agora
não posso... Vamos lá. E tu, Gonçalinho, vae preparando os quinze
tostões.

Gonçalo, com a curiosidade de novo refervendo, apenas sorria,
desprendidamente:

--Com effeito! Parece que tens uma bella novidade.

O Cavalleiro alargou lentamente os braços, sempre enterrado na vasta
poltrona, sem pressa:

--Oh! é a cousa mais simples, mais natural... A Snr.^a D. Graça já sabe,
não é verdade?... Não ha motivo para surpresa... Tão legitima, tão
natural!

Gonçalo exclamou, já impaciente:

--Mas emfim, venha lá, dize.

O Cavalleiro insistia, indolente. Todo o espanto era que só agora se
pensasse em a realisar, cousa tão devida, tão adequada. Pois não lhe
parecia á Snr.^a D. Graça?

Gonçalo, n'uma braza, berrou:

--Mas quê? que diabo?

O Cavalleiro, que se despegára vagarosamente da poltrona, puxou os
punhos, e deante de Gonçalo, no silencio attento, alteando o peito,
grave, quasi official, começou:

--Meu tio Reis Gomes, e o José Ernesto, tiveram uma ideia muito natural,
que communicaram a El-Rei, e que El-Rei approvou... Que approvou mesmo
ao ponto de a appetecer, de se assenhorear d'ella, de desejar que fosse
só sua. E hoje é só d'El-Rei. El-Rei pois pensou, como nós pensamos, que
um dos primeiros fidalgos de Portugal, decerto mesmo o primeiro, devia
ter um titulo que consagrasse bem a antiguidade illustre da Casa, e
consagrasse tambem o merito superior de quem hoje a representa... Por
isso, meu querido Gonçalo, já te posso annunciar, e quasi em nome
d'El-Rei, que vaes ser Marquez de Treixedo.

--Bravo! bravo! bramou o Barrôlo, com palmas delirantes. Saltem para cá
os quinze tostões, Snr. Marquez de Treixedo!

Uma onda de sangue cobria a fina face de Gonçalo. N'um relance sentiu
que o Titulo era um dom do Cavalleiro, não ao chefe da casa de Ramires,
mas ao irmão complacente de Gracinha Ramires... E sobre tudo sentia a
incoherencia de que, ao chefe d'uma Casa dez vezes secular, mãe de
Dynastias, edificadora do Reino, com mais de trinta dos seus varões
mortos sob a armadura, se atirasse agora um ouco titulo, atravez do
_Diario do Governo_, como a um tendeiro enriquecido que subsidiou
eleições. Todavia saudou o Cavalleiro, que esperava a effusão, os
abraços.--Oh! Marquez de Treixedo! certamente muito elegante, muito
amavel... Depois, esfregando as mãos, com um sorriso de graça e
d'espanto... Mas, meu caro André, com que auctoridade me faz El-Rei
Marquez de Treixedo?

O Cavalleiro levantou vivamente a cabeça n'uma offendida surpresa:

--Com que auctoridade? Simplesmente com a auctoridade que tem sobre nós
todos, como Rei de Portugal que ainda é, Deus louvado!

E Gonçalo, muito simplesmente, sem fumaça ou pompa, com o mesmo sorriso
de suave gracejo:

--Perdão, Andrésinho. Ainda não havia Reis de Portugal, nem sequer
Portugal, e já meus avós Ramires tinham solar em Treixedo! Eu approvo os
grandes dons entre os grandes fidalgos; mas cumpre aos mais antigos
começarem. El-Rei tem uma quinta ao pé de Beja, creio eu, o _Roncão_.
Pois dize tu a El-Rei, que eu tenho immenso gosto em o fazer, a elle,
Marquez do Roncão.

O Barrôlo embasbacára, sem comprehender, com as bochechas descahidas e
murchas. Da beira do canapé, Gracinha, toda córada, faiscava de gosto,
por aquelle lindo orgulho que tão bem condizia com o seu, mais lhe
fundia a alma com a alma do irmão amado. E André Cavalleiro, furioso,
mas vergando os hombros com ironica submissão, apenas murmurou:--«Bem,
perfeitamente!... Cada um se entende a seu modo...»

O escudeiro entrava com a bandeja do chá.

       *       *       *       *       *

E no Domingo foi a Eleição.

Ainda com uma desconfiança, uma reserva supersticiosa, o Fidalgo desejou
atravessar esse dia muito solitariamente, quasi escondido, e no sabbado,
em quanto todos os amigos de Villa-Clara, mesmo os d'Oliveira, o
consideravam estabelecido nos Cunhaes, e em communicação azafamada com o
Governo Civil, montou a cavallo ao escurecer, e trotou surrateiramente
para Santa Ireneia.

Mas o Barrôlo (ainda abalado com «aquelle despauterio do Gonçalo, que
era uma offensa para o Cavalleiro! até para El-Rei!») ficára com a
missão de telegraphar para a Torre as noticias successivas das
assembleias, á maneira que ellas acudissem ao Governo Civil. E, com
ruidoso zelo, logo depois da missa, estabeleceu entre os Cunhaes e o
velho Convento de S. Domingos um serviço de creados formigando sem
repouso. Gracinha, na sala de jantar, ajudada por Padre Sueiro, copiava
com amor, n'uma lettra muito redonda, os telegrammas mandados pelo
Cavalleiro, que ajuntava a lapis alguma nota amavel--«_Tudo
optimamente!_»--_Victoria cresce._--_Parabens a V. Ex.^{as}._

Pela estrada de Villa-Clara á Torre, incessantemente, o moço do
Telegrapho se esbaforia sobre a perna manca. O Bento rompia pela
livraria, berrando: «outro telegramma, Snr. Doutor». Gonçalo, nervoso,
com um immenso bule de chá sobre a banca, a bandeja já alastrada de
cigarros meio fumados, lia o telegramma ao Bento. O Bento, com _vivas_
pelo corredor, corria a bramar o telegramma á Rosa.

E assim, quando cerca das oito horas, o Fidalgo consentiu em jantar--já
conhecia o seu triumpho explendido. E o que o impressionava, relendo os
telegrammas, era o enthusiasmo carinhoso d'aquelles influentes, povos
que elle mal rogava, e que convertiam o acto da Eleição quasi n'um acto
d'Amor. Toda a freguezia dos Bravaes marchára para a Egreja, cerrada
como uma hoste, com o José Casco na frente erguendo uma enorme bandeira,
entre dous tambores que estouravam. O Visconde de Rio-Manso entrára no
adro da Egreja de Ramilde na sua victoria, com a neta toda vestida de
branco, seguido por uma vistosa fila de _char-à-bancs_, onde se
apinhavam eleitores sob toldos de verdura. Na Finta todos os casaes se
esvasiavam, as mulheres carregadas d'ouro, os rapazes de flôr na orelha,
correndo á Eleição do Fidalgo entre o repenicar das violas, como á
romaria d'um Santo. E deante da taberna do Pintainho, em face á Egreja,
a gente da Velleda, da Riosa, do Cercal, erguera um arco de buxo, com
distico vermelho, sobre panninho:--«Viva o nosso Ramires, flôr dos
homens!»

