Os Maias: episodios da vida romantica

By Eça de Queirós

The Project Gutenberg EBook of Os Maias, by José Maria Eça de Queirós

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Title: Os Maias
       episodios da vida romantica

Author: José Maria Eça de Queirós

Release Date: October 16, 2012 [EBook #40409]
Last updated: June 10, 2019

Language: Portuguese


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    *Nota de editor:* Devido ‡ existÍncia de erros tipogr·ficos neste
    texto, foram tomadas v·rias decisıes quanto ‡ vers„o final. Em caso
    de d˙vida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final
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    Na vers„o original, esta obra È uma compilaÁ„o de dois volumes, com
    capÌtulos e paginaÁ„o independentes, publicadas numa sÛ obra.
    Respeitando o original, compil·mos num sÛ ficheiro ambas as partes:

                                Primeiro Volume

                                Segundo Volume


                                             Rita Farinha (Agosto 2012)




Porto: Typ. de A. J. da Silva Teixeira, Cancella Velha, 70





E«A DE QUEIROZ

OS MAIAS

EPISODIOS DA VIDA ROMANTICA

VOLUME I

PORTO


Livraria Internacional de Ernesto Chardron
CASA EDITORA
LUGAN & GENELIOUX, Successores


1888

Todos os direitos reservados




OBRAS DO MESMO AUCTOR


     O Crime do Padre Amaro, ediÁ„o inteiramente refundida, recomposta,
     e differente na fÛrma e na acÁ„o da ediÁ„o primitiva. 1 grosso vol.
     1$200

     O Primo Bazilio. 3.^a ediÁ„o. 1 grosso vol. 1$000

     O Mandarim. 2.^a ediÁ„o. 1 vol. 500

     A Reliquia. 1 grosso vol. 1$000




OS MAIAS

VOLUME I




OS MAIAS




I


A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era
conhecida na visinhanÁa da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o
bairro das Janellas Verdes, pela _casa do Ramalhete_ ou simplesmente o
_Ramalhete_. Apesar d'este fresco nome de vivenda campestre, o
_Ramalhete_, sombrio casar„o de paredes severas, com um renque de
estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma timida
fila de janellinhas abrigadas · beira do telhado, tinha o aspecto
tristonho de Residencia Ecclesiastica que competia a uma edificaÁ„o do
reinado da sr.^a D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo
assimilhar-se-hia a um Collegio de Jesuitas. O nome de Ramalhete
provinha de certo d'um revestimento quadrado de azulejos fazendo painel
no logar heraldico do Escudo d'Armas, que nunca chegara a ser collocado,
e representando um grande ramo de girasoes atado por uma fita onde se
distinguiam letras e numeros d'uma data.

Longos annos o Ramalhete permanecera deshabitado, com teias d'aranha
pelas grades dos postigos terreos, e cobrindo-se de tons de ruina. Em
1858 Monsenhor Buccarini, Nuncio de S. Santidade, visitara-o com idÈa
d'installar l· a Nunciatura, seduzido pela gravidade clerical do
edificio e pela paz dormente do bairro: e o interior do casar„o
agradara-lhe tambem, com a sua disposiÁ„o apalaÁada, os tectos
apainelados, as paredes cobertas de _frescos_ onde j· desmaiavam as
rosas das grinaldas e as faces dos Cupidinhos. Mas Monsenhor, com os
seus habitos de rico prelado romano, necessitava na sua vivenda os
arvoredos e as agoas d'um jardim de luxo: e o Ramalhete possuia apenas,
ao fundo d'um terraÁo de tijolo, um pobre quintal inculto, abandonado ·s
hervas bravas, com um cypreste, um cedro, uma cascatasinha secca, um
tanque entulhado, e uma estatua de marmore (onde Monsenhor reconheceu
logo Venus CitherÍa) ennegrecendo a um canto na lenta humidade das
ramagens silvestres. AlÈm d'isso, a renda que pedio o velho VillaÁa,
procurador dos Maias, pareceu t„o exagerada a Monsenhor, que lhe
perguntou sorrindo se ainda julgava a Egreja nos tempos de Le„o X.
VillaÁa respondeu--que tambem a nobreza n„o estava nos tempos do sr. D.
Jo„o V. E o Ramalhete continuou deshabitado.

Este inutil pardieiro (como lhe chamava VillaÁa Junior, agora por morte
de seu pae administrador dos Maias) sÛ veio a servir, nos fins de 1870,
para l· se arrecadaram as mobilias e as louÁas provenientes do palacete
de familia em Bemfica, morada quasi historica, que, depois de andar
annos em praÁa, fÙra ent„o comprada por um commendador brazileiro.
N'essa occasi„o vendera-se outra propriedade dos Maias, a _Tojeira_; e
algumas raras pessoas que em Lisboa ainda se lembravam dos Maias, e
sabiam que desde a RegeneraÁ„o elles viviam retirados na sua quinta de
Santa Olavia, nas margens do Douro, tinham perguntado a VillaÁa se essa
gente estava atrapalhada.

--Ainda teem um pedaÁo de p„o, disse VillaÁa sorrindo, e a manteiga para
lhe barrar por cima.

Os Maias eram uma antiga familia da Beira, sempre pouco numerosa, sem
linhas collateraes, sem parentellas--e agora reduzida a dois varıes, o
senhor da casa, Affonso da Maia, um velho j·, quasi um antepassado, mais
edoso que o seculo, e seu neto Carlos que estudava medicina em Coimbra.
Quando Affonso se retirara definitivamente para Santa Olavia, o
rendimento da casa excedia j· cincoenta mil cruzados: mas desde ent„o
tinham-se accumulado as economias de vinte annos de aldÍa; viera tambem
a heranÁa d'um ultimo parente, Sebasti„o da Maia, que desde 1830 vivia
em Napoles, sÛ, occupando-se de numismatica;--e o procurador podia
certamente sorrir com seguranÁa quando fallava dos Maias e da sua fatia
de p„o.

A venda da _Tojeira_ fÙra realmente aconselhada por VillaÁa: mas nunca
elle approvara que Affonso se desfizesse de Bemfica--sÛ pela ras„o
d'aquelles muros terem visto tantos desgostos domesticos. Isso, como
dizia VillaÁa, acontecia a todos os muros. O resultado era que os Maias,
com o Ramalhete inhabitavel, n„o possuiam agora uma casa em Lisboa; e se
Affonso n'aquella edade amava o socego de Santa Olavia, seu neto, rapaz
de gosto e de luxo que passava as ferias em Paris e Londres, n„o
quereria, depois de formado, ir sepultar-se nos penhascos do Douro. E
com effeito, mezes antes de elle deixar Coimbra, Affonso assombrou
VillaÁa annunciando-lhe que decidira vir habitar o Ramalhete! O
procurador compoz logo um relatorio a enumerar os inconvenientes do
casar„o: o maior era necessitar tantas obras e tantas despezas; depois,
a falta d'um jardim devia ser muito sensivel a quem sahia dos arvoredos
de Santa Olavia; e por fim alludia mesmo a uma lenda, segundo a qual
eram sempre fataes aos Maias as paredes do Ramalhete, ´ainda que
(acrescentava elle n'uma phrase meditada) atÈ me envergonho de mencionar
taes frioleiras n'este seculo de Voltaire, Guisot e outros philosophos
liberaes...ª

Affonso riu muito da phrase, e respondeu que aquellas razıes eram
excellentes--mas elle desejava habitar sob tectos tradiccionalmente
seus; se eram necessarias obras, que se fizessem e largamente; e
emquanto a lendas e agoiros, bastaria abrir de par em par as janellas e
deixar entrar o sol.

S. ex.^a mandava:--e, como esse inverno ia secco, as obras comeÁaram
logo, sob a direcÁ„o d'um Esteves, architecto, politico, e compadre de
VillaÁa. Este artista enthusiasm·ra o procurador com um projecto de
escada apparatosa, flanqueada por duas figuras symbolisando as
conquistas da GuinÈ e da India. E estava ideando tambem uma cascata de
louÁa na sala de jantar--quando, inesperadamente, Carlos appareceu em
Lisboa com um architecto-decorador de Londres, e, depois de estudar com
elle · pressa algumas ornamentaÁıes e alguns tons de estofos,
entregou-lhe as quatro paredes do Ramalhete, para elle ali crear,
exercendo o seu gosto, um interior confortavel, de luxo intelligente e
sobrio.

VillaÁa resentiu amargamente esta desconsideraÁ„o pelo artista nacional;
Esteves foi berrar ao seu Centro politico que isto era um paiz perdido.
E Affonso lamentou tambem que se tivesse despedido o Esteves, exigiu
mesmo que o encarregassem da construcÁ„o das cocheiras. O artista ia
acceitar--quando foi nomeado governador civil.

Ao fim d'um anno, durante o qual Carlos viera frequentemente a Lisboa
collaborar nos trabalhos, ´dar os seus retoques estheticosª--do antigo
Ramalhete sÛ restava a fachada tristonha, que Affonso n„o quizera
alterada por constituir a phisionomia da casa. E VillaÁa n„o duvidou
declarar que Jones Bule (como elle chamava ao inglez) sem despender
despropositadamente, aproveitando atÈ as antigualhas de Bemfica, fizera
do Ramalhete ´um museu.ª

O que surprehendia logo era o pateo, outr'ora t„o lobrego, n˙, lageado
de pedregulho--agora resplandecente, com um pavimento quadrilhado de
marmores brancos e vermelhos, plantas decorativas, vazos de Quimper, e
dois longos bancos feudaes que Carlos trouxera de Hespanha, trabalhados
em talha, solemnes como cÛros de cathedral. Em cima, na antecamara,
revestida como uma tenda de estofos do Oriente, todo o rumor de passos
morria: e ornavam-n'a divans cobertos de tapetes persas, largos pratos
mouriscos com reflexos metalicos de cobre, uma harmonia de tons severos,
onde destacava, na brancura immaculada do marmore, uma figura de
rapariga friorenta, arripiando-se, rindo, ao metter o pÈsinho n'agoa.
D'ahi partia um amplo corredor, ornado com as peÁas ricas de Bemfica,
arcas gothicas, jarrıes da India, e antigos quadros devotos. As melhores
salas do Ramalhete abriam para essa galeria. No sal„o nobre, raramente
usado, todo em brocados de velludo cÙr de musgo d'outono, havia uma
bella tÈla de Constable, o retrato da sogra de Affonso, a condessa de
Runa, de tricorne de plumas e vestido escarlate de caÁadora ingleza,
sobre um fundo de paisagem enevoada. Uma sala mais pequena, ao lado,
onde se fazia musica, tinha um ar de seculo XVIII com seus moveis
enramelhetados d'ouro, as suas sedas de ramagens brilhantes: duas
tapeÁarias de Gobelins, desmaiadas, em tons cinzentos, cobriam as
paredes de pastores e d'arvoredos.

Defronte era o bilhar, forrado d'um couro moderno trazido por Jones
Bule, onde, por entre a desordem de ramagens verde-garrafa, esvoaÁavam
cegonhas prateadas. E, ao lado, achava-se o _fumoir_, a sala mais
commoda do Ramalhete: as ottomanas tinham a fÙfa vastid„o de leitos; e o
conchego quente, e um pouco sombrio dos estofos escarlates e pretos era
alegrado pelas cores cantantes de velhas faienÁas hollandezas.

Ao fundo do corredor ficava o escriptorio de Affonso, revestido de
damascos vermelhos como uma velha camara de prelado. A macissa meza de
pau preto, as estantes baixas de carvalho lavrado, o solemne luxo das
encadernaÁıes, tudo tinha ali uma feiÁ„o austera de paz
estudiosa--realÁada ainda por um quadro attribuido a Rubens, antiga
reliquia da casa, um Christo na Cruz, destacando a sua nudez de athleta
sobre um ceu de poente revolto e rubro. Ao lado do fog„o Carlos
arranjara um canto para o avÙ com um biombo japonez bordado a ouro, uma
pelle d'urso branco, e uma veneravel cadeira de braÁos, cuja tapeÁaria
mostrava ainda as armas dos Maias no desmaio da trama de sÍda.

No corredor do segundo andar, guarnecido com retratos de familia,
estavam os quartos de Affonso. Carlos despozera os seus, n'um angulo da
casa, com uma entrada particular, e janellas sobre o jardim: eram tres
gabinetes a seguir, sem portas, unidos pelo mesmo tapete: e, os recostos
acolchoados, a sÍda que forrava as paredes, faziam dizer ao VillaÁa que
aquillo n„o eram aposentos de medico--mas de danÁarina!

A casa, depois de arranjada, ficou vazia emquanto Carlos, j· formado,
fazia uma longa viagem pela Europa;--e foi sÛ nas vesperas da sua
chegada, n'esse lindo outono de 1875, que Affonso se resolveu emfim a
deixar Santa Olavia e vir installar-se no Ramalhete. Havia vinte e cinco
annos que elle n„o via Lisboa; e, ao fim de alguns curtos dias,
confessou ao VillaÁa que estava suspirando outra vez pelas suas sombras
de Santa Olavia. Mas, que remedio! N„o queria viver muito separado do
neto; e Carlos agora, com idÈas sÈrias de carreira activa, devia
necessariamente habitar Lisboa... De resto, n„o desgostava do Ramalhete,
apezar de Carlos, com o seu fervor pelo luxo dos climas frios, ter
prodigalisado de mais as tapeÁarias, os pesados reposteiros, e os
velludos. Agradava-lhe tambem muito a visinhanÁa, aquella dÙce quietaÁ„o
de suburbio adormecido ao sol. E gostava atÈ do seu quintalejo. N„o era
de certo o jardim de Santa Olavia: mas tinha o ar sympathico, com os
seus girasoes perfilados ao pÈ dos degraus do terraÁo, o cypreste e o
cedro envelhecendo juntos como dois amigos tristes, e a Venus CytherÍa
parecendo agora, no seu tom claro de estatua de parque, ter chegado de
Versalhes, do fundo do grande seculo... E desde que a agoa abundava, a
cascatasinha era deliciosa, dentro do nicho de conchas, com os seus tres
pedregulhos arranjados em despenhadeiro bucolico, melancolisando aquelle
fundo de quintal soalheiro com um pranto de nayade domestica, esfiado
gota a gota na bacia de marmore.

O que desconsolara Affonso, ao principio, fÙra a vista do
terraÁo--d'onde outr'ora, de certo, se abrangia atÈ ao mar. Mas as casas
edificadas em redor, nos ultimos annos, tinham tapado esse horizonte
explendido. Agora, uma estreita tira de agoa e monte que se avistava
entre dois predios de cinco andares, separados por um cÛrte de rua,
formava toda a paizagem defronte do Ramalhete. E, todavia, Affonso
terminou por lhe descobrir um encanto intimo. Era como uma tÈla marinha,
encaixilhada em cantarias brancas, suspensa do cÈu azul em face do
terraÁo, mostrando, nas variedades infinitas de cÙr e luz, os episodios
fugitivos d'uma pacata vida de rio: ·s vezes uma vÈla de barco da
Trafaria fugindo airosamente · bolina; outras vezes uma galera toda em
panno, entrando n'um favor da aragem, vagarosa, no vermelho da tarde; ou
ent„o a melancolia d'um grande paquete, descendo, fechado e preparado
para a vaga, entrevisto um momento, desapparecendo logo, como j·
devorado pelo mar incerto; ou ainda durante dias, no pÛ d'ouro das
sestas silenciosas, o vulto negro de um couraÁado inglez... E sempre ao
fundo o pedaÁo de monte verde-negro, com um moinho parado no alto, e
duas casas brancas ao rez d'agoa, cheias de express„o--ora faiscantes e
despedindo raios das vidraÁas accezas em braza; ora tomando aos fins de
tarde um ar pensativo, cobertas dos rosados tenros de poente, quasi
similhantes a um rubor humano; e d'uma tristeza arripiada nos dias de
chuva, t„o sÛs, t„o brancas, como nuas, sob o tempo agreste.

O terraÁo communicava por tres portas envidraÁadas com o escriptorio--e
foi n'essa bella camara de prelado que Affonso se acostumou logo a
passar os seus dias, no recanto aconchegado que o neto lhe preparara
ternamente, ao lado do fog„o. A sua longa residencia em Inglaterra
dera-lhe o amor dos suaves vagares junto do lume. Em Santa Olavia as
chaminÈs ficavam accezas atÈ Abril; depois ornavam-se de braÁadas de
flÙres, como um altar domestico; e era ainda ahi, n'esse aroma e n'essa
frescura, que elle gozava melhor o seu cachimbo, o seu Tacito, ou o seu
querido Rabelais.

Todavia, Affonso ainda ia longe, como elle dizia, de ser um velho
borralheiro. N'aquella edade, de ver„o ou de inverno, ao romper do sol,
estava a pÈ, sahindo logo para a quinta, depois da sua boa oraÁ„o da
manh„ que era um grande mergulho na agoa fria. Sempre tivera o amor
supersticioso da agoa; e costumava dizer que nada havia melhor para o
homem--que sabor d'agoa, som d'agoa, e vista d'agoa. O que o prendera
mais a Santa Olavia fÙra a sua grande riqueza d'agoas vivas, nascentes,
repuxos, tranquillo espelhar d'agoas paradas, fresco murmurio de agoas
regantes... E a esta viva tonificaÁ„o da agoa attribuia elle o ter vindo
assim, desde o comeÁo do seculo, sem uma dÙr e sem uma doenÁa, mantendo
a rica tradiÁ„o de saude da sua familia, duro, resistente aos desgostos
e annos--que passavam por elle, t„o em v„o, como passavam em v„o, pelos
seus robles de Santa Olavia, annos e vendavaes.

Affonso era um pouco baixo, macisso, de hombros quadrados e fortes: e
com a sua face larga de nariz aquilino, a pelle cÛrada, quasi vermelha,
o cabello branco todo cortado · escovinha, e a barba de neve aguda e
longa--lembrava, como dizia Carlos, um var„o esforÁado das edades
heroicas, um D. Duarte de Menezes ou um Affonso d'Albuquerque. E isto
fazia sorrir o velho, recordar ao neto, gracejando, quanto as
apparencias illudem!

N„o, n„o era Menezes, nem Albuquerque; apenas um antepassado bonacheir„o
que amava os seus livros, o conchego da sua poltrona, o seu _whist_ ao
canto do fog„o. Elle mesmo costumava dizer, que era simplesmente um
egoista:--mas nunca, como agora na velhice, as generosidades do seu
coraÁ„o tinham sido t„o profundas e largas. Parte do seu rendimento
ia-se-lhe por entre os dedos, esparsamente, n'uma caridade enternecida.
Cada vez amava mais o que È pobre e o que È fraco. Em Santa Olavia, as
creanÁas corriam para elle, dos portaes, sentindo-o acariciador e
paciente. Tudo o que vive lhe merecia amor:--e era dos que n„o pisam um
formigueiro, e se compadece da sÍde d'uma planta.

VillaÁa costumava dizer que lhe lembrava sempre o que se conta dos
patriarchas, quando o vinha encontrar ao canto da chaminÈ, na sua coÁada
quinzena de velludilho, sereno, risonho, com um livro na m„o, o seu
velho gato aos pÈs. Este pesado e enorme angor·, branco com malhas
louras, era agora (desde a morte de _Tobias_, o soberbo c„o de S.
Bernardo) o fiel companheiro de Affonso. Tinha nascido em Santa Olavia,
e recebera ent„o o nome de Bonifacio: depois, ao chegar · edade do amor
e da caÁa, fora-lhe dado o appellido mais cavalheiresco de D. Bonifacio
de Calatrava: agora, dorminhoco e obeso, entrara definitivamente no
remanso das dignidades ecclesiasticas, e era o Reverendo Bonifacio...


Esta existencia nem sempre assim correra com a tranquillidade larga e
clara d'um bello rio de ver„o. O antepassado, cujos olhos se enchiam
agora d'uma luz de ternura diante das suas rosas, e que ao canto do lume
relia com gosto o seu Guisot, fÙra, na opini„o de seu pae, algum tempo,
o mais feroz Jacobino de Portugal! E todavia, o furor revolucionario do
pobre moÁo consistira em lÍr Rousseau, Volney, Helvetius, e a
Encyclopedia; em atirar foguetes de lagrimas · ConstituiÁ„o; e ir, de
chapeu · liberal e alta gravata azul, recitando pelas lojas maÁonicas
Odes abominaveis ao Supremo Architecto do Universo. Isto, porÈm, bast·ra
para indignar o pae. Caetano da Maia era um portuguez antigo e fiel que
se benzia ao nome de Robespierre, e que, na sua apathia de fidalgo beato
e doente, tinha sÛ um sentimento vivo--o horror, o odio ao Jacobino,
aquem attribuia todos os males, os da patria e os seus, desde a perda
das colonias atÈ ·s crises da sua gota. Para extirpar da naÁ„o o
Jacobino, dÈra elle o seu amor ao sr. infante D. Miguel, Messias forte e
Restaurador providencial... E ter justamente por filho um Jacobino,
parecia-lhe uma provaÁ„o comparavel sÛ ·s de Job!

Ao principio, na esperanÁa que o menino se emendasse, contentou-se em
lhe mostrar um car„o severo e chamar-lhe com sarcasmo--_cidad„o_! Mas
quando soube que seu filho, o seu herdeiro, se misturara · turba que,
n'uma noite de festa civica e de luminarias, tinha apedrejado as
vidraÁas apagadas do sr. Legado d'¡ustria, enviado da Santa
AllianÁa--considerou o rapaz um Marat e toda a sua colera rompeu. A gota
cruel, cravando-o na poltrona, n„o lhe deixou espancar o maÁ„o, com a
sua bengala da India, · lei de bom pae portuguez: mas decidiu expulsal-o
de sua casa, sem mezada e sem benÁ„o, renegado como um bastardo! Que
aquelle pedreiro livre n„o podia ser do seu sangue!

As lagrimas da mam„ amolleceram-n'o; sobretudo as razıes d'uma cunhada
de sua mulher, que vivia com elles em Bemfica, senhora irlandeza de alta
instrucÁ„o, Minerva respeitada e tutelar, que ensinara inglez ao menino
e o adorava como um bÈbÈ. Caetano da Maia limitou-se a desterrar o filho
para a quinta de Santa Olavia; mas n„o cessou de chorar no seio dos
padres, que vinham a Bemfica, a desgraÁa da sua casa. E esses santos l·
o consolavam, affirmando-lhe que Deus, o velho Deus d'Ourique, n„o
permittiria j·mais que um Maia pactuasse com Belzebut e com a RevoluÁ„o!
E, · falta de Deus Padre, l· estava Nossa Senhora da Soledade, padroeira
da casa e madrinha do menino, para fazer o bom milagre.

E o milagre fez-se. Mezes depois, o Jacobino, o Marat, voltava de Santa
Olavia um pouco contricto, enfastiado sobretudo d'aquella solid„o, onde
os ch·s do brigadeiro Senna eram ainda mais tristes que o terÁo das
primas Cunhas. Vinha pedir ao pae a benÁ„o, e alguns mil cruzados, para
ir a Inglaterra, esse paiz de vivos prados e de cabellos d'ouro de que
lhe fallara tanto a tia Fanny. O pae beijou-o, todo em lagrimas, accedeu
a tudo fervorosamente, vendo ali a evidente, a gloriosa intercess„o de
Nossa Senhora da Soledade! E o mesmo Frei Jeronymo da ConceiÁ„o seu
confessor, declarou este milagre--n„o inferior ao de Carnaxide.

Affonso partiu. Era na primavera--e a Inglaterra toda verde, os seus
parques de luxo, os copiosos confortos, a harmonia penetrante dos seus
nobres costumes, aquella raÁa t„o sÈria e t„o forte--encantaram-n'o. Bem
depressa esqueceu o seu odio aos sorumbaticos padres da CongregaÁ„o, as
horas ardentes passadas no cafÈ dos Romulares a recitar Mirabeau, e a
Republica que quizera fundar, classica e voltarianna, com um triumvirato
de Scipiıes e festas ao Ente Supremo. Durante os dias da _Abrilada_
estava elle nas corridas d'Epsom, no alto d'uma sege de posta, com um
grande nariz postiÁo, dando _hurrahs_ medonhos--bem indifferente aos
seus irm„os de MaÁonaria, que a essas horas o sr. infante espicaÁava a
chuÁo, pelas viellas do Bairro Alto, no seu rijo cavallo d'Alter.

Seu pae morreu de subito, elle teve de regressar a Lisboa. Foi ent„o que
conheceu D. Maria Eduarda Runa, filha do conde de Runa, uma linda
morena, mimosa e um pouco adoentada. Ao fim do luto casou com ella. Teve
um filho, desejou outros; e comeÁou logo, com bellas idÈas de patriarcha
moÁo, a fazer obras no palacete de Bemfica, a plantar em redor
arvoredos, preparando tectos e sombras · descendencia amada que lhe
encantaria a velhice.

Mas n„o esquecia a Inglaterra:--e tornava-lh'a mais appetecida essa
Lisboa miguelista que elle via, desordenada como uma Tunis barbaresca;
essa rude conjuraÁ„o apostolica de frades e bolieiros, atroando tavernas
e capellas; essa plebe beata, suja e feroz, rolando do _lausperenne_
para o curro, e anciando tumultuosamente pelo principe que lhe encarnava
t„o bem os vicios e as paixıes...

Este espectaculo indignava Affonso da Maia; e muitas vezes, na paz do
ser„o, entre amigos, com o pequeno nos joelhos, exprimiu a indignaÁ„o da
sua alma honesta. J· n„o exigia de certo, como em rapaz, uma Lisboa de
Catıes e de Mucios-Scevolas. J· admittia mesmo o esforÁo d'uma nobreza
para manter o seu privilegio historico; mas ent„o queria uma nobreza
intelligente e digna, como a Aristocracia tory (que o seu amor pela
Inglaterra lhe fazia idealisar), dando em tudo a direcÁ„o moral,
formando os costumes e inspirando a litteratura, vivendo com fausto e
fallando com gosto, exemplo de idÈas altas e espelho de maneiras
patricias... O que n„o tolerava era o mundo de Queluz, bestial e
sordido.

Taes palavras, apenas soltas, voavam a Queluz. E quando se reuniram as
cÙrtes geraes, a policia invadiu Bemfica, ´a procurar papeis e armas
escondidas.ª

Affonso da Maia, com o seu filho nos braÁos e a mulher tremendo ao
lado--viu, impassivelmente e sem uma palavra, a busca, as gavetas
arrombadas pela coronha das escopetas, as m„os sujas do malsim
rebuscando os colxıes do seu leito. O sr. juiz de fÛra n„o descobriu
nada: acceitou mesmo na copa um calice de vinho, e confessou ao mordomo
´que os tempos iam bem duros...ª Desde essa manh„ as janellas do
palacete conservaram-se cerradas; n„o se abriu mais o port„o nobre para
sahir o coche da senhora; e d'ahi a semanas, com a mulher e com o filho,
Affonso da Maia partia para Inglaterra e para o exilio.

Ahi installou-se, com luxo, para uma longa demora, nos arredores de
Londres, junto a Richmond, ao fundo d'um parque, entre as suaves e
calmas paisagens de Surrey.

Os seus bens, graÁas ao credito do conde de Runa, antigo mimoso de D.
Carlota Joaquina, hoje conselheiro rispido do sr. D. Miguel, n„o tinham
sido confiscados; e Affonso da Maia podia viver largamente.

Ao principio os emigrados liberaes, Palmella e a gente do _Belfast_,
ainda o vieram desassocegar e consumir. A sua alma recta n„o tardou a
protestar vendo a separaÁ„o de castas, de gerarchias, mantidas ali na
terra estranha entre os vencidos da mesma idÈa--os fidalgos e os
desembargadores vivendo no luxo de Londres · forra, e a plebe, o
exercito, depois dos padecimentos da Galliza, succumbindo agora · fome,
· vermina, · febre nos barracıes de Plymouth. Teve logo conflictos com
os chefes liberaes; foi accusado de vintista e demagogo; descreu por fim
do liberalismo. Isolou-se ent„o--sem fechar todavia a sua bolsa, d'onde
sahiam ·s cincoenta, ·s cem moedas... Mas quando a primeira expediÁ„o
partiu, e pouco a pouco se foram vasando os depositos de emigrados,
respirou emfim--e, como elle disse, pela primeira vez lhe soube bem o ar
d'Inglaterra!

Mezes depois sua m„e, que ficara em Bemfica, morria d'uma apoplexia: e a
tia Fanny veiu para Richmond completar a felicidade d'Affonso, com o seu
claro juizo, os seus caracÛes brancos, os seus modos de discreta
Minerva. Alli estava elle pois no seu sonho, n'uma digna residencia
ingleza, entre arvores seculares, vendo em redor nas vastas relvas
dormirem ou pastarem os gados de luxo, e sentindo em torno de si tudo
s„o, forte, livre e solido,--como o amava o seu coraÁ„o.

Teve relaÁıes; estudou a nobre e rica litteratura ingleza;
interessou-se, como convinha a um fidalgo em Inglaterra, pela cultura,
pela cria dos cavallos, pela pratica da caridade;--e pensava com prazer
em ficar ali para sempre n'aquella paz e n'aquella ordem.

SÛmente Affonso sentia que sua mulher n„o era feliz. Pensativa e triste,
tossia sempre pelas salas. ¡ noite sentava-se ao fog„o, suspirava e
ficava calada...

Pobre senhora! a nostalgia do paiz, da parentella, das egrejas, ia-a
minando. Verdadeira lisboeta, pequenina e trigueira, sem se queixar e
sorrindo pallidamente, tinha vivido desde que chegara n'um odio surdo
·quella terra d'herejes e ao seu idioma barbaro: sempre arripiada,
abafada em pelles, olhando com pavor os ceus fuscos ou a neve nas
arvores, o seu coraÁ„o n„o estivera nunca alli, mas longe, em Lisboa,
nos adros, nos bairros batidos do sol. A sua devoÁ„o (a devoÁ„o dos
Runas!) sempre grande, exaltara-se, exacerbara-se ·quella hostilidade
ambiente que ella sentia em redor contra os ´papistasª. E sÛ se
satisfazia · noite, indo refugiar-se no sot„o com as creadas
portuguezas, para resar o _terÁo_ agachada n'uma esteira--gosando ali,
n'esse murmurio _d'ave-marias_ em paiz protestante, o encanto de uma
conjuraÁ„o catholica!

Odiando tudo o que era inglez, n„o consentira que seu filho, o Pedrinho,
fosse estudar ao collegio de Richmond. Debalde Affonso lhe provou que
era um collegio catholico. N„o queria: aquelle catholicismo sem
romarias, sem fogueiras pelo S. Jo„o, sem imagens do Senhor dos Passos,
sem frades nas ruas--n„o lhe parecia a religi„o. A alma do seu Pedrinho
n„o abandonaria ella · heresia;--e para o educar mandou vir de Lisboa o
padre Vasques, capell„o do Conde de Runa.

O Vasques ensinava-lhe as declinaÁıes latinas, sobretudo a cartilha: e a
face d'Affonso da Maia cobria-se de tristeza, quando ao voltar d'alguma
caÁada ou das ruas de Londres, d'entre o forte rumor da vida
livre--ouvia no quarto dos estudos a voz dormente do reverendo,
perguntando como do fundo d'uma treva:

--Quantos s„o os inimigos da alma?

E o pequeno, mais dormente, l· ia murmurando:

--Tres. Mundo, Diabo e Carne...

Pobre Pedrinho! Inimigo da sua alma sÛ havia alli o reverendo Vasques,
obeso e sordido, arrotando do fundo da sua poltrona, com o lenÁo do rapÈ
sobre o joelho...

¡s vezes Affonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia a doutrina,
agarrava a m„o do Pedrinho--para o levar, correr com elle sob as arvores
do Tamisa, dissipar-lhe na grande luz do rio o pesadume crasso da
cartilha. Mas a mam„ accudia de dentro, em terror, a abafal-o n'uma
grande manta: depois l· fÛra o menino, acostumado ao collo das creadas e
aos recantos estofados, tinha medo do vento e das arvores: e pouco a
pouco, n'um passo desconsolado, os dois iam pisando em silencio as
folhas seccas--o filho todo acobardado das sombras do bosque vivo, o pae
vergando os hombros pensativo, triste d'aquella fraqueza do filho...

Mas o menor esforÁo d'elle para arrancar o rapaz ·quelles braÁos de m„e
que o amolleciam, ·quella cartilha mortal do padre Vasques--trazia logo
· delicada senhora accessos de febre. E Affonso n„o se atrevia j· a
contrariar a pobre doente, t„o virtuosa, e que o amava tanto! Ia ent„o
lamentar-se para o pÈ da tia Fanny: a sabia irlandeza mettia os oculos
entre as folhas do seu livro, tratado d'Addisson ou poema de Pope, e
encolhia melancolicamente os hombros. Que podia ella fazer!...

Por fim a tosse de Maria Eduarda foi augmentando--como a tristeza das
suas palavras. J· fallava da ´sua ambiÁ„o derradeiraª, que era ver o sol
uma vez mais! Por que n„o voltariam a Bemfica, ao seu lar, agora que o
sr. Infante estava tambem desterrado e que havia uma grande paz? Mas a
isso Affonso n„o cedeu: n„o queria ver outra vez as suas gavetas
arrombadas a coronhadas--e os soldados do sr. D. Pedro n„o lhe davam
mais garantias que os malsins do sr. D. Miguel.

Por esse tempo veio um grave desgosto · casa: a tia Fanny morreu, d'uma
pneumonia, nos frios de marÁo; e isto ennegreceu mais a melancolia de
Maria Eduarda, que a amava muito tambem--por ser irlandeza e catholica.

Para a distrahir, Affonso levou-a para a Italia, para uma deliciosa
_villa_ ao pÈ de Roma. Ahi n„o lhe faltava o sol: tinha-o ponctual e
generoso todas as manh„s, banhando largamente os terraÁos, dourando
loureiraes e myrtos. E depois, l· em baixo, entre marmores, estava a
coisa preciosa e santa, o Papa!

Mas a triste senhora continuava a choramigar. O que realmente appetecia
era Lisboa, as suas novenas, os santos devotos do seu bairro, as
procissıes passando n'um rumor de pachorrenta penitencia por tardes de
sol e de poeira...

Foi necessario calmal-a, voltar a Bemfica.

Ahi comeÁou uma vida desconsolada. Maria Eduarda definhava lentamente,
todos os dias mais pallida, levando semanas immovel sobre um canapÈ, com
as m„os transparentes cruzadas sobre as suas grossas pelles
d'Inglaterra. O padre Vasques, apoderando-se d'aquella alma aterrada
para quem Deus era um amo feroz, torn·ra-se o grande homem da casa. De
resto Affonso encontrava a cada momento pelos corredores outras figuras
canonicas, de capote e solideo, em que reconhecia antigos franciscanos,
ou algum magro capuchinho parasitando no bairro; a casa tinha um bafio
de sachristia; e dos quartos da senhora vinha constantemente, dolente e
vago, um rumor de ladainha.

Todos aquelles santos varıes comiam, bebiam o seu vinho do Porto na
copa. As contas do administrador appareciam sobrecarregadas com as
mesadas piedosas que dava a senhora: um Frei Patricio surripi·ra-lhe
duzentas missas de cruzado por alma do Sr. D. JosÈ I...

Esta carolice que o cercava ia lançando Affonso n'um atheismo rancoroso:
quereria as egrejas fechadas como os mosteiros, as imagens escavacadas a
machado, uma matança de reverendos... Quando sentia na casa a voz de
resas, fugia, ia para o fundo da quinta, sob as trepadeiras do mirante,
ler o seu Voltaire: ou então partia a desabafar com o seu velho amigo, o
coronel Sequeira, que vivia n'uma quinta a Queluz.

O Pedrinho no entanto estava quasi um homem. Ficara pequenino e nervoso
como Maria Eduarda, tendo pouco da raÁa, da forÁa dos Maias; a sua linda
face oval d'um trigueiro calido, dois olhos maravilhosos e
irresistiveis; promptos sempre a humedecer-se, faziam-n'o assemelhar a
um bello arabe. Desenvolvera-se lentamente, sem curiosidades,
indifferente a brinquedos, a animaes, a flores, a livros. Nenhum desejo
forte parecera j·mais vibrar n'aquella alma meia adormecida e passiva:
sÛ ·s vezes dizia que gostaria muito de voltar para a Italia. Tom·ra
birra ao Padre Vasques, mas n„o ousava desobedecer-lhe. Era em tudo um
fraco; e esse abatimento continuo de todo o seu ser resolvia-se a
espaÁos em crises de melancolia negra, que o traziam dias e dias mudo,
murcho, amarello, com as olheiras fundas e j· velho. O seu unico
sentimento vivo, intenso, atÈ ahi, fÙra a paix„o pela m„e.

Affonso quizera-o mandar para Coimbra. Mas, · idÈa de se separar do seu
Pedro, a pobre senhora cahira de joelhos deante d'Affonso, balbuciando e
tremendo: e elle, naturalmente, l· cedeu perante essas m„os
supplicantes, essas lagrimas que cahiam quatro a quatro pela pobre face
de cera. O menino continuou em Bemfica dando os seus lentos passeios a
cavallo, de creado de farda atraz, comeÁando j· a ir beber a sua genebra
aos botequins de Lisboa... Depois foi despontando n'aquella organisaÁ„o
uma grande tendencia amorosa: aos dezenove annos teve o seu
bastardosinho.

Affonso da Maia consolava-se pensando que, apesar de t„o desgraÁados
mimos, n„o faltavam ao rapaz qualidades: era muito esperto, s„o, e, como
todos os Maias, valente: n„o havia muito que elle sÛ, com um chicote,
dispersara na estrada tres saloios de varapau que lhe tinham chamado
_palmito_.

Quando a m„e morreu, n'uma agonia terrivel de devota, debatendo-se dias
nos pavores do inferno, Pedro teve na sua dÙr os arrebatamentos d'uma
loucura. Fizera a promessa hysterica, se ella escapasse, de dormir
durante um anno sobre as lageas do pateo: e levado o caix„o, sahidos os
padres, cahio n'uma angustia soturna, obtusa, sem lagrimas, de que n„o
queria emergir, estirado de bruÁos sobre a cama n'uma obstinaÁ„o de
penitente. Muitos mezes ainda n„o o deixou uma tristeza vaga: e Affonso
da Maia j· se desesperava de ver aquelle rapaz, seu filho e seu
herdeiro, sahir todos os dias a passos de monge, lugubre no seu luto
pesado, para ir visitar a sepultura da mam„...

Esta dÙr exagerada e morbida cessou por fim; e succedeu-lhe, quasi sem
transiÁ„o, um periodo de vida dissipada e turbulenta, estroinice banal,
em que Pedro, levado por um romantismo torpe, procurava affogar em
lupanares e botequins as saudades da mam„. Mas essa exhuberancia anciosa
que se desencadeara t„o subitamente, t„o tumultuosamente, na sua
natureza desequilibrada, gastou-se depressa tambem.

Ao fim d'um anno de disturbios no Marrare, de faÁanhas nas esperas de
toiros, de cavallos esfalfados, de pateadas em S. Carlos, comeÁaram a
reapparecer as antigas crises de melancolia nervosa; voltavam esses dias
taciturnos, longos como desertos, passados em casa a bocejar pelas
salas, ou sob alguma arvore da quinta todo estirado de bruÁos, como
despenhado n'um fundo de amargura. N'esses periodos tornava-se tambem
devoto: lia Vidas de Santos, visitava o Lausperenne: eram d'esses
bruscos abatimentos d'alma que outr'ora levavam os fracos aos mosteiros.

Isto penalisava Affonso da Maia: preferia saber que elle recolhera de
Lisboa, de madrugada, exhausto e bebedo,--do que vel-o, de ripanÁo
debaixo do braÁo, com um ar velho, marchando para a Egreja de Bemfica.

E havia agora uma idÈa que, a seu pesar, ‡s vezes o torturava:
descobrira a grande parecenÁa de Pedro com um avÙ de sua mulher, um
Runa, de quem existia um retrato em Bemfica: este homem extraordinario,
com que na casa se mettia medo ·s creanÁas, enlouquecera--e julgando-se
Judas enforcara-se n'uma figueira...

Mas um dia, excessos e crises findaram. Pedro da Maia amava! Era um amor
· Romeu, vindo de repente n'uma troca de olhares fatal e deslumbradora,
uma d'essas paixıes que assaltam uma existencia, a assolam como um
furac„o, arrancando a vontade, a ras„o, os respeitos humanos e
empurrando-os de rold„o aos abysmos.

N'uma tarde, estando no Marrare, vira parar defronte, · porta de M.^{me}
Levaillant, uma caleche azul onde vinha um velho de chapÈo branco, e uma
senhora loira, embrulhada n'um chale de Cashmira.

O velho, baixote e reforÁado, de barba muito grisalha talhada por baixo
do queixo, uma face tisnada d'antigo embarcadiÁo e o ar gÙche, desceu
todo encostado ao trintanario como se um rheumatismo o tolhesse, entrou
arrastando a perna o portal da modista; e ella voltando de vagar a
cabeÁa olhou um momento o Marrare.

Sob as rosinhas que ornavam o seu chapeu preto os cabellos loiros, d'um
oiro fulvo, ondeavam de leve sobre a testa curta e classica: os olhos
maravilhosos illuminavam-n'a toda; a friagem fazia-lhe mais pallida a
carnaÁ„o de marmore: e com o seu perfil grave de estatua, o modelado
nobre dos hombros e dos braÁos que o chale cingia--pareceu a Pedro
n'esse instante alguma cousa d'immortal e superior · terra.

N„o a conhecia. Mas um rapaz alto, macilento, de bigodes negros, vestido
de negro, que fumava encostado · outra hombreira, n'uma _pose_ de
tedio--vendo o violento interesse de Pedro, o olhar acceso e perturbado
com que seguia a caleche trotando Chiado acima, veiu tomar-lhe o braÁo,
murmurou-lhe junto · face na sua voz grossa e lenta:

--Queres que te diga o nome, meu Pedro? O nome, as origens, as datas e
os feitos principaes? E pagas ao teu amigo Alencar, ao teu sequioso
Alencar, uma garrafa de Champagne?

Veiu o Champagne. E o Alencar, depois de passar os dedos magros pelos
anneis da cabelleira e pelas pontas do bigode, comeÁou, todo recostado e
dando um puch„o aos punhos:

--Por uma dourada tarde d'outomno...

--AndrÈ, gritou Pedro ao creado, martellando o marmore da mesa, retira o
Champagne!

O Alencar bradou, imitando o actor Epiphanio:

--O quÍ! Sem saciar a avidez de meu labio?...

Pois bem, o Champagne ficaria: mas o amigo Alencar, esquecendo que era o
poeta das _Vozes d'Aurora_, explicaria aquella gente da caleche azul
n'uma linguagem christ„ e pratica!...

--Ahi vae, meu Pedro, ahi vae!

Havia dois annos, justamente quando Pedro perdera a mam„, aquelle velho,
o pap· Monforte, uma manh„ rompera subitamente pelas ruas e pela
sociedade de Lisboa n'aquella mesma caleche com essa bella filha ao seu
lado. Ninguem os conhecia. Tinham alugado a Arroios um primeiro andar no
palacete dos Vargas; e a rapariga principiou a apparecer em S. Carlos,
fazendo uma impress„o--uma impress„o de causar aneurismas, dizia o
Alencar! Quando ella atravessava o sal„o os hombros vergavam-se no
deslumbramento de aurÈola que vinha d'aquella magnifica creatura,
arrastando com um passo de Deusa a sua cauda de cÙrte, sempre decotada
como em noites de gala, e apesar de solteira resplandecente de joias. O
pap· nunca lhe dava o braÁo: seguia atraz, entalado n'uma grande gravata
branca de mordomo, parecendo mais tisnado e mais embarcadiÁo na
claridade loira que sahia da filha, encolhido e quasi apavorado,
trazendo nas m„os o oculo, o _libretto_, um saco de _bonbons_, o leque e
o seu proprio guardachuva. Mas era no camarote, quando a luz cahia sobre
o seu collo eburneo e as suas tranÁas de oiro, que ella offerecia
verdadeiramente a encarnaÁ„o d'um ideal da RenascenÁa, um modelo de
Ticiano... Elle, Alencar, na primeira noite em que a vira, exclamara,
mostrando-a a ella e ·s outras, ·s trigueirotas da assignatura:

--Rapazes! È como um ducado de ouro novo entre velhos patacos do tempo
do Sr. D. Jo„o VI!

O Magalh„es, esse torpe pirata, pozera o dito n'um folhetim do
_Portuguez_. Mas o dito era d'elle, Alencar!

Os rapazes, naturalmente, comeÁaram logo a rondar o palacete de Arroios.
Mas nunca n'aquella casa se abria uma janella. Os criados interrogados
disseram apenas que a menina se chamava Maria, e que o senhor se chamava
Manoel. Emfim uma creada, amaciada com seis pintos, soltou mais: o homem
era taciturno, tremia deante da filha, e dormia n'uma rÍde; a senhora,
essa, vivia n'um ninho de sedas todo azul-ferrÍte, e passava o seu dia a
ler novellas. Isto n„o podia satisfazer a sofreguid„o de Lisboa. Fez-se
uma devassa methodica, habil, paciente... Elle, Alencar, pertencera ·
devassa.

E souberam-se horrores. O pap· Monforte era dos AÁores; muito moÁo, uma
facada n'uma rixa, um cadaver a uma esquina tinham-n'o forÁado a fugir a
bordo d'um brigue americano. Tempos depois um certo Silva, procurador da
casa de Taveira, que o conhecera nos AÁores, estando na Havana a estudar
a cultura do tabaco que os Taveiras queriam implantar nas Ilhas
encontr·ra l· o Monforte (que verdadeiramente se chamava Forte) rondando
pelo caes, de chinellas de esparto, · procura de embarque para a
Nova-Orleans. Aqui havia uma treva na historia do Monforte. Parece que
servira algum tempo de feitor n'uma plantaÁ„o da Virginia... Emfim,
quando reappareceu · face dos cÈos commandava o brigue _Nova Linda_, e
levava cargas de pretos para o Brazil, para a Havana e para a Nova
Orleans.

Escapara aos cruzeiros inglezes, arranc·ra uma fortuna da pelle do
africano, e agora rico, homem de bem, proprietario, ia ouvir a Corelli a
S. Carlos. Todavia esta terrivel chronica, como dizia o Alencar, obscura
e mal provada, claudicava aqui e alÈm...

--E a filha? perguntou Pedro, que o escutara, serio e pallido.

Mas isso n„o o sabia o amigo Alencar. Onde a arranjara assim t„o loira e
bella? Quem fÙra a mam„? Onde estava? Quem a ensinara a embrulhar-se com
aquelle gesto real no seu chale de Cashmira?...

--Isso, meu Pedro, s„o


    mysterios que j·mais poude Lisboa
    astuta devassar e sÛ Deus sabe!


Em todo o caso quando Lisboa descobriu aquella legenda de sangue e
negros, o enthusiasmo pela Monforte calmou. Que diabo! Juno tinha sangue
de assassino, a _belt‡_ do Ticiano era filha de negreiro! As senhoras,
deliciando-se em villipendiar uma mulher t„o loira, t„o linda e com
tantas joias, chamaram-lhe logo a _negreira_! Quando ella apparecia
agora no theatro, D. Maria da Gama affectava esconder a face detraz do
leque, porque lhe parecia ver na rapariga (sobretudo quando ella usava
os seus bellos rubis) o sangue das facadas que dera o pap·zinho! E
tinham-n'a calumniado abominavelmente. Assim, depois de passarem em
Lisboa o primeiro inverno, os Monfortes sumiram-se: pois disse-se logo,
com furor, que estavam arruinados, que a policia perseguia o velho, mil
perversidades... O excellente Monforte, que soffre de rheumatismos
articulares, achava-se tranquillamente, ricamente, tomando as aguas dos
Piryneus... Fora l· que o Mello os conhecera...

--Ah! o Mello conhece-os? exclamou Pedro.

--Sim, meu Pedro, o Mello os conhece.

Pedro d'ahi a um momento deixou o Marrare; e n'essa noite, antes de
recolher, apesar da chuva fria e miuda, andou rondando uma hora, com a
imaginaÁ„o toda accesa, o palacete dos Vargas apagado e mudo. Depois,
d'ahi a duas semanas o Alencar, entrando em S. Carlos ao fim do primeiro
acto do _Barbeiro_, ficou assombrado ao ver Pedro da Maia installado na
frisa da Monforte, · frente, ao lado de Maria, com uma camelia escarlate
na casaca--egual ·s d'um ramo pousado no rebordo de velludo.

Nunca Maria Monforte apparecera mais bella: tinha uma d'essas
_toilettes_ excessivas e theatraes que offendiam Lisboa, e faziam dizer
·s senhoras que ella se vestia ´como uma comicaª. Estava de seda cÙr de
trigo, com duas rosas amarellas e uma espiga nas tranÁas, opalas sobre o
collo e nos braÁos; e estes tons de ceara madura batida do sol,
fundindo-se com o ouro dos cabellos, illuminando-lhe a carnaÁ„o eburnea,
banhando as suas fÛrmas de estatua, davam-lhe o esplendor d'uma Ceres.
Ao fundo entreviam-se os grandes bigodes loiros do Mello, que conversava
de pÈ com o pap· Monforte--escondido como sempre no canto negro da
frisa.

O Alencar foi observar ´o casoª do camarote dos Gamas. Pedro volt·ra ·
sua cadeira, e de braÁos cruzados contemplava Maria. Ella conservou
algum tempo a sua attitude de Deusa insensivel; mas, depois, no duetto
de Rosina e Lindor, duas vezes os seus olhos azues e profundos se
fixaram n'elle, gravemente e muito tempo. O Alencar, correu ao Marrare,
de braÁos ao ar, a berrar a novidade.

N„o tardou de resto a fallar-se em toda a Lisboa da paix„o de Pedro da
Maia pela _negreira_. Elle tambem namorou-a publicamente, · antiga,
plantado a uma esquina, defronte do palacete dos Vargas, com os olhos
cravados na janella d'ella, immovel e pallido d'extasi.

Escrevia-lhe todos os dias duas cartas em seis folhas de papel--poemas
desordenados que ia compÙr para o Marrare: e ninguem l· ignorava o
destino d'aquellas paginas de linhas encruzadas que se accumulavam
deante d'elle sobre o taboleiro da genebra. Se algum amigo vinha · porta
do cafÈ perguntar por Pedro da Maia, os criados j· respondiam muito
naturalmente:

--O sr. D. Pedro? Est· a escrever · menina.

E elle mesmo, se o amigo se acercava, estendia-lhe a m„o, exclamava
radiante, com o seu bello e franco sorriso:

--Espera ahi um bocado, rapaz, estou a escrever · Maria!

Os velhos amigos de Affonso da Maia que vinham fazer o seu _whist_ a
Bemfica, sobretudo o VillaÁa, o administrador dos Maias, muito zeloso da
dignidade da casa, n„o tardaram em lhe trazer a nova d'aquelles amores
do Pedrinho. Affonso j· os suspeitava: via todos os dias um criado da
quinta partir com um grande ramo das melhores camelias do jardim; todas
as manh„s cedo encontrava no corredor o escudeiro, dirigindo-se ao
quarto do menino, a cheirar regaladamente o perfume d'um enveloppe com
sinete de lacre dourado;--e n„o lhe desagradava que um sentimento
qualquer, humano e forte, lhe fosse arrancando o filho · estroinice
bulhenta, ao jogo, ·s melancolias sem ras„o em que reapparecia o negro
ripanÁo...

Mas ignorava o nome, a existencia sequer dos Monfortes; e as
particularidades que os amigos lhe revelaram, aquella facada nos AÁores,
o chicote de feitor na Virginia, o brigue _Nova Linda_, toda a sinistra
legenda do velho contrariou muito Affonso da Maia.

Uma noite que o coronel Sequeira, · mesa do _whist_, contava que vira
Maria Monforte e Pedro passeando a cavallo, ´ambos muito bem e muito
_distinguÈs_ª, Affonso, depois d'um silencio, disse com um ar
enfastiado:

--Emfim, todos os rapazes teem as suas amantes... Os costumes s„o assim,
a vida È assim, e seria absurdo querer reprimir taes cousas. Mas essa
mulher, com um pae d'esses, mesmo para amante acho m·.

O VillaÁa suspendeu o baralhar das cartas, e ageitando os oculos d'ouro
exclamou com espanto:

--Amante! Mas a rapariga È solteira, meu senhor, È uma menina
honesta!...

Affonso da Maia enchia o seu cachimbo; as m„os comeÁaram a tremer-lhe; e
voltando-se para o administrador, n'uma voz que tremia um pouco tambem:

--O VillaÁa de certo n„o suppıe que meu filho queira casar com essa
creatura...

O outro emmudeceu. E foi o Sequeira que murmurou:

--Isso n„o, est· claro que n„o...

E o jogo continuou algum tempo em silencio.

Mas Affonso da Maia principiou a andar descontente. Passavam-se semanas
que Pedro n„o jantava em Bemfica. De manh„, se o via, era um momento,
quando elle descia ao almoÁo, j· com uma luva calÁada, apressado e
radiante, gritando para dentro se estava sellado o cavallo; depois,
mesmo de pÈ, bebia um gole de ch·, perguntava a correr ´se o pap· queria
alguma cousaª, dava um geito ao bigode deante do grande espelho de
Veneza sobre o fog„o, e l· partia, enlevado. Outras vezes todo o dia n„o
sahia do quarto: a tarde descia, accendiam-se as luzes; atÈ que o pae,
inquieto, subia, ia encontral-o estirado sobre o leito, com a cabeÁa
enterrada nos braÁos.

--Que tens tu?--perguntava-lhe.

--Enchaqueca,--respondia n'um tom surdo e rouco.

E Affonso descia indignado, vendo em toda aquella angustia covarde
alguma carta que n„o viera, ou talvez uma rosa offerecida que n„o fÙra
posta nos cabellos...

Depois, por vezes, entre dois _robbers_ ou conversando em volta da
bandeja do ch·, os seus amigos tinham observaÁıes que o inquietavam,
partindo d'aquelles homens que habitavam Lisboa, lhe conheciam os
rumores--emquanto elle passava alli, inverno e ver„o, entre os seus
livros e as suas rosas. Era o excellente Sequeira que perguntava porque
n„o faria Pedro uma viagem longa, para se instruir, · Allemanha, ao
Oriente? Ou o velho Luiz Runa, o primo d'Affonso, que, a proposito de
cousas indifferentes, rompia lamentando os tempos em que o Intendente da
policia podia livremente expulsar de Lisboa as pessoas importunas...
Evidentemente alludiam · Monforte, evidentemente julgavam-n'a perigosa.

No ver„o, Pedro partiu para Cintra; Affonso soube que os Monfortes
tinham l· alugado uma casa. Dias depois o VillaÁa appareceu em Bemfica,
muito preoccupado: na vespera Pedro visitara-o no cartorio, pedira-lhe
informaÁıes sobre as suas propriedades, sobre o meio de levantar
dinheiro. Elle l· lhe dissera que em setembro, chegando · sua
maioridade, tinha a legitima da mam„...

--Mas n„o gostei d'isto, meu senhor, n„o gostei d'isto...

--E porque, VillaÁa? O rapaz querer· dinheiro, querer· dar presentes ·
creatura... O amor È um luxo caro, VillaÁa.

--Deus queira que seja isso, meu senhor, Deus o ouÁa!

E aquella confianÁa t„o nobre de Affonso da Maia no orgulho patricio,
nos brios de raÁa de seu filho, chegava a tranquillisar VillaÁa.

D'ahi a dias, Affonso da Maia viu emfim Maria Monforte. Tinha jantado na
quinta do Sequeira ao pÈ de Queluz, e tomavam ambos o seu cafÈ no
mirante, quando entrou pelo caminho estreito que seguia o muro a caleche
azul com os cavallos cobertos de redes. Maria, abrigada sob uma
sombrinha escarlate, trazia um vestido cÙr de rosa cuja roda, toda em
folhos, quasi cobria os joelhos de Pedro sentado ao seu lado: as fitas
do seu chapÈo, apertadas n'um grande laÁo que lhe enchia o peito, eram
tambem cÙr de rosa: e a sua face, grave e pura como um marmore grego,
apparecia realmente adoravel, illuminada pelos olhos d'um azul sombrio,
entre aquelles tons rosados. No assento defronte, quasi todo tomado por
cartıes de modista, encolhia-se o Monforte, de grande chapÈo panam·,
calÁa de ganga, o mantelete da filha no braÁo, o guarda sol entre os
joelhos. Iam callados, n„o viram o mirante; e, no caminho verde e
fresco, a caleche passou com balanÁos lentos, sob os ramos que roÁavam a
sombrinha de Maria. O Sequeira ficara com a chavena de cafÈ junto aos
labios, de olho esgazeado, murmurando:

--Caramba! … bonita!

Affonso n„o respondeu: olhava cabisbaixo aquella sombrinha escarlate,
que agora se inclinava sobre Pedro, quasi o escondia, parecia envolvel-o
todo--como uma larga mancha de sangue alastrando a caleche sob o verde
triste das ramas.

O outono passou, chegou o inverno, frigidissimo. Uma manh„, Pedro entrou
na livraria onde o pae estava lendo junto ao fog„o; recebeu-lhe a
benÁ„o, passou um momento os olhos por um jornal aberto, e voltando-se
bruscamente para elle:

--Meu pae,--disse, esforÁando-se por ser claro e decidido--venho
pedir-lhe licenÁa para casar com uma senhora que se chama Maria
Monforte.

Affonso pousou o livro aberto sobre os joelhos, e n'uma voz grave e
lenta:

--N„o me tinhas fallado d'isso... Creio que È a filha d'um assassino,
d'um negreiro, a quem chamam tambem a _negreira_...

--Meu pae!...

Affonso ergueu-se diante d'elle, rigido e inexoravel como a encarnaÁ„o
mesma da honra domestica.

--Que tens a dizer-me mais? Fazes-me corar de vergonha.

Pedro, mais branco que o lenÁo que tinha na m„o, exclamou todo a tremer,
quasi em soluÁos:

--Pois pÛde estar certo, meu pae, que hei de casar!

Sahiu, atirando furiosamente com a porta. No corredor gritou pelo
escudeiro, muito alto para que o pae ouvisse, e deu-lhe ordem para levar
as suas malas ao hotel da Europa.

Dois dias depois VillaÁa entrou em Bemfica, com as lagrimas nos olhos,
contando que o menino cas·ra n'essa madrugada--e segundo lhe dissera o
Sergio, procurador do Monforte, ia partir com a noiva para a Italia.

Affonso da Maia sent·ra-se n'esse instante · mesa do almoÁo, posta ao pÈ
do fog„o: ao centro, um ramo esfolhava-se n'um vaso do Jap„o, · chamma
forte da lenha: e junto ao talher de Pedro estava o numero da
_Grinalda_, jornal de versos que elle costumava receber... Affonso ouviu
o procurador, grave e mudo, continuando a desdobrar lentamente o seu
guardanapo.

--J· almoÁou, VillaÁa?

O procurador, assombrado d'aquella serenidade, balbuciou:

--J· almocei, meu senhor...

Ent„o Affonso, apontando para o talher de Pedro, disse ao escudeiro:

--PÛde tirar d'alli esse talher, Teixeira. D'aqui por diante ha sÛ um
talher · mesa... Sente-se, VillaÁa, sente-se.

O Teixeira, ainda novo na casa, levantou com indifferenÁa o talher do
menino. VillaÁa sent·ra-se. Tudo em redor era correto e calmo como nas
outras manh„s em que almoÁara em Bemfica. Os passos do escudeiro n„o
faziam ruido no tapete fofo; o lume estalava alegremente, pondo retoques
d'ouro nas pratas polidas; o sol discreto que brilhava fÛra no azul
d'inverno fazia scintillar crystaes de geada nas ramas seccas; e ·
janella o papagaio, muito patulÍa e educado por Pedro, rosnava injurias
aos Cabraes.

Por fim Affonso ergueu-se; esteve olhando abstrahidamente a quinta, os
pavıes no terrasso; depois ao sahir da sala tomou o braÁo de VillaÁa,
apoiou-se n'elle com forÁa, como se lhe tivesse chegado a primeira
tremura da velhice, e no seu abandono sentisse alli uma amizade segura.
Seguiram o corredor, callados. Na livraria Affonso foi occupar a sua
poltrona ao pÈ da janella, comeÁou a encher de vagar o seu cachimbo.
VillaÁa, de cabeÁa baixa, passeava ao comprido das altas estantes, nas
pontas dos pÈs, como no quarto d'um doente. Um bando de pardaes veiu
gralhar um momento nos ramos d'uma alta arvore que roÁava a varanda.
Depois houve um silencio, e Affonso da Maia disse:

--Ent„o, VillaÁa, o Saldanha l· foi demittido do PaÁo?...

O outro respondeu, vaga e machinalmente:

--… verdade, meu senhor, È verdade...

E n„o se fallou mais de Pedro da Maia.




II


Pedro e Maria, no entanto, n'uma felicidade de novella, iam descendo a
Italia, a pequenas jornadas, de cidade em cidade, n'essa via sagrada que
vae desde as flores e das messes da planicie lombarda atÈ ao molle paiz
de romanza, Napoles, branca sob o azul. Era l· que tencionavam passar o
inverno, n'esse ar sempre tepido junto a um mar sempre manso, onde as
preguiÁas de noivado teem uma suavidade mais longa... Mas um dia, em
Roma, Maria sentiu o appetite de Paris. Parecia-lhe fatigante o viajar
assim, aos balouÁos das caleÁas, sÛ para ir ver _lazzaroni_ engolir fios
de macarr„o. Quanto melhor seria habitar um ninho acolchoado nos Campos
Elyseos, e gozarem alli um lindo inverno de amor! Paris estava seguro,
agora, com o principe Luiz Napole„o... AlÈm d'isso, aquella velha Italia
classica enfastiava-a j·: tantos marmores eternos, tantas _madonas_
comeÁavam (como ella dizia pendurada languidamente do pescoÁo de Pedro)
a dar tonturas · sua pobre cabeÁa! Suspirava por uma boa loja de modas,
sob as chammas do gaz, ao rumor do boulevard... Depois tinha medo da
Italia onde todo mundo conspirava.

Foram para FranÁa.

Mas por fim aquelle Paris ainda agitado, onde parecia restar um vago
cheiro de polvora pelas ruas, onde cada face conservava um calor de
batalha, desagradou a Maria. De noite accordava com a _Marselheza_;
achava um ar feroz · policia; tudo permanecia triste; e as duquezas,
pobres anjos, ainda n„o ousavam vir ao _Bois_, com medo dos operarios,
corja insaciavel! Emfim demoraram-se l· atÈ a primavera, no ninho que
ella sonh·ra, todo de velludo azul, abrindo sobre os Campos Elyseos.

Depois principiou a fallar-se de novo em revoluÁ„o, em golpe d'estado. A
admiraÁ„o absurda de Maria pelos novos uniformes da _garde-mobile_ fazia
Pedro nervoso. E quando ella appareceu gravida, anciou por a tirar
d'aquelle Paris batalhador e fascinante, vir abrigal-a na pacata Lisboa
adormecida ao sol.

Antes de partir porÈm escreveu ao pae.

FÙra um conselho, quasi uma exigencia de Maria. A recusa de Affonso da
Maia ao principio desesperara-a. N„o a affligia a desuni„o domestica:
mas aquelle _n„o_ affrontoso de fidalgo puritano marcara muito
publicamente, muito brutalmente, a sua origem suspeita! Odiou o velho: e
tinha apressado o casamento, aquella partida triumphante para Italia,
para lhe mostrar bem que nada valiam genealogias, avÛs godos, brios de
familia--deante dos seus braÁos nus... Agora porÈm que ia voltar a
Lisboa, dar _soirÈes_, crear cÙrte, a reconciliaÁ„o tornava-se
indispensavel; aquelle pae retirado em Bemfica, com o rigido orgulho de
outras edades, faria lembrar constantemente, mesmo entre os seus
espelhos e os seus estofos, o brigue _Nova Linda_ carregado de negros...
E queria mostrar-se a Lisboa pelo braÁo d'esse sogro t„o nobre e t„o
ornamental, com as suas barbas de Viso-rei.

--Dize-lhe que j· o adoro, murmurava ella curvada sobre a escrivaninha
acariciando os cabellos de Pedro. Dize-lhe que se tiver um pequeno lhe
hei de pÙr o nome d'elle... Escreve-lhe uma carta bonita, hein!

E foi bonita, foi terna a carta de Pedro ao pap·. O pobre rapaz amava-o.
Fallou-lhe commovido da esperanÁa de ter um filho var„o; as
desintelligencias deviam findar em torno do berÁo d'aquelle pequeno Maia
que alli vinha, morgado e herdeiro do nome... Contava-lhe a sua
felicidade, com uma effus„o de namorado indiscreto: a historia da
bondade de Maria, das suas graÁas, da sua instrucÁ„o, enchia duas
paginas: e jurava-lhe que apenas chegasse n„o tardaria uma hora em ir
atirar-se aos seus pÈs...

Com effeito, apenas desembarcou, correu n'um trem a Bemfica. Dois dias
antes o pae partira para S.^{ta} Olavia: isto pareceu-lhe uma
desfeita--e feriu-o acerbamente.

Fez-se ent„o entre o pae e o filho uma grande separaÁ„o. Quando lhe
nasceu uma filha Pedro n„o lh'o participou--dizendo dramaticamente ao
VillaÁa ´que j· n„o tinha pae!ª Era uma linda bÈbÈ, muito gorda, loira e
cÙr de rosa, com os bellos olhos negros dos Maias. Apesar do desejo de
Pedro, Maria n„o a quiz crear; mas adorava-a com phrenesi; passava dias
de joelhos ao pÈ do berÁo, em extasi, correndo as suas m„os cheias de
pedrarias pelas carninhas tenras; pondo-lhe beijos de devota nos
pÈsinhos, na rosquinha das cÙxas, balbuciando-lhe n'um enlevo nomes de
grande amor, e perfumando-a j·, enchendo-a j· de laÁarotes.

E n'estes delirios pela filha, brotava, mais amarga, a sua colera contra
Affonso da Maia. Considerava-se ent„o insultada em si mesma e n'aquelle
cherubim que lhe nascera. Injuriava o velho grosseiramente, chamava-lhe
o _D. Fuas_, o _Barbatanas_...

Pedro um dia ouviu isto, e escandalisou-se: ella replicou
desabridamente: e deante d'aquella face abrazada, onde entre lagrimas os
olhos azues pareciam negros de colera, elle sÛ poude balbuciar
timidamente:

--… meu pae, Maria...

Seu pae! E · face de toda a Lisboa tratava-a ent„o como uma concubina!
Podia ser um fidalgo, as maneiras eram de vill„o. Um _D. Fuas_, um
_Barbatanas_, nada mais!...

Arrebatou a filha, e abraÁada n'ella, romperam as queixas por entre os
prantos:

--Ninguem nos ama, meu anjo! Ninguem te quer! Tens sÛ a tua m„e!
Tratam-te como se fosses bastarda!

A bebÈ, sacudida nos braÁos da m„e, desatou a gritar. Pedro correu,
envolveu-as ambas no mesmo abraÁo, j· enternecido, j· humilde; e tudo
terminou n'um longo beijo.

E elle, por fim, no seu coraÁ„o, justificava aquella colera de m„e que
vÍ desprezado o seu anjo. De resto, mesmo alguns amigos de Pedro, o
Alencar, o D. Jo„o da Cunha, que comeÁavam agora a frequentar Arroios,
riam d'aquella obstinaÁ„o de pae gothico, amuado na provincia, porque
sua nora n„o tivera avÛs mortos em Aljubarrota! E onde havia outra em
Lisboa, com aquellas _toilettes_, aquella graÁa, recebendo t„o bem? Que
diabo, o mundo marchara, sahira-se j· das attitudes empertigadas do
seculo XVI!

E o proprio VillaÁa, um dia que Pedro lhe fÙra mostrar a pequerruchinha
adormecida entre as rendas do seu berÁo, sensibilisou-se, veio-lhe uma
das suas faceis lagrimas, declarou, com a m„o no coraÁ„o, que aquillo
era uma caturrice do sr. Affonso da Maia!

--Pois peior para elle! n„o querer ver um anjo d'estes! disse Maria,
dando deante do espelho um lindo geito ·s flores do cabello. Tambem n„o
faz c· falta...

E n„o fazia falta. N'esse outubro, quando a pequena completou o seu
primeiro anno, houve um grande baile na casa de Arroios, que elles agora
occupavam toda, e que fÙra ricamente remobilada. E as senhoras que
outr'ora tinham horror · _negreira_, a D. Maria da Gama que escondia a
face por traz do leque, l· vieram todas, amaveis e decotadas, com o
beijinho prompto, chamando-lhe ´queridaª, admirando as grinaldas de
camelias que emmolduravam os espelhos de quatrocentos mil rÈis, e
gozando muito os gelados.

ComeÁara ent„o uma existencia festiva e luxuosa, que, segundo dizia o
Alencar, o intimo da casa, o cortes„o de Madame, ´tinham um saborsinho
d'orgia _distinguÈe_ como os poemas de Byron.ª Eram realmente as
_soirÈes_ mais alegres de Lisboa: ceiava-se · uma hora com Champagne;
talhava-se atÈ tarde um _monte_ forte; inventavam-se quadros vivos, em
que Maria se mostrara soberanamente bella sob as roupagens classicas de
Helena ou no luxo sombrio do luto oriental de Judith. Nas noites mais
intimas, ella costumava vir fumar com os homens uma cigarrilha
perfumada. Muitas vezes, na sala de bilhar, as palmas estalaram, vendo-a
bater · carambola franceza D. Jo„o da Cunha, o grande taco da epoca.

E no meio d'esta festanÁa, atravessada pelo sopro romantico da
RegeneraÁ„o, l· se via sempre, taciturno e encolhido, o pap· Monforte,
d'alta gravata branca, com as m„os atraz das costas, rondando pelos
cantos, refugiado pelos v„os das janellas, mostrando-se sÛ para salvar
alguma bobËche que Ìa estalar--e n„o desprendendo nunca da filha o olho
embevecido e senil.

Nunca Maria fÙra t„o formosa. A maternidade dera-lhe um esplendor mais
copioso; e enchia verdadeiramente, dava luz ·quellas altas salas de
Arroios, com a sua radiante figura de Juno loira, os diamantes das
tranÁas, o eburneo e o lacteo do collo nu, e o rumor das grandes sedas.
Com ras„o, querendo ter, · maneira das damas da RenascenÁa, uma flÙr que
a symbolisasse, escolhera a tulipa real opulenta e ardente.

Citavam-se os requintes do seu luxo, roupas brancas, rendas do valor de
propriedades!... Podia fazel-o! o marido era rico, e ella sem escrupulo
arruinal-o-hia, a elle e ao pap· Monforte...

Todos os amigos de Pedro, naturalmente, a amavam. O Alencar esse
proclamava-se com alarido seu ´cavalleiro e seu poetaª. Estava sempre em
Arroios, tinha l· o seu talher: por aquellas salas soltava as suas
phrases ressoantes, por esses soph·s arrastava as suas _poses_ de
melancolia. Ia dedicar a Maria (e nada havia mais extraordinario que o
tom langoroso e plangente, o olho turvo, fatal, com que elle pronunciava
este nome--Maria!) ia dedicar-lhe o seu poema, t„o annunciado, t„o
esperado--Flor de Martyrio! E citavam-se as estrophes que lhe fizera ao
gosto cantante do tempo:


    Vi-te essa noite no explendor das sallas
    Com as loiras tranÁas volteando louca...


A paix„o do Alencar era innocente: mas, dos outros intimos da casa, mais
d'um de certo balbuciara j· a sua declaraÁ„o no _boudoir_ azul em que
ella recebia ·s tres horas, entre os seus vasos de tulipas; as suas
amigas porÈm, mesmo as peiores, affirmavam que os seus favores nunca
teriam passado de alguma rosa dada n'um v„o de janella, ou de algum
longo e suave olhar por traz do leque. Pedro todavia comeÁava a ter
horas sombrias. Sem sentir ciumes, vinha-lhe ·s vezes, de repente, um
tedio d'aquella existencia de luxo e de festa, um desejo violento de
sacudir da sala esses homens, os seus intimos, que se atropellavam assim
t„o ardentemente em volta dos hombros decotados de Maria.

Refugiava-se ent„o n'algum canto, trincando com furor o charuto: e ahi,
era em toda a sua alma um tropel de cousas dolorosas e sem nome...

Maria sabia perceber bem na face do marido ´estas nuvensª, como ella
dizia. Corria para elle, tomava-lhe ambas as m„os, com forÁa, com
dominio:

--Que tens tu, amor? Est·s amuado!

--N„o, n„o estou amuado...

--Olha ent„o para mim!...

Collava o seu bello seio contra o peito d'elle; as suas m„os corriam-lhe
os braÁos n'uma caricia lenta e quente, dos pulsos aos hombros; depois,
com um lindo olhar, estendia-lhe os labios. Pedro colhia n'elles um
longo beijo, e ficava consolado de tudo.

Durante esse tempo Affonso da Maia n„o sahia das sombras de St.^a
Olavia, t„o esquecido para l· como se estivesse no seu jazigo. J· se n„o
fallava d'Èlle; em Arroios, _D. Fuas_ estava roendo a teima. SÛ Pedro ·s
vezes perguntava a VillaÁa ´como ia o pap·.ª E as noticias do
administrador enfureciam sempre Maria: o pap· estava optimo; tinha agora
um cosinheiro francez explendido; St.^a Olavia enchera-se de hospedes, o
Sequeira, AndrÈ da Ega, D. Diogo Coutinho...

--O _Barbatanas_ trata-se! ia elle dizer ao pae com rancor.

E o velho negreiro esfregava as m„os, satisfeito de o saber assim feliz
em St.^a Olavia; porque nunca cessara de tremer · idÈa de ver em
Arroios, deante de si, aquelle fidalgo t„o severo e de vida t„o pura.

Quando porÈm Maria teve outro filho, um pequeno, o socego que ent„o se
fez em Arroios trouxe de novo muito vivamente ao coraÁ„o de Pedro a
imagem do pae abandonado n'aquella tristeza do Douro. Fallou a Maria de
reconciliaÁ„o, a medo, aproveitando a fraqueza da convalescenÁa. E a sua
alegria foi grande, quando Maria, depois de ficar um momento pensativa,
respondeu:

--Creio que me havia de fazer feliz tel-o aqui...

Pedro, enthusiasmado com um assentimento t„o inesperado, pensou em
abalar para St.^a Olavia. Mas ella tinha um plano melhor: Affonso,
segundo dizia o VillaÁa, devia recolher em breve a Bemfica; pois bem,
ella iria l· com o pequeno, toda vestida de preto, e de repente,
atirando-se-lhe aos pÈs, pedir-lhe-hia a benÁ„o para seu neto! N„o podia
falhar! N„o podia, realmente; e Pedro viu alli uma alta inspiraÁ„o de
maternidade...

Para abrandar desde j‡ o pap·, Pedro quiz dar ao pequeno o nome de
Affonso. Mas n'isso Maria n„o consentiu. Andava lendo uma novella de que
era heroe o ultimo Stuart, o romanesco principe Carlos Eduardo; e,
namorada d'elle, das suas aventuras e desgraÁas, queria dar esse nome a
seu filho... Carlos Eduardo da Maia! Um tal nome parecia-lhe conter todo
um destino de amores e faÁanhas.

O baptisado teve de ser retardado; Maria adoecera com uma angina. Foi
muito benigna porÈm; e d'ahi a duas semanas Pedro podia j· sahir para
uma caÁada na sua quinta da _Tojeira_, adiante d'Almada. Devia
demorar-se dois dias. A partida arranjara-se unicamente para obsequiar
um italiano, chegado por ent„o a Lisboa, distincto rapaz que lhe fÙra
apresentado pelo secretario da LegaÁ„o Ingleza, e com quem Pedro
sympathisara vivamente; dizia-se sobrinho dos Principes de Soria; e
vinha fugido de Napoles, onde conspir·ra contra os Bourbons e fÙra
condemnado · morte. O Alencar e D. Jo„o Coutinho iam tambem · caÁada--e
a partida foi de madrugada.

N'essa tarde, Maria jantava sÛ no seu quarto, quando sentiu carruagens
parando · porta, um grande rumor encher a escada; quasi immediatamente
Pedro apparecia-lhe tremulo e enfiado:

--Uma grande desgraÁa, Maria!

--Jesus!

--Feri o rapaz, feri o napolitano!...

--Como?

Um desastre estupido!... Ao saltar um barranco, a espingarda
dispara-se-lhe, e a carga, z·s, vae cravar-se no napolitano! N„o era
possivel fazer curativos na _Tojeira_, e voltaram logo a Lisboa. Elle
naturalmËnte n„o consentira que o homem que tinha ferido recolhesse ao
hotel: trouxera-o para Arroios, para o quarto verde por cima, mandara
chamar o medico, duas enfermeiras para o velar, e elle mesmo l· ia
passar a noite...

--E elle?

--Um heroe!... Sorri, diz que n„o È nada, mas eu vejo-o pallido como um
morto. Um rapaz adoravel! Isto sÛ a mim, Senhor! E ent„o o Alencar que
ia mesmo ao pÈ d'elle... Podia antes ter ferido o Alencar, um rapaz
intimo, de confianÁa! atÈ a gente se ria. Mas n„o, z·s, logo o outro, o
de cerimonia...

Uma sege, n'esse instante, entrava o pateo.

--… o medico!

E Pedro abalou.

Voltou, d'ahi a pouco mais tranquillo. O Dr. Guedes quasi rira d'aquella
bagatella, uma chumbada no braÁo, e alguns gr„os perdidos nas costas.
Promettera-lhe que d'ahi a duas semanas podia caÁar outra vez na
_Tojeira_; e o principe estava j· fumando o seu charuto. Bello rapaz!
Parecia sympathisar com o pap· Monforte...

Toda essa noite Maria dormiu mal, na excitaÁ„o vaga que lhe dava aquella
idÈa d'um principe enthusiasta, conspirador, condemnado · morte, ferido
agora por cima do seu quarto.

Logo de manh„ cedo--apenas Pedro sahira a fazer transportar, elle mesmo,
do hotel, as bagagens do napolitano--Maria mandou a sua criada franceza
de quarto, uma bella moÁa d'Arles, acima, saber da parte d'ella como S.
Alteza passara, e ´ver que figura tinhaª. A arlesiana appareceu, com os
olhos brilhantes, a dizer · senhora, nos seus grandes gestos de
ProvenÁal, que nunca vira um homem t„o formoso! Era uma pintura de Nosso
Senhor Jesus Christo! Que pescoÁo, que brancura de marmore! Estava muito
pallido ainda; agradecia enternecido os cuidados de Madame Maia; e
ficara a ler o jornal encostado aos travesseiros...

Maria, desde ent„o, n„o pareceu interessar-se mais pelo ferido. Era
Pedro que vinha, a cada instante, fallar-lhe d'elle, enthusiasmado por
aquella existencia pathetica de principe conspirador, partilhando j· o
seu odio aos Bourbons, encantado com a similitude de gostos que
encontrava n'elle, o mesmo amor da caÁa, dos cavallos, das armas. Agora
logo de manh„, subia para o quarto do Principe, de _robe-de-chambre_, e
cachimbo na boca, e passava l· horas n'uma camaradagem, fazendo _grogs_
quentes--permittidos pelo Dr. Guedes. Levava mesmo para l· os seus
amigos, o Alencar, o D. Jo„o da Cunha. Maria sentia-lhes por cima as
risadas. ¡s vezes tocava-se viola. E o velho Monforte, pasmado para o
heroe, n„o cessava de lhe rondar o leito.

A Arlesiana, essa, tambem a cada momento apparecia l· a levar toalhas de
rendas, um assucareiro que ninguem reclamara, ou algum vaso com flores
para alegrar a alcova... Maria, por fim, perguntou a Pedro, muito seria,
se alÈm de todos os amigos da casa, duas enfermeiras, dois escudeiros, o
pap· e elle Pedro--era necessaria tambem constantemente a sua propria
criada no quarto de Sua Alteza!

N„o era. Mas Pedro riu muito · idea de que a Arlesiana se tivesse
namorado do principe. N'esse caso Venus era-lhe propicia! O napolitano
tambem a achava picante: _un trËs joli brin de femme_, tinha elle dito.

A bella face de Maria impallideceu de colera. Julgava tudo isso de mau
gosto, grosseiro, impudente! Pedro fÙra realmente um doido em trazer
assim para a intimidade de Arroios um estrangeiro, um fugido, um
aventureiro! Demais, aquella troÁa em cima, entre grogs quentes, com
guitarra, sem respeito por ella ainda toda nervosa, toda fraca da
convalescenÁa, indignava-a! Apenas Sua Alteza podesse accommodar-se com
almofadas n'uma sege, queria-o fÛra, na estalagem...

--O que ahi vae! Jesus! o que ahi vae!... disse Pedro.

--… assim.

E de certo foi muito severa tambem com a Arlesianna, por que n'essa
tarde Pedro encontrou a moÁa aos ais no corredor, limpando ao avental os
olhos affogueados.

D'ahi a dias, porÈm, o napolitano, j· convalescente, quiz recolher ao
seu hotel. N„o vira Maria: mas em agradecimento da sua hospitalidade
mandou-lhe um admiravel ramo, e, com uma galanteria de principe artista
da RenascenÁa, um soneto em italiano enrolado entre as flores e t„o
perfumado como ellas: comparava-a a uma nobre dama da Syria dando a gota
de agua da sua bilha ao cavalleiro arabe, ferido na estrada ardente;
comparava-a · Beatriz do Dante.

Isto affigurou-se a todos de uma rara distincÁ„o, e, como disse o
Alencar, um rasgo · Byron.

Depois, na _soirÈe_ do baptisado de Carlos Eduardo, dada d'ahi a uma
semana, o napolitano mostrou-se, e impressionou tudo. Era um homem
esplendido, feito como um Apollo, de uma pallidez de marmore rico: a sua
barba curta e frisada, os seus longos cabellos castanhos, cabellos de
mulher, ondeados e com reflexos de ouro, apartados · nazarena--davam-lhe
realmente, como dizia a Arlesianna, uma physionomia de bello Christo.

DanÁou apenas uma contradanÁa com Maria, e pareceu, na verdade, um pouco
taciturno e orgulhoso: mas tudo n'elle fascinava, a sua figura, o seu
mysterio, atÈ o seu nome de Tancredo. Muitos coraÁıes de mulher
palpitavam quando elle, encostado a uma hombreira, de claque na m„o, uma
melancolia na face, exhalando o encanto pathetico de um condemnado ·
morte, derramava lentamente pela sala o langor sombrio do seu olhar de
velludo. A marqueza d'Alvenga, para o examinar de perto, pediu o braÁo a
Pedro, e foi applicar-lhe, como a um marmore de museo, a sua luneta de
ouro.

--… de appetite! exclamou ella. … uma imagem!... E s„o amigos, s„o
amigos, Pedro?

--Somos como dois irm„os d'armas, minha senhora.

N'essa mesma soirÈe, o VillaÁa inform·ra Pedro que o pae era esperado no
dia seguinte em Bemfica. E Pedro, logo que se recolheram, fallou a Maria
em ´irem fazer a grande scena ao pap·.ª Ella, porÈm, recusou, e com as
razıes mais imprevistas, as mais sensatas. Tinha cogitado muito!
Reconhecia agora que um dos motivos d'aquella teima do pap·--ultimamente
chamava-lhe sempre o pap·--era essa extraordinaria existencia de
Arroios...

--Mas filha, disse Pedro, escuta, nÛs n„o vivemos tambem em plena
orgia... Alguns amigos que veem.

Pois sim, pois sim... Mas, realmente, estava decidida a ter um interior
mais calmo e mais domestico. Era mesmo melhor p'ra os bÈbÈs. Pois bem,
queria que o pap· estivesse convencido d'essa transformaÁ„o, para que as
pazes fossem mais faceis e eternas.

--Deixa passar dois ou tres mezes... Quando elle souber como nÛs vivemos
quietinhos, eu o trarei, socega... … bom tambem que seja quando meu pae
partir para as aguas, para os Pyrineos. Que o pobre pap·, coitado, tem
medo do teu... Filho, n„o achas assim melhor?

--…s um anjo, foi a resposta de Pedro, beijando-lhe ambas as m„os.

Toda a antiga maneira de Maria pareceu com effeito ir mudando.
Suspendera as _soirÈes_. ComeÁou a passar as noites muito recolhidas,
com alguns intimos, no seu _boudoir_ azul. J· n„o fumava; abandonara o
bilhar; e vestida de preto, com uma flÙr nos cabellos, fazia _crochet_
ao pÈ do candieiro. Estudava-se musica classica quando vinha o velho
Cazoti. O Alencar, que, imitando a sua dama, entrara tambem na
gravidade, recitava traducÁıes de Klopstock. Fallava-se com sisudez de
politica; Maria era muito regeneradora.

E todas essas noites, Tancredo l· estava, indolente e bello, desenhando
alguma flÙr para ella bordar, ou tangendo ‡ guitarra canÁıes populares
de Napoles. Todos alli o adoravam; mas ninguem mais que o velho
Monforte, que passava horas, enterrado na sua alta gravata, contemplando
o Principe com enternecimento. Depois, de repente, erguia-se,
atravessava a sala, ia-se debruÁar sobre elle, palpal-o, sentil-o,
respiral-o, murmurando no seu francez de embarcadiÁo:

--_«a aller bien... Hein? Beaucoup bien..._ Ora estimo...

E estas correntes bruscas de affecto communicavam-se decerto, porque
n'esse momento Maria tinha sempre um dos seus lindos sorrisos para o
pap· ou vinha beijal-o na testa.

De dia occupava-se de cousas serias. Organisara uma util associaÁ„o de
caridade, a _Obra pia dos cobertores_, com o fim de fazer no inverno ·s
familias necessitadas distribuiÁıes de agasalhos; e presidia no sal„o de
Arroios, com uma campainha, as reuniıes em que se elaboravam os
estatutos. Visitava os pobres. Ia tambem amiudadas vezes a uma devoÁ„o
·s Egrejas, toda vestida de preto, a pÈ, com um vÈo muito espesso no
rosto.

O esplendor da sua belleza apparecia agora velado por uma sombra tocante
de ternura grave: a Deusa idealisava-se em Madona; e n„o era raro
ouvil-a de repente suspirar sem raz„o.

Ao mesmo tempo a sua paix„o pela filha crescia. Tinha ent„o dois annos e
estava realmente adoravel; vinha todas as noites um momento · sala,
vestida com um luxo de princeza; e as exclamaÁıes, os extasis de
Tancredo n„o findavam! Fizera-lhe o retrato a carv„o, a esfuminho, a
aguarella; ajoelhava-se para lhe beijar a m„osinha cÙr de rosa, como ao
_bambino_ sagrado. E Maria, agora, apesar dos protestos de Pedro, dormia
sempre com ella entre os braÁos.

Ao comeÁo d'esse setembro o velho Monforte partiu para os Pyrineos.
Maria chorou, dependurada do pescoÁo do velho, como se elle largasse de
novo para as travessias de Africa.

Ao jantar, porÈm, chegou j· consolada e radiante; e Pedro voltou a
fallar da reconciliaÁ„o, parecendo-lhe bom o momento de ir a Bemfica
recuperar para sempre aquelle pap· t„o teimoso...

--Ainda n„o, disse ella reflectindo, olhando o seu calice de Bordeus.
Teu pae È uma especie de santo, ainda o n„o merecemos... Mais para o
inverno.


Uma sombria tarde de dezembro, de grande chuva, Affonso da Maia estava
no seu escriptorio lendo, quando a porta se abriu violentamente, e,
alÁando os olhos do livro, viu Pedro deante de si. Vinha todo enlameado,
desalinhado, e na sua face livida, sob os cabellos revoltos, luzia um
olhar de loucura. O velho ergueu-se aterrado. E Pedro sem uma palavra
atirou-se aos braÁos do pae, rompeu a chorar perdidamente.

--Pedro! que succedeu, filho?

Maria morrera, talvez! Uma alegria cruel invadiu-o, · idÈa do filho
livre para sempre dos Monfortes, voltando-lhe, trazendo · sua solid„o os
dois netos, toda uma descendencia para amar! E repetia, tremulo tambem,
desprendendo-o de si com grande amor:

--Socega, filho, que foi?

Pedro ent„o cahiu para o canapÈ, como cae um corpo morto; e levantando
para o pae um rosto devastado, envelhecido, disse, palavra a palavra,
n'uma voz surda:

--Estive fÛra de Lisboa dois dias... Voltei esta manh„... A Maria tinha
fugido de casa com a pequena... Partiu com um homem, um italiano... E
aqui estou!

Affonso da Maia ficou deante do filho, quedo, mudo, como uma figura de
pedra; e a sua bella face, onde todo o sangue subira enchia-se pouco a
pouco, de uma grande colera. Viu, n'um relance, o escandalo, a cidade
galhofando, as compaixıes, o seu nome pela lama. E era aquelle filho
que, despresando a sua auctoridade, ligando-se a essa creatura,
estragara o sangue da raÁa, cobria agora a sua casa de vexame. E alli
estava! alli jazia sem um grito, sem um furor, um arranque brutal de
homem trahido! Vinha atirar-se para um soph·, chorando miseravelmente!
Isto indignou-o, e rompeu a passeiar pela sala, rigido e aspero,
cerrando os labios para que n„o lhe escapassem as palavras de ira e de
injuria que lhe enchiam o peito em tumulto...--Mas era pae: ouvia, alli
ao seu lado, aquelle soluÁar de funda dÙr; via tremer aquelle pobre
corpo desgraÁado que elle outr'ora emballara nos braÁos;--parou junto de
Pedro, tomou-lhe gravemente a cabeÁa entre as m„os, e beijou-o na testa,
uma vez, outra vez, como se elle fosse ainda creanÁa, restituindo-lhe
alli e para sempre a sua ternura inteira.

--Tinha raz„o, meu pae, tinha raz„o, murmurava Pedro entre lagrimas.

Depois ficaram callados. FÛra, as pancadas successivas da chuva batiam a
casa, a quinta, n'um clamor prolongado; e as arvores, sob as janellas,
ramalhavam n'um vasto vento de inverno.

Foi Affonso que quebrou o silencio:

--Mas para onde fugiram, Pedro? Que sabes tu, filho? N„o È sÛ chorar...

--N„o sei nada, respondeu Pedro n'um longo esforÁo. Sei que fugiu. Eu
sahi de Lisboa na segunda feira. N'essa mesma noite, ella partiu de casa
n'uma carruagem, com uma maleta, o cofre de joias, uma creada italiana
que tinha agora, e a pequena. Disse · governante e · ama do pequeno que
ia ter comigo. Ellas estranharam, mas que haviam de dizer?... Quando
voltei, achei esta carta.

Era um papel j· sujo, e desde essa manh„ de certo muitas vezes relido,
amarrotado com furia. Continha estas palavras:

´… uma fatalidade, parto para sempre com Tancredo, esquece-me que n„o
sou digna de ti, e levo a Maria que me n„o posso separar d'ella.ª

--E o pequeno, onde est· o pequeno? exclamou Affonso.

Pedro pareceu recordar-se:

--Est· l· dentro com a ama, trouxe-o na sege.

O velho correu, logo; e d'ahi a pouco apparecia, erguendo nos braÁos o
pequeno, na sua longa capa branca de franjas e a sua touca de rendas.
Era gordo, de olhos muito negros, com uma adoravel bochecha fresca e cÙr
de rosa. Todo elle ria, grulhando, agitando o seu guiso de prata. A ama
n„o passou da porta, tristonha, com os olhos no tapete e uma trouxasinha
na m„o.

Affonso sentou-se lentamente na sua poltrona, e accommodou o neto no
collo. Os olhos enchiam-se-lhe de uma bella luz de ternura; parecia
esquecer a agonia do filho, a vergonha domestica; agora sÛ havia ali
aquella facesinha tenra, que se lhe babava nos braÁos...

--Como se chama elle?

--Carlos Eduardo, murmurou a ama.

--Carlos Eduardo, hein?

Ficou a olhal-o muito tempo, como procurando n'elle os signaes da sua
raÁa: depois tomou-lhe na sua as duas m„osinhas vermelhas que n„o
largavam o guiso, e muito grave, como se a creanÁa o percebesse,
disse-lhe:

--Olha bem para mim. Eu sou o avÙ. … necessario amar o avÙ!

E ·quella forte voz, o pequeno, com effeito, abriu os seus lindos olhos
para elle, serios de repente, muito fixos, sem medo das barbas
grisalhas: depois rompeu a pular-lhe nos braÁos, desprendeu a m„osinha,
e martellou-lhe furiosamente a cabeÁa com o guiso.

Toda a face do velho sorria ·quella viÁosa alegria; apertou-o ao seu
largo peito muito tempo, poz-lhe na face um beijo longo, consolado,
enternecido, o seu primeiro beijo d'avÙ; depois, com todo o cuidado, foi
collocal-o nos braÁos da ama.

--V·, ama, v·... A Gertrudes j· l· anda a arranjar-lhe o quarto, v· vÍr
o que È necessario.

Fechou a porta, e veiu sentar-se junto do filho que se n„o movera do
canto do soph·, nem despreg·ra os olhos do ch„o.

--Agora desabafa, Pedro, conta-me tudo... Olha que nos n„o vemos ha tres
annos, filho...

--Ha mais de tres annos, murmurou Pedro.

Ergueu-se, allongou a vista · quinta, t„o triste sob a chuva; depois,
derramando-a morosamente pela livraria, considerou um momento o seu
proprio retrato, feito em Roma aos doze annos, todo de velludo azul, com
uma rosa na m„o. E repetia ainda amargamente:

--Tinha raz„o, meu pae, tinha raz„o...

E pouco a pouco, passeiando e suspirando, comeÁou a fallar d'aquelles
ultimos annos, o inverno passado em Paris, a vida em Arroios, a
intimidade do italiano na casa, os planos de reconciliaÁ„o, por fim
aquella carta infame, sem pudor, invocando a fatalidade,
arremessando-lhe o nome do outro!... No primeiro momento tivera sÛ idÈas
de sangue e quizera perseguil-os. Mas conservava um clar„o de raz„o.
Seria ridiculo, n„o È verdade? De certo a fuga fora d'antem„o preparada,
e n„o havia de ir correndo as estalagens da Europa · busca de sua
mulher... Ir lamentar-se · policia, fazel-os prender? Uma imbecillidade;
nem impedia que ella fosse j· por esses caminhos fÛra dormindo com
outro... Restava-lhe sÛmente o desprezo. Era uma bonita amante que
tivera alguns annos, e fugira com um homem. Adeus! Ficava-lhe um filho,
sem m„e, com um mau nome. Paciencia! Necessitava esquecer, partir para
uma longa viagem, para a America talvez; e o pae veria, havia de voltar
consolado e forte.

Dizia estas cousas sensatas, passeiando devagar, com o charuto apagado
nos dedos, n'uma voz que se calmava. Mas de repente parou deante do pae,
com um riso secco, um brilho-feroz nos olhos.

--Sempre desejei ver a America, e È boa occasi„o agora... … uma occasi„o
famosa, hein? Posso atÈ naturalisar-me, chegar a presidente, ou
rebentar... Ah! Ah!

--Sim, mais tarde, depois pensar·s n'isso, filho, accudiu o velho
assustado.

N'esse momento a sineta do jantar comeÁou a tocar lentamente, ao fundo
do corredor.

--Ainda janta cedo, hein? disse Pedro.

Teve um suspiro canÁado e lento, murmurou:

--NÛs jantavamos ·s sete...

Quiz ent„o que o pae fosse para a mesa. N„o havia motivo para que se n„o
jantasse. Elle ia um bocado acima, ao seu antigo quarto de solteiro...
Ainda l· tinha a cama, n„o È verdade? N„o, n„o queria tomar nada...

--O Teixeira que me leve um calice de genebra... Ainda c· est· o
Teixeira, coitado!

E vendo Affonso sentado, repetiu, j· impaciente:

--V· jantar meu pae, v· jantar, pelo amor de Deus...

Saiu. O pae ouviu-lhe os passos por cima, e o ruido de janellas
desabridamente abertas. Foi ent„o andando para a sala de jantar, onde os
criados que pela ama sabiam de certo o desgosto se moviam em pontas de
pÈs, com a lentid„o contristada d'uma casa onde ha morte. Affonso
sentou-se · mesa sÛ; mas j· l· estava outra vez o talher de Pedro; rosas
de inverno esfolhavam-se n'um vaso do Jap„o; e o velho papagaio agitado
com a chuva mexia-se furiosamente no poleiro. '

Affonso tomou uma colher de sopa, depois rolou a sua poltrona para junto
do fog„o; e ali ficou envolvido pouco a pouco n'aquelle melancolico
crepusculo de dezembro, com os olhos no lume, escutando o sudoeste
contra as vidraÁas, pensando em todas as cousas terriveis que assim
invadiam n'um tropel pathetico · sua paz de velho. Mas no meio da sua
dÙr, funda como era, elle percebia um ponto, um recanto do seu coraÁ„o
onde alguma cousa de muito doce, de muito novo, palpitava com uma
frescura de renascimento, como se algures, no seu ser, estivesse
rompendo, burbulhando uma nascente rica de alegrias futuras; e toda a
sua face sorria · chama alegre, revendo a bochechinha rosada, sob as
rendas brancas da touca...

Pela casa no entanto tinham-se accendido as luzes. J· inquieto subiu ao
quarto do filho; estava tudo escuro, t„o humido e frio, como se a chuva
caisse dentro. Um arrepio confrangeu o velho, e quando chamou, a voz de
Pedro veiu do negro da janella; estava l·, com a vidraÁa aberta, sentado
fÛra na varanda, voltado para a noite brava, para o sombrio rumor das
ramagens, recebendo na face o vento, a agua, toda a invernia agreste.

--Pois est·s aqui filho! exclamou Affonso. Os criados h„o de querer
arranjar o quarto, desce um momento... Est·s todo molhado, Pedro!

Apalpava-lhe os joelhos, as m„os regeladas. Pedro ergueu-se com um
estremeÁ„o, desprendeu-se, impaciente d'aquella ternura do velho.

--Querem arranjar o quarto, hein? Faz-me bem o ar, faz-me t„o bem!

O Teixeira trouxe luzes, e atraz d'elle appareceu o criado de Pedro, que
cheg·ra n'esse momento de Arroios, com um largo estojo de viagem
recoberto de oleado. As malas tinha-as deixado em baixo; e o cocheiro
viera tambem, como nenhum dos senhores estava em casa...

--Bem, bem, interrompeu Affonso. O sr. VillaÁa l· ir· amanh„, e elle
dar· as ordens.

O criado ent„o, em bicos de pÈs, foi depÙr o estojo sobre o marmore da
commoda: ainda l· restavam antigos frascos de toilette de Pedro: e os
castiÁaes sobre a meza allumiavam o grande leito triste de solteiro com
os colxıes dobrados ao meio.

A Gertrudes toda atarefada entrara com os braÁos carregados de roupa de
cama; o Teixeira bateu vivamente os travesseiros; o criado d'Arroios
pousando o chapÈo a um canto, e sempre em ponta de pÈs, veiu ajudal-os
tambem. Pedro no entanto, como somnambulo, voltara para a varanda, com a
cabeÁa · chuva, attraido por aquella treva da quinta que se cavava em
baixo com um rumor de mar bravo.

Affonso, ent„o, puxou-lhe o braÁo quasi com aspereza.

--Pedro! Deixa arranjar o quarto! Desce um momento.

Elle seguiu maquinalmente o pae · livraria, mordendo o charuto apagado
que desde tarde conservava na m„o. Sentou-se longe da luz, ao canto do
soph·, ali ficou mudo e entorpecido. Muito tempo sÛ os passos lentos do
velho, ao comprido das altas estantes, quebraram o silencio em que toda
a sala ia adormecendo. Uma braza morria no fog„o. A noite parecia mais
aspera. Eram de repente vergastadas d'agua contra as vidraÁas, trazidas
n'uma rajada, que longamente, n'um clamor teimoso, faziam escoar um
diluvio dos telhados; depois havia uma calma tenebroza, com uma
susurraÁ„o distante de vento fugindo entre ramagens: n'esse silencio as
goteiras punham um pranto lento; e logo uma corda de vendaval corria
mais furioso, envolvia a casa n'um bater de janellas, redomoinhava,
partia com silvos desolados.

--Est· uma noite de Inglaterra, disse Affonso, debruÁando-se a espertar
o lume.

Mas a esta palavra Pedro erguera-se, impetuosamente. De certo o ferira a
idÈa de Maria, longe, n'um quarto alheio, agazalhando-se-lhe no leito do
adulterio entre os braÁos do outro. Apertou um instante a cabeÁa nas
m„os, depois veiu junto do pae, com o passo mal firme, mas a voz muito
calma.

--Estou realmente canÁado, meu pae, vou-me deitar. Boa noite... Amanh„
conversaremos mais.

Beijou-lhe a m„o e saiu de vagar.

Affonso demorou-se ainda ali, com um livro na m„o, sem ler, attento sÛ a
algum rumor que viesse de cima; mas tudo jazia em silencio.

Deram dez horas. Antes de se recolher foi ao quarto onde se fizera a
cama da ama. A Gertrudes o criado de Arroios, o Teixeira, estavam l·
cochichando ao pÈ da commoda, na penumbra que dava um folio posto deante
do candieiro; todos se esquivaram em pontas de pÈs quando lhe sentiram
os passos, e a ama continuou a arrumar em silencio os gavetıes. No vasto
leito, o pequeno dormia como um Menino Jesus canÁado, com o seu guiso
apertado na m„o. Affonso n„o ousou beijal-o, para o n„o acordar com as
barbas asperas; mas tocou-lhe na rendinha da camisa, entalou a roupa
contra a parede, deu um geito ao cortinado, enternecido, sentindo toda a
sua dÙr calmar-se n'aquella sombra de alcova onde o seu neto dormia.

--… necessario alguma cousa, ama? perguntou, abafando a voz.

--N„o, meu senhor...

Ent„o, sem ruido, subiu ao quarto de Pedro. Havia uma fenda clara,
entreabriu a porta. O filho escrevia, · luz de duas vellas, com o estojo
aberto ao lado. Pareceu espantado de ver o pae: e na face que ergueu,
envelhecida e livida, dois sulcos negros faziam-lhe os olhos mais
refulgentes e duros.

--Estou a escrever, disse elle.

Esfregou as m„os, como arripiado da friagem do quarto, e accrescentou:

--Amanh„ cedo È necessario que o VillaÁa v· a Arroios... Est„o l· os
criados, tenho l· dois cavalos meus, emfim uma porÁ„o de arranjos. Eu
estou-lhe a escrever. … numero 32 a casa d'elle, n„o È? O Teixeira ha de
saber... Boas noites, pap·, boas noites.

No seu quarto, ao lado da livraria, Affonso n„o poude socegar, n'uma
oppress„o, uma inquietaÁ„o que a cada momento o faziam erguer sobre o
travesseiro escutar: agora, no silencio da casa e do vento que calmara,
ressoavam por cima lentos e continuos os passos de Pedro.

A madrugada clareava, Affonso ia adormecendo--quando de repente um tiro
atroou a casa. Precipitou-se do leito, despido e gritando: um creado
acudia tambem com uma lanterna. Do quarto de Pedro ainda entreaberto
vinha um cheiro de polvora; e aos pÈs da cama, caido de bruÁos, n'uma
poÁa de sangue que se ensopava no tapete, Affonso encontrou seu filho
morto, apertando uma pistola na m„o.

Entre as duas vÈlas que se extinguiam, com fogachos lividos, deix·ra-lhe
uma carta lacrada com estas palavras sobre o enveloppe, n'uma letra
firme: _Para o pap·_.

D'ahi a dias fechou-se a casa de Bemfica. Affonso da Maia partia com o
neto e com todos os criados para a quinta de S.^{ta} Olavia.


Quando VillaÁa, em fevereiro, foi l· acompanhar o corpo de Pedro, que ia
ser depositado no jazigo de familia, n„o pÙde conter as lagrimas ao
avistar aquella vivenda onde pass·ra t„o alegres nataes. Um baet„o preto
recobria o braz„o d'armas, e esse panno de esquife parecia ter
distingido todo o seu negrume sobre a fachada muda, sobre os
castanheiros que ornavam o pateo; dentro os criados abafavam a voz,
carregados de luto; n„o havia uma flor nas jarras; o proprio encanto de
S.^{ta} Olavia, o fresco cantar das aguas vivas por tanques e repuchos,
vinha agora com a cadencia saudosa de um choro. E VillaÁa foi encontrar
Affonso na livraria, com as janellas cerradas ao lindo sol de inverno,
caido para uma poltrona, a face cavada sob os cabellos crescidos e
brancos, as m„os magras e ociosas sobre os joelhos.

O procurador veiu dizer para Lisboa que o velho n„o durava um anno.




III


Mas esse anno passou, outros annos passaram.

Por uma manh„ de abril, nas vesperas de Paschoa, VillaÁa chegava de novo
a S.^{ta} Olavia.

N„o o esperavam t„o cedo; e como era o primeiro dia bonito d'essa
primavera chuvosa os senhores andavam para a quinta. O mordomo, o
Teixeira, que ia j· embranquecendo, mostrou-se todo satisfeito de ver o
sr. administrador com quem ·s vezes se correspondia, e conduziu-o · sala
de jantar onde a velha governante, a Gertrudes, tomada de surpreza,
deixou cair uma pilha de guardanapos e para lhe saltar ao pescoÁo.

As tres portas envidraÁadas estavam abertas para o terraÁo, que se
estendia ao sol, com a sua balustrada de marmore coberta de trepadeiras:
e VillaÁa, adiantando-se para os degraus que desciam ao jardim, mal
poude reconhecer Affonso da Maia n'aquelle velho de barba de neve, mas
t„o robusto e corado, que vinha subindo a rua de romanzeiras com o seu
neto pela m„o.

Carlos, ao avistar no terraÁo um desconhecido, de chapÈo alto, abafado
n'um cache-nez de pelucia, correu a miral-o, curioso--e achou-se
arrebatado nos braÁos do bom VillaÁa, que largara o guarda sol, o
beijava pelo cabello, pela face, balbuciando:

--Oh meu menino, meu querido menino! Que lindo que est·! que crescido
que est·...

--Ent„o, sem avisar, VillaÁa? exclamava Affonso da Maia, chegando de
braÁos abertos. NÛs sÛ o esperavamos para a semana, creatura!

Os dois velhos abraÁaram-se; depois um momento os seus olhos
encontraram-se, vivos e humidos, e tornaram a apertar-se commovidos.

Carlos ao lado, muito serio, todo esbelto, com as m„os enterradas nos
bolsos das suas largas bragas de flanella branca, o casquete da mesma
flanella posta de lado sobre os bellos anneis do cabello
negro--continuava a mirar o VillaÁa, que com o beiÁo tremulo, tendo
tirado a luva, limpava os olhos por baixo dos oculos.

--E ninguem a esperal-o, nem um criado l· em baixo no rio! dizia
Affonso. Emfim, c· o temos, È o essencial... E como vocÍ est· rijo,
VillaÁa!

--E v. ex.^a meu senhor! balbuciou o administrador, engulindo um soluÁo.
Nem uma ruga! Branco sim, mas uma cara de moÁo... Eu nem o conhecia!...
Quando me lembro, a ultima vez que o vi... E c· isto! c· esta linda
flor!...

Ia abraÁar Carlos outra vez enthusiasmado, mas o rapaz fugiu-lhe com uma
bella risada, saltou do terraÁo, foi pendurar-se d'um trapesio armado
entre as arvores, e ficou l·, balanÁando-se em cadencia, forte e airoso,
gritando: ´tu Ès o VillaÁa!ª

O VillaÁa, de guarda sol debaixo do braÁo, contemplava-o embevecido.

--Est· uma linda creanÁa! Faz gosto! E parece-se com o pae. Os mesmos
olhos, olhos dos Maias, o cabello encaracolado... Mas ha de ser muito
mais homem!

--… s„o, È rijo, dizia o velho risonho, anediando as barbas. E como
ficou o seu rapaz, o Manuel? Quando È esse casamento? Venha vocÍ c· para
dentro, VillaÁa, que ha muito que conversar...

Tinham entrado na sala de jantar, onde um lume de lenha na chaminÈ de
azulejo esmorecia na fina e larga luz de abril; porcelanas e pratas
resplandeciam nos aparadores de pau santo; os canarios pareciam doudos
de alegria.

A Gertrudes, que fic·ra a observar, acercou-se, com as m„os cruzadas sob
o avental branco, familiar, terna.

--Ent„o, meu senhor, aqui est· um regalo, vÍr outra vez este ingrato em
S.^{ta} Olavia!

E, com um clar„o de sympathia na face, alva e redonda como uma velha
lua, ornada j· de um buÁo branco:

--Ah! sr. VillaÁa, isto agora È outra cousa! AtÈ os canarios cantam! E
tambem eu cantava, se ainda podesse...

E foi saindo, subitamente commovida, j· com vontade de chorar.

O Teixeira esperava, com um riso superior e mudo que lhe ia d'uma ·
outra ponta dos seus altos collarinhos de mordomo.

--Eu creio que prepararam o quarto azul ao sr. VillaÁa, hein? disse
Affonso. No quarto em que vocÍ costumava ficar dorme agora a
viscondessa...

Ent„o o VillaÁa apressou-se a perguntar pela sr.^a viscondessa. Era uma
Runa, uma prima da mulher de Affonso, que, no tempo em que os poetas de
Caminha a cantavam, cas·ra com um fidalgote gallego, o sr. visconde de
Urigo-de-la-Sierra, um borracho, um brutal que lhe batia: depois, viuva
e pobre, Affonso recolhera-a por dever de parentella, e para haver uma
senhora em S.^{ta} Olavia.

Ultimamente passara mal... Mas, olhando o relogio, Affonso interrompeu a
relaÁ„o d'esses achaques.

--VillaÁa, v·-se arranjar, depressa, que d'aqui a pouco È o jantar.

O administrador surprehendido olhou tambem o relogio, depois a mesa j·
posta, os seis talheres, o cesto de flores, as garrafas de Porto.

--Ent„o v. ex.^a agora janta de manh„? Eu pensei que era o almoÁo...

--Eu lhe digo, o Carlos necessita ter um regimen. De madrugada est· j·
na quinta; almoÁa ·s sete; e janta · uma hora. E eu, emfim, para vigiar
as maneiras do rapaz...

--E o sr. Affonso da Maia, exclamou VillaÁa, a mudar de habitos, n'essa
edade! O que È ser avÙ, meu senhor!

--Tolice! n„o È isso... … que me faz bem. Olhe que me faz bem!... Mas
avie-se VillaÁa, avie-se que Carlos n„o gosta de esperar... Talvez
tenhamos o abbade.

--O Custodio? Rica cousa! Ent„o, se v. ex.^a me d· licenÁa...

Apenas no corredor, o mordomo, ancioso por conversar com o sr.
administrador, perguntou-lhe, desembaraÁando-o do guarda sol e do
chale-manta:

--Com franqueza, como nos acha por c·, pela quinta sr. VillaÁa?

--Estou contente, Teixeira, estou contente. Pode-se vir por gosto a
S.^{ta} Olavia.

E, pousando familiarmente a m„o no hombro do escudeiro, piscando o olho
ainda humido:

--Tudo isto È o menino. Fez reviver o patr„o!

O Teixeira riu respeitosamente. O menino realmente era a alegria da
casa...

--Ol·! Quem toca por c·? exclamou VillaÁa, parando nos degraus da
escada, ao ouvir em cima um afinar gemente de rebeca.

--… o sr. Brown, o inglez, o preceptor do menino... Muito habilidoso, È
um regalo ouvil-o; toca ·s vezes · noite na sala, o sr. juiz de direito
acompanha-o na concertina... Aqui, sr. VillaÁa, o quarto de v. s.^a...

--Muito bonito, sim senhor!

O verniz dos moveis novos brilhava na luz das duas janellas, sobre o
tapete alvadio semeado de florsinhas azues: e as bambinellas, os
reposteiros de cretÛne, repetiam as mesmas folhagens azuladas sobre
fundo claro. Este conforto fresco e campestre deleitou o bom VillaÁa.

Foi logo apalpar os cretÛnes, esfregou o marmore da commoda, provou a
solidez das cadeiras. Eram as mobilias compradas no Porto, hein? Pois,
elegantes. E, realmente, n„o tinham sido caras. Nem elle fazia idÈa!
Ficou ainda em bicos de pÈs a examinar duas aguarellas inglezas
representando vaccas de luxo, deitadas na relva, · sombra de ruinas
romanticas. O Teixeira, observou-lhe, com o relogio na m„o:

--Olhe que v. s.^a tem sÛ dez minutos... O menino n„o gosta de esperar.

Ent„o o VillaÁa decidiu-se a desenrolar o cache-nez; depois tirou o seu
pesado collete de malha de l„; e pela camisa entreaberta via-se ainda
uma flanella escarlate por causa dos rheumatismos, e os bentinhos de
seda bordada. O Teixeira desapertava as correias da maleta; ao fundo do
corredor, a rebeca atacara o _Carnaval de Veneza_; e atravez das
janellas fechadas sentia-se o grande ar, a frescura, a paz dos campos,
todo o verde d'abril.

VillaÁa, sem oculos, um pouco arripiado, passava a ponta da toalha
molhada pelo pescoÁo, por traz da orelha, e ia dizendo:

--Ent„o, o nosso Carlinhos n„o gosta de esperar, hein? J· se sabe, È
elle quem governa... Mimos e mais mimos, naturalmente...

Mas o Teixeira muito grave, muito serio, desilludiu o sr. administrador.
Mimos e mais mimos, dizia s. s.^a? Coitadinho d'elle, que tinha sido
educado com uma vara de ferro! Se elle fosse a contar ao sr. VillaÁa!
N„o tinha a creanÁa cinco annos j· dormia n'um quarto sÛ, sem lamparina;
e todas as manh„s, z·s, para dentro d'uma tina d'agua fria, ·s vezes a
gear l· fÛra... E outras barbaridades. Se n„o se soubesse a grande
paix„o do avÙ pela creanÁa, havia de se dizer que a queria morta. Deus
lhe perdoe, elle, Teixeira, chegara a pensal-o... Mas n„o, parece que
era systema inglez! Deixava-o correr, cair, trepar ·s arvores,
molhar-se, apanhar soalheiras, como um filho de caseiro. E depois o
rigor com as comidas! SÛ a certas horas e de certas cousas... E ·s vezes
a creancinha, com os olhos abertos, a aguar! Muita, muita dureza.

E o Teixeira accrescentou:

--Emfim era a vontade de Deus, saiu forte. Mas que nÛs approvassemos a
educaÁ„o que tem levado, isso nunca approv·mos, nem eu, nem a Gertrudes.

Olhou outra vez o relogio, preso por uma fita negra sobre o collete
branco, deu alguns passos lentos pelo quarto: depois, tomando de sobre a
cama a sobrecasaca do procurador, foi-lhe passando a escova pela gola,
de leve e por amabilidade, em quanto dizia, junto ao toucador onde o
VillaÁa acamava as duas longas repas sobre a calva:

--Sabe v. s.^a, apenas veiu o mestre inglez, o que lhe ensinou? A remar!
A remar, sr. VillaÁa, como um barqueiro! Sem contar o trapesio, e as
habilidades de palhaÁo; eu n'isso nem gosto de fallar... Que eu sou o
primeiro a dizel-o: o Brown È boa pessoa, calado, asseado, excellente
musico. Mas È o que eu tenho repetido · Gertrudes: pÛde ser muito bom
para inglez, n„o È para ensinar um fidalgo portuguez... N„o È. V· v.
s.^a fallar a esse respeito com a sr.^a D. Anna Silveira...

Bateram de manso · porta, o Teixeira emmudeceu. Um escudeiro entrou, fez
um signal ao mordomo, tirou-lhe do braÁo respeitosamente a sobrecasaca,
e ficou com ella junto do toucador, onde o VillaÁa, vermelho e
apressado, luctava ainda com as repas rebeldes.

O Teixeira, da porta, disse com o relogio na m„o:

--… o jantar. Tem v. s.^a dois minutos, sr. VillaÁa.

E o administrador d'ahi a um momento abalava tambem, abotoando ainda o
casaco pelas escadas.

Os senhores j· estavam todos na sala. Junto do fog„o, onde as achas
consumidas morriam na cinza branca, o Brown percorria o _Times_. Carlos,
a cavallo nos joelhos do avÙ, contava-lhe uma grande historia de rapazes
e de bulhas; e ao pÈ o bom abbade Custodio, com o lenÁo de rapÈ
esquecido nas m„os, escutava, de bocca aberta, n'um riso paternal e
terno.

--Olhe quem alli vem, abbade, disse-lhe Affonso.

O abbade voltou-se, e deu uma grande palmada na cÙxa:

--Esta È nova! Ent„o È o nosso VillaÁa? E n„o me tinham dito nada!
Venham de l· esses ossos, homem!...

Carlos pulava nos joelhos do avÙ, muito divertido com aquelles longos
abraÁos que juntavam as duas cabeÁas dos velhos--uma com as repas
achatadas sobre a calva, outra com uma grande corÙa aberta n'uma matta
de cabello branco. E como elles, de m„os dadas, continuavam a
admirar-se, a estudarem um no outro as rugas dos annos, Affonso disse:

--VillaÁa! a sr.^a viscondessa...

O administrador porÈm procurou-a debalde, com os olhos abertos pela
sala. Carlos ria, batendo as m„os:--e VillaÁa descobriu-a emfim a um
canto, entre o aparador e a janella, sentada n'uma cadeirinha baixa,
vestida de preto, timida e queda, com os braÁos rechonchudos pousados
sobre a obesidade da cinta. O rosto anafado e molle, branco como papel,
as roscas do pescoÁo, cobriram-se-lhe subitamente de rubor; n„o achou
uma palavra para dizer ao VillaÁa, e estendeu-lhe a m„o papuda e
pallida, com um dedo embrulhado n'um pedaÁo de seda negra. Depois ficou
a abanar-se com um grande leque de lentejoulas, o seio a arfar, os olhos
no regaÁo, como exhausta d'aquelle esforÁo.

Dois escudeiros tinham comeÁado a servir a sopa, o Teixeira esperava,
perfilado por traz do alto espaldar da cadeira de Affonso.

Mas Carlos cavalgava ainda o avÙ, querendo acabar outra historia. Era o
Manuel, trazia uma pedra na m„o... Elle primeiro pens·ra ir ·s boas; mas
os dois rapazes comeÁaram a rir... De maneira que os correu a todos...

--E maiores que tu?

--Tres rapagıes, vÙvÙ, pÛde perguntar · tia Pedra... Ella viu, que
estava na eira. Um d'elles trazia uma foice...

--Est· bom, senhor, est· bom, ficamos inteirados... V·, desmonte, que
est· a sopa a esfriar. Upa! upa!

E o velho, com o seu aspecto resplandecente de patriarcha feliz, veiu
sentar-se ao alto da meza, sorrindo e dizendo:

--J· se vae fazendo pesado, j· n„o est· para collo...

Mas reparou ent„o no Brown, e tornando a erguer-se fez a apresentaÁ„o do
procurador.

--O sr. Brown, o amigo VillaÁa... PeÁo perd„o, descuidei-me, foi culpa
d'aquelle cavalheiro l· ao fundo da meza, o sr. D. Carlos de mata-sete!

O perceptor, solidamente abotoado na sua longa sobrecasaca militar, deu
toda a volta · meza, rigido e teso, para vir sacudir o VillaÁa n'um
tremendo _shake-hands_; depois, sem uma palavra, reoccupou o seu logar,
desdobrou o guardanapo, cofiou os formidaveis bigodes, e foi ent„o que
disse ao VillaÁa, com o seu forte accento inglez:

--_Muito bello dia... glorioso!_

--Tempo de rosas, respondeu o VillaÁa, comprimentando, intimidado diante
d'aquelle athleta.

Naturalmente, n'esse dia, fallou-se da jornada de Lisboa, do bom serviÁo
da malla-posta, do caminho de ferro que se ia abrir... O VillaÁa j·
viera no comboyo atÈ ao Carregado.

--De causar horror, hein? perguntou o abbade, suspendendo a colher que
ia levar · bocca.

O excellente homem nunca saira de Resende; e todo o largo mundo, que
ficava para alÈm da penumbra da sua sachristia e das arvores do seu
passal, lhe dava o terror d'uma Babel. Sobre tudo essa estrada de ferro,
de que tanto se fallava...

--Faz arripiar um bocado, affirmou com experiencia VillaÁa. Digam o que
disserem, faz arripiar!

Mas o abbade assustava-se sobre tudo com as inevitaveis desgraÁas
d'essas machinas!

O VillaÁa ent„o lembrou os desastres da mala-posta. No de AlcobaÁa,
quando tudo se virou, ficaram esmagadas duas irm„s de caridade! Emfim de
todos os modos havia perigos. Podia-se quebrar uma perna a passear no
quarto...

O abbade gostava do progresso... Achava atÈ necessario o progresso. Mas
parecia-lhe que se queria fazer tudo · lufa-lufa... O paiz n„o estava
para essas invenÁıes; o que precisava eram boas estradinhas...

--E economia! disse o VillaÁa, puxando para si os pimentıes.

--Bucellas? murmurou-lhe sobre o hombro o escudeiro.

O administrador ergueu o copo, depois de cheio, admirou-lhe · luz a cÙr
rica, provou-o com a ponta do labio, e piscando o olho para Affonso:

--… do nosso!

--Do velho, disse Affonso. Pergunte ao Brown... Hein, Brown, um bom
nectar?

--_Magnificente!_ exclamou o perceptor com uma energia fogosa.

Ent„o Carlos, estendendo o braÁo por cima da meza, reclamou tambem
Bucellas. E a sua raz„o era haver festa por ter chegado o VillaÁa. O avÙ
n„o consentiu; o menino teria o seu calice de Collares, como de costume,
e um sÛ. Carlos crusou os braÁos sobre o guardanapo que lhe pendia do
pescoÁo, espantado de tanta injustiÁa! Ent„o nem para festejar o VillaÁa
poderia apanhar uma gotinha de Bucellas? Ahi estava uma linda maneira de
receber os hospedes na quinta... A Gertrudes dissera-lhe que como viera
o sr. administrador, havia de pÙr · noite para o ch· o fato novo de
velludo. Agora observavam-lhe que n„o era festa, nem caso para
Bucellas... Ent„o n„o entendia.

O avÙ, que lhe bebia as palavras, enlevado, fez subitamente um car„o
severo.

--Parece-me que o senhor est· palrando de mais. As pessoas grandes È que
palram ‡ meza.

Carlos recolheu-se logo ao seu prato, murmurando muito mansamente:

--Est· bom, vovÙ, n„o te zangues. Esperarei para quando for grande...

Houve um sorriso em volta da meza. A propria viscondessa, deleitada,
agitou preguiÁosamente o leque: o abbade, com a sua boa face banhada em
extasi para o menino, apertava as m„os cabelludas contra o peito, tanto
aquillo lhe parecia engraÁado: e Affonso tossia por traz do guardanapo,
como limpando as barbas--a esconder o riso, a admiraÁ„o que lhe brilhava
nos olhos.

Tanta vivacidade surprehendeu tambem VillaÁa. Quiz ouvir mais o menino,
e pousando o seu talher:

--E diga-me, Carlinhos, j· vae adiantado nos seus estudos?

O rapaz, sem o olhar, repoltreou-se, mergulhou as m„os pelo cÛs das
flanellas, e respondeu com um tom superior:

--J· faÁo ladear a _Brigida_.

Ent„o o avÙ, sem se conter, largou a rir, cahido para o espaldar da
cadeira:

--Essa È boa! Eh! Eh! J· faz ladear a _Brigida_! E È verdade, VillaÁa,
j· a faz ladear... Pergunte ao Brown; n„o È verdade, Brown? E a eguasita
È uma piorrita, mas fina...

--Oh vovÙ, gritou Carlos j· excitado, dize ao VillaÁa, anda. N„o È
verdade que eu era capaz de governar o _dog-cart_?

Affonso reassumio um ar severo.

--N„o o nego... Talvez o governasse, se lh'o consentissem. Mas faÁa-me
favor de se n„o gabar das suas faÁanhas, porque um bom cavalleiro deve
ser modesto... E sobre tudo n„o enterrar assim as m„os pela barriga
abaixo...

O bom VillaÁa, no entanto, dando estalinhos aos dedos, preparava uma
observaÁ„o. N„o se podia de certo ter melhor prenda que montar a cavallo
com as regras... Mas elle queria dizer se o Carlinhos j· entrava com o
seu Phedro, o seu Tito Liviosinho...

--VillaÁa, VillaÁa, advertiu o abbade, de garfo no ar e um sorriso de
santa malicia, n„o se deve fallar em latim aqui ao nosso nobre amigo...
N„o admitte, acha que È antigo... Elle, antigo È...

--Ora sirva-se d'esse fricassÈ, ande abbade, disse Affonso, que eu sei
que È o seu fraco, e deixe l· o latim...

O abbade obedeceu com deleite; e escolhendo no molho rico os bons
pedaÁos de ave, ia murmurando:

--Deve-se comeÁar pelo latimsinho, deve-se comeÁar por l·... … a base; È
a basesinha!

--N„o! latim mais tarde! exclamou o Brown, com um gesto possante.
Prrimeiro forrÁa! ForrÁa! Musculo...

E repetio, duas vezes, agitando os formidaveis punhos:

--Prrimeiro musculo, musculo!...

Affonso appoiava-o, gravemente. O Brown estava na verdade. O latim era
um luxo d'erudito... Nada mais absurdo que comeÁar a ensinar a uma
creanÁa n'uma lingua morta quem foi Fabio, rei dos Sabinos, o caso dos
Grachos, e outros negocios d'uma naÁ„o extincta, deixando-o ao mesmo
tempo sem saber o que È a chuva que o molha, como se faz o p„o que come,
e todas as outras cousas do Universo em que vive...

--Mas emfim os classicos, arriscou timidamente o abbade.

--Qual classicos! O primeiro dever do homem È viver. E para isso È
necessario ser s„o, e ser forte. Toda a educaÁ„o sensata consiste
n'isto: crear a saude, a forÁa e os seus habitos, desenvolver
exclusivamente o animal, armal-o d'uma grande superioridade physica. Tal
qual como se n„o tivesse alma. A alma vem depois... A alma È outro luxo.
… um luxo de gente grande...

O abbade coÁava a cabeÁa, com o ar arripiado.

--A instrucÁ„osinha È necessaria, disse elle. VocÍ n„o acha, VillaÁa?
Que v. ex^a, sr. Affonso da Maia, tem visto mais mundo do que eu... Mas
emfim a instrucÁ„osinha...

--A instrucÁ„o para uma creanÁa n„o È recitar _Tityre, tu patulae
recubans_... … saber factos, noÁıes, cousas uteis, cousas praticas...

Mas suspendeu-se: e, com o olho brilhante, n'um signal ao VillaÁa,
mostrou-lhe o neto que palrava inglez com o Brown. Eram de certo feitos
de forÁa, uma historia de briga com rapazes que elle lhe estava a
contar, animado e jogando com os punhos. O perceptor approvava,
retorcendo os bigodes. E · mesa os senhores com os garfos suspensos, por
traz os escudeiros de pÈ e guardanapo no braÁo, todos, n'um silencio
reverente, admiravam o menino a fallar inglez.

--Grande prenda, grande prenda, murmurou VillaÁa, inclinando-se para a
Viscondessa.

A excellente senhora cÛrou, atravez d'um sorriso. Parecia assim mais
gorda, toda acaÁapada na cadeira, silenciosa, comendo sempre; e, a cada
gole de Bucellas, refrescava-se languidamente com o seu grande leque
negro e lentejoulado.

Quando o Teixeira serviu o vinho do Porto, Affonso fez uma _saude_ ao
VillaÁa. Todos os copos se ergueram n'um rumor de amizade. Carlos quiz
gritar _Hurrah!_ O avÙ, com um gesto reprehensivo, immobilisou-o; e na
pausa satisfeita que se fez, o pequeno disse com uma grande convicÁ„o:

--Oh avÙ, eu gosto do VillaÁa. O VillaÁa È nosso amigo.

--Muito, e ha muitos annos, meu senhor! exclamou o velho procurador, t„o
commovido que mal podia erguer o calice na m„o.

O jantar findava. FÛra, o sol deix·ra o terrasso e a quinta verdejava na
grande doÁura do ar tranquillo, sob o azul ferrete. Na chaminÈ sÛ
restava uma cinza branca: os lilazes das jarras exhalavam um aroma vivo,
a que se misturava o do creme queimado, tocado de um fio de lim„o: os
creados, de colletes brancos, moviam o serviÁo d'onde se escapava algum
som argentino: e toda a alva toalha adamascada desapparecia sob a
confus„o da sobremesa onde os tons dourados do vinho do Porto brilhavam
entre as compoteiras de crystal. A Viscondessa affogueada abanava-se.
Padre Custodio enrolava devagar o guardanapo, a sua batina coÁada luzia
nas pregas das mangas.

Ent„o Affonso, sorrindo ternamente, fez a ultima saude.

--Viva v. s.^a, snr. Carlos de Matta-sete!

--Sr. VÙvÙ! dizia o pequeno escorropichando o copo.

A cabeÁinha de cabellos negros, a velha face de barbas de neve,
saudavam-se das extremidades da mesa--em quanto todos sorriam, no
enternecimento d'aquella cerimonia. Depois o abbade, de palito na bocca,
murmurou as _graÁas_. A Viscondessa, cerrando os olhos, juntou tambem as
m„os. E VillaÁa que tinha crenÁas religiosas n„o gostou de vÍr Carlos,
sem se importar com as graÁas, saltar da cadeira, vir atirar-se ao
pescoÁo do avÙ, fallar-lhe ao ouvido.

--N„o senhor! n„o senhor! dizia o velho.

Mas o rapaz, abraÁando-o mais forte, dava-lhe grandes razıes, n'um
murmurio de mimo dÙce como um beijo, que ia pondo na face do velho uma
fraqueza indulgente.

--… por ser festa, disse elle emfim vencido. Mas veja l·, veja l·...

O rapaz pulou, bateu as palmas, agarrou VillaÁa pelos braÁos, fÍl-o
redemoinhar, e foi cantando n'um rythmo seu:

--Fizeste bem em vir, bem, bem, bem!... Vou buscar a Therezinha, inha,
inha, inha!

--… a noiva, disse o avÙ, erguendo-se da mesa. J· tem amores, È a
pequena das Silveiras... O cafÈ para o terraÁo, Teixeira.

O dia fÛra convidava, adoravel, d'um azul suave, muito puro e muito
alto, sem uma nuvem. Defronte do terraÁo os geranios vermelhos estavam
j· abertos; as verduras dos arbustos, muito tenras ainda, d'uma
delicadeza de renda, pareciam tremer ao menor sopro; vinha por vezes um
vago cheiro de violetas, misturado ao perfume adocicado das flÙres do
campo; o alto repuxo cantava; e nas ruas do jardim, bordadas de buxos
baixos, a areia fina faiscava de leve ·quelle sol timido de primavera
tardia, que ao longe envolvia os verdes da quinta, adormecida a essa
hora de sesta n'uma luz fresca e loura.

Os tres homens sentaram-se · mesa do cafÈ. Defronte do terraÁo, o Brown,
de bonet escossez posto ao lado e grande cachimbo na bocca, puchava ao
alto a barra do trapezio para Carlos se balouÁar. Ent„o o bom VillaÁa
pedio para voltar as costas. N„o gostava de vÍr gymnasticas; bem sabia
que n„o havia perigo; mas mesmo nos cavallinhos, as cabriolas, os arcos,
atordoavam-n'o; sahia sempre com o estomago embrulhado...

--E parece-me imprudente, sobre o jantar...

--Qual! È sÛ balouÁar-se... Olhe para aquillo!

Mas VillaÁa n„o se moveu, com a face sobre a chavena.

O abbade, esse, admirava, de labios entreabertos, e o pires cheio de
cafÈ esquecido na m„o.

--Olhe para aquillo VillaÁa, repetio Affonso. N„o lhe faz mal, homem!

O bom VillaÁa voltou-se, com esforÁo. O pequeno muito alto no ar, com as
pernas retesadas contra a barra do trapezio, as m„os ·s cordas, descia
sobre o terraÁo, cavando o espaÁo largamente, com os cabellos ao vento;
depois elevava-se, serenamente, crescendo em pleno sol; todo elle
sorria; a sua blusa, os calÁıes enfunavam-se · aragem; e via-se passar,
fugir, o brilho dos seus olhos muito negros e muito abertos.

--N„o est· mais na minha m„o, n„o gosto, disse o VillaÁa. Acho
imprudente!

Ent„o Affonso bateu as palmas, o abbade gritou _bravo, bravo_. VillaÁa
voltou-se para applaudir, mas Carlos tinha j· desapparecido; o trapezio
parava, em oscillaÁıes lentas; e o Brown, retomando o _Times_ que pozera
ao lado sobre o pedestal d'um busto, foi descendo para a quinta
envolvido n'uma nuvem de fumo do cachimbo.

--Bella cousa, a gymnastica! exclamou Affonso da Maia, accendendo com
satisfaÁ„o outro charuto.

VillaÁa j· ouvira que enfraquecia muito o peito. E o abbade, depois de
dar um sorvo ao cafÈ, de lamber os beiÁos, soltou a sua bella phrase,
arranjada em maxima:

--Esta educaÁ„o faz athletas mas n„o faz christ„os. J· o tenho dito...

--J· o tem dito abbade, j·! exclamou Affonso alegremente. Diz-m'o todas
as semanas... Quer vocÍ saber, VillaÁa? O nosso Custodio matta-me o
bicho do ouvido para que eu ensine a cartilha ao rapaz. A cartilha!...

Custodio ficou um momento a olhar Affonso, com uma face desconsolada e a
caixa de rapÈ aberta na m„o; a irreligi„o d'aquelle velho fidalgo,
senhor de quasi toda a freguezia, era uma das suas dÙres:

--A cartilha, sim meu senhor, ainda que v. ex.^a o diga assim com esse
modo escarnica... A cartilha. Mas j· n„o quero fallar na cartilha... Ha
outras cousas. E se o digo tantas vezes, sr. Affonso da Maia, È pelo
amor que tenho ao menino.

E recomeÁou a discuss„o, que voltava sempre ao cafÈ, quando Custodio
jantava na quinta.

O bom homem achava horroroso que n'aquella edade um t„o lindo moÁo,
herdeiro d'uma casa t„o grande, com futuras responsabilidades na
sociedade, n„o soubesse a sua doutrina. E narrou logo ao VillaÁa a
historia da D. Cecilia Macedo: esta virtuosa senhora, mulher do
escriv„o, tendo passado deante do port„o da quinta, avistara o
Carlinhos, chamara-o, carinhosa e amiga de creanÁas como era, e
pedira-lhe que lhe dissesse o _acto de contricÁ„o_. E que respondeu o
menino? _Que nunca em tal ouvira fallar!_ Estas cousas entristeciam. E o
sr. Affonso da Maia achava-lhe graÁa, ria-se! Ora alli estava o amigo
VillaÁa que podia dizer se era caso para jubilar. N„o, o sr. Affonso da
Maia tinha muito saber, e correra muito mundo; mas d'uma cousa n„o o
podia convencer, a elle pobre padre que nem mesmo o Porto vira ainda, È
que houvesse felicidade e bom comportamento na vida sem a moral do
cathecismo.

E Affonso da Maia respondia com bom humor:

--Ent„o que lhe ensinava vocÍ, abbade, se eu lhe entregasse o rapaz? Que
se n„o deve roubar o dinheiro das algibeiras, nem mentir, nem maltratar
os inferiores, por que isso È contra os mandamentos da lei de Deus, e
leva ao inferno, hein? … isso?...

--Ha mais alguma cousa...

--Bem sei. Mas tudo isso que vocÍ lhe ensinaria que se n„o deve fazer,
por ser um peccado que offende a Deus, j· elle sabe que se n„o deve
praticar, por que È indigno d'um cavalheiro e d'um homem de bem...

--Mas, meu senhor...

--OuÁa abbade. Toda a differenÁa È essa. Eu quero que o rapaz seja
virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas n„o por
medo ·s caldeiras de Pero Botelho, nem com o engodo de ir para o reino
do cÈu...

E accrescentou, erguendo-se e sorrindo:

--Mas o verdadeiro dever de homens de bem, abbade, È quando vem, depois
de semanas de chuva, um dia d'estes, ir respirar pelos campos e n„o
estar aqui a discutir moral. Portanto arriba! e se o VillaÁa n„o est·
muito canÁado, vamos dar ahi um giro pelas fazendas...

O abbade suspirou como um santo que vÍ a negra impiedade dos tempos e
Belzebut arrebatando as melhores rezes do rebanho; depois olhou a
chavena e sorveu com delicias o resto do seu cafÈ.

Quando Affonso da Maia, VillaÁa e o abbade recolheram do seu passeio
pela freguezia, escurecera, havia luzes pelas salas, e tinham chegado j·
as Silveiras, senhoras ricas da quinta da _LagoaÁa_.

D. Anna Silveira, a solteira e mais velha, passava pela talentosa da
familia, e era em pontos de doutrina e de etiqueta uma grande
auctoridade em Resende. A viuva, D. Eugenia, limitava-se a ser uma
excellente e pachorrenta senhora, de agradavel nutriÁ„o, trigueirota e
pestanuda; tinha dois filhos, a Theresinha, a _noiva_ de Carlos, uma
rapariguinha magra e viva com cabellos negros como tinta, e o
morgadinho, o Eusebiosinho, uma maravilha muito fallada n'aquelles
sitios.

Quasi desde o berÁo este notavel menino revelara um edificante amor por
alfarrabios e por todas as coisas do saber. Ainda gatinhava e j· a sua
alegria era estar a um canto, sobre uma esteira, embrulhado n'um
cobertor, folheando _in-folios_, com o craneosinho calvo de sabio
curvado sobre as lettras garrafaes de boa doutrina: depois de
crescidinho tinha tal proposito que permanecia horas immovel n'uma
cadeira, de perninhas bambas, esfuracando o nariz: nunca appetecera um
tambor ou uma arma: mas cosiam-lhe cadernos de papel, onde o precoce
letrado, entre o pasmo da mam„ e da titi, passava dias a traÁar
algarismos, com a lingoasinha de fora.

Assim na familia tinha a sua carreira destinada: era rico, havia de ser
primeiro bacharel, e depois desembargador. Quando vinha a Santa Olavia,
a tia Annica installava-o logo · mesa, ao pÈ do candieiro, a admirar as
pinturas d'um enorme e rico volume, os _Costumes de todos os Povos do
Universo_. J· l· estava essa noite, vestido como sempre de escossez, com
o _plaid_ de flamejante xadrez vermelho e negro posto a tiracollo e
preso ao hombro por uma dragona; para que conservasse o ar nobre d'um
Stuart, d'um valoroso cavalleiro de Walter Scott, nunca lhe tiravam o
bonet onde se arqueava com heroismo uma rutilante penna de gallo; e nada
havia mais melancolico que a sua facesinha trombuda, a que o excesso de
lombrigas dava uma molleza e uma amarellid„o de manteiga, os seus
olhinhos vagos e azulados, sem pestanas como se a sciencia lh'as tivesse
j· consummido, pasmando com sisudez para as camponesas da Sicilia, e
para os guerreiros ferozes do Montenegro appoiados a escupetas, em
pincaros de serranias.

Deante do canapÈ das senhoras l· se achava tambem o fiel amigo, o dr.
delegado, grave e digno homem, que havia cinco annos andava ponderando e
meditando o casamento com a Silveira viuva, sem se
decidir--contentando-se em comprar todos os annos mais meia duzia de
lenÁoes, ou uma peÁa mais de bretanha, para arredondar o bragal. Estas
compras eram discutidas em casa das Silveiras, · brazeira: e as allusıes
recatadas, mas inevitaveis, ·s duas fronhasinhas, ao tamanho dos
lenÁoes, aos cobertores de papa para os conchegos de janeiro--em logar
de inflammar o magistrado, inquietavam-n'o. Nos dias seguintes apparecia
preoccupado--como se a perspectiva da santa consummaÁ„o do matrimonio
lhe dÈsse o arrepio de uma faÁanha a emprehender, o ter de agarrar um
toiro, ou nadar nos cachıes do Douro. Ent„o, por qualquer ras„o
especiosa, adiava-se o casamento atÈ ao S. Miguel seguinte. E alliviado,
tranquillo, o respeitavel Dr. continuava a acompanhar as Silveiras a
ch·s, festas de egreja ou pezames, vestido de preto, affavel, serviÁal,
sorrindo a D. Eugenia, n„o desejando mais prazeres que os d'essa
convivencia paternal.

Apenas Affonso entrou na sala deram-lhe logo noticia do contratempo: o
dr. juiz de direito e a senhora n„o podiam vir, por que o magistrado
tivera a dÙr; e as Brancos tinham mandado recado a desculpar-se,
coitadas, que era dia de tristeza em casa, por fazer desesete annos que
morrera o mano Manuel...

--Bem, disse Affonso, bem. A dÙr, a tristeza, o mano Manuel... Fazemos
nÛs um voltaretesinho de quatro. Que diz o nosso dr. delegado?

O excellente homem dobrou a sua fronte calva, murmurando que ´estava ·s
ordens.ª

--Ent„o ao dever, ao dever! exclamou logo o abbade, esfregando as m„os,
no ardor j· da partida.

Os parceiros dirigiram-se · saleta do jogo--que um reposteiro de damasco
separava da sala, franzido agora, deixando ver a mesa verde, e nos
circulos de luz que cahiam dos _abat-jour_ os baralhos abertos em leque.
D'ahi a um momento o dr. delegado voltou, risonho, dizendo que ´os
deixara para um roquesinho de tresª; e retomou o seu logar ao lado de D.
Eugenia, cruzando os pÈs debaixo da cadeira e as m„os em cima do ventre.
As senhoras estavam fallando da dÙr do dr. juiz de direito. Costumava
dar-lhe todos os tres mezes: e era condemnavel a sua teima em n„o querer
consultar medicos. Quanto mais que elle andava acabado, ressequindo,
amarellando--e a D. Augusta, a mulher, a nutrir · larga, a ganhar
cÙres!... A Viscondessa, enterrada em toda a sua gordura ao canto do
canapÈ, com o leque aberto sobre o peito, contou que em Hespanha vira um
caso egual: o homem chegara a parecer um esqueleto, e a mulher uma pipa;
e ao principio fÙra o contrario; atÈ sobre isso se tinham feito uns
versos...

--Humores, disse com melancolia o dr. delegado.

Depois fallou-se nas Brancos; recordou-se a morte de Manuel Branco,
coitadinho, na flor de idade! E que perfeiÁ„o de rapaz! E que rapaz de
juizo! D. Anna Silveira n„o se esquecera, como todos os annos, de lhe
accender uma lamparina por alma, e de lhe resar tres padre-nossos. A
viscondessa pareceu toda afflicta por se n„o ter lembrado... E ella que
tinha o proposito feito!

--Pois estive para t'o mandar dizer! exclamou D. Anna. E as Brancos que
tanto o agradecem, filha!

--Ainda est· a tempo, observou o magistrado.

D. Eugenia deu uma malha indolente no _crochet_ de que nunca se
separava, e murmurou com um suspiro:

--Cada um tem os seus mortos.

E no silencio que se fez, saiu do canto do canapÈ outro suspiro, o da
viscondessa, que de certo se record·ra do fidalgo d'Urigo de la Sierra,
e murmurava:

--Cada um tem os seus mortos...

E o digno dr. delegado terminou por dizer egualmente, depois de passar
reflectidamente a m„o pela calva:

--Cada um tem os seus mortos!

Uma somnolencia ia pesando. Nas serpentinas douradas, sobre as consoles,
as chammas das velas erguiam-se altas e tristes. Eusebiosinho voltava
com cautella e arte as estampas dos _Costumes de todos os Povos_. E na
saleta de jogo, atravez do reposteiro aberto, sentia-se a voz j·
arrenegada do abbade, rosnando com um rancor tranquillo, ´passo, que È o
que tenho feito toda a santa noite!ª

N'esse momento Carlos arremettia pela sala dentro arrastando a sua
noiva, a Theresinha, toda no ar e vermelha de brincar; e logo a grulhada
das suas vozes reanimou o canapÈ dormente.

Os noivos tinham chegado d'uma pittoresca e perigosa viagem, e Carlos
parecia descontente de sua mulher; comportara-se d'uma maneira atroz;
quando elle ia governando a mala-posta, ella quizera empoleirar-se ao pÈ
d'elle na almofada... Ora senhoras n„o viajam na almofada.

--E elle atirou-me ao ch„o, titi!

--N„o È verdade! De mais a mais È mentirosa! Foi como quando cheg·mos ·
estalagem... Ella quiz-se deitar, e eu n„o quiz... A gente, quando se
apeia de viagem, a primeira cousa que faz È tratar do gado... E os
cavallos vinham a escorrer...

A voz de D. Anna interrompeu, muito severa:

--Est· bom, est· bom, basta de tolices! J· cavallaram bastante. Senta-te
ahi ao pÈ da sr.^a Viscondessa, Thereza... Olhe essa travessa do
cabello... Que desproposito!

Sempre detest·ra ver a sobrinha, uma menina delicada de dez annos,
brincar assim com o Carlinhos. Aquelle bello e impetuoso rapaz, sem
doutrina e sem proposito, aterrava-a; e pela sua imaginaÁ„o de
solteirona passavam sem cessar idÈas, suspeitas de ultrages que elle
poderia fazer · menina. Em casa, ao agasalhal-a antes de vir para S.^ta
Olavia, recommendava-lhe com forÁa que n„o fosse com o Carlos para os
recantos escuros! que o n„o deixasse mecher-lhe nos vestidos!... A
menina, que tinha os olhos muito langorosos, dizia: ´Sim, titi.ª Mas,
apenas na quinta, gostava de abraÁar o seu maridinho. Se eram casados,
por que n„o haviam de fazer nÈnÈ, ou ter uma loja e ganharem a sua vida
aos beijinhos? Mas o violento rapaz sÛ queria guerras, quatro cadeiras
lanÁadas a galope, viagens a terras de nomes barbaros que o Brown lhe
ensinava. Ella, despeitada, vendo o seu coraÁ„o mal comprehendido,
chamava-lhe _arrieiro_; elle ameaÁava boxal-a, · ingleza;--e
separavam-se sempre arrenegados.

Mas quando ella se accomodou ao lado da Viscondessa, gravesinha e com as
m„os no regaÁo--Carlos veiu logo estirar-se ao pÈ d'ella, meio deitado
para as costas do canapÈ, bamboleando as pernas.

--Vamos, filho, tem maneiras, rosnou-lhe muito secca D. Anna.

--Estou canÁado, governei quatro cavallos, replicou elle, insolente e
sem a olhar.

De repente porÈm, d'um salto, precipitou-se sobre o Eusebiosinho.
Queria-o levar · Africa, a combatter os selvagens: e puchava-o j· pelo
seu bello _plaid_ de cavalleiro d'Escossia, quando a mam„ accudiu
atterrada.

--N„o, com o Eusebiosinho n„o, filho! N„o tem saude para essas
cavalladas... Carlinhos, olhe que eu chamo o avÙ!

Mas o Eusebiosinho, a um repell„o mais forte, rolara no ch„o, soltando
gritos medonhos. Foi um alvoroÁo, um levantamento. A m„e, tremula,
agachada junto d'elle, punha-o de pÈ sobre as perninhas molles,
limpando-lhe as grossas lagrimas, j· com o lenÁo, j· com beijos, quasi a
chorar tambem. O delegado, consternado, apanhara o bonet escossez, e
cofiava melancolicamente a bella pena de gallo. E a Viscondessa apertava
·s m„os ambas o enorme seio, como se as palpitaÁıes a suffocassem.

O Eusebiosinho foi ent„o preciosamente collocado ao lado da titi; e a
severa senhora, com um fulgÙr de colera na face magra, apertando o leque
fechado como uma arma, preparava-se a repellir o Carlinhos que, de m„os
atraz das costas e aos pulos em roda do canapÈ, ria, arreganhando para o
Eusebiosinho um labio feroz. Mas n'esse momento davam nove horas, e a
desempenada figura do Brown appareceu · porta.

Apenas o avistou, Carlos correu a refugiar-se por detraz da Viscondessa,
gritando:

--Ainda È muito cedo, Brown, hoje È festa, n„o me vou deitar!

Ent„o Affonso da Maia, que se n„o movera aos uivos lacinantes do
Silveirinha, disse de dentro, da mesa do voltarete, com severidade:

--Carlos, tenha a bondade de marchar j· para a cama.

--Oh vÙvÙ, È festa, que est· c· o VillaÁa!

Affonso da Maia pousou as cartas, atravessou a sala sem uma palavra,
agarrou o rapaz pelo braÁo, e arrastou-o pelo corredor--em quanto elle,
de calcanhares fincados no soalho, resistia, protestando com desespero:

--… festa, vÙvÙ... … uma maldade!... O VillaÁa pÛde-se escandalisar...
Oh vÙvÙ, eu n„o tenho somno!

Uma porta fechando-se abafou-lhe o clamor. As senhoras censuraram logo
aquella rigidez: ahi estava uma cousa incomprehensivel; o avÙ
deixava-lhe fazer todos os horrores, e recusava-lhe ent„o o bocadinho da
soirÈe...

--Oh sr. Affonso da Maia, por que n„o deixou estar a creanÁa?

--… necessario methodo, È necessario methodo, balbuciou elle, entrando,
todo pallido do seu rigor.

E · mesa do voltarete, apanhando as cartas com as m„os tremulas, repetia
ainda:

--… necessario methodo. CreanÁas · noite dormem.

D. Anna Silveira voltando-se para o VillaÁa--que cedera o seu lugar ao
dr. delegado e vinha palestrar com as senhoras--teve aquelle sorriso
mudo que lhe franzia os labios, sempre que Affonso da Maia fallava em
´methodos.ª

Depois, reclinando-se para as costas da cadeira e abrindo o leque,
declarou, a transbordar d'ironia, que, talvez por ter a intelligencia
curta, nunca comprehendera a vantagem dos ´methodosª... Era · ingleza,
segundo diziam: talvez provassem bem em Inglaterra; mas ou ella estava
enganada, ou S.^ta Olavia era no reino de Portugal...

E como VillaÁa inclinava timidamente a cabeÁa, com a sua pitada nos
dedos, a esperta senhora, baixo para que Affonso dentro n„o ouvisse,
desabafou. O sr. VillaÁa naturalmente n„o sabia, mas aquella educaÁ„o do
Carlinhos nunca fÙra approvada pelos amigos da casa. J· a presenÁa do
Brown, um heretico, um protestante, como perceptor na familia dos Maias,
causara desgosto em Resende. Sobretudo quando o sr. Affonso tinha
aquelle santo do abbade Custodio, t„o estimado, homem de tanto saber...
N„o ensinaria · creanÁa habilidades de acrobata; mas havia de lhe dar
uma educaÁ„o de fidalgo, preparal-o para fazer boa figura em Coimbra.

N'esse momento, o abbade, suspeitando uma corrente d'ar, erguera-se da
mesa de jogo a fechar o reposteiro: ent„o, como Affonso j· n„o podia
ouvir, D. Anna ergueu a voz:

--E olhe que o Custodio teve desgosto, sr. VillaÁa. Que o Carlinhos,
coitadinho, nem uma palavra sabe de doutrina... Sempre lhe quero contar
o que succedeu com a Macedo.

VillaÁa j· sabia.

--Ah j· sabe? Lembras-te viscondessa? Com a Macedo, do acto de
contricÁ„o...

A viscondessa suspirou, erguendo um olhar mudo ao ceu atravez do tecto.

--Horroroso! continuou D. Anna. A pobre mulher chegou l· a nossa casa
embuchada... E eu fez-me impress„o. AtÈ sonhei com aquillo tres noites a
fio...

Calou-se um momento. VillaÁa, embaraÁado, acanhado, fazia girar a caixa
de rapÈ nos dedos, com os olhos postos no tapete. Outro langor de
somnolencia passou na sala; D. Eugenia, com as palpebras pesadas, fazia
de vez em quando uma malha molle no _crochet_; e a noiva de Carlos,
estirada para o canto do soph·, j· dormia, com a boquinha aberta, os
seus lindos cabellos negros caindo-lhe pelo pescoÁo.

D. Anna, depois de bocejar de leve, retomou a sua idÈa:

--Sem contar que o pequeno est· muito atrazado. A n„o ser um bocado de
inglez, n„o sabe nada... Nem tem prenda nenhuma!

--Mas È muito esperto, minha rica senhora! accudiu VillaÁa.

--… possivel, respondeu seccamente a intelligente Silveira.

E, voltando-se para Euzebiosinho, que se conservava ao lado d'ella,
quieto como se fosse de gesso:

--Oh filho, dize tu aqui ao sr. VillaÁa aquelles lindos versos que
sabes... N„o sejas atado, anda!... V·, Euzebio, filho, sÍ bonito...

Mas o menino, molleng„o e tristonho, n„o se descollava das saias da
titi: teve ella de o pÙr de pÈ, amparal-o, para que o tenro prodigio n„o
alluisse sobre as perninhas flacidas; e a mam„ prometteu-lhe que, se
dissesse os versinhos, dormia essa noite com ella...

Isto decidio-o: abrio a bocca, e como d'uma torneira lassa veio de l·
escorrendo, n'um fio de voz, um recitativo lento e babujado:


    … noite, o astro saudoso
    Rompe a custo um plumbeo cÈu,
    Tolda-lhe o rosto formoso
    Alvacento, humido vÈo...


Disse-a toda--sem se mexer, com as m„osinhas pendentes, os olhos
mortiÁos pregados na titi. A mam„ fazia o compasso com a agulha do
_crochet_; e a viscondessa, pouco a pouco, com um sorriso de quebranto,
banhada no langor da melopea, ia cerrando as palpebras.

--Muito bem, muito bem! exclamou o VillaÁa, impressionado, quando o
Euzebiosinho findou coberto de suor. Que memoria! Que memoria! … um
prodigio!...

Os creados entravam com o ch·. Os parceiros tinham findado a partida; e
o bom Custodio, de pÈ, com a sua chavena na m„o, queixava-se amargamente
da maneira porque aquelles senhores o tinham esfollado.

Como ao outro dia era domingo, e havia missa cedo, as senhoras
retiraram-se ·s nove e meia. O serviÁal dr. delegado dava o braÁo a D.
Eugenia; um creado da quinta allumiava adiante com o lampe„o; e o moÁo
das Silveiras levava ao collo o Eusebiosinho que parecia um fardo
escuro, abafado em mantas, com um chale amarrado na cabeÁa.


Depois da ceia VillaÁa acompanhou ainda um momento Affonso da Maia ·
livraria, onde, antes de recolher, elle tomava sempre · ingleza o seu
cognac e soda.

O aposento, a que as velhas estantes de pau preto davam um ar severo,
estava adormecido tepidamente, na penumbra suave, com as cortinas bem
fechadas, um resto de lume na chaminÈ, e o globo do candieiro pondo a
sua claridade serena na mesa coberta de livros. Em baixo, os repuchos
cantavam alto no silencio da noite.

Emquanto o escudeiro rolava para o pÈ da poltrona de Affonso, n'uma mesa
baixa, os crystaes e as garrafas de soda, VillaÁa, com as m„os nos
bolsos, de pÈ e pensativo, olhava a braza da acha que morria na cinza
branca. Depois ergueu a cabeÁa, para murmurar, como ao acaso:

--Aquelle rapazito È esperto...

--Quem? O Euzebiosinho? disse Affonso, que se accomodava junto ao fog„o,
enchendo alegremente o cachimbo. Eu tremo de o ver c·, VillaÁa! O Carlos
n„o gosta d'elle, e tivemos ahi um desgosto horroroso... Foi j· ha
mezes. Havia uma prociss„o e o Eusebiosinho ia de anjo... As Silveiras,
excellentes mulheres, coitadas, mandaram-n'o c· para o mostrar ·
viscondessa, j· vestido de anjo. Pois senhores, distrahimo-nos, e o
Carlos que o andava a rondar apodera-se d'elle, leva-o para o sot„o, e,
meu caro VillaÁa... Em primeiro logar ia-o matando porque embirra com
anjos... Mas o peior n„o foi isso. Imagine vocÍ o nosso terror, quando
nos apparece o Eusebiosinho aos berros pela titi, todo desfrizado, sem
uma aza, com a outra a bater-lhe os calcanhares dependurada de um
barbante, a corÙa de rosas enterrada atÈ ao pescoÁo, e os galıes de
ouro, os tulles, as lentejoulas, toda a vestimenta celeste em
frangalhos!... Emfim, um anjo depennado e sovado... Eu ia dando cabo do
Carlos.

Bebeu metade da sua soda, e passando a m„o pelas barbas, accrescentou,
com uma satisfaÁ„o profunda:

--… levado do diabo, VillaÁa!

O administrador, sentado agora · borda de uma cadeira, esboÁou uma
risadinha muda; depois ficou calado, olhando Affonso, com as m„os nos
joelhos, como esquecido e vago. Ia abrir os labios, hesitou ainda,
tossio de leve; e continuou a seguir pensativamente as faiscas que
erravam sobre as achas.

Affonso da Maia, no entanto, com as pernas estiradas para o lume,
recomeÁara a fallar do Silveirinha. Tinha tres ou quatro mezes mais que
Carlos, mas estava enfesado, estiolado, por uma educaÁ„o · portugueza:
d'aquella edade ainda dormia no chÙco com as criadas, nunca o lavavam
para o n„o constiparem, andava couraÁado de rolos de flanellas! Passava
os dias nas saias da titi a decorar versos, paginas inteiras do
_Cathecismo de PerseveranÁa_. Elle por curiosidade um dia abrira este
livreco e vira l·, ´que o sol È que anda em volta da terra (como antes
de Galileu), e que Nosso Senhor todas as manh„s d· as ordens ao sol,
para onde ha d'ir e onde ha de parar, etc., etc.ª E assim lhe estavam
arranjando uma almasinha de bacharel...

VillaÁa teve outra risadinha silenciosa. Depois, como subitamente
decidido, ergueu-se, fez estalar os dedos, disse estas palavras:

--V. Ex.^a sabe que appareceu a Monforte?

Affonso, sem mover a cabeÁa, reclinado para as costas da poltrona,
perguntou tranquillamente, envolvido no fumo do cachimbo:

--Em Lisboa?

--N„o senhor, em Paris. Viu-a l· o Alencar, esse rapaz que escreve, e
que era muito de Arroios... Esteve atÈ em casa d'ella.

E ficaram calados. Havia annos que entre elles se n„o pronunciara o nome
de Maria Monforte. Ao principio, quando se retirara para Santa Olavia, a
preoccupaÁ„o ardente de Affonso da Maia fÙra tirar-lhe a filha que ella
levara. Mas a esse tempo ninguem sabia onde Maria se refugiara com o seu
principe: nem pela influencia das legaÁıes, nem pagando regiamente a
policia secreta de Paris, de Londres, de Madrid, se poude descobrir a
´toca da feraª como disia ent„o o VillaÁa. Ambos decerto tinham mudado
de nome; e, dadas essas naturezas bohemias, quem sabe se n„o errariam
agora pela America, pela India, em regiıes mais exoticas? Depois, pouco
a pouco, Affonso da Maia descorÁoado com aquelles esforÁos v„os, todo
occupado do neto que crescia bello e forte ao seu lado, no
enternecimento continuo que elle lhe dava foi esquecendo a Monforte e a
sua outra neta, t„o distante, t„o vaga, a quem ignorava as feiÁıes, de
quem mal sabia o nome. E agora de repente a Monforte apparecia outra vez
em Paris! e o seu pobre Pedro estava morto! e aquella creanÁa que dormia
ao fundo do corredor nunca vira sua m„e...

Erguera-se, passeiava na livraria, pesado e lento, com a cabeÁa baixa.
Junto · mesa, ao pÈ do candieiro, o VillaÁa ia percorrendo um a um os
papeis da sua carteira.

--E est· em Paris com o italiano? perguntou Affonso do fundo sombrio do
aposento.

O VillaÁa ergueu a cabeÁa de sobre a carteira, e disse:

--N„o senhor, est· com quem lhe paga.

E como Affonso se aproximava da mesa, sem uma palavra, VillaÁa,
dando-lhe um papel dobrado, accrescentou:

--Todas estas cousas s„o muito graves, sr. Affonso da Maia, e eu n„o
quiz fiar-me sÛ na minha memoria. Por isso pedi ao Alencar, que È um
excellente rapaz, que me escrevesse n'uma carta tudo o que me contou.
Assim temos um documento. Eu n„o sei mais do que ahi est· escripto. PÛde
V. Ex.^a ler...

Affonso desdobrou as duas folhas de papel. Era uma historia simples, que
o Alencar, o poeta das _Vozes d'Aurora_, o estylista de _Elvira_, orn·ra
de flores e de galıes dourados como uma capella em dia de festa.

Uma noite, ao sahir da _Maison d'Or_, elle vira a Monforte saltar d'um
_coupÈ_ com dois homens de gravata branca; tinham-se logo reconhecido; e
um momento ficaram hesitando, um defronte do outro, debaixo do candieiro
de gaz, no _trottoir_. Foi ella que, muito decidida, rindo, estendeu a
m„o ao Alencar, pediu-lhe que a visitasse, deu-lhe a _adresse_, o nome
por que devia perguntar: M.^{me} de l'Estorade. E no seu _boudoir_, na
manh„ seguinte a Monforte fallou largamente de si: vivera tres annos em
Vienna d'Austria com Tancredo, e com o pap· que se lhes fÙra reunir--e
que l· continuava de certo, como em Arroios, refugiando-se pelos cantos
das salas, pagando as _toilettes_ da filha, e dando palmadinhas ternas
no hombro do amante como outr'ora no hombro do marido. Depois tinham
estado em Monaco; e ahi, dizia o Alencar, ´n'um drama sombrio de paix„o
que ella me fez entreverª o napolitano fora morto em duello. O pap·
morrera tambem n'esse anno, deixando apenas da sua fortuna uns magros
contos de rÈis, e a mobilia da casa em Vienna: o velho arruinara-se com
o luxo da filha, com as viagens, com as perdas de Tancredo ao
_baccarat_. Pass·ra ent„o um tempo em Londres: e d'ahi viera habitar
Paris, com Mr. de l'Estorade, um jogador, um espadachim, que acabou de a
arrasar, e que a abandonou legando-lhe esse nome de l'Estorade, que lhe
era a elle d'ora em diante inutil porque passava a adoptar outro mais
sonoro de _Vicomte de Manderville_. Emfim, pobre, formosa, doida,
excessiva, lanÁara-se na existencia d'aquellas mulheres de quem, dizia o
Alencar, ´a pallida Margarida Gautier, a gentil _Dama das Camelias_ È o
typo sublime, o symbolo poetico, a quem muito ser· perdoado porque muito
amaram.ª E o poeta terminava: ´ella est· ainda no esplendor da belleza,
mas as rugas vir„o, e ent„o que avistar· em redor de si? As rosas seccas
e ensanguentadas da sua coroa de esposa. Sahi d'aquelle _boudoir_
perfumado, com a alma dilacerada, meu VillaÁa! Pensava no meu pobre
Pedro, que l· jaz sob o raio de luar, entre as raizes dos cyprestes. E,
desilludido d'esta cruel vida, vim pedir ao absintho, no _boulevard_,
uma hora de esquecimento.ª

Affonso da Maia deu um repell„o · carta, menos enojado das torpezas da
historia, que d'aquelles lyrismos relambidos.

E recomeÁou a passear, emquanto o VillaÁa recolhia religiosamente o
documento que tinha relido muitas vezes, na admiraÁ„o do sentimento, do
estylo, do ideal d'aquella pagina.

--E a pequena? perguntou Affonso.

--Isso n„o sei. O Alencar n„o lhe fallarÌa na filha, nem elle mesmo sabe
que ella a levou. Ninguem o sabe em Lisboa. Foi um detalhe que passou
desapercebido no grande escandalo. Mas emquanto a mim, a pequena morreu.
Sen„o, siga V. Ex.^a o meu raciocinio... Se a menina fosse viva, a m„e
podia reclamar a legitima que cabe · creanÁa... Ella sabe a casa que V.
Ex.^a tem; ha de haver dias, e s„o frequentes na vida d'essas mulheres,
em que lhe falte uma libra... Com o pretexto da educaÁ„o da menina, ou
de alimentos, j· nos tinha importunado... Escrupulos n„o tem ella. Se o
n„o faz È que a filha morreu. N„o lhe parece a V. Ex.^a?

--Talvez, disse Affonso.

E accrescentou, parando deante de VillaÁa--que olhava outra vez a braza
morta tirando estalinhos dos dedos:

--Talvez... SopÙnhamos que morreram ambas, e n„o se falle mais n'isso.

Estava dando meia noite, os dois homens recolheram-se. E durante os dias
que VillaÁa passou em S.^{ta} Olavia n„o se proferiu mais o nome de
Maria Monforte.

Mas, na vespera da partida do administrador para Lisboa, Affonso subio
ao quarto d'elle, a entregar-lha as amendoas da Paschoa que Carlos
mandava a VillaÁa Junior, um alfinete de peito com uma magnifica
saphira--e disse-lhe em quanto o outro, sensibilisado, balbuciava os
agradecimentos:

--Agora outra cousa, VillaÁa. Tenho estado a pensar. Vou escrever a meu
primo Noronha, ao AndrÈ que vive em Paris como vocÍ sabe, pedir-lhe que
procure essa creatura, e que lhe offereÁa dez ou quinze contos de rÈis,
se ella me quizer entregar a filha... No caso, est· claro, que esteja
viva... E quero que vocÍ saiba d'esse Alencar a morada da mulher em
Paris.

O VillaÁa n„o respondeu, occupado a metter entre as camisas, bem no
fundo da maleta, a caixinha com o alfinete. Depois, erguendo-se, ficou
deante d'Affonso, a coÁar reflectidamente o queixo.

--Ent„o que lhe parece, VillaÁa?

--Parece-me arriscado.

E deu as suas razıes. A menina devia ir nos seus treze annos. Estava uma
mulher, com o seu temperamento formado, o caracter feito, talvez os seus
habitos... Nem fallaria o portuguez. As saudades da m„e haviam de ser
terriveis... Emfim, o sr. Affonso de Maia trazia uma extranha para
casa...

--VocÍ tem ras„o, VillaÁa. Mas a mulher È uma prostituta, e a pequena È
do meu sangue.

N'esse momento Carlos, cuja voz gritava no corredor pelo vovÙ,
precipitou-se no quarto, esguedelhado, escarlate como uma rom„.--O Brown
tinha achado uma corujasinha pequena! Queria que o vovÙ viesse, ver,
andara a buscal-o por toda a casa... Era de morrer a rir... Muito
pequena, muito feia, toda pellada, e com dois olhos de gente grande! E
sabiam onde havia o ninho...

--Vem depressa, Û vovÙ! Depressa, que È necessario ir pol-a no ninho,
por causa da coruja velha que se pÛde affligir... O Brown est·-lhe a dar
azeite. Oh VillaÁa vem ver! O vovÙ, pelo amor de Deus! Tem uma cara t„o
engraÁada! Mas depressa, depressa, que a coruja velha pÛde dar pela
falta!...

E impaciente com a lentid„o risonha do vÙvo, tanta indifferenÁa pela
inquietaÁ„o da coruja velha, abalou atirando com a porta.

--Que bom coraÁ„o! exclamou o VillaÁa commovido. A pensar nas saudades
da coruja... A m„e d'elle È que n„o tem saudades! Sempre o disse, È uma
fera!

Afonso encolheu tristemente os hombros. Iam j· no corredor quando elle,
parando um momento, baixando a voz:

--Tem-me esquecido de lhe contar, VillaÁa, o Carlos sabe que o pae que
se matou...

VillaÁa arredondou os olhos d'espanto. Era verdade. Uma manh„
entrara-lhe pela livraria, e dissera-lhe:--Û vovÙ, o pap· matou-se com
uma pistola!--Naturalmente algum creado que lh'o contara...

--E vossa excellencia?

--Eu... Que havia de fazer? Disse-lhe que sim. Em tudo tenho obedecido
ao que Pedro me pediu, n'essas quatro ou cinco linhas da carta que me
deixou. Quiz ser enterrado em S.{ta} Olavia, ahi est·. N„o queria que o
filho j·mais soubesse da fuga da m„e; e por mim, de certo, nunca o
saber·. Quiz que dois retratos que havia d'ella em Arroios fossem
destruidos; como vocÍ sabe, obtiveram-se e destruiram-se. Mas n„o me
pedio que occultasse ao rapaz o seu fim. E por isso, disse ao pequeno a
verdade: disse-lhe que n'um momento de loucura, o pap· tinha dado um
tiro em si...

--E elle?

--E elle, replicou Affonso sorrindo, perguntou-me quem lhe tinha dado a
pistola, e torturou-me toda uma manh„ para lhe dar tambem uma pistola...
E ahi est· o resultado d'essa revelaÁ„o: È que tive de mandar vir do
Porto uma pistÛla de vento...

Mas, sentindo Carlos em baixo, aos berros ainda pelo avÛ, os dois
apressaram-se a ir admirar a corujazinha.

VillaÁa ao outro dia partiu para Lisboa.

Passadas duas semanas, Affonso recebia uma carta do administrador,
trasendo-lhe, com a _adresse_ da Monforte, uma revelaÁ„o imprevista.
Tinha voltado a casa do Alencar; e o poeta, recordando outros incidentes
da sua visita a M.^{me} de l'Estorade, contara-lhe que no _boudoir_
d'ella havia um adoravel retrato de creanÁa, de olhos negros, cabello
d'azeviche, e uma pallidez de nacar. Esta pintura ferira-o, n„o sÛ por
ser d'um grande pintor inglez, mas por ter, pendente sob o caixilho como
um voto funerario, uma linda coroa de flores de cera brancas e roxas.
N„o havia outro quadro no _boudoir_: e elle perguntara · Monforte se era
um retrato ou uma phantasia. Ella respondera que era o retrato da filha
que lhe morrera em Londres. ´Est„o assim dissipadas todas as duvidas,
accrescentava o VillaÁa. O pobre anjinho est· n'uma patria. melhor. E
para ella, _bem melhor_!ª

Affonso, todavia, escreveu a AndrÈ de Noronha. A resposta tardou. Quando
o primo AndrÈ procurara M.^{me} de l'Estorade, havia semanas que ella
partira para Allemanha, depois de vender mobilia e cavallos. E no _Club
Imperial_, a que elle pertencia, um amigo que conhecia bem M.^{me} de
l'Estorade e a vida galante de Paris, contara-lhe que a doida fugira com
um certo Catanni, acrobata do Circo d'Inverno nos Campos Elyseos, homem
de fÛrmas magnificas, um Appolo de feira, que todas as cocottes se
disputavam e que a Monforte empolg·ra. Naturalmente corria agora a
Allemanha com a companhia de cavallinhos.

Affonso da Maia, enojado, remetteu esta carta ao VillaÁa sem um
commentario. E o honrado homem respondeu: ´Tem V. Ex.^a ras„o, È atroz:
e mais vale suppor que todos morreram, e n„o gastar mais cera com t„o
ruins defuntos...ª E depois n'um post-scriptum accrescentava: ´Parece
certo abrir-se em breve o caminho de ferro atÈ ao Porto: em tal caso,
com permiss„o de V. Ex.^a, ahi irei e o meu rapaz a pedirmos-lhe alguns
dias d'hospitalidade.ª

Esta carta foi recebida em S.^{ta} Olavia um domingo, ao jantar. Affonso
lera alto o P. S. Todos se alegraram, na esperanÁa de ver o bom VillaÁa
em breve na quinta; e fallou-se mesmo em arranjar um grande pic-nic, rio
acima.

Mas, terÁa feira · noite, chegava um telegramma de Manuel VillaÁa
annunciando que o pae morrera, n'essa manh„, d'uma apoplexia: dois dias
depois vinham mais longos e tristes pormenores. Fora depois do almoÁo
que, de repente, VillaÁa se sentira muito suffocado, e com tonturas:
ainda tivera forÁas d'ir ao quarto respirar um pouco d'ether: mas ao
voltar · sala cambaleava, queixava-se de vÍr tudo amarello, e caiu de
bruÁos, como um fardo, sobre o canapÈ. O seu pensamento, que se
extinguia para sempre, ainda n'esse momento se occupou da casa que ha
trinta annos administrava: balbuciou, a respeito d'uma venda de cortiÁa,
recomendaÁıes que o filho j· n„o poude perceber: depois deu um grande
ai; e sÛ tornou a abrir os olhos, para murmurar no derradeiro sopro
estas derradeiras palavras: _Saudades ao patr„o!_

Affonso da Maia ficou profundamente afectado, e em S.^{ta} Olavia, mesmo
entre os creados, a morte de VillaÁa foi como um lucto domestico. Uma
d'essas tardes, o velho, muito melancolico, estava na livraria com um
jornal esquecido nas m„os, os olhos cerrados--quando Carlos, que ao lado
rabiscava carantonhas n'um papel, veio passar-lhe um braÁo pelo pescoÁo,
e como comprehendendo os seus pensamentos perguntou-lhe se o VillaÁa n„o
voltaria a vel-os ‡ quinta.

--N„o filho, nunca mais. Nunca mais o tornamos a vÍr.

O pequeno, entre os joelhos e os braÁos do velho, olhava o tapete, e,
como recordando-se, murmurou tristemente:

--O VillaÁa, coitado... Dava estalinhos com os dedos... Oh vovÙ, para
onde o levaram?

--Para o cemiterio, filho, para debaixo da terra.

Ent„o Carlos desprendeu-se devagar do abraÁo do avÙ, e muito sÈrio, com
os olhos n'elle:

--” vovÙ! porque n„o lhe mandas fazer uma capellinha bonita, toda de
pedra, com uma figura, como tem o pap·?

O velho achegou-o ao peito, beijou-o, commovido:

--Tens raz„o, filho. Tens mais coraÁ„o que eu!

Assim o bom VillaÁa teve no cemiterio dos Prazeres o seu jazigo--que
fÙra a alta ambiÁ„o da sua existÍncia modesta.


Outros annos tranquillos passaram sobre Santa Olavia.

Depois uma manh„ de julho, em Coimbra, Manuel VillaÁa (agora
administrador da casa) trepava as escadas do Hotel Mondego, onde Affonso
se hosped·ra com o neto, e entrava-lhe pela sala, vermelho, suando,
berrando:

--_NeminË! NeminË!_

Fizera Carlos o seu primeiro exame! E que exame! Teixeira que tinha
acompanhado os senhores de Santa Olavia correu · porta, abraÁou-se quasi
chorando no menino, agora mais alto que elle, e muito formoso na sua
batina nova.

Em cima no quarto, Manuel VillaÁa, soprando ainda, limpando as bagas de
suor, exclamava:

--Ficou tudo espantado, snr. Affonso da Maia! Os lentes atÈ estavam
commovidos. Ih Jesus! que talento! Vem a ser um grande homem, È o que
todo o mundo disse... E que faculdade vai elle seguir, meu senhor?

Affonso, que passeava, todo tremulo, respondeu com um sorriso:

--N„o sei, VillaÁa... Talvez nos formemos ambos em Direito.

Carlos assomou · porta, radiante, seguido do Teixeira e do outro
escudeiro--que trazia _champagne_ n'uma salva.

--Ent„o venha c·, seu maroto, disse Affonso muito branco, com os braÁos
abertos. Bom exame, hein?... Eu...

Mas n„o pÙde proseguir: as lagrimas, duas a duas, corriam-lhe pela barba
branca.




IV


Carlos ia formar-se em Medicina. E como dizia o dr. Trigueiros houvera
sempre n'aquelle menino realmente uma ´vocaÁ„o para Esculapioª.

A ´vocaÁ„oª revel·ra-se bruscamente um dia que elle descobriu no sot„o,
entre rumas de velhos alfarrabios, um rolo manchado e antiquado de
estampas anatomicas; tinha passado dias a recortal-as, pregando pelas
paredes do quarto figados, liaÁas de intestinos, cabeÁas de perfil ´com
o recheio · mostraª. Uma noite mesmo rompera pela sala em triumpho, a
mostrar ·s Silveiras, ao Euzebio, a pavorosa lithographia de um feto de
seis mezes no utero materno. D. Anna recuou, com um grito, collando o
leque · face: e o dr. delegado, escarlate tambem, arrebatou
prudentemente Euzebiosinho para entre os joelhos, tapou-lhe a face com a
m„o. Mas o que escandalisou mais as senhoras foi a indulgencia de
Affonso.

--Ent„o que tem, ent„o que tem? dizia elle sorrindo.

--Que tem, snr. Affonso da Maia!? exclamou D. Anna. S„o indecencias!

--N„o ha nada indecente na natureza, minha rica senhora. Indecente È a
ignorancia... Deixar l· o rapaz. Tem curiosidade de saber como È esta
pobre machina por dentro, n„o ha nada mais louvavel...

D. Anna abanava-se, suffocada. Consentir taes horrores nas m„os da
crianÁa!... Carlos comeÁou a apparecer-lhe como um libertino ´que j·
sabia coisasª; e n„o consentiu mais que a Therezinha brincasse sÛ com
elle pelos corredores de Santa Olavia.

As pessoas sÈrias porÈm, o dr. juiz de direito, o proprio abbade,
lamentando, sim, que n„o houvesse mais recato, concordavam que aquillo
mostrava no pequeno uma grande queda para a medicina.

--Se pÈga, dizia ent„o com um gesto prophetico o dr. Trigueiros, temos
d'alli coisa grande!

E parecia pegar.

Em Coimbra, estudante do Lyceu, Carlos deixava os seus compendios de
logica e rhetorica para se occupar de anatomia: n'umas ferias, ao abrir
das malas, a Gertrudes fugiu espavorida vendo alvejar entre as dobras
d'um casaco o riso d'uma caveira: e se algum criado da quinta adoecia,
l· estava Carlos logo revolvendo o caso em velhos livros de medicina da
livraria, sem lhe largar a beira do catre, fazendo diagnosticos que o
bom dr. Trigueiros escutava respeitoso e pensativo. Diante do avÙ j·
chamava mesmo ao menino ´o seu talentoso collegaª.

Esta inesperada carreira de Carlos (pens·ra-se sempre que elle tomaria
capello em Direito) era pouco approvada entre os fieis amigos de Santa
Olavia. As senhoras sobretudo lamentavam que um rapaz que ia crescendo
t„o formoso, t„o bom cavalleiro, viesse a estragar a vida receitando
emplastros, e sujando as m„os no jorro das sangrias. O dr. juiz de
direito confessou mesmo um dia a sua descrenÁa de que o snr. Carlos da
Maia quizesse ´ser medico a sÈrioª.

--Ora essa! exclamou Affonso. E porque n„o ha de ser medico a sÈrio? Se
escolhe uma profiss„o È para a exercer com sinceridade e com ambiÁ„o,
como os outros. Eu n„o o educo para vadio, muito menos para amador;
educo-o para ser util ao seu paiz...

--Todavia, arriscou o dr. juiz de direito com um sorriso fino, n„o lhe
parece a v. exc.^a que ha outras coisas, importantes tambem, e mais
proprias talvez, em que seu neto se poderia tornar util?...

--N„o vejo, replicou Affonso da Maia. N'um paiz em que a occupaÁ„o geral
È estar doente, o maior serviÁo patriotico È incontestavelmente saber
curar.

--V. exc.^a tem resposta para tudo, murmurou respeitosamente o
magistrado.

E o que justamente seduzia Carlos na medicina era essa vida ´a sÈrioª,
pratica e util, as escadas de doentes galgadas · pressa no fogo de uma
vasta clinica, as existencias que se salvam com um golpe de bisturÌ, as
noites veladas · beira de um leito, entre o terror de uma familia, dando
grandes batalhas · morte. Como em pequeno o tinham encantado as fÛrmas
pittorescas das vÌsceras--attrahiam-no agora estes lados militantes e
heroicos da sciencia.

Matriculou-se realmente com enthusiasmo. Para esses longos annos de
quieto estudo o avÙ prepar·ra-lhe uma linda casa em Cellas, isolada, com
graÁas de cottage inglez, ornada de persianas verdes, toda fresca entre
as arvores. Um amigo de Carlos (um certo Jo„o da Ega) poz-lhe o nome de
´PaÁos de Cellasª, por causa de luxos ent„o raros na Academia, um tapete
na sala, poltronas de marroquim, panoplias d'armas, e um escudeiro de
librÈ.

Ao principio este esplendor tornou Carlos venerado dos fidalgotes, mas
suspeito aos democratas; quando se soube porÈm que o dono d'estes
confortos lia Proudhon, Augusto Comte, Herbert Spencer, e considerava
tambem o paiz uma _choldra ignobil_--os mais rigidos revolucionarios
comeÁaram a vir aos PaÁos de Cellas t„o familiarmente como ao quarto do
Trov„o, o poeta bohemio, o duro socialista, que tinha apenas por mobilia
uma enxerga e uma Biblia.

Ao fim d'alguns mezes, Carlos, sympathico a todos, concili·ra Dandys e
Philosophos: e trazia muitas vezes no seu _break_, lado a lado, o Serra
Torres, um monstro que j· era addido honorario em Berlim e todas as
noites punha casaca, e o famoso Craveiro que meditava a _Morte de
Satanaz_, encolhido no seu gab„o d'Aveiro, com o seu grande barrete de
lontra.

Os PaÁos de Cellas, sob a sua apparencia preguiÁosa e campestre,
tornaram-se uma fornalha de actividades. No quintal fazia-se uma
gymnastica scientifica. Uma velha cozinha fÙra convertida em sala
d'armas--porque n'aquelle grupo a esgrima passava como uma necessidade
social. ¡ noite, na sala de jantar, moÁos sÈrios faziam um _whist_
sÈrio: e no sal„o, sob o lustre de crystal, com o _Figaro_, o _Times_ e
as _Revistas_ de Paris e de Londres espalhadas pelas mesas, o Gamacho ao
piano tocando Chopin ou Mozart, os litteratos estirados pelas
poltronas--havia ruidosos e ardentes cavacos, em que a Democracia, a
Arte, o Positivismo, o Realismo, o Papado, Bismark, o Amor, Hugo e a
EvoluÁ„o, tudo por seu turno flammejava no fumo do tabaco, tudo t„o
ligeiro e vago como o fumo. E as discussıes metaphysicas, as proprias
certezas revolucionarias adquiriam um sabor mais requintado com a
presenÁa do criado de farda desarrolhando a cerveja, ou servindo
croquettes.

Carlos, naturalmente, n„o tardou a deixar pelas mesas, com as folhas
intactas, os seus expositores de medicina. A Litteratura e a Arte, sob
todas as fÛrmas, absorveram-no deliciosamente. Publicou sonetos no
_Instituto_--e um artigo sobre o Parthenon: tentou, n'um _atelier_
improvisado, a pintura a oleo: e compoz contos archeologicos, sob a
influencia da _SalammbÙ_. AlÈm d'isso todas as tardes passeava os seus
dois cavallos. No segundo anno levaria um _R_ se n„o fosse t„o conhecido
e rico. Tremeu, pensando no desgosto do avÙ: moderou a dissipaÁ„o
intellectual, acantoou-se mais na sciencia que escolhera: immediatamente
lhe deram um _accessit_. Mas tinha nas veias o veneno do dilettantismo:
e estava destinado, como dizia Jo„o da Ega, a ser um d'esses medicos
litterarios que inventam doenÁas de que a humanidade papalva se presta
logo a morrer!

O avÙ, ·s vezes, vinha passar uma, duas semanas a Cellas. Nos primeiros
tempos a sua presenÁa, agradavel aos cavalheiros da partilha de _whist_,
desorganisou o cavaco litterario. Os rapazes mal ousavam estender o
braÁo para o copo da cerveja; e os _vossa excellencia_ isto, _vossa
excellencia_ aquillo, regelavam a sala. Pouco a pouco, porÈm, vendo-o
apparecer em chinelas e de cachimbo na boca, estirar-se na poltrona com
ares sympathicos de patriarcha bohemio, discutir arte e litteratura,
contar anecdotas do seu tempo d'Inglaterra e d'Italia, comeÁaram a
consideral-o como um camarada de barbas brancas. Diante d'elle j· se
fallava de mulheres e de estroinices. Aquelle velho fidalgo, t„o rico,
que lÍra Michelet e o admirava--chegou mesmo a enthusiasmar os
democratas. E Affonso gozava alli tambem horas felizes, vendo o seu
Carlos centro d'aquelles moÁos de estudo, de ideal e de veia.

Carlos passava as ferias grandes em Lisboa, ·s vezes em Paris ou
Londres; mas por Nataes e Pascoas vinha sempre a Santa Olavia, que o avÙ
mais sÛ se entretinha a embellezar com amor. As salas tinham agora
soberbos pannos d'Arraz, paizagens de Rousseau e Daubigny, alguns moveis
de luxo e d'arte. Das janellas a quinta offerecia aspectos nobres de
parque inglez: atravÈs dos macios taboleiros de relva, davam curvas
airosas as ruas areadas: havia marmores entre as verduras; e gordos
carneiros de luxo dormiam sob os castanheiros. Mas a existencia n'este
meio rico n„o era agora t„o alegre: a viscondessa, cada dia mais
nutrida, cahia em somnos congestivos logo depois do jantar; o Teixeira
primeiro, a Gertrudes depois, tinham morrido, ambos de pleurizes, ambos
no entrudo: e j· se n„o via tambem · mesa a bondosa face do abbade, que
l· jazia sob uma cruz de pedra, entre os goivos e as rosas de todo o
anno. O dr. juiz de direito com a sua concertina pass·ra para a RelaÁ„o
do Porto; D. Anna Silveira, muito doente, nunca sahia; a Therezinha
fizera-se uma rapariguinha feia, amarella como uma cidra; o
Euzebiosinho, molleng„o e tristonho, j· sem vestigios sequer do seu
primeiro amor aos alfarrabios e ·s letras, ia casar na Regoa. SÛ o dr.
delegado, esquecido n'aquella comarca, estava o mesmo, mais calvo
talvez, sempre affavel, amando sempre a pachorrenta Eugenia. E quasi
todas as tardes, o velho Trigueiros se apeava da sua egoa branca ao
port„o para vir cavaquear com o collega.

As ferias, realmente, sÛ eram divertidas para Carlos quando trazia para
a quinta o seu intimo, o grande Jo„o da Ega, a quem Affonso da Maia se
affeiÁo·ra muito, por elle e pela sua originalidade, e por ser sobrinho
d'AndrÈ da Ega, velho amigo da sua mocidade e, muitas vezes outr'ora,
hospede tambem em Santa Olavia.

Ega andava-se formando em Direito, mas devagar, muito pausadamente--ora
reprovado, ora perdendo o anno. Sua m„i, rica, viuva e beata, retirada
n'uma quinta ao pÈ de Celorico de Basto com uma filha, beata, viuva e
rica tambem, tinha apenas uma noÁ„o vaga do que o Jo„ozinho fizera, todo
esse tempo, em Coimbra. O capell„o affirmava-lhe que tudo havia de
acabar a contento, e que o menino seria um dia doutor como o pap· e como
o titi: e esta promessa bastava · boa senhora, que se occupava sobretudo
da sua doenÁa de entranhas e dos confortos d'esse padre Seraphim.
Estimava mesmo que o filho estivesse em Coimbra, ou algures, longe da
quinta, que elle escandalisava com a sua irreligi„o e as suas facecias
hereticas.

