A Mulher Portugueza

By Eduardo Shwalbach Lucci

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Title: A Mulher Portugueza

Author: Eduardo Shwalbach Lucci

Release Date: August 16, 2008 [EBook #26325]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A MULHER PORTUGUEZA ***









EDUARDO SCHWALBACH LUCCI

Da Academia das Sciencias de Lisboa

A MULHER

PORTUGUEZA

PORTO

LIVRARIA CHARDRON,
de Lélo & Irmão, editores
Rua das Carmelitas, 144
1916



A MULHER

PORTUGUEZA



EDUARDO SCHWALBACH LUCCI

Da Academia das Sciencias de Lisboa

A MULHER

PORTUGUEZA

PORTO

LIVRARIA CHARDRON,
de Lélo & Irmão, editores
Rua das Carmelitas, 144
1916


_A propriedade literária e artística está garantida em todos os países
que aderiram à Convenção de Berne--(Em Portugal, pela lei de 18 da março
de 1911. No Brasil pela lei n.° 2577 de 17 de janeiro de 1912)._


Porto--Imprensa Moderna




A MULHER PORTUGUEZA


MINHAS SENHORAS E MEUS SENHORES:

O lindo thema--A Mulher Portugueza--attraíu-me pelo seu encanto, mas
prejudica-o, a par da fraqueza da palavra, o defeito de ter de obedecer
a uma curva, que se retesa e quasi estala nos limites apertados d'uma
conferencia. Ouvi-me, pois, mães, esposas, filhas, mulheres queridas,
que viveis dentro de corações e no coração trazeis sempre uma imagem,
com a benevolencia, que deve sempre amantelar um amigo e um defensor. No
fertil poema, por onde a vossa alma transita atravez de almas,
procurarei colher a graça e o perfume para a expressão dos meus
sentimentos, attenuando com este valioso recurso os males de que faço
padecer tão brilhante assumpto.



Resultado para que se encaminha o contínuo esforço do homem, causa da
sua actividade e aspiração do seu espirito, é a mulher quem, com a
grandeza do infinito bem, ou a grandeza do infinito mal, nos conduz pela
vida fóra numa ascenção gloriosa, ou numa derrocada tragica. Por ella o
homem crê, por ella descrê, por ella assassina, por ella morre. Altar e
hostia, tortura e guilhotina, faz-nos viver a vida tal qual a dôr
surriba a alegria, a punhalada espirra o sangue e os labios guardam os
dentes. Mas nas suas epopeias sublimes e nas suas elegias tremendas
surge-nos como a confissão palpavel da energia e da bondade divinas.
Hymno e oração do amor, canta-lhe as alegrias e reza-lhe as tristezas;
alma da bondade, aroma da ternura e lagrima da dôr, torna-se em
explicação religiosa, bella e harmonica da vida humana. Assim realisada
e assim realisando, Deus desce até á mulher, o homem sobe até ella.
Encontram-se no seu coração e beijam-se.

A Shakespeare ligaram um espirito--um _andador_, e a Socrates, outro
espirito--o _demonio_, porque só pela interferencia do sobrehumano lhes
admittiam as concepções. Não deve, portanto, causar reparo dizer-se que
a mulher tem sido sempre, e sempre será, o _espirito familiar_ do homem.
O que elle produz de grande é ella quem lh'o inspira, o que parece ir
além das suas forças vem da força que ella irradia. A ingratidão do
homem para com a mulher tem sido, porêm, enorme. Não passa sem ella e
diz mal d'ella. Da antiguidade ao dia de hoje, os libellos accumulam-se
com uma injustiça que apavóra. Euripides põe na boca de Hippolyto as
mais flagelladoras apostrophes, que alguma vez contra ella foram
proferidas. Affirma que tudo quanto o homem tem de mau vem da mulher e
exclama: «Porque--ó deuses immortaes!--não foi dado ao homem o poder de
gerar o homem de uma pedra, de um pedaço de ouro, de um tronco de arvore
e não de um ventre de mulher?» Aristophanes, por intermedio de
Mnesiloco, nas _Festas de Céres_ _e de Proserpina_, simulando
defendê-la, quasi sobreleva Euripides no ataque. Strindberg, nos
_Casados_, accusa-a de só afagar para morder, e no _Pae_ a violencia
contra ella mantem-se constante e formidavel, como a de Nietzsche no
_Assim falava Zarathustra_, na _Genealogia da Moral_ e em _O Viajante e
a Sombra_. Quanto mais culto, mais impiedoso, vituperando-a com
affrontosas opiniões e algemando-a com as leis por elle proprio
fabricadas. Mas nesta terra, eternamente fertilisada pelo vosso pranto e
florescida pelo vosso riso--ó querida e boa mulher portugueza!--talvez
porque assim o sois, nunca se disse grande mal a vosso respeito, nem a
lei foi das mais precárias para vossa defesa. Em Portugal nunca o
insulto dos philosophos e dos moralistas vos escalvou a dignidade, nem a
lei desceu a vexames, e tambem em nenhum outro paiz, por honra vossa e
alegria do nosso lar, a despeito das violencias do instincto, da
barbaridade das velhas edades, da convulsão dos usos e costumes, a
mulher se conservou tão modesta, tão carinhosa, tão simples e tão casta!



