The Project Gutenberg EBook of Os Maias, by José Maria Eça de Queirós This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Os Maias episodios da vida romantica Author: José Maria Eça de Queirós Release Date: October 16, 2012 [EBook #40409] Last updated: June 10, 2019 Language: Portuguese *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS MAIAS *** Produced by Rita Farinha, Alberto Manuel Brandâo Simıes, GraÃa Horta and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal) and Biblioteca Dulce Ferrâo -- Biblioteca-Museu RepËblica e ResistÃncia.) *Nota de editor:* Devido â¡ existÃncia de erros tipogr·ficos neste texto, foram tomadas v·rias decisıes quanto â¡ versâo final. Em caso de dËvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrar· a lista de erros corrigidos. Na versâo original, esta obra à uma compilaÃâo de dois volumes, com capÃtulos e paginaÃâo independentes, publicadas numa sà obra. Respeitando o original, compil·mos num sà ficheiro ambas as partes: Primeiro Volume Segundo Volume Rita Farinha (Agosto 2012) Porto: Typ. de A. J. da Silva Teixeira, Cancella Velha, 70 E«A DE QUEIROZ OS MAIAS EPISODIOS DA VIDA ROMANTICA VOLUME I PORTO Livraria Internacional de Ernesto Chardron CASA EDITORA LUGAN & GENELIOUX, Successores 1888 Todos os direitos reservados OBRAS DO MESMO AUCTOR O Crime do Padre Amaro, ediÃâo inteiramente refundida, recomposta, e differente na fÃrma e na acÃâo da ediÃâo primitiva. 1 grosso vol. 1$200 O Primo Bazilio. 3.^a ediÃâo. 1 grosso vol. 1$000 O Mandarim. 2.^a ediÃâo. 1 vol. 500 A Reliquia. 1 grosso vol. 1$000 OS MAIAS VOLUME I OS MAIAS I A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na visinhanÃa da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janellas Verdes, pela _casa do Ramalhete_ ou simplesmente o _Ramalhete_. Apesar d'este fresco nome de vivenda campestre, o _Ramalhete_, sombrio casarâo de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma timida fila de janellinhas abrigadas · beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de Residencia Ecclesiastica que competia a uma edificaÃâo do reinado da sr.^a D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo assimilhar-se-hia a um Collegio de Jesuitas. O nome de Ramalhete provinha de certo d'um revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no logar heraldico do Escudo d'Armas, que nunca chegara a ser collocado, e representando um grande ramo de girasoes atado por uma fita onde se distinguiam letras e numeros d'uma data. Longos annos o Ramalhete permanecera deshabitado, com teias d'aranha pelas grades dos postigos terreos, e cobrindo-se de tons de ruina. Em 1858 Monsenhor Buccarini, Nuncio de S. Santidade, visitara-o com idÃa d'installar l· a Nunciatura, seduzido pela gravidade clerical do edificio e pela paz dormente do bairro: e o interior do casarâo agradara-lhe tambem, com a sua disposiÃâo apalaÃada, os tectos apainelados, as paredes cobertas de _frescos_ onde j· desmaiavam as rosas das grinaldas e as faces dos Cupidinhos. Mas Monsenhor, com os seus habitos de rico prelado romano, necessitava na sua vivenda os arvoredos e as agoas d'um jardim de luxo: e o Ramalhete possuia apenas, ao fundo d'um terraÃo de tijolo, um pobre quintal inculto, abandonado ·s hervas bravas, com um cypreste, um cedro, uma cascatasinha secca, um tanque entulhado, e uma estatua de marmore (onde Monsenhor reconheceu logo Venus CitherÃa) ennegrecendo a um canto na lenta humidade das ramagens silvestres. AlÃm d'isso, a renda que pedio o velho VillaÃa, procurador dos Maias, pareceu tâo exagerada a Monsenhor, que lhe perguntou sorrindo se ainda julgava a Egreja nos tempos de Leâo X. VillaÃa respondeu--que tambem a nobreza nâo estava nos tempos do sr. D. Joâo V. E o Ramalhete continuou deshabitado. Este inutil pardieiro (como lhe chamava VillaÃa Junior, agora por morte de seu pae administrador dos Maias) sà veio a servir, nos fins de 1870, para l· se arrecadaram as mobilias e as louÃas provenientes do palacete de familia em Bemfica, morada quasi historica, que, depois de andar annos em praÃa, fÃra entâo comprada por um commendador brazileiro. N'essa occasiâo vendera-se outra propriedade dos Maias, a _Tojeira_; e algumas raras pessoas que em Lisboa ainda se lembravam dos Maias, e sabiam que desde a RegeneraÃâo elles viviam retirados na sua quinta de Santa Olavia, nas margens do Douro, tinham perguntado a VillaÃa se essa gente estava atrapalhada. --Ainda teem um pedaÃo de pâo, disse VillaÃa sorrindo, e a manteiga para lhe barrar por cima. Os Maias eram uma antiga familia da Beira, sempre pouco numerosa, sem linhas collateraes, sem parentellas--e agora reduzida a dois varıes, o senhor da casa, Affonso da Maia, um velho j·, quasi um antepassado, mais edoso que o seculo, e seu neto Carlos que estudava medicina em Coimbra. Quando Affonso se retirara definitivamente para Santa Olavia, o rendimento da casa excedia j· cincoenta mil cruzados: mas desde entâo tinham-se accumulado as economias de vinte annos de aldÃa; viera tambem a heranÃa d'um ultimo parente, Sebastiâo da Maia, que desde 1830 vivia em Napoles, sÃ, occupando-se de numismatica;--e o procurador podia certamente sorrir com seguranÃa quando fallava dos Maias e da sua fatia de pâo. A venda da _Tojeira_ fÃra realmente aconselhada por VillaÃa: mas nunca elle approvara que Affonso se desfizesse de Bemfica--sà pela rasâo d'aquelles muros terem visto tantos desgostos domesticos. Isso, como dizia VillaÃa, acontecia a todos os muros. O resultado era que os Maias, com o Ramalhete inhabitavel, nâo possuiam agora uma casa em Lisboa; e se Affonso n'aquella edade amava o socego de Santa Olavia, seu neto, rapaz de gosto e de luxo que passava as ferias em Paris e Londres, nâo quereria, depois de formado, ir sepultar-se nos penhascos do Douro. E com effeito, mezes antes de elle deixar Coimbra, Affonso assombrou VillaÃa annunciando-lhe que decidira vir habitar o Ramalhete! O procurador compoz logo um relatorio a enumerar os inconvenientes do casarâo: o maior era necessitar tantas obras e tantas despezas; depois, a falta d'um jardim devia ser muito sensivel a quem sahia dos arvoredos de Santa Olavia; e por fim alludia mesmo a uma lenda, segundo a qual eram sempre fataes aos Maias as paredes do Ramalhete, ´ainda que (acrescentava elle n'uma phrase meditada) atà me envergonho de mencionar taes frioleiras n'este seculo de Voltaire, Guisot e outros philosophos liberaes...ª Affonso riu muito da phrase, e respondeu que aquellas razıes eram excellentes--mas elle desejava habitar sob tectos tradiccionalmente seus; se eram necessarias obras, que se fizessem e largamente; e emquanto a lendas e agoiros, bastaria abrir de par em par as janellas e deixar entrar o sol. S. ex.^a mandava:--e, como esse inverno ia secco, as obras comeÃaram logo, sob a direcÃâo d'um Esteves, architecto, politico, e compadre de VillaÃa. Este artista enthusiasm·ra o procurador com um projecto de escada apparatosa, flanqueada por duas figuras symbolisando as conquistas da Guinà e da India. E estava ideando tambem uma cascata de louÃa na sala de jantar--quando, inesperadamente, Carlos appareceu em Lisboa com um architecto-decorador de Londres, e, depois de estudar com elle · pressa algumas ornamentaÃıes e alguns tons de estofos, entregou-lhe as quatro paredes do Ramalhete, para elle ali crear, exercendo o seu gosto, um interior confortavel, de luxo intelligente e sobrio. VillaÃa resentiu amargamente esta desconsideraÃâo pelo artista nacional; Esteves foi berrar ao seu Centro politico que isto era um paiz perdido. E Affonso lamentou tambem que se tivesse despedido o Esteves, exigiu mesmo que o encarregassem da construcÃâo das cocheiras. O artista ia acceitar--quando foi nomeado governador civil. Ao fim d'um anno, durante o qual Carlos viera frequentemente a Lisboa collaborar nos trabalhos, ´dar os seus retoques estheticosª--do antigo Ramalhete sà restava a fachada tristonha, que Affonso nâo quizera alterada por constituir a phisionomia da casa. E VillaÃa nâo duvidou declarar que Jones Bule (como elle chamava ao inglez) sem despender despropositadamente, aproveitando atà as antigualhas de Bemfica, fizera do Ramalhete ´um museu.ª O que surprehendia logo era o pateo, outr'ora tâo lobrego, nË, lageado de pedregulho--agora resplandecente, com um pavimento quadrilhado de marmores brancos e vermelhos, plantas decorativas, vazos de Quimper, e dois longos bancos feudaes que Carlos trouxera de Hespanha, trabalhados em talha, solemnes como cÃros de cathedral. Em cima, na antecamara, revestida como uma tenda de estofos do Oriente, todo o rumor de passos morria: e ornavam-n'a divans cobertos de tapetes persas, largos pratos mouriscos com reflexos metalicos de cobre, uma harmonia de tons severos, onde destacava, na brancura immaculada do marmore, uma figura de rapariga friorenta, arripiando-se, rindo, ao metter o pÃsinho n'agoa. D'ahi partia um amplo corredor, ornado com as peÃas ricas de Bemfica, arcas gothicas, jarrıes da India, e antigos quadros devotos. As melhores salas do Ramalhete abriam para essa galeria. No salâo nobre, raramente usado, todo em brocados de velludo cÃr de musgo d'outono, havia uma bella tÃla de Constable, o retrato da sogra de Affonso, a condessa de Runa, de tricorne de plumas e vestido escarlate de caÃadora ingleza, sobre um fundo de paisagem enevoada. Uma sala mais pequena, ao lado, onde se fazia musica, tinha um ar de seculo XVIII com seus moveis enramelhetados d'ouro, as suas sedas de ramagens brilhantes: duas tapeÃarias de Gobelins, desmaiadas, em tons cinzentos, cobriam as paredes de pastores e d'arvoredos. Defronte era o bilhar, forrado d'um couro moderno trazido por Jones Bule, onde, por entre a desordem de ramagens verde-garrafa, esvoaÃavam cegonhas prateadas. E, ao lado, achava-se o _fumoir_, a sala mais commoda do Ramalhete: as ottomanas tinham a fÃfa vastidâo de leitos; e o conchego quente, e um pouco sombrio dos estofos escarlates e pretos era alegrado pelas cores cantantes de velhas faienÃas hollandezas. Ao fundo do corredor ficava o escriptorio de Affonso, revestido de damascos vermelhos como uma velha camara de prelado. A macissa meza de pau preto, as estantes baixas de carvalho lavrado, o solemne luxo das encadernaÃıes, tudo tinha ali uma feiÃâo austera de paz estudiosa--realÃada ainda por um quadro attribuido a Rubens, antiga reliquia da casa, um Christo na Cruz, destacando a sua nudez de athleta sobre um ceu de poente revolto e rubro. Ao lado do fogâo Carlos arranjara um canto para o avà com um biombo japonez bordado a ouro, uma pelle d'urso branco, e uma veneravel cadeira de braÃos, cuja tapeÃaria mostrava ainda as armas dos Maias no desmaio da trama de sÃda. No corredor do segundo andar, guarnecido com retratos de familia, estavam os quartos de Affonso. Carlos despozera os seus, n'um angulo da casa, com uma entrada particular, e janellas sobre o jardim: eram tres gabinetes a seguir, sem portas, unidos pelo mesmo tapete: e, os recostos acolchoados, a sÃda que forrava as paredes, faziam dizer ao VillaÃa que aquillo nâo eram aposentos de medico--mas de danÃarina! A casa, depois de arranjada, ficou vazia emquanto Carlos, j· formado, fazia uma longa viagem pela Europa;--e foi sà nas vesperas da sua chegada, n'esse lindo outono de 1875, que Affonso se resolveu emfim a deixar Santa Olavia e vir installar-se no Ramalhete. Havia vinte e cinco annos que elle nâo via Lisboa; e, ao fim de alguns curtos dias, confessou ao VillaÃa que estava suspirando outra vez pelas suas sombras de Santa Olavia. Mas, que remedio! Nâo queria viver muito separado do neto; e Carlos agora, com idÃas sÃrias de carreira activa, devia necessariamente habitar Lisboa... De resto, nâo desgostava do Ramalhete, apezar de Carlos, com o seu fervor pelo luxo dos climas frios, ter prodigalisado de mais as tapeÃarias, os pesados reposteiros, e os velludos. Agradava-lhe tambem muito a visinhanÃa, aquella dÃce quietaÃâo de suburbio adormecido ao sol. E gostava atà do seu quintalejo. Nâo era de certo o jardim de Santa Olavia: mas tinha o ar sympathico, com os seus girasoes perfilados ao pà dos degraus do terraÃo, o cypreste e o cedro envelhecendo juntos como dois amigos tristes, e a Venus CytherÃa parecendo agora, no seu tom claro de estatua de parque, ter chegado de Versalhes, do fundo do grande seculo... E desde que a agoa abundava, a cascatasinha era deliciosa, dentro do nicho de conchas, com os seus tres pedregulhos arranjados em despenhadeiro bucolico, melancolisando aquelle fundo de quintal soalheiro com um pranto de nayade domestica, esfiado gota a gota na bacia de marmore. O que desconsolara Affonso, ao principio, fÃra a vista do terraÃo--d'onde outr'ora, de certo, se abrangia atà ao mar. Mas as casas edificadas em redor, nos ultimos annos, tinham tapado esse horizonte explendido. Agora, uma estreita tira de agoa e monte que se avistava entre dois predios de cinco andares, separados por um cÃrte de rua, formava toda a paizagem defronte do Ramalhete. E, todavia, Affonso terminou por lhe descobrir um encanto intimo. Era como uma tÃla marinha, encaixilhada em cantarias brancas, suspensa do cÃu azul em face do terraÃo, mostrando, nas variedades infinitas de cÃr e luz, os episodios fugitivos d'uma pacata vida de rio: ·s vezes uma vÃla de barco da Trafaria fugindo airosamente · bolina; outras vezes uma galera toda em panno, entrando n'um favor da aragem, vagarosa, no vermelho da tarde; ou entâo a melancolia d'um grande paquete, descendo, fechado e preparado para a vaga, entrevisto um momento, desapparecendo logo, como j· devorado pelo mar incerto; ou ainda durante dias, no pà d'ouro das sestas silenciosas, o vulto negro de um couraÃado inglez... E sempre ao fundo o pedaÃo de monte verde-negro, com um moinho parado no alto, e duas casas brancas ao rez d'agoa, cheias de expressâo--ora faiscantes e despedindo raios das vidraÃas accezas em braza; ora tomando aos fins de tarde um ar pensativo, cobertas dos rosados tenros de poente, quasi similhantes a um rubor humano; e d'uma tristeza arripiada nos dias de chuva, tâo sÃs, tâo brancas, como nuas, sob o tempo agreste. O terraÃo communicava por tres portas envidraÃadas com o escriptorio--e foi n'essa bella camara de prelado que Affonso se acostumou logo a passar os seus dias, no recanto aconchegado que o neto lhe preparara ternamente, ao lado do fogâo. A sua longa residencia em Inglaterra dera-lhe o amor dos suaves vagares junto do lume. Em Santa Olavia as chaminÃs ficavam accezas atà Abril; depois ornavam-se de braÃadas de flÃres, como um altar domestico; e era ainda ahi, n'esse aroma e n'essa frescura, que elle gozava melhor o seu cachimbo, o seu Tacito, ou o seu querido Rabelais. Todavia, Affonso ainda ia longe, como elle dizia, de ser um velho borralheiro. N'aquella edade, de verâo ou de inverno, ao romper do sol, estava a pÃ, sahindo logo para a quinta, depois da sua boa oraÃâo da manhâ que era um grande mergulho na agoa fria. Sempre tivera o amor supersticioso da agoa; e costumava dizer que nada havia melhor para o homem--que sabor d'agoa, som d'agoa, e vista d'agoa. O que o prendera mais a Santa Olavia fÃra a sua grande riqueza d'agoas vivas, nascentes, repuxos, tranquillo espelhar d'agoas paradas, fresco murmurio de agoas regantes... E a esta viva tonificaÃâo da agoa attribuia elle o ter vindo assim, desde o comeÃo do seculo, sem uma dÃr e sem uma doenÃa, mantendo a rica tradiÃâo de saude da sua familia, duro, resistente aos desgostos e annos--que passavam por elle, tâo em vâo, como passavam em vâo, pelos seus robles de Santa Olavia, annos e vendavaes. Affonso era um pouco baixo, macisso, de hombros quadrados e fortes: e com a sua face larga de nariz aquilino, a pelle cÃrada, quasi vermelha, o cabello branco todo cortado · escovinha, e a barba de neve aguda e longa--lembrava, como dizia Carlos, um varâo esforÃado das edades heroicas, um D. Duarte de Menezes ou um Affonso d'Albuquerque. E isto fazia sorrir o velho, recordar ao neto, gracejando, quanto as apparencias illudem! Nâo, nâo era Menezes, nem Albuquerque; apenas um antepassado bonacheirâo que amava os seus livros, o conchego da sua poltrona, o seu _whist_ ao canto do fogâo. Elle mesmo costumava dizer, que era simplesmente um egoista:--mas nunca, como agora na velhice, as generosidades do seu coraÃâo tinham sido tâo profundas e largas. Parte do seu rendimento ia-se-lhe por entre os dedos, esparsamente, n'uma caridade enternecida. Cada vez amava mais o que à pobre e o que à fraco. Em Santa Olavia, as creanÃas corriam para elle, dos portaes, sentindo-o acariciador e paciente. Tudo o que vive lhe merecia amor:--e era dos que nâo pisam um formigueiro, e se compadece da sÃde d'uma planta. VillaÃa costumava dizer que lhe lembrava sempre o que se conta dos patriarchas, quando o vinha encontrar ao canto da chaminÃ, na sua coÃada quinzena de velludilho, sereno, risonho, com um livro na mâo, o seu velho gato aos pÃs. Este pesado e enorme angor·, branco com malhas louras, era agora (desde a morte de _Tobias_, o soberbo câo de S. Bernardo) o fiel companheiro de Affonso. Tinha nascido em Santa Olavia, e recebera entâo o nome de Bonifacio: depois, ao chegar · edade do amor e da caÃa, fora-lhe dado o appellido mais cavalheiresco de D. Bonifacio de Calatrava: agora, dorminhoco e obeso, entrara definitivamente no remanso das dignidades ecclesiasticas, e era o Reverendo Bonifacio... Esta existencia nem sempre assim correra com a tranquillidade larga e clara d'um bello rio de verâo. O antepassado, cujos olhos se enchiam agora d'uma luz de ternura diante das suas rosas, e que ao canto do lume relia com gosto o seu Guisot, fÃra, na opiniâo de seu pae, algum tempo, o mais feroz Jacobino de Portugal! E todavia, o furor revolucionario do pobre moÃo consistira em lÃr Rousseau, Volney, Helvetius, e a Encyclopedia; em atirar foguetes de lagrimas · ConstituiÃâo; e ir, de chapeu · liberal e alta gravata azul, recitando pelas lojas maÃonicas Odes abominaveis ao Supremo Architecto do Universo. Isto, porÃm, bast·ra para indignar o pae. Caetano da Maia era um portuguez antigo e fiel que se benzia ao nome de Robespierre, e que, na sua apathia de fidalgo beato e doente, tinha sà um sentimento vivo--o horror, o odio ao Jacobino, aquem attribuia todos os males, os da patria e os seus, desde a perda das colonias atà ·s crises da sua gota. Para extirpar da naÃâo o Jacobino, dÃra elle o seu amor ao sr. infante D. Miguel, Messias forte e Restaurador providencial... E ter justamente por filho um Jacobino, parecia-lhe uma provaÃâo comparavel sà ·s de Job! Ao principio, na esperanÃa que o menino se emendasse, contentou-se em lhe mostrar um carâo severo e chamar-lhe com sarcasmo--_cidadâo_! Mas quando soube que seu filho, o seu herdeiro, se misturara · turba que, n'uma noite de festa civica e de luminarias, tinha apedrejado as vidraÃas apagadas do sr. Legado d'¡ustria, enviado da Santa AllianÃa--considerou o rapaz um Marat e toda a sua colera rompeu. A gota cruel, cravando-o na poltrona, nâo lhe deixou espancar o maÃâo, com a sua bengala da India, · lei de bom pae portuguez: mas decidiu expulsal-o de sua casa, sem mezada e sem benÃâo, renegado como um bastardo! Que aquelle pedreiro livre nâo podia ser do seu sangue! As lagrimas da mamâ amolleceram-n'o; sobretudo as razıes d'uma cunhada de sua mulher, que vivia com elles em Bemfica, senhora irlandeza de alta instrucÃâo, Minerva respeitada e tutelar, que ensinara inglez ao menino e o adorava como um bÃbÃ. Caetano da Maia limitou-se a desterrar o filho para a quinta de Santa Olavia; mas nâo cessou de chorar no seio dos padres, que vinham a Bemfica, a desgraÃa da sua casa. E esses santos l· o consolavam, affirmando-lhe que Deus, o velho Deus d'Ourique, nâo permittiria j·mais que um Maia pactuasse com Belzebut e com a RevoluÃâo! E, · falta de Deus Padre, l· estava Nossa Senhora da Soledade, padroeira da casa e madrinha do menino, para fazer o bom milagre. E o milagre fez-se. Mezes depois, o Jacobino, o Marat, voltava de Santa Olavia um pouco contricto, enfastiado sobretudo d'aquella solidâo, onde os ch·s do brigadeiro Senna eram ainda mais tristes que o terÃo das primas Cunhas. Vinha pedir ao pae a benÃâo, e alguns mil cruzados, para ir a Inglaterra, esse paiz de vivos prados e de cabellos d'ouro de que lhe fallara tanto a tia Fanny. O pae beijou-o, todo em lagrimas, accedeu a tudo fervorosamente, vendo ali a evidente, a gloriosa intercessâo de Nossa Senhora da Soledade! E o mesmo Frei Jeronymo da ConceiÃâo seu confessor, declarou este milagre--nâo inferior ao de Carnaxide. Affonso partiu. Era na primavera--e a Inglaterra toda verde, os seus parques de luxo, os copiosos confortos, a harmonia penetrante dos seus nobres costumes, aquella raÃa tâo sÃria e tâo forte--encantaram-n'o. Bem depressa esqueceu o seu odio aos sorumbaticos padres da CongregaÃâo, as horas ardentes passadas no cafà dos Romulares a recitar Mirabeau, e a Republica que quizera fundar, classica e voltarianna, com um triumvirato de Scipiıes e festas ao Ente Supremo. Durante os dias da _Abrilada_ estava elle nas corridas d'Epsom, no alto d'uma sege de posta, com um grande nariz postiÃo, dando _hurrahs_ medonhos--bem indifferente aos seus irmâos de MaÃonaria, que a essas horas o sr. infante espicaÃava a chuÃo, pelas viellas do Bairro Alto, no seu rijo cavallo d'Alter. Seu pae morreu de subito, elle teve de regressar a Lisboa. Foi entâo que conheceu D. Maria Eduarda Runa, filha do conde de Runa, uma linda morena, mimosa e um pouco adoentada. Ao fim do luto casou com ella. Teve um filho, desejou outros; e comeÃou logo, com bellas idÃas de patriarcha moÃo, a fazer obras no palacete de Bemfica, a plantar em redor arvoredos, preparando tectos e sombras · descendencia amada que lhe encantaria a velhice. Mas nâo esquecia a Inglaterra:--e tornava-lh'a mais appetecida essa Lisboa miguelista que elle via, desordenada como uma Tunis barbaresca; essa rude conjuraÃâo apostolica de frades e bolieiros, atroando tavernas e capellas; essa plebe beata, suja e feroz, rolando do _lausperenne_ para o curro, e anciando tumultuosamente pelo principe que lhe encarnava tâo bem os vicios e as paixıes... Este espectaculo indignava Affonso da Maia; e muitas vezes, na paz do serâo, entre amigos, com o pequeno nos joelhos, exprimiu a indignaÃâo da sua alma honesta. J· nâo exigia de certo, como em rapaz, uma Lisboa de Catıes e de Mucios-Scevolas. J· admittia mesmo o esforÃo d'uma nobreza para manter o seu privilegio historico; mas entâo queria uma nobreza intelligente e digna, como a Aristocracia tory (que o seu amor pela Inglaterra lhe fazia idealisar), dando em tudo a direcÃâo moral, formando os costumes e inspirando a litteratura, vivendo com fausto e fallando com gosto, exemplo de idÃas altas e espelho de maneiras patricias... O que nâo tolerava era o mundo de Queluz, bestial e sordido. Taes palavras, apenas soltas, voavam a Queluz. E quando se reuniram as cÃrtes geraes, a policia invadiu Bemfica, ´a procurar papeis e armas escondidas.ª Affonso da Maia, com o seu filho nos braÃos e a mulher tremendo ao lado--viu, impassivelmente e sem uma palavra, a busca, as gavetas arrombadas pela coronha das escopetas, as mâos sujas do malsim rebuscando os colxıes do seu leito. O sr. juiz de fÃra nâo descobriu nada: acceitou mesmo na copa um calice de vinho, e confessou ao mordomo ´que os tempos iam bem duros...ª Desde essa manhâ as janellas do palacete conservaram-se cerradas; nâo se abriu mais o portâo nobre para sahir o coche da senhora; e d'ahi a semanas, com a mulher e com o filho, Affonso da Maia partia para Inglaterra e para o exilio. Ahi installou-se, com luxo, para uma longa demora, nos arredores de Londres, junto a Richmond, ao fundo d'um parque, entre as suaves e calmas paisagens de Surrey. Os seus bens, graÃas ao credito do conde de Runa, antigo mimoso de D. Carlota Joaquina, hoje conselheiro rispido do sr. D. Miguel, nâo tinham sido confiscados; e Affonso da Maia podia viver largamente. Ao principio os emigrados liberaes, Palmella e a gente do _Belfast_, ainda o vieram desassocegar e consumir. A sua alma recta nâo tardou a protestar vendo a separaÃâo de castas, de gerarchias, mantidas ali na terra estranha entre os vencidos da mesma idÃa--os fidalgos e os desembargadores vivendo no luxo de Londres · forra, e a plebe, o exercito, depois dos padecimentos da Galliza, succumbindo agora · fome, · vermina, · febre nos barracıes de Plymouth. Teve logo conflictos com os chefes liberaes; foi accusado de vintista e demagogo; descreu por fim do liberalismo. Isolou-se entâo--sem fechar todavia a sua bolsa, d'onde sahiam ·s cincoenta, ·s cem moedas... Mas quando a primeira expediÃâo partiu, e pouco a pouco se foram vasando os depositos de emigrados, respirou emfim--e, como elle disse, pela primeira vez lhe soube bem o ar d'Inglaterra! Mezes depois sua mâe, que ficara em Bemfica, morria d'uma apoplexia: e a tia Fanny veiu para Richmond completar a felicidade d'Affonso, com o seu claro juizo, os seus caracÃes brancos, os seus modos de discreta Minerva. Alli estava elle pois no seu sonho, n'uma digna residencia ingleza, entre arvores seculares, vendo em redor nas vastas relvas dormirem ou pastarem os gados de luxo, e sentindo em torno de si tudo sâo, forte, livre e solido,--como o amava o seu coraÃâo. Teve relaÃıes; estudou a nobre e rica litteratura ingleza; interessou-se, como convinha a um fidalgo em Inglaterra, pela cultura, pela cria dos cavallos, pela pratica da caridade;--e pensava com prazer em ficar ali para sempre n'aquella paz e n'aquella ordem. SÃmente Affonso sentia que sua mulher nâo era feliz. Pensativa e triste, tossia sempre pelas salas. ¡ noite sentava-se ao fogâo, suspirava e ficava calada... Pobre senhora! a nostalgia do paiz, da parentella, das egrejas, ia-a minando. Verdadeira lisboeta, pequenina e trigueira, sem se queixar e sorrindo pallidamente, tinha vivido desde que chegara n'um odio surdo ·quella terra d'herejes e ao seu idioma barbaro: sempre arripiada, abafada em pelles, olhando com pavor os ceus fuscos ou a neve nas arvores, o seu coraÃâo nâo estivera nunca alli, mas longe, em Lisboa, nos adros, nos bairros batidos do sol. A sua devoÃâo (a devoÃâo dos Runas!) sempre grande, exaltara-se, exacerbara-se ·quella hostilidade ambiente que ella sentia em redor contra os ´papistasª. E sà se satisfazia · noite, indo refugiar-se no sotâo com as creadas portuguezas, para resar o _terÃo_ agachada n'uma esteira--gosando ali, n'esse murmurio _d'ave-marias_ em paiz protestante, o encanto de uma conjuraÃâo catholica! Odiando tudo o que era inglez, nâo consentira que seu filho, o Pedrinho, fosse estudar ao collegio de Richmond. Debalde Affonso lhe provou que era um collegio catholico. Nâo queria: aquelle catholicismo sem romarias, sem fogueiras pelo S. Joâo, sem imagens do Senhor dos Passos, sem frades nas ruas--nâo lhe parecia a religiâo. A alma do seu Pedrinho nâo abandonaria ella · heresia;--e para o educar mandou vir de Lisboa o padre Vasques, capellâo do Conde de Runa. O Vasques ensinava-lhe as declinaÃıes latinas, sobretudo a cartilha: e a face d'Affonso da Maia cobria-se de tristeza, quando ao voltar d'alguma caÃada ou das ruas de Londres, d'entre o forte rumor da vida livre--ouvia no quarto dos estudos a voz dormente do reverendo, perguntando como do fundo d'uma treva: --Quantos sâo os inimigos da alma? E o pequeno, mais dormente, l· ia murmurando: --Tres. Mundo, Diabo e Carne... Pobre Pedrinho! Inimigo da sua alma sà havia alli o reverendo Vasques, obeso e sordido, arrotando do fundo da sua poltrona, com o lenÃo do rapà sobre o joelho... ¡s vezes Affonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia a doutrina, agarrava a mâo do Pedrinho--para o levar, correr com elle sob as arvores do Tamisa, dissipar-lhe na grande luz do rio o pesadume crasso da cartilha. Mas a mamâ accudia de dentro, em terror, a abafal-o n'uma grande manta: depois l· fÃra o menino, acostumado ao collo das creadas e aos recantos estofados, tinha medo do vento e das arvores: e pouco a pouco, n'um passo desconsolado, os dois iam pisando em silencio as folhas seccas--o filho todo acobardado das sombras do bosque vivo, o pae vergando os hombros pensativo, triste d'aquella fraqueza do filho... Mas o menor esforÃo d'elle para arrancar o rapaz ·quelles braÃos de mâe que o amolleciam, ·quella cartilha mortal do padre Vasques--trazia logo · delicada senhora accessos de febre. E Affonso nâo se atrevia j· a contrariar a pobre doente, tâo virtuosa, e que o amava tanto! Ia entâo lamentar-se para o pà da tia Fanny: a sabia irlandeza mettia os oculos entre as folhas do seu livro, tratado d'Addisson ou poema de Pope, e encolhia melancolicamente os hombros. Que podia ella fazer!... Por fim a tosse de Maria Eduarda foi augmentando--como a tristeza das suas palavras. J· fallava da ´sua ambiÃâo derradeiraª, que era ver o sol uma vez mais! Por que nâo voltariam a Bemfica, ao seu lar, agora que o sr. Infante estava tambem desterrado e que havia uma grande paz? Mas a isso Affonso nâo cedeu: nâo queria ver outra vez as suas gavetas arrombadas a coronhadas--e os soldados do sr. D. Pedro nâo lhe davam mais garantias que os malsins do sr. D. Miguel. Por esse tempo veio um grave desgosto · casa: a tia Fanny morreu, d'uma pneumonia, nos frios de marÃo; e isto ennegreceu mais a melancolia de Maria Eduarda, que a amava muito tambem--por ser irlandeza e catholica. Para a distrahir, Affonso levou-a para a Italia, para uma deliciosa _villa_ ao pà de Roma. Ahi nâo lhe faltava o sol: tinha-o ponctual e generoso todas as manhâs, banhando largamente os terraÃos, dourando loureiraes e myrtos. E depois, l· em baixo, entre marmores, estava a coisa preciosa e santa, o Papa! Mas a triste senhora continuava a choramigar. O que realmente appetecia era Lisboa, as suas novenas, os santos devotos do seu bairro, as procissıes passando n'um rumor de pachorrenta penitencia por tardes de sol e de poeira... Foi necessario calmal-a, voltar a Bemfica. Ahi comeÃou uma vida desconsolada. Maria Eduarda definhava lentamente, todos os dias mais pallida, levando semanas immovel sobre um canapÃ, com as mâos transparentes cruzadas sobre as suas grossas pelles d'Inglaterra. O padre Vasques, apoderando-se d'aquella alma aterrada para quem Deus era um amo feroz, torn·ra-se o grande homem da casa. De resto Affonso encontrava a cada momento pelos corredores outras figuras canonicas, de capote e solideo, em que reconhecia antigos franciscanos, ou algum magro capuchinho parasitando no bairro; a casa tinha um bafio de sachristia; e dos quartos da senhora vinha constantemente, dolente e vago, um rumor de ladainha. Todos aquelles santos varıes comiam, bebiam o seu vinho do Porto na copa. As contas do administrador appareciam sobrecarregadas com as mesadas piedosas que dava a senhora: um Frei Patricio surripi·ra-lhe duzentas missas de cruzado por alma do Sr. D. Josà I... Esta carolice que o cercava ia lançando Affonso n'um atheismo rancoroso: quereria as egrejas fechadas como os mosteiros, as imagens escavacadas a machado, uma matança de reverendos... Quando sentia na casa a voz de resas, fugia, ia para o fundo da quinta, sob as trepadeiras do mirante, ler o seu Voltaire: ou então partia a desabafar com o seu velho amigo, o coronel Sequeira, que vivia n'uma quinta a Queluz. O Pedrinho no entanto estava quasi um homem. Ficara pequenino e nervoso como Maria Eduarda, tendo pouco da raÃa, da forÃa dos Maias; a sua linda face oval d'um trigueiro calido, dois olhos maravilhosos e irresistiveis; promptos sempre a humedecer-se, faziam-n'o assemelhar a um bello arabe. Desenvolvera-se lentamente, sem curiosidades, indifferente a brinquedos, a animaes, a flores, a livros. Nenhum desejo forte parecera j·mais vibrar n'aquella alma meia adormecida e passiva: sà ·s vezes dizia que gostaria muito de voltar para a Italia. Tom·ra birra ao Padre Vasques, mas nâo ousava desobedecer-lhe. Era em tudo um fraco; e esse abatimento continuo de todo o seu ser resolvia-se a espaÃos em crises de melancolia negra, que o traziam dias e dias mudo, murcho, amarello, com as olheiras fundas e j· velho. O seu unico sentimento vivo, intenso, atà ahi, fÃra a paixâo pela mâe. Affonso quizera-o mandar para Coimbra. Mas, · idÃa de se separar do seu Pedro, a pobre senhora cahira de joelhos deante d'Affonso, balbuciando e tremendo: e elle, naturalmente, l· cedeu perante essas mâos supplicantes, essas lagrimas que cahiam quatro a quatro pela pobre face de cera. O menino continuou em Bemfica dando os seus lentos passeios a cavallo, de creado de farda atraz, comeÃando j· a ir beber a sua genebra aos botequins de Lisboa... Depois foi despontando n'aquella organisaÃâo uma grande tendencia amorosa: aos dezenove annos teve o seu bastardosinho. Affonso da Maia consolava-se pensando que, apesar de tâo desgraÃados mimos, nâo faltavam ao rapaz qualidades: era muito esperto, sâo, e, como todos os Maias, valente: nâo havia muito que elle sÃ, com um chicote, dispersara na estrada tres saloios de varapau que lhe tinham chamado _palmito_. Quando a mâe morreu, n'uma agonia terrivel de devota, debatendo-se dias nos pavores do inferno, Pedro teve na sua dÃr os arrebatamentos d'uma loucura. Fizera a promessa hysterica, se ella escapasse, de dormir durante um anno sobre as lageas do pateo: e levado o caixâo, sahidos os padres, cahio n'uma angustia soturna, obtusa, sem lagrimas, de que nâo queria emergir, estirado de bruÃos sobre a cama n'uma obstinaÃâo de penitente. Muitos mezes ainda nâo o deixou uma tristeza vaga: e Affonso da Maia j· se desesperava de ver aquelle rapaz, seu filho e seu herdeiro, sahir todos os dias a passos de monge, lugubre no seu luto pesado, para ir visitar a sepultura da mamâ... Esta dÃr exagerada e morbida cessou por fim; e succedeu-lhe, quasi sem transiÃâo, um periodo de vida dissipada e turbulenta, estroinice banal, em que Pedro, levado por um romantismo torpe, procurava affogar em lupanares e botequins as saudades da mamâ. Mas essa exhuberancia anciosa que se desencadeara tâo subitamente, tâo tumultuosamente, na sua natureza desequilibrada, gastou-se depressa tambem. Ao fim d'um anno de disturbios no Marrare, de faÃanhas nas esperas de toiros, de cavallos esfalfados, de pateadas em S. Carlos, comeÃaram a reapparecer as antigas crises de melancolia nervosa; voltavam esses dias taciturnos, longos como desertos, passados em casa a bocejar pelas salas, ou sob alguma arvore da quinta todo estirado de bruÃos, como despenhado n'um fundo de amargura. N'esses periodos tornava-se tambem devoto: lia Vidas de Santos, visitava o Lausperenne: eram d'esses bruscos abatimentos d'alma que outr'ora levavam os fracos aos mosteiros. Isto penalisava Affonso da Maia: preferia saber que elle recolhera de Lisboa, de madrugada, exhausto e bebedo,--do que vel-o, de ripanÃo debaixo do braÃo, com um ar velho, marchando para a Egreja de Bemfica. E havia agora uma idÃa que, a seu pesar, â¡s vezes o torturava: descobrira a grande parecenÃa de Pedro com um avà de sua mulher, um Runa, de quem existia um retrato em Bemfica: este homem extraordinario, com que na casa se mettia medo ·s creanÃas, enlouquecera--e julgando-se Judas enforcara-se n'uma figueira... Mas um dia, excessos e crises findaram. Pedro da Maia amava! Era um amor · Romeu, vindo de repente n'uma troca de olhares fatal e deslumbradora, uma d'essas paixıes que assaltam uma existencia, a assolam como um furacâo, arrancando a vontade, a rasâo, os respeitos humanos e empurrando-os de roldâo aos abysmos. N'uma tarde, estando no Marrare, vira parar defronte, · porta de M.^{me} Levaillant, uma caleche azul onde vinha um velho de chapÃo branco, e uma senhora loira, embrulhada n'um chale de Cashmira. O velho, baixote e reforÃado, de barba muito grisalha talhada por baixo do queixo, uma face tisnada d'antigo embarcadiÃo e o ar gÃche, desceu todo encostado ao trintanario como se um rheumatismo o tolhesse, entrou arrastando a perna o portal da modista; e ella voltando de vagar a cabeÃa olhou um momento o Marrare. Sob as rosinhas que ornavam o seu chapeu preto os cabellos loiros, d'um oiro fulvo, ondeavam de leve sobre a testa curta e classica: os olhos maravilhosos illuminavam-n'a toda; a friagem fazia-lhe mais pallida a carnaÃâo de marmore: e com o seu perfil grave de estatua, o modelado nobre dos hombros e dos braÃos que o chale cingia--pareceu a Pedro n'esse instante alguma cousa d'immortal e superior · terra. Nâo a conhecia. Mas um rapaz alto, macilento, de bigodes negros, vestido de negro, que fumava encostado · outra hombreira, n'uma _pose_ de tedio--vendo o violento interesse de Pedro, o olhar acceso e perturbado com que seguia a caleche trotando Chiado acima, veiu tomar-lhe o braÃo, murmurou-lhe junto · face na sua voz grossa e lenta: --Queres que te diga o nome, meu Pedro? O nome, as origens, as datas e os feitos principaes? E pagas ao teu amigo Alencar, ao teu sequioso Alencar, uma garrafa de Champagne? Veiu o Champagne. E o Alencar, depois de passar os dedos magros pelos anneis da cabelleira e pelas pontas do bigode, comeÃou, todo recostado e dando um puchâo aos punhos: --Por uma dourada tarde d'outomno... --AndrÃ, gritou Pedro ao creado, martellando o marmore da mesa, retira o Champagne! O Alencar bradou, imitando o actor Epiphanio: --O quÃ! Sem saciar a avidez de meu labio?... Pois bem, o Champagne ficaria: mas o amigo Alencar, esquecendo que era o poeta das _Vozes d'Aurora_, explicaria aquella gente da caleche azul n'uma linguagem christâ e pratica!... --Ahi vae, meu Pedro, ahi vae! Havia dois annos, justamente quando Pedro perdera a mamâ, aquelle velho, o pap· Monforte, uma manhâ rompera subitamente pelas ruas e pela sociedade de Lisboa n'aquella mesma caleche com essa bella filha ao seu lado. Ninguem os conhecia. Tinham alugado a Arroios um primeiro andar no palacete dos Vargas; e a rapariga principiou a apparecer em S. Carlos, fazendo uma impressâo--uma impressâo de causar aneurismas, dizia o Alencar! Quando ella atravessava o salâo os hombros vergavam-se no deslumbramento de aurÃola que vinha d'aquella magnifica creatura, arrastando com um passo de Deusa a sua cauda de cÃrte, sempre decotada como em noites de gala, e apesar de solteira resplandecente de joias. O pap· nunca lhe dava o braÃo: seguia atraz, entalado n'uma grande gravata branca de mordomo, parecendo mais tisnado e mais embarcadiÃo na claridade loira que sahia da filha, encolhido e quasi apavorado, trazendo nas mâos o oculo, o _libretto_, um saco de _bonbons_, o leque e o seu proprio guardachuva. Mas era no camarote, quando a luz cahia sobre o seu collo eburneo e as suas tranÃas de oiro, que ella offerecia verdadeiramente a encarnaÃâo d'um ideal da RenascenÃa, um modelo de Ticiano... Elle, Alencar, na primeira noite em que a vira, exclamara, mostrando-a a ella e ·s outras, ·s trigueirotas da assignatura: --Rapazes! à como um ducado de ouro novo entre velhos patacos do tempo do Sr. D. Joâo VI! O Magalhâes, esse torpe pirata, pozera o dito n'um folhetim do _Portuguez_. Mas o dito era d'elle, Alencar! Os rapazes, naturalmente, comeÃaram logo a rondar o palacete de Arroios. Mas nunca n'aquella casa se abria uma janella. Os criados interrogados disseram apenas que a menina se chamava Maria, e que o senhor se chamava Manoel. Emfim uma creada, amaciada com seis pintos, soltou mais: o homem era taciturno, tremia deante da filha, e dormia n'uma rÃde; a senhora, essa, vivia n'um ninho de sedas todo azul-ferrÃte, e passava o seu dia a ler novellas. Isto nâo podia satisfazer a sofreguidâo de Lisboa. Fez-se uma devassa methodica, habil, paciente... Elle, Alencar, pertencera · devassa. E souberam-se horrores. O pap· Monforte era dos AÃores; muito moÃo, uma facada n'uma rixa, um cadaver a uma esquina tinham-n'o forÃado a fugir a bordo d'um brigue americano. Tempos depois um certo Silva, procurador da casa de Taveira, que o conhecera nos AÃores, estando na Havana a estudar a cultura do tabaco que os Taveiras queriam implantar nas Ilhas encontr·ra l· o Monforte (que verdadeiramente se chamava Forte) rondando pelo caes, de chinellas de esparto, · procura de embarque para a Nova-Orleans. Aqui havia uma treva na historia do Monforte. Parece que servira algum tempo de feitor n'uma plantaÃâo da Virginia... Emfim, quando reappareceu · face dos cÃos commandava o brigue _Nova Linda_, e levava cargas de pretos para o Brazil, para a Havana e para a Nova Orleans. Escapara aos cruzeiros inglezes, arranc·ra uma fortuna da pelle do africano, e agora rico, homem de bem, proprietario, ia ouvir a Corelli a S. Carlos. Todavia esta terrivel chronica, como dizia o Alencar, obscura e mal provada, claudicava aqui e alÃm... --E a filha? perguntou Pedro, que o escutara, serio e pallido. Mas isso nâo o sabia o amigo Alencar. Onde a arranjara assim tâo loira e bella? Quem fÃra a mamâ? Onde estava? Quem a ensinara a embrulhar-se com aquelle gesto real no seu chale de Cashmira?... --Isso, meu Pedro, sâo mysterios que j·mais poude Lisboa astuta devassar e sà Deus sabe! Em todo o caso quando Lisboa descobriu aquella legenda de sangue e negros, o enthusiasmo pela Monforte calmou. Que diabo! Juno tinha sangue de assassino, a _beltâ¡_ do Ticiano era filha de negreiro! As senhoras, deliciando-se em villipendiar uma mulher tâo loira, tâo linda e com tantas joias, chamaram-lhe logo a _negreira_! Quando ella apparecia agora no theatro, D. Maria da Gama affectava esconder a face detraz do leque, porque lhe parecia ver na rapariga (sobretudo quando ella usava os seus bellos rubis) o sangue das facadas que dera o pap·zinho! E tinham-n'a calumniado abominavelmente. Assim, depois de passarem em Lisboa o primeiro inverno, os Monfortes sumiram-se: pois disse-se logo, com furor, que estavam arruinados, que a policia perseguia o velho, mil perversidades... O excellente Monforte, que soffre de rheumatismos articulares, achava-se tranquillamente, ricamente, tomando as aguas dos Piryneus... Fora l· que o Mello os conhecera... --Ah! o Mello conhece-os? exclamou Pedro. --Sim, meu Pedro, o Mello os conhece. Pedro d'ahi a um momento deixou o Marrare; e n'essa noite, antes de recolher, apesar da chuva fria e miuda, andou rondando uma hora, com a imaginaÃâo toda accesa, o palacete dos Vargas apagado e mudo. Depois, d'ahi a duas semanas o Alencar, entrando em S. Carlos ao fim do primeiro acto do _Barbeiro_, ficou assombrado ao ver Pedro da Maia installado na frisa da Monforte, · frente, ao lado de Maria, com uma camelia escarlate na casaca--egual ·s d'um ramo pousado no rebordo de velludo. Nunca Maria Monforte apparecera mais bella: tinha uma d'essas _toilettes_ excessivas e theatraes que offendiam Lisboa, e faziam dizer ·s senhoras que ella se vestia ´como uma comicaª. Estava de seda cÃr de trigo, com duas rosas amarellas e uma espiga nas tranÃas, opalas sobre o collo e nos braÃos; e estes tons de ceara madura batida do sol, fundindo-se com o ouro dos cabellos, illuminando-lhe a carnaÃâo eburnea, banhando as suas fÃrmas de estatua, davam-lhe o esplendor d'uma Ceres. Ao fundo entreviam-se os grandes bigodes loiros do Mello, que conversava de pà com o pap· Monforte--escondido como sempre no canto negro da frisa. O Alencar foi observar ´o casoª do camarote dos Gamas. Pedro volt·ra · sua cadeira, e de braÃos cruzados contemplava Maria. Ella conservou algum tempo a sua attitude de Deusa insensivel; mas, depois, no duetto de Rosina e Lindor, duas vezes os seus olhos azues e profundos se fixaram n'elle, gravemente e muito tempo. O Alencar, correu ao Marrare, de braÃos ao ar, a berrar a novidade. Nâo tardou de resto a fallar-se em toda a Lisboa da paixâo de Pedro da Maia pela _negreira_. Elle tambem namorou-a publicamente, · antiga, plantado a uma esquina, defronte do palacete dos Vargas, com os olhos cravados na janella d'ella, immovel e pallido d'extasi. Escrevia-lhe todos os dias duas cartas em seis folhas de papel--poemas desordenados que ia compÃr para o Marrare: e ninguem l· ignorava o destino d'aquellas paginas de linhas encruzadas que se accumulavam deante d'elle sobre o taboleiro da genebra. Se algum amigo vinha · porta do cafà perguntar por Pedro da Maia, os criados j· respondiam muito naturalmente: --O sr. D. Pedro? Est· a escrever · menina. E elle mesmo, se o amigo se acercava, estendia-lhe a mâo, exclamava radiante, com o seu bello e franco sorriso: --Espera ahi um bocado, rapaz, estou a escrever · Maria! Os velhos amigos de Affonso da Maia que vinham fazer o seu _whist_ a Bemfica, sobretudo o VillaÃa, o administrador dos Maias, muito zeloso da dignidade da casa, nâo tardaram em lhe trazer a nova d'aquelles amores do Pedrinho. Affonso j· os suspeitava: via todos os dias um criado da quinta partir com um grande ramo das melhores camelias do jardim; todas as manhâs cedo encontrava no corredor o escudeiro, dirigindo-se ao quarto do menino, a cheirar regaladamente o perfume d'um enveloppe com sinete de lacre dourado;--e nâo lhe desagradava que um sentimento qualquer, humano e forte, lhe fosse arrancando o filho · estroinice bulhenta, ao jogo, ·s melancolias sem rasâo em que reapparecia o negro ripanÃo... Mas ignorava o nome, a existencia sequer dos Monfortes; e as particularidades que os amigos lhe revelaram, aquella facada nos AÃores, o chicote de feitor na Virginia, o brigue _Nova Linda_, toda a sinistra legenda do velho contrariou muito Affonso da Maia. Uma noite que o coronel Sequeira, · mesa do _whist_, contava que vira Maria Monforte e Pedro passeando a cavallo, ´ambos muito bem e muito _distinguÃs_ª, Affonso, depois d'um silencio, disse com um ar enfastiado: --Emfim, todos os rapazes teem as suas amantes... Os costumes sâo assim, a vida à assim, e seria absurdo querer reprimir taes cousas. Mas essa mulher, com um pae d'esses, mesmo para amante acho m·. O VillaÃa suspendeu o baralhar das cartas, e ageitando os oculos d'ouro exclamou com espanto: --Amante! Mas a rapariga à solteira, meu senhor, à uma menina honesta!... Affonso da Maia enchia o seu cachimbo; as mâos comeÃaram a tremer-lhe; e voltando-se para o administrador, n'uma voz que tremia um pouco tambem: --O VillaÃa de certo nâo suppıe que meu filho queira casar com essa creatura... O outro emmudeceu. E foi o Sequeira que murmurou: --Isso nâo, est· claro que nâo... E o jogo continuou algum tempo em silencio. Mas Affonso da Maia principiou a andar descontente. Passavam-se semanas que Pedro nâo jantava em Bemfica. De manhâ, se o via, era um momento, quando elle descia ao almoÃo, j· com uma luva calÃada, apressado e radiante, gritando para dentro se estava sellado o cavallo; depois, mesmo de pÃ, bebia um gole de ch·, perguntava a correr ´se o pap· queria alguma cousaª, dava um geito ao bigode deante do grande espelho de Veneza sobre o fogâo, e l· partia, enlevado. Outras vezes todo o dia nâo sahia do quarto: a tarde descia, accendiam-se as luzes; atà que o pae, inquieto, subia, ia encontral-o estirado sobre o leito, com a cabeÃa enterrada nos braÃos. --Que tens tu?--perguntava-lhe. --Enchaqueca,--respondia n'um tom surdo e rouco. E Affonso descia indignado, vendo em toda aquella angustia covarde alguma carta que nâo viera, ou talvez uma rosa offerecida que nâo fÃra posta nos cabellos... Depois, por vezes, entre dois _robbers_ ou conversando em volta da bandeja do ch·, os seus amigos tinham observaÃıes que o inquietavam, partindo d'aquelles homens que habitavam Lisboa, lhe conheciam os rumores--emquanto elle passava alli, inverno e verâo, entre os seus livros e as suas rosas. Era o excellente Sequeira que perguntava porque nâo faria Pedro uma viagem longa, para se instruir, · Allemanha, ao Oriente? Ou o velho Luiz Runa, o primo d'Affonso, que, a proposito de cousas indifferentes, rompia lamentando os tempos em que o Intendente da policia podia livremente expulsar de Lisboa as pessoas importunas... Evidentemente alludiam · Monforte, evidentemente julgavam-n'a perigosa. No verâo, Pedro partiu para Cintra; Affonso soube que os Monfortes tinham l· alugado uma casa. Dias depois o VillaÃa appareceu em Bemfica, muito preoccupado: na vespera Pedro visitara-o no cartorio, pedira-lhe informaÃıes sobre as suas propriedades, sobre o meio de levantar dinheiro. Elle l· lhe dissera que em setembro, chegando · sua maioridade, tinha a legitima da mamâ... --Mas nâo gostei d'isto, meu senhor, nâo gostei d'isto... --E porque, VillaÃa? O rapaz querer· dinheiro, querer· dar presentes · creatura... O amor à um luxo caro, VillaÃa. --Deus queira que seja isso, meu senhor, Deus o ouÃa! E aquella confianÃa tâo nobre de Affonso da Maia no orgulho patricio, nos brios de raÃa de seu filho, chegava a tranquillisar VillaÃa. D'ahi a dias, Affonso da Maia viu emfim Maria Monforte. Tinha jantado na quinta do Sequeira ao pà de Queluz, e tomavam ambos o seu cafà no mirante, quando entrou pelo caminho estreito que seguia o muro a caleche azul com os cavallos cobertos de redes. Maria, abrigada sob uma sombrinha escarlate, trazia um vestido cÃr de rosa cuja roda, toda em folhos, quasi cobria os joelhos de Pedro sentado ao seu lado: as fitas do seu chapÃo, apertadas n'um grande laÃo que lhe enchia o peito, eram tambem cÃr de rosa: e a sua face, grave e pura como um marmore grego, apparecia realmente adoravel, illuminada pelos olhos d'um azul sombrio, entre aquelles tons rosados. No assento defronte, quasi todo tomado por cartıes de modista, encolhia-se o Monforte, de grande chapÃo panam·, calÃa de ganga, o mantelete da filha no braÃo, o guarda sol entre os joelhos. Iam callados, nâo viram o mirante; e, no caminho verde e fresco, a caleche passou com balanÃos lentos, sob os ramos que roÃavam a sombrinha de Maria. O Sequeira ficara com a chavena de cafà junto aos labios, de olho esgazeado, murmurando: --Caramba! ⦠bonita! Affonso nâo respondeu: olhava cabisbaixo aquella sombrinha escarlate, que agora se inclinava sobre Pedro, quasi o escondia, parecia envolvel-o todo--como uma larga mancha de sangue alastrando a caleche sob o verde triste das ramas. O outono passou, chegou o inverno, frigidissimo. Uma manhâ, Pedro entrou na livraria onde o pae estava lendo junto ao fogâo; recebeu-lhe a benÃâo, passou um momento os olhos por um jornal aberto, e voltando-se bruscamente para elle: --Meu pae,--disse, esforÃando-se por ser claro e decidido--venho pedir-lhe licenÃa para casar com uma senhora que se chama Maria Monforte. Affonso pousou o livro aberto sobre os joelhos, e n'uma voz grave e lenta: --Nâo me tinhas fallado d'isso... Creio que à a filha d'um assassino, d'um negreiro, a quem chamam tambem a _negreira_... --Meu pae!... Affonso ergueu-se diante d'elle, rigido e inexoravel como a encarnaÃâo mesma da honra domestica. --Que tens a dizer-me mais? Fazes-me corar de vergonha. Pedro, mais branco que o lenÃo que tinha na mâo, exclamou todo a tremer, quasi em soluÃos: --Pois pÃde estar certo, meu pae, que hei de casar! Sahiu, atirando furiosamente com a porta. No corredor gritou pelo escudeiro, muito alto para que o pae ouvisse, e deu-lhe ordem para levar as suas malas ao hotel da Europa. Dois dias depois VillaÃa entrou em Bemfica, com as lagrimas nos olhos, contando que o menino cas·ra n'essa madrugada--e segundo lhe dissera o Sergio, procurador do Monforte, ia partir com a noiva para a Italia. Affonso da Maia sent·ra-se n'esse instante · mesa do almoÃo, posta ao pà do fogâo: ao centro, um ramo esfolhava-se n'um vaso do Japâo, · chamma forte da lenha: e junto ao talher de Pedro estava o numero da _Grinalda_, jornal de versos que elle costumava receber... Affonso ouviu o procurador, grave e mudo, continuando a desdobrar lentamente o seu guardanapo. --J· almoÃou, VillaÃa? O procurador, assombrado d'aquella serenidade, balbuciou: --J· almocei, meu senhor... Entâo Affonso, apontando para o talher de Pedro, disse ao escudeiro: --PÃde tirar d'alli esse talher, Teixeira. D'aqui por diante ha sà um talher · mesa... Sente-se, VillaÃa, sente-se. O Teixeira, ainda novo na casa, levantou com indifferenÃa o talher do menino. VillaÃa sent·ra-se. Tudo em redor era correto e calmo como nas outras manhâs em que almoÃara em Bemfica. Os passos do escudeiro nâo faziam ruido no tapete fofo; o lume estalava alegremente, pondo retoques d'ouro nas pratas polidas; o sol discreto que brilhava fÃra no azul d'inverno fazia scintillar crystaes de geada nas ramas seccas; e · janella o papagaio, muito patulÃa e educado por Pedro, rosnava injurias aos Cabraes. Por fim Affonso ergueu-se; esteve olhando abstrahidamente a quinta, os pavıes no terrasso; depois ao sahir da sala tomou o braÃo de VillaÃa, apoiou-se n'elle com forÃa, como se lhe tivesse chegado a primeira tremura da velhice, e no seu abandono sentisse alli uma amizade segura. Seguiram o corredor, callados. Na livraria Affonso foi occupar a sua poltrona ao pà da janella, comeÃou a encher de vagar o seu cachimbo. VillaÃa, de cabeÃa baixa, passeava ao comprido das altas estantes, nas pontas dos pÃs, como no quarto d'um doente. Um bando de pardaes veiu gralhar um momento nos ramos d'uma alta arvore que roÃava a varanda. Depois houve um silencio, e Affonso da Maia disse: --Entâo, VillaÃa, o Saldanha l· foi demittido do PaÃo?... O outro respondeu, vaga e machinalmente: --⦠verdade, meu senhor, à verdade... E nâo se fallou mais de Pedro da Maia. II Pedro e Maria, no entanto, n'uma felicidade de novella, iam descendo a Italia, a pequenas jornadas, de cidade em cidade, n'essa via sagrada que vae desde as flores e das messes da planicie lombarda atà ao molle paiz de romanza, Napoles, branca sob o azul. Era l· que tencionavam passar o inverno, n'esse ar sempre tepido junto a um mar sempre manso, onde as preguiÃas de noivado teem uma suavidade mais longa... Mas um dia, em Roma, Maria sentiu o appetite de Paris. Parecia-lhe fatigante o viajar assim, aos balouÃos das caleÃas, sà para ir ver _lazzaroni_ engolir fios de macarrâo. Quanto melhor seria habitar um ninho acolchoado nos Campos Elyseos, e gozarem alli um lindo inverno de amor! Paris estava seguro, agora, com o principe Luiz Napoleâo... AlÃm d'isso, aquella velha Italia classica enfastiava-a j·: tantos marmores eternos, tantas _madonas_ comeÃavam (como ella dizia pendurada languidamente do pescoÃo de Pedro) a dar tonturas · sua pobre cabeÃa! Suspirava por uma boa loja de modas, sob as chammas do gaz, ao rumor do boulevard... Depois tinha medo da Italia onde todo mundo conspirava. Foram para FranÃa. Mas por fim aquelle Paris ainda agitado, onde parecia restar um vago cheiro de polvora pelas ruas, onde cada face conservava um calor de batalha, desagradou a Maria. De noite accordava com a _Marselheza_; achava um ar feroz · policia; tudo permanecia triste; e as duquezas, pobres anjos, ainda nâo ousavam vir ao _Bois_, com medo dos operarios, corja insaciavel! Emfim demoraram-se l· atà a primavera, no ninho que ella sonh·ra, todo de velludo azul, abrindo sobre os Campos Elyseos. Depois principiou a fallar-se de novo em revoluÃâo, em golpe d'estado. A admiraÃâo absurda de Maria pelos novos uniformes da _garde-mobile_ fazia Pedro nervoso. E quando ella appareceu gravida, anciou por a tirar d'aquelle Paris batalhador e fascinante, vir abrigal-a na pacata Lisboa adormecida ao sol. Antes de partir porÃm escreveu ao pae. FÃra um conselho, quasi uma exigencia de Maria. A recusa de Affonso da Maia ao principio desesperara-a. Nâo a affligia a desuniâo domestica: mas aquelle _nâo_ affrontoso de fidalgo puritano marcara muito publicamente, muito brutalmente, a sua origem suspeita! Odiou o velho: e tinha apressado o casamento, aquella partida triumphante para Italia, para lhe mostrar bem que nada valiam genealogias, avÃs godos, brios de familia--deante dos seus braÃos nus... Agora porÃm que ia voltar a Lisboa, dar _soirÃes_, crear cÃrte, a reconciliaÃâo tornava-se indispensavel; aquelle pae retirado em Bemfica, com o rigido orgulho de outras edades, faria lembrar constantemente, mesmo entre os seus espelhos e os seus estofos, o brigue _Nova Linda_ carregado de negros... E queria mostrar-se a Lisboa pelo braÃo d'esse sogro tâo nobre e tâo ornamental, com as suas barbas de Viso-rei. --Dize-lhe que j· o adoro, murmurava ella curvada sobre a escrivaninha acariciando os cabellos de Pedro. Dize-lhe que se tiver um pequeno lhe hei de pÃr o nome d'elle... Escreve-lhe uma carta bonita, hein! E foi bonita, foi terna a carta de Pedro ao pap·. O pobre rapaz amava-o. Fallou-lhe commovido da esperanÃa de ter um filho varâo; as desintelligencias deviam findar em torno do berÃo d'aquelle pequeno Maia que alli vinha, morgado e herdeiro do nome... Contava-lhe a sua felicidade, com uma effusâo de namorado indiscreto: a historia da bondade de Maria, das suas graÃas, da sua instrucÃâo, enchia duas paginas: e jurava-lhe que apenas chegasse nâo tardaria uma hora em ir atirar-se aos seus pÃs... Com effeito, apenas desembarcou, correu n'um trem a Bemfica. Dois dias antes o pae partira para S.^{ta} Olavia: isto pareceu-lhe uma desfeita--e feriu-o acerbamente. Fez-se entâo entre o pae e o filho uma grande separaÃâo. Quando lhe nasceu uma filha Pedro nâo lh'o participou--dizendo dramaticamente ao VillaÃa ´que j· nâo tinha pae!ª Era uma linda bÃbÃ, muito gorda, loira e cÃr de rosa, com os bellos olhos negros dos Maias. Apesar do desejo de Pedro, Maria nâo a quiz crear; mas adorava-a com phrenesi; passava dias de joelhos ao pà do berÃo, em extasi, correndo as suas mâos cheias de pedrarias pelas carninhas tenras; pondo-lhe beijos de devota nos pÃsinhos, na rosquinha das cÃxas, balbuciando-lhe n'um enlevo nomes de grande amor, e perfumando-a j·, enchendo-a j· de laÃarotes. E n'estes delirios pela filha, brotava, mais amarga, a sua colera contra Affonso da Maia. Considerava-se entâo insultada em si mesma e n'aquelle cherubim que lhe nascera. Injuriava o velho grosseiramente, chamava-lhe o _D. Fuas_, o _Barbatanas_... Pedro um dia ouviu isto, e escandalisou-se: ella replicou desabridamente: e deante d'aquella face abrazada, onde entre lagrimas os olhos azues pareciam negros de colera, elle sà poude balbuciar timidamente: --⦠meu pae, Maria... Seu pae! E · face de toda a Lisboa tratava-a entâo como uma concubina! Podia ser um fidalgo, as maneiras eram de villâo. Um _D. Fuas_, um _Barbatanas_, nada mais!... Arrebatou a filha, e abraÃada n'ella, romperam as queixas por entre os prantos: --Ninguem nos ama, meu anjo! Ninguem te quer! Tens sà a tua mâe! Tratam-te como se fosses bastarda! A bebÃ, sacudida nos braÃos da mâe, desatou a gritar. Pedro correu, envolveu-as ambas no mesmo abraÃo, j· enternecido, j· humilde; e tudo terminou n'um longo beijo. E elle, por fim, no seu coraÃâo, justificava aquella colera de mâe que và desprezado o seu anjo. De resto, mesmo alguns amigos de Pedro, o Alencar, o D. Joâo da Cunha, que comeÃavam agora a frequentar Arroios, riam d'aquella obstinaÃâo de pae gothico, amuado na provincia, porque sua nora nâo tivera avÃs mortos em Aljubarrota! E onde havia outra em Lisboa, com aquellas _toilettes_, aquella graÃa, recebendo tâo bem? Que diabo, o mundo marchara, sahira-se j· das attitudes empertigadas do seculo XVI! E o proprio VillaÃa, um dia que Pedro lhe fÃra mostrar a pequerruchinha adormecida entre as rendas do seu berÃo, sensibilisou-se, veio-lhe uma das suas faceis lagrimas, declarou, com a mâo no coraÃâo, que aquillo era uma caturrice do sr. Affonso da Maia! --Pois peior para elle! nâo querer ver um anjo d'estes! disse Maria, dando deante do espelho um lindo geito ·s flores do cabello. Tambem nâo faz c· falta... E nâo fazia falta. N'esse outubro, quando a pequena completou o seu primeiro anno, houve um grande baile na casa de Arroios, que elles agora occupavam toda, e que fÃra ricamente remobilada. E as senhoras que outr'ora tinham horror · _negreira_, a D. Maria da Gama que escondia a face por traz do leque, l· vieram todas, amaveis e decotadas, com o beijinho prompto, chamando-lhe ´queridaª, admirando as grinaldas de camelias que emmolduravam os espelhos de quatrocentos mil rÃis, e gozando muito os gelados. ComeÃara entâo uma existencia festiva e luxuosa, que, segundo dizia o Alencar, o intimo da casa, o cortesâo de Madame, ´tinham um saborsinho d'orgia _distinguÃe_ como os poemas de Byron.ª Eram realmente as _soirÃes_ mais alegres de Lisboa: ceiava-se · uma hora com Champagne; talhava-se atà tarde um _monte_ forte; inventavam-se quadros vivos, em que Maria se mostrara soberanamente bella sob as roupagens classicas de Helena ou no luxo sombrio do luto oriental de Judith. Nas noites mais intimas, ella costumava vir fumar com os homens uma cigarrilha perfumada. Muitas vezes, na sala de bilhar, as palmas estalaram, vendo-a bater · carambola franceza D. Joâo da Cunha, o grande taco da epoca. E no meio d'esta festanÃa, atravessada pelo sopro romantico da RegeneraÃâo, l· se via sempre, taciturno e encolhido, o pap· Monforte, d'alta gravata branca, com as mâos atraz das costas, rondando pelos cantos, refugiado pelos vâos das janellas, mostrando-se sà para salvar alguma bobÃche que Ãa estalar--e nâo desprendendo nunca da filha o olho embevecido e senil. Nunca Maria fÃra tâo formosa. A maternidade dera-lhe um esplendor mais copioso; e enchia verdadeiramente, dava luz ·quellas altas salas de Arroios, com a sua radiante figura de Juno loira, os diamantes das tranÃas, o eburneo e o lacteo do collo nu, e o rumor das grandes sedas. Com rasâo, querendo ter, · maneira das damas da RenascenÃa, uma flÃr que a symbolisasse, escolhera a tulipa real opulenta e ardente. Citavam-se os requintes do seu luxo, roupas brancas, rendas do valor de propriedades!... Podia fazel-o! o marido era rico, e ella sem escrupulo arruinal-o-hia, a elle e ao pap· Monforte... Todos os amigos de Pedro, naturalmente, a amavam. O Alencar esse proclamava-se com alarido seu ´cavalleiro e seu poetaª. Estava sempre em Arroios, tinha l· o seu talher: por aquellas salas soltava as suas phrases ressoantes, por esses soph·s arrastava as suas _poses_ de melancolia. Ia dedicar a Maria (e nada havia mais extraordinario que o tom langoroso e plangente, o olho turvo, fatal, com que elle pronunciava este nome--Maria!) ia dedicar-lhe o seu poema, tâo annunciado, tâo esperado--Flor de Martyrio! E citavam-se as estrophes que lhe fizera ao gosto cantante do tempo: Vi-te essa noite no explendor das sallas Com as loiras tranÃas volteando louca... A paixâo do Alencar era innocente: mas, dos outros intimos da casa, mais d'um de certo balbuciara j· a sua declaraÃâo no _boudoir_ azul em que ella recebia ·s tres horas, entre os seus vasos de tulipas; as suas amigas porÃm, mesmo as peiores, affirmavam que os seus favores nunca teriam passado de alguma rosa dada n'um vâo de janella, ou de algum longo e suave olhar por traz do leque. Pedro todavia comeÃava a ter horas sombrias. Sem sentir ciumes, vinha-lhe ·s vezes, de repente, um tedio d'aquella existencia de luxo e de festa, um desejo violento de sacudir da sala esses homens, os seus intimos, que se atropellavam assim tâo ardentemente em volta dos hombros decotados de Maria. Refugiava-se entâo n'algum canto, trincando com furor o charuto: e ahi, era em toda a sua alma um tropel de cousas dolorosas e sem nome... Maria sabia perceber bem na face do marido ´estas nuvensª, como ella dizia. Corria para elle, tomava-lhe ambas as mâos, com forÃa, com dominio: --Que tens tu, amor? Est·s amuado! --Nâo, nâo estou amuado... --Olha entâo para mim!... Collava o seu bello seio contra o peito d'elle; as suas mâos corriam-lhe os braÃos n'uma caricia lenta e quente, dos pulsos aos hombros; depois, com um lindo olhar, estendia-lhe os labios. Pedro colhia n'elles um longo beijo, e ficava consolado de tudo. Durante esse tempo Affonso da Maia nâo sahia das sombras de St.^a Olavia, tâo esquecido para l· como se estivesse no seu jazigo. J· se nâo fallava d'Ãlle; em Arroios, _D. Fuas_ estava roendo a teima. Sà Pedro ·s vezes perguntava a VillaÃa ´como ia o pap·.ª E as noticias do administrador enfureciam sempre Maria: o pap· estava optimo; tinha agora um cosinheiro francez explendido; St.^a Olavia enchera-se de hospedes, o Sequeira, Andrà da Ega, D. Diogo Coutinho... --O _Barbatanas_ trata-se! ia elle dizer ao pae com rancor. E o velho negreiro esfregava as mâos, satisfeito de o saber assim feliz em St.^a Olavia; porque nunca cessara de tremer · idÃa de ver em Arroios, deante de si, aquelle fidalgo tâo severo e de vida tâo pura. Quando porÃm Maria teve outro filho, um pequeno, o socego que entâo se fez em Arroios trouxe de novo muito vivamente ao coraÃâo de Pedro a imagem do pae abandonado n'aquella tristeza do Douro. Fallou a Maria de reconciliaÃâo, a medo, aproveitando a fraqueza da convalescenÃa. E a sua alegria foi grande, quando Maria, depois de ficar um momento pensativa, respondeu: --Creio que me havia de fazer feliz tel-o aqui... Pedro, enthusiasmado com um assentimento tâo inesperado, pensou em abalar para St.^a Olavia. Mas ella tinha um plano melhor: Affonso, segundo dizia o VillaÃa, devia recolher em breve a Bemfica; pois bem, ella iria l· com o pequeno, toda vestida de preto, e de repente, atirando-se-lhe aos pÃs, pedir-lhe-hia a benÃâo para seu neto! Nâo podia falhar! Nâo podia, realmente; e Pedro viu alli uma alta inspiraÃâo de maternidade... Para abrandar desde jâ¡ o pap·, Pedro quiz dar ao pequeno o nome de Affonso. Mas n'isso Maria nâo consentiu. Andava lendo uma novella de que era heroe o ultimo Stuart, o romanesco principe Carlos Eduardo; e, namorada d'elle, das suas aventuras e desgraÃas, queria dar esse nome a seu filho... Carlos Eduardo da Maia! Um tal nome parecia-lhe conter todo um destino de amores e faÃanhas. O baptisado teve de ser retardado; Maria adoecera com uma angina. Foi muito benigna porÃm; e d'ahi a duas semanas Pedro podia j· sahir para uma caÃada na sua quinta da _Tojeira_, adiante d'Almada. Devia demorar-se dois dias. A partida arranjara-se unicamente para obsequiar um italiano, chegado por entâo a Lisboa, distincto rapaz que lhe fÃra apresentado pelo secretario da LegaÃâo Ingleza, e com quem Pedro sympathisara vivamente; dizia-se sobrinho dos Principes de Soria; e vinha fugido de Napoles, onde conspir·ra contra os Bourbons e fÃra condemnado · morte. O Alencar e D. Joâo Coutinho iam tambem · caÃada--e a partida foi de madrugada. N'essa tarde, Maria jantava sà no seu quarto, quando sentiu carruagens parando · porta, um grande rumor encher a escada; quasi immediatamente Pedro apparecia-lhe tremulo e enfiado: --Uma grande desgraÃa, Maria! --Jesus! --Feri o rapaz, feri o napolitano!... --Como? Um desastre estupido!... Ao saltar um barranco, a espingarda dispara-se-lhe, e a carga, z·s, vae cravar-se no napolitano! Nâo era possivel fazer curativos na _Tojeira_, e voltaram logo a Lisboa. Elle naturalmÃnte nâo consentira que o homem que tinha ferido recolhesse ao hotel: trouxera-o para Arroios, para o quarto verde por cima, mandara chamar o medico, duas enfermeiras para o velar, e elle mesmo l· ia passar a noite... --E elle? --Um heroe!... Sorri, diz que nâo à nada, mas eu vejo-o pallido como um morto. Um rapaz adoravel! Isto sà a mim, Senhor! E entâo o Alencar que ia mesmo ao pà d'elle... Podia antes ter ferido o Alencar, um rapaz intimo, de confianÃa! atà a gente se ria. Mas nâo, z·s, logo o outro, o de cerimonia... Uma sege, n'esse instante, entrava o pateo. --⦠o medico! E Pedro abalou. Voltou, d'ahi a pouco mais tranquillo. O Dr. Guedes quasi rira d'aquella bagatella, uma chumbada no braÃo, e alguns grâos perdidos nas costas. Promettera-lhe que d'ahi a duas semanas podia caÃar outra vez na _Tojeira_; e o principe estava j· fumando o seu charuto. Bello rapaz! Parecia sympathisar com o pap· Monforte... Toda essa noite Maria dormiu mal, na excitaÃâo vaga que lhe dava aquella idÃa d'um principe enthusiasta, conspirador, condemnado · morte, ferido agora por cima do seu quarto. Logo de manhâ cedo--apenas Pedro sahira a fazer transportar, elle mesmo, do hotel, as bagagens do napolitano--Maria mandou a sua criada franceza de quarto, uma bella moÃa d'Arles, acima, saber da parte d'ella como S. Alteza passara, e ´ver que figura tinhaª. A arlesiana appareceu, com os olhos brilhantes, a dizer · senhora, nos seus grandes gestos de ProvenÃal, que nunca vira um homem tâo formoso! Era uma pintura de Nosso Senhor Jesus Christo! Que pescoÃo, que brancura de marmore! Estava muito pallido ainda; agradecia enternecido os cuidados de Madame Maia; e ficara a ler o jornal encostado aos travesseiros... Maria, desde entâo, nâo pareceu interessar-se mais pelo ferido. Era Pedro que vinha, a cada instante, fallar-lhe d'elle, enthusiasmado por aquella existencia pathetica de principe conspirador, partilhando j· o seu odio aos Bourbons, encantado com a similitude de gostos que encontrava n'elle, o mesmo amor da caÃa, dos cavallos, das armas. Agora logo de manhâ, subia para o quarto do Principe, de _robe-de-chambre_, e cachimbo na boca, e passava l· horas n'uma camaradagem, fazendo _grogs_ quentes--permittidos pelo Dr. Guedes. Levava mesmo para l· os seus amigos, o Alencar, o D. Joâo da Cunha. Maria sentia-lhes por cima as risadas. ¡s vezes tocava-se viola. E o velho Monforte, pasmado para o heroe, nâo cessava de lhe rondar o leito. A Arlesiana, essa, tambem a cada momento apparecia l· a levar toalhas de rendas, um assucareiro que ninguem reclamara, ou algum vaso com flores para alegrar a alcova... Maria, por fim, perguntou a Pedro, muito seria, se alÃm de todos os amigos da casa, duas enfermeiras, dois escudeiros, o pap· e elle Pedro--era necessaria tambem constantemente a sua propria criada no quarto de Sua Alteza! Nâo era. Mas Pedro riu muito · idea de que a Arlesiana se tivesse namorado do principe. N'esse caso Venus era-lhe propicia! O napolitano tambem a achava picante: _un trÃs joli brin de femme_, tinha elle dito. A bella face de Maria impallideceu de colera. Julgava tudo isso de mau gosto, grosseiro, impudente! Pedro fÃra realmente um doido em trazer assim para a intimidade de Arroios um estrangeiro, um fugido, um aventureiro! Demais, aquella troÃa em cima, entre grogs quentes, com guitarra, sem respeito por ella ainda toda nervosa, toda fraca da convalescenÃa, indignava-a! Apenas Sua Alteza podesse accommodar-se com almofadas n'uma sege, queria-o fÃra, na estalagem... --O que ahi vae! Jesus! o que ahi vae!... disse Pedro. --⦠assim. E de certo foi muito severa tambem com a Arlesianna, por que n'essa tarde Pedro encontrou a moÃa aos ais no corredor, limpando ao avental os olhos affogueados. D'ahi a dias, porÃm, o napolitano, j· convalescente, quiz recolher ao seu hotel. Nâo vira Maria: mas em agradecimento da sua hospitalidade mandou-lhe um admiravel ramo, e, com uma galanteria de principe artista da RenascenÃa, um soneto em italiano enrolado entre as flores e tâo perfumado como ellas: comparava-a a uma nobre dama da Syria dando a gota de agua da sua bilha ao cavalleiro arabe, ferido na estrada ardente; comparava-a · Beatriz do Dante. Isto affigurou-se a todos de uma rara distincÃâo, e, como disse o Alencar, um rasgo · Byron. Depois, na _soirÃe_ do baptisado de Carlos Eduardo, dada d'ahi a uma semana, o napolitano mostrou-se, e impressionou tudo. Era um homem esplendido, feito como um Apollo, de uma pallidez de marmore rico: a sua barba curta e frisada, os seus longos cabellos castanhos, cabellos de mulher, ondeados e com reflexos de ouro, apartados · nazarena--davam-lhe realmente, como dizia a Arlesianna, uma physionomia de bello Christo. DanÃou apenas uma contradanÃa com Maria, e pareceu, na verdade, um pouco taciturno e orgulhoso: mas tudo n'elle fascinava, a sua figura, o seu mysterio, atà o seu nome de Tancredo. Muitos coraÃıes de mulher palpitavam quando elle, encostado a uma hombreira, de claque na mâo, uma melancolia na face, exhalando o encanto pathetico de um condemnado · morte, derramava lentamente pela sala o langor sombrio do seu olhar de velludo. A marqueza d'Alvenga, para o examinar de perto, pediu o braÃo a Pedro, e foi applicar-lhe, como a um marmore de museo, a sua luneta de ouro. --⦠de appetite! exclamou ella. ⦠uma imagem!... E sâo amigos, sâo amigos, Pedro? --Somos como dois irmâos d'armas, minha senhora. N'essa mesma soirÃe, o VillaÃa inform·ra Pedro que o pae era esperado no dia seguinte em Bemfica. E Pedro, logo que se recolheram, fallou a Maria em ´irem fazer a grande scena ao pap·.ª Ella, porÃm, recusou, e com as razıes mais imprevistas, as mais sensatas. Tinha cogitado muito! Reconhecia agora que um dos motivos d'aquella teima do pap·--ultimamente chamava-lhe sempre o pap·--era essa extraordinaria existencia de Arroios... --Mas filha, disse Pedro, escuta, nÃs nâo vivemos tambem em plena orgia... Alguns amigos que veem. Pois sim, pois sim... Mas, realmente, estava decidida a ter um interior mais calmo e mais domestico. Era mesmo melhor p'ra os bÃbÃs. Pois bem, queria que o pap· estivesse convencido d'essa transformaÃâo, para que as pazes fossem mais faceis e eternas. --Deixa passar dois ou tres mezes... Quando elle souber como nÃs vivemos quietinhos, eu o trarei, socega... ⦠bom tambem que seja quando meu pae partir para as aguas, para os Pyrineos. Que o pobre pap·, coitado, tem medo do teu... Filho, nâo achas assim melhor? --â¦s um anjo, foi a resposta de Pedro, beijando-lhe ambas as mâos. Toda a antiga maneira de Maria pareceu com effeito ir mudando. Suspendera as _soirÃes_. ComeÃou a passar as noites muito recolhidas, com alguns intimos, no seu _boudoir_ azul. J· nâo fumava; abandonara o bilhar; e vestida de preto, com uma flÃr nos cabellos, fazia _crochet_ ao pà do candieiro. Estudava-se musica classica quando vinha o velho Cazoti. O Alencar, que, imitando a sua dama, entrara tambem na gravidade, recitava traducÃıes de Klopstock. Fallava-se com sisudez de politica; Maria era muito regeneradora. E todas essas noites, Tancredo l· estava, indolente e bello, desenhando alguma flÃr para ella bordar, ou tangendo â¡ guitarra canÃıes populares de Napoles. Todos alli o adoravam; mas ninguem mais que o velho Monforte, que passava horas, enterrado na sua alta gravata, contemplando o Principe com enternecimento. Depois, de repente, erguia-se, atravessava a sala, ia-se debruÃar sobre elle, palpal-o, sentil-o, respiral-o, murmurando no seu francez de embarcadiÃo: --_«a aller bien... Hein? Beaucoup bien..._ Ora estimo... E estas correntes bruscas de affecto communicavam-se decerto, porque n'esse momento Maria tinha sempre um dos seus lindos sorrisos para o pap· ou vinha beijal-o na testa. De dia occupava-se de cousas serias. Organisara uma util associaÃâo de caridade, a _Obra pia dos cobertores_, com o fim de fazer no inverno ·s familias necessitadas distribuiÃıes de agasalhos; e presidia no salâo de Arroios, com uma campainha, as reuniıes em que se elaboravam os estatutos. Visitava os pobres. Ia tambem amiudadas vezes a uma devoÃâo ·s Egrejas, toda vestida de preto, a pÃ, com um vÃo muito espesso no rosto. O esplendor da sua belleza apparecia agora velado por uma sombra tocante de ternura grave: a Deusa idealisava-se em Madona; e nâo era raro ouvil-a de repente suspirar sem razâo. Ao mesmo tempo a sua paixâo pela filha crescia. Tinha entâo dois annos e estava realmente adoravel; vinha todas as noites um momento · sala, vestida com um luxo de princeza; e as exclamaÃıes, os extasis de Tancredo nâo findavam! Fizera-lhe o retrato a carvâo, a esfuminho, a aguarella; ajoelhava-se para lhe beijar a mâosinha cÃr de rosa, como ao _bambino_ sagrado. E Maria, agora, apesar dos protestos de Pedro, dormia sempre com ella entre os braÃos. Ao comeÃo d'esse setembro o velho Monforte partiu para os Pyrineos. Maria chorou, dependurada do pescoÃo do velho, como se elle largasse de novo para as travessias de Africa. Ao jantar, porÃm, chegou j· consolada e radiante; e Pedro voltou a fallar da reconciliaÃâo, parecendo-lhe bom o momento de ir a Bemfica recuperar para sempre aquelle pap· tâo teimoso... --Ainda nâo, disse ella reflectindo, olhando o seu calice de Bordeus. Teu pae à uma especie de santo, ainda o nâo merecemos... Mais para o inverno. Uma sombria tarde de dezembro, de grande chuva, Affonso da Maia estava no seu escriptorio lendo, quando a porta se abriu violentamente, e, alÃando os olhos do livro, viu Pedro deante de si. Vinha todo enlameado, desalinhado, e na sua face livida, sob os cabellos revoltos, luzia um olhar de loucura. O velho ergueu-se aterrado. E Pedro sem uma palavra atirou-se aos braÃos do pae, rompeu a chorar perdidamente. --Pedro! que succedeu, filho? Maria morrera, talvez! Uma alegria cruel invadiu-o, · idÃa do filho livre para sempre dos Monfortes, voltando-lhe, trazendo · sua solidâo os dois netos, toda uma descendencia para amar! E repetia, tremulo tambem, desprendendo-o de si com grande amor: --Socega, filho, que foi? Pedro entâo cahiu para o canapÃ, como cae um corpo morto; e levantando para o pae um rosto devastado, envelhecido, disse, palavra a palavra, n'uma voz surda: --Estive fÃra de Lisboa dois dias... Voltei esta manhâ... A Maria tinha fugido de casa com a pequena... Partiu com um homem, um italiano... E aqui estou! Affonso da Maia ficou deante do filho, quedo, mudo, como uma figura de pedra; e a sua bella face, onde todo o sangue subira enchia-se pouco a pouco, de uma grande colera. Viu, n'um relance, o escandalo, a cidade galhofando, as compaixıes, o seu nome pela lama. E era aquelle filho que, despresando a sua auctoridade, ligando-se a essa creatura, estragara o sangue da raÃa, cobria agora a sua casa de vexame. E alli estava! alli jazia sem um grito, sem um furor, um arranque brutal de homem trahido! Vinha atirar-se para um soph·, chorando miseravelmente! Isto indignou-o, e rompeu a passeiar pela sala, rigido e aspero, cerrando os labios para que nâo lhe escapassem as palavras de ira e de injuria que lhe enchiam o peito em tumulto...--Mas era pae: ouvia, alli ao seu lado, aquelle soluÃar de funda dÃr; via tremer aquelle pobre corpo desgraÃado que elle outr'ora emballara nos braÃos;--parou junto de Pedro, tomou-lhe gravemente a cabeÃa entre as mâos, e beijou-o na testa, uma vez, outra vez, como se elle fosse ainda creanÃa, restituindo-lhe alli e para sempre a sua ternura inteira. --Tinha razâo, meu pae, tinha razâo, murmurava Pedro entre lagrimas. Depois ficaram callados. FÃra, as pancadas successivas da chuva batiam a casa, a quinta, n'um clamor prolongado; e as arvores, sob as janellas, ramalhavam n'um vasto vento de inverno. Foi Affonso que quebrou o silencio: --Mas para onde fugiram, Pedro? Que sabes tu, filho? Nâo à sà chorar... --Nâo sei nada, respondeu Pedro n'um longo esforÃo. Sei que fugiu. Eu sahi de Lisboa na segunda feira. N'essa mesma noite, ella partiu de casa n'uma carruagem, com uma maleta, o cofre de joias, uma creada italiana que tinha agora, e a pequena. Disse · governante e · ama do pequeno que ia ter comigo. Ellas estranharam, mas que haviam de dizer?... Quando voltei, achei esta carta. Era um papel j· sujo, e desde essa manhâ de certo muitas vezes relido, amarrotado com furia. Continha estas palavras: ´⦠uma fatalidade, parto para sempre com Tancredo, esquece-me que nâo sou digna de ti, e levo a Maria que me nâo posso separar d'ella.ª --E o pequeno, onde est· o pequeno? exclamou Affonso. Pedro pareceu recordar-se: --Est· l· dentro com a ama, trouxe-o na sege. O velho correu, logo; e d'ahi a pouco apparecia, erguendo nos braÃos o pequeno, na sua longa capa branca de franjas e a sua touca de rendas. Era gordo, de olhos muito negros, com uma adoravel bochecha fresca e cÃr de rosa. Todo elle ria, grulhando, agitando o seu guiso de prata. A ama nâo passou da porta, tristonha, com os olhos no tapete e uma trouxasinha na mâo. Affonso sentou-se lentamente na sua poltrona, e accommodou o neto no collo. Os olhos enchiam-se-lhe de uma bella luz de ternura; parecia esquecer a agonia do filho, a vergonha domestica; agora sà havia ali aquella facesinha tenra, que se lhe babava nos braÃos... --Como se chama elle? --Carlos Eduardo, murmurou a ama. --Carlos Eduardo, hein? Ficou a olhal-o muito tempo, como procurando n'elle os signaes da sua raÃa: depois tomou-lhe na sua as duas mâosinhas vermelhas que nâo largavam o guiso, e muito grave, como se a creanÃa o percebesse, disse-lhe: --Olha bem para mim. Eu sou o avÃ. ⦠necessario amar o avÃ! E ·quella forte voz, o pequeno, com effeito, abriu os seus lindos olhos para elle, serios de repente, muito fixos, sem medo das barbas grisalhas: depois rompeu a pular-lhe nos braÃos, desprendeu a mâosinha, e martellou-lhe furiosamente a cabeÃa com o guiso. Toda a face do velho sorria ·quella viÃosa alegria; apertou-o ao seu largo peito muito tempo, poz-lhe na face um beijo longo, consolado, enternecido, o seu primeiro beijo d'avÃ; depois, com todo o cuidado, foi collocal-o nos braÃos da ama. --V·, ama, v·... A Gertrudes j· l· anda a arranjar-lhe o quarto, v· vÃr o que à necessario. Fechou a porta, e veiu sentar-se junto do filho que se nâo movera do canto do soph·, nem despreg·ra os olhos do châo. --Agora desabafa, Pedro, conta-me tudo... Olha que nos nâo vemos ha tres annos, filho... --Ha mais de tres annos, murmurou Pedro. Ergueu-se, allongou a vista · quinta, tâo triste sob a chuva; depois, derramando-a morosamente pela livraria, considerou um momento o seu proprio retrato, feito em Roma aos doze annos, todo de velludo azul, com uma rosa na mâo. E repetia ainda amargamente: --Tinha razâo, meu pae, tinha razâo... E pouco a pouco, passeiando e suspirando, comeÃou a fallar d'aquelles ultimos annos, o inverno passado em Paris, a vida em Arroios, a intimidade do italiano na casa, os planos de reconciliaÃâo, por fim aquella carta infame, sem pudor, invocando a fatalidade, arremessando-lhe o nome do outro!... No primeiro momento tivera sà idÃas de sangue e quizera perseguil-os. Mas conservava um clarâo de razâo. Seria ridiculo, nâo à verdade? De certo a fuga fora d'antemâo preparada, e nâo havia de ir correndo as estalagens da Europa · busca de sua mulher... Ir lamentar-se · policia, fazel-os prender? Uma imbecillidade; nem impedia que ella fosse j· por esses caminhos fÃra dormindo com outro... Restava-lhe sÃmente o desprezo. Era uma bonita amante que tivera alguns annos, e fugira com um homem. Adeus! Ficava-lhe um filho, sem mâe, com um mau nome. Paciencia! Necessitava esquecer, partir para uma longa viagem, para a America talvez; e o pae veria, havia de voltar consolado e forte. Dizia estas cousas sensatas, passeiando devagar, com o charuto apagado nos dedos, n'uma voz que se calmava. Mas de repente parou deante do pae, com um riso secco, um brilho-feroz nos olhos. --Sempre desejei ver a America, e à boa occasiâo agora... ⦠uma occasiâo famosa, hein? Posso atà naturalisar-me, chegar a presidente, ou rebentar... Ah! Ah! --Sim, mais tarde, depois pensar·s n'isso, filho, accudiu o velho assustado. N'esse momento a sineta do jantar comeÃou a tocar lentamente, ao fundo do corredor. --Ainda janta cedo, hein? disse Pedro. Teve um suspiro canÃado e lento, murmurou: --NÃs jantavamos ·s sete... Quiz entâo que o pae fosse para a mesa. Nâo havia motivo para que se nâo jantasse. Elle ia um bocado acima, ao seu antigo quarto de solteiro... Ainda l· tinha a cama, nâo à verdade? Nâo, nâo queria tomar nada... --O Teixeira que me leve um calice de genebra... Ainda c· est· o Teixeira, coitado! E vendo Affonso sentado, repetiu, j· impaciente: --V· jantar meu pae, v· jantar, pelo amor de Deus... Saiu. O pae ouviu-lhe os passos por cima, e o ruido de janellas desabridamente abertas. Foi entâo andando para a sala de jantar, onde os criados que pela ama sabiam de certo o desgosto se moviam em pontas de pÃs, com a lentidâo contristada d'uma casa onde ha morte. Affonso sentou-se · mesa sÃ; mas j· l· estava outra vez o talher de Pedro; rosas de inverno esfolhavam-se n'um vaso do Japâo; e o velho papagaio agitado com a chuva mexia-se furiosamente no poleiro. ' Affonso tomou uma colher de sopa, depois rolou a sua poltrona para junto do fogâo; e ali ficou envolvido pouco a pouco n'aquelle melancolico crepusculo de dezembro, com os olhos no lume, escutando o sudoeste contra as vidraÃas, pensando em todas as cousas terriveis que assim invadiam n'um tropel pathetico · sua paz de velho. Mas no meio da sua dÃr, funda como era, elle percebia um ponto, um recanto do seu coraÃâo onde alguma cousa de muito doce, de muito novo, palpitava com uma frescura de renascimento, como se algures, no seu ser, estivesse rompendo, burbulhando uma nascente rica de alegrias futuras; e toda a sua face sorria · chama alegre, revendo a bochechinha rosada, sob as rendas brancas da touca... Pela casa no entanto tinham-se accendido as luzes. J· inquieto subiu ao quarto do filho; estava tudo escuro, tâo humido e frio, como se a chuva caisse dentro. Um arrepio confrangeu o velho, e quando chamou, a voz de Pedro veiu do negro da janella; estava l·, com a vidraÃa aberta, sentado fÃra na varanda, voltado para a noite brava, para o sombrio rumor das ramagens, recebendo na face o vento, a agua, toda a invernia agreste. --Pois est·s aqui filho! exclamou Affonso. Os criados hâo de querer arranjar o quarto, desce um momento... Est·s todo molhado, Pedro! Apalpava-lhe os joelhos, as mâos regeladas. Pedro ergueu-se com um estremeÃâo, desprendeu-se, impaciente d'aquella ternura do velho. --Querem arranjar o quarto, hein? Faz-me bem o ar, faz-me tâo bem! O Teixeira trouxe luzes, e atraz d'elle appareceu o criado de Pedro, que cheg·ra n'esse momento de Arroios, com um largo estojo de viagem recoberto de oleado. As malas tinha-as deixado em baixo; e o cocheiro viera tambem, como nenhum dos senhores estava em casa... --Bem, bem, interrompeu Affonso. O sr. VillaÃa l· ir· amanhâ, e elle dar· as ordens. O criado entâo, em bicos de pÃs, foi depÃr o estojo sobre o marmore da commoda: ainda l· restavam antigos frascos de toilette de Pedro: e os castiÃaes sobre a meza allumiavam o grande leito triste de solteiro com os colxıes dobrados ao meio. A Gertrudes toda atarefada entrara com os braÃos carregados de roupa de cama; o Teixeira bateu vivamente os travesseiros; o criado d'Arroios pousando o chapÃo a um canto, e sempre em ponta de pÃs, veiu ajudal-os tambem. Pedro no entanto, como somnambulo, voltara para a varanda, com a cabeÃa · chuva, attraido por aquella treva da quinta que se cavava em baixo com um rumor de mar bravo. Affonso, entâo, puxou-lhe o braÃo quasi com aspereza. --Pedro! Deixa arranjar o quarto! Desce um momento. Elle seguiu maquinalmente o pae · livraria, mordendo o charuto apagado que desde tarde conservava na mâo. Sentou-se longe da luz, ao canto do soph·, ali ficou mudo e entorpecido. Muito tempo sà os passos lentos do velho, ao comprido das altas estantes, quebraram o silencio em que toda a sala ia adormecendo. Uma braza morria no fogâo. A noite parecia mais aspera. Eram de repente vergastadas d'agua contra as vidraÃas, trazidas n'uma rajada, que longamente, n'um clamor teimoso, faziam escoar um diluvio dos telhados; depois havia uma calma tenebroza, com uma susurraÃâo distante de vento fugindo entre ramagens: n'esse silencio as goteiras punham um pranto lento; e logo uma corda de vendaval corria mais furioso, envolvia a casa n'um bater de janellas, redomoinhava, partia com silvos desolados. --Est· uma noite de Inglaterra, disse Affonso, debruÃando-se a espertar o lume. Mas a esta palavra Pedro erguera-se, impetuosamente. De certo o ferira a idÃa de Maria, longe, n'um quarto alheio, agazalhando-se-lhe no leito do adulterio entre os braÃos do outro. Apertou um instante a cabeÃa nas mâos, depois veiu junto do pae, com o passo mal firme, mas a voz muito calma. --Estou realmente canÃado, meu pae, vou-me deitar. Boa noite... Amanhâ conversaremos mais. Beijou-lhe a mâo e saiu de vagar. Affonso demorou-se ainda ali, com um livro na mâo, sem ler, attento sà a algum rumor que viesse de cima; mas tudo jazia em silencio. Deram dez horas. Antes de se recolher foi ao quarto onde se fizera a cama da ama. A Gertrudes o criado de Arroios, o Teixeira, estavam l· cochichando ao pà da commoda, na penumbra que dava um folio posto deante do candieiro; todos se esquivaram em pontas de pÃs quando lhe sentiram os passos, e a ama continuou a arrumar em silencio os gavetıes. No vasto leito, o pequeno dormia como um Menino Jesus canÃado, com o seu guiso apertado na mâo. Affonso nâo ousou beijal-o, para o nâo acordar com as barbas asperas; mas tocou-lhe na rendinha da camisa, entalou a roupa contra a parede, deu um geito ao cortinado, enternecido, sentindo toda a sua dÃr calmar-se n'aquella sombra de alcova onde o seu neto dormia. --⦠necessario alguma cousa, ama? perguntou, abafando a voz. --Nâo, meu senhor... Entâo, sem ruido, subiu ao quarto de Pedro. Havia uma fenda clara, entreabriu a porta. O filho escrevia, · luz de duas vellas, com o estojo aberto ao lado. Pareceu espantado de ver o pae: e na face que ergueu, envelhecida e livida, dois sulcos negros faziam-lhe os olhos mais refulgentes e duros. --Estou a escrever, disse elle. Esfregou as mâos, como arripiado da friagem do quarto, e accrescentou: --Amanhâ cedo à necessario que o VillaÃa v· a Arroios... Estâo l· os criados, tenho l· dois cavalos meus, emfim uma porÃâo de arranjos. Eu estou-lhe a escrever. ⦠numero 32 a casa d'elle, nâo Ã? O Teixeira ha de saber... Boas noites, pap·, boas noites. No seu quarto, ao lado da livraria, Affonso nâo poude socegar, n'uma oppressâo, uma inquietaÃâo que a cada momento o faziam erguer sobre o travesseiro escutar: agora, no silencio da casa e do vento que calmara, ressoavam por cima lentos e continuos os passos de Pedro. A madrugada clareava, Affonso ia adormecendo--quando de repente um tiro atroou a casa. Precipitou-se do leito, despido e gritando: um creado acudia tambem com uma lanterna. Do quarto de Pedro ainda entreaberto vinha um cheiro de polvora; e aos pÃs da cama, caido de bruÃos, n'uma poÃa de sangue que se ensopava no tapete, Affonso encontrou seu filho morto, apertando uma pistola na mâo. Entre as duas vÃlas que se extinguiam, com fogachos lividos, deix·ra-lhe uma carta lacrada com estas palavras sobre o enveloppe, n'uma letra firme: _Para o pap·_. D'ahi a dias fechou-se a casa de Bemfica. Affonso da Maia partia com o neto e com todos os criados para a quinta de S.^{ta} Olavia. Quando VillaÃa, em fevereiro, foi l· acompanhar o corpo de Pedro, que ia ser depositado no jazigo de familia, nâo pÃde conter as lagrimas ao avistar aquella vivenda onde pass·ra tâo alegres nataes. Um baetâo preto recobria o brazâo d'armas, e esse panno de esquife parecia ter distingido todo o seu negrume sobre a fachada muda, sobre os castanheiros que ornavam o pateo; dentro os criados abafavam a voz, carregados de luto; nâo havia uma flor nas jarras; o proprio encanto de S.^{ta} Olavia, o fresco cantar das aguas vivas por tanques e repuchos, vinha agora com a cadencia saudosa de um choro. E VillaÃa foi encontrar Affonso na livraria, com as janellas cerradas ao lindo sol de inverno, caido para uma poltrona, a face cavada sob os cabellos crescidos e brancos, as mâos magras e ociosas sobre os joelhos. O procurador veiu dizer para Lisboa que o velho nâo durava um anno. III Mas esse anno passou, outros annos passaram. Por uma manhâ de abril, nas vesperas de Paschoa, VillaÃa chegava de novo a S.^{ta} Olavia. Nâo o esperavam tâo cedo; e como era o primeiro dia bonito d'essa primavera chuvosa os senhores andavam para a quinta. O mordomo, o Teixeira, que ia j· embranquecendo, mostrou-se todo satisfeito de ver o sr. administrador com quem ·s vezes se correspondia, e conduziu-o · sala de jantar onde a velha governante, a Gertrudes, tomada de surpreza, deixou cair uma pilha de guardanapos e para lhe saltar ao pescoÃo. As tres portas envidraÃadas estavam abertas para o terraÃo, que se estendia ao sol, com a sua balustrada de marmore coberta de trepadeiras: e VillaÃa, adiantando-se para os degraus que desciam ao jardim, mal poude reconhecer Affonso da Maia n'aquelle velho de barba de neve, mas tâo robusto e corado, que vinha subindo a rua de romanzeiras com o seu neto pela mâo. Carlos, ao avistar no terraÃo um desconhecido, de chapÃo alto, abafado n'um cache-nez de pelucia, correu a miral-o, curioso--e achou-se arrebatado nos braÃos do bom VillaÃa, que largara o guarda sol, o beijava pelo cabello, pela face, balbuciando: --Oh meu menino, meu querido menino! Que lindo que est·! que crescido que est·... --Entâo, sem avisar, VillaÃa? exclamava Affonso da Maia, chegando de braÃos abertos. NÃs sà o esperavamos para a semana, creatura! Os dois velhos abraÃaram-se; depois um momento os seus olhos encontraram-se, vivos e humidos, e tornaram a apertar-se commovidos. Carlos ao lado, muito serio, todo esbelto, com as mâos enterradas nos bolsos das suas largas bragas de flanella branca, o casquete da mesma flanella posta de lado sobre os bellos anneis do cabello negro--continuava a mirar o VillaÃa, que com o beiÃo tremulo, tendo tirado a luva, limpava os olhos por baixo dos oculos. --E ninguem a esperal-o, nem um criado l· em baixo no rio! dizia Affonso. Emfim, c· o temos, à o essencial... E como vocà est· rijo, VillaÃa! --E v. ex.^a meu senhor! balbuciou o administrador, engulindo um soluÃo. Nem uma ruga! Branco sim, mas uma cara de moÃo... Eu nem o conhecia!... Quando me lembro, a ultima vez que o vi... E c· isto! c· esta linda flor!... Ia abraÃar Carlos outra vez enthusiasmado, mas o rapaz fugiu-lhe com uma bella risada, saltou do terraÃo, foi pendurar-se d'um trapesio armado entre as arvores, e ficou l·, balanÃando-se em cadencia, forte e airoso, gritando: ´tu Ãs o VillaÃa!ª O VillaÃa, de guarda sol debaixo do braÃo, contemplava-o embevecido. --Est· uma linda creanÃa! Faz gosto! E parece-se com o pae. Os mesmos olhos, olhos dos Maias, o cabello encaracolado... Mas ha de ser muito mais homem! --⦠sâo, à rijo, dizia o velho risonho, anediando as barbas. E como ficou o seu rapaz, o Manuel? Quando à esse casamento? Venha vocà c· para dentro, VillaÃa, que ha muito que conversar... Tinham entrado na sala de jantar, onde um lume de lenha na chaminà de azulejo esmorecia na fina e larga luz de abril; porcelanas e pratas resplandeciam nos aparadores de pau santo; os canarios pareciam doudos de alegria. A Gertrudes, que fic·ra a observar, acercou-se, com as mâos cruzadas sob o avental branco, familiar, terna. --Entâo, meu senhor, aqui est· um regalo, vÃr outra vez este ingrato em S.^{ta} Olavia! E, com um clarâo de sympathia na face, alva e redonda como uma velha lua, ornada j· de um buÃo branco: --Ah! sr. VillaÃa, isto agora à outra cousa! Atà os canarios cantam! E tambem eu cantava, se ainda podesse... E foi saindo, subitamente commovida, j· com vontade de chorar. O Teixeira esperava, com um riso superior e mudo que lhe ia d'uma · outra ponta dos seus altos collarinhos de mordomo. --Eu creio que prepararam o quarto azul ao sr. VillaÃa, hein? disse Affonso. No quarto em que vocà costumava ficar dorme agora a viscondessa... Entâo o VillaÃa apressou-se a perguntar pela sr.^a viscondessa. Era uma Runa, uma prima da mulher de Affonso, que, no tempo em que os poetas de Caminha a cantavam, cas·ra com um fidalgote gallego, o sr. visconde de Urigo-de-la-Sierra, um borracho, um brutal que lhe batia: depois, viuva e pobre, Affonso recolhera-a por dever de parentella, e para haver uma senhora em S.^{ta} Olavia. Ultimamente passara mal... Mas, olhando o relogio, Affonso interrompeu a relaÃâo d'esses achaques. --VillaÃa, v·-se arranjar, depressa, que d'aqui a pouco à o jantar. O administrador surprehendido olhou tambem o relogio, depois a mesa j· posta, os seis talheres, o cesto de flores, as garrafas de Porto. --Entâo v. ex.^a agora janta de manhâ? Eu pensei que era o almoÃo... --Eu lhe digo, o Carlos necessita ter um regimen. De madrugada est· j· na quinta; almoÃa ·s sete; e janta · uma hora. E eu, emfim, para vigiar as maneiras do rapaz... --E o sr. Affonso da Maia, exclamou VillaÃa, a mudar de habitos, n'essa edade! O que à ser avÃ, meu senhor! --Tolice! nâo à isso... ⦠que me faz bem. Olhe que me faz bem!... Mas avie-se VillaÃa, avie-se que Carlos nâo gosta de esperar... Talvez tenhamos o abbade. --O Custodio? Rica cousa! Entâo, se v. ex.^a me d· licenÃa... Apenas no corredor, o mordomo, ancioso por conversar com o sr. administrador, perguntou-lhe, desembaraÃando-o do guarda sol e do chale-manta: --Com franqueza, como nos acha por c·, pela quinta sr. VillaÃa? --Estou contente, Teixeira, estou contente. Pode-se vir por gosto a S.^{ta} Olavia. E, pousando familiarmente a mâo no hombro do escudeiro, piscando o olho ainda humido: --Tudo isto à o menino. Fez reviver o patrâo! O Teixeira riu respeitosamente. O menino realmente era a alegria da casa... --Ol·! Quem toca por c·? exclamou VillaÃa, parando nos degraus da escada, ao ouvir em cima um afinar gemente de rebeca. --⦠o sr. Brown, o inglez, o preceptor do menino... Muito habilidoso, à um regalo ouvil-o; toca ·s vezes · noite na sala, o sr. juiz de direito acompanha-o na concertina... Aqui, sr. VillaÃa, o quarto de v. s.^a... --Muito bonito, sim senhor! O verniz dos moveis novos brilhava na luz das duas janellas, sobre o tapete alvadio semeado de florsinhas azues: e as bambinellas, os reposteiros de cretÃne, repetiam as mesmas folhagens azuladas sobre fundo claro. Este conforto fresco e campestre deleitou o bom VillaÃa. Foi logo apalpar os cretÃnes, esfregou o marmore da commoda, provou a solidez das cadeiras. Eram as mobilias compradas no Porto, hein? Pois, elegantes. E, realmente, nâo tinham sido caras. Nem elle fazia idÃa! Ficou ainda em bicos de pÃs a examinar duas aguarellas inglezas representando vaccas de luxo, deitadas na relva, · sombra de ruinas romanticas. O Teixeira, observou-lhe, com o relogio na mâo: --Olhe que v. s.^a tem sà dez minutos... O menino nâo gosta de esperar. Entâo o VillaÃa decidiu-se a desenrolar o cache-nez; depois tirou o seu pesado collete de malha de lâ; e pela camisa entreaberta via-se ainda uma flanella escarlate por causa dos rheumatismos, e os bentinhos de seda bordada. O Teixeira desapertava as correias da maleta; ao fundo do corredor, a rebeca atacara o _Carnaval de Veneza_; e atravez das janellas fechadas sentia-se o grande ar, a frescura, a paz dos campos, todo o verde d'abril. VillaÃa, sem oculos, um pouco arripiado, passava a ponta da toalha molhada pelo pescoÃo, por traz da orelha, e ia dizendo: --Entâo, o nosso Carlinhos nâo gosta de esperar, hein? J· se sabe, à elle quem governa... Mimos e mais mimos, naturalmente... Mas o Teixeira muito grave, muito serio, desilludiu o sr. administrador. Mimos e mais mimos, dizia s. s.^a? Coitadinho d'elle, que tinha sido educado com uma vara de ferro! Se elle fosse a contar ao sr. VillaÃa! Nâo tinha a creanÃa cinco annos j· dormia n'um quarto sÃ, sem lamparina; e todas as manhâs, z·s, para dentro d'uma tina d'agua fria, ·s vezes a gear l· fÃra... E outras barbaridades. Se nâo se soubesse a grande paixâo do avà pela creanÃa, havia de se dizer que a queria morta. Deus lhe perdoe, elle, Teixeira, chegara a pensal-o... Mas nâo, parece que era systema inglez! Deixava-o correr, cair, trepar ·s arvores, molhar-se, apanhar soalheiras, como um filho de caseiro. E depois o rigor com as comidas! Sà a certas horas e de certas cousas... E ·s vezes a creancinha, com os olhos abertos, a aguar! Muita, muita dureza. E o Teixeira accrescentou: --Emfim era a vontade de Deus, saiu forte. Mas que nÃs approvassemos a educaÃâo que tem levado, isso nunca approv·mos, nem eu, nem a Gertrudes. Olhou outra vez o relogio, preso por uma fita negra sobre o collete branco, deu alguns passos lentos pelo quarto: depois, tomando de sobre a cama a sobrecasaca do procurador, foi-lhe passando a escova pela gola, de leve e por amabilidade, em quanto dizia, junto ao toucador onde o VillaÃa acamava as duas longas repas sobre a calva: --Sabe v. s.^a, apenas veiu o mestre inglez, o que lhe ensinou? A remar! A remar, sr. VillaÃa, como um barqueiro! Sem contar o trapesio, e as habilidades de palhaÃo; eu n'isso nem gosto de fallar... Que eu sou o primeiro a dizel-o: o Brown à boa pessoa, calado, asseado, excellente musico. Mas à o que eu tenho repetido · Gertrudes: pÃde ser muito bom para inglez, nâo à para ensinar um fidalgo portuguez... Nâo Ã. V· v. s.^a fallar a esse respeito com a sr.^a D. Anna Silveira... Bateram de manso · porta, o Teixeira emmudeceu. Um escudeiro entrou, fez um signal ao mordomo, tirou-lhe do braÃo respeitosamente a sobrecasaca, e ficou com ella junto do toucador, onde o VillaÃa, vermelho e apressado, luctava ainda com as repas rebeldes. O Teixeira, da porta, disse com o relogio na mâo: --⦠o jantar. Tem v. s.^a dois minutos, sr. VillaÃa. E o administrador d'ahi a um momento abalava tambem, abotoando ainda o casaco pelas escadas. Os senhores j· estavam todos na sala. Junto do fogâo, onde as achas consumidas morriam na cinza branca, o Brown percorria o _Times_. Carlos, a cavallo nos joelhos do avÃ, contava-lhe uma grande historia de rapazes e de bulhas; e ao pà o bom abbade Custodio, com o lenÃo de rapà esquecido nas mâos, escutava, de bocca aberta, n'um riso paternal e terno. --Olhe quem alli vem, abbade, disse-lhe Affonso. O abbade voltou-se, e deu uma grande palmada na cÃxa: --Esta à nova! Entâo à o nosso VillaÃa? E nâo me tinham dito nada! Venham de l· esses ossos, homem!... Carlos pulava nos joelhos do avÃ, muito divertido com aquelles longos abraÃos que juntavam as duas cabeÃas dos velhos--uma com as repas achatadas sobre a calva, outra com uma grande corÃa aberta n'uma matta de cabello branco. E como elles, de mâos dadas, continuavam a admirar-se, a estudarem um no outro as rugas dos annos, Affonso disse: --VillaÃa! a sr.^a viscondessa... O administrador porÃm procurou-a debalde, com os olhos abertos pela sala. Carlos ria, batendo as mâos:--e VillaÃa descobriu-a emfim a um canto, entre o aparador e a janella, sentada n'uma cadeirinha baixa, vestida de preto, timida e queda, com os braÃos rechonchudos pousados sobre a obesidade da cinta. O rosto anafado e molle, branco como papel, as roscas do pescoÃo, cobriram-se-lhe subitamente de rubor; nâo achou uma palavra para dizer ao VillaÃa, e estendeu-lhe a mâo papuda e pallida, com um dedo embrulhado n'um pedaÃo de seda negra. Depois ficou a abanar-se com um grande leque de lentejoulas, o seio a arfar, os olhos no regaÃo, como exhausta d'aquelle esforÃo. Dois escudeiros tinham comeÃado a servir a sopa, o Teixeira esperava, perfilado por traz do alto espaldar da cadeira de Affonso. Mas Carlos cavalgava ainda o avÃ, querendo acabar outra historia. Era o Manuel, trazia uma pedra na mâo... Elle primeiro pens·ra ir ·s boas; mas os dois rapazes comeÃaram a rir... De maneira que os correu a todos... --E maiores que tu? --Tres rapagıes, vÃvÃ, pÃde perguntar · tia Pedra... Ella viu, que estava na eira. Um d'elles trazia uma foice... --Est· bom, senhor, est· bom, ficamos inteirados... V·, desmonte, que est· a sopa a esfriar. Upa! upa! E o velho, com o seu aspecto resplandecente de patriarcha feliz, veiu sentar-se ao alto da meza, sorrindo e dizendo: --J· se vae fazendo pesado, j· nâo est· para collo... Mas reparou entâo no Brown, e tornando a erguer-se fez a apresentaÃâo do procurador. --O sr. Brown, o amigo VillaÃa... PeÃo perdâo, descuidei-me, foi culpa d'aquelle cavalheiro l· ao fundo da meza, o sr. D. Carlos de mata-sete! O perceptor, solidamente abotoado na sua longa sobrecasaca militar, deu toda a volta · meza, rigido e teso, para vir sacudir o VillaÃa n'um tremendo _shake-hands_; depois, sem uma palavra, reoccupou o seu logar, desdobrou o guardanapo, cofiou os formidaveis bigodes, e foi entâo que disse ao VillaÃa, com o seu forte accento inglez: --_Muito bello dia... glorioso!_ --Tempo de rosas, respondeu o VillaÃa, comprimentando, intimidado diante d'aquelle athleta. Naturalmente, n'esse dia, fallou-se da jornada de Lisboa, do bom serviÃo da malla-posta, do caminho de ferro que se ia abrir... O VillaÃa j· viera no comboyo atà ao Carregado. --De causar horror, hein? perguntou o abbade, suspendendo a colher que ia levar · bocca. O excellente homem nunca saira de Resende; e todo o largo mundo, que ficava para alÃm da penumbra da sua sachristia e das arvores do seu passal, lhe dava o terror d'uma Babel. Sobre tudo essa estrada de ferro, de que tanto se fallava... --Faz arripiar um bocado, affirmou com experiencia VillaÃa. Digam o que disserem, faz arripiar! Mas o abbade assustava-se sobre tudo com as inevitaveis desgraÃas d'essas machinas! O VillaÃa entâo lembrou os desastres da mala-posta. No de AlcobaÃa, quando tudo se virou, ficaram esmagadas duas irmâs de caridade! Emfim de todos os modos havia perigos. Podia-se quebrar uma perna a passear no quarto... O abbade gostava do progresso... Achava atà necessario o progresso. Mas parecia-lhe que se queria fazer tudo · lufa-lufa... O paiz nâo estava para essas invenÃıes; o que precisava eram boas estradinhas... --E economia! disse o VillaÃa, puxando para si os pimentıes. --Bucellas? murmurou-lhe sobre o hombro o escudeiro. O administrador ergueu o copo, depois de cheio, admirou-lhe · luz a cÃr rica, provou-o com a ponta do labio, e piscando o olho para Affonso: --⦠do nosso! --Do velho, disse Affonso. Pergunte ao Brown... Hein, Brown, um bom nectar? --_Magnificente!_ exclamou o perceptor com uma energia fogosa. Entâo Carlos, estendendo o braÃo por cima da meza, reclamou tambem Bucellas. E a sua razâo era haver festa por ter chegado o VillaÃa. O avà nâo consentiu; o menino teria o seu calice de Collares, como de costume, e um sÃ. Carlos crusou os braÃos sobre o guardanapo que lhe pendia do pescoÃo, espantado de tanta injustiÃa! Entâo nem para festejar o VillaÃa poderia apanhar uma gotinha de Bucellas? Ahi estava uma linda maneira de receber os hospedes na quinta... A Gertrudes dissera-lhe que como viera o sr. administrador, havia de pÃr · noite para o ch· o fato novo de velludo. Agora observavam-lhe que nâo era festa, nem caso para Bucellas... Entâo nâo entendia. O avÃ, que lhe bebia as palavras, enlevado, fez subitamente um carâo severo. --Parece-me que o senhor est· palrando de mais. As pessoas grandes à que palram â¡ meza. Carlos recolheu-se logo ao seu prato, murmurando muito mansamente: --Est· bom, vovÃ, nâo te zangues. Esperarei para quando for grande... Houve um sorriso em volta da meza. A propria viscondessa, deleitada, agitou preguiÃosamente o leque: o abbade, com a sua boa face banhada em extasi para o menino, apertava as mâos cabelludas contra o peito, tanto aquillo lhe parecia engraÃado: e Affonso tossia por traz do guardanapo, como limpando as barbas--a esconder o riso, a admiraÃâo que lhe brilhava nos olhos. Tanta vivacidade surprehendeu tambem VillaÃa. Quiz ouvir mais o menino, e pousando o seu talher: --E diga-me, Carlinhos, j· vae adiantado nos seus estudos? O rapaz, sem o olhar, repoltreou-se, mergulhou as mâos pelo cÃs das flanellas, e respondeu com um tom superior: --J· faÃo ladear a _Brigida_. Entâo o avÃ, sem se conter, largou a rir, cahido para o espaldar da cadeira: --Essa à boa! Eh! Eh! J· faz ladear a _Brigida_! E à verdade, VillaÃa, j· a faz ladear... Pergunte ao Brown; nâo à verdade, Brown? E a eguasita à uma piorrita, mas fina... --Oh vovÃ, gritou Carlos j· excitado, dize ao VillaÃa, anda. Nâo à verdade que eu era capaz de governar o _dog-cart_? Affonso reassumio um ar severo. --Nâo o nego... Talvez o governasse, se lh'o consentissem. Mas faÃa-me favor de se nâo gabar das suas faÃanhas, porque um bom cavalleiro deve ser modesto... E sobre tudo nâo enterrar assim as mâos pela barriga abaixo... O bom VillaÃa, no entanto, dando estalinhos aos dedos, preparava uma observaÃâo. Nâo se podia de certo ter melhor prenda que montar a cavallo com as regras... Mas elle queria dizer se o Carlinhos j· entrava com o seu Phedro, o seu Tito Liviosinho... --VillaÃa, VillaÃa, advertiu o abbade, de garfo no ar e um sorriso de santa malicia, nâo se deve fallar em latim aqui ao nosso nobre amigo... Nâo admitte, acha que à antigo... Elle, antigo Ã... --Ora sirva-se d'esse fricassÃ, ande abbade, disse Affonso, que eu sei que à o seu fraco, e deixe l· o latim... O abbade obedeceu com deleite; e escolhendo no molho rico os bons pedaÃos de ave, ia murmurando: --Deve-se comeÃar pelo latimsinho, deve-se comeÃar por l·... ⦠a base; à a basesinha! --Nâo! latim mais tarde! exclamou o Brown, com um gesto possante. Prrimeiro forrÃa! ForrÃa! Musculo... E repetio, duas vezes, agitando os formidaveis punhos: --Prrimeiro musculo, musculo!... Affonso appoiava-o, gravemente. O Brown estava na verdade. O latim era um luxo d'erudito... Nada mais absurdo que comeÃar a ensinar a uma creanÃa n'uma lingua morta quem foi Fabio, rei dos Sabinos, o caso dos Grachos, e outros negocios d'uma naÃâo extincta, deixando-o ao mesmo tempo sem saber o que à a chuva que o molha, como se faz o pâo que come, e todas as outras cousas do Universo em que vive... --Mas emfim os classicos, arriscou timidamente o abbade. --Qual classicos! O primeiro dever do homem à viver. E para isso à necessario ser sâo, e ser forte. Toda a educaÃâo sensata consiste n'isto: crear a saude, a forÃa e os seus habitos, desenvolver exclusivamente o animal, armal-o d'uma grande superioridade physica. Tal qual como se nâo tivesse alma. A alma vem depois... A alma à outro luxo. ⦠um luxo de gente grande... O abbade coÃava a cabeÃa, com o ar arripiado. --A instrucÃâosinha à necessaria, disse elle. Vocà nâo acha, VillaÃa? Que v. ex^a, sr. Affonso da Maia, tem visto mais mundo do que eu... Mas emfim a instrucÃâosinha... --A instrucÃâo para uma creanÃa nâo à recitar _Tityre, tu patulae recubans_... ⦠saber factos, noÃıes, cousas uteis, cousas praticas... Mas suspendeu-se: e, com o olho brilhante, n'um signal ao VillaÃa, mostrou-lhe o neto que palrava inglez com o Brown. Eram de certo feitos de forÃa, uma historia de briga com rapazes que elle lhe estava a contar, animado e jogando com os punhos. O perceptor approvava, retorcendo os bigodes. E · mesa os senhores com os garfos suspensos, por traz os escudeiros de pà e guardanapo no braÃo, todos, n'um silencio reverente, admiravam o menino a fallar inglez. --Grande prenda, grande prenda, murmurou VillaÃa, inclinando-se para a Viscondessa. A excellente senhora cÃrou, atravez d'um sorriso. Parecia assim mais gorda, toda acaÃapada na cadeira, silenciosa, comendo sempre; e, a cada gole de Bucellas, refrescava-se languidamente com o seu grande leque negro e lentejoulado. Quando o Teixeira serviu o vinho do Porto, Affonso fez uma _saude_ ao VillaÃa. Todos os copos se ergueram n'um rumor de amizade. Carlos quiz gritar _Hurrah!_ O avÃ, com um gesto reprehensivo, immobilisou-o; e na pausa satisfeita que se fez, o pequeno disse com uma grande convicÃâo: --Oh avÃ, eu gosto do VillaÃa. O VillaÃa à nosso amigo. --Muito, e ha muitos annos, meu senhor! exclamou o velho procurador, tâo commovido que mal podia erguer o calice na mâo. O jantar findava. FÃra, o sol deix·ra o terrasso e a quinta verdejava na grande doÃura do ar tranquillo, sob o azul ferrete. Na chaminà sà restava uma cinza branca: os lilazes das jarras exhalavam um aroma vivo, a que se misturava o do creme queimado, tocado de um fio de limâo: os creados, de colletes brancos, moviam o serviÃo d'onde se escapava algum som argentino: e toda a alva toalha adamascada desapparecia sob a confusâo da sobremesa onde os tons dourados do vinho do Porto brilhavam entre as compoteiras de crystal. A Viscondessa affogueada abanava-se. Padre Custodio enrolava devagar o guardanapo, a sua batina coÃada luzia nas pregas das mangas. Entâo Affonso, sorrindo ternamente, fez a ultima saude. --Viva v. s.^a, snr. Carlos de Matta-sete! --Sr. VÃvÃ! dizia o pequeno escorropichando o copo. A cabeÃinha de cabellos negros, a velha face de barbas de neve, saudavam-se das extremidades da mesa--em quanto todos sorriam, no enternecimento d'aquella cerimonia. Depois o abbade, de palito na bocca, murmurou as _graÃas_. A Viscondessa, cerrando os olhos, juntou tambem as mâos. E VillaÃa que tinha crenÃas religiosas nâo gostou de vÃr Carlos, sem se importar com as graÃas, saltar da cadeira, vir atirar-se ao pescoÃo do avÃ, fallar-lhe ao ouvido. --Nâo senhor! nâo senhor! dizia o velho. Mas o rapaz, abraÃando-o mais forte, dava-lhe grandes razıes, n'um murmurio de mimo dÃce como um beijo, que ia pondo na face do velho uma fraqueza indulgente. --⦠por ser festa, disse elle emfim vencido. Mas veja l·, veja l·... O rapaz pulou, bateu as palmas, agarrou VillaÃa pelos braÃos, fÃl-o redemoinhar, e foi cantando n'um rythmo seu: --Fizeste bem em vir, bem, bem, bem!... Vou buscar a Therezinha, inha, inha, inha! --⦠a noiva, disse o avÃ, erguendo-se da mesa. J· tem amores, à a pequena das Silveiras... O cafà para o terraÃo, Teixeira. O dia fÃra convidava, adoravel, d'um azul suave, muito puro e muito alto, sem uma nuvem. Defronte do terraÃo os geranios vermelhos estavam j· abertos; as verduras dos arbustos, muito tenras ainda, d'uma delicadeza de renda, pareciam tremer ao menor sopro; vinha por vezes um vago cheiro de violetas, misturado ao perfume adocicado das flÃres do campo; o alto repuxo cantava; e nas ruas do jardim, bordadas de buxos baixos, a areia fina faiscava de leve ·quelle sol timido de primavera tardia, que ao longe envolvia os verdes da quinta, adormecida a essa hora de sesta n'uma luz fresca e loura. Os tres homens sentaram-se · mesa do cafÃ. Defronte do terraÃo, o Brown, de bonet escossez posto ao lado e grande cachimbo na bocca, puchava ao alto a barra do trapezio para Carlos se balouÃar. Entâo o bom VillaÃa pedio para voltar as costas. Nâo gostava de vÃr gymnasticas; bem sabia que nâo havia perigo; mas mesmo nos cavallinhos, as cabriolas, os arcos, atordoavam-n'o; sahia sempre com o estomago embrulhado... --E parece-me imprudente, sobre o jantar... --Qual! à sà balouÃar-se... Olhe para aquillo! Mas VillaÃa nâo se moveu, com a face sobre a chavena. O abbade, esse, admirava, de labios entreabertos, e o pires cheio de cafà esquecido na mâo. --Olhe para aquillo VillaÃa, repetio Affonso. Nâo lhe faz mal, homem! O bom VillaÃa voltou-se, com esforÃo. O pequeno muito alto no ar, com as pernas retesadas contra a barra do trapezio, as mâos ·s cordas, descia sobre o terraÃo, cavando o espaÃo largamente, com os cabellos ao vento; depois elevava-se, serenamente, crescendo em pleno sol; todo elle sorria; a sua blusa, os calÃıes enfunavam-se · aragem; e via-se passar, fugir, o brilho dos seus olhos muito negros e muito abertos. --Nâo est· mais na minha mâo, nâo gosto, disse o VillaÃa. Acho imprudente! Entâo Affonso bateu as palmas, o abbade gritou _bravo, bravo_. VillaÃa voltou-se para applaudir, mas Carlos tinha j· desapparecido; o trapezio parava, em oscillaÃıes lentas; e o Brown, retomando o _Times_ que pozera ao lado sobre o pedestal d'um busto, foi descendo para a quinta envolvido n'uma nuvem de fumo do cachimbo. --Bella cousa, a gymnastica! exclamou Affonso da Maia, accendendo com satisfaÃâo outro charuto. VillaÃa j· ouvira que enfraquecia muito o peito. E o abbade, depois de dar um sorvo ao cafÃ, de lamber os beiÃos, soltou a sua bella phrase, arranjada em maxima: --Esta educaÃâo faz athletas mas nâo faz christâos. J· o tenho dito... --J· o tem dito abbade, j·! exclamou Affonso alegremente. Diz-m'o todas as semanas... Quer vocà saber, VillaÃa? O nosso Custodio matta-me o bicho do ouvido para que eu ensine a cartilha ao rapaz. A cartilha!... Custodio ficou um momento a olhar Affonso, com uma face desconsolada e a caixa de rapà aberta na mâo; a irreligiâo d'aquelle velho fidalgo, senhor de quasi toda a freguezia, era uma das suas dÃres: --A cartilha, sim meu senhor, ainda que v. ex.^a o diga assim com esse modo escarnica... A cartilha. Mas j· nâo quero fallar na cartilha... Ha outras cousas. E se o digo tantas vezes, sr. Affonso da Maia, à pelo amor que tenho ao menino. E recomeÃou a discussâo, que voltava sempre ao cafÃ, quando Custodio jantava na quinta. O bom homem achava horroroso que n'aquella edade um tâo lindo moÃo, herdeiro d'uma casa tâo grande, com futuras responsabilidades na sociedade, nâo soubesse a sua doutrina. E narrou logo ao VillaÃa a historia da D. Cecilia Macedo: esta virtuosa senhora, mulher do escrivâo, tendo passado deante do portâo da quinta, avistara o Carlinhos, chamara-o, carinhosa e amiga de creanÃas como era, e pedira-lhe que lhe dissesse o _acto de contricÃâo_. E que respondeu o menino? _Que nunca em tal ouvira fallar!_ Estas cousas entristeciam. E o sr. Affonso da Maia achava-lhe graÃa, ria-se! Ora alli estava o amigo VillaÃa que podia dizer se era caso para jubilar. Nâo, o sr. Affonso da Maia tinha muito saber, e correra muito mundo; mas d'uma cousa nâo o podia convencer, a elle pobre padre que nem mesmo o Porto vira ainda, à que houvesse felicidade e bom comportamento na vida sem a moral do cathecismo. E Affonso da Maia respondia com bom humor: --Entâo que lhe ensinava vocÃ, abbade, se eu lhe entregasse o rapaz? Que se nâo deve roubar o dinheiro das algibeiras, nem mentir, nem maltratar os inferiores, por que isso à contra os mandamentos da lei de Deus, e leva ao inferno, hein? ⦠isso?... --Ha mais alguma cousa... --Bem sei. Mas tudo isso que vocà lhe ensinaria que se nâo deve fazer, por ser um peccado que offende a Deus, j· elle sabe que se nâo deve praticar, por que à indigno d'um cavalheiro e d'um homem de bem... --Mas, meu senhor... --OuÃa abbade. Toda a differenÃa à essa. Eu quero que o rapaz seja virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas nâo por medo ·s caldeiras de Pero Botelho, nem com o engodo de ir para o reino do cÃu... E accrescentou, erguendo-se e sorrindo: --Mas o verdadeiro dever de homens de bem, abbade, à quando vem, depois de semanas de chuva, um dia d'estes, ir respirar pelos campos e nâo estar aqui a discutir moral. Portanto arriba! e se o VillaÃa nâo est· muito canÃado, vamos dar ahi um giro pelas fazendas... O abbade suspirou como um santo que và a negra impiedade dos tempos e Belzebut arrebatando as melhores rezes do rebanho; depois olhou a chavena e sorveu com delicias o resto do seu cafÃ. Quando Affonso da Maia, VillaÃa e o abbade recolheram do seu passeio pela freguezia, escurecera, havia luzes pelas salas, e tinham chegado j· as Silveiras, senhoras ricas da quinta da _LagoaÃa_. D. Anna Silveira, a solteira e mais velha, passava pela talentosa da familia, e era em pontos de doutrina e de etiqueta uma grande auctoridade em Resende. A viuva, D. Eugenia, limitava-se a ser uma excellente e pachorrenta senhora, de agradavel nutriÃâo, trigueirota e pestanuda; tinha dois filhos, a Theresinha, a _noiva_ de Carlos, uma rapariguinha magra e viva com cabellos negros como tinta, e o morgadinho, o Eusebiosinho, uma maravilha muito fallada n'aquelles sitios. Quasi desde o berÃo este notavel menino revelara um edificante amor por alfarrabios e por todas as coisas do saber. Ainda gatinhava e j· a sua alegria era estar a um canto, sobre uma esteira, embrulhado n'um cobertor, folheando _in-folios_, com o craneosinho calvo de sabio curvado sobre as lettras garrafaes de boa doutrina: depois de crescidinho tinha tal proposito que permanecia horas immovel n'uma cadeira, de perninhas bambas, esfuracando o nariz: nunca appetecera um tambor ou uma arma: mas cosiam-lhe cadernos de papel, onde o precoce letrado, entre o pasmo da mamâ e da titi, passava dias a traÃar algarismos, com a lingoasinha de fora. Assim na familia tinha a sua carreira destinada: era rico, havia de ser primeiro bacharel, e depois desembargador. Quando vinha a Santa Olavia, a tia Annica installava-o logo · mesa, ao pà do candieiro, a admirar as pinturas d'um enorme e rico volume, os _Costumes de todos os Povos do Universo_. J· l· estava essa noite, vestido como sempre de escossez, com o _plaid_ de flamejante xadrez vermelho e negro posto a tiracollo e preso ao hombro por uma dragona; para que conservasse o ar nobre d'um Stuart, d'um valoroso cavalleiro de Walter Scott, nunca lhe tiravam o bonet onde se arqueava com heroismo uma rutilante penna de gallo; e nada havia mais melancolico que a sua facesinha trombuda, a que o excesso de lombrigas dava uma molleza e uma amarellidâo de manteiga, os seus olhinhos vagos e azulados, sem pestanas como se a sciencia lh'as tivesse j· consummido, pasmando com sisudez para as camponesas da Sicilia, e para os guerreiros ferozes do Montenegro appoiados a escupetas, em pincaros de serranias. Deante do canapà das senhoras l· se achava tambem o fiel amigo, o dr. delegado, grave e digno homem, que havia cinco annos andava ponderando e meditando o casamento com a Silveira viuva, sem se decidir--contentando-se em comprar todos os annos mais meia duzia de lenÃoes, ou uma peÃa mais de bretanha, para arredondar o bragal. Estas compras eram discutidas em casa das Silveiras, · brazeira: e as allusıes recatadas, mas inevitaveis, ·s duas fronhasinhas, ao tamanho dos lenÃoes, aos cobertores de papa para os conchegos de janeiro--em logar de inflammar o magistrado, inquietavam-n'o. Nos dias seguintes apparecia preoccupado--como se a perspectiva da santa consummaÃâo do matrimonio lhe dÃsse o arrepio de uma faÃanha a emprehender, o ter de agarrar um toiro, ou nadar nos cachıes do Douro. Entâo, por qualquer rasâo especiosa, adiava-se o casamento atà ao S. Miguel seguinte. E alliviado, tranquillo, o respeitavel Dr. continuava a acompanhar as Silveiras a ch·s, festas de egreja ou pezames, vestido de preto, affavel, serviÃal, sorrindo a D. Eugenia, nâo desejando mais prazeres que os d'essa convivencia paternal. Apenas Affonso entrou na sala deram-lhe logo noticia do contratempo: o dr. juiz de direito e a senhora nâo podiam vir, por que o magistrado tivera a dÃr; e as Brancos tinham mandado recado a desculpar-se, coitadas, que era dia de tristeza em casa, por fazer desesete annos que morrera o mano Manuel... --Bem, disse Affonso, bem. A dÃr, a tristeza, o mano Manuel... Fazemos nÃs um voltaretesinho de quatro. Que diz o nosso dr. delegado? O excellente homem dobrou a sua fronte calva, murmurando que ´estava ·s ordens.ª --Entâo ao dever, ao dever! exclamou logo o abbade, esfregando as mâos, no ardor j· da partida. Os parceiros dirigiram-se · saleta do jogo--que um reposteiro de damasco separava da sala, franzido agora, deixando ver a mesa verde, e nos circulos de luz que cahiam dos _abat-jour_ os baralhos abertos em leque. D'ahi a um momento o dr. delegado voltou, risonho, dizendo que ´os deixara para um roquesinho de tresª; e retomou o seu logar ao lado de D. Eugenia, cruzando os pÃs debaixo da cadeira e as mâos em cima do ventre. As senhoras estavam fallando da dÃr do dr. juiz de direito. Costumava dar-lhe todos os tres mezes: e era condemnavel a sua teima em nâo querer consultar medicos. Quanto mais que elle andava acabado, ressequindo, amarellando--e a D. Augusta, a mulher, a nutrir · larga, a ganhar cÃres!... A Viscondessa, enterrada em toda a sua gordura ao canto do canapÃ, com o leque aberto sobre o peito, contou que em Hespanha vira um caso egual: o homem chegara a parecer um esqueleto, e a mulher uma pipa; e ao principio fÃra o contrario; atà sobre isso se tinham feito uns versos... --Humores, disse com melancolia o dr. delegado. Depois fallou-se nas Brancos; recordou-se a morte de Manuel Branco, coitadinho, na flor de idade! E que perfeiÃâo de rapaz! E que rapaz de juizo! D. Anna Silveira nâo se esquecera, como todos os annos, de lhe accender uma lamparina por alma, e de lhe resar tres padre-nossos. A viscondessa pareceu toda afflicta por se nâo ter lembrado... E ella que tinha o proposito feito! --Pois estive para t'o mandar dizer! exclamou D. Anna. E as Brancos que tanto o agradecem, filha! --Ainda est· a tempo, observou o magistrado. D. Eugenia deu uma malha indolente no _crochet_ de que nunca se separava, e murmurou com um suspiro: --Cada um tem os seus mortos. E no silencio que se fez, saiu do canto do canapà outro suspiro, o da viscondessa, que de certo se record·ra do fidalgo d'Urigo de la Sierra, e murmurava: --Cada um tem os seus mortos... E o digno dr. delegado terminou por dizer egualmente, depois de passar reflectidamente a mâo pela calva: --Cada um tem os seus mortos! Uma somnolencia ia pesando. Nas serpentinas douradas, sobre as consoles, as chammas das velas erguiam-se altas e tristes. Eusebiosinho voltava com cautella e arte as estampas dos _Costumes de todos os Povos_. E na saleta de jogo, atravez do reposteiro aberto, sentia-se a voz j· arrenegada do abbade, rosnando com um rancor tranquillo, ´passo, que à o que tenho feito toda a santa noite!ª N'esse momento Carlos arremettia pela sala dentro arrastando a sua noiva, a Theresinha, toda no ar e vermelha de brincar; e logo a grulhada das suas vozes reanimou o canapà dormente. Os noivos tinham chegado d'uma pittoresca e perigosa viagem, e Carlos parecia descontente de sua mulher; comportara-se d'uma maneira atroz; quando elle ia governando a mala-posta, ella quizera empoleirar-se ao pà d'elle na almofada... Ora senhoras nâo viajam na almofada. --E elle atirou-me ao châo, titi! --Nâo à verdade! De mais a mais à mentirosa! Foi como quando cheg·mos · estalagem... Ella quiz-se deitar, e eu nâo quiz... A gente, quando se apeia de viagem, a primeira cousa que faz à tratar do gado... E os cavallos vinham a escorrer... A voz de D. Anna interrompeu, muito severa: --Est· bom, est· bom, basta de tolices! J· cavallaram bastante. Senta-te ahi ao pà da sr.^a Viscondessa, Thereza... Olhe essa travessa do cabello... Que desproposito! Sempre detest·ra ver a sobrinha, uma menina delicada de dez annos, brincar assim com o Carlinhos. Aquelle bello e impetuoso rapaz, sem doutrina e sem proposito, aterrava-a; e pela sua imaginaÃâo de solteirona passavam sem cessar idÃas, suspeitas de ultrages que elle poderia fazer · menina. Em casa, ao agasalhal-a antes de vir para S.^ta Olavia, recommendava-lhe com forÃa que nâo fosse com o Carlos para os recantos escuros! que o nâo deixasse mecher-lhe nos vestidos!... A menina, que tinha os olhos muito langorosos, dizia: ´Sim, titi.ª Mas, apenas na quinta, gostava de abraÃar o seu maridinho. Se eram casados, por que nâo haviam de fazer nÃnÃ, ou ter uma loja e ganharem a sua vida aos beijinhos? Mas o violento rapaz sà queria guerras, quatro cadeiras lanÃadas a galope, viagens a terras de nomes barbaros que o Brown lhe ensinava. Ella, despeitada, vendo o seu coraÃâo mal comprehendido, chamava-lhe _arrieiro_; elle ameaÃava boxal-a, · ingleza;--e separavam-se sempre arrenegados. Mas quando ella se accomodou ao lado da Viscondessa, gravesinha e com as mâos no regaÃo--Carlos veiu logo estirar-se ao pà d'ella, meio deitado para as costas do canapÃ, bamboleando as pernas. --Vamos, filho, tem maneiras, rosnou-lhe muito secca D. Anna. --Estou canÃado, governei quatro cavallos, replicou elle, insolente e sem a olhar. De repente porÃm, d'um salto, precipitou-se sobre o Eusebiosinho. Queria-o levar · Africa, a combatter os selvagens: e puchava-o j· pelo seu bello _plaid_ de cavalleiro d'Escossia, quando a mamâ accudiu atterrada. --Nâo, com o Eusebiosinho nâo, filho! Nâo tem saude para essas cavalladas... Carlinhos, olhe que eu chamo o avÃ! Mas o Eusebiosinho, a um repellâo mais forte, rolara no châo, soltando gritos medonhos. Foi um alvoroÃo, um levantamento. A mâe, tremula, agachada junto d'elle, punha-o de pà sobre as perninhas molles, limpando-lhe as grossas lagrimas, j· com o lenÃo, j· com beijos, quasi a chorar tambem. O delegado, consternado, apanhara o bonet escossez, e cofiava melancolicamente a bella pena de gallo. E a Viscondessa apertava ·s mâos ambas o enorme seio, como se as palpitaÃıes a suffocassem. O Eusebiosinho foi entâo preciosamente collocado ao lado da titi; e a severa senhora, com um fulgÃr de colera na face magra, apertando o leque fechado como uma arma, preparava-se a repellir o Carlinhos que, de mâos atraz das costas e aos pulos em roda do canapÃ, ria, arreganhando para o Eusebiosinho um labio feroz. Mas n'esse momento davam nove horas, e a desempenada figura do Brown appareceu · porta. Apenas o avistou, Carlos correu a refugiar-se por detraz da Viscondessa, gritando: --Ainda à muito cedo, Brown, hoje à festa, nâo me vou deitar! Entâo Affonso da Maia, que se nâo movera aos uivos lacinantes do Silveirinha, disse de dentro, da mesa do voltarete, com severidade: --Carlos, tenha a bondade de marchar j· para a cama. --Oh vÃvÃ, à festa, que est· c· o VillaÃa! Affonso da Maia pousou as cartas, atravessou a sala sem uma palavra, agarrou o rapaz pelo braÃo, e arrastou-o pelo corredor--em quanto elle, de calcanhares fincados no soalho, resistia, protestando com desespero: --⦠festa, vÃvÃ... ⦠uma maldade!... O VillaÃa pÃde-se escandalisar... Oh vÃvÃ, eu nâo tenho somno! Uma porta fechando-se abafou-lhe o clamor. As senhoras censuraram logo aquella rigidez: ahi estava uma cousa incomprehensivel; o avà deixava-lhe fazer todos os horrores, e recusava-lhe entâo o bocadinho da soirÃe... --Oh sr. Affonso da Maia, por que nâo deixou estar a creanÃa? --⦠necessario methodo, à necessario methodo, balbuciou elle, entrando, todo pallido do seu rigor. E · mesa do voltarete, apanhando as cartas com as mâos tremulas, repetia ainda: --⦠necessario methodo. CreanÃas · noite dormem. D. Anna Silveira voltando-se para o VillaÃa--que cedera o seu lugar ao dr. delegado e vinha palestrar com as senhoras--teve aquelle sorriso mudo que lhe franzia os labios, sempre que Affonso da Maia fallava em ´methodos.ª Depois, reclinando-se para as costas da cadeira e abrindo o leque, declarou, a transbordar d'ironia, que, talvez por ter a intelligencia curta, nunca comprehendera a vantagem dos ´methodosª... Era · ingleza, segundo diziam: talvez provassem bem em Inglaterra; mas ou ella estava enganada, ou S.^ta Olavia era no reino de Portugal... E como VillaÃa inclinava timidamente a cabeÃa, com a sua pitada nos dedos, a esperta senhora, baixo para que Affonso dentro nâo ouvisse, desabafou. O sr. VillaÃa naturalmente nâo sabia, mas aquella educaÃâo do Carlinhos nunca fÃra approvada pelos amigos da casa. J· a presenÃa do Brown, um heretico, um protestante, como perceptor na familia dos Maias, causara desgosto em Resende. Sobretudo quando o sr. Affonso tinha aquelle santo do abbade Custodio, tâo estimado, homem de tanto saber... Nâo ensinaria · creanÃa habilidades de acrobata; mas havia de lhe dar uma educaÃâo de fidalgo, preparal-o para fazer boa figura em Coimbra. N'esse momento, o abbade, suspeitando uma corrente d'ar, erguera-se da mesa de jogo a fechar o reposteiro: entâo, como Affonso j· nâo podia ouvir, D. Anna ergueu a voz: --E olhe que o Custodio teve desgosto, sr. VillaÃa. Que o Carlinhos, coitadinho, nem uma palavra sabe de doutrina... Sempre lhe quero contar o que succedeu com a Macedo. VillaÃa j· sabia. --Ah j· sabe? Lembras-te viscondessa? Com a Macedo, do acto de contricÃâo... A viscondessa suspirou, erguendo um olhar mudo ao ceu atravez do tecto. --Horroroso! continuou D. Anna. A pobre mulher chegou l· a nossa casa embuchada... E eu fez-me impressâo. Atà sonhei com aquillo tres noites a fio... Calou-se um momento. VillaÃa, embaraÃado, acanhado, fazia girar a caixa de rapà nos dedos, com os olhos postos no tapete. Outro langor de somnolencia passou na sala; D. Eugenia, com as palpebras pesadas, fazia de vez em quando uma malha molle no _crochet_; e a noiva de Carlos, estirada para o canto do soph·, j· dormia, com a boquinha aberta, os seus lindos cabellos negros caindo-lhe pelo pescoÃo. D. Anna, depois de bocejar de leve, retomou a sua idÃa: --Sem contar que o pequeno est· muito atrazado. A nâo ser um bocado de inglez, nâo sabe nada... Nem tem prenda nenhuma! --Mas à muito esperto, minha rica senhora! accudiu VillaÃa. --⦠possivel, respondeu seccamente a intelligente Silveira. E, voltando-se para Euzebiosinho, que se conservava ao lado d'ella, quieto como se fosse de gesso: --Oh filho, dize tu aqui ao sr. VillaÃa aquelles lindos versos que sabes... Nâo sejas atado, anda!... V·, Euzebio, filho, sà bonito... Mas o menino, mollengâo e tristonho, nâo se descollava das saias da titi: teve ella de o pÃr de pÃ, amparal-o, para que o tenro prodigio nâo alluisse sobre as perninhas flacidas; e a mamâ prometteu-lhe que, se dissesse os versinhos, dormia essa noite com ella... Isto decidio-o: abrio a bocca, e como d'uma torneira lassa veio de l· escorrendo, n'um fio de voz, um recitativo lento e babujado: ⦠noite, o astro saudoso Rompe a custo um plumbeo cÃu, Tolda-lhe o rosto formoso Alvacento, humido vÃo... Disse-a toda--sem se mexer, com as mâosinhas pendentes, os olhos mortiÃos pregados na titi. A mamâ fazia o compasso com a agulha do _crochet_; e a viscondessa, pouco a pouco, com um sorriso de quebranto, banhada no langor da melopea, ia cerrando as palpebras. --Muito bem, muito bem! exclamou o VillaÃa, impressionado, quando o Euzebiosinho findou coberto de suor. Que memoria! Que memoria! ⦠um prodigio!... Os creados entravam com o ch·. Os parceiros tinham findado a partida; e o bom Custodio, de pÃ, com a sua chavena na mâo, queixava-se amargamente da maneira porque aquelles senhores o tinham esfollado. Como ao outro dia era domingo, e havia missa cedo, as senhoras retiraram-se ·s nove e meia. O serviÃal dr. delegado dava o braÃo a D. Eugenia; um creado da quinta allumiava adiante com o lampeâo; e o moÃo das Silveiras levava ao collo o Eusebiosinho que parecia um fardo escuro, abafado em mantas, com um chale amarrado na cabeÃa. Depois da ceia VillaÃa acompanhou ainda um momento Affonso da Maia · livraria, onde, antes de recolher, elle tomava sempre · ingleza o seu cognac e soda. O aposento, a que as velhas estantes de pau preto davam um ar severo, estava adormecido tepidamente, na penumbra suave, com as cortinas bem fechadas, um resto de lume na chaminÃ, e o globo do candieiro pondo a sua claridade serena na mesa coberta de livros. Em baixo, os repuchos cantavam alto no silencio da noite. Emquanto o escudeiro rolava para o pà da poltrona de Affonso, n'uma mesa baixa, os crystaes e as garrafas de soda, VillaÃa, com as mâos nos bolsos, de pà e pensativo, olhava a braza da acha que morria na cinza branca. Depois ergueu a cabeÃa, para murmurar, como ao acaso: --Aquelle rapazito à esperto... --Quem? O Euzebiosinho? disse Affonso, que se accomodava junto ao fogâo, enchendo alegremente o cachimbo. Eu tremo de o ver c·, VillaÃa! O Carlos nâo gosta d'elle, e tivemos ahi um desgosto horroroso... Foi j· ha mezes. Havia uma procissâo e o Eusebiosinho ia de anjo... As Silveiras, excellentes mulheres, coitadas, mandaram-n'o c· para o mostrar · viscondessa, j· vestido de anjo. Pois senhores, distrahimo-nos, e o Carlos que o andava a rondar apodera-se d'elle, leva-o para o sotâo, e, meu caro VillaÃa... Em primeiro logar ia-o matando porque embirra com anjos... Mas o peior nâo foi isso. Imagine vocà o nosso terror, quando nos apparece o Eusebiosinho aos berros pela titi, todo desfrizado, sem uma aza, com a outra a bater-lhe os calcanhares dependurada de um barbante, a corÃa de rosas enterrada atà ao pescoÃo, e os galıes de ouro, os tulles, as lentejoulas, toda a vestimenta celeste em frangalhos!... Emfim, um anjo depennado e sovado... Eu ia dando cabo do Carlos. Bebeu metade da sua soda, e passando a mâo pelas barbas, accrescentou, com uma satisfaÃâo profunda: --⦠levado do diabo, VillaÃa! O administrador, sentado agora · borda de uma cadeira, esboÃou uma risadinha muda; depois ficou calado, olhando Affonso, com as mâos nos joelhos, como esquecido e vago. Ia abrir os labios, hesitou ainda, tossio de leve; e continuou a seguir pensativamente as faiscas que erravam sobre as achas. Affonso da Maia, no entanto, com as pernas estiradas para o lume, recomeÃara a fallar do Silveirinha. Tinha tres ou quatro mezes mais que Carlos, mas estava enfesado, estiolado, por uma educaÃâo · portugueza: d'aquella edade ainda dormia no chÃco com as criadas, nunca o lavavam para o nâo constiparem, andava couraÃado de rolos de flanellas! Passava os dias nas saias da titi a decorar versos, paginas inteiras do _Cathecismo de PerseveranÃa_. Elle por curiosidade um dia abrira este livreco e vira l·, ´que o sol à que anda em volta da terra (como antes de Galileu), e que Nosso Senhor todas as manhâs d· as ordens ao sol, para onde ha d'ir e onde ha de parar, etc., etc.ª E assim lhe estavam arranjando uma almasinha de bacharel... VillaÃa teve outra risadinha silenciosa. Depois, como subitamente decidido, ergueu-se, fez estalar os dedos, disse estas palavras: --V. Ex.^a sabe que appareceu a Monforte? Affonso, sem mover a cabeÃa, reclinado para as costas da poltrona, perguntou tranquillamente, envolvido no fumo do cachimbo: --Em Lisboa? --Nâo senhor, em Paris. Viu-a l· o Alencar, esse rapaz que escreve, e que era muito de Arroios... Esteve atà em casa d'ella. E ficaram calados. Havia annos que entre elles se nâo pronunciara o nome de Maria Monforte. Ao principio, quando se retirara para Santa Olavia, a preoccupaÃâo ardente de Affonso da Maia fÃra tirar-lhe a filha que ella levara. Mas a esse tempo ninguem sabia onde Maria se refugiara com o seu principe: nem pela influencia das legaÃıes, nem pagando regiamente a policia secreta de Paris, de Londres, de Madrid, se poude descobrir a ´toca da feraª como disia entâo o VillaÃa. Ambos decerto tinham mudado de nome; e, dadas essas naturezas bohemias, quem sabe se nâo errariam agora pela America, pela India, em regiıes mais exoticas? Depois, pouco a pouco, Affonso da Maia descorÃoado com aquelles esforÃos vâos, todo occupado do neto que crescia bello e forte ao seu lado, no enternecimento continuo que elle lhe dava foi esquecendo a Monforte e a sua outra neta, tâo distante, tâo vaga, a quem ignorava as feiÃıes, de quem mal sabia o nome. E agora de repente a Monforte apparecia outra vez em Paris! e o seu pobre Pedro estava morto! e aquella creanÃa que dormia ao fundo do corredor nunca vira sua mâe... Erguera-se, passeiava na livraria, pesado e lento, com a cabeÃa baixa. Junto · mesa, ao pà do candieiro, o VillaÃa ia percorrendo um a um os papeis da sua carteira. --E est· em Paris com o italiano? perguntou Affonso do fundo sombrio do aposento. O VillaÃa ergueu a cabeÃa de sobre a carteira, e disse: --Nâo senhor, est· com quem lhe paga. E como Affonso se aproximava da mesa, sem uma palavra, VillaÃa, dando-lhe um papel dobrado, accrescentou: --Todas estas cousas sâo muito graves, sr. Affonso da Maia, e eu nâo quiz fiar-me sà na minha memoria. Por isso pedi ao Alencar, que à um excellente rapaz, que me escrevesse n'uma carta tudo o que me contou. Assim temos um documento. Eu nâo sei mais do que ahi est· escripto. PÃde V. Ex.^a ler... Affonso desdobrou as duas folhas de papel. Era uma historia simples, que o Alencar, o poeta das _Vozes d'Aurora_, o estylista de _Elvira_, orn·ra de flores e de galıes dourados como uma capella em dia de festa. Uma noite, ao sahir da _Maison d'Or_, elle vira a Monforte saltar d'um _coupÃ_ com dois homens de gravata branca; tinham-se logo reconhecido; e um momento ficaram hesitando, um defronte do outro, debaixo do candieiro de gaz, no _trottoir_. Foi ella que, muito decidida, rindo, estendeu a mâo ao Alencar, pediu-lhe que a visitasse, deu-lhe a _adresse_, o nome por que devia perguntar: M.^{me} de l'Estorade. E no seu _boudoir_, na manhâ seguinte a Monforte fallou largamente de si: vivera tres annos em Vienna d'Austria com Tancredo, e com o pap· que se lhes fÃra reunir--e que l· continuava de certo, como em Arroios, refugiando-se pelos cantos das salas, pagando as _toilettes_ da filha, e dando palmadinhas ternas no hombro do amante como outr'ora no hombro do marido. Depois tinham estado em Monaco; e ahi, dizia o Alencar, ´n'um drama sombrio de paixâo que ella me fez entreverª o napolitano fora morto em duello. O pap· morrera tambem n'esse anno, deixando apenas da sua fortuna uns magros contos de rÃis, e a mobilia da casa em Vienna: o velho arruinara-se com o luxo da filha, com as viagens, com as perdas de Tancredo ao _baccarat_. Pass·ra entâo um tempo em Londres: e d'ahi viera habitar Paris, com Mr. de l'Estorade, um jogador, um espadachim, que acabou de a arrasar, e que a abandonou legando-lhe esse nome de l'Estorade, que lhe era a elle d'ora em diante inutil porque passava a adoptar outro mais sonoro de _Vicomte de Manderville_. Emfim, pobre, formosa, doida, excessiva, lanÃara-se na existencia d'aquellas mulheres de quem, dizia o Alencar, ´a pallida Margarida Gautier, a gentil _Dama das Camelias_ à o typo sublime, o symbolo poetico, a quem muito ser· perdoado porque muito amaram.ª E o poeta terminava: ´ella est· ainda no esplendor da belleza, mas as rugas virâo, e entâo que avistar· em redor de si? As rosas seccas e ensanguentadas da sua coroa de esposa. Sahi d'aquelle _boudoir_ perfumado, com a alma dilacerada, meu VillaÃa! Pensava no meu pobre Pedro, que l· jaz sob o raio de luar, entre as raizes dos cyprestes. E, desilludido d'esta cruel vida, vim pedir ao absintho, no _boulevard_, uma hora de esquecimento.ª Affonso da Maia deu um repellâo · carta, menos enojado das torpezas da historia, que d'aquelles lyrismos relambidos. E recomeÃou a passear, emquanto o VillaÃa recolhia religiosamente o documento que tinha relido muitas vezes, na admiraÃâo do sentimento, do estylo, do ideal d'aquella pagina. --E a pequena? perguntou Affonso. --Isso nâo sei. O Alencar nâo lhe fallarÃa na filha, nem elle mesmo sabe que ella a levou. Ninguem o sabe em Lisboa. Foi um detalhe que passou desapercebido no grande escandalo. Mas emquanto a mim, a pequena morreu. Senâo, siga V. Ex.^a o meu raciocinio... Se a menina fosse viva, a mâe podia reclamar a legitima que cabe · creanÃa... Ella sabe a casa que V. Ex.^a tem; ha de haver dias, e sâo frequentes na vida d'essas mulheres, em que lhe falte uma libra... Com o pretexto da educaÃâo da menina, ou de alimentos, j· nos tinha importunado... Escrupulos nâo tem ella. Se o nâo faz à que a filha morreu. Nâo lhe parece a V. Ex.^a? --Talvez, disse Affonso. E accrescentou, parando deante de VillaÃa--que olhava outra vez a braza morta tirando estalinhos dos dedos: --Talvez... SopÃnhamos que morreram ambas, e nâo se falle mais n'isso. Estava dando meia noite, os dois homens recolheram-se. E durante os dias que VillaÃa passou em S.^{ta} Olavia nâo se proferiu mais o nome de Maria Monforte. Mas, na vespera da partida do administrador para Lisboa, Affonso subio ao quarto d'elle, a entregar-lha as amendoas da Paschoa que Carlos mandava a VillaÃa Junior, um alfinete de peito com uma magnifica saphira--e disse-lhe em quanto o outro, sensibilisado, balbuciava os agradecimentos: --Agora outra cousa, VillaÃa. Tenho estado a pensar. Vou escrever a meu primo Noronha, ao Andrà que vive em Paris como vocà sabe, pedir-lhe que procure essa creatura, e que lhe offereÃa dez ou quinze contos de rÃis, se ella me quizer entregar a filha... No caso, est· claro, que esteja viva... E quero que vocà saiba d'esse Alencar a morada da mulher em Paris. O VillaÃa nâo respondeu, occupado a metter entre as camisas, bem no fundo da maleta, a caixinha com o alfinete. Depois, erguendo-se, ficou deante d'Affonso, a coÃar reflectidamente o queixo. --Entâo que lhe parece, VillaÃa? --Parece-me arriscado. E deu as suas razıes. A menina devia ir nos seus treze annos. Estava uma mulher, com o seu temperamento formado, o caracter feito, talvez os seus habitos... Nem fallaria o portuguez. As saudades da mâe haviam de ser terriveis... Emfim, o sr. Affonso de Maia trazia uma extranha para casa... --Vocà tem rasâo, VillaÃa. Mas a mulher à uma prostituta, e a pequena à do meu sangue. N'esse momento Carlos, cuja voz gritava no corredor pelo vovÃ, precipitou-se no quarto, esguedelhado, escarlate como uma româ.--O Brown tinha achado uma corujasinha pequena! Queria que o vovà viesse, ver, andara a buscal-o por toda a casa... Era de morrer a rir... Muito pequena, muito feia, toda pellada, e com dois olhos de gente grande! E sabiam onde havia o ninho... --Vem depressa, à vovÃ! Depressa, que à necessario ir pol-a no ninho, por causa da coruja velha que se pÃde affligir... O Brown est·-lhe a dar azeite. Oh VillaÃa vem ver! O vovÃ, pelo amor de Deus! Tem uma cara tâo engraÃada! Mas depressa, depressa, que a coruja velha pÃde dar pela falta!... E impaciente com a lentidâo risonha do vÃvo, tanta indifferenÃa pela inquietaÃâo da coruja velha, abalou atirando com a porta. --Que bom coraÃâo! exclamou o VillaÃa commovido. A pensar nas saudades da coruja... A mâe d'elle à que nâo tem saudades! Sempre o disse, à uma fera! Afonso encolheu tristemente os hombros. Iam j· no corredor quando elle, parando um momento, baixando a voz: --Tem-me esquecido de lhe contar, VillaÃa, o Carlos sabe que o pae que se matou... VillaÃa arredondou os olhos d'espanto. Era verdade. Uma manhâ entrara-lhe pela livraria, e dissera-lhe:--à vovÃ, o pap· matou-se com uma pistola!