Depois, em quanto jantava, um moço da quinta voltou de Villa-Clara,
alvoroçado, contando o delirio, as philarmonicas pelas ruas, a
Assembleia toda embandeirada, e na casa da Camara, sobre a porta, um
transparente com o retrato de Gonçalo, que uma multidão acclamava.

Gonçalo apressou o café. Por timidez, receoso dos vivorios, não ousava
correr a Villa-Clara--a espreitar. Mas accendeu o charuto, passou á
varanda, para respirar a doce noite de festa, que andava tão cheia de
clarões e rumores em seu louvor. E ao abrir a porta envidraçada quasi
recuou, com outro espanto. A Torre illuminára! Das suas fundas frestas,
atravez das negras rexas de ferro, sahia um clarão; e muito alta, sobre
as velhas ameias, refulgia uma serena corôa de lumes! Era uma surpresa,
preparada, com delicioso mysterio, pelo Bento, pela Rosa, pelos moços da
quinta,--que agora, todos, no escuro, por baixo da varanda, contemplavam
a sua obra, allumiando o ceu sereno. Gonçalo percebeu os passos
abafados, o pigarro da Rosa. Gritou alegremente da borda da varanda:

--Oh, Bento! Oh, Rosa!... Está ahi alguem?

Um risinho esfusiou. A jaqueta branca do Bento surdio da sombra.

--O Snr. Doutor queria alguma cousa?

--Não, homem! Queria agradecer... Foram vocês, hein? Está linda a
illuminacão! Mas linda. Obrigado, Bento. Obrigado, Rosa! Obrigado,
rapazes! De longe deve fazer um effeito soberbo.

Mas o Bento ainda se não contentava com aquellas lamparinas frouxas. A
Torre, para sobresahir, necessitava chammas fortes de gaz. O Snr. Doutor
nem imaginava a altura, depois em cima, a immensidão do eirado.

Então, de repente, Gonçalo sentiu um desejo de subir a esse immenso
eirado da Torre. Não entrára na Torre desde estudante--e sempre ella lhe
desagradára por dentro, tão escura, de tão duro granito, com a sua
nudez, silencio e frialdade de jazigo, e logo no pavimento terreo os
negros alçapões chapeados de ferro que levavam ás masmorras. Mas agora
as luzes nas frestas aqueciam, reviviam aquella derradeira ossada, Honra
de Ordonho Mendes. E de entre as suas ameias, mais alto que da varanda,
lhe parecia interessante respirar aquella rumorosa sympathia esparsa,
que em torno, pelas freguezias rolava, subindo para elle, atravez da
noite, como um incenso. Enfiou um paletot, desceu á cosinha. O Bento, o
Joaquim da horta, divertidos, agarraram grandes lanternas. E com elles
atravessou o pomar, penetrou pela atarracada poterna, de funda
hombreira, começou a trepar a esguia escadaria de pedra, que tanta sola
de ferro polira e poira.

Já desde seculos se perdera a memoria do logar que occupava aquella
torre nas complicadas fortificações da Honra e Senhorio de Santa
Ireneia. Não era de certo (segundo padre Sueiro) a nobre torre albarran,
nem a de Alcaçova, onde se guardava o thesouro, o cartorio, os sacos tão
preciosos das especiarias do Oriente--e talvez, obscura e sem nome,
apenas defendesse algum angulo de muralha, para os lados em que o
Castello enfrontava com as terras semeadas e os olmedos da Ribeira. Mas,
sobrevivente ás outras mais altivas, comprehendida nas construcções do
Paço formoso que se erguera d'entre o sombrio Castello Affonsino, e que
dominava Santa Ireneia durante a dynastia d'Aviz, ligada ainda por
claras arcarias d'um terraço ao Palacio de gosto italiano, em que
Vicente Ramires converteu o Paço manuelino depois da sua campanha de
Castella: isolada no pomar, mas sobranceando o casarão que lentamente se
edificára depois do incendio do Palacio em tempo d'El-Rei D. José, e a
derradeira certamente onde retiniram armas e circularam os homens do
Terço dos Ramires--ella ligava as edades e como que mantinha, nas suas
pedras eternas, a unidade da longa linhagem. Por isso o povo lhe chamára
vagamente a «Torre de D. Ramires». E Gonçalo, ainda sob a impressão dos
avós e dos tempos que resuscitára na sua Novella, admirou com um
respeito novo a sua vastidão, a sua força, os seus empinados escalões,
os seus muros tão espessos, que as frestas esguias na espessura se
alongavam como corredores, escassamente allumiadas pelas tigelinhas
d'azeite, com que o Bento as despertára. Em cada um dos trez sobrados
parou, penetrando curiosamente, quasi com uma intimidade, nas salas núas
e sonoras, de vasto lagedo, de tenebrosa abobada, com os assentos de
pedra, estranho buraco ao meio, redondo como o d'um poço e ainda pelas
paredes riscadas de sulcos de fumos, os anneis dos tocheiros. Depois em
cima, no immenso eirado que a fieira de lamparinas, cingindo as ameias,
enchia de claridade, Gonçalo, erguendo a gola do paletot na aragem mais
fina, teve a dilatada sensação de dominar toda a Provincia, e de possuir
sobre ella uma supremacia paternal, só pela soberana altura e velhice da
sua torre, mais que a Provincia e que o Reino. Lentamente caminhou em
roda das ameias, até ao miradouro, a que um candieiro de petroleo, sobre
uma cadeira de palhinha posta em frente á fresta, estragava o entono
feudal. No céo macio, mas levemente enevoado, raras estrellas luziam,
sem brilho. Por baixo a quinta, toda a largueza dos campos, a espessura
dos arvoredos se fundiam em escuridão. Mas na sombra e silencio, por
vezes além, para o lado dos Bravaes, lampejavam foguetes remotos. Um
clarão amarellado e fumarento, caminhando mais longe, entestando para a
Finta, era de certo um rancho com archotes festivos. Na alta Egreja da
Velleda tremeluzia uma illuminação vaga, rala. Outras luzes, incertas
através do arvoredo, riscavam o velho arco do Mosteiro, em Santa Maria
de Craquêde. Da terra escura subia, por vezes, um errante som de
tambores. E lumes, fachos, abafados rufos, eram dez freguezias
celebrando amoravelmente o Fidalgo da Torre, que lhes recebia o amor e o
preito no eirado da sua torre, envolto em silencio e sombra.