A mulher portugueza da Edade Média era a escrava do homem pelo corpo e
de Deus pelo espirito. Vista á luz da moral e do respeito de agora,
magôa-nos; mas o homem não a insultava, não lhe batia, não a violava sem
a lei lhe tomar contas. Magôa-nos, doe-nos, mas os factores sociaes não
lhe permittiam que fosse outra, porque nem ella, nem o seu amor estavam
dignificados. Apparece-nos amoral e subalterna, mero objecto de prazer,
massa de instincto e de passividade, de pernas cruzadas, em cima d'um
estrado, a jogar o xadrez, a enfiar pérolas e aljôfares e a recitar as
Horas Canónicas e as Horas de Santa Maria com um isochronismo de
pêndulo. Que ha, porém, a esperar de uma época, em que a mãe do fundador
da monarchia alterna dos braços d'um Trava para outro Trava, D. Affonso
Henriques arranca uma sua filha ao marido para a afivelar ao Braganção e
a abbadessa Grácia Mendes, mandada vir para concubina de D. Affonso III,
vae pagando pelo caminho direitos de entrada ao fidalgo que a traz e
direitos de saída ao fidalgo que a leva!? Que querem de uma época, em
que o christianismo abate o grande valor moral e artistico do corpo,
apontando-o como deposito de podridões e ninho de vicios, com o fim de
só glorificar a alma em consagração a Deus? Cuidar do corpo! Não; que a
carne é ignominia. Escondê-lo bem, mortificá-lo, desprezá-lo.

Sem esse culto a mulher rebaixa-se, apaga-se; a sua sensualidade
brutalisa-se. Sem a preparação indispensavel, a sua intelligencia não
scintilla. E assim vemos as afamadas mulheres de então, negada ás suas
formas a veneração grega e privado o seu cerebro do cultivo romano, a
dominarem não pela belleza do espirito, mas pela belleza natural do
corpo e pela sensualidade unicamente animal, que o inflamma numa revolta
ingénita contra o desprezo a que o votam. Descurada material e
espiritualmente, que outra mulher podia saír d'esta sociedade? A mulher
subalterna, embora digna de todo o nosso respeito por essa sua propria
subalternidade, porque, entregue inteiramente aos seus asperos
instinctos, sabe orar e mortificar-se. Nestas condições e durante um
periodo tão sêco e árido, de cilicios e penitencias, de passividade e
isolamento, erguem-se nos primeiros tempos da monarchia as infantas D.
Sancha e D. Thereza, irmãs de D. Affonso II, instituidoras das gafarias,
onde ellas proprias lavam as chagas dos leprosos, e mais tarde, no
estrebuxar da dynastia affonsina para o alvor da dynastia de Aviz,
Deusadeu Martins, Brites de Almeida e Maria de Sousa. A primeira, por
seu valor e astucia, immortalisa-se na defesa de Monsão; a segunda torna
lendaria uma pá de forno; a terceira salva a vida do Mestre de Aviz,
atravessando com uma partazana o peito do renegado Gonçalo de Gusmão e
tolhendo o passo a uma partida de castelhanos. Que representam estas
cinco mulheres? A caridade e a bravura. Lances poeticos de amor,
fulgurações de espirito? Não se vislumbram. Apenas mortificação,
humildade e força animal ao serviço d'um levantado espirito.