Jo„o da Ega, com effeito, era considerado n„o sÛ em Celorico, mas tambem
na Academia que elle espantava pela audacia e pelos ditos, como o maior
atheu, o maior demagogo, que j·mais apparecera nas sociedades humanas.
Isto lisonjeava-o: por systema exagerou o seu odio · Divindade, e a toda
a Ordem social: queria o massacre das classes-mÈdias, o amor livre das
ficÁıes do matrimonio, a repartiÁ„o das terras, o culto de Satanaz. O
esforÁo da intelligencia n'este sentido terminou por lhe influenciar as
maneiras e a physionomia; e, com a sua figura esgrouviada e sÍcca, os
pÍllos do bigode arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro
entalado no olho direito--tinha realmente alguma coisa de rebelde e de
satanico. Desde a sua entrada na Universidade renov·ra as tradiÁıes da
antiga Bohemia: trazia os rasgıes da batina cozidos a linha branca;
embebedava-se com carrasc„o; · noite, na Ponte, com o braÁo erguido,
atirava injurias a Deus. E no fundo muito sentimental, enleado sempre em
amores por meninas de quinze annos, filhas de empregados, com quem ·s
vezes ia passar a soirÈe, levando-lhes cartuchinhos de dÙce. A sua fama
de fidalgote rico tornava-o appetecido nas familias.

Carlos escarnecia estes idyllios futricas; mas tambem elle terminou por
se enredar n'um episodio romantico com a mulher d'um empregado do
governo civil, uma lisboetasinha, que o seduziu pela graÁa d'um corpo de
boneca e por uns lindos olhos verdes. A ella o que a fanatis·ra fÙra o
luxo, o _groom_, a egoa ingleza de Carlos. Trocaram-se cartas; e elle
viveu semanas banhado na poesia aspera e tumultuosa do primeiro amor
adultero. Infelizmente a rapariga tinha o nome barbaro de Hermengarda; e
os amigos de Carlos, descoberto o segredo, chamavam-lhe j· _Eurico o
presbytero_, dirigiam para Cellas missivas pelo correio com este nome
odioso.

Um dia Carlos, andava tomando o sol na Feira, quando o empregado do
governo civil passou junto d'elle com o filhinho pela m„o. Pela primeira
vez via t„o de perto o marido de Hermengarda. Achou-o enxovalhado e
macilento. Mas o pequerrucho era adoravel, muito gordo, parecendo mais
roliÁo por aquelle dia de janeiro sob os agasalhos de l„ azul,
tremelicando nas pobres perninhas rÙxas de frio, e rindo na clara
luz--rindo todo elle, pelos olhos, pelas covinhas do queixo, pelas duas
rosas das faces. O pae amparava-o; e o encanto, o cuidado com que o
rapaz ia assim guiando os passos do seu filho, impressionou Carlos. Era
no momento em que elle lia Michelet--e enchia-lhe a alma a veneraÁ„o
litteraria da santidade domestica. Sentiu-se canalha em andar alli de
cima do seu _dog-cart_, a preparar friamente a vergonha, e as lagrimas
d'aquelle pobre pae t„o inoffensivo no seu paletot coÁado! Nunca mais
respondeu ·s cartas em que Hermengarda lhe chamava _seu ideal_. Decerto
a rapariga se vingou, intrigando-o; porque o empregado do governo civil,
d'ahi por diante, dardejava sobre elle olhares sangrentos.

Mas a grande ´topada sentimental de Carlosª, como disse o Ega, foi
quando elle, ao fim d'umas ferias, trouxe de Lisboa uma soberba rapariga
hespanhola, e a installou n'uma casa ao pÈ de Cellas. Chamava-se
Encarnacion. Carlos alugou-lhe ao mez uma vittoria com um cavallo branco
e Encarnacion fanatisou Coimbra como a appariÁ„o d'uma _Dama das
Camelias_, uma flÙr de luxo das civilisaÁıes superiores. Pela CalÁada,
pela estrada da Beira, os rapazes paravam, pallidos de emoÁ„o, quando
ella passava, reclinada na vittoria, mostrando o sapato de setim, um
pouco da meia de sÍda, languida e desdenhosa, com um c„osinho branco no
regaÁo.

Os poetas da Academia fizeram-lhe versos em que Encarnacion foi chamada
_Lirio d'Israel_, _Pomba da Arca_, e _Nuvem da Manh„_. Um estudante de
theologia, rude e sebento transmontano, quiz casar com ella. Apesar das
instancias de Carlos, Encarnacion recusou; e o theologo comeÁou a rondar
Cellas, com um navalh„o, para ´beber o sangueª ao Maia. Carlos teve de
lhe dar bengaladas.

Mas a creatura, desvanecida, tornou-se intoleravel, fallando sem cessar
d'outras paixıes que inspir·ra em Madrid e em Lisboa, do muito que lhe
dera o conde de tal, o marquez sicrano, da grande posiÁ„o da sua familia
ainda aparentada com os Medina-C[oe]li: os seus sapatos de setim verde
eram t„o antipathicos como a sua voz estridula: e quando tentava
elevar-se ·s conversaÁıes que ouvia, rompia a chamar ladrıes aos
republicanos, a celebrar os tempos de D. Isabel, a sua _gracia_, o seu
_salero_--sendo muito conservadora como todas as prostitutas. Jo„o da
Ega odiava-a. E Craveiro declarou que n„o voltava aos PaÁos de Cellas
emquanto por l· apparecesse aquelle mont„o de carne, pago ao arratel,
como a de vacca.

Emfim, uma tarde Baptista, o famoso criado de quarto de Carlos
surprehendeu-a com um Juca que fazia de dama no Theatro Academico. Ahi
estava, emfim, um pretexto! E, convenientemente paga, a parenta dos
Medina-C[oe]li, o _Lirio d'Israel_, a admiradora dos Bourbons, foi
recambiada a Lisboa e · rua de S. Roque, seu elemento natural.

Em agosto, no acto da formatura de Carlos, houve uma alegre festa em
Cellas. Affonso viera de Santa Olavia, VillaÁa de Lisboa; toda a tarde
no quintal, d'entre as acacias e as bella-sombras, subiram ao ar mÛlhos
de foguetes; e Jo„o da Ega, que lev·ra o seu ultimo _R_ no seu ultimo
anno, n„o descansou, em mangas de camisa, pendurando lanternas
venezianas pelos ramos, no trapesio e em roda do poÁo, para a
illuminaÁ„o da noite. Ao jantar, a que assistiam lentes, VillaÁa,
enfiado e tremulo, fez um _speech_; ia citar o nosso _immortal Castilho_
quando sob as janellas rompeu, a grande ruido de tambor e pratos, o
_Hymno Academico_. Era uma serenata.--Ega, vermelho, de batina
desabotoada, a luneta para traz das costas, correu · sacada, a perorar:

--Ahi temos o nosso Maia, Carolus Eduardus ab Maia, comeÁando a sua
gloriosa carreira, preparado para salvar a humanidade enferma--ou acabar
de a matar, segundo as circumstancias! A que parte remota d'estes reinos
n„o chegou j· a fama do seu genio, do seu _dog-cart_, do sebaceo
_accessit_ que lhe ennodÙa o passado, e d'este vinho do Porto,
contemporaneo dos heroes de 20, que eu, homem de revoluÁ„o e homem de
carraspana, eu, Jo„o da Ega, Johanes ab Ega...

O grupo escuro em baixo desatou aos _vivas_. A philarmonica, outros
estudantes, invadiram os PaÁos. AtÈ tarde, sob as arvores do quintal, na
sala atulhada de pilhas de pratos, os criados correram com salvas de
dÙce, n„o cessou d'estalar o _champagne_. E VillaÁa, limpando a testa, o
pescoÁo, abafado de calor, ia dizendo a um, a outro, a si mesmo tambem:

--Grande coisa, ter um curso!


E ent„o Carlos Eduardo partira para a sua longa viagem pela Europa. Um
anno passou. Cheg·ra esse outono de 1875: e o avÙ installado emfim no
Ramalhete esperava por elle anciosamente. A ultima carta de Carlos viera
de Inglaterra, onde andava, dizia elle, a estudar a admiravel
organisaÁ„o dos hospitaes de crianÁas. Assim era: mas passeava tambem
por Brighton, apostava nas corridas de Goodwood, fazia um idyllio
errante pelos lagos da Escocia, com uma senhora hollandeza, separada de
seu marido, veneravel magistrado da Haya, uma M.^{me} Rughel, soberba
creatura de cabellos d'ouro fulvo, grande e branca como uma nympha de
Rubens.

Depois comeÁaram a chegar, dirigidas ao Ramalhete, caixas successivas de
livros, outras de instrumentos e apparelhos, toda uma bibliotheca e todo
um laboratorio--que trazia o VillaÁa, manh„s inteiras, aturdido pelos
armazens da alfandega.

--O meu rapaz vem com grandes idÈas de trabalho, dizia Affonso aos
amigos.

Havia quatorze mezes que elle o n„o via, o ´seu rapazª, a n„o ser n'uma
photographia mandada de Mil„o, em que todos o acharam magro e triste. E
o coraÁ„o batia-lhe forte, na linda manh„ de outono, quando do terraÁo
do Ramalhete, de binoculo na m„o, viu assomar vagarosamente, por traz do
alto predio fronteiro, um grande paquete do _Royal Mail_ que, lhe trazia
o seu neto.

¡ noite os amigos da casa, o velho Sequeira, D. Diogo Coutinho, o
VillaÁa--n„o se fartavam d'admirar ´o bem que a viagem fizera a Carlosª.
Que differenÁa da photographia! Que forte, que saudavel!

Era decerto um formoso e magnifico moÁo, alto, bem feito, de hombros
largos, com uma testa de marmore sob os anneis dos cabellos pretos, e os
olhos dos Maias, aquelles irresistiveis olhos do pai, de um negro
liquido, ternos como os d'elle e mais graves. Trazia a barba toda, muito
fina, castanho-escura, rente na face, aguÁada no queixo--o que lhe dava,
com o bonito bigode arqueado aos cantos da boca, uma physionomia de
bello cavalleiro da RenascenÁa. E o avÙ, cujo olhar risonho e humido
transbordava d'emoÁ„o, todo se orgulhava de o vÍr, de o ouvir, n'uma
larga veia, fallando da viagem, dos bellos dias de Roma, do seu mau
humor na Prussia, da originalidade de Moscow, das paizagens da
Hollanda...

--E agora? perguntou-lhe o Sequeira, depois de um momento de silencio em
que Carlos estivera bebendo o seu cognac e soda. Agora que tencionas tu
fazer?

--Agora, general? respondeu Carlos, sorrindo e pousando o copo.
DescanÁar primeiro e depois passar a ser uma gloria nacional!

Ao outro dia, com effeito, Affonso veiu encontral-o na sala de
bilhar--onde tinham sido collocados os caixotes--a despregar, a
desempacotar, em mangas de camisa e assobiando com enthusiasmo. Pelo
ch„o, pelos soph·s, alastrava-se toda uma litteratura em rumas de
volumes graves; e aqui e alÈm, por entre a palha, atravÈs das lonas
descozidas, a luz faiscava n'um crystal, ou reluziam os vernizes, os
metaes polidos de apparelhos. Affonso pasmava em silencio para aquelle
pomposo apparato do saber.

--E onde vaes tu accommodar este museo?

Carlos pensara em arranjar um vasto laboratorio alli perto no bairro,
com fornos para trabalhos chimicos, uma sala disposta para estudos
anatomicos e physiologicos, a sua bibliotheca, os seus apparelhos, uma
concentraÁ„o methodica de todos os instrumentos de estudo...

Os olhos do avÙ illuminavam-se ouvindo este plano grandioso.

--E que n„o te prendam questıes de dinheiro, Carlos! NÛs fizemos n'estes
ultimos annos de Santa Olavia algumas economias...

--Boas e grandes palavras, avÙ! Repita-as ao VillaÁa.

As semanas foram passando n'estes planos de installaÁ„o. Carlos trazia
realmente resoluÁıes sinceras de trabalho: a sciencia como mera
ornamentaÁ„o interior do espirito, mais inutil para os outros que as
proprias tapessarias do seu quarto, parecia-lhe apenas um luxo de
solitario: desejava ser util. Mas as suas ambiÁıes fluctuavam, intensas
e vagas; ora pensava n'uma larga clinica; ora na composiÁ„o macissa de
um livro iniciador; algumas vezes em experiencias physiologicas,
pacientes e reveladoras... Sentia em si, ou suppunha sentir, o tumulto
de uma forÁa, sem lhe discernir a linha d'applicaÁ„o. ´Alguma cousa de
brilhante,ª como elle dizia: e isto para elle, homem de luxo e homem
d'estudo, significava um conjuncto de representaÁ„o social e de
actividade scientifica; o remecher profundo de idÈas entre as
influencias delicadas da riqueza; os elevados vagares da philosophia
entremeados com requintes de _sport_ e de gosto; um Claude Bernard que
fosse tambem um Morny... No fundo era um _dilletante_.

VillaÁa fÙra consultado sobre a localidade propria para o laboratorio; e
o procurador, muito lisongeado, jurou uma diligencia incanÁavel.
Primeira cousa a saber, o nosso doutor tencionava fazer clinica?...

Carlos n„o decidira fazer _exclusivamente_ clinica: mas desejava de
certo dar consultas, mesmo gratuitas, como caridade e como pratica.
Ent„o VillaÁa suggeriu que o consultorio estivesse separado do
laboratorio.

--E a minha raz„o È esta: a vista de apparelhos, machinas, cousas, faz
esmorecer os doentes...

--Tem vocÍ raz„o, VillaÁa! exclamou Affonso. J· meu pae dizia: poupe-se
ao boi a vista do malho.

--Separados, separados, meu senhor, affirmou o procurador n'um tom
profundo.

Carlos concordou. E VillaÁa bem depressa descobriu, para o laboratorio,
um antigo armazem, vasto e retirado, ao fundo de um pateo, junto ao
largo das Necessidades.

--E o consultorio, meu senhor, n„o È aqui, nem acol·; È no Rocio, alli
em pleno Rocio!

Esta idÈa do VillaÁa n„o era desinteressada. Grande enthusiasta da
_Fus„o_, membro do Centro progressista, VillaÁa Junior aspirava a ser
vereador da camara, e mesmo em dias de satisfaÁ„o superior (como quando
o seu anniversario natalicio vinha annunciado no _Illustrado_, ou quando
no Centro citava com applauso a Belgica) parecia-lhe que tantas aptidıes
mereciam do seu partido uma cadeira em S. Bento. Um consultorio
gratuito, no Rocio, o consultorio do dr. Maia, ´do seu Maiaª reluziu-lhe
logo vagamente como um elemento de influencia. E tanto se agitou, que
d'ahi a dois dias tinha l· alugado um primeiro andar d'esquina.

Carlos mobilou-o com luxo. N'uma antecamara, guarnecida de banquetas de
marroquim, devia estacionar, · franceza, um creado de librÈ. A sala de
espera dos doentes alegrava com o seu papel verde de ramagens prateadas,
as plantas em vasos de Rouen, quadros de muita cÙr, e ricas poltronas
cercando a jardineira coberta de collecÁıes do _Charivari_, de vistas
estereoscopicas, d'albuns de actrizes semi-nuas; para tirar inteiramente
o ar triste de consultorio atÈ um piano mostrava o seu teclado branco.

O gabinete de Carlos ao lado era mais simples, quasi austero, todo em
velludo verde-negro, com estantes de pau preto. Alguns amigos que
comeÁavam a cercar Carlos, Taveira, seu contemporaneo e agora visinho do
Ramalhete, o Cruges, o marquez de Souzellas, com quem percorrera a
Italia--vieram vÍr estas maravilhas. O Cruges correu uma escala no piano
e achou-o abominavel; Taveira absorveu-se nas photographias d'actrizes;
e a unica approvaÁ„o franca veiu do marquez, que depois de contemplar o
divan do gabinete, verdadeiro movel de serralho, vasto, voluptuoso,
fÙfo, experimentou-lhe a doÁura das molas e disse, piscando o olho a
Carlos:

--A calhar.

N„o pareciam acreditar n'estes preparativos. E todavia eram sinceros.
Carlos atÈ fizera annunciar o consultorio nos jornaes; quando viu porem
o seu nome em letras grossas, entre o de uma engommadeira · Boa Hora e
um reclamo de casa de hospedes,--encarregou VillaÁa de retirar o
annuncio.

Occupava-se ent„o mais do laboratorio, que decidira installar no
armazem, ·s Necessidades. Todas as manh„s, antes de almoÁo, Ìa visitar
as obras. Entrava-se por um grande pateo, onde uma bella sombra cobria
um poÁo, e uma trepadeira se mirrava nos ganchos de ferro que a prendiam
ao muro. Carlos j· decidira transformar aquelle espaÁo em fresco
jardinete inglez; e a porta do casar„o encantava-o, ogival e nobre,
resto de fachada d'ermida, fazendo um accesso veneravel para o seu
sanctuario de sciencia. Mas dentro os trabalhos arrastavam-se sem fim;
sempre um vago martellar preguiÁoso n'uma poeira alvadia; sempre as
mesmas coifas de ferramentas jazendo nas mesmas camadas de aparas! Um
carpinteiro esgouroviado e triste parecia estar alli, desde seculos,
aplainando uma taboa eterna com uma fadiga langorosa; e no telhado os
trabalhadores que andavam alargando a claraboia, n„o cessavam de
assobiar, no sol d'inverno, alguma lamuria de fado.

Carlos queixava-se ao sr. Vicente, o mestre d'obras, que lhe asseverava
invariavelmente ´como d'ahi a dois dias havia de s. ex.^a vÍr a
differenÁa.ª Era um homem de meia edade, risonho, de fallar doce, muito
barbeado, muito lavado, que morava ao pÈ do Ramalhete, e tinha no bairro
fama de republicano. Carlos, por sympathia, como visinho, apertava-lhe
sempre a m„o: e o sr. Vicente, considerando-o por isso um ´avanÁadoª, um
democrata, confiava-lhe as suas esperanÁas. O que elle desejava primeiro
que tudo era um 93, como em FranÁa...

--O que, sangue? dizia Carlos, olhando a fresca, honrada, e roliÁa face
do demagogo.

--N„o, senhor, um navio, um simples navio...

--Um navio?

--Sim, senhor, um navio fretado · custa da naÁ„o, em que se mandasse
pela barra fÛra o rei, a familia real, a _cambada_ dos ministros, dos
politicos, dos deputados, dos intrigantes, etc. e etc.

Carlos sorria, ·s vezes argumentava com elle.

--Mas est· o sr. Vicente bem certo, que apenas a _cambada_, como t„o
exactamente diz, desapparecesse pela barra fÛra, ficavam resolvidas
todas as cousas e tudo atolado em felicidade?

N„o, o sr. Vicente n„o era t„o ´burroª que assim pensasse. Mas,
supprimida a cambada, n„o via s. ex.^a? Ficava o paiz desatravancado; e
podiam ent„o comeÁar a governar os homens de saber e de progresso...

--Sabe v. ex.^a qual È o nosso mal? N„o È m· vontade d'essa gente; È
muita somma de ignorancia. N„o sabem. N„o sabem nada. Elles n„o s„o
maus, mas s„o umas cavalgaduras!

--Bem, ent„o essas obras, amigo Vicente, dizia-lhe Carlos, tirando o
relogio e despedindo-se d'elle com um valente _shakehands_, veja se me
andam. N„o lh'o peÁo como proprietario, È como correligionario.

--D'aqui a dois dias ha de v. ex.^a vÍr a differenÁa, respondia o mestre
d'obras, desbarretando-se.

No Ramalhete, pontualmente ao meio dia, tocava a sineta do almoÁo.
Carlos encontrava quasi sempre o avÙ j· na sala de jantar, acabando de
percorrer algum jornal junto ao fog„o, onde a tepida suavidade d'aquelle
fim de outono n„o permittia accender lume, mas verdejando todo de
plantas d'estufa.

Em redor, nos aparadores de carvalho lavrado, rebrilhavam suavemente, no
seu luxo macisso e sobrio, as baixellas antigas; pelas tapeÁarias ovaes
dos muros apainelados corriam scenas de ballada, caÁadores medivaes
soltando o falc„o, uma dama entre pagens alimentando os cysnes de um
lago, um cavalleiro de viseira callada seguindo ao longo d'um rio; e
contrastando com o tecto escuro de castanho entalhado a meza
resplandecia com as flÙres entre os crystaes.

O reverendo Bonifacio, que desde que se tornara dignatario da Egreja
comia com os senhores, l· estava j·, magestosamente sentado sobre a
alvura nevada da toalha, · sombra de algum grande ramo. Era alli, no
aroma das rosas, que o veneravel gato gostava de lamber, com o seu vagar
estupido, as sopas de leite servidas n'um covilhete de Strasburgo,
depois agachava-se, traÁava por diante do peito a fofa pluma da sua
cauda, e, de olhos cerrados, os bigodes tesos, todo elle uma bola
entufada de pello branco malhado de ouro, gosava de leve uma sesta
macia.

Affonso,--como confessava, sorrindo e humilhado--Ìa-se tornando com a
velhice um _gourmet_ exigente; e acolhia, com uma concentraÁ„o de
critico, as obras d'arte do _chef_ francez que tinham agora, um
cavalheiro de mau genio, todo bonapartista, muito parecido com o
imperador, e que se chamava Mr. Theodore. Os almoÁos no Ramalhete eram
sempre delicados e longos; depois, ao cafÈ, ficavam ainda conversando; e
passava da uma hora, da hora e meia, quando Carlos, com uma exclamaÁ„o,
precipitando-se sobre relogio, se lembrava do seu consultorio. Bebia um
calice de Chartreuse, accendia · pressa um charuto:

--Ao trabalho, ao trabalho! exclamava.

E o avÙ, enchendo de vagar o seu cachimbo, invejava-lhe aquella
occupaÁ„o, emquanto elle ficava alli a vadiar toda a manh„...

--Quando esse eterno laboratorio estiver acabado, talvez v· para l·
passar um bocado, occupar-me de chimica.

--E ser talvez um grande chimico. O avÙ tem j· a feitio.

O velho sorria.

--Esta carcassa j· n„o d· nada, filho. Est· pedindo eternidade!

--Quer alguma cousa da Baixa, de Babylonia? perguntava Carlos, abotoando
· pressa as suas luvas de governar.

--Bom dia de trabalho.

--Pouco provavel...

E no _dog-cart_, com aquella linda egoa, a _Tunante_, ou no _phaeton_
com que maravilhava Lisboa, Carlos l· partia em grande estylo para a
Baixa, para ´o trabalho.ª

O seu gabinete, no consultorio, dormia n'uma paz tepida entre os
espessos velludos escuros, na penumbra que faziam as stores de seda
verde corridas. Na sala, porÈm, as tres janellas abertas bebiam · farta
a luz; tudo alli parecia festivo; as poltronas em torno da jardineira
estendiam os seus braÁos, amaveis e convidativas; o teclado branco do
piano ria e esperava, tendo abertas por cima as _CanÁıes de Gounod_; mas
n„o apparecia j·mais um doente. E Carlos,--exactamente como o creado
que, na ociosidade da antecamara, dormitava sobre o _Diario de
Noticias_, acaÁapado na banqueta--accendia um cigarro Laferme, tomava
uma Revista, e estendia-se no divan. A prosa porÈm dos artigos estava
como embebida do tedio moroso do gabinete: bem depressa bocejava,
deixava caÌr o volume.

Do Rocio, o ruido das carroÁas, os gritos errantes de pregıes, o rolar
dos americanos, subiam, n'uma vibraÁ„o mais clara, por aquelle ar fino
de novembro: uma luz macia, escorregando docemente do azul ferrete,
vinha doirar as fachadas enxovalhadas, as cÛpas mesquinhas das arvores
de municipio, a gente vadiando pelos bancos: e essa sussurraÁ„o lenta de
cidade preguiÁosa, esse ar avelludado de clima rico, pareciam ir
penetrando pouco a pouco n'aquelle abafado gabinete e resvelando pelos
velludos pesados, pelo verniz dos moveis, envolver Carlos n'uma
indolencia e n'uma dormencia... Com a cabeÁa na almofada, fumando, alli
ficava, n'essa quietaÁ„o de sesta, n'um scismar que se Ìa desprendendo,
vago e tenue, como o tenuo e leve fumo que se eleva d'uma brazeira meia
apagada; atÈ que com um esforÁo sacudia este torpor, passeiava na sala,
abria aqui e alÈm pelas estantes um livro, tocava no piano dois
compassos de walsa, espriguiÁava-se--e, com os olhos nas flores do
tapete, terminava por decidir que aquellas duas horas de consultorio
eram estupidas!

--Est· ahi o carro? Ìa perguntar ao creado.

Accendia bem depressa outro charuto, calÁava as luvas, descia, bebia um
largo sorvo de luz e ar, tomava as guias e largava, murmurando comsigo:

--Dia perdido!


Foi uma d'essas manh„s que preguiÁando assim no soph· com a _Revista dos
Dois Mundos_ na m„o, elle ouviu um rumor na antecamara, e logo uma voz
bem conhecida, bem querida, que dizia por tr·s do reposteiro:

--Sua Alteza Real est· visivel?

--Oh Ega! gritou Carlos, dando um salto do soph·.

E cahiram nos braÁos um do outro, beijando-se na face, enternecidos.

--Quando chegaste tu?

--Esta manh„. Caramba! exclamava Ega, procurando pelo peito, pelos
hombros, o seu quadrado de vidro, e entalando-o emfim no olho. Caramba!
Tu vens esplendido d'esses Londres, d'essas civilisaÁıes superiores.
Est·s com um ar RenascenÁa, um ar Valois... N„o ha nada como a barba
toda!

Carlos ria, abraÁando-o outra vez.

--E d'onde vens tu, de Celorico?

--Qual Celorico! Da Foz. Mas doente, menino, doente... O figado, o baÁo,
uma infinidade de visceras compromettidas. Emfim, doze annos de vinhos e
aguas ardentes...

Depois fallaram das viagens de Carlos, do Ramalhete, da demora do Ega em
Lisboa... Ega vinha para sempre. Tinha dito do alto da diligencia, ·s
varzeas de Celorico, o adeus de eternidade.

--Imagina tu, Carlos, amigo, a historia deliciosa que me succede com
minha m„e... Depois de Coimbra, naturalmente, sondei-a a respeito de vir
viver para Lisboa, confortavelmente, com uns dinheiros largos. Qual, n„o
caÌu! Fiquei na quinta, fazendo epigrammas ao padre Seraphim e a toda a
cÙrte do cÈu. Chega julho, e apparece nos arredores uma epidemia de
anginas. Um horror, creio que vocÍs lhe chamam diphtericas... A mam„
salta immediatamente ‡ conclus„o que È a minha presenÁa, a presenÁa do
atheo, do demagogo, sem jejuns e sem missa, que offendeu Nosso Senhor e
attrahiu o flagello. Minha irm„ concorda. Consultam o padre Seraphim. O
homem, que n„o gosta de me vÍr na quinta, diz que È possivel que haja
indignaÁ„o do Senhor--e minha m„e vem pedir-me quasi de joelhos, com a
bolsa aberta, que venha para Lisboa, que a arruine, mas que n„o esteja
alli chamando a ira divina. No dia seguinte bati para a Foz...

--E a epidemia...

--Desappareceu logo, disse o Ega, comeÁando a puxar devagar dos dedos
magros uma longa luva cÙr de canario.

Carlos mirava aquellas luvas do Ega; e as polainas de casemira; e o
cabello que elle trazia crescido com uma mecha frisada na testa; e na
gravata de setim uma ferradura de opalas! Era outro Ega, um Ega dandy,
vistoso, paramentado, artificial e com pÛ d'arroz--e Carlos deixou emfim
escapar a exclamaÁ„o impaciente que lhe bailava nos labios:

--Ega, que extraordinario casaco!

Por aquelle sol macio e morno de um fim de outono portuguez, o Ega, o
antigo bohemio de batina esfarrapada, trazia uma pelliÁa, uma sumptuosa
pelliÁa de principe russo, agasalho de trenÚ e de neve, ampla, longa,
com alamares trespassados · Brandeburgo, e pondo-lhe em torno do pescoÁo
esganiÁado e dos pulsos de thisico uma rica e fÙfa espessura de pelles
de marta.

--… uma boa pelliÁa, hein? disse elle logo, erguendo-se, abrindo-a,
exhibindo a opulencia do forro. Mandei-a vir pelo Strauss... Beneficios
da epidemia.

--Como podes tu supportar isso?

--… um bocado pesada, mas tenho andado constipado.

Tornou a recostar-se no soph·, adiantando o sapato de verniz muito
bicudo, e, de monocolo no olho, examinou o gabinete.

--E tu que fazes? conta-me l·... Tens isto explendido!

Carlos fallou dos seus planos, de altas idÈas de trabalho, das obras do
laboratorio...

--Um momento, quanto te custou tudo isto? exclamou o Ega
interrompendo-o, erguendo-se para ir apalpar o velludo dos reposteiros,
mirar os torneados da secret·ria de pau preto.

--N„o sei. O VillaÁa È que deve saber...

E Ega, com as m„os enterradas nos vastos bolsos da pelliÁa,
inventariando o gabinete, fazia consideraÁıes:

--O velludo d· seriedade... E o verde escuro È a cÙr suprema, È a cÙr
esthetica... Tem a sua express„o propria, enternece e faz pensar...
Gosto d'este divan. Movel de amor...

Foi entrando para a sala dos doentes, de vagar, de luneta no olho,
estudando os ornatos.

--Tu Ès o grandioso Salom„o, Carlos! O papel È bonito... E o
cretonesinho agrada-me.

Apalpou-o tambem. Uma begonia, manchada da sua ferrugem de prata, n'um
vaso de Rouen, interessou-o. Queria saber o preÁo de tudo; e diante do
piano, olhando o livro de musica aberto, as _CanÁıes de Gounod_, teve
uma surpreza enternecida:

--Homem, È curioso... C· me apparece! A _Barcarolla_! … deliciosa,
hein?...


    Dites, la jeune belle,
    Ou voulez-vous aller?
    La voile...


Estou um bocado rouco... Era a nossa canÁ„o na Foz!

Carlos teve outra exclamaÁ„o, e crusando os braÁos diante d'elle:

--Tu est·s extraordinario, Ega! Tu Ès outro Ega!... A proposito da
Foz... Quem È essa Madame Cohen, que estava tambem na Foz, de quem tu,
em cartas successivas, verdadeiros poemas, que recebi em Berlin, na
Haia, em Londres, me fallavas como os arrobos do _Cantico dos Canticos_?

Um leve rubor subiu ·s faces do Ega. E limpando negligentemente o
monocolo ao lenÁo de seda branca:

--Uma judia. Por isso usei o lyrismo biblico. … a mulher do Cohen, has
de conhecer, um que È director do _Banco Nacional_... DÈmos-nos
bastante. … sympathica... Mas o marido È uma besta... Foi uma
_flitartion_ de praia. _Voila tout_.

Isto era dito aos bocados, passeiando, puchando o lume ao charuto, e
ainda cÛrado.

--Mas conta-me tu, que diabo, que fazem vocÍs no Ramalhete? O avÙ
Affonso? Quem vae por l·?...

No Ramalhete, o avÙ fazia o seu _whist_ com os velhos parceiros. Ia o D.
Diogo, o decrepito le„o, sempre de rosa ao peito, e frisando ainda os
bigodes... Ia o Sequeira, cada vez mais atarracado, a estoirar de
sangue, · espera da sua apoplexia... Ia o conde de Steinbroken...

--N„o conheÁo. Refugiado?... Polaco?...

--N„o, ministro da Filandia... Queria-nos alugar umas cocheiras e
complicou esta simples transacÁ„o com tantas finuras diplomaticas,
tantos documentos, tantas cousas com o sello real da Filandia, que o
pobre VillaÁa aturdido, para se desembaraÁar, remetteu-o ao avÙ. O avÙ,
desnorteado tambem, offereceu-lhe as cocheiras de graÁa. Steinbroken
considera isto um serviÁo feito ao rei da Filandia, · Filandia, vae
visitar o avÙ, em grande estado, com o secretario da legaÁ„o, o consul,
o vice-consul...

--Isso È sublime!

--O avÙ convida-o a jantar... E como o homem È muito fino, um gentleman,
enthusiasta da Inglaterra, grande entendedor de vinhos, uma auctoridade
no wisth, o avÙ adopta-o. N„o sae do Ramalhete.

--E de rapazes?

De rapazes, apparecia Taveira, sempre muito correcto, empregado agora no
Tribunal de Contas: um Cruges, que o Ega n„o conhecia, um diabo
adoidado, maestro, pianista, com uma pontinha de genio; o marquez de
Souzellas...

--N„o ha mulheres?

--N„o ha quem as receba. … um covil de solteirıes. A viscondessa,
coitada...

--Bem sei. Um apopletÈ...

--Sim, uma hemorragia cerebral. Ah, temos tambem o Silveirinha,
chegou-nos ultimamente o Silveirinha...

--O de Resende, o cretino?

--O cretino. Enviuvou, vem da Madeira, ainda um bocado thisico, todo
carregado de luto... Um funebre.

O Ega, repoltreado, com aquelle ar de tranquilla e solida felicidade que
Carlos j· notara, disse puchando lentamente os punhos:

--… necessario reorganisar essa vida. Precisamos arranjar um cenaculo,
uma bohemiasinha dourada, umas _soirÈes_ de inverno, com arte, com
litteratura... Tu conheces o Craft?

--Sim, creio que tenho ouvido fallar...

Ega teve um grande gesto. Era indispensavel conhecer o Craft! O Craft
era simplesmente a melhor cousa que havia em Portugal...

--… um inglez, uma especie de doido?...

Ega encolheu os hombros. Um doido!... Sim, era essa a opini„o da rua dos
Fanqueiros; o indigena, vendo uma originalidade t„o forte como a de
Craft, n„o podia explical-a sen„o pela doidice. O Craft era um rapaz
extraordinario!... Agora tinha elle chegado da Suecia, de passar tres
mezes com os estudantes de Upsala. Estava tambem na Foz... Uma
individualidade de primeira ordem!

--… um negociante do Porto, n„o È?

--Qual negociante do Porto! exclamou o Ega erguendo-se, franzindo a
face, enojado de tanta ignorancia. O Craft È filho d'um _clergiman_ da
egreja ingleza do Porto. Foi um tio, um negociante de Calcut· ou
d'Australia, um Nababo, que lhe deixou a fortuna. Uma grande fortuna.
Mas n„o negoceia, nem sabe o que isso È. D· largas ao seu temperamento
byroneano, È o que faz. Tem viajado por todo o universo, collecciona
obras d'arte, bateu-se como voluntario na Abyssinia e em Marrocos, emfim
vive, _vive_ na grande, na forte, na heroica accepÁ„o da palavra. …
necessario conhecer o Craft. Vaes-te babar por elle... Tens raz„o,
caramba, est· calor.

DesembaraÁou-se da opulenta pelliÁa, e appareceu em peitilho de camisa.

--O que! tu n„o trazias nada por baixo? exclamou Carlos. Nem collete?

--N„o; ent„o n„o a podia aguentar... Isto È para o effeito moral, para
impressionar o indigena... Mas, n„o ha negal-o, È pesada!

E immediatamente voltou · sua idÈa: apenas Craft chegasse do Porto
relacionavam-se, organisava-se um Cenaculo, um Decameron d'arte e
dilletantismo, rapazes e mulheres--tres ou quatro mulheres para
cortarem, com a graÁa dos decotes, a severidade das philosophias...

Carlos ria-se d'esta idÈa do Ega. Tres mulheres de gosto e de luxo, em
Lisboa, para adornar um cenaculo! Lamentavel illus„o de um homem de
Celorico! O marquez de Souzella tinha tentado, e para uma vez sÛ, uma
cousa bem mais simples--um jantar no campo com actrizes. Pois fÙra o
escandalo mais engraÁado e mais caracteristico: uma n„o tinha creada e
queria levar comsigo para a festa uma tia e cinco filhos; outra temia
que, acceitando, o brazileiro lhe tirasse a mezada; uma consentiu, mas o
amante, quando soube, deu-lhe uma cÛÁa. Esta n„o tinha vestido para ir;
aquella pretendia que lhe garantissem uma libra; houve uma que se
escandalisou com o convite como com um insulto. Depois, os chulos, os
queridos, os pÙlhos, complicaram medonhamente a quest„o; uns exigiam ser
convidados, outros tentavam desmanchar a festa; houve partidos,
fizeram-se intrigas,--emfim esta cousa banal, um jantar com actrizes,
resultou em o Tarquinio do Gymnasio levar uma facada...

--E aqui tens tu Lisboa.

--Emfim, exclamou o Ega, se n„o apparecerem mulheres, importam-se, que È
em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis,
idÈas, philosophias, theorias, assumptos, estheticas, sciencias, estylo,
industrias, modas, maneiras, pilherias, tudo nos vem em caixotes pelo
paquete. A civilisaÁ„o custa-nos carissima com os direitos da alfandega:
e È em segunda m„o, n„o foi feita para nÛs, fica-nos curta nas mangas...
NÛs julgamo-nos civilisados como os negros de S. ThomÈ se suppıem
cavalheiros, se suppıem mesmo _brancos_, por usarem com a tanga uma
casaca velha do patr„o... Isto È uma choldra torpe. Onde puz eu a
charuteira?

DesembaraÁado da magestade que lhe dava a pelissa o antigo Ega
reapparecia, perorando com os seus gestos aduncos de Mephistopheles em
verve, lanÁando-se pela sala como se fosse voar ao vibrar as suas
grandes phrases, n'uma lucta constante com o monocolo, que lhe caÌa do
olho, que elle procurava pelo peito, pelos hombros, pelos rins,
retorcendo-se, deslocando-se, como mordido por bichos. Carlos animava-se
tambem, a fria sala aquecia; discutiam o Naturalismo, Gambetta, o
Nihilismo; depois, com ferocidade e · uma, malharam sobre o paiz...

Mas o relogio ao lado bateu quatro horas; immediatamente Ega saltou
sobre a pelissa, sepultou-se n'ella, aguÁou o bigode ao espelho,
verificou a _pose_, e, encouraÁado nos seus alamares, sahio com um
arsinho de luxo e d'aventura.

--John, disse Carlos que o achava esplendido e o ia seguindo ao patamar,
onde est·s tu?

--No _Universal_, esse sanctuario!

Carlos abominava o _Universal_, queria que elle viesse para o Ramalhete.

--N„o me convÈm...

--Em todo o caso vaes hoje l· jantar, vÍr o avÙ.

--N„o posso. Estou compromettido com a besta do Cohen... Mas vou l·
·manh„ almoÁar.

J· nos degraus da escada, voltou-se, entalou o monocolo, gritou para
cima:

--Tinha-me esquecido dizer-te, vou publicar o meu livro!

--O quÍ! est· prompto? exclamou Carlos, espantado.

--Est· esboÁado, · brocha larga...

O _Livro do Ega_! FÙra em Coimbra, nos dois ultimos annos, que elle
comeÁ·ra a fallar do seu livro, contando o plano, soltando titulos de
capitulos, citando pelos cafÈs phrases de grande sonoridade. E entre os
amigos do Ega discutia-se j· o livro do Ega como devendo iniciar, pela
fÛrma e pela idÈa, uma evoluÁ„o litteraria. Em Lisboa (onde elle vinha
passar as ferias e dava ceias no Silva) o livro fÙra annunciado como um
acontecimento. Bachareis, contemporaneos ou seus condiscipulos, tinham
levado de Coimbra, espalhado pelas provincias e pelas ilhas a fama do
livro do Ega. J· de qualquer modo essa noticia cheg·ra ao Brazil... E
sentindo esta anciosa espectativa em torno do seu livro--o Ega
decidira-se emfim a escrevel-o.

Devia ser uma epopÍa em prosa, como elle dizia, dando, sob episodios
symbolicos, a historia das grandes phases do Universo e da Humanidade.
Intitulava-se _Memorias d'um Atomo_, e tinha a fÛrma d'uma
autobiographia. Este atomo (o atomo do Ega, como se lhe chamava a serio
em Coimbra) apparecia no primeiro capitulo, rolando ainda no vago das
Nebuloses primitivas: depois vinha embrulhado, faisca candente, na massa
de fogo que devia ser mais tarde a Terra: emfim, fazia parte da primeira
folha de planta que surgiu da crosta ainda molle do globo. Desde ent„o,
viajando nas incessantes transformaÁıes da substancia, o atomo do Ega
entrava na rude structura do Orango, pae da humanidade--e mais tarde
vivia nos labios de Plat„o. Negrejava no burel dos santos, refulgia na
espada dos heroes, palpitava no coraÁ„o dos poetas. Gota de agua nos
lagos de GalilÈa, ouvira o fallar de Jesus, aos fins da tarde, quando os
apostolos recolhiam as redes; nÛ de madeira na tribuna da ConvenÁ„o,
sentira o frio da m„o de Robespierre. Errara nos vastos anneis de
Saturno; e as madrugadas da terra tinham-n'o orvalhado, petala
resplandecente de um dormente e languido lyrio. FÙra omnipresente, era
omnisciente. Achando-se finalmente no bico da penna do Ega, e canÁado
d'esta jornada atravez do Ser, repousava--escrevendo as suas
_Memorias_... Tal era este formidavel trabalho--de que os admiradores do
Ega, em Coimbra, diziam, pensativos e como esmagados de respeito:

--… uma Biblia!




V


No escriptorio de Affonso da Maia ainda durava, apesar de ser tarde, a
partida de whist. A mesa estava ao lado da chaminÈ, onde a chamma morria
nos carvıes escarlates, no seu recanto costumado, abrigada pelo biombo
japonez, por causa da bronchite de D. Diogo e do seu horror ao ar.

Esse velho dandy,--a quem as damas de outras eras chamavam o ´Lindo
Diogoª, gentil toureiro que dormira n'um leito real--acabava justamente
de ter um dos seus accessos de tosse, cavernosa, aspera, dolorosa, que o
sacudiam como uma ruina, que elle abafava no lenÁo, com as veias
inchadas, rÙxo atÈ · raiz dos cabellos.

Mas pass·ra. Com a m„o ainda tremula, o decrepito le„o limpou as
lagrimas que lhe embaciavam os olhos avermelhados, compoz a rosa de
musgo na botoeira da sobrecasaca, tomou um golo da sua agua chasada, e
perguntou a Affonso, seu parceiro, n'uma voz rouca e surda:

--Paus, hein?

E de novo, sobre o panno verde, as cartas foram cahindo n'um d'aquelles
silencios que se seguiam ·s tosses de D. Diogo. Sentia-se sÛ a
respiraÁ„o assobiada, quasi silvante, do general Sequeira, muito infeliz
essa noite, desesperado com o VillaÁa seu parceiro, resing„o, e com todo
o sangue na face.

Um tom fino retiniu, o relogio Luiz XV foi ferindo. alegremente,
vivamente, a meia noite;--depois a toada argentina do seu minuete vibrou
um momento e morreu. Houve de novo um silencio. Uma renda vermelha
recobria os globos de dois grandes candieiros Carcel; e a luz assim
coada, cahindo sobre os damascos vermelhos das paredes, dos assentos,
fazia como uma doce refracÁ„o cÙr de rosa, um vaporoso de nuvem em que a
sala se banhava e dormia: sÛ, aqui e alÈm, sobre os carvalhos sombrios
das estantes, rebrilhava em silencio o ouro d'um SËvres, uma pallidez de
marfim, ou algum tom esmaltado de velha majolica.

--O que! ainda encarniÁados! exclamou Carlos que abrira o reposteiro,
entrava, e com elle o rumor distante de bolas de bilhar.

Affonso, que recolhia a sua vasa, voltou logo a cabeÁa, a perguntar com
interesse:

--Como vae ella? Est· socegada?

--Est· muito melhor!

Era a primeira doente grave de Carlos, uma rapariga de origem
alsacianna, casada com o Marcellino padeiro, muito conhecida no bairro
pelos seus bellos cabellos, loiros, e penteados sempre em tranÁas
soltas. Tinha estado · morte com uma pneumonia; e apesar de melhor, como
a padaria ficava defronte, Carlos ainda ·s vezes · noite atravessava a
rua para a ir vÍr, tranquillisar o Marcellino, que, defronte do leito e
de gab„o pelos hombros, suffocava soluÁos d'amante, escrevinhando no
livro de contas.

Affonso interessara-se anciosamente por aquella pneumonia; e agora
estava realmente agradecido · Marcellina por ter sido salva por Carlos.
Fallava d'ella commovido; gabava-lhe a linda figura, o aceio alsacianno,
a prosperidade que trouxera · padaria... Para a convalescenÁa, que se
approximava, j· lhe mand·ra atÈ seis garrafas de Chateau-Margaux.

--Ent„o fÛra de perigo, inteiramente fÛra de perigo?--perguntou VillaÁa,
com os dedos na caixa do rapÈ, sublinhando muito a sua sollicitude.

--Sim, quasi rija--disse Carlos, que se approximara da chaminÈ,
esfregando as m„os, arrepiado.

… que a noite, fÛra, estava regelada! Desde o anoitecer geava, d'um cÈu
fino e duro, transbordando de estrellas que rebrilhavam como pontas
afiadas d'aÁo; e nenhum d'aquelles cavalheiros, desde que se entendia,
conhecera j·mais o thermometro t„o baixo. Sim, VillaÁa lembrava-se d'um
janeiro peor no inverno de 64...

--… necessario carregar no _punch_, hein, general!--exclamou Carlos,
batendo galhofeiramente nos hombros macissos do Sequeira.

--N„o me opponho, rosnou o outro, que fixava com concentraÁ„o e rancor
um valete de copas sobre a meza.

Carlos, ainda com frio, remexeu, esfuracou os carvıes: uma chuva d'oiro
cahiu por baixo, uma chamma mais forte ressaltou, rugiu, alegrando tudo,
avermelhando em redor as pelles de urso onde o Reverendo Bonifacio,
espapado, torrava ao calor, ronronava de gÙso.

--O Ega deve estar radiante, dizia Carlos com os pÈs · chamma. Tem,
emfim, justificada a pellissa. A proposito, algum dos senhores tem visto
o Ega estes ultimos dias?

Ninguem respondeu, no interesse subito que causava a cartada. A longa
m„o de D. Diogo recolhia de vagar a vasa--e languidamente, no mesmo
silencio, soltou uma carta de paus.

--” Diogo! Û Diogo! gritou Affonso, estorcendo-se, como se o
trespassasse um ferro.

Mas conteve-se. O general, cujos olhos despediam faiscas, collocou o seu
valete; Affonso, profundamente infeliz, separou-se do rei de paus;
VillaÁa bateu de estalo com o az. E immediatamente foi em redor uma
discuss„o tremenda sobre a puchada de D. Diogo--em quanto Carlos, a quem
as cartas sempre enfastiavam, se debruÁava a coÁar o ventre fofo do
veneravel Reverendo.

--Que perguntavas tu, filho? disse emfim Affonso erguendo-se, ainda
irritado, a buscar tabaco para o cachimbo, sua consolaÁ„o nas derrotas.
O Ega? N„o, ninguem o viu, n„o tornou a apparecer! Est· tambem um bom
ingrato, esse John...

Ao nome do Ega, VillaÁa, parando de baralhar as cartas, erguera a face
curiosa:

--Ent„o sempre È certo que elle vae montar casa?

Foi Affonso que respondeu, sorrindo e accendendo o cachimbo:

--Montar casa, comprar _coupÈ_, deitar librÈ, dar _soirÈes_ litterarias,
publicar um poema, o diabo!

--Elle esteve l· no escriptorio, dizia VillaÁa recomeÁando a baralhar.
Esteve l· a indagar o que tinha custado o consultorio, a mobilia de
velludo, etc. O velludo verde deu-lhe no gÙto... Eu, como È um amigo da
casa, l· lhe prestei informaÁıes, atÈ lhe mostrei as contas.--E
respondendo a uma pergunta do Sequeira:--Sim, a m„e tem dinheiro, e
creio que lhe d· o bastante. Que em quanto a mim, elle vem-se metter na
politica. Tem talento, falla bem, o pae j· era muito regenerador... Alli
ha ambiÁ„o.

--Alli ha mulher, disse D. Diogo, collocando com peso esta decis„o e
accentuando-a com uma caricia languida · ponta frisada dos bigodes
brancos. LÍ-se-lhe na cara, basta vÍr-lhe a cara... Alli ha mulher.

Carlos sorria, gabando a penetraÁ„o de D. Diogo, o seu fino olho ·
Balzac; e Sequeira, logo, franco como velho soldado, quiz saber quem era
a Dulcinea. Mas o velho dandy declarou, da profundidade da sua
experiencia, que essas cousas nunca se sabiam, e era preferivel n„o se
saberem. Depois passando os dedos magros e lentos pela face, deixou
cahir d'alto e com condescendencia este juizo:

--Eu gosto do Ega, tem apresentaÁ„o; sobretudo tem _degagË_...

Tinham recebido as cartas, fez-se um silencio na meza. O general, vendo
o seu jogo, soltou um grunhido surdo, arrebatou o cigarro do cinzeiro, e
puxou-lhe uma fumaÁa furiosa.

--Os senhores s„o muito viciosos, vou vÍr a gente do bilhar, disse
Carlos. Deixei o Steinbroken engalfinhado com o marquez, a perder j·
quatro mil rÈis. Querem o _punch_ aqui?

Nenhum dos parceiros respondeu.

E em torno do bilhar Carlos encontrou o mesmo silencio de solemnidade. O
marquez, estirado sobre a tabella, com a perna meia no ar, o comeÁo de
calva alvejando · luz crua que cahia dos _abat-jours_, de porcelana,
preparava a carambola decisiva. Cruges, que apost·ra por elle, deix·ra o
divan, o cachimbo turco, e, coÁando com um gesto nervoso a grenha crespa
que lhe ondeava atÈ · gola do jaquet„o, vigiava a bola inquieto, com os
olhinhos piscos, o nariz espetado. Do fundo da sala, destacando em
preto, o Silveirinha, o Eusebiosinho de S.^{ta} Olavia, estendia tambem
o pescoÁo, affogado n'uma gravata de viuvo de merino negro e sem
collarinho, sempre macambuzio, mais mollengo que outr'ora, com as m„os
enterradas nos bolsos--t„o funebre que tudo n'elle parecia complemento
do luto pesado, atÈ o preto do cabello chato, atÈ o preto das lunetas de
fumo. Junto ao bilhar, o parceiro do marquez, o conde Steinbroken,
esperava: e apesar do susto, da emoÁ„o d'homem do norte aferrado ao
dinheiro, conservava-se correcto, encostado ao taco, sorrindo, sem
desmanchar a sua linha britanica,--vestido como um inglez, inglez
tradicional d'estampa, com uma sobrecasaca justa de manga um pouco
curta, e largas calÁas de xadrez sobre sapatıes de tac„o raso.

--Hurrah! gritou de repente Cruges. Os dez tostıesinhos para c·,
Silveirinha!

O marquez carambol·ra, ganhando a partida, e triumphava tambem:

--VocÍ trouxe-me a sorte, Carlos!

Steinbroken depozera logo o taco, e alinhava j· sobre a tabella,
lentamente, uma a uma, as quatro placas perdidas.

Mas o marquez, de giz na m„o, reclamava-o para outras refregas,
esfaimado d'ouro filandez.

--Nada mach!... VÙcÍ hoje 'st· tÍrivÍl! dizia o diplomata, no seu
portuguez fluente, mas de accento barbaro.

O marquez insistia, plantado diante d'elle, de taco ao hombro como uma
vara de campino, dominando-o com a sua macissa, desempenada estatura. E
ameaÁava-o de destinos medonhos n'uma voz possante habituada a ressoar
nas lezirias; queria-o arruinar ao bilhar, forÁal-o a empenhar aquelles
bellos anneis, leval-o elle, ministro da Filandia e representante d'uma
raÁa de reis fortes, a vender senhas · porta da Rua dos Condes!

Todos riam; e Steinbroken tambem, mas com um riso franzido e difficil,
fixando no marquez o olhar azul-claro, claro e frio, que tinha no fundo
da sua myopia a dureza d'um metal. Apesar da sua sympathia pela illustre
casa de Souzella, achava estas familiaridades, estas tremendas chalaÁas,
incompativeis com a sua dignidade e com a dignidade da Filandia. O
marquez, porÈm, coraÁ„o d'ouro, abraÁava-o j· pela cinta, com expans„o:

--Ent„o se n„o quereis mais bilhar, um bocadinho de canto, Steinbroken
amigo!

A isto o ministro accedeu, affavel, preparando-se logo, dando caricias
ligeiras ·s suissas, e aos anneis do cabello d'um loiro de espiga
desbotada.

Todos os Steinbrokens, de paes a filhos (como elle dissera a Affonso)
eram bons barytonos: e isso trouxera · familia n„o poucos proventos
sociaes. Pela voz captivara seu pae o velho rei Rudolpho III, que o
fizera chefe das caudelarias, e o tinha noites inteiras nos seus
quartos, ao piano, cantando psalmos lutheranos, coraes escolares, sagas
da Dallecarlia--em quanto o taciturno monarcha cachimbava e bebia, atÈ
que saturado de emoÁ„o religiosa, saturado de cerveja preta, tombava do
soph·, soluÁando e babando-se. Elle mesmo, Steinbroken, levara parte da
sua carreira ao piano, j· como addido, j· como segundo secretario. Feito
chefe de miss„o, absteve-se: foi sÛ quando vio o _Figaro_ celebrar
repetidamente as walsas do principe Artoff, embaixador da Russia em
Paris, e a voz de _basso_ do conde de Baspt, embaixador d'Austria em
Londres, que elle, seguindo t„o altos exemplos, arriscou, aqui e alem,
em _soirÈes_ mais intimas, algumas melodias filandezas. Emfim cantou no
PaÁo. E desde ent„o exerceu com zelo, com formalidades, com praxes, o
seu cargo de ´barytono plenipotenciario,ª como dizia o Ega. Entre
homens, e com os reposteiros corridos, Steinbroken n„o duvidava todavia
cantarolar o que elle chamava ´canÁonetas brejÍrasª--o _Amant d'Amanda_,
ou uma certa ballada ingleza:


    On the Serpentine,
    Oh my Caroline...
    Oh!


Este _oh_! como elle o expellia, gemido, bem puxado, n'um movimento de
batuque, expressivo e todavia digno... Isto entre rapazes e com os
reposteiros fechados.

N'essa noite, porÈm, o marquez, que o conduzia pelo braÁo · sala do
piano, exigia uma d'aquellas canÁıes da Filandia, de tanto sentimento e
que lhe faziam t„o bem · alma...

--Uma que tem umas palavrinhas de que eu gosto, _frisk_, _gluzk_... La
ra l·, l·, l·!

--A Primavera, disse o diplomata sorrindo.

Mas antes de entrar na sala, o marquez soltou o braÁo de Steinbroken,
fez um signal ao Silveirinha para o fundo do corredor--e ahi, sob um
sombrio painel de _Santa Magdalena no deserto_ penitenciando-se e
mostrando nudezas ricas de nympha lubrica, interpellou-o quasi com
aspereza:

--Vamos nÛs a saber. Ent„o, decide-se ou n„o?

Era uma negociaÁ„o que havia semanas se arrastava entre elles, a
respeito d'uma parelha d'egoas. Silveirinha nutria o desejo de montar
carruagem; e o marquez procurava vender-lhe umas egoas brancas, a que
elle dizia ´ter tomado enguiÁo, apesar de serem dois nobres animaesª.
Pedia por ellas um conto e quinhentos mil rÈis. Silveirinha fÙra avisado
pelo Sequeira, por Travassos, por outros entendedores, que era _uma
espiga_: o marquez tinha a sua moral propria para negocios de gado, e
exultaria em _intrujar um pichote_. Apesar de advertido, Eusebio cedendo
· influencia da grossa voz do marquez, da robustez do seu phisico, da
antiguidade do seu titulo, n„o ousava recusar. Mas hesitava; e n'essa
noite deu a resposta usual de forreta, coÁando o queixo, cosido ao muro:

--Eu verei, marquez... Um conto e quinhentos È dinheiro...

O marquez ergueu dois braÁos ameaÁadores como duas trancas:

--Homem, sim ou n„o! Que diabo... Dois animaes que s„o duas estampas...
Irra! Sim ou n„o!

Eusebio ageitou as lunetas, rosnou:

--Eu verei... Elle È dinheiro. Sempre È dinheiro...

--Queria vocÍ, talvez, pagal-as com feijıes? VocÍ leva-me a commetter um
excesso!

O piano resoou, em dois accordes cheios, sob os dedos do Cruges; e o
marquez, baboso por musica, immediatamente largou a quest„o das egoas,
recolheu em pontas de pÈs. Eusebiosinho ainda ficou a remoer, a coÁar o
queixo; emfim, ·s primeiras notas de Steinbroken, veiu pousar como uma
sombra silenciosa entre a hombreira e o reposteiro.

Afastado do piano segundo o seu costume, curvado, com a cabelleira como
pousada ·s costas, Cruges feria o acompanhamento, d'olhos cravados no
livro de _Melodias Filandezas_. Ao lado, empertigado, quasi official,
com o lenÁo de seda na m„o, a m„o fincada contra o peito, Steinbroken
soltava um canto festivo, n'um movimento de tarantella triumphante, em
que passavam, como um entrechocar de seixos, esses bocados de palavras
de que o marquez gostava, _frisk_, _slÈcht_, _clikst_, _glukst_. Era a
_Primavera_--fresca e silvestre, primavera do norte em paiz de
montanhas, quando toda uma aldÍa danÁa em cÛros sob os fuscos abetos, a
neve se derrete em cascatas, um sol pallido avelluda os musgos, e a
brisa traz o aroma das resinas... Nos graves e cheios, as cantoneiras de
Steinbroken ruborisavam-se, inchavam. Nos tons agudos todo elle se Ìa
alÁando sobre a ponta dos pÈs, como levado no compasso vivo; despegava
ent„o a m„o do peito, alargava um gesto, as bellas joias dos seus anneis
faiscavam.

O marquez, com as m„os esquecidas nos joelhos, parecia beber o canto. Na
face de Carlos passava um sorriso enternecido pensando em Madame Rughel,
que viajara na Filandia, e cantava ·s vezes aquella _Primavera_ nas suas
horas de sentimentalismo flamengo...

Steinbroken soltou um _stacato_ agudo, isolado como uma voz n'um
alto,--e immediatamente, afastando-se do piano, passou o lenÁo sobre as
fontes, sobre o pescoÁo, rectificou com um puch„o a linha da
sobrecasaca, e agradeceu o acompanhamento ao Cruges n'um silencioso
_shake-hands_.

--Bravo! bravo! berrava o marquez, batendo as m„os como malhos.

E outros applausos resoaram · porta, dos parceiros do whist, que tinham
findado a partida. Quasi immediatamente os escudeiros entravam com um
serviÁo frio de croquettes e sandwiches, offerecendo St. Emilion ou
Porto; e sobre uma meza, entre os renques de calices, a puncheira
fumegou n'um aroma doce e quente de cognac e lim„o.

--Ent„o, meu pobre Steinbroken, exclamou Affonso, vindo-lhe bater
amavelmente no hombro, ainda d· d'esses bellos cantos a estes bandidos,
que o maltratam assim ao bilhar?

--Fui essfÙladito, si, essfÙladito. Agradecido, nÙ, prefiro um copita
Porto...

--Hoje fomos nÛs as victimas, disse-lhe o general respirando com delicia
o seu punch.

--VocÍ t„bem, meu genÍral?

--Sim, senhor, tambem me cascaram...

E que dizia o amigo Steinbroken ·s noticias da manh„? perguntava
Affonso. A queda de Mac-Mahon, a eleiÁ„o de Grevy... O que o alegrava
n'isto, era o desapparecimento definitivo do antipathico senhor de
Broglie e da sua _clique_. A impertinencia d'aquelle academico estreito,
querendo impÙr a opini„o de dois ou tres salıes doutrinarios · FranÁa
inteira, a toda uma Democracia! Ah, o _Times_ cantava-lh'as!

--E o _Punch_? N„o viu o _Punch_? Oh, delicioso!...

O ministro pousara o calice, e esfregando cautelosamente as m„os disse
n'uma meia voz grave a sua phrase, a phrase definitiva com que julgava
todos os acontecimentos que apparecem em telegrammas:

--… gr‡ve... … eqsessivemente gr‡ve...

Depois fallou-se de Gambetta; e como Affonso lhe attribuia uma dictadura
proxima, o diplomata tomou mysteriosamente o braÁo de Sequeira, murmurou
a palavra suprema com que definia todas as personalidades superiores,
homens d'estado, poetas, viajantes ou tenores.

--… um hom[~e] m˚to forte. … um hom[~e] eqsessivemente forte!

--O que elle È, È um ronha! exclamou o general, escorropichando o seu
calice.

E todos tres deixaram a sala, discutindo ainda a republica--em quanto
Cruges continuava ao piano, vagueando por Mendelsshon e por Choppin,
depois de ter devorado um prato de croquettes.

O marquez e D. Diogo, sentados no mesmo soph‡, um com a sua chasada
d'invalido, outro com um copo de S.^t Emilion, a que aspirava o
_bouquet_, fallavam tambem de Gambetta. O marquez gostava de Gambetta:
fÙra o unico que durante a guerra mostrara ventas de homem; l· que
tivesse ´comidoª ou que ´quizesse comerª como diziam,--n„o sabia nem lhe
importava. Mas era teso! E o sr. Grevy tambem lhe parecia um cidad„o
serio, optimo para chefe do Estado...

--Homem de sala? perguntou languidamente o velho le„o.

O marquez sÛ o vira na AssemblÈa, presidindo e muito digno...

D. Diogo murmurou, com um melancolico desdem na voz, no gesto, no olhar:

--O que eu queria a toda essa canalha era a saude, marquez!

O marquez consolou-o, galhofeiro e amavel. Toda essa gente, parecendo
forte por se occupar de cousas fortes, no fundo tinha asthma, tinha
pedra, tinha gota... E o Dioguinho era um Hercules...

--Um Hercules! O que È, È que vocÍ apaparica-se muito... A doenÁa È um
mau habito em que a gente se pıe. … necessario reagir... VocÍ devia
fazer gymnastica, e muita agua fria por essa espinha. VocÍ, na
realidade, È de ferro!

--Enferrujadote, enferrujadote...--replicou o outro, sorrindo e
desvanecido.

--Qual enferrujadote! Se eu fosse cavallo ou mulher, antes o queria a
vocÍ que a esses badamecos que por ahi andam meio podres... J· n„o ha
homens da sua tempera, Dioguinho!

--J· n„o ha nada, disse o outro grave e convencido, e como o derradeiro
homem nas ruinas d'um mundo.

Mas era tarde, Ìa-se agasalhar, recolher, depois de acabar a sua
chasada. O marquez ainda se demorou, preguiÁando no soph·, enchendo
lentamente o cachimbo, dando um olhar ·quella sala que o encantava com o
seu luxo Luiz XV, os seus florÌdos e os seus dourados, as cerimoniosas
poltronas de Beauvais feitas para a amplid„o das anquinhas, as
tapeÁarias de Gobelins de tons desmaiados, cheias de galantes pastoras,
longes de parques, laÁos e l„s de cordeiros, sombras d'idyllios mortos,
transparecendo n'uma trama de seda... ¡quella hora, no adormecimento que
Ìa pesando, sob a luz suave e quente das velas que findavam, havia ali a
harmonia e o ar de um outro seculo: e o marquez reclamou do Cruges um
minuete, uma gavotta, alguma cousa que evocasse Versalhes, Maria
Antonietta, o rythmo das bellas maneiras e o aroma dos empoados. Cruges
deixou morrer sob os dedos a melodia vaga que estava diluindo em
suspiros, preparou-se, alargou os braÁos--e atacou, com um pedal
solemne, o _Hymno da Carta_. O marquez fugiu.

VillaÁa e Euzebiozinho conversavam no corredor, sentados n'uma das arcas
baixas de carvalho lavrado.

--A fazer politica? perguntou-lhes o marquez ao passar.

Ambos sorriram; VillaÁa respondeu jocosamente:

--… necessario salvar a patria!

Eusebio pertencia tambem ao centro progressista, aspirava a influencia
eleitoral no circulo de Resende, e alli ·s noites no Ramalhete faziam
conciliabulos. N'esse momento porÈm fallavam dos Maias: VillaÁa n„o
duvidava confiar ao Silveirinha, homem de propriedade, visinho de
S.^{ta} Olavia, quasi creado com Carlos, certas cousas que lhe
desagradavam na casa, onde a auctoridade da sua palavra parecia
diminuir; assim, por exemplo, n„o podia approvar o ter Carlos tomado uma
frisa de assignatura.

--Para que, exclamava o digno procurador, para que, meu caro senhor?
Para l· n„o pÙr os pÈs, para passar aqui as noites... Hoje diz que ha
enthusiasmo, e elle ahi esteve. Tem ido l·, eu sei? duas ou trÍs
vezes... E para isto d· c· uns poucos de centos de mil rÈis. Podia fazer
o mesmo com meia duzia de libras! N„o, n„o È governo. No fim a frisa È
para o Ega, para o Taveira, para o Cruges... Olhe, eu n„o me utiliso
d'ella; nem o amigo. … verdade, que o amigo est· de luto.

Eusebio pensou, com despeito, que se podia metter para o fundo da
frisa--se tivesse sido convidado. E murmurou, sem conter um sorriso
molle:

--Indo assim, atÈ se podem encalacrar...

Uma tal palavra, t„o humilhante, applicada aos Maias, · casa que elle
administrava, escandalisou VillaÁa. Encalacrar! Ora essa!

--O amigo n„o me comprehendeu... Ha despezas inuteis, sim, mas, louvado
Deus, a casa pÛde bem com ellas! … verdade que o rendimento gasta-se
todo, atÈ o ultimo ceitil; os cheques voam, voam, como folhas seccas; e
atÈ aqui o costume da casa foi pÙr de lado, fazer bolo, fazer reserva.
Agora o dinheiro derrete-se...

Eusebio rosnou algumas palavras sobre os trens de Carlos, os nove
cavallos, o cocheiro inglez, os grooms... O procurador acudiu:

--Isso, amigo, È de raz„o. Uma gente d'estas deve ter a sua
representaÁ„o, as suas cousas bem montadas. Ha deveres na sociedade... …
como o sr. Affonso... Gasta muito, sim, come dinheiro. N„o È com elle,
que lhe conheÁo aquelle casaco ha vinte annos... Mas s„o esmolas, s„o
pensıes, s„o emprestimos que nunca mais vÍ...

--Desperdicios...

--N„o lh'o censuro... … o costume da casa; nunca da porta dos Maias, j·
meu pae dizia, sahiu ninguem descontente... Mas uma frisa, de que
ninguem usa! sÛ para o Cruges, sÛ para o Taveira!...

Teve de se callar. Justamente ao fundo do corredor assomava o Taveira,
abafado atÈ aos olhos na gola d'uma ulster, d'onde sahiam as pontas d'um
_cachenez_ de seda clara. O escudeiro desembaraÁou-o dos agasalhos; e
elle, de casaca e collete branco, limpando o bonito bigode humido da
geada, veiu apertar a m„o ao caro VillaÁa, ao amigo Eusebio, arrepiado,
mas achando o frio elegante, desejando a neve e o seu _chic_...

--Nada, nada, dizia VillaÁa todo amavel, c· o nosso solzinho portuguez
sempre È melhor...

E foram entrando no _fumoir_, onde se ouviam as vozes do marquez, de
Carlos, n'uma das suas sabias e prolixas cavaqueiras sobre cavallos e
sport.

--Ent„o? que tal? A mulher? foi a interrogaÁ„o que acolheu o Taveira.

Mas antes de dar noticia da estreia da Morelli, a dama nova, Taveira
reclamou alguma cousa quente. E enterrado n'uma poltrona junto do fog„o,
com os sapatos de verniz estendidos para as brazas, respirando o aroma
do punch, saboreando uma cigarette, declarou emfim que n„o tinha sido um
_fiasco_.

--Que ella, a meu vÍr, È uma insignificancia, n„o tem nada, nem voz, nem
escola. Mas, coitada, estava t„o atrapalhada, que nos fez pena. Houve
indulgencia, deram-se-lhe umas palmas... Quando fui ao palco, ella
estava contente...

--Vamos a saber, Taveira, que tal È ella? inquiria o marquez.

--Cheia, dizia o Taveira collocando as palavras como pinceladas; alta;
muito branca; bons olhos; bons dentes...

--E o pÈsinho?--E o marquez, j· com os olhos accesos, passava de vagar a
m„o pela calva.

Taveira n„o reparara no pÈ. N„o era amador de pÈs...

--Quem estava? perguntou Carlos, indolente e bocejando.

--A gente do costume... … verdade, sabes quem tomou a frisa ao lado da
tua? Os Gouvarinhos. L· appareceram hoje...

Carlos n„o conhecia os Gouvarinhos. Em redor explicaram-lhe: o conde de
Gouvarinho, o par do reino, um homem alto, de lunetas, _poseur_... E a
condessa, uma senhora inglesada, de cabello cÙr de cenoura, muito bem
feita... Emfim, Carlos n„o conhecia.

VillaÁa encontrava o conde no centro progressista, onde elle era uma
columna do partido. Rapaz de talento, segundo o VillaÁa. O que o
espantava È que elle podesse ter assim frisa de assignatura, atrapalhado
como estava: ainda n„o havia tres mezes lhe tinham protestado uma letra
de oitocentos mil rÈis, no tribunal do commercio...

--Um asno, um caloteiro! disse o marquez com nojo.

--Passa-se l· bem, ·s terÁas feiras...--disse Taveira, mirando a sua
meia de seda.

Depois fallou-se do duello do Azevedo da _Opini„o_ com o S· Nunes,
auctor d'_El-Rei Bolacha_, a grande magica da Rua dos Condes, e
ultimamente ministro da marinha: tinham-se tratado furiosamente nos
jornaes de _pulhas_ e de _ladrıes_: e havia dez interminaveis dias que
estavam desafiados e que Lisboa, em pasmaceira, esperava o sangue.
Cruges ouvira que S· Nunes n„o se queria bater, por estar de luto por
uma tia; dizia-se tambem que o Azevedo partira precipitadamente para o
Algarve. Mas a verdade, segundo VillaÁa, era que o ministro do reino,
primo do Azevedo, para evitar o recontro, conservava a casa dos dois
cavalheiros bloqueada pela policia...

--Uma canalha! exclamou o marquez com um dos seus resumos brutaes que
varriam tudo.

--O ministro n„o deixa de ter raz„o, observou VillaÁa. Isto ·s vezes, em
duellos, pÛde bem succeder uma desgraÁa...

Houve um curto silencio. Carlos, que caÌa de somno, perguntou ao
Taveira, atravez d'outro bocejo, se vira o Ega no theatro.

--Podera! La estava de serviÁo, no seu posto, na frisa dos Cohens, todo
puxado...

--Ent„o essa cousa do Ega com a mulher do Cohen, disse o marquez, parece
clara...

--Transparente, diaphana! um crystal!...

Carlos, que se erguera a accender uma cigarette para despertar, lembrou
logo a grande maxima de D. Diogo: essas cousas nunca se sabiam, e era
preferivel n„o se saberem! Mas o marquez, a isto, lanÁou-se em
consideraÁıes pesadas. Estimava que o Ega _se atirasse_; e via ahi um
facto de represalia social, por o Cohen ser judeu e banqueiro. Em geral
n„o gostava de judeus; mas nada lhe offendia tanto o gosto e a raz„o
como a especie _banqueiro_. Comprehendia o salteador de clavina, n'um
pinheiral; admittia o communista, arriscando a pelle sobre uma
barricada. Mas os argentarios, os _Fulanos e C.^{as}_ faziam-n'o
encavacar... E achava que destruir-lhes a paz domestica era acto
meritorio!

--Duas horas e um quarto! exclamou Taveira, que olhara o relogio. E eu
aqui, empregado publico, tendo deveres para com o Estado, logo ·s dez
horas da manh„.

--Que diabo, se faz no tribunal de contas? perguntou Carlos. Joga-se?
Cavaquea-se?

--Faz-se um bocado de tudo, para matar tempo... AtÈ contas!

Affonso da Maia j· estava recolhido. Sequeira e Steinbroken tinham
partido; e D. Diogo, no fundo da sua velha traquitana, l· fÙra tambem a
tomar ainda gemada, a pÙr ainda o emplastro, sob o olho solicito da
Margarida, sua cozinheira e seu derradeiro amor. E os outros n„o
tardaram a deixar o Ramalhete. Taveira, de novo sepultado na _ulster_,
trotou atÈ casa, uma vivendasinha perto com um bonito jardim. O marquez
conseguiu levar Cruges no _coupÈ_, para lhe ir fazer musica a casa, no
org„o, atÈ ·s tres ou quatro horas, musica religiosa e triste, que o
fazia chorar, pensando nos seus amores e comendo frango frio com fatias
de salame. E o viuvo, o Eusebiosinho, esse, batendo o queixo, t„o morosa
e soturnamente como se caminhasse para a sua propria sepultura, l· se
dirigiu ao lupanar onde tinha uma _paix„o_.


O laboratorio de Carlos estava prompto--e muito convidativo, com o seu
soalho novo, fornos de tijolo fresco, uma vasta meza de marmore, um
amplo divan de clina para o repouso depois das grandes descobertas, e em
redor, por sobre peanhas e prateleiras, um rico brilho de metaes e
crystaes; mas as semanas passavam, e todo esse bello material de
experimentaÁ„o, sob a luz branca da claraboia, jazia virgem e ocioso. SÛ
pela manh„ um servente Ìa ganhar o seu tost„o diario, dando l· uma volta
preguiÁosa com um espanador na m„o.

Carlos realmente n„o tinha tempo de se occupar do laboratorio; e
deixaria a Deus mais algumas semanas o privilegio exclusivo de saber o
segredo das cousas--como elle dizia rindo ao avÙ. Logo pela manh„ cedo
Ìa fazer as suas duas horas d'armas com o velho Randon; depois via
alguns doentes no bairro onde se espalhara, com um brilho de legenda, a
cura da Marcellina--e as garrafas de Bordeus que lhe mandara Affonso.
ComeÁava a ser conhecido como medico. Tinha visitas no
consultorio--ordinariamente bachareis, seus contemporaneos, que
sabendo-o rico o consideravam gratuito, e l· entravam, murchos e com m·
cara, a contar a velha e mal disfarÁada historia de ternuras funestas.
Salvara d'um garrotilho a filha d'um brazileiro, ao Aterro--e ganhara
ahi a sua primeira libra, a primeira que pelo seu trabalho ganhava um
homem da sua familia. O dr. Barbedo convidara-o a assistir a uma
operaÁ„o ovariotomica. E emfim (mas esta consagraÁ„o n„o a esperava
realmente Carlos t„o cedo) alguns dos seus bons collegas, que atÈ ahi,
vendo-o sÛ a governar os seus cavallos inglezes, fallavam do ´talento do
Maiaª--agora percebendo-lhe estas migalhas de clientella, comeÁavam a
dizer ´que o Maia era um asno.ª Carlos j· fallava a serio da sua
carreira. Escrevera, com laboriosos requintes d'estylista, dois artigos
para a _Gazeta Medica_; e pensava em fazer um livro d'idÈas geraes, que
se devia chamar _Medicina Antiga e Moderna_. De resto occupava-se sempre
dos seus cavallos, do seu luxo, do seu bric-a-brac. E atravez de tudo
isto, em virtude d'essa fatal dispers„o de curiosidade que, no meio do
caso mais interessante de pathologia, lhe fazia voltar a cabeÁa, se
ouvia fallar d'uma estatua ou d'um poeta, attrahia-o singularmente a
antiga idÈa do Ega, a creaÁ„o d'uma Revista, que dirigisse o gosto,
pezasse na politica, regulasse a sociedade, fosse a forÁa pensante de
Lisboa...

Era porÈm inutil lembrar ao Ega este bello plano. Abria um olho vago,
respondia:

--Ah, a Revista... Sim, est· claro, pensar n'isso! Havemos de fallar, eu
apparecerei...

Mas n„o apparecia no Ramalhete, nem no consultorio; apenas se avistavam,
·s vezes, em S. Carlos, onde o Ega, todo o tempo que n„o passava no
camarote dos Cohens, vinha invariavelmente refugiar-se no fundo da frisa
de Carlos, por tr·s de Taveira ou do Cruges; d'onde podesse olhar de vez
em quando Rachel Cohen--e ali ficava, silencioso, com a cabeÁa appoiada
ao tabique, repousando e como saturado de felicidade...

O dia (dizia elle) tinha-o todo tomado: andava procurando casa, andava
estudando mobilias... Mas era facil encontral-o pelo Chiado e pelo
Loreto, a rondar e a farejar--ou ent„o no fundo de tipoias de praÁa,
batendo a meio galope, n'um espalhafato de aventura.

O seu dandysmo requintava; arvorara, com o desplante soberbo d'um
Brummel, casaca de botıes amarellos sobre collete de setim branco; e
Carlos entrando uma manh„ cedo no _Universal_, deu com elle pallido de
colera, a despropositar com um creado, por causa d'uns sapatos mal
envernisados. Os seus companheiros constantes, agora, eram um Damaso
Salcede, amigo do Cohen, e um primo da Rachel Cohen, mocinho imberbe,
d'olho esperto e duro, j· com ares de emprestar a trinta por cento.

Entre os amigos, no Ramalhete, sobretudo na frisa, discutia-se ·s vezes
Rachel, e as opiniıes discordavam. Taveira achava-a ´deliciosa!ª--e
dizia-o rilhando o dente: ao marquez n„o deixava de parecer appetitosa,
para uma vez, aquella carnezinha _faisandÈe_ de mulher de trinta annos:
Cruges chamava-lhe uma ´lambisgoia relamboriaª. Nos jornaes, na secÁ„o
do _High-life_, ella era ´uma das nossas primeiras elegantesª: e toda a
Lisboa a conhecia, e a sua luneta d'ouro presa por um fio d'ouro, e a
sua caleche azul com cavallos pretos. Era alta, muito pallida, sobre
tudo ·s luzes, delicada de saude, com um quebranto nos olhos pisados,
uma infinita languidez em toda a sua pessoa, um ar de romance e de lyrio
meio murcho: a sua maior belleza estava nos cabellos, magnificamente
negros, ondeados, muito pesados, rebeldes aos ganchos, e que ella
deixava habilmente cahir n'uma massa meia solta sobre as costas, como
n'um desalinho de nudez. Dizia-se que tinha litteratura, e fazia
phrases. O seu sorriso lasso, pallido, constante, dava-lhe um ar de
insignificancia. O pobre Ega adorava-a.

Conhecera-a na Foz, na AssemblÈa; n'essa noite, cervejando com os
rapazes, ainda lhe chamou _camelia melada_; dias depois j· adulava o
marido; e agora esse demagogo, que queria o massacre em massa das
classes medias, soluÁava muita vez por causa d'ella, horas inteiras,
cahido para cima da cama.

Em Lisboa, entre o Gremio e a Casa Havaneza, j· se comeÁava a fallar ´do
arranjinho do Egaª. Elle todavia procurava pÙr a sua felicidade ao
abrigo de todas as suspeitas humanas. Havia nas suas complicadas
precauÁıes tanta sinceridade como prazer romantico do mysterio: e era
nos sitios mais desageitados, fÛra de portas, para os lados do
Matadouro, que Ìa furtivamente encontrar a creada que lhe trazia as
cartas d'ella... Mas em todos os seus modos (mesmo no disfarce affectado
com que espreitava as horas) transbordava a immensa vaidade d'aquelle
adulterio elegante. De resto sentia bem que os seus amigos conheciam a
gloriosa aventura, o sabiam em pleno drama: era mesmo talvez por isso,
que, diante de Carlos e dos outros, nunca atÈ ahi mencionara o nome
d'ella, nem deixara j·mais escapar um lampejo de exaltaÁ„o.

Uma noite, porÈm, acompanhando Carlos atÈ ao Ramalhete, noite de lua
calma e branca, em que caminhavam ambos callados, Ega, invadido decerto
por uma onda interior de paix„o, soltou desabafadamente um suspiro,
alargou os braÁos, declamou com os olhos no astro, um tremor na voz:


    Oh! laisse-toi donc aimer, oh! l'amour c'est la vie!


Isto fugira-lhe dos labios como um comeÁo de confiss„o; Carlos ao lado
n„o disse nada, soprou ao ar o fumo do charuto.

Mas Ega sentiu-se decerto ridiculo, porque se calmou, refugiou-se
immediatamente no puro interesse litterario:

--No fim de contas, menino, digam l· o que disserem, n„o ha sen„o o
velho Hugo...

Carlos, comsigo, lembrava furores naturalistas do Ega, rugindo contra
Hugo, chamando-lhe ´saco-roto de espiritualismoª, ´boca-aberta de
sombraª, ´avÙsinho lyricoª, injurias peiores.

Mas n'essa noite o grande phraseador continuou:

--Ah o velho Hugo! o velho Hugo È o campe„o heroico de verdades
eternas... … necessario um bocado d'ideal, que diabo!... De resto o
ideal pÛde ser real...

E foi, com esta palinodia, acordando os silencios do Aterro.

Dias depois Carlos, no consultorio, acabava de despedir um doente, um
Viegas, que todas as semanas vinha alli fazer a fastidiosa chronica da
sua dyspepsia--quando do reposteiro da sala d'espera lhe surgiu o Ega,
de sobrecasaca azul, luva _gris-perle_ e um rolo de papel na m„o.

--Tens que fazer, doutor?

--N„o, Ìa a sahir, janota!

--Bem. Venho-te impingir prosa... Um bocado do _Atomo_... Senta-te ahi.
Ouve l·.

Immediatamente abancou, afastou papeis e livros, desenrolou o
manuscripto, espalmou-o, deu um pux„o ao collarinho--e Carlos, que se
pousara · borda do divan, com a face espantada e as m„os nos joelhos,
achou-se quasi sem transiÁ„o transportado dos rugidos do ventre do
Viegas para um rumor de populaÁa, n'um bairro de judeus, na velha cidade
de Heidelberg.

--Mas espera l·! exclamou elle. Deixa-me respirar. Isso n„o È o comeÁo
do livro! Isso n„o È o cahos...

Ega ent„o recostou-se, desabotoou a sobrecasaca, respirou tambem.

--N„o, n„o È o primeiro episodio... N„o È o cahos. … j· no seculo XV...
Mas n'um livro d'estes pÛde-se comeÁar pelo fim... Conveiu-me fazer este
episodio: chama-se a _Hebrea_.

A Cohen! pensou Carlos.

Ega tornou a alargar o collarinho--e foi lendo, animando-se, ferindo as
palavras para as fazer viver, soltando grandes cheios de voz nas
sonoridades finaes dos periodos. Depois da sombria pintura d'um bairro
medival de Heidelberg, o famoso Atomo, o _Atomo do Ega_, apparecia
alojado no coraÁ„o do esplendido principe Franck, poeta, cavalleiro, e
bastardo do imperador Maximiliano. E todo esse coraÁ„o de heroe
palpitava pela judia Esther, perola maravilhosa do Oriente, filha do
velho rabbino Salom„o, um grande doutor da Lei, perseguido pelo odio
theologico do Geral dos Dominicanos.

Isto contava-o o Atomo n'um monologo, t„o recamado d'imagens como um
manto da Virgem est· recamado d'estrellas--e que era uma declaraÁ„o
d'elle, Ega, · mulher do Cohen. Depois abria-se um intermedio
pantheista: rompiam coros de flores, coros de astros, cantando na
linguagem da luz, ou na eloquencia dos perfumes, a belleza, a graÁa, a
pureza, a alma celeste de Esther--e de Rachel... Emfim, chegava o negro
drama da perseguiÁ„o: a fuga da familia hebraica, atravÈz de bosques de
bruxas e brutas aldÍas feudaes; a appariÁ„o, n'uma encrusilhada, do
principe Franck que vem proteger Esther, de lanÁa alta, no seu grande
corcel; o tropel da turba fanatica, correndo a queimar o rabbino e os
seus livros herejes; a batalha, e o principe atravessado pelo chuÁo d'um
_reitre_, indo morrer no peito d'Esther, que morre com elle n'um beijo.
Tudo isto se precipitava como um sonoro e tumultuoso soluÁo; e era
tratado com as maneiras modernas d'estylo, o esforÁo atormentado
inchando a express„o, as camadas de cÙr atiradas · larga para fazer
ressaltar o tom de vida...

Ao findar o _Atomo_ exclamava, com a vasta solemnidade d'um cheio
d'org„o:--´assim arrefeceu, parou, aquelle coraÁ„o de heroe que eu
habitava; e evaporado o principio de vida, eu, agora livre, remontei aos
astros, levando comigo a essencia pura d'esse amor immortal.ª

--Ent„o?...--disse Ega, esfalfado, quasi tremulo.

Carlos sÛ poude responder:

--Est· ardente.

Depois elogiou a serio alguns lances, o coro das florestas, a leitura do
_Ecclesiastes_, de noite, entre as ruinas da torre d'Othon, certas
imagens d'um grande vÙo lyrico.

Ega, que tinha pressa, como sempre, enrolou o manuscripto, reabotoou a
sobrecasaca, e j· de chapÈu na m„o:

--Ent„o, parece-te apresentavel?...

--Vaes publicar?

--N„o, mas emfim...--e ficou n'esta reticencia, fazendo-se corado.

Carlos comprehendeu tudo dias depois, encontrando na _Gazeta do Chiado_
uma descripÁ„o ´da leitura feita em casa do ex.^{mo} sr. Jacob Cohen,
pelo nosso amigo Jo„o da Ega, de um dos mais brilhantes episodios do seu
livro--_As memorias d'um atomo_.ª E o jornalista accrescentava, dando a
sua impress„o pessoal: ´È uma pintura dos sofrimentos porque passaram,
nos tempos da intolerancia religiosa, aquelles que seguem a Lei
d'Israel. Que poder de imaginaÁ„o! Que fluencia d'estylo! O effeito foi
extraordinario, e quando o nosso amigo fechou o manuscripto ao succumbir
da protagonista--vimos lagrimas em todos os olhos da numerosa e
estimavel colonia hebraica!ª

Oh, furor do Ega! Rompeu n'essa tarde pelo consultorio, pallido,
desorientado...

--Estas bestas! Estas bestas d'estes jornalistas! Leste? _Lagrimas em
todos os olhos da numerosa e estimavel colonia hebraica!_ Faz cahir a
cousa em ridiculo... E depois a _fluencia d'estylo_. Que burros! Que
idiotas!

Carlos, que cortava as folhas d'um livro, consolou-o. Aquella era a
maneira nacional de fallar d'obras d'arte... N„o valia a pena bramar...

--N„o, palavra, tinha vontade de quebrar a cara ·quelle folliculario!

--E porque lh'a n„o quebras?

--… um amigo dos Cohens.

E foi grunhindo improperios contra a imprensa, a passos de tigre pelo
gabinete. Por fim irritado com a indifferenÁa de Carlos:

--Que diabo est·s tu ahi a ler? _Nature parasitaire des accidents de
l'impaludisme_... Que blague, a medicina! Dize-me uma cousa. Que diabo
ser„o umas picadas que me veem aos braÁos, sempre que vou a
adormecer?...

--Pulgas, bichos, vermina...--murmurou Carlos com os olhos no livro.

--Animal! rosnou Ega, arrebatando o chapÈu.

--Vaes-te, John?

--Vou, tenho que fazer!--E junto do reposteiro, ameaÁando o cÈu com o
guarda-chuva, chorando quasi de raiva:--Estes burros d'estes
jornalistas! S„o a escoria da sociedade!

D'ahi a dez minutos reappareceu, bruscamente: e j· com outra voz, n'um
tom de caso serio:

--Ouve c·. Tinha-me esquecido. Tu queres ser apresentado aos
Gouvarinhos?

--N„o tenho um interesse especÌal, respondeu Carlos, erguendo os olhos
do livro, depois de um silencio. Mas n„o tenho tambem uma repugnancia
especial.

--Bem, disse Ega. Elles desejam conhecer-te, sobretudo a condessa faz
empenho... Gente intelligente, passa-se l· bem... Ent„o, decidido! TerÁa
feira vou-te buscar ao Ramalhete, e vamo-nos _gouvarinhar_.

Carlos ficou pensando n'aquella proposta do Ega, na maneira como elle
sublinh·ra o _empenho_ da condessa. Lembrava-se agora que ella era muito
intima da Cohen: e ultimamente, em S. Carlos, n'aquella facil visinhanÁa
de frisa, surprehendera certos olhares d'ella... Mesmo, segundo o
Taveira, ella realmente _fazia-lhe um olh„o_. E Carlos achava-a picante,
com os seus cabellos crespos e ruivos, o narizinho petulante, e os olhos
escuros, d'um grande brilho, dizendo mil cousas. Era deliciosamente bem
feita--e tinha uma pelle muito clara, fina e doce · vista, a que se
sentia mesmo de longe o setim.

Depois d'aquelle dia tristÙnho de aguaceiros, elle resolvera passar um
bom ser„o de trabalho, ao canto do fog„o, no conforto do seu
robe-de-chambre. Mas ao cafÈ, os olhos da Gouvarinho comeÁaram a
faiscar-lhe por entre o fumo do charuto, a fazer-lhe _um olh„o_,
collocando-se tentadoramente entre elle e a sua noite d'estudo,
pondo-lhe nas veias um vivo calor de mocidade... Tudo culpa do Ega, esse
Mephistopheles de Celorico!

Vestiu-se, foi a S. Carlos. Ao sentar-se porÈm · boca da frisa,
preparado, de collete branco e perola negra na camisa,--em logar dos
cabellos crespos e ruivos, avistou a carapinha retinta de um preto, um
preto de doze annos, trombudo e lusidio, de grande collarinho · mam„
sobre uma jaqueta de botıes amarellos; ao lado outro preto, mais
pequeno, com o mesmo uniforme de collegio, enterrava pela venta aberta o
dedo calÁado de pellica branca. Ambos elles lhe relancearam os olhos
bogalhudos, cÙr de prata embaciada. A pessoa que os acompanhava,
escondida para o fundo, parecia ter um catharro ascoroso.

Dava-se a _Lucia_ em beneficio, com a segunda dama. Os Cohens n„o tinham
vindo--nem o Ega. Muitos camarotes estavam desertos, em toda a tristeza
do seu velho papel vermelho. A noite chuviscosa, com um bafo de
sudoeste, parecia penetrar alli, derramando o seu pesadume, a morna
sensaÁ„o da sua humidade. Nas cadeiras, vasias, havia uma mulher
solitaria, vestida de setim claro; Edgardo e Lucia desafinavam; o gaz
dormia, e os arcos das rebecas, sobre as cordas, pareciam ir adormecendo
tambem.

--Isto est· lugubre, disse Carlos ao amigo Cruges, que occupava o escuro
da frisa.

Cruges, amodorroado n'um accesso de _spleen_, com o cotovello sobre as
costas da cadeira, os dedos por entre a cabelleira, todo elle embrulhado
em crepes, sobrepostos de melancolia, respondeu, como do fundo d'um
sepulchro:

--Pesadote.

Por indolencia, Carlos ficou. E pouco a pouco, aquelle preto de que os
seus olhos se n„o podiam despegar, alli enthronisado na poltrona de reps
verde da Gouvarinho, com a manga da jaqueta plantada no rebordo onde
costumava alvejar um lindo braÁo,--foi-lhe arrastando, a seu pesar, a
imaginaÁ„o para a pessoa d'ella; relembrou _toilettes_ com que ella alli
estivera; e nunca lhe pareceram t„o picantes, como agora que os n„o via,
os seus cabellos ruivos, cÙr de braza ·s luzes, d'um encrespado forte,
como crestados da chamma interna. A carapinha do preto, essa, em logar
de risca tinha um sulco cavado · thesoura na massa de l„ espessa. Quem
seriam, por que estavam alli, aquelles africanos de perfil trombudo?

--Tu j· reparaste n'esta extraordinaria carapinha, Cruges?

O outro, que se n„o mexera da sua attitude de estatua tumular, grunhiu
da sombra um monosyllabo surdo.

Carlos respeitou-lhe os nervos.

De repente, ao desafinar mais aspero d'um coro, Cruges deu um salto.

--Isto sÛ a pontapÈ... Que empreza esta! rugio elle, envergando
furiosamente o paletot.

Carlos foi leval-o no coupÈ · rua das Flores, onde elle morava com a m„e
e uma irm„; e atÈ ao Ramalhete n„o cessou de lamentar comsigo o seu
ser„o d'estudo perdido.

O creado de Carlos, o Baptista, (familiarmente, o _Tista_) esperava-o,
lendo o jornal, na confortavel antecamara dos ´quartos do meninoª,
forrada de velludo cÙr de cereja, ornada de retratos de cavallos e
panoplias de velhas armas, com divans do mesmo velludo, e muito
allumiada a essa hora por dois candieiros de globo pousados sobre
columnas de carvalho, onde se enrolavam lavores de ramos de vide.

Carlos tinha desde os onze annos este creado de quarto, que viera com o
Brown para S.^{ta} Olavia, depois de ter servido em Lisboa, na LegaÁ„o
ingleza, e ter acompanhado o ministro, sir Hercules Morrisson, varias
vezes a Londres. Foi em Coimbra, nos PaÁos de Cellas, que Baptista
comeÁou a ser um personagem: Affonso correspondia-se com elle de S.^{ta}
Olavia. Depois viajou com Carlos; enjoaram nos mesmos paquetes,
partilharam dos mesmos _sandwiches_ no buffete das gares; Tista
tornou-se um confidente. Era hoje um homem de cincoenta annos,
desempenado, robusto, com um collar de barba grisalha por baixo do
queixo, e o ar excessivamente _gentleman_. Na rua, muito direito na sua
sobrecasaca, com o par de luvas amarellas espetado na m„o, a sua bengala
de cana da India, os sapatos bem envernisados, tinha a consideravel
apparencia de um alto funccionario. Mas conservava-se t„o fino e t„o
desembaraÁado, como quando em Londres aprendera a walsar e a _boxar_ na
rude balburdia dos salıes-danÁantes, ou como quando mais tarde, durante
as ferias de Coimbra, acompanhava Carlos a Lamego e o ajudava a saltar o
muro do quintal do sr. escriv„o de fazenda--aquelle que tinha uma mulher
t„o garota.

Carlos foi buscar um livro ao gabinete d'estudo, entrou no quarto,
estendeu-se, canÁado, n'uma poltrona. ¡ luz opalina dos globos, o leito
entre-aberto mostrava, sob a seda dos cortinados, um luxo effeminado de
bretanhas, bordados e rendas.

--Que ha hoje no _Jornal da Noite_? perguntou elle bocejando, em quanto
Baptista o descalÁava.

--Eu li-o todo, meu senhor, e n„o me pareceu que houvesse cousa alguma.
Em FranÁa contin˙a socego... Mas a gente nunca pÛde saber, porque estes
jornaes portuguezes imprimem sempre os nomes estrangeiros errados.

--S„o umas bestas. O sr. Ega hoje estava furioso com elles...

Depois, em quanto Baptista preparava com esmero um _grog_ quente, Carlos
j· deitado, aconchegado, abriu preguiÁosamente o livro, voltou duas
folhas, fechou-o, tomou uma cigarette, e ficou fumando com as palpebras
cerradas, n'uma immensa beatitude. AtravÈz das cortinas pesadas
sentia-se o sudoeste que batia o arvoredo, e os aguaceiros alagando os
vidros.

--Tu conheces os srs. condes de Gouvarinho, Tista?

--ConheÁo o Pimenta, meu senhor, que È creado de quarto do sr. conde...
Creado de quarto e serve a meza.

--E que diz ent„o esse Tormenta? perguntou Carlos, n'uma voz indolente,
depois d'um silencio.

--Pimenta, meu senhor! O Manuel È Pimenta. O sr. Gouvarinho chama-lhe
Rom„o, por que estava acostumado ao outro creado que era Rom„o. E j·
isto n„o È bonito, porque cada um tem o seu nome. O Manuel È Pimenta. O
Pimenta n„o est· contente...

E Baptista, depois de collocar junto da cabeceira a salva com o _grog_,
o assucareiro, as cigarettes, transmittiu as revelaÁıes do Pimenta. O
conde de Gouvarinho, alÈm de muito massador e muito pequinhento, n„o
tinha nada de cavalheiro: dera um fato de cheviot claro ao Rom„o (ao
Pimenta), mas t„o coÁado e t„o cheio de riscas de tinta, de limpar a
penna · perna e ao hombro, que o Pimenta deitou o presente fÛra. O conde
e a senhora n„o se davam bem: j· no tempo do Pimenta, uma occasi„o, ·
mesa, tinham-se pegado de tal modo que ella agarrou do copo e do prato,
e esmigalhou-os no ch„o. E outra qualquer teria feito o mesmo; por que o
sr. conde, quando comeÁava a repisar, a remoer, n„o se podia aturar. As
questıes eram sempre por causa de dinheiro. O Tompson velho estava farto
de abrir os cordıes · bolsa...

--Quem È esse Tompson velho, que nos apparece agora, a esta hora da
noite? perguntou Carlos, a seu pesar interessado.

--O Tompson velho È o pae da sr.^a condessa. A sr.^a condessa era uma
miss Tompson, dos Tompson do Porto. O sr. Tompson n„o tem querido
ultimamente emprestar nem mais um real ao genro: de sorte que, uma vez,
j· no tempo do Pimenta tambem, o sr. conde, furioso, disse · senhora que
ella e o pae se deviam lembrar que eram gente de commercio e que fora
elle que fizera d'ella uma condessa; e com perd„o de v. ex.^a, a senhora
condessa ali mesmo · mesa mandou o condado · tab˙a... Estas cousas n„o
est„o no genero do Pimenta.

Carlos bebeu um gole de grog. Bailava-lhe nos labios uma pergunta, mas
hesitava. Depois reflectiu na puerilidade de t„o rigidos escrupulos, a
respeito d'uma gente, que ao jantar, diante do escudeiro, quebrava a
porcelana, mandava · tabua o titulo dos antepassados. E perguntou:

--Que diz o sr. Pimenta da senhora condessa, Baptista? Ella diverte-se?

--Creio que n„o, meu senhor. Mas a creada de confianÁa d'ella, uma
escosseza, essa È desobstinada. E n„o fica bem · senhora condessa ser
assim t„o intima com ella...

Houve um silencio no quarto, a chuva cantou mais forte nos vidros.

--Passando a outro assumpto, Baptista. Vamos a saber, ha quanto tempo,
n„o escrevo eu a madame Rughel?

Baptista tirou do bolso interior da sua casaca um livro de apontamentos,
aproximou-se da luz, encavalou a luneta no nariz, e verificou, com
methodo, estas datas:--´Dia 1 de janeiro, telegramma expedido com
felicitaÁıes do comeÁo d'anno a madame Rughel, Hotel d'Albe, Champs
…lyseÈs, Paris. Dia 3, telegramma recebido de madame Rughel,
reciprocando comprimentos, exprimindo amizade, annunciando partida para
Hamburgo. Dia 15, carta lanÁada ao correio, para madame Rughel,
_William-Strasse, Hamburgo, Allemagne_. Depois--mais nada. De modo que
havia j· cinco semanas que o menino n„o escrevia a madame Rughel...

--… necessario escrever ·manh„, disse Carlos..

Baptista tomou uma nota.

Depois, entre uma fumaÁa languida, a voz de Carlos ergueu-se de novo na
paz dormente do quarto:

--Madame Rughel era muito bonita, n„o È verdade, Baptista? … a mulher
mais bonita que tu tens visto na tua vida!

O velho creado metteu o livro no bolso da casaca, e respondeu, sem
hesitar, muito certo de si:

--Madame Rughel era uma senhora de muita vista. Mas a mulher mais linda
em que tenho posto os olhos, se o menino d· licenÁa, era aquella senhora
do coronel de hussards que vinha ao quarto do hotel em Vienna.

Carlos atirou a cigarette para a salva--e escorregando pela roupa
abaixo, todo invadido por uma onda de recordaÁıes alegres, exclamou da
profundidade do seu conforto, no antigo tom de emphase bohemia dos PaÁos
de Cellas.

--O sr. Baptista n„o tem gosto nenhum! Madame Rughel era uma nympha de
Rubens, senhor! Madame Rughel tinha o explendor d'uma deusa da
RenascenÁa, senhor! Madame Rughel devia ter dormido no leito imperial de
Carlos Quinto...--Retire-se, senhor!

Baptista entalou mais o _couvre-pieds_, relanceou pelo quarto um olhar
solicito, e, contente, da ordem em que as cousas adormeciam, saÌu,
levando o candieiro. Carlos n„o dormia: e n„o pensava na coronela de
hussards, nem em madame Rughel. A figura que no escuro dos cortinados
lhe apparecia, n'um vago dourado que provinha do reflexo de seus
cabellos soltos, era a Gouvarinho--a Gouvarinho que n„o tinha o
explendor d'uma deusa da RenascenÁa como madame Rughel, nem era a mulher
mais linda em que Baptista pozera os seus olhos como a coronela de
hussards: mas, com o seu nariz petulante e a sua boca grande, brilhava
mais e melhor que todas na imaginaÁ„o de Carlos--porque elle esperara-a
essa noite e ella n„o tinha apparecido.

Na terÁa-feira promettida Ega n„o veiu buscar Carlos para se irem
_gouvarinhar_. E foi Carlos que d'ahi a dias, entrando como por acaso no
_Universal_, perguntou rindo ao Ega:

--Ent„o quando nos _gouvarinhamos_?

N'essa noite, em S. Carlos, n'um entre-acto dos _Huguenotes_, Ega
apresentou-o ao sr. conde de Gouvarinho, no corredor das frizas. O
conde, muito amavel, lembrou logo que j· tivera, mais de uma vez, o
prazer de passar pela porta de S.^{ta} Olavia, quando ia vÍr os seus
velhos amigos, os Tedins, a Entre-Rios--uma formosa vivenda tambem.
Fallaram ent„o do Douro, da Beira, compararam outras paisagens. Para o
conde, nada havia, no nosso Portugal, como os campos do Mondego: mas a
sua parcialidade era perdoavel, pois n'esses ferteis vales nascera e se
creara: e fallou um momento de Formozelha, onde tinha casa, onde vivia
edosa e doente sua m„e, a sr.^a condessa viuva...

Ega, que affectara beber as palavras do conde, comeÁou ent„o uma
controversia, sustentando como se se tratasse dos dogmas d'uma fÈ, a
belleza superior do Minho, ´esse paraiso idillico.ª O conde sorria: via
ali, como elle observou a Carlos, batendo amavelmente no hombro do Ega,
a rivalidade das duas provincias. EmulaÁ„o fecunda, de resto, no seu
pensar...

--Ahi est·, por exemplo, dizia elle, o ciume entre Lisboa e Porto. … uma
verdadeira dualidade como a que existe entre a Hungria e a Austria...
OuÁo por ali lamental-a. Pois bem, eu, se fosse poder, instigal-a-hia,
acirral-a-hia, se v. ex.^{as} me permittem a express„o. N'esta lucta das
duas grandes cidades do reino, podem outros vÍr despeitos mesquinhos, eu
vejo elementos de progresso. Vejo civilisaÁ„o!

Proferia estas cousas como do alto d'um pedestal, muito acima dos
homens, deixando-as providamente caÌr dos thesouros do seu intellecto ·
maneira de dons inestimaveis. A voz era lenta e rotunda; os cristaes da
sua luneta d'ouro faiscavam vistosamente; e no bigode encerado, na pera
curta, havia ao mesmo tempo alguma cousa de doutoral e de casquilho.

Carlos dizia: ´Tem v. ex.^a raz„o, sr. conde.ª O Ega dizia: ´VocÍ vÍ
essas cousas d'alto, Gouvarinhoª. Elle cruzara as m„os por baixo das
abas da casaca--e estavam todos tres muito serios.

Depois o conde abriu a porta da friza, Ega desappareceu. E d'ahi a um
momento, Carlos, apresentado como ´visinho de camaroteª, recebia da
sr.^a condessa um grande _shake-hand_, em que tilintaram uma infinidade
d'aros de prata e de _blangles_ indios sobre a sua luva preta de doze
botıes.

A sr.^a condessa, um pouco corada, ligeiramente nervosa, lembrou logo a
Carlos que o vira no ver„o passado em Paris, no sal„o baixo do CafÈ
Inglez: atÈ por signal estava n'essa noite um velho abominavel com duas
garrafas vazias diante de si, e contando alto, para uma meza defronte,
historias horrorosas do sr. Gambetta: um sujeito ao lado protestou; o
outro n„o fez caso, era o velho duque de Grammont. O conde passou os
dedos lentos pela testa, com um ar quasi angustioso: n„o se lembrava de
nada d'isso! Queixou-se logo amargamente da sua falta de memoria. Uma
cousa t„o indispensavel em quem segue a vida publica, a memoria! e elle
desgraÁadamente, n„o possuia nem um atomo. Por exemplo, lera (como todo
o homem devia lÍr) os vinte volumes da _Historia Universal de Cesar
Cantu_; lÍra-os com attenÁ„o, fechado no seu gabinete, absorvendo-se na
obra. Pois, senhores, escapara-lhe tudo--e ali estava sem saber
historia!

--V. ex.^a tem boa memoria, sr. Maia?

--Tenho uma rasoavel memoria.

--Inapreciavel bem de que goza!

A condessa voltara-se para a platÈa, coberta com o leque, com o ar
constrangido, como se aquellas palavras pueris do marido a diminuissem,
a desfeiassem... Carlos ent„o fallou da opera. Que bello escudeiro
huguenote fazia o Pandolli! A condessa n„o aturava o Corcelli, o tenor,
com as suas notas asperas e aquella obesidade que o tornava _buffo_. Mas
tambem (lembrava Carlos) onde havia hoje tenores? Passara essa grande
raÁa dos Marios, homens de belleza, de inspiraÁ„o, realisando os grandes
typos lyricos. Nicolini era j· uma degeneraÁ„o... Isto fez lembrar a
Patti. A condessa adorava-a, e a sua graÁa de fada, e a sua voz
semelhante a uma chuva d'ouro!...

Os olhos brilhavam-lhe, diziam mil cousas; em certos movimentos, o
cabello crespamente ondeado, tomava tons de oiro vermelho: e em torno
d'ella errava, no calor do gaz e da enchente, um aroma exagerado de
verbena. Estava de preto, com uma gargantilha, de rendas negras, ·
Valois, affogando-lhe o pescoÁo onde pousavam duas rosas escarlates. E
toda a sua pessoa tinha um arsinho de provocaÁ„o e de ataque. De pÈ,
callado, grave, o conde batia a coxa com a claque fechada.

O quarto acto comeÁara, Carlos ergueu-se; e os seus olhos encontraram
defronte, na frisa do Cohen, o Ega, de binoculo, observando-o, mirando a
condessa e fallando a Rachel, que sorria, movia o leque com um ar
dolente e vago.

--NÛs recebemos ·s terÁas feiras, disse a condessa a Carlos--e o resto
da phrase perdeu-se n'um murmurio e n'um sorriso.

O conde acompanhou-o fÛra, ao corredor.

--… sempre uma honra para mim, dizia elle caminhando ao lado de Carlos,
fazer o conhecimento das pessoas que valem alguma cousa n'este paiz ...
V. ex.^a È d'esse numero, bem raro infelizmente.

Carlos protestou, risonho. E o outro, na sua voz lenta e rotunda:

--N„o o lisongeio. Eu nunca lisongeio... Mas a v. ex.^a podem-se dizer
estas cousas, porque pertence · _elite_: a desgraÁa de Portugal È a
falta de gente, Isto È um paiz sem pessoal. Quer-se um bispo? N„o ha um
bispo. Quer-se um economista? N„o ha um economista. Tudo assim! Veja v.
ex.^a mesmo nas profissıes subalternas. Quer-se um bom estofador? N„o ha
um bom estofador...

Um cheio de instrumentos e vozes, d'um tom sublime, passando pela porta
da frisa entreaberta, cortou-lhe umas ultimas palavras sobre a
defficiencia dos photographos... Escutou, com a m„o no ar:

--… o _coro dos punhaes_, n„o? Ah vamos a ouvir... Ouve-se sempre isto
com proveito. Ha philosophia n'esta musica... … pena que lembre t„o
vivamente os tempos da intolerancia religiosa, mas ha alli
incontestavelmente philosophia!




VI


Carlos, n'essa manh„, ia visitar de surpreza a casa do Ega, a famosa
´Villa Balzacª, que esse phantasista and·ra meditando e dispondo desde a
sua chegada a Lisboa, e onde se tinha emfim installado.

Ega dera-lhe esta denominaÁ„o litteraria, pelos mesmos motivos porque a
alug·ra n'um suburbio longiquo, na solid„o da Penha de FranÁa,--para que
o nome de Balzac, seu padroeiro, o silencio campestre, os ares limpos,
tudo alli fosse favoravel ao estudo, ·s horas d'arte e d'ideal. Por que
ia fechar-se l·, como n'um claustro de lettras, a findar as _Memorias
d'um Atomo!_ SÛmente, por causa das distancias, tinha tomado ao mez um
coupÈ da companhia.

Carlos teve difficuldades em encontrar a ´Villa Balzacª: n„o era, como
tinha dito Ega no Ramalhete, logo adiante do largo da GraÁa um
_chaletsinho_ retirado, fresco, assombreado, sorrindo entre arvores.
Passava-se primeiro a Cruz dos Quatro Caminhos; depois penetrava-se
n'uma vereda larga, entre quintaes, descendo pelo pendor da collina, mas
accessivel a carruagens; e ahi, n'um recanto, ladeada de muros,
apparecia emfim uma cazota de paredes enxovalhadas, com dois degraus de
pedra · porta, e transparentes novos d'um escarlate estridente.

N'essa manh„, porÈm, debalde Carlos deu puxıes desesperados · corda da
campainha, martellou a aldrava da porta, gritou a toda a voz por cima do
muro do quintal e das copas das arvores o nome do Ega:--a ´Villa Balzacª
permaneceu muda, como deshabitada, no seu retiro rustico. E todavia
pareceu a Carlos que, justamente antes de bater, ouvira o estalar de
rolhas de _Champagne_.

Quando Ega soube esta tentativa, mostrou-se indignado com os criados,
que assim abandonavam a casa, lhe davam um ar suspeito de Torre de
Nesle...

--Vae l· ·manh„, se ninguem responder, escala as janellas, pega fogo ao
predio, como se fossem apenas as Tulherias.

Mas no dia seguinte, quando Carlos chegou, j· a ´Villa Balzacª o
esperava, toda em festa: · porta ´o pagemª, um garoto de feiÁıes
horrÌvelmente viciosas, perfilava-se na sua jaqueta azul de botıes de
metal, com uma gravata muito branca e muito teza; as duas janellas em
cima, abertas, mostrando o reps verde das bambinellas, bebiam · larga
todo o ar do campo e o sol de inverno: e no topo da estreita escada,
tapetada de vermelho, Ega, n'um prodigioso robe-de-chambre, de um estofo
adamascado do seculo dezoito, vestido de cÙrte de alguma das suas avÛs,
exclamou dobrando a fronte ao ch„o:

--Bem vindo, meu principe, ao humilde tegurio do philosopho!

Ergueu, com um gesto rasgado, um reposteiro de reps verde, d'um verde
feio e triste, e introduziu o ´principeª na sala onde tudo era verde
tambem: o reps que recobria uma mobilia de nogueira, o tecto de taboado,
as listas verticaes do papel da parede, o pano franjado da mesa, e o
reflexo d'um espelho redondo, inclinado sobre o soph·.

N„o havia um quadro, uma flÙr, um ornato, um livro--apenas sobre a
jardineira uma estatueta de Napole„o I, de pÈ, equilibrado sobre o orbe
terrestre, n'essa conhecida attitude em que o heroe, com um ar pansudo e
fatal, esconde uma das m„os por traz das costas, e enterra a outra nas
profundidades do seu collete. Ao lado uma garrafa de _Champagne_,
encarapuÁada de papel dourado, esperava entre dois copos esguios.

--Para que tens tu aqui Napole„o, John?

--Como alvo de injurias, disse Ega. Exercito-me sobre elle a fallar dos
tyrannos...

Esfregou as m„os, radiante. Estava n'essa manh„ em alegria e em verve. E
quiz immediatamente mostrar a Carlos o seu quarto de cama: ahi reinava
um cretone de ramagens alvadias sobre fundo vermelho; e o leito enchia,
esmagava tudo. Parecia ser o motivo, o centro da ´Villa Balzacª; e
n'elle se esgotara a imaginaÁ„o artistica do Ega. Era de madeira, baixo
como um divan, com a barra alta, um roda-pÈ de renda, e d'ambos os lados
um luxo de tapetes de felpo escarlate; um largo cortinado de seda da
India avermelhada envolvia-o n'um apparato de tabernaculo; e dentro, ·
cabeceira, como n'um lupanar, reluzia um espelho.

Carlos, muito seriamente, aconselhou-lhe que tirasse o espelho. Ega deu
a todo o leito um olhar silencioso e dÙce, e disse depois de passar uma
pontinha de lingua pelo beiÁo:

--Tem seu chic...

Sobre a mesinha de cabeceira erguia-se um mont„o de livros: a _EducaÁ„o_
de Spencer ao lado de BeaudelaÌre, a _Logica_ de Stuart Mill por cima do
_Cavalleiro da Casa Vermelha_. No marmore da commoda havia outra garrafa
de Champagne entre dous copos; o toucador, um pouco em desordem,
mostrava uma enorme caixa de pÛ d'arroz no meio de plastrons e gravatas
brancas do Ega, e um masso de ganchos do cabello ao lado de ferros de
frisar.

--E onde trabalhas tu, Ega, onde fazes tu a grande arte?

--Alli! disse o Ega, alegremente, apontando para o leito.

Mas foi mostrar logo o seu recantosinho estudioso, formado por um
biombo, ao lado da janella, e tomado todo por uma mesa de pÈ de gallo,
onde Carlos assombrado descobriu, entre o bello papel de cartas do Ega,
um _Diccionario de Rimas_...

E a visita · casa continuou.

Na sala de jantar, quasi nua, caiada de amarello, um armario de pinho
envidraÁado abrigava melancolicamente um serviÁo barato de louÁa nova; e
do fecho da janella pendia um vestuario vermelho, que parecia roup„o de
mulher.

--… sobrio e simples--exclamou o Ega--como compete ·quelle que se
alimenta d'uma codea d'Ideal e duas garfadas de Philosophia. Agora, ·
cosinha!...

Abriu uma porta. Uma frescura de campos entrava pelas janellas abertas;
e entreviam-se arvores de quintal, um verde de terrenos vagos, depois l·
em baixo o branco de casarias rebrilhando ao sol; uma rapariga muito
sardenta e muito forte sacudiu o gato do collo, ergueu-se, com o _Jornal
de Noticias_ na m„o. Ega apresentou-a, n'um tom de farÁa:

--A sr.^a Josepha, solteira, de temperamento sanguineo, artista
culinaria da ´Villa Balzacª, e como se pÛde observar pelo papel que lhe
pende das garras, cultora das boas letras!

A moÁa sorria, sem embaraÁo, habituada de certo a estas familiaridades
bohemias.

--Eu hoje n„o janto c·, senhora Josepha, continuava o Ega no mesmo tom.
Este formoso mancebo que me acompanha, duque do Ramalhete, e principe de
Santa Olavia, d· hoje de papar ao seu amigo e philosopho... E, como
quando eu recolher, talvez a senhora Josepha esteja entregue ao somno da
innocencia, ou · vigilia da devassid„o, aqui lhe ordeno que me tenha
amanh„ para meu _lunch_ duas formosas perdizes.

E subitamente, n'uma outra voz, com um olhar que ella devia perceber:

--Duas perdizesinhas bem assadas e bem cÛradinhas. Frias, est· claro...
O costume.

Travou do braÁo de Carlos, voltaram · sala.

--Com franqueza, Carlos, que te parece a ´Villa Balzacª?

Carlos respondeu como a respeito do episodio da _Hebrea_:

--Est· ardente.

Mas elogiou o aceio, a vista da casa e a frescura dos cretones. De
resto, para um rapaz, para uma cella de trabalho...

--Eu, dizia o Ega, passeiando pela sala, com as m„os enterradas nos
bolsos do seu prodigioso robe de chambre, eu n„o tolero o _bibelot_, o
_bric-‡-brac_, a cadeira archeologica, essas mobilias d'arte... Que
diabo, o movel deve estar em harmonia com a idÈa e o sentir do homem que
o usa! Eu n„o penso, nem sinto como um cavalleiro do seculo XVI, para
que me hei de cercar de cousas do seculo XVI? N„o ha nada que me faÁa
tanta melancolia, como ver n'uma sala um veneravel contador do tempo de
Francisco I recebendo pela face conversas sobre eleiÁıes e altas de
fundos. Faz-me o effeito d'um bello heroe de armadura d'aÁo, viseira
cahida e crenÁas profundas no peito, sentado a uma mesa de voltarete a
jogar copas. Cada seculo tem o seu genio proprio e a sua attitude
propria. O seculo XIX concebeu a Democracia e a sua attitude È
esta...--E enterrando-se d'estalo n'uma poltrona, espetou as pernas
magras para o ar.--Ora esta attitude È impossivel n'um escabello do
tempo do Prior do Crato. Menino, toca a beber o _Champagne_.

E como Carlos olhava a garrafa desconfiado, Ega accudiu:

--… excellente, que pensas tu? Vem directamente da melhor casa
d'Epernay, arranjou-m'o o Jacob.

--Que Jacob?

--O Jacob Cohen, o Jacob.

Ia cortar as guitas da rolha, quando o atravessou uma subita recordaÁ„o,
e pousando a garrafa outra vez, entalando o monocolo no olho:

--… verdade! Ent„o, n'outro dia, que tal, em casa dos Gouvarinhos? Eu
infelizmente n„o poude ir.

Carlos contou a _soirÈe_. Havia dez pessoas, espalhadas pelas duas
salas, n'um zum-zum dormente, · meia luz dos candieiros. O conde
massara-o indiscretamente com a politica, admiraÁıes idiotas por um
grande orador, um deputado de Mes„o Frio, e explicaÁıes sem fim sobre a
reforma da instrucÁ„o. A condessa, que estava muito constipada,
horrorisou-o, dando sobre a Inglaterra, apesar de ingleza, as opiniıes
da rua de Cedofeita. Imaginava que a Inglaterra È um paiz sem poetas,
sem artistas, sem ideaes, occupando-se sÛ de amontoar libras... Emfim,
seccara-se.

--Que diabo! murmurou o Ega n'um tom de viva desconsolaÁ„o.

A rolha estalou, elle encheu os copos em silencio; e n'uma _saude_ muda
os dois amigos beberam o _Champagne_--que Jacob arranjara ao Ega, para o
Ega se regalar com Rachel.

Depois, de pÈ, com os olhos no tapete, agitando de vagar o copo
novamente cheio onde a espuma morria, Ega tornou a murmurar, n'aquella
entoaÁ„o triste de inesperado desapontamento:

--Que ferro!...

E apÛs um momento:

--Pois menino, pensei que a Gouvarinho te appetecÌa...

Carlos confessou que nos primeiros dias, quando Ega lhe fallara d'ella,
tivera um caprichosinho, interessara-se por aquelles cabellos cÙr de
brasa...

--Mas agora, mal a conheci, o capricho foi-se...

Ega sentara-se, com o copo na m„o; e depois de contemplar algum tempo as
suas meias de seda, escarlates como as d'um prelado, deixou cair, muito
serio, estas palavras:

--… uma mulher deliciosa, Carlinhos.

E, como Carlos encolhia os hombros, Ega insistio: a Gouvarinho era uma
senhora de intelligencia e de gosto; tinha originalidade, tinha audacia,
uma pontinha de romantismo muito picante...

--E, como corpinho de mulher, n„o ha melhor que aquillo de Badajoz para
c·!

--Vae-te d'ahi, Mephistopheles de Celorico!

E Ega, divertido, cantarolou:


    Je suis Mephisto...
    Je suis Mephisto...


Carlos no entanto, fumando preguiÁosamente, continuava a fallar na
Gouvarinho e n'essa brusca saciedade que o invadira, mal trocara com
ella tres palavras n'uma sala. E n„o era a primeira vez que tinha
d'estes falsos arranques de desejo, vindo quasi com as formas do amor,
ameaÁando absorver, pelo menos por algum tempo, todo o seu ser, e
resolvendo-se em tedio, em ´seccaª. Eram como os fogachos de polvora
sobre uma pedra; uma fagulha atÍa-os, n'um momento tornam-se chamma
vehemente que parece que vae consumir o Universo, e por fim fazem apenas
um rastro negro que suja a pedra. Seria o seu um d'esses coraÁıes de
fraco, molles e flaccidos, que n„o podem conservar um sentimento, o
deixam fugir, escoar-se pelas malhas lassas do tecido relles?

--Sou um ressequido! disse elle sorrindo. Sou um impotente de
sentimento, como Satanaz... Segundo os padres da Egreja, a grande
tortura de Satanaz È que n„o pÛde amar...

--Que phrases essas, menino! murmurou Ega.

Como phrases? Era uma atroz realidade! Passava a vida a ver as paixıes
falharem-lhe nas m„os como phosphoros. Por exemplo, com a coronela de
hussards em Vienna! Quando ella faltou ao primeiro _rendez-vous_,
chorara lagrimas como punhos, com a cabeÁa enterrada no travesseiro e
aos coices · roupa. E d'ahi a duas semanas, mandava postar o Baptista ·
janella do hotel, para elle se safar, mal a pobre coronela dobrasse a
esquina! E com a hollandeza, com Madame Rughel, peior ainda. Nos
primeiros dias foi uma insensatez: queria-se estabelecer para sempre na
Hollanda, casar com ella (apenas ella se divorciasse), outras loucuras;
depois os braÁos que ella lhe deitava ao pescoÁo, e que lindos braÁos,
pareciam-lhe pesados como chumbo...

--Passa fÛra, pedante! E ainda lhe escreves! gritou Ega.

--Isso È outra cousa. Ficamos amigos, puras relaÁıes de intelligencia.
Madame Rughel È uma mulher de muito espirito. Escreveu um romance, um
d'esses estudos intimos e delicados, como os de Miss Brougthon: chama-se
as _Rosas Murchas_. Eu nunca li, È em hollandez...

--As _Rosas Murchas_! em hollandez! exclamou Ega apertando as m„os na
cabeÁa.

Depois vindo plantar-se diante de Carlos, de monocolo no olho:

--Tu Ès extraordinario, menino!... Mas o teu caso È simples, È o caso de
D. Juan. D. Juan tambem tinha essas alternaÁıes de chamma e cinza.
Andava · busca do seu ideal, da _sua mulher_, procurando-a
principalmente, como de justiÁa, entre as mulheres dos outros. E _aprËs
avoir couchÈ_, declarava que se tinha enganado, que n„o era aquella.
Pedia desculpa e retirava-se. Em Hespanha experimentou assim mil e tres.
Tu Ès simplesmente, como elle, um devasso; e has de vir a acabar
desgraÁadamente como elle, n'uma tragedia infernal!

Esvasiou outro copo de _Champagne_, e a grandes passadas pela sala:

--Carlinhos da minha alma, È inutil que ninguem ande · busca da _sua
mulher_. Ella vir·. Cada um tem a _sua mulher_, e necessariamente tem de
a encontrar. Tu est·s aqui, na Cruz dos Quatro Caminhos, ella est·
talvez em Pekin: mas tu, ahi a raspar o meu reps com o verniz dos
sapatos, e ella a orar no templo de Confucio, estaes ambos
insensivelmente, irresistivelmente, fatalmente, marchando um para o
outro!... Estou eloquentissimo hoje, e temos dito cousas idiotas. Toca a
vestir. E, em quanto eu adorno a carcassa, prepara mais phrases sobre
Satanaz!

Carlos ficou na sala verde, acabando o charuto--em quanto dentro o Ega
batia com as gavetas, lanÁando, a todo o desafinado da sua voz roufenha,
a _Barcarolla_ de Gounod. Quando appareceu, vinha de casaca, gravata
branca, enfiando o paletot--com o olho brilhante do _Champagne_.

Desceram. O pagem l· estava · porta perfilado, ao pÈ do coupÈ de Carlos,
que esperara. E a sua fardeta azul de botıes amarellos, a magnifica
parelha baia reluzindo como um setim vivo, as pratas dos arreios, a
magestade do cocheiro louro com o seu ramo na librÈ, tudo alli fazia,
junto da ´Villa Balzacª, um quadro rico que deleitou o Ega.

--A vida È agradavel, disse elle.

O coupÈ partiu, ia entrar no largo da GraÁa, quando uma caleche de
praÁa, aberta, o cruzou a largo trote. Dentro um sujeito de chapÈo baixo
Ìa lendo um grande jornal.

--… o Craft! gritou Ega, debruÁando-se pela portinhola.

O coupÈ parou. Ega de um pulo estava na calÁada, correndo, bradando:

--Oh Craft! oh Craft!

Quando, d'ahi a um momento, sentiu duas vozes approximarem-se, Carlos
desceu tambem do coupÈ, achou-se em face d'um homem baixo, louro, de
pelle rosada e fresca, e apparencia fria. Sob o fraque correcto
percebia-se-lhe uma musculatura de athleta.

--O Carlos, o Craft, gritou o Ega, lanÁando esta apresentaÁ„o com uma
simplicidade classica.

Os dois homens, sorrindo, tinham-se apertado a m„o. E Ega insistia para
que voltassem todos · Villa Balzac, fossem beber a outra garrafa de
_Champagne_, a celebrar o _advento do Justo_! Craft recusou, com o seu
modo calmo e placido; chegara na vespera do Porto, abraÁara j· o nobre
Ega, e aproveitava agora a viagem ·quelle bairro longinquo para ir vÍr o
velho Shlegen, um allem„o que vivia · Penha de FranÁa.

--Ent„o outra cousa! exclamou Ega. Para conversarmos, para que vocÍs se
conheÁam mais, venham vocÍs jantar comigo amanh„ ao Hotel Central. Dito,
hein? Perfeitamente. ¡s seis.

Apenas o coupÈ partiu de novo, Ega rompeu nas costumadas admiraÁıes pelo
Craft, encantado com aquelle encontro que dava mais um retoque luminoso
· sua alegria. O que o enthusiasmava no Craft era aquelle ar
imperturbavel de gentleman correcto, com que elle egualmente jogaria uma
partida de bilhar, entraria n'uma batalha, arremetteria com uma mulher,
ou partiria para a Patagonia...

--… das melhores cousas que tem Lisboa. Vaes-te morrer por elle... E que
casa que elle tem nos Olivaes, que sublime bric-a-brac!

Subitamente estacou, e com um olhar inquieto, uma ruga na testa:

--Como diabo soube elle da _Villa Balzac_?

--Tu n„o fazes segredo d'ella, hein?

--N„o... Mas tambem n„o a puz nos annuncios! E o Craft chegou hontem,
ainda n„o esteve com ninguem que eu conheÁa... … curioso!

--Em Lisboa sabe-se tudo...

--Canalha de terra! murmurou Ega.


O jantar no Central foi addiado, porque o Ega, alargando pouco a pouco a
idÈa, convertera-o agora n'uma festa de ceremonia em honra do Cohen.

--Janto l· muitas vezes, disse elle a Carlos, estou l· todas as
noites... … necessario repagar a hospitalidade... Um jantar no Central È
o que basta. E para o effeito moral, pespego-lhe · meza o marquez e a
besta do Steinbroken. O Cohen gosta de gente assim...

Mas o plano teve ainda de ser alterado: o marquez partira para a
Golleg„, e o pobre Steinbroken estava soffrendo d'um incommodo de
entranhas. Ega pensou no Cruges e no Taveira--mas receiou a cabelleira
desleixada do Cruges, e alguns dos seus ataques de amargo _spleen_ que
estragaria o jantar. Terminou por convidar dois intimos do Cohen; mas
teve ent„o de supprimir o Taveira, que estava de mal com um d'esses
cavalheiros por palavras que tinham trocado em casa da ´Lola gordaª.

Decididos os convidados, fixado o jantar para uma segunda feira, Ega
teve uma conferencia com o _maitre de hotel_ do Central, em que lhe
recommendou muita flÙr, dois ananazes para enfeitar a meza, e exigiu que
um dos pratos do _menu_, qualquer d'elles, fosse _‡ la Cohen_; e elle
mesmo suggeriu uma idÈa: _tomates farcies ‡ la Cohen_...

N'essa tarde, ·s seis horas, Carlos, ao descer a rua do Alecrim para o
Hotel Central, avistou Craft dentro da loja de bric-a-brac do tio
Abrah„o.

Entrou. O velho judeo, que estava mostrando a Craft uma falsa faienÁa do
Rato, arrancou logo da cabeÁa o sujo barrete de borla, e ficou curvado
em dois, diante de Carlos, com as duas m„os sobre o coraÁ„o.

Depois, n'uma linguagem exotica, misturada d'inglez, pediu ao seu bom
senhor D. Carlos da Maia, ao seu digno senhor, ao seu _beautiful
gentleman_, que se dignasse examinar uma maravilhasinha que lhe tinha
reservada; e o seu muito _generous gentleman_ tinha sÛ a voltar os
olhos, a maravilhasinha estava alli ao lado, n'uma cadeira. Era um
retrato d'hespanhola, apanhado a fortes brochadellas de primeira
impress„o, e pondo, sobre um fundo audaz de cÙr de rosa murcha, uma face
gasta de velha garÁa, picada das bexigas, cai·da, ressudando vicio, com
um sorriso bestial que promettia tudo.

Carlos, tranquillamente, offereceu dez tostıes. Craft pasmou d'uma tal
prodigalidade; e o bom Abrah„o, n'um riso mudo que lhe abria entre a
barba grisalha uma grande boca d'um sÛ dente, saboreou muito a ´chalaÁa
dos seus ricos senhores.ª Dez tostıesinhos! Se o quadrinho tivesse por
baixo o nomesinho de Fortuny, valia dez continhos de rÈis. Mas n„o tinha
esse nomesinho bemdito... Ainda assim valia dez notasinhas de vinte mil
rÈis...

--Dez cordas para te enforcar, hebreu sem alma! exclamou Carlos.

E sahiram, deixando o velho intruj„o · porta, curvado em dois, com as
m„os sobre o coraÁ„o, desejando mil felicidades aos seus generosos
fidalgos...

--N„o tem uma unica cousa boa, este velho Abrah„o, disse Carlos.

--Tem a filha, disse o Craft.

Carlos achava-a bonita, mas horrivelmente suja. Ent„o, a proposito do
Abrah„o, fallou a Craft d'essas bellas collecÁıes dos Olivaes, que o
Ega, apesar do desdem que affectava pelo _bibelot_ e pelo movel d'arte,
lhe descrevera como sublimes.

Craft encolheu os hombros.

--O Ega n„o entende nada. Mesmo em Lisboa, n„o se pÛde chamar ao que eu
tenho uma collecÁ„o. … um bric-a-brac d'acaso... De que, de resto, me
vou desfazer!

Isto surprehendeu Carlos. Comprehendera das palavras do Ega ser essa uma
collecÁ„o formada com amor, no laborioso decurso de annos, orgulho e
cuidado d'uma existencia de homem...

Craft sorrio d'aquella legenda. A verdade era que sÛ em 1872, elle
comeÁara a interessar-se pelo bric-a-brac; chegava ent„o da America do
Sul; e o que fora comprando, descobrindo aqui e alÈm, accumulara-o
n'essa casa dos Olivaes, alugada ent„o por phantasia, uma manh„ que
aquelle pardieiro, com o seu bocado de quintal em redor, lhe parecera
pittoresco, sob o sol de abril. Mas agora se podesse desfazer-se do que
tinha, ia dedicar-se ent„o a formar uma collecÁ„o homogenea e compacta
d'arte do seculo desoito.

--Aqui nos Olivaes?

--N„o. N'uma quinta que tenho ao pÈ do Porto, junto mesmo ao rio.

Entravam ent„o no peristilo do Hotel Central--e n'esse momento um coupÈ
da Companhia, chegando a largo trote do lado da rua do Arsenal, veiu
estacar · porta.

Um esplendido preto, j· grisalho, de casaca e calÁ„o, correu logo ·
portinhola; de dentro um rapaz muito magro, de barba muito negra,
passou-lhe para os braÁos uma deliciosa cadelinha escosseza, de pellos
esguedelhados, finos como seda e cÙr de prata; depois apeando-se,
indolente e _poseur_, offereceu a m„o a uma senhora alta, loura, com um
meio vÈo muito apertado e muito escuro que realÁava o explendor da sua
carnaÁ„o eburnea. Craft e Carlos affastaram-se, ella passou diante
d'elles, com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita,
deixando atraz de si como uma claridade, um reflexo de cabellos d'ouro,
e um aroma no ar. Trazia um casaco collante de velludo branco de Genova,
e um momento sobre as lages do peristillo brilhou o verniz das suas
bottinas. O rapaz ao lado, esticado n'um fato de xadresinho inglez,
abria negligentemente um telegramma; o preto seguia com a cadelhinha nos
braÁos. E no silencio a voz de Craft murmurou:

--_TrÈs chic_.

Em cima, no gabinete que o creado lhes indicou, Ega esperava, sentado no
divan de marroquim, e conversando com um rapaz baixote, gordo, frisado
como um noivo de provincia, de camelia ao peito e plastron azul celeste.
O Craft conhecia-o; Ega apresentou a Carlos o sr. Damaso SalcÍde, e
mandou servir vermouth, por ser tarde, segundo lhe parecia, para esse
requinte litterario e satanico do _absintho_...

FÙra um dia d'inverno suave e luminoso, as duas janellas estavam ainda
abertas. Sobre o rio, no cÈu largo, a tarde morria, sem uma aragem,
n'uma paz elysea, com nuvensinhas muito altas, paradas, tocadas de cÙr
de rosa; as terras, os longes da outra banda j· se iam affogando n'um
vapor avelludado, do tom de violeta; a agoa jazia liza e luzidia como
uma bella chapa d'aÁo novo; e aqui e alem, pelo vasto ancoradouro,
grossos navios de carga, longos paquetes estrangeiros, dois couraÁados
inglezes, dormiam, com as mastreaÁıes immoveis, como tomados de
preguiÁa, cedendo ao affago do clima doce...

--Vimos agora l· em baixo, disse Craft indo sentar-se no divan, uma
esplendida mulher, com uma esplendida cadellinha _griffon_, e servida
por um esplendido preto!

O sr. Damaso SalcÍde, que n„o despegava os olhos de Carlos, acudiu logo:

--Bem sei! Os Castro Gomes... ConheÁo-os muito... Vim com elles de
Bordeus... Uma gente muito chic que vive em Paris.

Carlos voltou-se, reparou mais n'elle, perguntou-lhe, affavel e
interessando-se:

--O senhor SalcÍde chegou agora de Bordeus?

Estas palavras pareceram deleitar Damaso como um favor celeste:
ergueu-se immediatamente, approximou-se do Maia, banhado n'um sorriso:

--Vim aqui ha quinze dias, no _Orenoque_. Vim de Paris... Que eu em
podendo È l· que me pilham! Esta gente conheci-a em Bordeus. Isto È,
verdadeiramente conheci-a a bordo. Mas estavamos todos no _Hotel de
Nantes_... Gente muito chic: creado de quarto, governanta ingleza para a
filhita, femme de chambre, mais de vinte malas... Chic a valer! Parece
incrivel, uns brazileiros... Que ella na voz n„o tem _sutaque_ nenhum,
falla como nÛs. Elle sim, elle muito _sutaque_... Mas elegante tambem,
v. ex.^a n„o lhe pareceu?

--Vermouth? perguntou-lhe o creado, offerecendo a salva.

--Sim, uma gotinha para o appetite. V. ex.^a n„o toma, sr. Maia? Pois
eu, assim que posso, È direitinho para Paris! Aquillo È que È terra!
Isto aqui È um chiqueiro... Eu, em n„o indo l· todos os annos, acredite
v. ex.^a, atÈ comeÁo a andar doente. Aquelle _boulevarsinho_, hein!...
Ai, eu goso aquillo!... E sei gosar, sei gosar, que eu conheÁo aquillo a
palmo... Tenho atÈ um tio em Paris.

--E que tio! exclamou Ega, approximando-se. Intimo do Gambetta, governa
a FranÁa... O tio do Damaso governa a FranÁa, menino!

Damaso, escarlate, estourava de gÙso.

--Ah, l· isso influencia tem. Intimo do Gambetta, tratam-se por tu, atÈ
vivem quasi juntos... E n„o È sÛ com o Gambetta; È com o Mac-Mahon, com
o Rochefort, com o outro de que me esquece agora o nome, com todos os
republicanos, emfim!... … tudo quanto elle queira. V. ex.^a n„o o
conhece? … um homem de barbas brancas... Era irm„o de minha m„e,
chama-se Guimar„es. Mas em Paris chamam-lhe Mr. de Guimaran...

N'esse momento a porta envidraÁada abriu-se de golpe, Ega exclamou:
´Saude ao poetaª!

E appareceu um individuo muito alto, todo abotoado n'uma sobrecasaca
preta, com uma face escaveirada, olhos encovados, e sob o nariz
aquilino, longos, espessos, romanticos bigodes grisalhos: j· todo calvo
na frente, os anneis fÙfos d'uma grenha muito secca cahiam-lhe
inspiradamente sobre a golla: e em toda a sua pessoa havia alguma cousa
de antiquado, de artificial e de lugubre.

Estendeu silenciosamente dous dedos ao Damaso, e abrindo os braÁos
lentos para Craft, disse n'uma voz arrastada, cavernosa, atheatrada:

--Ent„o Ès tu, meu Craft! Quando chegaste tu, rapaz? D·-me c· esses
ossos honrados, honrado inglez!

Nem um olhar dera a Carlos. Ega adiantou-se, apresentou-os:

--N„o sei se s„o relaÁıes. Carlos da Maia... Thomaz d'Alencar, o nosso
poeta...

Era elle! o illustre cantor das _Vozes d'Aurora_, o estylista de
_Elvira_, o dramaturgo do _Segredo do Commendador_. Deu dois passos
graves para Carlos, esteve-lhe apertando muito tempo a m„o em
silencio--e sensibilisado, mais cavernoso:

--V. ex.^a, j· que as etiquetas sociaes querem que eu lhe dÍ
excellencia, mal sabe a quem apertou agora a m„o...

Carlos, surprehendido, murmurou:

--Eu conheÁo muito de nome...

E o outro com o olho cavo, o labio tremulo:

--Ao camarada, ao inseparavel, ao intimo de Pedro da Maia, do meu pobre,
do meu valente Pedro!

--Ent„o, que diabo, abracem-se! gritou Ega. Abracem-se, com um berro,
segundo as regras...

Alencar j· tinha Carlos estreitado ao peito, e quando o soltou,
retomando-lhe as m„os, sacudindo-lh'as, com uma ternura ruidosa:

--E deixemo-nos j· de excellencias! que eu vi-te nascer, meu rapaz!
trouxe-te muito ao collo! sujaste-me muita calÁa! Co'os diabos, d· c·
outro abraÁo!

Craft olhava estas cousas vehementes, impassivel; Damaso parecia
impressionado; Ega apresentou um copo de _vermouth_ ao poeta:

--Que grande scena, Alencar! Jesus, Senhor! Bebe, para te recuperares da
emoÁ„o...

Alencar esgotou-o d'um trago: e declarou aos amigos que n„o era a
primeira vez que via Carlos. J· o admirara no seu phaeton, muitas vezes,
e aos seus bellos cavallos inglezes. Mas n„o se quizera dar a conhecer.
Elle nunca se atirava aos braÁos de ninguem, a n„o ser das mulheres...
Foi encher outro calice de _vermouth_, e com elle na m„o, plantado
diante de Carlos, comeÁou, n'um tom pathetico:

--A primeira vez que te vi, filho, foi no Pote das Almas! Estava eu no
Rodrigues, esquadrinhando alguma d'essa velha litteratura, hoje t„o
despresada... Lembro-me atÈ que era um volume das _Eclogas_ do nosso
delicioso Rodrigues Lobo, esse verdadeiro poeta da natureza, esse
rouxinol t„o portuguez, hoje, est· claro, mettido a um canto, desde que
para ahi appareceu o Satanismo, o Naturalismo e o Bandalhismo, e outros
esterquilinios em _ismo_... N'esse momento passaste, disseram-me quem
eras, e cahiu-me o livro da m„o... Fiquei alli uma hora, acredita, a
pensar, a rever o passado...

E atirou o _vermouth_ ·s goellas. Ega, impaciente, olhava o relogio. Um
creado, entrando, accendeu o gaz; a mesa surgiu da penumbra, com um
brilho de cristaes e louÁas, um luxo de camelias em ramos.

No entanto Alencar (que · luz viva parecia mais gasto e mais velho)
comeÁara uma grande historia, e como fÙra elle o primeiro que vira
Carlos depois de nascer, e como fÙra elle que lhe dera o nome.

--Teu pae, dizia elle, o meu Pedro, queria-te pÙr o nome d'Affonso,
d'esse santo, d'esse var„o d'outras edades, Affonso da Maia! Mas tua m„e
que tinha l· as suas idÈas teimou em que havias de ser Carlos. E
justamente por causa d'um romance que eu lhe emprest·ra; n'esses tempos
podiam-se emprestar romances a senhoras, ainda n„o havia a pustula e o
puz... Era um romance sobre o ultimo Stuart, aquelle bello typo do
principe Carlos Eduardo, que vocÍs, filhos, conhecem todos bem, e que na
Escossia, no tempo de Luiz XIV... Emfim, adiante! Tua m„e, devo dizel-o,
tinha litteratura e da melhor. Consultou-me, consultava-me sempre,
n'esse tempo eu era _alguem_, e lembro-me de lhe ter respondido...
(Lembro-me apesar de j· l· irem vinte e cinco annos... Que digo eu?
Vinte e sete! Vejam vocÍs isto, filhos, vinte e sete annos!) Emfim,
voltei-me para tua m„e, e disse-lhe, palavras textuaes: ´Ponha-lhe o
nome de Carlos Eduardo, minha rica senhora, Carlos Eduardo, que È o
verdadeiro nome para o frontespicio d'um poema, para a fama d'um
heroismo ou para o labio d'uma mulher!ª

Damaso, que continuava a admirar Carlos, deu _bravos_ estrondosos; Craft
bateu ligeiramente os dedos; e o Ega, que rondava a porta, nervoso, de
relogio na m„o, soltou de l· um _muito bem_ desenxabido.

Alencar, radiante com o seu effeito, derramava em roda um sorriso que
lhe mostrava os dentes estragados. AbraÁou outra vez Carlos, atirou uma
palmada ao coraÁ„o, exclamou:

--Caramba, filhos, sinto uma luz c· dentro!

A porta abriu-se, o Cohen entrou, todo apressado, desculpando-se logo da
sua demora--emquanto Ega, que se precipitara para elle, lhe ajudava a
despir o palletot. Depois apresentou-o a Carlos--a unica pessoa alli de
quem o Cohen n„o era intimo. E dizia, tocando o bot„o da campainha
electrica:

--O marquez n„o pÙde vir, menino, e o pobre Steinbroken, coitado, est·
com a sua gÙtta, a gÙtta de diplomata, de lord e de banqueiro... A gÙtta
que tu has de ter, velhaco!

Cohen, um homem baixo, apurado, de olhos bonitos, e suissas t„o pretas e
luzidias que pareciam ensopadas em verniz, sorria, descalÁando as luvas,
dizendo, que, segundo os inglezes, havia tambem a gÙtta de gente pobre;
e era essa naturalmente a que lhe competia a elle...

Ega, no entanto, travara-lhe do braÁo, collocara-o preciosamente · mesa,
· sua direita: depois offereceu-lhe um bot„o de camelia d'um ramo: o
Alencar florio-se tambem--e os creados serviram as ostras.

Fallou-se logo do crime da Mouraria, drama fadista que impressionava
Lisboa, uma rapariga com o ventre rasgado · navalha por uma companheira,
vindo morrer na rua em camisa, dois faias esfaqueando-se, toda uma
viella em sangue--uma _sarrabulhada_ como disse o Cohen, sorrindo e
provando o Bucellas.

Damaso teve a satisfaÁ„o de poder dar detalhes; conhecera a rapariga, a
que dera as facadas, quando ella era amante do visconde da Ermidinha...
Se era bonita? Muito bonita. Umas m„os de duqueza... E como aquillo
cantava o _fado_! O peior era que mesmo no tempo do visconde, quando
ella era chic, j· se empiteirava... E o visconde, honra lhe seja, nunca
lhe perdera a amisade; respeitava-a, mesmo depois de casado Ìa vel-a, e
tinha-lhe promettido que se ella quizesse deixar o _fado_ lhe punha uma
confeitaria para os lados da SÈ. Mas ella n„o queria. Gostava d'aquillo,
do Bairro Alto, dos cafÈs de _lepes_, dos chulos...

Esse mundo de fadistas, de faias, parecia a Carlos merecer um estudo, um
romance... Isto levou logo a fallar-se do _Assommoir_, de Zola e do
realismo:--e o Alencar immediatmente, limpando os bigodes dos pingos de
sÙpa, supplicou que se n„o discutisse, · hora aceada do jantar, essa
litteratura _latrinaria_. Alli todos eram homens d'aceio, de sala, hein?
Ent„o, que se n„o mencionasse o _excremento_!

Pobre Alencar! O naturalismo; esses livros poderosos e vivazes, tirados
a milhares de ediÁıes; essas rudes analyses, apoderando-se da Egreja, da
Realeza, da Bureocracia, da FinanÁa, de todas as cousas santas,
dissecando-as brutalmente e mostrando-lhes a les„o, como a cadaveres
n'um amphitheatro; esses estylos novos, t„o precisos e t„o ducteis,
apanhando em flagrante a linha, a cÙr, a palpitaÁ„o mesma da vida; tudo
isso (que elle, na sua confus„o mental, chamava a _IdÈa nova_) caindo
assim de chofre e escangalhando a cathedral romantica, sob a qual tantos
annos elle tivera altar e celebrara missa, tinha desnorteado o pobre
Alencar e tornara-se o desgosto litterario da sua velhice. Ao principio
reagiu. ´Para pÙr um dique definitivo · torpe marȪ, como elle disse em
plena Academia, escreveu dois folhetins crueis; ninguem os leu; a ´marÈ
torpeª alastrou-se, mais profunda, mais larga. Ent„o Alencar refugiou-se
na _moralidade_ como n'uma rocha solida. O naturalismo, com as suas
alluviıes de obscenidade, ameaÁava corromper o pudor social? Pois bem.
Elle, Alencar, seria o paladino da Moral, o gendarme dos bons costumes.
Ent„o o poeta das _Vozes d'Aurora_, que durante vinte annos, em
canÁoneta e ode, propozera commercios lubricos a todas as damas da
capital; ent„o o romancista de _Elvira_ que, em novella e drama, fizera
a propaganda do amor illegitimo, representando os deveres conjugaes como
montanhas de tedio, dando a todos os maridos formas gordurosas e
bestiaes, e a todos os amantes a belleza, o esplendor e o genio dos
antigos Apollos; ent„o Thomaz Alencar que (a acreditarem-se as
confissıes autobiographicas da _FlÙr de Martyrio_) passava elle proprio
uma existencia medonha de adulterios, lubricidades, orgias, entre
velludos e vinhos de Chypre--d'ora em diante austero, incorruptivel,
todo elle uma torre de pudicicia, passou a vigiar attentamente o jornal,
o livro, o theatro. E mal lobrigava symptomas nascentes de realismo n'um
beijo que estalava mais alto, n'uma brancura de saia que se arregaÁava
de mais--eis o nosso Alencar que soltava por sobre o paiz um grande
grito de alarme, corria · penna, e as suas imprecaÁıes lembravam (a
academicos faceis de contentar) o rugir de Isaias. Um dia porÈm, Alencar
teve uma d'estas revelaÁıes que prostram os mais fortes; quanto mais
elle denunciava um livro como immoral, mais o livro se vendia como
agradavel! O Universo pareceu-lhe cousa torpe, e o auctor de _Elvira_
encavacou...

Desde ent„o reduziu a express„o do seu rancor ao minimo, a essa phrase
curta, lanÁada com nojo:

--Rapazes, n„o se mencione o _excremento_!

Mas n'essa noite teve o regosijo de encontrar alliados. Craft n„o
admittia tambem o naturalismo, a realidade feia das cousas e da
sociedade estatelada nua n'um livro. A arte era uma idealisaÁ„o! Bem:
ent„o que mostrasse os typos superiores d'uma humanidade aperfeiÁoada,
as fÛrmas mais bellas do viver e do sentir... Ega horrorisado apertava
as m„os na cabeÁa--quando do outro lado Carlos declarou que o mais
intoleravel no realismo eram os seus grandes ares scientificos, a sua
pretenciosa esthetica deduzida d'uma philosophia alheia, e a invocaÁ„o
de Claude Bernard, do experimentalismo, do positivismo, de Stuart Mill e
de Darwin, a proposito d'uma lavadeira que dorme com um carpinteiro!

Assim atacado, entre dois fogos, Ega trovejou: justamente o fraco do
realismo estava em ser ainda pouco scientifico, inventar enredos, crear
dramas, abandonar-se · phantasia litteraria! a fÛrma pura da arte
naturalista devia ser a monographia, o estudo secco d'um typo, d'um
vicio, d'uma paix„o, tal qual como se se tratasse d'um caso pathologico,
sem pittoresco e sem estylo!...

--Isso È absurdo, dizia Carlos, os caracteres sÛ se podem manifestar
pela acÁ„o...

--E a obra d'arte, accrescentou Craft, vive apenas pela fÛrma...

Alencar interrompeu-os, exclamando que n„o eram necessarias tantas
philosophias.

--VocÍs est„o gastando cÍra com ruins defuntos, filhos. O realismo
critica-se d'este modo: m„o no nariz! Eu quando vejo um d'esses livros,
enfrasco-me logo em agua de colonia. N„o discutamos o _excremento_.

--_Sole normande_? perguntou-lhe o creado, adiantando a travessa.

Ega Ìa fulminal-o. Mas, vendo que o Cohen dava um sorriso enfastiado e
superior a estas controversias de litteraturas, calou-se; occupou-se sÛ
d'elle, quiz saber que tal elle achava aquelle S.^t Emilion; e, quando o
viu confortavelmente servido de _sole normande_, lanÁou com grande
alarde de interesse esta pergunta:

--Ent„o, Cohen, diga-nos vocÍ, conte-nos c·... O emprestimo faz-se ou
n„o se faz?

E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que aquella quest„o do
emprestimo era grave. Uma operaÁ„o tremenda, um verdadeiro episodio
historico!...

O Cohen collocou uma pitada de sal · beira do prato, e respondeu, com
auctoridade, que o emprestimo tinha de se realisar _absolutamente_. Os
emprestimos em Portugal constituiam hoje uma das fontes de receita, t„o
regular, t„o indispensavel, t„o sabida como o imposto. A unica occupaÁ„o
mesmo dos ministerios era esta--_cobrar o imposto_ e _fazer o
emprestimo_. E assim se havia de continuar...

Carlos n„o entendia de finanÁas: mas parecia-lhe que, d'esse modo, o
paiz ia alegremente e lindamente para a _banca-rota_.

--N'um galopesinho muito seguro e muito a direito, disse o Cohen,
sorrindo. Ah, sobre isso, ninguem tem illusıes, meu caro senhor. Nem os
proprios ministros da fazenda!... A _banca-rota_ È inevitavel: È como
quem faz uma somma...

Ega mostrou-se impressionado. Olha que brincadeira, hein! E todos
escutavam o Cohen. Ega, depois de lhe encher o calice de novo, fincara
os cotovellos na meza para lhe beber melhor as palavras.

--A _banca-rota_ È t„o certa, as cousas est„o t„o dispostas para
ella--continuava o Cohen--que seria mesmo facil a qualquer, em dois ou
tres annos, fazer fallir o paiz...

Ega gritou sofregamente pela _receita_. Simplesmente isto: manter uma
agitaÁ„o revolucionaria constante; nas vesperas de se lanÁarem os
emprestimos haver duzentos maganıes decididos que cahissem · pancada na
municipal e quebrassem os candieiros com vivas · Republica; telegraphar
isto em letras bem gordas para os jornaes de Paris, Londres e do Rio de
Janeiro; assustar os mercados, assustar o brazileiro, e a _banca-rota_
estalava. SÛmente, como elle disse, isto n„o convinha a ninguem.

Ent„o Ega protestou com vehemencia. Como n„o convinha a ninguem? Ora
essa! Era justamente o que convinha a todos! ¡ _banca-rota_ seguia-se
uma revoluÁ„o, evidentemente. Um paiz que vive da _inscripÁ„o_, em n„o
lh'a pagando, agarra no cacete; e procedendo por principio, ou
procedendo apenas por vinganÁa--o primeiro cuidado que tem È varrer a
monarchia que lhe representa o _calote_, e com ella o crasso pessoal do
constitucionalismo. E passada a crise, Portugal livre da velha divida,
da velha gente, d'essa collecÁ„o grotesca de bestas...

A voz do Ega sibillava... Mas, vendo assim tratados de _grotescos_, de
_bestas_, os homens d'ordem que fazem prosperar os Bancos, Cohen pousou
a m„o no braÁo do seu amigo e chamou-o ao bom-senso. Evidentemente, elle
era o primeiro a dizel-o, em toda essa gente que figurava desde 46 havia
mediocres e patetas,--mas tambem homens de grande valor!

--Ha talento, ha saber, dizia elle com um tom de experiencia. VocÍ deve
reconhecel-o, Ega... VocÍ È muito exagerado! N„o senhor, ha talento, ha
saber.

E, lembrando-se que algumas d'essas _bestas_ eram amigos do Cohen, Ega
reconheceu-lhes talento e saber. O Alencar porÈm cofiava sombriamente o
bigode. Ultimamente pendia para idÈas radicaes, para a democracia
humanitaria de 1848: por instincto, vendo o romantismo desacreditado nas
letras, refugiava-se no romantismo politico, como n'um asylo paralello:
queria uma republica governada por genios, a fraternisaÁ„o dos povos, os
Estados Unidos da Europa... AlÈm d'isso, tinha longas queixas d'esses
politiquotes, agora gente de Poder, outr'ora seus camaradas de redacÁ„o,
de cafÈ e de _batota_...

--Isso, disse elle, l· a respeito de talento e de saber, historias... Eu
conheÁo-os bem, meu Cohen...

O Cohen acudiu:

--N„o senhor, Alencar, n„o senhor! VocÍ tambem È dos taes... AtÈ lhe
fica mal dizer isso... … exageraÁ„o. N„o senhor, ha talento, ha saber.

E o Alencar, peranta esta intimaÁ„o do Cohen, o respeitado director do
_Banco Nacional_, o marido da divina Rachel, o dono d'essa hospitaleira
casa da rua do Ferregial onde se jantava t„o bem, recalcou o
despeito--admittiu que n„o deixava de haver talento e saber.

Ent„o, tendo assim, pela influencia do seu Banco, dos bellos olhos da
sua mulher e da excellencia do seu cosinheiro, chamado estes espiritos
rebeldes ao respeito dos Parlamentares e · veneraÁ„o da Ordem, Cohen
condescendeu em dizer, no tom mais suave da sua voz, que o paiz
necessitava reformas...

Ega porÈm, incorrigivel n'esse dia, soltou outra enormidade:

--Portugal n„o necessita refÛrmas, Cohen, Portugal o que precisa È a
invas„o hespanhola.

Alencar, patriota ‡ antiga, indignou-se. O Cohen, com aquelle sorriso
indulgente de homem superior que lhe mostrava os bonitos dentes, vio
alli apenas ´um dos paradoxos do nosso Ega.ª Mas o Ega fallava com
seriedade, cheio de razıes. Evidentemente, dizia elle, invas„o n„o
significa perda absoluta de independencia. Um receio t„o estupido È
digno sÛ de uma sociedade t„o estupida como a do _Primeiro de Dezembro_.
N„o havia exemplo de seis milhıes de habitantes serem engolidos, de um
sÛ trago, por um paiz que tem apenas quinze milhıes de homens. Depois
ninguem consentiria em deixar cahir nas m„os de Hespanha, naÁ„o militar
e maritima, esta bella linha de costa de Portugal. Sem contar as
allianÁas que teriamos, a troco das colonias--das colonias que sÛ nos
servem, como a prata de familia aos morgados arruinados, para ir
empenhando em casos de crise... N„o havia perigo; o que nos aconteceria,
dada uma invas„o, n'um momento de guerra europea, seria levarmos uma
sova tremenda, pagarmos uma grossa indemnisaÁ„o, perdermos uma ou duas
provincias, ver talvez a Galliza estendida atÈ ao Douro...

--_Poulet aux champignons_, murmurou o creado, apresentando-lhe a
travessa.

E em quanto elle se servia, perguntavam-lhe dos lados onde via elle a
_salvaÁ„o do paiz_, n'essa catastrophe que tornaria povoaÁ„o hespanhola
Celorico de Basto, a nobre Celorico, berÁo de heroes, berÁo dos Egas...

--N'isto: no ressuscitar do espirito publico e do genio portuguez!
Sovados, humilhados, arrasados, escalavrados, tinhamos de fazer um
esforÁo desesperado para viver. E em que bella situaÁ„o nos achavamos!
Sem monarchia, sem essa caterva de politicos, sem esse tortulho da
_inscripÁ„o_, porque tudo desapparecia, estavamos novos em folha,
limpos, escarollados, como se nunca tivessemos servido. E recomeÁava-se
uma historia nova, um outro Portugal, um Portugal serio e intelligente,
forte e decente, estudando, pensando, fazendo civilisaÁ„o como
outr'ora... Meninos, nada regenera uma naÁ„o como uma medonha tarÍa...
Oh Deus d'Ourique, manda-nos o castelhano! E vocÍ, Cohen, passe-me o
S.^t Emilion.

Agora, n'um rumor animado, discutia-se a invas„o. Ah, podia-se fazer uma
bella resistencia! Cohen affianÁava o dinheiro. Armas, artilheria, iam
comprar-se · America--e Craft offereceu logo a sua collecÁ„o de espadas
do seculo XVI. Mas generaes? Alugavam-se. Mac-Mahon, por exemplo, devia
estar barato...

--O Craft e eu organisamos uma guerrilha, gritou Ega.

--¡s ordens, meu coronel.

--O Alencar, continuava Ega, È encarregado de ir despertar pela
provincia o patriotismo, com cantos e com odes!

Ent„o o poeta, pousando o calice, teve um movimento de le„o que sacode a
juba:

--Isto È uma velha carcassa, meu rapaz, mas n„o est· sÛ para odes! Ainda
se agarra uma espingarda, e como a pontaria È boa, ainda v„o a terra um
par de gallegos... Caramba, rapazes, sÛ a idÈa d'essas cousas me pıe o
coraÁ„o negro! E como vocÈs podem fallar n'isso, a rir, quando se trata
do paiz, d'esta terra onde nascemos, que diabo! Talvez seja m·, de
accordo, mas, caramba! È a unica que temos, n„o temos outra! … aqui que
vivemos, È aqui que rebentamos... Irra, fallemos d'outra cousa, fallemos
de mulheres!

Dera um repell„o ao prato, os olhos humedeciam-se-lhe de paix„o
patriotica...

E no silencio que se fez Damaso, que desde as informaÁıes sobre a
rapariga do Ermidinha emmudecera, occupado a observar Carlos com
religi„o, ergueu a voz pausadamente, disse, com um ar de bom senso e de
finura:

--Se as cousas chegassem a esse ponto, se pozessem assim feias, eu c·, ·
cautela, Ìa-me raspando para Paris...

Ega triumphou, pulou de gosto na cadeira. Eis alli, no labio synthetico
de Damaso, o grito espontaneo e genuino do brio portuguez! Raspar-se,
pirar-se!... Era assim que d'alto a baixo pensava a sociedade de Lisboa,
a malta constitucional, desde El-Rei nosso Senhor atÈ aos cretinos de
secretaria!...

--Meninos, ao primeiro soldado hespanhol que appareÁa · fronteira, o
paiz em massa foge como uma lebre! Vae ser uma debandada unica na
historia!

Houve uma indignaÁ„o, Alencar gritou:

--Abaixo o traidor!

Cohen interveiu, declarou que o soldado portuguez era valente, · maneira
dos turcos--sem disciplina, mas teso. O proprio Carlos disse, muito
serio:

--N„o senhor... Ninguem ha de fugir, e ha de se morrer bem.

Ega rugiu. Para quem estavam elles fazendo essa _pose_ heroica? Ent„o
ignoravam que esta raÁa, depois de cincoenta annos de
constitucionalismo, creada por esses saguıes da Baixa, educada na
piolhice dos lyceus, roÌda de syphlis, apodrecida no bolÙr das
secretarias, arejada apenas ao domingo pela poeira do Passeio, perdera o
musculo como perdera o caracter, e era a mais fraca, a mais covarde raÁa
da Europa?...

--Isso s„o os lisboetas, disse Craft.

--Lisboa È Portugal, gritou o outro. FÛra de Lisboa n„o ha nada. O paiz
est· todo entre a Arcada e S. Bento!...

A mais miseravel raÁa da Europa! continuava elle a berrar. E que
exercito! Um regimento, depois de dois dias de marcha, dava entrada em
massa no hospital! Com seus olhos tinha elle visto, no dia da abertura
das CÙrtes, um marujo sueco, um rapag„o do Norte, fazer debandar, a
soccos, uma companhia de soldados; as praÁas tinham litteralmente
largado a fugir, com a patrona a batter-lhe os rins; e o official,
enfiado de terror, metteu-se para uma escada, a vomitar!...

Todos protestaram. N„o, n„o era possivel... Mas se elle tinha visto, que
diabo!... Pois sim, talvez, mas com os olhos fallazes da phantasia...

--Juro pela saude da mam„! gritou Ega furioso.

Mas emmudeceu. O Cohen tocara-lhe no braÁo. O Cohen Ìa fallar.

O Cohen queria dizer que o futuro pertence a Deus. Que os hespanhoes
porÈm pensassem na invas„o isso parecia-lhe certo--sobretudo se viessem,
como era natural, a perder Cuba. Em Madrid todo o mundo lh'o dissera. J·
havia mesmo negocios de fornecimentos entabolados...

--Hespanholadas, gallegadas! rosnou Alencar, por entre dentes, sombrio e
torcendo os bigodes.

--No _Hotel de Paris_, continuou Cohen, em Madrid, conheci eu um
magistrado, que me disse com um certo ar que n„o perdia a esperanÁa de
se vir estabelecer de todo em Lisboa; tinha-lhe agradado muito Lisboa,
quando c· estivera a banhos. E em quanto a mim, estou que ha muitos
hespanhoes que est„o · espera d'este augmento de territorio para se
empregarem!

Ent„o Ega cahiu em extasi, apertou as m„os contra o peito. Oh que
delicioso traÁo! Oh que admiravelmente observado!

--Este Cohen! exclamava elle para os lados. Que finamente observado! Que
traÁo adoravel! Hein, Craft? Hein, Carlos? Delicioso!

Todos cortezmente admiraram a finura do Cohen. Elle agradecia, com o
olho enternecido, passando pelas suissas a m„o onde reluzia um diamante.
E n'esse momento os creados serviam um prato de ervilhas n'um molho
branco, murmurando:

--_Petits pois a la Cohen_.

_A la Cohen?_ Cada um verificou o seu _menu_ mais attentamente. E l·
estava, era o legume: _petits pois a la Cohen!_ Damaso, enthusiasmado,
declarou isto ´chic a valer!ª E fez-se, com o Champagne que se abria, a
primeira saude ao Cohen!

Esquecera-se a banca rota, a invas„o, a patria--o jantar terminava
alegremente. Outras _saudes_ crusaram-se, ardentes e loquazes: o proprio
Cohen, com o sorriso de quem cede a um capricho de creanÁa, bebeu ·
RevoluÁ„o e · Anarchia, brinde complicado, que o Ega erguera, j· com o
olho muito brilhante. Sobre a toalha, a sobremeza alastrava-se,
destroÁada; no prato do Alencar as pontas de cigarros misturavam-se a
bocados de ananaz mastigado. Damaso, todo debruÁado sobre Carlos,
fazia-lhe o elogio da parelha ingleza, e d'aquelle _phaeton_ que era a
cousa mais linda que passeiava Lisboa. E logo depois do seu brinde de
demagogo, sem raz„o, Ega arremettera contra Craft, injuriando a
Inglaterra, querendo excluil-a d'entre as naÁıes pensantes, ameaÁando-a
de uma revoluÁ„o social que a ensoparia em sangue: o outro respondia com
acenos de cabeÁa, imperturbavel, partindo nozes.

Os creados serviram o cafÈ. E como havia j· tres longas horas que
estavam · meza, todos se ergueram, acabando os charutos, conversando, na
animaÁ„o viva que dera o _Champagne_. A sala, de tecto baixo, com os
cinco bicos de gaz ardendo largamente, enchera-se de um calor pesado,
onde se ia espalhando agora o aroma forte das chartreuses e dos licores
por entre a nevoa alvadia do fumo.

Carlos e Craft, que abafavam, foram respirar para a varanda; e ahi
recomeÁou logo, n'aquella communidade de gostos que os comeÁava a ligar,
a conversa da rua do Alecrim sobre a bella collecÁ„o dos Olivaes. Craft
dava detalhes; a cousa rica e rara que tinha era um armario hollandez do
seculo XVI; de resto, alguns bronzes, faianÁas e boas armas...

Mas ambos se voltaram ouvindo, no grupo dos outros, junto · meza,
estridencias de voz, e como um conflicto que rompia: Alencar, sacudindo
a grenha, gritava contra a _palhada philosophica_; e do outro lado, com
o calice de cognac na m„o, Ega, pallido e affectando uma tranquillidade
superior, declarava toda essa babuge lyrica que por ahi se publica digna
da policia correccional...

--Pegaram-se outra vez, veiu dizer Damaso a Carlos, approximando-se da
varanda. … por causa do Craveiro. Est„o ambos divinos!

Era com effeito a proposito de poesia moderna, de Sim„o Craveiro, do seu
poema a _Morte de Satanaz_. Ega estivera citando, com enthusiasmo,
estrophes do episodio da _Morte_, quando o grande esqueleto symbolico
passa em pleno sol no Boulevard, vestido como uma cocotte, arrastando
sedas rumorosas


    ´E entre duas costellas, no decotte,
    Tinha um bouquet de rosas!ª


E o Alencar, que detestava o Craveiro, o homem da _IdÈa nova_, o
paladino do Realismo, triumphara, cascalhara, denunciando logo n'essa
simples estrophe dois erros de grammatica, um verso errado, e uma imagem
roubada a Beaudelaire!

Ent„o Ega, que bebera um sobre outro dois calices de cognac, tornou-se
muito provocante, muito pessoal.

--Eu bem sei por que tu fallas, Alencar, dizia elle agora. E o motivo
n„o È nobre. … por causa do epigramma que elle te fez:


    O Alencar d'Alemquer,
    Acceso com a primavera...


--Ah, vocÍs nunca ouviram isto? continuou elle voltando-se, chamando os
outros. … delicioso, È das melhores cousas do Craveiro. Nunca ouviste,
Carlos? … sublime, sobre tudo esta estrophe:


    O Alencar d'Alemquer
    Que quer? Na verde campina
    N„o colhe a tenra bonina
    Nem consulta o malmequer...
    Que quer? Na verde campina
    O Alencar d'Alemquer
       Quer menina!


Eu n„o me lembro do resto, mas termina com um grito de bom senso, que È
a verdadeira critica de todo esse lyrismo pandilha:


    O Alencar d'Alemquer
        Quer cacete!


Alencar passou a m„o pela testa livida, e com o olho cavo fito no outro,
a voz rouca e lenta:

--Olha, Jo„o da Ega, deixa-me dizer-te uma cousa, meu rapaz... Todos
esses epigrammas, esses dichotes lorpas do rachitico e dos que o
admiram, passam-me pelos pÈs como um enxurro de cloaca... O que faÁo È
arregaÁar as calÁas! ArregaÁo as calÁas... Mais nada, meu Ega. ArregaÁo
as calÁas!

E arregaÁou-as realmente, mostrando a ceroula, n'um gesto brusco e de
delirio.

--Pois quando encontrares enchurros d'esses, gritou-lhe o Ega, agacha-te
e bebe-os! D„o-te sangue e forÁa ao lyrismo!

Mas Alencar, sem o ouvir, berrava para os outros, esmurrando o ar:

--Eu, se esse Craveirete n„o fosse um rachitico, talvez me entretivesse
a rolal-o aos pontapÈs por esse Chiado abaixo, a elle e · versalhada, a
essa lambisgonhice excrementicia com que seringou Satanaz! E depois de o
besuntar bem de lama, esborrachava-lhe o craneo!

--N„o se esborracham assim craneos, disse de l· o Ega n'um tom frio de
troÁa.

Alencar voltou para elle uma face medonha. A colera e o cognac
incendiavam-lhe o olhar; todo elle tremia:

--Esborrachava-lh'o, sim, esborrachava, Jo„o da Ega! Esborrachava-lh'o
assim, olha, assim mesmo!--Rompeu a atirar patadas ao soalho, abalando a
sala, fazendo tilintar crystaes e louÁas.--Mas n„o quero, rapazes!
Dentro d'aquelle craneo sÛ ha excremento, vomito, puz, materia verde, e
se lh'o esborrachasse, por que lh'o esborrachava, rapazes, todo o miollo
podre sahia, empestava a cidade, tinhamos o cholera! Irra! Tinhamos a
peste!

Carlos, vendo-o t„o excitado, tornou-lhe o braÁo, quiz calmal-o:

--Ent„o, Alencar! Que tolice... Isso vale l· a pena!...

O outro desprendeu-se, arquejante, desabotoou a sobrecasaca, soltou o
ultimo desabafo:

--Com effeito, n„o vale a pena ninguem zangar-se por causa d'esse
Craveirote da _IdÈa nova_, esse caloteiro, que se n„o lembra que a porca
da irm„ È uma meretriz de doze vintens em Marco de Canavezes!

--N„o, isso agora È de mais, pulha! gritou Ega, arremeÁando-se, de
punhos fechados.

Cohen e Damaso, assustados, agarraram-n'o. Carlos puchara logo para o
v„o da janella o Alencar que se debatia, com os olhos chammejantes, a
gravata solta. Tinha cahido uma cadeira; a correcta sala, com os seus
divans de marroquim, os seus ramos de camelias, tomava um ar de taverna,
n'uma bulha de faias, entre a fumaraÁa de cigarros. Damaso, muito
pallido, quasi sem voz, Ìa d'um a outro:

--Oh meninos, oh meninos, aqui, no Hotel Central! Jesus!... Aqui no
Hotel Central!...

E, d'entre os braÁos do Cohen, Ega berrava, j· rouco:

--Esse pulha, esse covarde... Deixe-me, Cohen! N„o, isso hei de
esbofeteal-o!... A D. Anna Craveiro, uma santa!... Esse calumniador...
N„o, isso hei de esganal-o!...

Craft, no entanto, impassivel, bebia aos golos a sua chartreuse. J·
presence·ra, mais vezes, duas litteraturas rivaes engalphinhando-se,
rolando no ch„o, n'um latir de injurias: a torpeza do Alencar sobre a
irm„ do outro fazia parte dos costumes de critica em Portugal: tudo isso
o deixava indifferente, com um sorriso de desdem. AlÈm d'isso sabia que
a reconciliaÁ„o n„o tardaria, ardente e com abraÁos. E n„o tardou.
Alencar sahiu do v„o da janella, atraz de Carlos, abotoando a
sobrecasaca, grave e como arrependido. A um canto da sala, Cohen fallava
ao Ega com auctoridade, severo, · maneira d'um pae: depois voltou-se,
ergueu a m„o, ergueu a voz, disse que alli todos eram cavalheiros: e
como homens de talento e de coraÁ„o fidalgo os dois deviam abraÁar-se...

--V·, um _shake-hands_, Ega, faÁa isso por mim!... Alencar, vamos,
peÁo-lh'o eu!

O auctor de _Elvira_ deu um passo, o auctor das _Memorias d'um Atomo_
estendeu a m„o: mas o primeiro aperto foi gÙche e molle. Ent„o Alencar,
generoso e rasgado, exclamou que entre elle e o Ega n„o devia _ficar uma
nuvem!_ Tinha-se excedido... FÙra o seu desgraÁado genio, esse calor de
sangue, que durante toda a existencia sÛ lhe trouxera lagrimas! E alli
declarava bem alto que Anna Craveiro era uma santa! Tinha-a conhecido em
Marco de Canavezes, em casa dos Peixotos... Como esposa, como m„e, Anna
Craveiro era impeccavel. E reconhecia, do fundo d'alma, que o Craveiro
tinha carradas de talento!...

Encheu um copo de _Champagne_, ergueu-o alto, diante do Ega, como um
calice de altar:

--¡ tua, Jo„o!

Ega, generoso tambem, respondeu:

--¡ tua, Thomaz!

AbraÁaram-se. Alencar jurou que ainda na vespera, em casa de D. Joanna
Coutinho, elle dissera que n„o conhecia ninguem mais scintillante que o
Ega! Ega affirmou logo que em poemas nenhuns corria, como nos do
Alencar, uma t„o bella veia lyrica. Apertaram-se outra vez, com palmadas
pelos hombros. Trataram-se de _irm„os na arte_, trataram-se de
_genios_!...

--S„o extraordinarios, disse Craft baixo a Carlos, procurando o chapÈo.
Desorganisam-me, preciso ar!...

A noite alongava-se, eram onze horas. Ainda se bebeu mais cognac. Depois
Cohen sahiu levando o Ega. Damaso e Alencar desceram com Carlos--que ia
recolher a pÈ pelo Aterro.

¡ porta, o poeta parou com solemnidade.

--Filhos, exclamou elle tirando o chapÈo e refrescando largamente a
fronte, ent„o? Parece-me que me portei como um gentleman!

Carlos concordou, gabou-lhe a generosidade...

--Estimo bem que me digas isso, filho, porque tu sabes o que È ser
gentleman! E agora vamos l· por esse Aterro fÛra... Mas deixa-me ir alli
primeiro comprar um pacote de tabaco...

--Que typo! exclamou Damaso, vendo-o affastar-se. E a cousa Ìa-se pondo
feia...

E immediatamente, sem transiÁ„o, comeÁou a fazer elogios a Carlos. O sr.
Maia n„o imaginava ha quanto tempo elle desejava conhecel-o!

--Oh senhor...

--Creia v. ex.^a... Eu n„o sou de sabujices... Mas pode v. ex.^a
perguntar ao Ega, quantas vezes o tenho dito: v. ex.^a È a cousa melhor
que ha em Lisboa!

Carlos, baixava a cabeÁa, mordendo o riso. Damaso, repetia, do fundo do
peito.

--Olhe que isto È sincero, sr. Maia! Acredite v. ex.^a que isto È do
coraÁ„o!

Era realmente sincero. Desde que Carlos habitava Lisboa, tivera alli,
n'aquelle moÁo gordo e bochechudo, sem o saber, uma adoraÁ„o muda e
profunda; o proprio verniz dos seus sapatos, a cÙr das suas luvas eram
para o Damaso motivo de veneraÁ„o, e t„o importantes como principios.
Considerava Carlos um typo supremo de _chic_, do seu querido _chic_, um
Brummel, um d'Orsay, um Morny,--uma ´d'estas cousas que sÛ se vÍem l·
fÛraª, como elle dizia arregalando os olhos. N'essa tarde sabendo que
vinha jantar com o Maia, conhecer o Maia, estivera duas horas ao espelho
experimentando gravatas, perfumara-se como para os braÁos d'uma
mulher;--e por causa de Carlos mandara estacionar alli o coupÈ, ·s dez
horas, com o cocheiro de ramo ao peito.

--Ent„o essa senhora brazileira vive aqui? perguntou Carlos, que dera
dous passos, olhava uma janella allumiada no segundo andar.

Damaso seguiu-lhe o olhar.

--Vive l· do outro lado. Est„o aqui ha quinze dias... Gente _chic_... E
ella È de appetecer, v. ex.^a reparou? Eu a bordo atirei-me... E ella
dava cavaco! Mas tenho andado muito preso desde que cheguei, jantar
aqui, soirÈe acol·, umas aventurasitas... N„o tenho podido c· vir,
deixei-lhes sÛ bilhetes; mas trago-a d'olho, que ella demora-se...
Talvez venha c· ·manh„, estou c· agora a sentir umas cocegas... E se me
pilho sÛ com ella, z·s, ferro-lhe logo um beijo! Que eu c·, n„o sei se
v. ex.^a È a mesma cousa, mas eu c·, com mulheres, a minha theoria È
esta: attrac„o! Eu c·, È logo: attrac„o!

N'esse momento Alencar voltava do estanco, de charuto na boca. Damaso
despediu-se, atirando muito alto ao cocheiro, para que Carlos ouvisse, a
adresse da Morelli, a segunda dama de S. Carlos.

--Bom rapaz, este Damaso, dizia Alencar, travando de braÁo de Carlos, ao
seguirem ambos pelo Aterro. … l· muito dos Cohens, muito querido na
sociedade. Rapaz de fortuna, filho do velho Silva, o agiota, que esfolou
muito teu pae; e a mim tambem. Mas elle assigna Salcede; talvez nome da
m„e; ou talvez inventado. Bom rapaz... O pae era um velhaco! Parece que
estou a ouvir o Pedro dizer-lhe com o seu ar de fidalgo, que o tinha e
do grande: ´Silva judeu, dinheiro, e a rÙdo!ª... Outros tempos, meu
Carlos, grandes tempos. Tempos de gente!

E ent„o por esse longo Aterro, triste no ar escuro, com as luzes do gaz
dormente luzindo em fila d'enterro, Alencar foi fallando d'esses
´grandes temposª da sua mocidade e da mocidade de Pedro; e, atravÈz das
suas phrases de lyrico, Carlos sentia vir como um aroma antiquado d'esse
mundo defunto... Era quando os rapazes ainda tinham um resto de calor
das guerras civis, e o calmavam indo em bando varrer botequins ou
rebentando pilecas de sejes em galopadas para Cintra. Cintra era ent„o
um ninho de amores, e sob as suas romanticas ramagens as fidalgas
abandonavam-se aos braÁos dos poetas. Ellas eram Elviras, elles eram
Antonys. O dinheiro abundava; a cÙrte era alegre; a RegeneraÁ„o
litterata e galante ia engrandecer o paiz, bello jardim da Europa; os
bachareis chegavam de Coimbra, frementes de eloquencia; os ministros da
corÙa recitavam ao piano; o mesmo sopro lyrico inchava as odes e os
projectos de lei...

--Lisboa era bem mais divertida, disse Carlos.

--Era outra cousa, meu Carlos! Vivia-se! N„o existiriam esses ares
scientificos, toda essa palhada philosophica, esses badamecos
positivistas... Mas havia coraÁ„o, rapaz! Tinha-se faisca! Mesmo n'essas
cousas da politica... VÍ esse chiqueiro agora ahi, essa malta de
bandalhos... N'esse tempo Ìa-se alli · camara e sentia-se a inspiraÁ„o,
sentia-se o rasgo!... Via-se luz nas cabeÁas!... E depois, menino, havia
muitissimo boas mulheres.

Os hombros descahiam-lhe na saudade d'esse mundo perdido. E parecia mais
lugubre, com a sua grenha d'inspirado sahindo-lhe de sob as abas largas
do chapÈo velho, a sobrecasaca coÁada e mal feita collando-se-lhe
lamentavelmente ·s ilhargas.

Um momento caminharam em silencio. Depois, na rua das Janellas Verdes, o
Alencar _quiz refrescar_. Entraram n'uma pequena venda, onde a mancha
amarella d'um candieiro de petroleo destacava n'uma penumbra de
subterraneo, allumiando o zinco humido do balc„o, garrafas nas
prateleiras, e o vulto triste da patroa com um lenÁo amarrado nos
queixos. Alencar parecia intimo no estabelecimento: apenas soube que a
sr.^a Candida estava com dÙr de dentes, aconselhou logo remedios,
familiar, descido das nuvens romanticas, com os cotovellos sobre o
balc„o. E quando Carlos quiz pagar a canna branca zangou-se, bateu a sua
placa de dois tostıes sobre o zinco polido, exclamou, com nobreza:

--Eu È que faÁo a honra da bodega, meu Carlos! Nos palacios os outros
pagar„o... C· na taberna pago eu!

¡ porta tomou o braÁo de Carlos. Depois d'alguns passos lentos no
silencio da rua, parou de novo, e murmurou n'uma voz vaga,
contemplativa, como repassada da vasta solemnidade da noite:

--Aquella Rachel Cohen È divinamente bella, menino! Tu conhecel'a?

--De vista.

--N„o te faz lembrar uma mulher da Biblia? N„o digo l· uma d'essas
viragos, uma Judith, uma Dalila... Mas um d'esses lyrios poeticos da
Biblia... … seraphica!

Era agora a paix„o platonica do Alencar, a sua dama, a sua Beatriz...

--Tu viste ha tempos, no _Diario Nacional_, os versos que eu lhe fiz?


    ´Abril chegou! SÍ minhaª
    Dizia o vento · rosa.


N„o me sahiu mau! Aqui ha uma maliciasinha: _Abril chegou, sÍ minha_...
Mas logo: _dizia o vento · rosa_. Comprehendes? Calhou bem este effeito.
Mas n„o imagines l· outras cousas, ou que lhe faÁo a cÙrte... Basta ser
a mulher do Cohen, um amigo, um irm„o... E a Rachel, para mim,
coitadinha, È como uma irm„... Mas È divina. Aquelles olhos, filho, um
velludo liquido!...

Tirou o chapeu, refrescou a fronte vasta. Depois n'outro tom, e como a
custo:

--Aquelle Ega tem muito talento... Vae l· muito aos Cohens... A Rachel
acha-lhe graÁa...

Carlos par·ra, estavam defronte do Ramalhete. Alencar deu um olhar ·
severa frontaria de convento, adormecida, sem um ponto de luz.

--Tem bom ar esta vossa casa... Pois entra tu, meu rapaz, que eu vou
andando por aqui para a minha toca. E quando quizeres, filho, l· me tens
na rua do Carvalho, 52, 3.^o andar. O predio È meu, mas eu occupo o
terceiro andar. Comecei por habitar no primeiro, mas tenho ido
trepando... A unica cousa mesmo que tenho trepado, meu Carlos, È de
andares...

Teve um gesto, como desdenhando essas miserias.

--E has de ir l· jantar um dia. N„o te posso dar um banquete, mas has de
ter uma sopa e um assado... O meu Matheus, um preto, (um amigo!) que me
serve ha muito anno, quando ha que cosinhar, sabe cosinhar! Fez muito
jantar a teu pae, ao meu pobre Pedro... Que aquillo foi casa de alegria,
meu rapaz. Dei l· cama e mesa, e dinheiro para a algibeira, a muita
d'essa canalha que hoje por ahi trota em coupÈ da companhia e de correio
atraz... E agora, quando me avistam, voltam para o lado o focinho...

--Isso s„o imaginaÁıes, disse Carlos com amisade.

--N„o s„o, Carlos, respondeu o poeta, muito grave, muito amargo. N„o
s„o. Tu n„o sabes a minha vida. Tenho soffrido muito repell„o, rapaz. E
n„o o merecia! Palavra, que o n„o merecia.

Agarrou o braÁo de Carlos, e com a voz abalada:

--Olha que esses homens que por ahi figuram embebedavam-se comigo,
emprestei-lhes muito pinto, dei-lhes muita ceia... E agora s„o
ministros, s„o embaixadores, s„o personagens, s„o o diabo. Pois
offereceram-te elles um bocado do _bolo_ agora que o teem na m„o? N„o.
Nem a mim. Isto È duro, Carlos, isto È muito duro, meu Carlos. E que
diabo, eu n„o queria que me fizessem conde, nem que me dessem uma
embaixada... Mas ahi alguma cousa n'uma secretaria... Nem um chavelho!
Emfim, ainda h· para o bocado do p„o, e para a meia onÁa do tabaco...
Mas esta ingratid„o tem-me feito cabellos brancos... Pois n„o te quero
massar mais, e que Deus te faÁa feliz como tu mereces, meu Carlos!

--Tu n„o queres subir um bocado, Alencar?

Tanta franqueza enterneceu o poeta.

--Obrigado, rapaz, disse elle, abraÁando Carlos. E agradeÁo-te isso,
porque sei que vem do coraÁ„o... Todos vocÍs teem coraÁ„o... J· teu pae
o tinha, e largo, e grande como o d'um le„o! E agora crÍ uma cousa: È
que tens aqui um amigo. Isto n„o È palavriado, isto vem de dentro...
Pois adeus, meu rapaz. Queres tu um charuto?

Carlos acceitou logo, como um presente do ceu.

--Ent„o ahi tens um charuto, filho! exclamou Alencar com enthusiasmo.

E aquelle charuto dado a um homem t„o rico, ao dono do Ramalhete,
fazia-o por um momento voltar aos tempos em que n'esse Marrare elle
estendia em redor a charuteira cheia, com o seu grande ar de Manfredo
triste. Interessou-se ent„o pelo charuto. Accendeu elle mesmo um
phosphoro. Verificou se ficava bem acceso. E que tal, charuto rasoavel?
Carlos achava um excellente charuto!

--Pois ainda bem que te dei um bom charuto!

AbraÁou-o outra vez; e estava batendo uma hora, quando elle emfim se
affastou, mais ligeiro, mais contente de si, trauteando um trecho de
_fado_.


Carlos no seu quarto, antes de se deitar, acabando o pessimo charuto do
Alencar estirado n'uma chaise-longue, em quanto Baptista lhe fazia uma
chavena de ch·, ficou pensando n'esse estranho passado que lhe evocara o
velho lyrico...

E era sympathico o pobre Alencar! Com que cuidado exagerado, ao fallar
de Pedro, d'Arroios, dos amigos e dos amores d'então, elle evitara
pronunciar sequer o nome de Maria Monforte! Mais de uma vez, pelo Aterro
fóra, estivera para lhe dizer:—pódes fallar da mamã, amigo Alencar, que
eu sei perfeitamente que ella fugiu com um italiano!

E isto fÍl-o insensivelmente recordar da maneira como essa lamentavel
historia lhe fÙra revelada, em Coimbra, n'uma noite de troÁa, quasi
grotescamente. Por que o avÙ, obdecendo · carta testamentaria de Pedro,
contara-lhe um romance decente: um casamento de paix„o,
incompatibilidades de naturezas, uma separaÁ„o cortez, depois a retirada
da mam„ com a filha para a FranÁa, onde tinham morrido ambas. Mais nada.
A morte de seu pae fÙra-lhe apresentada sempre como o brusco remate
d'uma longa nevrose...

Mas Ega sabia tudo, pelos tios... Ora uma noite tinham ceiado ambos; Ega
muito bebedo, e n'um accesso de idealismo, lanÁara-se n'um paradoxo
tremendo, condemnando a honestidade das mulheres como origem da
decadencia das raÁas: e dava por prova os bastardos, sempre
intelligentes, bravos, gloriosos! Elle, Ega, teria orgulho se sua m„e,
sua propria m„e, em logar de ser a santa burgueza que resava o terÁo ·
lareira, fosse como a m„e de Carlos, uma inspirada, que por amor d'um
exilado abandonara fortuna, respeitos, honra, vida! Carlos, ao ouvir
isto, ficara petrificado, no meio da ponte, sob o calmo luar. Mas n„o
poude interrogar o Ega, que j· taramellava, agoniado, e que n„o tardou a
vomitar-lhe ignobilmente nos braÁos. Teve de o arrastar · casa das
Seixas, despil-o, aturar-lhe os beijos e a ternura borracha, atÈ que o
deixou abraÁado ao travesseiro, babando-se, balbuciando--´que queria ser
bastardo, que queria que a mam„ fosse uma marafona!...ª

E elle mal podera dormir essa noite, com a idÈa d'aquella m„e, t„o outra
do que lhe haviam contado, fugindo nos braÁos d'um desterrado--um polaco
talvez! Ao outro dia, cedo, entrava pelo quarto do Ega, a pedir-lhe,
pela sua grande amisade, a verdade toda...