--Naturalmente algum creado que lh'o contara... --E vossa excellencia? --Eu... Que havia de fazer? Disse-lhe que sim. Em tudo tenho obedecido ao que Pedro me pediu, n'essas quatro ou cinco linhas da carta que me deixou. Quiz ser enterrado em S.{ta} Olavia, ahi est·. Nâo queria que o filho j·mais soubesse da fuga da mâe; e por mim, de certo, nunca o saber·. Quiz que dois retratos que havia d'ella em Arroios fossem destruidos; como vocà sabe, obtiveram-se e destruiram-se. Mas nâo me pedio que occultasse ao rapaz o seu fim. E por isso, disse ao pequeno a verdade: disse-lhe que n'um momento de loucura, o pap· tinha dado um tiro em si... --E elle? --E elle, replicou Affonso sorrindo, perguntou-me quem lhe tinha dado a pistola, e torturou-me toda uma manhâ para lhe dar tambem uma pistola... E ahi est· o resultado d'essa revelaÃâo: à que tive de mandar vir do Porto uma pistÃla de vento... Mas, sentindo Carlos em baixo, aos berros ainda pelo avÃ, os dois apressaram-se a ir admirar a corujazinha. VillaÃa ao outro dia partiu para Lisboa. Passadas duas semanas, Affonso recebia uma carta do administrador, trasendo-lhe, com a _adresse_ da Monforte, uma revelaÃâo imprevista. Tinha voltado a casa do Alencar; e o poeta, recordando outros incidentes da sua visita a M.^{me} de l'Estorade, contara-lhe que no _boudoir_ d'ella havia um adoravel retrato de creanÃa, de olhos negros, cabello d'azeviche, e uma pallidez de nacar. Esta pintura ferira-o, nâo sà por ser d'um grande pintor inglez, mas por ter, pendente sob o caixilho como um voto funerario, uma linda coroa de flores de cera brancas e roxas. Nâo havia outro quadro no _boudoir_: e elle perguntara · Monforte se era um retrato ou uma phantasia. Ella respondera que era o retrato da filha que lhe morrera em Londres. ´Estâo assim dissipadas todas as duvidas, accrescentava o VillaÃa. O pobre anjinho est· n'uma patria. melhor. E para ella, _bem melhor_!ª Affonso, todavia, escreveu a Andrà de Noronha. A resposta tardou. Quando o primo Andrà procurara M.^{me} de l'Estorade, havia semanas que ella partira para Allemanha, depois de vender mobilia e cavallos. E no _Club Imperial_, a que elle pertencia, um amigo que conhecia bem M.^{me} de l'Estorade e a vida galante de Paris, contara-lhe que a doida fugira com um certo Catanni, acrobata do Circo d'Inverno nos Campos Elyseos, homem de fÃrmas magnificas, um Appolo de feira, que todas as cocottes se disputavam e que a Monforte empolg·ra. Naturalmente corria agora a Allemanha com a companhia de cavallinhos. Affonso da Maia, enojado, remetteu esta carta ao VillaÃa sem um commentario. E o honrado homem respondeu: ´Tem V. Ex.^a rasâo, à atroz: e mais vale suppor que todos morreram, e nâo gastar mais cera com tâo ruins defuntos...ª E depois n'um post-scriptum accrescentava: ´Parece certo abrir-se em breve o caminho de ferro atà ao Porto: em tal caso, com permissâo de V. Ex.^a, ahi irei e o meu rapaz a pedirmos-lhe alguns dias d'hospitalidade.ª Esta carta foi recebida em S.^{ta} Olavia um domingo, ao jantar. Affonso lera alto o P. S. Todos se alegraram, na esperanÃa de ver o bom VillaÃa em breve na quinta; e fallou-se mesmo em arranjar um grande pic-nic, rio acima. Mas, terÃa feira · noite, chegava um telegramma de Manuel VillaÃa annunciando que o pae morrera, n'essa manhâ, d'uma apoplexia: dois dias depois vinham mais longos e tristes pormenores. Fora depois do almoÃo que, de repente, VillaÃa se sentira muito suffocado, e com tonturas: ainda tivera forÃas d'ir ao quarto respirar um pouco d'ether: mas ao voltar · sala cambaleava, queixava-se de vÃr tudo amarello, e caiu de bruÃos, como um fardo, sobre o canapÃ. O seu pensamento, que se extinguia para sempre, ainda n'esse momento se occupou da casa que ha trinta annos administrava: balbuciou, a respeito d'uma venda de cortiÃa, recomendaÃıes que o filho j· nâo poude perceber: depois deu um grande ai; e sà tornou a abrir os olhos, para murmurar no derradeiro sopro estas derradeiras palavras: _Saudades ao patrâo!_ Affonso da Maia ficou profundamente afectado, e em S.^{ta} Olavia, mesmo entre os creados, a morte de VillaÃa foi como um lucto domestico. Uma d'essas tardes, o velho, muito melancolico, estava na livraria com um jornal esquecido nas mâos, os olhos cerrados--quando Carlos, que ao lado rabiscava carantonhas n'um papel, veio passar-lhe um braÃo pelo pescoÃo, e como comprehendendo os seus pensamentos perguntou-lhe se o VillaÃa nâo voltaria a vel-os â¡ quinta. --Nâo filho, nunca mais. Nunca mais o tornamos a vÃr. O pequeno, entre os joelhos e os braÃos do velho, olhava o tapete, e, como recordando-se, murmurou tristemente: --O VillaÃa, coitado... Dava estalinhos com os dedos... Oh vovÃ, para onde o levaram? --Para o cemiterio, filho, para debaixo da terra. Entâo Carlos desprendeu-se devagar do abraÃo do avÃ, e muito sÃrio, com os olhos n'elle: --â vovÃ! porque nâo lhe mandas fazer uma capellinha bonita, toda de pedra, com uma figura, como tem o pap·? O velho achegou-o ao peito, beijou-o, commovido: --Tens razâo, filho. Tens mais coraÃâo que eu! Assim o bom VillaÃa teve no cemiterio dos Prazeres o seu jazigo--que fÃra a alta ambiÃâo da sua existÃncia modesta. Outros annos tranquillos passaram sobre Santa Olavia. Depois uma manhâ de julho, em Coimbra, Manuel VillaÃa (agora administrador da casa) trepava as escadas do Hotel Mondego, onde Affonso se hosped·ra com o neto, e entrava-lhe pela sala, vermelho, suando, berrando: --_NeminÃ! NeminÃ!_ Fizera Carlos o seu primeiro exame! E que exame! Teixeira que tinha acompanhado os senhores de Santa Olavia correu · porta, abraÃou-se quasi chorando no menino, agora mais alto que elle, e muito formoso na sua batina nova. Em cima no quarto, Manuel VillaÃa, soprando ainda, limpando as bagas de suor, exclamava: --Ficou tudo espantado, snr. Affonso da Maia! Os lentes atà estavam commovidos. Ih Jesus! que talento! Vem a ser um grande homem, à o que todo o mundo disse... E que faculdade vai elle seguir, meu senhor? Affonso, que passeava, todo tremulo, respondeu com um sorriso: --Nâo sei, VillaÃa... Talvez nos formemos ambos em Direito. Carlos assomou · porta, radiante, seguido do Teixeira e do outro escudeiro--que trazia _champagne_ n'uma salva. --Entâo venha c·, seu maroto, disse Affonso muito branco, com os braÃos abertos. Bom exame, hein?... Eu... Mas nâo pÃde proseguir: as lagrimas, duas a duas, corriam-lhe pela barba branca. IV Carlos ia formar-se em Medicina. E como dizia o dr. Trigueiros houvera sempre n'aquelle menino realmente uma ´vocaÃâo para Esculapioª. A ´vocaÃâoª revel·ra-se bruscamente um dia que elle descobriu no sotâo, entre rumas de velhos alfarrabios, um rolo manchado e antiquado de estampas anatomicas; tinha passado dias a recortal-as, pregando pelas paredes do quarto figados, liaÃas de intestinos, cabeÃas de perfil ´com o recheio · mostraª. Uma noite mesmo rompera pela sala em triumpho, a mostrar ·s Silveiras, ao Euzebio, a pavorosa lithographia de um feto de seis mezes no utero materno. D. Anna recuou, com um grito, collando o leque · face: e o dr. delegado, escarlate tambem, arrebatou prudentemente Euzebiosinho para entre os joelhos, tapou-lhe a face com a mâo. Mas o que escandalisou mais as senhoras foi a indulgencia de Affonso. --Entâo que tem, entâo que tem? dizia elle sorrindo. --Que tem, snr. Affonso da Maia!? exclamou D. Anna. Sâo indecencias! --Nâo ha nada indecente na natureza, minha rica senhora. Indecente à a ignorancia... Deixar l· o rapaz. Tem curiosidade de saber como à esta pobre machina por dentro, nâo ha nada mais louvavel... D. Anna abanava-se, suffocada. Consentir taes horrores nas mâos da crianÃa!... Carlos comeÃou a apparecer-lhe como um libertino ´que j· sabia coisasª; e nâo consentiu mais que a Therezinha brincasse sà com elle pelos corredores de Santa Olavia. As pessoas sÃrias porÃm, o dr. juiz de direito, o proprio abbade, lamentando, sim, que nâo houvesse mais recato, concordavam que aquillo mostrava no pequeno uma grande queda para a medicina. --Se pÃga, dizia entâo com um gesto prophetico o dr. Trigueiros, temos d'alli coisa grande! E parecia pegar. Em Coimbra, estudante do Lyceu, Carlos deixava os seus compendios de logica e rhetorica para se occupar de anatomia: n'umas ferias, ao abrir das malas, a Gertrudes fugiu espavorida vendo alvejar entre as dobras d'um casaco o riso d'uma caveira: e se algum criado da quinta adoecia, l· estava Carlos logo revolvendo o caso em velhos livros de medicina da livraria, sem lhe largar a beira do catre, fazendo diagnosticos que o bom dr. Trigueiros escutava respeitoso e pensativo. Diante do avà j· chamava mesmo ao menino ´o seu talentoso collegaª. Esta inesperada carreira de Carlos (pens·ra-se sempre que elle tomaria capello em Direito) era pouco approvada entre os fieis amigos de Santa Olavia. As senhoras sobretudo lamentavam que um rapaz que ia crescendo tâo formoso, tâo bom cavalleiro, viesse a estragar a vida receitando emplastros, e sujando as mâos no jorro das sangrias. O dr. juiz de direito confessou mesmo um dia a sua descrenÃa de que o snr. Carlos da Maia quizesse ´ser medico a sÃrioª. --Ora essa! exclamou Affonso. E porque nâo ha de ser medico a sÃrio? Se escolhe uma profissâo à para a exercer com sinceridade e com ambiÃâo, como os outros. Eu nâo o educo para vadio, muito menos para amador; educo-o para ser util ao seu paiz... --Todavia, arriscou o dr. juiz de direito com um sorriso fino, nâo lhe parece a v. exc.^a que ha outras coisas, importantes tambem, e mais proprias talvez, em que seu neto se poderia tornar util?... --Nâo vejo, replicou Affonso da Maia. N'um paiz em que a occupaÃâo geral à estar doente, o maior serviÃo patriotico à incontestavelmente saber curar. --V. exc.^a tem resposta para tudo, murmurou respeitosamente o magistrado. E o que justamente seduzia Carlos na medicina era essa vida ´a sÃrioª, pratica e util, as escadas de doentes galgadas · pressa no fogo de uma vasta clinica, as existencias que se salvam com um golpe de bisturÃ, as noites veladas · beira de um leito, entre o terror de uma familia, dando grandes batalhas · morte. Como em pequeno o tinham encantado as fÃrmas pittorescas das vÃsceras--attrahiam-no agora estes lados militantes e heroicos da sciencia. Matriculou-se realmente com enthusiasmo. Para esses longos annos de quieto estudo o avà prepar·ra-lhe uma linda casa em Cellas, isolada, com graÃas de cottage inglez, ornada de persianas verdes, toda fresca entre as arvores. Um amigo de Carlos (um certo Joâo da Ega) poz-lhe o nome de ´PaÃos de Cellasª, por causa de luxos entâo raros na Academia, um tapete na sala, poltronas de marroquim, panoplias d'armas, e um escudeiro de librÃ. Ao principio este esplendor tornou Carlos venerado dos fidalgotes, mas suspeito aos democratas; quando se soube porÃm que o dono d'estes confortos lia Proudhon, Augusto Comte, Herbert Spencer, e considerava tambem o paiz uma _choldra ignobil_--os mais rigidos revolucionarios comeÃaram a vir aos PaÃos de Cellas tâo familiarmente como ao quarto do Trovâo, o poeta bohemio, o duro socialista, que tinha apenas por mobilia uma enxerga e uma Biblia. Ao fim d'alguns mezes, Carlos, sympathico a todos, concili·ra Dandys e Philosophos: e trazia muitas vezes no seu _break_, lado a lado, o Serra Torres, um monstro que j· era addido honorario em Berlim e todas as noites punha casaca, e o famoso Craveiro que meditava a _Morte de Satanaz_, encolhido no seu gabâo d'Aveiro, com o seu grande barrete de lontra. Os PaÃos de Cellas, sob a sua apparencia preguiÃosa e campestre, tornaram-se uma fornalha de actividades. No quintal fazia-se uma gymnastica scientifica. Uma velha cozinha fÃra convertida em sala d'armas--porque n'aquelle grupo a esgrima passava como uma necessidade social. ¡ noite, na sala de jantar, moÃos sÃrios faziam um _whist_ sÃrio: e no salâo, sob o lustre de crystal, com o _Figaro_, o _Times_ e as _Revistas_ de Paris e de Londres espalhadas pelas mesas, o Gamacho ao piano tocando Chopin ou Mozart, os litteratos estirados pelas poltronas--havia ruidosos e ardentes cavacos, em que a Democracia, a Arte, o Positivismo, o Realismo, o Papado, Bismark, o Amor, Hugo e a EvoluÃâo, tudo por seu turno flammejava no fumo do tabaco, tudo tâo ligeiro e vago como o fumo. E as discussıes metaphysicas, as proprias certezas revolucionarias adquiriam um sabor mais requintado com a presenÃa do criado de farda desarrolhando a cerveja, ou servindo croquettes. Carlos, naturalmente, nâo tardou a deixar pelas mesas, com as folhas intactas, os seus expositores de medicina. A Litteratura e a Arte, sob todas as fÃrmas, absorveram-no deliciosamente. Publicou sonetos no _Instituto_--e um artigo sobre o Parthenon: tentou, n'um _atelier_ improvisado, a pintura a oleo: e compoz contos archeologicos, sob a influencia da _SalammbÃ_. AlÃm d'isso todas as tardes passeava os seus dois cavallos. No segundo anno levaria um _R_ se nâo fosse tâo conhecido e rico. Tremeu, pensando no desgosto do avÃ: moderou a dissipaÃâo intellectual, acantoou-se mais na sciencia que escolhera: immediatamente lhe deram um _accessit_. Mas tinha nas veias o veneno do dilettantismo: e estava destinado, como dizia Joâo da Ega, a ser um d'esses medicos litterarios que inventam doenÃas de que a humanidade papalva se presta logo a morrer! O avÃ, ·s vezes, vinha passar uma, duas semanas a Cellas. Nos primeiros tempos a sua presenÃa, agradavel aos cavalheiros da partilha de _whist_, desorganisou o cavaco litterario. Os rapazes mal ousavam estender o braÃo para o copo da cerveja; e os _vossa excellencia_ isto, _vossa excellencia_ aquillo, regelavam a sala. Pouco a pouco, porÃm, vendo-o apparecer em chinelas e de cachimbo na boca, estirar-se na poltrona com ares sympathicos de patriarcha bohemio, discutir arte e litteratura, contar anecdotas do seu tempo d'Inglaterra e d'Italia, comeÃaram a consideral-o como um camarada de barbas brancas. Diante d'elle j· se fallava de mulheres e de estroinices. Aquelle velho fidalgo, tâo rico, que lÃra Michelet e o admirava--chegou mesmo a enthusiasmar os democratas. E Affonso gozava alli tambem horas felizes, vendo o seu Carlos centro d'aquelles moÃos de estudo, de ideal e de veia. Carlos passava as ferias grandes em Lisboa, ·s vezes em Paris ou Londres; mas por Nataes e Pascoas vinha sempre a Santa Olavia, que o avà mais sà se entretinha a embellezar com amor. As salas tinham agora soberbos pannos d'Arraz, paizagens de Rousseau e Daubigny, alguns moveis de luxo e d'arte. Das janellas a quinta offerecia aspectos nobres de parque inglez: atravÃs dos macios taboleiros de relva, davam curvas airosas as ruas areadas: havia marmores entre as verduras; e gordos carneiros de luxo dormiam sob os castanheiros. Mas a existencia n'este meio rico nâo era agora tâo alegre: a viscondessa, cada dia mais nutrida, cahia em somnos congestivos logo depois do jantar; o Teixeira primeiro, a Gertrudes depois, tinham morrido, ambos de pleurizes, ambos no entrudo: e j· se nâo via tambem · mesa a bondosa face do abbade, que l· jazia sob uma cruz de pedra, entre os goivos e as rosas de todo o anno. O dr. juiz de direito com a sua concertina pass·ra para a RelaÃâo do Porto; D. Anna Silveira, muito doente, nunca sahia; a Therezinha fizera-se uma rapariguinha feia, amarella como uma cidra; o Euzebiosinho, mollengâo e tristonho, j· sem vestigios sequer do seu primeiro amor aos alfarrabios e ·s letras, ia casar na Regoa. Sà o dr. delegado, esquecido n'aquella comarca, estava o mesmo, mais calvo talvez, sempre affavel, amando sempre a pachorrenta Eugenia. E quasi todas as tardes, o velho Trigueiros se apeava da sua egoa branca ao portâo para vir cavaquear com o collega. As ferias, realmente, sà eram divertidas para Carlos quando trazia para a quinta o seu intimo, o grande Joâo da Ega, a quem Affonso da Maia se affeiÃo·ra muito, por elle e pela sua originalidade, e por ser sobrinho d'Andrà da Ega, velho amigo da sua mocidade e, muitas vezes outr'ora, hospede tambem em Santa Olavia. Ega andava-se formando em Direito, mas devagar, muito pausadamente--ora reprovado, ora perdendo o anno. Sua mâi, rica, viuva e beata, retirada n'uma quinta ao pà de Celorico de Basto com uma filha, beata, viuva e rica tambem, tinha apenas uma noÃâo vaga do que o Joâozinho fizera, todo esse tempo, em Coimbra. O capellâo affirmava-lhe que tudo havia de acabar a contento, e que o menino seria um dia doutor como o pap· e como o titi: e esta promessa bastava · boa senhora, que se occupava sobretudo da sua doenÃa de entranhas e dos confortos d'esse padre Seraphim. Estimava mesmo que o filho estivesse em Coimbra, ou algures, longe da quinta, que elle escandalisava com a sua irreligiâo e as suas facecias hereticas. Joâo da Ega, com effeito, era considerado nâo sà em Celorico, mas tambem na Academia que elle espantava pela audacia e pelos ditos, como o maior atheu, o maior demagogo, que j·mais apparecera nas sociedades humanas. Isto lisonjeava-o: por systema exagerou o seu odio · Divindade, e a toda a Ordem social: queria o massacre das classes-mÃdias, o amor livre das ficÃıes do matrimonio, a repartiÃâo das terras, o culto de Satanaz. O esforÃo da intelligencia n'este sentido terminou por lhe influenciar as maneiras e a physionomia; e, com a sua figura esgrouviada e sÃcca, os pÃllos do bigode arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito--tinha realmente alguma coisa de rebelde e de satanico. Desde a sua entrada na Universidade renov·ra as tradiÃıes da antiga Bohemia: trazia os rasgıes da batina cozidos a linha branca; embebedava-se com carrascâo; · noite, na Ponte, com o braÃo erguido, atirava injurias a Deus. E no fundo muito sentimental, enleado sempre em amores por meninas de quinze annos, filhas de empregados, com quem ·s vezes ia passar a soirÃe, levando-lhes cartuchinhos de dÃce. A sua fama de fidalgote rico tornava-o appetecido nas familias. Carlos escarnecia estes idyllios futricas; mas tambem elle terminou por se enredar n'um episodio romantico com a mulher d'um empregado do governo civil, uma lisboetasinha, que o seduziu pela graÃa d'um corpo de boneca e por uns lindos olhos verdes. A ella o que a fanatis·ra fÃra o luxo, o _groom_, a egoa ingleza de Carlos. Trocaram-se cartas; e elle viveu semanas banhado na poesia aspera e tumultuosa do primeiro amor adultero. Infelizmente a rapariga tinha o nome barbaro de Hermengarda; e os amigos de Carlos, descoberto o segredo, chamavam-lhe j· _Eurico o presbytero_, dirigiam para Cellas missivas pelo correio com este nome odioso. Um dia Carlos, andava tomando o sol na Feira, quando o empregado do governo civil passou junto d'elle com o filhinho pela mâo. Pela primeira vez via tâo de perto o marido de Hermengarda. Achou-o enxovalhado e macilento. Mas o pequerrucho era adoravel, muito gordo, parecendo mais roliÃo por aquelle dia de janeiro sob os agasalhos de lâ azul, tremelicando nas pobres perninhas rÃxas de frio, e rindo na clara luz--rindo todo elle, pelos olhos, pelas covinhas do queixo, pelas duas rosas das faces. O pae amparava-o; e o encanto, o cuidado com que o rapaz ia assim guiando os passos do seu filho, impressionou Carlos. Era no momento em que elle lia Michelet--e enchia-lhe a alma a veneraÃâo litteraria da santidade domestica. Sentiu-se canalha em andar alli de cima do seu _dog-cart_, a preparar friamente a vergonha, e as lagrimas d'aquelle pobre pae tâo inoffensivo no seu paletot coÃado! Nunca mais respondeu ·s cartas em que Hermengarda lhe chamava _seu ideal_. Decerto a rapariga se vingou, intrigando-o; porque o empregado do governo civil, d'ahi por diante, dardejava sobre elle olhares sangrentos. Mas a grande ´topada sentimental de Carlosª, como disse o Ega, foi quando elle, ao fim d'umas ferias, trouxe de Lisboa uma soberba rapariga hespanhola, e a installou n'uma casa ao pà de Cellas. Chamava-se Encarnacion. Carlos alugou-lhe ao mez uma vittoria com um cavallo branco e Encarnacion fanatisou Coimbra como a appariÃâo d'uma _Dama das Camelias_, uma flÃr de luxo das civilisaÃıes superiores. Pela CalÃada, pela estrada da Beira, os rapazes paravam, pallidos de emoÃâo, quando ella passava, reclinada na vittoria, mostrando o sapato de setim, um pouco da meia de sÃda, languida e desdenhosa, com um câosinho branco no regaÃo. Os poetas da Academia fizeram-lhe versos em que Encarnacion foi chamada _Lirio d'Israel_, _Pomba da Arca_, e _Nuvem da Manhâ_. Um estudante de theologia, rude e sebento transmontano, quiz casar com ella. Apesar das instancias de Carlos, Encarnacion recusou; e o theologo comeÃou a rondar Cellas, com um navalhâo, para ´beber o sangueª ao Maia. Carlos teve de lhe dar bengaladas. Mas a creatura, desvanecida, tornou-se intoleravel, fallando sem cessar d'outras paixıes que inspir·ra em Madrid e em Lisboa, do muito que lhe dera o conde de tal, o marquez sicrano, da grande posiÃâo da sua familia ainda aparentada com os Medina-C[oe]li: os seus sapatos de setim verde eram tâo antipathicos como a sua voz estridula: e quando tentava elevar-se ·s conversaÃıes que ouvia, rompia a chamar ladrıes aos republicanos, a celebrar os tempos de D. Isabel, a sua _gracia_, o seu _salero_--sendo muito conservadora como todas as prostitutas. Joâo da Ega odiava-a. E Craveiro declarou que nâo voltava aos PaÃos de Cellas emquanto por l· apparecesse aquelle montâo de carne, pago ao arratel, como a de vacca. Emfim, uma tarde Baptista, o famoso criado de quarto de Carlos surprehendeu-a com um Juca que fazia de dama no Theatro Academico. Ahi estava, emfim, um pretexto! E, convenientemente paga, a parenta dos Medina-C[oe]li, o _Lirio d'Israel_, a admiradora dos Bourbons, foi recambiada a Lisboa e · rua de S. Roque, seu elemento natural. Em agosto, no acto da formatura de Carlos, houve uma alegre festa em Cellas. Affonso viera de Santa Olavia, VillaÃa de Lisboa; toda a tarde no quintal, d'entre as acacias e as bella-sombras, subiram ao ar mÃlhos de foguetes; e Joâo da Ega, que lev·ra o seu ultimo _R_ no seu ultimo anno, nâo descansou, em mangas de camisa, pendurando lanternas venezianas pelos ramos, no trapesio e em roda do poÃo, para a illuminaÃâo da noite. Ao jantar, a que assistiam lentes, VillaÃa, enfiado e tremulo, fez um _speech_; ia citar o nosso _immortal Castilho_ quando sob as janellas rompeu, a grande ruido de tambor e pratos, o _Hymno Academico_. Era uma serenata.--Ega, vermelho, de batina desabotoada, a luneta para traz das costas, correu · sacada, a perorar: --Ahi temos o nosso Maia, Carolus Eduardus ab Maia, comeÃando a sua gloriosa carreira, preparado para salvar a humanidade enferma--ou acabar de a matar, segundo as circumstancias! A que parte remota d'estes reinos nâo chegou j· a fama do seu genio, do seu _dog-cart_, do sebaceo _accessit_ que lhe ennodÃa o passado, e d'este vinho do Porto, contemporaneo dos heroes de 20, que eu, homem de revoluÃâo e homem de carraspana, eu, Joâo da Ega, Johanes ab Ega... O grupo escuro em baixo desatou aos _vivas_. A philarmonica, outros estudantes, invadiram os PaÃos. Atà tarde, sob as arvores do quintal, na sala atulhada de pilhas de pratos, os criados correram com salvas de dÃce, nâo cessou d'estalar o _champagne_. E VillaÃa, limpando a testa, o pescoÃo, abafado de calor, ia dizendo a um, a outro, a si mesmo tambem: --Grande coisa, ter um curso! E entâo Carlos Eduardo partira para a sua longa viagem pela Europa. Um anno passou. Cheg·ra esse outono de 1875: e o avà installado emfim no Ramalhete esperava por elle anciosamente. A ultima carta de Carlos viera de Inglaterra, onde andava, dizia elle, a estudar a admiravel organisaÃâo dos hospitaes de crianÃas. Assim era: mas passeava tambem por Brighton, apostava nas corridas de Goodwood, fazia um idyllio errante pelos lagos da Escocia, com uma senhora hollandeza, separada de seu marido, veneravel magistrado da Haya, uma M.^{me} Rughel, soberba creatura de cabellos d'ouro fulvo, grande e branca como uma nympha de Rubens. Depois comeÃaram a chegar, dirigidas ao Ramalhete, caixas successivas de livros, outras de instrumentos e apparelhos, toda uma bibliotheca e todo um laboratorio--que trazia o VillaÃa, manhâs inteiras, aturdido pelos armazens da alfandega. --O meu rapaz vem com grandes idÃas de trabalho, dizia Affonso aos amigos. Havia quatorze mezes que elle o nâo via, o ´seu rapazª, a nâo ser n'uma photographia mandada de Milâo, em que todos o acharam magro e triste. E o coraÃâo batia-lhe forte, na linda manhâ de outono, quando do terraÃo do Ramalhete, de binoculo na mâo, viu assomar vagarosamente, por traz do alto predio fronteiro, um grande paquete do _Royal Mail_ que, lhe trazia o seu neto. ¡ noite os amigos da casa, o velho Sequeira, D. Diogo Coutinho, o VillaÃa--nâo se fartavam d'admirar ´o bem que a viagem fizera a Carlosª. Que differenÃa da photographia! Que forte, que saudavel! Era decerto um formoso e magnifico moÃo, alto, bem feito, de hombros largos, com uma testa de marmore sob os anneis dos cabellos pretos, e os olhos dos Maias, aquelles irresistiveis olhos do pai, de um negro liquido, ternos como os d'elle e mais graves. Trazia a barba toda, muito fina, castanho-escura, rente na face, aguÃada no queixo--o que lhe dava, com o bonito bigode arqueado aos cantos da boca, uma physionomia de bello cavalleiro da RenascenÃa. E o avÃ, cujo olhar risonho e humido transbordava d'emoÃâo, todo se orgulhava de o vÃr, de o ouvir, n'uma larga veia, fallando da viagem, dos bellos dias de Roma, do seu mau humor na Prussia, da originalidade de Moscow, das paizagens da Hollanda... --E agora? perguntou-lhe o Sequeira, depois de um momento de silencio em que Carlos estivera bebendo o seu cognac e soda. Agora que tencionas tu fazer? --Agora, general? respondeu Carlos, sorrindo e pousando o copo. DescanÃar primeiro e depois passar a ser uma gloria nacional! Ao outro dia, com effeito, Affonso veiu encontral-o na sala de bilhar--onde tinham sido collocados os caixotes--a despregar, a desempacotar, em mangas de camisa e assobiando com enthusiasmo. Pelo châo, pelos soph·s, alastrava-se toda uma litteratura em rumas de volumes graves; e aqui e alÃm, por entre a palha, atravÃs das lonas descozidas, a luz faiscava n'um crystal, ou reluziam os vernizes, os metaes polidos de apparelhos. Affonso pasmava em silencio para aquelle pomposo apparato do saber. --E onde vaes tu accommodar este museo? Carlos pensara em arranjar um vasto laboratorio alli perto no bairro, com fornos para trabalhos chimicos, uma sala disposta para estudos anatomicos e physiologicos, a sua bibliotheca, os seus apparelhos, uma concentraÃâo methodica de todos os instrumentos de estudo... Os olhos do avà illuminavam-se ouvindo este plano grandioso. --E que nâo te prendam questıes de dinheiro, Carlos! NÃs fizemos n'estes ultimos annos de Santa Olavia algumas economias... --Boas e grandes palavras, avÃ! Repita-as ao VillaÃa. As semanas foram passando n'estes planos de installaÃâo. Carlos trazia realmente resoluÃıes sinceras de trabalho: a sciencia como mera ornamentaÃâo interior do espirito, mais inutil para os outros que as proprias tapessarias do seu quarto, parecia-lhe apenas um luxo de solitario: desejava ser util. Mas as suas ambiÃıes fluctuavam, intensas e vagas; ora pensava n'uma larga clinica; ora na composiÃâo macissa de um livro iniciador; algumas vezes em experiencias physiologicas, pacientes e reveladoras... Sentia em si, ou suppunha sentir, o tumulto de uma forÃa, sem lhe discernir a linha d'applicaÃâo. ´Alguma cousa de brilhante,ª como elle dizia: e isto para elle, homem de luxo e homem d'estudo, significava um conjuncto de representaÃâo social e de actividade scientifica; o remecher profundo de idÃas entre as influencias delicadas da riqueza; os elevados vagares da philosophia entremeados com requintes de _sport_ e de gosto; um Claude Bernard que fosse tambem um Morny... No fundo era um _dilletante_. VillaÃa fÃra consultado sobre a localidade propria para o laboratorio; e o procurador, muito lisongeado, jurou uma diligencia incanÃavel. Primeira cousa a saber, o nosso doutor tencionava fazer clinica?... Carlos nâo decidira fazer _exclusivamente_ clinica: mas desejava de certo dar consultas, mesmo gratuitas, como caridade e como pratica. Entâo VillaÃa suggeriu que o consultorio estivesse separado do laboratorio. --E a minha razâo à esta: a vista de apparelhos, machinas, cousas, faz esmorecer os doentes... --Tem vocà razâo, VillaÃa! exclamou Affonso. J· meu pae dizia: poupe-se ao boi a vista do malho. --Separados, separados, meu senhor, affirmou o procurador n'um tom profundo. Carlos concordou. E VillaÃa bem depressa descobriu, para o laboratorio, um antigo armazem, vasto e retirado, ao fundo de um pateo, junto ao largo das Necessidades. --E o consultorio, meu senhor, nâo à aqui, nem acol·; à no Rocio, alli em pleno Rocio! Esta idÃa do VillaÃa nâo era desinteressada. Grande enthusiasta da _Fusâo_, membro do Centro progressista, VillaÃa Junior aspirava a ser vereador da camara, e mesmo em dias de satisfaÃâo superior (como quando o seu anniversario natalicio vinha annunciado no _Illustrado_, ou quando no Centro citava com applauso a Belgica) parecia-lhe que tantas aptidıes mereciam do seu partido uma cadeira em S. Bento. Um consultorio gratuito, no Rocio, o consultorio do dr. Maia, ´do seu Maiaª reluziu-lhe logo vagamente como um elemento de influencia. E tanto se agitou, que d'ahi a dois dias tinha l· alugado um primeiro andar d'esquina. Carlos mobilou-o com luxo. N'uma antecamara, guarnecida de banquetas de marroquim, devia estacionar, · franceza, um creado de librÃ. A sala de espera dos doentes alegrava com o seu papel verde de ramagens prateadas, as plantas em vasos de Rouen, quadros de muita cÃr, e ricas poltronas cercando a jardineira coberta de collecÃıes do _Charivari_, de vistas estereoscopicas, d'albuns de actrizes semi-nuas; para tirar inteiramente o ar triste de consultorio atà um piano mostrava o seu teclado branco. O gabinete de Carlos ao lado era mais simples, quasi austero, todo em velludo verde-negro, com estantes de pau preto. Alguns amigos que comeÃavam a cercar Carlos, Taveira, seu contemporaneo e agora visinho do Ramalhete, o Cruges, o marquez de Souzellas, com quem percorrera a Italia--vieram vÃr estas maravilhas. O Cruges correu uma escala no piano e achou-o abominavel; Taveira absorveu-se nas photographias d'actrizes; e a unica approvaÃâo franca veiu do marquez, que depois de contemplar o divan do gabinete, verdadeiro movel de serralho, vasto, voluptuoso, fÃfo, experimentou-lhe a doÃura das molas e disse, piscando o olho a Carlos: --A calhar. Nâo pareciam acreditar n'estes preparativos. E todavia eram sinceros. Carlos atà fizera annunciar o consultorio nos jornaes; quando viu porem o seu nome em letras grossas, entre o de uma engommadeira · Boa Hora e um reclamo de casa de hospedes,--encarregou VillaÃa de retirar o annuncio. Occupava-se entâo mais do laboratorio, que decidira installar no armazem, ·s Necessidades. Todas as manhâs, antes de almoÃo, Ãa visitar as obras. Entrava-se por um grande pateo, onde uma bella sombra cobria um poÃo, e uma trepadeira se mirrava nos ganchos de ferro que a prendiam ao muro. Carlos j· decidira transformar aquelle espaÃo em fresco jardinete inglez; e a porta do casarâo encantava-o, ogival e nobre, resto de fachada d'ermida, fazendo um accesso veneravel para o seu sanctuario de sciencia. Mas dentro os trabalhos arrastavam-se sem fim; sempre um vago martellar preguiÃoso n'uma poeira alvadia; sempre as mesmas coifas de ferramentas jazendo nas mesmas camadas de aparas! Um carpinteiro esgouroviado e triste parecia estar alli, desde seculos, aplainando uma taboa eterna com uma fadiga langorosa; e no telhado os trabalhadores que andavam alargando a claraboia, nâo cessavam de assobiar, no sol d'inverno, alguma lamuria de fado. Carlos queixava-se ao sr. Vicente, o mestre d'obras, que lhe asseverava invariavelmente ´como d'ahi a dois dias havia de s. ex.^a vÃr a differenÃa.ª Era um homem de meia edade, risonho, de fallar doce, muito barbeado, muito lavado, que morava ao pà do Ramalhete, e tinha no bairro fama de republicano. Carlos, por sympathia, como visinho, apertava-lhe sempre a mâo: e o sr. Vicente, considerando-o por isso um ´avanÃadoª, um democrata, confiava-lhe as suas esperanÃas. O que elle desejava primeiro que tudo era um 93, como em FranÃa... --O que, sangue? dizia Carlos, olhando a fresca, honrada, e roliÃa face do demagogo. --Nâo, senhor, um navio, um simples navio... --Um navio? --Sim, senhor, um navio fretado · custa da naÃâo, em que se mandasse pela barra fÃra o rei, a familia real, a _cambada_ dos ministros, dos politicos, dos deputados, dos intrigantes, etc. e etc. Carlos sorria, ·s vezes argumentava com elle. --Mas est· o sr. Vicente bem certo, que apenas a _cambada_, como tâo exactamente diz, desapparecesse pela barra fÃra, ficavam resolvidas todas as cousas e tudo atolado em felicidade? Nâo, o sr. Vicente nâo era tâo ´burroª que assim pensasse. Mas, supprimida a cambada, nâo via s. ex.^a? Ficava o paiz desatravancado; e podiam entâo comeÃar a governar os homens de saber e de progresso... --Sabe v. ex.^a qual à o nosso mal? Nâo à m· vontade d'essa gente; à muita somma de ignorancia. Nâo sabem. Nâo sabem nada. Elles nâo sâo maus, mas sâo umas cavalgaduras! --Bem, entâo essas obras, amigo Vicente, dizia-lhe Carlos, tirando o relogio e despedindo-se d'elle com um valente _shakehands_, veja se me andam. Nâo lh'o peÃo como proprietario, à como correligionario. --D'aqui a dois dias ha de v. ex.^a vÃr a differenÃa, respondia o mestre d'obras, desbarretando-se. No Ramalhete, pontualmente ao meio dia, tocava a sineta do almoÃo. Carlos encontrava quasi sempre o avà j· na sala de jantar, acabando de percorrer algum jornal junto ao fogâo, onde a tepida suavidade d'aquelle fim de outono nâo permittia accender lume, mas verdejando todo de plantas d'estufa. Em redor, nos aparadores de carvalho lavrado, rebrilhavam suavemente, no seu luxo macisso e sobrio, as baixellas antigas; pelas tapeÃarias ovaes dos muros apainelados corriam scenas de ballada, caÃadores medivaes soltando o falcâo, uma dama entre pagens alimentando os cysnes de um lago, um cavalleiro de viseira callada seguindo ao longo d'um rio; e contrastando com o tecto escuro de castanho entalhado a meza resplandecia com as flÃres entre os crystaes. O reverendo Bonifacio, que desde que se tornara dignatario da Egreja comia com os senhores, l· estava j·, magestosamente sentado sobre a alvura nevada da toalha, · sombra de algum grande ramo. Era alli, no aroma das rosas, que o veneravel gato gostava de lamber, com o seu vagar estupido, as sopas de leite servidas n'um covilhete de Strasburgo, depois agachava-se, traÃava por diante do peito a fofa pluma da sua cauda, e, de olhos cerrados, os bigodes tesos, todo elle uma bola entufada de pello branco malhado de ouro, gosava de leve uma sesta macia. Affonso,--como confessava, sorrindo e humilhado--Ãa-se tornando com a velhice um _gourmet_ exigente; e acolhia, com uma concentraÃâo de critico, as obras d'arte do _chef_ francez que tinham agora, um cavalheiro de mau genio, todo bonapartista, muito parecido com o imperador, e que se chamava Mr. Theodore. Os almoÃos no Ramalhete eram sempre delicados e longos; depois, ao cafÃ, ficavam ainda conversando; e passava da uma hora, da hora e meia, quando Carlos, com uma exclamaÃâo, precipitando-se sobre relogio, se lembrava do seu consultorio. Bebia um calice de Chartreuse, accendia · pressa um charuto: --Ao trabalho, ao trabalho! exclamava. E o avÃ, enchendo de vagar o seu cachimbo, invejava-lhe aquella occupaÃâo, emquanto elle ficava alli a vadiar toda a manhâ... --Quando esse eterno laboratorio estiver acabado, talvez v· para l· passar um bocado, occupar-me de chimica. --E ser talvez um grande chimico. O avà tem j· a feitio. O velho sorria. --Esta carcassa j· nâo d· nada, filho. Est· pedindo eternidade! --Quer alguma cousa da Baixa, de Babylonia? perguntava Carlos, abotoando · pressa as suas luvas de governar. --Bom dia de trabalho. --Pouco provavel... E no _dog-cart_, com aquella linda egoa, a _Tunante_, ou no _phaeton_ com que maravilhava Lisboa, Carlos l· partia em grande estylo para a Baixa, para ´o trabalho.ª O seu gabinete, no consultorio, dormia n'uma paz tepida entre os espessos velludos escuros, na penumbra que faziam as stores de seda verde corridas. Na sala, porÃm, as tres janellas abertas bebiam · farta a luz; tudo alli parecia festivo; as poltronas em torno da jardineira estendiam os seus braÃos, amaveis e convidativas; o teclado branco do piano ria e esperava, tendo abertas por cima as _CanÃıes de Gounod_; mas nâo apparecia j·mais um doente. E Carlos,--exactamente como o creado que, na ociosidade da antecamara, dormitava sobre o _Diario de Noticias_, acaÃapado na banqueta--accendia um cigarro Laferme, tomava uma Revista, e estendia-se no divan. A prosa porÃm dos artigos estava como embebida do tedio moroso do gabinete: bem depressa bocejava, deixava caÃr o volume. Do Rocio, o ruido das carroÃas, os gritos errantes de pregıes, o rolar dos americanos, subiam, n'uma vibraÃâo mais clara, por aquelle ar fino de novembro: uma luz macia, escorregando docemente do azul ferrete, vinha doirar as fachadas enxovalhadas, as cÃpas mesquinhas das arvores de municipio, a gente vadiando pelos bancos: e essa sussurraÃâo lenta de cidade preguiÃosa, esse ar avelludado de clima rico, pareciam ir penetrando pouco a pouco n'aquelle abafado gabinete e resvelando pelos velludos pesados, pelo verniz dos moveis, envolver Carlos n'uma indolencia e n'uma dormencia... Com a cabeÃa na almofada, fumando, alli ficava, n'essa quietaÃâo de sesta, n'um scismar que se Ãa desprendendo, vago e tenue, como o tenuo e leve fumo que se eleva d'uma brazeira meia apagada; atà que com um esforÃo sacudia este torpor, passeiava na sala, abria aqui e alÃm pelas estantes um livro, tocava no piano dois compassos de walsa, espriguiÃava-se--e, com os olhos nas flores do tapete, terminava por decidir que aquellas duas horas de consultorio eram estupidas! --Est· ahi o carro? Ãa perguntar ao creado. Accendia bem depressa outro charuto, calÃava as luvas, descia, bebia um largo sorvo de luz e ar, tomava as guias e largava, murmurando comsigo: --Dia perdido! Foi uma d'essas manhâs que preguiÃando assim no soph· com a _Revista dos Dois Mundos_ na mâo, elle ouviu um rumor na antecamara, e logo uma voz bem conhecida, bem querida, que dizia por tr·s do reposteiro: --Sua Alteza Real est· visivel? --Oh Ega! gritou Carlos, dando um salto do soph·. E cahiram nos braÃos um do outro, beijando-se na face, enternecidos. --Quando chegaste tu? --Esta manhâ. Caramba! exclamava Ega, procurando pelo peito, pelos hombros, o seu quadrado de vidro, e entalando-o emfim no olho. Caramba! Tu vens esplendido d'esses Londres, d'essas civilisaÃıes superiores. Est·s com um ar RenascenÃa, um ar Valois... Nâo ha nada como a barba toda! Carlos ria, abraÃando-o outra vez. --E d'onde vens tu, de Celorico? --Qual Celorico! Da Foz. Mas doente, menino, doente... O figado, o baÃo, uma infinidade de visceras compromettidas. Emfim, doze annos de vinhos e aguas ardentes... Depois fallaram das viagens de Carlos, do Ramalhete, da demora do Ega em Lisboa... Ega vinha para sempre. Tinha dito do alto da diligencia, ·s varzeas de Celorico, o adeus de eternidade. --Imagina tu, Carlos, amigo, a historia deliciosa que me succede com minha mâe... Depois de Coimbra, naturalmente, sondei-a a respeito de vir viver para Lisboa, confortavelmente, com uns dinheiros largos. Qual, nâo caÃu! Fiquei na quinta, fazendo epigrammas ao padre Seraphim e a toda a cÃrte do cÃu. Chega julho, e apparece nos arredores uma epidemia de anginas. Um horror, creio que vocÃs lhe chamam diphtericas... A mamâ salta immediatamente â¡ conclusâo que à a minha presenÃa, a presenÃa do atheo, do demagogo, sem jejuns e sem missa, que offendeu Nosso Senhor e attrahiu o flagello. Minha irmâ concorda. Consultam o padre Seraphim. O homem, que nâo gosta de me vÃr na quinta, diz que à possivel que haja indignaÃâo do Senhor--e minha mâe vem pedir-me quasi de joelhos, com a bolsa aberta, que venha para Lisboa, que a arruine, mas que nâo esteja alli chamando a ira divina. No dia seguinte bati para a Foz... --E a epidemia... --Desappareceu logo, disse o Ega, comeÃando a puxar devagar dos dedos magros uma longa luva cÃr de canario. Carlos mirava aquellas luvas do Ega; e as polainas de casemira; e o cabello que elle trazia crescido com uma mecha frisada na testa; e na gravata de setim uma ferradura de opalas! Era outro Ega, um Ega dandy, vistoso, paramentado, artificial e com pà d'arroz--e Carlos deixou emfim escapar a exclamaÃâo impaciente que lhe bailava nos labios: --Ega, que extraordinario casaco! Por aquelle sol macio e morno de um fim de outono portuguez, o Ega, o antigo bohemio de batina esfarrapada, trazia uma pelliÃa, uma sumptuosa pelliÃa de principe russo, agasalho de trenà e de neve, ampla, longa, com alamares trespassados · Brandeburgo, e pondo-lhe em torno do pescoÃo esganiÃado e dos pulsos de thisico uma rica e fÃfa espessura de pelles de marta. --⦠uma boa pelliÃa, hein? disse elle logo, erguendo-se, abrindo-a, exhibindo a opulencia do forro. Mandei-a vir pelo Strauss... Beneficios da epidemia. --Como podes tu supportar isso? --⦠um bocado pesada, mas tenho andado constipado. Tornou a recostar-se no soph·, adiantando o sapato de verniz muito bicudo, e, de monocolo no olho, examinou o gabinete. --E tu que fazes? conta-me l·... Tens isto explendido! Carlos fallou dos seus planos, de altas idÃas de trabalho, das obras do laboratorio... --Um momento, quanto te custou tudo isto? exclamou o Ega interrompendo-o, erguendo-se para ir apalpar o velludo dos reposteiros, mirar os torneados da secret·ria de pau preto. --Nâo sei. O VillaÃa à que deve saber... E Ega, com as mâos enterradas nos vastos bolsos da pelliÃa, inventariando o gabinete, fazia consideraÃıes: --O velludo d· seriedade... E o verde escuro à a cÃr suprema, à a cÃr esthetica... Tem a sua expressâo propria, enternece e faz pensar... Gosto d'este divan. Movel de amor... Foi entrando para a sala dos doentes, de vagar, de luneta no olho, estudando os ornatos. --Tu Ãs o grandioso Salomâo, Carlos! O papel à bonito... E o cretonesinho agrada-me. Apalpou-o tambem. Uma begonia, manchada da sua ferrugem de prata, n'um vaso de Rouen, interessou-o. Queria saber o preÃo de tudo; e diante do piano, olhando o livro de musica aberto, as _CanÃıes de Gounod_, teve uma surpreza enternecida: --Homem, à curioso... C· me apparece! A _Barcarolla_! ⦠deliciosa, hein?... Dites, la jeune belle, Ou voulez-vous aller? La voile... Estou um bocado rouco... Era a nossa canÃâo na Foz! Carlos teve outra exclamaÃâo, e crusando os braÃos diante d'elle: --Tu est·s extraordinario, Ega! Tu Ãs outro Ega!... A proposito da Foz... Quem à essa Madame Cohen, que estava tambem na Foz, de quem tu, em cartas successivas, verdadeiros poemas, que recebi em Berlin, na Haia, em Londres, me fallavas como os arrobos do _Cantico dos Canticos_? Um leve rubor subiu ·s faces do Ega. E limpando negligentemente o monocolo ao lenÃo de seda branca: --Uma judia. Por isso usei o lyrismo biblico. ⦠a mulher do Cohen, has de conhecer, um que à director do _Banco Nacional_... DÃmos-nos bastante. ⦠sympathica... Mas o marido à uma besta... Foi uma _flitartion_ de praia. _Voila tout_. Isto era dito aos bocados, passeiando, puchando o lume ao charuto, e ainda cÃrado. --Mas conta-me tu, que diabo, que fazem vocÃs no Ramalhete? O avà Affonso? Quem vae por l·?... No Ramalhete, o avà fazia o seu _whist_ com os velhos parceiros. Ia o D. Diogo, o decrepito leâo, sempre de rosa ao peito, e frisando ainda os bigodes... Ia o Sequeira, cada vez mais atarracado, a estoirar de sangue, · espera da sua apoplexia... Ia o conde de Steinbroken... --Nâo conheÃo. Refugiado?... Polaco?... --Nâo, ministro da Filandia... Queria-nos alugar umas cocheiras e complicou esta simples transacÃâo com tantas finuras diplomaticas, tantos documentos, tantas cousas com o sello real da Filandia, que o pobre VillaÃa aturdido, para se desembaraÃar, remetteu-o ao avÃ. O avÃ, desnorteado tambem, offereceu-lhe as cocheiras de graÃa. Steinbroken considera isto um serviÃo feito ao rei da Filandia, · Filandia, vae visitar o avÃ, em grande estado, com o secretario da legaÃâo, o consul, o vice-consul... --Isso à sublime! --O avà convida-o a jantar... E como o homem à muito fino, um gentleman, enthusiasta da Inglaterra, grande entendedor de vinhos, uma auctoridade no wisth, o avà adopta-o. Nâo sae do Ramalhete. --E de rapazes? De rapazes, apparecia Taveira, sempre muito correcto, empregado agora no Tribunal de Contas: um Cruges, que o Ega nâo conhecia, um diabo adoidado, maestro, pianista, com uma pontinha de genio; o marquez de Souzellas... --Nâo ha mulheres? --Nâo ha quem as receba. ⦠um covil de solteirıes. A viscondessa, coitada... --Bem sei. Um apopletÃ... --Sim, uma hemorragia cerebral. Ah, temos tambem o Silveirinha, chegou-nos ultimamente o Silveirinha... --O de Resende, o cretino? --O cretino. Enviuvou, vem da Madeira, ainda um bocado thisico, todo carregado de luto... Um funebre. O Ega, repoltreado, com aquelle ar de tranquilla e solida felicidade que Carlos j· notara, disse puchando lentamente os punhos: --⦠necessario reorganisar essa vida. Precisamos arranjar um cenaculo, uma bohemiasinha dourada, umas _soirÃes_ de inverno, com arte, com litteratura... Tu conheces o Craft? --Sim, creio que tenho ouvido fallar... Ega teve um grande gesto. Era indispensavel conhecer o Craft! O Craft era simplesmente a melhor cousa que havia em Portugal... --⦠um inglez, uma especie de doido?... Ega encolheu os hombros. Um doido!... Sim, era essa a opiniâo da rua dos Fanqueiros; o indigena, vendo uma originalidade tâo forte como a de Craft, nâo podia explical-a senâo pela doidice. O Craft era um rapaz extraordinario!... Agora tinha elle chegado da Suecia, de passar tres mezes com os estudantes de Upsala. Estava tambem na Foz... Uma individualidade de primeira ordem! --⦠um negociante do Porto, nâo Ã? --Qual negociante do Porto! exclamou o Ega erguendo-se, franzindo a face, enojado de tanta ignorancia. O Craft à filho d'um _clergiman_ da egreja ingleza do Porto. Foi um tio, um negociante de Calcut· ou d'Australia, um Nababo, que lhe deixou a fortuna. Uma grande fortuna. Mas nâo negoceia, nem sabe o que isso Ã. D· largas ao seu temperamento byroneano, à o que faz. Tem viajado por todo o universo, collecciona obras d'arte, bateu-se como voluntario na Abyssinia e em Marrocos, emfim vive, _vive_ na grande, na forte, na heroica accepÃâo da palavra. ⦠necessario conhecer o Craft. Vaes-te babar por elle... Tens razâo, caramba, est· calor. DesembaraÃou-se da opulenta pelliÃa, e appareceu em peitilho de camisa. --O que! tu nâo trazias nada por baixo? exclamou Carlos. Nem collete? --Nâo; entâo nâo a podia aguentar... Isto à para o effeito moral, para impressionar o indigena... Mas, nâo ha negal-o, à pesada! E immediatamente voltou · sua idÃa: apenas Craft chegasse do Porto relacionavam-se, organisava-se um Cenaculo, um Decameron d'arte e dilletantismo, rapazes e mulheres--tres ou quatro mulheres para cortarem, com a graÃa dos decotes, a severidade das philosophias... Carlos ria-se d'esta idÃa do Ega. Tres mulheres de gosto e de luxo, em Lisboa, para adornar um cenaculo! Lamentavel illusâo de um homem de Celorico! O marquez de Souzella tinha tentado, e para uma vez sÃ, uma cousa bem mais simples--um jantar no campo com actrizes. Pois fÃra o escandalo mais engraÃado e mais caracteristico: uma nâo tinha creada e queria levar comsigo para a festa uma tia e cinco filhos; outra temia que, acceitando, o brazileiro lhe tirasse a mezada; uma consentiu, mas o amante, quando soube, deu-lhe uma cÃÃa. Esta nâo tinha vestido para ir; aquella pretendia que lhe garantissem uma libra; houve uma que se escandalisou com o convite como com um insulto. Depois, os chulos, os queridos, os pÃlhos, complicaram medonhamente a questâo; uns exigiam ser convidados, outros tentavam desmanchar a festa; houve partidos, fizeram-se intrigas,--emfim esta cousa banal, um jantar com actrizes, resultou em o Tarquinio do Gymnasio levar uma facada... --E aqui tens tu Lisboa. --Emfim, exclamou o Ega, se nâo apparecerem mulheres, importam-se, que à em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, idÃas, philosophias, theorias, assumptos, estheticas, sciencias, estylo, industrias, modas, maneiras, pilherias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilisaÃâo custa-nos carissima com os direitos da alfandega: e à em segunda mâo, nâo foi feita para nÃs, fica-nos curta nas mangas... NÃs julgamo-nos civilisados como os negros de S. Thomà se suppıem cavalheiros, se suppıem mesmo _brancos_, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrâo... Isto à uma choldra torpe. Onde puz eu a charuteira? DesembaraÃado da magestade que lhe dava a pelissa o antigo Ega reapparecia, perorando com os seus gestos aduncos de Mephistopheles em verve, lanÃando-se pela sala como se fosse voar ao vibrar as suas grandes phrases, n'uma lucta constante com o monocolo, que lhe caÃa do olho, que elle procurava pelo peito, pelos hombros, pelos rins, retorcendo-se, deslocando-se, como mordido por bichos. Carlos animava-se tambem, a fria sala aquecia; discutiam o Naturalismo, Gambetta, o Nihilismo; depois, com ferocidade e · uma, malharam sobre o paiz... Mas o relogio ao lado bateu quatro horas; immediatamente Ega saltou sobre a pelissa, sepultou-se n'ella, aguÃou o bigode ao espelho, verificou a _pose_, e, encouraÃado nos seus alamares, sahio com um arsinho de luxo e d'aventura. --John, disse Carlos que o achava esplendido e o ia seguindo ao patamar, onde est·s tu? --No _Universal_, esse sanctuario! Carlos abominava o _Universal_, queria que elle viesse para o Ramalhete. --Nâo me convÃm... --Em todo o caso vaes hoje l· jantar, vÃr o avÃ. --Nâo posso. Estou compromettido com a besta do Cohen... Mas vou l· ·manhâ almoÃar. J· nos degraus da escada, voltou-se, entalou o monocolo, gritou para cima: --Tinha-me esquecido dizer-te, vou publicar o meu livro! --O quÃ! est· prompto? exclamou Carlos, espantado. --Est· esboÃado, · brocha larga... O _Livro do Ega_! FÃra em Coimbra, nos dois ultimos annos, que elle come÷ra a fallar do seu livro, contando o plano, soltando titulos de capitulos, citando pelos cafÃs phrases de grande sonoridade. E entre os amigos do Ega discutia-se j· o livro do Ega como devendo iniciar, pela fÃrma e pela idÃa, uma evoluÃâo litteraria. Em Lisboa (onde elle vinha passar as ferias e dava ceias no Silva) o livro fÃra annunciado como um acontecimento. Bachareis, contemporaneos ou seus condiscipulos, tinham levado de Coimbra, espalhado pelas provincias e pelas ilhas a fama do livro do Ega. J· de qualquer modo essa noticia cheg·ra ao Brazil... E sentindo esta anciosa espectativa em torno do seu livro--o Ega decidira-se emfim a escrevel-o. Devia ser uma epopÃa em prosa, como elle dizia, dando, sob episodios symbolicos, a historia das grandes phases do Universo e da Humanidade. Intitulava-se _Memorias d'um Atomo_, e tinha a fÃrma d'uma autobiographia. Este atomo (o atomo do Ega, como se lhe chamava a serio em Coimbra) apparecia no primeiro capitulo, rolando ainda no vago das Nebuloses primitivas: depois vinha embrulhado, faisca candente, na massa de fogo que devia ser mais tarde a Terra: emfim, fazia parte da primeira folha de planta que surgiu da crosta ainda molle do globo. Desde entâo, viajando nas incessantes transformaÃıes da substancia, o atomo do Ega entrava na rude structura do Orango, pae da humanidade--e mais tarde vivia nos labios de Platâo. Negrejava no burel dos santos, refulgia na espada dos heroes, palpitava no coraÃâo dos poetas. Gota de agua nos lagos de GalilÃa, ouvira o fallar de Jesus, aos fins da tarde, quando os apostolos recolhiam as redes; nà de madeira na tribuna da ConvenÃâo, sentira o frio da mâo de Robespierre. Errara nos vastos anneis de Saturno; e as madrugadas da terra tinham-n'o orvalhado, petala resplandecente de um dormente e languido lyrio. FÃra omnipresente, era omnisciente. Achando-se finalmente no bico da penna do Ega, e canÃado d'esta jornada atravez do Ser, repousava--escrevendo as suas _Memorias_... Tal era este formidavel trabalho--de que os admiradores do Ega, em Coimbra, diziam, pensativos e como esmagados de respeito: --⦠uma Biblia! V No escriptorio de Affonso da Maia ainda durava, apesar de ser tarde, a partida de whist. A mesa estava ao lado da chaminÃ, onde a chamma morria nos carvıes escarlates, no seu recanto costumado, abrigada pelo biombo japonez, por causa da bronchite de D. Diogo e do seu horror ao ar. Esse velho dandy,--a quem as damas de outras eras chamavam o ´Lindo Diogoª, gentil toureiro que dormira n'um leito real--acabava justamente de ter um dos seus accessos de tosse, cavernosa, aspera, dolorosa, que o sacudiam como uma ruina, que elle abafava no lenÃo, com as veias inchadas, rÃxo atà · raiz dos cabellos. Mas pass·ra. Com a mâo ainda tremula, o decrepito leâo limpou as lagrimas que lhe embaciavam os olhos avermelhados, compoz a rosa de musgo na botoeira da sobrecasaca, tomou um golo da sua agua chasada, e perguntou a Affonso, seu parceiro, n'uma voz rouca e surda: --Paus, hein? E de novo, sobre o panno verde, as cartas foram cahindo n'um d'aquelles silencios que se seguiam ·s tosses de D. Diogo. Sentia-se sà a respiraÃâo assobiada, quasi silvante, do general Sequeira, muito infeliz essa noite, desesperado com o VillaÃa seu parceiro, resingâo, e com todo o sangue na face. Um tom fino retiniu, o relogio Luiz XV foi ferindo. alegremente, vivamente, a meia noite;--depois a toada argentina do seu minuete vibrou um momento e morreu. Houve de novo um silencio. Uma renda vermelha recobria os globos de dois grandes candieiros Carcel; e a luz assim coada, cahindo sobre os damascos vermelhos das paredes, dos assentos, fazia como uma doce refracÃâo cÃr de rosa, um vaporoso de nuvem em que a sala se banhava e dormia: sÃ, aqui e alÃm, sobre os carvalhos sombrios das estantes, rebrilhava em silencio o ouro d'um SÃvres, uma pallidez de marfim, ou algum tom esmaltado de velha majolica. --O que! ainda encarniÃados! exclamou Carlos que abrira o reposteiro, entrava, e com elle o rumor distante de bolas de bilhar. Affonso, que recolhia a sua vasa, voltou logo a cabeÃa, a perguntar com interesse: --Como vae ella? Est· socegada? --Est· muito melhor! Era a primeira doente grave de Carlos, uma rapariga de origem alsacianna, casada com o Marcellino padeiro, muito conhecida no bairro pelos seus bellos cabellos, loiros, e penteados sempre em tranÃas soltas. Tinha estado · morte com uma pneumonia; e apesar de melhor, como a padaria ficava defronte, Carlos ainda ·s vezes · noite atravessava a rua para a ir vÃr, tranquillisar o Marcellino, que, defronte do leito e de gabâo pelos hombros, suffocava soluÃos d'amante, escrevinhando no livro de contas. Affonso interessara-se anciosamente por aquella pneumonia; e agora estava realmente agradecido · Marcellina por ter sido salva por Carlos. Fallava d'ella commovido; gabava-lhe a linda figura, o aceio alsacianno, a prosperidade que trouxera · padaria... Para a convalescenÃa, que se approximava, j· lhe mand·ra atà seis garrafas de Chateau-Margaux. --Entâo fÃra de perigo, inteiramente fÃra de perigo?--perguntou VillaÃa, com os dedos na caixa do rapÃ, sublinhando muito a sua sollicitude. --Sim, quasi rija--disse Carlos, que se approximara da chaminÃ, esfregando as mâos, arrepiado. ⦠que a noite, fÃra, estava regelada! Desde o anoitecer geava, d'um cÃu fino e duro, transbordando de estrellas que rebrilhavam como pontas afiadas d'aÃo; e nenhum d'aquelles cavalheiros, desde que se entendia, conhecera j·mais o thermometro tâo baixo. Sim, VillaÃa lembrava-se d'um janeiro peor no inverno de 64... --⦠necessario carregar no _punch_, hein, general!--exclamou Carlos, batendo galhofeiramente nos hombros macissos do Sequeira. --Nâo me opponho, rosnou o outro, que fixava com concentraÃâo e rancor um valete de copas sobre a meza. Carlos, ainda com frio, remexeu, esfuracou os carvıes: uma chuva d'oiro cahiu por baixo, uma chamma mais forte ressaltou, rugiu, alegrando tudo, avermelhando em redor as pelles de urso onde o Reverendo Bonifacio, espapado, torrava ao calor, ronronava de gÃso. --O Ega deve estar radiante, dizia Carlos com os pÃs · chamma. Tem, emfim, justificada a pellissa. A proposito, algum dos senhores tem visto o Ega estes ultimos dias? Ninguem respondeu, no interesse subito que causava a cartada. A longa mâo de D. Diogo recolhia de vagar a vasa--e languidamente, no mesmo silencio, soltou uma carta de paus. --â Diogo! à Diogo! gritou Affonso, estorcendo-se, como se o trespassasse um ferro. Mas conteve-se. O general, cujos olhos despediam faiscas, collocou o seu valete; Affonso, profundamente infeliz, separou-se do rei de paus; VillaÃa bateu de estalo com o az. E immediatamente foi em redor uma discussâo tremenda sobre a puchada de D. Diogo--em quanto Carlos, a quem as cartas sempre enfastiavam, se debruÃava a coÃar o ventre fofo do veneravel Reverendo. --Que perguntavas tu, filho? disse emfim Affonso erguendo-se, ainda irritado, a buscar tabaco para o cachimbo, sua consolaÃâo nas derrotas. O Ega? Nâo, ninguem o viu, nâo tornou a apparecer! Est· tambem um bom ingrato, esse John... Ao nome do Ega, VillaÃa, parando de baralhar as cartas, erguera a face curiosa: --Entâo sempre à certo que elle vae montar casa? Foi Affonso que respondeu, sorrindo e accendendo o cachimbo: --Montar casa, comprar _coupÃ_, deitar librÃ, dar _soirÃes_ litterarias, publicar um poema, o diabo! --Elle esteve l· no escriptorio, dizia VillaÃa recomeÃando a baralhar. Esteve l· a indagar o que tinha custado o consultorio, a mobilia de velludo, etc. O velludo verde deu-lhe no gÃto... Eu, como à um amigo da casa, l· lhe prestei informaÃıes, atà lhe mostrei as contas.--E respondendo a uma pergunta do Sequeira:--Sim, a mâe tem dinheiro, e creio que lhe d· o bastante. Que em quanto a mim, elle vem-se metter na politica. Tem talento, falla bem, o pae j· era muito regenerador... Alli ha ambiÃâo. --Alli ha mulher, disse D. Diogo, collocando com peso esta decisâo e accentuando-a com uma caricia languida · ponta frisada dos bigodes brancos. LÃ-se-lhe na cara, basta vÃr-lhe a cara... Alli ha mulher. Carlos sorria, gabando a penetraÃâo de D. Diogo, o seu fino olho · Balzac; e Sequeira, logo, franco como velho soldado, quiz saber quem era a Dulcinea. Mas o velho dandy declarou, da profundidade da sua experiencia, que essas cousas nunca se sabiam, e era preferivel nâo se saberem. Depois passando os dedos magros e lentos pela face, deixou cahir d'alto e com condescendencia este juizo: --Eu gosto do Ega, tem apresentaÃâo; sobretudo tem _degagÃ_... Tinham recebido as cartas, fez-se um silencio na meza. O general, vendo o seu jogo, soltou um grunhido surdo, arrebatou o cigarro do cinzeiro, e puxou-lhe uma fumaÃa furiosa. --Os senhores sâo muito viciosos, vou vÃr a gente do bilhar, disse Carlos. Deixei o Steinbroken engalfinhado com o marquez, a perder j· quatro mil rÃis. Querem o _punch_ aqui? Nenhum dos parceiros respondeu. E em torno do bilhar Carlos encontrou o mesmo silencio de solemnidade. O marquez, estirado sobre a tabella, com a perna meia no ar, o comeÃo de calva alvejando · luz crua que cahia dos _abat-jours_, de porcelana, preparava a carambola decisiva. Cruges, que apost·ra por elle, deix·ra o divan, o cachimbo turco, e, coÃando com um gesto nervoso a grenha crespa que lhe ondeava atà · gola do jaquetâo, vigiava a bola inquieto, com os olhinhos piscos, o nariz espetado. Do fundo da sala, destacando em preto, o Silveirinha, o Eusebiosinho de S.^{ta} Olavia, estendia tambem o pescoÃo, affogado n'uma gravata de viuvo de merino negro e sem collarinho, sempre macambuzio, mais mollengo que outr'ora, com as mâos enterradas nos bolsos--tâo funebre que tudo n'elle parecia complemento do luto pesado, atà o preto do cabello chato, atà o preto das lunetas de fumo. Junto ao bilhar, o parceiro do marquez, o conde Steinbroken, esperava: e apesar do susto, da emoÃâo d'homem do norte aferrado ao dinheiro, conservava-se correcto, encostado ao taco, sorrindo, sem desmanchar a sua linha britanica,--vestido como um inglez, inglez tradicional d'estampa, com uma sobrecasaca justa de manga um pouco curta, e largas calÃas de xadrez sobre sapatıes de tacâo raso. --Hurrah! gritou de repente Cruges. Os dez tostıesinhos para c·, Silveirinha! O marquez carambol·ra, ganhando a partida, e triumphava tambem: --Vocà trouxe-me a sorte, Carlos! Steinbroken depozera logo o taco, e alinhava j· sobre a tabella, lentamente, uma a uma, as quatro placas perdidas. Mas o marquez, de giz na mâo, reclamava-o para outras refregas, esfaimado d'ouro filandez. --Nada mach!... VÃcà hoje 'st· tÃrivÃl! dizia o diplomata, no seu portuguez fluente, mas de accento barbaro. O marquez insistia, plantado diante d'elle, de taco ao hombro como uma vara de campino, dominando-o com a sua macissa, desempenada estatura. E ameaÃava-o de destinos medonhos n'uma voz possante habituada a ressoar nas lezirias; queria-o arruinar ao bilhar, forÃal-o a empenhar aquelles bellos anneis, leval-o elle, ministro da Filandia e representante d'uma raÃa de reis fortes, a vender senhas · porta da Rua dos Condes! Todos riam; e Steinbroken tambem, mas com um riso franzido e difficil, fixando no marquez o olhar azul-claro, claro e frio, que tinha no fundo da sua myopia a dureza d'um metal. Apesar da sua sympathia pela illustre casa de Souzella, achava estas familiaridades, estas tremendas chalaÃas, incompativeis com a sua dignidade e com a dignidade da Filandia. O marquez, porÃm, coraÃâo d'ouro, abraÃava-o j· pela cinta, com expansâo: --Entâo se nâo quereis mais bilhar, um bocadinho de canto, Steinbroken amigo! A isto o ministro accedeu, affavel, preparando-se logo, dando caricias ligeiras ·s suissas, e aos anneis do cabello d'um loiro de espiga desbotada. Todos os Steinbrokens, de paes a filhos (como elle dissera a Affonso) eram bons barytonos: e isso trouxera · familia nâo poucos proventos sociaes. Pela voz captivara seu pae o velho rei Rudolpho III, que o fizera chefe das caudelarias, e o tinha noites inteiras nos seus quartos, ao piano, cantando psalmos lutheranos, coraes escolares, sagas da Dallecarlia--em quanto o taciturno monarcha cachimbava e bebia, atà que saturado de emoÃâo religiosa, saturado de cerveja preta, tombava do soph·, soluÃando e babando-se. Elle mesmo, Steinbroken, levara parte da sua carreira ao piano, j· como addido, j· como segundo secretario. Feito chefe de missâo, absteve-se: foi sà quando vio o _Figaro_ celebrar repetidamente as walsas do principe Artoff, embaixador da Russia em Paris, e a voz de _basso_ do conde de Baspt, embaixador d'Austria em Londres, que elle, seguindo tâo altos exemplos, arriscou, aqui e alem, em _soirÃes_ mais intimas, algumas melodias filandezas. Emfim cantou no PaÃo. E desde entâo exerceu com zelo, com formalidades, com praxes, o seu cargo de ´barytono plenipotenciario,ª como dizia o Ega. Entre homens, e com os reposteiros corridos, Steinbroken nâo duvidava todavia cantarolar o que elle chamava ´canÃonetas brejÃrasª--o _Amant d'Amanda_, ou uma certa ballada ingleza: On the Serpentine, Oh my Caroline... Oh! Este _oh_! como elle o expellia, gemido, bem puxado, n'um movimento de batuque, expressivo e todavia digno... Isto entre rapazes e com os reposteiros fechados. N'essa noite, porÃm, o marquez, que o conduzia pelo braÃo · sala do piano, exigia uma d'aquellas canÃıes da Filandia, de tanto sentimento e que lhe faziam tâo bem · alma... --Uma que tem umas palavrinhas de que eu gosto, _frisk_, _gluzk_... La ra l·, l·, l·! --A Primavera, disse o diplomata sorrindo. Mas antes de entrar na sala, o marquez soltou o braÃo de Steinbroken, fez um signal ao Silveirinha para o fundo do corredor--e ahi, sob um sombrio painel de _Santa Magdalena no deserto_ penitenciando-se e mostrando nudezas ricas de nympha lubrica, interpellou-o quasi com aspereza: --Vamos nÃs a saber. Entâo, decide-se ou nâo? Era uma negociaÃâo que havia semanas se arrastava entre elles, a respeito d'uma parelha d'egoas. Silveirinha nutria o desejo de montar carruagem; e o marquez procurava vender-lhe umas egoas brancas, a que elle dizia ´ter tomado enguiÃo, apesar de serem dois nobres animaesª. Pedia por ellas um conto e quinhentos mil rÃis. Silveirinha fÃra avisado pelo Sequeira, por Travassos, por outros entendedores, que era _uma espiga_: o marquez tinha a sua moral propria para negocios de gado, e exultaria em _intrujar um pichote_. Apesar de advertido, Eusebio cedendo · influencia da grossa voz do marquez, da robustez do seu phisico, da antiguidade do seu titulo, nâo ousava recusar. Mas hesitava; e n'essa noite deu a resposta usual de forreta, coÃando o queixo, cosido ao muro: --Eu verei, marquez... Um conto e quinhentos à dinheiro... O marquez ergueu dois braÃos ameaÃadores como duas trancas: --Homem, sim ou nâo! Que diabo... Dois animaes que sâo duas estampas... Irra! Sim ou nâo! Eusebio ageitou as lunetas, rosnou: --Eu verei... Elle à dinheiro. Sempre à dinheiro... --Queria vocÃ, talvez, pagal-as com feijıes? Vocà leva-me a commetter um excesso! O piano resoou, em dois accordes cheios, sob os dedos do Cruges; e o marquez, baboso por musica, immediatamente largou a questâo das egoas, recolheu em pontas de pÃs. Eusebiosinho ainda ficou a remoer, a coÃar o queixo; emfim, ·s primeiras notas de Steinbroken, veiu pousar como uma sombra silenciosa entre a hombreira e o reposteiro. Afastado do piano segundo o seu costume, curvado, com a cabelleira como pousada ·s costas, Cruges feria o acompanhamento, d'olhos cravados no livro de _Melodias Filandezas_. Ao lado, empertigado, quasi official, com o lenÃo de seda na mâo, a mâo fincada contra o peito, Steinbroken soltava um canto festivo, n'um movimento de tarantella triumphante, em que passavam, como um entrechocar de seixos, esses bocados de palavras de que o marquez gostava, _frisk_, _slÃcht_, _clikst_, _glukst_. Era a _Primavera_--fresca e silvestre, primavera do norte em paiz de montanhas, quando toda uma aldÃa danÃa em cÃros sob os fuscos abetos, a neve se derrete em cascatas, um sol pallido avelluda os musgos, e a brisa traz o aroma das resinas... Nos graves e cheios, as cantoneiras de Steinbroken ruborisavam-se, inchavam. Nos tons agudos todo elle se Ãa alÃando sobre a ponta dos pÃs, como levado no compasso vivo; despegava entâo a mâo do peito, alargava um gesto, as bellas joias dos seus anneis faiscavam. O marquez, com as mâos esquecidas nos joelhos, parecia beber o canto. Na face de Carlos passava um sorriso enternecido pensando em Madame Rughel, que viajara na Filandia, e cantava ·s vezes aquella _Primavera_ nas suas horas de sentimentalismo flamengo... Steinbroken soltou um _stacato_ agudo, isolado como uma voz n'um alto,--e immediatamente, afastando-se do piano, passou o lenÃo sobre as fontes, sobre o pescoÃo, rectificou com um puchâo a linha da sobrecasaca, e agradeceu o acompanhamento ao Cruges n'um silencioso _shake-hands_. --Bravo! bravo! berrava o marquez, batendo as mâos como malhos. E outros applausos resoaram · porta, dos parceiros do whist, que tinham findado a partida. Quasi immediatamente os escudeiros entravam com um serviÃo frio de croquettes e sandwiches, offerecendo St. Emilion ou Porto; e sobre uma meza, entre os renques de calices, a puncheira fumegou n'um aroma doce e quente de cognac e limâo. --Entâo, meu pobre Steinbroken, exclamou Affonso, vindo-lhe bater amavelmente no hombro, ainda d· d'esses bellos cantos a estes bandidos, que o maltratam assim ao bilhar? --Fui essfÃladito, si, essfÃladito. Agradecido, nÃ, prefiro um copita Porto... --Hoje fomos nÃs as victimas, disse-lhe o general respirando com delicia o seu punch. --Vocà tâbem, meu genÃral? --Sim, senhor, tambem me cascaram... E que dizia o amigo Steinbroken ·s noticias da manhâ? perguntava Affonso. A queda de Mac-Mahon, a eleiÃâo de Grevy... O que o alegrava n'isto, era o desapparecimento definitivo do antipathico senhor de Broglie e da sua _clique_. A impertinencia d'aquelle academico estreito, querendo impÃr a opiniâo de dois ou tres salıes doutrinarios · FranÃa inteira, a toda uma Democracia! Ah, o _Times_ cantava-lh'as! --E o _Punch_? Nâo viu o _Punch_? Oh, delicioso!... O ministro pousara o calice, e esfregando cautelosamente as mâos disse n'uma meia voz grave a sua phrase, a phrase definitiva com que julgava todos os acontecimentos que apparecem em telegrammas: --⦠grâ¡ve... ⦠eqsessivemente grâ¡ve... Depois fallou-se de Gambetta; e como Affonso lhe attribuia uma dictadura proxima, o diplomata tomou mysteriosamente o braÃo de Sequeira, murmurou a palavra suprema com que definia todas as personalidades superiores, homens d'estado, poetas, viajantes ou tenores. --⦠um hom[~e] mËto forte. ⦠um hom[~e] eqsessivemente forte! --O que elle Ã, à um ronha! exclamou o general, escorropichando o seu calice. E todos tres deixaram a sala, discutindo ainda a republica--em quanto Cruges continuava ao piano, vagueando por Mendelsshon e por Choppin, depois de ter devorado um prato de croquettes. O marquez e D. Diogo, sentados no mesmo sophâ¡, um com a sua chasada d'invalido, outro com um copo de S.^t Emilion, a que aspirava o _bouquet_, fallavam tambem de Gambetta. O marquez gostava de Gambetta: fÃra o unico que durante a guerra mostrara ventas de homem; l· que tivesse ´comidoª ou que ´quizesse comerª como diziam,--nâo sabia nem lhe importava. Mas era teso! E o sr. Grevy tambem lhe parecia um cidadâo serio, optimo para chefe do Estado... --Homem de sala? perguntou languidamente o velho leâo. O marquez sà o vira na AssemblÃa, presidindo e muito digno... D. Diogo murmurou, com um melancolico desdem na voz, no gesto, no olhar: --O que eu queria a toda essa canalha era a saude, marquez! O marquez consolou-o, galhofeiro e amavel. Toda essa gente, parecendo forte por se occupar de cousas fortes, no fundo tinha asthma, tinha pedra, tinha gota... E o Dioguinho era um Hercules... --Um Hercules! O que Ã, à que vocà apaparica-se muito... A doenÃa à um mau habito em que a gente se pıe. ⦠necessario reagir... Vocà devia fazer gymnastica, e muita agua fria por essa espinha. VocÃ, na realidade, à de ferro! --Enferrujadote, enferrujadote...--replicou o outro, sorrindo e desvanecido. --Qual enferrujadote! Se eu fosse cavallo ou mulher, antes o queria a vocà que a esses badamecos que por ahi andam meio podres... J· nâo ha homens da sua tempera, Dioguinho! --J· nâo ha nada, disse o outro grave e convencido, e como o derradeiro homem nas ruinas d'um mundo. Mas era tarde, Ãa-se agasalhar, recolher, depois de acabar a sua chasada. O marquez ainda se demorou, preguiÃando no soph·, enchendo lentamente o cachimbo, dando um olhar ·quella sala que o encantava com o seu luxo Luiz XV, os seus florÃdos e os seus dourados, as cerimoniosas poltronas de Beauvais feitas para a amplidâo das anquinhas, as tapeÃarias de Gobelins de tons desmaiados, cheias de galantes pastoras, longes de parques, laÃos e lâs de cordeiros, sombras d'idyllios mortos, transparecendo n'uma trama de seda... ¡quella hora, no adormecimento que Ãa pesando, sob a luz suave e quente das velas que findavam, havia ali a harmonia e o ar de um outro seculo: e o marquez reclamou do Cruges um minuete, uma gavotta, alguma cousa que evocasse Versalhes, Maria Antonietta, o rythmo das bellas maneiras e o aroma dos empoados. Cruges deixou morrer sob os dedos a melodia vaga que estava diluindo em suspiros, preparou-se, alargou os braÃos--e atacou, com um pedal solemne, o _Hymno da Carta_. O marquez fugiu. VillaÃa e Euzebiozinho conversavam no corredor, sentados n'uma das arcas baixas de carvalho lavrado. --A fazer politica? perguntou-lhes o marquez ao passar. Ambos sorriram; VillaÃa respondeu jocosamente: --⦠necessario salvar a patria! Eusebio pertencia tambem ao centro progressista, aspirava a influencia eleitoral no circulo de Resende, e alli ·s noites no Ramalhete faziam conciliabulos. N'esse momento porÃm fallavam dos Maias: VillaÃa nâo duvidava confiar ao Silveirinha, homem de propriedade, visinho de S.^{ta} Olavia, quasi creado com Carlos, certas cousas que lhe desagradavam na casa, onde a auctoridade da sua palavra parecia diminuir; assim, por exemplo, nâo podia approvar o ter Carlos tomado uma frisa de assignatura. --Para que, exclamava o digno procurador, para que, meu caro senhor? Para l· nâo pÃr os pÃs, para passar aqui as noites... Hoje diz que ha enthusiasmo, e elle ahi esteve. Tem ido l·, eu sei? duas ou trÃs vezes... E para isto d· c· uns poucos de centos de mil rÃis. Podia fazer o mesmo com meia duzia de libras! Nâo, nâo à governo. No fim a frisa à para o Ega, para o Taveira, para o Cruges... Olhe, eu nâo me utiliso d'ella; nem o amigo. ⦠verdade, que o amigo est· de luto. Eusebio pensou, com despeito, que se podia metter para o fundo da frisa--se tivesse sido convidado. E murmurou, sem conter um sorriso molle: --Indo assim, atà se podem encalacrar... Uma tal palavra, tâo humilhante, applicada aos Maias, · casa que elle administrava, escandalisou VillaÃa. Encalacrar! Ora essa! --O amigo nâo me comprehendeu... Ha despezas inuteis, sim, mas, louvado Deus, a casa pÃde bem com ellas! ⦠verdade que o rendimento gasta-se todo, atà o ultimo ceitil; os cheques voam, voam, como folhas seccas; e atà aqui o costume da casa foi pÃr de lado, fazer bolo, fazer reserva. Agora o dinheiro derrete-se... Eusebio rosnou algumas palavras sobre os trens de Carlos, os nove cavallos, o cocheiro inglez, os grooms... O procurador acudiu: --Isso, amigo, à de razâo. Uma gente d'estas deve ter a sua representaÃâo, as suas cousas bem montadas. Ha deveres na sociedade... ⦠como o sr. Affonso... Gasta muito, sim, come dinheiro. Nâo à com elle, que lhe conheÃo aquelle casaco ha vinte annos... Mas sâo esmolas, sâo pensıes, sâo emprestimos que nunca mais vÃ... --Desperdicios... --Nâo lh'o censuro... ⦠o costume da casa; nunca da porta dos Maias, j· meu pae dizia, sahiu ninguem descontente... Mas uma frisa, de que ninguem usa! sà para o Cruges, sà para o Taveira!... Teve de se callar. Justamente ao fundo do corredor assomava o Taveira, abafado atà aos olhos na gola d'uma ulster, d'onde sahiam as pontas d'um _cachenez_ de seda clara. O escudeiro desembaraÃou-o dos agasalhos; e elle, de casaca e collete branco, limpando o bonito bigode humido da geada, veiu apertar a mâo ao caro VillaÃa, ao amigo Eusebio, arrepiado, mas achando o frio elegante, desejando a neve e o seu _chic_... --Nada, nada, dizia VillaÃa todo amavel, c· o nosso solzinho portuguez sempre à melhor... E foram entrando no _fumoir_, onde se ouviam as vozes do marquez, de Carlos, n'uma das suas sabias e prolixas cavaqueiras sobre cavallos e sport. --Entâo? que tal? A mulher? foi a interrogaÃâo que acolheu o Taveira. Mas antes de dar noticia da estreia da Morelli, a dama nova, Taveira reclamou alguma cousa quente. E enterrado n'uma poltrona junto do fogâo, com os sapatos de verniz estendidos para as brazas, respirando o aroma do punch, saboreando uma cigarette, declarou emfim que nâo tinha sido um _fiasco_. --Que ella, a meu vÃr, à uma insignificancia, nâo tem nada, nem voz, nem escola. Mas, coitada, estava tâo atrapalhada, que nos fez pena. Houve indulgencia, deram-se-lhe umas palmas... Quando fui ao palco, ella estava contente... --Vamos a saber, Taveira, que tal à ella? inquiria o marquez. --Cheia, dizia o Taveira collocando as palavras como pinceladas; alta; muito branca; bons olhos; bons dentes... --E o pÃsinho?--E o marquez, j· com os olhos accesos, passava de vagar a mâo pela calva. Taveira nâo reparara no pÃ. Nâo era amador de pÃs... --Quem estava? perguntou Carlos, indolente e bocejando. --A gente do costume... ⦠verdade, sabes quem tomou a frisa ao lado da tua? Os Gouvarinhos. L· appareceram hoje... Carlos nâo conhecia os Gouvarinhos. Em redor explicaram-lhe: o conde de Gouvarinho, o par do reino, um homem alto, de lunetas, _poseur_... E a condessa, uma senhora inglesada, de cabello cÃr de cenoura, muito bem feita... Emfim, Carlos nâo conhecia. VillaÃa encontrava o conde no centro progressista, onde elle era uma columna do partido. Rapaz de talento, segundo o VillaÃa. O que o espantava à que elle podesse ter assim frisa de assignatura, atrapalhado como estava: ainda nâo havia tres mezes lhe tinham protestado uma letra de oitocentos mil rÃis, no tribunal do commercio... --Um asno, um caloteiro! disse o marquez com nojo. --Passa-se l· bem, ·s terÃas feiras...--disse Taveira, mirando a sua meia de seda. Depois fallou-se do duello do Azevedo da _Opiniâo_ com o S· Nunes, auctor d'_El-Rei Bolacha_, a grande magica da Rua dos Condes, e ultimamente ministro da marinha: tinham-se tratado furiosamente nos jornaes de _pulhas_ e de _ladrıes_: e havia dez interminaveis dias que estavam desafiados e que Lisboa, em pasmaceira, esperava o sangue. Cruges ouvira que S· Nunes nâo se queria bater, por estar de luto por uma tia; dizia-se tambem que o Azevedo partira precipitadamente para o Algarve. Mas a verdade, segundo VillaÃa, era que o ministro do reino, primo do Azevedo, para evitar o recontro, conservava a casa dos dois cavalheiros bloqueada pela policia... --Uma canalha! exclamou o marquez com um dos seus resumos brutaes que varriam tudo. --O ministro nâo deixa de ter razâo, observou VillaÃa. Isto ·s vezes, em duellos, pÃde bem succeder uma desgraÃa... Houve um curto silencio. Carlos, que caÃa de somno, perguntou ao Taveira, atravez d'outro bocejo, se vira o Ega no theatro. --Podera! La estava de serviÃo, no seu posto, na frisa dos Cohens, todo puxado... --Entâo essa cousa do Ega com a mulher do Cohen, disse o marquez, parece clara... --Transparente, diaphana! um crystal!... Carlos, que se erguera a accender uma cigarette para despertar, lembrou logo a grande maxima de D. Diogo: essas cousas nunca se sabiam, e era preferivel nâo se saberem! Mas o marquez, a isto, lanÃou-se em consideraÃıes pesadas. Estimava que o Ega _se atirasse_; e via ahi um facto de represalia social, por o Cohen ser judeu e banqueiro. Em geral nâo gostava de judeus; mas nada lhe offendia tanto o gosto e a razâo como a especie _banqueiro_. Comprehendia o salteador de clavina, n'um pinheiral; admittia o communista, arriscando a pelle sobre uma barricada. Mas os argentarios, os _Fulanos e C.^{as}_ faziam-n'o encavacar... E achava que destruir-lhes a paz domestica era acto meritorio! --Duas horas e um quarto! exclamou Taveira, que olhara o relogio. E eu aqui, empregado publico, tendo deveres para com o Estado, logo ·s dez horas da manhâ. --Que diabo, se faz no tribunal de contas? perguntou Carlos. Joga-se? Cavaquea-se? --Faz-se um bocado de tudo, para matar tempo... Atà contas! Affonso da Maia j· estava recolhido. Sequeira e Steinbroken tinham partido; e D. Diogo, no fundo da sua velha traquitana, l· fÃra tambem a tomar ainda gemada, a pÃr ainda o emplastro, sob o olho solicito da Margarida, sua cozinheira e seu derradeiro amor. E os outros nâo tardaram a deixar o Ramalhete. Taveira, de novo sepultado na _ulster_, trotou atà casa, uma vivendasinha perto com um bonito jardim. O marquez conseguiu levar Cruges no _coupÃ_, para lhe ir fazer musica a casa, no orgâo, atà ·s tres ou quatro horas, musica religiosa e triste, que o fazia chorar, pensando nos seus amores e comendo frango frio com fatias de salame. E o viuvo, o Eusebiosinho, esse, batendo o queixo, tâo morosa e soturnamente como se caminhasse para a sua propria sepultura, l· se dirigiu ao lupanar onde tinha uma _paixâo_. O laboratorio de Carlos estava prompto--e muito convidativo, com o seu soalho novo, fornos de tijolo fresco, uma vasta meza de marmore, um amplo divan de clina para o repouso depois das grandes descobertas, e em redor, por sobre peanhas e prateleiras, um rico brilho de metaes e crystaes; mas as semanas passavam, e todo esse bello material de experimentaÃâo, sob a luz branca da claraboia, jazia virgem e ocioso. Sà pela manhâ um servente Ãa ganhar o seu tostâo diario, dando l· uma volta preguiÃosa com um espanador na mâo. Carlos realmente nâo tinha tempo de se occupar do laboratorio; e deixaria a Deus mais algumas semanas o privilegio exclusivo de saber o segredo das cousas--como elle dizia rindo ao avÃ. Logo pela manhâ cedo Ãa fazer as suas duas horas d'armas com o velho Randon; depois via alguns doentes no bairro onde se espalhara, com um brilho de legenda, a cura da Marcellina--e as garrafas de Bordeus que lhe mandara Affonso. ComeÃava a ser conhecido como medico. Tinha visitas no consultorio--ordinariamente bachareis, seus contemporaneos, que sabendo-o rico o consideravam gratuito, e l· entravam, murchos e com m· cara, a contar a velha e mal disfarÃada historia de ternuras funestas. Salvara d'um garrotilho a filha d'um brazileiro, ao Aterro--e ganhara ahi a sua primeira libra, a primeira que pelo seu trabalho ganhava um homem da sua familia. O dr. Barbedo convidara-o a assistir a uma operaÃâo ovariotomica. E emfim (mas esta consagraÃâo nâo a esperava realmente Carlos tâo cedo) alguns dos seus bons collegas, que atà ahi, vendo-o sà a governar os seus cavallos inglezes, fallavam do ´talento do Maiaª--agora percebendo-lhe estas migalhas de clientella, comeÃavam a dizer ´que o Maia era um asno.ª Carlos j· fallava a serio da sua carreira. Escrevera, com laboriosos requintes d'estylista, dois artigos para a _Gazeta Medica_; e pensava em fazer um livro d'idÃas geraes, que se devia chamar _Medicina Antiga e Moderna_. De resto occupava-se sempre dos seus cavallos, do seu luxo, do seu bric-a-brac. E atravez de tudo isto, em virtude d'essa fatal dispersâo de curiosidade que, no meio do caso mais interessante de pathologia, lhe fazia voltar a cabeÃa, se ouvia fallar d'uma estatua ou d'um poeta, attrahia-o singularmente a antiga idÃa do Ega, a creaÃâo d'uma Revista, que dirigisse o gosto, pezasse na politica, regulasse a sociedade, fosse a forÃa pensante de Lisboa... Era porÃm inutil lembrar ao Ega este bello plano. Abria um olho vago, respondia: --Ah, a Revista... Sim, est· claro, pensar n'isso! Havemos de fallar, eu apparecerei... Mas nâo apparecia no Ramalhete, nem no consultorio; apenas se avistavam, ·s vezes, em S. Carlos, onde o Ega, todo o tempo que nâo passava no camarote dos Cohens, vinha invariavelmente refugiar-se no fundo da frisa de Carlos, por tr·s de Taveira ou do Cruges; d'onde podesse olhar de vez em quando Rachel Cohen--e ali ficava, silencioso, com a cabeÃa appoiada ao tabique, repousando e como saturado de felicidade... O dia (dizia elle) tinha-o todo tomado: andava procurando casa, andava estudando mobilias... Mas era facil encontral-o pelo Chiado e pelo Loreto, a rondar e a farejar--ou entâo no fundo de tipoias de praÃa, batendo a meio galope, n'um espalhafato de aventura. O seu dandysmo requintava; arvorara, com o desplante soberbo d'um Brummel, casaca de botıes amarellos sobre collete de setim branco; e Carlos entrando uma manhâ cedo no _Universal_, deu com elle pallido de colera, a despropositar com um creado, por causa d'uns sapatos mal envernisados. Os seus companheiros constantes, agora, eram um Damaso Salcede, amigo do Cohen, e um primo da Rachel Cohen, mocinho imberbe, d'olho esperto e duro, j· com ares de emprestar a trinta por cento. Entre os amigos, no Ramalhete, sobretudo na frisa, discutia-se ·s vezes Rachel, e as opiniıes discordavam. Taveira achava-a ´deliciosa!ª--e dizia-o rilhando o dente: ao marquez nâo deixava de parecer appetitosa, para uma vez, aquella carnezinha _faisandÃe_ de mulher de trinta annos: Cruges chamava-lhe uma ´lambisgoia relamboriaª. Nos jornaes, na secÃâo do _High-life_, ella era ´uma das nossas primeiras elegantesª: e toda a Lisboa a conhecia, e a sua luneta d'ouro presa por um fio d'ouro, e a sua caleche azul com cavallos pretos. Era alta, muito pallida, sobre tudo ·s luzes, delicada de saude, com um quebranto nos olhos pisados, uma infinita languidez em toda a sua pessoa, um ar de romance e de lyrio meio murcho: a sua maior belleza estava nos cabellos, magnificamente negros, ondeados, muito pesados, rebeldes aos ganchos, e que ella deixava habilmente cahir n'uma massa meia solta sobre as costas, como n'um desalinho de nudez. Dizia-se que tinha litteratura, e fazia phrases. O seu sorriso lasso, pallido, constante, dava-lhe um ar de insignificancia. O pobre Ega adorava-a. Conhecera-a na Foz, na AssemblÃa; n'essa noite, cervejando com os rapazes, ainda lhe chamou _camelia melada_; dias depois j· adulava o marido; e agora esse demagogo, que queria o massacre em massa das classes medias, soluÃava muita vez por causa d'ella, horas inteiras, cahido para cima da cama. Em Lisboa, entre o Gremio e a Casa Havaneza, j· se comeÃava a fallar ´do arranjinho do Egaª. Elle todavia procurava pÃr a sua felicidade ao abrigo de todas as suspeitas humanas. Havia nas suas complicadas precauÃıes tanta sinceridade como prazer romantico do mysterio: e era nos sitios mais desageitados, fÃra de portas, para os lados do Matadouro, que Ãa furtivamente encontrar a creada que lhe trazia as cartas d'ella... Mas em todos os seus modos (mesmo no disfarce affectado com que espreitava as horas) transbordava a immensa vaidade d'aquelle adulterio elegante. De resto sentia bem que os seus amigos conheciam a gloriosa aventura, o sabiam em pleno drama: era mesmo talvez por isso, que, diante de Carlos e dos outros, nunca atà ahi mencionara o nome d'ella, nem deixara j·mais escapar um lampejo de exaltaÃâo. Uma noite, porÃm, acompanhando Carlos atà ao Ramalhete, noite de lua calma e branca, em que caminhavam ambos callados, Ega, invadido decerto por uma onda interior de paixâo, soltou desabafadamente um suspiro, alargou os braÃos, declamou com os olhos no astro, um tremor na voz: Oh! laisse-toi donc aimer, oh! l'amour c'est la vie! Isto fugira-lhe dos labios como um comeÃo de confissâo; Carlos ao lado nâo disse nada, soprou ao ar o fumo do charuto. Mas Ega sentiu-se decerto ridiculo, porque se calmou, refugiou-se immediatamente no puro interesse litterario: --No fim de contas, menino, digam l· o que disserem, nâo ha senâo o velho Hugo... Carlos, comsigo, lembrava furores naturalistas do Ega, rugindo contra Hugo, chamando-lhe ´saco-roto de espiritualismoª, ´boca-aberta de sombraª, ´avÃsinho lyricoª, injurias peiores. Mas n'essa noite o grande phraseador continuou: --Ah o velho Hugo! o velho Hugo à o campeâo heroico de verdades eternas... ⦠necessario um bocado d'ideal, que diabo!... De resto o ideal pÃde ser real... E foi, com esta palinodia, acordando os silencios do Aterro. Dias depois Carlos, no consultorio, acabava de despedir um doente, um Viegas, que todas as semanas vinha alli fazer a fastidiosa chronica da sua dyspepsia--quando do reposteiro da sala d'espera lhe surgiu o Ega, de sobrecasaca azul, luva _gris-perle_ e um rolo de papel na mâo. --Tens que fazer, doutor? --Nâo, Ãa a sahir, janota! --Bem. Venho-te impingir prosa... Um bocado do _Atomo_... Senta-te ahi. Ouve l·. Immediatamente abancou, afastou papeis e livros, desenrolou o manuscripto, espalmou-o, deu um puxâo ao collarinho--e Carlos, que se pousara · borda do divan, com a face espantada e as mâos nos joelhos, achou-se quasi sem transiÃâo transportado dos rugidos do ventre do Viegas para um rumor de populaÃa, n'um bairro de judeus, na velha cidade de Heidelberg. --Mas espera l·! exclamou elle. Deixa-me respirar. Isso nâo à o comeÃo do livro! Isso nâo à o cahos... Ega entâo recostou-se, desabotoou a sobrecasaca, respirou tambem. --Nâo, nâo à o primeiro episodio... Nâo à o cahos. ⦠j· no seculo XV... Mas n'um livro d'estes pÃde-se comeÃar pelo fim... Conveiu-me fazer este episodio: chama-se a _Hebrea_. A Cohen! pensou Carlos. Ega tornou a alargar o collarinho--e foi lendo, animando-se, ferindo as palavras para as fazer viver, soltando grandes cheios de voz nas sonoridades finaes dos periodos. Depois da sombria pintura d'um bairro medival de Heidelberg, o famoso Atomo, o _Atomo do Ega_, apparecia alojado no coraÃâo do esplendido principe Franck, poeta, cavalleiro, e bastardo do imperador Maximiliano. E todo esse coraÃâo de heroe palpitava pela judia Esther, perola maravilhosa do Oriente, filha do velho rabbino Salomâo, um grande doutor da Lei, perseguido pelo odio theologico do Geral dos Dominicanos. Isto contava-o o Atomo n'um monologo, tâo recamado d'imagens como um manto da Virgem est· recamado d'estrellas--e que era uma declaraÃâo d'elle, Ega, · mulher do Cohen. Depois abria-se um intermedio pantheista: rompiam coros de flores, coros de astros, cantando na linguagem da luz, ou na eloquencia dos perfumes, a belleza, a graÃa, a pureza, a alma celeste de Esther--e de Rachel... Emfim, chegava o negro drama da perseguiÃâo: a fuga da familia hebraica, atravÃz de bosques de bruxas e brutas aldÃas feudaes; a appariÃâo, n'uma encrusilhada, do principe Franck que vem proteger Esther, de lanÃa alta, no seu grande corcel; o tropel da turba fanatica, correndo a queimar o rabbino e os seus livros herejes; a batalha, e o principe atravessado pelo chuÃo d'um _reitre_, indo morrer no peito d'Esther, que morre com elle n'um beijo. Tudo isto se precipitava como um sonoro e tumultuoso soluÃo; e era tratado com as maneiras modernas d'estylo, o esforÃo atormentado inchando a expressâo, as camadas de cÃr atiradas · larga para fazer ressaltar o tom de vida... Ao findar o _Atomo_ exclamava, com a vasta solemnidade d'um cheio d'orgâo:--´assim arrefeceu, parou, aquelle coraÃâo de heroe que eu habitava; e evaporado o principio de vida, eu, agora livre, remontei aos astros, levando comigo a essencia pura d'esse amor immortal.ª --Entâo?...--disse Ega, esfalfado, quasi tremulo. Carlos sà poude responder: --Est· ardente. Depois elogiou a serio alguns lances, o coro das florestas, a leitura do _Ecclesiastes_, de noite, entre as ruinas da torre d'Othon, certas imagens d'um grande vÃo lyrico. Ega, que tinha pressa, como sempre, enrolou o manuscripto, reabotoou a sobrecasaca, e j· de chapÃu na mâo: --Entâo, parece-te apresentavel?... --Vaes publicar? --Nâo, mas emfim...--e ficou n'esta reticencia, fazendo-se corado. Carlos comprehendeu tudo dias depois, encontrando na _Gazeta do Chiado_ uma descripÃâo ´da leitura feita em casa do ex.^{mo} sr. Jacob Cohen, pelo nosso amigo Joâo da Ega, de um dos mais brilhantes episodios do seu livro--_As memorias d'um atomo_.ª E o jornalista accrescentava, dando a sua impressâo pessoal: ´à uma pintura dos sofrimentos porque passaram, nos tempos da intolerancia religiosa, aquelles que seguem a Lei d'Israel. Que poder de imaginaÃâo! Que fluencia d'estylo! O effeito foi extraordinario, e quando o nosso amigo fechou o manuscripto ao succumbir da protagonista--vimos lagrimas em todos os olhos da numerosa e estimavel colonia hebraica!ª Oh, furor do Ega! Rompeu n'essa tarde pelo consultorio, pallido, desorientado... --Estas bestas! Estas bestas d'estes jornalistas! Leste? _Lagrimas em todos os olhos da numerosa e estimavel colonia hebraica!_ Faz cahir a cousa em ridiculo... E depois a _fluencia d'estylo_. Que burros! Que idiotas! Carlos, que cortava as folhas d'um livro, consolou-o. Aquella era a maneira nacional de fallar d'obras d'arte... Nâo valia a pena bramar... --Nâo, palavra, tinha vontade de quebrar a cara ·quelle folliculario! --E porque lh'a nâo quebras? --⦠um amigo dos Cohens. E foi grunhindo improperios contra a imprensa, a passos de tigre pelo gabinete. Por fim irritado com a indifferenÃa de Carlos: --Que diabo est·s tu ahi a ler? _Nature parasitaire des accidents de l'impaludisme_... Que blague, a medicina! Dize-me uma cousa. Que diabo serâo umas picadas que me veem aos braÃos, sempre que vou a adormecer?... --Pulgas, bichos, vermina...--murmurou Carlos com os olhos no livro. --Animal! rosnou Ega, arrebatando o chapÃu. --Vaes-te, John? --Vou, tenho que fazer!--E junto do reposteiro, ameaÃando o cÃu com o guarda-chuva, chorando quasi de raiva:--Estes burros d'estes jornalistas! Sâo a escoria da sociedade! D'ahi a dez minutos reappareceu, bruscamente: e j· com outra voz, n'um tom de caso serio: --Ouve c·. Tinha-me esquecido. Tu queres ser apresentado aos Gouvarinhos? --Nâo tenho um interesse especÃal, respondeu Carlos, erguendo os olhos do livro, depois de um silencio. Mas nâo tenho tambem uma repugnancia especial. --Bem, disse Ega. Elles desejam conhecer-te, sobretudo a condessa faz empenho... Gente intelligente, passa-se l· bem... Entâo, decidido! TerÃa feira vou-te buscar ao Ramalhete, e vamo-nos _gouvarinhar_. Carlos ficou pensando n'aquella proposta do Ega, na maneira como elle sublinh·ra o _empenho_ da condessa. Lembrava-se agora que ella era muito intima da Cohen: e ultimamente, em S. Carlos, n'aquella facil visinhanÃa de frisa, surprehendera certos olhares d'ella... Mesmo, segundo o Taveira, ella realmente _fazia-lhe um olhâo_. E Carlos achava-a picante, com os seus cabellos crespos e ruivos, o narizinho petulante, e os olhos escuros, d'um grande brilho, dizendo mil cousas. Era deliciosamente bem feita--e tinha uma pelle muito clara, fina e doce · vista, a que se sentia mesmo de longe o setim. Depois d'aquelle dia tristÃnho de aguaceiros, elle resolvera passar um bom serâo de trabalho, ao canto do fogâo, no conforto do seu robe-de-chambre. Mas ao cafÃ, os olhos da Gouvarinho comeÃaram a faiscar-lhe por entre o fumo do charuto, a fazer-lhe _um olhâo_, collocando-se tentadoramente entre elle e a sua noite d'estudo, pondo-lhe nas veias um vivo calor de mocidade... Tudo culpa do Ega, esse Mephistopheles de Celorico! Vestiu-se, foi a S. Carlos. Ao sentar-se porÃm · boca da frisa, preparado, de collete branco e perola negra na camisa,--em logar dos cabellos crespos e ruivos, avistou a carapinha retinta de um preto, um preto de doze annos, trombudo e lusidio, de grande collarinho · mamâ sobre uma jaqueta de botıes amarellos; ao lado outro preto, mais pequeno, com o mesmo uniforme de collegio, enterrava pela venta aberta o dedo calÃado de pellica branca. Ambos elles lhe relancearam os olhos bogalhudos, cÃr de prata embaciada. A pessoa que os acompanhava, escondida para o fundo, parecia ter um catharro ascoroso. Dava-se a _Lucia_ em beneficio, com a segunda dama. Os Cohens nâo tinham vindo--nem o Ega. Muitos camarotes estavam desertos, em toda a tristeza do seu velho papel vermelho. A noite chuviscosa, com um bafo de sudoeste, parecia penetrar alli, derramando o seu pesadume, a morna sensaÃâo da sua humidade. Nas cadeiras, vasias, havia uma mulher solitaria, vestida de setim claro; Edgardo e Lucia desafinavam; o gaz dormia, e os arcos das rebecas, sobre as cordas, pareciam ir adormecendo tambem. --Isto est· lugubre, disse Carlos ao amigo Cruges, que occupava o escuro da frisa. Cruges, amodorroado n'um accesso de _spleen_, com o cotovello sobre as costas da cadeira, os dedos por entre a cabelleira, todo elle embrulhado em crepes, sobrepostos de melancolia, respondeu, como do fundo d'um sepulchro: --Pesadote. Por indolencia, Carlos ficou. E pouco a pouco, aquelle preto de que os seus olhos se nâo podiam despegar, alli enthronisado na poltrona de reps verde da Gouvarinho, com a manga da jaqueta plantada no rebordo onde costumava alvejar um lindo braÃo,--foi-lhe arrastando, a seu pesar, a imaginaÃâo para a pessoa d'ella; relembrou _toilettes_ com que ella alli estivera; e nunca lhe pareceram tâo picantes, como agora que os nâo via, os seus cabellos ruivos, cÃr de braza ·s luzes, d'um encrespado forte, como crestados da chamma interna. A carapinha do preto, essa, em logar de risca tinha um sulco cavado · thesoura na massa de lâ espessa. Quem seriam, por que estavam alli, aquelles africanos de perfil trombudo? --Tu j· reparaste n'esta extraordinaria carapinha, Cruges? O outro, que se nâo mexera da sua attitude de estatua tumular, grunhiu da sombra um monosyllabo surdo. Carlos respeitou-lhe os nervos. De repente, ao desafinar mais aspero d'um coro, Cruges deu um salto. --Isto sà a pontapÃ... Que empreza esta! rugio elle, envergando furiosamente o paletot. Carlos foi leval-o no coupà · rua das Flores, onde elle morava com a mâe e uma irmâ; e atà ao Ramalhete nâo cessou de lamentar comsigo o seu serâo d'estudo perdido. O creado de Carlos, o Baptista, (familiarmente, o _Tista_) esperava-o, lendo o jornal, na confortavel antecamara dos ´quartos do meninoª, forrada de velludo cÃr de cereja, ornada de retratos de cavallos e panoplias de velhas armas, com divans do mesmo velludo, e muito allumiada a essa hora por dois candieiros de globo pousados sobre columnas de carvalho, onde se enrolavam lavores de ramos de vide. Carlos tinha desde os onze annos este creado de quarto, que viera com o Brown para S.^{ta} Olavia, depois de ter servido em Lisboa, na LegaÃâo ingleza, e ter acompanhado o ministro, sir Hercules Morrisson, varias vezes a Londres. Foi em Coimbra, nos PaÃos de Cellas, que Baptista comeÃou a ser um personagem: Affonso correspondia-se com elle de S.^{ta} Olavia. Depois viajou com Carlos; enjoaram nos mesmos paquetes, partilharam dos mesmos _sandwiches_ no buffete das gares; Tista tornou-se um confidente. Era hoje um homem de cincoenta annos, desempenado, robusto, com um collar de barba grisalha por baixo do queixo, e o ar excessivamente _gentleman_. Na rua, muito direito na sua sobrecasaca, com o par de luvas amarellas espetado na mâo, a sua bengala de cana da India, os sapatos bem envernisados, tinha a consideravel apparencia de um alto funccionario. Mas conservava-se tâo fino e tâo desembaraÃado, como quando em Londres aprendera a walsar e a _boxar_ na rude balburdia dos salıes-danÃantes, ou como quando mais tarde, durante as ferias de Coimbra, acompanhava Carlos a Lamego e o ajudava a saltar o muro do quintal do sr. escrivâo de fazenda--aquelle que tinha uma mulher tâo garota. Carlos foi buscar um livro ao gabinete d'estudo, entrou no quarto, estendeu-se, canÃado, n'uma poltrona. ¡ luz opalina dos globos, o leito entre-aberto mostrava, sob a seda dos cortinados, um luxo effeminado de bretanhas, bordados e rendas. --Que ha hoje no _Jornal da Noite_? perguntou elle bocejando, em quanto Baptista o descalÃava. --Eu li-o todo, meu senhor, e nâo me pareceu que houvesse cousa alguma. Em FranÃa continËa socego... Mas a gente nunca pÃde saber, porque estes jornaes portuguezes imprimem sempre os nomes estrangeiros errados. --Sâo umas bestas. O sr. Ega hoje estava furioso com elles... Depois, em quanto Baptista preparava com esmero um _grog_ quente, Carlos j· deitado, aconchegado, abriu preguiÃosamente o livro, voltou duas folhas, fechou-o, tomou uma cigarette, e ficou fumando com as palpebras cerradas, n'uma immensa beatitude. AtravÃz das cortinas pesadas sentia-se o sudoeste que batia o arvoredo, e os aguaceiros alagando os vidros. --Tu conheces os srs. condes de Gouvarinho, Tista? --ConheÃo o Pimenta, meu senhor, que à creado de quarto do sr. conde... Creado de quarto e serve a meza. --E que diz entâo esse Tormenta? perguntou Carlos, n'uma voz indolente, depois d'um silencio. --Pimenta, meu senhor! O Manuel à Pimenta. O sr. Gouvarinho chama-lhe Româo, por que estava acostumado ao outro creado que era Româo. E j· isto nâo à bonito, porque cada um tem o seu nome. O Manuel à Pimenta. O Pimenta nâo est· contente... E Baptista, depois de collocar junto da cabeceira a salva com o _grog_, o assucareiro, as cigarettes, transmittiu as revelaÃıes do Pimenta. O conde de Gouvarinho, alÃm de muito massador e muito pequinhento, nâo tinha nada de cavalheiro: dera um fato de cheviot claro ao Româo (ao Pimenta), mas tâo coÃado e tâo cheio de riscas de tinta, de limpar a penna · perna e ao hombro, que o Pimenta deitou o presente fÃra. O conde e a senhora nâo se davam bem: j· no tempo do Pimenta, uma occasiâo, · mesa, tinham-se pegado de tal modo que ella agarrou do copo e do prato, e esmigalhou-os no châo. E outra qualquer teria feito o mesmo; por que o sr. conde, quando comeÃava a repisar, a remoer, nâo se podia aturar. As questıes eram sempre por causa de dinheiro. O Tompson velho estava farto de abrir os cordıes · bolsa... --Quem à esse Tompson velho, que nos apparece agora, a esta hora da noite? perguntou Carlos, a seu pesar interessado. --O Tompson velho à o pae da sr.^a condessa. A sr.^a condessa era uma miss Tompson, dos Tompson do Porto. O sr. Tompson nâo tem querido ultimamente emprestar nem mais um real ao genro: de sorte que, uma vez, j· no tempo do Pimenta tambem, o sr. conde, furioso, disse · senhora que ella e o pae se deviam lembrar que eram gente de commercio e que fora elle que fizera d'ella uma condessa; e com perdâo de v. ex.^a, a senhora condessa ali mesmo · mesa mandou o condado · tabËa... Estas cousas nâo estâo no genero do Pimenta. Carlos bebeu um gole de grog. Bailava-lhe nos labios uma pergunta, mas hesitava. Depois reflectiu na puerilidade de tâo rigidos escrupulos, a respeito d'uma gente, que ao jantar, diante do escudeiro, quebrava a porcelana, mandava · tabua o titulo dos antepassados. E perguntou: --Que diz o sr. Pimenta da senhora condessa, Baptista? Ella diverte-se? --Creio que nâo, meu senhor. Mas a creada de confianÃa d'ella, uma escosseza, essa à desobstinada. E nâo fica bem · senhora condessa ser assim tâo intima com ella... Houve um silencio no quarto, a chuva cantou mais forte nos vidros. --Passando a outro assumpto, Baptista. Vamos a saber, ha quanto tempo, nâo escrevo eu a madame Rughel? Baptista tirou do bolso interior da sua casaca um livro de apontamentos, aproximou-se da luz, encavalou a luneta no nariz, e verificou, com methodo, estas datas:--´Dia 1 de janeiro, telegramma expedido com felicitaÃıes do comeÃo d'anno a madame Rughel, Hotel d'Albe, Champs â¦lyseÃs, Paris. Dia 3, telegramma recebido de madame Rughel, reciprocando comprimentos, exprimindo amizade, annunciando partida para Hamburgo. Dia 15, carta lanÃada ao correio, para madame Rughel, _William-Strasse, Hamburgo, Allemagne_. Depois--mais nada. De modo que havia j· cinco semanas que o menino nâo escrevia a madame Rughel... --⦠necessario escrever ·manhâ, disse Carlos.. Baptista tomou uma nota. Depois, entre uma fumaÃa languida, a voz de Carlos ergueu-se de novo na paz dormente do quarto: --Madame Rughel era muito bonita, nâo à verdade, Baptista? ⦠a mulher mais bonita que tu tens visto na tua vida! O velho creado metteu o livro no bolso da casaca, e respondeu, sem hesitar, muito certo de si: --Madame Rughel era uma senhora de muita vista. Mas a mulher mais linda em que tenho posto os olhos, se o menino d· licenÃa, era aquella senhora do coronel de hussards que vinha ao quarto do hotel em Vienna. Carlos atirou a cigarette para a salva--e escorregando pela roupa abaixo, todo invadido por uma onda de recordaÃıes alegres, exclamou da profundidade do seu conforto, no antigo tom de emphase bohemia dos PaÃos de Cellas. --O sr. Baptista nâo tem gosto nenhum! Madame Rughel era uma nympha de Rubens, senhor! Madame Rughel tinha o explendor d'uma deusa da RenascenÃa, senhor! Madame Rughel devia ter dormido no leito imperial de Carlos Quinto...--Retire-se, senhor! Baptista entalou mais o _couvre-pieds_, relanceou pelo quarto um olhar solicito, e, contente, da ordem em que as cousas adormeciam, saÃu, levando o candieiro. Carlos nâo dormia: e nâo pensava na coronela de hussards, nem em madame Rughel. A figura que no escuro dos cortinados lhe apparecia, n'um vago dourado que provinha do reflexo de seus cabellos soltos, era a Gouvarinho--a Gouvarinho que nâo tinha o explendor d'uma deusa da RenascenÃa como madame Rughel, nem era a mulher mais linda em que Baptista pozera os seus olhos como a coronela de hussards: mas, com o seu nariz petulante e a sua boca grande, brilhava mais e melhor que todas na imaginaÃâo de Carlos--porque elle esperara-a essa noite e ella nâo tinha apparecido. Na terÃa-feira promettida Ega nâo veiu buscar Carlos para se irem _gouvarinhar_. E foi Carlos que d'ahi a dias, entrando como por acaso no _Universal_, perguntou rindo ao Ega: --Entâo quando nos _gouvarinhamos_? N'essa noite, em S. Carlos, n'um entre-acto dos _Huguenotes_, Ega apresentou-o ao sr. conde de Gouvarinho, no corredor das frizas. O conde, muito amavel, lembrou logo que j· tivera, mais de uma vez, o prazer de passar pela porta de S.^{ta} Olavia, quando ia vÃr os seus velhos amigos, os Tedins, a Entre-Rios--uma formosa vivenda tambem. Fallaram entâo do Douro, da Beira, compararam outras paisagens. Para o conde, nada havia, no nosso Portugal, como os campos do Mondego: mas a sua parcialidade era perdoavel, pois n'esses ferteis vales nascera e se creara: e fallou um momento de Formozelha, onde tinha casa, onde vivia edosa e doente sua mâe, a sr.^a condessa viuva... Ega, que affectara beber as palavras do conde, comeÃou entâo uma controversia, sustentando como se se tratasse dos dogmas d'uma fÃ, a belleza superior do Minho, ´esse paraiso idillico.ª O conde sorria: via ali, como elle observou a Carlos, batendo amavelmente no hombro do Ega, a rivalidade das duas provincias. EmulaÃâo fecunda, de resto, no seu pensar... --Ahi est·, por exemplo, dizia elle, o ciume entre Lisboa e Porto. ⦠uma verdadeira dualidade como a que existe entre a Hungria e a Austria... OuÃo por ali lamental-a. Pois bem, eu, se fosse poder, instigal-a-hia, acirral-a-hia, se v. ex.^{as} me permittem a expressâo. N'esta lucta das duas grandes cidades do reino, podem outros vÃr despeitos mesquinhos, eu vejo elementos de progresso. Vejo civilisaÃâo! Proferia estas cousas como do alto d'um pedestal, muito acima dos homens, deixando-as providamente caÃr dos thesouros do seu intellecto · maneira de dons inestimaveis. A voz era lenta e rotunda; os cristaes da sua luneta d'ouro faiscavam vistosamente; e no bigode encerado, na pera curta, havia ao mesmo tempo alguma cousa de doutoral e de casquilho. Carlos dizia: ´Tem v. ex.^a razâo, sr. conde.ª O Ega dizia: ´Vocà và essas cousas d'alto, Gouvarinhoª. Elle cruzara as mâos por baixo das abas da casaca--e estavam todos tres muito serios. Depois o conde abriu a porta da friza, Ega desappareceu. E d'ahi a um momento, Carlos, apresentado como ´visinho de camaroteª, recebia da sr.^a condessa um grande _shake-hand_, em que tilintaram uma infinidade d'aros de prata e de _blangles_ indios sobre a sua luva preta de doze botıes. A sr.^a condessa, um pouco corada, ligeiramente nervosa, lembrou logo a Carlos que o vira no verâo passado em Paris, no salâo baixo do Cafà Inglez: atà por signal estava n'essa noite um velho abominavel com duas garrafas vazias diante de si, e contando alto, para uma meza defronte, historias horrorosas do sr. Gambetta: um sujeito ao lado protestou; o outro nâo fez caso, era o velho duque de Grammont. O conde passou os dedos lentos pela testa, com um ar quasi angustioso: nâo se lembrava de nada d'isso! Queixou-se logo amargamente da sua falta de memoria. Uma cousa tâo indispensavel em quem segue a vida publica, a memoria! e elle desgraÃadamente, nâo possuia nem um atomo. Por exemplo, lera (como todo o homem devia lÃr) os vinte volumes da _Historia Universal de Cesar Cantu_; lÃra-os com attenÃâo, fechado no seu gabinete, absorvendo-se na obra. Pois, senhores, escapara-lhe tudo--e ali estava sem saber historia! --V. ex.^a tem boa memoria, sr. Maia? --Tenho uma rasoavel memoria. --Inapreciavel bem de que goza! A condessa voltara-se para a platÃa, coberta com o leque, com o ar constrangido, como se aquellas palavras pueris do marido a diminuissem, a desfeiassem... Carlos entâo fallou da opera. Que bello escudeiro huguenote fazia o Pandolli! A condessa nâo aturava o Corcelli, o tenor, com as suas notas asperas e aquella obesidade que o tornava _buffo_. Mas tambem (lembrava Carlos) onde havia hoje tenores? Passara essa grande raÃa dos Marios, homens de belleza, de inspiraÃâo, realisando os grandes typos lyricos. Nicolini era j· uma degeneraÃâo... Isto fez lembrar a Patti. A condessa adorava-a, e a sua graÃa de fada, e a sua voz semelhante a uma chuva d'ouro!... Os olhos brilhavam-lhe, diziam mil cousas; em certos movimentos, o cabello crespamente ondeado, tomava tons de oiro vermelho: e em torno d'ella errava, no calor do gaz e da enchente, um aroma exagerado de verbena. Estava de preto, com uma gargantilha, de rendas negras, · Valois, affogando-lhe o pescoÃo onde pousavam duas rosas escarlates. E toda a sua pessoa tinha um arsinho de provocaÃâo e de ataque. De pÃ, callado, grave, o conde batia a coxa com a claque fechada. O quarto acto comeÃara, Carlos ergueu-se; e os seus olhos encontraram defronte, na frisa do Cohen, o Ega, de binoculo, observando-o, mirando a condessa e fallando a Rachel, que sorria, movia o leque com um ar dolente e vago. --NÃs recebemos ·s terÃas feiras, disse a condessa a Carlos--e o resto da phrase perdeu-se n'um murmurio e n'um sorriso. O conde acompanhou-o fÃra, ao corredor. --⦠sempre uma honra para mim, dizia elle caminhando ao lado de Carlos, fazer o conhecimento das pessoas que valem alguma cousa n'este paiz ... V. ex.^a à d'esse numero, bem raro infelizmente. Carlos protestou, risonho. E o outro, na sua voz lenta e rotunda: --Nâo o lisongeio. Eu nunca lisongeio... Mas a v. ex.^a podem-se dizer estas cousas, porque pertence · _elite_: a desgraÃa de Portugal à a falta de gente, Isto à um paiz sem pessoal. Quer-se um bispo? Nâo ha um bispo. Quer-se um economista? Nâo ha um economista. Tudo assim! Veja v. ex.^a mesmo nas profissıes subalternas. Quer-se um bom estofador? Nâo ha um bom estofador... Um cheio de instrumentos e vozes, d'um tom sublime, passando pela porta da frisa entreaberta, cortou-lhe umas ultimas palavras sobre a defficiencia dos photographos... Escutou, com a mâo no ar: --⦠o _coro dos punhaes_, nâo? Ah vamos a ouvir... Ouve-se sempre isto com proveito. Ha philosophia n'esta musica... ⦠pena que lembre tâo vivamente os tempos da intolerancia religiosa, mas ha alli incontestavelmente philosophia! VI Carlos, n'essa manhâ, ia visitar de surpreza a casa do Ega, a famosa ´Villa Balzacª, que esse phantasista and·ra meditando e dispondo desde a sua chegada a Lisboa, e onde se tinha emfim installado. Ega dera-lhe esta denominaÃâo litteraria, pelos mesmos motivos porque a alug·ra n'um suburbio longiquo, na solidâo da Penha de FranÃa,--para que o nome de Balzac, seu padroeiro, o silencio campestre, os ares limpos, tudo alli fosse favoravel ao estudo, ·s horas d'arte e d'ideal. Por que ia fechar-se l·, como n'um claustro de lettras, a findar as _Memorias d'um Atomo!_ SÃmente, por causa das distancias, tinha tomado ao mez um coupà da companhia. Carlos teve difficuldades em encontrar a ´Villa Balzacª: nâo era, como tinha dito Ega no Ramalhete, logo adiante do largo da GraÃa um _chaletsinho_ retirado, fresco, assombreado, sorrindo entre arvores. Passava-se primeiro a Cruz dos Quatro Caminhos; depois penetrava-se n'uma vereda larga, entre quintaes, descendo pelo pendor da collina, mas accessivel a carruagens; e ahi, n'um recanto, ladeada de muros, apparecia emfim uma cazota de paredes enxovalhadas, com dois degraus de pedra · porta, e transparentes novos d'um escarlate estridente. N'essa manhâ, porÃm, debalde Carlos deu puxıes desesperados · corda da campainha, martellou a aldrava da porta, gritou a toda a voz por cima do muro do quintal e das copas das arvores o nome do Ega:--a ´Villa Balzacª permaneceu muda, como deshabitada, no seu retiro rustico. E todavia pareceu a Carlos que, justamente antes de bater, ouvira o estalar de rolhas de _Champagne_. Quando Ega soube esta tentativa, mostrou-se indignado com os criados, que assim abandonavam a casa, lhe davam um ar suspeito de Torre de Nesle... --Vae l· ·manhâ, se ninguem responder, escala as janellas, pega fogo ao predio, como se fossem apenas as Tulherias. Mas no dia seguinte, quando Carlos chegou, j· a ´Villa Balzacª o esperava, toda em festa: · porta ´o pagemª, um garoto de feiÃıes horrÃvelmente viciosas, perfilava-se na sua jaqueta azul de botıes de metal, com uma gravata muito branca e muito teza; as duas janellas em cima, abertas, mostrando o reps verde das bambinellas, bebiam · larga todo o ar do campo e o sol de inverno: e no topo da estreita escada, tapetada de vermelho, Ega, n'um prodigioso robe-de-chambre, de um estofo adamascado do seculo dezoito, vestido de cÃrte de alguma das suas avÃs, exclamou dobrando a fronte ao châo: --Bem vindo, meu principe, ao humilde tegurio do philosopho! Ergueu, com um gesto rasgado, um reposteiro de reps verde, d'um verde feio e triste, e introduziu o ´principeª na sala onde tudo era verde tambem: o reps que recobria uma mobilia de nogueira, o tecto de taboado, as listas verticaes do papel da parede, o pano franjado da mesa, e o reflexo d'um espelho redondo, inclinado sobre o soph·. Nâo havia um quadro, uma flÃr, um ornato, um livro--apenas sobre a jardineira uma estatueta de Napoleâo I, de pÃ, equilibrado sobre o orbe terrestre, n'essa conhecida attitude em que o heroe, com um ar pansudo e fatal, esconde uma das mâos por traz das costas, e enterra a outra nas profundidades do seu collete. Ao lado uma garrafa de _Champagne_, encarapuÃada de papel dourado, esperava entre dois copos esguios. --Para que tens tu aqui Napoleâo, John? --Como alvo de injurias, disse Ega. Exercito-me sobre elle a fallar dos tyrannos... Esfregou as mâos, radiante. Estava n'essa manhâ em alegria e em verve. E quiz immediatamente mostrar a Carlos o seu quarto de cama: ahi reinava um cretone de ramagens alvadias sobre fundo vermelho; e o leito enchia, esmagava tudo. Parecia ser o motivo, o centro da ´Villa Balzacª; e n'elle se esgotara a imaginaÃâo artistica do Ega. Era de madeira, baixo como um divan, com a barra alta, um roda-pà de renda, e d'ambos os lados um luxo de tapetes de felpo escarlate; um largo cortinado de seda da India avermelhada envolvia-o n'um apparato de tabernaculo; e dentro, · cabeceira, como n'um lupanar, reluzia um espelho. Carlos, muito seriamente, aconselhou-lhe que tirasse o espelho. Ega deu a todo o leito um olhar silencioso e dÃce, e disse depois de passar uma pontinha de lingua pelo beiÃo: --Tem seu chic... Sobre a mesinha de cabeceira erguia-se um montâo de livros: a _EducaÃâo_ de Spencer ao lado de BeaudelaÃre, a _Logica_ de Stuart Mill por cima do _Cavalleiro da Casa Vermelha_. No marmore da commoda havia outra garrafa de Champagne entre dous copos; o toucador, um pouco em desordem, mostrava uma enorme caixa de pà d'arroz no meio de plastrons e gravatas brancas do Ega, e um masso de ganchos do cabello ao lado de ferros de frisar. --E onde trabalhas tu, Ega, onde fazes tu a grande arte? --Alli! disse o Ega, alegremente, apontando para o leito. Mas foi mostrar logo o seu recantosinho estudioso, formado por um biombo, ao lado da janella, e tomado todo por uma mesa de pà de gallo, onde Carlos assombrado descobriu, entre o bello papel de cartas do Ega, um _Diccionario de Rimas_... E a visita · casa continuou. Na sala de jantar, quasi nua, caiada de amarello, um armario de pinho envidraÃado abrigava melancolicamente um serviÃo barato de louÃa nova; e do fecho da janella pendia um vestuario vermelho, que parecia roupâo de mulher. --⦠sobrio e simples--exclamou o Ega--como compete ·quelle que se alimenta d'uma codea d'Ideal e duas garfadas de Philosophia. Agora, · cosinha!... Abriu uma porta. Uma frescura de campos entrava pelas janellas abertas; e entreviam-se arvores de quintal, um verde de terrenos vagos, depois l· em baixo o branco de casarias rebrilhando ao sol; uma rapariga muito sardenta e muito forte sacudiu o gato do collo, ergueu-se, com o _Jornal de Noticias_ na mâo. Ega apresentou-a, n'um tom de farÃa: --A sr.^a Josepha, solteira, de temperamento sanguineo, artista culinaria da ´Villa Balzacª, e como se pÃde observar pelo papel que lhe pende das garras, cultora das boas letras! A moÃa sorria, sem embaraÃo, habituada de certo a estas familiaridades bohemias. --Eu hoje nâo janto c·, senhora Josepha, continuava o Ega no mesmo tom. Este formoso mancebo que me acompanha, duque do Ramalhete, e principe de Santa Olavia, d· hoje de papar ao seu amigo e philosopho... E, como quando eu recolher, talvez a senhora Josepha esteja entregue ao somno da innocencia, ou · vigilia da devassidâo, aqui lhe ordeno que me tenha amanhâ para meu _lunch_ duas formosas perdizes. E subitamente, n'uma outra voz, com um olhar que ella devia perceber: --Duas perdizesinhas bem assadas e bem cÃradinhas. Frias, est· claro... O costume. Travou do braÃo de Carlos, voltaram · sala. --Com franqueza, Carlos, que te parece a ´Villa Balzacª? Carlos respondeu como a respeito do episodio da _Hebrea_: --Est· ardente. Mas elogiou o aceio, a vista da casa e a frescura dos cretones. De resto, para um rapaz, para uma cella de trabalho... --Eu, dizia o Ega, passeiando pela sala, com as mâos enterradas nos bolsos do seu prodigioso robe de chambre, eu nâo tolero o _bibelot_, o _bric-â¡-brac_, a cadeira archeologica, essas mobilias d'arte... Que diabo, o movel deve estar em harmonia com a idÃa e o sentir do homem que o usa! Eu nâo penso, nem sinto como um cavalleiro do seculo XVI, para que me hei de cercar de cousas do seculo XVI? Nâo ha nada que me faÃa tanta melancolia, como ver n'uma sala um veneravel contador do tempo de Francisco I recebendo pela face conversas sobre eleiÃıes e altas de fundos. Faz-me o effeito d'um bello heroe de armadura d'aÃo, viseira cahida e crenÃas profundas no peito, sentado a uma mesa de voltarete a jogar copas. Cada seculo tem o seu genio proprio e a sua attitude propria. O seculo XIX concebeu a Democracia e a sua attitude à esta...--E enterrando-se d'estalo n'uma poltrona, espetou as pernas magras para o ar.--Ora esta attitude à impossivel n'um escabello do tempo do Prior do Crato. Menino, toca a beber o _Champagne_. E como Carlos olhava a garrafa desconfiado, Ega accudiu: --⦠excellente, que pensas tu? Vem directamente da melhor casa d'Epernay, arranjou-m'o o Jacob. --Que Jacob? --O Jacob Cohen, o Jacob. Ia cortar as guitas da rolha, quando o atravessou uma subita recordaÃâo, e pousando a garrafa outra vez, entalando o monocolo no olho: --⦠verdade! Entâo, n'outro dia, que tal, em casa dos Gouvarinhos? Eu infelizmente nâo poude ir. Carlos contou a _soirÃe_. Havia dez pessoas, espalhadas pelas duas salas, n'um zum-zum dormente, · meia luz dos candieiros. O conde massara-o indiscretamente com a politica, admiraÃıes idiotas por um grande orador, um deputado de Mesâo Frio, e explicaÃıes sem fim sobre a reforma da instrucÃâo. A condessa, que estava muito constipada, horrorisou-o, dando sobre a Inglaterra, apesar de ingleza, as opiniıes da rua de Cedofeita. Imaginava que a Inglaterra à um paiz sem poetas, sem artistas, sem ideaes, occupando-se sà de amontoar libras... Emfim, seccara-se. --Que diabo! murmurou o Ega n'um tom de viva desconsolaÃâo. A rolha estalou, elle encheu os copos em silencio; e n'uma _saude_ muda os dois amigos beberam o _Champagne_--que Jacob arranjara ao Ega, para o Ega se regalar com Rachel. Depois, de pÃ, com os olhos no tapete, agitando de vagar o copo novamente cheio onde a espuma morria, Ega tornou a murmurar, n'aquella entoaÃâo triste de inesperado desapontamento: --Que ferro!... E apÃs um momento: --Pois menino, pensei que a Gouvarinho te appetecÃa... Carlos confessou que nos primeiros dias, quando Ega lhe fallara d'ella, tivera um caprichosinho, interessara-se por aquelles cabellos cÃr de brasa... --Mas agora, mal a conheci, o capricho foi-se... Ega sentara-se, com o copo na mâo; e depois de contemplar algum tempo as suas meias de seda, escarlates como as d'um prelado, deixou cair, muito serio, estas palavras: --⦠uma mulher deliciosa, Carlinhos. E, como Carlos encolhia os hombros, Ega insistio: a Gouvarinho era uma senhora de intelligencia e de gosto; tinha originalidade, tinha audacia, uma pontinha de romantismo muito picante... --E, como corpinho de mulher, nâo ha melhor que aquillo de Badajoz para c·! --Vae-te d'ahi, Mephistopheles de Celorico! E Ega, divertido, cantarolou: Je suis Mephisto... Je suis Mephisto... Carlos no entanto, fumando preguiÃosamente, continuava a fallar na Gouvarinho e n'essa brusca saciedade que o invadira, mal trocara com ella tres palavras n'uma sala. E nâo era a primeira vez que tinha d'estes falsos arranques de desejo, vindo quasi com as formas do amor, ameaÃando absorver, pelo menos por algum tempo, todo o seu ser, e resolvendo-se em tedio, em ´seccaª. Eram como os fogachos de polvora sobre uma pedra; uma fagulha atÃa-os, n'um momento tornam-se chamma vehemente que parece que vae consumir o Universo, e por fim fazem apenas um rastro negro que suja a pedra. Seria o seu um d'esses coraÃıes de fraco, molles e flaccidos, que nâo podem conservar um sentimento, o deixam fugir, escoar-se pelas malhas lassas do tecido relles? --Sou um ressequido! disse elle sorrindo. Sou um impotente de sentimento, como Satanaz... Segundo os padres da Egreja, a grande tortura de Satanaz à que nâo pÃde amar... --Que phrases essas, menino! murmurou Ega. Como phrases? Era uma atroz realidade! Passava a vida a ver as paixıes falharem-lhe nas mâos como phosphoros. Por exemplo, com a coronela de hussards em Vienna! Quando ella faltou ao primeiro _rendez-vous_, chorara lagrimas como punhos, com a cabeÃa enterrada no travesseiro e aos coices · roupa. E d'ahi a duas semanas, mandava postar o Baptista · janella do hotel, para elle se safar, mal a pobre coronela dobrasse a esquina! E com a hollandeza, com Madame Rughel, peior ainda. Nos primeiros dias foi uma insensatez: queria-se estabelecer para sempre na Hollanda, casar com ella (apenas ella se divorciasse), outras loucuras; depois os braÃos que ella lhe deitava ao pescoÃo, e que lindos braÃos, pareciam-lhe pesados como chumbo... --Passa fÃra, pedante! E ainda lhe escreves! gritou Ega. --Isso à outra cousa. Ficamos amigos, puras relaÃıes de intelligencia. Madame Rughel à uma mulher de muito espirito. Escreveu um romance, um d'esses estudos intimos e delicados, como os de Miss Brougthon: chama-se as _Rosas Murchas_. Eu nunca li, à em hollandez... --As _Rosas Murchas_! em hollandez! exclamou Ega apertando as mâos na cabeÃa. Depois vindo plantar-se diante de Carlos, de monocolo no olho: --Tu Ãs extraordinario, menino!... Mas o teu caso à simples, à o caso de D. Juan. D. Juan tambem tinha essas alternaÃıes de chamma e cinza. Andava · busca do seu ideal, da _sua mulher_, procurando-a principalmente, como de justiÃa, entre as mulheres dos outros. E _aprÃs avoir couchÃ_, declarava que se tinha enganado, que nâo era aquella. Pedia desculpa e retirava-se. Em Hespanha experimentou assim mil e tres. Tu Ãs simplesmente, como elle, um devasso; e has de vir a acabar desgraÃadamente como elle, n'uma tragedia infernal! Esvasiou outro copo de _Champagne_, e a grandes passadas pela sala: --Carlinhos da minha alma, à inutil que ninguem ande · busca da _sua mulher_. Ella vir·. Cada um tem a _sua mulher_, e necessariamente tem de a encontrar. Tu est·s aqui, na Cruz dos Quatro Caminhos, ella est· talvez em Pekin: mas tu, ahi a raspar o meu reps com o verniz dos sapatos, e ella a orar no templo de Confucio, estaes ambos insensivelmente, irresistivelmente, fatalmente, marchando um para o outro!... Estou eloquentissimo hoje, e temos dito cousas idiotas. Toca a vestir. E, em quanto eu adorno a carcassa, prepara mais phrases sobre Satanaz! Carlos ficou na sala verde, acabando o charuto--em quanto dentro o Ega batia com as gavetas, lanÃando, a todo o desafinado da sua voz roufenha, a _Barcarolla_ de Gounod. Quando appareceu, vinha de casaca, gravata branca, enfiando o paletot--com o olho brilhante do _Champagne_. Desceram. O pagem l· estava · porta perfilado, ao pà do coupà de Carlos, que esperara. E a sua fardeta azul de botıes amarellos, a magnifica parelha baia reluzindo como um setim vivo, as pratas dos arreios, a magestade do cocheiro louro com o seu ramo na librÃ, tudo alli fazia, junto da ´Villa Balzacª, um quadro rico que deleitou o Ega. --A vida à agradavel, disse elle. O coupà partiu, ia entrar no largo da GraÃa, quando uma caleche de praÃa, aberta, o cruzou a largo trote. Dentro um sujeito de chapÃo baixo Ãa lendo um grande jornal. --⦠o Craft! gritou Ega, debruÃando-se pela portinhola. O coupà parou. Ega de um pulo estava na calÃada, correndo, bradando: --Oh Craft! oh Craft! Quando, d'ahi a um momento, sentiu duas vozes approximarem-se, Carlos desceu tambem do coupÃ, achou-se em face d'um homem baixo, louro, de pelle rosada e fresca, e apparencia fria. Sob o fraque correcto percebia-se-lhe uma musculatura de athleta. --O Carlos, o Craft, gritou o Ega, lanÃando esta apresentaÃâo com uma simplicidade classica. Os dois homens, sorrindo, tinham-se apertado a mâo. E Ega insistia para que voltassem todos · Villa Balzac, fossem beber a outra garrafa de _Champagne_, a celebrar o _advento do Justo_! Craft recusou, com o seu modo calmo e placido; chegara na vespera do Porto, abraÃara j· o nobre Ega, e aproveitava agora a viagem ·quelle bairro longinquo para ir vÃr o velho Shlegen, um allemâo que vivia · Penha de FranÃa. --Entâo outra cousa! exclamou Ega. Para conversarmos, para que vocÃs se conheÃam mais, venham vocÃs jantar comigo amanhâ ao Hotel Central. Dito, hein? Perfeitamente. ¡s seis. Apenas o coupà partiu de novo, Ega rompeu nas costumadas admiraÃıes pelo Craft, encantado com aquelle encontro que dava mais um retoque luminoso · sua alegria. O que o enthusiasmava no Craft era aquelle ar imperturbavel de gentleman correcto, com que elle egualmente jogaria uma partida de bilhar, entraria n'uma batalha, arremetteria com uma mulher, ou partiria para a Patagonia... --⦠das melhores cousas que tem Lisboa. Vaes-te morrer por elle... E que casa que elle tem nos Olivaes, que sublime bric-a-brac! Subitamente estacou, e com um olhar inquieto, uma ruga na testa: --Como diabo soube elle da _Villa Balzac_? --Tu nâo fazes segredo d'ella, hein? --Nâo... Mas tambem nâo a puz nos annuncios! E o Craft chegou hontem, ainda nâo esteve com ninguem que eu conheÃa... ⦠curioso! --Em Lisboa sabe-se tudo... --Canalha de terra! murmurou Ega. O jantar no Central foi addiado, porque o Ega, alargando pouco a pouco a idÃa, convertera-o agora n'uma festa de ceremonia em honra do Cohen. --Janto l· muitas vezes, disse elle a Carlos, estou l· todas as noites... ⦠necessario repagar a hospitalidade... Um jantar no Central à o que basta. E para o effeito moral, pespego-lhe · meza o marquez e a besta do Steinbroken. O Cohen gosta de gente assim... Mas o plano teve ainda de ser alterado: o marquez partira para a Gollegâ, e o pobre Steinbroken estava soffrendo d'um incommodo de entranhas. Ega pensou no Cruges e no Taveira--mas receiou a cabelleira desleixada do Cruges, e alguns dos seus ataques de amargo _spleen_ que estragaria o jantar. Terminou por convidar dois intimos do Cohen; mas teve entâo de supprimir o Taveira, que estava de mal com um d'esses cavalheiros por palavras que tinham trocado em casa da ´Lola gordaª. Decididos os convidados, fixado o jantar para uma segunda feira, Ega teve uma conferencia com o _maitre de hotel_ do Central, em que lhe recommendou muita flÃr, dois ananazes para enfeitar a meza, e exigiu que um dos pratos do _menu_, qualquer d'elles, fosse _â¡ la Cohen_; e elle mesmo suggeriu uma idÃa: _tomates farcies â¡ la Cohen_... N'essa tarde, ·s seis horas, Carlos, ao descer a rua do Alecrim para o Hotel Central, avistou Craft dentro da loja de bric-a-brac do tio Abrahâo. Entrou. O velho judeo, que estava mostrando a Craft uma falsa faienÃa do Rato, arrancou logo da cabeÃa o sujo barrete de borla, e ficou curvado em dois, diante de Carlos, com as duas mâos sobre o coraÃâo. Depois, n'uma linguagem exotica, misturada d'inglez, pediu ao seu bom senhor D. Carlos da Maia, ao seu digno senhor, ao seu _beautiful gentleman_, que se dignasse examinar uma maravilhasinha que lhe tinha reservada; e o seu muito _generous gentleman_ tinha sà a voltar os olhos, a maravilhasinha estava alli ao lado, n'uma cadeira. Era um retrato d'hespanhola, apanhado a fortes brochadellas de primeira impressâo, e pondo, sobre um fundo audaz de cÃr de rosa murcha, uma face gasta de velha garÃa, picada das bexigas, cai·da, ressudando vicio, com um sorriso bestial que promettia tudo. Carlos, tranquillamente, offereceu dez tostıes. Craft pasmou d'uma tal prodigalidade; e o bom Abrahâo, n'um riso mudo que lhe abria entre a barba grisalha uma grande boca d'um sà dente, saboreou muito a ´chalaÃa dos seus ricos senhores.ª Dez tostıesinhos! Se o quadrinho tivesse por baixo o nomesinho de Fortuny, valia dez continhos de rÃis. Mas nâo tinha esse nomesinho bemdito... Ainda assim valia dez notasinhas de vinte mil rÃis... --Dez cordas para te enforcar, hebreu sem alma! exclamou Carlos. E sahiram, deixando o velho intrujâo · porta, curvado em dois, com as mâos sobre o coraÃâo, desejando mil felicidades aos seus generosos fidalgos... --Nâo tem uma unica cousa boa, este velho Abrahâo, disse Carlos. --Tem a filha, disse o Craft. Carlos achava-a bonita, mas horrivelmente suja. Entâo, a proposito do Abrahâo, fallou a Craft d'essas bellas collecÃıes dos Olivaes, que o Ega, apesar do desdem que affectava pelo _bibelot_ e pelo movel d'arte, lhe descrevera como sublimes. Craft encolheu os hombros. --O Ega nâo entende nada. Mesmo em Lisboa, nâo se pÃde chamar ao que eu tenho uma collecÃâo. ⦠um bric-a-brac d'acaso... De que, de resto, me vou desfazer! Isto surprehendeu Carlos. Comprehendera das palavras do Ega ser essa uma collecÃâo formada com amor, no laborioso decurso de annos, orgulho e cuidado d'uma existencia de homem... Craft sorrio d'aquella legenda. A verdade era que sà em 1872, elle comeÃara a interessar-se pelo bric-a-brac; chegava entâo da America do Sul; e o que fora comprando, descobrindo aqui e alÃm, accumulara-o n'essa casa dos Olivaes, alugada entâo por phantasia, uma manhâ que aquelle pardieiro, com o seu bocado de quintal em redor, lhe parecera pittoresco, sob o sol de abril. Mas agora se podesse desfazer-se do que tinha, ia dedicar-se entâo a formar uma collecÃâo homogenea e compacta d'arte do seculo desoito. --Aqui nos Olivaes? --Nâo. N'uma quinta que tenho ao pà do Porto, junto mesmo ao rio. Entravam entâo no peristilo do Hotel Central--e n'esse momento um coupà da Companhia, chegando a largo trote do lado da rua do Arsenal, veiu estacar · porta. Um esplendido preto, j· grisalho, de casaca e calÃâo, correu logo · portinhola; de dentro um rapaz muito magro, de barba muito negra, passou-lhe para os braÃos uma deliciosa cadelinha escosseza, de pellos esguedelhados, finos como seda e cÃr de prata; depois apeando-se, indolente e _poseur_, offereceu a mâo a uma senhora alta, loura, com um meio vÃo muito apertado e muito escuro que realÃava o explendor da sua carnaÃâo eburnea. Craft e Carlos affastaram-se, ella passou diante d'elles, com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando atraz de si como uma claridade, um reflexo de cabellos d'ouro, e um aroma no ar. Trazia um casaco collante de velludo branco de Genova, e um momento sobre as lages do peristillo brilhou o verniz das suas bottinas. O rapaz ao lado, esticado n'um fato de xadresinho inglez, abria negligentemente um telegramma; o preto seguia com a cadelhinha nos braÃos. E no silencio a voz de Craft murmurou: --_TrÃs chic_. Em cima, no gabinete que o creado lhes indicou, Ega esperava, sentado no divan de marroquim, e conversando com um rapaz baixote, gordo, frisado como um noivo de provincia, de camelia ao peito e plastron azul celeste. O Craft conhecia-o; Ega apresentou a Carlos o sr. Damaso SalcÃde, e mandou servir vermouth, por ser tarde, segundo lhe parecia, para esse requinte litterario e satanico do _absintho_... FÃra um dia d'inverno suave e luminoso, as duas janellas estavam ainda abertas. Sobre o rio, no cÃu largo, a tarde morria, sem uma aragem, n'uma paz elysea, com nuvensinhas muito altas, paradas, tocadas de cÃr de rosa; as terras, os longes da outra banda j· se iam affogando n'um vapor avelludado, do tom de violeta; a agoa jazia liza e luzidia como uma bella chapa d'aÃo novo; e aqui e alem, pelo vasto ancoradouro, grossos navios de carga, longos paquetes estrangeiros, dois couraÃados inglezes, dormiam, com as mastreaÃıes immoveis, como tomados de preguiÃa, cedendo ao affago do clima doce... --Vimos agora l· em baixo, disse Craft indo sentar-se no divan, uma esplendida mulher, com uma esplendida cadellinha _griffon_, e servida por um esplendido preto! O sr. Damaso SalcÃde, que nâo despegava os olhos de Carlos, acudiu logo: --Bem sei! Os Castro Gomes... ConheÃo-os muito... Vim com elles de Bordeus... Uma gente muito chic que vive em Paris. Carlos voltou-se, reparou mais n'elle, perguntou-lhe, affavel e interessando-se: --O senhor SalcÃde chegou agora de Bordeus? Estas palavras pareceram deleitar Damaso como um favor celeste: ergueu-se immediatamente, approximou-se do Maia, banhado n'um sorriso: --Vim aqui ha quinze dias, no _Orenoque_. Vim de Paris... Que eu em podendo à l· que me pilham! Esta gente conheci-a em Bordeus. Isto Ã, verdadeiramente conheci-a a bordo. Mas estavamos todos no _Hotel de Nantes_... Gente muito chic: creado de quarto, governanta ingleza para a filhita, femme de chambre, mais de vinte malas... Chic a valer! Parece incrivel, uns brazileiros... Que ella na voz nâo tem _sutaque_ nenhum, falla como nÃs. Elle sim, elle muito _sutaque_... Mas elegante tambem, v. ex.^a nâo lhe pareceu? --Vermouth? perguntou-lhe o creado, offerecendo a salva. --Sim, uma gotinha para o appetite. V. ex.^a nâo toma, sr. Maia? Pois eu, assim que posso, à direitinho para Paris! Aquillo à que à terra! Isto aqui à um chiqueiro... Eu, em nâo indo l· todos os annos, acredite v. ex.^a, atà comeÃo a andar doente. Aquelle _boulevarsinho_, hein!... Ai, eu goso aquillo!... E sei gosar, sei gosar, que eu conheÃo aquillo a palmo... Tenho atà um tio em Paris. --E que tio! exclamou Ega, approximando-se. Intimo do Gambetta, governa a FranÃa... O tio do Damaso governa a FranÃa, menino! Damaso, escarlate, estourava de gÃso. --Ah, l· isso influencia tem. Intimo do Gambetta, tratam-se por tu, atà vivem quasi juntos... E nâo à sà com o Gambetta; à com o Mac-Mahon, com o Rochefort, com o outro de que me esquece agora o nome, com todos os republicanos, emfim!... ⦠tudo quanto elle queira. V. ex.^a nâo o conhece? ⦠um homem de barbas brancas... Era irmâo de minha mâe, chama-se Guimarâes. Mas em Paris chamam-lhe Mr. de Guimaran... N'esse momento a porta envidraÃada abriu-se de golpe, Ega exclamou: ´Saude ao poetaª! E appareceu um individuo muito alto, todo abotoado n'uma sobrecasaca preta, com uma face escaveirada, olhos encovados, e sob o nariz aquilino, longos, espessos, romanticos bigodes grisalhos: j· todo calvo na frente, os anneis fÃfos d'uma grenha muito secca cahiam-lhe inspiradamente sobre a golla: e em toda a sua pessoa havia alguma cousa de antiquado, de artificial e de lugubre. Estendeu silenciosamente dous dedos ao Damaso, e abrindo os braÃos lentos para Craft, disse n'uma voz arrastada, cavernosa, atheatrada: --Entâo Ãs tu, meu Craft! Quando chegaste tu, rapaz? D·-me c· esses ossos honrados, honrado inglez! Nem um olhar dera a Carlos. Ega adiantou-se, apresentou-os: --Nâo sei se sâo relaÃıes. Carlos da Maia... Thomaz d'Alencar, o nosso poeta... Era elle! o illustre cantor das _Vozes d'Aurora_, o estylista de _Elvira_, o dramaturgo do _Segredo do Commendador_. Deu dois passos graves para Carlos, esteve-lhe apertando muito tempo a mâo em silencio--e sensibilisado, mais cavernoso: --V. ex.^a, j· que as etiquetas sociaes querem que eu lhe dà excellencia, mal sabe a quem apertou agora a mâo... Carlos, surprehendido, murmurou: --Eu conheÃo muito de nome... E o outro com o olho cavo, o labio tremulo: --Ao camarada, ao inseparavel, ao intimo de Pedro da Maia, do meu pobre, do meu valente Pedro! --Entâo, que diabo, abracem-se! gritou Ega. Abracem-se, com um berro, segundo as regras... Alencar j· tinha Carlos estreitado ao peito, e quando o soltou, retomando-lhe as mâos, sacudindo-lh'as, com uma ternura ruidosa: --E deixemo-nos j· de excellencias! que eu vi-te nascer, meu rapaz! trouxe-te muito ao collo! sujaste-me muita calÃa! Co'os diabos, d· c· outro abraÃo! Craft olhava estas cousas vehementes, impassivel; Damaso parecia impressionado; Ega apresentou um copo de _vermouth_ ao poeta: --Que grande scena, Alencar! Jesus, Senhor! Bebe, para te recuperares da emoÃâo... Alencar esgotou-o d'um trago: e declarou aos amigos que nâo era a primeira vez que via Carlos. J· o admirara no seu phaeton, muitas vezes, e aos seus bellos cavallos inglezes. Mas nâo se quizera dar a conhecer. Elle nunca se atirava aos braÃos de ninguem, a nâo ser das mulheres... Foi encher outro calice de _vermouth_, e com elle na mâo, plantado diante de Carlos, comeÃou, n'um tom pathetico: --A primeira vez que te vi, filho, foi no Pote das Almas! Estava eu no Rodrigues, esquadrinhando alguma d'essa velha litteratura, hoje tâo despresada... Lembro-me atà que era um volume das _Eclogas_ do nosso delicioso Rodrigues Lobo, esse verdadeiro poeta da natureza, esse rouxinol tâo portuguez, hoje, est· claro, mettido a um canto, desde que para ahi appareceu o Satanismo, o Naturalismo e o Bandalhismo, e outros esterquilinios em _ismo_... N'esse momento passaste, disseram-me quem eras, e cahiu-me o livro da mâo... Fiquei alli uma hora, acredita, a pensar, a rever o passado... E atirou o _vermouth_ ·s goellas. Ega, impaciente, olhava o relogio. Um creado, entrando, accendeu o gaz; a mesa surgiu da penumbra, com um brilho de cristaes e louÃas, um luxo de camelias em ramos. No entanto Alencar (que · luz viva parecia mais gasto e mais velho) comeÃara uma grande historia, e como fÃra elle o primeiro que vira Carlos depois de nascer, e como fÃra elle que lhe dera o nome. --Teu pae, dizia elle, o meu Pedro, queria-te pÃr o nome d'Affonso, d'esse santo, d'esse varâo d'outras edades, Affonso da Maia! Mas tua mâe que tinha l· as suas idÃas teimou em que havias de ser Carlos. E justamente por causa d'um romance que eu lhe emprest·ra; n'esses tempos podiam-se emprestar romances a senhoras, ainda nâo havia a pustula e o puz... Era um romance sobre o ultimo Stuart, aquelle bello typo do principe Carlos Eduardo, que vocÃs, filhos, conhecem todos bem, e que na Escossia, no tempo de Luiz XIV... Emfim, adiante! Tua mâe, devo dizel-o, tinha litteratura e da melhor. Consultou-me, consultava-me sempre, n'esse tempo eu era _alguem_, e lembro-me de lhe ter respondido... (Lembro-me apesar de j· l· irem vinte e cinco annos... Que digo eu? Vinte e sete! Vejam vocÃs isto, filhos, vinte e sete annos!) Emfim, voltei-me para tua mâe, e disse-lhe, palavras textuaes: ´Ponha-lhe o nome de Carlos Eduardo, minha rica senhora, Carlos Eduardo, que à o verdadeiro nome para o frontespicio d'um poema, para a fama d'um heroismo ou para o labio d'uma mulher!ª Damaso, que continuava a admirar Carlos, deu _bravos_ estrondosos; Craft bateu ligeiramente os dedos; e o Ega, que rondava a porta, nervoso, de relogio na mâo, soltou de l· um _muito bem_ desenxabido. Alencar, radiante com o seu effeito, derramava em roda um sorriso que lhe mostrava os dentes estragados. AbraÃou outra vez Carlos, atirou uma palmada ao coraÃâo, exclamou: --Caramba, filhos, sinto uma luz c· dentro! A porta abriu-se, o Cohen entrou, todo apressado, desculpando-se logo da sua demora--emquanto Ega, que se precipitara para elle, lhe ajudava a despir o palletot. Depois apresentou-o a Carlos--a unica pessoa alli de quem o Cohen nâo era intimo. E dizia, tocando o botâo da campainha electrica: --O marquez nâo pÃde vir, menino, e o pobre Steinbroken, coitado, est· com a sua gÃtta, a gÃtta de diplomata, de lord e de banqueiro... A gÃtta que tu has de ter, velhaco! Cohen, um homem baixo, apurado, de olhos bonitos, e suissas tâo pretas e luzidias que pareciam ensopadas em verniz, sorria, descalÃando as luvas, dizendo, que, segundo os inglezes, havia tambem a gÃtta de gente pobre; e era essa naturalmente a que lhe competia a elle... Ega, no entanto, travara-lhe do braÃo, collocara-o preciosamente · mesa, · sua direita: depois offereceu-lhe um botâo de camelia d'um ramo: o Alencar florio-se tambem--e os creados serviram as ostras. Fallou-se logo do crime da Mouraria, drama fadista que impressionava Lisboa, uma rapariga com o ventre rasgado · navalha por uma companheira, vindo morrer na rua em camisa, dois faias esfaqueando-se, toda uma viella em sangue--uma _sarrabulhada_ como disse o Cohen, sorrindo e provando o Bucellas. Damaso teve a satisfaÃâo de poder dar detalhes; conhecera a rapariga, a que dera as facadas, quando ella era amante do visconde da Ermidinha... Se era bonita? Muito bonita. Umas mâos de duqueza... E como aquillo cantava o _fado_! O peior era que mesmo no tempo do visconde, quando ella era chic, j· se empiteirava... E o visconde, honra lhe seja, nunca lhe perdera a amisade; respeitava-a, mesmo depois de casado Ãa vel-a, e tinha-lhe promettido que se ella quizesse deixar o _fado_ lhe punha uma confeitaria para os lados da SÃ. Mas ella nâo queria. Gostava d'aquillo, do Bairro Alto, dos cafÃs de _lepes_, dos chulos... Esse mundo de fadistas, de faias, parecia a Carlos merecer um estudo, um romance... Isto levou logo a fallar-se do _Assommoir_, de Zola e do realismo:--e o Alencar immediatmente, limpando os bigodes dos pingos de sÃpa, supplicou que se nâo discutisse, · hora aceada do jantar, essa litteratura _latrinaria_. Alli todos eram homens d'aceio, de sala, hein? Entâo, que se nâo mencionasse o _excremento_! Pobre Alencar! O naturalismo; esses livros poderosos e vivazes, tirados a milhares de ediÃıes; essas rudes analyses, apoderando-se da Egreja, da Realeza, da Bureocracia, da FinanÃa, de todas as cousas santas, dissecando-as brutalmente e mostrando-lhes a lesâo, como a cadaveres n'um amphitheatro; esses estylos novos, tâo precisos e tâo ducteis, apanhando em flagrante a linha, a cÃr, a palpitaÃâo mesma da vida; tudo isso (que elle, na sua confusâo mental, chamava a _IdÃa nova_) caindo assim de chofre e escangalhando a cathedral romantica, sob a qual tantos annos elle tivera altar e celebrara missa, tinha desnorteado o pobre Alencar e tornara-se o desgosto litterario da sua velhice. Ao principio reagiu. ´Para pÃr um dique definitivo · torpe marê, como elle disse em plena Academia, escreveu dois folhetins crueis; ninguem os leu; a ´marà torpeª alastrou-se, mais profunda, mais larga. Entâo Alencar refugiou-se na _moralidade_ como n'uma rocha solida. O naturalismo, com as suas alluviıes de obscenidade, ameaÃava corromper o pudor social? Pois bem. Elle, Alencar, seria o paladino da Moral, o gendarme dos bons costumes. Entâo o poeta das _Vozes d'Aurora_, que durante vinte annos, em canÃoneta e ode, propozera commercios lubricos a todas as damas da capital; entâo o romancista de _Elvira_ que, em novella e drama, fizera a propaganda do amor illegitimo, representando os deveres conjugaes como montanhas de tedio, dando a todos os maridos formas gordurosas e bestiaes, e a todos os amantes a belleza, o esplendor e o genio dos antigos Apollos; entâo Thomaz Alencar que (a acreditarem-se as confissıes autobiographicas da _FlÃr de Martyrio_) passava elle proprio uma existencia medonha de adulterios, lubricidades, orgias, entre velludos e vinhos de Chypre--d'ora em diante austero, incorruptivel, todo elle uma torre de pudicicia, passou a vigiar attentamente o jornal, o livro, o theatro. E mal lobrigava symptomas nascentes de realismo n'um beijo que estalava mais alto, n'uma brancura de saia que se arregaÃava de mais--eis o nosso Alencar que soltava por sobre o paiz um grande grito de alarme, corria · penna, e as suas imprecaÃıes lembravam (a academicos faceis de contentar) o rugir de Isaias. Um dia porÃm, Alencar teve uma d'estas revelaÃıes que prostram os mais fortes; quanto mais elle denunciava um livro como immoral, mais o livro se vendia como agradavel! O Universo pareceu-lhe cousa torpe, e o auctor de _Elvira_ encavacou... Desde entâo reduziu a expressâo do seu rancor ao minimo, a essa phrase curta, lanÃada com nojo: --Rapazes, nâo se mencione o _excremento_! Mas n'essa noite teve o regosijo de encontrar alliados. Craft nâo admittia tambem o naturalismo, a realidade feia das cousas e da sociedade estatelada nua n'um livro. A arte era uma idealisaÃâo! Bem: entâo que mostrasse os typos superiores d'uma humanidade aperfeiÃoada, as fÃrmas mais bellas do viver e do sentir... Ega horrorisado apertava as mâos na cabeÃa--quando do outro lado Carlos declarou que o mais intoleravel no realismo eram os seus grandes ares scientificos, a sua pretenciosa esthetica deduzida d'uma philosophia alheia, e a invocaÃâo de Claude Bernard, do experimentalismo, do positivismo, de Stuart Mill e de Darwin, a proposito d'uma lavadeira que dorme com um carpinteiro! Assim atacado, entre dois fogos, Ega trovejou: justamente o fraco do realismo estava em ser ainda pouco scientifico, inventar enredos, crear dramas, abandonar-se · phantasia litteraria! a fÃrma pura da arte naturalista devia ser a monographia, o estudo secco d'um typo, d'um vicio, d'uma paixâo, tal qual como se se tratasse d'um caso pathologico, sem pittoresco e sem estylo!... --Isso à absurdo, dizia Carlos, os caracteres sà se podem manifestar pela acÃâo... --E a obra d'arte, accrescentou Craft, vive apenas pela fÃrma... Alencar interrompeu-os, exclamando que nâo eram necessarias tantas philosophias. --VocÃs estâo gastando cÃra com ruins defuntos, filhos. O realismo critica-se d'este modo: mâo no nariz! Eu quando vejo um d'esses livros, enfrasco-me logo em agua de colonia. Nâo discutamos o _excremento_. --_Sole normande_? perguntou-lhe o creado, adiantando a travessa. Ega Ãa fulminal-o. Mas, vendo que o Cohen dava um sorriso enfastiado e superior a estas controversias de litteraturas, calou-se; occupou-se sà d'elle, quiz saber que tal elle achava aquelle S.