Chega a época de D. João I, e pela influencia de D. Filippa de
Lencastre, a mulher começa a divinisar-se: deixa de ser uma cousa para
ser alguem. Forma-se a sua individualidade. Depois d'uma curta
transição, em que a rainha, percebendo a necessidade de disciplinar as
paixões brutaes dos homens, privou da escolha o instincto e estabeleceu
como que--perdoem-me a palavra--uma coudelaria da côrte, determinando
casamentos, desapparece a posse brutal, quebra-se a grilheta do _Eu
quero aquella mulher_, e illuminada por uma aurora de sonho e de
fantasia, ella descerra os labios tremulos e murmura pela primeira vez:
«Eu amo!» Inicia-se o seu poema, nasce a flôr do sentimento. É o influxo
das novellas do cyclo bretão, que se exerce; é a figura resplandecente
de Isolda que vem redimir a mulher portugueza, transformando-a de
simples instrumento de prazer em força, direito e razão de amor,
engrandecendo-a, sensibilisando-a. É essa poesia, que, romantisando-lhe
a imaginação por meio de formas ideaes, lhe enche a alma e a vida com o
sopro perfumado da felicidade, ou com as torturas da desgraça, e lhe faz
antever a realidade humana pela mutua posse de duas almas. É Isolda,
debruçada sobre o cadaver de Tristão, a dizer-lhe: «Vendo-te morto, ó
meu Tristão, não posso, nem tenho o direito de viver. Morreste por meu
amor e eu morro de tristeza por não ter chegado a tempo.» É a figura de
Isolda a espiritualisar a sensualidade na mulher, como a figura de
Galaaz, pela preoccupação da virgindade, a influir sobre o homem,
dando-nos Nun'Alvares a resistir ao casamento, o infante D. Duarte a
consorciar-se, aos 37 annos, ainda de palmito e capella, e o cardeal D.
Jayme, que, instado pelos medicos para aquecer o leito ao calor d'uma
mulher e com este agradavel remedio salvar a vida, exclama
estupidamente: «Antes quero morrer limpo do que morrer sujo!»

A mulher portugueza, até esse momento crisalida do amor, rompe o casulo
da sua intelligencia, da sua dignidade e do seu coração e entra a
deslumbrar-nos com o resplendor do espirito e do sentimento, mais tarde
revigorado por outras influencias derivadas em grande parte da
exuberante erudição que veiu da Renascença. O seu vôo eleva-se, e no
reinado de D. João II a mulher da côrte já verseja e franqueia o seu
entendimento a estudos profundos. A primeira verdadeiramente notavel,
que se nos depara, é D. Filippa, filha do infante D. Pedro, trazendo
pela mão sua sobrinha, a infanta D. Joanna, por ella educada e para quem
traduziu do latim o _Tratado da vida solitaria_;--tão culta, que
escreveu notas politicas, cuja importancia resalta na _Pratica ao Senado
de Lisboa_, quando se receavam tumultos na capital, e tão artista, que
era a illuminadora das suas obras. Em seguida tres rainhas exercem uma
acção decisiva no theatro portuguez: D. Beatriz, mãe de D. Manuel, D.
Maria, sua mulher, e D. Leonor, viuva de D. João II. É sob a sua
protecção que nasce o theatro nacional. Pondo de parte a segunda, por
não portugueza, vemos ao lado de D. Beatriz, a mais sumptuosa mulher do
seu tempo, D. Leonor a praticar o bem, a animar o talento e as artes.
Funda o hospital das Caldas, as Mercearias, a Misericordia de Lisboa, dá
impulso á typographia e acolhe Gil Vicente. Affirma-se uma obra
civilisadora pela conformidade do coração com o cerebro.