Pobre Ega! Estava doente: fez-se branco como o lenÁo que tinha amarrado
na cabeÁa com pannos de agua sedativa: e n„o achava uma palavra,
coitado! Carlos, sentado na cama, como nas noites de cavaco,
tranquillisou-o. N„o vinha alli offendido, vinha alli curioso!
Tinham-lhe occultado um episodio extraordinario da sua gente, que diabo,
queria sabel-o! Havia romance? Para alli o romance!

Ega, ent„o, l· ganhou animo, l· balbuciou a sua historia--a que ouvira
ao tio Ega--a paix„o de Maria por um principe, a fuga, o longo silencio
d'annos que se fizera sobre ella...

Justamente as ferias chegavam. Apenas em S.^{ta} Olavia, Carlos contou
ao avÙ a bebedeira do Ega, os seus discursos doidos, aquella revelaÁ„o
vinda entre arrotos. Pobre avÙ! Um momento nem poude fallar--e a voz por
fim veiu-lhe t„o debil e dolente como se dentro do peito lhe estivesse
morrendo o coraÁ„o. Mas narrou-lhe, detalhe a detalhe, o feio romance
todo atÈ ·quella tarde em que Pedro lhe apparecera, livido, coberto de
lama, a cahir-lhe nos braÁos, chorando a sua dÙr com a fraqueza d'uma
creanÁa.--E o desfecho d'esse amor culpado, accrescentara o avÙ, fÙra a
morte da m„e em Vienna d'Austria, e a morte da pequenita, da neta que
elle nunca vira, e que a Monforte levara... E eis ahi tudo. E assim,
aquella vergonha domestica estava agora enterrada, alli, no jazigo de
S.^{ta} Olavia, e em duas sepulturas distantes, em paiz estrangeiro...

Carlos recordava-se bem que n'essa tarde, depois da melancolica conversa
com o avÙ, devia elle experimentar uma egoa ingleza: e ao jantar n„o se
fallou sen„o da egoa que se chamava _Sultana_. E a verdade era que d'ahi
a dias tinha esquecido a mam„. Nem lhe era possivel sentir por esta
tragedia sen„o um interesse vago e como litterario. Isso passara-se
havia vinte e tantos annos, n'uma sociedade quasi desapparecida. Era
como o episodio historico de uma velha chronica de familia, um
antepassado morto em Alcacer-Kebir, ou uma das suas avÛs dormindo n'um
leito real. Aquillo n„o lhe dera uma lagrima, n„o lhe pozera um rubor na
face. De certo, prefiriria poder orgulhar-se de sua m„e, como d'uma rara
e nobre flÙr de honra: mas n„o podia ficar toda a vida a amargurar-se
com os seus erros. E porque? A sua honra d'elle n„o dependia dos
impulsos falsos ou torpes que tivera o coraÁ„o d'ella. Peccara, morrera,
acabou-se. Restava, sim, aquella idÈa do pae, findando n'uma poÁa de
sangue, no desespero d'essa traiÁ„o. Mas n„o conhecera seu pae: tudo o
que possuia d'elle e da sua memoria, para amar, era uma fria tela mal
pintada, pendurada no quarto de vestir, representando um moÁo moreno, de
grandes olhos, com luvas de camurÁa amarellas e um chicote na m„o... De
sua m„e n„o ficara nem um daguerreotypo, nem sequer um contorno a lapis.
O avÙ tinha-lhe dito que era loura. N„o sabia mais nada. N„o os
conhecera; n„o lhes dormira nos braÁos; nunca recebera o calor da sua
ternura. Pae, m„e, eram para elle como symbolos d'um culto convencional.
O pap·, a mam„, os seres amados, estavam alli todos--no avÙ.

Baptista trouxera o ch·, o charuto do Alencar acabara;--e elle
continuava na chaise-longue, como amollecido n'estas recordaÁıes, e
cedendo j·, n'um meio adormecimento, · fadiga do longo jantar... E
ent„o, pouco a pouco, diante das suas palpebras cerradas, uma vis„o
surgiu, tomou cÙr, encheu todo o aposento. Sobre o rio, a tarde morria
n'uma paz elysia. O peristillo do Hotel Central alargava-se, claro
ainda. Um preto grisalho vinha, com uma cadelinha no collo. Uma mulher
passava, alta, com uma carnaÁ„o eburnea, bella como uma Deusa, n'um
casaco de velludo branco de Genova. O Craft dizia ao seu lado
_trËs-chic_. E elle sorria, no encanto que lhe davam estas imagens,
tomando o relevo, a linha ondeante, e a coloraÁ„o de cousas vivas.

Eram tres horas quando se deitou. E apenas adormecera, na escurid„o dos
cortinados de seda, outra vez um bello dia de inverno morria sem uma
aragem, banhado de cÙr de rosa: o banal peristillo de Hotel alargava-se,
claro ainda na tarde; o escudeiro preto voltava, com a cadellinha nos
braÁos; uma mulher passava, com um casaco de velludo branco de Genova,
mais alta que uma creatura humana, caminhando sobre nuvens, com um
grande ar de Juno que remonta ao Olympo: a ponta dos seus sapatos de
verniz enterrava-se na luz do azul, por tr·s as saias batiam-lhe como
bandeiras ao vento. E passava sempre... O Craft dizia _trËs-chic_.
Depois tudo se confundia, e era sÛ o Alencar, um Alencar colossal,
enchendo todo o cÈu, tapando o brilho das estrellas com a sua
sobrecasaca negra e mal feita, os bigodes esvoaÁando ao vendaval das
paixıes, alÁando os braÁos, clamando no espaÁo:


    Abril chegou, sÍ minha!




VII


No Ramalhete, depois do almoÁo, com as tres janellas do escriptoro
abertas bebendo a tepida luz do bello dia de marÁo, Affonso da Maia e
Craft jogavam uma partida de xadrez ao pÈ da chaminÈ j· sem lume, agora
cheia de plantas, fresca e festiva como um altar domestico. N'uma facha
obliqua de sol, sobre o tapete, o Reverendo Bonifacio, enorme e fÙfo,
dormia de leve a sua sesta.

Craft tornara-se, em poucas semanas, intimo no Ramalhete. Carlos e elle,
tendo muitas similitudes de gosto e de idÈas, o mesmo fervor pelo
_bric-a-brac_ e pelo _bibelot_, o uso apaixonado da esgrima, egual
dilettantismo d'espirito, uniram-se immediatamente em relaÁıes de
superficie, faceis e amaveis. Affonso, por seu lado comeÁara logo a
sentir uma estima elevada por aquelle gentleman de boa raÁa ingleza,
como elle os admirava, cultivado e forte, de maneiras graves, de habitos
rijos, sentindo finamente e pensando com rectid„o. Tinham-se encontrado
ambos enthusiastas de Tacito, de Macaulay, de Burke, e atÈ dos poetas
lakistas; Craft era grande no xadrez; o seu carater ganhara nas longas e
trabalhadas viagens a rica solidez d'um bronze; para Affonso da Maia
´aquillo era deveras um homemª. Craft, madrugador, sahia cedo dos
Olivaes a cavallo, e vinha assim ·s vezes almoÁar de surpreza com os
Maias; por vontade de Affonso jantaria l· sempre;--mas ao menos as
noites passava-as invariavelmente no Ramalhete, tendo emfim, como elle
dizia, encontrado em Lisboa um recanto onde se podia conversar bem
sentado, no meio de idÈas, e com boa educaÁ„o.

Carlos sahia pouco de casa. Trabalhava no seu livro. Aquella revoada de
clientella que lhe dera esperanÁas d'uma carreira cheia, activa, tinha
passado miseravelmente, sem se fixar; restavam-lhe tres doentes no
bairro; e sentia agora que as suas carruagens, os cavallos, o Ramalhete,
os habitos de luxo, o condemnavam irremediavelmente ao _dillettantismo_.
J· o fino dr. Theodosio lhe dissera um dia, francamente: ´vocÍ È muito
elegante p'ra medico! As suas doentes, fatalmente, fazem-lhe olho! Quem
È o burguez que lhe vae confiar a esposa dentro d'uma alcova?... VocÍ
aterra o pater-familias!ª O laboratorio mesmo prejudicara-o. Os collegas
diziam que o Maia, rico, intelligente, avido de innovaÁıes, de
modernismos, fazia sobre os doentes experiencias fataes. Tinha-se
troÁado muito a sua idÈa, apresentada na _Gazeta Medica_, a prevenÁ„o
das epidemias pela inoculaÁ„o dos virus. Consideravam-no um phantasista.
E elle, ent„o, refugiava-se todo n'esse livro sobre a medicina antiga e
moderna, o _seu livro_, trabalhado com vagares d'artista rico,
tornando-se o interesse intellectual de um ou dous annos.

N'essa manh„, em quanto dentro proseguia grave e silenciosa a partida de
xadrez, Carlos no terrasso, estendido n'uma vasta cadeira india de
bambu, · sombra do toldo, acabava o seu charuto, lendo uma _Revista_
ingleza, banhado pela caricia tepida d'aquelle bafo de primavera que
avelludava o ar, fazia j· desejar arvores e relvas...

Ao lado d'elle, n'uma outra cadeira de bambu, tambem de charuto na boca,
o sr. Damaso Salcede percorria o _Figaro_. De perna estirada, n'uma
indolencia familiar, tendo o amigo Carlos ao seu lado, vendo junto ao
terrasso as rosas das roseiras de Affonso, sentindo por tr·s, atravez
das janellas abertas, o rico e nobre interior do Ramalhete--o filho do
agiota saboreava alli uma d'essas horas deliciosas que ultimamente
encontrava na intimidade dos Maias.

Logo na manh„ seguinte ao jantar do Central, o sr. Salcede fÙra ao
Ramalhete deixar os seus bilhetes, objectos complicados e vistosos,
tendo ao angulo, n'uma dobra simulada, o seu retratosinho em
photographia, um capacete com plumas por cima do nome--DAMASO CANDIDO DE
SALCEDE, por baixo as suas honras--Commendador de Christo, ao fundo a
sua adresse--_Rua de S. Domingos, · Lapa_; mas esta indicaÁ„o estava
riscada, e ao lado, a tinta azul, esta outra mais apparatosa--Grand
Hotel, Boulevard des Capucines, Chambre N.^o 103. Em seguida procurou
Carlos no consultorio, confiou ao creado outro cart„o. Emfim, uma tarde,
no Aterro, vendo passar Carlos a pÈ, correu para elle, pendurou-se
d'elle, conseguiu acompanhal-o ao Ramalhete.

Ahi, logo desde o pateo, rompeu em admiraÁıes extaticas, como dentro
d'um museu, lanÁando, diante dos tapetes, das faienÁas e dos quadros, a
sua grande phrase--´_chic_ a valer!ª Carlos levou-o para o _fumoir_,
elle aceitou um charuto; e comeÁou a explicar, de perna traÁada, algumas
das suas opiniıes e alguns dos seus gostos. Considerava Lisboa chinfrin,
e sÛ estava bem em Paris--sobre tudo por causa do genero ´femeaª de que
em Lisboa se passavam fomes: ainda que n'esse ponto a Providencia n„o o
tratava mal. Gostava tambem do _bric-a-brac_; mas apanhava-se muita
espiga, e as cadeiras antigas, por exemplo, n„o lhe pareciam commodas
para a gente se sentar. A leitura entretinha-o, e ninguem o pilhava sem
livros · cabeceira da cama; ultimamente andava ·s voltas com Daudet, que
lhe diziam ser muito _chic_, mas elle achava-o confusote. Em rapaz
perdia sempre as noites, atÈ ·s quatro ou cinco da madrugada, no
delirio! Agora n„o, estava mudado e pacato; emfim, n„o dizia que de vez
em quando n„o se abandonasse a um excessozinho; mas sÛ em dias duples...
E as suas perguntas foram terriveis. O sr. Maia achava _chic_ ter um
_cab_ inglez? Qual era mais elegante, assim para um rapaz de sociedade
que quizesse ir passar o ver„o l· fÛra, Nice ou Trouville?... Depois ao
sahir, muito serio, quasi commovido, perguntou ao sr. Maia (se o sr.
Maia n„o fazia segredo) quem era o seu alfaiate.

E desde esse dia, n„o o deixou mais. Se Carlos apparecia no theatro,
Damaso immediatamente arrancava-se da sua cadeira, ·s vezes na
solemnidade d'uma bella aria, e pisando os botins dos cavalheiros,
amarrotando a compostura das damas, abalava, abria d'estalo a _claque_,
vinha-se installar na frisa, ao lado de Carlos, com a bochecha corada,
camelia na casaca, exhibindo os botıes de punho que eram duas enormes
bolas. Uma ou duas vezes que Carlos entrara casualmente no Gremio,
Damaso abandonou logo a partida, indifferente · indignaÁ„o dos
parceiros, para se vir collar · ilharga do Maia, offerecer-lhe
marrasquino ou charutos, seguil-o de sala em sala como um rafeiro. N'uma
d'essas occasiıes, tendo Carlos soltado um trivial gracejo, eis o Damaso
rompendo em risadas soluÁantes, rebolando-se pelos soph·s, com as m„os
nas ilhargas, a gritar que rebentava! Juntaram-se socios; elle,
suffocado, repetia a pilheria; Carlos fugiu vexado. Chegou a odial-o;
respondia-lhe sÛ com monossyllabos; dava voltas perigosas com o
_dog-cart_ se lhe avistava de longe a bochecha, a coxa roliÁa. Debalde:
Damaso Candido Salcede filara-o, e para sempre.

Depois, um dia, Taveira appareceu no Ramalhete com uma extraordinaria
historia. Na vespera, no Gremio (tinham-lhe contado, elle n„o
presenceara) um sujeito, um Gomes, n'um grupo onde se commentavam os
Maias, erguera a voz, exclamara que Carlos era um asno! Damaso, que
estava ao lado mergulhado na _IlustraÁ„o_, levantou-se, muito pallido,
declarou que, tendo a honra de ser amigo do sr. Carlos da Maia, quebrava
a cara com a bengala ao sr. Gomes se elle ousasse babujar outra vez esse
cavalheiro; e o sr. Gomes tragou, com os olhos no ch„o, a affronta, por
ser rachitico de nascenÁa--e porque era inquilino de Damaso e andava
muito atrasado na renda. Affonso da Maia achou este feito brilhante: e
foi por desejo seu que Carlos trouxe o sr. Salcede uma tarde a jantar ao
Ramalhete.

Este dia pareceu bello a Damaso como se fosse feito de azul e oiro. Mas
melhor ainda foi a manh„ em que Carlos, um pouco incommodado e ainda
deitado, o recebeu no quarto, como entre rapazes... D'ahi datava a sua
intimidade: comeÁou a tratar Carlos por _vocÍ_. Depois, n'essa semana,
revelou aptidıes uteis. Foi despachar · alfandega (VillaÁa achava-se no
Alemtejo) um caixote de roupa para Carlos. Tendo apparecido n'um momento
em que Carlos copiava um artigo para a _Gazeta Medica_ offereceu a sua
boa letra, letra prodigiosa, de uma belleza lithographica; e d'ahi por
diante passava horas · banca de Carlos, applicado e vermelho, com a
ponta da lingua de fÛra, o olho redondo, copiando apontamentos,
transcripÁıes de Revistas, materiaes para o livro... Tanta dedicaÁ„o
merecia um _tu_ de familiaridade. Carlos deu-lh'o.

Damaso, no entanto, imitava o Maia com uma minuciosidade inquieta, desde
a barba que comeÁava agora a deixar crescer atÈ · forma dos sapatos.
LanÁara-se no _bric-a-brac_. Trazia sempre o _coupÈ_ cheio de lixos
archeologicos, ferragens velhas, um bocado de tijolo, a aza rachada de
um bule... E se avistava um conhecido, fazia parar, entreabria a
portinhola como um addito de sacrario, exhibia a preciosidade:

--Que te parece? _Chic_ a valer!... Vou mostral-a ao Maia. Olha-me isto,
hein! Pura meia edade, do reinado de Luiz XIV. O Carlos vae-se roer de
inveja!

N'esta intimidade de rosas havia todavia para Damaso horas pesadas. N„o
era divertido assistir em silencio, do fundo d'uma poltrona, ·s
infindaveis discussıes de Carlos e de Craft sobre arte e sobre sciencia.
E, como elle confessou depois, chegara a encavacar um pouco quando o
levaram ao laboratorio para fazer no seu corpo experiencias de
electricidade...--´Pareciam dois demonios engalphinhados em mim, disse
elle · sr.^a condessa de Gouvarinho; e eu ent„o que embirro com o
spiritismo!...ª

Mas tudo isto ficava regiamente compensado, quando · noite, n'um soph·,
do Gremio, ou ao ch· n'uma casa amiga, elle podia dizer, correndo a m„o
pelo cabello:

--Passei hoje um dia divino com o Maia. Fizemos armas, _bric-a-brac_,
discutimos... Um dia, _chic_! ¡manh„ tenho uma manh„ de trabalho com o
Maia... Vamos ·s colxas.

N'esse domingo, justamente, deviam ir ·s colxas, ao Lumiar. Carlos
concebera um _boudoir_, todo revestido de colxas antigas de setim,
bordadas a dous tons especiaes, perola e bot„o d'ouro. O tio Abrah„o
esquadrinhava-as por toda a Lisboa e pelos suburbios; e n'essa manh„
viera annunciar a Carlos a existencia de duas preciosidades, _so
beautiful! oh! so lovely!_ em casa de umas senhoras Medeiros que
esperavam o sr. Maia ·s duas horas...

J· tres vezes Damaso tossira, olhara o relogio,--mas, vendo Carlos
confortavelmente mergulhado na _Revista_, recahia tambem na sua
indolencia de homem _chic_, investigando o _Figaro_. Emfim, dentro, o
relogio Luiz XV cantou argentinamente as duas...

--Esta È boa, exclamou Damaso ao mesmo tempo, com uma palmada na coxa.
Olha quem aqui me apparece! A Suzanna! A minha Suzanna!

Carlos n„o despegara os olhos da pagina.

--Oh Carlos, accrescentou elle, fazes favor? Ouve. Ouve esta que È boa.
Esta Suzanna È uma pequena que eu tive em Paris... Um romance!
Apaixonou-se por mim, quiz-se envenenar, o diabo!... Pois diz aqui o
_Figaro_ que debutou nas _Folies-Bergeres_. Falla n'ella... … boa, hein?
E era rapariguita _chic_... E o _Figaro_ diz que ella teve aventuras,
naturalmente sabia o que se passou comigo... Todo o mundo sabia em
Paris. Ora a Suzanna!... Tinha bonitas pernas. E custou-me a vÍr livre
d'ella!

--Mulheres! murmurou Carlos, refugiando-se mais no fundo da _Revista_.

Damaso era interminavel, torrencial, inundante a fallar das ´suas
conquistasª, n'aquella solida satisfaÁ„o em que vivia de que todas as
mulheres, desgraÁadas d'ellas, soffriam a fascinaÁ„o da sua pessoa e da
sua toilette. E em Lisboa, realmente, era exacto. Rico, estimado na
sociedade, com _coupË_ e parelha, todas as meninas tinham para elle um
olhar doce. E no _dÈmi-monde_, como elle dizia, ´tinha prestigio a
valer.ª Desde moÁo fÙra celebre, na capital, por pÙr casas a
hespanholas; a uma mesmo dera carruagem ao mez; e este fausto
excepcional tornara-o bem depressa o D. Jo„o V dos prostibulos.
Conhecia-se tambem a sua ligaÁ„o com a viscondessa da Gafanha, uma
carcassa esgalgada, caiada, rebocada, gasta por todos os homens validos
do paiz: Ìa nos cincoenta annos, quando chegou a vez do Damaso--e n„o
era decerto uma delicia ter nos braÁos aquelle esqueleto rangente e
lubrico; mas dizia-se que em nova dormira n'um leito real, e que
augustos bigodes a tinham lambuzado; tanta honra fascinou Damaso, e
collou-se-lhe ·s saias com uma fidelidade t„o sabuja, que a decrepita
creatura, farta, enojada j·, teve de o enxotar · forÁa e com desfeitas.
Depois gozou uma tragedia: uma actriz do _Principe Real_, uma montanha
de carne, apaixonada por elle, n'uma noite de ciume e de genebra,
engoliu uma caixa de phosphoros; naturalmente d'ahi a horas estava boa,
tendo vomitado abominavelmente sobre o collete do Damaso que chorava ao
lado--mas desde ent„o este homem de amor julgou-se fatal! Como elle
dizia a Carlos, depois de tanto drama na sua vida quasi tremia, tremia
verdadeiramente de fitar uma mulher...

--Passaram-se scenas com esta Suzanna! murmurou elle depois de um
silencio em que estivera catando pelliculas nos beiÁos.

E, com um suspiro, retomou o _Figaro_. Houve outra vez um silencio no
terrasso. Dentro, a partida continuava. Para l· da sombra do toldo,
agora, o sol Ìa aquecendo, batendo a pedra, os vasos de louÁa branca,
n'uma refracÁ„o d'ouro claro em que palpitavam as azas das primeiras
borboletas voando em redor dos craveiros sem flor: em baixo, o jardim
verdejava, immovel na luz, sem um bolir de ramo, refrescado pelo cantar
do repuxo, pelo brilho liquido da agoa do tanque, avivado, aqui e alÈm,
pelo vermelho ou o amarello das rosas, pela carnaÁ„o das ultimas
camelias... O bocado de rio que se avistava entre os predios era azul
ferrete como o cÈu: e entre rio e cÈu o monte punha uma grossa barra
verde-escura, quasi negra no resplendor do dia, com os dois moinhos
parados no alto, as duas casinhas alvejando em baixo, t„o luminosas e
cantantes que pareciam viver. Um repouso dormente de domingo envolvia o
bairro: e, muito alto, no ar, passava o claro repique d'um sino.

--O duque de Norfolk chegou a Paris, disse Damaso n'um tom entendido e
traÁando a perna. O duque de Norfolk È _chic_, n„o È verdade, Û Carlos?

Carlos, sem erguer os olhos, lanÁou para os cÈus um gesto, como
exprimindo o infinito do _chic_!

Damaso largara o _Figaro_ para metter um charuto na boquilha; depois
desapertou os ultimos botıes do collete, deu um puch„o · camisa para
mostrar melhor a marca que era um S enorme sob uma corÙa de conde, e de
palpebra cerrada, com o beiÁo trombudo, ficou mamando gravemente a
boquilha...

--Tu est·s hoje em belleza, Damaso, disse-lhe Carlos que deixara tambem
a _Revista_ e o contemplava com melancolia.

Salcede corou de gozo. Escorregou um olhar ao verniz dos sapatos, · meia
cÙr de carne, e revirando para Carlos o bogalho azulado da orbita:

--Eu agora ando bem... Mas, muito _blazË_.

E foi realmente com um ar _blazË_ que se ergueu a ir buscar a uma mesa
de jardim, ao lado, onde estavam jornaes e charutos, a _Gazeta
Illustrada_, ´para vÍr o que ia pela patria.ª Apenas lhe deitou os olhos
soltou uma exclamaÁ„o.

--Outro debute? perguntou Carlos.

--N„o, È a besta do Castro Gomes!

A _Gazeta Illustrada_ annunciava que ´o sr. Castro Gomes, o cavalheiro
brasileiro que no Porto fÙra victima da sua dedicaÁ„o por occasi„o da
desgraÁa occorrida na PraÁa Nova, e de que o nosso correspondente J. T.
nos deu uma descripÁ„o t„o opulenta de colorido realista, acha-se
restabelecido e È hoje esperado no Hotel Central. Os nossos parabens ao
arrojado gentleman.ª

--Ora est· s. ex.^a restabelecida! exclamou Damaso, atirando para o lado
o jornal. Pois deixa estar, que agora È a occasi„o de lhe dizer na cara
o que penso... Aquelle pulha!

--Tu exageras, murmurou Carlos, que se apoderara vivamente do jornal, e
relia a noticia.

--Ora essa! exclamou Damaso, erguendo-se. Ora essa! Queria vÍr, se fosse
comtigo... … uma besta! … um selvagem!

E repetiu mais uma vez a Carlos essa historia que o magoava. Desde a sua
chegada de Bordeus, logo que o Castro Gomes se installara no Hotel
Central elle fÙra deixar-lhe bilhetes duas vezes--a ultima na manh„
seguinte ao jantar do Ega. Pois bem, s. ex.^a n„o se dignara agradecer a
visita! Depois elles tinham partido para o Porto; fÙra ahi que,
passeiando sÛ na PraÁa Nova, vendo a parelha de uma caleche desbocada,
duas senhoras em gritos, Castro Gomes se lanÁ·ra ao freio dos
cavallos--e, cuspido contra as grades, tinha deslocado um braÁo. Teve de
ficar no Porto, no Hotel, cinco semanas. E elle immediatamente (sempre
com o olho na mulher) mandara-lhe dois telegrammas: um de sentimento,
lamentando; outro de interesse, pedindo noticias. Nem a um, nem a outro,
o animal respondeu!

--N„o, isso--exclamava Salcede, passeiando pelo terraÁo, e recordando
estas injurias--hei de lhe fazer uma desfeita!... N„o pensei ainda o
quÍ, mas ha de amargar-lhe... L· isso, desconsideraÁıes n„o admitto a
ninguem! a ninguem!

Arredondava o olho, ameaÁador. Desde o seu feito no Gremio, quando o
rachitico apavorado emmudecera diante d'elle, Damaso ia-se tornando
feroz. Pela menor cousa fallava em ´quebrar caras.ª

--A ninguem! repetia elle, com puxıes ao collete. DesconsideraÁıes, a
ninguem!

N'esse momento ouviu-se dentro, no escriptorio, a voz rapida do Ega--e
quasi immediatamente elle appareceu, com um ar de pressa, e atarantado.

--Ol·, Damasosinho!... Carlos, d·s-me aqui em baixo uma palavra?

Desceram do terraÁo, penetraram no jardim, atÈ junto de duas olaias em
flÙr.

--Tu tens dinheiro?--foi ahi logo a exclamaÁ„o anciosa do Ega.

E contou a sua terrivel atrapalhaÁ„o. Tinha uma letra de noventa libras
que se vencia no dia seguinte. AlÈm d'isso, vinte e cinco libras que
devia ao Eusebiosinho, e que elle lhe reclamara n'uma carta indecente: e
era isto que desesperava o Ega...

--Quero pagar a esse canalha, e quando o vir collar-lhe a carta · cara
com um escarro. AlÈm d'isso a letra! E tenho para tudo isto quinze
tostıes...

--O Eusebiosinho È homem de ordem... Emfim, queres cento e quinze
libras, disse Carlos.

Ega hesitou, com uma cÙr no rosto. J· devia dinheiro a Carlos. Estava-se
sempre dirigindo ·quella amisade, como a um cofre inexgotavel...

--N„o, bastam-me oitenta. Ponho o relogio no prego, e a pelissa, que j·
n„o faz frio...

Carlos sorriu, subiu logo ao quarto a escrever um cheque--em quanto Ega
procurava cuidadosamente um bonito bot„o de rosa para florir a
sobrecasaca. Carlos n„o tardou, trazendo na m„o o cheque, que alargara
atÈ cento e vinte libras, para o Ega ficar _armado_...

--Seja pelo amor de Deus, menino! disse o outro, embolsando o papel, com
um bello suspiro de allivio.

Immediatamente trovejou contra o Eusebiosinho, esse vill„o! Mas tinha j·
uma vinganÁa. Ia remetter-lhe a somma toda em cobre, n'um sacco de
carv„o, com um rato morto dentro, e um bilhete, comeÁando
assim:--_ascorosa lombriga e immunda osga, ahi te atiro ao focinho_,
etc...

--Como tu podes consentir aqui, usando as tuas cadeiras, respirando o
teu ar, aquelle ser repulsivo!...

Mas era atÈ sujo mencionar o Eusebiosinho!... Quiz saber dos trabalhos
de Carlos, do grande livro. Fallou tambem do seu _Atomo_:--e, por fim,
n'uma voz differente, applicando o monocolo a Carlos:

--Dize-me outra cousa. Porque n„o tens tu voltado aos Gouvarinhos?

Carlos tinha sÛ esta ras„o: n„o se divertia l·.

Ega encolheu os hombros. Parecia-lhe aquillo uma puerilidade...

--Tu n„o percebeste nada, exclamou elle. Aquella mulher tem uma paix„o
por ti... Basta que se pronuncie o teu nome, sobe-lhe todo o sangue ·
cara.

E como Carlos ria, incredulo, Ega, muito grave, deu a sua palavra de
honra. Ainda na vespera, estava-se fallando de Carlos, e elle
espreitara-a. Sem ser um Balzac, nem uma broca de observaÁ„o, tinha a
vis„o correcta: pois bem, l· lhe vira na face, nos olhos, toda a
express„o de um sentimento sincero...

--N„o estou a fazer romance, menino... Gosta de ti, palavra! Tenl-a
quando quiseres.

Carlos achava deliciosa aquella naturalidade mephistophelica com que Ega
o induzia a quebrar uma infinidade de leis religiosas, moraes, sociaes,
domesticas...

--Ah bem, exclamou Ega, se tu me vens com essa _blague_ da cartilha e do
codigo, ent„o n„o fallemos mais n'isso! Se apanhaste a sarna da virtude,
com comichıes por qualquer cousa, ent„o era uma vez um homem, vae para a
Trappa commentar o _Ecclesiastes_...

--N„o--disse Carlos, sentando-se n'um banco sob as arvores, ainda com
uns restos da preguiÁa do terraÁo--o meu motivo n„o È t„o nobre. N„o vou
l·, porque acho o Gouvarinho um massador.

Ega teve um sorriso mudo.

--Se a gente fosse a fugir das mulheres que tem maridos massadores...

Sentou-se ao lado de Carlos, comeÁou a riscar em silencio o ch„o areado;
e sem erguer os olhos, deixando cahir as palavras, uma a uma, com
melancolia:

--Antes de hontem, toda a noite, a pÈ firme, das dez · uma, estive a
ouvir a historia da demanda do Banco Nacional!

Era quasi uma confidencia, e como o desabafo dos tedios secretos em que
se debatia, n'aquelle mundo dos Cohens, o seu temperamento de artista.
Carlos enterneceu-se.

--Meu pobre Ega, ent„o toda a demanda?

--Toda! E a leitura do relatorio da assemblÈa geral! E interessei-me! E
tive opiniıes!... A vida È um inferno.

Subiram ao terraÁo. Damaso reoccupara a sua cadeira de vime, e, com um
canivetesinho de madreperola, estava tratando das unhas.

--Ent„o decidiu-se? perguntou elle logo ao Ega.

--Decidiu-se hontem! N„o ha _cotillon_.

Tratava-se de uma grande soirÈe mascarada que Ìam dar os Cohens, no dia
dos annos de Rachel. A idÈa d'esta festa sugerira-a o Ega, ao principio
com grandes proporÁıes de gala artistica, a ressurreiÁ„o historica de um
sarau no tempo de D. Manuel. Depois viu-se que uma tal festa era
irrealisavel em Lisboa--e desceu-se a um plano mais sobrio, um simples
baile _costumÈ_, a capricho...

--Tu, Carlos, j· decidiste como vaes?

--De dominÛ, um severo dominÛ preto, como convÈm a um homem de
sciencia...

--Ent„o, exclamou Ega se se trata de sciencia, vae de rabona e chinellas
de ourello!... A sciencia faz-se em casa e de chinellas... Nunca ninguem
descobriu uma lei do Universo mettido dentro de um dominÛ... Que
sensaboria, um dominÛ!...

Justamente a sr.^a D. Rachel desejava evitar, no seu baile, essa
monotonia dos dominÛs. E em Carlos n„o havia desculpa. N„o o prendiam
vinte ou trinta libras; e, com aquelle esplendido physico de cavalleiro
da RenascenÁa, devia ornar a sala pelo menos com um soberbo Francisco I.

--… n'isto, ajuntava elle com fogo, que est· a belleza de uma soirÈe de
mascaras! N„o lhe parece, vocÍ, Damaso? Cada um deve aproveitar a sua
figura... Por exemplo, a Gouvarinho vae muito bem. Teve uma inspiraÁ„o:
com aquelle cabello ruivo, o nariz curto, as maÁ„s do rosto salientes, È
Margarida de Navarra...

--Quem È Margarida de Navarra? perguntou Affonso da Maia, apparecendo no
terraÁo com Craft.

--Margarida, a duqueza d'Angouleme, a irm„ de Francisco I, a Margarida
das Margaridas, a perola dos Valois, a padroeira da RenascenÁa, a sr.^a
condessa de Gouvarinho!...

Rio muito, foi abraÁar Affonso, explicou-lhe que se discutia o baile dos
Cohens. E appellou logo para elle, para o Craft tambem, acerca do
nefando dominÛ de Carlos. N„o estava aquelle mocet„o, com os seus ares
de homem d'armas, talhado para um soberbo Francisco I, em toda a gloria
de Marignan?

O velho deu um olhar enternecido · belleza do neto.

--Eu te digo, John, talvez tenhas raz„o; mas Francisco I, rei de FranÁa,
n„o se pÛde apear de uma tipoia e entrar n'uma sala, sÛ. Precisa cÙrte,
arautos, cavalleiros, damas, bobos, poetas... Tudo isso È difficil.

Ega curvou-se. Sim senhor, d'accordo! Alli estava uma maneira
intelligente de comprehender o baile dos Cohens!

--E tu, de que vaes? perguntou-lhe Affonso.

Era um segredo. Tinha a theoria de que, n'aquellas festas, um dos
encantos consistia na surpreza: dois sujeitos por exemplo que tendo
jantado juntos, de jaquet„o, no BraganÁa, se encontram · noite, um na
purpura imperial de Carlos V, outro com a escopeta de bandido da
Calabria...

--Eu c· n„o faÁo segredo, disse ruidosamente Damaso. Eu c· vou de
selvagem.

--N˙?

--N„o. De Nelusko na _Africana_. Oh sr. Affonso da Maia, que lhe parece?
Acha _chic_?

--_Chic_ n„o exprime bem, disse Affonso sorrindo. Mas _grandioso_, È,
decerto.

Quizeram ent„o saber como Ìa Craft. Craft n„o Ìa de cousa nenhuma; Craft
ficava nos Olivaes, de robe de chambre.

Ega encolheu os hombros com tedio, quasi com colera. Aquellas
indifferenÁas pelo baile dos Cohens feriam-n'o como injurias pessoaes.
Elle estava dando a essa festa o seu tempo, estudos na bibliotheca, um
trabalho fumegante de imaginaÁ„o; e pouco a pouco ella tomava aos seus
olhos a importancia de uma celebraÁ„o d'arte, provando o genio de uma
cidade. Os ´dominÛsª, as abstenÁıes, pareciam-lhe evidencias de
inferioridade de espirito. Citou ent„o o exemplo do Gouvarinho: alli
estava um homem de occupaÁıes, de posiÁ„o politica, nas vesperas de ser
ministro, que n„o sÛ Ìa ao baile, mas estudara o seu _costume_:
estudara, e Ìa muito bem, Ìa de _marquez de Pombal_!

--Reclame para ser ministro, disse Carlos.

--N„o o precisa, exclamou Ega. Tem todas as condiÁıes para ser ministro:
tem voz sonora, leu Mauricio Block, est· encalacrado, e È um asno!...

E no meio das risadas dos outros, elle, arrependido de demolir assim um
cavalheiro que se interessava pelo baile dos Cohens, acudiu logo:

--Mas È muito bom rapaz, e n„o se d· ares nenhuns! … um anjo!

Affonso reprehendia-o, risonho e paternal:

--Ora tu, John, que n„o respeitas nada...

--O desacato È a condiÁ„o do progresso, sr. Affonso da Maia. Quem
respeita decahe. ComeÁa-se por admirar o Gouvarinho, vae-se a gente
esquecendo, chega a reverenciar o monarcha, e quando mal se precata tem
descido a venerar o Todo-Poderoso!... … necessario cautela!

--Vae-te embora, John, vae-te embora! Tu Ès o proprio Anti-Christo...

Ega Ìa responder, exhuberante e em veia--mas dentro o tinir argentino do
relogio Luiz XV, com o seu gentil minuete, emmudeceu-o.

--O que? quatro horas!

Ficou aterrado, verificou no seu proprio relogio, deu em redor rapidos,
silenciosos apertos de m„o, desappareceu como um sopro.

Todos de resto estavam pasmados de ser t„o tarde! E assim passara a hora
de ir ao Lumiar vÍr as colxas antigas das senhoras Medeiros...

--Quer vocÍ ent„o meia hora de florete, Craft? perguntou Carlos.

--Seja: e È necessario dar a liÁ„o ao Damaso...

--… verdade, a liÁ„o...--murmurou Damaso, sem enthusiasmo, com um
sorriso murcho.

A sala de esgrima era uma casa terrea, debaixo dos quartos de Carlos,
com janellas gradeadas para o jardim, por onde resvalava, atravez das
arvores, uma luz esverdinhada. Em dias enevoados era necessario accender
os quatro bicos de gaz. Damaso seguiu, atraz dos dois, com uma lentid„o
de rez desconfiada.

Aquellas liÁıes, que elle sollicitara por amor do _chic_, Ìam-se-lhe
tornando odiosas. E n'essa tarde, como sempre, apenas se enchumaÁou com
o plastr„o d'anta, se cobriu com a caraÁa de arame, comeÁou a
transpirar, a fazer-se branco. Diante d'elle Craft, de florete na m„o,
parecia-lhe cruel e bestial, com aquelles seus hombros de Hercules
sereno, o olhar claro e frio. Os dois ferros rasparam. Damaso estremeceu
todo.

--Firme, gritou-lhe Carlos.

O desgraÁado equilibrava-se sobre a perna roliÁa; o florete de Craft
vibrou, rebrilhou, voou sobre elle; Damaso recuou, suffocado,
cambaleando e com o braÁo frouxo...

--Firme! berrava-lhe Carlos.

Damaso, exhausto, abaixou a arma.

--Ent„o que querem vocÍs, È nervoso! … por ser a brincar... Se fosse a
valer, vocÍs veriam.

Assim acabava sempre a liÁ„o; e ficava depois abatido sobre uma banqueta
de marroquim, arejando-se com o lenÁo, pallido como a cal dos muros.

--Vou-me atÈ casa, disse elle d'ahi a pouco, fatigado de tanto crusar de
ferro. Queres alguma cousa, Carlinhos?

--Quero que venhas c· jantar ·manh„... Tens o marquez.

--_Chic_ a valer... N„o faltarei.

Mas faltou. E, como toda essa semana aquelle moÁo ponctual n„o appareceu
no Ramalhete, Carlos sinceramente inquieto, julgando-o moribundo, foi
uma manh„ a casa d'elle, · Lapa. Mas ahi, o creado (um gallego
achavascado e triste, que, desde as suas relaÁıes com os Maias, Damaso
trazia entalado n'uma casaca e mortalmente aperreado em sapatos de
verniz) affirmou-lhe que o sr. Damasosinho estava de boa saude, e atÈ
sahira a cavallo. Carlos veiu ent„o ao tio Abrah„o; o tio Abrah„o tambem
n„o avistara, havia dias, aquelle bom senhor Salcede, _that beautiful
gentleman!_ A curiosidade de Carlos levou-o ao Gremio: no Gremio nenhum
creado vira ultimamente o sr. Salcede. ´Est· por ahi de lua de mel com
alguma bella andaluzaª pensou Carlos.

Chegara ao fim da rua do Alecrim quando viu o conde de Steinbroken que
se dirigia ao Aterro, a pÈ, seguido da sua vittoria a passo. Era a
segunda vez que o diplomata fazia exercicio depois do seu desgraÁado
ataque de entranhas. Mas n„o tinha j· vestigios da doenÁa: vinha todo
rosado e loiro, muito solido na sua sobrecasaca, e com uma bella rosa de
ch· na botoeira. Declarou mesmo a Carlos que estava ´m·s forrteª. E n„o
lamentava os soffrimentos, porque elles lhe tinham dado o meio de
apreciar as sympathias que gosava em Lisboa. Estava enternecido. Sobre
tudo o cuidado de S. M.--o augusto cuidado de S. M.--fizera-lhe melhor
que ´todos os drogues de botiqueª! Realmente nunca as relaÁıes entre
esses dois paizes, t„o estreitamente alliados, Portugal e a Filandia,
tinham sido ´m‡s firmes, pur assi dizerre, m‡s intimes, que durrante seu
ataque de intestinaesª!

Depois, travando do braÁo a Carlos, alludiu commovido ao offerecimento
de Affonso da Maia, que pozera · sua disposiÁ„o S.^ta Olavia, para elle
se restabelecer n'esses ares fortes e limpos do Douro. Oh, esse convite
tocara-o _au plus profond de son c[oe]ur_. Mas, infelizmente, S.^{ta}
Olavia era longe, t„o longe!... Tinha de se contentar com Cintra, d'onde
podia vir todas as semanas, uma, duas vezes, vigiar a LegaÁ„o. _C'Ètait
ennuyeux, mais_... A Europa estava n'um d'esses momentos de crise, em
que homens d'estado, diplomatas, n„o podiam affastar-se, gosar as
menores ferias. Precisavam estar alli, na brecha, observando,
informando...

--C'est trËs grave, murmurou elle, parando, com um pavor vago no olhar
azulado... C'est excessivement grave!

Pediu a Carlos que olhasse em torno de si para a Europa. Por toda a
parte uma confus„o, um _gachis_. Aqui a quest„o do Oriente; alem o
socialismo; por cima o Papa, a complicar tudo... Oh, trËs grave!

--Tenez, la France, par exemple... D'abord Gambetta. Oh, je ne dis pas
non, il est trËs fort, il est excessivement fort... Mais... Voil‡! C'est
trËs grave...

Por outro lado os radicaes, _les nouvelles couches_... Era
excessivamente grave...

--Tenez, je vais vous dire une chose, entre nous!

Mas Carlos n„o escutava, nem sorria j·. Do fim do Aterro approximava-se,
caminhando depressa, uma senhora--que elle reconheceu logo, por esse
andar que lhe parecia de uma deusa pisando a terra, pela cadellinha cÙr
de prata que lhe trotava junto ·s saias, e por aquelle corpo
maravilhoso, onde vibrava, sob linhas ricas de marmore antigo, uma graÁa
quente, ondeante e nervosa. Vinha toda vestida de escuro, n'uma toilette
de _serge_ muito simples que era como o complemento natural da sua
pessoa, collando-se bem sobre ella, dando-lhe, na sua correcÁ„o, um ar
casto e forte; trazia na m„o um guarda-sol inglez, apertado e fino como
uma cana; e toda ella, adiantando-se assim no luminoso da tarde, tinha,
n'aquelle caes triste de cidade antiquada, um destaque estrangeiro, como
o requinte raro de civilisaÁıes superiores. Nenhum vÈo, n'essa tarde,
lhe assombreava o rosto. Mas Carlos n„o poude detalhar-lhe as feiÁıes;
apenas d'entre o esplendor eburneo da carnaÁ„o sentiu o negro profundo
de dois olhos que se fixaram nos seus. Insensivelmente deu um passo para
a seguir. Ao seu lado Steinbroken, sem vÍr nada, estava achando Bismarch
assustador. ¡ maneira que ella se affastava, parecia-lhe maior, mais
bella: e aquella imagem falsa e litteraria de uma deusa marchando pela
terra prendia-se-lhe · imaginaÁ„o. Steinbroken ficara aterrado com o
discurso do Chanceller no Reichstag... Sim, era bem uma deusa. Sob o
chapÈo, n'uma fÛrma de tranÁa enrolada, apparecia o tom do seu cabello
castanho, quasi louro · luz; a cadelinha trotava ao lado, com as orelhas
direitas.

--Evidentemente, disse Carlos, Bismarck È inquietador...

Steinbroken porÈm j· deixara Bismarck. Steinbroken agora atacava lord
Beaconsfield.

--Il est trËs fort... Oui, je vous l'accorde, il est excessivement
fort... Mais voil‡... Ou va-t-il?

Carlos olhava para o caes de SodrÈ. Mas tudo lhe parecia deserto.
Steinbroken antes de adoecer, justamente, tinha dito ao ministro dos
negocios estrangeiros aquillo mesmo: lord Beaconsfield È muito forte,
mas para onde vae elle? O que queria elle?... E s. ex.^a tinha encolhido
os hombros... S. ex.^a n„o sabia...

--Eh, oui! Beaconsfield est trËs fort... Vous avez lu son speech chez le
Lord-Maire? Epatant, mon cher, epatant!... Mais voil‡... O˘ va-t-il?

--Steinbroken, n„o me parece que seja prudente deixar-se estar aqui a
arrefecer no Aterro...

--DevÈrras? exclamou o diplomata, passando logo a m„o rapidamente pelo
estomago e pelo ventre.

E n„o se quiz demorar um instante mais! Como Carlos Ìa recolher tambem,
offereceu-lhe um logar na vittoria atÈ ao Ramalhete.

--Venha ent„o jantar comnosco, Steinbroken.

--CharmÈ, mon cher, charmÈ...

A vittoria partiu. E o diplomata agazalhando as pernas e o estomago n'um
grande plaid escossez:

--PÙs, Maia, fezemos um bello passÍo... Mas este AtÍrro no È deverrtido.

N„o era divertido o Aterro!... Carlos achara-o n'essa tarde o mais
delicioso logar da terra!

Ao outro dia, voltou mais cedo; e, apenas dera alguns passos entre as
arvores, viu-a logo. Mas n„o vinha sÛ; ao seu lado o marido, esticado,
apurado n'uma jaqueta de casimira quasi branca, com uma ferradura de
diamantes no setim negro da gravata, fumava, indolente e languido, e
trazia a cadellinha debaixo do braÁo. Ao passar, deu um olhar
surprehendido a Carlos--como descobrindo emfim entre os barbaros um ser
de linha civilisada, e disse-lhe algumas palavras baixo, a ella.

Carlos encontrara outra vez os seus olhos, profundos e serios: mas n„o
lhe parecera t„o bella; trazia uma outra toilette menos simples, de dois
tons, cÙr de chumbo e cÙr de creme, e no chapÈo, d'abas grandes ·
ingleza, vermelhava alguma cousa, flÙr ou penna. N'essa tarde n„o era a
deusa descendo das nuvens d'ouro que se enrolavam alem sobre o mar; era
uma bonita senhora estrangeira que recolhia ao seu hotel.

Voltou ainda tres vezes ao Aterro, n„o a tornou a vÍr; e ent„o
envergonhou-se, sentiu-se humilhado com este interesse romanesco que o
trazia assim, n'uma inquietaÁ„o de rafeiro perdido, farejando o Aterro,
da rampa de Santos ao caes de SodrÈ, · espera de uns olhos negros e de
uns cabellos louros de passagem em Lisboa, e que um paquete da _Royal
Mail_ levaria uma d'essas manh„s...

E pensar que toda essa semana deixara o seu trabalho abandonado sobre a
meza! E que todas as tardes, antes de sahir, se demorava ao espelho,
estudando a gravata! Ah, miseravel, miseravel natureza...


Ao fim d'essa semana, Carlos estava no consultorio, j· para sahir,
calÁando as luvas, quando o creado entreabriu o reposteiro, e murmurou
com alvoroÁo:

--Uma senhora!

Appareceu um menino muito pallido, de caracoes louros, vestido de
velludo preto--e atraz uma mulher, toda de negro, com um vÈo justo e
espesso como uma mascara.

--Creio que vim tarde, disse ella, hesitando, junto da porta. O sr.
Carlos da Maia Ìa sahir...

Carlos reconheceu a Gouvarinho.

--Oh senhora condessa!

DesembaraÁou logo o divan dos jornaes e das brochuras; ella olhou um
momento, como indecisa, aquelle amplo e molle assento de serralho;
depois sentou-se · borda e de leve, com o pequeno junto de si.

--Venho trazer-lhe um doente, disse ella sem erguer o vÈu, como fallando
do fundo d'aquella toilette negra que a dissimulava. N„o o mandei
chamar, por que realmente pouco È, e tinha hoje de passar por aqui...
AlÈm d'isso, o meu pequeno È muito nervoso; se vÍ entrar o medico,
parece-lhe que vae morrer. Assim È como uma visita que se faz... E n„o
tens medo, n„o È verdade, Charlie?

O pequeno n„o respondeu; de pÈ, quedo ao lado da mam„; mimoso e debil
sob os caracoes d'anjo que lhe cahiam atÈ aos hombros, devorava Carlos
com uns grandes olhos tristes.

Carlos poz um interesse quasi terno na sua pergunta:

--Que tem elle?

Havia dias, apparecera-lhe uma empigem no pescoÁo. AlÈm disso, por traz
da orelha, tinha como uma dureza de caroÁo. Aquillo inquietava-a. Ella
era forte, de uma boa raÁa, que dera athletas e velhos de grande edade.
Mas na familia do marido, em todos os Gouvarinhos, havia uma anemia
hereditaria. O conde mesmo, com aquella solida apparencia, era um
achacado. E ella, receiando que a influencia debilitante de Lisboa n„o
conviesse a Charlie, estava com o vago projecto de lhe fazer ir passar
algum tempo ao campo, em Formoselha, a casa da avÛ.

Carlos, approximando ligeiramente a cadeira, estendeu os braÁos a
Charlie:

--Ora venha c· o meu lindo amigo, para vermos isso. Que magnifico
cabello elle tem, senhora condessa!...

Ella sorrio. E Charlie, seriosinho, bem ensinado, sem aquelle terror do
medico de que fallara a mam„, veio logo, desapertou delicadamente o seu
grande collarinho, e, quasi entre os joelhos de Carlos, dobrou o pescoÁo
macio e alvo como um lyrio.

Carlos vio apenas uma pequena mancha cÙr de rosa desvanecendo-se; do
´caroÁoª n„o havia vestigio; e ent„o uma ligeira vermelhid„o subiu-lhe
ao rosto, procurou vivamente os olhos da condessa, como comprehendendo
tudo, querendo vÍr n'elles a confiss„o do sentimento que a trouxera alli
com um pretexto pueril, sob aquella toilette negra, aquelles vÈos que a
mascaravam...

Mas ella permaneceu impenetravel, sentada · borda do divan, com as m„os
crusadas, attenta, como esperando as suas palavras, n'um vago susto de
m„e.

Carlos abotoou o collarinho do pequeno, e disse:

--N„o È absolutamente nada, minha senhora.

No entanto, fez perguntas de medico sobre o regimen e a natureza de
Charlie. A condessa, n'um tom pesaroso, queixou-se de que a educaÁ„o da
creanÁa n„o fosse, como ella desejava, mais forte e mais viril; mas o
pae oppunha-se ao que elle chamava ´a aberraÁ„o inglezaª, a agua fria,
os exercicios a todo o ar, a gymnastica...

--A agoa fria e a gymnastica, disse Carlos sorrindo, teem melhor
reputaÁ„o do que merecem... … o seu unico filho, senhora condessa?

--…, tem os mimos de morgado, disse ella passando a m„o pelos cabellos
louros do pequeno.

Carlos assegurou-lhe que, apezar do seu aspecto nervoso e delicado,
Charlie n„o devia dar-lhe cuidado; nem havia necessidade de o exilar
para os ares de Formoselha... Depois ficaram um momento callados.

--N„o imagina como me tranquillisou, disse ella, erguendo-se, dando um
geito ao veu. De mais a mais È um gosto vir consultal-o... N„o ha aqui o
menor ar de doenÁa, nem de remedios... E realmente tem isto muito
bonito...--accrescentou, dando um olhar lento em redor aos velludos do
gabinete.

--Tem justamente esse defeito, exclamou Carlos rindo. N„o inspira nenhum
respeito pela minha sciencia... Eu estou com idÍas d'alterar tudo, pÙr
aqui um crocodilho empalhado, corujas, retortas, um esqueleto, pilhas
d'in-folios...

--A cella de Fausto.

--Justamente, a cella de Fausto.

--Falta-lhe Mephistopheles, disse ella alegremente, com um olhar que
brilhou sob o vÈo.

--O que me falta È Margarida!

A senhora condessa, com um lindo movimento, encolheu os hombros, como
duvidando discretamente; depois tomou a m„o de Charlie, e deu um passo
lento para a porta, puxando outra vez o vÈo.

--Como v. ex.^a se interessa pela minha installaÁ„o, acudiu Carlos
querendo retel-a, deixe-me mostrar-lhe a outra sala.

Correu o reposteiro. Ella approximou-se, murmurou algumas palavras,
approvando a frescura dos cretones, a harmonia dos tons claros: depois o
piano fel-a sorrir.

--Os seus doentes danÁam quadrilhas?

--Os meus doentes, senhora condessa, respondeu Carlos, n„o s„o bastante
numerosos para formar uma quadrilha. Raras vezes mesmo tenho dois para
uma valsa... O piano est· simplesmente alli para dar idÍas alegres; È
como uma promessa tacita de saude, de futuras _soirËes_, de bonitas
arias do _Trovador_, em familia...

--… engenhoso, disse ella dando familiarmente alguns passos na sala, com
Charlie collado aos vestidos.

E Carlos, caminhando ao lado d'ella:

--V. ex.^a n„o imagina como eu sou engenhoso!

--J· n'outro dia me disse... Como foi que disse? Ah! que era muito
inventivo quando odiava.

--Muito mais quando amo, disse elle rindo.

Mas ella n„o respondeu: par·ra junto do piano, remexeu um momento as
musicas espalhadas, feriu duas notas no teclado.

--… um chocalho.

--Oh, senhora condessa!

Ella seguiu, foi examinar um quadro a oleo, copiado de Landseer--um
focinho de c„o de S. Bernardo, macisso e bonacheir„o, adormecido sobre
as patas. Quasi roÁando-lhe o vestido, Carlos sentia o fino perfume de
verbena que ella usava sempre exageradamente: e, entre aquelles tons
negros que a cobriam, a sua pelle parecia mais clara, mais doce · vista,
e attrahindo como um setim.

--Este È um horror, murmurou ella, voltando-se; mas disse-me o Ega que
ha quadros lindos no Ramalhete... Fallou-me sobretudo d'um Greuze e d'um
Rubens... … pena que se n„o possam vÍr essas maravilhas.

Carlos lamentava tambem que uma existencia de solteirıes lhes impedisse,
a elle e ao avÙ, de receberem senhoras. O Ramalhete estava tomando uma
melancolia de mosteiro. Se assim continuassem mais alguns mezes, sem que
se sentisse alli um calor de vestido, um aroma de mulher, vinha a nascer
a herva pelos tapetes.

--… por isso, accrescentou elle muito serio, que eu vou obrigar o avÙ a
casar-se.

A condessa riu, os seus lindos dentes miudinhos alvejaram na sombra do
vÈo.

--Gosto da sua alegria, disse ella.

--… uma quest„o de regimen. V. ex.^a n„o È alegre?

Ella encolheu os hombros, sem saber... Depois, batendo com a ponta do
guarda-sol na sua botina de verniz que brilhava sobre o tapete claro,
murmurou com os olhos baixos, deixando ir as palavras, n'um tom
d'intimidade e de confidencia:

--Dizem que n„o, que sou triste, que tenho _spleen_...

O olhar de Carlos seguira o d'ella, pousara-se na botina de verniz que
calÁava delicadamente um pÈ fino e comprido: Charlie, entretido, mexia
nas teclas do piano--e elle baixou a voz para lhe dizer:

--… que a senhora condessa tem um mau regimen. … necessario tratar-se,
voltar aqui, consultar-me... Tenho talvez muito que lhe dizer!

Ella interrompeu-o vivamente, erguendo para elle os olhos, d'onde se
escapou um clar„o de ternura e de triumpho:

--Venha-m'o antes dizer um d'estes dias, tomar ch· comigo, ·s cinco
horas... Charlie!

O pequeno veiu logo dependurar-se-lhe do braÁo.

Carlos, acompanhando-a abaixo · rua, lamentava a fealdade da sua escada
de pedra:

--Mas vou mandar tapetar tudo para quando a senhora condessa volte a
dar-me a honra de me vir consultar...

Ella gracejou, toda risonha:

--Ah n„o! O sr. Carlos da Maia prometteu-nos a todos a saude... E
naturalmente n„o espera que seja eu que venha c· tomar ch· comsigo...

--Oh, minha senhora, eu quando comeÁo a esperar, n„o ponho limites
nenhuns ·s minhas esperanÁas...

Ella parou, com o pequeno pela m„o, olhou para elle, como pasmada,
encantada com aquella grandiosa certeza de si mesmo.

--Ent„o vae por ahi alÈm, por ahi alÈm...?

--Vou por ahi alÈm, por ahi alÈm, minha senhora!

Estavam no ultimo degrau, diante da claridade e do rumor da rua.

--Mande-me chegar um coupÈ.

Um cocheiro, ao aceno de Carlos, lanÁou logo a tipoia.

--E agora, disse ella sorrindo, mande-o ir · egreja da GraÁa.

--A senhora condessa vai beijar o pÈ do Senhor dos Passos?

Ella corou de leve, murmurou:

--Ando fazendo as minhas devoÁıes...

Depois saltou ligeiramente para o coupÈ--deixando Charlie, que Carlos
ergueu nos braÁos e lhe collocou ao lado, paternalmente.

--Que Deus a leve em sua santa guarda, senhora condessa!

Ella agradeceu com um olhar, um movimento de cabeÁa--ambos t„o doces
como caricias.

Carlos subio: e, sem tirar o chapÈo, ficou ainda enrolando uma
cigarrette, passeando n'aquella sala sempre deserta, sempre fria, onde
ella deixara agora alguma cousa do seu calor e do seu aroma...

Realmente gostava d'aquella audacia d'ella--ter vindo assim ao
consultorio, toda escondida, quasi mascarada n'uma grande toilette
negra, inventando um caroÁo no pescocinho s„o de Charlie, para o vÍr,
para dar um nÛ brusco e mais apertado n'aquelle leve fio de relaÁıes que
elle t„o negligentemente deixara cahir e quebrar...

O Ega d'esta vez n„o phantasiara: aquelle bonito corpo offerecia-se, t„o
claramente como se se despisse. Ah! se ella fosse de sentimentos
errantes e faceis--que bella flÙr a colher, a respirar, a deitar fÛra
depois! Mas n„o: como dizia o Baptista, a senhora condessa nunca se
tinha divertido. E o que elle n„o queria era achar-se envolvido n'uma
paix„o ciosa, uma d'essas ternuras tumultuosas de mulher de trinta
annos, de que depois se desembaraÁaria difficilmente... Nos braÁos
d'ella o seu coraÁ„o ficaria mudo: e apenas esgotada a primeira
curiosidade, comeÁaria o tedio dos beijos que se n„o desejam, a horrivel
massada do prazer a frio. Depois, teria de ser intimo da casa, receber
pelo hombro as palmadas do senhor conde, ouvir-lhe a voz morosa
distillando doutrina... Tudo isto o assustava... E, todavia, gostara
d'aquella audacia! Havia ali uma pontinha de romantismo, muito
irregular, e pÌcante... E devia ser deliciosamente bem feita... A sua
imaginaÁ„o despia-a, enrolava-se-lhe no setim das fÛrmas onde sentia ao
mesmo tempo alguma cousa de maduro e de virginal... E outra vez, como
nas primeiras noites que os vira em S. Carlos, aquelles cabellos
tentavam-n'o, assim avermelhados, t„o crespos e quentes...

Sahiu. E dera apenas alguns passos na rua Nova do Almada, quando avistou
o Damaso, n'um coupÈ lanÁado a grande trote, que o chamava, mandava
parar, com a face · portinhola, vermelho e radiante:

--N„o tenho podido l· ir, exclamou elle, apoderando-se-lhe da m„o,
apenas Carlos se approximou, e apertando-lh'a com enthusiasmo. Tenho
andado n'um turbilh„o!.. Eu te contarei! Um romance divino... Mas eu te
contarei!.. Tem cuidado com a roda! Bate l·, Û _CalÁ„o_!

A parelha abalou; elle ainda se debruÁou da portinhola, agitou a m„o,
gritou no rumor da rua:

--Um romance divino, _chic_ a valer!

Justamente, dias depois, no Ramalhete, na sala de bilhar, Craft que
acabava de ´baterª o marquez, perguntou, pousando o taco e accendendo o
cachimbo:

--E noticias do nosso Damaso? J· se esclareceu esse lamentavel
desapparecimento?...

Carlos ent„o contou como o encontr·ra, afogueado e triumphante,
atirando-lhe da portinhola do coupÈ, em plena rua Nova do Almada, a
noticia de um _romance divino_!

--Bem sei, disse o Taveira.

--Como sabes?... exclamou Carlos.

Taveira vira-o na vespera, n'um grande landeau da Companhia, com uma
esplendida mulher, muito elegante e que parecia estrangeira...

--Ora essa! gritou Carlos. E com uma cadelinha escoceza?

--Exactamente, uma cadelinha escoceza, um _griffon_ cÙr de prata... Quem
s„o?

--E um rapaz magro, de barba muito preta, com um ar inglezado?

--Justamente... Muito correcto, um ar _sport_... Que gente È?

--Uma gente brazileira, penso eu.

Eram os Castros Gomes, de certo! Isto parecia-lhe espantoso. Havia
apenas duas semanas que no terraÁo o Damaso, de punhos fechados, bramara
contra os Castro Gomes e as suas ´desconsideraÁıesª! Ia pedir outros
pormenores ao Taveira--mas o marquez ergueu a voz do fundo da poltrona
onde se estir·ra, e quiz saber a opini„o de Carlos sobre o grande
acontecimento d'essa manh„ na _Gazeta Illustrada_.--Na _Gazeta
Illustrada_?... Carlos n„o sabia, essa manh„ n„o vira jornal nenhum.

--Ent„o n„o lhe digam nada, gritou o marquez. Venha a surpreza! C· ha a
_Gazeta_? Manda buscar a _Gazeta_!

Taveira puxou o cord„o da campainha;--e quando o escudeiro trouxe a
_Gazeta_, elle apoderou-se d'ella, quiz fazer uma leitura solemne.

--Deixa-lhe vÍr primeiro o retrato, berrou o marquez, erguendo-se.

--Primeiro o artigo! exclamava o Taveira, defendendo-se, com o jornal
atraz das costas.

Mas cedeu, e poz o papel deante dos olhos de Carlos, largamente, como um
sudario desdobrado. Carlos reconheceu logo o retrato do Cohen... E a
prosa que se alastrava em redor, encaixilhando a face escura de suissas
retintas, era um trabalho de seis columnas, em estylo emplumado e
cantante, celebrando atÈ aos cÈus as virtudes domesticas do Cohen, o
genio financeiro do Cohen, os ditos d'espirito do Cohen, a mobilia das
salas do Cohen; havia ainda um paragrapho alludindo · festa proxima, ao
grande sarau de mascaras do Cohen. E tudo isto vinha assignado--J. da
E.--as iniciaes de Jo„o da Ega!

--Que tolice! exclamou Carlos, com tedio, atirando o jornal para cima do
bilhar.

--… mais que tolice, observou Craft; È uma falta de senso moral.

O marquez protestou. Gostava do artigo. Achava-o brilhante, e de
velhaco!... E de resto em Lisboa quem dava por uma falta de senso
moral?...

--VocÍ, Craft, n„o conhece Lisboa! Todo o mundo acha isto muito natural.
… intimo da casa, celebra os donos. … admirador da mulher, lisongea o
marido. Est· na logica c· da terra... VocÍ ver· que successo isto vae
ter... E l· que o artigo est· lindo, isso est·!

Tomou-o de cima do bilhar, leu alto o trecho sobre o boudoir cÙr de rosa
de madame Cohen: ´respira-se alli (dizia o Ega) alguma cousa de
perfumado, intimo e casto, como se todo aquelle cÙr de rosa exhalasse de
si o aroma que a rosa temª!

--Isto, caramba, È lindo em toda a parte! exclamou o marquez. Tem muito
talento, aquelle diabo! Tomara eu ter o talento que elle tem!...

--Nada d'isso impede, repetiu Craft, cachimbando tranquillamente, que
seja uma extraordinaria falta de senso moral.

--Pura e simplesmente insensato! disse Cruges, desenroscando-se do canto
d'um soph·, para deixar cahir ·s syilabas esta pesada opini„o.

O marquez investiu com elle.

--Que entende vocÍ d'isso, seu maestro? O artigo È sublime! E saiba
mais: È de finorio!

O maestro, com preguiÁa de argumentar, foi-se enroscar em silencio ao
outro canto do soph·.

E ent„o o marquez, de pÈ e bracejando, appellou para Carlos, e quiz
saber o que È que Craft em principio entendia por _senso moral_.

Carlos, que dava pela sala passos impacientes, n„o respondeu, tomou o
braÁo do Taveira, levou-o para o corredor.

--Dize-me uma cousa: onde viste tu o Damaso, com essa gente? Para que
lado iam?

--Iam pelo Chiado abaixo; ante-hontem, ·s duas horas... Estou convencido
que iam para Cintra. Levavam uma maleta no landau, e atraz ia uma criada
n'um coupÈ com uma mala maior... Aquillo cheirava a ida a Cintra. E a
mulher È divina! Que toilette, que ar, que chic!.. … uma Venus,
menino!... Como conheceria elle aquillo?...

--Em Bordeus, n'um paquete, n„o sei onde!

--Eu do que gostei foi dos ares que elle se ia dando por aquelle Chiado!
Cumprimento para a direita, cumprimento para a esquerda... A
debruÁar-se, a fallar muito baixo para a mulher, com olho terno,
alardeando conquista...

--Que besta! exclamou Carlos, batendo com o pÈ no tapete.

--Chama-lhe besta, disse o Taveira. Vem a Lisboa, por acaso, uma mulher
civilisada e decente, e È elle que a conhece, e È elle que vae com ella
para Cintra! Chama-lhe besta!... Anda d'ahi, vamos · partidinha de
dominÛ.

Taveira ultimamente introduzira o dominÛ no Ramalhete--e havia agora
alli, ·s vezes, partidas ardentes, sobretudo quando apparecia o marquez.
Porque a paix„o do Taveira era bater o marquez.

Mas foi necessario que o marquez acabasse de bracejar, de desenrolar o
arrazoado com que estava acabrunhando o Craft--que do fundo da poltrona,
de cachimbo na m„o e com um ar de somno, respondia por monossyllabos.
Era ainda a proposito do artigo do Ega, da definiÁ„o de _senso moral_.
J· tinha fallado de Deus, de Garibaldi, atÈ do seu famoso perdigueiro
_Finorio_; e agora definia a Consciencia... Segundo elle, era o medo da
policia. Tinha o amigo Craft visto j· alguem com remorsos? N„o, a n„o
ser no theatro da Rua dos Condes, em dramalhıes...

--Acredite vocÍ uma cousa, Craft--terminou elle por dizer, cedendo ao
Taveira que o puchava para a meza--isto de consciencia È uma quest„o de
educaÁ„o. Adquire-se como as boas maneiras; soffrer em silencio por ter
trahido um amigo, aprende-se exactamente como se aprende a n„o metter os
dedos no nariz. Quest„o d'educaÁ„o... No resto da gente È apenas medo da
cadeia, ou da bengala... Ah! vocÍs querem levar outra sova ao dominÛ
como a de sabbado passado? Perfeitamente, sou todo vosso...

Carlos, que estivera passando de novo os olhos pelo artigo do Ega,
approximou-se tambem da meza. E estavam sentados, remexiam as
pedras--quando · porta da sala appareceu o conde de Steinbroken, de
casaca e crach·, gran-cruz sobre o colete branco, loiro como uma espiga,
esticado e resplandecente. Tinha jantado no PaÁo, e vinha acabar no
Ramalhete a sua soirÈe, em familia...

Ent„o o marquez que o n„o via desde o famoso ataque de intestinos,
abandonou o dominÛ, correu a abraÁal-o ruidosamente--e sem o deixar
sequer sentar, nem estender a m„o aos outros, implorou-lhe logo uma das
suas bellas canÁıes filandezas, uma sÛ, d'aquellas que lhe faziam t„o
bem · alma!...

--SÛ a _Ballada_, Steinbroken... Eu tambem n„o me posso demorar, que
tenho aqui a partida · espera. SÛ a _Ballada_!... V·, salta l· para
dentro para o piano, Cruges...

O diplomata sorria, dizia-se canÁado, tendo j· feito musica deliciosa no
PaÁo com Sua Magestade. Mas nunca sabia resistir ·quelle modo folgaz„o
do marquez--e l· foram para a sala do piano, de braÁo dado, seguidos
pelo Cruges, que levara uma eternidade a desenroscar-se do canto do
soph·. E d'ahi a um momento, atravez dos resposteiros meio corridos, a
bella voz de barytono do diplomata espalhava pelas salas, entre os
suspiros do piano, a emballadora melancolia da _Ballada_, com a sua
lettra traduzida em francez, que o marquez adorava, e em que se fallava
das nevoas tristes do Norte, de lagos frios e de fadas loiras...

Taveira e Carlos, no entanto, tinham comeÁado uma grande partida de
dominÛ, a tost„o o ponto. Mas Carlos n'essa noite n„o se interessava,
jogando distrahido, a cantarolar tambem baixo bocados tristes da
_Ballada_: depois, quando j· Taveira tinha sÛ uma pedra diante de si, e
elle estava comprando interminavelmente as que restavam, voltou-se para
o lado, para o Craft, a perguntar se o hotel da Lawrence, em Cintra,
estava aberto todo o anno...

--A ida do Damaso para Cintra deu-te no goto, rosnou Taveira impaciente.
Anda, joga!

Carlos, sem responder, pousou mollemente uma pedra.

--DominÛ! gritou Taveira.

E em triumpho, aos pulos, contou elle mesmo os sessenta e oito pontos
que Carlos perdia.

Justamente o marquez entrava, e a victoria do Taveira indignou-o.

--Agora nÛs, exclamou elle, puxando vivamente uma cadeira. Oh Carlos,
deixe-me vocÍ dar aqui uma sova n'este ladr„o. Depois jogamos de tres...
Como queres tu isto, Taveirete? A dous tostıes o ponto? Ah, queres sÛ a
tost„o... Muito bem, eu te ensinarei. Anda, desembaraÁa-te j· d'esse
dÙble-seis, miseravel...

Carlos ficou ainda um momento olhando o jogo, com uma cigarette apagada
nos dedos, o mesmo ar distrahido: de repente, pareceu tomar uma decis„o,
atravessou o corredor, entrou na sala de musica. Steinbroken fÙra ao
escriptorio vÍr Affonso da Maia, e a partida de whist; e Cruges sÛ,
entre as duas vÈlas do piano, com os olhos errantes pelo tecto,
improvisava para si, melancolicamente.

--Dize c·, Cruges, perguntou-lhe Carlos, queres vir ·manh„ a Cintra?

O teclado callou-se, o maestro ergueu um olhar espantado! Carlos nem o
deixou fallar.

--Est· claro que queres, n„o te faz sen„o bem vir a Cintra... ¡manh„ l·
estou · porta, com o break. Mette sempre uma camisa n'uma maleta, que
talvez passemos l· a noite... ¡s oito em ponto, hein?... E n„o digas
nada l· dentro.

Carlos voltou para a sala, ficou a olhar a partida de dominÛ. Agora
havia um largo silencio. O marquez e Taveira moviam lentamente as
pedras, sem uma palavra, com um ar de rancor surdo. Em cima do pano
verde do bilhar as bolas brancas dormiam juntas, sob a luz que cahia dos
abat-jours de porcelana. Um som de piano, dolente e vago, passava por
vezes. E Craft, com o braÁo descahido ao longo da poltrona, dormitava,
beatificamente.




VIII


Na manh„ seguinte, ·s oito horas pontualmente, Carlos parava o break na
rua das Flores, diante do conhecido port„o da casa do Cruges. Mas o
trintanario, que elle mandara acima bater · campainha do terceiro andar,
desceu com a estranha nova de que o sr. Cruges j· n„o morava ali. Onde
diabo morava ent„o o sr. Cruges? A criada dissera que o sr. Cruges vivia
agora na rua de S. Francisco, quatro portas adiante do Gremio. Durante
um momento, Carlos, desesperado, pensou em partir sÛ para Cintra. Depois
l· largou para a rua de S. Francisco, amaldiÁoando o maestro, que mudara
de casa sem avisar, sempre vago, sempre tenebroso!... E era em tudo
assim. Carlos nada sabia do seu passado, do seu interior, das suas
affeiÁıes, dos seus habitos. O marquez uma noite levara-o ao Ramalhete,
dizendo ao ouvido de Carlos que estava alli um genio. Elle encantara
logo todo o mundo pela modestia das suas maneiras e a sua arte
maravilhosa ao piano: e todo o mundo no Ramalhete comeÁou a tratar
Cruges por _maestro_, a fallar tambem do Cruges como de um genio, a
declarar que Choppin nunca fizera obra egual · _MeditaÁ„o de Outono_ do
Cruges. E ninguem sabia mais nada. FÙra pelo Damaso que Carlos conhecera
a casa do Cruges e soubera que elle vivia l· com a m„e, uma senhora
viuva, ainda fresca, e dona de predios na Baixa.

Ao port„o da rua de S. Francisco, Carlos teve de esperar um quarto de
hora. Primeiro appareceu furtivamente ao fundo da escada uma criada em
cabello, que espreitou o break, os criados de farda, e fugiu pelos
degraus acima. Depois veiu um creado em mangas de camisa trazer a maleta
do senhor e um chaile manta. Emfim, o maestro desceu, a correr, quasi
aos trambulhıes, com um cache-nez de seda na m„o o guarda-chuva debaixo
do braÁo, abotoando atarantadamente o paletot.

Quando vinha pulando os ultimos degraus, uma voz esganiÁada de mulher
gritou-lhe de cima:

--Olha n„o te esqueÁam as queijadas!

E Cruges subiu precipitadamente para a almofada, para o lado de Carlos,
rosnando que, com a preoccupaÁ„o de se levantar t„o cedo, tivera uma
insomnia abominavel...

--Mas que diabo de idÈa È essa de mudar de casa, sem avisar a gente,
homem?--exclamou Carlos, atirando-lhe para cima dos joelhos um bocado do
_plaid_ que o agasalhava, porque o maestro parecia arrepiado.

--… que esta casa tambem È nossa, disse simplesmente Cruges.

--Est· claro, ahi est· uma raz„o! murmurou Carlos rindo e encolhendo os
hombros.

Partiram.

Era uma manh„ muito fresca, toda azul e branca, sem uma nuvem, com um
lindo sol que n„o aquecia, e punha nas ruas, nas fachadas das casas,
barras alegres de claridade dourada. Lisboa acordava lentamente: as
saloias ainda andavam pelas portas com os seus ceirıes d'hortaliÁas:
varria-se de vagar a testada das lojas: no ar macio morria a distancia
um toque fino de missa.

Cruges, tendo acabado de arranjar o cache-nez e de abotoar as luvas,
estendeu um olhar · esplendida parelha baia reluzindo como um setim sob
o faiscar de prata dos arreios, aos criados com os seus ramos nas
librÈs, a todo aquelle luxo correcto e rolando em cadencia--onde fazia
mancha o seu paletot: mas o que o impressionou foi o aspecto
resplandecente de Carlos, o olhar acceso, as bellas cÙres, o bello riso,
o quer que fosse de vibrante e de luminoso, que, sob o seu simples
veston de xadrezinho castanho, n'aquella almofada burgueza de break, lhe
dava um arranque de heroe jovial, lanÁando o seu carro de guerra...
Cruges farejou uma aventura, soltou logo a pergunta que desde a vespera
lhe ficara nos labios.

--Com franqueza, aqui para nÛs, que idÈa foi esta de ir a Cintra?

Carlos gracejou. O maestro jurava o segredo pela alma melodiosa de
Mozart, e pelas _fugas_ de Bach? Pois bem, a idÈa era vir a Cintra,
respirar o ar de Cintra, passar o dia em Cintra... Mas, pelo amor de
Deus, que o n„o revelasse a ninguem!

E accrescentou, rindo:

--Deixa-te levar, que n„o te has de arrepender...

N„o, Cruges n„o se arrependia. AtÈ achava delicioso o passeio, gostara
sempre muito de Cintra... Todavia n„o se lembrava bem, tinha apenas uma
vaga idÈa de grandes rochas e de nascentes d'aguas vivas... E terminou
por confessar que desde os nove annos n„o voltara a Cintra.

O que! o maestro n„o conhecia Cintra?... Ent„o era necessario ficarem
l·, fazer as peregrinaÁıes classicas, subir · Pena, ir beber agua ·
Fonte dos Amores, barquejar na varzea...

--A mim o que me est· a appetecer muito È Sitiaes; e a manteiga fresca.

--Sim, muita manteiga, disse Carlos. E burros, muitos burros... Emfim,
uma ecloga!

O break rodava na estrada de Bemfica: iam passando muros enramados de
quintas, casarıes tristonhos de vidraÁas quebradas, vendas com o seu
masso de cigarros · porta dependurado de uma guita: e a menor arvore,
qualquer bocado de relva com papoulas, um fugitivo longe de collina
verde, encantavam Cruges. Ha que tempos elle n„o via o campo!

Pouco a pouco o sol elevara-se. O maestro desembaraÁou-se do seu grande
cache-nez. Depois, encalmado, despiu o paletot--e declarou-se morto de
fome.

Felizmente estavam chegando · Porcalhota.

O seu vivo desejo seria comer o famoso coelho guisado,--mas, como era
cedo para esse acepipe, decidiu-se, depois de pensar muito, por uma
bella pratada de ovos com chouriÁo. Era uma cousa que n„o provava havia
annos, e que lhe daria a sensaÁ„o de estar na aldÍa... Quando o patr„o,
com um ar importante e como fazendo um favor, pousou sobre a meza sem
toalha a enorme travessa com o petisco, Cruges esfregou as m„os, achando
aquillo deliciosamente campestre.

--A gente em Lisboa estraga a saude! disse elle. puxando para o prato
uma montanha de ovo e chouriÁo. Tu n„o tomas nada?...

Carlos, para lhe fazer companhia, acceitou uma chavena de cafÈ.

D'ahi a pouco Cruges, que devorava, exclamou com a bocca cheia:

--O Rheno tambem deve ser magnifico!

Carlos olhou-o espantado e rindo. A que vinha agora alli o Rheno?... …
que o maestro, desde que sahira as portas, estava cheio de idÈas de
viagens e de paisagens; queria vÍr as grandes montanhas onde ha neve, os
rios de que se falla na Historia. O seu ideal seria ir · Allemanha,
percorrer a pÈ, com uma mochilla, aquella patria sagrada dos seus
deuses, de Beethoven, de Mozart, de Wagner...

--N„o te appetecia mais ir · Italia? perguntou Carlos accendendo o
charuto.

O maestro esboÁou um gesto de desdem, teve uma das suas phrases
sybillinas:

--Tudo contradanÁas!...

Carlos ent„o fallou de um certo plano de ir · Italia, com o Ega, no
inverno. Ir · Italia, para o Ega, era uma hygiene intellectual:
precisava calmar aquella imaginaÁ„o tumultuosa de nervoso peninsular
entre a placida magestade dos marmores...

--O que elle precisava antes de tudo era chicote, rosnou o Cruges.

E voltou a fallar do caso da vespera, do famoso artigo da _Gazeta_.
Achava aquillo, como elle dissera, pura e simplesmente insensato, e de
uma sabujice indecorosa. E o que o affligia È que o Ega, com aquelle
talento, aquella verve fumegante, n„o fizesse nada...

--Ninguem faz nada, disse Carlos espreguiÁando-se. Tu, por exemplo, que
fazes?

Cruges, depois de um silencio, rosnou encolhendo os hombros:

--Se eu fizesse uma boa opera, quem È que m'a representava?

--E se o Ega fizesse um bello livro, quem È que lh'o lia?

O maestro terminou por dizer:

--Isto È um paiz impossivel... Parece-me que tambem vou tomar cafÈ.

Os cavallos tinham descanÁado, Cruges pagou a conta, partiram. D'ahi a
pouco entravam na charneca que lhes pareceu infindavel. D'ambos os
lados, a perder de vista, era um ch„o escuro e triste; e por cima um
azul sem fim, que n'aquella solid„o parecia triste tambem. O trote
compassado dos cavallos batia monotonamente a estrada. N„o havia um
rumor: por vezes um passaro cortava o ar, n'um vÙo brusco, fugindo do
ermo agreste. Dentro do break um dos criados dormia; Cruges, pesado dos
ovos com chouriÁo, olhava, vaga e melancolicamente, as ancas lustrosas
dos cavallos.

Carlos, no entanto, pensava no motivo que o trazia a Cintra. E realmente
n„o sabia bem porque vinha: mas havia duas semanas que elle n„o avistava
certa figura que tinha um passo de deusa pisando a terra, e que n„o
encontrava o negro profundo de dois olhos que se tinham fixado nos seus:
agora suppunha que ella estava em Cintra, corria a Cintra. N„o esperava
nada, n„o desejava nada. N„o sabia se a veria, talvez ella tivesse j·
partido. Mas vinha: e era j· delicioso o pensar n'ella assim por aquella
estrada fÛra, penetrar, com essa doÁura no coraÁ„o, sob as bellas
arvores de Cintra... Depois, era possivel que d'ahi a pouco, na velha
Lawrence, elle a cruzasse de repente no corredor, roÁasse talvez o seu
vestido, ouvisse talvez a sua voz. Se ella l· estivesse, decerto viria
jantar · sala, aquella sala que elle conhecia t„o bem, que j· lhe estava
appetecendo tanto, com as suas pobres cortininhas de cassa, os ramos
toscos sobre a meza, e os dois grandes candieiros de lat„o antigo...
Ella entraria alli, com o seu bello ar claro de Diana loira; o bom
Damaso, apresentaria o seu amigo Maia; aquelles olhos negros que elle
vira passar de longe como duas estrellas, pousariam mais de vagar nos
seus; e, muito simplesmente, · ingleza, ella estender-lhe-hia a m„o...

--Ora atÈ que finalmente! exclamou Cruges, com um suspiro de allivio e
respirando melhor.

Chegavam ·s primeiras casas de Cintra, havia j· verduras na estrada, e
batia-lhes no rosto o primeiro sopro forte e fresco da serra.

E a passo, o break foi penetrando sob as arvores do Ramalh„o. Com a paz
das grandes sombras, envolvia-os pouco a pouco uma lenta e emballadora
sussurraÁ„o de ramagens, e como o diffuso e vago murmurio de agoas
correntes. Os muros estavam cobertos de heras e de musgos: atravez da
folhagem, faiscavam longas flechas de sol. Um ar subtil e avelludado
circulava, rescendendo ·s verduras novas; aqui e alÈm, nos ramos mais
sombrios, passaros chilreavam de leve; e n'aquelle simples bocado de
estrada, todo salpicado de manchas do sol, sentia-se j·, sem se vÍr, a
religiosa solemnidade dos espessos arvoredos, a frescura distante das
nascentes vivas, a tristeza que cae das penedias e o repouso fidalgo das
quintas de ver„o... Cruges respirava largamente, voluptuosamente.

--A Lawrence onde È? Na serra?--perguntou elle com a idÈa repentina de
ficar alli um mez n'aquelle paraiso.

--NÛs n„o vamos para a Lawrence, disse Carlos sahindo bruscamente do seu
silencio, e espertando os cavallos. Vamos para o Nunes, estamos l· muito
melhor!

Era uma idÈa que lhe viera de repente, apenas passara as primeiras casas
de S. Pedro, e o break comeÁara a rolar n'aquellas estradas onde a cada
momento elle a poderia encontrar. Tomara-o uma timidez, a que se
misturava um laivo de orgulho, o receio melindrado de ser indiscreto,
seguindo-a assim a Cintra, ainda que ella o n„o reconhecesse, indo
installar-se sob as mesmas telhas, apoderando-se de um logar · mesma
meza... E ao mesmo tempo repugnou-lhe a idÈa de lhe ser apresentado pelo
Damaso: via-o j·, bochechudo e vestido de campo, a esboÁar um gesto de
ceremonia, a mostrar o _seu amigo Maia_, a tratal-o por tu, affectando
intimidades com ella, cocando-a com um olho terno... Isto seria
intoleravel.

--Vamos para o Nunes, que se come melhor!

Cruges n„o respondeu, mudo, enlevado, recebendo como uma impress„o
religiosa de todo aquelle esplendor sombrio de arvoredo, dos altos
fragosos da serra entrevistos um instante l· em cima nas nuvens, d'esse
aroma que elle sorvia deliciosamente, e do sussurro doce de aguas
descendo para os valles...

SÛ ao avistar o PaÁo descerrou os labios:

--Sim senhor, tem _cachet_!

E foi o que mais lhe agradou--este macisso e silencioso palacio, sem
florıes e sem torres, patriarchalmente assentado entre o casario da
villa, com as suas bellas janellas manuelinas que lhe fazem um nobre
semblante real, o valle aos pÈs, frondoso e fresco, e no alto as duas
chaminÈs collossaes, disformes, resumindo tudo, como se essa residencia
fosse toda ella uma cosinha talhada ·s proporÁıes de uma gula de Rei que
cada dia come todo um Reino...

E apenas o break parou · porta do Nunes, foi-lhe ainda dar um olhar,
timido e de longe--receiando alguma palavra rude da sentinella.

Carlos no entanto, saltando logo da almofada, tomou · parte o criado do
hotel, que descera a recolher as maletas.

--VossÍ conhece o sr. Damaso Salcede? Sabe se elle est· em Cintra?

O creado conhecia muito bem o sr. Damaso Salcede. Ainda na vespera pela
manh„ o vira entrar defronte, no bilhar, com um sujeito de barbas
pretas... Devia estar na Lawrence, porque sÛ com raparigas e em pandiga
È que o sr. Damaso vinha para o Nunes.

--Ent„o, depressa, dous quartos! exclamou Carlos, com uma alegria de
creanÁa, certo agora que _ella_ estava em Cintra. E uma sala particular,
sÛ para nÛs, para almoÁarmos!

Cruges, que se approximava, protestou contra esta sala solitaria.
Preferia a meza redonda. Ordinariamente na meza redonda encontram-se
typos...

--Bem, exclamou Carlos, rindo e esfregando as m„os, pıe o almoÁo na sala
de jantar, pıe-n'o atÈ na PraÁa... E muita manteiga fresca para o sr.
Cruges!

O cocheiro levou o break, o creado sobraÁou as maletas. Cruges,
enthusiasmado com Cintra, rompeu pela escada acima, a
assobiar--conservando aos hombros o chaile-manta, de que se n„o queria
separar, porque lh'o emprestara a mam„. E apenas chegou · porta da sala
do jantar, estacou, ergueu os braÁos, teve um grito.

--Oh Euzebiosinho!

Carlos correu, olhou... Era elle, o viuvo, acabando de almoÁar, com duas
raparigas hespanholas.

Estava no topo da meza, como presidindo, diante de uns restos de pudim e
de pratos de fructa, amarellado, despenteado, carregado de luto, com a
larga fita das lunetas pretas passada por traz da orelha, e uma rodela
de taffet· negro sobre o pescoÁo tapando alguma espinha rebentada.

Uma das hespanholas era um mulher„o trigueiro, com signaes de bexigas na
cara; a outra muito franzina, de olhos meigos, tinha uma roseta de
febre, que o pÛ de arroz n„o desfarÁava. Ambas vestiam de setim preto, e
fumavam cigarro. E na luz e na frescura que entrava pela janella,
pareciam mais gastas, mais molles, ainda pegajosas da lentura morna dos
colxıes, e cheirando a bafio de alcova. Pertencendo · sucia havia um
outro sujeito, gordo, baixo, sem pescoÁo, com as costas para a porta e a
cabeÁa sobre o prato, babujando uma metade de laranja.

Durante um momento, Euzebiosinho ficou interdito com o garfo no ar;
depois l· se ergueu, de guardanapo na m„o, veiu apertar os dedos aos
amigos, balbuciando logo uma justificaÁ„o embrulhada, a ordem do medico
para mudar de ares, aquelle rapaz que o acompanhara, e que quizera
trazer raparigas... E nunca parecera t„o funebre, t„o relles, como
resmungando estas cousas hypocritas, encolhido · sombra de Carlos.

--Fizeste muito bem, Eusebiosinho, disse Carlos por fim, batendo-lhe no
hombro. Lisboa est· um horror, e o amor È cousa doce.

O outro continuava a justificar-se. Ent„o a hespanhola magrita, que
fumava, afastada da meza e com a perna traÁada, elevou a voz, perguntou
ao Cruges se elle n„o lhe fallava. O maestro affirmou-se um momento, e
partiu de braÁos abertos para a sua amiga Lolla. E foi, n'esse canto da
meza, uma grulhada em hespanhol, grandes apertos de m„o, e _hombre, que
no se le ha visto! e mira, que me he accordado de ti!_ e _caramba, que
reguapa estas_... Depois a Lolla, tomando um arsinho espremido,
apresentou o outro mulher„o, la seÒorita Concha...

Vendo isto, impressionado com tanta familiaridade--o sujeito obeso, que
apenas levantara um instante a cabeÁa do prato, decidiu-se a examinar
mais attentamente os amigos do Euzebio: crusou o talher, limpou com o
guardanapo a bocca, a testa e o pescoÁo, encavallou laboriosamente no
nariz uma grande luneta de vidros grossos, e erguendo a face larga,
balofa e cÙr de cidra, examinou detidamente Cruges, e depois Carlos, com
uma impudencia tranquilla.

Eusebiosinho apresentou o seu amigo Palma: e o seu amigo Palma, ouvindo
o nome conhecido de Carlos da Maia, quiz logo mostrar diante de um
gentleman, que era um gentleman tambem. Arrojou para longe o guardanapo,
arredou para fÛra a cadeira; e de pÈ, estendendo a Carlos os dedos
molles e de unhas roidas, exclamou, com um gesto para os restos da
sobremeza:

--Se. v. ex.^a È servido, È sem ceremonia... Que isto quando a gente vem
a Cintra, È para abrir o appetite e fazer bem · barriga...

Carlos agradeceu, e ia retirar-se. Mas Cruges, que se animava e
gracejava com a Lolla, fez tambem do outro lado da meza a sua
apresentaÁ„o:

--Carlos, quero que conheÁas aqui a lindissima Lolla, relaÁıes antigas,
e a seÒorita Concha, que eu tive agora o prazer...

Carlos saudou respeitosamente as damas.

O mulher„o da Concha rosnou seccamente os _buenos dias_: parecia de mau
humor, pesada do almoÁo, amodorrada para alli, sem dizer uma palavra,
com os cotovellos fincados na meza, os olhos pestanudos meio cerrados,
ora fumando, ora palitando os dentes. Mas a Lolla foi amavel, fez de
senhora, ergueu-se, offereceu a Carlos a m„osita suada. Depois retomando
o cigarro, dando um geito ·s pulseiras de ouro, declarou com um requebro
d'olhos, que conhecia de ha muito Carlos...

--No ha estado ustÍd con Encarnacion?

Sim, Carlos tivera essa honra... E que era feito d'ella, d'essa bella
Encarnacion?

A Lolla sorriu com finura, tocou no cotovello do maestro. N„o acreditava
que Carlos ignorasse o que era feito da Encarnacion... Emfim, terminou
por dizer que a Encarnacion estava agora com o Saldanha.

--Mas olhe que n„o È com o duque de Saldanha! exclamou Palma, que se
conservara de pÈ, com a bolsa do tabaco aberta sobre a meza, fazendo um
grande cigarro.

A Lolita, com um modo secco, replicou que o Saldanha n„o seria duque,
mas era um _chico muy decente_...

--Olha, disse o Palma lentamente, de cigarro na bocca e tirando a isca
da algibeira, duas boas bofetadas na cara lhe dei eu ainda n„o ha tres
semanas... Pergunta ao Gaspar, o Gaspar assistiu... Foi atÈ no
Montanha... Duas bofetadas que lhe foi logo o chapÈo parar ao meio da
rua... O sr. Maia ha de conhecer o Saldanha... Ha de conhecer, que elle
tambem tem um carrito e um cavallo.

Carlos fez um gesto indicando que n„o; e despedia-se de novo, saudando
as damas, quando Cruges o chamou ainda, retendo-o mais um instante, em
quanto satisfazia uma curiosidade: queria saber qual d'aquellas meninas
era a _esposa do amigo Eusebio_.

Assim interpellado, o viuvo encordoou, rosnou com uma voz morosa, sem
erguer as lunetas da laranja que descascava, que estava alli de passeio,
n„o tinha esposa, e ambas aquellas meninas pertenciam ao amigo Palma...

E ainda elle mascava as ultimas palavras, quando Concha, que digeria de
perna estendida, se endireitou bruscamente como se fosse saltar, atirou
um murro · borda da meza, e com os olhos chammejantes, desafiou o
Eusebio a que repetisse aquillo! Queria que elle repetisse! Queria que
dissesse se tinha vergonha d'ella, e de dizer que a tinha trazido a
Cintra!... E como o Eusebio, j· enfiado, tentava gracejar, fazer-lhe uma
festa--ella despropositou, atirou-lhe os peiores nomes, dando sempre
punhadas na meza, com uma furia que lhe torcia a bocca, lhe punha duas
manchas de sangue no car„o trigueiro. A Lolita, vexada, puchava-lhe pelo
braÁo: a outra deu-lhe um repell„o; e, mais excitada com a estridencia
da propria voz, esvasiou-se de toda a bilis, chamou-lhe porco, accusou-o
de forreta, usou-o como um trapo vil.

Palma afflicto, debruÁado sobre a meza, exclamava n'um tom ancioso:

--” Concha, escuta l·!... Ouve l·!... Concha, eu te explico...

De repente, ella ergueu-se, a cadeira tombou para o lado: e o mulher„o
abalou pela sala fÛra, a grande cauda de setim varreu desabridamente o
soalho, ouviu-se dentro estalar uma porta. No ch„o ficara caindo um
pedaÁo da mantilha de renda.

O creado que entrava do outro lado com a cafeteira estacou, afiando o
olho curioso, farejando o escandalo; depois, calado e seccamente, foi
servindo em roda o cafÈ.

Durante um momento houve um silencio. Apenas porÈm o criado sahiu--a
Lolita e o Palma, agitados mas abafando a voz, atacaram o Eusebiosinho.
Elle portara-se muito mal! Aquillo n„o fÙra de cavalheiro! Tinha trazido
a rapariga a Cintra, devia-a respeitar, n„o a ter renegado assim, ·
bruta, diante de todos...

--_Esto no se hace_, dizia a Lolita, de pÈ, gesticulando, com os olhos
brilhantes, voltada para Carlos, _ha sido una cosa muy fÍa!_..

E como o Cruges lamentava, sorrindo, ter sido a causa involuntaria da
catastrophe--ella baixou a voz, contou que a Concha era uma furia, viera
a Cintra com pouca vontade, e desde manh„ estava de _muy malo humor_...
Pero lo de Silbeira habia sido una gran pulhice...

Elle, coitado, com a cabeÁa cahida e as orelhas em braza, remexia
desoladamente o seu cafÈ; n„o se lhe viam os olhos escondidos pelas
lunetas pretas, mas percebia-se-lhe o grosso soluÁo que lhe affogava a
garganta. Ent„o Palma pouzou a chavena, lambeu os beiÁos, e de pÈ no
meio da sala, com a face luzidia, o collete desabotoado, fez n'um tom
entendido o resumo d'aquelle desgosto.

--Tudo provÈm d'isto, e desculpe-me vocÍ dizel-o, Silveira: È que vocÍ
n„o sabe tratar com hespanholas!

A esta cruel palavra o viuvo succumbiu. A colher cahiu-lhe dos dedos.
Ergueu-se, acercou-se de Carlos e de Cruges, como refugiando-se n'elles,
vindo reconfortar-se ao calor da sua amizade,—e desabafou, estas
palavras angustiosas escaparam-se-lhe dos labios:

--Vejam vocÍs! vem a gente a um sitio d'estes para gosar um bocado de
poesia, e no fim È uma d'estas!...

Carlos bateu-lhe melancolicamente no hombro:

--A vida È assim, Eusebiosinho.

Cruges fez-lhe uma festa nas costas:

--N„o se pÛde contar com prazeres, Silveirinha.

Mas Palma, mais pratico, declarou que era forÁoso arranjarem-se as
cousas. Virem a Cintra, para questıes e amuos, isso n„o! N'aquellas
pandegas queria-se harmonia, chalaÁa, e gosar. Couces, n„o. Ent„o
ficava-se em Lisboa, que era mais barato.

Chegou-se a Lolla, passou-lhe os dedos pela face, com amor:

--Anda Lolita, vae tu l· dentro · Concha, dize-lhe que se n„o faÁa tola,
que venha tomar cafÈ... Anda, que tu sabe-l'a levar... Dize-lhe que peÁo
eu!

Lolita esteve um momento escolhendo duas boas laranjas, foi dar um geito
ao cabello diante do espelho, apanhou a cauda--e sahiu, atirando a
Carlos, ao passar, um olhar e um sorrisinho.

Apenas ficaram sÛs, Palma voltou-se para o Eusebio, e deu-lhe conselhos
muito serios sobre o systema de tratar hespanholas. Era necessario
leval-as por bons modos; por isso È que ellas se pellavam por
portuguezes, porque l· em Hespanha era · bordoada... Emfim, elle n„o
dizia que em certos casos, duas boas bolachas, mesmo um bom par de
bengaladas, n„o fossem uteis... Sabiam, por exemplo, os amigos, quando
se devia bater? Quando ellas n„o gostavam da gente, e se faziam ariscas.
Ent„o, sim. Ent„o z·s, tapona, que ellas ficavam logo pelo beiÁo... Mas
depois bons modos, delicadeza, tal qual como com francezas...

--Acredite vocÍ isto, Silveira. Olhe que eu tenho experiencia. E o sr.
Maia que lhe diga se isto n„o È verdade, elle que tem tambem experiencia
e sabe viver com hespanholas!

E isto foi dito com tanto calor, tanto respeito--que Cruges desatou a
rir, fez rir Carlos tambem.

O sr. Palma, um pouco chocado, compoz mais as lunetas, e olhou para
elles:

--Os senhores riem-se? Imaginam que eu que estou a mangar? Olhem que eu
comecei a lidar com hespanholas aos quinze annos! N„o, escusam de rir,
que n'isso ninguem me ganha! L· o que se chama ter geito para
hespanholas, c· o meco! E, vamos l·, que n„o È facil! … necessario ter
um certo talento!... Olhem, o Herculano È capaz de fazer bellos artigos
e estylo catita... Agora tragam-n'o c· para lidar com hespanholas e
veremos! N„o d· meia...

Eusebiosinho no entanto fÙra duas vezes escutar · porta. Todo o hotel
cahira n'um grande silencio, a Lolita n„o voltava. Ent„o Palma
aconselhou um grande passo:

--V· vocÍ l· dentro, Silveira, entre pelo quarto, e assim sem mais nem
menos, chegue-se ao pÈ d'ella...

--E tapona? perguntou Cruges, muito seriamente, gosando o Palma.

--Qual tapona! Ajoelhe e peÁa perd„o... N'este caso È pedir perd„o... E
como pretexto, Silveira, leve-lhe vocÍ mesmo o cafÈ.

Eusebiosinho, com um olhar ancioso e mudo, consultou os seus amigos. Mas
o seu coraÁ„o j· decidira: e d'ahi a um momento, com o pedaÁo de
mantilha n'uma das m„os, a chavena de cafÈ na outra, enfiado e
commovido, l· partia a passos lentos pelo corredor a pedir perd„o ·
Concha.

E, logo atraz d'elle, Carlos e Cruges deixaram a sala, sem se despedirem
do sr. Palma--que de resto, indifferente tambem, j· se accommodara ‡
meza a preparar regaladamente o seu grog.


Eram duas horas quando os dous amigos sahiram emfim do hotel, a fazer
esse passeio a Sitiaes--que desde Lisboa tentava tanto o maestro. Na
praÁa, por defronte das lojas vasias e silenciosas, c„es vadios dormiam
ao sol: atravez das grades da cadÍa os presos pediam esmola. CreanÁas,
enxovalhadas e em farrapos, garotavam pelos cantos; e as melhores casas
tinham ainda as janellas fechadas, continuando o seu somno de inverno,
entre as arvores j· verdes. De vez em quando apparecia um bocado da
serra, com a sua muralha de ameias correndo sobre as penedias, ou via-se
o castello da Pena, solitario, l· no alto. E por toda a parte o luminoso
ar de abril punha a doÁura do seu velludo.

Defronte do hotel da Lawrence, Carlos retardou o passo, mostrou-o ao
Cruges.

--Tem o ar mais sympathico, disse o maestro. Mas valeu muito a pena ir
para o Nunes, sÛ para vÍr aquella scena... E ent„o com quÍ o sr. Carlos
da Maia tem experiencia de hespanholas?

Carlos n„o respondeu, os seus olhos n„o se despegavam d'aquella fachada
banal, onde sÛ uma janella estava aberta com um par de botinas de
duraque seccando ao ar. ¡ porta, dous rapazes inglezes, ambos de
knicker-bokers, cachimbavam em silencio; e defronte, sentados sobre um
banco de pedra, dous burriqueiros ao lado dos burros, n„o lhes tiravam o
olho de cima, sorrindo-lhes, cocando-os como uma presa.

Carlos ia seguir, mas pareceu-lhe ouvir, distante e melancolico, sahindo
do silencio do hotel, um vago som de flauta; e parou ainda, remexendo as
suas recordaÁıes, quasi certo de Damaso lhe ter dito que a bordo Castro
Gomes tocava flauta...

--Isto È sublime! exclamou do lado o Cruges, commovido.

Parara diante da grade d'onde se domina o valle. E d'ali olhava,
enlevadamente, a rica vastid„o de arvoredo cerrado, a que sÛ se veem os
cimos redondos, vestindo um declive da serra como o musgo veste um muro,
e tendo aquella distancia, no brilho da luz, a suavidade macia de um
grande musgo escuro. E n'esta espessura verde-negra havia uma frontaria
de casa que o interessava, branquejando, affogada entre a folhagem, com
um ar de nobre repouso, debaixo de sombras seculares... Um momento teve
uma idÈa de artista: desejou habital-a com uma mulher, um piano e um c„o
da Terra-nova.

Mas o que o encantava era o ar. Abria os braÁos, respirava a tragos
deliciosos:

--Que ar! Isto d· saude, menino! Isto faz reviver!...

Para o gosar mais docemente, sentou-se adiante, n'um bocado de muro
baixo, defronte de um alto terraÁo gradeado, onde velhas arvores
assombreiam bancos de jardim, e estendem sobre a estrada a frescura das
suas ramagens, cheias do piar das aves. E como Carlos lhe mostrava o
relogio, as horas que fugiam para ir vÍr o palacio, a Pena, as outras
bellezas de Cintra--o maestro declarou que preferia estar ali, ouvindo
correr a agua, a vÍr monumentos caturras...

--Cintra n„o s„o pedras velhas, nem cousas gothicas... Cintra È isto,
uma pouca de agua, um bocado de musgo... Isto È um paraiso!...

E, n'aquella satisfaÁ„o que o tornava loquaz, acrescentou, repetindo a
sua chalaÁa:

--E v. ex.^a deve sabel-o, sr. Maia, porque tem experiencia de
hespanholas!...

--Poupa-me, respeita a natureza, murmurou Carlos, que riscava
pensativamente o ch„o com a bengala.

Ficaram callados. Cruges agora admirava o jardim, por baixo do muro em
que estavam sentados. Era um espesso ninho de verdura, arbustos, flores
e arvores, suffocando-se n'uma prodigalidade de bosque silvestre,
deixando apenas espaÁo para um tanquesinho redondo, onde uma pouca de
agua, immovel e gelada, com dous ou tres nenufares, se esverdinhava sob
a sombra d'aquella ramaria profusa. Aqui e alem, entre a bella desordem
da folhagem, distinguiam-se arranjos de gosto burguez, uma volta de
ruasita estreita como uma fita, faiscando ao sol, ou a banal palidez de
um gesso. N'outros recantos, aquelle jardim de gente rica, exposto ·s
vistas, tinha retoques pretenciosos de estufa rara, aloes e cactos,
braÁos aguardasolados de auraucarias erguendo-se d'entre as agulhas
negras dos pinheiros bravos, laminas de palmeira, com o seu ar triste de
planta exilada, roÁando a rama leve e perfumada das olaias floridas de
cÙr de rosa. A espaÁos, com uma graÁa discreta, branquejava um grande pÈ
de margaridas; ou em torno de uma rosa, solitaria na sua haste,
palpitavam borboletas aos pares.

--Que pena que isto n„o pertenÁa a um artista! murmurou o maestro. SÛ um
artista saberia amar estas flores, estas arvores, estes rumores...

Carlos sorriu. Os artistas, dizia elle, sÛ amam na natureza os effeitos
de linha e cÙr; para se interessar pelo bem-estar de uma tulipa, para
cuidar de que um craveiro n„o soffra sede, para sentir magoa de que a
geada tenha queimado os primeiros rebentıes das acacias--para isso sÛ o
burguez, o burguez que todas as manh„s desce ao seu quintal com um
chapÈo velho e um regador, e vÍ nas arvores e nas plantas uma outra
familia muda, por que elle È tambem responsavel...

Cruges, que escutara distrahidamente, exclamou:

--Diabo! … necessario que n„o me esqueÁam as queijadas!

Um som de rodas interrompeu-os, uma caleche descoberta desembocou a
trote do lado de Sitiaes. Carlos ergueu-se logo, certo de que era
_ella_, e que elle ia vÍr os seus bellos olhos brilhar e fugir como duas
estrellas. A caleche passou, levando um anci„o de barbas de patriarcha,
e uma velha ingleza com o regaÁo cheio de flores, e o vÈo azul
fluctuando ao ar. E logo atraz, quasi no pÛ que as rodas tinham erguido,
appareceu, caminhando pensativamente, de m„os atraz das costas, um homem
alto, todo de preto, com um grande chapÈo Panam· sobre os olhos. Foi
Cruges que reconheceu os longos bigodes romanticos, que gritou:

--Olha o Alencar! Oh! grande Alencar!...

Durante um momento, o poeta ficou assombrado, com os braÁos abertos, no
meio da estrada. Depois, com a mesma effus„o ruidosa, apertou Carlos
contra o coraÁ„o, beijou o Cruges na face--porque conhecia Cruges desde
pequeno, Cruges era para elle como um filho. Caramba! Eis ahi uma
surpreza que elle n„o trocava pelo titulo de duque! Ora o alegr„o de os
vÍr ali! Como diabo tinham elles vindo ali parar?

E n„o esperou a resposta, contou elle logo a sua historia. Tivera um dos
seus ataques de garganta, com uma ponta de febre, e o Mello, o bom
Mello, recommendara-lhe mudanÁa d'ares. Ora elle, bons ares, sÛ
comprehendia os de Cintra: porque alli n„o eram sÛ os pulmıes que lhe
respiravam bem, era tambem o coraÁ„o, rapazes!... De sorte que viera na
vespera, no omnibus.

--E onde est·s tu, Alencar? perguntou logo Carlos.

--Pois onde queres tu que eu esteja, filho? L· estou com a minha velha
Lawrence. Coitada! est· bem velha! mas para mim È sempre uma amiga, È
quasi uma irm„!... E vocÍs, que diabo? Para onde v„o vocÍs, com essas
flores nas lapellas?

--A Sitiaes. Vou mostrar Sitiaes ao maestro.

Ent„o tambem elle voltava a Sitiaes! N„o tinha nada que fazer sen„o
sorver bom ar, e scismar... Toda a manh„ andara alli, vagamente,
pendurando sonhos dos ramos das arvores. Mas agora j· os n„o largava;
era mesmo um dever ir elle proprio fazer ao maestro as honras de
Sitiaes...

--Que aquillo È sitio muito meu, filhos! N„o ha alli arvore que me n„o
conheÁa... Eu n„o vos quero comeÁar j· a impingir versos; mas emfim,
vocÍs lembram-se de uma cousa que eu fiz a Sitiaes, e de que por ahi se
gostou...


    Quantos luares eu l· vi!
    Que doces manh„s d'abril!
    E os ais que soltei alli
    N„o foram sete, mas mil!


Pois ent„o j· vocÍs vÍem, rapazes, que tenho raz„o para conhecer
Sitiaes...

O poeta lanÁou ao ar um vago suspiro, e durante um instante caminharam
todos tres callados.

--Dize-me uma cousa, Alencar, perguntou Carlos baixo, parando, e tocando
no braÁo do poeta. O Damaso est· na Lawrence?

N„o, que elle o tivesse visto. Verdade seja que na vespera, apenas
chegara, fÙra-se deitar, fatigado; e n'essa manh„ almoÁara sÛ com dois
rapazes inglezes. O unico animal que avistara fÙra um lindo c„osinho de
luxo, ladrando no corredor...

--E vocÍs onde est„o?

--No Nunes.

Ent„o o poeta parando de novo, contemplando Carlos com sympathia:

--Que bem que fizeste em arrastar c· o maestro, filho!... Quantas vezes
eu tenho dito ·quelle diabo, que se mettesse no omnibus, viesse passar
dous dias a Cintra. Mas ninguem o tira de martelar o piano. E olha tu
que mesmo para a musica, para compor, para entender um Mozart, um
Choppin, È necessario ter visto isto, escutado este rumor, esta melodia
da ramagem...

Baixou a voz, apontando para o maestro, que caminhava adiante, enlevado:

--Tem muito talento, tem muita idÈa melodica!... Olha que andei com
aquillo ·s cabritas... E a m„e, menino, foi muitissimo boa mulher.

--Vejam vocÍs isto! gritou Cruges que parara, esperando-os. Isto È
sublime.

Era apenas um bocadito d'estrada, apertada entre dous velhos muros
cobertos d'hera, assombreada por grandes arvores entrelaÁadas, que lhe
faziam um toldo de folhagem aberto · luz como uma renda: no ch„o tremiam
manchas de sol: e, na frescura e no silencio, uma agoa que se n„o via ia
fugindo e cantando.

--Se tu queres sublime, Cruges, exclamou Alencar, ent„o tens de subir ·
serra. Ahi tens o espaÁo, tens a nuvem, tens a arte...

--N„o sei, talvez goste mais d'isto, murmurou o maestro.

A sua natureza de timido preferiria, de certo, estes humildes recantos,
feitos de uma pouca de folhagem fresca e de um pedaÁo de muro musgoso,
logares de quietaÁ„o e de sombra, onde se aninha com um conforto maior o
scismar dos indolentes...

--De resto, filho, continuou Alencar, tudo em Cintra È divino. N„o ha
cantinho que n„o seja um poema... Olha, alli tens tu, por exemplo,
aquella linda florinha azul...--e, ternamente, apanhou-a.

--Vamos andando, vamos andando, murmurou Carlos impaciente, e agora,
desde que o poeta fallara do c„osinho de luxo, mais certo de que ella
estava na Lawrence, e que a ia brevemente encontrar.

Mas, ao chegar a Sitiaes, Cruges teve uma desillus„o diante d'aquelle
vasto terreiro coberto de herva, com o palacete ao fundo, enxovalhado,
de vidraÁas partidas, e erguendo pomposamente sobre o arco, em pleno
ceu, o seu grande escudo de armas. Ficara-lhe a idÈa, de pequeno, que
Sitiaes era um mont„o pittoresco de rochedos, dominando a profundidade
de um valle; e a isto misturava-se vagamente uma recordaÁ„o de luar e de
guitarras... Mas aquillo que elle alli via era um desapontamento.

--A vida È feita de desapontamentos, disse Carlos, Anda para diante!

E apressou o passo atravez do terreiro, em quanto o maestro, cada vez
mais animado, lhe gritava a chalaÁa do dia:

--E v. ex.^a deve sabel-o, sr. Maia, porque tem experiÍncia de
hespanholas!...

Alencar, que se demorara atraz a accender o cigarro, estendeu o ouvido,
curioso, quiz saber o que era isso de hespanholas? O maestro contou-lhe
o encontro no Nunes e os furores da Concha.

Iam ambos caminhando por uma das alamedas lateraes, verde e fresca, de
uma paz religiosa, como um claustro feito de folhagem. O terreiro estava
deserto; a herva que o cobria, crescia ao abandono, toda estrellada de
botıes de ouro brilhando ao sol, e de malmequersinhos brancos. Nenhuma
folha se movia: atravez da ramaria ligeira o sol atirava mÛlhos de raios
de ouro. O azul parecia recuado a uma distancia infinita, repassado de
silencio luminoso; e sÛ se ouvia, ·s vezes, monotona e dormente, a voz
de um cuco nos castanheiros.

Toda aquella vivenda, com a sua grade enferrujada sobre a estrada, os
seus florıes de pedra roÌdos da chuva, o pesado braz„o rococÛ, as
janellas cheias de teias de aranha, as telhas todas quebradas, parecia
estar-se deixando morrer voluntariamente n'aquella verde
solid„o,--amuada com a vida, desde que d'alli tinham desapparecido as
ultimas graÁas do tricorne e do espadim, e os derradeiros vestidos de
anquinhas tinham roÁado essas relvas... Agora Cruges Ìa descrevendo ao
Alencar a figura do Eusebiosinho, com a chavena de cafÈ na m„o, a ir
pedir perd„o · Concha; e a cada momento o poeta, com o seu grande chapÈo
panam·, se agachava a colher florinhas silvestres.

Quando passaram o Arco, encontraram Carlos sentado n'um dos bancos de
pedra, fumando pensativamente a sua cigarette. O palacete deitava sobre
aquelle bocado de terraÁo a sombra dos seus muros tristes; do valle
subia uma frescura e um grande ar; e algures, em baixo, sentia-se o
prantear de um repuxo. Ent„o o poeta, sentando-se ao lado do seu amigo,
fallou com nojo do Eusebiosinho.--Ahi est· uma torpeza que elle nunca
commettera, trazer meretrizes a Cintra! Nem a Cintra, nem a parte
nenhuma... Mas muito menos a Cintra! Sempre tivera, todo o mundo devia
ter, a religi„o d'aquellas arvores e o amor d'aquellas sombras...

--E esse Palma, accrescentou elle, È um traste! Eu conheÁo-o; elle teve
uma especie de jornal, e j· lhe dei muita bofetada na rua do Alecrim.
Foi uma historia curiosa... Ora eu t'a conto Carlos... Aquelle canalha!
quando me lembro!... Aquella vil bolinha de materia putrida!... Aquelle
chouricinho de pus!

Levantou-se, passando a m„o nervosa sobre os bigodes, j· excitado pela
lembranÁa d'aquella velha desordem, vergastando o Palma com nomes
ferozes, todo n'uma d'essas fervuras de sangue que eram a sua desgraÁa.

Cruges, no entanto, encostado ao parapeito, olhava a grande planicie de
lavoura que se estendia em baixo, rica e bem trabalhada, repartida em
quadrados verde-claros e verde-escuros, que lhe faziam lembrar um panno
feito de remendos assim que elle tinha na meza do seu quarto. Tiras
brancas de estradas serpeavam pelo meio: aqui e alÈm, n'uma massa de
arvoredo, branquejava um casal: e a cada passo, n'aquelle solo onde as
aguas abundam, uma fila de pequenos olmos revelava algum fresco ribeiro,
correndo e reluzindo entre as hervas. O mar ficava ao fundo, n'uma linha
unida, esbatida na tenuidade diffusa da bruma azulada: e por cima
arredondava-se um grande azul lustroso como um bello esmalte, tendo
apenas, l· no alto, um farraposinho de nevoa, que ficara alli esquecido,
e que dormia enovellado e suspenso na luz...

--Tive nojo! exclamava o Alencar, rematando fogosamente a sua historia.
Palavra que tive nojo! Atirei-lhe a bengala aos pÈs, crusei os braÁos e
disse-lhe: ahi tem vocÍ a bengala, seu covarde, a mim bastam-me as m„os!

--Que diabo, n„o me h„o de esquecer as queijadas! murmurou Cruges, para
si mesmo, affastando-se do parapeito.

Carlos erguera-se tambem, olhava o relogio. Mas antes de deixar Sitiaes,
Cruges quiz explorar o outro terraÁo ao lado: e, apenas subira os dous
velhos degraus de pedra, soltou de l· um grito alegre:

--Bem dizia eu! c· est„o elles... E vocÍs a dizer que n„o!

Foram-n'o encontrar triumphante, diante de um mont„o de penedos, polidos
pelo uso, j· com um vago feitio de assentos, deixados ali outr'ora,
poeticamente, para dar ao terraÁo uma graÁa agreste de selva brava.
Ent„o, n„o dizia elle? Bem dizia elle que em Sitiaes havia penedos!

--Se eu me lembrava perfeitamente! _Penedo da Saudade_, n„o È que se
chama, Alencar?

Mas o poeta n„o respondeu. Diante d'aquellas pedras crusara os braÁos,
sorria dolorosamente; e immovel, sombrio no seu fato negro, com o panam·
carregado para a testa, envolveu todo aquelle recanto n'um olhar lento e
triste.

Depois, no silencio, a sua voz ergueu-se, saudosa e dolente:

--VocÍs lembram-se, rapazes, nas _FlÙres e Martyrios_, de uma das cousas
melhores que l· tenho, em rimas livres, chamada _6 de Agosto_? N„o se
lembram talvez... Pois eu vol-a digo, rapazes!

Machinalmente tirara do bolso o lenÁo branco. E com elle fluctuante na
m„o, puxando Carlos para junto de si, chamando do outro lado o Cruges,
baixou a voz como n'uma confidencia sagrada, recitou, com um ardor
surdo, mordendo as syllabas, tremulo, n'uma paix„o ephemera de nervoso:


    Vieste! Cingi-te ao peito.
    Em redor que noite escura!
    N„o tinha rendas o leito,
    Nem tinha lavores na barra
    Que era sÛ a rocha dura...
    Muito ao longe uma guitarra
    Gemia vagos harpejos...
    (VÍ tu que n„o me esqueceu)...
    E a rocha dura aqueceu
    Ao calor dos nossos beijos!


Esteve um momento embebendo o olhar nas pedras brancas batidas do sol,
atirou para l· um gesto triste, e murmurou:

--Foi alli.

E affastou-se, alquebrado sob o seu grande chapÈo panam·, com o lenÁo
branco na m„o. Cruges, que aquelles romantismos impressionavam, ficou a
olhar para os penedos como para um sitio historico. Carlos sorria. E
quando ambos deixaram esse recanto do terraÁo--o poeta, agachado junto
do arco, estava apertando o atilho da ceroula.

Endireitou-se logo, j· toda a emoÁ„o o deixara, mostrava os maus dentes
n'um sorriso amigo, e exclamou, apontando para o arco:

--Agora, Cruges, filho, repara tu n'aquella tela sublime.

O maestro embasbacou. No v„o do arco, como dentro de uma pesada moldura
de pedra, brilhava, · luz rica da tarde, um quadro maravilhoso, de uma
composiÁ„o quasi phantastica, como a illustraÁ„o de uma bella lenda de
cavallaria e de amor. Era no primeiro plano o terreiro, deserto e
verdejando, todo salpicado de botıes amarellos; ao fundo, o renque
cerrado de antigas arvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo da
grade uma muralha de folhagem reluzente; e emergindo abruptamente d'essa
copada linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia,
destacando vigorosamente n'um relevo nitido sobre o fundo de cÈu azul
claro, o cume airoso da serra, toda cÙr de violeta escura, coroada pelo
castello da Pena, romantico e solitario no alto, com o seu parque
sombrio aos pÈs, a torre esbelta perdida no ar, e as cupulas brilhando
ao sol como se fossem feitas de ouro...

Cruges achou aquelle quadro digno de Gustavo DorÈ. Alencar teve uma
bella phrase sobre a imaginaÁ„o dos arabes. Carlos, impaciente, foi-os
apressando para diante.

Mas agora Cruges, impressionado, estava com desejo de subir · Pena.
Alencar, por si, Ìa tambem com prazer. A Pena para elle era outro ninho
de recordaÁıes. Ninho? Devia antes dizer cemiterio... Carlos hesitava,
parado junto da grade. Estaria ella na Pena? E olhava a estrada, olhava
as arvores, como se podesse adivinhar pelas pegadas no pÛ, ou pelo mover
das folhas, que direcÁ„o tinham tomado os passos que elle seguia... Por
fim teve uma idÈa.

--Vamos indo primeiro · Lawrence. E depois se quizermos ir · Pena,
arranjam-se l· os burros...

E nem mesmo quiz escutar o Alencar, que tivera, tambem uma idÈa, fallava
de Collares, de uma visita ao seu velho Carvalhosa; accelerou o passo
para a Lawrence, emquanto o poeta tornava a arranjar o atilho da
ceroula, e o maestro, n'um enthusiasmo bucolico, ornava o chapÈo de
folhas de hera.

Defronte da Lawrence, os dois burriqueiros, de cigarro na bocca, n„o
tendo podido apoderar-se dos inglezes, preguiÁavam ao sol.

--VocÍs sabem, perguntou-lhes Carlos, se uma familia, que est· aqui no
hotel, foi para a Pena?...

Um dos homens pareceu adivinhar, exclamou logo, desbarretando-se.

--Sim, senhor, foram para l· ha bocado, e aqui est· o burrinho tambem
para v. ex.^a, meu amo!

Mas o outro, mais honesto, negou. N„o senhor, a gente que fÙra para a
Pena estava no Nunes...

--A familia que o senhor diz foi agora ali para baixo, para o palacio...

--Uma senhora alta?

--Sim senhor.

--Com um sujeito de barba preta?

--Sim senhor.

--E uma cadellinha?

--Sim senhor.

--Tu conheces o sr. Damaso Salcede?

--N„o senhor... … o que tira retratos?

--N„o, n„o tira retratos... Tomae l·.

Deu-lhes uma placa de cinco tostıes; e voltou ao encontro dos outros,
declarando que realmente era tarde para subirem · Pena.

--Agora o que tu deves vÍr, Cruges, È o palacio. Isso È que tem
originalidade e cachet! N„o È verdade, Alencar?...

--Eu vos digo, filhos, comeÁou o auctor de _Elvira_, historicamente
fallando...

--E eu tenho de comprar as queijadas, murmurou Cruges.

--Justamente! exclamou Carlos. Tens ainda as queijadas; È necessario n„o
perder tempo; a caminho!

Deixou os outros ainda indecisos, abalou para o palacio, em quatro
largas passadas estava l·. E logo da praÁa avistou, saindo j· o port„o,
passando rente da sentinella, a famosa familia hospedada na Lawrence e a
sua cadellinha de luxo. Era, com effeito, um sujeito de barba preta, e
de sapatos de lona branca; e, ao lado d'elle, uma matrona enorme, com um
mantelete de seda, cousas de ouro pelo pescoÁo e pelo peito, e o
c„osinho felpudo ao collo. Vinham ambos rosnando o quer que fosse, com
mau modo um para o outro, e em hespanhol.

Carlos ficou a olhar para aquelle par com a melancolia de quem contempla
os pedaÁos d'um bello marmore quebrado. N„o esperou mais pelos outros,
nem os quiz encontrar. Correu · Lawrence por um caminho differente,
avido de uma certeza:--e ahi, o criado que lhe appareceu, disse-lhe que
o sr. Salcede e os srs. Castro Gomes tinham partido na vespera para
Mafra...

--E de l·?...

O criado ouvira dizer ao sr. Damaso que de l· voltavam a Lisboa.

--Bem, disse Carlos atirando o chapÈo para cima da meza, traga-me vocÍ
um calice de cognac, e uma pouca d'agua fresca.

Cintra, de repente, pareceu-lhe intoleravelmente deserta e triste. N„o
teve animo de voltar ao palacio, nem quiz sahir mais d'ali; e arrancando
as luvas passeiando em volta da meza de jantar, onde murchavam os ramos
da vespera, sentia um desejo desesperado de galopar para Lisboa, correr
ao Hotel Central, invadir-lhe o quarto, vÍl-a, saciar os seus olhos
n'ella!... Porque, o que o irritava agora era n„o poder encontrar, na
pequenez de Lisboa, onde toda a gente se acotovella, aquella mulher que
elle procurava anciosamente! Duas semanas farejara o Aterro como um c„o
perdido: fizera perigrinaÁıes ridiculas de theatro em theatro: n'uma
manh„ de domingo percorrera as missas! E n„o a tornara a vÍr. Agora
sabia-a em Cintra, voava a Cintra, e n„o a via tambem. Ella cruzava-o
uma tarde, bella como uma deusa transviada no Aterro, deixava-lhe cahir
n'alma por accaso um dos seus olhares negros, e desapparecia,
evaporava-se, como se tivesse realmente remontado ao cÈo, d'ora em
diante invisivel e sobrenatural: e elle ali ficava, com aquelle olhar no
coraÁ„o, perturbando todo o seu ser, orientando surdamente os seus
pensamentos, desejos, curiosidades, toda a sua vida interior, para uma
adoravel desconhecida, de quem elle nada sabia sen„o que era alta e
loira, e que tinha uma cadellinha escosseza... Assim acontece com as
estrellas d'acaso! Ellas n„o s„o d'uma essencia diferente, nem contÈem
mais luz que as outras: mas, por isso mesmo que passam fugitivamente e
se esvaem, parecem despedir um fulgor mais divino, e o deslumbramento
que deixam nos olhos È mais perturbador e mais longo... Elle n„o a
tornara a vÍr. Outros viam-n'a. O Taveira vira-a. No Gremio, ouvira um
alferes de lanceiros fallar d'ella, perguntar quem era, porque a
encontrava todos os dias. O alferes encontrava-a todos os dias. Elle n„o
a via, e n„o socegava...

O criado trouxe o cognac. Ent„o Carlos, preparando vagarosamente o seu
refresco, conversou com elle, fallou um momento dos dois rapazes
inglezes, depois da hespanhola obesa... Emfim, dominando uma timidez,
quasi cÛrando, fez, atravez de grandes silencios, perguntas sobre os
Castro Gomes. E cada resposta lhe parecia uma acquisiÁ„o preciosa. A
senhora era muito madrugadora, dizia o criado: ·s sete horas tinha
tomado banho, estava vestida, e sahia sÛ. O sr. Castro Gomes, que dormia
n'um quarto separado, nunca se mexia antes do meio dia; e, · noite,
ficava uma eternidade · meza, fumando cigarettes e molhando os beiÁos em
copinhos de cognac e agua. Elle e o sr. Damaso jogavam o dominÛ. A
senhora tinha montıes de flÙres no quarto; e tencionavam ficar atÈ
domingo, mas fÙra ella que apress·ra a partida...

--Ah, disse Carlos depois de um silencio, foi a senhora que apressou a
partida?...

--Sim, senhor, com cuidado na menina que tinha ficado em Lisboa... V.
ex.^a toma mais cognac?

Com um gesto Carlos recusou, e veiu sentar-se no terraÁo. A tarde
descia, calma, radiosa, sem um estremecer de folhagem, cheia de
claridade dourada, n'uma larga serenidade que penetrava a alma. Elle
tel-a-hia pois encontrado, ali mesmo n'aquelle terraÁo, vendo tambem
cahir a tarde--se ella n„o estivesse impaciente por tornar a vÍr a
filha, algum bÈbÈsinho loiro que fic·ra sÛ com a ama. Assim, a brilhante
deusa era tambem uma boa mam„; e isto dava-lhe um encanto mais profundo,
era assim que elle gostava mais d'ella, com este terno estremecimento
humano nas suas bellas fÛrmas de marmore. Agora, j· ella estava em
Lisboa; e imaginava-a nas rendas do seu _peignoir_, com o cabello
enrolado ‡ pressa, grande e branca, erguendo ao ar o bÈbÈ nos seus
explendidos braÁos de Juno, e fallando-lhe com um riso d'ouro. Achava-a
assim adoravel, todo o seu coraÁ„o fugia para ella... Ah! poder ter o
direito de estar junto d'ella, n'essas horas d'intimidade, bem junto,
sentindo o aroma da sua pelle, e sorrindo tambem a um bÈbÈ. E, pouco a
pouco, foi-lhe surgindo na alma um romance, radiante e absurdo: um sopro
de paix„o, mais forte que as leis humanas, enrolava violentamente,
levava juntos o seu destino e o d'ella; depois, que divina existencia,
escondida n'um ninho de flÙres e de sol, longe, n'algum canto da
Italia... E, toda a sorte de idÈas d'amor, de devoÁ„o absoluta, de
sacrificio, invadiam-n'o deliciosamente--emquanto os seus olhos se
esqueciam, se perdiam, enlevados na religiosa solemnidade d'aquelle
bello fim da tarde. Do lado do mar subia uma maravilhosa cÙr d'ouro
pallido, que ia no alto diluir o azul, dava-lhe um branco indeciso e
opalino, um tom de desmaio doce; e o arvoredo cobria-se todo de uma
tinta loura, delicada e dormente. Todos os rumores tomavam uma suavidade
de suspiro perdido. Nenhum contorno se movia como na immobilidade de um
extase. E as casas, voltadas para o poente, com uma ou outra janella
accesa em braza, os cimos redondos das arvores apinhadas, descendo a
serra n'uma espessa debandada para o valle, tudo parecera ficar de
repente parado n'um recolhimento melancolico e grave, olhando a partida
do sol, que mergulhava lentamente no mar...

--Oh Carlos, tu est·s ahi?

Era em baixo, na estrada, a voz grossa do Alencar gritando por elle.
Carlos appareceu · varanda do terraÁo.

--Que diabo est·s tu ahi a fazer, rapaz? exclamou Alencar, agitando
alegremente o seu panam·. NÛs l· estivemos ‡ espera, no covil real...
Fomos ao Nunes... Iamos agora procurar-te · cadeia!

E o poeta riu largamente da sua pilheria--emquanto Cruges, ao lado, de
m„os atraz das costas, e a face erguida para o terraÁo, bocejava
desconsoladamente.

--Vim _refrescar_, como tu dizes, tomar um pouco de cognac, que estava
com sÍde.

Cognac? eis ahi o mimo por que o pobre Alencar estivera anciando toda a
tarde, desde Sitiaes. E galgou logo as escadas do terraÁo--depois de ter
gritado para dentro, para a sua velha Lawrence, que lhe mandasse acima
_meia da fina_.

--Viste o PaÁo, hein, Cruges? perguntou Carlos ao maestro, quando elle
appareceu, arrastando os passos. Ent„o, parece-me que o que nos resta a
fazer È jantar, e abalar...

Cruges concordou. Voltava do palacio com um ar murcho, fatigado
d'aquelle vasto casar„o historico, da voz monotona do cicerone mostrando
a cama de S. M. El-Rei, as cortinas do quarto de S. M. a Rainha,
´melhores que as de Mafra,ª o tira-botas de S. A.; e trazia de l· uma
pouca d'essa melancolia que erra, como uma atmosphera propria, nas
residencias reaes.

E aquella natureza de Cintra, ao escurecer, dizia elle, comeÁava a
entristecel-o.

Ent„o concordaram em jantar ali, na Lawrence, para evitar o espectaculo
torpe do Palma e das damas, mandar vir · porta o break, e partir depois
ao nascer do luar. Alencar, aproveitando a carruagem, recolhia tambem a
Lisboa.

--E, para ser festa completa, exclamou elle, limpando os bigodes do
cognac, emquanto vocÍs v„o ao Nunes pagar a conta, e dar ordens para o
break, eu vou-me entender l· abaixo · cosinha com a velha Lawrence, e
preparar-vos um _bacalhau · Alencar_, recipe meu... E vocÍs ver„o o que
È um bacalhau! Porque, l· isso, rapazes, versos os far„o outros melhor;
bacalhau, n„o!

Atravessando a praÁa, Cruges pedia a Deus que n„o encontrassem mais o
Eusebiosinho. Mas, apenas pozeram os pÈs nos primeiros degraus do Nunes,
ouviram em cima o chalrar da sucia. Estavam na ante-sala, j· todos
reconciliados, a Concha contente--e installados aos dois cantos de uma
meza, com cartas. O Palma, munido d'uma garrafa de genebra, fazia uma
_batotinha_ para o Eusebio; e as duas hespanholas, de cigarro na bocca,
jogavam languidamente a bisca.

O viuvo, enfiado, perdia. No monte, que comeÁ·ra miseravelmente com duas
corÙas, j· luzia ouro; e Palma triumphava, chalaceiando, dando beijocas
na sua moÁa. Mas, ao mesmo tempo, fazia de cavalheiro, fallava de dar a
desforra, ficar ali, sendo necessario, atÈ de madrugada.

--Ent„o vv. ex.^{as} n„o se tentam? Isto È para passar o tempo... Em
Cintra tudo serve... Valete! Perdeu vocÍ outro mico no rei. Deve a libra
mais quinze tostıes, sÙ Silveira!

Carlos pass·ra, sem responder, seguido pelo criado--no momento em que
Euzebiosinho, furioso, j· desconfiado, quiz verificar, com as lunetas
negras sobre o baralho, se l· estavam todos os reis.

Palma alastrou as cartas largamente, sem se zangar. Entre amigos, que
diabo, tudo se admittia! A sua hespanhola, essa sim, escandalisou-se,
defendendo a honra do seu homem: ent„o Palmita havia de ter empalmado o
rei? Mas, a Concha, zelava o dinheiro do seu viuvo, exclamava que o rei
podia estar perdido... Os reis estavam l·.

Palma atirou um calice de genebra ·s goelas, e recomeÁou a baralhar
magestosamente.

--Ent„o v. ex.^a n„o se tenta? repetia elle para o maestro.

Cruges, com effeito, par·ra, roÁando-se pela meza, com o olho nas cartas
e no ouro do monte, j· sem forÁa, remexendo o dinheiro nas algibeiras.
Subitamente um az decidiu-o. Com a m„o nervosa, escorregou-lhe uma libra
por baixo, jogando cinco tostıes, e de porta. Perdeu logo. Quando Carlos
voltou do quarto com o criado que descia as malas, o maestro estava em
pleno vicio, com a libra entalada, os olhos accezos, o ar esguedelhado.

--Ent„o tu?...--exclamou Carlos com severidade.

--J· desÁo, rosnou o maestro.

E, · pressa, foi · paz da libra, n'um terno contra o rei. Cartada de
colicas! como disse o Palma: e foi com emoÁ„o que elle comeÁou a puxar
as cartas, espremendo-as uma a uma, n'um vagar mortal. A appariÁ„o de um
bico arrancou-lhe uma praga. Era apenas um duque, Eusebiosinho perdia
mais uma placa. Palma teve um suspirinho de alivio; e, escondendo com
ambas as m„os o baralho, erguendo as lunetas faiscantes para o maestro:

--Ent„o, sempre contin˙a toda a libra?

--Toda.

Palma teve outro suspiro, d'anciedade; e, mais pallido, voltou
bruscamente as cartas.

--Rei! gritou elle, empolgando o ouro.

Era o rei de paus, a sua hespanhola bateu as palmas, o maestro abalou
furioso.

Na Lawrence o jantar prolongou-se atÈ ·s oito horas, com luzes;--e o
Alencar fallou sempre. Tinha esquecido n'esse dia as desillusıes da
vida, todos os rancores litterarios, estava n'uma veia excellente; e
foram historias dos velhos tempos de Cintra, recordaÁıes da sua famosa
ida a Paris, cousas picantes de mulheres, bocados da chronica intima da
RegeneraÁ„o... Tudo isto com estridencias de voz, e _filhos isto!_ e
_rapazes aquillo!_ e gestos que faziam oscillar as chammas das vellas, e
grandes copos de Collares emborcados de um trago. Do outro lado da meza,
os dois inglezes, correctos nos seus fraques negros, de cravos brancos
na botoeira, pasmavam, com um ar embaraÁado a que se misturava desdem,
para esta desordenada exhuberancia de meridional.

A appariÁ„o do bacalhau foi um triumpho:--e a satisfaÁ„o do poeta t„o
grande, que desejou mesmo, caramba, rapazes, que ali estivesse o Ega!

--Sempre queria que elle provasse este bacalhau! J· que me n„o aprecia
os versos, havia de me apreciar o cozinhado, que isto È um bacalhau de
artista em toda a parte!... N'outro dia fil-o l· em casa dos meus
Cohens; e a Rachel, coitadinha, veiu para mim e abraÁou-me... Isto,
filhos, a poesia e a cozinha s„o irm„s! Vejam vocÍs Alexandre Dumas...
Dir„o vocÍs que o pae Dumas n„o È um poeta... E ent„o d'Artagnan?
D'Artagnan È um poema... … a faisca È a phantasia, È a inspiraÁ„o, È o
sonho, È o arrobo! Ent„o, pÙÁo, j· vÍem vocÍs, que È poeta!... Pois
vocÍs h„o-de vir um dia d'estes jantar commigo, e ha-de vir o Ega, e
hei-de-vos arranjar umas perdizes · hespanhola, que vos h„o-de nascer
castanholas nos dedos!... Eu, palavra, gosto do Ega! L· essas cousas de
realismo e romantismo, historias... Um lyrio È t„o natural como um
persevejo... Uns preferem fedÙr de sargeta; perfeitamente, destape-se o
cano publico... Eu prefiro pÛs de marechala n'um seio branco; a mim o
seio, e, l· vae · vossa. O que se quer, È coraÁ„o. E o Ega tem-n'o. E
tem faisca, tem rasgo, tem estylo... Pois, assim È que elles se querem,
e, l· vae · saude do Ega!

Pousou o copo, passou a m„o pelos bigodes, e rosnou mais baixo:

--E, se aquelles inglezes continuam a embasbacar para mim, vae-lhes um
copo na cara, e È aqui um vendaval, que ha-de a Gran-Bretanha ficar
sabendo o que È um poeta portuguez!...

Mas n„o houve vendaval, a Gran-Bretanha ficou sem saber o que È um poeta
portuguez, e o jantar terminou n'um cafÈ tranquillo. Eram nove horas,
fazia luar, quando Carlos subiu para a almofada do break.

Alencar, embuÁado n'um capote, um verdadeiro capote de padre de aldÍa,
levava na m„o um ramo de rosas: e agora, guardara o seu panam· na
maleta, trazia um bonet de lontra. O maestro, pesado do jantar, com um
comeÁo de _spleen_, encolheu-se a um canto do break, mudo, enterrado na
gola do paletot, com a manta da mam„ sobre os joelhos. Partiram. Cintra
ficava dormindo ao luar.

Algum tempo o break rodou em silencio, na belleza da noite. A espaÁos, a
estrada apparecia banhada d'uma claridade quente que faiscava. Fachadas
de casas, caladas e pallidas, surgiam, d'entre as arvores com um ar de
melancolia romantica. Murmurios de agoas perdiam-se na sombra; e, junto
dos muros enramados, o ar estava cheio d'aroma. Alencar accendera o
cachimbo, e olhava a lua.

Mas, quando passaram as casas de S. Pedro, e entraram na estrada,
silenciosa e triste, Cruges mexeu-se, tossiu, olhou tambem para a lua, e
murmurou d'entre os seus agasalhos:

--Oh Alencar, recita para ahi alguma cousa...

O poeta condescendeu logo--apesar de um dos criados ir ali ao lado
d'elles, dentro do break. Mas, que havia elle de recitar, sob o encanto
da noite clara? Todo o verso parece frouxo, escutado diante da lua!
Emfim, Ìa dizer-lhe uma historia bem verdadeira e bem triste... Veiu
sentar-se ao pÈ do Cruges, dentro do seu grande capot„o, esvaziou os
restos do cachimbo, e, depois de acariciar algum tempo os bigodes,
comeÁou, n'um tom familiar e simples:


    Era o jardim d'uma vivenda antiga,
    Sem arrebiques d'arte ou flÙres de luxo;
    Ruas singellas d'alfazema e buxo,
    Cravos, roseiras...


--Com mil raios! exclamou de repente o Cruges, saltando de dentro da
manta, com um berro que emmudeceu o poeta, fez voltar Carlos na
almofada, assustou o trintanario.

O break par·ra, todos o olhavam suspensos; e, no vasto silencio da
charneca, sob a paz do luar, Cruges, succumbido, exclamou:

--Esqueceram-me as queijadas!




IX


O dia famoso da soirÈe dos Cohens, ao fim d'essa semana t„o luminosa e
t„o doce, amanheceu enevoado e triste. Carlos, abrindo cedo a janella
sobre o jardim, vira um cÈu baixo que pesava como se fosse feito de
algod„o em rama enxovalhado: o arvoredo tinha um tom arripiado e humido;
ao longe o rio estava turvo, e no ar molle errava um halito morno de
sudoeste. Decidira n„o sahir--e desde as nove horas, sentado · banca,
embrulhado no seu vasto robe-de-chambre de velludo azul, que lhe dava o
bello ar de um principe artista da RenascenÁa, tentava trabalhar: mas,
apesar de duas chavenas de cafÈ, de cigarettes sem fim, o cerebro, como
o cÈu fÛra, conservava-se-lhe n'essa manh„ afogado em nevoas. Tinha
d'estes dias terriveis; julgava-se ent„o ´uma bestaª; e a quantidade de
folhas de papel, dilaceradas, amarfanhadas, que lhe juncavam o tapete
aos pÈs, davam-lhe a sensaÁ„o de ser todo elle uma ruina.

Foi realmente um allivio, uma tregoa n'aquella lucta com as idÈas
rebeldes, quando Baptista annunciou VillaÁa, que lhe vinha fallar de uma
venda de montados no Alemtejo, pertencentes · sua legitima.

--Negociosinho, disse o administrador, pousando o chapÈo a um canto da
mesa e dentro um rolo de papeis, que lhe mette na algibeira para cima de
dois contos de rÈis... E n„o È mau presente, logo assim pela manh„...

Carlos espreguiÁou-se, crusando fortemente as m„os por tr·s da cabeÁa:

--Pois olhe, VillaÁa, preciso bem de dous contos de rÈis, mas preferia
que me trouxesse ahi alguma lucidez de espirito... Estou hoje d'uma
estupidez!

VillaÁa considerou-o um momento, com malicia.

--Quer v. ex.^a dizer que antes queria escrever uma bonita pagina do que
receber assim perto de quinhentas libras? S„o gostos, meu senhor, s„o
gostos... Elle È bom sahir-se a gente um Herculano ou um Garrett, mas
dous contos de rÈis, s„o dous contos de rÈis... Olhe que sempre valem um
folhetim. Emfim, o negocio È este.

Explicou-lh'o, sem se sentar, apressado, emquanto Carlos, de braÁos
cruzados, considerava quanto era medonho o alfinete de peito que VillaÁa
trazia (um macac„o de coral comendo uma pera de ouro) e distinguia
vagamente, atravez da sua neblina mental, que se tratava de um visconde
de Torral e de porcos... Quando VillaÁa lhe apresentou os papeis,
assignou-os com um ar moribundo.

--Ent„o n„o fica para almoÁar, VillaÁa? disse elle, vendo o procurador
metter o seu rolo de papeis debaixo do braÁo.

--Muito agradecido a v. ex.^a Tenho de me encontrar com o nosso amigo
Eusebio... Vamos ao ministerio do reino, elle tem l· uma pertenÁ„o...
Quer a commenda da ConceiÁ„o... Mas este governo est· desgostoso com
elle.

--Ah, murmurou Carlos com respeito e atravez d'um bocejo, o governo n„o
est· contente com o Eusebiosinho?

--N„o se portou bem nas eleiÁıes. Ainda ha dias, o ministro do reino me
dizia, em confidencia: ´O Eusebio È rapaz de merecimento, mas
atravessado...ª V. Ex.^a n'outro dia, disse-me o Cruges, encontrou-o em
Cintra.

--Sim, l· estava a fazer jus · commenda da ConceiÁ„o.

Quando VillaÁa saiu Carlos retomou lentamente a penna, e ficou um
momento, com os olhos na pagina meio-escripta, coÁando a barba,
desanimado e esteril. Mas quasi em seguida appareÁeu Affonso da Maia,
ainda de chapÈo, · volta do seu passeio matinal no bairro, e com uma
carta na m„o, que era para Carlos, e que elle achara no escriptorio
misturada ao seu correio. AlÈm d'isso, esperava encontrar ali o VillaÁa.

--Esteve ahi, mas deitou a correr, para ir arranjar uma commenda para o
Eusebiosinho--disse Carlos, abrindo a carta.

E teve uma surpreza, vendo no papel--que cheirava a verbena como a
condessa de Gouvarinho--um convite do conde para jantar no sabbado
seguinte, feito em termos de sympathia t„o escolhidos que eram quasi
poeticos; tinha mesmo uma phrase sobre a amisade, fallava dos _atomos em
gancho_ de Descartes. Carlos desatou a rir, contou ao avÙ que era um par
do reino que o convidava a jantar, citando Descartes...

--S„o capazes de tudo, murmurou o velho.

E dando um olhar risonho, aos manuscriptos espalhados sobre a banca:

--Ent„o, aqui, trabalha-se, hein?

Carlos encolheu os hombros:

--Se È que se pÛde chamar a isto trabalhar... Olhe ahi para o ch„o. Veja
esses destroÁos... Em quanto se trata de tomar notas, colligir
documentos, reunir materiaes, bem, l· vou indo. Mas quando se trata de
pÙr as idÈas, a observaÁ„o, n'uma fÛrma de gosto e de symetria, dar-lhe
cÙr, dar-lhe relevo, ent„o... Ent„o foi-se!

--PreoccupaÁ„o peninsular, filho, disse Affonso sentando-se ao pÈ da
mesa, com o seu chapÈo desabado na m„o. DesembaraÁa-te d'ella. … o que
eu dizia n'outro dia ao Craft, e elle concordava... O portuguez nunca
pÛde ser homem de idÈas, por causa da paix„o da fÛrma. A sua mania È
fazer bellas phrases vÍr-lhes o brilho, sentir-lhes a musica. Se fÙr
necessario falsear a idÈa, deixal-a incompleta, exageral-a, para a
phrase ganhar em belleza, o desgraÁado n„o hesita... V·-se pela agoa
abaixo o pensamento, mas salve-se a bella phrase.

--Quest„o de temperamento, disse Carlos. Ha sÍres inferiores, para quem
a sonoridade de um adjectivo È mais importante que a exactid„o de um
systema... Eu sou d'esses monstros.

--Diabo! ent„o Ès um rhetorico...

--Quem o n„o È? E resta saber por fim se o estylo n„o È uma disciplina
do pensamento. Em verso, o avÙ sabe, È muitas vezes a necessidade de uma
rima que produz a originalidade de uma imagem... E quantas vezes o
esforÁo para completar bem a cadencia de uma phrase, n„o poder· trazer
desenvolvimentos novos e inesperados de uma idÈa... Viva a bella phrase!

--O sr. Ega annunciou o Baptista, erguendo o reposteiro, quando comeÁava
justamente a tocar a sineta do almoÁo.

--Fallae na phrase...--disse Affonso, rindo.

--Hein? Que phrase? O que?..--exclamou Ega, que rompeu pelo quarto, com
o ar estonteado, a barba por fazer, a gola do paletot levantada. Oh! por
aqui a esta hora sr. Affonso da Maia! Como est· v. ex.^a? Dize-me c·,
Carlos, tu È que me podes tirar d'uma atrapalhaÁ„o... Tu ter·s por acaso
uma espada que me sirva?

E, como Carlos o olhava assombrado, acrescentou, j· impaciente:

--Sim, homem, uma espada! N„o È para me batter, estou em paz com toda a
humanidade... … para esta noute, para o fato de mascara.

O Mattos, aquelle animal, sÛ na vespera lhe dera o costume para o baile:
e, qual È o seu horror, ao vÍr que lhe arranjara, em logar de uma espada
artistica, um sabre da guarda municipal! Tivera vontade de lh'o passar
atravez das entranhas. Correu ao tio Abrah„o, que sÛ tinha espadins de
cÙrte, reles e pelintras como a propria cÙrte! Lembrara-se do Craft e da
sua collecÁ„o; vinha de l·; mas ahi eram uns espadıes de ferro, catanas
pesando arrobas, as durindanas tremendas dos brutos que conquistaram a
India... Nada que lhe servisse. FÙra ent„o que lhe tinham vindo · idÈa
as panoplias antigas do Ramalhete.

--Tu È que deves ter... Eu preciso uma espada longa e fina, com os copos
em concha, d'aÁo rendilhado, forrados de velludo escarlate. E sem cruz,
sobretudo sem cruz!

Affonso, tomando logo um interesse paternal por aquella difficuldade do
John, lembrou que havia no corredor, em cima, umas espadas
hespanholas...

--Em cima, no corredor? exclamou Ega, j· com a m„o no reposteiro.

Inutil precipitar-se, o bom John n„o as poderia encontrar. N„o estavam ·
vista, arranjadas em panoplia, conservavam-se ainda nos caixıes em que
tinham vindo de Bemfica.

--Eu l· vou, homem fatal, eu l· vou, disse Carlos, erguendo-se com
resignaÁ„o. Mas olha que ellas n„o tÍem bainhas.

Ega ficou succumbido. E foi ainda Affonso que achou uma idÈa, o salvou.

--Manda fazer uma simples bainha de velludo negro; isso faz-se n'uma
hora. E manda-lhe cozer ao comprido rodellas de velludo escarlate...

--Explendido, gritou Ega: o que È ter gosto!

E apenas Carlos sahiu, trovejou contra o Mattos.

--Veja v. ex.^a isto, um sabre da guarda municipal! E È quem faz ahi os
fatos para todos os theatros! Que idiota!.. E È tudo assim, isto È um
paiz insensato!...

--Meu bom Ega, tu n„o queres tornar de certo Portugal inteiro, o Estado,
sete milhıes d'almas, responsaveis por esse comportamento do Mattos?

--Sim senhor, exclamava o Ega passeiando pelo gabinete, com as m„os
enterradas nos bolsos do paletot; sim senhor, tudo isso se prende. O
_costumier_ com um fato do seculo XIV manda um sabre da guarda
municipal; por seu lado o ministro, a proposito de impostos, cita as
_MeditaÁıes_ de Lamartine; e o litterato, essa besta suprema...

Mas calou-se, vendo a espada que Carlos trazia na m„o, uma folha do
seculo XVI, de grande tempera, fina e vibrante, com copos trabalhado
como uma renda--e tendo gravado no aÁo o nome illustre do espadeiro,
Francisco Ruy de Toledo.

Embrulhou-a logo n'um jornal, recusou · pressa o almoÁo, que lhe
offereciam, deu dous vivos _shake-hands_, atirou o chapÈu para a nuca,
ia abalar, quando a voz de Affonso o deteve:

--Ouve la, John, dizia o velho alegremente, isso È uma espada c· da
casa, que nunca brilhou sem gloria, creio eu... VÍ como te serves
d'ella!

Ao pÈ do resposteiro, Ega voltou-se, exclamou, apertando contra o peito
do paletot o ferro, enrolado, no _Jornal do Commercio_:

--N„o a sacarei sem justiÁa, nem a embainharei sem honra. _Au revoir!_

--Que vida, que mocidade! murmurou Affonso. Muito feliz È este John!...
Pois vae-te arranjando filho, que j· tocou a primeira vez para o almoÁo.

Carlos ainda se demorou um instante a reler, com um sorriso, a
apparatosa carta do Gouvarinho; e ia emfim chamar o Baptista para se
vestir, quando em baixo, · entrada particular, o timbre electrico
comeÁou a vibrar violentamente. Um passo ancioso ressoou na ante-camara,
o Damaso appareceu esbaforido, d'olho esgazeado, com a face em braza. E,
sem dar tempo a que Carlos exprimisse a surpreza de o ver emfim no
Ramalhete, exclamou, lanÁando os braÁos ao ar:

--Ainda bem que te encontro, caramba! Quero que venhas d'ahi, que me
venhas ver um doente... Eu te explicarei... … aquella gente brazileira.
Mas pelo amor de Deus, vem depressa, menino!

Carlos erguera-se, pallido:

--… ella?

--N„o, È a pequena, esteve a morrer... Mas veste-te, Carlinhos,
veste-te, que a responsabilidade È minha!

--… um bÈbÈ, n„o È?

--Qual bÈbÈ!... … uma pequena crescida, de seis annos... Anda d'ahi!

Carlos, j· em mangas de camisa, estendia o pÈ ao Baptista, que, com um
joelho em terra, apressado tambem, quasi fez saltar os botıes da bota. E
Damaso, de chapÈu na cabeÁa, agitava-se, exagerando a sua impaciencia, a
estalar de importancia.

--Sempre a gente se vÍ em coisas!.. Olha que responsabilidade a minha!
Vou visital-os, como costumo ·s vezes, de manh„... E vae, tinham partido
para Queluz.

Carlos voltou-se, com a sobrecasaca meia vestida:

--Mas ent„o?..

--Escuta, homem! Foram para Queluz, mas a pequena ficou com a
governanta... Depois do almoÁo deu-lhe uma dÙr. A governante queria um
medico inglez, porque n„o falla sen„o inglez... Do hotel foram procurar
o Smith, que n„o appareceu... E a pequena a morrer!... Felizmente,
cheguei eu, e lembrei-me logo de ti... Foi sorte encontrar-te, caramba!

E acrescentou, dando um olhar ao jardim:

--Tambem, irem a Queluz com um dia d'estes! H„o-de-se divertir... Est·s
prompto, hein? Eu tenho l· em baixo o coupÈ... Deixa as luvas, vaes
muito bem sem luvas!

--O avÙ que n„o me espere para almoÁar, gritou Carlos ao Baptista, j· do
fundo da escada.

Dentro do coupÈ, um ramo enorme enchia quasi o assento.

--Era para ella, disse o Damaso, pondo-o sobre os joelhos. Pela-se por
flores.

Apenas o coupÈ partiu, Carlos cerrando a vidraÁa, fez a pergunta que
desde a appariÁ„o do Damaso lhe faiscava nos labios.

--Mas ent„o tu, que querias quebrar a cara a esse Castro Gomes?..

O Damaso contou logo tudo, triumphante. FÙra tudo um equivoco! Ah, as
explicaÁıes do Castro Gomes tinham sido d'um gentleman. Sen„o
quebrava-lhe a cara. Isso n„o, desconsideraÁıes, a ninguem! a ninguem!
Mas fÙra assim: os bilhetes de visita que elle lhe deixara conservavam o
seu adresse do _Grand Hotel_ em Paris. E o Castro Gomes, suppondo que
elle vivia l·, obdecendo · indicaÁ„o, mandara para l· os seus cartıes!
Curioso, hein? E de estupÌdo... E a falta de resposta aos telegrammas
fÙra culpa de Madame, descuido, n'aquelle momento de afflicÁ„o, vendo o
marido com o braÁo escavacado... Ah, tinham-lhe dado satisfaÁıes
humildes. E agora eram intimos, estava l· quasi sempre...

--Emfim, menino, um romance... Mas isso È para mais tarde!

O coupÈ parara · porta do Hotel Central. Damaso saltou, correu ao guarda
port„o.

--Mandou o telegramma, Antonio?

--J· l· vae...

--Tu comprehendes, dizia elle a Carlos, galgando as escadas, mandei-lhes
logo um telegramma para o hotel em Queluz. N„o estou para ter mais
responsabilidades!...

No corredor, defronte do escriptorio, um criado passava, com um
guardanapo debaixo do braÁo:

--Como est· a menina? gritou-lhe o Damaso.

O criado encolheu os hombros, sem comprehender.

Mas Damaso j· trepava o outro lanÁo de escada, soprando, gritando:

--Por aqui Carlos, eu conheÁo isto a palmos! Numero 26!

Abriu com estrondo a porta do numero 26. Uma criada, que estava ·
janella, voltou-se.

Ah _bonjour_, Melanie! exclamava Damaso, no seu extraordinario francez.
A creanÁa estava melhor? _l'enfant etait meilleur?_ Ali lhe trazia o
doutor, _monsieur le docteur Maia_.

Melanie, uma rapariga magra e sardenta, disse que Mademoiselle estava
mais socegada, e ella ia avisar miss Sarah, a governanta. Passou o
espanador pelo marmore d'uma console, ageitou os livros sobre a meza, e
sahiu, dardejando a Carlos um olhar vivo como uma faisca.

A sala era espaÁosa, com uma mobilia de rÈps azul, e um grande espelho
sobre a console dourada, entre as duas janellas: a meza estava coberta
de jornaes, de caixas de charutos, e de romances de Cappendu; sobre uma
cadeira, ao lado, fic·ra enrolado um bordado.

--Esta Melanie, esta desleixada, murmurava o Damaso, fechando a janella
com um esforÁo sobre o feixo perro. Deixar assim tudo aberto! Jesus, que
gente!

--Este cavalheiro È bonapartista, disse Carlos vendo sobre a meza os
numeros do _Pays_.

--Isso, temos questıes terriveis! exclamou o Damaso. E eu enterro-o
sempre... … bom rapaz, mas tem pouco fundo.

Melanie voltou pedindo a _Monsieur le Docteur_ para entrar um instante
no gabinete de toilette. E ahi, depois de apanhar uma toalha cahida, de
dardejar a Carlos outro olharsinho petulante, disse que Miss Sarah vinha
immediatamente, e retirou-se na ponta dos sapatos. FÛra, na sala,
ergueu-se logo a voz do Damaso, fallando a Melanie de _sa
responsabilitÈ, et que il etait trËs affligÈ_.

Carlos ficou sÛ, na intimidade d'aquelle gabinete de toilette, que
n'essa manh„ ainda n„o fÙra arrumado. Duas malas, pertencentes de certo
a Madame, enormes, magnificas, com fecharias e cantos de aÁo polido,
estavam abertas: d'uma trasbordava uma cauda rica, de seda forte cÙr de
vinho: e na outra era um delicado alvejar de roupa branca, todo um luxo
secreto e raro de rendas e _baptistes_, d'um brilho de neve, macio pelo
uso e cheirando bem. Sobre uma cadeira alastrava-se um monte de meias de
seda, de todos os tons, unidas, bordadas, abertas em renda e t„o leves,
que uma aragem as faria voar; e, no ch„o corria uma fila de sapatinhos
de verniz, todos do mesmo estylo, longos, com o tac„o baixo e grandes
fitas de laÁar. A um canto estava um cesto acolchoado de seda cÙr de
rosa, onde de certo viajara a cadellinha.

Mas o olhar de Carlos prendia-se sobre tudo a um soph· onde ficar·
estendido, com as duas mangas abertas, · maneira de dous braÁos que se
offerecem, o casaco branco de velludo lavrado de Genova com que elle a
vira, a primeira vez, apear-se · porta do hotel. O forro, de setim
branco, n„o tinha o menor acolxoado, t„o perfeito devia ser o corpo que
vestia: e assim, deitado sobre o soph·, n'essa attitude viva, n'um
desabotoado de semi-nudez, adiantando em vago relevo o cheio de dois
seios, com os braÁos alargando-se, dando-se todos, aquelle estofo
parecia exhalar um calor humano, e punha ali a fÛrma d'um corpo amoroso,
desfallecendo n'um silencio d'alcova. Carlos sentiu bater o coraÁ„o. Um
perfume indefinido e forte de jasmim, de marechala, de tanglewood,
elevava-se de todas aquellas cousas intimas, passava-lhe pela face com
um bafo suave de caricia...

Ent„o desviou os olhos, approximou-se da janella, que tinha por
perspectiva a fachada enxovalhada do hotel _Shneid_. Quando se voltou,
miss Sarah estava diante d'elle, vestida de preto e muito cÛrada: era
uma pessoa sympathica, redondinha e pequena, com um ar de rola farta, os
olhos sentimentaes, e uma testa de virgem sob bandÛs lisos e louros.
Balbuciava umas palavras em francez, em que Carlos sÛ percebeu
_docteur_.

--_Yes, I am the doctor_, disse elle.

A face da boa ingleza illuminou-se. Oh! era t„o bom, ter emfim com quem
se entender! A menina estava muito melhor! Oh, o doutor vinha livral-a
d'uma responsabilidade!...

Abriu o reposteiro, fÍl-o penetrar n'um quarto com as janellas todas
cerradas, onde elle apenas distinguiu a fÛrma d'um grande leito e o
brilho de cristaes n'um toucador. Perguntou para que eram aquellas
trevas?

Miss Sarah pensara que a escurid„o faria bem ‡ menina, e a adormeceria.
E trouxera-a ali para o quarto da mam„, por ser mais largo e mais
arejado.

Carlos fez abrir as janellas: e, quando a grande luz entrou, ao avistar
a pequena no leito, sob os cortinados abertos, n„o conteve a sua
admiraÁ„o.

--Que linda creanÁa!

E ficou um instante a contemplal-a, n'um enlevo d'artista, pensando que
os brancos mais mimosos, mais ricos, sob a mais sabia combinaÁ„o de luz,
n„o egualariam a pallidez eburnea d'aquella pelle maravilhosa: e esta
adoravel brancura era ainda realÁada por um cabello negro, tenebroso,
forte, que reluzia sob a rede. Os seus por dois olhos grandes, d'um azul
profundo e liquido, pareciam n'esse instante maiores, muito serios, e
muito abertos para elle.

Estava encostada a um grande travesseiro, toda quieta, com o susto ainda
da dÙr, perdida n'aquelle vasto leito, e apertando nos braÁos uma enorme
boneca paramentada, de pello riÁado, d'olhos tambem azues e arregalados
tambem.

Carlos tomou-lhe a m„osinha e beijou-lh'a,--perguntando se a boneca
tambem estava doente.

--Cri-cri tambem teve dÙr, respondeu ella muito sÈria, sem tirar d'elle
os seus magnificos olhos. Eu j· n„o tenho...

Estava com effeito fresca como uma flor, com a lingoasinha muito rosada,
e a sua vontade j· de lunchar.

Carlos tranquillisou miss Sarah. Oh, ella via bem que mademoiselle
estava boa. O que a assustara fÙra achar-se ali sÛ, sem a mam„, com
aquella responsabilidade. Por isso a tinha deitado... Oh se fosse uma
creanÁa ingleza saÌa com ella para o ar... Mas estas meninas
estrangeiras, t„o debeis, t„o delicadas... E o labiosinho gordo da
ingleza trahia um desdem compassivo por estas raÁas inferiores e
deterioradas.

--Mas a mam„ n„o È doente?

Oh, n„o! Madame era muito forte. O senhor, esse sim, parecia mais
fraco...

--E, como se chama a minha querida amiga? perguntou Carlos, sentado ‡
cabeceira do leito.

--Esta È Cri-cri, disse a pequena, apresentando outra vez a boneca. Eu
chamo-me Rosa, mas o pap· diz que eu que sou Rosicler.

--Rosicler? realmente? disse Carlos sorrindo d'aquelle nome de livro de
cavallaria, rescendente a torneios, e a bosques de fadas.

Ent„o, como colhendo simplesmente informaÁıes de medico, perguntou a
miss Sarah se a menina sentira a mudanÁa de clima. Habitavam
ordinariamente Paris, n„o È verdade?

Sim, viviam em Paris no inverno, no parque Monceaux; de ver„o iam para
uma quinta da Touraine ao pÈ mesmo de Tours, onde ficavam atÈ ao comeÁo
da caÁa; e iam sempre passar um mez a Dieppe. Pelo menos fora assim, nos
ultimos tres annos, desde que ella estava com Madame.

Emquanto a ingleza fallava, Rosa, com a sua boneca nos braÁos, n„o
cessava de olhar Carlos gravemente e como maravilhada. Elle, de vez em
quando sorria-lhe, ou acariciava-lhe a m„osinha. Os olhos da m„e eram
negros: os do pae d'azeviche e pequeninos: de quem herdara ella aquellas
maravilhosas pupillas d'um azul t„o rico, liquido e doce.

Mas a sua visita de medico findara, ergueu-se para receitar um calmante.
Emquanto a ingleza preparava muito cuidadosamente o papel, e
experimentava a pena, elle examinou um momento o quarto. N'aquella
installaÁ„o banal d'hotel, certos retoques d'uma elegancia delicada
revelavam a mulher de gosto e de luxo: sobre a commoda e sobre a meza
havia grandes ramos de flores: os travesseiros e os lenÁoes n„o eram do
hotel, mas proprios, de bretanha fina, com rendas e largos monogrammas
bordados a duas cÙres. Na poltrona que ella usava uma cachemira de
Tarnah disfarÁava o medonho reps desbotado.

Depois, ao escrever a receita, Carlos notou ainda sobre a meza alguns
livros de encadernaÁıes ricas, romances e poetas inglezes: mas destoava
ali, estranhamente, uma brochura singular--o _Manual de interpretaÁ„o
dos sonhos_. E ao lado, em cima do toucador, entre os marfins das
escovas, os cristaes dos frascos, as tartarugas finas, havia outro
objecto estravagante, uma enorme caixa de pÛ de arroz, toda de prata
dourada, com uma magnifica safira engastada na tampa dentro d'um circulo
de brilhantes miudos, uma joia exagerada de cocotte, pondo ali uma
dissonancia audaz de explendor brutal.

Carlos voltou junto do leito, e pediu um beijo a Rosicler: ella
estendeu-lhe logo a boquinha fresca como um bot„o de rosa; elle n„o
ousou beijal-a assim n'aquelle grande leito da m„e, e tocou-lhe apenas
na testa.

--Quando vens tu outra vez? perguntou ella agarrando-o pela manga do
casaco.

--N„o È necessario vir outra vez, minha querida. Tu est·s boa, e Cri-cri
tambem.

--Mas eu quero o meu lunch... Dize a Sarah que eu posso tomar o meu
lunch... E Cri-cri tambem.

--Sim j· podeis ambas petiscar alguma cousa... Fez as suas
recommendaÁıes · mestra, e depois, apertando a m„osinha da pequena:

--E agora adeus, minha linda Rosicler, uma vez que Ès Rosicler...

E n„o quiz ser menos amavel com a boneca, deu-lhe tambem um
_shake-hands_.

Isto pareceu captivar Rosa ainda mais. A ingleza, ao lado, sorria, com
duas covinhas na face.

N„o era necessario, lembrou Carlos, conservar a creanÁa na cama, nem
tortural-a com cautellas exageradas...

--Oh, nÚ, sir!

E se a dÙr reapparecesse, ainda que ligeira, mandal-o logo chamar...

--Oh yes, sir!

E ali deixava o seu bilhete, com a sua adresse.

--Oh thank you, sir!

Ao voltar · sala, o Damaso saltou do soph·, onde percorria um jornal,
como uma fÈra a quem se abre a jaula.

--Credo, imaginei que ias l· ficar toda a vida! Que estivestes tu a
fazer? Irra, que estopada!

Carlos, calÁando as luvas, sorria, sem responder.

--Ent„o, È cousa de cuidado?

--N„o tem nada. Tem uns lindos olhos... E um nome extraordinario.

--Ah, Rosicler, murmurou Damaso, agarrando o chapÈo com mau modo; muito
ridiculo, n„o È verdade?

A creada franceza appareceu outra vez a abrir a porta da
sala,--dardejando para Carlos o mesmo olhar quente e vivo. Damaso
recommendou-lhe muito que dissesse aos senhores, que elle tinha vindo
logo com o medico; e que havia de voltar · noite para lhes fazer uma
surpreza, e para saber se tinham gostado de Queluz--_si ils avaient aimË
Queluz_.

Depois, ao passar diante do escriptorio, metteu a cabeÁa, para dizer ao
guarda-livros, que a menina estava boa, tudo ficava em socego.

O guarda livros sorrio, e cortejou.

--Queres que te v· levar a casa? perguntou elle a Carlos, em baixo,
abrindo a porta do coupÈ, ainda com um resto de mau humor.

Carlos preferia ir a pÈ.

--E acompanha-me tu um bocado, Damaso, tu agora n„o tens que fazer.

Damaso hesitou, olhando o cÈu aspero, as nuvens pesadas de chuva. Mas
Carlos tomara-lhe o braÁo, arrastava-o, amavel e gracejando.

--Agora que te tenho aqui, velhaco, homem fatal, quero o _romance_... Tu
disseste que tinhas um _romance_. N„o te largo. …s meu. Venha o
_romance_. Eu sei que os tens sempre bons. Quero o _romance_!

Pouco a pouco Damaso sorria, as bochechas esbrazeavam-se-lhe de
satisfaÁ„o.

--Vae-se fazendo pela vida, disse elle a estoirar de jactancia.

--VocÍs estiveram em Cintra?...

--Estivemos, mas isso n„o foi divertido... O romance È outro!

Desprendeu-se do braÁo de Carlos, fez um signal ao cocheiro para que os
seguisse, e regalou-se pelo Aterro fÛra de contar o seu _romance_.

--A coisa È esta... O marido d'aqui a dias vai para o Brazil, tem l·
negocios. E ella fica! Fica com as criadas e com a pequena, · espera,
dois ou tres mezes. Diz que j· andaram atÈ a vÍr casas mobiladas, que
ella n„o quer estar no hotel... E eu, intimo, a unica pessoa que ella
conhece, mettido de dentro... Hein, percebes agora?

--Perfeitamente, disse Carlos, arrojando para longe o charuto, com um
gesto nervoso. E de certo, a pobre creatura j· est· fascinada! J· lhe
dÈste, como costumas, um beijo ardente entre duas portas! J· a
desgraÁada se surtiu da caixa de phosphoros, para mais tarde quando a
abandonares!

Damaso enfiava.

--N„o venhas j· tu com o espirito e com a chufasinha... N„o lhe dei
beijos que ainda n„o houve occasi„o... Mas, o que te posso dizer, È que
tenho mulher!

--Pois j· era tempo, exclamou Carlos, sem conter um gesto brusco, e
atirando-lhe as palavras como chicotadas. J· era tempo! Andavas ahi
mettido com umas creaturas ignobeis, uma ralÈ de lupanar. Emfim, agora
ha progresso. E eu gosto que os meus amigos vivam n'uma ordem de
sentimentos decentes... Mas vÍ l·... N„o sejas o costumado Damaso! N„o
te v·s pÙr a alardear isso pelo Gremio e pela casa Havaneza!

D'esta vez Damaso estacou, suffocado, sem comprehender aquelle modo,
semelhante azedume. E terminou por balbuciar, livido:

--Tu podes entender muito de medicina e de bric-a-brac, mas l· a
respeito de mulheres, e da maneira de fazer as cousas, n„o me d·s
licÁıes...

Carlos olhou-o, com um desejo brutal de o espancar. E de repente,
sentio-o t„o innofensivo, t„o insignificante, com o seu ar bochechudo, e
molle, que se envergonhou do surdo despeito que o atravessara, tomou-lhe
o braÁo, teve duas palavras amaveis.

--Damaso, tu n„o me comprehendeste. Eu n„o te quiz fazer zangar... …
para teu bem... O que eu receava È que tu, imprudente, arrebatado,
apaixonado, fosses perder essa bella aventura por uma indiscriÁ„o...

E o outro ficou logo contente, sorrindo j·, abandonando-se ao braÁo do
seu amigo, certo que o desejo do Maia era que elle tivesse uma amante
_chic_. N„o, elle n„o se tinha zangado, nunca se zangava com os
intimos... Comprehendia bem que o que Carlos dizia era por amisade...

--Mas tu, ·s vezes, tens essa cousa que te pegou o Ega, gostas do teu
bocadinho de espirito...

E ent„o tranquillisou-o. N„o, por imprudencia n„o havia elle de ´perder
a cousaª. Aquillo ia com todas as regras. L· n'isso sobrava-lhe
experiencia. A Melanie j· a tinha na m„o; j· lhe dera duas libras.

--Isto de mais a mais È uma cousa muito seria... Ella conhece meu tio, È
intima d'elle desde pequena, tratam-se atÈ por _tu_...

--Que tio?

--Meu tio Joaquim... Meu tio Joaquim Guimar„es. Mr. de Guimaran, o que
vive em Paris, o amigo de Gambetta...

--Ah sim, o communista...

--Qual communista, atÈ tem carruagem!

Subitamente lembrou-lhe outra cousa, um ponto de toilette em que queria
consultar Carlos.

--¡manh„ vou jantar com elles, e v„o tambem dois brazileiros, amigos
d'elle, que chegaram ahi ha dias, e que partem pelo mesmo paquete... Um
È _chic_, È da LegaÁ„o do Brazil em Londres. De maneira que È jantar de
ceremonia. O Castro Gomes n„o me disse nada; mas que te parece, achas
que v· de casaca?...

--Sim, atira-lhe casaca, e uma boa rosa na lapella.

O Damaso olhou-o, pensativo.

--A mim tinha-me lembrado o habito de Christo.

--O habito de Christo... Sim, pıe o habito de Christo ao pescoÁo, e pıe
a rosa na botoeira.

--Ser· talvez de mais, Carlos!

--N„o, fica bem ao teu typo.

Damaso fizera parar o coupÈ que os tinha seguido a passo. E no ultimo
aperto de m„o a Carlos:

--Tu sempre vaes · noite, aos Cohens, de dominÛ? O meu fato de selvagem
ficou divino. Eu venho mostral-o · noite · brazileira... Entro no Hotel
embrulhado n'um capote, e appareÁo-lhes de repente na sala, de selvagem,
de Nelusko, a cantar:


    Alerta, marinari,
    Il vento cangia...


_Chic_ a valer!... _Good bye!_


¡s dez horas Carlos vestia-se para o baile dos Cohens. FÛra, a noite
fizera-se tenebrosa, com lufadas de vento, pancadas d'agoa, que a cada
instante batiam agrestemente o jardim. Ali, no gabinete de toilette,
errava no ar tepido um vago aroma de sabonete e de bom charuto. Sobre
duas commodas de pau preto, marchetadas a marfim, duas serpentinas de
velho bronze erguiam os seus molhos de vellas accezas, pondo largos
reflexos doces sobre a seda castanha das paredes. Ao lado do alto
espelho-psychÈ alastrava-se, em cima d'uma poltrona, o dominÛ de j·
setim negro com um grande laÁo azul-claro.

Baptista, com a casaca na m„o, esperava que Carlos acabasse a chavena de
ch· preto que elle estava bebendo aos golos, de pÈ, em mangas de camisa,
e de gravata branca.

De repente, o timbre electrico da porta particular reteniu, apressado e
violento.

--Talvez outra surpreza, murmurou Carlos, hoje È o dia das surprezas...

Baptista sorriu, ia pousar a casaca para abrir--quando em baixo vibrou
outro repique brutal, d'uma impaciencia phrenetica.

Ent„o Carlos, curioso, sahiu · ante-camara: e ahi, · meia luz das
lampadas Carcel, ainda quebrantada pelo tom dos velludos cÙr de cereja,
viu, ao abrir-se a porta por onde entrou um sopro aspero da noite,
apparecer vivamente uma fÛrma esguia e vermelha, com um confuso tinir de
ferro. Depois, pela escada acima, duas pennas negras de gallo ondearam,
um manto escarlate esvoaÁou--e o Ega estava diante d'elle,
caracterisado, vestido de Mephistopheles!

Carlos apenas poude dizer _bravo_--o aspecto do Ega emmudeceu-o. Apezar
dos toques de caracterisaÁ„o que quasi o mascaravam, sobrancelhas de
diabo, guias de bigode ferozmente exageradas--sentia-se bem a afflicÁ„o
em que vinha, com os olhos injectados, perdido, n'uma terrivel pallidez.
Fez um gesto a Carlos, arremessou-se pelo gabinete dentro. Baptista,
logo, discretamente, retirou-se cerrando o reposteiro.

Estavam sÛs. Ent„o Ega, apertando desesperadamente as m„os, n'uma voz
rouca e d'agonia:

--Tu sabes o que me succedeu, Carlos?

Mas n„o poude dizer mais, suffocado, tremendo todo; e diante d'elle,
devorando-o com os olhos, Carlos tremia tambem, enfiado.

--Cheguei a casa dos Cohens, continuou Ega por fim com esforÁo e quasi
balbuciando, mais cedo, como tinhamos combinado. Ao entrar na sala, j·
estavam duas ou tres pessoas... Elle vem direito a mim, e diz-me: ´VocÍ,
seu infame, ponha-se j· no meio da rua... J· no meio da rua sen„o,
diante d'esta gente, corro-o a pontapÈs!ª E eu, Carlos...

Mas a colera outra vez abafou-lhe a voz. E esteve um momento mordendo os
beiÁos, recalcando os soluÁos, com os olhos reluzentes de lagrimas.

Quando as palavras voltaram, foi uma explos„o selvagem:

--Quero-me batter em duello com aquelle malvado, a cinco passos,
metter-lhe uma bala no coraÁ„o!

Outros sons estrangulados escaparam-se-lhe da garganta; e, batendo
furiosamente o pÈ, esmurrando o ar, berrava, sem cessar, como cevando-se
na estridencia da propria voz.

--Quero matal-o! Quero matal-o! Quero matal-o!

Depois, allucinado, sem ver Carlos, rompeu a passear desabridamente pelo
quarto, ·s patadas, com o manto deitado para traz, a espada mal
afivelada batendo-lhe as canellas escarlates.

--Ent„o descobriu tudo, murmurou Carlos.

--Est· claro que descobriu tudo! exclamou o Ega, no seu passear
arrebatado, atirando os braÁos ao ar. Como descobriu, n„o sei. Sei isto,
j· n„o È pouco. Poz-me fÛra!... Hei-de-lhe metter uma bala no corpo!
Pela alma de meu pae, hei-de-lhe varar o coraÁ„o!... Quero que v·s l·
logo pela manh„ com o Craft... E as condiÁıes s„o estas: · pistolla, a
quinze passos!

Carlos, agora outra vez sereno, acabava a sua chavena de ch·. Depois
disse muito simplesmente:

--Meu querido Ega, tu n„o podes mandar desafiar o Cohen.

O outro estacou de repell„o, atirando pelos olhos dois relampagos
d'ira--a que as medonhas sobrancelhas de crepe, as duas pennas de gallo
ondeando na gorra, davam uma ferocidade theatral e comica.

--N„o o posso mandar desafiar?

--N„o.

--Ent„o pıe-me fÛra de casa...

--Estava no seu direito.

--No seu direito!... Diante de toda a gente?...

--E tu, n„o eras amante da mulher diante de toda a gente?...

O Ega ficou a olhar um momento para Carlos, como atordoado. Depois fez
um grande gesto:

--N„o se trata da mulher!... n„o se fallou da mulher!... … uma quest„o
d'honra para mim, quero mandal-o desafiar, quero matal-o...

Carlos encolheu os hombros.

--Tu n„o est·s em ti. Tens sÛ uma coisa a fazer; È ficar ·manh„ em casa,
a vÍr se elle te manda desafiar a ti...

--O que, o Cohen! exclamou Ega. … um covarde, È um canalha!... Ou o
mato, ou lhe rasgo a cara com um chicote. Desafiar-me! Olha quem... Tu
est·s doido...

E recomeÁou o seu passear desabalado do espelho para a janella,
soprando, rilhando os dentes, com repellıes para traz ao manto que
faziam oscillar, nas serpentinas, as chammas altas das vellas.

Carlos n„o dizia nada, de pÈ junto da meza, enchendo lentamente de novo
a sua chavena. Tudo aquillo comeÁava a parecer-lhe pouco serio, pouco
digno, as ameaÁas de pontapÈs do marido, os furores melodramaticos do
Ega:--e mesmo n„o podia deixar de sorrir diante d'aquelle Mephistopheles
esgouroviado, espalhando pelo quarto o brilho escarlate do seu manto de
velludo, e a fallar furiosamente d'honra e de morte, com sobrancelhas
postiÁas, e escarcella de coiro · cinta.

--Vamos fallar ao Craft! exclamou de repente Ega, parando, com esta
brusca resoluÁ„o. Quero vÍr o que diz o Craft. Tenho l· em baixo uma
tipoia; estamos l· n'um instante!

--Ir agora · quinta, aos Olivaes? disse Carlos, olhando o relogio.

--Se Ès meu amigo, Carlos!...

Carlos immediatamente, sem chamar o Baptista, acabou de se vestir.

Ega, no entanto, ia preparando uma chavena de ch·, deitando-lhe rhum,
ainda t„o nervoso, que mal podia segurar a garrafa. Depois, com um
grande suspiro, accendeu uma cigarrete. Carlos entr·ra na alcova de
banho, ao lado, allumiada por um forte jacto de gaz que assobiava. FÛra,
a chuva continuava seguida e monotona, as goteiras escoavam-se no ch„o
molle do jardim.

--Achas que a tipoia aguentar·? perguntou Carlos de dentro.

--Aguenta, È o _CanhÙto_, disse Ega.

Agora reparara no dominÛ, fÙra erguel-o, examinava-lhe o setim rico, o
bello laÁo azul claro. Depois, tendo encontrado diante de si o grande
espelho-psychÈ, entalou o monoculo no olho, recuou um passo,
contemplou-se d'alto a baixo;--e terminou por pousar uma das m„os na
cinta, appoiar a outra, galhardamente, sobre os copos da espada.

--Eu n„o estava mal, oh Carlos, hein?

--Estavas explendido, respondeu o outro de dentro da alcova. Foi pena
estragar-se tudo... Como estava ella?

--Devia estar de Margarida.

--E elle?

--A besta? De beduino.

E continuou ao espelho, gosando a sua figura esguia, as pennas da gorra,
os sapatos bicudos de velludo, e a ponta flamante da espada erguendo o
manto por traz, n'uma prega fidalga.

--Mas ent„o, disse Carlos, apparecendo a enxugar as m„os, tu n„o fazes
idÈa do que se passou, o que elle diria · mulher, o escandalo...

--N„o faÁo idÈa nenhuma, disse o Ega, agora mais sereno. Quando entrei
na primeira sala estava elle, de beduino; estava um outro sujeito
d'urso, e uma senhora n„o sei de que, de Tyrollesa creio eu... Elle veiu
para mim, e disse-me aquillo: ponha-se fÛra! N„o sei mais nada... Nem
posso perceber... O canalha, se descobriu, naturalmente, para n„o
estragar a festa, n„o disse nada a Rachel... Depois È que ellas s„o!

Ergueu as m„os para o ceu, murmurou:

--… horroroso!

Deu ainda uma volta pelo quarto, e depois n'uma outra voz, franzindo a
face:

--N„o sei que diabo aquelle Godefroy me deu para collar as sobrancelhas,
que me picam que tem diabo!

--Tira-as...

Deante do espelho, Ega hesitava em desmanchar o seu semblante feroz de
Santanaz. Mas arrancou-as por fim--e a gorra emplumada, muito justa, que
lhe escaldava a cabeÁa. Ent„o Carlos lembrou-lhe que, para ir a casa do
Craft, se desembaraÁasse do manto e da espada, se agasalhasse n'um
paletot d'elle. Ega deu ainda um longo e mudo olhar ao seu flamejante
traje infernal, e com um profundo suspiro comeÁou a desafivelar o talim.
Mas o paletot era muito largo, muito comprido; teve de lhe dar uma dobra
nas mangas. Depois Carlos metteu-lhe um bonet escossez na cabeÁa.--E
assim arranjado, com as canellas vermelhas de diabo apparecendo sob o
paletot, a gargantilha escarlate · Carlos IX emergindo da gola, a velha
casqueta de viagem na nuca, o pobre Ega tinha o ar lamentavel d'um
Satanaz pelintra, agasalhado pela caridade d'um gentleman, e usando-lhe
o fato velho.

Baptista allumiou, grave e discreto. Ega ao passar por elle, murmurou:

--Isto vae mal, Baptista, isto vae mal...

O velho creado teve um movimento triste d'hombros, como significando que
nada no mundo ia bem.

Na rua negra, a parelha quieta dobrava a cabeÁa sob a chuva. O
_Canhoto_, ao ouvir fallar d'uma gorgeta de libra, fez um grande
espalhafato, rompeu ·s chicotadas; e a velha traquitana l· partiu a
galope, a escorrer d'agua, atroando a calÁada.

Por vezes um coupÈ particular crusava-os, os casacos de gutta-perche dos
criados branquejavam · luz das lanternas. Ent„o a idÈa da festa que
devia agora resplandecer; Margarida ignorando tudo, walsando nos braÁos
d'outros, anciosa, · espera d'elle; a ceia depois, o champagne, as
cousas brilhantes que elle teria dito--todas estas delicias perdidas se
vinham cravar no coraÁ„o do pobre Ega, arrancavam-lhe pragas surdas,
Carlos fumava silenciosamente, com o pensamento no Hotel Central.

Depois de Santa Apolonia a estrada comeÁou, infindavel, desabrigada,
batida pelo ar agreste do rio. Nenhum dizia uma palavra, cada um para o
seu canto, arripiados na friagem que entrava pelas gretas da tipoia.
Carlos n„o cessava de vÍr o casaco branco de velludo, com as duas mangas
abertas, como dois braÁos que se offereciam...

Passava da uma hora quando chegaram · quinta, a sineta do port„o, aos
puxıes do cocheiro encharcado, retumbou lugubre n'aquelle silencio
escuro de aldeia. Um c„o ladrou furiosamente: outros latidos ao longe
responderam; e ainda esperaram muito, antes que um creado, somnolento e
resmung„o, apparecesse com uma lanterna. Uma rua d'acacias conduzia ·
casa: o Ega praguejava, enterrando os seus bellos sapatos de velludo no
ch„o lamacento.

Craft, surprehendido com aquelle tumulto, veiu-lhes ao encontro no
corredor, de robe-de-chambre, e a _Revista dos Dois Mundos_ debaixo do
braÁo. Percebeu logo que havia desastre. Levou-os em silencio para o seu
gabinete onde um bom lume de carv„o na chaminÈ aquecia, alegrava o
aposento todo estofado de cretones claros. Ambos foram direitos ao lume.

Ega rompera logo a contar o seu caso--emquanto Craft, sem espanto nem
exclamaÁıes, ia preparando methodicamente sobre a meza tres grogs de
cognac e lim„o. Carlos, sentado ao pÈ do fog„o, aquecia os pÈs: e Craft
veiu acabar de ouvir o Ega, accommodando-se tambem na sua poltrona, do
outro lado da chaminÈ, com o seu cachimbo na bocca.

--Emfim, exclamou Ega, de pÈ, cruzando os braÁos, que me aconselhas tu
agora?

--Tens a fazer sÛ isto, disse Craft: esperar ·manh„ em casa que elle te
mande os seus padrinhos... Que tenho a certeza que n„o manda... E
depois, se vos baterdes, deixar-te ferir ou matar.

--Perfeitamente o que eu disse, murmurou Carlos, provando o seu grog.

Ega olhou-os a ambos, successivamente, petrificado. E logo, n'um fluxo
de palavras desordenadas, queixou-se de n„o ter amigos. Ali estava,
n'aquella crise, a maior da sua vida: e em logar de encontrar, nos seus
camaradas de infancia e de Coimbra, apoio, solidariedade, lealdade _‡
tort et ‡ travers_, abandonavam-n'o, pareciam querer enterral-o, e
expol-o a irrisıes maiores... Ia-se commovendo; os olhos
vermelhejavam-lhe sob as lagrimas. E quando algum d'elles ia
interrompel-o, n'uma palavra de senso, batia o pÈ, persistia na sua
teima--um desafio, matar o Cohen, vingar-se! Tinha sido insultado. N„o
existia outra cousa. N„o se tinha fallado na mulher. Era elle que devia
primeiro mandar padrinhos, lavar a sua honra. Havia pessoas na sala,
quando o outro o insultou. Havia um urso, e uma tyrolesa... E emquanto a
deixar-se varar por uma bala, n„o! Tinha mais direito a viver que o
Cohen, que era um burguez, e um agiota... E elle era um homem de estudo
e de arte! Tinha na cabeÁa livros, idÈas, cousas grandes. Devia-se ao
paiz, · civilisaÁ„o!... Se fosse ao campo, era para fazer a sua
pontaria, e abater o Cohen, ali, como uma besta immunda...