^t Emilion; e, quando o viu confortavelmente servido de _sole normande_, lanÃou com grande alarde de interesse esta pergunta: --Entâo, Cohen, diga-nos vocÃ, conte-nos c·... O emprestimo faz-se ou nâo se faz? E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que aquella questâo do emprestimo era grave. Uma operaÃâo tremenda, um verdadeiro episodio historico!... O Cohen collocou uma pitada de sal · beira do prato, e respondeu, com auctoridade, que o emprestimo tinha de se realisar _absolutamente_. Os emprestimos em Portugal constituiam hoje uma das fontes de receita, tâo regular, tâo indispensavel, tâo sabida como o imposto. A unica occupaÃâo mesmo dos ministerios era esta--_cobrar o imposto_ e _fazer o emprestimo_. E assim se havia de continuar... Carlos nâo entendia de finanÃas: mas parecia-lhe que, d'esse modo, o paiz ia alegremente e lindamente para a _banca-rota_. --N'um galopesinho muito seguro e muito a direito, disse o Cohen, sorrindo. Ah, sobre isso, ninguem tem illusıes, meu caro senhor. Nem os proprios ministros da fazenda!... A _banca-rota_ à inevitavel: à como quem faz uma somma... Ega mostrou-se impressionado. Olha que brincadeira, hein! E todos escutavam o Cohen. Ega, depois de lhe encher o calice de novo, fincara os cotovellos na meza para lhe beber melhor as palavras. --A _banca-rota_ à tâo certa, as cousas estâo tâo dispostas para ella--continuava o Cohen--que seria mesmo facil a qualquer, em dois ou tres annos, fazer fallir o paiz... Ega gritou sofregamente pela _receita_. Simplesmente isto: manter uma agitaÃâo revolucionaria constante; nas vesperas de se lanÃarem os emprestimos haver duzentos maganıes decididos que cahissem · pancada na municipal e quebrassem os candieiros com vivas · Republica; telegraphar isto em letras bem gordas para os jornaes de Paris, Londres e do Rio de Janeiro; assustar os mercados, assustar o brazileiro, e a _banca-rota_ estalava. SÃmente, como elle disse, isto nâo convinha a ninguem. Entâo Ega protestou com vehemencia. Como nâo convinha a ninguem? Ora essa! Era justamente o que convinha a todos! ¡ _banca-rota_ seguia-se uma revoluÃâo, evidentemente. Um paiz que vive da _inscripÃâo_, em nâo lh'a pagando, agarra no cacete; e procedendo por principio, ou procedendo apenas por vinganÃa--o primeiro cuidado que tem à varrer a monarchia que lhe representa o _calote_, e com ella o crasso pessoal do constitucionalismo. E passada a crise, Portugal livre da velha divida, da velha gente, d'essa collecÃâo grotesca de bestas... A voz do Ega sibillava... Mas, vendo assim tratados de _grotescos_, de _bestas_, os homens d'ordem que fazem prosperar os Bancos, Cohen pousou a mâo no braÃo do seu amigo e chamou-o ao bom-senso. Evidentemente, elle era o primeiro a dizel-o, em toda essa gente que figurava desde 46 havia mediocres e patetas,--mas tambem homens de grande valor! --Ha talento, ha saber, dizia elle com um tom de experiencia. Vocà deve reconhecel-o, Ega... Vocà à muito exagerado! Nâo senhor, ha talento, ha saber. E, lembrando-se que algumas d'essas _bestas_ eram amigos do Cohen, Ega reconheceu-lhes talento e saber. O Alencar porÃm cofiava sombriamente o bigode. Ultimamente pendia para idÃas radicaes, para a democracia humanitaria de 1848: por instincto, vendo o romantismo desacreditado nas letras, refugiava-se no romantismo politico, como n'um asylo paralello: queria uma republica governada por genios, a fraternisaÃâo dos povos, os Estados Unidos da Europa... AlÃm d'isso, tinha longas queixas d'esses politiquotes, agora gente de Poder, outr'ora seus camaradas de redacÃâo, de cafà e de _batota_... --Isso, disse elle, l· a respeito de talento e de saber, historias... Eu conheÃo-os bem, meu Cohen... O Cohen acudiu: --Nâo senhor, Alencar, nâo senhor! Vocà tambem à dos taes... Atà lhe fica mal dizer isso... ⦠exageraÃâo. Nâo senhor, ha talento, ha saber. E o Alencar, peranta esta intimaÃâo do Cohen, o respeitado director do _Banco Nacional_, o marido da divina Rachel, o dono d'essa hospitaleira casa da rua do Ferregial onde se jantava tâo bem, recalcou o despeito--admittiu que nâo deixava de haver talento e saber. Entâo, tendo assim, pela influencia do seu Banco, dos bellos olhos da sua mulher e da excellencia do seu cosinheiro, chamado estes espiritos rebeldes ao respeito dos Parlamentares e · veneraÃâo da Ordem, Cohen condescendeu em dizer, no tom mais suave da sua voz, que o paiz necessitava reformas... Ega porÃm, incorrigivel n'esse dia, soltou outra enormidade: --Portugal nâo necessita refÃrmas, Cohen, Portugal o que precisa à a invasâo hespanhola. Alencar, patriota â¡ antiga, indignou-se. O Cohen, com aquelle sorriso indulgente de homem superior que lhe mostrava os bonitos dentes, vio alli apenas ´um dos paradoxos do nosso Ega.ª Mas o Ega fallava com seriedade, cheio de razıes. Evidentemente, dizia elle, invasâo nâo significa perda absoluta de independencia. Um receio tâo estupido à digno sà de uma sociedade tâo estupida como a do _Primeiro de Dezembro_. Nâo havia exemplo de seis milhıes de habitantes serem engolidos, de um sà trago, por um paiz que tem apenas quinze milhıes de homens. Depois ninguem consentiria em deixar cahir nas mâos de Hespanha, naÃâo militar e maritima, esta bella linha de costa de Portugal. Sem contar as allianÃas que teriamos, a troco das colonias--das colonias que sà nos servem, como a prata de familia aos morgados arruinados, para ir empenhando em casos de crise... Nâo havia perigo; o que nos aconteceria, dada uma invasâo, n'um momento de guerra europea, seria levarmos uma sova tremenda, pagarmos uma grossa indemnisaÃâo, perdermos uma ou duas provincias, ver talvez a Galliza estendida atà ao Douro... --_Poulet aux champignons_, murmurou o creado, apresentando-lhe a travessa. E em quanto elle se servia, perguntavam-lhe dos lados onde via elle a _salvaÃâo do paiz_, n'essa catastrophe que tornaria povoaÃâo hespanhola Celorico de Basto, a nobre Celorico, berÃo de heroes, berÃo dos Egas... --N'isto: no ressuscitar do espirito publico e do genio portuguez! Sovados, humilhados, arrasados, escalavrados, tinhamos de fazer um esforÃo desesperado para viver. E em que bella situaÃâo nos achavamos! Sem monarchia, sem essa caterva de politicos, sem esse tortulho da _inscripÃâo_, porque tudo desapparecia, estavamos novos em folha, limpos, escarollados, como se nunca tivessemos servido. E recomeÃava-se uma historia nova, um outro Portugal, um Portugal serio e intelligente, forte e decente, estudando, pensando, fazendo civilisaÃâo como outr'ora... Meninos, nada regenera uma naÃâo como uma medonha tarÃa... Oh Deus d'Ourique, manda-nos o castelhano! E vocÃ, Cohen, passe-me o S.^t Emilion. Agora, n'um rumor animado, discutia-se a invasâo. Ah, podia-se fazer uma bella resistencia! Cohen affianÃava o dinheiro. Armas, artilheria, iam comprar-se · America--e Craft offereceu logo a sua collecÃâo de espadas do seculo XVI. Mas generaes? Alugavam-se. Mac-Mahon, por exemplo, devia estar barato... --O Craft e eu organisamos uma guerrilha, gritou Ega. --¡s ordens, meu coronel. --O Alencar, continuava Ega, à encarregado de ir despertar pela provincia o patriotismo, com cantos e com odes! Entâo o poeta, pousando o calice, teve um movimento de leâo que sacode a juba: --Isto à uma velha carcassa, meu rapaz, mas nâo est· sà para odes! Ainda se agarra uma espingarda, e como a pontaria à boa, ainda vâo a terra um par de gallegos... Caramba, rapazes, sà a idÃa d'essas cousas me pıe o coraÃâo negro! E como vocÃs podem fallar n'isso, a rir, quando se trata do paiz, d'esta terra onde nascemos, que diabo! Talvez seja m·, de accordo, mas, caramba! à a unica que temos, nâo temos outra! ⦠aqui que vivemos, à aqui que rebentamos... Irra, fallemos d'outra cousa, fallemos de mulheres! Dera um repellâo ao prato, os olhos humedeciam-se-lhe de paixâo patriotica... E no silencio que se fez Damaso, que desde as informaÃıes sobre a rapariga do Ermidinha emmudecera, occupado a observar Carlos com religiâo, ergueu a voz pausadamente, disse, com um ar de bom senso e de finura: --Se as cousas chegassem a esse ponto, se pozessem assim feias, eu c·, · cautela, Ãa-me raspando para Paris... Ega triumphou, pulou de gosto na cadeira. Eis alli, no labio synthetico de Damaso, o grito espontaneo e genuino do brio portuguez! Raspar-se, pirar-se!... Era assim que d'alto a baixo pensava a sociedade de Lisboa, a malta constitucional, desde El-Rei nosso Senhor atà aos cretinos de secretaria!... --Meninos, ao primeiro soldado hespanhol que appareÃa · fronteira, o paiz em massa foge como uma lebre! Vae ser uma debandada unica na historia! Houve uma indignaÃâo, Alencar gritou: --Abaixo o traidor! Cohen interveiu, declarou que o soldado portuguez era valente, · maneira dos turcos--sem disciplina, mas teso. O proprio Carlos disse, muito serio: --Nâo senhor... Ninguem ha de fugir, e ha de se morrer bem. Ega rugiu. Para quem estavam elles fazendo essa _pose_ heroica? Entâo ignoravam que esta raÃa, depois de cincoenta annos de constitucionalismo, creada por esses saguıes da Baixa, educada na piolhice dos lyceus, roÃda de syphlis, apodrecida no bolÃr das secretarias, arejada apenas ao domingo pela poeira do Passeio, perdera o musculo como perdera o caracter, e era a mais fraca, a mais covarde raÃa da Europa?... --Isso sâo os lisboetas, disse Craft. --Lisboa à Portugal, gritou o outro. FÃra de Lisboa nâo ha nada. O paiz est· todo entre a Arcada e S. Bento!... A mais miseravel raÃa da Europa! continuava elle a berrar. E que exercito! Um regimento, depois de dois dias de marcha, dava entrada em massa no hospital! Com seus olhos tinha elle visto, no dia da abertura das CÃrtes, um marujo sueco, um rapagâo do Norte, fazer debandar, a soccos, uma companhia de soldados; as praÃas tinham litteralmente largado a fugir, com a patrona a batter-lhe os rins; e o official, enfiado de terror, metteu-se para uma escada, a vomitar!... Todos protestaram. Nâo, nâo era possivel... Mas se elle tinha visto, que diabo!... Pois sim, talvez, mas com os olhos fallazes da phantasia... --Juro pela saude da mamâ! gritou Ega furioso. Mas emmudeceu. O Cohen tocara-lhe no braÃo. O Cohen Ãa fallar. O Cohen queria dizer que o futuro pertence a Deus. Que os hespanhoes porÃm pensassem na invasâo isso parecia-lhe certo--sobretudo se viessem, como era natural, a perder Cuba. Em Madrid todo o mundo lh'o dissera. J· havia mesmo negocios de fornecimentos entabolados... --Hespanholadas, gallegadas! rosnou Alencar, por entre dentes, sombrio e torcendo os bigodes. --No _Hotel de Paris_, continuou Cohen, em Madrid, conheci eu um magistrado, que me disse com um certo ar que nâo perdia a esperanÃa de se vir estabelecer de todo em Lisboa; tinha-lhe agradado muito Lisboa, quando c· estivera a banhos. E em quanto a mim, estou que ha muitos hespanhoes que estâo · espera d'este augmento de territorio para se empregarem! Entâo Ega cahiu em extasi, apertou as mâos contra o peito. Oh que delicioso traÃo! Oh que admiravelmente observado! --Este Cohen! exclamava elle para os lados. Que finamente observado! Que traÃo adoravel! Hein, Craft? Hein, Carlos? Delicioso! Todos cortezmente admiraram a finura do Cohen. Elle agradecia, com o olho enternecido, passando pelas suissas a mâo onde reluzia um diamante. E n'esse momento os creados serviam um prato de ervilhas n'um molho branco, murmurando: --_Petits pois a la Cohen_. _A la Cohen?_ Cada um verificou o seu _menu_ mais attentamente. E l· estava, era o legume: _petits pois a la Cohen!_ Damaso, enthusiasmado, declarou isto ´chic a valer!ª E fez-se, com o Champagne que se abria, a primeira saude ao Cohen! Esquecera-se a banca rota, a invasâo, a patria--o jantar terminava alegremente. Outras _saudes_ crusaram-se, ardentes e loquazes: o proprio Cohen, com o sorriso de quem cede a um capricho de creanÃa, bebeu · RevoluÃâo e · Anarchia, brinde complicado, que o Ega erguera, j· com o olho muito brilhante. Sobre a toalha, a sobremeza alastrava-se, destroÃada; no prato do Alencar as pontas de cigarros misturavam-se a bocados de ananaz mastigado. Damaso, todo debruÃado sobre Carlos, fazia-lhe o elogio da parelha ingleza, e d'aquelle _phaeton_ que era a cousa mais linda que passeiava Lisboa. E logo depois do seu brinde de demagogo, sem razâo, Ega arremettera contra Craft, injuriando a Inglaterra, querendo excluil-a d'entre as naÃıes pensantes, ameaÃando-a de uma revoluÃâo social que a ensoparia em sangue: o outro respondia com acenos de cabeÃa, imperturbavel, partindo nozes. Os creados serviram o cafÃ. E como havia j· tres longas horas que estavam · meza, todos se ergueram, acabando os charutos, conversando, na animaÃâo viva que dera o _Champagne_. A sala, de tecto baixo, com os cinco bicos de gaz ardendo largamente, enchera-se de um calor pesado, onde se ia espalhando agora o aroma forte das chartreuses e dos licores por entre a nevoa alvadia do fumo. Carlos e Craft, que abafavam, foram respirar para a varanda; e ahi recomeÃou logo, n'aquella communidade de gostos que os comeÃava a ligar, a conversa da rua do Alecrim sobre a bella collecÃâo dos Olivaes. Craft dava detalhes; a cousa rica e rara que tinha era um armario hollandez do seculo XVI; de resto, alguns bronzes, faianÃas e boas armas... Mas ambos se voltaram ouvindo, no grupo dos outros, junto · meza, estridencias de voz, e como um conflicto que rompia: Alencar, sacudindo a grenha, gritava contra a _palhada philosophica_; e do outro lado, com o calice de cognac na mâo, Ega, pallido e affectando uma tranquillidade superior, declarava toda essa babuge lyrica que por ahi se publica digna da policia correccional... --Pegaram-se outra vez, veiu dizer Damaso a Carlos, approximando-se da varanda. ⦠por causa do Craveiro. Estâo ambos divinos! Era com effeito a proposito de poesia moderna, de Simâo Craveiro, do seu poema a _Morte de Satanaz_. Ega estivera citando, com enthusiasmo, estrophes do episodio da _Morte_, quando o grande esqueleto symbolico passa em pleno sol no Boulevard, vestido como uma cocotte, arrastando sedas rumorosas ´E entre duas costellas, no decotte, Tinha um bouquet de rosas!ª E o Alencar, que detestava o Craveiro, o homem da _IdÃa nova_, o paladino do Realismo, triumphara, cascalhara, denunciando logo n'essa simples estrophe dois erros de grammatica, um verso errado, e uma imagem roubada a Beaudelaire! Entâo Ega, que bebera um sobre outro dois calices de cognac, tornou-se muito provocante, muito pessoal. --Eu bem sei por que tu fallas, Alencar, dizia elle agora. E o motivo nâo à nobre. ⦠por causa do epigramma que elle te fez: O Alencar d'Alemquer, Acceso com a primavera... --Ah, vocÃs nunca ouviram isto? continuou elle voltando-se, chamando os outros. ⦠delicioso, à das melhores cousas do Craveiro. Nunca ouviste, Carlos? ⦠sublime, sobre tudo esta estrophe: O Alencar d'Alemquer Que quer? Na verde campina Nâo colhe a tenra bonina Nem consulta o malmequer... Que quer? Na verde campina O Alencar d'Alemquer Quer menina! Eu nâo me lembro do resto, mas termina com um grito de bom senso, que à a verdadeira critica de todo esse lyrismo pandilha: O Alencar d'Alemquer Quer cacete! Alencar passou a mâo pela testa livida, e com o olho cavo fito no outro, a voz rouca e lenta: --Olha, Joâo da Ega, deixa-me dizer-te uma cousa, meu rapaz... Todos esses epigrammas, esses dichotes lorpas do rachitico e dos que o admiram, passam-me pelos pÃs como um enxurro de cloaca... O que faÃo à arregaÃar as calÃas! ArregaÃo as calÃas... Mais nada, meu Ega. ArregaÃo as calÃas! E arregaÃou-as realmente, mostrando a ceroula, n'um gesto brusco e de delirio. --Pois quando encontrares enchurros d'esses, gritou-lhe o Ega, agacha-te e bebe-os! Dâo-te sangue e forÃa ao lyrismo! Mas Alencar, sem o ouvir, berrava para os outros, esmurrando o ar: --Eu, se esse Craveirete nâo fosse um rachitico, talvez me entretivesse a rolal-o aos pontapÃs por esse Chiado abaixo, a elle e · versalhada, a essa lambisgonhice excrementicia com que seringou Satanaz! E depois de o besuntar bem de lama, esborrachava-lhe o craneo! --Nâo se esborracham assim craneos, disse de l· o Ega n'um tom frio de troÃa. Alencar voltou para elle uma face medonha. A colera e o cognac incendiavam-lhe o olhar; todo elle tremia: --Esborrachava-lh'o, sim, esborrachava, Joâo da Ega! Esborrachava-lh'o assim, olha, assim mesmo!--Rompeu a atirar patadas ao soalho, abalando a sala, fazendo tilintar crystaes e louÃas.--Mas nâo quero, rapazes! Dentro d'aquelle craneo sà ha excremento, vomito, puz, materia verde, e se lh'o esborrachasse, por que lh'o esborrachava, rapazes, todo o miollo podre sahia, empestava a cidade, tinhamos o cholera! Irra! Tinhamos a peste! Carlos, vendo-o tâo excitado, tornou-lhe o braÃo, quiz calmal-o: --Entâo, Alencar! Que tolice... Isso vale l· a pena!... O outro desprendeu-se, arquejante, desabotoou a sobrecasaca, soltou o ultimo desabafo: --Com effeito, nâo vale a pena ninguem zangar-se por causa d'esse Craveirote da _IdÃa nova_, esse caloteiro, que se nâo lembra que a porca da irmâ à uma meretriz de doze vintens em Marco de Canavezes! --Nâo, isso agora à de mais, pulha! gritou Ega, arremeÃando-se, de punhos fechados. Cohen e Damaso, assustados, agarraram-n'o. Carlos puchara logo para o vâo da janella o Alencar que se debatia, com os olhos chammejantes, a gravata solta. Tinha cahido uma cadeira; a correcta sala, com os seus divans de marroquim, os seus ramos de camelias, tomava um ar de taverna, n'uma bulha de faias, entre a fumaraÃa de cigarros. Damaso, muito pallido, quasi sem voz, Ãa d'um a outro: --Oh meninos, oh meninos, aqui, no Hotel Central! Jesus!... Aqui no Hotel Central!... E, d'entre os braÃos do Cohen, Ega berrava, j· rouco: --Esse pulha, esse covarde... Deixe-me, Cohen! Nâo, isso hei de esbofeteal-o!... A D. Anna Craveiro, uma santa!... Esse calumniador... Nâo, isso hei de esganal-o!... Craft, no entanto, impassivel, bebia aos golos a sua chartreuse. J· presence·ra, mais vezes, duas litteraturas rivaes engalphinhando-se, rolando no châo, n'um latir de injurias: a torpeza do Alencar sobre a irmâ do outro fazia parte dos costumes de critica em Portugal: tudo isso o deixava indifferente, com um sorriso de desdem. AlÃm d'isso sabia que a reconciliaÃâo nâo tardaria, ardente e com abraÃos. E nâo tardou. Alencar sahiu do vâo da janella, atraz de Carlos, abotoando a sobrecasaca, grave e como arrependido. A um canto da sala, Cohen fallava ao Ega com auctoridade, severo, · maneira d'um pae: depois voltou-se, ergueu a mâo, ergueu a voz, disse que alli todos eram cavalheiros: e como homens de talento e de coraÃâo fidalgo os dois deviam abraÃar-se... --V·, um _shake-hands_, Ega, faÃa isso por mim!... Alencar, vamos, peÃo-lh'o eu! O auctor de _Elvira_ deu um passo, o auctor das _Memorias d'um Atomo_ estendeu a mâo: mas o primeiro aperto foi gÃche e molle. Entâo Alencar, generoso e rasgado, exclamou que entre elle e o Ega nâo devia _ficar uma nuvem!_ Tinha-se excedido... FÃra o seu desgraÃado genio, esse calor de sangue, que durante toda a existencia sà lhe trouxera lagrimas! E alli declarava bem alto que Anna Craveiro era uma santa! Tinha-a conhecido em Marco de Canavezes, em casa dos Peixotos... Como esposa, como mâe, Anna Craveiro era impeccavel. E reconhecia, do fundo d'alma, que o Craveiro tinha carradas de talento!... Encheu um copo de _Champagne_, ergueu-o alto, diante do Ega, como um calice de altar: --¡ tua, Joâo! Ega, generoso tambem, respondeu: --¡ tua, Thomaz! AbraÃaram-se. Alencar jurou que ainda na vespera, em casa de D. Joanna Coutinho, elle dissera que nâo conhecia ninguem mais scintillante que o Ega! Ega affirmou logo que em poemas nenhuns corria, como nos do Alencar, uma tâo bella veia lyrica. Apertaram-se outra vez, com palmadas pelos hombros. Trataram-se de _irmâos na arte_, trataram-se de _genios_!... --Sâo extraordinarios, disse Craft baixo a Carlos, procurando o chapÃo. Desorganisam-me, preciso ar!... A noite alongava-se, eram onze horas. Ainda se bebeu mais cognac. Depois Cohen sahiu levando o Ega. Damaso e Alencar desceram com Carlos--que ia recolher a pà pelo Aterro. ¡ porta, o poeta parou com solemnidade. --Filhos, exclamou elle tirando o chapÃo e refrescando largamente a fronte, entâo? Parece-me que me portei como um gentleman! Carlos concordou, gabou-lhe a generosidade... --Estimo bem que me digas isso, filho, porque tu sabes o que à ser gentleman! E agora vamos l· por esse Aterro fÃra... Mas deixa-me ir alli primeiro comprar um pacote de tabaco... --Que typo! exclamou Damaso, vendo-o affastar-se. E a cousa Ãa-se pondo feia... E immediatamente, sem transiÃâo, comeÃou a fazer elogios a Carlos. O sr. Maia nâo imaginava ha quanto tempo elle desejava conhecel-o! --Oh senhor... --Creia v. ex.^a... Eu nâo sou de sabujices... Mas pode v. ex.^a perguntar ao Ega, quantas vezes o tenho dito: v. ex.^a à a cousa melhor que ha em Lisboa! Carlos, baixava a cabeÃa, mordendo o riso. Damaso, repetia, do fundo do peito. --Olhe que isto à sincero, sr. Maia! Acredite v. ex.^a que isto à do coraÃâo! Era realmente sincero. Desde que Carlos habitava Lisboa, tivera alli, n'aquelle moÃo gordo e bochechudo, sem o saber, uma adoraÃâo muda e profunda; o proprio verniz dos seus sapatos, a cÃr das suas luvas eram para o Damaso motivo de veneraÃâo, e tâo importantes como principios. Considerava Carlos um typo supremo de _chic_, do seu querido _chic_, um Brummel, um d'Orsay, um Morny,--uma ´d'estas cousas que sà se vÃem l· fÃraª, como elle dizia arregalando os olhos. N'essa tarde sabendo que vinha jantar com o Maia, conhecer o Maia, estivera duas horas ao espelho experimentando gravatas, perfumara-se como para os braÃos d'uma mulher;--e por causa de Carlos mandara estacionar alli o coupÃ, ·s dez horas, com o cocheiro de ramo ao peito. --Entâo essa senhora brazileira vive aqui? perguntou Carlos, que dera dous passos, olhava uma janella allumiada no segundo andar. Damaso seguiu-lhe o olhar. --Vive l· do outro lado. Estâo aqui ha quinze dias... Gente _chic_... E ella à de appetecer, v. ex.^a reparou? Eu a bordo atirei-me... E ella dava cavaco! Mas tenho andado muito preso desde que cheguei, jantar aqui, soirÃe acol·, umas aventurasitas... Nâo tenho podido c· vir, deixei-lhes sà bilhetes; mas trago-a d'olho, que ella demora-se... Talvez venha c· ·manhâ, estou c· agora a sentir umas cocegas... E se me pilho sà com ella, z·s, ferro-lhe logo um beijo! Que eu c·, nâo sei se v. ex.^a à a mesma cousa, mas eu c·, com mulheres, a minha theoria à esta: attracâo! Eu c·, à logo: attracâo! N'esse momento Alencar voltava do estanco, de charuto na boca. Damaso despediu-se, atirando muito alto ao cocheiro, para que Carlos ouvisse, a adresse da Morelli, a segunda dama de S. Carlos. --Bom rapaz, este Damaso, dizia Alencar, travando de braÃo de Carlos, ao seguirem ambos pelo Aterro. ⦠l· muito dos Cohens, muito querido na sociedade. Rapaz de fortuna, filho do velho Silva, o agiota, que esfolou muito teu pae; e a mim tambem. Mas elle assigna Salcede; talvez nome da mâe; ou talvez inventado. Bom rapaz... O pae era um velhaco! Parece que estou a ouvir o Pedro dizer-lhe com o seu ar de fidalgo, que o tinha e do grande: ´Silva judeu, dinheiro, e a rÃdo!ª... Outros tempos, meu Carlos, grandes tempos. Tempos de gente! E entâo por esse longo Aterro, triste no ar escuro, com as luzes do gaz dormente luzindo em fila d'enterro, Alencar foi fallando d'esses ´grandes temposª da sua mocidade e da mocidade de Pedro; e, atravÃz das suas phrases de lyrico, Carlos sentia vir como um aroma antiquado d'esse mundo defunto... Era quando os rapazes ainda tinham um resto de calor das guerras civis, e o calmavam indo em bando varrer botequins ou rebentando pilecas de sejes em galopadas para Cintra. Cintra era entâo um ninho de amores, e sob as suas romanticas ramagens as fidalgas abandonavam-se aos braÃos dos poetas. Ellas eram Elviras, elles eram Antonys. O dinheiro abundava; a cÃrte era alegre; a RegeneraÃâo litterata e galante ia engrandecer o paiz, bello jardim da Europa; os bachareis chegavam de Coimbra, frementes de eloquencia; os ministros da corÃa recitavam ao piano; o mesmo sopro lyrico inchava as odes e os projectos de lei... --Lisboa era bem mais divertida, disse Carlos. --Era outra cousa, meu Carlos! Vivia-se! Nâo existiriam esses ares scientificos, toda essa palhada philosophica, esses badamecos positivistas... Mas havia coraÃâo, rapaz! Tinha-se faisca! Mesmo n'essas cousas da politica... Và esse chiqueiro agora ahi, essa malta de bandalhos... N'esse tempo Ãa-se alli · camara e sentia-se a inspiraÃâo, sentia-se o rasgo!... Via-se luz nas cabeÃas!... E depois, menino, havia muitissimo boas mulheres. Os hombros descahiam-lhe na saudade d'esse mundo perdido. E parecia mais lugubre, com a sua grenha d'inspirado sahindo-lhe de sob as abas largas do chapÃo velho, a sobrecasaca coÃada e mal feita collando-se-lhe lamentavelmente ·s ilhargas. Um momento caminharam em silencio. Depois, na rua das Janellas Verdes, o Alencar _quiz refrescar_. Entraram n'uma pequena venda, onde a mancha amarella d'um candieiro de petroleo destacava n'uma penumbra de subterraneo, allumiando o zinco humido do balcâo, garrafas nas prateleiras, e o vulto triste da patroa com um lenÃo amarrado nos queixos. Alencar parecia intimo no estabelecimento: apenas soube que a sr.^a Candida estava com dÃr de dentes, aconselhou logo remedios, familiar, descido das nuvens romanticas, com os cotovellos sobre o balcâo. E quando Carlos quiz pagar a canna branca zangou-se, bateu a sua placa de dois tostıes sobre o zinco polido, exclamou, com nobreza: --Eu à que faÃo a honra da bodega, meu Carlos! Nos palacios os outros pagarâo... C· na taberna pago eu! ¡ porta tomou o braÃo de Carlos. Depois d'alguns passos lentos no silencio da rua, parou de novo, e murmurou n'uma voz vaga, contemplativa, como repassada da vasta solemnidade da noite: --Aquella Rachel Cohen à divinamente bella, menino! Tu conhecel'a? --De vista. --Nâo te faz lembrar uma mulher da Biblia? Nâo digo l· uma d'essas viragos, uma Judith, uma Dalila... Mas um d'esses lyrios poeticos da Biblia... ⦠seraphica! Era agora a paixâo platonica do Alencar, a sua dama, a sua Beatriz... --Tu viste ha tempos, no _Diario Nacional_, os versos que eu lhe fiz? ´Abril chegou! Sà minhaª Dizia o vento · rosa. Nâo me sahiu mau! Aqui ha uma maliciasinha: _Abril chegou, sà minha_... Mas logo: _dizia o vento · rosa_. Comprehendes? Calhou bem este effeito. Mas nâo imagines l· outras cousas, ou que lhe faÃo a cÃrte... Basta ser a mulher do Cohen, um amigo, um irmâo... E a Rachel, para mim, coitadinha, à como uma irmâ... Mas à divina. Aquelles olhos, filho, um velludo liquido!... Tirou o chapeu, refrescou a fronte vasta. Depois n'outro tom, e como a custo: --Aquelle Ega tem muito talento... Vae l· muito aos Cohens... A Rachel acha-lhe graÃa... Carlos par·ra, estavam defronte do Ramalhete. Alencar deu um olhar · severa frontaria de convento, adormecida, sem um ponto de luz. --Tem bom ar esta vossa casa... Pois entra tu, meu rapaz, que eu vou andando por aqui para a minha toca. E quando quizeres, filho, l· me tens na rua do Carvalho, 52, 3.^o andar. O predio à meu, mas eu occupo o terceiro andar. Comecei por habitar no primeiro, mas tenho ido trepando... A unica cousa mesmo que tenho trepado, meu Carlos, à de andares... Teve um gesto, como desdenhando essas miserias. --E has de ir l· jantar um dia. Nâo te posso dar um banquete, mas has de ter uma sopa e um assado... O meu Matheus, um preto, (um amigo!) que me serve ha muito anno, quando ha que cosinhar, sabe cosinhar! Fez muito jantar a teu pae, ao meu pobre Pedro... Que aquillo foi casa de alegria, meu rapaz. Dei l· cama e mesa, e dinheiro para a algibeira, a muita d'essa canalha que hoje por ahi trota em coupà da companhia e de correio atraz... E agora, quando me avistam, voltam para o lado o focinho... --Isso sâo imaginaÃıes, disse Carlos com amisade. --Nâo sâo, Carlos, respondeu o poeta, muito grave, muito amargo. Nâo sâo. Tu nâo sabes a minha vida. Tenho soffrido muito repellâo, rapaz. E nâo o merecia! Palavra, que o nâo merecia. Agarrou o braÃo de Carlos, e com a voz abalada: --Olha que esses homens que por ahi figuram embebedavam-se comigo, emprestei-lhes muito pinto, dei-lhes muita ceia... E agora sâo ministros, sâo embaixadores, sâo personagens, sâo o diabo. Pois offereceram-te elles um bocado do _bolo_ agora que o teem na mâo? Nâo. Nem a mim. Isto à duro, Carlos, isto à muito duro, meu Carlos. E que diabo, eu nâo queria que me fizessem conde, nem que me dessem uma embaixada... Mas ahi alguma cousa n'uma secretaria... Nem um chavelho! Emfim, ainda h· para o bocado do pâo, e para a meia onÃa do tabaco... Mas esta ingratidâo tem-me feito cabellos brancos... Pois nâo te quero massar mais, e que Deus te faÃa feliz como tu mereces, meu Carlos! --Tu nâo queres subir um bocado, Alencar? Tanta franqueza enterneceu o poeta. --Obrigado, rapaz, disse elle, abraÃando Carlos. E agradeÃo-te isso, porque sei que vem do coraÃâo... Todos vocÃs teem coraÃâo... J· teu pae o tinha, e largo, e grande como o d'um leâo! E agora crà uma cousa: à que tens aqui um amigo. Isto nâo à palavriado, isto vem de dentro... Pois adeus, meu rapaz. Queres tu um charuto? Carlos acceitou logo, como um presente do ceu. --Entâo ahi tens um charuto, filho! exclamou Alencar com enthusiasmo. E aquelle charuto dado a um homem tâo rico, ao dono do Ramalhete, fazia-o por um momento voltar aos tempos em que n'esse Marrare elle estendia em redor a charuteira cheia, com o seu grande ar de Manfredo triste. Interessou-se entâo pelo charuto. Accendeu elle mesmo um phosphoro. Verificou se ficava bem acceso. E que tal, charuto rasoavel? Carlos achava um excellente charuto! --Pois ainda bem que te dei um bom charuto! AbraÃou-o outra vez; e estava batendo uma hora, quando elle emfim se affastou, mais ligeiro, mais contente de si, trauteando um trecho de _fado_. Carlos no seu quarto, antes de se deitar, acabando o pessimo charuto do Alencar estirado n'uma chaise-longue, em quanto Baptista lhe fazia uma chavena de ch·, ficou pensando n'esse estranho passado que lhe evocara o velho lyrico... E era sympathico o pobre Alencar! Com que cuidado exagerado, ao fallar de Pedro, d'Arroios, dos amigos e dos amores d'então, elle evitara pronunciar sequer o nome de Maria Monforte! Mais de uma vez, pelo Aterro fóra, estivera para lhe dizer:âpódes fallar da mamã, amigo Alencar, que eu sei perfeitamente que ella fugiu com um italiano! E isto fÃl-o insensivelmente recordar da maneira como essa lamentavel historia lhe fÃra revelada, em Coimbra, n'uma noite de troÃa, quasi grotescamente. Por que o avÃ, obdecendo · carta testamentaria de Pedro, contara-lhe um romance decente: um casamento de paixâo, incompatibilidades de naturezas, uma separaÃâo cortez, depois a retirada da mamâ com a filha para a FranÃa, onde tinham morrido ambas. Mais nada. A morte de seu pae fÃra-lhe apresentada sempre como o brusco remate d'uma longa nevrose... Mas Ega sabia tudo, pelos tios... Ora uma noite tinham ceiado ambos; Ega muito bebedo, e n'um accesso de idealismo, lanÃara-se n'um paradoxo tremendo, condemnando a honestidade das mulheres como origem da decadencia das raÃas: e dava por prova os bastardos, sempre intelligentes, bravos, gloriosos! Elle, Ega, teria orgulho se sua mâe, sua propria mâe, em logar de ser a santa burgueza que resava o terÃo · lareira, fosse como a mâe de Carlos, uma inspirada, que por amor d'um exilado abandonara fortuna, respeitos, honra, vida! Carlos, ao ouvir isto, ficara petrificado, no meio da ponte, sob o calmo luar. Mas nâo poude interrogar o Ega, que j· taramellava, agoniado, e que nâo tardou a vomitar-lhe ignobilmente nos braÃos. Teve de o arrastar · casa das Seixas, despil-o, aturar-lhe os beijos e a ternura borracha, atà que o deixou abraÃado ao travesseiro, babando-se, balbuciando--´que queria ser bastardo, que queria que a mamâ fosse uma marafona!...ª E elle mal podera dormir essa noite, com a idÃa d'aquella mâe, tâo outra do que lhe haviam contado, fugindo nos braÃos d'um desterrado--um polaco talvez! Ao outro dia, cedo, entrava pelo quarto do Ega, a pedir-lhe, pela sua grande amisade, a verdade toda... Pobre Ega! Estava doente: fez-se branco como o lenÃo que tinha amarrado na cabeÃa com pannos de agua sedativa: e nâo achava uma palavra, coitado! Carlos, sentado na cama, como nas noites de cavaco, tranquillisou-o. Nâo vinha alli offendido, vinha alli curioso! Tinham-lhe occultado um episodio extraordinario da sua gente, que diabo, queria sabel-o! Havia romance? Para alli o romance! Ega, entâo, l· ganhou animo, l· balbuciou a sua historia--a que ouvira ao tio Ega--a paixâo de Maria por um principe, a fuga, o longo silencio d'annos que se fizera sobre ella... Justamente as ferias chegavam. Apenas em S.^{ta} Olavia, Carlos contou ao avà a bebedeira do Ega, os seus discursos doidos, aquella revelaÃâo vinda entre arrotos. Pobre avÃ! Um momento nem poude fallar--e a voz por fim veiu-lhe tâo debil e dolente como se dentro do peito lhe estivesse morrendo o coraÃâo. Mas narrou-lhe, detalhe a detalhe, o feio romance todo atà ·quella tarde em que Pedro lhe apparecera, livido, coberto de lama, a cahir-lhe nos braÃos, chorando a sua dÃr com a fraqueza d'uma creanÃa.--E o desfecho d'esse amor culpado, accrescentara o avÃ, fÃra a morte da mâe em Vienna d'Austria, e a morte da pequenita, da neta que elle nunca vira, e que a Monforte levara... E eis ahi tudo. E assim, aquella vergonha domestica estava agora enterrada, alli, no jazigo de S.^{ta} Olavia, e em duas sepulturas distantes, em paiz estrangeiro... Carlos recordava-se bem que n'essa tarde, depois da melancolica conversa com o avÃ, devia elle experimentar uma egoa ingleza: e ao jantar nâo se fallou senâo da egoa que se chamava _Sultana_. E a verdade era que d'ahi a dias tinha esquecido a mamâ. Nem lhe era possivel sentir por esta tragedia senâo um interesse vago e como litterario. Isso passara-se havia vinte e tantos annos, n'uma sociedade quasi desapparecida. Era como o episodio historico de uma velha chronica de familia, um antepassado morto em Alcacer-Kebir, ou uma das suas avÃs dormindo n'um leito real. Aquillo nâo lhe dera uma lagrima, nâo lhe pozera um rubor na face. De certo, prefiriria poder orgulhar-se de sua mâe, como d'uma rara e nobre flÃr de honra: mas nâo podia ficar toda a vida a amargurar-se com os seus erros. E porque? A sua honra d'elle nâo dependia dos impulsos falsos ou torpes que tivera o coraÃâo d'ella. Peccara, morrera, acabou-se. Restava, sim, aquella idÃa do pae, findando n'uma poÃa de sangue, no desespero d'essa traiÃâo. Mas nâo conhecera seu pae: tudo o que possuia d'elle e da sua memoria, para amar, era uma fria tela mal pintada, pendurada no quarto de vestir, representando um moÃo moreno, de grandes olhos, com luvas de camurÃa amarellas e um chicote na mâo... De sua mâe nâo ficara nem um daguerreotypo, nem sequer um contorno a lapis. O avà tinha-lhe dito que era loura. Nâo sabia mais nada. Nâo os conhecera; nâo lhes dormira nos braÃos; nunca recebera o calor da sua ternura. Pae, mâe, eram para elle como symbolos d'um culto convencional. O pap·, a mamâ, os seres amados, estavam alli todos--no avÃ. Baptista trouxera o ch·, o charuto do Alencar acabara;--e elle continuava na chaise-longue, como amollecido n'estas recordaÃıes, e cedendo j·, n'um meio adormecimento, · fadiga do longo jantar... E entâo, pouco a pouco, diante das suas palpebras cerradas, uma visâo surgiu, tomou cÃr, encheu todo o aposento. Sobre o rio, a tarde morria n'uma paz elysia. O peristillo do Hotel Central alargava-se, claro ainda. Um preto grisalho vinha, com uma cadelinha no collo. Uma mulher passava, alta, com uma carnaÃâo eburnea, bella como uma Deusa, n'um casaco de velludo branco de Genova. O Craft dizia ao seu lado _trÃs-chic_. E elle sorria, no encanto que lhe davam estas imagens, tomando o relevo, a linha ondeante, e a coloraÃâo de cousas vivas. Eram tres horas quando se deitou. E apenas adormecera, na escuridâo dos cortinados de seda, outra vez um bello dia de inverno morria sem uma aragem, banhado de cÃr de rosa: o banal peristillo de Hotel alargava-se, claro ainda na tarde; o escudeiro preto voltava, com a cadellinha nos braÃos; uma mulher passava, com um casaco de velludo branco de Genova, mais alta que uma creatura humana, caminhando sobre nuvens, com um grande ar de Juno que remonta ao Olympo: a ponta dos seus sapatos de verniz enterrava-se na luz do azul, por tr·s as saias batiam-lhe como bandeiras ao vento. E passava sempre... O Craft dizia _trÃs-chic_. Depois tudo se confundia, e era sà o Alencar, um Alencar colossal, enchendo todo o cÃu, tapando o brilho das estrellas com a sua sobrecasaca negra e mal feita, os bigodes esvoaÃando ao vendaval das paixıes, alÃando os braÃos, clamando no espaÃo: Abril chegou, sà minha! VII No Ramalhete, depois do almoÃo, com as tres janellas do escriptoro abertas bebendo a tepida luz do bello dia de marÃo, Affonso da Maia e Craft jogavam uma partida de xadrez ao pà da chaminà j· sem lume, agora cheia de plantas, fresca e festiva como um altar domestico. N'uma facha obliqua de sol, sobre o tapete, o Reverendo Bonifacio, enorme e fÃfo, dormia de leve a sua sesta. Craft tornara-se, em poucas semanas, intimo no Ramalhete. Carlos e elle, tendo muitas similitudes de gosto e de idÃas, o mesmo fervor pelo _bric-a-brac_ e pelo _bibelot_, o uso apaixonado da esgrima, egual dilettantismo d'espirito, uniram-se immediatamente em relaÃıes de superficie, faceis e amaveis. Affonso, por seu lado comeÃara logo a sentir uma estima elevada por aquelle gentleman de boa raÃa ingleza, como elle os admirava, cultivado e forte, de maneiras graves, de habitos rijos, sentindo finamente e pensando com rectidâo. Tinham-se encontrado ambos enthusiastas de Tacito, de Macaulay, de Burke, e atà dos poetas lakistas; Craft era grande no xadrez; o seu carater ganhara nas longas e trabalhadas viagens a rica solidez d'um bronze; para Affonso da Maia ´aquillo era deveras um homemª. Craft, madrugador, sahia cedo dos Olivaes a cavallo, e vinha assim ·s vezes almoÃar de surpreza com os Maias; por vontade de Affonso jantaria l· sempre;--mas ao menos as noites passava-as invariavelmente no Ramalhete, tendo emfim, como elle dizia, encontrado em Lisboa um recanto onde se podia conversar bem sentado, no meio de idÃas, e com boa educaÃâo. Carlos sahia pouco de casa. Trabalhava no seu livro. Aquella revoada de clientella que lhe dera esperanÃas d'uma carreira cheia, activa, tinha passado miseravelmente, sem se fixar; restavam-lhe tres doentes no bairro; e sentia agora que as suas carruagens, os cavallos, o Ramalhete, os habitos de luxo, o condemnavam irremediavelmente ao _dillettantismo_. J· o fino dr. Theodosio lhe dissera um dia, francamente: ´vocà à muito elegante p'ra medico! As suas doentes, fatalmente, fazem-lhe olho! Quem à o burguez que lhe vae confiar a esposa dentro d'uma alcova?... Vocà aterra o pater-familias!ª O laboratorio mesmo prejudicara-o. Os collegas diziam que o Maia, rico, intelligente, avido de innovaÃıes, de modernismos, fazia sobre os doentes experiencias fataes. Tinha-se troÃado muito a sua idÃa, apresentada na _Gazeta Medica_, a prevenÃâo das epidemias pela inoculaÃâo dos virus. Consideravam-no um phantasista. E elle, entâo, refugiava-se todo n'esse livro sobre a medicina antiga e moderna, o _seu livro_, trabalhado com vagares d'artista rico, tornando-se o interesse intellectual de um ou dous annos. N'essa manhâ, em quanto dentro proseguia grave e silenciosa a partida de xadrez, Carlos no terrasso, estendido n'uma vasta cadeira india de bambu, · sombra do toldo, acabava o seu charuto, lendo uma _Revista_ ingleza, banhado pela caricia tepida d'aquelle bafo de primavera que avelludava o ar, fazia j· desejar arvores e relvas... Ao lado d'elle, n'uma outra cadeira de bambu, tambem de charuto na boca, o sr. Damaso Salcede percorria o _Figaro_. De perna estirada, n'uma indolencia familiar, tendo o amigo Carlos ao seu lado, vendo junto ao terrasso as rosas das roseiras de Affonso, sentindo por tr·s, atravez das janellas abertas, o rico e nobre interior do Ramalhete--o filho do agiota saboreava alli uma d'essas horas deliciosas que ultimamente encontrava na intimidade dos Maias. Logo na manhâ seguinte ao jantar do Central, o sr. Salcede fÃra ao Ramalhete deixar os seus bilhetes, objectos complicados e vistosos, tendo ao angulo, n'uma dobra simulada, o seu retratosinho em photographia, um capacete com plumas por cima do nome--DAMASO CANDIDO DE SALCEDE, por baixo as suas honras--Commendador de Christo, ao fundo a sua adresse--_Rua de S. Domingos, · Lapa_; mas esta indicaÃâo estava riscada, e ao lado, a tinta azul, esta outra mais apparatosa--Grand Hotel, Boulevard des Capucines, Chambre N.^o 103. Em seguida procurou Carlos no consultorio, confiou ao creado outro cartâo. Emfim, uma tarde, no Aterro, vendo passar Carlos a pÃ, correu para elle, pendurou-se d'elle, conseguiu acompanhal-o ao Ramalhete. Ahi, logo desde o pateo, rompeu em admiraÃıes extaticas, como dentro d'um museu, lanÃando, diante dos tapetes, das faienÃas e dos quadros, a sua grande phrase--´_chic_ a valer!ª Carlos levou-o para o _fumoir_, elle aceitou um charuto; e comeÃou a explicar, de perna traÃada, algumas das suas opiniıes e alguns dos seus gostos. Considerava Lisboa chinfrin, e sà estava bem em Paris--sobre tudo por causa do genero ´femeaª de que em Lisboa se passavam fomes: ainda que n'esse ponto a Providencia nâo o tratava mal. Gostava tambem do _bric-a-brac_; mas apanhava-se muita espiga, e as cadeiras antigas, por exemplo, nâo lhe pareciam commodas para a gente se sentar. A leitura entretinha-o, e ninguem o pilhava sem livros · cabeceira da cama; ultimamente andava ·s voltas com Daudet, que lhe diziam ser muito _chic_, mas elle achava-o confusote. Em rapaz perdia sempre as noites, atà ·s quatro ou cinco da madrugada, no delirio! Agora nâo, estava mudado e pacato; emfim, nâo dizia que de vez em quando nâo se abandonasse a um excessozinho; mas sà em dias duples... E as suas perguntas foram terriveis. O sr. Maia achava _chic_ ter um _cab_ inglez? Qual era mais elegante, assim para um rapaz de sociedade que quizesse ir passar o verâo l· fÃra, Nice ou Trouville?... Depois ao sahir, muito serio, quasi commovido, perguntou ao sr. Maia (se o sr. Maia nâo fazia segredo) quem era o seu alfaiate. E desde esse dia, nâo o deixou mais. Se Carlos apparecia no theatro, Damaso immediatamente arrancava-se da sua cadeira, ·s vezes na solemnidade d'uma bella aria, e pisando os botins dos cavalheiros, amarrotando a compostura das damas, abalava, abria d'estalo a _claque_, vinha-se installar na frisa, ao lado de Carlos, com a bochecha corada, camelia na casaca, exhibindo os botıes de punho que eram duas enormes bolas. Uma ou duas vezes que Carlos entrara casualmente no Gremio, Damaso abandonou logo a partida, indifferente · indignaÃâo dos parceiros, para se vir collar · ilharga do Maia, offerecer-lhe marrasquino ou charutos, seguil-o de sala em sala como um rafeiro. N'uma d'essas occasiıes, tendo Carlos soltado um trivial gracejo, eis o Damaso rompendo em risadas soluÃantes, rebolando-se pelos soph·s, com as mâos nas ilhargas, a gritar que rebentava! Juntaram-se socios; elle, suffocado, repetia a pilheria; Carlos fugiu vexado. Chegou a odial-o; respondia-lhe sà com monossyllabos; dava voltas perigosas com o _dog-cart_ se lhe avistava de longe a bochecha, a coxa roliÃa. Debalde: Damaso Candido Salcede filara-o, e para sempre. Depois, um dia, Taveira appareceu no Ramalhete com uma extraordinaria historia. Na vespera, no Gremio (tinham-lhe contado, elle nâo presenceara) um sujeito, um Gomes, n'um grupo onde se commentavam os Maias, erguera a voz, exclamara que Carlos era um asno! Damaso, que estava ao lado mergulhado na _IlustraÃâo_, levantou-se, muito pallido, declarou que, tendo a honra de ser amigo do sr. Carlos da Maia, quebrava a cara com a bengala ao sr. Gomes se elle ousasse babujar outra vez esse cavalheiro; e o sr. Gomes tragou, com os olhos no châo, a affronta, por ser rachitico de nascenÃa--e porque era inquilino de Damaso e andava muito atrasado na renda. Affonso da Maia achou este feito brilhante: e foi por desejo seu que Carlos trouxe o sr. Salcede uma tarde a jantar ao Ramalhete. Este dia pareceu bello a Damaso como se fosse feito de azul e oiro. Mas melhor ainda foi a manhâ em que Carlos, um pouco incommodado e ainda deitado, o recebeu no quarto, como entre rapazes... D'ahi datava a sua intimidade: comeÃou a tratar Carlos por _vocÃ_. Depois, n'essa semana, revelou aptidıes uteis. Foi despachar · alfandega (VillaÃa achava-se no Alemtejo) um caixote de roupa para Carlos. Tendo apparecido n'um momento em que Carlos copiava um artigo para a _Gazeta Medica_ offereceu a sua boa letra, letra prodigiosa, de uma belleza lithographica; e d'ahi por diante passava horas · banca de Carlos, applicado e vermelho, com a ponta da lingua de fÃra, o olho redondo, copiando apontamentos, transcripÃıes de Revistas, materiaes para o livro... Tanta dedicaÃâo merecia um _tu_ de familiaridade. Carlos deu-lh'o. Damaso, no entanto, imitava o Maia com uma minuciosidade inquieta, desde a barba que comeÃava agora a deixar crescer atà · forma dos sapatos. LanÃara-se no _bric-a-brac_. Trazia sempre o _coupÃ_ cheio de lixos archeologicos, ferragens velhas, um bocado de tijolo, a aza rachada de um bule... E se avistava um conhecido, fazia parar, entreabria a portinhola como um addito de sacrario, exhibia a preciosidade: --Que te parece? _Chic_ a valer!... Vou mostral-a ao Maia. Olha-me isto, hein! Pura meia edade, do reinado de Luiz XIV. O Carlos vae-se roer de inveja! N'esta intimidade de rosas havia todavia para Damaso horas pesadas. Nâo era divertido assistir em silencio, do fundo d'uma poltrona, ·s infindaveis discussıes de Carlos e de Craft sobre arte e sobre sciencia. E, como elle confessou depois, chegara a encavacar um pouco quando o levaram ao laboratorio para fazer no seu corpo experiencias de electricidade...--´Pareciam dois demonios engalphinhados em mim, disse elle · sr.^a condessa de Gouvarinho; e eu entâo que embirro com o spiritismo!...ª Mas tudo isto ficava regiamente compensado, quando · noite, n'um soph·, do Gremio, ou ao ch· n'uma casa amiga, elle podia dizer, correndo a mâo pelo cabello: --Passei hoje um dia divino com o Maia. Fizemos armas, _bric-a-brac_, discutimos... Um dia, _chic_! ¡manhâ tenho uma manhâ de trabalho com o Maia... Vamos ·s colxas. N'esse domingo, justamente, deviam ir ·s colxas, ao Lumiar. Carlos concebera um _boudoir_, todo revestido de colxas antigas de setim, bordadas a dous tons especiaes, perola e botâo d'ouro. O tio Abrahâo esquadrinhava-as por toda a Lisboa e pelos suburbios; e n'essa manhâ viera annunciar a Carlos a existencia de duas preciosidades, _so beautiful! oh! so lovely!_ em casa de umas senhoras Medeiros que esperavam o sr. Maia ·s duas horas... J· tres vezes Damaso tossira, olhara o relogio,--mas, vendo Carlos confortavelmente mergulhado na _Revista_, recahia tambem na sua indolencia de homem _chic_, investigando o _Figaro_. Emfim, dentro, o relogio Luiz XV cantou argentinamente as duas... --Esta à boa, exclamou Damaso ao mesmo tempo, com uma palmada na coxa. Olha quem aqui me apparece! A Suzanna! A minha Suzanna! Carlos nâo despegara os olhos da pagina. --Oh Carlos, accrescentou elle, fazes favor? Ouve. Ouve esta que à boa. Esta Suzanna à uma pequena que eu tive em Paris... Um romance! Apaixonou-se por mim, quiz-se envenenar, o diabo!... Pois diz aqui o _Figaro_ que debutou nas _Folies-Bergeres_. Falla n'ella... ⦠boa, hein? E era rapariguita _chic_... E o _Figaro_ diz que ella teve aventuras, naturalmente sabia o que se passou comigo... Todo o mundo sabia em Paris. Ora a Suzanna!... Tinha bonitas pernas. E custou-me a vÃr livre d'ella! --Mulheres! murmurou Carlos, refugiando-se mais no fundo da _Revista_. Damaso era interminavel, torrencial, inundante a fallar das ´suas conquistasª, n'aquella solida satisfaÃâo em que vivia de que todas as mulheres, desgraÃadas d'ellas, soffriam a fascinaÃâo da sua pessoa e da sua toilette. E em Lisboa, realmente, era exacto. Rico, estimado na sociedade, com _coupÃ_ e parelha, todas as meninas tinham para elle um olhar doce. E no _dÃmi-monde_, como elle dizia, ´tinha prestigio a valer.ª Desde moÃo fÃra celebre, na capital, por pÃr casas a hespanholas; a uma mesmo dera carruagem ao mez; e este fausto excepcional tornara-o bem depressa o D. Joâo V dos prostibulos. Conhecia-se tambem a sua ligaÃâo com a viscondessa da Gafanha, uma carcassa esgalgada, caiada, rebocada, gasta por todos os homens validos do paiz: Ãa nos cincoenta annos, quando chegou a vez do Damaso--e nâo era decerto uma delicia ter nos braÃos aquelle esqueleto rangente e lubrico; mas dizia-se que em nova dormira n'um leito real, e que augustos bigodes a tinham lambuzado; tanta honra fascinou Damaso, e collou-se-lhe ·s saias com uma fidelidade tâo sabuja, que a decrepita creatura, farta, enojada j·, teve de o enxotar · forÃa e com desfeitas. Depois gozou uma tragedia: uma actriz do _Principe Real_, uma montanha de carne, apaixonada por elle, n'uma noite de ciume e de genebra, engoliu uma caixa de phosphoros; naturalmente d'ahi a horas estava boa, tendo vomitado abominavelmente sobre o collete do Damaso que chorava ao lado--mas desde entâo este homem de amor julgou-se fatal! Como elle dizia a Carlos, depois de tanto drama na sua vida quasi tremia, tremia verdadeiramente de fitar uma mulher... --Passaram-se scenas com esta Suzanna! murmurou elle depois de um silencio em que estivera catando pelliculas nos beiÃos. E, com um suspiro, retomou o _Figaro_. Houve outra vez um silencio no terrasso. Dentro, a partida continuava. Para l· da sombra do toldo, agora, o sol Ãa aquecendo, batendo a pedra, os vasos de louÃa branca, n'uma refracÃâo d'ouro claro em que palpitavam as azas das primeiras borboletas voando em redor dos craveiros sem flor: em baixo, o jardim verdejava, immovel na luz, sem um bolir de ramo, refrescado pelo cantar do repuxo, pelo brilho liquido da agoa do tanque, avivado, aqui e alÃm, pelo vermelho ou o amarello das rosas, pela carnaÃâo das ultimas camelias... O bocado de rio que se avistava entre os predios era azul ferrete como o cÃu: e entre rio e cÃu o monte punha uma grossa barra verde-escura, quasi negra no resplendor do dia, com os dois moinhos parados no alto, as duas casinhas alvejando em baixo, tâo luminosas e cantantes que pareciam viver. Um repouso dormente de domingo envolvia o bairro: e, muito alto, no ar, passava o claro repique d'um sino. --O duque de Norfolk chegou a Paris, disse Damaso n'um tom entendido e traÃando a perna. O duque de Norfolk à _chic_, nâo à verdade, à Carlos? Carlos, sem erguer os olhos, lanÃou para os cÃus um gesto, como exprimindo o infinito do _chic_! Damaso largara o _Figaro_ para metter um charuto na boquilha; depois desapertou os ultimos botıes do collete, deu um puchâo · camisa para mostrar melhor a marca que era um S enorme sob uma corÃa de conde, e de palpebra cerrada, com o beiÃo trombudo, ficou mamando gravemente a boquilha... --Tu est·s hoje em belleza, Damaso, disse-lhe Carlos que deixara tambem a _Revista_ e o contemplava com melancolia. Salcede corou de gozo. Escorregou um olhar ao verniz dos sapatos, · meia cÃr de carne, e revirando para Carlos o bogalho azulado da orbita: --Eu agora ando bem... Mas, muito _blazÃ_. E foi realmente com um ar _blazÃ_ que se ergueu a ir buscar a uma mesa de jardim, ao lado, onde estavam jornaes e charutos, a _Gazeta Illustrada_, ´para vÃr o que ia pela patria.ª Apenas lhe deitou os olhos soltou uma exclamaÃâo. --Outro debute? perguntou Carlos. --Nâo, à a besta do Castro Gomes! A _Gazeta Illustrada_ annunciava que ´o sr. Castro Gomes, o cavalheiro brasileiro que no Porto fÃra victima da sua dedicaÃâo por occasiâo da desgraÃa occorrida na PraÃa Nova, e de que o nosso correspondente J. T. nos deu uma descripÃâo tâo opulenta de colorido realista, acha-se restabelecido e à hoje esperado no Hotel Central. Os nossos parabens ao arrojado gentleman.ª --Ora est· s. ex.^a restabelecida! exclamou Damaso, atirando para o lado o jornal. Pois deixa estar, que agora à a occasiâo de lhe dizer na cara o que penso... Aquelle pulha! --Tu exageras, murmurou Carlos, que se apoderara vivamente do jornal, e relia a noticia. --Ora essa! exclamou Damaso, erguendo-se. Ora essa! Queria vÃr, se fosse comtigo... ⦠uma besta! ⦠um selvagem! E repetiu mais uma vez a Carlos essa historia que o magoava. Desde a sua chegada de Bordeus, logo que o Castro Gomes se installara no Hotel Central elle fÃra deixar-lhe bilhetes duas vezes--a ultima na manhâ seguinte ao jantar do Ega. Pois bem, s. ex.^a nâo se dignara agradecer a visita! Depois elles tinham partido para o Porto; fÃra ahi que, passeiando sà na PraÃa Nova, vendo a parelha de uma caleche desbocada, duas senhoras em gritos, Castro Gomes se lan÷ra ao freio dos cavallos--e, cuspido contra as grades, tinha deslocado um braÃo. Teve de ficar no Porto, no Hotel, cinco semanas. E elle immediatamente (sempre com o olho na mulher) mandara-lhe dois telegrammas: um de sentimento, lamentando; outro de interesse, pedindo noticias. Nem a um, nem a outro, o animal respondeu! --Nâo, isso--exclamava Salcede, passeiando pelo terraÃo, e recordando estas injurias--hei de lhe fazer uma desfeita!... Nâo pensei ainda o quÃ, mas ha de amargar-lhe... L· isso, desconsideraÃıes nâo admitto a ninguem! a ninguem! Arredondava o olho, ameaÃador. Desde o seu feito no Gremio, quando o rachitico apavorado emmudecera diante d'elle, Damaso ia-se tornando feroz. Pela menor cousa fallava em ´quebrar caras.ª --A ninguem! repetia elle, com puxıes ao collete. DesconsideraÃıes, a ninguem! N'esse momento ouviu-se dentro, no escriptorio, a voz rapida do Ega--e quasi immediatamente elle appareceu, com um ar de pressa, e atarantado. --Ol·, Damasosinho!... Carlos, d·s-me aqui em baixo uma palavra? Desceram do terraÃo, penetraram no jardim, atà junto de duas olaias em flÃr. --Tu tens dinheiro?--foi ahi logo a exclamaÃâo anciosa do Ega. E contou a sua terrivel atrapalhaÃâo. Tinha uma letra de noventa libras que se vencia no dia seguinte. AlÃm d'isso, vinte e cinco libras que devia ao Eusebiosinho, e que elle lhe reclamara n'uma carta indecente: e era isto que desesperava o Ega... --Quero pagar a esse canalha, e quando o vir collar-lhe a carta · cara com um escarro. AlÃm d'isso a letra! E tenho para tudo isto quinze tostıes... --O Eusebiosinho à homem de ordem... Emfim, queres cento e quinze libras, disse Carlos. Ega hesitou, com uma cÃr no rosto. J· devia dinheiro a Carlos. Estava-se sempre dirigindo ·quella amisade, como a um cofre inexgotavel... --Nâo, bastam-me oitenta. Ponho o relogio no prego, e a pelissa, que j· nâo faz frio... Carlos sorriu, subiu logo ao quarto a escrever um cheque--em quanto Ega procurava cuidadosamente um bonito botâo de rosa para florir a sobrecasaca. Carlos nâo tardou, trazendo na mâo o cheque, que alargara atà cento e vinte libras, para o Ega ficar _armado_... --Seja pelo amor de Deus, menino! disse o outro, embolsando o papel, com um bello suspiro de allivio. Immediatamente trovejou contra o Eusebiosinho, esse villâo! Mas tinha j· uma vinganÃa. Ia remetter-lhe a somma toda em cobre, n'um sacco de carvâo, com um rato morto dentro, e um bilhete, comeÃando assim:--_ascorosa lombriga e immunda osga, ahi te atiro ao focinho_, etc... --Como tu podes consentir aqui, usando as tuas cadeiras, respirando o teu ar, aquelle ser repulsivo!... Mas era atà sujo mencionar o Eusebiosinho!... Quiz saber dos trabalhos de Carlos, do grande livro. Fallou tambem do seu _Atomo_:--e, por fim, n'uma voz differente, applicando o monocolo a Carlos: --Dize-me outra cousa. Porque nâo tens tu voltado aos Gouvarinhos? Carlos tinha sà esta rasâo: nâo se divertia l·. Ega encolheu os hombros. Parecia-lhe aquillo uma puerilidade... --Tu nâo percebeste nada, exclamou elle. Aquella mulher tem uma paixâo por ti... Basta que se pronuncie o teu nome, sobe-lhe todo o sangue · cara. E como Carlos ria, incredulo, Ega, muito grave, deu a sua palavra de honra. Ainda na vespera, estava-se fallando de Carlos, e elle espreitara-a. Sem ser um Balzac, nem uma broca de observaÃâo, tinha a visâo correcta: pois bem, l· lhe vira na face, nos olhos, toda a expressâo de um sentimento sincero... --Nâo estou a fazer romance, menino... Gosta de ti, palavra! Tenl-a quando quiseres. Carlos achava deliciosa aquella naturalidade mephistophelica com que Ega o induzia a quebrar uma infinidade de leis religiosas, moraes, sociaes, domesticas... --Ah bem, exclamou Ega, se tu me vens com essa _blague_ da cartilha e do codigo, entâo nâo fallemos mais n'isso! Se apanhaste a sarna da virtude, com comichıes por qualquer cousa, entâo era uma vez um homem, vae para a Trappa commentar o _Ecclesiastes_... --Nâo--disse Carlos, sentando-se n'um banco sob as arvores, ainda com uns restos da preguiÃa do terraÃo--o meu motivo nâo à tâo nobre. Nâo vou l·, porque acho o Gouvarinho um massador. Ega teve um sorriso mudo. --Se a gente fosse a fugir das mulheres que tem maridos massadores... Sentou-se ao lado de Carlos, comeÃou a riscar em silencio o châo areado; e sem erguer os olhos, deixando cahir as palavras, uma a uma, com melancolia: --Antes de hontem, toda a noite, a pà firme, das dez · uma, estive a ouvir a historia da demanda do Banco Nacional! Era quasi uma confidencia, e como o desabafo dos tedios secretos em que se debatia, n'aquelle mundo dos Cohens, o seu temperamento de artista. Carlos enterneceu-se. --Meu pobre Ega, entâo toda a demanda? --Toda! E a leitura do relatorio da assemblÃa geral! E interessei-me! E tive opiniıes!... A vida à um inferno. Subiram ao terraÃo. Damaso reoccupara a sua cadeira de vime, e, com um canivetesinho de madreperola, estava tratando das unhas. --Entâo decidiu-se? perguntou elle logo ao Ega. --Decidiu-se hontem! Nâo ha _cotillon_. Tratava-se de uma grande soirÃe mascarada que Ãam dar os Cohens, no dia dos annos de Rachel. A idÃa d'esta festa sugerira-a o Ega, ao principio com grandes proporÃıes de gala artistica, a ressurreiÃâo historica de um sarau no tempo de D. Manuel. Depois viu-se que uma tal festa era irrealisavel em Lisboa--e desceu-se a um plano mais sobrio, um simples baile _costumÃ_, a capricho... --Tu, Carlos, j· decidiste como vaes? --De dominÃ, um severo dominà preto, como convÃm a um homem de sciencia... --Entâo, exclamou Ega se se trata de sciencia, vae de rabona e chinellas de ourello!... A sciencia faz-se em casa e de chinellas... Nunca ninguem descobriu uma lei do Universo mettido dentro de um dominÃ... Que sensaboria, um dominÃ!... Justamente a sr.^a D. Rachel desejava evitar, no seu baile, essa monotonia dos dominÃs. E em Carlos nâo havia desculpa. Nâo o prendiam vinte ou trinta libras; e, com aquelle esplendido physico de cavalleiro da RenascenÃa, devia ornar a sala pelo menos com um soberbo Francisco I. --⦠n'isto, ajuntava elle com fogo, que est· a belleza de uma soirÃe de mascaras! Nâo lhe parece, vocÃ, Damaso? Cada um deve aproveitar a sua figura... Por exemplo, a Gouvarinho vae muito bem. Teve uma inspiraÃâo: com aquelle cabello ruivo, o nariz curto, as maÃâs do rosto salientes, à Margarida de Navarra... --Quem à Margarida de Navarra? perguntou Affonso da Maia, apparecendo no terraÃo com Craft. --Margarida, a duqueza d'Angouleme, a irmâ de Francisco I, a Margarida das Margaridas, a perola dos Valois, a padroeira da RenascenÃa, a sr.^a condessa de Gouvarinho!... Rio muito, foi abraÃar Affonso, explicou-lhe que se discutia o baile dos Cohens. E appellou logo para elle, para o Craft tambem, acerca do nefando dominà de Carlos. Nâo estava aquelle mocetâo, com os seus ares de homem d'armas, talhado para um soberbo Francisco I, em toda a gloria de Marignan? O velho deu um olhar enternecido · belleza do neto. --Eu te digo, John, talvez tenhas razâo; mas Francisco I, rei de FranÃa, nâo se pÃde apear de uma tipoia e entrar n'uma sala, sÃ. Precisa cÃrte, arautos, cavalleiros, damas, bobos, poetas... Tudo isso à difficil. Ega curvou-se. Sim senhor, d'accordo! Alli estava uma maneira intelligente de comprehender o baile dos Cohens! --E tu, de que vaes? perguntou-lhe Affonso. Era um segredo. Tinha a theoria de que, n'aquellas festas, um dos encantos consistia na surpreza: dois sujeitos por exemplo que tendo jantado juntos, de jaquetâo, no BraganÃa, se encontram · noite, um na purpura imperial de Carlos V, outro com a escopeta de bandido da Calabria... --Eu c· nâo faÃo segredo, disse ruidosamente Damaso. Eu c· vou de selvagem. --NË? --Nâo. De Nelusko na _Africana_. Oh sr. Affonso da Maia, que lhe parece? Acha _chic_? --_Chic_ nâo exprime bem, disse Affonso sorrindo. Mas _grandioso_, Ã, decerto. Quizeram entâo saber como Ãa Craft. Craft nâo Ãa de cousa nenhuma; Craft ficava nos Olivaes, de robe de chambre. Ega encolheu os hombros com tedio, quasi com colera. Aquellas indifferenÃas pelo baile dos Cohens feriam-n'o como injurias pessoaes. Elle estava dando a essa festa o seu tempo, estudos na bibliotheca, um trabalho fumegante de imaginaÃâo; e pouco a pouco ella tomava aos seus olhos a importancia de uma celebraÃâo d'arte, provando o genio de uma cidade. Os ´dominÃsª, as abstenÃıes, pareciam-lhe evidencias de inferioridade de espirito. Citou entâo o exemplo do Gouvarinho: alli estava um homem de occupaÃıes, de posiÃâo politica, nas vesperas de ser ministro, que nâo sà Ãa ao baile, mas estudara o seu _costume_: estudara, e Ãa muito bem, Ãa de _marquez de Pombal_! --Reclame para ser ministro, disse Carlos. --Nâo o precisa, exclamou Ega. Tem todas as condiÃıes para ser ministro: tem voz sonora, leu Mauricio Block, est· encalacrado, e à um asno!... E no meio das risadas dos outros, elle, arrependido de demolir assim um cavalheiro que se interessava pelo baile dos Cohens, acudiu logo: --Mas à muito bom rapaz, e nâo se d· ares nenhuns! ⦠um anjo! Affonso reprehendia-o, risonho e paternal: --Ora tu, John, que nâo respeitas nada... --O desacato à a condiÃâo do progresso, sr. Affonso da Maia. Quem respeita decahe. ComeÃa-se por admirar o Gouvarinho, vae-se a gente esquecendo, chega a reverenciar o monarcha, e quando mal se precata tem descido a venerar o Todo-Poderoso!... ⦠necessario cautela! --Vae-te embora, John, vae-te embora! Tu Ãs o proprio Anti-Christo... Ega Ãa responder, exhuberante e em veia--mas dentro o tinir argentino do relogio Luiz XV, com o seu gentil minuete, emmudeceu-o. --O que? quatro horas! Ficou aterrado, verificou no seu proprio relogio, deu em redor rapidos, silenciosos apertos de mâo, desappareceu como um sopro. Todos de resto estavam pasmados de ser tâo tarde! E assim passara a hora de ir ao Lumiar vÃr as colxas antigas das senhoras Medeiros... --Quer vocà entâo meia hora de florete, Craft? perguntou Carlos. --Seja: e à necessario dar a liÃâo ao Damaso... --⦠verdade, a liÃâo...--murmurou Damaso, sem enthusiasmo, com um sorriso murcho. A sala de esgrima era uma casa terrea, debaixo dos quartos de Carlos, com janellas gradeadas para o jardim, por onde resvalava, atravez das arvores, uma luz esverdinhada. Em dias enevoados era necessario accender os quatro bicos de gaz. Damaso seguiu, atraz dos dois, com uma lentidâo de rez desconfiada. Aquellas liÃıes, que elle sollicitara por amor do _chic_, Ãam-se-lhe tornando odiosas. E n'essa tarde, como sempre, apenas se enchumaÃou com o plastrâo d'anta, se cobriu com a caraÃa de arame, comeÃou a transpirar, a fazer-se branco. Diante d'elle Craft, de florete na mâo, parecia-lhe cruel e bestial, com aquelles seus hombros de Hercules sereno, o olhar claro e frio. Os dois ferros rasparam. Damaso estremeceu todo. --Firme, gritou-lhe Carlos. O desgraÃado equilibrava-se sobre a perna roliÃa; o florete de Craft vibrou, rebrilhou, voou sobre elle; Damaso recuou, suffocado, cambaleando e com o braÃo frouxo... --Firme! berrava-lhe Carlos. Damaso, exhausto, abaixou a arma. --Entâo que querem vocÃs, à nervoso! ⦠por ser a brincar... Se fosse a valer, vocÃs veriam. Assim acabava sempre a liÃâo; e ficava depois abatido sobre uma banqueta de marroquim, arejando-se com o lenÃo, pallido como a cal dos muros. --Vou-me atà casa, disse elle d'ahi a pouco, fatigado de tanto crusar de ferro. Queres alguma cousa, Carlinhos? --Quero que venhas c· jantar ·manhâ... Tens o marquez. --_Chic_ a valer... Nâo faltarei. Mas faltou. E, como toda essa semana aquelle moÃo ponctual nâo appareceu no Ramalhete, Carlos sinceramente inquieto, julgando-o moribundo, foi uma manhâ a casa d'elle, · Lapa. Mas ahi, o creado (um gallego achavascado e triste, que, desde as suas relaÃıes com os Maias, Damaso trazia entalado n'uma casaca e mortalmente aperreado em sapatos de verniz) affirmou-lhe que o sr. Damasosinho estava de boa saude, e atà sahira a cavallo. Carlos veiu entâo ao tio Abrahâo; o tio Abrahâo tambem nâo avistara, havia dias, aquelle bom senhor Salcede, _that beautiful gentleman!_ A curiosidade de Carlos levou-o ao Gremio: no Gremio nenhum creado vira ultimamente o sr. Salcede. ´Est· por ahi de lua de mel com alguma bella andaluzaª pensou Carlos. Chegara ao fim da rua do Alecrim quando viu o conde de Steinbroken que se dirigia ao Aterro, a pÃ, seguido da sua vittoria a passo. Era a segunda vez que o diplomata fazia exercicio depois do seu desgraÃado ataque de entranhas. Mas nâo tinha j· vestigios da doenÃa: vinha todo rosado e loiro, muito solido na sua sobrecasaca, e com uma bella rosa de ch· na botoeira. Declarou mesmo a Carlos que estava ´m·s forrteª. E nâo lamentava os soffrimentos, porque elles lhe tinham dado o meio de apreciar as sympathias que gosava em Lisboa. Estava enternecido. Sobre tudo o cuidado de S. M.--o augusto cuidado de S. M.--fizera-lhe melhor que ´todos os drogues de botiqueª! Realmente nunca as relaÃıes entre esses dois paizes, tâo estreitamente alliados, Portugal e a Filandia, tinham sido ´mâ¡s firmes, pur assi dizerre, mâ¡s intimes, que durrante seu ataque de intestinaesª! Depois, travando do braÃo a Carlos, alludiu commovido ao offerecimento de Affonso da Maia, que pozera · sua disposiÃâo S.^ta Olavia, para elle se restabelecer n'esses ares fortes e limpos do Douro. Oh, esse convite tocara-o _au plus profond de son c[oe]ur_. Mas, infelizmente, S.^{ta} Olavia era longe, tâo longe!... Tinha de se contentar com Cintra, d'onde podia vir todas as semanas, uma, duas vezes, vigiar a LegaÃâo. _C'Ãtait ennuyeux, mais_... A Europa estava n'um d'esses momentos de crise, em que homens d'estado, diplomatas, nâo podiam affastar-se, gosar as menores ferias. Precisavam estar alli, na brecha, observando, informando... --C'est trÃs grave, murmurou elle, parando, com um pavor vago no olhar azulado... C'est excessivement grave! Pediu a Carlos que olhasse em torno de si para a Europa. Por toda a parte uma confusâo, um _gachis_. Aqui a questâo do Oriente; alem o socialismo; por cima o Papa, a complicar tudo... Oh, trÃs grave! --Tenez, la France, par exemple... D'abord Gambetta. Oh, je ne dis pas non, il est trÃs fort, il est excessivement fort... Mais... Voilâ¡! C'est trÃs grave... Por outro lado os radicaes, _les nouvelles couches_... Era excessivamente grave... --Tenez, je vais vous dire une chose, entre nous! Mas Carlos nâo escutava, nem sorria j·. Do fim do Aterro approximava-se, caminhando depressa, uma senhora--que elle reconheceu logo, por esse andar que lhe parecia de uma deusa pisando a terra, pela cadellinha cÃr de prata que lhe trotava junto ·s saias, e por aquelle corpo maravilhoso, onde vibrava, sob linhas ricas de marmore antigo, uma graÃa quente, ondeante e nervosa. Vinha toda vestida de escuro, n'uma toilette de _serge_ muito simples que era como o complemento natural da sua pessoa, collando-se bem sobre ella, dando-lhe, na sua correcÃâo, um ar casto e forte; trazia na mâo um guarda-sol inglez, apertado e fino como uma cana; e toda ella, adiantando-se assim no luminoso da tarde, tinha, n'aquelle caes triste de cidade antiquada, um destaque estrangeiro, como o requinte raro de civilisaÃıes superiores. Nenhum vÃo, n'essa tarde, lhe assombreava o rosto. Mas Carlos nâo poude detalhar-lhe as feiÃıes; apenas d'entre o esplendor eburneo da carnaÃâo sentiu o negro profundo de dois olhos que se fixaram nos seus. Insensivelmente deu um passo para a seguir. Ao seu lado Steinbroken, sem vÃr nada, estava achando Bismarch assustador. ¡ maneira que ella se affastava, parecia-lhe maior, mais bella: e aquella imagem falsa e litteraria de uma deusa marchando pela terra prendia-se-lhe · imaginaÃâo. Steinbroken ficara aterrado com o discurso do Chanceller no Reichstag... Sim, era bem uma deusa. Sob o chapÃo, n'uma fÃrma de tranÃa enrolada, apparecia o tom do seu cabello castanho, quasi louro · luz; a cadelinha trotava ao lado, com as orelhas direitas. --Evidentemente, disse Carlos, Bismarck à inquietador... Steinbroken porÃm j· deixara Bismarck. Steinbroken agora atacava lord Beaconsfield. --Il est trÃs fort... Oui, je vous l'accorde, il est excessivement fort... Mais voilâ¡... Ou va-t-il? Carlos olhava para o caes de SodrÃ. Mas tudo lhe parecia deserto. Steinbroken antes de adoecer, justamente, tinha dito ao ministro dos negocios estrangeiros aquillo mesmo: lord Beaconsfield à muito forte, mas para onde vae elle? O que queria elle?... E s. ex.^a tinha encolhido os hombros... S. ex.^a nâo sabia... --Eh, oui! Beaconsfield est trÃs fort... Vous avez lu son speech chez le Lord-Maire? Epatant, mon cher, epatant!... Mais voilâ¡... OË va-t-il? --Steinbroken, nâo me parece que seja prudente deixar-se estar aqui a arrefecer no Aterro... --DevÃrras? exclamou o diplomata, passando logo a mâo rapidamente pelo estomago e pelo ventre. E nâo se quiz demorar um instante mais! Como Carlos Ãa recolher tambem, offereceu-lhe um logar na vittoria atà ao Ramalhete. --Venha entâo jantar comnosco, Steinbroken. --CharmÃ, mon cher, charmÃ... A vittoria partiu. E o diplomata agazalhando as pernas e o estomago n'um grande plaid escossez: --PÃs, Maia, fezemos um bello passÃo... Mas este AtÃrro no à deverrtido. Nâo era divertido o Aterro!... Carlos achara-o n'essa tarde o mais delicioso logar da terra! Ao outro dia, voltou mais cedo; e, apenas dera alguns passos entre as arvores, viu-a logo. Mas nâo vinha sÃ; ao seu lado o marido, esticado, apurado n'uma jaqueta de casimira quasi branca, com uma ferradura de diamantes no setim negro da gravata, fumava, indolente e languido, e trazia a cadellinha debaixo do braÃo. Ao passar, deu um olhar surprehendido a Carlos--como descobrindo emfim entre os barbaros um ser de linha civilisada, e disse-lhe algumas palavras baixo, a ella. Carlos encontrara outra vez os seus olhos, profundos e serios: mas nâo lhe parecera tâo bella; trazia uma outra toilette menos simples, de dois tons, cÃr de chumbo e cÃr de creme, e no chapÃo, d'abas grandes · ingleza, vermelhava alguma cousa, flÃr ou penna. N'essa tarde nâo era a deusa descendo das nuvens d'ouro que se enrolavam alem sobre o mar; era uma bonita senhora estrangeira que recolhia ao seu hotel. Voltou ainda tres vezes ao Aterro, nâo a tornou a vÃr; e entâo envergonhou-se, sentiu-se humilhado com este interesse romanesco que o trazia assim, n'uma inquietaÃâo de rafeiro perdido, farejando o Aterro, da rampa de Santos ao caes de SodrÃ, · espera de uns olhos negros e de uns cabellos louros de passagem em Lisboa, e que um paquete da _Royal Mail_ levaria uma d'essas manhâs... E pensar que toda essa semana deixara o seu trabalho abandonado sobre a meza! E que todas as tardes, antes de sahir, se demorava ao espelho, estudando a gravata! Ah, miseravel, miseravel natureza... Ao fim d'essa semana, Carlos estava no consultorio, j· para sahir, calÃando as luvas, quando o creado entreabriu o reposteiro, e murmurou com alvoroÃo: --Uma senhora! Appareceu um menino muito pallido, de caracoes louros, vestido de velludo preto--e atraz uma mulher, toda de negro, com um vÃo justo e espesso como uma mascara. --Creio que vim tarde, disse ella, hesitando, junto da porta. O sr. Carlos da Maia Ãa sahir... Carlos reconheceu a Gouvarinho. --Oh senhora condessa! DesembaraÃou logo o divan dos jornaes e das brochuras; ella olhou um momento, como indecisa, aquelle amplo e molle assento de serralho; depois sentou-se · borda e de leve, com o pequeno junto de si. --Venho trazer-lhe um doente, disse ella sem erguer o vÃu, como fallando do fundo d'aquella toilette negra que a dissimulava. Nâo o mandei chamar, por que realmente pouco Ã, e tinha hoje de passar por aqui... AlÃm d'isso, o meu pequeno à muito nervoso; se và entrar o medico, parece-lhe que vae morrer. Assim à como uma visita que se faz... E nâo tens medo, nâo à verdade, Charlie? O pequeno nâo respondeu; de pÃ, quedo ao lado da mamâ; mimoso e debil sob os caracoes d'anjo que lhe cahiam atà aos hombros, devorava Carlos com uns grandes olhos tristes. Carlos poz um interesse quasi terno na sua pergunta: --Que tem elle? Havia dias, apparecera-lhe uma empigem no pescoÃo. AlÃm disso, por traz da orelha, tinha como uma dureza de caroÃo. Aquillo inquietava-a. Ella era forte, de uma boa raÃa, que dera athletas e velhos de grande edade. Mas na familia do marido, em todos os Gouvarinhos, havia uma anemia hereditaria. O conde mesmo, com aquella solida apparencia, era um achacado. E ella, receiando que a influencia debilitante de Lisboa nâo conviesse a Charlie, estava com o vago projecto de lhe fazer ir passar algum tempo ao campo, em Formoselha, a casa da avÃ. Carlos, approximando ligeiramente a cadeira, estendeu os braÃos a Charlie: --Ora venha c· o meu lindo amigo, para vermos isso. Que magnifico cabello elle tem, senhora condessa!... Ella sorrio. E Charlie, seriosinho, bem ensinado, sem aquelle terror do medico de que fallara a mamâ, veio logo, desapertou delicadamente o seu grande collarinho, e, quasi entre os joelhos de Carlos, dobrou o pescoÃo macio e alvo como um lyrio. Carlos vio apenas uma pequena mancha cÃr de rosa desvanecendo-se; do ´caroÃoª nâo havia vestigio; e entâo uma ligeira vermelhidâo subiu-lhe ao rosto, procurou vivamente os olhos da condessa, como comprehendendo tudo, querendo vÃr n'elles a confissâo do sentimento que a trouxera alli com um pretexto pueril, sob aquella toilette negra, aquelles vÃos que a mascaravam... Mas ella permaneceu impenetravel, sentada · borda do divan, com as mâos crusadas, attenta, como esperando as suas palavras, n'um vago susto de mâe. Carlos abotoou o collarinho do pequeno, e disse: --Nâo à absolutamente nada, minha senhora. No entanto, fez perguntas de medico sobre o regimen e a natureza de Charlie. A condessa, n'um tom pesaroso, queixou-se de que a educaÃâo da creanÃa nâo fosse, como ella desejava, mais forte e mais viril; mas o pae oppunha-se ao que elle chamava ´a aberraÃâo inglezaª, a agua fria, os exercicios a todo o ar, a gymnastica... --A agoa fria e a gymnastica, disse Carlos sorrindo, teem melhor reputaÃâo do que merecem... ⦠o seu unico filho, senhora condessa? --â¦, tem os mimos de morgado, disse ella passando a mâo pelos cabellos louros do pequeno. Carlos assegurou-lhe que, apezar do seu aspecto nervoso e delicado, Charlie nâo devia dar-lhe cuidado; nem havia necessidade de o exilar para os ares de Formoselha... Depois ficaram um momento callados. --Nâo imagina como me tranquillisou, disse ella, erguendo-se, dando um geito ao veu. De mais a mais à um gosto vir consultal-o... Nâo ha aqui o menor ar de doenÃa, nem de remedios... E realmente tem isto muito bonito...--accrescentou, dando um olhar lento em redor aos velludos do gabinete. --Tem justamente esse defeito, exclamou Carlos rindo. Nâo inspira nenhum respeito pela minha sciencia... Eu estou com idÃas d'alterar tudo, pÃr aqui um crocodilho empalhado, corujas, retortas, um esqueleto, pilhas d'in-folios... --A cella de Fausto. --Justamente, a cella de Fausto. --Falta-lhe Mephistopheles, disse ella alegremente, com um olhar que brilhou sob o vÃo. --O que me falta à Margarida! A senhora condessa, com um lindo movimento, encolheu os hombros, como duvidando discretamente; depois tomou a mâo de Charlie, e deu um passo lento para a porta, puxando outra vez o vÃo. --Como v. ex.^a se interessa pela minha installaÃâo, acudiu Carlos querendo retel-a, deixe-me mostrar-lhe a outra sala. Correu o reposteiro. Ella approximou-se, murmurou algumas palavras, approvando a frescura dos cretones, a harmonia dos tons claros: depois o piano fel-a sorrir. --Os seus doentes danÃam quadrilhas? --Os meus doentes, senhora condessa, respondeu Carlos, nâo sâo bastante numerosos para formar uma quadrilha. Raras vezes mesmo tenho dois para uma valsa... O piano est· simplesmente alli para dar idÃas alegres; à como uma promessa tacita de saude, de futuras _soirÃes_, de bonitas arias do _Trovador_, em familia... --⦠engenhoso, disse ella dando familiarmente alguns passos na sala, com Charlie collado aos vestidos. E Carlos, caminhando ao lado d'ella: --V. ex.^a nâo imagina como eu sou engenhoso! --J· n'outro dia me disse... Como foi que disse? Ah! que era muito inventivo quando odiava. --Muito mais quando amo, disse elle rindo. Mas ella nâo respondeu: par·ra junto do piano, remexeu um momento as musicas espalhadas, feriu duas notas no teclado. --⦠um chocalho. --Oh, senhora condessa! Ella seguiu, foi examinar um quadro a oleo, copiado de Landseer--um focinho de câo de S. Bernardo, macisso e bonacheirâo, adormecido sobre as patas. Quasi roÃando-lhe o vestido, Carlos sentia o fino perfume de verbena que ella usava sempre exageradamente: e, entre aquelles tons negros que a cobriam, a sua pelle parecia mais clara, mais doce · vista, e attrahindo como um setim. --Este à um horror, murmurou ella, voltando-se; mas disse-me o Ega que ha quadros lindos no Ramalhete... Fallou-me sobretudo d'um Greuze e d'um Rubens... ⦠pena que se nâo possam vÃr essas maravilhas. Carlos lamentava tambem que uma existencia de solteirıes lhes impedisse, a elle e ao avÃ, de receberem senhoras. O Ramalhete estava tomando uma melancolia de mosteiro. Se assim continuassem mais alguns mezes, sem que se sentisse alli um calor de vestido, um aroma de mulher, vinha a nascer a herva pelos tapetes. --⦠por isso, accrescentou elle muito serio, que eu vou obrigar o avà a casar-se. A condessa riu, os seus lindos dentes miudinhos alvejaram na sombra do vÃo. --Gosto da sua alegria, disse ella. --⦠uma questâo de regimen. V. ex.^a nâo à alegre? Ella encolheu os hombros, sem saber... Depois, batendo com a ponta do guarda-sol na sua botina de verniz que brilhava sobre o tapete claro, murmurou com os olhos baixos, deixando ir as palavras, n'um tom d'intimidade e de confidencia: --Dizem que nâo, que sou triste, que tenho _spleen_... O olhar de Carlos seguira o d'ella, pousara-se na botina de verniz que calÃava delicadamente um pà fino e comprido: Charlie, entretido, mexia nas teclas do piano--e elle baixou a voz para lhe dizer: --⦠que a senhora condessa tem um mau regimen. ⦠necessario tratar-se, voltar aqui, consultar-me... Tenho talvez muito que lhe dizer! Ella interrompeu-o vivamente, erguendo para elle os olhos, d'onde se escapou um clarâo de ternura e de triumpho: --Venha-m'o antes dizer um d'estes dias, tomar ch· comigo, ·s cinco horas... Charlie! O pequeno veiu logo dependurar-se-lhe do braÃo. Carlos, acompanhando-a abaixo · rua, lamentava a fealdade da sua escada de pedra: --Mas vou mandar tapetar tudo para quando a senhora condessa volte a dar-me a honra de me vir consultar... Ella gracejou, toda risonha: --Ah nâo! O sr. Carlos da Maia prometteu-nos a todos a saude... E naturalmente nâo espera que seja eu que venha c· tomar ch· comsigo... --Oh, minha senhora, eu quando comeÃo a esperar, nâo ponho limites nenhuns ·s minhas esperanÃas... Ella parou, com o pequeno pela mâo, olhou para elle, como pasmada, encantada com aquella grandiosa certeza de si mesmo. --Entâo vae por ahi alÃm, por ahi alÃm...? --Vou por ahi alÃm, por ahi alÃm, minha senhora! Estavam no ultimo degrau, diante da claridade e do rumor da rua. --Mande-me chegar um coupÃ. Um cocheiro, ao aceno de Carlos, lanÃou logo a tipoia. --E agora, disse ella sorrindo, mande-o ir · egreja da GraÃa. --A senhora condessa vai beijar o pà do Senhor dos Passos? Ella corou de leve, murmurou: --Ando fazendo as minhas devoÃıes... Depois saltou ligeiramente para o coupÃ--deixando Charlie, que Carlos ergueu nos braÃos e lhe collocou ao lado, paternalmente. --Que Deus a leve em sua santa guarda, senhora condessa! Ella agradeceu com um olhar, um movimento de cabeÃa--ambos tâo doces como caricias. Carlos subio: e, sem tirar o chapÃo, ficou ainda enrolando uma cigarrette, passeando n'aquella sala sempre deserta, sempre fria, onde ella deixara agora alguma cousa do seu calor e do seu aroma... Realmente gostava d'aquella audacia d'ella--ter vindo assim ao consultorio, toda escondida, quasi mascarada n'uma grande toilette negra, inventando um caroÃo no pescocinho sâo de Charlie, para o vÃr, para dar um nà brusco e mais apertado n'aquelle leve fio de relaÃıes que elle tâo negligentemente deixara cahir e quebrar... O Ega d'esta vez nâo phantasiara: aquelle bonito corpo offerecia-se, tâo claramente como se se despisse. Ah! se ella fosse de sentimentos errantes e faceis--que bella flÃr a colher, a respirar, a deitar fÃra depois! Mas nâo: como dizia o Baptista, a senhora condessa nunca se tinha divertido. E o que elle nâo queria era achar-se envolvido n'uma paixâo ciosa, uma d'essas ternuras tumultuosas de mulher de trinta annos, de que depois se desembaraÃaria difficilmente... Nos braÃos d'ella o seu coraÃâo ficaria mudo: e apenas esgotada a primeira curiosidade, comeÃaria o tedio dos beijos que se nâo desejam, a horrivel massada do prazer a frio. Depois, teria de ser intimo da casa, receber pelo hombro as palmadas do senhor conde, ouvir-lhe a voz morosa distillando doutrina... Tudo isto o assustava... E, todavia, gostara d'aquella audacia! Havia ali uma pontinha de romantismo, muito irregular, e pÃcante... E devia ser deliciosamente bem feita... A sua imaginaÃâo despia-a, enrolava-se-lhe no setim das fÃrmas onde sentia ao mesmo tempo alguma cousa de maduro e de virginal... E outra vez, como nas primeiras noites que os vira em S. Carlos, aquelles cabellos tentavam-n'o, assim avermelhados, tâo crespos e quentes... Sahiu. E dera apenas alguns passos na rua Nova do Almada, quando avistou o Damaso, n'um coupà lanÃado a grande trote, que o chamava, mandava parar, com a face · portinhola, vermelho e radiante: --Nâo tenho podido l· ir, exclamou elle, apoderando-se-lhe da mâo, apenas Carlos se approximou, e apertando-lh'a com enthusiasmo. Tenho andado n'um turbilhâo!.. Eu te contarei! Um romance divino... Mas eu te contarei!.. Tem cuidado com a roda! Bate l·, à _CalÃâo_! A parelha abalou; elle ainda se debruÃou da portinhola, agitou a mâo, gritou no rumor da rua: --Um romance divino, _chic_ a valer! Justamente, dias depois, no Ramalhete, na sala de bilhar, Craft que acabava de ´baterª o marquez, perguntou, pousando o taco e accendendo o cachimbo: --E noticias do nosso Damaso? J· se esclareceu esse lamentavel desapparecimento?... Carlos entâo contou como o encontr·ra, afogueado e triumphante, atirando-lhe da portinhola do coupÃ, em plena rua Nova do Almada, a noticia de um _romance divino_! --Bem sei, disse o Taveira. --Como sabes?... exclamou Carlos. Taveira vira-o na vespera, n'um grande landeau da Companhia, com uma esplendida mulher, muito elegante e que parecia estrangeira... --Ora essa! gritou Carlos. E com uma cadelinha escoceza? --Exactamente, uma cadelinha escoceza, um _griffon_ cÃr de prata... Quem sâo? --E um rapaz magro, de barba muito preta, com um ar inglezado? --Justamente... Muito correcto, um ar _sport_... Que gente Ã? --Uma gente brazileira, penso eu. Eram os Castros Gomes, de certo! Isto parecia-lhe espantoso. Havia apenas duas semanas que no terraÃo o Damaso, de punhos fechados, bramara contra os Castro Gomes e as suas ´desconsideraÃıesª! Ia pedir outros pormenores ao Taveira--mas o marquez ergueu a voz do fundo da poltrona onde se estir·ra, e quiz saber a opiniâo de Carlos sobre o grande acontecimento d'essa manhâ na _Gazeta Illustrada_.--Na _Gazeta Illustrada_?... Carlos nâo sabia, essa manhâ nâo vira jornal nenhum. --Entâo nâo lhe digam nada, gritou o marquez. Venha a surpreza! C· ha a _Gazeta_? Manda buscar a _Gazeta_! Taveira puxou o cordâo da campainha;--e quando o escudeiro trouxe a _Gazeta_, elle apoderou-se d'ella, quiz fazer uma leitura solemne. --Deixa-lhe vÃr primeiro o retrato, berrou o marquez, erguendo-se. --Primeiro o artigo! exclamava o Taveira, defendendo-se, com o jornal atraz das costas. Mas cedeu, e poz o papel deante dos olhos de Carlos, largamente, como um sudario desdobrado. Carlos reconheceu logo o retrato do Cohen... E a prosa que se alastrava em redor, encaixilhando a face escura de suissas retintas, era um trabalho de seis columnas, em estylo emplumado e cantante, celebrando atà aos cÃus as virtudes domesticas do Cohen, o genio financeiro do Cohen, os ditos d'espirito do Cohen, a mobilia das salas do Cohen; havia ainda um paragrapho alludindo · festa proxima, ao grande sarau de mascaras do Cohen. E tudo isto vinha assignado--J. da E.--as iniciaes de Joâo da Ega! --Que tolice! exclamou Carlos, com tedio, atirando o jornal para cima do bilhar. --⦠mais que tolice, observou Craft; à uma falta de senso moral. O marquez protestou. Gostava do artigo. Achava-o brilhante, e de velhaco!... E de resto em Lisboa quem dava por uma falta de senso moral?... --VocÃ, Craft, nâo conhece Lisboa! Todo o mundo acha isto muito natural. ⦠intimo da casa, celebra os donos. ⦠admirador da mulher, lisongea o marido. Est· na logica c· da terra... Vocà ver· que successo isto vae ter... E l· que o artigo est· lindo, isso est·! Tomou-o de cima do bilhar, leu alto o trecho sobre o boudoir cÃr de rosa de madame Cohen: ´respira-se alli (dizia o Ega) alguma cousa de perfumado, intimo e casto, como se todo aquelle cÃr de rosa exhalasse de si o aroma que a rosa temª! --Isto, caramba, à lindo em toda a parte! exclamou o marquez. Tem muito talento, aquelle diabo! Tomara eu ter o talento que elle tem!... --Nada d'isso impede, repetiu Craft, cachimbando tranquillamente, que seja uma extraordinaria falta de senso moral. --Pura e simplesmente insensato! disse Cruges, desenroscando-se do canto d'um soph·, para deixar cahir ·s syilabas esta pesada opiniâo. O marquez investiu com elle. --Que entende vocà d'isso, seu maestro? O artigo à sublime! E saiba mais: à de finorio! O maestro, com preguiÃa de argumentar, foi-se enroscar em silencio ao outro canto do soph·. E entâo o marquez, de pà e bracejando, appellou para Carlos, e quiz saber o que à que Craft em principio entendia por _senso moral_. Carlos, que dava pela sala passos impacientes, nâo respondeu, tomou o braÃo do Taveira, levou-o para o corredor. --Dize-me uma cousa: onde viste tu o Damaso, com essa gente? Para que lado iam? --Iam pelo Chiado abaixo; ante-hontem, ·s duas horas... Estou convencido que iam para Cintra. Levavam uma maleta no landau, e atraz ia uma criada n'um coupà com uma mala maior... Aquillo cheirava a ida a Cintra. E a mulher à divina! Que toilette, que ar, que chic!.. ⦠uma Venus, menino!... Como conheceria elle aquillo?... --Em Bordeus, n'um paquete, nâo sei onde! --Eu do que gostei foi dos ares que elle se ia dando por aquelle Chiado! Cumprimento para a direita, cumprimento para a esquerda... A debruÃar-se, a fallar muito baixo para a mulher, com olho terno, alardeando conquista... --Que besta! exclamou Carlos, batendo com o pà no tapete. --Chama-lhe besta, disse o Taveira. Vem a Lisboa, por acaso, uma mulher civilisada e decente, e à elle que a conhece, e à elle que vae com ella para Cintra! Chama-lhe besta!... Anda d'ahi, vamos · partidinha de dominÃ. Taveira ultimamente introduzira o dominà no Ramalhete--e havia agora alli, ·s vezes, partidas ardentes, sobretudo quando apparecia o marquez. Porque a paixâo do Taveira era bater o marquez. Mas foi necessario que o marquez acabasse de bracejar, de desenrolar o arrazoado com que estava acabrunhando o Craft--que do fundo da poltrona, de cachimbo na mâo e com um ar de somno, respondia por monossyllabos. Era ainda a proposito do artigo do Ega, da definiÃâo de _senso moral_. J· tinha fallado de Deus, de Garibaldi, atà do seu famoso perdigueiro _Finorio_; e agora definia a Consciencia... Segundo elle, era o medo da policia. Tinha o amigo Craft visto j· alguem com remorsos? Nâo, a nâo ser no theatro da Rua dos Condes, em dramalhıes... --Acredite vocà uma cousa, Craft--terminou elle por dizer, cedendo ao Taveira que o puchava para a meza--isto de consciencia à uma questâo de educaÃâo. Adquire-se como as boas maneiras; soffrer em silencio por ter trahido um amigo, aprende-se exactamente como se aprende a nâo metter os dedos no nariz. Questâo d'educaÃâo... No resto da gente à apenas medo da cadeia, ou da bengala... Ah! vocÃs querem levar outra sova ao dominà como a de sabbado passado? Perfeitamente, sou todo vosso... Carlos, que estivera passando de novo os olhos pelo artigo do Ega, approximou-se tambem da meza. E estavam sentados, remexiam as pedras--quando · porta da sala appareceu o conde de Steinbroken, de casaca e crach·, gran-cruz sobre o colete branco, loiro como uma espiga, esticado e resplandecente. Tinha jantado no PaÃo, e vinha acabar no Ramalhete a sua soirÃe, em familia... Entâo o marquez que o nâo via desde o famoso ataque de intestinos, abandonou o dominÃ, correu a abraÃal-o ruidosamente--e sem o deixar sequer sentar, nem estender a mâo aos outros, implorou-lhe logo uma das suas bellas canÃıes filandezas, uma sÃ, d'aquellas que lhe faziam tâo bem · alma!... --Sà a _Ballada_, Steinbroken... Eu tambem nâo me posso demorar, que tenho aqui a partida · espera. Sà a _Ballada_!... V·, salta l· para dentro para o piano, Cruges... O diplomata sorria, dizia-se canÃado, tendo j· feito musica deliciosa no PaÃo com Sua Magestade. Mas nunca sabia resistir ·quelle modo folgazâo do marquez--e l· foram para a sala do piano, de braÃo dado, seguidos pelo Cruges, que levara uma eternidade a desenroscar-se do canto do soph·. E d'ahi a um momento, atravez dos resposteiros meio corridos, a bella voz de barytono do diplomata espalhava pelas salas, entre os suspiros do piano, a emballadora melancolia da _Ballada_, com a sua lettra traduzida em francez, que o marquez adorava, e em que se fallava das nevoas tristes do Norte, de lagos frios e de fadas loiras... Taveira e Carlos, no entanto, tinham comeÃado uma grande partida de dominÃ, a tostâo o ponto. Mas Carlos n'essa noite nâo se interessava, jogando distrahido, a cantarolar tambem baixo bocados tristes da _Ballada_: depois, quando j· Taveira tinha sà uma pedra diante de si, e elle estava comprando interminavelmente as que restavam, voltou-se para o lado, para o Craft, a perguntar se o hotel da Lawrence, em Cintra, estava aberto todo o anno... --A ida do Damaso para Cintra deu-te no goto, rosnou Taveira impaciente. Anda, joga! Carlos, sem responder, pousou mollemente uma pedra. --DominÃ! gritou Taveira. E em triumpho, aos pulos, contou elle mesmo os sessenta e oito pontos que Carlos perdia. Justamente o marquez entrava, e a victoria do Taveira indignou-o. --Agora nÃs, exclamou elle, puxando vivamente uma cadeira. Oh Carlos, deixe-me vocà dar aqui uma sova n'este ladrâo. Depois jogamos de tres... Como queres tu isto, Taveirete? A dous tostıes o ponto? Ah, queres sà a tostâo... Muito bem, eu te ensinarei. Anda, desembaraÃa-te j· d'esse dÃble-seis, miseravel... Carlos ficou ainda um momento olhando o jogo, com uma cigarette apagada nos dedos, o mesmo ar distrahido: de repente, pareceu tomar uma decisâo, atravessou o corredor, entrou na sala de musica. Steinbroken fÃra ao escriptorio vÃr Affonso da Maia, e a partida de whist; e Cruges sÃ, entre as duas vÃlas do piano, com os olhos errantes pelo tecto, improvisava para si, melancolicamente. --Dize c·, Cruges, perguntou-lhe Carlos, queres vir ·manhâ a Cintra? O teclado callou-se, o maestro ergueu um olhar espantado! Carlos nem o deixou fallar. --Est· claro que queres, nâo te faz senâo bem vir a Cintra... ¡manhâ l· estou · porta, com o break. Mette sempre uma camisa n'uma maleta, que talvez passemos l· a noite... ¡s oito em ponto, hein?... E nâo digas nada l· dentro. Carlos voltou para a sala, ficou a olhar a partida de dominÃ. Agora havia um largo silencio. O marquez e Taveira moviam lentamente as pedras, sem uma palavra, com um ar de rancor surdo. Em cima do pano verde do bilhar as bolas brancas dormiam juntas, sob a luz que cahia dos abat-jours de porcelana. Um som de piano, dolente e vago, passava por vezes. E Craft, com o braÃo descahido ao longo da poltrona, dormitava, beatificamente. VIII Na manhâ seguinte, ·s oito horas pontualmente, Carlos parava o break na rua das Flores, diante do conhecido portâo da casa do Cruges. Mas o trintanario, que elle mandara acima bater · campainha do terceiro andar, desceu com a estranha nova de que o sr. Cruges j· nâo morava ali. Onde diabo morava entâo o sr. Cruges? A criada dissera que o sr. Cruges vivia agora na rua de S. Francisco, quatro portas adiante do Gremio. Durante um momento, Carlos, desesperado, pensou em partir sà para Cintra. Depois l· largou para a rua de S. Francisco, amaldiÃoando o maestro, que mudara de casa sem avisar, sempre vago, sempre tenebroso!... E era em tudo assim. Carlos nada sabia do seu passado, do seu interior, das suas affeiÃıes, dos seus habitos. O marquez uma noite levara-o ao Ramalhete, dizendo ao ouvido de Carlos que estava alli um genio. Elle encantara logo todo o mundo pela modestia das suas maneiras e a sua arte maravilhosa ao piano: e todo o mundo no Ramalhete comeÃou a tratar Cruges por _maestro_, a fallar tambem do Cruges como de um genio, a declarar que Choppin nunca fizera obra egual · _MeditaÃâo de Outono_ do Cruges. E ninguem sabia mais nada. FÃra pelo Damaso que Carlos conhecera a casa do Cruges e soubera que elle vivia l· com a mâe, uma senhora viuva, ainda fresca, e dona de predios na Baixa. Ao portâo da rua de S. Francisco, Carlos teve de esperar um quarto de hora. Primeiro appareceu furtivamente ao fundo da escada uma criada em cabello, que espreitou o break, os criados de farda, e fugiu pelos degraus acima. Depois veiu um creado em mangas de camisa trazer a maleta do senhor e um chaile manta. Emfim, o maestro desceu, a correr, quasi aos trambulhıes, com um cache-nez de seda na mâo o guarda-chuva debaixo do braÃo, abotoando atarantadamente o paletot. Quando vinha pulando os ultimos degraus, uma voz esganiÃada de mulher gritou-lhe de cima: --Olha nâo te esqueÃam as queijadas! E Cruges subiu precipitadamente para a almofada, para o lado de Carlos, rosnando que, com a preoccupaÃâo de se levantar tâo cedo, tivera uma insomnia abominavel... --Mas que diabo de idÃa à essa de mudar de casa, sem avisar a gente, homem?--exclamou Carlos, atirando-lhe para cima dos joelhos um bocado do _plaid_ que o agasalhava, porque o maestro parecia arrepiado. --⦠que esta casa tambem à nossa, disse simplesmente Cruges. --Est· claro, ahi est· uma razâo! murmurou Carlos rindo e encolhendo os hombros. Partiram. Era uma manhâ muito fresca, toda azul e branca, sem uma nuvem, com um lindo sol que nâo aquecia, e punha nas ruas, nas fachadas das casas, barras alegres de claridade dourada. Lisboa acordava lentamente: as saloias ainda andavam pelas portas com os seus ceirıes d'hortaliÃas: varria-se de vagar a testada das lojas: no ar macio morria a distancia um toque fino de missa. Cruges, tendo acabado de arranjar o cache-nez e de abotoar as luvas, estendeu um olhar · esplendida parelha baia reluzindo como um setim sob o faiscar de prata dos arreios, aos criados com os seus ramos nas librÃs, a todo aquelle luxo correcto e rolando em cadencia--onde fazia mancha o seu paletot: mas o que o impressionou foi o aspecto resplandecente de Carlos, o olhar acceso, as bellas cÃres, o bello riso, o quer que fosse de vibrante e de luminoso, que, sob o seu simples veston de xadrezinho castanho, n'aquella almofada burgueza de break, lhe dava um arranque de heroe jovial, lanÃando o seu carro de guerra... Cruges farejou uma aventura, soltou logo a pergunta que desde a vespera lhe ficara nos labios. --Com franqueza, aqui para nÃs, que idÃa foi esta de ir a Cintra? Carlos gracejou. O maestro jurava o segredo pela alma melodiosa de Mozart, e pelas _fugas_ de Bach? Pois bem, a idÃa era vir a Cintra, respirar o ar de Cintra, passar o dia em Cintra... Mas, pelo amor de Deus, que o nâo revelasse a ninguem! E accrescentou, rindo: --Deixa-te levar, que nâo te has de arrepender... Nâo, Cruges nâo se arrependia. Atà achava delicioso o passeio, gostara sempre muito de Cintra... Todavia nâo se lembrava bem, tinha apenas uma vaga idÃa de grandes rochas e de nascentes d'aguas vivas... E terminou por confessar que desde os nove annos nâo voltara a Cintra. O que! o maestro nâo conhecia Cintra?... Entâo era necessario ficarem l·, fazer as peregrinaÃıes classicas, subir · Pena, ir beber agua · Fonte dos Amores, barquejar na varzea... --A mim o que me est· a appetecer muito à Sitiaes; e a manteiga fresca. --Sim, muita manteiga, disse Carlos. E burros, muitos burros... Emfim, uma ecloga! O break rodava na estrada de Bemfica: iam passando muros enramados de quintas, casarıes tristonhos de vidraÃas quebradas, vendas com o seu masso de cigarros · porta dependurado de uma guita: e a menor arvore, qualquer bocado de relva com papoulas, um fugitivo longe de collina verde, encantavam Cruges. Ha que tempos elle nâo via o campo! Pouco a pouco o sol elevara-se. O maestro desembaraÃou-se do seu grande cache-nez. Depois, encalmado, despiu o paletot--e declarou-se morto de fome. Felizmente estavam chegando · Porcalhota. O seu vivo desejo seria comer o famoso coelho guisado,--mas, como era cedo para esse acepipe, decidiu-se, depois de pensar muito, por uma bella pratada de ovos com chouriÃo. Era uma cousa que nâo provava havia annos, e que lhe daria a sensaÃâo de estar na aldÃa... Quando o patrâo, com um ar importante e como fazendo um favor, pousou sobre a meza sem toalha a enorme travessa com o petisco, Cruges esfregou as mâos, achando aquillo deliciosamente campestre. --A gente em Lisboa estraga a saude! disse elle. puxando para o prato uma montanha de ovo e chouriÃo. Tu nâo tomas nada?... Carlos, para lhe fazer companhia, acceitou uma chavena de cafÃ. D'ahi a pouco Cruges, que devorava, exclamou com a bocca cheia: --O Rheno tambem deve ser magnifico! Carlos olhou-o espantado e rindo. A que vinha agora alli o Rheno?... ⦠que o maestro, desde que sahira as portas, estava cheio de idÃas de viagens e de paisagens; queria vÃr as grandes montanhas onde ha neve, os rios de que se falla na Historia. O seu ideal seria ir · Allemanha, percorrer a pÃ, com uma mochilla, aquella patria sagrada dos seus deuses, de Beethoven, de Mozart, de Wagner... --Nâo te appetecia mais ir · Italia? perguntou Carlos accendendo o charuto. O maestro esboÃou um gesto de desdem, teve uma das suas phrases sybillinas: --Tudo contradanÃas!... Carlos entâo fallou de um certo plano de ir · Italia, com o Ega, no inverno. Ir · Italia, para o Ega, era uma hygiene intellectual: precisava calmar aquella imaginaÃâo tumultuosa de nervoso peninsular entre a placida magestade dos marmores... --O que elle precisava antes de tudo era chicote, rosnou o Cruges. E voltou a fallar do caso da vespera, do famoso artigo da _Gazeta_. Achava aquillo, como elle dissera, pura e simplesmente insensato, e de uma sabujice indecorosa. E o que o affligia à que o Ega, com aquelle talento, aquella verve fumegante, nâo fizesse nada... --Ninguem faz nada, disse Carlos espreguiÃando-se. Tu, por exemplo, que fazes? Cruges, depois de um silencio, rosnou encolhendo os hombros: --Se eu fizesse uma boa opera, quem à que m'a representava? --E se o Ega fizesse um bello livro, quem à que lh'o lia? O maestro terminou por dizer: --Isto à um paiz impossivel... Parece-me que tambem vou tomar cafÃ. Os cavallos tinham descanÃado, Cruges pagou a conta, partiram. D'ahi a pouco entravam na charneca que lhes pareceu infindavel. D'ambos os lados, a perder de vista, era um châo escuro e triste; e por cima um azul sem fim, que n'aquella solidâo parecia triste tambem. O trote compassado dos cavallos batia monotonamente a estrada. Nâo havia um rumor: por vezes um passaro cortava o ar, n'um vÃo brusco, fugindo do ermo agreste. Dentro do break um dos criados dormia; Cruges, pesado dos ovos com chouriÃo, olhava, vaga e melancolicamente, as ancas lustrosas dos cavallos. Carlos, no entanto, pensava no motivo que o trazia a Cintra. E realmente nâo sabia bem porque vinha: mas havia duas semanas que elle nâo avistava certa figura que tinha um passo de deusa pisando a terra, e que nâo encontrava o negro profundo de dois olhos que se tinham fixado nos seus: agora suppunha que ella estava em Cintra, corria a Cintra. Nâo esperava nada, nâo desejava nada. Nâo sabia se a veria, talvez ella tivesse j· partido. Mas vinha: e era j· delicioso o pensar n'ella assim por aquella estrada fÃra, penetrar, com essa doÃura no coraÃâo, sob as bellas arvores de Cintra... Depois, era possivel que d'ahi a pouco, na velha Lawrence, elle a cruzasse de repente no corredor, roÃasse talvez o seu vestido, ouvisse talvez a sua voz. Se ella l· estivesse, decerto viria jantar · sala, aquella sala que elle conhecia tâo bem, que j· lhe estava appetecendo tanto, com as suas pobres cortininhas de cassa, os ramos toscos sobre a meza, e os dois grandes candieiros de latâo antigo... Ella entraria alli, com o seu bello ar claro de Diana loira; o bom Damaso, apresentaria o seu amigo Maia; aquelles olhos negros que elle vira passar de longe como duas estrellas, pousariam mais de vagar nos seus; e, muito simplesmente, · ingleza, ella estender-lhe-hia a mâo... --Ora atà que finalmente! exclamou Cruges, com um suspiro de allivio e respirando melhor. Chegavam ·s primeiras casas de Cintra, havia j· verduras na estrada, e batia-lhes no rosto o primeiro sopro forte e fresco da serra. E a passo, o break foi penetrando sob as arvores do Ramalhâo. Com a paz das grandes sombras, envolvia-os pouco a pouco uma lenta e emballadora sussurraÃâo de ramagens, e como o diffuso e vago murmurio de agoas correntes. Os muros estavam cobertos de heras e de musgos: atravez da folhagem, faiscavam longas flechas de sol. Um ar subtil e avelludado circulava, rescendendo ·s verduras novas; aqui e alÃm, nos ramos mais sombrios, passaros chilreavam de leve; e n'aquelle simples bocado de estrada, todo salpicado de manchas do sol, sentia-se j·, sem se vÃr, a religiosa solemnidade dos espessos arvoredos, a frescura distante das nascentes vivas, a tristeza que cae das penedias e o repouso fidalgo das quintas de verâo... Cruges respirava largamente, voluptuosamente. --A Lawrence onde Ã? Na serra?--perguntou elle com a idÃa repentina de ficar alli um mez n'aquelle paraiso. --NÃs nâo vamos para a Lawrence, disse Carlos sahindo bruscamente do seu silencio, e espertando os cavallos. Vamos para o Nunes, estamos l· muito melhor! Era uma idÃa que lhe viera de repente, apenas passara as primeiras casas de S. Pedro, e o break comeÃara a rolar n'aquellas estradas onde a cada momento elle a poderia encontrar. Tomara-o uma timidez, a que se misturava um laivo de orgulho, o receio melindrado de ser indiscreto, seguindo-a assim a Cintra, ainda que ella o nâo reconhecesse, indo installar-se sob as mesmas telhas, apoderando-se de um logar · mesma meza... E ao mesmo tempo repugnou-lhe a idÃa de lhe ser apresentado pelo Damaso: via-o j·, bochechudo e vestido de campo, a esboÃar um gesto de ceremonia, a mostrar o _seu amigo Maia_, a tratal-o por tu, affectando intimidades com ella, cocando-a com um olho terno... Isto seria intoleravel. --Vamos para o Nunes, que se come melhor! Cruges nâo respondeu, mudo, enlevado, recebendo como uma impressâo religiosa de todo aquelle esplendor sombrio de arvoredo, dos altos fragosos da serra entrevistos um instante l· em cima nas nuvens, d'esse aroma que elle sorvia deliciosamente, e do sussurro doce de aguas descendo para os valles... Sà ao avistar o PaÃo descerrou os labios: --Sim senhor, tem _cachet_! E foi o que mais lhe agradou--este macisso e silencioso palacio, sem florıes e sem torres, patriarchalmente assentado entre o casario da villa, com as suas bellas janellas manuelinas que lhe fazem um nobre semblante real, o valle aos pÃs, frondoso e fresco, e no alto as duas chaminÃs collossaes, disformes, resumindo tudo, como se essa residencia fosse toda ella uma cosinha talhada ·s proporÃıes de uma gula de Rei que cada dia come todo um Reino... E apenas o break parou · porta do Nunes, foi-lhe ainda dar um olhar, timido e de longe--receiando alguma palavra rude da sentinella. Carlos no entanto, saltando logo da almofada, tomou · parte o criado do hotel, que descera a recolher as maletas. --Vossà conhece o sr. Damaso Salcede? Sabe se elle est· em Cintra? O creado conhecia muito bem o sr. Damaso Salcede. Ainda na vespera pela manhâ o vira entrar defronte, no bilhar, com um sujeito de barbas pretas... Devia estar na Lawrence, porque sà com raparigas e em pandiga à que o sr. Damaso vinha para o Nunes. --Entâo, depressa, dous quartos! exclamou Carlos, com uma alegria de creanÃa, certo agora que _ella_ estava em Cintra. E uma sala particular, sà para nÃs, para almoÃarmos! Cruges, que se approximava, protestou contra esta sala solitaria. Preferia a meza redonda. Ordinariamente na meza redonda encontram-se typos... --Bem, exclamou Carlos, rindo e esfregando as mâos, pıe o almoÃo na sala de jantar, pıe-n'o atà na PraÃa... E muita manteiga fresca para o sr. Cruges! O cocheiro levou o break, o creado sobraÃou as maletas. Cruges, enthusiasmado com Cintra, rompeu pela escada acima, a assobiar--conservando aos hombros o chaile-manta, de que se nâo queria separar, porque lh'o emprestara a mamâ. E apenas chegou · porta da sala do jantar, estacou, ergueu os braÃos, teve um grito. --Oh Euzebiosinho! Carlos correu, olhou... Era elle, o viuvo, acabando de almoÃar, com duas raparigas hespanholas. Estava no topo da meza, como presidindo, diante de uns restos de pudim e de pratos de fructa, amarellado, despenteado, carregado de luto, com a larga fita das lunetas pretas passada por traz da orelha, e uma rodela de taffet· negro sobre o pescoÃo tapando alguma espinha rebentada. Uma das hespanholas era um mulherâo trigueiro, com signaes de bexigas na cara; a outra muito franzina, de olhos meigos, tinha uma roseta de febre, que o pà de arroz nâo desfarÃava. Ambas vestiam de setim preto, e fumavam cigarro. E na luz e na frescura que entrava pela janella, pareciam mais gastas, mais molles, ainda pegajosas da lentura morna dos colxıes, e cheirando a bafio de alcova. Pertencendo · sucia havia um outro sujeito, gordo, baixo, sem pescoÃo, com as costas para a porta e a cabeÃa sobre o prato, babujando uma metade de laranja. Durante um momento, Euzebiosinho ficou interdito com o garfo no ar; depois l· se ergueu, de guardanapo na mâo, veiu apertar os dedos aos amigos, balbuciando logo uma justificaÃâo embrulhada, a ordem do medico para mudar de ares, aquelle rapaz que o acompanhara, e que quizera trazer raparigas... E nunca parecera tâo funebre, tâo relles, como resmungando estas cousas hypocritas, encolhido · sombra de Carlos. --Fizeste muito bem, Eusebiosinho, disse Carlos por fim, batendo-lhe no hombro. Lisboa est· um horror, e o amor à cousa doce. O outro continuava a justificar-se. Entâo a hespanhola magrita, que fumava, afastada da meza e com a perna traÃada, elevou a voz, perguntou ao Cruges se elle nâo lhe fallava. O maestro affirmou-se um momento, e partiu de braÃos abertos para a sua amiga Lolla. E foi, n'esse canto da meza, uma grulhada em hespanhol, grandes apertos de mâo, e _hombre, que no se le ha visto! e mira, que me he accordado de ti!_ e _caramba, que reguapa estas_... Depois a Lolla, tomando um arsinho espremido, apresentou o outro mulherâo, la seÃorita Concha... Vendo isto, impressionado com tanta familiaridade--o sujeito obeso, que apenas levantara um instante a cabeÃa do prato, decidiu-se a examinar mais attentamente os amigos do Euzebio: crusou o talher, limpou com o guardanapo a bocca, a testa e o pescoÃo, encavallou laboriosamente no nariz uma grande luneta de vidros grossos, e erguendo a face larga, balofa e cÃr de cidra, examinou detidamente Cruges, e depois Carlos, com uma impudencia tranquilla. Eusebiosinho apresentou o seu amigo Palma: e o seu amigo Palma, ouvindo o nome conhecido de Carlos da Maia, quiz logo mostrar diante de um gentleman, que era um gentleman tambem. Arrojou para longe o guardanapo, arredou para fÃra a cadeira; e de pÃ, estendendo a Carlos os dedos molles e de unhas roidas, exclamou, com um gesto para os restos da sobremeza: --Se. v. ex.^a à servido, à sem ceremonia... Que isto quando a gente vem a Cintra, à para abrir o appetite e fazer bem · barriga... Carlos agradeceu, e ia retirar-se. Mas Cruges, que se animava e gracejava com a Lolla, fez tambem do outro lado da meza a sua apresentaÃâo: --Carlos, quero que conheÃas aqui a lindissima Lolla, relaÃıes antigas, e a seÃorita Concha, que eu tive agora o prazer... Carlos saudou respeitosamente as damas. O mulherâo da Concha rosnou seccamente os _buenos dias_: parecia de mau humor, pesada do almoÃo, amodorrada para alli, sem dizer uma palavra, com os cotovellos fincados na meza, os olhos pestanudos meio cerrados, ora fumando, ora palitando os dentes. Mas a Lolla foi amavel, fez de senhora, ergueu-se, offereceu a Carlos a mâosita suada. Depois retomando o cigarro, dando um geito ·s pulseiras de ouro, declarou com um requebro d'olhos, que conhecia de ha muito Carlos... --No ha estado ustÃd con Encarnacion? Sim, Carlos tivera essa honra... E que era feito d'ella, d'essa bella Encarnacion? A Lolla sorriu com finura, tocou no cotovello do maestro. Nâo acreditava que Carlos ignorasse o que era feito da Encarnacion... Emfim, terminou por dizer que a Encarnacion estava agora com o Saldanha. --Mas olhe que nâo à com o duque de Saldanha! exclamou Palma, que se conservara de pÃ, com a bolsa do tabaco aberta sobre a meza, fazendo um grande cigarro. A Lolita, com um modo secco, replicou que o Saldanha nâo seria duque, mas era um _chico muy decente_... --Olha, disse o Palma lentamente, de cigarro na bocca e tirando a isca da algibeira, duas boas bofetadas na cara lhe dei eu ainda nâo ha tres semanas... Pergunta ao Gaspar, o Gaspar assistiu... Foi atà no Montanha... Duas bofetadas que lhe foi logo o chapÃo parar ao meio da rua... O sr. Maia ha de conhecer o Saldanha... Ha de conhecer, que elle tambem tem um carrito e um cavallo. Carlos fez um gesto indicando que nâo; e despedia-se de novo, saudando as damas, quando Cruges o chamou ainda, retendo-o mais um instante, em quanto satisfazia uma curiosidade: queria saber qual d'aquellas meninas era a _esposa do amigo Eusebio_. Assim interpellado, o viuvo encordoou, rosnou com uma voz morosa, sem erguer as lunetas da laranja que descascava, que estava alli de passeio, nâo tinha esposa, e ambas aquellas meninas pertenciam ao amigo Palma... E ainda elle mascava as ultimas palavras, quando Concha, que digeria de perna estendida, se endireitou bruscamente como se fosse saltar, atirou um murro · borda da meza, e com os olhos chammejantes, desafiou o Eusebio a que repetisse aquillo! Queria que elle repetisse! Queria que dissesse se tinha vergonha d'ella, e de dizer que a tinha trazido a Cintra!... E como o Eusebio, j· enfiado, tentava gracejar, fazer-lhe uma festa--ella despropositou, atirou-lhe os peiores nomes, dando sempre punhadas na meza, com uma furia que lhe torcia a bocca, lhe punha duas manchas de sangue no carâo trigueiro. A Lolita, vexada, puchava-lhe pelo braÃo: a outra deu-lhe um repellâo; e, mais excitada com a estridencia da propria voz, esvasiou-se de toda a bilis, chamou-lhe porco, accusou-o de forreta, usou-o como um trapo vil. Palma afflicto, debruÃado sobre a meza, exclamava n'um tom ancioso: --â Concha, escuta l·!... Ouve l·!... Concha, eu te explico... De repente, ella ergueu-se, a cadeira tombou para o lado: e o mulherâo abalou pela sala fÃra, a grande cauda de setim varreu desabridamente o soalho, ouviu-se dentro estalar uma porta. No châo ficara caindo um pedaÃo da mantilha de renda. O creado que entrava do outro lado com a cafeteira estacou, afiando o olho curioso, farejando o escandalo; depois, calado e seccamente, foi servindo em roda o cafÃ. Durante um momento houve um silencio. Apenas porÃm o criado sahiu--a Lolita e o Palma, agitados mas abafando a voz, atacaram o Eusebiosinho. Elle portara-se muito mal! Aquillo nâo fÃra de cavalheiro! Tinha trazido a rapariga a Cintra, devia-a respeitar, nâo a ter renegado assim, · bruta, diante de todos... --_Esto no se hace_, dizia a Lolita, de pÃ, gesticulando, com os olhos brilhantes, voltada para Carlos, _ha sido una cosa muy fÃa!_.. E como o Cruges lamentava, sorrindo, ter sido a causa involuntaria da catastrophe--ella baixou a voz, contou que a Concha era uma furia, viera a Cintra com pouca vontade, e desde manhâ estava de _muy malo humor_... Pero lo de Silbeira habia sido una gran pulhice... Elle, coitado, com a cabeÃa cahida e as orelhas em braza, remexia desoladamente o seu cafÃ; nâo se lhe viam os olhos escondidos pelas lunetas pretas, mas percebia-se-lhe o grosso soluÃo que lhe affogava a garganta. Entâo Palma pouzou a chavena, lambeu os beiÃos, e de pà no meio da sala, com a face luzidia, o collete desabotoado, fez n'um tom entendido o resumo d'aquelle desgosto. --Tudo provÃm d'isto, e desculpe-me vocà dizel-o, Silveira: à que vocà nâo sabe tratar com hespanholas! A esta cruel palavra o viuvo succumbiu. A colher cahiu-lhe dos dedos. Ergueu-se, acercou-se de Carlos e de Cruges, como refugiando-se n'elles, vindo reconfortar-se ao calor da sua amizade,âe desabafou, estas palavras angustiosas escaparam-se-lhe dos labios: --Vejam vocÃs! vem a gente a um sitio d'estes para gosar um bocado de poesia, e no fim à uma d'estas!... Carlos bateu-lhe melancolicamente no hombro: --A vida à assim, Eusebiosinho. Cruges fez-lhe uma festa nas costas: --Nâo se pÃde contar com prazeres, Silveirinha. Mas Palma, mais pratico, declarou que era forÃoso arranjarem-se as cousas. Virem a Cintra, para questıes e amuos, isso nâo! N'aquellas pandegas queria-se harmonia, chalaÃa, e gosar. Couces, nâo. Entâo ficava-se em Lisboa, que era mais barato. Chegou-se a Lolla, passou-lhe os dedos pela face, com amor: --Anda Lolita, vae tu l· dentro · Concha, dize-lhe que se nâo faÃa tola, que venha tomar cafÃ... Anda, que tu sabe-l'a levar... Dize-lhe que peÃo eu! Lolita esteve um momento escolhendo duas boas laranjas, foi dar um geito ao cabello diante do espelho, apanhou a cauda--e sahiu, atirando a Carlos, ao passar, um olhar e um sorrisinho. Apenas ficaram sÃs, Palma voltou-se para o Eusebio, e deu-lhe conselhos muito serios sobre o systema de tratar hespanholas. Era necessario leval-as por bons modos; por isso à que ellas se pellavam por portuguezes, porque l· em Hespanha era · bordoada... Emfim, elle nâo dizia que em certos casos, duas boas bolachas, mesmo um bom par de bengaladas, nâo fossem uteis... Sabiam, por exemplo, os amigos, quando se devia bater? Quando ellas nâo gostavam da gente, e se faziam ariscas. Entâo, sim. Entâo z·s, tapona, que ellas ficavam logo pelo beiÃo... Mas depois bons modos, delicadeza, tal qual como com francezas... --Acredite vocà isto, Silveira. Olhe que eu tenho experiencia. E o sr. Maia que lhe diga se isto nâo à verdade, elle que tem tambem experiencia e sabe viver com hespanholas! E isto foi dito com tanto calor, tanto respeito--que Cruges desatou a rir, fez rir Carlos tambem. O sr. Palma, um pouco chocado, compoz mais as lunetas, e olhou para elles: --Os senhores riem-se? Imaginam que eu que estou a mangar? Olhem que eu comecei a lidar com hespanholas aos quinze annos! Nâo, escusam de rir, que n'isso ninguem me ganha! L· o que se chama ter geito para hespanholas, c· o meco! E, vamos l·, que nâo à facil! ⦠necessario ter um certo talento!... Olhem, o Herculano à capaz de fazer bellos artigos e estylo catita... Agora tragam-n'o c· para lidar com hespanholas e veremos! Nâo d· meia... Eusebiosinho no entanto fÃra duas vezes escutar · porta. Todo o hotel cahira n'um grande silencio, a Lolita nâo voltava. Entâo Palma aconselhou um grande passo: --V· vocà l· dentro, Silveira, entre pelo quarto, e assim sem mais nem menos, chegue-se ao pà d'ella... --E tapona? perguntou Cruges, muito seriamente, gosando o Palma. --Qual tapona! Ajoelhe e peÃa perdâo... N'este caso à pedir perdâo... E como pretexto, Silveira, leve-lhe vocà mesmo o cafÃ. Eusebiosinho, com um olhar ancioso e mudo, consultou os seus amigos. Mas o seu coraÃâo j· decidira: e d'ahi a um momento, com o pedaÃo de mantilha n'uma das mâos, a chavena de cafà na outra, enfiado e commovido, l· partia a passos lentos pelo corredor a pedir perdâo · Concha. E, logo atraz d'elle, Carlos e Cruges deixaram a sala, sem se despedirem do sr. Palma--que de resto, indifferente tambem, j· se accommodara â¡ meza a preparar regaladamente o seu grog. Eram duas horas quando os dous amigos sahiram emfim do hotel, a fazer esse passeio a Sitiaes--que desde Lisboa tentava tanto o maestro. Na praÃa, por defronte das lojas vasias e silenciosas, câes vadios dormiam ao sol: atravez das grades da cadÃa os presos pediam esmola. CreanÃas, enxovalhadas e em farrapos, garotavam pelos cantos; e as melhores casas tinham ainda as janellas fechadas, continuando o seu somno de inverno, entre as arvores j· verdes. De vez em quando apparecia um bocado da serra, com a sua muralha de ameias correndo sobre as penedias, ou via-se o castello da Pena, solitario, l· no alto. E por toda a parte o luminoso ar de abril punha a doÃura do seu velludo. Defronte do hotel da Lawrence, Carlos retardou o passo, mostrou-o ao Cruges. --Tem o ar mais sympathico, disse o maestro. Mas valeu muito a pena ir para o Nunes, sà para vÃr aquella scena... E entâo com quà o sr. Carlos da Maia tem experiencia de hespanholas? Carlos nâo respondeu, os seus olhos nâo se despegavam d'aquella fachada banal, onde sà uma janella estava aberta com um par de botinas de duraque seccando ao ar. ¡ porta, dous rapazes inglezes, ambos de knicker-bokers, cachimbavam em silencio; e defronte, sentados sobre um banco de pedra, dous burriqueiros ao lado dos burros, nâo lhes tiravam o olho de cima, sorrindo-lhes, cocando-os como uma presa. Carlos ia seguir, mas pareceu-lhe ouvir, distante e melancolico, sahindo do silencio do hotel, um vago som de flauta; e parou ainda, remexendo as suas recordaÃıes, quasi certo de Damaso lhe ter dito que a bordo Castro Gomes tocava flauta... --Isto à sublime! exclamou do lado o Cruges, commovido. Parara diante da grade d'onde se domina o valle. E d'ali olhava, enlevadamente, a rica vastidâo de arvoredo cerrado, a que sà se veem os cimos redondos, vestindo um declive da serra como o musgo veste um muro, e tendo aquella distancia, no brilho da luz, a suavidade macia de um grande musgo escuro. E n'esta espessura verde-negra havia uma frontaria de casa que o interessava, branquejando, affogada entre a folhagem, com um ar de nobre repouso, debaixo de sombras seculares... Um momento teve uma idÃa de artista: desejou habital-a com uma mulher, um piano e um câo da Terra-nova. Mas o que o encantava era o ar. Abria os braÃos, respirava a tragos deliciosos: --Que ar! Isto d· saude, menino! Isto faz reviver!... Para o gosar mais docemente, sentou-se adiante, n'um bocado de muro baixo, defronte de um alto terraÃo gradeado, onde velhas arvores assombreiam bancos de jardim, e estendem sobre a estrada a frescura das suas ramagens, cheias do piar das aves. E como Carlos lhe mostrava o relogio, as horas que fugiam para ir vÃr o palacio, a Pena, as outras bellezas de Cintra--o maestro declarou que preferia estar ali, ouvindo correr a agua, a vÃr monumentos caturras... --Cintra nâo sâo pedras velhas, nem cousas gothicas... Cintra à isto, uma pouca de agua, um bocado de musgo... Isto à um paraiso!... E, n'aquella satisfaÃâo que o tornava loquaz, acrescentou, repetindo a sua chalaÃa: --E v. ex.^a deve sabel-o, sr. Maia, porque tem experiencia de hespanholas!... --Poupa-me, respeita a natureza, murmurou Carlos, que riscava pensativamente o châo com a bengala. Ficaram callados. Cruges agora admirava o jardim, por baixo do muro em que estavam sentados. Era um espesso ninho de verdura, arbustos, flores e arvores, suffocando-se n'uma prodigalidade de bosque silvestre, deixando apenas espaÃo para um tanquesinho redondo, onde uma pouca de agua, immovel e gelada, com dous ou tres nenufares, se esverdinhava sob a sombra d'aquella ramaria profusa. Aqui e alem, entre a bella desordem da folhagem, distinguiam-se arranjos de gosto burguez, uma volta de ruasita estreita como uma fita, faiscando ao sol, ou a banal palidez de um gesso. N'outros recantos, aquelle jardim de gente rica, exposto ·s vistas, tinha retoques pretenciosos de estufa rara, aloes e cactos, braÃos aguardasolados de auraucarias erguendo-se d'entre as agulhas negras dos pinheiros bravos, laminas de palmeira, com o seu ar triste de planta exilada, roÃando a rama leve e perfumada das olaias floridas de cÃr de rosa. A espaÃos, com uma graÃa discreta, branquejava um grande pà de margaridas; ou em torno de uma rosa, solitaria na sua haste, palpitavam borboletas aos pares. --Que pena que isto nâo pertenÃa a um artista! murmurou o maestro. Sà um artista saberia amar estas flores, estas arvores, estes rumores... Carlos sorriu. Os artistas, dizia elle, sà amam na natureza os effeitos de linha e cÃr; para se interessar pelo bem-estar de uma tulipa, para cuidar de que um craveiro nâo soffra sede, para sentir magoa de que a geada tenha queimado os primeiros rebentıes das acacias--para isso sà o burguez, o burguez que todas as manhâs desce ao seu quintal com um chapÃo velho e um regador, e và nas arvores e nas plantas uma outra familia muda, por que elle à tambem responsavel... Cruges, que escutara distrahidamente, exclamou: --Diabo! ⦠necessario que nâo me esqueÃam as queijadas! Um som de rodas interrompeu-os, uma caleche descoberta desembocou a trote do lado de Sitiaes. Carlos ergueu-se logo, certo de que era _ella_, e que elle ia vÃr os seus bellos olhos brilhar e fugir como duas estrellas. A caleche passou, levando um anciâo de barbas de patriarcha, e uma velha ingleza com o regaÃo cheio de flores, e o vÃo azul fluctuando ao ar. E logo atraz, quasi no pà que as rodas tinham erguido, appareceu, caminhando pensativamente, de mâos atraz das costas, um homem alto, todo de preto, com um grande chapÃo Panam· sobre os olhos. Foi Cruges que reconheceu os longos bigodes romanticos, que gritou: --Olha o Alencar! Oh! grande Alencar!... Durante um momento, o poeta ficou assombrado, com os braÃos abertos, no meio da estrada. Depois, com a mesma effusâo ruidosa, apertou Carlos contra o coraÃâo, beijou o Cruges na face--porque conhecia Cruges desde pequeno, Cruges era para elle como um filho. Caramba! Eis ahi uma surpreza que elle nâo trocava pelo titulo de duque! Ora o alegrâo de os vÃr ali! Como diabo tinham elles vindo ali parar? E nâo esperou a resposta, contou elle logo a sua historia. Tivera um dos seus ataques de garganta, com uma ponta de febre, e o Mello, o bom Mello, recommendara-lhe mudanÃa d'ares. Ora elle, bons ares, sà comprehendia os de Cintra: porque alli nâo eram sà os pulmıes que lhe respiravam bem, era tambem o coraÃâo, rapazes!... De sorte que viera na vespera, no omnibus. --E onde est·s tu, Alencar? perguntou logo Carlos. --Pois onde queres tu que eu esteja, filho? L· estou com a minha velha Lawrence. Coitada! est· bem velha! mas para mim à sempre uma amiga, à quasi uma irmâ!... E vocÃs, que diabo? Para onde vâo vocÃs, com essas flores nas lapellas? --A Sitiaes. Vou mostrar Sitiaes ao maestro. Entâo tambem elle voltava a Sitiaes! Nâo tinha nada que fazer senâo sorver bom ar, e scismar... Toda a manhâ andara alli, vagamente, pendurando sonhos dos ramos das arvores. Mas agora j· os nâo largava; era mesmo um dever ir elle proprio fazer ao maestro as honras de Sitiaes... --Que aquillo à sitio muito meu, filhos! Nâo ha alli arvore que me nâo conheÃa... Eu nâo vos quero comeÃar j· a impingir versos; mas emfim, vocÃs lembram-se de uma cousa que eu fiz a Sitiaes, e de que por ahi se gostou... Quantos luares eu l· vi! Que doces manhâs d'abril! E os ais que soltei alli Nâo foram sete, mas mil! Pois entâo j· vocÃs vÃem, rapazes, que tenho razâo para conhecer Sitiaes... O poeta lanÃou ao ar um vago suspiro, e durante um instante caminharam todos tres callados. --Dize-me uma cousa, Alencar, perguntou Carlos baixo, parando, e tocando no braÃo do poeta. O Damaso est· na Lawrence? Nâo, que elle o tivesse visto. Verdade seja que na vespera, apenas chegara, fÃra-se deitar, fatigado; e n'essa manhâ almoÃara sà com dois rapazes inglezes. O unico animal que avistara fÃra um lindo câosinho de luxo, ladrando no corredor... --E vocÃs onde estâo? --No Nunes. Entâo o poeta parando de novo, contemplando Carlos com sympathia: --Que bem que fizeste em arrastar c· o maestro, filho!... Quantas vezes eu tenho dito ·quelle diabo, que se mettesse no omnibus, viesse passar dous dias a Cintra. Mas ninguem o tira de martelar o piano. E olha tu que mesmo para a musica, para compor, para entender um Mozart, um Choppin, à necessario ter visto isto, escutado este rumor, esta melodia da ramagem... Baixou a voz, apontando para o maestro, que caminhava adiante, enlevado: --Tem muito talento, tem muita idÃa melodica!... Olha que andei com aquillo ·s cabritas... E a mâe, menino, foi muitissimo boa mulher. --Vejam vocÃs isto! gritou Cruges que parara, esperando-os. Isto à sublime. Era apenas um bocadito d'estrada, apertada entre dous velhos muros cobertos d'hera, assombreada por grandes arvores entrelaÃadas, que lhe faziam um toldo de folhagem aberto · luz como uma renda: no châo tremiam manchas de sol: e, na frescura e no silencio, uma agoa que se nâo via ia fugindo e cantando. --Se tu queres sublime, Cruges, exclamou Alencar, entâo tens de subir · serra. Ahi tens o espaÃo, tens a nuvem, tens a arte... --Nâo sei, talvez goste mais d'isto, murmurou o maestro. A sua natureza de timido preferiria, de certo, estes humildes recantos, feitos de uma pouca de folhagem fresca e de um pedaÃo de muro musgoso, logares de quietaÃâo e de sombra, onde se aninha com um conforto maior o scismar dos indolentes... --De resto, filho, continuou Alencar, tudo em Cintra à divino. Nâo ha cantinho que nâo seja um poema... Olha, alli tens tu, por exemplo, aquella linda florinha azul...--e, ternamente, apanhou-a. --Vamos andando, vamos andando, murmurou Carlos impaciente, e agora, desde que o poeta fallara do câosinho de luxo, mais certo de que ella estava na Lawrence, e que a ia brevemente encontrar. Mas, ao chegar a Sitiaes, Cruges teve uma desillusâo diante d'aquelle vasto terreiro coberto de herva, com o palacete ao fundo, enxovalhado, de vidraÃas partidas, e erguendo pomposamente sobre o arco, em pleno ceu, o seu grande escudo de armas. Ficara-lhe a idÃa, de pequeno, que Sitiaes era um montâo pittoresco de rochedos, dominando a profundidade de um valle; e a isto misturava-se vagamente uma recordaÃâo de luar e de guitarras... Mas aquillo que elle alli via era um desapontamento. --A vida à feita de desapontamentos, disse Carlos, Anda para diante! E apressou o passo atravez do terreiro, em quanto o maestro, cada vez mais animado, lhe gritava a chalaÃa do dia: --E v. ex.^a deve sabel-o, sr. Maia, porque tem experiÃncia de hespanholas!... Alencar, que se demorara atraz a accender o cigarro, estendeu o ouvido, curioso, quiz saber o que era isso de hespanholas? O maestro contou-lhe o encontro no Nunes e os furores da Concha. Iam ambos caminhando por uma das alamedas lateraes, verde e fresca, de uma paz religiosa, como um claustro feito de folhagem. O terreiro estava deserto; a herva que o cobria, crescia ao abandono, toda estrellada de botıes de ouro brilhando ao sol, e de malmequersinhos brancos. Nenhuma folha se movia: atravez da ramaria ligeira o sol atirava mÃlhos de raios de ouro. O azul parecia recuado a uma distancia infinita, repassado de silencio luminoso; e sà se ouvia, ·s vezes, monotona e dormente, a voz de um cuco nos castanheiros. Toda aquella vivenda, com a sua grade enferrujada sobre a estrada, os seus florıes de pedra roÃdos da chuva, o pesado brazâo rococÃ, as janellas cheias de teias de aranha, as telhas todas quebradas, parecia estar-se deixando morrer voluntariamente n'aquella verde solidâo,--amuada com a vida, desde que d'alli tinham desapparecido as ultimas graÃas do tricorne e do espadim, e os derradeiros vestidos de anquinhas tinham roÃado essas relvas... Agora Cruges Ãa descrevendo ao Alencar a figura do Eusebiosinho, com a chavena de cafà na mâo, a ir pedir perdâo · Concha; e a cada momento o poeta, com o seu grande chapÃo panam·, se agachava a colher florinhas silvestres. Quando passaram o Arco, encontraram Carlos sentado n'um dos bancos de pedra, fumando pensativamente a sua cigarette. O palacete deitava sobre aquelle bocado de terraÃo a sombra dos seus muros tristes; do valle subia uma frescura e um grande ar; e algures, em baixo, sentia-se o prantear de um repuxo. Entâo o poeta, sentando-se ao lado do seu amigo, fallou com nojo do Eusebiosinho.--Ahi est· uma torpeza que elle nunca commettera, trazer meretrizes a Cintra! Nem a Cintra, nem a parte nenhuma... Mas muito menos a Cintra! Sempre tivera, todo o mundo devia ter, a religiâo d'aquellas arvores e o amor d'aquellas sombras... --E esse Palma, accrescentou elle, à um traste! Eu conheÃo-o; elle teve uma especie de jornal, e j· lhe dei muita bofetada na rua do Alecrim. Foi uma historia curiosa... Ora eu t'a conto Carlos... Aquelle canalha! quando me lembro!... Aquella vil bolinha de materia putrida!... Aquelle chouricinho de pus! Levantou-se, passando a mâo nervosa sobre os bigodes, j· excitado pela lembranÃa d'aquella velha desordem, vergastando o Palma com nomes ferozes, todo n'uma d'essas fervuras de sangue que eram a sua desgraÃa. Cruges, no entanto, encostado ao parapeito, olhava a grande planicie de lavoura que se estendia em baixo, rica e bem trabalhada, repartida em quadrados verde-claros e verde-escuros, que lhe faziam lembrar um panno feito de remendos assim que elle tinha na meza do seu quarto. Tiras brancas de estradas serpeavam pelo meio: aqui e alÃm, n'uma massa de arvoredo, branquejava um casal: e a cada passo, n'aquelle solo onde as aguas abundam, uma fila de pequenos olmos revelava algum fresco ribeiro, correndo e reluzindo entre as hervas. O mar ficava ao fundo, n'uma linha unida, esbatida na tenuidade diffusa da bruma azulada: e por cima arredondava-se um grande azul lustroso como um bello esmalte, tendo apenas, l· no alto, um farraposinho de nevoa, que ficara alli esquecido, e que dormia enovellado e suspenso na luz... --Tive nojo! exclamava o Alencar, rematando fogosamente a sua historia. Palavra que tive nojo! Atirei-lhe a bengala aos pÃs, crusei os braÃos e disse-lhe: ahi tem vocà a bengala, seu covarde, a mim bastam-me as mâos! --Que diabo, nâo me hâo de esquecer as queijadas! murmurou Cruges, para si mesmo, affastando-se do parapeito. Carlos erguera-se tambem, olhava o relogio. Mas antes de deixar Sitiaes, Cruges quiz explorar o outro terraÃo ao lado: e, apenas subira os dous velhos degraus de pedra, soltou de l· um grito alegre: --Bem dizia eu! c· estâo elles... E vocÃs a dizer que nâo! Foram-n'o encontrar triumphante, diante de um montâo de penedos, polidos pelo uso, j· com um vago feitio de assentos, deixados ali outr'ora, poeticamente, para dar ao terraÃo uma graÃa agreste de selva brava. Entâo, nâo dizia elle? Bem dizia elle que em Sitiaes havia penedos! --Se eu me lembrava perfeitamente! _Penedo da Saudade_, nâo à que se chama, Alencar? Mas o poeta nâo respondeu. Diante d'aquellas pedras crusara os braÃos, sorria dolorosamente; e immovel, sombrio no seu fato negro, com o panam· carregado para a testa, envolveu todo aquelle recanto n'um olhar lento e triste. Depois, no silencio, a sua voz ergueu-se, saudosa e dolente: --VocÃs lembram-se, rapazes, nas _FlÃres e Martyrios_, de uma das cousas melhores que l· tenho, em rimas livres, chamada _6 de Agosto_? Nâo se lembram talvez... Pois eu vol-a digo, rapazes! Machinalmente tirara do bolso o lenÃo branco. E com elle fluctuante na mâo, puxando Carlos para junto de si, chamando do outro lado o Cruges, baixou a voz como n'uma confidencia sagrada, recitou, com um ardor surdo, mordendo as syllabas, tremulo, n'uma paixâo ephemera de nervoso: Vieste! Cingi-te ao peito. Em redor que noite escura! Nâo tinha rendas o leito, Nem tinha lavores na barra Que era sà a rocha dura... Muito ao longe uma guitarra Gemia vagos harpejos... (Và tu que nâo me esqueceu)... E a rocha dura aqueceu Ao calor dos nossos beijos! Esteve um momento embebendo o olhar nas pedras brancas batidas do sol, atirou para l· um gesto triste, e murmurou: --Foi alli. E affastou-se, alquebrado sob o seu grande chapÃo panam·, com o lenÃo branco na mâo. Cruges, que aquelles romantismos impressionavam, ficou a olhar para os penedos como para um sitio historico. Carlos sorria. E quando ambos deixaram esse recanto do terraÃo--o poeta, agachado junto do arco, estava apertando o atilho da ceroula. Endireitou-se logo, j· toda a emoÃâo o deixara, mostrava os maus dentes n'um sorriso amigo, e exclamou, apontando para o arco: --Agora, Cruges, filho, repara tu n'aquella tela sublime. O maestro embasbacou. No vâo do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, · luz rica da tarde, um quadro maravilhoso, de uma composiÃâo quasi phantastica, como a illustraÃâo de uma bella lenda de cavallaria e de amor. Era no primeiro plano o terreiro, deserto e verdejando, todo salpicado de botıes amarellos; ao fundo, o renque cerrado de antigas arvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo da grade uma muralha de folhagem reluzente; e emergindo abruptamente d'essa copada linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando vigorosamente n'um relevo nitido sobre o fundo de cÃu azul claro, o cume airoso da serra, toda cÃr de violeta escura, coroada pelo castello da Pena, romantico e solitario no alto, com o seu parque sombrio aos pÃs, a torre esbelta perdida no ar, e as cupulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro... Cruges achou aquelle quadro digno de Gustavo DorÃ. Alencar teve uma bella phrase sobre a imaginaÃâo dos arabes. Carlos, impaciente, foi-os apressando para diante. Mas agora Cruges, impressionado, estava com desejo de subir · Pena. Alencar, por si, Ãa tambem com prazer. A Pena para elle era outro ninho de recordaÃıes. Ninho? Devia antes dizer cemiterio... Carlos hesitava, parado junto da grade. Estaria ella na Pena? E olhava a estrada, olhava as arvores, como se podesse adivinhar pelas pegadas no pÃ, ou pelo mover das folhas, que direcÃâo tinham tomado os passos que elle seguia... Por fim teve uma idÃa. --Vamos indo primeiro · Lawrence. E depois se quizermos ir · Pena, arranjam-se l· os burros... E nem mesmo quiz escutar o Alencar, que tivera, tambem uma idÃa, fallava de Collares, de uma visita ao seu velho Carvalhosa; accelerou o passo para a Lawrence, emquanto o poeta tornava a arranjar o atilho da ceroula, e o maestro, n'um enthusiasmo bucolico, ornava o chapÃo de folhas de hera. Defronte da Lawrence, os dois burriqueiros, de cigarro na bocca, nâo tendo podido apoderar-se dos inglezes, preguiÃavam ao sol. --VocÃs sabem, perguntou-lhes Carlos, se uma familia, que est· aqui no hotel, foi para a Pena?... Um dos homens pareceu adivinhar, exclamou logo, desbarretando-se. --Sim, senhor, foram para l· ha bocado, e aqui est· o burrinho tambem para v. ex.^a, meu amo! Mas o outro, mais honesto, negou. Nâo senhor, a gente que fÃra para a Pena estava no Nunes... --A familia que o senhor diz foi agora ali para baixo, para o palacio... --Uma senhora alta? --Sim senhor. --Com um sujeito de barba preta? --Sim senhor. --E uma cadellinha? --Sim senhor. --Tu conheces o sr. Damaso Salcede? --Nâo senhor... ⦠o que tira retratos? --Nâo, nâo tira retratos... Tomae l·. Deu-lhes uma placa de cinco tostıes; e voltou ao encontro dos outros, declarando que realmente era tarde para subirem · Pena. --Agora o que tu deves vÃr, Cruges, à o palacio. Isso à que tem originalidade e cachet! Nâo à verdade, Alencar?... --Eu vos digo, filhos, comeÃou o auctor de _Elvira_, historicamente fallando... --E eu tenho de comprar as queijadas, murmurou Cruges. --Justamente! exclamou Carlos. Tens ainda as queijadas; à necessario nâo perder tempo; a caminho! Deixou os outros ainda indecisos, abalou para o palacio, em quatro largas passadas estava l·. E logo da praÃa avistou, saindo j· o portâo, passando rente da sentinella, a famosa familia hospedada na Lawrence e a sua cadellinha de luxo. Era, com effeito, um sujeito de barba preta, e de sapatos de lona branca; e, ao lado d'elle, uma matrona enorme, com um mantelete de seda, cousas de ouro pelo pescoÃo e pelo peito, e o câosinho felpudo ao collo. Vinham ambos rosnando o quer que fosse, com mau modo um para o outro, e em hespanhol. Carlos ficou a olhar para aquelle par com a melancolia de quem contempla os pedaÃos d'um bello marmore quebrado. Nâo esperou mais pelos outros, nem os quiz encontrar. Correu · Lawrence por um caminho differente, avido de uma certeza:--e ahi, o criado que lhe appareceu, disse-lhe que o sr. Salcede e os srs. Castro Gomes tinham partido na vespera para Mafra... --E de l·?... O criado ouvira dizer ao sr. Damaso que de l· voltavam a Lisboa. --Bem, disse Carlos atirando o chapÃo para cima da meza, traga-me vocà um calice de cognac, e uma pouca d'agua fresca. Cintra, de repente, pareceu-lhe intoleravelmente deserta e triste. Nâo teve animo de voltar ao palacio, nem quiz sahir mais d'ali; e arrancando as luvas passeiando em volta da meza de jantar, onde murchavam os ramos da vespera, sentia um desejo desesperado de galopar para Lisboa, correr ao Hotel Central, invadir-lhe o quarto, vÃl-a, saciar os seus olhos n'ella!... Porque, o que o irritava agora era nâo poder encontrar, na pequenez de Lisboa, onde toda a gente se acotovella, aquella mulher que elle procurava anciosamente! Duas semanas farejara o Aterro como um câo perdido: fizera perigrinaÃıes ridiculas de theatro em theatro: n'uma manhâ de domingo percorrera as missas! E nâo a tornara a vÃr. Agora sabia-a em Cintra, voava a Cintra, e nâo a via tambem. Ella cruzava-o uma tarde, bella como uma deusa transviada no Aterro, deixava-lhe cahir n'alma por accaso um dos seus olhares negros, e desapparecia, evaporava-se, como se tivesse realmente remontado ao cÃo, d'ora em diante invisivel e sobrenatural: e elle ali ficava, com aquelle olhar no coraÃâo, perturbando todo o seu ser, orientando surdamente os seus pensamentos, desejos, curiosidades, toda a sua vida interior, para uma adoravel desconhecida, de quem elle nada sabia senâo que era alta e loira, e que tinha uma cadellinha escosseza... Assim acontece com as estrellas d'acaso! Ellas nâo sâo d'uma essencia diferente, nem contÃem mais luz que as outras: mas, por isso mesmo que passam fugitivamente e se esvaem, parecem despedir um fulgor mais divino, e o deslumbramento que deixam nos olhos à mais perturbador e mais longo... Elle nâo a tornara a vÃr. Outros viam-n'a. O Taveira vira-a. No Gremio, ouvira um alferes de lanceiros fallar d'ella, perguntar quem era, porque a encontrava todos os dias. O alferes encontrava-a todos os dias. Elle nâo a via, e nâo socegava... O criado trouxe o cognac. Entâo Carlos, preparando vagarosamente o seu refresco, conversou com elle, fallou um momento dos dois rapazes inglezes, depois da hespanhola obesa... Emfim, dominando uma timidez, quasi cÃrando, fez, atravez de grandes silencios, perguntas sobre os Castro Gomes. E cada resposta lhe parecia uma acquisiÃâo preciosa. A senhora era muito madrugadora, dizia o criado: ·s sete horas tinha tomado banho, estava vestida, e sahia sÃ. O sr. Castro Gomes, que dormia n'um quarto separado, nunca se mexia antes do meio dia; e, · noite, ficava uma eternidade · meza, fumando cigarettes e molhando os beiÃos em copinhos de cognac e agua. Elle e o sr. Damaso jogavam o dominÃ. A senhora tinha montıes de flÃres no quarto; e tencionavam ficar atà domingo, mas fÃra ella que apress·ra a partida... --Ah, disse Carlos depois de um silencio, foi a senhora que apressou a partida?... --Sim, senhor, com cuidado na menina que tinha ficado em Lisboa... V. ex.^a toma mais cognac? Com um gesto Carlos recusou, e veiu sentar-se no terraÃo. A tarde descia, calma, radiosa, sem um estremecer de folhagem, cheia de claridade dourada, n'uma larga serenidade que penetrava a alma. Elle tel-a-hia pois encontrado, ali mesmo n'aquelle terraÃo, vendo tambem cahir a tarde--se ella nâo estivesse impaciente por tornar a vÃr a filha, algum bÃbÃsinho loiro que fic·ra sà com a ama. Assim, a brilhante deusa era tambem uma boa mamâ; e isto dava-lhe um encanto mais profundo, era assim que elle gostava mais d'ella, com este terno estremecimento humano nas suas bellas fÃrmas de marmore. Agora, j· ella estava em Lisboa; e imaginava-a nas rendas do seu _peignoir_, com o cabello enrolado â¡ pressa, grande e branca, erguendo ao ar o bÃbà nos seus explendidos braÃos de Juno, e fallando-lhe com um riso d'ouro. Achava-a assim adoravel, todo o seu coraÃâo fugia para ella... Ah! poder ter o direito de estar junto d'ella, n'essas horas d'intimidade, bem junto, sentindo o aroma da sua pelle, e sorrindo tambem a um bÃbÃ. E, pouco a pouco, foi-lhe surgindo na alma um romance, radiante e absurdo: um sopro de paixâo, mais forte que as leis humanas, enrolava violentamente, levava juntos o seu destino e o d'ella; depois, que divina existencia, escondida n'um ninho de flÃres e de sol, longe, n'algum canto da Italia... E, toda a sorte de idÃas d'amor, de devoÃâo absoluta, de sacrificio, invadiam-n'o deliciosamente--emquanto os seus olhos se esqueciam, se perdiam, enlevados na religiosa solemnidade d'aquelle bello fim da tarde. Do lado do mar subia uma maravilhosa cÃr d'ouro pallido, que ia no alto diluir o azul, dava-lhe um branco indeciso e opalino, um tom de desmaio doce; e o arvoredo cobria-se todo de uma tinta loura, delicada e dormente. Todos os rumores tomavam uma suavidade de suspiro perdido. Nenhum contorno se movia como na immobilidade de um extase. E as casas, voltadas para o poente, com uma ou outra janella accesa em braza, os cimos redondos das arvores apinhadas, descendo a serra n'uma espessa debandada para o valle, tudo parecera ficar de repente parado n'um recolhimento melancolico e grave, olhando a partida do sol, que mergulhava lentamente no mar... --Oh Carlos, tu est·s ahi? Era em baixo, na estrada, a voz grossa do Alencar gritando por elle. Carlos appareceu · varanda do terraÃo. --Que diabo est·s tu ahi a fazer, rapaz? exclamou Alencar, agitando alegremente o seu panam·. NÃs l· estivemos â¡ espera, no covil real... Fomos ao Nunes... Iamos agora procurar-te · cadeia! E o poeta riu largamente da sua pilheria--emquanto Cruges, ao lado, de mâos atraz das costas, e a face erguida para o terraÃo, bocejava desconsoladamente. --Vim _refrescar_, como tu dizes, tomar um pouco de cognac, que estava com sÃde. Cognac? eis ahi o mimo por que o pobre Alencar estivera anciando toda a tarde, desde Sitiaes. E galgou logo as escadas do terraÃo--depois de ter gritado para dentro, para a sua velha Lawrence, que lhe mandasse acima _meia da fina_. --Viste o PaÃo, hein, Cruges? perguntou Carlos ao maestro, quando elle appareceu, arrastando os passos. Entâo, parece-me que o que nos resta a fazer à jantar, e abalar... Cruges concordou. Voltava do palacio com um ar murcho, fatigado d'aquelle vasto casarâo historico, da voz monotona do cicerone mostrando a cama de S. M. El-Rei, as cortinas do quarto de S. M. a Rainha, ´melhores que as de Mafra,ª o tira-botas de S. A.; e trazia de l· uma pouca d'essa melancolia que erra, como uma atmosphera propria, nas residencias reaes. E aquella natureza de Cintra, ao escurecer, dizia elle, comeÃava a entristecel-o. Entâo concordaram em jantar ali, na Lawrence, para evitar o espectaculo torpe do Palma e das damas, mandar vir · porta o break, e partir depois ao nascer do luar. Alencar, aproveitando a carruagem, recolhia tambem a Lisboa. --E, para ser festa completa, exclamou elle, limpando os bigodes do cognac, emquanto vocÃs vâo ao Nunes pagar a conta, e dar ordens para o break, eu vou-me entender l· abaixo · cosinha com a velha Lawrence, e preparar-vos um _bacalhau · Alencar_, recipe meu... E vocÃs verâo o que à um bacalhau! Porque, l· isso, rapazes, versos os farâo outros melhor; bacalhau, nâo! Atravessando a praÃa, Cruges pedia a Deus que nâo encontrassem mais o Eusebiosinho. Mas, apenas pozeram os pÃs nos primeiros degraus do Nunes, ouviram em cima o chalrar da sucia. Estavam na ante-sala, j· todos reconciliados, a Concha contente--e installados aos dois cantos de uma meza, com cartas. O Palma, munido d'uma garrafa de genebra, fazia uma _batotinha_ para o Eusebio; e as duas hespanholas, de cigarro na bocca, jogavam languidamente a bisca. O viuvo, enfiado, perdia. No monte, que come÷ra miseravelmente com duas corÃas, j· luzia ouro; e Palma triumphava, chalaceiando, dando beijocas na sua moÃa. Mas, ao mesmo tempo, fazia de cavalheiro, fallava de dar a desforra, ficar ali, sendo necessario, atà de madrugada. --Entâo vv. ex.