O brilhantismo litterario da côrte attinge a sua edade de ouro,
fortifica-se e expande-se para ir morrer no Paço da infanta D. Maria,
onde, na Academia artistica e na Academia litteraria, ao lado das
italianas Angela e Luiza Sigêa, brilham D. Leonor de Noronha, a
traductora e annotadora de Marco Antonio Sibellico, Joanna Vaz, a loira
coimbrã, poetisa e historiadora, Paula Vicenta com o seu pujante talento
dramatico, e Publia Hortensia, que, aos 17 annos, discute Aristoteles
com homens de alto saber, depois de ter feito em Coimbra os cursos de
philosophia e theologia. Este banho de luz exalta a mulher, ainda com as
pernas cruzadas sobre um estrado, fechada em casa e recebendo apenas o
frade. A sua alma divinisa-se; a poesia cerca-a e ella poetisa tambem.
Intellectualisa-se, sonha e tem visões. Mas a enorme transformação, que
neste periodo se operou entre nós pelo descobrimento do caminho maritimo
para a India, deslocando o centro de gravidade do emporio de Veneza para
Lisboa, se deu ensejo á permuta intellectual com o estrangeiro, d'onde
vieram homens dos mais doutos para as Universidades e mulheres illustres
para o cenaculo da Infanta, trouxe conjunctamente o mercador, o homem de
negocios, o homem de dinheiro e com elle o prazer e o vicio. Então o
portuguez aferrolhou ainda mais a mulher, sobrepoz adufas a adufas,
rotulas a rotulas, cortando-lhe toda a communicação para o exterior, e
os moralistas apregoaram que a missão feminina consistia sómente em
fiar, conceber e chorar.

Já illuminada, sentindo bem a posse de si propria, á oppressão contrapõe
o ardil e recorre á intermediaria:--Branca Gil do _Velho da Horta_ e
Brizida Vaz do _Auto da Barca_. Todavia, ao mesmo tempo que uns
enclausuravam as mulheres, outros embarcavam-se para a India,
deixando-as á vontade e só receosas de elles não chegarem a
partir:--dialogo entre a Ama e a Moça do _Auto da India_. A inteira
clausura tem de terminar; a reacção vem logo depois. A mulher, se em
casa está posta em recato, encontra a sociabilidade na rua. Nas
frissuras dos pateos de comedia, nas tranqueiras das praças de touros,
nos palanques dos autos de fé, em todas as festas publicas junta-se com
o homem. Lisboa é Grecia e Roma:--em casa o gyneceu atheniense, na rua o
convivio romano.

Recuemos, porêm, um pouco. No despovoamento de Portugal, se alguns
homens se apartam das mulheres, outros levam-nas e algumas das que os
acompanham identificam-se com elles em rasgos de heroismo e dedicação,
que as egualam ás mais celebres espartanas. Nos memoraveis cercos de Diu
lá as vemos fazendo rosto ao inimigo, correndo da agulha á lança, do
estrado á muralha. Isabel Madeira, morto em seus braços o marido, com a
mais firme estoicidade sepulta-o e volta ao trabalho das tranqueiras.
Anna Fernandes, a famosa velha de Diu, assume proporções épicas ao
dar-se o assalto da mina, no baluarte de D. Fernando. Quando tudo vôa
pelos ares, paredes, alicerces, cavalleiros e soldados e a investida dos
mouros arde em maior sanha, ella, num impeto de decisão e energia, á
frente das nossas indianas, umas a arremessarem pedregulhos, outras a
acudirem com pelouros, metallificando a voz em estridente clarim de
guerra, brada aos nossos homens:--«Pelejae por vosso Deus! pelejae por
vosso rei, cavalleiros de Christo, porque Deus está comvosco!» A estes
exemplos do mais esforçado animo, outros se juntam de abnegação não
menos admiravel. Catharina de Sousa, mandando as suas joias a D. João de
Castro, diz-lhe que empenhará a sua propria filha, se tanto fôr
necessario para o serviço da patria. D. Joanna de Avelar escreve á
regente: «Senhora! Acabo de perder dois filhos: um que me ficou morto na
guerra do Mazagão, outro na guerra da India. Resta-me só este terceiro,
o mais novo, ainda não soldado e que é o portador d'esta carta.
Offereço-o a Vossa Alteza para seguir o exemplo, que seus irmãos lhe
deram.»

Ó mulheres portuguezas, orgulhae-vos tanto do vosso inexcedivel valor,
como do vosso enternecido coração, onde o amor e o brio nacional sempre
acharam o mais retumbante echo!