--Mas o que È, È que n„o tenho amigos! gritou elle exhausto por fim,
cahindo para o canto d'um soph·.

Craft bebia em silencio, e aos golos, o seu cognac.

Foi Carlos que se ergueu, serio e aspero. Elle n„o tinha direito de
duvidar da sua amisade. Quando lhe tinha ella faltado? Mas era
necessario n„o ser pueril; nem theatral... A quest„o estava simplesmente
em que o Cohen o surprehendera, amando-lhe a mulher. Logo, podia
matal-o, podia entregal-o aos tribunaes, podia escavacal-o na sala a
pontapÈs...

--Ou peor, interrompeu Craft. Mandar-te a senhora, com este bilhetinho:
´Guarde-aª.

--Ou isso! continuava Carlos. N„o, senhor: limita-se a prohibir-te a
entrada em casa, um pouco asperamente, sim, mas indicando que, depois de
ter feito isto, n„o quer nada mais violento, nem mais dramatico. Teve
portanto um acto de moderaÁ„o. E tu queres mandal-o desafiar por
isso?...

Mas Ega revoltou-se outra vez, deu um pulo, disparatou pela sala, sem
paletot agora, esguedelhado, parecendo mais phantastico n'aquelle
simples gib„o escarlate, com os sapatos de velludo enlameados, as longas
pernas de cegonha cobertas de malha de seda vermelha. E teimava que se
n„o tratava d'isso! N„o, n„o se tratava da mulher! A quest„o era
outra...

Carlos ent„o zangou-se.

--Para que diabo te expulsou elle de casa ent„o? N„o disparates, homem!
NÛs estamos-te a dizer o que faz um homem de senso. E È triste, que te
custe tanto a perceber o que manda o senso. Trahiste um amigo teu...
Nada de equivocos! tu declaravas bem alto a tua amisade pelo Cohen.
Trahistel-o, tens de acceitar a lei: se elle te quizer matar tens de
morrer. Se elle n„o quizer fazer nada, tens de ficar de braÁos cruzados.
Se elle te quizer chamar ahi por essas ruas um infame, tens de baixar a
cabeÁa, e reconhecer-te infame...

--Ent„o tenho de engolir a affronta?

Os dois amigos explicaram-lhe que aquelle fato de Satanaz lhe perturbava
a lucidez do criterio mundano--e que chegava a ser torpe fallar elle,
Ega, de _affronta_.

Ega, outra vez acabrunhado sobre o soph·, conservou um momento a cabeÁa
enterrada nas m„os.

--Eu j· nem sei, disse elle por fim. VocÍs devem ter ras„o... Eu
estou-me a sentir idiota ... Ent„o, vamos, que hei de eu fazer?

--VocÍs teem a tipoia · espera? perguntou tranquillamente Craft.

Carlos mandara desapparelhar, recolher o gado esfalfado.

--Excellente! Ent„o, meu caro Ega, tens outra cousa a fazer, antes de
morrer ·manh„ talvez, È cear esta noite. Eu ia ceiar, e por motivos
longos d'explicar, ha n'esta casa um peru frio. E ha-de haver uma
garrafa de Bourgonhe...

D'ahi a pouco estavam · mesa--n'aquella bella sala de jantar do Craft,
que encantava sempre Carlos, com as suas tapeÁarias ovaes representando
bocados solitarios d'arvoredo, as severas faenÁas da Persia, e a sua
original chaminÈ flanqueada por duas figuras negras de Nubios com olhos
rutilantes de crystal. Carlos, que se declarara esfomeado, trinchava j·
o per˙, emquanto Craft, desarrolhava, com veneraÁ„o, duas garrafas do
seu velho Chambertin, para reconfortar Mephistopheles.

Mas Mephistopheles, sombrio e com os olhos avermelhados, repelliu o
prato, desviou o copo. Depois, sempre condescendeu em provar o
Chambertin.

--Pois eu, dizia Craft empunhando o talher, quando vocÍs chegaram,
estava a lÍr um artigo interessante sobre a decadencia do protestantismo
em Inglaterra...

--Que È aquillo, alÈm, n'aquella lata? perguntou Ega, com uma voz
moribunda.

Um _p‚tÍ de foie-gras_. Mephistopheles escolheu com tedio uma trufa.

--Bem bom, este teu Chambertin, suspirou elle.

--Anda come e bebe com franqueza, gritou-lhe Craft. N„o te romantises.
Tu o que tens È fome. Todas as tuas idÈas esta noite se ressentem da
debilidade!

Ent„o Ega confessou que devia estar fraco. Com aquella excitaÁ„o do seu
trage de Satanaz nem jant·ra, contando ceiar bem em casa do outro...
Sim, com effeito, tinha appetite! Excellente _foie-gras_...

E d'ahi a pouco devorava: foram talhadas de per˙, uma porÁ„o immensa de
lingua d'Oxford, duas vezes presunto d'York, todas aquellas boas cousas
inglezas que havia sempre em casa do Craft. E elle sÛ bebeu quasi toda
uma garrafa de Chambertin.

O escudeiro fÙra preparar o cafÈ: e, no entanto, ia-se discutindo, em
todas as hypotheses, a attitude provavel do Cohen com a mulher. Que
faria elle? Talvez lhe perdoasse. Ega affirmava que n„o: era vaidoso, e
de rancores longos! N'um convento tambem n„o a fechava, sendo judia...

--Talvez a mate, disse Craft, com toda a seriedade.

Ega, j· com os olhos brilhantes do Bourgogne, declarou tragicamente que
elle ent„o entrava n'um mosteiro. Os dois gracejaram, sem piedade. Em
que mosteiro queria elle entrar? Nenhum era congenere com o Ega! Para
dominicano era muito magro, para trapista muito lascivo, muito palrador
para jesuita, e para benedictino muito ignorante... Era necessario crear
uma ordem para elle! Craft lembrou a _Santa Blague_!

--VocÍs n„o teem coraÁ„o, exclamou Ega, enchendo outro grande copo.
VocÍs n„o sabem, eu adorava aquella mulher!

Ent„o largou a fallar de Rachel. E teve alli, de certo, os momentos
melhores de toda aquella paix„o,--porque poude, sem escrupulo, fazer
reluzir a sua aureola de amante, banhar-se no mar de leite das
confidencias vaidosas. ComeÁou por contar o encontro com ella na
Foz--emquanto Craft, sem perder uma palavra, como quem se instrue, se
erguera a abrir uma garrafa de Champagne. Disse depois os passeios na
Cantareira; as cartinhas ainda hesitantes e platonicas, trocadas entre
folhas de livros emprestados, em que ella se assignava _Violetta de
Parma_; o primeiro beijo, o melhor, surripiado entre duas portas,
emquanto o marido correra acima a buscar-lhe charutos especiaes; os
rendez-vous no Porto, no Cemiterio do Repouso, as pressıes ardentes de
m„os · sombra dos cyprestes, e os planos de voluptuosidade combinados
entre as lapides funebres...

--Muito curioso! dizia o Craft.

Mas Ega teve de se calar, o criado entrava com o cafÈ. Emquanto se
enchiam as chavenas, e Craft fÙra buscar uma caixa de charutos, elle
acabou a garrafa de Champagne, j· pallido, com o nariz afilado.

O criado sahiu, correndo o reposteiro de tapeÁaria: e logo Ega, com o
calice de cognac ao lado, recomeÁou as confidencias, contou a volta a
Lisboa, a Villa Balzac, as manh„s deliciosas passadas l· com ella no
calor d'um ninho d'amor...

Mas agora interrompia-se, vago e com os olhos turvos, enterrando um
momento a cabeÁa entre os punhos. Depois l· vinha outro detalhe, os
nomes lubricos que ella lhe dava, uma certa coberta de seda preta onde
ella brilhava como um jaspe... Duas lagrimas embaciaram-lhe os olhos,
jurou que queria morrer!

--Se vocÍs soubessem que corpo de mulher! gritou elle de repente. Oh
meninos, que corpo de mulher... Imaginem vocÍs um peito...

--N„o queremos saber, disse Carlos. Cala-te, tu est·s bebado, miseravel!

Ega ergueu-se, retezando a perna, arrimado de lado · meza.

Bebado! Elle? Ora essa!... Era cousa que n„o podia, era empiteirar-se.
Tinha feito o possivel, bebido tudo, atÈ agua raz. Nunca! N„o podia...

--Olha, vou pÙr aquella garrafa · boca, tu ver·s. E fico frio, fico
impassivel. A discutir philosophia... Queres que te diga o que penso de
Darwin? … uma besta... Ora ahi tens. D· c· a garrafa.

Mas Craft recusou-lh'a; e, um momento Ega ficou oscillando, a olhar para
elle, com a face livida.

--Ou me d·s a garrafa... ou me d·s a garrafa, ou te metto uma bala no
coraÁ„o... N„o, nem vales a bala... Vou-te dar uma bolacha!

De repente os olhos cerraram-se-lhe, abatteu-se sobre a cadeira, d'ahi
sobre o ch„o, como um fardo.

--Terra! disse tranquillamente Craft.

Tocou a campainha, o escudeiro entrou, apanharam Jo„o da Ega. E emquanto
o levavam para o quarto dos hospedes e lhe despiam o fato de Satanaz,
n„o cessou de choramingar, dando beijos babosos pelas m„os de Carlos,
balbuciando:

--Rachelsinha!... RacaquÈ, minha Raquesinha! gostas do teu
bibichinho?...

Quando Carlos partiu na tipoia para Lisboa, n„o chovia, um vento frio ia
varrendo o ceu, j· clareava a alvorada.

Ao outro dia, ·s dez horas, Carlos voltou aos Olivaes. Achou Craft
dormindo, e subiu ao quarto do Ega. As janellas tinham ficado abertas,
um largo raio de sol dourava o leito; e elle ressonava ainda, no meio
d'aquella aureola, deitado de lado, com os joelhos contra o estomago, o
nariz dentro dos lenÁoes.

Quando Carlos o sacudio, o pobre John abriu um olho triste, e
bruscamente ergueu-se sobre o cotovello, espantado para o quarto, para
os cortinados de damasco verde, para um retrato de dama empoada que lhe
sorria de dentro da sua moldura dourada. De certo as memorias da vespera
o assaltaram, porque se enterrou para baixo, com os lenÁoes atÈ ao
queixo; e a sua face esverdeada, envelhecida, exprimiu a desconsolaÁ„o
de deixar aquelles fofos colxıes, a paz confortavel da quinta--para ir
affrontar a Lisboa toda a sorte de cousas amargas.

--Est· frio l· fÛra? perguntou elle melancholicamente.

--N„o, est· um dia adoravel. Mas levanta-te, depressa! Se l· fÙr alguem
da parte do Cohen, podem imaginar que fugiste...

Ega deu immediatamente um pulo da cama, e atordoado, esguedelhado,
procurava a roupa, com as canellas nuas, tropeÁando contra os moveis. SÛ
achou o gib„o de Satanaz. Chamaram o criado, que trouxe umas calÁas de
Craft. Ega enfiou-as · pressa: e sem se lavar, com a barba por fazer, a
gola do paletot erguida, enterrou emfim na cabeÁa o bonet escossez,
voltou-se para Carlos, disse com um ar tragico:

--Vamos a isso!

Craft, que se erguera, foi acompanhal-os ao port„o, onde esperava o
coupÈ de Carlos. Na alameda de acacias, t„o tenebrosa na vespera sob a
chuva, cantavam agora os passaros. A quinta, fresca e lavada, verdejava
ao sol. O grande Terra-nova do Craft pulava em roda d'elles.

--Doe-te a cabeÁa, Ega? perguntou Craft.

--N„o, respondeu o outro, acabando de abotoar o paletot. Eu hontem n„o
estava bebado... O que estava era fraco.

Mas, ao entrar para o coupÈ, fez, com um ar profundo e philosophico,
esta reflex„o:

--O que È a gente beber bons vinhos... Estou como se n„o fosse nada!

Craft recommendou que se houvesse novidade, lhe mandassem um telegramma;
fechou a portinhola, o coupÈ partiu.

Durante a manh„ n„o veiu telegramma · quinta; e quando Craft appareceu
na Villa Balzac, onde uma carruagem de Carlos esperava · porta, j·
escurecera, duas vÈlas ardiam na triste sala verde. Carlos, estirado no
soph·, dormitava, com um livro aberto sobre o estomago: e Ega passeiava
d'um lado para outro, todo vestido de preto, pallido, com uma rosa na
botoeira. Tinham estado alli na sala, n'aquella sÈcca, esperando todo o
dia as testemunhas do Cohen.

--Que te dizia eu? N„o ha nada, nem podia haver, murmurou Craft.

Mas Ega, agora agitado de idÈas negras, temia que elle tivesse
assassinado a mulher! O sorriso sceptico de Craft indignou-o. Quem
conhecia melhor o Cohen do que elle? Sob a apparencia burgueza, era um
monstro! Tinha-lhe visto matar um gato, sÛ por capricho de derramar
sangue...

--Tenho um presentimento de desgraÁa, balbuciou elle aterrado.

E logo n'esse momento a campainha retiniu. Ega acordou precipitadamente
Carlos, empurrou os dois amigos para o quarto de cama. Craft ainda lhe
disse que, ·quella hora, n„o podiam ser os amigos do Cohen. Mas elle
queria estar sÛ na sala: e l· ficou, mais pallido, rigido, muito
abotoado na sobrecasaca, com os olhos cravados na porta.

--Que massada! dizia Carlos dentro, tenteando a escurid„o do quarto.

Craft accendeu no toucador um resto de vella. Uma luz triste
espalhou-se, tudo appareceu n'um desarranjo: no meio do ch„o estava
cahida uma camisa de dormir; a um canto ficara a bacia de banho com agoa
de sab„o; e, no centro, o enorme leito, envolto nas suas cortinas de
seda vermelha, conservava uma magestade de tabernaculo.

Um momento estiveram callados. Craft methodico, e como quem se instrue,
examinava o toucador, onde havia um maÁo de ganchos de cabello, uma liga
com o fecho quebrado, um ramo de violetas murchas. Depois foi olhar o
marmore da commoda; ahi ficara um prato com ossos de frango, e ao lado
uma meia folha de papel escripta a lapis, toda emendada, de certo
trabalho litterario do Ega. Elle achava tudo isto muito curioso.

Da sala, no entanto, vinha um ciciar de vozes subtil e intimo. Carlos
escutando, julgou sentir uma falla abafada de mulher... Impaciente, foi
· cozinha. A criada estava sentada · meza, com a m„o mettida pelos
cabellos, sem fazer nada, a olhar para a luz: o pagem, espaparrado n'uma
cadeira, chupava o seu cigarro.

--Quem foi que entrou? perguntou Carlos.

--Foi a criada do sr. Cohen, disse o garoto, escondendo o cigarro atraz
das costas.

Carlos voltou ao quarto, annunciando:

--… a confidente. As cousas terminam amavelmente.

--E como queria vocÍ que terminassem? disse Craft. O Cohen tem o seu
Banco, os seus negocios, as suas letras a vencer, o seu credito, a sua
respeitabilidade, todo um arranjo de cousas a que n„o convÈm um
escandalo... … isto que calma os maridos. AlÈm d'isso, j· se satisfez,
j· lhe offereceu pontapÈs...

N'esse instante houve um rumor na sala, Ega abriu violentamente a porta.

--N„o ha nada, exclamou elle, deu-lhe uma coÁa, e v„o ·manh„ para
Inglaterra!

Carlos olhou para o Craft--que movia a cabeÁa, como vendo todas as suas
previsıes realisadas, e approvando plenamente.

--Uma coÁa, dizia o Ega, com os olhos chammejantes e n'uma voz que
sibillava. E depois fizeram as pazes... Vem ainda a ser um _menage_
modelo! A bengala purifica tudo... Que canalha!

Estava furioso. N'esse momento odiava Rachel--n„o perdoando ao seu idolo
ter-se deixado desfazer · paulada. Lembrava-se justamente da bengala do
Cohen, um junco da India, com uma cabeÁa de galgo por cast„o. E aquillo
zurzira as carnes que elle tinha apertado com paix„o! Aquillo pozera
vergıes roxos onde os seus labios tinham avivado signaes cÙr de rosa! E
tinham _feito as pazes_. E assim terminava, relles e chinfrim, o romance
melhor da sua vida! Preferiria sabel-a morta, a sabel-a espancada. Mas
n„o! levava a sova, deitava-se depois com o marido, e elle mesmo,
decerto arrependido, chamando-lhe nomes doces, a ajudava, em ceroulas, a
fazer as applicaÁıes de arnica! Aquillo acabava em arnica!

--Entre vocemecÍ para aqui, sr.^a Adelia, gritou elle para a sala, entre
para aqui! Aqui sÛ ha amigos. O segredo acabou, o pudor acabou! Isto s„o
amigos! Somos tres, mas somos um! Tem vocemecÍ diante de si o grande
mysterio da Santissima Trindade. Sente-se, sr.^a Adelia, sente-se... N„o
faÁa ceremonia... E pÛde contar... Aqui a sr.^a Adelia, meninos, viu
tudo, viu a coÁa!

A sr.^a Adelia, uma moÁa gordinha e baixa, de bonitos olhos, com um
chapÈo de flÙres vermelhas, veiu logo da sala rectificando. N„o, ella
n„o vira... Ent„o o sr. Ega n„o tinha percebido bem... Ella sÛ _ouvira_.

--Aqui est· como foi, meus senhores... Eu tinha ficado a pÈ,
naturalmente, atÈ ao fim do baile, que estava que nem me tinha nas
pernas. Era j· dia claro, quando o senhor, ainda vestido de moiro, se
fechou no quarto com a senhora. Eu fiquei na cozinha com o Domingos ·
espera que elles tocassem a campainha. De repente ouvimos gritos!... Eu
fiquei estarrecida, pensei atÈ que eram ladrıes. Corremos, eu e o
Domingos, mas a porta do quarto estava fechada, e os dois estavam por
dentro, l· para o fundo da alcova. Eu ainda puz o olho · fechadura, mas
n„o pude vÍr nada... L· o estalar de bofetadas, e trambulhıes, e sons de
bengalada, isso sim, isso ouvia-se perfeitamente; e os gritos. Eu disse
logo ao Domingos ´ai que È uma quest„o, ai que l· se foi tudo.ª Mas de
repente, silencio geral! NÛs volt·mos para a cozinha; d'ahi a pouco o
sr. Cohen appareceu, todo esguedelhado, em mangas de camisa, a dizer que
nos podiamos deitar, que elles n„o precisavam nada, e que amanh„
fallariamos!... Depois l· ficaram toda a noite, e pela manh„ parece que
estavam muito amiguinhos... Que eu n„o puz os olhos na senhora. O sr.
Cohen, apenas se levantou, veiu · cozinha, fez-me elle as contas, e
pÙz-me fÛra; muito mal creado, atÈ me ameaÁou com a policia... Foi pelo
Domingos, que eu soube agora, quando fui buscar o bah˙ com um gallego,
que o sr. Cohen Ìa com a senhora para Inglaterra. Emfim, um chinfrim...
Eu atÈ tenho estado todo o dia com o estomago embrulhado.

A sr.^a Adelia com um suspiro, pondo os olhos no ch„o, calou-se. Ega,
com os braÁos cruzados, olhava amargamente para os seus amigos. Que lhes
parecia aquillo? Uma coÁa!.. Se um covarde d'aquelles n„o merecia uma
bala no coraÁ„o! Mas ella tambem, deixar-se tocar, n„o ter fugido,
consentir ainda depois em dormir com elle!.. Tudo uma corja!

--E a sr.^a Adelia, perguntava Craft, n„o tem idÈa de como elle
descobriu?..

--Isso È que È prodigioso! gritou Ega, apertando as m„os na cabeÁa.

Sim, prodigioso! N„o fÙra carta apanhada: elles n„o se escreviam. N„o
podia ter surprehendido as visitas · Villa Balzac: as cousas estavam
combinadas com uma arte muito subtil, perfeitamente impenetraveis. Para
vir ali, nunca ella commettera a indiscripÁ„o de se servir da sua
carruagem. Nunca ella claramente entrara pela porta. Os criados d'elle
nunca a tinham visto, n„o sabiam quem era a senhora que o visitava...
Tantos cuidados, e tudo estragado!

--Estranho, estranho! murmurava Craft.

Houve um silencio. A sr.^a Adelia terminara por descanÁar familiarmente
n'uma cadeira, com a sua trouxasinha no regaÁo.

--Pois olhe, sr. Ega, disse ella, depois de reflectir creia ent„o uma
cousa, È que foi em sonhos. J· tem acontecido... Foi a senhora que
sonhou alto com v. ex.^a, disse tudo, o sr. Cohen ouviu, ficou de pedra
no sapato, espreitou-a, e descobriu a marosca... E eu sei que ella sonha
alto.

Ega, diante da sr.^a Adelia, percorria-a desde as flÙres do chapÈo atÈ ·
roda das saias, com os olhos faiscantes.

--Como È possivel que elle ouvisse? Se elles tinham quartos
separados!... Eu sei que tinham.

A sr.^a Adelia baixou as palpebras, acariciou com os dedos calÁados de
luvas pretas a sua trouxasinha redonda, e disse mais baixo estas
palavras:

--N„o tinham, n„o senhor. Nem a senhora consentia em tal arranjo... A
senhora gosta muito do marido, e tem muitos ciumes d'elle.

Houve um silencio embaraÁado e desagradavel. Sobre o toucador o resto da
vella acabava, com uma luz lugubre. E Ega, que affectara sorrir,
encolher os hombros, dava pelo quarto passos lentos e murchos,
triturando o bigode com a m„o tremula.

Ent„o Carlos enojado, canÁado d'aquelle episodio que durava desde a
vespera, e onde constantemente se remexera em lodo, declarou que era
necessario findar! Eram oito horas, e elle queria jantar...

--Sim, vamos todos jantar, murmurou o Ega, com o ar confuso e embaÁado.

De repente fez um signal · sr.^a Adelia, arrastou-a para a sala,
fechou-se l· outra vez.

--VocÍ n„o est· farto d'isto, Craft? exclamou Carlos, desesperado.

--N„o. Acho um estudo curioso.

Esperaram ainda dez minutos. Subitamente a vella extinguiu-se. Carlos,
furioso, gritou pelo pagem. E o garoto entrava com um immundo candieiro
de petroleo--quando Ega, mais composto, voltou da sala. Tudo acabara, a
sr.^a Adelia partira.

--Vamos l· jantar, disse elle. Mas aonde, a esta hora?

E elle mesmo lembrou o AndrÈ, ao Chiado. Em baixo, alem do coupÈ de
Carlos, esperava a tipoia do Craft. As duas carruagens partiram. A Villa
Balzac ficava apagada, muda, d'ora em diante inutil.

No AndrÈ tiveram de esperar muito tempo, n'um gabinete triste, com um
papel de estrellinhas douradas, cortininhas de cassa barata sob sanefas
de reps azul, e dois bicos de gaz que silvavam. Ega, enterrado no soph·
de mollas gastas e lassas, cerrara os olhos, parecia exhausto. Carlos Ìa
contemplando as gravuras pela parede, todas relativas a hespanholas: uma
saÌndo da egreja; outra saltando uma pocinha de agua; outra, de olhos
baixos, escutando os conselhos de um canonico. Craft, j· · meza, com a
cabeÁa entre os punhos, percorria um _Diario da Manh„_, que o criado
offerecera para os senhores se entreterem.

De repente o Ega deu um murro no soph·, que rangeu lamentavelmente.

--Eu o que n„o percebo, gritou elle, È como aquelle malvado descobriu!..

--A hypothese da sr.^a Adelia, disse Craft erguendo os olhos do jornal,
parece provavel. Ou em sonhos, ou acordada, a pobre senhora descahiu-se.
Ou talvez uma denuncia anonyma. Ou talvez apenas um acaso... O facto È
que o homem desconfiou, espreitou-a, e apanhou-a.

Ega erguera-se:

--Eu n„o vos quiz dizer diante da Adelia, que n„o estava no segredo
todo. Mas vocÍs sabem a casa defronte da minha, do outro lado da viella,
uma casa com um grande quintal? Ahi mora uma tia do Gouvarinho, a D.
Maria Lima, uma pessoa respeitavel. A Rachel Ìa vÍl-a de vez em quando.
S„o intimas, a D. Maria Lima È intima de todo o mundo. Depois sahia por
uma portinha do quintal, atravessava a viella, e estava · porta da minha
casa, · porta escusa, · porta da escada que vae ter ao cacifro de banho.
J· vocÍs vÍem... Os criados nem a avistavam. Quando ella l· lunchava, o
lunch estava j· posto no meu quarto, as portas fechadas. Mesmo se alguem
visse, era uma senhora com um vÈo preto, que vinha de casa da Lima...
Como podia o homem apanhal-a?.. AlÈm d'isso, em casa da Lima, ella
mudava de chapÈo, e punha um waterproof...

Craft cumprimentou.

--… brilhante! Parece de Scribe.

--Ent„o, disse Carlos sorrindo, essa respeitavel fidalga...

--A D. Maria, coitada... Eu te digo, È uma excellente velha, recebida em
toda a parte, mas pobre, e faz d'estes favores... ¡s vezes mesmo em casa
d'ella.

--Leva caro por esses serviÁos? perguntou tranquillamente Craft, que em
todo aquelle caso procurava instruir-se.

--N„o, coitada, disse o Ega. D„o-se-lhe de vez em quando cinco libras.

O criado entrava com uma travessa de camarıes, os tres em silencio
accommodaram-se · meza.

Depois do jantar recolheram ao Ramalhete. Ega Ìa l· dormir, receiando,
com os nervos t„o excitados, a solid„o da villa Balzac. Partiram, de
charutos accesos, n'uma caleche descoberta, sob a noite estrellada e
doce.

Felizmente n„o estava ninguem no Ramalhete; Ega, canÁado, poude
retirar-se logo para o seu quarto, um aposento d'hospedes no segundo
andar, onde havia um bello leito antigo de pau preto. Ahi, apenas o
criado o deixou, Ega approximou-se do tremÛ onde ardiam as luzes, e
tirou do pescoÁo, de sob a camiza, um medalh„o de ouro. Tinha dentro uma
photographia de Rachel:--e a sua intenÁ„o agora era queimal-a, deitar ao
balde das agoas sujas as cinzas d'aquella paix„o. Mas, ao abrir o
medalh„o, a face bonita, banhada n'um sorriso, sob o vidro oval, pareceu
olhar para elle com uma tristeza no velludo das pupillas languidas... A
photographia mostrava apenas a cabeÁa, com uma abertura de decote no
comeÁo do vestido: e as recordaÁıes de Ega alargaram aquelle decote uma
vez mais, revendo o collo, o extraordinario setim da pelle, o
signalsinho sobre o seio esquerdo... O sabor dos seus beijos passou-lhe
de novo nos labios, sentiu n'alma outra vez como o ecco dos suspiros
canÁados que ella soltara nos seus braÁos. E ella ia-se embora, _nunca
mais_ a veria! Esta desolada amargura do _nunca mais_ revolveu-o todo--e
com a face enterrada no travesseiro, o pobre demagogo, o grande
phraseador soluÁou muito tempo no segredo da noite.

Toda essa semana foi dolorosa para o Ega. Logo ao outro dia Damaso
apparecera no Ramalhete, e por elle ouviram os rumores de Lisboa. J· se
sabia no Gremio, no Chiado, por toda a parte, que elle fÙra expulso da
casa dos Cohens. O urso, a pastora do Tyrol, testemunhas do episodio,
tinham-n'o badallado com enthusiasmo. Dizia-se mesmo que o Cohen lhe
dera um pontapÈ. Os amigos da casa, esses, sobretudo o Alencar, prÈgavam
com fervor a innocencia da sr.^a D. Rachel. O Alencar contava
publicamente que o Ega, provinciano inexperiente e le„o de Celorico,
tendo tomado por evidencias de paix„o os sorrisos de amabilidade de uma
senhora que recebe,--escrevera · sr.^a D. Rachel uma carta quasi
obscena, que ella, coitadinha, toda em lagrimas, viera mostrar ao
marido.

--Ent„o d„o-me para baixo, hein, Damaso? murmurou Ega que, no gabinete
de Carlos, embrulhado n'uma velha ulster, e encolhido n'uma poltrona,
escutava estas cousas com um ar canÁado e doente.

Damaso confessou que na sociedade lhe davam para baixo.

Ah, elle sabia-o bem! tinha antipathias em Lisboa. Ninguem lhe perdoara
ainda a pelissa. A sua verve, toda em sarcasmos, offendia. E era
desagradavel para muita gente que um homem, com esse espirito t„o
perigoso de ferro em braza, tivesse uma m„e rica, e fosse independente.

Depois, no sabbado seguinte, Carlos, ao voltar do jantar dos
Gouvarinhos--que fÙra excellente--contou-lhe a conversa que tivera com a
sr.^a condessa. A condessa fallara-lhe muito livremente, como um homem,
d'aquelle desastre do Ega. Tinha-se affligido muito, n„o sÛ pela Rachel,
coitada, de quem era amiga, mas pelo Ega, que ella apreciava tanto, t„o
interessante, t„o brilhante, e que sahia de tudo aquillo enxovalhado! O
Cohen dizia a todos (dissera-o ao Gouvarinho) que ameaÁ·ra o Ega de
pontapÈs, por elle ter escripto a sua mulher uma carta immunda. Os que
n„o sabiam nada, como o Gouvarinho, acreditavam, apertavam as m„os na
cabeÁa; e os que sabiam, os que havia seis mezes sorriam da intimidade
do Ega com os Cohens, affectavam tambem acreditar, cerravam os punhos de
indignaÁ„o. O Ega era odiado. E a pequena Lisboa, que vive entre o
Gremio e a casa Havaneza, folgava em ´enterrarª o Ega.

Ega, com effeito, sentia-se ´enterradoª. E n'essa noite declarou a
Carlos que decidira recolher-se · quinta da m„e, passar l· um anno a
acabar as _Memorias d'um Atomo_, e reapparecer em Lisboa com o seu livro
publicado, triumphando sobre a cidade, esmagando os mediocres. Carlos
n„o perturbou esta radiante illus„o.

Mas quando Ega, antes de partir, foÌ a recapitular os seus negocios de
casa, de dinheiro, encontrou-se diante de cousas abominaveis. Devia a
todo o mundo, desde o estofador atÈ ao padeiro; tinha tres letras a
vencer; aquellas dividas, se as deixasse, soltas e ladrando,
juntar-se-iam, na tagarallice publica, ao caso dos Cohens--e elle seria,
alÈm do amante ameaÁado de pontapÈs, o pelintra perseguido pelos
credores! Que havia de fazer, sen„o valer-se de Carlos? Carlos, para
regular tudo, emprestou-lhe dois contos de rÈis.

Depois, tendo despedido os criados da Villa Balzac, surgiram-lhe outras
complicaÁıes. A m„e do pagem veiu d'ahi a dias ao Ramalhete, muito
insolente, gritando que o filho lhe desapparecera! E era exacto: o
famoso pagem, pervertido pela cozinheira, sumira-se com ella para as
viellas da Mouraria, a comeÁar ahi uma divertida carreira de _faia_.

Ega recusou-se a attender ·s reclamaÁıes da matrona. Que diabo tinha
elle com essas torpezas?

Ent„o o amante da creatura interveiu, ameaÁadoramente, Era um policia,
um esteio da ordem: e deu a entender que lhe seria facil provar como na
Villa Balzac se passavam ´cousas contra a naturezaª, e que o pagem n„o
era sÛ para servir · meza... Nauseado atÈ · morte, Ega pacteou com a
intrugice, largou cinco libras ao policia. Quando n'essa noite, uma
noite triste d'agoa, Carlos e Craft o acompanharam a Santa Apolonia,
elle disse-lhes na carruagem estas palavras, triste resumo d'um amor
romantico:

--Sinto-me como se a alma me tivesse cahido a uma latrina! Preciso um
banho por dentro!


Affonso da Maia ao saber este desastre do Ega, tinha dito a Carlos, com
tristeza:

--M· estreia, filho, pessima estreia!

E n'essa noite, depois de voltar de Santa Apolonia, Carlos pensava
n'estas palavras, dizia tambem comsigo:--Pessima estreia!... E nem sÛ a
estreia do Ega era pessima; tambem a sua. E talvez, por pensar n'isso,
as palavras do avÙ tinham tido aquella tristeza. Pessimas estreias!
Havia seis mezes que o Ega chegara de Celorico, embrulhado na sua grande
pellissa, preparado a deslumbrar Lisboa com as _Memorias d'um Atomo_, a
dominal-a com a influencia de uma Revista, a ser uma luz, uma forÁa, mil
outras cousas... E agora, cheio de dividas e cheio de ridiculo, l·
voltava para Celorico, escorraÁado. Pessima estreia! Elle, por seu lado,
desembarcara em Lisboa, com idÈas collossaes de trabalho, armado como um
luctador: era o consultorio, o laboratorio, um livro iniciador, mil
cousas fortes... E, que tinha feito? Dois artigos de jornal, uma duzia
de receitas, e esse melancolico capitulo da _Medicina entre os Gregos_.
Pessima estreia!

N„o, a vida n„o lhe parecia promettedora, n'esse instante, passeiando na
sala de bilhar com as m„os nos bolsos, emquanto ao lado os amigos
conversavam, e fÛra uivava o sudoeste. Pobre Ega, que infeliz elle iria,
encolhido ao canto do seu wagon!.. Mas os outros, ali, n„o estavam mais
alegres. Craft e o Marquez tinham comeÁado uma conversa sobre a vida,
soturna e desconsoladora. De que servia viver, dizia Craft, n„o se sendo
um Livingstone ou um Bismark? E o Marquez, com um ar philosophico,
achava que o mundo se ia tornando estupido. Depois chegou o Taveira com
a historia horrivel d'um collega d'elle, cujo filho cahira pela escada,
se despedaÁara, no momento em que a mulher estava a morrer d'uma
pleurisia. Cruges resmungou o quer que fosse sobre suicidio. As palavras
arrastavam-se, melancolicas. Instinctivamente, Carlos, de vez em quando,
ia despertar as lampadas.

Mas tudo lhe pareceu resplandecer, quando d'ahi a instantes Damaso
chegou, e lhe disse que o Castro Gomes estava incommodado, e de cama.

--Naturalmente, accrescentou o Damaso, mandam-te chamar, por teres j·
visto a pequena...

Carlos ao outro dia n„o sahiu de casa, esperando um recado, faiscando
d'impaciencia. Nenhum recado veiu. E, duas tardes depois, ao descer para
o Aterro--o primeiro encontro que teve, ·s Janellas Verdes, foi o Castro
Gomes, de caleche descoberta, com a mulher ao lado, e a cadellinha no
collo.

Ella passou, sem o vÍr. E logo ali Carlos decidiu findar aquella
tortura, pedir muito simplesmente ao Damaso que o apresentasse ao Castro
Gomes, antes d'elle partir para o Brazil... N„o podia mais, precisava
ouvir a voz d'ella, vÍr o que os seus olhos diziam quando eram
interrogados de perto.

Mas toda essa semana achou-se, constantemente, sem saber como, na
companhia dos Gouvarinhos. ComeÁou por encontrar o conde, que lhe travou
do braÁo, arrastou-o · rua de S. MarÁal, installou-o n'uma poltrona, no
seu escriptorio, e leu-lhe um artigo que destinava ao _Jornal do
Commercio_ sobre a situaÁ„o dos partidos em Portugal: depois convidou-o
a jantar. Na tarde seguinte elles tinham uma partida de _croquet_.
Carlos foi. E, a uma janella, aberta sobre o jardim, teve um momento de
intimidade com a condessa, contou-lhe, rindo, como os cabellos d'ella o
tinham encantado, a primeira vez que a vira. N'essa noite, ella fallou
d'um livro de Tennyson, que n„o lera; Carlos offereceu-lh'o, foi-lh'o
levar ao outro dia, de manh„. Encontrou-a sÛ, toda vestida de branco: e
riam, baixavam j· a voz, as duas cadeias estavam mais juntas--quando o
escudeiro annunciou a sr.^a D. Maria da Cunha. Era uma cousa t„o
extraordinaria, a D. Maria da Cunha ·quella hora! Carlos, de resto,
gostava muito da D. Maria da Cunha, uma velha engraÁada, toda bondade,
cheia de sympathia por todos os peccados--e ella mesma muito peccadora
quando era a linda Cunha. D. Maria era muito falladora, parecia ter que
dizer em particular · condessa; e Carlos deixou-as, promettendo voltar
uma d'essas tardes tomar ch·, e fallar de Tennyson.

Na tarde em que elle se vestia para l· ir, Damaso appareceu-lhe no
quarto, a dar-lhe uma novidade que o enchia de desgosto e de ´ferroª. O
telhudo do Castro Gomes mud·ra de idÈa, j· n„o ia ao Brazil! Ficava ali,
no Central, atÈ ao meiado do ver„o! De sorte que estava tudo
estragado...

Carlos pensou logo em fallar da sua apresentaÁ„o ao Castro Gomes. Mas,
como em Cintra, sem saber porquÍ, veiu-lhe uma repugnancia de a conhecer
por meio do Damaso. E foi-se vestindo em silencio.

Damaso no entanto maldizia a sua _chance_:

--E eu que tinha mulher, eu que a tinha, se houvesse occasi„o. Mas que
diabo queres tu, assim?...

Queixou-se ent„o do Castro Gomes. Em resumo, era um telhudo. E a vida
d'aquelle homem era mysteriosa... Que diabo estava elle a fazer em
Lisboa? Ali havia difficuldades de dinheiro... E elles n„o se davam bem.
Na vespera houvera de certo quest„o. Quando elle entrara, ella estava
com os olhos vermelhos, e enfiada; e elle, nervoso, a passeiar pela
sala, a retorcer a barba... Ambos contrafeitos, uma palavra cada quarto
d'hora...

--Sabes tu? exclamou elle. Tenho minha vontade de os mandar · fava.

Queixou-se tambem d'ella. Era sobretudo muito desegual. Ora bom modo,
ora regelada; e, ·s vezes, elle dizia qualquer cousa muito natural,
d'estas cousas de conversa de sociedade, e ella punha-se a rir. Era de
encavacar, hein? Emfim, gente muito exquisita.

--Onde vaes tu? disse elle, com um suspiro de aborrecimento, vendo
Carlos pÙr o chapeu.

Ia tomar ch· com a Gouvarinho.

--Pois olha, vou comtigo... Estou d'uma secca!

Carlos hesitou um instante, terminou por dizer:

--Vem, fazes-me atÈ favor...

A tarde estava lindissima, Carlos ia no dog-cart.

--Ha que tempos que n„o damos assim um passeio juntos, disse Damaso.

--Tu andas l· mettido com estrangeiros!...

Damaso deu outro suspiro, e n„o tornou a dizer mais nada. Depois, ·
porta dos Gouvarinhos, quando soube que a sr.^a condessa recebia,
resolveu subitamente n„o entrar. N„o, n„o entrava. Estava muito
estupido, incapaz de achar uma palavra...

--Ah, e outra cousa que me lembrou agora, exclamou elle, demorando ainda
Carlos diante do port„o. O Castro Gomes, hontem, perguntou-me o que te
havia de mandar pela visita · pequena... Eu disse que tu tinhas ido l·
por favor, como meu amigo. E elle disse que te havia de vir deixar um
bilhete... Naturalmente vens a conhecel-os.

N„o era, pois, necessario que Damaso o apresentasse!

--Apparece · noite, Damasosinho, vai l· jantar ·manh„! exclamou Carlos,
subitamente radiante, dando um ardente aperto de m„o ao seu amigo.

Quando entrou na sala, um escudeiro acabava de servir ch·. A sala,
forrada d'um papel severo, verde e ouro, com retratos de familia em
caixilhos pesados, abria por duas varandas sobre a folhagem do jardim.
Em cima das mezas havia cestos de flÙres. No soph·, duas senhoras de
chapeu, ambas de preto, conversavam, com a chavena na m„o. A condessa,
ao estender os dedos a Carlos, ficara t„o cÙr de rosa--como a seda
acolchoada da cadeira em que estava recostada, ao pÈ d'um velador de pau
santo. Notou logo, sorrindo, o ar radiante de Carlos. Que lhe tinha
acontecido de bom? Carlos sorriu tambem, disse que n„o era possivel
entrar ali com outro ar. Depois perguntou pelo conde...

O conde ainda n„o apparecera, detido de certo na camara dos pares, onde
se discutia o projecto sobre a Reforma da InstrucÁ„o Publica.

Uma das senhoras de preto fazia votos para que se alliviassem os
estudos. As pobres creanÁas succumbiam verdadeiramente · quantidade
exaggerada de materias, de cousas a decorar: o d'ella, o Jo„osinho,
andava t„o pallido e t„o desfigurado, que ella ·s vezes tinha vontade de
o deixar ficar ignorante de todo. A outra senhora pousou a chavena sobre
um console ao lado, e passando sobre os labios a renda do lenÁo,
queixou-se sobretudo dos examinadores. Era um escandalo as exigencias,
as difficuldades que punham, sÛ para poder deitar RR... Ao pequeno
d'ella tinham feito as perguntas mais estupidas, as mais reles; assim,
por exemplo, o que era o sab„o, porque lavava o sab„o?...

A outra senhora e a condessa apertaram as m„os contra o peito,
consternadas. E Carlos, muito amavel, concordou que era uma abominaÁ„o.
O marido d'ella--continuava a dama de preto--ficara t„o desesperado que,
encontrando o examinador no Chiado, o ameaÁou de lhe dar bengaladas. Uma
imprudencia, de certo; mas, emfim, o homem fÙra malvado!... N„o havia
verdadeiramente sen„o uma cousa digna de se estudar, eram as linguas.
Parecia insensato que se torturasse uma creanÁa com botanica,
astronomia, physica... Para que? Cousas inuteis na sociedade. Assim, o
pequeno d'ella, agora, tinha liÁıes de chimica... Que absurdo! Era o que
o pae dizia--para que, se elle o n„o queria para boticario?

Depois d'um silencio, as duas senhoras ergueram-se ao mesmo tempo; e
houve um murmurio de beijos, um frou-frou de sedas.

Carlos ficou sÛ com a sr.^a condessa, que reoccupara a sua cadeira cÙr
de rosa.

Immediatamente ella perguntou pelo Ega.

--Coitado, l· est· para Celorico.

Ella protestou, com um lindo riso, contra aquella phrase t„o feia ´l·
est· para Celoricoª N„o, n„o queria... Coitado do Ega! Merecia uma
melhor oraÁ„o funebre. Celorico era horrÌvel para um fim de romance...

--De certo, exclamou Carlos, rindo tambem, era mais bello dizer-se: _l·
est· para Jerusalem!_

N'esse momento o criado annunciou um nome, e appareceu o amigo Telles da
Gama, um intimo da casa. Quando soube que o conde devia estar ainda
batalhando sobre a Reforma da InstrucÁ„o, levou as m„os · cabeÁa como
lamentando um t„o feio desperdicio de tempo, e n„o se quiz demorar. N„o,
nem mesmo o excellente ch· da sr.^a condessa o tentava. A verdade era
que estava t„o abandonado da graÁa de Deus, perdera de tal modo o
sentimento das cousas bellas, que entrara, n„o para vÍr a sr.^a
condessa--mas simplesmente fallar ao conde. Ent„o ella teve um bonito ar
de princeza offendida, perguntou a Carlos se uma t„o rude sinceridade de
montanhez n„o fazia saudades das maneiras polidas do antigo regimen. E
Telles da Gama, gingando de leve, declarava-se democrata, homem da
natureza, com um riso que lhe mostrava dentes magnificos. Depois, ao
sair, dando um _shake-hands_ ao amigo Maia, quiz saber quando o principe
de S.^t Olavia lhe dava emfim a honra de vir jantar com elle. A sr.^a
condessa indignou-se. N„o, era realmente de mais! Fazer convites, na sua
sala, diante d'ella,--um homem que fallava tanto da sua cozinheira
allem„, e nem sequer lhe offerecera j·mais um prato de chou-crÙute!

Telles da Gama, rindo sempre e gingando, jurou que andava a arranjar a
sua sala de jantar para dar · sr.^a condessa uma festa, que havia de
ficar nos annaes do reino! Agora com o Maia era differente: jantavam
ambos na cozinha, com os pratos sobre os joelhos. E abalou, gingando
sempre, rindo ainda da porta, mostrando os dentes magnificos.

--Muito alegre, este Gama, n„o È verdade? disse a condessa.

--Muito alegre, disse Carlos.

Ent„o a condessa olhou o relogio. Eram cinco e meia, ·quella hora ella
j· n„o recebia: podiam, emfim, conversar um momento, em boa camaradagem.
E, o que houve, foi um silencio lento, em que os olhos de ambos se
encontraram. Depois Carlos perguntou por Charlie, o seu lindo doente.
N„o estava bem, com uma ligeira tosse apanhada no passeio da Estrella.
Ah, aquella creanÁa nunca deixava de lhe dar o cuidado! Ficou callada,
com o olhar esquecido no tapete, movendo languidamente o leque: tinha
n'essa tarde uma toilette exaggerada, d'um tom de folha de outono
amarellada, d'uma seda grossa, que ao menor movimento fazia um ruge-ruge
de folhas seccas.

--Que lindo tempo tem feito! exclamou ella de repente, como acordando.

--Lindo! disse Carlos. Eu estive ha dias em Cintra, e n„o imagina... Era
d'uma belleza de idyllio.

E immediatamente arrependeu-se, quiz-se mal por ter fallado da sua ida a
Cintra, n'aquella sala.

Mas a condessa mal o escut·ra. Tinha-se erguido, fallando de algumas
canÁıes que essa manh„ recebera de Inglaterra, as novidades frescas da
_season_. Depois, sentou-se ao piano, correu os dedos no teclado,
perguntou a Carlos se conhecia aquella melodia--_The pale star_. N„o,
Carlos n„o conhecia. Mas todas essas canÁıes inglezas se parecem, sempre
do mesmo tom dolente, romanesco, e muito _miss_. E trata-se sempre d'um
parque melancolico, um regato lento, um beijo sob os castanheiros...

Ent„o a condessa leu alto a letra da _Pale star_. E era a mesma cousa,
uma estrellinha de amor palpitando no crepusculo, um lago pallido, um
timido beijo sob as arvores...

--… sempre o mesmo, disse Carlos, e È sempre delicioso.

Mas a condessa atirou o papel para o lado, achando aquillo estupido.
ComeÁou a remexer entre os papeis de musica, nervosa, e com um olhar que
escurecia. Para quebrar o silencio, Carlos gabou-lhe as suas lindas
flores.

--Ah, vou-lhe dar uma rosa! exclamou ella logo, deixando as musicas.

Mas, a flÙr que ella lhe queria dar estava no _boudoir_, ao lado. Carlos
seguiu a sua grande cauda, onde corria um reflexo dourado de folhagem de
outono batida do sol. Era um gabinete forrado de azul, com um bonito
tremÛ do seculo XVIII, e sobre um forte pedestal de carvalho, o busto em
barro do conde, na sua express„o de orador, a fronte erguida, a gravata
desmanchada, o labio fremente...

A condessa escolheu um bot„o com duas folhas, e ella mesmo lhe veiu
florir a sobrecasaca. Carlos sentia o seu aroma de verbena, o calor que
subia do seu seio arfando com forÁa. E ella n„o acabava de prender a
flÙr, com os dedos tremulos, lentos, que pareciam collar-se, deixar-se
adormecer sobre o panno...

--_Voila!_ murmurou emfim, muito baixo. Ahi est· o meu bello cavalleiro
da Rosa Vermelha... E agora, n„o me agradeÁa!

Insensivelmente, irresistivelmente, Carlos achou-se com os labios nos
labios d'ella. A seda do vestido roÁava-lhe, com um fino ruge-ruge entre
os braÁos;--e ella pendia para traz a cabeÁa, branca como uma cera, com
as palpebras docemente cerradas. Elle deu um passo, tendo-a assim
enlaÁada, e como morta; o seu joelho encontrou um soph· baixo, que rolou
e fugiu. Com a cauda de seda enrolada nos pÈs, Carlos seguiu,
tropeÁando, o largo soph·, que rolou, fugiu ainda, atÈ que esbarrou
contra o pedestal onde o sr. conde erguia a fronte inspirada. E um longo
suspiro morreu, n'um rumor de saias amarrotadas.

D'ahi a um momento estavam ambos de pÈ: Carlos, junto do busto, coÁando
a barba, com o ar embaraÁado, e j· vagamente arrependido: ella, diante
do tremÛ Luiz XV, compondo, com os dedos tremulos, o frisado do cabello.
De repente, na antecamara, ouviu-se a voz do conde. Ella, bruscamente,
voltou-se, correu a Carlos, e, com os longos dedos cobertos de
pedrarias, agarrou-lhe o rosto, atirou-lhe dois beijos faiscantes ao
cabello e aos olhos. Depois, sentou-se largamente no soph·--e estava
fallando de Cintra, rindo alto, quando o conde entrou, seguido de um
velho calvo, que se vinha a assoar a um enorme lenÁo de seda da India.

Ao vÍr Carlos no _boudoir_, o conde teve uma bella surpreza, esteve-lhe
apertando as m„os muito tempo, com calor, assegurando-lhe que ainda
n'essa manh„, na camara, se lembrara d'elle...

--Ent„o, por que vieram t„o tarde? exclamou a condessa, que se apoderara
logo do velho, rindo, mexendo-se, animada, amavel.

--O nosso conde fallou! disse o velho, ainda com o olho brilhante de
enthusiasmo.

--Fallaste? exclamou ela, voltando-se com um interesse encantador.

… verdade, fallara; e desprevenido! Quando ouvira porÈm o Torres Valente
(homem de litteratura, mas um doido, sem senso pratico) quando o ouvira
defender a gymnastica obrigatoria nos collegios--erguera-se. Mas n„o
imaginasse o amigo Maia, que elle tinha feito um discurso.

--Ora essa! exclamou o velho, agitando o lenÁo. E um dos melhores que eu
tenho ouvido na camara! Dos de arromba!

O Conde modestamente protestou. N„o: tinha simplesmente lanÁado uma
palavra de bom senso, e de bom principio. Perguntara apenas ao seu
illustre amigo, o sr. Torres Valente, se na sua idÈa, os nossos filhos,
os herdeiros das nossas casas, estavam destinados para palhaÁos!...

--Ah, esta piada, sr.^a condessa! exclamou o velho. Eu sÛ queria que v.
ex.^a ouvisse esta piada... E como elle a disse! com um _chic!_

O conde sorriu, agradeceu para o lado, ao velho. Sim, dissera-lhe
aquillo. E, respondendo a outras reflexıes do Torres Valente, que n„o
queria nos lyceus, nem nos collegios, um ensino ´todo impregnado de
cathecismoª, elle lanÁara-lhe uma palavra cruel.

--Terrivel, exclamou o velho n'um tom cavo, preparando o lenÁo para se
assoar outra vez.

--Sim, terrivel... Voltei-me para elle, e disse-lhe isto... ´Creia o
digno par, que nunca este paiz retomar· o seu logar ‡ testa da
civilisaÁ„o, se, nos lyceus, nos collegios, nos estabelecimentos de
instrucÁ„o, nÛs outros os legisladores formos, com m„o impia, substituir
a cruz pelo trapezio...

--Sublime, rosnou o velho, dando um ronco medonho dentro do lenÁo.

Carlos, erguendo-se, declarou aquillo d'uma ironia adoravel.

E o conde, quando elle se despediu, n„o se contentou com um simples
aperto de m„o, passou-lhe o braÁo pela cinta, chamou-lhe o seu querido
Maia. A condessa sorria, com o olhar ainda humido, um resto de pallidez,
movendo o leque languidamente, recostada em duas almofadas do
soph·--debaixo do busto do marido que erguia a fronte inspirada.




X


Tres semanas depois, por uma tarde quente, com um ceu triste de
trovoada, e no momento em que estavam cahindo algumas gotas grossas de
chuva,--Carlos apeava-se d'um coupÈ de praÁa, que viera parar, de vagar,
· esquina da Patriarchal, com os stores verdes mysteriosamente corridos.
Dous sujeitos que passavam sorriram-se, como se o vissem escoar-se
desgeitosamente d'uma portinha suspeita. E com effeito a velha
traquitana de rodas amarellas acabava de ser uma alcova d'amor,
perfumada de verbena, durante as duas horas que Carlos rolara dentro
d'ella, pela estrada de Queluz, com a sr.^a condessa de Gouvarinho.

A condessa tinha descido no largo das Amoreiras. E Carlos aproveitara a
solid„o da Patriarchal para se desembaraÁar do calhambeque d'assento
duro, onde durante a ultima hora suffoc·ra, sem ousar descer as
vidraÁas, com as pernas adormecidas, enfastiado de tantas sedas
amarrotadas e dos beijos interminaveis que ella lhe dava na barba...

AtÈ ahi, durante essas tres semanas, tinham-se encontrado n'uma casa da
rua de Santa Izabel, pertencente a uma tia da condessa que fÙra para o
Porto com a criada, deixando-lhe a chave da casa e o cuidado do gato. A
boa titi, uma velha pequenina, chamada miss Jones, era uma santa, uma
apostola militante da Egreja Anglicana, missionaria da Obra da
Propaganda; e todos os mezes fazia assim uma viagem de cathechisaÁ„o ·
provincia, distribuindo Biblias, arrancando almas · treva catholica,
purificando (como ella dizia) o tremedal papista... J· na escada havia
um cheirinho adocicado e triste a devoÁ„o e a virgem velha: e no patamar
pendia um largo cart„o, com um distico em letras de ouro entrelaÁadas de
lyrios roxos, rogando aos que entravam que preserverassem nas vias do
Senhor! Carlos entrou, tropeÁando logo n'um mont„o de Biblias. O quarto
todo era um ninho de Biblias; havia-as ·s pilhas por cima dos moveis,
transbordando de velhas chapelleiras, misturadas a pares de galochas,
cahidas para o fundo da bacia d'assento, todas do mesmo formato,
entaladas n'uma encadernaÁ„o negra como n'uma armadura de combate,
carrancudas e aggressivas! As paredes resplandeciam, forradas de
cartonagens impressas em lettras de cÙr, irradiando versiculos duros da
Biblia, asperos conselhos de moral, gritos dos psalmos, ameaÁas
insolentes do inferno... E no meio d'esta religiosidade anglicana, ·
cabeceira d'um leitosinho de ferro, rigido e virginal, duas garrafas
quasi vasias de cognac e de gin, Carlos bebeu o gin da santa; e o leito
rigido ficou revolto como um campo de batalha.

Depois a condessa comeÁou a ter medo d'uma visinha, uma Borges, que
visitava a titi, e era viuva de um antigo procurador dos Gouvarinhos.
Uma occasi„o em que, no casto leito de miss Jones, elles fumavam
languidamente cigarrilhas, tres enormes argoladas · porta atroaram a
casa. A pobre condessa quasi desmaiou; Carlos, correndo · janella, viu
um homem que se affastava, com uma estatueta de gesso na m„o, outras
dentro d'um cesto. Mas a condessa jurava que fÙra a Borges quem mand·ra
o italiano das imagens atirar-lhes para dentro aquellas aldrabadas, como
tres avisos, tres rebates da Moral... N„o quizera voltar mais ao
beatifico cutÈ da titi. E n'essa tarde, como n„o havia ainda outro
escondrijo, tinham abrigado os seus amores dentro d'aquella tipoia de
praÁa.

Mas Carlos vinha de l· enervado, amollecido, sentindo j· na alma os
primeiros bocejos da saciedade. Havia tres semanas apenas que aquelles
braÁos perfumados de verbena se tinham atirado ao seu pescoÁo,--e agora,
pelo passeio de S. Pedro d'Alcantara, sob o ligeiro chuvisco que batia
as folhagens da alameda, elle Ìa pensando como se poderia desembaraÁar
da sua tenacidade, do seu ardor, do seu peso... … que a condessa Ìa-se
tornando absurda com aquella determinaÁ„o anciosa e audaz de invadir
toda a sua vida, tomar n'ella o logar mais largo e mais profundo--como
se o primeiro beijo trocado tivesse unido n„o sÛ os labios de ambos um
momento, mas os seus destinos tambem e para sempre. N'essa tarde l·
tinham voltado as palavras que ella balbuciava, cahida sobre o seu
peito, com os olhos affogados n'uma ternura supplicante: _Se tu
quizesses! que felizes que seriamos! que vida adoravel! ambos sÛs!_... E
isto era claro--a condessa concebera a idÈa extravagante de fugir com
elle, ir viver n'um sonho eterno de amor lyrico, n'algum canto do mundo,
o mais longe possivel da rua de S. MarÁal! _Se tu quizesses!_ N„o, com
mil demonios, n„o queria fugir com a sr.^a condessa de Gouvarinho!...

E n„o era sÛ isto--mas ainda exigencias, egoismos, explosıes tumultuosas
d'um temperamento cioso: j· mais de uma vez, n'essas duas curtas
semanas, por pieguices, ella desproposit·ra, fallara de morrer,
debulhada em lagrimas... Ah! nas lagrimas havia ainda uma
voluptuosidade, faziam parecer mais tenro o setim do seu collo! O que o
inquietava eram certos clarıes que lhe sulcavam o rosto, um dardejar
nervoso dos olhos seccos, revelando a paix„o que se accendera n'aquelles
nervos de mulher de trinta e tres annos, e a queimava atÈ ·s
profundidades do seu ser... Certamente este amor punha na sua vida um
luxo mais, e um perfume. Mas o seu encanto estava em conservar-se facil,
sereno, sem penetrar mais fundo que a epiderme. Se ella, por qualquer
cousa, tinha os olhos turvos d'agua, e fallava em morrer, e torcia os
braÁos, e queria fugir com elle--ent„o adeus! Tudo estava estragado; e a
sr.^a condessa com a sua verbena, os seus cabellos cÙr de braza, e o seu
pranto, era apenas um trambolho!

O chuveiro parara, um bocado d'azul lavado appareceu entre nuvens. E
Carlos descia a rua de S. Roque--quando encontrou o marquez, sahindo
d'uma confeitaria, tristonho, com um embrulho na m„o, e o pescoÁo
abafado n'um enorme cache-nez de seda branca.

--Que È isso? ConstipaÁ„o? perguntou Carlos.

--Tudo, disse o marquez, pondo-se a caminhar ao lado d'elle com uma
lentid„o de moribundo. Deitei-me tarde. CanÁasso. Oppress„o no peito.
Pigarreira. DÙres no lado. Um horror... Levo j· aqui rebuÁados.

--N„o seja piegas, homem! VocÍ o que precisa È roast-beef e uma garrafa
de Borgonha... N„o È hoje que vocÍ janta l· no Ramalhete?... …, atÈ tem
l· o Craft e o Damaso... Ent„o descemos por essa rua do Alecrim, que j·
n„o chove, depois pelo Aterro fÛra, a passo gymnastico, e em chegando l·
vocÍ est· curado.

O pobre marquez encolheu os hombros. Apenas sentia o menor encommodo,
uma dÙr, um arrepio, considerava-se logo, como elle dizia, _liquidado_.
O mundo comeÁava a findar para elle: tomavam-no terrores catholicos, uma
preoccupaÁ„o angustiosa da Eternidade. N'esses dias fechava-se no quarto
com o padre capell„o--com quem ·s vezes, todavia, terminava por jogar as
damas.

--Em todo o caso, disse elle, tirando cautelosamente o chapeu ao passar
pela porta aberta da egreja dos Martyres, deixe-me vocÍ ir primeiro ao
Gremio... Quero escrever · Manoeleta que n„o conte comigo esta noite...

Depois, distrahida e melancolicamente, perguntou noticias d'esse devasso
do Ega. Esse devasso do Ega l· estava em Celorico, na quinta materna,
ouvindo arrotar o padre Seraphim, e refugiando-se, segundo dizia, na
grande arte: andava a compor uma comedia em cinco actos, que se devia
chamar o _LodaÁal_--escripta para se vingar de Lisboa.

--O peor, murmurou o marquez, depois de um silencio, e abafando-se mais
no cache-nez, È se eu estou assim no domingo para as corridas!

--O quÍ! exclamou Carlos, ent„o as corridas s„o j· no domingo?

O marquez foi-lhe explicando, em quanto desciam o Chiado, que as
corridas se tinham apressado a pedido do Clifford, o grande _sportman_
de Cordova, que devia trazer dois cavallos inglezes... Era um bocado
humilhante depender do Clifford. Mas emfim o Clifford era um _gentleman_
e com os seus cavallos de raÁa, os seus jockeys inglezes, constituia a
unica feiÁ„o sÈria do Hyppodromo de Belem. Sem o Clifford aquillo era
uma brincadeira de pilecas e d'_abas_...

--VocÍ n„o conhece o Clifford?.. Bello rapaz! Um pouco _poseur_, mas
oiro de lei.

Tinham entrado no pateo do Gremio, o marquez estendeu o braÁo a Carlos.

--Veja esse pulso!

--O pulso est· excellente... V· vocÍ dar l· esse golpe · Manoela, que eu
fico aqui · espera.

No domingo pois, d'ahi a cinco dias, eram as corridas... E _ella_
estaria l·, elle ia conhecel-a, emfim! Durante essas tres ultimas
semanas vira-a duas vezes: uma occasi„o, estando a conversar com o
Taveira · porta do hotel Central, ella chegara a uma das varandas, de
chapeu, calÁando uma grande luva preta; d'outra vez, havia dias, por uma
tarde de chuva, ella viera parar · porta do Mour„o, ao Chiado, n'um
coupÈ da Companhia, e ficara esperando emquanto o trintanario levava
dentro · loja um embrulho que tinha a fÛrma d'um cofre, apertado com uma
fita vermelha. D'ambas as vezes ella vira-o, demorara os olhos n'elle um
momento: e parecera a Carlos que o ultimo olhar se prolongara mais, como
abandonando-se, humedecendo-se, n'uma leve doÁura, ao pousar no seu...
Era talvez uma illus„o; mas isto decidiu-o, na sua impaciencia, a
realisar a antiga idÈa (ainda que desagradavel) de ser apresentado pelo
Damaso ao Castro Gomes. O pobre Damaso, ao principio, diante d'esta
exigencia, ficou perturbado; e com um ar de c„o que defende o seu osso,
lembrou logo a Carlos o deploravel comportamento do Castro Gomes, que
n„o viera como lh'o annunciara, havia tres semanas, deixar o seu cart„o
ao Ramalhete... Mas Carlos desdenhava essas formalidades estreitas entre
rapazes: o Castro Gomes parecia-lhe um homem de gosto e de _sport_; nem
todos os dias apparecia em Lisboa quem soubesse dar com correcÁ„o o nÛ
da gravata; e seria agradavel, mesmo para elle Damaso, reunirem-se todos
de vez em quando, com o Craft, com o marquez, a fumar um charuto e a
fallar de cavallos. Isto decidiu Damaso, que terminou por propÙr a
Carlos o leval-o uma tarde ao hotel Central. Carlos porÈm n„o queria
entrar pelo hotel dentro, de chapeu na m„o, atraz do Damaso. Resolveram
ent„o esperar pelas corridas, onde os Castro Gomes tencionavam ir. ´Ahi,
no recinto da pesagem, disse o Damaso, a apresentaÁ„o È mais _chic_... …
mesmo pÙdre de _chic_.ª

--Deus queira com effeito que n„o chova no domingo, murmurou Carlos
quando o marquez desceu, mais tristonho, mais abafado no seu cache-nez.

Foram seguindo pelo meio da rua, em direcÁ„o ao Ferregial. Adiante do
Gremio, encostado ao passeio, estava um coupÈ da Companhia, com um
trintanario de luvas brancas esperando junto ao portal. Carlos olhou,
casualmente; e viu, debruÁado · portinhola, um rosto de creanÁa, d'uma
brancura adoravel sorrindo-lhe, com um bello sorriso que lhe punha duas
covinhas na face. Reconheceu-a logo. Era Rosa, era Rosicler: e ella n„o
se contentou em sorrÌr, com o seu doce olhar azul fugindo todo para
elle,--deitou a m„osinha de fÛra, atirou-lhe um grande adeus. No fundo
do coupÈ, forrado de negro, destacava um perfil claro d'estatua, um tom
ondeado de cabello louro. Carlos tirou profundamente o chapeu, t„o
perturbado, que os seus passos hesitaram. _Ella_ abaixou a cabeÁa, de
leve; alguma cousa de luminoso, um confuso rubor d'emoÁ„o,
espalhou-se-lhe no rosto. E fugitivamente foi como se, da m„e e da
filha, ao mesmo tempo, viesse para elle uma suave e quente emanaÁ„o de
sympathia.

--Caramba, aquillo pertence-lhe? perguntou o marquez, que notara a
impress„o de Madame Gomes.

Carlos cÛrou.

--N„o, È uma senhora brazileira a quem eu curei aquella pequerrucha...

--Irra! que gratid„o! rosnou o outro de dentro das dobras do seu
cachenez.

Caminhando em silencio pelo Ferregial, Carlos revolvia uma idÈa que lhe
viera de repente, ao receber aquelle doce olhar. Por que È que Damaso
n„o levaria uma manh„ o Castro Gomes aos Olivaes, a vÍr as collecÁıes do
Craft?... Elle estaria l·, abria-se uma garrafa de Champagne, discutiam
_bric-‡-brac_. Depois, muito naturalmente, elle convidava Castro Gomes a
almoÁar no Ramalhete, para lhe mostrar o grande Rubens, e as suas velhas
colxas da India. E assim, j· antes das corridas existiria entre elles
uma camaradagem, talvez um tratamento de _vocÍ_.

No Aterro, temendo o ar do rio, o marquez quiz tomar uma tipoia; e, atÈ
ao Ramalhete, continuaram callados. O marquez, outra vez inquieto,
apalpava a garganta. Carlos discutia complicadamente comsigo aquella
lenta inclinaÁ„o de cabeÁa, o olhar d'ella, o vivo rubor fugitivo...
Ella atÈ ahi n„o o conhecia talvez. Mas, depois de atirar o seu grande
_adeus_, Rosa, ainda sorrindo, voltara-se para a m„e, a dizer-lhe
decerto que aquelle era o medico que a curara, a ella e · boneca... E
ent„o a linda cÙr que lhe enternecera o rosto tomava uma significaÁ„o
mais profunda--era como a surpreza feliz, o enleio casto, ao saber que o
homem que ella not·ra j· de algum modo tinha penetrado na sua
intimidade, beijara a sua filha, se tinha mesmo sentado · beira do seu
leito...

Depois ia refazendo o plano da visita aos Olivaes, mais largo agora,
mais brilhante. Porque n„o iria ella tambem vÍr as curiosidades do
Craft? Que tarde encantadora, que festa, que lindo idyllio! O Craft
arranjava um _lunch_ delicado no seu velho serviÁo de Wedgewood. Elle
ficava · meza junto d'ella. Depois iam vÍr o jardim j· em flÙr; ou
tomavam ch· no pavilh„o japonez, forrado de esteiras. Mas, o que mais
lhe appetecia era percorrer com ella as duas salas de Craft, parando
ambos diante d'uma bella faienÁa ou d'um movel raro, e sentindo, atravez
da concordancia dos seus gostos, subir, como um perfume, a sympathia dos
seus coraÁıes... Nunca a vira t„o formosa como n'essa tarde, dentro do
coupÈ forrado de escuro, onde brilhava mais puramente a brancura do seu
perfil. Sobre o regaÁo do vestido negro pousava o tom claro das suas
luvas; e no chapÈo frisava-se a ponta de uma penna cor de neve.

A tipoia parara ao port„o do Ramalhete, estavam agora entre as
silenciosas tapessarias da ante-camara.

--Como È que ella conhece os Cruges? perguntou de repente o marquez, com
um tom desconfiado, desembaraÁando-se do cache-nez.

Carlos olhou para elle, como mal acordado.

--Ella quem? Aquella senhora? Como conhece o Cruges?... Homem, sim, tem
vocÍ raz„o!.. Aquella era a casa do Cruges! a carruagem estava parada ‡
porta do Cruges!.. Talvez alguem que mÛre n'outro andar.

--N„o mÛra ninguem, disse o marquez, dando um passo para o corredor. Em
todo o caso, È um mulher„o.

Carlos achou a palavra odÌosa.

Do corredor ouvia-se j· no escriptorio de Affonso, atravez da porta
aberta, a voz petulante do Damaso fallando alto d'_handicap_ e de
_dead-beat_... E foram-n'o encontrar discursando sobre as corridas, com
convicÁ„o, com auctoridade, como membro do Jockey-Club. Affonso, na sua
velha poltrona, escutava-o, cortez e risonho, com o reverendo Bonifacio
no collo. Ao canto do soph·, Craft folheava um livro.

E o Damaso appellou logo para o marquez. N„o era verdade, como elle
estivera dizendo ao sr. Affonso da Maia, que iam ser as melhores
corridas que se tinham feito em Lisboa? SÛ para o grande premio nacional
de seiscentos mil rÈis havia oito cavallos inscriptos! E alÈm d'isso, o
Clifford trazia a _Mist_.

--Ah, È verdade, oh marquez, È necessario que vocÍ appareÁa sexta-feira
· noite no Jockey-Club, para acabarmos o _handicap_!

O marquez arrastara uma cadeira para o pÈ de Affonso, para lhe fazer a
confidencia dos seus achaques; mas como Damaso se mettia entre elles,
fallando ainda da _Mist_, decidindo que a _Mist_ era chic, querendo
apostar cinco libras pela _Mist_ contra o campo--o marquez terminou por
se voltar, enfastiado, dizendo que o sr. Damazosinho se estava a dar
ares patuscos... Apostar pela _Mist_! Todo o patriota devia apostar
pelos cavallos do visconde de Darque, que era o unico criador
portuguez!...

--Pois n„o È verdade, sr. Affonso da Maia?

O velho sorrio, amaciando o seu gato.

--O verdadeiro patriotismo talvez, disse elle, seria, em logar de
corridas, fazer uma boa tourada.

Damazo levou as m„os · cabeÁa. Uma tourada! Ent„o o sr. Affonso da Maia
preferia touros a corridas de cavallos? O sr. Affonso da Maia, um
inglez!...

--Um simples beir„o, sr. Salcede, um simples beir„o, e que faz gosto
n'isso; se habitei a Inglaterra È que o meu rei, que era ent„o, me pÙz
fÛra do meu paiz... Pois È verdade, tenho esse fraco portuguez, prefiro
touros. Cada raÁa possue o seu _sport_ proprio, e o nosso È o toiro: o
toiro com muito sol, ar de dia santo, agua fresca, e foguetes... Mas
sabe o sr. Salcede qual È a vantagem da toirada? … ser uma grande escola
de forÁa, de coragem e de destreza... Em Portugal n„o ha instituiÁ„o que
tenha uma importancia egual · tourada de curiosos. E acredite uma cousa:
È que se n'esta triste geraÁ„o moderna ainda ha em Lisboa uns rapazes
com certo musculo, a espinha direita, e capazes de dar um bom socco,
deve-se isso ao touro e · tourada de curiosos...

O marquez enthusiasmado bateu as palmas. Aquillo È que era fallar!
Aquillo È que era dar a philosophia do toiro! Est· claro que a tourada
era uma grande educaÁ„o phisica! E havia imbecis que fallavam em acabar
com os touros! Oh, estupidos, acabaes ent„o com a coragem portugueza!...

--NÛs n„o temos os jogos de destresa das outras naÁıes, exclamava elle,
bracejando pela sala e esquecido dos seus males. N„o temos o _cricket_,
nem o _foot-ball_, nem o _running_, como os inglezes: n„o temos a
gymnastica como ella se faz em FranÁa; n„o temos o serviÁo militar
obrigatorio que È o que torna o allem„o solido... N„o temos nada capaz
de dar a um rapaz um bocado de fibra. Temos sÛ a tourada... Tirem a
tourada, e n„o ficam sen„o badamecos derreados da espinha, a mellarem-se
pelo Chiado! Pois vocÍ n„o acha, Craft?

Craft, do canto do soph·, onde Carlos se fÙra sentar e lhe fallava
baixo, respondeu, convencido:

--O que, o touro? Est· claro! o touro devia ser n'este paiz como o
ensino È l· fÛra: gratuito e obrigatorio.

Damazo no entanto jurava a Affonso compenetradamente que gostava tambem
muito de touros. Ah l· n'essas cousas de patriotismo ninguem lhe levava
a palma... Mas as corridas tinham outro _chic_! Aquelles _Bois de
Boulogne_, n'um dia de _Grand-Prix_, hein!... Era de embatucar!

--Sabes o que È pena? exclamou elle voltando-se de repente para Carlos.
… que tu n„o tenhas um _four-in-hand_, um _mail coach_. Iamos todos
d'aqui, cahia tudo de chic!

Carlos pensou tambem comsigo que era uma pena n„o ter um _four-in-hand_.
Mas gracejou, achando mais em harmonia com o Jockey Club da travessa da
ConceiÁ„o irem todos dentro d'um omnibus.

Damazo voltou-se para o velho, deixando cahir os braÁos, descorÁoado:

--Ahi est·, sr. Affonso da Maia! Ahi est· por que em Portugal nunca se
faz nada em termos! … por que ninguem quer concorrer para que as cousas
saiam bem... Assim n„o È possivel! Eu c· entendo isto: que n'um paiz,
cada pessoa deve contribuir, quanto possa, para a civilisaÁ„o.

--Muito bem, sr. Salcede! disse Affonso da Maia. Eis ahi uma nobre, uma
grande palavra!

--Pois n„o È verdade? gritou Damazo, triumphante, a estoirar de goso.
Assim eu, por exemplo...

--Tu, o quÍ? exclamaram dos lados. Que fizeste, tu pela civilisaÁ„o?...

--Mandei fazer para o dia das corridas uma sobrecasaca branca... E vou
de vÈo azul no chapÈo!

Um escudeiro entrou com uma carta para Affonso, n'uma salva. O velho,
sorrindo ainda das idÈas de Damaso sobre a civilisaÁ„o, puxou a luneta,
leu as primeiras linhas; toda a alegria lhe morreu no rosto, ergueu-se
logo, tendo depositado cuidadosamente sobre a sua almofada o pesado
Bonifacio.

--Isto È que È ter gosto, isto È que È comprehender as cousas! exclamava
o Damaso, agitando os braÁos para Carlos, quando o velho desappareceu
atravez do reposteiro de damasco. Este teu avÙ, menino, È podre de
chic!..

--Deixa l· o chic do avÙ... Anda c·, que te quero dizer uma cousa.

Abriu uma das janellas do terraÁo, levou para l· o Damaso, e disse-lhe
ahi, · pressa, o seu plano da visita aos Olivaes, e a linda tarde que
poderiam passar na quinta com os Castro Gomes... Elle j· fallara ao
Craft, que estava de accordo, achava delicioso, ia encher tudo de
flores. E agora sÛ restava que Damaso amigo, como amabilidade sua,
convidasse os Castro Gomes...

--Caramba! murmurou Damaso desconfiado, est·s com furor de a conhecer!

Mas emfim concordou que era chic a valer! E via ahi uma bella occasi„o
para elle!... Em quanto Carlos e Craft andassem mostrando as
curiosidades ao Castro Gomes e lhe fallassem de cavallos, elle, z·s, ia
para a quinta passear com ella... A calhar!

--Pois vou ·manh„ j· fallar-lhes... Estou convencido que aceitam logo.
Ella pela-se por bric-a-brac!

--E vens dizer-me se acceitaram ou n„o...

--Venho dizer-te... Tu vaes gostar d'ella; tem lido muito, entende
tambem de litteratura; e olha que ·s vezes a conversar atrapalha...

O marquez veiu chamal-os para dentro, impaciente, querendo fechar a
porta envidraÁada, outra vez preoccupado com a garganta. E desejava
antes de jantar ir ao quarto de Carlos gargarejar com agua e sal...

--E È isto um portuguez forte! exclamou Carlos, travando-lhe alegremente
do braÁo.

--Eu sou piegas na garganta, replicou logo o marquez, desprendendo-se
d'elle e olhando-o com ferocidade. E vocÍ È-o no sentimento. E o Craft
È-o na respeitabilidade. E o Damasosinho È-o na tolice. Em Portugal È
tudo Pieguice e Companhia!

Carlos rindo, arrastou-o pelo corredor. E de repente, ao entrarem na
ante-camara, deram com Affonso fallando a uma mulher, carregada de luto,
que lhe beijava a m„o, meia de joelhos, suffocada de lagrimas: e ao lado
outra mulher, com os olhos turvos d'agua tambem, embalava dentro do
chaile uma criancinha que parecia doente e gemia. Carlos parara
embaraÁado; o marquez instinctivamente levou a m„o · algibeira. Mas o
velho, assim surprehendido na sua caridade, foi logo empurrando as duas
mulheres para a escada: ellas desciam, encolhidas, abenÁoando-o, n'um
murmurio de soluÁos; e elle voltando-se para Carlos, quasi se desculpou
n'uma voz que ainda tremia:

--Sempre estes peditorios... Caso bem triste todavia... E o que È peior
È que por mais que se dÍ nunca se d· bastante. Mundo muito mal feito,
marquez.

--Mundo muito mal feito, sr. Affonso da Maia, respondeu o marquez
commovido.

No domingo seguinte, pelas duas horas, Carlos no seu phaeton de oito
molas, levando ao lado Craft que durante os dois dias de corridas se
installara no Ramalhete, parou ao fim do largo de Belem, no momento em
que para o lado do Hyppodromo estavam j· estalando foguetes. Um dos
criados desceu a comprar o bilhete de pesagem para o Craft, n'uma tosca
guarita de madeira, armada alli de vespera, onde se mexia um homemsinho
de grandes barbas grisalhas.

Era um dia j· quente, azul ferrete, com um d'esses rutilantes soes de
festa que enflammam as pedras da rua, doiram a poeirada baÁa do ar, poem
fulgores d'espelho pelas vidraÁas, d„o a toda a cidade essa branca
faiscaÁ„o de cal, d'um vivo monotono e implacavel, que na lentid„o das
horas de ver„o canÁa a alma, e vagamente entristece. No largo dos
Jeronymos silencioso, e a escaldar na luz, um omnibus esperava,
desatrelado, junto ao portal da Egreja. Um trabalhador com o filho ao
collo, e a mulher ao lado no seu chaile de ramagens, andava alli,
pasmando para a estrada, pasmando para o rio, a gosar ociosamente o seu
domingo. Um garoto ia apregoando desconsoladamente programmas das
corridas que ninguem comprava. A mulher da agua fresca, sem freguezes,
sentara-se com a sua bilha · sombra, a catar um pequeno. Quatro pesados
municipaes a cavallo patrulhavam a passo aquella solid„o. E a distancia,
sem cessar, o estalar alegre de foguetes morria no ar quente.

No entanto o tritanario continuava debruÁado na guarita, sem poder
arranjar l· dentro o troco d'uma libra. Foi necessario Craft saltar da
almofada, ir l· parlamentar--emquanto Carlos, impaciente, raspando com o
chicote as ancas das egoas, luzidias como um setim castanho, riscava no
largo uma volta brusca e nervosa. Desde o Ramalhete viera assim
governando, irritadamente, sem descerrar os labios. … que toda aquella
semana, desde a tarde em que combinara com o Damaso a visita aos
Olivaes, fÙra desconsoladora. O Damaso tinha desapparecido, sem mandar a
resposta dos Castro Gomes. Elle, por orgulho, n„o procurara o Damaso. Os
dias tinham passado, vazios; n„o se realisara o alegre idyllio dos
Olivaes; ainda n„o conhecia Madame Gomes; n„o a tornara a ver; n„o a
esperava nas corridas. E aquelle domingo de festa, o grande sol, a gente
pelas ruas, vestida de casimiras e de sedas de missa, enchiam-n'o de
melancolia e de malestar.

Uma caleche de praÁa passou, com dous sujeitos de flores ao peito,
acabando de calÁar as luvas; depois um dog-cart, governado por um homem
gordo, de lunetas pretas, quasi foi esbarrar contra o Arco. Emfim, Craft
voltou com o seu bilhete, tendo sido descomposto pelo homem de barbas
propheticas.

Para alÈm do arco, a poeira suffocava. Pelas janellas havia senhoras
debruÁadas, olhando por debaixo de sombrinhas. Outros municipaes, a
cavallo, atravancavam a rua.

¡ entrada para o hyppodromo, abertura escalavrada n'um muro de
quintarola, o phaeton teve de parar atr·z do dog-cart do homem
gordo--que n„o podia tambem avanÁar porque a porta estava tomada pela
caleche de praÁa, onde um dos sujeitos de flor ao peito berrava
furiosamente com um policia. Queria que se fosse chamar o sr. Savedra! O
sr. Savedra, que era do Jockey-Club, tinha-lhe dito que elle podia
entrar sem pagar a carruagem! Ainda lh'o dissÈra na vespera, na botica
do Azevedo! Queria que se fosse chamar o sr. Savedra! O policia
bracejava, enfiado. E o cavalleiro, tirando as luvas, ia abrir a
portinhola, esmurrar o homem--quando, trotando na sua grande horsa, um
municipal de punho alÁado correu, gritou, injuriou o cavalleiro gordo,
fez rodar para Ûra a caleche. Outro municipal entrometteu-se,
brutalmente. Duas senhoras, agarrando os vestidos, fugiram para um
portal, espavoridas. E atravez do reboliÁo, da poeira, sentia-se
adiante, melancolicamente, um realejo tocando a _Traviata_.

O phaeton entrou--atraz do dog-cart, onde o homem gordo, a estoirar de
furia, voltava ainda para traz a face escarlate, jurando dar parte do
municipal:

--Tudo isto est· arranjado com decencia, murmurou Craft.

Diante d'elles, o hyppodromo elevava-se suavemente em colina, parecendo,
depois da poeirada quente da calÁada e das cruas reverberaÁıes da cal,
mais fresco, mais vasto, com a sua relva j· um pouco crestada pelo sol
de junho, e uma ou outra papoula vermelhejando aqui e alÈm. Uma aragem
larga e repousante chegava vagarosamente do rio.

No centro, como perdido no largo espaÁo verde, negrejava, no brilho do
sol, um magote apertado de gente, com algumas carruagens pelo meio,
d'onde sobresahiam tons claros de sombrinhas, o faiscar d'um vidro de
lanterna, ou um casaco branco de cocheiro. Para alÈm, dos dois lados da
tribuna real forrada de um baet„o vermelho de mesa de RepartiÁ„o,
erguiam-se as duas tribunas publicas, com o feitio de traves mal
pregadas, como palanques d'arraial. A da esquerda vasia, por pintar,
mostrava · luz as fendas do taboado. Na da direita, bezuntada por fÛra
d'azul claro, havia uma fila de senhoras quasi todas de escuro
encostadas ao rebordo, outras espalhadas pelos primeiros degraus; e o
resto das bancadas permanecia deserto e desconsolado, d'um tom alvadio
de madeira, que abafava as cÙres alegres dos raros vestidos de ver„o.
Por vezes a briza lenta agitava no alto dos dois mastros o azul das
bandeirolas. Um grande silencio caÌa do ceu faiscante.

Em volta do recinto da tribuna, fechado por um tapume de madeira, havia
mais soldados de infanteria, com as bayonetas lampejando ao sol. E no
homem triste que estava · entrada, recebendo os bilhetes, mettido dentro
d'um enorme collete branco, reteso de gomma, e que lhe chegava atÈ aos
joelhos--Carlos reconheceu o servente do seu laboratorio.

Apenas tinham dado alguns passos encontraram Taveira · porta do buffete
onde se estivera reconfortando com uma cerveja. Tinha um molho de cravos
amarellos ao peito, polainas brancas,--e queria animar as corridas. J·
vira a _Mist_, a egoa de Clifford, e decidira apostar pela _Mist_. Que
cabeÁa d'animal, meninos, que finura de pernas!...

--Palavra que me enthusiasmou! E est· decidido, um dia n„o s„o dias, È
necessario animar isto! Aposto trez mil rÈis. Quer vocÍ Craft?

--Pois sim, talvez, depois... Vamos primeiro vÍr o aspecto geral.

No recinto em declive, entre a tribuna e a pista, havia sÛ homens, a
gente do Gremio, das Secretarias e da Casa Havaneza; a maior parte ·
vontade, com jaquetıes claros, e de chapÈo cÙco; outros mais em estylo,
de sobrecasaca e binoculo a tiracollo, pareciam embaraÁados e quasi
arrependidos do seu chic. Fallava-se baixo, com passos lentos pela
relva, entre leves fumaraÁas de cigarro. Aqui e alÈm um cavalheiro,
parado, de m„os atraz das costas, pasmava languidamente para as
senhoras. Ao lado de Carlos dois brazileiros queixavam-se do preÁo dos
bilhetes, achando aquillo ´uma semsaboria de rachar.ª

Defronte a pista estava deserta, com a relva pisada, guardada por
soldados: e junto · corda, do outro lado, apinhava-se o magote de gente,
com as carruagens pelo meio, sem um rumor, n'uma pasmaceira tristonha,
sob o peso do sol de junho. Um rapazote, com uma voz dolente, apregoava
agua fresca. L· ao fundo o largo Tejo faiscava, todo azul, t„o azul como
o ceu, n'uma pulverisaÁ„o fina de luz.

O visconde de Darque, com o seu ar placido de gentleman louro que comeÁa
a engordar, veio apertar a m„o a Carlos e a Craft. E mal elles lhe
fallaram dos seus cavallos (_Rabbino_, o favorito, e o outro potro)
encolheu os hombros, cerrou os olhos, como um homem que se sacrifica.
Ent„o, que diabo, os rapazes tinham querido!... Mas elle, realmente, n„o
podia apresentar um cavallo decente, com as suas cÙres, sen„o d'ahi a
quatro annos. De resto n„o apurava cavallos para aquella melancolia de
Belem, n„o imaginassem os amigos que elle era t„o patriota: o seu fim
era ir a Hespanha, bater os cavallos de Caldillo...

--Emfim, vamos a vÍr... DÍ vocÍ c· lume. Isto est· um horror. E depois,
que diabo, para corridas È necessario cocottes e Champagne. Com esta
gente seria, e agua fresca, n„o vae!

N'esse momento um dos commissarios das corridas, um rapag„o sem barba,
vermelho como uma papoula, a pingar de suor sob o chapÈo branco deitado
para a nuca, veio arrebatar o Darque, ´que era muito preciso, l· na
pesagem, para uma duvidasinha.ª

--Eu sou o diccionario, dizia o Darque, tornando a encolher os hombros
resignadamente. De vez em quando vem um d'estes senhores do Jockey-Club,
e folheia-me... Veja vocÍ, Maia, em que estado eu fico depois das
corridas! Ha-de ser necessario encadernar-me de novo...

E l· foi, rindo da sua pilheria--empurrado para diante pelo commissario,
que lhe dava palmadas familiares nas costas, e lhe chamava _catita_.

--Vamos nÛs vÍr as mulheres, disse Carlos.

Seguiram devagar ao comprido da tribuna. DebruÁadas no rebordo, n'uma
fila muda, olhando vagamente, como d'uma janella em dia de prociss„o,
estavam ali todas as senhoras que vÍem no high-life dos jornaes, as dos
camarotes de S. Carlos, as das terÁas-feiras dos Gouvarinhos. A maior
parte tinha vestidos serios de missa. Aqui e alÈm um d'esses grandes
chapÈos emplumados · Gainsborough, que ent„o se comeÁavam a usar,
carregava d'uma sombra maior o tom trigueiro d'uma carinha miuda. E na
luz franca da tarde, no grande ar da collina descoberta, as pelles
appareciam murchas, gastas, molles, com um baÁo de pÛ de arroz.

Carlos cumprimentou as duas irm„s do Taveira, magrinhas, loirinhas,
ambas correctamente vestidas de xadrezinho: depois a viscondessa
d'Alvim, nedia e branca, com o corpete negro reluzente de vidrilhos,
tendo ao lado a sua terna inseparavel, a Joaninha Villar, cada vez mais
cheia, com um quebranto cada vez mais doce nos olhos pestanudos. Adiante
eram as Pedrosos, as banqueiras, de cÙres claras, interessando-se pelas
corridas, uma de programma na m„o, a outra de pÈ e de binoculo estudando
a pista. Ao lado, conversando com Steinbroken, a condessa de Soutal,
desarranjada, com um ar de ter lama nas saias. N'uma bancada isolada, em
silencio, VillaÁa com duas damas de preto.

A condessa de Gouvarinho ainda n„o viera. E n„o estava tambem aquella
que os olhos de Carlos procuravam, inquietamente e sem esperanÁa.

--… um canteirinho de camelias meladas, disse o Taveira, repetindo um
dito do Ega.

Carlos, no entanto, fÙra fallar · sua velha amiga D. Maria da Cunha que,
havia momentos, o chamava com o olhar, com o leque, com o seu sorriso de
bÙa mam„. Era a unica senhora que ousara descer do retiro ajanellado da
tribuna, e vir sentar-se em baixo, entre os homens: mas, como ella
disse, n„o aturara a sÈca de estar l· em cima perfilada, · espera da
passagem do Senhor dos Passos. E, bella ainda sob os seus cabellos j·
grisalhos, sÛ ella parecia divertir-se alli, muito · vontade, com os pÈs
pousados na travessa d'uma cadeira, o binoculo no regaÁo, cumprimentada
a cada instante, tratando os rapazes por _meninos_... Tinha comsigo uma
parenta que apresentou a Carlos, uma senhora hespanhola, que seria
bonita se n„o fossem as olheiras negras, cavadas atÈ ao meio da face.
Apenas Carlos se sentou ao pÈ d'ella, D. Maria perguntou-lhe logo por
esse aventureiro do Ega. Esse aventureiro, disse Carlos, estava em
Celorico compondo uma comedia para se vingar de Lisboa, chamada o
_LodaÁal_...

--Entra o Cohen? perguntou ella, rindo.

--Entramos todos, sr.^a D. Maria. Todos nÛs somos lodaÁal...

N'esse momento, por traz do recinto, rompia, com um taran-tan-tan
molleng„o de tambores e pratos, o hymno da Carta, a que se misturou uma
voz de official e o bater de coronhas. E, entre dourados de dragonas,
El-rei appareceu na tribuna, sorrindo, de quinzena de velludo, e chapÈo
branco. Aqui e alÈm, raros sujeitos cumprimentaram, muito de leve: a
senhora hespanhola, essa, tomou o oculo do regaÁo de D. Maria, e de pÈ,
muito descanÁadamente, poz-se a examinar o rei. D. Maria achava ridicula
a musica, dando ·s corridas um ar de arraial... AlÈm d'isso, que tolice,
o hymno, como n'um dia de parada!

--E este hymno, ent„o, que È medonho, dizia Carlos. A sr.^a D. Maria n„o
sabe a definiÁ„o do Ega, e a sua theoria dos hymnos? Maravilhosa!

--Aquelle Ega! dizia ella sorrindo, j· encantada.

--O Ega diz que o hymno È a definiÁ„o pela musica do caracter d'um povo.
Tal È o compasso do hymno nacional, diz elle, tal È o movimento moral da
naÁ„o. Agora veja a sr.^a D. Maria os differentes hymnos, segundo o Ega.
A _Marselheza_ avanÁa com uma espada n˙a. O _God save the queen_
adianta-se, arrastando um manto real...

--E o hymno da Carta?

--O hymno da Carta ginga, de rabona.

E D. Maria ria ainda, quando a hespanhola, sentando-se e repousando-lhe
tranquillamente o binoculo no regaÁo, murmurou:

--Tiene cara de buena persona.

--Quem, o rei? exclamaram a um tempo D. Maria e Carlos. Excellente!

No entanto uma sineta tocava, perdida no ar. E no quadro indicador
subiram os numeros dos dois cavallos que corriam o primeiro premio dos
_Productos_. Eram o n.^o 1 e o n.^o 4. D. Maria Telles quiz-lhe saber os
nomes, com o appetite de apostar e ganhar cinco tostıes a Carlos. E como
Carlos se erguia para arranjar um programma:

--Deixe estar o menino, disse ella, tocando-lhe no braÁo. Ahi vem o
nosso Alencar, com o programma... Olhe para aquillo! Veja se ainda hoje
os ha por ahi com aquelle ar de sentimento e de poesia...

Com um fato novo de cheviote claro que o remoÁava, de luvas gris-perle,
o seu bilhete de pezagem na botoeira, o poeta vinha-se abanando com o
programma, e j· de longe sorrindo · sua boa amiga D. Maria. Quando
chegou junto d'ella, descoberto, bem penteado n'esse dia, com um lustre
d'oleo na grenha, levou-lhe a m„o aos labios, fidalgamente.

D. Maria fÙra uma das suas lindas contemporaneas. Tinham danÁado muita
ardente mazurka nos salıes de Arroios. Ella tratava-o por _tu_. Elle
dizia sempre _boa amiga_, e _querida Maria_.

--Deixa vÍr os nomes d'esses cavallos, Alencar... Senta-t'ahi, anda,
faze companhia.

Elle puchou uma cadeira, rindo do interesse que ella tomava pelas
corridas. E elle que a conhecera sempre uma enthusiasta de toiros!...
Pois os nomes dos cavallos eram _Jupiter_ e _Escossez_...

--Nenhum d'esses nomes me agrada, n„o aposto. E ent„o que te parece tudo
isto, Alencar?... A nossa Lisboa vae-se sahindo da concha...

Alencar, pousando o chapÈo sobre uma cadeira, e passando a m„o pela sua
vasta fronte de bardo, confessou que aquillo tinha realmente um certo ar
de elegancia, um perfume de cÙrte... Depois, l· em baixo, aquelle
maravilhoso Tejo... Sem fallar na importancia do apuramento das raÁas
cavallares...

--Pois n„o È verdade, meu Carlos? Tu que entendes superiormente d'isso,
que Ès um mestre em todos os _sports_, sabes bem que o apuramento...

--Sim, com effeito, o apuramento, muito importante...--disse Carlos,
vagamente, erguendo-se a olhar outra vez · tribuna.

Eram quasi tres horas, e agora, de certo, _ella_ j· n„o vinha: e a
condessa de Gouvarinho n„o apparecia tambem... ComeÁava a invadil-o uma
grande lassitude. Respondendo, com um leve movimento de cabeÁa, ao
sorriso doce que lhe dava da tribuna a Joaninha Villar, pensava em
voltar para o Ramalhete, acabar tranquillamente a tarde dentro do seu
robe-de-chambre, com um livro, longe de todo aquelle tÈdio.

No entanto, ainda entravam senhoras. A menina S· Videira, filha do rico
negociante de sapatos d'ourello, passou pelo braÁo do irm„o, abonecada,
com o arsinho petulante e enojado de tudo, fallando alto inglez. Depois
foi a ministra da Baviera, a baroneza de Craben, enorme, empavoada, com
uma face macissa de matrona romana, a pelle cheia de manchas cÙr de
tomate, a estalar dentro d'um vestido de gorgor„o azul com riscas
brancas: e atraz o bar„o, pequenino, amavel, aos pulinhos, com um grande
chapÈo de palha.

D. Maria da Cunha erguera-se para lhes fallar: e durante um momento
ouviu-se, como um glou-glou grosso de per˙, a voz da baroneza achando
_que c'Ètait charmant, c'Ètait trËs beau_. O bar„o, aos pulinhos, aos
risinhos, _trouvait Áa ravissant_. E o Alencar, diante d'aquelles
estrangeiros que o n„o tinham saudado, apurava a sua attitude de grande
homem nacional, retorcendo a ponta dos bigodes, alÁando mais a fronte
n˙a.

Quando elles seguiram para a tribuna, e a boa D. Maria se tornou a
sentar, o poeta, indignado, declarou que abominava allem„es! O ar de
sobranceria com que aquella ministra, com feitio de barrica deixando
sahir o cebo por todas as costuras do vestido, o olh·ra, a elle! Ora, a
insolente baleia!

D. Maria sorria, olhando com sympathia o poeta. E voltando-se de repente
para a senhora hespanhola:

--Concha, deja-me presentar-te D. Thomaz de Alencar, nuestro gran poeta
lyrico...

N'esse momento, algum dos rapazes mais amadores, dos que traziam
binoculos a tiracollo, apressaram o passo para a corda da pista. Dois
cavallos passavam n'um galope sereno, quasi juntos, sob as vergastadas
estonteadas de dois jockeys de grande bigode. Uma voz erguendo-se disse
que tinha ganhado _Escossez_. Outros affirmavam que fÙra _Jupiter_. E no
silencio que se fez, de lassid„o e de desapontamento, ondeou mais viva
no ar, lanÁada pelos flautins da banda, a valsa de _madame Angot_.
Alguns sujeitos tinham-se conservado de costas para a pista, fumando,
olhando a tribuna--onde as senhoras continuavam debruÁadas no parapeito,
· espera do Senhor dos Passos. Ao lado de Carlos, um cavalheiro resumiu
as impressıes, dizendo que tudo _aquillo era uma intrujice_.

E quando Carlos se ergueu para ir procurar o Damaso, Alencar, muito
animado com a hespanhola, fallava de Sevilha, de malagueÒas e do coraÁ„o
d'Espronceda.

O desejo de Carlos agora era achar Damazo, saber porque falhara a visita
aos Olivaes--e depois ir-se embora para o Ramalhete, esconder aquella
melancolia que o enevoava, estranha e pueril, misturada de
irritabilidade, fazendo-lhe detestar as vozes que lhe fallavam, os
rantatans da musica, atÈ a belleza calma da tarde... Mas ao dobrar a
esquina da tribuna, topou com Craft, que o deteve, o apresentou a um
rapaz loiro e forte com quem estava fallando alegremente. Era o famoso
Clifford, o grande sportman de Cordova. Em redor sujeitos tinham parado,
embasbacados para aquelle inglez legendario em Lisboa, dono de cavallos
de corridas, amigo do rei d'Hespanha, homem de todos os _chics_. Elle,
muito · vontade, um pouco _poseur_, com um simples veston de flanella
azul como no campo, ria alto com o Craft do tempo em que tinham estado
no collegio de Rugby. Depois pareceu-lhe reconhecer Carlos, amavelmente.
N„o se tinham encontrado havia quasi um anno, em Madrid, n'um jantar, em
casa de Pancho Calderon? E assim era. O aperto de m„o que repetiram foi
mais intimo--e Craft quiz que fossem regar aquella flor d'amisade com
uma garrafa de mau Champagne. Em roda crescera a pasmaceira.

O buffete estava installado debaixo da tribuna, sob o taboado n˙, sem
sobrado, sem um ornato, sem uma flor. Ao fundo corria uma prateleira de
taberna com garrafas e pratos de bolos. E, no balc„o tosco, dois
criados, estonteados e sujos, achatavam · pressa as fatias de sandwiches
com as m„os humidas da espuma da cerveja.

Quando Carlos e os seus amigos entraram, havia junto d'um dos barrotes
que especavam os degraus da tribuna, n'um grupo animado, com copos de
champagne na m„o, o marquez, o visconde de Darque, o Taveira, um rapaz
pallido de barba preta, que tinha debaixo do braÁo enrolada a bandeira
vermelha de _Starter_, e o commissario imberbe, com o chapÈo branco cada
vez mais atirado para a nuca, a face mais esbrazeada, o collarinho j·
molle de suor. Era elle que offerecia o champagne; e apenas viu entrar
Clifford, rompeu para elle, de taÁa no ar, fez tremer as vigas, soltando
o seu vozeir„o:

--¡ saude do amigo Clifford! o primeiro sportman da penÌnsula, e rapaz
c· dos nossos!... Hip hip, hurrah!

Os copos ergueram-se, n'um clamor d'hurrahs, onde destacou, vibrante e
enthusiasta, a voz do _starter_. Clifford agradecia, risonho, tirando
lentamente as luvas--em quanto o marquez, puxando Carlos pelo braÁo para
o lado, lhe apresentava rapidamente o commissario, seu primo D. Pedro
Vargas.

--Muito gosto em conhecer...

--Qual historias! Eu È que fazia furor! exclamou o commissario. C· a
rapaziada do sport deve-se conhecer toda... Porque isto c· È a
confraria, e todo o resto È chinfrinada!

E immediatamente arrebatou o copo ao ar, berrou com um impeto que lhe
trazia mais sangue · face:

--¡ saude de Carlos da Maia, o primeiro elegante c· da patria! a melhor
m„o de redea... Hip, hip, hurrah...

--Hip, hip, hip... Hurrah!

E foi ainda a voz do starter que deu o _hurrah_ mais vibrante e mais
enthusiasta.

Um empregado assomou · porta do buffete, e chamou o sr. commissario. O
Vargas atirou uma libra para o balc„o, abalou, gritando j· de fÛra, com
o olho acceso:

--Isto vae-se animando, rapazes! Caramba! … carregar no liquido! E vocÍ,
oh l· de baixo, o patr„o, sÙ Manuel, mande vir esse gelo... Est· a gente
aqui a tomar a bebida quente... Despache um proprio, v· vocÍ, rebente!
Irra!

No entanto em quanto se desarrolhava o champagne de Craft, Carlos tinha
convidado Clifford a jantar n'essa noite no Ramalhete. O outro acceitou,
molhando os labios no copo, achando excellente que se continuasse a
tradiÁ„o de jantarem juntos, sempre que se encontravam.

--Ol·! o general por aqui! exclamou Craft.

Os outros voltaram-se. Era o Sequeira, com a face como um piment„o,
entalado n'uma sobrecasaca curta que o fazia mais atarracado, de chapeu
branco sobre o olho, e grande chicote debaixo do braÁo.

Acceitou um copo de Champagne, e teve muito prazer em conhecer o sr.
Clifford...

--E que me diz vocÍ a esta semsaboria? exclamou elle logo, voltando-se
para Carlos.

Em quanto a si estava contente, pulava... Aquella corrida insipida, sem
cavallos, sem jockeys, com meia duzia de pessoas a bocejar em roda,
dava-lhe a certeza que eram talvez as ultimas, e que o _Jockey-Club_
rebentava... E ainda bem! Via-se a gente livre d'um divertimento que n„o
estava nos habitos do paiz. Corridas era para se apostar. Tinha-se
apostado? N„o, ent„o historias!... Em Inglaterra e em FranÁa, sim! Ahi
eram um jogo como a roletta, ou como o monte... AtÈ havia banqueiros,
que eram os _bookmakers_... Ent„o j· viam!

E como o marquez, pousando o copo, e querendo calmar o general, fallava
do apuramento das raÁas, e da remonta,--o outro ergueu os hombros, com
indignaÁ„o:

--Que me est· vocÍ a cantar! Quer vocÍ dizer que se apura a raÁa para a
remonta da cavallaria?... Ora v· l· montar o exercito com cavallos de
corridas!... Em serviÁo o que se quer n„o È o cavallo que corra mais, È
o cavallo que aguente mais... O resto È uma historia... Cavallos de
corridas s„o phenomenos! S„o como o boi com duas cabeÁas... Ent„o
historias!... Em FranÁa atÈ lhe d„o Champagne, homem!... Ent„o veja l·!

E a cada phrase, sacudia os hombros, furiosamente. Depois, d'um trago,
esvasiou o seu copo de Champagne, repetiu que tinha muito prazer em
conhecer o sr. Clifford, rodou sobre os tacıes, sahiu, bufando,
entalando mais debaixo do braÁo o chicote--que tremia na ponta como
avido de vergastar alguem.

Craft sorria, batia no hombro de Clifford.

--Veja vocÍ! c· nÛs, velhos portuguezes, n„o gostamos de novidades, e de
_sports_... Somos pelo toiro...

--Com raz„o, dizia o outro, serio e aprumando-se sobre o collarinho.
Ainda ha dias me contava na Granja, o Rei de Hespanha...

De repente, fÛra, houve um reboliÁo, e vozes sobresaltadas gritando
_ordem_! Uma senhora, que atravessava com um pequenito, fugiu para
dentro do buffete, enfiada. Um policia passou, correndo.

Era uma desordem!

Carlos e os outros, sahindo · pressa, viram ao pÈ da tribuna real um
magote de homens--onde bracejava o Vargas. Do largo da pesagem, os
rapazes corriam com curiosidade, j· excitados, apinhando-se, alÁando-se
em bicos de pÈs; do recinto das carruagens acudiam outros, saltando as
cordas da pista, apesar dos repellıes dos policias:--e agora era uma
massa tumultuosa de chapÈos altos, de fatos claros, empurrando-se contra
as escadas da tribuna real, onde um ajudante d'el-rei, reluzente de
agulhetas e em cabello, olhava tranquillamente.

E Carlos, furando, poude emfim avistar no meio do mont„o um dos sujeitos
que correra no premio dos Productos, o que montava _Jupiter_, ainda de
botas, com um paletot alvadio por cima da jaqueta de jockey, furioso,
perdido, injuriando o juiz das corridas, o MendonÁa, que arregalava os
olhos, aturdido e sem uma palavra. Os amigos do jockey puxavam-n'o,
queriam que elle fizesse um protesto. Mas elle batia o pÈ, tremulo,
livido, gritando que n„o se importava nada com protestos! Perdera a
corrida por uma pouca vergonha! O protesto alli era um arrocho! Porque o
que havia n'aquelle hyppodromo era compadrice e ladroeira!

Individuos, mais serios, indignaram-se com esta brutalidade.

--FÛra! FÛra!

Alguns tomavam o partido do jockey; j· aos lados outras questıes
surgiam, desabridas. Um sujeito vestido de cinzento berrava que o
MendonÁa decidira pelo Pinheiro, que montava _Escossez_, por ser intimo
d'elle; outro cavalheiro, de binoculo a tiracollo, achava aquella
insinuaÁ„o infame; e os dois, frente a frente, com os punhos fechados,
tratavam-se furiosamente de _pulhas_.

E, todo este tempo, um homem baixote, de grandes collarinhos de
pintinhas, procurava romper, erguia os braÁos, exclamava, n'uma voz
supplicante e rouca:

--Por quem s„o, meus senhores... Um momento... Eu tenho experiencia...
Eu tenho experiencia!

De repente o vozeir„o do Vargas dominou tudo, como um urro de toiro.
Diante do jockey, sem chapÈo, com a face a estoirar de sangue,
gritava-lhe que era indigno de estar alli, entre gente decente! Quando
um gentleman duvida do juiz da corrida, faz um protesto! Mas vir dizer
que ha ladrıes, era sÛ d'um canalha e d'um fadista, como elle, que nunca
devia ter pertencido ao Jockey-Club!--O outro, agarrado pelos amigos,
esticando o pescoÁo magro como para lhe morder, atirou-lhe um nome sujo.
Ent„o o Vargas, com um encontr„o para os lados, abriu espaÁo, repuxou as
mangas, berrou:

--Repita l· isso! repita l· isso!

E immediatamente aquella massa de gente oscillou, embateu contra o
taboado da tribuna real, remoinhou em tumulto, com vozes de _ordem_ e
_morra_, chapÈos pelo ar, baques surdos de murros.

Por entre o alarido vibravam, furiosamente, os apitos da policia;
senhoras, com as saias apanhadas, fugiam atravez da pista, procurando
espavoridamente as carruagens;--e um sopro grosseiro de desordem relles
passava sobre o hyppodromo, desmanchando a linha postiÁa de civilisaÁ„o
e a attitude forÁada de decoro...

Carlos achou-se ao pÈ do marquez, que exclamava, pallido:

--Isto È incrivel, isto È incrivel!...

Carlos, pelo contrario, achava pittoresco.

--Qual pittoresco, homem! … uma vergonha, com todos esses estrangeiros!

No entanto a massa de gente dispersava, lentamente, obedecendo ao
official de guarda, um moÁo pequenino mas decidido, que, em bicos de
pÈs, aconselhava para os lados, n'uma voz de orador, ´cavalheirismoª e
´prudencia...ª O jockey de paletot alvadio affastou-se, apoiado ao braÁo
d'um amigo, cocheando, com o nariz a pingar sangue: e o commissario
desceu para a pista, com um cortejo atraz, triumphante, sem collarinho,
arranjando o chapÈo achatado n'uma pasta. A musica tocava a marcha do
_Propheta_; em quanto o desgraÁado juiz das corridas, o MendonÁa,
encostado · tribuna real, com os braÁos cahidos, aparvalhado, balbuciava
n'um resto d'assombro:

--Isto sÛ a mim! Isto sÛ a mim!

O marquez, n'um grupo a que se junt·ra o Clifford, Craft, e Taveira,
continuava a vociferar:

--Ent„o, est„o convencidos? Que lhes tenho eu sempre dito? Isto È um
paiz que sÛ supporta hortas e arraiaes... Corridas, como muitas outras
coisas civilisadas l· de fÛra, necessitam primeiro gente educada. No
fundo todos nÛs somos fadistas! Do que gostamos È de vinhaÁa, e viola, e
bordoada, e viva l· seu compadre! Ahi est· o que È!

Ao lado d'elle Clifford, que no meio d'aquelle desmancho todo esticava
mais correctamente a sua linha de gentleman, mordia um sorriso,
assegurando, com um ar de consolaÁ„o, que conflictos eguaes succedem em
toda a parte... Mas no fundo parecia achar tudo aquillo ignobil.
Dizia-se mesmo que elle ia retirar a _Mist_. E alguns davam-lhe raz„o.
Que diabo! Era aviltante para um bello animal de raÁa correr n'um
hyppodromo sem ordem e sem decencia, onde a todo o momento podiam
reluzir navalhas.

--Ouve c·, tu viste por acaso esse animal do Damaso? perguntou Carlos,
chamando para o lado o Taveira. Ha uma hora que ando a farejal-o...

--Estava ainda ha pouco do outro lado, no recinto das carruagens, com a
Josephina do Salazar... Anda extraordinario, de sobrecasaca branca, e de
vÈo no chapÈo!

Mas, quando d'ahi a pouco, Carlos quiz atravessar, a pista estava
fechada. Ia-se correr o _Grande premio nacional_. Os numeros j· tinham
subido ao indicador, um tom de sineta morria no ar. Um cavallo do
Darque, o _Rabbino_, com o seu jockey de encarnado e branco, descia,
trazido · redea por um groom e acompanhado pelo Darque: alguns sujeitos
paravam a examinar-lhe as pernas, com o olho serio, affectando entender.
Carlos demorou-se um momento tambem, admirando-o: era d'um bonito
castanho escuro, nervoso e ligeiro, mas com o peito estreito.

Depois, ao voltar-se, viu de repente a Gouvarinho, que acabava de certo
de chegar, e conversava de pÈ com D. Maria da Cunha. Estava com uma
toilette ingleza, justa e simples, toda de cazimira branca, d'um branco
de creme, onde as grandes luvas negras · mosqueteira punham um contraste
audaz: e o chapÈo preto tambem desapparecia sob as pregas finas d'um vÈo
branco, enrolado em volta da cabeÁa, cobrindo-lhe metade do rosto, com
um ar oriental que n„o Ìa bem ao seu narizinho curto, ao seu cabello cÙr
de braza. Mas em redor os homens olhavam para ella como para um quadro.

Ao avistar Carlos, a condessa n„o conteve um sorriso, um brilho de olhos
que a illuminou. Instinctivamente deu um passo para elle: e ficaram um
instante isolados, fallando baixo, em quanto D. Maria os observava,
sorrindo, cheia j· de benevolencia, prompta j· a abenÁoal-os
maternalmente.

--Estive para n„o vir, dizia a condessa, que parecia nervosa. O Gast„o
fez-se t„o desagradavel hoje! E naturalmente tenho d'ir ·manh„ para o
Porto.

--Para o Porto?...

--O pap· quer que eu l· v·, s„o os annos d'elle... Coitado, vae-se
fazendo velho, escreveu-me uma carta t„o triste... Ha dois annos que me
n„o vÍ...

--O conde vae?

--N„o.

E a condessa, depois de dar um sorriso ao ministro da Baviera, que a
cumprimentava de passagem, aos pulinhos, acrescentou, mergulhando o
olhar nos olhos de Carlos:

--E quero uma coisa.

--O que?

--Que venhas tambem.

Justamente n'esse instante, Telles da Gama, de programma e lapis na m„o,
parou junto d'elles:

--VocÍ quer entrar n'uma _poule_ monstro, Maia? Quinze bilhetes, dez
tostıes cada um... L· em cima ao canto da tribuna est·-se apostando
ferozmente... A desordem fez bem, sacudiu os nervos, todo o mundo
acordou... Quer v. ex.^a tambem, sr.^a condessa?

Sim, a condessa tambem entrava na _poule_. Telles da Gama inscreveu-a, e
abalou atarefado. Depois foi Steinbroken que se acercou, todo florÌdo,
de chapÈo branco, ferradura de rubis na gravata, mais esticado, mais
loiro, mais inglez, n'este dia solemne de _sport_ official.

--Ah, comme vous Ítes belle, comtesse!... Voil· une toilette
merveilleuse, n'est ce pas, Maia?... Est ce que nous n'allons pas parier
quelque chose?

A condessa contrariada, querendo fallar a Carlos, risonha todavia,
lamentou-se de ter j· uma fortuna compromettida... Emfim sempre apostava
cinco tostıes com a Filandia. Que cavallo tomava elle?

--Ah, je ne sais pas, je ne connais pas les chevaux... D'abord, quand on
parie...

Ella, impaciente, offereceu-lhe _Vladimiro_. E teve de estender a m„o a
outro filandez, o secretario de Steinbroken, um moÁo loiro, lento,
languido, que se curvara em silencio diante d'ella, deixando escorregar
do olho claro e vago o seu monoculo d'ouro. Quasi immediatamente Taveira
excitado veiu dizer que Clifford retirara a _Mist_.

Vendo-a, assim cercada, Carlos affastou-se. Justamente o olhar de D.
Maria, que o n„o deixara, chamava-o agora, mais carinhoso e vivo. Quando
elle se chegou, ella puxou-lhe pela manga, fel-o debruÁar, para lhe
murmurar ao ouvido, deliciada:

--Est· hoje t„o galante!

--Quem?

D. Maria encolheu os hombros, impaciente.

--Ora quem! Quem ha-de ser? O menino sabe perfeitamente. A condessa...
Est· de appetite.

--Muito galante, com effeito, disse Carlos friamente.

De pÈ, junto de D. Maria, tirando de vagar uma cigarrette, elle
ruminava, quasi com indignaÁ„o, as palavras da condessa. Ir com ella
para o Porto!... E via alli outra exigencia audaz, a mesma tendencia
impertinente a dispÙr do seu tempo, dos seus passos, da sua vida! Tinha
um desejo de voltar junto d'ella, dizer-lhe que _n„o_, seccamente,
desabridamente, sem motivos, sem explicaÁıes, como um brutal.

Acompanhada em silencio pelo esguio secretario de Steinbroken, ella
vinha agora caminhando lentamente para elle: e o olhar alegre com que o
envolvia irritou-o mais, sentindo no seu brilho sereno, no sorrir calmo,
quanto ella estava certa da sua submiss„o.

E estava. Apenas o filandez se affastou languidamente--ella, muito
tranquilla, alli mesmo junto de D. Maria, fallando em inglez, e
apontando para a pista como se commentasse os cavallos do Darque,
explicou-lhe um plano que imaginara, encantador. Em logar de partir na
terÁa feira para o Porto--ia na segunda · noite, sÛ com a criada
escocessa, sua confidente, n'um compartimento reservado. Carlos tomava o
mesmo comboio. Em Santarem, desciam ambos, muito simplesmente, e iam
passar a noite ao hotel. No dia seguinte ella seguia para o Porto, elle
recolhia a Lisboa...

Carlos abria os olhos para ella, assombrado, emmudecido. N„o esperava
aquella extravagancia. Suppozera que ella o queria no Porto, escondido
no _Francfort_, para passeios romanticos · Foz, ou visitas furtivas a
algum casebre da Aguardente... Mas a idÈa d'uma noite, n'um hotel, em
Santarem!

Terminou por encolher os hombros, indignado. Como queria ella, n'uma
linha de caminho de ferro em que se encontra constantemente gente
conhecida, apear-se com elle na estaÁ„o de Santarem, dar-lhe o braÁo,
maritalmente, e enfiarem para uma estalagem? Ella, porÈm, pens·ra em
todos os detalhes. Ninguem a conheceria, disfarÁada n'um grande
_water-proof_, e com uma cabelleira postiÁa.

--Com uma cabelleira!?

--O Gast„o! murmurou ella de repente.

Era o conde, por traz d'elle, abraÁando-o ternamente pela cintura. E
quiz logo saber a opini„o do amigo Maia sobre as corridas. Bastante
animaÁ„o, n„o È verdade? E bonitas _toilettes_, certo ar de luxo...
Emfim, n„o envergonhavam. E ahi estava provado o que elle sempre
dissera, que todos os requintes da civilisaÁ„o se aclimatavam bem em
Portugal...

--O nosso solo moral, Maia, como o nosso solo physico, È um solo
abenÁoado!

A condessa voltara para o pÈ de D. Maria. E Telles da Gama, passando de
novo, n'aquella faina ruidosa em que o trazia a formaÁ„o da sua _poule_,
chamou Carlos para a tribuna, para elle tirar o seu bilhete, e apostar
com as senhoras...

--Oh Gouvarinho! venha tambem d'ahi, homem! exclamou elle. Que diabo! …
necessario animar isto, È atÈ patriotico.

E o conde condescendeu, por patriotismo.

--… bom, dizia elle, travando do braÁo de Carlos, fomentar os
divertimentos elegantes. J· uma vez o disse na camara: o luxo È
conservador.

Em cima, a um canto, n'um grupo de senhoras, foram com effeito encontrar
uma animaÁ„o--que quasi fazia escandalo n'aquella tribuna silenciosa e ·
espera do Senhor dos Passos. A viscondessa de Alvim dobrava
atarefadamente os bilhetes da _poule_: uma secretariasinha da Russia, de
bonitos olhos garÁos, apostava desesperadamente placas de cinco tostıes,
estonteada, j· embrulhada, rabiscando com phrenesi o seu programma. A
Pinheiro, a mais magra, com um vestido leve de raminhos Pompadour que
lhe fazia covas nas claviculas, dava opiniıes pretenciosas sobre os
cavallos, em inglez: emquanto o Taveira, de olhos humidos no meio de
todas aquellas saias, fallava de arruinar as senhoras, de viver · custa
das senhoras... E todos os homens, acotovelando-se, queriam fazer uma
aposta com a Joanninha Villar, que, de costas contra o rebordo da
tribuna, gordinha e languida, sorrindo, com a cabeÁa deitada para traz,
as pestanas mortas, parecia offerecer a todas aquellas m„os, que se
estendiam gulosamente para ella, o seu appetitoso peito de rola.

Telles da Gama, no entanto, ia organisando a confus„o alegre. Os
bilhetes estavam dobrados, era necessario um chapÈo... Ent„o os
cavalheiros affectaram um amor desordenado pelos seus chapÈos, n„o os
querendo confiar ·s m„os nervosas das senhoras; um rapaz, todo de luto,
excedeu-se mesmo, agarrando as abas do seu, com ambas as m„os, aos
gritos.

A secretariasinha da Russia, impaciente, terminou por offerecer o
barrete de marujo do seu pequeno--uma creanÁa obesa, pousada alli para
um lado como uma trouxa. Foi a Joanninha Villar que levou em roda os
bilhetes, rindo e chocalhando-os preguiÁosamente; emquanto o secretario
de Steinbroken, grave, como exercendo uma funcÁ„o, recolhia no seu
grande chapÈo as placas cahindo uma a uma com um som argentino. E a
tiragem foi o lindo divertimento da _poule_. Como estavam sÛ quatro
cavallos inscriptos, e as entradas eram quinze, havia onze bilhetes
brancos que aterravam. Todos ambicionavam tirar o numero tres, o de
_Rabbino_, o cavallo de Darque, favorito do _Premio Nacional_. Assim
cada m„osinha soffrega que se demorava no fundo do barrete, remexendo,
tenteando os papeis, causava uma indignaÁ„o folgas„, n'um exagero de
risos.

--A sr.^a viscondessa procura de mais!... E dobrou os numeros,
conhece-os... … necessario probidade, sr.^a viscondessa!

--Oh, mon Dieu, j'ai _Minhoto_, cette rosse!

--Je vous l'achette, madame!

--” sr.^a D. Maria Pinheiro, v. ex.^a leva dous numeros!...

--Ah! je suis perdue... Blanc!

--E eu! … necessario fazer outra _poule_! Vamos fazer outra _poule_!

--Isso! Outra _poule_, outra _poule_!

No entanto a enorme baroneza de Craben, n'um degrau mais elevado, que
ella occupava sÛ, como um throno, erguera-se, com o seu bilhete na m„o.
Tinha tirado _Rabbino_: e affectava superiormente n„o comprehender esta
fortuna, perguntava o que era _Rabbino_. Quando o conde de Gouvarinho
lhe explicou muito serio a importancia de _Rabbino_, e que _Rabbino_ era
quasi uma gloria publica, ella mostrou a dentuÁa, condescendeu em rosnar
do fundo do papo que _c'etait charmant_. Todo o mundo a invejava; e a
vasta baleia alastrou-se de novo sobre o seu throno, abanando-se, com
magestade.

E subitamente houve uma surpreza: em quanto elles tiravam os bilhetes,
os cavallos tinham partido, passavam juntos diante da tribuna. Todos se
ergueram, de binoculos na m„o. O _starter_ ainda estava na pista, com a
bandeira vermelha inclinada ao ch„o: e as ancas de cavallos fugiam na
curva, lustrosos · luz, sob as jaquetas enfunadas dos jockeys.

Ent„o todo o rumor de vozes caiu; e no silencio a bella tarde pareceu
alargar-se em redor, mais suave e mais calma. Atravez do ar sem poeira,
sem a vibraÁ„o dos raios fortes, tudo tomava uma nitidez delicada:
defronte da tribuna, na collina, a relva era d'um louro quente; no grupo
de carruagens scintillava por vezes o vidro de uma lanterna, o metal de
um arreio, ou de pÈ, sobre uma almofada, destacava em escuro alguma
figura de chapeo alto; e pela pista verde, os cavallos corriam, mais
pequenos, finamente recortados na luz. Ao fundo, a cal das casas
cobria-se de uma leve agoada cÙr de rosa: e o distante horisonte
resplandecia, com dourados de sol, brilhos de rio vidrado, fundindo-se
n'uma nevoa luminosa, onde as collinas, nos seus tons azulados, tinham
quasi transparencia, como feitas d'uma substancia preciosa...

--… _Rabbino_! exclamou por traz de Carlos, um sugeito, de pÈ n'um
degrau.

As cÙres encarnadas e brancas do Darque corriam com effeito na frente.
Os dous outros cavallos iam juntos; e, o ultimo, n'um galope que
adormecia, era _Vladimiro_, outro potro do Darque, baio-claro, quasi
louro · luz.

Ent„o, a secretaria da Russia bateu as palmas, interpellou Carlos, que
justamente tirara na poule o numero de _Vladimiro_. A ella coubera
_Minhoto_, uma pileca melancolica do Manoel Godinho; e tinham feito
sobre os dous cavallos uma aposta complicada de luvas e de amendoas. J·
umas poucas de vezes os seus lindos olhos garÁos tinham procurado os de
Carlos; e agora tocava-lhe no braÁo com o leque, gracejava,
triumphava...

--Ah, vous avez perdu, vous avez perdu! Mais c'est un vieux cheval de
fiacre, vÙtre _Vladimir_.

Como um cavallo de fiacre? _Vladimiro_ era o melhor potro do Darque!
Talvez ainda viesse a ser a unica gloria de Portugal, como outr'ora o
_Gladiador_ fÙra a unica gloria da FranÁa! Talvez ainda substituisse
Camıes...

--Ah, vous plaisantez...

N„o, Carlos n„o gracejava. Estava atÈ prompto a apostar tudo por
_Vladimiro_.

--VocÍ aposta por _Vladimiro_? gritou Telles da Gama, voltando-se
vivamente.

Carlos, por divertimento, sem mesmo saber por quÍ, declarou que tomava
_Vladimiro_. Ent„o, em roda, foi uma surpreza; e todo o mundo quiz
apostar, aproveitar-se d'aquella phantasia de homem rico, que sustentava
um potro verde, de tres quartos de sangue, a que o proprio Darque
chamava _pileca_. Elle sorria, aceitava; terminou ate por erguer a voz,
proclamar _Vladimiro contra o campo_. E de todos os lados o chamavam,
n'uma sofreguid„o de saque.

--Mr. de Maia, dix tostons.

--Parfaitement, madame.

--Oh Maia, vocÍ quer meia libra?

--¡s ordens.

--Maia, tambem eu! OuÁa l·... Tambem eu!... Dous mil rÈis.

--” sr. Maia, eu vou dez tostıes...

--Com o maior prazer, minha senhora...

Ao longe os cavallos davam a volta, na subida do terreno. _Rabbino_ já
desapparecera,--e _Vladimiro_ n'um galope a que se sentia o canÁasso,
corria só na pista. Uma voz elevou-se, dizendo que elle manquejava.
Então Carlos, que continuava a tomar _Vladimiro_ contra o campo, sentiu
que lhe puxavam de vagar pela manga; voltou-se; era o secretario de
Steinbroken, chegando subtilmente a tomar tambem parte no saque á bolsa
do Maia, propondo dous soberanos, em seu nome e em nome do seu chefe,
como uma aposta collectiva da legação, a aposta do reino da Filandia.

--C'est fait, monsieur! exclamou Carlos, rindo.

Agora comeÁava a divertir-se. Apenas vira de relance _Vladimiro_, e
gostara da cabeÁa ligeira do potro, do seu peito largo e fundo; mas
apostava sobre tudo para animar mais aquelle recanto da tribuna, ver
brilhar gulosamente os olhos interesseiros das mulheres. Telles da Gama
ao lado approvava-o, achava aquillo patriotico e _chic_.

--… _Minhoto_! gritou de repente Taveira.

Na volta, com effeito, fizera-se uma mudanÁa. Subitamente _Rabbino_
perdera terreno, resistindo · subida, com o folego curto. E agora era
_Minhoto_, o cavallicoque obscuro de Manuel Godinho, que se arremessava
para a frente, vinha devorando a pista, n'um esforÁo continuo,
admiravelmente montado por um jockey hespanhol. E logo atraz vinham as
cÙres escarlates e brancas de Darque: ao principio ainda pareceu que era
_Rabbino_: mas, apanhado de repente n'um raio oblÌquo de sol, o cavallo
cobriu-se de tons lustrosos de baio claro, e foi uma surpreza ao
reconhecer-se que era _Vladimiro_! A corrida travava-se entre elle e
_Minhoto_.

Os amigos de Godinho, precipitando-se para a pista, bradavam, de chapÈos
no ar:

--_Minhoto, Minhoto!_

E, em redor de Carlos, os que tinham apostado pelo campo contra
_Vladimiro_ faziam tambem votos por _Minhoto_, em bicos de pÈs, junto do
parapeito da tribuna, estendendo o braÁo para elle, animando-o:

--Anda _Minhoto_!... Isso, assim!... Aguenta, rapaz!... Bravo!...
_Minhoto! Minhoto!_

A russa, toda nervosa, na esperanÁa de ganhar a _poule_, batia as
palmas. AtÈ a enorme Craben se erguera, dominando a tribuna, enchendo-a
com os seus gorgorıes azues e brancos:--em quanto que, ao lado d'ella, o
conde de Gouvarinho, tambem de pÈ, sorria, contente no seu peito de
patriota, vendo n'aquelles jockeys · desfilada, nos chapÈos que se
agitavam, brilhar civilisaÁ„o...

De repente, de baixo, d'ao pÈ da tribuna, d'entre os rapazes que
cercavam o Darque, uma exclamaÁ„o partiu.

--_Vladimiro! Vladimiro!_

Com um arranque desesperado o potro viera juntar-se a _Minhoto_: e agora
chegavam furiosamente, com brilhos vivos de cÙres claras, os focinhos
juntos, os olhos esbogalhados, sob uma chuva de vergastadas.

Telles da Gama, esquecido da sua aposta, todo pelo Darque, seu intimo,
berrava por _Vladimiro_. A russa, de pÈ n'um degrau, apoiada sobre o
hombro de Carlos, pallida, excitada, animava _Minhoto_ com gritinhos,
com pancadas de leque. A agitaÁ„o d'aquelle canto da tribuna
estendera-se em baixo ao recinto--onde se via uma linha de homens,
contra a corda da pista, bracejando. Do outro lado, era uma fila de
rostos pallidos, fixos n'uma curta anciedade. Algumas senhoras tinham-se
posto de pÈ nas carruagens. E atravez da collina, para ver a chegada,
dous cavalleiros, segurando com as m„os os chapÈos baixos, corriam ·
desfilada.

--_Vladimiro! Vladimiro!_ foram de novo os gritos isolados, aqui, alÈm.

Os dous cavallos approximavam-se, com um som surdo das patas, trazendo
um ar de rajada.

--_Minhoto! Minhoto!_

--_Vladimiro! Vladimiro!_

Chegavam... De repente o jockey inglez de _Vladimiro_, todo em fogo,
levantando o potro que lhe parecia fugir d'entre as pernas, esticado e
lustroso, fez silvar triumphantemente o chicote, e d'um arremesso
directo lanÁou-o alÈm da meta, duas cabeÁas adiante de _Minhoto_, todo
coberto d'espuma.

Ent„o em volta de Carlos foi uma desconsolaÁ„o, um longo murmurio de
lassid„o. Todos perdiam; elle apanhava a _poule_, ganhava as apostas,
empolgava tudo. Que sorte! Que chance! Um addido italiano, thesoureiro
da _poule_, empallideceu ao separar-se do lenÁo cheio de prata: e de
todos os lados m„osinhas calÁadas de gris-perle, ou de castanho,
atiravam-lhe com um ar amuado as apostas perdidas, chuva de placas que
elle recolhia, rindo, no chapÈo.

--Ah, monsieur, exclamou a vasta ministra da Baviera, furiosa,
mefiez-vous... Vous connaissez le proverbe: heureux au jeu...

--Helas! madame! disse Carlos, resignado, estendendo-lhe o chapÈo.

E outra vez um dedo subtil tocou-lhe no braÁo. Era o secretario de
Steinbroken, lento e silencioso, que lhe trazia o seu dinheiro e o
dinheiro do seu chefe, a aposta do reino da Filandia.

--Quanto ganha vocÍ? exclamou Telles da Gama, assombrado.

Carlos n„o sabia. No fundo do chapÈo j· reluzia ouro. Telles contou, com
o olho brilhante.

--VocÍ ganha doze libras! disse elle maravilhado, e olhando Carlos com
respeito.

Doze libras! Esta somma espalhou-se em redor, n'um rumor de espanto.
Doze libras! Em baixo os amigos de Darque, agitando os chapÈos, davam
ainda _hurrahs_. Mas uma indifferenÁa, um tedio lento, ia pesando outra
vez, desconsoladoramente. Os rapazes vinham-se deixar cahir nas
cadeiras, bocejando, com um ar exhausto. A musica, desanimada tambem,
tocava cousas plangentes da _Norma_.

Carlos, no entanto, n'um degrau da tribuna, com a idÈa de descobrir o
Damaso, sondava de binoculo o recinto das carruagens. A gente, agora, ia
dispersando pela collina. As senhoras tinham retomado a immobilidade
melancolica, no fundo das caleches, de m„os no regaÁo. Aqui e alÈm um
dog-cart, mal arranjado, dava um trote curto pela relva. N'uma vittoria
estavam as duas hespanholas do Eusebiosinho, a Concha e a Carmen, de
sombrinhas escarlates. E sujeitos, de m„os atr·s das costas, pasmavam
para um char-‡-bancs a quatro attrelado · Daumont onde, entre uma
familia triste, uma ama de lenÁo de lavradeira dava de mamar a uma
creanÁa cheia de rendas. Dous garotos esganiÁados passeavam bilhas
d'agua fresca.

Carlos descia da tribuna, sem ter descoberto o Damaso--quando deu
justamente de frente com elle, dirigindo-se para a escada, affogueado,
flamante, na sua famosa sobrecasaca branca.

--Onde diabo tens tu estado, creatura?

O Damaso agarrou-o pelo braÁo, alÁou-se em bicos de pÈs, para lhe contar
ao ouvido que tinha estado do outro lado com uma gaja divina, a
Josephina do Zalazar... Chic a valer! lindamente vestida! parecia-lhe
que tinha mulher!

--Ah, Sardanapalo!...

--Faz-se pela vida... Volta c· acima · tribuna, anda. Eu ainda hoje n„o
pude cavaquear com o _high-life_!... Mas estou furioso, sabes?
Implicaram com o meu veo azul. Isto È um paiz de bestas! Logo troÁa, e
_olhe n„o creste a pelle_, e _onde mora, Û catitinha?_ e chalaÁa... Uma
canalha! Tive de tirar o veo ... Mas j· resolvi. Para as outras corridas
venho n˙. Palavra, venho n˙! Isto È a vergonha da civilisaÁ„o, esta
terra! N„o vens d'ahi? Ent„o atÈ j·.

Carlos deteve-o.

--Escuta l· homem, tenho que te dizer... Ent„o, essa visita aos
Olivaes?... Nunca mais appareceste... Tinhamos combinado que fosses
convidar o Castro Gomes, que viesses dar a resposta... N„o vens, n„o
mandas... O Craft · espera... Emfim um procedimento de selvagem.

Damaso atirou os braÁos ao ar. Ent„o Carlos n„o sabia? Havia grandes
novidades! Elle n„o voltara ao Ramalhete, como estava combinado, porque
o Carlos Gomes n„o podia ir aos Olivaes. Ia partir para o Brazil. J·
partir· mesmo, na quarta feira. A coisa mais extraordinaria... Elle
chega l·, para fazer o convite, e s. ex.^a declara-lhe que sente muito,
mas que parte no dia seguinte para o Rio... E j· de mala feita, j·
alugada uma casa para a mulher ficar aqui · espera tres mezes, j· a
passagem no bolso. Tudo de repente, feito de sabbado para segunda
feira... Telhudo, aquelle Castro Gomes.

--E l· partiu, exclamou elle, voltando-se a cumprimentar a viscondessa
d'Alvim e Joanninha Villar que desciam das tribunas. L· partiu, e ella
j· est· installada. AtÈ j· antes de hontem a fui visitar, mas n„o estava
em casa... Sabes do que tenho medo? … que ella, n'estes primeiros
tempos, por causa da visinhanÁa, como est· sÛ, n„o queira que eu l· v·
muito... Que te parece?

--Talvez... E onde mora ella?

Em quatro palavras, Damaso explicou a installaÁ„o de madame. Era muito
engraÁado, morava no predio do Cruges! A mam„ Cruges, havia j· annos,
alugava aquelle primeiro andar mobilado: o inverno passado estivera l· o
Bertonni, o tenor, com a familia. Casa bem arranjada, o Castro Gomes
tinha tido dedo...

--E para mim, muito commodo, ali ao pÈ do Gremio... Ent„o n„o voltas c·
acima, a cavaquear com o femeaÁo? AtÈ logo... Est· hoje chic a valer a
Gouvarinho! E est· a pedir homem! _Good-bye_.

Defronte de Carlos a condessa de Gouvarinho, no grupo de D. Maria a que
se viera juntar a Alvim e Joanninha Villar, n„o cessava de o chamar com
o olhar inquieto, torturando o seu grande leque negro. Mas elle n„o
obedeceu logo, parado ao pÈ dos degraus da tribuna, accendendo vagamente
uma cigarrette, perturbado por todas aquellas palavras do Damaso que lhe
deixavam n'alma um sulco luminoso. Agora que a sabia sÛ em Lisboa,
vivendo na mesma casa do Cruges, parecia-lhe que j· a conhecia,
sentia-se muito perto d'ella--podendo assim a todo o momento entrar os
hombraes da sua porta, pisar os degraus que ella pisava. Na sua
imaginaÁ„o transluziam j· possibilidades d'um encontro, alguma palavra
trocada, cousas pequeninas, subtis como fios, mas por onde os seus
destinos se comeÁariam a prender... E immediatamente veio-lhe a tentaÁ„o
pueril de ir l·, logo n'essa mesma tarde, n'esse instante, gosar como
amigo do Cruges o direito de subir a escada d'ella, parar diante da
porta d'ella--e surprehender uma voz, um som de piano, um rumor qualquer
da sua vida.

O olhar da condessa n„o o deixava. Elle approximou-se, emfim,
contrariado: ella ergueu-se logo, deixou o seu grupo, e dando alguns
passos com elle pela relva, recomeÁou a fallar na ida a Santarem.
Carlos, ent„o, muito seccamente, declarou toda essa invenÁ„o insensata.

--Porque?...

Ora porque! Por tudo. Pelo perigo, pelos desconfortos, pelo ridiculo...
Emfim, a ella como mulher ficava-lhe bem ter phantasias pittorescas de
romance; mas a elle competia-lhe ter bom senso.

Ella mordia o beiÁo, com todo o sangue na face. E n„o via alli bom
senso. Via sÛ frieza. Quando ella arriscava tanto, elle podia bem, por
uma noite, affrontar os desconfortos da estalagem...

--Mas n„o È isso!...

Ent„o que era? Tinha medo? N„o havia mais perigo do que nas idas a casa
da titi. Ninguem a podia conhecer, com outra cÙr de cabello, toda a
sorte de vÈos, disfarÁada n'um grande water-proof. Chegavam de noite,
entravam para o quarto, d'onde n„o sahiam mais, servidos apenas pela
escosseza. No dia seguinte, no comboio da noite, ella seguia para o
Porto, todo acabava... E n'aquella insistencia ella era o homem, o
seductor, com a sua vehemencia de paix„o activa, tentando-o,
soprando-lhe o desejo; emquanto elle parecia a mulher, hesitante e
assustada. E Carlos sentia isto. A sua resistencia a uma noite de amor,
prolongando-se assim, ameaÁava ser grotesca: ao mesmo tempo o calor de
voluptuosidade que emanava d'aquelle seio, arfando junto d'elle e por
elle, ia-o amollecendo lentamente. Terminou por a olhar de certo modo;
e, como se o desejo se lhe accendesse emfim de repente · curta chamma
que faiscava nas pupillas d'ella, negras, humidas, avidas, promettendo
mil cousas, disse, um pouco pallido:

--Pois bem, perfeitamente... ¡manh„ · noite, na estaÁ„o.

N'esse momento, em redor, romperam exclamaÁıes de troÁa: era um cavallo
solitario que chegava, n'um galope pacato, passara a meta sem se
apressar, como se descesse uma avenida do Campo Grande n'uma tarde de
domingo. E em redor perguntava-se que corrida era aquella d'um cavallo
sÛ--quando ao longe, como sahindo da claridade loura do sol que descia
sobre o rio, appareceu uma pobre pileca branca, empurrando-se,
arquejando, n'um esforÁo doloroso, sob as chicotadas atarantadas d'um
jockey de roxo e preto. Quando ella chegou, emfim, j· o outro
_gentleman-rider_ voltara da meta, a passo, pachorrentamente,--e estava
conversando com os amigos, encostado · corda da pista.

Todo o mundo ria. E a corrida do Premio d'El-rei terminou assim,
grotescamente.

Ainda havia o Premio de ConsolaÁ„o--mas agora desapparecera todo o
interesse ficticio pelos cavallos. Perante a calma e radiante belleza da
tarde, algumas senhoras, imitando a Alvim, tinham descido para a
pesagem, canÁadas da immobilidade da tribuna. Arranjaram-se mais
cadeiras: aqui e alÈm, sobre a relva pisada, formavam-se grupos
alegrados por algum vestido claro ou por uma pluma viva de chapÈo: e
palrava-se, como n'uma sala de inverno, fumando-se familiarmente. Em
redor de D. Maria e da Alvim projectava-se um grande pic-nic a Queluz.
Alencar e o Gouvarinho discutiam a reforma de instrucÁ„o. A horrivel
Craben, entre outros diplomatas e moÁos de binoculo a tiracolo, dava do
fundo grosso do papo, opiniıes sobre Daudet, que elle achava _trËs
agreable_. E, quando Carlos emfim abalou, o recinto, esquecidas as
corridas, tomava um tom de _soirÈe_, no ar claro e fresco da collina,
com o murmurio de vozes, um mover de leques, e ao fundo a musica tocando
uma valsa de Strauss.

Carlos, depois de procurar muito Craft, encontrou-o no buffete com o
Darque, com outros, bebendo mais champagne.

--Eu tenho de ir ainda a Lisboa, disse-lhe elle, e vou no phaeton.
Abandono torpemente. VocÍ v· para o Ramalhete como poder...

--Eu o levo! gritou logo o Vargas, que tinha j· a gravata toda
desmanchada. Levo-o no dog-cart. Eu me encarrego d'elle... O Craft fica
por minha conta... … necessario recibo? ¡ saude do Craft, inglez c· dos
meus... Hurrah!

--Hurrah! Hip, hip, hurrah!

D'ahi a pouco, a trote largo no phaeton, Carlos descia o Chiado, dava a
volta para a rua de S. Francisco. Ia n'uma perturbaÁ„o deliciosa e
singular, com aquella certeza de que ella estava sÛ na casa do Cruges: o
ultimo olhar que ella lhe dÈra parecia ir adiante d'elle, chamando-o: e
um despertar tumultuoso de esperanÁas sem nome atirava-lhe a alma para o
azul.

Quando parou diante do port„o--alguem, por dentro das janellas d'ella,
Ìa correndo lentamente os stores. Na rua silenciosa cahia j· uma sombra
de crepusculo. Atirou as redeas ao cocheiro, atravessou o pateo. Nunca
viera visitar o Cruges, nunca subira esta escada; e pareceu-lhe
horrorosa, com os seus frios degraus de pedra, sem tapete, as paredes
nuas e enxovalhadas alvejando tristemente no comeÁo de escurid„o. No
patamar do primeiro andar parou. Era alli que ella vivia. E ficou
olhando, com uma devoÁ„o ingenua, para as tres portas pintadas d'azul: a
do centro estava inutilisada por um banco comprido de palhinha, e na do
lado direito pendia, com uma enorme bola, o cord„o da campainha. De
dentro n„o vinha um rumor:--e este pesado silencio, juntando-se ao
movimento de stores que elle vira fechar-se, parecia cercar as pessoas
que alli viviam de solid„o e de impenetrabilidade. Uma desconsolaÁ„o
passou-lhe na alma. Se ella agora, sÛ, sem o marido, comeÁasse uma vida
reclusa e solitaria? Se elle n„o tornasse mais a encontrar os seus
olhos?

Foi subindo de vagar atÈ ao andar do Cruges. E mal sabia o que havia de
dizer ao maestro para explicar aquella visita extranha, deslocada... Foi
um allivio quando a criadita lhe veiu dizer que o menino Victorino tinha
sahido.

Em baixo, Carlos tomou as redeas, e foi levando lentamente o phaeton atÈ
ao largo da Bibliotheca. Depois retrocedeu, a passo. Agora, por traz do
store branco, havia uma vaga claridade de luz. Elle olhou-a como se olha
uma estrella.

Voltou ao Ramalhete. Craft, coberto de pÛ, estava-se justamente apeando
de uma calecha de praÁa. Um momento ficaram alli · porta, em quanto
Craft, procurando troco para o cocheiro, contava o final das corridas.
No _Premio de ConsolaÁ„o_, um dos cavalleiros tinha cahido, quasi ao pÈ
da meta, sem se magoar: e, por ultimo, j· · partida, o Vargas, que ia na
sua terceira garrafa de champagne, esmurrara um criado do buffete, com
ferocidade.

--Assim, disse Craft completando o seu troco, estas corridas foram boas
pelo velho principe Shakespereano de que _tudo È bom quanto acaba bem_.

--Um murro, disse Carlos rindo, È com effeito um bello ponto final.

No peristillo, o velho guarda-port„o esperava, descoberto, com uma carta
na m„o para Carlos. Um criado tinha-a trazido, instantes antes de s.
ex.^a chegar.

Era uma letra ingleza de mulher, n'um envelope largo, lacrado com um
sinete d'armas. Carlos alli mesmo abriu-a: e, logo · primeira linha,
teve um movimento t„o vivo, de t„o bella surpreza, illuminando-se-lhe
tanto o rosto, que Craft do lado perguntou sorrindo:

--Aventura? HeranÁa?...

Carlos, vermelho, metteu a carta no bolso, e murmurou:

--Um bilhete apenas, um doente...

Era apenas um doente, era apenas um bilhete, mas comeÁava
assim:--´Madame Castro Gomes apresenta os seus respeitos ao sr. Carlos
da Maia, e roga-lhe o obsequio...ª--depois, em duas breves palavras,
pedia-lhe para ir ver na manh„ seguinte, o mais cedo possivel, uma
pessoa de familia, que se achava incommodada.

--Bem, eu vou-me vestir, disse Craft... Jantar ·s sete e meia, hein?

--Sim, o jantar...--respondeu Carlos, sem saber o quÍ, banhado todo n'um
sorriso, como em extase.

Correu aos seus aposentos: e junto da janella, sem mesmo tirar o chapÈo,
leu uma vez mais o bilhete, outra vez ainda, contemplando enlevadamente
a forma da letra, procurando voluptuosamente o perfume do papel.

Era datada d'esse mesmo dia · tarde. Assim, quando elle passara defronte
da sua porta, j· ella a escrevera, j· o seu pensamento se demorara
n'elle--quando mais n„o fosse sen„o ao traÁar as lettras simples do seu
nome. N„o era ella que estava doente. Se fosse Rosa, ella n„o diria t„o
friamente ´uma pessoa de familia.ª Era talvez o esplendido preto de
carapinha grisalha. Talvez miss Sarah, abenÁoada fosse ella para sempre,
que queria um medico que entendesse inglez... Emfim havia l· uma pessoa
n'uma cama, junto da qual ella mesma o conduziria, atravez dos
corredores interiores d'aquella casa--que havia apenas instantes sentira
t„o fechada, e como impenetravel para sempre!... E depois este adorado
bilhete, este delicioso pedido para ir a sua casa, agora que ella o
conhecia, que vira Rosa atirar-lhe um grande adeus--tomava uma
significaÁ„o profunda, perturbadora...

Se ella n„o quizesse comprehender, nem acceitar o distante amor que os
seus olhos lhe tinham offerecido claramente, o mais luminosamente que
tinham podido, n'esses fugitivos instantes que se tinham cruzado com os
d'ella--ent„o poderia ter mandado chamar outro medico, um clinico
qualquer, um estranho. Mas n„o: o seu olhar respondera ao d'elle, e ella
abria-lhe a sua porta...--E o que sentia a esta idÈa era uma gratid„o
ineffavel, um impulso tumultuoso de todo o seu ser a cahir-lhe aos pÈs,
ficar-lhe beijando a orla do vestido, devotamente, eternamente, sem
querer mais nada, sem pedir mais nada...

Quando Craft d'alli a pouco desceu, de casaca, fresco, alvo, engommado,
correcto--achou Carlos, ainda com toda a poeira da estrada, de chapÈo na
cabeÁa passeando o quarto, n'esta agitaÁ„o radiante.

--VocÍ est· a faiscar, homem! disse Craft, parando deante d'elle, com as
m„os nos bolsos, e contemplando-o um instante do alto do seu
resplandecente collarinho. VocÍ flameja!... VocÍ parece que tem uma
aurÈola na nuca!... VocÍ succedeu-lhe o quer que seja de muito bom!

Carlos espreguiÁou-se, sorrindo. Depois olhou para Craft um momento, em
silencio, encolheu os hombros, e murmurou:

--A gente, Craft, nunca sabe se o que lhe succede È, em definitivo, bom
ou mau.

--Ordinariamente È mau, disse o outro friamente, aproximando-se do
espelho a retocar com mais correcÁ„o o nÛ da gravata branca.

FIM DO PRIMEIRO VOLUME




E«A DE QUEIROZ

OS MAIAS

EPISODIOS DA VIDA ROMANTICA

VOLUME II

PORTO


Livraria Internacional de Ernesto Chardron
CASA EDITORA
LUGAN & GENELIOUX, Successores


1888

Todos os direitos reservados




OS MAIAS

VOLUME I




OS MAIAS




I


Na manh„ seguinte, Carlos, que se erguera cedo, veio a pÈ do Ramalhete
atÈ · rua de S. Francisco, a casa de Madame Gomes. No patamar, onde
morria em penumbra a luz distante da claraboia, uma velha de lenÁo na
cabeÁa, encolhida n'um chalesinho preto, esperava, sentada
melancolicamente ao canto do banco de palhinha. A porta aberta mostrava
uma parede feia de corredor, forrada de papel amarello. Dentro um
relogio ronceiro estava batendo dez horas.

--A senhora j· tocou? perguntou Carlos, erguendo o chapÈo.

A velha murmurou, d'entre a sombra do lenÁo que lhe cahia para os olhos,
n'um tom canÁado e doente:

--J·, sim, meu senhor. J· fizeram o favor de me fallar. O criado, o snr.
Domingos, n„o tarda...

Carlos esperou, passeando lentamente no patamar. Do segundo andar vinha
um barulho alegre de crianÁas brincando; por cima, o moÁo do Cruges
esfregava a escada com estrondo, assobiando desesperadamente o fado. Um
longo minuto arrastou-se, depois outro, infindavel. A velha, d'entre a
negrura do lenÁo, deu um suspirosinho abatido. L· ao fundo um canario
rompera a cantar; e ent„o Carlos, impaciente, puxou o cord„o da
campainha.

Um criado de suissas ruivas, correctamente abotoado n'um jaquet„o de
flanella, appareceu correndo, com uma travessa na m„o, abafada n'um
guardanapo; e ao vÍr Carlos ficou t„o atarantado, bambaleando · porta,
que um pouco de molho de assado escorregou, cahiu sobre o soalho.

--Oh snr. D. Carlos Eduardo, faz favor d'entrar!... Ora esta! Tem a
bondade d'esperar um instantinho, que eu abro j· a sala... Tome l·,
snr.^a Augusta, tome l·, olhe n„o entorne mais! A senhora diz que l·
manda logo o vinho do Porto... Desculpe v. exc.^a, snr. D. Carlos... Por
aqui, meu senhor...

Correu um reposteiro de reps vermelho, introduziu Carlos n'uma sala
alta, espaÁosa, com um papel de ramagens azues, e duas varandas para a
rua de S. Francisco; e erguendo · pressa os dois transparentes de
paninho branco, perguntava a Carlos se s. exc.^a n„o se lembrava j· do
Domingos. Quando elle se voltou, risonho, descendo precipitadamente os
canhıes das mangas, Carlos reconheceu-o pelas suissas ruivas. Era com
effeito o Domingos, escudeiro excellente, que no comeÁo do inverno
estivera no Ramalhete, e se despedira por birras patrioticas, birras
ciumentas, com o cozinheiro francez.

--N„o o tinha visto bem, Domingos, disse Carlos. O patamar È um pouco
escuro... Lembro-me perfeitamente... E ent„o vossÍ agora aqui, hein? E
est· contente?

--Eu parece-me que estou muito contente, meu senhor... O snr. Cruges
tambem mora c· por cima...

--Bem sei, bem sei...

--Tenha v. exc.^a a paciencia de esperar um instantinho que eu vou dar
parte · snr.^a D. Maria Eduarda...

Maria Eduarda! Era a primeira vez que Carlos ouvia o nome d'ella; e
pareceu-lhe perfeito, condizendo bem com a sua belleza serena. Maria
Eduarda, Carlos Eduardo... Havia uma similitude nos seus nomes. Quem
sabe se n„o presagiava a concordancia dos seus destinos!

Domingos, no entanto, j· · porta da sala, com a m„o no reposteiro, parou
ainda, para dizer n'um tom de confidencia e sorrindo:

--… a governante ingleza que est· doente...

--Ah! È a governante?

--Sim, meu senhor, tem uma febresita desde hontem, peso no peito...

--Ah!...

O Domingos deu outro movimento lento ao reposteiro, sem se apressar,
contemplando Carlos com admiraÁ„o:

--E o avÙsinho de v. exc.^a passa bem?

--Obrigado, Domingos, passa bem.

--Aquillo È que È um grande senhor!... N„o ha, n„o ha outro assim em
Lisboa!

--Obrigado, Domingos, obrigado...

Quando elle finalmente sahiu, Carlos, tirando as luvas, deu uma volta
curiosa e lenta pela sala. O soalho fÙra esteirado de novo. Ao pÈ da
porta havia um piano antigo de cauda, coberto com um pano alvadio; sobre
uma estante ao lado, cheia de partituras, de musicas, de jornaes
illustrados, pousava um vaso do Jap„o onde murchavam tres bellos lirios
brancos; todas as cadeiras eram forradas de reps vermelho; e aos pÈs do
sof· estirava-se uma velha pelle de tigre. Como no Hotel Central, esta
intallaÁ„o summaria de casa alugada recebera retoques de conforto e de
gosto: cortinas novas de cretone, combinando com o papel azul da parede,
tinham substituido as classicas bambinellas de cassa: um pequeno
contador arabe, que Carlos se lembrava de ter visto havia dias no tio
Abrah„o, viera encher um lado mais desguarnecido da parede: o tapete de
pellucia d'uma mesa oval, collocada ao centro, desapparecia sob lindas
encadernaÁıes de livros, albuns, duas taÁas japonezas de bronze, um
cesto para flÙres de porcelana de Dresde, objectos delicados d'arte que
n„o pertenciam decerto · m„i Cruges. E parecia errar alli, acariciando a
ordem das coisas e marcando-as com um encanto particular, aquelle
indefinido perfume que Carlos j· sentira nos quartos do Hotel Central, e
em que dominava o jasmim.

Mas o que attrahiu Carlos foi um bonito biombo de linho cr˙, com
ramalhetes bordados, desdobrado ao pÈ da janella, fazendo um recanto
mais resguardado e mais intimo. Havia l· uma cadeirinha baixa de setim
escarlate, uma grande almofada para os pÈs, uma mesa de costura com todo
um trabalho de mulher interrompido, numeros de jornaes de modas, um
bordado enrolado, mÛlhos de l„ de cÙres transbordando de um aÁafate. E,
confortavelmente enroscada no macio da cadeira, achava-se ahi, n'esse
momento, a famosa cadellinha escosseza, que tantas vezes pass·ra nos
sonhos de Carlos, trotando ligeiramente atraz de uma radiante figura
pelo Aterro fÛra, ou aninhada e adormecida n'um doce regaÁo...

--Bonjour, Mademoiselle, disse-lhe elle, baixinho, querendo captar-lhe
as sympathias.

A cadellinha erguera-se logo bruscamente na cadeira, d'orelhas fitas,
dardejando para aquelle estranho, por entre as repas esguedelhadas, dois
bellos olhos de azeviche, desconfiados, d'uma penetraÁ„o quasi humana.
Um instante Carlos receou que ella rompesse a ladrar. Mas a cadellinha
de repente namor·ra-se d'elle, deitada j· na cadeira, de patas ao ar,
descomposta, abandonando o ventresinho ·s suas caricias. Carlos ia
coÁal-a e amimal-a, quando um passo leve pizou a esteira. Voltou-se, viu
Maria Eduarda diante de si.

Foi como uma inesperada appariÁ„o--e vergou profundamente os hombros,
menos a saudal-a, que a esconder a tumultuosa onda de sangue que sentia
abrazar-lhe o rosto. Ella, com um vestido simples e justo de sarja
preta, um collarinho direito de homem, um bot„o de rosa e duas folhas
verdes no peito, alta e branca, sentou-se logo junto da mesa oval,
acabando de desdobrar um pequeno lenÁo de renda. Obedecendo ao seu gesto
risonho, Carlos pousou-se embaraÁadamente · borda do sof· de reps. E
depois d'um instante de silencio, que lhe pareceu profundo, quasi
solemne, a voz de Maria Eduarda ergueu-se, uma voz rica e lenta, d'um
tom d'ouro que acariciava.

AtravÈs do seu enleio, Carlos percebia vagamente que ella lhe agradecia
os cuidados que elle tivera com Rosa: e, de cada vez que o seu olhar se
demorava n'ella um instante mais, descobria logo um encanto novo e outra
fÛrma da sua perfeiÁ„o. Os cabellos n„o eram louros, como julg·ra de
longe · claridade do sol, mas de dois tons, castanho-claro e
castanho-escuro, espessos e ondeando ligeiramente sobre a testa. Na
grande luz escura dos seus olhos havia ao mesmo tempo alguma coisa de
muito grave e de muito dÙce. Por um geito familiar cruzava ·s vezes, ao
fallar, as m„os sobre os joelhos. E atravÈs da manga justa de sarja,
terminando n'um punho branco, elle sentia a belleza, a brancura, o
macio, quasi o calor dos seus braÁos.

Ella cal·ra-se. Carlos, ao levantar a voz, sentiu outra vez o sangue
abrazar-lhe o rosto. E, apesar de saber j· pelo Domingos que a doente
era a governante, sÛ achou, na sua perturbaÁ„o, esta pergunta timida:

--N„o È sua filha que est· doente, minha senhora?

--Oh n„o! graÁas a Deus!

E Maria Eduarda contou-lhe, justamente como o Domingos, que a governante
ingleza havia dois dias se achava incommodada, com difficuldade de
respirar, tosse, uma ponta de febre...

--Imagin·mos ao principio que era uma constipaÁ„o passageira; mas hontem
· tarde estava peor, e estou agora impaciente que a veja...

Ergueu-se, foi puxar um enorme cord„o de campainha que pendia ao lado do
piano. O seu cabello por traz, repuxado para o alto da cabeÁa, deixava
uma pennugem d'ouro frisar-se delicadamente sobre a brancura lactea do
pescoÁo. Entre aquelles moveis de reps, sob o tecto banal d'estuque
enxovalhado, toda a sua pessoa parecia a Carlos mais radiante, d'uma
belleza mais nobre, e quasi inaccessivel; e pensava que nunca alli
ousaria olhal-a t„o francamente, com uma t„o clara adoraÁ„o, como quando
a encontrava na rua.

--Que linda cadellinha v. exc.^a tem, minha senhora! disse elle, quando
Maria Eduarda se tornou a sentar, e pondo j· n'estas palavras simples,
ditas a sorrir, um accento de ternura.

Ella sorriu tambem com um lindo sorriso, que lhe fazia uma covinha no
queixo, dava uma doÁura mais mimosa ·s suas feiÁıes sÈrias. E
alegremente, batendo as palmas, chamando para dentro do biombo:

--_Niniche!_ est„o-te a fazer elogios, vem agradecer!

_Niniche_ appareceu a bocejar. Carlos achava lindo este nome de
_Niniche_. E era curioso, tinha tido tambem uma galguinha italiana que
se chamava _Niniche_...

N'esse instante a criada entrou--a rapariga magra e sardenta, d'olhar
petulante, que Carlos vira j· no Hotel Central.

--Melanie vai-lhe ensinar o quarto de miss Sarah, disse Maria Eduarda.
Eu n„o o acompanho, porque ella È t„o timida, tem tanto escrupulo em
incommodar, que diante de mim È capaz de negar tudo, dizer que n„o tem
nada...

--Perfeitamente, perfeitamente, murmurava Carlos, sorrindo, n'um encanto
de tudo.

E pareceu-lhe ent„o que no olhar d'ella alguma coisa brilh·ra, fugira
para elle, de mais vivo, de mais dÙce.

Com o seu chapÈo na m„o, pisando familiarmente aquelle corredor intimo,
surprehendendo detalhes de vida domestica, Carlos sentia como a alegria
d'uma posse. Por uma porta meio aberta pÙde entrevÍr uma banheira, e ao
lado dependurados grandes roupıes turcos de banho. Adiante, sobre uma
mesa, estavam alinhadas, e como desencaixotadas recentemente, garrafas
d'aguas mineraes de Saint-Galmier e de Vals. Elle deduzia logo d'estas
coisas t„o simples, t„o banaes, evidencias de vida delicada.

Melanie correu um reposteiro de linho cr˙, fÍl-o entrar n'um quarto
claro e fresco: e ahi foi encontrar a pobre miss Sarah n'um leitosinho
de ferro, sentada, com um laÁo de sÍda azul ao pescoÁo, e os bandÛs t„o
lisos, t„o acamados pela escova, como se fosse sahir n'um domingo para a
capella presbyteriana. Na mesinha de cabeceira os seus jornaes inglezes
estavam escrupulosamente dobrados, junto d'um copo com duas bellas
rosas; e tudo no quarto resplandecia de severo arranjo, desde os
retratos da familia real d'Inglaterra, expostos sobre a toalha de renda
que cobria a commoda, atÈ ·s suas botinas bem engraxadas, classificadas,
perfiladas n'uma prateleira de pinho.

Apenas Carlos se sentou, ella immediatamente, com duas rosetas de
vergonha na face, entre frouxos de tosse, declarou que n„o tinha nada.
Era a senhora, t„o boa, t„o cautelosa, que a forÁ·ra a metter-se na
cama... E para ella era um desgosto vÍr-se alli ociosa, inutil, agora
que Madame estava t„o sÛ, n'uma casa sem jardim. Onde havia a menina de
brincar? Quem havia de sahir com ella? Ah! Era uma pris„o para
Madame!...

Carlos consolava-a, tomando-lhe o pulso. Depois, quando elle se ergueu
para a auscultar, a pobre miss cobriu-se toda d'um rubor afflicto,
apertando mais a roupa contra o peito, querendo saber se era
_absolutamente_ necessario... Sim, decerto, era necessario... Achou-lhe
o pulm„o direito um pouco tomado; e, em quanto a agasalhava, fez-lhe
algumas perguntas sobre a sua familia. Ella contou que era de York,
filha de um _clergyman_, e tinha quatorze irm„os: os rapazes estavam na
Nova Zelandia, e todos eram d'uma robustez de athletas. Ella sahira a
mais fraca; tanto que o pai, vendo que ella aos dezesete annos pesava sÛ
oito arrobas, ensinou-lhe logo latim, destinando-a para governante.

Em todo o caso, dizia Carlos, nunca houvera na sua familia doenÁas de
peito? Ella sorriu. Oh! nunca! A mam„ ainda vivia. O pap·, j· muito
velho, morrera do couce de uma egua.

Carlos, no entanto, j· de pÈ, com o chapÈo na m„o, continuava a
observal-a, reflectindo. Ent„o, de repente, sem motivo, ella
enterneceu-se, os seus olhos pequeninos ennevoaram-se de agua. E quando
ouviu que eram precisos tantos agasalhos, que teria de estar alli no
quarto ainda quinze dias, perturbou-se mais, duas lagrimasinhas timidas
quasi lhe fugiram das pestanas. Carlos terminou por lhe afagar
paternalmente a m„o.

--_Oh! Thank you sir!_ murmurou ella, commovida de todo.

Na sala, Carlos veio encontrar Maria Eduarda sentada junto da mesa,
arranjando ramos, com uma grande cesta de flÙres pousada ao lado d'uma
cadeira, e o regaÁo cheio de cravos. Uma bella restea de sol, estendida
na esteira, vinha morrer-lhe aos pÈs; e _Niniche_, deitada alli, reluzia
como se fosse feita de fios de prata. Na rua, sob as janellas, um
realejo ia tocando, na alegria da linda manh„ de sol, a walsa da _Madame
Angot_. Pelo andar de cima tinham recomeÁado as correrias de crianÁas
brincando.

--Ent„o? exclamou ella, voltando-se logo, com um mÛlho de cravos na m„o.

Carlos tranquillisou-a. A pobre miss Sarah tinha uma bronchite ligeira,
com pouca febre. Em todo o caso necessitava resguardo, toda a cautela...

--Certamente! E ha de tomar algum remedio, n„o È verdade?

Atirou logo o resto dos cravos do regaÁo para o cesto, foi abrir uma
secretariasinha de pau preto collocada entre as janellas. Ella mesmo
arranjou o papel para elle receitar, metteu um bico novo na penna. E
estes cuidados perturbavam Carlos como caricias.

--Oh minha senhora... murmurava elle, um lapis basta...

Quando se sentou, os seus olhos demoraram-se com uma curiosidade
enternecida n'esses objectos familiares onde pousava a doÁura das m„os
d'ella--um sinete d'agatha sobre um velho livro de contas, uma faca de
marfim com monogramma de prata ao lado d'uma taÁasinha de Saxe cheia
d'estampilhas; e em tudo havia a ordem clara que t„o bem condizia com o
seu puro perfil. Na rua o realejo cal·ra-se, por cima do tecto j· n„o
cavallavam as crianÁas. E, em quanto escrevia devagar, Carlos sentia-a
abafar sobre a esteira o som dos seus passos, mover os seus vasos mais
de leve.

--Que bonitas flÙres v. exc.^a tem, minha senhora! disse elle, voltando
a cabeÁa, em quanto ia seccando distrahida e lentamente a receita.

De pÈ, junto do contador arabe, onde pousava um vaso amarello da India,
ella arranjava folhas em volta de duas rosas.

--D„o frescura, disse ella. Mas imaginei que em Lisboa havia mais
bonitas flÙres. N„o ha nada que se compare ·s flÙres de FranÁa... Pois
n„o È verdade?

Elle n„o respondeu logo, esquecido a olhar para ella, pensando na doÁura
de ficar alli eternamente n'aquella sala de reps vermelho, cheia de
claridade e cheia de silencio, a vÍl-a pÙr folhas verdes em torno de pÈs
de rosa!

--Em Cintra ha lindas flÙres, murmurou por fim.

--Oh, Cintra È um encanto! disse ella, sem erguer os olhos do seu ramo.
Vale a pena vir a Portugal sÛ por causa de Cintra.

N'esse momento, o reposteiro de reps esvoaÁou, e Rosa entrou de dentro,
correndo, vestida de branco, com meiasinhas de sÍda preta, uma onda
negra de cabello a bater-lhe as costas, e trazendo ao collo a sua grande
boneca. Ao vÍr Carlos parou bruscamente, com os bellos olhos muito
abertos para elle, toda encantada, e apertando mais nos braÁos Cri-cri
que vinha em camisa.

--N„o conheces? perguntou-lhe a m„i, indo sentar-se outra vez diante do
seu cesto de flÙres.

Rosa comeÁava j· a sorrir, o seu rostosinho cobria-se d'uma linda cÙr. E
assim, toda d'alvo e negro como uma andorinha, tinha um encanto raro,
com o seu dÙce mimo de fÛrma, a sua graÁa ligeira, os seus grandes olhos
cheios d'azul, e um ruborzinho de mulher na face. Quando Carlos se
adiantou com a m„o estendida para renovar o antigo conhecimento--ella
ergueu-se na ponta dos pÈs, estendeu-lhe vivamente a boquinha, fresca
como um bot„o de rosa. Carlos ousou apenas tocar-lhe de leve na testa.

Depois quiz apertar a m„o · sua velha amiga Cri-cri. E ent„o, de
repente, Rosa recordou-se do que a trouxera alli a correr.

--… o robe-de-chambre, mam„! N„o posso achar o robe-de-chambre de
Cri-cri... Ainda a n„o pude vestir... Dize, sabes onde È que est· o
robe-de-chambre?

--Vejam esta desarranjada! murmurava a m„i olhando-a com um sorriso
lento e terno. Se Cri-cri tem uma commoda particular, o seu
guarda-vestidos, n„o se lhe deviam perder as coisas... Pois n„o È
verdade, snr. Carlos da Maia?

Elle, ainda com a sua receita na m„o, sorria tambem, sem dizer nada,
todo no enternecimento d'aquella intimidade em que se sentia penetrar
dÙcemente.

A pequena ent„o veio encostar-se · m„i, roÁando-se pelo seu braÁo, com
uma vozinha languida, lenta, e de mimo:

--Anda, dize... N„o sejas m·... Anda... Onde est· o robe-de-chambre?
Dize...

Levemente, com a ponta dos dedos, Maria Eduarda arranjou-lhe o pequenino
laÁo de sÍda branca que lhe prendia no alto o cabello. Depois ficou mais
sÈria:

--Est· bem, est· quieta... Tu sabes que n„o sou eu que trato dos
arranjos da Cri-cri. Devias ter mais ordem... Vai perguntar a Melanie.

E Rosa obedeceu logo, sÈria tambem, comprimentando agora Carlos ao
passar, com um arzinho senhoril:

--Bonjour, Monsieur...

--… encantadora! murmurou elle.

A m„i sorriu. Tinha acabado de compÙr o seu ramo de cravos;--e
immediatamente attendeu a Carlos, que pous·ra a receita sobre a mesa, e
sem se apressar, installando-se n'uma poltrona, lhe foi fallando da
dieta que devia ter miss Sarah, das colheres de xarope de codeina que se
lhe deviam dar de tres em tres horas...

--Pobre Sarah! dizia ella. E È curioso, n„o È verdade? Veio com o
presentimento, quasi com a certeza, que havia de adoecer em Portugal...

--Ent„o vem a detestar Portugal!

--Oh! tem-lhe j· horror! Acha muito calor, por toda a parte maus
cheiros, a gente hedionda... Tem medo de ser insultada na rua... Emfim È
infelicissima, est· ardendo por se ir embora...

Carlos ria d'aquellas antipathias saxonias. De resto em muitas coisas a
boa miss Sarah tinha talvez raz„o...

--E v. exc.^a tem-se dado bem em Portugal, minha senhora?

Ella encolheu os hombros, indecisa.

--Sim... Devo dar-me bem... … o meu paiz

O _seu_ paiz!... E elle que a julgava brazileira!

--N„o, sou portugueza.

E, durante um momento, houve um silencio. Ella tom·ra de sobre a mesa,
abria lentamente um grande leque negro pintado de flÙres vermelhas. E
Carlos sentia, sem saber porque, uma doÁura nova penetrar-lhe no
coraÁ„o. Depois ella fallou da sua viagem que fÙra muito agradavel;
adorava andar no mar; tinha sido um encanto a manh„ da chegada a Lisboa,
com um cÈo azul-ferrete, o mar todo azul tambem, e j· um calorzinho do
clima dÙce... Mas depois, apenas desembarcados, tudo correra
desagradavelmente. Tinham ficado mal alojados no Central. _Niniche_, uma
noite, assust·ra-os muito com uma indigest„o. Em seguida no Porto viera
aquelle desastre...

--Sim, disse Carlos, o marido de v. exc.^a, na PraÁa Nova...

Ella pareceu surprehendida. Como sabia elle? Ah! sim, sabia de certo
pelo Damaso...

--S„o muito amigos, creio eu.

Depois d'uma leve hesitaÁ„o, que ella comprehendeu, Carlos murmurou:

--Sim... O Damaso vai bastante ao Ramalhete... … de resto um rapaz que
eu conheÁo apenas ha mezes...

Ella abriu os olhos, pasmada.

--O Damaso? Mas elle disse-me que se conheciam desde pequeninos, que
eram atÈ parentes...

Carlos encolheu simplesmente os hombros, sorrindo.

--… uma bella illus„o... E se isso o faz feliz!...

Ella sorriu tambem, encolhendo tambem ligeiramente os hombros.

--E v. exc.^a, minha senhora, continuou logo Carlos n„o querendo fallar
mais do Damaso, como acha Lisboa?

Gostava bastante, achava muito bonito este tom azul e branco de cidade
meridional... Mas, havia t„o poucos confortos!... A vida tinha aqui um
ar que ella n„o pudera perceber ainda--se era de simplicidade ou de
pobreza.

--Simplicidade, minha senhora. Temos a simplicidade dos selvagens...

Ella riu.

--N„o direi isso. Mas supponho que s„o como os gregos: contentam-se em
comer uma azeitona, olhando o cÈo que È bonito...

Isto pareceu adoravel a Carlos, todo o seu coraÁ„o fugiu para ella.

Maria Eduarda queixava-se sobretudo das casas, t„o faltas de
commodidade, t„o despidas de gosto, t„o desleixadas. Aquella em que
vivia fazia a sua desgraÁa. A cozinha era atroz, as portas n„o fechavam.
Na sala de jantar havia sobre a parede umas pinturas de barquinhos e
collinas que lhe tiravam o appetite...

--AlÈm d'isso, acrescentou, È um horror n„o ter um quintal, um jardim,
onde a pequena possa correr, ir brincar...

--N„o È facil encontrar assim uma casa nas condiÁıes d'esta e com
jardim, disse Carlos.

Deu um olhar ·s paredes, ao estuque enxovalhado do tecto--e lembrou-lhe
de repente a quinta do Craft, com a sua vista de rio, o ar largo, as
frescas ruas de acacias.

Felizmente, Maria Eduarda tom·ra a casa apenas ao mez, e estava pensando
em ir passar · beira-mar o tempo que tivesse de ficar ainda em Portugal.

--De resto, disse ella, foi o que me aconselhou o meu medico em Paris, o
dr. Chaplain.

O dr. Chaplain? Justamente, Carlos conhecia muito o dr. Chaplain.
Ouvira-lhe as liÁıes, visit·ra-o atÈ intimamente na sua propriedade de
Maisonnettes, ao pÈ de Saint-Germain. Era um grande mestre, era um
espirito bem superior!

--E t„o bom coraÁ„o! disse ella com um claro sorriso, um olhar que
brilhou.

E este sentimento commum pareceu de repente aproximal-os mais dÙcemente:
cada um n'esse instante adorou o dr. Chaplain: e continuaram ainda
fallando d'elle prolongadamente, gozando, atravÈs d'essa trivial
sympathia por um velho clinico, a nascente concordancia dos seus
coraÁıes.

O bom dr. Chaplain! Que physionomia t„o amavel, t„o fina!... Sempre com
o seu barretinho de sÍda... E sempre com a sua grande flÙr na casaca...
De resto, o pratico maior que sahira da geraÁ„o de Trousseau.

--E Madame Chaplain, acrescentou Carlos, È uma pessoa encantadora... N„o
È verdade?

Mas Maria Eduarda n„o conhecia Madame Chaplain.

Dentro o relogio ronceiro comeÁ·ra a bater onze horas. E Carlos ent„o
ergueu-se, findando a sua fugitiva, inolvidavel, deliciosa visita...

Quando ella lhe estendeu a m„o, um pouco de sangue subiu-lhe de novo ·
face ao tocar aquella palma t„o macia e t„o fresca. Pediu os seus
comprimentos para Mademoiselle Rosa. Depois, · porta, j· com o
reposteiro na m„o, voltou-se ainda, uma vez mais, n'uma ultima saudaÁ„o,
a receber o olhar suave com que ella o seguia...

--AtÈ ·manh„, est· claro! exclamou ella de repente, com o seu lindo
sorriso.

--AtÈ ·manh„, decerto!

O Domingos estava j· no patamar, de casaca, risonho e bem penteado.

--… coisa de cuidado, meu senhor?

--N„o È nada, Domingos... Estimei vÍl-o por aqui.

--E eu muito a v. exc.^a. AtÈ ·manh„, meu senhor.

--AtÈ ·manh„.

_Niniche_ appareceu tambem no patamar. Elle abaixou-se ternamente a
afagal-a, e disse-lhe tambem, radiante:

--AtÈ ·manh„, _Niniche_!


AtÈ ·manh„! Voltando para o Ramalhete, era esta a unica idÈa que elle
sentia distinctamente atravÈs da nevoa luminosa que lhe afogava a alma.
Agora o seu dia estava findo:--mas, passadas as longas horas, terminada
a longa noite, elle penetraria outra vez n'aquella sala de reps
vermelho, onde ella o esperava, com o mesmo vestido de sarja, enrolando
ainda folhas verdes em torno de pÈs de rosa...

Pelo Aterro, por entre a poeira de ver„o e o ruido das carroÁas, o que
elle via era essa sala, esteirada de novo, fresca, silenciosa e clara:
por vezes uma phrase que ella dissera cantava-lhe na memoria, com o tom
d'ouro da sua voz; ou luziam-lhe diante dos olhos as pedras dos seus
anneis entremettidos pelos pÍllos de _Niniche_. Parecia-lhe mais linda,
agora que conhecia o seu sorriso d'uma graÁa t„o delicada; era cheia de
inteligencia, era cheia de gosto; e a pobre velha · porta, esse doente a
quem ella mandava vinho do Porto, revelavam a sua bondade... E o que o
encantava È que n„o tornaria mais a farejar a cidade como um rafeiro
perdido, · busca dos seus olhos negros; agora bastava-lhe subir alguns
degraus, abria-se diante d'elle a porta da sua casa; e tudo de repente
na vida parecia tornar-se facil, equilibrado, sem duvidas e sem
impaciencias.

No seu quarto, no Ramalhete, Baptista entregou-lhe uma carta.

--Trouxe-a a escosseza, j· v. exc.^a tinha sahido.

Era da Gouvarinho! Meia folha de papel, tendo simplesmente escripto a
lapis--_all rigth_. Carlos amarrotou-a, furioso. A Gouvarinho!... N„o se
torn·ra quasi a lembrar d'ella, desde a vespera, no radiante tumulto em
que and·ra o seu coraÁ„o. E era no comboio d'essa noite, d'ahi a horas,
que deviam ambos partir para Santarem, a amarem-se, escondidos n'uma
estalagem! Elle promettera-lh'o, a sÈrio; j· ella se prepar·ra decerto,
com a atroz cabelleira postiÁa, com o _water-proof_ de grande roda; tudo
estava _all rigth_... Achou-a n'esse instante ridicula, reles,
estupida... Oh, era claro como a luz que n„o ia, que nunca iria, j·mais!
Mas tinha d'apparecer na estaÁ„o de Santa Apolonia, balbuciar uma
desculpa tosca, assistir · sua desconsolaÁ„o, vÍr-lhe os olhos marejados
de lagrimas. Que massada!... Teve-lhe odio.

Quando chegou · mesa do almoÁo Craft e Affonso, j· sentados, fallavam
justamente do Gouvarinho, e dos artigos que elle continuava gravemente a
publicar no _Jornal do Commercio_.

--Que besta essa! exclamou Carlos n'uma voz que sibilava, desabafando
sobre a litteratura politica do marido a colera que lhe davam as
importunidades amorosas da mulher.

Affonso e Craft olharam-n'o, pasmados de tanta violencia. E Craft
censurou-lhe a ingratid„o. Porque, realmente, n„o havia em toda a terra
um enthusiasmo como o que aquelle desventuroso homem d'estado tinha por
Carlos...

--V. exc.^a n„o faz idÈa, snr. Affonso da Maia. … um culto. … uma
idolatria!

Carlos encolhia os hombros, impaciente. E Affonso, j· bem disposto para
com o homem que assim admirava t„o prodigamente o seu neto, murmurou com
bondade:

--Coitado, supponho que È inoffensivo...

Craft fez uma ovaÁ„o ao velho:

--_Inoffensivo!_ Admiravel, snr. Affonso da Maia! _Inoffensivo_,
applicado a um homem d'estado, a um par, a um ministro, a um legislador,
È um achado! E È com effeito o que elle È, _inoffensivo_... E È o que
elles s„o...

--Chablis? murmurou o escudeiro.

--N„o, tomo ch·.

E acrescentou:

--Aquelle champagne que hontem bebemos nas corridas, por patriotismo,
arrasou-me... Tenho de me pÙr uma semana a regimen de leite.

Ent„o fallou-se ainda das corridas, dos ganhos de Carlos, do Clifford, e
do vÈo azul do Damaso.

--Ora quem estava hontem muito bem vestida era a Gouvarinho, disse Craft
remexendo o seu ch·. Ficava-lhe admiravelmente aquelle branco creme,
tocado de tons negros. Uma verdadeira toilette de corridas... _C'Ètait
un [oe]illet blanc panachÈ de noir_... VossÍ n„o achou, Carlos?

--Sim, rosnou Carlos, estava bem.

Outra vez a Gouvarinho! Parecia-lhe agora que n„o haveria na sua vida
conversa em que n„o surgisse a Gouvarinho, e que n„o haveria caminho na
sua vida que o n„o atravancasse a Gouvarinho! E alli mesmo, · mesa,
decidiu comsigo n„o a tornar a vÍr, escrever-lhe um bilhete curto,
polido, recusando-se a ir a Santarem, sem razıes...

Mas no seu quarto, diante da folha de papel, fumou uma longa cigarrette,
sem achar phrase que n„o fosse pueril ou brutal. Nem tinha a sympathia
precisa para lhe dar o banal tratamento de _querida_. Vinha-lhe atÈ por
ella uma indefinida repuls„o physica: devia ser intoleravel toda uma
noite o seu cheiro exagerado de verbena;--e lembrava-se que aquella
pelle do seu pescoÁo, que se lhe afigurava outr'ora um setim, tinha um
tom pegajoso, um tom amarellado, para alÈm da linha de pÛs d'arroz.
Decidiu n„o lhe escrever. Iria · noite a Santa Apolonia, e no momento do
comboio partir correria · portinhola, a balbuciar fugitivamente uma
desculpa; n„o lhe daria tempo de choramigar, nem de recriminar; um
rapido aperto de m„o, e adeus, para nunca mais...

¡ noite, porÈm, · hora de ir · estaÁ„o, que sacrificio em se arrancar
aos confortos da sua poltrona, e do seu charuto!... Atirou-se para o
coupÈ desesperado, maldizendo essa tarde no boudoir azul em que, por
causa d'uma rosa e d'um certo vestido cÙr de folha morta que lhe ficava
bem, elle se'ach·ra cahido com ella n'um sof·...

Ao chegar a Santa Apolonia faltavam, para a partida do expresso, dois
minutos. Precipitou-se para a extremidade da sala, j· quasi vazia
·quella hora, a comprar uma _admiss„o_; e ainda ahi esperou uma
eternidade, vendo dentro do postigo duas m„os lentas e molles arranjar
laboriosamente os patacos d'um troco.

Penetrava emfim na sala d'espera--quando esbarrou com o Damaso, de
chapÈo desabado e saccola de viagem a tiracollo. Damaso agarrou-lhe as
m„os, enternecido:

--” menino! pois tiveste o incommodo?... E como soubeste tu que eu
partia?

Carlos n„o o desilludiu, balbuciando que lh'o dissera o Taveira, que
encontr·ra o Taveira...

--Pois eu estava mais longe d'uma d'estas! exclamou o Damaso. Esta
manh„, muito regalado na cama, quando me vem o telegramma... Fiquei
furioso! Isto È, imagina tu como eu fiquei, um desgosto assim!...

Foi ent„o que Carlos reparou que elle estava carregado de luto, com fumo
no chapÈo, luvas pretas, polainas pretas, barra preta no lenÁo...
Murmurou, embaraÁado:

--O Taveira disse-me que ias, mas n„o me disse mais nada... Morreu-te
alguem?

--Meu tio Guimar„es.

--O communista? o de Paris?

--N„o, o irm„o d'elle, o mais velho, o de Penafiel... Espera ahi que eu
volto j·, vou alli ao cafÈ encher o frasco de cognac. Com a afflicÁ„o
esquecia-me o cognac...

Ainda estavam chegando passageiros, esbaforidos, de guarda-pÛ, com
chapeleiras na m„o. Os guardas rolavam pachorrentamente as bagagens.
D'uma portinhola, onde se exhibia um cavalheiro barrigudo, com um bonet
bordado a retroz, pendia todo um cacho d'amigos politicos,
respeitosamente e em silencio. A um canto uma senhora soluÁava por baixo
do vÈo.

Carlos, vendo um wagon com a papeleta de _reservado_, imaginou l· a
condessa. Um guarda precipitou-se, furioso, como se visse a profanaÁ„o
d'um santuario. Que queria elle, que queria elle d'alli? N„o sabia que
era o _reservado_ do snr. Carneiro?

--N„o sabia.

--Perguntasse, devia saber! ficou o outro a resmungar, ainda tremulo.

Carlos correu ainda outros wagons, onde a gente se apinhava,
atabafadamente, na amontoaÁ„o dos embrulhos; n'um, dois sujeitos, a
proposito de lugares, tratavam-se de _malcriados_; adiante, uma crianÁa
esperneava no collo da ama, aos gritos.

--” menino, quem diabo andas tu a procurar? exclamou Damaso alegremente,
surgindo por traz d'elle, e passando-lhe o braÁo pela cinta.

--Ninguem... Imaginei que tinha visto o marquez.

Immediatamente Damaso queixou-se d'aquella l˙gubre massada de ter d'ir a
Penafiel!

--E ent„o agora que eu precisava tanto estar em Lisboa! Que tenho andado
com uma sorte para mulheres, menino!... Uma sorte damnada!

Uma sineta badalou. Damaso deu logo um abraÁo terno a Carlos, saltou
para o seu wagon, enterrou na cabeÁa um barretinho de sÍda--e depois
debruÁado da portinhola continuou ainda as confidencias. O que mais o
contrariava era deixar aquelle arranjinho da rua de S. Francisco. Que
ferro! agora que aquillo ia t„o bem, o gajo no Brazil, e ella alli, ·
m„o, a dois passos do Gremio!...

Carlos mal o escutava, distrahido, olhando o grande relogio
transparente. De repente Damaso, · portinhola, deu um salto de surpreza:

--Olha os Gouvarinhos!

Carlos deu um salto tambem. O conde, de cÙco de viagem, de paletot
alvadio, sem se apressar, como competia a um director da Companhia,
vinha conversando com um empregado superior da estaÁ„o, agaloado de
ouro, que se encarreg·ra da chapeleira de papel„o de s. exc.^a E a
condessa, com um rico guarda-pÛ de foulard cÙr de castanho, um vÈo
cinzento que lhe cobria a face e o chapÈo, seguia atraz, com a criada
escosseza, trazendo na m„o um ramo de rosas.

Carlos correu para elles, foi todo um assombro.

--Por aqui, Maia?

--De viagem, conde?

… verdade. Decidira acompanhar a condessa ao Porto, aos annos do pap·...
ResoluÁ„o da ultima hora, quasi iam perdendo o comboio.

--Ent„o temol-o por companheiro, Maia? Teremos esse grande prazer, Maia?

Carlos contou rapidamente que viera apenas apertar a m„o ao pobre
Damaso, de jornada para Penafiel, por causa da morte do tio.

DebruÁado da portinhola, com as m„os de fÛra calÁadas de negro, o pobre
Damaso estava saudando a senhora condessa, gravemente, funebremente. E o
bom Gouvarinho n„o quiz deixar de lhe ir dar logo o seu _shake-hands_ e
o seu pezame.

SÛsinho n'esse curto instante com a condessa, Carlos murmurou apenas:

--Que ferro!

--Este maldito homem! exclamou ella, entre dentes, com um olhar que
fuzilou atravÈs do vÈo. Tudo t„o bem arranjado, e · ultima hora teima em
vir!...

Carlos acompanhou-os atÈ ao _reservado_, n'um outro wagon que se
estivera mettendo de novo para s. exc.^a A condessa tomou o lugar do
canto junto da portinhola. E como o conde, n'um tom de polidez acida, a
aconselhava a que se sentasse antes com o rosto para a machina, ella
teve um gesto de aborrecimento, atirou o ramo para o lado
desabridamente, enterrou-se com mais forÁa na almofada; e um duro olhar
de colera passou entre ambos. Carlos, embaraÁado, perguntava:

--Ent„o v„o com demora?

O conde respondeu, sorrindo, disfarÁando o seu mau humor:

--Sim, talvez duas semanas, umas pequeninas ferias.

--Tres dias, o mais, replicou ella n'uma voz fria e afiada como uma
navalha.

O conde n„o respondeu, livido.

Todas as portinholas agora estavam fechadas, um silencio cahira sobre a
plataforma. O apito da machina varou o ar; e o comprido trem, n'um ruido
secco de freios retesados, comeÁou a rolar, com gente ·s portinholas,
que ainda se debruÁava, estendendo a m„o para um ultimo aperto. Aqui e
alÈm esvoaÁava um lenÁo branco. O olhar da condessa para o lado de
Carlos teve a doÁura de um beijo, o Damaso gritou saudades para o
Ramalhete. O compartimento do correio resvalou, alumiado; e com outro
dilacerante silvo o comboio mergulhou na noite...