O Bento descera, com o Joaquim, para reforçar as lamparinas nas frestas
dos muros, onde ellas esmoreciam na espessura. E Gonçalo sósinho,
acabando o charuto, recomeçou a rolda, lento, em torno ás ameias,
perdido n'um pensamento que já o agitára estranhamente, atravez
d'aquelle sobresaltado Domingo... Era pois popular! Por todas essas
aldeias, estendidas á sombra longa da Torre, o Fidalgo da Torre era pois
popular! E esta certeza não o penetrava d'alegria, nem de
orgulho,--antes o enchia agora, n'aquella serenidade da noite, de
confusão, d'arrependimento! Ah! se adivinhasse--se elle adivinhasse!...
Como caminharia, com a cabeça bem levantada, com os braços bem
estendidos, sósinho, em confiança risonha para todas essas sympathias
que o esperavam, tão certas, tão dadas. Mas não! Sempre se julgára
cercado da indifferença d'aquellas aldeias, onde elle, apesar do
antiquissimo nome, era o costumado moço, que volta de Coimbra e vive
silenciosamente da sua renda, passeando na sua egoa. A essas
indifferenças tão naturaes nunca elle imaginára arrancar o punhado de
votos, o punhado de papelinhos que necessitava para entrar na Politica,
onde elle conquistaria pela destreza o que os velhos Ramires recebiam
por herança--fortuna e poder. Por isso se agarrára tão avidamente á mão
do Cavalleiro, á mão do Snr. Governador Civil--para que S. Ex.^a, o bom
amigo, o mostrasse, o impozesse como o homem necessario, o querido do
Governo, o melhor entre os bons, a quem as freguezias deviam offerecer
n'um Domingo o punhado de votos.

E na impaciencia d'esse favor abafára a memoria de amargos aggravos;
deante d'Oliveira pasmada abraçára o homem detestado desde annos, que
andava chasqueando e demolindo, por praças e jornaes: facilitára a
resurreição de sentimentos que para sempre deviam jazer enterrados; e
envolvera o ser que mais amava, a sua pobre e fraca irmãsinha, em
confusão e miseria moral... Torpezas e damnos--e para quê? Para
surripiar um punhado de votos que dez freguezias lhe trariam correndo,
gratuitamente, effusivamente, entre _vivas_ e foguetes, se elle acenasse
e lh'os pedissse...

Ah! eis ahi... Fôra a desconfiança, essa encolhida desconfiança de si
mesmo,--que desde o collegio, atravez da vida, lhe estragára a vida. Era
a mesma desgraçada desconfiança, que ainda semanas antes, deante de uma
sombra, um pau erguido, uma risada n'uma taberna, o forçava a abalar, a
fugir, arripiado e praguejando contra a sua fraqueza. Por fim, um dia,
n'uma volta d'estrada, avança, ergue o chicote--e descobre a sua força!
E agora, penetra por entre o povo, agarrado timidamente á mão poderosa,
por se imaginar impopular--e descobre a sua popularidade immensa. Que
vida enganada, e tanto a sujára--por não saber!

O Bento não apparecia, ainda azafamado em illuminar condignamente as
rexas da Torre. Gonçalo atirou a ponta do charuto, e com as mãos nas
algibeiras do paletot, parou junto do miradouro, olhou vagamente para as
estrellas. A nevoa adelgaçára quasi sumida,--lumes mais vivos palpitavam
no ceu mais profundo. De lumes e ceus descia essa sensação de
infinidade, d'eternidade, que penetra, como uma surpresa, nas almas
desacostumadas da sua contemplação. Na alma de Gonçalo passou, muito
fugidiamente, o espanto d'essas eternas immensidades sob que se agita,
tão vaidosa da sua agitação, a rasteira, a sombria poeira humana. Longe,
algum derradeiro foguete ainda lampejava, logo apagado na escuridão
serena. As luzinhas sobre a capella de Velleda, sobre o arco de Santa
Maria de Craquêde, esmoreciam, já ralas. Todo o remoto rumor de
musicatas se perdera, na mudez mais funda dos campos adormecidos. O dia
de triumpho findava, breve como os luminares e os foguetes.--E Gonçalo,
parado, rente do miradouro, considerava agora o valor d'esse triumpho
por que tanto almejára, porque tanto sabujára. Deputado! Deputado por
Villa-Clara, como o Sanches Lucena. E ante esse resultado, tão miudo,
tão trivial,--todo o seu esforço tão desesperado, tão sem escrupulos,
lhe parecia ainda menos immoral que risivel. Deputado! Para quê? Para
almoçar no Bragança, galgar de tipoia a ladeira de S. Bento, e dentro do
sujo convento escrevinhar na carteira do Estado alguma carta ao seu
alfaiate, bocejar com a inanidade ambiente dos homens e das ideias, e
distrahidamente acompanhar, em silencio ou balando, o rebanho do S.
Fulgencio, por ter desertado o rebanho identico do Braz Victorino. Sim,
talvez um dia, com rasteiras intrigas e sabujices a um chefe e á senhora
do chefe, e promessas e risos atravez de Redacções, e algum Discurso
esbrazeadamente berrado--lograsse ser Ministro. E então? Seria ainda a
tipoia pela calçada de S. Bento, com o correio atraz na pileca branca, e
a farda mal-feita, nas tardes d'assignatura, e os recurvados sorrisos
d'amanuenses pelos escuros corredores da Secretaria, e a lama escorrendo
sobre elle de cada gazeta d'opposição... Ah! que pêca, desinteressante
vida, em comparação d'outras cheias e soberbas vidas, que tão
magnificamente palpitavam sob o tremeluzir d'essas mesmas estrellas! Em
quanto elle se encolhia no seu paletot, deputado por Villa-Clara, e no
triumpho d'essa miseria--Pensadores completavam a explicação do
Universo; Artistas realisavam obras de belleza eterna; Reformadores
aperfeiçoavam a harmonia social; Santos melhoravam santamente as almas;
Physiologistas diminuiam o velho soffrer humano; Inventores alargavam a
riqueza das raças; Aventureiros magnificos arrancavam mundos de sua
esterilidade e mudez... Ah! esses eram os verdadeiramente homens, os que
viviam deliciosas plenitudes de vida, modelando com as suas mãos
incançadas fórmas sempre mais bellas ou mais justas da humanidade. Quem
fôra como elles, que são os sobre-humanos! E tal acção tão suprema
requeria o Genio, o dom que, como a antiga chamma, desce de Deus sobre
um eleito? Não! Apenas o claro entendimento das realidades humanas--e
depois o forte querer.

E o Fidalgo da Torre, immovel no eirado da Torre, entre o ceu todo
estrellado, e a terra toda escura, longamente revolveu pensamentos de
Vida superior--até que enlevado, e como se a energia da longa raça, que
pela Torre passára, refluisse ao seu coração, imaginou a sua propria
encaminhada emfim para uma acção vasta e fecunda, em que soberbamente
gozasse o goso de verdadeiro viver, e em torno de si creasse vida, e
accrescentasse um lustre novo ao velho lustre de seu nome, e riquezas
puras o dourassem e a sua terra inteira o bem-louvasse por que elle
inteiro e n'um esforço pleno bem servira a sua terra...

O Bento surdiu da portinha baixa do eirado, com a lanterna:

--O Snr. Doutor ainda se demora?

--Não. A festa acabou, Bento.