^{as} nâo se tentam? Isto à para passar o tempo... Em Cintra tudo serve... Valete! Perdeu vocà outro mico no rei. Deve a libra mais quinze tostıes, sà Silveira! Carlos pass·ra, sem responder, seguido pelo criado--no momento em que Euzebiosinho, furioso, j· desconfiado, quiz verificar, com as lunetas negras sobre o baralho, se l· estavam todos os reis. Palma alastrou as cartas largamente, sem se zangar. Entre amigos, que diabo, tudo se admittia! A sua hespanhola, essa sim, escandalisou-se, defendendo a honra do seu homem: entâo Palmita havia de ter empalmado o rei? Mas, a Concha, zelava o dinheiro do seu viuvo, exclamava que o rei podia estar perdido... Os reis estavam l·. Palma atirou um calice de genebra ·s goelas, e recomeÃou a baralhar magestosamente. --Entâo v. ex.^a nâo se tenta? repetia elle para o maestro. Cruges, com effeito, par·ra, roÃando-se pela meza, com o olho nas cartas e no ouro do monte, j· sem forÃa, remexendo o dinheiro nas algibeiras. Subitamente um az decidiu-o. Com a mâo nervosa, escorregou-lhe uma libra por baixo, jogando cinco tostıes, e de porta. Perdeu logo. Quando Carlos voltou do quarto com o criado que descia as malas, o maestro estava em pleno vicio, com a libra entalada, os olhos accezos, o ar esguedelhado. --Entâo tu?...--exclamou Carlos com severidade. --J· desÃo, rosnou o maestro. E, · pressa, foi · paz da libra, n'um terno contra o rei. Cartada de colicas! como disse o Palma: e foi com emoÃâo que elle comeÃou a puxar as cartas, espremendo-as uma a uma, n'um vagar mortal. A appariÃâo de um bico arrancou-lhe uma praga. Era apenas um duque, Eusebiosinho perdia mais uma placa. Palma teve um suspirinho de alivio; e, escondendo com ambas as mâos o baralho, erguendo as lunetas faiscantes para o maestro: --Entâo, sempre continËa toda a libra? --Toda. Palma teve outro suspiro, d'anciedade; e, mais pallido, voltou bruscamente as cartas. --Rei! gritou elle, empolgando o ouro. Era o rei de paus, a sua hespanhola bateu as palmas, o maestro abalou furioso. Na Lawrence o jantar prolongou-se atà ·s oito horas, com luzes;--e o Alencar fallou sempre. Tinha esquecido n'esse dia as desillusıes da vida, todos os rancores litterarios, estava n'uma veia excellente; e foram historias dos velhos tempos de Cintra, recordaÃıes da sua famosa ida a Paris, cousas picantes de mulheres, bocados da chronica intima da RegeneraÃâo... Tudo isto com estridencias de voz, e _filhos isto!_ e _rapazes aquillo!_ e gestos que faziam oscillar as chammas das vellas, e grandes copos de Collares emborcados de um trago. Do outro lado da meza, os dois inglezes, correctos nos seus fraques negros, de cravos brancos na botoeira, pasmavam, com um ar embaraÃado a que se misturava desdem, para esta desordenada exhuberancia de meridional. A appariÃâo do bacalhau foi um triumpho:--e a satisfaÃâo do poeta tâo grande, que desejou mesmo, caramba, rapazes, que ali estivesse o Ega! --Sempre queria que elle provasse este bacalhau! J· que me nâo aprecia os versos, havia de me apreciar o cozinhado, que isto à um bacalhau de artista em toda a parte!... N'outro dia fil-o l· em casa dos meus Cohens; e a Rachel, coitadinha, veiu para mim e abraÃou-me... Isto, filhos, a poesia e a cozinha sâo irmâs! Vejam vocÃs Alexandre Dumas... Dirâo vocÃs que o pae Dumas nâo à um poeta... E entâo d'Artagnan? D'Artagnan à um poema... ⦠a faisca à a phantasia, à a inspiraÃâo, à o sonho, à o arrobo! Entâo, pÃÃo, j· vÃem vocÃs, que à poeta!... Pois vocÃs hâo-de vir um dia d'estes jantar commigo, e ha-de vir o Ega, e hei-de-vos arranjar umas perdizes · hespanhola, que vos hâo-de nascer castanholas nos dedos!... Eu, palavra, gosto do Ega! L· essas cousas de realismo e romantismo, historias... Um lyrio à tâo natural como um persevejo... Uns preferem fedÃr de sargeta; perfeitamente, destape-se o cano publico... Eu prefiro pÃs de marechala n'um seio branco; a mim o seio, e, l· vae · vossa. O que se quer, à coraÃâo. E o Ega tem-n'o. E tem faisca, tem rasgo, tem estylo... Pois, assim à que elles se querem, e, l· vae · saude do Ega! Pousou o copo, passou a mâo pelos bigodes, e rosnou mais baixo: --E, se aquelles inglezes continuam a embasbacar para mim, vae-lhes um copo na cara, e à aqui um vendaval, que ha-de a Gran-Bretanha ficar sabendo o que à um poeta portuguez!... Mas nâo houve vendaval, a Gran-Bretanha ficou sem saber o que à um poeta portuguez, e o jantar terminou n'um cafà tranquillo. Eram nove horas, fazia luar, quando Carlos subiu para a almofada do break. Alencar, embuÃado n'um capote, um verdadeiro capote de padre de aldÃa, levava na mâo um ramo de rosas: e agora, guardara o seu panam· na maleta, trazia um bonet de lontra. O maestro, pesado do jantar, com um comeÃo de _spleen_, encolheu-se a um canto do break, mudo, enterrado na gola do paletot, com a manta da mamâ sobre os joelhos. Partiram. Cintra ficava dormindo ao luar. Algum tempo o break rodou em silencio, na belleza da noite. A espaÃos, a estrada apparecia banhada d'uma claridade quente que faiscava. Fachadas de casas, caladas e pallidas, surgiam, d'entre as arvores com um ar de melancolia romantica. Murmurios de agoas perdiam-se na sombra; e, junto dos muros enramados, o ar estava cheio d'aroma. Alencar accendera o cachimbo, e olhava a lua. Mas, quando passaram as casas de S. Pedro, e entraram na estrada, silenciosa e triste, Cruges mexeu-se, tossiu, olhou tambem para a lua, e murmurou d'entre os seus agasalhos: --Oh Alencar, recita para ahi alguma cousa... O poeta condescendeu logo--apesar de um dos criados ir ali ao lado d'elles, dentro do break. Mas, que havia elle de recitar, sob o encanto da noite clara? Todo o verso parece frouxo, escutado diante da lua! Emfim, Ãa dizer-lhe uma historia bem verdadeira e bem triste... Veiu sentar-se ao pà do Cruges, dentro do seu grande capotâo, esvaziou os restos do cachimbo, e, depois de acariciar algum tempo os bigodes, comeÃou, n'um tom familiar e simples: Era o jardim d'uma vivenda antiga, Sem arrebiques d'arte ou flÃres de luxo; Ruas singellas d'alfazema e buxo, Cravos, roseiras... --Com mil raios! exclamou de repente o Cruges, saltando de dentro da manta, com um berro que emmudeceu o poeta, fez voltar Carlos na almofada, assustou o trintanario. O break par·ra, todos o olhavam suspensos; e, no vasto silencio da charneca, sob a paz do luar, Cruges, succumbido, exclamou: --Esqueceram-me as queijadas! IX O dia famoso da soirÃe dos Cohens, ao fim d'essa semana tâo luminosa e tâo doce, amanheceu enevoado e triste. Carlos, abrindo cedo a janella sobre o jardim, vira um cÃu baixo que pesava como se fosse feito de algodâo em rama enxovalhado: o arvoredo tinha um tom arripiado e humido; ao longe o rio estava turvo, e no ar molle errava um halito morno de sudoeste. Decidira nâo sahir--e desde as nove horas, sentado · banca, embrulhado no seu vasto robe-de-chambre de velludo azul, que lhe dava o bello ar de um principe artista da RenascenÃa, tentava trabalhar: mas, apesar de duas chavenas de cafÃ, de cigarettes sem fim, o cerebro, como o cÃu fÃra, conservava-se-lhe n'essa manhâ afogado em nevoas. Tinha d'estes dias terriveis; julgava-se entâo ´uma bestaª; e a quantidade de folhas de papel, dilaceradas, amarfanhadas, que lhe juncavam o tapete aos pÃs, davam-lhe a sensaÃâo de ser todo elle uma ruina. Foi realmente um allivio, uma tregoa n'aquella lucta com as idÃas rebeldes, quando Baptista annunciou VillaÃa, que lhe vinha fallar de uma venda de montados no Alemtejo, pertencentes · sua legitima. --Negociosinho, disse o administrador, pousando o chapÃo a um canto da mesa e dentro um rolo de papeis, que lhe mette na algibeira para cima de dois contos de rÃis... E nâo à mau presente, logo assim pela manhâ... Carlos espreguiÃou-se, crusando fortemente as mâos por tr·s da cabeÃa: --Pois olhe, VillaÃa, preciso bem de dous contos de rÃis, mas preferia que me trouxesse ahi alguma lucidez de espirito... Estou hoje d'uma estupidez! VillaÃa considerou-o um momento, com malicia. --Quer v. ex.^a dizer que antes queria escrever uma bonita pagina do que receber assim perto de quinhentas libras? Sâo gostos, meu senhor, sâo gostos... Elle à bom sahir-se a gente um Herculano ou um Garrett, mas dous contos de rÃis, sâo dous contos de rÃis... Olhe que sempre valem um folhetim. Emfim, o negocio à este. Explicou-lh'o, sem se sentar, apressado, emquanto Carlos, de braÃos cruzados, considerava quanto era medonho o alfinete de peito que VillaÃa trazia (um macacâo de coral comendo uma pera de ouro) e distinguia vagamente, atravez da sua neblina mental, que se tratava de um visconde de Torral e de porcos... Quando VillaÃa lhe apresentou os papeis, assignou-os com um ar moribundo. --Entâo nâo fica para almoÃar, VillaÃa? disse elle, vendo o procurador metter o seu rolo de papeis debaixo do braÃo. --Muito agradecido a v. ex.^a Tenho de me encontrar com o nosso amigo Eusebio... Vamos ao ministerio do reino, elle tem l· uma pertenÃâo... Quer a commenda da ConceiÃâo... Mas este governo est· desgostoso com elle. --Ah, murmurou Carlos com respeito e atravez d'um bocejo, o governo nâo est· contente com o Eusebiosinho? --Nâo se portou bem nas eleiÃıes. Ainda ha dias, o ministro do reino me dizia, em confidencia: ´O Eusebio à rapaz de merecimento, mas atravessado...ª V. Ex.^a n'outro dia, disse-me o Cruges, encontrou-o em Cintra. --Sim, l· estava a fazer jus · commenda da ConceiÃâo. Quando VillaÃa saiu Carlos retomou lentamente a penna, e ficou um momento, com os olhos na pagina meio-escripta, coÃando a barba, desanimado e esteril. Mas quasi em seguida appareÃeu Affonso da Maia, ainda de chapÃo, · volta do seu passeio matinal no bairro, e com uma carta na mâo, que era para Carlos, e que elle achara no escriptorio misturada ao seu correio. AlÃm d'isso, esperava encontrar ali o VillaÃa. --Esteve ahi, mas deitou a correr, para ir arranjar uma commenda para o Eusebiosinho--disse Carlos, abrindo a carta. E teve uma surpreza, vendo no papel--que cheirava a verbena como a condessa de Gouvarinho--um convite do conde para jantar no sabbado seguinte, feito em termos de sympathia tâo escolhidos que eram quasi poeticos; tinha mesmo uma phrase sobre a amisade, fallava dos _atomos em gancho_ de Descartes. Carlos desatou a rir, contou ao avà que era um par do reino que o convidava a jantar, citando Descartes... --Sâo capazes de tudo, murmurou o velho. E dando um olhar risonho, aos manuscriptos espalhados sobre a banca: --Entâo, aqui, trabalha-se, hein? Carlos encolheu os hombros: --Se à que se pÃde chamar a isto trabalhar... Olhe ahi para o châo. Veja esses destroÃos... Em quanto se trata de tomar notas, colligir documentos, reunir materiaes, bem, l· vou indo. Mas quando se trata de pÃr as idÃas, a observaÃâo, n'uma fÃrma de gosto e de symetria, dar-lhe cÃr, dar-lhe relevo, entâo... Entâo foi-se! --PreoccupaÃâo peninsular, filho, disse Affonso sentando-se ao pà da mesa, com o seu chapÃo desabado na mâo. DesembaraÃa-te d'ella. ⦠o que eu dizia n'outro dia ao Craft, e elle concordava... O portuguez nunca pÃde ser homem de idÃas, por causa da paixâo da fÃrma. A sua mania à fazer bellas phrases vÃr-lhes o brilho, sentir-lhes a musica. Se fÃr necessario falsear a idÃa, deixal-a incompleta, exageral-a, para a phrase ganhar em belleza, o desgraÃado nâo hesita... V·-se pela agoa abaixo o pensamento, mas salve-se a bella phrase. --Questâo de temperamento, disse Carlos. Ha sÃres inferiores, para quem a sonoridade de um adjectivo à mais importante que a exactidâo de um systema... Eu sou d'esses monstros. --Diabo! entâo Ãs um rhetorico... --Quem o nâo Ã? E resta saber por fim se o estylo nâo à uma disciplina do pensamento. Em verso, o avà sabe, à muitas vezes a necessidade de uma rima que produz a originalidade de uma imagem... E quantas vezes o esforÃo para completar bem a cadencia de uma phrase, nâo poder· trazer desenvolvimentos novos e inesperados de uma idÃa... Viva a bella phrase! --O sr. Ega annunciou o Baptista, erguendo o reposteiro, quando comeÃava justamente a tocar a sineta do almoÃo. --Fallae na phrase...--disse Affonso, rindo. --Hein? Que phrase? O que?..--exclamou Ega, que rompeu pelo quarto, com o ar estonteado, a barba por fazer, a gola do paletot levantada. Oh! por aqui a esta hora sr. Affonso da Maia! Como est· v. ex.^a? Dize-me c·, Carlos, tu à que me podes tirar d'uma atrapalhaÃâo... Tu ter·s por acaso uma espada que me sirva? E, como Carlos o olhava assombrado, acrescentou, j· impaciente: --Sim, homem, uma espada! Nâo à para me batter, estou em paz com toda a humanidade... ⦠para esta noute, para o fato de mascara. O Mattos, aquelle animal, sà na vespera lhe dera o costume para o baile: e, qual à o seu horror, ao vÃr que lhe arranjara, em logar de uma espada artistica, um sabre da guarda municipal! Tivera vontade de lh'o passar atravez das entranhas. Correu ao tio Abrahâo, que sà tinha espadins de cÃrte, reles e pelintras como a propria cÃrte! Lembrara-se do Craft e da sua collecÃâo; vinha de l·; mas ahi eram uns espadıes de ferro, catanas pesando arrobas, as durindanas tremendas dos brutos que conquistaram a India... Nada que lhe servisse. FÃra entâo que lhe tinham vindo · idÃa as panoplias antigas do Ramalhete. --Tu à que deves ter... Eu preciso uma espada longa e fina, com os copos em concha, d'aÃo rendilhado, forrados de velludo escarlate. E sem cruz, sobretudo sem cruz! Affonso, tomando logo um interesse paternal por aquella difficuldade do John, lembrou que havia no corredor, em cima, umas espadas hespanholas... --Em cima, no corredor? exclamou Ega, j· com a mâo no reposteiro. Inutil precipitar-se, o bom John nâo as poderia encontrar. Nâo estavam · vista, arranjadas em panoplia, conservavam-se ainda nos caixıes em que tinham vindo de Bemfica. --Eu l· vou, homem fatal, eu l· vou, disse Carlos, erguendo-se com resignaÃâo. Mas olha que ellas nâo tÃem bainhas. Ega ficou succumbido. E foi ainda Affonso que achou uma idÃa, o salvou. --Manda fazer uma simples bainha de velludo negro; isso faz-se n'uma hora. E manda-lhe cozer ao comprido rodellas de velludo escarlate... --Explendido, gritou Ega: o que à ter gosto! E apenas Carlos sahiu, trovejou contra o Mattos. --Veja v. ex.^a isto, um sabre da guarda municipal! E à quem faz ahi os fatos para todos os theatros! Que idiota!.. E à tudo assim, isto à um paiz insensato!... --Meu bom Ega, tu nâo queres tornar de certo Portugal inteiro, o Estado, sete milhıes d'almas, responsaveis por esse comportamento do Mattos? --Sim senhor, exclamava o Ega passeiando pelo gabinete, com as mâos enterradas nos bolsos do paletot; sim senhor, tudo isso se prende. O _costumier_ com um fato do seculo XIV manda um sabre da guarda municipal; por seu lado o ministro, a proposito de impostos, cita as _MeditaÃıes_ de Lamartine; e o litterato, essa besta suprema... Mas calou-se, vendo a espada que Carlos trazia na mâo, uma folha do seculo XVI, de grande tempera, fina e vibrante, com copos trabalhado como uma renda--e tendo gravado no aÃo o nome illustre do espadeiro, Francisco Ruy de Toledo. Embrulhou-a logo n'um jornal, recusou · pressa o almoÃo, que lhe offereciam, deu dous vivos _shake-hands_, atirou o chapÃu para a nuca, ia abalar, quando a voz de Affonso o deteve: --Ouve la, John, dizia o velho alegremente, isso à uma espada c· da casa, que nunca brilhou sem gloria, creio eu... Và como te serves d'ella! Ao pà do resposteiro, Ega voltou-se, exclamou, apertando contra o peito do paletot o ferro, enrolado, no _Jornal do Commercio_: --Nâo a sacarei sem justiÃa, nem a embainharei sem honra. _Au revoir!_ --Que vida, que mocidade! murmurou Affonso. Muito feliz à este John!... Pois vae-te arranjando filho, que j· tocou a primeira vez para o almoÃo. Carlos ainda se demorou um instante a reler, com um sorriso, a apparatosa carta do Gouvarinho; e ia emfim chamar o Baptista para se vestir, quando em baixo, · entrada particular, o timbre electrico comeÃou a vibrar violentamente. Um passo ancioso ressoou na ante-camara, o Damaso appareceu esbaforido, d'olho esgazeado, com a face em braza. E, sem dar tempo a que Carlos exprimisse a surpreza de o ver emfim no Ramalhete, exclamou, lanÃando os braÃos ao ar: --Ainda bem que te encontro, caramba! Quero que venhas d'ahi, que me venhas ver um doente... Eu te explicarei... ⦠aquella gente brazileira. Mas pelo amor de Deus, vem depressa, menino! Carlos erguera-se, pallido: --⦠ella? --Nâo, à a pequena, esteve a morrer... Mas veste-te, Carlinhos, veste-te, que a responsabilidade à minha! --⦠um bÃbÃ, nâo Ã? --Qual bÃbÃ!... ⦠uma pequena crescida, de seis annos... Anda d'ahi! Carlos, j· em mangas de camisa, estendia o pà ao Baptista, que, com um joelho em terra, apressado tambem, quasi fez saltar os botıes da bota. E Damaso, de chapÃu na cabeÃa, agitava-se, exagerando a sua impaciencia, a estalar de importancia. --Sempre a gente se và em coisas!.. Olha que responsabilidade a minha! Vou visital-os, como costumo ·s vezes, de manhâ... E vae, tinham partido para Queluz. Carlos voltou-se, com a sobrecasaca meia vestida: --Mas entâo?.. --Escuta, homem! Foram para Queluz, mas a pequena ficou com a governanta... Depois do almoÃo deu-lhe uma dÃr. A governante queria um medico inglez, porque nâo falla senâo inglez... Do hotel foram procurar o Smith, que nâo appareceu... E a pequena a morrer!... Felizmente, cheguei eu, e lembrei-me logo de ti... Foi sorte encontrar-te, caramba! E acrescentou, dando um olhar ao jardim: --Tambem, irem a Queluz com um dia d'estes! Hâo-de-se divertir... Est·s prompto, hein? Eu tenho l· em baixo o coupÃ... Deixa as luvas, vaes muito bem sem luvas! --O avà que nâo me espere para almoÃar, gritou Carlos ao Baptista, j· do fundo da escada. Dentro do coupÃ, um ramo enorme enchia quasi o assento. --Era para ella, disse o Damaso, pondo-o sobre os joelhos. Pela-se por flores. Apenas o coupà partiu, Carlos cerrando a vidraÃa, fez a pergunta que desde a appariÃâo do Damaso lhe faiscava nos labios. --Mas entâo tu, que querias quebrar a cara a esse Castro Gomes?.. O Damaso contou logo tudo, triumphante. FÃra tudo um equivoco! Ah, as explicaÃıes do Castro Gomes tinham sido d'um gentleman. Senâo quebrava-lhe a cara. Isso nâo, desconsideraÃıes, a ninguem! a ninguem! Mas fÃra assim: os bilhetes de visita que elle lhe deixara conservavam o seu adresse do _Grand Hotel_ em Paris. E o Castro Gomes, suppondo que elle vivia l·, obdecendo · indicaÃâo, mandara para l· os seus cartıes! Curioso, hein? E de estupÃdo... E a falta de resposta aos telegrammas fÃra culpa de Madame, descuido, n'aquelle momento de afflicÃâo, vendo o marido com o braÃo escavacado... Ah, tinham-lhe dado satisfaÃıes humildes. E agora eram intimos, estava l· quasi sempre... --Emfim, menino, um romance... Mas isso à para mais tarde! O coupà parara · porta do Hotel Central. Damaso saltou, correu ao guarda portâo. --Mandou o telegramma, Antonio? --J· l· vae... --Tu comprehendes, dizia elle a Carlos, galgando as escadas, mandei-lhes logo um telegramma para o hotel em Queluz. Nâo estou para ter mais responsabilidades!... No corredor, defronte do escriptorio, um criado passava, com um guardanapo debaixo do braÃo: --Como est· a menina? gritou-lhe o Damaso. O criado encolheu os hombros, sem comprehender. Mas Damaso j· trepava o outro lanÃo de escada, soprando, gritando: --Por aqui Carlos, eu conheÃo isto a palmos! Numero 26! Abriu com estrondo a porta do numero 26. Uma criada, que estava · janella, voltou-se. Ah _bonjour_, Melanie! exclamava Damaso, no seu extraordinario francez. A creanÃa estava melhor? _l'enfant etait meilleur?_ Ali lhe trazia o doutor, _monsieur le docteur Maia_. Melanie, uma rapariga magra e sardenta, disse que Mademoiselle estava mais socegada, e ella ia avisar miss Sarah, a governanta. Passou o espanador pelo marmore d'uma console, ageitou os livros sobre a meza, e sahiu, dardejando a Carlos um olhar vivo como uma faisca. A sala era espaÃosa, com uma mobilia de rÃps azul, e um grande espelho sobre a console dourada, entre as duas janellas: a meza estava coberta de jornaes, de caixas de charutos, e de romances de Cappendu; sobre uma cadeira, ao lado, fic·ra enrolado um bordado. --Esta Melanie, esta desleixada, murmurava o Damaso, fechando a janella com um esforÃo sobre o feixo perro. Deixar assim tudo aberto! Jesus, que gente! --Este cavalheiro à bonapartista, disse Carlos vendo sobre a meza os numeros do _Pays_. --Isso, temos questıes terriveis! exclamou o Damaso. E eu enterro-o sempre... ⦠bom rapaz, mas tem pouco fundo. Melanie voltou pedindo a _Monsieur le Docteur_ para entrar um instante no gabinete de toilette. E ahi, depois de apanhar uma toalha cahida, de dardejar a Carlos outro olharsinho petulante, disse que Miss Sarah vinha immediatamente, e retirou-se na ponta dos sapatos. FÃra, na sala, ergueu-se logo a voz do Damaso, fallando a Melanie de _sa responsabilitÃ, et que il etait trÃs affligÃ_. Carlos ficou sÃ, na intimidade d'aquelle gabinete de toilette, que n'essa manhâ ainda nâo fÃra arrumado. Duas malas, pertencentes de certo a Madame, enormes, magnificas, com fecharias e cantos de aÃo polido, estavam abertas: d'uma trasbordava uma cauda rica, de seda forte cÃr de vinho: e na outra era um delicado alvejar de roupa branca, todo um luxo secreto e raro de rendas e _baptistes_, d'um brilho de neve, macio pelo uso e cheirando bem. Sobre uma cadeira alastrava-se um monte de meias de seda, de todos os tons, unidas, bordadas, abertas em renda e tâo leves, que uma aragem as faria voar; e, no châo corria uma fila de sapatinhos de verniz, todos do mesmo estylo, longos, com o tacâo baixo e grandes fitas de laÃar. A um canto estava um cesto acolchoado de seda cÃr de rosa, onde de certo viajara a cadellinha. Mas o olhar de Carlos prendia-se sobre tudo a um soph· onde ficar· estendido, com as duas mangas abertas, · maneira de dous braÃos que se offerecem, o casaco branco de velludo lavrado de Genova com que elle a vira, a primeira vez, apear-se · porta do hotel. O forro, de setim branco, nâo tinha o menor acolxoado, tâo perfeito devia ser o corpo que vestia: e assim, deitado sobre o soph·, n'essa attitude viva, n'um desabotoado de semi-nudez, adiantando em vago relevo o cheio de dois seios, com os braÃos alargando-se, dando-se todos, aquelle estofo parecia exhalar um calor humano, e punha ali a fÃrma d'um corpo amoroso, desfallecendo n'um silencio d'alcova. Carlos sentiu bater o coraÃâo. Um perfume indefinido e forte de jasmim, de marechala, de tanglewood, elevava-se de todas aquellas cousas intimas, passava-lhe pela face com um bafo suave de caricia... Entâo desviou os olhos, approximou-se da janella, que tinha por perspectiva a fachada enxovalhada do hotel _Shneid_. Quando se voltou, miss Sarah estava diante d'elle, vestida de preto e muito cÃrada: era uma pessoa sympathica, redondinha e pequena, com um ar de rola farta, os olhos sentimentaes, e uma testa de virgem sob bandÃs lisos e louros. Balbuciava umas palavras em francez, em que Carlos sà percebeu _docteur_. --_Yes, I am the doctor_, disse elle. A face da boa ingleza illuminou-se. Oh! era tâo bom, ter emfim com quem se entender! A menina estava muito melhor! Oh, o doutor vinha livral-a d'uma responsabilidade!... Abriu o reposteiro, fÃl-o penetrar n'um quarto com as janellas todas cerradas, onde elle apenas distinguiu a fÃrma d'um grande leito e o brilho de cristaes n'um toucador. Perguntou para que eram aquellas trevas? Miss Sarah pensara que a escuridâo faria bem â¡ menina, e a adormeceria. E trouxera-a ali para o quarto da mamâ, por ser mais largo e mais arejado. Carlos fez abrir as janellas: e, quando a grande luz entrou, ao avistar a pequena no leito, sob os cortinados abertos, nâo conteve a sua admiraÃâo. --Que linda creanÃa! E ficou um instante a contemplal-a, n'um enlevo d'artista, pensando que os brancos mais mimosos, mais ricos, sob a mais sabia combinaÃâo de luz, nâo egualariam a pallidez eburnea d'aquella pelle maravilhosa: e esta adoravel brancura era ainda realÃada por um cabello negro, tenebroso, forte, que reluzia sob a rede. Os seus por dois olhos grandes, d'um azul profundo e liquido, pareciam n'esse instante maiores, muito serios, e muito abertos para elle. Estava encostada a um grande travesseiro, toda quieta, com o susto ainda da dÃr, perdida n'aquelle vasto leito, e apertando nos braÃos uma enorme boneca paramentada, de pello riÃado, d'olhos tambem azues e arregalados tambem. Carlos tomou-lhe a mâosinha e beijou-lh'a,--perguntando se a boneca tambem estava doente. --Cri-cri tambem teve dÃr, respondeu ella muito sÃria, sem tirar d'elle os seus magnificos olhos. Eu j· nâo tenho... Estava com effeito fresca como uma flor, com a lingoasinha muito rosada, e a sua vontade j· de lunchar. Carlos tranquillisou miss Sarah. Oh, ella via bem que mademoiselle estava boa. O que a assustara fÃra achar-se ali sÃ, sem a mamâ, com aquella responsabilidade. Por isso a tinha deitado... Oh se fosse uma creanÃa ingleza saÃa com ella para o ar... Mas estas meninas estrangeiras, tâo debeis, tâo delicadas... E o labiosinho gordo da ingleza trahia um desdem compassivo por estas raÃas inferiores e deterioradas. --Mas a mamâ nâo à doente? Oh, nâo! Madame era muito forte. O senhor, esse sim, parecia mais fraco... --E, como se chama a minha querida amiga? perguntou Carlos, sentado â¡ cabeceira do leito. --Esta à Cri-cri, disse a pequena, apresentando outra vez a boneca. Eu chamo-me Rosa, mas o pap· diz que eu que sou Rosicler. --Rosicler? realmente? disse Carlos sorrindo d'aquelle nome de livro de cavallaria, rescendente a torneios, e a bosques de fadas. Entâo, como colhendo simplesmente informaÃıes de medico, perguntou a miss Sarah se a menina sentira a mudanÃa de clima. Habitavam ordinariamente Paris, nâo à verdade? Sim, viviam em Paris no inverno, no parque Monceaux; de verâo iam para uma quinta da Touraine ao pà mesmo de Tours, onde ficavam atà ao comeÃo da caÃa; e iam sempre passar um mez a Dieppe. Pelo menos fora assim, nos ultimos tres annos, desde que ella estava com Madame. Emquanto a ingleza fallava, Rosa, com a sua boneca nos braÃos, nâo cessava de olhar Carlos gravemente e como maravilhada. Elle, de vez em quando sorria-lhe, ou acariciava-lhe a mâosinha. Os olhos da mâe eram negros: os do pae d'azeviche e pequeninos: de quem herdara ella aquellas maravilhosas pupillas d'um azul tâo rico, liquido e doce. Mas a sua visita de medico findara, ergueu-se para receitar um calmante. Emquanto a ingleza preparava muito cuidadosamente o papel, e experimentava a pena, elle examinou um momento o quarto. N'aquella installaÃâo banal d'hotel, certos retoques d'uma elegancia delicada revelavam a mulher de gosto e de luxo: sobre a commoda e sobre a meza havia grandes ramos de flores: os travesseiros e os lenÃoes nâo eram do hotel, mas proprios, de bretanha fina, com rendas e largos monogrammas bordados a duas cÃres. Na poltrona que ella usava uma cachemira de Tarnah disfarÃava o medonho reps desbotado. Depois, ao escrever a receita, Carlos notou ainda sobre a meza alguns livros de encadernaÃıes ricas, romances e poetas inglezes: mas destoava ali, estranhamente, uma brochura singular--o _Manual de interpretaÃâo dos sonhos_. E ao lado, em cima do toucador, entre os marfins das escovas, os cristaes dos frascos, as tartarugas finas, havia outro objecto estravagante, uma enorme caixa de pà de arroz, toda de prata dourada, com uma magnifica safira engastada na tampa dentro d'um circulo de brilhantes miudos, uma joia exagerada de cocotte, pondo ali uma dissonancia audaz de explendor brutal. Carlos voltou junto do leito, e pediu um beijo a Rosicler: ella estendeu-lhe logo a boquinha fresca como um botâo de rosa; elle nâo ousou beijal-a assim n'aquelle grande leito da mâe, e tocou-lhe apenas na testa. --Quando vens tu outra vez? perguntou ella agarrando-o pela manga do casaco. --Nâo à necessario vir outra vez, minha querida. Tu est·s boa, e Cri-cri tambem. --Mas eu quero o meu lunch... Dize a Sarah que eu posso tomar o meu lunch... E Cri-cri tambem. --Sim j· podeis ambas petiscar alguma cousa... Fez as suas recommendaÃıes · mestra, e depois, apertando a mâosinha da pequena: --E agora adeus, minha linda Rosicler, uma vez que Ãs Rosicler... E nâo quiz ser menos amavel com a boneca, deu-lhe tambem um _shake-hands_. Isto pareceu captivar Rosa ainda mais. A ingleza, ao lado, sorria, com duas covinhas na face. Nâo era necessario, lembrou Carlos, conservar a creanÃa na cama, nem tortural-a com cautellas exageradas... --Oh, nÃ, sir! E se a dÃr reapparecesse, ainda que ligeira, mandal-o logo chamar... --Oh yes, sir! E ali deixava o seu bilhete, com a sua adresse. --Oh thank you, sir! Ao voltar · sala, o Damaso saltou do soph·, onde percorria um jornal, como uma fÃra a quem se abre a jaula. --Credo, imaginei que ias l· ficar toda a vida! Que estivestes tu a fazer? Irra, que estopada! Carlos, calÃando as luvas, sorria, sem responder. --Entâo, à cousa de cuidado? --Nâo tem nada. Tem uns lindos olhos... E um nome extraordinario. --Ah, Rosicler, murmurou Damaso, agarrando o chapÃo com mau modo; muito ridiculo, nâo à verdade? A creada franceza appareceu outra vez a abrir a porta da sala,--dardejando para Carlos o mesmo olhar quente e vivo. Damaso recommendou-lhe muito que dissesse aos senhores, que elle tinha vindo logo com o medico; e que havia de voltar · noite para lhes fazer uma surpreza, e para saber se tinham gostado de Queluz--_si ils avaient aimà Queluz_. Depois, ao passar diante do escriptorio, metteu a cabeÃa, para dizer ao guarda-livros, que a menina estava boa, tudo ficava em socego. O guarda livros sorrio, e cortejou. --Queres que te v· levar a casa? perguntou elle a Carlos, em baixo, abrindo a porta do coupÃ, ainda com um resto de mau humor. Carlos preferia ir a pÃ. --E acompanha-me tu um bocado, Damaso, tu agora nâo tens que fazer. Damaso hesitou, olhando o cÃu aspero, as nuvens pesadas de chuva. Mas Carlos tomara-lhe o braÃo, arrastava-o, amavel e gracejando. --Agora que te tenho aqui, velhaco, homem fatal, quero o _romance_... Tu disseste que tinhas um _romance_. Nâo te largo. â¦s meu. Venha o _romance_. Eu sei que os tens sempre bons. Quero o _romance_! Pouco a pouco Damaso sorria, as bochechas esbrazeavam-se-lhe de satisfaÃâo. --Vae-se fazendo pela vida, disse elle a estoirar de jactancia. --VocÃs estiveram em Cintra?... --Estivemos, mas isso nâo foi divertido... O romance à outro! Desprendeu-se do braÃo de Carlos, fez um signal ao cocheiro para que os seguisse, e regalou-se pelo Aterro fÃra de contar o seu _romance_. --A coisa à esta... O marido d'aqui a dias vai para o Brazil, tem l· negocios. E ella fica! Fica com as criadas e com a pequena, · espera, dois ou tres mezes. Diz que j· andaram atà a vÃr casas mobiladas, que ella nâo quer estar no hotel... E eu, intimo, a unica pessoa que ella conhece, mettido de dentro... Hein, percebes agora? --Perfeitamente, disse Carlos, arrojando para longe o charuto, com um gesto nervoso. E de certo, a pobre creatura j· est· fascinada! J· lhe dÃste, como costumas, um beijo ardente entre duas portas! J· a desgraÃada se surtiu da caixa de phosphoros, para mais tarde quando a abandonares! Damaso enfiava. --Nâo venhas j· tu com o espirito e com a chufasinha... Nâo lhe dei beijos que ainda nâo houve occasiâo... Mas, o que te posso dizer, à que tenho mulher! --Pois j· era tempo, exclamou Carlos, sem conter um gesto brusco, e atirando-lhe as palavras como chicotadas. J· era tempo! Andavas ahi mettido com umas creaturas ignobeis, uma ralà de lupanar. Emfim, agora ha progresso. E eu gosto que os meus amigos vivam n'uma ordem de sentimentos decentes... Mas và l·... Nâo sejas o costumado Damaso! Nâo te v·s pÃr a alardear isso pelo Gremio e pela casa Havaneza! D'esta vez Damaso estacou, suffocado, sem comprehender aquelle modo, semelhante azedume. E terminou por balbuciar, livido: --Tu podes entender muito de medicina e de bric-a-brac, mas l· a respeito de mulheres, e da maneira de fazer as cousas, nâo me d·s licÃıes... Carlos olhou-o, com um desejo brutal de o espancar. E de repente, sentio-o tâo innofensivo, tâo insignificante, com o seu ar bochechudo, e molle, que se envergonhou do surdo despeito que o atravessara, tomou-lhe o braÃo, teve duas palavras amaveis. --Damaso, tu nâo me comprehendeste. Eu nâo te quiz fazer zangar... ⦠para teu bem... O que eu receava à que tu, imprudente, arrebatado, apaixonado, fosses perder essa bella aventura por uma indiscriÃâo... E o outro ficou logo contente, sorrindo j·, abandonando-se ao braÃo do seu amigo, certo que o desejo do Maia era que elle tivesse uma amante _chic_. Nâo, elle nâo se tinha zangado, nunca se zangava com os intimos... Comprehendia bem que o que Carlos dizia era por amisade... --Mas tu, ·s vezes, tens essa cousa que te pegou o Ega, gostas do teu bocadinho de espirito... E entâo tranquillisou-o. Nâo, por imprudencia nâo havia elle de ´perder a cousaª. Aquillo ia com todas as regras. L· n'isso sobrava-lhe experiencia. A Melanie j· a tinha na mâo; j· lhe dera duas libras. --Isto de mais a mais à uma cousa muito seria... Ella conhece meu tio, à intima d'elle desde pequena, tratam-se atà por _tu_... --Que tio? --Meu tio Joaquim... Meu tio Joaquim Guimarâes. Mr. de Guimaran, o que vive em Paris, o amigo de Gambetta... --Ah sim, o communista... --Qual communista, atà tem carruagem! Subitamente lembrou-lhe outra cousa, um ponto de toilette em que queria consultar Carlos. --¡manhâ vou jantar com elles, e vâo tambem dois brazileiros, amigos d'elle, que chegaram ahi ha dias, e que partem pelo mesmo paquete... Um à _chic_, à da LegaÃâo do Brazil em Londres. De maneira que à jantar de ceremonia. O Castro Gomes nâo me disse nada; mas que te parece, achas que v· de casaca?... --Sim, atira-lhe casaca, e uma boa rosa na lapella. O Damaso olhou-o, pensativo. --A mim tinha-me lembrado o habito de Christo. --O habito de Christo... Sim, pıe o habito de Christo ao pescoÃo, e pıe a rosa na botoeira. --Ser· talvez de mais, Carlos! --Nâo, fica bem ao teu typo. Damaso fizera parar o coupà que os tinha seguido a passo. E no ultimo aperto de mâo a Carlos: --Tu sempre vaes · noite, aos Cohens, de dominÃ? O meu fato de selvagem ficou divino. Eu venho mostral-o · noite · brazileira... Entro no Hotel embrulhado n'um capote, e appareÃo-lhes de repente na sala, de selvagem, de Nelusko, a cantar: Alerta, marinari, Il vento cangia... _Chic_ a valer!... _Good bye!_ ¡s dez horas Carlos vestia-se para o baile dos Cohens. FÃra, a noite fizera-se tenebrosa, com lufadas de vento, pancadas d'agoa, que a cada instante batiam agrestemente o jardim. Ali, no gabinete de toilette, errava no ar tepido um vago aroma de sabonete e de bom charuto. Sobre duas commodas de pau preto, marchetadas a marfim, duas serpentinas de velho bronze erguiam os seus molhos de vellas accezas, pondo largos reflexos doces sobre a seda castanha das paredes. Ao lado do alto espelho-psychà alastrava-se, em cima d'uma poltrona, o dominà de j· setim negro com um grande laÃo azul-claro. Baptista, com a casaca na mâo, esperava que Carlos acabasse a chavena de ch· preto que elle estava bebendo aos golos, de pÃ, em mangas de camisa, e de gravata branca. De repente, o timbre electrico da porta particular reteniu, apressado e violento. --Talvez outra surpreza, murmurou Carlos, hoje à o dia das surprezas... Baptista sorriu, ia pousar a casaca para abrir--quando em baixo vibrou outro repique brutal, d'uma impaciencia phrenetica. Entâo Carlos, curioso, sahiu · ante-camara: e ahi, · meia luz das lampadas Carcel, ainda quebrantada pelo tom dos velludos cÃr de cereja, viu, ao abrir-se a porta por onde entrou um sopro aspero da noite, apparecer vivamente uma fÃrma esguia e vermelha, com um confuso tinir de ferro. Depois, pela escada acima, duas pennas negras de gallo ondearam, um manto escarlate esvoaÃou--e o Ega estava diante d'elle, caracterisado, vestido de Mephistopheles! Carlos apenas poude dizer _bravo_--o aspecto do Ega emmudeceu-o. Apezar dos toques de caracterisaÃâo que quasi o mascaravam, sobrancelhas de diabo, guias de bigode ferozmente exageradas--sentia-se bem a afflicÃâo em que vinha, com os olhos injectados, perdido, n'uma terrivel pallidez. Fez um gesto a Carlos, arremessou-se pelo gabinete dentro. Baptista, logo, discretamente, retirou-se cerrando o reposteiro. Estavam sÃs. Entâo Ega, apertando desesperadamente as mâos, n'uma voz rouca e d'agonia: --Tu sabes o que me succedeu, Carlos? Mas nâo poude dizer mais, suffocado, tremendo todo; e diante d'elle, devorando-o com os olhos, Carlos tremia tambem, enfiado. --Cheguei a casa dos Cohens, continuou Ega por fim com esforÃo e quasi balbuciando, mais cedo, como tinhamos combinado. Ao entrar na sala, j· estavam duas ou tres pessoas... Elle vem direito a mim, e diz-me: ´VocÃ, seu infame, ponha-se j· no meio da rua... J· no meio da rua senâo, diante d'esta gente, corro-o a pontapÃs!ª E eu, Carlos... Mas a colera outra vez abafou-lhe a voz. E esteve um momento mordendo os beiÃos, recalcando os soluÃos, com os olhos reluzentes de lagrimas. Quando as palavras voltaram, foi uma explosâo selvagem: --Quero-me batter em duello com aquelle malvado, a cinco passos, metter-lhe uma bala no coraÃâo! Outros sons estrangulados escaparam-se-lhe da garganta; e, batendo furiosamente o pÃ, esmurrando o ar, berrava, sem cessar, como cevando-se na estridencia da propria voz. --Quero matal-o! Quero matal-o! Quero matal-o! Depois, allucinado, sem ver Carlos, rompeu a passear desabridamente pelo quarto, ·s patadas, com o manto deitado para traz, a espada mal afivelada batendo-lhe as canellas escarlates. --Entâo descobriu tudo, murmurou Carlos. --Est· claro que descobriu tudo! exclamou o Ega, no seu passear arrebatado, atirando os braÃos ao ar. Como descobriu, nâo sei. Sei isto, j· nâo à pouco. Poz-me fÃra!... Hei-de-lhe metter uma bala no corpo! Pela alma de meu pae, hei-de-lhe varar o coraÃâo!... Quero que v·s l· logo pela manhâ com o Craft... E as condiÃıes sâo estas: · pistolla, a quinze passos! Carlos, agora outra vez sereno, acabava a sua chavena de ch·. Depois disse muito simplesmente: --Meu querido Ega, tu nâo podes mandar desafiar o Cohen. O outro estacou de repellâo, atirando pelos olhos dois relampagos d'ira--a que as medonhas sobrancelhas de crepe, as duas pennas de gallo ondeando na gorra, davam uma ferocidade theatral e comica. --Nâo o posso mandar desafiar? --Nâo. --Entâo pıe-me fÃra de casa... --Estava no seu direito. --No seu direito!... Diante de toda a gente?... --E tu, nâo eras amante da mulher diante de toda a gente?... O Ega ficou a olhar um momento para Carlos, como atordoado. Depois fez um grande gesto: --Nâo se trata da mulher!... nâo se fallou da mulher!... ⦠uma questâo d'honra para mim, quero mandal-o desafiar, quero matal-o... Carlos encolheu os hombros. --Tu nâo est·s em ti. Tens sà uma coisa a fazer; à ficar ·manhâ em casa, a vÃr se elle te manda desafiar a ti... --O que, o Cohen! exclamou Ega. ⦠um covarde, à um canalha!... Ou o mato, ou lhe rasgo a cara com um chicote. Desafiar-me! Olha quem... Tu est·s doido... E recomeÃou o seu passear desabalado do espelho para a janella, soprando, rilhando os dentes, com repellıes para traz ao manto que faziam oscillar, nas serpentinas, as chammas altas das vellas. Carlos nâo dizia nada, de pà junto da meza, enchendo lentamente de novo a sua chavena. Tudo aquillo comeÃava a parecer-lhe pouco serio, pouco digno, as ameaÃas de pontapÃs do marido, os furores melodramaticos do Ega:--e mesmo nâo podia deixar de sorrir diante d'aquelle Mephistopheles esgouroviado, espalhando pelo quarto o brilho escarlate do seu manto de velludo, e a fallar furiosamente d'honra e de morte, com sobrancelhas postiÃas, e escarcella de coiro · cinta. --Vamos fallar ao Craft! exclamou de repente Ega, parando, com esta brusca resoluÃâo. Quero vÃr o que diz o Craft. Tenho l· em baixo uma tipoia; estamos l· n'um instante! --Ir agora · quinta, aos Olivaes? disse Carlos, olhando o relogio. --Se Ãs meu amigo, Carlos!... Carlos immediatamente, sem chamar o Baptista, acabou de se vestir. Ega, no entanto, ia preparando uma chavena de ch·, deitando-lhe rhum, ainda tâo nervoso, que mal podia segurar a garrafa. Depois, com um grande suspiro, accendeu uma cigarrete. Carlos entr·ra na alcova de banho, ao lado, allumiada por um forte jacto de gaz que assobiava. FÃra, a chuva continuava seguida e monotona, as goteiras escoavam-se no châo molle do jardim. --Achas que a tipoia aguentar·? perguntou Carlos de dentro. --Aguenta, à o _CanhÃto_, disse Ega. Agora reparara no dominÃ, fÃra erguel-o, examinava-lhe o setim rico, o bello laÃo azul claro. Depois, tendo encontrado diante de si o grande espelho-psychÃ, entalou o monoculo no olho, recuou um passo, contemplou-se d'alto a baixo;--e terminou por pousar uma das mâos na cinta, appoiar a outra, galhardamente, sobre os copos da espada. --Eu nâo estava mal, oh Carlos, hein? --Estavas explendido, respondeu o outro de dentro da alcova. Foi pena estragar-se tudo... Como estava ella? --Devia estar de Margarida. --E elle? --A besta? De beduino. E continuou ao espelho, gosando a sua figura esguia, as pennas da gorra, os sapatos bicudos de velludo, e a ponta flamante da espada erguendo o manto por traz, n'uma prega fidalga. --Mas entâo, disse Carlos, apparecendo a enxugar as mâos, tu nâo fazes idÃa do que se passou, o que elle diria · mulher, o escandalo... --Nâo faÃo idÃa nenhuma, disse o Ega, agora mais sereno. Quando entrei na primeira sala estava elle, de beduino; estava um outro sujeito d'urso, e uma senhora nâo sei de que, de Tyrollesa creio eu... Elle veiu para mim, e disse-me aquillo: ponha-se fÃra! Nâo sei mais nada... Nem posso perceber... O canalha, se descobriu, naturalmente, para nâo estragar a festa, nâo disse nada a Rachel... Depois à que ellas sâo! Ergueu as mâos para o ceu, murmurou: --⦠horroroso! Deu ainda uma volta pelo quarto, e depois n'uma outra voz, franzindo a face: --Nâo sei que diabo aquelle Godefroy me deu para collar as sobrancelhas, que me picam que tem diabo! --Tira-as... Deante do espelho, Ega hesitava em desmanchar o seu semblante feroz de Santanaz. Mas arrancou-as por fim--e a gorra emplumada, muito justa, que lhe escaldava a cabeÃa. Entâo Carlos lembrou-lhe que, para ir a casa do Craft, se desembaraÃasse do manto e da espada, se agasalhasse n'um paletot d'elle. Ega deu ainda um longo e mudo olhar ao seu flamejante traje infernal, e com um profundo suspiro comeÃou a desafivelar o talim. Mas o paletot era muito largo, muito comprido; teve de lhe dar uma dobra nas mangas. Depois Carlos metteu-lhe um bonet escossez na cabeÃa.--E assim arranjado, com as canellas vermelhas de diabo apparecendo sob o paletot, a gargantilha escarlate · Carlos IX emergindo da gola, a velha casqueta de viagem na nuca, o pobre Ega tinha o ar lamentavel d'um Satanaz pelintra, agasalhado pela caridade d'um gentleman, e usando-lhe o fato velho. Baptista allumiou, grave e discreto. Ega ao passar por elle, murmurou: --Isto vae mal, Baptista, isto vae mal... O velho creado teve um movimento triste d'hombros, como significando que nada no mundo ia bem. Na rua negra, a parelha quieta dobrava a cabeÃa sob a chuva. O _Canhoto_, ao ouvir fallar d'uma gorgeta de libra, fez um grande espalhafato, rompeu ·s chicotadas; e a velha traquitana l· partiu a galope, a escorrer d'agua, atroando a calÃada. Por vezes um coupà particular crusava-os, os casacos de gutta-perche dos criados branquejavam · luz das lanternas. Entâo a idÃa da festa que devia agora resplandecer; Margarida ignorando tudo, walsando nos braÃos d'outros, anciosa, · espera d'elle; a ceia depois, o champagne, as cousas brilhantes que elle teria dito--todas estas delicias perdidas se vinham cravar no coraÃâo do pobre Ega, arrancavam-lhe pragas surdas, Carlos fumava silenciosamente, com o pensamento no Hotel Central. Depois de Santa Apolonia a estrada comeÃou, infindavel, desabrigada, batida pelo ar agreste do rio. Nenhum dizia uma palavra, cada um para o seu canto, arripiados na friagem que entrava pelas gretas da tipoia. Carlos nâo cessava de vÃr o casaco branco de velludo, com as duas mangas abertas, como dois braÃos que se offereciam... Passava da uma hora quando chegaram · quinta, a sineta do portâo, aos puxıes do cocheiro encharcado, retumbou lugubre n'aquelle silencio escuro de aldeia. Um câo ladrou furiosamente: outros latidos ao longe responderam; e ainda esperaram muito, antes que um creado, somnolento e resmungâo, apparecesse com uma lanterna. Uma rua d'acacias conduzia · casa: o Ega praguejava, enterrando os seus bellos sapatos de velludo no châo lamacento. Craft, surprehendido com aquelle tumulto, veiu-lhes ao encontro no corredor, de robe-de-chambre, e a _Revista dos Dois Mundos_ debaixo do braÃo. Percebeu logo que havia desastre. Levou-os em silencio para o seu gabinete onde um bom lume de carvâo na chaminà aquecia, alegrava o aposento todo estofado de cretones claros. Ambos foram direitos ao lume. Ega rompera logo a contar o seu caso--emquanto Craft, sem espanto nem exclamaÃıes, ia preparando methodicamente sobre a meza tres grogs de cognac e limâo. Carlos, sentado ao pà do fogâo, aquecia os pÃs: e Craft veiu acabar de ouvir o Ega, accommodando-se tambem na sua poltrona, do outro lado da chaminÃ, com o seu cachimbo na bocca. --Emfim, exclamou Ega, de pÃ, cruzando os braÃos, que me aconselhas tu agora? --Tens a fazer sà isto, disse Craft: esperar ·manhâ em casa que elle te mande os seus padrinhos... Que tenho a certeza que nâo manda... E depois, se vos baterdes, deixar-te ferir ou matar. --Perfeitamente o que eu disse, murmurou Carlos, provando o seu grog. Ega olhou-os a ambos, successivamente, petrificado. E logo, n'um fluxo de palavras desordenadas, queixou-se de nâo ter amigos. Ali estava, n'aquella crise, a maior da sua vida: e em logar de encontrar, nos seus camaradas de infancia e de Coimbra, apoio, solidariedade, lealdade _â¡ tort et â¡ travers_, abandonavam-n'o, pareciam querer enterral-o, e expol-o a irrisıes maiores... Ia-se commovendo; os olhos vermelhejavam-lhe sob as lagrimas. E quando algum d'elles ia interrompel-o, n'uma palavra de senso, batia o pÃ, persistia na sua teima--um desafio, matar o Cohen, vingar-se! Tinha sido insultado. Nâo existia outra cousa. Nâo se tinha fallado na mulher. Era elle que devia primeiro mandar padrinhos, lavar a sua honra. Havia pessoas na sala, quando o outro o insultou. Havia um urso, e uma tyrolesa... E emquanto a deixar-se varar por uma bala, nâo! Tinha mais direito a viver que o Cohen, que era um burguez, e um agiota... E elle era um homem de estudo e de arte! Tinha na cabeÃa livros, idÃas, cousas grandes. Devia-se ao paiz, · civilisaÃâo!... Se fosse ao campo, era para fazer a sua pontaria, e abater o Cohen, ali, como uma besta immunda... --Mas o que Ã, à que nâo tenho amigos! gritou elle exhausto por fim, cahindo para o canto d'um soph·. Craft bebia em silencio, e aos golos, o seu cognac. Foi Carlos que se ergueu, serio e aspero. Elle nâo tinha direito de duvidar da sua amisade. Quando lhe tinha ella faltado? Mas era necessario nâo ser pueril; nem theatral... A questâo estava simplesmente em que o Cohen o surprehendera, amando-lhe a mulher. Logo, podia matal-o, podia entregal-o aos tribunaes, podia escavacal-o na sala a pontapÃs... --Ou peor, interrompeu Craft. Mandar-te a senhora, com este bilhetinho: ´Guarde-aª. --Ou isso! continuava Carlos. Nâo, senhor: limita-se a prohibir-te a entrada em casa, um pouco asperamente, sim, mas indicando que, depois de ter feito isto, nâo quer nada mais violento, nem mais dramatico. Teve portanto um acto de moderaÃâo. E tu queres mandal-o desafiar por isso?... Mas Ega revoltou-se outra vez, deu um pulo, disparatou pela sala, sem paletot agora, esguedelhado, parecendo mais phantastico n'aquelle simples gibâo escarlate, com os sapatos de velludo enlameados, as longas pernas de cegonha cobertas de malha de seda vermelha. E teimava que se nâo tratava d'isso! Nâo, nâo se tratava da mulher! A questâo era outra... Carlos entâo zangou-se. --Para que diabo te expulsou elle de casa entâo? Nâo disparates, homem! NÃs estamos-te a dizer o que faz um homem de senso. E à triste, que te custe tanto a perceber o que manda o senso. Trahiste um amigo teu... Nada de equivocos! tu declaravas bem alto a tua amisade pelo Cohen. Trahistel-o, tens de acceitar a lei: se elle te quizer matar tens de morrer. Se elle nâo quizer fazer nada, tens de ficar de braÃos cruzados. Se elle te quizer chamar ahi por essas ruas um infame, tens de baixar a cabeÃa, e reconhecer-te infame... --Entâo tenho de engolir a affronta? Os dois amigos explicaram-lhe que aquelle fato de Satanaz lhe perturbava a lucidez do criterio mundano--e que chegava a ser torpe fallar elle, Ega, de _affronta_. Ega, outra vez acabrunhado sobre o soph·, conservou um momento a cabeÃa enterrada nas mâos. --Eu j· nem sei, disse elle por fim. VocÃs devem ter rasâo... Eu estou-me a sentir idiota ... Entâo, vamos, que hei de eu fazer? --VocÃs teem a tipoia · espera? perguntou tranquillamente Craft. Carlos mandara desapparelhar, recolher o gado esfalfado. --Excellente! Entâo, meu caro Ega, tens outra cousa a fazer, antes de morrer ·manhâ talvez, à cear esta noite. Eu ia ceiar, e por motivos longos d'explicar, ha n'esta casa um peru frio. E ha-de haver uma garrafa de Bourgonhe... D'ahi a pouco estavam · mesa--n'aquella bella sala de jantar do Craft, que encantava sempre Carlos, com as suas tapeÃarias ovaes representando bocados solitarios d'arvoredo, as severas faenÃas da Persia, e a sua original chaminà flanqueada por duas figuras negras de Nubios com olhos rutilantes de crystal. Carlos, que se declarara esfomeado, trinchava j· o perË, emquanto Craft, desarrolhava, com veneraÃâo, duas garrafas do seu velho Chambertin, para reconfortar Mephistopheles. Mas Mephistopheles, sombrio e com os olhos avermelhados, repelliu o prato, desviou o copo. Depois, sempre condescendeu em provar o Chambertin. --Pois eu, dizia Craft empunhando o talher, quando vocÃs chegaram, estava a lÃr um artigo interessante sobre a decadencia do protestantismo em Inglaterra... --Que à aquillo, alÃm, n'aquella lata? perguntou Ega, com uma voz moribunda. Um _pâtà de foie-gras_. Mephistopheles escolheu com tedio uma trufa. --Bem bom, este teu Chambertin, suspirou elle. --Anda come e bebe com franqueza, gritou-lhe Craft. Nâo te romantises. Tu o que tens à fome. Todas as tuas idÃas esta noite se ressentem da debilidade! Entâo Ega confessou que devia estar fraco. Com aquella excitaÃâo do seu trage de Satanaz nem jant·ra, contando ceiar bem em casa do outro... Sim, com effeito, tinha appetite! Excellente _foie-gras_... E d'ahi a pouco devorava: foram talhadas de perË, uma porÃâo immensa de lingua d'Oxford, duas vezes presunto d'York, todas aquellas boas cousas inglezas que havia sempre em casa do Craft. E elle sà bebeu quasi toda uma garrafa de Chambertin. O escudeiro fÃra preparar o cafÃ: e, no entanto, ia-se discutindo, em todas as hypotheses, a attitude provavel do Cohen com a mulher. Que faria elle? Talvez lhe perdoasse. Ega affirmava que nâo: era vaidoso, e de rancores longos! N'um convento tambem nâo a fechava, sendo judia... --Talvez a mate, disse Craft, com toda a seriedade. Ega, j· com os olhos brilhantes do Bourgogne, declarou tragicamente que elle entâo entrava n'um mosteiro. Os dois gracejaram, sem piedade. Em que mosteiro queria elle entrar? Nenhum era congenere com o Ega! Para dominicano era muito magro, para trapista muito lascivo, muito palrador para jesuita, e para benedictino muito ignorante... Era necessario crear uma ordem para elle! Craft lembrou a _Santa Blague_! --VocÃs nâo teem coraÃâo, exclamou Ega, enchendo outro grande copo. VocÃs nâo sabem, eu adorava aquella mulher! Entâo largou a fallar de Rachel. E teve alli, de certo, os momentos melhores de toda aquella paixâo,--porque poude, sem escrupulo, fazer reluzir a sua aureola de amante, banhar-se no mar de leite das confidencias vaidosas. ComeÃou por contar o encontro com ella na Foz--emquanto Craft, sem perder uma palavra, como quem se instrue, se erguera a abrir uma garrafa de Champagne. Disse depois os passeios na Cantareira; as cartinhas ainda hesitantes e platonicas, trocadas entre folhas de livros emprestados, em que ella se assignava _Violetta de Parma_; o primeiro beijo, o melhor, surripiado entre duas portas, emquanto o marido correra acima a buscar-lhe charutos especiaes; os rendez-vous no Porto, no Cemiterio do Repouso, as pressıes ardentes de mâos · sombra dos cyprestes, e os planos de voluptuosidade combinados entre as lapides funebres... --Muito curioso! dizia o Craft. Mas Ega teve de se calar, o criado entrava com o cafÃ. Emquanto se enchiam as chavenas, e Craft fÃra buscar uma caixa de charutos, elle acabou a garrafa de Champagne, j· pallido, com o nariz afilado. O criado sahiu, correndo o reposteiro de tapeÃaria: e logo Ega, com o calice de cognac ao lado, recomeÃou as confidencias, contou a volta a Lisboa, a Villa Balzac, as manhâs deliciosas passadas l· com ella no calor d'um ninho d'amor... Mas agora interrompia-se, vago e com os olhos turvos, enterrando um momento a cabeÃa entre os punhos. Depois l· vinha outro detalhe, os nomes lubricos que ella lhe dava, uma certa coberta de seda preta onde ella brilhava como um jaspe... Duas lagrimas embaciaram-lhe os olhos, jurou que queria morrer! --Se vocÃs soubessem que corpo de mulher! gritou elle de repente. Oh meninos, que corpo de mulher... Imaginem vocÃs um peito... --Nâo queremos saber, disse Carlos. Cala-te, tu est·s bebado, miseravel! Ega ergueu-se, retezando a perna, arrimado de lado · meza. Bebado! Elle? Ora essa!... Era cousa que nâo podia, era empiteirar-se. Tinha feito o possivel, bebido tudo, atà agua raz. Nunca! Nâo podia... --Olha, vou pÃr aquella garrafa · boca, tu ver·s. E fico frio, fico impassivel. A discutir philosophia... Queres que te diga o que penso de Darwin? ⦠uma besta... Ora ahi tens. D· c· a garrafa. Mas Craft recusou-lh'a; e, um momento Ega ficou oscillando, a olhar para elle, com a face livida. --Ou me d·s a garrafa... ou me d·s a garrafa, ou te metto uma bala no coraÃâo... Nâo, nem vales a bala... Vou-te dar uma bolacha! De repente os olhos cerraram-se-lhe, abatteu-se sobre a cadeira, d'ahi sobre o châo, como um fardo. --Terra! disse tranquillamente Craft. Tocou a campainha, o escudeiro entrou, apanharam Joâo da Ega. E emquanto o levavam para o quarto dos hospedes e lhe despiam o fato de Satanaz, nâo cessou de choramingar, dando beijos babosos pelas mâos de Carlos, balbuciando: --Rachelsinha!... RacaquÃ, minha Raquesinha! gostas do teu bibichinho?... Quando Carlos partiu na tipoia para Lisboa, nâo chovia, um vento frio ia varrendo o ceu, j· clareava a alvorada. Ao outro dia, ·s dez horas, Carlos voltou aos Olivaes. Achou Craft dormindo, e subiu ao quarto do Ega. As janellas tinham ficado abertas, um largo raio de sol dourava o leito; e elle ressonava ainda, no meio d'aquella aureola, deitado de lado, com os joelhos contra o estomago, o nariz dentro dos lenÃoes. Quando Carlos o sacudio, o pobre John abriu um olho triste, e bruscamente ergueu-se sobre o cotovello, espantado para o quarto, para os cortinados de damasco verde, para um retrato de dama empoada que lhe sorria de dentro da sua moldura dourada. De certo as memorias da vespera o assaltaram, porque se enterrou para baixo, com os lenÃoes atà ao queixo; e a sua face esverdeada, envelhecida, exprimiu a desconsolaÃâo de deixar aquelles fofos colxıes, a paz confortavel da quinta--para ir affrontar a Lisboa toda a sorte de cousas amargas. --Est· frio l· fÃra? perguntou elle melancholicamente. --Nâo, est· um dia adoravel. Mas levanta-te, depressa! Se l· fÃr alguem da parte do Cohen, podem imaginar que fugiste... Ega deu immediatamente um pulo da cama, e atordoado, esguedelhado, procurava a roupa, com as canellas nuas, tropeÃando contra os moveis. Sà achou o gibâo de Satanaz. Chamaram o criado, que trouxe umas calÃas de Craft. Ega enfiou-as · pressa: e sem se lavar, com a barba por fazer, a gola do paletot erguida, enterrou emfim na cabeÃa o bonet escossez, voltou-se para Carlos, disse com um ar tragico: --Vamos a isso! Craft, que se erguera, foi acompanhal-os ao portâo, onde esperava o coupà de Carlos. Na alameda de acacias, tâo tenebrosa na vespera sob a chuva, cantavam agora os passaros. A quinta, fresca e lavada, verdejava ao sol. O grande Terra-nova do Craft pulava em roda d'elles. --Doe-te a cabeÃa, Ega? perguntou Craft. --Nâo, respondeu o outro, acabando de abotoar o paletot. Eu hontem nâo estava bebado... O que estava era fraco. Mas, ao entrar para o coupÃ, fez, com um ar profundo e philosophico, esta reflexâo: --O que à a gente beber bons vinhos... Estou como se nâo fosse nada! Craft recommendou que se houvesse novidade, lhe mandassem um telegramma; fechou a portinhola, o coupà partiu. Durante a manhâ nâo veiu telegramma · quinta; e quando Craft appareceu na Villa Balzac, onde uma carruagem de Carlos esperava · porta, j· escurecera, duas vÃlas ardiam na triste sala verde. Carlos, estirado no soph·, dormitava, com um livro aberto sobre o estomago: e Ega passeiava d'um lado para outro, todo vestido de preto, pallido, com uma rosa na botoeira. Tinham estado alli na sala, n'aquella sÃcca, esperando todo o dia as testemunhas do Cohen. --Que te dizia eu? Nâo ha nada, nem podia haver, murmurou Craft. Mas Ega, agora agitado de idÃas negras, temia que elle tivesse assassinado a mulher! O sorriso sceptico de Craft indignou-o. Quem conhecia melhor o Cohen do que elle? Sob a apparencia burgueza, era um monstro! Tinha-lhe visto matar um gato, sà por capricho de derramar sangue... --Tenho um presentimento de desgraÃa, balbuciou elle aterrado. E logo n'esse momento a campainha retiniu. Ega acordou precipitadamente Carlos, empurrou os dois amigos para o quarto de cama. Craft ainda lhe disse que, ·quella hora, nâo podiam ser os amigos do Cohen. Mas elle queria estar sà na sala: e l· ficou, mais pallido, rigido, muito abotoado na sobrecasaca, com os olhos cravados na porta. --Que massada! dizia Carlos dentro, tenteando a escuridâo do quarto. Craft accendeu no toucador um resto de vella. Uma luz triste espalhou-se, tudo appareceu n'um desarranjo: no meio do châo estava cahida uma camisa de dormir; a um canto ficara a bacia de banho com agoa de sabâo; e, no centro, o enorme leito, envolto nas suas cortinas de seda vermelha, conservava uma magestade de tabernaculo. Um momento estiveram callados. Craft methodico, e como quem se instrue, examinava o toucador, onde havia um maÃo de ganchos de cabello, uma liga com o fecho quebrado, um ramo de violetas murchas. Depois foi olhar o marmore da commoda; ahi ficara um prato com ossos de frango, e ao lado uma meia folha de papel escripta a lapis, toda emendada, de certo trabalho litterario do Ega. Elle achava tudo isto muito curioso. Da sala, no entanto, vinha um ciciar de vozes subtil e intimo. Carlos escutando, julgou sentir uma falla abafada de mulher... Impaciente, foi · cozinha. A criada estava sentada · meza, com a mâo mettida pelos cabellos, sem fazer nada, a olhar para a luz: o pagem, espaparrado n'uma cadeira, chupava o seu cigarro. --Quem foi que entrou? perguntou Carlos. --Foi a criada do sr. Cohen, disse o garoto, escondendo o cigarro atraz das costas. Carlos voltou ao quarto, annunciando: --⦠a confidente. As cousas terminam amavelmente. --E como queria vocà que terminassem? disse Craft. O Cohen tem o seu Banco, os seus negocios, as suas letras a vencer, o seu credito, a sua respeitabilidade, todo um arranjo de cousas a que nâo convÃm um escandalo... ⦠isto que calma os maridos. AlÃm d'isso, j· se satisfez, j· lhe offereceu pontapÃs... N'esse instante houve um rumor na sala, Ega abriu violentamente a porta. --Nâo ha nada, exclamou elle, deu-lhe uma coÃa, e vâo ·manhâ para Inglaterra! Carlos olhou para o Craft--que movia a cabeÃa, como vendo todas as suas previsıes realisadas, e approvando plenamente. --Uma coÃa, dizia o Ega, com os olhos chammejantes e n'uma voz que sibillava. E depois fizeram as pazes... Vem ainda a ser um _menage_ modelo! A bengala purifica tudo... Que canalha! Estava furioso. N'esse momento odiava Rachel--nâo perdoando ao seu idolo ter-se deixado desfazer · paulada. Lembrava-se justamente da bengala do Cohen, um junco da India, com uma cabeÃa de galgo por castâo. E aquillo zurzira as carnes que elle tinha apertado com paixâo! Aquillo pozera vergıes roxos onde os seus labios tinham avivado signaes cÃr de rosa! E tinham _feito as pazes_. E assim terminava, relles e chinfrim, o romance melhor da sua vida! Preferiria sabel-a morta, a sabel-a espancada. Mas nâo! levava a sova, deitava-se depois com o marido, e elle mesmo, decerto arrependido, chamando-lhe nomes doces, a ajudava, em ceroulas, a fazer as applicaÃıes de arnica! Aquillo acabava em arnica! --Entre vocemecà para aqui, sr.^a Adelia, gritou elle para a sala, entre para aqui! Aqui sà ha amigos. O segredo acabou, o pudor acabou! Isto sâo amigos! Somos tres, mas somos um! Tem vocemecà diante de si o grande mysterio da Santissima Trindade. Sente-se, sr.^a Adelia, sente-se... Nâo faÃa ceremonia... E pÃde contar... Aqui a sr.^a Adelia, meninos, viu tudo, viu a coÃa! A sr.^a Adelia, uma moÃa gordinha e baixa, de bonitos olhos, com um chapÃo de flÃres vermelhas, veiu logo da sala rectificando. Nâo, ella nâo vira... Entâo o sr. Ega nâo tinha percebido bem... Ella sà _ouvira_. --Aqui est· como foi, meus senhores... Eu tinha ficado a pÃ, naturalmente, atà ao fim do baile, que estava que nem me tinha nas pernas. Era j· dia claro, quando o senhor, ainda vestido de moiro, se fechou no quarto com a senhora. Eu fiquei na cozinha com o Domingos · espera que elles tocassem a campainha. De repente ouvimos gritos!... Eu fiquei estarrecida, pensei atà que eram ladrıes. Corremos, eu e o Domingos, mas a porta do quarto estava fechada, e os dois estavam por dentro, l· para o fundo da alcova. Eu ainda puz o olho · fechadura, mas nâo pude vÃr nada... L· o estalar de bofetadas, e trambulhıes, e sons de bengalada, isso sim, isso ouvia-se perfeitamente; e os gritos. Eu disse logo ao Domingos ´ai que à uma questâo, ai que l· se foi tudo.ª Mas de repente, silencio geral! NÃs volt·mos para a cozinha; d'ahi a pouco o sr. Cohen appareceu, todo esguedelhado, em mangas de camisa, a dizer que nos podiamos deitar, que elles nâo precisavam nada, e que amanhâ fallariamos!... Depois l· ficaram toda a noite, e pela manhâ parece que estavam muito amiguinhos... Que eu nâo puz os olhos na senhora. O sr. Cohen, apenas se levantou, veiu · cozinha, fez-me elle as contas, e pÃz-me fÃra; muito mal creado, atà me ameaÃou com a policia... Foi pelo Domingos, que eu soube agora, quando fui buscar o bahË com um gallego, que o sr. Cohen Ãa com a senhora para Inglaterra. Emfim, um chinfrim... Eu atà tenho estado todo o dia com o estomago embrulhado. A sr.^a Adelia com um suspiro, pondo os olhos no châo, calou-se. Ega, com os braÃos cruzados, olhava amargamente para os seus amigos. Que lhes parecia aquillo? Uma coÃa!.. Se um covarde d'aquelles nâo merecia uma bala no coraÃâo! Mas ella tambem, deixar-se tocar, nâo ter fugido, consentir ainda depois em dormir com elle!.. Tudo uma corja! --E a sr.^a Adelia, perguntava Craft, nâo tem idÃa de como elle descobriu?.. --Isso à que à prodigioso! gritou Ega, apertando as mâos na cabeÃa. Sim, prodigioso! Nâo fÃra carta apanhada: elles nâo se escreviam. Nâo podia ter surprehendido as visitas · Villa Balzac: as cousas estavam combinadas com uma arte muito subtil, perfeitamente impenetraveis. Para vir ali, nunca ella commettera a indiscripÃâo de se servir da sua carruagem. Nunca ella claramente entrara pela porta. Os criados d'elle nunca a tinham visto, nâo sabiam quem era a senhora que o visitava... Tantos cuidados, e tudo estragado! --Estranho, estranho! murmurava Craft. Houve um silencio. A sr.^a Adelia terminara por descanÃar familiarmente n'uma cadeira, com a sua trouxasinha no regaÃo. --Pois olhe, sr. Ega, disse ella, depois de reflectir creia entâo uma cousa, à que foi em sonhos. J· tem acontecido... Foi a senhora que sonhou alto com v. ex.^a, disse tudo, o sr. Cohen ouviu, ficou de pedra no sapato, espreitou-a, e descobriu a marosca... E eu sei que ella sonha alto. Ega, diante da sr.^a Adelia, percorria-a desde as flÃres do chapÃo atà · roda das saias, com os olhos faiscantes. --Como à possivel que elle ouvisse? Se elles tinham quartos separados!... Eu sei que tinham. A sr.^a Adelia baixou as palpebras, acariciou com os dedos calÃados de luvas pretas a sua trouxasinha redonda, e disse mais baixo estas palavras: --Nâo tinham, nâo senhor. Nem a senhora consentia em tal arranjo... A senhora gosta muito do marido, e tem muitos ciumes d'elle. Houve um silencio embaraÃado e desagradavel. Sobre o toucador o resto da vella acabava, com uma luz lugubre. E Ega, que affectara sorrir, encolher os hombros, dava pelo quarto passos lentos e murchos, triturando o bigode com a mâo tremula. Entâo Carlos enojado, canÃado d'aquelle episodio que durava desde a vespera, e onde constantemente se remexera em lodo, declarou que era necessario findar! Eram oito horas, e elle queria jantar... --Sim, vamos todos jantar, murmurou o Ega, com o ar confuso e embaÃado. De repente fez um signal · sr.^a Adelia, arrastou-a para a sala, fechou-se l· outra vez. --Vocà nâo est· farto d'isto, Craft? exclamou Carlos, desesperado. --Nâo. Acho um estudo curioso. Esperaram ainda dez minutos. Subitamente a vella extinguiu-se. Carlos, furioso, gritou pelo pagem. E o garoto entrava com um immundo candieiro de petroleo--quando Ega, mais composto, voltou da sala. Tudo acabara, a sr.^a Adelia partira. --Vamos l· jantar, disse elle. Mas aonde, a esta hora? E elle mesmo lembrou o AndrÃ, ao Chiado. Em baixo, alem do coupà de Carlos, esperava a tipoia do Craft. As duas carruagens partiram. A Villa Balzac ficava apagada, muda, d'ora em diante inutil. No Andrà tiveram de esperar muito tempo, n'um gabinete triste, com um papel de estrellinhas douradas, cortininhas de cassa barata sob sanefas de reps azul, e dois bicos de gaz que silvavam. Ega, enterrado no soph· de mollas gastas e lassas, cerrara os olhos, parecia exhausto. Carlos Ãa contemplando as gravuras pela parede, todas relativas a hespanholas: uma saÃndo da egreja; outra saltando uma pocinha de agua; outra, de olhos baixos, escutando os conselhos de um canonico. Craft, j· · meza, com a cabeÃa entre os punhos, percorria um _Diario da Manhâ_, que o criado offerecera para os senhores se entreterem. De repente o Ega deu um murro no soph·, que rangeu lamentavelmente. --Eu o que nâo percebo, gritou elle, à como aquelle malvado descobriu!.. --A hypothese da sr.^a Adelia, disse Craft erguendo os olhos do jornal, parece provavel. Ou em sonhos, ou acordada, a pobre senhora descahiu-se. Ou talvez uma denuncia anonyma. Ou talvez apenas um acaso... O facto à que o homem desconfiou, espreitou-a, e apanhou-a. Ega erguera-se: --Eu nâo vos quiz dizer diante da Adelia, que nâo estava no segredo todo. Mas vocÃs sabem a casa defronte da minha, do outro lado da viella, uma casa com um grande quintal? Ahi mora uma tia do Gouvarinho, a D. Maria Lima, uma pessoa respeitavel. A Rachel Ãa vÃl-a de vez em quando. Sâo intimas, a D. Maria Lima à intima de todo o mundo. Depois sahia por uma portinha do quintal, atravessava a viella, e estava · porta da minha casa, · porta escusa, · porta da escada que vae ter ao cacifro de banho. J· vocÃs vÃem... Os criados nem a avistavam. Quando ella l· lunchava, o lunch estava j· posto no meu quarto, as portas fechadas. Mesmo se alguem visse, era uma senhora com um vÃo preto, que vinha de casa da Lima... Como podia o homem apanhal-a?.. AlÃm d'isso, em casa da Lima, ella mudava de chapÃo, e punha um waterproof... Craft cumprimentou. --⦠brilhante! Parece de Scribe. --Entâo, disse Carlos sorrindo, essa respeitavel fidalga... --A D. Maria, coitada... Eu te digo, à uma excellente velha, recebida em toda a parte, mas pobre, e faz d'estes favores... ¡s vezes mesmo em casa d'ella. --Leva caro por esses serviÃos? perguntou tranquillamente Craft, que em todo aquelle caso procurava instruir-se. --Nâo, coitada, disse o Ega. Dâo-se-lhe de vez em quando cinco libras. O criado entrava com uma travessa de camarıes, os tres em silencio accommodaram-se · meza. Depois do jantar recolheram ao Ramalhete. Ega Ãa l· dormir, receiando, com os nervos tâo excitados, a solidâo da villa Balzac. Partiram, de charutos accesos, n'uma caleche descoberta, sob a noite estrellada e doce. Felizmente nâo estava ninguem no Ramalhete; Ega, canÃado, poude retirar-se logo para o seu quarto, um aposento d'hospedes no segundo andar, onde havia um bello leito antigo de pau preto. Ahi, apenas o criado o deixou, Ega approximou-se do tremà onde ardiam as luzes, e tirou do pescoÃo, de sob a camiza, um medalhâo de ouro. Tinha dentro uma photographia de Rachel:--e a sua intenÃâo agora era queimal-a, deitar ao balde das agoas sujas as cinzas d'aquella paixâo. Mas, ao abrir o medalhâo, a face bonita, banhada n'um sorriso, sob o vidro oval, pareceu olhar para elle com uma tristeza no velludo das pupillas languidas... A photographia mostrava apenas a cabeÃa, com uma abertura de decote no comeÃo do vestido: e as recordaÃıes de Ega alargaram aquelle decote uma vez mais, revendo o collo, o extraordinario setim da pelle, o signalsinho sobre o seio esquerdo... O sabor dos seus beijos passou-lhe de novo nos labios, sentiu n'alma outra vez como o ecco dos suspiros canÃados que ella soltara nos seus braÃos. E ella ia-se embora, _nunca mais_ a veria! Esta desolada amargura do _nunca mais_ revolveu-o todo--e com a face enterrada no travesseiro, o pobre demagogo, o grande phraseador soluÃou muito tempo no segredo da noite. Toda essa semana foi dolorosa para o Ega. Logo ao outro dia Damaso apparecera no Ramalhete, e por elle ouviram os rumores de Lisboa. J· se sabia no Gremio, no Chiado, por toda a parte, que elle fÃra expulso da casa dos Cohens. O urso, a pastora do Tyrol, testemunhas do episodio, tinham-n'o badallado com enthusiasmo. Dizia-se mesmo que o Cohen lhe dera um pontapÃ. Os amigos da casa, esses, sobretudo o Alencar, prÃgavam com fervor a innocencia da sr.^a D. Rachel. O Alencar contava publicamente que o Ega, provinciano inexperiente e leâo de Celorico, tendo tomado por evidencias de paixâo os sorrisos de amabilidade de uma senhora que recebe,--escrevera · sr.^a D. Rachel uma carta quasi obscena, que ella, coitadinha, toda em lagrimas, viera mostrar ao marido. --Entâo dâo-me para baixo, hein, Damaso? murmurou Ega que, no gabinete de Carlos, embrulhado n'uma velha ulster, e encolhido n'uma poltrona, escutava estas cousas com um ar canÃado e doente. Damaso confessou que na sociedade lhe davam para baixo. Ah, elle sabia-o bem! tinha antipathias em Lisboa. Ninguem lhe perdoara ainda a pelissa. A sua verve, toda em sarcasmos, offendia. E era desagradavel para muita gente que um homem, com esse espirito tâo perigoso de ferro em braza, tivesse uma mâe rica, e fosse independente. Depois, no sabbado seguinte, Carlos, ao voltar do jantar dos Gouvarinhos--que fÃra excellente--contou-lhe a conversa que tivera com a sr.^a condessa. A condessa fallara-lhe muito livremente, como um homem, d'aquelle desastre do Ega. Tinha-se affligido muito, nâo sà pela Rachel, coitada, de quem era amiga, mas pelo Ega, que ella apreciava tanto, tâo interessante, tâo brilhante, e que sahia de tudo aquillo enxovalhado! O Cohen dizia a todos (dissera-o ao Gouvarinho) que amea÷ra o Ega de pontapÃs, por elle ter escripto a sua mulher uma carta immunda. Os que nâo sabiam nada, como o Gouvarinho, acreditavam, apertavam as mâos na cabeÃa; e os que sabiam, os que havia seis mezes sorriam da intimidade do Ega com os Cohens, affectavam tambem acreditar, cerravam os punhos de indignaÃâo. O Ega era odiado. E a pequena Lisboa, que vive entre o Gremio e a casa Havaneza, folgava em ´enterrarª o Ega. Ega, com effeito, sentia-se ´enterradoª. E n'essa noite declarou a Carlos que decidira recolher-se · quinta da mâe, passar l· um anno a acabar as _Memorias d'um Atomo_, e reapparecer em Lisboa com o seu livro publicado, triumphando sobre a cidade, esmagando os mediocres. Carlos nâo perturbou esta radiante illusâo. Mas quando Ega, antes de partir, foà a recapitular os seus negocios de casa, de dinheiro, encontrou-se diante de cousas abominaveis. Devia a todo o mundo, desde o estofador atà ao padeiro; tinha tres letras a vencer; aquellas dividas, se as deixasse, soltas e ladrando, juntar-se-iam, na tagarallice publica, ao caso dos Cohens--e elle seria, alÃm do amante ameaÃado de pontapÃs, o pelintra perseguido pelos credores! Que havia de fazer, senâo valer-se de Carlos? Carlos, para regular tudo, emprestou-lhe dois contos de rÃis. Depois, tendo despedido os criados da Villa Balzac, surgiram-lhe outras complicaÃıes. A mâe do pagem veiu d'ahi a dias ao Ramalhete, muito insolente, gritando que o filho lhe desapparecera! E era exacto: o famoso pagem, pervertido pela cozinheira, sumira-se com ella para as viellas da Mouraria, a comeÃar ahi uma divertida carreira de _faia_. Ega recusou-se a attender ·s reclamaÃıes da matrona. Que diabo tinha elle com essas torpezas? Entâo o amante da creatura interveiu, ameaÃadoramente, Era um policia, um esteio da ordem: e deu a entender que lhe seria facil provar como na Villa Balzac se passavam ´cousas contra a naturezaª, e que o pagem nâo era sà para servir · meza... Nauseado atà · morte, Ega pacteou com a intrugice, largou cinco libras ao policia. Quando n'essa noite, uma noite triste d'agoa, Carlos e Craft o acompanharam a Santa Apolonia, elle disse-lhes na carruagem estas palavras, triste resumo d'um amor romantico: --Sinto-me como se a alma me tivesse cahido a uma latrina! Preciso um banho por dentro! Affonso da Maia ao saber este desastre do Ega, tinha dito a Carlos, com tristeza: --M· estreia, filho, pessima estreia! E n'essa noite, depois de voltar de Santa Apolonia, Carlos pensava n'estas palavras, dizia tambem comsigo:--Pessima estreia!... E nem sà a estreia do Ega era pessima; tambem a sua. E talvez, por pensar n'isso, as palavras do avà tinham tido aquella tristeza. Pessimas estreias! Havia seis mezes que o Ega chegara de Celorico, embrulhado na sua grande pellissa, preparado a deslumbrar Lisboa com as _Memorias d'um Atomo_, a dominal-a com a influencia de uma Revista, a ser uma luz, uma forÃa, mil outras cousas... E agora, cheio de dividas e cheio de ridiculo, l· voltava para Celorico, escorraÃado. Pessima estreia! Elle, por seu lado, desembarcara em Lisboa, com idÃas collossaes de trabalho, armado como um luctador: era o consultorio, o laboratorio, um livro iniciador, mil cousas fortes... E, que tinha feito? Dois artigos de jornal, uma duzia de receitas, e esse melancolico capitulo da _Medicina entre os Gregos_. Pessima estreia! Nâo, a vida nâo lhe parecia promettedora, n'esse instante, passeiando na sala de bilhar com as mâos nos bolsos, emquanto ao lado os amigos conversavam, e fÃra uivava o sudoeste. Pobre Ega, que infeliz elle iria, encolhido ao canto do seu wagon!.. Mas os outros, ali, nâo estavam mais alegres. Craft e o Marquez tinham comeÃado uma conversa sobre a vida, soturna e desconsoladora. De que servia viver, dizia Craft, nâo se sendo um Livingstone ou um Bismark? E o Marquez, com um ar philosophico, achava que o mundo se ia tornando estupido. Depois chegou o Taveira com a historia horrivel d'um collega d'elle, cujo filho cahira pela escada, se despedaÃara, no momento em que a mulher estava a morrer d'uma pleurisia. Cruges resmungou o quer que fosse sobre suicidio. As palavras arrastavam-se, melancolicas. Instinctivamente, Carlos, de vez em quando, ia despertar as lampadas. Mas tudo lhe pareceu resplandecer, quando d'ahi a instantes Damaso chegou, e lhe disse que o Castro Gomes estava incommodado, e de cama. --Naturalmente, accrescentou o Damaso, mandam-te chamar, por teres j· visto a pequena... Carlos ao outro dia nâo sahiu de casa, esperando um recado, faiscando d'impaciencia. Nenhum recado veiu. E, duas tardes depois, ao descer para o Aterro--o primeiro encontro que teve, ·s Janellas Verdes, foi o Castro Gomes, de caleche descoberta, com a mulher ao lado, e a cadellinha no collo. Ella passou, sem o vÃr. E logo ali Carlos decidiu findar aquella tortura, pedir muito simplesmente ao Damaso que o apresentasse ao Castro Gomes, antes d'elle partir para o Brazil... Nâo podia mais, precisava ouvir a voz d'ella, vÃr o que os seus olhos diziam quando eram interrogados de perto. Mas toda essa semana achou-se, constantemente, sem saber como, na companhia dos Gouvarinhos. ComeÃou por encontrar o conde, que lhe travou do braÃo, arrastou-o · rua de S. MarÃal, installou-o n'uma poltrona, no seu escriptorio, e leu-lhe um artigo que destinava ao _Jornal do Commercio_ sobre a situaÃâo dos partidos em Portugal: depois convidou-o a jantar. Na tarde seguinte elles tinham uma partida de _croquet_. Carlos foi. E, a uma janella, aberta sobre o jardim, teve um momento de intimidade com a condessa, contou-lhe, rindo, como os cabellos d'ella o tinham encantado, a primeira vez que a vira. N'essa noite, ella fallou d'um livro de Tennyson, que nâo lera; Carlos offereceu-lh'o, foi-lh'o levar ao outro dia, de manhâ. Encontrou-a sÃ, toda vestida de branco: e riam, baixavam j· a voz, as duas cadeias estavam mais juntas--quando o escudeiro annunciou a sr.^a D. Maria da Cunha. Era uma cousa tâo extraordinaria, a D. Maria da Cunha ·quella hora! Carlos, de resto, gostava muito da D. Maria da Cunha, uma velha engraÃada, toda bondade, cheia de sympathia por todos os peccados--e ella mesma muito peccadora quando era a linda Cunha. D. Maria era muito falladora, parecia ter que dizer em particular · condessa; e Carlos deixou-as, promettendo voltar uma d'essas tardes tomar ch·, e fallar de Tennyson. Na tarde em que elle se vestia para l· ir, Damaso appareceu-lhe no quarto, a dar-lhe uma novidade que o enchia de desgosto e de ´ferroª. O telhudo do Castro Gomes mud·ra de idÃa, j· nâo ia ao Brazil! Ficava ali, no Central, atà ao meiado do verâo! De sorte que estava tudo estragado... Carlos pensou logo em fallar da sua apresentaÃâo ao Castro Gomes. Mas, como em Cintra, sem saber porquÃ, veiu-lhe uma repugnancia de a conhecer por meio do Damaso. E foi-se vestindo em silencio. Damaso no entanto maldizia a sua _chance_: --E eu que tinha mulher, eu que a tinha, se houvesse occasiâo. Mas que diabo queres tu, assim?... Queixou-se entâo do Castro Gomes. Em resumo, era um telhudo. E a vida d'aquelle homem era mysteriosa... Que diabo estava elle a fazer em Lisboa? Ali havia difficuldades de dinheiro... E elles nâo se davam bem. Na vespera houvera de certo questâo. Quando elle entrara, ella estava com os olhos vermelhos, e enfiada; e elle, nervoso, a passeiar pela sala, a retorcer a barba... Ambos contrafeitos, uma palavra cada quarto d'hora... --Sabes tu? exclamou elle. Tenho minha vontade de os mandar · fava. Queixou-se tambem d'ella. Era sobretudo muito desegual. Ora bom modo, ora regelada; e, ·s vezes, elle dizia qualquer cousa muito natural, d'estas cousas de conversa de sociedade, e ella punha-se a rir. Era de encavacar, hein? Emfim, gente muito exquisita. --Onde vaes tu? disse elle, com um suspiro de aborrecimento, vendo Carlos pÃr o chapeu. Ia tomar ch· com a Gouvarinho. --Pois olha, vou comtigo... Estou d'uma secca! Carlos hesitou um instante, terminou por dizer: --Vem, fazes-me atà favor... A tarde estava lindissima, Carlos ia no dog-cart. --Ha que tempos que nâo damos assim um passeio juntos, disse Damaso. --Tu andas l· mettido com estrangeiros!... Damaso deu outro suspiro, e nâo tornou a dizer mais nada. Depois, · porta dos Gouvarinhos, quando soube que a sr.^a condessa recebia, resolveu subitamente nâo entrar. Nâo, nâo entrava. Estava muito estupido, incapaz de achar uma palavra... --Ah, e outra cousa que me lembrou agora, exclamou elle, demorando ainda Carlos diante do portâo. O Castro Gomes, hontem, perguntou-me o que te havia de mandar pela visita · pequena... Eu disse que tu tinhas ido l· por favor, como meu amigo. E elle disse que te havia de vir deixar um bilhete... Naturalmente vens a conhecel-os. Nâo era, pois, necessario que Damaso o apresentasse! --Apparece · noite, Damasosinho, vai l· jantar ·manhâ! exclamou Carlos, subitamente radiante, dando um ardente aperto de mâo ao seu amigo. Quando entrou na sala, um escudeiro acabava de servir ch·. A sala, forrada d'um papel severo, verde e ouro, com retratos de familia em caixilhos pesados, abria por duas varandas sobre a folhagem do jardim. Em cima das mezas havia cestos de flÃres. No soph·, duas senhoras de chapeu, ambas de preto, conversavam, com a chavena na mâo. A condessa, ao estender os dedos a Carlos, ficara tâo cÃr de rosa--como a seda acolchoada da cadeira em que estava recostada, ao pà d'um velador de pau santo. Notou logo, sorrindo, o ar radiante de Carlos. Que lhe tinha acontecido de bom? Carlos sorriu tambem, disse que nâo era possivel entrar ali com outro ar. Depois perguntou pelo conde... O conde ainda nâo apparecera, detido de certo na camara dos pares, onde se discutia o projecto sobre a Reforma da InstrucÃâo Publica. Uma das senhoras de preto fazia votos para que se alliviassem os estudos. As pobres creanÃas succumbiam verdadeiramente · quantidade exaggerada de materias, de cousas a decorar: o d'ella, o Joâosinho, andava tâo pallido e tâo desfigurado, que ella ·s vezes tinha vontade de o deixar ficar ignorante de todo. A outra senhora pousou a chavena sobre um console ao lado, e passando sobre os labios a renda do lenÃo, queixou-se sobretudo dos examinadores. Era um escandalo as exigencias, as difficuldades que punham, sà para poder deitar RR... Ao pequeno d'ella tinham feito as perguntas mais estupidas, as mais reles; assim, por exemplo, o que era o sabâo, porque lavava o sabâo?... A outra senhora e a condessa apertaram as mâos contra o peito, consternadas. E Carlos, muito amavel, concordou que era uma abominaÃâo. O marido d'ella--continuava a dama de preto--ficara tâo desesperado que, encontrando o examinador no Chiado, o ameaÃou de lhe dar bengaladas. Uma imprudencia, de certo; mas, emfim, o homem fÃra malvado!... Nâo havia verdadeiramente senâo uma cousa digna de se estudar, eram as linguas. Parecia insensato que se torturasse uma creanÃa com botanica, astronomia, physica... Para que? Cousas inuteis na sociedade. Assim, o pequeno d'ella, agora, tinha liÃıes de chimica... Que absurdo! Era o que o pae dizia--para que, se elle o nâo queria para boticario? Depois d'um silencio, as duas senhoras ergueram-se ao mesmo tempo; e houve um murmurio de beijos, um frou-frou de sedas. Carlos ficou sà com a sr.^a condessa, que reoccupara a sua cadeira cÃr de rosa. Immediatamente ella perguntou pelo Ega. --Coitado, l· est· para Celorico. Ella protestou, com um lindo riso, contra aquella phrase tâo feia ´l· est· para Celoricoª Nâo, nâo queria... Coitado do Ega! Merecia uma melhor oraÃâo funebre. Celorico era horrÃvel para um fim de romance... --De certo, exclamou Carlos, rindo tambem, era mais bello dizer-se: _l· est· para Jerusalem!_ N'esse momento o criado annunciou um nome, e appareceu o amigo Telles da Gama, um intimo da casa. Quando soube que o conde devia estar ainda batalhando sobre a Reforma da InstrucÃâo, levou as mâos · cabeÃa como lamentando um tâo feio desperdicio de tempo, e nâo se quiz demorar. Nâo, nem mesmo o excellente ch· da sr.^a condessa o tentava. A verdade era que estava tâo abandonado da graÃa de Deus, perdera de tal modo o sentimento das cousas bellas, que entrara, nâo para vÃr a sr.^a condessa--mas simplesmente fallar ao conde. Entâo ella teve um bonito ar de princeza offendida, perguntou a Carlos se uma tâo rude sinceridade de montanhez nâo fazia saudades das maneiras polidas do antigo regimen. E Telles da Gama, gingando de leve, declarava-se democrata, homem da natureza, com um riso que lhe mostrava dentes magnificos. Depois, ao sair, dando um _shake-hands_ ao amigo Maia, quiz saber quando o principe de S.^t Olavia lhe dava emfim a honra de vir jantar com elle. A sr.^a condessa indignou-se. Nâo, era realmente de mais! Fazer convites, na sua sala, diante d'ella,--um homem que fallava tanto da sua cozinheira allemâ, e nem sequer lhe offerecera j·mais um prato de chou-crÃute! Telles da Gama, rindo sempre e gingando, jurou que andava a arranjar a sua sala de jantar para dar · sr.^a condessa uma festa, que havia de ficar nos annaes do reino! Agora com o Maia era differente: jantavam ambos na cozinha, com os pratos sobre os joelhos. E abalou, gingando sempre, rindo ainda da porta, mostrando os dentes magnificos. --Muito alegre, este Gama, nâo à verdade? disse a condessa. --Muito alegre, disse Carlos. Entâo a condessa olhou o relogio. Eram cinco e meia, ·quella hora ella j· nâo recebia: podiam, emfim, conversar um momento, em boa camaradagem. E, o que houve, foi um silencio lento, em que os olhos de ambos se encontraram. Depois Carlos perguntou por Charlie, o seu lindo doente. Nâo estava bem, com uma ligeira tosse apanhada no passeio da Estrella. Ah, aquella creanÃa nunca deixava de lhe dar o cuidado! Ficou callada, com o olhar esquecido no tapete, movendo languidamente o leque: tinha n'essa tarde uma toilette exaggerada, d'um tom de folha de outono amarellada, d'uma seda grossa, que ao menor movimento fazia um ruge-ruge de folhas seccas. --Que lindo tempo tem feito! exclamou ella de repente, como acordando. --Lindo! disse Carlos. Eu estive ha dias em Cintra, e nâo imagina... Era d'uma belleza de idyllio. E immediatamente arrependeu-se, quiz-se mal por ter fallado da sua ida a Cintra, n'aquella sala. Mas a condessa mal o escut·ra. Tinha-se erguido, fallando de algumas canÃıes que essa manhâ recebera de Inglaterra, as novidades frescas da _season_. Depois, sentou-se ao piano, correu os dedos no teclado, perguntou a Carlos se conhecia aquella melodia--_The pale star_. Nâo, Carlos nâo conhecia. Mas todas essas canÃıes inglezas se parecem, sempre do mesmo tom dolente, romanesco, e muito _miss_. E trata-se sempre d'um parque melancolico, um regato lento, um beijo sob os castanheiros... Entâo a condessa leu alto a letra da _Pale star_. E era a mesma cousa, uma estrellinha de amor palpitando no crepusculo, um lago pallido, um timido beijo sob as arvores... --⦠sempre o mesmo, disse Carlos, e à sempre delicioso. Mas a condessa atirou o papel para o lado, achando aquillo estupido. ComeÃou a remexer entre os papeis de musica, nervosa, e com um olhar que escurecia. Para quebrar o silencio, Carlos gabou-lhe as suas lindas flores. --Ah, vou-lhe dar uma rosa! exclamou ella logo, deixando as musicas. Mas, a flÃr que ella lhe queria dar estava no _boudoir_, ao lado. Carlos seguiu a sua grande cauda, onde corria um reflexo dourado de folhagem de outono batida do sol. Era um gabinete forrado de azul, com um bonito tremà do seculo XVIII, e sobre um forte pedestal de carvalho, o busto em barro do conde, na sua expressâo de orador, a fronte erguida, a gravata desmanchada, o labio fremente... A condessa escolheu um botâo com duas folhas, e ella mesmo lhe veiu florir a sobrecasaca. Carlos sentia o seu aroma de verbena, o calor que subia do seu seio arfando com forÃa. E ella nâo acabava de prender a flÃr, com os dedos tremulos, lentos, que pareciam collar-se, deixar-se adormecer sobre o panno... --_Voila!_ murmurou emfim, muito baixo. Ahi est· o meu bello cavalleiro da Rosa Vermelha... E agora, nâo me agradeÃa! Insensivelmente, irresistivelmente, Carlos achou-se com os labios nos labios d'ella. A seda do vestido roÃava-lhe, com um fino ruge-ruge entre os braÃos;--e ella pendia para traz a cabeÃa, branca como uma cera, com as palpebras docemente cerradas. Elle deu um passo, tendo-a assim enlaÃada, e como morta; o seu joelho encontrou um soph· baixo, que rolou e fugiu. Com a cauda de seda enrolada nos pÃs, Carlos seguiu, tropeÃando, o largo soph·, que rolou, fugiu ainda, atà que esbarrou contra o pedestal onde o sr. conde erguia a fronte inspirada. E um longo suspiro morreu, n'um rumor de saias amarrotadas. D'ahi a um momento estavam ambos de pÃ: Carlos, junto do busto, coÃando a barba, com o ar embaraÃado, e j· vagamente arrependido: ella, diante do tremà Luiz XV, compondo, com os dedos tremulos, o frisado do cabello. De repente, na antecamara, ouviu-se a voz do conde. Ella, bruscamente, voltou-se, correu a Carlos, e, com os longos dedos cobertos de pedrarias, agarrou-lhe o rosto, atirou-lhe dois beijos faiscantes ao cabello e aos olhos. Depois, sentou-se largamente no soph·--e estava fallando de Cintra, rindo alto, quando o conde entrou, seguido de um velho calvo, que se vinha a assoar a um enorme lenÃo de seda da India. Ao vÃr Carlos no _boudoir_, o conde teve uma bella surpreza, esteve-lhe apertando as mâos muito tempo, com calor, assegurando-lhe que ainda n'essa manhâ, na camara, se lembrara d'elle... --Entâo, por que vieram tâo tarde? exclamou a condessa, que se apoderara logo do velho, rindo, mexendo-se, animada, amavel. --O nosso conde fallou! disse o velho, ainda com o olho brilhante de enthusiasmo. --Fallaste? exclamou ela, voltando-se com um interesse encantador. ⦠verdade, fallara; e desprevenido! Quando ouvira porÃm o Torres Valente (homem de litteratura, mas um doido, sem senso pratico) quando o ouvira defender a gymnastica obrigatoria nos collegios--erguera-se. Mas nâo imaginasse o amigo Maia, que elle tinha feito um discurso. --Ora essa! exclamou o velho, agitando o lenÃo. E um dos melhores que eu tenho ouvido na camara! Dos de arromba! O Conde modestamente protestou. Nâo: tinha simplesmente lanÃado uma palavra de bom senso, e de bom principio. Perguntara apenas ao seu illustre amigo, o sr. Torres Valente, se na sua idÃa, os nossos filhos, os herdeiros das nossas casas, estavam destinados para palhaÃos!... --Ah, esta piada, sr.^a condessa! exclamou o velho. Eu sà queria que v. ex.^a ouvisse esta piada... E como elle a disse! com um _chic!_ O conde sorriu, agradeceu para o lado, ao velho. Sim, dissera-lhe aquillo. E, respondendo a outras reflexıes do Torres Valente, que nâo queria nos lyceus, nem nos collegios, um ensino ´todo impregnado de cathecismoª, elle lanÃara-lhe uma palavra cruel. --Terrivel, exclamou o velho n'um tom cavo, preparando o lenÃo para se assoar outra vez. --Sim, terrivel... Voltei-me para elle, e disse-lhe isto... ´Creia o digno par, que nunca este paiz retomar· o seu logar â¡ testa da civilisaÃâo, se, nos lyceus, nos collegios, nos estabelecimentos de instrucÃâo, nÃs outros os legisladores formos, com mâo impia, substituir a cruz pelo trapezio... --Sublime, rosnou o velho, dando um ronco medonho dentro do lenÃo. Carlos, erguendo-se, declarou aquillo d'uma ironia adoravel. E o conde, quando elle se despediu, nâo se contentou com um simples aperto de mâo, passou-lhe o braÃo pela cinta, chamou-lhe o seu querido Maia. A condessa sorria, com o olhar ainda humido, um resto de pallidez, movendo o leque languidamente, recostada em duas almofadas do soph·--debaixo do busto do marido que erguia a fronte inspirada. X Tres semanas depois, por uma tarde quente, com um ceu triste de trovoada, e no momento em que estavam cahindo algumas gotas grossas de chuva,--Carlos apeava-se d'um coupà de praÃa, que viera parar, de vagar, · esquina da Patriarchal, com os stores verdes mysteriosamente corridos. Dous sujeitos que passavam sorriram-se, como se o vissem escoar-se desgeitosamente d'uma portinha suspeita. E com effeito a velha traquitana de rodas amarellas acabava de ser uma alcova d'amor, perfumada de verbena, durante as duas horas que Carlos rolara dentro d'ella, pela estrada de Queluz, com a sr.^a condessa de Gouvarinho. A condessa tinha descido no largo das Amoreiras. E Carlos aproveitara a solidâo da Patriarchal para se desembaraÃar do calhambeque d'assento duro, onde durante a ultima hora suffoc·ra, sem ousar descer as vidraÃas, com as pernas adormecidas, enfastiado de tantas sedas amarrotadas e dos beijos interminaveis que ella lhe dava na barba... Atà ahi, durante essas tres semanas, tinham-se encontrado n'uma casa da rua de Santa Izabel, pertencente a uma tia da condessa que fÃra para o Porto com a criada, deixando-lhe a chave da casa e o cuidado do gato. A boa titi, uma velha pequenina, chamada miss Jones, era uma santa, uma apostola militante da Egreja Anglicana, missionaria da Obra da Propaganda; e todos os mezes fazia assim uma viagem de cathechisaÃâo · provincia, distribuindo Biblias, arrancando almas · treva catholica, purificando (como ella dizia) o tremedal papista... J· na escada havia um cheirinho adocicado e triste a devoÃâo e a virgem velha: e no patamar pendia um largo cartâo, com um distico em letras de ouro entrelaÃadas de lyrios roxos, rogando aos que entravam que preserverassem nas vias do Senhor! Carlos entrou, tropeÃando logo n'um montâo de Biblias. O quarto todo era um ninho de Biblias; havia-as ·s pilhas por cima dos moveis, transbordando de velhas chapelleiras, misturadas a pares de galochas, cahidas para o fundo da bacia d'assento, todas do mesmo formato, entaladas n'uma encadernaÃâo negra como n'uma armadura de combate, carrancudas e aggressivas! As paredes resplandeciam, forradas de cartonagens impressas em lettras de cÃr, irradiando versiculos duros da Biblia, asperos conselhos de moral, gritos dos psalmos, ameaÃas insolentes do inferno... E no meio d'esta religiosidade anglicana, · cabeceira d'um leitosinho de ferro, rigido e virginal, duas garrafas quasi vasias de cognac e de gin, Carlos bebeu o gin da santa; e o leito rigido ficou revolto como um campo de batalha. Depois a condessa comeÃou a ter medo d'uma visinha, uma Borges, que visitava a titi, e era viuva de um antigo procurador dos Gouvarinhos. Uma occasiâo em que, no casto leito de miss Jones, elles fumavam languidamente cigarrilhas, tres enormes argoladas · porta atroaram a casa. A pobre condessa quasi desmaiou; Carlos, correndo · janella, viu um homem que se affastava, com uma estatueta de gesso na mâo, outras dentro d'um cesto. Mas a condessa jurava que fÃra a Borges quem mand·ra o italiano das imagens atirar-lhes para dentro aquellas aldrabadas, como tres avisos, tres rebates da Moral... Nâo quizera voltar mais ao beatifico cutà da titi. E n'essa tarde, como nâo havia ainda outro escondrijo, tinham abrigado os seus amores dentro d'aquella tipoia de praÃa. Mas Carlos vinha de l· enervado, amollecido, sentindo j· na alma os primeiros bocejos da saciedade. Havia tres semanas apenas que aquelles braÃos perfumados de verbena se tinham atirado ao seu pescoÃo,--e agora, pelo passeio de S. Pedro d'Alcantara, sob o ligeiro chuvisco que batia as folhagens da alameda, elle Ãa pensando como se poderia desembaraÃar da sua tenacidade, do seu ardor, do seu peso... ⦠que a condessa Ãa-se tornando absurda com aquella determinaÃâo anciosa e audaz de invadir toda a sua vida, tomar n'ella o logar mais largo e mais profundo--como se o primeiro beijo trocado tivesse unido nâo sà os labios de ambos um momento, mas os seus destinos tambem e para sempre. N'essa tarde l· tinham voltado as palavras que ella balbuciava, cahida sobre o seu peito, com os olhos affogados n'uma ternura supplicante: _Se tu quizesses! que felizes que seriamos! que vida adoravel! ambos sÃs!_... E isto era claro--a condessa concebera a idÃa extravagante de fugir com elle, ir viver n'um sonho eterno de amor lyrico, n'algum canto do mundo, o mais longe possivel da rua de S. MarÃal! _Se tu quizesses!_ Nâo, com mil demonios, nâo queria fugir com a sr.^a condessa de Gouvarinho!... E nâo era sà isto--mas ainda exigencias, egoismos, explosıes tumultuosas d'um temperamento cioso: j· mais de uma vez, n'essas duas curtas semanas, por pieguices, ella desproposit·ra, fallara de morrer, debulhada em lagrimas... Ah! nas lagrimas havia ainda uma voluptuosidade, faziam parecer mais tenro o setim do seu collo! O que o inquietava eram certos clarıes que lhe sulcavam o rosto, um dardejar nervoso dos olhos seccos, revelando a paixâo que se accendera n'aquelles nervos de mulher de trinta e tres annos, e a queimava atà ·s profundidades do seu ser... Certamente este amor punha na sua vida um luxo mais, e um perfume. Mas o seu encanto estava em conservar-se facil, sereno, sem penetrar mais fundo que a epiderme. Se ella, por qualquer cousa, tinha os olhos turvos d'agua, e fallava em morrer, e torcia os braÃos, e queria fugir com elle--entâo adeus! Tudo estava estragado; e a sr.^a condessa com a sua verbena, os seus cabellos cÃr de braza, e o seu pranto, era apenas um trambolho! O chuveiro parara, um bocado d'azul lavado appareceu entre nuvens. E Carlos descia a rua de S. Roque--quando encontrou o marquez, sahindo d'uma confeitaria, tristonho, com um embrulho na mâo, e o pescoÃo abafado n'um enorme cache-nez de seda branca. --Que à isso? ConstipaÃâo? perguntou Carlos. --Tudo, disse o marquez, pondo-se a caminhar ao lado d'elle com uma lentidâo de moribundo. Deitei-me tarde. CanÃasso. Oppressâo no peito. Pigarreira. DÃres no lado. Um horror... Levo j· aqui rebuÃados. --Nâo seja piegas, homem! Vocà o que precisa à roast-beef e uma garrafa de Borgonha... Nâo à hoje que vocà janta l· no Ramalhete?... â¦, atà tem l· o Craft e o Damaso... Entâo descemos por essa rua do Alecrim, que j· nâo chove, depois pelo Aterro fÃra, a passo gymnastico, e em chegando l· vocà est· curado. O pobre marquez encolheu os hombros. Apenas sentia o menor encommodo, uma dÃr, um arrepio, considerava-se logo, como elle dizia, _liquidado_. O mundo comeÃava a findar para elle: tomavam-no terrores catholicos, uma preoccupaÃâo angustiosa da Eternidade. N'esses dias fechava-se no quarto com o padre capellâo--com quem ·s vezes, todavia, terminava por jogar as damas. --Em todo o caso, disse elle, tirando cautelosamente o chapeu ao passar pela porta aberta da egreja dos Martyres, deixe-me vocà ir primeiro ao Gremio... Quero escrever · Manoeleta que nâo conte comigo esta noite... Depois, distrahida e melancolicamente, perguntou noticias d'esse devasso do Ega. Esse devasso do Ega l· estava em Celorico, na quinta materna, ouvindo arrotar o padre Seraphim, e refugiando-se, segundo dizia, na grande arte: andava a compor uma comedia em cinco actos, que se devia chamar o _LodaÃal_--escripta para se vingar de Lisboa. --O peor, murmurou o marquez, depois de um silencio, e abafando-se mais no cache-nez, à se eu estou assim no domingo para as corridas! --O quÃ! exclamou Carlos, entâo as corridas sâo j· no domingo? O marquez foi-lhe explicando, em quanto desciam o Chiado, que as corridas se tinham apressado a pedido do Clifford, o grande _sportman_ de Cordova, que devia trazer dois cavallos inglezes... Era um bocado humilhante depender do Clifford. Mas emfim o Clifford era um _gentleman_ e com os seus cavallos de raÃa, os seus jockeys inglezes, constituia a unica feiÃâo sÃria do Hyppodromo de Belem. Sem o Clifford aquillo era uma brincadeira de pilecas e d'_abas_... --Vocà nâo conhece o Clifford?.. Bello rapaz! Um pouco _poseur_, mas oiro de lei. Tinham entrado no pateo do Gremio, o marquez estendeu o braÃo a Carlos. --Veja esse pulso! --O pulso est· excellente... V· vocà dar l· esse golpe · Manoela, que eu fico aqui · espera. No domingo pois, d'ahi a cinco dias, eram as corridas... E _ella_ estaria l·, elle ia conhecel-a, emfim! Durante essas tres ultimas semanas vira-a duas vezes: uma occasiâo, estando a conversar com o Taveira · porta do hotel Central, ella chegara a uma das varandas, de chapeu, calÃando uma grande luva preta; d'outra vez, havia dias, por uma tarde de chuva, ella viera parar · porta do Mourâo, ao Chiado, n'um coupà da Companhia, e ficara esperando emquanto o trintanario levava dentro · loja um embrulho que tinha a fÃrma d'um cofre, apertado com uma fita vermelha. D'ambas as vezes ella vira-o, demorara os olhos n'elle um momento: e parecera a Carlos que o ultimo olhar se prolongara mais, como abandonando-se, humedecendo-se, n'uma leve doÃura, ao pousar no seu... Era talvez uma illusâo; mas isto decidiu-o, na sua impaciencia, a realisar a antiga idÃa (ainda que desagradavel) de ser apresentado pelo Damaso ao Castro Gomes. O pobre Damaso, ao principio, diante d'esta exigencia, ficou perturbado; e com um ar de câo que defende o seu osso, lembrou logo a Carlos o deploravel comportamento do Castro Gomes, que nâo viera como lh'o annunciara, havia tres semanas, deixar o seu cartâo ao Ramalhete... Mas Carlos desdenhava essas formalidades estreitas entre rapazes: o Castro Gomes parecia-lhe um homem de gosto e de _sport_; nem todos os dias apparecia em Lisboa quem soubesse dar com correcÃâo o nà da gravata; e seria agradavel, mesmo para elle Damaso, reunirem-se todos de vez em quando, com o Craft, com o marquez, a fumar um charuto e a fallar de cavallos. Isto decidiu Damaso, que terminou por propÃr a Carlos o leval-o uma tarde ao hotel Central. Carlos porÃm nâo queria entrar pelo hotel dentro, de chapeu na mâo, atraz do Damaso. Resolveram entâo esperar pelas corridas, onde os Castro Gomes tencionavam ir. ´Ahi, no recinto da pesagem, disse o Damaso, a apresentaÃâo à mais _chic_... ⦠mesmo pÃdre de _chic_.ª --Deus queira com effeito que nâo chova no domingo, murmurou Carlos quando o marquez desceu, mais tristonho, mais abafado no seu cache-nez. Foram seguindo pelo meio da rua, em direcÃâo ao Ferregial. Adiante do Gremio, encostado ao passeio, estava um coupà da Companhia, com um trintanario de luvas brancas esperando junto ao portal. Carlos olhou, casualmente; e viu, debruÃado · portinhola, um rosto de creanÃa, d'uma brancura adoravel sorrindo-lhe, com um bello sorriso que lhe punha duas covinhas na face. Reconheceu-a logo. Era Rosa, era Rosicler: e ella nâo se contentou em sorrÃr, com o seu doce olhar azul fugindo todo para elle,--deitou a mâosinha de fÃra, atirou-lhe um grande adeus. No fundo do coupÃ, forrado de negro, destacava um perfil claro d'estatua, um tom ondeado de cabello louro. Carlos tirou profundamente o chapeu, tâo perturbado, que os seus passos hesitaram. _Ella_ abaixou a cabeÃa, de leve; alguma cousa de luminoso, um confuso rubor d'emoÃâo, espalhou-se-lhe no rosto. E fugitivamente foi como se, da mâe e da filha, ao mesmo tempo, viesse para elle uma suave e quente emanaÃâo de sympathia. --Caramba, aquillo pertence-lhe? perguntou o marquez, que notara a impressâo de Madame Gomes. Carlos cÃrou. --Nâo, à uma senhora brazileira a quem eu curei aquella pequerrucha... --Irra! que gratidâo! rosnou o outro de dentro das dobras do seu cachenez. Caminhando em silencio pelo Ferregial, Carlos revolvia uma idÃa que lhe viera de repente, ao receber aquelle doce olhar. Por que à que Damaso nâo levaria uma manhâ o Castro Gomes aos Olivaes, a vÃr as collecÃıes do Craft?... Elle estaria l·, abria-se uma garrafa de Champagne, discutiam _bric-â¡-brac_. Depois, muito naturalmente, elle convidava Castro Gomes a almoÃar no Ramalhete, para lhe mostrar o grande Rubens, e as suas velhas colxas da India. E assim, j· antes das corridas existiria entre elles uma camaradagem, talvez um tratamento de _vocÃ_. No Aterro, temendo o ar do rio, o marquez quiz tomar uma tipoia; e, atà ao Ramalhete, continuaram callados. O marquez, outra vez inquieto, apalpava a garganta. Carlos discutia complicadamente comsigo aquella lenta inclinaÃâo de cabeÃa, o olhar d'ella, o vivo rubor fugitivo... Ella atà ahi nâo o conhecia talvez. Mas, depois de atirar o seu grande _adeus_, Rosa, ainda sorrindo, voltara-se para a mâe, a dizer-lhe decerto que aquelle era o medico que a curara, a ella e · boneca... E entâo a linda cÃr que lhe enternecera o rosto tomava uma significaÃâo mais profunda--era como a surpreza feliz, o enleio casto, ao saber que o homem que ella not·ra j· de algum modo tinha penetrado na sua intimidade, beijara a sua filha, se tinha mesmo sentado · beira do seu leito... Depois ia refazendo o plano da visita aos Olivaes, mais largo agora, mais brilhante. Porque nâo iria ella tambem vÃr as curiosidades do Craft? Que tarde encantadora, que festa, que lindo idyllio! O Craft arranjava um _lunch_ delicado no seu velho serviÃo de Wedgewood. Elle ficava · meza junto d'ella. Depois iam vÃr o jardim j· em flÃr; ou tomavam ch· no pavilhâo japonez, forrado de esteiras. Mas, o que mais lhe appetecia era percorrer com ella as duas salas de Craft, parando ambos diante d'uma bella faienÃa ou d'um movel raro, e sentindo, atravez da concordancia dos seus gostos, subir, como um perfume, a sympathia dos seus coraÃıes... Nunca a vira tâo formosa como n'essa tarde, dentro do coupà forrado de escuro, onde brilhava mais puramente a brancura do seu perfil. Sobre o regaÃo do vestido negro pousava o tom claro das suas luvas; e no chapÃo frisava-se a ponta de uma penna cor de neve. A tipoia parara ao portâo do Ramalhete, estavam agora entre as silenciosas tapessarias da ante-camara. --Como à que ella conhece os Cruges? perguntou de repente o marquez, com um tom desconfiado, desembaraÃando-se do cache-nez. Carlos olhou para elle, como mal acordado. --Ella quem? Aquella senhora? Como conhece o Cruges?... Homem, sim, tem vocà razâo!.. Aquella era a casa do Cruges! a carruagem estava parada â¡ porta do Cruges!.. Talvez alguem que mÃre n'outro andar. --Nâo mÃra ninguem, disse o marquez, dando um passo para o corredor. Em todo o caso, à um mulherâo. Carlos achou a palavra odÃosa. Do corredor ouvia-se j· no escriptorio de Affonso, atravez da porta aberta, a voz petulante do Damaso fallando alto d'_handicap_ e de _dead-beat_... E foram-n'o encontrar discursando sobre as corridas, com convicÃâo, com auctoridade, como membro do Jockey-Club. Affonso, na sua velha poltrona, escutava-o, cortez e risonho, com o reverendo Bonifacio no collo. Ao canto do soph·, Craft folheava um livro. E o Damaso appellou logo para o marquez. Nâo era verdade, como elle estivera dizendo ao sr. Affonso da Maia, que iam ser as melhores corridas que se tinham feito em Lisboa? Sà para o grande premio nacional de seiscentos mil rÃis havia oito cavallos inscriptos! E alÃm d'isso, o Clifford trazia a _Mist_. --Ah, à verdade, oh marquez, à necessario que vocà appareÃa sexta-feira · noite no Jockey-Club, para acabarmos o _handicap_! O marquez arrastara uma cadeira para o pà de Affonso, para lhe fazer a confidencia dos seus achaques; mas como Damaso se mettia entre elles, fallando ainda da _Mist_, decidindo que a _Mist_ era chic, querendo apostar cinco libras pela _Mist_ contra o campo--o marquez terminou por se voltar, enfastiado, dizendo que o sr. Damazosinho se estava a dar ares patuscos... Apostar pela _Mist_! Todo o patriota devia apostar pelos cavallos do visconde de Darque, que era o unico criador portuguez!... --Pois nâo à verdade, sr. Affonso da Maia? O velho sorrio, amaciando o seu gato. --O verdadeiro patriotismo talvez, disse elle, seria, em logar de corridas, fazer uma boa tourada. Damazo levou as mâos · cabeÃa. Uma tourada! Entâo o sr. Affonso da Maia preferia touros a corridas de cavallos? O sr. Affonso da Maia, um inglez!... --Um simples beirâo, sr. Salcede, um simples beirâo, e que faz gosto n'isso; se habitei a Inglaterra à que o meu rei, que era entâo, me pÃz fÃra do meu paiz... Pois à verdade, tenho esse fraco portuguez, prefiro touros. Cada raÃa possue o seu _sport_ proprio, e o nosso à o toiro: o toiro com muito sol, ar de dia santo, agua fresca, e foguetes... Mas sabe o sr. Salcede qual à a vantagem da toirada? ⦠ser uma grande escola de forÃa, de coragem e de destreza... Em Portugal nâo ha instituiÃâo que tenha uma importancia egual · tourada de curiosos. E acredite uma cousa: à que se n'esta triste geraÃâo moderna ainda ha em Lisboa uns rapazes com certo musculo, a espinha direita, e capazes de dar um bom socco, deve-se isso ao touro e · tourada de curiosos... O marquez enthusiasmado bateu as palmas. Aquillo à que era fallar! Aquillo à que era dar a philosophia do toiro! Est· claro que a tourada era uma grande educaÃâo phisica! E havia imbecis que fallavam em acabar com os touros! Oh, estupidos, acabaes entâo com a coragem portugueza!... --NÃs nâo temos os jogos de destresa das outras naÃıes, exclamava elle, bracejando pela sala e esquecido dos seus males. Nâo temos o _cricket_, nem o _foot-ball_, nem o _running_, como os inglezes: nâo temos a gymnastica como ella se faz em FranÃa; nâo temos o serviÃo militar obrigatorio que à o que torna o allemâo solido... Nâo temos nada capaz de dar a um rapaz um bocado de fibra. Temos sà a tourada... Tirem a tourada, e nâo ficam senâo badamecos derreados da espinha, a mellarem-se pelo Chiado! Pois vocà nâo acha, Craft? Craft, do canto do soph·, onde Carlos se fÃra sentar e lhe fallava baixo, respondeu, convencido: --O que, o touro? Est· claro! o touro devia ser n'este paiz como o ensino à l· fÃra: gratuito e obrigatorio. Damazo no entanto jurava a Affonso compenetradamente que gostava tambem muito de touros. Ah l· n'essas cousas de patriotismo ninguem lhe levava a palma... Mas as corridas tinham outro _chic_! Aquelles _Bois de Boulogne_, n'um dia de _Grand-Prix_, hein!... Era de embatucar! --Sabes o que à pena? exclamou elle voltando-se de repente para Carlos. ⦠que tu nâo tenhas um _four-in-hand_, um _mail coach_. Iamos todos d'aqui, cahia tudo de chic! Carlos pensou tambem comsigo que era uma pena nâo ter um _four-in-hand_. Mas gracejou, achando mais em harmonia com o Jockey Club da travessa da ConceiÃâo irem todos dentro d'um omnibus. Damazo voltou-se para o velho, deixando cahir os braÃos, descorÃoado: --Ahi est·, sr. Affonso da Maia! Ahi est· por que em Portugal nunca se faz nada em termos! ⦠por que ninguem quer concorrer para que as cousas saiam bem... Assim nâo à possivel! Eu c· entendo isto: que n'um paiz, cada pessoa deve contribuir, quanto possa, para a civilisaÃâo. --Muito bem, sr. Salcede! disse Affonso da Maia. Eis ahi uma nobre, uma grande palavra! --Pois nâo à verdade? gritou Damazo, triumphante, a estoirar de goso. Assim eu, por exemplo... --Tu, o quÃ? exclamaram dos lados. Que fizeste, tu pela civilisaÃâo?... --Mandei fazer para o dia das corridas uma sobrecasaca branca... E vou de vÃo azul no chapÃo! Um escudeiro entrou com uma carta para Affonso, n'uma salva. O velho, sorrindo ainda das idÃas de Damaso sobre a civilisaÃâo, puxou a luneta, leu as primeiras linhas; toda a alegria lhe morreu no rosto, ergueu-se logo, tendo depositado cuidadosamente sobre a sua almofada o pesado Bonifacio. --Isto à que à ter gosto, isto à que à comprehender as cousas! exclamava o Damaso, agitando os braÃos para Carlos, quando o velho desappareceu atravez do reposteiro de damasco. Este teu avÃ, menino, à podre de chic!.. --Deixa l· o chic do avÃ... Anda c·, que te quero dizer uma cousa. Abriu uma das janellas do terraÃo, levou para l· o Damaso, e disse-lhe ahi, · pressa, o seu plano da visita aos Olivaes, e a linda tarde que poderiam passar na quinta com os Castro Gomes... Elle j· fallara ao Craft, que estava de accordo, achava delicioso, ia encher tudo de flores. E agora sà restava que Damaso amigo, como amabilidade sua, convidasse os Castro Gomes... --Caramba! murmurou Damaso desconfiado, est·s com furor de a conhecer! Mas emfim concordou que era chic a valer! E via ahi uma bella occasiâo para elle!... Em quanto Carlos e Craft andassem mostrando as curiosidades ao Castro Gomes e lhe fallassem de cavallos, elle, z·s, ia para a quinta passear com ella... A calhar! --Pois vou ·manhâ j· fallar-lhes... Estou convencido que aceitam logo. Ella pela-se por bric-a-brac! --E vens dizer-me se acceitaram ou nâo... --Venho dizer-te... Tu vaes gostar d'ella; tem lido muito, entende tambem de litteratura; e olha que ·s vezes a conversar atrapalha... O marquez veiu chamal-os para dentro, impaciente, querendo fechar a porta envidraÃada, outra vez preoccupado com a garganta. E desejava antes de jantar ir ao quarto de Carlos gargarejar com agua e sal... --E à isto um portuguez forte! exclamou Carlos, travando-lhe alegremente do braÃo. --Eu sou piegas na garganta, replicou logo o marquez, desprendendo-se d'elle e olhando-o com ferocidade. E vocà Ã-o no sentimento. E o Craft Ã-o na respeitabilidade. E o Damasosinho Ã-o na tolice. Em Portugal à tudo Pieguice e Companhia! Carlos rindo, arrastou-o pelo corredor. E de repente, ao entrarem na ante-camara, deram com Affonso fallando a uma mulher, carregada de luto, que lhe beijava a mâo, meia de joelhos, suffocada de lagrimas: e ao lado outra mulher, com os olhos turvos d'agua tambem, embalava dentro do chaile uma criancinha que parecia doente e gemia. Carlos parara embaraÃado; o marquez instinctivamente levou a mâo · algibeira. Mas o velho, assim surprehendido na sua caridade, foi logo empurrando as duas mulheres para a escada: ellas desciam, encolhidas, abenÃoando-o, n'um murmurio de soluÃos; e elle voltando-se para Carlos, quasi se desculpou n'uma voz que ainda tremia: --Sempre estes peditorios... Caso bem triste todavia... E o que à peior à que por mais que se dà nunca se d· bastante. Mundo muito mal feito, marquez. --Mundo muito mal feito, sr. Affonso da Maia, respondeu o marquez commovido. No domingo seguinte, pelas duas horas, Carlos no seu phaeton de oito molas, levando ao lado Craft que durante os dois dias de corridas se installara no Ramalhete, parou ao fim do largo de Belem, no momento em que para o lado do Hyppodromo estavam j· estalando foguetes. Um dos criados desceu a comprar o bilhete de pesagem para o Craft, n'uma tosca guarita de madeira, armada alli de vespera, onde se mexia um homemsinho de grandes barbas grisalhas. Era um dia j· quente, azul ferrete, com um d'esses rutilantes soes de festa que enflammam as pedras da rua, doiram a poeirada baÃa do ar, poem fulgores d'espelho pelas vidraÃas, dâo a toda a cidade essa branca faiscaÃâo de cal, d'um vivo monotono e implacavel, que na lentidâo das horas de verâo canÃa a alma, e vagamente entristece. No largo dos Jeronymos silencioso, e a escaldar na luz, um omnibus esperava, desatrelado, junto ao portal da Egreja. Um trabalhador com o filho ao collo, e a mulher ao lado no seu chaile de ramagens, andava alli, pasmando para a estrada, pasmando para o rio, a gosar ociosamente o seu domingo. Um garoto ia apregoando desconsoladamente programmas das corridas que ninguem comprava. A mulher da agua fresca, sem freguezes, sentara-se com a sua bilha · sombra, a catar um pequeno. Quatro pesados municipaes a cavallo patrulhavam a passo aquella solidâo. E a distancia, sem cessar, o estalar alegre de foguetes morria no ar quente. No entanto o tritanario continuava debruÃado na guarita, sem poder arranjar l· dentro o troco d'uma libra. Foi necessario Craft saltar da almofada, ir l· parlamentar--emquanto Carlos, impaciente, raspando com o chicote as ancas das egoas, luzidias como um setim castanho, riscava no largo uma volta brusca e nervosa. Desde o Ramalhete viera assim governando, irritadamente, sem descerrar os labios. ⦠que toda aquella semana, desde a tarde em que combinara com o Damaso a visita aos Olivaes, fÃra desconsoladora. O Damaso tinha desapparecido, sem mandar a resposta dos Castro Gomes. Elle, por orgulho, nâo procurara o Damaso. Os dias tinham passado, vazios; nâo se realisara o alegre idyllio dos Olivaes; ainda nâo conhecia Madame Gomes; nâo a tornara a ver; nâo a esperava nas corridas. E aquelle domingo de festa, o grande sol, a gente pelas ruas, vestida de casimiras e de sedas de missa, enchiam-n'o de melancolia e de malestar. Uma caleche de praÃa passou, com dous sujeitos de flores ao peito, acabando de calÃar as luvas; depois um dog-cart, governado por um homem gordo, de lunetas pretas, quasi foi esbarrar contra o Arco. Emfim, Craft voltou com o seu bilhete, tendo sido descomposto pelo homem de barbas propheticas. Para alÃm do arco, a poeira suffocava. Pelas janellas havia senhoras debruÃadas, olhando por debaixo de sombrinhas. Outros municipaes, a cavallo, atravancavam a rua. ¡ entrada para o hyppodromo, abertura escalavrada n'um muro de quintarola, o phaeton teve de parar atr·z do dog-cart do homem gordo--que nâo podia tambem avanÃar porque a porta estava tomada pela caleche de praÃa, onde um dos sujeitos de flor ao peito berrava furiosamente com um policia. Queria que se fosse chamar o sr. Savedra! O sr. Savedra, que era do Jockey-Club, tinha-lhe dito que elle podia entrar sem pagar a carruagem! Ainda lh'o dissÃra na vespera, na botica do Azevedo! Queria que se fosse chamar o sr. Savedra! O policia bracejava, enfiado. E o cavalleiro, tirando as luvas, ia abrir a portinhola, esmurrar o homem--quando, trotando na sua grande horsa, um municipal de punho alÃado correu, gritou, injuriou o cavalleiro gordo, fez rodar para Ãra a caleche. Outro municipal entrometteu-se, brutalmente. Duas senhoras, agarrando os vestidos, fugiram para um portal, espavoridas. E atravez do reboliÃo, da poeira, sentia-se adiante, melancolicamente, um realejo tocando a _Traviata_. O phaeton entrou--atraz do dog-cart, onde o homem gordo, a estoirar de furia, voltava ainda para traz a face escarlate, jurando dar parte do municipal: --Tudo isto est· arranjado com decencia, murmurou Craft. Diante d'elles, o hyppodromo elevava-se suavemente em colina, parecendo, depois da poeirada quente da calÃada e das cruas reverberaÃıes da cal, mais fresco, mais vasto, com a sua relva j· um pouco crestada pelo sol de junho, e uma ou outra papoula vermelhejando aqui e alÃm. Uma aragem larga e repousante chegava vagarosamente do rio. No centro, como perdido no largo espaÃo verde, negrejava, no brilho do sol, um magote apertado de gente, com algumas carruagens pelo meio, d'onde sobresahiam tons claros de sombrinhas, o faiscar d'um vidro de lanterna, ou um casaco branco de cocheiro. Para alÃm, dos dois lados da tribuna real forrada de um baetâo vermelho de mesa de RepartiÃâo, erguiam-se as duas tribunas publicas, com o feitio de traves mal pregadas, como palanques d'arraial. A da esquerda vasia, por pintar, mostrava · luz as fendas do taboado. Na da direita, bezuntada por fÃra d'azul claro, havia uma fila de senhoras quasi todas de escuro encostadas ao rebordo, outras espalhadas pelos primeiros degraus; e o resto das bancadas permanecia deserto e desconsolado, d'um tom alvadio de madeira, que abafava as cÃres alegres dos raros vestidos de verâo. Por vezes a briza lenta agitava no alto dos dois mastros o azul das bandeirolas. Um grande silencio caÃa do ceu faiscante. Em volta do recinto da tribuna, fechado por um tapume de madeira, havia mais soldados de infanteria, com as bayonetas lampejando ao sol. E no homem triste que estava · entrada, recebendo os bilhetes, mettido dentro d'um enorme collete branco, reteso de gomma, e que lhe chegava atà aos joelhos--Carlos reconheceu o servente do seu laboratorio. Apenas tinham dado alguns passos encontraram Taveira · porta do buffete onde se estivera reconfortando com uma cerveja. Tinha um molho de cravos amarellos ao peito, polainas brancas,--e queria animar as corridas. J· vira a _Mist_, a egoa de Clifford, e decidira apostar pela _Mist_. Que cabeÃa d'animal, meninos, que finura de pernas!... --Palavra que me enthusiasmou! E est· decidido, um dia nâo sâo dias, à necessario animar isto! Aposto trez mil rÃis. Quer vocà Craft? --Pois sim, talvez, depois... Vamos primeiro vÃr o aspecto geral. No recinto em declive, entre a tribuna e a pista, havia sà homens, a gente do Gremio, das Secretarias e da Casa Havaneza; a maior parte · vontade, com jaquetıes claros, e de chapÃo cÃco; outros mais em estylo, de sobrecasaca e binoculo a tiracollo, pareciam embaraÃados e quasi arrependidos do seu chic. Fallava-se baixo, com passos lentos pela relva, entre leves fumaraÃas de cigarro. Aqui e alÃm um cavalheiro, parado, de mâos atraz das costas, pasmava languidamente para as senhoras. Ao lado de Carlos dois brazileiros queixavam-se do preÃo dos bilhetes, achando aquillo ´uma semsaboria de rachar.ª Defronte a pista estava deserta, com a relva pisada, guardada por soldados: e junto · corda, do outro lado, apinhava-se o magote de gente, com as carruagens pelo meio, sem um rumor, n'uma pasmaceira tristonha, sob o peso do sol de junho. Um rapazote, com uma voz dolente, apregoava agua fresca. L· ao fundo o largo Tejo faiscava, todo azul, tâo azul como o ceu, n'uma pulverisaÃâo fina de luz. O visconde de Darque, com o seu ar placido de gentleman louro que comeÃa a engordar, veio apertar a mâo a Carlos e a Craft. E mal elles lhe fallaram dos seus cavallos (_Rabbino_, o favorito, e o outro potro) encolheu os hombros, cerrou os olhos, como um homem que se sacrifica. Entâo, que diabo, os rapazes tinham querido!... Mas elle, realmente, nâo podia apresentar um cavallo decente, com as suas cÃres, senâo d'ahi a quatro annos. De resto nâo apurava cavallos para aquella melancolia de Belem, nâo imaginassem os amigos que elle era tâo patriota: o seu fim era ir a Hespanha, bater os cavallos de Caldillo... --Emfim, vamos a vÃr... Dà vocà c· lume. Isto est· um horror. E depois, que diabo, para corridas à necessario cocottes e Champagne. Com esta gente seria, e agua fresca, nâo vae! N'esse momento um dos commissarios das corridas, um rapagâo sem barba, vermelho como uma papoula, a pingar de suor sob o chapÃo branco deitado para a nuca, veio arrebatar o Darque, ´que era muito preciso, l· na pesagem, para uma duvidasinha.ª --Eu sou o diccionario, dizia o Darque, tornando a encolher os hombros resignadamente. De vez em quando vem um d'estes senhores do Jockey-Club, e folheia-me... Veja vocÃ, Maia, em que estado eu fico depois das corridas! Ha-de ser necessario encadernar-me de novo... E l· foi, rindo da sua pilheria--empurrado para diante pelo commissario, que lhe dava palmadas familiares nas costas, e lhe chamava _catita_. --Vamos nÃs vÃr as mulheres, disse Carlos. Seguiram devagar ao comprido da tribuna. DebruÃadas no rebordo, n'uma fila muda, olhando vagamente, como d'uma janella em dia de procissâo, estavam ali todas as senhoras que vÃem no high-life dos jornaes, as dos camarotes de S. Carlos, as das terÃas-feiras dos Gouvarinhos. A maior parte tinha vestidos serios de missa. Aqui e alÃm um d'esses grandes chapÃos emplumados · Gainsborough, que entâo se comeÃavam a usar, carregava d'uma sombra maior o tom trigueiro d'uma carinha miuda. E na luz franca da tarde, no grande ar da collina descoberta, as pelles appareciam murchas, gastas, molles, com um baÃo de pà de arroz. Carlos cumprimentou as duas irmâs do Taveira, magrinhas, loirinhas, ambas correctamente vestidas de xadrezinho: depois a viscondessa d'Alvim, nedia e branca, com o corpete negro reluzente de vidrilhos, tendo ao lado a sua terna inseparavel, a Joaninha Villar, cada vez mais cheia, com um quebranto cada vez mais doce nos olhos pestanudos. Adiante eram as Pedrosos, as banqueiras, de cÃres claras, interessando-se pelas corridas, uma de programma na mâo, a outra de pà e de binoculo estudando a pista. Ao lado, conversando com Steinbroken, a condessa de Soutal, desarranjada, com um ar de ter lama nas saias. N'uma bancada isolada, em silencio, VillaÃa com duas damas de preto. A condessa de Gouvarinho ainda nâo viera. E nâo estava tambem aquella que os olhos de Carlos procuravam, inquietamente e sem esperanÃa. --⦠um canteirinho de camelias meladas, disse o Taveira, repetindo um dito do Ega. Carlos, no entanto, fÃra fallar · sua velha amiga D. Maria da Cunha que, havia momentos, o chamava com o olhar, com o leque, com o seu sorriso de bÃa mamâ. Era a unica senhora que ousara descer do retiro ajanellado da tribuna, e vir sentar-se em baixo, entre os homens: mas, como ella disse, nâo aturara a sÃca de estar l· em cima perfilada, · espera da passagem do Senhor dos Passos. E, bella ainda sob os seus cabellos j· grisalhos, sà ella parecia divertir-se alli, muito · vontade, com os pÃs pousados na travessa d'uma cadeira, o binoculo no regaÃo, cumprimentada a cada instante, tratando os rapazes por _meninos_... Tinha comsigo uma parenta que apresentou a Carlos, uma senhora hespanhola, que seria bonita se nâo fossem as olheiras negras, cavadas atà ao meio da face. Apenas Carlos se sentou ao pà d'ella, D. Maria perguntou-lhe logo por esse aventureiro do Ega. Esse aventureiro, disse Carlos, estava em Celorico compondo uma comedia para se vingar de Lisboa, chamada o _LodaÃal_... --Entra o Cohen? perguntou ella, rindo. --Entramos todos, sr.^a D. Maria. Todos nÃs somos lodaÃal... N'esse momento, por traz do recinto, rompia, com um taran-tan-tan mollengâo de tambores e pratos, o hymno da Carta, a que se misturou uma voz de official e o bater de coronhas. E, entre dourados de dragonas, El-rei appareceu na tribuna, sorrindo, de quinzena de velludo, e chapÃo branco. Aqui e alÃm, raros sujeitos cumprimentaram, muito de leve: a senhora hespanhola, essa, tomou o oculo do regaÃo de D. Maria, e de pÃ, muito descanÃadamente, poz-se a examinar o rei. D. Maria achava ridicula a musica, dando ·s corridas um ar de arraial... AlÃm d'isso, que tolice, o hymno, como n'um dia de parada! --E este hymno, entâo, que à medonho, dizia Carlos. A sr.^a D. Maria nâo sabe a definiÃâo do Ega, e a sua theoria dos hymnos? Maravilhosa! --Aquelle Ega! dizia ella sorrindo, j· encantada. --O Ega diz que o hymno à a definiÃâo pela musica do caracter d'um povo. Tal à o compasso do hymno nacional, diz elle, tal à o movimento moral da naÃâo. Agora veja a sr.^a D. Maria os differentes hymnos, segundo o Ega. A _Marselheza_ avanÃa com uma espada nËa. O _God save the queen_ adianta-se, arrastando um manto real... --E o hymno da Carta? --O hymno da Carta ginga, de rabona. E D. Maria ria ainda, quando a hespanhola, sentando-se e repousando-lhe tranquillamente o binoculo no regaÃo, murmurou: --Tiene cara de buena persona. --Quem, o rei? exclamaram a um tempo D. Maria e Carlos. Excellente! No entanto uma sineta tocava, perdida no ar. E no quadro indicador subiram os numeros dos dois cavallos que corriam o primeiro premio dos _Productos_. Eram o n.^o 1 e o n.^o 4. D. Maria Telles quiz-lhe saber os nomes, com o appetite de apostar e ganhar cinco tostıes a Carlos. E como Carlos se erguia para arranjar um programma: --Deixe estar o menino, disse ella, tocando-lhe no braÃo. Ahi vem o nosso Alencar, com o programma... Olhe para aquillo! Veja se ainda hoje os ha por ahi com aquelle ar de sentimento e de poesia... Com um fato novo de cheviote claro que o remoÃava, de luvas gris-perle, o seu bilhete de pezagem na botoeira, o poeta vinha-se abanando com o programma, e j· de longe sorrindo · sua boa amiga D. Maria. Quando chegou junto d'ella, descoberto, bem penteado n'esse dia, com um lustre d'oleo na grenha, levou-lhe a mâo aos labios, fidalgamente. D. Maria fÃra uma das suas lindas contemporaneas. Tinham danÃado muita ardente mazurka nos salıes de Arroios. Ella tratava-o por _tu_. Elle dizia sempre _boa amiga_, e _querida Maria_. --Deixa vÃr os nomes d'esses cavallos, Alencar... Senta-t'ahi, anda, faze companhia. Elle puchou uma cadeira, rindo do interesse que ella tomava pelas corridas. E elle que a conhecera sempre uma enthusiasta de toiros!... Pois os nomes dos cavallos eram _Jupiter_ e _Escossez_... --Nenhum d'esses nomes me agrada, nâo aposto. E entâo que te parece tudo isto, Alencar?... A nossa Lisboa vae-se sahindo da concha... Alencar, pousando o chapÃo sobre uma cadeira, e passando a mâo pela sua vasta fronte de bardo, confessou que aquillo tinha realmente um certo ar de elegancia, um perfume de cÃrte... Depois, l· em baixo, aquelle maravilhoso Tejo... Sem fallar na importancia do apuramento das raÃas cavallares... --Pois nâo à verdade, meu Carlos? Tu que entendes superiormente d'isso, que Ãs um mestre em todos os _sports_, sabes bem que o apuramento... --Sim, com effeito, o apuramento, muito importante...--disse Carlos, vagamente, erguendo-se a olhar outra vez · tribuna. Eram quasi tres horas, e agora, de certo, _ella_ j· nâo vinha: e a condessa de Gouvarinho nâo apparecia tambem... ComeÃava a invadil-o uma grande lassitude. Respondendo, com um leve movimento de cabeÃa, ao sorriso doce que lhe dava da tribuna a Joaninha Villar, pensava em voltar para o Ramalhete, acabar tranquillamente a tarde dentro do seu robe-de-chambre, com um livro, longe de todo aquelle tÃdio. No entanto, ainda entravam senhoras. A menina S· Videira, filha do rico negociante de sapatos d'ourello, passou pelo braÃo do irmâo, abonecada, com o arsinho petulante e enojado de tudo, fallando alto inglez. Depois foi a ministra da Baviera, a baroneza de Craben, enorme, empavoada, com uma face macissa de matrona romana, a pelle cheia de manchas cÃr de tomate, a estalar dentro d'um vestido de gorgorâo azul com riscas brancas: e atraz o barâo, pequenino, amavel, aos pulinhos, com um grande chapÃo de palha. D. Maria da Cunha erguera-se para lhes fallar: e durante um momento ouviu-se, como um glou-glou grosso de perË, a voz da baroneza achando _que c'Ãtait charmant, c'Ãtait trÃs beau_. O barâo, aos pulinhos, aos risinhos, _trouvait Ãa ravissant_. E o Alencar, diante d'aquelles estrangeiros que o nâo tinham saudado, apurava a sua attitude de grande homem nacional, retorcendo a ponta dos bigodes, alÃando mais a fronte nËa. Quando elles seguiram para a tribuna, e a boa D. Maria se tornou a sentar, o poeta, indignado, declarou que abominava allemâes! O ar de sobranceria com que aquella ministra, com feitio de barrica deixando sahir o cebo por todas as costuras do vestido, o olh·ra, a elle! Ora, a insolente baleia! D. Maria sorria, olhando com sympathia o poeta. E voltando-se de repente para a senhora hespanhola: --Concha, deja-me presentar-te D. Thomaz de Alencar, nuestro gran poeta lyrico... N'esse momento, algum dos rapazes mais amadores, dos que traziam binoculos a tiracollo, apressaram o passo para a corda da pista. Dois cavallos passavam n'um galope sereno, quasi juntos, sob as vergastadas estonteadas de dois jockeys de grande bigode. Uma voz erguendo-se disse que tinha ganhado _Escossez_. Outros affirmavam que fÃra _Jupiter_. E no silencio que se fez, de lassidâo e de desapontamento, ondeou mais viva no ar, lanÃada pelos flautins da banda, a valsa de _madame Angot_. Alguns sujeitos tinham-se conservado de costas para a pista, fumando, olhando a tribuna--onde as senhoras continuavam debruÃadas no parapeito, · espera do Senhor dos Passos. Ao lado de Carlos, um cavalheiro resumiu as impressıes, dizendo que tudo _aquillo era uma intrujice_. E quando Carlos se ergueu para ir procurar o Damaso, Alencar, muito animado com a hespanhola, fallava de Sevilha, de malagueÃas e do coraÃâo d'Espronceda. O desejo de Carlos agora era achar Damazo, saber porque falhara a visita aos Olivaes--e depois ir-se embora para o Ramalhete, esconder aquella melancolia que o enevoava, estranha e pueril, misturada de irritabilidade, fazendo-lhe detestar as vozes que lhe fallavam, os rantatans da musica, atà a belleza calma da tarde... Mas ao dobrar a esquina da tribuna, topou com Craft, que o deteve, o apresentou a um rapaz loiro e forte com quem estava fallando alegremente. Era o famoso Clifford, o grande sportman de Cordova. Em redor sujeitos tinham parado, embasbacados para aquelle inglez legendario em Lisboa, dono de cavallos de corridas, amigo do rei d'Hespanha, homem de todos os _chics_. Elle, muito · vontade, um pouco _poseur_, com um simples veston de flanella azul como no campo, ria alto com o Craft do tempo em que tinham estado no collegio de Rugby. Depois pareceu-lhe reconhecer Carlos, amavelmente. Nâo se tinham encontrado havia quasi um anno, em Madrid, n'um jantar, em casa de Pancho Calderon? E assim era. O aperto de mâo que repetiram foi mais intimo--e Craft quiz que fossem regar aquella flor d'amisade com uma garrafa de mau Champagne. Em roda crescera a pasmaceira. O buffete estava installado debaixo da tribuna, sob o taboado nË, sem sobrado, sem um ornato, sem uma flor. Ao fundo corria uma prateleira de taberna com garrafas e pratos de bolos. E, no balcâo tosco, dois criados, estonteados e sujos, achatavam · pressa as fatias de sandwiches com as mâos humidas da espuma da cerveja. Quando Carlos e os seus amigos entraram, havia junto d'um dos barrotes que especavam os degraus da tribuna, n'um grupo animado, com copos de champagne na mâo, o marquez, o visconde de Darque, o Taveira, um rapaz pallido de barba preta, que tinha debaixo do braÃo enrolada a bandeira vermelha de _Starter_, e o commissario imberbe, com o chapÃo branco cada vez mais atirado para a nuca, a face mais esbrazeada, o collarinho j· molle de suor. Era elle que offerecia o champagne; e apenas viu entrar Clifford, rompeu para elle, de taÃa no ar, fez tremer as vigas, soltando o seu vozeirâo: --¡ saude do amigo Clifford! o primeiro sportman da penÃnsula, e rapaz c· dos nossos!... Hip hip, hurrah! Os copos ergueram-se, n'um clamor d'hurrahs, onde destacou, vibrante e enthusiasta, a voz do _starter_. Clifford agradecia, risonho, tirando lentamente as luvas--em quanto o marquez, puxando Carlos pelo braÃo para o lado, lhe apresentava rapidamente o commissario, seu primo D. Pedro Vargas. --Muito gosto em conhecer... --Qual historias! Eu à que fazia furor! exclamou o commissario. C· a rapaziada do sport deve-se conhecer toda... Porque isto c· à a confraria, e todo o resto à chinfrinada! E immediatamente arrebatou o copo ao ar, berrou com um impeto que lhe trazia mais sangue · face: --¡ saude de Carlos da Maia, o primeiro elegante c· da patria! a melhor mâo de redea... Hip, hip, hurrah... --Hip, hip, hip... Hurrah! E foi ainda a voz do starter que deu o _hurrah_ mais vibrante e mais enthusiasta. Um empregado assomou · porta do buffete, e chamou o sr. commissario. O Vargas atirou uma libra para o balcâo, abalou, gritando j· de fÃra, com o olho acceso: --Isto vae-se animando, rapazes! Caramba! ⦠carregar no liquido! E vocÃ, oh l· de baixo, o patrâo, sà Manuel, mande vir esse gelo... Est· a gente aqui a tomar a bebida quente... Despache um proprio, v· vocÃ, rebente! Irra! No entanto em quanto se desarrolhava o champagne de Craft, Carlos tinha convidado Clifford a jantar n'essa noite no Ramalhete. O outro acceitou, molhando os labios no copo, achando excellente que se continuasse a tradiÃâo de jantarem juntos, sempre que se encontravam. --Ol·! o general por aqui! exclamou Craft. Os outros voltaram-se. Era o Sequeira, com a face como um pimentâo, entalado n'uma sobrecasaca curta que o fazia mais atarracado, de chapeu branco sobre o olho, e grande chicote debaixo do braÃo. Acceitou um copo de Champagne, e teve muito prazer em conhecer o sr. Clifford... --E que me diz vocà a esta semsaboria? exclamou elle logo, voltando-se para Carlos. Em quanto a si estava contente, pulava... Aquella corrida insipida, sem cavallos, sem jockeys, com meia duzia de pessoas a bocejar em roda, dava-lhe a certeza que eram talvez as ultimas, e que o _Jockey-Club_ rebentava... E ainda bem! Via-se a gente livre d'um divertimento que nâo estava nos habitos do paiz. Corridas era para se apostar. Tinha-se apostado? Nâo, entâo historias!... Em Inglaterra e em FranÃa, sim! Ahi eram um jogo como a roletta, ou como o monte... Atà havia banqueiros, que eram os _bookmakers_... Entâo j· viam! E como o marquez, pousando o copo, e querendo calmar o general, fallava do apuramento das raÃas, e da remonta,--o outro ergueu os hombros, com indignaÃâo: --Que me est· vocà a cantar! Quer vocà dizer que se apura a raÃa para a remonta da cavallaria?... Ora v· l· montar o exercito com cavallos de corridas!... Em serviÃo o que se quer nâo à o cavallo que corra mais, à o cavallo que aguente mais... O resto à uma historia... Cavallos de corridas sâo phenomenos! Sâo como o boi com duas cabeÃas... Entâo historias!... Em FranÃa atà lhe dâo Champagne, homem!... Entâo veja l·! E a cada phrase, sacudia os hombros, furiosamente. Depois, d'um trago, esvasiou o seu copo de Champagne, repetiu que tinha muito prazer em conhecer o sr. Clifford, rodou sobre os tacıes, sahiu, bufando, entalando mais debaixo do braÃo o chicote--que tremia na ponta como avido de vergastar alguem. Craft sorria, batia no hombro de Clifford. --Veja vocÃ! c· nÃs, velhos portuguezes, nâo gostamos de novidades, e de _sports_... Somos pelo toiro... --Com razâo, dizia o outro, serio e aprumando-se sobre o collarinho. Ainda ha dias me contava na Granja, o Rei de Hespanha... De repente, fÃra, houve um reboliÃo, e vozes sobresaltadas gritando _ordem_! Uma senhora, que atravessava com um pequenito, fugiu para dentro do buffete, enfiada. Um policia passou, correndo. Era uma desordem! Carlos e os outros, sahindo · pressa, viram ao pà da tribuna real um magote de homens--onde bracejava o Vargas. Do largo da pesagem, os rapazes corriam com curiosidade, j· excitados, apinhando-se, alÃando-se em bicos de pÃs; do recinto das carruagens acudiam outros, saltando as cordas da pista, apesar dos repellıes dos policias:--e agora era uma massa tumultuosa de chapÃos altos, de fatos claros, empurrando-se contra as escadas da tribuna real, onde um ajudante d'el-rei, reluzente de agulhetas e em cabello, olhava tranquillamente. E Carlos, furando, poude emfim avistar no meio do montâo um dos sujeitos que correra no premio dos Productos, o que montava _Jupiter_, ainda de botas, com um paletot alvadio por cima da jaqueta de jockey, furioso, perdido, injuriando o juiz das corridas, o MendonÃa, que arregalava os olhos, aturdido e sem uma palavra. Os amigos do jockey puxavam-n'o, queriam que elle fizesse um protesto. Mas elle batia o pÃ, tremulo, livido, gritando que nâo se importava nada com protestos! Perdera a corrida por uma pouca vergonha! O protesto alli era um arrocho! Porque o que havia n'aquelle hyppodromo era compadrice e ladroeira! Individuos, mais serios, indignaram-se com esta brutalidade. --FÃra! FÃra! Alguns tomavam o partido do jockey; j· aos lados outras questıes surgiam, desabridas. Um sujeito vestido de cinzento berrava que o MendonÃa decidira pelo Pinheiro, que montava _Escossez_, por ser intimo d'elle; outro cavalheiro, de binoculo a tiracollo, achava aquella insinuaÃâo infame; e os dois, frente a frente, com os punhos fechados, tratavam-se furiosamente de _pulhas_. E, todo este tempo, um homem baixote, de grandes collarinhos de pintinhas, procurava romper, erguia os braÃos, exclamava, n'uma voz supplicante e rouca: --Por quem sâo, meus senhores... Um momento... Eu tenho experiencia... Eu tenho experiencia! De repente o vozeirâo do Vargas dominou tudo, como um urro de toiro. Diante do jockey, sem chapÃo, com a face a estoirar de sangue, gritava-lhe que era indigno de estar alli, entre gente decente! Quando um gentleman duvida do juiz da corrida, faz um protesto! Mas vir dizer que ha ladrıes, era sà d'um canalha e d'um fadista, como elle, que nunca devia ter pertencido ao Jockey-Club!--O outro, agarrado pelos amigos, esticando o pescoÃo magro como para lhe morder, atirou-lhe um nome sujo. Entâo o Vargas, com um encontrâo para os lados, abriu espaÃo, repuxou as mangas, berrou: --Repita l· isso! repita l· isso! E immediatamente aquella massa de gente oscillou, embateu contra o taboado da tribuna real, remoinhou em tumulto, com vozes de _ordem_ e _morra_, chapÃos pelo ar, baques surdos de murros. Por entre o alarido vibravam, furiosamente, os apitos da policia; senhoras, com as saias apanhadas, fugiam atravez da pista, procurando espavoridamente as carruagens;--e um sopro grosseiro de desordem relles passava sobre o hyppodromo, desmanchando a linha postiÃa de civilisaÃâo e a attitude forÃada de decoro... Carlos achou-se ao pà do marquez, que exclamava, pallido: --Isto à incrivel, isto à incrivel!... Carlos, pelo contrario, achava pittoresco. --Qual pittoresco, homem! ⦠uma vergonha, com todos esses estrangeiros! No entanto a massa de gente dispersava, lentamente, obedecendo ao official de guarda, um moÃo pequenino mas decidido, que, em bicos de pÃs, aconselhava para os lados, n'uma voz de orador, ´cavalheirismoª e ´prudencia...ª O jockey de paletot alvadio affastou-se, apoiado ao braÃo d'um amigo, cocheando, com o nariz a pingar sangue: e o commissario desceu para a pista, com um cortejo atraz, triumphante, sem collarinho, arranjando o chapÃo achatado n'uma pasta. A musica tocava a marcha do _Propheta_; em quanto o desgraÃado juiz das corridas, o MendonÃa, encostado · tribuna real, com os braÃos cahidos, aparvalhado, balbuciava n'um resto d'assombro: --Isto sà a mim! Isto sà a mim! O marquez, n'um grupo a que se junt·ra o Clifford, Craft, e Taveira, continuava a vociferar: --Entâo, estâo convencidos? Que lhes tenho eu sempre dito? Isto à um paiz que sà supporta hortas e arraiaes... Corridas, como muitas outras coisas civilisadas l· de fÃra, necessitam primeiro gente educada. No fundo todos nÃs somos fadistas! Do que gostamos à de vinhaÃa, e viola, e bordoada, e viva l· seu compadre! Ahi est· o que Ã! Ao lado d'elle Clifford, que no meio d'aquelle desmancho todo esticava mais correctamente a sua linha de gentleman, mordia um sorriso, assegurando, com um ar de consolaÃâo, que conflictos eguaes succedem em toda a parte... Mas no fundo parecia achar tudo aquillo ignobil. Dizia-se mesmo que elle ia retirar a _Mist_. E alguns davam-lhe razâo. Que diabo! Era aviltante para um bello animal de raÃa correr n'um hyppodromo sem ordem e sem decencia, onde a todo o momento podiam reluzir navalhas. --Ouve c·, tu viste por acaso esse animal do Damaso? perguntou Carlos, chamando para o lado o Taveira. Ha uma hora que ando a farejal-o... --Estava ainda ha pouco do outro lado, no recinto das carruagens, com a Josephina do Salazar... Anda extraordinario, de sobrecasaca branca, e de vÃo no chapÃo! Mas, quando d'ahi a pouco, Carlos quiz atravessar, a pista estava fechada. Ia-se correr o _Grande premio nacional_. Os numeros j· tinham subido ao indicador, um tom de sineta morria no ar. Um cavallo do Darque, o _Rabbino_, com o seu jockey de encarnado e branco, descia, trazido · redea por um groom e acompanhado pelo Darque: alguns sujeitos paravam a examinar-lhe as pernas, com o olho serio, affectando entender. Carlos demorou-se um momento tambem, admirando-o: era d'um bonito castanho escuro, nervoso e ligeiro, mas com o peito estreito. Depois, ao voltar-se, viu de repente a Gouvarinho, que acabava de certo de chegar, e conversava de pà com D. Maria da Cunha. Estava com uma toilette ingleza, justa e simples, toda de cazimira branca, d'um branco de creme, onde as grandes luvas negras · mosqueteira punham um contraste audaz: e o chapÃo preto tambem desapparecia sob as pregas finas d'um vÃo branco, enrolado em volta da cabeÃa, cobrindo-lhe metade do rosto, com um ar oriental que nâo Ãa bem ao seu narizinho curto, ao seu cabello cÃr de braza. Mas em redor os homens olhavam para ella como para um quadro. Ao avistar Carlos, a condessa nâo conteve um sorriso, um brilho de olhos que a illuminou. Instinctivamente deu um passo para elle: e ficaram um instante isolados, fallando baixo, em quanto D. Maria os observava, sorrindo, cheia j· de benevolencia, prompta j· a abenÃoal-os maternalmente. --Estive para nâo vir, dizia a condessa, que parecia nervosa. O Gastâo fez-se tâo desagradavel hoje! E naturalmente tenho d'ir ·manhâ para o Porto. --Para o Porto?... --O pap· quer que eu l· v·, sâo os annos d'elle... Coitado, vae-se fazendo velho, escreveu-me uma carta tâo triste... Ha dois annos que me nâo vÃ... --O conde vae? --Nâo. E a condessa, depois de dar um sorriso ao ministro da Baviera, que a cumprimentava de passagem, aos pulinhos, acrescentou, mergulhando o olhar nos olhos de Carlos: --E quero uma coisa. --O que? --Que venhas tambem. Justamente n'esse instante, Telles da Gama, de programma e lapis na mâo, parou junto d'elles: --Vocà quer entrar n'uma _poule_ monstro, Maia? Quinze bilhetes, dez tostıes cada um... L· em cima ao canto da tribuna est·-se apostando ferozmente... A desordem fez bem, sacudiu os nervos, todo o mundo acordou... Quer v. ex.