Não percamos a curva e attentemos. Á mulher medieva, mortificada e
humilde, segue-se a mulher dignificada e esclarecida, á mulher-cousa
substitue-se a mulher-espirito, e sempre o mesmo sangue ardente lhe
aquece as veias e lhe robustece o braço, como, para não voltarmos a esta
sua modalidade, se continua a verificar em D. Filippa de Vilhena e D.
Marianna de Lencastre, em 1640, na condessa de Castello Melhor e em
Helena Peres numa nova defesa de Monsão, e mais tarde, no seculo XVIII,
em D. Maria de Sequeira, que chamando a si o commando d'uma nau atacada,
no seu regresso da Bahia, por uma esquadrilha de corsarios argelinos,
logo inflige ao inimigo uma desastrosa e veloz retirada. Não affrouxam o
heroismo e a bravura na mulher portugueza, cujo dominio se alarga do
corpo para o espirito. Em cada alma feminina despertam e palpitam
milhares de almas conscientes, que espargem luz e sublimam quanto tocam.
A poesia dá-lhe ternura, a arte afina-lhe as linhas da intelligencia e
apura-lhe o gosto. Sente o direito de amar egual ao de ser amada. A
massa faz-se carne, a carne torna-se flôr e a flôr espalha aroma. Isolda
abre-lhe o coração e beija-lh'o, o sangue leva-lhe esse beijo ao cerebro
e a mulher portugueza pensa e sonha, mas os seus sonhos são innocentes,
porque os originam a pureza da lenda e a castidade devaneadora das
personagens. É a aurora da mulher de hoje, então ainda simples nas suas
aspirações:--nem o sol a queima, nem o luar lhe esfuma mysterios. É o
côr de rosa, a serenidade do romper da manhã.

Vem a dominação dos Filippes. Com a perda da independencia foge para
Madrid grande parte da força intellectual e artistica, mas a Espanha
alguma cousa nos manda em troca. O seu theatro revela uma nova feição do
amor,--o amor que mata, que encanta e faz chorar. D. Juan Tenorio
apossa-se dos corações; nasce o homem fatal e nasce a mulher fatal. A
morte da mulher pelo marido já não é o direito do senhor, é o direito do
coração. Esboça-se a alvorada do _Resistiu-me? Matei-a!_ A mulher,
engolfada no drama, estende a mão para a tragedia. O manteu dispensa a
alcovêta. Embiocada, pode saír impunemente e assim vae até 1640 por
entre lances arriscados de amor, sob o pontificado da capa e espada e a
protecção do biôco. É neste periodo que, emquanto Soror Brigida, olhos
postos na gloria eterna, se arrebata no amor divino, Soror Violante, a
meio caminho das alturas, se debruça para o mundo e fita os olhos na
terra:

    Que suspensão, que enleio, que cuidado
    É este meu, tyrano deus Cupido,
    Pois tirando-me emfim todo o sentido,
    Me deixa o sentimento duplicado!

O mysticismo procura a conjuncção com o mundanismo; a mulher
equilibra-se entre a terra e o céu. Faz-se a Restauração. Os usos e os
costumes não se modificam, embora se perceba uma tendencia regressiva
para o seculo XVI, até que D. Maria Francisca de Saboya importa para a
nossa côrte, as modas, os costumes, os galanteios e em si propria o
figurino da corrupção da côrte franceza. A francezia lança as suas
garras e empolga as nossas mulheres e os nossos homens, creando a frança
e o faceira. Ao amor tragico e sinistro do theatro espanhol succede o
amor leve e brincado. O espirito da mulher portugueza adelgaça-se e ao
mesmo tempo que ainda se dramatisa em Mariana Alcoforado com o coração a
fistular-se de amargura e os olhos aferrados na estrada por onde o seu
amante seguiu para não mais voltar, atira-nos de chofre com a galhofeira
D. Feliciana de Milão a saracotear-se pela Rua Nova, numa semcerimonia
impropria d'aquelle seculo, faladora, mexeriqueira, enxertia da _verve_
franceza na graça portugueza, a fazer trocadilhos em Odivellas e a dizer
ás creadas, que na egreja de S. Roque procuravam abrir-lhe passagem
junto de certa dama, cujo amor valia ouro e obstinada em não querer
levantar-se: «Deixae-a, deixae-a, que não se levanta de graça quem se
deita por dinheiro.»