       *       *       *       *       *

Nos começos de Dezembro, com o primeiro numero dos *Annaes*, appareceu a
_Torre de D. Ramires_. E todos os jornaes, mesmo os da opposição,
louvaram «esse estudo magistral (como affirmou a _Tarde_) que, revelando
um erudito e um artista, continuava, com uma arte mais moderna e
colorida, a obra de Herculano e de Rebello, a reconstituição moral e
social do velho Portugal heroico.» Depois das festas de Natal, que elle
passou alegremente nos Cunhaes, ajudando Gracinha a cosinhar bolos de
bacalhau por uma receita sublime do padre José Vicente, da Finta, os
amigos d'Oliveira, os rapazes do Club e da Arcada offereceram ao
Deputado por Villa-Clara, na sala da Camara, adornada de buxos e
bandeiras, um banquete, a que assistia o Cavalleiro, de gran-cruz, e em
que o Barão das Marges (que presidia) saudou «o prestigioso moço que,
talvez em breve, nas cadeiras do Poder levantasse do marasmo este brioso
paiz, com a pujança, a valentia, que são proprias da sua raça
nobilissima!»

       *       *       *       *       *

No meado de Janeiro, por uma agreste noite de chuva, Gonçalo partiu para
Lisboa; e atravez do inverno, em Lisboa, andou sempre nos
_Carnet-Mondain_ e _High-Life_ dos jornaes, nas noticias de jantares, do
_raouts_, de tiros aos pombos, de Caçadas d'El-Rei, tão notado nos
movimentos mais simples da sua elegancia, que os Barrôlos assignaram o
_Diario Illustrado_ para saber quando elle passeava na Avenida. Em
Villa-Clara, na Assembleia, o José Gouveia já encolhia os hombros,
rosnando:--«Desandou em janota!»--Mas nos fins d'Abril uma noticia de
repente alvoroçou Villa-Clara, espantou na quieta Oliveira os rapazes do
Club e da Arcada, perturbou tão inesperadamente Gracinha, então em
Amarante com o Barrôlo, que n'essa noite ambos abalaram para Lisboa--e
na Torre atirou a Rosa para um banco de pedra da cosinha, lavada em
lagrimas, sem comprehender, gemendo:

--Ai o meu rico menino, o meu rico menino, que o não torno mais a vêr!

Gonçalo Mendes Ramires, silenciosamente, quasi mysteriosamente,
arranjára a concessão d'um vasto praso de Macheque, na Zambezia,
hypothecára a sua quinta historica de Treixedo, e embarcava em começos
de Junho no paquete _Portugal_, com o Bento, para a Africa.




XII


Quatro annos passaram ligeiros e leves sobre a velha Torre, como vôos
d'ave.

N'uma doce tarde dos fins de Septembro, Gracinha, que chegára na vespera
de Oliveira acompanhada pelo bom Padre Sueiro, descansava na varanda da
sala de jantar, estendida sobre o canapé de palhinha, ainda com um
grande avental branco, tapando o vestido até ao pescoço, um velho
avental do Bento. Todo o dia, d'avental, atravez do casarão, ajudada
pela Rosa e pela filha da Crispola, s'esfalfára, arrumando e limpando,
com tanto gosto e fervor no trabalho, que ella mesma sacudira o pó a
todos os livros da livraria, o seu socegado pó de quatro annos. O
Barrôlo tambem se occupára, dando sentenças nas obras da cavallariça,
que a valente egoa da briga da Grainha em breve partilharia com uma egoa
ingleza, de meio sangue, comprada em Londres. Tambem Padre Sueiro
remexera, pelo Archivo, zelosamente, com um espanejador. E até o Pereira
da Riosa, o bom rendeiro, apressava desde madrugada dois moços na final
limpeza da horta, agora muito cuidada, já com meloal, já com morangal, e
duas novas ruas, ambas bordadas de roseiras e recobertas de latada que a
parra densa já recobria.

Com efeito a Torre, entre a alvoroçada alegria de todos, enfeitava a sua
velhice--por que no Domingo, depois dos seus quatro annos d'Africa,
Gonçalo regressava á Torre.

E Gracinha, estendida no canapé com o seu velho avental branco, sorrindo
pensativamente para a quinta silenciosa, para o ceu todo córado sobre
Valverde, recordava esses quatro annos, desde a manhã em que abraçára
Gonçalo, suffocada e a tremer, no beliche do _Portugal_... Quatro annos!
Assim passados, e nada mudára no mundo, no seu curto mundo d'entre os
Cunhaes e a Torre, e a vida rolára, e tão sem historia como rola um rio
lento n'uma solidão:--Gonçalo na Africa, na vaga Africa, mandando raras
cartas, mas alegres, e com um enthusiasmo de fundador de Imperio; ella
nos Cunhaes, e o seu Barrôlo, n'um tão quieto e costumado viver, que
eram quasi d'agitação os jantares em que reuniam os Mendonças, os
Marges, o coronel do 7, outros amigos, e á noite na sala se abriam duas
mezas de panno verde para o voltarete e para o boston.

E n'este manso correr de vida se desfizera mansamente, quasi
insensivelmente, a sombria tormenta do seu coração. Nem ella agora
comprehendia como um sentimento, que atravez das suas anciedades ella
justificava, quasi secretamente santificava por o saber _unico_, e o
desejar _eterno_, assim se sumira, insensivelmente, sem dilacerações,
deixára apenas um leve arrependimento, alguma esfumada saudade, tambem
estranheza e confusão, restos de tanto que ardera, formando uma cinza
fina... A successão das cousas rolára, como o vento ás lufadas n'um
campo, e ella rolára, levada com a inercia d'uma folha secca.

Logo depois do derradeiro Natal passado com Gonçalo, André, que ainda os
acompanhára á Missa do Gallo e consoára nos Cunhaes, voltou para Lisboa,
para essa «Reforma», de que se lastimava... No silencio que entre ambos
então se alargou, corria já uma frialdade d'abandono... E quando André
recolheu a Oliveira, ao seu Governo Civil, partia ella para Amarante,
onde a santa mãe do Barrôlo adoecera, com uma vagarosa doença d'anemia e
velhice, que em Maio a levou para o Senhor.

Em Junho fôra o commovido embarque de Gonçalo para a Africa,--e no
tombadilho do paquete, entre o barulho e as bagagens, um encontro com
André, que chegara d'Oliveira, dias antes, e contou muito alegremente do
casamento da Mariquinhas Marges. Todo esse verão, como o Barrôlo
decidira fazer obras consideraveis no velho palacete do Largo d'El-Rei,
o passaram na quinta da _Murtosa_, que ella escolhera por causa da linda
matta, dos altos muros de convento. A essa solidão attribuiu logo o
Barrôlo a sua melancolia, a sua magreza, aquelle cansado scismar a que
se abandonava, pelos bancos musgosos da matta, com um romance esquecido
no regaço. Para que ella se distrahisse, se fortificasse com banhos do
mar, alugou em Setembro, na Costa, o vistoso chalet do commendador
Barros. Ella não tomou banhos, nem apparecia na praia, á fresca hora das
barracas, entre as senhoras sentadas em cadeirinhas baixas:--e só á
tarde passeava pelo comprido areal rente á vaga, acompanhada por dous
enormes galgos que lhe dera Manoel Duarte. Uma manhã, ao almoço, ao
abrir as _Novidades_, Barrôlo pulou, com um berro, um espanto. Era a
queda inesperada do Ministerio do S. Fulgencio! André Cavalleiro
apresentava logo a sua demissão pelo telegrapho. E ainda pelas
_Novidades_ souberam na Costa que S. Ex.^a partira para uma «longa e
pittoresca viagem», a viagem a Constantinopla, á Asia Menor, que elle
annunciára ao jantar nos Cunhaes. Ella abrira um Atlas: com o dedo lento
caminhou desde Oliveira até á Syria, por sobre fronteiras e montes: já
André lhe parecia desvanecido, n'esses horisontes mais luminosos; fechou
o Atlas, pensando simplesmente «como a gente muda!»