Carlos, sÛ, dentro do coupÈ, voltando · Baixa, sentia uma alegria
triumphante com aquella partida da condessa, e a inesperada jornada do
Damaso. Era como uma dispers„o providencial de todos os importunos: e
assim se fazia em torno da rua de S. Francisco uma solid„o--com todos os
seus encantos, e todas as suas cumplicidades.

No caes do SodrÈ deixou a carruagem, subiu a pÈ pelo Ferregial, veio
passar diante das janellas na rua de S. Francisco. SÛ pÙde vÍr uma vaga
tira de claridade entre as portadas meio cerradas. Mas isto bastava-lhe.
Podia agora imaginar com precis„o o ser„o calmo que ella estava passando
na larga sala de reps vermelho. Sabia o nome dos livros que ella lia, e
as partituras que tinha sobre o piano; e as flÙres que espalhavam alli o
seu aroma vira-as elle arranjar n'essa manh„. Poria ella um instante o
seu pensamento n'elle? Decerto; a doenÁa em casa forÁava-a a lembrar as
horas do remedio, as explicaÁıes que elle dera, e o som da sua voz; e
fallando com miss Sarah pronunciaria decerto o seu nome. Duas vezes
percorreu a rua de S. Francisco; e recolheu para casa, sob a noite
estrellada, devagar, ruminando a doÁura d'aquelle grande amor.


Ent„o todos os dias, durante semanas, teve essa hora deliciosa,
esplendida, perfeita, ´a visita · inglezaª.

Saltava do leito, cantando como um canario, e penetrava no seu dia como
n'uma acÁ„o triumphal. O correio chegava; e invariavelmente lhe trazia
uma carta da Gouvarinho, tres folhas de papel d'onde cahia sempre alguma
pequena flÙr meio murcha. Elle deixava ficar a flÙr no tapete: e mal
podia dizer o que havia n'aquellas longas linhas cruzadas. Sabia apenas
vagamente que, tres dias depois d'ella chegar ao Porto, o pai, o velho
Thompson, tivera uma apoplexia. Ella l· estava, d'enfermeira. Depois,
levando duas ou tres bellas flÙres do jardim embrulhadas n'um papel de
sÍda, partia para a rua de S. Francisco, sempre no seu coupÈ--porque o
tempo mud·ra, e os dias seguiam-se, tristonhos, cheios de sudoeste e de
chuva.

¡ porta o Domingos acolhia-o com um sorriso cada vez mais enternecido.
_Niniche_ corria de dentro, a pular d'amizade; elle erguia-a nos braÁos
para a beijar. Esperava um instante na sala, de pÈ, saudando com o olhar
os moveis, os ramos, a clara ordem das coisas; ia examinar no piano a
musica que ella toc·ra essa manh„, ou o livro que deix·ra interrompido,
com a faca de marfim entre as folhas.

Ella entrava. O seu sorriso ao dar-lhe os bons dias, a sua voz d'ouro
tinham cada dia para Carlos um encanto novo e mais penetrante. Trazia
ordinariamente um vestido escuro e simples: apenas ·s vezes uma gravata
de rica renda antiga, ou um cinto cuja fivella era cravejada de pedras,
avivavam este traje sobrio, quasi severo, que parecia a Carlos o mais
bello, e como uma express„o do seu espirito.

ComeÁavam por fallar de miss Sarah, d'aquelle tempo agreste e humido que
lhe era t„o desfavoravel. Conversando, ainda de pÈ, ella dava aqui e
alÈm um arranjo melhor a um livro, ou ia mover uma cadeira que n„o
estava no seu alinho; tinha o habito inquieto de recompÙr constantemente
a symetria das coisas;--e, machinalmente, ao passar, sacudia a
superficie de moveis j· perfeitamente espanejados com as magnificas
rendas do seu lenÁo.

Agora acompanhava-o sempre ao quarto de miss Sarah. Pelo corredor
amarello, caminhando ao seu lado, Carlos perturbava-se sentindo a
caricia d'esse intimo perfume em que havia jasmim, e que parecia sahir
do movimento das suas saias. Ella ·s vezes abria familiarmente a porta
de um quarto, apenas mobilado com um velho sof·: era alli que Rosa
brincava, e que tinha os arranjos de Cri-cri, as carruagens de Cri-cri,
a cozinha de Cri-cri. Encontravam-na vestindo e conversando
profundamente com a boneca; ou ent„o, ao canto do sof·, com os pÈsinhos
cruzados, immovel, perdida na admiraÁ„o d'algum livro d'estampas aberto
sobre os joelhos. Ella corria, estendia a boquinha a Carlos; e toda a
sua pessoa tinha a frescura de uma linda flÙr.

No quarto da governante, Maria Eduarda sentava-se aos pÈs do leito
branco; e logo a pobre miss Sarah, ainda cheia de tosse, confusa,
verificando a cada instante se o lenÁo de sÍda lhe cobria correctamente
o pescoÁo, affirmava que estava boa. Carlos gracejava com ella,
provando-lhe que n'esse feio tempo d'inverno, a felicidade era estar
alli na cama, com bons cuidados em redor, alguns romances patheticos, e
appetitosa dieta portugueza. Ella voltava os olhos gratos para Madame,
com um suspiro. Depois murmurava:

--_Oh yes, I am very comfortable!_

E enternecia-se.

Logo nos primeiros dias, ao voltar · sala, Maria Eduarda tinha-se
sentado na sua cadeira escarlate, e, conversando com Carlos, retom·ra
muito naturalmente o seu bordado como na presenÁa familiar de um velho
amigo. Com que felicidade profunda elle viu desdobrar-se essa talagarÁa!
Devia ser um fais„o de plumagens rutilantes: mas por ora sÛ estava
bordado o galho de macieira em que elle pousava, galho fresco de
primavera, coberto de florzinhas brancas, como n'um pomar da Normandia.

Carlos, junto da linda secretariasinha de pau preto, occupava a mais
velha, a mais commoda das poltronas de reps vermelho, cujas molas
rangiam de leve. Entre elles ficava a mesa de costura com as
_IllustraÁıes_ ou algum jornal de modas; ·s vezes, um instante calado,
elle folheava as gravuras, em quanto as lindas m„os de Maria, com
brilhos de joias, iam puxando os fios de l„. Aos pÈs d'ella _Niniche_
dormitava, espreitando-os a espaÁos, atravÈs das repas do focinho, com o
seu bello olho grave e negro. E n'esses escuros dias de chuva, cheios de
friagem l· fÛra e do rumor das goteiras, aquelle canto da janella, com a
paz do vagaroso trabalho na talagarÁa, as vozes lentas e amigas, e ·s
vezes um dÙce silencio, tinha um ar intimo e carinhoso...

Mas no que diziam n„o havia intimidades. Fallavam de Paris e do seu
encanto, de Londres onde ella estivera durante quatro lugubres mezes de
inverno, da Italia que era o seu sonho vÍr, de livros, de coisas d'arte.
Os romances que preferia eram os de Dickens; e agradava-lhe menos
Feuillet, por cobrir tudo de pÛ d'arroz, mesmo as feridas do coraÁ„o.
Apesar de educada n'um convento severo d'Orleans, lÍra Michelet e lÍra
Renan. De resto n„o era catholica praticante; as igrejas apenas a
attrahiam pelos lados graciosos e artisticos do culto, a musica, as
luzes, ou os lindos mezes de Maria, em FranÁa, na doÁura das flÙres de
maio. Tinha um pensar muito recto e muito s„o--com um fundo de ternura
que a inclinava para tudo o que soffre e È fraco. Assim gostava da
Republica por lhe parecer o regimen em que ha mais solicitude pelos
humildes. Carlos provava-lhe rindo que ella era socialista.

--Socialista, legitimista, orleanista, dizia ella, qualquer coisa,
comtanto que n„o haja gente que tenha fome!

Mas era isso possivel? J· Jesus, mesmo, que tinha t„o dÙces illusıes,
declar·ra que pobres sempre os haveria...

--Jesus viveu ha muito tempo, Jesus n„o sabia tudo... Hoje sabe-se mais,
os senhores sabem muito mais... … necessario arranjar-se outra
sociedade, e depressa, em que n„o haja miseria. Em Londres, ·s vezes,
por aquellas grandes neves, ha criancinhas pelos portaes a tiritar, a
gemer de fome... … um horror! E em Paris ent„o! … que se n„o vÍ sen„o o
boulevard; mas quanta pobreza, quanta necessidade...

Os seus bellos olhos quasi se enchiam de lagrimas. E cada uma d'estas
palavras trazia todas as complexas bondades da sua alma--como n'um sÛ
sopro podem vir todos os aromas esparsos de um jardim.

Foi um encanto para Carlos quando Maria o associou ·s suas caridades,
pedindo-lhe para ir vÍr a irm„ da sua engommadeira que tinha
rheumatismo, e o filho da snr.^a Augusta, a velha do patamar, que estava
tisico. Carlos cumpria esses encargos com o fervor de acÁıes religiosas.
E n'estas piedades achava-lhe semelhanÁas com o avÙ. Como Affonso, todo
o soffrimento dos animaes a consternava. Um dia viera indignada da PraÁa
da Figueira, quasi com idÈas de vinganÁa, por ter visto nas tendas dos
gallinheiros aves e coelhos apinhados em cestos, soffrendo durante dias
as torturas da immobilidade e a anciedade da fome. Carlos levava estes
bellas coleras para o Ramalhete, increpava violentamente o marquez, que
era membro da _Sociedade protectora dos animaes_. O marquez, indignado
tambem, jurava justiÁa, fallava em cadÍas, em costa d'Africa... E
Carlos, commovido, ficava a pensar quanta larga e distante influencia
pÛde ter, mesmo isolado de tudo, um coraÁ„o que È justo.

Uma tarde fallaram do Damaso. Ella achava-o insupportavel, com a sua
petulancia, os olhos bugalhudos, as perguntas nescias. V. exc.^a acha
Nice elegante? V. exc.^a prefere a capella de S. Jo„o Baptista a
_Notre-Dame_?...

--E ent„o a insistencia de fallar de pessoas que eu n„o conheÁo! A
snr.^a condessa de Gouvarinho, e os ch·s da snr.^a condessa de
Gouvarinho, e a frisa da snr.^a condessa de Gouvarinho, e a preferencia
que a snr.^a condessa de Gouvarinho tem por elle... E isto horas! Eu ·s
vezes tinha medo de adormecer...

Carlos fez-se escarlate. Porque trouxera ella, entre todos, o nome da
Gouvarinho? Tranquillisou-se, vendo-a rir simples e limpidamente.
Decerto n„o sabia quem era Gouvarinho. Mas, para sacudir logo d'entre
elles esse nome, comeÁou a fallar de Mr. Guimar„es, o famoso tio do
Damaso, o amigo de Gambetta, o influente da Republica...

--O Damaso tem-me dito que v. exc.^a o conhece muito...

Ella erguera os olhos, com um fugitivo rubor no rosto.

--Mr. Guimar„es?... Sim, conheÁo muito... Ultimamente viamo-nos menos,
mas elle era muito amigo da mam„.

E depois d'um silencio, d'um curto sorriso, recomeÁando a puxar o seu
longo fio de l„:

--Pobre Guimar„es, coitado! A sua influencia na Republica È traduzir
noticias dos jornaes hespanhoes e italianos para o _Rappel_, que d'isso
È que vive... Se È amigo de Gambetta, n„o sei, Gambetta tem amigos t„o
extraordinarios... Mas o Guimar„es, ali·s bom homem e homem honrado, È
um grutesco, uma especie de Calino republicano. E t„o pobre, coitado! O
Damaso, que È rico, se tivesse decencia, ou o menor sentimento, n„o o
deixava viver assim t„o miseravelmente.

--Mas ent„o essas carruagens do tio, esse luxo do tio, de que falla o
Damaso...?

Ella encolheu mudamente os hombros; e Carlos sentiu pelo Damaso um asco
intoleravel.

Pouco a pouco nas suas conversas foi havendo uma intimidade mais
penetrante. Ella quiz saber a idade de Carlos, elle fallou-lhe do avÙ. E
durante essas horas suaves em que ella, silenciosa, ia picando a
talagarÁa, elle contou-lhe a sua vida passada, os planos de carreira, os
amigos, e as viagens... Agora ella conhecia a paizagem de Santa Olavia,
o reverendo Bonifacio, as excentricidades do Ega. Um dia quiz que Carlos
lhe explicasse longamente a idÈa do seu livro _A medicina antiga e
moderna_. Approvou, com sympathia, que elle pintasse as figuras dos
grandes medicos, bemfeitores da humanidade. Porque se glorificariam sÛ
guerreiros e fortes? A vida salva a uma crianÁa parecia-lhe coisa bem
mais bella que a batalha de Austerlitz. E estas palavras que dizia com
simplicidade, sem mesmo erguer os olhos do seu bordado, cahiam no
coraÁ„o de Carlos e ficavam l· muito tempo, palpitando e brilhando...

Elle tinha-lhe feito assim largamente todas as confissıes;--e ainda n„o
sabia nada do seu passado, nem mesmo a terra em que nascera, nem sequer
a rua que habitava em Paris. N„o lhe ouvira murmurar j·mais o nome do
marido, nem fallar d'um amigo ou d'uma alegria da sua casa. Parecia n„o
ter em FranÁa, onde vivia, nem interesses, nem lar;--e era realmente
como a deusa que elle ide·ra, sem contactos anteriores com a terra,
descida da sua nuvem d'oiro para vir ter alli, n'aquelle andar alugado
da rua de S. Francisco, o seu primeiro estremecimento humano.

Logo na primeira semana das visitas de Carlos tinham faltado
d'affeiÁıes. Ella acreditava candidamente que podesse haver, entre uma
mulher e um homem, uma amizade pura, immaterial, feita da concordancia
amavel de dois espiritos delicados. Carlos jurou que tambem tinha fÈ
n'essas bellas uniıes, todas d'estima, todas de raz„o--comtanto que se
lhes misturasse, ao de leve que fosse, uma ponta de ternura... Isso
perfumava-as d'um grande encanto--e n„o lhes diminuia a sinceridade. E,
sob estas palavras um pouco diffusas, murmuradas por entre as malhas do
bordado e com lentos sorrisos, fic·ra subtilmente estabelecido que entre
elles sÛ deveria haver um sentimento assim, casto, legitimo, cheio de
suavidade e sem tormentos.

Que importava a Carlos? Comtanto que podesse passar aquella hora na
poltrona de cretone, contemplando-a a bordar, e conversando em coisas
interessantes, ou tornadas interessantes pela graÁa da sua pessoa;
comtanto que visse o seu rosto, ligeiramente cÛrado, baixar-se, com a
lenta attracÁ„o d'uma caricia, sobre as flÙres que lhe trazia; comtanto
que lhe afagasse a alma a certeza de que o pensamento d'ella o ficava
seguindo sympathicamente atravÈs do seu dia, mal elle deixava aquella
adorada sala de reps vermelho--o seu coraÁ„o estava satisfeito,
esplendidamente.

N„o pensava mesmo que aquella ideal amizade, d'intenÁ„o casta, era o
caminho mais seguro para a trazer, brandamente enganada, aos seus braÁos
ardentes d'homem. No deslumbramento que o tom·ra ao vÍr-se de repente
admittido a uma intimidade que julg·ra impenetravel,--os seus desejos
desappareciam: longe d'ella, ·s vezes, ainda ousavam ir temerariamente
atÈ · esperanÁa d'um beijo, ou d'uma fugitiva caricia com a ponta dos
dedos; mas apenas transpunha a sua porta, e recebia o calmo raio do seu
olhar negro, cahia em devoÁ„o, e julgaria um ultraje bestial roÁar
sequer as prÈgas do seu vestido.

Foi aquelle decerto o periodo mais delicado da sua vida. Sentia em si
mil coisas finas, novas, d'uma tocante frescura. Nunca imagin·ra que
houvesse tanta felicidade em olhar para as estrellas quando o cÈo est·
limpo; ou em descer de manh„ ao jardim para escolher uma rosa mais
aberta. Tinha na alma um constante sorriso--que os seus labios repetiam.
O marquez achava-lhe o ar baboso e abenÁoador...

¡s vezes, passeando sÛ no seu quarto, perguntava a si mesmo onde o
levaria aquelle grande amor. N„o sabia. Tinha diante de si os tres mezes
em que ella estaria em Lisboa, e em que ninguem mais sen„o elle
occuparia a velha cadeira ao lado do seu bordado. O marido andava longe,
separado por legoas de mar incerto. Depois elle era rico, e o mundo era
largo...

Conservava sempre as suas grandes idÈas do trabalho, querendo que no seu
dia sÛ houvesse horas nobres,--e que aquellas que n„o pertenciam ·s
puras felicidades do amor, pertencessem ·s alegrias fortes do estudo. Ia
ao laboratorio, ajuntava algumas linhas ao seu manuscripto. Mas antes da
visita · rua de S. Francisco n„o podia disciplinar o espirito, inquieto,
n'um tumulto d'esperanÁas; e depois de voltar de l·, passava o dia a
recapitular o que ella dissera, o que elle respondera, os seus gestos, a
graÁa de certo sorriso... Fumava ent„o cigarrettes, lia os poetas.

Todas as noites no escriptorio d'Affonso se formava a partida de
_whist_. O marquez batia-se ao dominÛ com o Taveira, enfronhados ambos
n'aquelle vicio, com um rancor crescente que os levava a injurias.
Depois das corridas, o secretario de Steinbroken comeÁ·ra a vir ao
Ramalhete; mas era um inutil, nem cantava sequer como o seu chefe as
balladas da Filandia; cahido no fundo d'uma poltrona, de casaca, de
vidro no olho, bamboleando a perna, cofiava silenciosamente os seus
longos bigodes tristes.

O amigo que Carlos gostava de vÍr entrar era o Cruges--que vinha da rua
de S. Francisco, trazia alguma coisa do ar que Maria Eduarda respirava.
O maestro sabia que Carlos ia todas as manh„s ao predio vÍr a ´miss
inglezaª; e muitas vezes, innocentemente, ignorando o interesse de
coraÁ„o com que Carlos o escutava, dava-lhe as ultimas noticias da
visinha...

--A visinha l· ficou agora a tocar Mendelhson... Tem execuÁ„o, tem
express„o, a visinha... Ha alli estofo... E entende o seu Choppin.

Se elle n„o apparecia no Ramalhete, Carlos ia a casa buscal-o: entravam
no Gremio, fumavam um charuto n'alguma sala isolada, fallando da
visinha; Cruges achava-lhe ´um verdadeiro typo de _grande dame_ª.

Quasi sempre encontravam o conde de Gouvarinho, que vinha ver (como elle
dizia a faiscar d'ironia) o que se passava ´no paiz do snr. Gambettaª.
Parecera remoÁar ultimamente, mais ligeiro nos modos, com uma claridade
d'esperanÁa nas lunetas, na fronte erguida. Carlos perguntava-lhe pela
condessa. L· estava no Porto, nos seus deveres de filha...

--E seu sogro?

O conde baixava a face radiante, para murmurar cava e resignadamente:

--Mal.


Uma tarde, Carlos conversava com Maria Eduarda, acariciando _Niniche_
que se lhe viera sentar nos joelhos, quando Rom„o entreabriu
discretamente o reposteiro, e baixando a voz, com um ar embaraÁado, um
ar de cumplicidade, murmurou:

--… o snr. Damaso!...

Ella olhou o Rom„o, surprehendida d'aquelles modos, e quasi
escandalisada.

--Pois bem, mande entrar!

E Damaso rompeu pela sala, carregado de luto, de flÙr ao peito,
gorducho, risonho, familiar, com o chapeu na m„o, trazendo dependurado
por um barbante um grande embrulho de papel pardo... Mas ao vÍr Carlos
alli, intimamente, de cadellinha no collo, estacou assombrado, com o
olho esbugalhado, como tonto. Emfim desembaraÁou as m„os, veio
comprimentar Maria Eduarda quasi de leve,--e voltando-se logo para
Carlos, de braÁos abertos, todo o seu espanto trasbordou ruidosamente:

--Ent„o tu aqui, homem? Isto È que È uma surpreza! Ora quem me diria!...
Eu estava mais longe...

Maria Eduarda, incommodada com aquelle alarido, indicou-lhe vivamente
uma cadeira, interrompeu um instante o bordado, quiz saber como elle
tinha chegado.

--Perfeitamente, minha senhora... Um bocado canÁado, como È natural...
Venho direitinho de Penafiel... Como v. exc.^a vÍ--e mostrou o seu luto
pesado--acabo de passar por um grande desgosto.

Maria Eduarda murmurou uma palavra de sentimento, vaga e fria. Damaso
pous·ra os olhos no tapete. Vinha da provincia cheio de cÙr, cheio de
sangue; e como cort·ra a barba (que havia mezes deix·ra crescer para
imitar Carlos) parecia agora mais bochechudo e mais nedio. As cÙxas
roliÁas estalavam-lhe de gordura dentro da calÁa de casimira preta.

--E ent„o, perguntou Maria Eduarda, temol-o por c· algum tempo?

Elle deu um pux„osinho · cadeira, mais para junto d'ella, e outra vez
risonho:

--Agora, minha senhora, ninguem me arranca de Lisboa! Podem-me morrer...
Isto È, credo! teria grande ferro se me morresse alguem. O que quero
dizer È que ha de custar a arrancar-me d'aqui!

Carlos continuava muito socegadamente a acariciar os pÍllos da
_Niniche_. E houve ent„o um pequeno silencio. Maria Eduarda retom·ra o
bordado. E Damaso, depois de sorrir, de tossir, de dar um geito ao
bigode, estendeu a m„o para acariciar tambem _Niniche_ sobre os joelhos
de Carlos. Mas a cadellinha, que havia momentos o espreitava com o olho
desconfiado, ergueu-se, rompeu a ladrar furiosa.

--_C'est moi, Niniche!_ dizia Damaso, recuando a cadeira. _C'est moi,
ami... Alors, Niniche_...

Foi necessario que Maria Eduarda reprehendesse severamente _Niniche_. E,
aninhada de novo no collo de Carlos, ella continuou a espreitar Damaso,
rosnando, e com rancor.

--J· me n„o conhece, dizia elle embaÁado, È curioso...

--Conhece-o perfeitamente, acudiu Maria Eduarda muito sÈria. Mas n„o sei
o que o snr. Damaso lhe fez, que ella tem-lhe odio. … sempre este
escandalo.

Damaso balbuciava, escarlate:

--Ora essa, minha senhora! O que lhe fiz?... Caricias, sempre
caricias...

E ent„o n„o se conteve, fallou com ironia, amargamente, das amizades
novas de Mademoiselle _Niniche_. Alli estava nos braÁos d'outro,
emquanto que elle, o amigo velho, era deitado ao canto...

Carlos ria.

--” Damaso, n„o a accuses de ingratid„o... Pois se a snr.^a D. Maria
Eduarda est· a dizer que ella sempre te teve odio...

--Sempre! exclamou Maria.

Damaso sorria tambem, lividamente. Depois, tirando um lenÁo de barra
negra, limpando os beiÁos e mesmo o suor do pescoÁo, lembrou a Maria
Eduarda como ella o tinha desapontado no dia das corridas... Elle toda a
tarde · espera...

--Eram vesperas de partida, disse ella.

--Sim, bem sei, o marido de v. exc.^a... E como vai o snr. Castro Gomes?
V. exc.^a j· recebeu noticias?

--N„o, respondeu ella com o rosto sobre o bordado.

Damaso cumpriu ainda outros deveres. Perguntou por Mademoiselle Rosa.
Depois por Cri-cri. Era necessario n„o esquecer Cri-cri...

--Pois v. exc.^a--continuou elle, cheio subitamente de
loquacidade--perdeu, que as corridas estiveram esplendidas... NÛs ainda
n„o nos vimos depois das corridas, Carlos. Ah, sim, vimo-nos na
estaÁ„o... Pois n„o È verdade que estiveram muito _chics_? Olhe, minha
senhora, d'uma coisa pÛde v. exc.^a estar certa, È que hippodromo mais
bonito n„o ha l· fÛra. Uma vista atÈ · barra, que È d'appetite... AtÈ se
vÍem entrar os navios... Pois n„o È assim, Carlos?

--Sim, disse Carlos, sorrindo. N„o È propriamente um campo de
corridas... … verdade que n„o ha tambem propriamente cavallos de
corridas... Verdade seja que n„o ha jockeys... Ora È verdade que n„o ha
apostas... Mas È verdade tambem que n„o ha publico...

Maria Eduarda ria, alegremente.

--Mas ent„o?

--VÍem-se entrar os navios, minha senhora...

Damaso protestava, com as orelhas vermelhas. Era realmente querer dizer
mal · forÁa... N„o senhor, n„o senhor!... Eram muito boas corridas. Tal
qual como l· fÛra, as mesmas regras, tudo...

--AtÈ na pesagem, acrescentou elle muito sÈrio, fallamos sempre inglez!

Repetiu ainda que as corridas eram _chics_. Depois n„o achou mais
nada:--e fallou de Penafiel, onde chovera sempre tanto que elle vira-se
forÁado a ficar em casa, estupidamente, a lÍr...

--Uma massada! Ainda se houvesse alli umas mulheres para ir dar um
bocado de cavaco... Mas qual! Uns monstros. E eu, lavradeiras, raparigas
de pÈ descalÁo, n„o tolero... Ha gente que gosta... Mas eu, acredite v.
exc.^a, n„o tolero...

Carlos cor·ra: mas Maria Eduarda parecia n„o ter ouvido, occupada a
contar attentamente as malhas do seu bordado.

De repente Damaso recordou-se que tinha alli um presentinho para a
snr.^a D. Maria Eduarda. Mas n„o imaginasse que era alguma
preciosidade... Verdadeiramente atÈ o presente era para Mademoiselle
Rosa.

--Olhe, para n„o estar com mysterios, sabe o que È? Tenho-o alli no
embrulhosinho de papel pardo... S„o seis barrilinhos d'ovos molles
d'Aveiro. … um dÙce muito cÈlebre, mesmo l· fÛra. SÛ o de Aveiro È que
tem _chic_... Pergunte v. exc.^a ao Carlos. Pois n„o È verdade, Carlos,
que È uma delicia, atÈ conhecido l· fÛra?

--Ah, certamente, murmurou Carlos, certamente...

Pous·ra _Niniche_ no ch„o, erguera-se, fÙra buscar o seu chapÈo.

--J·?... perguntou-lhe Maria Eduarda, com um sorriso que era sÛ para
elle. AtÈ ·manh„, ent„o!

E voltou-se logo para o Damaso, esperando vÍl-o erguer-se tambem. Elle
conservou-se installado, com um ar de demora, familiar, e bamboleando a
perna. Carlos estendeu-lhe dois dedos.

--_Au revoir_, disse o outro. Recados l· no Ramalhete; hei de
apparecer!...

Carlos desceu as escadas, furioso.

Alli ficava pois aquelle imbecil impondo a sua pessoa, grosseiramente,
t„o obtuso que n„o percebia o enfado d'ella, a sua regelada seccura! E
para que ficava? Que outras crassas banalidades tinha ainda a soltar, em
cal„o, e de perna traÁada? E de repente lembrou-lhe o que elle lhe
dissera na noite do jantar do Ega, · porta do Hotel Central, a respeito
da propria Maria Eduarda, e do seu systema com mulheres ´que era o
_atrac„o_ª. Se aquelle idiota, de repente, abrazado e bestial, ousasse
um ultraje? A supposiÁ„o era insensata, talvez--mas reteve-o no pateo,
applicando o ouvido para cima, com idÈas ferozes de esperar alli o
Damaso, prohibir-lhe de tornar a subir aquella escada, e, · menor
reflex„o d'elle, esmagar-lhe o craneo nas lages...

Mas sentiu em cima a porta abrir-se, e sahiu vivamente, no receio de ser
assim surprehendido · escuta. O coupÈ do Damaso estacionava na rua.
Ent„o veio-lhe uma curiosidade mordente de saber quanto tempo elle
ficaria alli com Maria Eduarda. Correu ao Gremio; e apenas abrira uma
vidraÁa--viu logo o Damaso sahir do port„o, saltar para o coupÈ, bater
com forÁa a portinhola. Pareceu-lhe que trazia o ar escorraÁado, e
subitamente teve dÛ d'aquelle grutesco...

N'essa noite, depois de jantar, Carlos sÛ no seu quarto fumava,
enterrado n'uma poltrona, relendo uma carta do Ega recebida n'essa
manh„,--quando appareceu o Damaso. E, sem pousar mesmo o chapÈo, logo da
porta, exclamou, com o mesmo espanto da manh„:

--Ent„o dize-me c·! Como diabo te vou eu encontrar hoje com a
brazileira?... Como a conheceste tu? Como foi isso?

Sem mover a cabeÁa do espaldar da poltrona, cruzando as m„os sobre os
joelhos em cima da carta do Ega, Carlos, agora cheio de bom humor,
disse, com uma dÙce reprehens„o paternal:

--Pois ent„o tu vaes expÙr a uma senhora as tuas opiniıes lubricas sobre
as lavradeiras de Penafiel!

--N„o se trata d'isso, sei muito bem o que hei de expÙr! exclamou o
outro, vermelho. Conta l·, anda... Que diabo! Parece-me que tenho
direito a saber... Como a conheceste tu?

Carlos, imperturbavel, cerrando os olhos como para se recordar, comeÁou,
n'um tom lento e solemne de recitativo:

--Por uma tepida tarde de primavera, quando o sol se afundava em nuvens
d'oiro, um mensageiro esfalfado pendurava-se da campainha do Ramalhete.
Via-se-lhe na m„o uma carta, lacrada com sello heraldico; e a express„o
do seu semblante...

Damaso, j· zangado, atirou com o chapÈo para cima da mesa.

--Parece-me que era mais decente deixar-te d'esses mysterios!

--Mysterios? Tu vens obtuso, Damaso. Pois tu entras n'uma casa onde
existe ha quasi um mez uma pessoa gravemente doente, e ficas assombrado,
petrificado, ao encontrar l· o medico! Quem esperavas tu vÍr l·? Um
photographo?

--Ent„o quem est· doente?

Carlos, em poucas palavras, disse-lhe a bronchite da ingleza--emquanto o
Damaso, sentado · beira do sof·, mordendo o charuto sem lume, olhava
para elle desconfiado.

--E como soube ella onde tu moravas?

--Como se sabe onde mora o rei; onde È a alfandega; de que lado luz a
estrella da tarde; os campos onde foi Troia... Estas coisas que se
aprendem nas aulas de instrucÁ„o primaria...

O pobre Damaso deu alguns passos pela sala, embezerrado, com as m„os nos
bolsos.

--Ella tem agora l· o Rom„o, o que foi meu criado, murmurou depois d'um
silencio. Eu tinha-lh'o recommendado... Ella leva-se muito pelo que eu
lhe digo...

--Sim, tem, por uns dias, emquanto o Domingos foi · terra. Vai mandal-o
embora, È um imbecil, e tu tinhas-lhe ensinado m·s maneiras...

Ent„o Damaso atirou-se para o canto do sof· e confessou que ao entrar na
sala, quando dera com os olhos em Carlos, de cadellinha no collo, fic·ra
furioso... Emfim, agora que sabia que era por doenÁa, bem, tudo se
explicava... Mas primeiro parecera-lhe que andava alli tramoia... SÛ com
ella, ainda pensou em lhe perguntar: depois receou que n„o fosse
delicado; e alÈm d'isso ella estava de mau humor...

E acrescentou logo, accendendo o charuto:

--Que apenas tu sahiste, pÙz-se melhor, mais · vontade... Rimos muito...
Eu fiquei ainda atÈ tarde, quasi duas horas mais; era perto das cinco
quando sahi. Outra coisa, ella fallou-te alguma vez de mim?

--N„o. … uma pessoa de bom gosto; e sabendo que nos conhecemos, n„o se
atreveria a dizer-me mal de ti.

Damaso olhou-o, esgazeado:

--Ora essa!... Mas podia ter dito bem!

--N„o; È uma pessoa de bom senso, n„o se atreveria tambem.

E erguendo-se vivamente, Carlos abraÁou Damaso pela cinta,
acariciando-o, perguntando-lhe pela heranÁa do titi, e em que amores, em
que viagens, em que cavallos de luxo ia gastar os milhıes...

Damaso, sob aquellas festas alegres, permanecia frio, amuado, olhando-o
de revez.

--Olha que tu, disse elle, parece-me que me vaes sahindo tambem um
traste... N„o ha a gente fiar-se em ninguem!

--Tudo na terra, meu Damaso, È apparencia e engano!

Seguiram d'alli · sala do bilhar fazer ´a partida de reconciliaÁ„oª. E
pouco a pouco, sob a influencia que exercia sempre sobre elle o
Ramalhete, Damaso foi socegando, risonho j·, gozando de novo a sua
intimidade com Carlos no meio d'aquelle luxo sÈrio, e tratando-o outra
vez por ´meninoª. Perguntou pelo snr. Affonso da Maia. Quiz saber se o
bello marquez tinha apparecido. E o Ega, o grande Ega?...

--Recebi carta d'elle, disse Carlos. Vem ahi, temol-o talvez c· no
sabbado.

Foi um espanto para o Damaso.

--Homem! essa È curiosa! E eu encontrei os Cohens, hoje!... Vieram ha
dois dias de Southampton... JÛgo eu?

Jogou, falhou a carambola.

--Pois È verdade, encontrei-os hoje, fallei-lhes um instante... E a
Rachel vem melhor, vem mais gorda... Trazia uma _toilette_ ingleza com
coisas brancas, coisas cÙr de rosa... _Chic_ a valer, parecia um
moranguinho! E ent„o o Ega de volta?... Pois, menino, ainda temos
escandalo!




II


No sabbado, com effeito, Carlos, recolhendo ao Ramalhete de volta da rua
de S. Francisco, encontrou o Ega no seu quarto, mettido n'um fato de
cheviotte claro, e com o cabello muito crescido.

--N„o faÁas espalhafato, gritou-lhe elle, que eu estou em Lisboa
_incognito_!

E em seguida aos primeiros abraÁos declarou que vinha a Lisboa, sÛ por
alguns dias, unicamente para comer bem e para conversar bem. E contava
com Carlos para lhe fornecer esses requintes, alli, no Ramalhete...

--Ha c· um quarto para mim? Eu por ora estou no _Hotel Hespanhol_, mas
ainda nem mesmo abri a mala... Basta-me uma alcova, com uma mesa de
pinho, larga bastante para se escrever uma obra sublime.

Decerto! Havia o quarto em cima, onde elle estivera depois de deixar a
Villa Balzac. E mais sumptuoso agora, com um bello leito da RenascenÁa,
e uma cÛpia dos _Borrachos_ de Velasquez.

--Optimo covil para a arte! Velasquez È um dos Santos Padres do
naturalismo... A proposito, sabes com quem eu vim? Com a Gouvarinho. O
pai Tompson esteve · morte, arribou, depois o conde foi buscal-a.
Achei-a magra; mas com um ar ardente; e fallou-me constantemente de ti.

--Ah! murmurou Carlos.

Ega, de monoculo no olho e m„os nos bolsos, contemplava Carlos.

--… verdade. Fallou de ti constantemente, irresistivelmente,
immoderadamente! N„o me tinhas mandado contar isso... Sempre seguiste o
meu conselho, hein? Muito bem feita de corpo, n„o È verdade? E que tal,
no acto d'amor?

Carlos cÛrou, chamou-lhe grosseiro, jurou que nunca tivera com a
Gouvarinho sen„o relaÁıes superficiaes. Ia l· ·s vezes tomar uma chavena
de ch·; e · hora do Chiado acontecia-lhe, como a todo o mundo, conversar
com o conde sobre as miserias publicas, · esquina do Loreto. Nada mais.

--Tu est·s-me a mentir, devasso! dizia o Ega. Mas n„o importa. Eu hei de
descobrir tudo isso com o meu olho de Balzac, na segunda-feira....
Porque nÛs vamos l· jantar na segunda-feira.

--NÛs... NÛs, quem?

--NÛs. Eu e tu, tu e eu. A condessa convidou-me no comboio. E o
Gouvarinho, como compete ao individuo d'aquella especie, acrescentou
logo que haviamos de ter tambem ´o nosso Maiaª. O Maia d'elle, e o Maia
d'ella... Santo accordo! Suavissimo arranjo!

Carlos olhou-o com severidade.

--Tu vens obsceno de Celorico, Ega.

--… o que se aprende no seio da Santa Madre Igreja.

Mas tambem Carlos tinha uma novidade que o devia fazer estremecer. O Ega
porÈm j· sabia. A chegada dos Cohens, n„o È verdade? LÍra-o logo n'essa
manh„, na _Gazeta Illustrada_, no _high-life_. L· se dizia
respeitosamente que s. exc.^{as} tinham regressado do seu passeio pelo
estrangeiro.

--E que impress„o te fez? perguntou Carlos rindo.

O outro encolheu brutalmente os hombros:

--Fez-me o effeito de haver um cabr„o mais na cidade.

E, como Carlos o accusava outra vez de trazer de Celorico uma lingua
immunda, o Ega, um pouco cÛrado, arrependido talvez, lanÁou-se em
consideraÁıes criticas, clamando pela necessidade social de dar ·s
coisas o nome exacto. Para que servia ent„o o grande movimento
naturalista do seculo? Se o vicio se perpetuava, È porque a sociedade,
indulgente e romanesca, lhe dava nomes que o embellezavam, que o
idealisavam... Que escrupulo pÛde ter uma mulher em beijocar um terceiro
entre os lenÁoes conjugaes, se o mundo chama a isso sentimentalmente um
romance, e os poetas o cantam em estrophes d'ouro?

--E a proposito, a tua comedia, o _LodaÁal_? perguntou Carlos, que
entr·ra um instante para a alcova de banho.

--Abandonei-a, disse o Ega. Era feroz de mais... E alÈm d'isso fazia-me
remexer na podrid„o lisboeta, mergulhar outra vez na sargeta humana...
Affligia-me...

Parou diante do grande espelho, deu um olhar descontente ao seu jaquet„o
claro e ·s botas com mau verniz.

--Preciso enfardelar-me de novo, Carlinhos... O Poole naturalmente
mandou-te fato de ver„o, hei de querer examinar esses cÛrtes da alta
civilisaÁ„o... N„o ha negal-o, diabo, esta minha linha est· chinfrim!

Passou uma escova pelo bigode, e continuou fallando para dentro, para a
alcova de banho:

--Pois, menino, eu agora o que necessito È o regimen da Chimera. Vou-me
atirar outra vez ·s _Memorias_. Ha de se fazer ahi uma quantidade d'arte
colossal n'esse quarto que me destinas, diante de Velasquez... E a
proposito, È necessario ir comprimentar o velho Affonso, uma vez que
elle me vai dar o p„o, o tecto, e a enxerga...

Foram encontrar Affonso da Maia no escriptorio, na sua velha poltrona,
com um antigo volume da _IllustraÁ„o franceza_ aberto sobre os joelhos,
mostrando as estampas a um pequeno bonito, muito moreno, d'olho vivo, e
cabello encarapinhado. O velho ficou contentissimo ao saber que o Ega
vinha por algum tempo alegrar o Ramalhete com a sua bella phantasia.

--J· n„o tenho phantasia, snr. Affonso da Maia!

--Ent„o esclarecÍl-o com a tua clara raz„o, disse o velho rindo. Estamos
c· precisando d'ambas as coisas, John.

Depois apresentou-lhe aquelle pequeno cavalheiro, o snr. Manoelinho,
rapazinho amavel da visinhanÁa, filho do Vicente, mestre d'obras; o
Manoelinho vinha ·s vezes animar a solid„o d'Affonso--e alli folheavam
ambos livros d'estampas e tinham conversas philosophicas. Agora,
justamente, estava elle muito embaraÁado por n„o lhe saber explicar como
È que o general Canrobert (de quem estavam admirando o garbo sobre o seu
cavallo empinado) tendo mandado matar gente, muita gente, em batalhas,
n„o era mettido na cadÍa...

--Est· visto! exclamou o pequeno, esperto e desembaraÁado, com as m„os
cruzadas atraz das costas. Se mandou matar gente deviam-no ferrar na
cadÍa!

--Hein, amigo Ega! dizia Affonso rindo. Que se ha de responder a esta
bella logica? Olha, filho, agora que est„o aqui estes dois senhores que
s„o formados em Coimbra, eu vou estudar esse caso... Vai tu vÍr os
bonecos alli para cima da mesa... E depois v„o sendo horas d'ires l·
dentro · Joanna, para merendares.

Carlos, ajudando o pequeno a accommodar-se · mesa com o seu grande
volume d'estampas, pensava quanto o avÙ, com aquelle seu amor por
crianÁas, gostaria de conhecer Rosa!

Affonso no emtanto perguntava tambem ao Ega pela comedia. O quÍ! J·
abandonada? Quando acabaria ent„o o bravo John de fazer bocados
incompletos d'obras-primas?...--Ega queixou-se do paiz, da sua
indifferenÁa pela arte. Que espirito original n„o esmoreceria, vendo em
torno de si esta espessa massa de burguezes, amodorrada e crassa,
desdenhando a intelligencia, incapaz de se interessar por uma idÈa
nobre, por uma phrase bem feita?

--N„o vale a pena, snr. Affonso da Maia. N'este paiz, no meio d'esta
prodigiosa imbecilidade nacional, o homem de senso e de gosto deve
limitar-se a plantar com cuidado os seus legumes. Olhe o Herculano...

--Pois ent„o, acudiu o velho, planta os teus legumes. … um serviÁo ·
alimentaÁ„o publica. Mas tu nem isso fazes!

Carlos, muito sÈrio, apoiava o Ega.

--A unica coisa a fazer em Portugal, dizia elle, È plantar legumes,
emquanto n„o ha uma revoluÁ„o que faÁa subir · superficie alguns dos
elementos originaes, fortes, vivos, que isto ainda encerre l· no fundo.
E se se vir ent„o que n„o encerra nada, demittamo-nos logo
voluntariamente da nossa posiÁ„o de paiz para que n„o temos elementos,
passemos a ser uma fertil e estupida provincia hespanhola, e plantemos
mais legumes!

O velho escutava com melancolia estas palavras do neto em que sentia
como uma decomposiÁ„o da vontade, e que lhe pareciam ser apenas a
glorificaÁ„o da sua inercia. Terminou por dizer:

--Pois ent„o faÁam vocÍs essa revoluÁ„o. Mas pelo amor de Deus, faÁam
alguma coisa!

--O Carlos j· n„o faz pouco, exclamou Ega, rindo. Passeia a sua pessoa,
a sua toilette e o seu phaeton, e por esse facto educa o gosto!

O relogio Luiz XV interrompeu-os--lembrando ao Ega que devia ainda,
antes de jantar, ir buscar a sua mala ao Hotel Hespanhol. Depois no
corredor confessou a Carlos que, antes d'ir ao Hespanhol, queria correr
ao Fillon, ao photographo, vÍr se podia tirar um bonito retrato.

--Um retrato?

--Uma surpreza que tem d'ir d'aqui a tres dias para Celorico, para o dia
d'annos d'uma creaturinha que me adoÁou o exilio.

--Oh Ega!

--… horroroso, mas ent„o? … a filha do padre CorrÍa, filha conhecida
como tal; alÈm d'isso casada com um proprietario rico da visinhanÁa,
reaccionario odioso... De modo que, bem vÍs, esta dupla peÁa a pregar ·
Religi„o e · Propriedade...

--Ah! n'esse caso...

--Ninguem se deve eximir, amigo, aos seus grandes deveres democraticos!


Na segunda-feira seguinte choviscava quando Carlos e Ega, no coupÈ
fechado, partiram para o jantar dos Gouvarinhos. Desde a chegada da
condessa Carlos vira-a sÛ uma vez, em casa d'ella; e fÙra uma meia hora
desagradavel, cheia de malestar, com um ou outro beijo frio, e
recriminaÁıes infindaveis. Ella queix·ra-se das cartas d'elle, t„o
raras, t„o seccas. N„o se puderam entender sobre os planos d'esse ver„o,
ella devendo ir para Cintra onde j· alug·ra casa, Carlos fallando no
dever de acompanhar o avÙ a Santa Olavia. A condessa achava-o
distrahido: elle achou-a exigente. Depois ella sentou-se um instante
sobre os seus joelhos e aquelle leve e delicado corpo pareceu a Carlos
de um fastidioso peso de bronze.

Por fim a condessa arranc·ra-lhe a promessa de a ir encontrar,
justamente n'essa segunda-feira de manh„, a casa da titi, que estava em
Santarem;--porque tinha sempre o appetite perverso e requintado de o
apertar nos braÁos n˙s, em dias que o devesse receber na sua sala, mais
tarde, e com ceremonia. Mas Carlos falt·ra,--e agora, rodando para casa
d'ella, impacientavam-n'o j· as queixas que teria de ouvir nos v„os de
janella, e as mentiras chÙchas que teria de balbuciar...

De repente o Ega, que fumava em silencio, abotoado no seu paletot de
ver„o, bateu no joelho de Carlos, e entre risonho e sÈrio:

--Dize-me uma coisa, se n„o È um segredo sacrosanto... Quem È essa
brazileira com quem tu agora passas todas as tuas manh„s?

Carlos ficou um instante aturdido, com os olhos no Ega.

--Quem te fallou n'isso?

--Foi o Damaso que m'o disse. Isto È, o Damaso que m'o rugiu... Porque
foi de dentes rilhados, a dar murros surdos n'um sof· do Gremio, e com
uma cÙr d'apoplexia, que elle me contou tudo...

--Tudo o quÍ?

--Tudo. Que te apresent·ra a uma brazileira a quem se atirava, e que tu,
aproveitando a sua ausencia, te metteras l·, n„o sahias de l·...

--Tudo isso È mentira! exclamou o outro, j· impaciente.

E Ega, sempre risonho:

--Ent„o ´que È a verdadeª, como perguntava o velho Pilatus ao chamado
Jesus Christo?

--… que ha uma senhora a quem o Damaso suppunha ter inspirado uma
paix„o, como suppıe sempre, e que, tendo-lhe adoecido a governante
ingleza com uma bronchite, me mandou chamar para eu a tratar. Ainda n„o
est· melhor, eu vou vÍl-a todos os dias. E Madame Gomes, que È o nome da
senhora, que nem brazileira È, n„o podendo tolerar o Damaso, como
ninguem o tolera, tem-lhe fechado a sua porta. Esta È a verdade; mas
talvez eu arranque as orelhas ao Damaso!

Ega contentou-se em murmurar:

--E ahi est· como se escreve a historia... v·-se l· a gente fiar em
Guizot!

Em silencio, atÈ casa da Gouvarinho, Carlos foi ruminando a sua cÛlera
contra o Damaso. Ahi estava pois rasgada por aquelle imbecil a penumbra
suave e favoravel em que se abrig·ra o seu amor! Agora j· se pronunciava
o nome de Maria Eduarda no Gremio: o que o Damaso dissera ao Ega,
repetil-o-hia a outros, na Casa Havaneza, no restaurante Silva, talvez
nos lupanares: e assim o interesse supremo da sua vida seria d'ahi por
diante constantemente perturbado, estragado, sujo pela tagarellice reles
do Damaso!

--Parece-me que temos c· mais gente, disse o Ega, ao penetrarem na
ante-camara dos Gouvarinhos, vendo sobre o canapÈ um paletot cinzento e
capas de sonhem.

A condessa esperava-os na salinha ao fundo, chamada ´do bustoª, vestida
de preto, com uma tira de velludo em volta do pescoÁo picada de tres
estrellas de diamantes. Uma cesta de esplendidas flÙres quasi enchia a
mesa, onde se accumulavam tambem romances inglezes, e uma Revista dos
Dois Mundos em evidencia, com a faca de marfim entre as folhas. AlÈm da
boa D. Maria da Cunha e da baroneza d'Alvim, havia uma outra senhora,
que nem Carlos nem Ega conheciam, gorda e vestida d'escarlate; e de pÈ,
conversando baixo com o conde, de m„os atraz das costas, um cavalheiro
alto, escaveirado, grave, com uma barba rala, e a commenda da ConceiÁ„o.

A condessa, um pouco cÛrada, estendeu a Carlos a m„o amuada e frouxa:
todos os seus sorrisos foram para o Ega. E o conde apoderou-se logo do
querido Maia, para o apresentar ao seu amigo o snr. Sousa Netto. O snr.
Sousa Netto j· tinha o prazer de conhecer muito Carlos da Maia, como um
medico distincto, uma honra da Universidade... E era esta a vantagem de
Lisboa, disse logo o conde, o conhecerem-se todos de reputaÁ„o, o
poder-se ter assim uma apreciaÁ„o mais justa dos caracteres. Em Paris,
por exemplo, era impossivel; por isso havia tanta immoralidade, tanta
relaxaÁ„o...

--Nunca sabe a gente quem mette em casa.

O Ega, entre a condessa e D. Maria, enterrado no divan, mostrando as
estrellinhas bordadas das meias, fazia-as rir com a historia do seu
exilio em Celorico, onde se distrahia compondo sermıes para o abbade: o
abbade recitava-os; e os sermıes, sob uma fÛrma mystica, eram de facto
affirmaÁıes revolucionarias que o santo var„o lanÁava com fervor,
esmurrando o pulpito... A senhora de vermelho, sentada defronte, de m„os
no regaÁo, escutava o Ega, com o olhar espantado.

--Imaginei que v. exc.^a tinha ido j· para Cintra, veio dizer Carlos ·
senhora baroneza, sentando-se junto d'ella. V. exc.^a È sempre a
primeira...

--Como quer o senhor que se v· para Cintra com um tempo d'estes?

--Com effeito, est· infernal...

--E que conta de novo? perguntou ella, abrindo lentamente o seu grande
leque preto.

--Creio que n„o ha nada de novo em Lisboa, minha senhora, desde a morte
do snr. D. Jo„o VI.

--Agora ha o seu amigo Ega, por exemplo.

--… verdade, ha o Ega... Como o acha v. exc.^a, senhora baroneza?

Ella nem baixou a voz para dizer:

--Olhe, eu como o achei sempre um grande presumido e n„o gosto d'elle,
n„o posso dizer nada...

--Oh senhora baroneza, que falta de caridade!

O escudeiro annunci·ra o jantar. A condessa tomou o braÁo de Carlos,--e,
ao atravessar o sal„o, entre o frouxo murmurio de vozes e o rumor lento
das caudas de sÍda, pÙde dizer-lhe asperamente:

--Esperei meia hora; mas comprehendi logo que estaria entretido com a
brazileira...

Na sala de jantar, um pouco sombria, forrada de papel cÙr de vinho,
escurecida ainda por dois antigos paineis de paizagem tristonha, a mesa
oval, cercada de cadeiras de carvalho lavrado, resaltava alva e fresca,
com um esplendido cesto de rosas entre duas serpentinas douradas. Carlos
ficou · direita da condessa, tendo ao lado D. Maria da Cunha, que n'esse
dia parecia um pouco mais velha, e sorria com um ar cansado.

--Que tem feito todo este tempo, que ninguem o tem visto? perguntou-lhe
ella, desdobrando o guardanapo.

--Por esse mundo, minha senhora, vagamente...

Defronte de Carlos, o snr. Sousa Netto, que tinha tres enormes coraes no
peitilho da camisa, estava j· observando, emquanto remexia a sopa, que a
senhora condessa, na sua viagem ao Porto, devia ter encontrado nas ruas
e nos edificios grandes mudanÁas... A condessa, infelizmente, mal tinha
sahido durante o tempo que estivera no Porto. O conde, esse, È que
admirara os progressos da cidade. E especificou-os: elogiou a vista do
Palacio de Crystal; lembrou o fecundo antagonismo que existe entre
Lisboa e Porto; mais uma vez o comparou ao dualismo da Austria e da
Hungria. E atravÈs d'estas coisas graves, lanÁadas d'alto, com
superioridade e com peso, a baroneza e a senhora d'escarlate, aos dois
lados d'elle, fallavam do convento das Selesias.

Carlos, no emtanto, comendo em silencio a sua sopa, ruminava as palavras
da condessa. Tambem ella conhecia j· a sua intimidade com a
´brazileiraª. Era evidente pois que j· andava alli, diffamante e torpe,
a tagarellice do Damaso. E quando o criado lhe offereceu Sauterne,
estava decidido a bater no Damaso.

De repente ouviu o seu nome. Do fim da mesa uma voz dizia, pachorrenta e
cantada:

--O snr. Maia È que deve saber... O snr. Maia j· l· esteve.

Carlos pousou vivamente o copo. Era a senhora d'escarlate que lhe
fallava, sorrindo, mostrando uns bonitos dentes sob o buÁo forte de
quarentona pallida. Ninguem lh'a apresent·ra, elle n„o sabia quem era.
Sorriu tambem, perguntou:

--Onde, minha senhora?

--Na Russia.

--Na Russia?... N„o, minha senhora, nunca estive na Russia.

Ella pareceu um pouco desapontada.

--Ah, È que me tinham dito... N„o sei j· quem me disse, mas era pessoa
que sabia...

O conde ao fundo explicava-lhe amavelmente que o amigo Maia estivera
apenas na Hollanda.

--Paiz de grande prosperidade, a Hollanda!... Em nada inferior ao
nosso... J· conheci mesmo um hollandez que era excessivamente
instruido...

A condessa baix·ra os olhos, partindo vagamente um bocadinho de p„o,
mais sÈria de repente, mais secca, como se a voz de Carlos, erguendo-se
t„o tranquilla ao seu lado, tivesse avivado os seus despeitos. Elle,
ent„o, depois de provar devagar o seu Sauterne, voltou-se para ella,
muito naturalmente e risonho:

--Veja a senhora condessa! Eu nem tive mesmo idÈa d'ir · Russia. Ha
assim uma infinidade de coisas que se dizem e que n„o s„o exactas... E
se se faz uma allus„o ironica a ellas, ninguem comprehende a allus„o nem
a ironia...

A condessa n„o respondeu logo, dando com o olhar uma ordem muda ao
escudeiro. Depois, com um sorriso pallido:

--No fundo de tudo que se diz ha sempre um facto, ou um bocado de facto
que È verdadeiro. E isso basta... Pelo menos a mim basta-me...

--A senhora condessa tem ent„o uma credulidade infantil. Estou vendo que
acredita que era uma vez uma filha d'um rei que tinha uma estrella na
testa...

Mas o conde interpellava-o, o conde queria a opini„o do seu amigo Maia.
Tratava-se do livro de um inglez, o major Bratt, que atravess·ra a
Africa, e dizia coisas perfidamente desagradaveis para Portugal. O conde
via alli sÛ inveja--a inveja que nos tÍm todas as naÁıes por causa da
importancia das nossas colonias, e da nossa vasta influencia na
Africa...

--Est· claro, dizia o conde, que n„o temos nem os milhıes, nem a marinha
dos inglezes. Mas temos grandes glorias; o infante D. Henrique È de
primeira ordem; e a tomada d'Ormuz È um primor... E eu que conheÁo
alguma coisa de systemas coloniaes, posso affirmar que n„o ha hoje
colonias nem mais susceptiveis de riqueza, nem mais crentes no
progresso, nem mais liberaes que as nossas! N„o lhe parece, Maia?

--Sim, talvez, È possivel... Ha muita verdade n'isso...

Mas Ega, que estivera um pouco silencioso, entalando de vez em quando o
monoculo no olho e sorrindo para a baroneza, pronunciou-se alegremente
contra todas essas exploraÁıes da Africa, e essas longas missıes
geographicas... Porque n„o se deixaria o preto socegado, na calma posse
dos seus manipansos? Que mal fazia · ordem das coisas que houvesse
selvagens? Pelo contrario, davam ao Universo uma deliciosa quantidade de
pittoresco! Com a mania franceza e burgueza de reduzir todas as regiıes
e todas as raÁas ao mesmo typo de civilisaÁ„o, o mundo ia tornar-se
d'uma monotonia abominavel. Dentro em breve um touriste faria enormes
sacrificios, despezas sem fim, para ir a Tombuctu--para quÍ? Para
encontrar l· pretos de chapÈo alto, a lÍr o _Jornal dos Debates_!

O conde sorria com superioridade. E a boa D. Maria, sahindo do seu vago
abatimento, movia o leque, dizia a Carlos, deleitada:

--Este Ega! Este Ega! Que graÁa! Que _chic_!

Ent„o Sousa Netto, pousando gravemente o talher, fez ao Ega esta
pergunta grave:

--V. exc.^a pois È em favor da escravatura?

Ega declarou muito decididamente ao snr. Sousa Netto que era pela
escravatura. Os desconfortos da vida, segundo elle, tinham comeÁado com
a libertaÁ„o dos negros. SÛ podia ser sÈriamente obedecido, quem era
sÈriamente temido... Por isso ninguem agora lograva ter os seus sapatos
bem envernizados, o seu arroz bem cozido, a sua escada bem lavada, desde
que n„o tinha criados pretos em quem fosse licito dar vergastadas... SÛ
houvera duas civilisaÁıes em que o homem conseguira viver com razoavel
commodidade: a civilisaÁ„o romana, e a civilisaÁ„o especial dos
plantadores da Nova Orleans. Porque? porque n'uma e n'outra existira a
escravatura absoluta, a sÈrio, com o direito de morte!...

Durante um momento o snr. Sousa Netto ficou como desorganisado. Depois
passou o guardanapo sobre os beiÁos, preparou-se, encarou o Ega:

--Ent„o v. exc.^a n'essa idade, com a sua intelligencia, n„o acredita no
Progresso?

--Eu n„o senhor.

O conde interveio, affavel e risonho:

--O nosso Ega quer fazer simplesmente um paradoxo. E tem raz„o, tem
realmente raz„o, porque os faz brilhantes...

Estava-se servindo _Jambon aux Èpinards_. Durante um momento fallou-se
de paradoxos. Segundo o conde, quem os fazia tambem brilhantes e
difficeis de sustentar, excessivamente difficeis, era o Barros, o
ministro do reino...

--Talento robusto, murmurou respeitosamente Sousa Netto.

--Sim, pujante, disse o conde.

Mas elle agora n„o fallava tanto do talento do Barros como parlamentar,
como homem d'estado. Fallava do seu espirito de sociedade, do seu
_esprit_...

--Ainda este inverno nÛs lhe ouvimos um paradoxo brilhante! AtÈ foi em
casa da snr.^a D. Maria da Cunha... V. exc.^a n„o se lembra, snr.^a D.
Maria? Esta minha desgraÁada memoria! ” Thereza, lembras-te d'aquelle
paradoxo do Barros? Ora sobre que era, meu Deus?... Emfim, um paradoxo
muito difficil de sustentar... Esta minha memoria!... Pois n„o te
lembras, Thereza?

A condessa n„o se lembrava. E emquanto o conde ficava remexendo
anciosamente, com a m„o na testa, as suas recordaÁıes,--a senhora
d'escarlate voltou a fallar de pretos, e de escudeiros pretos, e d'uma
cozinheira preta que tivera uma tia d'ella, a tia Villar... Depois
queixou-se amargamente dos criados modernos: desde que lhe morrera a
Joanna, que estava em casa havia quinze annos, n„o sabia que fazer,
andava como tonta, tinha sÛ desgostos. Em seis mezes j· vira quatro
caras novas. E umas desleixadas, umas pretenciosas, uma immoralidade!...
Quasi lhe fugiu um suspiro do peito, e trincando desconsoladamente uma
migalhinha de p„o:

--” baroneza, ainda tens a Vicenta?

--Pois ent„o n„o havia de ter a Vicenta?... Sempre a Vicenta... A snr.^a
D. Vicenta, se faz favor.

A outra contemplou-a um instante, com inveja d'aquella felicidade.

--E È a Vicenta que te penteia?

Sim, era a Vicenta que a penteava. Ia-se fazendo velha, coitada... Mas
sempre caturra. Agora andava com a mania de aprender francez. J· sabia
verbos. Era de morrer, a Vicenta a dizer _j'aime_, _tu aimes_...

--E a senhora baroneza, acudiu o Ega, comeÁou por lhe mandar ensinar os
verbos mais necessarios.

Est· claro, dizia a baroneza, que aquelle era o mais necessario. Mas na
idade da Vicenta j· de pouco lhe poderia servir!

--Ah! gritou de repente o conde, deixando quasi cahir o talher. Agora me
lembro!

Tinha-se lembrado emfim do soberbo paradoxo do Barros. Dizia o Barros
que os c„es, quanto mais ensinados... Pois, n„o, n„o era isto!

--Esta minha desgraÁada memoria!... E era sobre c„es. Uma coisa
brilhante, philosophica atÈ!

E, por se fallar de c„es, a baroneza lembrou-se do _Tommy_, o galgo da
condessa; perguntou por _Tommy_. J· o n„o via ha que tempos, esse bravo
_Tommy_! A condessa nem queria que se fallasse no _Tommy_, coitado!
Tinham-lhe nascido umas coisas nos ouvidos, um horror... Mand·ra-o para
o Instituto, l· morrera.

--Est· deliciosa esta galantine, disse D. Maria da Cunha, inclinando-se
para Carlos.

--Deliciosa.

E a baroneza, do lado, declarou tambem a galantine uma perfeiÁ„o. Com um
olhar ao escudeiro, a condessa fez servir de novo a galantine: e
apressou-se a responder ao snr. Sousa Netto, que, a proposito de c„es,
lhe estava fallando da _Sociedade protectora dos animaes_. O snr. Sousa
Netto approvava-a, considerava-a como um progresso... E, segundo elle,
n„o seria mesmo de mais que o governo lhe dÈsse um subsidio.

--Que eu creio que ella vai prosperando... E merece-o, acredite a
senhora condessa que o merece... Estudei essa quest„o, e de todas as
sociedades que ultimamente se tÍm fundado entre nÛs, · imitaÁ„o do que
se faz l· fÛra, como a _Sociedade de Geographia_ e outras, a _Protectora
dos animaes_ parece-me decerto uma das mais uteis.

Voltou-se para o lado, para o Ega:

--V. exc.^a pertence?

--¡ _Sociedade protectora dos animaes_?... N„o senhor, pertenÁo a outra,
· de _Geographia_. Sou dos protegidos.

A baroneza teve uma das suas alegres risadas. E o conde fez-se
extremamente sÈrio: pertencia · _Sociedade de Geographia_, considerava-a
um pilar do Estado, acreditava na sua miss„o civilisadora, detestava
aquellas irreverencias. Mas a condessa e Carlos tinham rido tambem:--e
de repente a frialdade que atÈ ahi os conserv·ra ao lado um do outro
reservados, n'uma ceremonia affectada, pareceu dissipar-se ao calor
d'esse riso trocado, no brilho dos dois olhares encontrando-se
irresistivelmente. Servira-se o Champagne, ella tinha uma cÙrzinha no
rosto. O seu pÈ, sem ella saber como, roÁou pelo pÈ de Carlos; sorriram
ainda outra vez;--e, como no resto da mesa se conversava sobre uns
concertos classicos que ia haver no Price, Carlos perguntou-lhe, baixo,
com uma reprehens„o amavel:

--Que tolice foi essa da _brazileira_?... Quem lhe disse isso?

Ella confessou-lhe logo que fÙra o Damaso... O Damaso viera contar-lhe o
enthusiasmo de Carlos por essa senhora, e as manh„s inteiras que l·
passava, todos os dias, · mesma hora... Emfim o Damaso fizera-lhe
claramente entrevÍr uma _liaison_.

Carlos encolheu os hombros. Como podia ella acreditar no Damaso? Devia
conhecer-lhe bem a tagarellice, a imbecilidade...

--… perfeitamente verdade que eu vou a casa d'essa senhora, que nem
brazileira È, que È t„o portugueza como eu; mas È porque ella tem a
governante muito doente com uma bronchite, e eu sou o medico da casa.
Foi atÈ o Damaso, elle proprio, que l· me levou como medico!

No rosto da condessa espalhava-se um riso, uma claridade vinda do dÙce
allivio que se fazia no seu coraÁ„o.

--Mas o Damaso disse-me que era t„o linda!...

Sim, era muito linda. E ent„o? Um medico, por fidelidade ·s suas
affeiÁıes, e para as n„o inquietar, n„o podia realmente, antes de
penetrar na casa d'uma doente, exigir-lhe um certificado de hediondez!

--Mas que est· ella c· a fazer?...

--Est· · espera do marido que foi a negocios ao Brazil, e vem ahi... …
uma gente muito distincta, e creio que muito rica... V„o-se brevemente
embora, de resto, e eu pouco sei d'elles. As minhas visitas s„o de
medico; tenho apenas conversado com ella sobre Paris, sobre Londres,
sobre as suas impressıes de Portugal...

A condessa bebia estas palavras, deliciosamente, dominada pelo bello
olhar com que elle lh'as murmurava: e o seu pÈ apertava o de Carlos
n'uma reconciliaÁ„o apaixonada, com a forÁa que desejaria pÙr n'um
abraÁo--se alli lh'o podesse dar.

A senhora d'escarlate, no emtanto, recomeÁ·ra a fallar da Russia. O que
a assustava È que o paiz era t„o caro, corriam-se tantos perigos por
causa da dynamite, e uma constituiÁ„o fraca devia soffrer muito com a
neve nas ruas. E foi ent„o que Carlos percebeu que ella era a esposa de
Sousa Netto, e que se tratava d'um filho d'elles, filho unico,
despachado segundo secretario para a legaÁ„o de S. Petersburgo.

--O menino conhece-o? perguntou D. Maria ao ouvido de Carlos, por traz
do leque. … um horror d'estupidez... Nem francez sabe! De resto n„o È
peor que os outros... Que a quantidade de mÙnos, de semsaborıes e de
tolos que nos representam l· fÛra atÈ faz chorar... Pois o menino n„o
acha? Isto È um paiz desgraÁado.

--Peor, minha cara senhora, muito peor. Isto È um paiz _cursi_.

Tinha findado a sobremesa. D. Maria olhou para a condessa com o seu
sorriso cansado; a senhora de escarlate cal·ra-se, j· preparada, tendo
mesmo afastado um pouco a cadeira; e as senhoras ergueram-se, no momento
em que o Ega, ainda ·cerca da Russia, acabava de contar uma historia
ouvida a um polaco, e em que se provava que o Czar era um estupido...

--Liberal todavia, gostando bastante do progresso! murmurou ainda o
conde, j· de pÈ.

Os homens, sÛs, accenderam os seus charutos; o escudeiro serviu o cafÈ.
Ent„o o snr. Sousa Netto, com a sua chavena na m„o, aproximou-se de
Carlos para lhe exprimir de novo o prazer que tivera em fazer o seu
conhecimento...

--Eu tive tambem em tempos o prazer de conhecer o pai de v. exc.^a...
Pedro, creio que era justamente o snr. Pedro da Maia. ComeÁava eu ent„o
a minha carreira publica... E o avÙ de v. exc.^a, bom?

--Muito agradecido a v. exc.^a

--Pessoa muito respeitavel... O pai de v. exc.^a era... Emfim, era o que
se chama ´um eleganteª. Tive tambem o prazer de conhecer a m„i de v.
exc.^a...

E de repente calou-se, embaraÁado, levando a chavena aos labios. Depois,
lentamente, voltou-se para escutar melhor o Ega, que ao lado discutia
com o Gouvarinho sobre mulheres. Era a proposito da secret·ria da
legaÁ„o da Russia, com quem elle encontr·ra n'essa manh„ o conde
conversando ao Calhariz. O Ega achava-a deliciosa, com o seu corpinho
nervoso e ondeado, os seus grandes olhos garÁos... E o conde, que a
admirava tambem, gabava-lhe sobretudo o espirito, a instrucÁ„o. Isso,
segundo o Ega, prejudicava-a: porque o dever da mulher era primeiro ser
bella, e depois ser estupida... O conde affirmou logo com exuberancia
que n„o gostava tambem de litteratas: sim, decerto o lugar da mulher era
junto do berÁo, n„o na bibliotheca...

--No emtanto È agradavel que uma senhora possa conversar sobre coisas
amenas, sobre o artigo d'uma Revista, sobre... Por exemplo, quando se
publica um livro... Emfim, n„o direi quando se trata d'um Guizot, ou
d'um Jules Simon... Mas, por exemplo, quando se trata d'um Feuillet,
d'um... Emfim, uma senhora deve ser prendada. N„o lhe parece, Netto?

Netto, grave, murmurou:

--Uma senhora, sobretudo quando ainda È nova, deve ter algumas
prendas...

Ega protestou, com calor. Uma mulher com prendas, sobretudo com prendas
litterarias, sabendo dizer coisas sobre o snr. Thiers, ou sobre o snr.
Zola, È um monstro, um phenomeno que cumpria recolher a uma companhia de
cavallinhos, como se soubesse trabalhar nas argolas. A mulher sÛ devia
ter duas prendas: cozinhar bem e amar bem.

--V. exc.^a decerto, snr. Sousa Netto, sabe o que diz Proudhon?

--N„o me recordo textualmente, mas...

--Em todo o caso v. exc.^a conhece perfeitamente o seu Proudhon?

O outro, muito seccamente, n„o gostando decerto d'aquelle
interrogatorio, murmurou que Proudhon era um author de muita nomeada.

Mas o Ega insistia, com uma impertinencia perfida:

--V. exc.^a leu evidentemente, como nÛs todos, as grandes paginas de
Proudhon sobre o amor?

O snr. Netto, j· vermelho, pousou a chavena sobre a mesa. E quiz ser
sarcastico, esmagar aquelle moÁo, t„o litterario, t„o audaz.

--N„o sabia, disse elle com um sorriso infinitamente superior, que esse
philosopho tivesse escripto sobre assumptos escabrosos!

Ega atirou os braÁos ao ar, consternado:

--Oh snr. Sousa Netto! Ent„o v. exc.^a, um chefe de familia, acha o amor
um assumpto escabroso?!

O snr. Netto encordoou. E muito direito, muito digno, fallando do alto
da sua consideravel posiÁ„o burocratica:

--… meu costume, snr. Ega, n„o entrar nunca em discussıes, e acatar
todas as opiniıes alheias, mesmo quando ellas sejam absurdas...

E quasi voltou as costas ao Ega, dirigindo-se outra vez a Carlos,
desejando saber, n'uma voz ainda um pouco alterada, se elle agora se
fixava algum tempo mais em Portugal. Ent„o, durante um momento, acabando
os charutos, os dois fallaram de viagens. O snr. Netto lamentava que os
seus muitos deveres n„o lhe permitissem percorrer a Europa. Em pequeno
fÙra esse o seu ideal; mas agora, com tantas occupaÁıes publicas, via-se
forÁado a n„o deixar a carteira. E alli estava, sem ter visto sequer
Badajoz...

--E v. exc.^a de que gostou mais, de Paris ou de Londres?

Carlos realmente n„o sabia, nem se podia comparar... Duas cidades t„o
differentes, duas civilisaÁıes t„o originaes...

--Em Londres, observou o conselheiro, tudo carv„o...

Sim, dizia Carlos sorrindo, bastante carv„o, sobretudo nos fogıes,
quando havia frio...

O snr. Sousa Netto murmurou:

--E o frio alli deve ser sempre consideravel... Clima t„o ao norte!...

Esteve um momento mamando o charuto, de palpebra cerrada. Depois, fez
esta observaÁ„o sagaz e profunda:

--Povo pratico, povo essencialmente pratico.

--Sim, bastante pratico, disse vagamente Carlos, dando um passo para a
sala, onde se sentiam as risadas cantantes da baroneza.

--E diga-me outra coisa, proseguiu o snr. Sousa Netto, com interesse,
cheio de curiosidade intelligente. Encontra-se por l·, em Inglaterra,
d'esta litteratura amena, como entre nÛs, folhetinistas, poetas de
pulso?...

Carlos deitou a ponta do charuto para o cinzeiro, e respondeu, com
descaro:

--N„o, n„o ha d'isso.

--Logo vi, murmurou Sousa Netto. Tudo gente de negocio.

E penetraram na sala. Era o Ega que assim fazia rir a baroneza, sentado
defronte d'ella, fallando outra vez de Celorico, contando-lhe uma soirÈe
de Celorico, com detalhes picarescos sobre as authoridades, e sobre um
abbade que tinha morto um homem e cantava fados sentimentaes ao piano. A
senhora d'escarlate, no sof· ao lado, com os braÁos cahidos no regaÁo,
pasmava para aquella veia do Ega como para as destrezas d'um palhaÁo. D.
Maria, junto da mesa, folheava com o seu ar cansado uma _IllustraÁ„o_; e
vendo que Carlos ao entrar procur·ra com o olhar a condessa, chamou-o,
disse-lhe baixo que ella fÙra dentro vÍr Charlie, o pequeno...

--… verdade, perguntou Carlos, sentando-se ao lado d'ella, que È feito
d'elle, d'esse lindo Charlie?

--Diz que tem estado hoje constipado, e um pouco murcho...

--A snr.^a D. Maria tambem me parece hoje um pouco murcha.

--… do tempo. Eu j· estou na idade em que o bom humor ou o aborrecimento
vÍm sÛ das influencias do tempo... Na sua idade vem d'outras coisas. E a
proposito d'outras coisas: ent„o a Cohen tambem chegou?

--Chegou, disse Carlos, mas n„o _tambem_. O _tambem_ implica
combinaÁ„o... E a Cohen e o Ega chegaram realmente ambos por acaso... De
resto isso È historia antiga, È como os amores de Helena e de P·ris.

N'esse instante a condessa voltava de dentro, um pouco afogueada, e
trazendo aberto um grande leque negro. Sem se sentar, fallando sobretudo
para a mulher do snr. Sousa Netto, queixou-se logo de n„o ter achado
Charlie bem... Estava t„o quente, t„o inquieto... Tinha quasi medo que
fosse sarampo.--E voltando-se vivamente para Carlos, com um sorriso:

--Eu estou com vergonha... Mas se o snr. Carlos da Maia quizesse ter o
incommodo de o vir vÍr um instante... … odioso, realmente, pedir-lhe
logo depois de jantar para examinar um doente...

--Oh senhora condessa! exclamou elle, j· de pÈ.

Seguiu-a. N'uma saleta, ao lado, o conde e o snr. Sousa Netto,
enterrados n'um sof·, conversavam fumando.

--Levo o snr. Carlos da Maia para vÍr o pequeno...

O conde erguera-se um pouco do sof·, sem comprehender bem. J· ella
pass·ra. Carlos seguiu em silencio a sua longa cauda de sÍda preta
atravÈs do bilhar, deserto, com o gaz acceso, ornado de quatro retratos
de damas, da familia dos Gouvarinhos, empoadas e sorumbaticas. Ao lado,
por traz de um pesado reposteiro de fazenda verde, era um gabinete, com
uma velha poltrona, alguns livros n'uma estante envidraÁada, e uma
escrevaninha onde pousava um candieiro sob o abat-jour de renda cÙr de
rosa. E ahi, bruscamente, ella parou, atirou os braÁos ao pescoÁo de
Carlos, os seus labios prenderam-se aos d'elle n'um beijo sÙfrego,
penetrante, completo, findando n'um soluÁo de desmaio... Elle sentia
aquelle lindo corpo estremecer, escorregar-lhe entre os braÁos, sobre os
joelhos sem forÁa.

--¡manh„, em casa da titi, ·s onze, murmurou ella quando pÙde fallar.

--Pois sim.

Desprendida d'elle, a condessa ficou um momento com as m„os sobre os
olhos, deixando desvanecer aquella languida vertigem, que a fizera cÙr
de cÍra. Depois, cansada e sorrindo:

--Que doida que eu sou... Vamos vÍr Charlie.

O quarto do pequeno era ao fundo do corredor. E ahi, n'uma caminha de
ferro, junto do leito maior da criada, Charlie dormia, sereno, fresco,
com um bracinho cahido para o lado, os seus lindos caracoes loiros
espalhados no travesseiro como uma aureola d'anjo. Carlos tocou-lhe
apenas no pulso; e a criada escosseza, que trouxera uma luz de sobre a
commoda, disse, sorrindo tranquillamente:

--O menino n'estes ultimos dias tem andado muitissimo bem...

Voltaram. No gabinete, antes de penetrar no bilhar, a condessa, j· com a
m„o no reposteiro, estendeu ainda a Carlos os seus labios insaciaveis.
Elle colheu um rapido beijo. E, ao passar na antecamara, onde Sousa
Netto e o conde continuavam enfronhados n'uma conversa grave, ella disse
ao marido:

--O pequeno est· a dormir... O snr. Carlos da Maia achou-o bem.

O conde de Gouvarinho bateu no hombro de Carlos, carinhosamente. E
durante um momento a condessa ficou alli conversando, de pÈ, a deixar-se
serenar, pouco a pouco, n'aquella penumbra favoravel, antes de affrontar
a luz forte da sala. Depois, por se fallar em hygiene, convidou o snr.
Sousa Netto para uma partida de bilhar; mas o snr. Netto, desde Coimbra,
desde a Universidade, n„o peg·ra n'um taco. E ia-se chamar o Ega quando
appareceu Telles da Gama, que chegava do Price. Logo atraz d'elle entrou
o conde de Steinbroken. Ent„o o resto da noite passou-se no sal„o, em
redor do piano. O ministro cantou melodias da Filandia. Telles da Gama
tocou _fados_.

Carlos e Ega foram os derradeiros a sahir, depois de um _brandy and
soda_, de que a condessa partilhou, como ingleza forte. E em baixo, no
pateo, acabando de abotoar o paletot, Carlos pÙde emfim soltar a
pergunta que lhe faisc·ra nos labios toda a noite:

--” Ega, quem È aquelle homem, aquelle Sousa Netto, que quiz saber se em
Inglaterra havia tambem litteratura?

Ega olhou-o com espanto:

--Pois n„o adivinhaste? N„o deduziste logo? N„o viste immediatamente
quem n'este paiz È capaz de fazer essa pergunta?

--N„o sei... Ha tanta gente capaz...

E o Ega radiante:

--Official superior d'uma grande repartiÁ„o do Estado!

--De qual?

--Ora de qual! De qual ha de ser?... Da InstrucÁ„o publica!


Na tarde seguinte, ·s cinco horas, Carlos, que se demor·ra de mais em
casa da titi com a condessa, retido pelos seus beijos interminaveis, fez
voar o coupÈ atÈ · rua de S. Francisco, olhando a cada momento o
relogio, n'um receio de que Maria Eduarda tivesse sahido por aquelle
lindo dia de ver„o, luminoso e sem calor. Com effeito · porta d'ella
estava a carruagem da Companhia; e Carlos galgou as escadas, desesperado
com a condessa, sobretudo comsigo mesmo, t„o fraco, t„o passivo, que
assim se deix·ra retomar por aquelles braÁos exigentes, cada vez mais
pesados, e j· incapazes de o commover...

--A senhora chegou agora mesmo, disse-lhe o Domingos, que volt·ra da
terra havia tres dias, e ainda n„o cess·ra de lhe sorrir.

Sentada no sof·, de chapÈo, tirando as luvas, ella acolheu-o com uma
dÙce cÙr no rosto, e uma carinhosa reprehens„o:

--Estive · espera mais de meia hora antes de sahir... … uma ingratid„o!
Imaginei que nos tinha abandonado!

--PorquÍ? Est· peor, miss Sarah?

Ella olhou-o, risonhamente escandalisada. Ora, miss Sarah! Miss Sarah ia
seguindo perfeitamente na sua convalescenÁa... Mas agora j· n„o eram as
visitas de medico que se esperavam, eram as de amigo; e essa tinha-lhe
faltado.

Carlos, sem responder, perturbado, voltou-se para Rosa, que folheava
junto da mesa um livro novo d'estampas; e a ternura, a gratid„o infinita
do seu coraÁ„o, que n„o ousava mostrar · m„e, pÙl-a toda na longa
caricia em que envolveu a filha.

--S„o historias que a mam„ agora comprou, dizia Rosa, sÈria e presa ao
seu livro. Hei de t'as contar depois... S„o historias de bichos.

Maria Eduarda erguera-se, desapertando lentamente as fitas do chapÈo.

--Quer tomar uma chavena de ch· comnosco, snr. Carlos da Maia? Eu vinha
morrendo por uma chavena de ch·... Que lindo dia, n„o È verdade? Rosa,
fica tu a contar o nosso passeio emquanto eu vou tirar o chapÈo...

Carlos, sÛ com Rosa, sentou-se junto d'ella, desviando-a do livro,
tomando-lhe ambas as m„os.

--Fomos ao Passeio da Estrella, dizia a pequena. Mas a mam„ n„o se
queria demorar, porque tu podias ter vindo!

Carlos beijou, uma depois da outra, as duas m„osinhas de Rosa.

--E ent„o que fizeste no Passeio? perguntou elle, depois d'um leve
suspiro de felicidade que lhe fugira do peito.

--Andei a correr, havia uns patinhos novos...

--Bonitos?...

A pequena encolheu os hombros:

--Chinfrinzitos.

Chinfrinzitos! Quem lhe tinha ensinado a dizer uma coisa t„o feia?

Rosa sorriu. FÙra o Domingos. E o Domingos dizia ainda outras coisas
assim, engraÁadas... Dizia que a Melanie era uma _gaja_... O Domingos
tinha muita graÁa.

Ent„o Carlos advertiu-a que uma menina bonita, com t„o bonitos vestidos,
n„o devia dizer aquellas palavras... Assim fallava a gente rÙta.

--O Domingos n„o anda rÙto, disse Rosa muito sÈria.

E subitamente, com outra idÈa, bateu as palmas, pulou-lhe entre os
joelhos, radiante:

--E trouxe-me uns grillos da PraÁa! O Domingos trouxe-me uns grillos...
Se tu soubesses! _Niniche_ tem medo dos grillos! Parece incrivel, hein?
Eu nunca vi ninguem mais medrosa...

Esteve um momento a olhar Carlos, e acrescentou, com um ar grave:

--… a mam„ que lhe d· tanto mimo. … uma pena!

Maria Eduarda entrava, ageitando ainda de leve o ondeado do cabello: e,
ouvindo assim fallar de mimo, quiz saber quem È que ella estragava com
mimo... _Niniche_? Pobre _Niniche_, coitada, ainda essa manh„ fÙra
castigada!

Ent„o Rosa rompeu a rir, batendo outra vez as m„os:

--Sabes como a mam„ a castiga? exclamava ella, puxando a manga de
Carlos. Sabes?... Faz-lhe voz grossa... Diz-lhe em inglez: _Bad dog!
dreadful dog!_

Era encantadora assim, imitando a voz severa da mam„, com o dedinho
erguido, a ameaÁar _Niniche_. A pobre _Niniche_, imaginando com effeito
que a estavam a reprehender, arrastou-se, vexada, para debaixo do sof·.
E foi necessario que Rosa a tranquillisasse, de joelhos sobre a pelle de
tigre, jurando-lhe, por entre abraÁos, que ella nem era mau c„o, nem
feio c„o; fÙra sÛ para contar como fazia a mam„...

--Vai-lhe dar agua, que ella deve estar com sÍde, disse ent„o Maria
Eduarda, indo sentar-se na sua cadeira escarlate. E dize ao Domingos que
nos traga o ch·.

Rosa e _Niniche_ partiram correndo. Carlos veio occupar, junto da
janella, a costumada poltrona de reps. Mas pela primeira vez, desde a
sua intimidade, houve entre elles um silencio difficil. Depois ella
queixou-se de calor, desenrolando distrahidamente o bordado; e Carlos
permanecia mudo, como se para elle, n'esse dia, apenas houvesse encanto,
apenas houvesse significaÁ„o n'uma certa palavra de que os seus labios
estavam cheios e que n„o ousavam murmurar, que quasi receava que fosse
adivinhada apesar d'ella suffocar o seu coraÁ„o.

--Parece que nunca se acaba, esse bordado! disse elle por fim,
impaciente de a vÍr, t„o serena, a occupar-se das suas l„s.

Com a talagarÁa desdobrada sobre os joelhos, ella respondeu, sem erguer
os olhos:

--E para que se ha de acabar? O grande prazer È andal-o a fazer, pois
n„o acha? Uma malha hoje, outra malha ·manh„, torna-se assim uma
companhia... Para que se ha de querer chegar logo ao fim das coisas?

Uma sombra passou no rosto de Carlos. N'estas palavras, ditas de leve
·cerca do bordado, elle sentia uma desanimadora allus„o ao seu
amor,--esse amor que lhe fÙra enchendo o coraÁ„o · maneira que a l„
cobria aquella talagarÁa, e que era obra simultanea das mesmas brancas
m„os. Queria ella pois conserval-o alli, arrastado como o bordado,
sempre acrescentado e sempre incompleto, guardado tambem no cesto da
costura, para ser o desafogo da sua solid„o?

Disse-lhe ent„o, commovido:

--N„o È assim. Ha coisas que sÛ existem quando se completam, e que sÛ
ent„o d„o a felicidade que se procurava n'ellas.

--… muito complicado isso, murmurou ella, cÛrando. … muito subtil...

--Quer que lh'o diga mais claramente?

N'esse instante Domingos, erguendo o reposteiro, annunciou que estava
alli o snr. Damaso...

Maria Eduarda teve um movimento brusco de impaciencia:

--Diga que n„o recebo!

FÛra, no silencio, sentiram bater a porta. E Carlos ficou inquieto,
lembrando-se que o Damaso devia ter visto em baixo, passeando na rua, o
seu coupÈ. Santo Deus! O que elle iria tagarellar agora, com os seus
pequeninos rancores, assim humilhado! Quasi lhe pareceu n'esse instante
a existencia do Damaso incompativel com a tranquillidade do seu amor.

--Ahi est· outro inconveniente d'esta casa, dizia no emtanto Maria
Eduarda. Aqui ao lado d'esse Gremio, a dois passos do Chiado, È
demasiadamente accessivel aos importunos. Tenho agora de repellir quasi
todos os dias este assalto · minha porta! … intoleravel.

E com uma subita idÈa, atirando o bordado para o aÁafate, cruzando as
m„os sobre os joelhos:

--Diga-me uma coisa que lhe tenho querido perguntar... N„o me seria
possivel arranjar por ahi uma casinhola, um cottage, onde eu fosse
passar os mezes de ver„o?... Era t„o bom para a pequena! Mas n„o conheÁo
ninguem, n„o sei a quem me hei de dirigir...

Carlos lembrou-se logo da bonita casa do Craft, nos Olivaes--como j·
n'outra occasi„o em que ella mostr·ra desejos d'ir para o campo.
Justamente, n'esses ultimos tempos, Craft volt·ra a fallar, e mais
decidido, no antigo plano de vender a quinta, e desfazer-se das suas
collecÁıes. Que deliciosa vivenda para ella, artistica e campestre,
condizendo t„o bem com os seus gostos! Uma tentaÁ„o atravessou-o,
irresistivel.

--Eu sei com effeito d'uma casa... E t„o bem situada, que lhe convinha
tanto!...

--Que se aluga?

Carlos n„o hesitou:

--Sim, È possivel arranjar-se...

--Isso era um encanto!

Ella tinha dito--´era um encantoª. E isto decidiu-o logo, parecendo-lhe
desamoravel e mesquinho o ter-lhe suggerido uma esperanÁa, e n„o lh'a
realisar com fervor.

O Domingos entr·ra com o taboleiro do ch·. E emquanto o collocava sobre
uma pequena mesa, defronte de Maria Eduarda, ao pÈ da janella, Carlos,
erguendo-se, dando alguns passos pela sala, pensava em comeÁar
immediatamente negociaÁıes com o Craft, comprar-lhe as collecÁıes,
alugar-lhe a casa por um anno, e offerecel-a a Maria Eduarda para os
mezes de ver„o. E n„o considerava, n'esse instante, nem as
difficuldades, nem o dinheiro. Via sÛ a alegria d'ella passeando com a
pequena, entre as bellas arvores do jardim. E como Maria Eduarda deveria
ser mais grandemente formosa no meio d'esses moveis da RenascenÁa,
severos e nobres!

--Muito assucar? perguntou ella.

--N„o... Perfeitamente, basta.

Viera sentar-se na sua velha poltrona; e, recebendo a chavena de
porcelana ordinaria com um filetesinho azul, recordava o magnifico
serviÁo que tinha o Craft, de velho Wedgewood, oiro e cÙr de fogo. Pobre
senhora! t„o delicada, e alli enterrada entre aquelles reps, maculando a
graÁa das suas m„os nas coisas reles da m„i Cruges!

--E onde È essa casa? perguntou Maria Eduarda.

--Nos Olivaes, muito perto d'aqui, vai-se l· n'uma hora de carruagem...

Explicou-lhe detalhadamente o sitio,--acrescentando, com os olhos
n'ella, e com um sorriso inquieto:

--Estou aqui a preparar lenha para me queimar!... Porque se fÙr para l·
installar-se, e depois vier o calor, quem È que a torna a vÍr?

Ella pareceu surprehendida:

--Mas que lhe custa, a si, que tem cavallos, que tem carruagens, que n„o
tem quasi nada que fazer?...

Assim ella achava natural que elle continuasse nos Olivaes as suas
visitas de Lisboa! E pareceu-lhe logo impossivel renunciar ao encanto
d'esta intimidade, t„o largamente offerecida, e decerto mais dÙce na
solid„o d'aldÍa. Quando acabou a sua chavena de ch·--era como se a casa,
os moveis, as arvores fossem j· seus, fossem j· d'ella. E teve alli um
momento delicioso, descrevendo-lhe a quietaÁ„o da quinta, a entrada por
uma rua d'acacias, e a belleza da sala de jantar com duas janellas
abrindo sobre o rio...

Ella escutava-o, encantada:

--Oh! isso era o meu sonho! Vou ficar agora toda alterada, cheia
d'esperanÁas... Quando poderei ter uma resposta?

Carlos olhou o relogio. Era j· tarde para ir aos Olivaes. Mas logo na
manh„ seguinte cedo, ia fallar com o dono da casa, seu amigo...

--Quanto incommodo por minha causa! disse ella. Realmente! como lhe hei
de eu agradecer?...

Calou-se; mas os seus bellos olhos ficaram um instante pousados nos de
Carlos, como esquecidos, e deixando fugir irresistivelmente um pouco do
segredo que ella retinha no seu coraÁ„o.

Elle murmurou:

--Por mais que eu fizesse, ficaria bem pago de tudo se me olhasse outra
vez assim.

Uma onda de sangue cobriu toda a face de Maria Eduarda.

--N„o diga isso...

--E que necessidade ha que eu lh'o diga? Pois n„o sabe perfeitamente que
a adoro, que a adoro, que a adoro!

Ella ergueu-se bruscamente, elle tambem:--e assim ficaram, mudos, cheios
d'anciedade, trespassando-se com os olhos, como se se tivesse feito uma
grande alteraÁ„o no Universo, e elles esperassem, suspensos, o desfecho
supremo dos seus destinos... E foi ella que fallou, a custo, quasi
desfallecida, estendendo para elle, como se o quizesse afastar, as m„os
inquietas e tremulas:

--Escute! Sabe bem o que eu sinto por si, mas escute... Antes que seja
tarde ha uma coisa que lhe quero dizer...

Carlos via-a assim tremer, via-a toda pallida... E nem a escut·ra, nem a
comprehendera. Sentia apenas, n'um deslumbramento, que o amor comprimido
atÈ ahi no seu coraÁ„o irrompera por fim, triumphante, e embatendo no
coraÁ„o d'ella, atravÈs do apparente marmore do seu peito, fizera de l·
resaltar uma chamma igual... SÛ via que ella tremia, sÛ via que ella o
amava... E, com a gravidade forte d'um acto de posse, tomou-lhe
lentamente as m„os, que ella lhe abandonou, submissa de repente, j· sem
forÁa, e vencida. E beijava-lh'as ora uma ora outra, e as palmas, e os
dedos, devagar, murmurando apenas:

--Meu amor! meu amor! meu amor!

Maria Eduarda cahira pouco a pouco sobre a cadeira; e, sem retirar as
m„os, erguendo para elle os olhos cheios de paix„o, ennevoados de
lagrimas, balbuciou ainda, debilmente, n'uma derradeira supplicaÁ„o:

--Ha uma coisa que eu lhe queria dizer!...

Carlos estava j· ajoelhado aos seus pÈs.

--Eu sei o que È! exclamou, ardentemente, junto do rosto d'ella, sem a
deixar fallar mais, certo de que adivinh·ra o seu pensamento. Escusa de
dizer, sei perfeitamente. … o que eu tenho pensado tantas vezes! … que
um amor como o nosso n„o pÛde viver nas condiÁıes em que vivem outros
amores vulgares... … que desde que eu lhe digo que a amo, È como se lhe
pedisse para ser minha esposa diante de Deus...

Ella recuava o rosto, olhando-o angustiosamente, e como se n„o
comprehendesse. E Carlos continuava mais baixo, com as m„os d'ella
presas, penetrando-a toda da emoÁ„o que o fazia tremer:

--Sempre que pensava em si, era j· com esta esperanÁa d'uma existencia
toda nossa, longe d'aqui, longe de todos, tendo quebrado todos os laÁos
presentes, pondo a nossa paix„o acima de todas as ficÁıes humanas, indo
ser felizes para algum canto do mundo, solitariamente e para sempre...
Levamos Rosa, est· claro, sei que n„o se pÛde separar d'ella... E assim
viveriamos sÛs, todos tres, n'um encanto!

--Meu Deus! Fugirmos? murmurou ella, assombrada.

Carlos erguera-se.

--E que podemos fazer? Que outra coisa podemos nÛs fazer, digna do nosso
amor?

Maria n„o respondeu, immovel, a face erguida para elle, branca de cera.
E pouco a pouco uma idÈa parecia surgir n'ella, inesperada e
perturbadora, revolvendo todo o seu sÍr. Os seus olhos alargavam-se,
anciosos e refulgentes.

Carlos ia fallar-lhe... Um leve rumor de passos na esteira da sala
deteve-o. Era o Domingos que vinha recolher a bandeja do ch·: e durante
um momento, quasi interminavel, houve entre aquelles dois sÍres,
sacudidos por um ardente vendaval de paix„o, a caseira passagem d'um
criado arrumando chavenas vazias. Maria Eduarda, bruscamente,
refugiou-se detraz das bambinellas de cretone com o rosto contra a
vidraÁa. Carlos foi sentar-se no sof·, a folhear ao acaso uma
_IllustraÁ„o_, que lhe tremia nas m„os. E n„o pensava em nada, nem sabia
onde estava... Ainda na vespera, havia ainda instantes, conversando com
ella, dizia ceremoniosamente ´minha cara senhoraª: depois houvera um
olhar; e agora deviam fugir ambos, e ella torn·ra-se o cuidado supremo
da sua vida, e a esposa secreta do seu coraÁ„o.

--V. exc.^a quer mais alguma coisa? perguntou o Domingos.

Maria Eduarda respondeu sem se voltar:

--N„o.

O Domingos sahiu, a porta ficou cerrada. Ella ent„o atravessou a sala,
veio para Carlos, que a esperava no sof·, com os braÁos estendidos. E
era como se obedecesse sÛ ao impulso da sua ternura, calmadas j· todas
as incertezas. Mas hesitou de novo diante d'aquella paix„o, t„o prompta
a apoderar-se de todo o seu sÍr, e murmurou, quasi triste:

--Mas conhece-me t„o pouco!... Conhece-me t„o pouco, para irmos assim
ambos, quebrando por tudo, crear um destino que È irreparavel...

Carlos tomou-lhe as m„os, fazendo-a sentar ao seu lado, brandamente:

--O bastante para a adorar acima de tudo, e sem querer mais nada na
vida!

Um instante Maria Eduarda ficou pensativa, como recolhida no fundo do
seu coraÁ„o, escutando-lhe as derradeiras agitaÁıes. Depois soltou um
longo suspiro.

--Pois seja assim! Seja assim... Havia uma coisa que eu lhe queria
dizer, mas n„o importa... … melhor assim!...

E que outra coisa podiam fazer? perguntava Carlos radiante. Era a unica
soluÁ„o digna, sÈria... E nada os podia embaraÁar; amavam-se, confiavam
absolutamente um no outro; elle era rico, o mundo era largo...

E ella repetia, mais firme agora, j· decidida, e como se aquella
resoluÁ„o a cada momento se cravasse mais fundo na sua alma,
penetrando-a toda e para sempre:

--Pois seja assim! … melhor assim!

Um momento ficaram calados, olhando-se arrebatadamente.

--Dize-me ao menos que Ès feliz, murmurou Carlos.

Ella lanÁou-lhe os braÁos ao pescoÁo: e os seus labios uniram-se n'um
beijo profundo, infinito, quasi immaterial pelo seu extasi. Depois Maria
Eduarda descerrou lentamente as palpebras, e disse-lhe, muito baixo:

--Adeus, deixa-me sÛ, vai.

Elle tomou o chapÈo, e sahiu.


No dia seguinte Craft, que havia uma semana n„o ia ao Ramalhete,
passeava na quinta antes d'almoÁo--quando appareceu Carlos. Apertaram as
m„os, fallaram um instante do Ega, da chegada dos Cohens. Depois,
Carlos, fazendo um gesto largo que abrangia a quinta, a casa, todo o
horisonte, perguntou rindo:

--VocÍ quer-me vender tudo isto, Craft?

O outro respondeu, sem pestanejar, e com as m„os nas algibeiras:

--A la disposicion de ustÍd...

E alli mesmo concluiram a negociaÁ„o, passeando n'uma ruasinha de buxo
por entre os geranios em flÙr.

Craft cedia a Carlos todos os seus moveis antigos e modernos por duas
mil e quinhentas libras, pagas em prestaÁıes: sÛ reservava algumas raras
peÁas do tempo de Luiz XV, que deviam fazer parte d'essa nova collecÁ„o
que planeava, homogenea, e toda do seculo XVIII. E como Carlos n„o tinha
no Ramalhete lugar para este vasto _bric-‡-brac_, Craft alugava-lhe por
um anno a casa dos Olivaes, com a quinta.

Depois foram almoÁar. Carlos nem por um momento pensou na larga despeza
que fazia, sÛ para offerecer uma residencia de ver„o, por dois curtos
mezes--a quem se contentaria com um simples cottage, entre arvores de
quintal. Pelo contrario! quando repercorreu as salas do Craft, j· com
olhos de dono, achou tudo mesquinho, pensou em obras, em retoques de
gosto.

Com que alegria, ao deixar os Olivaes, correu · rua de S. Francisco, a
annunciar a Maria Eduarda que lhe arranj·ra emfim definitivamente uma
linda casa no campo! Rosa, que da varanda o vira apear-se, veio ao seu
encontro ao patamar: elle ergueu-a nos braÁos, entrou assim na sala, com
ella ao collo, em triumpho. E n„o se conteve; foi · pequena que deu logo
´a grande novidadeª, annunciando-lhe que ia ter duas vaccas, e uma
cabra, e flÙres, e arvores para se balouÁar...

--Onde È? Dize, onde È? exclamava Rosa, com os lindos olhos
resplandecentes, e a facesinha cheia de riso.

--D'aqui muito longe... Vai-se n'uma carruagem... VÍem-se passar os
barcos no rio... E entra-se por um grande port„o onde ha um c„o de fila.

Maria Eduarda appareceu, com _Niniche_ ao collo.

--Mam„, mam„! gritou Rosa correndo para ella, dependurando-se-lhe do
vestido. Diz que vou ter duas cabrinhas, e um balouÁo... … verdade?
Dize, deixa vÍr, onde È? Dize... E vamos j· para l·?

Maria e Carlos apertaram a m„o, com um longo olhar, sem uma palavra. E
logo junto da mesa, com Rosa encostada aos seus joelhos, Carlos contou a
sua ida aos Olivaes... O dono da casa estava prompto a alugar, j·, n'uma
semana... E assim se achava ella de repente com uma vivenda pittoresca,
mobilada n'um bello estylo, deliciosamente saudavel...

Maria Eduarda parecia surprehendida, quasi desconfiada.

--Ha de ser necessario levar roupas de cama, roupas de mesa...

--Mas ha tudo! exclamou Carlos alegremente, ha quasi tudo! … tal qual
como n'um conto de fadas... As luzes est„o accÍsas, as jarras est„o
cheias de flÙres... … sÛ tomar uma carruagem e chegar.

--SÛmente, È necessario saber o que esse paraiso me vae custar...

Carlos fez-se vermelho. N„o previra que se fallasse em dinheiro--e que
ella quereria decerto pagar a casa que habitasse... Ent„o preferiu
confessar-lhe tudo. Disse-lhe como o Craft, havia quasi um anno, andava
desejando desfazer-se das suas collecÁıes, e alugar a quinta: o avÙ e
elle tinham repetidamente pensado em adquirir grande parte dos moveis e
das faienÁas, para acabar de mobilar o Ramalhete, e ornamentar mais
Santa Olavia; e elle emfim decidira-se a fazer essa compra desde que
entrevira a felicidade de lhe poder offerecer, por alguns mezes de
ver„o, uma residencia t„o graciosa, e t„o confortavel...

--Rosa, vai l· para dentro, disse Maria Eduarda, depois de um momento de
silencio... Miss Sarah est· · tua espera.

Depois, olhando para Carlos, muito sÈria:

--De sorte que, se eu n„o mostrasse desejos de ir para o campo, n„o
tinha feito essa despeza...

--Tinha feito a mesma despeza... Tinha tambem alugado a casa por seis
mezes ou por um anno... Onde possuia eu agora de repente um sitio para
metter as coisas do Craft? O que n„o fazia talvez era comprar
conjuntamente roupas de cama, roupas de mesa, mobilias dos quartos dos
criados, etc....

E acrescentou, rindo:

--Ora se me quizer indemnisar d'isso podemos debater esse negocio...

Ella baixou os olhos, reflectindo, lentamente.

--Em todo o caso seu avÙ e os seus amigos devem saber d'aqui a dias que
me vou installar n'essa casa... E devem comprehender que a comprou para
que eu l· me installasse...

Carlos procurou o seu olhar que permanecia pensativo, desviado d'elle. E
isto inquietou-o--o vÍl-a assim retrahir-se ·quella absoluta communh„o
d'interesses em que a queria envolver, como esposa do seu coraÁ„o.

--N„o approva ent„o o que fiz? Seja franca...

--Decerto... Como n„o hei de eu approvar tudo quanto faz, tudo quanto
vem de si? Mas...

Elle acudiu, apoderando-se das suas m„os, sentindo-se triumphar:

--N„o ha _mas_! O avÙ e os meus amigos sabem que eu tenho uma casa no
campo, inutil por algum tempo, e que a aluguei a uma senhora. De resto,
se quizer, metteremos n'isto tudo o meu procurador... Minha cara amiga,
se fosse possivel que a nossa affeiÁ„o se passasse fÛra do mundo,
distante de todos os olhares, ao abrigo de todas as suspeitas, seria
delicioso... Mas n„o pÛde ser!... Alguem tem de saber sempre alguma
coisa; quando n„o seja sen„o o cocheiro que me leva todos os dias a sua
casa, quando n„o seja sen„o o criado que me abre todos os dias a sua
porta... Ha sempre alguem que surprehende o encontro de dois olhares; ha
sempre alguem que adivinha d'onde se vem a certas horas... Os deuses
antigamente arranjavam essas coisas melhor, tinham uma nuvem que os
tornava invisiveis. NÛs n„o somos deuses, felizmente...

Ella sorriu.

--Quantas palavras para converter uma convertida!

E tudo ficou harmonisado n'um grande beijo.


Affonso da Maia approvou plenamente a compra das collecÁıes do Craft. ´…
um valor, disse elle ao VillaÁa, e acabamos d'encher com boa arte
Santa-Olavia e o Ramalhete.ª

Mas o Ega indignou-se, chegou a fallar em ´desvarioª,--despeitado por
essa transacÁ„o secreta para que n„o fÙra consultado. O que o irritava
sobretudo era vÍr, n'esta acquisiÁ„o inesperada de uma casa de campo,
outro symptoma do grave e do fundo segredo que presentia na vida de
Carlos: e havia j· duas semanas que elle habitava o Ramalhete e Carlos
ainda n„o lhe fizera uma confidencia!... Desde a sua ligaÁ„o de rapazes
em Coimbra, nos PaÁos de Cella, fÙra elle o confessor secular de Carlos:
mesmo em viagem, Carlos n„o tinha uma aventura banal d'hotel, de que n„o
mandasse ao Ega ´um relatorioª. O romance com a Gouvarinho, de que
Carlos ao principio tent·ra, frouxamente, guardar um mysterio delicado,
j· o conhecia todo, j· lÍra as cartas da Gouvarinho, j· pass·ra pela
casa da titi...

Mas do outro segredo n„o sabia nada--e considerava-se ultrajado. Via
todas as manh„s Carlos partir para a rua de S. Francisco, levando
flÙres; via-o chegar de l·, como elle dizia, ´besuntado d'extasiª;
via-lhe os silencios repassados de felicidade, e esse indefinido ar, ao
mesmo tempo sÈrio e ligeiro, risonho e superior, do homem profundamente
amado... E n„o sabia nada.

Justamente alguns dias depois, estando ambos sÛs, a fallar de planos de
ver„o, Carlos alludiu aos Olivaes, com enthusiasmo, relembrando algumas
das preciosidades do Craft, o dÙce socego da casa, a clara vista do
Tejo... Aquillo realmente fÙra obter por uma m„o cheia de libras um
pedaÁo do paraiso...

Era · noite, no quarto de Carlos, j· tarde. E o Ega, que passeava com as
m„os nas algibeiras do robe-de-chambre, encolheu os hombros, impaciente,
farto d'aquelles louvores eternos · casinhola do Craft.

--Essa concepÁ„o do paraiso, exclamou elle, parece-me d'um estofador da
rua Augusta! Como natureza, couves gallegas; como decoraÁ„o, os velhos
cretones do gabinete, desbotados j· por tres barrelas... Um quarto de
dormir lugubre como uma capella de santuario... Um sal„o confuso como o
armazem d'um cara-de-pau, e onde n„o È possivel conversar... A n„o ser o
armario hollandez, e um ou outro prato, tudo aquillo È um lixo
archeologico... Jesus! o que eu odeio _bric-‡-brac_!

Carlos, no fundo da sua poltrona, disse tranquillamente, e como
reflectindo:

--Com effeito esses cretones s„o medonhos... Mas eu vou mandar
remobilar, tornar aquillo mais habitavel.

Ega estacou no meio do quarto, com o monoculo a faiscar sobre Carlos.

--Habitavel? Vaes ter hospedes?

--Vou alugar.

--Vaes alugar! A quem?

E o silencio de Carlos, que soprava o fumo da cigarrette com os olhos no
tecto, enfureceu Ega. Comprimentou quasi atÈ ao ch„o, disse
sarcasticamente:

--PeÁo perd„o. A pergunta foi brutal. Tive agora o ar de querer arrombar
uma gaveta fechada... O aluguel d'um predio È sempre um d'esses
delicados segredos de sentimento e de honra em que n„o deve roÁar nem a
aza da imaginaÁ„o... Fui rude... Irra! Fui bestialmente rude!

Carlos continuava calado. Comprehendia bem o Ega--e quasi sentia um
remorso d'aquella sua rigida reserva. Mas era como um pudor que o
enleava, lhe impedia de pronunciar sequer o nome de Maria Eduarda. Todas
as suas outras aventuras as cont·ra ao Ega; e essas confidencias
constituiam talvez mesmo o prazer mais solido que ellas lhe davam. Isto,
porÈm, n„o era ´uma aventuraª. Ao seu amor misturava-se alguma coisa de
religioso; e, como os verdadeiros devotos, repugnava-lhe conversar sobre
a sua fÈ... Todavia, ao mesmo tempo, sentia uma tentaÁ„o de fallar
d'_ella_ ao Ega, e de tornar vivas, e como visiveis aos seus proprios
olhos, dando-lhes o contorno das palavras e o seu relevo, as coisas
divinas e confusas que lhe enchiam o coraÁ„o. AlÈm d'isso, Ega n„o
saberia tudo, mais tarde ou mais cedo, pela tagarellice alheia? Antes
lh'o dissesse elle, fraternalmente. Mas hesitou ainda, accendeu outra
cigarrette. Justamente o Ega tom·ra o seu castiÁal, e comeÁava a
accendel-o a uma serpentina, devagar e com um ar amuado.

--N„o sejas tolo, n„o te v·s deitar, senta-te ahi, disse Carlos.

E contou-lhe tudo miudamente, diffusamente, desde o primeiro encontro, ·
entrada do Hotel Central, no dia do jantar ao Cohen.

Ega escutava-o, sem uma palavra, enterrado no fundo do sof·. Suppuzera
um romancesinho, d'esses que nascem e morrem entre um beijo e um bocejo:
e agora, sÛ pelo modo como Carlos fallava d'aquelle grande amor, elle
sentia-o profundo, absorvente, eterno, e para bem ou para mal
tornando-se d'ahi por diante, e para sempre, o seu irreparavel destino.
Imagin·ra uma brazileira polida por Paris, bonita e futil, que tendo o
marido longe, no Brazil, e um formoso rapaz ao lado, no sof·, obedecia
simplesmente e alegremente · disposiÁ„o das coisas: e sahia-lhe uma
creatura cheia de caracter, cheia de paix„o, capaz de sacrificios, capaz
de heroismos. Como sempre, diante d'estas coisas patheticas,
murchava-lhe a veia, faltava-lhe a phrase; e quando Carlos se calou, o
bom Ega teve esta pergunta chÙcha:

--Ent„o est·s decidido a safar-te com ella?

--A _safar-me_, n„o; a ir viver com ella longe d'aqui, decididissimo!

Ega ficou um momento a olhar para Carlos como para um phenomeno
prodigioso, e murmurou:

--… d'arromba!

Mas que outra coisa podiam elles fazer? D'ahi a tres mezes talvez,
Castro Gomes chegava do Brazil. Ora nem Carlos, nem ella, aceitariam
nunca uma d'essas situaÁıes atrozes e reles em que a mulher È do amante
e do marido, a horas diversas... SÛ lhes restava uma soluÁ„o digna,
decente, sÈria--fugir.

Ega, depois de um silencio, disse pensativamente:

--Para o marido È que n„o È talvez divertido perder assim, de uma vez, a
mulher, a filha, e a cadellinha...

Carlos ergueu-se, deu alguns passos pelo quarto. Sim, tambem elle j·
pens·ra n'isso... E n„o sentia remorsos--mesmo quando os podesse haver
no absoluto egoismo da paix„o... Elle n„o conhecia intimamente Castro
Gomes: mas tinha podido adivinhar o typo, reconstruil-o, pelo que lhe
dissera o Damaso, e por algumas conversas com miss Sarah. Castro Gomes
n„o era um esposo a sÈrio: era um dandy, um futil, um _gommeux_, um
homem de sport e de cocottes... Cas·ra com uma mulher bella, saci·ra a
paix„o, e recomeÁ·ra a sua vida de club e de bastidores... Bastava olhar
para elle, para a sua toilette, para os seus modos--e comprehendia-se
logo a trivialidade d'aquelle caracter...

--Que tal È, como homem? perguntou Ega.

--Um brazileirito trigueiro, com um ar espartilhado... Um
_rastaquouËre_, o verdadeiro typosinho do _CafÈ de la Paix_... …
possivel que sinta, quando isto vier a succeder, um certo ardor na
vaidade ferida... Mas È um coraÁ„o que se ha de consolar facilmente nas
_Folies BergËres_.

Ega n„o dizia nada. Mas pensava que um homem de club, e mesmo consolavel
nas _Folies BergËres_, pÛde n„o se importar muito com sua mulher, mas
pÛde todavia amar muito sua filha... Depois, atravessado por uma outra
idÈa, acrescentou:

--E teu avÙ?

Carlos encolheu os hombros:

--O avÙ tem de se affligir um pouco para eu poder ser profundamente
feliz; como eu teria de ser desgraÁado toda a minha vida se quizesse
poupar ao avÙ essa contrariedade... O mundo È assim, Ega... E eu, n'esse
ponto, n„o estou decidido a fazer sacrificios.

Ega esfregou lentamente as m„os, com os olhos no ch„o, repetindo a mesma
palavra, a unica que lhe suggeria todo o seu espirito perante aquellas
coisas vehementes:

--… d'arromba!




III


Carlos, que almoÁ·ra cedo, estava para sahir no coupÈ, e j· de
chapÈo--quando Baptista veio dizer que o snr. Ega, desejando fallar-lhe
n'uma coisa grave, lhe pedia para esperar um instante. O snr. Ega fic·ra
a fazer a barba.

Carlos pensou logo que se tratava da Cohen. Havia duas semanas que ella
cheg·ra a Lisboa, Ega ainda a n„o vira, e fallava d'ella raramente. Mas
Carlos sentia-o nervoso e desassocegado. Todas as manh„s o pobre Ega
mostrava um desapontamento ao receber o correio, que sÛ lhe trazia algum
jornal cintado, ou cartas de Celorico. ¡ noite percorria dois, tres
theatros, j· quasi vazios n'aquelle comeÁo de ver„o; e ao recolher era
outra desconsolaÁ„o, quando os criados lhe affirmavam, com certeza, que
n„o viera carta alguma para s. exc.^a Decerto Ega n„o se resignava a
perder Rachel, anciava por a encontrar; e roÌa-o o despeito de que ella,
de qualquer modo, lhe n„o tivesse mostrado que no seu coraÁ„o permanecia
ao menos a saudade das antigas felicidades... Justamente na vespera Ega
apparecera · hora do jantar, transtornado: cruz·ra-se com o Cohen na rua
do Ouro, e parecera-lhe que ´esse canalhaª lhe atir·ra de lado um olhar
atrevido, sacudindo a bengala; o Ega jurava que se ´esse canalhaª
ousasse outra vez fital-o, espedaÁava-o, sem piedade, publicamente, a
uma esquina da Baixa.

Na ante-camara o relogio bateu dez horas, Carlos impaciente ia a subir
ao quarto do Ega. Mas n'esse instante o correio chegava, com a _Revista
dos Dois Mundos_, e uma carta para Carlos. Era da Gouvarinho. Carlos
acabava de a lÍr--quando o Ega appareceu, de jaquet„o, e em chinelas.

--Tenho a fallar-te n'uma coisa grave, menino.

--LÍ isto primeiro, disse o outro, passando-lhe a carta da Gouvarinho.

A Gouvarinho, n'um tom amargo, queixava-se que, j· por duas vezes,
Carlos falt·ra ao _rendez-vous_ em casa da titi, sem lhe ter sequer
escripto uma palavra; ella vira n'isto uma offensa, uma brutalidade; e
vinha agora intimal-o, ´em nome de todos os sacrificios que por elle
fizeraª, a que apparecesse na rua de S. MarÁal, domingo ao meio dia,
para terem uma explicaÁ„o definitiva antes d'ella partir para Cintra.

--Excellente occasi„o d'acabar! exclamou Ega, entregando a carta a
Carlos, depois de respirar o perfume do papel. N„o v·s, nem respondas...
Ella parte para Cintra, tu para Santa Olavia, n„o vos vÍdes mais, e
assim finda o romance. Finda como todas as coisas grandes, como o
Imperio Romano, e como o Rheno, por dispers„o, insensivelmente...

--… o que eu vou fazer, disse Carlos, comeÁando a calÁar as luvas.
Jesus! Que mulher massadora!

--E que desavergonhada! Chamar a essas coisas ´sacrificios!...ª
Arrasta-te duas vezes por semana a casa da titi, regala-se l· de
extravagancias, bebe champagne, fuma cigarrettes, sobe ao setimo cÈo,
delira, e depois pıe dolorosamente os olhos no ch„o, e chama a isso
´sacrificios...ª SÛ com um chicote!...

Carlos encolheu os hombros, com resignaÁ„o, como se nas condessas de
Gouvarinho, e no mundo, sÛ houvesse incoherencia e dÛlo.

--E que È isso que tu me tinhas a dizer?

Ega ent„o tomou um ar grave. Escolheu lentamente na caixa uma
cigarrette, abotoou devagar o jaquet„o.

--Tu n„o tens visto o Damaso?

--Nunca mais me appareceu, disse Carlos. Creio que est· amuado... Eu
sempre que o encontro, aceno-lhe de longe amigavelmente com dois
dedos...

--Devia ser antes com a bengala. O Damaso anda ahi, por toda a parte,
fallando de ti e d'essa senhora, tua amiga... A ti chama-te _pulha_, a
ella peor ainda. … a velha historia; diz que te apresentou, que te
metteste de dentro, e como para essa senhora È uma quest„o de dinheiro,
e tu Ès o mais rico, ella lhe passou o pÈ... VÍs d'ahi a infamiasinha. E
isto tagarellado pelo Gremio, pela Casa Havaneza, com detalhes torpes,
envolvendo sempre a quest„o de dinheiro. Tudo isto È atroz. Trata de lhe
pÙr cobro.

Carlos, muito pallido, disse simplesmente:

--Ha de se fazer justiÁa.

Desceu, indignado. Aquella torpe insinuaÁ„o sobre ´dinheiroª parecia-lhe
poder ser castigada sÛ com a morte. E um instante mesmo, com a m„o no
fecho da portinhola do coupÈ, pensou em correr a casa do Damaso, tomar
um desforÁo brutal.

Mas eram quasi onze horas, e elle tinha d'ir aos Olivaes. No dia
seguinte, sabbado, dia bello entre todos e solemne para o seu coraÁ„o,
Maria Eduarda devia emfim visitar a quinta do Craft: e fic·ra combinado,
na vespera, que passariam l· as horas do calor, atÈ tarde, sÛs,
n'aquella casa solitaria e sem criados, escondida entre as arvores. Elle
pedira-lh'o assim, hesitante e a tremer: ella consentira logo, sorrindo
e naturalmente. N'essa manh„ elle mand·ra aos Olivaes dois criados para
arejar as salas, espanejar, encher tudo de flÙres. Agora ia l·, como um
devoto, vÍr se estava bem enfeitado o sacrario da sua deusa... E era
atravÈs d'estes deliciosos cuidados, em plena ventura, que lhe apparecia
outra vez, suja e empanando o brilho do seu amor, a tagarellice do
Damaso!

AtÈ aos Olivaes, n„o cessou de ruminar coisas vagas e violentas que
faria para aniquilar o Damaso. No seu amor n„o haveria paz, emquanto
aquelle vill„o o andasse commentando sordidamente pelas esquinas das
ruas. Era necessario enxovalhal-o de tal modo, com tal publicidade, que
elle n„o ousasse mais mostrar em Lisboa a face bochechuda, a face vil...
Quando o coupÈ parou · porta da quinta, Carlos decidira dar bengaladas
no Damaso, uma tarde, no Chiado, com apparato...

Mas depois, ao regressar da quinta, vinha j· mais calmo. Pis·ra a linda
rua d'acacias que os pÈs d'ella pisariam na manh„ seguinte: dera um
longo olhar ao leito que seria o leito d'ella, rico, alÁado sobre um
estrado, envolto em cortinados de brocatel cÙr d'ouro, com um esplendor
sÈrio d'altar profano... D'ahi a poucas horas, encontrar-se-hiam sÛs
n'aquella casa muda e ignorada do mundo; depois, todo o ver„o os seus
amores viveriam escondidos n'esse fresco retiro d'aldÍa; e d'ahi a tres
mezes estariam longe, na Italia, · beira d'um claro lago, entre as
flÙres d'Isola Bella... No meio d'estas voluptuosidades magnificas, que
lhe podia importar o Damaso, gorducho e reles, palrando em cal„o nos
bilhares do Gremio! Quando chegou · rua de S. Francisco resolvera, se
visse o Damaso, continuar a acenar-lhe, de leve, com a ponta dos dedos.

Maria Eduarda fÙra passear a Belem com Rosa deixando-lhe um bilhete, em
que lhe pedia para vir · noite _faire un bout de causerie_. Carlos
desceu as escadas, devagar, guardando esse bocadinho de papel na
carteira como uma dÙce reliquia; e sahia o port„o, no momento em que o
Alencar desembocava defronte, da travessa da Parreirinha, todo de preto,
moroso e pensativo. Ao avistar Carlos, parou de braÁos abertos; depois
vivamente, como recordando-se, ergueu os olhos para o primeiro andar.

N„o se tinham visto desde as corridas, o poeta abraÁou com effus„o o seu
Carlos. E fallou logo de si, copiosamente. Estivera outra vez em Cintra,
em Collares com o seu velho Carvalhosa: e o que se lembr·ra do rico dia
passado com Carlos e com o maestro em Sitiaes!... Cintra uma belleza.
Elle, um pouco constipado. E apesar da companhia do Carvalhosa, t„o
erudito e t„o profundo, apesar da excellente musica da mulher, da
Julinha (que para elle era como uma irm„), tinha-se aborrecido. Quest„o
de velhice...

--Com effeito, disse Carlos, pareces-me um pouco murcho... Falta-te o
teu ar aureolado.

O poeta encolheu os hombros.

--O Evangelho l· o diz bem claro... Ou È a Biblia que o diz...? N„o; È
S. Paulo... S. Paulo ou Santo Agostinho?... Emfim a authoridade n„o faz
ao caso. N'um d'esses santos livros se affirma que este mundo È um valle
de lagrimas...

--Em que a gente se ri bastante, disse Carlos alegremente.

O poeta tornou a encolher os hombros. Lagrimas ou risos, que
importava?... Tudo era sentir, tudo era viver! Ainda na vespera elle
dissera isso mesmo em casa dos Cohens...

E de repente, estacando no meio da rua, tocando no braÁo de Carlos:

--E agora por fallar nos Cohens, dize-me uma coisa com franqueza, meu
rapaz. Eu sei que tu Ès intimo do Ega, e, que diabo, ninguem lhe admira
mais o talento do que eu!... Mas, realmente, tu approvas que elle,
apenas soube da chegada dos Cohens, se viesse metter em Lisboa? Depois
do que houve!...

Carlos afianÁou ao poeta que o Ega sÛ no dia mesmo da chegada, horas
depois, soubera pela _Gazeta Illustrada_ a vinda dos Cohens... E de
resto se n„o podessem habitar, conjuntas na mesma cidade, as pessoas
entre as quaes tivesse havido attritos desagradaveis, as sociedades
humanas tinham de se desfazer...

Alencar n„o respondeu, caminhando ao lado de Carlos, com a cabeÁa baixa.
Depois parou de novo, franzindo a testa:

--Outra coisa em que te quero fallar. Houve entre ti e o Damaso alguma
pÈga? Eu pergunto-te isto porque n'outro dia, l· em casa dos Cohens,
elle veio com uns ditos, umas insinuaÁıes... Eu declarei-lhe logo:
´Damaso, Carlos da Maia, filho de Pedro da Maia, È como se fosse meu
irm„o.ª E o Damaso calou-se... Calou-se, porque me conhece, e sabe que
eu n'estas coisas de lealdade e de coraÁ„o sou uma fera!

Carlos disse simplesmente:

--N„o, n„o ha nada, n„o sei nada... Nem sequer tenho visto o Damaso.

--Pois È verdade, continuou Alencar tomando o braÁo de Carlos,
lembrei-me muito de ti em Cintra. AtÈ fiz l· um coisita que me n„o sahiu
m·, e que te dediquei... Um simples soneto, uma paizagem, um quadrosinho
de Cintra ao pÙr do sol. Quiz provar ahi a esses da IdÈa Nova, que,
sendo necessario, tambem por c· se sabe cinzelar o verso moderno e dar o
traÁo realista. Ora espera ahi, eu te digo, se me lembrar. A coisa
chama-se--_Na estrada dos Capuchos_...

Tinham parado · esquina do Seixas; e o poeta tossira j· de leve, antes
de recitar,--quando justamente lhes appareceu o Ega, vindo de baixo,
vestido de campo, com uma bella rosa branca no jaquet„o de flanella
azul.

Alencar e elle n„o se encontravam desde a fatal soirÈe dos Cohens. E ao
passo que o Ega conservava um resentimento feroz contra o poeta vendo
n'elle o inventor d'essa perfida lenda da ´carta obscenaª--Alencar
odiava-o pela certeza secreta de que elle fÙra o amante amado da sua
divina Rachel. Ambos se fizeram pallidos; o aperto de m„o que deram foi
incerto e regelado; e ficaram calados, todos tres, emquanto Ega nervoso
levava uma eternidade a accender o charuto no lume de Carlos. Mas foi
elle que fallou, por entre uma fumaÁa, affectando uma superioridade
amavel:

--Acho-te com boa cÙr, Alencar!

O poeta foi amavel tambem, um pouco d'alto, passando os dedos no bigode:

--Vai-se andando. E tu que fazes? Quando nos d·s essas _Memorias_,
homem?

--Estou · espera que o paiz aprenda a lÍr.

--Tens que esperar! Pede ao teu amigo Gouvarinho que apresse isso, elle
occupa-se da InstrucÁ„o publica... Olha, alli o tens tu, grave e Ùco
como uma columna do _Diario do Governo_...

O poeta apontava com a bengala para o outro lado da rua, por onde o
Gouvarinho descia, muito devagar, a conversar com o Cohen; e ao lado
d'elles, de chapÈo branco, de collete branco, o Damaso deitava olhares
pelo Chiado, risonho, ovante, barrigudo, como um conquistador nos seus
dominios. J· aquelle arzinho gordo de tranquillo triumpho irritou
Carlos. Mas quando o Damaso parou defronte, no outro passeio, todo de
costas para elle, ostentando rir alto com o Gouvarinho, n„o se conteve,
atravessou a rua.

Foi breve, e foi cruel: sacudiu a m„o do Gouvarinho, saudou de leve o
Cohen: e sem baixar a voz, disse ao Damaso friamente:

--Ouve l·. Se contin˙as a fallar de mim e de pessoas das minhas
relaÁıes, do modo como tens fallado, e que n„o me convÈm, arranco-te as
orelhas.

O conde acudiu, mettendo-se entre elles:

--Maia, por quem È! Aqui no Chiado...

--N„o È nada, Gouvarinho, disse Carlos detendo-o, muito sÈrio e muito
sereno. … apenas um aviso a este imbecil.

--Eu n„o quero questıes, eu n„o quero questıes!... balbuciou o Damaso,
livido, enfiando para dentro d'uma tabacaria.

E Carlos voltou, com socego, para junto dos seus amigos, depois de ter
saudado o Cohen e sacudir a m„o ao Gouvarinho.

Vinha apenas um pouco pallido: mais perturbado estava o Ega, que julg·ra
vÍr de novo, n'um olhar do Cohen, uma provocaÁ„o intoleravel. SÛ o
Alencar n„o repar·ra em nada: continuava a discursar sobre coisas
litterarias, explicando ao Ega as concessıes que se podiam fazer ao
naturalismo...

--Fiquei aqui a dizer ao Ega... … evidente que quando se trata de
paizagem È necessario copiar a realidade... N„o se pode descrever um
castanheiro _a priori_, como se descreveria uma alma... E l· isso faÁo
eu... Ahi est· esse soneto de Cintra que eu te dediquei, Carlos. …
realista, est· claro que È realista... PudÈra, se È paizagem! Ora eu
vol-o digo... Ia justamente dizel-o, quando tu appareceste, Ega... Mas
vejam l· vocÍs se isto os massa...

Qual massava! E atÈ, para o escutarem melhor, penetraram na rua de S.
Francisco, mais silenciosa. Ahi, dando um passo lento, depois outro, o
poeta murmurou a sua ecloga. Era em Cintra, ao pÙr do sol: uma ingleza,
de cabellos soltos, toda de branco, desce n'um burrinho por uma vereda
que domina um valle; as aves cantam de leve, ha borboletas em torno das
madresilvas; ent„o a ingleza p·ra, deixa o burrinho, olha enlevada o
cÈo, os arvoredos, a paz das casas;--e ahi, no ultimo terceto, vinha ´a
nota realistaª de que se ufanava o Alencar:


    Ella olha a flÙr dormente, a nuvem casta,
    Emquanto o fumo dos casaes se eleva
    E ao lado o burro, pensativo, pasta.


--Ahi tÍm vocÍs o traÁo, a nota naturalista... _Ao lado o burro,
pensativo, pasta_... Eis ahi a realidade, est·-se a vÍr o burro
pensativo... N„o ha nada mais pensativo que um burro... E s„o estas
pequeninas coisas da natureza que È necessario observar... J· vÍem vocÍs
que se pÛde fazer realismo, e do bom, sem vir logo com obscenidades...
VocÍs que lhes parece o sonetito?

Ambos o elogiaram profundamente--Carlos arrependido de n„o ter
completado a humilhaÁ„o do Damaso, dando-lhe bengaladas; Ega pensando
que decerto, n'uma d'essas tardes, no Chiado, teria de esbofetear o
Cohen. Como elles recolhiam ao Ramalhete, Alencar, j· desanuviado, foi
acompanhal-os pelo Aterro. E fallou sempre, contando o plano de um
romance historico, em que elle queria pintar a grande figura d'Affonso
d'Albuquerque, mas por um lado mais humano, mais intimo: Affonso
d'Albuquerque namorado: Affonso d'Albuquerque, sÛ, de noite, na pÙpa do
seu gale„o, diante d'Ormuz incendiada, beijando uma flÙr secca, entre
soluÁos. Alencar achava isto sublime.

Depois de jantar, Carlos vestia-se para ir · rua de S. Francisco--quando
o Baptista veio dizer que o snr. Telles da Gama lhe desejava fallar com
urgencia. N„o o querendo receber, alli, em mangas de camisa, mandou-o
entrar para o gabinete escarlate e preto. E veio d'ahi a um instante
encontrar Telles da Gama admirando as bellas faianÁas hollandezas.

--VocÍ, Maia, tem isto lindissimo, exclamou elle logo. Eu pello-me por
porcelanas... Hei de voltar um dia d'estes, com mais vagar, vÍr tudo
isto, de dia... Mas hoje venho com pressa, venho com uma miss„o... VocÍ
n„o adivinha?

Carlos n„o adivinhava.

E o outro, recuando um passo, com uma gravidade em que transparecia um
sorriso:

--Eu venho aqui perguntar-lhe da parte do Damaso, se vocÍ hoje,
n'aquillo que lhe disse, tinha tenÁ„o de o offender. … sÛ isto... A
minha miss„o È apenas esta: perguntar-lhe se vocÍ tinha intenÁ„o de o
offender.

Carlos olhou-o, muito sÈrio:

--O quÍ!? Se tinha intenÁ„o de offender o Damaso quando o ameacei de lhe
arrancar as orelhas? De modo nenhum: tinha sÛ intenÁ„o de lhe arrancar
as orelhas!

Telles da Gama saudou, rasgadamente:

--Foi isso mesmo o que eu respondi ao Damaso: que vocÍ n„o tinha sen„o
essa intenÁ„o. Em todo o caso, desde este momento, a minha miss„o est·
finda... Como vocÍ tem isto bonito!... O que È aquelle prato grande,
majolica?

--N„o, um velho Nevers. Veja vocÍ ao pÈ... … Thetis conduzindo as armas
d'Achilles... … esplendido; e È muito raro... Veja vocÍ esse Deft, com
as duas tulipas amarellas... … um encanto!

Telles da Gama dava um olhar lento a todas estas preciosidades, tomando
o chapÈo de sobre o sof·.

--Lindissimo tudo isto!... Ent„o sÛ intenÁ„o de lhe arrancar as orelhas?
nenhuma de o offender?...

--Nenhuma de o offender, toda de lhe arrancar as orelhas... Fume vocÍ um
charuto.

--N„o, obrigado...

--Calice de cognac?

--N„o! abstenÁ„o total de bebidas e aguas ardentes... Pois adeus, meu
bom Maia!

--Adeus, meu bom Telles...


Ao outro dia, por uma radiante manh„ de julho, Carlos saltava do coupÈ,
com um mÛlho de chaves, diante do port„o da quinta do Craft. Maria
Eduarda devia chegar ·s dez horas, sÛ, na sua carruagem da Companhia. O
hortel„o, dispensado por dois dias, fÙra a Villa Franca; n„o havia ainda
criados na casa; as janellas estavam fechadas. E pesava alli, envolvendo
a estrada e a vivenda, um d'esses altos e graves silencios d'aldÍa, em
que se sente, dormente no ar, o zumbir dos moscardos.

Logo depois do port„o, penetrava-se n'uma fresca rua d'acacias, onde
cheirava bem. A um lado, por entre a ramagem, apparecia o kiosque, com
tecto de madeira, pintado de vermelho, que fÙra o capricho de Craft, e
que elle mobil·ra · japoneza. E ao fundo era a casa, caiada de novo, com
janellas de peitoril, persianas verdes, e a portinha ao centro sobre
tres degraus, flanqueados por vasos de louÁa azul cheios de cravos.

SÛ o metter a chave devagar e com uma inutil cautela na fechadura
d'aquella morada discreta foi para Carlos um prazer. Abriu as janellas:
e a larga luz que entrava pareceu-lhe trazer uma doÁura rara, e uma
alegria maior que a dos outros dias, como preparada especialmente pelo
bom Deus para alumiar a festa do seu coraÁ„o. Correu logo · sala de
jantar, a verificar se, na mesa posta para o _lunch_, se conservavam
ainda viÁosas as flÙres que l· deix·ra na vespera. Depois voltou ao
coupÈ a tirar o caixote de gelo, que trouxera de Lisboa, embrulhado em
flanella, entre serradura. Na estrada, silenciosa por ora, ia sÛ
passando uma saloia montada na sua egua.

Mas apenas accommod·ra o gelo--sentiu fÛra o ruido lento da carruagem.
Veio para o gabinete forrado de cretones, que abria sobre o corredor; e
ficou alli, espreitando da porta, mas escondido, por causa do cocheiro
da Companhia. D'ahi a um instante viu-a emfim chegar, pela rua de
acacias, alta e bella, vestida de preto, e com um meio-vÈo espesso como
uma mascara. Os seus pÈsinhos subiram os tres degraus de pedra. Elle
sentiu a sua voz inquieta perguntar de leve:

--_ tes-vous l‡?_

Appareceu--e ficaram um instante, · porta do gabinete, apertando
sofregamente as m„os, sem fallar, commovidos, deslumbrados.

--Que linda manh„! disse ella por fim, rindo e toda vermelha.

--Linda manh„, linda! repetia Carlos, contemplando-a, enlevado.

Maria Eduarda resval·ra sobre uma cadeira, junto da porta, n'um cansaÁo
delicioso, deixando calmar o alvoroÁo do seu coraÁ„o.

--… muito confortavel, È encantador tudo isto, dizia ella olhando
lentamente em redor os cretones do gabinete, o divan turco coberto com
um tapete de Brousse, a estante envidraÁada cheia de livros. Vou ficar
aqui adoravelmente...

--Mas ainda nem lhe agradeci o ter vindo, murmurou Carlos, esquecido, a
olhar para ella. Ainda nem lhe beijei a m„o...

Maria Eduarda comeÁou a tirar o vÈo, depois as luvas, fallando da
estrada. Ach·ra-a longa, fatigante. Mas que lhe importava? Apenas se
accommodasse n'aquelle fresco ninho nunca mais voltava a Lisboa!

Atirou o chapÈo para cima do divan--ergueu-se, toda alegre e luminosa.

--Vamos vÍr a casa, estou morta por vÍr essas maravilhas do seu amigo
Craft!... … Craft que se chama? _Craft_ quer dizer industria!

--Mas ainda nem sequer lhe beijei a m„o! tornou Carlos, sorrindo e
supplicante.

Ella estendeu-lhe os labios, e ficou presa nos seus braÁos.

E Carlos, beijando-lhe devagar os olhos, o cabello, dizia-lhe quanto era
feliz e quanto a sentia agora mais sua entre estes velhos muros de
quinta que a separavam do resto do mundo...

Ella deixava-se beijar, sÈria e grave:

--E È verdade isso? … realmente verdade?...

Se era verdade! Carlos teve um suspiro quasi triste:

--Que lhe hei de eu responder? Tenho de lhe repetir essa coisa antiga
que j· Hamlet disse: que duvide de tudo, que duvide do sol, mas que n„o
duvide de mim...

Maria Eduarda desprendeu-se, lentamente e perturbada.

--Vamos vÍr a casa, disse ella.

ComeÁaram pelo segundo andar. A escada era escura e feia: mas os quartos
em cima, alegres, esteirados de novo, forrados de papeis claros, abriam
sobre o rio e sobre os campos.

--Os seus aposentos, disse Carlos, h„o de ser em baixo, est· visto,
entre as coisas ricas... Mas Rosa e miss Sarah ficam aqui
esplendidamente. N„o lhe parece?

E ella percorria os quartos, devagar, examinando a accommodaÁ„o dos
armarios, palpando a elasticidade dos colxıes, attenta, cuidadosa, toda
no desvelo de alojar bem a sua gente. Por vezes mesmo exigia uma
alteraÁ„o. E era realmente como se aquelle homem que a seguia,
enternecido e radiante, fosse apenas um velho senhorio.

--O quarto com as duas janellas, ao fundo do corredor, seria o melhor
para Rosa. Mas a pequena n„o pÛde dormir n'aquelle enorme leito de pau
preto...

--Muda-se!

--Sim, pÛde mudar-se... E falta uma sala larga para ella brincar, ·s
horas do calor... Se n„o houvesse o tabique entre os dois quartos
pequenos...

--Deita-se abaixo!

Elle esfregava as m„os, encantado, prompto a refundir toda a casa; e
ella n„o recusava nada, para conforto mais perfeito dos seus.

Desceram · sala de jantar. E ahi, diante da famosa chaminÈ de carvalho
lavrado, flanqueada · maneira de cariatides pelas duas negras figuras de
Nubios, com olhos rutilantes de crystal, Maria Eduarda comeÁou a achar o
gosto do Craft excentrico, quasi exotico... Tambem Carlos n„o lhe dizia
que Craft tivesse o gosto correcto d'um atheniense. Era um saxonio
batido d'um raio de sol meridional: mas havia muito talento na sua
excentricidade...

--Oh, a vista È que È deliciosa! exclamou ella chegando-se · janella.

Junto do peitoril crescia um pÈ de margaridas, e ao lado outro de
baunilha que perfumava o ar. Adiante estendia-se um tapete de relva, mal
aparada, um pouco amarellada j· pelo calor de julho; e entre duas
grandes arvores que lhe faziam sombra, havia alli, para os vagares da
sÈsta, um largo banco de cortiÁa. Um renque de arbustos cerrados parecia
fechar a quinta d'aquelle lado como uma sebe. Depois a collina descia,
com outras quintarolas, casas que se n„o viam, e uma chaminÈ de fabrica;
e l· no fundo o rio rebrilhava, vidrado de azul, mudo e cheio de sol,
atÈ ·s montanhas d'alÈm-Tejo, azuladas tambem na faiscaÁ„o clara do cÈo
de ver„o.

--Isto È encantador! repetia ella.

--… um paraiso! Pois n„o lhe dizia eu? … necessario pÙr um nome a esta
casa... Como se ha de chamar? _Villa-Marie?_ N„o. _Ch‚teau-Rose_...
Tambem n„o, crÈdo! Parece o nome d'um vinho. O melhor È baptisal-a
definitivamente com o nome que nÛs lhe davamos. NÛs chamavamos-lhe a
_TÛca_.

Maria Eduarda achou originalissimo o nome de _TÛca_. Devia-se atÈ pintar
em letras vermelhas sobre o port„o.

--Justamente, e com uma divisa de bicho, disse Carlos rindo. Uma divisa
de bicho egoista na sua felicidade e no seu buraco: _N„o me mexam!_

Mas ella par·ra, com um lindo riso de surpreza, diante da mesa posta,
cheia de fruta, com as duas cadeiras j· chegadas, e os crystaes
brilhando entre as flÙres.

--S„o as bodas de Cann·!

Os olhos de Carlos resplandeceram.

--S„o as nossas!

Maria Eduarda fez-se muito vermelha; e baixou o rosto a escolher um
morango, depois a escolher uma rosa.

--Quer uma gota de champagne? exclamou Carlos. Com um pouco de gelo? NÛs
temos gelo, temos tudo! N„o nos falta nada, nem a benÁ„o de Deus... Uma
gotinha de champagne, v·!

Ella aceitou: beberam pelo mesmo copo; outra vez os seus labios se
encontraram, apaixonadamente.

Carlos accendeu uma cigarrette, continuaram a percorrer a casa. A
cozinha agradou-lhe muito, arranjada · ingleza, toda em azulejos. No
corredor Maria Eduarda demorou-se diante de uma panoplia de tourada, com
uma cabeÁa negra de touro, espadas e garrochas, mantos de sÍda vermelha,
conservando nas suas pregas uma graÁa ligeira, e ao lado o cartaz
amarello _de la corrida_, com o nome de Lagartijo. Isto encantou-a como
um quente lampejo de festa e de sol peninsular...

Mas depois o quarto que devia ser o seu, quando Carlos lh'o foi mostrar,
desagradou-lhe com o seu luxo estridente e sensual. Era uma alcova,
recebendo a claridade d'uma sala forrada de tapeÁarias, onde desmaiavam
na trama de l„ os amores de Venus e Marte: da porta de communicaÁ„o,
arredondada em arco de capella, pendia uma pesada lampada da RenascenÁa,
de ferro forjado: e, ·quella hora, batida por uma larga facha de sol, a
alcova resplandecia como o interior de um tabernaculo profanado,
convertido em retiro lascivo de serralho... Era toda forrada, paredes e
tectos, de um brocado amarello, cÙr de bot„o d'ouro; um tapete de
velludo do mesmo tom rico fazia um pavimento d'ouro vivo sobre que
poderiam correr n˙s os pÈs ardentes d'uma deusa amorosa--e o leito de
docel, alÁado sobre um estrado, coberto com uma colcha de setim amarello
bordada a flÙres d'ouro, envolto em solemnes cortinas tambem amarellas
de velho brocatel,--enchia a alcova, esplendido e severo, e como erguido
para as voluptuosidades grandiosas de uma paix„o tragica do tempo de
Lucrecia ou de Romeu. E era alli que o bom Craft, com um lenÁo de sÍda
da India amarrado na cabeÁa, resonava as suas sete horas, pacata e
solitariamente.

Mas Maria Eduarda n„o gostou d'estes amarellos excessivos. Depois
impressionou-se, ao reparar n'um painel antigo, defumado, resaltando em
negro do fundo de todo aquelle ouro--onde apenas se distinguia uma
cabeÁa degolada, livida, gelada no seu sangue, dentro d'um prato de
cobre. E para maior excentricidade, a um canto, de cima de uma columna
de carvalho, uma enorme coruja empalhada fixava no leito d'amor, com um
ar de meditaÁ„o sinistra, os seus dois olhos redondos e agourentos...
Maria Eduarda achava impossivel ter alli sonhos suaves.

Carlos agarrou logo na columna e no mocho, atirou-os para um canto do
corredor; e propoz-lhe mudar aquelles brocados, forrar a alcova de um
setim cÙr de rosa e risonho.

--N„o, venho-me a acostumar a todos esses ouros... SÛmente aquelle
quadro, com a cabeÁa, e com o sangue... Jesus, que horror!

--Reparando bem, disse Carlos, creio que È o nosso velho amigo S. Jo„o
Baptista.

Para desfazer essa impress„o desconsolada levou-a ao sal„o nobre, onde
Craft concentr·ra as suas preciosidades. Maria Eduarda, porÈm, ainda
descontente, achou-lhe um ar atulhado e frio de museu.

--… para vÍr de pÈ, e de passagem... N„o se pÛde ficar aqui sentado, a
conversar.

--Mas esta È materia-prima! exclamou Carlos. Com isto depois faz-se uma
sala adoravel... Para que serve o nosso genio decorativo?... Olhe o
armario, veja que centro! Que belleza!

Enchendo quasi a parede do fundo, o famoso armario, o ´movel divinoª do
Craft, obra de talha do tempo da Liga Hanseatica, luxuoso e sombrio,
tinha uma magestade architectural: na base quatro guerreiros, armados
como Marte, flanqueavam as portas, mostrando cada uma em baixo-relevo o
assalto de uma cidade ou as tendas de um acampamento; a peÁa superior
era guardada aos quatro cantos pelos quatro evangelistas, Jo„o, Marcos,
Lucas e Matheus, imagens rigidas, envolvidas n'essas roupagens violentas
que um vento de prophecia parece agitar: depois na cornija erguia-se um
trophÈo agricola com mÛlhos d'espigas, fouces, cachos d'uvas e rabiÁas
d'arados; e, · sombra d'estas coisas de labor e fartura, dois Faunos,
recostados em symetria, indifferentes aos heroes e aos santos, tocavam
n'um desafio bucolico a frauta de quatro tubos.

--Ent„o, hein? dizia Carlos. Que movel! … todo um poema da RenascenÁa,
Faunos e Apostolos, guerras e georgicas... Que se pÛde metter dentro
d'este armario? Eu se tivesse cartas suas era aqui que as depositava,
como n'um altar-mÛr.

Ella n„o respondeu, sorrindo, caminhando devagar entre essas coisas do
passado, d'uma belleza fria, e exhalando a indefinida tristeza de um
luxo morto: finos moveis da RenascenÁa italiana, exilados dos seus
palacios de marmore, com embutidos de cornalina e agatha que punham um
brilho suave de joia sobre a negrura dos ebanos ou setim das madeiras
cÙr de rosa; cofres nupciaes, longos como bah˙s, onde se guardavam os
presentes dos Papas e dos Principes, pintados a purpura e ouro, com
graÁas de miniatura; contadores hespanhoes impertigados, revestidos de
ferro brunido e de velludo vermelho, e com interiores mysteriosos, em
fÛrma de capella, cheios de nichos, de claustros de tartaruga... Aqui e
alÈm, sobre a pintura verde-escura das paredes, resplandecia uma colcha
de setim toda recamada de flÙres e d'aves d'ouro; ou sobre um bocado de
tapete do Oriente de tons severos, com versiculos do Alcor„o,
desdobrava-se a pastoral gentil d'um minuete em Cythera sobre a sÍda de
um leque aberto...

Maria Eduarda terminou por se sentar, cansada, n'uma poltrona Luiz XV,
ampla e nobre, feita para a magestade das anquinhas, recoberta de
tapeÁaria de Beauvais, d'onde parecia exhalar-se ainda um vago aroma
d'empoado.

Carlos triumphava, vendo a admiraÁ„o de Maria. Ent„o, ainda considerava
uma extravagancia aquella compra, feita n'um rasgo de enthusiasmo?

--N„o, ha aqui coisas adoraveis... Nem eu sei se me atreverei a viver
uma vida pacata de aldÍa no meio de todas estas raridades...

--N„o diga isso, exclamava Carlos rindo, que eu pÈgo fogo a tudo!

Mas o que lhe agradou mais foram as bellas faianÁas, toda uma arte
immortal e fragil espalhada por sobre o marmore das consolas. Uma
sobretudo attrahiu-a, uma esplendida taÁa persa, d'um desenho raro, com
um renque de negros cyprestes, cada um abrigando uma flÙr de cÙr viva: e
aquillo fazia lembrar breves sorrisos reapparecendo entre longas
tristezas. Depois eram as apparatosas majolicas, de tons estridentes e
desencontrados, cheias de grandes personagens, Carlos V passando o Elba,
Alexandre coroando Roxane; os lindos Nevers, ingenuos e sÈrios; os
Marselhas, onde se abre voluptuosamente, como uma nudez que se mostra,
uma grossa rosa vermelha; os Derby, com as suas rendas de ouro sobre o
azul-ferrete de cÈo tropical; os Wedgewood, cÙr de leite e cÙr de rosa,
com transparencias fugitivas de concha na agua...

--SÛ um instante mais, exclamou Carlos vendo-a outra vez sentar-se, È
necessario saudar o genio tutelar da casa!

Era ao centro, sobre uma larga peanha, um idolo japonez de bronze, um
deus bestial, n˙, pelado, obeso, de papeira, faceto e banhado de riso,
com o ventre Ûvante, distendido na indigest„o de todo um universo--e as
duas perninhas bambas, molles e flaccidas como as pelles mortas d'um
feto. E este monstro triumphava, encanchado sobre um animal fabuloso, de
pÈs humanos, que dobrava para a terra o pescoÁo submisso, mostrando no
focinho e no olho obliquo todo o surdo resentimento da sua humilhaÁ„o...

--E pensarmos, dizia Carlos, que geraÁıes inteiras vieram ajoelhar-se
diante d'este rat„o, rezar-lhe, beijar-lhe o embigo, offerecer-lhe
riquezas, morrer por elle...

--O amor que se tem por um monstro, disse Maria, È mais meritorio, n„o È
verdade?

--Por isso n„o acha talvez meritorio o amor que se tem por si...

Sentaram-se ao pÈ da janella, n'um divan baixo e largo, cheio de
almofadas, cercado por um biombo de sÍda branca, que fazia entre aquelle
luxo do passado um fÙfo recanto de conforto moderno: e como ella se
queixava um pouco de calor, Carlos abriu a janella. Junto do peitoril
crescia tambem um grande pÈ de margaridas; adiante, n'um velho vaso de
pedra, pousado sobre a relva, vermelhejava a flÙr d'um cacto; e dos
ramos de uma nogueira cahia uma fina frescura.

Maria Eduarda veio encostar-se · janella, Carlos seguiu-a; e ficaram
alli juntos, calados, profundamente felizes, penetrados pela doÁura
d'aquella solid„o. Um passaro cantou de leve no ramo da arvore; depois
calou-se. Ella quiz saber o nome de uma povoaÁ„o que branquejava ao
longe ao sol na collina azulada. Carlos n„o se lembrava. Depois
brincando, colheu uma margarida, para a interrogar: _Elle m'aime, un
peu, beaucoup_... Ella arrancou-lh'a das m„os.

--Para que precisa perguntar ·s flÙres?

--Porque ainda m'o n„o disse claramente, absolutamente, como eu quero
que m'o diga...

AbraÁou-a pela cinta, sorriam um ao outro. Ent„o Carlos, com os olhos
mergulhados nos d'ella, disse-lhe baixÌnho e implorando:

--Ainda n„o vimos a saleta de banho...

Maria Eduarda deixou-se levar assim enlaÁada pelo sal„o, depois atravÈs
da sala de tapeÁarias onde Marte e Venus se amavam entre os bosques. Os
banhos eram ao lado, com um pavimento de azulejo, avivado por um velho
tapete vermelho da Caramania. Elle, tendo-a sempre abraÁada, pousou-lhe
no pescoÁo um beijo longo e lento. Ella abandonou-se mais, os seus olhos
cerraram-se, pesados e vencidos. Penetraram na alcova quente e cÙr
d'ouro: Carlos ao passar desprendeu as cortinas do arco de capella,
feitas de uma sÍda leve que coava para dentro uma claridade loura: e um
instante ficaram immoveis, sÛs emfim, desatado o abraÁo, sem se tocarem,
como suspensos e suffocados pela abundancia da sua felicidade.

--Aquella horrivel cabeÁa! murmurou ella.

Carlos arrancou a coberta do leito, escondeu a tela sinistra. E ent„o
todo o rumor se extinguiu, a solitaria casa ficou adormecida entre as
arvores, n'uma demorada sÈsta, sob a calma de julho...


Os annos de Affonso da Maia foram justamente no dia seguinte, domingo.
Quasi todos os amigos da casa tinham jantado no Ramalhete; e tom·ra-se o
cafÈ no escriptorio d'Affonso, onde as janellas se conservavam abertas.
A noite estava tepida, estrellada e serenissima. Craft, Sequeira e o
Taveira passeavam fumando no terraÁo. Ao canto d'um sof· Cruges escutava
religiosamente Steinbroken que lhe contava, com gravidade, os progressos
da musica na Filandia. E em redor de Affonso, estendido na sua velha
poltrona, de cachimbo na m„o, fallava-se do campo.

Ao jantar Affonso annunci·ra a intenÁ„o de ir visitar, para o meado do
mez, as velhas arvores de Santa Olavia; e combin·ra-se logo uma grande
romaria de amizade ·s margens do Douro. Craft e Sequeira acompanhavam
Affonso. O marquez promettera uma visita para agosto ´na companhia
melodiosaª, dizia elle, do amigo Steinbroken. D. Diogo hesitava, com
receio da longa jornada, da humidade da aldÍa. E agora tratava-se de
persuadir Ega a ir tambem, com Carlos--quando Carlos acabasse emfim de
reunir esses materiaes do seu livro que o retinham em Lisboa ´· banca do
labor...ª Mas o Ega resistia. O campo, dizia elle, era bom para os
selvagens. O homem, · maneira que se civilisa, afasta-se da natureza; e
a realisaÁ„o do progresso, o paraiso na Terra, que presagiam os
Idealistas, concebia-o elle como uma vasta cidade occupando totalmente o
Globo, toda de casas, toda de pedra, e tendo apenas aqui e alÈm um
bosquesinho sagrado de roseiras, onde se fossem colher os ramalhetes
para perfumar o altar da JustiÁa...

--E o milho? A bella fruta? A hortaliÁasinha? perguntava VillaÁa, rindo
com malicia.

Imaginava ent„o VillaÁa, replicava o outro, que d'aqui a seculos ainda
se comeriam hortaliÁas? O habito dos vegetaes era um resto da rude
animalidade do homem. Com os tempos o sÍr civilisado e completo vinha a
alimentar-se unicamente de productos artificiaes, em frasquinhos e em
pilulas, feitos nos laboratorios do Estado...

--O campo, disse ent„o D. Diogo, passando gravemente os dedos pelos
bigodes, tem certa vantagem para a sociedade, para se fazer um bonito
_pic-nic_, para uma burricada, para uma partida de croquet... Sem campo
n„o ha sociedade.

--Sim, rosnou o Ega, como uma sala em que tambem ha arvores ainda se
admitte...

Enterrado n'uma poltrona, fumando languidamente, Carlos sorria em
silencio. Todo o jantar estivera assim calado, sorrindo esparsamente a
tudo, com um ar luminoso e de deliciosa lassid„o. E ent„o o marquez, que
j· duas vezes, dirigindo-se a elle, encontr·ra a mesma abstracÁ„o
radiosa, impacientou-se:

--Homem, falle, diga alguma coisa!... VocÍ est· hoje com um ar
extraordinario, um arzinho de beato que se regalou de papar o
Santissimo!

Todos em redor, com sympathia, se affirmaram em Carlos: VillaÁa
achava-lhe agora melhor cara, cÙr d'alegria: D. Diogo, com um ar
entendido, sentindo mulher, invejou-lhe os annos, invejou-lhe o vigor. E
Affonso reenchendo o cachimbo olhava o neto, enternecido.

Carlos ergueu-se immediatamente, fugindo ·quelle exame affectuoso.

--Com effeito, disse elle, espreguiÁando-se de leve, tenho estado hoje
languido e mono... … o comeÁo do ver„o... Mas È necessario sacudir-me...
Quer vocÍ fazer uma partida de bilhar, Û marquez?

--V· l·, homem. Se isso o resuscita...

Foram, Ega seguiu-os. E apenas no corredor o marquez parando, e como
recordando-se, perguntou sem rebuÁo ao Ega noticias dos Cohens.
Tinham-se encontrado? Estava tudo acabado? Para o marquez, uma flÙr de
lealdade, n„o havia segredos: Ega contou-lhe que o romance find·ra, e
agora o Cohen, quando o cruzava, baixava prudentemente os olhos...

--Eu perguntei isto, disse o marquez, porque j· vi a Cohen duas vezes...

--Onde? foi a exclamaÁ„o sÙfrega do Ega.

--No Price, e sempre com o Damaso. A ultima vez foi j· esta semana. E l·
estava o Damaso, muito chegadinho, palrando muito... Depois veio
sentar-se um bocado ao pÈ de mim, e sempre d'olho n'ella... E ella de
l·, com aquelle ar de lambisgoia, de luneta n'elle... N„o havia que
duvidar, era um namoro... Aquelle Cohen È um predestinado.

Ega fez-se livido, torceu nervosamente o bigode, terminou por dizer:

--O Damaso È muito intimo d'elles... Mas talvez se atire, n„o duvido...
S„o dignos um do outro.

No bilhar, emquanto os dois carambolavam preguiÁosamente, elle n„o
cessou de passear, n'uma agitaÁ„o, trincando o charuto apagado. De
repente estacou em frente do marquez, com os olhos chammejantes:

--Quando È que vocÍ a viu ultimamente no Price, essa torpe filha
d'Israel?

--TerÁa-feira, creio eu.

O Ega recomeÁou a passear, sombrio.

N'esse instante Baptista, apparecendo · porta do bilhar, chamou Carlos
em silencio, com um leve olhar. Carlos veio, surprehendido.

--… um cocheiro de praÁa, murmurou Baptista. Diz que est· alli uma
senhora dentro d'uma carruagem que lhe quer fallar.

--Que senhora?

Baptista encolheu os hombros. Carlos, de taco na m„o, olhava para elle,
aterrado. Uma senhora! Era decerto Maria... Que teria succedido, santo
Deus, para ella vir n'uma tipoia, ·s nove da noite, ao Ramalhete!

Mandou Baptista, a correr, buscar-lhe um chapÈo baixo; e assim mesmo, de
casaca, sem paletot, desceu n'uma grande anciedade. No peristyllo topou
com Eusebiosinho que chegava, e sacudia cuidadosamente com o lenÁo a
poeira dos botins. Nem fallou ao Eusebiosinho. Correu ao coupÈ, parado ·
porta particular dos seus quartos, mudo, fechado, mysterioso,
aterrador...

Abriu a portinhola. Do canto da velha traquitana, um vulto negro,
abafado n'uma mantilha de renda, debruÁou-se, perturbado, balbuciou:

--… sÛ um instante! Quero-lhe fallar!

Que allivio! Era a Gouvarinho! Ent„o, na sua indignaÁ„o, Carlos foi
brutal.

--Que diabo de tolice È esta? Que quer?

Ia bater com a portinhola; ella empurrou-a para fÛra, desesperada; e n„o
se conteve, desabafou logo alli, diante do cocheiro, que mexia
tranquillamente na fivela d'um tirante.

--De quem È a culpa? Para que me trata d'este modo?... … sÛ um instante,
entre, tenho de lhe fallar!...

Carlos saltou para dentro, furioso:

--D· uma volta pelo Aterro, gritou ao cocheiro. Devagar!

O velho calhambeque desceu a calÁada; e durante um momento, na
escurid„o, recuando um do outro no assento estreito, tiveram as mesmas
palavras, bruscas e colericas, atravÈs do barulho das vidraÁas.

--Que imprudencia! que tolice!...

--E de quem È a culpa? De quem È a culpa?

Depois, na rampa de Santos, o coupÈ rolou mais silenciosamente no
macadam. Carlos ent„o, arrependido da sua dureza, voltou-se para ella, e
com brandura, quasi no tom carinhoso d'outr'ora, reprehendeu-a por
aquella imprudencia... Pois n„o era melhor ter-lhe escripto?

--Para quÍ? exclamou ella. Para n„o me responder? Para n„o fazer caso
das minhas cartas, como se fossem as de um importuno a pedir-lhe uma
esmola!...

Suffocava, arrancou a mantilha da cabeÁa. No vagaroso rolar do coupÈ,
sem ruido, ao longo do rio, Carlos sentia a respiraÁ„o d'ella,
tumultuosa e cheia d'angustia. E n„o dizia nada, immovel, n'um infinito
mal-estar, entrevendo confusamente, atravÈs do vidro embaciado, na
sombra triste do rio adormecido, as mastreaÁıes vagas de fal˙as. A
parelha parecia ir adormecendo; e as queixas d'ella desenrolavam-se,
profundas, mordentes, repassadas d'amargura.

--PeÁo-lhe que venha a Santa Isabel, n„o vem... Escrevo-lhe, n„o me
responde... Quero ter uma explicaÁ„o franca comsigo, n„o apparece...
Nada, nem um bilhete, nem uma palavra, nem um aceno... Um desprezo
brutal, um desprezo grosseiro... Eu nem devia ter vindo... Mas n„o pude,
n„o pude!... Quiz saber o que lhe tinha feito. O que È isto? Que lhe fiz
eu?

Carlos percebia os olhos d'ella, faiscantes sob a nevoa de lagrimas
retidas, supplicando e procurando os seus. E sem coragem sequer de a
fitar, murmurou, torturado:

--Realmente, minha amiga... As coisas fallam bem por si, n„o s„o
necessarias explicaÁıes.

--S„o! … necessario saber se isto È uma coisa passageira, um amuo, ou se
È uma coisa definitiva, um rompimento!

Elle agitava-se no seu canto, sem achar uma maneira suave, affectuosa
ainda, de lhe dizer que todo o seu desejo d'ella find·ra. Terminou por
affirmar que n„o era um amuo. Os seus sentimentos tinham sido sempre
elevados, n„o cahiria agora na pieguice de ter um amuo...

--Ent„o È um rompimento?...

--N„o, tambem n„o... Um rompimento absoluto, para sempre, n„o...

--Ent„o È um amuo? PorquÍ?

Carlos n„o respondeu. Ella, perdida, sacudiu-o pelo braÁo.

--Mas falle! Diga alguma coisa, santo Deus! N„o seja cobarde, tenha a
coragem de dizer o que È!

Sim, ella tinha raz„o... Era uma cobardia, era uma indignidade,
continuar alli, gÙchemente, dissimulado na sombra, a balbuciar coisas
mesquinhas. Quiz ser claro, quiz ser forte.

--Pois bem, ahi est·. Eu entendi que as nossas relaÁıes deviam ser
alteradas...

E outra vez hesitou, a verdade amolleceu-lhe nos labios, sentindo
aquella mulher ao seu lado a tremer d'agonia.

--Alteradas, quero dizer... Podiamos transformar um capricho apaixonado,
que n„o podia durar, n'uma amizade agradavel, e mais nobre...

E pouco a pouco as palavras voltavam-lhe faceis, habeis, persuasivas,
atravÈs do rumor lento das rodas. Onde os podia levar aquella ligaÁ„o?
Ao resultado costumado. A que a um dia se descobrisse tudo, e o seu
bello romance acabasse no escandalo e na vergonha; ou a que,
envolvendo-os por muito tempo o segredo, elle viesse a descahir na
banalidade d'uma uni„o quasi conjugal, sem interesse e sem requinte. De
resto era certo que, continuando a encontrarem-se, aqui, em Cintra,
n'outros sitios, a sociedadesinha curiosa e mexeriqueira viria a
perceber a sua affeiÁ„o. E havia por acaso nada mais horroroso, para
quem tem orgulho e delicadeza d'alma, do que uns amores que todo o
publico conhece, atÈ os cocheiros de praÁa? N„o... O bom senso, o bom
gosto mesmo, tudo indicava a necessidade d'uma separaÁ„o. Ella mesmo
mais tarde lhe seria grata... Decerto, esta primeira interrupÁ„o d'um
habito dÙce era desagradavel, e elle estava bem longe de se sentir
feliz. FÙra por isso que n„o tivera a coragem de lhe escrever... Emfim
deviam ser fortes, e n„o se vÍrem pelo menos durante alguns mezes...
Depois, pouco a pouco, o que era capricho fragil, cheio de inquietaÁ„o,
tornar-se-hia uma boa amizade, bem segura e bem duradoura.

Calou-se; e ent„o, no silencio, sentiu que ella, cahida para o canto do
coupÈ, como uma coisa miseravel e meio morta, encolhida no seu vÈo,
estava chorando baixo.

Foi um momento intoleravel. Ella chorava sem violencia, mansamente, com
um chÙro lento, que parecia n„o dever findar. E Carlos sÛ achava esta
palavra banal e desenxabida:

--Que tolice, que tolice!

Vinham rodando ao comprido das casas, por diante da fabrica do gaz. Um
americano passou alumiado, com senhoras vestidas de claro. N'aquella
noite de ver„o e d'estrellas, havia gente vagueando tranquillamente
entre as arvores. Ella continuava a chorar.

Aquelle pranto triste, lento, correndo a seu lado, comeÁou a commovel-o;
e ao mesmo tempo quasi lhe queria mal por ella n„o reter essas lagrimas
infindaveis que laceravam o seu coraÁ„o... E elle que estava t„o
tranquillo, no Ramalhete, na sua poltrona, sorrindo a tudo, n'uma
deliciosa lassid„o!

Tomou-lhe a m„o, querendo calmal-a, apiedado, e j· impaciente.

--Realmente n„o tem raz„o. … absurdo... Tudo isto È para seu bem...

Ella teve emfim um movimento, enxugou os olhos, assoou-se doloridamente
por entre os seus longos soluÁos... E de repente, n'um arranque de
paix„o, atirou-lhe os braÁos ao pescoÁo, prendendo-se a elle com
desespero, esmagando-o contra o seu seio.

--Oh meu amor, n„o me deixes, n„o me deixes! Se tu soubesses! …s a unica
felicidade que eu tenho na vida... Eu morro, eu mato-me!... Que te fiz
eu? Ninguem sabe do nosso amor... E que soubesse! Por ti sacrifico tudo,
vida, honra, tudo! tudo!...

Molhava-lhe a face com o resto das suas lagrimas; e elle abandonava-se,
sentindo aquelle corpo sem collete, quente e como n˙, subir-lhe para os
joelhos, collar-se ao seu, n'um furor de o repossuir, com beijos
sÙfregos, furiosos, que o suffocavam... Subitamente a tipoia parou. E um
momento ficaram assim--Carlos immovel, ella cahida sobre elle e
arquejando.

Mas a tipoia n„o continuava. Ent„o Carlos desprendeu um braÁo, desceu o
vidro; e viu que estavam defronte do Ramalhete. O homem, obedecendo ·
ordem, dera a volta pelo Aterro, devagar, subira a rampa, retrocedera ·
porta da casa. Durante um instante Carlos teve a tentaÁ„o de descer,
acabar alli bruscamente aquelle longo tormento. Mas pareceu-lhe uma
brutalidade. E desesperado, detestando-a, berrou ao cocheiro:

--Outra vez ao Aterro, anda sempre!...

A tipoia deu na rua estreita uma volta resignada, tornou a rolar; de
novo as pedras da calÁada fizeram tilintir os vidros; de novo, mais
suavemente, desceram a rampa de Santos.

Ella recomeÁ·ra os seus beijos. Mas tinham perdido a chamma que um
instante os fizera quasi irresistiveis. Agora Carlos sentia sÛ uma
fadiga, um desejo infinito de voltar ao seu quarto, ao repouso de que
ella o arranc·ra para o torturar com estas recriminaÁıes, estes ardores
entre lagrimas... E de repente, emquanto a condessa balbuciava, como
tonta, pendurada do seu pescoÁo,--elle viu surgir n'alma, viva e
resplandecente, a imagem de Maria Eduarda, tranquilla ·quella hora na
sua sala de reps vermelho, fazendo ser„o, confiando n'elle, pensando
n'elle, relembrando as felicidades da vespera, quando a _Toca_, cheia de
seus amores, dormia, branca entre as arvores... Teve ent„o horror ·
Gouvarinho; brutalmente, sem piedade, repelliu-a para o canto do coupÈ.

--Basta! Tudo isto È absurdo... As nossas relaÁıes est„o acabadas, n„o
temos mais nada que nos dizer!

Ella ficou um instante como atordoada. Depois estremeceu, teve um riso
nervoso, reppelliu-o tambem, phreneticamente, pisando-lhe o braÁo.

--Pois bem! Vai, deixa-me! Vai para a outra, para a brazileira! Eu
conheÁo-a, È uma aventureira que tem o marido arruinado, e precisa quem
lhe pague as modistas!...

Elle voltou-se, com os punhos fechados, como para a espancar; e na
tipoia escura, onde j· havia um vago cheiro de verbena, os olhos
d'ambos, sem se vÍrem, dardejavam o odio que os enchia... Carlos bateu
raivosamente no vidro. A tipoia n„o parou. E a Gouvarinho, do outro
lado, furiosa, magoando os dedos, procurava descer a vidraÁa.

--… melhor que s·ia! dizia ella suffocada. Tenho horror de me achar
aqui, ao seu lado! Tenho horror! Cocheiro! cocheiro!

O calhambeque parou. Carlos pulou para fÛra, fechou d'estalo a
portinhola; e sem uma palavra, sem erguer o chapÈo, virou costas, abalou
a grandes passadas para o Ramalhete, tremulo ainda, cheio d'idÈas de
rancor, sob a paz da noite estrellada.




IV


Foi n'um sabbado que Affonso da Maia partiu para Santa Olavia. Cedo
n'esse mesmo dia, Maria Eduarda, que o escolhera por ser de boa estreia,
install·ra-se nos Olivaes. E Carlos, voltando de Santa Apolonia, onde
fÙra acompanhar o avÙ, com o Ega, dizia-lhe alegremente:

--Ent„o aqui ficamos nÛs sÛs a torrar, _na cidade de marmore_ e de
lixo...

--Antes isso, respondeu o Ega, que andar de sapatos brancos, a scismar,
por entre a poeirada de Cintra!

Mas no domingo, quando Carlos recolheu ao Ramalhete ao
anoitecer--Baptista annunciou que o snr. Ega tinha partido n'esse
momento para Cintra, levando apenas livros e umas escovas embrulhadas
n'um jornal... O snr. Ega tinha deixado uma carta. E tinha dito:
´Baptista, vou pastar.ª

A carta, a lapis, n'uma larga folha d'almasso, dizia: ´Assaltou-me de
repente, amigo, juntamente com um horror · caliÁa de Lisboa, uma saudade
infinita da natureza e do verde. A porÁ„o d'animalidade que ainda resta
no meu sÍr civilisado e recivilisado precisa urgentemente
d'espolinhar-se na relva, beber no fio dos regatos, e dormir balanÁada
n'um ramo de castanheiro. O solÌcito Baptista que me remetta ·manh„ pelo
omnibus a mala com que eu n„o quiz sobrecarregar a tipoia do _Mulato_.
Eu demoro-me apenas tres ou quatro dias. O tempo de cavaquear um bocado
com o Absoluto no alto dos _Capuchos_, e vÍr o que est„o fazendo os
myosotis junto · meiga _fonte dos Amores_...ª

--Pedante! rosnou Carlos, indignado com o abandono ingrato em que o
deixava o Ega.

E atirando a carta:

--Baptista! O snr. Ega diz ahi que lhe mandem uma caixa de charutos, dos
_Imperiales_. Manda-lhe antes dos _FlÙr de Cuba_. Os _Imperiales_ s„o um
veneno. Esse animal nem fumar sabe!

Depois de jantar Carlos percorreu o _Figaro_, folheou um volume de
Byron, bateu carambolas solitarias no bilhar, assobiou _malagueÒas_ no
terrasso--e terminou por sahir, sem destino, para os lados do Aterro. O
Ramalhete entristecia-o, assim mudo, apagado, todo aberto ao calor da
noite. Mas insensivelmente, fumando, achou-se na rua de S. Francisco. As
janellas de Maria Eduarda estavam tambem abertas e negras. Subiu ao
andar do Cruges. O menino Victorino n„o estava em casa...

AmaldiÁoando o Ega, entrou no Gremio. Encontrou o Taveira, de paletot ao
hombro, lendo os telegrammas. N„o havia nada novo por essa velha Europa;
apenas mais uns Nihilistas enforcados; e elle Taveira ia ao Price...

--Vem tu tambem d'ahi, Carlinhos! Tens l· uma mulher bonita que se mette
na agua com cobras e crocodilos... Eu pello-me por estas mulheres de
bichos!... Que esta È difficil, traz um _chulo_... Mas eu j· lhe
escrevi: e ella faz-me um bocado d'olho de dentro da tina.

Arrastou Carlos: e pelo Chiado abaixo fallou-lhe logo do Damaso. N„o
torn·ra a ver essa flÙr? Pois essa flÙr andava apregoando por toda a
parte que o Maia, depois do caso do Chiado, lhe dera por um amigo
explicaÁıes humildes, covardes... Terrivel, aquelle Damaso! Tinha
figura, interior, e natureza de pÈlla! Com quanto mais forÁa se atirava
ao ch„o, mais elle resaltava para o ar, triumphante!...

--Em todo o caso È uma rez traiÁoeira, e deves ter cautela com elle...

Carlos encolheu os hombros, rindo.

N„o, n„o, dizia o Taveira muito sÈrio, eu conheÁo o meu Damaso. Quando
foi da nossa pÈga, em casa da Lola Gorda, elle portou-se como um
poltr„o, mas depois ia-me atrapalhando a vida... … capaz de tudo...
Antes d'hontem estava eu a cear no Silva, elle veio sentar-se um bocado
ao pÈ de mim, e comeÁou logo com umas coisas a teu respeito, umas
ameaÁas...

--AmeaÁas! Que disse elle?

--Diz que te d·s ares de espadachim e de valent„o, mas has de encontrar
dentro em pouco quem te ensine... Que se est· ahi preparando um
escandalo monumental... Que se n„o admirar· de te vÍr brevemente com uma
boa bala na cabeÁa...

--Uma bala?

--Assim o disse. Tu ris, mas eu È que sei... Eu, se fosse a ti, ia-me ao
Damaso e dizia-lhe: ´Damasosinho, flÙr, fique avisado que, d'ora em
diante, cada vez que me succeder uma coisa desagradavel, venho aqui e
parto-lhe uma costella; tome as suas medidas...ª

Tinham chegado ao Price. Uma multid„o de domingo, alegre e pasmada,
apinhava-se atÈ ·s ultimas bancadas onde havia rapazes, em mangas de
camisa, com litros de vinho; e eram grossas, fartas risadas, com os
requebros do palhaÁo, rebocado de c·io e vermelh„o, que tocava nos
pÈsinhos d'uma _voltigeuse_ e lambia os dedos, d'olhos em alvo, n'um
gosto de mel... DescanÁando na sella larga de xairel dourado, a
creatura, magrinha e sÈria, com flÙres nas tranÁas, dava a volta
devagar, ao passo d'um cavallo branco, que mordia o freio, levado · m„o
por um estribeiro; e pela arena o palhaÁo lamb„o e nescio acompanhava-a,
com as m„os ambas apertadas ao coraÁ„o, n'uma supplica babosa, rebolando
languidamente os quadris dentro das vastas pantalonas, picadas de
lantejoulas. Um dos escudeiros, de calÁa listrada d'ouro, empurrava-o,
n'um arremedo de ciumes; e o palhaÁo cahia, estatelado, com um estoiro
de nadegas, entre os risos das crianÁas e os rantantans da charanga. O
calor suffocava; e as fumaraÁas de charuto, subindo sem cessar, faziam
uma neva onde tremiam as chammas largas do gaz. Carlos, incommodado,
abalou.

--Espera ao menos para vÍr a mulher dos crocodilos! gritou ainda o
Taveira.

--N„o posso, cheira mal, morro!

Mas · porta, de repente, foi detido pelos braÁos abertos do Alencar, que
chegava--com outro sujeito, velho e alto, de barbas brancas, todo
vestido de luto. O poeta ficou pasmado de vÍr alli o de seu Carlos.
Fazia-o no seu solar Santa de Olavia! Vira atÈ nos papeis publicos...

--N„o, disse Carlos, o avÙ È que foi hontem... Eu n„o me sinto ainda em
disposiÁ„o do ir communicar com a natureza...

Alencar riu, levemente afogueado, com um brilho de genebra no olho cavo.
Ao lado, grave, o anci„o de barbas calÁava as suas luvas pretas.

--Pois eu È o contrario! exclamava o poeta.

Estou precisado d'um banho de pantheismo! A bella natureza! O prado! O
bosque!... De modo que talvez me mimoseie com Cintra, para a semana.
Est„o l· os Cohens, alugaram uma casita muito bonita, logo adiante do
Victor...

Os Cohens! Carlos comprehendeu ent„o a fuga do Ega e a ´sua saudade do
verde.ª

--Ouve l·, dizia-lhe o poeta baixo, e puxando-o pela manga, para o lado.
Tu n„o conheces este meu amigo? Pois foi muito de teu pai, fizemos muita
troÁa juntos... N„o era nenhum personagem, era apenas um alquilador de
cavallos... Mas tu sabes, c· em Portugal, sobretudo n'esses tempos,
havia muita bonhomia, o fidalgo dava-se com o arrieiro... Mas, que
diabo, tu deves conhecel-o! … o tio do Damaso!

Carlos n„o se recordava.

--O Guimar„es, o que est· em Paris!

--Ah, o communista!

--Sim, muito republicano, homem de idÈas humanitarias, amigo do
Gambetta, escreve no _Rappel_... Homem interessante!... Veio ahi por
causa d'umas terras que herdou do irm„o, d'esse outro tio do Damaso que
morreu ha mezes... E demora-se, creio eu... Pois jantamos hoje juntos,
beberam-se uns liquidos, e atÈ estivemos a fallar de teu pai... Queres
tu que eu t'o apresente?

Carlos hesitou. Seria melhor n'outra occasi„o mais intima, quando
podessem fumar um charuto tranquillo, e conversar do passado...

--Valeu! Has de gostar d'elle. Conhece muito Victor Hugo, detesta a
padraria... Espirito largo, espirito muito largo!

O poeta sacudiu ardentemente as duas m„os de Carlos. O snr. Guimar„es
ergueu de leve o seu chapÈo, carregado de crepe.

Todo o caminho, atÈ ao Ramalhete, Carlos foi pensando em seu pai e
n'esse passado, assim rememorado e estranhamente resurgido pela presenÁa
d'aquelle patriarcha, antigo alquilador, que fizera com elle tantas
troÁas! E isto trazia conjuntamente outra idÈa, que n'esses ultimos dias
j· o atravess·ra, pertinaz e torturante, dando-lhe, no meio da sua
radiante felicidade, um sombrio arripio de dÙr... Carlos pensava no avÙ.

Estava agora decidido que Maria Eduarda e elle partiriam para Italia,
nos fins de outubro. Castro Gomes, na sua ultima carta do Brazil, sÍcca
e pretenciosa, fallava ´em apparecer por Lisboa, com as elegancias do
frio, l· para meado de novembroª; e era necessario antes d'isso que
estivessem j· longe, entre as verduras d'Isola Bella, escondidos no seu
amor e separados por elle do mundo como pelos muros d'um claustro. Tudo
isto era facil, considerado quasi legÌtimo pelo seu coraÁ„o, e enchia a
sua vida d'esplendor... SÛmente havia n'isto um espinho--o avÙ!

Sim, o avÙ! Elle partia com Maria, elle entrava na ventura absoluta; mas
ia destruir de uma vez e para sempre a alegria d'Affonso, e a nobre paz
que lhe tornava t„o bella a velhice. Homem de outras eras, austero e
puro, como uma d'essas fortes almas que nunca desfalleceram--o avÙ,
n'esta franca, viril, rasgada soluÁ„o d'um amor indominavel, sÛ veria
libertinagem! Para elle nada significava o esponsal natural das almas,
acima e fÛra das ficÁıes civis; e nunca comprehenderia essa subtil
ideologia sentimental, com que elles, como todos os transviados,
procuravam azular o seu erro. Para Affonso haveria apenas um homem que
leva a mulher d'outro, leva a filha d'outro, dispersa uma familia, apaga
um lar, e se atola para sempre na concubinagem: todas as subtilezas da
paix„o, por mais finas, por mais fortes, quebrar-se-hiam, como bolas de
sab„o, contra as tres ou quatro idÈas fundamentaes de Dever, de JustiÁa,
de Sociedade, de Familia, duras como blocos de marmore, sobre que
assent·ra a sua vida quasi durante um seculo... E seria para elle como o
horror d'uma fatalidade! J· a mulher de seu filho fugira com um homem,
deixando atraz de si um cadaver; seu neto agora fugia tambem,
arrebatando a familia d'outro:--e a historia da sua casa tornava-se
assim uma repetiÁ„o d'adulterios, de fugas, de dispersıes, sob o bruto
aguilh„o da carne!... Depois as esperanÁas que Affonso fund·ra
n'elle--consideral-as-hia tombadas, mortas no lodo! Elle passava a ser
para sempre, na imaginaÁ„o angustiada do avÙ, um foragido, um
inutilisado, tendo partido todas as raizes que o prendiam ao seu sÛlo,
tendo abdicado toda a acÁ„o que o elevaria no seu paiz, vivendo por
hoteis de refugio, fallando linguas estranhas, entre uma familia
equivoca crescida em torno d'elle como as plantas de uma ruina...
Sombrio tormento, implacavel e sempre presente, que consumiria os
derradeiros annos do pobre avÙ!... Mas, que podia elle fazer? J· o
dissera ao Ega. A vida È assim! Elle n„o tinha o heroismo nem a
santidade que tornam facil o sacrificio... E depois os dissabores do
avÙ, de que provinham? De preconceitos. E a sua felicidade, justo Deus,
tinha direitos mais largos, fundados na natureza!...

Cheg·ra ao fim do Aterro. O rio silencioso fundia-se na escurid„o. Por
alli entraria em breve do Brazil, o _outro_--que nas suas cartas se
esquecia de mandar um beijo a sua filha! Ah, se elle n„o voltasse! Uma
onda providencial podia leval-o... Tudo se tornaria t„o facil, perfeito
e limpido! De que servia na vida esse resequido? Era como um sacco vazio
que cahisse ao mar! Ah, se _elle_ morresse!... E esquecia-se, enlevado
n'uma vis„o em que a imagem de Maria o chamava, o esperava, livre,
serena, sorrindo e coberta de luto...

No seu quarto, Baptista, vendo-o atirar-se para uma poltrona com um
suspiro de fadiga, de desconsolaÁ„o,--disse, depois de tossir
risonhamente, e dando mais luz ao candieiro:

--Isto agora, sem o snr. Ega, parece um bocadinho mais sÛ...

--Est· sÛ, est· triste, murmurou Carlos. … necessario sacudirmo-nos...
Eu j· te disse que talvez fossemos viajar este inverno...

O menino n„o lhe tinha dito nada.

--Pois talvez vamos a Italia... Appetece-te voltar a Italia?

Baptista reflectiu.

--Eu, da outra vez n„o vi o Papa... E antes de morrer n„o se me dava de
vÍr o Papa...

--Pois sim, ha de se arranjar isso, has de vÍr o Papa.

Baptista, depois d'um silencio, perguntou, lanÁando um olhar ao espelho:

--Para vÍr o Papa vai-se de casaca, creio eu?

--Sim, recommendo-te a casaca... O que tu devias ter, para esses casos,
era um habito de Christo... Hei de vÍr se te arranjo um habito de
Christo.

Baptista ficou um instante assombrado. Depois fez-se escarlate,
d'emoÁ„o:

--Muito agradecido a v. exc.^a Ha por ahi gente que o tem, ainda talvez
com menos merecimentos que eu... Dizem que atÈ ha barbeiros...

--Tens raz„o, replicou Carlos muito sÈrio. Era uma vergonha. O que hei
de vÍr se te arranjo com effeito È a commenda da ConceiÁ„o.


Todas as manh„s, agora, Carlos percorria o poeirento caminho dos
Olivaes. Para poupar aos seus cavallos a soalheira ia na tipoia do
_Mulato_, o batedor favorito do Ega--que recolhia a parelha na velha
cavalhariÁa da _Toca_, e, atÈ · hora em que Carlos voltava ao Ramalhete,
vadiava pelas tabernas.

Ordinariamente ao meio dia, ao acabar de almoÁar, Maria Eduarda, ouvindo
rodar o trem na estrada silenciosa, vinha esperar Carlos · porta da
casa, no topo dos degraus ornados de vasos e resguardados por um fresco
toldo de fazenda cÙr de rosa. Na quinta usava sempre vestidos claros; ·s
vezes trazia, · antiga moda hespanhola, uma flÙr entre os cabellos; o
forte e fresco ar do campo avivava com um brilho mais quente o mate
eburneo do seu rosto;--e assim, simples e radiante, entre sol e verdura,
ella deslumbrava Carlos cada dia com um encanto inesperado e maior.
Cerrando o port„o d'entrada, que rangia nos gonzos, Carlos sentia-se
logo envolvido n'um ´extraordinario conforto moralª, como elle dizia, em
que todo o seu sÍr se movia mais facilmente, fluidamente, n'uma
permanente impress„o de harmonia e doÁura... Mas o seu primeiro beijo
era para Rosa, que corria pela rua de acacias ao seu encontro, com uma
onda de cabello negro a bater-lhe os hombros, e _Niniche_ ao lado,
pulando e ladrando de alegria. Elle erguia Rosa ao collo. Maria de longe
sorria-lhes, sob o toldo cÙr de rosa. Em redor tudo era luminoso,
familiar e cheio de paz.

A casa dentro resplandecia com um arranjo mais delicado. J· se podia
usar o sal„o nobre, que perdera o seu ar rigido de museu, exhalando a
tristeza d'um luxo morto: as flÙres que Maria punha nos vasos, um jornal
esquecido, as l„s de um bordado, o simples roÁar dos seus frescos
vestidos, tinham communicado j· um subtil calor de vida e de conchego
aos mais impertigados contadores do tempo de Carlos V, revestidos de
ferro brunido:--e era alli que elles ficavam conversando emquanto n„o
chegava a hora das liÁıes de Rosa.

A essa hora apparecia miss Sarah, sÈria e recolhida--sempre de preto,
com uma ferradura de prata em broche sobre o collarinho direito de
homem. Recuper·ra as suas cÙres fortes de boneca, e as pestanas baixas
tinham uma timidez mais virginal sob o liso dos bandÛs puritanos.
Gordinha, com o peito de pomba farta estalando dentro do corpete severo,
mostrava-se toda contente da vida calma e lenta de aldÍa. Mas aquellas
terras trigueiras d'olivedo n„o lhe pareciam campo: ´È muito sÍcco, È
muito duro,ª dizia ella, com uma indefinida saudade dos verdes molhados
da sua Inglaterra, e dos cÈos de nevoa, cinzentos e vagos.

Davam duas horas; e comeÁavam logo nos quartos de cima as longas liÁıes
de Rosa. Carlos e Maria iam ent„o refugiar-se n'uma intimidade mais
livre, no kiosque japonez, que uma phantasia de Craft, o seu amor do
Jap„o, construira ao pÈ da rua d'acacias, aproveitando a sombra e o
retiro bucolico de dois velhos castanheiros. Maria affeiÁoara-se ·quelle
recanto, chamava-lhe o seu _pensadoiro_. Era todo de madeira, com uma sÛ
janellinha redonda, e um telhado agudo · japoneza, onde roÁavam os
ramos--t„o leve que atravÈs d'elle nos momentos de silencio se sentiam
piar as aves. Craft forr·ra-o todo de esteiras finas da India; uma mesa
de xar„o, algumas faianÁas do Jap„o, ornavam-no sobriamente; o tecto n„o
se via, occulto por uma colcha de sÍda amarella, suspensa pelos quatro
cantos, em laÁos, como o rico docel de uma tenda;--e todo o ligeiro
kiosque parceia ter sido armado sÛ com o fim d'abrigar um divan baixo e
fÙfo, d'uma languidez de serralho, profundo para todos os sonhos, amplo
para todas as preguiÁas...

Elles entravam, Carlos com algum livro que escolhera na presenÁa de miss
Sarah, Maria Eduarda com um bordado ou uma costura. Mas bordado e livro
cahiam logo no ch„o--e os seus labios, os seus braÁos uniam-se
arrebatadamente. Ella escorregava sobre o divan: Carlos ajoelhava n'uma
almofada, tremulo, impaciente depois da forÁada reserva diante de Rosa e
diante de Sarah--e alli ficava, abraÁado · sua cintura, balbuciando mil
coisas pueris e ardentes, por entre longos beijos que os deixavam
frouxos, com os olhos cerrados, n'uma doÁura de desmaio. Ella queria
saber o que elle tinha feito durante a longa, longa noite de separaÁ„o.
E Carlos nada tinha a contar sen„o que pens·ra n'ella, que sonh·ra com
ella... Depois era um silencio: os pardaes piaram, as pombas arrulhavam
por cima do leve telhado: e _Niniche_, que os acompanhava sempre, seguia
os seus murmurios, os seus silencios, enroscada a um canto, com um olho
negro, reluzindo desconfiadamente por entre as repas prateadas.