^a tambem, sr.^a condessa? Sim, a condessa tambem entrava na _poule_. Telles da Gama inscreveu-a, e abalou atarefado. Depois foi Steinbroken que se acercou, todo florÃdo, de chapÃo branco, ferradura de rubis na gravata, mais esticado, mais loiro, mais inglez, n'este dia solemne de _sport_ official. --Ah, comme vous Ãtes belle, comtesse!... Voil· une toilette merveilleuse, n'est ce pas, Maia?... Est ce que nous n'allons pas parier quelque chose? A condessa contrariada, querendo fallar a Carlos, risonha todavia, lamentou-se de ter j· uma fortuna compromettida... Emfim sempre apostava cinco tostıes com a Filandia. Que cavallo tomava elle? --Ah, je ne sais pas, je ne connais pas les chevaux... D'abord, quand on parie... Ella, impaciente, offereceu-lhe _Vladimiro_. E teve de estender a mâo a outro filandez, o secretario de Steinbroken, um moÃo loiro, lento, languido, que se curvara em silencio diante d'ella, deixando escorregar do olho claro e vago o seu monoculo d'ouro. Quasi immediatamente Taveira excitado veiu dizer que Clifford retirara a _Mist_. Vendo-a, assim cercada, Carlos affastou-se. Justamente o olhar de D. Maria, que o nâo deixara, chamava-o agora, mais carinhoso e vivo. Quando elle se chegou, ella puxou-lhe pela manga, fel-o debruÃar, para lhe murmurar ao ouvido, deliciada: --Est· hoje tâo galante! --Quem? D. Maria encolheu os hombros, impaciente. --Ora quem! Quem ha-de ser? O menino sabe perfeitamente. A condessa... Est· de appetite. --Muito galante, com effeito, disse Carlos friamente. De pÃ, junto de D. Maria, tirando de vagar uma cigarrette, elle ruminava, quasi com indignaÃâo, as palavras da condessa. Ir com ella para o Porto!... E via alli outra exigencia audaz, a mesma tendencia impertinente a dispÃr do seu tempo, dos seus passos, da sua vida! Tinha um desejo de voltar junto d'ella, dizer-lhe que _nâo_, seccamente, desabridamente, sem motivos, sem explicaÃıes, como um brutal. Acompanhada em silencio pelo esguio secretario de Steinbroken, ella vinha agora caminhando lentamente para elle: e o olhar alegre com que o envolvia irritou-o mais, sentindo no seu brilho sereno, no sorrir calmo, quanto ella estava certa da sua submissâo. E estava. Apenas o filandez se affastou languidamente--ella, muito tranquilla, alli mesmo junto de D. Maria, fallando em inglez, e apontando para a pista como se commentasse os cavallos do Darque, explicou-lhe um plano que imaginara, encantador. Em logar de partir na terÃa feira para o Porto--ia na segunda · noite, sà com a criada escocessa, sua confidente, n'um compartimento reservado. Carlos tomava o mesmo comboio. Em Santarem, desciam ambos, muito simplesmente, e iam passar a noite ao hotel. No dia seguinte ella seguia para o Porto, elle recolhia a Lisboa... Carlos abria os olhos para ella, assombrado, emmudecido. Nâo esperava aquella extravagancia. Suppozera que ella o queria no Porto, escondido no _Francfort_, para passeios romanticos · Foz, ou visitas furtivas a algum casebre da Aguardente... Mas a idÃa d'uma noite, n'um hotel, em Santarem! Terminou por encolher os hombros, indignado. Como queria ella, n'uma linha de caminho de ferro em que se encontra constantemente gente conhecida, apear-se com elle na estaÃâo de Santarem, dar-lhe o braÃo, maritalmente, e enfiarem para uma estalagem? Ella, porÃm, pens·ra em todos os detalhes. Ninguem a conheceria, disfarÃada n'um grande _water-proof_, e com uma cabelleira postiÃa. --Com uma cabelleira!? --O Gastâo! murmurou ella de repente. Era o conde, por traz d'elle, abraÃando-o ternamente pela cintura. E quiz logo saber a opiniâo do amigo Maia sobre as corridas. Bastante animaÃâo, nâo à verdade? E bonitas _toilettes_, certo ar de luxo... Emfim, nâo envergonhavam. E ahi estava provado o que elle sempre dissera, que todos os requintes da civilisaÃâo se aclimatavam bem em Portugal... --O nosso solo moral, Maia, como o nosso solo physico, à um solo abenÃoado! A condessa voltara para o pà de D. Maria. E Telles da Gama, passando de novo, n'aquella faina ruidosa em que o trazia a formaÃâo da sua _poule_, chamou Carlos para a tribuna, para elle tirar o seu bilhete, e apostar com as senhoras... --Oh Gouvarinho! venha tambem d'ahi, homem! exclamou elle. Que diabo! ⦠necessario animar isto, à atà patriotico. E o conde condescendeu, por patriotismo. --⦠bom, dizia elle, travando do braÃo de Carlos, fomentar os divertimentos elegantes. J· uma vez o disse na camara: o luxo à conservador. Em cima, a um canto, n'um grupo de senhoras, foram com effeito encontrar uma animaÃâo--que quasi fazia escandalo n'aquella tribuna silenciosa e · espera do Senhor dos Passos. A viscondessa de Alvim dobrava atarefadamente os bilhetes da _poule_: uma secretariasinha da Russia, de bonitos olhos garÃos, apostava desesperadamente placas de cinco tostıes, estonteada, j· embrulhada, rabiscando com phrenesi o seu programma. A Pinheiro, a mais magra, com um vestido leve de raminhos Pompadour que lhe fazia covas nas claviculas, dava opiniıes pretenciosas sobre os cavallos, em inglez: emquanto o Taveira, de olhos humidos no meio de todas aquellas saias, fallava de arruinar as senhoras, de viver · custa das senhoras... E todos os homens, acotovelando-se, queriam fazer uma aposta com a Joanninha Villar, que, de costas contra o rebordo da tribuna, gordinha e languida, sorrindo, com a cabeÃa deitada para traz, as pestanas mortas, parecia offerecer a todas aquellas mâos, que se estendiam gulosamente para ella, o seu appetitoso peito de rola. Telles da Gama, no entanto, ia organisando a confusâo alegre. Os bilhetes estavam dobrados, era necessario um chapÃo... Entâo os cavalheiros affectaram um amor desordenado pelos seus chapÃos, nâo os querendo confiar ·s mâos nervosas das senhoras; um rapaz, todo de luto, excedeu-se mesmo, agarrando as abas do seu, com ambas as mâos, aos gritos. A secretariasinha da Russia, impaciente, terminou por offerecer o barrete de marujo do seu pequeno--uma creanÃa obesa, pousada alli para um lado como uma trouxa. Foi a Joanninha Villar que levou em roda os bilhetes, rindo e chocalhando-os preguiÃosamente; emquanto o secretario de Steinbroken, grave, como exercendo uma funcÃâo, recolhia no seu grande chapÃo as placas cahindo uma a uma com um som argentino. E a tiragem foi o lindo divertimento da _poule_. Como estavam sà quatro cavallos inscriptos, e as entradas eram quinze, havia onze bilhetes brancos que aterravam. Todos ambicionavam tirar o numero tres, o de _Rabbino_, o cavallo de Darque, favorito do _Premio Nacional_. Assim cada mâosinha soffrega que se demorava no fundo do barrete, remexendo, tenteando os papeis, causava uma indignaÃâo folgasâ, n'um exagero de risos. --A sr.^a viscondessa procura de mais!... E dobrou os numeros, conhece-os... ⦠necessario probidade, sr.^a viscondessa! --Oh, mon Dieu, j'ai _Minhoto_, cette rosse! --Je vous l'achette, madame! --â sr.^a D. Maria Pinheiro, v. ex.^a leva dous numeros!... --Ah! je suis perdue... Blanc! --E eu! ⦠necessario fazer outra _poule_! Vamos fazer outra _poule_! --Isso! Outra _poule_, outra _poule_! No entanto a enorme baroneza de Craben, n'um degrau mais elevado, que ella occupava sÃ, como um throno, erguera-se, com o seu bilhete na mâo. Tinha tirado _Rabbino_: e affectava superiormente nâo comprehender esta fortuna, perguntava o que era _Rabbino_. Quando o conde de Gouvarinho lhe explicou muito serio a importancia de _Rabbino_, e que _Rabbino_ era quasi uma gloria publica, ella mostrou a dentuÃa, condescendeu em rosnar do fundo do papo que _c'etait charmant_. Todo o mundo a invejava; e a vasta baleia alastrou-se de novo sobre o seu throno, abanando-se, com magestade. E subitamente houve uma surpreza: em quanto elles tiravam os bilhetes, os cavallos tinham partido, passavam juntos diante da tribuna. Todos se ergueram, de binoculos na mâo. O _starter_ ainda estava na pista, com a bandeira vermelha inclinada ao châo: e as ancas de cavallos fugiam na curva, lustrosos · luz, sob as jaquetas enfunadas dos jockeys. Entâo todo o rumor de vozes caiu; e no silencio a bella tarde pareceu alargar-se em redor, mais suave e mais calma. Atravez do ar sem poeira, sem a vibraÃâo dos raios fortes, tudo tomava uma nitidez delicada: defronte da tribuna, na collina, a relva era d'um louro quente; no grupo de carruagens scintillava por vezes o vidro de uma lanterna, o metal de um arreio, ou de pÃ, sobre uma almofada, destacava em escuro alguma figura de chapeo alto; e pela pista verde, os cavallos corriam, mais pequenos, finamente recortados na luz. Ao fundo, a cal das casas cobria-se de uma leve agoada cÃr de rosa: e o distante horisonte resplandecia, com dourados de sol, brilhos de rio vidrado, fundindo-se n'uma nevoa luminosa, onde as collinas, nos seus tons azulados, tinham quasi transparencia, como feitas d'uma substancia preciosa... --⦠_Rabbino_! exclamou por traz de Carlos, um sugeito, de pà n'um degrau. As cÃres encarnadas e brancas do Darque corriam com effeito na frente. Os dous outros cavallos iam juntos; e, o ultimo, n'um galope que adormecia, era _Vladimiro_, outro potro do Darque, baio-claro, quasi louro · luz. Entâo, a secretaria da Russia bateu as palmas, interpellou Carlos, que justamente tirara na poule o numero de _Vladimiro_. A ella coubera _Minhoto_, uma pileca melancolica do Manoel Godinho; e tinham feito sobre os dous cavallos uma aposta complicada de luvas e de amendoas. J· umas poucas de vezes os seus lindos olhos garÃos tinham procurado os de Carlos; e agora tocava-lhe no braÃo com o leque, gracejava, triumphava... --Ah, vous avez perdu, vous avez perdu! Mais c'est un vieux cheval de fiacre, vÃtre _Vladimir_. Como um cavallo de fiacre? _Vladimiro_ era o melhor potro do Darque! Talvez ainda viesse a ser a unica gloria de Portugal, como outr'ora o _Gladiador_ fÃra a unica gloria da FranÃa! Talvez ainda substituisse Camıes... --Ah, vous plaisantez... Nâo, Carlos nâo gracejava. Estava atà prompto a apostar tudo por _Vladimiro_. --Vocà aposta por _Vladimiro_? gritou Telles da Gama, voltando-se vivamente. Carlos, por divertimento, sem mesmo saber por quÃ, declarou que tomava _Vladimiro_. Entâo, em roda, foi uma surpreza; e todo o mundo quiz apostar, aproveitar-se d'aquella phantasia de homem rico, que sustentava um potro verde, de tres quartos de sangue, a que o proprio Darque chamava _pileca_. Elle sorria, aceitava; terminou ate por erguer a voz, proclamar _Vladimiro contra o campo_. E de todos os lados o chamavam, n'uma sofreguidâo de saque. --Mr. de Maia, dix tostons. --Parfaitement, madame. --Oh Maia, vocà quer meia libra? --¡s ordens. --Maia, tambem eu! OuÃa l·... Tambem eu!... Dous mil rÃis. --â sr. Maia, eu vou dez tostıes... --Com o maior prazer, minha senhora... Ao longe os cavallos davam a volta, na subida do terreno. _Rabbino_ já desapparecera,--e _Vladimiro_ n'um galope a que se sentia o canÃasso, corria só na pista. Uma voz elevou-se, dizendo que elle manquejava. Então Carlos, que continuava a tomar _Vladimiro_ contra o campo, sentiu que lhe puxavam de vagar pela manga; voltou-se; era o secretario de Steinbroken, chegando subtilmente a tomar tambem parte no saque á bolsa do Maia, propondo dous soberanos, em seu nome e em nome do seu chefe, como uma aposta collectiva da legação, a aposta do reino da Filandia. --C'est fait, monsieur! exclamou Carlos, rindo. Agora comeÃava a divertir-se. Apenas vira de relance _Vladimiro_, e gostara da cabeÃa ligeira do potro, do seu peito largo e fundo; mas apostava sobre tudo para animar mais aquelle recanto da tribuna, ver brilhar gulosamente os olhos interesseiros das mulheres. Telles da Gama ao lado approvava-o, achava aquillo patriotico e _chic_. --⦠_Minhoto_! gritou de repente Taveira. Na volta, com effeito, fizera-se uma mudanÃa. Subitamente _Rabbino_ perdera terreno, resistindo · subida, com o folego curto. E agora era _Minhoto_, o cavallicoque obscuro de Manuel Godinho, que se arremessava para a frente, vinha devorando a pista, n'um esforÃo continuo, admiravelmente montado por um jockey hespanhol. E logo atraz vinham as cÃres escarlates e brancas de Darque: ao principio ainda pareceu que era _Rabbino_: mas, apanhado de repente n'um raio oblÃquo de sol, o cavallo cobriu-se de tons lustrosos de baio claro, e foi uma surpreza ao reconhecer-se que era _Vladimiro_! A corrida travava-se entre elle e _Minhoto_. Os amigos de Godinho, precipitando-se para a pista, bradavam, de chapÃos no ar: --_Minhoto, Minhoto!_ E, em redor de Carlos, os que tinham apostado pelo campo contra _Vladimiro_ faziam tambem votos por _Minhoto_, em bicos de pÃs, junto do parapeito da tribuna, estendendo o braÃo para elle, animando-o: --Anda _Minhoto_!... Isso, assim!... Aguenta, rapaz!... Bravo!... _Minhoto! Minhoto!_ A russa, toda nervosa, na esperanÃa de ganhar a _poule_, batia as palmas. Atà a enorme Craben se erguera, dominando a tribuna, enchendo-a com os seus gorgorıes azues e brancos:--em quanto que, ao lado d'ella, o conde de Gouvarinho, tambem de pÃ, sorria, contente no seu peito de patriota, vendo n'aquelles jockeys · desfilada, nos chapÃos que se agitavam, brilhar civilisaÃâo... De repente, de baixo, d'ao pà da tribuna, d'entre os rapazes que cercavam o Darque, uma exclamaÃâo partiu. --_Vladimiro! Vladimiro!_ Com um arranque desesperado o potro viera juntar-se a _Minhoto_: e agora chegavam furiosamente, com brilhos vivos de cÃres claras, os focinhos juntos, os olhos esbogalhados, sob uma chuva de vergastadas. Telles da Gama, esquecido da sua aposta, todo pelo Darque, seu intimo, berrava por _Vladimiro_. A russa, de pà n'um degrau, apoiada sobre o hombro de Carlos, pallida, excitada, animava _Minhoto_ com gritinhos, com pancadas de leque. A agitaÃâo d'aquelle canto da tribuna estendera-se em baixo ao recinto--onde se via uma linha de homens, contra a corda da pista, bracejando. Do outro lado, era uma fila de rostos pallidos, fixos n'uma curta anciedade. Algumas senhoras tinham-se posto de pà nas carruagens. E atravez da collina, para ver a chegada, dous cavalleiros, segurando com as mâos os chapÃos baixos, corriam · desfilada. --_Vladimiro! Vladimiro!_ foram de novo os gritos isolados, aqui, alÃm. Os dous cavallos approximavam-se, com um som surdo das patas, trazendo um ar de rajada. --_Minhoto! Minhoto!_ --_Vladimiro! Vladimiro!_ Chegavam... De repente o jockey inglez de _Vladimiro_, todo em fogo, levantando o potro que lhe parecia fugir d'entre as pernas, esticado e lustroso, fez silvar triumphantemente o chicote, e d'um arremesso directo lanÃou-o alÃm da meta, duas cabeÃas adiante de _Minhoto_, todo coberto d'espuma. Entâo em volta de Carlos foi uma desconsolaÃâo, um longo murmurio de lassidâo. Todos perdiam; elle apanhava a _poule_, ganhava as apostas, empolgava tudo. Que sorte! Que chance! Um addido italiano, thesoureiro da _poule_, empallideceu ao separar-se do lenÃo cheio de prata: e de todos os lados mâosinhas calÃadas de gris-perle, ou de castanho, atiravam-lhe com um ar amuado as apostas perdidas, chuva de placas que elle recolhia, rindo, no chapÃo. --Ah, monsieur, exclamou a vasta ministra da Baviera, furiosa, mefiez-vous... Vous connaissez le proverbe: heureux au jeu... --Helas! madame! disse Carlos, resignado, estendendo-lhe o chapÃo. E outra vez um dedo subtil tocou-lhe no braÃo. Era o secretario de Steinbroken, lento e silencioso, que lhe trazia o seu dinheiro e o dinheiro do seu chefe, a aposta do reino da Filandia. --Quanto ganha vocÃ? exclamou Telles da Gama, assombrado. Carlos nâo sabia. No fundo do chapÃo j· reluzia ouro. Telles contou, com o olho brilhante. --Vocà ganha doze libras! disse elle maravilhado, e olhando Carlos com respeito. Doze libras! Esta somma espalhou-se em redor, n'um rumor de espanto. Doze libras! Em baixo os amigos de Darque, agitando os chapÃos, davam ainda _hurrahs_. Mas uma indifferenÃa, um tedio lento, ia pesando outra vez, desconsoladoramente. Os rapazes vinham-se deixar cahir nas cadeiras, bocejando, com um ar exhausto. A musica, desanimada tambem, tocava cousas plangentes da _Norma_. Carlos, no entanto, n'um degrau da tribuna, com a idÃa de descobrir o Damaso, sondava de binoculo o recinto das carruagens. A gente, agora, ia dispersando pela collina. As senhoras tinham retomado a immobilidade melancolica, no fundo das caleches, de mâos no regaÃo. Aqui e alÃm um dog-cart, mal arranjado, dava um trote curto pela relva. N'uma vittoria estavam as duas hespanholas do Eusebiosinho, a Concha e a Carmen, de sombrinhas escarlates. E sujeitos, de mâos atr·s das costas, pasmavam para um char-â¡-bancs a quatro attrelado · Daumont onde, entre uma familia triste, uma ama de lenÃo de lavradeira dava de mamar a uma creanÃa cheia de rendas. Dous garotos esganiÃados passeavam bilhas d'agua fresca. Carlos descia da tribuna, sem ter descoberto o Damaso--quando deu justamente de frente com elle, dirigindo-se para a escada, affogueado, flamante, na sua famosa sobrecasaca branca. --Onde diabo tens tu estado, creatura? O Damaso agarrou-o pelo braÃo, alÃou-se em bicos de pÃs, para lhe contar ao ouvido que tinha estado do outro lado com uma gaja divina, a Josephina do Zalazar... Chic a valer! lindamente vestida! parecia-lhe que tinha mulher! --Ah, Sardanapalo!... --Faz-se pela vida... Volta c· acima · tribuna, anda. Eu ainda hoje nâo pude cavaquear com o _high-life_!... Mas estou furioso, sabes? Implicaram com o meu veo azul. Isto à um paiz de bestas! Logo troÃa, e _olhe nâo creste a pelle_, e _onde mora, à catitinha?_ e chalaÃa... Uma canalha! Tive de tirar o veo ... Mas j· resolvi. Para as outras corridas venho nË. Palavra, venho nË! Isto à a vergonha da civilisaÃâo, esta terra! Nâo vens d'ahi? Entâo atà j·. Carlos deteve-o. --Escuta l· homem, tenho que te dizer... Entâo, essa visita aos Olivaes?... Nunca mais appareceste... Tinhamos combinado que fosses convidar o Castro Gomes, que viesses dar a resposta... Nâo vens, nâo mandas... O Craft · espera... Emfim um procedimento de selvagem. Damaso atirou os braÃos ao ar. Entâo Carlos nâo sabia? Havia grandes novidades! Elle nâo voltara ao Ramalhete, como estava combinado, porque o Carlos Gomes nâo podia ir aos Olivaes. Ia partir para o Brazil. J· partir· mesmo, na quarta feira. A coisa mais extraordinaria... Elle chega l·, para fazer o convite, e s. ex.^a declara-lhe que sente muito, mas que parte no dia seguinte para o Rio... E j· de mala feita, j· alugada uma casa para a mulher ficar aqui · espera tres mezes, j· a passagem no bolso. Tudo de repente, feito de sabbado para segunda feira... Telhudo, aquelle Castro Gomes. --E l· partiu, exclamou elle, voltando-se a cumprimentar a viscondessa d'Alvim e Joanninha Villar que desciam das tribunas. L· partiu, e ella j· est· installada. Atà j· antes de hontem a fui visitar, mas nâo estava em casa... Sabes do que tenho medo? ⦠que ella, n'estes primeiros tempos, por causa da visinhanÃa, como est· sÃ, nâo queira que eu l· v· muito... Que te parece? --Talvez... E onde mora ella? Em quatro palavras, Damaso explicou a installaÃâo de madame. Era muito engraÃado, morava no predio do Cruges! A mamâ Cruges, havia j· annos, alugava aquelle primeiro andar mobilado: o inverno passado estivera l· o Bertonni, o tenor, com a familia. Casa bem arranjada, o Castro Gomes tinha tido dedo... --E para mim, muito commodo, ali ao pà do Gremio... Entâo nâo voltas c· acima, a cavaquear com o femeaÃo? Atà logo... Est· hoje chic a valer a Gouvarinho! E est· a pedir homem! _Good-bye_. Defronte de Carlos a condessa de Gouvarinho, no grupo de D. Maria a que se viera juntar a Alvim e Joanninha Villar, nâo cessava de o chamar com o olhar inquieto, torturando o seu grande leque negro. Mas elle nâo obedeceu logo, parado ao pà dos degraus da tribuna, accendendo vagamente uma cigarrette, perturbado por todas aquellas palavras do Damaso que lhe deixavam n'alma um sulco luminoso. Agora que a sabia sà em Lisboa, vivendo na mesma casa do Cruges, parecia-lhe que j· a conhecia, sentia-se muito perto d'ella--podendo assim a todo o momento entrar os hombraes da sua porta, pisar os degraus que ella pisava. Na sua imaginaÃâo transluziam j· possibilidades d'um encontro, alguma palavra trocada, cousas pequeninas, subtis como fios, mas por onde os seus destinos se comeÃariam a prender... E immediatamente veio-lhe a tentaÃâo pueril de ir l·, logo n'essa mesma tarde, n'esse instante, gosar como amigo do Cruges o direito de subir a escada d'ella, parar diante da porta d'ella--e surprehender uma voz, um som de piano, um rumor qualquer da sua vida. O olhar da condessa nâo o deixava. Elle approximou-se, emfim, contrariado: ella ergueu-se logo, deixou o seu grupo, e dando alguns passos com elle pela relva, recomeÃou a fallar na ida a Santarem. Carlos, entâo, muito seccamente, declarou toda essa invenÃâo insensata. --Porque?... Ora porque! Por tudo. Pelo perigo, pelos desconfortos, pelo ridiculo... Emfim, a ella como mulher ficava-lhe bem ter phantasias pittorescas de romance; mas a elle competia-lhe ter bom senso. Ella mordia o beiÃo, com todo o sangue na face. E nâo via alli bom senso. Via sà frieza. Quando ella arriscava tanto, elle podia bem, por uma noite, affrontar os desconfortos da estalagem... --Mas nâo à isso!... Entâo que era? Tinha medo? Nâo havia mais perigo do que nas idas a casa da titi. Ninguem a podia conhecer, com outra cÃr de cabello, toda a sorte de vÃos, disfarÃada n'um grande water-proof. Chegavam de noite, entravam para o quarto, d'onde nâo sahiam mais, servidos apenas pela escosseza. No dia seguinte, no comboio da noite, ella seguia para o Porto, todo acabava... E n'aquella insistencia ella era o homem, o seductor, com a sua vehemencia de paixâo activa, tentando-o, soprando-lhe o desejo; emquanto elle parecia a mulher, hesitante e assustada. E Carlos sentia isto. A sua resistencia a uma noite de amor, prolongando-se assim, ameaÃava ser grotesca: ao mesmo tempo o calor de voluptuosidade que emanava d'aquelle seio, arfando junto d'elle e por elle, ia-o amollecendo lentamente. Terminou por a olhar de certo modo; e, como se o desejo se lhe accendesse emfim de repente · curta chamma que faiscava nas pupillas d'ella, negras, humidas, avidas, promettendo mil cousas, disse, um pouco pallido: --Pois bem, perfeitamente... ¡manhâ · noite, na estaÃâo. N'esse momento, em redor, romperam exclamaÃıes de troÃa: era um cavallo solitario que chegava, n'um galope pacato, passara a meta sem se apressar, como se descesse uma avenida do Campo Grande n'uma tarde de domingo. E em redor perguntava-se que corrida era aquella d'um cavallo sÃ--quando ao longe, como sahindo da claridade loura do sol que descia sobre o rio, appareceu uma pobre pileca branca, empurrando-se, arquejando, n'um esforÃo doloroso, sob as chicotadas atarantadas d'um jockey de roxo e preto. Quando ella chegou, emfim, j· o outro _gentleman-rider_ voltara da meta, a passo, pachorrentamente,--e estava conversando com os amigos, encostado · corda da pista. Todo o mundo ria. E a corrida do Premio d'El-rei terminou assim, grotescamente. Ainda havia o Premio de ConsolaÃâo--mas agora desapparecera todo o interesse ficticio pelos cavallos. Perante a calma e radiante belleza da tarde, algumas senhoras, imitando a Alvim, tinham descido para a pesagem, canÃadas da immobilidade da tribuna. Arranjaram-se mais cadeiras: aqui e alÃm, sobre a relva pisada, formavam-se grupos alegrados por algum vestido claro ou por uma pluma viva de chapÃo: e palrava-se, como n'uma sala de inverno, fumando-se familiarmente. Em redor de D. Maria e da Alvim projectava-se um grande pic-nic a Queluz. Alencar e o Gouvarinho discutiam a reforma de instrucÃâo. A horrivel Craben, entre outros diplomatas e moÃos de binoculo a tiracolo, dava do fundo grosso do papo, opiniıes sobre Daudet, que elle achava _trÃs agreable_. E, quando Carlos emfim abalou, o recinto, esquecidas as corridas, tomava um tom de _soirÃe_, no ar claro e fresco da collina, com o murmurio de vozes, um mover de leques, e ao fundo a musica tocando uma valsa de Strauss. Carlos, depois de procurar muito Craft, encontrou-o no buffete com o Darque, com outros, bebendo mais champagne. --Eu tenho de ir ainda a Lisboa, disse-lhe elle, e vou no phaeton. Abandono torpemente. Vocà v· para o Ramalhete como poder... --Eu o levo! gritou logo o Vargas, que tinha j· a gravata toda desmanchada. Levo-o no dog-cart. Eu me encarrego d'elle... O Craft fica por minha conta... ⦠necessario recibo? ¡ saude do Craft, inglez c· dos meus... Hurrah! --Hurrah! Hip, hip, hurrah! D'ahi a pouco, a trote largo no phaeton, Carlos descia o Chiado, dava a volta para a rua de S. Francisco. Ia n'uma perturbaÃâo deliciosa e singular, com aquella certeza de que ella estava sà na casa do Cruges: o ultimo olhar que ella lhe dÃra parecia ir adiante d'elle, chamando-o: e um despertar tumultuoso de esperanÃas sem nome atirava-lhe a alma para o azul. Quando parou diante do portâo--alguem, por dentro das janellas d'ella, Ãa correndo lentamente os stores. Na rua silenciosa cahia j· uma sombra de crepusculo. Atirou as redeas ao cocheiro, atravessou o pateo. Nunca viera visitar o Cruges, nunca subira esta escada; e pareceu-lhe horrorosa, com os seus frios degraus de pedra, sem tapete, as paredes nuas e enxovalhadas alvejando tristemente no comeÃo de escuridâo. No patamar do primeiro andar parou. Era alli que ella vivia. E ficou olhando, com uma devoÃâo ingenua, para as tres portas pintadas d'azul: a do centro estava inutilisada por um banco comprido de palhinha, e na do lado direito pendia, com uma enorme bola, o cordâo da campainha. De dentro nâo vinha um rumor:--e este pesado silencio, juntando-se ao movimento de stores que elle vira fechar-se, parecia cercar as pessoas que alli viviam de solidâo e de impenetrabilidade. Uma desconsolaÃâo passou-lhe na alma. Se ella agora, sÃ, sem o marido, comeÃasse uma vida reclusa e solitaria? Se elle nâo tornasse mais a encontrar os seus olhos? Foi subindo de vagar atà ao andar do Cruges. E mal sabia o que havia de dizer ao maestro para explicar aquella visita extranha, deslocada... Foi um allivio quando a criadita lhe veiu dizer que o menino Victorino tinha sahido. Em baixo, Carlos tomou as redeas, e foi levando lentamente o phaeton atà ao largo da Bibliotheca. Depois retrocedeu, a passo. Agora, por traz do store branco, havia uma vaga claridade de luz. Elle olhou-a como se olha uma estrella. Voltou ao Ramalhete. Craft, coberto de pÃ, estava-se justamente apeando de uma calecha de praÃa. Um momento ficaram alli · porta, em quanto Craft, procurando troco para o cocheiro, contava o final das corridas. No _Premio de ConsolaÃâo_, um dos cavalleiros tinha cahido, quasi ao pà da meta, sem se magoar: e, por ultimo, j· · partida, o Vargas, que ia na sua terceira garrafa de champagne, esmurrara um criado do buffete, com ferocidade. --Assim, disse Craft completando o seu troco, estas corridas foram boas pelo velho principe Shakespereano de que _tudo à bom quanto acaba bem_. --Um murro, disse Carlos rindo, à com effeito um bello ponto final. No peristillo, o velho guarda-portâo esperava, descoberto, com uma carta na mâo para Carlos. Um criado tinha-a trazido, instantes antes de s. ex.^a chegar. Era uma letra ingleza de mulher, n'um envelope largo, lacrado com um sinete d'armas. Carlos alli mesmo abriu-a: e, logo · primeira linha, teve um movimento tâo vivo, de tâo bella surpreza, illuminando-se-lhe tanto o rosto, que Craft do lado perguntou sorrindo: --Aventura? HeranÃa?... Carlos, vermelho, metteu a carta no bolso, e murmurou: --Um bilhete apenas, um doente... Era apenas um doente, era apenas um bilhete, mas comeÃava assim:--´Madame Castro Gomes apresenta os seus respeitos ao sr. Carlos da Maia, e roga-lhe o obsequio...ª--depois, em duas breves palavras, pedia-lhe para ir ver na manhâ seguinte, o mais cedo possivel, uma pessoa de familia, que se achava incommodada. --Bem, eu vou-me vestir, disse Craft... Jantar ·s sete e meia, hein? --Sim, o jantar...--respondeu Carlos, sem saber o quÃ, banhado todo n'um sorriso, como em extase. Correu aos seus aposentos: e junto da janella, sem mesmo tirar o chapÃo, leu uma vez mais o bilhete, outra vez ainda, contemplando enlevadamente a forma da letra, procurando voluptuosamente o perfume do papel. Era datada d'esse mesmo dia · tarde. Assim, quando elle passara defronte da sua porta, j· ella a escrevera, j· o seu pensamento se demorara n'elle--quando mais nâo fosse senâo ao traÃar as lettras simples do seu nome. Nâo era ella que estava doente. Se fosse Rosa, ella nâo diria tâo friamente ´uma pessoa de familia.ª Era talvez o esplendido preto de carapinha grisalha. Talvez miss Sarah, abenÃoada fosse ella para sempre, que queria um medico que entendesse inglez... Emfim havia l· uma pessoa n'uma cama, junto da qual ella mesma o conduziria, atravez dos corredores interiores d'aquella casa--que havia apenas instantes sentira tâo fechada, e como impenetravel para sempre!... E depois este adorado bilhete, este delicioso pedido para ir a sua casa, agora que ella o conhecia, que vira Rosa atirar-lhe um grande adeus--tomava uma significaÃâo profunda, perturbadora... Se ella nâo quizesse comprehender, nem acceitar o distante amor que os seus olhos lhe tinham offerecido claramente, o mais luminosamente que tinham podido, n'esses fugitivos instantes que se tinham cruzado com os d'ella--entâo poderia ter mandado chamar outro medico, um clinico qualquer, um estranho. Mas nâo: o seu olhar respondera ao d'elle, e ella abria-lhe a sua porta...--E o que sentia a esta idÃa era uma gratidâo ineffavel, um impulso tumultuoso de todo o seu ser a cahir-lhe aos pÃs, ficar-lhe beijando a orla do vestido, devotamente, eternamente, sem querer mais nada, sem pedir mais nada... Quando Craft d'alli a pouco desceu, de casaca, fresco, alvo, engommado, correcto--achou Carlos, ainda com toda a poeira da estrada, de chapÃo na cabeÃa passeando o quarto, n'esta agitaÃâo radiante. --Vocà est· a faiscar, homem! disse Craft, parando deante d'elle, com as mâos nos bolsos, e contemplando-o um instante do alto do seu resplandecente collarinho. Vocà flameja!... Vocà parece que tem uma aurÃola na nuca!... Vocà succedeu-lhe o quer que seja de muito bom! Carlos espreguiÃou-se, sorrindo. Depois olhou para Craft um momento, em silencio, encolheu os hombros, e murmurou: --A gente, Craft, nunca sabe se o que lhe succede Ã, em definitivo, bom ou mau. --Ordinariamente à mau, disse o outro friamente, aproximando-se do espelho a retocar com mais correcÃâo o nà da gravata branca. FIM DO PRIMEIRO VOLUME E«A DE QUEIROZ OS MAIAS EPISODIOS DA VIDA ROMANTICA VOLUME II PORTO Livraria Internacional de Ernesto Chardron CASA EDITORA LUGAN & GENELIOUX, Successores 1888 Todos os direitos reservados OS MAIAS VOLUME I OS MAIAS I Na manhâ seguinte, Carlos, que se erguera cedo, veio a pà do Ramalhete atà · rua de S. Francisco, a casa de Madame Gomes. No patamar, onde morria em penumbra a luz distante da claraboia, uma velha de lenÃo na cabeÃa, encolhida n'um chalesinho preto, esperava, sentada melancolicamente ao canto do banco de palhinha. A porta aberta mostrava uma parede feia de corredor, forrada de papel amarello. Dentro um relogio ronceiro estava batendo dez horas. --A senhora j· tocou? perguntou Carlos, erguendo o chapÃo. A velha murmurou, d'entre a sombra do lenÃo que lhe cahia para os olhos, n'um tom canÃado e doente: --J·, sim, meu senhor. J· fizeram o favor de me fallar. O criado, o snr. Domingos, nâo tarda... Carlos esperou, passeando lentamente no patamar. Do segundo andar vinha um barulho alegre de crianÃas brincando; por cima, o moÃo do Cruges esfregava a escada com estrondo, assobiando desesperadamente o fado. Um longo minuto arrastou-se, depois outro, infindavel. A velha, d'entre a negrura do lenÃo, deu um suspirosinho abatido. L· ao fundo um canario rompera a cantar; e entâo Carlos, impaciente, puxou o cordâo da campainha. Um criado de suissas ruivas, correctamente abotoado n'um jaquetâo de flanella, appareceu correndo, com uma travessa na mâo, abafada n'um guardanapo; e ao vÃr Carlos ficou tâo atarantado, bambaleando · porta, que um pouco de molho de assado escorregou, cahiu sobre o soalho. --Oh snr. D. Carlos Eduardo, faz favor d'entrar!... Ora esta! Tem a bondade d'esperar um instantinho, que eu abro j· a sala... Tome l·, snr.^a Augusta, tome l·, olhe nâo entorne mais! A senhora diz que l· manda logo o vinho do Porto... Desculpe v. exc.^a, snr. D. Carlos... Por aqui, meu senhor... Correu um reposteiro de reps vermelho, introduziu Carlos n'uma sala alta, espaÃosa, com um papel de ramagens azues, e duas varandas para a rua de S. Francisco; e erguendo · pressa os dois transparentes de paninho branco, perguntava a Carlos se s. exc.^a nâo se lembrava j· do Domingos. Quando elle se voltou, risonho, descendo precipitadamente os canhıes das mangas, Carlos reconheceu-o pelas suissas ruivas. Era com effeito o Domingos, escudeiro excellente, que no comeÃo do inverno estivera no Ramalhete, e se despedira por birras patrioticas, birras ciumentas, com o cozinheiro francez. --Nâo o tinha visto bem, Domingos, disse Carlos. O patamar à um pouco escuro... Lembro-me perfeitamente... E entâo vossà agora aqui, hein? E est· contente? --Eu parece-me que estou muito contente, meu senhor... O snr. Cruges tambem mora c· por cima... --Bem sei, bem sei... --Tenha v. exc.^a a paciencia de esperar um instantinho que eu vou dar parte · snr.^a D. Maria Eduarda... Maria Eduarda! Era a primeira vez que Carlos ouvia o nome d'ella; e pareceu-lhe perfeito, condizendo bem com a sua belleza serena. Maria Eduarda, Carlos Eduardo... Havia uma similitude nos seus nomes. Quem sabe se nâo presagiava a concordancia dos seus destinos! Domingos, no entanto, j· · porta da sala, com a mâo no reposteiro, parou ainda, para dizer n'um tom de confidencia e sorrindo: --⦠a governante ingleza que est· doente... --Ah! à a governante? --Sim, meu senhor, tem uma febresita desde hontem, peso no peito... --Ah!... O Domingos deu outro movimento lento ao reposteiro, sem se apressar, contemplando Carlos com admiraÃâo: --E o avÃsinho de v. exc.^a passa bem? --Obrigado, Domingos, passa bem. --Aquillo à que à um grande senhor!... Nâo ha, nâo ha outro assim em Lisboa! --Obrigado, Domingos, obrigado... Quando elle finalmente sahiu, Carlos, tirando as luvas, deu uma volta curiosa e lenta pela sala. O soalho fÃra esteirado de novo. Ao pà da porta havia um piano antigo de cauda, coberto com um pano alvadio; sobre uma estante ao lado, cheia de partituras, de musicas, de jornaes illustrados, pousava um vaso do Japâo onde murchavam tres bellos lirios brancos; todas as cadeiras eram forradas de reps vermelho; e aos pÃs do sof· estirava-se uma velha pelle de tigre. Como no Hotel Central, esta intallaÃâo summaria de casa alugada recebera retoques de conforto e de gosto: cortinas novas de cretone, combinando com o papel azul da parede, tinham substituido as classicas bambinellas de cassa: um pequeno contador arabe, que Carlos se lembrava de ter visto havia dias no tio Abrahâo, viera encher um lado mais desguarnecido da parede: o tapete de pellucia d'uma mesa oval, collocada ao centro, desapparecia sob lindas encadernaÃıes de livros, albuns, duas taÃas japonezas de bronze, um cesto para flÃres de porcelana de Dresde, objectos delicados d'arte que nâo pertenciam decerto · mâi Cruges. E parecia errar alli, acariciando a ordem das coisas e marcando-as com um encanto particular, aquelle indefinido perfume que Carlos j· sentira nos quartos do Hotel Central, e em que dominava o jasmim. Mas o que attrahiu Carlos foi um bonito biombo de linho crË, com ramalhetes bordados, desdobrado ao pà da janella, fazendo um recanto mais resguardado e mais intimo. Havia l· uma cadeirinha baixa de setim escarlate, uma grande almofada para os pÃs, uma mesa de costura com todo um trabalho de mulher interrompido, numeros de jornaes de modas, um bordado enrolado, mÃlhos de lâ de cÃres transbordando de um aÃafate. E, confortavelmente enroscada no macio da cadeira, achava-se ahi, n'esse momento, a famosa cadellinha escosseza, que tantas vezes pass·ra nos sonhos de Carlos, trotando ligeiramente atraz de uma radiante figura pelo Aterro fÃra, ou aninhada e adormecida n'um doce regaÃo... --Bonjour, Mademoiselle, disse-lhe elle, baixinho, querendo captar-lhe as sympathias. A cadellinha erguera-se logo bruscamente na cadeira, d'orelhas fitas, dardejando para aquelle estranho, por entre as repas esguedelhadas, dois bellos olhos de azeviche, desconfiados, d'uma penetraÃâo quasi humana. Um instante Carlos receou que ella rompesse a ladrar. Mas a cadellinha de repente namor·ra-se d'elle, deitada j· na cadeira, de patas ao ar, descomposta, abandonando o ventresinho ·s suas caricias. Carlos ia coÃal-a e amimal-a, quando um passo leve pizou a esteira. Voltou-se, viu Maria Eduarda diante de si. Foi como uma inesperada appariÃâo--e vergou profundamente os hombros, menos a saudal-a, que a esconder a tumultuosa onda de sangue que sentia abrazar-lhe o rosto. Ella, com um vestido simples e justo de sarja preta, um collarinho direito de homem, um botâo de rosa e duas folhas verdes no peito, alta e branca, sentou-se logo junto da mesa oval, acabando de desdobrar um pequeno lenÃo de renda. Obedecendo ao seu gesto risonho, Carlos pousou-se embaraÃadamente · borda do sof· de reps. E depois d'um instante de silencio, que lhe pareceu profundo, quasi solemne, a voz de Maria Eduarda ergueu-se, uma voz rica e lenta, d'um tom d'ouro que acariciava. AtravÃs do seu enleio, Carlos percebia vagamente que ella lhe agradecia os cuidados que elle tivera com Rosa: e, de cada vez que o seu olhar se demorava n'ella um instante mais, descobria logo um encanto novo e outra fÃrma da sua perfeiÃâo. Os cabellos nâo eram louros, como julg·ra de longe · claridade do sol, mas de dois tons, castanho-claro e castanho-escuro, espessos e ondeando ligeiramente sobre a testa. Na grande luz escura dos seus olhos havia ao mesmo tempo alguma coisa de muito grave e de muito dÃce. Por um geito familiar cruzava ·s vezes, ao fallar, as mâos sobre os joelhos. E atravÃs da manga justa de sarja, terminando n'um punho branco, elle sentia a belleza, a brancura, o macio, quasi o calor dos seus braÃos. Ella cal·ra-se. Carlos, ao levantar a voz, sentiu outra vez o sangue abrazar-lhe o rosto. E, apesar de saber j· pelo Domingos que a doente era a governante, sà achou, na sua perturbaÃâo, esta pergunta timida: --Nâo à sua filha que est· doente, minha senhora? --Oh nâo! graÃas a Deus! E Maria Eduarda contou-lhe, justamente como o Domingos, que a governante ingleza havia dois dias se achava incommodada, com difficuldade de respirar, tosse, uma ponta de febre... --Imagin·mos ao principio que era uma constipaÃâo passageira; mas hontem · tarde estava peor, e estou agora impaciente que a veja... Ergueu-se, foi puxar um enorme cordâo de campainha que pendia ao lado do piano. O seu cabello por traz, repuxado para o alto da cabeÃa, deixava uma pennugem d'ouro frisar-se delicadamente sobre a brancura lactea do pescoÃo. Entre aquelles moveis de reps, sob o tecto banal d'estuque enxovalhado, toda a sua pessoa parecia a Carlos mais radiante, d'uma belleza mais nobre, e quasi inaccessivel; e pensava que nunca alli ousaria olhal-a tâo francamente, com uma tâo clara adoraÃâo, como quando a encontrava na rua. --Que linda cadellinha v. exc.^a tem, minha senhora! disse elle, quando Maria Eduarda se tornou a sentar, e pondo j· n'estas palavras simples, ditas a sorrir, um accento de ternura. Ella sorriu tambem com um lindo sorriso, que lhe fazia uma covinha no queixo, dava uma doÃura mais mimosa ·s suas feiÃıes sÃrias. E alegremente, batendo as palmas, chamando para dentro do biombo: --_Niniche!_ estâo-te a fazer elogios, vem agradecer! _Niniche_ appareceu a bocejar. Carlos achava lindo este nome de _Niniche_. E era curioso, tinha tido tambem uma galguinha italiana que se chamava _Niniche_... N'esse instante a criada entrou--a rapariga magra e sardenta, d'olhar petulante, que Carlos vira j· no Hotel Central. --Melanie vai-lhe ensinar o quarto de miss Sarah, disse Maria Eduarda. Eu nâo o acompanho, porque ella à tâo timida, tem tanto escrupulo em incommodar, que diante de mim à capaz de negar tudo, dizer que nâo tem nada... --Perfeitamente, perfeitamente, murmurava Carlos, sorrindo, n'um encanto de tudo. E pareceu-lhe entâo que no olhar d'ella alguma coisa brilh·ra, fugira para elle, de mais vivo, de mais dÃce. Com o seu chapÃo na mâo, pisando familiarmente aquelle corredor intimo, surprehendendo detalhes de vida domestica, Carlos sentia como a alegria d'uma posse. Por uma porta meio aberta pÃde entrevÃr uma banheira, e ao lado dependurados grandes roupıes turcos de banho. Adiante, sobre uma mesa, estavam alinhadas, e como desencaixotadas recentemente, garrafas d'aguas mineraes de Saint-Galmier e de Vals. Elle deduzia logo d'estas coisas tâo simples, tâo banaes, evidencias de vida delicada. Melanie correu um reposteiro de linho crË, fÃl-o entrar n'um quarto claro e fresco: e ahi foi encontrar a pobre miss Sarah n'um leitosinho de ferro, sentada, com um laÃo de sÃda azul ao pescoÃo, e os bandÃs tâo lisos, tâo acamados pela escova, como se fosse sahir n'um domingo para a capella presbyteriana. Na mesinha de cabeceira os seus jornaes inglezes estavam escrupulosamente dobrados, junto d'um copo com duas bellas rosas; e tudo no quarto resplandecia de severo arranjo, desde os retratos da familia real d'Inglaterra, expostos sobre a toalha de renda que cobria a commoda, atà ·s suas botinas bem engraxadas, classificadas, perfiladas n'uma prateleira de pinho. Apenas Carlos se sentou, ella immediatamente, com duas rosetas de vergonha na face, entre frouxos de tosse, declarou que nâo tinha nada. Era a senhora, tâo boa, tâo cautelosa, que a for÷ra a metter-se na cama... E para ella era um desgosto vÃr-se alli ociosa, inutil, agora que Madame estava tâo sÃ, n'uma casa sem jardim. Onde havia a menina de brincar? Quem havia de sahir com ella? Ah! Era uma prisâo para Madame!... Carlos consolava-a, tomando-lhe o pulso. Depois, quando elle se ergueu para a auscultar, a pobre miss cobriu-se toda d'um rubor afflicto, apertando mais a roupa contra o peito, querendo saber se era _absolutamente_ necessario... Sim, decerto, era necessario... Achou-lhe o pulmâo direito um pouco tomado; e, em quanto a agasalhava, fez-lhe algumas perguntas sobre a sua familia. Ella contou que era de York, filha de um _clergyman_, e tinha quatorze irmâos: os rapazes estavam na Nova Zelandia, e todos eram d'uma robustez de athletas. Ella sahira a mais fraca; tanto que o pai, vendo que ella aos dezesete annos pesava sà oito arrobas, ensinou-lhe logo latim, destinando-a para governante. Em todo o caso, dizia Carlos, nunca houvera na sua familia doenÃas de peito? Ella sorriu. Oh! nunca! A mamâ ainda vivia. O pap·, j· muito velho, morrera do couce de uma egua. Carlos, no entanto, j· de pÃ, com o chapÃo na mâo, continuava a observal-a, reflectindo. Entâo, de repente, sem motivo, ella enterneceu-se, os seus olhos pequeninos ennevoaram-se de agua. E quando ouviu que eram precisos tantos agasalhos, que teria de estar alli no quarto ainda quinze dias, perturbou-se mais, duas lagrimasinhas timidas quasi lhe fugiram das pestanas. Carlos terminou por lhe afagar paternalmente a mâo. --_Oh! Thank you sir!_ murmurou ella, commovida de todo. Na sala, Carlos veio encontrar Maria Eduarda sentada junto da mesa, arranjando ramos, com uma grande cesta de flÃres pousada ao lado d'uma cadeira, e o regaÃo cheio de cravos. Uma bella restea de sol, estendida na esteira, vinha morrer-lhe aos pÃs; e _Niniche_, deitada alli, reluzia como se fosse feita de fios de prata. Na rua, sob as janellas, um realejo ia tocando, na alegria da linda manhâ de sol, a walsa da _Madame Angot_. Pelo andar de cima tinham recomeÃado as correrias de crianÃas brincando. --Entâo? exclamou ella, voltando-se logo, com um mÃlho de cravos na mâo. Carlos tranquillisou-a. A pobre miss Sarah tinha uma bronchite ligeira, com pouca febre. Em todo o caso necessitava resguardo, toda a cautela... --Certamente! E ha de tomar algum remedio, nâo à verdade? Atirou logo o resto dos cravos do regaÃo para o cesto, foi abrir uma secretariasinha de pau preto collocada entre as janellas. Ella mesmo arranjou o papel para elle receitar, metteu um bico novo na penna. E estes cuidados perturbavam Carlos como caricias. --Oh minha senhora... murmurava elle, um lapis basta... Quando se sentou, os seus olhos demoraram-se com uma curiosidade enternecida n'esses objectos familiares onde pousava a doÃura das mâos d'ella--um sinete d'agatha sobre um velho livro de contas, uma faca de marfim com monogramma de prata ao lado d'uma taÃasinha de Saxe cheia d'estampilhas; e em tudo havia a ordem clara que tâo bem condizia com o seu puro perfil. Na rua o realejo cal·ra-se, por cima do tecto j· nâo cavallavam as crianÃas. E, em quanto escrevia devagar, Carlos sentia-a abafar sobre a esteira o som dos seus passos, mover os seus vasos mais de leve. --Que bonitas flÃres v. exc.^a tem, minha senhora! disse elle, voltando a cabeÃa, em quanto ia seccando distrahida e lentamente a receita. De pÃ, junto do contador arabe, onde pousava um vaso amarello da India, ella arranjava folhas em volta de duas rosas. --Dâo frescura, disse ella. Mas imaginei que em Lisboa havia mais bonitas flÃres. Nâo ha nada que se compare ·s flÃres de FranÃa... Pois nâo à verdade? Elle nâo respondeu logo, esquecido a olhar para ella, pensando na doÃura de ficar alli eternamente n'aquella sala de reps vermelho, cheia de claridade e cheia de silencio, a vÃl-a pÃr folhas verdes em torno de pÃs de rosa! --Em Cintra ha lindas flÃres, murmurou por fim. --Oh, Cintra à um encanto! disse ella, sem erguer os olhos do seu ramo. Vale a pena vir a Portugal sà por causa de Cintra. N'esse momento, o reposteiro de reps esvoaÃou, e Rosa entrou de dentro, correndo, vestida de branco, com meiasinhas de sÃda preta, uma onda negra de cabello a bater-lhe as costas, e trazendo ao collo a sua grande boneca. Ao vÃr Carlos parou bruscamente, com os bellos olhos muito abertos para elle, toda encantada, e apertando mais nos braÃos Cri-cri que vinha em camisa. --Nâo conheces? perguntou-lhe a mâi, indo sentar-se outra vez diante do seu cesto de flÃres. Rosa comeÃava j· a sorrir, o seu rostosinho cobria-se d'uma linda cÃr. E assim, toda d'alvo e negro como uma andorinha, tinha um encanto raro, com o seu dÃce mimo de fÃrma, a sua graÃa ligeira, os seus grandes olhos cheios d'azul, e um ruborzinho de mulher na face. Quando Carlos se adiantou com a mâo estendida para renovar o antigo conhecimento--ella ergueu-se na ponta dos pÃs, estendeu-lhe vivamente a boquinha, fresca como um botâo de rosa. Carlos ousou apenas tocar-lhe de leve na testa. Depois quiz apertar a mâo · sua velha amiga Cri-cri. E entâo, de repente, Rosa recordou-se do que a trouxera alli a correr. --⦠o robe-de-chambre, mamâ! Nâo posso achar o robe-de-chambre de Cri-cri... Ainda a nâo pude vestir... Dize, sabes onde à que est· o robe-de-chambre? --Vejam esta desarranjada! murmurava a mâi olhando-a com um sorriso lento e terno. Se Cri-cri tem uma commoda particular, o seu guarda-vestidos, nâo se lhe deviam perder as coisas... Pois nâo à verdade, snr. Carlos da Maia? Elle, ainda com a sua receita na mâo, sorria tambem, sem dizer nada, todo no enternecimento d'aquella intimidade em que se sentia penetrar dÃcemente. A pequena entâo veio encostar-se · mâi, roÃando-se pelo seu braÃo, com uma vozinha languida, lenta, e de mimo: --Anda, dize... Nâo sejas m·... Anda... Onde est· o robe-de-chambre? Dize... Levemente, com a ponta dos dedos, Maria Eduarda arranjou-lhe o pequenino laÃo de sÃda branca que lhe prendia no alto o cabello. Depois ficou mais sÃria: --Est· bem, est· quieta... Tu sabes que nâo sou eu que trato dos arranjos da Cri-cri. Devias ter mais ordem... Vai perguntar a Melanie. E Rosa obedeceu logo, sÃria tambem, comprimentando agora Carlos ao passar, com um arzinho senhoril: --Bonjour, Monsieur... --⦠encantadora! murmurou elle. A mâi sorriu. Tinha acabado de compÃr o seu ramo de cravos;--e immediatamente attendeu a Carlos, que pous·ra a receita sobre a mesa, e sem se apressar, installando-se n'uma poltrona, lhe foi fallando da dieta que devia ter miss Sarah, das colheres de xarope de codeina que se lhe deviam dar de tres em tres horas... --Pobre Sarah! dizia ella. E à curioso, nâo à verdade? Veio com o presentimento, quasi com a certeza, que havia de adoecer em Portugal... --Entâo vem a detestar Portugal! --Oh! tem-lhe j· horror! Acha muito calor, por toda a parte maus cheiros, a gente hedionda... Tem medo de ser insultada na rua... Emfim à infelicissima, est· ardendo por se ir embora... Carlos ria d'aquellas antipathias saxonias. De resto em muitas coisas a boa miss Sarah tinha talvez razâo... --E v. exc.^a tem-se dado bem em Portugal, minha senhora? Ella encolheu os hombros, indecisa. --Sim... Devo dar-me bem... ⦠o meu paiz O _seu_ paiz!... E elle que a julgava brazileira! --Nâo, sou portugueza. E, durante um momento, houve um silencio. Ella tom·ra de sobre a mesa, abria lentamente um grande leque negro pintado de flÃres vermelhas. E Carlos sentia, sem saber porque, uma doÃura nova penetrar-lhe no coraÃâo. Depois ella fallou da sua viagem que fÃra muito agradavel; adorava andar no mar; tinha sido um encanto a manhâ da chegada a Lisboa, com um cÃo azul-ferrete, o mar todo azul tambem, e j· um calorzinho do clima dÃce... Mas depois, apenas desembarcados, tudo correra desagradavelmente. Tinham ficado mal alojados no Central. _Niniche_, uma noite, assust·ra-os muito com uma indigestâo. Em seguida no Porto viera aquelle desastre... --Sim, disse Carlos, o marido de v. exc.^a, na PraÃa Nova... Ella pareceu surprehendida. Como sabia elle? Ah! sim, sabia de certo pelo Damaso... --Sâo muito amigos, creio eu. Depois d'uma leve hesitaÃâo, que ella comprehendeu, Carlos murmurou: --Sim... O Damaso vai bastante ao Ramalhete... ⦠de resto um rapaz que eu conheÃo apenas ha mezes... Ella abriu os olhos, pasmada. --O Damaso? Mas elle disse-me que se conheciam desde pequeninos, que eram atà parentes... Carlos encolheu simplesmente os hombros, sorrindo. --⦠uma bella illusâo... E se isso o faz feliz!... Ella sorriu tambem, encolhendo tambem ligeiramente os hombros. --E v. exc.^a, minha senhora, continuou logo Carlos nâo querendo fallar mais do Damaso, como acha Lisboa? Gostava bastante, achava muito bonito este tom azul e branco de cidade meridional... Mas, havia tâo poucos confortos!... A vida tinha aqui um ar que ella nâo pudera perceber ainda--se era de simplicidade ou de pobreza. --Simplicidade, minha senhora. Temos a simplicidade dos selvagens... Ella riu. --Nâo direi isso. Mas supponho que sâo como os gregos: contentam-se em comer uma azeitona, olhando o cÃo que à bonito... Isto pareceu adoravel a Carlos, todo o seu coraÃâo fugiu para ella. Maria Eduarda queixava-se sobretudo das casas, tâo faltas de commodidade, tâo despidas de gosto, tâo desleixadas. Aquella em que vivia fazia a sua desgraÃa. A cozinha era atroz, as portas nâo fechavam. Na sala de jantar havia sobre a parede umas pinturas de barquinhos e collinas que lhe tiravam o appetite... --AlÃm d'isso, acrescentou, à um horror nâo ter um quintal, um jardim, onde a pequena possa correr, ir brincar... --Nâo à facil encontrar assim uma casa nas condiÃıes d'esta e com jardim, disse Carlos. Deu um olhar ·s paredes, ao estuque enxovalhado do tecto--e lembrou-lhe de repente a quinta do Craft, com a sua vista de rio, o ar largo, as frescas ruas de acacias. Felizmente, Maria Eduarda tom·ra a casa apenas ao mez, e estava pensando em ir passar · beira-mar o tempo que tivesse de ficar ainda em Portugal. --De resto, disse ella, foi o que me aconselhou o meu medico em Paris, o dr. Chaplain. O dr. Chaplain? Justamente, Carlos conhecia muito o dr. Chaplain. Ouvira-lhe as liÃıes, visit·ra-o atà intimamente na sua propriedade de Maisonnettes, ao pà de Saint-Germain. Era um grande mestre, era um espirito bem superior! --E tâo bom coraÃâo! disse ella com um claro sorriso, um olhar que brilhou. E este sentimento commum pareceu de repente aproximal-os mais dÃcemente: cada um n'esse instante adorou o dr. Chaplain: e continuaram ainda fallando d'elle prolongadamente, gozando, atravÃs d'essa trivial sympathia por um velho clinico, a nascente concordancia dos seus coraÃıes. O bom dr. Chaplain! Que physionomia tâo amavel, tâo fina!... Sempre com o seu barretinho de sÃda... E sempre com a sua grande flÃr na casaca... De resto, o pratico maior que sahira da geraÃâo de Trousseau. --E Madame Chaplain, acrescentou Carlos, à uma pessoa encantadora... Nâo à verdade? Mas Maria Eduarda nâo conhecia Madame Chaplain. Dentro o relogio ronceiro come÷ra a bater onze horas. E Carlos entâo ergueu-se, findando a sua fugitiva, inolvidavel, deliciosa visita... Quando ella lhe estendeu a mâo, um pouco de sangue subiu-lhe de novo · face ao tocar aquella palma tâo macia e tâo fresca. Pediu os seus comprimentos para Mademoiselle Rosa. Depois, · porta, j· com o reposteiro na mâo, voltou-se ainda, uma vez mais, n'uma ultima saudaÃâo, a receber o olhar suave com que ella o seguia... --Atà ·manhâ, est· claro! exclamou ella de repente, com o seu lindo sorriso. --Atà ·manhâ, decerto! O Domingos estava j· no patamar, de casaca, risonho e bem penteado. --⦠coisa de cuidado, meu senhor? --Nâo à nada, Domingos... Estimei vÃl-o por aqui. --E eu muito a v. exc.^a. Atà ·manhâ, meu senhor. --Atà ·manhâ. _Niniche_ appareceu tambem no patamar. Elle abaixou-se ternamente a afagal-a, e disse-lhe tambem, radiante: --Atà ·manhâ, _Niniche_! Atà ·manhâ! Voltando para o Ramalhete, era esta a unica idÃa que elle sentia distinctamente atravÃs da nevoa luminosa que lhe afogava a alma. Agora o seu dia estava findo:--mas, passadas as longas horas, terminada a longa noite, elle penetraria outra vez n'aquella sala de reps vermelho, onde ella o esperava, com o mesmo vestido de sarja, enrolando ainda folhas verdes em torno de pÃs de rosa... Pelo Aterro, por entre a poeira de verâo e o ruido das carroÃas, o que elle via era essa sala, esteirada de novo, fresca, silenciosa e clara: por vezes uma phrase que ella dissera cantava-lhe na memoria, com o tom d'ouro da sua voz; ou luziam-lhe diante dos olhos as pedras dos seus anneis entremettidos pelos pÃllos de _Niniche_. Parecia-lhe mais linda, agora que conhecia o seu sorriso d'uma graÃa tâo delicada; era cheia de inteligencia, era cheia de gosto; e a pobre velha · porta, esse doente a quem ella mandava vinho do Porto, revelavam a sua bondade... E o que o encantava à que nâo tornaria mais a farejar a cidade como um rafeiro perdido, · busca dos seus olhos negros; agora bastava-lhe subir alguns degraus, abria-se diante d'elle a porta da sua casa; e tudo de repente na vida parecia tornar-se facil, equilibrado, sem duvidas e sem impaciencias. No seu quarto, no Ramalhete, Baptista entregou-lhe uma carta. --Trouxe-a a escosseza, j· v. exc.^a tinha sahido. Era da Gouvarinho! Meia folha de papel, tendo simplesmente escripto a lapis--_all rigth_. Carlos amarrotou-a, furioso. A Gouvarinho!... Nâo se torn·ra quasi a lembrar d'ella, desde a vespera, no radiante tumulto em que and·ra o seu coraÃâo. E era no comboio d'essa noite, d'ahi a horas, que deviam ambos partir para Santarem, a amarem-se, escondidos n'uma estalagem! Elle promettera-lh'o, a sÃrio; j· ella se prepar·ra decerto, com a atroz cabelleira postiÃa, com o _water-proof_ de grande roda; tudo estava _all rigth_... Achou-a n'esse instante ridicula, reles, estupida... Oh, era claro como a luz que nâo ia, que nunca iria, j·mais! Mas tinha d'apparecer na estaÃâo de Santa Apolonia, balbuciar uma desculpa tosca, assistir · sua desconsolaÃâo, vÃr-lhe os olhos marejados de lagrimas. Que massada!... Teve-lhe odio. Quando chegou · mesa do almoÃo Craft e Affonso, j· sentados, fallavam justamente do Gouvarinho, e dos artigos que elle continuava gravemente a publicar no _Jornal do Commercio_. --Que besta essa! exclamou Carlos n'uma voz que sibilava, desabafando sobre a litteratura politica do marido a colera que lhe davam as importunidades amorosas da mulher. Affonso e Craft olharam-n'o, pasmados de tanta violencia. E Craft censurou-lhe a ingratidâo. Porque, realmente, nâo havia em toda a terra um enthusiasmo como o que aquelle desventuroso homem d'estado tinha por Carlos... --V. exc.^a nâo faz idÃa, snr. Affonso da Maia. ⦠um culto. ⦠uma idolatria! Carlos encolhia os hombros, impaciente. E Affonso, j· bem disposto para com o homem que assim admirava tâo prodigamente o seu neto, murmurou com bondade: --Coitado, supponho que à inoffensivo... Craft fez uma ovaÃâo ao velho: --_Inoffensivo!_ Admiravel, snr. Affonso da Maia! _Inoffensivo_, applicado a um homem d'estado, a um par, a um ministro, a um legislador, à um achado! E à com effeito o que elle Ã, _inoffensivo_... E à o que elles sâo... --Chablis? murmurou o escudeiro. --Nâo, tomo ch·. E acrescentou: --Aquelle champagne que hontem bebemos nas corridas, por patriotismo, arrasou-me... Tenho de me pÃr uma semana a regimen de leite. Entâo fallou-se ainda das corridas, dos ganhos de Carlos, do Clifford, e do vÃo azul do Damaso. --Ora quem estava hontem muito bem vestida era a Gouvarinho, disse Craft remexendo o seu ch·. Ficava-lhe admiravelmente aquelle branco creme, tocado de tons negros. Uma verdadeira toilette de corridas... _C'Ãtait un [oe]illet blanc panachà de noir_... Vossà nâo achou, Carlos? --Sim, rosnou Carlos, estava bem. Outra vez a Gouvarinho! Parecia-lhe agora que nâo haveria na sua vida conversa em que nâo surgisse a Gouvarinho, e que nâo haveria caminho na sua vida que o nâo atravancasse a Gouvarinho! E alli mesmo, · mesa, decidiu comsigo nâo a tornar a vÃr, escrever-lhe um bilhete curto, polido, recusando-se a ir a Santarem, sem razıes... Mas no seu quarto, diante da folha de papel, fumou uma longa cigarrette, sem achar phrase que nâo fosse pueril ou brutal. Nem tinha a sympathia precisa para lhe dar o banal tratamento de _querida_. Vinha-lhe atà por ella uma indefinida repulsâo physica: devia ser intoleravel toda uma noite o seu cheiro exagerado de verbena;--e lembrava-se que aquella pelle do seu pescoÃo, que se lhe afigurava outr'ora um setim, tinha um tom pegajoso, um tom amarellado, para alÃm da linha de pÃs d'arroz. Decidiu nâo lhe escrever. Iria · noite a Santa Apolonia, e no momento do comboio partir correria · portinhola, a balbuciar fugitivamente uma desculpa; nâo lhe daria tempo de choramigar, nem de recriminar; um rapido aperto de mâo, e adeus, para nunca mais... ¡ noite, porÃm, · hora de ir · estaÃâo, que sacrificio em se arrancar aos confortos da sua poltrona, e do seu charuto!... Atirou-se para o coupà desesperado, maldizendo essa tarde no boudoir azul em que, por causa d'uma rosa e d'um certo vestido cÃr de folha morta que lhe ficava bem, elle se'ach·ra cahido com ella n'um sof·... Ao chegar a Santa Apolonia faltavam, para a partida do expresso, dois minutos. Precipitou-se para a extremidade da sala, j· quasi vazia ·quella hora, a comprar uma _admissâo_; e ainda ahi esperou uma eternidade, vendo dentro do postigo duas mâos lentas e molles arranjar laboriosamente os patacos d'um troco. Penetrava emfim na sala d'espera--quando esbarrou com o Damaso, de chapÃo desabado e saccola de viagem a tiracollo. Damaso agarrou-lhe as mâos, enternecido: --â menino! pois tiveste o incommodo?... E como soubeste tu que eu partia? Carlos nâo o desilludiu, balbuciando que lh'o dissera o Taveira, que encontr·ra o Taveira... --Pois eu estava mais longe d'uma d'estas! exclamou o Damaso. Esta manhâ, muito regalado na cama, quando me vem o telegramma... Fiquei furioso! Isto Ã, imagina tu como eu fiquei, um desgosto assim!... Foi entâo que Carlos reparou que elle estava carregado de luto, com fumo no chapÃo, luvas pretas, polainas pretas, barra preta no lenÃo... Murmurou, embaraÃado: --O Taveira disse-me que ias, mas nâo me disse mais nada... Morreu-te alguem? --Meu tio Guimarâes. --O communista? o de Paris? --Nâo, o irmâo d'elle, o mais velho, o de Penafiel... Espera ahi que eu volto j·, vou alli ao cafà encher o frasco de cognac. Com a afflicÃâo esquecia-me o cognac... Ainda estavam chegando passageiros, esbaforidos, de guarda-pÃ, com chapeleiras na mâo. Os guardas rolavam pachorrentamente as bagagens. D'uma portinhola, onde se exhibia um cavalheiro barrigudo, com um bonet bordado a retroz, pendia todo um cacho d'amigos politicos, respeitosamente e em silencio. A um canto uma senhora soluÃava por baixo do vÃo. Carlos, vendo um wagon com a papeleta de _reservado_, imaginou l· a condessa. Um guarda precipitou-se, furioso, como se visse a profanaÃâo d'um santuario. Que queria elle, que queria elle d'alli? Nâo sabia que era o _reservado_ do snr. Carneiro? --Nâo sabia. --Perguntasse, devia saber! ficou o outro a resmungar, ainda tremulo. Carlos correu ainda outros wagons, onde a gente se apinhava, atabafadamente, na amontoaÃâo dos embrulhos; n'um, dois sujeitos, a proposito de lugares, tratavam-se de _malcriados_; adiante, uma crianÃa esperneava no collo da ama, aos gritos. --â menino, quem diabo andas tu a procurar? exclamou Damaso alegremente, surgindo por traz d'elle, e passando-lhe o braÃo pela cinta. --Ninguem... Imaginei que tinha visto o marquez. Immediatamente Damaso queixou-se d'aquella lËgubre massada de ter d'ir a Penafiel! --E entâo agora que eu precisava tanto estar em Lisboa! Que tenho andado com uma sorte para mulheres, menino!... Uma sorte damnada! Uma sineta badalou. Damaso deu logo um abraÃo terno a Carlos, saltou para o seu wagon, enterrou na cabeÃa um barretinho de sÃda--e depois debruÃado da portinhola continuou ainda as confidencias. O que mais o contrariava era deixar aquelle arranjinho da rua de S. Francisco. Que ferro! agora que aquillo ia tâo bem, o gajo no Brazil, e ella alli, · mâo, a dois passos do Gremio!... Carlos mal o escutava, distrahido, olhando o grande relogio transparente. De repente Damaso, · portinhola, deu um salto de surpreza: --Olha os Gouvarinhos! Carlos deu um salto tambem. O conde, de cÃco de viagem, de paletot alvadio, sem se apressar, como competia a um director da Companhia, vinha conversando com um empregado superior da estaÃâo, agaloado de ouro, que se encarreg·ra da chapeleira de papelâo de s. exc.^a E a condessa, com um rico guarda-pà de foulard cÃr de castanho, um vÃo cinzento que lhe cobria a face e o chapÃo, seguia atraz, com a criada escosseza, trazendo na mâo um ramo de rosas. Carlos correu para elles, foi todo um assombro. --Por aqui, Maia? --De viagem, conde? ⦠verdade. Decidira acompanhar a condessa ao Porto, aos annos do pap·... ResoluÃâo da ultima hora, quasi iam perdendo o comboio. --Entâo temol-o por companheiro, Maia? Teremos esse grande prazer, Maia? Carlos contou rapidamente que viera apenas apertar a mâo ao pobre Damaso, de jornada para Penafiel, por causa da morte do tio. DebruÃado da portinhola, com as mâos de fÃra calÃadas de negro, o pobre Damaso estava saudando a senhora condessa, gravemente, funebremente. E o bom Gouvarinho nâo quiz deixar de lhe ir dar logo o seu _shake-hands_ e o seu pezame. SÃsinho n'esse curto instante com a condessa, Carlos murmurou apenas: --Que ferro! --Este maldito homem! exclamou ella, entre dentes, com um olhar que fuzilou atravÃs do vÃo. Tudo tâo bem arranjado, e · ultima hora teima em vir!... Carlos acompanhou-os atà ao _reservado_, n'um outro wagon que se estivera mettendo de novo para s. exc.^a A condessa tomou o lugar do canto junto da portinhola. E como o conde, n'um tom de polidez acida, a aconselhava a que se sentasse antes com o rosto para a machina, ella teve um gesto de aborrecimento, atirou o ramo para o lado desabridamente, enterrou-se com mais forÃa na almofada; e um duro olhar de colera passou entre ambos. Carlos, embaraÃado, perguntava: --Entâo vâo com demora? O conde respondeu, sorrindo, disfarÃando o seu mau humor: --Sim, talvez duas semanas, umas pequeninas ferias. --Tres dias, o mais, replicou ella n'uma voz fria e afiada como uma navalha. O conde nâo respondeu, livido. Todas as portinholas agora estavam fechadas, um silencio cahira sobre a plataforma. O apito da machina varou o ar; e o comprido trem, n'um ruido secco de freios retesados, comeÃou a rolar, com gente ·s portinholas, que ainda se debruÃava, estendendo a mâo para um ultimo aperto. Aqui e alÃm esvoaÃava um lenÃo branco. O olhar da condessa para o lado de Carlos teve a doÃura de um beijo, o Damaso gritou saudades para o Ramalhete. O compartimento do correio resvalou, alumiado; e com outro dilacerante silvo o comboio mergulhou na noite... Carlos, sÃ, dentro do coupÃ, voltando · Baixa, sentia uma alegria triumphante com aquella partida da condessa, e a inesperada jornada do Damaso. Era como uma dispersâo providencial de todos os importunos: e assim se fazia em torno da rua de S. Francisco uma solidâo--com todos os seus encantos, e todas as suas cumplicidades. No caes do Sodrà deixou a carruagem, subiu a pà pelo Ferregial, veio passar diante das janellas na rua de S. Francisco. Sà pÃde vÃr uma vaga tira de claridade entre as portadas meio cerradas. Mas isto bastava-lhe. Podia agora imaginar com precisâo o serâo calmo que ella estava passando na larga sala de reps vermelho. Sabia o nome dos livros que ella lia, e as partituras que tinha sobre o piano; e as flÃres que espalhavam alli o seu aroma vira-as elle arranjar n'essa manhâ. Poria ella um instante o seu pensamento n'elle? Decerto; a doenÃa em casa forÃava-a a lembrar as horas do remedio, as explicaÃıes que elle dera, e o som da sua voz; e fallando com miss Sarah pronunciaria decerto o seu nome. Duas vezes percorreu a rua de S. Francisco; e recolheu para casa, sob a noite estrellada, devagar, ruminando a doÃura d'aquelle grande amor. Entâo todos os dias, durante semanas, teve essa hora deliciosa, esplendida, perfeita, ´a visita · inglezaª. Saltava do leito, cantando como um canario, e penetrava no seu dia como n'uma acÃâo triumphal. O correio chegava; e invariavelmente lhe trazia uma carta da Gouvarinho, tres folhas de papel d'onde cahia sempre alguma pequena flÃr meio murcha. Elle deixava ficar a flÃr no tapete: e mal podia dizer o que havia n'aquellas longas linhas cruzadas. Sabia apenas vagamente que, tres dias depois d'ella chegar ao Porto, o pai, o velho Thompson, tivera uma apoplexia. Ella l· estava, d'enfermeira. Depois, levando duas ou tres bellas flÃres do jardim embrulhadas n'um papel de sÃda, partia para a rua de S. Francisco, sempre no seu coupÃ--porque o tempo mud·ra, e os dias seguiam-se, tristonhos, cheios de sudoeste e de chuva. ¡ porta o Domingos acolhia-o com um sorriso cada vez mais enternecido. _Niniche_ corria de dentro, a pular d'amizade; elle erguia-a nos braÃos para a beijar. Esperava um instante na sala, de pÃ, saudando com o olhar os moveis, os ramos, a clara ordem das coisas; ia examinar no piano a musica que ella toc·ra essa manhâ, ou o livro que deix·ra interrompido, com a faca de marfim entre as folhas. Ella entrava. O seu sorriso ao dar-lhe os bons dias, a sua voz d'ouro tinham cada dia para Carlos um encanto novo e mais penetrante. Trazia ordinariamente um vestido escuro e simples: apenas ·s vezes uma gravata de rica renda antiga, ou um cinto cuja fivella era cravejada de pedras, avivavam este traje sobrio, quasi severo, que parecia a Carlos o mais bello, e como uma expressâo do seu espirito. ComeÃavam por fallar de miss Sarah, d'aquelle tempo agreste e humido que lhe era tâo desfavoravel. Conversando, ainda de pÃ, ella dava aqui e alÃm um arranjo melhor a um livro, ou ia mover uma cadeira que nâo estava no seu alinho; tinha o habito inquieto de recompÃr constantemente a symetria das coisas;--e, machinalmente, ao passar, sacudia a superficie de moveis j· perfeitamente espanejados com as magnificas rendas do seu lenÃo. Agora acompanhava-o sempre ao quarto de miss Sarah. Pelo corredor amarello, caminhando ao seu lado, Carlos perturbava-se sentindo a caricia d'esse intimo perfume em que havia jasmim, e que parecia sahir do movimento das suas saias. Ella ·s vezes abria familiarmente a porta de um quarto, apenas mobilado com um velho sof·: era alli que Rosa brincava, e que tinha os arranjos de Cri-cri, as carruagens de Cri-cri, a cozinha de Cri-cri. Encontravam-na vestindo e conversando profundamente com a boneca; ou entâo, ao canto do sof·, com os pÃsinhos cruzados, immovel, perdida na admiraÃâo d'algum livro d'estampas aberto sobre os joelhos. Ella corria, estendia a boquinha a Carlos; e toda a sua pessoa tinha a frescura de uma linda flÃr. No quarto da governante, Maria Eduarda sentava-se aos pÃs do leito branco; e logo a pobre miss Sarah, ainda cheia de tosse, confusa, verificando a cada instante se o lenÃo de sÃda lhe cobria correctamente o pescoÃo, affirmava que estava boa. Carlos gracejava com ella, provando-lhe que n'esse feio tempo d'inverno, a felicidade era estar alli na cama, com bons cuidados em redor, alguns romances patheticos, e appetitosa dieta portugueza. Ella voltava os olhos gratos para Madame, com um suspiro. Depois murmurava: --_Oh yes, I am very comfortable!_ E enternecia-se. Logo nos primeiros dias, ao voltar · sala, Maria Eduarda tinha-se sentado na sua cadeira escarlate, e, conversando com Carlos, retom·ra muito naturalmente o seu bordado como na presenÃa familiar de um velho amigo. Com que felicidade profunda elle viu desdobrar-se essa talagarÃa! Devia ser um faisâo de plumagens rutilantes: mas por ora sà estava bordado o galho de macieira em que elle pousava, galho fresco de primavera, coberto de florzinhas brancas, como n'um pomar da Normandia. Carlos, junto da linda secretariasinha de pau preto, occupava a mais velha, a mais commoda das poltronas de reps vermelho, cujas molas rangiam de leve. Entre elles ficava a mesa de costura com as _IllustraÃıes_ ou algum jornal de modas; ·s vezes, um instante calado, elle folheava as gravuras, em quanto as lindas mâos de Maria, com brilhos de joias, iam puxando os fios de lâ. Aos pÃs d'ella _Niniche_ dormitava, espreitando-os a espaÃos, atravÃs das repas do focinho, com o seu bello olho grave e negro. E n'esses escuros dias de chuva, cheios de friagem l· fÃra e do rumor das goteiras, aquelle canto da janella, com a paz do vagaroso trabalho na talagarÃa, as vozes lentas e amigas, e ·s vezes um dÃce silencio, tinha um ar intimo e carinhoso... Mas no que diziam nâo havia intimidades. Fallavam de Paris e do seu encanto, de Londres onde ella estivera durante quatro lugubres mezes de inverno, da Italia que era o seu sonho vÃr, de livros, de coisas d'arte. Os romances que preferia eram os de Dickens; e agradava-lhe menos Feuillet, por cobrir tudo de pà d'arroz, mesmo as feridas do coraÃâo. Apesar de educada n'um convento severo d'Orleans, lÃra Michelet e lÃra Renan. De resto nâo era catholica praticante; as igrejas apenas a attrahiam pelos lados graciosos e artisticos do culto, a musica, as luzes, ou os lindos mezes de Maria, em FranÃa, na doÃura das flÃres de maio. Tinha um pensar muito recto e muito sâo--com um fundo de ternura que a inclinava para tudo o que soffre e à fraco. Assim gostava da Republica por lhe parecer o regimen em que ha mais solicitude pelos humildes. Carlos provava-lhe rindo que ella era socialista. --Socialista, legitimista, orleanista, dizia ella, qualquer coisa, comtanto que nâo haja gente que tenha fome! Mas era isso possivel? J· Jesus, mesmo, que tinha tâo dÃces illusıes, declar·ra que pobres sempre os haveria... --Jesus viveu ha muito tempo, Jesus nâo sabia tudo... Hoje sabe-se mais, os senhores sabem muito mais... ⦠necessario arranjar-se outra sociedade, e depressa, em que nâo haja miseria. Em Londres, ·s vezes, por aquellas grandes neves, ha criancinhas pelos portaes a tiritar, a gemer de fome... ⦠um horror! E em Paris entâo! ⦠que se nâo và senâo o boulevard; mas quanta pobreza, quanta necessidade... Os seus bellos olhos quasi se enchiam de lagrimas. E cada uma d'estas palavras trazia todas as complexas bondades da sua alma--como n'um sà sopro podem vir todos os aromas esparsos de um jardim. Foi um encanto para Carlos quando Maria o associou ·s suas caridades, pedindo-lhe para ir vÃr a irmâ da sua engommadeira que tinha rheumatismo, e o filho da snr.^a Augusta, a velha do patamar, que estava tisico. Carlos cumpria esses encargos com o fervor de acÃıes religiosas. E n'estas piedades achava-lhe semelhanÃas com o avÃ. Como Affonso, todo o soffrimento dos animaes a consternava. Um dia viera indignada da PraÃa da Figueira, quasi com idÃas de vinganÃa, por ter visto nas tendas dos gallinheiros aves e coelhos apinhados em cestos, soffrendo durante dias as torturas da immobilidade e a anciedade da fome. Carlos levava estes bellas coleras para o Ramalhete, increpava violentamente o marquez, que era membro da _Sociedade protectora dos animaes_. O marquez, indignado tambem, jurava justiÃa, fallava em cadÃas, em costa d'Africa... E Carlos, commovido, ficava a pensar quanta larga e distante influencia pÃde ter, mesmo isolado de tudo, um coraÃâo que à justo. Uma tarde fallaram do Damaso. Ella achava-o insupportavel, com a sua petulancia, os olhos bugalhudos, as perguntas nescias. V. exc.^a acha Nice elegante? V. exc.^a prefere a capella de S. Joâo Baptista a _Notre-Dame_?... --E entâo a insistencia de fallar de pessoas que eu nâo conheÃo! A snr.^a condessa de Gouvarinho, e os ch·s da snr.^a condessa de Gouvarinho, e a frisa da snr.^a condessa de Gouvarinho, e a preferencia que a snr.^a condessa de Gouvarinho tem por elle... E isto horas! Eu ·s vezes tinha medo de adormecer... Carlos fez-se escarlate. Porque trouxera ella, entre todos, o nome da Gouvarinho? Tranquillisou-se, vendo-a rir simples e limpidamente. Decerto nâo sabia quem era Gouvarinho. Mas, para sacudir logo d'entre elles esse nome, comeÃou a fallar de Mr. Guimarâes, o famoso tio do Damaso, o amigo de Gambetta, o influente da Republica... --O Damaso tem-me dito que v. exc.^a o conhece muito... Ella erguera os olhos, com um fugitivo rubor no rosto. --Mr. Guimarâes?... Sim, conheÃo muito... Ultimamente viamo-nos menos, mas elle era muito amigo da mamâ. E depois d'um silencio, d'um curto sorriso, recomeÃando a puxar o seu longo fio de lâ: --Pobre Guimarâes, coitado! A sua influencia na Republica à traduzir noticias dos jornaes hespanhoes e italianos para o _Rappel_, que d'isso à que vive... Se à amigo de Gambetta, nâo sei, Gambetta tem amigos tâo extraordinarios... Mas o Guimarâes, ali·s bom homem e homem honrado, à um grutesco, uma especie de Calino republicano. E tâo pobre, coitado! O Damaso, que à rico, se tivesse decencia, ou o menor sentimento, nâo o deixava viver assim tâo miseravelmente. --Mas entâo essas carruagens do tio, esse luxo do tio, de que falla o Damaso...? Ella encolheu mudamente os hombros; e Carlos sentiu pelo Damaso um asco intoleravel. Pouco a pouco nas suas conversas foi havendo uma intimidade mais penetrante. Ella quiz saber a idade de Carlos, elle fallou-lhe do avÃ. E durante essas horas suaves em que ella, silenciosa, ia picando a talagarÃa, elle contou-lhe a sua vida passada, os planos de carreira, os amigos, e as viagens... Agora ella conhecia a paizagem de Santa Olavia, o reverendo Bonifacio, as excentricidades do Ega. Um dia quiz que Carlos lhe explicasse longamente a idÃa do seu livro _A medicina antiga e moderna_. Approvou, com sympathia, que elle pintasse as figuras dos grandes medicos, bemfeitores da humanidade. Porque se glorificariam sà guerreiros e fortes? A vida salva a uma crianÃa parecia-lhe coisa bem mais bella que a batalha de Austerlitz. E estas palavras que dizia com simplicidade, sem mesmo erguer os olhos do seu bordado, cahiam no coraÃâo de Carlos e ficavam l· muito tempo, palpitando e brilhando... Elle tinha-lhe feito assim largamente todas as confissıes;--e ainda nâo sabia nada do seu passado, nem mesmo a terra em que nascera, nem sequer a rua que habitava em Paris. Nâo lhe ouvira murmurar j·mais o nome do marido, nem fallar d'um amigo ou d'uma alegria da sua casa. Parecia nâo ter em FranÃa, onde vivia, nem interesses, nem lar;--e era realmente como a deusa que elle ide·ra, sem contactos anteriores com a terra, descida da sua nuvem d'oiro para vir ter alli, n'aquelle andar alugado da rua de S. Francisco, o seu primeiro estremecimento humano. Logo na primeira semana das visitas de Carlos tinham faltado d'affeiÃıes. Ella acreditava candidamente que podesse haver, entre uma mulher e um homem, uma amizade pura, immaterial, feita da concordancia amavel de dois espiritos delicados. Carlos jurou que tambem tinha fà n'essas bellas uniıes, todas d'estima, todas de razâo--comtanto que se lhes misturasse, ao de leve que fosse, uma ponta de ternura... Isso perfumava-as d'um grande encanto--e nâo lhes diminuia a sinceridade. E, sob estas palavras um pouco diffusas, murmuradas por entre as malhas do bordado e com lentos sorrisos, fic·ra subtilmente estabelecido que entre elles sà deveria haver um sentimento assim, casto, legitimo, cheio de suavidade e sem tormentos. Que importava a Carlos? Comtanto que podesse passar aquella hora na poltrona de cretone, contemplando-a a bordar, e conversando em coisas interessantes, ou tornadas interessantes pela graÃa da sua pessoa; comtanto que visse o seu rosto, ligeiramente cÃrado, baixar-se, com a lenta attracÃâo d'uma caricia, sobre as flÃres que lhe trazia; comtanto que lhe afagasse a alma a certeza de que o pensamento d'ella o ficava seguindo sympathicamente atravÃs do seu dia, mal elle deixava aquella adorada sala de reps vermelho--o seu coraÃâo estava satisfeito, esplendidamente. Nâo pensava mesmo que aquella ideal amizade, d'intenÃâo casta, era o caminho mais seguro para a trazer, brandamente enganada, aos seus braÃos ardentes d'homem. No deslumbramento que o tom·ra ao vÃr-se de repente admittido a uma intimidade que julg·ra impenetravel,--os seus desejos desappareciam: longe d'ella, ·s vezes, ainda ousavam ir temerariamente atà · esperanÃa d'um beijo, ou d'uma fugitiva caricia com a ponta dos dedos; mas apenas transpunha a sua porta, e recebia o calmo raio do seu olhar negro, cahia em devoÃâo, e julgaria um ultraje bestial roÃar sequer as prÃgas do seu vestido. Foi aquelle decerto o periodo mais delicado da sua vida. Sentia em si mil coisas finas, novas, d'uma tocante frescura. Nunca imagin·ra que houvesse tanta felicidade em olhar para as estrellas quando o cÃo est· limpo; ou em descer de manhâ ao jardim para escolher uma rosa mais aberta. Tinha na alma um constante sorriso--que os seus labios repetiam. O marquez achava-lhe o ar baboso e abenÃoador... ¡s vezes, passeando sà no seu quarto, perguntava a si mesmo onde o levaria aquelle grande amor. Nâo sabia. Tinha diante de si os tres mezes em que ella estaria em Lisboa, e em que ninguem mais senâo elle occuparia a velha cadeira ao lado do seu bordado. O marido andava longe, separado por legoas de mar incerto. Depois elle era rico, e o mundo era largo... Conservava sempre as suas grandes idÃas do trabalho, querendo que no seu dia sà houvesse horas nobres,--e que aquellas que nâo pertenciam ·s puras felicidades do amor, pertencessem ·s alegrias fortes do estudo. Ia ao laboratorio, ajuntava algumas linhas ao seu manuscripto. Mas antes da visita · rua de S. Francisco nâo podia disciplinar o espirito, inquieto, n'um tumulto d'esperanÃas; e depois de voltar de l·, passava o dia a recapitular o que ella dissera, o que elle respondera, os seus gestos, a graÃa de certo sorriso... Fumava entâo cigarrettes, lia os poetas. Todas as noites no escriptorio d'Affonso se formava a partida de _whist_. O marquez batia-se ao dominà com o Taveira, enfronhados ambos n'aquelle vicio, com um rancor crescente que os levava a injurias. Depois das corridas, o secretario de Steinbroken come÷ra a vir ao Ramalhete; mas era um inutil, nem cantava sequer como o seu chefe as balladas da Filandia; cahido no fundo d'uma poltrona, de casaca, de vidro no olho, bamboleando a perna, cofiava silenciosamente os seus longos bigodes tristes. O amigo que Carlos gostava de vÃr entrar era o Cruges--que vinha da rua de S. Francisco, trazia alguma coisa do ar que Maria Eduarda respirava. O maestro sabia que Carlos ia todas as manhâs ao predio vÃr a ´miss inglezaª; e muitas vezes, innocentemente, ignorando o interesse de coraÃâo com que Carlos o escutava, dava-lhe as ultimas noticias da visinha... --A visinha l· ficou agora a tocar Mendelhson... Tem execuÃâo, tem expressâo, a visinha... Ha alli estofo... E entende o seu Choppin. Se elle nâo apparecia no Ramalhete, Carlos ia a casa buscal-o: entravam no Gremio, fumavam um charuto n'alguma sala isolada, fallando da visinha; Cruges achava-lhe ´um verdadeiro typo de _grande dame_ª. Quasi sempre encontravam o conde de Gouvarinho, que vinha ver (como elle dizia a faiscar d'ironia) o que se passava ´no paiz do snr. Gambettaª. Parecera remoÃar ultimamente, mais ligeiro nos modos, com uma claridade d'esperanÃa nas lunetas, na fronte erguida. Carlos perguntava-lhe pela condessa. L· estava no Porto, nos seus deveres de filha... --E seu sogro? O conde baixava a face radiante, para murmurar cava e resignadamente: --Mal. Uma tarde, Carlos conversava com Maria Eduarda, acariciando _Niniche_ que se lhe viera sentar nos joelhos, quando Româo entreabriu discretamente o reposteiro, e baixando a voz, com um ar embaraÃado, um ar de cumplicidade, murmurou: --⦠o snr. Damaso!... Ella olhou o Româo, surprehendida d'aquelles modos, e quasi escandalisada. --Pois bem, mande entrar! E Damaso rompeu pela sala, carregado de luto, de flÃr ao peito, gorducho, risonho, familiar, com o chapeu na mâo, trazendo dependurado por um barbante um grande embrulho de papel pardo... Mas ao vÃr Carlos alli, intimamente, de cadellinha no collo, estacou assombrado, com o olho esbugalhado, como tonto. Emfim desembaraÃou as mâos, veio comprimentar Maria Eduarda quasi de leve,--e voltando-se logo para Carlos, de braÃos abertos, todo o seu espanto trasbordou ruidosamente: --Entâo tu aqui, homem? Isto à que à uma surpreza! Ora quem me diria!... Eu estava mais longe... Maria Eduarda, incommodada com aquelle alarido, indicou-lhe vivamente uma cadeira, interrompeu um instante o bordado, quiz saber como elle tinha chegado. --Perfeitamente, minha senhora... Um bocado canÃado, como à natural... Venho direitinho de Penafiel... Como v. exc.^a vÃ--e mostrou o seu luto pesado--acabo de passar por um grande desgosto. Maria Eduarda murmurou uma palavra de sentimento, vaga e fria. Damaso pous·ra os olhos no tapete. Vinha da provincia cheio de cÃr, cheio de sangue; e como cort·ra a barba (que havia mezes deix·ra crescer para imitar Carlos) parecia agora mais bochechudo e mais nedio. As cÃxas roliÃas estalavam-lhe de gordura dentro da calÃa de casimira preta. --E entâo, perguntou Maria Eduarda, temol-o por c· algum tempo? Elle deu um puxâosinho · cadeira, mais para junto d'ella, e outra vez risonho: --Agora, minha senhora, ninguem me arranca de Lisboa! Podem-me morrer... Isto Ã, credo! teria grande ferro se me morresse alguem. O que quero dizer à que ha de custar a arrancar-me d'aqui! Carlos continuava muito socegadamente a acariciar os pÃllos da _Niniche_. E houve entâo um pequeno silencio. Maria Eduarda retom·ra o bordado. E Damaso, depois de sorrir, de tossir, de dar um geito ao bigode, estendeu a mâo para acariciar tambem _Niniche_ sobre os joelhos de Carlos. Mas a cadellinha, que havia momentos o espreitava com o olho desconfiado, ergueu-se, rompeu a ladrar furiosa. --_C'est moi, Niniche!_ dizia Damaso, recuando a cadeira. _C'est moi, ami... Alors, Niniche_... Foi necessario que Maria Eduarda reprehendesse severamente _Niniche_. E, aninhada de novo no collo de Carlos, ella continuou a espreitar Damaso, rosnando, e com rancor. --J· me nâo conhece, dizia elle embaÃado, à curioso... --Conhece-o perfeitamente, acudiu Maria Eduarda muito sÃria. Mas nâo sei o que o snr. Damaso lhe fez, que ella tem-lhe odio. ⦠sempre este escandalo. Damaso balbuciava, escarlate: --Ora essa, minha senhora! O que lhe fiz?... Caricias, sempre caricias... E entâo nâo se conteve, fallou com ironia, amargamente, das amizades novas de Mademoiselle _Niniche_. Alli estava nos braÃos d'outro, emquanto que elle, o amigo velho, era deitado ao canto... Carlos ria. --â Damaso, nâo a accuses de ingratidâo... Pois se a snr.^a D. Maria Eduarda est· a dizer que ella sempre te teve odio... --Sempre! exclamou Maria. Damaso sorria tambem, lividamente. Depois, tirando um lenÃo de barra negra, limpando os beiÃos e mesmo o suor do pescoÃo, lembrou a Maria Eduarda como ella o tinha desapontado no dia das corridas... Elle toda a tarde · espera... --Eram vesperas de partida, disse ella. --Sim, bem sei, o marido de v. exc.^a... E como vai o snr. Castro Gomes? V. exc.^a j· recebeu noticias? --Nâo, respondeu ella com o rosto sobre o bordado. Damaso cumpriu ainda outros deveres. Perguntou por Mademoiselle Rosa. Depois por Cri-cri. Era necessario nâo esquecer Cri-cri... --Pois v. exc.^a--continuou elle, cheio subitamente de loquacidade--perdeu, que as corridas estiveram esplendidas... NÃs ainda nâo nos vimos depois das corridas, Carlos. Ah, sim, vimo-nos na estaÃâo... Pois nâo à verdade que estiveram muito _chics_? Olhe, minha senhora, d'uma coisa pÃde v. exc.^a estar certa, à que hippodromo mais bonito nâo ha l· fÃra. Uma vista atà · barra, que à d'appetite... Atà se vÃem entrar os navios... Pois nâo à assim, Carlos? --Sim, disse Carlos, sorrindo. Nâo à propriamente um campo de corridas... ⦠verdade que nâo ha tambem propriamente cavallos de corridas... Verdade seja que nâo ha jockeys... Ora à verdade que nâo ha apostas... Mas à verdade tambem que nâo ha publico... Maria Eduarda ria, alegremente. --Mas entâo? --VÃem-se entrar os navios, minha senhora... Damaso protestava, com as orelhas vermelhas. Era realmente querer dizer mal · forÃa... Nâo senhor, nâo senhor!... Eram muito boas corridas. Tal qual como l· fÃra, as mesmas regras, tudo... --Atà na pesagem, acrescentou elle muito sÃrio, fallamos sempre inglez! Repetiu ainda que as corridas eram _chics_. Depois nâo achou mais nada:--e fallou de Penafiel, onde chovera sempre tanto que elle vira-se forÃado a ficar em casa, estupidamente, a lÃr... --Uma massada! Ainda se houvesse alli umas mulheres para ir dar um bocado de cavaco... Mas qual! Uns monstros. E eu, lavradeiras, raparigas de pà descalÃo, nâo tolero... Ha gente que gosta... Mas eu, acredite v. exc.^a, nâo tolero... Carlos cor·ra: mas Maria Eduarda parecia nâo ter ouvido, occupada a contar attentamente as malhas do seu bordado. De repente Damaso recordou-se que tinha alli um presentinho para a snr.^a D. Maria Eduarda. Mas nâo imaginasse que era alguma preciosidade... Verdadeiramente atà o presente era para Mademoiselle Rosa. --Olhe, para nâo estar com mysterios, sabe o que Ã? Tenho-o alli no embrulhosinho de papel pardo... Sâo seis barrilinhos d'ovos molles d'Aveiro. ⦠um dÃce muito cÃlebre, mesmo l· fÃra. Sà o de Aveiro à que tem _chic_... Pergunte v. exc.^a ao Carlos. Pois nâo à verdade, Carlos, que à uma delicia, atà conhecido l· fÃra? --Ah, certamente, murmurou Carlos, certamente... Pous·ra _Niniche_ no châo, erguera-se, fÃra buscar o seu chapÃo. --J·?... perguntou-lhe Maria Eduarda, com um sorriso que era sà para elle. Atà ·manhâ, entâo! E voltou-se logo para o Damaso, esperando vÃl-o erguer-se tambem. Elle conservou-se installado, com um ar de demora, familiar, e bamboleando a perna. Carlos estendeu-lhe dois dedos. --_Au revoir_, disse o outro. Recados l· no Ramalhete; hei de apparecer!... Carlos desceu as escadas, furioso. Alli ficava pois aquelle imbecil impondo a sua pessoa, grosseiramente, tâo obtuso que nâo percebia o enfado d'ella, a sua regelada seccura! E para que ficava? Que outras crassas banalidades tinha ainda a soltar, em calâo, e de perna traÃada? E de repente lembrou-lhe o que elle lhe dissera na noite do jantar do Ega, · porta do Hotel Central, a respeito da propria Maria Eduarda, e do seu systema com mulheres ´que era o _atracâo_ª. Se aquelle idiota, de repente, abrazado e bestial, ousasse um ultraje? A supposiÃâo era insensata, talvez--mas reteve-o no pateo, applicando o ouvido para cima, com idÃas ferozes de esperar alli o Damaso, prohibir-lhe de tornar a subir aquella escada, e, · menor reflexâo d'elle, esmagar-lhe o craneo nas lages... Mas sentiu em cima a porta abrir-se, e sahiu vivamente, no receio de ser assim surprehendido · escuta. O coupà do Damaso estacionava na rua. Entâo veio-lhe uma curiosidade mordente de saber quanto tempo elle ficaria alli com Maria Eduarda. Correu ao Gremio; e apenas abrira uma vidraÃa--viu logo o Damaso sahir do portâo, saltar para o coupÃ, bater com forÃa a portinhola. Pareceu-lhe que trazia o ar escorraÃado, e subitamente teve dà d'aquelle grutesco... N'essa noite, depois de jantar, Carlos sà no seu quarto fumava, enterrado n'uma poltrona, relendo uma carta do Ega recebida n'essa manhâ,--quando appareceu o Damaso. E, sem pousar mesmo o chapÃo, logo da porta, exclamou, com o mesmo espanto da manhâ: --Entâo dize-me c·! Como diabo te vou eu encontrar hoje com a brazileira?... Como a conheceste tu? Como foi isso? Sem mover a cabeÃa do espaldar da poltrona, cruzando as mâos sobre os joelhos em cima da carta do Ega, Carlos, agora cheio de bom humor, disse, com uma dÃce reprehensâo paternal: --Pois entâo tu vaes expÃr a uma senhora as tuas opiniıes lubricas sobre as lavradeiras de Penafiel! --Nâo se trata d'isso, sei muito bem o que hei de expÃr! exclamou o outro, vermelho. Conta l·, anda... Que diabo! Parece-me que tenho direito a saber... Como a conheceste tu? Carlos, imperturbavel, cerrando os olhos como para se recordar, comeÃou, n'um tom lento e solemne de recitativo: --Por uma tepida tarde de primavera, quando o sol se afundava em nuvens d'oiro, um mensageiro esfalfado pendurava-se da campainha do Ramalhete. Via-se-lhe na mâo uma carta, lacrada com sello heraldico; e a expressâo do seu semblante... Damaso, j· zangado, atirou com o chapÃo para cima da mesa. --Parece-me que era mais decente deixar-te d'esses mysterios! --Mysterios? Tu vens obtuso, Damaso. Pois tu entras n'uma casa onde existe ha quasi um mez uma pessoa gravemente doente, e ficas assombrado, petrificado, ao encontrar l· o medico! Quem esperavas tu vÃr l·? Um photographo? --Entâo quem est· doente? Carlos, em poucas palavras, disse-lhe a bronchite da ingleza--emquanto o Damaso, sentado · beira do sof·, mordendo o charuto sem lume, olhava para elle desconfiado. --E como soube ella onde tu moravas? --Como se sabe onde mora o rei; onde à a alfandega; de que lado luz a estrella da tarde; os campos onde foi Troia... Estas coisas que se aprendem nas aulas de instrucÃâo primaria... O pobre Damaso deu alguns passos pela sala, embezerrado, com as mâos nos bolsos. --Ella tem agora l· o Româo, o que foi meu criado, murmurou depois d'um silencio. Eu tinha-lh'o recommendado... Ella leva-se muito pelo que eu lhe digo... --Sim, tem, por uns dias, emquanto o Domingos foi · terra. Vai mandal-o embora, à um imbecil, e tu tinhas-lhe ensinado m·s maneiras... Entâo Damaso atirou-se para o canto do sof· e confessou que ao entrar na sala, quando dera com os olhos em Carlos, de cadellinha no collo, fic·ra furioso... Emfim, agora que sabia que era por doenÃa, bem, tudo se explicava... Mas primeiro parecera-lhe que andava alli tramoia... Sà com ella, ainda pensou em lhe perguntar: depois receou que nâo fosse delicado; e alÃm d'isso ella estava de mau humor... E acrescentou logo, accendendo o charuto: --Que apenas tu sahiste, pÃz-se melhor, mais · vontade... Rimos muito... Eu fiquei ainda atà tarde, quasi duas horas mais; era perto das cinco quando sahi. Outra coisa, ella fallou-te alguma vez de mim? --Nâo. ⦠uma pessoa de bom gosto; e sabendo que nos conhecemos, nâo se atreveria a dizer-me mal de ti. Damaso olhou-o, esgazeado: --Ora essa!... Mas podia ter dito bem! --Nâo; à uma pessoa de bom senso, nâo se atreveria tambem. E erguendo-se vivamente, Carlos abraÃou Damaso pela cinta, acariciando-o, perguntando-lhe pela heranÃa do titi, e em que amores, em que viagens, em que cavallos de luxo ia gastar os milhıes... Damaso, sob aquellas festas alegres, permanecia frio, amuado, olhando-o de revez. --Olha que tu, disse elle, parece-me que me vaes sahindo tambem um traste... Nâo ha a gente fiar-se em ninguem! --Tudo na terra, meu Damaso, à apparencia e engano! Seguiram d'alli · sala do bilhar fazer ´a partida de reconciliaÃâoª. E pouco a pouco, sob a influencia que exercia sempre sobre elle o Ramalhete, Damaso foi socegando, risonho j·, gozando de novo a sua intimidade com Carlos no meio d'aquelle luxo sÃrio, e tratando-o outra vez por ´meninoª. Perguntou pelo snr. Affonso da Maia. Quiz saber se o bello marquez tinha apparecido. E o Ega, o grande Ega?... --Recebi carta d'elle, disse Carlos. Vem ahi, temol-o talvez c· no sabbado. Foi um espanto para o Damaso. --Homem! essa à curiosa! E eu encontrei os Cohens, hoje!... Vieram ha dois dias de Southampton... JÃgo eu? Jogou, falhou a carambola. --Pois à verdade, encontrei-os hoje, fallei-lhes um instante... E a Rachel vem melhor, vem mais gorda... Trazia uma _toilette_ ingleza com coisas brancas, coisas cÃr de rosa... _Chic_ a valer, parecia um moranguinho! E entâo o Ega de volta?... Pois, menino, ainda temos escandalo! II No sabbado, com effeito, Carlos, recolhendo ao Ramalhete de volta da rua de S. Francisco, encontrou o Ega no seu quarto, mettido n'um fato de cheviotte claro, e com o cabello muito crescido. --Nâo faÃas espalhafato, gritou-lhe elle, que eu estou em Lisboa _incognito_! E em seguida aos primeiros abraÃos declarou que vinha a Lisboa, sà por alguns dias, unicamente para comer bem e para conversar bem. E contava com Carlos para lhe fornecer esses requintes, alli, no Ramalhete... --Ha c· um quarto para mim? Eu por ora estou no _Hotel Hespanhol_, mas ainda nem mesmo abri a mala... Basta-me uma alcova, com uma mesa de pinho, larga bastante para se escrever uma obra sublime. Decerto! Havia o quarto em cima, onde elle estivera depois de deixar a Villa Balzac. E mais sumptuoso agora, com um bello leito da RenascenÃa, e uma cÃpia dos _Borrachos_ de Velasquez. --Optimo covil para a arte! Velasquez à um dos Santos Padres do naturalismo... A proposito, sabes com quem eu vim? Com a Gouvarinho. O pai Tompson esteve · morte, arribou, depois o conde foi buscal-a. Achei-a magra; mas com um ar ardente; e fallou-me constantemente de ti. --Ah! murmurou Carlos. Ega, de monoculo no olho e mâos nos bolsos, contemplava Carlos. --⦠verdade. Fallou de ti constantemente, irresistivelmente, immoderadamente! Nâo me tinhas mandado contar isso... Sempre seguiste o meu conselho, hein? Muito bem feita de corpo, nâo à verdade? E que tal, no acto d'amor? Carlos cÃrou, chamou-lhe grosseiro, jurou que nunca tivera com a Gouvarinho senâo relaÃıes superficiaes. Ia l· ·s vezes tomar uma chavena de ch·; e · hora do Chiado acontecia-lhe, como a todo o mundo, conversar com o conde sobre as miserias publicas, · esquina do Loreto. Nada mais. --Tu est·s-me a mentir, devasso! dizia o Ega. Mas nâo importa. Eu hei de descobrir tudo isso com o meu olho de Balzac, na segunda-feira.... Porque nÃs vamos l· jantar na segunda-feira. --NÃs... NÃs, quem? --NÃs. Eu e tu, tu e eu. A condessa convidou-me no comboio. E o Gouvarinho, como compete ao individuo d'aquella especie, acrescentou logo que haviamos de ter tambem ´o nosso Maiaª. O Maia d'elle, e o Maia d'ella... Santo accordo! Suavissimo arranjo! Carlos olhou-o com severidade. --Tu vens obsceno de Celorico, Ega. --⦠o que se aprende no seio da Santa Madre Igreja. Mas tambem Carlos tinha uma novidade que o devia fazer estremecer. O Ega porÃm j· sabia. A chegada dos Cohens, nâo à verdade? LÃra-o logo n'essa manhâ, na _Gazeta Illustrada_, no _high-life_. L· se dizia respeitosamente que s. exc.^{as} tinham regressado do seu passeio pelo estrangeiro. --E que impressâo te fez? perguntou Carlos rindo. O outro encolheu brutalmente os hombros: --Fez-me o effeito de haver um cabrâo mais na cidade. E, como Carlos o accusava outra vez de trazer de Celorico uma lingua immunda, o Ega, um pouco cÃrado, arrependido talvez, lanÃou-se em consideraÃıes criticas, clamando pela necessidade social de dar ·s coisas o nome exacto. Para que servia entâo o grande movimento naturalista do seculo? Se o vicio se perpetuava, à porque a sociedade, indulgente e romanesca, lhe dava nomes que o embellezavam, que o idealisavam... Que escrupulo pÃde ter uma mulher em beijocar um terceiro entre os lenÃoes conjugaes, se o mundo chama a isso sentimentalmente um romance, e os poetas o cantam em estrophes d'ouro? --E a proposito, a tua comedia, o _LodaÃal_? perguntou Carlos, que entr·ra um instante para a alcova de banho. --Abandonei-a, disse o Ega. Era feroz de mais... E alÃm d'isso fazia-me remexer na podridâo lisboeta, mergulhar outra vez na sargeta humana... Affligia-me... Parou diante do grande espelho, deu um olhar descontente ao seu jaquetâo claro e ·s botas com mau verniz. --Preciso enfardelar-me de novo, Carlinhos... O Poole naturalmente mandou-te fato de verâo, hei de querer examinar esses cÃrtes da alta civilisaÃâo... Nâo ha negal-o, diabo, esta minha linha est· chinfrim! Passou uma escova pelo bigode, e continuou fallando para dentro, para a alcova de banho: --Pois, menino, eu agora o que necessito à o regimen da Chimera. Vou-me atirar outra vez ·s _Memorias_. Ha de se fazer ahi uma quantidade d'arte colossal n'esse quarto que me destinas, diante de Velasquez... E a proposito, à necessario ir comprimentar o velho Affonso, uma vez que elle me vai dar o pâo, o tecto, e a enxerga... Foram encontrar Affonso da Maia no escriptorio, na sua velha poltrona, com um antigo volume da _IllustraÃâo franceza_ aberto sobre os joelhos, mostrando as estampas a um pequeno bonito, muito moreno, d'olho vivo, e cabello encarapinhado. O velho ficou contentissimo ao saber que o Ega vinha por algum tempo alegrar o Ramalhete com a sua bella phantasia. --J· nâo tenho phantasia, snr. Affonso da Maia! --Entâo esclarecÃl-o com a tua clara razâo, disse o velho rindo. Estamos c· precisando d'ambas as coisas, John. Depois apresentou-lhe aquelle pequeno cavalheiro, o snr. Manoelinho, rapazinho amavel da visinhanÃa, filho do Vicente, mestre d'obras; o Manoelinho vinha ·s vezes animar a solidâo d'Affonso--e alli folheavam ambos livros d'estampas e tinham conversas philosophicas. Agora, justamente, estava elle muito embaraÃado por nâo lhe saber explicar como à que o general Canrobert (de quem estavam admirando o garbo sobre o seu cavallo empinado) tendo mandado matar gente, muita gente, em batalhas, nâo era mettido na cadÃa... --Est· visto! exclamou o pequeno, esperto e desembaraÃado, com as mâos cruzadas atraz das costas. Se mandou matar gente deviam-no ferrar na cadÃa! --Hein, amigo Ega! dizia Affonso rindo. Que se ha de responder a esta bella logica? Olha, filho, agora que estâo aqui estes dois senhores que sâo formados em Coimbra, eu vou estudar esse caso... Vai tu vÃr os bonecos alli para cima da mesa... E depois vâo sendo horas d'ires l· dentro · Joanna, para merendares. Carlos, ajudando o pequeno a accommodar-se · mesa com o seu grande volume d'estampas, pensava quanto o avÃ, com aquelle seu amor por crianÃas, gostaria de conhecer Rosa! Affonso no emtanto perguntava tambem ao Ega pela comedia. O quÃ! J· abandonada? Quando acabaria entâo o bravo John de fazer bocados incompletos d'obras-primas?...--Ega queixou-se do paiz, da sua indifferenÃa pela arte. Que espirito original nâo esmoreceria, vendo em torno de si esta espessa massa de burguezes, amodorrada e crassa, desdenhando a intelligencia, incapaz de se interessar por uma idÃa nobre, por uma phrase bem feita? --Nâo vale a pena, snr. Affonso da Maia. N'este paiz, no meio d'esta prodigiosa imbecilidade nacional, o homem de senso e de gosto deve limitar-se a plantar com cuidado os seus legumes. Olhe o Herculano... --Pois entâo, acudiu o velho, planta os teus legumes. ⦠um serviÃo · alimentaÃâo publica. Mas tu nem isso fazes! Carlos, muito sÃrio, apoiava o Ega. --A unica coisa a fazer em Portugal, dizia elle, à plantar legumes, emquanto nâo ha uma revoluÃâo que faÃa subir · superficie alguns dos elementos originaes, fortes, vivos, que isto ainda encerre l· no fundo. E se se vir entâo que nâo encerra nada, demittamo-nos logo voluntariamente da nossa posiÃâo de paiz para que nâo temos elementos, passemos a ser uma fertil e estupida provincia hespanhola, e plantemos mais legumes! O velho escutava com melancolia estas palavras do neto em que sentia como uma decomposiÃâo da vontade, e que lhe pareciam ser apenas a glorificaÃâo da sua inercia. Terminou por dizer: --Pois entâo faÃam vocÃs essa revoluÃâo. Mas pelo amor de Deus, faÃam alguma coisa! --O Carlos j· nâo faz pouco, exclamou Ega, rindo. Passeia a sua pessoa, a sua toilette e o seu phaeton, e por esse facto educa o gosto! O relogio Luiz XV interrompeu-os--lembrando ao Ega que devia ainda, antes de jantar, ir buscar a sua mala ao Hotel Hespanhol. Depois no corredor confessou a Carlos que, antes d'ir ao Hespanhol, queria correr ao Fillon, ao photographo, vÃr se podia tirar um bonito retrato. --Um retrato? --Uma surpreza que tem d'ir d'aqui a tres dias para Celorico, para o dia d'annos d'uma creaturinha que me adoÃou o exilio. --Oh Ega! --⦠horroroso, mas entâo? ⦠a filha do padre CorrÃa, filha conhecida como tal; alÃm d'isso casada com um proprietario rico da visinhanÃa, reaccionario odioso... De modo que, bem vÃs, esta dupla peÃa a pregar · Religiâo e · Propriedade... --Ah! n'esse caso... --Ninguem se deve eximir, amigo, aos seus grandes deveres democraticos! Na segunda-feira seguinte choviscava quando Carlos e Ega, no coupà fechado, partiram para o jantar dos Gouvarinhos. Desde a chegada da condessa Carlos vira-a sà uma vez, em casa d'ella; e fÃra uma meia hora desagradavel, cheia de malestar, com um ou outro beijo frio, e recriminaÃıes infindaveis. Ella queix·ra-se das cartas d'elle, tâo raras, tâo seccas. Nâo se puderam entender sobre os planos d'esse verâo, ella devendo ir para Cintra onde j· alug·ra casa, Carlos fallando no dever de acompanhar o avà a Santa Olavia. A condessa achava-o distrahido: elle achou-a exigente. Depois ella sentou-se um instante sobre os seus joelhos e aquelle leve e delicado corpo pareceu a Carlos de um fastidioso peso de bronze. Por fim a condessa arranc·ra-lhe a promessa de a ir encontrar, justamente n'essa segunda-feira de manhâ, a casa da titi, que estava em Santarem;--porque tinha sempre o appetite perverso e requintado de o apertar nos braÃos nËs, em dias que o devesse receber na sua sala, mais tarde, e com ceremonia. Mas Carlos falt·ra,--e agora, rodando para casa d'ella, impacientavam-n'o j· as queixas que teria de ouvir nos vâos de janella, e as mentiras chÃchas que teria de balbuciar... De repente o Ega, que fumava em silencio, abotoado no seu paletot de verâo, bateu no joelho de Carlos, e entre risonho e sÃrio: --Dize-me uma coisa, se nâo à um segredo sacrosanto... Quem à essa brazileira com quem tu agora passas todas as tuas manhâs? Carlos ficou um instante aturdido, com os olhos no Ega. --Quem te fallou n'isso? --Foi o Damaso que m'o disse. Isto Ã, o Damaso que m'o rugiu... Porque foi de dentes rilhados, a dar murros surdos n'um sof· do Gremio, e com uma cÃr d'apoplexia, que elle me contou tudo... --Tudo o quÃ? --Tudo. Que te apresent·ra a uma brazileira a quem se atirava, e que tu, aproveitando a sua ausencia, te metteras l·, nâo sahias de l·... --Tudo isso à mentira! exclamou o outro, j· impaciente. E Ega, sempre risonho: --Entâo ´que à a verdadeª, como perguntava o velho Pilatus ao chamado Jesus Christo? --⦠que ha uma senhora a quem o Damaso suppunha ter inspirado uma paixâo, como suppıe sempre, e que, tendo-lhe adoecido a governante ingleza com uma bronchite, me mandou chamar para eu a tratar. Ainda nâo est· melhor, eu vou vÃl-a todos os dias. E Madame Gomes, que à o nome da senhora, que nem brazileira Ã, nâo podendo tolerar o Damaso, como ninguem o tolera, tem-lhe fechado a sua porta. Esta à a verdade; mas talvez eu arranque as orelhas ao Damaso! Ega contentou-se em murmurar: --E ahi est· como se escreve a historia... v·-se l· a gente fiar em Guizot! Em silencio, atà casa da Gouvarinho, Carlos foi ruminando a sua cÃlera contra o Damaso. Ahi estava pois rasgada por aquelle imbecil a penumbra suave e favoravel em que se abrig·ra o seu amor! Agora j· se pronunciava o nome de Maria Eduarda no Gremio: o que o Damaso dissera ao Ega, repetil-o-hia a outros, na Casa Havaneza, no restaurante Silva, talvez nos lupanares: e assim o interesse supremo da sua vida seria d'ahi por diante constantemente perturbado, estragado, sujo pela tagarellice reles do Damaso! --Parece-me que temos c· mais gente, disse o Ega, ao penetrarem na ante-camara dos Gouvarinhos, vendo sobre o canapà um paletot cinzento e capas de sonhem. A condessa esperava-os na salinha ao fundo, chamada ´do bustoª, vestida de preto, com uma tira de velludo em volta do pescoÃo picada de tres estrellas de diamantes. Uma cesta de esplendidas flÃres quasi enchia a mesa, onde se accumulavam tambem romances inglezes, e uma Revista dos Dois Mundos em evidencia, com a faca de marfim entre as folhas. AlÃm da boa D. Maria da Cunha e da baroneza d'Alvim, havia uma outra senhora, que nem Carlos nem Ega conheciam, gorda e vestida d'escarlate; e de pÃ, conversando baixo com o conde, de mâos atraz das costas, um cavalheiro alto, escaveirado, grave, com uma barba rala, e a commenda da ConceiÃâo. A condessa, um pouco cÃrada, estendeu a Carlos a mâo amuada e frouxa: todos os seus sorrisos foram para o Ega. E o conde apoderou-se logo do querido Maia, para o apresentar ao seu amigo o snr. Sousa Netto. O snr. Sousa Netto j· tinha o prazer de conhecer muito Carlos da Maia, como um medico distincto, uma honra da Universidade... E era esta a vantagem de Lisboa, disse logo o conde, o conhecerem-se todos de reputaÃâo, o poder-se ter assim uma apreciaÃâo mais justa dos caracteres. Em Paris, por exemplo, era impossivel; por isso havia tanta immoralidade, tanta relaxaÃâo... --Nunca sabe a gente quem mette em casa. O Ega, entre a condessa e D. Maria, enterrado no divan, mostrando as estrellinhas bordadas das meias, fazia-as rir com a historia do seu exilio em Celorico, onde se distrahia compondo sermıes para o abbade: o abbade recitava-os; e os sermıes, sob uma fÃrma mystica, eram de facto affirmaÃıes revolucionarias que o santo varâo lanÃava com fervor, esmurrando o pulpito... A senhora de vermelho, sentada defronte, de mâos no regaÃo, escutava o Ega, com o olhar espantado. --Imaginei que v. exc.^a tinha ido j· para Cintra, veio dizer Carlos · senhora baroneza, sentando-se junto d'ella. V. exc.^a à sempre a primeira... --Como quer o senhor que se v· para Cintra com um tempo d'estes? --Com effeito, est· infernal... --E que conta de novo? perguntou ella, abrindo lentamente o seu grande leque preto. --Creio que nâo ha nada de novo em Lisboa, minha senhora, desde a morte do snr. D. Joâo VI. --Agora ha o seu amigo Ega, por exemplo. --⦠verdade, ha o Ega... Como o acha v. exc.^a, senhora baroneza? Ella nem baixou a voz para dizer: --Olhe, eu como o achei sempre um grande presumido e nâo gosto d'elle, nâo posso dizer nada... --Oh senhora baroneza, que falta de caridade! O escudeiro annunci·ra o jantar. A condessa tomou o braÃo de Carlos,--e, ao atravessar o salâo, entre o frouxo murmurio de vozes e o rumor lento das caudas de sÃda, pÃde dizer-lhe asperamente: --Esperei meia hora; mas comprehendi logo que estaria entretido com a brazileira... Na sala de jantar, um pouco sombria, forrada de papel cÃr de vinho, escurecida ainda por dois antigos paineis de paizagem tristonha, a mesa oval, cercada de cadeiras de carvalho lavrado, resaltava alva e fresca, com um esplendido cesto de rosas entre duas serpentinas douradas. Carlos ficou · direita da condessa, tendo ao lado D. Maria da Cunha, que n'esse dia parecia um pouco mais velha, e sorria com um ar cansado. --Que tem feito todo este tempo, que ninguem o tem visto? perguntou-lhe ella, desdobrando o guardanapo. --Por esse mundo, minha senhora, vagamente... Defronte de Carlos, o snr. Sousa Netto, que tinha tres enormes coraes no peitilho da camisa, estava j· observando, emquanto remexia a sopa, que a senhora condessa, na sua viagem ao Porto, devia ter encontrado nas ruas e nos edificios grandes mudanÃas... A condessa, infelizmente, mal tinha sahido durante o tempo que estivera no Porto. O conde, esse, à que admirara os progressos da cidade. E especificou-os: elogiou a vista do Palacio de Crystal; lembrou o fecundo antagonismo que existe entre Lisboa e Porto; mais uma vez o comparou ao dualismo da Austria e da Hungria. E atravÃs d'estas coisas graves, lanÃadas d'alto, com superioridade e com peso, a baroneza e a senhora d'escarlate, aos dois lados d'elle, fallavam do convento das Selesias. Carlos, no emtanto, comendo em silencio a sua sopa, ruminava as palavras da condessa. Tambem ella conhecia j· a sua intimidade com a ´brazileiraª. Era evidente pois que j· andava alli, diffamante e torpe, a tagarellice do Damaso. E quando o criado lhe offereceu Sauterne, estava decidido a bater no Damaso. De repente ouviu o seu nome. Do fim da mesa uma voz dizia, pachorrenta e cantada: --O snr. Maia à que deve saber... O snr. Maia j· l· esteve. Carlos pousou vivamente o copo. Era a senhora d'escarlate que lhe fallava, sorrindo, mostrando uns bonitos dentes sob o buÃo forte de quarentona pallida. Ninguem lh'a apresent·ra, elle nâo sabia quem era. Sorriu tambem, perguntou: --Onde, minha senhora? --Na Russia. --Na Russia?... Nâo, minha senhora, nunca estive na Russia. Ella pareceu um pouco desapontada. --Ah, à que me tinham dito... Nâo sei j· quem me disse, mas era pessoa que sabia... O conde ao fundo explicava-lhe amavelmente que o amigo Maia estivera apenas na Hollanda. --Paiz de grande prosperidade, a Hollanda!... Em nada inferior ao nosso... J· conheci mesmo um hollandez que era excessivamente instruido... A condessa baix·ra os olhos, partindo vagamente um bocadinho de pâo, mais sÃria de repente, mais secca, como se a voz de Carlos, erguendo-se tâo tranquilla ao seu lado, tivesse avivado os seus despeitos. Elle, entâo, depois de provar devagar o seu Sauterne, voltou-se para ella, muito naturalmente e risonho: --Veja a senhora condessa! Eu nem tive mesmo idÃa d'ir · Russia. Ha assim uma infinidade de coisas que se dizem e que nâo sâo exactas... E se se faz uma allusâo ironica a ellas, ninguem comprehende a allusâo nem a ironia... A condessa nâo respondeu logo, dando com o olhar uma ordem muda ao escudeiro. Depois, com um sorriso pallido: --No fundo de tudo que se diz ha sempre um facto, ou um bocado de facto que à verdadeiro. E isso basta... Pelo menos a mim basta-me... --A senhora condessa tem entâo uma credulidade infantil. Estou vendo que acredita que era uma vez uma filha d'um rei que tinha uma estrella na testa... Mas o conde interpellava-o, o conde queria a opiniâo do seu amigo Maia. Tratava-se do livro de um inglez, o major Bratt, que atravess·ra a Africa, e dizia coisas perfidamente desagradaveis para Portugal. O conde via alli sà inveja--a inveja que nos tÃm todas as naÃıes por causa da importancia das nossas colonias, e da nossa vasta influencia na Africa... --Est· claro, dizia o conde, que nâo temos nem os milhıes, nem a marinha dos inglezes. Mas temos grandes glorias; o infante D. Henrique à de primeira ordem; e a tomada d'Ormuz à um primor... E eu que conheÃo alguma coisa de systemas coloniaes, posso affirmar que nâo ha hoje colonias nem mais susceptiveis de riqueza, nem mais crentes no progresso, nem mais liberaes que as nossas! Nâo lhe parece, Maia? --Sim, talvez, à possivel... Ha muita verdade n'isso... Mas Ega, que estivera um pouco silencioso, entalando de vez em quando o monoculo no olho e sorrindo para a baroneza, pronunciou-se alegremente contra todas essas exploraÃıes da Africa, e essas longas missıes geographicas... Porque nâo se deixaria o preto socegado, na calma posse dos seus manipansos? Que mal fazia · ordem das coisas que houvesse selvagens? Pelo contrario, davam ao Universo uma deliciosa quantidade de pittoresco! Com a mania franceza e burgueza de reduzir todas as regiıes e todas as raÃas ao mesmo typo de civilisaÃâo, o mundo ia tornar-se d'uma monotonia abominavel. Dentro em breve um touriste faria enormes sacrificios, despezas sem fim, para ir a Tombuctu--para quÃ? Para encontrar l· pretos de chapÃo alto, a lÃr o _Jornal dos Debates_! O conde sorria com superioridade. E a boa D. Maria, sahindo do seu vago abatimento, movia o leque, dizia a Carlos, deleitada: --Este Ega! Este Ega! Que graÃa! Que _chic_! Entâo Sousa Netto, pousando gravemente o talher, fez ao Ega esta pergunta grave: --V. exc.^a pois à em favor da escravatura? Ega declarou muito decididamente ao snr. Sousa Netto que era pela escravatura. Os desconfortos da vida, segundo elle, tinham comeÃado com a libertaÃâo dos negros. Sà podia ser sÃriamente obedecido, quem era sÃriamente temido... Por isso ninguem agora lograva ter os seus sapatos bem envernizados, o seu arroz bem cozido, a sua escada bem lavada, desde que nâo tinha criados pretos em quem fosse licito dar vergastadas... Sà houvera duas civilisaÃıes em que o homem conseguira viver com razoavel commodidade: a civilisaÃâo romana, e a civilisaÃâo especial dos plantadores da Nova Orleans. Porque? porque n'uma e n'outra existira a escravatura absoluta, a sÃrio, com o direito de morte!... Durante um momento o snr. Sousa Netto ficou como desorganisado. Depois passou o guardanapo sobre os beiÃos, preparou-se, encarou o Ega: --Entâo v. exc.^a n'essa idade, com a sua intelligencia, nâo acredita no Progresso? --Eu nâo senhor. O conde interveio, affavel e risonho: --O nosso Ega quer fazer simplesmente um paradoxo. E tem razâo, tem realmente razâo, porque os faz brilhantes... Estava-se servindo _Jambon aux Ãpinards_. Durante um momento fallou-se de paradoxos. Segundo o conde, quem os fazia tambem brilhantes e difficeis de sustentar, excessivamente difficeis, era o Barros, o ministro do reino... --Talento robusto, murmurou respeitosamente Sousa Netto. --Sim, pujante, disse o conde. Mas elle agora nâo fallava tanto do talento do Barros como parlamentar, como homem d'estado. Fallava do seu espirito de sociedade, do seu _esprit_... --Ainda este inverno nÃs lhe ouvimos um paradoxo brilhante! Atà foi em casa da snr.^a D. Maria da Cunha... V. exc.^a nâo se lembra, snr.^a D. Maria? Esta minha desgraÃada memoria! â Thereza, lembras-te d'aquelle paradoxo do Barros? Ora sobre que era, meu Deus?... Emfim, um paradoxo muito difficil de sustentar... Esta minha memoria!... Pois nâo te lembras, Thereza? A condessa nâo se lembrava. E emquanto o conde ficava remexendo anciosamente, com a mâo na testa, as suas recordaÃıes,--a senhora d'escarlate voltou a fallar de pretos, e de escudeiros pretos, e d'uma cozinheira preta que tivera uma tia d'ella, a tia Villar... Depois queixou-se amargamente dos criados modernos: desde que lhe morrera a Joanna, que estava em casa havia quinze annos, nâo sabia que fazer, andava como tonta, tinha sà desgostos. Em seis mezes j· vira quatro caras novas. E umas desleixadas, umas pretenciosas, uma immoralidade!... Quasi lhe fugiu um suspiro do peito, e trincando desconsoladamente uma migalhinha de pâo: --â baroneza, ainda tens a Vicenta? --Pois entâo nâo havia de ter a Vicenta?... Sempre a Vicenta... A snr.^a D. Vicenta, se faz favor. A outra contemplou-a um instante, com inveja d'aquella felicidade. --E à a Vicenta que te penteia? Sim, era a Vicenta que a penteava. Ia-se fazendo velha, coitada... Mas sempre caturra. Agora andava com a mania de aprender francez. J· sabia verbos. Era de morrer, a Vicenta a dizer _j'aime_, _tu aimes_... --E a senhora baroneza, acudiu o Ega, comeÃou por lhe mandar ensinar os verbos mais necessarios. Est· claro, dizia a baroneza, que aquelle era o mais necessario. Mas na idade da Vicenta j· de pouco lhe poderia servir! --Ah! gritou de repente o conde, deixando quasi cahir o talher. Agora me lembro! Tinha-se lembrado emfim do soberbo paradoxo do Barros. Dizia o Barros que os câes, quanto mais ensinados... Pois, nâo, nâo era isto! --Esta minha desgraÃada memoria!... E era sobre câes. Uma coisa brilhante, philosophica atÃ! E, por se fallar de câes, a baroneza lembrou-se do _Tommy_, o galgo da condessa; perguntou por _Tommy_. J· o nâo via ha que tempos, esse bravo _Tommy_! A condessa nem queria que se fallasse no _Tommy_, coitado! Tinham-lhe nascido umas coisas nos ouvidos, um horror... Mand·ra-o para o Instituto, l· morrera. --Est· deliciosa esta galantine, disse D. Maria da Cunha, inclinando-se para Carlos. --Deliciosa. E a baroneza, do lado, declarou tambem a galantine uma perfeiÃâo. Com um olhar ao escudeiro, a condessa fez servir de novo a galantine: e apressou-se a responder ao snr. Sousa Netto, que, a proposito de câes, lhe estava fallando da _Sociedade protectora dos animaes_. O snr. Sousa Netto approvava-a, considerava-a como um progresso... E, segundo elle, nâo seria mesmo de mais que o governo lhe dÃsse um subsidio. --Que eu creio que ella vai prosperando... E merece-o, acredite a senhora condessa que o merece... Estudei essa questâo, e de todas as sociedades que ultimamente se tÃm fundado entre nÃs, · imitaÃâo do que se faz l· fÃra, como a _Sociedade de Geographia_ e outras, a _Protectora dos animaes_ parece-me decerto uma das mais uteis. Voltou-se para o lado, para o Ega: --V. exc.^a pertence? --¡ _Sociedade protectora dos animaes_?... Nâo senhor, pertenÃo a outra, · de _Geographia_. Sou dos protegidos. A baroneza teve uma das suas alegres risadas. E o conde fez-se extremamente sÃrio: pertencia · _Sociedade de Geographia_, considerava-a um pilar do Estado, acreditava na sua missâo civilisadora, detestava aquellas irreverencias. Mas a condessa e Carlos tinham rido tambem:--e de repente a frialdade que atà ahi os conserv·ra ao lado um do outro reservados, n'uma ceremonia affectada, pareceu dissipar-se ao calor d'esse riso trocado, no brilho dos dois olhares encontrando-se irresistivelmente. Servira-se o Champagne, ella tinha uma cÃrzinha no rosto. O seu pÃ, sem ella saber como, roÃou pelo pà de Carlos; sorriram ainda outra vez;--e, como no resto da mesa se conversava sobre uns concertos classicos que ia haver no Price, Carlos perguntou-lhe, baixo, com uma reprehensâo amavel: --Que tolice foi essa da _brazileira_?... Quem lhe disse isso? Ella confessou-lhe logo que fÃra o Damaso... O Damaso viera contar-lhe o enthusiasmo de Carlos por essa senhora, e as manhâs inteiras que l· passava, todos os dias, · mesma hora... Emfim o Damaso fizera-lhe claramente entrevÃr uma _liaison_. Carlos encolheu os hombros. Como podia ella acreditar no Damaso? Devia conhecer-lhe bem a tagarellice, a imbecilidade... --⦠perfeitamente verdade que eu vou a casa d'essa senhora, que nem brazileira Ã, que à tâo portugueza como eu; mas à porque ella tem a governante muito doente com uma bronchite, e eu sou o medico da casa. Foi atà o Damaso, elle proprio, que l· me levou como medico! No rosto da condessa espalhava-se um riso, uma claridade vinda do dÃce allivio que se fazia no seu coraÃâo. --Mas o Damaso disse-me que era tâo linda!... Sim, era muito linda. E entâo? Um medico, por fidelidade ·s suas affeiÃıes, e para as nâo inquietar, nâo podia realmente, antes de penetrar na casa d'uma doente, exigir-lhe um certificado de hediondez! --Mas que est· ella c· a fazer?... --Est· · espera do marido que foi a negocios ao Brazil, e vem ahi... ⦠uma gente muito distincta, e creio que muito rica... Vâo-se brevemente embora, de resto, e eu pouco sei d'elles. As minhas visitas sâo de medico; tenho apenas conversado com ella sobre Paris, sobre Londres, sobre as suas impressıes de Portugal... A condessa bebia estas palavras, deliciosamente, dominada pelo bello olhar com que elle lh'as murmurava: e o seu pà apertava o de Carlos n'uma reconciliaÃâo apaixonada, com a forÃa que desejaria pÃr n'um abraÃo--se alli lh'o podesse dar. A senhora d'escarlate, no emtanto, recome÷ra a fallar da Russia. O que a assustava à que o paiz era tâo caro, corriam-se tantos perigos por causa da dynamite, e uma constituiÃâo fraca devia soffrer muito com a neve nas ruas. E foi entâo que Carlos percebeu que ella era a esposa de Sousa Netto, e que se tratava d'um filho d'elles, filho unico, despachado segundo secretario para a legaÃâo de S. Petersburgo. --O menino conhece-o? perguntou D. Maria ao ouvido de Carlos, por traz do leque. ⦠um horror d'estupidez... Nem francez sabe! De resto nâo à peor que os outros... Que a quantidade de mÃnos, de semsaborıes e de tolos que nos representam l· fÃra atà faz chorar... Pois o menino nâo acha? Isto à um paiz desgraÃado. --Peor, minha cara senhora, muito peor. Isto à um paiz _cursi_. Tinha findado a sobremesa. D. Maria olhou para a condessa com o seu sorriso cansado; a senhora de escarlate cal·ra-se, j· preparada, tendo mesmo afastado um pouco a cadeira; e as senhoras ergueram-se, no momento em que o Ega, ainda ·cerca da Russia, acabava de contar uma historia ouvida a um polaco, e em que se provava que o Czar era um estupido... --Liberal todavia, gostando bastante do progresso! murmurou ainda o conde, j· de pÃ. Os homens, sÃs, accenderam os seus charutos; o escudeiro serviu o cafÃ. Entâo o snr. Sousa Netto, com a sua chavena na mâo, aproximou-se de Carlos para lhe exprimir de novo o prazer que tivera em fazer o seu conhecimento... --Eu tive tambem em tempos o prazer de conhecer o pai de v. exc.^a... Pedro, creio que era justamente o snr. Pedro da Maia. ComeÃava eu entâo a minha carreira publica... E o avà de v. exc.^a, bom? --Muito agradecido a v. exc.^a --Pessoa muito respeitavel... O pai de v. exc.^a era... Emfim, era o que se chama ´um eleganteª. Tive tambem o prazer de conhecer a mâi de v. exc.^a... E de repente calou-se, embaraÃado, levando a chavena aos labios. Depois, lentamente, voltou-se para escutar melhor o Ega, que ao lado discutia com o Gouvarinho sobre mulheres. Era a proposito da secret·ria da legaÃâo da Russia, com quem elle encontr·ra n'essa manhâ o conde conversando ao Calhariz. O Ega achava-a deliciosa, com o seu corpinho nervoso e ondeado, os seus grandes olhos garÃos... E o conde, que a admirava tambem, gabava-lhe sobretudo o espirito, a instrucÃâo. Isso, segundo o Ega, prejudicava-a: porque o dever da mulher era primeiro ser bella, e depois ser estupida... O conde affirmou logo com exuberancia que nâo gostava tambem de litteratas: sim, decerto o lugar da mulher era junto do berÃo, nâo na bibliotheca... --No emtanto à agradavel que uma senhora possa conversar sobre coisas amenas, sobre o artigo d'uma Revista, sobre... Por exemplo, quando se publica um livro... Emfim, nâo direi quando se trata d'um Guizot, ou d'um Jules Simon... Mas, por exemplo, quando se trata d'um Feuillet, d'um... Emfim, uma senhora deve ser prendada. Nâo lhe parece, Netto? Netto, grave, murmurou: --Uma senhora, sobretudo quando ainda à nova, deve ter algumas prendas... Ega protestou, com calor. Uma mulher com prendas, sobretudo com prendas litterarias, sabendo dizer coisas sobre o snr. Thiers, ou sobre o snr. Zola, à um monstro, um phenomeno que cumpria recolher a uma companhia de cavallinhos, como se soubesse trabalhar nas argolas. A mulher sà devia ter duas prendas: cozinhar bem e amar bem. --V. exc.^a decerto, snr. Sousa Netto, sabe o que diz Proudhon? --Nâo me recordo textualmente, mas... --Em todo o caso v. exc.^a conhece perfeitamente o seu Proudhon? O outro, muito seccamente, nâo gostando decerto d'aquelle interrogatorio, murmurou que Proudhon era um author de muita nomeada. Mas o Ega insistia, com uma impertinencia perfida: --V. exc.^a leu evidentemente, como nÃs todos, as grandes paginas de Proudhon sobre o amor? O snr. Netto, j· vermelho, pousou a chavena sobre a mesa. E quiz ser sarcastico, esmagar aquelle moÃo, tâo litterario, tâo audaz. --Nâo sabia, disse elle com um sorriso infinitamente superior, que esse philosopho tivesse escripto sobre assumptos escabrosos! Ega atirou os braÃos ao ar, consternado: --Oh snr. Sousa Netto! Entâo v. exc.^a, um chefe de familia, acha o amor um assumpto escabroso?! O snr. Netto encordoou. E muito direito, muito digno, fallando do alto da sua consideravel posiÃâo burocratica: --⦠meu costume, snr. Ega, nâo entrar nunca em discussıes, e acatar todas as opiniıes alheias, mesmo quando ellas sejam absurdas... E quasi voltou as costas ao Ega, dirigindo-se outra vez a Carlos, desejando saber, n'uma voz ainda um pouco alterada, se elle agora se fixava algum tempo mais em Portugal. Entâo, durante um momento, acabando os charutos, os dois fallaram de viagens. O snr. Netto lamentava que os seus muitos deveres nâo lhe permitissem percorrer a Europa. Em pequeno fÃra esse o seu ideal; mas agora, com tantas occupaÃıes publicas, via-se forÃado a nâo deixar a carteira. E alli estava, sem ter visto sequer Badajoz... --E v. exc.^a de que gostou mais, de Paris ou de Londres? Carlos realmente nâo sabia, nem se podia comparar... Duas cidades tâo differentes, duas civilisaÃıes tâo originaes... --Em Londres, observou o conselheiro, tudo carvâo... Sim, dizia Carlos sorrindo, bastante carvâo, sobretudo nos fogıes, quando havia frio... O snr. Sousa Netto murmurou: --E o frio alli deve ser sempre consideravel... Clima tâo ao norte!... Esteve um momento mamando o charuto, de palpebra cerrada. Depois, fez esta observaÃâo sagaz e profunda: --Povo pratico, povo essencialmente pratico. --Sim, bastante pratico, disse vagamente Carlos, dando um passo para a sala, onde se sentiam as risadas cantantes da baroneza. --E diga-me outra coisa, proseguiu o snr. Sousa Netto, com interesse, cheio de curiosidade intelligente. Encontra-se por l·, em Inglaterra, d'esta litteratura amena, como entre nÃs, folhetinistas, poetas de pulso?... Carlos deitou a ponta do charuto para o cinzeiro, e respondeu, com descaro: --Nâo, nâo ha d'isso. --Logo vi, murmurou Sousa Netto. Tudo gente de negocio. E penetraram na sala. Era o Ega que assim fazia rir a baroneza, sentado defronte d'ella, fallando outra vez de Celorico, contando-lhe uma soirÃe de Celorico, com detalhes picarescos sobre as authoridades, e sobre um abbade que tinha morto um homem e cantava fados sentimentaes ao piano. A senhora d'escarlate, no sof· ao lado, com os braÃos cahidos no regaÃo, pasmava para aquella veia do Ega como para as destrezas d'um palhaÃo. D. Maria, junto da mesa, folheava com o seu ar cansado uma _IllustraÃâo_; e vendo que Carlos ao entrar procur·ra com o olhar a condessa, chamou-o, disse-lhe baixo que ella fÃra dentro vÃr Charlie, o pequeno... --⦠verdade, perguntou Carlos, sentando-se ao lado d'ella, que à feito d'elle, d'esse lindo Charlie? --Diz que tem estado hoje constipado, e um pouco murcho... --A snr.^a D. Maria tambem me parece hoje um pouco murcha. --⦠do tempo. Eu j· estou na idade em que o bom humor ou o aborrecimento vÃm sà das influencias do tempo... Na sua idade vem d'outras coisas. E a proposito d'outras coisas: entâo a Cohen tambem chegou? --Chegou, disse Carlos, mas nâo _tambem_. O _tambem_ implica combinaÃâo... E a Cohen e o Ega chegaram realmente ambos por acaso... De resto isso à historia antiga, à como os amores de Helena e de P·ris. N'esse instante a condessa voltava de dentro, um pouco afogueada, e trazendo aberto um grande leque negro. Sem se sentar, fallando sobretudo para a mulher do snr. Sousa Netto, queixou-se logo de nâo ter achado Charlie bem... Estava tâo quente, tâo inquieto... Tinha quasi medo que fosse sarampo.--E voltando-se vivamente para Carlos, com um sorriso: --Eu estou com vergonha... Mas se o snr. Carlos da Maia quizesse ter o incommodo de o vir vÃr um instante... ⦠odioso, realmente, pedir-lhe logo depois de jantar para examinar um doente... --Oh senhora condessa! exclamou elle, j· de pÃ. Seguiu-a. N'uma saleta, ao lado, o conde e o snr. Sousa Netto, enterrados n'um sof·, conversavam fumando. --Levo o snr. Carlos da Maia para vÃr o pequeno... O conde erguera-se um pouco do sof·, sem comprehender bem. J· ella pass·ra. Carlos seguiu em silencio a sua longa cauda de sÃda preta atravÃs do bilhar, deserto, com o gaz acceso, ornado de quatro retratos de damas, da familia dos Gouvarinhos, empoadas e sorumbaticas. Ao lado, por traz de um pesado reposteiro de fazenda verde, era um gabinete, com uma velha poltrona, alguns livros n'uma estante envidraÃada, e uma escrevaninha onde pousava um candieiro sob o abat-jour de renda cÃr de rosa. E ahi, bruscamente, ella parou, atirou os braÃos ao pescoÃo de Carlos, os seus labios prenderam-se aos d'elle n'um beijo sÃfrego, penetrante, completo, findando n'um soluÃo de desmaio... Elle sentia aquelle lindo corpo estremecer, escorregar-lhe entre os braÃos, sobre os joelhos sem forÃa. --¡manhâ, em casa da titi, ·s onze, murmurou ella quando pÃde fallar. --Pois sim. Desprendida d'elle, a condessa ficou um momento com as mâos sobre os olhos, deixando desvanecer aquella languida vertigem, que a fizera cÃr de cÃra. Depois, cansada e sorrindo: --Que doida que eu sou... Vamos vÃr Charlie. O quarto do pequeno era ao fundo do corredor. E ahi, n'uma caminha de ferro, junto do leito maior da criada, Charlie dormia, sereno, fresco, com um bracinho cahido para o lado, os seus lindos caracoes loiros espalhados no travesseiro como uma aureola d'anjo. Carlos tocou-lhe apenas no pulso; e a criada escosseza, que trouxera uma luz de sobre a commoda, disse, sorrindo tranquillamente: --O menino n'estes ultimos dias tem andado muitissimo bem... Voltaram. No gabinete, antes de penetrar no bilhar, a condessa, j· com a mâo no reposteiro, estendeu ainda a Carlos os seus labios insaciaveis. Elle colheu um rapido beijo. E, ao passar na antecamara, onde Sousa Netto e o conde continuavam enfronhados n'uma conversa grave, ella disse ao marido: --O pequeno est· a dormir... O snr. Carlos da Maia achou-o bem. O conde de Gouvarinho bateu no hombro de Carlos, carinhosamente. E durante um momento a condessa ficou alli conversando, de pÃ, a deixar-se serenar, pouco a pouco, n'aquella penumbra favoravel, antes de affrontar a luz forte da sala. Depois, por se fallar em hygiene, convidou o snr. Sousa Netto para uma partida de bilhar; mas o snr. Netto, desde Coimbra, desde a Universidade, nâo peg·ra n'um taco. E ia-se chamar o Ega quando appareceu Telles da Gama, que chegava do Price. Logo atraz d'elle entrou o conde de Steinbroken. Entâo o resto da noite passou-se no salâo, em redor do piano. O ministro cantou melodias da Filandia. Telles da Gama tocou _fados_. Carlos e Ega foram os derradeiros a sahir, depois de um _brandy and soda_, de que a condessa partilhou, como ingleza forte. E em baixo, no pateo, acabando de abotoar o paletot, Carlos pÃde emfim soltar a pergunta que lhe faisc·ra nos labios toda a noite: --â Ega, quem à aquelle homem, aquelle Sousa Netto, que quiz saber se em Inglaterra havia tambem litteratura? Ega olhou-o com espanto: --Pois nâo adivinhaste? Nâo deduziste logo? Nâo viste immediatamente quem n'este paiz à capaz de fazer essa pergunta? --Nâo sei... Ha tanta gente capaz... E o Ega radiante: --Official superior d'uma grande repartiÃâo do Estado! --De qual? --Ora de qual! De qual ha de ser?... Da InstrucÃâo publica! Na tarde seguinte, ·s cinco horas, Carlos, que se demor·ra de mais em casa da titi com a condessa, retido pelos seus beijos interminaveis, fez voar o coupà atà · rua de S. Francisco, olhando a cada momento o relogio, n'um receio de que Maria Eduarda tivesse sahido por aquelle lindo dia de verâo, luminoso e sem calor. Com effeito · porta d'ella estava a carruagem da Companhia; e Carlos galgou as escadas, desesperado com a condessa, sobretudo comsigo mesmo, tâo fraco, tâo passivo, que assim se deix·ra retomar por aquelles braÃos exigentes, cada vez mais pesados, e j· incapazes de o commover... --A senhora chegou agora mesmo, disse-lhe o Domingos, que volt·ra da terra havia tres dias, e ainda nâo cess·ra de lhe sorrir. Sentada no sof·, de chapÃo, tirando as luvas, ella acolheu-o com uma dÃce cÃr no rosto, e uma carinhosa reprehensâo: --Estive · espera mais de meia hora antes de sahir... ⦠uma ingratidâo! Imaginei que nos tinha abandonado! --PorquÃ? Est· peor, miss Sarah? Ella olhou-o, risonhamente escandalisada. Ora, miss Sarah! Miss Sarah ia seguindo perfeitamente na sua convalescenÃa... Mas agora j· nâo eram as visitas de medico que se esperavam, eram as de amigo; e essa tinha-lhe faltado. Carlos, sem responder, perturbado, voltou-se para Rosa, que folheava junto da mesa um livro novo d'estampas; e a ternura, a gratidâo infinita do seu coraÃâo, que nâo ousava mostrar · mâe, pÃl-a toda na longa caricia em que envolveu a filha. --Sâo historias que a mamâ agora comprou, dizia Rosa, sÃria e presa ao seu livro. Hei de t'as contar depois... Sâo historias de bichos. Maria Eduarda erguera-se, desapertando lentamente as fitas do chapÃo. --Quer tomar uma chavena de ch· comnosco, snr. Carlos da Maia? Eu vinha morrendo por uma chavena de ch·... Que lindo dia, nâo à verdade? Rosa, fica tu a contar o nosso passeio emquanto eu vou tirar o chapÃo... Carlos, sà com Rosa, sentou-se junto d'ella, desviando-a do livro, tomando-lhe ambas as mâos. --Fomos ao Passeio da Estrella, dizia a pequena. Mas a mamâ nâo se queria demorar, porque tu podias ter vindo! Carlos beijou, uma depois da outra, as duas mâosinhas de Rosa. --E entâo que fizeste no Passeio? perguntou elle, depois d'um leve suspiro de felicidade que lhe fugira do peito. --Andei a correr, havia uns patinhos novos... --Bonitos?... A pequena encolheu os hombros: --Chinfrinzitos. Chinfrinzitos! Quem lhe tinha ensinado a dizer uma coisa tâo feia? Rosa sorriu. FÃra o Domingos. E o Domingos dizia ainda outras coisas assim, engraÃadas... Dizia que a Melanie era uma _gaja_... O Domingos tinha muita graÃa. Entâo Carlos advertiu-a que uma menina bonita, com tâo bonitos vestidos, nâo devia dizer aquellas palavras... Assim fallava a gente rÃta. --O Domingos nâo anda rÃto, disse Rosa muito sÃria. E subitamente, com outra idÃa, bateu as palmas, pulou-lhe entre os joelhos, radiante: --E trouxe-me uns grillos da PraÃa! O Domingos trouxe-me uns grillos... Se tu soubesses! _Niniche_ tem medo dos grillos! Parece incrivel, hein? Eu nunca vi ninguem mais medrosa... Esteve um momento a olhar Carlos, e acrescentou, com um ar grave: --⦠a mamâ que lhe d· tanto mimo. ⦠uma pena! Maria Eduarda entrava, ageitando ainda de leve o ondeado do cabello: e, ouvindo assim fallar de mimo, quiz saber quem à que ella estragava com mimo... _Niniche_? Pobre _Niniche_, coitada, ainda essa manhâ fÃra castigada! Entâo Rosa rompeu a rir, batendo outra vez as mâos: --Sabes como a mamâ a castiga? exclamava ella, puxando a manga de Carlos. Sabes?... Faz-lhe voz grossa... Diz-lhe em inglez: _Bad dog! dreadful dog!_ Era encantadora assim, imitando a voz severa da mamâ, com o dedinho erguido, a ameaÃar _Niniche_. A pobre _Niniche_, imaginando com effeito que a estavam a reprehender, arrastou-se, vexada, para debaixo do sof·. E foi necessario que Rosa a tranquillisasse, de joelhos sobre a pelle de tigre, jurando-lhe, por entre abraÃos, que ella nem era mau câo, nem feio câo; fÃra sà para contar como fazia a mamâ... --Vai-lhe dar agua, que ella deve estar com sÃde, disse entâo Maria Eduarda, indo sentar-se na sua cadeira escarlate. E dize ao Domingos que nos traga o ch·. Rosa e _Niniche_ partiram correndo. Carlos veio occupar, junto da janella, a costumada poltrona de reps. Mas pela primeira vez, desde a sua intimidade, houve entre elles um silencio difficil. Depois ella queixou-se de calor, desenrolando distrahidamente o bordado; e Carlos permanecia mudo, como se para elle, n'esse dia, apenas houvesse encanto, apenas houvesse significaÃâo n'uma certa palavra de que os seus labios estavam cheios e que nâo ousavam murmurar, que quasi receava que fosse adivinhada apesar d'ella suffocar o seu coraÃâo. --Parece que nunca se acaba, esse bordado! disse elle por fim, impaciente de a vÃr, tâo serena, a occupar-se das suas lâs. Com a talagarÃa desdobrada sobre os joelhos, ella respondeu, sem erguer os olhos: --E para que se ha de acabar? O grande prazer à andal-o a fazer, pois nâo acha? Uma malha hoje, outra malha ·manhâ, torna-se assim uma companhia... Para que se ha de querer chegar logo ao fim das coisas? Uma sombra passou no rosto de Carlos. N'estas palavras, ditas de leve ·cerca do bordado, elle sentia uma desanimadora allusâo ao seu amor,--esse amor que lhe fÃra enchendo o coraÃâo · maneira que a lâ cobria aquella talagarÃa, e que era obra simultanea das mesmas brancas mâos. Queria ella pois conserval-o alli, arrastado como o bordado, sempre acrescentado e sempre incompleto, guardado tambem no cesto da costura, para ser o desafogo da sua solidâo? Disse-lhe entâo, commovido: --Nâo à assim. Ha coisas que sà existem quando se completam, e que sà entâo dâo a felicidade que se procurava n'ellas. --⦠muito complicado isso, murmurou ella, cÃrando. ⦠muito subtil... --Quer que lh'o diga mais claramente? N'esse instante Domingos, erguendo o reposteiro, annunciou que estava alli o snr. Damaso... Maria Eduarda teve um movimento brusco de impaciencia: --Diga que nâo recebo! FÃra, no silencio, sentiram bater a porta. E Carlos ficou inquieto, lembrando-se que o Damaso devia ter visto em baixo, passeando na rua, o seu coupÃ. Santo Deus! O que elle iria tagarellar agora, com os seus pequeninos rancores, assim humilhado! Quasi lhe pareceu n'esse instante a existencia do Damaso incompativel com a tranquillidade do seu amor. --Ahi est· outro inconveniente d'esta casa, dizia no emtanto Maria Eduarda. Aqui ao lado d'esse Gremio, a dois passos do Chiado, à demasiadamente accessivel aos importunos. Tenho agora de repellir quasi todos os dias este assalto · minha porta! ⦠intoleravel. E com uma subita idÃa, atirando o bordado para o aÃafate, cruzando as mâos sobre os joelhos: --Diga-me uma coisa que lhe tenho querido perguntar... Nâo me seria possivel arranjar por ahi uma casinhola, um cottage, onde eu fosse passar os mezes de verâo?... Era tâo bom para a pequena! Mas nâo conheÃo ninguem, nâo sei a quem me hei de dirigir... Carlos lembrou-se logo da bonita casa do Craft, nos Olivaes--como j· n'outra occasiâo em que ella mostr·ra desejos d'ir para o campo. Justamente, n'esses ultimos tempos, Craft volt·ra a fallar, e mais decidido, no antigo plano de vender a quinta, e desfazer-se das suas collecÃıes. Que deliciosa vivenda para ella, artistica e campestre, condizendo tâo bem com os seus gostos! Uma tentaÃâo atravessou-o, irresistivel. --Eu sei com effeito d'uma casa... E tâo bem situada, que lhe convinha tanto!... --Que se aluga? Carlos nâo hesitou: --Sim, à possivel arranjar-se... --Isso era um encanto! Ella tinha dito--´era um encantoª. E isto decidiu-o logo, parecendo-lhe desamoravel e mesquinho o ter-lhe suggerido uma esperanÃa, e nâo lh'a realisar com fervor. O Domingos entr·ra com o taboleiro do ch·. E emquanto o collocava sobre uma pequena mesa, defronte de Maria Eduarda, ao pà da janella, Carlos, erguendo-se, dando alguns passos pela sala, pensava em comeÃar immediatamente negociaÃıes com o Craft, comprar-lhe as collecÃıes, alugar-lhe a casa por um anno, e offerecel-a a Maria Eduarda para os mezes de verâo. E nâo considerava, n'esse instante, nem as difficuldades, nem o dinheiro. Via sà a alegria d'ella passeando com a pequena, entre as bellas arvores do jardim. E como Maria Eduarda deveria ser mais grandemente formosa no meio d'esses moveis da RenascenÃa, severos e nobres! --Muito assucar? perguntou ella. --Nâo... Perfeitamente, basta. Viera sentar-se na sua velha poltrona; e, recebendo a chavena de porcelana ordinaria com um filetesinho azul, recordava o magnifico serviÃo que tinha o Craft, de velho Wedgewood, oiro e cÃr de fogo. Pobre senhora! tâo delicada, e alli enterrada entre aquelles reps, maculando a graÃa das suas mâos nas coisas reles da mâi Cruges! --E onde à essa casa? perguntou Maria Eduarda. --Nos Olivaes, muito perto d'aqui, vai-se l· n'uma hora de carruagem... Explicou-lhe detalhadamente o sitio,--acrescentando, com os olhos n'ella, e com um sorriso inquieto: --Estou aqui a preparar lenha para me queimar!... Porque se fÃr para l· installar-se, e depois vier o calor, quem à que a torna a vÃr? Ella pareceu surprehendida: --Mas que lhe custa, a si, que tem cavallos, que tem carruagens, que nâo tem quasi nada que fazer?... Assim ella achava natural que elle continuasse nos Olivaes as suas visitas de Lisboa! E pareceu-lhe logo impossivel renunciar ao encanto d'esta intimidade, tâo largamente offerecida, e decerto mais dÃce na solidâo d'aldÃa. Quando acabou a sua chavena de ch·--era como se a casa, os moveis, as arvores fossem j· seus, fossem j· d'ella. E teve alli um momento delicioso, descrevendo-lhe a quietaÃâo da quinta, a entrada por uma rua d'acacias, e a belleza da sala de jantar com duas janellas abrindo sobre o rio... Ella escutava-o, encantada: --Oh! isso era o meu sonho! Vou ficar agora toda alterada, cheia d'esperanÃas... Quando poderei ter uma resposta? Carlos olhou o relogio. Era j· tarde para ir aos Olivaes. Mas logo na manhâ seguinte cedo, ia fallar com o dono da casa, seu amigo... --Quanto incommodo por minha causa! disse ella. Realmente! como lhe hei de eu agradecer?... Calou-se; mas os seus bellos olhos ficaram um instante pousados nos de Carlos, como esquecidos, e deixando fugir irresistivelmente um pouco do segredo que ella retinha no seu coraÃâo. Elle murmurou: --Por mais que eu fizesse, ficaria bem pago de tudo se me olhasse outra vez assim. Uma onda de sangue cobriu toda a face de Maria Eduarda. --Nâo diga isso... --E que necessidade ha que eu lh'o diga? Pois nâo sabe perfeitamente que a adoro, que a adoro, que a adoro! Ella ergueu-se bruscamente, elle tambem:--e assim ficaram, mudos, cheios d'anciedade, trespassando-se com os olhos, como se se tivesse feito uma grande alteraÃâo no Universo, e elles esperassem, suspensos, o desfecho supremo dos seus destinos... E foi ella que fallou, a custo, quasi desfallecida, estendendo para elle, como se o quizesse afastar, as mâos inquietas e tremulas: --Escute! Sabe bem o que eu sinto por si, mas escute... Antes que seja tarde ha uma coisa que lhe quero dizer... Carlos via-a assim tremer, via-a toda pallida... E nem a escut·ra, nem a comprehendera. Sentia apenas, n'um deslumbramento, que o amor comprimido atà ahi no seu coraÃâo irrompera por fim, triumphante, e embatendo no coraÃâo d'ella, atravÃs do apparente marmore do seu peito, fizera de l· resaltar uma chamma igual... Sà via que ella tremia, sà via que ella o amava... E, com a gravidade forte d'um acto de posse, tomou-lhe lentamente as mâos, que ella lhe abandonou, submissa de repente, j· sem forÃa, e vencida. E beijava-lh'as ora uma ora outra, e as palmas, e os dedos, devagar, murmurando apenas: --Meu amor! meu amor! meu amor! Maria Eduarda cahira pouco a pouco sobre a cadeira; e, sem retirar as mâos, erguendo para elle os olhos cheios de paixâo, ennevoados de lagrimas, balbuciou ainda, debilmente, n'uma derradeira supplicaÃâo: --Ha uma coisa que eu lhe queria dizer!... Carlos estava j· ajoelhado aos seus pÃs. --Eu sei o que Ã! exclamou, ardentemente, junto do rosto d'ella, sem a deixar fallar mais, certo de que adivinh·ra o seu pensamento. Escusa de dizer, sei perfeitamente. ⦠o que eu tenho pensado tantas vezes! ⦠que um amor como o nosso nâo pÃde viver nas condiÃıes em que vivem outros amores vulgares... ⦠que desde que eu lhe digo que a amo, à como se lhe pedisse para ser minha esposa diante de Deus... Ella recuava o rosto, olhando-o angustiosamente, e como se nâo comprehendesse. E Carlos continuava mais baixo, com as mâos d'ella presas, penetrando-a toda da emoÃâo que o fazia tremer: --Sempre que pensava em si, era j· com esta esperanÃa d'uma existencia toda nossa, longe d'aqui, longe de todos, tendo quebrado todos os laÃos presentes, pondo a nossa paixâo acima de todas as ficÃıes humanas, indo ser felizes para algum canto do mundo, solitariamente e para sempre... Levamos Rosa, est· claro, sei que nâo se pÃde separar d'ella... E assim viveriamos sÃs, todos tres, n'um encanto! --Meu Deus! Fugirmos? murmurou ella, assombrada. Carlos erguera-se. --E que podemos fazer? Que outra coisa podemos nÃs fazer, digna do nosso amor? Maria nâo respondeu, immovel, a face erguida para elle, branca de cera. E pouco a pouco uma idÃa parecia surgir n'ella, inesperada e perturbadora, revolvendo todo o seu sÃr. Os seus olhos alargavam-se, anciosos e refulgentes. Carlos ia fallar-lhe... Um leve rumor de passos na esteira da sala deteve-o. Era o Domingos que vinha recolher a bandeja do ch·: e durante um momento, quasi interminavel, houve entre aquelles dois sÃres, sacudidos por um ardente vendaval de paixâo, a caseira passagem d'um criado arrumando chavenas vazias. Maria Eduarda, bruscamente, refugiou-se detraz das bambinellas de cretone com o rosto contra a vidraÃa. Carlos foi sentar-se no sof·, a folhear ao acaso uma _IllustraÃâo_, que lhe tremia nas mâos. E nâo pensava em nada, nem sabia onde estava... Ainda na vespera, havia ainda instantes, conversando com ella, dizia ceremoniosamente ´minha cara senhoraª: depois houvera um olhar; e agora deviam fugir ambos, e ella torn·ra-se o cuidado supremo da sua vida, e a esposa secreta do seu coraÃâo. --V. exc.