Em Novembro voltaram a Oliveira, n'um sabbado de chuva, e ella na
carruagem sentia toda a melancolia e a frialdade do ceu penetrar no seu
coração. Mas no Domingo acordou com um lindo sol nas vidraças. Para a
missa das onze na Sé, ella estreou um chapéo novo; depois, no caminho
para casa da tia Arminda, levantou os olhos para o casarão do Governo
Civil: agora habitava lá outro Governador Civil, o Snr. Santos
Maldonado, um moço louro que tocava piano.

Na outra primavera o Barrôlo, agora escravisado pela paixão d'obras,
imaginou demolir o Mirante para construir outra estufa, mais vasta, com
um repuxo entre palmeiras, que formaria «um jardim d'inverno catita.»

Os trabalhadores começaram por esvasiar o Mirante da velha mobilia que o
guarnecia desde o tempo do tio Melchior: o immenso divan jazeu dois dias
no jardim, encalhado contra uma sebe de buxo, e o Barrôlo, impaciente,
com aquelle desusado traste, de molas quebradas, nem o consentiu nas
arrecadações do sotão, mandou que o queimassem com outras cadeiras
partidas, n'uma fogueira de festa, na noute dos annos de Gracinha. E
ella andou em torno da fogueira. O estofo poído flammejou, depois o
mogno pesado mais lentamente, com um leve fumo, até que uma braza ficou
latejando, e a braza escureceu em cinza.

Logo n'essa semana as Lousadas, mais agudas, mais escuras, invadiram uma
tarde os Cunhaes--e apenas espetadas no sophá, logo lhe contaram, com um
riso feroz nos olhinhos furantes, do grande escandalo, o Cavalleiro! em
Lisboa! sem rebuço! com a mulher do Conde de S. Romão! um fazendeiro de
Cabo Verde!

N'essa noite, ella escreveu a Gonçalo uma carta muito longa que
começava:--«Por cá estamos todos bem, e n'este rame-ram costumado...» E
com effeito a vida recomeçára, no seu rame-ram, simples, contínua, e sem
historia, como corre um rio claro n'uma solidão.

Á porta envidraçada da varanda o filho da Crispola espreitou--o filho da
Crispola, que ficára sempre na Torre, como «andarilho», mas crescera
muito para fóra da sua antiga jaqueta de botões amarellos, usava agora
jaquetões velhos do Snr. Doutor, e já repuxava o buço:

--É que está lá em baixo o Snr. Antonio Villalobos, com o Snr. Gouveia e
outro senhor, o Videirinha, e perguntam se podem fallar á senhora...

--O Snr. Villalobos! Sim! que subam, que entrem para aqui, para a
varanda!

Ao atravessar a sala, onde dous esteireiros d'Oliveira pregavam uma
esteira nova, o vozeirão do Titó já ribombava, notando os «preparativos
da festa...» E quando entrou na varanda a sua face mais barbuda, mais
requeimada, rebrilhava com a alegria d'encontrar emfim a Torre
despertando d'aquella modorra, em que tudo dentro parecia tristemente
apagado, até o lume das caçarolas:

--Peço desculpa da invasão, prima Graça. Mas passamos, de volta d'um
passeio dos Bravaes, soubemos que a prima viera com o Barrôlo...

--Oh! gosto immenso, primo Antonio. Eu é que peço desculpa d'esta
figura, assim despenteada, de grande avental... Mas todo o dia em
arranjos, a preparar a casa... E o Snr. Gouveia, como tem passado? Não o
vejo desde a Paschoa.

O administrador, que não mudára n'esses quatro annos, escuro, secco,
como feito de madeira, sempre esticado na sobrecasaca preta, apenas com
o bigode mais amarellado do cigarro, agradeceu á Snr.^a D. Graça... E
passára menos mal, desde a Paschoa. A não ser a desavergonhada da
garganta...

--E então o nosso grande homem? quando chega? quando chega?

--No Domingo. Estamos todos em alvoroço... Então não se senta, Snr.
Videira? Olhe, puxe aquella cadeira de vime. A varanda por ora não está
arranjada.

Videirinha, logo depois da Eleição, recebera de Gonçalo o logar
promettido, facil e com vagares, para não esquecer o violão. Era
amanuense na Administração do Concelho de Villa-Clara. Mas convivia
ainda na intimidade do seu chefe, que o utilisava para todos os
serviços, mesmo de enfermeiro, e o mandava sempre com uma auctoridade
secca, mesmo ceando ambos no Gago.

Timidamente arrastou a cadeira de vime, que collocou, com respeito,
atraz da cadeira do seu Chefe. E depois de tirar as luvas pretas, que
agora sempre trazia para realçar a sua posição, lembrou que o comboio
chegava ao apeadeiro de Craquêde ás dez e quarenta, não trazendo atrazo.
Mas talvez o Snr. Doutor apeasse em Corinde, por causa das bagagens...

--Duvido, murmurou Gracinha. Em todo o caso o José está com tenção de
partir de madrugada, para o encontrar na bifurcação, em Lamello.

--Nós não! acudiu o Titó, que se sentára familiarmente no rebordo da
varanda. Cá o nosso rancho vae simplesmente a Craquêde. Já é terra da
familia, e sitio mais socegado para o vivorio... Mas então esse homem
não se demorou em Lisboa, prima Graça?

--Desde Domingo, primo Antonio. Chegou no Domingo, de Paris, pelo
Sud-Express. E teve uma chegada brilhante... Oh! muito brilhante! Hontem
recebi eu uma carta da Maria Mendonça, uma grande carta em que conta...

--O que? A prima Maria Mendonça está em Lisboa?

--Sim, desde os fins d'Agosto, n'uma visita a D. Anna Lucena...

Vivamente, João Gouveia puxou a cadeira, n'uma curiosidade que de certo
o remoera:

--É verdade, Snr.^a D. Graça!--Então parece que a D. Anna Lucena comprou
uma casa em Lisboa. anda em arranjos de mobilia?... V. Ex.^a ouviu,
Snr.^a D. Graça?

Não, Gracinha não sabia. Mas era natural, agora que tanto se demorava em
Lisboa, pouco se aproveitava da _Feitosa_, tão linda quinta...

--Então casa! exclamou o Gouveia, com immensa convicção. Se anda em
arranjos de mobilia, então casa. É natural, quer posição. Depois, já lá
vão quatro annos de viuvez, e...