FÛra, por aquelles dias de calma, sem aragem, a quinta sÍcca, d'um verde
empoeirado, dormia com as folhagens immoveis, sob o peso do sol. Da casa
branca, atravÈs das persianas fechadas, vinha apenas o som amodorrado
das escalas que Rosa fazia no piano. E no kiosque havÌa tambem um
silencio satisfeito e pleno--sÛmente quebrado por algum dÙce suspiro de
lassid„o que sahia do divan, d'entre as almofadas de sÍda, ou algum
beijo mais longo e d'um remate mais profundo... Era _Niniche_ que os
tirava d'aquelle suave entorpecimento, farta de estar alli quieta,
encerrada entre as madeiras quentes, n'um ar molle j· repassado d'esse
aroma indefinido em que havia jasmim.

Lenta, e passando as m„os no rosto Maria erguia-se--mas para cahir logo
aos pÈs de Carlos, no seu reconhecimento infinito... Meu Deus, o que lhe
custava ent„o esse momento de separaÁ„o! Para que havia de ser assim?
Parecia t„o pouco natural, esposos como eram, que ella ficasse alli toda
a noite, sÛsinha, com o seu desejo d'elle, e elle fosse, sem as suas
carÌcias, dormir solitariamente ao Ramalhete!... E ainda se demoravam
muito tempo, n'uma mudez d'extasi, em que os olhos humidos,
trespassando-se, continuavam o beijo insaciado que morrera nos seus
labios canÁados. Era _Niniche_ que os fazia sahir por fim trotando
impacientemente da porta para o divan, rosnando, ameaÁando ladrar.

Muitas vezes ao recolherem Maria tinha uma inquietaÁ„o. Que pensaria
miss Sarah d'esta sÈsta assim enclausurada, sem um rumor, com a janella
do pavilh„o cerrada? Melanie, desde pequena ao serviÁo de Maria, era uma
confidente: o bom Domingos, um imbecil, n„o contava: mas miss Sarah?...
Maria confessava sorrindo que se sentia um pouco humilhada, ao encontrar
depois · mesa os candidos olhos da ingleza sob os seus bandÛs
virginaes... Est· claro! se a boa miss tivesse a ousadia de resmungar ou
franzir de leve a testa, recebia logo seccamente a sua passagem no
_Royal Mail_ para Southampton! Rosa n„o a lamentaria, Rosa n„o lhe tinha
affeiÁ„o. Mas, emfim, era t„o sÈria, admirava tanto a senhora! Ella n„o
gostava de perder a admiraÁ„o d'uma rapariga t„o sÈria. E assim
decidiram despedir miss Sarah, rÈgiamente paga, e substituil-a, mais
tarde, em Italia, por uma governante allem„, para quem elles fossem como
casados, ´Monsieur et Madame...ª

Mas pouco a pouco o desejo d'uma felicidade mais intima, mais completa,
foi crescendo n'elles. N„o lhes bastava j· essa curta manh„ no divan com
os passaros cantando por cima, a quinta cheia de sol, tudo acordado em
redor: appeteciam o longo contentamento d'uma longa noite, quando os
seus braÁos se podessem enlaÁar sem encontrar o estofo dos vestidos, e
tudo dormisse em torno, os campos, a gente e a luz... De resto era bem
facil! A sala de tapeÁarias, communicando com a alcova de Maria, abria
sobre o jardim por uma porta envidraÁada; a governante, os criados,
subiam ·s dez horas para os seus quartos no andar alto; a casa adormecia
profundamente; Carlos tinha uma chave do port„o; e o unico c„o,
_Niniche_, era o confidente fiel dos seus beijos...

Maria desejava essa noite t„o ardentemente como elle. Uma tarde ao
escurecer, voltando d'um fresco passeio nos campos, experimentaram ambos
essa dupla chave--que Carlos j· promettia mandar dourar: e elle ficou
surprehendido ao vÍr que o velho port„o, que ouvira sempre ranger
abominavelmente, rolava agora nos gonzos com um silencio oleoso.

Veio n'essa mesma noite--tendo deixado na villa para o levar ao
amanhecer a caleche do _Mulato_, um batedor discreto, que elle cevava de
gorgetas. O cÈo, molle e abafado, n„o tinha uma estrella; e sobre o mar
lampejava a espaÁos, mudamente, a lividez d'um relampago. Caminhando com
inuteis cautelas rente do muro Carlos sentia, n'esta proximidade d'uma
posse t„o desejada, uma melancolia, cortada de anciedade, que vagamente
o acobardava. Abriu quasi a tremer o port„o: e mal dÈra alguns passos
estacou, ouvindo ao fundo _Niniche_ ladrar furiosamente. Mas tudo
emmudeceu; e da janella do canto, sobre o jardim, surgiu uma claridade
que o socegou. Foi encontrar Maria, com um roup„o de rendas, junto da
porta envidraÁada, suffocando quasi entre os braÁos _Niniche_ que ainda
rosnava. Estava toda medrosa, n'uma impaciencia de o sentir ao seu lado:
e n„o quiz recolher logo: um momento ficaram alli, sentados nos degraus,
com _Niniche_ que aquiet·ra e lambia Carlos. Tudo em redor era como uma
infinita mancha de tinta; sÛ l· em baixo, perdida e mortiÁa, surdia da
treva alguma luzinha vacillando no alto d'um mastro. Maria, conchegada a
Carlos, refugiada n'elle, deu um longo suspiro: e os seus olhos
mergulhavam inquietos n'aquella mudez negra, onde os arbustos familiares
do jardim, toda a quinta, parecia perder a realidade, sumida, diluida na
sombra.

--Porque n„o havemos de partir j· para a Italia? perguntou ella de
repente, procurando a m„o de Carlos. Se tem de ser, porque n„o ha de ser
j·?... Escusavamos de ter estes segredos, estes sustos!

--Sustos de que, meu amor? Estamos aqui t„o seguros como na Italia, como
na China... De resto podemos partir mais depressa, se quizeres... Dize
tu um dia, marca um dia!

Ella n„o respondeu, deixando cahir dÙcemente a cabeÁa sobre o hombro de
Carlos. Elle acrescentou, devagar:

--Em todo o caso, comprehendes bem, preciso primeiro ir a Santa Olavia,
vÍr o avÙ...

Os olhos de Maria perdiam-se outra vez na escurid„o--como recebendo
d'ella o presagio d'um futuro, onde tudo seria confuso e escuro tambem.

--Tu tens Santa Olavia, tens teu avÙ, tens os teus amigos... Eu n„o
tenho ninguem!

Carlos estreitou-a a si, enternecido.

--N„o tens ninguem! Isso dito a mim! Nem chega a ser injustiÁa, nem
chega a ser ingratid„o! … nervoso; e È tambem o que os inglezes chamam a
´impudente adulteraÁ„o d'um facto.ª

Ella fic·ra aninhada no peito de Carlos, como desfallecida.

--N„o sei porque, queria morrer...

Um largo brilho de relampago alumiou o rio. Maria teve medo, entraram na
alcova. Os mÛlhos de velas de duas serpentinas, batendo os damascos e os
setins amarellos, embebiam o ar tepido, onde errava um perfume, n'uma
refulgencia ardente de sacrario: e as bretanhas, as rendas do leito j·
aberto punham uma casta alvura de neve fresca n'esse luxo amoroso e cÙr
de chamma. FÛra, para os lados do mar, um trov„o rolou lento e surdo.
Mas Maria j· o n„o ouviu, cahida nos braÁos de Carlos. Nunca o desej·ra,
nunca o ador·ra tanto! Os seus beijos anciosos pareciam tender mais
longe que a carne, trespassal-o, querer sorver-lhe a vontade e a
alma:--e toda a noite, entre esses brocados radiantes, com os cabellos
soltos, divina na sua nudez, ella lhe appareceu realmente como a Deusa
que elle sempre imagin·ra, que o arrebatava emfim, apertado ao seu seio
immortal, e com elle pairava n'uma celebraÁ„o d'amor, muito alto, sobre
nuvens de ouro...

Quando sahiu, ao amanhecer, chovia. Foi encontrar o _Mulato_ a dormir
n'uma taberna, bebedo. Teve de o metter dentro do carro; e foi elle que
governou atÈ ao Ramalhete, embrulhado n'uma manta do taberneiro,
encharcado, cantarolando, esplendidamente feliz.

Passados dias, passeando com Maria nos arredores da _Toca_, Carlos
reparou n'uma casita, · beira da estrada, com escriptos: e veio-lhe logo
a idÈa de a alugar, para evitar aquella desagradavel partida de
madrugada com o _Mulato_ estremunhado, borracho, despedaÁando o trem
pelas calÁadas. Visitaram-na: havia um quarto largo, que com tapete e
cortinas podia dar um refugio confortavel. Tomou-a logo--e Baptista veio
ao outro dia, com moveis n'uma carroÁa, arranjar este novo ninho. Maria
disse, quasi triste:

--Mais outra casa!

--Esta, exclamou Carlos rindo, È a ultima! N„o, È a penultima... Temos
ainda a outra, a nossa, a verdadeira, l· longe, n„o sei onde...

ComeÁaram a encontrar-se todas as noites. ¡s nove e meia, pontualmente,
Carlos deixava a _Toca_, com o seu charuto accÍso: e Domingos, adiante,
de lanterna, vinha fechar o port„o, tirar a chave. Elle recolhia devagar
· sua ´choupanaª onde o servia um criadito, filho do jardineiro do
Ramalhete. Sobre um tapete solto, deitado no velho soalho, havia apenas,
alÈm do leito, uma mesa, um sof· de riscadinho, duas cadeiras de palha;
e Carlos entretinha as horas que o separavam ainda de Maria, escrevendo
para Santa Olavia e sobretudo ao Ega, que se eternisava em Cintra.

Recebera duas cartas d'elle, fallando quasi sÛmente do Damaso. O Damaso
apparecia em toda a parte com a Cohen; o Damaso torn·ra-se grutesco em
Cintra, n'uma corrida de burros; o Damaso arvor·ra capacete e vÈo em
Sitiaes; o Damaso era uma besta immunda; o Damaso, no pateo do Victor,
de perna traÁada, dizia familiarmente ´a Rachelª; era um dever de
moralidade publica dar bengaladas no Damaso!... Carlos encolhia os
hombros, achando estes ciumes indignos do coraÁ„o do Ega. E ent„o por
quem! Por aquella lambisgoia d'Israel, melada e mollenga, sovada a
bengala! ´Se com effeito, escrevera elle ao Ega, ella desceu de ti atÈ
ao Damaso, tens sÛ a fazer como se fosse um charuto que te cahisse ·
lama: n„o o pÛdes naturalmente levantar: deves deixar fumal-o em paz ao
garoto que o apanhou: enfurecer-te com o garoto ou com o charuto, È
d'imbecil.ª Mas ordinariamente, quando respondia, fallava sÛ ao Ega dos
Olivaes, dos seus passeios com Maria, das conversas d'ella, do encanto
d'ella, da superioridade d'ella... Ao avÙ n„o achava que dizer; nas dez
linhas que lhe destinava, descrevia o calor, recommendava-lhe que n„o se
fatigasse, mandava saudades para os hospedes, e dava-lhe recados do
Manoelzinho--que elle nunca via.

Quando n„o tinha que escrever, estirava-se no sof·, com um livro aberto,
os olhos no ponteiro do relogio. ¡ meia noite sahia, encafuado n'um
gab„o d'Aveiro, e de varapau. Os seus passos resoavam, solitarios na
mudez dos campos, com uma indefinida melancolia de segredo e de culpa...

N'uma d'essas noites, de grande calor, Carlos canÁado adormeceu no sof·:
e sÛ despertou, em sobresalto, quando o relogio na parede dava
tristemente duas horas. Que desespero! Ahi ficava perdida a sua noite de
amor! E Maria decerto · espera, angustiada, imaginando desastres!...
Agarrou o cajado, abalou, correndo pela estrada. Depois, ao abrir
subtilmente o port„o da quinta, pensou que Maria teria adormecido:
_Niniche_ podia ladrar: os seus passos, entre as acacias, abafaram-se,
mais cautelosos. E de repente sentiu ao lado, sob as ramagens, vindo do
ch„o, d'entre a herva, um resfolgar ardente d'homem, a que se misturavam
beijos. Parou, varado: e o seu impeto logo foi esmagar a cacete aquelles
dois animaes, enroscados na relva, sujando brutamente o poetico retiro
dos seus amores. Uma alvura de saia moveu-se no escuro: uma voz
soluÁava, desfalecida--_oh yes, oh yes_... Era a ingleza!

Oh santo Deus, era a ingleza, era miss Sarah! Apagando os passos,
atordoado, Carlos escoou-se pelo port„o, cerrou-o mansamente, foi
esperar adiante, n'um recanto do muro, sob as ramarias d'uma faia,
sumido na sombra. E tremia de indignaÁ„o. Era preciso contar
immediatamente a Maria aquelle grande _horror_! N„o queria que ella
consentisse um momento mais essa impura fÍmea, junto de Rosa, roÁando a
candidez do seu anjo... Oh, era pavorosa uma tal hypocrisia, assim
astuta e methodica, sem se desconcertar j·mais! Havia dias apenas, vira
a creatura desviar os olhos d'uma gravura d'_IllustraÁ„o_, onde dois
castos pastores se beijavam n'um arvoredo bucolico! E agora rugia,
estirada na herva!

Na estrada escura, do lado do port„o, brilhou um lume de cigarro. Um
homem passou, forte e pesado, com uma manta aos hombros. Parecia um
jornaleiro. A boa miss Sarah n„o escolhera! Bem lavada, toda correcta,
com os seus bandÛs puritanos, aceitava _um qualquer_, rude e sujo, desde
que era um macho! E assim os embaÌra, mezes, com aquellas suas duas
existencias, t„o separadas, t„o completas! De dia virginal, severa,
cÛrando sempre, com a Biblia no cesto da costura: · noite a pequena
adormecia, todos os seus deveres sÈrios acabavam, a santa
transformava-se em cabra, chale aos hombros, e l· ia para a relva, com
qualquer!... Que bello romance para o Ega!

Voltou; tornou a abrir devagarinho o port„o: de novo subiu, amollecendo
os passos, a sombria rua d'acacias. Mas agora ia sentindo uma hesitaÁ„o
em contar a Maria _aquelle horror_. A seu pezar pensava que tambem Maria
o esperava, com o leito aberto, no silencio da casa adormecida; e que
tambem elle penetrava alli, ·s escondidas, como o homem da manta... De
certo era bem differente! Toda a immensuravel differenÁa que vai do
divino ao bestial... E todavia receava despertar os melindrosos
escrupulos de Maria, mostrando-lhe, parallelo ao seu amor cheio de
requintes e passado entre brocados cÙr d'ouro, aquelle outro rude amor,
secreto e illegitimo como o d'ella, e arrastado brutamente na relva...
Era como mostrar-lhe um reflexo da sua propria culpa, um pouco esfumada,
mais grosseira, mas parecida nos seus contornos, lamentavelmente
parecida... N„o, n„o diria nada. E a pequena?... Oh, nas suas relaÁıes
com Rosa a creatura continuaria a ser, como sempre, a puritana
laboriosa, grave e cheia d'ordem.

A porta envidraÁada sobre o jardim tinha ainda luz: elle atirou aos
vidros uma pouca de terra solta, depois bateu de leve. Maria appareceu,
mal embrulhada n'um roup„o, juntando os cabellos que se tinham
desenrolado, e meia adormecida.

--Porque vieste t„o tarde?

Carlos beijou longamente os seus bellos olhos pesados, quasi cerrados.

--Adormeci estupidamente, a lÍr... Depois, quando entrei pareceu-me
ouvir passos na quinta, andei a rebuscar... Era imaginaÁ„o, tudo
deserto.

--Precisavamos ter um c„o de fila, murmurou ella, espreguiÁando-se.

Sentada · beira do leito, com os braÁos cahidos e adormentados, sorria
da sua preguiÁa.

--Est·s t„o fatigada, filha! queres tu que me v· embora ?...

Ella puxou-o para o seu seio perfumado e quente.

--Je veux que tu m'aimes beaucoup, beaucoup, et longtemps...

Ao outro dia Carlos n„o fÙra a Lisboa, e appareceu cedo na _Toca_.
Melanie, que andava espanejando o kiosque, disse-lhe que Madame, um
pouco canÁada, tinha justamente tomado o seu chocolate na cama. Elle
entrou no sal„o: defronte da janella aberta, sentada no banco de
cortiÁa, miss Sarah costurava, · sombra das arvores.

--_Good morning_, disse-lhe Carlos, chegando-se ao peitoril, todo
curioso de a observar.

--_Good morning, sir_, respondeu ella com o seu ar modesto e tÌmido.

Carlos fallou do calor. Miss Sarah j· ·quella hora o achava intoleravel.
Felizmente a vista do rio, l· em baixo, refrescava...

Sobretudo a noite passada, insistiu Carlos accendendo a cigarrette, fÙra
t„o abafada! Elle mal pudera dormir. E ella?

Oh, ella dormira d'um somno sÛ. Carlos quiz saber se tivera bonitos
sonhos.

--_Oh yes, sir_.

_Oh yes!_ mas agora um yes pudico, sem gemidos, com os olhos baixos. E
t„o correcta, t„o pregada, fresca como se nunca tivesse servido!...
Positivamente era extraordinaria! E Carlos, torcendo o bigode, pensava
que ella devia ter um seiosinho bem alvo e bem redondinho!



Assim ia passando o ver„o nos Olivaes. No comeÁo de setembro, Carlos
soube por uma carta do avÙ que Craft devia chegar a Lisboa, n'um
sabbado, ao Hotel Central: e correu l· cedo, logo n'essa manh„, a ouvir
as novidades de Santa Olavia. Achou Craft j· a pÈ, diante do espelho,
fazendo a barba. A um canto do sof·, Eusebiosinho, que viera na vespera
· noite de Cintra e estava tambem no Hotel, limpava as unhas com um
canivete, em silencio, coberto de negro.

Craft vinha encantado com Santa Olavia. Nem comprehendia como Affonso,
beir„o forte, tolerava a rua de S. Francisco, e o quintalejo abafado do
Ramalhete. Tinha-se passado rÈgiamente! O avÙ, cheio de saude, d'uma
hospitalidade que lembrava Abrah„o e a Biblia. O Sequeira optimo comendo
tanto que ficava inutil depois de jantar, a estoirar e a gemer no fundo
d'uma poltrona. L· conhecera o velho Travassos, que fallava sempre com
os olhos cheios de lagrimas do ´talento do seu caro collega Carlos.ª E o
marquez esplendido, com abraÁos de primo a todos os fidalgotes de
Lamego, e apaixonado por uma barqueira... De resto soberbos jantares,
alguns tiros aos coelhos, uma romaria, danÁas de raparigas no adro,
guitarradas, esfolhadas, todo o dÙce idyllio portuguez...

--Mas a respeito de Santa Olavia temos a fallar mais sÈriamente, disse
por fim Craft, entrando na alcova, a ensaboar a cabeÁa.

--E tu, perguntou ent„o Carlos, voltando-se para o Eusebiosinho. Tens
estado em Cintra, hein? Que se faz l·?... O Ega?

O outro ergueu-se guardando o canivete, ageitando as lunetas.

--L· est· no Victor, muito engraÁado, comprou um burro... L· est· o
Damaso tambem... Mas esse pouco se vÍ, n„o larga os Cohens... Emfim
tem-se passado menos mal, com bastante calor...

--Tu estavas outra vez com a mesma prostituta, a Lola?

Eusebiosinho fez-se escarlate. Credo! estava no Victor, muito sÈrio! O
Palma È que l· tinha apparecido com uma rapariga portugueza... Tinha
agora um jornal, _A Corneta do Diabo_.

--_A Corneta...?_

--Sim, _do Diabo_, disse o Eusebiosinho. … um jornal de pilherias, de
picuinhas... Elle j· existia, chamava-se o _Apito_; mas agora passou
para o Palma; elle vae-lhe augmentar o formato, e metter-lhe mais
chalaÁa...

--Emfim, disse Carlos, qualquer coisa sebacea e immunda como elle...

Craft reappareceu, enxugando a cabeÁa. E emquanto se vestia, fallou de
uma viagem que agora o tentava, que estivera planeando em Santa Olavia.
Como j· n„o tinha a _Toca_, e a sua casa ao pÈ do Porto necessitava
longas obras, ia passar o inverno ao Egypto, subindo o Nilo, em
communicaÁ„o espiritual com a antiguidade Pharaonica. Depois talvez se
adiantasse atÈ Bagdad, a vÍr o Euphrates, e os sitios de Babylonia...

--Por isso eu lhe vi alli, na mesa, exclamou Carlos, um livro, _Ninive e
Babylonia_... Que diabo, vocÍ gosta d'isso? Eu tenho horror a raÁas e a
civilisaÁıes defuntas... N„o me interessa sen„o a Vida.

--… que vocÍ È um sensual, disse Craft. E a proposito de sensualidade e
de Babylonia, quer vir vocÍ almoÁar ao BraganÁa? Eu tenho de l·
encontrar um inglez, o meu homem das minas... Mas havemos d'ir pela rua
do Ouro, que quero trepar um instante · caverna do meu procurador... E a
caminho, que È meio dia!

Deixaram o Eusebiosinho, em baixo na sala, ageitando as suas lugubres
lunetas negras diante dos telegrammas. E apenas sahira o pateo, Craft
travou do braÁo de Carlos, e disse-lhe que as coisas sÈrias a respeito
de Santa Olavia--era o visivel, profundo desgosto do avÙ por elle n„o
ter l· apparecido.

--Seu avÙ n„o me disse nada, mas eu sei que elle est· muitissimo magoado
com vocÍ. N„o ha desculpa, s„o umas horas de viagem... VocÍ sabe como
elle o adora... Que diabo! _Est modus in rebus_.

--Com effeito, murmurou Carlos. Eu devia ter l· ido... Que quer vocÍ,
amigo?... Emfim acabou-se, È necessario fazer um esforÁo!... Talvez
parta para a semana com o Ega.

--Sim, homem, dÍ-lhe esse alegr„o... Esteja l· umas semanas...

--_Est modus in rebus_. Hei de vÍr se l· estou uns dias.

A caverna do procurador era defronte do Monte-Pio. Carlos esperava,
havia momentos, dando por diante das lojas uma volta lenta--quando de
repente avistou Melanie, a sahir o port„o do Monte-Pio, com uma matrona
gorda, de chapÈo rÙxo. Surprehendido, atravessou a rua. Ella estacou
como apanhada, fazendo-se toda vermelha; e nem deixou vir a pergunta;
balbuciou logo que Madame lhe dÈra licenÁa para vir a Lisboa, e ella
andava acompanhando aquella amiga... Uma velha caleche, de parelha
branca, estava encalhada alli, contra o passeio. Melanie saltou para
dentro, · pressa. A traquitana rodou aos solavancos para o Terreiro do
PaÁo.

Carlos via-a desapparecer, pasmado. E Craft, que volt·ra, olhando
tambem, reconheceu no lamentavel calhambeque a caleche do _Torto_, dos
Olivaes, onde elle ·s vezes costumava vir ´janotar a Lisboaª.

--Era alguem l· da _Toca_? perguntou.

Uma criada, disse Carlos, ainda espantado d'aquelle estranho embaraÁo de
Melanie.

E mal tinham dado alguns passos, Carlos, parando, baixando a voz no
rumor da rua:

--OuÁa l·! O Eusebiosinho disse-lhe alguma coisa a meu respeito, Craft?

O outro confessou que Eusebiosinho, apenas lhe apparecera no quarto,
rompera logo, mascando as palavras, a informal-o da mysteriosa vida de
Carlos nos Olivaes...

--Mas eu fil-o calar, acrescentou Craft, declarando-lhe que era t„o
pouco curioso que nem mesmo quizera lÍr nunca a _Historia Romana_... Em
todo o caso vocÍ deve ir a Santa Olavia.

Carlos, com effeito, logo n'essa noite fallou a Maria da visita que
devia ao avÙ. Ella, muito sÈria, aconselhou-lh'a tambem, arrependida de
o ter retido assim, egoisticamente e tanto tempo, longe dos outros que o
amavam.

--Mas ouve, querido, n„o È por muito tempo, n„o?

--Por dois ou tres dias, quando muito. E naturalmente, trago atÈ o avÙ.
N„o est· l· a fazer nada, e eu n„o estou para a massada de voltar l·...

Maria ent„o lanÁou-lhe os braÁos ao pescoÁo, e baixo, timidamente,
confessou-lhe um grande desejo que tinha... Era vÍr o Ramalhete! Queria
visitar os quartos d'elle, o jardim, todos esses recantos, onde tantas
vezes elle pensara n'ella, e se desesper·ra, sentindo-a distante e
inaccessivel...

--Dize, queres? Mas È necessario que seja antes de vir teu avÙ. Queres?

--Acho um encanto! Ha sÛ um perigo. … eu n„o te deixar sahir mais e
ficar a devorar-te na minha caverna.

--Prouvera a Deus!

Combinaram ent„o que ella fosse jantar ao Ramalhete, no dia da partida
de Carlos para Santa Olavia. ¡ noitinha levava-o no coupÈ a Santa
Apolonia; depois seguia para os Olivaes.

Foi no sabbado. Carlos veio muito cedo para o Ramalhete: e o seu coraÁ„o
batia com a deliciosa perturbaÁ„o d'um primeiro encontro, quando sentiu
parar a carruagem de Maria e os seus vestidos escuros roÁarem o velludo
cÙr de cereja que forrava a escada discreta dos seus quartos. O beijo
que trocaram, na ante-camara, teve a profunda doÁura d'um primeiro
beijo!

Ella foi logo ao toucador tirar o chapÈo, dar um geito ao cabello. Elle
n„o cessava de a beijar; abraÁava-a pela cinta; e com os rostos juntos
sorriam para o espelho, enlevados no brilho da sua mocidade. Depois,
impaciente, curiosa, ella percorreu os quartos, miudamente, atÈ · alcova
de banho; leu os titulos dos livros, respirou o perfume dos frascos,
abriu os cortinados de sÍda do leito... Sobre uma commoda Luiz XV havia
uma salva de prata, transbordando de retratos que Carlos se esquecera de
esconder, a coronella d'hussards d'amazona, madame Rughel decotada,
outras ainda. Ella mergulhou as m„os, com um sorriso triste, na profus„o
d'aquellas recordaÁıes... Carlos, rindo, pediu-lhe que n„o olhasse
´esses enganos do seu coraÁ„oª.

Porque n„o? dizia Maria, sÈria. Sabia bem que elle n„o descera das
nuvens, puro como um seraphim. Havia sempre photographias no passado
d'um homem. De resto tinha a certeza que nunca am·ra as outras como a
sabia amar a ella.

--AtÈ È uma profanaÁ„o fallar em _amor_ quando se trata d'essas coisas
d'acaso, murmurou Carlos. S„o quartos de estalagem onde se dorme uma
vez...

No emtanto Maria considerava longamente a photographia da coronella
d'hussards. Parecia-lhe bem linda! Quem era? Uma franceza?

--N„o, de Vienna. Mulher d'um correspondente meu, homem de negocios...
Gente tranquilla, que vivia no campo...

--Ah, Viennense... Dizem que tem um grande encanto as mulheres de
Vienna!

Carlos tirou-lhe a photographia da m„o. Para que haviam de fallar
d'outras mulheres? Existia em todo o vasto mundo uma mulher unica, e
elle tinha-a alli abraÁada sobre o seu coraÁ„o.

Foram ent„o percorrer todo o Ramalhete, atÈ ao terraÁo. Ella gostou
sobretudo do escriptorio d'Affonso, com os seus damascos de camara de
prelado, a sua feiÁ„o severa de paz estudiosa.

--N„o sei porque, murmurou dando um olhar lento ·s estantes pesadas e ao
Christo na cruz, n„o sei porque, mas teu avÙ faz-me medo!

Carlos riu. Que tonteria! O avÙ se a conhecesse, fazia-lhe logo a cÙrte
rasgadamente... O avÙ era um santo! E um lindo velho!

--Teve paixıes?

--N„o sei, talvez... Mas creio que o avÙ foi sempre um puritano.

Desceram ao jardim, que lhe agradou tambem, quieto e burguez, com a sua
cascatasinha chorando n'um rythmo dÙce. Sentaram-se um instante sob o
velho cedro, junto a uma mesa rustica de pedra, onde estavam entalhadas
letras mal distinctas e uma data antiga; o chalrar das aves nos ramos
pareceu a Maria mais dÙce que o de todas as outras aves que ouvira;
depois arranjou um ramo para levar como reliquia.

Mesmo em cabello foram vÍr defronte as cocheiras: o guarda-port„o ficou
de bonÈ na m„o, embasbacado para aquella senhora t„o linda, t„o loira, a
primeira que via entrar no Ramalhete! Maria acariciou os cavallos, e fez
uma festa grata e mais longa · _Tunante_, que tantas vezes lev·ra Carlos
· rua de S. Francisco. Elle via n'estas simples coisas as graÁas
incomparaveis d'uma esposa perfeita.

Recolheram pela escada particular de Carlos--que Maria achava
´mysteriosaª com aquelles velludos grossos cÙr de cereja, forrando-a
como um cofre, e abafando todo o rumor de saias. Carlos jurou que nunca
alli pass·ra outro vestido--a n„o ser o do Ega, uma vez, mascarado de
varina.

Depois deixou-a no quarto, um momento para ir dar ordens ao Baptista:
mas quando voltou encontrou-a a um canto do sof·, t„o descahida, t„o
desanimada, que lhe arrebatou as m„os, cheio d'inquietaÁ„o.

--Que tens, amor? Est·s doente?

Ella ergueu lentamente os olhos que brilhavam n'uma nevoa de lagrimas.

Pensar que tu vaes deixar por mim esta linda casa, o teu conforto, a tua
paz, os teus amigos... … uma tristeza, tenho remorsos!

Carlos ajoelh·ra ao seu lado, sorrindo dos seus escrupulos, chamando-lhe
tonta, seccando-lhe n'um beijo as lagrimas que rolavam... Considerava-se
ella ent„o valendo menos que a cascata do jardim e alguns tapetes
usados?...

--O que eu tenho pena È de te sacrificar t„o pouco, minha querida Maria,
quando tu sacrificas tanto!

Ella encolheu os hombros, amargamente.

--Eu!

Passou-lhe as m„os entre os cabellos, puxou-o brandamente para o seu
seio--e dizia, baixo, como fallando ao seu proprio coraÁ„o, calmando-lhe
as incertezas e as duvidas:

--N„o, com effeito, nada vale no mundo sen„o o nosso amor! Nada mais
vale! Se elle È verdadeiro, se È profundo, tudo mais È v„o, nada mais
importa...

A sua voz morreu entre os beijos de Carlos, que a levava abraÁada para o
leito--onde tentas vezes desesperava d'ella como d'uma deusa intangivel.

¡s cinco horas pensaram em jantar. A mesa fÙra posta n'uma saleta que
Carlos quizera em tempo revestir de colxas de setim cÙr de perola e
bot„o d'ouro. Mas n„o estava ainda arranjada; as paredes conservavam o
seu papel verde-escuro; e Carlos puzera alli ultimamente o retrato de
seu pai--uma teia banal, representando um moÁo pallido, de grandes
olhos, com luvas de camurÁa amarella e um chicote na m„o.

Era Baptista que os servia, j· com um fato claro de viagem. A mesa,
redonda e pequena, parecia uma cesta de flÙres; o champagne gelava
dentro dos baldes de prata; no aparador a travessa d'arroz dÙce tinha as
iniciaes de Maria.

Aquelles lindos cuidados fizeram-na sorrir, enternecida. Depois reparou
no retrato de Pedro da Maia: e interressou-se, ficou a contemplar
aquella face descÛrada, que o tempo fizera livida, e onde pareciam mais
tristes os grandes olhos d'arabe, negros e languidos.

--Quem È? perguntou.

--… meu pai.

Ella examinou-o mais de perto, erguendo uma vela. N„o achava que Carlos
se parecesse com elle. E voltando-se muito sÈria, emquanto Carlos
desarrolhava com veneraÁ„o uma garrafa de velho Chambertin:

--Sabes tu com quem te pareces ·s vezes?... … extraordinario, mas È
verdade. Pareces-te com minha m„i!

Carlos riu, encantado d'uma parecenÁa que os aproximava mais, e que o
lisonjeava.

--Tens raz„o, disse ella, que a mam„ era formosa... Pois È verdade, ha
um n„o sei quÍ na testa, no nariz... Mas sobretudo certos geitos, uma
maneira de sorrir... Outra maneira que tu tens de ficar assim um pouco
vago, esquecido... Tenho pensado n'isto muitas vezes...

Baptista entrava com uma terrina de louÁa do Jap„o. E Carlos,
alegremente, annunciou um jantar · portugueza. Mr. Antoine, o _chef
francez_, fÙra com o avÙ. Fic·ra a Michaela, outra cozinheira de casa,
que elle achava magnifica, e que conservava a tradiÁ„o da antiga cozinha
freiratica do tempo do snr. D. Jo„o V.

--Assim, para comeÁar, minha querida Maria, ahi tens tu um caldo de
gallinha, como sÛ se comia em Odivellas, na cella da madre Paula, em
noites de noivado mystico...

E o jantar foi encantador. Quando Baptista se retirava, elles
apertavam-se rapidamente a m„o por cima das flÙres. Nunca Carlos a
ach·ra t„o linda, t„o perfeita: os seus olhos pareciam- lhe irradiar uma
ternura maior: na singela rosa que lhe ornava o peito via a
superioridade do seu gosto. E o mesmo desejo invadiu-os a ambos, de
ficarem alli eternamente, n'aquelle quarto de rapaz, com jantarinhos
portuguezes · moda de D. Jo„o V, servidos pelo Baptista de jaquet„o.

--Estou com uma vontade de perder o comboio! disse Carlos como
implorando a sua approvaÁ„o.

--N„o, deves ir... È necessario n„o sermos egoistas... SÛmente n„o te
descuides, manda-me todos os dias um grande telegramma... Que os
telegraphos foram unicamente inventados para quem se ama e est· longe,
como dizia a mam„.

Ent„o Carlos gracejou de novo sobre a sua parecenÁa com a m„i d'ella. E
baixando-se a remexer a garrafa de champagne dentro do gelo:

--… curioso n„o m'o teres dito antes... Tambem tu nunca me fallaste de
tua m„i...

Um pouco de sangue roseou a face de Maria Eduarda. Oh, nunca fall·ra da
mam„, porque nunca viera a proposito...

--De resto n„o havia coisas muito interessantes a contar, acrescentou. A
mam„ era uma senhora da ilha da Madeira, n„o tinha fortuna, casou...

--Casou em Paris?

--N„o, casou na Madeira com um austriaco que fÙra l· acompanhar um irm„o
tisico... Era um homem muito distincto, viu a mam„, que era lindÌssima,
gostaram um do outro, _et voil‡_...

Dissera isto sem erguer os olhos do prato, lentamente, cortando uma aza
de frango.

--Mas ent„o, exclamou Carlos, se teu pai era austriaco, meu amor, tu Ès
tambem austriaca... …s talvez uma d'essas viennenses que tu dizes que
tem um t„o grande encanto...

Sim, talvez, segundo essas coisas dos codigos, era austriaca. Mas nunca
conhecera o pai, vivera sempre com a mam„, fall·ra sempre portuguez,
considerava-se portugueza. Nunca estivera na Austria, nem sabia mesmo
allem„o...

--N„o tiveste irm„os?

--Sim, tive, uma irm„sinha que morreu em pequena... Mas n„o me lembra.
Tenho em Paris o retrato d'ella... Bem linda!

N'esse momento em baixo, na calÁada, uma carruagem, a trote largo,
estacou. Carlos, surprehendido, correu · janella com o guardanapo na
m„o.

--… o Ega! exclamou. … aquelle velhaco que chega de Cintra!

Maria erguera-se, inquieta. E um momento, de pÈ, ambos se olharam,
hesitando... Mas o Ega era como um irm„o de Carlos. Elle esperava sÛ que
o Ega recolhesse de Cintra para o levar · _Toca_. Melhor seria que o
encontro se dÈsse alli, natural, franco e simples...

--Baptista! gritou Carlos, sem vacillar mais. Dize ao snr. Ega que estou
a jantar, que entre para aqui.

Maria sent·ra-se, vermelha, dando um geito rapido aos ganchos do
cabello, arranjado · pressa, um pouco desmanchado.

A porta abriu-se,--e o Ega parou, assombrado, intimidado, de chapÈo
branco, de guarda-sol branco, e com um embrulho de papel pardo na m„o.

--Maria, disse Carlos, aqui tens emfim o meu grande amigo Ega.

E ao Ega disse simplesmente:

--Maria Eduarda.

Ega ia largar atarantadamente o embrulho para apertar a m„o que Maria
Eduarda lhe estendia, cÛrada e sorrindo. Mas o papel pardo, mal atado,
desfez-se; e uma provis„o fresca de queijadas de Cintra rolou,
esmagando-se, sobre as flÙres do tapete. Ent„o todo o embaraÁo findou
atravÈs d'uma risada alegre--emquanto o Ega, desolado, abria os braÁos
sobre as ruinas do seu dÙce.

--Tu j· jantaste? perguntou Carlos.

N„o, n„o tinha jantado. E via j· alli uns ovos molles nacionaes, que o
encantavam, enfastiado como vinha da horrivel cozinha do Victor. Oh, que
cozinha! Pratos lugubres, traduzidos do francez em cal„o, como as
comedias do Gymnasio!

--Ent„o avanÁa! exclamou Carlos. Depressa, Baptista!... Traze o caldo de
gallinha! Oh, ainda temos tempo!... Tu sabes que vou hoje para Santa
Olavia?

Est· claro que sabia, recebera a carta d'elle, e por isso viera... Mas
n„o podia jantar ainda, assim coberto do pÛ da estrada, e com um
jaquet„o de bucolica...

--Dize que me guardem o caldo, Baptista! Olha, dize que me guardem tudo,
que eu trago uma fome de pastor da Arcadia!...

O Baptista servira o cafÈ. E a carruagem da senhora, que os devia levar
a Santa Apolonia, esperava j· · porta com a maleta. Mas Ega agora queria
conversar, affirmou que tinham tempo, tirou o relogio. Estava parado. E
elle declarou logo que no campo se regulava pelo sol, como as flÙres e
como as aves...

--Fica agora em Lisboa? perguntou-lhe Maria Eduarda.

--N„o, minha senhora, sÛ o tempo de cumprir o meu dever de cidad„o,
subindo duas ou tres vezes o Chiado... Depois volto para a relva. Cintra
comeÁa a ser interessante para mim, agora que n„o est· ninguem...
Cintra, de ver„o, com burguezes, parece-me um idyllio com nodoas de
sebo.

Mas Baptista offerecia a Carlos a _chartreuse_--dizendo que s. exc.^a
n„o se devia demorar se n„o tencionava perder o comboio, de proposito.
Maria ergueu-se logo para ir dentro pÙr o chapÈo. E os dois amigos, sÛs,
ficaram um momento calados, emquanto Carlos accendia devagar o charuto.

--Tu quanto tempo te demoras? perguntou por fim o Ega.

--Tres ou quatro dias. E tu n„o voltes para Cintra antes que eu chegue,
precisamos communicar... Que diabo tens tu feito l·?

O outro encolheu os hombros.

--Tenho sorvido ar puro, colhido florinhas, murmurado de vez em quando
´que lindo que isto È!ª etc.

Depois, debruÁado sobre a mesa, picando com um palito uma azeitona:

--De resto, nada... O Damaso l· est·! Sempre com a Cohen, como te mandei
dizer... Est· claro que n„o ha nada entre elles, aquillo È sÛ para mim,
para me irritar... … um canalha aquelle Damaso! Eu sÛ quero um pretexto.
Esgano-o!

Deu um pux„o forte aos punhos, com uma cÙr de cÛlera no rosto queimado:

--Eu, est· claro, fallo-lhe, aperto-lhe a m„o, chamo-lhe ´amigo Damasoª,
etc. Mas sÛ quero um pretexto! … necessario aniquilar aquelle animal. …
um dever de moralidade, d'aceio publico, de gosto varrer aquella bola de
lama humana!

--Quem esteve por l· mais? perguntou Carlos.

--Que te interesse?... A Gouvarinho. Mas vi-a uma sÛ vez. Apparecia
pouco, coitada, agora que andava de luto.

--De luto?

--Por ti.

Calou-se. Maria entrava, com o vÈu descido, acabando de apertar as
luvas. Ent„o Carlos, suspirando, resignado, estendeu os braÁos ao
Baptista para elle lhe vestir um casaco leve de jornada. Ega ajudava,
pedindo um abraÁo filial para Affonso, e recados para o gordo Sequeira.

Foi acompanhal-os a baixo, em cabello: e fechou elle a portinhola,
promettendo a Maria Eduarda uma visita · _Toca_, apenas Carlos voltasse
d'esses penhascos do Douro...

--N„o v·s para Cintra antes de eu voltar! gritou-lhe ainda Carlos. E a
Michaela que tome conta em ti!

--_All right, all right_, dizia o Ega. Boa jornada! Criado de v. exc.^a,
minha senhora... AtÈ · _Toca_!

O coupÈ partiu. Ega subiu ao seu quarto, onde outro criado lhe estava
preparando o banho. Na saleta deserta, entre as flÙres e os restos do
jantar, as velas continuavam a arder solitarias, fazendo resaltar no
painel escuro a pallidez de Pedro da Maia, e a melancolia dos seus
olhos.



No sabbado seguinte, perto das duas horas, Carlos e Ega, ainda · mesa do
almoÁo, acabavam os seus charutos, fallando de Santa Olavia. Carlos
cheg·ra de l· essa madrugada, sÛ. O avÙ decidira ficar entre as suas
velhas arvores atÈ ao fim do outono que ia t„o luminoso e t„o macio...

Carlos fÙra-o encontrar muito alegre, muito forte--apesar de ter sido
obrigado, por causa d'um toque de rheumatismo, a abandonar emfim o seu
culto da agua fria. E esta macissa, resplandecente saude do velho fÙra
um allivio para o coraÁ„o de Carlos: parecia-lhe assim mais facil, menos
ingrata, a sua partida com Maria para Italia, em outubro. AlÈm d'isso
ach·ra um _truc_, como elle dizia ao Ega, para realisar o supremo desejo
da sua vida sem magoar o avÙ, sem lhe turbar a paz da velhice. Era um
_truc_, simples. Consistia em partir elle sÛ para Madrid, no comeÁo
d'uma certa ´viagem d'estudoª, para que j· prepar·ra o avÙ em Santa
Olavia. Maria ficava na _Toca_, durante um mez. Depois tomava o paquete
para Bordeus: e era ahi que Carlos se reunia com ella, a comeÁarem essa
existencia de felicidade e romance que as flÙres da Italia deviam
perfumar... Na primavera elle voltava a Lisboa, deixando Maria
installada no seu ninho: e ent„o, pouco a pouco, ia revelando ao avÙ
aquella ligaÁ„o, a que o prendia a honra, e que o forÁaria agora a viver
regularmente longos mezes n'uma outra terra que se torn·ra a patria do
seu coraÁ„o. E que havia de dizer o avÙ? Aceitar esse romance, a que n„o
veria os lados desagradaveis, esbatido assim pela distancia e pela nevoa
da paix„o. Seria para Affonso uma vaga e mal sabida coisa d'amor que se
passava em Italia... Poderia lamental-a apenas por lhe levar
pontualmente todos os annos o neto para longe; e cada anno se consolaria
pensando na curta duraÁ„o dos idyllios humanos. De resto Carlos contava
com essa larga benevolencia que amollece as almas mais rigidas quando
apenas alguns passos as separam do tumulo... Emfim o seu _truc_
parecia-lhe bom. Ega, em resumo, approvou o _truc_.

Depois, mais alegremente, fallaram da installaÁ„o d'esse amor. Carlos
permanecia na sua idÈa romantica--um cottage · beira d'um lago. Mas Ega
n„o approvava o lago. Ter todos os dias diante dos olhos uma agua sempre
mansa e sempre azul, parecia-lhe perigoso para a durabilidade da paix„o.
Na quietaÁ„o continua d'uma paizagem igual, dois amantes solitarios,
dizia elle, n„o sendo botanicos nem pescando · linha, vÍem-se forÁados a
viver exclusivamente do desejo um do outro, e a tirar d'ahi todas as
suas idÈas, sensaÁıes, occupaÁıes, gracejos e silencios... E, que diabo,
o mais forte sentimento n„o pÛde dar para tanto! Dois amantes, cuja
unica profiss„o È amarem-se, deviam procurar uma cidade, uma vasta
cidade, tumultuosa e creadora, onde o homem tenha durante o dia os
clubs, o cavaco, os museus, as idÈas, o sorriso d'outras mulheres--e a
mulher tenha as ruas, as compras, os theatros, a attenÁ„o d'outros
homens; de sorte que · noite, quando se reunam, n„o tendo passado o
infindavel dia a observarem-se um no outro e a si proprios, trazendo
cada um a vibraÁ„o da vida forte que atravessaram--achem um encanto novo
e verdadeiro no conchego da sua solid„o, e um sabor sempre renovado na
repetiÁ„o dos seus beijos...

--Eu, continuava Ega, erguendo-se, se levasse para longe uma mulher, n„o
era para um lago, nem para a Suissa, nem para os montes da Sicilia; era
para Paris, para o boulevard dos Italianos, alli · esquina do
Vaudeville, com janellas deitando para a grande vida, a um passo do
_Figaro_, do Louvre, da Philosophia e da _blague_... Aqui tens tu a
minha doutrina!... E ahi temos nÛs o amigo Baptista com o correio.

N„o era o correio. Era apenas um bilhete que o Baptista trazia n'uma
salva: e vinha t„o perturbado que annunciou ´um sujeito, alli fÛra, na
antecamara, n'uma carruagem, · espera...ª

Carlos olhou o bilhete, empallideceu terrivelmente. E ficou a reviral-o,
lento e como atordoado, entre os dedos que tremiam... Depois, em
silencio, atirou-o ao Ega por cima da mesa.

--Caramba! murmurou Ega, assombrado.

Era Castro Gomes!

Bruscamente Carlos erguera-se, decidido.

--Manda entrar... Para o sal„o grande!

Baptista apontou para o jaquet„o de flanella com que Carlos tinha
almoÁado, e perguntou baixo se s. exc.^a queria uma sobrecasaca.

--Traze.

SÛs, Ega e Carlos olharam-se um instante, anciosamente.

--N„o È um desafio, est· claro, balbuciou Ega.

Carlos n„o respondeu. Examinava outra vez o bilhete: o homem chamava-se
Joaquim Alvares de Castro Gomes: por baixo tinha escripto a lapis ´Hotel
BraganÁaª... Baptista volt·ra com a sobrecasaca: e Carlos, abotoando-a
devagar, sahiu sem outra mais palavra ao Ega, que fic·ra de pÈ junto da
mesa, limpando estupidamente as m„os ao guardanapo.

No sal„o nobre, forrado de brocados cÙr de musgo d'outono, Castro Gomes
examinava curiosamente, com um joelho apoiado · borda do sof·, a
esplendida tela de Constable, o retrato da condessa de Runa, bella e
forte no seu vestido de velludo escarlate de caÁadora ingleza. Ao rumor
dos passos de Carlos sobre o tapete, voltou-se, de chapÈo branco na m„o,
sorrindo, pedindo perd„o de estar assim a pasmar familiarmente para
aquelle soberbo Constable... Com um gesto rigido, Carlos, muito pallido,
indicou-lhe o sof·. Saudando e risonho Castro Gomes sentou-se
vagarosamente. No peito da sobrecasaca muito justa trazia um bot„o de
rosas, os seus sapatos de verniz resplandeciam sob as polainas de linho;
no rosto chupado, queimado, a barba negra, terminava em bico; os
cabellos rareavam-lhe na risca; e mesmo a sorrir tinha um ar de seccura,
de fadiga.

--Eu possuo tambem em Paris um Constable muito _chic_, disse elle, sem
embaraÁo, n'um tom arrastado, cheio de _rr_, que o _sutaque_ brazileiro
adocicava. Mas È apenas uma pequena paizagem, com duas figurinhas. … um
pintor que n„o me diverte, a dizer a verdade... Todavia d· muito tom a
uma galeria. … necessario tel-o.

Carlos, defronte n'uma cadeira, com os punhos fortemente fechados sobre
os joelhos, conservava a immobilidade d'um marmore. E, perante aquelle
modo affavel, uma idÈa ia-o atravessando, lacerante, angustiosa,
pondo-lhe j· nos olhos largos que n„o tirava de sobre o outro, uma
irreprimivel chamma de cÛlera. Carlos Gomes decerto _n„o sabia nada_!
Cheg·ra, desembarc·ra, correra aos Olivaes, dormira nos Olivaes! Era o
marido, era novo, tivera-a j· nos braÁos--a ella! E agora alli estava,
tranquillo, de flÙr ao peito, fallando de Constable! O unico desejo de
Carlos, n'esse instante, era que aquelle homem o insultasse.

No emtanto Castro Gomes, amavelmente, desculpava-se de se apresentar
assim, sem o conhecer, sem ao menos ter pedido por um bilhete uma
entrevista...

--O motivo porÈm que me traz È t„o urgente, que cheguei esta manh„ ·s
dez horas do Rio de Janeiro, ou antes do Lazareto, e estou aqui!... E
esta mesma noite, se puder, parto para Madrid.

Fez-se um allivio infinito no coraÁ„o de Carlos. Ainda n„o vira ent„o
Maria Eduarda, aquelles seccos labios n„o a tinham tocado! E sahiu emfim
da sua rigidez de marmore, teve um movimento attento, aproximando de
leve a cadeira.

Castro Gomes no emtanto, tendo pousado o chapÈo, tir·ra do bolso
interior da sobrecasaca uma carteira com um largo monogramma de ouro; e,
vagaroso, procurava entre os papeis uma carta... Depois, com ella na
m„o, muito tranquillamente:

--Eu recebi no Rio de Janeiro, antes de partir, este escripto anonymo...
Mas n„o creia v. exc.^a que foi elle que me levou a atravessar · pressa
o Atlantico. Seria o maior dos ridiculos... E desejo tambem affirmar-lhe
que todo o conteudo d'elle me deixou perfeitamente indifferente... Aqui
o tem. Quer v. exc.^a lÍl-o, ou quer que eu leia?

Carlos murmurou com um esforÁo:

--Leia v. exc.^a

Castro Gomes desdobrou o papel, e revirou-o um instante entre os dedos.

--Como v. exc.^a vÍ, È a carta anonyma em todo o seu horror: papel de
mercearia, pautadinho de azul; calligraphia reles; tinta reles; cheiro
reles. Um documento odioso. E aqui est· como elle se exprime: ´Um homem
´que teve a honra de apertar a m„o de v. exc.^aª Eu dispensava a
honra... ´que teve a hora de apertar a m„o de v. exc.^a e d'apreciar o
seu cavalheirismo, julga dever prevenil-o que sua mulher È, · vista de
toda a Lisboa, a amante d'um rapaz muito conhecido aqui, Carlos Eduardo
da Maia, que vive n'uma casa ·s Janelas Verdes, chamada o Ramalhete.
Este heroe, que È muito rico, comprou expressamente uma quinta nos
Olivaes, ´onde installou a mulher de v. exc.^a e onde a vai vÍr todos os
dias, ficando ·s vezes, com escandalo da visinhanÁa, atÈ de madrugada.
Assim o nome honrado de v. exc.^a anda pelas lamas da capital.ª … tudo o
que diz a carta; e eu sÛ devo acrescentar, porque o sei, que tudo quanto
ella diz È incontestavelmente exacto... O snr. Carlos da Maia È pois
publicamente, com conhecimento de toda a Lisboa, o amante d'essa
senhora.

Carlos ergueu-se, muito sereno. E abrindo de leve os braÁos, n'uma
aceitaÁ„o inteira de todas as responsabilidades:

--N„o tenho ent„o nada a dizer a v. exc.^a sen„o que estou ·s suas
ordens!...

Uma fugitiva onda de sangue avivou a pallidez morena de Castro Gomes.
Dobrou a carta, guardou-a com todo o vagar na carteira. Depois, sorrindo
friamente:

--Perd„o... O snr. Carlos da Maia sabe, t„o bem como eu, que se isto
tivesse de ter uma soluÁ„o, violenta, eu n„o viria aqui pessoalmente, a
sua casa, lÍr-lhe este papel... A coisa È inteiramente outra.

Carlos recahira na cadeira, assombrado. E agora a lentid„o adocicada
d'aquella voz ia-se-lhe tornando intoleravel. Um confuso terror do que
viria d'esses labios, que sorriam com uma pallidez impertinente, quasi
fazia estalar o seu pobre coraÁ„o. E era um desejo brutal de lhe gritar
que acabasse, que o matasse, ou que sahisse d'aquella sala, onde a sua
presenÁa era uma inutilidade ou uma torpeza!...

O outro passou os dedos no bigode, e proseguiu, devagar, arranjando as
suas palavras com cuidado e com precis„o:

--O meu caso È este, snr. Carlos da Maia. Ha pessoas em Lisboa que me
n„o conhecem decerto, mas que sabem a esta hora que existe algures, em
Paris, no Brazil ou no inferno, um certo Castro Gomes, que tem uma
mulher bonita, e que a mulher d'esse Castro Gomes tem em Lisboa um
amante. Isto È desagradavel, sobretudo por ser falso. E v. exc.^a
comprehende que eu n„o devo continuar a arrastar por mais tempo a fama
de _marido infeliz_, visto que a n„o mereÁo, e que a n„o posso
_legalmente_ ter... … por isso que aqui venho, muito francamente, de
_gentleman_ para _gentleman_, dizer-lhe, como tenho tenÁ„o de dizer a
outros, que aquella senhora n„o È minha mulher.

Durante um momento Castro Gomes esperou a voz de Carlos da Maia. Mas
elle conservava uma face muda, impenetravel, onde apenas os olhos
brilhavam angustiosamente na lividez que a cobrira. Por fim, com um
esforÁo, baixou de leve a cabeÁa, como acolhendo placidamente aquella
revelaÁ„o, que tornava outra qualquer palavra entre elles desnecessaria
e v„.

Mas Castro Gomes encolhera de leve os hombros, com uma languida
resignaÁ„o, como quem attribue tudo · malicia dos Destinos.

--S„o as ridiculas scenas da vida... O snr. Carlos da Maia est· d'ahi a
vÍr as coisas. … a velha, a classica historia... Ha tres annos que eu
vivo com essa senhora; quando tive o inverno passado d'ir ao Brazil,
trouxe-a a Lisboa para n„o vir sÛsinho. FÙmos para o hotel Central. V.
exc.^a comprehende perfeitamente que eu n„o fui fazer confidencias ao
gerente do estabelecimento. Aquella senhora vinha commigo, dormia
commigo, portanto, para todos os effeitos do hotel, era minha mulher.
Como mulher de Castro Gomes ficou no Central; como mulher de Castro
Gomes alugou depois uma casa na rua de S. Francisco; como mulher de
Castro Gomes tomou emfim um amante... Deu-se sempre como mulher de
Castro Gomes, mesmo nas circumstancias mais particularmente
desagradaveis para Castro Gomes... E, meu Deus! n„o podemos realmente
condemnal-a muito... Achava-se por acaso revestida d'uma excellente
posiÁ„o social e d'um nome puro, seria mais que humano que o seu amor da
verdade a levasse, apenas conhecia alguem, a declarar que posiÁ„o e nome
eram de emprestimo e ella era apenas ´Fulana de tal, amigada...ª De
resto, sejamos justos, ella n„o era moralmente obrigada a dar
semelhantes explicaÁıes ao tendeiro que lhe vendia a manteiga, ou ·
matrona que lhe alugava a casa: nem mesmo, penso eu, a ninguem, a n„o
ser a um pai que lhe quizesse apresentar sua filha, sahida do
convento... Demais a mais sou eu que tenho um pouco a culpa; muitas
vezes, em coisas relativamente delicadas lhe deixei usar o meu nome.
Foi, por exemplo, com o nome de Castro Gomes que ella tomou a governante
ingleza. As inglezas s„o t„o exigentes!... Aquella, sobretudo, uma
rapariga t„o sÈria... Emfim tudo isso passou... O que importa agora È
que eu lhe retiro solemnemente o nome que lhe emprest·ra; e ella fica
apenas com o seu, que È Madame Mac-Gren.

Carlos ergueu-se, livido. E com as m„os fincadas nas costas da cadeira
t„o fortemente, que quasi lhe esgaÁava o estofo:

--Mais nada, creio eu?

Castro Gomes mordeu de leve os beiÁos perante este remate brutal que o
despediu.

--Mais nada, disse elle tomando o chapÈo e levantando-se muito
vagarosamente. Devo apenas acrescentar, para evitar a v. exc.^a
suspeitas injustas, que aquella senhora n„o È uma menina que eu tivesse
seduzido, e a quem recuse uma reparaÁ„o. A pequerruchinha que alli anda
n„o È minha filha... Eu conheÁo a m„i sÛmente ha tres annos... Vinha dos
braÁos d'um qualquer, passou para os meus... Posso pois dizer, sem
injuria, que era uma mulher que eu pagava.

Complet·ra com esta palavra a humilhaÁ„o do outro. Estava deliciosamente
desforrado. Carlos, mudo, abrira o reposteiro da sala, n'uma sacudidella
brusca. E, diante d'esta nova rudeza que revelava sÛ mortificaÁ„o,
Castro Gomes foi perfeito: saudou, sorriu, murmurou:

--Parto esta noite mesmo para Madrid, e levo o pezar de ter feito o
conhecimento de v. exc.^a por um motivo t„o desagradavel... T„o
desagradavel para mim.

Os seus passos desafogados e leves perderam-se na ante-camara, entre as
tapeÁarias. Depois em baixo uma portinhola bateu, uma carruagem rodou na
calÁada...

Carlos fic·ra cahido n'uma cadeira, junto da porta, com a cabeÁa entre
as m„os. E de todas aquellas palavras de Castro Gomes, que ainda lhe
resoavam em redor, adocicadas e lentas, sÛ lhe restava o sentimento
atordoado de uma coisa muito bella, resplandecendo muito alto, e que
cahia de repente, se fazia em pedaÁos na lama, salpicando-o todo de
nodoas intoleraveis... N„o soffria: era simplesmente um assombro de todo
o seu sÍr perante este fim immundo d'um sonho divino... Unira a sua alma
arrebatadamente a outra alma nobre e perfeita, longe nas alturas, entre
nuvens d'ouro; de repente uma voz passava, cheia de _rr_; as duas almas
rolavam, batiam n'um charco; e elle achava-se tendo nos braÁos uma
mulher que n„o conhecia, e que se chamava Mac-Gren!

Mac-Gren! era a Mac-Gren!

Ergueu-se, com os punhos fechados; e veio-lhe uma revolta furiosa de
todo o seu orgulho contra essa ingenuidade que o trouxera mezes timido,
tremulo, ancioso, seguindo · maneira d'uma estrella aquella mulher, que
qualquer em Paris, com mil francos no bolso, poderia ter sobre um sof·,
facil e n˙a! Era horrivel! E recordava agora, afogueado de vergonha, a
emoÁ„o religiosa com que entrava na sala de reps vermelho da rua de S.
Francisco: o encanto enternecido com que via aquellas m„os, que elle
julgava as mais castas da terra, puxarem os fios de l„ no bordado, n'um
constante trabalho de m„i laboriosa e recolhida; a veneraÁ„o espiritual
com que se afastava da orla do seu vestido, igual para elle · tunica
d'uma Virgem cujas pregas rigidas nem a mais rude bestialidade ousaria
desmanchar de leve! Oh imbecil, imbecil!... E todo esse tempo ella
sorria comsigo d'aquella simpleza de provinciano do Douro! Oh! tinha
vergonha agora das flÙres apaixonadas que lhe trouxera! Tinha vergonha
das ´excellenciasª que lhe dÈra!

E seria t„o facil, desde o primeiro dia no Aterro, ter percebido que
aquella deusa, descida das nuvens, estava amigada com um brazileiro! Mas
quÍ! a sua paix„o absurda de romantico puzera-lhe logo, entre os olhos e
as coisas flagrantes e reveladoras, uma d'essas nevoas douradas que d„o
·s montanhas mais rugosas e negras um brilho polido de pedra preciosa!
Porque escolhera ella precisamente para seu medico, na sua casa e na sua
intimidade, o homem que na rua a fit·ra com um fulgor de desejo na face?
Porque È que nas suas longas conversas, nas manh„s da rua de S.
Francisco, n„o fall·ra j·mais de Paris, dos seus amigos e das coisas da
sua casa? Porque È que ao fim de dois mezes, sem preparaÁ„o, sem todas
essas progressivas evidencias do amor que cresce e desabrocha como uma
flÙr, se lhe abandon·ra de chofre, toda prompta, apenas elle lhe disse o
primeiro ´amo-teª?... Porque lhe aceit·ra uma casa j· mobilada, com a
facilidade com que lhe aceitava os ramos? E outras coisas ainda,
pequeninas, mas que n„o teriam escapado ao mais simples: joias brutaes,
d'um luxo grosseiro de _cocotte_: o livro da _ExplicaÁ„o de sonhos_, ·
cabeceira da cama; a sua familiaridade com Melanie... E agora atÈ o
ardor dos seus beijos lhe parecia vir menos da sinceridade da
paix„o--que da sciencia da voluptuosidade!... Mas tudo acab·ra,
providencialmente! A mulher que elle am·ra e as suas seducÁıes
esvaÌam-se de repente no ar como um sonho, radiante e impuro, de que
aquelle brazileiro o viera acordar por caridade! Esta mulher era apenas
a Mac-Gren... O seu amor fÙra, desde que a vira, como o proprio sangue
das suas veias; e escoava-se agora todo atravÈs da ferida incuravel e
que nunca mais fecharia, feita no seu orgulho!

Ega appareceu · porta do sal„o, ainda pallido:

--Ent„o?

Toda a cÛlera de Carlos fez explos„o:

--Extraordinario, Ega, extraordinario! A coisa mais abjecta, a coisa
mais immunda!

--O homem pediu-te dinheiro?

--Peor!

E, passeando arrebatadamente, Carlos desabafou, contou tudo, sem
reticencias, com as mesmas palavras cruas do outro,--que assim repetidas
e avivadas pelos seus labios, lhe descobriam motivos novos de humilhaÁ„o
e de nojo.

--J· por acaso sucedeu a alguem coisa mais horrivel? exclamou por fim,
cruzando violentamente os braÁos diante do Ega, que se abatera no sof·,
assombrado. PÛdes tu conceber um caso mais sordido? E tambem mais
burlesco? … para estalar o coraÁ„o. E È para rebentar a rir. Estupendo!
Ahi, n'esse sof·, ahi onde tu est·s, o homemzinho, muito amavel, de flÙr
ao peito, a dizer: ´Olhe que aquella creatura n„o È minha mulher, È uma
creatura que eu pago...ª Comprehendes isto bem! Aquelle sujeito
paga-a... Quanto È o beijo? Cem francos. Ahi est„o cem francos... … de
morrer!

E recomeÁou no seu passeio, desvairado, desabafando mais, recontando
tudo, sempre com as palavras do Castro Gomes, que elle deformava ainda
n'uma brutalidade maior...

--Que te parece, Ega? Dize l·. Que fazias tu? … horrivel, heim?

Ega, que limpava pensativamente o vidro do monoculo, hesitou, terminou
por dizer que, considerando as coisas com superioridade, como homens do
seu tempo e ´do seu mundoª, ellas n„o offereciam nem motivos de cÛlera,
nem motivos de dÙr...

--Ent„o n„o comprehendes nada! gritou Carlos, n„o percebes o meu caso!

Sim, sim, Ega comprehendia claramente que era horrivel para um homem, no
momento em que ia ligar com adoraÁ„o o seu destino ao d'uma mulher,
saber que outros a tinham tido a tanto por noite... Mas isso mesmo
simplificava e amenisava as coisas. O que fÙra um drama complicado
tornava-se uma distracÁ„o bonanÁosa. Ficava Carlos, desde logo,
alliviado do remorso de ter desorganisado uma familia: j· n„o tinha de
se exilar, a esconder o seu erro, n'um buraco florido da Italia; j· o
n„o prendia a honra para sempre a uma mulher a quem talvez n„o o
prenderia para sempre o amor. Tudo isto, que diabo! eram vantagens.

--E a dignidade d'ella! exclamou Carlos.

Sim, mas a diminuiÁ„o de dignidade e pureza n„o era na verdade grande,
porque antes da visita de Castro Gomes j· ella era uma mulher que foge
do seu marido--o que, sem mesmo usar termos austeros, nem È muito puro
nem muito digno... Decerto, tudo isso era uma humilhaÁ„o irritante--n„o
superior todavia · d'um homem que tem uma _Madona_ que contempla com
religi„o, suppondo-a de Raphael, e que descobre um dia que a tela divina
foi fabricada na Bahia por um sujeito chamado Castro Gomes! Mas o
resultado intimo e social parecia-lhe ser este: Carlos atÈ ahi tivera
uma bella amante com inconvenientes, e agora tinha sem inconvenientes
uma bella amante...

--O que tu deves fazer, meu caro Carlos...

--O que eu vou fazer È escrever-lhe uma carta, remettendo-lhe o preÁo de
dois mezes que dormi com ella...

--Brutalidade romantica!... Isso j· vem na _Dama das Camelias_...
Sobretudo È n„o vÍr com boa philosophia as _nuances_.

O outro atalhou, impaciente:

--Bem, Ega, n„o fallemos mais n'isso... Eu estou horrivelmente
nervoso!... AtÈ logo. Tu jantas em casa, n„o È verdade? Bem, atÈ logo.

Sahia atirando a porta, quando Ega, agora tranquillo, disse, erguendo-se
muito lentamente do sof·:

--O homemzinho foi para l·.

Carlos voltou-se, com os olhos chammejantes:

--Foi para os Olivaes? Foi ter com ella?

Sim, pelo menos mand·ra a tipoia · quinta do Craft. Ega, para conhecer
esse snr. Castro Gomes, fÙra metter-se no cubiculo do guarda-port„o. E
vira-o descer, accender um charuto... Era com effeito um d'esses
_rastaquouËros_ que, n'esse infeliz Paris que tudo tolera, veem ao _CafÈ
de la Paix_ ·s duas horas para tomar a sua groseille, tesos e
embrutecidos... E fÙra o guarda-port„o que lhe dissera que o sujeito
parecia muito alegre e mand·ra o cocheiro bater para os Olivaes...

Carlos parecia aniquilado:

--Tudo isso È nojento!... No fim talvez atÈ se entendam ambos... Estou
como tu dizias aqui h· tempos: ´Cahiu-me a alma a uma latrina, preciso
um banho por dentro!ª

Ega murmurou melancolicamente:

--Essa necessidade de banhos moraes est·-se tornando com effeito t„o
frequente!... Devia haver na cidade um estabelecimento para elles.



Carlos, no seu quarto, passeava diante da mesa onde a folha branca de
papel, em que ia escrever a Maria Eduarda, j· tinha a data d'esse dia,
depois--_Minha senhora_, n'uma letra que elle se esforÁ·ra por traÁar
firme e serena:--e n„o achava outra palavra. Estava bem decidido a
mandar-lhe um cheque de duzentas libras, paga esplendidamente ultrajante
das semanas que pass·ra no seu leito. Mas queria juntar duas linhas
regeladas, impassiveis, que a ferissem mais que o dinheiro: n„o
encontrava sen„o phrases de grande cÛlera, revelando um grande amor.

Olhava a folha branca: e a banal express„o _Minha senhora_ dava-lhe uma
saudade dilacerante por aquella a quem na vespera ainda dizia ´_minha
adorada_ª, pela mulher que se n„o chamava ainda Mac-Gren, que era
perfeita, e que uma paix„o indomavel, superior · raz„o, entontecera e
vencera. E o seu amor por essa Maria Eduarda, nobre e amante, que se
transform·ra na Mac-Gren, amigada e falsa, era agora maior
infinitamente, desesperado por ser irrealisavel--como o que se tem por
uma morta e que palpita mais ardente junto da frialdade da cova. Oh! se
ella pudesse resurgir outra vez, limpa, clara, do lodo em que afund·ra,
outra vez Maria Eduarda, com o seu casto bordado!... De que amor mais
delicado a cercaria, para a compensar das affeiÁıes domesticas que ella
deixasse de merecer! Que veneraÁ„o maior lhe consagraria--para supprir o
respeito que o mundo superficial e affectado lhe retirasse! E ella tinha
tudo para reter amor e respeito--tinha a belleza, a graÁa, a
intelligencia, a alegria, a maternidade, a bondade, um incomparavel
gosto... E com todas estas qualidades dÙces e fortes--era apenas uma
intrujona!

Mas porque? porque? Porque entr·ra ella n'esta longa fraude, tramada dia
a dia, mentindo em tudo, desde o pudor que fingia atÈ ao nome que usava!

Apertava a cabeÁa entre as m„os, achava a vida intoleravel. Se ella
mentia--onde havia ent„o a verdade? Se ella o trahia assim, com aquelles
olhos claros, o universo podia bem ser todo uma immensa traiÁ„o muda.
Punha-se um mÛlho de rosas n'um vaso, exhalava-se d'elle a peste!
Caminhava-se para uma relva fresca, ella escondia um lamaÁal! E para
que, para que mentira ella? Se, desde o primeiro dia em que o vira,
tremulo e rendido, a contemplar o seu bordado como se contempla uma
acÁ„o de santidade--lhe tivesse dito que n„o era esposa do snr. Castro
Gomes, mas sÛ amante do snr. Castro Gomes--teria a sua paix„o sido menos
viva, menos profunda? N„o era a estola do padre que dava belleza ao seu
corpo e valor ·s suas caricias... Para que fÙra ent„o essa mentira
tenebrosa e descarada--que lhe fazia suppÙr agora que eram imposturas os
seus mesmos beijos, imposturas os seus mesmos suspiros!... E com este
longo embuste o levava a expatriar-se, dando a sua vida inteira por um
corpo por que outros davam apenas um punhado de libras! E por esta
mulher, tarifada ·s horas como as caleches da Companhia, elle ia
amarguarar a velhice do avÙ, estragar irreparavelmente o seu destino,
cortar a sua livre acÁ„o de homem!

Mas porque? Porque fÙra esta farÁa banal, arrastada por todos os palcos
de opera comica, da _cocotte que se finge senhora_? Porque o fizera
ella, com aquelle fallar honesto, o puro perfil e a doÁura de m„i? Por
interesse? N„o. Castro Gomes era mais rico do que elle, mais largamente
lhe podia satisfazer o appetite mundano de toilettes, de carruagens...
Sentia ella que Castro Gomes a ia abandonar, e queria ter ao lado aberta
e prompta outra bolsa rica? Ent„o mais simples teria sido dizer-lhe: ´eu
sou livre, gÛsto de ti, toma-me livremente, como eu me dou.ª N„o! Havia
alli alguma coisa secreta, tortuosa, impenetravel... O que daria por a
conhecer!

E ent„o pouco a pouco foi surgindo n'elle o desejo de ir aos Olivaes...
Sim, n„o lhe bastaria desforrar-se arrogantemente, atirando-lhe ao
regaÁo um cheque embrulhado n'uma insolencia! O que precisava, para sua
plena tranquillidade, era arrancar do fundo d'aquella turva alma o
segredo d'aquella torpe farÁa... SÛ isso amansaria o seu incomparavel
tormento. Queria entrar outra vez na _TÛca_, vÍr como era aquella outra
mulher que se chamava Mac-Gren, e ouvir as suas palavras. Oh! iria sem
violencia, sem recriminaÁıes, muito calmo, sorrindo! SÛ para que ella
lhe dissesse qual fÙra a raz„o d'aquella mentira t„o laboriosa, t„o
v„... SÛ para lhe perguntar serenamente: ´Minha rica senhora para quer
foi toda esta intrujice?ª E depois vÍl-a chorar... Sim, tinha esta
anciedade cheia d'amor de a vÍr chorar. A agonia que elle sentira no
sal„o cÙr de musgo do outono, emquanto o outro arrastava os _rr_, queria
vÍl-a repetida n'esse seio, onde elle atÈ ahi dormira t„o dÙcemente,
esquecido de tudo, e que era bello, t„o divinamente bello!...

Bruscamente, decidido, deu um pux„o · campainha. Baptista appareceu todo
abotoado na sua sobrecasaca, com um ar resoluto, como armado e prompto a
ser util n'aquella crise que adivinhava...

--Baptista, corre ao hotel Central e pergunta se j· entrou o snr. Castro
Gomes!... N„o, escuta... Pıe-te · porta do Central, e espera atÈ que
entre aquelle sujeito que aqui esteve... N„o, È melhor perguntar!...
Emfim, certifica-te de que o sujeito ou voltou ou est· no hotel. E
apenas estejas bem certo d'isso, volta aqui, · desfilada, n'uma
tipoia... Um batedor seguro, que È para me levar depois aos Olivaes!...

Immediatamente, dada esta ordem, serenou. Era j· um allivio immenso n„o
ter de escrever a carta, e achar palavras acerbas que a deviam
dilacerar. Rasgou o papel devagar. Depois fez o cheque de duzentas
libras, ao _portador_. Elle mesmo lh'o levaria... Oh, decerto, n„o lh'o
atirava romanticamente ao regaÁo... Deixal-o-hia sobre uma mesa,
sobrescriptado a Madame Mac-Gren... E de repente sentiu uma compaix„o
por ella. Via-a j·, abrindo o enveloppe com duas grandes lagrimas,
lentas, caladas, a rolarem-lhe na face... E os seus proprios olhos se
humedeceram.

N'esse momento Ega, de fÛra, perguntou se era importuno.

--Entra! gritou.

E continuou passeando, calado, com as m„os nos bolsos: o outro, em
silencio tambem, foi encostar-se · janella sobre o jardim.

--Preciso escrever ao avÙ a dizer-lhe que cheguei, murmurou Carlos por
fim, parando junto da mesa.

--D·-lhe recados meus.

Carlos sent·ra-se, tom·ra languidamente a penna: mas bem depressa a
arremessou: cruzou as m„os por detraz da cabeÁa no espaldar da cadeira,
cerrou os olhos, como exhausto.

--Sabes uma coisa que me parece certa? disse de repente o Ega da
janella. Quem escreveu a carta anonyma ao Castro Gomes foi o Damaso!

Carlos olhou para elle:

--Achas?... Sim, talvez... Com effeito quem havia de ser?

--N„o foi mais ninguem, menino. foi o Damaso!

Carlos ent„o recordou o que lhe cont·ra o Taveira--as allusıes
mysteriosas do Damaso a um escandalo que se estava armando, uma bala que
elle devia receber na cabeÁa... O Damaso, portanto, tinha como certa a
vinda do brazileiro, depois um duello...

--… necessario esmagar esse infame! exclamou Ega, subitamente furioso.
N„o ha seguranÁa, n„o ha paz na nossa vida emquanto esse bandido
viver!...

Carlos n„o respondeu. E o outro proseguia, transtornado, j· todo
pallido, deixando transbordar odios cada dia accumulados:

--Eu n„o o mato porque n„o tenho um pretexto!... Se tivesse um pretexto,
uma insolencia d'elle, um olhar atrevido, era meu, esborrachava-o!...
Mas tu precisas fazer alguma coisa, isto n„o pÛde ficar assim! N„o pÛde!
… necessario sangue... VÍ tu que infamia, uma carta anonyma!... Temos a
nossa paz, a nossa felicidade, tudo exposto constantemente aos ataques
do snr. Damaso. N„o pÛde ser. Eu o que tenho pena È de n„o ter um
pretexto! Mas tenl-o tu, aproveita, e esmaga-o!

Carlos encolheu vagamente os hombros:

--Merecia chicotadas, com effeito... Mas elle realmente sÛ tem sido
velhaco commigo por causa das minhas relaÁıes com essa senhora; e como
isso È um caso acabado, tudo o que se prende com elle finda tambem.
_Parce sepultis_... E no fim era elle que tinha raz„o, quando dizia que
ella era uma intrujona...

Atirou uma punhada · mesa, ergueu-se, e com um sorriso amargo, n'um
tedio infinito de tudo:

--Era elle, era o snr. Damaso Salcede que tinha raz„o!...

Toda a sua cÛlera revivera, mais aspera, a esta idÈa. Olhou o relogio.
Tinha pressa de a vÍr, tinha pressa de a injuriar!...

--Escreveste-lhe? perguntou o Ega.

--N„o, vou l· eu mesmo.

Ega pareceu espantado. Depois recomeÁou a passear, calado, com os olhos
no tapete.

Ia escurecendo quando Baptista voltou. Vira o snr. Castro Gomes apear-se
no hotel e mandar descer as suas bagagens:--e a tipoia, para levar o
menino aos Olivaes, esperava em baixo.

--Bem, adeus! disse Carlos procurando atarantadamente um par de luvas.

--N„o jantas?

--N„o.

D'ahi a pouco rodava pela estrada dos Olivaes. J· se accendera o gaz. E
inquieto, no estreito assento, accendendo nervosamente _cigarettes_ que
n„o fumava, soffria j· a perturbaÁ„o d'aquelle encontro difficil e
doloroso... Nem sabia mesmo como a havia de tratar, se por ´minha
senhoraª, se por ´minha boa amigaª, com uma superior indifferenÁa. E ao
mesmo tempo sentia por ella uma compaix„o indefinida, que o amollecia.
Diante d'estes seus modos regelados, via-a j· toda pallida, a tremer,
com os olhos cheios d'agua. E estas lagrimas que appetecera, agora que
estava t„o perto de as vÍr correr, enchiam-no sÛ de commoÁ„o e de dÛ...
Durante um momento mesmo pensou em retroceder. Por fim seria muito mais
digno escrever-lhe duas linhas altivas, sacudindo-a de si para sempre e
seccamente! Poderia n„o lhe mandar o cheque,--affronta brutal d'homem
rico. Apesar d'embusteira era mulher, cheia de nervos, cheia de
phantasia, e am·ra-o talvez com desinteresse... Mas uma carta era mais
digno. E agora acudiam-lhe as palavras que lhe deveria ter dirigido,
incisivas e precisas. Sim, devia-lhe ter dito--que se estava prompto a
dar a sua vida a uma mulher que se lhe abandon·ra _por paix„o_, estava
decidido a n„o sacrificar nem os seus vagares a uma mulher que lhe
cedera _por profiss„o_. Era mais simples, era terminante... E depois n„o
a via, n„o teria de supportar a tortura das explicaÁıes e das lagrimas.

Ent„o veio-lhe uma fraqueza. Bateu nos vidros para fazer parar,
reflectir um instante, mais calmamente, no silencio das rodas. O
cocheiro n„o ouviu: o trote largo da parelha continuou batendo a estrada
escura. E Carlos deixou seguir, outra vez hesitante. Depois, · maneira
que reconhecia, esbatidos na sombra, aquelles sitios onde tantas vezes
pass·ra com o coraÁ„o em festa, quando a sua paix„o estava em flÙr, uma
cÛlera nova voltava--menos contra a pessoa de Maria Eduarda, que contra
essa _mentira_ que fÙra obra d'ella, e que vinha estragar
irremediavelmente o encanto divino da sua vida. Era essa _mentira_ que
agora odiava--vendo-a como uma coisa material e tangivel, de um peso
enorme, feia e cÙr de ferro, esmagando-lhe o coraÁ„o. Oh! Se n„o fosse
_essa coisa_ pequenina e inolvidavel que estava entre elles, como um
indestructivel bloco de granito, poderia abrir-lhe novamente os seus
braÁos, sen„o com a mesma crenÁa pelo menos com o mesmo ardor! Esposa do
outro ou amante do outro--no fim que importava? N„o era por faltar aos
beijos que lhe dera esse a consagraÁ„o d'um padre, rosnada em latim--que
a sua pelle estava mais polluida por elles, ou tinha a menos frescura?
Mas havia a _mentira_, a _mentira_ inicial, dita no primeiro dia em que
fÙra · rua de S. Francisco, e que como um fermento podre ficava
estragando tudo d'ahi por diante, dÙces conversas, silencios, passeios,
sestas no calor da quinta, murmurios de beijos morrendo entre os
cortinados cÙr d'ouro... Tudo manchado, tudo contaminado por aquella
_mentira_ primeira que ella dissera sorrindo, com os seus tranquillos
olhos limpidos...

Abafava. Ia a descer a vidraÁa que faltava a correia--quando a tipoia
parou de repente, na estrada solitaria... Abriu a portinhola. Uma mulher
com um chale pela cabeÁa fallava ao cocheiro.

--Melanie!

--Ah, monsieur!

Carlos saltou precipitadamente. Era j· proximo da quinta, na volta
d'estrada, onde o muro fazia um recanto sob uma faia, defronte de sebes
de piteiras resguardando campos d'olivedo. Carlos gritou ao cocheiro que
seguisse e esperasse no port„o da quinta. E ficou alli, no escuro, com
Melanie encolhida no seu chale.

Que estava ella alli a fazer? Melanie parecia transtornada: contou que
vinha procurar · villa uma carruagem, porque a senhora queria ir a
Lisboa, ao Ramalhete... Ella julg·ra a tipoia vazia.

E apertava as m„os, dando as graÁas, com um immenso allivio. Ah! que
felicidade, que felicidade ter elle vindo!... A senhora estava afflicta,
nem jant·ra, perdida de chÙro. O snr. Castro Gomes apparecera l·
inesperadamente... A senhora, coitadinha, queria morrer!

Ent„o Carlos, caminhando rente ao muro, interrogou Melanie. Como viera o
outro? que dissera? como se despedira?... Melanie n„o ouvira nada. O
Snr. Castro Gomes e a senhora tinham conversado sÛs no pavilh„o japonez.
¡ sahida È que vira o snr. Castro Gomes dizer adeus a madame, muito
socegado, muito amavel, rindo, fallando de _Niniche_... A senhora, essa,
parecia como morta, t„o pallida! Quando o outro partiu, ia tendo um
desmaio.

Estavam proximo do port„o da _Toca_. Carlos retrocedeu, respirando
fortemente, com o chapÈo na m„o. E agora todo o seu orgulho se ia
sumindo sob a violencia da sua anciedade. Queria saber! E perguntava,
deixava Melanie nas coisas dolorosas da sua paix„o... Dites toujours,
Melanie, dites! Sabia a senhora que Castro Gomes estivera com elle no
Ramalhete, lhe confess·ra tudo?...

Claramente que sabia, por isso chorava--dizia Melanie. Ah, ella bem
repetira · senhora que era melhor contar a verdade! Era muito amiga
d'ella, servia-a desde pequena, vira nascer a menina... E tinha-lh'o
dito, atÈ j· nos Olivaes!

Carlos curvava a cabeÁa na escurid„o do muro. Melanie _tinha-lh'o dito_!
Assim ella e a criada discutiam ambas, acamaradadas, o embuste em que
andava presa a sua vida! E aquellas revelaÁıes de Melanie, que suspirava
com o chale sobre o rosto, abatiam os ultimos pedaÁos d'esse sonho, que
elle erguera t„o alto, entre nuvens d'ouro. Nada restava. Tudo jazia em
estilhaÁos, no lodo immundo.

Um momento, com o coraÁ„o cheio de fadiga, pensou em voltar a Lisboa.
Mas para alÈm d'aquelle negro muro estava _ella_, perdida de chÙro,
querendo morrer... E lentamente recomeÁou a caminhar para o port„o.

E agora, sem resistencia nenhuma do orgulho, fazia perguntas mais
intimas a Melanie. Porque È que Maria Eduarda n„o lhe dissera a verdade?

Melanie encolheu os hombros. N„o sabia: nem a senhora sabia! Estivera no
Central como madame Gomes; alug·ra a casa da rua de S. Francisco como
madame Gomes; recebera-o como madame Gomes... E assim se deix·ra ir,
insensivelmente, conversando com elle, gostando d'elle, vindo para os
Olivaes... E depois era tarde, j· n„o se atrevera a confessar, toda
enterrada assim na _mentira_, com medo do desgosto...

Mas, exclamava Carlos, nunca imagin·ra ella que fatalmente tudo se
descobriria um dia?

--Je ne sais pas, monsieur, je ne sais pas, murmurou Melanie quasi a
chorar.

Depois eram outras curiosidades. Ella n„o esperava Castro Gomes? n„o
suppunha que elle voltasse? n„o costumava fallar d'elle?...

--Oh non, monsieur, oh non!

Madame, desde que o senhor comeÁ·ra a ir todos os dias · rua de S.
Francisco, consider·ra-se para sempre desligada do snr. Castro Gomes,
nem fallava n'elle, nem queria que se fallasse... Antes d'isso a menina
chamava sempre ao snr. Castro Gomes _petit ami_. Agora n„o lhe chamava
nada. Tinham-lhe dito que j· n„o havia _petit ami_...

--Ella escrevia-lhe ainda, dizia Carlos, eu sei que ella lhe escrevia...

Sim, Melanie julgava que sim... Mas cartas indifferentes. A senhora
lev·ra o seu escrupulo a ponto de que, desde que viera para os Olivaes,
nunca mais gast·ra um ceitil das quantias que lhe mandava o snr. Castro
Gomes. As letras para receber dinheiro conservava-as intactas,
entregara-lh'as n'essa tarde... N„o se lembrava elle de a ter encontrado
uma manh„ · porta do Monte-Pio? Pois bem! FÙra l·, com uma amiga
franceza, empenhar uma pulseira de brilhantes da senhora. A senhora
vivia agora das suas joias; tinha j· outras no prÈgo.

Carlos par·ra, commovido. Mas ent„o para que tinha ella mentido?

--Je ne sais pas, dizia Melanie, je ne sais pas... Mais elle vous aime
bien, allez!

Estavam defronte do port„o. A tipoia esperava. E, ao fundo da rua
d'acacias, a porta da casa aberta deixava passar a luz do corredor,
frouxa e triste. Carlos julgou vÍr mesmo a figura de Maria Eduarda,
embrulhada n'uma capa escura, de chapÈo, atravessar n'essa claridade...
Ouvira decerto rodar a carruagem. Que afflicta paciencia seria a sua!

--Vai-lhe dizer que vim, Melanie, vai! murmurou Carlos.

A rapariga correu. E elle, caminhando devagar sob as acacias, sentia no
sombrio silencio as pancadas desordenandas do seu coraÁ„o. Subiu os tres
degraus de pedra--que lhe pareciam j· d'uma casa estranha. Dentro, o
corredor estava deserto, com a sua lampada mourisca alumiando as
panoplias de touros... Alli ficou. Melanie, com o chale na m„o, veio
dizer-lhe que a senhora estava na sala das tapeÁarias...

Carlos entrou.

L· estava, ainda de capa, esperando de pÈ, palida, com toda a alma
concentrada nos olhos que refulgiam entre as lagrimas. E correu para
elle, arrebatou-lhe as m„os, sem poder fallar, soluÁando, tremendo toda.

Na sua terrivel perturbaÁ„o, Carlos achava sÛ esta palavra,
melancolicamente estupida:

--N„o sei porque chora, n„o sei, n„o h· raz„o para chorar...

Ella pÙde emfim balbuciar:

--Escuta-me, pelo amor de Deus! n„o digas nada, deixa contar-te... Eu ia
l·, tinha mandado Melanie por uma carruagem. Ia vÍr-te... Nunca tive a
coragem de te dizer! Fiz mal, foi horrivel... Mas escuta, n„o digas nada
ainda, perdÙa, que eu n„o tenho culpa!

De novo os soluÁos a suffocaram. E cahiu ao canto do sof·, n'um chÙro
brusco e nervoso, que a sacudiu toda, lhe fazia rolar sobre os hombros
os cabellos mal atados.

Carlos fic·ra diante d'ella, immovel. O seu coraÁ„o parecia parado de
surpreza e de duvida, sem forÁa para desafogar. Apenas agora sentia
quanto baixo e brutal deixar-lhe o cheque--que tinha alli na carteira e
que o enchia de vergonha... Ella ergueu o rosto, todo molhado, murmurou
com um grande esforÁo:

--Escuta-me!... Nem sei como hei de dizer... Oh, s„o tantas coisas, s„o
tantas coisas!... Tu n„o te vaes j· embora, senta-te, escuta...

Carlos puxou uma cadeira, lentamente.

--N„o, aqui ao pÈ de mim... Para eu ter mais coragem... Por quem Ès, tem
pena, faze-me isso!

Elle cedeu · supplicaÁ„o humilde e enternecedora dos seus olhos
arrazados d'agua: e sentou-se ao outro canto do sof·, afastado d'ella,
n'uma desconsolaÁ„o infinita. Ent„o, muito baixo, enrouquecida pelo
chÙro, sem o olhar, e como n'um confessionario--Maria comeÁou a fallar
do seu passado, desmanchadamente, hesitando, balbuciando, entre grandes
soluÁos que a afogavam, e pudores amargos que lhe faziam enterrar nas
m„os a face afflicta.

A culpa n„o fÙra d'ella! n„o fÙra d'ella! Elle devia ter perguntado
·quelle homem que sabia toda a sua vida... FÙra sua m„i... Era horroroso
dizel-o, mas fÙra por causa d'ella que conhecera e que fugira com o
primeiro homem, o outro, um irlandez... E tinha vivido com elle quatro
annos, como sua esposa, t„o fiel, t„o retirada de tudo e sÛ occupada da
sua casa, que elle ia casar com ella! Mas morrera na guerra com os
allem„es, na batalha de Saint-Privat. E ella fic·ra com Rosa, com a m„i
j· doente, sem recursos, depois de vender tudo... Ao principio
trabalh·ra... Em Londres tinha procurado dar liÁıes de piano... Tudo
falh·ra, dois dias vivera sem lume, de peixe salgado, vendo Rosa com
fome! com fome! Ah, elle n„o podia perceber o que isto era!... Quasi
fÙra por caridade que as tinha repatriado para Paris... E ahi conhecera
Castro Gomes. Era horrivel, mas que havia d'ella fazer! Estava
perdida...

Lentamente escorreg·ra do sof·, cahira aos pÈs de Carlos. E elle
permanecia immovel, mudo, com o coraÁ„o rasgado por angustias
differentes: era uma compaix„o tremula por todas aquellas miserias
soffridas, dÙr de m„i, trabalho procurado, fome, que lh'a tornavam
confusamente mais querida; e era o horror d'esse outro homem, o
irlandez, que surgia agora, e que lh'a tornava de repente mais
maculada...

Ella continuava fallando de Castro Gomes. Vivera tres annos com elle,
honestamente, sem um desvio, sem um pensamento mau. O seu desejo era
estar quieta em casa. Elle È que a forÁava a andar em ceias, em
noitadas...

E Carlos n„o podia ouvir mais, torturado. Repeliu-lhe as m„os, que
procuravam as suas. Queria fugir, queria findar!...

--Oh n„o, n„o me mandes embora! gritou ella prendendo-se a elle
anciosamente. Eu sei que n„o mereÁo nada! Sou uma desgraÁada... Mas n„o
tive coragem, meu amor! Tu Ès homem, n„o comprehendes estas coisas...
Olha para mim! porque n„o olhas para mim? Um instante sÛ, n„o voltes o
rosto, tem pena de mim...

N„o! elle n„o queria olhar. Temia aquellas lagrimas, o rosto cheio
d'agonia. Ao calor do seio que arquejava sobre os seus joelhos, j· tudo
n'elle comeÁava a oscillar, orgulhos, despeitos, dignidade, ciume... E
ent„o, sem saber, a seu pezar, as suas m„os apertaram as d'ella. Ella
cobriu-lhe logo de beijos os dedos, as mangas, arrebatadamente: e
anciosa implorava do fundo da sua miseria um instante de misericordia.

--Oh, dize que me perdÙas! Tu Ès t„o bom! Uma palavra sÛ... Dize sÛ que
n„o me odeias, e depois deixo-te ir... Mas dize primeiro... Olha ao
menos para mim como d'antes, uma sÛ vez!...

E eram agora os seus labios que procuravam os d'elle. Ent„o a fraqueza
em que sentia afundar-se todo o seu sÍr encheu Carlos de cÛlera, contra
si e contra ella. Sacudiu-a brutalmente, gritou:

--Mas porque n„o me disseste, porque n„o me disseste? Para que foi essa
longa mentira? Eu tinha-te amado do mesmo modo! Para que mentiste, tu?

Larg·ra-a, prostrada no ch„o. E de pÈ, deixava cahir sobre ella a sua
queixa desesperada:

--… a tua mentira que nos separa, a tua horrivel mentira, a tua mentira
sÛmente!

Ella ergueu-se pouco a pouco, mal se sustendo, e com uma pallidez de
desmaio.

--Mas eu queria dizer-t'o, murmurou muito baixo, muito quebrado diante
d'elle, deixando cahir os braÁos. Eu queria dizer-t'o... N„o te lembras,
n'aquelle dia em que vieste tarde, quando eu fallei da casa de campo, e
que tu pela primeira vez declaraste que gostavas de mim? Eu disse-te
logo: ´ha uma coisa que te quero contar...ª Tu nem me deixaste acabar.
Imaginavas o que era, que eu queria ser sÛ tua, longe de tudo... E
disseste ent„o que haviamos d'ir, com Rosa, ser felizes para algum canto
do mundo... N„o te lembras?... Foi ent„o que me veio uma tentaÁ„o! Era
n„o dizer nada, deixar-me levar, e depois, mais tarde, annos depois,
quando te tivesse provado bem que boa mulher eu era, digna da tua
estima, confessar-te tudo e dizer-te: ´agora, se queres, manda-me
embora.ª Oh! foi mal feito, bem sei... Mas foi uma tentaÁ„o, n„o
resisti... Se tu n„o fallasses em fugirmos, tinha-te dito tudo... Mas
mal fallaste em fugirmos, vi uma outra vida, uma grande esperanÁa, nem
sei que! E alÈm d'isso adiava aquella horrivel confiss„o! Emfim, nem
posso explicar, era como o cÈo que se abria, via-me comtigo n'uma casa
nossa... Foi uma tentaÁ„o!... E depois era horrivel, no momento em que
tu me querias tanto, ir dizer-te ´n„o faÁas tudo isso por mim, olha que
eu sou uma desgraÁada, nem marido tenho...ª Que te hei de explicar mais?
N„o me resignava a perder o teu respeito. Era t„o bom ser assim
estimada... Emfim foi um mal, foi um grande mal... E agora ahi est·,
vejo-me perdida, tudo acabou!

Atirou-se para o ch„o, como uma creatura vencida e finda, escondendo a
face no sof·. E Carlos, indo lentamente ao fundo da sala, voltando
bruscamente atÈ junto d'ella, tinha sÛ a mesma recriminaÁ„o, a
_mentira_, a _mentira_, pertinaz e de cada dia... SÛ os soluÁos d'ella
lhe respondiam.

--Porque n„o me disseste ao menos depois, aqui nos Olivaes, quando
sabias que tu eras tudo para mim?...

Ella ergueu a cabeÁa fatigada:

--Que queres tu? Tive medo que o teu amor mudasse, que fosse d'outro
modo... Via-te j· a tratar-me sem respeito. Via-te a entrar por ahi
dentro de chapÈo na cabeÁa, a perder a affeiÁ„o · pequena, a querer
pagar as despezas da casa... Depois tinha remorsos, ia adiando. Dizia
´hoje n„o, um dia sÛ mais de felicidade, ·manh„ ser·...ª E assim ia
indo! Emfim, nem eu sei, um horror!

Houve um silencio. E ent„o Carlos sentiu · porta _Niniche_ que queria
entrar e que gania baixinho e doloridamente. Abriu. A cadellinha correu,
pulou para o sof·, onde Maria permanecia soluÁando, enrodilhando a um
canto: procurava lamber-lhe as m„os, inquieta: depois ficou plantada
junto d'ella, como a guarda-l'a, desconfiada, seguindo, com os seus
vivos olhos d'azeviche, Carlos que recomeÁ·ra a passear sombriamente.

Um ai mais longo e mais triste de Maria fel-o parar. Esteve um momento
olhando para aquella dÙr humilhada... Todo abalado, com os labios a
tremer, murmurou:

--Mesmo que te pudesse perdoar, como te poderia acreditar agora nunca
mais? Ha esta mentira horrivel sempre entre nÛs a separar-nos! N„o teria
um unico dia de confianÁa e de paz...

--Nunca te menti sen„o n'uma coisa, e por amor de ti! disse ella
gravemente do fundo da sua prostraÁ„o.

--N„o, mentiste em tudo! Tudo era falso, falso o teu casamento, falso o
teu nome, falsa a tua vida toda... Nunca mais te poderia acreditar...
Como havia de ser, se agora mesmo quasi que nem acredito no motivo das
tuas lagrimas?

Uma indignaÁ„o ergueu-a, direita e soberba. Os seus olhos de repente
seccos rebrilharam, revoltados e largos, no marmore da sua pallidez.

--Que queres tu dizer? Que estas lagrimas tem outro motivo, estas
supplicas s„o fingidas? Que finjo tudo para te reter, para n„o te
perder, ter outro homem, agora que estou abandonada?...

Elle balbuciou:

--N„o, n„o! N„o È isso!

--E eu? exclamou ella, caminhando para elle, dominando-o, magnifica e
com um esplendor de verdade na face. E eu? porque hei de eu acreditar
n'essa grande paix„o que me juravas? O que È que tu amavas ent„o em mim?
Dize l·! Era a mulher d'outro, o nome, o requinte do adulterio, as
_toilletes_?... Ou era eu propria, o meu corpo, a minha alma e o meu
amor por ti?... Eu sou a mesma, olha bem para mim!... Estes braÁos s„o
os mesmos, este peito È o mesmo... SÛ uma coisa È differente: a minha
paix„o! Essa È maior, desgraÁadamente, infinitamente maior.

--Oh! se isso fosse verdade! gritou Carlos, apertando as m„os.

N'um instante Maria estava cahida a seus pÈs, com os braÁos abertos para
elle.

--Juro-t'o por alma de minha filha, por alma de Rosa! Amo-te, adoro-te
doidamente, absurdamente, atÈ · morte!

Carlos tremia. Todo o seu sÍr pendia para ella; e era um impulso
irresistivel de se deixar cahir sobre aquelle seio que arfava a seus
pÈs, ainda que elle fosse o abysmo da sua vida inteira... Mas outra vez
a idÈia da _mentira_ passou, regeladora. E afastou-se d'ella, levando os
punhos · cabeÁa, n'um desespero, revoltado contra aquella coisa
pequenina e indestructivel que n„o queria sumir-se, e que se interpunha
como uma barra de ferro entre elle e a sua felicidade divina!

Ella fic·ra ajoelhada, immovel, com os olhos esgazeados para o tapete.
Depois, no silencio estofado da sala, a sua voz ergueu-se dolente e
tremula:

--Tens raz„o, acabou-se! Tu n„o me acreditas, tudo se acabou!... …
melhor que te v·s embora... Ninguem me torna a acreditar... Acabou tudo
para mim, n„o tenho ninguem mais no mundo... ¡manh„ s·io d'aqui,
deixo-te tudo... Has de me dar tempo para arranjar... Depois, que hei de
fazer, vou-me embora!

E n„o pÙde mais, tombou para o ch„o, com os braÁos estirados, perdida de
chÙro.

Carlos voltou-se, ferido no coraÁ„o. Com o seu vestido escuro, para alli
cahida e abandonada, parecia j· uma pobre creatura, arremessada para
fÛra de todo o lar, sÛsinha a um canto, entre a inclemencia do mundo...
Ent„o respeitos humanos, orgulho, dignidade humana, tudo n'elle foi
levado como por um grande vento de piedade. Viu sÛ, offuscando todas as
fragilidades, a sua belleza, a sua dÙr, a sua alma sublimemente amante.
Um delirio generoso, de grandiosa bondade, misturou-se · sua paix„o. E,
debruÁando-se, disse-lhe baixo, com os braÁos abertos:

--Maria, queres casar commigo?

Ella ergueu a cabeÁa, sem comprehender, com os olhos desvairados. Mas
Carlos tinha os braÁos abertos; e estava esperando para a fechar dentro
d'elles outra vez, como sua e para sempre... Ent„o levantou-se,
tropeÁando nos vestidos, veio cahir sobre o peito d'elle, cobrindo-o de
beijos, entre soluÁos e risos, tonta, n'um deslumbramento:

--Casar comtigo, comtigo? Oh Carlos... E viver sempre, sempre
comtigo?... Oh meu amor, meu amor! E tratar de ti, e servir-te, e
adorar-te, e ser sÛ tua? E a pobre Rosa tambem... N„o, n„o cases
commigo, n„o È possivel, n„o valho nada! Mas se tu queres, porque
n„o?... Vamos para longe, juntos, e Rosa e eu sobre o teu coraÁ„o! E has
de ser nosso amigo, meu e d'ella, que n„o temos ninguem no mundo... Oh!
meu Deus, meu Deus!...

Empallideceu, escorregando pesadamente entre os braÁos d'elle,
desmaiada: e os seus longos cabellos desprendido rojavam o ch„o, tocados
pela luz de tons d'ouro.




V


Maria Eduarda e Carlos, que fic·ra essa noite nos Olivaes na sua
casinhola, acabavam de almoÁar. O Domingos servira o cafÈ, e antes de
sahir deix·ra ao lado de Carlos a caixa de cigarettes e o _Figaro_. As
duas janellas estavam abertas. Nem uma folha se movia no ar pesado da
manh„ encoberta, entristecida ainda por um dobre lento de sinos que
morria ao longe nos campos. No banco de cortiÁa, sob as arvores, miss
Sarah costurava preguiÁosamente; Rosa ao lado brincava na relva. E
Carlos, que viera n'uma intimidade conjugal, com uma simples camisa de
sÍda e um jaquet„o de flanella, chegou ent„o a cadeira para junto de
Maria, tomou-lhe a m„o, brincando-lhe com os anneis, n'uma lenta
caricia:

--Vamos a saber, meu amor... Decidiste, por fim? Quando queres partir?

N'essa noite, entre os seus primeiros beijos de noiva, ella mostr·ra o
desejo enternecido de n„o alterar o plano da Italia e d'um ninho
romantico entre as flÙres d'Isola-bella: sÛmente agora n„o iam esconder
a inquietaÁ„o d'uma felicidade culpada, mas gozar o repouso d'uma
felicidade legitima. E, depois de todas as incertezas e tormentos que o
tinham agitado desde o dia em que cruz·ra Maria Eduarda no Aterro,
Carlos anhelava tambem pelo momento de se installar emfim no conforto
d'um amor sem duvidas e sem sobresaltos:

--Eu por mim abalava ·manh„. Estou sÙfrego de paz. Estou atÈ sÙfrego de
preguiÁa... Mas tu, dize, quando queres?

Maria n„o respondeu; apenas o seu olhar sorriu, reconhecido e
apaixonado. Depois, sem retirar a m„o que a longa caricia de Carlos
ainda prendia, chamou Rosa atravÈs da janella.

--Mam„, espera, j· vou! Passa-me umas migalhas... Andam aqui uns pardaes
que ainda n„o almoÁaram...

--N„o, vem c·.

Quando ella appareceu · porta, toda de branco, cÛrada, com uma das
ultimas rosas de ver„o mettida no cinto--Maria quil-a mais perto, entre
elles, encostada aos seus joelhos. E, arranjando-lhe a fita solta do
cabello, perguntou, muito sÈria, muito commovida, se ella gostaria que
Carlos viesse viver com ellas de todo e ficar alli na _Toca_... Os olhos
da pequena encheram-se de surpreza e de riso:

--O quÍ! estar sempre, sempre aqui, mesmo de noite, toda a noite?... E
ter aqui as suas malas, as suas coisas?...

Ambos murmuraram--´simª.

Rosa ent„o pulou, bateu as palmas, radiante, querendo que Carlos fosse
j·, j·, buscar as suas malas e as suas coisas...

--Escuta, disse-lhe ainda Maria gravemente, retendo-a sobre os joelhos.
E gostavas que elle fosse como o pap·, e que andasse sempre comnosco, e
que lhe obedecessemos ambas, e que gostassemos muito d'elle ?

Rosa ergueu para a m„e uma facesinha compenetrada, onde todo o sorriso
se apag·ra.

--Mas eu n„o posso gostar mais d'elle do que gÛsto!...

Ambos a beijaram, n'um enternecimento que lhes humedecia os olhos. E
Maria Eduarda, pela primeira vez diante de Rosa debruÁando-se sobre
ella, beijou de leve a testa de Carlos. A pequena ficou pasmada para o
seu amigo, depois para a m„i. E pareceu comprehender tudo; escorregou
dos joelhos de Maria, veio encostar-se a Carlos com uma meiguice
humilde:

--Queres que te chame pap·, sÛ a ti?

--SÛ a mim, disse elle, fechando-a toda nos braÁos.

E assim obtiveram o consentimento de Rosa--que fugiu, atirando a porta,
com as m„os cheias de bolos para os pardaes.

Carlos levantou-se, tomou a cabeÁa de Maria entre as m„os, e
contemplando-a profundamente, atÈ · alma, murmurou n'um enlevo:

--…s perfeita!

Ella desprendeu-se, com melancolia, d'aquella adoraÁ„o que a perturbava.

--Escuta... Tenho ainda muito, muito que te dizer, infelizmente. Vamos
para o nosso kiosque... Tu n„o tens nada que fazer, n„o? E que tenhas,
hoje Ès meu... Vou j· ter comtigo. Leva as tuas cigarettes.

Nos degraus do jardim, Carlos parou a olhar, a sentir a doÁura velada do
cÈo cinzento... E a vida pareceu-lhe adoravel, d'uma poesia fina e
triste,assim envolta n'aquella nevoa macia onde nada resplandecia e nada
cantava, e que t„o favoravel era para que dois coraÁıes, desinteressados
do mundo e em desharmonia com elle, se abandonassem juntos ao contÌnuo
encanto de estremecerem juntos na mudez e na sombra.

--Vamos ter chuva, tio AndrÈ, disse elle, passando junto do velho
jardineiro que aparava o buxo.

O tio AndrÈ, atarantado, arrancou o chapÈo. Ah! uma gota d'agua era bem
necessaria, depois da estiagem! O torr„osinho j· estava com sÍde! E em
casa todos bons? A senhora? A menina?

--Tudo bom, tio AndrÈ, obrigado.

E no seu desejo de vÍr todos em torno de si felizes como elle e como a
terra sequiosa que ia ser consolada--Carlos metteu uma libra na m„o do
tio AndrÈ, que ficou deslumbrado, sem ousar fechar os dedos sobre aquelle
ouro extraordinario que reluziu.

Quando Maria entrou no kiosque trazia um cofre de sandalo. Atirou-o para
o divan: fez sentar Carlos ao lado, bem confortavel, entre almofadas:
accendeu-lhe uma cigarrete. Depois agachou-se aos seus pÈs, sobre o
tapete, como na humildade de uma confiss„o.

--Est·s bem assim? Queres que o Domingos te traga agua e cognac?... N„o?
Ent„o ouve agora, quero-te contar tudo...

Era toda a sua existencia que ella desejava contar. Pens·ra mesmo em
lh'a escrever n'uma carta interminavel, como nos romances. Mas decidira
antes tagarellar alli uma manh„ inteira, aninhada aos seus pÈs.

--Est·s bem, n„o est·s?

Carlos esperava, commovido. Sabia que aquelles labios amados iam fazer
revelaÁıes pungentes para o seu coraÁ„o--e amargas para o seu orgulho.
Mas a confidencia da sua vida completava a posse da sua pessoa: quando a
conhecesse toda no seu passado sentil-a-hia mais sua inteiramente. E no
fundo tinha uma curiosidade insaciavel d'essas coisas que o deviam
pungir e que o deviam humilhar.

--Sim, conta... Depois esquecemos tudo e para sempre. Mas agora dize,
conta... Onde nasceste tu por fim?

Nascera em Vienna: mas pouco se recordava dos tempos de crianÁa, quasi
nada sabia do pap·, a n„o ser a sua grande nobreza e a sua grande
belleza. Tivera uma irm„sinha que morrera de dois annos e que se chamava
Heloisa. A mam„, mais tarde, quando ella era j· rapariga, n„o tolerava
que lhe perguntassem pelo passado; e dizia sempre que remexer a memoria
das coisas antigas prejudicava tanto como sacudir uma garrafa de vinho
velho... De Vienna apenas recordava confusamente largos passeios
d'arvores, militares vestidos de branco, e uma casa espelhada e dourada
onde se danÁava: ·s vezes durante tempos ella ficava l· sÛ com o avÙ, um
velhinho triste e timido, mettido pelos cantos, que lhe contara
historias de navios. Depois tinham ido a Inglaterra: mas lembrava-se
sÛmente de ter atravessado um grande rumor de ruas, n'um dia de chuva,
embrulhada em pelles, sobre os joelhos d'um escudeiro. As suas primeiras
memorias mais nitidas datavam de Paris; a mam„, j· viuva, andava de luto
pelo avÙ; e ella tinha uma aia italiana que a levava todas as manh„s,
com um arco e com uma pÈlla, brincar aos Campos Elyseos. A noite
costumava vÍr a mam„ decotada, n'um quarto cheio de setins e de luzes; e
um homem louro, um pouco brusco, que fumava sempre estirado pelos sof·s,
trazia-lhe de vez em quando uma boneca, e chamava-lhe mademoiselle
_Triste-c[oe]ur_ por causa do seu arzinho sisudo. Emfim a mam„ mettera-a
n'um convento ao pÈ de Tours--porque n'essa idade, apesar de cantar j·
ao piano as walsas da _Belle HelËne_, ainda n„o sabia soletrar. FÙra nos
jardins do convento, onde havia lindos lilazes, que a mam„ se separ·ra
d'ella n'uma paix„o de lagrimas; e ao lado esperava, para a consolar
decerto, um sujeito muito grave, de bigodes encerados, a quem a Madre
Superiora fallara com veneraÁ„o.

A mam„ ao principio vinha vÍl-a todos os mezes, demorando-se em Tours
dois, tres dias; trazia-lhe uma profus„o de presentes, bonecas, bonbons,
lenÁos bordados, vestidos ricos, que lhe n„o permittia usar a regra
severa do convento. Davam ent„o passeios de carruagem pelos arredores de
Tours: e havia sempre officiaes a cavallo, que escoltavam a caleche--e
tratavam a mam„ por _tu_. No convento as mestras, a Madre Superiora n„o
gostavam d'estas sahidas--nem mesmo que a mam„ viesse acordar os
corredores devotos com as suas risadas e o ruido das suas sÍdas; ao
mesmo tempo pareciam temel-a; chamavam-lhe _Madame la Comtesse_. A mam„
era muito amiga do general que commandava em Tours, e visitava o bispo.
Monsenhor, quando vinha ao convento, fazia-lhe uma festinha especial na
face e alludia risonhamente a _son excellente mËre_. Depois a mam„
comeÁou a apparecer menos em Tours. Esteve um anno longe, quasi sem
escrever, viajando na Allemanha; voltou um dia, magra e coberta de luto,
e ficou toda a manh„ abraÁada a ella a chorar.

Mas na visita seguinte vinha mais moÁa, mais brilhante, mais ligeira,
com dois grandes galgos brancos, annunciando uma romagem poetica · Terra
Santa e a todo o remoto Oriente. Ella tinha ent„o quasi dezeseis annos:
pela sua applicaÁ„o, os seus modos dÙces e graves, ganh·ra a affeiÁ„o da
Madre Superiora--que ·s vezes, olhando-a com tristeza, acariciando-lhe o
cabello cahido em duas tranÁas segundo a regra, lhe mostrava o desejo de
a conservar sempre ao seu lado. _Le monde_, dizia ella, _ne vous sera
bon ‡ rien, mon enfant!_... Um dia, porÈm, appareceu para a levar para
Paris, para a mam„, uma Madame de Chavigny, fidalga pobre, de caracoes
brancos, que era como uma estampa de severidade e de virtude.

O que ella chor·ra ao deixar o convento! Mais choraria se soubesse o que
ia encontrar em Paris!

A casa da mam„, no Parc Monceaux, era na realidade uma casa de jogo--mas
recoberta de um luxo sÈrio e fino. Os escudeiros tinham meias de sÍda;
os convidados, com grandes nomes no Nobiliario de FranÁa, conversavam de
corridas, das Tulherias, dos discursos do Senado; e as mesas de jogo
armavam-se depois como uma distracÁ„o mais picante. Ella recolhia sempre
ao seu quarto ·s dez horas: Madame de Chavigny, que fic·ra como sua dama
de companhia, ia com ella cedo ao Bois n'um coupÈ estufo de
_douairiËre_. Pouco a pouco, porÈm, este grande verniz comeÁou a
estalar. A pobre mam„ cahira sob o jugo d'um Mr. de Trevernnes, homem
perigoso pela sua seducÁ„o pessoal e por uma desoladora falta de honra e
de senso. A casa descahiu rapidamente n'uma bohemia mal dourada e
ruidosa. Quando ella madrugava, com os seus habitos saudaveis do
convento, encontrava paletots d'homens por cima dos sof·s: no marmore
das consoles restavam pontas de charuto entre nodoas de champagne; e
n'algum quarto mais retirado ainda tinia o dinheiro d'um _baccarat_
talhado · claridade do sol. Depois uma noite, estando deitada, sentira
de repente gritos, uma debandada brusca na escada; veio encontrar a mam„
estirada no tapete, desmaiada; ella dissera-lhe apenas mais tarde,
alagada em lagrimas, ´que tinha havido uma desgraÁaª...

Mudaram ent„o para um terceiro andar da ChaussÈe-d'Antin. Ahi comeÁou a
apparecer uma gente desconhecida e suspeita. Eram Valachos de grandes
bigodes, Peruanos com diamantes falsos, e condes romanos que escondiam
para dentro das mangas os punhos enxovalhados... Por vezes entre esta
malta vinha algum _gentleman_--que n„o tirava o paletot, como n'um
cafÈ-concerto. Um d'esses foi um irlandez, muito moÁo, Mac-Gren...
Madame de Champigny deix·ra-as desde que falt·ra o coupÈ severo,
acolchoado de setim; e ella, sÛ com a m„i, insensivelmente, fatalmente,
fÙra-se misturando a essa vida tresnoitada de grogs e de _baccarat_.

A mam„ chamava a Mac-Gren o ´bÈbȪ. Era com effeito uma crianÁa
estouvada e feliz. Namor·ra-se d'ella logo com o ardor, a effus„o, o
impeto d'um irlandez; e prometteu-lhe fazel-a sua esposa apenas se
emancipasse--porque Mac-Gren, menor ainda, vivia sobretudo das
liberalidades de uma avÛ excentrica e rica que o adorava, e que habitava
a ProvenÁa n'uma vasta quinta onde tinha feras em jaulas... E no entanto
induzia-a sem cessar a fugir com elle, desesperado de a vÍr entre
aquelles Valachos que cheiravam a genebra. O seu desejo era leval-a para
Fontainebleau, para um _cottage_ com trepadeiras de que fallava sempre,
e esperar ahi tranquillamente a maioridade que lhe traria duas mil
libras de renda. Decerto, era uma situaÁ„o falsa: mas preferivel a
permanecer n'aquelle meio depravado e brutal onde ella a cada instante
cÛrava... A esse tempo a mam„ parcela ir perdendo todo o senso,
desarranjada de nervos, quasi irresponsavel. As difficuldades crescentes
estonteavam-n'a; brigava com as criadas; bebia champagne ´_pour
s'Ètourdir_ª. Para satisfazer as exigencias de Mr. de Trevernnes
empenh·ra as suas joias, e quasi todos os dias chorava com ciumes
d'elle. Por fim houve uma penhora: uma noite tiveram d'enfardelar ·
pressa roupa n'um sacco, e ir dormir a um hotel. E, peor, peor que tudo!
Mr. de Trevernnes comeÁava a olhar para ella d'um modo que a
assustava...

--Minha pobre Maria! murmurou Carlos, pallido, agarrando-lhe as m„os.

Ella permaneceu um momento suffocada, com o rosto cahido nos joelhos
d'elle. Depois limpando as lagrimas que a ennevoavam:

--Ahi est„o as cartas de Mac-Gren, n'esse cofre... Tenho-as guardado
sempre para me justificar a mim mesma, se me È possivel... Pede-me em
todas que v· para Fontainebleau; chama-me sua esposa; jura que apenas
juntos iremos ajoelhar-nos diante da avÛ, obter a sua indulgencia... Mil
promessas! E era sincero... Que queres que te diga? A mam„ uma manh„
partiu com uma sucia para Baden. Fiquei em Paris sÛ, n'um hotel... Tinha
um palpite, um terror que Trevernnes apparecia... E eu sÛ! Estava t„o
transtornada que pensei em comprar um rewolver... Mas quem veio foi
Mac-Gren.

E partira com elle, sem precipitaÁ„o, como sua esposa, levando todas as
suas malas. A mam„ de volta de Baden correu a Fontainebleau, desvairada
e tragica, amaldiÁoando Mac-Gren, ameaÁando-o com a pris„o de Mazas,
querendo esbofeteal-o; depois rompeu a chorar. Mac-Gren, como um bÈbÈ,
agarrou-se a ella aos beijos, chorando tambem. A mam„ terminou por os
apertar a ambos contra o coraÁ„o, j· rendida, perdoando tudo,
chamando-lhes ´filhos da sua almaª. Passou o dia em Fontainebleau,
radiante, contando ´a patuscada de Badenª, j· com o plano de vir
installar-se no _cottage_, viver junto d'elles n'uma felicidade calma e
nobre de avÛsinha... Era em maio; Mac-Gren, · noite, deitou um ´fogo
presoª no jardim.

ComeÁou um anno quieto e facil. O seu unico desejo era que a mam„
vivesse com elles socegadamente. Diante das suas supplicas ella ficava
pensativa, dizia: ´Tens raz„o, veremos!ª Depois remergulhava no
torvelinho de Paris, d'onde resurgia uma manh„, n'um _fiacre_,
estremunhada e afflicta, com uma rica pelliÁa sobre uma velha saia, a
pedir-lhe cem francos... Por fim nascera Rosa. Toda a sua anciedade
desde ent„o fÙra legitimar a sua uni„o. Mas Mac-Gren adiava,
levianamente, com um medo pueril da avÛ. Era um perfeito bÈbÈ!
Entretinha as manh„s a caÁar passaros com visco! E ao mesmo tempo
terrivelmente teimoso: ella pouco a pouco perdera-lhe todo o respeito.
No comeÁo da primavera a mam„ um dia appareceu em Fontainebleau com as
suas malas, succumbida, enojada da vida. Rompera emfim com Trevernnes.
Mas quasi immediatamente se consolou: e comeÁou d'ahi a adorar Mac-Gren
com uma t„o larga effus„o de caricias, e achando-o t„o lindo, que era ·s
vezes embaraÁadora. Os dois passavam o dia, com copinhos de cognac,
jogando o _bezigue_.

De repente rebentou a guerra com a Prussia. Mac-Gren enthusiasmado, e
apesar das supplicas d'ellas, corrÍra a alistar-se no batalh„o de Zuavos
de Charette; a avÛ de resto approv·ra este rasgo d'amor pela FranÁa, e
fizera-lhe n'uma carta em verso, em que celebrava Jeanne d'Arc, uma
larga remessa de dinheiro. Por esse tempo Rosa teve o garrotilho. Ella,
sem lhe largar o leito, mal attendia ·s noticias da guerra. Sabia apenas
confusamente das primeiras batalhas perdidas na fronteira. Uma manh„ a
mam„ rompeu-lhe no quarto, estonteada, em camisa: o exercito capitul·ra
em SÈdan, o imperador estava prisioneiro! ´… o fim de tudo, È o fim de
tudo!ª dizia a mam„ espavorida. Ella veio a Paris procurar noticias de
Mac-Gren: na rua Royale teve de se refugiar n'um port„o, diante do
tumulto d'um povo em delirio, acclamando, cantando a Marselheza, em
torno de uma caleche onde ia um homem, pallido como cera, com um
cache-nez escarlate ao pescoÁo. E um sujeito ao lado, aterrado,
disse-lhe que o povo fÙra buscar Rochefort · pris„o e que estava,
proclamada a Republica.

Nada soubera de Mac-Gren. ComeÁaram ent„o dias d'infinito sobresalto.
Felizmente Rosa convalescia. Mas a pobre mam„ causava dÛ, envelhecida de
repente, sombria, prostrada n'uma cadeira, murmurando apenas: ´… o fim
de tudo, È o fim de tudo!ª E parecia na verdade o fim da FranÁa. Cada
dia uma batalha perdida; regimentos presos, apinhados em wagons de gado,
internados a todo o vapor para os presidios d'Allemanha; os prussianos
marchando sobre Paris... N„o podiam permanecer em Fontainebleau; o duro
inverno comeÁava; e com o que venderam · pressa, com o dinheiro que
Mac-Gren deix·ra, partiram para Londres.

FÙra uma exigencia da mam„. E em Londres ella, desorientada na enorme e
estranha cidade, doente tambem, deix·ra-se levar pelas tontas idÈas da
m„e. Tomaram uma casa mobilada, muito cara, nos bairros de luxo, ao pÈ
de Mayfair. A mam„ fallava em organisar alli o centro de resistencia dos
bonapartistas refugiados; no fundo, a desgraÁada pensava em crear uma
casa de jogo em Londres. Mas ai! eram outros tempos... Os imperialistas,
sem imperio, n„o jogavam j· o _baccarat_. E ellas em breve, sem
rendimentos, gastando sempre, tinham-se achado com aquella dispendiosa
casa, tres criados, contas colossaes e uma nota de cinco libras no fundo
d'uma gaveta. E Mac-Gren mettido dentro de Paris, com meio milh„o de
prussianos em redor. Foi necessario vender todas as joias, vestidos, atÈ
as pelliÁas. Alugaram ent„o, no bairro pobre de Soho, tres quartos mal
mobilados. Era o _lodging_ de Londres em toda a sua suja, solitaria
tristeza; uma criadita unica, enfarruscada como um trapo; alguns carvıes
humidos fumegando mal na chaminÈ; e para jantar um pouco de carneiro
frio e cerveja da esquina. Por fim falt·ra mesmo o escasso shilling para
pagar o _lodging_. A mam„ n„o sahia do catre, doente, succumbida,
chorando. Ella ·s vezes ao anoitecer, escondida n'um water-proof, levava
ao _prÈgo_ embrulhos de roupa (atÈ roupa branca, atÈ camisas!) para que
ao menos n„o faltasse a Rosa a sua chicara de leite. As cartas que a
mam„ escrevia a alguns antigos companheiros de ceias na _Maison d'Or_
ficavam sem resposta: outras traziam, embrulhada n'um bocado de papel,
alguma meia-libra que tinha o pavoroso sabor d'uma esmola. Uma noite, um
sabbado de grande nevoeiro, indo empenhar um chambre de rendas da mam„,
perdera-se, err·ra na vasta Londres n'uma treva amarellada, a tiritar de
frio, quasi com fome, perseguida por dois brutos que empestavam a
alcool. Para lhes fugir atirou-se para dentro d'um _cab_ que a levou a
casa. Mas n„o tinha um penny para pagar ao cocheiro; e a patrÙa roncava
no seu cacifro, bebeda. O homem resmungou; ella, succumbida, alli mesmo
na porta rompeu a chorar. Ent„o o cocheiro desceu da almofada,
commovido, offereceu-se para a levar de graÁa ao _prÈgo_, onde
ajustariam as suas contas. Foi; o pobre homem sÛ aceitou um _schilling_;
atÈ mesmo suppondo-a franceza grunhiu blasphemias contra os prussianos,
e teimou em lhe offerecer uma bebida.

Ella no emtanto procurava uma occupaÁ„o qualquer costura, bordados,
traducÁıes, cÛpias de manuscriptos... N„o achava nada. N'aquelle duro
inverno o trabalho escasseava em Londres; surgira uma multid„o de
francezes, pobres como ella, luctando pelo p„o... A mam„ n„o cessava de
chorar; e havia alguma coisa mais terrivel que as suas lagrimas--eram as
suas allusıes constantes · facilidade de se ter em Londres dinheiro,
conforto e luxo, quando se È nova e se È bonita...

--Que te parece esta vida, meu amor? exclamou ella, apertando as m„os
amargamente.

Carlos beijou-a em silencio, com os olhos humedecidos.

--Emfim tudo passou, continuou Maria Eduarda. Fez-se a paz, o cÍrco
acabou. Paris estava de novo aberto... SÛmente a difficuldade era
voltar.

--Como voltaste?

Um dia por acaso, em Regent-Street, encontr·ra um amigo de Mac-Gren,
outro irlandez, que muitas vezes jant·ra com elles em Fontainebleau.
Veio vÍl-as a Soho; diante d'aquella miseria, do bule de ch· aguado, dos
ossos de carneiro requentando sobre tres brazas mortas, comeÁou, como
bom irlandez, por accusar o governo d'Inglaterra e jurar uma desforra de
sangue. Depois offereceu, com os beiÁos j· a tremer, toda a sua
dedicaÁ„o. O pobre rapaz batia tambem o lagedo n'uma lucta tormentosa
pela vida. Mas era irlandez; e partiu logo generosamente, armado de
todos os seus ardis, a conquistar atravÈs de Londres o pouco que ellas
necessitavam para recolher a FranÁa. Com effeito appareceu n'essa mesma
noite, derreado e triumphante, brandindo tres notas de banco e uma
garrafa de _champagne_. A mam„ ao vÍr, depois de tantos mezes de ch·
preto, a garrafa de _Clicquot_ encarapuÁada de ouro--quasi desmaiou, de
enternecimento. Enfardelaram os trapos. Ao partirem, na estaÁ„o de
_Charing-Cross_, o irlandez levou-a para um canto, e engasgado, torcendo
os bigodes, disse-lhe que Mac-Gren tinha morrido na batalha de
Saint-Privat...

--Para que te hei de eu contar o resto? Em Paris recomecei a procurar
trabalho. Mas tudo estava ainda em confus„o... Quasi immediatamente veio
a Communa... PÛdes acreditar que muitas vezes tivemos fome. Mas emfim j·
n„o era Londres, nem o inverno, nem o exilio. Estavamos em Paris,
soffriamos de companhia com amigos d'outros tempos. J· n„o parecia t„o
terrivel... Com todas estas privaÁıes a pobre Rosa comeÁava a
definhar... Era um supplicio vÍl-a perder as cÙres, tristinha, mal
vestida, mettida n'uma trapeira... A mam„ j· se queixava da doenÁa de
coraÁ„o que a matou... O trabalho que eu encontrava, mal pago, dava-nos
apenas para a renda da casa, e para n„o morrer absolutamente de
necessidade... Principiei a adoecer de anciedade, de desespero. Luctei
ainda. A mam„ fazia dÛ. E Rosa morria se n„o tivesse outro regimen, bom
ar, algum conforto... Conheci ent„o Castro Gomes em casa d'uma antiga
amiga da mam„, que n„o perdera nada com a guerra, nem com os prussianos,
e que me dava trabalhos de costura... E o resto s·bel-o... Nem eu me
lembro... Fui levada... Via ·s vezes Rosa, coitadinha, embrulhada n'um
chale, muito quietinha ao seu canto, depois de rapada a sua magra tigela
de sopas, e ainda com fome...

N„o pÙde continuar; rompeu a chorar, cahida sobre os joelhos de Carlos.
E elle na sua emoÁ„o sÛ lhe podia dizer, passando-lhe as m„os tremulas
pelos cabellos, que a havia de desforrar bem de todas as miserias
passadas...

--Escuta ainda, murmurou ella, limpando as lagrimas. Ha sÛ uma coisa
mais que te quero dizer. E È a santa verdade, juro-te pela alma de Rosa!
… que n'estas duas relaÁıes que tive o meu coraÁ„o conservou-se
adormecido... Dormiu sempre, sempre, sem sentir nada, sem desejar nada,
atÈ que te vi... E ainda te quero dizer outra coisa...

Um momento hesitou, coberta de rubor. Pass·ra os braÁos em torno de
Carlos, pendurada toda d'elle, com os olhos mergulhados nos seus. E foi
mais baixo que balbuciou na derradeira, na absoluta confiss„o de todo o
seu sÍr:

--AlÈm de ter o coraÁ„o adormecido, o meu corpo permaneceu sempre frio,
frio como um marmore...

Elle estreitou-a a si arrebatadamente: e os seus labios ficaram collados
muito tempo, em silencio, completando, n'uma emoÁ„o nova e quasi
virginal, a communh„o perfeita das suas almas.



D'ahi a dias Carlos e Ega vinham n'uma victoria, pela estrada dos
Olivaes, em caminho da _Toca_.

Toda essa manh„, no Ramalhete, Carlos estivera emfim contando ao Ega o
impulso de paix„o que o lanÁ·ra de novo e para sempre, como esposo, nos
braÁos de Maria; e, na confianÁa absoluta que o prendia ao Ega,
revel·ra-lhe mesmo miudamente a historia d'ella, dolorosa e
justificadora. Depois, ao acalmar o calor, propoz que fossem comer as
sopas · _Toca_. Ega deu uma volta pelo quarto, hesitando. Por fim
comeÁou a passar devagar a escova pelo paletot, murmurando, como durante
as longas confidencias de Carlos: ´… prodigioso!... Que estranha coisa,
a vida!ª

E agora pela estrada, na aragem dÙce do rio, Carlos fallava ainda de
Maria, da vida na _Toca_, deixando escapar do coraÁ„o muito cheio o
interminavel cantico da sua felicidade.

--… facto, Egasinho, conheÁo quasi a felicidade perfeita!

--E c· na _Toca_ ainda ninguem sabe nada?

Ninguem--a n„o ser Melanie, a confidente--suspeitava a profunda
alteraÁ„o que se fizera nas suas relaÁıes: e tinham assentado que miss
Sarah e o Domingos, primeiras testemunhas da sua amizade, seriam
rÈgiamente recompensados e despedidos quando em fins de outubro elles
partissem para Italia.

--E ides ent„o casar a Roma?...

--Sim... Em qualquer logar onde haja um altar e uma estola. Isso n„o
falta em Italia... E È ent„o, Ega, que reapparece o espinho de toda esta
felicidade. … por isso que eu disse ´quasi.ª O terrivel espinho, o avÙ!

--… verdade, o velho Affonso. Tu n„o tens idÈa como lhe has de fazer
conhecer esse caso?...

Carlos n„o tinha idÈa nenhuma. Sentia sÛ que lhe faltava absolutamente a
coragem de dizer ao avÙ: ´esta mulher, com quem vou casar, teve na sua
vida estes errosª... E alÈm d'isso, j· reflectira, era inutil. O avÙ
nunca comprehenderia os motivos complicados, fataes, inilludiveis que
tinham arrastado Maria. Se lh'os contasse miudamente--o avÙ veria alli
um romance confuso e fragil, antipathico · sua natureza forte e candida.
A fealdade das culpas feril-o-hia, exclusivamente; e n„o lhe deixaria
apreciar, com serenidade, a irresistibilidade das causas. Para perceber
este caso d'um caracter nobre apanhado dentro d'uma implacavel rede de
fatalidades, seria necessario um espirito mais ductil, mais mundano que
o do avÙ... O velho Affonso era um bloco de granito: n„o se podiam
esperar d'elle as subtis discriminaÁıes d'um casuista moderno. Da
existencia de Maria sÛ veria o facto tangivel:--cahira successivamente
nos braÁos de dois homens. E d'ahi decorreria toda a sua attitude de
chefe de familia. Para que havia elle pois de fazer ao velho uma
confiss„o, que necessariamente originaria um conflicto de sentimentos e
uma irreparavel separaÁ„o domestica?...

--Pois n„o te parece, Ega?

--Falla mais baixo, olha o cocheiro.

--N„o percebe bem o portuguez, sobretudo o nosso estylo... Pois n„o te
parece?

Ega raspava phosphoros na sola para accender o charuto. E resmungava:

--Sim, o velho Affonso È granitico...

Por isso Carlos concebera outro plano, mais sagaz: consistia em esconder
ao avÙ o passado de Maria--e fazer-lhe conhecer a pessoa de Maria.
Casavam secretamente em Italia. Regressavam: ella para a rua de S.
Francisco, elle filialmente para o Ramalhete. Depois Carlos levava o avÙ
a casa da sua boa amiga, que conhecera em Italia, M.^{me} de Mac-Gren.
Para o prender logo l· estavam os encantos de Maria, todas as graÁas
d'um interior delicado e sÈrio, jantarinhos perfeitos, idÈas justas,
Chopin, Beethoven, etc. E, para completar a conquista de quem t„o
enternecidamente adorava crianÁas, l· estava Rosa... Emfim, quando o avÙ
estivesse namorado de Maria, da pequena, de tudo--elle, uma manh„,
dizia-lhe francamente: ´Esta creatura superior e adoravel teve uma quÈda
no seu passado; mas eu casei com ella; e, sendo tal como È, n„o fiz bem,
apesar de tudo, em a escolher para minha esposa?ª E o avÙ, perante esta
terrivel irremediabilidade do facto consummado, com toda a sua
indulgencia de velho enternecido a defender Maria--seria o primeiro a
pensar que, se esse casamento n„o era o melhor segundo as regras do
mundo, era decerto o melhor segundo os interesses do coraÁ„o...

--Pois n„o te parece, Ega?

Ega, absorvido, sacudia a cinza do charuto. E pensava que Carlos, em
resumo, adopt·ra para com o avÙ a complicada combinaÁ„o que Maria
Eduarda tent·ra para com elle--e imitava sem o sentir os subtis
raciocinios d'ella.

--E acabou-se, continuava Carlos. Se elle na sua indulgencia aceitar
tudo, bravo! d·-se uma grande festa no Ramalhete... Sen„o, foi-se!
passaremos a viver cada um para seu lado, fazendo ambos prevalecer a
superioridade de duas coisas excellentes: o avÙ as tradiÁıes do sangue,
eu os direitos do coraÁ„o.

E, vendo o Ega ainda silencioso:

--Que te parece? Dize l·. Tu andas t„o falto de idÈas, homem!

O outro sacudiu a cabeÁa, como despertando.

--Queres que te diga o que me parece, com franqueza? Que diabo, nÛs
somos dois homens fallando como homens!... Ent„o aqui est·: teu avÙ tem
quasi oitenta annos, tu tens vinte e sete ou o quer que seja... …
doloroso dizel-o, ninguem o diz com mais dÙr que eu, mas teu avÙ ha de
morrer... Pois bem, espera atÈ l·. N„o cases. Suppıe que ella tem um pae
muito velho, teimoso e caturra, que detesta o snr. Carlos da Maia e a
sua barba em bico. Espera; contin˙a a vir · _Toca_, na tipoia do Mulato;
e deixa teu avÙ acabar a sua velhice calma, sem desillusıes e sem
desgostos...

Carlos torcia o bigode, mudo, enterrado no fundo da victoria. Nunca,
n'esses dias de inquietaÁ„o, lhe acudira idÈa t„o sensata, t„o facil!
Sim, era isso, esperar! Que melhor dever do que poupar ao pobre avÙ toda
a dÙr?... Maria de certo, como mulher, estava desejando anciosamente a
convers„o do amante no marido pelo laÁo d'estola que tudo purifica e
nenhuma forÁa desata. Mas ella mesma preferiria uma consagraÁ„o
legal--que n„o fosse assim precipitada, dissimulada... Depois, t„o recta
e generosa, comprehenderia bem a obrigaÁ„o suprema de n„o mortificar
aquelle santo velho. De resto, n„o conhecia ella a sua lealdade solida e
pura como um diamante? Recebera a sua palavra: desde esse momento
estavam casados, n„o diante do sacrario e nos registos da sacristia--mas
diante da honra e na inabalavel communh„o dos seus coraÁıes...

--Tens raz„o! gritou por fim, batendo no joelho do Ega. Tens
immensamente raz„o! Essa idÈa È genial! Devo esperar... E emquanto
espero?...

--Como, emquanto esperas? acudiu Ega, rindo. Que diabo! Isso n„o È
commigo!

E mais sÈrio:

--Emquanto esperas tens esse metal vil que faz a existencia nobre.
Installas tua mulher, porque desde hoje È tua mulher, aqui nos Olivaes
ou n'outro sitio, com o gosto, o conforto e a dignidade que competem a
tua mulher... E deixas-te ir! Nada impede que faÁaes essa viagem nupcial
· Italia... Voltas, contin˙as a fumar a tua _cigarette_ e a deixar-te
ir. Este È o bom senso: È assim que pensaria o grande Sancho Pansa...
Que diabo tens tu n'aquelle embrulho que cheira t„o bem?

--Um ananaz... Pois È isso, querido: esperar, deixar-me ir. … uma idÈa!

Uma idÈa! e a mais grata ao temperamento de Carlos. Para que iria com
effeito enredar-se n'uma meada de amarguras domesticas, por um excesso
de cavalheirismo romantico? Maria confiava n'elle; era rico, era moÁo; o
mundo abria-se ante elles facil e cheio de indulgencias. N„o tinha sen„o
a deixar-se ir.

--Tens raz„o, Ega! E Maria È a primeira a achar isto cheio de senso e
d'_opportunismo_. Eu tenho uma certa pena em adiar a installaÁ„o da
minha vida e do meu _home_. Mas, acabou-se! Antes de tudo que o avÙ seja
feliz... E para celebrar o advento d'esta idÈa, Deus queira que Maria
nos tenha um bom jantar!

Agora, ao aproximar-se da _Toca_, Ega ia receando o primeiro encontro
com Maria Eduarda. Incommodava-o esse enleio, esse rubor que ella n„o
poderia occultar--certa que, como confidente de Carlos, elle conhecia a
sua vida, as suas miserias, as suas relaÁıes com Castro Gomes. Por isso
hesit·ra em vir · _Toca_. Mas tambem, n„o apparecer mais a Maria Eduarda
seria marcar com um relevo quasi offensivo o desejo caridoso de n„o
molestar o seu pudor... Por isso decidira ´dar o mergulho d'uma vezª.
Quem, sen„o elle, deveria ser o mais apressado em estender a m„o · noiva
de Carlos?... AlÈm d'isso tinha uma infinita curiosidade de vÍr no seu
interior, · sua mesa, essa creatura t„o bella, com a sua graÁa nobre de
Deusa moderna! Mas saltou da victoria muito embaraÁado.

Por fim tudo se passou com uma facilidade risonha. Maria bordava,
sentada nos degraus do jardim. Teve um sobresalto, cÛrou toda, com
effeito, ao avistar o Ega que procurava atarantadamente o monoculo: o
aperto de m„o que trocaram foi mudo e timido: mas Carlos, alegremente,
desembrulh·ra o ananaz--e na admiraÁ„o d'elle todo o constrangimento se
dissipou.

--Oh! È magnifico!

--Que cÙr, que luxo de tons!

--E que aroma! Veio perfumando toda a estrada.

Ega n„o volt·ra · _Toca_ desde a noite fatal da _soirÈe_ dos Cohens em
que elle alli tanto bebera e delir·ra tanto. E lembrou logo a Carlos a
jornada na velha traquitana, debaixo d'um temporal, o _grog_ do Craft, a
ceia de per˙...

--J· aqui soffri muito, minha senhora, vestido de Mephistopheles!...

--Por causa de Margarida?

--Por quem se ha de soffrer n'este apaixonado mundo, minha senhora,
sen„o por Margarida ou por Fausto?

Mas Carlos quiz que elle admirasse os esplendores novos da _Toca_. E foi
j· com familiaridade que Maria o levou pelas salas, lamentando que sÛ
viesse assim · _Toca_ no fim do ver„o e no fim das flÙres. Ega
extasiou-se ruidosamente. Emfim, perdera a _Toca_ o seu ar regelado e
triste de museu! J· alli se podia palrar livremente!

--Isto È um barbaro, Maria! exclamava Carlos radiante. Tem horror ·
arte! … um Ibero, È um Semita...

Semita? Ega prezava-se de ser um luminoso Aryano! E por isso mesmo n„o
podia viver n'uma casa, em que cada cadeira tinha a solemnidade
sorumbatica de antepassados com cabelleira...

--Mas, dizia Maria rindo, rodas estas lindas coisas do seculo dezoito
lembram antes a ligeireza, o espirito, a graÁa de maneiras...

--V. exc.^a acha? acudiu Ega. A mim todos esses dourados, esses
enramalhetados, esses rococÛs lembram-me uma vivacidade estouvada e
sirigaita... Nada! nÛs vivemos n'uma Democracia! E n„o ha para exprimir
a alegria simples, sÛlida e bonacheirona da Democracia, como largas
poltronas de marroquim, e o mogno envernizado!...

Assim n'uma risonha, ligeira discuss„o sobre bric-‡-brac, desceram ao
jardim.

Miss Sarah passeava entre o buxo, de olhos baixos, com um livro fechado
na m„o. Ega, que conhecia j· os seus ardores nocturnos, cravou-lhe
sÙfregamente o monoculo; e emquanto Maria se abaix·ra a cortar um
geranio, exprimiu a Carlos n'um gesto mudo a sua admiraÁ„o por aquelle
beicinho escarlate, aquelle seiosinho redondo de rola farta... Depois,
ao fundo, junto do caramanch„o, encontraram Rosa que se balouÁava. Ega
pareceu deslumbrado com a sua belleza, a sua frescura mate de camelia
branca. Pediu-lhe um beijo. Ella exigiu primeiro, muito sÈria, que elle
tirasse o vidro do olho.

--Mas È para te vÍr melhor! È para te vÍr melhor!...

--Ent„o porque n„o trazes um em cada olho? Assim sÛ me vÍs metade...

Encantadora! encantadora! murmurava Ega. No fundo achava a pequena
espevitada e impudente. Maria resplandecia.

E o jantar alargou mais esta intimidade risonha. Carlos, logo · sopa,
fallando-se de campo e d'um _chalet_ que elle desejava construir em
Cintra, nos Capuchos, dissera--´quando nos casarmosª. E Ega alludiu a
esse futuro do modo mais grato ao coraÁ„o de Maria. Agora que Carlos se
installava para sempre n'uma felicidade estavel (dizia elle) era
necessario trabalhar! E relembrou ent„o a sua velha idÈa do Cenaculo,
representado por uma _Revista_ que dirigisse a litteratura, educasse o
gosto, elevasse a politica, fizesse a civilisaÁ„o, remoÁasse o
carunchoso Portugal... Carlos, pelo seu espirito, pela sua fortuna (atÈ
pela sua figura, ajuntava o Ega rindo) devia tomar a direcÁ„o d'este
movimento. E que profunda alegria para o velho Affonso da Maia!

Maria escutava, presa e sÈria. Sentia bem quanto Carlos, com uma vida
toda de intelligencia e de actividade, rehabilitaria supremamente
aquella uni„o mostrando-lhe a influencia fecunda e purificadora.

--Tem raz„o, tem bem raz„o! exclamava ella com ardor.

--Sem contar, acrescentava o Ega, que o paiz precisa de nÛs! Como muito
bem diz o nosso querido e imbecilissimo Gouvarinho, o paiz n„o tem
pessoal... Como ha de tel-o, se nÛs, que possuimos as aptidıes, nos
contentamos em governar os nossos dog-carts e escrever a vida intima dos
atomos? Sou eu, minha senhora, sou eu que ando a escrever essa
biographia d'um atomo!... No fim, este dilettantismo È absurdo. Clamamos
por ahi, em botequins e livros, ´que o paiz È uma choldraª. Mas que
diabo! Porque È que n„o trabalhamos para o refundir, o refazer ao nosso
gosto e pelo molde perfeito das nossas idÈas?... V. exc.^a n„o conhece
este paiz, minha senhora. … admiravel! … uma pouca de cera inerte de
primeira qualidade. A quest„o toda est· em quem a trabalha. AtÈ aqui a
cera tem estado em m„os brutas, banaes, toscas, reles, rotineiras... …
necessario pÙl-a em m„os d'artistas, nas nossas. Vamos fazer d'isto um
_bijou_!...

Carlos ria, preparando n'uma travessa o ananaz com sumo de laranja e
vinho da Madeira. Mas Maria n„o queria que elle risse. A idÈa do Ega
parecia-lhe superior, inspirada n'um alto dever. Quasi tinha remorsos,
dizia ella, d'aquella preguiÁa de Carlos. E agora, que ia ser cercado de
affeiÁ„o serena, queria-o vÍr trabalhar, mostrar-se, dominar...

--Com effeito, disse o Ega recostado e sorrindo, a era do romance
findou. E agora...

Mas o Domingos servia o ananaz. E o Ega provou e rompeu em clamores de
enthusiasmo. Oh que maravilha! Oh que delicia!

--Como fazes tu isto? Com Madeira...

--E genio! exclamou Carlos. Delicioso, n„o È verdade? Ora digam-me se
tudo o que eu pudesse fazer pela civilisaÁ„o valeria este prato de
ananaz! … para estas coisas que eu vivo! Eu n„o nasci para fazer
civilisaÁ„o...

--Nasceste, acudiu o Ega, para colher as flÙres d'essa planta da
civilisaÁ„o que a multid„o rega com o seu suor! No fundo tambem eu,
menino!

N„o, n„o! Maria n„o queria que fallassem assim!

--Esses ditos estragam tudo. E o snr. Ega, em logar de corromper Carlos,
devia inspiral-o...

Ega protestou requebrando o olho, j· languido. Se Carlos necessitava uma
musa inspiradora e benefica--n„o podia ser elle, bicho com barbas e
bacharel em leis... A musa estava _toute trouvÈe_!

--Ah, com effeito!... Quantas paginas bellas, quantas nobres idÈas se
n„o podem produzir n'um paraiso d'estes!...

E o seu gesto molle e acariciador indicava a _Toca_, a quietaÁ„o dos
arvoredos, a belleza de Maria. Depois na sala, emquanto Maria tocava um
nocturno de Chopin e Carlos e elle acabavam os charutos · porta do
jardim vendo nascer a lua--Ega declarou que, desde o comeÁo do jantar,
estava com idÈas de casar!... Realmente n„o havia nada como o casamento,
o interior, o ninho...

--Quando penso, menino, murmurou elle mordendo sombriamente o charuto,
que quasi todo um anno da minha vida foi dado ·quella israelita devassa
que gosta de levar bordoada...

--Que faz ella em Cintra? perguntou Carlos.

--Ensopa-se na crapula. N„o ha a menor duvida que d· todo o seu coraÁ„o
ao Damaso... Tu sabes o que n'estes casos significa o termo _coraÁ„o_...
Viste j· immundicie igual? … simplesmente obscena!

--E tu adÛral-a, disse Carlos.

O outro n„o respondeu. Depois, dentro, n'um odio repentino da bohemia e
do romantismo, entoou louvores sonoros · familia, ao trabalho, aos altos
deveres humanos--bebendo copinhos de cognac. ¡ meia noite, ao sahir,
tropeÁou duas vezes na rua d'acacias, j· vago, citando Proudhon. E
quando Carlos o ajudou a subir para a victoria, que elle quiz descoberta
para ir communicando com a lua, Ega ainda lhe agarrou o braÁo para lhe
fallar da _Revista_, d'um forte vento de espiritualidade e de virtude
viril que se devia fazer soprar sobre o paiz... Por fim, j· estirado no
assento, tirando o chapÈo · aragem da noite:

--E outra coisa, Carlinhos. VÍ se me arranjas a ingleza... Ha vicios
deliciosos n'aquellas pestanas baixas... VÍ se m'a arranjas... V· l·,
bate l·, cocheiro! Caramba, que belleza de noite!



Carlos fic·ra encantado com este primeiro jantar d'amizade na _Toca_.
Elle tencionava n„o apresentar Maria aos seus intimos sen„o depois de
casado e · volta de Italia. Mas agora a ´uni„o legalª estava j· no seu
pensamento adiada, remota, quasi dispersa no vago. Como dizia o Ega,
devia esperar, deixar-se ir... E no emtanto, Maria e elle n„o poderiam
isolar-se alli todo um longo inverno, sem o calor sociavel d'alguns
amigos em redor. Por isso uma manh„, encontrando o Cruges, que fÙra o
visinho de Maria e outr'ora lhe dava noticias da ´lady inglezaª,
pediu-lhe para vir jantar · _Toca_ no domingo.

O maestro appareceu n'uma tipoia, · tardinha, de laÁo branco e de
casaca: e os fatos claros de campo com que encontrou Carlos e Ega
comeÁaram logo a enchel-o de mal-estar. Toda a mulher, alÈm das Lolas e
Conchas, o atarantava, o emmudecia: Maria, ´com o seu porte de
_grande-dame_ª, como elle dizia, intimidou-o a tal ponto que ficou
diante d'ella, sem uma palavra, escarlate, torcendo o forro das
algibeiras. Antes de jantar, por lembranÁa de Carlos, foram-lhe mostrar
a quinta. O pobre maestro, roÁando a casaca mal feita pela folhagem dos
arbustos, fazia esforÁos anciosos por murmurar algum elogio ´· belleza
do sitioª; mas escapavam-lhe ent„o inexplicavelmente coisas reles, em
cal„o: ´vista catitaª! ´È pitadaª! Depois ficava furioso, coberto de
suor, sem comprehender como se lhe babavam dos labios esses ditos
abominaveis, t„o contrarios ao seu gosto fino d'artista. Quando se
sentou · mesa soffria um negrissimo accesso de _spleen_ e mudez! Nem uma
controversia que Maria arranj·ra caridosamente para elle sobre Wagner e
Verdi pÙde descerrar-lhe os labios empedernidos. Carlos ainda tentou
envolvel-o na alegria da mesa--contando a ida a Cintra, quando elle
procurava Maria na Lawrence, e em vez d'ella ach·ra uma matrona obesa,
de bigode, de c„osinho ao collo, ralhando com o homem em hespanhol. Mas
a cada exclamaÁ„o de Carlos--´Lembras-te, Cruges?ª, ´N„o È verdade,
Cruges?ª--o maestro, rubro, grunhia apenas um _sim_ avaro. Terminou por
estar alli, ao lado de Maria, como um trambolho funebre. Estragou o
jantar.

Combin·ra-se para depois do cafÈ um passeio pelos arredores, n'um break.
E Carlos j· tom·ra as guias, Maria na almofada acabava de abotoar as
luvas--quando Ega, que receava a friagem da tarde, saltou do break,
correu a buscar o paletot. N'esse mesmo momento sentiram um trote de
cavallo na estrada--e appareceu o marquez.

Foi uma surpreza para Carlos, que o n„o vira durante esse ver„o. O
marquez parou logo, tirando profundamente, ao vÍr Maria, o seu largo
chapÈo desabado.

--Imaginava-o pela Golleg„! exclamou Carlos. Foi atÈ o Cruges que me
disse... Quando chegou vossÍ?

Cheg·ra na vespera. L· fÙra ao Ramalhete; tudo deserto. Agora vinha aos
Olivaes vÍr um dos Vargas que tinha casado, se install·ra alli perto, a
passar o noivado...

--Quem, o gordo, o das corridas?

--N„o, o magro, o das regatas.

Carlos, debruÁado da almofada, examinava a egoasita do marquez, pequena,
bem estampada, d'um baio escuro e bonito.

--Isso È novo?

--Uma facasita do Darque... Quer-m'a vossÍ comprar? Sou j· um pouco
pesado para ella, e isto mette-se a um dog-cart...

--DÍ l· uma volta.

O marquez deu a volta, bem posto na sella, avantajando a egoa. Carlos
achou-lhe ´boas acÁıesª. Maria murmurou--´Muito bonita, uma cabeÁa
fina...ª Ent„o Carlos apresentou o marquez de Souzella a madame
Mac-Gren. Elle chegou a egoa · roda, descoberto, para apertar a m„o a
Maria: e · espera do Ega que se eternisava l· dentro, ficaram fallando
do ver„o, de Santa Olavia, dos Olivaes, da _Toca_... Ha que tempos o
marquez alli n„o passava! A ultima vez fÙra victima da excentricidade do
Craft...

--Imagine v. exc.^a, disse elle a Maria Eduarda, que esse Craft me
convida a almoÁar. Venho, e o hortel„o diz-me que o snr. Craft, criado e
cozinheiro, tudo partira para o Porto; mas que o snr. Craft deix·ra um
cartaz na sala... Vou · sala, e vejo dependurado ao pescoÁo d'um idolo
japonez uma folha de papel com estas palavras pouco mais ou menos: ´O
deus Tchi tem a honra de convidar o snr. marquez, em nome de seu amo
ausente, a passar · sala de jantar onde encontrar·, n'um aparador,
queijo e vinho, que È o almoÁo que basta ao homem forte.ª E foi com
effeito o meu almoÁo... Para n„o estar sÛ, partilhei-o com o hortel„o.

--Espero que se tivesse vingado! exclamou Maria rindo.

--PÛde crÍr, minha senhora... Convidei-o a jantar, e quando elle
appareceu, vindo d'aqui da _Toca_, o meu guarda-port„o disse-lhe que o
snr. marquez fÙra para longe, e que n„o havia nem p„o nem queijo...
Resultado: o Craft mandou-me uma duzia de magnificas garrafas de
Chambertin. Esse deus Tchi nunca mais o tornei a vÍr...

O deus Tchi l· estava, obeso e medonho. E, muito naturalmente, Carlos
convidou o marquez a revisitar n'essa noite, · volta da casa do Vargas,
o seu velho amigo Tchi.

O marquez veio, ·s dez horas--e foi um ser„o encantador. Conseguiu
sacudir logo a melancolia do Cruges, arrastando-o com m„o de ferro para
o piano; Maria cantou; palrou-se com graÁa; e aquelle escondrijo d'amor
ficou alumiado atÈ tarde, na sua primeira festa de amizade.

Estas reuniıes alegres foram ao principio, como dizia o Ega,
_dominicaes_: mas o outono arrefecia, bem depressa se despiriam as
arvores da _Toca_, e Carlos accumulou-as duas vezes por semana, nos
velhos dias feriados da Universidade, domingos e quintas. Tinha
descoberto uma admiravel cozinheira alsaciana, educada nas grandes
tradiÁıes, que servira o bispo de Strasburgo, e a quem as extravagancias
d'um filho e outras desgraÁas tinham arrojado a Lisboa. Maria, de resto,
punha na composiÁ„o dos seus jantares uma sciencia delicada: o dia de
vir · _Toca_ era considerado pelo marquez ´dia de civilisaÁ„oª.

A mesa resplandecia; e as tapeÁarias representando massas d'arvoredos
punham em redor como a sombra escura d'um retiro silvestre onde por um
capricho se tivessem accendido candelabros de prata. Os vinhos sahiam da
frasqueira preciosa do Ramalhete. De todas as coisas da terra e do cÈo
se grulhava com phantasia--menos de ´politica portuguezaª, considerada
conversa indecorosa entre pessoas de gosto.

Rosa apparecia ao cafÈ, exhalando do seu sorriso, dos bracinhos n˙s, dos
vestidos brancos tufados sobre as meias de sÍda preta, um bom aroma de
flÙr. O marquez adorava-a, disputando-a ao Ega, que a pedira a Maria em
casamento e lhe andava compondo havia tempo um soneto. Ella preferia o
marquez: achava o Ega ´muito...ª--e completava o seu pensamento com um
gestosinho do dedo ondeado no ar, como a exprimir que o Ega ´era muito
retorcidoª.

--Ahi est·! exclamava elle. Porque eu sou mais civilisado que o outro! …
a simplicidade n„o comprehendendo o requinte.

--N„o, desgraÁado! exclamavam do lado. … porque Ès impresso!... … a
natureza repellindo a convenÁ„o!...

Bebia-se · saude de Maria: ella sorria, feliz entre os seus novos
amigos, divinamente bella, quasi sempre de escuro, com um curto decote
onde resplandecia o incomparavel esplendor do seu collo.

Depois organisaram-se solemnidades. N'um domingo, em que os sinos
repicavam e a distancia foguetes esfuziavam no ar--Ega lamentou que os
seus austeros principios philosophicos o impedissem de festejar tambem
aquelle santo d'aldeia, que fÙra decerto em vida um caturra encantador,
cheio d'illusıes e doÁura... Mas de resto, acrescentou, n„o teria sido
n'um dia assim, fino e secco, sob um grande cÈo cheio de sol, que se
feriu a batalha das Thermopylas? Porque n„o se atiraria uma girandola de
foguetes em honra de Leonidas e dos trezentos? E atirou-se a girandola
pela eterna gloria de Sparta.

Depois celebraram-se outras datas historicas. O anniversario da
descoberta da Venus de Milo foi commemorado com um bal„o que ardeu.
N'outra occasi„o o marquez trouxe de Lisboa, apinhados n'uma tipoia,
fadistas famosos, o _Pintado_, o _Vira-vira_ e o _Gago_: e depois de
jantar, atÈ tarde, com o luar sobre o rio, cinco guitarras choraram os
ais mais tristes dos fados de Portugal.

Quando estavam sÛs, Carlos e Maria passavam as suas manh„s no kiosque
japonez--affeiÁoados ·quelle primeiro retiro dos seus amores, pequeno e
apertado, onde os seus coraÁıes batiam mais perto um do outro. Em logar
das esteiras de palha Carlos revestira-o com as suas formosas colchas da
India, cÙr de palha e cÙr de perola. Um dos maiores cuidados d'elle,
agora, era embellezar a _Toca_: nunca voltava de Lisboa sem trazer
alguma figurinha de Saxe, um marfim, uma faianÁa, como noivo feliz que
aperfeiÁÙa o seu ninho.

Maria no emtanto n„o cessava de lembrar os planos intellectuaes do Ega:
queria que elle trabalhasse, ganhasse um nome: seria isso o orgulho
intimo d'ella, e sobretudo a alegria suprema do avÙ. Para a contentar
(mais que para satisfazer as suas necessidades de espirito) Carlos
recomeÁ·ra a compÙr alguns dos seus artigos de medicina litteraria para
a _Gazeta Medica_. Trabalhava no kiosque, de manh„. Trouxera para l·
rascunhos, livros, o seu famoso manuscripto da _Medicina antiga e
moderna_. E por fim ach·ra um grande encanto em estar alli, com um leve
casaco de sÍda, as suas cigarettes ao lado, um fresco murmurio de
arvoredo em redor--cinzelando as suas phrases, emquanto ella ao lado
bordava silenciosa. As suas idÈas surgiam com mais originalidade, a sua
fÛrma ganhava em colorido, n'aquelle estreito kiosque assetinado que
ella perfumava com a sua presenÁa. Maria respeitava este trabalho como
coisa nobre e sagrada. De manh„, ella mesma espanejava os livros do leve
pÛ que a aragem soprava pela janella; dispunha o papel branco, punha
cuidadosamente pennas novas; e andava bordando uma almofada de pennas e
setim para que o trabalhador estivesse mais confortavel na sua vasta
cadeira de couro lavrado.

Um dia offerecera-se a passar a limpo um artigo. Carlos, enthusiasmado
com a letra d'ella, quasi comparavel · lendaria letra do Damaso,
occupava-a agora incessantemente como copista, sentindo mais amor por um
trabalho a que ella se associava. Quantos cuidados se dava a dÙce
creatura! Tinha para isso um papel especial, d'um tom macio de marfim:
e, com o dedinho no ar, ia desenrolando as pesadas consideraÁıes de
Carlos sobre o Vitalismo e o Transformismo na graÁa delicada d'uma
renda... Um beijo pagava-a de tudo.

¡s vezes Carlos dava liÁıes a Rosa--ora de historia, contando-lh'a
familiarmente como um conto de fadas; ora de geographia, interessando-a
pelas terras onde vivem gentes negras, e pelos velhos rios que correm
entre as ruinas dos santuarios. Isto era o prazer mais alto de Maria.
SÈria, muda, cheia de religi„o, escutava aquelle sÍr bem-amado ensinando
sua filha. Deixava escapar das m„os o trabalho--e o interesse de Carlos,
a enlevada attenÁ„o de Rosa sentada aos pÈs d'elle, bebendo aquellas
bellas historias de Joanna d'Arc ou das caravellas que foram · India,
fazia resplandecer nos seus olhos uma nevoa de lagrimas felizes...



Desde o meado d'outubro Affonso da Maia fallava da sua partida de Santa
Olavia, retardada apenas por algumas obras que comeÁ·ra na parte velha
da casa e nas cocheiras: porque ultimamente invadira-o a paix„o de
edificar--sentindo-se remoÁar, como elle dizia, no contacto das madeiras
novas e no cheiro vivo das tintas. Carlos e Maria pensavam tambem em
abandonar os Olivaes. Carlos n„o poderia por dever domestico permanecer
alli installado desde que o avÙ recolhesse ao Ramalhete. AlÈm d'isso
aquelle fim d'outono ia escuro e agreste; e a _Toca_ era agora pouco
bucolica, com a quinta desfolhada e alagada, uma nevoa sobre o rio, e um
fog„o unico no gabinete de cretones--alÈm da sumptuosa chaminÈ da sala
de jantar, que, por entre os seus Nubios d'olhos de crystal, soltava uma
fumaraÁa odiosa quando o Domingos a tentava accender.

N'uma d'essas manh„s, Carlos, que fic·ra atÈ tarde com Maria, e depois
no seu delgado casebre mal pudera dormir com um temporal de vento e agua
desencadeado de madrugada--ergueu-se ·s nove horas, veio · _Toca_. As
janellas do quarto de Maria conservavam-se ainda cerradas; a manh„
clare·ra; a quinta lavada, meio despida, no ar fino e azul, tinha uma
linda e silenciosa graÁa d'inverno. Carlos passeava, olhando os vasos
onde os chrysanthemos floriam, quando retiniu a sineta do port„o. Era o
toque do carteiro. Justamente elle escrevera dias antes ao Cruges,
perguntando se estaria desoccupado para os primeiros frios de dezembro o
andar da rua de S. Francisco: e, esperando carta do maestro, foi abrir,
acompanhado por _Niniche_. Mas o correio, n'essa manh„, consistia apenas
n'uma carta do Ega e dois numeros de jornal cintados--um para elle,
outro para ´Madame Castro Gomes, na quinta do snr. Craft, aos Olivaesª.

Caminhando sob as acacias, Carlos abriu a carta do Ega. Era da vespera,
com a data ´· noite, · pressaª. E dizia: ´--LÍ, n'esse trapo que te
mando, esse superior pedaÁo de prosa que lembra Tacito. Mas n„o te
assustes; eu supprimi, mediante pecunia, toda a tiragem, com excepÁ„o de
dois numeros mais que foram, um para a _Toca_, outro (oh logica suprema
dos habitos constitucionaes!) para o PaÁo, para o chefe do Estado!...
Mas esse mesmo n„o chegar· ao seu destino. Em todo o caso desconfio de
que esgÙto sahiu esse enxurro e precisamos providenciar! Vem j·!
Espero-te atÈ ·s duas. E, como Iago dizia a Cassio--_mette dinheiro na
bolsa_.ª

Inquieto, Carlos descintou o jornal. Chamava-se a _Corneta do Diabo_: e
na impress„o, no papel, na abundancia dos _italicos_, no typo gasto,
todo elle revelava immundicie e malandrice. Logo na primeira pagina duas
cruzes a lapis marcavam um artigo que Carlos, n'um relance, viu
salpicado com o seu nome. E leu isto: ´--Ora viva, _sÙ_ Maia! Ent„o j·
se n„o vai ao consultorio, nem se vÍem os doentes do bairro, _sÙ_
janota?--Esta piada era botada no Chiado, · porta da Havaneza, ao Maia,
ao Maia dos cavallos inglezes, um tal Maia do Ramalhete, que abarrota
por ahi de _catita_; e o pai Paulino _que tem olho_ e que passava n'essa
occasi„o ouviu a seguinte _cornetada_:--… que o _sÙ_ Maia acha _que È
mais quente_ viver nas fraldas d'uma _brazileira casada_, que nem È
brazileira nem È casada, e a quem o papalvo poz casa, ahi para o lado
dos Olivaes, para _estar ao fresco_! Sempre os ha n'este mundo!... Pensa
o homem que botou conquista; e c· a rapaziada de gosto ri-se, porque o
que a gaja lhe quer n„o s„o os lindos olhos, s„o as lindas _louras_... O
simplorio, que bate ahi pilecas _bifes_, que nem que fosse o _marquez_,
o verdadeiro Marquez, imaginava que se estava abiscoitando com uma
senhora do _chic_, e do boulevard de Paris, e casada, e titular!... E no
fim (n„o, esta È para a gente deixar estoirar o bandulho a rir!) no fim
descobre-se que a typa era uma _cocotte_ safada, que trouxe para ahi um
brazileiro _j· farto d'ella_ para a passar c· aos bellos lusitanos... E
cahiu a espiga ao Maia! Pobre palerma! Ainda assim o _sÙ_ Maia sÛ
apanhou os restos d'outro, porque a _typa_, j· antes d'elle se enfeitar,
tinha _pandegado · larga_, ahi para a rua de S. Francisco, com um rapaz
da fina, que se safou tambem, porque c· como nÛs sÛ _aprecia a bella
hespanhola_. Mas n„o obsta a que o _sÙ_ Maia seja traste!--Pois se assim
È, dissemos nÛs, cautelinha, porque o diabo c· tem a sua _Corneta_
preparada para cornetear por esse mundo as faÁanhas do _Maia das
conquistas_. Ora viva, _sÙ_ Maia!ª

Carlos ficou immovel entre as acacias, com o jornal na m„o, no espanto
furioso e mudo d'um homem que subitamente recebe na face uma grossa
chapada de lÙdo! N„o era a cÛlera de vÍr o seu amor assim aviltado na
publicidade chula d'um jornal sordido: era o horror de sentir aquellas
phrases em cal„o, pandilhas, afadistadas, como sÛ Lisboa as pÛde crear,
pingando fetidamente, · maneira de sebo, sobre si, sobre Maria, sobre o
esplendor da sua paix„o... Sentia-se todo emporcalhado. E uma unica idÈa
surgia atravÈs da sua confus„o--matar o bruto que escrevera aquillo.

Matal-o! Ega sust·ra a tiragem da folha, Ega pois conhecia o
folliculario. Nada importava que aquelles numeros, que tinha na m„o,
fossem os unicos impressos. Recebera lama na face. Que a injuria fosse
espalhada nas praÁas n'uma profusa publicidade ou lhe fosse atirada sÛ a
elle escondidamente n'um papel unico, era igual... Quem tanto ous·ra
tinha de cahir, esmagado!

Decidiu ir logo ao Ramalhete. O Domingos · janella da cozinha areava
pratas, assobiando. Mas quando Carlos lhe fallou de ir buscar um
calhambeque aos Olivaes, o bom Domingos consultou o relogio:

--V. exc.^a tem ·s onze horas a caleche do _Torto_ que a senhora mandou
c· estar para ir a Lisboa...

Carlos, com effeito, recordou-se que Maria na vespera plane·ra ir ·
Aline e aos livreiros. Uma contrariedade, justamente n'esse dia em que
elle precisava ficar livre--elle e a sua bengala! Mas Melanie, passando
ent„o com um jarro d'agua quente, disse que a senhora ainda se n„o
vestira, que talvez nem fosse a Lisboa... E Carlos recomeÁou a passear,
no tapete de relva, entre as nogueiras.

Sentou-se por fim no banco de cortiÁa, descintou a _Corneta_
sobrescriptada para Maria, releu lentamente a prosa immunda: e, n'esse
numero que lhe fÙra destinado a ella, todo aquelle cal„o lhe pareceu
mais ultrajante, intoleravel, punivel sÛ com sangue. Era monstruoso, na
verdade, que sobre uma mulher, quieta, innoffensiva no silencio da sua
casa, alguem ousasse t„o brutalmente arremessar esse lÙdo ·s m„os
cheias! E a sua indignaÁ„o alargava-se do folliculario que bab·ra
aquillo--atÈ · sociedade que, na sua decomposiÁ„o, produzira o
folliculario. Decerto toda a cidade soffria a sua vermina... Mas sÛ
Lisboa, sÛ a horrivel Lisboa, com o seu apodrecimento moral, o seu
rebaixamento social, a perda inteira do bom-senso, o desvio profundo do
bom gosto, a sua pulhice e o seu cal„o, podia produzir uma _Corneta do
Diabo_.

E, no meio d'esta alta cÛlera de moralista, uma dÙr perpassava, precisa
e dilacerante. Sim, toda a sociedade de Lisboa fazia um monturo sordido
n'este canto do mundo--mas, em summa, havia no artigo da _Corneta_ uma
calumnia? N„o. Era o passado de Maria, que ella arranc·ra de si como um
vestido rÙto e sujo, que elle mesmo enterr·ra muito fundo, deitando-lhe
por cima o seu amor e o seu nome--e que alguem desenterrava para o
mostrar bem alto ao sol, com as suas manchas e os seus rasgıes... E isto
agora ameaÁava para sempre a sua vida como um terror sobre ella
suspenso. Debalde elle perdo·ra, debalde elle esquecera. O mundo em
redor sabia. E a todo o tempo o interesse ou a perversidade poderiam
refazer o artigo da _Corneta_.

Ergueu-se, abalado. E ent„o alli, sob essas arvores desfolhadas, onde
durante o ver„o, quando ellas se enchiam de sombra e de murmurio, elle
passe·ra com Maria, esposa eleita da sua vida--Carlos perguntou pela vez
primeira a si mesmo se a honra domestica, a honra social, a pureza dos
homens de quem descendia, a dignidade dos homens que d'elle descendessem
lhe permittiam em verdade casar com ella...

Dedicar-lhe toda a sua affeiÁ„o, toda a sua fortuna, certamente! Mas
casar... E se tivesse um filho? O seu filho, j· homem, altivo e puro,
poderia um dia lÍr n'uma _Corneta do Diabo_ que sua m„i fÙra amante d'um
brazileiro, depois de ser amante d'um irlandez. E se seu filho lhe
viesse gritar, n'uma bella indignaÁ„o, ´È uma calumnia?ª--elle teria de
baixar a cabeÁa, murmurar--´È uma verdade!ª E seu filho veria para
sempre collada a si aquella m„i de quem o mundo ignorava os martyrios e
os encantos--mas de quem conhecia cruelmente os erros.

E ella mesma! Se elle appellasse para a sua raz„o, alta e t„o recta,
mostrando-lhe as zombarias e as affrontas de que uma vil _Corneta do
Diabo_ poderia um dia trespassar o filho que d'elles nascesse--ella
mesma o desligaria alegremente do seu voto, contente em entrar no
Ramalhete pela escadinha secreta forrada de velludo cÙr de cereja,
comtanto que em cima a esperasse um amor constante e forte... Nunca ella
torn·ra, em todo o ver„o, a alludir a uma uni„o differente d'essa em que
os seus coraÁıes viviam t„o lealmente, t„o confortavelmente. N„o, Maria
n„o era uma devota, preoccupada ´do peccado mortalª! Que lhe podia
importar a estola banal do padre?...

Sim; mas elle que lhe pedira essa consagraÁ„o na hora mais commovida do
seu longo amor, iria dizer-lhe agora--´foi uma criancice, n„o pensemos
mais n'isso, desculpa?ª N„o; nem o seu coraÁ„o o desejava! Antes pendia
todo para ella... Pendia todo para ella, n'um enternecimento mais
generoso e mais quente--emquanto a sua raz„o assim arengava, cautelosa e
austera. Elle tinha n'aquella alma o seu culto perfeito, n'aquelles
braÁos a sua voluptuosidade magnifica; fÛra d'alli n„o havia felicidade;
a unica sabedoria era prender-se a ella pelo derradeiro elo, o mais
forte, o seu nome, embora as _Cornetas do Diabo_ atroassem todo o ar. E
assim affrontaria o mundo n'uma soberba revolta, affirmando a
omnipotencia, o reino unico da Paix„o... Mas primeiro mataria o
folliculario!--Passeava, esmagava a relva. E todos os seus pensamentos
se resolviam por fim em furia contra o infame que bab·ra sobre o seu
amor, e durante um instante introduzia na sua vida tanta incerteza e
tanto tormento!

Maria ao lado abriu a janella. Estava vestida d'escuro para sahir; e
bastou o brilho terno do seu sorriso, aquelles hombros a que o estofo
justo modelava a belleza cheia e quente--para que Carlos detestasse logo
as duvidas desleaes e covardes, a que se abandon·ra um momento sob as
arvores desfolhadas... Correu para ella. O beijo que lhe deu, lento e
mudo, teve a humildade d'um perd„o que se implora.

--Que tens tu, que est·s t„o sÈrio?

Elle sorriu. SÈrio, no sentido de solemne, n„o estava. Talvez seccado.
Recebera uma carta do Ega, uma das eternas complicaÁıes do Ega. E
precisava ir a Lisboa, ficar l· naturalmente toda a noite...

--Toda a noite? exclamou ella com um desapontamento, pousando-lhe as
m„os sobre os hombros.

--Sim, È bem possivel, um horror! Nos negocios do Ega ha fatalmente o
inesperado... Tu com effeito vaes a Lisboa?

--Agora, com mais raz„o... Se me queres.

--O dia est· bonito... Mas ha de fazer frio na estrada.

Maria justamente gostava d'esses dias d'inverno, cheios de sol, com um
arzinho vivo e arripiado. Tornavam-n'a mais leve, mais esperta.

--Bem, bem, disse Carlos atirando o cigarro. Vamos ao almoÁo, minha
filha... O pobre Ega deve estar a uivar de impaciencia.

Emquanto Maria correra a apressar o Domingos--Carlos, atravÈs da relva
humida, foi ainda lentamente atÈ ao renque baixo d'arbustos que
d'aquelle lado fechava a _Toca_ como uma sebe. Ahi a collina descia, com
quintarolas, muros brancos, olivedos, uma grande chaminÈ de fabrica que
fumegava: para alÈm era o azul fino e frio do rio: depois os montes,
d'um azul mais carregado, com a casaria branca da povoaÁ„o aninhada ·
beira da agua, nitida e suave na transparencia do ar macio. Parou um
momento, olhando. E aquella aldeia de que nunca soubera o nome, t„o
quieta e feliz na luz, deu a Carlos um desejo repentino de socego e de
obscuridade, n'um canto assim do mundo, · beira d'agua, onde ninguem o
conhecesse nem houvesse _Cornetas do Diabo_, e elle pudesse ter a paz
d'um simples e d'um pobre debaixo de quatro telhas, no seio de quem
amava...

Maria gritou por elle da janella da sala de jantar, onde se debruÁ·ra a
apanhar uma das ultimas rosas trepadeiras que ainda floriam.

--Que lindo tempo para viajar, Maria!--disse Carlos chegando, atravÈs da
relva.

--Lisboa È tambem muito linda, agora, havendo sol...

--Pois sim, mas o Chiado, a coscovilhice, os politiquetes, as gazetas,
todos os horrores... A mim est·-me positivamente a appetecer uma cubata
na Africa!

O almoÁo, por fim, foi demorado. Ia bater uma hora quando a caleche do
_Torto_ comeÁou a rolar na estrada, ainda encharcada da chuva da noite.
Logo adiante da villa, na descida, cruzaram um coupÈ que trepava n'um
trote esfalfado. Maria julgou avistar n'elle de relance o chapÈo branco
e o monoculo do Ega... Pararam. E era com effeito o Ega, que reconhecera
tambem a caleche da _Toca_, vinha j· saltitando as lamas com longas
pernadas de cegonha, chamando por Carlos.

Ao vÍr Maria ficou atrapalhado:

--Que bella surpreza! Eu ia para l·... Vi o dia t„o bonito, disse
commigo...

--Bem, paga a tua tipoia, vem comnosco! atalhou Carlos que trespassava o
Ega, com os olhos inquietos, querendo adivinhar o motivo d'aquella
brusca chegada aos Olivaes.

Quando entrou para a caleche, tendo pago o batedor, Ega, embaraÁado, sem
poder desabafar diante de Maria sobre o caso da _Corneta_, comeÁou, sob
os olhos de Carlos que o n„o deixavam, a fallar do inverno, das
inundaÁıes do Riba-Tejo... Maria lÍra. Uma desgraÁa, duas crianÁas
afogadas nos berÁos, gados perdidos, uma grande miseria! Por fim Carlos
n„o se conteve:

--Eu l· recebi a tua carta...

Ega acudiu:

--Arranja-se tudo! Est· tudo combinado! E com effeito eu n„o vim sen„o
por um sentimento bucolico...

Muito discretamente Maria olh·ra para o rio. Ega fez ent„o um gesto
rapido com os dedos significando ´dinheiro, sÛ quest„o de dinheiroª.
Carlos socegou: e Ega voltou a fallar dos inundados do Riba-Tejo e do
sarau litterario e artistico que em beneficio d'elles se ´ia commetterª
no sal„o da Trindade... Era uma vasta solemnidade official. Tenores do
parlamento, rouxinoes da litteratura, pianistas ornados com o habito de
S. Thiago, todo o pessoal canoro e sentimental do constitucionalismo _ia
entrar em fogo_. Os reis assistiam, j· se teciam grinaldas de camelias
para pendurar na sala. Elle, apesar de demagogo, fÙra convidado para lÍr
um episodio das _Memorias d'um Atomo_: recus·ra-se, por modestia, por
n„o encontrar nas _Memorias_ nada t„o sufficientemente palerma que
agradasse · capital. Mas lembr·ra o Cruges; e o _maestro_ ia ribombar ou
arrulhar uma das suas _MeditaÁıes_. AlÈm d'isso havia uma poesia social
pelo Alencar. Emfim, tudo prenunciava uma immensa orgia...

--E a snr.^a D. Maria, acrescentou elle, devia ir!... … summamente
pittoresco. Tinha v. exc.^a occasi„o de vÍr todo o Portugal romantico e
liberal, _‡ la besogne_, engravatado de branco, dando tudo que tem
n'alma!

--Com effeito devias ir, disse Carlos, rindo. Demais a mais se o Cruges
toca, se o Alencar recita, È uma festa nossa...

--Pois est· claro! gritou Ega, procurando o monoculo, j· excitado. Ha
duas coisas que È necessario vÍr em Lisboa... Uma prociss„o do Senhor
dos Passos e um sarau poetico!

Rolavam ent„o pelo largo do Pelourinho. Carlos gritou ao cocheiro que
parasse no comeÁo da rua do Alecrim: elles apeavam-se e tomavam de l· o
americano para o Ramalhete.

Mas a tipoia estacou antes da calÁada, rente ao passeio, em frente d'uma
loja de alfaiate. E n'esse instante achava-se ahi parado, calÁando as
suas luvas pretas, um velho alto, de longas barbas d'apostolo, todo
vestido de luto. Ao vÍr Maria, que se inclin·ra · portinhola, o homem
pareceu assombrado; depois, com uma leve cÙr na face larga e pallida,
tirou gravemente o chapÈo, um immenso chapÈo de abas recurvas, · moda de
1830, carregado de crepe.

--Quem È? perguntou Carlos.

--… o tio do Damaso, o Guimar„es, disse Maria, que cÛr·ra tambem. …
curioso, elle aqui!

Ah, sim! o famoso Mr. Guimar„es, o do _Rappel_, o intimo de Gambetta!
Carlos recordava-se de ter j· encontrado aquelle patriarcha no Price com
o Alencar. Comprimentou-o tambem; o outro ergueu de novo com uma
gravidade maior o seu sombrio chapÈo de carbonario. Ega ental·ra
vivamente o monoculo para examinar esse lendario tio do Damaso, que
ajudava a governar a FranÁa: e depois de se despedirem de Maria, quando
a caleche j· subia a rua do Alecrim e elles atravessavam para o Hotel
Central, ainda se voltou seduzido por aquelles modos, aquellas barbas
austeras de revolucionario...

--Bom typo! E que magnifico chapÈo, hein! D'onde diabo o conhece a
snr.^a D. Maria?

--De Paris... Este Mr. Guimar„es era muito da m„i d'ella. A Maria j· me
tinha fallado n'elle. … um pobre diabo. Nem amigo de Gambetta, nem coisa
nenhuma... Traduz noticias dos jornaes hespanhoes para o _Rappel_, e
morre de fome...

--Mas ent„o, o Damaso?

--O Damaso È um trapalh„o. Vamos nÛs ao nosso caso... Essa immundicie
que me mandaste, a _Corneta_? Dize l·.

Seguindo devagar pelo Aterro, Ega contou a historia da immundicie. FÙra
na vespera · tarde que recebera no Ramalhete a _Corneta_. Elle j·
conhecia o papelucho, j· priv·ra mesmo com o proprietario e redactor--o
Palma, chamado Palma _Cavall„o_ para se distinguir d'outro benemerito
chamado Palma _Cavallinho_. Comprehendeu logo que se a prosa era do
Palma a inspiraÁ„o era alheia. O Palma nada sabia de Carlos, nem de
Maria, nem da casa da rua de S. Francisco, nem da _Toca_... N„o era
natural que escrevesse por deleite intellectual um documento que sÛ lhe
podia render desgostos e bengaladas. O artigo, pois, fÙra-lhe
simplesmente encommendado e pago. No terreno do dinheiro vence sempre
quem tem mais dinheiro. Por este solido principio correra a procurar o
Palma _Cavall„o_ no seu antro.

--Tambem lhe conheces o antro? perguntou Carlos, com horror.

--Tanto n„o... Fui perguntar · secretaria da JustiÁa a um sujeito que
esteve associado com elle n'um negocio de _Almanachs religiosos_...

FÙra pois ao antro. E encontr·ra as coisas dispostas pelas m„os habeis
d'uma Providencia amiga. Primeiramente, depois de imprimir cinco ou seis
numeros, a machina, esfalfada na pratica d'aquellas maroteiras,
desmanch·ra-se. AlÈm d'isso o bom Palma estava furioso com o cavalheiro
que lhe encommend·ra o artigo, por divergencia na seriissima quest„o de
pecunia. De sorte que apenas elle propÙz comprar a tiragem do jornal--o
jornalista estendeu logo a m„o larga, d'unhas roÌdas, tremendo de
reconhecimento e de esperanÁa. Dera-lhe cinco libras que tinha, e a
promessa de mais dez...

--… caro, mas que queres? continuou o Ega. Deixei-me atarantar, n„o
regateei bastante... E emquanto a dizer quem È o cavalheiro que
encommendou o artigo, o Palma, coitado, affirma que tem uma rapariga
hespanhola a sustentar, que o senhorio lhe levantou o aluguer da casa,
que Lisboa est· carissima, que a litteratura n'este desgraÁado paiz...

--Quanto quer elle?

--Cem mil reis. Mas, ameaÁando-o com a policia, talvez desÁa a quarenta.

--Promette os cem, promette tudo, comtanto que eu tenha o nome... Quem
te parece que seja?

Ega encolheu os hombros, deu um risco lento no ch„o com a bengala. E
mais lentamente ainda foi considerando que o inspirador da _Corneta_
devia ser alguem familiar com Castro Gomes; alguem frequentador da rua
de S. Francisco; alguem conhecedor da _Toca_; alguem que tinha, por
ciume ou vinganÁa, um desejo ferrenho de magoar Carlos; alguem que sabia
a historia de Maria; e emfim alguem que era um covarde...

--Est·s a descrever o Damaso! exclamou Carlos, pallido e parando.

Ega encolheu de novo os hombros, tornou a riscar o ch„o:

--Talvez n„o... Quem sabe! Emfim, nÛs vamos averigual-o com certeza,
porque, para terminar a negociaÁ„o, fiquei de me ir encontrar com o
Palma ·s tres horas no _Lisbonense_... E o melhor È vires tambem. Trazes
tu dinheiro?

--Se fÙr o Damaso, mato-o! murmurou Carlos.

E n„o trazia sufficiente dinheiro. Tomaram uma tipoia para correr ao
escriptorio do VillaÁa. O procurador fÙra a Mafra, a um baptisado.
Carlos teve de ir pedir cem mil reis ao velho Cortez, alfaiate do avÙ.
Quando perto das quatro horas se apearam · entrada do _Lisbonense_, no
largo de Santa Justa, o Palma no portal, com um jaquet„o de velludo
coÁado e calÁa de casimira clara collada · cÙxa, accendia um cigarro.
Estendeu logo rasgadamente a m„o a Carlos--que lhe n„o tocou. E Palma
_Cavall„o_, sem se offender, com a m„o abandonada no ar, declarou que ia
justamente sahir, canÁado j· de esperar em cima diante d'um _grog_ frio.
De resto sentia que o snr. Maia se incommodasse em vir alli...

--Eu arranjava c· o negociosinho com o amigo Ega... Em todo o caso, se
os senhores querem, vamos l· p'ra cima para um gabinete, que se est·
mais · vontade, e toma-se outra bebida.

Subindo a escada lobrega, Carlos recordava-se de ter j· visto aquella
luneta de vidros grossos, aquella cara balofa cÙr de cidra... Sim, fÙra
em Cintra, com o Eusebiosinho e duas hespanholas, n'esse dia em que elle
farej·ra pelas estradas silenciosas, como um c„o abandonado, procurando
Maria!... Isto tornou-lhe mais odioso o snr. Palma. Em cima entraram
n'um cubiculo, com uma janella gradeada por onde resvalava uma luz suja
de sagu„o. Na toalha da mesa, salpicada de gordura e vinho, alguns
pratos rodeavam um galheteiro que tinha moscas no azeite. O snr. Palma
bateu as palmas, mandou vir genebra. Depois dando um grande pux„o ·s
calÁas:

--Pois eu espero que me acho aqui entre cavalheiros. Como eu j· disse c·
ao amigo Ega, em todo este negocio...

Carlos atalhou-o, tocando muito significativamente com a ponteira da
bengala na borda da mesa.

--Vamos ao ponto essencial... Quanto quer o snr. Palma por me dizer quem
lhe encommendou o artigo da _Corneta_?

--Dizer quem o encommendou, e proval-o! acudiu o Ega, que examinava na
parede uma gravura onde havia mulheres n˙as · beira d'agua. N„o nos
basta o nome... O amigo Palma, est· claro, È de toda a confianÁa... Mas
emfim, que diabo, n„o È natural que nÛs acreditassemos se o amigo nos
dissesse que tinha sido o snr. D. Luiz de BraganÁa!

Palma encolheu os hombros. Est· visto que havia de dar provas. Elle
podia ter outros defeitos, trapalh„o n„o! Em negocios era todo franqueza
e lisura... E, se se entendessem, alli as entregava logo, essas provas
que lhe estavam enchendo o bolsinho, pimponas e d'escachar! Tinha a
carta do amigo que lhe encommend·ra a piada: a lista das pessoas a quem
se devia mandar a _Corneta_: o rascunho do artigo a lapis...

--Quer cem mil reis por tudo isso? perguntou Carlos.

O Palma ficou um momento indeciso, ageitando as lunetas com os dedos
molles. Mas o criado veio trazer a garrafa da genebra: e ent„o o
redactor da _Corneta_ offereceu a ´bebidaª rasgadamente, puxou mesmo
cadeiras para aquelles cavalheiros abancarem. Ambos recusaram--Carlos de
pÈ junto da mesa onde termin·ra por pousar a bengala, Ega passando a
outra gravura onde dois frades se emborrachavam. Depois, quando o criado
sahiu, Ega acercou-se, tocou com bonhomia no hombro do jornalista:

--Cem mil reis s„o uma linda somma, Palma amigo! E olhe que se lhe
offerecem por delicadeza comsigo. Porque artiguinhos como este da
_Corneta_, apresentados na Boa-Hora, levam · grilheta!... Est· claro,
este caso È outro, vossÍ n„o teve intenÁ„o d'offender; mas levam ·
grilheta!... Foi assim que o Severino marchou para a Africa. Alli no
por„osinho d'um navio, com raÁ„o de marujo e chibatadas. Desagradavel,
muito desagradavel. Por isso eu quiz que tratassemos isto aqui, entre
cavalheiros, e em amizade.

Palma, com a cabeÁa baixa, desfazia torrıes de assucar dentro do copo de
genebra. E suspirou, findou por dizer, um pouco murcho, que era por ser
entre cavalheiros, e com amizade, que aceitava os cem mil reis...