^a quer mais alguma coisa? perguntou o Domingos. Maria Eduarda respondeu sem se voltar: --Nâo. O Domingos sahiu, a porta ficou cerrada. Ella entâo atravessou a sala, veio para Carlos, que a esperava no sof·, com os braÃos estendidos. E era como se obedecesse sà ao impulso da sua ternura, calmadas j· todas as incertezas. Mas hesitou de novo diante d'aquella paixâo, tâo prompta a apoderar-se de todo o seu sÃr, e murmurou, quasi triste: --Mas conhece-me tâo pouco!... Conhece-me tâo pouco, para irmos assim ambos, quebrando por tudo, crear um destino que à irreparavel... Carlos tomou-lhe as mâos, fazendo-a sentar ao seu lado, brandamente: --O bastante para a adorar acima de tudo, e sem querer mais nada na vida! Um instante Maria Eduarda ficou pensativa, como recolhida no fundo do seu coraÃâo, escutando-lhe as derradeiras agitaÃıes. Depois soltou um longo suspiro. --Pois seja assim! Seja assim... Havia uma coisa que eu lhe queria dizer, mas nâo importa... ⦠melhor assim!... E que outra coisa podiam fazer? perguntava Carlos radiante. Era a unica soluÃâo digna, sÃria... E nada os podia embaraÃar; amavam-se, confiavam absolutamente um no outro; elle era rico, o mundo era largo... E ella repetia, mais firme agora, j· decidida, e como se aquella resoluÃâo a cada momento se cravasse mais fundo na sua alma, penetrando-a toda e para sempre: --Pois seja assim! ⦠melhor assim! Um momento ficaram calados, olhando-se arrebatadamente. --Dize-me ao menos que Ãs feliz, murmurou Carlos. Ella lanÃou-lhe os braÃos ao pescoÃo: e os seus labios uniram-se n'um beijo profundo, infinito, quasi immaterial pelo seu extasi. Depois Maria Eduarda descerrou lentamente as palpebras, e disse-lhe, muito baixo: --Adeus, deixa-me sÃ, vai. Elle tomou o chapÃo, e sahiu. No dia seguinte Craft, que havia uma semana nâo ia ao Ramalhete, passeava na quinta antes d'almoÃo--quando appareceu Carlos. Apertaram as mâos, fallaram um instante do Ega, da chegada dos Cohens. Depois, Carlos, fazendo um gesto largo que abrangia a quinta, a casa, todo o horisonte, perguntou rindo: --Vocà quer-me vender tudo isto, Craft? O outro respondeu, sem pestanejar, e com as mâos nas algibeiras: --A la disposicion de ustÃd... E alli mesmo concluiram a negociaÃâo, passeando n'uma ruasinha de buxo por entre os geranios em flÃr. Craft cedia a Carlos todos os seus moveis antigos e modernos por duas mil e quinhentas libras, pagas em prestaÃıes: sà reservava algumas raras peÃas do tempo de Luiz XV, que deviam fazer parte d'essa nova collecÃâo que planeava, homogenea, e toda do seculo XVIII. E como Carlos nâo tinha no Ramalhete lugar para este vasto _bric-â¡-brac_, Craft alugava-lhe por um anno a casa dos Olivaes, com a quinta. Depois foram almoÃar. Carlos nem por um momento pensou na larga despeza que fazia, sà para offerecer uma residencia de verâo, por dois curtos mezes--a quem se contentaria com um simples cottage, entre arvores de quintal. Pelo contrario! quando repercorreu as salas do Craft, j· com olhos de dono, achou tudo mesquinho, pensou em obras, em retoques de gosto. Com que alegria, ao deixar os Olivaes, correu · rua de S. Francisco, a annunciar a Maria Eduarda que lhe arranj·ra emfim definitivamente uma linda casa no campo! Rosa, que da varanda o vira apear-se, veio ao seu encontro ao patamar: elle ergueu-a nos braÃos, entrou assim na sala, com ella ao collo, em triumpho. E nâo se conteve; foi · pequena que deu logo ´a grande novidadeª, annunciando-lhe que ia ter duas vaccas, e uma cabra, e flÃres, e arvores para se balouÃar... --Onde Ã? Dize, onde Ã? exclamava Rosa, com os lindos olhos resplandecentes, e a facesinha cheia de riso. --D'aqui muito longe... Vai-se n'uma carruagem... VÃem-se passar os barcos no rio... E entra-se por um grande portâo onde ha um câo de fila. Maria Eduarda appareceu, com _Niniche_ ao collo. --Mamâ, mamâ! gritou Rosa correndo para ella, dependurando-se-lhe do vestido. Diz que vou ter duas cabrinhas, e um balouÃo... ⦠verdade? Dize, deixa vÃr, onde Ã? Dize... E vamos j· para l·? Maria e Carlos apertaram a mâo, com um longo olhar, sem uma palavra. E logo junto da mesa, com Rosa encostada aos seus joelhos, Carlos contou a sua ida aos Olivaes... O dono da casa estava prompto a alugar, j·, n'uma semana... E assim se achava ella de repente com uma vivenda pittoresca, mobilada n'um bello estylo, deliciosamente saudavel... Maria Eduarda parecia surprehendida, quasi desconfiada. --Ha de ser necessario levar roupas de cama, roupas de mesa... --Mas ha tudo! exclamou Carlos alegremente, ha quasi tudo! ⦠tal qual como n'um conto de fadas... As luzes estâo accÃsas, as jarras estâo cheias de flÃres... ⦠sà tomar uma carruagem e chegar. --SÃmente, à necessario saber o que esse paraiso me vae custar... Carlos fez-se vermelho. Nâo previra que se fallasse em dinheiro--e que ella quereria decerto pagar a casa que habitasse... Entâo preferiu confessar-lhe tudo. Disse-lhe como o Craft, havia quasi um anno, andava desejando desfazer-se das suas collecÃıes, e alugar a quinta: o avà e elle tinham repetidamente pensado em adquirir grande parte dos moveis e das faienÃas, para acabar de mobilar o Ramalhete, e ornamentar mais Santa Olavia; e elle emfim decidira-se a fazer essa compra desde que entrevira a felicidade de lhe poder offerecer, por alguns mezes de verâo, uma residencia tâo graciosa, e tâo confortavel... --Rosa, vai l· para dentro, disse Maria Eduarda, depois de um momento de silencio... Miss Sarah est· · tua espera. Depois, olhando para Carlos, muito sÃria: --De sorte que, se eu nâo mostrasse desejos de ir para o campo, nâo tinha feito essa despeza... --Tinha feito a mesma despeza... Tinha tambem alugado a casa por seis mezes ou por um anno... Onde possuia eu agora de repente um sitio para metter as coisas do Craft? O que nâo fazia talvez era comprar conjuntamente roupas de cama, roupas de mesa, mobilias dos quartos dos criados, etc.... E acrescentou, rindo: --Ora se me quizer indemnisar d'isso podemos debater esse negocio... Ella baixou os olhos, reflectindo, lentamente. --Em todo o caso seu avà e os seus amigos devem saber d'aqui a dias que me vou installar n'essa casa... E devem comprehender que a comprou para que eu l· me installasse... Carlos procurou o seu olhar que permanecia pensativo, desviado d'elle. E isto inquietou-o--o vÃl-a assim retrahir-se ·quella absoluta communhâo d'interesses em que a queria envolver, como esposa do seu coraÃâo. --Nâo approva entâo o que fiz? Seja franca... --Decerto... Como nâo hei de eu approvar tudo quanto faz, tudo quanto vem de si? Mas... Elle acudiu, apoderando-se das suas mâos, sentindo-se triumphar: --Nâo ha _mas_! O avà e os meus amigos sabem que eu tenho uma casa no campo, inutil por algum tempo, e que a aluguei a uma senhora. De resto, se quizer, metteremos n'isto tudo o meu procurador... Minha cara amiga, se fosse possivel que a nossa affeiÃâo se passasse fÃra do mundo, distante de todos os olhares, ao abrigo de todas as suspeitas, seria delicioso... Mas nâo pÃde ser!... Alguem tem de saber sempre alguma coisa; quando nâo seja senâo o cocheiro que me leva todos os dias a sua casa, quando nâo seja senâo o criado que me abre todos os dias a sua porta... Ha sempre alguem que surprehende o encontro de dois olhares; ha sempre alguem que adivinha d'onde se vem a certas horas... Os deuses antigamente arranjavam essas coisas melhor, tinham uma nuvem que os tornava invisiveis. NÃs nâo somos deuses, felizmente... Ella sorriu. --Quantas palavras para converter uma convertida! E tudo ficou harmonisado n'um grande beijo. Affonso da Maia approvou plenamente a compra das collecÃıes do Craft. ´⦠um valor, disse elle ao VillaÃa, e acabamos d'encher com boa arte Santa-Olavia e o Ramalhete.ª Mas o Ega indignou-se, chegou a fallar em ´desvarioª,--despeitado por essa transacÃâo secreta para que nâo fÃra consultado. O que o irritava sobretudo era vÃr, n'esta acquisiÃâo inesperada de uma casa de campo, outro symptoma do grave e do fundo segredo que presentia na vida de Carlos: e havia j· duas semanas que elle habitava o Ramalhete e Carlos ainda nâo lhe fizera uma confidencia!... Desde a sua ligaÃâo de rapazes em Coimbra, nos PaÃos de Cella, fÃra elle o confessor secular de Carlos: mesmo em viagem, Carlos nâo tinha uma aventura banal d'hotel, de que nâo mandasse ao Ega ´um relatorioª. O romance com a Gouvarinho, de que Carlos ao principio tent·ra, frouxamente, guardar um mysterio delicado, j· o conhecia todo, j· lÃra as cartas da Gouvarinho, j· pass·ra pela casa da titi... Mas do outro segredo nâo sabia nada--e considerava-se ultrajado. Via todas as manhâs Carlos partir para a rua de S. Francisco, levando flÃres; via-o chegar de l·, como elle dizia, ´besuntado d'extasiª; via-lhe os silencios repassados de felicidade, e esse indefinido ar, ao mesmo tempo sÃrio e ligeiro, risonho e superior, do homem profundamente amado... E nâo sabia nada. Justamente alguns dias depois, estando ambos sÃs, a fallar de planos de verâo, Carlos alludiu aos Olivaes, com enthusiasmo, relembrando algumas das preciosidades do Craft, o dÃce socego da casa, a clara vista do Tejo... Aquillo realmente fÃra obter por uma mâo cheia de libras um pedaÃo do paraiso... Era · noite, no quarto de Carlos, j· tarde. E o Ega, que passeava com as mâos nas algibeiras do robe-de-chambre, encolheu os hombros, impaciente, farto d'aquelles louvores eternos · casinhola do Craft. --Essa concepÃâo do paraiso, exclamou elle, parece-me d'um estofador da rua Augusta! Como natureza, couves gallegas; como decoraÃâo, os velhos cretones do gabinete, desbotados j· por tres barrelas... Um quarto de dormir lugubre como uma capella de santuario... Um salâo confuso como o armazem d'um cara-de-pau, e onde nâo à possivel conversar... A nâo ser o armario hollandez, e um ou outro prato, tudo aquillo à um lixo archeologico... Jesus! o que eu odeio _bric-â¡-brac_! Carlos, no fundo da sua poltrona, disse tranquillamente, e como reflectindo: --Com effeito esses cretones sâo medonhos... Mas eu vou mandar remobilar, tornar aquillo mais habitavel. Ega estacou no meio do quarto, com o monoculo a faiscar sobre Carlos. --Habitavel? Vaes ter hospedes? --Vou alugar. --Vaes alugar! A quem? E o silencio de Carlos, que soprava o fumo da cigarrette com os olhos no tecto, enfureceu Ega. Comprimentou quasi atà ao châo, disse sarcasticamente: --PeÃo perdâo. A pergunta foi brutal. Tive agora o ar de querer arrombar uma gaveta fechada... O aluguel d'um predio à sempre um d'esses delicados segredos de sentimento e de honra em que nâo deve roÃar nem a aza da imaginaÃâo... Fui rude... Irra! Fui bestialmente rude! Carlos continuava calado. Comprehendia bem o Ega--e quasi sentia um remorso d'aquella sua rigida reserva. Mas era como um pudor que o enleava, lhe impedia de pronunciar sequer o nome de Maria Eduarda. Todas as suas outras aventuras as cont·ra ao Ega; e essas confidencias constituiam talvez mesmo o prazer mais solido que ellas lhe davam. Isto, porÃm, nâo era ´uma aventuraª. Ao seu amor misturava-se alguma coisa de religioso; e, como os verdadeiros devotos, repugnava-lhe conversar sobre a sua fÃ... Todavia, ao mesmo tempo, sentia uma tentaÃâo de fallar d'_ella_ ao Ega, e de tornar vivas, e como visiveis aos seus proprios olhos, dando-lhes o contorno das palavras e o seu relevo, as coisas divinas e confusas que lhe enchiam o coraÃâo. AlÃm d'isso, Ega nâo saberia tudo, mais tarde ou mais cedo, pela tagarellice alheia? Antes lh'o dissesse elle, fraternalmente. Mas hesitou ainda, accendeu outra cigarrette. Justamente o Ega tom·ra o seu castiÃal, e comeÃava a accendel-o a uma serpentina, devagar e com um ar amuado. --Nâo sejas tolo, nâo te v·s deitar, senta-te ahi, disse Carlos. E contou-lhe tudo miudamente, diffusamente, desde o primeiro encontro, · entrada do Hotel Central, no dia do jantar ao Cohen. Ega escutava-o, sem uma palavra, enterrado no fundo do sof·. Suppuzera um romancesinho, d'esses que nascem e morrem entre um beijo e um bocejo: e agora, sà pelo modo como Carlos fallava d'aquelle grande amor, elle sentia-o profundo, absorvente, eterno, e para bem ou para mal tornando-se d'ahi por diante, e para sempre, o seu irreparavel destino. Imagin·ra uma brazileira polida por Paris, bonita e futil, que tendo o marido longe, no Brazil, e um formoso rapaz ao lado, no sof·, obedecia simplesmente e alegremente · disposiÃâo das coisas: e sahia-lhe uma creatura cheia de caracter, cheia de paixâo, capaz de sacrificios, capaz de heroismos. Como sempre, diante d'estas coisas patheticas, murchava-lhe a veia, faltava-lhe a phrase; e quando Carlos se calou, o bom Ega teve esta pergunta chÃcha: --Entâo est·s decidido a safar-te com ella? --A _safar-me_, nâo; a ir viver com ella longe d'aqui, decididissimo! Ega ficou um momento a olhar para Carlos como para um phenomeno prodigioso, e murmurou: --⦠d'arromba! Mas que outra coisa podiam elles fazer? D'ahi a tres mezes talvez, Castro Gomes chegava do Brazil. Ora nem Carlos, nem ella, aceitariam nunca uma d'essas situaÃıes atrozes e reles em que a mulher à do amante e do marido, a horas diversas... Sà lhes restava uma soluÃâo digna, decente, sÃria--fugir. Ega, depois de um silencio, disse pensativamente: --Para o marido à que nâo à talvez divertido perder assim, de uma vez, a mulher, a filha, e a cadellinha... Carlos ergueu-se, deu alguns passos pelo quarto. Sim, tambem elle j· pens·ra n'isso... E nâo sentia remorsos--mesmo quando os podesse haver no absoluto egoismo da paixâo... Elle nâo conhecia intimamente Castro Gomes: mas tinha podido adivinhar o typo, reconstruil-o, pelo que lhe dissera o Damaso, e por algumas conversas com miss Sarah. Castro Gomes nâo era um esposo a sÃrio: era um dandy, um futil, um _gommeux_, um homem de sport e de cocottes... Cas·ra com uma mulher bella, saci·ra a paixâo, e recome÷ra a sua vida de club e de bastidores... Bastava olhar para elle, para a sua toilette, para os seus modos--e comprehendia-se logo a trivialidade d'aquelle caracter... --Que tal Ã, como homem? perguntou Ega. --Um brazileirito trigueiro, com um ar espartilhado... Um _rastaquouÃre_, o verdadeiro typosinho do _Cafà de la Paix_... ⦠possivel que sinta, quando isto vier a succeder, um certo ardor na vaidade ferida... Mas à um coraÃâo que se ha de consolar facilmente nas _Folies BergÃres_. Ega nâo dizia nada. Mas pensava que um homem de club, e mesmo consolavel nas _Folies BergÃres_, pÃde nâo se importar muito com sua mulher, mas pÃde todavia amar muito sua filha... Depois, atravessado por uma outra idÃa, acrescentou: --E teu avÃ? Carlos encolheu os hombros: --O avà tem de se affligir um pouco para eu poder ser profundamente feliz; como eu teria de ser desgraÃado toda a minha vida se quizesse poupar ao avà essa contrariedade... O mundo à assim, Ega... E eu, n'esse ponto, nâo estou decidido a fazer sacrificios. Ega esfregou lentamente as mâos, com os olhos no châo, repetindo a mesma palavra, a unica que lhe suggeria todo o seu espirito perante aquellas coisas vehementes: --⦠d'arromba! III Carlos, que almo÷ra cedo, estava para sahir no coupÃ, e j· de chapÃo--quando Baptista veio dizer que o snr. Ega, desejando fallar-lhe n'uma coisa grave, lhe pedia para esperar um instante. O snr. Ega fic·ra a fazer a barba. Carlos pensou logo que se tratava da Cohen. Havia duas semanas que ella cheg·ra a Lisboa, Ega ainda a nâo vira, e fallava d'ella raramente. Mas Carlos sentia-o nervoso e desassocegado. Todas as manhâs o pobre Ega mostrava um desapontamento ao receber o correio, que sà lhe trazia algum jornal cintado, ou cartas de Celorico. ¡ noite percorria dois, tres theatros, j· quasi vazios n'aquelle comeÃo de verâo; e ao recolher era outra desconsolaÃâo, quando os criados lhe affirmavam, com certeza, que nâo viera carta alguma para s. exc.^a Decerto Ega nâo se resignava a perder Rachel, anciava por a encontrar; e roÃa-o o despeito de que ella, de qualquer modo, lhe nâo tivesse mostrado que no seu coraÃâo permanecia ao menos a saudade das antigas felicidades... Justamente na vespera Ega apparecera · hora do jantar, transtornado: cruz·ra-se com o Cohen na rua do Ouro, e parecera-lhe que ´esse canalhaª lhe atir·ra de lado um olhar atrevido, sacudindo a bengala; o Ega jurava que se ´esse canalhaª ousasse outra vez fital-o, espedaÃava-o, sem piedade, publicamente, a uma esquina da Baixa. Na ante-camara o relogio bateu dez horas, Carlos impaciente ia a subir ao quarto do Ega. Mas n'esse instante o correio chegava, com a _Revista dos Dois Mundos_, e uma carta para Carlos. Era da Gouvarinho. Carlos acabava de a lÃr--quando o Ega appareceu, de jaquetâo, e em chinelas. --Tenho a fallar-te n'uma coisa grave, menino. --Là isto primeiro, disse o outro, passando-lhe a carta da Gouvarinho. A Gouvarinho, n'um tom amargo, queixava-se que, j· por duas vezes, Carlos falt·ra ao _rendez-vous_ em casa da titi, sem lhe ter sequer escripto uma palavra; ella vira n'isto uma offensa, uma brutalidade; e vinha agora intimal-o, ´em nome de todos os sacrificios que por elle fizeraª, a que apparecesse na rua de S. MarÃal, domingo ao meio dia, para terem uma explicaÃâo definitiva antes d'ella partir para Cintra. --Excellente occasiâo d'acabar! exclamou Ega, entregando a carta a Carlos, depois de respirar o perfume do papel. Nâo v·s, nem respondas... Ella parte para Cintra, tu para Santa Olavia, nâo vos vÃdes mais, e assim finda o romance. Finda como todas as coisas grandes, como o Imperio Romano, e como o Rheno, por dispersâo, insensivelmente... --⦠o que eu vou fazer, disse Carlos, comeÃando a calÃar as luvas. Jesus! Que mulher massadora! --E que desavergonhada! Chamar a essas coisas ´sacrificios!...ª Arrasta-te duas vezes por semana a casa da titi, regala-se l· de extravagancias, bebe champagne, fuma cigarrettes, sobe ao setimo cÃo, delira, e depois pıe dolorosamente os olhos no châo, e chama a isso ´sacrificios...ª Sà com um chicote!... Carlos encolheu os hombros, com resignaÃâo, como se nas condessas de Gouvarinho, e no mundo, sà houvesse incoherencia e dÃlo. --E que à isso que tu me tinhas a dizer? Ega entâo tomou um ar grave. Escolheu lentamente na caixa uma cigarrette, abotoou devagar o jaquetâo. --Tu nâo tens visto o Damaso? --Nunca mais me appareceu, disse Carlos. Creio que est· amuado... Eu sempre que o encontro, aceno-lhe de longe amigavelmente com dois dedos... --Devia ser antes com a bengala. O Damaso anda ahi, por toda a parte, fallando de ti e d'essa senhora, tua amiga... A ti chama-te _pulha_, a ella peor ainda. ⦠a velha historia; diz que te apresentou, que te metteste de dentro, e como para essa senhora à uma questâo de dinheiro, e tu Ãs o mais rico, ella lhe passou o pÃ... VÃs d'ahi a infamiasinha. E isto tagarellado pelo Gremio, pela Casa Havaneza, com detalhes torpes, envolvendo sempre a questâo de dinheiro. Tudo isto à atroz. Trata de lhe pÃr cobro. Carlos, muito pallido, disse simplesmente: --Ha de se fazer justiÃa. Desceu, indignado. Aquella torpe insinuaÃâo sobre ´dinheiroª parecia-lhe poder ser castigada sà com a morte. E um instante mesmo, com a mâo no fecho da portinhola do coupÃ, pensou em correr a casa do Damaso, tomar um desforÃo brutal. Mas eram quasi onze horas, e elle tinha d'ir aos Olivaes. No dia seguinte, sabbado, dia bello entre todos e solemne para o seu coraÃâo, Maria Eduarda devia emfim visitar a quinta do Craft: e fic·ra combinado, na vespera, que passariam l· as horas do calor, atà tarde, sÃs, n'aquella casa solitaria e sem criados, escondida entre as arvores. Elle pedira-lh'o assim, hesitante e a tremer: ella consentira logo, sorrindo e naturalmente. N'essa manhâ elle mand·ra aos Olivaes dois criados para arejar as salas, espanejar, encher tudo de flÃres. Agora ia l·, como um devoto, vÃr se estava bem enfeitado o sacrario da sua deusa... E era atravÃs d'estes deliciosos cuidados, em plena ventura, que lhe apparecia outra vez, suja e empanando o brilho do seu amor, a tagarellice do Damaso! Atà aos Olivaes, nâo cessou de ruminar coisas vagas e violentas que faria para aniquilar o Damaso. No seu amor nâo haveria paz, emquanto aquelle villâo o andasse commentando sordidamente pelas esquinas das ruas. Era necessario enxovalhal-o de tal modo, com tal publicidade, que elle nâo ousasse mais mostrar em Lisboa a face bochechuda, a face vil... Quando o coupà parou · porta da quinta, Carlos decidira dar bengaladas no Damaso, uma tarde, no Chiado, com apparato... Mas depois, ao regressar da quinta, vinha j· mais calmo. Pis·ra a linda rua d'acacias que os pÃs d'ella pisariam na manhâ seguinte: dera um longo olhar ao leito que seria o leito d'ella, rico, alÃado sobre um estrado, envolto em cortinados de brocatel cÃr d'ouro, com um esplendor sÃrio d'altar profano... D'ahi a poucas horas, encontrar-se-hiam sÃs n'aquella casa muda e ignorada do mundo; depois, todo o verâo os seus amores viveriam escondidos n'esse fresco retiro d'aldÃa; e d'ahi a tres mezes estariam longe, na Italia, · beira d'um claro lago, entre as flÃres d'Isola Bella... No meio d'estas voluptuosidades magnificas, que lhe podia importar o Damaso, gorducho e reles, palrando em calâo nos bilhares do Gremio! Quando chegou · rua de S. Francisco resolvera, se visse o Damaso, continuar a acenar-lhe, de leve, com a ponta dos dedos. Maria Eduarda fÃra passear a Belem com Rosa deixando-lhe um bilhete, em que lhe pedia para vir · noite _faire un bout de causerie_. Carlos desceu as escadas, devagar, guardando esse bocadinho de papel na carteira como uma dÃce reliquia; e sahia o portâo, no momento em que o Alencar desembocava defronte, da travessa da Parreirinha, todo de preto, moroso e pensativo. Ao avistar Carlos, parou de braÃos abertos; depois vivamente, como recordando-se, ergueu os olhos para o primeiro andar. Nâo se tinham visto desde as corridas, o poeta abraÃou com effusâo o seu Carlos. E fallou logo de si, copiosamente. Estivera outra vez em Cintra, em Collares com o seu velho Carvalhosa: e o que se lembr·ra do rico dia passado com Carlos e com o maestro em Sitiaes!... Cintra uma belleza. Elle, um pouco constipado. E apesar da companhia do Carvalhosa, tâo erudito e tâo profundo, apesar da excellente musica da mulher, da Julinha (que para elle era como uma irmâ), tinha-se aborrecido. Questâo de velhice... --Com effeito, disse Carlos, pareces-me um pouco murcho... Falta-te o teu ar aureolado. O poeta encolheu os hombros. --O Evangelho l· o diz bem claro... Ou à a Biblia que o diz...? Nâo; à S. Paulo... S. Paulo ou Santo Agostinho?... Emfim a authoridade nâo faz ao caso. N'um d'esses santos livros se affirma que este mundo à um valle de lagrimas... --Em que a gente se ri bastante, disse Carlos alegremente. O poeta tornou a encolher os hombros. Lagrimas ou risos, que importava?... Tudo era sentir, tudo era viver! Ainda na vespera elle dissera isso mesmo em casa dos Cohens... E de repente, estacando no meio da rua, tocando no braÃo de Carlos: --E agora por fallar nos Cohens, dize-me uma coisa com franqueza, meu rapaz. Eu sei que tu Ãs intimo do Ega, e, que diabo, ninguem lhe admira mais o talento do que eu!... Mas, realmente, tu approvas que elle, apenas soube da chegada dos Cohens, se viesse metter em Lisboa? Depois do que houve!... Carlos afianÃou ao poeta que o Ega sà no dia mesmo da chegada, horas depois, soubera pela _Gazeta Illustrada_ a vinda dos Cohens... E de resto se nâo podessem habitar, conjuntas na mesma cidade, as pessoas entre as quaes tivesse havido attritos desagradaveis, as sociedades humanas tinham de se desfazer... Alencar nâo respondeu, caminhando ao lado de Carlos, com a cabeÃa baixa. Depois parou de novo, franzindo a testa: --Outra coisa em que te quero fallar. Houve entre ti e o Damaso alguma pÃga? Eu pergunto-te isto porque n'outro dia, l· em casa dos Cohens, elle veio com uns ditos, umas insinuaÃıes... Eu declarei-lhe logo: ´Damaso, Carlos da Maia, filho de Pedro da Maia, à como se fosse meu irmâo.ª E o Damaso calou-se... Calou-se, porque me conhece, e sabe que eu n'estas coisas de lealdade e de coraÃâo sou uma fera! Carlos disse simplesmente: --Nâo, nâo ha nada, nâo sei nada... Nem sequer tenho visto o Damaso. --Pois à verdade, continuou Alencar tomando o braÃo de Carlos, lembrei-me muito de ti em Cintra. Atà fiz l· um coisita que me nâo sahiu m·, e que te dediquei... Um simples soneto, uma paizagem, um quadrosinho de Cintra ao pÃr do sol. Quiz provar ahi a esses da IdÃa Nova, que, sendo necessario, tambem por c· se sabe cinzelar o verso moderno e dar o traÃo realista. Ora espera ahi, eu te digo, se me lembrar. A coisa chama-se--_Na estrada dos Capuchos_... Tinham parado · esquina do Seixas; e o poeta tossira j· de leve, antes de recitar,--quando justamente lhes appareceu o Ega, vindo de baixo, vestido de campo, com uma bella rosa branca no jaquetâo de flanella azul. Alencar e elle nâo se encontravam desde a fatal soirÃe dos Cohens. E ao passo que o Ega conservava um resentimento feroz contra o poeta vendo n'elle o inventor d'essa perfida lenda da ´carta obscenaª--Alencar odiava-o pela certeza secreta de que elle fÃra o amante amado da sua divina Rachel. Ambos se fizeram pallidos; o aperto de mâo que deram foi incerto e regelado; e ficaram calados, todos tres, emquanto Ega nervoso levava uma eternidade a accender o charuto no lume de Carlos. Mas foi elle que fallou, por entre uma fumaÃa, affectando uma superioridade amavel: --Acho-te com boa cÃr, Alencar! O poeta foi amavel tambem, um pouco d'alto, passando os dedos no bigode: --Vai-se andando. E tu que fazes? Quando nos d·s essas _Memorias_, homem? --Estou · espera que o paiz aprenda a lÃr. --Tens que esperar! Pede ao teu amigo Gouvarinho que apresse isso, elle occupa-se da InstrucÃâo publica... Olha, alli o tens tu, grave e Ãco como uma columna do _Diario do Governo_... O poeta apontava com a bengala para o outro lado da rua, por onde o Gouvarinho descia, muito devagar, a conversar com o Cohen; e ao lado d'elles, de chapÃo branco, de collete branco, o Damaso deitava olhares pelo Chiado, risonho, ovante, barrigudo, como um conquistador nos seus dominios. J· aquelle arzinho gordo de tranquillo triumpho irritou Carlos. Mas quando o Damaso parou defronte, no outro passeio, todo de costas para elle, ostentando rir alto com o Gouvarinho, nâo se conteve, atravessou a rua. Foi breve, e foi cruel: sacudiu a mâo do Gouvarinho, saudou de leve o Cohen: e sem baixar a voz, disse ao Damaso friamente: --Ouve l·. Se continËas a fallar de mim e de pessoas das minhas relaÃıes, do modo como tens fallado, e que nâo me convÃm, arranco-te as orelhas. O conde acudiu, mettendo-se entre elles: --Maia, por quem Ã! Aqui no Chiado... --Nâo à nada, Gouvarinho, disse Carlos detendo-o, muito sÃrio e muito sereno. ⦠apenas um aviso a este imbecil. --Eu nâo quero questıes, eu nâo quero questıes!... balbuciou o Damaso, livido, enfiando para dentro d'uma tabacaria. E Carlos voltou, com socego, para junto dos seus amigos, depois de ter saudado o Cohen e sacudir a mâo ao Gouvarinho. Vinha apenas um pouco pallido: mais perturbado estava o Ega, que julg·ra vÃr de novo, n'um olhar do Cohen, uma provocaÃâo intoleravel. Sà o Alencar nâo repar·ra em nada: continuava a discursar sobre coisas litterarias, explicando ao Ega as concessıes que se podiam fazer ao naturalismo... --Fiquei aqui a dizer ao Ega... ⦠evidente que quando se trata de paizagem à necessario copiar a realidade... Nâo se pode descrever um castanheiro _a priori_, como se descreveria uma alma... E l· isso faÃo eu... Ahi est· esse soneto de Cintra que eu te dediquei, Carlos. ⦠realista, est· claro que à realista... PudÃra, se à paizagem! Ora eu vol-o digo... Ia justamente dizel-o, quando tu appareceste, Ega... Mas vejam l· vocÃs se isto os massa... Qual massava! E atÃ, para o escutarem melhor, penetraram na rua de S. Francisco, mais silenciosa. Ahi, dando um passo lento, depois outro, o poeta murmurou a sua ecloga. Era em Cintra, ao pÃr do sol: uma ingleza, de cabellos soltos, toda de branco, desce n'um burrinho por uma vereda que domina um valle; as aves cantam de leve, ha borboletas em torno das madresilvas; entâo a ingleza p·ra, deixa o burrinho, olha enlevada o cÃo, os arvoredos, a paz das casas;--e ahi, no ultimo terceto, vinha ´a nota realistaª de que se ufanava o Alencar: Ella olha a flÃr dormente, a nuvem casta, Emquanto o fumo dos casaes se eleva E ao lado o burro, pensativo, pasta. --Ahi tÃm vocÃs o traÃo, a nota naturalista... _Ao lado o burro, pensativo, pasta_... Eis ahi a realidade, est·-se a vÃr o burro pensativo... Nâo ha nada mais pensativo que um burro... E sâo estas pequeninas coisas da natureza que à necessario observar... J· vÃem vocÃs que se pÃde fazer realismo, e do bom, sem vir logo com obscenidades... VocÃs que lhes parece o sonetito? Ambos o elogiaram profundamente--Carlos arrependido de nâo ter completado a humilhaÃâo do Damaso, dando-lhe bengaladas; Ega pensando que decerto, n'uma d'essas tardes, no Chiado, teria de esbofetear o Cohen. Como elles recolhiam ao Ramalhete, Alencar, j· desanuviado, foi acompanhal-os pelo Aterro. E fallou sempre, contando o plano de um romance historico, em que elle queria pintar a grande figura d'Affonso d'Albuquerque, mas por um lado mais humano, mais intimo: Affonso d'Albuquerque namorado: Affonso d'Albuquerque, sÃ, de noite, na pÃpa do seu galeâo, diante d'Ormuz incendiada, beijando uma flÃr secca, entre soluÃos. Alencar achava isto sublime. Depois de jantar, Carlos vestia-se para ir · rua de S. Francisco--quando o Baptista veio dizer que o snr. Telles da Gama lhe desejava fallar com urgencia. Nâo o querendo receber, alli, em mangas de camisa, mandou-o entrar para o gabinete escarlate e preto. E veio d'ahi a um instante encontrar Telles da Gama admirando as bellas faianÃas hollandezas. --VocÃ, Maia, tem isto lindissimo, exclamou elle logo. Eu pello-me por porcelanas... Hei de voltar um dia d'estes, com mais vagar, vÃr tudo isto, de dia... Mas hoje venho com pressa, venho com uma missâo... Vocà nâo adivinha? Carlos nâo adivinhava. E o outro, recuando um passo, com uma gravidade em que transparecia um sorriso: --Eu venho aqui perguntar-lhe da parte do Damaso, se vocà hoje, n'aquillo que lhe disse, tinha tenÃâo de o offender. ⦠sà isto... A minha missâo à apenas esta: perguntar-lhe se vocà tinha intenÃâo de o offender. Carlos olhou-o, muito sÃrio: --O quÃ!? Se tinha intenÃâo de offender o Damaso quando o ameacei de lhe arrancar as orelhas? De modo nenhum: tinha sà intenÃâo de lhe arrancar as orelhas! Telles da Gama saudou, rasgadamente: --Foi isso mesmo o que eu respondi ao Damaso: que vocà nâo tinha senâo essa intenÃâo. Em todo o caso, desde este momento, a minha missâo est· finda... Como vocà tem isto bonito!... O que à aquelle prato grande, majolica? --Nâo, um velho Nevers. Veja vocà ao pÃ... ⦠Thetis conduzindo as armas d'Achilles... ⦠esplendido; e à muito raro... Veja vocà esse Deft, com as duas tulipas amarellas... ⦠um encanto! Telles da Gama dava um olhar lento a todas estas preciosidades, tomando o chapÃo de sobre o sof·. --Lindissimo tudo isto!... Entâo sà intenÃâo de lhe arrancar as orelhas? nenhuma de o offender?... --Nenhuma de o offender, toda de lhe arrancar as orelhas... Fume vocà um charuto. --Nâo, obrigado... --Calice de cognac? --Nâo! abstenÃâo total de bebidas e aguas ardentes... Pois adeus, meu bom Maia! --Adeus, meu bom Telles... Ao outro dia, por uma radiante manhâ de julho, Carlos saltava do coupÃ, com um mÃlho de chaves, diante do portâo da quinta do Craft. Maria Eduarda devia chegar ·s dez horas, sÃ, na sua carruagem da Companhia. O hortelâo, dispensado por dois dias, fÃra a Villa Franca; nâo havia ainda criados na casa; as janellas estavam fechadas. E pesava alli, envolvendo a estrada e a vivenda, um d'esses altos e graves silencios d'aldÃa, em que se sente, dormente no ar, o zumbir dos moscardos. Logo depois do portâo, penetrava-se n'uma fresca rua d'acacias, onde cheirava bem. A um lado, por entre a ramagem, apparecia o kiosque, com tecto de madeira, pintado de vermelho, que fÃra o capricho de Craft, e que elle mobil·ra · japoneza. E ao fundo era a casa, caiada de novo, com janellas de peitoril, persianas verdes, e a portinha ao centro sobre tres degraus, flanqueados por vasos de louÃa azul cheios de cravos. Sà o metter a chave devagar e com uma inutil cautela na fechadura d'aquella morada discreta foi para Carlos um prazer. Abriu as janellas: e a larga luz que entrava pareceu-lhe trazer uma doÃura rara, e uma alegria maior que a dos outros dias, como preparada especialmente pelo bom Deus para alumiar a festa do seu coraÃâo. Correu logo · sala de jantar, a verificar se, na mesa posta para o _lunch_, se conservavam ainda viÃosas as flÃres que l· deix·ra na vespera. Depois voltou ao coupà a tirar o caixote de gelo, que trouxera de Lisboa, embrulhado em flanella, entre serradura. Na estrada, silenciosa por ora, ia sà passando uma saloia montada na sua egua. Mas apenas accommod·ra o gelo--sentiu fÃra o ruido lento da carruagem. Veio para o gabinete forrado de cretones, que abria sobre o corredor; e ficou alli, espreitando da porta, mas escondido, por causa do cocheiro da Companhia. D'ahi a um instante viu-a emfim chegar, pela rua de acacias, alta e bella, vestida de preto, e com um meio-vÃo espesso como uma mascara. Os seus pÃsinhos subiram os tres degraus de pedra. Elle sentiu a sua voz inquieta perguntar de leve: --_ tes-vous lâ¡?_ Appareceu--e ficaram um instante, · porta do gabinete, apertando sofregamente as mâos, sem fallar, commovidos, deslumbrados. --Que linda manhâ! disse ella por fim, rindo e toda vermelha. --Linda manhâ, linda! repetia Carlos, contemplando-a, enlevado. Maria Eduarda resval·ra sobre uma cadeira, junto da porta, n'um cansaÃo delicioso, deixando calmar o alvoroÃo do seu coraÃâo. --⦠muito confortavel, à encantador tudo isto, dizia ella olhando lentamente em redor os cretones do gabinete, o divan turco coberto com um tapete de Brousse, a estante envidraÃada cheia de livros. Vou ficar aqui adoravelmente... --Mas ainda nem lhe agradeci o ter vindo, murmurou Carlos, esquecido, a olhar para ella. Ainda nem lhe beijei a mâo... Maria Eduarda comeÃou a tirar o vÃo, depois as luvas, fallando da estrada. Ach·ra-a longa, fatigante. Mas que lhe importava? Apenas se accommodasse n'aquelle fresco ninho nunca mais voltava a Lisboa! Atirou o chapÃo para cima do divan--ergueu-se, toda alegre e luminosa. --Vamos vÃr a casa, estou morta por vÃr essas maravilhas do seu amigo Craft!... ⦠Craft que se chama? _Craft_ quer dizer industria! --Mas ainda nem sequer lhe beijei a mâo! tornou Carlos, sorrindo e supplicante. Ella estendeu-lhe os labios, e ficou presa nos seus braÃos. E Carlos, beijando-lhe devagar os olhos, o cabello, dizia-lhe quanto era feliz e quanto a sentia agora mais sua entre estes velhos muros de quinta que a separavam do resto do mundo... Ella deixava-se beijar, sÃria e grave: --E à verdade isso? ⦠realmente verdade?... Se era verdade! Carlos teve um suspiro quasi triste: --Que lhe hei de eu responder? Tenho de lhe repetir essa coisa antiga que j· Hamlet disse: que duvide de tudo, que duvide do sol, mas que nâo duvide de mim... Maria Eduarda desprendeu-se, lentamente e perturbada. --Vamos vÃr a casa, disse ella. ComeÃaram pelo segundo andar. A escada era escura e feia: mas os quartos em cima, alegres, esteirados de novo, forrados de papeis claros, abriam sobre o rio e sobre os campos. --Os seus aposentos, disse Carlos, hâo de ser em baixo, est· visto, entre as coisas ricas... Mas Rosa e miss Sarah ficam aqui esplendidamente. Nâo lhe parece? E ella percorria os quartos, devagar, examinando a accommodaÃâo dos armarios, palpando a elasticidade dos colxıes, attenta, cuidadosa, toda no desvelo de alojar bem a sua gente. Por vezes mesmo exigia uma alteraÃâo. E era realmente como se aquelle homem que a seguia, enternecido e radiante, fosse apenas um velho senhorio. --O quarto com as duas janellas, ao fundo do corredor, seria o melhor para Rosa. Mas a pequena nâo pÃde dormir n'aquelle enorme leito de pau preto... --Muda-se! --Sim, pÃde mudar-se... E falta uma sala larga para ella brincar, ·s horas do calor... Se nâo houvesse o tabique entre os dois quartos pequenos... --Deita-se abaixo! Elle esfregava as mâos, encantado, prompto a refundir toda a casa; e ella nâo recusava nada, para conforto mais perfeito dos seus. Desceram · sala de jantar. E ahi, diante da famosa chaminà de carvalho lavrado, flanqueada · maneira de cariatides pelas duas negras figuras de Nubios, com olhos rutilantes de crystal, Maria Eduarda comeÃou a achar o gosto do Craft excentrico, quasi exotico... Tambem Carlos nâo lhe dizia que Craft tivesse o gosto correcto d'um atheniense. Era um saxonio batido d'um raio de sol meridional: mas havia muito talento na sua excentricidade... --Oh, a vista à que à deliciosa! exclamou ella chegando-se · janella. Junto do peitoril crescia um pà de margaridas, e ao lado outro de baunilha que perfumava o ar. Adiante estendia-se um tapete de relva, mal aparada, um pouco amarellada j· pelo calor de julho; e entre duas grandes arvores que lhe faziam sombra, havia alli, para os vagares da sÃsta, um largo banco de cortiÃa. Um renque de arbustos cerrados parecia fechar a quinta d'aquelle lado como uma sebe. Depois a collina descia, com outras quintarolas, casas que se nâo viam, e uma chaminà de fabrica; e l· no fundo o rio rebrilhava, vidrado de azul, mudo e cheio de sol, atà ·s montanhas d'alÃm-Tejo, azuladas tambem na faiscaÃâo clara do cÃo de verâo. --Isto à encantador! repetia ella. --⦠um paraiso! Pois nâo lhe dizia eu? ⦠necessario pÃr um nome a esta casa... Como se ha de chamar? _Villa-Marie?_ Nâo. _Château-Rose_... Tambem nâo, crÃdo! Parece o nome d'um vinho. O melhor à baptisal-a definitivamente com o nome que nÃs lhe davamos. NÃs chamavamos-lhe a _TÃca_. Maria Eduarda achou originalissimo o nome de _TÃca_. Devia-se atà pintar em letras vermelhas sobre o portâo. --Justamente, e com uma divisa de bicho, disse Carlos rindo. Uma divisa de bicho egoista na sua felicidade e no seu buraco: _Nâo me mexam!_ Mas ella par·ra, com um lindo riso de surpreza, diante da mesa posta, cheia de fruta, com as duas cadeiras j· chegadas, e os crystaes brilhando entre as flÃres. --Sâo as bodas de Cann·! Os olhos de Carlos resplandeceram. --Sâo as nossas! Maria Eduarda fez-se muito vermelha; e baixou o rosto a escolher um morango, depois a escolher uma rosa. --Quer uma gota de champagne? exclamou Carlos. Com um pouco de gelo? NÃs temos gelo, temos tudo! Nâo nos falta nada, nem a benÃâo de Deus... Uma gotinha de champagne, v·! Ella aceitou: beberam pelo mesmo copo; outra vez os seus labios se encontraram, apaixonadamente. Carlos accendeu uma cigarrette, continuaram a percorrer a casa. A cozinha agradou-lhe muito, arranjada · ingleza, toda em azulejos. No corredor Maria Eduarda demorou-se diante de uma panoplia de tourada, com uma cabeÃa negra de touro, espadas e garrochas, mantos de sÃda vermelha, conservando nas suas pregas uma graÃa ligeira, e ao lado o cartaz amarello _de la corrida_, com o nome de Lagartijo. Isto encantou-a como um quente lampejo de festa e de sol peninsular... Mas depois o quarto que devia ser o seu, quando Carlos lh'o foi mostrar, desagradou-lhe com o seu luxo estridente e sensual. Era uma alcova, recebendo a claridade d'uma sala forrada de tapeÃarias, onde desmaiavam na trama de lâ os amores de Venus e Marte: da porta de communicaÃâo, arredondada em arco de capella, pendia uma pesada lampada da RenascenÃa, de ferro forjado: e, ·quella hora, batida por uma larga facha de sol, a alcova resplandecia como o interior de um tabernaculo profanado, convertido em retiro lascivo de serralho... Era toda forrada, paredes e tectos, de um brocado amarello, cÃr de botâo d'ouro; um tapete de velludo do mesmo tom rico fazia um pavimento d'ouro vivo sobre que poderiam correr nËs os pÃs ardentes d'uma deusa amorosa--e o leito de docel, alÃado sobre um estrado, coberto com uma colcha de setim amarello bordada a flÃres d'ouro, envolto em solemnes cortinas tambem amarellas de velho brocatel,--enchia a alcova, esplendido e severo, e como erguido para as voluptuosidades grandiosas de uma paixâo tragica do tempo de Lucrecia ou de Romeu. E era alli que o bom Craft, com um lenÃo de sÃda da India amarrado na cabeÃa, resonava as suas sete horas, pacata e solitariamente. Mas Maria Eduarda nâo gostou d'estes amarellos excessivos. Depois impressionou-se, ao reparar n'um painel antigo, defumado, resaltando em negro do fundo de todo aquelle ouro--onde apenas se distinguia uma cabeÃa degolada, livida, gelada no seu sangue, dentro d'um prato de cobre. E para maior excentricidade, a um canto, de cima de uma columna de carvalho, uma enorme coruja empalhada fixava no leito d'amor, com um ar de meditaÃâo sinistra, os seus dois olhos redondos e agourentos... Maria Eduarda achava impossivel ter alli sonhos suaves. Carlos agarrou logo na columna e no mocho, atirou-os para um canto do corredor; e propoz-lhe mudar aquelles brocados, forrar a alcova de um setim cÃr de rosa e risonho. --Nâo, venho-me a acostumar a todos esses ouros... SÃmente aquelle quadro, com a cabeÃa, e com o sangue... Jesus, que horror! --Reparando bem, disse Carlos, creio que à o nosso velho amigo S. Joâo Baptista. Para desfazer essa impressâo desconsolada levou-a ao salâo nobre, onde Craft concentr·ra as suas preciosidades. Maria Eduarda, porÃm, ainda descontente, achou-lhe um ar atulhado e frio de museu. --⦠para vÃr de pÃ, e de passagem... Nâo se pÃde ficar aqui sentado, a conversar. --Mas esta à materia-prima! exclamou Carlos. Com isto depois faz-se uma sala adoravel... Para que serve o nosso genio decorativo?... Olhe o armario, veja que centro! Que belleza! Enchendo quasi a parede do fundo, o famoso armario, o ´movel divinoª do Craft, obra de talha do tempo da Liga Hanseatica, luxuoso e sombrio, tinha uma magestade architectural: na base quatro guerreiros, armados como Marte, flanqueavam as portas, mostrando cada uma em baixo-relevo o assalto de uma cidade ou as tendas de um acampamento; a peÃa superior era guardada aos quatro cantos pelos quatro evangelistas, Joâo, Marcos, Lucas e Matheus, imagens rigidas, envolvidas n'essas roupagens violentas que um vento de prophecia parece agitar: depois na cornija erguia-se um trophÃo agricola com mÃlhos d'espigas, fouces, cachos d'uvas e rabiÃas d'arados; e, · sombra d'estas coisas de labor e fartura, dois Faunos, recostados em symetria, indifferentes aos heroes e aos santos, tocavam n'um desafio bucolico a frauta de quatro tubos. --Entâo, hein? dizia Carlos. Que movel! ⦠todo um poema da RenascenÃa, Faunos e Apostolos, guerras e georgicas... Que se pÃde metter dentro d'este armario? Eu se tivesse cartas suas era aqui que as depositava, como n'um altar-mÃr. Ella nâo respondeu, sorrindo, caminhando devagar entre essas coisas do passado, d'uma belleza fria, e exhalando a indefinida tristeza de um luxo morto: finos moveis da RenascenÃa italiana, exilados dos seus palacios de marmore, com embutidos de cornalina e agatha que punham um brilho suave de joia sobre a negrura dos ebanos ou setim das madeiras cÃr de rosa; cofres nupciaes, longos como bahËs, onde se guardavam os presentes dos Papas e dos Principes, pintados a purpura e ouro, com graÃas de miniatura; contadores hespanhoes impertigados, revestidos de ferro brunido e de velludo vermelho, e com interiores mysteriosos, em fÃrma de capella, cheios de nichos, de claustros de tartaruga... Aqui e alÃm, sobre a pintura verde-escura das paredes, resplandecia uma colcha de setim toda recamada de flÃres e d'aves d'ouro; ou sobre um bocado de tapete do Oriente de tons severos, com versiculos do Alcorâo, desdobrava-se a pastoral gentil d'um minuete em Cythera sobre a sÃda de um leque aberto... Maria Eduarda terminou por se sentar, cansada, n'uma poltrona Luiz XV, ampla e nobre, feita para a magestade das anquinhas, recoberta de tapeÃaria de Beauvais, d'onde parecia exhalar-se ainda um vago aroma d'empoado. Carlos triumphava, vendo a admiraÃâo de Maria. Entâo, ainda considerava uma extravagancia aquella compra, feita n'um rasgo de enthusiasmo? --Nâo, ha aqui coisas adoraveis... Nem eu sei se me atreverei a viver uma vida pacata de aldÃa no meio de todas estas raridades... --Nâo diga isso, exclamava Carlos rindo, que eu pÃgo fogo a tudo! Mas o que lhe agradou mais foram as bellas faianÃas, toda uma arte immortal e fragil espalhada por sobre o marmore das consolas. Uma sobretudo attrahiu-a, uma esplendida taÃa persa, d'um desenho raro, com um renque de negros cyprestes, cada um abrigando uma flÃr de cÃr viva: e aquillo fazia lembrar breves sorrisos reapparecendo entre longas tristezas. Depois eram as apparatosas majolicas, de tons estridentes e desencontrados, cheias de grandes personagens, Carlos V passando o Elba, Alexandre coroando Roxane; os lindos Nevers, ingenuos e sÃrios; os Marselhas, onde se abre voluptuosamente, como uma nudez que se mostra, uma grossa rosa vermelha; os Derby, com as suas rendas de ouro sobre o azul-ferrete de cÃo tropical; os Wedgewood, cÃr de leite e cÃr de rosa, com transparencias fugitivas de concha na agua... --Sà um instante mais, exclamou Carlos vendo-a outra vez sentar-se, à necessario saudar o genio tutelar da casa! Era ao centro, sobre uma larga peanha, um idolo japonez de bronze, um deus bestial, nË, pelado, obeso, de papeira, faceto e banhado de riso, com o ventre Ãvante, distendido na indigestâo de todo um universo--e as duas perninhas bambas, molles e flaccidas como as pelles mortas d'um feto. E este monstro triumphava, encanchado sobre um animal fabuloso, de pÃs humanos, que dobrava para a terra o pescoÃo submisso, mostrando no focinho e no olho obliquo todo o surdo resentimento da sua humilhaÃâo... --E pensarmos, dizia Carlos, que geraÃıes inteiras vieram ajoelhar-se diante d'este ratâo, rezar-lhe, beijar-lhe o embigo, offerecer-lhe riquezas, morrer por elle... --O amor que se tem por um monstro, disse Maria, à mais meritorio, nâo à verdade? --Por isso nâo acha talvez meritorio o amor que se tem por si... Sentaram-se ao pà da janella, n'um divan baixo e largo, cheio de almofadas, cercado por um biombo de sÃda branca, que fazia entre aquelle luxo do passado um fÃfo recanto de conforto moderno: e como ella se queixava um pouco de calor, Carlos abriu a janella. Junto do peitoril crescia tambem um grande pà de margaridas; adiante, n'um velho vaso de pedra, pousado sobre a relva, vermelhejava a flÃr d'um cacto; e dos ramos de uma nogueira cahia uma fina frescura. Maria Eduarda veio encostar-se · janella, Carlos seguiu-a; e ficaram alli juntos, calados, profundamente felizes, penetrados pela doÃura d'aquella solidâo. Um passaro cantou de leve no ramo da arvore; depois calou-se. Ella quiz saber o nome de uma povoaÃâo que branquejava ao longe ao sol na collina azulada. Carlos nâo se lembrava. Depois brincando, colheu uma margarida, para a interrogar: _Elle m'aime, un peu, beaucoup_... Ella arrancou-lh'a das mâos. --Para que precisa perguntar ·s flÃres? --Porque ainda m'o nâo disse claramente, absolutamente, como eu quero que m'o diga... AbraÃou-a pela cinta, sorriam um ao outro. Entâo Carlos, com os olhos mergulhados nos d'ella, disse-lhe baixÃnho e implorando: --Ainda nâo vimos a saleta de banho... Maria Eduarda deixou-se levar assim enlaÃada pelo salâo, depois atravÃs da sala de tapeÃarias onde Marte e Venus se amavam entre os bosques. Os banhos eram ao lado, com um pavimento de azulejo, avivado por um velho tapete vermelho da Caramania. Elle, tendo-a sempre abraÃada, pousou-lhe no pescoÃo um beijo longo e lento. Ella abandonou-se mais, os seus olhos cerraram-se, pesados e vencidos. Penetraram na alcova quente e cÃr d'ouro: Carlos ao passar desprendeu as cortinas do arco de capella, feitas de uma sÃda leve que coava para dentro uma claridade loura: e um instante ficaram immoveis, sÃs emfim, desatado o abraÃo, sem se tocarem, como suspensos e suffocados pela abundancia da sua felicidade. --Aquella horrivel cabeÃa! murmurou ella. Carlos arrancou a coberta do leito, escondeu a tela sinistra. E entâo todo o rumor se extinguiu, a solitaria casa ficou adormecida entre as arvores, n'uma demorada sÃsta, sob a calma de julho... Os annos de Affonso da Maia foram justamente no dia seguinte, domingo. Quasi todos os amigos da casa tinham jantado no Ramalhete; e tom·ra-se o cafà no escriptorio d'Affonso, onde as janellas se conservavam abertas. A noite estava tepida, estrellada e serenissima. Craft, Sequeira e o Taveira passeavam fumando no terraÃo. Ao canto d'um sof· Cruges escutava religiosamente Steinbroken que lhe contava, com gravidade, os progressos da musica na Filandia. E em redor de Affonso, estendido na sua velha poltrona, de cachimbo na mâo, fallava-se do campo. Ao jantar Affonso annunci·ra a intenÃâo de ir visitar, para o meado do mez, as velhas arvores de Santa Olavia; e combin·ra-se logo uma grande romaria de amizade ·s margens do Douro. Craft e Sequeira acompanhavam Affonso. O marquez promettera uma visita para agosto ´na companhia melodiosaª, dizia elle, do amigo Steinbroken. D. Diogo hesitava, com receio da longa jornada, da humidade da aldÃa. E agora tratava-se de persuadir Ega a ir tambem, com Carlos--quando Carlos acabasse emfim de reunir esses materiaes do seu livro que o retinham em Lisboa ´· banca do labor...ª Mas o Ega resistia. O campo, dizia elle, era bom para os selvagens. O homem, · maneira que se civilisa, afasta-se da natureza; e a realisaÃâo do progresso, o paraiso na Terra, que presagiam os Idealistas, concebia-o elle como uma vasta cidade occupando totalmente o Globo, toda de casas, toda de pedra, e tendo apenas aqui e alÃm um bosquesinho sagrado de roseiras, onde se fossem colher os ramalhetes para perfumar o altar da JustiÃa... --E o milho? A bella fruta? A hortaliÃasinha? perguntava VillaÃa, rindo com malicia. Imaginava entâo VillaÃa, replicava o outro, que d'aqui a seculos ainda se comeriam hortaliÃas? O habito dos vegetaes era um resto da rude animalidade do homem. Com os tempos o sÃr civilisado e completo vinha a alimentar-se unicamente de productos artificiaes, em frasquinhos e em pilulas, feitos nos laboratorios do Estado... --O campo, disse entâo D. Diogo, passando gravemente os dedos pelos bigodes, tem certa vantagem para a sociedade, para se fazer um bonito _pic-nic_, para uma burricada, para uma partida de croquet... Sem campo nâo ha sociedade. --Sim, rosnou o Ega, como uma sala em que tambem ha arvores ainda se admitte... Enterrado n'uma poltrona, fumando languidamente, Carlos sorria em silencio. Todo o jantar estivera assim calado, sorrindo esparsamente a tudo, com um ar luminoso e de deliciosa lassidâo. E entâo o marquez, que j· duas vezes, dirigindo-se a elle, encontr·ra a mesma abstracÃâo radiosa, impacientou-se: --Homem, falle, diga alguma coisa!... Vocà est· hoje com um ar extraordinario, um arzinho de beato que se regalou de papar o Santissimo! Todos em redor, com sympathia, se affirmaram em Carlos: VillaÃa achava-lhe agora melhor cara, cÃr d'alegria: D. Diogo, com um ar entendido, sentindo mulher, invejou-lhe os annos, invejou-lhe o vigor. E Affonso reenchendo o cachimbo olhava o neto, enternecido. Carlos ergueu-se immediatamente, fugindo ·quelle exame affectuoso. --Com effeito, disse elle, espreguiÃando-se de leve, tenho estado hoje languido e mono... ⦠o comeÃo do verâo... Mas à necessario sacudir-me... Quer vocà fazer uma partida de bilhar, à marquez? --V· l·, homem. Se isso o resuscita... Foram, Ega seguiu-os. E apenas no corredor o marquez parando, e como recordando-se, perguntou sem rebuÃo ao Ega noticias dos Cohens. Tinham-se encontrado? Estava tudo acabado? Para o marquez, uma flÃr de lealdade, nâo havia segredos: Ega contou-lhe que o romance find·ra, e agora o Cohen, quando o cruzava, baixava prudentemente os olhos... --Eu perguntei isto, disse o marquez, porque j· vi a Cohen duas vezes... --Onde? foi a exclamaÃâo sÃfrega do Ega. --No Price, e sempre com o Damaso. A ultima vez foi j· esta semana. E l· estava o Damaso, muito chegadinho, palrando muito... Depois veio sentar-se um bocado ao pà de mim, e sempre d'olho n'ella... E ella de l·, com aquelle ar de lambisgoia, de luneta n'elle... Nâo havia que duvidar, era um namoro... Aquelle Cohen à um predestinado. Ega fez-se livido, torceu nervosamente o bigode, terminou por dizer: --O Damaso à muito intimo d'elles... Mas talvez se atire, nâo duvido... Sâo dignos um do outro. No bilhar, emquanto os dois carambolavam preguiÃosamente, elle nâo cessou de passear, n'uma agitaÃâo, trincando o charuto apagado. De repente estacou em frente do marquez, com os olhos chammejantes: --Quando à que vocà a viu ultimamente no Price, essa torpe filha d'Israel? --TerÃa-feira, creio eu. O Ega recomeÃou a passear, sombrio. N'esse instante Baptista, apparecendo · porta do bilhar, chamou Carlos em silencio, com um leve olhar. Carlos veio, surprehendido. --⦠um cocheiro de praÃa, murmurou Baptista. Diz que est· alli uma senhora dentro d'uma carruagem que lhe quer fallar. --Que senhora? Baptista encolheu os hombros. Carlos, de taco na mâo, olhava para elle, aterrado. Uma senhora! Era decerto Maria... Que teria succedido, santo Deus, para ella vir n'uma tipoia, ·s nove da noite, ao Ramalhete! Mandou Baptista, a correr, buscar-lhe um chapÃo baixo; e assim mesmo, de casaca, sem paletot, desceu n'uma grande anciedade. No peristyllo topou com Eusebiosinho que chegava, e sacudia cuidadosamente com o lenÃo a poeira dos botins. Nem fallou ao Eusebiosinho. Correu ao coupÃ, parado · porta particular dos seus quartos, mudo, fechado, mysterioso, aterrador... Abriu a portinhola. Do canto da velha traquitana, um vulto negro, abafado n'uma mantilha de renda, debruÃou-se, perturbado, balbuciou: --⦠sà um instante! Quero-lhe fallar! Que allivio! Era a Gouvarinho! Entâo, na sua indignaÃâo, Carlos foi brutal. --Que diabo de tolice à esta? Que quer? Ia bater com a portinhola; ella empurrou-a para fÃra, desesperada; e nâo se conteve, desabafou logo alli, diante do cocheiro, que mexia tranquillamente na fivela d'um tirante. --De quem à a culpa? Para que me trata d'este modo?... ⦠sà um instante, entre, tenho de lhe fallar!... Carlos saltou para dentro, furioso: --D· uma volta pelo Aterro, gritou ao cocheiro. Devagar! O velho calhambeque desceu a calÃada; e durante um momento, na escuridâo, recuando um do outro no assento estreito, tiveram as mesmas palavras, bruscas e colericas, atravÃs do barulho das vidraÃas. --Que imprudencia! que tolice!... --E de quem à a culpa? De quem à a culpa? Depois, na rampa de Santos, o coupà rolou mais silenciosamente no macadam. Carlos entâo, arrependido da sua dureza, voltou-se para ella, e com brandura, quasi no tom carinhoso d'outr'ora, reprehendeu-a por aquella imprudencia... Pois nâo era melhor ter-lhe escripto? --Para quÃ? exclamou ella. Para nâo me responder? Para nâo fazer caso das minhas cartas, como se fossem as de um importuno a pedir-lhe uma esmola!... Suffocava, arrancou a mantilha da cabeÃa. No vagaroso rolar do coupÃ, sem ruido, ao longo do rio, Carlos sentia a respiraÃâo d'ella, tumultuosa e cheia d'angustia. E nâo dizia nada, immovel, n'um infinito mal-estar, entrevendo confusamente, atravÃs do vidro embaciado, na sombra triste do rio adormecido, as mastreaÃıes vagas de falËas. A parelha parecia ir adormecendo; e as queixas d'ella desenrolavam-se, profundas, mordentes, repassadas d'amargura. --PeÃo-lhe que venha a Santa Isabel, nâo vem... Escrevo-lhe, nâo me responde... Quero ter uma explicaÃâo franca comsigo, nâo apparece... Nada, nem um bilhete, nem uma palavra, nem um aceno... Um desprezo brutal, um desprezo grosseiro... Eu nem devia ter vindo... Mas nâo pude, nâo pude!... Quiz saber o que lhe tinha feito. O que à isto? Que lhe fiz eu? Carlos percebia os olhos d'ella, faiscantes sob a nevoa de lagrimas retidas, supplicando e procurando os seus. E sem coragem sequer de a fitar, murmurou, torturado: --Realmente, minha amiga... As coisas fallam bem por si, nâo sâo necessarias explicaÃıes. --Sâo! ⦠necessario saber se isto à uma coisa passageira, um amuo, ou se à uma coisa definitiva, um rompimento! Elle agitava-se no seu canto, sem achar uma maneira suave, affectuosa ainda, de lhe dizer que todo o seu desejo d'ella find·ra. Terminou por affirmar que nâo era um amuo. Os seus sentimentos tinham sido sempre elevados, nâo cahiria agora na pieguice de ter um amuo... --Entâo à um rompimento?... --Nâo, tambem nâo... Um rompimento absoluto, para sempre, nâo... --Entâo à um amuo? PorquÃ? Carlos nâo respondeu. Ella, perdida, sacudiu-o pelo braÃo. --Mas falle! Diga alguma coisa, santo Deus! Nâo seja cobarde, tenha a coragem de dizer o que Ã! Sim, ella tinha razâo... Era uma cobardia, era uma indignidade, continuar alli, gÃchemente, dissimulado na sombra, a balbuciar coisas mesquinhas. Quiz ser claro, quiz ser forte. --Pois bem, ahi est·. Eu entendi que as nossas relaÃıes deviam ser alteradas... E outra vez hesitou, a verdade amolleceu-lhe nos labios, sentindo aquella mulher ao seu lado a tremer d'agonia. --Alteradas, quero dizer... Podiamos transformar um capricho apaixonado, que nâo podia durar, n'uma amizade agradavel, e mais nobre... E pouco a pouco as palavras voltavam-lhe faceis, habeis, persuasivas, atravÃs do rumor lento das rodas. Onde os podia levar aquella ligaÃâo? Ao resultado costumado. A que a um dia se descobrisse tudo, e o seu bello romance acabasse no escandalo e na vergonha; ou a que, envolvendo-os por muito tempo o segredo, elle viesse a descahir na banalidade d'uma uniâo quasi conjugal, sem interesse e sem requinte. De resto era certo que, continuando a encontrarem-se, aqui, em Cintra, n'outros sitios, a sociedadesinha curiosa e mexeriqueira viria a perceber a sua affeiÃâo. E havia por acaso nada mais horroroso, para quem tem orgulho e delicadeza d'alma, do que uns amores que todo o publico conhece, atà os cocheiros de praÃa? Nâo... O bom senso, o bom gosto mesmo, tudo indicava a necessidade d'uma separaÃâo. Ella mesmo mais tarde lhe seria grata... Decerto, esta primeira interrupÃâo d'um habito dÃce era desagradavel, e elle estava bem longe de se sentir feliz. FÃra por isso que nâo tivera a coragem de lhe escrever... Emfim deviam ser fortes, e nâo se vÃrem pelo menos durante alguns mezes... Depois, pouco a pouco, o que era capricho fragil, cheio de inquietaÃâo, tornar-se-hia uma boa amizade, bem segura e bem duradoura. Calou-se; e entâo, no silencio, sentiu que ella, cahida para o canto do coupÃ, como uma coisa miseravel e meio morta, encolhida no seu vÃo, estava chorando baixo. Foi um momento intoleravel. Ella chorava sem violencia, mansamente, com um chÃro lento, que parecia nâo dever findar. E Carlos sà achava esta palavra banal e desenxabida: --Que tolice, que tolice! Vinham rodando ao comprido das casas, por diante da fabrica do gaz. Um americano passou alumiado, com senhoras vestidas de claro. N'aquella noite de verâo e d'estrellas, havia gente vagueando tranquillamente entre as arvores. Ella continuava a chorar. Aquelle pranto triste, lento, correndo a seu lado, comeÃou a commovel-o; e ao mesmo tempo quasi lhe queria mal por ella nâo reter essas lagrimas infindaveis que laceravam o seu coraÃâo... E elle que estava tâo tranquillo, no Ramalhete, na sua poltrona, sorrindo a tudo, n'uma deliciosa lassidâo! Tomou-lhe a mâo, querendo calmal-a, apiedado, e j· impaciente. --Realmente nâo tem razâo. ⦠absurdo... Tudo isto à para seu bem... Ella teve emfim um movimento, enxugou os olhos, assoou-se doloridamente por entre os seus longos soluÃos... E de repente, n'um arranque de paixâo, atirou-lhe os braÃos ao pescoÃo, prendendo-se a elle com desespero, esmagando-o contra o seu seio. --Oh meu amor, nâo me deixes, nâo me deixes! Se tu soubesses! â¦s a unica felicidade que eu tenho na vida... Eu morro, eu mato-me!... Que te fiz eu? Ninguem sabe do nosso amor... E que soubesse! Por ti sacrifico tudo, vida, honra, tudo! tudo!... Molhava-lhe a face com o resto das suas lagrimas; e elle abandonava-se, sentindo aquelle corpo sem collete, quente e como nË, subir-lhe para os joelhos, collar-se ao seu, n'um furor de o repossuir, com beijos sÃfregos, furiosos, que o suffocavam... Subitamente a tipoia parou. E um momento ficaram assim--Carlos immovel, ella cahida sobre elle e arquejando. Mas a tipoia nâo continuava. Entâo Carlos desprendeu um braÃo, desceu o vidro; e viu que estavam defronte do Ramalhete. O homem, obedecendo · ordem, dera a volta pelo Aterro, devagar, subira a rampa, retrocedera · porta da casa. Durante um instante Carlos teve a tentaÃâo de descer, acabar alli bruscamente aquelle longo tormento. Mas pareceu-lhe uma brutalidade. E desesperado, detestando-a, berrou ao cocheiro: --Outra vez ao Aterro, anda sempre!... A tipoia deu na rua estreita uma volta resignada, tornou a rolar; de novo as pedras da calÃada fizeram tilintir os vidros; de novo, mais suavemente, desceram a rampa de Santos. Ella recome÷ra os seus beijos. Mas tinham perdido a chamma que um instante os fizera quasi irresistiveis. Agora Carlos sentia sà uma fadiga, um desejo infinito de voltar ao seu quarto, ao repouso de que ella o arranc·ra para o torturar com estas recriminaÃıes, estes ardores entre lagrimas... E de repente, emquanto a condessa balbuciava, como tonta, pendurada do seu pescoÃo,--elle viu surgir n'alma, viva e resplandecente, a imagem de Maria Eduarda, tranquilla ·quella hora na sua sala de reps vermelho, fazendo serâo, confiando n'elle, pensando n'elle, relembrando as felicidades da vespera, quando a _Toca_, cheia de seus amores, dormia, branca entre as arvores... Teve entâo horror · Gouvarinho; brutalmente, sem piedade, repelliu-a para o canto do coupÃ. --Basta! Tudo isto à absurdo... As nossas relaÃıes estâo acabadas, nâo temos mais nada que nos dizer! Ella ficou um instante como atordoada. Depois estremeceu, teve um riso nervoso, reppelliu-o tambem, phreneticamente, pisando-lhe o braÃo. --Pois bem! Vai, deixa-me! Vai para a outra, para a brazileira! Eu conheÃo-a, à uma aventureira que tem o marido arruinado, e precisa quem lhe pague as modistas!... Elle voltou-se, com os punhos fechados, como para a espancar; e na tipoia escura, onde j· havia um vago cheiro de verbena, os olhos d'ambos, sem se vÃrem, dardejavam o odio que os enchia... Carlos bateu raivosamente no vidro. A tipoia nâo parou. E a Gouvarinho, do outro lado, furiosa, magoando os dedos, procurava descer a vidraÃa. --⦠melhor que s·ia! dizia ella suffocada. Tenho horror de me achar aqui, ao seu lado! Tenho horror! Cocheiro! cocheiro! O calhambeque parou. Carlos pulou para fÃra, fechou d'estalo a portinhola; e sem uma palavra, sem erguer o chapÃo, virou costas, abalou a grandes passadas para o Ramalhete, tremulo ainda, cheio d'idÃas de rancor, sob a paz da noite estrellada. IV Foi n'um sabbado que Affonso da Maia partiu para Santa Olavia. Cedo n'esse mesmo dia, Maria Eduarda, que o escolhera por ser de boa estreia, install·ra-se nos Olivaes. E Carlos, voltando de Santa Apolonia, onde fÃra acompanhar o avÃ, com o Ega, dizia-lhe alegremente: --Entâo aqui ficamos nÃs sÃs a torrar, _na cidade de marmore_ e de lixo... --Antes isso, respondeu o Ega, que andar de sapatos brancos, a scismar, por entre a poeirada de Cintra! Mas no domingo, quando Carlos recolheu ao Ramalhete ao anoitecer--Baptista annunciou que o snr. Ega tinha partido n'esse momento para Cintra, levando apenas livros e umas escovas embrulhadas n'um jornal... O snr. Ega tinha deixado uma carta. E tinha dito: ´Baptista, vou pastar.ª A carta, a lapis, n'uma larga folha d'almasso, dizia: ´Assaltou-me de repente, amigo, juntamente com um horror · caliÃa de Lisboa, uma saudade infinita da natureza e do verde. A porÃâo d'animalidade que ainda resta no meu sÃr civilisado e recivilisado precisa urgentemente d'espolinhar-se na relva, beber no fio dos regatos, e dormir balanÃada n'um ramo de castanheiro. O solÃcito Baptista que me remetta ·manhâ pelo omnibus a mala com que eu nâo quiz sobrecarregar a tipoia do _Mulato_. Eu demoro-me apenas tres ou quatro dias. O tempo de cavaquear um bocado com o Absoluto no alto dos _Capuchos_, e vÃr o que estâo fazendo os myosotis junto · meiga _fonte dos Amores_...ª --Pedante! rosnou Carlos, indignado com o abandono ingrato em que o deixava o Ega. E atirando a carta: --Baptista! O snr. Ega diz ahi que lhe mandem uma caixa de charutos, dos _Imperiales_. Manda-lhe antes dos _FlÃr de Cuba_. Os _Imperiales_ sâo um veneno. Esse animal nem fumar sabe! Depois de jantar Carlos percorreu o _Figaro_, folheou um volume de Byron, bateu carambolas solitarias no bilhar, assobiou _malagueÃas_ no terrasso--e terminou por sahir, sem destino, para os lados do Aterro. O Ramalhete entristecia-o, assim mudo, apagado, todo aberto ao calor da noite. Mas insensivelmente, fumando, achou-se na rua de S. Francisco. As janellas de Maria Eduarda estavam tambem abertas e negras. Subiu ao andar do Cruges. O menino Victorino nâo estava em casa... AmaldiÃoando o Ega, entrou no Gremio. Encontrou o Taveira, de paletot ao hombro, lendo os telegrammas. Nâo havia nada novo por essa velha Europa; apenas mais uns Nihilistas enforcados; e elle Taveira ia ao Price... --Vem tu tambem d'ahi, Carlinhos! Tens l· uma mulher bonita que se mette na agua com cobras e crocodilos... Eu pello-me por estas mulheres de bichos!... Que esta à difficil, traz um _chulo_... Mas eu j· lhe escrevi: e ella faz-me um bocado d'olho de dentro da tina. Arrastou Carlos: e pelo Chiado abaixo fallou-lhe logo do Damaso. Nâo torn·ra a ver essa flÃr? Pois essa flÃr andava apregoando por toda a parte que o Maia, depois do caso do Chiado, lhe dera por um amigo explicaÃıes humildes, covardes... Terrivel, aquelle Damaso! Tinha figura, interior, e natureza de pÃlla! Com quanto mais forÃa se atirava ao châo, mais elle resaltava para o ar, triumphante!... --Em todo o caso à uma rez traiÃoeira, e deves ter cautela com elle... Carlos encolheu os hombros, rindo. Nâo, nâo, dizia o Taveira muito sÃrio, eu conheÃo o meu Damaso. Quando foi da nossa pÃga, em casa da Lola Gorda, elle portou-se como um poltrâo, mas depois ia-me atrapalhando a vida... ⦠capaz de tudo... Antes d'hontem estava eu a cear no Silva, elle veio sentar-se um bocado ao pà de mim, e comeÃou logo com umas coisas a teu respeito, umas ameaÃas... --AmeaÃas! Que disse elle? --Diz que te d·s ares de espadachim e de valentâo, mas has de encontrar dentro em pouco quem te ensine... Que se est· ahi preparando um escandalo monumental... Que se nâo admirar· de te vÃr brevemente com uma boa bala na cabeÃa... --Uma bala? --Assim o disse. Tu ris, mas eu à que sei... Eu, se fosse a ti, ia-me ao Damaso e dizia-lhe: ´Damasosinho, flÃr, fique avisado que, d'ora em diante, cada vez que me succeder uma coisa desagradavel, venho aqui e parto-lhe uma costella; tome as suas medidas...ª Tinham chegado ao Price. Uma multidâo de domingo, alegre e pasmada, apinhava-se atà ·s ultimas bancadas onde havia rapazes, em mangas de camisa, com litros de vinho; e eram grossas, fartas risadas, com os requebros do palhaÃo, rebocado de c·io e vermelhâo, que tocava nos pÃsinhos d'uma _voltigeuse_ e lambia os dedos, d'olhos em alvo, n'um gosto de mel... DescanÃando na sella larga de xairel dourado, a creatura, magrinha e sÃria, com flÃres nas tranÃas, dava a volta devagar, ao passo d'um cavallo branco, que mordia o freio, levado · mâo por um estribeiro; e pela arena o palhaÃo lambâo e nescio acompanhava-a, com as mâos ambas apertadas ao coraÃâo, n'uma supplica babosa, rebolando languidamente os quadris dentro das vastas pantalonas, picadas de lantejoulas. Um dos escudeiros, de calÃa listrada d'ouro, empurrava-o, n'um arremedo de ciumes; e o palhaÃo cahia, estatelado, com um estoiro de nadegas, entre os risos das crianÃas e os rantantans da charanga. O calor suffocava; e as fumaraÃas de charuto, subindo sem cessar, faziam uma neva onde tremiam as chammas largas do gaz. Carlos, incommodado, abalou. --Espera ao menos para vÃr a mulher dos crocodilos! gritou ainda o Taveira. --Nâo posso, cheira mal, morro! Mas · porta, de repente, foi detido pelos braÃos abertos do Alencar, que chegava--com outro sujeito, velho e alto, de barbas brancas, todo vestido de luto. O poeta ficou pasmado de vÃr alli o de seu Carlos. Fazia-o no seu solar Santa de Olavia! Vira atà nos papeis publicos... --Nâo, disse Carlos, o avà à que foi hontem... Eu nâo me sinto ainda em disposiÃâo do ir communicar com a natureza... Alencar riu, levemente afogueado, com um brilho de genebra no olho cavo. Ao lado, grave, o anciâo de barbas calÃava as suas luvas pretas. --Pois eu à o contrario! exclamava o poeta. Estou precisado d'um banho de pantheismo! A bella natureza! O prado! O bosque!... De modo que talvez me mimoseie com Cintra, para a semana. Estâo l· os Cohens, alugaram uma casita muito bonita, logo adiante do Victor... Os Cohens! Carlos comprehendeu entâo a fuga do Ega e a ´sua saudade do verde.ª --Ouve l·, dizia-lhe o poeta baixo, e puxando-o pela manga, para o lado. Tu nâo conheces este meu amigo? Pois foi muito de teu pai, fizemos muita troÃa juntos... Nâo era nenhum personagem, era apenas um alquilador de cavallos... Mas tu sabes, c· em Portugal, sobretudo n'esses tempos, havia muita bonhomia, o fidalgo dava-se com o arrieiro... Mas, que diabo, tu deves conhecel-o! ⦠o tio do Damaso! Carlos nâo se recordava. --O Guimarâes, o que est· em Paris! --Ah, o communista! --Sim, muito republicano, homem de idÃas humanitarias, amigo do Gambetta, escreve no _Rappel_... Homem interessante!... Veio ahi por causa d'umas terras que herdou do irmâo, d'esse outro tio do Damaso que morreu ha mezes... E demora-se, creio eu... Pois jantamos hoje juntos, beberam-se uns liquidos, e atà estivemos a fallar de teu pai... Queres tu que eu t'o apresente? Carlos hesitou. Seria melhor n'outra occasiâo mais intima, quando podessem fumar um charuto tranquillo, e conversar do passado... --Valeu! Has de gostar d'elle. Conhece muito Victor Hugo, detesta a padraria... Espirito largo, espirito muito largo! O poeta sacudiu ardentemente as duas mâos de Carlos. O snr. Guimarâes ergueu de leve o seu chapÃo, carregado de crepe. Todo o caminho, atà ao Ramalhete, Carlos foi pensando em seu pai e n'esse passado, assim rememorado e estranhamente resurgido pela presenÃa d'aquelle patriarcha, antigo alquilador, que fizera com elle tantas troÃas! E isto trazia conjuntamente outra idÃa, que n'esses ultimos dias j· o atravess·ra, pertinaz e torturante, dando-lhe, no meio da sua radiante felicidade, um sombrio arripio de dÃr... Carlos pensava no avÃ. Estava agora decidido que Maria Eduarda e elle partiriam para Italia, nos fins de outubro. Castro Gomes, na sua ultima carta do Brazil, sÃcca e pretenciosa, fallava ´em apparecer por Lisboa, com as elegancias do frio, l· para meado de novembroª; e era necessario antes d'isso que estivessem j· longe, entre as verduras d'Isola Bella, escondidos no seu amor e separados por elle do mundo como pelos muros d'um claustro. Tudo isto era facil, considerado quasi legÃtimo pelo seu coraÃâo, e enchia a sua vida d'esplendor... SÃmente havia n'isto um espinho--o avÃ! Sim, o avÃ! Elle partia com Maria, elle entrava na ventura absoluta; mas ia destruir de uma vez e para sempre a alegria d'Affonso, e a nobre paz que lhe tornava tâo bella a velhice. Homem de outras eras, austero e puro, como uma d'essas fortes almas que nunca desfalleceram--o avÃ, n'esta franca, viril, rasgada soluÃâo d'um amor indominavel, sà veria libertinagem! Para elle nada significava o esponsal natural das almas, acima e fÃra das ficÃıes civis; e nunca comprehenderia essa subtil ideologia sentimental, com que elles, como todos os transviados, procuravam azular o seu erro. Para Affonso haveria apenas um homem que leva a mulher d'outro, leva a filha d'outro, dispersa uma familia, apaga um lar, e se atola para sempre na concubinagem: todas as subtilezas da paixâo, por mais finas, por mais fortes, quebrar-se-hiam, como bolas de sabâo, contra as tres ou quatro idÃas fundamentaes de Dever, de JustiÃa, de Sociedade, de Familia, duras como blocos de marmore, sobre que assent·ra a sua vida quasi durante um seculo... E seria para elle como o horror d'uma fatalidade! J· a mulher de seu filho fugira com um homem, deixando atraz de si um cadaver; seu neto agora fugia tambem, arrebatando a familia d'outro:--e a historia da sua casa tornava-se assim uma repetiÃâo d'adulterios, de fugas, de dispersıes, sob o bruto aguilhâo da carne!... Depois as esperanÃas que Affonso fund·ra n'elle--consideral-as-hia tombadas, mortas no lodo! Elle passava a ser para sempre, na imaginaÃâo angustiada do avÃ, um foragido, um inutilisado, tendo partido todas as raizes que o prendiam ao seu sÃlo, tendo abdicado toda a acÃâo que o elevaria no seu paiz, vivendo por hoteis de refugio, fallando linguas estranhas, entre uma familia equivoca crescida em torno d'elle como as plantas de uma ruina... Sombrio tormento, implacavel e sempre presente, que consumiria os derradeiros annos do pobre avÃ!... Mas, que podia elle fazer? J· o dissera ao Ega. A vida à assim! Elle nâo tinha o heroismo nem a santidade que tornam facil o sacrificio... E depois os dissabores do avÃ, de que provinham? De preconceitos. E a sua felicidade, justo Deus, tinha direitos mais largos, fundados na natureza!... Cheg·ra ao fim do Aterro. O rio silencioso fundia-se na escuridâo. Por alli entraria em breve do Brazil, o _outro_--que nas suas cartas se esquecia de mandar um beijo a sua filha! Ah, se elle nâo voltasse! Uma onda providencial podia leval-o... Tudo se tornaria tâo facil, perfeito e limpido! De que servia na vida esse resequido? Era como um sacco vazio que cahisse ao mar! Ah, se _elle_ morresse!... E esquecia-se, enlevado n'uma visâo em que a imagem de Maria o chamava, o esperava, livre, serena, sorrindo e coberta de luto... No seu quarto, Baptista, vendo-o atirar-se para uma poltrona com um suspiro de fadiga, de desconsolaÃâo,--disse, depois de tossir risonhamente, e dando mais luz ao candieiro: --Isto agora, sem o snr. Ega, parece um bocadinho mais sÃ... --Est· sÃ, est· triste, murmurou Carlos. ⦠necessario sacudirmo-nos... Eu j· te disse que talvez fossemos viajar este inverno... O menino nâo lhe tinha dito nada. --Pois talvez vamos a Italia... Appetece-te voltar a Italia? Baptista reflectiu. --Eu, da outra vez nâo vi o Papa... E antes de morrer nâo se me dava de vÃr o Papa... --Pois sim, ha de se arranjar isso, has de vÃr o Papa. Baptista, depois d'um silencio, perguntou, lanÃando um olhar ao espelho: --Para vÃr o Papa vai-se de casaca, creio eu? --Sim, recommendo-te a casaca... O que tu devias ter, para esses casos, era um habito de Christo... Hei de vÃr se te arranjo um habito de Christo. Baptista ficou um instante assombrado. Depois fez-se escarlate, d'emoÃâo: --Muito agradecido a v. exc.^a Ha por ahi gente que o tem, ainda talvez com menos merecimentos que eu... Dizem que atà ha barbeiros... --Tens razâo, replicou Carlos muito sÃrio. Era uma vergonha. O que hei de vÃr se te arranjo com effeito à a commenda da ConceiÃâo. Todas as manhâs, agora, Carlos percorria o poeirento caminho dos Olivaes. Para poupar aos seus cavallos a soalheira ia na tipoia do _Mulato_, o batedor favorito do Ega--que recolhia a parelha na velha cavalhariÃa da _Toca_, e, atà · hora em que Carlos voltava ao Ramalhete, vadiava pelas tabernas. Ordinariamente ao meio dia, ao acabar de almoÃar, Maria Eduarda, ouvindo rodar o trem na estrada silenciosa, vinha esperar Carlos · porta da casa, no topo dos degraus ornados de vasos e resguardados por um fresco toldo de fazenda cÃr de rosa. Na quinta usava sempre vestidos claros; ·s vezes trazia, · antiga moda hespanhola, uma flÃr entre os cabellos; o forte e fresco ar do campo avivava com um brilho mais quente o mate eburneo do seu rosto;--e assim, simples e radiante, entre sol e verdura, ella deslumbrava Carlos cada dia com um encanto inesperado e maior. Cerrando o portâo d'entrada, que rangia nos gonzos, Carlos sentia-se logo envolvido n'um ´extraordinario conforto moralª, como elle dizia, em que todo o seu sÃr se movia mais facilmente, fluidamente, n'uma permanente impressâo de harmonia e doÃura... Mas o seu primeiro beijo era para Rosa, que corria pela rua de acacias ao seu encontro, com uma onda de cabello negro a bater-lhe os hombros, e _Niniche_ ao lado, pulando e ladrando de alegria. Elle erguia Rosa ao collo. Maria de longe sorria-lhes, sob o toldo cÃr de rosa. Em redor tudo era luminoso, familiar e cheio de paz. A casa dentro resplandecia com um arranjo mais delicado. J· se podia usar o salâo nobre, que perdera o seu ar rigido de museu, exhalando a tristeza d'um luxo morto: as flÃres que Maria punha nos vasos, um jornal esquecido, as lâs de um bordado, o simples roÃar dos seus frescos vestidos, tinham communicado j· um subtil calor de vida e de conchego aos mais impertigados contadores do tempo de Carlos V, revestidos de ferro brunido:--e era alli que elles ficavam conversando emquanto nâo chegava a hora das liÃıes de Rosa. A essa hora apparecia miss Sarah, sÃria e recolhida--sempre de preto, com uma ferradura de prata em broche sobre o collarinho direito de homem. Recuper·ra as suas cÃres fortes de boneca, e as pestanas baixas tinham uma timidez mais virginal sob o liso dos bandÃs puritanos. Gordinha, com o peito de pomba farta estalando dentro do corpete severo, mostrava-se toda contente da vida calma e lenta de aldÃa. Mas aquellas terras trigueiras d'olivedo nâo lhe pareciam campo: ´à muito sÃcco, à muito duro,ª dizia ella, com uma indefinida saudade dos verdes molhados da sua Inglaterra, e dos cÃos de nevoa, cinzentos e vagos. Davam duas horas; e comeÃavam logo nos quartos de cima as longas liÃıes de Rosa. Carlos e Maria iam entâo refugiar-se n'uma intimidade mais livre, no kiosque japonez, que uma phantasia de Craft, o seu amor do Japâo, construira ao pà da rua d'acacias, aproveitando a sombra e o retiro bucolico de dois velhos castanheiros. Maria affeiÃoara-se ·quelle recanto, chamava-lhe o seu _pensadoiro_. Era todo de madeira, com uma sà janellinha redonda, e um telhado agudo · japoneza, onde roÃavam os ramos--tâo leve que atravÃs d'elle nos momentos de silencio se sentiam piar as aves. Craft forr·ra-o todo de esteiras finas da India; uma mesa de xarâo, algumas faianÃas do Japâo, ornavam-no sobriamente; o tecto nâo se via, occulto por uma colcha de sÃda amarella, suspensa pelos quatro cantos, em laÃos, como o rico docel de uma tenda;--e todo o ligeiro kiosque parceia ter sido armado sà com o fim d'abrigar um divan baixo e fÃfo, d'uma languidez de serralho, profundo para todos os sonhos, amplo para todas as preguiÃas... Elles entravam, Carlos com algum livro que escolhera na presenÃa de miss Sarah, Maria Eduarda com um bordado ou uma costura. Mas bordado e livro cahiam logo no châo--e os seus labios, os seus braÃos uniam-se arrebatadamente. Ella escorregava sobre o divan: Carlos ajoelhava n'uma almofada, tremulo, impaciente depois da forÃada reserva diante de Rosa e diante de Sarah--e alli ficava, abraÃado · sua cintura, balbuciando mil coisas pueris e ardentes, por entre longos beijos que os deixavam frouxos, com os olhos cerrados, n'uma doÃura de desmaio. Ella queria saber o que elle tinha feito durante a longa, longa noite de separaÃâo. E Carlos nada tinha a contar senâo que pens·ra n'ella, que sonh·ra com ella... Depois era um silencio: os pardaes piaram, as pombas arrulhavam por cima do leve telhado: e _Niniche_, que os acompanhava sempre, seguia os seus murmurios, os seus silencios, enroscada a um canto, com um olho negro, reluzindo desconfiadamente por entre as repas prateadas. FÃra, por aquelles dias de calma, sem aragem, a quinta sÃcca, d'um verde empoeirado, dormia com as folhagens immoveis, sob o peso do sol. Da casa branca, atravÃs das persianas fechadas, vinha apenas o som amodorrado das escalas que Rosa fazia no piano. E no kiosque havÃa tambem um silencio satisfeito e pleno--sÃmente quebrado por algum dÃce suspiro de lassidâo que sahia do divan, d'entre as almofadas de sÃda, ou algum beijo mais longo e d'um remate mais profundo... Era _Niniche_ que os tirava d'aquelle suave entorpecimento, farta de estar alli quieta, encerrada entre as madeiras quentes, n'um ar molle j· repassado d'esse aroma indefinido em que havia jasmim. Lenta, e passando as mâos no rosto Maria erguia-se--mas para cahir logo aos pÃs de Carlos, no seu reconhecimento infinito... Meu Deus, o que lhe custava entâo esse momento de separaÃâo! Para que havia de ser assim? Parecia tâo pouco natural, esposos como eram, que ella ficasse alli toda a noite, sÃsinha, com o seu desejo d'elle, e elle fosse, sem as suas carÃcias, dormir solitariamente ao Ramalhete!... E ainda se demoravam muito tempo, n'uma mudez d'extasi, em que os olhos humidos, trespassando-se, continuavam o beijo insaciado que morrera nos seus labios canÃados. Era _Niniche_ que os fazia sahir por fim trotando impacientemente da porta para o divan, rosnando, ameaÃando ladrar. Muitas vezes ao recolherem Maria tinha uma inquietaÃâo. Que pensaria miss Sarah d'esta sÃsta assim enclausurada, sem um rumor, com a janella do pavilhâo cerrada? Melanie, desde pequena ao serviÃo de Maria, era uma confidente: o bom Domingos, um imbecil, nâo contava: mas miss Sarah?... Maria confessava sorrindo que se sentia um pouco humilhada, ao encontrar depois · mesa os candidos olhos da ingleza sob os seus bandÃs virginaes... Est· claro! se a boa miss tivesse a ousadia de resmungar ou franzir de leve a testa, recebia logo seccamente a sua passagem no _Royal Mail_ para Southampton! Rosa nâo a lamentaria, Rosa nâo lhe tinha affeiÃâo. Mas, emfim, era tâo sÃria, admirava tanto a senhora! Ella nâo gostava de perder a admiraÃâo d'uma rapariga tâo sÃria. E assim decidiram despedir miss Sarah, rÃgiamente paga, e substituil-a, mais tarde, em Italia, por uma governante allemâ, para quem elles fossem como casados, ´Monsieur et Madame...ª Mas pouco a pouco o desejo d'uma felicidade mais intima, mais completa, foi crescendo n'elles. Nâo lhes bastava j· essa curta manhâ no divan com os passaros cantando por cima, a quinta cheia de sol, tudo acordado em redor: appeteciam o longo contentamento d'uma longa noite, quando os seus braÃos se podessem enlaÃar sem encontrar o estofo dos vestidos, e tudo dormisse em torno, os campos, a gente e a luz... De resto era bem facil! A sala de tapeÃarias, communicando com a alcova de Maria, abria sobre o jardim por uma porta envidraÃada; a governante, os criados, subiam ·s dez horas para os seus quartos no andar alto; a casa adormecia profundamente; Carlos tinha uma chave do portâo; e o unico câo, _Niniche_, era o confidente fiel dos seus beijos... Maria desejava essa noite tâo ardentemente como elle. Uma tarde ao escurecer, voltando d'um fresco passeio nos campos, experimentaram ambos essa dupla chave--que Carlos j· promettia mandar dourar: e elle ficou surprehendido ao vÃr que o velho portâo, que ouvira sempre ranger abominavelmente, rolava agora nos gonzos com um silencio oleoso. Veio n'essa mesma noite--tendo deixado na villa para o levar ao amanhecer a caleche do _Mulato_, um batedor discreto, que elle cevava de gorgetas. O cÃo, molle e abafado, nâo tinha uma estrella; e sobre o mar lampejava a espaÃos, mudamente, a lividez d'um relampago. Caminhando com inuteis cautelas rente do muro Carlos sentia, n'esta proximidade d'uma posse tâo desejada, uma melancolia, cortada de anciedade, que vagamente o acobardava. Abriu quasi a tremer o portâo: e mal dÃra alguns passos estacou, ouvindo ao fundo _Niniche_ ladrar furiosamente. Mas tudo emmudeceu; e da janella do canto, sobre o jardim, surgiu uma claridade que o socegou. Foi encontrar Maria, com um roupâo de rendas, junto da porta envidraÃada, suffocando quasi entre os braÃos _Niniche_ que ainda rosnava. Estava toda medrosa, n'uma impaciencia de o sentir ao seu lado: e nâo quiz recolher logo: um momento ficaram alli, sentados nos degraus, com _Niniche_ que aquiet·ra e lambia Carlos. Tudo em redor era como uma infinita mancha de tinta; sà l· em baixo, perdida e mortiÃa, surdia da treva alguma luzinha vacillando no alto d'um mastro. Maria, conchegada a Carlos, refugiada n'elle, deu um longo suspiro: e os seus olhos mergulhavam inquietos n'aquella mudez negra, onde os arbustos familiares do jardim, toda a quinta, parecia perder a realidade, sumida, diluida na sombra. --Porque nâo havemos de partir j· para a Italia? perguntou ella de repente, procurando a mâo de Carlos. Se tem de ser, porque nâo ha de ser j·?... Escusavamos de ter estes segredos, estes sustos! --Sustos de que, meu amor? Estamos aqui tâo seguros como na Italia, como na China... De resto podemos partir mais depressa, se quizeres... Dize tu um dia, marca um dia! Ella nâo respondeu, deixando cahir dÃcemente a cabeÃa sobre o hombro de Carlos. Elle acrescentou, devagar: --Em todo o caso, comprehendes bem, preciso primeiro ir a Santa Olavia, vÃr o avÃ... Os olhos de Maria perdiam-se outra vez na escuridâo--como recebendo d'ella o presagio d'um futuro, onde tudo seria confuso e escuro tambem. --Tu tens Santa Olavia, tens teu avÃ, tens os teus amigos... Eu nâo tenho ninguem! Carlos estreitou-a a si, enternecido. --Nâo tens ninguem! Isso dito a mim! Nem chega a ser injustiÃa, nem chega a ser ingratidâo! ⦠nervoso; e à tambem o que os inglezes chamam a ´impudente adulteraÃâo d'um facto.ª Ella fic·ra aninhada no peito de Carlos, como desfallecida. --Nâo sei porque, queria morrer... Um largo brilho de relampago alumiou o rio. Maria teve medo, entraram na alcova. Os mÃlhos de velas de duas serpentinas, batendo os damascos e os setins amarellos, embebiam o ar tepido, onde errava um perfume, n'uma refulgencia ardente de sacrario: e as bretanhas, as rendas do leito j· aberto punham uma casta alvura de neve fresca n'esse luxo amoroso e cÃr de chamma. FÃra, para os lados do mar, um trovâo rolou lento e surdo. Mas Maria j· o nâo ouviu, cahida nos braÃos de Carlos. Nunca o desej·ra, nunca o ador·ra tanto! Os seus beijos anciosos pareciam tender mais longe que a carne, trespassal-o, querer sorver-lhe a vontade e a alma:--e toda a noite, entre esses brocados radiantes, com os cabellos soltos, divina na sua nudez, ella lhe appareceu realmente como a Deusa que elle sempre imagin·ra, que o arrebatava emfim, apertado ao seu seio immortal, e com elle pairava n'uma celebraÃâo d'amor, muito alto, sobre nuvens de ouro... Quando sahiu, ao amanhecer, chovia. Foi encontrar o _Mulato_ a dormir n'uma taberna, bebedo. Teve de o metter dentro do carro; e foi elle que governou atà ao Ramalhete, embrulhado n'uma manta do taberneiro, encharcado, cantarolando, esplendidamente feliz. Passados dias, passeando com Maria nos arredores da _Toca_, Carlos reparou n'uma casita, · beira da estrada, com escriptos: e veio-lhe logo a idÃa de a alugar, para evitar aquella desagradavel partida de madrugada com o _Mulato_ estremunhado, borracho, despedaÃando o trem pelas calÃadas. Visitaram-na: havia um quarto largo, que com tapete e cortinas podia dar um refugio confortavel. Tomou-a logo--e Baptista veio ao outro dia, com moveis n'uma carroÃa, arranjar este novo ninho. Maria disse, quasi triste: --Mais outra casa! --Esta, exclamou Carlos rindo, à a ultima! Nâo, à a penultima... Temos ainda a outra, a nossa, a verdadeira, l· longe, nâo sei onde... ComeÃaram a encontrar-se todas as noites. ¡s nove e meia, pontualmente, Carlos deixava a _Toca_, com o seu charuto accÃso: e Domingos, adiante, de lanterna, vinha fechar o portâo, tirar a chave. Elle recolhia devagar · sua ´choupanaª onde o servia um criadito, filho do jardineiro do Ramalhete. Sobre um tapete solto, deitado no velho soalho, havia apenas, alÃm do leito, uma mesa, um sof· de riscadinho, duas cadeiras de palha; e Carlos entretinha as horas que o separavam ainda de Maria, escrevendo para Santa Olavia e sobretudo ao Ega, que se eternisava em Cintra. Recebera duas cartas d'elle, fallando quasi sÃmente do Damaso. O Damaso apparecia em toda a parte com a Cohen; o Damaso torn·ra-se grutesco em Cintra, n'uma corrida de burros; o Damaso arvor·ra capacete e vÃo em Sitiaes; o Damaso era uma besta immunda; o Damaso, no pateo do Victor, de perna traÃada, dizia familiarmente ´a Rachelª; era um dever de moralidade publica dar bengaladas no Damaso!... Carlos encolhia os hombros, achando estes ciumes indignos do coraÃâo do Ega. E entâo por quem! Por aquella lambisgoia d'Israel, melada e mollenga, sovada a bengala! ´Se com effeito, escrevera elle ao Ega, ella desceu de ti atà ao Damaso, tens sà a fazer como se fosse um charuto que te cahisse · lama: nâo o pÃdes naturalmente levantar: deves deixar fumal-o em paz ao garoto que o apanhou: enfurecer-te com o garoto ou com o charuto, à d'imbecil.ª Mas ordinariamente, quando respondia, fallava sà ao Ega dos Olivaes, dos seus passeios com Maria, das conversas d'ella, do encanto d'ella, da superioridade d'ella... Ao avà nâo achava que dizer; nas dez linhas que lhe destinava, descrevia o calor, recommendava-lhe que nâo se fatigasse, mandava saudades para os hospedes, e dava-lhe recados do Manoelzinho--que elle nunca via. Quando nâo tinha que escrever, estirava-se no sof·, com um livro aberto, os olhos no ponteiro do relogio. ¡ meia noite sahia, encafuado n'um gabâo d'Aveiro, e de varapau. Os seus passos resoavam, solitarios na mudez dos campos, com uma indefinida melancolia de segredo e de culpa... N'uma d'essas noites, de grande calor, Carlos canÃado adormeceu no sof·: e sà despertou, em sobresalto, quando o relogio na parede dava tristemente duas horas. Que desespero! Ahi ficava perdida a sua noite de amor! E Maria decerto · espera, angustiada, imaginando desastres!... Agarrou o cajado, abalou, correndo pela estrada. Depois, ao abrir subtilmente o portâo da quinta, pensou que Maria teria adormecido: _Niniche_ podia ladrar: os seus passos, entre as acacias, abafaram-se, mais cautelosos. E de repente sentiu ao lado, sob as ramagens, vindo do châo, d'entre a herva, um resfolgar ardente d'homem, a que se misturavam beijos. Parou, varado: e o seu impeto logo foi esmagar a cacete aquelles dois animaes, enroscados na relva, sujando brutamente o poetico retiro dos seus amores. Uma alvura de saia moveu-se no escuro: uma voz soluÃava, desfalecida--_oh yes, oh yes_... Era a ingleza! Oh santo Deus, era a ingleza, era miss Sarah! Apagando os passos, atordoado, Carlos escoou-se pelo portâo, cerrou-o mansamente, foi esperar adiante, n'um recanto do muro, sob as ramarias d'uma faia, sumido na sombra. E tremia de indignaÃâo. Era preciso contar immediatamente a Maria aquelle grande _horror_! Nâo queria que ella consentisse um momento mais essa impura fÃmea, junto de Rosa, roÃando a candidez do seu anjo... Oh, era pavorosa uma tal hypocrisia, assim astuta e methodica, sem se desconcertar j·mais! Havia dias apenas, vira a creatura desviar os olhos d'uma gravura d'_IllustraÃâo_, onde dois castos pastores se beijavam n'um arvoredo bucolico! E agora rugia, estirada na herva! Na estrada escura, do lado do portâo, brilhou um lume de cigarro. Um homem passou, forte e pesado, com uma manta aos hombros. Parecia um jornaleiro. A boa miss Sarah nâo escolhera! Bem lavada, toda correcta, com os seus bandÃs puritanos, aceitava _um qualquer_, rude e sujo, desde que era um macho! E assim os embaÃra, mezes, com aquellas suas duas existencias, tâo separadas, tâo completas! De dia virginal, severa, cÃrando sempre, com a Biblia no cesto da costura: · noite a pequena adormecia, todos os seus deveres sÃrios acabavam, a santa transformava-se em cabra, chale aos hombros, e l· ia para a relva, com qualquer!... Que bello romance para o Ega! Voltou; tornou a abrir devagarinho o portâo: de novo subiu, amollecendo os passos, a sombria rua d'acacias. Mas agora ia sentindo uma hesitaÃâo em contar a Maria _aquelle horror_. A seu pezar pensava que tambem Maria o esperava, com o leito aberto, no silencio da casa adormecida; e que tambem elle penetrava alli, ·s escondidas, como o homem da manta... De certo era bem differente! Toda a immensuravel differenÃa que vai do divino ao bestial... E todavia receava despertar os melindrosos escrupulos de Maria, mostrando-lhe, parallelo ao seu amor cheio de requintes e passado entre brocados cÃr d'ouro, aquelle outro rude amor, secreto e illegitimo como o d'ella, e arrastado brutamente na relva... Era como mostrar-lhe um reflexo da sua propria culpa, um pouco esfumada, mais grosseira, mas parecida nos seus contornos, lamentavelmente parecida... Nâo, nâo diria nada. E a pequena?... Oh, nas suas relaÃıes com Rosa a creatura continuaria a ser, como sempre, a puritana laboriosa, grave e cheia d'ordem. A porta envidraÃada sobre o jardim tinha ainda luz: elle atirou aos vidros uma pouca de terra solta, depois bateu de leve. Maria appareceu, mal embrulhada n'um roupâo, juntando os cabellos que se tinham desenrolado, e meia adormecida. --Porque vieste tâo tarde? Carlos beijou longamente os seus bellos olhos pesados, quasi cerrados. --Adormeci estupidamente, a lÃr... Depois, quando entrei pareceu-me ouvir passos na quinta, andei a rebuscar... Era imaginaÃâo, tudo deserto. --Precisavamos ter um câo de fila, murmurou ella, espreguiÃando-se. Sentada · beira do leito, com os braÃos cahidos e adormentados, sorria da sua preguiÃa. --Est·s tâo fatigada, filha! queres tu que me v· embora ?... Ella puxou-o para o seu seio perfumado e quente. --Je veux que tu m'aimes beaucoup, beaucoup, et longtemps... Ao outro dia Carlos nâo fÃra a Lisboa, e appareceu cedo na _Toca_. Melanie, que andava espanejando o kiosque, disse-lhe que Madame, um pouco canÃada, tinha justamente tomado o seu chocolate na cama. Elle entrou no salâo: defronte da janella aberta, sentada no banco de cortiÃa, miss Sarah costurava, · sombra das arvores. --_Good morning_, disse-lhe Carlos, chegando-se ao peitoril, todo curioso de a observar. --_Good morning, sir_, respondeu ella com o seu ar modesto e tÃmido. Carlos fallou do calor. Miss Sarah j· ·quella hora o achava intoleravel. Felizmente a vista do rio, l· em baixo, refrescava... Sobretudo a noite passada, insistiu Carlos accendendo a cigarrette, fÃra tâo abafada! Elle mal pudera dormir. E ella? Oh, ella dormira d'um somno sÃ. Carlos quiz saber se tivera bonitos sonhos. --_Oh yes, sir_. _Oh yes!_ mas agora um yes pudico, sem gemidos, com os olhos baixos. E tâo correcta, tâo pregada, fresca como se nunca tivesse servido!... Positivamente era extraordinaria! E Carlos, torcendo o bigode, pensava que ella devia ter um seiosinho bem alvo e bem redondinho! Assim ia passando o verâo nos Olivaes. No comeÃo de setembro, Carlos soube por uma carta do avà que Craft devia chegar a Lisboa, n'um sabbado, ao Hotel Central: e correu l· cedo, logo n'essa manhâ, a ouvir as novidades de Santa Olavia. Achou Craft j· a pÃ, diante do espelho, fazendo a barba. A um canto do sof·, Eusebiosinho, que viera na vespera · noite de Cintra e estava tambem no Hotel, limpava as unhas com um canivete, em silencio, coberto de negro. Craft vinha encantado com Santa Olavia. Nem comprehendia como Affonso, beirâo forte, tolerava a rua de S. Francisco, e o quintalejo abafado do Ramalhete. Tinha-se passado rÃgiamente! O avÃ, cheio de saude, d'uma hospitalidade que lembrava Abrahâo e a Biblia. O Sequeira optimo comendo tanto que ficava inutil depois de jantar, a estoirar e a gemer no fundo d'uma poltrona. L· conhecera o velho Travassos, que fallava sempre com os olhos cheios de lagrimas do ´talento do seu caro collega Carlos.ª E o marquez esplendido, com abraÃos de primo a todos os fidalgotes de Lamego, e apaixonado por uma barqueira... De resto soberbos jantares, alguns tiros aos coelhos, uma romaria, danÃas de raparigas no adro, guitarradas, esfolhadas, todo o dÃce idyllio portuguez... --Mas a respeito de Santa Olavia temos a fallar mais sÃriamente, disse por fim Craft, entrando na alcova, a ensaboar a cabeÃa. --E tu, perguntou entâo Carlos, voltando-se para o Eusebiosinho. Tens estado em Cintra, hein? Que se faz l·?... O Ega? O outro ergueu-se guardando o canivete, ageitando as lunetas. --L· est· no Victor, muito engraÃado, comprou um burro... L· est· o Damaso tambem... Mas esse pouco se vÃ, nâo larga os Cohens... Emfim tem-se passado menos mal, com bastante calor... --Tu estavas outra vez com a mesma prostituta, a Lola? Eusebiosinho fez-se escarlate. Credo! estava no Victor, muito sÃrio! O Palma à que l· tinha apparecido com uma rapariga portugueza... Tinha agora um jornal, _A Corneta do Diabo_. --_A Corneta...?_ --Sim, _do Diabo_, disse o Eusebiosinho. ⦠um jornal de pilherias, de picuinhas... Elle j· existia, chamava-se o _Apito_; mas agora passou para o Palma; elle vae-lhe augmentar o formato, e metter-lhe mais chalaÃa... --Emfim, disse Carlos, qualquer coisa sebacea e immunda como elle... Craft reappareceu, enxugando a cabeÃa. E emquanto se vestia, fallou de uma viagem que agora o tentava, que estivera planeando em Santa Olavia. Como j· nâo tinha a _Toca_, e a sua casa ao pà do Porto necessitava longas obras, ia passar o inverno ao Egypto, subindo o Nilo, em communicaÃâo espiritual com a antiguidade Pharaonica. Depois talvez se adiantasse atà Bagdad, a vÃr o Euphrates, e os sitios de Babylonia... --Por isso eu lhe vi alli, na mesa, exclamou Carlos, um livro, _Ninive e Babylonia_... Que diabo, vocà gosta d'isso? Eu tenho horror a raÃas e a civilisaÃıes defuntas... Nâo me interessa senâo a Vida. --⦠que vocà à um sensual, disse Craft. E a proposito de sensualidade e de Babylonia, quer vir vocà almoÃar ao BraganÃa? Eu tenho de l· encontrar um inglez, o meu homem das minas... Mas havemos d'ir pela rua do Ouro, que quero trepar um instante · caverna do meu procurador... E a caminho, que à meio dia! Deixaram o Eusebiosinho, em baixo na sala, ageitando as suas lugubres lunetas negras diante dos telegrammas. E apenas sahira o pateo, Craft travou do braÃo de Carlos, e disse-lhe que as coisas sÃrias a respeito de Santa Olavia--era o visivel, profundo desgosto do avà por elle nâo ter l· apparecido. --Seu avà nâo me disse nada, mas eu sei que elle est· muitissimo magoado com vocÃ. Nâo ha desculpa, sâo umas horas de viagem... Vocà sabe como elle o adora... Que diabo! _Est modus in rebus_. --Com effeito, murmurou Carlos. Eu devia ter l· ido... Que quer vocÃ, amigo?... Emfim acabou-se, à necessario fazer um esforÃo!... Talvez parta para a semana com o Ega. --Sim, homem, dÃ-lhe esse alegrâo... Esteja l· umas semanas... --_Est modus in rebus_. Hei de vÃr se l· estou uns dias. A caverna do procurador era defronte do Monte-Pio. Carlos esperava, havia momentos, dando por diante das lojas uma volta lenta--quando de repente avistou Melanie, a sahir o portâo do Monte-Pio, com uma matrona gorda, de chapÃo rÃxo. Surprehendido, atravessou a rua. Ella estacou como apanhada, fazendo-se toda vermelha; e nem deixou vir a pergunta; balbuciou logo que Madame lhe dÃra licenÃa para vir a Lisboa, e ella andava acompanhando aquella amiga... Uma velha caleche, de parelha branca, estava encalhada alli, contra o passeio. Melanie saltou para dentro, · pressa. A traquitana rodou aos solavancos para o Terreiro do PaÃo. Carlos via-a desapparecer, pasmado. E Craft, que volt·ra, olhando tambem, reconheceu no lamentavel calhambeque a caleche do _Torto_, dos Olivaes, onde elle ·s vezes costumava vir ´janotar a Lisboaª. --Era alguem l· da _Toca_? perguntou. Uma criada, disse Carlos, ainda espantado d'aquelle estranho embaraÃo de Melanie. E mal tinham dado alguns passos, Carlos, parando, baixando a voz no rumor da rua: --OuÃa l·! O Eusebiosinho disse-lhe alguma coisa a meu respeito, Craft? O outro confessou que Eusebiosinho, apenas lhe apparecera no quarto, rompera logo, mascando as palavras, a informal-o da mysteriosa vida de Carlos nos Olivaes... --Mas eu fil-o calar, acrescentou Craft, declarando-lhe que era tâo pouco curioso que nem mesmo quizera lÃr nunca a _Historia Romana_... Em todo o caso vocà deve ir a Santa Olavia. Carlos, com effeito, logo n'essa noite fallou a Maria da visita que devia ao avÃ. Ella, muito sÃria, aconselhou-lh'a tambem, arrependida de o ter retido assim, egoisticamente e tanto tempo, longe dos outros que o amavam. --Mas ouve, querido, nâo à por muito tempo, nâo? --Por dois ou tres dias, quando muito. E naturalmente, trago atà o avÃ. Nâo est· l· a fazer nada, e eu nâo estou para a massada de voltar l·... Maria entâo lanÃou-lhe os braÃos ao pescoÃo, e baixo, timidamente, confessou-lhe um grande desejo que tinha... Era vÃr o Ramalhete! Queria visitar os quartos d'elle, o jardim, todos esses recantos, onde tantas vezes elle pensara n'ella, e se desesper·ra, sentindo-a distante e inaccessivel... --Dize, queres? Mas à necessario que seja antes de vir teu avÃ. Queres? --Acho um encanto! Ha sà um perigo. ⦠eu nâo te deixar sahir mais e ficar a devorar-te na minha caverna. --Prouvera a Deus! Combinaram entâo que ella fosse jantar ao Ramalhete, no dia da partida de Carlos para Santa Olavia. ¡ noitinha levava-o no coupà a Santa Apolonia; depois seguia para os Olivaes. Foi no sabbado. Carlos veio muito cedo para o Ramalhete: e o seu coraÃâo batia com a deliciosa perturbaÃâo d'um primeiro encontro, quando sentiu parar a carruagem de Maria e os seus vestidos escuros roÃarem o velludo cÃr de cereja que forrava a escada discreta dos seus quartos. O beijo que trocaram, na ante-camara, teve a profunda doÃura d'um primeiro beijo! Ella foi logo ao toucador tirar o chapÃo, dar um geito ao cabello. Elle nâo cessava de a beijar; abraÃava-a pela cinta; e com os rostos juntos sorriam para o espelho, enlevados no brilho da sua mocidade. Depois, impaciente, curiosa, ella percorreu os quartos, miudamente, atà · alcova de banho; leu os titulos dos livros, respirou o perfume dos frascos, abriu os cortinados de sÃda do leito... Sobre uma commoda Luiz XV havia uma salva de prata, transbordando de retratos que Carlos se esquecera de esconder, a coronella d'hussards d'amazona, madame Rughel decotada, outras ainda. Ella mergulhou as mâos, com um sorriso triste, na profusâo d'aquellas recordaÃıes... Carlos, rindo, pediu-lhe que nâo olhasse ´esses enganos do seu coraÃâoª. Porque nâo? dizia Maria, sÃria. Sabia bem que elle nâo descera das nuvens, puro como um seraphim. Havia sempre photographias no passado d'um homem. De resto tinha a certeza que nunca am·ra as outras como a sabia amar a ella. --Atà à uma profanaÃâo fallar em _amor_ quando se trata d'essas coisas d'acaso, murmurou Carlos. Sâo quartos de estalagem onde se dorme uma vez... No emtanto Maria considerava longamente a photographia da coronella d'hussards. Parecia-lhe bem linda! Quem era? Uma franceza? --Nâo, de Vienna. Mulher d'um correspondente meu, homem de negocios... Gente tranquilla, que vivia no campo... --Ah, Viennense... Dizem que tem um grande encanto as mulheres de Vienna! Carlos tirou-lhe a photographia da mâo. Para que haviam de fallar d'outras mulheres? Existia em todo o vasto mundo uma mulher unica, e elle tinha-a alli abraÃada sobre o seu coraÃâo. Foram entâo percorrer todo o Ramalhete, atà ao terraÃo. Ella gostou sobretudo do escriptorio d'Affonso, com os seus damascos de camara de prelado, a sua feiÃâo severa de paz estudiosa. --Nâo sei porque, murmurou dando um olhar lento ·s estantes pesadas e ao Christo na cruz, nâo sei porque, mas teu avà faz-me medo! Carlos riu. Que tonteria! O avà se a conhecesse, fazia-lhe logo a cÃrte rasgadamente... O avà era um santo! E um lindo velho! --Teve paixıes? --Nâo sei, talvez... Mas creio que o avà foi sempre um puritano. Desceram ao jardim, que lhe agradou tambem, quieto e burguez, com a sua cascatasinha chorando n'um rythmo dÃce. Sentaram-se um instante sob o velho cedro, junto a uma mesa rustica de pedra, onde estavam entalhadas letras mal distinctas e uma data antiga; o chalrar das aves nos ramos pareceu a Maria mais dÃce que o de todas as outras aves que ouvira; depois arranjou um ramo para levar como reliquia. Mesmo em cabello foram vÃr defronte as cocheiras: o guarda-portâo ficou de bonà na mâo, embasbacado para aquella senhora tâo linda, tâo loira, a primeira que via entrar no Ramalhete! Maria acariciou os cavallos, e fez uma festa grata e mais longa · _Tunante_, que tantas vezes lev·ra Carlos · rua de S. Francisco. Elle via n'estas simples coisas as graÃas incomparaveis d'uma esposa perfeita. Recolheram pela escada particular de Carlos--que Maria achava ´mysteriosaª com aquelles velludos grossos cÃr de cereja, forrando-a como um cofre, e abafando todo o rumor de saias. Carlos jurou que nunca alli pass·ra outro vestido--a nâo ser o do Ega, uma vez, mascarado de varina. Depois deixou-a no quarto, um momento para ir dar ordens ao Baptista: mas quando voltou encontrou-a a um canto do sof·, tâo descahida, tâo desanimada, que lhe arrebatou as mâos, cheio d'inquietaÃâo. --Que tens, amor? Est·s doente? Ella ergueu lentamente os olhos que brilhavam n'uma nevoa de lagrimas. Pensar que tu vaes deixar por mim esta linda casa, o teu conforto, a tua paz, os teus amigos... ⦠uma tristeza, tenho remorsos! Carlos ajoelh·ra ao seu lado, sorrindo dos seus escrupulos, chamando-lhe tonta, seccando-lhe n'um beijo as lagrimas que rolavam... Considerava-se ella entâo valendo menos que a cascata do jardim e alguns tapetes usados?... --O que eu tenho pena à de te sacrificar tâo pouco, minha querida Maria, quando tu sacrificas tanto! Ella encolheu os hombros, amargamente. --Eu! Passou-lhe as mâos entre os cabellos, puxou-o brandamente para o seu seio--e dizia, baixo, como fallando ao seu proprio coraÃâo, calmando-lhe as incertezas e as duvidas: --Nâo, com effeito, nada vale no mundo senâo o nosso amor! Nada mais vale! Se elle à verdadeiro, se à profundo, tudo mais à vâo, nada mais importa... A sua voz morreu entre os beijos de Carlos, que a levava abraÃada para o leito--onde tentas vezes desesperava d'ella como d'uma deusa intangivel. ¡s cinco horas pensaram em jantar. A mesa fÃra posta n'uma saleta que Carlos quizera em tempo revestir de colxas de setim cÃr de perola e botâo d'ouro. Mas nâo estava ainda arranjada; as paredes conservavam o seu papel verde-escuro; e Carlos puzera alli ultimamente o retrato de seu pai--uma teia banal, representando um moÃo pallido, de grandes olhos, com luvas de camurÃa amarella e um chicote na mâo. Era Baptista que os servia, j· com um fato claro de viagem. A mesa, redonda e pequena, parecia uma cesta de flÃres; o champagne gelava dentro dos baldes de prata; no aparador a travessa d'arroz dÃce tinha as iniciaes de Maria. Aquelles lindos cuidados fizeram-na sorrir, enternecida. Depois reparou no retrato de Pedro da Maia: e interressou-se, ficou a contemplar aquella face descÃrada, que o tempo fizera livida, e onde pareciam mais tristes os grandes olhos d'arabe, negros e languidos. --Quem Ã? perguntou. --⦠meu pai. Ella examinou-o mais de perto, erguendo uma vela. Nâo achava que Carlos se parecesse com elle. E voltando-se muito sÃria, emquanto Carlos desarrolhava com veneraÃâo uma garrafa de velho Chambertin: --Sabes tu com quem te pareces ·s vezes?... ⦠extraordinario, mas à verdade. Pareces-te com minha mâi! Carlos riu, encantado d'uma parecenÃa que os aproximava mais, e que o lisonjeava. --Tens razâo, disse ella, que a mamâ era formosa... Pois à verdade, ha um nâo sei quà na testa, no nariz... Mas sobretudo certos geitos, uma maneira de sorrir... Outra maneira que tu tens de ficar assim um pouco vago, esquecido... Tenho pensado n'isto muitas vezes... Baptista entrava com uma terrina de louÃa do Japâo. E Carlos, alegremente, annunciou um jantar · portugueza. Mr. Antoine, o _chef francez_, fÃra com o avÃ. Fic·ra a Michaela, outra cozinheira de casa, que elle achava magnifica, e que conservava a tradiÃâo da antiga cozinha freiratica do tempo do snr. D. Joâo V. --Assim, para comeÃar, minha querida Maria, ahi tens tu um caldo de gallinha, como sà se comia em Odivellas, na cella da madre Paula, em noites de noivado mystico... E o jantar foi encantador. Quando Baptista se retirava, elles apertavam-se rapidamente a mâo por cima das flÃres. Nunca Carlos a ach·ra tâo linda, tâo perfeita: os seus olhos pareciam- lhe irradiar uma ternura maior: na singela rosa que lhe ornava o peito via a superioridade do seu gosto. E o mesmo desejo invadiu-os a ambos, de ficarem alli eternamente, n'aquelle quarto de rapaz, com jantarinhos portuguezes · moda de D. Joâo V, servidos pelo Baptista de jaquetâo. --Estou com uma vontade de perder o comboio! disse Carlos como implorando a sua approvaÃâo. --Nâo, deves ir... à necessario nâo sermos egoistas... SÃmente nâo te descuides, manda-me todos os dias um grande telegramma... Que os telegraphos foram unicamente inventados para quem se ama e est· longe, como dizia a mamâ. Entâo Carlos gracejou de novo sobre a sua parecenÃa com a mâi d'ella. E baixando-se a remexer a garrafa de champagne dentro do gelo: --⦠curioso nâo m'o teres dito antes... Tambem tu nunca me fallaste de tua mâi... Um pouco de sangue roseou a face de Maria Eduarda. Oh, nunca fall·ra da mamâ, porque nunca viera a proposito... --De resto nâo havia coisas muito interessantes a contar, acrescentou. A mamâ era uma senhora da ilha da Madeira, nâo tinha fortuna, casou... --Casou em Paris? --Nâo, casou na Madeira com um austriaco que fÃra l· acompanhar um irmâo tisico... Era um homem muito distincto, viu a mamâ, que era lindÃssima, gostaram um do outro, _et voilâ¡_... Dissera isto sem erguer os olhos do prato, lentamente, cortando uma aza de frango. --Mas entâo, exclamou Carlos, se teu pai era austriaco, meu amor, tu Ãs tambem austriaca... â¦s talvez uma d'essas viennenses que tu dizes que tem um tâo grande encanto... Sim, talvez, segundo essas coisas dos codigos, era austriaca. Mas nunca conhecera o pai, vivera sempre com a mamâ, fall·ra sempre portuguez, considerava-se portugueza. Nunca estivera na Austria, nem sabia mesmo allemâo... --Nâo tiveste irmâos? --Sim, tive, uma irmâsinha que morreu em pequena... Mas nâo me lembra. Tenho em Paris o retrato d'ella... Bem linda! N'esse momento em baixo, na calÃada, uma carruagem, a trote largo, estacou. Carlos, surprehendido, correu · janella com o guardanapo na mâo. --⦠o Ega! exclamou. ⦠aquelle velhaco que chega de Cintra! Maria erguera-se, inquieta. E um momento, de pÃ, ambos se olharam, hesitando... Mas o Ega era como um irmâo de Carlos. Elle esperava sà que o Ega recolhesse de Cintra para o levar · _Toca_. Melhor seria que o encontro se dÃsse alli, natural, franco e simples... --Baptista! gritou Carlos, sem vacillar mais. Dize ao snr. Ega que estou a jantar, que entre para aqui. Maria sent·ra-se, vermelha, dando um geito rapido aos ganchos do cabello, arranjado · pressa, um pouco desmanchado. A porta abriu-se,--e o Ega parou, assombrado, intimidado, de chapÃo branco, de guarda-sol branco, e com um embrulho de papel pardo na mâo. --Maria, disse Carlos, aqui tens emfim o meu grande amigo Ega. E ao Ega disse simplesmente: --Maria Eduarda. Ega ia largar atarantadamente o embrulho para apertar a mâo que Maria Eduarda lhe estendia, cÃrada e sorrindo. Mas o papel pardo, mal atado, desfez-se; e uma provisâo fresca de queijadas de Cintra rolou, esmagando-se, sobre as flÃres do tapete. Entâo todo o embaraÃo findou atravÃs d'uma risada alegre--emquanto o Ega, desolado, abria os braÃos sobre as ruinas do seu dÃce. --Tu j· jantaste? perguntou Carlos. Nâo, nâo tinha jantado. E via j· alli uns ovos molles nacionaes, que o encantavam, enfastiado como vinha da horrivel cozinha do Victor. Oh, que cozinha! Pratos lugubres, traduzidos do francez em calâo, como as comedias do Gymnasio! --Entâo avanÃa! exclamou Carlos. Depressa, Baptista!... Traze o caldo de gallinha! Oh, ainda temos tempo!... Tu sabes que vou hoje para Santa Olavia? Est· claro que sabia, recebera a carta d'elle, e por isso viera... Mas nâo podia jantar ainda, assim coberto do pà da estrada, e com um jaquetâo de bucolica... --Dize que me guardem o caldo, Baptista! Olha, dize que me guardem tudo, que eu trago uma fome de pastor da Arcadia!... O Baptista servira o cafÃ. E a carruagem da senhora, que os devia levar a Santa Apolonia, esperava j· · porta com a maleta. Mas Ega agora queria conversar, affirmou que tinham tempo, tirou o relogio. Estava parado. E elle declarou logo que no campo se regulava pelo sol, como as flÃres e como as aves... --Fica agora em Lisboa? perguntou-lhe Maria Eduarda. --Nâo, minha senhora, sà o tempo de cumprir o meu dever de cidadâo, subindo duas ou tres vezes o Chiado... Depois volto para a relva. Cintra comeÃa a ser interessante para mim, agora que nâo est· ninguem... Cintra, de verâo, com burguezes, parece-me um idyllio com nodoas de sebo. Mas Baptista offerecia a Carlos a _chartreuse_--dizendo que s. exc.^a nâo se devia demorar se nâo tencionava perder o comboio, de proposito. Maria ergueu-se logo para ir dentro pÃr o chapÃo. E os dois amigos, sÃs, ficaram um momento calados, emquanto Carlos accendia devagar o charuto. --Tu quanto tempo te demoras? perguntou por fim o Ega. --Tres ou quatro dias. E tu nâo voltes para Cintra antes que eu chegue, precisamos communicar... Que diabo tens tu feito l·? O outro encolheu os hombros. --Tenho sorvido ar puro, colhido florinhas, murmurado de vez em quando ´que lindo que isto Ã!ª etc. Depois, debruÃado sobre a mesa, picando com um palito uma azeitona: --De resto, nada... O Damaso l· est·! Sempre com a Cohen, como te mandei dizer... Est· claro que nâo ha nada entre elles, aquillo à sà para mim, para me irritar... ⦠um canalha aquelle Damaso! Eu sà quero um pretexto. Esgano-o! Deu um puxâo forte aos punhos, com uma cÃr de cÃlera no rosto queimado: --Eu, est· claro, fallo-lhe, aperto-lhe a mâo, chamo-lhe ´amigo Damasoª, etc. Mas sà quero um pretexto! ⦠necessario aniquilar aquelle animal. ⦠um dever de moralidade, d'aceio publico, de gosto varrer aquella bola de lama humana! --Quem esteve por l· mais? perguntou Carlos. --Que te interesse?... A Gouvarinho. Mas vi-a uma sà vez. Apparecia pouco, coitada, agora que andava de luto. --De luto? --Por ti. Calou-se. Maria entrava, com o vÃu descido, acabando de apertar as luvas. Entâo Carlos, suspirando, resignado, estendeu os braÃos ao Baptista para elle lhe vestir um casaco leve de jornada. Ega ajudava, pedindo um abraÃo filial para Affonso, e recados para o gordo Sequeira. Foi acompanhal-os a baixo, em cabello: e fechou elle a portinhola, promettendo a Maria Eduarda uma visita · _Toca_, apenas Carlos voltasse d'esses penhascos do Douro... --Nâo v·s para Cintra antes de eu voltar! gritou-lhe ainda Carlos. E a Michaela que tome conta em ti! --_All right, all right_, dizia o Ega. Boa jornada! Criado de v. exc.^a, minha senhora... Atà · _Toca_! O coupà partiu. Ega subiu ao seu quarto, onde outro criado lhe estava preparando o banho. Na saleta deserta, entre as flÃres e os restos do jantar, as velas continuavam a arder solitarias, fazendo resaltar no painel escuro a pallidez de Pedro da Maia, e a melancolia dos seus olhos. No sabbado seguinte, perto das duas horas, Carlos e Ega, ainda · mesa do almoÃo, acabavam os seus charutos, fallando de Santa Olavia. Carlos cheg·ra de l· essa madrugada, sÃ. O avà decidira ficar entre as suas velhas arvores atà ao fim do outono que ia tâo luminoso e tâo macio... Carlos fÃra-o encontrar muito alegre, muito forte--apesar de ter sido obrigado, por causa d'um toque de rheumatismo, a abandonar emfim o seu culto da agua fria. E esta macissa, resplandecente saude do velho fÃra um allivio para o coraÃâo de Carlos: parecia-lhe assim mais facil, menos ingrata, a sua partida com Maria para Italia, em outubro. AlÃm d'isso ach·ra um _truc_, como elle dizia ao Ega, para realisar o supremo desejo da sua vida sem magoar o avÃ, sem lhe turbar a paz da velhice. Era um _truc_, simples. Consistia em partir elle sà para Madrid, no comeÃo d'uma certa ´viagem d'estudoª, para que j· prepar·ra o avà em Santa Olavia. Maria ficava na _Toca_, durante um mez. Depois tomava o paquete para Bordeus: e era ahi que Carlos se reunia com ella, a comeÃarem essa existencia de felicidade e romance que as flÃres da Italia deviam perfumar... Na primavera elle voltava a Lisboa, deixando Maria installada no seu ninho: e entâo, pouco a pouco, ia revelando ao avà aquella ligaÃâo, a que o prendia a honra, e que o forÃaria agora a viver regularmente longos mezes n'uma outra terra que se torn·ra a patria do seu coraÃâo. E que havia de dizer o avÃ? Aceitar esse romance, a que nâo veria os lados desagradaveis, esbatido assim pela distancia e pela nevoa da paixâo. Seria para Affonso uma vaga e mal sabida coisa d'amor que se passava em Italia... Poderia lamental-a apenas por lhe levar pontualmente todos os annos o neto para longe; e cada anno se consolaria pensando na curta duraÃâo dos idyllios humanos. De resto Carlos contava com essa larga benevolencia que amollece as almas mais rigidas quando apenas alguns passos as separam do tumulo... Emfim o seu _truc_ parecia-lhe bom. Ega, em resumo, approvou o _truc_. Depois, mais alegremente, fallaram da installaÃâo d'esse amor. Carlos permanecia na sua idÃa romantica--um cottage · beira d'um lago. Mas Ega nâo approvava o lago. Ter todos os dias diante dos olhos uma agua sempre mansa e sempre azul, parecia-lhe perigoso para a durabilidade da paixâo. Na quietaÃâo continua d'uma paizagem igual, dois amantes solitarios, dizia elle, nâo sendo botanicos nem pescando · linha, vÃem-se forÃados a viver exclusivamente do desejo um do outro, e a tirar d'ahi todas as suas idÃas, sensaÃıes, occupaÃıes, gracejos e silencios... E, que diabo, o mais forte sentimento nâo pÃde dar para tanto! Dois amantes, cuja unica profissâo à amarem-se, deviam procurar uma cidade, uma vasta cidade, tumultuosa e creadora, onde o homem tenha durante o dia os clubs, o cavaco, os museus, as idÃas, o sorriso d'outras mulheres--e a mulher tenha as ruas, as compras, os theatros, a attenÃâo d'outros homens; de sorte que · noite, quando se reunam, nâo tendo passado o infindavel dia a observarem-se um no outro e a si proprios, trazendo cada um a vibraÃâo da vida forte que atravessaram--achem um encanto novo e verdadeiro no conchego da sua solidâo, e um sabor sempre renovado na repetiÃâo dos seus beijos... --Eu, continuava Ega, erguendo-se, se levasse para longe uma mulher, nâo era para um lago, nem para a Suissa, nem para os montes da Sicilia; era para Paris, para o boulevard dos Italianos, alli · esquina do Vaudeville, com janellas deitando para a grande vida, a um passo do _Figaro_, do Louvre, da Philosophia e da _blague_... Aqui tens tu a minha doutrina!... E ahi temos nÃs o amigo Baptista com o correio. Nâo era o correio. Era apenas um bilhete que o Baptista trazia n'uma salva: e vinha tâo perturbado que annunciou ´um sujeito, alli fÃra, na antecamara, n'uma carruagem, · espera...ª Carlos olhou o bilhete, empallideceu terrivelmente. E ficou a reviral-o, lento e como atordoado, entre os dedos que tremiam... Depois, em silencio, atirou-o ao Ega por cima da mesa. --Caramba! murmurou Ega, assombrado. Era Castro Gomes! Bruscamente Carlos erguera-se, decidido. --Manda entrar... Para o salâo grande! Baptista apontou para o jaquetâo de flanella com que Carlos tinha almoÃado, e perguntou baixo se s. exc.^a queria uma sobrecasaca. --Traze. SÃs, Ega e Carlos olharam-se um instante, anciosamente. --Nâo à um desafio, est· claro, balbuciou Ega. Carlos nâo respondeu. Examinava outra vez o bilhete: o homem chamava-se Joaquim Alvares de Castro Gomes: por baixo tinha escripto a lapis ´Hotel BraganÃaª... Baptista volt·ra com a sobrecasaca: e Carlos, abotoando-a devagar, sahiu sem outra mais palavra ao Ega, que fic·ra de pà junto da mesa, limpando estupidamente as mâos ao guardanapo. No salâo nobre, forrado de brocados cÃr de musgo d'outono, Castro Gomes examinava curiosamente, com um joelho apoiado · borda do sof·, a esplendida tela de Constable, o retrato da condessa de Runa, bella e forte no seu vestido de velludo escarlate de caÃadora ingleza. Ao rumor dos passos de Carlos sobre o tapete, voltou-se, de chapÃo branco na mâo, sorrindo, pedindo perdâo de estar assim a pasmar familiarmente para aquelle soberbo Constable... Com um gesto rigido, Carlos, muito pallido, indicou-lhe o sof·. Saudando e risonho Castro Gomes sentou-se vagarosamente. No peito da sobrecasaca muito justa trazia um botâo de rosas, os seus sapatos de verniz resplandeciam sob as polainas de linho; no rosto chupado, queimado, a barba negra, terminava em bico; os cabellos rareavam-lhe na risca; e mesmo a sorrir tinha um ar de seccura, de fadiga. --Eu possuo tambem em Paris um Constable muito _chic_, disse elle, sem embaraÃo, n'um tom arrastado, cheio de _rr_, que o _sutaque_ brazileiro adocicava. Mas à apenas uma pequena paizagem, com duas figurinhas. ⦠um pintor que nâo me diverte, a dizer a verdade... Todavia d· muito tom a uma galeria. ⦠necessario tel-o. Carlos, defronte n'uma cadeira, com os punhos fortemente fechados sobre os joelhos, conservava a immobilidade d'um marmore. E, perante aquelle modo affavel, uma idÃa ia-o atravessando, lacerante, angustiosa, pondo-lhe j· nos olhos largos que nâo tirava de sobre o outro, uma irreprimivel chamma de cÃlera. Carlos Gomes decerto _nâo sabia nada_! Cheg·ra, desembarc·ra, correra aos Olivaes, dormira nos Olivaes! Era o marido, era novo, tivera-a j· nos braÃos--a ella! E agora alli estava, tranquillo, de flÃr ao peito, fallando de Constable! O unico desejo de Carlos, n'esse instante, era que aquelle homem o insultasse. No emtanto Castro Gomes, amavelmente, desculpava-se de se apresentar assim, sem o conhecer, sem ao menos ter pedido por um bilhete uma entrevista... --O motivo porÃm que me traz à tâo urgente, que cheguei esta manhâ ·s dez horas do Rio de Janeiro, ou antes do Lazareto, e estou aqui!... E esta mesma noite, se puder, parto para Madrid. Fez-se um allivio infinito no coraÃâo de Carlos. Ainda nâo vira entâo Maria Eduarda, aquelles seccos labios nâo a tinham tocado! E sahiu emfim da sua rigidez de marmore, teve um movimento attento, aproximando de leve a cadeira. Castro Gomes no emtanto, tendo pousado o chapÃo, tir·ra do bolso interior da sobrecasaca uma carteira com um largo monogramma de ouro; e, vagaroso, procurava entre os papeis uma carta... Depois, com ella na mâo, muito tranquillamente: --Eu recebi no Rio de Janeiro, antes de partir, este escripto anonymo... Mas nâo creia v. exc.^a que foi elle que me levou a atravessar · pressa o Atlantico. Seria o maior dos ridiculos... E desejo tambem affirmar-lhe que todo o conteudo d'elle me deixou perfeitamente indifferente... Aqui o tem. Quer v. exc.^a lÃl-o, ou quer que eu leia? Carlos murmurou com um esforÃo: --Leia v. exc.^a Castro Gomes desdobrou o papel, e revirou-o um instante entre os dedos. --Como v. exc.^a vÃ, à a carta anonyma em todo o seu horror: papel de mercearia, pautadinho de azul; calligraphia reles; tinta reles; cheiro reles. Um documento odioso. E aqui est· como elle se exprime: ´Um homem ´que teve a honra de apertar a mâo de v. exc.^aª Eu dispensava a honra... ´que teve a hora de apertar a mâo de v. exc.^a e d'apreciar o seu cavalheirismo, julga dever prevenil-o que sua mulher Ã, · vista de toda a Lisboa, a amante d'um rapaz muito conhecido aqui, Carlos Eduardo da Maia, que vive n'uma casa ·s Janelas Verdes, chamada o Ramalhete. Este heroe, que à muito rico, comprou expressamente uma quinta nos Olivaes, ´onde installou a mulher de v. exc.^a e onde a vai vÃr todos os dias, ficando ·s vezes, com escandalo da visinhanÃa, atà de madrugada. Assim o nome honrado de v. exc.^a anda pelas lamas da capital.ª ⦠tudo o que diz a carta; e eu sà devo acrescentar, porque o sei, que tudo quanto ella diz à incontestavelmente exacto... O snr. Carlos da Maia à pois publicamente, com conhecimento de toda a Lisboa, o amante d'essa senhora. Carlos ergueu-se, muito sereno. E abrindo de leve os braÃos, n'uma aceitaÃâo inteira de todas as responsabilidades: --Nâo tenho entâo nada a dizer a v. exc.^a senâo que estou ·s suas ordens!... Uma fugitiva onda de sangue avivou a pallidez morena de Castro Gomes. Dobrou a carta, guardou-a com todo o vagar na carteira. Depois, sorrindo friamente: --Perdâo... O snr. Carlos da Maia sabe, tâo bem como eu, que se isto tivesse de ter uma soluÃâo, violenta, eu nâo viria aqui pessoalmente, a sua casa, lÃr-lhe este papel... A coisa à inteiramente outra. Carlos recahira na cadeira, assombrado. E agora a lentidâo adocicada d'aquella voz ia-se-lhe tornando intoleravel. Um confuso terror do que viria d'esses labios, que sorriam com uma pallidez impertinente, quasi fazia estalar o seu pobre coraÃâo. E era um desejo brutal de lhe gritar que acabasse, que o matasse, ou que sahisse d'aquella sala, onde a sua presenÃa era uma inutilidade ou uma torpeza!... O outro passou os dedos no bigode, e proseguiu, devagar, arranjando as suas palavras com cuidado e com precisâo: --O meu caso à este, snr. Carlos da Maia. Ha pessoas em Lisboa que me nâo conhecem decerto, mas que sabem a esta hora que existe algures, em Paris, no Brazil ou no inferno, um certo Castro Gomes, que tem uma mulher bonita, e que a mulher d'esse Castro Gomes tem em Lisboa um amante. Isto à desagradavel, sobretudo por ser falso. E v. exc.^a comprehende que eu nâo devo continuar a arrastar por mais tempo a fama de _marido infeliz_, visto que a nâo mereÃo, e que a nâo posso _legalmente_ ter... ⦠por isso que aqui venho, muito francamente, de _gentleman_ para _gentleman_, dizer-lhe, como tenho tenÃâo de dizer a outros, que aquella senhora nâo à minha mulher. Durante um momento Castro Gomes esperou a voz de Carlos da Maia. Mas elle conservava uma face muda, impenetravel, onde apenas os olhos brilhavam angustiosamente na lividez que a cobrira. Por fim, com um esforÃo, baixou de leve a cabeÃa, como acolhendo placidamente aquella revelaÃâo, que tornava outra qualquer palavra entre elles desnecessaria e vâ. Mas Castro Gomes encolhera de leve os hombros, com uma languida resignaÃâo, como quem attribue tudo · malicia dos Destinos. --Sâo as ridiculas scenas da vida... O snr. Carlos da Maia est· d'ahi a vÃr as coisas. ⦠a velha, a classica historia... Ha tres annos que eu vivo com essa senhora; quando tive o inverno passado d'ir ao Brazil, trouxe-a a Lisboa para nâo vir sÃsinho. FÃmos para o hotel Central. V. exc.^a comprehende perfeitamente que eu nâo fui fazer confidencias ao gerente do estabelecimento. Aquella senhora vinha commigo, dormia commigo, portanto, para todos os effeitos do hotel, era minha mulher. Como mulher de Castro Gomes ficou no Central; como mulher de Castro Gomes alugou depois uma casa na rua de S. Francisco; como mulher de Castro Gomes tomou emfim um amante... Deu-se sempre como mulher de Castro Gomes, mesmo nas circumstancias mais particularmente desagradaveis para Castro Gomes... E, meu Deus! nâo podemos realmente condemnal-a muito... Achava-se por acaso revestida d'uma excellente posiÃâo social e d'um nome puro, seria mais que humano que o seu amor da verdade a levasse, apenas conhecia alguem, a declarar que posiÃâo e nome eram de emprestimo e ella era apenas ´Fulana de tal, amigada...ª De resto, sejamos justos, ella nâo era moralmente obrigada a dar semelhantes explicaÃıes ao tendeiro que lhe vendia a manteiga, ou · matrona que lhe alugava a casa: nem mesmo, penso eu, a ninguem, a nâo ser a um pai que lhe quizesse apresentar sua filha, sahida do convento... Demais a mais sou eu que tenho um pouco a culpa; muitas vezes, em coisas relativamente delicadas lhe deixei usar o meu nome. Foi, por exemplo, com o nome de Castro Gomes que ella tomou a governante ingleza. As inglezas sâo tâo exigentes!... Aquella, sobretudo, uma rapariga tâo sÃria... Emfim tudo isso passou... O que importa agora à que eu lhe retiro solemnemente o nome que lhe emprest·ra; e ella fica apenas com o seu, que à Madame Mac-Gren. Carlos ergueu-se, livido. E com as mâos fincadas nas costas da cadeira tâo fortemente, que quasi lhe esgaÃava o estofo: --Mais nada, creio eu? Castro Gomes mordeu de leve os beiÃos perante este remate brutal que o despediu. --Mais nada, disse elle tomando o chapÃo e levantando-se muito vagarosamente. Devo apenas acrescentar, para evitar a v. exc.^a suspeitas injustas, que aquella senhora nâo à uma menina que eu tivesse seduzido, e a quem recuse uma reparaÃâo. A pequerruchinha que alli anda nâo à minha filha... Eu conheÃo a mâi sÃmente ha tres annos... Vinha dos braÃos d'um qualquer, passou para os meus... Posso pois dizer, sem injuria, que era uma mulher que eu pagava. Complet·ra com esta palavra a humilhaÃâo do outro. Estava deliciosamente desforrado. Carlos, mudo, abrira o reposteiro da sala, n'uma sacudidella brusca. E, diante d'esta nova rudeza que revelava sà mortificaÃâo, Castro Gomes foi perfeito: saudou, sorriu, murmurou: --Parto esta noite mesmo para Madrid, e levo o pezar de ter feito o conhecimento de v. exc.^a por um motivo tâo desagradavel... Tâo desagradavel para mim. Os seus passos desafogados e leves perderam-se na ante-camara, entre as tapeÃarias. Depois em baixo uma portinhola bateu, uma carruagem rodou na calÃada... Carlos fic·ra cahido n'uma cadeira, junto da porta, com a cabeÃa entre as mâos. E de todas aquellas palavras de Castro Gomes, que ainda lhe resoavam em redor, adocicadas e lentas, sà lhe restava o sentimento atordoado de uma coisa muito bella, resplandecendo muito alto, e que cahia de repente, se fazia em pedaÃos na lama, salpicando-o todo de nodoas intoleraveis... Nâo soffria: era simplesmente um assombro de todo o seu sÃr perante este fim immundo d'um sonho divino... Unira a sua alma arrebatadamente a outra alma nobre e perfeita, longe nas alturas, entre nuvens d'ouro; de repente uma voz passava, cheia de _rr_; as duas almas rolavam, batiam n'um charco; e elle achava-se tendo nos braÃos uma mulher que nâo conhecia, e que se chamava Mac-Gren! Mac-Gren! era a Mac-Gren! Ergueu-se, com os punhos fechados; e veio-lhe uma revolta furiosa de todo o seu orgulho contra essa ingenuidade que o trouxera mezes timido, tremulo, ancioso, seguindo · maneira d'uma estrella aquella mulher, que qualquer em Paris, com mil francos no bolso, poderia ter sobre um sof·, facil e nËa! Era horrivel! E recordava agora, afogueado de vergonha, a emoÃâo religiosa com que entrava na sala de reps vermelho da rua de S. Francisco: o encanto enternecido com que via aquellas mâos, que elle julgava as mais castas da terra, puxarem os fios de lâ no bordado, n'um constante trabalho de mâi laboriosa e recolhida; a veneraÃâo espiritual com que se afastava da orla do seu vestido, igual para elle · tunica d'uma Virgem cujas pregas rigidas nem a mais rude bestialidade ousaria desmanchar de leve! Oh imbecil, imbecil!... E todo esse tempo ella sorria comsigo d'aquella simpleza de provinciano do Douro! Oh! tinha vergonha agora das flÃres apaixonadas que lhe trouxera! Tinha vergonha das ´excellenciasª que lhe dÃra! E seria tâo facil, desde o primeiro dia no Aterro, ter percebido que aquella deusa, descida das nuvens, estava amigada com um brazileiro! Mas quÃ! a sua paixâo absurda de romantico puzera-lhe logo, entre os olhos e as coisas flagrantes e reveladoras, uma d'essas nevoas douradas que dâo ·s montanhas mais rugosas e negras um brilho polido de pedra preciosa! Porque escolhera ella precisamente para seu medico, na sua casa e na sua intimidade, o homem que na rua a fit·ra com um fulgor de desejo na face? Porque à que nas suas longas conversas, nas manhâs da rua de S. Francisco, nâo fall·ra j·mais de Paris, dos seus amigos e das coisas da sua casa? Porque à que ao fim de dois mezes, sem preparaÃâo, sem todas essas progressivas evidencias do amor que cresce e desabrocha como uma flÃr, se lhe abandon·ra de chofre, toda prompta, apenas elle lhe disse o primeiro ´amo-teª?... Porque lhe aceit·ra uma casa j· mobilada, com a facilidade com que lhe aceitava os ramos? E outras coisas ainda, pequeninas, mas que nâo teriam escapado ao mais simples: joias brutaes, d'um luxo grosseiro de _cocotte_: o livro da _ExplicaÃâo de sonhos_, · cabeceira da cama; a sua familiaridade com Melanie... E agora atà o ardor dos seus beijos lhe parecia vir menos da sinceridade da paixâo--que da sciencia da voluptuosidade!... Mas tudo acab·ra, providencialmente! A mulher que elle am·ra e as suas seducÃıes esvaÃam-se de repente no ar como um sonho, radiante e impuro, de que aquelle brazileiro o viera acordar por caridade! Esta mulher era apenas a Mac-Gren... O seu amor fÃra, desde que a vira, como o proprio sangue das suas veias; e escoava-se agora todo atravÃs da ferida incuravel e que nunca mais fecharia, feita no seu orgulho! Ega appareceu · porta do salâo, ainda pallido: --Entâo? Toda a cÃlera de Carlos fez explosâo: --Extraordinario, Ega, extraordinario! A coisa mais abjecta, a coisa mais immunda! --O homem pediu-te dinheiro? --Peor! E, passeando arrebatadamente, Carlos desabafou, contou tudo, sem reticencias, com as mesmas palavras cruas do outro,--que assim repetidas e avivadas pelos seus labios, lhe descobriam motivos novos de humilhaÃâo e de nojo. --J· por acaso sucedeu a alguem coisa mais horrivel? exclamou por fim, cruzando violentamente os braÃos diante do Ega, que se abatera no sof·, assombrado. PÃdes tu conceber um caso mais sordido? E tambem mais burlesco? ⦠para estalar o coraÃâo. E à para rebentar a rir. Estupendo! Ahi, n'esse sof·, ahi onde tu est·s, o homemzinho, muito amavel, de flÃr ao peito, a dizer: ´Olhe que aquella creatura nâo à minha mulher, à uma creatura que eu pago...ª Comprehendes isto bem! Aquelle sujeito paga-a... Quanto à o beijo? Cem francos. Ahi estâo cem francos... ⦠de morrer! E recomeÃou no seu passeio, desvairado, desabafando mais, recontando tudo, sempre com as palavras do Castro Gomes, que elle deformava ainda n'uma brutalidade maior... --Que te parece, Ega? Dize l·. Que fazias tu? ⦠horrivel, heim? Ega, que limpava pensativamente o vidro do monoculo, hesitou, terminou por dizer que, considerando as coisas com superioridade, como homens do seu tempo e ´do seu mundoª, ellas nâo offereciam nem motivos de cÃlera, nem motivos de dÃr... --Entâo nâo comprehendes nada! gritou Carlos, nâo percebes o meu caso! Sim, sim, Ega comprehendia claramente que era horrivel para um homem, no momento em que ia ligar com adoraÃâo o seu destino ao d'uma mulher, saber que outros a tinham tido a tanto por noite... Mas isso mesmo simplificava e amenisava as coisas. O que fÃra um drama complicado tornava-se uma distracÃâo bonanÃosa. Ficava Carlos, desde logo, alliviado do remorso de ter desorganisado uma familia: j· nâo tinha de se exilar, a esconder o seu erro, n'um buraco florido da Italia; j· o nâo prendia a honra para sempre a uma mulher a quem talvez nâo o prenderia para sempre o amor. Tudo isto, que diabo! eram vantagens. --E a dignidade d'ella! exclamou Carlos. Sim, mas a diminuiÃâo de dignidade e pureza nâo era na verdade grande, porque antes da visita de Castro Gomes j· ella era uma mulher que foge do seu marido--o que, sem mesmo usar termos austeros, nem à muito puro nem muito digno... Decerto, tudo isso era uma humilhaÃâo irritante--nâo superior todavia · d'um homem que tem uma _Madona_ que contempla com religiâo, suppondo-a de Raphael, e que descobre um dia que a tela divina foi fabricada na Bahia por um sujeito chamado Castro Gomes! Mas o resultado intimo e social parecia-lhe ser este: Carlos atà ahi tivera uma bella amante com inconvenientes, e agora tinha sem inconvenientes uma bella amante... --O que tu deves fazer, meu caro Carlos... --O que eu vou fazer à escrever-lhe uma carta, remettendo-lhe o preÃo de dois mezes que dormi com ella... --Brutalidade romantica!... Isso j· vem na _Dama das Camelias_... Sobretudo à nâo vÃr com boa philosophia as _nuances_. O outro atalhou, impaciente: --Bem, Ega, nâo fallemos mais n'isso... Eu estou horrivelmente nervoso!... Atà logo. Tu jantas em casa, nâo à verdade? Bem, atà logo. Sahia atirando a porta, quando Ega, agora tranquillo, disse, erguendo-se muito lentamente do sof·: --O homemzinho foi para l·. Carlos voltou-se, com os olhos chammejantes: --Foi para os Olivaes? Foi ter com ella? Sim, pelo menos mand·ra a tipoia · quinta do Craft. Ega, para conhecer esse snr. Castro Gomes, fÃra metter-se no cubiculo do guarda-portâo. E vira-o descer, accender um charuto... Era com effeito um d'esses _rastaquouÃros_ que, n'esse infeliz Paris que tudo tolera, veem ao _Cafà de la Paix_ ·s duas horas para tomar a sua groseille, tesos e embrutecidos... E fÃra o guarda-portâo que lhe dissera que o sujeito parecia muito alegre e mand·ra o cocheiro bater para os Olivaes... Carlos parecia aniquilado: --Tudo isso à nojento!... No fim talvez atà se entendam ambos... Estou como tu dizias aqui h· tempos: ´Cahiu-me a alma a uma latrina, preciso um banho por dentro!ª Ega murmurou melancolicamente: --Essa necessidade de banhos moraes est·-se tornando com effeito tâo frequente!... Devia haver na cidade um estabelecimento para elles. Carlos, no seu quarto, passeava diante da mesa onde a folha branca de papel, em que ia escrever a Maria Eduarda, j· tinha a data d'esse dia, depois--_Minha senhora_, n'uma letra que elle se esfor÷ra por traÃar firme e serena:--e nâo achava outra palavra. Estava bem decidido a mandar-lhe um cheque de duzentas libras, paga esplendidamente ultrajante das semanas que pass·ra no seu leito. Mas queria juntar duas linhas regeladas, impassiveis, que a ferissem mais que o dinheiro: nâo encontrava senâo phrases de grande cÃlera, revelando um grande amor. Olhava a folha branca: e a banal expressâo _Minha senhora_ dava-lhe uma saudade dilacerante por aquella a quem na vespera ainda dizia ´_minha adorada_ª, pela mulher que se nâo chamava ainda Mac-Gren, que era perfeita, e que uma paixâo indomavel, superior · razâo, entontecera e vencera. E o seu amor por essa Maria Eduarda, nobre e amante, que se transform·ra na Mac-Gren, amigada e falsa, era agora maior infinitamente, desesperado por ser irrealisavel--como o que se tem por uma morta e que palpita mais ardente junto da frialdade da cova. Oh! se ella pudesse resurgir outra vez, limpa, clara, do lodo em que afund·ra, outra vez Maria Eduarda, com o seu casto bordado!... De que amor mais delicado a cercaria, para a compensar das affeiÃıes domesticas que ella deixasse de merecer! Que veneraÃâo maior lhe consagraria--para supprir o respeito que o mundo superficial e affectado lhe retirasse! E ella tinha tudo para reter amor e respeito--tinha a belleza, a graÃa, a intelligencia, a alegria, a maternidade, a bondade, um incomparavel gosto... E com todas estas qualidades dÃces e fortes--era apenas uma intrujona! Mas porque? porque? Porque entr·ra ella n'esta longa fraude, tramada dia a dia, mentindo em tudo, desde o pudor que fingia atà ao nome que usava! Apertava a cabeÃa entre as mâos, achava a vida intoleravel. Se ella mentia--onde havia entâo a verdade? Se ella o trahia assim, com aquelles olhos claros, o universo podia bem ser todo uma immensa traiÃâo muda. Punha-se um mÃlho de rosas n'um vaso, exhalava-se d'elle a peste! Caminhava-se para uma relva fresca, ella escondia um lamaÃal! E para que, para que mentira ella? Se, desde o primeiro dia em que o vira, tremulo e rendido, a contemplar o seu bordado como se contempla uma acÃâo de santidade--lhe tivesse dito que nâo era esposa do snr. Castro Gomes, mas sà amante do snr. Castro Gomes--teria a sua paixâo sido menos viva, menos profunda? Nâo era a estola do padre que dava belleza ao seu corpo e valor ·s suas caricias... Para que fÃra entâo essa mentira tenebrosa e descarada--que lhe fazia suppÃr agora que eram imposturas os seus mesmos beijos, imposturas os seus mesmos suspiros!... E com este longo embuste o levava a expatriar-se, dando a sua vida inteira por um corpo por que outros davam apenas um punhado de libras! E por esta mulher, tarifada ·s horas como as caleches da Companhia, elle ia amarguarar a velhice do avÃ, estragar irreparavelmente o seu destino, cortar a sua livre acÃâo de homem! Mas porque? Porque fÃra esta farÃa banal, arrastada por todos os palcos de opera comica, da _cocotte que se finge senhora_? Porque o fizera ella, com aquelle fallar honesto, o puro perfil e a doÃura de mâi? Por interesse? Nâo. Castro Gomes era mais rico do que elle, mais largamente lhe podia satisfazer o appetite mundano de toilettes, de carruagens... Sentia ella que Castro Gomes a ia abandonar, e queria ter ao lado aberta e prompta outra bolsa rica? Entâo mais simples teria sido dizer-lhe: ´eu sou livre, gÃsto de ti, toma-me livremente, como eu me dou.ª Nâo! Havia alli alguma coisa secreta, tortuosa, impenetravel... O que daria por a conhecer! E entâo pouco a pouco foi surgindo n'elle o desejo de ir aos Olivaes... Sim, nâo lhe bastaria desforrar-se arrogantemente, atirando-lhe ao regaÃo um cheque embrulhado n'uma insolencia! O que precisava, para sua plena tranquillidade, era arrancar do fundo d'aquella turva alma o segredo d'aquella torpe farÃa... Sà isso amansaria o seu incomparavel tormento. Queria entrar outra vez na _TÃca_, vÃr como era aquella outra mulher que se chamava Mac-Gren, e ouvir as suas palavras. Oh! iria sem violencia, sem recriminaÃıes, muito calmo, sorrindo! Sà para que ella lhe dissesse qual fÃra a razâo d'aquella mentira tâo laboriosa, tâo vâ... Sà para lhe perguntar serenamente: ´Minha rica senhora para quer foi toda esta intrujice?