Gracinha sorriu. Mas o Titó, que coçava lentamente a barba, voltou á
carta da prima Maria Mendonça, contando a chegada.

--Sim! acudiu Gracinha, conta, esteve na Estação, no Rocio. Parece que o
Gonçalo optimo, mais forte... Olhe, primo Antonio, leia a carta. Leia
alto! Não tem segredos. É toda sobre o Gonçalo...

Tirára do bolso um pesado enveloppe, com sinete d'armas no lacre. Mas a
prima Maria escrevia sempre depressa, n'uma lettra atabalhoada, com as
linhas crusadas. Talvez o primo Antonio não comprehendesse...--E com
effeito, deante das quatro folhas de papel erriçadas de negras linhas,
parecendo uma sebe espinhosa, o Titó recuou, aterrado. Mas o João
Gouveia immediatamente se offereceu, com a sua pericia em decifrar
officios de regedores... Não havendo segredos.

--Não, não ha segredos, afiançou Gracinha, rindo. É unicamente sobre o
Gonçalo, como n'um jornal.

O administrador folheou a immensa carta, passou os dedos sobre o bigode,
com certa solemnidade:

«Minha querida Graça... A costureira do Silva diz que o vestido...»

--Não! acudiu Gracinha. É na outra pagina, no alto. Volte a pagina.

Mas o Administrador gracejou, ruidosamente. Oh! está claro, carta de
senhora, logo os trapos... E a Snr.^a D. Graça a assegurar que era toda
sobre Gonçalo. Pois já veriam se pelo meio se não fallava ainda em
vestidos... Ah! estas senhoras, com os trapos!...--Depois recomeçou, na
outra pagina, com lentidão e gravidade:

«...Deves agora estar anciosa por saber da grande chegada do primo
Gonçalo. Foi realmente brilhante, e parecia uma recepção de pessoa real.
Eramos mais de trinta amigos. Está claro, appareceu toda a roda da nossa
parentella; e se rebentasse de repente n'essa manhã uma revolução, os
Republicanos apanhavam alli junta, na estação do Rocio, toda a flôr da
nobresa de Portugal, da velha, da boa. De senhoras, era a prima Chellas,
a tia Louredo, as duas Esposendes (com o tio Esposende, que apesar do
rheumatismo e da vindima, veiu expressamente da quinta de Torres), e eu.
Homens, todos. E como estava o Conde de Arega, que é secretario d'El-Rei
e o primo Olhalvo, que é o seu Mordomo-Mór, e o Ministro da Marinha e o
Ministro das Obras Publicas, ambos condiscipulos e intimos de Gonçalo,
as pessoas na estação deviam imaginar que chegava El-Rei. O Sud-Express
trouxe quarenta minutos de demora. De modo que parecia um salão, com
toda aquella gente da sociedade, muito alegre, e o primo Arega, sempre
tão amavel e engraçado, e fazendo já convites para um jantar (que depois
deu) ao primo Gonçalo. Lá fui a esse jantar com o meu vestido verde,
novo, que ficou bem...»

Gouveia gritou triumphando:

--Hein? que disse eu?! cá está vestido. Vestido verde!

--Lê para deante, homem! bramou o Titó.

E o Administrador, realmente interessado, recomeçou, com entono:

«...com o meu vestido verde novo, excepto a saia, um pouco pesadota.
Creio que fui eu a primeira que avistou o primo Gonçalo, na plataforma
do Sud-Express. Não imaginas como vem... optimo! Até mais bonito, e
sobretudo mais homem. A Africa nem de leve lhe tostou a pelle. Sempre a
mesma brancura. E d'uma elegancia, d'um apuro! Prova de como se adeanta
a civilisação d'Africa! dizia o primo Arega, este é estylo novo de
tangas em Macheque!... Como imaginas, muito abraço, muita beijoca. A tia
Louredo choramigou. Ah, já esquecia! Estava tambem o Visconde de
Rio-Manso, com a filha, a Rosinha. Muito linda ella, com um vestido do
Redfern, fez sensação. Todos me perguntavam quem era, e o conde d'Arega,
está claro, logo com appetite de ser apresentado. O Rio-Manso tambem
choramigou ao abraçar o primo Gonçalo. E ali viemos todos, em nobre
sequito, pela estação fóra, entre o pasmo dos povos. Mas immediatamente
uma scena. De repente, no meio de toda aquella nata de brazões, o primo
Gonçalo rompe e cahe nos braços do homemzinho de bonet agaloado que
recebia á porta os bilhetes. Sempre o mesmo Gonçalo! Parece que o
conheceu ao chegar a Lourenço Marques, onde o homem tratava de se
estabelecer como photographo. Mas já esquecia o melhor--o Bento! Não
imaginas o Bento... Magnifico! Deixou crescer um bocado de suissa. É um
modelo, vestido em Londres, de grande casaco de viagem de panno claro,
até aos pés, luvas amarelladas, gravidade immensa. Gostou de me vêr na
estação--perguntou logo, com o olho humido, pela Snr.^a D. Graça, e pela
Rosa. Á noite, o José e eu jantamos em familia, com o primo Gonçalo, no
Bragança, para conversar da Torre e dos Cunhaes. Elle contou muitas
cousas interessantes d'Africa. Traz notas para um livro, e parece que o
praso prospera. N'estes poucos annos plantou dois mil coqueiros. Tem
tambem muito cacau, muita borracha. Gallinhas são aos milhares. É
verdade que uma gallinha gorda em Macheque vale um pataco. Que inveja!
Aqui em Lisboa custa seis tostões, só com ossos--por que tendo tambem
alguma carne no peito, salta para cá dez tostões, e agradece! No praso
já se construiu uma grande casa, proximo do rio, com vinte janellas e
pintada de azul. E o primo Gonçalo declara que já não vende o praso nem
por oitenta contos. Para felicidade completa até achou um excellente
administrador. Eu todavia duvido que elle volte para a Africa. Tenho
agora cá a minha linda ideia sobre o futuro do primo Gonçalo. Talvez te
rias. E não adivinhas... com effeito, eu mesma só n'essa noite em que
jantamos no Bragança, recebi de repente a inspiração. O Rio-Manso está
tambem no Bragança. Quando desciamos para o jantar, para um gabinete,
encontramos no corredor o velho com a pequena. O homem tornou logo a
abraçar Gonçalo, com uma _ternura de pae_. E a Rosinha tão vermelha se
fez, que até Gonçalo, apesar de excitado e distrahido, notou e córou de
leve. Parece que já ha entre elles um conhecimento antigo, por causa
d'um cesto de rosas, e que, desde annos, o Destino os anda
surrateiramente chegando. Ella é realmente uma belleza. E tão
sympathica, tão bem educada!... Differença d'edade, apenas onze annos; e
o dote tremendo. Fallam em quinhentos contos. Ha apenas a questão de
sangue e o d'ella, coitadinha... Emfim, como se diz em heraldica,--«_o
Rei faz a pastora Rainha_.» E os Ramires, não só vem dos Reis, mas os
Reis vem dos Ramires.--E agora passando a assumpto menos
interessante...»