Immediatamente Carlos tirou da algibeira das calÁas um punhado de
libras, que comeÁou a deixar cahir em silencio uma a uma dentro d'um
prato. E Palma _Cavall„o_, agitado com o tinir do ouro, desabotoou logo
o jaquet„o, sacou uma carteira onde reluzia um pesado monogramma de
prata sob uma enorme corÙa de visconde. Os dedos tremiam-lhe; por fim
desdobrou, estendeu tres papeis sobre a mesa. Ega, que esperava, com o
monoculo sÙfrego, teve um brado de triumpho. Reconhecera a letra do
Damaso!

Carlos examinou os papeis lentamente. Era uma carta do Damaso ao Palma,
curta e em cal„o, remettendo o artigo, recommendando-lhe ´que o
apimentasseª. Era o rascunho do artigo, laboriosamente trabalhado pelo
Damaso, com entrelinhas. Era a lista, escripta pelo Damaso, das pessoas
que deviam receber a _Corneta_: vinha l· a Gouvarinho, o ministro do
Brazil, D. Maria da Cunha, El-Rei, todos os amigos do Ramalhete, o
Cohen, varias authoridades, e a Fancelli prima-donna...

Palma no emtanto, nervoso, rufava com os dedos sobre a toalha, junto ao
prato onde reluziam as libras. E foi o Ega que o animou, depois de
relancear os olhos aos documentos por cima do hombro de Carlos:

--Recolha o bago, amigo Palma! Negocios s„o negocios, e o baguinho est·
ahi a arrefecer!

Ent„o, ao palpar o ouro, Palma _Cavall„o_ commoveu-se. Palavra, caramba,
se soubesse que se tratava d'um cavalheiro como o snr. Maia n„o tinha
aceitado o artigo! Mas ent„o!... FÙra o Eusebio Silveira, rapaz amigo,
que lhe viera fallar. Depois o Salcede. E ambos com muitas lÈrias, e que
era uma brincadeira, e que o Maia n„o se importava, e isto e aquillo, e
muita promessa... Emfim deix·ra-se tentar. E tanto o Salcede como o
Silveira se tinham portado pulhamente.

--Foi uma sorte que se escangalhasse a machina! Sen„o estava agora
entalado, irra! E tinha desgosto, palavra, caramba, tinha desgosto! Mas
acabou-se! O mal n„o foi grande, e sempre se fez alguma coisa pela porca
da vida.

Vivamente, com um olhar, recont·ra o dinheiro na palma da m„o: depois
esvaziou a genebra, d'um trago consolado e ruidoso. Carlos guard·ra as
cartas do Damaso, levantava j· o fecho da porta. Mas voltou-se ainda,
n'uma derradeira averiguaÁ„o:

--Ent„o esse meu amigo Eusebio Silveira tambem se metteu no negocio?...

O snr. Palma, muito lealmente, afianÁou que o Eusebio lhe fall·ra apenas
em nome do Damaso!

--O Eusebio, coitado, veio sÛ como embaixador... Que o Damaso e eu n„o
vamos muito na mesma bola. Fic·mos exquisitos, desde uma pÈga em casa da
Biscainha. Aqui p'ra nÛs, eu prometti-lhe dois estalos na cara, e elle
embuchou. Passados tempos torn·mos a fallar, quando eu fazia o
_High-life_ na _Verdade_. Elle veio-me pedir com bons modos, em nome do
conde de Landim, para eu dar umas piadas catitas sobre um baile
d'annos... Depois, quando o Damaso fez tambem annos, eu dei outra
piadita. Elle pagou a ceia, fic·mos mais calhados... Mas È traste... E
l· o Eusebiosinho, coitado, veio sÛ d'embaixador.

Sem uma palavra, sem um aceno ao Palma, Carlos virou as costas, deixou o
cubiculo. O redactor da _Corneta_ ainda baixou a cabeÁa para a porta;
depois, sem se offender, voltou alegremente · genebra, dando outro pux„o
·s calÁas. Ega no emtanto accendia devagar o charuto.

--VossÍ agora È que redige o jornal todo, Palma?

--O Silvestre, tambem...

--Que Silvestre?

--O que est· com a _Pingada_. VossÍ n„o conhece, creio eu. Um rapazola
magro, que n„o È feio... Semsabor„o, escreve uma palhada... Mas sabe
coisas da sociedade. Esteve um tempo com a viscondessa de Cabellas, que
elle chama a sua _cabelluda_... Que o Silvestre ·s vezes tem graÁa! E
sabe, sabe coisas da sociedade, assim maroteiras de fidalgos, amigaÁıes,
pulhices... VossÍ nunca leu nada d'elle? ChÙcho. Tenho sempre de lhe
arranjar o estylo... N'este numero È que havia um folhetimzito meu,
catita, c· · moderna, como eu gÛsto, alli com a piadinha realista a
bater... Emfim fica para outra vez. E outra coisa, Ega, olhe que lhe
agradeÁo. Quando quizer, eu e a _Corneta_ ·s ordens!

Ega estendeu-lhe a m„o:

--Obrigado, digno Palma! E _adiÛs_!

--Pues vaya usted con Dios, Don Juanito! exclamou logo o benemerito
homem com infinito _salero_.

Em baixo Carlos esperava, dentro do coupÈ.

--E agora? perguntou Ega, · portinhola.

--Agora salta para dentro e vamos liquidar com o Damaso...

Carlos j· esboÁ·ra summariamente o plano d'essa liquidaÁ„o. Queria
mandar desafiar o Damaso como author comprovado d'um artigo de jornal
que o injuriava. O duello devia ser · espada ou ao florete, um d'esses
ferros cujo lampejo, na sala d'armas do Ramalhete, fazia empallidecer o
Damaso. Se contra toda a verosimilhanÁa elle se batesse, Carlos
fazia-lhe algures, entre a bochecha e o ventre, um furo que o cravasse
mezes na cama. Sen„o a unica explicaÁ„o que Carlos aceitaria do snr.
Salcede seria um documento em que elle escrevesse esta coisa simples:
´Eu abaixo assignado declaro que sou um infame.ª E para estes serviÁos
Carlos contava com o Ega.

--AgradeÁo! agradeÁo! Vamos a isso! exclamava o Ega esfregando as m„os,
faiscando de jubilo.

No emtanto, dizia elle, a etiqueta funebre reclamava outro padrinho; e
lembrou o Cruges, moÁo passivo e malleavel. Mas era impossivel encontrar
o _maestro_, porque invariavelmente a criada affirmava que o menino
Victorino n„o estava em casa... Decidiram ir ao Gremio, mandar de l· um
bilhete chamando o Cruges--´para um caso urgente d'amizade e d'arteª.

--Com quÍ, dizia o Ega continuando a esfregar as m„os emquanto a tipoia
trotava para a rua de S. Francisco, com quÍ, demolir o nosso Damaso?

--Sim, È necessario acabar com esta perseguiÁ„o. Chega a ser ridiculo...
E com uma estocada, ou com a carta, temos esse biltre aniquilado por
algum tempo. Eu preferia a estocada. Sen„o deixo-te a ti arranjar os
termos d'uma carta forte...

--Has de ter uma boa carta! disse o Ega com um sorriso de ferocidade.

No Gremio, depois de redigirem o bilhete ao Cruges, vieram esperar por
elle na sala das _IllustraÁıes_. O conde de Gouvarinho e Steinbroken
conversavam de pÈ, no v„o d'uma janella. E foi uma surpreza. O ministro
da Filandia abriu os braÁos para o _cher Maia_, que elle n„o vira desde
a partida d'Affonso para Santa Olavia. Gouvarinho acolheu o Ega
risonhamente, reatando uma certa camaradagem que entre elles se form·ra
n'esse ver„o, em Cintra: mas o aperto de m„o a Carlos foi sÍcco e curto.
J· dias antes, tendo-se encontrado no Loreto, o Gouvarinho murmur·ra de
leve e de passagem ´um como est·, Maia?ª em que se sentia arrefecimento.
Ah! j· n„o eram essas effusıes, essas palmadas enternecidas pelos
hombros, dos tempos em que Carlos e a condessa fumavam cigarettes na
cama da titi em Santa Isabel. Agora que Carlos abandon·ra a snr.^a
condessa de Gouvarinho, a rua de S. MarÁal e o commodo sof· em que ella
cahia com um rumor de saias amarrotadas--o marido amuava, como
abandonado tambem.

--Tenho tido saudade das nossas bellas discussıes em Cintra! disse elle,
dando ao Ega a palmada carinhosa nas costas que outr'ora pertencia ao
Maia. Tivemol-as de primeira ordem!

Eram realmente ´pÈgas tremendasª no pateo do Victor sobre litteratura,
sobre religi„o, sobre moral... Uma noite mesmo tinham-se zangado por
causa da divindade de Jesus.

--… verdade! acudiu o Ega. VossÍ n'essa noite parecia ter ·s costas uma
opa de irm„o do Senhor dos Passos!

O conde sorriu. Irm„o do Senhor dos Passos n„o, graÁas a Deus! Ninguem
melhor do que elle sabia que n'esses sublimes episodios do Evangelho
reinava bastante lenda... Mas emfim eram lendas que serviam para
consolar a alma humana. … o que elle object·ra n'essa noite ao amigo
Ega... Sentiam-se a philosophia e o racionalismo capazes de consolar a
m„i que chora? N„o. Ent„o...

--Em todo o caso, tivemol-as brilhantes! concluiu elle olhando o
relogio. E, eu confesso, uma discuss„o elevada sobre religi„o, sobre
metaphysica, encanta-me... Se a politica me deixasse vagares dedicava-me
· philosophia... Nasci para isso, para aprofundar problemas.

Steinbroken no emtanto, esticado na sua sobrecasaca azul, com um raminho
d'alecrim ao peito, tom·ra as m„os de Carlos:

--Mais vous Ítes encore devenu plus fort!... Et Affonso da Maia,
toujours dans ses terres?... Est-ce qu'on ne va pas le voir un peu cet
hiver?

E immediatamente lamentou n„o ter visitado Santa Olavia. Mas quÍ! a
familia real install·ra-se em Cintra; elle fÙra forÁado a acompanhal-a,
fazer a sua cÙrte... Depois necessit·ra ir de fugida a Inglaterra d'onde
acabava de chegar, havia dias.

Sim, Carlos sabia, vira na _Gazeta Illustrada_...

--Vous avez lu Áa? Oh oui, on a ÈtÈ trËs aimable, trËs aimable pour moi
‡ la _Gazette_...

Tinham-lhe annunciado a partida, depois a chegada, com palavras de
amizade particularmente bem escolhidas. Nem podia deixar de ser, dada
esta affeiÁ„o sincera que liga Portugal e a Filandia... ´Mais enfin on
avait ÈtÈ charmant, charmant!...ª

--Seulement--ajuntou elle, sorrindo com finura e voltando-se tambem para
o Gouvarinho--on a fait une petite erreur... On a dit que j'Ètais venu
de Southampton par le _Royal Mail_... Ce n'est pas vrai, non! Je me suis
embarquÈ ‡ Bordeaux dans les _Messageries_. J'ai mÍme pensÈ ‡ Ècrire ‡
Mr. Pinto, redacteur de la _Gazette_, qui est un charmant garÁon...
Puis, j'ai reflechi, je me suis dit: ´Mon Dieu, on va croire que je veux
donner une leÁon d'exactitude ‡ la _Gazette_, c'est trËs grave...ª
Alors, voil‡, trËs prudemment, j'ai gardÈ le silence... Mais enfin c'est
une erreur: je me suis embarquÈ ‡ Bordeaux.

Ega murmurou que a Historia se encarregaria um dia de rectificar esse
facto. O ministro sorria modestamente, fazendo um gesto em que parecia
desejar, por polidez, que a Historia se n„o incommodasse. E ent„o o
Gouvarinho, que accendÍra o charuto, espreit·ra outra vez o relogio,
perguntou se os amigos tinham ouvido alguma coisa do ministerio e da
crise.

Foi uma surpreza para ambos, que n„o tinham lido os jornaes... Mas,
exclamou logo o Ega, crise porquÍ, assim em pleno remanso, com as
camaras fechadas, tudo contente, um t„o lindo tempo d'outono?

O Gouvarinho encolheu os hombros com reserva. Houvera na vespera, ·
noitinha, uma reuni„o de ministros; n'essa manh„ o presidente do
conselho fÙra ao paÁo, fardado, determinado a ´largar o poderª... N„o
sabia mais. N„o conferenci·ra com os seus amigos, nem mesmo fÙra ao seu
Centro. Como n'outras occasiıes de crise, conserv·ra-se retirado,
calado, esperando... Alli estivera toda a manh„, com o seu charuto, e a
_Revista dos Dois Mundos_.

Isto parecia a Carlos uma abstenÁ„o pouco patriotica...

--Porque emfim, Gouvarinho, se os seus amigos subirem...

--Exactamente por isso, acudiu o conde com uma cÙr viva na face, n„o
desejo pÙr-me em evidencia... Tenho o meu orgulho, talvez motivos para o
ter... Se a minha experiencia, a minha palavra, o meu nome s„o
necessarios, os meus correligionarios sabem onde eu estou, venham
pedir-m'os...

Calou-se, trincando nervosamente o charuto. E Steinbroken, perante estas
coisas politicas, comeÁou logo a retrahir-se para o fundo da janella,
limpando os vidros da luneta, recolhido, j· impenetravel, no grande
recato neutral que competia · Filandia. Ega no emtanto n„o sahia do seu
espanto. Mas porque cahia, porque cahia assim um governo com maioria nas
camaras, socego no paiz, o apoio do exercito, a benÁ„o da Igreja, a
protecÁ„o do _Comptoir d'Escompte_?...

O Gouvarinho correu devagar os dedos pela pera, e murmurou esta raz„o:

--O ministerio estava gasto.

--Como uma vela de sebo? exclamou Ega, rindo.

O conde hesitou. Como uma vela de sebo n„o diria... Sebo subentendia
obtusidade... Ora n'este ministerio sobrava o talento.
Incontestavelmente havia l· talentos pujantes...

--Essa È outra! gritou Ega atirando os braÁos ao ar. … extraordinario!
N'este abenÁoado paiz todos os politicos tÍm _immenso talento_. A
opposiÁ„o confessa sempre que os ministros, que ella cobre d'injurias,
tÍm, · parte os disparates que fazem, um _talento de primeira ordem_!
Por outro lado a maioria admitte que a opposiÁ„o, a quem ella
constantemente recrimina pelos disparates que fez, est· cheia de
_robustissimos talentos_! De resto todo o mundo concorda que o paiz È
uma choldra. E resulta portanto este facto supra-comico: um paiz
governado _com immenso talento_, que È de todos na Europa, segundo o
consenso unanime, o mais estupidamente governado! Eu proponho isto, a
vÍr: que como os talentos sempre falham, se experimentem uma vez os
imbecis!

O conde sorria com bonhomia e superioridade a estes exageros de
phantasista. E Carlos, ancioso por ser amavel, atalhou, accendendo o
charuto no d'elle:

--Que pasta preferiria vocÍ, Gouvarinho, se os seus amigos subissem? A
dos Estrangeiros, est· claro...

O conde fez um largo gesto d'abnegaÁ„o. Era pouco natural que os seus
amigos necessitassem da sua experiencia politica. Elle torn·ra-se
sobretudo um homem d'estudo e de theoria. AlÈm d'isso n„o sabia bem se
as occupaÁıes da sua casa, a sua saude, os seus habitos lhe permittiriam
tomar o fardo do governo. Em todo o caso, decerto, a pasta dos
Estrangeiros n„o o tentava...

--Essa, nunca! proseguiu elle, muito compenetrado. Para se poder fallar
d'alto na Europa, como ministro dos Estrangeiros, È necessario ter por
traz um exercito de duzentos mil homens e uma esquadra com torpedos.
NÛs, infelizmente, somos fracos... E eu, para papeis subalternos, para
que venha um Bismarck, um Gladstone, dizer-me ´ha de ser assimª, n„o
estou!... Pois n„o acha, Steinbroken?

O ministro tossiu, balbuciou:

--Certainement... C'est trËs grave... C'est excessivement grave...

Ega ent„o affirmou que o amigo Gouvarinho, com o seu interresse
geographico pela Africa, faria um ministro da Marinha iniciador,
original, rasgado...

Toda a face do conde reluzia, escarlate de prazer.

--Sim, talvez... Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colonias todas as
coisas bellas, todas as coisas grandes est„o feitas. Libertaram-se j· os
escravos; deu-se-lhes j· uma sufficiente noÁ„o da moral christ„;
organisaram-se j· os serviÁos aduaneiros... Emfim o melhor est· feito.
Em todo o caso ha ainda detalhes interessantes a terminar... Por
exemplo, em Loanda... Menciono isto apenas como um pormenor, um retoque
mais de progresso a dar. Em Loanda precisava-se bem um theatro normal
como elemento civilisador!

N'esse momento um criado veio annunciar a Carlos--que o snr. Cruges
estava em baixo, no portal, · espera. Immediatamente os dois amigos
desceram.

--Extraordinario, este Gouvarinho! dizia o Ega na escada.

--E este, observou Carlos com um immenso desdem de mundano, È um dos
melhores que ha na politica. Pensando mesmo bem, e mettendo a roupa
branca em linha de conta, este È talvez o melhor!

Acharam o Cruges · porta, de jaquet„o claro, embrulhando um cigarro. E
Carlos pediu-lhe logo que voltasse a casa vestir uma sobrecasaca preta.
O maestro arregalava os olhos.

--… jantar?

--… enterro.

E rapidamente, sem alludir a Maria, contaram ao maestro que o Damaso
public·ra n'um jornal, a _Corneta do Diabo_ (cuja tiragem elles tinham
supprimido, n„o sendo possivel por isso mostrar o numero immundo) um
artigo em que a coisa mais dÙce que se chamava a Carlos era _pulha_.
Portanto Ega e elle Cruges iam a casa do Damaso pedir-lhe a honra ou a
vida.

--Bem, rosnou o maestro. Que tenho eu a fazer?... Que eu d'essas coisas
n„o entendo.

--Tens, explicou Ega, d'ir vestir uma sobrecasaca preta e franzir o
sobr'olho. Depois vir commigo; n„o dizer nada; tratar o Damaso por ´v.
exc.^aª; assentar em tudo o que eu propuzer; e nunca desfranzir o
sobr'olho nem despir a sobrecasaca...

Sem outra observaÁ„o, Cruges partiu a cobrir-se de ceremonia e de negro.
Mas no meio da rua retrocedeu:

--” Carlos, olha que eu fallei l· em casa. Os quartos do primeiro andar
est„o livres, e forrados de papel novo...

--Obrigado. Vai-te fazer sombrio, depressa!...

O maestro abal·ra, quando diante do Gremio estacou a todo o trote uma
caleche. De dentro saltou o Telles da Gama que, ainda com a m„o no fecho
da portinhola, gritou aos dois amigos:

--O Gouvarinho? est· l· em cima?

--Est·... Novidade fresca?

--Os homens cahiram. Foi chamado o S· Nunes!

E enfiou pelo pateo, correndo. Carlos e Ega continuaram devagar atÈ ao
port„o do Cruges. As janellas do primeiro andar estavam abertas, sem
cortinas. Carlos, erguendo para l· os olhos, pensava n'essa tarde das
corridas em que elle viera no phaeton, de Belem, para vÍr aquellas
janellas: ia ent„o escurecendo, por traz dos _stores_ fechados surgira
uma luz, elle contempl·ra-a como uma estrella inaccessivel... Como tudo
passa!

Retrocederam para o Gremio. Justamente o Gouvarinho e Telles atiravam-se
· pressa para dentro da caleche que esper·ra. Ega parou, deixou cahir os
braÁos:

--L· vae o Gouvarinho batendo para o Poder, a mandar representar a _Dama
das Camelias_ no sert„o! Deus se amerceie de nÛs!

Mas o Cruges appareceu emfim de chapÈo alto, entalado n'uma sobrecasaca
solemne, com botins novos de verniz. Apilharam-se logo na tipoia
estreita e dura. Carlos ia leval-os a casa do Damaso. E como queria
ainda jantar nos Olivaes, esperaria por elles, para saber o resultado
´do chinfrinª, no jardim da Estrella, junto ao coreto.

--SÍde rapidos e medonhos!



A casa do Damaso, velha e d'um andar sÛ, tinha um enorme port„o verde,
com um arame pendente que fez resoar dentro uma sineta triste de
convento: e os dois amigos esperaram muito antes que apparecesse,
arrastando as chinelas, o gallego achavascado que o Damaso (agora livre
de Carlos e das suas pompas) j· n„o trazia torturado em botins crueis de
verniz. A um canto do pateo uma portinha abria sobre a luz d'um quintal,
que parecia ser um deposito de caixotes, de garrafas vazias e de lixo.

O gallego, que reconhecera o snr. Ega, conduziu-os logo, por uma
escadinha esteirada, a um corredor largo, escuro, com cheiro a mÙfo.
Depois, batendo o chinelo, correu ao fundo, onde alvejava a claridade
d'uma porta entreaberta. Quasi immediatamente Damaso gritou de l·:

--” Ega, È vocÍ? Entre para aqui, homem! Que diabo!... Eu estou-me a
vestir...

EmbaraÁado com estes brados de intimidade e tanta effus„o, Ega ergueu a
voz da sombra do corredor, gravemente:

--N„o tem duvida, nÛs esperamos...

O Damaso insistia, · porta, em mangas de camisa, cruzando os
suspensorios:

--Venha vocÍ, homem! Que diabo, eu n„o tenho vergonha, j· estou de
calÁas!

--Ha aqui uma pessoa de ceremonia, gritou o Ega para findar.

A porta ao fundo cerrou-se, o gallego veio abrir a sala. O tapete era
exactamente igual aos dos quartos de Carlos no Ramalhete. E em redor
abundavam os vestigios da antiga amizade com o Maia: o retrato de Carlos
a cavallo, n'um vistoso caixilho de flÙres em faianÁa: uma das colchas
da India das senhoras Medeiros, branca e verde, enroupando o piano,
arranjada por Carlos com alfinetes: e sobre um contador hespanhol,
debaixo de redoma, um sapatinho de setim de mulher, novo, que o Damaso
compr·ra no Serra, por ter ouvido um dia a Carlos que ´em todo o quarto
de rapaz deve apparecer, discretamente disposta, alguma reliquia
d'amor...ª

Sob estes retoques de _chic_, dados · pressa sob a influencia do Maia,
impertigava-se a sÛlida mobilia do pai Salcede, de mogno e velludo azul;
a console de marmore, com um relogio de bronze dourado, onde Diana
acariciava um galgo; o grande e dispendioso espelho, tendo entalado no
caixilho uma fila de bilhetes de visita, de retratos de cantoras, de
convites para _soirÈes_. E Cruges ia examinar estes documentos, quando
os passos alegres do Damaso soaram no corredor. O maestro correu logo a
perfilar-se ao lado do Ega, diante do canapÈ de velludo, teso, commodo,
com o seu chapÈo alto na m„o.

Ao vÍl-o, o bom Damaso, que se aboto·ra todo n'uma sobrecasaca azul,
florida por um bot„o de camelia, atirou risonhamente os braÁos ao ar:

--Ent„o esta È que È a pessoa de ceremonia? Sempre vocÍs tÍm coisas! E
eu a pÙr sobrecasaca... Por pouco que n„o lhe afinfo com o habito de
Christo!...

Ega atalhou, muito sÈrio:

--O Cruges n„o È de ceremonia, mas o motivo que aqui nos traz È delicado
e grave, Damaso.

Damaso arregalou os olhos, reparando emfim n'aquelle estranho modo dos
seus amigos, ambos de negro, seccos, t„o solemnes. E recuou, todo o
sorriso se lhe apagou na face.

--Que diabo È isso? Sentem-se, sentem-se vocÍs...

A voz apagava-se-lhe tambem. Pousado · borda d'uma poltrona baixa, junto
d'uma mesa coberta d'encadernaÁıes ricas, com as m„os nos joelhos, ficou
esperando, n'uma anciedade.

--NÛs vimos aqui, comeÁou Ega, em nome do nosso amigo Carlos da Maia...

Uma brusca onda de sangue cobriu a face rechonchuda do Damaso atÈ ·
risca do cabello encaracolado a ferro. E n„o achou uma palavra,
attonito, suffocado, esfregando estupidamente os joelhos.

Ega proseguiu, lento, direito no canapÈ:

--O nosso amigo Carlos da Maia queixa-se de que o Damaso publicou, ou
fez publicar, um artigo extremamente injurioso para elle e para uma
senhora das relaÁıes d'elle na _Corneta do Diabo_...

--Na _Corneta_, eu? acudiu o Damaso, balbuciando. Que _Corneta_? Nunca
escrevi em jornaes, graÁas a Deus! Ora essa, a _Corneta_!...

Ega, muito friamente, tirou do bolso um masso de papeis. E veio
collocal-os um por um, ao lado do Damaso, na mesa, sobre um magnifico
volume da _Biblia_ de DorÈ.

--Aqui est· a sua carta remettendo ao Palma Cavall„o o rascunho do
artigo... Aqui est·, pela sua letra igualmente, a lista das pessoas a
quem se devia mandar a _Corneta_, desde o Rei atÈ · Fancelli... AlÈm
d'isso nÛs temos as declaraÁıes do Palma. O Damaso È n„o sÛ o
inspirador, mas materialmente o auctor do artigo... O nosso amigo Carlos
da Maia exige, pois, como injuriado, uma reparaÁ„o pelas armas...

Damaso deu um salto da poltrona, t„o arrebatado--que involuntariamente
Ega recuou, no receio d'uma brutalidade. Mas j· o Damaso estava no meio
da sala, esgazeado, com os braÁos tremulos no ar:

--Ent„o o Carlos manda-me desafiar? A mim?... Que lhe fiz eu? Elle a mim
È que me pregou uma partida!... Foi elle, vocÍs sabem perfeitamente que
foi elle!...

E desabafou, n'um prodigioso fluxo de loquacidade, atirando palmadas ao
peito, com os olhos marejados de lagrimas. FÙra Carlos, Carlos, que o
desfeiti·ra a elle, mortalmente! Durante todo o inverno tinha-o
perseguido para que elle o apresentasse a uma senhora brazileira muito
_chic_, que vivia em Paris, e que lhe fazia olho... E elle, bondoso como
era, promettia, dizia: ´Deixa estar, eu te apresento!ª Pois, senhores,
que faz Carlos? Aproveita uma occasi„o sagrada, um momento de luto,
quando elle Damaso fÙra ao Norte por causa da morte do tio, e mette-se
dentro da casa da brazileira... E tanto intriga, que leva a pobre
senhora a fechar-lhe a sua porta, a elle, Damaso, que era intimo do
marido, intimo de _tu_! Caramba, elle È que devia mandar desafiar
Carlos! Mas n„o! fÙra prudente, evit·ra o escandalo por causa do snr.
Affonso da Maia... Queix·ra-se de Carlos, È verdade... Mas no Gremio, na
Casa Havaneza, entre rapaziada amiga... E no fim Carlos prÈga-lhe uma
d'estas!

--Mandar-me desafiar, a mim! A mim, que todo o mundo conhece!...

Calou-se, engasgado. E Ega, estendendo a m„o, observou placidamente que
se desviavam do ponto vivo da quest„o. O Damaso concebera, rascunh·ra,
pag·ra o artigo da _Corneta_. Isso n„o o negava, nem o podia negar: as
provas estavam alli, abertas sobre a mesa: elles tinham alÈm d'isso a
declaraÁ„o do Palma...

--Esse desavergonhado! gritou o Damaso, levado n'outra rajada
d'indignaÁ„o que o fez redemoinhar, estonteado, tropeÁando nos moveis.
Esse descarado do Palma! Com esse È que eu me quero vÍr!... L· a quest„o
com o Carlos n„o vale nada, arranja-se, somos todos rapazes finos... Com
o Palma È que È! Esse traidor È que eu quero rachar! Um homem a quem eu
tenho dado ·s meias libras, aos sete mil reis! E ceias, e tipoias! Um
ladr„o que pediu o relogio ao Zeferino para figurar n'um baptisado, e
pÙl-o no prÈgo!... E faz-me uma d'estas!... Mas hei de escavacal-o! Onde
È que vocÍ o viu, Ega? Diga l·, homem! Que quero ir procural-o, hoje
mesmo, correl-o a chicotadas... TraiÁıes n„o, n„o admitto a ninguem!

Ega, com a tranquillidade paciente de quem sente a prÍsa certa, lembrou
de novo a inutilidade d'aquellas divagaÁıes:

--Assim nunca acabamos, Damaso... O nosso ponto È este: o Damaso
injuriou Carlos da Maia: ou se retracta publicamente d'essa injuria, ou
d· uma reparaÁ„o pelas armas...

Mas o Damaso, sem escutar, appellava desesperadamente para o Cruges, que
se n„o movera do sof· de velludo, esfregando, um contra o outro, com um
ar arripiado e de dÙr, os dois sapatos novos de verniz.

--Aquelle Carlos! Um homem que se dizia meu amigo intimo! Um homem que
fazia de mim tudo! AtÈ lhe copiava coisas... VocÍ bem viu, Cruges. Diga!
Falle, homem! N„o sejam vocÍs todos contra mim!... AtÈ ·s vezes ia ·
alfandega despachar-lhe caixotes...

O maestro baixava os olhos, vermelho, n'um infinito mal-estar. E Ega,
por fim, j· farto, lanÁou uma intimaÁ„o derradeira:

--Em resumo, Damaso, desdiz-se ou bate-se?

--Desdizer-me? tartamudeou o outro, impertigando-se, n'um penoso esforÁo
de dignidade, a tremer todo. E de quÍ? Ora essa! … boa! Eu sou l· homem
que me desdiga!

--Perfeitamente, ent„o bate-se...

Damaso cambaleou para traz, desvairado:

--Qual bater-me! Eu sou l· homem que me bata! Eu c· È a sÙcco. Que venha
para c·, n„o tenho medo d'elle, arrombo-o...

Dava pulinhos curtos de gordo, atravÈs do tapete, com os punhos fechados
e em riste. E queria Carlos alli para o escavacar! N„o lhe faltava mais
sen„o bater-se... E ent„o duellos em Portugal, que acabavam sempre por
troÁa!

Ega no emtanto, como se a sua miss„o estivesse finda, aboto·ra a
sobrecasaca e recolhia os papeis espalhados sobre a _Biblia_. Depois,
serenamente, fez a ultima declaraÁ„o de que fÙra incumbido. Como o snr.
Damaso Salcede recusava retractar-se e rejeitava tambem uma reparaÁ„o
pelas armas, Carlos da Maia prevenia-o de que em qualquer parte que o
encontrasse d'ahi por diante, fosse uma rua, fosse um theatro, lhe
escarraria na face...

--Escarrar-me! berrou o outro, livido, recuando, como se o escarro j·
viesse no ar.

E de repente, espavorido, coberto de bagas de suor, precipitou-se sobre
o Ega, agarrando-lhe as m„os, n'uma agonia:

--” Jo„o, Û Jo„o, tu, que Ès meu amigo, por quem Ès, livra-me d'esta
entaladella!

Ega foi generoso. Desprendeu-se d'elle, empurrou-o brandamente para a
poltrona, calmando-o com palmadinhas fraternaes pelo hombro. E declarou
que, desde que Damaso appellava para a sua amizade, desapparecia o
enviado de Carlos necessariamente exigente, ficava sÛ o camarada, como
no tempo dos Cohens e da _villa_ Balzac. Queria pois o amigo Damaso um
conselho? Era assignar uma carta affirmando que tudo o que fizera
publicar na _Corneta_ sobre o snr. Carlos da Maia e certa senhora fÙra
invenÁ„o falsa e gratuita. SÛ isto o salvava. D'outro modo, Carlos um
dia, no Chiado, em S. Carlos, escarrava-lhe na cara. E, dado esse
desastre, Damasosinho, a n„o querer ser apontado em Lisboa como um
incomparavel cobarde, tinha de se bater · espada ou · pistola...

--Ora, em qualquer d'esses casos, vocÍ era um homem morto.

O outro escutava, esbarrondado no fundo do assento de velludo, com a
face emparvecida para o Ega. Alargou mollemente os braÁos, murmurou da
profundidade do seu terror:

--Pois sim, eu assigno, Jo„o, eu assigno...

--… o que lhe convÈm... Arranje ent„o papel. VocÍ est· perturbado, eu
mesmo redijo.

Damaso ergueu-se, com as pernas frouxas, atirando um olhar tonto e vago
por sobre os moveis:

--Papel de carta? … para carta?

--Sim, est· claro, uma carta ao Carlos!

Os passos do desgraÁado perderam-se emfim no corredor, pesados e
succumbidos.

--Coitado! suspirou o Cruges levando de novo, com um ar de arripio, a
m„o aos sapatos.

Ega lanÁou-lhe um _chut_ severo. Damaso voltava com o seu sumptuoso
papel de monogramma e corÙa. Para envolver em silencio e segredo aquelle
transe amargo, cerrou o reposteiro; e o vasto pano de velludo,
desdobrando-se, mostrou o braz„o de Salcede, onde havia um le„o, uma
torre, um braÁo armado, e por baixo, a letras d'ouro, a sua formidavel
divisa: Sou forte! Immediatamente Ega afastou os livros na mesa,
abancou, atirou largamente ao papel a data e a adresse do Damaso...

--Eu faÁo o rascunho, vocÍ depois copÌa...

--Pois sim! gemeu o outro, de novo, aluido na poltrona, passando o lenÁo
pelo pescoÁo e pela face.

Ega no emtanto escrevia muito lentamente, com amor. E n'aquelle
silencio, que o embaraÁava, Cruges terminou por se erguer, foi coxeando
atÈ ao espelho onde se desenrolavam, entalados na frincha do caixilho,
bilhetes e photographias. Eram as glorias sociaes do Damaso, os
documentos do _chic a valer_ que era a paix„o da sua vida: bilhetes com
titulos, retratos de cantoras, convites para bailes, cartas de entrada
no Hippodromo, diplomas de membro do Club Naval, de membro do Jockey
Club, de membro do Tiro aos Pombos:--atÈ pedaÁos cortados de jornaes
annunciando os annos, as partidas, as chegadas do snr. Salcede, ´um dos
nossos mais distinctos _sportmen_ª.

Desventuroso _sportman_! Aquella folha de papel, onde o Ega rascunhava,
ia-o enchendo pouco a pouco d'um terror angustioso. Santo Deus! Para que
eram tantos apuros n'uma carta ao Carlos, um rapaz intimo? Uma linha
bastaria:--´Meu querido Carlos, n„o te zangues, desculpa, foi
brincadeira.ª Mas n„o! Toda uma pagina de letra miuda com entrelinhas!
J· mesmo Ega voltava a folha, molhava a penna, como se d'ella devessem
escorrer sem cessar coisas humilhadoras! N„o se conteve, estendeu a face
por sobre a mesa, atÈ o papel:

--” Ega, isso n„o È para publicar, pois n„o È verdade?

Ega reflectiu, com a penna no ar:

--Talvez n„o... Estou certo que n„o. Naturalmente Carlos, vendo o seu
arrependimento, deixa isto esquecido no fundo d'uma gaveta.

Damaso respirou com allivio. Ah, bem! Isso parecia-lhe mais decente
entre amigos! Que l· isso, mostrar o seu arrependimento, atÈ elle
desejava! Com effeito o artigo fÙra uma tolice... Mas ent„o! Em questıes
de mulheres era assim, assomado, um le„o...

Abanou-se com o lenÁo, desanuviado, recomeÁando a achar sabÙr · vida.
Findou mesmo por accender um charuto, levantar-se sem rumor, acercar-se
do Cruges--que, coxeando atravÈs das curiosidades da sala, encalh·ra
sobre o piano e sobre os livros de musica, com o pÈ dorido no ar.

--Ent„o tem-se feito alguma coisa de novo, Cruges?

Cruges, muito vermelho, resmungou que n„o tinha feito nada.

Damaso ficou alli um momento, a mascar o charuto. Depois, atirando um
olhar inquieto · mesa onde o Ega rascunhava interminavelmente, murmurou,
sobre o hombro do maestro:

--Uma entaladella assim! Eu È por causa da gente conhecida... Sen„o n„o
me importava! Mas veja vocÍ tambem se arranja as coisas e se o Carlos
deixa aquillo na gaveta...

Justamente Ega erguera-se com o papel na m„o e caminhava para o piano,
devagar, relendo baixo.

--Ficou optimo, salva tudo! exclamou por fim. Vai em fÛrma de carta ao
Carlos, È mais correcto. VocÍ depois copÌa e assigna. OuÁa l·:
´Exc.^{mo} snr....ª Est· claro, vocÍ d·-lhe excellencia, porque È um
documento d'honra... ´Exc.^{mo} snr.--Tendo-me v. exc.^a, por intermÈdio
dos seus amigos Jo„o da Ega e Victorino Cruges, manifestado a indignaÁ„o
que lhe caus·ra um certo artigo da _Corneta do Diabo_ de que eu escrevi
o rascunho e de que promovi a publicaÁ„o, venho declarar francamente a
v. exc.^a que esse artigo, como agora reconheÁo, n„o continha sen„o
falsidades e incoherencias: e a minha desculpa unica est· em que o
compuz e enviei · redacÁ„o da _Corneta_ no momento de me achar no mais
completo estado d'embriaguez...ª

Parou. E nem se voltou para o Damaso, que deix·ra pender os braÁos,
rolar o charuto no tapete, varado. Foi ao Cruges que se dirigiu,
entalando o monoculo:

--Achas talvez forte?... Pois eu redigi assim por ser justamente a unica
maneira de resalvar a dignidade do nosso Damaso.

E desenvolveu a sua idÈa, mostrando quanto era generosa e
habil--emquanto o Damaso, aparvalhado, apanhava o charuto. Nem Carlos
nem elle queriam que o Damaso n'uma carta (que se podia tornar publica)
declarasse ´que calumni·ra por ser calumniadorª. Era necessario, pois,
dar · calumnia uma d'essas causas fortuitas e ingovernaveis que tiram a
responsabilidade ·s acÁıes. E que melhor, tratando-se d'um rapaz mundano
e femeeiro, do que estar bebedo?... N„o era vergonha para ninguem
embebedar-se... O proprio Carlos, todos elles alli, homens de gosto e de
honra, se tinham embebedado. Sem remontar aos romanos, onde isso era uma
hygiene e um luxo, muitos grandes homens na Historia bebiam de mais. Em
Inglaterra era t„o _chic_, que Pitt, Fox e outros nunca fallavam na
Camara dos communs sen„o aos bordos. Musset, por exemplo, que bebedo!
Emfim a Historia, a Litteratura, a Politica, tudo fervilhava de
piteiras... Ora, desde que o Damaso se declarava borracho, a sua honra
ficava salva. Era um homem de bem que apanh·ra uma carraspana e que
commettera uma indiscriÁ„o... Nada mais!

--Pois n„o te parece, Cruges?

--Sim, talvez, que estava bebedo, murmurou o maestro timidamente.

--Pois n„o lhe parece a vocÍ, francamente, Damaso?

--Sim, que estava bebedo, balbuciou o desgraÁado.

Immediatamente Ega retomou a leitura: ´Agora que voltei a mim reconheÁo,
como sempre reconheci e proclamei, que È v. exc.^a um caracter
absolutamente nobre; e as outras pessoas, que n'esse momento
d'embriaguez ousei salpicar de lama, s„o-me sÛ merecedoras de veneraÁ„o
e louvor. Mais declaro que se por acaso tornasse a succeder soltar eu
alguma palavra offensiva para v. exc.^a, n„o lhe devia dar v. exc.^a, ou
aquelles que a escutassem, mais importancia do que a que se d· a uma
involuntaria baforada d'alcool--pois que, por um habito hereditario que
reapparece frequentemente na minha familia, me acho repetidas vezes em
estado de embriaguez... De v. exc.^a, com toda a estima etc....ª Rodou
sobre os tacıes, pousou o rascunho na mesa--e accendendo o charuto ao
lume do Damaso, explicou com amizade, com bonhomia, o que o determin·ra
·quella confiss„o de bebedeira incorrigivel e palreira. FÙra ainda o
desejo de garantir a tranquillidade do ´nosso Damasoª. Attribuindo todas
as imprudencias em que pudesse cahir a um habito d'intemperanÁa
hereditaria, de que tinha t„o pouca culpa como de ser baixo e gordo, o
Damaso punha-se _para sempre_ ao abrigo das provocaÁıes de Carlos...

--VocÍ, Damaso, tem genio, tem lingua... Um dia esquece-se, e no Gremio,
sem querer, na cavaqueira depois do theatro, l· lhe escapa uma palavra
contra Carlos... Sem esta precauÁ„o, ahi recomeÁa a quest„o, o escarro,
o duello... Assim j· Carlos n„o se pÛde queixar. L· tem a explicaÁ„o que
tudo cobre, uma gotta de mais, a gotta tomada por impulso de borrachice
hereditaria... VocÍ alcanÁa d'este modo a coisa que mais se appetece
n'este nosso seculo XIX--a irresponsabilidade!... E depois para a sua
familia n„o È vergonha, porque vocÍ n„o tem familia. Em resumo,
convem-lhe?

O pobre Damaso escutava-o, esmagado, enervado, sem comprehender aquellas
roncantes phrases sobre ´a hereditariedadeª, sobre ´o seculo XIXª. E um
unico sentimento vivo o dominava, acabar, reentrar na sua paz
pachorrenta, livre de floretes e de escarros. Encolheu os hombros, sem
forÁa:

--Que lhe hei de eu fazer?... Para evitar fallatorios.

E abancou, metteu um bico novo na penna, escolheu uma folha de papel em
que o monogramma luzia mais largo, comeÁou a copiar a carta na sua
maravilhosa letra, com finos e grossos, d'uma nitidez de gravura em aÁo.

Ega no emtanto, de sobrecasaca desabotoada e charuto fumegante, rondava
em torno da mesa, seguindo sÙfregamente as linhas que traÁava a m„o
applicada do Damaso, ornada d'um grosso annel d'armas. E durante um
momento atravessou-o um susto... Damaso par·ra, com a penna indecisa.
Diabo! Acordaria emfim, no fundo de toda aquella gordura balofa, um
resto escondido de dignidade, de revolta?... Damaso alÁou para elle os
olhos embaciados:

--Embriaguez È com _n_ ou com _m_?

--Com um _m_, um _m_ sÛ, Damaso! acudiu Ega affectuosamente. Vai muito
bem... Que linda letra vocÍ tem, caramba!

E o infeliz sorriu · sua propria letra--pondo a cabeÁa de lado, no
orgulho sincero d'aquella soberba prenda.

Quando findou a cÛpia foi Ega que conferiu, pÙz a pontuaÁ„o. Era
necessario que o documento fosse _chic_ e perfeito.

--Quem È o seu tabelli„o, Damaso?

--O Nunes, na rua do Ouro... Porque?

--Oh! nada. … um detalhe que n'estes casos se pergunta sempre. Mera
ceremonia... Pois amigos, como papel, como letra, como estylo, est·
d'appetite a cartinha!

Metteu-a logo n'um enveloppe onde rebrilhava a divisa ´Sou Forteª,
sepultou-a preciosamente no interior da sobrecasaca. Depois, agarrando o
chapÈo, batendo no hombro do Damaso com uma familiaridade folgaz„ e
leve:

--Pois, Damaso, felicitemo-nos todos! Isto podia acabar fÛra de portas,
n'uma poÁa de sangue! Assim È uma delicia. E adeus... N„o se incommode
vocÍ. Ent„o o grande sarau sempre È na segunda-feira? Vai l· tudo, hein!
N„o venha c·, homem... Adeus!

Mas o Damaso acompanhou-os pelo corredor, mudo, murcho, cabisbaixo. E no
patamar reteve o Ega, desafogou outra inquietaÁ„o que o assalt·ra:

--Isso n„o se mostra a ninguem, n„o È verdade, Ega?

Ega encolheu os hombros. O documento pertencia a Carlos... Mas emfim
Carlos era t„o bom rapaz, t„o generoso!

Esta incerteza, que o ficava minando, arrancou um suspiro ao Damaso:

--E chamei eu ·quelle homem _meu amigo_!

--Tudo na vida s„o desapontamentos, meu Damaso! foi a observaÁ„o do Ega,
saltando alegremente os degraus.

Quando o calhambeque parou no Jardim da Estrella, Carlos j· esperava ao
port„o de ferro, n'uma impaciencia, por causa do jantar na _Toca_.
Enfiou logo para dentro atropellando o maestro, bradou ao cocheiro que
voasse ao Loreto.

--E ent„o, meus senhores, temos sangue?

--Temos melhor! exclamou Ega no barulho das rodas, floreando o
enveloppe.

Carlos leu a carta do Damaso. E foi um immenso assombro:

--Isto È incrivel!... Chega a ser humilhante para a natureza humana!

--O Damaso n„o È o genero humano, acudiu Ega. Que diabo esperavas tu?
Que elle se batesse?

--N„o sei, corta o coraÁ„o... Que se ha de fazer a isto?

Segundo o Ega n„o se devia publicar; seria crear curiosidade e escandalo
em torno do artigo da _Corneta_ que cust·ra trinta libras a suffocar.
Mas convinha conservar aquillo como uma ameaÁa pairando sobre o Damaso,
tornando-o para longos annos nullo e inoffensivo.

--Eu estou mais que vingado, concluiu Carlos. Guarda o papel: È obra
tua, usa-o como quizeres...

Ega guardou-o com prazer, emquanto Carlos, batendo no joelho do maestro,
queria saber como elle se port·ra n'aquelle lance d'honra...

--Pessimamente! gritou Ega. Com expressıes de compaix„o; sem linha
nenhuma; estendido por cima do piano; agarrando com a m„o no sapato...

--Pudera! exclamou Cruges desafogando emfim. VocÍs dizem-me que me ponha
de ceremonia, calÁo uns sapatos novos de verniz, estive toda a tarde
n'um tormento!

E n„o se conteve mais, arrancou o sapato, pallido, com um medonho
suspiro de consolaÁ„o.


No dia seguinte, depois do almoÁo, emquanto uma chuva grossa alagava os
vidros sob as lufadas de sudoeste, Ega, no _fumoir_, enterrado n'uma
poltrona, com os pÈs para o lume, relia a carta do Damaso: e pouco a
pouco subia n'elle a m·goa de que esse colossal documento de cobardia
humana, t„o interessante para a physiologia e para a arte, ficasse para
sempre inaproveitado no escuro d'uma gaveta!... Que effeito, que soberbo
effeito se aquella confiss„o do ´nosso distincto _sportman_ª surgisse um
dia na _Gazeta Illustrada_ ou no novo jornal _A Tarde_, nas columnas do
_High-life_, sob este titulo--Pendencia d'honra! E que liÁ„o, que
meritorio acto de justiÁa social!

Todo esse ver„o, Ega detest·ra o Damaso, certo, desde Cintra, de que
elle era o amante da Cohen--e de que, por esse imbecil de grossas
nadegas, esquecera ella para sempre a _villa_ Balzac, as manh„s na
colcha de setim preto, os seus beijos delicados, os versos de Musset que
lhe lia, os lunchesinhos de perdiz, tantos encantos poeticos. Mas o que
lhe torn·ra o Damaso intoleravel--fÙra a sua farofia radiante de homem
preferido; o ar de posse com que passeava ao lado de Rachel pelas
estradas de Cintra, vestido de flanella branca; os segredinhos que tinha
sempre a cochichar-lhe sobre o hombro; e o acÍnosinho desdenhoso, com um
dedo, que lhe atirava de lado, ao passar, a elle proprio, Ega... Era
odioso! Odiava-o: e atravÈs d'esse odio rumin·ra sempre o desejo d'uma
vinganÁa--pancada, deshonra ou ridiculo que tornasse o snr. Salcede, aos
olhos de Rachel, desprezivel, grutesco, chato como um bal„o furado...

E agora alli tinha essa carta providencial, em que o homem solemnemente
se declarava bebedo. ´Sou um bebedo, estou sempre bebedoª! Assim o
dizia, no seu papel de monogramma d'ouro, o snr. Salcede, n'um medo vil
de c„o gÙso, rastejando com o rabo entre as pernas diante de qualquer
pau!... Nenhuma mulher resistiria a isto... E havia d'encafuar t„o
decisivo documento no fundo d'um gavet„o?

Publical-o na _Gazeta Illustrada_ ou na _Tarde_ n„o podia, infelizmente,
por interesse de Carlos. Mas porque o n„o mostraria ´em segredoª, como
uma curiosidade psychologica, ao Craft, ao marquez, ao Telles, ao
Gouvarinho, ao primo do Cohen? Podia mesmo confiar uma cÛpia ao Taveira
que, resentido eternamente da quest„o com o Damaso em casa da Lola
Gorda, correria a lÍl-a _em segredo_ na Casa Havaneza, no bilhar do
Gremio, no Silva, nos camarins de cantoras... E ao fim de uma semana a
snr.^a D. Rachel saberia inevitavelmente que o escolhido do seu coraÁ„o
era por confiss„o propria um calumniador e um bebedo!... Delicioso!

T„o delicioso que n„o hesitou mais, subiu ao quarto para copiar a carta
do Damaso. Mas quasi immediatamente um criado trouxe-lhe um telegramma
de Affonso da Maia annunciando que chegava no dia seguinte ao Ramalhete.
Ega teve de sahir, telegraphar para os Olivaes, avisar Carlos.

Carlos appareceu n'essa noite, j· tarde, transido de frio, com um monte
de bagagens--porque abandon·ra definitivamente os Olivaes. Maria Eduarda
regressava tambem a Lisboa, para o primeiro andar da rua de S.
Francisco, tomado agora por seis mezes, tapetado de novo pela m„i
Cruges. E Carlos vinha muito impressionado, com profundas saudades da
_Toca_. Depois de cear, ao fog„o, acabando o charuto, relembrou
infindavelmente esses dias alegres, a sua casinhola, o banho da manh„
tomado dentro d'uma dorna, a festa do deus Tchi, as guitarradas do
marquez, as longas cavaqueiras ao cafÈ com as janellas abertas e as
borboletas voando em torno aos candieiros... FÛra as cordas d'agua, sob
o vento d'inverno, batiam os vidros na mudez da noite negra. Ambos
terminaram por ficar calados, pensativos, com os olhos no lume.

--Quando esta tarde dei pela ultima vez uma volta na quinta, disse por
fim Carlos, j· n„o havia uma unica folha nas arvores... Tu n„o sentes
sempre uma grande melancolia n'estes fins de outono?...

--Immensa! murmurou Ega lugubremente.

Ao outro dia a manh„ clareava, limpa e branca, quando Ega e Carlos,
ainda estremunhados e tiritando, se apearam em Santa Apolonia. O comboio
acabava justamente de chegar; e viram logo, entre o rumor de gente que
se escoava das portinholas abertas, Affonso, com o seu velho capote de
gola de velludo, apegado a uma bengala, debatendo-se entre homens de
bonÈ agaloado que lhe offereciam o _Hotel Terreirense_ e a _Pomba
d'Ouro_. Atraz Mr. Antoine, o chefe francez, grave, de chapÈo alto,
trazia o cesto em que viaj·ra o reverendo Bonifacio.

Carlos e Ega acharam Affonso mais acabado, mais pesado. Todavia
gabaram-lhe muito, entre os primeiros abraÁos, a sua robustez de
patriarcha. Elle encolheu os hombros, queixando-se de ter sentido desde
o fim do ver„o vertigens, um cansaÁo vago...

--VocÍs È que est„o excellentes, acrescentou abraÁando outra vez Carlos
e sorrindo ao Ega. E que ingratid„o foi essa tua, John, mettido aqui
todo um ver„o sem me ir visitar?... Que tens tu feito? Que tÍm vocÍs
feito?

--Mil coisas! acudiu Ega alegremente. Planos, ideias, titulos... Temos
sobretudo o projecto d'uma _Revista_, um apparelho d'educaÁ„o superior
que vamos montar com uma forÁa de mil cavallos!... Emfim logo se lhe
conta tudo ao almoÁo.

E ao almoÁo, com effeito, para justificarem as suas occupaÁıes em
Lisboa, fallaram da _Revista_ como se ella j· estivesse organisada e os
artigos a imprimir na officina--tanta foi a precis„o com que lhe
descreveram as tendencias, a feiÁ„o critica, as linhas de pensamento
sobre que ella devia rolar... Ega j· prepar·ra um trabalho para o
primeiro numero--_A capital dos portuguezes_. Carlos meditava uma sÈrie
d'_ensaios_ · ingleza, sob este titulo--_Porque falhou entre nÛs o
systema constitucional_. E Affonso escutava, encantado com aquellas
bellas ambiÁıes de lucta, querendo partilhar da grande obra como socio
capitalista... Mas Ega entendia que o snr. Affonso da Maia devia descer
· arena, lanÁar tambem a palavra do seu saber e da sua experiencia.
Ent„o o velho riu. O quÍ! compÙr prosa, elle, que hesitava para traÁar
uma carta ao feitor? De resto o que teria a dizer ao seu paiz, como
fructo da sua experiencia, reduzia-se pobremente a tres conselhos em
tres phrases: aos politicos--´menos liberalismo e mais caracterª; aos
homens de letras--´menos eloquencia e mais ideiaª; aos cidad„os em
geral--´menos progresso e mais moralª.

Isto enthusiasmou o Ega! Justamente, ahi estavam as verdadeiras feiÁıes
da reforma espiritual que a _Revista_ devia prÈgar! Era necessario
tomal-as como moto symbolico, inscrevel-as em letras gothicas no
frontispicio--porque Ega queria que a _Revista_ fosse original logo na
capa. E ent„o a conversaÁ„o desviou para o exterior da _Revista_--Carlos
pretendendo que fosse azul-claro com typo RenascenÁa, Ega exigindo uma
cÛpia exacta da _Revista dos Dois Mundos_, n'uma nuance mais cÙr de
canario. E, levados pela sua imaginaÁ„o de meridionaes, j· n„o era sÛ
para agradar a Affonso da Maia que iam levantando e dando fÛrma ·quelle
confuso plano.

Carlos exclamava para o Ega, com os olhos j· apaixonados:

--Isto agora È sÈrio. Precisamos arranjar immediatamente a casa para a
redacÁ„o!

Ega bracejava:

--Pudera! E moveis! E machinas!

Toda a manh„, no escriptorio d'Affonso, azafamados, com papel e lapis,
se occuparam em fixar uma lista de collaboradores. Mas j· as
difficuldades surgiam. Quasi todos os escriptores suggeridos
desagradavam ao Ega, por lhes faltar no estylo aquelle requinte plastico
e parnasiano de que elle desejava que a _Revista_ fosse o impeccavel
modelo. E a Carlos alguns homens de letras pareciam _impossiveis_--sem
querer confessar que n'elles lhe repugnava exclusivamente a falta de
linha e o fato mal feito...

Uma coisa porÈm ficou decidida: a casa da redacÁ„o. Devia ser mobilada
luxuosamente, com sof·s do consultorio de Carlos e algum _bric-‡-brac_
da _Toca_: e sobre a porta (ornada d'um guarda-port„o de librÈ) a
taboleta de verniz preto, com _Revista de Portugal_ em altas letras a
ouro. Carlos sorria, esfregava as m„os, pensando na alegria de Maria ao
saber esta decis„o que o lanÁava, como era o desejo d'ella, na
actividade, n'uma lucta interessante d'ideias. Ega, esse, via j· a
brochura cÙr de canario aos montıes nas vitrines dos livreiros,
discutida nas _soirÈes_ do Gouvarinho, folheada na camara com espanto
pelos politicos...

--Vai-se remexer Lisboa este inverno, snr. Affonso da Maia! gritou elle
atirando um gesto immenso atÈ ao tecto.

E o mais contente era o velho.

Depois de jantar, Carlos pediu ao Ega para ir com elle · rua de S.
Francisco (onde Maria se install·ra n'essa manh„) levarem a nova da
grande obra. Mas encontraram · porta uma carroÁa descarregando malas; e
a senhora, contou o Domingos que ajudava os carroceiros, estava ainda
jantando a um canto da mesa e sem toalha. Com tanta confus„o na casa,
Ega n„o quiz subir.

--AtÈ logo, disse elle. Vou talvez procurar o Sim„o Craveiro e
fallar-lhe da _Revista_.

Subiu lentamente o Chiado, leu os telegrammas na Casa Havaneza. Depois ·
esquina da rua Nova da Trindade, um homem rouco, sumido n'um paletot,
offereceu-lhe uma ´senhasinhaª. Outros, em volta, gritavam na sombra do
_Hotel AllianÁa_:

--Bilhete para o Gymnasio! Mais barato... Bilhete para o Gymnasio! Quem
vende?...

Havia um cruzar animado de carruagens com librÈs. Os bicos de gaz do
Gymnasio tinham um fulgor de festa. E Ega deu de rosto com o Craft que
atravessava do lado do Loreto, de gravata branca e flÙr no paletot.

--Que È isto?

--Festa de beneficencia, n„o sei, disse o Craft. Uma coisa promovida por
senhoras, a baroneza d'Alvim mandou-me um bilhete... Venha vocÍ d'ahi
ajudar-me a levar esta caridade ao Calvario.

E na esperanÁa de flirtar com a Alvim, Ega comprou logo uma senha. No
perystilo do Gymnasio encontraram Taveira passeando e fumando
solitariamente, · espera que findasse a primeira comedia, o _Fructo
prohibido_. Ent„o Craft propÙz ´botequim e genebraª.

--E que ha do ministerio? perguntou elle, apenas abancaram a um canto.

O Taveira n„o sabia. Todos esses dois longos dias se intrig·ra
desesperadamente. O Gouvarinho queria as Obras Publicas: o Videira
tambem. E fallava-se d'uma scena terrivel por causa de syndicatos, em
casa do presidente do conselho, o S· Nunes, que termin·ra por dar um
murro na mesa, gritar: ´Irra! que isto n„o È o pinhal d'Azambuja!ª

--Canalha! rosnou Ega com odio.

Depois fallaram do Ramalhete, da volta d'Affonso, da reappariÁ„o de
Carlos. Craft louvou Deus por haver outra vez n'esse inverno uma casa
com fogıes, onde se passasse uma hora civilisada e intelligente.

Taveira acudiu com o olho brilhante:

--Diz que vamos ter um centrosinho muito mais interessante ainda, na rua
de S. Francisco! Foi o marquez que me disse. Madame Mac-Gren vai
receber.

Craft n„o sabia mesmo que ella j· tivesse recolhido da _Toca_.

--Voltou hoje, disse o Ega. VocÍ ainda n„o a conhece?... Encantadora.

--Creio que sim.

O Taveira vira-a de relance no Chiado. Parecera-lhe uma belleza. E um ar
t„o sympathico!

--Encantadora! repetiu Ega.

Mas o _Fructo prohibido_ find·ra, os homens enchiam o peristylo, n'um
rumor lento, accendendo os cigarros. E Ega, deixando o Craft e Taveira
com a genebra, correu · plateia para descobrir o camarote da Alvim.

Mal erguera porÈm a cortina e assest·ra o monoculo--avistou defronte, na
primeira ordem, a Cohen, toda de preto, com um grande leque de rendas
brancas; por traz negrejavam as suissas fortes do marido; e em face
d'ella, recostado no velludo da grade, de casaca, com a bochecha
risonha, uma grossa perola no peitilho da camisa, o Damaso, o bebedo!

Ega cahiu mollemente, ao acaso, na borda d'uma cadeira: e perturbado, j·
esquecido da Alvim, alli ficou a olhar o panno coberto d'annuncios,
correndo os dedos tremulos pelo bigode.

No emtanto a campainha retinia, a gente vagarosamente reentrava na
plateia. Um cavalheiro gordo e carrancudo tropeÁou no joelho do Ega:
outro, de luvas claras, com uma polidez adocicada, pediu permiss„o a s.
exc.^a Elle n„o escutava, n„o percebia: os seus olhos, um momento
errantes, tinham-se emfim cravado no camarote da Cohen e n„o se
desviaram de l·, n'uma emoÁ„o que o empallidecia.

N„o a torn·ra a encontrar desde Cintra, onde sÛ a via de longe, com
vestidos claros sob o verde das arvores; e agora alli, toda de preto, em
cabello, com um decote curto onde brilhava a perfeita brancura do seu
collo, ella era outra vez a _sua_ Rachel, dos tempos divinos da _villa_
Balzac. Era assim que elle, todas as noites em S. Carlos, a contemplava
do fundo da frisa de Carlos, com a cabeÁa encostada ao tabique, saturado
de felicidade. L· tinha a sua luneta d'ouro, presa por um fio d'ouro.
Parecia mais pallida, mais delicada, com o longo quebranto dos olhos
pisados, o seu ar de romance e de lirio meio murcho: e como ent„o os
seus cabellos magnificos e pesados cahiam habilmente n'uma massa meia
solta sobre as costas, n'um desalinho de nudez. Pouco a pouco, entre o
afinar de rebecas e o rumor das cadeiras Ega revia, n'uma onda de
recordaÁıes que o suffocava, o grande leito da _villa_ Balzac, certos
beijos e certos risos, as perdizes comidas em camisa · borda do sof·, e
a melancolia deliciosa das tardes, quando ella sahia furtivamente,
coberta de vÈos, e elle ficava, cansado, no crepusculo poetico do
quarto, cantarolando a _Traviata_...

--V. exc.^a d· licenÁa, snr. Ega?

Era um sujeito escaveirado, de barba rala, que reclamava a sua cadeira.
Ega ergueu-se, confusamente, sem reconhecer o snr. Sousa Netto. O panno
subira. ¡ borda da rampa um lacaio, piscando o olho · Plateia, fazia
confidencias sobre a patrÙa, de espanejador debaixo do braÁo. E Cohen,
agora de pÈ, enchia o meio do camarote, cofiando as suissas com um
correr lento da m„o bem tratada, onde reluzia um diamante.

Ega ent„o, n'um soberbo alarde d'indifferenÁa, cravou o monoculo no
palco. O lacaio abal·ra espavorido, a um repique furioso de sineta; e
uma megera azeda, de roup„o verde e touca · banda, rompera de dentro,
meneando desesperadamente o leque, ralhando com uma mocinha delambida
que batia o tac„o, se esganiÁava: ´Pois hei de amal-o sempre! hei de
amal-o sempre!ª

Irresistivelmente Ega revirou o canto do olho para o camarote: Rachel e
o Damaso, com as cabeÁas chegadas como em Cintra, cochichavam n'um
sorriso. E tudo logo dentro do Ega se resumiu n'um immenso odio ao
Damaso! Collado · umbreira da porta, rilhava os dentes, n'um desejo de
subir, escarrar-lhe na bochecha gorda.

E n„o desviava d'elle os olhos, que dardejavam. Na scena, um velho
general, gottoso e resmung„o, sacudia um jornal, gritava pela sua
tapioca. A Plateia ria, o Cohen ria. E n'esse momento Damaso, que se
debruÁ·ra no camarote com as m„os de fÛra, calÁadas de _gris-perle_,
descobriu o Ega, sorriu, atirou-lhe como em Cintra um acenosinho
petulante, muito d'alto, na ponta dos dedos. Isto feriu o Ega como um
insulto. E ainda na vespera aquelle covarde se lhe agarr·ra ·s m„os,
tremendo todo, a gritar ´que o salvasse!...ª

Subitamente, com uma idÈa, palpou por sobre o bolso a carteira onde na
vespera guard·ra a carta do Damaso... ´Eu t'arranjo!ª murmurou elle. E
abalou, desceu a rua da Trindade, cortou pelo Loreto como uma pedra que
rola, enfiou, ao fundo da praÁa de Camıes, n'um grande port„o que uma
lanterna alumiava. Era a redacÁ„o da _Tarde_.

Dentro do pateo d'esse jornal elegante fedia. Na escadaria de pedra, sem
luz, cruzou um sujeito encatarrhoado que lhe disse que o Neves estava em
cima ao cavaco. O Neves, deputado, politico, director da _Tarde_, fÙra,
havia annos, n'umas ferias, seu companheiro de casa no largo do Carmo; e
desde esse ver„o alegre em que o Neves lhe fic·ra sempre devendo tres
moedas, os dois tratavam-se por _tu_.

Foi encontral-o n'uma vasta sala alumiada por bicos de gaz sem globo,
sentado na borda d'uma mesa atulhada de jornaes, com o chapÈo para a
nuca, discursando a alguns cavalheiros de provincia que o escutavam de
pÈ, n'um respeito de crentes. N'um v„o de janella, com dois homens
d'idade, um rapaz esgalgado, de jaquet„o de cheviote claro e uma
cabelleira crespa que parecia erguida n'uma rajada de vento, bracejava
como um moinho na crista d'um monte. E, abancado, outro sujeito j· calvo
rascunhava laboriosamente uma tira de papel.

Ao vÍr o Ega (um intimo do Gouvarinho) alli na redacÁ„o, n'aquella noite
de intriga e de crise, Neves cravou n'elle os olhos t„o curiosos, t„o
inquietos, que o Ega apressou-se a dizer:

--Nada de politica, negocio particular... N„o te interrompas. Depois
fallaremos.

O outro findou a injuria que estava lanÁando ao JosÈ Bento, ´essa grande
besta que fÙra metter tudo no bico da amiga do Sousa e S·, o par do
reinoª--e na sua impaciencia saltou da mesa, travou do braÁo do Ega
arrastando-o para um canto:

--Ent„o que È?

--… isto, em quatro palavras. O Carlos da Maia foi offendido ahi por um
sujeito muito conhecido. Nada d'interessante. Um paragrapho immundo na
_Corneta do Diabo_, por uma quest„o de cavallos... O Maia pediu-lhe
explicaÁıes. O outro deu-as, chatas, medonhas, n'uma carta que quero que
vocÍs publiquem.

A curiosidade do Neves flammejou:

--Quem È?

--O Damaso.

O Neves recuou d'assombro:

--O Damaso!? Ora essa! Isso È extraordinario! Ainda esta tarde jantei
com elle! Que diz a carta?

--Tudo. Pede perd„o, declara que estava bebedo, que È de profiss„o um
bebedo...

O Neves agitou as m„os com indignaÁ„o:

--E tu querias que eu publicasse isso, homem? O Damaso, nosso amigo
politico!... E que n„o fosse, n„o È quest„o de partido, È de decencia!
Eu faÁo l· isso!... Se fosse uma acta de duello, uma coisa honrosa,
explicaÁıes dignas... Mas uma carta em que um homem se declara bebedo!
Tu est·s a mangar!

Ega, j· furioso, franzia a testa. Mas o Neves, com todo o sangue na
face, teve ainda uma revolta ·quella idÈa do Damaso se declarar bebedo!

--Isso n„o pÛde ser! … absurdo! Ahi ha historia... Deixa vÍr a carta.

E, mal relance·ra os olhos ao papel, · larga assignatura floreada,
rompeu n'um alarido:

--Isto n„o È o Damaso nem È letra do Damaso!... ´Salcedeª! Quem diabo È
´Salcedeª? Nunca foi o _meu_ Damaso!

--… o _meu_ Damaso, disse o Ega. O Damaso Salcede, um gordo...

O outro atirou os braÁos ao ar:

--O meu È o Guedes, homem, o Damaso Guedes! N„o ha outro! Que diabo,
quando se diz o Damaso È o Guedes!...

Respirou com grande allivio:

--Irra, que me assustaste! Olha agora n'este momento, com estas coisas
de ministerio, uma carta d'essas escripta pelo Guedes... Se È o Salcede,
bem, acabou-se! Espera l·... N„o È um gordalhufo, um janota que tem uma
propriedade em Cintra? Isso! Um magan„o que nos entalou na eleiÁ„o
passada, fez gastar ao Silverio mais de trezentos mil reis...
Perfeitamente, ·s ordens... ” Pereirinha, olhe aqui o snr. Ega. Tem ahi
uma carta para sahir ·manh„, na primeira pagina, typo largo...

O snr. Pereirinha lembrou o artigo do snr. Vieira da Costa sobre a
´Reforma das Pautasª.

--Vai depois! gritou o Neves. As questıes de honra antes de tudo!

E voltou ao seu grupo onde agora se fallava do conde de Gouvarinho,
saltou para a borda da mesa, lanÁou logo o seu vozeir„o de chefe,
affirmando no Gouvarinho enormes dotes de parlamentar!

Ega accendeu o charuto, ficou um momento considerando aquelles sujeitos
que pasmavam para o verbo do Neves. Eram decerto deputados que a crise
arrast·ra a Lisboa, arranc·ra · quietaÁ„o das villas e das quintas. O
mais novo parecia um pote, vestido de casimira fina, com uma enorme face
a estourar de sangue, jocundo, crasso, lembrando ares sadios e lombo de
porco. Outro, esguio, com o paletot solto sobre as costas em arco, tinha
um queixo duro e macisso de cavallo: e dois padres muito rapados, muito
morenos, fumavam pontas de cigarro. Em todos havia esse ar,
conjunctamente apagado e desconfiado, que marca os homens de provincia,
perdidos entre as tipoias e as intrigas da Capital. Vinham alli ·s
noites, ·quelle jornal do partido, saber as novas, _beber do fino_, uns
com esperanÁas de empregos, outros por interesses de terriola, alguns
por ociosidade. Para todos o Neves era um ´robusto talentoª;
admiravam-lhe a verbosidade e a tactica; decerto gostavam de citar nas
lojas das suas villas o amigo Neves, o jornalista, o da _Tarde_... Mas,
atravÈs d'essa admiraÁ„o e do prazer de roÁar por elle, percebia-se-lhes
um vago medo que aquelle ´robusto talentoª lhes pedisse, n'um v„o de
janella, duas ou tres moedas. O Neves no emtanto celebrava o Gouvarinho
como orador. N„o que tivesse os rasgos, a pureza, as bellas syntheses
historicas do JosÈ Clemente! Nem a poesia do Rufino! Mas n„o havia outro
para as piadas que ferem e que ficam cravadas, alli a arder, na pelle do
touro! E era a grande coisa na Camara--ter a farpa, sabÍl-a ferrar!

--” GonÁalo, tu lembras-te da piada do Gouvarinho, a do trapezio? gritou
elle virando-se para a janella, para o rapaz de jaquet„o claro.

O GonÁalo, cujos olhos pretos refulgiram de agudeza e malicia, estendeu
o pescoÁo magro n'um collarinho muito decotado, lanÁou de l·:

--A do trapezio? Divina! Conta · rapaziada!

A rapaziada arregalou os olhos para o Neves, · espera da ´do trapezioª.
FÙra na Camara dos Pares, na reforma da instrucÁ„o. Estava fallando o
Torres Valente, esse maluco que defendia a gymnastica dos collegios e
queria as meninas a fazerem a prancha. Gouvarinho ergue-se e atira-lhe
esta:

´Snr. presidente, direi uma palavra sÛ. Portugal sahir· para sempre da
senda do progresso, em que tanto se tem illustrado, no dia em que nÛs
fÙrmos ao ensino, com m„o impia, substituir a cruz pelo trapezio!ª

--Muito bem! rosnou um dos padres profundamente satisfeito.

E no murmurio de admiraÁ„o que se ergueu destacou um ganido--o do rapaz
mais grosso que um pote, que mexia os hombros, chasqueava com uma risota
na bochecha cÙr de tomate:

--Pois, senhores, o que esse conde de Gouvarinho me sae È um grandissimo
carola!

E em redor correram sorrisos entre os cavalheiros de provincia, liberaes
e finorios, que achavam aquelle fidalgo excessivamente apegado · cruz.
Mas j· o Neves, de pÈ, bravejava:

--Carola! Vem-nos agora o menino gordo com carola!... O Gouvarinho
carola! Est· claro que tem toda a orientaÁ„o mental do seculo, È um
racionalista, um positivista... Mas a quest„o aqui È a rÈplica, a
tactica parlamentar! Desde que o typo da maioria vem de l· com a
descoberta do trapezio, Gouvarinho amigo, ainda que fosse t„o atheu como
Renan, z·s! atira-lhe logo para cima com a cruz!... Isto È que È a
estrategia parlamentar! Pois n„o È assim, Ega?

Ega murmurou, atravÈs do fumo do charuto:

--Sim, com effeito a cruz para isso ainda serve...

Mas n'esse momento o sujeito calvo, que repellira a tira de papel e se
espreguiÁava, cahido para as costas da cadeira, exhausto, pediu ao snr.
Jo„o da Ega--que fallasse · gente e guardasse o seu dinheiro...

Ega acercou-se logo d'aquelle sympathico homem, t„o engraÁado, t„o
querido de todos:

--Ent„o, na grande faina, Melchior?

--Estou aqui a vÍr se faÁo uma coisa sobre o livro do Craveiro, os
_Cantos da Serra_, e n„o me sae nada em termos... N„o sei o que hei de
dizer!

Ega gracejou, de m„os nos bolsos, muito risonho, muito camarada com o
Melchior:

--Nada! VocÍs aqui s„o simples localistas, noticiaristas, annunciadores.
D'um livro como o do Craveiro tÍm sÛ respeitosamente a dizer onde se
vende e quanto custa.

O outro considerou o Ega ironicamente, com os dedos cruzados por traz da
nuca:

--Ent„o onde queria vocÍ que se fallasse dos livros?... Nos reportorios?

N„o, nas Revistas Criticas: ou ent„o nos jornaes--que fossem jornaes,
n„o papeluchos volantes, tendo em cima uma cataplasma de politica em
estylo mazorro ou em estylo fadista, um romance mal traduzido do francez
por baixo e o resto cheio com ´annosª, despachos, parte de policia e
loteria da Misericordia. E como em Portugal n„o havia nem jornaes sÈrios
nem Revistas Criticas--que se n„o fallasse em parte nenhuma.

--Com effeito, murmurou Melchior, ninguem falla de nada, ninguem parece
pensar em nada...

E com toda a raz„o, affirmou Ega. Certamente muito d'esse silencio
provinha do natural desejo que tÍm os que s„o mediocres de que se n„o
alluda muito aos que s„o grandes. … a invejasinha reles e rastejante!
Mas em geral o silencio dos jornaes para com os livros provÈm sobretudo
d'elles terem abdicado todas as funcÁıes elevadas d'estudo e de critica,
de se terem tornado folhas rasteiras d'informaÁ„o caseira, e de sentirem
por isso a sua incompetencia...

--Est· claro, n„o fallo por vocÍ, Melchior, que È dos nossos e de
primeira ordem! Mas os seus collegas, menino, calam-se por se saberem
incompetentes...

O Melchior ergueu os hombros com um ar canÁado e descrente:

--Calam-se tambem porque o publico n„o se importa, ninguem se importa...

Ega protestou, j· excitado. O Publico n„o se importava!? Essa era
curiosa! O Publico ent„o n„o se importa que lhe fallem de livros que
elle compra aos tres mil, aos seis mil exemplares? E isto, dada a
populaÁ„o de Portugal, caramba, È igual aos grandes successos de Paris e
de Londres... N„o, Melchiorzinho amigo, n„o! Esse silencio diz ainda
mais claramente e retumbantemente que as palavras: ´NÛs somos
incompetentes. NÛs estamos bestialisados pela noticia do snr.
conselheiro que chegou ou do snr. conselheiro que partiu, pelos
_High-lifes_, pela amabilidade dos donos da casa, pelo artigo de fundo
em descompostura e cal„o, por toda esta prosa chula em que nos
atolamos... NÛs n„o sabemos, n„o podemos j· fallar d'uma obra d'arte ou
d'uma obra de historia, d'este bello livro de versos ou d'este bello
livro de viagens. N„o temos nem phrases nem idÈas. N„o somos talvez
cretinos--mas estamos cretinisados. A obra de litteratura passa muito
alto--nÛs chafurdamos aqui muito em baixo...ª

--E aqui tem vocÍ, Melchior, o que diz, atravÈs do silencio dos jornaes,
o cÙro dos jornalistas!

Melchior sorria, enlevado, com a cabeÁa deitada para traz, como quem
goza uma bella ·ria. Depois com uma palmada na mesa:

--Caramba, Û Ega, muito bem falla vocÍ!... VocÍ nunca pensou em ser
deputado? Eu ainda outro dia dizia ao Neves: ´O Ega! O Ega È que era,
para atirar alli na camara a piadinha · Rochefort. Ardia Troia!ª

E immediatamente, emquanto Ega ria, contente, tornando a accender o
charuto--Melchior arrebatou a penna:

--VocÍ est· em veia! Diga l·, dicte l·... Que hei de eu aqui pÙr sobre o
livro do Craveiro?

Ega quiz saber o que escrevera j· o amigo Melchior. Apenas tres linhas:
´Recebemos o novo livro do nosso glorioso poeta Sim„o Craveiro. O
precioso volume, onde scintillam em caprichosos relevos todas as joias
d'este prestigioso escriptor, È publicado pelos activos editores...ª E
aqui o Melchior emperr·ra. Melchior n„o gostava d'aquelle frouxo
termo--_activos_. Ega ent„o suggeriu--_emprehendedores_. Melchior
emendou, leu:

--´...publicado pelos emprehendedores editores...ª Ora sÍbo, rima!

Arrojou a penna, descorÁoado. Acabou-se! N„o estava em _verve_. E alÈm
d'isso era tarde, tinha a rapariga · espera...

--Fica para ·manh„... O peor È que j· ando n'isto ha cinco dias! Irra!
VocÍ tem raz„o, a gente bestialisa-se. E faz-me raiva! N„o È l· pelo
livro, n„o me importa o livro... … pelo Craveiro, que È bom rapaz, e
demais a mais pertence c· ao partido!

Abriu um gavet„o, sacou uma escova, rompeu a escovar-se com desespero. E
Ega ia ajudal-o, limpar-lhe as costas cheias de cal--quando entre elles
surgiu a face chupada e nervosa do GonÁalo, com a sua gaforinha
perpetuamente erguida como por uma rajada de vento.

--Que est· o Egasinho a fazer n'este covil da noticia?

--Aqui a escovar o Sampaio... Estive tambem a ouvir o Neves, a grande
phrase do Gouvarinho...

O GonÁalo pulou, com uma faisca de malicia nos olhos negros de algarvio
esperto.

--A da cruz? Espantosa! Mas ha melhor, ha melhor!

Travou do braÁo do Ega, puxou-o para um canto da janella:

--… necessario fallar baixo por causa da rapaziada de provincia... Ha
outra deliciosa. Eu n„o me lembro bem, o Neves È que sabe! … uma coisa
da Liberdade conduzindo · m„o o corcel do Progresso... O quer que seja
assim, uma imagem equestre! A Liberdade com calÁıes de jockey, o
Progresso com um grande freio... Espantoso! Que besta, aquelle
Gouvarinho! E os outros, menino, os outros! VocÍ n„o foi · camara quando
se discutiu a quest„o de Tondella? Extraordinario! O que se disse! Foi
de morrer! E eu morro! Esta politica, este S. Bento, esta eloquencia,
estes bachareis matam-me. Querem dizer agora ahi que isto por fim n„o È
peor que a Bulgaria. Historias! Nunca houve uma choldra assim no
universo!

--Choldra em que vocÍ chafurda! observou o Ega rindo.

O outro recuou com um grande gesto:

--Distingamos! Chafurdo por necessidade, como politico: e trÛÁo por
gosto, como artista!

Mas Ega justamente achava uma desgraÁa incomparavel para o paiz--esse
immoral desaccordo entre a intelligencia e o caracter. Assim, alli
estava o amigo GonÁalo, como homem de intelligencia, considerando o
Gouvarinho um imbecil...

--Uma cavalgadura, corrigiu o outro.

--Perfeitamente! E todavia, como politico, vocÍ quer essa cavalgadura
para ministro, e vai apoial-a com votos e com discursos sempre que ella
rinche ou escoucinhe.

GonÁalo correu lentamente a m„o pela gaforinha, com a face franzida:

--… necessario, homem! Razıes de disciplina e de solidariedade
partidaria... Ha uns compromissos... O paÁo quer, gosta d'elle...

Espreitou em roda, murmurou, collado ao Ega:

--Ha ahi umas questıes de syndicatos, de banqueiros, de concessıes em
MoÁambique... Dinheiro, menino, o omnipotente dinheiro!

E como Ega se curvava, vencido, cheio sÛ de respeito--o outro, faiscando
todo de finura e cynismo, atirou-lhe uma palmada ao hombro:

--Meu caro, a politica hoje È uma coisa muito differente! NÛs fizemos
como vocÍs os litteratos. Antigamente a litteratura era a imaginaÁ„o, a
phantasia, o ideal... Hoje È a realidade, a experiencia, o facto
positivo, o documento. Pois c· a politica em Portugal tambem se lanÁou
na corrente realista. No tempo da RegeneraÁ„o e dos Historicos a
politica era o progresso, a viaÁ„o, a liberdade, o palavrorio... NÛs
mudamos tudo isso. Hoje È o facto positivo,--o dinheiro, o dinheiro! o
bago! a _massa_! A rica _massinha_ da nossa alma, menino! O divino
dinheiro!

E de repente emmudeceu, sentindo na sala um silencio--onde o seu grito
de ´dinheiro! dinheiro!ª parecera ficar vibrando, no ar quente do gaz,
com a prolongaÁ„o de um toque de rebate acordando as cubiÁas, chamando
ao longe e ao largo todos os habeis para o saque da Patria inerte!...

O Neves desapparecera. Os cavalheiros de provincia dispersavam, uns
enfiando o paletot, outros sem pressa dando um olhar amortecido aos
jornaes sobre a mesa. E o GonÁalo bruscamente disse adeus ao Ega, rodou
nos tacıes, desappareceu tambem, abraÁando ao passar um dos padres a
quem tratou de ´malandro!ª

Era meia noite, Ega sahiu. E na tipoia que o levava ao Ramalhete, j·
mais calmo, comeÁou logo a reflectir que o resultado da publicaÁ„o da
carta seria despertar em toda Lisboa uma curiosidade voraz. A ´quest„o
de cavallosª com que o Neves se content·ra promptamente, distrahido e
absorvido n'essa noite pela crise,--ninguem mais a acreditaria... O
Damaso decerto, interrogado, para se desculpar, contaria horrores de
Maria e de Carlos: e uma intoleravel luz d'escandalo ia bater coisas que
deviam permanecer na sombra. Eram talvez apoquentaÁıes, desesperos que
elle assim estivera preparando a Carlos--por causa d'um odiosinho ao
Damaso. Nada mais egoista e pequeno!... E subindo para o quarto Ega
decidia correr depois d'almoÁo · redacÁ„o da _Tarde_, suster a
publicaÁ„o da carta.

Mas toda essa noite sonhou com Rachel e com Damaso. Via-os rolando por
uma estrada sem fim, entre pomares e vinhedos, deitados n'uma carroÁa de
bois, sobre um enxerg„o onde se desdobrava, lasciva e rica, a sua colcha
de setim preto da _villa_ Balzac: os dois beijavam-se, enroscados, sem
pudor, sob a fresca sombra que cahia dos ramos, ao chiar lento das
rodas. E por um requinte do sonho cruel, elle Ega, sem perder a
consciencia e o orgulho d'homem, era um dos bois que puxava ao carro! Os
moscardos picavam-no, a canga pesava-lhe; e, a cada beijo mais cantado
que atraz soava no carro, elle erguia o focinho a escorrer de baba,
sacudia os cornos, mugia lamentavelmente para os cÈos!

Acordou n'estes urros d'agonia: e a sua cÛlera contra o Damaso resurgiu,
mais nutrida pelas incoherencias do sonho. AlÈm d'isso chovia. E decidiu
n„o voltar · _Tarde_, deixar imprimir a carta. Que importava, de resto,
o que dissesse o Damaso? O artigo da _Corneta_ estava extincto, o Palma
bem pago.--E quem j·mais acreditaria n'um homem que nos jornaes se
declara calumniador e bebedo?

E Carlos assim pensou tambem--quando, depois d'almoÁo, Ega lhe contou a
sua resoluÁ„o da vespera ao vÍr o Damaso no camarote, d'olho trocista
posto n'elle, a segredar com os Cohens...

--Percebi claramente, sem erro possivel, que estava a fallar de ti, da
snr.^a D. Maria, de nÛs todos, contando horrores... E ent„o acabou-se,
n„o hesitei mais. Era necessario deixar passar a justiÁa de Deus! N„o
tinhamos paz emquanto o n„o aniquilassemos!

Sim, concordou Carlos, talvez. SÛmente receava que o avÙ, sabendo o
escandalo, se desgostasse de vÍr o seu nome misturado a toda aquella
sordidez de _Corneta_ e de bebedeira...

--Elle n„o lÍ a _Tarde_, acudiu Ega. O rumor, se lhe chegar, È j· vago e
desfigurado.

Com effeito Affonso soube apenas confusamente que o Damaso solt·ra no
Gremio algumas palavras desagradaveis para Carlos, e declar·ra depois
n'um jornal que, n'esse momento, estava bebedo. E a opini„o do velho
foi--que se o Damaso estava embriagado (e d'outro modo como teria
injuriado Carlos, seu antigo amigo?) a sua declaraÁ„o revelava extrema
lealdade e um amor quasi heroico da verdade!

--Por esta n„o esperavamos nÛs! exclamou depois Ega no quarto de Carlos.
O Damaso torna-se um justo!

De resto os amigos da casa, sem conhecer o artigo da _Corneta_,
approvavam a aniquilaÁ„o do Damaso. SÛ o Craft sustentou que Carlos lhe
devia ter antes dado ´bengaladas secretasª; e o Taveira achou cruel que
se dissesse ao desgraÁado, com um florete ao peito--´ou a dignidade ou a
vida!ª

Mas dias depois n„o se fallava mais n'esse escandalo. Outras coisas
interessavam o Chiado e a Casa Havaneza. O ministerio fÙra formado,
finalmente! Gouvarinho entrava na Marinha--Neves no Tribunal de Contas.
J· os jornaes do governo cahido comeÁavam, segundo a pratica
constitucional, a achar o paiz irremediavelmente perdido, e a alludir ao
rei com azedume... E o derradeiro, esvaÌdo echo da carta do Damaso foi,
na vespera do sarau da Trindade, um paragrapho da propria _Tarde_ onde
ella fÙra publicada, n'estas amaveis palavras:

--´O nosso amigo e distincto _sportman_ Damaso Salcede parte brevemente
para uma viagem de recreio a Italia. Desejamos ao elegante _touriste_
todas as prosperidades na sua bella excurs„o ao paiz do canto e das
artes.ª




VI


Ao fim do jantar, na rua de S. Francisco, Ega que se demor·ra no
corredor a procurar a charuteira pelos bolsos do paletot, entrou na
sala, perguntando a Maria, j· sentada ao piano:

--Ent„o, definitivamente, v. exc.^a n„o vem ao sarau da Trindade?...

Ella voltou-se para dizer, preguiÁosamente, por entre a walsa lenta que
lhe cantava entre os dedos:

--N„o me interessa, estou muito canÁada...

--… uma sÈcca, murmurou Carlos do lado, da vasta poltrona onde se
estir·ra consoladamente, fumando, d'olhos cerrados.

Ega protestou. Tambem era uma massada subir ·s Pyramides no Egypto. E no
emtanto soffria-se invariavelmente, porque nem todos os dias pÛde um
christ„o trepar a um monumento que tem cinco mil annos de existencia...
Ora a snr.^a D. Maria, n'este sarau, ia vÍr por dez tostıes uma coisa
tambem rara,--a alma sentimental d'um povo exhibindo-se n'um palco, ao
mesmo tempo nua e de casaca.

--V·, coragem! um chapÈo, um par de luvas, e a caminho!

Ella sorria, queixando-se de fadiga e preguiÁa.

--Bem, exclamou Ega, eu È que n„o quero perder o Rufino... Vamos l·,
Carlos, mexe-te!

Mas Carlos implorou clemencia:

--Mais um bocadinho, homem! Deixa a Maria tocar umas notas do _Hamlet_.
Temos tempo... Esse Rufino, e o Alencar, e os bons, sÛ gorgeiam mais
tarde...

Ent„o Ega, cedendo tambem a todo aquelle conchego tepido e amavel,
enterrou-se no sof· com o charuto, para escutar a canÁ„o d'_Ophelia_, de
que Maria j· murmurava baixo as palavras scismadoras e tristes:


    P‚le et blonde,
    Dort sous l'eau profonde...


Ega adorava esta velha ballada escandinavia. Mais porÈm o encantava
Maria que nunca lhe parecera t„o bella: o vestido claro que tinha n'essa
noite modelava-a com a perfeiÁ„o d'um marmore: e entre as velas do
piano, que lhe punham um traÁo de luz no perfil puro e tons d'ouro
esfiado no cabello--o incomparavel eburneo da sua pelle ganhava em
esplendor e mimo... Tudo n'ella era harmonioso, s„o, perfeito... E
quanto aquella serenidade da sua fÛrma devia tornar delicioso o ardor da
sua paix„o! Carlos era positivamente o homem mais feliz d'estes reinos!
Em torno d'elle sÛ havia facilidades, doÁuras. Era rico, intelligente,
d'uma saude de pinheiro novo; passava a vida adorando e adorado; sÛ
tinha o numero d'inimigos que È necessario para confirmar uma
superioridade; nunca soffrera de dyspepsia; jogava as armas bastante
para ser temido; e na sua complacencia de forte nem a tolice publica o
irritava. SÍr verdadeiramente ditoso!

--Quem È por fim esse Rufino? perguntou Carlos, alongando mais os pÈs
pelo tapete, quando Maria findou a canÁ„o d'_Ophelia_.

Ega n„o sabia. Ouvira que era um deputado, um bacharel, um inspirado...

Maria, que procurava os nocturnos de Chopin, voltou-se:

--… esse grande orador de que fallavam na _Toca_?

N„o, n„o! Esse era outro, a sÈrio, um amigo de Coimbra, o JosÈ Clemente,
homem d'eloquencia e de pensamento... Este Rufino era um rat„o de pera
grande, deputado por MonÁ„o, e sublime n'essa arte, antigamente nacional
e hoje mais particularmente provinciana, de arranjar, n'uma voz de
theatro e de papo, combinaÁıes sonoras de palavras...

--Detesto isso! rosnou Carlos.

Maria tambem achava intoleravel um sujeito a chilrear, sem idÈas, como
um passaro n'um galho d'arvore...

--… conforme a occasi„o, observou Ega, olhando o relogio. Uma walsa de
Strauss tambem n„o tem idÈas, e · noite, com mulheres n'uma sala, È
deliciosa...

N„o, n„o! Maria entendia que essa rhetorica amesquinhava sempre a
palavra humana, que, pela sua natureza mesma, sÛ pÛde servir para dar
fÛrma ·s idÈas. A musica, essa, falla aos nervos. Se se cantar uma
marcha a uma crianÁa, ella ri-se e salta no collo...

--E se lhe lÍres uma pagina de Michelet, concluiu Carlos, o anjinho
secca-se e berra!

--Sim, talvez, considerou o Ega. Tudo isso depende da latitude e dos
costumes que ella cria. N„o ha inglez, por mais culto e espiritualista,
que n„o tenha um fraco pela forÁa, pelos athletas, pelo _sport_, pelos
musculos de ferro. E nÛs, os meridionaes, por mais criticos, gostamos do
palavriadinho mavioso. Eu c· pelo menos, · noite, com mulheres, luzes,
um piano e gente de casaca, pello-me por um bocado de rhetorica.

E, com o appetite assim desperto, ergueu-se logo para enfiar o paletot,
voar · _Trindade_, n'um receio de perder o Rufino.

Carlos deteve-o ainda, com uma grande idÈa:

--Espera. Descobri melhor, fazemos o sarau aqui! Maria toca Beethoven;
nÛs declamamos Mussuet, Hugo, os parnasianos; temos padre Lacordaire se
te appetece a eloquencia; e passa-se a noite n'uma medonha orgia
d'ideal!...

--E ha melhores cadeiras, acudiu Maria.

--Melhores poetas, affirmou Carlos.

--Bons charutos!

--Bom cognac!

Ega alÁou os braÁos ao ar, desolado. Ahi est· como se pervertia um
cidad„o, impedindo-o de proteger as letras patrias--com promessas
perfidas de tabaco e de bebidas!... Mas de resto elle n„o tinha sÛ uma
raz„o litteraria para ir ao sarau. O Cruges tocava uma das suas
_MeditaÁıes d'Outono_, e era necessario dar palmas ao Cruges.

--N„o digas mais! gritou Carlos, dando um pulo da poltrona. Esquecia-me
o Cruges!... … um dever d'honra! Abalemos.

E d'ahi a pouco, tendo beijado a m„o de Maria que ficava ao piano, os
dois, surprehendidos com a belleza d'essa noite d'inverno, t„o clara e
dÙce, seguiam devagar pela rua--onde Carlos ainda duas vezes se voltou
para olhar as janellas alumiadas.

--Estou bem contente, exclamou elle travando do braÁo do Ega, em ter
deixado os Olivaes!... Aqui ao menos podemos reunir-nos para um bocado
de cavaco e de litteratura...

Tencionava arranjar a sala com mais gosto e conforto, converter o quarto
ao lado n'um _fumoir_ forrado com as suas colchas da India, depois ter
um dia certo em que viessem os amigos cear... Assim se realisava o velho
sonho, o cenaculo de dilettantismo e d'arte... AlÈm d'isso havia a
lanÁar a _Revista_, que era a suprema pandega intellectual. Tudo isto
annunciava um inverno _chic a valer_, como dizia o defunto Damaso.

--E tudo isto, resumiu o Ega, È dar civilisaÁ„o ao paiz. Positivamente,
menino, vamo-nos tornar grandes cidad„os!...

--Se me quizerem erguer uma estatua, disse Carlos alegremente, que seja
aqui na rua de S. Francisco... Que belleza de noite!



Pararam · porta do theatro da Trindade no momento em que, d'uma tipoia
de praÁa, se apeava um sujeito de barbas de apostolo, todo de luto, com
um chapÈo de largas abas recurvas · moda de 1830. Passou junto dos dois
amigos sem os vÍr, recolhendo um troco · bolsa. Mas Ega reconheceu-o.

--… o tio do Damaso, o demagogo! Bello typo!

--E segundo o Damaso, um dos bebedos da familia, lembrou Carlos rindo.

Por cima, de repente, no sal„o, estalaram grandes palmas. Carlos, que
dava o paletot ao porteiro, receou que j· fosse o Cruges...

--Qual! disse o Ega. Aquillo È applaudir de rhetorica!

E com effeito, quando pela escada ornada de plantas chegaram ao
ante-sal„o, onde dois sujeitos de casaca passeavam em bicos de pÈs,
segredando--sentiram logo um vozeir„o tumido, garganteado, provinciano,
de vogaes arrastadas em canto, invocando l· do fundo, do estrado, ´a
alma religiosa de Lamartine!...ª

--… o Rufino, tem estado soberbo! murmurou o Telles da Gama que n„o
pass·ra da porta, com o charuto escondido atraz das costas.

Carlos, sem curiosidade, ficou junto do Telles. Mas Ega, esguio e magro,
foi rompendo pela coxia tapetada de vermelho. D'ambos os lados se
cerravam filas de cabeÁas, embebidas, enlevadas, atulhando os bancos de
palhinha atÈ junto ao tablado, onde dominavam os chapÈos de senhoras
picados por manchas claras de plumas ou flÙres. Em volta, de pÈ,
encostados aos pilares ligeiros que sustÍm a galeria, reflectidos pelos
espelhos, estavam os homens, a gente do Gremio, da Casa Havaneza, das
Secretarias, uns de gravata branca, outros de jaquetıes. Ega avistou o
snr. Sousa Netto, pensativo, sustentando entre dois dedos a face
escaveirada, de barba rala; adiante o GonÁalo, com a sua gaforinha ao
vento; depois o marquez atabafado n'um cache-nez de sÍda branca; e, n'um
grupo, mais longe, rapazes do Jockey Club, os dois Vargas, o MendonÁa, o
Pinheiro, assistindo ·quelle _sport_ da eloquencia com uma mistura
d'assombro e tedio. Por cima, no parapeito de velludo da galeria, corria
outra linha de senhoras com vestidos claros, abanando-se mollemente; por
traz alÁava-se ainda uma fila de cavalheiros onde destacava o Neves, o
novo Conselheiro, grave, de braÁos cruzados, com um bot„o de camelia na
casaca mal feita.

O gaz suffocava, vibrando cruamente n'aquella sala clara, d'um tom
desmaiado de canario, raiada de reflexos de espelhos. Aqui e alÈm uma
tosse timida de catarrho desmanchava o silencio, logo abafada no lenÁo.
E na extremidade da galeria, n'um camarote feito de tabiques, com
sanefas de velludo cÙr de cereja, duas cadeiras de espaldar dourado
permaneciam vazias, na solemnidade real do seu damasco escarlate.

No emtanto, no estrado, o Rufino, um bacharel transmontano, muito
trigueiro, de pera, alargava os braÁos, celebrava um anjo, ´o _Anjo da
Esmola_ que elle entrevira, alÈm no azul, batendo as azas de setim...ª
Ega n„o comprehendia bem--entalado entre um padre muito gordo que
pingava de suor, e um alferes de lunetas escuras. Por fim n„o se
conteve:--´Sobre que est· elle a fallar?ª E foi o padre que o informou,
com a face luzidia, inflammada de enthusiasmo:

--Tudo sobre a caridade, sobre o progresso! Tem estado sublime...
Infelizmente est· a acabar!

Parecia ser, com effeito, a peroraÁ„o. O Rufino arrebat·ra o lenÁo,
limpava a testa lentamente; depois arremetteu para a borda do tablado,
voltando-se para as cadeiras reaes com um t„o ardente gesto
d'inspiraÁ„o--que o collete repuxado descobriu o comeÁo da ceroula. Foi
ent„o que Ega comprehendeu. Rufino estava exaltando uma princeza que
dera seiscentos mil reis para os inundados do Ribatejo, e ia a beneficio
d'elles organisar um bazar na Tapada. Mas n„o era sÛ essa soberba esmola
que deslumbrava o Rufino--porque elle, ´como todos os homens educados
pela philosophia e que tÍm a verdadeira orientaÁ„o mental do seu tempo,
via nos grandes factos da historia n„o sÛ a sua belleza poetica, mas a
sua influencia social. A multid„o, essa, sorria simplesmente, enlevada,
para a incomparavel poesia da m„o calÁada de fina luva que se estende
para o pobre. Elle porÈm, philosopho, antevia j·, sahindo d'esses
delicados dedos de princeza, um resultado bem profundo e formoso... O
quÍ, meus senhores? O renascimento da FÈ!ª

De repente, um leque que escorreg·ra da galeria, arrancando em baixo um
berro a uma senhora gorda, creou um susurro, uma curta emoÁ„o. Um
commissario do sarau, D. JosÈ Sequeira, ergueu-se logo nos degraus do
tablado, com o seu laÁarote de sÍda vermelha na casaca, dardejando
severamente os olhos vesgos para o recanto indisciplinado onde curtos
risos esfusiavam. Outros cavalheiros, indignados, gritavam ´_chut,
silencio,_ _fÛra!_ª E das cadeiras da frente surgiu a face ministerial
do Gouvarinho, inquieta pela Ordem, com as lunetas brilhando
duramente... Ent„o Ega procurou ao lado a condessa: e avistou-a emfim
mais longe, com um chapÈo azul, entre a Alvim toda de preto e umas
vastas esp·doas cobertas de setim malva que eram as da baroneza de
Craben. Todo o rumor findava--e o Rufino, que molh·ra lentamente os
labios no copo, avanÁou um passo, sorrindo, com o lenÁo branco na m„o:

--Dizia eu, meus senhores, que dada a orientaÁ„o mental d'este seculo...

Mas o Ega suffocava, esmagado, farto do Rufino, com a impress„o de que o
padre ao lado cheirava mal. E n„o aturou mais, furou para traz, para
desabafar com Carlos.

--Tu imaginavas uma besta assim?

--Horroroso! murmurou Carlos. Quando tocar· o Cruges?

Ega n„o sabia, todo o programma fÙra alterado.

--E tens c· a Gouvarinho! Est· l· adiante, d'azul... Hei de querer vÍr
logo esse encontro!

Mas ambos se voltaram sentindo por traz alguem ciciar discretamente
´_bonsoir, messieurs_...ª Era Steinbroken e o seu secretario, graves, de
casaca, em pontas de pÈs, com as claques fechadas. E immediatamente
Steinbroken queixou-se da ausencia da familia real...

--Mr. de Cantanhede, qui est de service, m'avait cependant assurÈ que la
reine viendrait... C'est bien sous sa protection, n'est-ce pas, toute
cette musique, ces vers?... Voil‡ pourquoi je suis venu. C'est trËs
ennuyeux... Et Alphonse de Maia, toujours en santÈ?

--Merci...

Na sala o silencio impressionava. Rufino, com gestos de quem traÁa n'uma
tela linhas lentas e nobres, descrevia a doÁura d'uma aldeia, a aldeia
em que elle nascera, ao pÙr do sol. E o seu vozeir„o velava-se,
enternecido, morrendo n'um rumor de crepusculo. Ent„o Steinbroken,
subtilmente, tocou no hombro do Ega. Queria saber se era esse o grande
orador de que lhe tinham fallado...

Ega affirmou com patriotismo que era um dos maiores oradores da Europa!

--Em qual gÈnerro?...

--Genero sublime, genero de Demosthenes!

Steinbroken alÁou as sobrancelhas com admiraÁ„o, fallou em filandez ao
seu secretario que entalou languidamente o monoculo: e com as claques
debaixo do braÁo, cerrados os olhos, recolhidos como n'um templo, os
dois enviados da Filandia ficaram escutando, · espera do sublime.

Ruffino, no entanto, com as m„os descahidas, confessava uma fragilidade
de sua alma! Apesar da poesia ambiente d'essa sua aldeia natal, onde a
violeta em cada prado, o rouxinol em cada balseira provavam Deus
irrefutavelmente,--elle fÙra dilacerado pelo espinho da descrenÁa! Sim,
quantas vezes, ao cahir da tarde, quando os sinos da velha torre
choravam no ar a Ave-Maria e no valle cantavam as ceifeiras, elle
pass·ra junto da cruz do adro e da cruz do cemiterio, atirando-lhes de
lado, cruelmente, o sorriso frio de Voltaire!...

Um largo fremito d'emoÁ„o passou. Vozes suffocadas de gozo mal podiam
murmurar ´_muito bem, muito bem_...ª

Pois fÙra n'esse estado, devorado pela duvida, que Rufino ouvira um
grito d'horror resoar por sobre o nosso Portugal... Que succedera? Era a
Natureza que atacava seus filhos!--E lanÁando os braÁos, como quem se
debate n'uma catastrophe, Rufino pintou a inundaÁ„o... Aqui aluia um
casal, ninho florido d'amores; alÈm, na quebrada, passava o balar
choroso dos gados; mais longe as negras aguas iam juntamente arrastando
um bot„o de rosa e um berÁo!...

Os _bravos_ partiram profundos e roucos de peitos que arfavam. E em
torno de Carlos e do Ega sujeitos voltavam-se apaixonadamente uns para
os outros, com um brilho na face, commungando no mesmo enthusiasmo: ´Que
rajadas!... Caramba!... Sublime!...ª

Rufino sorria, bebendo esta commoÁ„o, que era a obra do seu verbo.
Depois, respeitosamente, voltou-se para as cadeiras reaes, solemnes e
vazias...

Vendo que a cÛlera da Natureza rugia implacavel, elle erguera os olhos
para o natural abrigo, para o exaltado logar d'onde desce a salvaÁ„o,
para o Throno de Portugal! E de repente, deslumbrado, vira por sobre
elle estenderem-se as azas brancas d'um anjo! Era o anjo da esmola, meus
senhores! E d'onde vinha? d'onde recebera a inspiraÁ„o da caridade?
d'onde sahia assim, com os seus cabellos d'ouro? Dos livros da sciencia?
dos laboratorios chimicos? d'esses amphitheatros d'anatomia onde se nega
covardemente a alma? das sÍccas escÛlas de philosophia que fazem de
Jesus um precursor de Robespierre? N„o! Elle ous·ra interrogar o anjo,
submisso, com o joelho em terra. E o anjo da esmola, apontando o espaÁo
divino, murmur·ra: ´Venho d'alÈm!ª

Ent„o pelos bancos apinhados correu um susurro d'enlevo. Era como se os
estuques do tecto se abrissem, os anjos cantassem no alto. Um
estremecimento devoto e poetico arrepiava as cuias das senhoras.

E Rufino findava, com uma altiva certeza na alma! Sim, meus senhores!
Desde esse momento, a duvida fÙra n'elle como a nevoa que o sol, este
radiante sol portuguez, desfaz nos ares... E agora, apesar de todas as
ironias da sciencia, apesar dos escarneos orgulhosos d'um Renan, d'um
LittrÈ e d'um Spencer, elle, que recebera a confidencia divina, podia
alli, com a m„o sobre o coraÁ„o, affirmar a todos bem alto--havia um
cÈo!

--Apoiado! mugiu na coxia o padre sebento.

E por todo o sal„o, no aperto e no calor do gaz, os cavalheiros das
Secretarias, da Arcada, da Casa Havaneza, berrando, batendo as m„os,
affirmaram soberbamente o cÈo!

O Ega que ria, divertido, sentiu ao lado um som rouco de cÛlera. Era o
Alencar, de paletot, de gravata branca, cofiando sombriamente os
bigodes.

--Que te parece, Thomaz?

--Faz nojo! rugiu surdamente o poeta.

Tremia, revoltado! N'uma noite d'aquellas, toda de poesia, quando os
homens de letras se deviam mostrar como s„o, filhos da democracia e da
liberdade, vir aquelle pulha pÙr-se alli a lamber os pÈs · familia
real... Era simplesmente ascoroso!

L· ao fundo, junto aos degraus do tablado, ia um tumulto d'abraÁos, de
comprimentos, em torno do Rufino, que reluzia todo de orgulho e suor. E
pela porta os homens escoavam-se, afogueados, commovidos ainda, puxando
das charuteiras. Ent„o o poeta travou do braÁo do Ega:

--Ouve l·, eu vinha justamente procurar-te. … o Guimar„es, o tio do
Damaso, que me pediu para te ser apresentado... Diz que È uma coisa
sÈria, muito sÈria... Est· l· em baixo no botequim, com um _grog_.

Ega pareceu surprehendido... Coisa sÈria!?

--Bem, vamos nÛs l· baixo tomar tambem um _grog_! E que recitas tu logo,
Alencar?

--_A Democracia_, foi dizendo o poeta pela escada, com certa reserva.
Uma coisita nova, tu ver·s... S„o algumas verdades duras a toda essa
burguezia...

Estavam · porta do botequim--e precisamente o snr. Guimar„es sahia, com
o chapÈo sobre o olho, de charuto accÍso, abotoando a sobrecasaca.
Alencar lanÁou a apresentaÁ„o, com immensa gravidade:

--O meu amigo Jo„o da Ega... O meu velho amigo Guimar„es, um bravo c·
dos nossos, um veterano da Democracia.

Ega acercou-se d'uma mesa, puxou cortezmente um banco para o veterano da
Democracia, quiz saber se elle preferia cognac ou cerveja.

--Tomei agora o meu _grog_ de guerra, disse o snr. Guimar„es com
seccura, tenho para toda a noite.

Um criado dava uma limpadella lenta sobre o marmore da mesa. Ega ordenou
cerveja. E directamente, largando o charuto, passando a m„o pelas barbas
a retocar a magestade da face, o snr. Guimar„es comeÁou com lentid„o e
solemnidade:

--Eu sou tio do Damaso Salcede, e pedi aqui ao meu velho amigo Alencar
para me apresentar a v. exc.^a, com o fim de o intimar a que olhe bem
para mim e que diga se me acha cara de bebedo...

Ega comprehendeu, atalhou logo, cheio de franqueza e bonhomia:

--V. exc.^a refere-se a uma carta que seu sobrinho me escreveu...

--Carta que v. exc.^a dictou! Carta que v. exc.^a o forÁou a assignar!

--Eu?...

--Affirmou-m'o elle, senhor!

Alencar interveio:

--Fallem vocÍs baixo, que diabo!... Isto È terra de curiosos...

O snr. Guimar„es tossiu, chegou a cadeira mais para a mesa. Tinha
estado, contou elle, havia semanas fÛra de Lisboa por negocios da
heranÁa de seu irm„o. N„o vira o sobrinho, porque sÛ por necessidade se
encontrava com esse imbecil. Na vespera, em casa d'um antigo amigo, o
Vaz Forte, deit·ra por acaso os olhos ao _Futuro_, um jornal
republicano, bem escripto, mas frouxo de idÈas. E avist·ra logo na
primeira pagina, em typo enorme, sob esta rubrica ali·s justa _Coisas do
high-life_, a carta do sobrinho... Imagine o snr. Ega o seu furor! Alli
mesmo, em casa do Forte, escrevera ao Damaso pouco mais ou menos n'estes
termos: ´Li a tua infame declaraÁ„o. Se ·manh„ n„o fazes outra, em todos
os jornaes, dizendo que n„o tinhas intenÁ„o de me incluir entre os
bebedos da tua familia, vou ahi e quebro-te os ossos um por um. Treme!ª
Assim lhe escrevera. E sabia o snr. Jo„o da Ega qual fÙra a resposta do
snr. Damaso?

--Tenho-a aqui, È um _documento humano_, como diz o amigo Zola! Aqui
est·... Grande papel, monogramma d'ouro, corÙa de conde. Aquelle asno!
Quer v. exc.^a que eu leia?

A um gesto risonho do Ega, elle mesmo leu, lentamente, e sublinhando:

--´Meu caro tio! A carta de que falla foi escripta pelo snr. Jo„o da
Ega. Eu era incapaz de tal desacato · nossa querida familia. Foi elle
que me agarrou na m„o, · forÁa, para eu assignar: e eu, n'aquella
atrapalhaÁ„o, sem saber o que fazia, assignei para evitar fallatorios.
Foi um laÁo que me armaram os meus inimigos. O meu querido tio, que sabe
como eu gÛsto de si, que atÈ estava o anno passado com tenÁ„o, se
soubesse a sua morada em Paris, de lhe mandar meia pipa de vinho de
Collares, n„o fique pois zangado commigo. Bem infeliz j· eu sou! E se
quizer procure esse Jo„o da Ega que me perdeu! Mas acredite que hei de
tirar uma vinganÁa que ha de ser fallada! Ainda n„o decidi qual, n'esta
atarantaÁ„o; mas em todo o caso a nossa familia ha de ficar
desenxovalhada, porque eu nunca admitti que ninguem brincasse com a
minha dignidade... E se o n„o fiz j· antes de partir para Italia, se
ainda n„o pugnei pela minha honra, È porque ha dias, com todos estes
abalos, veio-me uma tremenda dysenteria, que estou que me n„o tenho nas
pernas. Isto por cima dos meus males moraes!...ª V. exc.^a ri-se, snr.
Ega?

--Pois que quer v. exc.^a que eu faÁa? balbuciou o Ega por fim,
suffocado, com os olhos em lagrimas. Rio-me eu, ri-se o Alencar, ri-se
v. exc.^a Isso È extraordinario! Essa dignidade, essa dysenteria...

O snr. Guimar„es, embaÁado, olhou o Ega, olhou o poeta que fungava sob
os longos bigodes, e terminou por dizer:

--Com effeito, a carta È d'uma cavalgadura... Mas o facto permanece...

Ent„o Ega appellou para o bom senso do snr. Guimar„es, para a sua
experiencia das coisas d'honra. Comprehendia elle que dois cavalheiros,
indo desafiar um homem a sua casa, lhe agarrem no pulso, o forcem
violentamente a assignar uma carta em que elle se declara bebedo?...

O snr. Guimar„es, agradado com aquella deferencia pelo seu tacto e pela
sua experiencia, confessou que o caso, pelo menos em Paris, seria pouco
natural.

--E em Lisboa, senhor! Que diabo, isto n„o È a Cafraria! E diga-me o
snr. Guimar„es outra coisa, de gentleman para gentleman: como considera
seu sobrinho? um homem irreprehensivelmente veridico?

O snr. Guimar„es cofiou as barbas, declarou lealmente:

--Um refinado mentiroso.

--Ent„o! gritou Ega em triumpho, atirando os braÁos ao ar.

De novo Alencar interveio. A quest„o parecia-lhe satisfactoriamente
finda. E n„o restava sen„o os dois apertarem-se a m„o fraternalmente,
como bons democratas...

J· de pÈ, atirou a genebra ·s guelas. Ega sorria, estendia a m„o ao snr.
Guimar„es. Mas o velho demagogo, ainda com uma sombra na face enrugada,
desejou que o snr. Jo„o da Ega (se n'isso n„o tinha duvida) declarasse,
alli diante do amigo Alencar, que n„o lhe achava a elle, Guimar„es, cara
de bebedo...

--Oh meu caro senhor! exclamou Ega, batendo com o dinheiro na mesa para
chamar o criado. Pelo contrario! O maior prazer em proclamar diante do
Alencar, e aos quatro ventos, que lhe acho a cara d'um perfeito
cavalheiro e d'um patriota!

Ent„o trocaram um rasgado aperto de m„os--emquanto o snr. Guimar„es
affirmava a sua satisfaÁ„o por conhecer o snr. Jo„o da Ega, moÁo de
tantos dotes e t„o liberal. E quando s. exc.^a quizesse qualquer coisa,
politica ou litteraria, era escrever este endereÁo bem conhecido no
mundo:--_Redaction du_ Rappel, _Paris!_

Alencar abal·ra. E os dois deixaram o botequim, trocando impressıes do
sarau. O snr. Guimar„es estava enojado com a carolice, a sabujice d'esse
Rufino. Quando o ouvira palrar das azas da princeza e da cruz do adro,
quasi lhe grit·ra c· do fundo: ´Quanto te pagam para isso, miseravel?ª

Mas de repente Ega estacou na escada, tirando o chapÈo:

--Oh snr.^a baroneza, ent„o j· nos abandona?

Era a Alvim que descia devagar, com a Joanninha Villar, atando as largas
fitas d'uma capa de pellucia verde. Queixou-se d'uma dÙr de cabeÁa que a
torturava, apesar de ter gostado loucamente do Rufino... Mas uma noite
toda de litteratura, que estafa! E agora, para mais, fic·ra l· um
homemzinho a fazer musica classica...

--… o meu amigo Cruges!

--Ah! È seu amigo? Pois olhe, devia-lhe ter dito que tocasse antes o
_Pirolito_.

--V. exc.^a afflige-me com esse desdem pelos grandes mestres... N„o quer
que a v· acompanhar · carruagem? Paciencia... Muito boa noite, snr.^a D.
Joanna!... Um servo seu, snr.^a baroneza! E Deus lhe tire a sua dÙr de
cabeÁa!

Ella voltou-se ainda no degrau, para o ameaÁar risonhamente com o leque:

--N„o seja impostor! O snr. Ega n„o acredita em Deus.

--Perd„o... Que o Diabo lhe tire a sua dÙr de cabeÁa, snr.^a baroneza!

O velho democrata desapparecera discretamente. E da ante-sala Ega
avistou logo ao fundo, no tablado, sobre um mÙcho muito baixo que lhe
fazia roÁar pelo ch„o as longas abas da casaca--o Cruges, com o nariz
bicudo contra o caderno da Sonata, martellando sabiamente o teclado. Foi
ent„o subindo em pontas de pÈs pela coxia tapetada de vermelho, agora
desafogada, quasi vazia: um ar mais fresco circulava: as senhoras,
canÁadas, bocejavam por traz dos leques.

Parou junto de D. Maria da Cunha, apertada na mesma fila com todo um
rancho intimo, a marqueza de Soutal, as duas Pedrosos, a Thereza Darque.
E a boa D. Maria tocou-lhe logo no braÁo para saber quem era aquelle
musico de cabelleira.

--Um amigo meu, murmurou Ega. Um grande maestro, o Cruges.

O Cruges... O nome correu entre as senhoras, que o n„o conheciam. E era
composiÁ„o d'elle, aquella coisa triste?

--… de Beethoven, snr.^a D. Maria da Cunha, a _Sonata pathetica_.

Uma das Pedrosos n„o percebera bem o nome da Sonata. E a marqueza de
Soutal, muito sÈria, muito bella, cheirando devagar um frasquinho de
saes, disse que era a _Sonata pateta_. Por toda a bancada foi um
rastilho de risos suffocados. A _Sonata pateta_! Aquillo parecia divino!
Da extremidade o Vargas gordo, o das corridas, estendeu a face enorme,
imberbe e cÙr de papoula:

--Muito bem, snr.^a marqueza, muito catita!

E passou o gracejo a outras senhoras, que se voltavam, sorriam ·
marqueza, entre o _frou-frou_ dos leques. Ella triumphava, bella e
sÈria, com um velho vestido de velludo preto, respirando os
saes--emquanto adiante um amador de barba grisalha cravava n'aquelle
rancho ruidoso dois grandes oculos d'ouro que faiscavam de cÛlera.

No emtanto, por toda a sala, o susurro crescia. Os encatarrhoados
tossiam livremente. Dois cavalheiros tinham aberto a _Tarde_. E cahido
sobre o teclado, com a gola da casaca fugida para a nuca, o pobre
Cruges, suando, estonteado por aquella desattenÁ„o rumorosa, atabalhoava
as notas, n'uma debandada.

--Fiasco completo, declarou Carlos que se aproxim·ra do Ega e do rancho.

Foi para D. Maria da Cunha uma alegria, uma surpreza! AtÈ que emfim se
via o snr. Carlos da Maia, o Principe Tenebroso! Que fizera elle durante
esse ver„o? Todo o mundo a esperal-o em Cintra, alguem mesmo com
anciedade... Um _chut_ furioso do amador de barbas grisalhas
emmudeceu-a. E justamente Cruges, depois de bater dois accordes bruscos,
arred·ra o mÙcho, esgueirava-se do estrado, enxugando as m„os ao lenÁo.
Aqui e alÈm algumas palmas resoaram, molles e de cortezia, entre um
grande murmurio d'allivio. E o Ega e Carlos correram · porta, onde j·
esperavam o marquez, o Craft, o Taveira--para abraÁar, consolar o pobre
Cruges que tremia todo, com os olhos esgazeados.

E immediatamente, no silencio attento que redominava, um sujeito muito
magro, muito alto, surgiu no tablado, com um manuscripto na m„o. Alguem
ao lado do Ega disse que era o Prata, que ia fallar sobre o _Estado
agricola da provincia do Minho_. Atraz, um criado veio collocar sobre a
mesa um candelabro de duas velas: o Prata, d'ilharga para a luz,
mergulhou no caderno: e d'entre o perfil triste e as folhas largas um
rumor lento foi escorrendo, rumor de reza n'uma somnolencia de novena,
onde por vezes destacavam como gemidos--´riqueza dos gados...,
esphacelamento da propriedade..., fertil e desprotegida regi„o...ª

ComeÁou ent„o uma debandada sorrateira e formigueira, que nem os _chuts_
do commissario do sarau, vigilante e de pÈ sobre um degrau do estrado,
podiam conter. SÛ as senhoras ficavam; e um ou outro burocrata idoso,
que se inclinava zelosamente para o murmurio de reza, com a m„o em
concha sobre a orelha.

Ega, que fugia tambem ´ao vecejante paraiso do Minhoª, achou-se em
frente do snr. Guimar„es.

--Que massada, hein?

O democrata concordou que aquelle preopinante n„o lhe parecia
divertido... Depois, mais sÈrio, com outra idÈa, segurando um bot„o da
casaca do Ega:

---Eu espero que v. exc.^a ha pouco n„o ficasse com a impress„o de que
eu sou solidario ou me importo com meu sobrinho...

Oh! decerto que n„o! Ega vira bem que o snr. Guimar„es n„o tinha pelo
Damaso nenhum enthusiasmo de familia.

--Asco, senhor, sÛ asco! Quando elle foi a primeira vez a Paris, e soube
que eu morava n'uma trapeira, nunca me procurou! Porque aquelle imbecil
d·-se ares d'aristocrata... E como v. exc.^a sabe, È filho d'um agiota!

Puxou a charuteira, ajuntou gravemente:

--A m„i, sim! Minha irm„ era d'uma boa familia. Fez aquelle desgraÁado
casamento, mas era d'uma boa familia! Que, com os meus principios, j· v.
exc.^a vÍ que tudo isso de fidalguia, pergaminhos, brazıes, s„o para mim
_blague_ e mais _blague_! Mas emfim os factos s„o os factos, a historia
de Portugal ahi est·... Os Guimar„es da Bairrada eram de sangue azul.

Ega sorriu, n'um assentimento cortez:

--E v. exc.^a ent„o parte brevemente para Paris?

--¡manh„ mesmo, por Bordeus... Agora que toda essa cambada do marechal
de Mac-Mahon, e do duque de Broglie, e do Descazes foi pelos ares, j· se
pÛde l· respirar...

N'esse instante Telles e o Taveira, passando de braÁo dado, voltaram-se,
a observar curiosamente aquelle velho austero, todo de preto, que
fallava alto com o Ega de marechaes e de duques. Ega reparou: o
democrata, de resto, tinha uma sobrecasaca de casimira nova; o seu
altivo chapÈo reluzia; e Ega ficou de bom grado a conversar com aquelle
gentleman correcto e venerando que impressionava os seus amigos.

--A republica com effeito, observou elle, dando alguns passos ao lado do
snr. Guimar„es, esteve alli um momento compromettida!

--Perdida! E eu, meu caro senhor, aqui onde me vÍ, para ser expulso por
causa d'umas verdadesinhas que soltei n'uma reuni„o anarchista. AtÈ me
affirmaram que n'um conselho de ministros o marechal de Mac-Mahon, que È
um tarimbeiro, batera um murro na mesa e dissera: _Ce sacrÈ Guimaran, il
nous embÍte, faut lui donner du pied dans le derriËre!_ Eu n„o estava
l·, n„o sei, mas affirmaram-me... Em Paris, como os francezes n„o sabem
pronunciar Guimar„es, e eu embirro que me estropiem o nome, assigno _Mr.
Guimaran_. Ha dois annos, quando fui · Italia, era _Mr. Guimarini_. E se
fÙr agora · Russia, c· por coisas, hei de ser _Mr. Guimaroff_... Embirro
que me estropiem o nome!

Tinham voltado · porta do sal„o. Longas bancadas vazias punham dentro,
no brilho pesado do gaz, uma tristeza de abandono e tedio; e no estrado
o Prata continuava, de m„o no bolso, com o nariz sobre o manuscripto,
sem que se sentisse agora surdir um som d'aquelle espantalho esguio. Mas
o marquez, que descia do fundo, atabafando-se no seu cache-nez de sÍda,
disse ao Ega ao passar que o homemzinho era muito pratico, sabia da
pÛda, e l· tinha ficado ·s voltas com Proudhon.

Ega e o democrata recomeÁaram ent„o os seus passos lentos na ante-sala
onde o susurro de conversas mal abafadas crescia, como n'um pateo, entre
fumaÁas furtivas de cigarro. E o snr. Guimar„es chasqueava, achando uma
boa _bÍtise_ que se citasse Proudhon, alli n'aquelle theatreco, a
proposito d'estrumes do Minho...

--Oh, Proudhon entre nÛs, acudiu Ega rindo, cita-se muito, È j· um
monstro classico. AtÈ os conselheiros d'Estado j· sabem que para elle a
propriedade era um roubo, e Deus era o mal...

O democrata encolheu os hombros:

--Grande homem, senhor! Homem immenso! S„o os tres grandes pimpıes
d'este seculo: Proudhon, Garibaldi, e o compadre!

--O compadre! exclamou Ega, attonito.

Era o nome d'amizade que o snr. Guimar„es dava em Paris a Gambetta.
Gambetta nunca o via, que n„o lhe gritasse de longe, em hespanhol:
_´Hombre, compadre!_ª E elle tambem, logo: ´_Compadre, caramba!_ª D'ahi
fic·ra a alcunha, e Gambetta ria. Porque l· isso, bom rapaz, e amigo
d'esta franqueza do sul, e patriota, atÈ alli!

--Immenso, meu caro senhor! O maior de todos!

Pois Ega imaginaria que o snr. Guimar„es, com as suas relaÁıes do
_Rappel_, devia ter sobretudo o culto de Victor Hugo...

--Esse, meu caro senhor, n„o È um homem, È um mundo!

E o snr. Guimar„es ergueu mais a face, ajuntou infinitamente grave:

--… um mundo! .. E aqui onde me vÍ, ainda n„o ha tres mezes que elle me
disse uma coisa que me foi direita ao coraÁ„o!

Vendo com deleite o interesse e a curiosidade do Ega, o democrata contou
largamente esse glorioso lance que ainda o commovia:

--Foi uma noite no _Rappel_. Eu estava a escrever, elle appareceu, j· um
pouco trÙpego, mas com o olho a luzir, e aquella bondade, aquella
magestade!... Eu ergui-me, como se entrasse um rei... Isto È, n„o! que
se fosse um rei tinha-lhe dado com a bota no rabiosque. Levantei-me como
se elle fosse um Deus! Qual Deus! n„o ha Deus que me fizesse
levantar!... Emfim, acabou-se, levantei-me! Elle olhou para mim, fez
assim um gesto com a m„o, e disse, a sorrir, com aquelle ar de genio que
tinha sempre: _Bonsoir, mon ami!_

E o snr. Guimar„es deu alguns passos dignos, em silencio, como se
aquelle _bonsoir_, aquelle _mon ami_, assim recordados, lhe fizessem
mais vivamente sentir a sua importancia no mundo.

De repente Alencar, que bracejava n'um grupo, rompeu para elles,
pallido, d'olhos chammejantes:

--Que me dizem vocÍs a esta pouca vergonha? Aquelle infame alli ha meia
hora, com o in-folio, a rosnar, a rosnar... E toda a gente a sahir, n„o
fica ninguem! Tenho de recitar aos bancos de palhinha!...

E abalou, rilhando os dentes, a exhalar mais longe o seu furor.

Mas algumas palmas canÁadas, dentro, fizeram voltar o Ega. O estrado
fic·ra novamente vazio, com as duas velas ardendo no candelabro. Um
cart„o em grossas letras, que um criado colloc·ra no piano, annunciava
um ´intervallo de dez minutosª como n'um circo. E n'esse instante a
snr.^a condessa de Gouvarinho sahira pelo braÁo do marido, deixando
atraz um sulco largo de comprimentos, d'espinhas que se vergavam, de
chapÈos de burocratas rasgadamente erguidos. O commissario do sarau
azafamava-se procurando duas cadeiras para ss. exc.^{as} A condessa
porÈm foi reunir-se a D. Maria da Cunha, que ella vira, com as Pedrosos
e a marqueza de Soutal, refugiada n'um v„o de janella. Ega
immediatamente acercou-se do rancho intimo, esperando que as senhoras se
beijocassem.

--Ent„o, snr.^a condessa, ainda muito commovida com a eloquencia do
Rufino?

--Muito canÁada... E que calor, hein?

--Horrivel. A snr.^a baroneza d'Alvim sahiu ha pouco, com uma dor de
cabeÁa...

A condessa, que tinha os olhos pisados e uma prega de velhice aos cantos
da boca, murmurou:

--N„o admira, isto n„o È divertido... Emfim, j· agora È necessario levar
a cruz ao Calvario.

--Se fosse uma cruz, minha senhora! exclamou o Ega. Infelizmente È uma
lyra!

Ella riu. E D. Maria da Cunha, n'essa noite mais remoÁada e viva, ficou
logo toda banhada n'um sorriso, com aquella carinhosa admiraÁ„o pelo
Ega, que era um dos seus sentimentos.

--Este Ega!... N„o ha mal que lhe chegue!... E diga-me outra coisa, que
È feito do seu amigo Maia?

Ega vira-a momentos antes, no sal„o, puxar pela manga de Carlos,
cochichar com Carlos. Mas conservou um ar innocente:

--Est· ahi, anda por ahi, assistindo a toda essa litteratura.

De repente os olhos sempre bonitos e languidos de D. Maria da Cunha
rebrilharam com uma faisca de malicia:

--Fallai no mau... N'este caso seria fallar do bom. Emfim ahi nos vem o
Principe Tenebroso!

E era com effeito Carlos que passava, se encontr·ra diante dos braÁos do
conde de Gouvarinho, estendidos para elle com uma effus„o em que parecia
renascer o antigo affecto. Pela primeira vez Carlos via a condessa,
desde a noite em que no Aterro, abandonando-a para sempre, fech·ra com
odio a portinhola da tipoia onde ella ficava chorando. Ambos baixaram os
olhos, ao adiantar a m„o um para o outro, lentamente. E foi ella que
findou o embaraÁo, abrindo o seu grande leque de pennas de avestruz:

--Que calor, n„o È verdade?

--Atroz! disse Carlos. N„o v· v. exc.^a apanhar ar d'essa janella.

Ella forÁou os labios brancos a um sorriso:

--… conselho de medico?

--Oh, minha senhora, n„o s„o as horas da minha consulta! … apenas
caridade de christ„o.

Mas de repente a condessa chamou o Taveira, que ria, derretido, com a
marqueza de Soutal, para o reprehender por elle n„o ter apparecido
terÁa-feira na rua de S. MarÁal. Surprehendido com tanto interesse,
tanta familiaridade, o Taveira, muito vermelho, balbuciou que nem sabia,
fÙra o seu infortunio, tinham-se mettido umas coisas...

--AlÈm d'isso n„o imaginei que v. exc.^a comeÁasse a receber t„o cedo...
V. exc.^a antigamente era sÛ depois da CerraÁ„o da Velha. AtÈ me lembro
que o anno passado...

Mas emmudeceu. O conde de Gouvarinho volt·ra-se, pousando a m„o
carinhosa no hombro de Carlos, desejando a sua impress„o sobre o ´nosso
Rufinoª. Elle conde estava encantado! Encantado sobretudo com a
_variedade d'escala_, aquella arte t„o difficil de passar do solemne
para o ameno, de descer das grandes rajadas para os brincados de
linguagem. Extraordinario!

--Tenho ouvido grandes parlamentares, o Rouher, o Gladstone, o Canovas,
outros muitos. Mas n„o s„o estes vÙos, esta opulencia... … tudo muito
sÍcco, idÈas e factos. N„o entra n'alma! Vejam os amigos aquella imagem
t„o pujante, t„o respeitosa, do Anjo da Esmola, descendo devagar, com as
azas de setim... … de primeira ordem.

Ega n„o se conteve:

--Eu acho esse genio um imbecil.

O conde sorriu, como · tonteria d'uma crianÁa:

--S„o opiniıes...

E estendeu em redor as m„os ao Sousa Netto, ao Darque, ao Telles da
Gama, a outros que se juntavam ao rancho intimo--emquanto os seus
correligionarios, os seus collegas do Centro e da Camara, o GonÁalo, o
Neves, o Vieira da Costa rondavam de longe, sem poder roÁar pelo
ministro que tinham creado, agora que elle conversava e ria com rapazes
e senhoras da ´sociedadeª. O Darque, que era parente do Gouvarinho, quiz
saber como o amigo Gast„o se ia dando com os encargos do Poder... O
conde declarou para os lados que n„o fizera mais por ora do que passar
em revista os elementos com que contava para atacar os problemas... De
resto, em questıes de trabalho, o ministerio fÙra infelicissimo! O
presidente do conselho de cama com uma catarrheira, inutil para uma
semana. Agora o collega da fazenda com as febres do Aterro...

--Est· melhor? J· sae? foi em torno a pergunta cheia de cuidado.

--Est· na mesma, vai ·manh„ para o D·fundo. Mas realmente esse n„o se
acha de todo inutilisado. Ainda hontem eu lhe dizia: ´VocÍ parte para o
D·fundo, leva os seus papeis, os seus documentos... Pela manh„ d· os
seus passeios, respira o bom ar... E · noite, depois de jantar, · luz do
candieiro, entretem-se a resolver a quest„o de fazenda!ª

Uma campainha retiniu. D. JosÈ Sequeira, escarlate d'azafama, veio,
furando, annunciar a s. exc.^a o fim do intervallo--offerecer o braÁo ·
snr.^a condessa. Ao passar, ella lembrou a Carlos as suas
´terÁas-feirasª, com a delicada simplicidade d'um dever. Elle curvou-se
em silencio. Era como se todo o passado, o sof· que rolava, a casa da
titi em Santa Isabel, as tipoias em que ella deixava o seu cheiro de
verbena--fossem coisas lidas por ambos n'um livro e por ambos
esquecidas. Atraz, o marido seguia, erguendo alto a cabeÁa e as lunetas,
como representante do Poder n'aquella festa da Intelligencia.

--Pois senhores, disse o Ega afastando-se com Carlos, a mulherzinha tem
topete!

--Que diabo queres tu? Atravessou a sua hora de tolice e de paix„o, e
agora contin˙a tranquillamente na rotina da vida.

--E na rotina da vida, concluiu Ega, encontra-se a cada passo comtigo,
que a viste em camisa!... Bonito mundo!

Mas o Alencar appareceu no alto da escada, voltando do botequim e da
genebra, com um brilho maior no olho cavo, de paletot no braÁo, j·
preparado para gorgear. E o marquez juntou-se a elles, abafado no
cache-nez de sÍda branca, mais rouco, queixando-se de que a cada minuto
a garganta se lhe punha peor... Aquella canalha d'aquella garganta ainda
lhe vinha a pregar uma!...

Depois, muito sÈrio, considerando o Alencar:

--Ouve l·, isso que tu vaes recitar, a _Democracia_, È politica ou
sentimento? Se È politica, raspo-me. Mas se È sentimento, e a
humanidade, e o santo operario, e a fraternidade, ent„o fico, que d'isso
gÛsto e atÈ talvez me faÁa bem.

Os outros affirmaram que era sentimento. O poeta tirou o chapÈo, passou
os dedos pelos anneis fÙfos da grenha inspirada:

--Eu vos digo, rapazes... Uma coisa n„o vai sem a outra, vejam vocÍs
Danton!... Mas j· n„o fallo emfim d'esses leıes da RevoluÁ„o. Vejam
vocÍs o Passos Manoel! Est· claro, È necessario logica... Mas, tambem,
caramba, sÍbo para uma politica sem entranhas e sem um bocado de
infinito!

Subitamente, por sobre o novo silencio da sala, um vozeir„o mais forte
que o do Rufino fez retumbar os grandes nomes de D. Jo„o de Castro e de
Affonso d'Albuquerque... Todos se acercaram da porta, curiosamente. Era
um magan„o gordo, de barba em bico e camelia na casaca, que, de m„o
fechada no ar como se agitasse o pend„o das Quinas, lamentava aos berros
que nÛs portuguezes, possuindo este nobre estuario do Tejo e t„o
formosas tradiÁıes de gloria, deixassemos esbanjar, ao vento do
indifferentismo, a sublime heranÁa dos avÛs!...

--… patriotismo, disse o Ega. Fujamos!

Mas o marquez reteve-os, gostando tambem de um bocado de Quinas. E foi o
pobre marquez que o patriota pareceu interpellar, alÁando na ponta dos
botins o corpanzil rotundo, aos urros. Quem havia agora ahi, que,
agarrando n'uma das m„os a espada e na outra a cruz, saltasse para o
convÈs d'uma caravella a ir levar o nome portuguez atravÈs dos mares
desconhecidos? Quem havia ahi, heroico bastante, para imitar o grande
Jo„o de Castro, que na sua quinta de Cintra arranc·ra todas as arvores
de fructo, tal a era a isenÁ„o da sua alma de poeta?...

--Aquelle miseravel quer-nos privar da sobremesa! exclamou Ega.

Em torno correram risos alegres. O marquez virou costas, enojado com
aquella patriotice reles. Outros bocejavam por traz da m„o, n'um tedio
completo de ´todas as nossas gloriasª. E Carlos, enervado, preso alli
pelo dever de applaudir o Alencar, chamava o Ega para irem abaixo ao
botequim espairecer a impaciencia--quando viu o Eusebiosinho que descia
a escada, enfiando · pressa um paletot alvadio. N„o o encontr·ra mais
desde a infamia da _Corneta_, em que elle fÙra ´embaixadorª. E a cÛlera
que tivera contra elle n'esse dia reviveu logo n'um desejo irresistivel
de o espancar. Disse ao Ega:

--Vou aproveitar o tempo, emquanto esperamos pelo Alencar, a arrancar as
orelhas ·quelle maroto!

--Deixa l·, acudiu Ega, È um irresponsavel!

Mas j· Carlos corria pelas escadas: Ega seguiu atraz, inquieto, temendo
uma violencia. Quando chegaram · porta, Eusebio mettera para os lados do
Carmo. E alcanÁaram-no no largo da Abegoaria, ·quella hora deserto,
mudo, com dois bicos de gaz mortiÁos. Ao vÍr Carlos fender assim sobre
elle, sem paletot, de peitilho claro na noite escura, o Eusebio,
encolhido, balbuciou atarantadamente: ´Ol·, por aqui...ª

--Ouve c·, estupÙr! rugiu Carlos, baixo. Ent„o tambem andaste mettido
n'essa maroteira da _Corneta_? Eu devia rachar-te os ossos um a um!

Agarr·ra-lhe o braÁo, ainda sem odio. Mas, apenas sentiu na sua m„o de
forte aquella carne mollenga e tremula, resurgiu n'elle essa avers„o
nunca apagada--que j· em pequeno o fazia saltar sobre o Eusebiosinho,
esfrangalhal-o, sempre que as Silveiras o traziam · quinta. E ent„o
abanou-o, como outr'ora, furiosamente, gozando o seu furor. O pobre
viuvo, no meio das lunetas negras que lhe voavam, do chapÈo coberto de
luto que lhe rol·ra nas lages, danÁava, escanifrado e desengonÁado. Por
fim Carlos atirou-o contra a porta d'uma cocheira.

--Acudam! Aqui d'el-rei, policia! rouquejou o desgraÁado.

J· a m„o de Carlos lhe empolg·ra as guelas. Mas Ega interveio:

--Alto! Basta! O nosso querido amigo j· recebeu a sua dÛse...

Elle mesmo lhe apanhou o chapÈo. Tremendo, arquejando, de bruÁos,
Eusebiosinho procurava ainda o guarda-chuva. E, para findar, a bota de
Carlos, atirada com nojo, estatelou-o nas pedras, para cima d'uma
sargeta onde restavam immundicies e humidade de cavallo.

O largo permanecia deserto, com o gaz adormecendo nos candieiros baÁos.
Tranquillamente os dois recolheram ao sarau. No peristylo, cheio de luz
e plantas, cruzaram-se com o patriota de barbas em bico, rodeado
d'amigos, em caminho para o botequim, limpando ao lenÁo o pescoÁo e a
face, exclamando com o cansaÁo radiante d'um triumphador:

--Irra! custou, mas sempre lhes fiz vibrar a corda!

J· o Alencar estaria gorgeando! Os dois amigos galgaram a escada. E com
effeito Alencar apparecera no estrado, onde ardia ainda o candelabro de
duas velas.

Esguio, mais sombrio n'aquelle fundo cÙr de canario, o poeta derramou
pensativamente pelas cadeiras, pela galeria, um olhar encovado e lento:
e um silencio pesou, mais enlevado, diante de tanta melancolia e de
tanta solemnidade.

--_A Democracia!_ annunciou o auctor d'_Elvira_, com a pompa d'uma
revelaÁ„o.

Duas vezes passou pelos bigodes o lenÁo branco, que depois atirou para a
mesa. E levantando a m„o n'um gesto demorado e largo:


    Era n'um parque. O luar
    Sobre os vastos arvoredos,
    Cheios de amor e segredos...


--Que lhe disse eu? exclamou o Ega, tocando no cotovÍlo do marquez. …
sentimento... Aposto que È o festim!

E era com effeito o festim, j· cantado na _FlÙr de Martyrio_, festim
romantico, n'um vago jardim onde vinhos de Chypre circulam, caudas de
brocado rojam entre macissos de magnolias, e das aguas do lago sobem
cantos ao gemer dos violoncellos... Mas bem depressa transpareceu a
severa idÈa social da Poesia. Emquanto, sob as arvores radiantes de
luar, tudo s„o ´risos, brindes, lascivos murmuriosª--fÛra, junto ·s
grades douradas do parque, assustada com o latir dos molossos, uma
mulher macilenta, em farrapos, chora, aconchegando ao seio magro o filho
que pede p„o... E o poeta, sacudindo os cabellos para traz, perguntava
porque havia ainda esfomeados n'este orgulhoso seculo XIX? De que
servira ent„o, desde Spartacus, o esforÁo desesperado dos homens para a
JustiÁa e para a Igualdade? De que servira ent„o a cruz do grande
Martyr, erguida alÈm na collina, onde, por entre os abetos


    Os raios do sol se somem,
    O vento triste se cala...
    E as aguias revolteando
    D'entre as nuvens est„o olhando
    Morrer o filho do Homem!


A sala permanecia muda e desconfiada. E o Alencar, com as m„os tremendo
no ar, desolava-se de que todo o Genio das geraÁıes fosse impotente para
esta coisa simples--dar p„o · crianÁa que chora!


    Martyrio do coraÁ„o!
    Espanto da consciencia!
    Que toda a humana sciencia
    N„o solva a negra quest„o!
    Que os tempos passem e rolem
    E nenhuma luz assome,
    E eu veja d'um lado a fome
    E do outro a indigest„o!


Ega torcia-se, fungando dentro do lenÁo, jurando que rebentava. ´_E do
outro a indigest„o!_ª Nunca, nas alturas lyricas, se grit·ra nada t„o
extraordinario! E sujeitos graves, em redor, sorriam d'aquelle
_realismo_ sujo. Um jocoso lembrou que para indigestıes j· havia o
bi-carbonato de potassa.

--Quando n„o s„o das minhas! rosnou um cavalheiro esverdinhado, que
alargava a fivela do collete.

Mas tudo emmudeceu ante um _chut_ terrivel do marquez, que desapert·ra o
cache-nez, j· excitado, no enternecimento que sempre lhe davam estes
humanitarismos poeticos. E entretanto, no estrado, o Alencar ach·ra a
soluÁ„o do soffrimento humano! FÙra uma Voz que lh'a ensin·ra! Uma Voz
sahida do fundo dos seculos, e que atravÈs d'elles, sempre suffocada,
viera crescendo todavia irresistivelmente desde o Golgotha atÈ ·
Bastilha! E ent„o, mais solemne por traz da mesa, com um arranque de
Precursor e uma firmeza de Soldado, como se aquelle honesto movel de
mogno fosse um pulpito e uma barricada--o Alencar, alÁando a fronte
n'uma grande audacia · Danton, soltou o brado temeroso. Alencar queria a
Republica!

Sim, a Republica! N„o a do Terror e a do odio, mas a da mansid„o e do
Amor. Aquella em que o Millionario sorrindo abre os braÁos ao Operario!
Aquella que È Aurora, ConsolaÁ„o, Refugio, Estrella mystica e Pomba...


    Pomba da Fraternidade,
    Que estendendo as brancas azas
    Por sobre os humanos lodos,
    Envolve os seus filhos todos
    Na mesma santa Igualdade!...


Em cima, na galeria, resoou um _bravo_ ardente. E immediatamente, para o
suffocar, sujeitos sÈrios lanÁaram, aqui e alÈm: ´Chut, silencio!ª Ent„o
Ega ergueu as m„os magras, bem alto, berrou com um destaque atrevido:

--Bravo! Muito bem! Bravo!

E todo pallido da sua audacia, entalando o monoculo, declarou para os
lados:

--Aquella democracia È absurda... Mas que os burguezes se dÍem ares
intolerantes, isso n„o! Ent„o applaudo eu!

E as suas m„os magras de novo se ergueram, bem alto, junto das do
marquez que retumbavam como malhos. Outros em volta, immediatamente, n„o
se querendo mostrar menos democratas que o Ega e aquelle fidalgo de t„o
grande linhagem, reforÁaram os _bravos_ com calor. J· pela sala se
voltavam olhares inquietos para aquelle grupo cheio de revoluÁ„o. Mas um
silencio cahiu, mais commovido e grave, quando o Alencar (que
inspiradamente previra a intolerancia burgueza) perguntou em estrophes
iradas o que detestavam, o que receavam elles, no advento sublime da
Republica? Era o p„o carinhoso dado · crianÁa? Era a m„o justa estendida
ao proletario? Era a esperanÁa? Era a aurora?


    Receaes a grande luz?
    Tendes medo do AbecÍ?...
    Ent„o castigai quem lÍ,
    Voltai · plebe soez!
    Recuai sempre na Historia,
    Apagai o gaz nas ruas,
    Deixai as crianÁas nuas,
    E venha a forca outra vez!


Palmas, mais numerosas, j· sinceras, estalaram pela sala, que cedia
emfim ao repetido encanto d'aquelle lyrismo humanitario e sonoro. J· n„o
importava a Republica, os seus perigos. Os versos rolavam, cantantes e
claros; e a sua onda larga arrastava os espiritos mais positivos. Sob
aquelle bafo de sympathia Alencar sorria, com os braÁos abertos,
annunciando uma a uma, como perolas que se desfiam, todas as dadivas que
traria a Republica. Debaixo da sua bandeira, n„o vermelha mas branca,
elle via a terra coberta de searas, todas as fomes satisfeitas, as
naÁıes cantando nos valles sob o olhar risonho de Deus. Sim, porque
Alencar n„o queria uma Republica sem Deus! A Democracia e o
Christianismo, como um lirio que se abraÁa a uma espiga, completavam-se,
estreitando os seios! A rocha do Golgotha tornava-se a tribuna da
ConvenÁ„o! E para t„o dÙce ideal n„o se necessitavam cardeaes, nem
missaes, nem novenas, nem igrejas. A Republica, feita sÛ de pureza e de
fÈ, reza nos campos; a lua cheia È hostia; os rouxinoes entoam o _tantum
ergo_ nos ramos dos loureiraes. E tudo prospÈra, tudo refulge--ao mundo
do Conflicto substitue-se o mundo do Amor...


    ¡ espada succede o arado,
    A JustiÁa ri da Morte,
    A escÛla est· livre e forte,
    E a Bastilha derrocada.
    RÛla a ti·ra no lodo,
    Brota o lirio da Igualdade,
    E uma nova Humanidade
    Planta a cruz na barricada!


Uma rajada farta e franca de _bravos_ fez oscillar as chammas do gaz!
Era a paix„o meridional do verso, da sonoridade, do Liberalismo
romantico, da imagem que esfuzia no ar com um brilho crepitante de
foguete, conquistando emfim tudo, pondo uma palpitaÁ„o em cada peito,
levando chefes de repartiÁ„o a berrarem, estirados por cima das damas,
no enthusiasmo d'aquella republica onde havia rouxinoes! E quando
Alencar, alÁando os braÁos ao tecto, com modulaÁıes de _preghiera_ na
voz roufenha, chamou para a terra essa pomba da Democracia, que erguera
o vÙo do Calvario, e vinha com largos sulcos de luz--foi um
enternecimento banhando as almas, um fundo arrepio d'extasi. As senhoras
amolleciam nas cadeiras, com a face meia voltada ao cÈo. No sal„o
abrazado perpassavam frescuras de capella. As rimas fundiam-se n'um
murmurio de ladainha, como evoladas para uma Imagem que pregas de setim
cobrissem, estrellas d'ouro coroassem. E mal se sabia j· se Essa, que se
invocava e se esperava, era a deusa da Liberdade--ou Nossa Senhora das
DÙres.

Alencar no emtanto via-a descer, espalhando um perfume. J· Ella tocava
com os seus pÈs divinos os valles humanos. J· do seu seio fecundo
trasbordava a universal abundancia. Tudo reflorescia, tudo rejuvenescia:


    As rosas tÍm mais aroma!
    Os fructos tÍm mais doÁura!
    Brilha a alma clara e pura,
    Solta de sombras e vÈos...
    Foge a dÙr espavorida,
    Foi-se a fome, foi-se a guerra,
    O homem canta na terra,
    E Christo sorri nos cÈos!...


Uma acclamaÁ„o rompeu, immensa e rouca, abalando os muros cÙr de
canario. MoÁos exaltados treparam ·s cadeiras, dois lenÁos brancos
fluctuavam. E o poeta, tremulo, exhausto, rolou pela escada atÈ aos
braÁos que se lhe estendiam frementes. Elle suffocava, murmurava:
´filhos! rapazes!...ª Quando Ega correu do fundo, com Carlos,
gritando--´FÙste extraordinario, Thomaz!ª--as lagrimas saltaram dos
olhos do Alencar, quebrado todo d'emoÁ„o.

E ao longo da coxia a ovaÁ„o continuou, feita de palmadinhas pelo
hombro, de _shake-hands_ da gente sÈria, de ´muitos parabens a v.
exc.^a!ª Pouco a pouco elle erguia a cabeÁa, n'um altivo sorriso que lhe
mostrava os dentes maus, sentindo-se o poeta da Democracia, consagrado,
ungido pelo triumpho, com a inesperada miss„o de libertar almas! D.
Maria da Cunha puxou-lhe pela manga quando elle passou, para murmurar,
encantada, que ach·ra--´lindissimo, lindissimoª. E o poeta, estonteado,
exclamou: ´Maria, È necessario luz!ª Telles da Gama veio bater-lhe nas
costas affirmando-lhe que ´pi·ra esplendidamenteª. E Alencar,
inteiramente perdido, balbuciou: ´_Sursum corda_, meu Telles, _sursum
corda_!ª

Ega no emtanto, atravÈs do tumulto, farejava buscando Carlos que
desapparecera depois dos abraÁos ao Alencar. Taveira assegurou-lhe que
Carlos pass·ra para o botequim. Depois em baixo um garoto jurou que o
snr. D. Carlos tom·ra uma tipoia e ia j· virando o Chiado...

Ega ficou · porta hesitando se aturaria o resto do sarau. N'esse momento
o Gouvarinho, trazendo a condessa pelo braÁo, descia rapidamente, com a
face toda contrariada e sombria. O trintanario de ss. exc.^{as} correu a
chamar o coupÈ. E quando o Ega se acercou, sorrindo, para saber que
impress„o lhes deix·ra o grande triumpho democratico do Alencar--a
profunda cÛlera do Gouvarinho escapou-se-lhe, mal contida, por entre os
dentes cerrados:

--Versos admiraveis, mas indecentes!

O coupÈ avanÁou. Elle teve apenas tempo de rosnar ainda, surdamente,
apertando a m„o ao Ega:

--N'uma festa de sociedade, sob a protecÁ„o da rainha, diante d'um
ministro da corÙa, fallar de barricadas, prometter mundos e fundos ·s
classes proletarias... … perfeitamente indecente!

J· a condessa enfi·ra a portinhola, apanhando a larga cauda de sÍda. O
ministro mergulhou tambem furiosamente na sombra do coupÈ. Junto ·s
rodas passou choutando, n'uma pileca branca, o correio agaloado.

Ega ia subir. Mas o marquez appareceu, abafado n'um gab„o d'Aveiro,
fugindo a um poeta de grandes bigodes que fic·ra em cima a recitar
quadrinhas miudinhas a uns olhinhos galantinhos: e o marquez detestava
versos feitos a partes do corpo humano. Depois foi o Cruges que surgiu
do botequim, abotoando o paletot. Ent„o, perante essa debandada de todos
os amigos, Ega decidiu abalar tambem, ir tomar o seu _grog_ ao Gremio
com o maestro.

Metteram o marquez n'uma tipoia--e elle e Cruges desceram a rua Nova da
Trindade, devagar, no encanto estranho d'aquella noite d'inverno, sem
estrellas, mas t„o macia que n'ella parecia andar perdido um bafo de
maio.

Passavam · porta do _Hotel AllianÁa_ quando Ega sentiu alguem, que se
apressava, chamar atraz: ´” snr. Ega! V. exc.^a faz favor, snr.
Ega?...ª--Parou, reconheceu o chapÈo recurvo, as barbas brancas do snr.
Guimar„es.

--V. exc.^a desculpe! exclamou o demagogo esbaforido. Mas vi-o descer,
queria-lhe dar duas palavras, e como me vou embora ·manh„...

--Perfeitamente... ” Cruges, vai andando, j· te apanho!

O maestro estacionou · esquina do Chiado. O snr. Guimar„es pedia de novo
desculpa. De resto eram duas curtas palavras...

--V. exc.^a, segundo me disseram, È o grande amigo do snr. Carlos da
Maia... S„o como irm„os...

--Sim, muito amigos...

A rua estava deserta, com alguns garotos apenas · porta alumiada da
Trindade. Na noite escura a alta fachada do _AllianÁa_ lanÁava sobre
elles uma sombra maior. Todavia o snr. Guimar„es baixou a voz cautelosa:

--Aqui est· o que È... V. exc.^a sabe, ou talvez n„o saiba, que eu fui
em Paris intimo da m„i do snr. Carlos da Maia... V. exc.^a tem pressa, e
n„o vem agora a proposito essa historia. Basta dizer que aqui ha annos
ella entregou-me, para eu guardar, um cofre que, segundo dizia, continha
papeis importantes... Depois naturalmente, ambos tivemos muitas outras
coisas em que pensar, os annos correram, ella morreu. N'uma palavra,
porque v. exc.^a est· com pressa: eu conservo ainda em meu poder esse
deposito, e trouxe-o por acaso quando vim agora a Portugal por negocios
da heranÁa de meu irm„o... Ora hoje justamente, alli no theatro, comecei
a reflectir que o melhor era entregal-o · familia...

O Cruges mexeu-se impaciente:

--Ainda te demoras?

--Um instante! gritou Ega, j· interessado por aquelles papeis e pelo
cofre. Vai andando.

Ent„o o snr. Guimar„es, · pressa, resumiu o pedido. Como sabia a
intimidade do snr. Jo„o da Ega e de Carlos da Maia, lembr·ra-se de lhe
entregar o cofresinho para que elle o restituisse · familia...

--Perfeitamente! acudiu Ega. Eu estou mesmo em casa dos Maias, no
Ramalhete.

--Ah, muito bem! Ent„o v. exc.^a manda um criado de confianÁa ·manh„
buscal-o... Eu estou no _Hotel de Paris_, no Pelourinho. Ou melhor
ainda: levo-lh'o eu, n„o me d· incommodo nenhum, apesar de ser dia de
partida...

--N„o, n„o, eu mando um criado! insistiu o Ega estendendo a m„o ao
democrata.

Elle estreitou-lh'a com calor.

--Muito agradecido a v. exc.^a! Eu junto-lhe ent„o um bilhete e v.
exc.^a entrega-o da minha parte ao Carlos da Maia, ou · irm„.

Ega teve um movimento d'espanto:

--¡ irm„!... A que irm„?

O snr. Guimar„es considerou Ega tambem com assombro. E abandonando-lhe
lentamente a m„o:

--A que irm„!? ¡ irm„ d'elle, · unica que tem, · Maria!

Cruges, que batia as solas no lagedo, enfastiado gritou da esquina:

--Bem, eu vou andando para o Gremio.

--AtÈ logo!

O snr. Guimar„es, no emtanto, passava os dedos calÁados de pellica preta
pelos longos fios da barba, fitando o Ega, n'um esforÁo de penetraÁ„o. E
quando Ega lhe travou do braÁo, pedindo-lhe para conversarem um pouco
atÈ ao Loreto, o democrata deu os primeiros passos com uma lentid„o
desconfiada.

--Eu parece-me, dizia o Ega sorrindo, mas nervoso, que nÛs estamos aqui
a enrodilhar-nos n'um equivoco... Eu conheÁo o Maia desde pequeno, vivo
atÈ agora em casa d'elle, posso afianÁar-lhe que n„o tem irm„ nenhuma...

Ent„o o snr. Guimar„es comeÁou a rosnar umas desculpas embrulhadas que
mais enervavam, torturavam o Ega. O snr. Guimar„es imaginava que n„o era
segredo, que todas essas coisas da irm„ estavam esquecidas, desde que
houvera reconciliaÁ„o...

--Como vi, ainda n„o ha muitos dias, o snr. Carlos da Maia com a irm„ e
com v. exc.^a, na mesma carruagem, no caes do SodrÈ...

--O quÍ! Aquella senhora! A que ia na carruagem?

--Sim! exclamou o snr. Guimar„es irritado, farto emfim d'essa confus„o
em que se debatiam. Aquella mesma, a Maria Eduarda Monforte, ou a Maria
Eduarda Maia, como quizer, que eu conheci de pequena, com quem andei
muitas vezes ao collo, que fugiu com o Mac-Gren, que esteve depois com a
besta do Castro Gomes... Essa mesma!

Era ao meio do Loreto sob o lampe„o de gaz. E o snr. Guimar„es de
repente estacou, vendo os olhos do Ega esgazearem-se de horror, uma
terrivel pallidez cobrir-lhe a face.

--V. exc.^a n„o sabia nada d'isto?

Ega respirou fortemente, arredando o chapÈo da testa sem responder.
Ent„o o outro, embaÁado, terminou por encolher os hombros. Bem, via que
tinha feito uma tolice! A gente nunca se devia intrometter nos negocios
alheios! Mas acabou-se! Imaginasse o snr. Ega que aquillo fÙra um
pesadÍlo, depois da versalhada do sarau! Pedia desculpa sinceramente--e
desejava ao snr. Jo„o da Ega muitissimo boas noites.

Ega, como a um clar„o de relampago, entrevira toda a catastrophe: e
agarrou avidamente o braÁo do snr. Guimar„es, n'um terror que elle
abalasse, desapparecesse, levando para sempre o seu testemunho, esses
papeis, o cofre da Monforte, e com elles a certeza--a certeza por que
agora anciava. E atravÈs do Loreto, vagamente, foi balbuciando,
justificando a sua emoÁ„o, para tranquillisar o homem, poder lentamente
arrancar-lhe as coisas que soubesse, as provas, a verdade inteira.

--O snr. Guimar„es comprehende... Isto s„o coisas muito delicadas, que
eu suppunha absolutamente ignoradas de todos... De modo que fiquei
embatucado, fiquei tonto, quando o ouvi assim de repente fallar d'ellas
com essa simplicidade... Porque emfim, aqui para nÛs, essa senhora n„o
passa em Lisboa por irm„ de Carlos.

O snr. Guimar„es atirou logo a m„o n'um grande gesto. Ah, bem! Ent„o era
jogo com elle? Pois tinha feito o snr. Ega perfeitamente... Com certeza
eram coisas muito sÈrias, que necessitavam toda a sorte de vÈos... Elle
comprehendia, comprehendia muito bem!... E realmente, dada a posiÁ„o dos
Maias em Lisboa, na sociedade, aquella senhora n„o era irm„ que se
apresentasse.

--Mas a culpa n„o a teve ella, meu caro senhor! Foi a m„i, foi aquella
extraordinaria m„i que o Diabo lhe deu!...

Desciam o Chiado. Ega parou um momento, devorando o velho com olhos de
febre:

--O snr. Guimar„es conheceu muito essa senhora, a Monforte?

Intimamente! J· a conhecera em Lisboa--mas de longe, como mulher de
Pedro da Maia. Depois viera essa tragedia, ella fugira com o italiano.
Elle abal·ra tambem para Paris n'esse anno, com uma Clemence, uma
costureira da Levaillant: e, umas coisas enfiando n'outras, negocios e
desgraÁas, por l· fic·ra para sempre! Emfim, n„o era a sua vida que lhe
ia contar... SÛ mais tarde encontr·ra a Monforte, uma noite, no baile
Laborde: e d'ahi datavam as suas relaÁıes. A esse tempo j· o italiano
morrera n'um duello, e o velho Monforte espich·ra da bexiga. Ella estava
ent„o com um rapaz chamado Trevernnes--n'uma casa bonita, no Parc
Monceaux, em grande chic... Mulher extraordinaria! E n„o se envergonhava
de confessar que lhe devia obrigaÁıes! Quando essa rapariga, a Clemence,
que era um encanto, adoecera do peito, a Monforte trazia-lhe flÙres,
frutas, vinhos, fazia-lhe companhia, velava-a como um anjo... Porque l·
isso coraÁ„o largo e generoso atÈ alli! Esta, a filha, a D. Maria, tinha
ent„o sete ou oito annos, linda como os amores... E houvera uma outra
pequena do italiano, muito galantinha tambem. Oh! muito galantinha
tambem! Mas morrera em Londres, essa...

--E com esta Maria andei muitas vezes ao collo, meu caro senhor... N„o
sei se ella ainda se lembra d'uma boneca que eu lhe dei, que fallava,
dizia _NapolÈon_... Era no bello tempo do Imperio, atÈ as
desavergonhadas das bonecas eram imperialistas! Depois, quando ella
estava em Tours, no convento, fui l· duas vezes com a m„i. J· ent„o os
meus principios me n„o permittiam entrar n'esses covis religiosos: mas
emfim fui acompanhar a m„i... E quando ella fugiu com o irlandez, o
Mac-Gren, foi commigo que a m„i veio ter, furiosa, a querer que eu
chamasse o commissario de policia para se prender o irlandez. Por fim
metteu-se n'um _fiacre_, foi para Fontainebleau, l· fez as pazes, viviam
atÈ juntos... Emfim uma sÈrie de trapalhadas.

Um suspiro cansado escapou-se do peito do Ega, que arrastava os passos,
succumbido:

--E esta senhora, est· claro, n„o sabia ent„o de quem era filha...

O snr. Guimar„es encolheu os hombros:

--Nem suspeitava que existissem Maias sobre a face da terra! A Monforte
dissera-lhe sempre que o pai era um fidalgo austriaco com quem ella
cas·ra na Madeira... Uma mixordia, meu caro senhor, uma mixordia!

--… horrivel! murmurou Ega.

Mas, dizia o snr. Guimar„es, que podia tambem fazer a Monforte? Que
diabo, era duro confessar · filha: ´Olha que eu fugi a teu pai, e elle
por causa d'isso matou-se!ª N„o tanto pela quest„o de pudor; a rapariga
devia perceber que a m„i tinha amantes, ella mesma aos dezoito annos,
coitadinha, j· tinha um; mas por causa do tiro, do cadaver, do sangue...

--A mim mesmo! exclamou o snr. Guimar„es, parando, alargando os braÁos
na rua deserta. A mim mesmo nunca ella fallou do marido, nem de Lisboa,
nem de Portugal. Lembra-me atÈ uma occasi„o em casa da Clemence, que eu
alludi a um cavallo laz„o, um cavallo de Pedro da Maia, em que ella
costumava montar. Animal soberbo! Mas nem mencionei o marido, fallei sÛ
do cavallo. Pois senhores, bate com o leque em cima da mesa, grita como
uma bicha:--_Dites donc, mon cher, vous m'embÍtez avec ces histoires de
l'autre monde_!... Com effeito, bem o podia dizer, eram historias do
outro mundo! Para encurtar: estou convencido que nos ultimos tempos ella
mesmo julgava que Pedro da Maia nunca existira. Uma insensata! Por fim
atÈ bebia... Mas acabou-se! Tinha grande coraÁ„o, e portou-se muito bem
com a Clemence. _Parce sepultis!_

--… horrivel! murmurou outra vez o Ega, tirando o chapÈo, correndo a m„o
tremula pela testa.

E agora o seu unico desejo era a accumulaÁ„o incessante de provas, de
detalhes. Fallou ent„o d'esses papeis, d'esse cofre da Monforte. O snr.
Guimar„es n„o sabia o que elles continham; e n„o se admiraria se fossem
apenas contas de modista, ou pedaÁos velhos do _Figaro_ em que se
fallava d'ella...

--… uma caixita pequena que a Monforte me deu, na vespera de partir para
Londres com a filha. Era no tempo da guerra... J· a Maria vivia com o
irlandez, tinha mesmo uma pequena, a Rosa. Depois veio a Communa, todos
aquelles desastres. Quando a Monforte voltou de Londres eu estava em
Marselha. Foi ent„o que a pobre Maria se metteu com o Castro Gomes,
creio que para n„o morrer de fome... Eu recolhi a Paris, mas n„o vi mais
a Monforte, que j· estava muito doente... ¡ Maria, collada ent„o a essa
besta do Castro Gomes, um pedante, um _rastaquouËre_ mesmo a calhar para
a guilhotina, n„o tornei tambem a fallar. Se a encontrava era um
comprimento de longe, como n'outro dia, quando a vi na carruagem com v.
exc.^a e com o irm„o... De sorte que fui ficando com os papeis. Nem a
fallar a verdade, com estas coisas todas de politica, me lembrei mais
d'elles. E agora ahi est„o, ·s ordens da familia.

--Se isso n„o fosse incommodo para v. exc.^a, acudiu Ega, eu passava
agora pelo seu hotel e levava-os logo commigo...

--Incommodo nenhum! Estamos em caminho, È negocio que fica feito!

Algum tempo seguiram calados. O sarau decerto acab·ra. Um bater de
carruagens atroava as descidas do Chiado. Junto d'elles passaram duas
senhoras, com um rapaz que bracejava, fallando alto do Alencar. O snr.
Guimar„es tir·ra lentamente do bolso a charuteira: depois parando, para
raspar um phosphoro:

--Ent„o a D. Maria passa simplesmente por parenta?... E como soube ella?
Como foi isso?

Ega, que caminhava com a cabeÁa cahida, estremeceu como se acordasse. E
comeÁou a tartamudear uma historia confusa, de que elle mesmo cÛrava na
sombra. Sim, Maria Eduarda passava por parenta. FÙra o procurador que
descobrira. Ella rompera com o Castro Gomes, com todo o passado. Os
Maias davam-lhe uma mezada; e vivia nos Olivaes, muito retirada, como
filha d'um Maia que morrera na Italia. Todos gostavam muito d'ella,
Affonso da Maia tinha grande ternura pela pequena...

E de repente indignou-se com estas invenÁıes por onde arrastava j· o
nome do nobre velho, exclamou como se abafasse:

--Emfim, nem eu sei, um horror!

--Um drama! resumiu gravemente o snr. Guimar„es.

E como estavam no Pelourinho rogou ao Ega que esperasse um momento
emquanto elle corria acima buscar os papeis da Monforte.

SÛ, no largo, Ega ergueu as m„os ao cÈo n'um desabafo mudo d'aquella
angustia em que caminhava, como um somnambulo, desde o Loreto. E a sua
unica sensaÁ„o, bem clara--era a indestructivel certeza da historia do
Guimar„es, t„o compacta, sem uma lacuna, sem uma falha por onde rachasse
e se fizesse cahir aos pedaÁos. O homem conhecera Maria Monforte em
Lisboa, ainda mulher de Pedro da Maia, brilhando no seu cavallo laz„o;
encontr·ra-a em Paris j· fugida, depois da morte do primeiro amante,
vivendo com outros; and·ra ent„o ao collo com Maria Eduarda a quem se
davam bonecas... E desde ent„o n„o deix·ra mais de vÍr Maria Eduarda, de
a seguir: em Paris; no convento de Tours; em Fontainebleau com o
irlandez; nos braÁos de Castro Gomes; n'uma tipoia de praÁa emfim com
elle e com Carlos da Maia, havia dias, no caes do SodrÈ! Tudo isto se
encadeava, concordando com a historia contada por Maria Eduarda. E de
tudo resaltava esta certeza monstruosa:--Carlos amante da irm„!

Guimar„es n„o descia. No segundo andar surgira uma luz viva, n'uma
janella aberta. Ega recomeÁou a passear lentamente pelo meio do largo. E
agora, pouco a pouco, subia n'elle uma incredulidade contra esta
catastrophe de dramalh„o. Era acaso verosimil que tal se passasse, com
um amigo seu, n'uma rua de Lisboa, n'uma casa alugada · m„i Cruges?...
N„o podia ser! Esses horrores sÛ se produziam na confus„o social, no
tumulto da Meia-Idade! Mas n'uma sociedade burgueza, bem policiada, bem
escripturada, garantida por tantas leis, documentada por tantos papeis,
com tanto registro de baptismo, com tanta certid„o de casamento, n„o
podia ser! N„o! N„o estava no feitio da vida contemporanea que duas
crianÁas separadas por uma loucura da m„i, depois de dormirem um
instante no mesmo berÁo, cresÁam em terras distantes, se eduquem,
descrevam as parabolas remotas dos seus destinos--para quÍ? Para virem
tornar a dormir juntas no mesmo ponto, n'um leito de concubinagem! N„o
era possivel. Taes coisas pertencem sÛ aos livros, onde vÍm, como
invenÁıes subtis da arte, para dar · alma humana um terror novo...
Depois levantava os olhos para a janella alumiada--onde o snr. Guimar„es
decerto rebuscava os papeis na mala. Alli estava porÈm esse homem com a
sua historia--em que n„o havia uma discordancia por onde ella pudesse
ser abalada!... E pouco a pouco aquella luz viva, sahida do alto,
parecia ao Ega penetrar n'essa intrincada desgraÁa, aclaral-a toda,
mostrar-lhe bem a lenta evoluÁ„o. Sim, tudo isso era provavel no fundo!
Essa crianÁa, filha d'uma senhora que a lev·ra comsigo, cresce, È amante
d'um brazileiro, vem a Lisboa, habita Lisboa. N'um bairro visinho vive
outro filho d'essa mulher, por ella deixado, que cresceu, È um homem.
Pela sua figura, o seu luxo, elle destaca n'esta cidade provinciana e
pelintra. Ella por seu lado, loura, alta, esplendida, vestida pela
LaferriËre, flÙr d'uma civilisaÁ„o superior, faz relÍvo n'esta multid„o
de mulheres miudinhas e morenas. Na pequenez da Baixa e do Aterro, onde
todos se acotovelavam, os dois fatalmente se cruzam: e com o seu brilho
pessoal, muito fatalmente se attrahem! Ha nada mais natural? Se ella
fosse feia e trouxesse aos hombros uma confecÁ„o barata da loja da
America, se elle fosse um mocinho encolhido de chapÈo cÙco, nunca se
notariam e seguiriam diversamente nos seus destinos diversos. Assim, o
conhecerem-se era certo, o amarem-se era provavel... E um dia o snr.
Guimar„es passa, a verdade terrivel estala!

A porta do hotel rangeu no escuro, o snr. Guimar„es adiantou-se, de bonÈ
de sÍda na cabeÁa, com o embrulho na m„o.

--N„o podia dar com a chave da mala, desculpe v. exc.^a … sempre assim
quando ha pressa... E aqui temos o famoso cofre!

--Perfeitamente, perfeitamente...

Era uma caixa que parecia de charutos e que o democrata embrulh·ra n'um
velho numero do _Rappel_. Ega metteu-a no bolso largo do seu paletot: e
immediatamente, como se qualquer outra palavra entre elles fosse v„,
estendeu a m„o ao snr. Guimar„es. Mas o outro insistiu em o acompanhar
atÈ · esquina da rua do Arsenal, apesar de estar de bonÈ. A noite, para
quem vinha de Paris, tinha uma doÁura oriental--e elle, com os seus
habitos de jornalista, nunca se deitava sen„o tarde, ·s duas, tres horas
da madrugada...

E ent„o, caminhando devagar, com as m„os nos bolsos e o charuto entre os
dentes, o snr. Guimar„es voltou · politica e ao sarau. A poesia do
Alencar (de que esper·ra muito por causa do titulo, _A Democracia_)
sahira-lhe consideravelmente chÙcha.

--Muita flÙr, muita farofia, muita liberdade, mas n„o havia alli um
ataque em fÛrma, duas ou tres boas estocadas n'esta choldra da monarchia
e da cÙrte... Pois n„o È verdade?

--Sim, com effeito...--murmurou Ega, olhando ao longe, na esperanÁa
d'uma tipoia.

--… como os jornaes republicanos que por ahi ha... Tudo uma palhada,
senhores, tudo uma balofice!... … o que eu lhes digo a elles:--´” almas
do diabo, atacai as questıes sociaes!ª

Felizmente um trem avanÁava, rolando devagar, do lado do Terreiro do
PaÁo. Ega, precipitadamente, deu um aperto de m„o ao democrata,
desejou-lhe uma ´boa viagemª, atirou ao cocheiro a adresse do Ramalhete.
Mas o snr. Guimar„es ainda se apoderou da portinhola--para aconselhar ao
Ega que fosse a Paris. Agora, que tinham feito amizade, havia de o
apresentar a toda aquella gente... E o snr. Ega veria! N„o era c· a
grande _pose_ portugueza, d'estes imbecis, d'estes pelintras a darem-se
ares, torcendo os bigodes. L·, na primeira naÁ„o do mundo, tudo era
alegria e fraternidade e espirito a rodos...

--E a minha adresse, na redacÁ„o do _Rappel_! Bem conhecida no mundo!
Emquanto ao embrulhosinho fico descanÁado...

--PÛde v. exc.^a ficar descanÁado!

--Criado de v. exc.^a... Os meus comprimentos · snr.^a D. Maria!

Na carruagem, atravÈs do Aterro, a anciosa interrogaÁ„o do Ega a si
mesmo foi--´que hei de fazer?ª Que faria, santo Deus, com aquelle
segredo terrivel que possuia, de que sÛ elle era senhor, agora que o
Guimar„es partia, desapparecia para sempre? E antevendo com terror todas
as angustias em que essa revelaÁ„o ia lanÁar o homem que mais estimava
no mundo--a sua instinctiva idÈa foi guardar para sempre o segredo,
deixal-o morrer dentro em si. N„o diria nada; o Guimar„es sumia-se em
Paris; e quem se amava continuava a amar-se!... N„o crearia assim uma
crise atroz na vida de Carlos--nem soffreria elle, como companheiro, a
sua parte d'essas afflicÁıes. Que coisa mais impiedosa, de resto, que
estragar a vida de duas innocentes e adoraveis creaturas, atirando-lhes
· face uma prova de incesto!...

Mas, a esta idÈa de _incesto_, todas as consequencias d'esse silencio
lhe appareceram, como coisas vivas e pavorosas, flammejando no escuro
diante dos seus olhos. Poderia elle tranquillamente testemunhar a vida
dos dois--desde que a sabia _incestuosa_? Ir · rua de S. Francisco,
sentar-se-lhes alegremente · mesa, entrevÍr atravÈs do reposteiro a cama
em que ambos dormiam--e saber que esta sordidez de peccado era obra do
seu silencio? N„o podia ser... Mas teria tambem coragem de entrar ao
outro dia no quarto de Carlos, e dizer-lhe em face--´Olha que tu Ès
amante de tua irm„?ª

A carruagem par·ra no Ramalhete. Ega subiu, como costumava, pela escada
particular de Carlos. Tudo estava apagado e mudo. Accendeu a sua
palmatoria; entreabriu o reposteiro dos aposentos de Carlos; deu alguns
passos timidos no tapete, que pareceram j· soar tristemente. Um reflexo
d'espelho alvejou ao fundo na sombra da alcova. E a luz cahiu sobre o
leito intacto, com a sua longa colcha lisa, entre os cortinados de sÍda.
Ent„o a idÈa que Carlos estava ·quella hora na rua de S. Francisco,
dormindo com uma mulher que era sua irm„, atravessou-o com uma cruel
nitidez, n'uma imagem material, t„o viva e real, que elle viu-os
claramente, de braÁos enlaÁados, e em camisa... Toda a belleza de Maria,
todo o requinte de Carlos desappareciam. Ficavam sÛ dois animaes,
nascidos do mesmo ventre, juntando-se a um canto como c„es, sob o
impulso bruto do cio!

Correu para o seu quarto, fugindo ·quella vis„o a que o escuro do
corredor, mal dissipado pela luz tremula, accentuava mais o relÍvo.
Aferrolhou a porta; accendeu · pressa sobre o toucador, uma depois da
outra, com a m„o agitada, as seis velas dos candelabros. E agora
apparecia-lhe mais urgente, inevitavel, a necessidade de contar _tudo_ a
Carlos. Mas ao mesmo tempo sentia em si, a cada instante, menos animo
para chegar, encarar Carlos, e destruir-lhe a felicidade e a vida com
uma revelaÁ„o d'incesto. N„o podia! Outro que lh'o dissesse! Elle l·
estava depois para o consolar, tomar metade da sua dÙr, carinhoso e
fiel. Mas o desgosto supremo da vida de Carlos n„o viria de palavras
cahidas da sua boca!... Outro que lh'o dissesse! Mas quem? Mil idÈas
passavam na sua pobre cabeÁa, incoherentes e tontas. Pedir a Maria que
fugisse, desapparecesse... Escrever uma carta anonyma a Carlos, com a
detalhada historia do Guimar„es... E esta confus„o, esta anciedade ia-se
resolvendo lentamente em odio ao snr. Guimar„es. Para que fall·ra
·quelle imbecil? Para que insistira em lhe confiar papeis alheios? Para
que lh'o apresent·ra o Alencar? Ah! se n„o fosse a carta do Damaso...
Tudo provinha do maldito Damaso!

Agitando-se pelo quarto, ainda de chapÈo, os seus olhos cahiram n'um
sobrescripto pousado sobre a mesa de cabeceira. Reconheceu a letra do
VillaÁa. E nem a abriu... Uma idÈa sulc·ra-o de repente. Contar tudo ao
VillaÁa!... Porque n„o? Era o procurador dos Maias. Nunca para elle
houvera segredos n'aquella casa. E esta complicaÁ„o singular d'uma
senhora da familia, considerada morta e que surge inesperadamente--a
quem a pertencia aclarar sen„o ao fiel procurador, ao velho confidente,
ao homem que, por heranÁa e por destino, recebera sempre todos os
segredos e partilh·ra todos os interesses domesticos?... E sem pensar,
sem aprofundar mais, fixou-se logo n'esta decis„o salvadora,--que ao
menos o socegava, lhe tirava j· do coraÁ„o um peso de ferro, suffocante
e intoleravel...

Devia acordar cedo, procurar VillaÁa em casa. Escreveu n'uma folha de
papel--´Acorda-me ·s seteª. E desceu abaixo, ao longo corredor de pedra
onde dormiam os criados, dependurou este recado na chave do quarto do
escudeiro.

Quando subiu, mais calmo,--abriu ent„o a carta do VillaÁa. Era uma curta
linha lembrando ao amigo Ega que a letrinha de duzentos mil reis, no
Banco Popular, se vencia d'ahi a dois dias...

--SÍbo, tudo se junta! exclamou Ega furioso, atirando a carta amarrotada
para o ch„o.




VII


Pontual, ·s sete horas, o escudeiro acordou Ega. Ao rumor da porta elle
sentou-se na cama com um salto--e logo todos os negros cuidados da
vespera, Carlos, a irm„, a felicidade d'aquella casa acabada para
sempre, se lhe ergueram n'alma em sobresalto, como despertando tambem. A
portada da varanda fic·ra aberta; um ar silencioso e livido de madrugada
clareava atravÈs do transparente de fazenda branca. Durante um momento
Ega ficou olhando em redor, arrepiado; depois, sem coragem, remergulhou
nos lenÁoes, gozando aquelle bocado de calor e de conchÍgo antes d'ir
affrontar fÛra as amarguras do dia.

E pouco a pouco, sob o tepido conchÍgo dos cobertores em que se
atabaf·ra, comeÁou a afigurar-se-lhe menos urgente, e menos util, essa
correria estremunhada a casa do VillaÁa... De que servia procurar o
VillaÁa? N„o se tratava alli de dinheiro, nem de demandas, nem de
legalidade--de nada que reclamasse a experiencia d'um procurador. Era
apenas introduzir um burguez mais n'um segredo t„o terrivelmente
delicado que elle mesmo se assustava de o saber. E acochado mais sob a
roupa, apenas com o nariz ao frio, murmurava comsigo: ´… uma tolice ir
ao VillaÁa!ª

De resto n„o poderia elle ajuntar em si bastante coragem para contar
tudo a Carlos, logo, n'essa manh„, claramente, virilmente? Era por fim
aquelle caso t„o pavoroso como lhe parecera na vespera--um irreparavel
desabamento d'uma vida de homem?... Ao pÈ da quinta da m„e, em Celorico,
no logar de Vouzeias, houvera um successo parecido, dois irm„os que
innocentemente iam casar. Tudo se aclarou ao reunirem-se os papeis para
os _banhos_. Os noivos ficaram uns dias ´embatucadosª, como dizia o
padre Seraphim; mas por fim j· riam, muito amigos, muito divertidos,
quando se tratavam de ´manosª. O noivo, um rapag„o bonito, contava
depois ´que ia havendo uma mixordia na familiaª. Aqui o engano seguira
mais longe, as sensibilidades eram mais requintadas; mas os seus
coraÁıes permaneciam livres de toda a culpa, innocentes absolutamente.
Porque ficaria pois a existencia de Carlos para sempre estragada? A
inconsciencia impedia-lhe o remorso: e passado o primeiro horror, de que
lhe podia, na realidade, vir a definitiva dÙr? SÛmente do prazer ter
findado. Era ent„o como outro qualquer desgosto d'amor. Bem menos atroz
do que se Maria o tivesse trahido com o Damaso!

De repente a porta abriu-se, Carlos appareceu exclamando:

--Ent„o que madrugada foi esta? Disse-me agora l· em baixo o Baptista...
… aventura? duello?

Trazia o paletot todo abotoado, com a gola erguida, escondendo ainda a
gravata branca da vespera; e decerto cheg·ra da rua de S. Francisco na
tipoia que havia instantes Ega sentira parar na calÁada.

Elle sent·ra-se bruscamente na cama; e estendendo a m„o para os
cigarros, sobre a mesa ao lado, murmurou, bocejando, que na vÈspera
combin·ra uma ida a Cintra com o Taveira... Por precauÁ„o mand·ra-se
chamar... Mas n„o sabia, acord·ra cansado...

--Que tal est· o dia?

Justamente Carlos fÙra correr o transparente da janella. Ahi, na mesa de
trabalho, collocada em plena luz, fic·ra a caixa da Monforte embrulhada
no _Rappel_. E Ega pensou n'um relance:--´Se elle repara, se pergunta,
digo tudo!ª--O seu pobre coraÁ„o pÙz-se a bater anciosamente no terror
d'aquella decis„o. Mas o transparente um pouco pÍrro subiu, uma facha de
sol banhou a mesa--e Carlos voltou sem reparar no cofre. Foi um immenso
allivio para o Ega.

--Ent„o, Cintra? disse Carlos, sentando-se aos pÈs da cama. Com effeito
n„o È m· idÈa... A Maria ainda hontem esteve tambem a fallar d'ir a
Cintra... Espera! Podiamos fazer a patuscada juntos... Iamos no break, a
quatro!

E olhava j· o relogio, calculando o tempo para atrellar, avisar Maria.

--O peor, acudiu o Ega atrapalhado, tomando de sobre a mesa o monoculo,
È que o Taveira fallou em irmos com umas raparigas...

Carlos encolheu os hombros com horror. Que sordidez, ir com mulheres
para Cintra, de dia!... De noite, nas trevas, por bebedeira, v·... Mas ·
luz do Senhor! Talvez com a Lola gorda, hein?...

Ega embrulhou-se n'uma complicada historia, limpando o monoculo · ponta
do lenÁol. N„o eram hespanholas... Pelo contrario, umas costureiras,
raparigas sÈrias... Elle tinha um compromisso antigo d'ir a Cintra com
uma d'ellas, filha d'um Simıes, um estofador que fallira... Gente muito
sÈria!...

Perante estes compromissos, tanta seriedade, Carlos desistiu logo da
idÈa de Cintra.

--Bem, acabou-se!... Vou ent„o tomar banho e depois a negocios... E tu,
se fÙres, traze-me umas queijadas para a Rosa, que ella gosta!...

Apenas Carlos sahiu, Ega cruzou os braÁos desanimado, descorÁoado,
sentindo bem que n„o teria coragem nunca de ´dizer tudoª. Que havia de
fazer?... E de novo, insensivelmente, se refugiou na idÈa de procurar o
VillaÁa, entregar-lhe o cofre da Monforte. N„o havia homem mais honesto,
nem mais pratico; e, pela mesma mediocridade do seu espirito burguez,
quem melhor para encarar aquella catastrophe sem paix„o e sem nervos?...
E esta _falta de nervos_ do VillaÁa fixou-o definitivamente.

Saltou ent„o da cama, n'uma impaciencia, repicou a campainha. E emquanto
o criado n„o entrava, foi, com o robe-de-chambre aos hombros, examinar o
cofre da Monforte. Parecia com effeito uma velha caixa de charutos,
embrulhada n'um papel de dobras j· sujas e gastas, com marcas de lacre
onde se distinguia uma divisa que seria decerto a da Monforte--_Pro
amore_. Na tampa tinha escripto n'uma letra de mulher
mal-ensinada--_Monsieur Guimaran, ‡ Paris_. Ao sentir os passos do
criado deitou-lhe por cima uma toalha, que pendia ao lado, n'uma
cadeira. E d'ahi a meia hora rolava pelo Aterro n'uma tipoia descoberta,
mais animado, respirando largamente aquelle bello ar da manh„, fino e
fresco, que elle t„o raras vezes gozava.

ComeÁou por uma contrariedade. VillaÁa j· sahira: e a criada n„o sabia
bem se elle fÙra para o escriptorio, se a uma vistoria ao Alfeite... Ega
largou para o escriptorio, na rua da Prata. O snr. VillaÁa ainda n„o
viera...

--E a que horas vir·?

O escrevente, um rapaz macilento que torcia nervosamente sobre o collete
uma corrente de coral, balbuciou que o snr. VillaÁa n„o devia tardar, se
n„o tivesse atravessado, no vapor das nove, para o Alfeite... Ega desceu
desesperado.

--Bem, gritou ao cocheiro, vai ao cafÈ Tavares...

No Tavares, ainda solitario ·quella hora, um moÁo areava o sobrado. E
emquanto esperava o almoÁo Ega percorreu os jornaes. Todos fallavam do
sarau, em linhas curtas, promettendo detalhes criticos, mais tarde,
sobre esse brilhante torneio artistico. SÛ a _Gazeta Illustrada_ se
alargava, com phrases sÈrias, tratando o Rufino de _grandioso_ o Cruges
de _esperanÁoso:_ no Alencar a _Gazeta_ separava o philosopho do poeta;
ao philosopho a _Gazeta_ lembrava com respeito que nem todas as
aspiraÁıes ideaes da philosophia, bellas como miragens de deserto, s„o
realisaveis na pratica social; mas ao poeta, ao creador de t„o formosas
imagens, de t„o inspiradas estancias, a _Gazeta_ desafogadamente
bradava--´bravo! bravo!ª Havia ainda outras abominaveis sandices. Depois
seguia-se a lista das pessoas que a _Gazeta_ se recordava de ter visto,
entre as quaes ´destacava com o seu monoculo o fino perfil de Jo„o da
Ega, sempre brilhante de _verve_.ª Ega sorriu, cofiando o bigode.
Justamente o bife chegava, fumegante, chiando na frigideirinha de barro.
Ega pousou a _Gazeta_ ao lado, dizendo comsigo: ´N„o È nada mal feito,
este jornal!ª

O bife era excellente:--e depois d'uma perdiz fria, d'um pouco de dÙce
de ananaz, d'um cafÈ forte, Ega sentiu adelgaÁar-se emfim aquelle
negrume que desde a vespera lhe pesava n'alma. No fim, pensava elle,
accendendo o charuto e lanÁando os olhos ao relogio, n'aquelle desastre
praticamente encarado sÛ havia para Carlos a perda d'uma bella amante. E
essa perda, que agora o angustiava, n„o traria depois compensaÁıes? O
futuro de Carlos atÈ ahi tinha uma sombra--aquella promessa de casamento
que irreparavelmente o collava pela honra a uma mulher muito
interessante, mas com um passado cheio de brazileiros e de irlandezes...
A sua belleza poetisava tudo: mas quanto tempo mais duraria esse
encanto, o seu brilho de deusa pisando a terra?... N„o seria por fim
aquella descoberta do Guimar„es uma libertaÁ„o providencial? D'ahi a
annos Carlos estaria consolado, sereno como se nunca tivesse sofrido--e
livre, e rico, com o largo mundo diante de si!

O relogio do cafÈ deu dez horas. ´Bem, vamos a istoª, pensou Ega.