ª E depois vÃl-a chorar... Sim, tinha esta anciedade cheia d'amor de a vÃr chorar. A agonia que elle sentira no salâo cÃr de musgo do outono, emquanto o outro arrastava os _rr_, queria vÃl-a repetida n'esse seio, onde elle atà ahi dormira tâo dÃcemente, esquecido de tudo, e que era bello, tâo divinamente bello!... Bruscamente, decidido, deu um puxâo · campainha. Baptista appareceu todo abotoado na sua sobrecasaca, com um ar resoluto, como armado e prompto a ser util n'aquella crise que adivinhava... --Baptista, corre ao hotel Central e pergunta se j· entrou o snr. Castro Gomes!... Nâo, escuta... Pıe-te · porta do Central, e espera atà que entre aquelle sujeito que aqui esteve... Nâo, à melhor perguntar!... Emfim, certifica-te de que o sujeito ou voltou ou est· no hotel. E apenas estejas bem certo d'isso, volta aqui, · desfilada, n'uma tipoia... Um batedor seguro, que à para me levar depois aos Olivaes!... Immediatamente, dada esta ordem, serenou. Era j· um allivio immenso nâo ter de escrever a carta, e achar palavras acerbas que a deviam dilacerar. Rasgou o papel devagar. Depois fez o cheque de duzentas libras, ao _portador_. Elle mesmo lh'o levaria... Oh, decerto, nâo lh'o atirava romanticamente ao regaÃo... Deixal-o-hia sobre uma mesa, sobrescriptado a Madame Mac-Gren... E de repente sentiu uma compaixâo por ella. Via-a j·, abrindo o enveloppe com duas grandes lagrimas, lentas, caladas, a rolarem-lhe na face... E os seus proprios olhos se humedeceram. N'esse momento Ega, de fÃra, perguntou se era importuno. --Entra! gritou. E continuou passeando, calado, com as mâos nos bolsos: o outro, em silencio tambem, foi encostar-se · janella sobre o jardim. --Preciso escrever ao avà a dizer-lhe que cheguei, murmurou Carlos por fim, parando junto da mesa. --D·-lhe recados meus. Carlos sent·ra-se, tom·ra languidamente a penna: mas bem depressa a arremessou: cruzou as mâos por detraz da cabeÃa no espaldar da cadeira, cerrou os olhos, como exhausto. --Sabes uma coisa que me parece certa? disse de repente o Ega da janella. Quem escreveu a carta anonyma ao Castro Gomes foi o Damaso! Carlos olhou para elle: --Achas?... Sim, talvez... Com effeito quem havia de ser? --Nâo foi mais ninguem, menino. foi o Damaso! Carlos entâo recordou o que lhe cont·ra o Taveira--as allusıes mysteriosas do Damaso a um escandalo que se estava armando, uma bala que elle devia receber na cabeÃa... O Damaso, portanto, tinha como certa a vinda do brazileiro, depois um duello... --⦠necessario esmagar esse infame! exclamou Ega, subitamente furioso. Nâo ha seguranÃa, nâo ha paz na nossa vida emquanto esse bandido viver!... Carlos nâo respondeu. E o outro proseguia, transtornado, j· todo pallido, deixando transbordar odios cada dia accumulados: --Eu nâo o mato porque nâo tenho um pretexto!... Se tivesse um pretexto, uma insolencia d'elle, um olhar atrevido, era meu, esborrachava-o!... Mas tu precisas fazer alguma coisa, isto nâo pÃde ficar assim! Nâo pÃde! ⦠necessario sangue... Và tu que infamia, uma carta anonyma!... Temos a nossa paz, a nossa felicidade, tudo exposto constantemente aos ataques do snr. Damaso. Nâo pÃde ser. Eu o que tenho pena à de nâo ter um pretexto! Mas tenl-o tu, aproveita, e esmaga-o! Carlos encolheu vagamente os hombros: --Merecia chicotadas, com effeito... Mas elle realmente sà tem sido velhaco commigo por causa das minhas relaÃıes com essa senhora; e como isso à um caso acabado, tudo o que se prende com elle finda tambem. _Parce sepultis_... E no fim era elle que tinha razâo, quando dizia que ella era uma intrujona... Atirou uma punhada · mesa, ergueu-se, e com um sorriso amargo, n'um tedio infinito de tudo: --Era elle, era o snr. Damaso Salcede que tinha razâo!... Toda a sua cÃlera revivera, mais aspera, a esta idÃa. Olhou o relogio. Tinha pressa de a vÃr, tinha pressa de a injuriar!... --Escreveste-lhe? perguntou o Ega. --Nâo, vou l· eu mesmo. Ega pareceu espantado. Depois recomeÃou a passear, calado, com os olhos no tapete. Ia escurecendo quando Baptista voltou. Vira o snr. Castro Gomes apear-se no hotel e mandar descer as suas bagagens:--e a tipoia, para levar o menino aos Olivaes, esperava em baixo. --Bem, adeus! disse Carlos procurando atarantadamente um par de luvas. --Nâo jantas? --Nâo. D'ahi a pouco rodava pela estrada dos Olivaes. J· se accendera o gaz. E inquieto, no estreito assento, accendendo nervosamente _cigarettes_ que nâo fumava, soffria j· a perturbaÃâo d'aquelle encontro difficil e doloroso... Nem sabia mesmo como a havia de tratar, se por ´minha senhoraª, se por ´minha boa amigaª, com uma superior indifferenÃa. E ao mesmo tempo sentia por ella uma compaixâo indefinida, que o amollecia. Diante d'estes seus modos regelados, via-a j· toda pallida, a tremer, com os olhos cheios d'agua. E estas lagrimas que appetecera, agora que estava tâo perto de as vÃr correr, enchiam-no sà de commoÃâo e de dÃ... Durante um momento mesmo pensou em retroceder. Por fim seria muito mais digno escrever-lhe duas linhas altivas, sacudindo-a de si para sempre e seccamente! Poderia nâo lhe mandar o cheque,--affronta brutal d'homem rico. Apesar d'embusteira era mulher, cheia de nervos, cheia de phantasia, e am·ra-o talvez com desinteresse... Mas uma carta era mais digno. E agora acudiam-lhe as palavras que lhe deveria ter dirigido, incisivas e precisas. Sim, devia-lhe ter dito--que se estava prompto a dar a sua vida a uma mulher que se lhe abandon·ra _por paixâo_, estava decidido a nâo sacrificar nem os seus vagares a uma mulher que lhe cedera _por profissâo_. Era mais simples, era terminante... E depois nâo a via, nâo teria de supportar a tortura das explicaÃıes e das lagrimas. Entâo veio-lhe uma fraqueza. Bateu nos vidros para fazer parar, reflectir um instante, mais calmamente, no silencio das rodas. O cocheiro nâo ouviu: o trote largo da parelha continuou batendo a estrada escura. E Carlos deixou seguir, outra vez hesitante. Depois, · maneira que reconhecia, esbatidos na sombra, aquelles sitios onde tantas vezes pass·ra com o coraÃâo em festa, quando a sua paixâo estava em flÃr, uma cÃlera nova voltava--menos contra a pessoa de Maria Eduarda, que contra essa _mentira_ que fÃra obra d'ella, e que vinha estragar irremediavelmente o encanto divino da sua vida. Era essa _mentira_ que agora odiava--vendo-a como uma coisa material e tangivel, de um peso enorme, feia e cÃr de ferro, esmagando-lhe o coraÃâo. Oh! Se nâo fosse _essa coisa_ pequenina e inolvidavel que estava entre elles, como um indestructivel bloco de granito, poderia abrir-lhe novamente os seus braÃos, senâo com a mesma crenÃa pelo menos com o mesmo ardor! Esposa do outro ou amante do outro--no fim que importava? Nâo era por faltar aos beijos que lhe dera esse a consagraÃâo d'um padre, rosnada em latim--que a sua pelle estava mais polluida por elles, ou tinha a menos frescura? Mas havia a _mentira_, a _mentira_ inicial, dita no primeiro dia em que fÃra · rua de S. Francisco, e que como um fermento podre ficava estragando tudo d'ahi por diante, dÃces conversas, silencios, passeios, sestas no calor da quinta, murmurios de beijos morrendo entre os cortinados cÃr d'ouro... Tudo manchado, tudo contaminado por aquella _mentira_ primeira que ella dissera sorrindo, com os seus tranquillos olhos limpidos... Abafava. Ia a descer a vidraÃa que faltava a correia--quando a tipoia parou de repente, na estrada solitaria... Abriu a portinhola. Uma mulher com um chale pela cabeÃa fallava ao cocheiro. --Melanie! --Ah, monsieur! Carlos saltou precipitadamente. Era j· proximo da quinta, na volta d'estrada, onde o muro fazia um recanto sob uma faia, defronte de sebes de piteiras resguardando campos d'olivedo. Carlos gritou ao cocheiro que seguisse e esperasse no portâo da quinta. E ficou alli, no escuro, com Melanie encolhida no seu chale. Que estava ella alli a fazer? Melanie parecia transtornada: contou que vinha procurar · villa uma carruagem, porque a senhora queria ir a Lisboa, ao Ramalhete... Ella julg·ra a tipoia vazia. E apertava as mâos, dando as graÃas, com um immenso allivio. Ah! que felicidade, que felicidade ter elle vindo!... A senhora estava afflicta, nem jant·ra, perdida de chÃro. O snr. Castro Gomes apparecera l· inesperadamente... A senhora, coitadinha, queria morrer! Entâo Carlos, caminhando rente ao muro, interrogou Melanie. Como viera o outro? que dissera? como se despedira?... Melanie nâo ouvira nada. O Snr. Castro Gomes e a senhora tinham conversado sÃs no pavilhâo japonez. ¡ sahida à que vira o snr. Castro Gomes dizer adeus a madame, muito socegado, muito amavel, rindo, fallando de _Niniche_... A senhora, essa, parecia como morta, tâo pallida! Quando o outro partiu, ia tendo um desmaio. Estavam proximo do portâo da _Toca_. Carlos retrocedeu, respirando fortemente, com o chapÃo na mâo. E agora todo o seu orgulho se ia sumindo sob a violencia da sua anciedade. Queria saber! E perguntava, deixava Melanie nas coisas dolorosas da sua paixâo... Dites toujours, Melanie, dites! Sabia a senhora que Castro Gomes estivera com elle no Ramalhete, lhe confess·ra tudo?... Claramente que sabia, por isso chorava--dizia Melanie. Ah, ella bem repetira · senhora que era melhor contar a verdade! Era muito amiga d'ella, servia-a desde pequena, vira nascer a menina... E tinha-lh'o dito, atà j· nos Olivaes! Carlos curvava a cabeÃa na escuridâo do muro. Melanie _tinha-lh'o dito_! Assim ella e a criada discutiam ambas, acamaradadas, o embuste em que andava presa a sua vida! E aquellas revelaÃıes de Melanie, que suspirava com o chale sobre o rosto, abatiam os ultimos pedaÃos d'esse sonho, que elle erguera tâo alto, entre nuvens d'ouro. Nada restava. Tudo jazia em estilhaÃos, no lodo immundo. Um momento, com o coraÃâo cheio de fadiga, pensou em voltar a Lisboa. Mas para alÃm d'aquelle negro muro estava _ella_, perdida de chÃro, querendo morrer... E lentamente recomeÃou a caminhar para o portâo. E agora, sem resistencia nenhuma do orgulho, fazia perguntas mais intimas a Melanie. Porque à que Maria Eduarda nâo lhe dissera a verdade? Melanie encolheu os hombros. Nâo sabia: nem a senhora sabia! Estivera no Central como madame Gomes; alug·ra a casa da rua de S. Francisco como madame Gomes; recebera-o como madame Gomes... E assim se deix·ra ir, insensivelmente, conversando com elle, gostando d'elle, vindo para os Olivaes... E depois era tarde, j· nâo se atrevera a confessar, toda enterrada assim na _mentira_, com medo do desgosto... Mas, exclamava Carlos, nunca imagin·ra ella que fatalmente tudo se descobriria um dia? --Je ne sais pas, monsieur, je ne sais pas, murmurou Melanie quasi a chorar. Depois eram outras curiosidades. Ella nâo esperava Castro Gomes? nâo suppunha que elle voltasse? nâo costumava fallar d'elle?... --Oh non, monsieur, oh non! Madame, desde que o senhor come÷ra a ir todos os dias · rua de S. Francisco, consider·ra-se para sempre desligada do snr. Castro Gomes, nem fallava n'elle, nem queria que se fallasse... Antes d'isso a menina chamava sempre ao snr. Castro Gomes _petit ami_. Agora nâo lhe chamava nada. Tinham-lhe dito que j· nâo havia _petit ami_... --Ella escrevia-lhe ainda, dizia Carlos, eu sei que ella lhe escrevia... Sim, Melanie julgava que sim... Mas cartas indifferentes. A senhora lev·ra o seu escrupulo a ponto de que, desde que viera para os Olivaes, nunca mais gast·ra um ceitil das quantias que lhe mandava o snr. Castro Gomes. As letras para receber dinheiro conservava-as intactas, entregara-lh'as n'essa tarde... Nâo se lembrava elle de a ter encontrado uma manhâ · porta do Monte-Pio? Pois bem! FÃra l·, com uma amiga franceza, empenhar uma pulseira de brilhantes da senhora. A senhora vivia agora das suas joias; tinha j· outras no prÃgo. Carlos par·ra, commovido. Mas entâo para que tinha ella mentido? --Je ne sais pas, dizia Melanie, je ne sais pas... Mais elle vous aime bien, allez! Estavam defronte do portâo. A tipoia esperava. E, ao fundo da rua d'acacias, a porta da casa aberta deixava passar a luz do corredor, frouxa e triste. Carlos julgou vÃr mesmo a figura de Maria Eduarda, embrulhada n'uma capa escura, de chapÃo, atravessar n'essa claridade... Ouvira decerto rodar a carruagem. Que afflicta paciencia seria a sua! --Vai-lhe dizer que vim, Melanie, vai! murmurou Carlos. A rapariga correu. E elle, caminhando devagar sob as acacias, sentia no sombrio silencio as pancadas desordenandas do seu coraÃâo. Subiu os tres degraus de pedra--que lhe pareciam j· d'uma casa estranha. Dentro, o corredor estava deserto, com a sua lampada mourisca alumiando as panoplias de touros... Alli ficou. Melanie, com o chale na mâo, veio dizer-lhe que a senhora estava na sala das tapeÃarias... Carlos entrou. L· estava, ainda de capa, esperando de pÃ, palida, com toda a alma concentrada nos olhos que refulgiam entre as lagrimas. E correu para elle, arrebatou-lhe as mâos, sem poder fallar, soluÃando, tremendo toda. Na sua terrivel perturbaÃâo, Carlos achava sà esta palavra, melancolicamente estupida: --Nâo sei porque chora, nâo sei, nâo h· razâo para chorar... Ella pÃde emfim balbuciar: --Escuta-me, pelo amor de Deus! nâo digas nada, deixa contar-te... Eu ia l·, tinha mandado Melanie por uma carruagem. Ia vÃr-te... Nunca tive a coragem de te dizer! Fiz mal, foi horrivel... Mas escuta, nâo digas nada ainda, perdÃa, que eu nâo tenho culpa! De novo os soluÃos a suffocaram. E cahiu ao canto do sof·, n'um chÃro brusco e nervoso, que a sacudiu toda, lhe fazia rolar sobre os hombros os cabellos mal atados. Carlos fic·ra diante d'ella, immovel. O seu coraÃâo parecia parado de surpreza e de duvida, sem forÃa para desafogar. Apenas agora sentia quanto baixo e brutal deixar-lhe o cheque--que tinha alli na carteira e que o enchia de vergonha... Ella ergueu o rosto, todo molhado, murmurou com um grande esforÃo: --Escuta-me!... Nem sei como hei de dizer... Oh, sâo tantas coisas, sâo tantas coisas!... Tu nâo te vaes j· embora, senta-te, escuta... Carlos puxou uma cadeira, lentamente. --Nâo, aqui ao pà de mim... Para eu ter mais coragem... Por quem Ãs, tem pena, faze-me isso! Elle cedeu · supplicaÃâo humilde e enternecedora dos seus olhos arrazados d'agua: e sentou-se ao outro canto do sof·, afastado d'ella, n'uma desconsolaÃâo infinita. Entâo, muito baixo, enrouquecida pelo chÃro, sem o olhar, e como n'um confessionario--Maria comeÃou a fallar do seu passado, desmanchadamente, hesitando, balbuciando, entre grandes soluÃos que a afogavam, e pudores amargos que lhe faziam enterrar nas mâos a face afflicta. A culpa nâo fÃra d'ella! nâo fÃra d'ella! Elle devia ter perguntado ·quelle homem que sabia toda a sua vida... FÃra sua mâi... Era horroroso dizel-o, mas fÃra por causa d'ella que conhecera e que fugira com o primeiro homem, o outro, um irlandez... E tinha vivido com elle quatro annos, como sua esposa, tâo fiel, tâo retirada de tudo e sà occupada da sua casa, que elle ia casar com ella! Mas morrera na guerra com os allemâes, na batalha de Saint-Privat. E ella fic·ra com Rosa, com a mâi j· doente, sem recursos, depois de vender tudo... Ao principio trabalh·ra... Em Londres tinha procurado dar liÃıes de piano... Tudo falh·ra, dois dias vivera sem lume, de peixe salgado, vendo Rosa com fome! com fome! Ah, elle nâo podia perceber o que isto era!... Quasi fÃra por caridade que as tinha repatriado para Paris... E ahi conhecera Castro Gomes. Era horrivel, mas que havia d'ella fazer! Estava perdida... Lentamente escorreg·ra do sof·, cahira aos pÃs de Carlos. E elle permanecia immovel, mudo, com o coraÃâo rasgado por angustias differentes: era uma compaixâo tremula por todas aquellas miserias soffridas, dÃr de mâi, trabalho procurado, fome, que lh'a tornavam confusamente mais querida; e era o horror d'esse outro homem, o irlandez, que surgia agora, e que lh'a tornava de repente mais maculada... Ella continuava fallando de Castro Gomes. Vivera tres annos com elle, honestamente, sem um desvio, sem um pensamento mau. O seu desejo era estar quieta em casa. Elle à que a forÃava a andar em ceias, em noitadas... E Carlos nâo podia ouvir mais, torturado. Repeliu-lhe as mâos, que procuravam as suas. Queria fugir, queria findar!... --Oh nâo, nâo me mandes embora! gritou ella prendendo-se a elle anciosamente. Eu sei que nâo mereÃo nada! Sou uma desgraÃada... Mas nâo tive coragem, meu amor! Tu Ãs homem, nâo comprehendes estas coisas... Olha para mim! porque nâo olhas para mim? Um instante sÃ, nâo voltes o rosto, tem pena de mim... Nâo! elle nâo queria olhar. Temia aquellas lagrimas, o rosto cheio d'agonia. Ao calor do seio que arquejava sobre os seus joelhos, j· tudo n'elle comeÃava a oscillar, orgulhos, despeitos, dignidade, ciume... E entâo, sem saber, a seu pezar, as suas mâos apertaram as d'ella. Ella cobriu-lhe logo de beijos os dedos, as mangas, arrebatadamente: e anciosa implorava do fundo da sua miseria um instante de misericordia. --Oh, dize que me perdÃas! Tu Ãs tâo bom! Uma palavra sÃ... Dize sà que nâo me odeias, e depois deixo-te ir... Mas dize primeiro... Olha ao menos para mim como d'antes, uma sà vez!... E eram agora os seus labios que procuravam os d'elle. Entâo a fraqueza em que sentia afundar-se todo o seu sÃr encheu Carlos de cÃlera, contra si e contra ella. Sacudiu-a brutalmente, gritou: --Mas porque nâo me disseste, porque nâo me disseste? Para que foi essa longa mentira? Eu tinha-te amado do mesmo modo! Para que mentiste, tu? Larg·ra-a, prostrada no châo. E de pÃ, deixava cahir sobre ella a sua queixa desesperada: --⦠a tua mentira que nos separa, a tua horrivel mentira, a tua mentira sÃmente! Ella ergueu-se pouco a pouco, mal se sustendo, e com uma pallidez de desmaio. --Mas eu queria dizer-t'o, murmurou muito baixo, muito quebrado diante d'elle, deixando cahir os braÃos. Eu queria dizer-t'o... Nâo te lembras, n'aquelle dia em que vieste tarde, quando eu fallei da casa de campo, e que tu pela primeira vez declaraste que gostavas de mim? Eu disse-te logo: ´ha uma coisa que te quero contar...ª Tu nem me deixaste acabar. Imaginavas o que era, que eu queria ser sà tua, longe de tudo... E disseste entâo que haviamos d'ir, com Rosa, ser felizes para algum canto do mundo... Nâo te lembras?... Foi entâo que me veio uma tentaÃâo! Era nâo dizer nada, deixar-me levar, e depois, mais tarde, annos depois, quando te tivesse provado bem que boa mulher eu era, digna da tua estima, confessar-te tudo e dizer-te: ´agora, se queres, manda-me embora.ª Oh! foi mal feito, bem sei... Mas foi uma tentaÃâo, nâo resisti... Se tu nâo fallasses em fugirmos, tinha-te dito tudo... Mas mal fallaste em fugirmos, vi uma outra vida, uma grande esperanÃa, nem sei que! E alÃm d'isso adiava aquella horrivel confissâo! Emfim, nem posso explicar, era como o cÃo que se abria, via-me comtigo n'uma casa nossa... Foi uma tentaÃâo!... E depois era horrivel, no momento em que tu me querias tanto, ir dizer-te ´nâo faÃas tudo isso por mim, olha que eu sou uma desgraÃada, nem marido tenho...ª Que te hei de explicar mais? Nâo me resignava a perder o teu respeito. Era tâo bom ser assim estimada... Emfim foi um mal, foi um grande mal... E agora ahi est·, vejo-me perdida, tudo acabou! Atirou-se para o châo, como uma creatura vencida e finda, escondendo a face no sof·. E Carlos, indo lentamente ao fundo da sala, voltando bruscamente atà junto d'ella, tinha sà a mesma recriminaÃâo, a _mentira_, a _mentira_, pertinaz e de cada dia... Sà os soluÃos d'ella lhe respondiam. --Porque nâo me disseste ao menos depois, aqui nos Olivaes, quando sabias que tu eras tudo para mim?... Ella ergueu a cabeÃa fatigada: --Que queres tu? Tive medo que o teu amor mudasse, que fosse d'outro modo... Via-te j· a tratar-me sem respeito. Via-te a entrar por ahi dentro de chapÃo na cabeÃa, a perder a affeiÃâo · pequena, a querer pagar as despezas da casa... Depois tinha remorsos, ia adiando. Dizia ´hoje nâo, um dia sà mais de felicidade, ·manhâ ser·...ª E assim ia indo! Emfim, nem eu sei, um horror! Houve um silencio. E entâo Carlos sentiu · porta _Niniche_ que queria entrar e que gania baixinho e doloridamente. Abriu. A cadellinha correu, pulou para o sof·, onde Maria permanecia soluÃando, enrodilhando a um canto: procurava lamber-lhe as mâos, inquieta: depois ficou plantada junto d'ella, como a guarda-l'a, desconfiada, seguindo, com os seus vivos olhos d'azeviche, Carlos que recome÷ra a passear sombriamente. Um ai mais longo e mais triste de Maria fel-o parar. Esteve um momento olhando para aquella dÃr humilhada... Todo abalado, com os labios a tremer, murmurou: --Mesmo que te pudesse perdoar, como te poderia acreditar agora nunca mais? Ha esta mentira horrivel sempre entre nÃs a separar-nos! Nâo teria um unico dia de confianÃa e de paz... --Nunca te menti senâo n'uma coisa, e por amor de ti! disse ella gravemente do fundo da sua prostraÃâo. --Nâo, mentiste em tudo! Tudo era falso, falso o teu casamento, falso o teu nome, falsa a tua vida toda... Nunca mais te poderia acreditar... Como havia de ser, se agora mesmo quasi que nem acredito no motivo das tuas lagrimas? Uma indignaÃâo ergueu-a, direita e soberba. Os seus olhos de repente seccos rebrilharam, revoltados e largos, no marmore da sua pallidez. --Que queres tu dizer? Que estas lagrimas tem outro motivo, estas supplicas sâo fingidas? Que finjo tudo para te reter, para nâo te perder, ter outro homem, agora que estou abandonada?... Elle balbuciou: --Nâo, nâo! Nâo à isso! --E eu? exclamou ella, caminhando para elle, dominando-o, magnifica e com um esplendor de verdade na face. E eu? porque hei de eu acreditar n'essa grande paixâo que me juravas? O que à que tu amavas entâo em mim? Dize l·! Era a mulher d'outro, o nome, o requinte do adulterio, as _toilletes_?... Ou era eu propria, o meu corpo, a minha alma e o meu amor por ti?... Eu sou a mesma, olha bem para mim!... Estes braÃos sâo os mesmos, este peito à o mesmo... Sà uma coisa à differente: a minha paixâo! Essa à maior, desgraÃadamente, infinitamente maior. --Oh! se isso fosse verdade! gritou Carlos, apertando as mâos. N'um instante Maria estava cahida a seus pÃs, com os braÃos abertos para elle. --Juro-t'o por alma de minha filha, por alma de Rosa! Amo-te, adoro-te doidamente, absurdamente, atà · morte! Carlos tremia. Todo o seu sÃr pendia para ella; e era um impulso irresistivel de se deixar cahir sobre aquelle seio que arfava a seus pÃs, ainda que elle fosse o abysmo da sua vida inteira... Mas outra vez a idÃia da _mentira_ passou, regeladora. E afastou-se d'ella, levando os punhos · cabeÃa, n'um desespero, revoltado contra aquella coisa pequenina e indestructivel que nâo queria sumir-se, e que se interpunha como uma barra de ferro entre elle e a sua felicidade divina! Ella fic·ra ajoelhada, immovel, com os olhos esgazeados para o tapete. Depois, no silencio estofado da sala, a sua voz ergueu-se dolente e tremula: --Tens razâo, acabou-se! Tu nâo me acreditas, tudo se acabou!... ⦠melhor que te v·s embora... Ninguem me torna a acreditar... Acabou tudo para mim, nâo tenho ninguem mais no mundo... ¡manhâ s·io d'aqui, deixo-te tudo... Has de me dar tempo para arranjar... Depois, que hei de fazer, vou-me embora! E nâo pÃde mais, tombou para o châo, com os braÃos estirados, perdida de chÃro. Carlos voltou-se, ferido no coraÃâo. Com o seu vestido escuro, para alli cahida e abandonada, parecia j· uma pobre creatura, arremessada para fÃra de todo o lar, sÃsinha a um canto, entre a inclemencia do mundo... Entâo respeitos humanos, orgulho, dignidade humana, tudo n'elle foi levado como por um grande vento de piedade. Viu sÃ, offuscando todas as fragilidades, a sua belleza, a sua dÃr, a sua alma sublimemente amante. Um delirio generoso, de grandiosa bondade, misturou-se · sua paixâo. E, debruÃando-se, disse-lhe baixo, com os braÃos abertos: --Maria, queres casar commigo? Ella ergueu a cabeÃa, sem comprehender, com os olhos desvairados. Mas Carlos tinha os braÃos abertos; e estava esperando para a fechar dentro d'elles outra vez, como sua e para sempre... Entâo levantou-se, tropeÃando nos vestidos, veio cahir sobre o peito d'elle, cobrindo-o de beijos, entre soluÃos e risos, tonta, n'um deslumbramento: --Casar comtigo, comtigo? Oh Carlos... E viver sempre, sempre comtigo?... Oh meu amor, meu amor! E tratar de ti, e servir-te, e adorar-te, e ser sà tua? E a pobre Rosa tambem... Nâo, nâo cases commigo, nâo à possivel, nâo valho nada! Mas se tu queres, porque nâo?... Vamos para longe, juntos, e Rosa e eu sobre o teu coraÃâo! E has de ser nosso amigo, meu e d'ella, que nâo temos ninguem no mundo... Oh! meu Deus, meu Deus!... Empallideceu, escorregando pesadamente entre os braÃos d'elle, desmaiada: e os seus longos cabellos desprendido rojavam o châo, tocados pela luz de tons d'ouro. V Maria Eduarda e Carlos, que fic·ra essa noite nos Olivaes na sua casinhola, acabavam de almoÃar. O Domingos servira o cafÃ, e antes de sahir deix·ra ao lado de Carlos a caixa de cigarettes e o _Figaro_. As duas janellas estavam abertas. Nem uma folha se movia no ar pesado da manhâ encoberta, entristecida ainda por um dobre lento de sinos que morria ao longe nos campos. No banco de cortiÃa, sob as arvores, miss Sarah costurava preguiÃosamente; Rosa ao lado brincava na relva. E Carlos, que viera n'uma intimidade conjugal, com uma simples camisa de sÃda e um jaquetâo de flanella, chegou entâo a cadeira para junto de Maria, tomou-lhe a mâo, brincando-lhe com os anneis, n'uma lenta caricia: --Vamos a saber, meu amor... Decidiste, por fim? Quando queres partir? N'essa noite, entre os seus primeiros beijos de noiva, ella mostr·ra o desejo enternecido de nâo alterar o plano da Italia e d'um ninho romantico entre as flÃres d'Isola-bella: sÃmente agora nâo iam esconder a inquietaÃâo d'uma felicidade culpada, mas gozar o repouso d'uma felicidade legitima. E, depois de todas as incertezas e tormentos que o tinham agitado desde o dia em que cruz·ra Maria Eduarda no Aterro, Carlos anhelava tambem pelo momento de se installar emfim no conforto d'um amor sem duvidas e sem sobresaltos: --Eu por mim abalava ·manhâ. Estou sÃfrego de paz. Estou atà sÃfrego de preguiÃa... Mas tu, dize, quando queres? Maria nâo respondeu; apenas o seu olhar sorriu, reconhecido e apaixonado. Depois, sem retirar a mâo que a longa caricia de Carlos ainda prendia, chamou Rosa atravÃs da janella. --Mamâ, espera, j· vou! Passa-me umas migalhas... Andam aqui uns pardaes que ainda nâo almoÃaram... --Nâo, vem c·. Quando ella appareceu · porta, toda de branco, cÃrada, com uma das ultimas rosas de verâo mettida no cinto--Maria quil-a mais perto, entre elles, encostada aos seus joelhos. E, arranjando-lhe a fita solta do cabello, perguntou, muito sÃria, muito commovida, se ella gostaria que Carlos viesse viver com ellas de todo e ficar alli na _Toca_... Os olhos da pequena encheram-se de surpreza e de riso: --O quÃ! estar sempre, sempre aqui, mesmo de noite, toda a noite?... E ter aqui as suas malas, as suas coisas?... Ambos murmuraram--´simª. Rosa entâo pulou, bateu as palmas, radiante, querendo que Carlos fosse j·, j·, buscar as suas malas e as suas coisas... --Escuta, disse-lhe ainda Maria gravemente, retendo-a sobre os joelhos. E gostavas que elle fosse como o pap·, e que andasse sempre comnosco, e que lhe obedecessemos ambas, e que gostassemos muito d'elle ? Rosa ergueu para a mâe uma facesinha compenetrada, onde todo o sorriso se apag·ra. --Mas eu nâo posso gostar mais d'elle do que gÃsto!... Ambos a beijaram, n'um enternecimento que lhes humedecia os olhos. E Maria Eduarda, pela primeira vez diante de Rosa debruÃando-se sobre ella, beijou de leve a testa de Carlos. A pequena ficou pasmada para o seu amigo, depois para a mâi. E pareceu comprehender tudo; escorregou dos joelhos de Maria, veio encostar-se a Carlos com uma meiguice humilde: --Queres que te chame pap·, sà a ti? --Sà a mim, disse elle, fechando-a toda nos braÃos. E assim obtiveram o consentimento de Rosa--que fugiu, atirando a porta, com as mâos cheias de bolos para os pardaes. Carlos levantou-se, tomou a cabeÃa de Maria entre as mâos, e contemplando-a profundamente, atà · alma, murmurou n'um enlevo: --â¦s perfeita! Ella desprendeu-se, com melancolia, d'aquella adoraÃâo que a perturbava. --Escuta... Tenho ainda muito, muito que te dizer, infelizmente. Vamos para o nosso kiosque... Tu nâo tens nada que fazer, nâo? E que tenhas, hoje Ãs meu... Vou j· ter comtigo. Leva as tuas cigarettes. Nos degraus do jardim, Carlos parou a olhar, a sentir a doÃura velada do cÃo cinzento... E a vida pareceu-lhe adoravel, d'uma poesia fina e triste,assim envolta n'aquella nevoa macia onde nada resplandecia e nada cantava, e que tâo favoravel era para que dois coraÃıes, desinteressados do mundo e em desharmonia com elle, se abandonassem juntos ao contÃnuo encanto de estremecerem juntos na mudez e na sombra. --Vamos ter chuva, tio AndrÃ, disse elle, passando junto do velho jardineiro que aparava o buxo. O tio AndrÃ, atarantado, arrancou o chapÃo. Ah! uma gota d'agua era bem necessaria, depois da estiagem! O torrâosinho j· estava com sÃde! E em casa todos bons? A senhora? A menina? --Tudo bom, tio AndrÃ, obrigado. E no seu desejo de vÃr todos em torno de si felizes como elle e como a terra sequiosa que ia ser consolada--Carlos metteu uma libra na mâo do tio AndrÃ, que ficou deslumbrado, sem ousar fechar os dedos sobre aquelle ouro extraordinario que reluziu. Quando Maria entrou no kiosque trazia um cofre de sandalo. Atirou-o para o divan: fez sentar Carlos ao lado, bem confortavel, entre almofadas: accendeu-lhe uma cigarrete. Depois agachou-se aos seus pÃs, sobre o tapete, como na humildade de uma confissâo. --Est·s bem assim? Queres que o Domingos te traga agua e cognac?... Nâo? Entâo ouve agora, quero-te contar tudo... Era toda a sua existencia que ella desejava contar. Pens·ra mesmo em lh'a escrever n'uma carta interminavel, como nos romances. Mas decidira antes tagarellar alli uma manhâ inteira, aninhada aos seus pÃs. --Est·s bem, nâo est·s? Carlos esperava, commovido. Sabia que aquelles labios amados iam fazer revelaÃıes pungentes para o seu coraÃâo--e amargas para o seu orgulho. Mas a confidencia da sua vida completava a posse da sua pessoa: quando a conhecesse toda no seu passado sentil-a-hia mais sua inteiramente. E no fundo tinha uma curiosidade insaciavel d'essas coisas que o deviam pungir e que o deviam humilhar. --Sim, conta... Depois esquecemos tudo e para sempre. Mas agora dize, conta... Onde nasceste tu por fim? Nascera em Vienna: mas pouco se recordava dos tempos de crianÃa, quasi nada sabia do pap·, a nâo ser a sua grande nobreza e a sua grande belleza. Tivera uma irmâsinha que morrera de dois annos e que se chamava Heloisa. A mamâ, mais tarde, quando ella era j· rapariga, nâo tolerava que lhe perguntassem pelo passado; e dizia sempre que remexer a memoria das coisas antigas prejudicava tanto como sacudir uma garrafa de vinho velho... De Vienna apenas recordava confusamente largos passeios d'arvores, militares vestidos de branco, e uma casa espelhada e dourada onde se danÃava: ·s vezes durante tempos ella ficava l· sà com o avÃ, um velhinho triste e timido, mettido pelos cantos, que lhe contara historias de navios. Depois tinham ido a Inglaterra: mas lembrava-se sÃmente de ter atravessado um grande rumor de ruas, n'um dia de chuva, embrulhada em pelles, sobre os joelhos d'um escudeiro. As suas primeiras memorias mais nitidas datavam de Paris; a mamâ, j· viuva, andava de luto pelo avÃ; e ella tinha uma aia italiana que a levava todas as manhâs, com um arco e com uma pÃlla, brincar aos Campos Elyseos. A noite costumava vÃr a mamâ decotada, n'um quarto cheio de setins e de luzes; e um homem louro, um pouco brusco, que fumava sempre estirado pelos sof·s, trazia-lhe de vez em quando uma boneca, e chamava-lhe mademoiselle _Triste-c[oe]ur_ por causa do seu arzinho sisudo. Emfim a mamâ mettera-a n'um convento ao pà de Tours--porque n'essa idade, apesar de cantar j· ao piano as walsas da _Belle HelÃne_, ainda nâo sabia soletrar. FÃra nos jardins do convento, onde havia lindos lilazes, que a mamâ se separ·ra d'ella n'uma paixâo de lagrimas; e ao lado esperava, para a consolar decerto, um sujeito muito grave, de bigodes encerados, a quem a Madre Superiora fallara com veneraÃâo. A mamâ ao principio vinha vÃl-a todos os mezes, demorando-se em Tours dois, tres dias; trazia-lhe uma profusâo de presentes, bonecas, bonbons, lenÃos bordados, vestidos ricos, que lhe nâo permittia usar a regra severa do convento. Davam entâo passeios de carruagem pelos arredores de Tours: e havia sempre officiaes a cavallo, que escoltavam a caleche--e tratavam a mamâ por _tu_. No convento as mestras, a Madre Superiora nâo gostavam d'estas sahidas--nem mesmo que a mamâ viesse acordar os corredores devotos com as suas risadas e o ruido das suas sÃdas; ao mesmo tempo pareciam temel-a; chamavam-lhe _Madame la Comtesse_. A mamâ era muito amiga do general que commandava em Tours, e visitava o bispo. Monsenhor, quando vinha ao convento, fazia-lhe uma festinha especial na face e alludia risonhamente a _son excellente mÃre_. Depois a mamâ comeÃou a apparecer menos em Tours. Esteve um anno longe, quasi sem escrever, viajando na Allemanha; voltou um dia, magra e coberta de luto, e ficou toda a manhâ abraÃada a ella a chorar. Mas na visita seguinte vinha mais moÃa, mais brilhante, mais ligeira, com dois grandes galgos brancos, annunciando uma romagem poetica · Terra Santa e a todo o remoto Oriente. Ella tinha entâo quasi dezeseis annos: pela sua applicaÃâo, os seus modos dÃces e graves, ganh·ra a affeiÃâo da Madre Superiora--que ·s vezes, olhando-a com tristeza, acariciando-lhe o cabello cahido em duas tranÃas segundo a regra, lhe mostrava o desejo de a conservar sempre ao seu lado. _Le monde_, dizia ella, _ne vous sera bon â¡ rien, mon enfant!_... Um dia, porÃm, appareceu para a levar para Paris, para a mamâ, uma Madame de Chavigny, fidalga pobre, de caracoes brancos, que era como uma estampa de severidade e de virtude. O que ella chor·ra ao deixar o convento! Mais choraria se soubesse o que ia encontrar em Paris! A casa da mamâ, no Parc Monceaux, era na realidade uma casa de jogo--mas recoberta de um luxo sÃrio e fino. Os escudeiros tinham meias de sÃda; os convidados, com grandes nomes no Nobiliario de FranÃa, conversavam de corridas, das Tulherias, dos discursos do Senado; e as mesas de jogo armavam-se depois como uma distracÃâo mais picante. Ella recolhia sempre ao seu quarto ·s dez horas: Madame de Chavigny, que fic·ra como sua dama de companhia, ia com ella cedo ao Bois n'um coupà estufo de _douairiÃre_. Pouco a pouco, porÃm, este grande verniz comeÃou a estalar. A pobre mamâ cahira sob o jugo d'um Mr. de Trevernnes, homem perigoso pela sua seducÃâo pessoal e por uma desoladora falta de honra e de senso. A casa descahiu rapidamente n'uma bohemia mal dourada e ruidosa. Quando ella madrugava, com os seus habitos saudaveis do convento, encontrava paletots d'homens por cima dos sof·s: no marmore das consoles restavam pontas de charuto entre nodoas de champagne; e n'algum quarto mais retirado ainda tinia o dinheiro d'um _baccarat_ talhado · claridade do sol. Depois uma noite, estando deitada, sentira de repente gritos, uma debandada brusca na escada; veio encontrar a mamâ estirada no tapete, desmaiada; ella dissera-lhe apenas mais tarde, alagada em lagrimas, ´que tinha havido uma desgraÃaª... Mudaram entâo para um terceiro andar da ChaussÃe-d'Antin. Ahi comeÃou a apparecer uma gente desconhecida e suspeita. Eram Valachos de grandes bigodes, Peruanos com diamantes falsos, e condes romanos que escondiam para dentro das mangas os punhos enxovalhados... Por vezes entre esta malta vinha algum _gentleman_--que nâo tirava o paletot, como n'um cafÃ-concerto. Um d'esses foi um irlandez, muito moÃo, Mac-Gren... Madame de Champigny deix·ra-as desde que falt·ra o coupà severo, acolchoado de setim; e ella, sà com a mâi, insensivelmente, fatalmente, fÃra-se misturando a essa vida tresnoitada de grogs e de _baccarat_. A mamâ chamava a Mac-Gren o ´bÃbê. Era com effeito uma crianÃa estouvada e feliz. Namor·ra-se d'ella logo com o ardor, a effusâo, o impeto d'um irlandez; e prometteu-lhe fazel-a sua esposa apenas se emancipasse--porque Mac-Gren, menor ainda, vivia sobretudo das liberalidades de uma avà excentrica e rica que o adorava, e que habitava a ProvenÃa n'uma vasta quinta onde tinha feras em jaulas... E no entanto induzia-a sem cessar a fugir com elle, desesperado de a vÃr entre aquelles Valachos que cheiravam a genebra. O seu desejo era leval-a para Fontainebleau, para um _cottage_ com trepadeiras de que fallava sempre, e esperar ahi tranquillamente a maioridade que lhe traria duas mil libras de renda. Decerto, era uma situaÃâo falsa: mas preferivel a permanecer n'aquelle meio depravado e brutal onde ella a cada instante cÃrava... A esse tempo a mamâ parcela ir perdendo todo o senso, desarranjada de nervos, quasi irresponsavel. As difficuldades crescentes estonteavam-n'a; brigava com as criadas; bebia champagne ´_pour s'Ãtourdir_ª. Para satisfazer as exigencias de Mr. de Trevernnes empenh·ra as suas joias, e quasi todos os dias chorava com ciumes d'elle. Por fim houve uma penhora: uma noite tiveram d'enfardelar · pressa roupa n'um sacco, e ir dormir a um hotel. E, peor, peor que tudo! Mr. de Trevernnes comeÃava a olhar para ella d'um modo que a assustava... --Minha pobre Maria! murmurou Carlos, pallido, agarrando-lhe as mâos. Ella permaneceu um momento suffocada, com o rosto cahido nos joelhos d'elle. Depois limpando as lagrimas que a ennevoavam: --Ahi estâo as cartas de Mac-Gren, n'esse cofre... Tenho-as guardado sempre para me justificar a mim mesma, se me à possivel... Pede-me em todas que v· para Fontainebleau; chama-me sua esposa; jura que apenas juntos iremos ajoelhar-nos diante da avÃ, obter a sua indulgencia... Mil promessas! E era sincero... Que queres que te diga? A mamâ uma manhâ partiu com uma sucia para Baden. Fiquei em Paris sÃ, n'um hotel... Tinha um palpite, um terror que Trevernnes apparecia... E eu sÃ! Estava tâo transtornada que pensei em comprar um rewolver... Mas quem veio foi Mac-Gren. E partira com elle, sem precipitaÃâo, como sua esposa, levando todas as suas malas. A mamâ de volta de Baden correu a Fontainebleau, desvairada e tragica, amaldiÃoando Mac-Gren, ameaÃando-o com a prisâo de Mazas, querendo esbofeteal-o; depois rompeu a chorar. Mac-Gren, como um bÃbÃ, agarrou-se a ella aos beijos, chorando tambem. A mamâ terminou por os apertar a ambos contra o coraÃâo, j· rendida, perdoando tudo, chamando-lhes ´filhos da sua almaª. Passou o dia em Fontainebleau, radiante, contando ´a patuscada de Badenª, j· com o plano de vir installar-se no _cottage_, viver junto d'elles n'uma felicidade calma e nobre de avÃsinha... Era em maio; Mac-Gren, · noite, deitou um ´fogo presoª no jardim. ComeÃou um anno quieto e facil. O seu unico desejo era que a mamâ vivesse com elles socegadamente. Diante das suas supplicas ella ficava pensativa, dizia: ´Tens razâo, veremos!ª Depois remergulhava no torvelinho de Paris, d'onde resurgia uma manhâ, n'um _fiacre_, estremunhada e afflicta, com uma rica pelliÃa sobre uma velha saia, a pedir-lhe cem francos... Por fim nascera Rosa. Toda a sua anciedade desde entâo fÃra legitimar a sua uniâo. Mas Mac-Gren adiava, levianamente, com um medo pueril da avÃ. Era um perfeito bÃbÃ! Entretinha as manhâs a caÃar passaros com visco! E ao mesmo tempo terrivelmente teimoso: ella pouco a pouco perdera-lhe todo o respeito. No comeÃo da primavera a mamâ um dia appareceu em Fontainebleau com as suas malas, succumbida, enojada da vida. Rompera emfim com Trevernnes. Mas quasi immediatamente se consolou: e comeÃou d'ahi a adorar Mac-Gren com uma tâo larga effusâo de caricias, e achando-o tâo lindo, que era ·s vezes embaraÃadora. Os dois passavam o dia, com copinhos de cognac, jogando o _bezigue_. De repente rebentou a guerra com a Prussia. Mac-Gren enthusiasmado, e apesar das supplicas d'ellas, corrÃra a alistar-se no batalhâo de Zuavos de Charette; a avà de resto approv·ra este rasgo d'amor pela FranÃa, e fizera-lhe n'uma carta em verso, em que celebrava Jeanne d'Arc, uma larga remessa de dinheiro. Por esse tempo Rosa teve o garrotilho. Ella, sem lhe largar o leito, mal attendia ·s noticias da guerra. Sabia apenas confusamente das primeiras batalhas perdidas na fronteira. Uma manhâ a mamâ rompeu-lhe no quarto, estonteada, em camisa: o exercito capitul·ra em SÃdan, o imperador estava prisioneiro! ´⦠o fim de tudo, à o fim de tudo!ª dizia a mamâ espavorida. Ella veio a Paris procurar noticias de Mac-Gren: na rua Royale teve de se refugiar n'um portâo, diante do tumulto d'um povo em delirio, acclamando, cantando a Marselheza, em torno de uma caleche onde ia um homem, pallido como cera, com um cache-nez escarlate ao pescoÃo. E um sujeito ao lado, aterrado, disse-lhe que o povo fÃra buscar Rochefort · prisâo e que estava, proclamada a Republica. Nada soubera de Mac-Gren. ComeÃaram entâo dias d'infinito sobresalto. Felizmente Rosa convalescia. Mas a pobre mamâ causava dÃ, envelhecida de repente, sombria, prostrada n'uma cadeira, murmurando apenas: ´⦠o fim de tudo, à o fim de tudo!ª E parecia na verdade o fim da FranÃa. Cada dia uma batalha perdida; regimentos presos, apinhados em wagons de gado, internados a todo o vapor para os presidios d'Allemanha; os prussianos marchando sobre Paris... Nâo podiam permanecer em Fontainebleau; o duro inverno comeÃava; e com o que venderam · pressa, com o dinheiro que Mac-Gren deix·ra, partiram para Londres. FÃra uma exigencia da mamâ. E em Londres ella, desorientada na enorme e estranha cidade, doente tambem, deix·ra-se levar pelas tontas idÃas da mâe. Tomaram uma casa mobilada, muito cara, nos bairros de luxo, ao pà de Mayfair. A mamâ fallava em organisar alli o centro de resistencia dos bonapartistas refugiados; no fundo, a desgraÃada pensava em crear uma casa de jogo em Londres. Mas ai! eram outros tempos... Os imperialistas, sem imperio, nâo jogavam j· o _baccarat_. E ellas em breve, sem rendimentos, gastando sempre, tinham-se achado com aquella dispendiosa casa, tres criados, contas colossaes e uma nota de cinco libras no fundo d'uma gaveta. E Mac-Gren mettido dentro de Paris, com meio milhâo de prussianos em redor. Foi necessario vender todas as joias, vestidos, atà as pelliÃas. Alugaram entâo, no bairro pobre de Soho, tres quartos mal mobilados. Era o _lodging_ de Londres em toda a sua suja, solitaria tristeza; uma criadita unica, enfarruscada como um trapo; alguns carvıes humidos fumegando mal na chaminÃ; e para jantar um pouco de carneiro frio e cerveja da esquina. Por fim falt·ra mesmo o escasso shilling para pagar o _lodging_. A mamâ nâo sahia do catre, doente, succumbida, chorando. Ella ·s vezes ao anoitecer, escondida n'um water-proof, levava ao _prÃgo_ embrulhos de roupa (atà roupa branca, atà camisas!) para que ao menos nâo faltasse a Rosa a sua chicara de leite. As cartas que a mamâ escrevia a alguns antigos companheiros de ceias na _Maison d'Or_ ficavam sem resposta: outras traziam, embrulhada n'um bocado de papel, alguma meia-libra que tinha o pavoroso sabor d'uma esmola. Uma noite, um sabbado de grande nevoeiro, indo empenhar um chambre de rendas da mamâ, perdera-se, err·ra na vasta Londres n'uma treva amarellada, a tiritar de frio, quasi com fome, perseguida por dois brutos que empestavam a alcool. Para lhes fugir atirou-se para dentro d'um _cab_ que a levou a casa. Mas nâo tinha um penny para pagar ao cocheiro; e a patrÃa roncava no seu cacifro, bebeda. O homem resmungou; ella, succumbida, alli mesmo na porta rompeu a chorar. Entâo o cocheiro desceu da almofada, commovido, offereceu-se para a levar de graÃa ao _prÃgo_, onde ajustariam as suas contas. Foi; o pobre homem sà aceitou um _schilling_; atà mesmo suppondo-a franceza grunhiu blasphemias contra os prussianos, e teimou em lhe offerecer uma bebida. Ella no emtanto procurava uma occupaÃâo qualquer costura, bordados, traducÃıes, cÃpias de manuscriptos... Nâo achava nada. N'aquelle duro inverno o trabalho escasseava em Londres; surgira uma multidâo de francezes, pobres como ella, luctando pelo pâo... A mamâ nâo cessava de chorar; e havia alguma coisa mais terrivel que as suas lagrimas--eram as suas allusıes constantes · facilidade de se ter em Londres dinheiro, conforto e luxo, quando se à nova e se à bonita... --Que te parece esta vida, meu amor? exclamou ella, apertando as mâos amargamente. Carlos beijou-a em silencio, com os olhos humedecidos. --Emfim tudo passou, continuou Maria Eduarda. Fez-se a paz, o cÃrco acabou. Paris estava de novo aberto... SÃmente a difficuldade era voltar. --Como voltaste? Um dia por acaso, em Regent-Street, encontr·ra um amigo de Mac-Gren, outro irlandez, que muitas vezes jant·ra com elles em Fontainebleau. Veio vÃl-as a Soho; diante d'aquella miseria, do bule de ch· aguado, dos ossos de carneiro requentando sobre tres brazas mortas, comeÃou, como bom irlandez, por accusar o governo d'Inglaterra e jurar uma desforra de sangue. Depois offereceu, com os beiÃos j· a tremer, toda a sua dedicaÃâo. O pobre rapaz batia tambem o lagedo n'uma lucta tormentosa pela vida. Mas era irlandez; e partiu logo generosamente, armado de todos os seus ardis, a conquistar atravÃs de Londres o pouco que ellas necessitavam para recolher a FranÃa. Com effeito appareceu n'essa mesma noite, derreado e triumphante, brandindo tres notas de banco e uma garrafa de _champagne_. A mamâ ao vÃr, depois de tantos mezes de ch· preto, a garrafa de _Clicquot_ encarapuÃada de ouro--quasi desmaiou, de enternecimento. Enfardelaram os trapos. Ao partirem, na estaÃâo de _Charing-Cross_, o irlandez levou-a para um canto, e engasgado, torcendo os bigodes, disse-lhe que Mac-Gren tinha morrido na batalha de Saint-Privat... --Para que te hei de eu contar o resto? Em Paris recomecei a procurar trabalho. Mas tudo estava ainda em confusâo... Quasi immediatamente veio a Communa... PÃdes acreditar que muitas vezes tivemos fome. Mas emfim j· nâo era Londres, nem o inverno, nem o exilio. Estavamos em Paris, soffriamos de companhia com amigos d'outros tempos. J· nâo parecia tâo terrivel... Com todas estas privaÃıes a pobre Rosa comeÃava a definhar... Era um supplicio vÃl-a perder as cÃres, tristinha, mal vestida, mettida n'uma trapeira... A mamâ j· se queixava da doenÃa de coraÃâo que a matou... O trabalho que eu encontrava, mal pago, dava-nos apenas para a renda da casa, e para nâo morrer absolutamente de necessidade... Principiei a adoecer de anciedade, de desespero. Luctei ainda. A mamâ fazia dÃ. E Rosa morria se nâo tivesse outro regimen, bom ar, algum conforto... Conheci entâo Castro Gomes em casa d'uma antiga amiga da mamâ, que nâo perdera nada com a guerra, nem com os prussianos, e que me dava trabalhos de costura... E o resto s·bel-o... Nem eu me lembro... Fui levada... Via ·s vezes Rosa, coitadinha, embrulhada n'um chale, muito quietinha ao seu canto, depois de rapada a sua magra tigela de sopas, e ainda com fome... Nâo pÃde continuar; rompeu a chorar, cahida sobre os joelhos de Carlos. E elle na sua emoÃâo sà lhe podia dizer, passando-lhe as mâos tremulas pelos cabellos, que a havia de desforrar bem de todas as miserias passadas... --Escuta ainda, murmurou ella, limpando as lagrimas. Ha sà uma coisa mais que te quero dizer. E à a santa verdade, juro-te pela alma de Rosa! ⦠que n'estas duas relaÃıes que tive o meu coraÃâo conservou-se adormecido... Dormiu sempre, sempre, sem sentir nada, sem desejar nada, atà que te vi... E ainda te quero dizer outra coisa... Um momento hesitou, coberta de rubor. Pass·ra os braÃos em torno de Carlos, pendurada toda d'elle, com os olhos mergulhados nos seus. E foi mais baixo que balbuciou na derradeira, na absoluta confissâo de todo o seu sÃr: --AlÃm de ter o coraÃâo adormecido, o meu corpo permaneceu sempre frio, frio como um marmore... Elle estreitou-a a si arrebatadamente: e os seus labios ficaram collados muito tempo, em silencio, completando, n'uma emoÃâo nova e quasi virginal, a communhâo perfeita das suas almas. D'ahi a dias Carlos e Ega vinham n'uma victoria, pela estrada dos Olivaes, em caminho da _Toca_. Toda essa manhâ, no Ramalhete, Carlos estivera emfim contando ao Ega o impulso de paixâo que o lan÷ra de novo e para sempre, como esposo, nos braÃos de Maria; e, na confianÃa absoluta que o prendia ao Ega, revel·ra-lhe mesmo miudamente a historia d'ella, dolorosa e justificadora. Depois, ao acalmar o calor, propoz que fossem comer as sopas · _Toca_. Ega deu uma volta pelo quarto, hesitando. Por fim comeÃou a passar devagar a escova pelo paletot, murmurando, como durante as longas confidencias de Carlos: ´⦠prodigioso!... Que estranha coisa, a vida!ª E agora pela estrada, na aragem dÃce do rio, Carlos fallava ainda de Maria, da vida na _Toca_, deixando escapar do coraÃâo muito cheio o interminavel cantico da sua felicidade. --⦠facto, Egasinho, conheÃo quasi a felicidade perfeita! --E c· na _Toca_ ainda ninguem sabe nada? Ninguem--a nâo ser Melanie, a confidente--suspeitava a profunda alteraÃâo que se fizera nas suas relaÃıes: e tinham assentado que miss Sarah e o Domingos, primeiras testemunhas da sua amizade, seriam rÃgiamente recompensados e despedidos quando em fins de outubro elles partissem para Italia. --E ides entâo casar a Roma?... --Sim... Em qualquer logar onde haja um altar e uma estola. Isso nâo falta em Italia... E à entâo, Ega, que reapparece o espinho de toda esta felicidade. ⦠por isso que eu disse ´quasi.ª O terrivel espinho, o avÃ! --⦠verdade, o velho Affonso. Tu nâo tens idÃa como lhe has de fazer conhecer esse caso?... Carlos nâo tinha idÃa nenhuma. Sentia sà que lhe faltava absolutamente a coragem de dizer ao avÃ: ´esta mulher, com quem vou casar, teve na sua vida estes errosª... E alÃm d'isso, j· reflectira, era inutil. O avà nunca comprehenderia os motivos complicados, fataes, inilludiveis que tinham arrastado Maria. Se lh'os contasse miudamente--o avà veria alli um romance confuso e fragil, antipathico · sua natureza forte e candida. A fealdade das culpas feril-o-hia, exclusivamente; e nâo lhe deixaria apreciar, com serenidade, a irresistibilidade das causas. Para perceber este caso d'um caracter nobre apanhado dentro d'uma implacavel rede de fatalidades, seria necessario um espirito mais ductil, mais mundano que o do avÃ... O velho Affonso era um bloco de granito: nâo se podiam esperar d'elle as subtis discriminaÃıes d'um casuista moderno. Da existencia de Maria sà veria o facto tangivel:--cahira successivamente nos braÃos de dois homens. E d'ahi decorreria toda a sua attitude de chefe de familia. Para que havia elle pois de fazer ao velho uma confissâo, que necessariamente originaria um conflicto de sentimentos e uma irreparavel separaÃâo domestica?... --Pois nâo te parece, Ega? --Falla mais baixo, olha o cocheiro. --Nâo percebe bem o portuguez, sobretudo o nosso estylo... Pois nâo te parece? Ega raspava phosphoros na sola para accender o charuto. E resmungava: --Sim, o velho Affonso à granitico... Por isso Carlos concebera outro plano, mais sagaz: consistia em esconder ao avà o passado de Maria--e fazer-lhe conhecer a pessoa de Maria. Casavam secretamente em Italia. Regressavam: ella para a rua de S. Francisco, elle filialmente para o Ramalhete. Depois Carlos levava o avà a casa da sua boa amiga, que conhecera em Italia, M.^{me} de Mac-Gren. Para o prender logo l· estavam os encantos de Maria, todas as graÃas d'um interior delicado e sÃrio, jantarinhos perfeitos, idÃas justas, Chopin, Beethoven, etc. E, para completar a conquista de quem tâo enternecidamente adorava crianÃas, l· estava Rosa... Emfim, quando o avà estivesse namorado de Maria, da pequena, de tudo--elle, uma manhâ, dizia-lhe francamente: ´Esta creatura superior e adoravel teve uma quÃda no seu passado; mas eu casei com ella; e, sendo tal como Ã, nâo fiz bem, apesar de tudo, em a escolher para minha esposa?ª E o avÃ, perante esta terrivel irremediabilidade do facto consummado, com toda a sua indulgencia de velho enternecido a defender Maria--seria o primeiro a pensar que, se esse casamento nâo era o melhor segundo as regras do mundo, era decerto o melhor segundo os interesses do coraÃâo... --Pois nâo te parece, Ega? Ega, absorvido, sacudia a cinza do charuto. E pensava que Carlos, em resumo, adopt·ra para com o avà a complicada combinaÃâo que Maria Eduarda tent·ra para com elle--e imitava sem o sentir os subtis raciocinios d'ella. --E acabou-se, continuava Carlos. Se elle na sua indulgencia aceitar tudo, bravo! d·-se uma grande festa no Ramalhete... Senâo, foi-se! passaremos a viver cada um para seu lado, fazendo ambos prevalecer a superioridade de duas coisas excellentes: o avà as tradiÃıes do sangue, eu os direitos do coraÃâo. E, vendo o Ega ainda silencioso: --Que te parece? Dize l·. Tu andas tâo falto de idÃas, homem! O outro sacudiu a cabeÃa, como despertando. --Queres que te diga o que me parece, com franqueza? Que diabo, nÃs somos dois homens fallando como homens!... Entâo aqui est·: teu avà tem quasi oitenta annos, tu tens vinte e sete ou o quer que seja... ⦠doloroso dizel-o, ninguem o diz com mais dÃr que eu, mas teu avà ha de morrer... Pois bem, espera atà l·. Nâo cases. Suppıe que ella tem um pae muito velho, teimoso e caturra, que detesta o snr. Carlos da Maia e a sua barba em bico. Espera; continËa a vir · _Toca_, na tipoia do Mulato; e deixa teu avà acabar a sua velhice calma, sem desillusıes e sem desgostos... Carlos torcia o bigode, mudo, enterrado no fundo da victoria. Nunca, n'esses dias de inquietaÃâo, lhe acudira idÃa tâo sensata, tâo facil! Sim, era isso, esperar! Que melhor dever do que poupar ao pobre avà toda a dÃr?... Maria de certo, como mulher, estava desejando anciosamente a conversâo do amante no marido pelo laÃo d'estola que tudo purifica e nenhuma forÃa desata. Mas ella mesma preferiria uma consagraÃâo legal--que nâo fosse assim precipitada, dissimulada... Depois, tâo recta e generosa, comprehenderia bem a obrigaÃâo suprema de nâo mortificar aquelle santo velho. De resto, nâo conhecia ella a sua lealdade solida e pura como um diamante? Recebera a sua palavra: desde esse momento estavam casados, nâo diante do sacrario e nos registos da sacristia--mas diante da honra e na inabalavel communhâo dos seus coraÃıes... --Tens razâo! gritou por fim, batendo no joelho do Ega. Tens immensamente razâo! Essa idÃa à genial! Devo esperar... E emquanto espero?... --Como, emquanto esperas? acudiu Ega, rindo. Que diabo! Isso nâo à commigo! E mais sÃrio: --Emquanto esperas tens esse metal vil que faz a existencia nobre. Installas tua mulher, porque desde hoje à tua mulher, aqui nos Olivaes ou n'outro sitio, com o gosto, o conforto e a dignidade que competem a tua mulher... E deixas-te ir! Nada impede que faÃaes essa viagem nupcial · Italia... Voltas, continËas a fumar a tua _cigarette_ e a deixar-te ir. Este à o bom senso: à assim que pensaria o grande Sancho Pansa... Que diabo tens tu n'aquelle embrulho que cheira tâo bem? --Um ananaz... Pois à isso, querido: esperar, deixar-me ir. ⦠uma idÃa! Uma idÃa! e a mais grata ao temperamento de Carlos. Para que iria com effeito enredar-se n'uma meada de amarguras domesticas, por um excesso de cavalheirismo romantico? Maria confiava n'elle; era rico, era moÃo; o mundo abria-se ante elles facil e cheio de indulgencias. Nâo tinha senâo a deixar-se ir. --Tens razâo, Ega! E Maria à a primeira a achar isto cheio de senso e d'_opportunismo_. Eu tenho uma certa pena em adiar a installaÃâo da minha vida e do meu _home_. Mas, acabou-se! Antes de tudo que o avà seja feliz... E para celebrar o advento d'esta idÃa, Deus queira que Maria nos tenha um bom jantar! Agora, ao aproximar-se da _Toca_, Ega ia receando o primeiro encontro com Maria Eduarda. Incommodava-o esse enleio, esse rubor que ella nâo poderia occultar--certa que, como confidente de Carlos, elle conhecia a sua vida, as suas miserias, as suas relaÃıes com Castro Gomes. Por isso hesit·ra em vir · _Toca_. Mas tambem, nâo apparecer mais a Maria Eduarda seria marcar com um relevo quasi offensivo o desejo caridoso de nâo molestar o seu pudor... Por isso decidira ´dar o mergulho d'uma vezª. Quem, senâo elle, deveria ser o mais apressado em estender a mâo · noiva de Carlos?... AlÃm d'isso tinha uma infinita curiosidade de vÃr no seu interior, · sua mesa, essa creatura tâo bella, com a sua graÃa nobre de Deusa moderna! Mas saltou da victoria muito embaraÃado. Por fim tudo se passou com uma facilidade risonha. Maria bordava, sentada nos degraus do jardim. Teve um sobresalto, cÃrou toda, com effeito, ao avistar o Ega que procurava atarantadamente o monoculo: o aperto de mâo que trocaram foi mudo e timido: mas Carlos, alegremente, desembrulh·ra o ananaz--e na admiraÃâo d'elle todo o constrangimento se dissipou. --Oh! à magnifico! --Que cÃr, que luxo de tons! --E que aroma! Veio perfumando toda a estrada. Ega nâo volt·ra · _Toca_ desde a noite fatal da _soirÃe_ dos Cohens em que elle alli tanto bebera e delir·ra tanto. E lembrou logo a Carlos a jornada na velha traquitana, debaixo d'um temporal, o _grog_ do Craft, a ceia de perË... --J· aqui soffri muito, minha senhora, vestido de Mephistopheles!... --Por causa de Margarida? --Por quem se ha de soffrer n'este apaixonado mundo, minha senhora, senâo por Margarida ou por Fausto? Mas Carlos quiz que elle admirasse os esplendores novos da _Toca_. E foi j· com familiaridade que Maria o levou pelas salas, lamentando que sà viesse assim · _Toca_ no fim do verâo e no fim das flÃres. Ega extasiou-se ruidosamente. Emfim, perdera a _Toca_ o seu ar regelado e triste de museu! J· alli se podia palrar livremente! --Isto à um barbaro, Maria! exclamava Carlos radiante. Tem horror · arte! ⦠um Ibero, à um Semita... Semita? Ega prezava-se de ser um luminoso Aryano! E por isso mesmo nâo podia viver n'uma casa, em que cada cadeira tinha a solemnidade sorumbatica de antepassados com cabelleira... --Mas, dizia Maria rindo, rodas estas lindas coisas do seculo dezoito lembram antes a ligeireza, o espirito, a graÃa de maneiras... --V. exc.^a acha? acudiu Ega. A mim todos esses dourados, esses enramalhetados, esses rococÃs lembram-me uma vivacidade estouvada e sirigaita... Nada! nÃs vivemos n'uma Democracia! E nâo ha para exprimir a alegria simples, sÃlida e bonacheirona da Democracia, como largas poltronas de marroquim, e o mogno envernizado!... Assim n'uma risonha, ligeira discussâo sobre bric-â¡-brac, desceram ao jardim. Miss Sarah passeava entre o buxo, de olhos baixos, com um livro fechado na mâo. Ega, que conhecia j· os seus ardores nocturnos, cravou-lhe sÃfregamente o monoculo; e emquanto Maria se abaix·ra a cortar um geranio, exprimiu a Carlos n'um gesto mudo a sua admiraÃâo por aquelle beicinho escarlate, aquelle seiosinho redondo de rola farta... Depois, ao fundo, junto do caramanchâo, encontraram Rosa que se balouÃava. Ega pareceu deslumbrado com a sua belleza, a sua frescura mate de camelia branca. Pediu-lhe um beijo. Ella exigiu primeiro, muito sÃria, que elle tirasse o vidro do olho. --Mas à para te vÃr melhor! à para te vÃr melhor!... --Entâo porque nâo trazes um em cada olho? Assim sà me vÃs metade... Encantadora! encantadora! murmurava Ega. No fundo achava a pequena espevitada e impudente. Maria resplandecia. E o jantar alargou mais esta intimidade risonha. Carlos, logo · sopa, fallando-se de campo e d'um _chalet_ que elle desejava construir em Cintra, nos Capuchos, dissera--´quando nos casarmosª. E Ega alludiu a esse futuro do modo mais grato ao coraÃâo de Maria. Agora que Carlos se installava para sempre n'uma felicidade estavel (dizia elle) era necessario trabalhar! E relembrou entâo a sua velha idÃa do Cenaculo, representado por uma _Revista_ que dirigisse a litteratura, educasse o gosto, elevasse a politica, fizesse a civilisaÃâo, remoÃasse o carunchoso Portugal... Carlos, pelo seu espirito, pela sua fortuna (atà pela sua figura, ajuntava o Ega rindo) devia tomar a direcÃâo d'este movimento. E que profunda alegria para o velho Affonso da Maia! Maria escutava, presa e sÃria. Sentia bem quanto Carlos, com uma vida toda de intelligencia e de actividade, rehabilitaria supremamente aquella uniâo mostrando-lhe a influencia fecunda e purificadora. --Tem razâo, tem bem razâo! exclamava ella com ardor. --Sem contar, acrescentava o Ega, que o paiz precisa de nÃs! Como muito bem diz o nosso querido e imbecilissimo Gouvarinho, o paiz nâo tem pessoal... Como ha de tel-o, se nÃs, que possuimos as aptidıes, nos contentamos em governar os nossos dog-carts e escrever a vida intima dos atomos? Sou eu, minha senhora, sou eu que ando a escrever essa biographia d'um atomo!... No fim, este dilettantismo à absurdo. Clamamos por ahi, em botequins e livros, ´que o paiz à uma choldraª. Mas que diabo! Porque à que nâo trabalhamos para o refundir, o refazer ao nosso gosto e pelo molde perfeito das nossas idÃas?... V. exc.^a nâo conhece este paiz, minha senhora. ⦠admiravel! ⦠uma pouca de cera inerte de primeira qualidade. A questâo toda est· em quem a trabalha. Atà aqui a cera tem estado em mâos brutas, banaes, toscas, reles, rotineiras... ⦠necessario pÃl-a em mâos d'artistas, nas nossas. Vamos fazer d'isto um _bijou_!... Carlos ria, preparando n'uma travessa o ananaz com sumo de laranja e vinho da Madeira. Mas Maria nâo queria que elle risse. A idÃa do Ega parecia-lhe superior, inspirada n'um alto dever. Quasi tinha remorsos, dizia ella, d'aquella preguiÃa de Carlos. E agora, que ia ser cercado de affeiÃâo serena, queria-o vÃr trabalhar, mostrar-se, dominar... --Com effeito, disse o Ega recostado e sorrindo, a era do romance findou. E agora... Mas o Domingos servia o ananaz. E o Ega provou e rompeu em clamores de enthusiasmo. Oh que maravilha! Oh que delicia! --Como fazes tu isto? Com Madeira... --E genio! exclamou Carlos. Delicioso, nâo à verdade? Ora digam-me se tudo o que eu pudesse fazer pela civilisaÃâo valeria este prato de ananaz! ⦠para estas coisas que eu vivo! Eu nâo nasci para fazer civilisaÃâo... --Nasceste, acudiu o Ega, para colher as flÃres d'essa planta da civilisaÃâo que a multidâo rega com o seu suor! No fundo tambem eu, menino! Nâo, nâo! Maria nâo queria que fallassem assim! --Esses ditos estragam tudo. E o snr. Ega, em logar de corromper Carlos, devia inspiral-o... Ega protestou requebrando o olho, j· languido. Se Carlos necessitava uma musa inspiradora e benefica--nâo podia ser elle, bicho com barbas e bacharel em leis... A musa estava _toute trouvÃe_! --Ah, com effeito!... Quantas paginas bellas, quantas nobres idÃas se nâo podem produzir n'um paraiso d'estes!... E o seu gesto molle e acariciador indicava a _Toca_, a quietaÃâo dos arvoredos, a belleza de Maria. Depois na sala, emquanto Maria tocava um nocturno de Chopin e Carlos e elle acabavam os charutos · porta do jardim vendo nascer a lua--Ega declarou que, desde o comeÃo do jantar, estava com idÃas de casar!... Realmente nâo havia nada como o casamento, o interior, o ninho... --Quando penso, menino, murmurou elle mordendo sombriamente o charuto, que quasi todo um anno da minha vida foi dado ·quella israelita devassa que gosta de levar bordoada... --Que faz ella em Cintra? perguntou Carlos. --Ensopa-se na crapula. Nâo ha a menor duvida que d· todo o seu coraÃâo ao Damaso... Tu sabes o que n'estes casos significa o termo _coraÃâo_... Viste j· immundicie igual? ⦠simplesmente obscena! --E tu adÃral-a, disse Carlos. O outro nâo respondeu. Depois, dentro, n'um odio repentino da bohemia e do romantismo, entoou louvores sonoros · familia, ao trabalho, aos altos deveres humanos--bebendo copinhos de cognac. ¡ meia noite, ao sahir, tropeÃou duas vezes na rua d'acacias, j· vago, citando Proudhon. E quando Carlos o ajudou a subir para a victoria, que elle quiz descoberta para ir communicando com a lua, Ega ainda lhe agarrou o braÃo para lhe fallar da _Revista_, d'um forte vento de espiritualidade e de virtude viril que se devia fazer soprar sobre o paiz... Por fim, j· estirado no assento, tirando o chapÃo · aragem da noite: --E outra coisa, Carlinhos. Và se me arranjas a ingleza... Ha vicios deliciosos n'aquellas pestanas baixas... Và se m'a arranjas... V· l·, bate l·, cocheiro! Caramba, que belleza de noite! Carlos fic·ra encantado com este primeiro jantar d'amizade na _Toca_. Elle tencionava nâo apresentar Maria aos seus intimos senâo depois de casado e · volta de Italia. Mas agora a ´uniâo legalª estava j· no seu pensamento adiada, remota, quasi dispersa no vago. Como dizia o Ega, devia esperar, deixar-se ir... E no emtanto, Maria e elle nâo poderiam isolar-se alli todo um longo inverno, sem o calor sociavel d'alguns amigos em redor. Por isso uma manhâ, encontrando o Cruges, que fÃra o visinho de Maria e outr'ora lhe dava noticias da ´lady inglezaª, pediu-lhe para vir jantar · _Toca_ no domingo. O maestro appareceu n'uma tipoia, · tardinha, de laÃo branco e de casaca: e os fatos claros de campo com que encontrou Carlos e Ega comeÃaram logo a enchel-o de mal-estar. Toda a mulher, alÃm das Lolas e Conchas, o atarantava, o emmudecia: Maria, ´com o seu porte de _grande-dame_ª, como elle dizia, intimidou-o a tal ponto que ficou diante d'ella, sem uma palavra, escarlate, torcendo o forro das algibeiras. Antes de jantar, por lembranÃa de Carlos, foram-lhe mostrar a quinta. O pobre maestro, roÃando a casaca mal feita pela folhagem dos arbustos, fazia esforÃos anciosos por murmurar algum elogio ´· belleza do sitioª; mas escapavam-lhe entâo inexplicavelmente coisas reles, em calâo: ´vista catitaª! ´à pitadaª! Depois ficava furioso, coberto de suor, sem comprehender como se lhe babavam dos labios esses ditos abominaveis, tâo contrarios ao seu gosto fino d'artista. Quando se sentou · mesa soffria um negrissimo accesso de _spleen_ e mudez! Nem uma controversia que Maria arranj·ra caridosamente para elle sobre Wagner e Verdi pÃde descerrar-lhe os labios empedernidos. Carlos ainda tentou envolvel-o na alegria da mesa--contando a ida a Cintra, quando elle procurava Maria na Lawrence, e em vez d'ella ach·ra uma matrona obesa, de bigode, de câosinho ao collo, ralhando com o homem em hespanhol. Mas a cada exclamaÃâo de Carlos--´Lembras-te, Cruges?ª, ´Nâo à verdade, Cruges?ª--o maestro, rubro, grunhia apenas um _sim_ avaro. Terminou por estar alli, ao lado de Maria, como um trambolho funebre. Estragou o jantar. Combin·ra-se para depois do cafà um passeio pelos arredores, n'um break. E Carlos j· tom·ra as guias, Maria na almofada acabava de abotoar as luvas--quando Ega, que receava a friagem da tarde, saltou do break, correu a buscar o paletot. N'esse mesmo momento sentiram um trote de cavallo na estrada--e appareceu o marquez. Foi uma surpreza para Carlos, que o nâo vira durante esse verâo. O marquez parou logo, tirando profundamente, ao vÃr Maria, o seu largo chapÃo desabado. --Imaginava-o pela Gollegâ! exclamou Carlos. Foi atà o Cruges que me disse... Quando chegou vossÃ? Cheg·ra na vespera. L· fÃra ao Ramalhete; tudo deserto. Agora vinha aos Olivaes vÃr um dos Vargas que tinha casado, se install·ra alli perto, a passar o noivado... --Quem, o gordo, o das corridas? --Nâo, o magro, o das regatas. Carlos, debruÃado da almofada, examinava a egoasita do marquez, pequena, bem estampada, d'um baio escuro e bonito. --Isso à novo? --Uma facasita do Darque... Quer-m'a vossà comprar? Sou j· um pouco pesado para ella, e isto mette-se a um dog-cart... --Dà l· uma volta. O marquez deu a volta, bem posto na sella, avantajando a egoa. Carlos achou-lhe ´boas acÃıesª. Maria murmurou--´Muito bonita, uma cabeÃa fina...ª Entâo Carlos apresentou o marquez de Souzella a madame Mac-Gren. Elle chegou a egoa · roda, descoberto, para apertar a mâo a Maria: e · espera do Ega que se eternisava l· dentro, ficaram fallando do verâo, de Santa Olavia, dos Olivaes, da _Toca_... Ha que tempos o marquez alli nâo passava! A ultima vez fÃra victima da excentricidade do Craft... --Imagine v. exc.^a, disse elle a Maria Eduarda, que esse Craft me convida a almoÃar. Venho, e o hortelâo diz-me que o snr. Craft, criado e cozinheiro, tudo partira para o Porto; mas que o snr. Craft deix·ra um cartaz na sala... Vou · sala, e vejo dependurado ao pescoÃo d'um idolo japonez uma folha de papel com estas palavras pouco mais ou menos: ´O deus Tchi tem a honra de convidar o snr. marquez, em nome de seu amo ausente, a passar · sala de jantar onde encontrar·, n'um aparador, queijo e vinho, que à o almoÃo que basta ao homem forte.ª E foi com effeito o meu almoÃo... Para nâo estar sÃ, partilhei-o com o hortelâo. --Espero que se tivesse vingado! exclamou Maria rindo. --PÃde crÃr, minha senhora... Convidei-o a jantar, e quando elle appareceu, vindo d'aqui da _Toca_, o meu guarda-portâo disse-lhe que o snr. marquez fÃra para longe, e que nâo havia nem pâo nem queijo... Resultado: o Craft mandou-me uma duzia de magnificas garrafas de Chambertin. Esse deus Tchi nunca mais o tornei a vÃr... O deus Tchi l· estava, obeso e medonho. E, muito naturalmente, Carlos convidou o marquez a revisitar n'essa noite, · volta da casa do Vargas, o seu velho amigo Tchi. O marquez veio, ·s dez horas--e foi um serâo encantador. Conseguiu sacudir logo a melancolia do Cruges, arrastando-o com mâo de ferro para o piano; Maria cantou; palrou-se com graÃa; e aquelle escondrijo d'amor ficou alumiado atà tarde, na sua primeira festa de amizade. Estas reuniıes alegres foram ao principio, como dizia o Ega, _dominicaes_: mas o outono arrefecia, bem depressa se despiriam as arvores da _Toca_, e Carlos accumulou-as duas vezes por semana, nos velhos dias feriados da Universidade, domingos e quintas. Tinha descoberto uma admiravel cozinheira alsaciana, educada nas grandes tradiÃıes, que servira o bispo de Strasburgo, e a quem as extravagancias d'um filho e outras desgraÃas tinham arrojado a Lisboa. Maria, de resto, punha na composiÃâo dos seus jantares uma sciencia delicada: o dia de vir · _Toca_ era considerado pelo marquez ´dia de civilisaÃâoª. A mesa resplandecia; e as tapeÃarias representando massas d'arvoredos punham em redor como a sombra escura d'um retiro silvestre onde por um capricho se tivessem accendido candelabros de prata. Os vinhos sahiam da frasqueira preciosa do Ramalhete. De todas as coisas da terra e do cÃo se grulhava com phantasia--menos de ´politica portuguezaª, considerada conversa indecorosa entre pessoas de gosto. Rosa apparecia ao cafÃ, exhalando do seu sorriso, dos bracinhos nËs, dos vestidos brancos tufados sobre as meias de sÃda preta, um bom aroma de flÃr. O marquez adorava-a, disputando-a ao Ega, que a pedira a Maria em casamento e lhe andava compondo havia tempo um soneto. Ella preferia o marquez: achava o Ega ´muito...ª--e completava o seu pensamento com um gestosinho do dedo ondeado no ar, como a exprimir que o Ega ´era muito retorcidoª. --Ahi est·! exclamava elle. Porque eu sou mais civilisado que o outro! ⦠a simplicidade nâo comprehendendo o requinte. --Nâo, desgraÃado! exclamavam do lado. ⦠porque Ãs impresso!... ⦠a natureza repellindo a convenÃâo!... Bebia-se · saude de Maria: ella sorria, feliz entre os seus novos amigos, divinamente bella, quasi sempre de escuro, com um curto decote onde resplandecia o incomparavel esplendor do seu collo. Depois organisaram-se solemnidades. N'um domingo, em que os sinos repicavam e a distancia foguetes esfuziavam no ar--Ega lamentou que os seus austeros principios philosophicos o impedissem de festejar tambem aquelle santo d'aldeia, que fÃra decerto em vida um caturra encantador, cheio d'illusıes e doÃura... Mas de resto, acrescentou, nâo teria sido n'um dia assim, fino e secco, sob um grande cÃo cheio de sol, que se feriu a batalha das Thermopylas? Porque nâo se atiraria uma girandola de foguetes em honra de Leonidas e dos trezentos? E atirou-se a girandola pela eterna gloria de Sparta. Depois celebraram-se outras datas historicas. O anniversario da descoberta da Venus de Milo foi commemorado com um balâo que ardeu. N'outra occasiâo o marquez trouxe de Lisboa, apinhados n'uma tipoia, fadistas famosos, o _Pintado_, o _Vira-vira_ e o _Gago_: e depois de jantar, atà tarde, com o luar sobre o rio, cinco guitarras choraram os ais mais tristes dos fados de Portugal. Quando estavam sÃs, Carlos e Maria passavam as suas manhâs no kiosque japonez--affeiÃoados ·quelle primeiro retiro dos seus amores, pequeno e apertado, onde os seus coraÃıes batiam mais perto um do outro. Em logar das esteiras de palha Carlos revestira-o com as suas formosas colchas da India, cÃr de palha e cÃr de perola. Um dos maiores cuidados d'elle, agora, era embellezar a _Toca_: nunca voltava de Lisboa sem trazer alguma figurinha de Saxe, um marfim, uma faianÃa, como noivo feliz que aperfeiÃÃa o seu ninho. Maria no emtanto nâo cessava de lembrar os planos intellectuaes do Ega: queria que elle trabalhasse, ganhasse um nome: seria isso o orgulho intimo d'ella, e sobretudo a alegria suprema do avÃ. Para a contentar (mais que para satisfazer as suas necessidades de espirito) Carlos recome÷ra a compÃr alguns dos seus artigos de medicina litteraria para a _Gazeta Medica_. Trabalhava no kiosque, de manhâ. Trouxera para l· rascunhos, livros, o seu famoso manuscripto da _Medicina antiga e moderna_. E por fim ach·ra um grande encanto em estar alli, com um leve casaco de sÃda, as suas cigarettes ao lado, um fresco murmurio de arvoredo em redor--cinzelando as suas phrases, emquanto ella ao lado bordava silenciosa. As suas idÃas surgiam com mais originalidade, a sua fÃrma ganhava em colorido, n'aquelle estreito kiosque assetinado que ella perfumava com a sua presenÃa. Maria respeitava este trabalho como coisa nobre e sagrada. De manhâ, ella mesma espanejava os livros do leve pà que a aragem soprava pela janella; dispunha o papel branco, punha cuidadosamente pennas novas; e andava bordando uma almofada de pennas e setim para que o trabalhador estivesse mais confortavel na sua vasta cadeira de couro lavrado. Um dia offerecera-se a passar a limpo um artigo. Carlos, enthusiasmado com a letra d'ella, quasi comparavel · lendaria letra do Damaso, occupava-a agora incessantemente como copista, sentindo mais amor por um trabalho a que ella se associava. Quantos cuidados se dava a dÃce creatura! Tinha para isso um papel especial, d'um tom macio de marfim: e, com o dedinho no ar, ia desenrolando as pesadas consideraÃıes de Carlos sobre o Vitalismo e o Transformismo na graÃa delicada d'uma renda... Um beijo pagava-a de tudo. ¡s vezes Carlos dava liÃıes a Rosa--ora de historia, contando-lh'a familiarmente como um conto de fadas; ora de geographia, interessando-a pelas terras onde vivem gentes negras, e pelos velhos rios que correm entre as ruinas dos santuarios. Isto era o prazer mais alto de Maria. SÃria, muda, cheia de religiâo, escutava aquelle sÃr bem-amado ensinando sua filha. Deixava escapar das mâos o trabalho--e o interesse de Carlos, a enlevada attenÃâo de Rosa sentada aos pÃs d'elle, bebendo aquellas bellas historias de Joanna d'Arc ou das caravellas que foram · India, fazia resplandecer nos seus olhos uma nevoa de lagrimas felizes... Desde o meado d'outubro Affonso da Maia fallava da sua partida de Santa Olavia, retardada apenas por algumas obras que come÷ra na parte velha da casa e nas cocheiras: porque ultimamente invadira-o a paixâo de edificar--sentindo-se remoÃar, como elle dizia, no contacto das madeiras novas e no cheiro vivo das tintas. Carlos e Maria pensavam tambem em abandonar os Olivaes. Carlos nâo poderia por dever domestico permanecer alli installado desde que o avà recolhesse ao Ramalhete. AlÃm d'isso aquelle fim d'outono ia escuro e agreste; e a _Toca_ era agora pouco bucolica, com a quinta desfolhada e alagada, uma nevoa sobre o rio, e um fogâo unico no gabinete de cretones--alÃm da sumptuosa chaminà da sala de jantar, que, por entre os seus Nubios d'olhos de crystal, soltava uma fumaraÃa odiosa quando o Domingos a tentava accender. N'uma d'essas manhâs, Carlos, que fic·ra atà tarde com Maria, e depois no seu delgado casebre mal pudera dormir com um temporal de vento e agua desencadeado de madrugada--ergueu-se ·s nove horas, veio · _Toca_. As janellas do quarto de Maria conservavam-se ainda cerradas; a manhâ clare·ra; a quinta lavada, meio despida, no ar fino e azul, tinha uma linda e silenciosa graÃa d'inverno. Carlos passeava, olhando os vasos onde os chrysanthemos floriam, quando retiniu a sineta do portâo. Era o toque do carteiro. Justamente elle escrevera dias antes ao Cruges, perguntando se estaria desoccupado para os primeiros frios de dezembro o andar da rua de S. Francisco: e, esperando carta do maestro, foi abrir, acompanhado por _Niniche_. Mas o correio, n'essa manhâ, consistia apenas n'uma carta do Ega e dois numeros de jornal cintados--um para elle, outro para ´Madame Castro Gomes, na quinta do snr. Craft, aos Olivaesª. Caminhando sob as acacias, Carlos abriu a carta do Ega. Era da vespera, com a data ´· noite, · pressaª. E dizia: ´--LÃ, n'esse trapo que te mando, esse superior pedaÃo de prosa que lembra Tacito. Mas nâo te assustes; eu supprimi, mediante pecunia, toda a tiragem, com excepÃâo de dois numeros mais que foram, um para a _Toca_, outro (oh logica suprema dos habitos constitucionaes!) para o PaÃo, para o chefe do Estado!... Mas esse mesmo nâo chegar· ao seu destino. Em todo o caso desconfio de que esgÃto sahiu esse enxurro e precisamos providenciar! Vem j·! Espero-te atà ·s duas. E, como Iago dizia a Cassio--_mette dinheiro na bolsa_.ª Inquieto, Carlos descintou o jornal. Chamava-se a _Corneta do Diabo_: e na impressâo, no papel, na abundancia dos _italicos_, no typo gasto, todo elle revelava immundicie e malandrice. Logo na primeira pagina duas cruzes a lapis marcavam um artigo que Carlos, n'um relance, viu salpicado com o seu nome. E leu isto: ´--Ora viva, _sÃ_ Maia! Entâo j· se nâo vai ao consultorio, nem se vÃem os doentes do bairro, _sÃ_ janota?--Esta piada era botada no Chiado, · porta da Havaneza, ao Maia, ao Maia dos cavallos inglezes, um tal Maia do Ramalhete, que abarrota por ahi de _catita_; e o pai Paulino _que tem olho_ e que passava n'essa occasiâo ouviu a seguinte _cornetada_:--⦠que o _sÃ_ Maia acha _que à mais quente_ viver nas fraldas d'uma _brazileira casada_, que nem à brazileira nem à casada, e a quem o papalvo poz casa, ahi para o lado dos Olivaes, para _estar ao fresco_! Sempre os ha n'este mundo!... Pensa o homem que botou conquista; e c· a rapaziada de gosto ri-se, porque o que a gaja lhe quer nâo sâo os lindos olhos, sâo as lindas _louras_... O simplorio, que bate ahi pilecas _bifes_, que nem que fosse o _marquez_, o verdadeiro Marquez, imaginava que se estava abiscoitando com uma senhora do _chic_, e do boulevard de Paris, e casada, e titular!... E no fim (nâo, esta à para a gente deixar estoirar o bandulho a rir!) no fim descobre-se que a typa era uma _cocotte_ safada, que trouxe para ahi um brazileiro _j· farto d'ella_ para a passar c· aos bellos lusitanos... E cahiu a espiga ao Maia! Pobre palerma! Ainda assim o _sÃ_ Maia sà apanhou os restos d'outro, porque a _typa_, j· antes d'elle se enfeitar, tinha _pandegado · larga_, ahi para a rua de S. Francisco, com um rapaz da fina, que se safou tambem, porque c· como nÃs sà _aprecia a bella hespanhola_. Mas nâo obsta a que o _sÃ_ Maia seja traste!--Pois se assim Ã, dissemos nÃs, cautelinha, porque o diabo c· tem a sua _Corneta_ preparada para cornetear por esse mundo as faÃanhas do _Maia das conquistas_. Ora viva, _sÃ_ Maia!ª Carlos ficou immovel entre as acacias, com o jornal na mâo, no espanto furioso e mudo d'um homem que subitamente recebe na face uma grossa chapada de lÃdo! Nâo era a cÃlera de vÃr o seu amor assim aviltado na publicidade chula d'um jornal sordido: era o horror de sentir aquellas phrases em calâo, pandilhas, afadistadas, como sà Lisboa as pÃde crear, pingando fetidamente, · maneira de sebo, sobre si, sobre Maria, sobre o esplendor da sua paixâo... Sentia-se todo emporcalhado. E uma unica idÃa surgia atravÃs da sua confusâo--matar o bruto que escrevera aquillo. Matal-o! Ega sust·ra a tiragem da folha, Ega pois conhecia o folliculario. Nada importava que aquelles numeros, que tinha na mâo, fossem os unicos impressos. Recebera lama na face. Que a injuria fosse espalhada nas praÃas n'uma profusa publicidade ou lhe fosse atirada sà a elle escondidamente n'um papel unico, era igual... Quem tanto ous·ra tinha de cahir, esmagado! Decidiu ir logo ao Ramalhete. O Domingos · janella da cozinha areava pratas, assobiando. Mas quando Carlos lhe fallou de ir buscar um calhambeque aos Olivaes, o bom Domingos consultou o relogio: --V. exc.^a tem ·s onze horas a caleche do _Torto_ que a senhora mandou c· estar para ir a Lisboa... Carlos, com effeito, recordou-se que Maria na vespera plane·ra ir · Aline e aos livreiros. Uma contrariedade, justamente n'esse dia em que elle precisava ficar livre--elle e a sua bengala! Mas Melanie, passando entâo com um jarro d'agua quente, disse que a senhora ainda se nâo vestira, que talvez nem fosse a Lisboa... E Carlos recomeÃou a passear, no tapete de relva, entre as nogueiras. Sentou-se por fim no banco de cortiÃa, descintou a _Corneta_ sobrescriptada para Maria, releu lentamente a prosa immunda: e, n'esse numero que lhe fÃra destinado a ella, todo aquelle calâo lhe pareceu mais ultrajante, intoleravel, punivel sà com sangue. Era monstruoso, na verdade, que sobre uma mulher, quieta, innoffensiva no silencio da sua casa, alguem ousasse tâo brutalmente arremessar esse lÃdo ·s mâos cheias! E a sua indignaÃâo alargava-se do folliculario que bab·ra aquillo--atà · sociedade que, na sua decomposiÃâo, produzira o folliculario. Decerto toda a cidade soffria a sua vermina... Mas sà Lisboa, sà a horrivel Lisboa, com o seu apodrecimento moral, o seu rebaixamento social, a perda inteira do bom-senso, o desvio profundo do bom gosto, a sua pulhice e o seu calâo, podia produzir uma _Corneta do Diabo_. E, no meio d'esta alta cÃlera de moralista, uma dÃr perpassava, precisa e dilacerante. Sim, toda a sociedade de Lisboa fazia um monturo sordido n'este canto do mundo--mas, em summa, havia no artigo da _Corneta_ uma calumnia? Nâo. Era o passado de Maria, que ella arranc·ra de si como um vestido rÃto e sujo, que elle mesmo enterr·ra muito fundo, deitando-lhe por cima o seu amor e o seu nome--e que alguem desenterrava para o mostrar bem alto ao sol, com as suas manchas e os seus rasgıes... E isto agora ameaÃava para sempre a sua vida como um terror sobre ella suspenso. Debalde elle perdo·ra, debalde elle esquecera. O mundo em redor sabia. E a todo o tempo o interesse ou a perversidade poderiam refazer o artigo da _Corneta_. Ergueu-se, abalado. E entâo alli, sob essas arvores desfolhadas, onde durante o verâo, quando ellas se enchiam de sombra e de murmurio, elle passe·ra com Maria, esposa eleita da sua vida--Carlos perguntou pela vez primeira a si mesmo se a honra domestica, a honra social, a pureza dos homens de quem descendia, a dignidade dos homens que d'elle descendessem lhe permittiam em verdade casar com ella... Dedicar-lhe toda a sua affeiÃâo, toda a sua fortuna, certamente! Mas casar... E se tivesse um filho? O seu filho, j· homem, altivo e puro, poderia um dia lÃr n'uma _Corneta do Diabo_ que sua mâi fÃra amante d'um brazileiro, depois de ser amante d'um irlandez. E se seu filho lhe viesse gritar, n'uma bella indignaÃâo, ´à uma calumnia?ª--elle teria de baixar a cabeÃa, murmurar--´à uma verdade!ª E seu filho veria para sempre collada a si aquella mâi de quem o mundo ignorava os martyrios e os encantos--mas de quem conhecia cruelmente os erros. E ella mesma! Se elle appellasse para a sua razâo, alta e tâo recta, mostrando-lhe as zombarias e as affrontas de que uma vil _Corneta do Diabo_ poderia um dia trespassar o filho que d'elles nascesse--ella mesma o desligaria alegremente do seu voto, contente em entrar no Ramalhete pela escadinha secreta forrada de velludo cÃr de cereja, comtanto que em cima a esperasse um amor constante e forte... Nunca ella torn·ra, em todo o verâo, a alludir a uma uniâo differente d'essa em que os seus coraÃıes viviam tâo lealmente, tâo confortavelmente. Nâo, Maria nâo era uma devota, preoccupada ´do peccado mortalª! Que lhe podia importar a estola banal do padre?... Sim; mas elle que lhe pedira essa consagraÃâo na hora mais commovida do seu longo amor, iria dizer-lhe agora--´foi uma criancice, nâo pensemos mais n'isso, desculpa?ª Nâo; nem o seu coraÃâo o desejava! Antes pendia todo para ella... Pendia todo para ella, n'um enternecimento mais generoso e mais quente--emquanto a sua razâo assim arengava, cautelosa e austera. Elle tinha n'aquella alma o seu culto perfeito, n'aquelles braÃos a sua voluptuosidade magnifica; fÃra d'alli nâo havia felicidade; a unica sabedoria era prender-se a ella pelo derradeiro elo, o mais forte, o seu nome, embora as _Cornetas do Diabo_ atroassem todo o ar. E assim affrontaria o mundo n'uma soberba revolta, affirmando a omnipotencia, o reino unico da Paixâo... Mas primeiro mataria o folliculario!--Passeava, esmagava a relva. E todos os seus pensamentos se resolviam por fim em furia contra o infame que bab·ra sobre o seu amor, e durante um instante introduzia na sua vida tanta incerteza e tanto tormento! Maria ao lado abriu a janella. Estava vestida d'escuro para sahir; e bastou o brilho terno do seu sorriso, aquelles hombros a que o estofo justo modelava a belleza cheia e quente--para que Carlos detestasse logo as duvidas desleaes e covardes, a que se abandon·ra um momento sob as arvores desfolhadas... Correu para ella. O beijo que lhe deu, lento e mudo, teve a humildade d'um perdâo que se implora. --Que tens tu, que est·s tâo sÃrio? Elle sorriu. SÃrio, no sentido de solemne, nâo estava. Talvez seccado. Recebera uma carta do Ega, uma das eternas complicaÃıes do Ega. E precisava ir a Lisboa, ficar l· naturalmente toda a noite... --Toda a noite? exclamou ella com um desapontamento, pousando-lhe as mâos sobre os hombros. --Sim, à bem possivel, um horror! Nos negocios do Ega ha fatalmente o inesperado... Tu com effeito vaes a Lisboa? --Agora, com mais razâo... Se me queres. --O dia est· bonito... Mas ha de fazer frio na estrada. Maria justamente gostava d'esses dias d'inverno, cheios de sol, com um arzinho vivo e arripiado. Tornavam-n'a mais leve, mais esperta. --Bem, bem, disse Carlos atirando o cigarro. Vamos ao almoÃo, minha filha... O pobre Ega deve estar a uivar de impaciencia. Emquanto Maria correra a apressar o Domingos--Carlos, atravÃs da relva humida, foi ainda lentamente atà ao renque baixo d'arbustos que d'aquelle lado fechava a _Toca_ como uma sebe. Ahi a collina descia, com quintarolas, muros brancos, olivedos, uma grande chaminà de fabrica que fumegava: para alÃm era o azul fino e frio do rio: depois os montes, d'um azul mais carregado, com a casaria branca da povoaÃâo aninhada · beira da agua, nitida e suave na transparencia do ar macio. Parou um momento, olhando. E aquella aldeia de que nunca soubera o nome, tâo quieta e feliz na luz, deu a Carlos um desejo repentino de socego e de obscuridade, n'um canto assim do mundo, · beira d'agua, onde ninguem o conhecesse nem houvesse _Cornetas do Diabo_, e elle pudesse ter a paz d'um simples e d'um pobre debaixo de quatro telhas, no seio de quem amava... Maria gritou por elle da janella da sala de jantar, onde se debru÷ra a apanhar uma das ultimas rosas trepadeiras que ainda floriam. --Que lindo tempo para viajar, Maria!--disse Carlos chegando, atravÃs da relva. --Lisboa à tambem muito linda, agora, havendo sol... --Pois sim, mas o Chiado, a coscovilhice, os politiquetes, as gazetas, todos os horrores... A mim est·-me positivamente a appetecer uma cubata na Africa! O almoÃo, por fim, foi demorado. Ia bater uma hora quando a caleche do _Torto_ comeÃou a rolar na estrada, ainda encharcada da chuva da noite. Logo adiante da villa, na descida, cruzaram um coupà que trepava n'um trote esfalfado. Maria julgou avistar n'elle de relance o chapÃo branco e o monoculo do Ega... Pararam. E era com effeito o Ega, que reconhecera tambem a caleche da _Toca_, vinha j· saltitando as lamas com longas pernadas de cegonha, chamando por Carlos. Ao vÃr Maria ficou atrapalhado: --Que bella surpreza! Eu ia para l·... Vi o dia tâo bonito, disse commigo... --Bem, paga a tua tipoia, vem comnosco! atalhou Carlos que trespassava o Ega, com os olhos inquietos, querendo adivinhar o motivo d'aquella brusca chegada aos Olivaes. Quando entrou para a caleche, tendo pago o batedor, Ega, embaraÃado, sem poder desabafar diante de Maria sobre o caso da _Corneta_, comeÃou, sob os olhos de Carlos que o nâo deixavam, a fallar do inverno, das inundaÃıes do Riba-Tejo... Maria lÃra. Uma desgraÃa, duas crianÃas afogadas nos berÃos, gados perdidos, uma grande miseria! Por fim Carlos nâo se conteve: --Eu l· recebi a tua carta... Ega acudiu: --Arranja-se tudo! Est· tudo combinado! E com effeito eu nâo vim senâo por um sentimento bucolico... Muito discretamente Maria olh·ra para o rio. Ega fez entâo um gesto rapido com os dedos significando ´dinheiro, sà questâo de dinheiroª. Carlos socegou: e Ega voltou a fallar dos inundados do Riba-Tejo e do sarau litterario e artistico que em beneficio d'elles se ´ia commetterª no salâo da Trindade... Era uma vasta solemnidade official. Tenores do parlamento, rouxinoes da litteratura, pianistas ornados com o habito de S. Thiago, todo o pessoal canoro e sentimental do constitucionalismo _ia entrar em fogo_. Os reis assistiam, j· se teciam grinaldas de camelias para pendurar na sala. Elle, apesar de demagogo, fÃra convidado para lÃr um episodio das _Memorias d'um Atomo_: recus·ra-se, por modestia, por nâo encontrar nas _Memorias_ nada tâo sufficientemente palerma que agradasse · capital. Mas lembr·ra o Cruges; e o _maestro_ ia ribombar ou arrulhar uma das suas _MeditaÃıes_. AlÃm d'isso havia uma poesia social pelo Alencar. Emfim, tudo prenunciava uma immensa orgia... --E a snr.^a D. Maria, acrescentou elle, devia ir!... ⦠summamente pittoresco. Tinha v. exc.^a occasiâo de vÃr todo o Portugal romantico e liberal, _â¡ la besogne_, engravatado de branco, dando tudo que tem n'alma! --Com effeito devias ir, disse Carlos, rindo. Demais a mais se o Cruges toca, se o Alencar recita, à uma festa nossa... --Pois est· claro! gritou Ega, procurando o monoculo, j· excitado. Ha duas coisas que à necessario vÃr em Lisboa... Uma procissâo do Senhor dos Passos e um sarau poetico! Rolavam entâo pelo largo do Pelourinho. Carlos gritou ao cocheiro que parasse no comeÃo da rua do Alecrim: elles apeavam-se e tomavam de l· o americano para o Ramalhete. Mas a tipoia estacou antes da calÃada, rente ao passeio, em frente d'uma loja de alfaiate. E n'esse instante achava-se ahi parado, calÃando as suas luvas pretas, um velho alto, de longas barbas d'apostolo, todo vestido de luto. Ao vÃr Maria, que se inclin·ra · portinhola, o homem pareceu assombrado; depois, com uma leve cÃr na face larga e pallida, tirou gravemente o chapÃo, um immenso chapÃo de abas recurvas, · moda de 1830, carregado de crepe. --Quem Ã? perguntou Carlos. --⦠o tio do Damaso, o Guimarâes, disse Maria, que cÃr·ra tambem. ⦠curioso, elle aqui! Ah, sim! o famoso Mr. Guimarâes, o do _Rappel_, o intimo de Gambetta! Carlos recordava-se de ter j· encontrado aquelle patriarcha no Price com o Alencar. Comprimentou-o tambem; o outro ergueu de novo com uma gravidade maior o seu sombrio chapÃo de carbonario. Ega ental·ra vivamente o monoculo para examinar esse lendario tio do Damaso, que ajudava a governar a FranÃa: e depois de se despedirem de Maria, quando a caleche j· subia a rua do Alecrim e elles atravessavam para o Hotel Central, ainda se voltou seduzido por aquelles modos, aquellas barbas austeras de revolucionario... --Bom typo! E que magnifico chapÃo, hein! D'onde diabo o conhece a snr.^a D. Maria? --De Paris... Este Mr. Guimarâes era muito da mâi d'ella. A Maria j· me tinha fallado n'elle. ⦠um pobre diabo. Nem amigo de Gambetta, nem coisa nenhuma... Traduz noticias dos jornaes hespanhoes para o _Rappel_, e morre de fome... --Mas entâo, o Damaso? --O Damaso à um trapalhâo. Vamos nÃs ao nosso caso... Essa immundicie que me mandaste, a _Corneta_? Dize l·. Seguindo devagar pelo Aterro, Ega contou a historia da immundicie. FÃra na vespera · tarde que recebera no Ramalhete a _Corneta_. Elle j· conhecia o papelucho, j· priv·ra mesmo com o proprietario e redactor--o Palma, chamado Palma _Cavallâo_ para se distinguir d'outro benemerito chamado Palma _Cavallinho_. Comprehendeu logo que se a prosa era do Palma a inspiraÃâo era alheia. O Palma nada sabia de Carlos, nem de Maria, nem da casa da rua de S. Francisco, nem da _Toca_... Nâo era natural que escrevesse por deleite intellectual um documento que sà lhe podia render desgostos e bengaladas. O artigo, pois, fÃra-lhe simplesmente encommendado e pago. No terreno do dinheiro vence sempre quem tem mais dinheiro. Por este solido principio correra a procurar o Palma _Cavallâo_ no seu antro. --Tambem lhe conheces o antro? perguntou Carlos, com horror. --Tanto nâo... Fui perguntar · secretaria da JustiÃa a um sujeito que esteve associado com elle n'um negocio de _Almanachs religiosos_... FÃra pois ao antro. E encontr·ra as coisas dispostas pelas mâos habeis d'uma Providencia amiga. Primeiramente, depois de imprimir cinco ou seis numeros, a machina, esfalfada na pratica d'aquellas maroteiras, desmanch·ra-se. AlÃm d'isso o bom Palma estava furioso com o cavalheiro que lhe encommend·ra o artigo, por divergencia na seriissima questâo de pecunia. De sorte que apenas elle propÃz comprar a tiragem do jornal--o jornalista estendeu logo a mâo larga, d'unhas roÃdas, tremendo de reconhecimento e de esperanÃa. Dera-lhe cinco libras que tinha, e a promessa de mais dez... --⦠caro, mas que queres? continuou o Ega. Deixei-me atarantar, nâo regateei bastante... E emquanto a dizer quem à o cavalheiro que encommendou o artigo, o Palma, coitado, affirma que tem uma rapariga hespanhola a sustentar, que o senhorio lhe levantou o aluguer da casa, que Lisboa est· carissima, que a litteratura n'este desgraÃado paiz... --Quanto quer elle? --Cem mil reis. Mas, ameaÃando-o com a policia, talvez desÃa a quarenta. --Promette os cem, promette tudo, comtanto que eu tenha o nome... Quem te parece que seja? Ega encolheu os hombros, deu um risco lento no châo com a bengala. E mais lentamente ainda foi considerando que o inspirador da _Corneta_ devia ser alguem familiar com Castro Gomes; alguem frequentador da rua de S. Francisco; alguem conhecedor da _Toca_; alguem que tinha, por ciume ou vinganÃa, um desejo ferrenho de magoar Carlos; alguem que sabia a historia de Maria; e emfim alguem que era um covarde... --Est·s a descrever o Damaso! exclamou Carlos, pallido e parando. Ega encolheu de novo os hombros, tornou a riscar o châo: --Talvez nâo... Quem sabe! Emfim, nÃs vamos averigual-o com certeza, porque, para terminar a negociaÃâo, fiquei de me ir encontrar com o Palma ·s tres horas no _Lisbonense_... E o melhor à vires tambem. Trazes tu dinheiro? --Se fÃr o Damaso, mato-o! murmurou Carlos. E nâo trazia sufficiente dinheiro. Tomaram uma tipoia para correr ao escriptorio do VillaÃa. O procurador fÃra a Mafra, a um baptisado. Carlos teve de ir pedir cem mil reis ao velho Cortez, alfaiate do avÃ. Quando perto das quatro horas se apearam · entrada do _Lisbonense_, no largo de Santa Justa, o Palma no portal, com um jaquetâo de velludo coÃado e calÃa de casimira clara collada · cÃxa, accendia um cigarro. Estendeu logo rasgadamente a mâo a Carlos--que lhe nâo tocou. E Palma _Cavallâo_, sem se offender, com a mâo abandonada no ar, declarou que ia justamente sahir, canÃado j· de esperar em cima diante d'um _grog_ frio. De resto sentia que o snr. Maia se incommodasse em vir alli... --Eu arranjava c· o negociosinho com o amigo Ega... Em todo o caso, se os senhores querem, vamos l· p'ra cima para um gabinete, que se est· mais · vontade, e toma-se outra bebida. Subindo a escada lobrega, Carlos recordava-se de ter j· visto aquella luneta de vidros grossos, aquella cara balofa cÃr de cidra... Sim, fÃra em Cintra, com o Eusebiosinho e duas hespanholas, n'esse dia em que elle farej·ra pelas estradas silenciosas, como um câo abandonado, procurando Maria!... Isto tornou-lhe mais odioso o snr. Palma. Em cima entraram n'um cubiculo, com uma janella gradeada por onde resvalava uma luz suja de saguâo. Na toalha da mesa, salpicada de gordura e vinho, alguns pratos rodeavam um galheteiro que tinha moscas no azeite. O snr. Palma bateu as palmas, mandou vir genebra. Depois dando um grande puxâo ·s calÃas: --Pois eu espero que me acho aqui entre cavalheiros. Como eu j· disse c· ao amigo Ega, em todo este negocio... Carlos atalhou-o, tocando muito significativamente com a ponteira da bengala na borda da mesa. --Vamos ao ponto essencial... Quanto quer o snr. Palma por me dizer quem lhe encommendou o artigo da _Corneta_? --Dizer quem o encommendou, e proval-o! acudiu o Ega, que examinava na parede uma gravura onde havia mulheres nËas · beira d'agua. Nâo nos basta o nome... O amigo Palma, est· claro, à de toda a confianÃa... Mas emfim, que diabo, nâo à natural que nÃs acreditassemos se o amigo nos dissesse que tinha sido o snr. D. Luiz de BraganÃa! Palma encolheu os hombros. Est· visto que havia de dar provas. Elle podia ter outros defeitos, trapalhâo nâo! Em negocios era todo franqueza e lisura... E, se se entendessem, alli as entregava logo, essas provas que lhe estavam enchendo o bolsinho, pimponas e d'escachar! Tinha a carta do amigo que lhe encommend·ra a piada: a lista das pessoas a quem se devia mandar a _Corneta_: o rascunho do artigo a lapis... --Quer cem mil reis por tudo isso? perguntou Carlos. O Palma ficou um momento indeciso, ageitando as lunetas com os dedos molles. Mas o criado veio trazer a garrafa da genebra: e entâo o redactor da _Corneta_ offereceu a ´bebidaª rasgadamente, puxou mesmo cadeiras para aquelles cavalheiros abancarem. Ambos recusaram--Carlos de pà junto da mesa onde termin·ra por pousar a bengala, Ega passando a outra gravura onde dois frades se emborrachavam. Depois, quando o criado sahiu, Ega acercou-se, tocou com bonhomia no hombro do jornalista: --Cem mil reis sâo uma linda somma, Palma amigo! E olhe que se lhe offerecem por delicadeza comsigo. Porque artiguinhos como este da _Corneta_, apresentados na Boa-Hora, levam · grilheta!... Est· claro, este caso à outro, vossà nâo teve intenÃâo d'offender; mas levam · grilheta!... Foi assim que o Severino marchou para a Africa. Alli no porâosinho d'um navio, com raÃâo de marujo e chibatadas. Desagradavel, muito desagradavel. Por isso eu quiz que tratassemos isto aqui, entre cavalheiros, e em amizade. Palma, com a cabeÃa baixa, desfazia torrıes de assucar dentro do copo de genebra. E suspirou, findou por dizer, um pouco murcho, que era por ser entre cavalheiros, e com amizade, que aceitava os cem mil reis... Immediatamente Carlos tirou da algibeira das calÃas um punhado de libras, que comeÃou a deixar cahir em silencio uma a uma dentro d'um prato. E Palma _Cavallâo_, agitado com o tinir do ouro, desabotoou logo o jaquetâo, sacou uma carteira onde reluzia um pesado monogramma de prata sob uma enorme corÃa de visconde. Os dedos tremiam-lhe; por fim desdobrou, estendeu tres papeis sobre a mesa. Ega, que esperava, com o monoculo sÃfrego, teve um brado de triumpho. Reconhecera a letra do Damaso! Carlos examinou os papeis lentamente. Era uma carta do Damaso ao Palma, curta e em calâo, remettendo o artigo, recommendando-lhe ´que o apimentasseª. Era o rascunho do artigo, laboriosamente trabalhado pelo Damaso, com entrelinhas. Era a lista, escripta pelo Damaso, das pessoas que deviam receber a _Corneta_: vinha l· a Gouvarinho, o ministro do Brazil, D. Maria da Cunha, El-Rei, todos os amigos do Ramalhete, o Cohen, varias authoridades, e a Fancelli prima-donna... Palma no emtanto, nervoso, rufava com os dedos sobre a toalha, junto ao prato onde reluziam as libras. E foi o Ega que o animou, depois de relancear os olhos aos documentos por cima do hombro de Carlos: --Recolha o bago, amigo Palma! Negocios sâo negocios, e o baguinho est· ahi a arrefecer! Entâo, ao palpar o ouro, Palma _Cavallâo_ commoveu-se. Palavra, caramba, se soubesse que se tratava d'um cavalheiro como o snr. Maia nâo tinha aceitado o artigo! Mas entâo!... FÃra o Eusebio Silveira, rapaz amigo, que lhe viera fallar. Depois o Salcede. E ambos com muitas lÃrias, e que era uma brincadeira, e que o Maia nâo se importava, e isto e aquillo, e muita promessa... Emfim deix·ra-se tentar. E tanto o Salcede como o Silveira se tinham portado pulhamente. --Foi uma sorte que se escangalhasse a machina! Senâo estava agora entalado, irra! E tinha desgosto, palavra, caramba, tinha desgosto! Mas acabou-se! O mal nâo foi grande, e sempre se fez alguma coisa pela porca da vida. Vivamente, com um olhar, recont·ra o dinheiro na palma da mâo: depois esvaziou a genebra, d'um trago consolado e ruidoso. Carlos guard·ra as cartas do Damaso, levantava j· o fecho da porta. Mas voltou-se ainda, n'uma derradeira averiguaÃâo: --Entâo esse meu amigo Eusebio Silveira tambem se metteu no negocio?... O snr. Palma, muito lealmente, afianÃou que o Eusebio lhe fall·ra apenas em nome do Damaso! --O Eusebio, coitado, veio sà como embaixador... Que o Damaso e eu nâo vamos muito na mesma bola. Fic·mos exquisitos, desde uma pÃga em casa da Biscainha. Aqui p'ra nÃs, eu prometti-lhe dois estalos na cara, e elle embuchou. Passados tempos torn·mos a fallar, quando eu fazia o _High-life_ na _Verdade_. Elle veio-me pedir com bons modos, em nome do conde de Landim, para eu dar umas piadas catitas sobre um baile d'annos... Depois, quando o Damaso fez tambem annos, eu dei outra piadita. Elle pagou a ceia, fic·mos mais calhados... Mas à traste... E l· o Eusebiosinho, coitado, veio sà d'embaixador. Sem uma palavra, sem um aceno ao Palma, Carlos virou as costas, deixou o cubiculo. O redactor da _Corneta_ ainda baixou a cabeÃa para a porta; depois, sem se offender, voltou alegremente · genebra, dando outro puxâo ·s calÃas. Ega no emtanto accendia devagar o charuto. --Vossà agora à que redige o jornal todo, Palma? --O Silvestre, tambem... --Que Silvestre? --O que est· com a _Pingada_. Vossà nâo conhece, creio eu. Um rapazola magro, que nâo à feio... Semsaborâo, escreve uma palhada... Mas sabe coisas da sociedade. Esteve um tempo com a viscondessa de Cabellas, que elle chama a sua _cabelluda_... Que o Silvestre ·s vezes tem graÃa! E sabe, sabe coisas da sociedade, assim maroteiras de fidalgos, amigaÃıes, pulhices... Vossà nunca leu nada d'elle? ChÃcho. Tenho sempre de lhe arranjar o estylo... N'este numero à que havia um folhetimzito meu, catita, c· · moderna, como eu gÃsto, alli com a piadinha realista a bater... Emfim fica para outra vez. E outra coisa, Ega, olhe que lhe agradeÃo. Quando quizer, eu e a _Corneta_ ·s ordens! Ega estendeu-lhe a mâo: --Obrigado, digno Palma! E _adiÃs_! --Pues vaya usted con Dios, Don Juanito! exclamou logo o benemerito homem com infinito _salero_. Em baixo Carlos esperava, dentro do coupÃ. --E agora? perguntou Ega, · portinhola. --Agora salta para dentro e vamos liquidar com o Damaso... Carlos j· esbo÷ra summariamente o plano d'essa liquidaÃâo. Queria mandar desafiar o Damaso como author comprovado d'um artigo de jornal que o injuriava. O duello devia ser · espada ou ao florete, um d'esses ferros cujo lampejo, na sala d'armas do Ramalhete, fazia empallidecer o Damaso. Se contra toda a verosimilhanÃa elle se batesse, Carlos fazia-lhe algures, entre a bochecha e o ventre, um furo que o cravasse mezes na cama. Senâo a unica explicaÃâo que Carlos aceitaria do snr. Salcede seria um documento em que elle escrevesse esta coisa simples: ´Eu abaixo assignado declaro que sou um infame.ª E para estes serviÃos Carlos contava com o Ega. --AgradeÃo! agradeÃo! Vamos a isso! exclamava o Ega esfregando as mâos, faiscando de jubilo. No emtanto, dizia elle, a etiqueta funebre reclamava outro padrinho; e lembrou o Cruges, moÃo passivo e malleavel. Mas era impossivel encontrar o _maestro_, porque invariavelmente a criada affirmava que o menino Victorino nâo estava em casa... Decidiram ir ao Gremio, mandar de l· um bilhete chamando o Cruges--´para um caso urgente d'amizade e d'arteª. --Com quÃ, dizia o Ega continuando a esfregar as mâos emquanto a tipoia trotava para a rua de S. Francisco, com quÃ, demolir o nosso Damaso? --Sim, à necessario acabar com esta perseguiÃâo. Chega a ser ridiculo... E com uma estocada, ou com a carta, temos esse biltre aniquilado por algum tempo. Eu preferia a estocada. Senâo deixo-te a ti arranjar os termos d'uma carta forte... --Has de ter uma boa carta! disse o Ega com um sorriso de ferocidade. No Gremio, depois de redigirem o bilhete ao Cruges, vieram esperar por elle na sala das _IllustraÃıes_. O conde de Gouvarinho e Steinbroken conversavam de pÃ, no vâo d'uma janella. E foi uma surpreza. O ministro da Filandia abriu os braÃos para o _cher Maia_, que elle nâo vira desde a partida d'Affonso para Santa Olavia. Gouvarinho acolheu o Ega risonhamente, reatando uma certa camaradagem que entre elles se form·ra n'esse verâo, em Cintra: mas o aperto de mâo a Carlos foi sÃcco e curto. J· dias antes, tendo-se encontrado no Loreto, o Gouvarinho murmur·ra de leve e de passagem ´um como est·, Maia?ª em que se sentia arrefecimento. Ah! j· nâo eram essas effusıes, essas palmadas enternecidas pelos hombros, dos tempos em que Carlos e a condessa fumavam cigarettes na cama da titi em Santa Isabel. Agora que Carlos abandon·ra a snr.^a condessa de Gouvarinho, a rua de S. MarÃal e o commodo sof· em que ella cahia com um rumor de saias amarrotadas--o marido amuava, como abandonado tambem. --Tenho tido saudade das nossas bellas discussıes em Cintra! disse elle, dando ao Ega a palmada carinhosa nas costas que outr'ora pertencia ao Maia. Tivemol-as de primeira ordem! Eram realmente ´pÃgas tremendasª no pateo do Victor sobre litteratura, sobre religiâo, sobre moral... Uma noite mesmo tinham-se zangado por causa da divindade de Jesus. --⦠verdade! acudiu o Ega. Vossà n'essa noite parecia ter ·s costas uma opa de irmâo do Senhor dos Passos! O conde sorriu. Irmâo do Senhor dos Passos nâo, graÃas a Deus! Ninguem melhor do que elle sabia que n'esses sublimes episodios do Evangelho reinava bastante lenda... Mas emfim eram lendas que serviam para consolar a alma humana. ⦠o que elle object·ra n'essa noite ao amigo Ega... Sentiam-se a philosophia e o racionalismo capazes de consolar a mâi que chora? Nâo. Entâo... --Em todo o caso, tivemol-as brilhantes! concluiu elle olhando o relogio. E, eu confesso, uma discussâo elevada sobre religiâo, sobre metaphysica, encanta-me... Se a politica me deixasse vagares dedicava-me · philosophia... Nasci para isso, para aprofundar problemas. Steinbroken no emtanto, esticado na sua sobrecasaca azul, com um raminho d'alecrim ao peito, tom·ra as mâos de Carlos: --Mais vous Ãtes encore devenu plus fort!... Et Affonso da Maia, toujours dans ses terres?... Est-ce qu'on ne va pas le voir un peu cet hiver? E immediatamente lamentou nâo ter visitado Santa Olavia. Mas quÃ! a familia real install·ra-se em Cintra; elle fÃra forÃado a acompanhal-a, fazer a sua cÃrte... Depois necessit·ra ir de fugida a Inglaterra d'onde acabava de chegar, havia dias. Sim, Carlos sabia, vira na _Gazeta Illustrada_... --Vous avez lu Ãa? Oh oui, on a Ãtà trÃs aimable, trÃs aimable pour moi â¡ la _Gazette_... Tinham-lhe annunciado a partida, depois a chegada, com palavras de amizade particularmente bem escolhidas. Nem podia deixar de ser, dada esta affeiÃâo sincera que liga Portugal e a Filandia... ´Mais enfin on avait Ãtà charmant, charmant!...ª --Seulement--ajuntou elle, sorrindo com finura e voltando-se tambem para o Gouvarinho--on a fait une petite erreur... On a dit que j'Ãtais venu de Southampton par le _Royal Mail_... Ce n'est pas vrai, non! Je me suis embarquà ⡠Bordeaux dans les _Messageries_. J'ai mÃme pensà ⡠Ãcrire â¡ Mr. Pinto, redacteur de la _Gazette_, qui est un charmant garÃon... Puis, j'ai reflechi, je me suis dit: ´Mon Dieu, on va croire que je veux donner une leÃon d'exactitude â¡ la _Gazette_, c'est trÃs grave...ª Alors, voilâ¡, trÃs prudemment, j'ai gardà le silence... Mais enfin c'est une erreur: je me suis embarquà ⡠Bordeaux. Ega murmurou que a Historia se encarregaria um dia de rectificar esse facto. O ministro sorria modestamente, fazendo um gesto em que parecia desejar, por polidez, que a Historia se nâo incommodasse. E entâo o Gouvarinho, que accendÃra o charuto, espreit·ra outra vez o relogio, perguntou se os amigos tinham ouvido alguma coisa do ministerio e da crise. Foi uma surpreza para ambos, que nâo tinham lido os jornaes... Mas, exclamou logo o Ega, crise porquÃ, assim em pleno remanso, com as camaras fechadas, tudo contente, um tâo lindo tempo d'outono? O Gouvarinho encolheu os hombros com reserva. Houvera na vespera, · noitinha, uma reuniâo de ministros; n'essa manhâ o presidente do conselho fÃra ao paÃo, fardado, determinado a ´largar o poderª... Nâo sabia mais. Nâo conferenci·ra com os seus amigos, nem mesmo fÃra ao seu Centro. Como n'outras occasiıes de crise, conserv·ra-se retirado, calado, esperando... Alli estivera toda a manhâ, com o seu charuto, e a _Revista dos Dois Mundos_. Isto parecia a Carlos uma abstenÃâo pouco patriotica... --Porque emfim, Gouvarinho, se os seus amigos subirem... --Exactamente por isso, acudiu o conde com uma cÃr viva na face, nâo desejo pÃr-me em evidencia... Tenho o meu orgulho, talvez motivos para o ter... Se a minha experiencia, a minha palavra, o meu nome sâo necessarios, os meus correligionarios sabem onde eu estou, venham pedir-m'os... Calou-se, trincando nervosamente o charuto. E Steinbroken, perante estas coisas politicas, comeÃou logo a retrahir-se para o fundo da janella, limpando os vidros da luneta, recolhido, j· impenetravel, no grande recato neutral que competia · Filandia. Ega no emtanto nâo sahia do seu espanto. Mas porque cahia, porque cahia assim um governo com maioria nas camaras, socego no paiz, o apoio do exercito, a benÃâo da Igreja, a protecÃâo do _Comptoir d'Escompte_?... O Gouvarinho correu devagar os dedos pela pera, e murmurou esta razâo: --O ministerio estava gasto. --Como uma vela de sebo? exclamou Ega, rindo. O conde hesitou. Como uma vela de sebo nâo diria... Sebo subentendia obtusidade... Ora n'este ministerio sobrava o talento. Incontestavelmente havia l· talentos pujantes... --Essa à outra! gritou Ega atirando os braÃos ao ar. ⦠extraordinario! N'este abenÃoado paiz todos os politicos tÃm _immenso talento_. A opposiÃâo confessa sempre que os ministros, que ella cobre d'injurias, tÃm, · parte os disparates que fazem, um _talento de primeira ordem_! Por outro lado a maioria admitte que a opposiÃâo, a quem ella constantemente recrimina pelos disparates que fez, est· cheia de _robustissimos talentos_! De resto todo o mundo concorda que o paiz à uma choldra. E resulta portanto este facto supra-comico: um paiz governado _com immenso talento_, que à de todos na Europa, segundo o consenso unanime, o mais estupidamente governado! Eu proponho isto, a vÃr: que como os talentos sempre falham, se experimentem uma vez os imbecis! O conde sorria com bonhomia e superioridade a estes exageros de phantasista. E Carlos, ancioso por ser amavel, atalhou, accendendo o charuto no d'elle: --Que pasta preferiria vocÃ, Gouvarinho, se os seus amigos subissem? A dos Estrangeiros, est· claro... O conde fez um largo gesto d'abnegaÃâo. Era pouco natural que os seus amigos necessitassem da sua experiencia politica. Elle torn·ra-se sobretudo um homem d'estudo e de theoria. AlÃm d'isso nâo sabia bem se as occupaÃıes da sua casa, a sua saude, os seus habitos lhe permittiriam tomar o fardo do governo. Em todo o caso, decerto, a pasta dos Estrangeiros nâo o tentava... --Essa, nunca! proseguiu elle, muito compenetrado. Para se poder fallar d'alto na Europa, como ministro dos Estrangeiros, à necessario ter por traz um exercito de duzentos mil homens e uma esquadra com torpedos. NÃs, infelizmente, somos fracos... E eu, para papeis subalternos, para que venha um Bismarck, um Gladstone, dizer-me ´ha de ser assimª, nâo estou!... Pois nâo acha, Steinbroken? O ministro tossiu, balbuciou: --Certainement... C'est trÃs grave... C'est excessivement grave... Ega entâo affirmou que o amigo Gouvarinho, com o seu interresse geographico pela Africa, faria um ministro da Marinha iniciador, original, rasgado... Toda a face do conde reluzia, escarlate de prazer. --Sim, talvez... Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colonias todas as coisas bellas, todas as coisas grandes estâo feitas. Libertaram-se j· os escravos; deu-se-lhes j· uma sufficiente noÃâo da moral christâ; organisaram-se j· os serviÃos aduaneiros... Emfim o melhor est· feito. Em todo o caso ha ainda detalhes interessantes a terminar... Por exemplo, em Loanda... Menciono isto apenas como um pormenor, um retoque mais de progresso a dar. Em Loanda precisava-se bem um theatro normal como elemento civilisador! N'esse momento um criado veio annunciar a Carlos--que o snr. Cruges estava em baixo, no portal, · espera. Immediatamente os dois amigos desceram. --Extraordinario, este Gouvarinho! dizia o Ega na escada. --E este, observou Carlos com um immenso desdem de mundano, à um dos melhores que ha na politica. Pensando mesmo bem, e mettendo a roupa branca em linha de conta, este à talvez o melhor! Acharam o Cruges · porta, de jaquetâo claro, embrulhando um cigarro. E Carlos pediu-lhe logo que voltasse a casa vestir uma sobrecasaca preta. O maestro arregalava os olhos. --⦠jantar? --⦠enterro. E rapidamente, sem alludir a Maria, contaram ao maestro que o Damaso public·ra n'um jornal, a _Corneta do Diabo_ (cuja tiragem elles tinham supprimido, nâo sendo possivel por isso mostrar o numero immundo) um artigo em que a coisa mais dÃce que se chamava a Carlos era _pulha_. Portanto Ega e elle Cruges iam a casa do Damaso pedir-lhe a honra ou a vida. --Bem, rosnou o maestro. Que tenho eu a fazer?... Que eu d'essas coisas nâo entendo. --Tens, explicou Ega, d'ir vestir uma sobrecasaca preta e franzir o sobr'olho. Depois vir commigo; nâo dizer nada; tratar o Damaso por ´v. exc.^aª; assentar em tudo o que eu propuzer; e nunca desfranzir o sobr'olho nem despir a sobrecasaca... Sem outra observaÃâo, Cruges partiu a cobrir-se de ceremonia e de negro. Mas no meio da rua retrocedeu: --â Carlos, olha que eu fallei l· em casa. Os quartos do primeiro andar estâo livres, e forrados de papel novo... --Obrigado. Vai-te fazer sombrio, depressa!... O maestro abal·ra, quando diante do Gremio estacou a todo o trote uma caleche. De dentro saltou o Telles da Gama que, ainda com a mâo no fecho da portinhola, gritou aos dois amigos: --O Gouvarinho? est· l· em cima? --Est·... Novidade fresca? --Os homens cahiram. Foi chamado o S· Nunes! E enfiou pelo pateo, correndo. Carlos e Ega continuaram devagar atà ao portâo do Cruges. As janellas do primeiro andar estavam abertas, sem cortinas. Carlos, erguendo para l· os olhos, pensava n'essa tarde das corridas em que elle viera no phaeton, de Belem, para vÃr aquellas janellas: ia entâo escurecendo, por traz dos _stores_ fechados surgira uma luz, elle contempl·ra-a como uma estrella inaccessivel... Como tudo passa! Retrocederam para o Gremio. Justamente o Gouvarinho e Telles atiravam-se · pressa para dentro da caleche que esper·ra. Ega parou, deixou cahir os braÃos: --L· vae o Gouvarinho batendo para o Poder, a mandar representar a _Dama das Camelias_ no sertâo! Deus se amerceie de nÃs! Mas o Cruges appareceu emfim de chapÃo alto, entalado n'uma sobrecasaca solemne, com botins novos de verniz. Apilharam-se logo na tipoia estreita e dura. Carlos ia leval-os a casa do Damaso. E como queria ainda jantar nos Olivaes, esperaria por elles, para saber o resultado ´do chinfrinª, no jardim da Estrella, junto ao coreto. --SÃde rapidos e medonhos! A casa do Damaso, velha e d'um andar sÃ, tinha um enorme portâo verde, com um arame pendente que fez resoar dentro uma sineta triste de convento: e os dois amigos esperaram muito antes que apparecesse, arrastando as chinelas, o gallego achavascado que o Damaso (agora livre de Carlos e das suas pompas) j· nâo trazia torturado em botins crueis de verniz. A um canto do pateo uma portinha abria sobre a luz d'um quintal, que parecia ser um deposito de caixotes, de garrafas vazias e de lixo. O gallego, que reconhecera o snr. Ega, conduziu-os logo, por uma escadinha esteirada, a um corredor largo, escuro, com cheiro a mÃfo. Depois, batendo o chinelo, correu ao fundo, onde alvejava a claridade d'uma porta entreaberta. Quasi immediatamente Damaso gritou de l·: --â Ega, à vocÃ? Entre para aqui, homem! Que diabo!... Eu estou-me a vestir... EmbaraÃado com estes brados de intimidade e tanta effusâo, Ega ergueu a voz da sombra do corredor, gravemente: --Nâo tem duvida, nÃs esperamos... O Damaso insistia, · porta, em mangas de camisa, cruzando os suspensorios: --Venha vocÃ, homem! Que diabo, eu nâo tenho vergonha, j· estou de calÃas! --Ha aqui uma pessoa de ceremonia, gritou o Ega para findar. A porta ao fundo cerrou-se, o gallego veio abrir a sala. O tapete era exactamente igual aos dos quartos de Carlos no Ramalhete. E em redor abundavam os vestigios da antiga amizade com o Maia: o retrato de Carlos a cavallo, n'um vistoso caixilho de flÃres em faianÃa: uma das colchas da India das senhoras Medeiros, branca e verde, enroupando o piano, arranjada por Carlos com alfinetes: e sobre um contador hespanhol, debaixo de redoma, um sapatinho de setim de mulher, novo, que o Damaso compr·ra no Serra, por ter ouvido um dia a Carlos que ´em todo o quarto de rapaz deve apparecer, discretamente disposta, alguma reliquia d'amor...ª Sob estes retoques de _chic_, dados · pressa sob a influencia do Maia, impertigava-se a sÃlida mobilia do pai Salcede, de mogno e velludo azul; a console de marmore, com um relogio de bronze dourado, onde Diana acariciava um galgo; o grande e dispendioso espelho, tendo entalado no caixilho uma fila de bilhetes de visita, de retratos de cantoras, de convites para _soirÃes_. E Cruges ia examinar estes documentos, quando os passos alegres do Damaso soaram no corredor. O maestro correu logo a perfilar-se ao lado do Ega, diante do canapà de velludo, teso, commodo, com o seu chapÃo alto na mâo. Ao vÃl-o, o bom Damaso, que se aboto·ra todo n'uma sobrecasaca azul, florida por um botâo de camelia, atirou risonhamente os braÃos ao ar: --Entâo esta à que à a pessoa de ceremonia? Sempre vocÃs tÃm coisas! E eu a pÃr sobrecasaca... Por pouco que nâo lhe afinfo com o habito de Christo!... Ega atalhou, muito sÃrio: --O Cruges nâo à de ceremonia, mas o motivo que aqui nos traz à delicado e grave, Damaso. Damaso arregalou os olhos, reparando emfim n'aquelle estranho modo dos seus amigos, ambos de negro, seccos, tâo solemnes. E recuou, todo o sorriso se lhe apagou na face. --Que diabo à isso? Sentem-se, sentem-se vocÃs... A voz apagava-se-lhe tambem. Pousado · borda d'uma poltrona baixa, junto d'uma mesa coberta d'encadernaÃıes ricas, com as mâos nos joelhos, ficou esperando, n'uma anciedade. --NÃs vimos aqui, comeÃou Ega, em nome do nosso amigo Carlos da Maia... Uma brusca onda de sangue cobriu a face rechonchuda do Damaso atà · risca do cabello encaracolado a ferro. E nâo achou uma palavra, attonito, suffocado, esfregando estupidamente os joelhos. Ega proseguiu, lento, direito no canapÃ: --O nosso amigo Carlos da Maia queixa-se de que o Damaso publicou, ou fez publicar, um artigo extremamente injurioso para elle e para uma senhora das relaÃıes d'elle na _Corneta do Diabo_... --Na _Corneta_, eu? acudiu o Damaso, balbuciando. Que _Corneta_? Nunca escrevi em jornaes, graÃas a Deus! Ora essa, a _Corneta_!... Ega, muito friamente, tirou do bolso um masso de papeis. E veio collocal-os um por um, ao lado do Damaso, na mesa, sobre um magnifico volume da _Biblia_ de DorÃ. --Aqui est· a sua carta remettendo ao Palma Cavallâo o rascunho do artigo... Aqui est·, pela sua letra igualmente, a lista das pessoas a quem se devia mandar a _Corneta_, desde o Rei atà · Fancelli... AlÃm d'isso nÃs temos as declaraÃıes do Palma. O Damaso à nâo sà o inspirador, mas materialmente o auctor do artigo... O nosso amigo Carlos da Maia exige, pois, como injuriado, uma reparaÃâo pelas armas... Damaso deu um salto da poltrona, tâo arrebatado--que involuntariamente Ega recuou, no receio d'uma brutalidade. Mas j· o Damaso estava no meio da sala, esgazeado, com os braÃos tremulos no ar: --Entâo o Carlos manda-me desafiar? A mim?... Que lhe fiz eu? Elle a mim à que me pregou uma partida!... Foi elle, vocÃs sabem perfeitamente que foi elle!... E desabafou, n'um prodigioso fluxo de loquacidade, atirando palmadas ao peito, com os olhos marejados de lagrimas. FÃra Carlos, Carlos, que o desfeiti·ra a elle, mortalmente! Durante todo o inverno tinha-o perseguido para que elle o apresentasse a uma senhora brazileira muito _chic_, que vivia em Paris, e que lhe fazia olho... E elle, bondoso como era, promettia, dizia: ´Deixa estar, eu te apresento!ª Pois, senhores, que faz Carlos? Aproveita uma occasiâo sagrada, um momento de luto, quando elle Damaso fÃra ao Norte por causa da morte do tio, e mette-se dentro da casa da brazileira... E tanto intriga, que leva a pobre senhora a fechar-lhe a sua porta, a elle, Damaso, que era intimo do marido, intimo de _tu_! Caramba, elle à que devia mandar desafiar Carlos! Mas nâo! fÃra prudente, evit·ra o escandalo por causa do snr. Affonso da Maia... Queix·ra-se de Carlos, à verdade... Mas no Gremio, na Casa Havaneza, entre rapaziada amiga... E no fim Carlos prÃga-lhe uma d'estas! --Mandar-me desafiar, a mim! A mim, que todo o mundo conhece!... Calou-se, engasgado. E Ega, estendendo a mâo, observou placidamente que se desviavam do ponto vivo da questâo. O Damaso concebera, rascunh·ra, pag·ra o artigo da _Corneta_. Isso nâo o negava, nem o podia negar: as provas estavam alli, abertas sobre a mesa: elles tinham alÃm d'isso a declaraÃâo do Palma... --Esse desavergonhado! gritou o Damaso, levado n'outra rajada d'indignaÃâo que o fez redemoinhar, estonteado, tropeÃando nos moveis. Esse descarado do Palma! Com esse à que eu me quero vÃr!... L· a questâo com o Carlos nâo vale nada, arranja-se, somos todos rapazes finos... Com o Palma à que Ã! Esse traidor à que eu quero rachar! Um homem a quem eu tenho dado ·s meias libras, aos sete mil reis! E ceias, e tipoias! Um ladrâo que pediu o relogio ao Zeferino para figurar n'um baptisado, e pÃl-o no prÃgo!... E faz-me uma d'estas!... Mas hei de escavacal-o! Onde à que vocà o viu, Ega? Diga l·, homem! Que quero ir procural-o, hoje mesmo, correl-o a chicotadas... TraiÃıes nâo, nâo admitto a ninguem! Ega, com a tranquillidade paciente de quem sente a prÃsa certa, lembrou de novo a inutilidade d'aquellas divagaÃıes: --Assim nunca acabamos, Damaso... O nosso ponto à este: o Damaso injuriou Carlos da Maia: ou se retracta publicamente d'essa injuria, ou d· uma reparaÃâo pelas armas... Mas o Damaso, sem escutar, appellava desesperadamente para o Cruges, que se nâo movera do sof· de velludo, esfregando, um contra o outro, com um ar arripiado e de dÃr, os dois sapatos novos de verniz. --Aquelle Carlos! Um homem que se dizia meu amigo intimo! Um homem que fazia de mim tudo! Atà lhe copiava coisas... Vocà bem viu, Cruges. Diga! Falle, homem! Nâo sejam vocÃs todos contra mim!... Atà ·s vezes ia · alfandega despachar-lhe caixotes... O maestro baixava os olhos, vermelho, n'um infinito mal-estar. E Ega, por fim, j· farto, lanÃou uma intimaÃâo derradeira: --Em resumo, Damaso, desdiz-se ou bate-se? --Desdizer-me? tartamudeou o outro, impertigando-se, n'um penoso esforÃo de dignidade, a tremer todo. E de quÃ? Ora essa! ⦠boa! Eu sou l· homem que me desdiga! --Perfeitamente, entâo bate-se... Damaso cambaleou para traz, desvairado: --Qual bater-me! Eu sou l· homem que me bata! Eu c· à a sÃcco. Que venha para c·, nâo tenho medo d'elle, arrombo-o... Dava pulinhos curtos de gordo, atravÃs do tapete, com os punhos fechados e em riste. E queria Carlos alli para o escavacar! Nâo lhe faltava mais senâo bater-se... E entâo duellos em Portugal, que acabavam sempre por troÃa! Ega no emtanto, como se a sua missâo estivesse finda, aboto·ra a sobrecasaca e recolhia os papeis espalhados sobre a _Biblia_. Depois, serenamente, fez a ultima declaraÃâo de que fÃra incumbido. Como o snr. Damaso Salcede recusava retractar-se e rejeitava tambem uma reparaÃâo pelas armas, Carlos da Maia prevenia-o de que em qualquer parte que o encontrasse d'ahi por diante, fosse uma rua, fosse um theatro, lhe escarraria na face... --Escarrar-me! berrou o outro, livido, recuando, como se o escarro j· viesse no ar. E de repente, espavorido, coberto de bagas de suor, precipitou-se sobre o Ega, agarrando-lhe as mâos, n'uma agonia: --â Joâo, à Joâo, tu, que Ãs meu amigo, por quem Ãs, livra-me d'esta entaladella! Ega foi generoso. Desprendeu-se d'elle, empurrou-o brandamente para a poltrona, calmando-o com palmadinhas fraternaes pelo hombro. E declarou que, desde que Damaso appellava para a sua amizade, desapparecia o enviado de Carlos necessariamente exigente, ficava sà o camarada, como no tempo dos Cohens e da _villa_ Balzac. Queria pois o amigo Damaso um conselho? Era assignar uma carta affirmando que tudo o que fizera publicar na _Corneta_ sobre o snr. Carlos da Maia e certa senhora fÃra invenÃâo falsa e gratuita. Sà isto o salvava. D'outro modo, Carlos um dia, no Chiado, em S. Carlos, escarrava-lhe na cara. E, dado esse desastre, Damasosinho, a nâo querer ser apontado em Lisboa como um incomparavel cobarde, tinha de se bater · espada ou · pistola... --Ora, em qualquer d'esses casos, vocà era um homem morto. O outro escutava, esbarrondado no fundo do assento de velludo, com a face emparvecida para o Ega. Alargou mollemente os braÃos, murmurou da profundidade do seu terror: --Pois sim, eu assigno, Joâo, eu assigno... --⦠o que lhe convÃm... Arranje entâo papel. Vocà est· perturbado, eu mesmo redijo. Damaso ergueu-se, com as pernas frouxas, atirando um olhar tonto e vago por sobre os moveis: --Papel de carta? ⦠para carta? --Sim, est· claro, uma carta ao Carlos! Os passos do desgraÃado perderam-se emfim no corredor, pesados e succumbidos. --Coitado! suspirou o Cruges levando de novo, com um ar de arripio, a mâo aos sapatos. Ega lanÃou-lhe um _chut_ severo. Damaso voltava com o seu sumptuoso papel de monogramma e corÃa. Para envolver em silencio e segredo aquelle transe amargo, cerrou o reposteiro; e o vasto pano de velludo, desdobrando-se, mostrou o brazâo de Salcede, onde havia um leâo, uma torre, um braÃo armado, e por baixo, a letras d'ouro, a sua formidavel divisa: Sou forte! Immediatamente Ega afastou os livros na mesa, abancou, atirou largamente ao papel a data e a adresse do Damaso... --Eu faÃo o rascunho, vocà depois copÃa... --Pois sim! gemeu o outro, de novo, aluido na poltrona, passando o lenÃo pelo pescoÃo e pela face. Ega no emtanto escrevia muito lentamente, com amor. E n'aquelle silencio, que o embaraÃava, Cruges terminou por se erguer, foi coxeando atà ao espelho onde se desenrolavam, entalados na frincha do caixilho, bilhetes e photographias. Eram as glorias sociaes do Damaso, os documentos do _chic a valer_ que era a paixâo da sua vida: bilhetes com titulos, retratos de cantoras, convites para bailes, cartas de entrada no Hippodromo, diplomas de membro do Club Naval, de membro do Jockey Club, de membro do Tiro aos Pombos:--atà pedaÃos cortados de jornaes annunciando os annos, as partidas, as chegadas do snr. Salcede, ´um dos nossos mais distinctos _sportmen_ª. Desventuroso _sportman_! Aquella folha de papel, onde o Ega rascunhava, ia-o enchendo pouco a pouco d'um terror angustioso. Santo Deus! Para que eram tantos apuros n'uma carta ao Carlos, um rapaz intimo? Uma linha bastaria:--´Meu querido Carlos, nâo te zangues, desculpa, foi brincadeira.ª Mas nâo! Toda uma pagina de letra miuda com entrelinhas! J· mesmo Ega voltava a folha, molhava a penna, como se d'ella devessem escorrer sem cessar coisas humilhadoras! Nâo se conteve, estendeu a face por sobre a mesa, atà o papel: --â Ega, isso nâo à para publicar, pois nâo à verdade? Ega reflectiu, com a penna no ar: --Talvez nâo... Estou certo que nâo. Naturalmente Carlos, vendo o seu arrependimento, deixa isto esquecido no fundo d'uma gaveta. Damaso respirou com allivio. Ah, bem! Isso parecia-lhe mais decente entre amigos! Que l· isso, mostrar o seu arrependimento, atà elle desejava! Com effeito o artigo fÃra uma tolice... Mas entâo! Em questıes de mulheres era assim, assomado, um leâo... Abanou-se com o lenÃo, desanuviado, recomeÃando a achar sabÃr · vida. Findou mesmo por accender um charuto, levantar-se sem rumor, acercar-se do Cruges--que, coxeando atravÃs das curiosidades da sala, encalh·ra sobre o piano e sobre os livros de musica, com o pà dorido no ar. --Entâo tem-se feito alguma coisa de novo, Cruges? Cruges, muito vermelho, resmungou que nâo tinha feito nada. Damaso ficou alli um momento, a mascar o charuto. Depois, atirando um olhar inquieto · mesa onde o Ega rascunhava interminavelmente, murmurou, sobre o hombro do maestro: --Uma entaladella assim! Eu à por causa da gente conhecida... Senâo nâo me importava! Mas veja vocà tambem se arranja as coisas e se o Carlos deixa aquillo na gaveta... Justamente Ega erguera-se com o papel na mâo e caminhava para o piano, devagar, relendo baixo. --Ficou optimo, salva tudo! exclamou por fim. Vai em fÃrma de carta ao Carlos, à mais correcto. Vocà depois copÃa e assigna. OuÃa l·: ´Exc.^{mo} snr....ª Est· claro, vocà d·-lhe excellencia, porque à um documento d'honra... ´Exc.^{mo} snr.--Tendo-me v. exc.^a, por intermÃdio dos seus amigos Joâo da Ega e Victorino Cruges, manifestado a indignaÃâo que lhe caus·ra um certo artigo da _Corneta do Diabo_ de que eu escrevi o rascunho e de que promovi a publicaÃâo, venho declarar francamente a v. exc.^a que esse artigo, como agora reconheÃo, nâo continha senâo falsidades e incoherencias: e a minha desculpa unica est· em que o compuz e enviei · redacÃâo da _Corneta_ no momento de me achar no mais completo estado d'embriaguez...ª Parou. E nem se voltou para o Damaso, que deix·ra pender os braÃos, rolar o charuto no tapete, varado. Foi ao Cruges que se dirigiu, entalando o monoculo: --Achas talvez forte?... Pois eu redigi assim por ser justamente a unica maneira de resalvar a dignidade do nosso Damaso. E desenvolveu a sua idÃa, mostrando quanto era generosa e habil--emquanto o Damaso, aparvalhado, apanhava o charuto. Nem Carlos nem elle queriam que o Damaso n'uma carta (que se podia tornar publica) declarasse ´que calumni·ra por ser calumniadorª. Era necessario, pois, dar · calumnia uma d'essas causas fortuitas e ingovernaveis que tiram a responsabilidade ·s acÃıes. E que melhor, tratando-se d'um rapaz mundano e femeeiro, do que estar bebedo?... Nâo era vergonha para ninguem embebedar-se... O proprio Carlos, todos elles alli, homens de gosto e de honra, se tinham embebedado. Sem remontar aos romanos, onde isso era uma hygiene e um luxo, muitos grandes homens na Historia bebiam de mais. Em Inglaterra era tâo _chic_, que Pitt, Fox e outros nunca fallavam na Camara dos communs senâo aos bordos. Musset, por exemplo, que bebedo! Emfim a Historia, a Litteratura, a Politica, tudo fervilhava de piteiras... Ora, desde que o Damaso se declarava borracho, a sua honra ficava salva. Era um homem de bem que apanh·ra uma carraspana e que commettera uma indiscriÃâo... Nada mais! --Pois nâo te parece, Cruges? --Sim, talvez, que estava bebedo, murmurou o maestro timidamente. --Pois nâo lhe parece a vocÃ, francamente, Damaso? --Sim, que estava bebedo, balbuciou o desgraÃado. Immediatamente Ega retomou a leitura: ´Agora que voltei a mim reconheÃo, como sempre reconheci e proclamei, que à v. exc.^a um caracter absolutamente nobre; e as outras pessoas, que n'esse momento d'embriaguez ousei salpicar de lama, sâo-me sà merecedoras de veneraÃâo e louvor. Mais declaro que se por acaso tornasse a succeder soltar eu alguma palavra offensiva para v. exc.^a, nâo lhe devia dar v. exc.^a, ou aquelles que a escutassem, mais importancia do que a que se d· a uma involuntaria baforada d'alcool--pois que, por um habito hereditario que reapparece frequentemente na minha familia, me acho repetidas vezes em estado de embriaguez... De v. exc.^a, com toda a estima etc....ª Rodou sobre os tacıes, pousou o rascunho na mesa--e accendendo o charuto ao lume do Damaso, explicou com amizade, com bonhomia, o que o determin·ra ·quella confissâo de bebedeira incorrigivel e palreira. FÃra ainda o desejo de garantir a tranquillidade do ´nosso Damasoª. Attribuindo todas as imprudencias em que pudesse cahir a um habito d'intemperanÃa hereditaria, de que tinha tâo pouca culpa como de ser baixo e gordo, o Damaso punha-se _para sempre_ ao abrigo das provocaÃıes de Carlos... --VocÃ, Damaso, tem genio, tem lingua... Um dia esquece-se, e no Gremio, sem querer, na cavaqueira depois do theatro, l· lhe escapa uma palavra contra Carlos... Sem esta precauÃâo, ahi recomeÃa a questâo, o escarro, o duello... Assim j· Carlos nâo se pÃde queixar. L· tem a explicaÃâo que tudo cobre, uma gotta de mais, a gotta tomada por impulso de borrachice hereditaria... Vocà alcanÃa d'este modo a coisa que mais se appetece n'este nosso seculo XIX--a irresponsabilidade!... E depois para a sua familia nâo à vergonha, porque vocà nâo tem familia. Em resumo, convem-lhe? O pobre Damaso escutava-o, esmagado, enervado, sem comprehender aquellas roncantes phrases sobre ´a hereditariedadeª, sobre ´o seculo XIXª. E um unico sentimento vivo o dominava, acabar, reentrar na sua paz pachorrenta, livre de floretes e de escarros. Encolheu os hombros, sem forÃa: --Que lhe hei de eu fazer?... Para evitar fallatorios. E abancou, metteu um bico novo na penna, escolheu uma folha de papel em que o monogramma luzia mais largo, comeÃou a copiar a carta na sua maravilhosa letra, com finos e grossos, d'uma nitidez de gravura em aÃo. Ega no emtanto, de sobrecasaca desabotoada e charuto fumegante, rondava em torno da mesa, seguindo sÃfregamente as linhas que traÃava a mâo applicada do Damaso, ornada d'um grosso annel d'armas. E durante um momento atravessou-o um susto... Damaso par·ra, com a penna indecisa. Diabo! Acordaria emfim, no fundo de toda aquella gordura balofa, um resto escondido de dignidade, de revolta?... Damaso alÃou para elle os olhos embaciados: --Embriaguez à com _n_ ou com _m_? --Com um _m_, um _m_ sÃ, Damaso! acudiu Ega affectuosamente. Vai muito bem... Que linda letra vocà tem, caramba! E o infeliz sorriu · sua propria letra--pondo a cabeÃa de lado, no orgulho sincero d'aquella soberba prenda. Quando findou a cÃpia foi Ega que conferiu, pÃz a pontuaÃâo. Era necessario que o documento fosse _chic_ e perfeito. --Quem à o seu tabelliâo, Damaso? --O Nunes, na rua do Ouro... Porque? --Oh! nada. ⦠um detalhe que n'estes casos se pergunta sempre. Mera ceremonia... Pois amigos, como papel, como letra, como estylo, est· d'appetite a cartinha! Metteu-a logo n'um enveloppe onde rebrilhava a divisa ´Sou Forteª, sepultou-a preciosamente no interior da sobrecasaca. Depois, agarrando o chapÃo, batendo no hombro do Damaso com uma familiaridade folgazâ e leve: --Pois, Damaso, felicitemo-nos todos! Isto podia acabar fÃra de portas, n'uma poÃa de sangue! Assim à uma delicia. E adeus... Nâo se incommode vocÃ. Entâo o grande sarau sempre à na segunda-feira? Vai l· tudo, hein! Nâo venha c·, homem... Adeus! Mas o Damaso acompanhou-os pelo corredor, mudo, murcho, cabisbaixo. E no patamar reteve o Ega, desafogou outra inquietaÃâo que o assalt·ra: --Isso nâo se mostra a ninguem, nâo à verdade, Ega? Ega encolheu os hombros. O documento pertencia a Carlos... Mas emfim Carlos era tâo bom rapaz, tâo generoso! Esta incerteza, que o ficava minando, arrancou um suspiro ao Damaso: --E chamei eu ·quelle homem _meu amigo_! --Tudo na vida sâo desapontamentos, meu Damaso! foi a observaÃâo do Ega, saltando alegremente os degraus. Quando o calhambeque parou no Jardim da Estrella, Carlos j· esperava ao portâo de ferro, n'uma impaciencia, por causa do jantar na _Toca_. Enfiou logo para dentro atropellando o maestro, bradou ao cocheiro que voasse ao Loreto. --E entâo, meus senhores, temos sangue? --Temos melhor! exclamou Ega no barulho das rodas, floreando o enveloppe. Carlos leu a carta do Damaso. E foi um immenso assombro: --Isto à incrivel!... Chega a ser humilhante para a natureza humana! --O Damaso nâo à o genero humano, acudiu Ega. Que diabo esperavas tu? Que elle se batesse? --Nâo sei, corta o coraÃâo... Que se ha de fazer a isto? Segundo o Ega nâo se devia publicar; seria crear curiosidade e escandalo em torno do artigo da _Corneta_ que cust·ra trinta libras a suffocar. Mas convinha conservar aquillo como uma ameaÃa pairando sobre o Damaso, tornando-o para longos annos nullo e inoffensivo. --Eu estou mais que vingado, concluiu Carlos. Guarda o papel: à obra tua, usa-o como quizeres... Ega guardou-o com prazer, emquanto Carlos, batendo no joelho do maestro, queria saber como elle se port·ra n'aquelle lance d'honra... --Pessimamente! gritou Ega. Com expressıes de compaixâo; sem linha nenhuma; estendido por cima do piano; agarrando com a mâo no sapato... --Pudera! exclamou Cruges desafogando emfim. VocÃs dizem-me que me ponha de ceremonia, calÃo uns sapatos novos de verniz, estive toda a tarde n'um tormento! E nâo se conteve mais, arrancou o sapato, pallido, com um medonho suspiro de consolaÃâo. No dia seguinte, depois do almoÃo, emquanto uma chuva grossa alagava os vidros sob as lufadas de sudoeste, Ega, no _fumoir_, enterrado n'uma poltrona, com os pÃs para o lume, relia a carta do Damaso: e pouco a pouco subia n'elle a m·goa de que esse colossal documento de cobardia humana, tâo interessante para a physiologia e para a arte, ficasse para sempre inaproveitado no escuro d'uma gaveta!... Que effeito, que soberbo effeito se aquella confissâo do ´nosso distincto _sportman_ª surgisse um dia na _Gazeta Illustrada_ ou no novo jornal _A Tarde_, nas columnas do _High-life_, sob este titulo--Pendencia d'honra! E que liÃâo, que meritorio acto de justiÃa social! Todo esse verâo, Ega detest·ra o Damaso, certo, desde Cintra, de que elle era o amante da Cohen--e de que, por esse imbecil de grossas nadegas, esquecera ella para sempre a _villa_ Balzac, as manhâs na colcha de setim preto, os seus beijos delicados, os versos de Musset que lhe lia, os lunchesinhos de perdiz, tantos encantos poeticos. Mas o que lhe torn·ra o Damaso intoleravel--fÃra a sua farofia radiante de homem preferido; o ar de posse com que passeava ao lado de Rachel pelas estradas de Cintra, vestido de flanella branca; os segredinhos que tinha sempre a cochichar-lhe sobre o hombro; e o acÃnosinho desdenhoso, com um dedo, que lhe atirava de lado, ao passar, a elle proprio, Ega... Era odioso! Odiava-o: e atravÃs d'esse odio rumin·ra sempre o desejo d'uma vinganÃa--pancada, deshonra ou ridiculo que tornasse o snr. Salcede, aos olhos de Rachel, desprezivel, grutesco, chato como um balâo furado... E agora alli tinha essa carta providencial, em que o homem solemnemente se declarava bebedo. ´Sou um bebedo, estou sempre bebedoª! Assim o dizia, no seu papel de monogramma d'ouro, o snr. Salcede, n'um medo vil de câo gÃso, rastejando com o rabo entre as pernas diante de qualquer pau!... Nenhuma mulher resistiria a isto... E havia d'encafuar tâo decisivo documento no fundo d'um gavetâo? Publical-o na _Gazeta Illustrada_ ou na _Tarde_ nâo podia, infelizmente, por interesse de Carlos. Mas porque o nâo mostraria ´em segredoª, como uma curiosidade psychologica, ao Craft, ao marquez, ao Telles, ao Gouvarinho, ao primo do Cohen? Podia mesmo confiar uma cÃpia ao Taveira que, resentido eternamente da questâo com o Damaso em casa da Lola Gorda, correria a lÃl-a _em segredo_ na Casa Havaneza, no bilhar do Gremio, no Silva, nos camarins de cantoras... E ao fim de uma semana a snr.^a D. Rachel saberia inevitavelmente que o escolhido do seu coraÃâo era por confissâo propria um calumniador e um bebedo!... Delicioso! Tâo delicioso que nâo hesitou mais, subiu ao quarto para copiar a carta do Damaso. Mas quasi immediatamente um criado trouxe-lhe um telegramma de Affonso da Maia annunciando que chegava no dia seguinte ao Ramalhete. Ega teve de sahir, telegraphar para os Olivaes, avisar Carlos. Carlos appareceu n'essa noite, j· tarde, transido de frio, com um monte de bagagens--porque abandon·ra definitivamente os Olivaes. Maria Eduarda regressava tambem a Lisboa, para o primeiro andar da rua de S. Francisco, tomado agora por seis mezes, tapetado de novo pela mâi Cruges. E Carlos vinha muito impressionado, com profundas saudades da _Toca_. Depois de cear, ao fogâo, acabando o charuto, relembrou infindavelmente esses dias alegres, a sua casinhola, o banho da manhâ tomado dentro d'uma dorna, a festa do deus Tchi, as guitarradas do marquez, as longas cavaqueiras ao cafà com as janellas abertas e as borboletas voando em torno aos candieiros... FÃra as cordas d'agua, sob o vento d'inverno, batiam os vidros na mudez da noite negra. Ambos terminaram por ficar calados, pensativos, com os olhos no lume. --Quando esta tarde dei pela ultima vez uma volta na quinta, disse por fim Carlos, j· nâo havia uma unica folha nas arvores... Tu nâo sentes sempre uma grande melancolia n'estes fins de outono?... --Immensa! murmurou Ega lugubremente. Ao outro dia a manhâ clareava, limpa e branca, quando Ega e Carlos, ainda estremunhados e tiritando, se apearam em Santa Apolonia. O comboio acabava justamente de chegar; e viram logo, entre o rumor de gente que se escoava das portinholas abertas, Affonso, com o seu velho capote de gola de velludo, apegado a uma bengala, debatendo-se entre homens de bonà agaloado que lhe offereciam o _Hotel Terreirense_ e a _Pomba d'Ouro_. Atraz Mr. Antoine, o chefe francez, grave, de chapÃo alto, trazia o cesto em que viaj·ra o reverendo Bonifacio. Carlos e Ega acharam Affonso mais acabado, mais pesado. Todavia gabaram-lhe muito, entre os primeiros abraÃos, a sua robustez de patriarcha. Elle encolheu os hombros, queixando-se de ter sentido desde o fim do verâo vertigens, um cansaÃo vago... --VocÃs à que estâo excellentes, acrescentou abraÃando outra vez Carlos e sorrindo ao Ega. E que ingratidâo foi essa tua, John, mettido aqui todo um verâo sem me ir visitar?... Que tens tu feito? Que tÃm vocÃs feito? --Mil coisas! acudiu Ega alegremente. Planos, ideias, titulos... Temos sobretudo o projecto d'uma _Revista_, um apparelho d'educaÃâo superior que vamos montar com uma forÃa de mil cavallos!... Emfim logo se lhe conta tudo ao almoÃo. E ao almoÃo, com effeito, para justificarem as suas occupaÃıes em Lisboa, fallaram da _Revista_ como se ella j· estivesse organisada e os artigos a imprimir na officina--tanta foi a precisâo com que lhe descreveram as tendencias, a feiÃâo critica, as linhas de pensamento sobre que ella devia rolar... Ega j· prepar·ra um trabalho para o primeiro numero--_A capital dos portuguezes_. Carlos meditava uma sÃrie d'_ensaios_ · ingleza, sob este titulo--_Porque falhou entre nÃs o systema constitucional_. E Affonso escutava, encantado com aquellas bellas ambiÃıes de lucta, querendo partilhar da grande obra como socio capitalista... Mas Ega entendia que o snr. Affonso da Maia devia descer · arena, lanÃar tambem a palavra do seu saber e da sua experiencia. Entâo o velho riu. O quÃ! compÃr prosa, elle, que hesitava para traÃar uma carta ao feitor? De resto o que teria a dizer ao seu paiz, como fructo da sua experiencia, reduzia-se pobremente a tres conselhos em tres phrases: aos politicos--´menos liberalismo e mais caracterª; aos homens de letras--´menos eloquencia e mais ideiaª; aos cidadâos em geral--´menos progresso e mais moralª. Isto enthusiasmou o Ega! Justamente, ahi estavam as verdadeiras feiÃıes da reforma espiritual que a _Revista_ devia prÃgar! Era necessario tomal-as como moto symbolico, inscrevel-as em letras gothicas no frontispicio--porque Ega queria que a _Revista_ fosse original logo na capa. E entâo a conversaÃâo desviou para o exterior da _Revista_--Carlos pretendendo que fosse azul-claro com typo RenascenÃa, Ega exigindo uma cÃpia exacta da _Revista dos Dois Mundos_, n'uma nuance mais cÃr de canario. E, levados pela sua imaginaÃâo de meridionaes, j· nâo era sà para agradar a Affonso da Maia que iam levantando e dando fÃrma ·quelle confuso plano. Carlos exclamava para o Ega, com os olhos j· apaixonados: --Isto agora à sÃrio. Precisamos arranjar immediatamente a casa para a redacÃâo! Ega bracejava: --Pudera! E moveis! E machinas! Toda a manhâ, no escriptorio d'Affonso, azafamados, com papel e lapis, se occuparam em fixar uma lista de collaboradores. Mas j· as difficuldades surgiam. Quasi todos os escriptores suggeridos desagradavam ao Ega, por lhes faltar no estylo aquelle requinte plastico e parnasiano de que elle desejava que a _Revista_ fosse o impeccavel modelo. E a Carlos alguns homens de letras pareciam _impossiveis_--sem querer confessar que n'elles lhe repugnava exclusivamente a falta de linha e o fato mal feito... Uma coisa porÃm ficou decidida: a casa da redacÃâo. Devia ser mobilada luxuosamente, com sof·s do consultorio de Carlos e algum _bric-â¡-brac_ da _Toca_: e sobre a porta (ornada d'um guarda-portâo de librÃ) a taboleta de verniz preto, com _Revista de Portugal_ em altas letras a ouro. Carlos sorria, esfregava as mâos, pensando na alegria de Maria ao saber esta decisâo que o lanÃava, como era o desejo d'ella, na actividade, n'uma lucta interessante d'ideias. Ega, esse, via j· a brochura cÃr de canario aos montıes nas vitrines dos livreiros, discutida nas _soirÃes_ do Gouvarinho, folheada na camara com espanto pelos politicos... --Vai-se remexer Lisboa este inverno, snr. Affonso da Maia! gritou elle atirando um gesto immenso atà ao tecto. E o mais contente era o velho. Depois de jantar, Carlos pediu ao Ega para ir com elle · rua de S. Francisco (onde Maria se install·ra n'essa manhâ) levarem a nova da grande obra. Mas encontraram · porta uma carroÃa descarregando malas; e a senhora, contou o Domingos que ajudava os carroceiros, estava ainda jantando a um canto da mesa e sem toalha. Com tanta confusâo na casa, Ega nâo quiz subir. --Atà logo, disse elle. Vou talvez procurar o Simâo Craveiro e fallar-lhe da _Revista_. Subiu lentamente o Chiado, leu os telegrammas na Casa Havaneza. Depois · esquina da rua Nova da Trindade, um homem rouco, sumido n'um paletot, offereceu-lhe uma ´senhasinhaª. Outros, em volta, gritavam na sombra do _Hotel AllianÃa_: --Bilhete para o Gymnasio! Mais barato... Bilhete para o Gymnasio! Quem vende?... Havia um cruzar animado de carruagens com librÃs. Os bicos de gaz do Gymnasio tinham um fulgor de festa. E Ega deu de rosto com o Craft que atravessava do lado do Loreto, de gravata branca e flÃr no paletot. --Que à isto? --Festa de beneficencia, nâo sei, disse o Craft. Uma coisa promovida por senhoras, a baroneza d'Alvim mandou-me um bilhete... Venha vocà d'ahi ajudar-me a levar esta caridade ao Calvario. E na esperanÃa de flirtar com a Alvim, Ega comprou logo uma senha. No perystilo do Gymnasio encontraram Taveira passeando e fumando solitariamente, · espera que findasse a primeira comedia, o _Fructo prohibido_. Entâo Craft propÃz ´botequim e genebraª. --E que ha do ministerio? perguntou elle, apenas abancaram a um canto. O Taveira nâo sabia. Todos esses dois longos dias se intrig·ra desesperadamente. O Gouvarinho queria as Obras Publicas: o Videira tambem. E fallava-se d'uma scena terrivel por causa de syndicatos, em casa do presidente do conselho, o S· Nunes, que termin·ra por dar um murro na mesa, gritar: ´Irra! que isto nâo à o pinhal d'Azambuja!