Discretamente João Gouveia dobrou a carta, que entregou a Gracinha,
louvando a Snr.^a D. Maria Mendonça como um «reporter» precioso. Depois,
com um cumprimento:

--E, minha senhora, se as previsões d'ella se realisam...

Mas não! Gracinha não acreditava! Ora! imaginações da Maria Mendonça.

--O primo Antonio bem a conhece, sabe como ella é casamenteira...

--Pois se até a mim me quiz casar, ribombou o Titó saltando do rebordo
da varanda. Imagine a prima... Até a mim! Com a viuva Pinho, da loja de
pannos.

--Credo!

Mas o Gouveia insistia, com superioridade, um sentimento verdadeiro da
vida positiva:

--Olhe, Snr.^a D. Graça, acredite V. Ex.^a, sempre era melhor arranjo
para o Gonçalo que a Africa... Eu não acredito n'esses prazos... Nem na
Africa. Tenho horror á Africa. Só serve para nos dar desgostos. Boa para
vender, minha senhora! A Africa é como essas quintarolas, meio a monte,
que a gente herda d'uma tia velha, n'uma terra muito bruta, muito
distante, onde não se conhece ninguem, onde não se encontra sequer um
estanco; só habitada por cabreiros, e com sezões todo o anno. Boa para
vender.

Gracinha enrolava lentamente nos dedos a fita do avental:

--O quê! vender o que tanto custou a ganhar, com tantos trabalhos no
mar, tanta perda de vida e fazenda?!

O Administrador protestou logo, com calor, já enristado para a
controversia:

--Quaes trabalhos, minha senhora? Era desembarcar alli na areia, plantar
umas cruzes de pau, atirar uns safanões aos pretos... Essas glorias
d'Africa são balelas. Está claro, V. Ex.^a falla como fidalga, neta de
fidalgos. Mas eu como economista. E digo mais...

O seu dedo agudo ameaçava argumentos agudos.

Titó acudiu, salvou Gracinha:

--Oh Gouveia, nós estamos a tirar o tempo á prima Graça, que anda nos
seus arranjos. Essas questões d'Africa são para depois, com o Gonçalo, á
sobremeza... E então, minha querida prima, até Domingo, em Craquêde. Lá
comparece o rancho todo. E quem atira os foguetes sou eu!

Mas Gouveia, cofiando o côco com a manga, ainda esperava converter a
Snr.^a D. Graça ás ideias sãs, sobre Politica Colonial.

--Era vender, minha senhora, era vender! Ella sorria, já
consentia--tomando a mão do Videirinha, que hesitava, com os dedos
espetados:

--E então, Snr. Videira, tem agora algumas quadras novas para o _Fado_?

Córando, Videirinha balbuciou que «arranjára uma coisita, tambem n'um
fado, para a volta do Snr. Doutor.» Gracinha prometteu decorar, para
cantar ao piano.

--Muito agradecido a V. Ex.^a... Creado de V. Ex.^a...

--Então até Domingo, primo Antonio... Está uma tarde linda.

--Até Domingo, em Craquêde, prima.

Mas á porta envidraçada, João Gouveia parou mais teso, bateu na testa:

--Já me esquecia, desculpe V. Ex.^a! Recebi uma carta do André
Cavalleiro, da Figueira da Foz. Manda muitas saudades ao Barrôlo. E quer
saber se o Barrôlo lhe poderia ceder d'aquelle vinho verde de Vidainhos.
É tambem para um africanista, para o conde de S. Romão... Parece que a
Snr.^a condessa se péla por vinho verde!

E os tres amigos, em fila, atravessaram a sala de jantar, onde o
vozeirão do Titó ainda ribombou, louvando a esteira nova de côres. No
corredor, Videirinha espreitou para a Livraria, notou o molho de penas
de pato espetado no velho tinteiro de latão, que esperava, rebrilhando
solitariamente sobre a mesa nua sem papeis nem livros. Depois a Rosa
appareceu á porta do quarto de Gonçalo, ajoujada de roupa, com um riso
em cada ruga da sua face redonda e côr de tijolo, que o farto lenço de
cambraia, muito branco, circumdava como um nimbo. O Titó affagou
carinhosamente o hombro da boa cosinheira:

--Então, tia Rosa, agora recomeçam essas grandes petisqueiras, hein?

--Louvado seja Deus, Snr. D. Antonio! Que imaginei que não tornava a vêr
o meu rico senhor. Tambem já tinha decidido... Se me enterrassem o corpo
aqui em Santa Ireneia, antes de eu vêr o menino, a alma com certesa ia á
Africa para lhe fazer uma visita.

Os seus miudos olhos piscaram, lagrimejando de gosto--e seguiu pelo
corredor, tesa e decidida, com a sua trouxa que rescendia a maçã
camoeza. O Gouveia murmurára com uma careta:--«Safa!» E os tres amigos
desceram ao pateo onde, por curiosidade do Titó, visitaram as obras da
cavallariça.

--Veja você! exclamou elle para o Gouveia, que accendia o charuto. Você
a negar!... Mobilias, obras, egoa ingleza... Tudo já dinheiro d'Africa.

O Administrador encolheu os hombros:

--Veremos depois como elle traz o figado...

Deante do portão o Titó ainda parou a colher, na roseira costumada, uma
rosinha para florir o jaquetão de velludilho. E juntamente entrava o
Padre Sueiro, recolhendo d'uma volta pelos Bravaes, com o seu grande
guarda-sol de panninho e o seu breviario. Todos acolheram com carinho o
santo e douto velho, tão raro agora na Torre.

--E então no Domingo, cá temos o nosso homem, Padre Sueiro!

O capellão achatou sobre o peito a mão gorda, com reverencia, com
gratidão...

--Deus ainda me quiz conceder, na minha velhice, mais esse grande
favor... Pois mal o esperava. Terras tão asperas, e elle tão delicado...

E para conversar de Gonçalo, da espera em Craquêde, acompanhou aquelles
senhores até á ponte da Portella. João Gouveia manquejava, aperreado por
umas infames botas novas que n'essa manhã estreára. E descançaram um
momento no bello banco de pedra que o pae de Gonçalo mandára collocar,
quando Governador Civil d'Oliveira. Era esse o doce sitio d'onde se
avista Villa-Clara, tão aceada, sempre tão branca, áquella hora toda
rosada, d'esde o vasto convento de Santa Theresa até ao muro novo do
cemiterio no alto, com os seus finos cyprestes.

Para além dos outeiros de Valverde, longe, sobre a Costa, o sol descia,
vermelho como um metal candente que arrefece, entre nuvens vermelhas,
accendendo ainda, em ouro coruscante, as janellas da Villa.

Ao fundo do valle, uma claridade nimbava as altas ruinas de Santa Maria
de Craquêde, entre o seu denso arvoredo. Sob o arco, o rio cheio corria
sem um rumor, já dormente na sombra dos choupos finos, onde ainda
passaros cantavam. E na volta da estrada, por cima dos alamos que
escondiam o casarão, a velha Torre, mais velha que a Villa e que as
ruinas do Mosteiro, e que todos os casaes espalhados, erguia o seu
esguio miradoiro, envolto no vôo escuro dos morcegos, espreitando
silenciosamente a planicie e o sol sobre o mar, como em cada tarde
d'esses mil annos, desde o Conde Ordonho Mendes.