A mulher avança em liberdade e sociabilidade, do seu coração apagam-se
as paginas suaves e ingenuas dos poemas lendarios, a sua alma palpita
com outra energia, a vida pelo amor e o amor pela vida é o que a
impressiona, o que lhe move os sentidos e lhe encanta a razão. Mas ainda
está separada do homem nas etiquetas da côrte e impõe-se que a
ambicionada juncção se effectue. Determina-a D. João V, ao lado do conde
da Ericeira, do que resulta o namoro dentro de casa, tendo o leque e o
lenço por signaleiros. Manifesta-se então um facto curioso: a mulher
decota-se quasi até o umbigo e não se lhe lobriga o bico do sapato.
Porquê? Porque oscilla entre a comica e a freira. Esta recata-a da
cintura para baixo, aquella desnuda-a da cintura para cima. Comicas e
freiras dividem entre si o poder. Todo o galante tem uma freira e tem
uma comica. O theatro recupera a sua influencia. A mulher imita as
comicas no andar, nos gestos, nas attitudes e nas modas; perde o
sentimento proprio e adquire o sentimento alheio. Simultaneamente, o
amor freiratico, com requintes de platonismo, chega á allucinação e a
donzella passa ao escuro. Não podendo subir ao palco, enche os
conventos, onde tres caminhos a attraem: o da santidade, o da
litteratura e o da profanação do habito. E é neste solavanco de almas e
corpos a tentarem o equilibrio, que a arte e a litteratura transluzem e
occupam o logar primacial nos quadros de Josepha de Ayala, nos planos
architectonicos de D. Margarida de Noronha, na ceramica de Ignacia de
Almeida e nas comedias e poesias de D. Joanna Ignez da Cruz, guindada a
_Decima Musa_.

Sobre este periodo de impropriedade feminina vem o periodo pombalino com
a plutocracia e a alta industria triumphantes. A comica e a freira
descem de cotação; constituem-se os salões; da senhora, com toda a sua
nobre seducção, sae a conversadora, cujos prototypos se modelam na
condessa de Soure e em D. Maria May. A frança e o faceira prolongam-se,
em agudo preciosismo, na sécia e no peralta; o leque, que se arrebica
com o cognome de _marotinho_, reentra em acção; inaugura-se o alphabeto
dos dedos; o namoro de portas a dentro conquista liberdade absoluta;
estabelecem-se as academias de fandango, onde os dois sexos deliram.
Morre D. José, e a viradeira fanatica, com o regresso dos jesuitas e da
nobreza eivada de fanatismo, proíbe que as mulheres dansem. Os corpos de
baile são formados por barbaças em _travesti_ e quem canta são os
_castrati_. A mulher soffre de novo a clausura, o theatro é-lhe vedado,
a sua intelligencia geme sob uma suffocação. Mas pela influencia do
passado, da educação recebida, apparecem as poetisas palacianas, que
correspondem ás versejadoras do Paço no seculo XV, tomando superior
vulto a notabilissima e formosa Marqueza de Alorna, a viscondessa de
Balsemão, D. Francisca de Paula Possolo e D. Thereza de Mello
Breyner,--e em Napoles a figura tragica de Leonor da Fonseca Pimentel,
proclamando a eterna justiça, transforma o patibulo do seu corpo em
apotheose da sua alma.

Desde a perda da nossa independencia, a mulher portugueza passa por
transições bruscas, que a sacodem e instabilisam, sem os necessarios
estadios, fazendo-a uma complicação sem termo e dando-lhe ainda uma nova
feição com a vinda dos francezes. Nessa convulsão a sua liberdade
espraia-se; marca-se o periodo da casquilha e do bandarra, dos
pisa-flôres e dos janotas. O amor perturba-a e não ha ter-lhe mão.
Estonteada pelas fardas chamarradas e pelo aprumo viril, entrega-se nos
braços dos officiaes franceses. Vive-se um pouco a vida de Paris, não a
vida leve e vaporosa do tempo da Brichota, mas a do Imperio com todos os
seus desvairos. Salva-a num movimento decidido, pulso forte, que refreia
a corrida á rédea solta. O vintismo corrige a depravação. A mulher volta
ao lar, faz-se dona de casa; a educação domestica reveste-se de
gravidade; prega-se a virtude. Em auxilio d'este esforço entram o
romantismo francez e o inglez. Chateaubriand exalta a mãe e exclama:
«Aleitar os filhos é a maior belleza!» E então as mulheres vão para os
bailes levando os filhos ao colo e dão-lhes de mamar deante de toda a
gente. É a sua segunda dignificação. Succede, porêm, ao vintismo, em que
tudo veste briche--corpos e corações--o periodo nevrotico de D. Miguel
com um retrocesso momentaneo á época de D. Sebastião. O pegador de
touros torna-se o ideal da mulher. Instante rapidissimo. Com D. Pedro
IV, toda a valente pleiade de emigrados traz o influxo estrangeiro, e
pela irradiação de Hugo, Lamartine, Vigny, Musset e do proprio Garrett
molda-se a romantica.