De novo a tipoia bateu para a rua da Prata. O snr. VillaÁa ainda n„o
viera, o escrevente estava realmente pensando que o snr. VillaÁa fÙra ao
Alfeite. E diante d'esta incerteza, de repente, Ega ficou de novo
descorÁoado, sem coragem. Despediu a tipoia: com o embrulho do cofre na
m„o foi andando pela rua do Ouro, depois atÈ ao Rocio, parando
distrahidamente diante d'um ourives, lendo aqui e alÈm a capa d'um livro
na vitrine dos livreiros. Pouco a pouco o negrume da vespera, um momento
adelgaÁado, recahia-lhe n'alma mais denso. J· n„o via as ´libertaÁıesª
nem as ´compensaÁıesª. SÛ sentia em torno de si, como fluctuando no ar,
aquelle horror--Carlos a dormir com a irm„.

Voltou pela rua da Prata, de novo subiu a suja escadaria de pedra; e
logo no patamar, diante da porta de baeta verde, deu com o VillaÁa que
sahia, atarefado, calÁando as luvas.

--Homem, atÈ que emfim!

--Ah! Era o amigo que me tinha procurado?... Pois tenha paciencia, que
est· o visconde do Torral · minha espera...

Ega quasi o empurrou. Qual visconde!... Tratava-se d'uma coisa muito
urgente, muito sÈria! Mas o outro n„o se arredava da porta, acabando de
calÁar a luva, com o mesmo ar vivo de negocio e de pressa.

--O amigo bem vÍ... Est· o homem · espera! … um _rendez-vous_ para as
onze!

Ega, j· furioso, agarrou-lhe a manga, murmurou-lhe junto · face,
tragicamente, que se tratava de Carlos, d'um caso de vida ou de morte!
Ent„o o VillaÁa, n'um grande espanto, atravessou bruscamente o
escriptorio, fez entrar Ega n'um cubiculo ao lado, estreito como um
corredor, com um canapÈ de palhinha, uma mesa onde os livros tinham pÛ,
e um armario ao fundo. Fechou a porta, atirou o chapÈo para a nuca:

--Ent„o que È?

Ega, com um gesto, indicou fÛra o escrevente que podia escutar. O
procurador abriu a porta, gritou ao rapazola que voasse ao Hotel
Pelicano pedir ao snr. visconde do Torral a fineza de esperar meia
hora... Depois, fechada a porta no ferrolho, foi a mesma exclamaÁ„o
anciosa:

--Ent„o que È?

--… um horror, VillaÁa, um grande horror... Nem eu sei por onde hei de
comeÁar.

VillaÁa, j· muito pallido, pousou lentamente o guardachuva sobre a mesa.

--… duello?

--N„o... … isto... VocÍ sabia que o Carlos tinha relaÁıes com uma snr.^a
Mac-Gren que veio o inverno passado a Portugal, ficou ahi?...

Uma senhora brazileira, mulher d'um brazileiro, que pass·ra o ver„o nos
Olivaes?... Sim, VillaÁa sabia. Fall·ra atÈ n'isso com o Eusebiosinho.

--Ah, com o Eusebio?... Pois n„o È brazileira! … portugueza, e È irm„
d'elle!

VillaÁa cahiu para o canapÈ, batendo as m„os n'um assombro.

--Irm„ do Eusebio!

--Qual do Eusebio, homem!... Irm„ de Carlos!

VillaÁa fic·ra mudo, sem comprehender, com os olhos terrivelmente
arregalados para o outro, que se movia pelo cubiculo, repetindo: ´irm„!
irm„ legÌtima!ª Ega por fim sentou-se no canapÈ de palhinha; e baixo,
muito baixo, apesar da solid„o do escriptorio, contou o seu encontro com
o Guimar„es no sarau, e como a verdade terrivel estal·ra casualmente,
n'uma palavra, · esquina do _AllianÁa_... Mas quando fallou dos papeis,
entregues pela Monforte ao Guimar„es, ha tantos annos guardados, nunca
reclamados, e que o democrata agora, t„o de repente, t„o urgentemente,
queria restituir · familia--VillaÁa, atÈ ahi esmagado e como
emparvecido, despertou, teve uma explos„o:

--Ahi ha marosca! Tudo isso È para apanhar dinheiro!...

--Apanhar dinheiro! Quem?

--Quem!? exclamou VillaÁa de pÈ, arrebatadamente. Essa senhora, esse
Guimar„es, essa tropa!... … que o amigo n„o percebe! Se apparecer uma
irm„ do Maia, legitima e authentica, s„o quatrocentos contos e pico que
cabem · irm„ do Maia!...

Ent„o os dois ficaram-se devorando com os olhos, na forte impress„o
d'aquella idÈa inesperada que a seu pezar abalava o Ega. Mas como o
procurador, tremulo, voltava · grande somma de quatrocentos contos,
lembrava a _Companhia do Olho Vivo_, Ega terminou por encolher os
hombros:

--Isso n„o tem verosimilhanÁa nenhuma! Ella È incapaz, absolutamente
incapaz, de semelhante intriga. AlÈm d'isso, se È uma quest„o de
dinheiro, que necessidade tinha de se fazer passar como irm„ desde que
Carlos lhe promettera casar com ella?

Casar com ella! VillaÁa erguia as m„os, n„o queria acreditar. O quÍ! o
snr. Carlos da Maia dar a sua m„o, o seu nome, a essa creatura amigada
com um brazileiro!?... Santissimo nome de Deus! E atravÈs do assombro
recrescia-lhe a desconfianÁa, via ahi um novo feito do _Olho Vivo_.

--N„o senhor, VillaÁa, n„o senhor! insistiu Ega, j· impaciente. Se a
quest„o È de documentos e se ella os tinha, verdadeiros ou falsificados,
apresentava-os logo, n„o ia primeiro dormir com o irm„o!

VillaÁa baixou lentamente os olhos para o sobrado. Um terror invadia-o
diante d'aquella grande casa, que era o seu orgulho, partida em metade,
empolgada por uma aventureira... Mas como o Ega, muito nervoso, lembrava
que de resto a quest„o n„o era de documentos, nem de legalidade, nem de
fortuna--o procurador teve outro grito, com a face de novo alumiada:

--Espere, homem, ha outra coisa!... Talvez ella seja filha do italiano!

--E ent„o?... Vem a dar na mesma.

--Alto l·! berrou o procurador, batendo com o punho na mesa. N„o tem
direito · legitima do pai, e n„o apanha um real d'esta casa!... Irra,
ahi È que est· o ponto!

Ega teve um gesto desolado. N„o, nem isso, desgraÁadamente! Esta era a
filha do Pedro da Maia. O Guimar„es conhecia-a de a trazer ao collo, de
lhe dar bonecas quando ella tinha sete annos, e quando apenas havia
quatro ou cinco annos que o italiano estivera em Arroios, de cama, com
uma chumbada... A filha d'esse morrera em Londres, pequenina.

VillaÁa recahiu no canapÈ, succumbido.

--Quatrocentos contos, que bolada!

Ent„o Ega resumiu. Se n„o existia ainda uma certeza legal, havia j· uma
forte suspeita. E desde logo n„o se podia deixar o pobre Carlos,
innocentemente, a chafurdar n'aquella sordidez. Era pois indispensavel
revelar tudo a Carlos n'essa noite...

--E vocÍ, VillaÁa, È que tem de lh'o dizer.

VillaÁa deu um salto que fez bater o canapÈ contra a parede.

--Eu!?

--VocÍ, que È o procurador da casa!

Que havia alli, sen„o uma quest„o de filiaÁ„o, portanto de legitima? A
quem pertenciam esses detalhes legaes sen„o ao procurador?

VillaÁa murmurou com todo o sangue na face:

--Homem, o amigo mette-me n'uma!...

N„o. Ega mettia-o apenas n'aquillo em que o VillaÁa, como procurador,
logicamente e profissionalmente devia estar.

O outro protestou, t„o perturbado que gaguejava. Que diabo! N„o era
esquivar-se aos seus deveres! Mas È que elle n„o sabia nada! Que podia
dizer ao snr. Carlos da Maia? ´O amigo Ega veio-me contar isto, que lhe
contou um tal Guimar„es hontem · noite no Loreto...ª N„o tinha a dizer
mais nada...

--Pois diga isso.

O outro encarou Ega com olhos que chammejavam:

--Diga isso, diga isso... Que diabo, senhor, È necessario ter topete!

Deu um pux„o desesperado ao collete, foi bufando atÈ ao fundo do
cubiculo, onde esbarrou com o armario. Voltou, tornou a encarar o Ega:

--N„o se vai a um homem com uma coisa d'essas sem provas... Onde est„o
as provas?...

--” VillaÁa, desculpe, vocÍ est· obtuso!... A que vim eu aqui sen„o
trazer-lhe as provas, as que ha, boas ou m·s, a historia do Guimar„es,
essa caixa com os papeis da Monforte?...

VillaÁa, que resmungava, foi examinar a caixa, virando-a nas m„os,
decifrando o mote do sinete _Pro amore_.

--Ent„o, abrimol-a?

J· Ega pux·ra uma cadeira para a mesa. VillaÁa cortou o papel, gasto nos
cantos, que envolvia o cofre. E appareceu effectivamente uma velha caixa
de charutos pregada com duas taxas, cheia de papeis, alguns em maÁos
apertados por fitas, outros soltos dentro de sobrescriptos abertos que
tinham o monogramma da Monforte sob uma corÙa de marquez. Ega
desembrulhou o primeiro maÁo. Eram cartas em allem„o, que elle n„o
percebia, datadas de Buda-Pesth e de Carlsruhe.

--Bem, isto n„o nos diz nada... Adiante!

Outro embrulho, a que VillaÁa cuidadosamente desapertou o nÛ cÙr de
rosa, resguardava uma caixa oval com a miniatura d'um homem de bigodes e
suissas ruivas, entalado na alta gola dourada d'uma farda branca.
VillaÁa achou a pintura ´lindaª.

--Algum official austriaco, rosnou Ega. Outro amante... _«a marche_.

Iam tirando os papeis por ordem, com a ponta dos dedos, como tocando em
reliquias. Um largo enveloppe atulhado de contas de modistas, algumas
pagas, outras sem recibo, interessou profundamente o VillaÁa--que
percorria os _items_, espantado dos preÁos, das infinitas invenÁıes do
luxo. Contas de seis mil francos! Um sÛ vestido, dois mil francos!...
Outro maÁo trouxe uma surpreza. Eram cartas de Maria Eduarda · m„i,
escriptas do convento, n'uma letra redonda e trabalhada como um desenho,
com phrasesinhas cheias de gravidade devota, dictadas decerto pelas boas
Irm„s; e n'estas composiÁıes, virtuosas e frias como themas, o sincero
coraÁ„o da rapariga sÛ transparecia n'alguma florzinha, agora sÍcca,
pregada no alto do papel com um alfinete.

--Isto pıe-se de parte, murmurou VillaÁa.

Ent„o Ega, j· impaciente, esvaziou toda a caixa sobre a mesa, alastrou
os papeis. E entre cartas, outras contas, bilhetes de visita, um grande
sobrescripto destacou com esta linha a tinta azul:--_Pertence a minha
filha Maria Eduarda_. Foi VillaÁa que lanÁou os olhos rapidamente ·
enorme folha de papel que elle continha, luxuosa e documental, com o
monogramma d'ouro sob a corÙa de marquez. Quando o passou em silencio
para a m„o do Ega parecia suffocado, com todo o sangue nas orelhas.

Ega leu-o alto, devagar. Dizia:--´Como a Maria teve a pequena e anda
muito fraca, e eu tambem me n„o sinto nada boa com umas pontadas,
parece-me prudente, para o que possa vir a succeder, fazer aqui uma
declaraÁ„o que te pertence a ti, minha querida filha, e que sÛ sabe o
padre Talloux (_Mr. l'abbÈ Talloux, coadjuteur ‡ Saint-Roch_) porque
lh'o disse ha dois annos quando tive a pneumonia. E È o seguinte:
Declaro que minha filha Maria Eduarda, que costuma assignar Maria
Calzaski, por suppÙr ser esse o nome de seu pai, È portugueza e filha de
meu marido Pedro da Maia, de quem me separei voluntariamente, trazendo-a
commigo para Vienna, depois para Paris, e que agora vive em companhia de
Patrick Mac-Gren, em Fontainebleau, com quem vai casar. E o pai de meu
marido era meu sogro Affonso da Maia, viuvo, que vivia em Bemfica e
tambem em Santa Olavia ao pÈ do rio Douro. O que tudo se pÛde verificar
em Lisboa pois devem l· estar os papeis; e os meus erros de que vejo
agora as consequencias n„o devem impedir que tu, minha querida filha,
tenhas a posiÁ„o e fortuna que te pertencem. E por isso aqui declaro
tudo isto que assigno, no caso que o n„o possa fazer diante d'um
tabelli„o, o que tenciono logo que esteja melhor. E de tudo, se eu vier
a morrer, o que Deus n„o permitta, peÁo perd„o a minha filha. E assigno
com o meu nome de casada--_Maria Monforte da Maia_.ª

Ega ficou a olhar para o VillaÁa. O procurador sÛ pÙde murmurar, com as
m„os cruzadas sobre a mesa:

--Que bolada! Que bolada!

Ent„o Ega ergueu-se. Bem! Agora tudo se simplificava. Havia unicamente a
entregar aquelle documento a Carlos, sem commentarios. Mas o VillaÁa
coÁava a cabeÁa, retomado por uma duvida:

--Eu n„o sei se este papelinho faria fÈ em juizo...

--Qual fÈ, qual juizo! exclamou Ega violentamente. … o bastante para que
elle n„o torne a dormir com ella!...

Uma pancada timida na porta do cubiculo fÍl-o estacar, inquieto.
Desandou a chave. Era o escrevente, que segredou atravÈs da frincha:

--O snr. Carlos da Maia ficou agora l· em baixo no carrinho quando eu
entrei, perguntou pelo snr. VillaÁa.

Houve um p‚nico! Ega, atarantado, agarr·ra o chapÈo do VillaÁa. O
procurador atirava ·s m„os ambas, para dentro d'uma gaveta, os papeis da
Monforte.

--… talvez melhor dizer que n„o est·, lembrou o escrevente.

--Sim, que n„o est·! foi o grito abafado de ambos.

Ficaram · escuta, ainda pallidos. O dog-cart de Carlos rolou na calÁada;
os dois amigos respiraram. Mas agora Ega arrependia-se de n„o terem
mandado subir Carlos--e alli mesmo, sem outras vacillaÁıes nem
pieguices, corajosamente, contarem-lhe tudo, diante d'aquelles papeis
bem abertos. E estava saltado o barranco!

--Homem, dizia o VillaÁa passando o lenÁo pela testa, as coisas
querem-se devagar, com methodo. … necessario preparar-se a gente,
respirar para dar bem o mergulho...

Em todo o caso, concluiu o Ega, eram ociosas mais conversas. Os outros
papeis da caixa perdiam o interesse depois d'aquella confiss„o da
Monforte. SÛ restava que VillaÁa apparecesse · noite no Ramalhete ·s
oito e meia, ou nove horas, antes de Carlos sahir para a rua de S.
Francisco.

--Mas o amigo ha de l· estar! exclamou o procurador, j· aterrado.

Ega prometteu. VillaÁa teve um pequeno suspiro. Depois, no patamar, onde
viera acompanhar o outro:

--Uma d'estas, uma d'estas!... E eu ainda, t„o contente, a jantar no
Ramalhete...

--E eu, com elles, na rua de S. Francisco!...

--Emfim, atÈ · noite!

--AtÈ · noite.

Ega n„o se atreveu n'esse dia a voltar ao Ramalhete, a jantar diante de
Carlos, a vÍr-lhe a alegria e a paz--sentindo aquella negra desgraÁa que
descia sobre elle · maneira que a noite descia. Foi pedir as sopas ao
marquez, que desde o sarau se conservava em casa, de garganta entrapada.
Depois, ·s oito e meia, quando calculou que VillaÁa devia estar j· no
Ramalhete, deixou o marquez que se enfronh·ra com o capell„o n'uma
partida de damas.

Aquelle lindo dia, toldado de tarde, find·ra n'uma chuvinha miuda que
transia as ruas. Ega tomou uma tipoia. E parava no Ramalhete, j·
terrivelmente nervoso, quando avistou VillaÁa no portal, de guardachuva
sob o braÁo, arregaÁando as calÁas para sahir.

--Ent„o? gritou-lhe o Ega.

VillaÁa abriu o guardachuva, para murmurar debaixo, mas em segredo:

--N„o foi possivel... Disse que tinha muita pressa, que n„o me podia
ouvir.

Ega bateu o pÈ, desesperado:

--Oh homem!

--Que quer o amigo? Havia de o agarrar · forÁa? Ficou para ·manh„...
Tenho de c· estar ·manh„ ·s onze horas.

Ega galgou as escadas, rosnando entre dentes: ´Irra! n„o sahimos
d'esta!ª Foi atÈ ao escriptorio de Affonso. Mas n„o entrou. AtravÈs
d'uma fenda larga do reposteiro meio franzido, um canto da sala
apparecia, quente e cheio de conchÍgo, no dÙce tom cÙr de rosa da luz
cahindo sobre os damascos: as cartas esperavam na mesa do whist: no sof·
bordado a matiz D. Diogo, murcho e molle, olhava o lume, cofiando os
bigodes. E, travadas n'alguma quest„o, a voz do Craft, que perpassou de
cachimbo na m„o, e a voz mais lenta de Affonso, tranquillo na sua
poltrona, misturavam-se, abafadas pela do Sequeira, que berrava
furiosamente:--´Mas se ·manh„ houvesse uma bernarda, esse exercito com
que os senhores querem acabar por ser uma escÛla de vadiagem È que lhes
havia de guardar as costas... … bom fallar, ter muita philosophia! Mas
quando ellas chegam, se n„o ha meia duzia de baionetas promptas, ent„o
s„o as cÛlicas!...ª

Ega foi d'alli aos quartos de Carlos. As velas ardiam ainda nas
serpentinas: um aroma errava de agua de Lubin e charuto: e o Baptista
disse-lhe que o snr. D. Carlos ´sahira havia dez minutosª. FÙra para a
rua de S. Francisco! Ia l· dormir! Ent„o enervado, com a longa e triste
noite diante de si, Ega teve um appetite de se atordoar, dissipar n'uma
excitaÁ„o forte as idÈas que o torturavam. N„o despedira a tipoia,
abalou para S. Carlos. E findou por ir cear ao Augusto com o Taveira e
duas raparigas, a Paca e a Carmen Philosopha, prodigalisando o
champagne. ¡s quatro da manh„ estava bebedo, estatelado sobre o sof·,
gemendo sentimentalmente, sÛ para si, as estrophes de Musset ·
Malibran... O Taveira e a Paca, juntinhos na mesma cadeira, elle com o
seu ar terno de chulo, ella _muy caliente_ tambem, debicavam copinhos de
gelatina. E a Carmen Philosopha, empanturrada, desapertada, com o
collete embrulhado j· n'um _Diario de Noticias_, repicava a faca na
borda do prato, cantarolando d'olhos perdidos nos bicos de gaz:


    SeÒor Alcalde mayor,
    No prenda usted los ladrones...




Acordou ao outro dia ·s nove horas, ao lado da Carmen Philosopha, n'um
quarto de grandes janellas rasgadas por onde entrava toda a melancolia
da escura manh„ de chuva. E, emquanto n„o vinha a tipoia fechada que a
servente correra a chamar, o pobre Ega enojado, vexado, com a lingua
pastosa, os pÈs n˙s sobre o tapete, reunindo o fato espalhado, tinha sÛ
uma idÈa clara--fugir d'alli para um grande banho, bem perfumado e bem
fresco, onde se purificasse d'uma sensaÁ„o viscosa de Carmen e d'orgia
que o arrepiava.

Esse banho lustral foi tomal-o ao _Hotel Braganza_, para se encontrar
com Carlos e com VillaÁa ·s onze horas j· lavado e preparado. Mas
precisou esperar pela roupa branca que o cocheiro, com um bilhete para o
Baptista, vo·ra a buscar ao Ramalhete: depois almoÁou: e j· batera meio
dia quando se apeou · porta particular dos quartos de Carlos, com a
roupa suja n'uma trouxa.

Justamente Baptista atravessava o patamar com camelias n'um aÁafate.

--O VillaÁa j· veio? perguntou-lhe Ega baixo, andando em pontas de pÈs.

--O snr. VillaÁa j· l· est· dentro ha bocado. V. exc.^a recebeu a roupa
branca?... Eu tambem mandei um fato, porque n'esses casos sempre d· mais
frescura...

--Obrigado, Baptista, obrigado!

E Ega pensava:--´Bem, Carlos j· sabe tudo, o barranco est· passado!ª Mas
demorou-se ainda, tirando as luvas e o paletot com uma lentid„o cobarde.
Por fim, sentindo bater alto o coraÁ„o, puxou o reposteiro de velludo.
Na ante-camara pesava um silencio; a chuva grossa fustigava a porta
envidraÁada, por onde se viam as arvores do jardim esfumadas na nevoa.
Ega levantou o outro reposteiro que tinha bordadas as armas dos Maias.

--Ah! Ès tu? exclamou Carlos, erguendo-se da mesa de trabalho com uns
papeis na m„o.

Parecia ter conservado um animo viril e firme: apenas os olhos lhe
rebrilhavam, com um fulgor sÍcco, anciosos e mais largos na pallidez que
o cobria. VillaÁa, sentado defronte, passava vagarosamente pela testa,
n'um movimento cansado, o lenÁo de sÍda da India. Sobre a mesa
alastravam-se os papeis da Monforte.

--Que diabo de embrulhada È esta que me vem contar o VillaÁa? rompeu
Carlos, cruzando os braÁos diante do Ega, n'uma voz que apenas de leve
tremia.

Ega balbuciou:

--Eu n„o tive coragem de te dizer...

--Mas tenho eu para ouvir!... Que diabo te contou esse homem?

VillaÁa ergueu-se immediatamente. Ergueu-se com a pressa d'um galucho
timido que È rendido n'um posto arriscado, pediu licenÁa, se n„o
precisavam d'elle, para voltar ao escriptorio. Os amigos decerto
preferiam conversar mais livremente. De resto, alli ficavam os papeis da
snr.^a D. Maria Monforte. E se elle fosse necessario um recado
encontrava-o na rua da Prata ou em casa...

--E v. exc.^a comprehende, acrescentou elle enrolando nas m„os o lenÁo
de sÍda, eu tomei a iniciativa de vir fallar, por ser o meu dever, como
amigo confidencial da casa... Foi essa tambem a opini„o do nosso Ega...

--Perfeitamente, VillaÁa, obrigado! acudiu Carlos. Se fÙr necessario l·
mando...

O procurador, com o lenÁo na m„o, lanÁou em redor um olhar lento. Depois
espreitou debaixo da mesa. Parecia muito surprehendido. E Carlos seguia
com impaciencia os passos timidos que elle dava pelo quarto,
procurando...

--Que È, homem?

--O meu chapÈo. Imaginei que o tinha posto aqui... Naturalmente ficou l·
fÛra... Bem, se fÙr necessario alguma coisa...

Mal elle sahiu, atirando ainda os olhos inquietos pelos cantos, Carlos
fechou violentamente o reposteiro. E voltando para o Ega, cahindo
pesadamente n'uma cadeira:

--Dize l·!

Ega, sentado no sof·, comeÁou por contar o encontro com o snr.
Guimar„es, em baixo no botequim da Trindade, depois de ter fallado o
Rufino. O homem queria explicaÁıes sobre a carta do Damaso, sobre a
bebedeira hereditaria... Tudo se aclar·ra, ficando d'ahi entre elles um
comeÁo de familiaridade...

Mas o reposteiro mexeu de leve--e surdiu de novo a face do VillaÁa:

--PeÁo desculpa, mas È o meu chapÈo... N„o o acho, havia de jurar que o
deixei aqui...

Carlos conteve uma praga. Ent„o Ega procurou tambem, por traz do sof·,
no v„o da janella. Carlos, desesperado, para findar, foi vÍr entre os
cortinados da cama. E VillaÁa, escarlate, afflicto, esquadrinhava atÈ a
alcova do banho...

--Um sumiÁo assim! Emfim, talvez me esquecesse na ante-camara!... Vou
vÍr outra vez... O que peÁo È desculpa.

Os dois ficaram sÛs. E Ega recomeÁou, detalhando como Guimar„es, duas ou
tres vezes nos intervallos, lhe viera fallar de coisas indifferentes, do
sarau, de politica, do pap· Hugo, etc. Depois elle procur·ra Carlos para
irem um bocado ao Gremio. Termin·ra por sahir com o Cruges. E passavam
defronte do AllianÁa...

Novamente o reposteiro franziu, Baptista pediu perd„o a suas
excellencias:

--… o snr. VillaÁa que n„o acha o chapÈo, diz que o deixou aqui...

Carlos ergueu-se furioso, agarrando a cadeira pelas costas como para
despedaÁar o Baptista.

--Vai para o diabo tu e o snr. VillaÁa!... Que s·ia sem chapÈo! D·-lhe
um chapÈo meu! Irra!

Baptista recuou, muito grave.

--V·, acaba l·! exclamou Carlos, recahindo no assento, mais pallido.

E Ega, miudamente, contou a sua longa, terrivel conversa com o
Guimar„es, desde o momento em que o homem por acaso, j· ao despedir-se,
j· ao estender-lhe a m„o, fall·ra da ´irm„ do Maiaª. Depois
entreg·ra-lhe os papeis da Monforte · porta do _Hotel de Paris_, no
Pelourinho...

--E aqui est·, n„o sei mais nada. Imagina tu que noite eu passei! Mas
n„o tive coragem de te dizer. Fui ao VillaÁa... Fui ao VillaÁa com a
esperanÁa sobretudo de elle saber algum facto, ter algum documento que
atirasse por terra toda esta historia do Guimar„es... N„o tinha nada,
n„o sabia nada. Ficou t„o aniquilado como eu!

No curto silencio que cahiu, um chuveiro mais largo, alagando o arvoredo
do jardim, cantou nas vidraÁas. Carlos ergueu-se arrebatadamente, n'uma
revolta de todo o sÍr:

--E tu acreditas que isso seja possivel? Acreditas que succeda a um
homem como eu, como tu, n'uma rua de Lisboa? Encontro uma mulher, Ûlho
para ella, conheÁo-a, durmo com ella e, entre todas as mulheres do
mundo, essa justamente ha de ser minha irm„! … impossivel... N„o ha
Guimar„es, n„o ha papeis, n„o ha documentos que me convenÁam!

E como Ega permanecia mudo, a um canto do sof·, com os olhos no ch„o:

--Dize alguma coisa, gritou-lhe Carlos. DuvÌda tambem, homem, duvÌda
commigo!... … extraordinario! Todos vocÍs acreditam, como se isto fosse
a coisa mais natural do mundo, e n„o houvesse por essa cidade fÛra sen„o
irm„os a dormir juntos!

Ega murmurou:

--J· ia succedendo um caso assim, l· ao pÈ da quinta, em Celorico...

E n'esse momento, sem que um rumor os prevenisse, Affonso da Maia
appareceu n'uma abertura do reposteiro, encostado · bengala, sorrindo
todo com alguma idÈa que decerto o divertia. Era ainda o chapÈo do
VillaÁa.

--Que diabo fizeram vocÍs ao chapÈo do VillaÁa? O pobre homem andou por
ahi afflicto... Teve de levar um chapÈo meu. Cahia-lhe pela cabeÁa
abaixo, enchumaÁaram-lh'o com lenÁos...

Mas subitamente reparou na face transtornada do neto. Reparou na
atarantaÁ„o do Ega cujos olhos mal se fixavam, fugindo anciosamente
d'elle para Carlos. Todo o sorriso se lhe apagou, deu no quarto um passo
lento:

--Que È isso, que tÍm vocÍs?... Ha alguma coisa?

Ent„o Carlos, no ardente egoismo da sua paix„o, sem pensar no abalo
cruel que ia dar ao pobre velho, cheio sÛ de esperanÁa que elle, seu
avÙ, testemunha do passado, soubesse algum facto, possuisse alguma
certeza contraria a toda essa historia do Guimar„es, a todos esses
papeis da Monforte--veio para elle, desabafou:

--Ha uma coisa extraordinaria, avÙ! O avÙ talvez saiba... O avÙ deve
saber alguma coisa que nos tire d'esta afflicÁ„o!... Aqui est·, em duas
palavras. Eu conheÁo ahi uma senhora que chegou ha tempos a Lisboa, mora
na rua de S. Francisco. Agora de repente descobre-se que È minha irm„
legitima!... Passou ahi um homem que a conhecia, que tinha uns papeis...
Os papeis ahi est„o. S„o cartas, uma declaraÁ„o de minha m„e... Emfim
uma trapalhada, um mont„o de provas... Que significa tudo isto? Essa
minha irm„, a que foi levada em pequena, n„o morreu?... O avÙ deve
saber!

Affonso da Maia, que um tremor tom·ra, agarrou-se um momento com forÁa ·
bengala, cahiu por fim pesadamente n'uma poltrona, junto do reposteiro.
E ficou devorando o neto, o Ega, com um olhar esgazeado e mudo.

--Esse homem, exclamou Carlos, È um Guimar„es, um tio do Damaso...
Fallou com o Ega, foi ao Ega que entregou os papeis... Conta tu ao avÙ,
Ega, conta tu do comeÁo!

Ega, com um suspiro, resumiu a sua longa historia. E findou por dizer
que o importante, o decisivo alli era este homem, o Guimar„es, que n„o
tinha interesse em mentir e sÛ por acaso, puramente por acaso, fall·ra
em taes coisas--conhecia essa senhora, desde pequenina, como filha de
Pedro da Maia e de Maria Monforte. E nunca a perdera de vista. Vira-a
crescer em Paris, and·ra com ella ao collo, dera-lhe bonecas. Visit·ra-a
com a m„i no convento. Frequent·ra a casa que ella habitava em
Fontainebleau, como casada...

--Emfim, interrompeu Carlos, viu-a ainda ha dias, n'uma carruagem,
commigo e com o Ega... Que lhe parece, avÙ?

O velho murmurou, n'um grande esforÁo, como se as palavras sahindo lhe
rasgassem o coraÁ„o:

--Essa senhora, est· claro, n„o sabe nada...

Ega e Carlos, a um tempo, gritaram:--´N„o sabe nada!ª Segundo affirmava
o Guimar„es, a m„i escondera-lhe sempre a verdade. Ella julgava-se filha
d'um austriaco. Assignava-se ao principio Calzaski...

Carlos, que remexera sobre a mesa, adiantou-se com um papel na m„o:

--Aqui tem o avÙ a declaraÁ„o de minha m„i.

O velho levou muito tempo a procurar, a tirar a luneta d'entre o collete
com os seus pobres dedos que tremiam; leu o papel devagar,
empallidecendo mais a cada linha, respirando penosamente; ao findar
deixou cahir sobre os joelhos as m„os, que ainda agarravam o papel,
ficou como esmagado e sem forÁa. As palavras por fim vieram-lhe
apagadas, morosas. Elle nada sabia... O que a Monforte alli assegurava,
elle n„o o podia destruir... Essa senhora da rua de S. Francisco era
talvez na verdade sua neta... N„o sabia mais...

E Carlos diante d'elle vergava os hombros, esmagado tambem sob a certeza
da sua desgraÁa. O avÙ, testemunha do passado, nada sabia! Aquella
declaraÁ„o, toda a historia do Guimar„es ahi permaneciam inteiras,
irrefutaveis. Nada havia, nem memoria de homem, nem documento escripto,
que as pudesse abalar. Maria Eduarda era, pois, sua irm„!... E um
defronte do outro, o velho e o neto pareciam dobrados por uma mesma
dÙr--nascida da mesma idÈa.

Por fim Affonso ergueu-se, fortemente encostado · bengala, foi pousar
sobre a mesa o papel da Monforte. Deu um olhar, sem lhes tocar, ·s
cartas espalhadas em volta da caixa de charutos. Depois, lentamente,
passando a m„o pela testa:

--Nada mais sei... Sempre pensamos que essa crianÁa tinha morrido...
Fizeram-se todas as pesquizas... Ella mesma disse que lhe tinha morrido
a filha, mostrou j· n„o sei a quem um retrato...

--Era outra mais nova, a filha do italiano, disse o Ega. O Guimar„es
fallou-me n'isso... Foi esta que viveu. Esta, que tinha j· sete a oito
annos, quando havia apenas quatro ou cinco que esse sujeito italiano
apparecera em Lisboa... Foi esta.

--Foi esta, murmurou o velho.

Teve um gesto vago de resignaÁ„o, acrescentou, depois de respirar
fortemente:

--Bem! Tudo isto tem de ser mais pensado... Parece-me bom tornar a
chamar o VillaÁa... Talvez seja necessario que elle v· a Paris... E
antes de tudo precisamos socegar... De resto n„o ha aqui morte
d'homem... N„o ha aqui morte d'homem!

A voz sumia-se-lhe, toda tremula. Estendeu a m„o a Carlos que lh'a
beijou, suffocado; e o velho, puxando o neto para si, pousou-lhe os
labios na testa. Depois deu dois passos para a porta, t„o lentos e
incertos que Ega correu para elle:

--Tome v. exc.^a o meu braÁo...

Affonso apoiou-se n'elle, pesadamente. Atravessaram a ante-camara
silenciosa onde a chuva contÌnua batia os vidros. Por traz d'elles cahiu
o grande reposteiro com as armas dos Maias. E ent„o Affonso, de repente,
soltando o braÁo do Ega, murmurou-lhe, junto · face, no desabafo de toda
a sua dÙr:

--Eu sabia d'essa mulher!... Vive na rua de S. Francisco, passou todo o
ver„o nos Olivaes... … a amante d'elle!

Ega ainda balbuciou: ´N„o, n„o, snr. Affonso da Maia!ª Mas o velho pÙz o
dedo nos labios, indicou Carlos dentro que podia ouvir... E afastou-se,
todo dobrado sobre a bengala, vencido emfim por aquelle implacavel
destino que depois de o ter ferido na idade de forÁa com a desgraÁa do
filho--o esmagava ao fim da velhice com a desgraÁa do neto.

Ega enervado, exhausto, voltou para o quarto--onde Carlos recomeÁ·ra
n'aquelle agitado passeio que abalava o soalho, fazia tilintar finamente
os frascos de crystal sobre o marmore da console. Calado, junto da mesa,
Ega ficou percorrendo outros papeis da Monforte--cartas, um livrinho de
marroquim com adresses, bilhetes de visita de membros do Jockey Club e
de senadores do imperio. Subitamente Carlos parou diante d'elle,
apertando desesperadamente as m„os:

--Estarem duas creaturas em pleno cÈo, passar um quidam, um idiota, um
Guimar„es, dizer duas palavras, entregar uns papeis e quebrar para
sempre duas existencias!... Olha que isto È horrivel, Ega!

Ega arriscou uma consolaÁ„o banal:

--Era peor se ella morresse...

--Peor porque? exclamou Carlos. Se ella morresse, ou eu, acabava o
motivo d'esta paix„o, restava a dÙr e a saudade, era outra coisa...
Assim estamos vivos, mas mortos um para o outro, e viva a paix„o que nos
unia!... Pois tu imaginas que por me virem provar que ella È minha irm„,
eu gÛsto menos d'ella do que gostava hontem, ou gÛsto d'um modo
differente? Est· claro que n„o! O meu amor n„o se vai d'uma hora para a
outra accommodar a novas circumstancias, e transformar-se em amizade...
Nunca! Nem eu quero!

Era uma brutal revolta--o seu amor defendendo-se, n„o querendo morrer,
sÛ porque as revelaÁıes d'um Guimar„es e uma caixa de charutos cheia de
papeis velhos o declaravam impossivel, e lhe ordenavam que morresse!

Houve outro melancolico silencio. Ega accendeu uma cigarette, foi-se
enterrar ao canto do sof·. Uma fadiga ia-o vencendo, feita de toda
aquella emoÁ„o, da noitada no Augusto, da estremunhada manh„ na alcova
da Carmen. Todo o quarto ia entristecendo, · luz mais triste da tarde
d'inverno que descia. Ega terminou por cerrar os olhos. Mas bem depressa
o sacudiu outra exclamaÁ„o de Carlos, que de novo, diante d'elle,
apertava as m„os com desespero:

--E o peor ainda n„o È isto, Ega! O peor È que temos de lhe dizer tudo,
de lhe contar tudo, a ella!...

Ega j· pens·ra n'isso... E era necessario que se lhe dissesse
immediatamente, sem hesitaÁıes.

--Vou-lhe eu mesmo contar tudo, murmurou Carlos.

--Tu!?

--Pois quem, ent„o? Querias que fosse o VillaÁa?...

Ega franzia a testa:

--O que tu devias fazer era metter-te esta noite no comboio, e partir
para Santa Olavia. De l· contavas-lhe tudo. Estavas assim mais seguro.

Carlos atirou-se para uma poltrona, com um grande suspiro de fadiga:

--Sim, talvez, ·manh„, no comboio da noite... J· pensei n'isso, era o
melhor... Agora o que estou È muito cansado!

--Tambem eu, disse o Ega espreguiÁando-se. E j· n„o adiantamos nada,
atolamo-nos mais na confus„o. O melhor È serenar... Eu vou-me estirar um
bocado na cama.

--AtÈ logo!

Ega subiu ao quarto, deitou-se por cima da roupa; e no seu immenso
cansaÁo bem depressa adormeceu. Acordou tarde a um rumor da porta. Era
Carlos que entrava, raspando um phosphoro. Anoitecera, em baixo tocava a
campainha para o jantar.

--Demais a mais esta massada do jantar! dizia Carlos accendendo as velas
no toucador. N„o termos um pretexto para irmos fÛra, a uma taverna,
conversar em socego! Ainda por cima convidei hontem o Steinbroken.

Depois voltando-se:

--” Ega, tu achas que o avÙ sabe tudo?

O outro salt·ra da cama, e diante do lavatorio arregaÁava as mangas:

--Eu te digo... Parece-me que teu avÙ desconfia... O caso fez-lhe a
impress„o d'uma catastrophe... E, se n„o suspeitasse o que ha, devia-lhe
causar simplesmente a surpreza de quem descobre uma neta perdida.

Carlos teve um lento suspiro. D'ahi a um instante desciam para o jantar.

Em baixo encontraram, alÈm de Steinbroken e de D. Diogo--o Craft, que
viera ´pedir as sopasª. E em tÙrno ·quella mesa, sempre alegre, coberta
de flÙres e de luzes, uma melancolia fluctuava n'essa tarde atravÈs
d'uma conversa dormente sobre doenÁas,--o Sequeira que tinha
rheumatismo, o pobre marquez peor·ra.

De resto Affonso, no escriptorio, queix·ra-se d'uma forte dÙr de cabeÁa,
que justificava o seu ar consumido e _pallido_. Carlos, a quem
Steinbroken ach·ra ´m· caraª, explicou tambem que pass·ra uma noite
abominavel. Ent„o Ega, para desanuviar o jantar, pediu ao amigo
Steinbroken as suas impressıes sobre o grande orador do sarau da
Trindade, o Rufino. O diplomata hesitou. Surprehendera-o bastante saber
que o Rufino era um politico, um parlamentar... Aquelles gestos, o
bocado da camisa a vÍr-se-lhe no estomago, a pera, a grenha, as botas,
n„o lhe pareciam realmente d'um Homem d'Estado:

--Mais cependant, cependant... Dans ce genre l‡, dans le genre sublime,
dans le genre de DemosthËnes, il m'a paru trËs fort... Oh, il m'a paru
excessivement fort!

--E vocÍ, Craft?

Craft, no sarau, sÛ gost·ra do Alencar. Ega encolheu violentamente os
hombros. Ora historias! Nada podia haver mais comico que a Democracia
romantica do Alencar, aquella Republica meiga e loura, vestida de branco
como Ophelia, orando no prado, sob o olhar de Deus... Mas Craft
justamente achava tudo isso excellente por ser sincero. O que feria
sempre nas exhibiÁıes da litteratura portugueza? A escandalosa falta de
sinceridade. Ninguem, em verso ou prosa, parecia j·mais acreditar
n'aquillo que declamava com ardor, esmurrando o peito. E assim fÙra na
vespera. Nem o Rufino parecia acreditar na influencia da religi„o; nem o
homem da barba bicuda no heroismo dos Castros e dos Albuquerques; nem
mesmo o poeta dos olhinhos bonitos na bonitice dos olhinhos... Tudo
contrafeito e postiÁo! Com o Alencar, que differenÁa! Esse tinha uma fÈ
real no que cantava, na Fraternidade dos povos, no Christo republicano,
na Democracia devota e coroada d'estrellas...

--J· deve ser bem velho esse Alencar, observou D. Diogo que rolava
bolinhas de p„o entre os longos dedos pallidos.

Carlos, ao lado, emergiu emfim do seu silencio:

--O Alencar deve ter bons cincoenta annos.

Ega jurou pelo menos sessenta. J· em 1836 o Alencar publicava coisas
delirantes, e chamava pela morte, no remorso de tantas virgens que
seduzira...

--Ha que annos, com effeito, murmurou lentamente Affonso, eu ouvi fallar
d'esse homem!

D. Diogo, que lev·ra os labios ao copo, voltou-se para Carlos:

--O Alencar tem a idade que havia de ter teu pai... Eram intimos, d'essa
roda _distinguÈe_ d'ent„o. O Alencar ia muito a Arroios com o pobre D.
Jo„o da Cunha, que Deus haja, e com os outros. Era tudo uma fina flÙr, e
regulavam pela mesma idade... J· nada resta, j· nada resta!

Carlos baix·ra os olhos: todos por acaso emmudeceram: um ar de tristeza
passou entre as flÙres e as luzes como vinda do fundo d'esse passado,
cheio de sepulturas e dÙres.

--E o pobre Cruges, coitado, que fiasco! exclamou Ega, para sacudir
aquella nevoa.

Craft achava o fiasco justo. Para que fÙra elle dar Beethoven a uma
gente educada pela chulice de Offenbach? Mas Ega n„o admittia esse
desdem por Offenbach, uma das mais finas manifestaÁıes modernas do
scepticismo e da ironia! Steinbroken accusou Offenbach de n„o saber
contra-ponto. Durante um momento discutiu-se musica. Ega acabou por
sustentar que nada havia em arte t„o bello como o _fado_. E appellou
para Affonso, para o despertar.

--Pois n„o È verdade, snr. Affonso da Maia? V. exc.^a tambem È como eu,
um dos fieis ao fado, · nossa grande creaÁ„o nacional.

--Sim, com effeito, murmurou o velho, levando a m„o · testa, como a
justificar o seu modo desinteressado e murcho. Ha muita poesia no
fado...

Craft porÈm atacava o fado, as _malagueÒas_, as _peteneras_--toda essa
musica meridional, que lhe parecia apenas um garganteado gemebundo,
prolongado infinitamente, em _ais_ de esterilidade e de preguiÁa. Elle,
por exemplo, ouvira uma noite uma _malagueÒa_, uma d'essas famosas
_malagueÒas_, cantada em perfeito estylo por uma senhora de Malaga. Era
em Madrid, em casa dos Villa-Rubia. A senhora pıe-se ao piano, rosna uma
coisa sobre _piedra_ e _sepultura_, e rompe a gemer n'um gemido que n„o
findava--_„-„-„-„-„-ah_... Pois senhores, elle aborrece-se, passa para
outra sala, vÍ jogar todo um robber de whist, folheia um immenso album,
discute a guerra carlista com o general Jovellos, e quando volta, l·
estava ainda a senhora, de cravos na tranÁa e olhos no tecto, a gemer o
mesmo--_„-„-„-„-„-ah!_...

Todos riram. Ega protestou com impeto, j· excitado. O Craft era um sÍcco
inglez, educado sobre o chato seio da Economia Politica, incapaz de
comprehender todo o mundo de poesia que podia conter um ai! Mas elle n„o
fallava das _malagueÒas_. N„o estava encarregado de defender a Hespanha.
Ella possuia, para convencer o Craft e outros britannicos, bastante
pilheria e bastante navalha... A quest„o era o _fado_!

--Onde È que vocÍ tem ouvido o fado? Ahi pelas salas, ao piano... Com
effeito assim, concordo, È chÙcho. Mas ouÁa-o vocÍ por tres ou quatro
guitarristas, uma noite, no campo, com uma bella lua no cÈo... Como nos
Olivaes este ver„o, quando o marquez l· levou o _Vira-vira_! Lembras-te,
Carlos?...

E estacou, como entalado, no arrependimento d'aquella memoria da _Toca_
que levianamente evoc·ra. Carlos permanecera silencioso, com uma sombra
na face. Craft ainda rosnou que, n'uma linda noite de luar, todos os
sons no campo eram bonitos, mesmo o chiar dos sapos. E de novo uma
estranha desanimaÁ„o amolleceu a sala; os escudeiros serviam os dÙces.

Ent„o, no silencio, D. Diogo disse pensativamente, com a sua magestade
de le„o saudoso que relembra um grande passado:

--Uma musica tambem muito _distinguÈe_ antigamente eram os _Sinos do
mosteiro_. Parecia mesmo que se estavam ouvindo os sinos... J· n„o ha
d'isso!

O jantar terminava friamente. Steinbroken volt·ra ·quella falta da
familia real no sarau, que desde a vespera o inquietava. Ninguem alli se
interessava pelo PaÁo. Depois D. Diogo surdiu com uma velha e fastidiosa
historia sobre a infanta D. Isabel. Foi um allivio quando o escudeiro
trouxe em volta a larga bacia de prata e o jarro d'agua perfumada.

Ao fim do cafÈ, servido no bilhar, Steinbroken e Craft comeÁaram uma
partida ´·s cincoentaª e a quinze tostıes para interessar. Affonso e D.
Diogo tinham recolhido ao escriptorio. Ega enterr·ra-se no fundo d'uma
poltrona, com o _Figaro_. Mas bem depressa deixou escorregar a folha no
tapete, cerrou os olhos. Ent„o Carlos, que passeava pensativamente
fumando, olhou um momento o Ega adormecido, e sumiu-se por traz do
reposteiro.



Ia · rua de S. Francisco.

Mas n„o se apressava, a pÈ pelo Aterro, abafado n'um paletot de pelles,
acabando o charuto. A noite clare·ra, com um crescente de lua entre
farrapos de nuvens brancas, que fugiam sob um norte fino.

FÙra n'essa tarde, sÛ no seu quarto, que Carlos decidira ir fallar a
Maria Eduarda--por um motivo supremo de dignidade e de raz„o, que elle
descobrira e que repetia a si mesmo incessantemente para se justificar.
Nem ella nem elle eram duas crianÁas frouxas, necessitando que a crise
mais temerosa da sua vida lhes fosse resolvida e arranjada pelo Ega ou
pelo VillaÁa: mas duas pessoas fortes, com o animo bastante resoluto, e
o juizo bastante seguro, para elles mesmos acharem o caminho da
dignidade e da raz„o n'aquella catastrophe que lhes desmantelava a
existencia. Por isso elle, sÛ elle, devia ir · rua de S. Francisco.

Decerto era terrivel tornar a vÍl-a n'aquella sala, quente ainda do seu
amor, agora que a sabia sua irm„... Mas porque n„o? Havia acaso alli
dois devotos, possuidos da preoccupaÁ„o do demonio, espavoridos pelo
peccado em que se tinham atolado ainda que inconscientemente, anciosos
por irem esconder no fundo de mosteiros distantes o horror carnal um do
outro? N„o! Necessitavam elles acaso pÙr immediatamente entre si as
compridas legoas que v„o de Lisboa a Santa Olavia, com receio de cahir
na antiga fragilidade, se de novo os seus olhos se encontrassem
brilhando com a antiga chamma? N„o! Ambos tinham em si bastante forÁa
para enterrar o coraÁ„o sob a raz„o, como sob uma fria e dura pedra, t„o
completamente que n„o lhe sentissem mais nem a revolta nem o chÙro. E
elle podia desafogadamente voltar ·quella sala, toda quente ainda do seu
amor...

De resto, que precisavam appellar para a raz„o, para a sua coragem de
fortes?... Elle n„o ia revelar bruscamente _toda_ a verdade a Maria
Eduarda, dizer-lhe um ´adeus!ª pathetico, um adeus de theatro, affrontar
uma crise de paix„o e dÙr. Pelo contrario! Toda essa tarde, atravÈs do
seu proprio tormento, procur·ra anciosamente um meio de adoÁar e graduar
·quella pobre creatura o horror da revelaÁ„o que lhe devia. E ach·ra um
por fim, bem complicado, bem cobarde! Mas que! Era o unico, o unico que
por uma preparaÁ„o lenta, caridosa, lhe pouparia uma dÙr fulminante e
brutal. E esse meio justamente sÛ era praticavel indo elle, com toda a
frieza, com todo o animo, · rua de S. Francisco.

Por isso ia--e ao longo do Aterro, retardando os passos, resumia,
retocava esse plano, ensaiando mesmo comsigo, baixo, palavras que lhe
diria. Entraria na sala, com um grande ar de pressa--e contava-lhe que
um negocio de casa, uma complicaÁ„o de feitores o obrigava a partir para
Santa Olavia d'ahi a dias. E immediatamente sahia, com o pretexto de
correr a casa do procurador. Podia mesmo ajuntar--´È um momento, n„o
tardo, atÈ j·.ª Uma coisa o inquietava. Se ella lhe dÈsse um beijo?...
Decidia ent„o exagerar a sua pressa, conservando o charuto na bÙca, sem
mesmo pousar o chapÈo... E sahia. N„o voltava. Pobre d'ella, coitada,
que ia esperar atÈ tarde, escutando cada rumor de carruagem na rua!...
Na noite seguinte abalava para Santa Olavia com o Ega, deixando-lhe a
ella uma carta a annunciar que infelizmente, por causa d'um telegramma,
se vira forÁado a partir n'esse comboio. Podia mesmo ajuntar--´volto
d'aqui a dois ou tres dias...ª E ahi estava longe d'ella para sempre. De
Santa Olavia escrevia-lhe logo, d'um modo incerto e confuso, fallando de
documentos de familia, inesperadamente descobertos, provando entre elles
um parentesco chegado. Tudo isto atrapalhado, curto, ´· pressaª. Por fim
n'outra carta deixava escapar _toda_ a verdade, mandava-lhe a declaraÁ„o
da m„e; e mostrando a necessidade d'uma separaÁ„o, emquanto se n„o
esclarecessem todas as duvidas, pedia-lhe que partisse para Paris.
VillaÁa ficava encarregado da quest„o de dinheiro, entregando-lhe logo
para a viagem trezentas ou quatrocentas libras... Ah! tudo isto era bem
complicado, bem covarde! Mas sÛ havia esse meio. E quem, sen„o elle, o
podia tentar com caridade e com tacto?

E, entre o tumulto d'estes pensamentos, de repente achou-se na travessa
da Parreirinha, defronte da casa de Maria. Na sala, atravÈs das
cortinas, transparecia uma luz dormente. Todo o resto estava apagado--a
janella do gabinete estreito onde ella se vestia, a varanda do quarto
d'ella com os vasos de chrysantemos.

E pouco a pouco aquella fachada muda d'onde apenas sahia, a um canto,
uma claridade languida d'alcova adormecida, foi-o estranhamente
penetrando da inquietaÁ„o e desconfianÁa. Era um medo d'essa penumbra
molle que sentia l· dentro, toda cheia de calor e do perfume em que
havia jasmim. N„o entrou; seguiu devagar pelo passeio fronteiro,
pensando em certos detalhes da casa--o sof· largo e profundo com
almofadas de sÍda, as rendas do toucador, o cortinado branco da cama
d'ella... Depois parou diante da larga barra de claridade que sahia do
port„o do Gremio; e foi para l·, machinalmente attrahido pela
simplicidade e seguranÁa d'aquella entrada, lageada de pedra, com
grossos bicos de gaz, sem penumbras e sem perfumes.

Na sala, em baixo, ficou percorrendo, sem os comprehender, os
telegrammas soltos sobre a mesa. Um criado passou, elle pediu cognac.
Telles da Gama, que vinha de dentro assobiando, com as m„os nos bolsos
do paletot, deteve-se um momento para lhe perguntar se ia na terÁa-feira
aos Gouvarinhos.

--Talvez, murmurou Carlos.

--Ent„o venha!... Eu ando a arrebanhar gente... S„o os annos do Charlie,
de mais a mais. Cae l· o peso do mundo, e ha ceia!...

O criado entrou com a bandeja--e Carlos, de pÈ junto da mesa, remexendo
o assucar no copo, recordava, sem saber porque, aquella tarde em que a
condessa, pondo-lhe uma rosa no casaco, lhe dera o primeiro beijo; revia
o sof· onde ella cahira com um rumor de sÍdas amarrotadas... Como tudo
isto era j· vago e remoto!

Apenas acabou o cognac sahiu. Agora, caminhando rente das casas, n„o via
aquella fachada que o perturbava com a sua claridade d'alcova morrendo
nos vidros. O port„o fic·ra cerrado, o gaz ardia no patamar. E subiu,
sentindo mais pela escada de pedra as pancadas do coraÁ„o que o pousar
dos seus passos. Melanie, que veio abrir, disse-lhe que a senhora, um
pouco cansada, se fÙra encostar sobre a roupa;--e a sala, com effeito,
parecia abandonada por essa noite, com as serpentinas apagadas, o
bordado ocioso e enrolado no seu cesto, os livros n'um frio arranjo
orlando a mesa onde o candieiro espalhava uma luz tenue sob o abat-jour
de renda amarella.

Carlos tirava as luvas, lentamente, retomado de novo por uma inquietaÁ„o
ante aquelle recolhimento adormecido. E de repente Rosa correu de
dentro, rindo, pulando, com os cabellos soltos nos hombros, os braÁos
abertos para elle. Carlos levantou-a ao ar, dizendo como costumava: ´L·
vem a cabrita!...ª

Mas ent„o, quando a tinha assim suspensa, batendo os
pÈsinhos--atravessou-o a idÈa de que aquella crianÁa era sua sobrinha e
tinha o seu nome!... Largou-a, quasi a deixou cahir--assombrado para
ella, como se pela vez primeira visse essa facesinha eburnea e fina onde
corria o seu sangue...

--Que est·s tu a olhar para mim? murmurou ella, recuando e sorrindo, com
as m„osinhas cruzadas atraz das saias que tufavam.

Elle n„o sabia, parecia-lhe outra Rosa: e · sua perturbaÁ„o misturava-se
uma saudade pela antiga Rosa, a outra, a que era filha de Madame
Mac-Gren, a quem elle contava historias de Joanna d'Arc, a quem
balouÁava na _Toca_ sob as acacias em flÙr. Ella no emtanto sorria mais,
com um brilho nos dentinhos miudos, uma ternura nos bellos olhos azues,
vendo-o assim t„o grave e t„o mudo, pensando que elle ia brincar, fazer
´voz de Carlos Magnoª. Tinha o mesmo sorriso da m„i, com a mesma covinha
no queixo. Carlos viu n'ella de repente toda a graÁa de Maria, todo o
encanto de Maria. E arrebatou-a de novo nos braÁos, t„o violentamente,
com beijos t„o bruscos no cabello e nas faces, que Rosa estrebuchou,
assustada e com um grito. Soltou-a logo, n'um receio de n„o ter sido
casto... Depois, muito sÈrio:

--Onde est· a mam„?

Rosa coÁava o braÁo, com a testasinha franzida:

--Apre!... Magoaste-me.

Carlos passou-lhe pelos cabellos a m„o que ainda tremia.

--V·, n„o sejas piegas, a mam„ n„o gosta. Onde est· ella?

A pequena, aplacada, j· contente, pulava em redor, agarrando nos pulsos
de Carlos para que elle saltasse tambem...

--A mam„ foi deitar-se... Diz que est· muito cansada, depois chama-me a
mim preguiÁosa... V·, salta tambem. N„o sejas mono!...

N'esse instante, do corredor, miss Sarah chamou:

--Mademoiselle!...

Rosa pÙz o dedinho na bÙca cheia de riso:

--Dize-lhe que n„o estou aqui! A vÍr... Para a fazer zangar!... Dize!

Miss Sarah erguera o reposteiro; e descobriu-a logo escondida, sumida
por traz de Carlos, na pontinha dos pÈs, fazendo-se pequenina. Teve um
sorriso benevolo, murmurou ´good night, sirª. Depois lembrou que eram
quasi nove e meia, mademoiselle tinha estado um pouco constipada e devia
recolher-se. Ent„o Carlos puxou brandamente pelo braÁo de Rosa,
acariciou-a ainda para que ella obedecesse a miss Sarah.

Mas Rosa sacudia-o, indignada d'aquella traiÁ„o.

--Tambem nunca fazes nada!... Semsabor„o! Pois olha, nem te digo adeus!

Atravessou a sala, amuada, esquivou-se com um repell„o · governante que
sorria e lhe estendia a m„o--e pelo corredor rompeu n'um chÙro
despeitado e pÍrro. Miss Sarah risonhamente desculpou mademoiselle. Era
a constipaÁ„o que a tornava impertinente. Mas se fosse diante da mam„
n„o fazia aquillo, n„o!

--Good night, sir.

--Good night, miss Sarah...

SÛ, Carlos errou alguns momentos pela sala. Por fim ergueu o pedaÁo de
tapeÁaria que cerrava o estreito gabinete onde Maria se vestia. Ahi, na
escurid„o, um brilho pallido d'espelho tremia, batido por um longo raio
do candieiro da rua. Muito de leve empurrou a porta do quarto.

--Maria!... Est·s a dormir?

N„o havia luz; mas o mesmo candieiro da rua, atravÈs do transparente
erguido, tirava das trevas a brancura vaga do cortinado que envolvia o
leito. E foi d'ahi que ella murmurou, mal acordada:

--Entra! Vim-me deitar, estava muito cansada... Que horas s„o?

Carlos n„o se movera, ainda com a m„o na porta:

--… tarde, e eu preciso sahir j· a procurar o VillaÁa ... Vinha dizer-te
que tenho talvez de ir a Santa Olavia, alÈm d'·manh„, por dois ou tres
dias...

Um movimento, entre os cortinados, fez ranger o leito.

--Para Santa Olavia?... Ora essa, porque? E assim de repente...
Entra!... Vem c·!

Ent„o Carlos deu um passo no tapete, sem rumor. Ainda sentia o ranger
molle do leito. E j· todo aquelle aroma d'ella que t„o bem conhecia,
esparso na sombra tepida, o envolvia, lhe entrava n'alma com uma
seducÁ„o inesperada de caricia nova, que o perturbava estranhamente. Mas
ia balbuciando, insistindo na sua pressa de encontrar essa noite o
VillaÁa.

--… uma massada, por causa d'uns feitores, d'umas aguas...

Tocou no leito; e sentou-se muito · beira, n'uma fadiga que de repente o
enle·ra, lhe tirava a forÁa para continuar essas invenÁıes d'aguas e de
feitores, como se ellas fossem montanhas de ferro a mover.

O grande e bello corpo de Maria, embrulhado n'um roup„o branco de sÍda,
movia-se, espreguiÁava-se languidamente sobre o leito brando.

--Achei-me t„o cansada, depois de jantar, veio-me uma preguiÁa... Mas
ent„o partires assim de repente!... Que sÈcca! D· c· a m„o!

Elle tenteava, procurando na brancura da roupa: encontrou um joelho a
que percebia a fÛrma e o calor suave, atravÈs da sÍda leve: e alli
esqueceu a m„o, aberta e frouxa, como morta, n'um entorpecimento onde
toda a vontade e toda a consciencia se lhe fundiam, deixando-lhe apenas
a sensaÁ„o d'aquella pelle quente e macia onde a sua palma pousava. Um
suspiro, um pequenino suspiro de crianÁa, fugiu dos labios de Maria,
morreu na sombra. Carlos sentiu a quentura de desejo que vinha d'ella,
que o entontecia, terrivel como o bafo ardente d'um abysmo, escancarado
na terra a seus pÈs. Ainda balbuciou: ´n„o, n„o...ª Mas ella estendeu os
braÁos, envolveu-lhe o pescoÁo, puxando-o para si, n'um murmurio que era
como a continuaÁ„o do suspiro, e em que o nome de _querido_ susurrava e
tremia. Sem resistencia, como um corpo morto que um sopro impelle, elle
cahiu-lhe sobre o seio. Os seus labios seccos acharam-se collados n'um
beijo aberto que os humedecia. E de repente, Carlos enlaÁou-a
furiosamente, esmagando-a e sugando-a, n'uma paix„o e n'um desespero que
fez tremer todo o leito.



A essa hora Ega acordava no bilhar, ainda estirado na poltrona onde o
cansaÁo o prostr·ra. Bocejando, estremunhado, arrastou os passos atÈ ao
escriptorio de Affonso.

Ahi ardia um lume alegre, a que o reverendo Bonifacio se deixava torrar,
enrolado sobre a pelle d'urso. Affonso fazia a partida de whist com
Steinbroken e com o VillaÁa: mas t„o distrahido, t„o confuso, que j·
duas vezes D. Diogo, infeliz e irritado, rosn·ra que se a dÙr de cabeÁa
assim o estonteava melhor seria findarem! Quando Ega appareceu, o velho
levantou os olhos inquietos:

--O Carlos? Sahiu?...

--Sim, creio que sahiu com o Craft, disse o Ega. Tinham fallado em ir
vÍr o marquez.

VillaÁa, que baralhava com a sua lentid„o meticulosa, deitou tambem para
o Ega um olhar curioso e vivo. Mas j· D. Diogo batia com os dedos no
pano da mesa, resmungando:--´Vamos l·, vamos l·... N„o se ganha nada em
saber dos outros!ª Ent„o Ega ficou alli um momento, com bocejos vagos,
seguindo o cahir lento das cartas. Por fim, molle e seccado, decidiu ir
lÍr para a cama, hesitou por diante das estantes, sahiu com um velho
numero do _Panorama_.

Ao outro dia, · hora do almoÁo, entrou no quarto de Carlos. E ficou
pasmado quando o Baptista--tristonho desde a vespera, farejando
desgosto--lhe disse que Carlos fÙra para a Tapada, muito cedo, a
cavallo...

--Ora essa!... E n„o deixou ordens nenhumas, n„o fallou em ir para Santa
Olavia?...

Baptista olhou Ega, espantado:

--Para Santa Olavia!... N„o senhor, n„o fallou em semelhante coisa. Mas
deixou uma carta para v. exc.^a vÍr. Creio que È do snr. marquez. E diz
que l· apparecia depois, ·s seis... Acho que È jantar.

N'um bilhete de visita, o marquez, com effeito, lembrava que esse dia
era ´o seu fausto natalicioª, e esperava Carlos e o Ega ·s seis, para
lhe ajudarem a comer a gallinha de dieta.

--Bem, l· nos encontraremos, murmurou Ega, descendo para o jardim.

Aquillo parecia-lhe extraordinario! Carlos passeando a cavallo, Carlos
jantando com o marquez, como se nada houvesse perturbado a sua vida
facil de rapaz feliz!... Estava agora certo de que elle na vespera fÙra
· rua de S. Francisco. Justos cÈos! Que se teria l· passado? Subiu,
ouvindo a sineta do almoÁo. O escudeiro annunciou-lhe que o snr. Affonso
da Maia tom·ra uma chavena de ch· no quarto e ainda estava recolhido.
Todos sumidos! Pela primeira vez no Ramalhete Ega almoÁou solitariamente
na larga mesa, lendo a _Gazeta Illustrada_.

De tarde, ·s seis, no quarto do marquez (que tinha o pescoÁo enrolado
n'uma _boa_ de senhora de pelle de marta), encontrou Carlos, o Darque, o
Craft, em torno d'um rapaz gordo que tocava guitarra--emquanto ao lado o
procurador do marquez, um bello homem de barba preta, se batia com o
Telles n'uma partida de damas.

--Viste o avÙ? perguntou Carlos, quando o Ega lhe estendeu a m„o.

--N„o, almocei sÛ.

O jantar, d'ahi a pouco, foi muito divertido, largamente regado com os
soberbos vinhos da casa. E ninguem decerto bebeu mais, ninguem riu mais
do que Carlos, resurgido quasi de repente d'uma desanimaÁ„o sombria a
uma alegria nervosa--que incommodava o Ega, sentindo n'ella um timbre
falso e como um som de crystal rachado. O proprio Ega por fim ·
sobremesa se excitou consideravelmente com um esplendido Porto de 1815.
Depois houve um _baccarat_ em que Carlos, outra vez sombrio, deitando a
cada instante os olhos ao relogio, teve uma sorte triumphante, uma
´sorte de cabr„oª, como a classificou o Darque, indignado, ao trocar a
sua ultima nota de vinte mil reis. ¡ meia noite porÈm, inexoravelmente,
o procurador do marquez lembrou as ordens do medico que marc·ra esse
limite ´ao natalicioª. Foi ent„o um enfiar de paletots, em debandada,
por entre os queixumes do Darque e do Craft, que sahiam escorridos, sem
sequer um troco para o ´americanoª. Fez-se-lhes uma subscripÁ„o de
caridade, que elles recolheram nos chapÈos, rosnando bÍnÁ„os aos
bemfeitores.

Na tipoia que os levava ao Ramalhete, Carlos e Ega permaneceram muito
tempo em silencio, cada um enterrado ao seu canto, fumando. Foi j· ao
meio do Aterro que Ega pareceu despertar:

--E ent„o por fim?... Sempre vaes para Santa Olavia, ou que fazes?

Carlos mexeu-se no escuro da tipoia. Depois, lentamente, como cheio de
cansaÁo:

--Talvez v· ·manh„... Ainda n„o disse nada, ainda n„o fiz nada... Decidi
dar-me quarenta e oito horas para acalmar, para reflectir... N„o se pÛde
agora fallar com este barulho das rodas.

De novo cada um recahiu na sua mudez, ao seu canto.

Em casa, subindo a escadinha forrada de velludo, Carlos declarou-se
exhausto e com uma intoleravel dÙr de cabeÁa:

--¡manh„ fallamos, Ega... Boa noite, sim?

--AtÈ ·manh„.

Alta noite Ega acordou com uma grande sÍde. Salt·ra da cama, esvazi·ra a
garrafa no toucador, quando julgou sentir por baixo, no quarto de
Carlos, uma porta bater. Escutou. Depois, arrepiado, remergulhou nos
lenÁoes. Mas espert·ra inteiramente, com uma idÈa estranha, insensata,
que o assalt·ra sem motivo, o agitava, lhe fazia palpitar o coraÁ„o no
grande silencio da noite. Ouviu assim dar tres horas. A porta de novo
batera, depois uma janella: era decerto vento que se erguera. N„o podia
porÈm readormecer, ·s voltas, n'um terrivel mal-estar, com aquella idÈa
cravada na imaginaÁ„o que o torturava. Ent„o, desesperado, pulou da
cama, enfiou um paletot, e em pontas de chinelas, com a m„o diante da
luz, desceu surdamente ao quarto de Carlos. Na ante-sala parou,
tremendo, com o ouvido contra o reposteiro, na esperanÁa de perceber
algum calmo rumor de respiraÁ„o. O silencio era pesado e pleno. Ousou
entrar... A cama estava feita e vazia, Carlos sahira.

Elle ficou a olhar estupidamente para aquella colcha lisa, com a dobra
do lenÁol de renda cuidadosamente entreaberta pelo Baptista. E agora n„o
duvidava. Carlos fÙra findar a noite · rua de S. Francisco!... Estava
l·, dormia l·! E sÛ uma idÈa surgia atravÈs do seu horror--fugir,
safar-se para Celorico, n„o ser testemunha d'aquella incomparavel
infamia!...

E o dia seguinte, terÁa-feira, foi desolador para o pobre Ega. Vexado,
n'um terror de encontrar Carlos ou Affonso, levantou-se cedo,
esgueirou-se pelas escadas com cautelas de ladr„o, foi almoÁar ao
Tavares. De tarde, na rua do Ouro, viu passar Carlos, que levava no
break o Cruges e o Taveira--arrebanhados certamente para elle se n„o
encontrar sÛ · mesa com o avÙ. Ega jantou melancolicamente no Universal.
SÛ entrou no Ramalhete ·s nove horas, vestir-se para a _soirÈe_ da
Gouvarinho, que pela manh„ no Loreto par·ra a carruagem para lhe lembrar
´que era a festa do Charlieª. E foi j· de paletot, de _claque_ na m„o,
que appareceu emfim na salinha Luiz xv onde Cruges tocava Chopin, e
Carlos se install·ra n'uma partida de bezigue com o Craft. Vinha saber
se os amigos queriam alguma coisa para os nobres condes de Gouvarinho...

--Diverte-te!

--SÍ faiscante!

--Eu l· appareÁo para a ceia! prometteu Taveira, estirado n'uma poltrona
com o _Figaro_.

Eram duas horas da manh„ quando Ega recolheu da _soirÈe_--onde por fim
se divertira n'uma desesperada flirtaÁ„o com a baroneza d'Alvim, que ·
ceia, depois do champagne, vencida por tanta graÁa e tanta audacia, lhe
tinha dado duas rosas. Diante do quarto de Carlos, accendendo a vela,
Ega hesitou, mordido por uma curiosidade... Estaria l·? Mas teve
vergonha d'aquella espionagem, e subiu, bem decidido como na vespera a
fugir para Celorico. No seu quarto, diante do espelho, pÙz
cuidadosamente n'um copo as rosas da Alvim. E comeÁava a despir-se,
quando ouviu passos no negro corredor, passos muito lentos, muito
pesados, que se adiantavam, findaram · sua porta em suspens„o e
silencio. Assustado, gritou: ´Que È l·?ª A porta rangeu. E appareceu
Afonso da Maia, pallido, com um jaquet„o sobre a camisa de dormir, e um
castiÁal onde a vela ia morrendo. N„o entrou. N'uma voz enrouquecida,
que tremia:

--O Carlos? esteve l·?

Ega balbuciou, atarantado, em mangas de camisa. N„o sabia... Estivera
apenas um momento nos Gouvarinhos... Era provavel que Carlos tivesse ido
mais tarde com o Taveira, para a ceia.

O velho cerr·ra os olhos, como se desfallecesse, estendendo a m„o para
se apoiar. Ega correu para elle:

--N„o se afflija, snr. Affonso da Maia!

--Que queres ent„o que faÁa? Onde est· elle? L· mettido, com essa
mulher... Escusas de dizer, eu sei, mandei espreitar... Desci a isso,
mas quiz acabar esta angustia... E esteve l· hontem atÈ de manh„, est·
l· a dormir n'este instante... E foi para este horror que Deus me deixou
viver atÈ agora!

Teve um grande gesto de revolta e de dÙr. De novo os seus passos, mais
pesados, mais lentos, se sumiram no corredor.

Ega ficou junto da porta, um momento, estarrecido. Depois foi-se
despindo devagar, decidido a dizer a Carlos muito simplesmente, ao outro
dia, antes de partir para Celorico, que a sua infamia estava matando o
avÙ, e o forÁava a elle, seu melhor amigo, a fugir para a n„o
testemunhar por mais tempo.

Mal acordou, puxou a mala para o meio do quarto, atirou para cima da
cama, ·s braÁadas, a roupa que ia emmalar. E durante meia hora, em
mangas de camisa, lidou n'esta tarefa, misturando aos seus pensamentos
de cÛlera lembranÁas da _sÛirÈe_ da vespera, certos olhares da Alvim,
certas esperanÁas que lhe tornavam saudosa a partida. Um alegre sol
dourava a varanda. Terminou por abrir a vidraÁa, respirar, olhar o bello
azul d'inverno. Lisboa ganhava tanto com aquelle tempo! E j· Celorico, a
quinta, o padre Seraphim, lhe estendiam de longe a sua sombra n'alma. Ao
baixar os olhos viu o dog-cart de Carlos atrellado com a _Tunante_, que
escarvava a calÁada animada pelo ar vivo. Era Carlos decerto que ia
sahir cedo--para n„o se encontrar com elle e com o avÙ!

N'um receio de o n„o apanhar n'esse dia, desceu correndo. Carlos
aferrolh·ra-se na alcova de banho. Ega chamou, o outro n„o tugiu. Por
fim Ega bateu, gritou atravÈs da porta, sem esconder a sua irritaÁ„o:

--Tem a bondade d'escutar!... Ent„o partes para Santa Olavia, ou quÍ?

Depois d'um instante, Carlos lanÁou de l·, entre um rumor d'agua que
cahia:

--N„o sei... Talvez... Logo te digo...

O outro n„o se conteve mais:

--… que se n„o pÙde ficar assim eternamente... Recebi uma carta de minha
m„i... E se n„o partes para Santa Olavia, eu vou para Celorico... …
absurdo! J· estamos n'isto ha tres dias!

E quasi se arrependia j· da sua violencia, quando a voz de Carlos se
arrastou de dentro, humilde e cansada, n'uma supplica:

--Por quem Ès, Ega! Tem um bocado de paciencia commigo. Eu logo te
digo...

N'uma d'aquellas subitas emoÁıes de nervoso, que o sacudiam--os olhos do
Ega humedeceram. Balbuciou logo:

--Bem, bem! Eu fallei alto por ser atravÈs da porta... N„o ha pressa!

E fugiu para o quarto, cheio sÛ de compaix„o e ternura, com uma grossa
lagrima nas pestanas. Sentia agora bem a tortura em que o pobre Carlos
se debatera, sob o despotismo d'uma paix„o atÈ ahi legitima, e que n'uma
hora amarga se tornava de repente monstruosa, sem nada perder de seu
encanto e da sua intensidade... Humano e fragil, elle n„o pudera estacar
n'aquelle violento impulso de amor e de desejo que o levava como n'um
vendaval! Cedera, cedera, continu·ra a rolar ·quelles braÁos, que
innocentemente o continuavam a chamar. E ahi andava agora, aterrado,
escorraÁado, fugindo occultamente de casa, passando o dia longe dos
seus, n'uma vadiagem tragica, como um excommungado que receia encontrar
olhos puros onde sinta o horror do seu peccado... E ao lado, o pobre
Affonso, sabendo tudo, morrendo d'aquella dÙr! Podia elle, hospede
querido dos tempos alegres, partir, agora que uma onda de desgraÁa
quebr·ra sobre essa casa, onde o acolhiam affeiÁıes mais largas que na
sua propria? Seria ignobil! Tornou logo a desfazer a mala; e, furioso no
seu egoismo com todas aquellas amarguras que o abalavam, arranjava outra
vez a roupa dentro da commoda, com a mesma cÛlera com que a desmanch·ra,
rosnando:

--Diabo levem as mulheres, e a vida, e tudo!...

Quando desceu, j· vestido, Carlos desapparecera! Mas Baptista,
tristonho, carrancudo, certo agora de que havia um grande desgosto,
deteve-o para lhe murmurar:

--Tinha v. exc.^a raz„o... Partimos ·manh„ para Santa Olavia e levamos
roupa para muito tempo... Este inverno comeÁa mal!



N'essa madrugada, ·s quatro horas, em plena escurid„o, Carlos cerr·ra de
manso o port„o da rua de S. Francisco. E, mais pungente, apoderava-se
d'elle, na frialdade da rua, o medo que j· o roÁ·ra, ao vestir-se na
penumbra do quarto, ao lado de Maria adormecida--o medo de voltar ao
Ramalhete! Era esse medo que j· na vespera o trouxera todo o dia por
fÛra no dog-cart, findando por jantar lugubremente com o Cruges,
escondido n'um gabinete do Augusto. Era medo do avÙ, medo do Ega, medo
do VillaÁa; medo d'aquella sineta do jantar que os chamava, os juntava;
medo do seu quarto, onde a cada momento qualquer d'elles podia erguer o
reposteiro, entrar, cravar os olhos na sua alma e no seu segredo...
Tinha agora a certeza _que elles sabiam tudo_. E mesmo que n'essa noite
fugisse para Santa Olavia, pondo entre si e Maria uma separaÁ„o t„o alta
como o muro d'um claustro, nunca mais do espirito d'aquelles homens, que
eram os seus amigos melhores, sahiria a memoria e a dÙr da infamia em
que elle se despenh·ra. A sua vida moral estava estragada... Ent„o, para
que partiria--abandonando a paix„o, sem que por isso encontrasse a paz?
N„o seria mais logico calcar desesperadamente todas as leis humanas e
divinas, arrebatar para longe Maria na sua innocencia, e para todo o
sempre abysmar-se n'esse crime que se torn·ra a sua sombria partilha na
terra?

J· assim pens·ra na vespera. J· assim pens·ra... Mas antevira ent„o um
outro horror, um supremo castigo, a esperal-o na solid„o onde se
sepultasse. J· lhe percebera mesmo a aproximaÁ„o; j· n'outra noite
recebera d'elle um arrepio; j· n'essa noite, deitado junto de Maria, que
adormecera cansada, o presentira, apoderando-se d'elle, com um primeiro
frio d'agonia.

Era, surgindo do fundo do seu sÍr, ainda tenue mas j· perceptivel, uma
saciedade, uma repugnancia por ella desde que a sabia do seu sangue!...
Uma repugnancia material, carnal, · flÙr da pelle, que passava como um
arrepio. FÙra primeiramente aquelle aroma que a envolvia, fluctuava
entre os cortinados, lhe ficava a elle na pelle e no fato, o excitava
tanto outr'ora, o impacientava tanto agora--que ainda na vespera se
encharc·ra em agua de Colonia para o dissipar. FÙra depois aquelle corpo
d'ella, adorado sempre como um marmore ideal, que de repente lhe
apparecera, como era na sua realidade, forte de mais, musculoso, de
grossos membros de Amazona barbara, com todas as bellezas copiosas do
animal de prazer. Nos seus cabellos d'um lustre t„o macio, sentia agora
inesperadamente uma rudeza de juba. Os seus movimentos na cama, ainda
n'essa noite, o tinham assustado como se fossem os de uma fera, lenta e
ciosa, que se estirava para o devorar... Quando os seus braÁos o
enlaÁavam, o esmagavam contra os seus rijos peitos tumidos de seiva,
ainda decerto lhe punham nas veias uma chamma que era toda bestial. Mas,
apenas o ultimo suspiro lhe morria nos labios, ahi comeÁava
insensivelmente a recuar para a borda do colch„o, com um susto estranho:
e immovel, encolhido na roupa, perdido no fundo d'uma infinita tristeza,
esquecia-se pensando n'uma outra vida que podia ter, longe d'alli, n'uma
casa simples, toda aberta ao sol, com sua mulher, legitimamente sua,
flÙr de graÁa domestica, pequenina, timida, pudica, que n„o soltasse
aquelles gritos lascivos, e n„o usasse esse aroma t„o quente! E
desgraÁadamente agora j· n„o duvidava... Se partisse com ella, seria
para bem cedo se debater no indizivel horror de um nojo physico. E que
lhe restaria ent„o, morta a paix„o que fÙra a desculpa do crime, ligado
para sempre a uma mulher que o enojava--e que era... SÛ lhe restava
matar-se!

Mas, tendo por um sÛ dia dormido com ella, na plena consciencia da
consanguinidade que os separava, poderia recomeÁar a vida
tranquillamente? Ainda que possuisse frieza e forÁa para apagar dentro
em si essa memoria--ella n„o morreria no coraÁ„o do avÙ, e do seu amigo.
Aquelle ascoroso segredo ficaria entre elles, estragando, maculando
tudo. A existencia d'ora ·vante sÛ lhe offerecia intoleravel amargÙr...
Que fazer, santo Deus, que fazer! Ah, se alguem o podesse aconselhar, o
podesse consolar! Quando chegou · porta de casa o seu desejo unico era
atirar-se aos pÈs d'um padre, aos pÈs d'um santo, abrir-lhe as miserias
do seu coraÁ„o, implorar-lhe a doÁura da sua misericordia! Mas ai! onde
havia um santo?

Defronte do Ramalhete os candieiros ainda ardiam. Abriu de leve a porta.
PÈ ante pÈ, subiu as escadas ensurdecidas pelo velludo cÙr de cereja. No
patamar tacteava, procurava a vela--quando, atravÈs do reposteiro
entreaberto, avistou uma claridade que se movia no fundo do quarto.
Nervoso, recuou, parou no recanto. O clar„o chegava, crescendo: passos
lentos, pesados, pisavam surdamente o tapete: a luz surgiu--e com ella o
avÙ em mangas de camisa, livido, mudo, grande, espectral. Carlos n„o se
moveu, suffocado; e os dois olhos do velho, vermelhos, esgazeados,
cheios de horror, cahiram sobre elle, ficaram sobre elle, varando-o atÈ
·s profundidades d'alma, lendo l· o seu segredo. Depois, sem uma
palavra, com a cabeÁa branca a tremer, Affonso atravessou o patamar,
onde a luz sobre o velludo espalhava um tom de sangue:--e os seus passos
perderam-se no interior da casa, lentos, abafados, cada vez mais
sumidos, como se fossem os derradeiros que devesse dar na vida!

Carlos entrou no quarto ·s escuras, tropeÁou n'um sof·. E alli se deixou
cahir, com a cabeÁa enterrada nos braÁos, sem pensar, sem sentir, vendo
o velho livido passar, repassar diante d'elle como um longo phantasma,
com a luz avermelhada na m„o. Pouco a pouco foi-o tomando um cansaÁo,
uma inercia, uma infinita lassid„o da vontade, onde um desejo apenas
transparecia, se alongava--o desejo de interminavelmente repousar
algures n'uma grande mudez e n'uma grande treva... Assim escorregou ao
pensamento da morte. Ella seria a perfeita cura, o asylo seguro. Porque
n„o iria ao seu encontro? Alguns gr„os de laudano n'essa noite e
penetrava na absoluta paz...

Ficou muito tempo, embebendo-se n'esta idÈa que lhe dava allivio e
consolo, como se, escorraÁado por uma tormenta ruidosa, visse diante dos
seus passos abrir-se uma porta d'onde sahisse calor e silencio. Um
rumor, o chilrear d'um passaro na janella, fez-lhe sentir o sol e o dia.
Ergueu-se, despiu-se muito devagar, n'uma immensa molleza. E mergulhou
na cama, enterrou a cabeÁa no travesseiro para recahir na doÁura
d'aquella inercia, que era um antegosto da morte, e n„o sentir mais nas
horas que lhe restavam nenhuma luz, nenhuma coisa da terra.



O sol ia alto, um barulho passou, o Baptista rompeu pelo quarto:

--” snr. D. Carlos, Û meu menino! O avÙ achou-se mal no jardim, n„o d·
accordo!...

Carlos pulou do leito, enfiando um paletot que agarr·ra. Na ante-camara
a governante, debruÁada no corrim„o, gritava, afflicta:--´Adiante, homem
de Deus, ao pÈ da padaria, o snr. dr. Azevedo!ª E um moÁo que corria,
com que esbarrou no corredor, atirou, sem parar:

--Ao fundo, ao pÈ da cascata, snr. D. Carlos, na mesa de pedra!...

Affonso da Maia l· estava, n'esse recanto do quintal, sob os ramos do
cedro, sentado no banco de cortiÁa, tombado por sobre a tosca mesa, com
a face cahida entre os braÁos. O chapÈo desabado rol·ra para o ch„o; nas
costas, com a gola erguida, conservava o seu velho capote azul. Em
volta, nas folhas das camelias, nas aleas areadas, refulgia, cÙr d'ouro,
o sol fino d'inverno. Por entre as conchas da cascata o fio d'agua punha
o seu choro lento.

Arrebatadamente, Carlos levant·ra-lhe a face, j· rigida, cÙr de cera,
com os olhos cerrados, e um fio de sangue aos cantos da longa barba de
neve. Depois cahiu de joelhos no ch„o humido, sacudia-lhe as m„os,
murmurando:--´” avÙ! Û avÙ!ª--Correu ao tanque, borrifou-o d'agua:

--Chamem alguem! chamem alguem!

Outra vez lhe palpava o coraÁ„o... Mas estava morto. Estava morto, j·
frio, aquelle corpo que, mais velho que o seculo, resistira t„o
formidavelmente, como um grande roble, aos annos e aos vendavaes. Alli
morrera solitariamente, j· o sol ia alto, n'aquella tosca mesa de pedra
onde deix·ra pender a cabeÁa cansada.

Quando Carlos se ergueu, Ega apparecia, esguedelhado, embrulhado no
robe-de-chambre. Carlos abraÁou-se n'elle, tremendo todo, n'um chÙro
despedaÁado. Os criados em redor olhavam, aterrados. E a governante,
como tonta, entre as ruas de roseiras, gemia com as m„os na cabeÁa:--´Ai
o meu rico senhor, ai o meu rico senhor!ª

Mas o porteiro, esbaforido, chegava com o medico, o dr. Azevedo, que
felizmente encontr·ra na rua. Era um rapaz, apenas sahido da EscÛla,
magrinho e nervoso, com as pontas do bigode muito frisadas. Deu em
redor, atarantadamente, um comprimento aos criados, ao Ega, e a Carlos,
que procurava serenar com a face lavada de lagrimas. Depois, tendo
descalÁado a luva, estudou todo o corpo de Affonso com uma lentid„o, uma
minuciosidade que exagerava, · medida que sentia em volta, mais anciosos
e attentos n'elle, todos aquelles olhos humedecidos. Por fim, diante de
Carlos, passando nervosamente os dedos no bigode, murmurou termos
technicos... De resto, dizia, j· o collega se teria compenetrado de que
tudo infelizmente find·ra. Elle sentia das vÈras da alma o desgosto...
Se para alguma coisa fosse necessario, com o maximo prazer...

--Muito agradecido a v. exc.^a, balbuciou Carlos.

Ega, em chinelas, deu alguns passos com o snr. dr. Azevedo, para lhe
indicar a porta do jardim.

Carlos no emtanto fic·ra defronte do velho, sem chorar, perdido apenas
no espanto d'aquelle brusco fim! Imagens do avÙ, do avÙ vivo e forte,
cachimbando ao canto do fog„o, regando de manh„ as roseiras,
passavam-lhe n'alma, em tropel, deixando-lh'a cada vez mais dorida e
negra... E era ent„o um desejo de findar tambem, encostar-se como elle
·quella mesa de pedra, e sem outro esforÁo, nenhuma outra dÙr da vida,
cahir como elle na sempiterna paz. Uma restea de sol, entre os ramos
grossos do cedro, batia a face morta de Affonso. No silencio os
passaros, um momento espantados, tinham recomeÁado a chalrar. Ega veio a
Carlos, tocou-lhe no braÁo:

--… necessario leval-o para cima.

Carlos beijou a m„o fria que pendia. E, devagar, com os beiÁos a tremer,
levantou o avÙ pelos hombros carinhosamente. Baptista correra a ajudar;
Ega, embaraÁado no seu largo roup„o, segurava os pÈs do velho. AtravÈs
do jardim, do terraÁo cheio de sol, do escriptorio onde a sua poltrona
esperava diante do lume accÍso, foram-o transportando n'um silencio sÛ
quebrado pelos passos dos criados, que corriam a abrir as portas,
acudiam quando Carlos, na sua perturbaÁ„o, ou o Ega fraquejavam sob o
peso do grande corpo. A governante j· estava no quarto d'Affonso com uma
colcha de sÍda para estender na singela cama de ferro, sem cortinado. E
alli o depuzeram emfim sobre as ramagens claras bordadas na sÍda azul.

Ega accendera dois castiÁaes de prata: a governante, de joelhos · beira
do leito, esfiava o rosario: e Mr. Antoine, com o seu barrete branco de
cozinheiro na m„o, fic·ra · porta, junto d'um cesto que trouxera, cheio
de camelias e palmas de estufa. Carlos, no emtanto, movendo-se pelo
quarto, com longos soluÁos que o sacudiam, voltava a cada instante,
n'uma derradeira e absurda esperanÁa, palpar as m„os ou o coraÁ„o do
velho. Com o jaquet„o de velludilho, os seus grossos sapatos brancos,
Affonso parecia mais forte e maior, na sua rigidez, sobre o leito
estreito: entre o cabello de neve cortado · escovinha e a longa barba
desleixada, a pelle ganh·ra um tom de marfim velho, onde as rugas
tomavam a dureza d'entalhaduras a cinzel: as palpebras engelhadas, de
pestanas brancas, pousavam com a consolada serenidade de quem emfim
descanÁa; e ao deitarem-no uma das m„os fic·ra-lhe aberta e posta sobre
o coraÁ„o, na simples e natural attitude de quem tanto pelo coraÁ„o
vivÍra!

Carlos perdia-se n'esta contemplaÁ„o dolorosa. E o seu desespero era que
o avÙ assim tivesse partido para sempre, sem que entre elles houvesse um
adeus, uma dÙce palavra trocada. Nada! Apenas aquelle olhar angustiado,
quando pass·ra com a vela accÍsa na m„o. J· ent„o elle ia andando para a
morte. O avÙ sabia tudo, d'isso morrera! E esta certeza sem cessar lhe
batia n'alma, com uma longa pancada repetida e lugubre. O avÙ sabia
tudo, d'isso morrera!

Ega veio com um gesto indicar-lhe o estado em que estavam--elle de
robe-de-chambre, Carlos com o paletot sobre a camisa de dormir:

--… necessario descer, È necessario vestir-nos.

Carlos balbuciou:

--Sim, vamo-nos vestir...

Mas n„o se arredava. Ega levou-o brandamente pelo braÁo. Elle caminhava
como um somnambulo, passando o lenÁo devagar pela testa e pela barba. E
de repente no corredor, apertando desesperadamente as m„os, outra vez
coberto de lagrimas, n'um agoniado desabafo de toda a sua culpa:

--Ega, meu querido Ega! O avÙ viu-me esta manh„ quando entrei! E passou,
n„o me disse nada... Sabia tudo, foi isso que o matou!...

Ega arrastou-o, consolou-o, repellindo tal idÈa. Que tolice! O avÙ tinha
quasi oitenta annos, e uma doenÁa de coraÁ„o... Desde a volta de Santa
Olavia, quantas vezes elles tinham fallado n'isso, aterrados! Era
absurdo ir agora fazer-se mais desgraÁado com semelhante imaginaÁ„o!

Carlos murmurou, devagar, como para si mesmo, com os olhos postos no
ch„o:

--N„o! … estranho, n„o me faÁo mais desgraÁado! Aceito isto como um
castigo... Quero que seja um castigo... E sinto-me sÛ muito pequeno,
muito humilde diante de quem assim me castiga. Esta manh„ pensava em
matar-me. E agora n„o! … o meu castigo viver, esmagado para sempre... O
que me custa È que elle n„o me tivesse dito _adeus_!!

De novo as lagrimas lhe correram, mas lentas, mansamente, sem desespero.
Ega levou-o para o quarto, como uma crianÁa. E assim o deixou a um canto
do sof·, com o lenÁo sobre a face, n'um chÙro contÌnuo e quieto, que lhe
ia lavando, alliviando o coraÁ„o de todas as angustias confusas e sem
nome que n'esses dias derradeiros o traziam suffocado.

Ao meio dia, em cima, Ega acabava de vestir-se quando VillaÁa lhe rompeu
pelo quarto de braÁos abertos.

--Ent„o como foi isto, como foi isto?

Baptista mand·ra-o chamar pelo trintanario, mas o rapazola pouco lhe
soubera contar. Agora em baixo o pobre Carlos abraÁ·ra-o, coitadinho,
lavado em lagrimas, sem poder dizer nada, pedindo-lhe sÛ para se
entender em tudo com o Ega... E alli estava.

--Mas como foi, como foi, assim de repente?...

Ega contou, brevemente, como tinham encontrado Affonso de manh„ no
jardim, tombado para cima da mesa de pedra. Viera o dr. Azevedo, mas
tudo acab·ra!

VillaÁa levou as m„os · cabeÁa:

--Uma coisa assim! Creia o amigo! Foi essa mulher, essa mulher que ahi
appareceu, que o matou! Nunca foi o mesmo depois d'aquelle abalo! N„o
foi mais nada! Foi isso!

Ega murmurava, deitando machinalmente agua de Colonia no lenÁo:

--Sim, talvez, esse abalo, e oitenta annos, e poucas cautelas, e uma
doenÁa de coraÁ„o.

Fallaram ent„o do enterro, que devia ser simples como convinha ·quelle
homem simples. Para depositar o corpo, emquanto n„o fosse trasladado
para Santa Olavia, Ega lembr·ra-se do jazigo do marquez.

VillaÁa coÁava o queixo, hesitando:

--Eu tambem tenho um jazigo. Foi o proprio snr. Affonso da Maia que o
mandou erguer para meu pai, que Deus haja... Ora parece-me que por uns
dias ficava l· perfeitamente. Assim n„o se pedia a ninguem, e eu tinha
n'isso muita honra...

Ega concordou. Depois fixaram outros detalhes de convite, de hora, de
chave do caix„o. Por fim VillaÁa, olhando o relogio, ergueu-se com um
grande suspiro:

--Bem, vou dar esses tristes passos! E c· appareÁo logo, que o quero vÍr
pela ultima vez, quando o tiverem vestido. Quem me havia de dizer! Ainda
antes de hontem a jogar com elle... AtÈ lhe ganhei tres mil reis,
coitadinho!

Uma onda de saudade suffocou-o, fugiu com o lenÁo nos olhos.

Quando Ega desceu, Carlos, todo de luto, estava sentado · escrivaninha,
diante d'uma folha de papel. Immediatamente ergueu-se, arrojou a penna.

--N„o posso!... Escreve-lhe tu ahi, a ella, duas palavras.

Em silencio, Ega tomou a penna, redigiu um bilhete muito curto. Dizia:
´Minha senhora. O snr. Affonso da Maia morreu esta madrugada, de
repente, com uma apoplexia. V. exc.^a comprehende que, n'este momento,
Carlos nada mais pÛde do que pedir-me para eu transmittir a v. exc.^a
esta desgraÁada noticia. Creia-me, etc.ª N„o o leu a Carlos. E como
Baptista entrava n'esse momento, todo de preto, com o almoÁo n'uma
bandeja, Ega pediu-lhe para mandar o trintanario com aquelle bilhete ·
rua de S. Francisco. Baptista segredou sobre o hombro do Ega:

--… bom n„o esquecer as fardas de luto para os criados...

--O snr. VillaÁa j· sabe.

Tomaram ch· · pressa em cima do taboleiro. Depois Ega escreveu bilhetes
a D. Diogo e ao Sequeira, os mais velhos amigos d'Affonso: e davam duas
horas quando chegaram os homens com o caix„o para amortalhar o corpo.
Mas Carlos n„o permittiu que m„os mercenarias tocassem no avÙ. Foi elle
e o Ega, ajudados pelo Baptista, que, corajosamente, recalcando a emoÁ„o
sob o dever, o lavaram, o vestiram, o depuzeram dentro do grande cofre
de carvalho, forrado de setim claro, onde Carlos collocou uma miniatura
de sua avÛ Runa. ¡ tarde, com auxilio de VillaÁa, que volt·ra ´para dar
o ultimo olhar ao patr„oª, desceram-no ao escriptorio, que Ega n„o
quizera alterar nem ornar, e que, com os damascos escarlates, as
estantes lavradas, os livros juncando a carteira de pau preto,
conservava a sua feiÁ„o austera de paz estudiosa. SÛmente, para depÙr o
caix„o, tinham juntado duas largas mesas, recobertas por um panno de
velludo negro que havia na casa, com as armas bordadas a ouro. Por cima
o Christo de Rubens abria os braÁos sobre a vermelhid„o do poente. Aos
lados ardiam doze castiÁaes de prata. Largas palmas d'estufa cruzavam-se
· cabeceira do esquife, entre ramos de camelias. E Ega accendeu um pouco
de incenso em dois perfumadores de bronze.

¡ noite o primeiro dos velhos amigos a apparecer foi D. Diogo, solemne,
de casaca. Encostado ao Ega, aterrado diante do caix„o, sÛ pÙde
murmurar:--´E tinha menos sete mezes que eu!ª O marquez veio j· tarde,
abafado em mantas, trazendo um grande cesto de flÙres. Craft e o Cruges
nada sabiam, tinham-se encontrado na rampa de Santos;--e receberam a
primeira surpreza ao vÍr fechado o port„o do Ramalhete. O ultimo a
chegar foi o Sequeira, que pass·ra o dia na quinta, e se abraÁou em
Carlos, depois no Craft ao acaso, entontecido, com uma lagrima nos olhos
injectados, balbuciando:--´Foi-se o companheiro de muitos annos. Tambem
n„o tardo!...ª

E a noite de vigilia e pezames comeÁou, lenta e silenciosa. As doze
chammas das velas ardiam, muito altas, n'uma solemnidade funeraria. Os
amigos trocavam algum murmurio abafado, com as cadeiras chegadas. Pouco
a pouco, o calor, o aroma do incenso, a exhalaÁ„o das flÙres forÁaram o
Baptista a abrir uma das janellas do terraÁo. O cÈo estava cheio
d'estrellas. Um vento fino susurrava nas ramagens do jardim.

J· tarde Sequeira, que n„o se movera d'uma poltrona, com os braÁos
cruzados, teve uma tontura. Ega levou-o · sala de jantar, a
reconfortal-o com um calice de cognac. Havia l· uma ceia fria, com
vinhos e dÙces. E Craft veio tambem--com o Taveira, que soubera a
desgraÁa na redacÁ„o da _Tarde_, e correra quasi sem jantar. Tomando um
pouco de Bordeus, uma _sandwich_, Sequeira reanimava-se, lembrava o
passado, os tempos brilhantes, quando Affonso e elle eram novos. Mas
emmudeceu vendo apparecer Carlos, pallido e vagaroso como um somnambulo,
que balbuciou: ´Tomem alguma coisa, sim, tomem alguma coisa...ª

Mexeu n'um prato, deu uma volta · mesa, sahiu. Assim vagamente foi atÈ ·
ante-camara, onde todos os candelabros ardiam. Uma figura esguia e negra
surgiu da escada. Dois braÁos enlaÁaram-no. Era o Alencar.

--Nunca vim c· nos dias felizes, aqui estou na hora triste!

E o poeta seguiu pelo corredor, em pontas de pÈs, como pela nave d'um
templo.

Carlos no emtanto deu ainda alguns passos pela ante-camara. Ao canto
d'um divan fic·ra um grande cesto com uma corÙa de flÙres, sobre que
pousava uma carta. Reconheceu a letra de Maria. N„o lhe tocou, recolheu
ao escriptorio. Alencar, diante do caix„o, com a m„o pousada no hombro
do Ega, murmurava: ´Foi-se uma alma de heroe!ª

As velas iam-se consumindo. Um cansaÁo pesava. Baptista fez servir cafÈ
no bilhar. E ahi, apenas recebeu a sua chavena, Alencar, cercado do
Cruges, do Taveira, do VillaÁa, rompeu a fallar tambem do passado, dos
tempos brilhantes d'Arroios, dos rapazes ardentes d'ent„o:

--Vejam vocÍs, filhos, se se encontra ainda uma gente como estes Maias,
almas de leıes, generosos, valentes!... Tudo parece ir morrendo n'este
desgraÁado paiz!... Foi-se a faisca, foi-se a paix„o... Affonso da Maia!
Parece que o estou a vÍr, · janella do palacio em Bemfica, com a sua
grande gravata de setim, aquella cara nobre de portuguez d'outr'ora... E
l· vai! E o meu pobre Pedro tambem... Caramba, atÈ se me faz a alma
negra!

Os olhos ennevoavam-se-lhe, deu um immenso sorvo ao cognac.

Ega, depois de beber um gole de cafÈ, volt·ra ao escriptorio, onde o
cheiro d'incenso espalhava uma melancolia de capella. D. Diogo, estirado
no sof·, resonava; Sequeira defronte dormitava tambem, descahido sobre
os braÁos cruzados, com todo o sangue na face. Ega despertou-os de leve.
Os dois velhos amigos, depois d'um abraÁo a Carlos, partiram na mesma
carruagem, com os charutos accÍsos. Os outros, pouco a pouco, iam tambem
abraÁar Carlos, enfiavam os paletots. O ultimo a sahir foi Alencar, que,
no pateo, beijou o Ega, n'um impulso d'emoÁ„o, lamentando ainda o
passado, os companheiros desapparecidos:

--O que me vale agora s„o vocÍs, rapazes, a gente nova. N„o me deitem ·
margem! Sen„o, caramba, quando quizer fazer uma visita tenho d'ir ao
cemiterio. Adeus, n„o apanhes frio!

O enterro foi ao outro dia, · uma hora. O Ega, o marquez, o Craft, o
Sequeira levaram o caix„o atÈ · porta, seguidos pelo grupo d'amigos,
onde destacava o conde de Gouvarinho, solemnissimo, de gran-cruz. O
conde de Steinbroken, com o seu secretario, trazia na m„o uma corÙa de
violetas. Na calÁada estreita os trens apertavam-se, n'uma longa fila
que subia, se perdia pelas outras ruas, pelas travessas: em todas as
janellas do bairro se apinhava gente: os policias berravam com os
cocheiros. Por fim o carro, muito simples, rodou, seguido por duas
carruagens da casa, vazias, com as lanternas recobertas de longos vÈos
de crepe que pendiam. Atraz, um a um, desfilaram os trens da Companhia
com os convidados, que abotoavam os casacos, corriam os vidros contra a
friagem do dia ennevoado. O Darque e o Vargas iam no mesmo coupÈ. O
correio do Gouvarinho passou choutando na sua pileca branca. E, sobre a
rua deserta, cerrou-se finalmente para um grande luto o port„o do
Ramalhete.

Quando Ega voltou do cemiterio encontrou Carlos no quarto, rasgando
papeis, emquanto o Baptista, atarefado, de joelhos no tapete, fechava
uma mala de couro. E como Ega, pallido e arrepiado de frio, esfregava as
m„os, Carlos fechou a gaveta cheia de cartas, lembrou que fossem para o
_fumoir_ onde havia lume.

Apenas l· entraram, Carlos correu o reposteiro, olhou para o Ega:

--Tens duvida em lhe ir fallar, a ella?

--N„o. Para que?... Para lhe dizer o que?

--Tudo.

Ega rolou uma poltrona para junto da chaminÈ, despertou as brazas. E
Carlos, ao lado, proseguiu devagar, olhando o lume:

--AlÈm d'isso, desejo que ella parta, que parta j· para Paris... Seria
absurdo ficar em Lisboa... Emquanto se n„o liquidar o que lhe pertence,
ha-de-se-lhe estabelecer uma mezada, uma larga mezada... VillaÁa vem
d'aqui a bocado para fallar d'esses detalhes... Em todo o caso, ·manh„,
para ella partir, levas-lhe quinhentas libras.

Ega murmurou:

--Talvez para essas questıes de dinheiro fosse melhor ir l· o VillaÁa...

--N„o, pelo amor de Deus! Para que se ha de fazer cÛrar a pobre creatura
diante do VillaÁa?...

Houve um silencio. Ambos olhavam a chamma clara que bailava.

--Custa-te muito, n„o È verdade, meu pobre Ega?...

--N„o... ComeÁo a estar embotado. … fechar os olhos, tragar mais essa m·
hora, e depois descansar. Quando voltas tu de Santa Olavia?

Carlos n„o sabia. Contava que Ega, terminada essa miss„o · rua de S.
Francisco, fosse aborrecer-se uns dias com elle a Santa Olavia. Mais
tarde era necessario trasladar para l· o corpo do avÙ...

--E passado isso, vou viajar... Vou · America, vou ao Jap„o, vou fazer
esta coisa estupida e sempre efficaz que se chama _distrahir_...

Encolheu os hombros, foi devagar atÈ · janella, onde morria pallidamente
um raio de sol na tarde que clare·ra. Depois voltando para o Ega, que de
novo remexia os carvıes:

--Eu, est· claro, n„o me atrevo a dizer-te que venhas, Ega... Desejava
bem, mas n„o me atrevo!

Ega pousou devagar as tenazes, ergueu-se, abriu os braÁos para Carlos,
commovido:

--Atreve, que diabo... Porque n„o?

--Ent„o vem!

Carlos puzera n'isto toda a sua alma. E ao abraÁar o Ega corriam-lhe na
face duas grandes lagrimas.

Ent„o Ega reflectiu. Antes de ir a Santa Olavia precisava fazer uma
romagem · quinta de Celorico. O Oriente era caro. Urgia pois arrancar ·
m„i algumas letras de credito... E como Carlos pretendia ter ´bastante
para o luxo d'ambosª, Ega atalhou muito sÈrio:

--N„o, n„o! Minha m„i tambem È rica. Uma viagem · America e ao Jap„o s„o
fÛrmas de educaÁ„o. E a mam„ tem o dever de completar a minha educaÁ„o.
O que acceito, sim, È uma das tuas malas de couro...

Quando n'essa noite, acompanhados pelo VillaÁa, Carlos e Ega chegaram ·
estaÁ„o de Santa Apolonia, o comboio ia partir. Carlos mal teve tempo de
saltar para o seu compartimento reservado--emquanto o Baptista, abraÁado
·s mantas de viagem, empurrado pelo guarda, se iÁava desesperadamente
para outra carruagem, entre os protestos dos sujeitos que a atulhavam. O
trem immediatamente rolou. Carlos debruÁou-se · portinhola, gritando ao
Ega:--´Manda um telegramma ·manh„ a dizer o que houve!ª

Recolhendo ao Ramalhete com o VillaÁa, que ia n'essa noite colligir e
sellar os papeis de Affonso da Maia, Ega fallou logo nas quinhentas
libras que elle devia entregar na manh„ seguinte a Maria Eduarda.
VillaÁa recebera com effeito essa ordem de Carlos. Mas francamente,
entre amigos, n„o lhe parecia excessiva a somma, para uma jornada? AlÈm
d'isso Carlos fall·ra em estabelecer a essa senhora uma mezada de quatro
mil francos, cento e sessenta libras! N„o achava tambem exagerado? Para
uma mulher, uma simples mulher...

Ega lembrou que essa simples mulher tinha direito legal a muito mais...

--Sim, sim, resmungou o procurador. Mas tudo isso de legalidade tem
ainda de ser muito estudado. N„o fallemos n'isso. Eu nem gÛsto de fallar
d'isso!...

Depois como Ega alludia · fortuna que deixava Affonso da Maia--VillaÁa
deu detalhes. Era decerto uma das boas casas de Portugal. SÛ o que viera
da heranÁa de Sebasti„o da Maia, representava bem quinze contos de
renda. As propriedades do Alemtejo, com os trabalhos que l· fizera o pai
d'elle VillaÁa, tinham triplicado de valor. Santa Olavia era uma
despeza. Mas as quintas ao pÈ de Lamego, um condado.

--Ha muito dinheiro! exclamou elle com satisfaÁ„o, batendo no joelho do
Ega. E isto, amigo, digam l· o que disserem, sempre consola de tudo.

--Consola de muito, com effeito.

Ao entrar no Ramalhete, Ega sentia uma longa saudade pensando no lar
feliz e amavel que alli houvera e que para sempre se apag·ra. Na
ante-camara, os seus passos j· lhe pareceram soar tristemente como os
que se d„o n'uma casa abandonada. Ainda errava um vago cheiro de incenso
e de phenol. No lustre do corredor havia uma luz sÛ e dormente.

--J· anda aqui um ar de ruina, VillaÁa.

--Ruinasinha bem confortavel, todavia! murmurou o procurador dando um
olhar ·s tapeÁarias e aos divans, e esfregando as m„os, arrepiado da
friagem da noite.

Entraram no escriptorio de Affonso, onde durante um momento se ficaram
aquecendo ao lume. O relogio Luiz XV bateu finalmente as nove
horas--depois a toada argentina do seu minuete vibrou um instante e
morreu. VillaÁa preparou-se para comeÁar a sua tarefa. Ega declarou que
ia para o quarto arranjar tambem a sua papelada, fazer a limpeza final
de dois annos de mocidade...

Subiu. E pous·ra apenas a luz sobre a commoda, quando sentiu ao fundo,
no silencio do corredor, um gemido longo, desolado, d'uma tristeza
infinita. Um terror arrepiou-lhe os cabellos. Aquillo arrastava-se,
gemia no escuro, para o lado dos aposentos d'Affonso da Maia. Por fim,
reflectindo que toda a casa estava acordada, cheia de criados e de
luzes, Ega ousou dar alguns passos no corredor, com o castiÁal na m„o
tremula.

Era o gato! Era o reverendo Bonifacio, que, diante do quarto d'Affonso,
arranhando a porta fechada, miava doloridamente. Ega escorraÁou-o,
furioso. O pobre Bonifacio fugiu, obeso e lento, com a cauda fÙfa a
roÁar o ch„o: mas voltou logo, e esgatanhando a porta, roÁando-se pelas
pernas do Ega, recomeÁou a miar, n'um lamento agudo, saudoso como o
d'uma dÙr humana, chorando o dono perdido que o acariciava no collo e
que n„o torn·ra a apparecer.

Ega correu ao escriptorio a pedir ao VillaÁa que dormisse essa noite no
Ramalhete. O procurador accedeu, impressionado com aquelle horror do
gato a chorar. Deix·ra o mont„o de papeis sobre a mesa, volt·ra a
aquecer os pÈs ao lume dormente. E voltando-se para o Ega, que se
sent·ra, ainda todo pallido, no sof· bordado a matiz, antigo logar de D.
Diogo, murmurou devagar, gravemente:

--Ha tres annos, quando o snr. Affonso me encommendou aqui as primeiras
obras, lembrei-lhe eu que, segundo uma antiga lenda, eram sempre fataes
aos Maias as paredes do Ramalhete. O snr. Affonso da Maia riu d'agouros
e lendas... Pois fataes foram!



No dia seguinte, levando os papeis da Monforte e o dinheiro em letras e
libras que VillaÁa lhe entreg·ra · porta do Banco de Portugal, Ega, com
o coraÁ„o aos pulos, mas decidido a ser forte, a affrontar a crise
serenamente, subia ao primeiro andar da rua de S. Francisco. O Domingos,
de gravata preta, movendo-se em pontas de pÈs, abriu o reposteiro da
sala. E Ega pous·ra apenas sobre o sof· a velha caixa de charutos da
Monforte--quando Maria Eduarda entrou, pallida, toda coberta de negro,
estendendo-lhe as m„os ambas.

--Ent„o Carlos?

Ega balbuciou:

--Como v. exc.^a pÛde imaginar, n'um momento d'estes... Foi horrivel,
assim de surpreza...

Uma lagrima tremeu nos olhos pisados de Maria. Ella n„o conhecia o snr.
Affonso da Maia, nem sequer o vira nunca. Mas soffria realmente por
sentir bem o soffrimento de Carlos... O que aquelle rapaz estremecia o
avÙ!

--Foi de repente, n„o?

Ega retardou-se em longos detalhes. Agradeceu a corÙa que ella mand·ra.
Contou os gemidos, a afflicÁ„o do pobre Bonifacio...

--E Carlos? repetiu ella.

--Carlos foi para Santa Olavia, minha senhora.

Ella apertou as m„os, n'uma surpreza que a acabrunhava. Para Santa
Olavia! E sem um bilhete, sem uma palavra?... Um terror empallidecia-a
mais, diante d'aquella partida t„o arrebatada, quasi parecida com um
abandono. Terminou por murmurar, com um ar de resignaÁ„o e de confianÁa
que n„o sentia:

--Sim, com effeito, n'este momento n„o se pensa nos outros...

Duas lagrimas corriam-lhe devagar pela face. E diante d'esta dÙr, t„o
humilde e t„o muda, Ega ficou desconcertado. Durante um instante, com os
dedos tremulos no bigode, viu Maria chorar em silencio. Por fim
ergueu-se, foi · janella, voltou, abriu os braÁos diante d'ella n'uma
afflicÁ„o:

--N„o, n„o È isso, minha querida senhora! Ha outra coisa, ha ainda outra
coisa! Tem sido para nÛs dias terriveis! Tem sido dias d'angustia...

Outra coisa!?... Ella esperava, com os olhos largos sobre o Ega, a alma
toda suspensa.

Ega respirou fortemente:

--V. exc.^a lembra-se d'um Guimar„es, que vive em Paris, um tio do
Damaso?

Maria, espantada, moveu lentamente a cabeÁa.

--Esse Guimar„es era muito conhecido da m„i de v. exc.^a, n„o È verdade?

Ella teve o mesmo movimento breve e mudo. Mas o pobre Ega hesitava
ainda, com a face arrepanhada e branca, n'um embaraÁo que o dilacerava:

--Eu fallo em tudo isto, minha senhora, porque Carlos assim me pediu...
Deus sabe o que me custa!... E È horrivel, nem sei por onde hei de
comeÁar...

Ella juntou as m„os, n'uma supplica, n'uma angustia:

--Pelo amor de Deus!

E n'esse instante, muito socegadamente, Rosa erguia uma ponta do
reposteiro, com _Niniche_ ao lado e a sua boneca nos braÁos. A m„i teve
um grito impaciente:

--Vai l· p'ra dentro! deixa-me!

Assustada, a pequena n„o se moveu mais, com os lindos olhos de repente
cheios de agua. O reposteiro cahiu, do fundo do corredor veio um grande
chÙro magoado.

Ent„o Ega teve sÛ um desejo, o desesperado desejo de findar.

--V. exc.^a conhece a letra de sua m„i, n„o È verdade?... Pois bem! Eu
trago aqui uma declaraÁ„o d'ella a seu respeito... Esse Guimar„es È que
tinha este documento, com outros papeis que ella lhe entregou em 71, nas
vesperas da guerra... Elle conservou-os atÈ agora, e queria
restituir-lh'os, mas n„o sabia onde v. exc.^a vivia. Viu-a ha dias n'uma
carruagem, commigo, e com o Carlos... Foi ao pÈ do Aterro, v. exc.^a
deve lembrar-se, defronte do alfaiate, quando vinhamos da _Toca_... Pois
bem! o Guimar„es veio immediatamente ao procurador dos Maias, deu-lhe
esses papeis, para que os entregasse a v. exc.^a... E nas primeiras
palavras que disse, imagine o assombro de todos, quando se entreviu que
v. exc.^a era parenta de Carlos, e parenta muito chegada...

Atabalho·ra esta historia de pÈ, quasi d'um fÙlego, com bruscos gestos
de nervoso. Ella mal comprehendia, livida, n'um indefinido terror. SÛ
pÙde murmurar muito debilmente: ´Mas...ª E de novo emmudeceu,
assombrada, devorando os movimentos do Ega que, debruÁado sobre o sof·,
desembrulhava a tremer a caixa de charutos da Monforte. Por fim voltou
para ella com um papel na m„o, atropellando as palavras n'uma debandada:

--A m„i de v. exc.^a nunca lh'o disse... Havia um motivo muito grave...
Ella tinha fugido de Lisboa, fugido ao marido... Digo isto assim
brutalmente, perdÙe-me v. exc.^a, mas n„o È o momento de attenuar as
coisas... Aqui est·! V. exc.^a conhece a letra de sua m„i. … d'ella esta
letra, n„o È verdade?

--…! exclamou Maria, indo arrebatar o papel.

--Perd„o! gritou Ega, retirando-lh'o violentamente. Eu sou um estranho!
E v. exc.^a n„o se pÛde inteirar de tudo isto emquanto eu n„o sahir
d'aqui.

FÙra uma inspiraÁ„o providencial, que o salvava de testemunhar o choque
terrivel, o horror das coisas que ella ia saber. E insistiu. Deixava-lhe
alli todos os papeis que eram de sua m„i. Ella lerÌa, quando elle
sahisse, comprehenderia a realidade atroz... Depois, tirando do bolso os
dois pesados rÙlos de libras, o sobrescripto que continha a letra sobre
Paris, pÙz tudo em cima da mesa, com a declaraÁ„o da Monforte.

--Agora sÛ mais duas palavras. Carlos pensa que o que v. exc.^a deve
fazer j· È partir para Paris. V. exc.^a tem direito, como sua filha ha
de ter, a uma parte da fortuna d'esta familia dos Maias, que agora È a
sua... N'este masso que lhe deixo est· uma letra sobre Paris para as
despezas immediatas... O procurador de Carlos tomou j· um wagon-sal„o.
Quando v. exc.^a decidir partir, peÁo-lhe que mande um recado ao
Ramalhete para eu estar na _gare_... Creio que È tudo. E agora devo
deixal-a...

Agarr·ra rapidamente o chapÈo, veio tomar-lhe a m„o inerte e fria:

--Tudo È uma fatalidade! V. exc.^a È nova, ainda lhe resta muita coisa
na vida, tem a sua filha a consolal-a de tudo... Nem lhe sei dizer mais
nada!

Suffocado, beijou-lhe a m„o que ella lhe abandonou, sem consciencia e
sem voz, de pÈ, direita no seu negro luto, com a lividez parada d'um
marmore. E fugiu.

--Ao telegrapho! gritou em baixo ao cocheiro.

Foi sÛ na rua do Ouro que comeÁou a serenar, tirando o chapÈo,
respirando largamente. E ia ent„o repetindo a si mesmo todas as
consolaÁıes que se poderiam dar a Maria Eduarda: era nova e formosa; o
seu peccado fÙra inconsciente; o tempo acalma toda a dÙr; e em breve, j·
resignada, encontrar-se-hia com uma familia sÈria, uma larga fortuna,
n'esse amavel Paris, onde uns lindos olhos, com algumas notas de mil
francos, tÍm sempre um reinado seguro...

--… uma situaÁ„o de viuva bonita e rica, terminou elle por dizer alto no
coupÈ. Ha peor na vida.

Ao sahir do telegrapho despediu a tipoia. Por aquella luz consoladora do
dia de inverno, recolheu a pÈ para o Ramalhete, a escrever a longa carta
que promettera a Carlos. VillaÁa j· l· estava installado, com um bonÈ de
velludilho na cabeÁa, emmassando ainda os papeis de Affonso, liquidando
as contas dos criados. Jantaram tarde. E fumavam junto do lume, na sala
Luiz XV, quando o escudeiro veio dizer que uma senhora, em baixo, n'uma
carruagem, procurava o snr. Ega. Foi um terror. Imaginaram logo Maria,
alguma resoluÁ„o desesperada. VillaÁa ainda teve a esperanÁa d'ella
trazer alguma nova revelaÁ„o, que tudo mudasse, salvasse da ´boladaª...
Ega desceu a tremer. Era Melanie n'uma tipoia de praÁa, abafada n'uma
grande _ulster_, com uma carta de Madame.

¡ luz da lanterna Ega abriu o enveloppe, que trazia apenas um cart„o
branco, com estas palavras a lapis: ´Decidi partir ·manh„ para Paris.ª

Ega recalcou a curiosidade de saber como estava a senhora. Galgou logo
as escadas: e seguido de VillaÁa, que fic·ra na ante-camara · espreita,
correu ao escriptorio d'Affonso, a escrever a Maria. N'um papel tarjado
de luto dizia-lhe (alÈm de detalhes sobre bagagens)--que o wagon-sal„o
estava tomado atÈ Paris, e que elle teria a honra de a vÍr em Santa
Apolonia. Depois, ao fazer o sobrescripto, ficou com a penna no ar, n'um
embaraÁo. Devia pÙr ´Madame Mac-Grenª ou ´D. Maria Eduarda da Maia?ª
VillaÁa achava preferivel o antigo nome, porque ella legalmente ainda
n„o era Maia. Mas, dizia o Ega atrapalhado, tambem j· n„o era
Mac-Gren...

--Acabou-se! Vae sem nome. Imagina-se que foi esquecimento...

Levou assim a carta, dentro do sobrescripto em branco. Melanie guardou-a
no regalo. E, debruÁada · portinhola, entristecendo a voz, desejou
saber, da parte de Madame, onde estava enterrado o avÙ do senhor...

Ega ficou com o monoculo sobre ella, sem sentir bem se aquella
curiosidade de Maria era indiscreta ou tocante. Por fim deu uma
indicaÁ„o. Era nos Prazeres, · direita, ao fundo, onde havia um anjo com
uma tocha. O melhor seria perguntar ao guarda pelo jazigo dos snrs.
VillaÁas.

--Merci, monsieur, bien le bonsoir.

--Bonsoir, Melanie!

No dia seguinte, na estaÁ„o de Santa Apolonia, Ega, que viera cedo com o
VillaÁa, acabava de despachar a sua bagagem para o Douro, quando avistou
Maria que entrava trazendo Rosa pela m„o. Vinha toda envolta n'uma
grande pelliÁa escura, com um vÈo dobrado, espesso como uma mascara: e a
mesma gaze de luto escondia o rostosinho da pequena, fazendo-lhe um laÁo
sobre a touca. Miss Sarah, n'uma _ulster_ clara de quadrados, sobraÁava
um masso de livros. Atraz o Domingos, com os olhos muito vermelhos,
segurava um rÙlo de mantas, ao lado de Melanie carregada de preto que
levava _Niniche_ ao collo. Ega correu para Maria Eduarda, conduziu-a
pelo braÁo, em silencio, ao wagon-sal„o que tinha todas as cortinas
cerradas. Junto do estribo ella tirou devagar a luva. E muda,
estendeu-lhe a m„o.

--Ainda nos vemos no Entroncamento, murmurou Ega. Eu sigo tambem para o
Norte.

Alguns sujeitos pararam, com curiosidade, ao vÍr sumir-se n'aquella
carruagem de luxo, fechada, mysteriosa, uma senhora que parecia t„o
bella, d'ar t„o triste, coberta de negro. E apenas Ega fechou a
portinhola, o Neves, o da _Tarde_ e do Tribunal de Contas, rompeu
d'entre um rancho, arrebatou-lhe o braÁo com sofreguid„o:

--Quem È?

Ega arrastou-o pela plataforma, para lhe deixar cahir no ouvido, j·
muito adiante, tragicamente:

--Cleopatra!

O politico, furioso, ficou rosnando: ´Que asno!...ª Ega abal·ra. Junto
do seu compartimento VillaÁa esperava, ainda deslumbrado com aquella
figura de Maria Eduarda, t„o melancolica e nobre. Nunca a vira antes. E
parecia-lhe uma rainha de romance.

--Acredite o amigo, fez-me impress„o! Caramba, bella mulher! D·-nos uma
bolada, mas È uma soberba praÁa!

O comboio partiu. O Domingos ficava choramingando com um lenÁo de cÙres
sobre a face. E o Neves, o conselheiro do Tribunal de Contas, ainda
furioso, vendo o Ega · portinhola, atirou-lhe de lado, disfarÁadamente,
um gesto obsceno.

No Entroncamento Ega veio bater nos vidros do sal„o que se conservava
fechado e mudo. Foi Maria que abriu. Rosa dormia. Miss Sarah lia a um
canto, com a cabeÁa n'uma almofada. E _Niniche_ assustada ladrou.

--Quer tomar alguma coisa, minha senhora?

--N„o, obrigada...

Ficaram calados, emquanto Ega com o pÈ no estribo tirava lentamente a
charuteira. Na estaÁ„o mal alumiada passavam saloios, devagar, abafados
em mantas. Um guarda rolava uma carreta de fardos. Adiante a machina
resfolegava na sombra. E dois sujeitos rondavam em frente do sal„o, com
olhares curiosos e j· languidos para aquella magnifica mulher, t„o grave
e sombria, envolta na sua pelliÁa negra.

--Vai para o Porto? murmurou ella.

--Para Santa Olavia...

--Ah!

Ent„o Ega balbuciou com os beiÁos a tremer:

--Adeus!

Ella apertou-lhe a m„o com muita forÁa, em silencio, suffocada.

Ega atravessou, devagar, por entre soldados de capote enrolado a
tiracollo que corriam a beber · cantina. ¡ porta do buffete voltou-se
ainda, ergueu o chapÈo. Ella, de pÈ, moveu de leve o braÁo n'um lento
adeus. E foi assim que elle pela derradeira vez na vida viu Maria
Eduarda, grande, muda, toda negra na claridade, · portinhola d'aquelle
wagon que para sempre a levava.




VIII


Semanas depois, nos primeiros dias d'anno novo, a _Gazeta Illustrada_
trazia na sua columna do _High-life_ esta noticia: ´ O distincto e
brilhante _sportman_, o snr. Carlos da Maia, e o nosso amigo e
collaborador Jo„o da Ega, partiram hontem para Londres, d'onde seguir„o
em breve para a America do Norte, devendo d'ahi prolongar a sua
interessante viagem atÈ ao Jap„o. Numerosos amigos foram a bordo do
_Tamar_ despedir-se dos sympathicos _touristes_. Vimos entre outros os
snrs, ministro da Filandia e seu secretario, o marquez de Souzella,
conde de Gouvarinho, visconde de Darque, Guilherme Craft, Telles da
Gama, Cruges, Taveira, VillaÁa, general Sequeira, o glorioso poeta
Thomaz d'Alencar, etc. etc. O nosso amigo e collaborador Jo„o da Ega
fez-nos, no ultimo _shake-hands_, a promessa de nos mandar algumas
cartas com as suas impressıes do Jap„o, esse delicioso paiz d'onde nos
vem o sol e a moda! … uma boa nova para todos os que prezam a observaÁ„o
e o espirito. _Au revoir!_ª

Depois d'estas linhas affectuosas (em que o Alencar collabor·ra) as
primeiras noticias dos ´viajantesª vieram, n'uma carta do Ega para o
VillaÁa, de New-York. Era curta, toda de negocios. Mas elle ajuntava um
_post-scriptum_ com o titulo de _InformaÁıes geraes para os amigos_.
Contava ahi a medonha travessia desde Liverpool, a persistente tristeza
de Carlos, e New-York coberta de neve sob um sol rutilante. E
acrescentava ainda: ´Est·-se apossando de nÛs a embriaguez das viagens,
decididos a trilhar este estreito Universo atÈ que _cancem as nossas
tristezas_. Planeamos ir a Pekin, passar a Grande Muralha, atravessar a
Asia Central, o oasis de Merv, Khiva, e penetrar na Russia; d'ahi, pela
Armenia e pela Syria, descer ao Egypto a retemperar-nos no sagrado Nilo;
subir depois a Athenas, lanÁar sobre a Acropole uma saudaÁ„o a Minerva;
passar a Napoles; dar um olhar a Argelia e a Marrocos; e cahir emfim ao
comprido em Santa Olavia l· para os meados de 79 a descanÁar os membros
fatigados. N„o escrevinho mais porque È tarde, e vamos · Opera vÍr a
Patti no _Barbeiro_. Larga distribuiÁ„o d'abraÁos a todos os amigos
queridosª

VillaÁa copiou este paragrapho, e trazia-o na carteira para mostrar aos
fieis amigos do Ramalhete. Todos approvaram, com admiraÁ„o, t„o bellas,
aventurosas jornadas. SÛ Cruges, aterrado com aquella vastid„o do
Universo, murmurou tristemente: ´N„o voltam c·!ª

Mas, passado anno e meio, n'um lindo dia de marÁo, Ega reappareceu no
Chiado. E foi uma sensaÁ„o! Vinha esplendido, mais forte, mais
trigueiro, soberbo de _verve_, n'um alto apuro de toilette, cheio de
historias e de aventuras do Oriente, n„o tolerando nada em arte ou
poesia que n„o fosse do Jap„o ou da China, e annunciando um grande
livro, o ´seu livroª, sob este titulo grave de chronica
heroica--_Jornadas da Asia_.

--E Carlos?...

--Magnifico! Installado em Paris, n'um delicioso appartamento dos
Campos-Elyseos, fazendo a vida larga d'um principe artista da
RenascenÁa...

Ao VillaÁa porÈm, que sabia os segredos, Ega confessou que Carlos fic·ra
ainda _abalado_. Vivia, ria, governava o seu phaeton no Bois--mas l· no
fundo do seu coraÁ„o permanecia, pesada e negra, a memoria da ´semana
terrivelª.

--Todavia os annos v„o passando, VillaÁa, acrescentou elle. E com os
annos, a n„o ser a China, tudo na terra passa...

E esse anno passou. Gente nasceu, gente morreu. Searas amadureceram,
arvoredos murcharam. Outros annos passaram.



Nos fins de 1886, Carlos veio fazer o Natal perto de Sevilha, a casa
d'um amigo seu de Paris, o marquez de Villa-Medina. E d'essa propriedade
dos Villa-Medina, chamada _La Soledad_, escreveu para Lisboa ao Ega
annunciando que--depois d'um exilio de quasi dez annos, resolvera vir ao
velho Portugal vÍr as arvores de Santa Olavia e as maravilhas da
Avenida. De resto tinha uma formidavel nova, que assombraria o bom Ega:
e se elle j· ardia em curiosidade, que viesse ao seu encontro com o
VillaÁa, comer o porco a Santa Olavia.

--Vae casar! pensou Ega.

Havia tres annos (desde a sua ultima estada em Paris) que elle n„o via
Carlos. Infelizmente n„o pÙde correr a Santa Olavia, retido n'um quarto
do _Braganza_ com uma angina, desde uma ceia prodigiosamente divertida
com que celebr·ra no Silva a noite de Reis. VillaÁa, porÈm, levou a
Carlos para Santa Olavia uma carta em que o Ega, contando a sua angina,
lhe supplicava que se n„o retardasse com o porco n'esses penhascos do
Douro, e que voasse · grande Capital a trazer a grande nova.

Com effeito, Carlos pouco se demorou em Rezende. E n'uma luminosa e
macia manh„ de janeiro de 1887, os dois amigos emfim juntos almoÁavam
n'um sal„o do _Hotel Braganza_, com as duas janellas abertas para o rio.

Ega, j· curado, radiante, n'uma excitaÁ„o que n„o se calmava,
alagando-se de cafÈ, entalava a cada instante o monoculo para admirar
Carlos e a sua ´immutabilidadeª.

--Nem uma branca, nem uma ruga, nem uma sombra de fadiga!... Tudo isso È
Paris, menino!... Lisboa arraza. Olha para mim, olha para isto!

Com o dedo magro apontava os dois vincos fundos ao lado do nariz, na
face chupada. E o que o aterrava sobretudo era a calva, uma calva que
comeÁ·ra havia dois annos, alastr·ra, j· reluzia no alto.

--Olha este horror! A sciencia para tudo acha um remedio, menos para a
calva! Transformam-se as civilisaÁıes, a calva fica!... J· tem tons de
bola de bilhar, n„o È verdade?... De que ser·?

--… a ociosidade, lembrou Carlos rindo.

--A ociosidade!... E tu, ent„o?

De resto, que podia elle fazer n'este paiz?... Quando volt·ra de FranÁa,
ultimamente, pens·ra em entrar na diplomacia. Para isso sempre tivera a
_blague_: e agora que a mam„, coitada, l· estava no seu grande jazigo em
Celorico, tinha a _massa_. Mas depois reflectira. Por fim, em que
consistia a diplomacia portugueza? N'uma outra fÛrma da ociosidade,
passada no estrangeiro, com o sentimento constante da propria
insignificancia. Antes o Chiado!

E como Carlos lembrava a Politica, occupaÁ„o dos inuteis, Ega trovejou.
A politica! Isso torn·ra-se moralmente e physicamente nojento, desde que
o negocio atac·ra o constitucionalismo como uma phylloxera! Os politicos
hoje eram bonecos de engonÁos, que faziam gestos e tomavam attitudes
porque dois ou tres financeiros por traz lhes puxavam pelos cordeis...
Ainda assim podiam ser bonecos bem recortados, bem envernizados. Mas
qual! Ahi È que estava o horror. N„o tinham feitio, n„o tinham maneiras,
n„o se lavavam, n„o limpavam as unhas... Coisa extraordinaria, que em
paiz algum succedia, nem na Romelia, nem na Bulgaria! Os tres ou quatro
salıes que em Lisboa recebem todo o mundo, seja quem fÙr, largamente,
excluem a maioria dos politicos. E porque? Porque as _senhoras tÍm
nÙjo_!

--Olha o Gouvarinho! VÍ l· se elle recebe ·s terÁas-feiras os seus
correligionarios...

Carlos que sorria, encantado com aquella veia acerba do Ega, saltou na
cadeira:

--… verdade, e a Gouvarinho, a nossa boa Gouvarinho?

Ega, passeando pela sala, deu as novas dos Gouvarinhos. A condessa
herd·ra uns sessenta contos de uma tia excentrica que vivia a Santa
Isabel, tinha agora melhores carruagens, recebia sempre ·s
terÁas-feiras. Mas soffria uma doenÁa qualquer, grave, no figado ou no
pulm„o. Ainda elegante todavia, muito sÈria, uma terrivel flÙr de
_pruderie_... Elle, o Gouvarinho, ahi continuava, palrador,
escrevinhador, politicote, impertigadote, j· grisalho, duas vezes
ministro, e coberto de gran-cruzes...

--Tu n„o os viste em Paris, ultimamente?

--N„o. Quando soube fui-lhes deixar bilhetes, mas tinham partido na
vespera para Vichy...

A porta abriu-se, um brado cavo resoou:

--AtÈ que emfim, meu rapaz!

--Oh Alencar! gritou Carlos, atirando o charuto.

E foi um infinito abraÁo, com palmadas arrebatadas pelos hombros, e um
beijo ruidoso--o beijo paternal do Alencar, que tremia, commovido. Ega
arrast·ra uma cadeira, berrava pelo escudeiro:

--Que tomas tu, Thomaz? Cognac? CuraÁ·o? Em todo o caso cafÈ! Mais cafÈ!
Muito forte, para o snr. Alencar!

O poeta, no emtanto, abysmado na contemplaÁ„o de Carlos, agarr·ra-o
pelas m„os, com um sorriso largo, que lhe descobria os dentes mais
estragados. Achava-o magnifico, var„o soberbo, honra da raÁa... Ah!
Paris, com o seu espirito, a sua vida ardente, conserva...

--E Lisboa arraza! acudiu Ega. J· c· tive essa phrase. V·, abanca, ahi
tens o cafÈsinho e a bebida!

Mas Carlos agora tambem contemplava o Alencar. E parecia-lhe mais
bonito, mais poetico, com a sua grenha inspirada e toda branca, e
aquellas rugas fundas na face morena, cavadas como sulcos de carros pela
tumultuosa passagem das emoÁıes...

--Est·s typico, Alencar! Est·s a preceito para a gravura e para a
estatua!...

O poeta sorria, passando os dedos com complacencia pelos longos bigodes
romanticos, que a idade embranquecera e o cigarro amarell·ra. Que diabo,
algumas compensaÁıes havia de ter a velhice!... Em todo o caso o
estomago n„o era mau, e conservava-se, caramba, filhos, um bocado de
coraÁ„o.

--O que n„o impede, meu Carlos, que isto por c· esteja cada vez peor!
Mas acabou-se... A gente queixa-se sempre do seu paiz, È habito humano.
J· Horacio se queixava. E vocÍs, intelligencias superiores, sabeis bem,
filhos, que no tempo de Augusto... Sem fallar, È claro, na quÈda da
republica, n'aquelle desabamento das velhas instituiÁıes... Emfim
deixemos l· os Romanos! Que est· alli n'aquella garrafa? Chablis... N„o
desgosto, no outono, com as ostras. Pois v· l· o Chablis. E · tua
chegada, meu Carlos! e · tua, meu Jo„o, e que Deus vos dÍ as glorias que
mereceis, meus rapazes!...

Bebeu. Rosnou: ´bom Chablis, _bouquet_ finoª. E acabou por abancar,
ruidosamente, sacudindo para traz a juba branca.

--Este Thomaz! exclamava Ega, pousando-lhe a m„o no hombro com carinho.
N„o ha outro, È unico! O bom Deus fel-o n'um dia de grande _verve_, e
depois quebrou a fÙrma.

Ora, historias! murmurava o poeta radiante. Havia-os t„o bons como elle.
A humanidade viera toda do mesmo barro como pretendia a Biblia--ou do
mesmo macaco como affirmava o Darwin...

--Que, l· essas coisas d'evoluÁ„o, origem das especies, desenvolvimento
da cellula, c· para mim... Est· claro, o Darwin, o Lamarck, o Spencer, o
Claudio Bernard, o LittrÈ, tudo isso, È gente de primeira ordem. Mas
acabou-se, irra! Ha uns poucos de mil annos que o homem prova
sublimemente que tem alma!

--Toma o cafÈsinho, Thomaz! aconselhou o Ega, empurrando-lhe a chavena.
Toma o cafÈsinho!

--Obrigado!... E È verdade, Jo„o, l· dei a tua boneca · pequena. ComeÁou
logo a beijal-a, a embalal-a, com aquelle profundo instincto de m„i,
aquelle _quid_ divino... … uma sobrinhita minha, meu Carlos. Ficou sem
m„i, coitadinha, l· a tenho, l· vou tratando de fazer d'ella uma
mulher... Has de vÍl-a. Quero que vocÍs l· v„o jantar um dia, para vos
dar umas perdizes · hespanhola... Tu demoras-te, Carlos?

--Sim, uma ou duas semanas, para tomar um bom sorvo de ar da patria.

--Tens raz„o, meu rapaz! exclamou o poeta, puxando a garrafa do cognac.
Isto ainda n„o È t„o mau como se diz... Olha tu para isso, para esse
cÈo, para esse rio, homem!

--Com effeito È encantador!

Todos tres, durante um momento, pasmaram para a incomparavel belleza do
rio, vasto, lustroso, sereno, t„o azul como o cÈo, esplendidamente
coberto de sol.

--E versos? exclamou de repente Carlos, voltando-se para o poeta.
Abandonaste a lingua divina?

Alencar fez um gesto de desalento. Quem entendia j· a lingua divina? O
novo Portugal sÛ comprehendia a lingua da libra, da ´massaª. Agora,
filho, tudo eram syndicatos!

--Mas ainda ·s vezes me passa uma coisa c· por dentro, o velho homem
estremece... Tu n„o viste nos jornaes?... Est· claro, n„o lÍs c· esses
trapos que por ahi chamam gazetas... Pois veio ahi uma coisita, dedicada
aqui ao Jo„o. Ora eu t'a digo se me lembrar...

Correu a m„o aberta pela face escaveirada, lanÁou a estrophe n'um tom de
lamento:


    Luz d'esperanÁa, luz d'amor,
    Que vento vos desfolhou?
    Que a alma que vos seguia
    Nunca mais vos encontrou!


Carlos murmurou: ´Lindo!ª Ega murmurou: ´Muito fino!ª E o poeta,
aquecendo, j· commovido, esboÁou um movimento d'aza que foge:


    Minh'alma em tempos d'outr'ora,
    Quando nascia o luar,
    Como um rouxinol que acorda
    Punha-se logo a cantar.

    Pensamentos eram flÙres,
    Que a aragem lenta de Maio...


--O snr. Cruges! annunciou o criado, entreabrindo a porta.

Carlos ergueu os braÁos. E o maestro, todo abotoado n'um paletot claro,
abandonou-se · effus„o de Carlos, balbuciando:

--Eu sÛ hontem È que soube. Queria-te ir esperar, mas n„o me
acordaram...

--Ent„o contin˙a o mesmo desleixo? exclamava Carlos, alegremente. Nunca
te acordam?

Cruges encolhia os hombros, muito vermelho, acanhado, depois d'aquella
longa separaÁ„o. E foi Carlos que o obrigou a sentar-se ao lado,
enternecido com o seu velho maestro, sempre esguio, com o nariz mais
agudo, a grenha cahindo mais crespa sobre a gola do paletot.

--E deixa-me dar-te os parabens! L· soube pelos jornaes, o triumpho, a
linda opera-comica, a _FlÙr de Sevilha_...

--_De Granada_! acudiu o maestro. Sim, uma coisita para ahi, n„o
desgostaram.

--Uma belleza! gritou Alencar, enchendo outro copo de cognac. Uma musica
toda do sul, cheia de luz, cheirando a laranjeira... Mas j· lhe tenho
dito: ´Deixa l· a opereta, rapaz, vÙa mais alto, faze uma grande
symphonia historica!ª Ainda ha dias lhe dei uma idÈa. A partida de D.
Sebasti„o para a Africa. Cantos de marinheiros, atabales, o chÙro do
povo, as ondas batendo... Sublime! Qual, pıe-se-me l· com castanholas...
Emfim, acabou-se, tem muito talento, e È como se fosse meu filho porque
me sujou muita calÁa!...

Mas o maestro, inquieto, passava os dedos pela grenha. Por fim confessou
a Carlos que n„o se podia demorar, tinha um _rendez-vous_...

--D'amor?

--N„o... … o Barradas que me anda a tirar o retrato a oleo.

--Com a lyra na m„o?

--N„o, respondeu o maestro, muito sÈrio. Com a batuta... E estou de
casaca.

E desabotoou o paletot, mostrou-se em todo o seu esplendor, com dois
coraes no peitilho da camisa, e a batuta de marfim mettida na abertura
do collete.

--Est·s magnifico! affirmou Carlos. Ent„o outra coisa, vem c· jantar
logo. Alencar, tu tambem, hein? Quero ouvir esses bellos versos com
socego... ¡s seis, em ponto, sem falhar. Tenho um jantarinho ·
portugueza que encommendei de manh„, com cozido, arroz de forno, gr„o de
bico, etc., para matar saudades...

Alencar lanÁou um gesto immenso de desdem. Nunca o cozinheiro do
_Braganza_, francelhote miseravel, estaria · altura d'esses nobres
petiscos do velho Portugal. Emfim acabou-se. Seria pontual ·s seis para
uma grande saude ao seu Carlos!

--VocÍs v„o sahir, rapazes?

Carlos e Ega iam ao Ramalhete visitar o casar„o.

O poeta declarou logo que isso era romagem sagrada. Ent„o elle partia
com o maestro. O seu caminho ficava tambem para o lado do Barradas...
MoÁo de talento, esse Barradas!... Um pouco pardo de cÙr, tudo por
acabar, esborratado, mas uma bella ponta de faisca.

--E teve uma tia, filhos, a Leonor Barradas! Que olhos, que corpo! E n„o
era sÛ o corpo! Era a alma, a poesia, o sacrificio!... J· n„o ha d'isso,
j· l· vai tudo. Emfim, acabou-se, ·s seis!

--¡s seis, em ponto, sem falhar!

Alencar e o maestro partiram, depois de se munirem de charutos. E d'ahi
a pouco Carlos e Ega seguiam tambem pela rua do Thesouro Velho, de braÁo
dado, muito lentamente.

Iam conversando de Paris, de rapazes e de mulheres que o Ega conhecÍra,
havia quatro annos, quando l· pass·ra um t„o alegre inverno nos
appartamentos de Carlos. E a surpreza do Ega, a cada nome evocado, era o
curto brilho, o fim brusco de toda essa mocidade estouvada. A Lucy Gray,
morta. A Conrad, morta... E a Maria Blond? Gorda, emburguezada, casada
com um fabricante de velas de estearina. O polaco, o louro? Fugido,
desapparecido. Mr. de Menant, esse D. Juan? Sub-prefeito no departamento
do Doubs. E o rapaz que morava ao lado, o belga? Arruinado na Bolsa... E
outros ainda, mortos, sumidos, afundados no lodo de Paris!

--Pois tudo sommado, menino, observou Ega, esta nossa vidinha de Lisboa,
simples, pacata, corredia, È infinitamente preferivel.

Estavam no Loreto; e Carlos par·ra, olhando, reentrando na intimidade
d'aquelle velho coraÁ„o da capital. Nada mud·ra. A mesma sentinella
somnolenta rondava em torno · estatua triste de Camıes. Os mesmos
reposteiros vermelhos, com brazıes ecclesiasticos, pendiam nas portas
das duas igrejas. O _Hotel Alliance_ conservava o mesmo ar mudo e
deserto. Um lindo sol dourava o lagedo; batedores de chapÈo · faia
fustigavam as pilecas; tres varinas, de canastra · cabeÁa, meneavam os
quadris, fortes e ageis na plena luz. A uma esquina, vadios em farrapos
fumavam; e na esquina defronte na Havaneza, fumavam tambem outros
vadios, de sobrecasaca, politicando.

--Isto È horrivel quando se vem de fÛra! exclamou Carlos. N„o È a
cidade, È a gente. Uma gente feiissima, encardida, mollenga, reles,
amarellada, acabrunhada!...

--Todavia Lisboa faz differenÁa, affirmou Ega, muito sÈrio. Oh, faz
muita differenÁa! Has de vÍr a Avenida... Antes do Ramalhete vamos dar
uma volta · Avenida.

Foram descendo o Chiado. Do outro lado os toldos das lojas estendiam no
ch„o uma sombra forte e dentada. E Carlos reconhecia, encostados ·s
mesmas portas, sujeitos que l· deix·ra havia dez annos, j· assim
encostados, j· assim melancolicos. Tinham rugas, tinham brancas. Mas l·
estacionavam ainda, apagados e murchos, rente das mesmas humbreiras, com
collarinhos · moda. Depois, diante da livraria Bertrand, Ega, rindo,
tocou no braÁo de Carlos:

--Olha quem alli est·, · porta do Baltresqui!

Era o Damaso. O Damaso, barrigudo, nedio, mais pesado, de flÙr ao peito,
mamando um grande charuto, e pasmaceando, com o ar regaladamente
embrutecido d'um ruminante farto e feliz. Ao avistar tambem os seus dois
velhos amigos que desciam, teve um movimento para se esquivar,
refugiar-se na confeitaria. Mas, insensivelmente, irresistivelmente,
achou-se em frente de Carlos, com a m„o aberta e um sorriso na bochecha,
que se lhe esbraze·ra.

--Ol·, por c·!... Que grande surpreza!

Carlos abandonou-lhe dois dedos, sorrindo tambem, indifferente e
esquecido.

--… verdade, Damaso... Como vai isso?

--Por aqui, n'esta semsaboria... E ent„o com demora?

--Umas semanas.

--Est·s no Ramalhete?

--No _Braganza_. Mas n„o te incommodes, eu ando sempre por fÛra.

--Pois sim senhor!... Eu tambem estive em Paris, ha tres mezes, no
_Continental_...

--Ah!... Bem, estimei vÍr-te, atÈ sempre!

--Adeus, rapazes. Tu est·s bom, Carlos, est·s com boa cara!

--… dos teus olhos, Damaso.

E nos olhos do Damaso, com effeito, parecia reviver a antiga admiraÁ„o,
arregalados, acompanhando Carlos, estudando-lhe por traz a sobrecasaca,
o chapÈo, o andar, como no tempo em que o Maia era para elle o typo
supremo do seu querido _chic_, ´uma d'essas coisas que sÛ se vÍem l·
fÛra...ª

--Sabes que o nosso Damaso casou? disse o Ega um pouco adiante, travando
outra vez do braÁo de Carlos.

E foi um espanto para Carlos. O quÍ! O nosso Damaso! Casado!?... Sim,
casado com uma filha dos condes d'Agueda, uma gente arruinada, com um
rancho de raparigas. Tinham-lhe impingido a mais nova. E o optimo
Damaso, verdadeira sorte grande para aquella distincta familia, pagava
agora os vestidos, das mais velhas.

--… bonita?

--Sim, bonitinha... Faz ahi a felicidade d'um rapazote sympathico,
chamado Barroso.

--O quÍ, o Damaso, coitado!...

--Sim, coitado, coitadinho, coitadissimo... Mas como vÍs, immensamente
ditoso, atÈ tem engordado com a perfidia!

Carlos par·ra. Olhava, pasmado para as varandas extraordinarias d'um
primeiro andar, recobertas, como em dia de prociss„o, de sanefas de pano
vermelho onde se entrelaÁavam monogrammas. E ia indagar--quando, d'entre
um grupo que estacionava ao portal d'esse predio festivo, um rapaz d'ar
estouvado, com a face imberbe cheia d'espinhas carnaes, atravessou
rapidamente a rua para gritar ao Ega, suffocado de riso:

--Se vocÍ for depressa ainda a encontra ahi abaixo! Corra!

--Quem?

--A Adosinda!... De vestido azul, com plumas brancas no chapÈo... V·
depressa... O Jo„o Elyseu metteu-lhe a bengala entre as pernas, ia-a
fazendo estatelar no ch„o, foi uma scena... V· depressa, homem!

Com duas pernadas esguias o rapaz recolheu ao seu rancho--onde todos, j·
calados, com uma curiosidade de provincia, examinavam aquelle homem de
t„o alta elegancia que acompanhava o Ega, e que nenhum conhecia. E Ega,
no emtanto, explicava a Carlos as varandas e o grupo:

--S„o rapazes do _Turf_. … um club novo, o antigo Jockey da travessa da
Palha. Faz-se l· uma batotinha barata, tudo gente muito sympathica... E
como vÍs est„o sempre assim preparados, com sanefas e tudo, para se
acaso passar por ahi o Senhor dos Passos.

Depois, descendo para a rua Nova do Almada, contou o caso da Adosinda.
FÙra no Silva, havia duas semanas, estando elle a cear com rapazes
depois de S. Carlos, que lhes apparecera essa mulher inverosimil,
vestida de vermelho, carregando insensatamente nos _rr_, mettendo _rr_
em todas as palavras, e perguntando pelo snr. _virrsconde_... Qual
_virrsconde_? Ella n„o sabia bem. _Erra um virrsconde que encontrr·rra
no Crrolyseu_. Senta-se, offerecem-lhe champagne, e D. Adosinda comeÁa a
revelar-se um sÍr prodigioso. Fallavam de politica, do ministerio e do
_deficit_. D. Adosinda declara logo que conhece muito bem o _deficit_, e
que È um bello rapaz... O _deficit_ bello rapaz--immensa gargalhada! D.
Adosinda zanga-se, exclama que j· fÙra com elle a Cintra, que È um
perfeito cavalheiro, e empregado no Banco Inglez... O _deficit_
empregado no Banco Inglez--gritos, uivos, urros! E n„o cessou esta
gargalhada contÌnua, estrondosa, phrenetica, atÈ ·s cinco da manh„ em
que D. Adosinda fÙra rifada e sahira ao Telles!... Noite soberba!

--Com effeito, disse Carlos rindo, È uma orgia grandiosa, lembra
Heliogabalo e o Conde d'Orsay...

Ent„o Ega defendeu calorosamente a sua orgia. Onde havia melhor, na
Europa, em qualquer civilisaÁ„o? Sempre queria vÍr que se passasse uma
noite mais alegre em Paris, na desoladora banalidade do _Grand-Treize_,
ou em Londres, n'aquella correcta e massuda semsaboria do _Bristol_! O
que ainda tornava a vida toleravel era de vez em quando uma boa risada.
Ora na Europa o homem requintado j· n„o ri,--sorri regeladamente,
lividamente. SÛ nÛs aqui, n'este canto do mundo barbaro, conservamos
ainda esse dom supremo, essa coisa bemdita e consoladora--a barrigada de
riso!...

--Que diabo est·s tu a olhar?

Era o consultorio, o antigo consultorio de Carlos--onde agora, pela
taboleta, parecia existir um pequeno _atelier_ de modista. Ent„o
bruscamente os dois amigos recahiram nas recordaÁıes do passado. Que
estupidas horas Carlos alli arrast·ra, com a _Revista dos Dois Mundos_,
na espera v„ dos doentes, cheio ainda de fÈ nas alegrias do trabalho!...
E a manh„ em que o Ega l· apparecera com a sua esplendida pelliÁa,
preparando-se para transformar, n'um sÛ inverno, todo o velho e
rotineiro Portugal!

--Em que tudo ficou!

--Em que tudo ficou! Mas rimos bastante! Lembras-te d'aquella noite em
que o pobre marquez queria levar ao consultorio a Paca, para utilisar
emfim o divan, movel de serralho?...

Carlos teve uma exclamaÁ„o de saudade. Pobre marquez! FÙra uma das suas
fortes impressıes, n'esses ultimos annos--aquella morte do marquez,
sabida de repente ao almoÁo, n'uma banal noticia de jornal!... E atravÈs
do Rocio, andando mais devagar, recordavam outros desapparecimentos: a
D. Maria da Cunha, coitada, que acabara hydropica; o D. Diogo, casado
por fim com a cozinheira; o bom Sequeira, morto uma noite n'uma tipoia
ao sahir dos cavallinhos...

--E outra coisa, perguntou Ega. Tens visto o Craft em Londres?

--Tenho, disse Carlos. Arranjou uma casa muito bonita ao pÈ de
Richmond... Mas est· muito avelhado, queixa-se muito do figado. E,
desgraÁadamente, carrega de mais nos alcools. … uma pena!

Depois perguntou pelo Taveira. Esse lindo moÁo, contou o Ega, tinha
agora por cima mais dez annos de Secretaria e de Chiado. Mas sempre
apurado, j· um bocado grisalho, mettido continuamente com alguma
hespanhola, dando bastante a lei em S. Carlos, e murmurando todas as
tardes na Havaneza, com um ar dÙce e contente--´isto È um paiz perdidoª!
Enfim um bom typosinho de lisboeta fino.

--E a besta do Steinbroken?

--Ministro em Athenas, exclamou Carlos, entre as ruinas classicas!

E esta idÈa do Steinbroken, na velha Grecia, divertiu-os infinitamente.
Ega imaginava j· o bom Steinbroken, tÍso nos seus altos collarinhos,
affirmando a respeito de Socrates, com prudencia: ´Oh, il est trËs fort,
il est excessivement fort!ª Ou ainda, a proposito da batalha das
Thermopylas, rosnando, com medo de se comprometter: ´C'est trËs grave,
c'est excessivement grave!ª Valia a pena ir · Grecia para vÍr!

Subitamente Ega parou:

--Ora ahi tens tu essa Avenida! Hein?... J· n„o È mau!

N'um claro espaÁo rasgado, onde Carlos deix·ra o Passeio Publico pacato
e frondoso--um obelisco, com borrıes de bronze no pedestal, erguia um
traÁo cÙr d'assucar na vibraÁ„o fina da luz de inverno: e os largos
globos dos candieiros que o cercavam, batidos do sol, brilhavam,
transparentes e rutilantes, como grandes bolas de sab„o suspensas no ar.
Dos dois lados seguiam, em alturas desiguaes, os pesados predios, lisos
e aprumados, repintados de fresco, com vasos nas cornijas onde
negrejavam piteiras de zinco, e pateos de pedra, quadrilhados a branco e
preto, onde guarda-portıes chupavam o cigarro: e aquelles dois hirtos
renques de casas ajanotadas lembravam a Carlos as familias que outr'ora
se immobilisavam em filas, dos dois lados do Passeio, depois da missa
´da umaª, ouvindo a Banda, com casimiras e sÍdas, no catitismo
domingueiro. Todo o lagedo reluzia como cal nova. Aqui e alÈm um arbusto
encolhia na aragem a sua folhagem pallida e rara. E ao fundo a collina
verde, salpicada d'arvores, os terrenos de Valle de Pereiro, punham um
brusco remate campestre ·quelle curto rompante de luxo barato--que
partira para transformar a velha cidade, e estac·ra logo, com o fÙlego
curto, entre montıes de cascalho.

Mas um ar lavado e largo circulava; o sol dourava a caliÁa; a divina
serenidade do azul sem igual tudo cobria e adoÁava. E os dois amigos
sentaram-se n'um banco, junto de uma verdura que orlava a agua d'um
tanque esverdinhada e molle.

Pela sombra passeavam rapazes, aos pares, devagar, com flÙres na
lapella, a calÁa apurada, luvas claras fortemente pespontadas de negro.
Era toda uma geraÁ„o nova e miuda que Carlos n„o conhecia. Por vezes Ega
murmurava um _Ûl·!_, acenava com a bengala. E elles iam, repassavam, com
um arzinho timido e contrafeito, como mal acostumados ·quelle vasto
espaÁo, a tanta luz, ao seu proprio _chic_. Carlos pasmava. Que faziam
alli, ·s horas de trabalho, aquelles moÁos tristes, de calÁa esguia? N„o
havia mulheres. Apenas n'um banco adiante uma creatura adoentada, de
lenÁo e chale, tomava o sol; e duas matronas, com vidrilhos no
mantelete, donas de casa de hospedes, arejavam um c„osinho felpudo. O
que attrahia pois alli aquella mocidade pallida? E o que sobretudo o
espantava eram as botas d'esses cavalheiros, botas despropositadamente
compridas, rompendo para fÛra da calÁa collante com pontas aguÁadas e
reviradas como prÙas de barcos varinos...

--Isto È phantastico, Ega!

Ega esfregava as m„os. Sim, mas precioso! Porque essa simples fÙrma de
botas explicava todo o Portugal contemporaneo. Via-se por alli como a
coisa era. Tendo abandonado o seu feitio antigo, · D. Jo„o VI, que t„o
bem lhe ficava, este desgraÁado Portugal decidira arranjar-se · moderna:
mas sem originalidade, sem forÁa, sem caracter para crear um feitio seu,
um feitio proprio, manda vir modelos do estrangeiro--modelos d'idÈas, de
calÁas, de costumes, de leis, d'arte, de cozinha... SÛmente, como lhe
falta o sentimento da proporÁ„o, e ao mesmo tempo o domina a impaciencia
de parecer muito moderno e muito civilisado--exagera o modelo,
deforma-o, estraga-o atÈ · caricatura. O figurino da bota que veio de
fÛra era levemente estreito na ponta;--immediatamente o janota estica-o
e aguÁa-o atÈ ao bico d'alfinete. Por seu lado o escriptor lÍ uma pagina
de Goncourt ou de Verlaine em estylo precioso e
cinzelado;--immediatamente retorce, emmaranha, desengonÁa a sua pobre
phrase atÈ descambar no delirante e no burlesco. Por sua vez o
legislador ouve dizer que l· fÛra se levanta o nivel da
instrucÁ„o;--immediatamente pıe no programma dos exames de primeiras
letras a metaphysica, a astronomia, a philologia, a egyptologia, a
chresmatica, a critica das religiıes comparadas, e outros infinitos
terrores. E tudo por ahi adiante assim, em todas as classes e
profissıes, desde o orador atÈ ao photographo, desde o jurisconsulto atÈ
ao _sportman_... … o que succede com os pretos j· corrompidos de S.
ThomÈ, que vÍem os europeus de lunetas--e imaginam que n'isso consiste
ser civilisado e ser branco. Que fazem ent„o? Na sua sofreguid„o de
progresso e de brancura acavallam no nariz tres ou quatro lunetas,
claras, defumadas, atÈ de cÙr. E assim andam pela cidade, de tanga, de
nariz no ar, aos tropeÁıes, no desesperado e angustioso esforÁo de
equilibrarem todos estes vidros--para serem immensamente civilisados e
immensamente brancos...

Carlos ria:

--De modo que isto est· cada vez peor...

--Medonho! … d'um reles, d'um postiÁo! Sobretudo postiÁo! J· n„o ha nada
genuino n'este miseravel paiz, nem mesmo o p„o que comemos!

Carlos, recostado no banco, apontou com a bengala, n'um gesto lento:

--Resta aquillo, que È genuino...

E mostrava os altos da cidade, os velhos outeiros da GraÁa e da Penha,
com o seu casario escorregando pelas encostas resequidas e tisnadas do
sol. No cimo assentavam pesadamente os conventos, as igrejas, as
atarracadas vivendas ecclesiasticas, lembrando o frade pingue e
pachorrento, beatas de mantilha, tardes de prociss„o, irmandades d'opa
atulhando os adros, herva dÙce juncando as ruas, tremoÁo e fava-rica
apregoada ·s esquinas, e foguetes no ar em louvor de Jesus. Mais alto
ainda, recortando no radiante azul a miseria da sua muralha, era o
castello, sordido e tarimbeiro, d'onde outr'ora, ao som do hymno tocado
em fagotes, descia a tropa de calÁa branca a fazer a _bernarda_! E
abrigados por elle, no escuro bairro de S. Vicente e da SÈ, os palacetes
decrepitos, com vistas saudosas para a barra, enormes brazıes nas
paredes rachadas, onde entre a maledicencia, a devoÁ„o e a bisca,
arrasta os seus derradeiros dias, cachetica e caturra, a velha Lisboa
fidalga!

Ega olhou um momento, pensativo:

--Sim, com effeito, È talvez mais genuino. Mas t„o estupido, t„o
sebento! N„o sabe a gente para onde se ha de voltar... E se nos voltamos
para nÛs mesmos, ainda peor!

E de repente bateu no joelho de Carlos, com um brilho na face:

--Espera... Olha quem ahi vem!

Era uma vittoria, bem posta e correcta, avanÁando com lentid„o e estylo,
ao trote esteppado de duas egoas inglezas. Mas foi um desapontamento.
Vinha l· sÛmente um rapaz muito louro, d'uma brancura de camelia, com
uma pennugem no beiÁo, languidamente recostado. Fez um aceno ao Ega, com
um lindo sorriso de virgem. A vittoria passou.

--N„o conheces?

Carlos procurava, com uma recordaÁ„o.

--O teu antigo doente! O Charlie!

O outro bateu as m„os. O Charlie! O seu Charlie! Como aquillo o fazia
velho!... E era bonitinho!

--Sim, muito bonitinho. Tem ahi uma amizade com um velho, anda sempre
com um velho... Mas elle vinha decerto com a m„i, estou convencido que
ella ficou por ahi a passear a pÈ. Vamos nÛs vÍr?

Subiram ao comprido da Avenida, procurando. E quem avistaram logo foi o
Eusebiosinho. Parecia mais funebre, mais tisico, dando o braÁo a uma
senhora muito forte, muito cÛrada, que estalava n'um vestido de sÍda cor
de pinh„o. Iam devagar, tomando o sol. E o Eusebio nem os viu, descahido
e mollengo, seguindo com as grossas lunetas pretas o marchar lento da
sua sombra.

--Aquella aventesma È a mulher, contou Ega. Depois de varias paixıes em
lupanares, o nosso Eusebio teve este namoro. O pai da creatura, que È
dono d'um prego, apanhou-o uma noite na escada com ella a surripiar-lhe
uns prazeres... Foi o diabo, obrigaram-no a casar. E desappareceu, n„o o
tornei a vÍr... Diz que a mulher que o derreia · pancada.

--Deus a conserve!

--Amen!

E ent„o Carlos, que recordava a coÁa no Eusebio, o caso da _Corneta_,
quiz saber do Palma Cavall„o. Ainda deshonrava o Universo com a sua
presenÁa, esse benemerito? Ainda o deshonrava, disse o Ega. SÛmente
deix·ra a litteratura, e torn·ra-se _factotum_ do Carneiro, o que fÙra
ministro; levava-lhe a hespanhola ao theatro pelo braÁo; e era um bom
empenho em politica.

--Ainda ha de ser deputado, acrescentou Ega. E, da fÛrma que as coisas
v„o, ainda ha de ser ministro... E isto est·-se fazendo tarde,
Carlinhos. Vamos nÛs tomar esta tipoia e abalar para o Ramalhete?

Eram quatro horas, o sol curto de inverno tinha j· um tom pallido.

Tomaram a tipoia. No Rocio, Alencar que passava, que os viu--parou,
sacudiu ardentemente a m„o no ar. E ent„o Carlos exclamou, com uma
surpreza que j· o assalt·ra essa manh„ no _Braganza_:

--Ouve c·, Ega! Tu agora pareces intimo do Alencar! Que transformaÁ„o
foi essa?

Ega confessou que realmente agora apreciava immensamente o Alencar. Em
primeiro logar no meio d'esta Lisboa toda postiÁa, Alencar permanecia o
unico portuguez genuino. Depois, atravÈs da contagiosa intrujice,
conservava uma honestidade resistente. AlÈm d'isso havia n'elle
lealdade, bondade, generosidade. O seu comportamento com a sobrinhita
era tocante. Tinha mais cortezia, melhores maneiras que os novos. Um
bocado de piteirice n„o lhe ia mal ao seu feitio lyrico. E por fim, no
estado a que descamb·ra a litteratura, a versalhada do Alencar tomava
relevo pela correcÁ„o, pela simplicidade, por um resto de sincera
emoÁ„o. Em resumo, um bardo infinitamente estimavel.

--E aqui tens tu, Carlinhos, a que nÛs chegamos! N„o ha nada com efeito
que caracterise melhor a pavorosa decadencia de Portugal, nos ultimos
trinta annos, do que este simples facto: t„o profundamente tem baixado o
caracter e o talento, que de repente o nosso velho Thomaz, o homem da
_FlÙr de Martyrio_, o Alencar d'Alemquer, apparece com as proporÁıes
d'um Genio e d'um Justo!

Ainda fallavam de Portugal e dos seus males quando a tipoia parou. Com
que commoÁ„o Carlos avistou a fachada severa do Ramalhete, as
janellinhas abrigadas · beira do telhado, o grande ramo de girasoes
fazendo painel no logar do escudo d'armas! Ao ruido da carruagem,
VillaÁa appareceu · porta, calÁando luvas amarellas. Estava mais gordo o
VillaÁa--e tudo na sua pessoa, desde o chapÈo novo atÈ ao cast„o de
prata da bengala, revelava a sua importancia como administrador, quasi
directo senhor durante o longo desterro de Carlos, d'aquella vasta casa
dos Maias. Apresentou logo o jardineiro, um velho, que alli vivia com a
mulher e o filho, guardando o casar„o deserto. Depois felicitou-se de
vÍr emfim os dois amigos juntos. E ajuntou, batendo com carinho familiar
no hombro de Carlos:

--Pois eu, depois de nos separarmos em Santa Apolonia, fui tomar um
banho ao Central e n„o me deitei. Olhe que È uma grande commodidade o
tal _sleeping-car_! Ah l· isso, em progresso, o nosso Portugal j· n„o
est· atraz de ninguem!... E v. exc.^a agora precisa de mim?

--N„o, obrigado, VillaÁa. Vamos dar uma volta pelas salas... V· jantar
comnosco. ¡s seis! Mas ·s seis em ponto, que ha petiscos especiaes.

E os dois amigos atravessaram o perystillo. Ainda l· se conservavam os
bancos feudaes de carvalho lavrado, solemnes como coros de cathedral. Em
cima porÈm a ante-camara entristecia, toda despida, sem um movel, sem um
estofo, mostrando a cal lascada dos muros. TapeÁarias orientaes que
pendiam como n'uma tenda, pratos mouriscos de reflexos de cobre, a
estatua da _Friorenta_ rindo e arrepiando-se, na sua nudez de marmore,
ao metter o pÈsinho na agua--tudo ornava agora os aposentos de Carlos em
Paris: e outros caixıes apilhavam-se a um canto, promptos a embarcar,
levando as melhores faianÁas da _Toca_. Depois no amplo corredor, sem
tapete, os seus passos soaram como n'um claustro abandonado. Nos quadros
devotos, d'um tom mais negro, destacava aqui e alÈm, sob a luz escassa,
um hombro descarnado de eremita, a mancha livida d'uma caveira. Uma
friagem regelava. Ega levant·ra a gola do paletot.

No sal„o nobre os moveis de brocado cÙr de musgo estavam embrulhados em
lenÁoes d'algod„o, como amortalhados, exhalando um cheiro de mumia a
terebinthina e camphora. E no ch„o, na tela de Constable, encostada ·
parede, a condessa de Runa, erguendo o seu vestido escarlate de caÁadora
ingleza, parecia ir dar um passo, sahir do caixilho dourado, para partir
tambem, consummar a dispers„o da sua raÁa...

--Vamos embora, exclamou Ega. Isto est· lugubre!...

Mas Carlos, pallido e calado, abriu adiante a porta do bilhar. Ahi, que
era a maior sala do Ramalhete, tinham sido recentemente accumulados na
confus„o das artes e dos seculos, como n'um armazem de _bric-‡-brac_,
todos os moveis ricos da _Toca_. Ao fundo, tapando o fog„o, dominando
tudo na sua magestade architectural, erguia-se o famoso armario do tempo
da Liga Hanseatica, com os seus Martes armados, as portas lavradas, os
quatro Evangelistas prÈgando aos cantos, envoltos n'essas roupagens
violentas que um vento de prophecia parece agitar. E Carlos
immediatamente descobriu um desastre na cornija, nos dois faunos que
entre trophÈos agricolas tocavam ao desafio. Um partira o seu pÈ de
cabra, outro perdera a sua frauta bucolica...

--Que brutos! exclamou elle furioso, ferido no seu amor da coisa d'arte.
Um movel d'estes!...

Trepou a uma cadeira para examinar os estragos. E Ega, no emtanto,
errava entre os outros moveis, cofres nupciaes, contadores hespanhoes,
bufetes da RenascenÁa italiana, recordando a alegre casa dos Olivaes que
tinham ornado, as bellas noites de cavaco, os jantares, os foguetes
atirados em honra de Leonidas... Como tudo pass·ra! De repente deu com o
pÈ n'uma caixa de chapÈo sem tampa, atulhada de coisas velhas--um vÈo,
luvas desirmanadas, uma meia de sÍda, fitas, flÙres artificiaes. Eram
objectos de Maria, achados n'algum canto da _Toca_, para alli atirados,
no momento de se esvaziar a casa! E, coisa lamentavel, entre estes
restos d'ella, misturados como na promiscuidade d'um lixo, apparecia uma
chinela de velludo bordada a matiz, uma velha chinela de Affonso da
Maia! Ega escondeu a caixa rapidamente debaixo d'um pedaÁo solto de
tapeÁaria. Depois, como Carlos saltava da cadeira, sacudindo as m„os,
ainda indignado, Ega apressou aquella peregrinaÁ„o, que lhe estragava a
alegria do dia.

--Vamos ao terraÁo! D·-se um olhar ao jardim, e abalamos!

Mas deviam atravessar ainda a memoria mais triste, o escriptorio de
Affonso da Maia. A fechadura estava pÍrra. No esforÁo de abrir a m„o de
Carlos tremia. E Ega, commovido tambem, revia toda a sala tal como
outr'ora, com os seus candieiros Carcel dando um tom cÙr de rosa, o lume
crepitando, o reverendo Bonifacio sobre a pelle d'urso, e Affonso na sua
velha poltrona, de casaco de velludo, sacudindo a cinza do cachimbo
contra a palma da m„o. A porta cedeu: e toda a emoÁ„o de repente findou,
na grutesca, absurda surpreza de romperem ambos a espirrar,
desesperadamente, suffocados pelo cheiro acre d'um pÛ vago que lhes
picava os olhos, os estonteava. FÙra o VillaÁa, que, seguindo uma
receita d'almanach, fizera espalhar ·s m„os cheias, sobre os moveis,
sobre os lenÁoes que os resguardavam, camadas espessas de pimenta
branca! E estrangulados, sem vÍr, sob uma nevoa de lagrimas, os dois
continuavam, um defronte do outro, em espirros afflictivos que os
desengonÁavam.

Carlos por fim conseguiu abrir largamente as duas portadas d'uma
janella. No terraÁo morria um resto de sol. E, revivendo um pouco ao ar
puro, alli ficaram de pÈ, calados, limpando os olhos, sacudidos ainda
por um ou outro espirro retardado.

--Que infernal invenÁ„o! exclamou Carlos, indignado.

Ega, ao fugir com o lenÁo na face, tropeÁ·ra, batera contra um sof·,
coÁava a canella:

--Estupida coisa! E que bordoada que eu dei!...

Voltou a olhar para a sala, onde todos os moveis desappareciam sob os
largos sudarios brancos. E reconheceu que tropeÁ·ra na antiga almofada
de velludo do velho Bonifacio. Pobre Bonifacio! Que fÙra feito d'elle?

Carlos, que se sent·ra no parapeito baixo do terraÁo, entre os vasos sem
flÙr, contou o fim do reverendo Bonifacio. Morrera em Santa Olavia,
resignado, e t„o obeso que se n„o movia. E o VillaÁa, com uma idÈa
poetica, a unica da sua vida de procurador, mand·ra-lhe fazer um
mausolÈo, uma simples pedra de marmore branco, sob uma roseira, debaixo
das janellas do quarto do avÙ.

Ega sent·ra-se tambem no parapeito, ambos se esqueceram n'um silencio.
Em baixo o jardim, bem areado, limpo e frio na sua nudez d'inverno,
tinha a melancolia de um retiro esquecido que j· ninguem ama: uma
ferrugem verde de humidade cobria os grossos membros da Venus Citherea;
o cypreste e o cedro envelheciam juntos como dois amigos n'um ermo; e
mais lento corria o prantosinho da cascata, esfiado saudosamente gotta a
gotta na bacia de marmore. Depois ao fundo, encaixilhada como uma tela
marinha nas cantarias dos dois altos predios, a curta paizagem do
Ramalhete, um pedaÁo de Tejo e monte, tomava n'aquelle fim de tarde um
tom mais pensativo e triste: na tira de rio um paquete fechado,
preparado para a vaga, ia descendo, desapparecendo logo, como j·
devorado pelo mar incerto; no alto da collina o moinho par·ra, transido
na larga friagem do ar; e nas janellas das casas · beira d'agua um raio
de sol morria, lentamente sumido, esvaÌdo na primeira cinza do
crepusculo, como um resto d'esperanÁa n'uma face que se anuvia.

Ent„o, n'aquella mudez de soledade e d'abandono, Ega, com os olhos para
o longe, murmurou devagar:

--Mas tu d'esse casamento n„o tinhas a menor indicaÁ„o, a menor
suspeita?

--Nenhuma... Soube-o de repente pela carta d'ella em Sevilha.

E era esta a formidavel nova annunciada por Carlos, a nova que elle logo
cont·ra de madrugada ao Ega, depois dos primeiros abraÁos, em Santa
Apolonia. Maria Eduarda ia casar.

Assim o annunci·ra ella a Carlos n'uma carta muito simples, que elle
recebera na quinta dos Villa-Medina. Ia casar. E n„o parecia ser uma
resoluÁ„o tomada arrebatadamente sob um impulso do coraÁ„o; mas antes um
proposito lento, longamente amadurecido. Ella alludia n'essa carta a ter
´pensado muito, reflectido muito...ª De resto o noivo devia ir perto dos
cincoenta annos. E Carlos portanto via alli a uni„o de dois sÍres
desilludidos da vida, maltratados por ella, cansados ou assustados do
seu isolamento, que, sentindo um no outro qualidades sÈrias de coraÁ„o e
de espirito, punham em commum o seu resto de calor, d'alegria e de
coragem para affrontar juntos a velhice...

--Que idade tem ella?

Carlos pensava que ella devia ter quarenta e um ou quarenta e dois
annos. Ella dizia na carta ´sou apenas mais nova que o meu noivo seis
annos e tres mezesª. Elle chamava-se Mr. de Trelain. E era evidentemente
um homem d'espirito largo, desembaraÁado de prejuizos, d'uma
benevolencia quasi misericordiosa, porque quizera Maria, conhecendo bem
os seus erros.

--Sabe tudo? exclamou Ega, que salt·ra do parapeito.

--Tudo n„o. Ella diz que Mr. de Trelain conhecia do seu passado ´todos
aquelles erros em que ella cahira inconscientementeª. Isto d· a entender
que n„o sabe tudo... Vamos andando, que se faz tarde, e quero ainda vÍr
os meus quartos.

Desceram ao jardim. Um momento seguiram calados pela alea onde cresciam
outr'ora as roseiras de Affonso. Sob as duas olaias ainda existia o
banco de cortiÁa; Maria sent·ra-se alli, na sua visita ao Ramalhete, a
atar n'um ramo flÙres que ia levar como reliquia. Ao passar Ega cortou
uma pequenina margarida que ainda floria solitariamente.

--Ella contin˙a a viver em OrlÈans, n„o È verdade?

Sim, disse Carlos, vivia ao pÈ d'OrlÈans, n'uma quinta que l· compr·ra,
chamada _Les RosiËres_. O noivo devia habitar nos arredores algum
pequeno _ch‚teau_. Ella chamava-lhe ´visinhoª. E era naturalmente um
_gentilhomme campagnard_, de familia sÈria, com fortuna...

--Ella sÛ tem o que tu lhe d·s, est· claro.

--Creio que te mandei contar tudo isso, murmurou Carlos. Emfim ella
recusou-se a receber parte alguma da sua heranÁa... E o VillaÁa arranjou
as coisas por meio d'uma doaÁ„o que lhe fiz, correspondente a doze
contos de reis de renda...

--… bonito. Ella fallava de Rosa na carta?

--Sim, de passagem, que ia bem... Deve estar uma mulher.

--E bem linda!

Iam subindo a escadinha de ferro torneada que levava do jardim aos
quartos de Carlos. Com a m„o na porta da vidraÁa, Ega parou ainda, n'uma
derradeira curiosidade:

--E que effeito te fez isso?

Carlos accendia o charuto. Depois atirando o phosphoro por cima da
varandinha de ferro onde uma trepadeira se enlaÁava:

--Um effeito de conclus„o, de absoluto remate. … como se ella morresse,
morrendo com ella todo o passado, e agora renascesse sob outra fÛrma. J·
n„o È Maria Eduarda. … Madame de Trelain, uma senhora franceza. Sob este
nome, tudo o que houve fica sumido, enterrado a mil braÁas, findo para
sempre, sem mesmo deixar memoria... Foi o effeito que me fez.

--Tu nunca encontraste em Paris o snr. Guimar„es?

--Nunca. Naturalmente morreu.

Entraram no quarto. VillaÁa, na supposiÁ„o de Carlos vir para o
Ramalhete, mand·ra-o preparar; e todo elle regelava--com o marmore das
commodas espanejado e vazio, uma vela intacta n'um castiÁal solitario, a
colcha de fust„o vincada de dobras sobre o leito sem cortinados. Carlos
pousou o chapÈo e a bengala em cima da sua antiga mesa de trabalho.
Depois, como dando um resumo:

--E aqui tens tu a vida, meu Ega! N'este quarto, durante noites, soffri
a certeza de que tudo no mundo acab·ra para mim... Pensei em me matar.
Pensei em ir para a Trappa. E tudo isto friamente, com uma conclus„o
logica. Por fim dez annos passaram, e aqui estou outra vez...

Parou diante do alto espelho suspenso entre as duas columnas de carvalho
lavrado, deu um geito ao bigode, concluiu, sorrindo melancolicamente:

--E mais gordo!

Ega espalhava tambem pelo quarto um olhar pensativo:

--Lembras-te quando appareci aqui uma noite, n'uma agonia, vestido de
Mephistopheles?

Ent„o Carlos teve um grito. E a Rachel, È verdade! A Rachel? Que era
feito da Rachel, esse lirio d'Israel?

Ega encolheu os hombros:

--Para ahi anda, estuporada...

Carlos murmurou--´coitada!ª E foi tudo o que disseram sobre a grande
paix„o romantica do Ega.

Carlos no emtanto fÙra examinar, junto da janella, um quadro que pousava
no ch„o, para alli esquecido e voltado para a parede. Era o retrato do
pai, de Pedro da Maia, com as suas luvas de camurÁa na m„o, os grandes
olhos arabes na face triste e pallida que o tempo amarell·ra mais.
Collocou-o em cima d'uma commoda. E atirando-lhe uma leve sacudidella
com o lenÁo:

--N„o ha nada que me faÁa mais pena do que n„o ter um retrato do avÙ!...
Em todo o caso este sempre o vou levar para Paris.

Ent„o Ega perguntou, do fundo do sof· onde se enterr·ra, se, n'esses
ultimos annos, elle n„o tivera a idÈa, o vago desejo de voltar para
Portugal...

Carlos considerou Ega com espanto. Para que? Para arrastar os passos
tristes desde o Gremio atÈ · Casa Havaneza? N„o! Paris era o unico logar
da terra congenere com o typo definitivo em que elle se fix·ra:--´o
homem rico que vive bemª. Passeio a cavallo no Bois; almÛÁo no Bignon;
uma volta pelo _boulevard_; uma hora no club com os jornaes; um bocado
de florete na sala d'armas; · noite a _ComÈdie FranÁaise_ ou uma
_soirÈe_; Trouville no ver„o, alguns tiros ·s lebres no inverno; e
atravÈs do anno as mulheres, as corridas, certo interesse pela sciencia,
o _bric-‡-brac_, e uma pouca de _blague_. Nada mais inoffensivo, mais
nullo, e mais agradavel.

--E aqui tens tu uma existencia d'homem! Em dez annos n„o me tem
succedido nada, a n„o ser quando se me quebrou o phaeton na estrada de
Saint-Cloud... Vim no _Figaro_.

Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:

--Falh·mos a vida, menino!

--Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto È,
falha-se sempre na realidade aquella vida que se planeou com a
imaginaÁ„o. Diz-se: ´vou ser assim, porque a belleza est· em ser assimª.
E nunca se È assim, È-se invariavelmente _assado_, como dizia o pobre
marquez. ¡s vezes melhor, mas sempre differente.

Ega concordou, com um suspiro mudo, comeÁando a calÁar as luvas.

O quarto escurecia no crepusculo frio e melancolico d'inverno. Carlos
pÙz tambem o chapÈo: e desceram pelas escadas forradas de velludo cÙr de
cereja, onde ainda pendia, com um ar baÁo de ferrugem, a panoplia de
velhas armas. Depois na rua Carlos parou, deu um longo olhar ao sombrio
casar„o, que n'aquella primeira penumbra tomava um aspecto mais
carregado de residencia ecclesiastica, com as suas paredes severas, a
sua fila de janellinhas fechadas, as grades dos postigos terreos cheias
de treva, mudo, para sempre deshabitado, cobrindo-se j· de tons de
ruina.

Uma commoÁ„o passou-lhe n'alma, murmurou, travando do braÁo do Ega:

--… curioso! SÛ vivi dois annos n'esta casa, e È n'ella que me parece
estar mettida a minha vida inteira!

Ega n„o se admirava. SÛ alli no Ramalhete elle vivera realmente
d'aquillo que d· sabÙr e relevo · vida--a paix„o.

--Muitas outras coisas d„o valor · vida... Isso È uma velha idÈa de
romantico, meu Ega!

--E que somos nÛs? exclamou Ega. Que temos nÛs sido desde o collegio,
desde o exame de latim? Romanticos: isto È, individuos inferiores que se
governam na vida pelo sentimento e n„o pela raz„o...

Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses
que se dirigiam sÛ pela raz„o, n„o se desviando nunca d'ella,
torturando-se para se manter na sua linha inflexivel, sÍccos, hirtos,
logicos, sem emoÁ„o atÈ ao fim...

--Creio que n„o, disse o Ega. Por fÛra, · vista, s„o desconsoladores. E
por dentro, para elles mesmos, s„o talvez desconsolados. O que prova que
n'este lindo mundo ou tem de se ser insensato ou semsabor...

--Resumo: n„o vale a pena viver...

--Depende inteiramente do estomago! atalhou Ega.

Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sÈrio, deu a sua theoria da vida,
a theoria definitiva que elle deduzira da experiencia e que agora o
governava. Era o fatalismo musulmano. Nada desejar e nada recear... N„o
se abandonar a uma esperanÁa--nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o
que vem e o que foge, com a tranquillidade com que se acolhem as
naturaes mudanÁas de dias agrestes e de dias suaves. E, n'esta placidez,
deixar esse pedaÁo de materia organisada, que se chama o Eu, ir-se
deteriorando e decompondo atÈ reentrar e se perder no infinito
Universo... Sobretudo n„o ter appetites. E, mais que tudo, n„o ter
contrariedades.

Ega, em summa, concordava. Do que elle principalmente se convencera,
n'esses estreitos annos de vida, era da inutilidade de todo o esforÁo.
N„o valia a pena dar um passo para alcanÁar coisa alguma na
terra--porque tudo se resolve, como j· ensin·ra o sabio do
_Ecclesiastes_, em desillus„o e poeira.

--Se me dissessem que alli em baixo estava uma fortuna como a dos
Rothschilds ou a corÙa imperial de Carlos V, · minha espera, para serem
minhas se eu para l· corresse, eu n„o apressava o passo... N„o! N„o
sahia d'este passinho lento, prudente, correcto, seguro, que È o unico
que se deve ter na vida.

--Nem eu! acudiu Carlos com uma convicÁ„o decisiva.

E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se
aquelle fosse em verdade o caminho da vida, onde elles, certos de sÛ
encontrar ao fim desillus„o e poeira, n„o devessem j·mais avanÁar sen„o
com lentid„o e desdem. J· avistavam o Aterro, a sua longa fila de luzes.
De repente Carlos teve um largo gesto de contrariedade:

--Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este appetite! Esqueci-me de
mandar fazer hoje para o jantar um grande prato de paio com ervilhas.

E agora j· era tarde, lembrou Ega. Ent„o Carlos, atÈ ahi esquecido em
memorias do passado e syntheses da existencia, pareceu ter
inesperadamente consciencia da noite que cahira, dos candieiros accÍsos.
A um bico de gaz tirou o relogio. Eram seis e um quarto!

--Oh, diabo!... E eu que disse ao VillaÁa e aos rapazes para estarem no
_Braganza_ pontualmente ·s seis! N„o apparecer por ahi uma tipoia!...

--Espera! exclamou Ega. L· vem um ´americanoª, ainda o apanhamos.

--Ainda o apanhamos!

Os dois amigos lanÁaram o passo, largamente. E Carlos, que arroj·ra o
charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:

--Que raiva ter esquecido o paiosinho! Emfim, acabou-se. Ao menos
assentamos a theoria definitiva da existencia. Com effeito, n„o vale a
pena fazer um esforÁo, correr com ancia para coisa alguma...

Ega, ao lado, ajuntava, offegante, atirando as pernas magras:

--Nem para o amor, nem para a gloria, nem para o dinheiro, nem para o
poder...

A lanterna vermelha do ´americanoª, ao longe, no escuro, par·ra. E foi
em Carlos e em Jo„o da Ega uma esperanÁa, outro esforÁo:

--Ainda o apanhamos!

--Ainda o apanhamos!

De novo a lanterna deslisou e fugiu. Ent„o, para apanhar o ´americanoª,
os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e
pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.

FIM DO SEGUNDO VOLUME




Lista de erros corrigidos


Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:

+-----------+-------------------------+---------------------------+
|           |        Original         |         CorrecÁ„o         |
+-----------+-------------------------+---------------------------+
| Vol I.    |                         |                           |
|           |                         |                           |
| #p·g.  11 |   d'um planta           |   d'uma planta            |
| #p·g.  25 |   n'eses                |   n'esse                  |
| #p·g.  64 |   dehruÁando-se         |   debruÁando-se           |
| #p·g.  71 |   mesmo olhos           |   mesmos olhos            |
| #p·g.  82 |   o o que               |   o que                   |
| #p·g. 151 |   appproximava          |   approximava             |
| #p·g. 220 |   ningnem               |   ninguem                 |
| #p·g. 222 |   pararello             |   paralello               |
| #p·g. 290 |   quas?                 |   quasi                   |
| #p·g. 326 |   pohre                 |   pobre                   |
| #p·g. 345 |   extraordinrio         |   extraordinario          |
| #p·g. 416 |   luvar                 |   luvas                   |
| #p·g. 423 |   hespanhla             |   hespanhola              |
| #p·g. 428 |   o os deus             |   e os seus               |
|           |                         |                           |
| Vol II.   |                         |                           |
|           |                         |                           |
| #p·g.  84 |   ?uvas                 |   luvas                   |
| #p·g. 276 |   o o monoculo          |   o monoculo              |
| #p·g. 324 |   a? suissas            |   as suissas              |
| #p·g. 343 |   n'um voz              |   n'uma voz               |
| #p·g. 432 |   moresse               |   morresse                |
| #p·g. 456 |   Celerico              |   Celorico                |
| #p·g. 475 |   n'um longa            |   n'uma longa             |
+-----------+-------------------------+---------------------------+

As variaÁıes de vÙvÙ (vÙvo ou vovÙ) foram mantidas de acordo com o
original. As variaÁıes de nomes prÛprios foram mantidas de acordo
com o original.

No original est„o presentes dois capÌtulos VII (no volume I),
rectificados nesta vers„o.

No volume II verificamos que se passa do capÌtulo IV para o VII e
a numeraÁ„o dos capÌtulos fica alterada a partir desse momento.
Uma vez que n„o h· p·ginas em falta, rectific·mos nesta vers„o.





End of the Project Gutenberg EBook of Os Maias, by JosÈ Maria EÁa de QueirÛs

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THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
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Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
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     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
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     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

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     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
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forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
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Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

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LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
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providing it to you may choose to give you a second opportunity to
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is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS', WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
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provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation information page at www.gutenberg.org


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at 809
North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887.  Email
contact links and up to date contact information can be found at the
Foundation's web site and official page at www.gutenberg.org/contact

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]

Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit www.gutenberg.org/donate

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit:  www.gutenberg.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For forty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.

Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.

Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     www.gutenberg.org

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