Um pequeno com uma alta aguilhada passou, recolhendo duas vaccas lentas.
Do lado da Villa, o padre José Vicente da Finta trotou na sua egoa
branca, saudou o Snr. Administrador, o amigo Sueiro, abençoando tambem a
chegada do Fidalgo para quem já preparára uma bella cesta da sua uva
moscatel. Trez caçadores, com uma matilha de coelheiras, atravessaram a
estrada, descendo pelo portello á quelha que contorna o casal do
Miranda.

Um silencio ainda claro, de immenso repouso, tão doce como se descesse
do ceu, cobria a largueza povoada dos campos, onde não se movia uma
folha, na macia transparencia do ar de Setembro. Os fumos das lareiras
accesas já se escapavam, lentos e leves, d'entre a telha rala. Na loja
do João ferreiro, adeante da Portella, o clarão da forja avivou, mais
vermelho. Um _bum-bum_ de tambor bateu festivamente para o lado dos
Bravaes, cresceu apressado, marchando:--n'algum cabeço, depois
lentamente se afastou, esmoreceu, logo sumido, em arvoredos ou no valle
mais fundo.

João Gouveia, que se recostára no canto do largo assento de pedra, com o
seu côco sobre os joelhos, acenou para o lado dos Bravaes:

--Estou a lembrar aquella passagem do romance do Gonçalo, quando os
Ramires se preparam para soccorrer as Infantas, andam a reunir a
mesnada. É assim, a estas horas da tarde, com tambores: e por sitios...
«Na frescura do valle...» Não! «Pelo valle de Craquêde...» Tambem não!
Esperem vocês, que eu tenho boa memoria... Ah! «E por todo o fresco
valle até Santa Maria de Craquêde, os atambores mouriscos abafados no
arvoredo, tararam! tararam! ou mais vivos nos cerros ralatam! ralatam!
convocavam á mesnada dos Ramires, na doçura da tarde...» E lindo!

Por sobre as costas do Titó que, debruçado, riscava pensativamente com o
bengalão a poeira da estrada, Videirinha adeantou para o seu chefe a
face estendida, com um sorriso de finura:

--Oh Snr. Administrador, olhe que talvez seja ainda mais bonito, quando
os Ramires largam a perseguir o Bastardo! Cá para mim, tem mais poesia.
Quando o velho faz aquella jura com a espada e depois lá na Torre, muito
devagar, começa a tocar a finados... É d'appetite!

Á borda do assento, encolhido contra o Titó, para que o Snr.
Administrador se alastrasse confortavelmente, Padre Sueiro, com as mãos
no cabo do seu guarda-sol, concordou:

--Com certesa! são lances interessantes... Com certesa! N'aquella
novella ha imaginação rica, muito rica: e ha saber, ha verdade.

O Titó, que depois de _Simão de Nantua_, em pequeno, não abrira mais as
folhas d'um livro, e não lêra a _Torre de D. Ramires_, murmurou, com um
risco mais largo na poeira:

--Extraordinario, aquelle Gonçalo!

O Videirinha não findára o seu enlevado sorriso:

--Tem muito talento... Ah! o Snr. Doutor tem muito talento.

--Tem muita raça! exclamou o Titó, levantando a cabeça. E é o que o
salva dos defeitos... Eu sou um amigo de Gonçalo, e dos firmes. Mas não
o escondo, nem a elle... Sobretudo a elle. Muito leviano, muito
incoherente... Mas tem a raça que o salva.

--E a bondade, Snr. Antonio Villalobos! atalhou docemente Padre Sueiro.
A bondade, sobretudo como a do Snr. Gonçalo, tambem salva... Olhe, ás
vezes ha um homem muito serio, muito puro, muito austero, um Catão que
nunca cumpriu senão o dever e a lei... E todavia ninguem gosta d'elle,
nem o procura. Por que? Por que nunca deu, nunca perdoou, nunca
acarinhou, nunca serviu. E ao lado outro leviano, descuidado, que tem
defeitos, que tem culpas, que esqueceu mesmo o dever, que offendeu mesmo
a lei... Mas quê? É amoravel, generoso, dedicado, serviçal, sempre com
uma palavra doce, sempre com um rasgo carinhoso... E por isso todos o
amam, e não sei mesmo, Deus me perdôe, se Deus tambem o não prefere...

A curta mão que acenára para o ceu, recahiu sobre o cabo d'osso do
guarda-sol. Depois, e córado com a temeridade de pensamento tão
espiritual acudiu cautelosamente:

--Que esta não é propriamente doutrina da Egreja!... Mas anda nas almas;
anda já em muitas almas.

Então João Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra e teso na
estrada, com o côco á banda, reabotoando a sobrecasaca, como sempre que
estabelecia um resumo:

--Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonçalo Mendes. E sabem
vocês, sabe o Snr. Padre Sueiro quem elle me lembra?

--Quem?

--Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhança. Aquelle todo de Gonçalo,
a franqueza, a doçura, a bondade, a immensa bondade, que notou o Snr.
Padre Sueiro... Os fogachos e enthusiasmos, que acabam logo em fumo, e
juntamente muita persistencia, muito aferro quando se fila á sua
ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos
negocios, e sentimentos de muita honra, uns escrupulos, quasi pueris,
não é verdade?... A imaginação que o leva sempre a exaggerar até á
mentira, e ao mesmo tempo um espirito pratico, sempre attento á
realidade util. A viveza, a facilidade em comprehender, em apanhar... A
esperança constante n'algum milagre, no velho milagre d'Ourique, que
sanará todas as difficuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de
luzir, e uma simplicidade tão grande, que dá na rua o braço a um
mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tão palrador, tão sociavel.
A desconfiança terrivel de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, até que
um dia se decide, e apparece um heroe, que tudo arrasa... Até aquella
antiguidade de raça, aqui pegada á sua velha Torre, ha mil annos... Até
agora aquelle arranque para a Africa... Assim todo completo, com o bem,
com o mal, sabem vocês quem elle me lembra?

--Quem?...

--Portugal.

Os tres amigos retomaram o caminho de Villa-Clara. No ceu branco uma
estrellinha tremeluzia sobre Santa Maria de Craquêde. E Padre Sueiro,
com o seu guarda-sol sob o braço, recolheu á Torre vagarosamente, no
silencio e doçura da tarde, resando as suas Avè-Marias, e pedindo a paz
de Deus para Gonçalo, para todos os homens, para campos e casaes
adormecidos, e para a terra formosa de Portugal, tão cheia de graça
amoravel, que sempre bemdita fosse entre as terras.


FIM

       *       *       *       *       *

A revisão das provas d'este livro, desde paginas 417 até á conclusão,
não foi feita pelo Auctor. Entretanto seguiu-se á risca o original.





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both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

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effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
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property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
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LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
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that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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