Abrem-se os salões para os grandes bailes; mas já não é o salão
pombalino, é o salão com o estrangeirismo. Irrompe uma nova sociedade,
começam as classes altas a descer e as classes baixas a subir, e a
portuguezinha, pallida e luarenta, atravessa de olhos em alvo, por entre
os homens terriveis, nos bailes do Manteigueiro, da Assembleia, da
Regaleira, das Laranjeiras, do marquez de Vianna e do marquez de
Penafiel, e nas reuniões litterarias da interessantissima D. Maria Krus,
de cabecinha ao lado emmoldurada em bandós. Apesar d'este acesso febril,
fortalecida com o exemplo de D. Maria II, conserva-se ainda a boa dona
de casa e o namoro faz-se sob resguardo, emquanto não a surpreende o
néo-romantismo, na passagem do reinado de D. Pedro V para o de D. Luiz,
e ella desata a soluçar e a tomar amor á tisica. O Passeio Publico
colma-se de namoricos, e a mulher, que tão bem soube usar da sua graça e
da sua seducção na vida portugueza de 1830 a 1860, vae-se diminuindo
pouco a pouco a si propria e só nos ultimos vinte annos, dentro d'um
rasgado desafogo, torna a fulgir pela illustração com que se cultiva,
pelo gosto que se lhe apura, pela intelligencia que se lhe desenvolve.



Tendo percorrido uma curva, por vezes extravagante, e acabando por
investigar com desembaraço varios problemas psychologicos e por se
integrar na vida social, apresenta-se-nos no seculo XX, ora ponto de
interrogação, ora exclamação reveladora. Talvez não erre classificando a
mulher de hoje--a mulher anciosa. É a anciedade o que a domina,
anciedade de saber, anciedade de dirigir a sua vida, anciedade de
inteira libertação, anciedade de attingir o ideal, que para si propria
creou. E d'este conjuncto de aspirações resulta ser o nosso constante
auxilio, a força da nossa força, a intelligencia da nossa intelligencia,
o coração do nosso coração, o braço do nosso braço.

Eternamente governada pelo sentimento, com a ternura que nenhuma outra
possue, meiga, affectuosa e soffredora, arte viva pela harmonia da
formosura, pela melodia da voz e pela doçura do trato, religião sublime
pela elevação do espirito, onde repercute a dôr eterna e brilha a
esperança immortal, poema dos sentidos, de todo o amor e de todas as
crenças, rosario, flôr, sol e luar, breviario e epopeia, bella,
resignada e casta,--ó mulher portugueza, pelas evoluções que tendes
percorrido, vós fostes, sois e haveis de continuar a ser o viço do nosso
olhar, o paladar da nossa bôca, a musica dos nossos ouvidos, o
verdadeiro corpo da nossa alma e acima de tudo a raiz de toda a nossa
poesia e o alento da nossa patria. Conduzi-a, pois, sem o minimo
desfallecimento, sempre vigilante, sempre terna, esteio da nossa fé,
estandarte dos nossos triumphos, cantico das nossas glorias!
Mulher-arte, mulher-religião, com a vossa influencia, com a agudeza do
vosso espirito e com a generosidade dos vossos sentimentos, espalhae o
amor entre nós todos! Dos vossos olhos, dos vossos labios, dos vossos
corações lançae jorros de amor, porque de muito amor é que precisa a
nossa linda e querida terra e outra fonte não temos aonde o vamos beber.
Filippa de Vilhena, para restaurar Portugal do jugo castelhano, armou os
seus dois filhos com duas espadas, e vós, mulheres de hoje, se quereis
restaurar a patria do jugo das inimizades e malquerenças, abri o vosso
peito e armae com o vosso coração os vossos entes mais queridos.
Elles ficarão sendo os abençoados cavalleiros da concordia e do
amor, e Portugal inteiro ajoelhará a vossos pés, exclamando,
commovido:--Bemdita, mil vezes bemdita, ó mulher portugueza!





End of Project Gutenberg's A Mulher Portugueza, by Eduardo Shwalbach Lucci

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A MULHER PORTUGUEZA ***

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and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

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     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


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