ª --Canalha! rosnou Ega com odio. Depois fallaram do Ramalhete, da volta d'Affonso, da reappariÃâo de Carlos. Craft louvou Deus por haver outra vez n'esse inverno uma casa com fogıes, onde se passasse uma hora civilisada e intelligente. Taveira acudiu com o olho brilhante: --Diz que vamos ter um centrosinho muito mais interessante ainda, na rua de S. Francisco! Foi o marquez que me disse. Madame Mac-Gren vai receber. Craft nâo sabia mesmo que ella j· tivesse recolhido da _Toca_. --Voltou hoje, disse o Ega. Vocà ainda nâo a conhece?... Encantadora. --Creio que sim. O Taveira vira-a de relance no Chiado. Parecera-lhe uma belleza. E um ar tâo sympathico! --Encantadora! repetiu Ega. Mas o _Fructo prohibido_ find·ra, os homens enchiam o peristylo, n'um rumor lento, accendendo os cigarros. E Ega, deixando o Craft e Taveira com a genebra, correu · plateia para descobrir o camarote da Alvim. Mal erguera porÃm a cortina e assest·ra o monoculo--avistou defronte, na primeira ordem, a Cohen, toda de preto, com um grande leque de rendas brancas; por traz negrejavam as suissas fortes do marido; e em face d'ella, recostado no velludo da grade, de casaca, com a bochecha risonha, uma grossa perola no peitilho da camisa, o Damaso, o bebedo! Ega cahiu mollemente, ao acaso, na borda d'uma cadeira: e perturbado, j· esquecido da Alvim, alli ficou a olhar o panno coberto d'annuncios, correndo os dedos tremulos pelo bigode. No emtanto a campainha retinia, a gente vagarosamente reentrava na plateia. Um cavalheiro gordo e carrancudo tropeÃou no joelho do Ega: outro, de luvas claras, com uma polidez adocicada, pediu permissâo a s. exc.^a Elle nâo escutava, nâo percebia: os seus olhos, um momento errantes, tinham-se emfim cravado no camarote da Cohen e nâo se desviaram de l·, n'uma emoÃâo que o empallidecia. Nâo a torn·ra a encontrar desde Cintra, onde sà a via de longe, com vestidos claros sob o verde das arvores; e agora alli, toda de preto, em cabello, com um decote curto onde brilhava a perfeita brancura do seu collo, ella era outra vez a _sua_ Rachel, dos tempos divinos da _villa_ Balzac. Era assim que elle, todas as noites em S. Carlos, a contemplava do fundo da frisa de Carlos, com a cabeÃa encostada ao tabique, saturado de felicidade. L· tinha a sua luneta d'ouro, presa por um fio d'ouro. Parecia mais pallida, mais delicada, com o longo quebranto dos olhos pisados, o seu ar de romance e de lirio meio murcho: e como entâo os seus cabellos magnificos e pesados cahiam habilmente n'uma massa meia solta sobre as costas, n'um desalinho de nudez. Pouco a pouco, entre o afinar de rebecas e o rumor das cadeiras Ega revia, n'uma onda de recordaÃıes que o suffocava, o grande leito da _villa_ Balzac, certos beijos e certos risos, as perdizes comidas em camisa · borda do sof·, e a melancolia deliciosa das tardes, quando ella sahia furtivamente, coberta de vÃos, e elle ficava, cansado, no crepusculo poetico do quarto, cantarolando a _Traviata_... --V. exc.^a d· licenÃa, snr. Ega? Era um sujeito escaveirado, de barba rala, que reclamava a sua cadeira. Ega ergueu-se, confusamente, sem reconhecer o snr. Sousa Netto. O panno subira. ¡ borda da rampa um lacaio, piscando o olho · Plateia, fazia confidencias sobre a patrÃa, de espanejador debaixo do braÃo. E Cohen, agora de pÃ, enchia o meio do camarote, cofiando as suissas com um correr lento da mâo bem tratada, onde reluzia um diamante. Ega entâo, n'um soberbo alarde d'indifferenÃa, cravou o monoculo no palco. O lacaio abal·ra espavorido, a um repique furioso de sineta; e uma megera azeda, de roupâo verde e touca · banda, rompera de dentro, meneando desesperadamente o leque, ralhando com uma mocinha delambida que batia o tacâo, se esganiÃava: ´Pois hei de amal-o sempre! hei de amal-o sempre!ª Irresistivelmente Ega revirou o canto do olho para o camarote: Rachel e o Damaso, com as cabeÃas chegadas como em Cintra, cochichavam n'um sorriso. E tudo logo dentro do Ega se resumiu n'um immenso odio ao Damaso! Collado · umbreira da porta, rilhava os dentes, n'um desejo de subir, escarrar-lhe na bochecha gorda. E nâo desviava d'elle os olhos, que dardejavam. Na scena, um velho general, gottoso e resmungâo, sacudia um jornal, gritava pela sua tapioca. A Plateia ria, o Cohen ria. E n'esse momento Damaso, que se debru÷ra no camarote com as mâos de fÃra, calÃadas de _gris-perle_, descobriu o Ega, sorriu, atirou-lhe como em Cintra um acenosinho petulante, muito d'alto, na ponta dos dedos. Isto feriu o Ega como um insulto. E ainda na vespera aquelle covarde se lhe agarr·ra ·s mâos, tremendo todo, a gritar ´que o salvasse!...ª Subitamente, com uma idÃa, palpou por sobre o bolso a carteira onde na vespera guard·ra a carta do Damaso... ´Eu t'arranjo!ª murmurou elle. E abalou, desceu a rua da Trindade, cortou pelo Loreto como uma pedra que rola, enfiou, ao fundo da praÃa de Camıes, n'um grande portâo que uma lanterna alumiava. Era a redacÃâo da _Tarde_. Dentro do pateo d'esse jornal elegante fedia. Na escadaria de pedra, sem luz, cruzou um sujeito encatarrhoado que lhe disse que o Neves estava em cima ao cavaco. O Neves, deputado, politico, director da _Tarde_, fÃra, havia annos, n'umas ferias, seu companheiro de casa no largo do Carmo; e desde esse verâo alegre em que o Neves lhe fic·ra sempre devendo tres moedas, os dois tratavam-se por _tu_. Foi encontral-o n'uma vasta sala alumiada por bicos de gaz sem globo, sentado na borda d'uma mesa atulhada de jornaes, com o chapÃo para a nuca, discursando a alguns cavalheiros de provincia que o escutavam de pÃ, n'um respeito de crentes. N'um vâo de janella, com dois homens d'idade, um rapaz esgalgado, de jaquetâo de cheviote claro e uma cabelleira crespa que parecia erguida n'uma rajada de vento, bracejava como um moinho na crista d'um monte. E, abancado, outro sujeito j· calvo rascunhava laboriosamente uma tira de papel. Ao vÃr o Ega (um intimo do Gouvarinho) alli na redacÃâo, n'aquella noite de intriga e de crise, Neves cravou n'elle os olhos tâo curiosos, tâo inquietos, que o Ega apressou-se a dizer: --Nada de politica, negocio particular... Nâo te interrompas. Depois fallaremos. O outro findou a injuria que estava lanÃando ao Josà Bento, ´essa grande besta que fÃra metter tudo no bico da amiga do Sousa e S·, o par do reinoª--e na sua impaciencia saltou da mesa, travou do braÃo do Ega arrastando-o para um canto: --Entâo que Ã? --⦠isto, em quatro palavras. O Carlos da Maia foi offendido ahi por um sujeito muito conhecido. Nada d'interessante. Um paragrapho immundo na _Corneta do Diabo_, por uma questâo de cavallos... O Maia pediu-lhe explicaÃıes. O outro deu-as, chatas, medonhas, n'uma carta que quero que vocÃs publiquem. A curiosidade do Neves flammejou: --Quem Ã? --O Damaso. O Neves recuou d'assombro: --O Damaso!? Ora essa! Isso à extraordinario! Ainda esta tarde jantei com elle! Que diz a carta? --Tudo. Pede perdâo, declara que estava bebedo, que à de profissâo um bebedo... O Neves agitou as mâos com indignaÃâo: --E tu querias que eu publicasse isso, homem? O Damaso, nosso amigo politico!... E que nâo fosse, nâo à questâo de partido, à de decencia! Eu faÃo l· isso!... Se fosse uma acta de duello, uma coisa honrosa, explicaÃıes dignas... Mas uma carta em que um homem se declara bebedo! Tu est·s a mangar! Ega, j· furioso, franzia a testa. Mas o Neves, com todo o sangue na face, teve ainda uma revolta ·quella idÃa do Damaso se declarar bebedo! --Isso nâo pÃde ser! ⦠absurdo! Ahi ha historia... Deixa vÃr a carta. E, mal relance·ra os olhos ao papel, · larga assignatura floreada, rompeu n'um alarido: --Isto nâo à o Damaso nem à letra do Damaso!... ´Salcedeª! Quem diabo à ´Salcedeª? Nunca foi o _meu_ Damaso! --⦠o _meu_ Damaso, disse o Ega. O Damaso Salcede, um gordo... O outro atirou os braÃos ao ar: --O meu à o Guedes, homem, o Damaso Guedes! Nâo ha outro! Que diabo, quando se diz o Damaso à o Guedes!... Respirou com grande allivio: --Irra, que me assustaste! Olha agora n'este momento, com estas coisas de ministerio, uma carta d'essas escripta pelo Guedes... Se à o Salcede, bem, acabou-se! Espera l·... Nâo à um gordalhufo, um janota que tem uma propriedade em Cintra? Isso! Um maganâo que nos entalou na eleiÃâo passada, fez gastar ao Silverio mais de trezentos mil reis... Perfeitamente, ·s ordens... â Pereirinha, olhe aqui o snr. Ega. Tem ahi uma carta para sahir ·manhâ, na primeira pagina, typo largo... O snr. Pereirinha lembrou o artigo do snr. Vieira da Costa sobre a ´Reforma das Pautasª. --Vai depois! gritou o Neves. As questıes de honra antes de tudo! E voltou ao seu grupo onde agora se fallava do conde de Gouvarinho, saltou para a borda da mesa, lanÃou logo o seu vozeirâo de chefe, affirmando no Gouvarinho enormes dotes de parlamentar! Ega accendeu o charuto, ficou um momento considerando aquelles sujeitos que pasmavam para o verbo do Neves. Eram decerto deputados que a crise arrast·ra a Lisboa, arranc·ra · quietaÃâo das villas e das quintas. O mais novo parecia um pote, vestido de casimira fina, com uma enorme face a estourar de sangue, jocundo, crasso, lembrando ares sadios e lombo de porco. Outro, esguio, com o paletot solto sobre as costas em arco, tinha um queixo duro e macisso de cavallo: e dois padres muito rapados, muito morenos, fumavam pontas de cigarro. Em todos havia esse ar, conjunctamente apagado e desconfiado, que marca os homens de provincia, perdidos entre as tipoias e as intrigas da Capital. Vinham alli ·s noites, ·quelle jornal do partido, saber as novas, _beber do fino_, uns com esperanÃas de empregos, outros por interesses de terriola, alguns por ociosidade. Para todos o Neves era um ´robusto talentoª; admiravam-lhe a verbosidade e a tactica; decerto gostavam de citar nas lojas das suas villas o amigo Neves, o jornalista, o da _Tarde_... Mas, atravÃs d'essa admiraÃâo e do prazer de roÃar por elle, percebia-se-lhes um vago medo que aquelle ´robusto talentoª lhes pedisse, n'um vâo de janella, duas ou tres moedas. O Neves no emtanto celebrava o Gouvarinho como orador. Nâo que tivesse os rasgos, a pureza, as bellas syntheses historicas do Josà Clemente! Nem a poesia do Rufino! Mas nâo havia outro para as piadas que ferem e que ficam cravadas, alli a arder, na pelle do touro! E era a grande coisa na Camara--ter a farpa, sabÃl-a ferrar! --â GonÃalo, tu lembras-te da piada do Gouvarinho, a do trapezio? gritou elle virando-se para a janella, para o rapaz de jaquetâo claro. O GonÃalo, cujos olhos pretos refulgiram de agudeza e malicia, estendeu o pescoÃo magro n'um collarinho muito decotado, lanÃou de l·: --A do trapezio? Divina! Conta · rapaziada! A rapaziada arregalou os olhos para o Neves, · espera da ´do trapezioª. FÃra na Camara dos Pares, na reforma da instrucÃâo. Estava fallando o Torres Valente, esse maluco que defendia a gymnastica dos collegios e queria as meninas a fazerem a prancha. Gouvarinho ergue-se e atira-lhe esta: ´Snr. presidente, direi uma palavra sÃ. Portugal sahir· para sempre da senda do progresso, em que tanto se tem illustrado, no dia em que nÃs fÃrmos ao ensino, com mâo impia, substituir a cruz pelo trapezio!ª --Muito bem! rosnou um dos padres profundamente satisfeito. E no murmurio de admiraÃâo que se ergueu destacou um ganido--o do rapaz mais grosso que um pote, que mexia os hombros, chasqueava com uma risota na bochecha cÃr de tomate: --Pois, senhores, o que esse conde de Gouvarinho me sae à um grandissimo carola! E em redor correram sorrisos entre os cavalheiros de provincia, liberaes e finorios, que achavam aquelle fidalgo excessivamente apegado · cruz. Mas j· o Neves, de pÃ, bravejava: --Carola! Vem-nos agora o menino gordo com carola!... O Gouvarinho carola! Est· claro que tem toda a orientaÃâo mental do seculo, à um racionalista, um positivista... Mas a questâo aqui à a rÃplica, a tactica parlamentar! Desde que o typo da maioria vem de l· com a descoberta do trapezio, Gouvarinho amigo, ainda que fosse tâo atheu como Renan, z·s! atira-lhe logo para cima com a cruz!... Isto à que à a estrategia parlamentar! Pois nâo à assim, Ega? Ega murmurou, atravÃs do fumo do charuto: --Sim, com effeito a cruz para isso ainda serve... Mas n'esse momento o sujeito calvo, que repellira a tira de papel e se espreguiÃava, cahido para as costas da cadeira, exhausto, pediu ao snr. Joâo da Ega--que fallasse · gente e guardasse o seu dinheiro... Ega acercou-se logo d'aquelle sympathico homem, tâo engraÃado, tâo querido de todos: --Entâo, na grande faina, Melchior? --Estou aqui a vÃr se faÃo uma coisa sobre o livro do Craveiro, os _Cantos da Serra_, e nâo me sae nada em termos... Nâo sei o que hei de dizer! Ega gracejou, de mâos nos bolsos, muito risonho, muito camarada com o Melchior: --Nada! VocÃs aqui sâo simples localistas, noticiaristas, annunciadores. D'um livro como o do Craveiro tÃm sà respeitosamente a dizer onde se vende e quanto custa. O outro considerou o Ega ironicamente, com os dedos cruzados por traz da nuca: --Entâo onde queria vocà que se fallasse dos livros?... Nos reportorios? Nâo, nas Revistas Criticas: ou entâo nos jornaes--que fossem jornaes, nâo papeluchos volantes, tendo em cima uma cataplasma de politica em estylo mazorro ou em estylo fadista, um romance mal traduzido do francez por baixo e o resto cheio com ´annosª, despachos, parte de policia e loteria da Misericordia. E como em Portugal nâo havia nem jornaes sÃrios nem Revistas Criticas--que se nâo fallasse em parte nenhuma. --Com effeito, murmurou Melchior, ninguem falla de nada, ninguem parece pensar em nada... E com toda a razâo, affirmou Ega. Certamente muito d'esse silencio provinha do natural desejo que tÃm os que sâo mediocres de que se nâo alluda muito aos que sâo grandes. ⦠a invejasinha reles e rastejante! Mas em geral o silencio dos jornaes para com os livros provÃm sobretudo d'elles terem abdicado todas as funcÃıes elevadas d'estudo e de critica, de se terem tornado folhas rasteiras d'informaÃâo caseira, e de sentirem por isso a sua incompetencia... --Est· claro, nâo fallo por vocÃ, Melchior, que à dos nossos e de primeira ordem! Mas os seus collegas, menino, calam-se por se saberem incompetentes... O Melchior ergueu os hombros com um ar canÃado e descrente: --Calam-se tambem porque o publico nâo se importa, ninguem se importa... Ega protestou, j· excitado. O Publico nâo se importava!? Essa era curiosa! O Publico entâo nâo se importa que lhe fallem de livros que elle compra aos tres mil, aos seis mil exemplares? E isto, dada a populaÃâo de Portugal, caramba, à igual aos grandes successos de Paris e de Londres... Nâo, Melchiorzinho amigo, nâo! Esse silencio diz ainda mais claramente e retumbantemente que as palavras: ´NÃs somos incompetentes. NÃs estamos bestialisados pela noticia do snr. conselheiro que chegou ou do snr. conselheiro que partiu, pelos _High-lifes_, pela amabilidade dos donos da casa, pelo artigo de fundo em descompostura e calâo, por toda esta prosa chula em que nos atolamos... NÃs nâo sabemos, nâo podemos j· fallar d'uma obra d'arte ou d'uma obra de historia, d'este bello livro de versos ou d'este bello livro de viagens. Nâo temos nem phrases nem idÃas. Nâo somos talvez cretinos--mas estamos cretinisados. A obra de litteratura passa muito alto--nÃs chafurdamos aqui muito em baixo...ª --E aqui tem vocÃ, Melchior, o que diz, atravÃs do silencio dos jornaes, o cÃro dos jornalistas! Melchior sorria, enlevado, com a cabeÃa deitada para traz, como quem goza uma bella ·ria. Depois com uma palmada na mesa: --Caramba, à Ega, muito bem falla vocÃ!... Vocà nunca pensou em ser deputado? Eu ainda outro dia dizia ao Neves: ´O Ega! O Ega à que era, para atirar alli na camara a piadinha · Rochefort. Ardia Troia!ª E immediatamente, emquanto Ega ria, contente, tornando a accender o charuto--Melchior arrebatou a penna: --Vocà est· em veia! Diga l·, dicte l·... Que hei de eu aqui pÃr sobre o livro do Craveiro? Ega quiz saber o que escrevera j· o amigo Melchior. Apenas tres linhas: ´Recebemos o novo livro do nosso glorioso poeta Simâo Craveiro. O precioso volume, onde scintillam em caprichosos relevos todas as joias d'este prestigioso escriptor, à publicado pelos activos editores...ª E aqui o Melchior emperr·ra. Melchior nâo gostava d'aquelle frouxo termo--_activos_. Ega entâo suggeriu--_emprehendedores_. Melchior emendou, leu: --´...publicado pelos emprehendedores editores...ª Ora sÃbo, rima! Arrojou a penna, descorÃoado. Acabou-se! Nâo estava em _verve_. E alÃm d'isso era tarde, tinha a rapariga · espera... --Fica para ·manhâ... O peor à que j· ando n'isto ha cinco dias! Irra! Vocà tem razâo, a gente bestialisa-se. E faz-me raiva! Nâo à l· pelo livro, nâo me importa o livro... ⦠pelo Craveiro, que à bom rapaz, e demais a mais pertence c· ao partido! Abriu um gavetâo, sacou uma escova, rompeu a escovar-se com desespero. E Ega ia ajudal-o, limpar-lhe as costas cheias de cal--quando entre elles surgiu a face chupada e nervosa do GonÃalo, com a sua gaforinha perpetuamente erguida como por uma rajada de vento. --Que est· o Egasinho a fazer n'este covil da noticia? --Aqui a escovar o Sampaio... Estive tambem a ouvir o Neves, a grande phrase do Gouvarinho... O GonÃalo pulou, com uma faisca de malicia nos olhos negros de algarvio esperto. --A da cruz? Espantosa! Mas ha melhor, ha melhor! Travou do braÃo do Ega, puxou-o para um canto da janella: --⦠necessario fallar baixo por causa da rapaziada de provincia... Ha outra deliciosa. Eu nâo me lembro bem, o Neves à que sabe! ⦠uma coisa da Liberdade conduzindo · mâo o corcel do Progresso... O quer que seja assim, uma imagem equestre! A Liberdade com calÃıes de jockey, o Progresso com um grande freio... Espantoso! Que besta, aquelle Gouvarinho! E os outros, menino, os outros! Vocà nâo foi · camara quando se discutiu a questâo de Tondella? Extraordinario! O que se disse! Foi de morrer! E eu morro! Esta politica, este S. Bento, esta eloquencia, estes bachareis matam-me. Querem dizer agora ahi que isto por fim nâo à peor que a Bulgaria. Historias! Nunca houve uma choldra assim no universo! --Choldra em que vocà chafurda! observou o Ega rindo. O outro recuou com um grande gesto: --Distingamos! Chafurdo por necessidade, como politico: e trÃÃo por gosto, como artista! Mas Ega justamente achava uma desgraÃa incomparavel para o paiz--esse immoral desaccordo entre a intelligencia e o caracter. Assim, alli estava o amigo GonÃalo, como homem de intelligencia, considerando o Gouvarinho um imbecil... --Uma cavalgadura, corrigiu o outro. --Perfeitamente! E todavia, como politico, vocà quer essa cavalgadura para ministro, e vai apoial-a com votos e com discursos sempre que ella rinche ou escoucinhe. GonÃalo correu lentamente a mâo pela gaforinha, com a face franzida: --⦠necessario, homem! Razıes de disciplina e de solidariedade partidaria... Ha uns compromissos... O paÃo quer, gosta d'elle... Espreitou em roda, murmurou, collado ao Ega: --Ha ahi umas questıes de syndicatos, de banqueiros, de concessıes em MoÃambique... Dinheiro, menino, o omnipotente dinheiro! E como Ega se curvava, vencido, cheio sà de respeito--o outro, faiscando todo de finura e cynismo, atirou-lhe uma palmada ao hombro: --Meu caro, a politica hoje à uma coisa muito differente! NÃs fizemos como vocÃs os litteratos. Antigamente a litteratura era a imaginaÃâo, a phantasia, o ideal... Hoje à a realidade, a experiencia, o facto positivo, o documento. Pois c· a politica em Portugal tambem se lanÃou na corrente realista. No tempo da RegeneraÃâo e dos Historicos a politica era o progresso, a viaÃâo, a liberdade, o palavrorio... NÃs mudamos tudo isso. Hoje à o facto positivo,--o dinheiro, o dinheiro! o bago! a _massa_! A rica _massinha_ da nossa alma, menino! O divino dinheiro! E de repente emmudeceu, sentindo na sala um silencio--onde o seu grito de ´dinheiro! dinheiro!ª parecera ficar vibrando, no ar quente do gaz, com a prolongaÃâo de um toque de rebate acordando as cubiÃas, chamando ao longe e ao largo todos os habeis para o saque da Patria inerte!... O Neves desapparecera. Os cavalheiros de provincia dispersavam, uns enfiando o paletot, outros sem pressa dando um olhar amortecido aos jornaes sobre a mesa. E o GonÃalo bruscamente disse adeus ao Ega, rodou nos tacıes, desappareceu tambem, abraÃando ao passar um dos padres a quem tratou de ´malandro!ª Era meia noite, Ega sahiu. E na tipoia que o levava ao Ramalhete, j· mais calmo, comeÃou logo a reflectir que o resultado da publicaÃâo da carta seria despertar em toda Lisboa uma curiosidade voraz. A ´questâo de cavallosª com que o Neves se content·ra promptamente, distrahido e absorvido n'essa noite pela crise,--ninguem mais a acreditaria... O Damaso decerto, interrogado, para se desculpar, contaria horrores de Maria e de Carlos: e uma intoleravel luz d'escandalo ia bater coisas que deviam permanecer na sombra. Eram talvez apoquentaÃıes, desesperos que elle assim estivera preparando a Carlos--por causa d'um odiosinho ao Damaso. Nada mais egoista e pequeno!... E subindo para o quarto Ega decidia correr depois d'almoÃo · redacÃâo da _Tarde_, suster a publicaÃâo da carta. Mas toda essa noite sonhou com Rachel e com Damaso. Via-os rolando por uma estrada sem fim, entre pomares e vinhedos, deitados n'uma carroÃa de bois, sobre um enxergâo onde se desdobrava, lasciva e rica, a sua colcha de setim preto da _villa_ Balzac: os dois beijavam-se, enroscados, sem pudor, sob a fresca sombra que cahia dos ramos, ao chiar lento das rodas. E por um requinte do sonho cruel, elle Ega, sem perder a consciencia e o orgulho d'homem, era um dos bois que puxava ao carro! Os moscardos picavam-no, a canga pesava-lhe; e, a cada beijo mais cantado que atraz soava no carro, elle erguia o focinho a escorrer de baba, sacudia os cornos, mugia lamentavelmente para os cÃos! Acordou n'estes urros d'agonia: e a sua cÃlera contra o Damaso resurgiu, mais nutrida pelas incoherencias do sonho. AlÃm d'isso chovia. E decidiu nâo voltar · _Tarde_, deixar imprimir a carta. Que importava, de resto, o que dissesse o Damaso? O artigo da _Corneta_ estava extincto, o Palma bem pago.--E quem j·mais acreditaria n'um homem que nos jornaes se declara calumniador e bebedo? E Carlos assim pensou tambem--quando, depois d'almoÃo, Ega lhe contou a sua resoluÃâo da vespera ao vÃr o Damaso no camarote, d'olho trocista posto n'elle, a segredar com os Cohens... --Percebi claramente, sem erro possivel, que estava a fallar de ti, da snr.^a D. Maria, de nÃs todos, contando horrores... E entâo acabou-se, nâo hesitei mais. Era necessario deixar passar a justiÃa de Deus! Nâo tinhamos paz emquanto o nâo aniquilassemos! Sim, concordou Carlos, talvez. SÃmente receava que o avÃ, sabendo o escandalo, se desgostasse de vÃr o seu nome misturado a toda aquella sordidez de _Corneta_ e de bebedeira... --Elle nâo là a _Tarde_, acudiu Ega. O rumor, se lhe chegar, à j· vago e desfigurado. Com effeito Affonso soube apenas confusamente que o Damaso solt·ra no Gremio algumas palavras desagradaveis para Carlos, e declar·ra depois n'um jornal que, n'esse momento, estava bebedo. E a opiniâo do velho foi--que se o Damaso estava embriagado (e d'outro modo como teria injuriado Carlos, seu antigo amigo?) a sua declaraÃâo revelava extrema lealdade e um amor quasi heroico da verdade! --Por esta nâo esperavamos nÃs! exclamou depois Ega no quarto de Carlos. O Damaso torna-se um justo! De resto os amigos da casa, sem conhecer o artigo da _Corneta_, approvavam a aniquilaÃâo do Damaso. Sà o Craft sustentou que Carlos lhe devia ter antes dado ´bengaladas secretasª; e o Taveira achou cruel que se dissesse ao desgraÃado, com um florete ao peito--´ou a dignidade ou a vida!ª Mas dias depois nâo se fallava mais n'esse escandalo. Outras coisas interessavam o Chiado e a Casa Havaneza. O ministerio fÃra formado, finalmente! Gouvarinho entrava na Marinha--Neves no Tribunal de Contas. J· os jornaes do governo cahido comeÃavam, segundo a pratica constitucional, a achar o paiz irremediavelmente perdido, e a alludir ao rei com azedume... E o derradeiro, esvaÃdo echo da carta do Damaso foi, na vespera do sarau da Trindade, um paragrapho da propria _Tarde_ onde ella fÃra publicada, n'estas amaveis palavras: --´O nosso amigo e distincto _sportman_ Damaso Salcede parte brevemente para uma viagem de recreio a Italia. Desejamos ao elegante _touriste_ todas as prosperidades na sua bella excursâo ao paiz do canto e das artes.ª VI Ao fim do jantar, na rua de S. Francisco, Ega que se demor·ra no corredor a procurar a charuteira pelos bolsos do paletot, entrou na sala, perguntando a Maria, j· sentada ao piano: --Entâo, definitivamente, v. exc.^a nâo vem ao sarau da Trindade?... Ella voltou-se para dizer, preguiÃosamente, por entre a walsa lenta que lhe cantava entre os dedos: --Nâo me interessa, estou muito canÃada... --⦠uma sÃcca, murmurou Carlos do lado, da vasta poltrona onde se estir·ra consoladamente, fumando, d'olhos cerrados. Ega protestou. Tambem era uma massada subir ·s Pyramides no Egypto. E no emtanto soffria-se invariavelmente, porque nem todos os dias pÃde um christâo trepar a um monumento que tem cinco mil annos de existencia... Ora a snr.^a D. Maria, n'este sarau, ia vÃr por dez tostıes uma coisa tambem rara,--a alma sentimental d'um povo exhibindo-se n'um palco, ao mesmo tempo nua e de casaca. --V·, coragem! um chapÃo, um par de luvas, e a caminho! Ella sorria, queixando-se de fadiga e preguiÃa. --Bem, exclamou Ega, eu à que nâo quero perder o Rufino... Vamos l·, Carlos, mexe-te! Mas Carlos implorou clemencia: --Mais um bocadinho, homem! Deixa a Maria tocar umas notas do _Hamlet_. Temos tempo... Esse Rufino, e o Alencar, e os bons, sà gorgeiam mais tarde... Entâo Ega, cedendo tambem a todo aquelle conchego tepido e amavel, enterrou-se no sof· com o charuto, para escutar a canÃâo d'_Ophelia_, de que Maria j· murmurava baixo as palavras scismadoras e tristes: Pâle et blonde, Dort sous l'eau profonde... Ega adorava esta velha ballada escandinavia. Mais porÃm o encantava Maria que nunca lhe parecera tâo bella: o vestido claro que tinha n'essa noite modelava-a com a perfeiÃâo d'um marmore: e entre as velas do piano, que lhe punham um traÃo de luz no perfil puro e tons d'ouro esfiado no cabello--o incomparavel eburneo da sua pelle ganhava em esplendor e mimo... Tudo n'ella era harmonioso, sâo, perfeito... E quanto aquella serenidade da sua fÃrma devia tornar delicioso o ardor da sua paixâo! Carlos era positivamente o homem mais feliz d'estes reinos! Em torno d'elle sà havia facilidades, doÃuras. Era rico, intelligente, d'uma saude de pinheiro novo; passava a vida adorando e adorado; sà tinha o numero d'inimigos que à necessario para confirmar uma superioridade; nunca soffrera de dyspepsia; jogava as armas bastante para ser temido; e na sua complacencia de forte nem a tolice publica o irritava. SÃr verdadeiramente ditoso! --Quem à por fim esse Rufino? perguntou Carlos, alongando mais os pÃs pelo tapete, quando Maria findou a canÃâo d'_Ophelia_. Ega nâo sabia. Ouvira que era um deputado, um bacharel, um inspirado... Maria, que procurava os nocturnos de Chopin, voltou-se: --⦠esse grande orador de que fallavam na _Toca_? Nâo, nâo! Esse era outro, a sÃrio, um amigo de Coimbra, o Josà Clemente, homem d'eloquencia e de pensamento... Este Rufino era um ratâo de pera grande, deputado por MonÃâo, e sublime n'essa arte, antigamente nacional e hoje mais particularmente provinciana, de arranjar, n'uma voz de theatro e de papo, combinaÃıes sonoras de palavras... --Detesto isso! rosnou Carlos. Maria tambem achava intoleravel um sujeito a chilrear, sem idÃas, como um passaro n'um galho d'arvore... --⦠conforme a occasiâo, observou Ega, olhando o relogio. Uma walsa de Strauss tambem nâo tem idÃas, e · noite, com mulheres n'uma sala, à deliciosa... Nâo, nâo! Maria entendia que essa rhetorica amesquinhava sempre a palavra humana, que, pela sua natureza mesma, sà pÃde servir para dar fÃrma ·s idÃas. A musica, essa, falla aos nervos. Se se cantar uma marcha a uma crianÃa, ella ri-se e salta no collo... --E se lhe lÃres uma pagina de Michelet, concluiu Carlos, o anjinho secca-se e berra! --Sim, talvez, considerou o Ega. Tudo isso depende da latitude e dos costumes que ella cria. Nâo ha inglez, por mais culto e espiritualista, que nâo tenha um fraco pela forÃa, pelos athletas, pelo _sport_, pelos musculos de ferro. E nÃs, os meridionaes, por mais criticos, gostamos do palavriadinho mavioso. Eu c· pelo menos, · noite, com mulheres, luzes, um piano e gente de casaca, pello-me por um bocado de rhetorica. E, com o appetite assim desperto, ergueu-se logo para enfiar o paletot, voar · _Trindade_, n'um receio de perder o Rufino. Carlos deteve-o ainda, com uma grande idÃa: --Espera. Descobri melhor, fazemos o sarau aqui! Maria toca Beethoven; nÃs declamamos Mussuet, Hugo, os parnasianos; temos padre Lacordaire se te appetece a eloquencia; e passa-se a noite n'uma medonha orgia d'ideal!... --E ha melhores cadeiras, acudiu Maria. --Melhores poetas, affirmou Carlos. --Bons charutos! --Bom cognac! Ega alÃou os braÃos ao ar, desolado. Ahi est· como se pervertia um cidadâo, impedindo-o de proteger as letras patrias--com promessas perfidas de tabaco e de bebidas!... Mas de resto elle nâo tinha sà uma razâo litteraria para ir ao sarau. O Cruges tocava uma das suas _MeditaÃıes d'Outono_, e era necessario dar palmas ao Cruges. --Nâo digas mais! gritou Carlos, dando um pulo da poltrona. Esquecia-me o Cruges!... ⦠um dever d'honra! Abalemos. E d'ahi a pouco, tendo beijado a mâo de Maria que ficava ao piano, os dois, surprehendidos com a belleza d'essa noite d'inverno, tâo clara e dÃce, seguiam devagar pela rua--onde Carlos ainda duas vezes se voltou para olhar as janellas alumiadas. --Estou bem contente, exclamou elle travando do braÃo do Ega, em ter deixado os Olivaes!... Aqui ao menos podemos reunir-nos para um bocado de cavaco e de litteratura... Tencionava arranjar a sala com mais gosto e conforto, converter o quarto ao lado n'um _fumoir_ forrado com as suas colchas da India, depois ter um dia certo em que viessem os amigos cear... Assim se realisava o velho sonho, o cenaculo de dilettantismo e d'arte... AlÃm d'isso havia a lanÃar a _Revista_, que era a suprema pandega intellectual. Tudo isto annunciava um inverno _chic a valer_, como dizia o defunto Damaso. --E tudo isto, resumiu o Ega, à dar civilisaÃâo ao paiz. Positivamente, menino, vamo-nos tornar grandes cidadâos!... --Se me quizerem erguer uma estatua, disse Carlos alegremente, que seja aqui na rua de S. Francisco... Que belleza de noite! Pararam · porta do theatro da Trindade no momento em que, d'uma tipoia de praÃa, se apeava um sujeito de barbas de apostolo, todo de luto, com um chapÃo de largas abas recurvas · moda de 1830. Passou junto dos dois amigos sem os vÃr, recolhendo um troco · bolsa. Mas Ega reconheceu-o. --⦠o tio do Damaso, o demagogo! Bello typo! --E segundo o Damaso, um dos bebedos da familia, lembrou Carlos rindo. Por cima, de repente, no salâo, estalaram grandes palmas. Carlos, que dava o paletot ao porteiro, receou que j· fosse o Cruges... --Qual! disse o Ega. Aquillo à applaudir de rhetorica! E com effeito, quando pela escada ornada de plantas chegaram ao ante-salâo, onde dois sujeitos de casaca passeavam em bicos de pÃs, segredando--sentiram logo um vozeirâo tumido, garganteado, provinciano, de vogaes arrastadas em canto, invocando l· do fundo, do estrado, ´a alma religiosa de Lamartine!...ª --⦠o Rufino, tem estado soberbo! murmurou o Telles da Gama que nâo pass·ra da porta, com o charuto escondido atraz das costas. Carlos, sem curiosidade, ficou junto do Telles. Mas Ega, esguio e magro, foi rompendo pela coxia tapetada de vermelho. D'ambos os lados se cerravam filas de cabeÃas, embebidas, enlevadas, atulhando os bancos de palhinha atà junto ao tablado, onde dominavam os chapÃos de senhoras picados por manchas claras de plumas ou flÃres. Em volta, de pÃ, encostados aos pilares ligeiros que sustÃm a galeria, reflectidos pelos espelhos, estavam os homens, a gente do Gremio, da Casa Havaneza, das Secretarias, uns de gravata branca, outros de jaquetıes. Ega avistou o snr. Sousa Netto, pensativo, sustentando entre dois dedos a face escaveirada, de barba rala; adiante o GonÃalo, com a sua gaforinha ao vento; depois o marquez atabafado n'um cache-nez de sÃda branca; e, n'um grupo, mais longe, rapazes do Jockey Club, os dois Vargas, o MendonÃa, o Pinheiro, assistindo ·quelle _sport_ da eloquencia com uma mistura d'assombro e tedio. Por cima, no parapeito de velludo da galeria, corria outra linha de senhoras com vestidos claros, abanando-se mollemente; por traz alÃava-se ainda uma fila de cavalheiros onde destacava o Neves, o novo Conselheiro, grave, de braÃos cruzados, com um botâo de camelia na casaca mal feita. O gaz suffocava, vibrando cruamente n'aquella sala clara, d'um tom desmaiado de canario, raiada de reflexos de espelhos. Aqui e alÃm uma tosse timida de catarrho desmanchava o silencio, logo abafada no lenÃo. E na extremidade da galeria, n'um camarote feito de tabiques, com sanefas de velludo cÃr de cereja, duas cadeiras de espaldar dourado permaneciam vazias, na solemnidade real do seu damasco escarlate. No emtanto, no estrado, o Rufino, um bacharel transmontano, muito trigueiro, de pera, alargava os braÃos, celebrava um anjo, ´o _Anjo da Esmola_ que elle entrevira, alÃm no azul, batendo as azas de setim...ª Ega nâo comprehendia bem--entalado entre um padre muito gordo que pingava de suor, e um alferes de lunetas escuras. Por fim nâo se conteve:--´Sobre que est· elle a fallar?ª E foi o padre que o informou, com a face luzidia, inflammada de enthusiasmo: --Tudo sobre a caridade, sobre o progresso! Tem estado sublime... Infelizmente est· a acabar! Parecia ser, com effeito, a peroraÃâo. O Rufino arrebat·ra o lenÃo, limpava a testa lentamente; depois arremetteu para a borda do tablado, voltando-se para as cadeiras reaes com um tâo ardente gesto d'inspiraÃâo--que o collete repuxado descobriu o comeÃo da ceroula. Foi entâo que Ega comprehendeu. Rufino estava exaltando uma princeza que dera seiscentos mil reis para os inundados do Ribatejo, e ia a beneficio d'elles organisar um bazar na Tapada. Mas nâo era sà essa soberba esmola que deslumbrava o Rufino--porque elle, ´como todos os homens educados pela philosophia e que tÃm a verdadeira orientaÃâo mental do seu tempo, via nos grandes factos da historia nâo sà a sua belleza poetica, mas a sua influencia social. A multidâo, essa, sorria simplesmente, enlevada, para a incomparavel poesia da mâo calÃada de fina luva que se estende para o pobre. Elle porÃm, philosopho, antevia j·, sahindo d'esses delicados dedos de princeza, um resultado bem profundo e formoso... O quÃ, meus senhores? O renascimento da FÃ!ª De repente, um leque que escorreg·ra da galeria, arrancando em baixo um berro a uma senhora gorda, creou um susurro, uma curta emoÃâo. Um commissario do sarau, D. Josà Sequeira, ergueu-se logo nos degraus do tablado, com o seu laÃarote de sÃda vermelha na casaca, dardejando severamente os olhos vesgos para o recanto indisciplinado onde curtos risos esfusiavam. Outros cavalheiros, indignados, gritavam ´_chut, silencio,_ _fÃra!_ª E das cadeiras da frente surgiu a face ministerial do Gouvarinho, inquieta pela Ordem, com as lunetas brilhando duramente... Entâo Ega procurou ao lado a condessa: e avistou-a emfim mais longe, com um chapÃo azul, entre a Alvim toda de preto e umas vastas esp·doas cobertas de setim malva que eram as da baroneza de Craben. Todo o rumor findava--e o Rufino, que molh·ra lentamente os labios no copo, avanÃou um passo, sorrindo, com o lenÃo branco na mâo: --Dizia eu, meus senhores, que dada a orientaÃâo mental d'este seculo... Mas o Ega suffocava, esmagado, farto do Rufino, com a impressâo de que o padre ao lado cheirava mal. E nâo aturou mais, furou para traz, para desabafar com Carlos. --Tu imaginavas uma besta assim? --Horroroso! murmurou Carlos. Quando tocar· o Cruges? Ega nâo sabia, todo o programma fÃra alterado. --E tens c· a Gouvarinho! Est· l· adiante, d'azul... Hei de querer vÃr logo esse encontro! Mas ambos se voltaram sentindo por traz alguem ciciar discretamente ´_bonsoir, messieurs_...ª Era Steinbroken e o seu secretario, graves, de casaca, em pontas de pÃs, com as claques fechadas. E immediatamente Steinbroken queixou-se da ausencia da familia real... --Mr. de Cantanhede, qui est de service, m'avait cependant assurà que la reine viendrait... C'est bien sous sa protection, n'est-ce pas, toute cette musique, ces vers?... Voilâ¡ pourquoi je suis venu. C'est trÃs ennuyeux... Et Alphonse de Maia, toujours en santÃ? --Merci... Na sala o silencio impressionava. Rufino, com gestos de quem traÃa n'uma tela linhas lentas e nobres, descrevia a doÃura d'uma aldeia, a aldeia em que elle nascera, ao pÃr do sol. E o seu vozeirâo velava-se, enternecido, morrendo n'um rumor de crepusculo. Entâo Steinbroken, subtilmente, tocou no hombro do Ega. Queria saber se era esse o grande orador de que lhe tinham fallado... Ega affirmou com patriotismo que era um dos maiores oradores da Europa! --Em qual gÃnerro?... --Genero sublime, genero de Demosthenes! Steinbroken alÃou as sobrancelhas com admiraÃâo, fallou em filandez ao seu secretario que entalou languidamente o monoculo: e com as claques debaixo do braÃo, cerrados os olhos, recolhidos como n'um templo, os dois enviados da Filandia ficaram escutando, · espera do sublime. Ruffino, no entanto, com as mâos descahidas, confessava uma fragilidade de sua alma! Apesar da poesia ambiente d'essa sua aldeia natal, onde a violeta em cada prado, o rouxinol em cada balseira provavam Deus irrefutavelmente,--elle fÃra dilacerado pelo espinho da descrenÃa! Sim, quantas vezes, ao cahir da tarde, quando os sinos da velha torre choravam no ar a Ave-Maria e no valle cantavam as ceifeiras, elle pass·ra junto da cruz do adro e da cruz do cemiterio, atirando-lhes de lado, cruelmente, o sorriso frio de Voltaire!... Um largo fremito d'emoÃâo passou. Vozes suffocadas de gozo mal podiam murmurar ´_muito bem, muito bem_...ª Pois fÃra n'esse estado, devorado pela duvida, que Rufino ouvira um grito d'horror resoar por sobre o nosso Portugal... Que succedera? Era a Natureza que atacava seus filhos!--E lanÃando os braÃos, como quem se debate n'uma catastrophe, Rufino pintou a inundaÃâo... Aqui aluia um casal, ninho florido d'amores; alÃm, na quebrada, passava o balar choroso dos gados; mais longe as negras aguas iam juntamente arrastando um botâo de rosa e um berÃo!... Os _bravos_ partiram profundos e roucos de peitos que arfavam. E em torno de Carlos e do Ega sujeitos voltavam-se apaixonadamente uns para os outros, com um brilho na face, commungando no mesmo enthusiasmo: ´Que rajadas!... Caramba!... Sublime!...ª Rufino sorria, bebendo esta commoÃâo, que era a obra do seu verbo. Depois, respeitosamente, voltou-se para as cadeiras reaes, solemnes e vazias... Vendo que a cÃlera da Natureza rugia implacavel, elle erguera os olhos para o natural abrigo, para o exaltado logar d'onde desce a salvaÃâo, para o Throno de Portugal! E de repente, deslumbrado, vira por sobre elle estenderem-se as azas brancas d'um anjo! Era o anjo da esmola, meus senhores! E d'onde vinha? d'onde recebera a inspiraÃâo da caridade? d'onde sahia assim, com os seus cabellos d'ouro? Dos livros da sciencia? dos laboratorios chimicos? d'esses amphitheatros d'anatomia onde se nega covardemente a alma? das sÃccas escÃlas de philosophia que fazem de Jesus um precursor de Robespierre? Nâo! Elle ous·ra interrogar o anjo, submisso, com o joelho em terra. E o anjo da esmola, apontando o espaÃo divino, murmur·ra: ´Venho d'alÃm!ª Entâo pelos bancos apinhados correu um susurro d'enlevo. Era como se os estuques do tecto se abrissem, os anjos cantassem no alto. Um estremecimento devoto e poetico arrepiava as cuias das senhoras. E Rufino findava, com uma altiva certeza na alma! Sim, meus senhores! Desde esse momento, a duvida fÃra n'elle como a nevoa que o sol, este radiante sol portuguez, desfaz nos ares... E agora, apesar de todas as ironias da sciencia, apesar dos escarneos orgulhosos d'um Renan, d'um Littrà e d'um Spencer, elle, que recebera a confidencia divina, podia alli, com a mâo sobre o coraÃâo, affirmar a todos bem alto--havia um cÃo! --Apoiado! mugiu na coxia o padre sebento. E por todo o salâo, no aperto e no calor do gaz, os cavalheiros das Secretarias, da Arcada, da Casa Havaneza, berrando, batendo as mâos, affirmaram soberbamente o cÃo! O Ega que ria, divertido, sentiu ao lado um som rouco de cÃlera. Era o Alencar, de paletot, de gravata branca, cofiando sombriamente os bigodes. --Que te parece, Thomaz? --Faz nojo! rugiu surdamente o poeta. Tremia, revoltado! N'uma noite d'aquellas, toda de poesia, quando os homens de letras se deviam mostrar como sâo, filhos da democracia e da liberdade, vir aquelle pulha pÃr-se alli a lamber os pÃs · familia real... Era simplesmente ascoroso! L· ao fundo, junto aos degraus do tablado, ia um tumulto d'abraÃos, de comprimentos, em torno do Rufino, que reluzia todo de orgulho e suor. E pela porta os homens escoavam-se, afogueados, commovidos ainda, puxando das charuteiras. Entâo o poeta travou do braÃo do Ega: --Ouve l·, eu vinha justamente procurar-te. ⦠o Guimarâes, o tio do Damaso, que me pediu para te ser apresentado... Diz que à uma coisa sÃria, muito sÃria... Est· l· em baixo no botequim, com um _grog_. Ega pareceu surprehendido... Coisa sÃria!? --Bem, vamos nÃs l· baixo tomar tambem um _grog_! E que recitas tu logo, Alencar? --_A Democracia_, foi dizendo o poeta pela escada, com certa reserva. Uma coisita nova, tu ver·s... Sâo algumas verdades duras a toda essa burguezia... Estavam · porta do botequim--e precisamente o snr. Guimarâes sahia, com o chapÃo sobre o olho, de charuto accÃso, abotoando a sobrecasaca. Alencar lanÃou a apresentaÃâo, com immensa gravidade: --O meu amigo Joâo da Ega... O meu velho amigo Guimarâes, um bravo c· dos nossos, um veterano da Democracia. Ega acercou-se d'uma mesa, puxou cortezmente um banco para o veterano da Democracia, quiz saber se elle preferia cognac ou cerveja. --Tomei agora o meu _grog_ de guerra, disse o snr. Guimarâes com seccura, tenho para toda a noite. Um criado dava uma limpadella lenta sobre o marmore da mesa. Ega ordenou cerveja. E directamente, largando o charuto, passando a mâo pelas barbas a retocar a magestade da face, o snr. Guimarâes comeÃou com lentidâo e solemnidade: --Eu sou tio do Damaso Salcede, e pedi aqui ao meu velho amigo Alencar para me apresentar a v. exc.^a, com o fim de o intimar a que olhe bem para mim e que diga se me acha cara de bebedo... Ega comprehendeu, atalhou logo, cheio de franqueza e bonhomia: --V. exc.^a refere-se a uma carta que seu sobrinho me escreveu... --Carta que v. exc.^a dictou! Carta que v. exc.^a o forÃou a assignar! --Eu?... --Affirmou-m'o elle, senhor! Alencar interveio: --Fallem vocÃs baixo, que diabo!... Isto à terra de curiosos... O snr. Guimarâes tossiu, chegou a cadeira mais para a mesa. Tinha estado, contou elle, havia semanas fÃra de Lisboa por negocios da heranÃa de seu irmâo. Nâo vira o sobrinho, porque sà por necessidade se encontrava com esse imbecil. Na vespera, em casa d'um antigo amigo, o Vaz Forte, deit·ra por acaso os olhos ao _Futuro_, um jornal republicano, bem escripto, mas frouxo de idÃas. E avist·ra logo na primeira pagina, em typo enorme, sob esta rubrica ali·s justa _Coisas do high-life_, a carta do sobrinho... Imagine o snr. Ega o seu furor! Alli mesmo, em casa do Forte, escrevera ao Damaso pouco mais ou menos n'estes termos: ´Li a tua infame declaraÃâo. Se ·manhâ nâo fazes outra, em todos os jornaes, dizendo que nâo tinhas intenÃâo de me incluir entre os bebedos da tua familia, vou ahi e quebro-te os ossos um por um. Treme!ª Assim lhe escrevera. E sabia o snr. Joâo da Ega qual fÃra a resposta do snr. Damaso? --Tenho-a aqui, à um _documento humano_, como diz o amigo Zola! Aqui est·... Grande papel, monogramma d'ouro, corÃa de conde. Aquelle asno! Quer v. exc.^a que eu leia? A um gesto risonho do Ega, elle mesmo leu, lentamente, e sublinhando: --´Meu caro tio! A carta de que falla foi escripta pelo snr. Joâo da Ega. Eu era incapaz de tal desacato · nossa querida familia. Foi elle que me agarrou na mâo, · forÃa, para eu assignar: e eu, n'aquella atrapalhaÃâo, sem saber o que fazia, assignei para evitar fallatorios. Foi um laÃo que me armaram os meus inimigos. O meu querido tio, que sabe como eu gÃsto de si, que atà estava o anno passado com tenÃâo, se soubesse a sua morada em Paris, de lhe mandar meia pipa de vinho de Collares, nâo fique pois zangado commigo. Bem infeliz j· eu sou! E se quizer procure esse Joâo da Ega que me perdeu! Mas acredite que hei de tirar uma vinganÃa que ha de ser fallada! Ainda nâo decidi qual, n'esta atarantaÃâo; mas em todo o caso a nossa familia ha de ficar desenxovalhada, porque eu nunca admitti que ninguem brincasse com a minha dignidade... E se o nâo fiz j· antes de partir para Italia, se ainda nâo pugnei pela minha honra, à porque ha dias, com todos estes abalos, veio-me uma tremenda dysenteria, que estou que me nâo tenho nas pernas. Isto por cima dos meus males moraes!...ª V. exc.^a ri-se, snr. Ega? --Pois que quer v. exc.^a que eu faÃa? balbuciou o Ega por fim, suffocado, com os olhos em lagrimas. Rio-me eu, ri-se o Alencar, ri-se v. exc.^a Isso à extraordinario! Essa dignidade, essa dysenteria... O snr. Guimarâes, embaÃado, olhou o Ega, olhou o poeta que fungava sob os longos bigodes, e terminou por dizer: --Com effeito, a carta à d'uma cavalgadura... Mas o facto permanece... Entâo Ega appellou para o bom senso do snr. Guimarâes, para a sua experiencia das coisas d'honra. Comprehendia elle que dois cavalheiros, indo desafiar um homem a sua casa, lhe agarrem no pulso, o forcem violentamente a assignar uma carta em que elle se declara bebedo?... O snr. Guimarâes, agradado com aquella deferencia pelo seu tacto e pela sua experiencia, confessou que o caso, pelo menos em Paris, seria pouco natural. --E em Lisboa, senhor! Que diabo, isto nâo à a Cafraria! E diga-me o snr. Guimarâes outra coisa, de gentleman para gentleman: como considera seu sobrinho? um homem irreprehensivelmente veridico? O snr. Guimarâes cofiou as barbas, declarou lealmente: --Um refinado mentiroso. --Entâo! gritou Ega em triumpho, atirando os braÃos ao ar. De novo Alencar interveio. A questâo parecia-lhe satisfactoriamente finda. E nâo restava senâo os dois apertarem-se a mâo fraternalmente, como bons democratas... J· de pÃ, atirou a genebra ·s guelas. Ega sorria, estendia a mâo ao snr. Guimarâes. Mas o velho demagogo, ainda com uma sombra na face enrugada, desejou que o snr. Joâo da Ega (se n'isso nâo tinha duvida) declarasse, alli diante do amigo Alencar, que nâo lhe achava a elle, Guimarâes, cara de bebedo... --Oh meu caro senhor! exclamou Ega, batendo com o dinheiro na mesa para chamar o criado. Pelo contrario! O maior prazer em proclamar diante do Alencar, e aos quatro ventos, que lhe acho a cara d'um perfeito cavalheiro e d'um patriota! Entâo trocaram um rasgado aperto de mâos--emquanto o snr. Guimarâes affirmava a sua satisfaÃâo por conhecer o snr. Joâo da Ega, moÃo de tantos dotes e tâo liberal. E quando s. exc.^a quizesse qualquer coisa, politica ou litteraria, era escrever este endereÃo bem conhecido no mundo:--_Redaction du_ Rappel, _Paris!_ Alencar abal·ra. E os dois deixaram o botequim, trocando impressıes do sarau. O snr. Guimarâes estava enojado com a carolice, a sabujice d'esse Rufino. Quando o ouvira palrar das azas da princeza e da cruz do adro, quasi lhe grit·ra c· do fundo: ´Quanto te pagam para isso, miseravel?ª Mas de repente Ega estacou na escada, tirando o chapÃo: --Oh snr.^a baroneza, entâo j· nos abandona? Era a Alvim que descia devagar, com a Joanninha Villar, atando as largas fitas d'uma capa de pellucia verde. Queixou-se d'uma dÃr de cabeÃa que a torturava, apesar de ter gostado loucamente do Rufino... Mas uma noite toda de litteratura, que estafa! E agora, para mais, fic·ra l· um homemzinho a fazer musica classica... --⦠o meu amigo Cruges! --Ah! à seu amigo? Pois olhe, devia-lhe ter dito que tocasse antes o _Pirolito_. --V. exc.^a afflige-me com esse desdem pelos grandes mestres... Nâo quer que a v· acompanhar · carruagem? Paciencia... Muito boa noite, snr.^a D. Joanna!... Um servo seu, snr.^a baroneza! E Deus lhe tire a sua dÃr de cabeÃa! Ella voltou-se ainda no degrau, para o ameaÃar risonhamente com o leque: --Nâo seja impostor! O snr. Ega nâo acredita em Deus. --Perdâo... Que o Diabo lhe tire a sua dÃr de cabeÃa, snr.^a baroneza! O velho democrata desapparecera discretamente. E da ante-sala Ega avistou logo ao fundo, no tablado, sobre um mÃcho muito baixo que lhe fazia roÃar pelo châo as longas abas da casaca--o Cruges, com o nariz bicudo contra o caderno da Sonata, martellando sabiamente o teclado. Foi entâo subindo em pontas de pÃs pela coxia tapetada de vermelho, agora desafogada, quasi vazia: um ar mais fresco circulava: as senhoras, canÃadas, bocejavam por traz dos leques. Parou junto de D. Maria da Cunha, apertada na mesma fila com todo um rancho intimo, a marqueza de Soutal, as duas Pedrosos, a Thereza Darque. E a boa D. Maria tocou-lhe logo no braÃo para saber quem era aquelle musico de cabelleira. --Um amigo meu, murmurou Ega. Um grande maestro, o Cruges. O Cruges... O nome correu entre as senhoras, que o nâo conheciam. E era composiÃâo d'elle, aquella coisa triste? --⦠de Beethoven, snr.^a D. Maria da Cunha, a _Sonata pathetica_. Uma das Pedrosos nâo percebera bem o nome da Sonata. E a marqueza de Soutal, muito sÃria, muito bella, cheirando devagar um frasquinho de saes, disse que era a _Sonata pateta_. Por toda a bancada foi um rastilho de risos suffocados. A _Sonata pateta_! Aquillo parecia divino! Da extremidade o Vargas gordo, o das corridas, estendeu a face enorme, imberbe e cÃr de papoula: --Muito bem, snr.^a marqueza, muito catita! E passou o gracejo a outras senhoras, que se voltavam, sorriam · marqueza, entre o _frou-frou_ dos leques. Ella triumphava, bella e sÃria, com um velho vestido de velludo preto, respirando os saes--emquanto adiante um amador de barba grisalha cravava n'aquelle rancho ruidoso dois grandes oculos d'ouro que faiscavam de cÃlera. No emtanto, por toda a sala, o susurro crescia. Os encatarrhoados tossiam livremente. Dois cavalheiros tinham aberto a _Tarde_. E cahido sobre o teclado, com a gola da casaca fugida para a nuca, o pobre Cruges, suando, estonteado por aquella desattenÃâo rumorosa, atabalhoava as notas, n'uma debandada. --Fiasco completo, declarou Carlos que se aproxim·ra do Ega e do rancho. Foi para D. Maria da Cunha uma alegria, uma surpreza! Atà que emfim se via o snr. Carlos da Maia, o Principe Tenebroso! Que fizera elle durante esse verâo? Todo o mundo a esperal-o em Cintra, alguem mesmo com anciedade... Um _chut_ furioso do amador de barbas grisalhas emmudeceu-a. E justamente Cruges, depois de bater dois accordes bruscos, arred·ra o mÃcho, esgueirava-se do estrado, enxugando as mâos ao lenÃo. Aqui e alÃm algumas palmas resoaram, molles e de cortezia, entre um grande murmurio d'allivio. E o Ega e Carlos correram · porta, onde j· esperavam o marquez, o Craft, o Taveira--para abraÃar, consolar o pobre Cruges que tremia todo, com os olhos esgazeados. E immediatamente, no silencio attento que redominava, um sujeito muito magro, muito alto, surgiu no tablado, com um manuscripto na mâo. Alguem ao lado do Ega disse que era o Prata, que ia fallar sobre o _Estado agricola da provincia do Minho_. Atraz, um criado veio collocar sobre a mesa um candelabro de duas velas: o Prata, d'ilharga para a luz, mergulhou no caderno: e d'entre o perfil triste e as folhas largas um rumor lento foi escorrendo, rumor de reza n'uma somnolencia de novena, onde por vezes destacavam como gemidos--´riqueza dos gados..., esphacelamento da propriedade..., fertil e desprotegida regiâo...ª ComeÃou entâo uma debandada sorrateira e formigueira, que nem os _chuts_ do commissario do sarau, vigilante e de pà sobre um degrau do estrado, podiam conter. Sà as senhoras ficavam; e um ou outro burocrata idoso, que se inclinava zelosamente para o murmurio de reza, com a mâo em concha sobre a orelha. Ega, que fugia tambem ´ao vecejante paraiso do Minhoª, achou-se em frente do snr. Guimarâes. --Que massada, hein? O democrata concordou que aquelle preopinante nâo lhe parecia divertido... Depois, mais sÃrio, com outra idÃa, segurando um botâo da casaca do Ega: ---Eu espero que v. exc.^a ha pouco nâo ficasse com a impressâo de que eu sou solidario ou me importo com meu sobrinho... Oh! decerto que nâo! Ega vira bem que o snr. Guimarâes nâo tinha pelo Damaso nenhum enthusiasmo de familia. --Asco, senhor, sà asco! Quando elle foi a primeira vez a Paris, e soube que eu morava n'uma trapeira, nunca me procurou! Porque aquelle imbecil d·-se ares d'aristocrata... E como v. exc.^a sabe, à filho d'um agiota! Puxou a charuteira, ajuntou gravemente: --A mâi, sim! Minha irmâ era d'uma boa familia. Fez aquelle desgraÃado casamento, mas era d'uma boa familia! Que, com os meus principios, j· v. exc.^a và que tudo isso de fidalguia, pergaminhos, brazıes, sâo para mim _blague_ e mais _blague_! Mas emfim os factos sâo os factos, a historia de Portugal ahi est·... Os Guimarâes da Bairrada eram de sangue azul. Ega sorriu, n'um assentimento cortez: --E v. exc.^a entâo parte brevemente para Paris? --¡manhâ mesmo, por Bordeus... Agora que toda essa cambada do marechal de Mac-Mahon, e do duque de Broglie, e do Descazes foi pelos ares, j· se pÃde l· respirar... N'esse instante Telles e o Taveira, passando de braÃo dado, voltaram-se, a observar curiosamente aquelle velho austero, todo de preto, que fallava alto com o Ega de marechaes e de duques. Ega reparou: o democrata, de resto, tinha uma sobrecasaca de casimira nova; o seu altivo chapÃo reluzia; e Ega ficou de bom grado a conversar com aquelle gentleman correcto e venerando que impressionava os seus amigos. --A republica com effeito, observou elle, dando alguns passos ao lado do snr. Guimarâes, esteve alli um momento compromettida! --Perdida! E eu, meu caro senhor, aqui onde me vÃ, para ser expulso por causa d'umas verdadesinhas que soltei n'uma reuniâo anarchista. Atà me affirmaram que n'um conselho de ministros o marechal de Mac-Mahon, que à um tarimbeiro, batera um murro na mesa e dissera: _Ce sacrà Guimaran, il nous embÃte, faut lui donner du pied dans le derriÃre!_ Eu nâo estava l·, nâo sei, mas affirmaram-me... Em Paris, como os francezes nâo sabem pronunciar Guimarâes, e eu embirro que me estropiem o nome, assigno _Mr. Guimaran_. Ha dois annos, quando fui · Italia, era _Mr. Guimarini_. E se fÃr agora · Russia, c· por coisas, hei de ser _Mr. Guimaroff_... Embirro que me estropiem o nome! Tinham voltado · porta do salâo. Longas bancadas vazias punham dentro, no brilho pesado do gaz, uma tristeza de abandono e tedio; e no estrado o Prata continuava, de mâo no bolso, com o nariz sobre o manuscripto, sem que se sentisse agora surdir um som d'aquelle espantalho esguio. Mas o marquez, que descia do fundo, atabafando-se no seu cache-nez de sÃda, disse ao Ega ao passar que o homemzinho era muito pratico, sabia da pÃda, e l· tinha ficado ·s voltas com Proudhon. Ega e o democrata recomeÃaram entâo os seus passos lentos na ante-sala onde o susurro de conversas mal abafadas crescia, como n'um pateo, entre fumaÃas furtivas de cigarro. E o snr. Guimarâes chasqueava, achando uma boa _bÃtise_ que se citasse Proudhon, alli n'aquelle theatreco, a proposito d'estrumes do Minho... --Oh, Proudhon entre nÃs, acudiu Ega rindo, cita-se muito, à j· um monstro classico. Atà os conselheiros d'Estado j· sabem que para elle a propriedade era um roubo, e Deus era o mal... O democrata encolheu os hombros: --Grande homem, senhor! Homem immenso! Sâo os tres grandes pimpıes d'este seculo: Proudhon, Garibaldi, e o compadre! --O compadre! exclamou Ega, attonito. Era o nome d'amizade que o snr. Guimarâes dava em Paris a Gambetta. Gambetta nunca o via, que nâo lhe gritasse de longe, em hespanhol: _´Hombre, compadre!_ª E elle tambem, logo: ´_Compadre, caramba!_ª D'ahi fic·ra a alcunha, e Gambetta ria. Porque l· isso, bom rapaz, e amigo d'esta franqueza do sul, e patriota, atà alli! --Immenso, meu caro senhor! O maior de todos! Pois Ega imaginaria que o snr. Guimarâes, com as suas relaÃıes do _Rappel_, devia ter sobretudo o culto de Victor Hugo... --Esse, meu caro senhor, nâo à um homem, à um mundo! E o snr. Guimarâes ergueu mais a face, ajuntou infinitamente grave: --⦠um mundo! .. E aqui onde me vÃ, ainda nâo ha tres mezes que elle me disse uma coisa que me foi direita ao coraÃâo! Vendo com deleite o interesse e a curiosidade do Ega, o democrata contou largamente esse glorioso lance que ainda o commovia: --Foi uma noite no _Rappel_. Eu estava a escrever, elle appareceu, j· um pouco trÃpego, mas com o olho a luzir, e aquella bondade, aquella magestade!... Eu ergui-me, como se entrasse um rei... Isto Ã, nâo! que se fosse um rei tinha-lhe dado com a bota no rabiosque. Levantei-me como se elle fosse um Deus! Qual Deus! nâo ha Deus que me fizesse levantar!... Emfim, acabou-se, levantei-me! Elle olhou para mim, fez assim um gesto com a mâo, e disse, a sorrir, com aquelle ar de genio que tinha sempre: _Bonsoir, mon ami!_ E o snr. Guimarâes deu alguns passos dignos, em silencio, como se aquelle _bonsoir_, aquelle _mon ami_, assim recordados, lhe fizessem mais vivamente sentir a sua importancia no mundo. De repente Alencar, que bracejava n'um grupo, rompeu para elles, pallido, d'olhos chammejantes: --Que me dizem vocÃs a esta pouca vergonha? Aquelle infame alli ha meia hora, com o in-folio, a rosnar, a rosnar... E toda a gente a sahir, nâo fica ninguem! Tenho de recitar aos bancos de palhinha!... E abalou, rilhando os dentes, a exhalar mais longe o seu furor. Mas algumas palmas canÃadas, dentro, fizeram voltar o Ega. O estrado fic·ra novamente vazio, com as duas velas ardendo no candelabro. Um cartâo em grossas letras, que um criado colloc·ra no piano, annunciava um ´intervallo de dez minutosª como n'um circo. E n'esse instante a snr.^a condessa de Gouvarinho sahira pelo braÃo do marido, deixando atraz um sulco largo de comprimentos, d'espinhas que se vergavam, de chapÃos de burocratas rasgadamente erguidos. O commissario do sarau azafamava-se procurando duas cadeiras para ss. exc.^{as} A condessa porÃm foi reunir-se a D. Maria da Cunha, que ella vira, com as Pedrosos e a marqueza de Soutal, refugiada n'um vâo de janella. Ega immediatamente acercou-se do rancho intimo, esperando que as senhoras se beijocassem. --Entâo, snr.^a condessa, ainda muito commovida com a eloquencia do Rufino? --Muito canÃada... E que calor, hein? --Horrivel. A snr.^a baroneza d'Alvim sahiu ha pouco, com uma dor de cabeÃa... A condessa, que tinha os olhos pisados e uma prega de velhice aos cantos da boca, murmurou: --Nâo admira, isto nâo à divertido... Emfim, j· agora à necessario levar a cruz ao Calvario. --Se fosse uma cruz, minha senhora! exclamou o Ega. Infelizmente à uma lyra! Ella riu. E D. Maria da Cunha, n'essa noite mais remoÃada e viva, ficou logo toda banhada n'um sorriso, com aquella carinhosa admiraÃâo pelo Ega, que era um dos seus sentimentos. --Este Ega!... Nâo ha mal que lhe chegue!... E diga-me outra coisa, que à feito do seu amigo Maia? Ega vira-a momentos antes, no salâo, puxar pela manga de Carlos, cochichar com Carlos. Mas conservou um ar innocente: --Est· ahi, anda por ahi, assistindo a toda essa litteratura. De repente os olhos sempre bonitos e languidos de D. Maria da Cunha rebrilharam com uma faisca de malicia: --Fallai no mau... N'este caso seria fallar do bom. Emfim ahi nos vem o Principe Tenebroso! E era com effeito Carlos que passava, se encontr·ra diante dos braÃos do conde de Gouvarinho, estendidos para elle com uma effusâo em que parecia renascer o antigo affecto. Pela primeira vez Carlos via a condessa, desde a noite em que no Aterro, abandonando-a para sempre, fech·ra com odio a portinhola da tipoia onde ella ficava chorando. Ambos baixaram os olhos, ao adiantar a mâo um para o outro, lentamente. E foi ella que findou o embaraÃo, abrindo o seu grande leque de pennas de avestruz: --Que calor, nâo à verdade? --Atroz! disse Carlos. Nâo v· v. exc.^a apanhar ar d'essa janella. Ella forÃou os labios brancos a um sorriso: --⦠conselho de medico? --Oh, minha senhora, nâo sâo as horas da minha consulta! ⦠apenas caridade de christâo. Mas de repente a condessa chamou o Taveira, que ria, derretido, com a marqueza de Soutal, para o reprehender por elle nâo ter apparecido terÃa-feira na rua de S. MarÃal. Surprehendido com tanto interesse, tanta familiaridade, o Taveira, muito vermelho, balbuciou que nem sabia, fÃra o seu infortunio, tinham-se mettido umas coisas... --AlÃm d'isso nâo imaginei que v. exc.^a comeÃasse a receber tâo cedo... V. exc.^a antigamente era sà depois da CerraÃâo da Velha. Atà me lembro que o anno passado... Mas emmudeceu. O conde de Gouvarinho volt·ra-se, pousando a mâo carinhosa no hombro de Carlos, desejando a sua impressâo sobre o ´nosso Rufinoª. Elle conde estava encantado! Encantado sobretudo com a _variedade d'escala_, aquella arte tâo difficil de passar do solemne para o ameno, de descer das grandes rajadas para os brincados de linguagem. Extraordinario! --Tenho ouvido grandes parlamentares, o Rouher, o Gladstone, o Canovas, outros muitos. Mas nâo sâo estes vÃos, esta opulencia... ⦠tudo muito sÃcco, idÃas e factos. Nâo entra n'alma! Vejam os amigos aquella imagem tâo pujante, tâo respeitosa, do Anjo da Esmola, descendo devagar, com as azas de setim... ⦠de primeira ordem. Ega nâo se conteve: --Eu acho esse genio um imbecil. O conde sorriu, como · tonteria d'uma crianÃa: --Sâo opiniıes... E estendeu em redor as mâos ao Sousa Netto, ao Darque, ao Telles da Gama, a outros que se juntavam ao rancho intimo--emquanto os seus correligionarios, os seus collegas do Centro e da Camara, o GonÃalo, o Neves, o Vieira da Costa rondavam de longe, sem poder roÃar pelo ministro que tinham creado, agora que elle conversava e ria com rapazes e senhoras da ´sociedadeª. O Darque, que era parente do Gouvarinho, quiz saber como o amigo Gastâo se ia dando com os encargos do Poder... O conde declarou para os lados que nâo fizera mais por ora do que passar em revista os elementos com que contava para atacar os problemas... De resto, em questıes de trabalho, o ministerio fÃra infelicissimo! O presidente do conselho de cama com uma catarrheira, inutil para uma semana. Agora o collega da fazenda com as febres do Aterro... --Est· melhor? J· sae? foi em torno a pergunta cheia de cuidado. --Est· na mesma, vai ·manhâ para o D·fundo. Mas realmente esse nâo se acha de todo inutilisado. Ainda hontem eu lhe dizia: ´Vocà parte para o D·fundo, leva os seus papeis, os seus documentos... Pela manhâ d· os seus passeios, respira o bom ar... E · noite, depois de jantar, · luz do candieiro, entretem-se a resolver a questâo de fazenda!ª Uma campainha retiniu. D. Josà Sequeira, escarlate d'azafama, veio, furando, annunciar a s. exc.^a o fim do intervallo--offerecer o braÃo · snr.^a condessa. Ao passar, ella lembrou a Carlos as suas ´terÃas-feirasª, com a delicada simplicidade d'um dever. Elle curvou-se em silencio. Era como se todo o passado, o sof· que rolava, a casa da titi em Santa Isabel, as tipoias em que ella deixava o seu cheiro de verbena--fossem coisas lidas por ambos n'um livro e por ambos esquecidas. Atraz, o marido seguia, erguendo alto a cabeÃa e as lunetas, como representante do Poder n'aquella festa da Intelligencia. --Pois senhores, disse o Ega afastando-se com Carlos, a mulherzinha tem topete! --Que diabo queres tu? Atravessou a sua hora de tolice e de paixâo, e agora continËa tranquillamente na rotina da vida. --E na rotina da vida, concluiu Ega, encontra-se a cada passo comtigo, que a viste em camisa!... Bonito mundo! Mas o Alencar appareceu no alto da escada, voltando do botequim e da genebra, com um brilho maior no olho cavo, de paletot no braÃo, j· preparado para gorgear. E o marquez juntou-se a elles, abafado no cache-nez de sÃda branca, mais rouco, queixando-se de que a cada minuto a garganta se lhe punha peor... Aquella canalha d'aquella garganta ainda lhe vinha a pregar uma!... Depois, muito sÃrio, considerando o Alencar: --Ouve l·, isso que tu vaes recitar, a _Democracia_, à politica ou sentimento? Se à politica, raspo-me. Mas se à sentimento, e a humanidade, e o santo operario, e a fraternidade, entâo fico, que d'isso gÃsto e atà talvez me faÃa bem. Os outros affirmaram que era sentimento. O poeta tirou o chapÃo, passou os dedos pelos anneis fÃfos da grenha inspirada: --Eu vos digo, rapazes... Uma coisa nâo vai sem a outra, vejam vocÃs Danton!... Mas j· nâo fallo emfim d'esses leıes da RevoluÃâo. Vejam vocÃs o Passos Manoel! Est· claro, à necessario logica... Mas, tambem, caramba, sÃbo para uma politica sem entranhas e sem um bocado de infinito! Subitamente, por sobre o novo silencio da sala, um vozeirâo mais forte que o do Rufino fez retumbar os grandes nomes de D. Joâo de Castro e de Affonso d'Albuquerque... Todos se acercaram da porta, curiosamente. Era um maganâo gordo, de barba em bico e camelia na casaca, que, de mâo fechada no ar como se agitasse o pendâo das Quinas, lamentava aos berros que nÃs portuguezes, possuindo este nobre estuario do Tejo e tâo formosas tradiÃıes de gloria, deixassemos esbanjar, ao vento do indifferentismo, a sublime heranÃa dos avÃs!... --⦠patriotismo, disse o Ega. Fujamos! Mas o marquez reteve-os, gostando tambem de um bocado de Quinas. E foi o pobre marquez que o patriota pareceu interpellar, alÃando na ponta dos botins o corpanzil rotundo, aos urros. Quem havia agora ahi, que, agarrando n'uma das mâos a espada e na outra a cruz, saltasse para o convÃs d'uma caravella a ir levar o nome portuguez atravÃs dos mares desconhecidos? Quem havia ahi, heroico bastante, para imitar o grande Joâo de Castro, que na sua quinta de Cintra arranc·ra todas as arvores de fructo, tal a era a isenÃâo da sua alma de poeta?... --Aquelle miseravel quer-nos privar da sobremesa! exclamou Ega. Em torno correram risos alegres. O marquez virou costas, enojado com aquella patriotice reles. Outros bocejavam por traz da mâo, n'um tedio completo de ´todas as nossas gloriasª. E Carlos, enervado, preso alli pelo dever de applaudir o Alencar, chamava o Ega para irem abaixo ao botequim espairecer a impaciencia--quando viu o Eusebiosinho que descia a escada, enfiando · pressa um paletot alvadio. Nâo o encontr·ra mais desde a infamia da _Corneta_, em que elle fÃra ´embaixadorª. E a cÃlera que tivera contra elle n'esse dia reviveu logo n'um desejo irresistivel de o espancar. Disse ao Ega: --Vou aproveitar o tempo, emquanto esperamos pelo Alencar, a arrancar as orelhas ·quelle maroto! --Deixa l·, acudiu Ega, à um irresponsavel! Mas j· Carlos corria pelas escadas: Ega seguiu atraz, inquieto, temendo uma violencia. Quando chegaram · porta, Eusebio mettera para os lados do Carmo. E alcanÃaram-no no largo da Abegoaria, ·quella hora deserto, mudo, com dois bicos de gaz mortiÃos. Ao vÃr Carlos fender assim sobre elle, sem paletot, de peitilho claro na noite escura, o Eusebio, encolhido, balbuciou atarantadamente: ´Ol·, por aqui...ª --Ouve c·, estupÃr! rugiu Carlos, baixo. Entâo tambem andaste mettido n'essa maroteira da _Corneta_? Eu devia rachar-te os ossos um a um! Agarr·ra-lhe o braÃo, ainda sem odio. Mas, apenas sentiu na sua mâo de forte aquella carne mollenga e tremula, resurgiu n'elle essa aversâo nunca apagada--que j· em pequeno o fazia saltar sobre o Eusebiosinho, esfrangalhal-o, sempre que as Silveiras o traziam · quinta. E entâo abanou-o, como outr'ora, furiosamente, gozando o seu furor. O pobre viuvo, no meio das lunetas negras que lhe voavam, do chapÃo coberto de luto que lhe rol·ra nas lages, danÃava, escanifrado e desengonÃado. Por fim Carlos atirou-o contra a porta d'uma cocheira. --Acudam! Aqui d'el-rei, policia! rouquejou o desgraÃado. J· a mâo de Carlos lhe empolg·ra as guelas. Mas Ega interveio: --Alto! Basta! O nosso querido amigo j· recebeu a sua dÃse... Elle mesmo lhe apanhou o chapÃo. Tremendo, arquejando, de bruÃos, Eusebiosinho procurava ainda o guarda-chuva. E, para findar, a bota de Carlos, atirada com nojo, estatelou-o nas pedras, para cima d'uma sargeta onde restavam immundicies e humidade de cavallo. O largo permanecia deserto, com o gaz adormecendo nos candieiros baÃos. Tranquillamente os dois recolheram ao sarau. No peristylo, cheio de luz e plantas, cruzaram-se com o patriota de barbas em bico, rodeado d'amigos, em caminho para o botequim, limpando ao lenÃo o pescoÃo e a face, exclamando com o cansaÃo radiante d'um triumphador: --Irra! custou, mas sempre lhes fiz vibrar a corda! J· o Alencar estaria gorgeando! Os dois amigos galgaram a escada. E com effeito Alencar apparecera no estrado, onde ardia ainda o candelabro de duas velas. Esguio, mais sombrio n'aquelle fundo cÃr de canario, o poeta derramou pensativamente pelas cadeiras, pela galeria, um olhar encovado e lento: e um silencio pesou, mais enlevado, diante de tanta melancolia e de tanta solemnidade. --_A Democracia!_ annunciou o auctor d'_Elvira_, com a pompa d'uma revelaÃâo. Duas vezes passou pelos bigodes o lenÃo branco, que depois atirou para a mesa. E levantando a mâo n'um gesto demorado e largo: Era n'um parque. O luar Sobre os vastos arvoredos, Cheios de amor e segredos... --Que lhe disse eu? exclamou o Ega, tocando no cotovÃlo do marquez. ⦠sentimento... Aposto que à o festim! E era com effeito o festim, j· cantado na _FlÃr de Martyrio_, festim romantico, n'um vago jardim onde vinhos de Chypre circulam, caudas de brocado rojam entre macissos de magnolias, e das aguas do lago sobem cantos ao gemer dos violoncellos... Mas bem depressa transpareceu a severa idÃa social da Poesia. Emquanto, sob as arvores radiantes de luar, tudo sâo ´risos, brindes, lascivos murmuriosª--fÃra, junto ·s grades douradas do parque, assustada com o latir dos molossos, uma mulher macilenta, em farrapos, chora, aconchegando ao seio magro o filho que pede pâo... E o poeta, sacudindo os cabellos para traz, perguntava porque havia ainda esfomeados n'este orgulhoso seculo XIX? De que servira entâo, desde Spartacus, o esforÃo desesperado dos homens para a JustiÃa e para a Igualdade? De que servira entâo a cruz do grande Martyr, erguida alÃm na collina, onde, por entre os abetos Os raios do sol se somem, O vento triste se cala... E as aguias revolteando D'entre as nuvens estâo olhando Morrer o filho do Homem! A sala permanecia muda e desconfiada. E o Alencar, com as mâos tremendo no ar, desolava-se de que todo o Genio das geraÃıes fosse impotente para esta coisa simples--dar pâo · crianÃa que chora! Martyrio do coraÃâo! Espanto da consciencia! Que toda a humana sciencia Nâo solva a negra questâo! Que os tempos passem e rolem E nenhuma luz assome, E eu veja d'um lado a fome E do outro a indigestâo! Ega torcia-se, fungando dentro do lenÃo, jurando que rebentava. ´_E do outro a indigestâo!_ª Nunca, nas alturas lyricas, se grit·ra nada tâo extraordinario! E sujeitos graves, em redor, sorriam d'aquelle _realismo_ sujo. Um jocoso lembrou que para indigestıes j· havia o bi-carbonato de potassa. --Quando nâo sâo das minhas! rosnou um cavalheiro esverdinhado, que alargava a fivela do collete. Mas tudo emmudeceu ante um _chut_ terrivel do marquez, que desapert·ra o cache-nez, j· excitado, no enternecimento que sempre lhe davam estes humanitarismos poeticos. E entretanto, no estrado, o Alencar ach·ra a soluÃâo do soffrimento humano! FÃra uma Voz que lh'a ensin·ra! Uma Voz sahida do fundo dos seculos, e que atravÃs d'elles, sempre suffocada, viera crescendo todavia irresistivelmente desde o Golgotha atà · Bastilha! E entâo, mais solemne por traz da mesa, com um arranque de Precursor e uma firmeza de Soldado, como se aquelle honesto movel de mogno fosse um pulpito e uma barricada--o Alencar, alÃando a fronte n'uma grande audacia · Danton, soltou o brado temeroso. Alencar queria a Republica! Sim, a Republica! Nâo a do Terror e a do odio, mas a da mansidâo e do Amor. Aquella em que o Millionario sorrindo abre os braÃos ao Operario! Aquella que à Aurora, ConsolaÃâo, Refugio, Estrella mystica e Pomba... Pomba da Fraternidade, Que estendendo as brancas azas Por sobre os humanos lodos, Envolve os seus filhos todos Na mesma santa Igualdade!... Em cima, na galeria, resoou um _bravo_ ardente. E immediatamente, para o suffocar, sujeitos sÃrios lanÃaram, aqui e alÃm: ´Chut, silencio!ª Entâo Ega ergueu as mâos magras, bem alto, berrou com um destaque atrevido: --Bravo! Muito bem! Bravo! E todo pallido da sua audacia, entalando o monoculo, declarou para os lados: --Aquella democracia à absurda... Mas que os burguezes se dÃem ares intolerantes, isso nâo! Entâo applaudo eu! E as suas mâos magras de novo se ergueram, bem alto, junto das do marquez que retumbavam como malhos. Outros em volta, immediatamente, nâo se querendo mostrar menos democratas que o Ega e aquelle fidalgo de tâo grande linhagem, reforÃaram os _bravos_ com calor. J· pela sala se voltavam olhares inquietos para aquelle grupo cheio de revoluÃâo. Mas um silencio cahiu, mais commovido e grave, quando o Alencar (que inspiradamente previra a intolerancia burgueza) perguntou em estrophes iradas o que detestavam, o que receavam elles, no advento sublime da Republica? Era o pâo carinhoso dado · crianÃa? Era a mâo justa estendida ao proletario? Era a esperanÃa? Era a aurora? Receaes a grande luz? Tendes medo do AbecÃ?... Entâo castigai quem lÃ, Voltai · plebe soez! Recuai sempre na Historia, Apagai o gaz nas ruas, Deixai as crianÃas nuas, E venha a forca outra vez! Palmas, mais numerosas, j· sinceras, estalaram pela sala, que cedia emfim ao repetido encanto d'aquelle lyrismo humanitario e sonoro. J· nâo importava a Republica, os seus perigos. Os versos rolavam, cantantes e claros; e a sua onda larga arrastava os espiritos mais positivos. Sob aquelle bafo de sympathia Alencar sorria, com os braÃos abertos, annunciando uma a uma, como perolas que se desfiam, todas as dadivas que traria a Republica. Debaixo da sua bandeira, nâo vermelha mas branca, elle via a terra coberta de searas, todas as fomes satisfeitas, as naÃıes cantando nos valles sob o olhar risonho de Deus. Sim, porque Alencar nâo queria uma Republica sem Deus! A Democracia e o Christianismo, como um lirio que se abraÃa a uma espiga, completavam-se, estreitando os seios! A rocha do Golgotha tornava-se a tribuna da ConvenÃâo! E para tâo dÃce ideal nâo se necessitavam cardeaes, nem missaes, nem novenas, nem igrejas. A Republica, feita sà de pureza e de fÃ, reza nos campos; a lua cheia à hostia; os rouxinoes entoam o _tantum ergo_ nos ramos dos loureiraes. E tudo prospÃra, tudo refulge--ao mundo do Conflicto substitue-se o mundo do Amor... ¡ espada succede o arado, A JustiÃa ri da Morte, A escÃla est· livre e forte, E a Bastilha derrocada. RÃla a ti·ra no lodo, Brota o lirio da Igualdade, E uma nova Humanidade Planta a cruz na barricada! Uma rajada farta e franca de _bravos_ fez oscillar as chammas do gaz! Era a paixâo meridional do verso, da sonoridade, do Liberalismo romantico, da imagem que esfuzia no ar com um brilho crepitante de foguete, conquistando emfim tudo, pondo uma palpitaÃâo em cada peito, levando chefes de repartiÃâo a berrarem, estirados por cima das damas, no enthusiasmo d'aquella republica onde havia rouxinoes! E quando Alencar, alÃando os braÃos ao tecto, com modulaÃıes de _preghiera_ na voz roufenha, chamou para a terra essa pomba da Democracia, que erguera o vÃo do Calvario, e vinha com largos sulcos de luz--foi um enternecimento banhando as almas, um fundo arrepio d'extasi. As senhoras amolleciam nas cadeiras, com a face meia voltada ao cÃo. No salâo abrazado perpassavam frescuras de capella. As rimas fundiam-se n'um murmurio de ladainha, como evoladas para uma Imagem que pregas de setim cobrissem, estrellas d'ouro coroassem. E mal se sabia j· se Essa, que se invocava e se esperava, era a deusa da Liberdade--ou Nossa Senhora das DÃres. Alencar no emtanto via-a descer, espalhando um perfume. J· Ella tocava com os seus pÃs divinos os valles humanos. J· do seu seio fecundo trasbordava a universal abundancia. Tudo reflorescia, tudo rejuvenescia: As rosas tÃm mais aroma! Os fructos tÃm mais doÃura! Brilha a alma clara e pura, Solta de sombras e vÃos... Foge a dÃr espavorida, Foi-se a fome, foi-se a guerra, O homem canta na terra, E Christo sorri nos cÃos!... Uma acclamaÃâo rompeu, immensa e rouca, abalando os muros cÃr de canario. MoÃos exaltados treparam ·s cadeiras, dois lenÃos brancos fluctuavam. E o poeta, tremulo, exhausto, rolou pela escada atà aos braÃos que se lhe estendiam frementes. Elle suffocava, murmurava: ´filhos! rapazes!...ª Quando Ega correu do fundo, com Carlos, gritando--´FÃste extraordinario, Thomaz!ª--as lagrimas saltaram dos olhos do Alencar, quebrado todo d'emoÃâo. E ao longo da coxia a ovaÃâo continuou, feita de palmadinhas pelo hombro, de _shake-hands_ da gente sÃria, de ´muitos parabens a v. exc.^a!ª Pouco a pouco elle erguia a cabeÃa, n'um altivo sorriso que lhe mostrava os dentes maus, sentindo-se o poeta da Democracia, consagrado, ungido pelo triumpho, com a inesperada missâo de libertar almas! D. Maria da Cunha puxou-lhe pela manga quando elle passou, para murmurar, encantada, que ach·ra--´lindissimo, lindissimoª. E o poeta, estonteado, exclamou: ´Maria, à necessario luz!ª Telles da Gama veio bater-lhe nas costas affirmando-lhe que ´pi·ra esplendidamenteª. E Alencar, inteiramente perdido, balbuciou: ´_Sursum corda_, meu Telles, _sursum corda_!ª Ega no emtanto, atravÃs do tumulto, farejava buscando Carlos que desapparecera depois dos abraÃos ao Alencar. Taveira assegurou-lhe que Carlos pass·ra para o botequim. Depois em baixo um garoto jurou que o snr. D. Carlos tom·ra uma tipoia e ia j· virando o Chiado... Ega ficou · porta hesitando se aturaria o resto do sarau. N'esse momento o Gouvarinho, trazendo a condessa pelo braÃo, descia rapidamente, com a face toda contrariada e sombria. O trintanario de ss. exc.^{as} correu a chamar o coupÃ. E quando o Ega se acercou, sorrindo, para saber que impressâo lhes deix·ra o grande triumpho democratico do Alencar--a profunda cÃlera do Gouvarinho escapou-se-lhe, mal contida, por entre os dentes cerrados: --Versos admiraveis, mas indecentes! O coupà avanÃou. Elle teve apenas tempo de rosnar ainda, surdamente, apertando a mâo ao Ega: --N'uma festa de sociedade, sob a protecÃâo da rainha, diante d'um ministro da corÃa, fallar de barricadas, prometter mundos e fundos ·s classes proletarias... ⦠perfeitamente indecente! J· a condessa enfi·ra a portinhola, apanhando a larga cauda de sÃda. O ministro mergulhou tambem furiosamente na sombra do coupÃ. Junto ·s rodas passou choutando, n'uma pileca branca, o correio agaloado. Ega ia subir. Mas o marquez appareceu, abafado n'um gabâo d'Aveiro, fugindo a um poeta de grandes bigodes que fic·ra em cima a recitar quadrinhas miudinhas a uns olhinhos galantinhos: e o marquez detestava versos feitos a partes do corpo humano. Depois foi o Cruges que surgiu do botequim, abotoando o paletot. Entâo, perante essa debandada de todos os amigos, Ega decidiu abalar tambem, ir tomar o seu _grog_ ao Gremio com o maestro. Metteram o marquez n'uma tipoia--e elle e Cruges desceram a rua Nova da Trindade, devagar, no encanto estranho d'aquella noite d'inverno, sem estrellas, mas tâo macia que n'ella parecia andar perdido um bafo de maio. Passavam · porta do _Hotel AllianÃa_ quando Ega sentiu alguem, que se apressava, chamar atraz: ´â snr. Ega! V. exc.^a faz favor, snr. Ega?...ª--Parou, reconheceu o chapÃo recurvo, as barbas brancas do snr. Guimarâes. --V. exc.^a desculpe! exclamou o demagogo esbaforido. Mas vi-o descer, queria-lhe dar duas palavras, e como me vou embora ·manhâ... --Perfeitamente... â Cruges, vai andando, j· te apanho! O maestro estacionou · esquina do Chiado. O snr. Guimarâes pedia de novo desculpa. De resto eram duas curtas palavras... --V. exc.^a, segundo me disseram, à o grande amigo do snr. Carlos da Maia... Sâo como irmâos... --Sim, muito amigos... A rua estava deserta, com alguns garotos apenas · porta alumiada da Trindade. Na noite escura a alta fachada do _AllianÃa_ lanÃava sobre elles uma sombra maior. Todavia o snr. Guimarâes baixou a voz cautelosa: --Aqui est· o que Ã... V. exc.^a sabe, ou talvez nâo saiba, que eu fui em Paris intimo da mâi do snr. Carlos da Maia... V. exc.^a tem pressa, e nâo vem agora a proposito essa historia. Basta dizer que aqui ha annos ella entregou-me, para eu guardar, um cofre que, segundo dizia, continha papeis importantes... Depois naturalmente, ambos tivemos muitas outras coisas em que pensar, os annos correram, ella morreu. N'uma palavra, porque v. exc.^a est· com pressa: eu conservo ainda em meu poder esse deposito, e trouxe-o por acaso quando vim agora a Portugal por negocios da heranÃa de meu irmâo... Ora hoje justamente, alli no theatro, comecei a reflectir que o melhor era entregal-o · familia... O Cruges mexeu-se impaciente: --Ainda te demoras? --Um instante! gritou Ega, j· interessado por aquelles papeis e pelo cofre. Vai andando. Entâo o snr. Guimarâes, · pressa, resumiu o pedido. Como sabia a intimidade do snr. Joâo da Ega e de Carlos da Maia, lembr·ra-se de lhe entregar o cofresinho para que elle o restituisse · familia... --Perfeitamente! acudiu Ega. Eu estou mesmo em casa dos Maias, no Ramalhete. --Ah, muito bem! Entâo v. exc.^a manda um criado de confianÃa ·manhâ buscal-o... Eu estou no _Hotel de Paris_, no Pelourinho. Ou melhor ainda: levo-lh'o eu, nâo me d· incommodo nenhum, apesar de ser dia de partida... --Nâo, nâo, eu mando um criado! insistiu o Ega estendendo a mâo ao democrata. Elle estreitou-lh'a com calor. --Muito agradecido a v. exc.^a! Eu junto-lhe entâo um bilhete e v. exc.^a entrega-o da minha parte ao Carlos da Maia, ou · irmâ. Ega teve um movimento d'espanto: --¡ irmâ!... A que irmâ? O snr. Guimarâes considerou Ega tambem com assombro. E abandonando-lhe lentamente a mâo: --A que irmâ!? ¡ irmâ d'elle, · unica que tem, · Maria! Cruges, que batia as solas no lagedo, enfastiado gritou da esquina: --Bem, eu vou andando para o Gremio. --Atà logo! O snr. Guimarâes, no emtanto, passava os dedos calÃados de pellica preta pelos longos fios da barba, fitando o Ega, n'um esforÃo de penetraÃâo. E quando Ega lhe travou do braÃo, pedindo-lhe para conversarem um pouco atà ao Loreto, o democrata deu os primeiros passos com uma lentidâo desconfiada. --Eu parece-me, dizia o Ega sorrindo, mas nervoso, que nÃs estamos aqui a enrodilhar-nos n'um equivoco... Eu conheÃo o Maia desde pequeno, vivo atà agora em casa d'elle, posso afianÃar-lhe que nâo tem irmâ nenhuma... Entâo o snr. Guimarâes comeÃou a rosnar umas desculpas embrulhadas que mais enervavam, torturavam o Ega. O snr. Guimarâes imaginava que nâo era segredo, que todas essas coisas da irmâ estavam esquecidas, desde que houvera reconciliaÃâo... --Como vi, ainda nâo ha muitos dias, o snr. Carlos da Maia com a irmâ e com v. exc.^a, na mesma carruagem, no caes do SodrÃ... --O quÃ! Aquella senhora! A que ia na carruagem? --Sim! exclamou o snr. Guimarâes irritado, farto emfim d'essa confusâo em que se debatiam. Aquella mesma, a Maria Eduarda Monforte, ou a Maria Eduarda Maia, como quizer, que eu conheci de pequena, com quem andei muitas vezes ao collo, que fugiu com o Mac-Gren, que esteve depois com a besta do Castro Gomes... Essa mesma! Era ao meio do Loreto sob o lampeâo de gaz. E o snr. Guimarâes de repente estacou, vendo os olhos do Ega esgazearem-se de horror, uma terrivel pallidez cobrir-lhe a face. --V. exc.^a nâo sabia nada d'isto? Ega respirou fortemente, arredando o chapÃo da testa sem responder. Entâo o outro, embaÃado, terminou por encolher os hombros. Bem, via que tinha feito uma tolice! A gente nunca se devia intrometter nos negocios alheios! Mas acabou-se! Imaginasse o snr. Ega que aquillo fÃra um pesadÃlo, depois da versalhada do sarau! Pedia desculpa sinceramente--e desejava ao snr. Joâo da Ega muitissimo boas noites. Ega, como a um clarâo de relampago, entrevira toda a catastrophe: e agarrou avidamente o braÃo do snr. Guimarâes, n'um terror que elle abalasse, desapparecesse, levando para sempre o seu testemunho, esses papeis, o cofre da Monforte, e com elles a certeza--a certeza por que agora anciava. E atravÃs do Loreto, vagamente, foi balbuciando, justificando a sua emoÃâo, para tranquillisar o homem, poder lentamente arrancar-lhe as coisas que soubesse, as provas, a verdade inteira. --O snr. Guimarâes comprehende... Isto sâo coisas muito delicadas, que eu suppunha absolutamente ignoradas de todos... De modo que fiquei embatucado, fiquei tonto, quando o ouvi assim de repente fallar d'ellas com essa simplicidade... Porque emfim, aqui para nÃs, essa senhora nâo passa em Lisboa por irmâ de Carlos. O snr. Guimarâes atirou logo a mâo n'um grande gesto. Ah, bem! Entâo era jogo com elle? Pois tinha feito o snr. Ega perfeitamente... Com certeza eram coisas muito sÃrias, que necessitavam toda a sorte de vÃos... Elle comprehendia, comprehendia muito bem!... E realmente, dada a posiÃâo dos Maias em Lisboa, na sociedade, aquella senhora nâo era irmâ que se apresentasse. --Mas a culpa nâo a teve ella, meu caro senhor! Foi a mâi, foi aquella extraordinaria mâi que o Diabo lhe deu!... Desciam o Chiado. Ega parou um momento, devorando o velho com olhos de febre: --O snr. Guimarâes conheceu muito essa senhora, a Monforte? Intimamente! J· a conhecera em Lisboa--mas de longe, como mulher de Pedro da Maia. Depois viera essa tragedia, ella fugira com o italiano. Elle abal·ra tambem para Paris n'esse anno, com uma Clemence, uma costureira da Levaillant: e, umas coisas enfiando n'outras, negocios e desgraÃas, por l· fic·ra para sempre! Emfim, nâo era a sua vida que lhe ia contar... Sà mais tarde encontr·ra a Monforte, uma noite, no baile Laborde: e d'ahi datavam as suas relaÃıes. A esse tempo j· o italiano morrera n'um duello, e o velho Monforte espich·ra da bexiga. Ella estava entâo com um rapaz chamado Trevernnes--n'uma casa bonita, no Parc Monceaux, em grande chic... Mulher extraordinaria! E nâo se envergonhava de confessar que lhe devia obrigaÃıes! Quando essa rapariga, a Clemence, que era um encanto, adoecera do peito, a Monforte trazia-lhe flÃres, frutas, vinhos, fazia-lhe companhia, velava-a como um anjo... Porque l· isso coraÃâo largo e generoso atà alli! Esta, a filha, a D. Maria, tinha entâo sete ou oito annos, linda como os amores... E houvera uma outra pequena do italiano, muito galantinha tambem. Oh! muito galantinha tambem! Mas morrera em Londres, essa... --E com esta Maria andei muitas vezes ao collo, meu caro senhor... Nâo sei se ella ainda se lembra d'uma boneca que eu lhe dei, que fallava, dizia _NapolÃon_... Era no bello tempo do Imperio, atà as desavergonhadas das bonecas eram imperialistas! Depois, quando ella estava em Tours, no convento, fui l· duas vezes com a mâi. J· entâo os meus principios me nâo permittiam entrar n'esses covis religiosos: mas emfim fui acompanhar a mâi... E quando ella fugiu com o irlandez, o Mac-Gren, foi commigo que a mâi veio ter, furiosa, a querer que eu chamasse o commissario de policia para se prender o irlandez. Por fim metteu-se n'um _fiacre_, foi para Fontainebleau, l· fez as pazes, viviam atà juntos... Emfim uma sÃrie de trapalhadas. Um suspiro cansado escapou-se do peito do Ega, que arrastava os passos, succumbido: --E esta senhora, est· claro, nâo sabia entâo de quem era filha... O snr. Guimarâes encolheu os hombros: --Nem suspeitava que existissem Maias sobre a face da terra! A Monforte dissera-lhe sempre que o pai era um fidalgo austriaco com quem ella cas·ra na Madeira... Uma mixordia, meu caro senhor, uma mixordia! --⦠horrivel! murmurou Ega. Mas, dizia o snr. Guimarâes, que podia tambem fazer a Monforte? Que diabo, era duro confessar · filha: ´Olha que eu fugi a teu pai, e elle por causa d'isso matou-se!ª Nâo tanto pela questâo de pudor; a rapariga devia perceber que a mâi tinha amantes, ella mesma aos dezoito annos, coitadinha, j· tinha um; mas por causa do tiro, do cadaver, do sangue... --A mim mesmo! exclamou o snr. Guimarâes, parando, alargando os braÃos na rua deserta. A mim mesmo nunca ella fallou do marido, nem de Lisboa, nem de Portugal. Lembra-me atà uma occasiâo em casa da Clemence, que eu alludi a um cavallo lazâo, um cavallo de Pedro da Maia, em que ella costumava montar. Animal soberbo! Mas nem mencionei o marido, fallei sà do cavallo. Pois senhores, bate com o leque em cima da mesa, grita como uma bicha:--_Dites donc, mon cher, vous m'embÃtez avec ces histoires de l'autre monde_!... Com effeito, bem o podia dizer, eram historias do outro mundo! Para encurtar: estou convencido que nos ultimos tempos ella mesmo julgava que Pedro da Maia nunca existira. Uma insensata! Por fim atà bebia... Mas acabou-se! Tinha grande coraÃâo, e portou-se muito bem com a Clemence. _Parce sepultis!_ --⦠horrivel! murmurou outra vez o Ega, tirando o chapÃo, correndo a mâo tremula pela testa. E agora o seu unico desejo era a accumulaÃâo incessante de provas, de detalhes. Fallou entâo d'esses papeis, d'esse cofre da Monforte. O snr. Guimarâes nâo sabia o que elles continham; e nâo se admiraria se fossem apenas contas de modista, ou pedaÃos velhos do _Figaro_ em que se fallava d'ella... --⦠uma caixita pequena que a Monforte me deu, na vespera de partir para Londres com a filha. Era no tempo da guerra... J· a Maria vivia com o irlandez, tinha mesmo uma pequena, a Rosa. Depois veio a Communa, todos aquelles desastres. Quando a Monforte voltou de Londres eu estava em Marselha. Foi entâo que a pobre Maria se metteu com o Castro Gomes, creio que para nâo morrer de fome... Eu recolhi a Paris, mas nâo vi mais a Monforte, que j· estava muito doente... ¡ Maria, collada entâo a essa besta do Castro Gomes, um pedante, um _rastaquouÃre_ mesmo a calhar para a guilhotina, nâo tornei tambem a fallar. Se a encontrava era um comprimento de longe, como n'outro dia, quando a vi na carruagem com v. exc.^a e com o irmâo... De sorte que fui ficando com os papeis. Nem a fallar a verdade, com estas coisas todas de politica, me lembrei mais d'elles. E agora ahi estâo, ·s ordens da familia. --Se isso nâo fosse incommodo para v. exc.^a, acudiu Ega, eu passava agora pelo seu hotel e levava-os logo commigo... --Incommodo nenhum! Estamos em caminho, à negocio que fica feito! Algum tempo seguiram calados. O sarau decerto acab·ra. Um bater de carruagens atroava as descidas do Chiado. Junto d'elles passaram duas senhoras, com um rapaz que bracejava, fallando alto do Alencar. O snr. Guimarâes tir·ra lentamente do bolso a charuteira: depois parando, para raspar um phosphoro: --Entâo a D. Maria passa simplesmente por parenta?... E como soube ella? Como foi isso? Ega, que caminhava com a cabeÃa cahida, estremeceu como se acordasse. E comeÃou a tartamudear uma historia confusa, de que elle mesmo cÃrava na sombra. Sim, Maria Eduarda passava por parenta. FÃra o procurador que descobrira. Ella rompera com o Castro Gomes, com todo o passado. Os Maias davam-lhe uma mezada; e vivia nos Olivaes, muito retirada, como filha d'um Maia que morrera na Italia. Todos gostavam muito d'ella, Affonso da Maia tinha grande ternura pela pequena... E de repente indignou-se com estas invenÃıes por onde arrastava j· o nome do nobre velho, exclamou como se abafasse: --Emfim, nem eu sei, um horror! --Um drama! resumiu gravemente o snr. Guimarâes. E como estavam no Pelourinho rogou ao Ega que esperasse um momento emquanto elle corria acima buscar os papeis da Monforte. SÃ, no largo, Ega ergueu as mâos ao cÃo n'um desabafo mudo d'aquella angustia em que caminhava, como um somnambulo, desde o Loreto. E a sua unica sensaÃâo, bem clara--era a indestructivel certeza da historia do Guimarâes, tâo compacta, sem uma lacuna, sem uma falha por onde rachasse e se fizesse cahir aos pedaÃos. O homem conhecera Maria Monforte em Lisboa, ainda mulher de Pedro da Maia, brilhando no seu cavallo lazâo; encontr·ra-a em Paris j· fugida, depois da morte do primeiro amante, vivendo com outros; and·ra entâo ao collo com Maria Eduarda a quem se davam bonecas... E desde entâo nâo deix·ra mais de vÃr Maria Eduarda, de a seguir: em Paris; no convento de Tours; em Fontainebleau com o irlandez; nos braÃos de Castro Gomes; n'uma tipoia de praÃa emfim com elle e com Carlos da Maia, havia dias, no caes do SodrÃ! Tudo isto se encadeava, concordando com a historia contada por Maria Eduarda. E de tudo resaltava esta certeza monstruosa:--Carlos amante da irmâ! Guimarâes nâo descia. No segundo andar surgira uma luz viva, n'uma janella aberta. Ega recomeÃou a passear lentamente pelo meio do largo. E agora, pouco a pouco, subia n'elle uma incredulidade contra esta catastrophe de dramalhâo. Era acaso verosimil que tal se passasse, com um amigo seu, n'uma rua de Lisboa, n'uma casa alugada · mâi Cruges?... Nâo podia ser! Esses horrores sà se produziam na confusâo social, no tumulto da Meia-Idade! Mas n'uma sociedade burgueza, bem policiada, bem escripturada, garantida por tantas leis, documentada por tantos papeis, com tanto registro de baptismo, com tanta certidâo de casamento, nâo podia ser! Nâo! Nâo estava no feitio da vida contemporanea que duas crianÃas separadas por uma loucura da mâi, depois de dormirem um instante no mesmo berÃo, cresÃam em terras distantes, se eduquem, descrevam as parabolas remotas dos seus destinos--para quÃ? Para virem tornar a dormir juntas no mesmo ponto, n'um leito de concubinagem! Nâo era possivel. Taes coisas pertencem sà aos livros, onde vÃm, como invenÃıes subtis da arte, para dar · alma humana um terror novo... Depois levantava os olhos para a janella alumiada--onde o snr. Guimarâes decerto rebuscava os papeis na mala. Alli estava porÃm esse homem com a sua historia--em que nâo havia uma discordancia por onde ella pudesse ser abalada!... E pouco a pouco aquella luz viva, sahida do alto, parecia ao Ega penetrar n'essa intrincada desgraÃa, aclaral-a toda, mostrar-lhe bem a lenta evoluÃâo. Sim, tudo isso era provavel no fundo! Essa crianÃa, filha d'uma senhora que a lev·ra comsigo, cresce, à amante d'um brazileiro, vem a Lisboa, habita Lisboa. N'um bairro visinho vive outro filho d'essa mulher, por ella deixado, que cresceu, à um homem. Pela sua figura, o seu luxo, elle destaca n'esta cidade provinciana e pelintra. Ella por seu lado, loura, alta, esplendida, vestida pela LaferriÃre, flÃr d'uma civilisaÃâo superior, faz relÃvo n'esta multidâo de mulheres miudinhas e morenas. Na pequenez da Baixa e do Aterro, onde todos se acotovelavam, os dois fatalmente se cruzam: e com o seu brilho pessoal, muito fatalmente se attrahem! Ha nada mais natural? Se ella fosse feia e trouxesse aos hombros uma confecÃâo barata da loja da America, se elle fosse um mocinho encolhido de chapÃo cÃco, nunca se notariam e seguiriam diversamente nos seus destinos diversos. Assim, o conhecerem-se era certo, o amarem-se era provavel... E um dia o snr. Guimarâes passa, a verdade terrivel estala! A porta do hotel rangeu no escuro, o snr. Guimarâes adiantou-se, de bonà de sÃda na cabeÃa, com o embrulho na mâo. --Nâo podia dar com a chave da mala, desculpe v. exc.^a ⦠sempre assim quando ha pressa... E aqui temos o famoso cofre! --Perfeitamente, perfeitamente... Era uma caixa que parecia de charutos e que o democrata embrulh·ra n'um velho numero do _Rappel_. Ega metteu-a no bolso largo do seu paletot: e immediatamente, como se qualquer outra palavra entre elles fosse vâ, estendeu a mâo ao snr. Guimarâes. Mas o outro insistiu em o acompanhar atà · esquina da rua do Arsenal, apesar de estar de bonÃ. A noite, para quem vinha de Paris, tinha uma doÃura oriental--e elle, com os seus habitos de jornalista, nunca se deitava senâo tarde, ·s duas, tres horas da madrugada... E entâo, caminhando devagar, com as mâos nos bolsos e o charuto entre os dentes, o snr. Guimarâes voltou · politica e ao sarau. A poesia do Alencar (de que esper·ra muito por causa do titulo, _A Democracia_) sahira-lhe consideravelmente chÃcha. --Muita flÃr, muita farofia, muita liberdade, mas nâo havia alli um ataque em fÃrma, duas ou tres boas estocadas n'esta choldra da monarchia e da cÃrte... Pois nâo à verdade? --Sim, com effeito...--murmurou Ega, olhando ao longe, na esperanÃa d'uma tipoia. --⦠como os jornaes republicanos que por ahi ha... Tudo uma palhada, senhores, tudo uma balofice!... ⦠o que eu lhes digo a elles:--´â almas do diabo, atacai as questıes sociaes!ª Felizmente um trem avanÃava, rolando devagar, do lado do Terreiro do PaÃo. Ega, precipitadamente, deu um aperto de mâo ao democrata, desejou-lhe uma ´boa viagemª, atirou ao cocheiro a adresse do Ramalhete. Mas o snr. Guimarâes ainda se apoderou da portinhola--para aconselhar ao Ega que fosse a Paris. Agora, que tinham feito amizade, havia de o apresentar a toda aquella gente... E o snr. Ega veria! Nâo era c· a grande _pose_ portugueza, d'estes imbecis, d'estes pelintras a darem-se ares, torcendo os bigodes. L·, na primeira naÃâo do mundo, tudo era alegria e fraternidade e espirito a rodos... --E a minha adresse, na redacÃâo do _Rappel_! Bem conhecida no mundo! Emquanto ao embrulhosinho fico descanÃado... --PÃde v. exc.^a ficar descanÃado! --Criado de v. exc.^a... Os meus comprimentos · snr.^a D. Maria! Na carruagem, atravÃs do Aterro, a anciosa interrogaÃâo do Ega a si mesmo foi--´que hei de fazer?ª Que faria, santo Deus, com aquelle segredo terrivel que possuia, de que sà elle era senhor, agora que o Guimarâes partia, desapparecia para sempre? E antevendo com terror todas as angustias em que essa revelaÃâo ia lanÃar o homem que mais estimava no mundo--a sua instinctiva idÃa foi guardar para sempre o segredo, deixal-o morrer dentro em si. Nâo diria nada; o Guimarâes sumia-se em Paris; e quem se amava continuava a amar-se!... Nâo crearia assim uma crise atroz na vida de Carlos--nem soffreria elle, como companheiro, a sua parte d'essas afflicÃıes. Que coisa mais impiedosa, de resto, que estragar a vida de duas innocentes e adoraveis creaturas, atirando-lhes · face uma prova de incesto!... Mas, a esta idÃa de _incesto_, todas as consequencias d'esse silencio lhe appareceram, como coisas vivas e pavorosas, flammejando no escuro diante dos seus olhos. Poderia elle tranquillamente testemunhar a vida dos dois--desde que a sabia _incestuosa_? Ir · rua de S. Francisco, sentar-se-lhes alegremente · mesa, entrevÃr atravÃs do reposteiro a cama em que ambos dormiam--e saber que esta sordidez de peccado era obra do seu silencio? Nâo podia ser... Mas teria tambem coragem de entrar ao outro dia no quarto de Carlos, e dizer-lhe em face--´Olha que tu Ãs amante de tua irmâ?ª A carruagem par·ra no Ramalhete. Ega subiu, como costumava, pela escada particular de Carlos. Tudo estava apagado e mudo. Accendeu a sua palmatoria; entreabriu o reposteiro dos aposentos de Carlos; deu alguns passos timidos no tapete, que pareceram j· soar tristemente. Um reflexo d'espelho alvejou ao fundo na sombra da alcova. E a luz cahiu sobre o leito intacto, com a sua longa colcha lisa, entre os cortinados de sÃda. Entâo a idÃa que Carlos estava ·quella hora na rua de S. Francisco, dormindo com uma mulher que era sua irmâ, atravessou-o com uma cruel nitidez, n'uma imagem material, tâo viva e real, que elle viu-os claramente, de braÃos enlaÃados, e em camisa... Toda a belleza de Maria, todo o requinte de Carlos desappareciam. Ficavam sà dois animaes, nascidos do mesmo ventre, juntando-se a um canto como câes, sob o impulso bruto do cio! Correu para o seu quarto, fugindo ·quella visâo a que o escuro do corredor, mal dissipado pela luz tremula, accentuava mais o relÃvo. Aferrolhou a porta; accendeu · pressa sobre o toucador, uma depois da outra, com a mâo agitada, as seis velas dos candelabros. E agora apparecia-lhe mais urgente, inevitavel, a necessidade de contar _tudo_ a Carlos. Mas ao mesmo tempo sentia em si, a cada instante, menos animo para chegar, encarar Carlos, e destruir-lhe a felicidade e a vida com uma revelaÃâo d'incesto. Nâo podia! Outro que lh'o dissesse! Elle l· estava depois para o consolar, tomar metade da sua dÃr, carinhoso e fiel. Mas o desgosto supremo da vida de Carlos nâo viria de palavras cahidas da sua boca!... Outro que lh'o dissesse! Mas quem? Mil idÃas passavam na sua pobre cabeÃa, incoherentes e tontas. Pedir a Maria que fugisse, desapparecesse... Escrever uma carta anonyma a Carlos, com a detalhada historia do Guimarâes... E esta confusâo, esta anciedade ia-se resolvendo lentamente em odio ao snr. Guimarâes. Para que fall·ra ·quelle imbecil? Para que insistira em lhe confiar papeis alheios? Para que lh'o apresent·ra o Alencar? Ah! se nâo fosse a carta do Damaso... Tudo provinha do maldito Damaso! Agitando-se pelo quarto, ainda de chapÃo, os seus olhos cahiram n'um sobrescripto pousado sobre a mesa de cabeceira. Reconheceu a letra do VillaÃa. E nem a abriu... Uma idÃa sulc·ra-o de repente. Contar tudo ao VillaÃa!... Porque nâo? Era o procurador dos Maias. Nunca para elle houvera segredos n'aquella casa. E esta complicaÃâo singular d'uma senhora da familia, considerada morta e que surge inesperadamente--a quem a pertencia aclarar senâo ao fiel procurador, ao velho confidente, ao homem que, por heranÃa e por destino, recebera sempre todos os segredos e partilh·ra todos os interesses domesticos?... E sem pensar, sem aprofundar mais, fixou-se logo n'esta decisâo salvadora,--que ao menos o socegava, lhe tirava j· do coraÃâo um peso de ferro, suffocante e intoleravel... Devia acordar cedo, procurar VillaÃa em casa. Escreveu n'uma folha de papel--´Acorda-me ·s seteª. E desceu abaixo, ao longo corredor de pedra onde dormiam os criados, dependurou este recado na chave do quarto do escudeiro. Quando subiu, mais calmo,--abriu entâo a carta do VillaÃa. Era uma curta linha lembrando ao amigo Ega que a letrinha de duzentos mil reis, no Banco Popular, se vencia d'ahi a dois dias... --SÃbo, tudo se junta! exclamou Ega furioso, atirando a carta amarrotada para o châo. VII Pontual, ·s sete horas, o escudeiro acordou Ega. Ao rumor da porta elle sentou-se na cama com um salto--e logo todos os negros cuidados da vespera, Carlos, a irmâ, a felicidade d'aquella casa acabada para sempre, se lhe ergueram n'alma em sobresalto, como despertando tambem. A portada da varanda fic·ra aberta; um ar silencioso e livido de madrugada clareava atravÃs do transparente de fazenda branca. Durante um momento Ega ficou olhando em redor, arrepiado; depois, sem coragem, remergulhou nos lenÃoes, gozando aquelle bocado de calor e de conchÃgo antes d'ir affrontar fÃra as amarguras do dia. E pouco a pouco, sob o tepido conchÃgo dos cobertores em que se atabaf·ra, comeÃou a afigurar-se-lhe menos urgente, e menos util, essa correria estremunhada a casa do VillaÃa... De que servia procurar o VillaÃa? Nâo se tratava alli de dinheiro, nem de demandas, nem de legalidade--de nada que reclamasse a experiencia d'um procurador. Era apenas introduzir um burguez mais n'um segredo tâo terrivelmente delicado que elle mesmo se assustava de o saber. E acochado mais sob a roupa, apenas com o nariz ao frio, murmurava comsigo: ´⦠uma tolice ir ao VillaÃa!ª De resto nâo poderia elle ajuntar em si bastante coragem para contar tudo a Carlos, logo, n'essa manhâ, claramente, virilmente? Era por fim aquelle caso tâo pavoroso como lhe parecera na vespera--um irreparavel desabamento d'uma vida de homem?... Ao pà da quinta da mâe, em Celorico, no logar de Vouzeias, houvera um successo parecido, dois irmâos que innocentemente iam casar. Tudo se aclarou ao reunirem-se os papeis para os _banhos_. Os noivos ficaram uns dias ´embatucadosª, como dizia o padre Seraphim; mas por fim j· riam, muito amigos, muito divertidos, quando se tratavam de ´manosª. O noivo, um rapagâo bonito, contava depois ´que ia havendo uma mixordia na familiaª. Aqui o engano seguira mais longe, as sensibilidades eram mais requintadas; mas os seus coraÃıes permaneciam livres de toda a culpa, innocentes absolutamente. Porque ficaria pois a existencia de Carlos para sempre estragada? A inconsciencia impedia-lhe o remorso: e passado o primeiro horror, de que lhe podia, na realidade, vir a definitiva dÃr? SÃmente do prazer ter findado. Era entâo como outro qualquer desgosto d'amor. Bem menos atroz do que se Maria o tivesse trahido com o Damaso! De repente a porta abriu-se, Carlos appareceu exclamando: --Entâo que madrugada foi esta? Disse-me agora l· em baixo o Baptista... ⦠aventura? duello? Trazia o paletot todo abotoado, com a gola erguida, escondendo ainda a gravata branca da vespera; e decerto cheg·ra da rua de S. Francisco na tipoia que havia instantes Ega sentira parar na calÃada. Elle sent·ra-se bruscamente na cama; e estendendo a mâo para os cigarros, sobre a mesa ao lado, murmurou, bocejando, que na vÃspera combin·ra uma ida a Cintra com o Taveira... Por precauÃâo mand·ra-se chamar... Mas nâo sabia, acord·ra cansado... --Que tal est· o dia? Justamente Carlos fÃra correr o transparente da janella. Ahi, na mesa de trabalho, collocada em plena luz, fic·ra a caixa da Monforte embrulhada no _Rappel_. E Ega pensou n'um relance:--´Se elle repara, se pergunta, digo tudo!ª--O seu pobre coraÃâo pÃz-se a bater anciosamente no terror d'aquella decisâo. Mas o transparente um pouco pÃrro subiu, uma facha de sol banhou a mesa--e Carlos voltou sem reparar no cofre. Foi um immenso allivio para o Ega. --Entâo, Cintra? disse Carlos, sentando-se aos pÃs da cama. Com effeito nâo à m· idÃa... A Maria ainda hontem esteve tambem a fallar d'ir a Cintra... Espera! Podiamos fazer a patuscada juntos... Iamos no break, a quatro! E olhava j· o relogio, calculando o tempo para atrellar, avisar Maria. --O peor, acudiu o Ega atrapalhado, tomando de sobre a mesa o monoculo, à que o Taveira fallou em irmos com umas raparigas... Carlos encolheu os hombros com horror. Que sordidez, ir com mulheres para Cintra, de dia!... De noite, nas trevas, por bebedeira, v·... Mas · luz do Senhor! Talvez com a Lola gorda, hein?... Ega embrulhou-se n'uma complicada historia, limpando o monoculo · ponta do lenÃol. Nâo eram hespanholas... Pelo contrario, umas costureiras, raparigas sÃrias... Elle tinha um compromisso antigo d'ir a Cintra com uma d'ellas, filha d'um Simıes, um estofador que fallira... Gente muito sÃria!... Perante estes compromissos, tanta seriedade, Carlos desistiu logo da idÃa de Cintra. --Bem, acabou-se!... Vou entâo tomar banho e depois a negocios... E tu, se fÃres, traze-me umas queijadas para a Rosa, que ella gosta!... Apenas Carlos sahiu, Ega cruzou os braÃos desanimado, descorÃoado, sentindo bem que nâo teria coragem nunca de ´dizer tudoª. Que havia de fazer?... E de novo, insensivelmente, se refugiou na idÃa de procurar o VillaÃa, entregar-lhe o cofre da Monforte. Nâo havia homem mais honesto, nem mais pratico; e, pela mesma mediocridade do seu espirito burguez, quem melhor para encarar aquella catastrophe sem paixâo e sem nervos?... E esta _falta de nervos_ do VillaÃa fixou-o definitivamente. Saltou entâo da cama, n'uma impaciencia, repicou a campainha. E emquanto o criado nâo entrava, foi, com o robe-de-chambre aos hombros, examinar o cofre da Monforte. Parecia com effeito uma velha caixa de charutos, embrulhada n'um papel de dobras j· sujas e gastas, com marcas de lacre onde se distinguia uma divisa que seria decerto a da Monforte--_Pro amore_. Na tampa tinha escripto n'uma letra de mulher mal-ensinada--_Monsieur Guimaran, â¡ Paris_. Ao sentir os passos do criado deitou-lhe por cima uma toalha, que pendia ao lado, n'uma cadeira. E d'ahi a meia hora rolava pelo Aterro n'uma tipoia descoberta, mais animado, respirando largamente aquelle bello ar da manhâ, fino e fresco, que elle tâo raras vezes gozava. ComeÃou por uma contrariedade. VillaÃa j· sahira: e a criada nâo sabia bem se elle fÃra para o escriptorio, se a uma vistoria ao Alfeite... Ega largou para o escriptorio, na rua da Prata. O snr. VillaÃa ainda nâo viera... --E a que horas vir·? O escrevente, um rapaz macilento que torcia nervosamente sobre o collete uma corrente de coral, balbuciou que o snr. VillaÃa nâo devia tardar, se nâo tivesse atravessado, no vapor das nove, para o Alfeite... Ega desceu desesperado. --Bem, gritou ao cocheiro, vai ao cafà Tavares... No Tavares, ainda solitario ·quella hora, um moÃo areava o sobrado. E emquanto esperava o almoÃo Ega percorreu os jornaes. Todos fallavam do sarau, em linhas curtas, promettendo detalhes criticos, mais tarde, sobre esse brilhante torneio artistico. Sà a _Gazeta Illustrada_ se alargava, com phrases sÃrias, tratando o Rufino de _grandioso_ o Cruges de _esperanÃoso:_ no Alencar a _Gazeta_ separava o philosopho do poeta; ao philosopho a _Gazeta_ lembrava com respeito que nem todas as aspiraÃıes ideaes da philosophia, bellas como miragens de deserto, sâo realisaveis na pratica social; mas ao poeta, ao creador de tâo formosas imagens, de tâo inspiradas estancias, a _Gazeta_ desafogadamente bradava--´bravo! bravo!ª Havia ainda outras abominaveis sandices. Depois seguia-se a lista das pessoas que a _Gazeta_ se recordava de ter visto, entre as quaes ´destacava com o seu monoculo o fino perfil de Joâo da Ega, sempre brilhante de _verve_.ª Ega sorriu, cofiando o bigode. Justamente o bife chegava, fumegante, chiando na frigideirinha de barro. Ega pousou a _Gazeta_ ao lado, dizendo comsigo: ´Nâo à nada mal feito, este jornal!ª O bife era excellente:--e depois d'uma perdiz fria, d'um pouco de dÃce de ananaz, d'um cafà forte, Ega sentiu adelgaÃar-se emfim aquelle negrume que desde a vespera lhe pesava n'alma. No fim, pensava elle, accendendo o charuto e lanÃando os olhos ao relogio, n'aquelle desastre praticamente encarado sà havia para Carlos a perda d'uma bella amante. E essa perda, que agora o angustiava, nâo traria depois compensaÃıes? O futuro de Carlos atà ahi tinha uma sombra--aquella promessa de casamento que irreparavelmente o collava pela honra a uma mulher muito interessante, mas com um passado cheio de brazileiros e de irlandezes... A sua belleza poetisava tudo: mas quanto tempo mais duraria esse encanto, o seu brilho de deusa pisando a terra?... Nâo seria por fim aquella descoberta do Guimarâes uma libertaÃâo providencial? D'ahi a annos Carlos estaria consolado, sereno como se nunca tivesse sofrido--e livre, e rico, com o largo mundo diante de si! O relogio do cafà deu dez horas. ´Bem, vamos a istoª, pensou Ega. De novo a tipoia bateu para a rua da Prata. O snr. VillaÃa ainda nâo viera, o escrevente estava realmente pensando que o snr. VillaÃa fÃra ao Alfeite. E diante d'esta incerteza, de repente, Ega ficou de novo descorÃoado, sem coragem. Despediu a tipoia: com o embrulho do cofre na mâo foi andando pela rua do Ouro, depois atà ao Rocio, parando distrahidamente diante d'um ourives, lendo aqui e alÃm a capa d'um livro na vitrine dos livreiros. Pouco a pouco o negrume da vespera, um momento adelgaÃado, recahia-lhe n'alma mais denso. J· nâo via as ´libertaÃıesª nem as ´compensaÃıesª. Sà sentia em torno de si, como fluctuando no ar, aquelle horror--Carlos a dormir com a irmâ. Voltou pela rua da Prata, de novo subiu a suja escadaria de pedra; e logo no patamar, diante da porta de baeta verde, deu com o VillaÃa que sahia, atarefado, calÃando as luvas. --Homem, atà que emfim! --Ah! Era o amigo que me tinha procurado?... Pois tenha paciencia, que est· o visconde do Torral · minha espera... Ega quasi o empurrou. Qual visconde!... Tratava-se d'uma coisa muito urgente, muito sÃria! Mas o outro nâo se arredava da porta, acabando de calÃar a luva, com o mesmo ar vivo de negocio e de pressa. --O amigo bem vÃ... Est· o homem · espera! ⦠um _rendez-vous_ para as onze! Ega, j· furioso, agarrou-lhe a manga, murmurou-lhe junto · face, tragicamente, que se tratava de Carlos, d'um caso de vida ou de morte! Entâo o VillaÃa, n'um grande espanto, atravessou bruscamente o escriptorio, fez entrar Ega n'um cubiculo ao lado, estreito como um corredor, com um canapà de palhinha, uma mesa onde os livros tinham pÃ, e um armario ao fundo. Fechou a porta, atirou o chapÃo para a nuca: --Entâo que Ã? Ega, com um gesto, indicou fÃra o escrevente que podia escutar. O procurador abriu a porta, gritou ao rapazola que voasse ao Hotel Pelicano pedir ao snr. visconde do Torral a fineza de esperar meia hora... Depois, fechada a porta no ferrolho, foi a mesma exclamaÃâo anciosa: --Entâo que Ã? --⦠um horror, VillaÃa, um grande horror... Nem eu sei por onde hei de comeÃar. VillaÃa, j· muito pallido, pousou lentamente o guardachuva sobre a mesa. --⦠duello? --Nâo... ⦠isto... Vocà sabia que o Carlos tinha relaÃıes com uma snr.^a Mac-Gren que veio o inverno passado a Portugal, ficou ahi?... Uma senhora brazileira, mulher d'um brazileiro, que pass·ra o verâo nos Olivaes?... Sim, VillaÃa sabia. Fall·ra atà n'isso com o Eusebiosinho. --Ah, com o Eusebio?... Pois nâo à brazileira! ⦠portugueza, e à irmâ d'elle! VillaÃa cahiu para o canapÃ, batendo as mâos n'um assombro. --Irmâ do Eusebio! --Qual do Eusebio, homem!... Irmâ de Carlos! VillaÃa fic·ra mudo, sem comprehender, com os olhos terrivelmente arregalados para o outro, que se movia pelo cubiculo, repetindo: ´irmâ! irmâ legÃtima!ª Ega por fim sentou-se no canapà de palhinha; e baixo, muito baixo, apesar da solidâo do escriptorio, contou o seu encontro com o Guimarâes no sarau, e como a verdade terrivel estal·ra casualmente, n'uma palavra, · esquina do _AllianÃa_... Mas quando fallou dos papeis, entregues pela Monforte ao Guimarâes, ha tantos annos guardados, nunca reclamados, e que o democrata agora, tâo de repente, tâo urgentemente, queria restituir · familia--VillaÃa, atà ahi esmagado e como emparvecido, despertou, teve uma explosâo: --Ahi ha marosca! Tudo isso à para apanhar dinheiro!... --Apanhar dinheiro! Quem? --Quem!? exclamou VillaÃa de pÃ, arrebatadamente. Essa senhora, esse Guimarâes, essa tropa!... ⦠que o amigo nâo percebe! Se apparecer uma irmâ do Maia, legitima e authentica, sâo quatrocentos contos e pico que cabem · irmâ do Maia!... Entâo os dois ficaram-se devorando com os olhos, na forte impressâo d'aquella idÃa inesperada que a seu pezar abalava o Ega. Mas como o procurador, tremulo, voltava · grande somma de quatrocentos contos, lembrava a _Companhia do Olho Vivo_, Ega terminou por encolher os hombros: --Isso nâo tem verosimilhanÃa nenhuma! Ella à incapaz, absolutamente incapaz, de semelhante intriga. AlÃm d'isso, se à uma questâo de dinheiro, que necessidade tinha de se fazer passar como irmâ desde que Carlos lhe promettera casar com ella? Casar com ella! VillaÃa erguia as mâos, nâo queria acreditar. O quÃ! o snr. Carlos da Maia dar a sua mâo, o seu nome, a essa creatura amigada com um brazileiro!?... Santissimo nome de Deus! E atravÃs do assombro recrescia-lhe a desconfianÃa, via ahi um novo feito do _Olho Vivo_. --Nâo senhor, VillaÃa, nâo senhor! insistiu Ega, j· impaciente. Se a questâo à de documentos e se ella os tinha, verdadeiros ou falsificados, apresentava-os logo, nâo ia primeiro dormir com o irmâo! VillaÃa baixou lentamente os olhos para o sobrado. Um terror invadia-o diante d'aquella grande casa, que era o seu orgulho, partida em metade, empolgada por uma aventureira... Mas como o Ega, muito nervoso, lembrava que de resto a questâo nâo era de documentos, nem de legalidade, nem de fortuna--o procurador teve outro grito, com a face de novo alumiada: --Espere, homem, ha outra coisa!... Talvez ella seja filha do italiano! --E entâo?... Vem a dar na mesma. --Alto l·! berrou o procurador, batendo com o punho na mesa. Nâo tem direito · legitima do pai, e nâo apanha um real d'esta casa!... Irra, ahi à que est· o ponto! Ega teve um gesto desolado. Nâo, nem isso, desgraÃadamente! Esta era a filha do Pedro da Maia. O Guimarâes conhecia-a de a trazer ao collo, de lhe dar bonecas quando ella tinha sete annos, e quando apenas havia quatro ou cinco annos que o italiano estivera em Arroios, de cama, com uma chumbada... A filha d'esse morrera em Londres, pequenina. VillaÃa recahiu no canapÃ, succumbido. --Quatrocentos contos, que bolada! Entâo Ega resumiu. Se nâo existia ainda uma certeza legal, havia j· uma forte suspeita. E desde logo nâo se podia deixar o pobre Carlos, innocentemente, a chafurdar n'aquella sordidez. Era pois indispensavel revelar tudo a Carlos n'essa noite... --E vocÃ, VillaÃa, à que tem de lh'o dizer. VillaÃa deu um salto que fez bater o canapà contra a parede. --Eu!? --VocÃ, que à o procurador da casa! Que havia alli, senâo uma questâo de filiaÃâo, portanto de legitima? A quem pertenciam esses detalhes legaes senâo ao procurador? VillaÃa murmurou com todo o sangue na face: --Homem, o amigo mette-me n'uma!... Nâo. Ega mettia-o apenas n'aquillo em que o VillaÃa, como procurador, logicamente e profissionalmente devia estar. O outro protestou, tâo perturbado que gaguejava. Que diabo! Nâo era esquivar-se aos seus deveres! Mas à que elle nâo sabia nada! Que podia dizer ao snr. Carlos da Maia? ´O amigo Ega veio-me contar isto, que lhe contou um tal Guimarâes hontem · noite no Loreto...ª Nâo tinha a dizer mais nada... --Pois diga isso. O outro encarou Ega com olhos que chammejavam: --Diga isso, diga isso... Que diabo, senhor, à necessario ter topete! Deu um puxâo desesperado ao collete, foi bufando atà ao fundo do cubiculo, onde esbarrou com o armario. Voltou, tornou a encarar o Ega: --Nâo se vai a um homem com uma coisa d'essas sem provas... Onde estâo as provas?... --â VillaÃa, desculpe, vocà est· obtuso!... A que vim eu aqui senâo trazer-lhe as provas, as que ha, boas ou m·s, a historia do Guimarâes, essa caixa com os papeis da Monforte?... VillaÃa, que resmungava, foi examinar a caixa, virando-a nas mâos, decifrando o mote do sinete _Pro amore_. --Entâo, abrimol-a? J· Ega pux·ra uma cadeira para a mesa. VillaÃa cortou o papel, gasto nos cantos, que envolvia o cofre. E appareceu effectivamente uma velha caixa de charutos pregada com duas taxas, cheia de papeis, alguns em maÃos apertados por fitas, outros soltos dentro de sobrescriptos abertos que tinham o monogramma da Monforte sob uma corÃa de marquez. Ega desembrulhou o primeiro maÃo. Eram cartas em allemâo, que elle nâo percebia, datadas de Buda-Pesth e de Carlsruhe. --Bem, isto nâo nos diz nada... Adiante! Outro embrulho, a que VillaÃa cuidadosamente desapertou o nà cÃr de rosa, resguardava uma caixa oval com a miniatura d'um homem de bigodes e suissas ruivas, entalado na alta gola dourada d'uma farda branca. VillaÃa achou a pintura ´lindaª. --Algum official austriaco, rosnou Ega. Outro amante... _«a marche_. Iam tirando os papeis por ordem, com a ponta dos dedos, como tocando em reliquias. Um largo enveloppe atulhado de contas de modistas, algumas pagas, outras sem recibo, interessou profundamente o VillaÃa--que percorria os _items_, espantado dos preÃos, das infinitas invenÃıes do luxo. Contas de seis mil francos! Um sà vestido, dois mil francos!... Outro maÃo trouxe uma surpreza. Eram cartas de Maria Eduarda · mâi, escriptas do convento, n'uma letra redonda e trabalhada como um desenho, com phrasesinhas cheias de gravidade devota, dictadas decerto pelas boas Irmâs; e n'estas composiÃıes, virtuosas e frias como themas, o sincero coraÃâo da rapariga sà transparecia n'alguma florzinha, agora sÃcca, pregada no alto do papel com um alfinete. --Isto pıe-se de parte, murmurou VillaÃa. Entâo Ega, j· impaciente, esvaziou toda a caixa sobre a mesa, alastrou os papeis. E entre cartas, outras contas, bilhetes de visita, um grande sobrescripto destacou com esta linha a tinta azul:--_Pertence a minha filha Maria Eduarda_. Foi VillaÃa que lanÃou os olhos rapidamente · enorme folha de papel que elle continha, luxuosa e documental, com o monogramma d'ouro sob a corÃa de marquez. Quando o passou em silencio para a mâo do Ega parecia suffocado, com todo o sangue nas orelhas. Ega leu-o alto, devagar. Dizia:--´Como a Maria teve a pequena e anda muito fraca, e eu tambem me nâo sinto nada boa com umas pontadas, parece-me prudente, para o que possa vir a succeder, fazer aqui uma declaraÃâo que te pertence a ti, minha querida filha, e que sà sabe o padre Talloux (_Mr. l'abbà Talloux, coadjuteur â¡ Saint-Roch_) porque lh'o disse ha dois annos quando tive a pneumonia. E à o seguinte: Declaro que minha filha Maria Eduarda, que costuma assignar Maria Calzaski, por suppÃr ser esse o nome de seu pai, à portugueza e filha de meu marido Pedro da Maia, de quem me separei voluntariamente, trazendo-a commigo para Vienna, depois para Paris, e que agora vive em companhia de Patrick Mac-Gren, em Fontainebleau, com quem vai casar. E o pai de meu marido era meu sogro Affonso da Maia, viuvo, que vivia em Bemfica e tambem em Santa Olavia ao pà do rio Douro. O que tudo se pÃde verificar em Lisboa pois devem l· estar os papeis; e os meus erros de que vejo agora as consequencias nâo devem impedir que tu, minha querida filha, tenhas a posiÃâo e fortuna que te pertencem. E por isso aqui declaro tudo isto que assigno, no caso que o nâo possa fazer diante d'um tabelliâo, o que tenciono logo que esteja melhor. E de tudo, se eu vier a morrer, o que Deus nâo permitta, peÃo perdâo a minha filha. E assigno com o meu nome de casada--_Maria Monforte da Maia_.ª Ega ficou a olhar para o VillaÃa. O procurador sà pÃde murmurar, com as mâos cruzadas sobre a mesa: --Que bolada! Que bolada! Entâo Ega ergueu-se. Bem! Agora tudo se simplificava. Havia unicamente a entregar aquelle documento a Carlos, sem commentarios. Mas o VillaÃa coÃava a cabeÃa, retomado por uma duvida: --Eu nâo sei se este papelinho faria fà em juizo... --Qual fÃ, qual juizo! exclamou Ega violentamente. ⦠o bastante para que elle nâo torne a dormir com ella!... Uma pancada timida na porta do cubiculo fÃl-o estacar, inquieto. Desandou a chave. Era o escrevente, que segredou atravÃs da frincha: --O snr. Carlos da Maia ficou agora l· em baixo no carrinho quando eu entrei, perguntou pelo snr. VillaÃa. Houve um pânico! Ega, atarantado, agarr·ra o chapÃo do VillaÃa. O procurador atirava ·s mâos ambas, para dentro d'uma gaveta, os papeis da Monforte. --⦠talvez melhor dizer que nâo est·, lembrou o escrevente. --Sim, que nâo est·! foi o grito abafado de ambos. Ficaram · escuta, ainda pallidos. O dog-cart de Carlos rolou na calÃada; os dois amigos respiraram. Mas agora Ega arrependia-se de nâo terem mandado subir Carlos--e alli mesmo, sem outras vacillaÃıes nem pieguices, corajosamente, contarem-lhe tudo, diante d'aquelles papeis bem abertos. E estava saltado o barranco! --Homem, dizia o VillaÃa passando o lenÃo pela testa, as coisas querem-se devagar, com methodo. ⦠necessario preparar-se a gente, respirar para dar bem o mergulho... Em todo o caso, concluiu o Ega, eram ociosas mais conversas. Os outros papeis da caixa perdiam o interesse depois d'aquella confissâo da Monforte. Sà restava que VillaÃa apparecesse · noite no Ramalhete ·s oito e meia, ou nove horas, antes de Carlos sahir para a rua de S. Francisco. --Mas o amigo ha de l· estar! exclamou o procurador, j· aterrado. Ega prometteu. VillaÃa teve um pequeno suspiro. Depois, no patamar, onde viera acompanhar o outro: --Uma d'estas, uma d'estas!... E eu ainda, tâo contente, a jantar no Ramalhete... --E eu, com elles, na rua de S. Francisco!... --Emfim, atà · noite! --Atà · noite. Ega nâo se atreveu n'esse dia a voltar ao Ramalhete, a jantar diante de Carlos, a vÃr-lhe a alegria e a paz--sentindo aquella negra desgraÃa que descia sobre elle · maneira que a noite descia. Foi pedir as sopas ao marquez, que desde o sarau se conservava em casa, de garganta entrapada. Depois, ·s oito e meia, quando calculou que VillaÃa devia estar j· no Ramalhete, deixou o marquez que se enfronh·ra com o capellâo n'uma partida de damas. Aquelle lindo dia, toldado de tarde, find·ra n'uma chuvinha miuda que transia as ruas. Ega tomou uma tipoia. E parava no Ramalhete, j· terrivelmente nervoso, quando avistou VillaÃa no portal, de guardachuva sob o braÃo, arregaÃando as calÃas para sahir. --Entâo? gritou-lhe o Ega. VillaÃa abriu o guardachuva, para murmurar debaixo, mas em segredo: --Nâo foi possivel... Disse que tinha muita pressa, que nâo me podia ouvir. Ega bateu o pÃ, desesperado: --Oh homem! --Que quer o amigo? Havia de o agarrar · forÃa? Ficou para ·manhâ... Tenho de c· estar ·manhâ ·s onze horas. Ega galgou as escadas, rosnando entre dentes: ´Irra! nâo sahimos d'esta!ª Foi atà ao escriptorio de Affonso. Mas nâo entrou. AtravÃs d'uma fenda larga do reposteiro meio franzido, um canto da sala apparecia, quente e cheio de conchÃgo, no dÃce tom cÃr de rosa da luz cahindo sobre os damascos: as cartas esperavam na mesa do whist: no sof· bordado a matiz D. Diogo, murcho e molle, olhava o lume, cofiando os bigodes. E, travadas n'alguma questâo, a voz do Craft, que perpassou de cachimbo na mâo, e a voz mais lenta de Affonso, tranquillo na sua poltrona, misturavam-se, abafadas pela do Sequeira, que berrava furiosamente:--´Mas se ·manhâ houvesse uma bernarda, esse exercito com que os senhores querem acabar por ser uma escÃla de vadiagem à que lhes havia de guardar as costas... ⦠bom fallar, ter muita philosophia! Mas quando ellas chegam, se nâo ha meia duzia de baionetas promptas, entâo sâo as cÃlicas!...ª Ega foi d'alli aos quartos de Carlos. As velas ardiam ainda nas serpentinas: um aroma errava de agua de Lubin e charuto: e o Baptista disse-lhe que o snr. D. Carlos ´sahira havia dez minutosª. FÃra para a rua de S. Francisco! Ia l· dormir! Entâo enervado, com a longa e triste noite diante de si, Ega teve um appetite de se atordoar, dissipar n'uma excitaÃâo forte as idÃas que o torturavam. Nâo despedira a tipoia, abalou para S. Carlos. E findou por ir cear ao Augusto com o Taveira e duas raparigas, a Paca e a Carmen Philosopha, prodigalisando o champagne. ¡s quatro da manhâ estava bebedo, estatelado sobre o sof·, gemendo sentimentalmente, sà para si, as estrophes de Musset · Malibran... O Taveira e a Paca, juntinhos na mesma cadeira, elle com o seu ar terno de chulo, ella _muy caliente_ tambem, debicavam copinhos de gelatina. E a Carmen Philosopha, empanturrada, desapertada, com o collete embrulhado j· n'um _Diario de Noticias_, repicava a faca na borda do prato, cantarolando d'olhos perdidos nos bicos de gaz: SeÃor Alcalde mayor, No prenda usted los ladrones... Acordou ao outro dia ·s nove horas, ao lado da Carmen Philosopha, n'um quarto de grandes janellas rasgadas por onde entrava toda a melancolia da escura manhâ de chuva. E, emquanto nâo vinha a tipoia fechada que a servente correra a chamar, o pobre Ega enojado, vexado, com a lingua pastosa, os pÃs nËs sobre o tapete, reunindo o fato espalhado, tinha sà uma idÃa clara--fugir d'alli para um grande banho, bem perfumado e bem fresco, onde se purificasse d'uma sensaÃâo viscosa de Carmen e d'orgia que o arrepiava. Esse banho lustral foi tomal-o ao _Hotel Braganza_, para se encontrar com Carlos e com VillaÃa ·s onze horas j· lavado e preparado. Mas precisou esperar pela roupa branca que o cocheiro, com um bilhete para o Baptista, vo·ra a buscar ao Ramalhete: depois almoÃou: e j· batera meio dia quando se apeou · porta particular dos quartos de Carlos, com a roupa suja n'uma trouxa. Justamente Baptista atravessava o patamar com camelias n'um aÃafate. --O VillaÃa j· veio? perguntou-lhe Ega baixo, andando em pontas de pÃs. --O snr. VillaÃa j· l· est· dentro ha bocado. V. exc.^a recebeu a roupa branca?... Eu tambem mandei um fato, porque n'esses casos sempre d· mais frescura... --Obrigado, Baptista, obrigado! E Ega pensava:--´Bem, Carlos j· sabe tudo, o barranco est· passado!ª Mas demorou-se ainda, tirando as luvas e o paletot com uma lentidâo cobarde. Por fim, sentindo bater alto o coraÃâo, puxou o reposteiro de velludo. Na ante-camara pesava um silencio; a chuva grossa fustigava a porta envidraÃada, por onde se viam as arvores do jardim esfumadas na nevoa. Ega levantou o outro reposteiro que tinha bordadas as armas dos Maias. --Ah! Ãs tu? exclamou Carlos, erguendo-se da mesa de trabalho com uns papeis na mâo. Parecia ter conservado um animo viril e firme: apenas os olhos lhe rebrilhavam, com um fulgor sÃcco, anciosos e mais largos na pallidez que o cobria. VillaÃa, sentado defronte, passava vagarosamente pela testa, n'um movimento cansado, o lenÃo de sÃda da India. Sobre a mesa alastravam-se os papeis da Monforte. --Que diabo de embrulhada à esta que me vem contar o VillaÃa? rompeu Carlos, cruzando os braÃos diante do Ega, n'uma voz que apenas de leve tremia. Ega balbuciou: --Eu nâo tive coragem de te dizer... --Mas tenho eu para ouvir!... Que diabo te contou esse homem? VillaÃa ergueu-se immediatamente. Ergueu-se com a pressa d'um galucho timido que à rendido n'um posto arriscado, pediu licenÃa, se nâo precisavam d'elle, para voltar ao escriptorio. Os amigos decerto preferiam conversar mais livremente. De resto, alli ficavam os papeis da snr.^a D. Maria Monforte. E se elle fosse necessario um recado encontrava-o na rua da Prata ou em casa... --E v. exc.^a comprehende, acrescentou elle enrolando nas mâos o lenÃo de sÃda, eu tomei a iniciativa de vir fallar, por ser o meu dever, como amigo confidencial da casa... Foi essa tambem a opiniâo do nosso Ega... --Perfeitamente, VillaÃa, obrigado! acudiu Carlos. Se fÃr necessario l· mando... O procurador, com o lenÃo na mâo, lanÃou em redor um olhar lento. Depois espreitou debaixo da mesa. Parecia muito surprehendido. E Carlos seguia com impaciencia os passos timidos que elle dava pelo quarto, procurando... --Que Ã, homem? --O meu chapÃo. Imaginei que o tinha posto aqui... Naturalmente ficou l· fÃra... Bem, se fÃr necessario alguma coisa... Mal elle sahiu, atirando ainda os olhos inquietos pelos cantos, Carlos fechou violentamente o reposteiro. E voltando para o Ega, cahindo pesadamente n'uma cadeira: --Dize l·! Ega, sentado no sof·, comeÃou por contar o encontro com o snr. Guimarâes, em baixo no botequim da Trindade, depois de ter fallado o Rufino. O homem queria explicaÃıes sobre a carta do Damaso, sobre a bebedeira hereditaria... Tudo se aclar·ra, ficando d'ahi entre elles um comeÃo de familiaridade... Mas o reposteiro mexeu de leve--e surdiu de novo a face do VillaÃa: --PeÃo desculpa, mas à o meu chapÃo... Nâo o acho, havia de jurar que o deixei aqui... Carlos conteve uma praga. Entâo Ega procurou tambem, por traz do sof·, no vâo da janella. Carlos, desesperado, para findar, foi vÃr entre os cortinados da cama. E VillaÃa, escarlate, afflicto, esquadrinhava atà a alcova do banho... --Um sumiÃo assim! Emfim, talvez me esquecesse na ante-camara!... Vou vÃr outra vez... O que peÃo à desculpa. Os dois ficaram sÃs. E Ega recomeÃou, detalhando como Guimarâes, duas ou tres vezes nos intervallos, lhe viera fallar de coisas indifferentes, do sarau, de politica, do pap· Hugo, etc. Depois elle procur·ra Carlos para irem um bocado ao Gremio. Termin·ra por sahir com o Cruges. E passavam defronte do AllianÃa... Novamente o reposteiro franziu, Baptista pediu perdâo a suas excellencias: --⦠o snr. VillaÃa que nâo acha o chapÃo, diz que o deixou aqui... Carlos ergueu-se furioso, agarrando a cadeira pelas costas como para despedaÃar o Baptista. --Vai para o diabo tu e o snr. VillaÃa!... Que s·ia sem chapÃo! D·-lhe um chapÃo meu! Irra! Baptista recuou, muito grave. --V·, acaba l·! exclamou Carlos, recahindo no assento, mais pallido. E Ega, miudamente, contou a sua longa, terrivel conversa com o Guimarâes, desde o momento em que o homem por acaso, j· ao despedir-se, j· ao estender-lhe a mâo, fall·ra da ´irmâ do Maiaª. Depois entreg·ra-lhe os papeis da Monforte · porta do _Hotel de Paris_, no Pelourinho... --E aqui est·, nâo sei mais nada. Imagina tu que noite eu passei! Mas nâo tive coragem de te dizer. Fui ao VillaÃa... Fui ao VillaÃa com a esperanÃa sobretudo de elle saber algum facto, ter algum documento que atirasse por terra toda esta historia do Guimarâes... Nâo tinha nada, nâo sabia nada. Ficou tâo aniquilado como eu! No curto silencio que cahiu, um chuveiro mais largo, alagando o arvoredo do jardim, cantou nas vidraÃas. Carlos ergueu-se arrebatadamente, n'uma revolta de todo o sÃr: --E tu acreditas que isso seja possivel? Acreditas que succeda a um homem como eu, como tu, n'uma rua de Lisboa? Encontro uma mulher, Ãlho para ella, conheÃo-a, durmo com ella e, entre todas as mulheres do mundo, essa justamente ha de ser minha irmâ! ⦠impossivel... Nâo ha Guimarâes, nâo ha papeis, nâo ha documentos que me convenÃam! E como Ega permanecia mudo, a um canto do sof·, com os olhos no châo: --Dize alguma coisa, gritou-lhe Carlos. DuvÃda tambem, homem, duvÃda commigo!... ⦠extraordinario! Todos vocÃs acreditam, como se isto fosse a coisa mais natural do mundo, e nâo houvesse por essa cidade fÃra senâo irmâos a dormir juntos! Ega murmurou: --J· ia succedendo um caso assim, l· ao pà da quinta, em Celorico... E n'esse momento, sem que um rumor os prevenisse, Affonso da Maia appareceu n'uma abertura do reposteiro, encostado · bengala, sorrindo todo com alguma idÃa que decerto o divertia. Era ainda o chapÃo do VillaÃa. --Que diabo fizeram vocÃs ao chapÃo do VillaÃa? O pobre homem andou por ahi afflicto... Teve de levar um chapÃo meu. Cahia-lhe pela cabeÃa abaixo, enchumaÃaram-lh'o com lenÃos... Mas subitamente reparou na face transtornada do neto. Reparou na atarantaÃâo do Ega cujos olhos mal se fixavam, fugindo anciosamente d'elle para Carlos. Todo o sorriso se lhe apagou, deu no quarto um passo lento: --Que à isso, que tÃm vocÃs?... Ha alguma coisa? Entâo Carlos, no ardente egoismo da sua paixâo, sem pensar no abalo cruel que ia dar ao pobre velho, cheio sà de esperanÃa que elle, seu avÃ, testemunha do passado, soubesse algum facto, possuisse alguma certeza contraria a toda essa historia do Guimarâes, a todos esses papeis da Monforte--veio para elle, desabafou: --Ha uma coisa extraordinaria, avÃ! O avà talvez saiba... O avà deve saber alguma coisa que nos tire d'esta afflicÃâo!... Aqui est·, em duas palavras. Eu conheÃo ahi uma senhora que chegou ha tempos a Lisboa, mora na rua de S. Francisco. Agora de repente descobre-se que à minha irmâ legitima!... Passou ahi um homem que a conhecia, que tinha uns papeis... Os papeis ahi estâo. Sâo cartas, uma declaraÃâo de minha mâe... Emfim uma trapalhada, um montâo de provas... Que significa tudo isto? Essa minha irmâ, a que foi levada em pequena, nâo morreu?... O avà deve saber! Affonso da Maia, que um tremor tom·ra, agarrou-se um momento com forÃa · bengala, cahiu por fim pesadamente n'uma poltrona, junto do reposteiro. E ficou devorando o neto, o Ega, com um olhar esgazeado e mudo. --Esse homem, exclamou Carlos, à um Guimarâes, um tio do Damaso... Fallou com o Ega, foi ao Ega que entregou os papeis... Conta tu ao avÃ, Ega, conta tu do comeÃo! Ega, com um suspiro, resumiu a sua longa historia. E findou por dizer que o importante, o decisivo alli era este homem, o Guimarâes, que nâo tinha interesse em mentir e sà por acaso, puramente por acaso, fall·ra em taes coisas--conhecia essa senhora, desde pequenina, como filha de Pedro da Maia e de Maria Monforte. E nunca a perdera de vista. Vira-a crescer em Paris, and·ra com ella ao collo, dera-lhe bonecas. Visit·ra-a com a mâi no convento. Frequent·ra a casa que ella habitava em Fontainebleau, como casada... --Emfim, interrompeu Carlos, viu-a ainda ha dias, n'uma carruagem, commigo e com o Ega... Que lhe parece, avÃ? O velho murmurou, n'um grande esforÃo, como se as palavras sahindo lhe rasgassem o coraÃâo: --Essa senhora, est· claro, nâo sabe nada... Ega e Carlos, a um tempo, gritaram:--´Nâo sabe nada!ª Segundo affirmava o Guimarâes, a mâi escondera-lhe sempre a verdade. Ella julgava-se filha d'um austriaco. Assignava-se ao principio Calzaski... Carlos, que remexera sobre a mesa, adiantou-se com um papel na mâo: --Aqui tem o avà a declaraÃâo de minha mâi. O velho levou muito tempo a procurar, a tirar a luneta d'entre o collete com os seus pobres dedos que tremiam; leu o papel devagar, empallidecendo mais a cada linha, respirando penosamente; ao findar deixou cahir sobre os joelhos as mâos, que ainda agarravam o papel, ficou como esmagado e sem forÃa. As palavras por fim vieram-lhe apagadas, morosas. Elle nada sabia... O que a Monforte alli assegurava, elle nâo o podia destruir... Essa senhora da rua de S. Francisco era talvez na verdade sua neta... Nâo sabia mais... E Carlos diante d'elle vergava os hombros, esmagado tambem sob a certeza da sua desgraÃa. O avÃ, testemunha do passado, nada sabia! Aquella declaraÃâo, toda a historia do Guimarâes ahi permaneciam inteiras, irrefutaveis. Nada havia, nem memoria de homem, nem documento escripto, que as pudesse abalar. Maria Eduarda era, pois, sua irmâ!... E um defronte do outro, o velho e o neto pareciam dobrados por uma mesma dÃr--nascida da mesma idÃa. Por fim Affonso ergueu-se, fortemente encostado · bengala, foi pousar sobre a mesa o papel da Monforte. Deu um olhar, sem lhes tocar, ·s cartas espalhadas em volta da caixa de charutos. Depois, lentamente, passando a mâo pela testa: --Nada mais sei... Sempre pensamos que essa crianÃa tinha morrido... Fizeram-se todas as pesquizas... Ella mesma disse que lhe tinha morrido a filha, mostrou j· nâo sei a quem um retrato... --Era outra mais nova, a filha do italiano, disse o Ega. O Guimarâes fallou-me n'isso... Foi esta que viveu. Esta, que tinha j· sete a oito annos, quando havia apenas quatro ou cinco que esse sujeito italiano apparecera em Lisboa... Foi esta. --Foi esta, murmurou o velho. Teve um gesto vago de resignaÃâo, acrescentou, depois de respirar fortemente: --Bem! Tudo isto tem de ser mais pensado... Parece-me bom tornar a chamar o VillaÃa... Talvez seja necessario que elle v· a Paris... E antes de tudo precisamos socegar... De resto nâo ha aqui morte d'homem... Nâo ha aqui morte d'homem! A voz sumia-se-lhe, toda tremula. Estendeu a mâo a Carlos que lh'a beijou, suffocado; e o velho, puxando o neto para si, pousou-lhe os labios na testa. Depois deu dois passos para a porta, tâo lentos e incertos que Ega correu para elle: --Tome v. exc.^a o meu braÃo... Affonso apoiou-se n'elle, pesadamente. Atravessaram a ante-camara silenciosa onde a chuva contÃnua batia os vidros. Por traz d'elles cahiu o grande reposteiro com as armas dos Maias. E entâo Affonso, de repente, soltando o braÃo do Ega, murmurou-lhe, junto · face, no desabafo de toda a sua dÃr: --Eu sabia d'essa mulher!... Vive na rua de S. Francisco, passou todo o verâo nos Olivaes... ⦠a amante d'elle! Ega ainda balbuciou: ´Nâo, nâo, snr. Affonso da Maia!ª Mas o velho pÃz o dedo nos labios, indicou Carlos dentro que podia ouvir... E afastou-se, todo dobrado sobre a bengala, vencido emfim por aquelle implacavel destino que depois de o ter ferido na idade de forÃa com a desgraÃa do filho--o esmagava ao fim da velhice com a desgraÃa do neto. Ega enervado, exhausto, voltou para o quarto--onde Carlos recome÷ra n'aquelle agitado passeio que abalava o soalho, fazia tilintar finamente os frascos de crystal sobre o marmore da console. Calado, junto da mesa, Ega ficou percorrendo outros papeis da Monforte--cartas, um livrinho de marroquim com adresses, bilhetes de visita de membros do Jockey Club e de senadores do imperio. Subitamente Carlos parou diante d'elle, apertando desesperadamente as mâos: --Estarem duas creaturas em pleno cÃo, passar um quidam, um idiota, um Guimarâes, dizer duas palavras, entregar uns papeis e quebrar para sempre duas existencias!... Olha que isto à horrivel, Ega! Ega arriscou uma consolaÃâo banal: --Era peor se ella morresse... --Peor porque? exclamou Carlos. Se ella morresse, ou eu, acabava o motivo d'esta paixâo, restava a dÃr e a saudade, era outra coisa... Assim estamos vivos, mas mortos um para o outro, e viva a paixâo que nos unia!... Pois tu imaginas que por me virem provar que ella à minha irmâ, eu gÃsto menos d'ella do que gostava hontem, ou gÃsto d'um modo differente? Est· claro que nâo! O meu amor nâo se vai d'uma hora para a outra accommodar a novas circumstancias, e transformar-se em amizade... Nunca! Nem eu quero! Era uma brutal revolta--o seu amor defendendo-se, nâo querendo morrer, sà porque as revelaÃıes d'um Guimarâes e uma caixa de charutos cheia de papeis velhos o declaravam impossivel, e lhe ordenavam que morresse! Houve outro melancolico silencio. Ega accendeu uma cigarette, foi-se enterrar ao canto do sof·. Uma fadiga ia-o vencendo, feita de toda aquella emoÃâo, da noitada no Augusto, da estremunhada manhâ na alcova da Carmen. Todo o quarto ia entristecendo, · luz mais triste da tarde d'inverno que descia. Ega terminou por cerrar os olhos. Mas bem depressa o sacudiu outra exclamaÃâo de Carlos, que de novo, diante d'elle, apertava as mâos com desespero: --E o peor ainda nâo à isto, Ega! O peor à que temos de lhe dizer tudo, de lhe contar tudo, a ella!... Ega j· pens·ra n'isso... E era necessario que se lhe dissesse immediatamente, sem hesitaÃıes. --Vou-lhe eu mesmo contar tudo, murmurou Carlos. --Tu!? --Pois quem, entâo? Querias que fosse o VillaÃa?... Ega franzia a testa: --O que tu devias fazer era metter-te esta noite no comboio, e partir para Santa Olavia. De l· contavas-lhe tudo. Estavas assim mais seguro. Carlos atirou-se para uma poltrona, com um grande suspiro de fadiga: --Sim, talvez, ·manhâ, no comboio da noite... J· pensei n'isso, era o melhor... Agora o que estou à muito cansado! --Tambem eu, disse o Ega espreguiÃando-se. E j· nâo adiantamos nada, atolamo-nos mais na confusâo. O melhor à serenar... Eu vou-me estirar um bocado na cama. --Atà logo! Ega subiu ao quarto, deitou-se por cima da roupa; e no seu immenso cansaÃo bem depressa adormeceu. Acordou tarde a um rumor da porta. Era Carlos que entrava, raspando um phosphoro. Anoitecera, em baixo tocava a campainha para o jantar. --Demais a mais esta massada do jantar! dizia Carlos accendendo as velas no toucador. Nâo termos um pretexto para irmos fÃra, a uma taverna, conversar em socego! Ainda por cima convidei hontem o Steinbroken. Depois voltando-se: --â Ega, tu achas que o avà sabe tudo? O outro salt·ra da cama, e diante do lavatorio arregaÃava as mangas: --Eu te digo... Parece-me que teu avà desconfia... O caso fez-lhe a impressâo d'uma catastrophe... E, se nâo suspeitasse o que ha, devia-lhe causar simplesmente a surpreza de quem descobre uma neta perdida. Carlos teve um lento suspiro. D'ahi a um instante desciam para o jantar. Em baixo encontraram, alÃm de Steinbroken e de D. Diogo--o Craft, que viera ´pedir as sopasª. E em tÃrno ·quella mesa, sempre alegre, coberta de flÃres e de luzes, uma melancolia fluctuava n'essa tarde atravÃs d'uma conversa dormente sobre doenÃas,--o Sequeira que tinha rheumatismo, o pobre marquez peor·ra. De resto Affonso, no escriptorio, queix·ra-se d'uma forte dÃr de cabeÃa, que justificava o seu ar consumido e _pallido_. Carlos, a quem Steinbroken ach·ra ´m· caraª, explicou tambem que pass·ra uma noite abominavel. Entâo Ega, para desanuviar o jantar, pediu ao amigo Steinbroken as suas impressıes sobre o grande orador do sarau da Trindade, o Rufino. O diplomata hesitou. Surprehendera-o bastante saber que o Rufino era um politico, um parlamentar... Aquelles gestos, o bocado da camisa a vÃr-se-lhe no estomago, a pera, a grenha, as botas, nâo lhe pareciam realmente d'um Homem d'Estado: --Mais cependant, cependant... Dans ce genre lâ¡, dans le genre sublime, dans le genre de DemosthÃnes, il m'a paru trÃs fort... Oh, il m'a paru excessivement fort! --E vocÃ, Craft? Craft, no sarau, sà gost·ra do Alencar. Ega encolheu violentamente os hombros. Ora historias! Nada podia haver mais comico que a Democracia romantica do Alencar, aquella Republica meiga e loura, vestida de branco como Ophelia, orando no prado, sob o olhar de Deus... Mas Craft justamente achava tudo isso excellente por ser sincero. O que feria sempre nas exhibiÃıes da litteratura portugueza? A escandalosa falta de sinceridade. Ninguem, em verso ou prosa, parecia j·mais acreditar n'aquillo que declamava com ardor, esmurrando o peito. E assim fÃra na vespera. Nem o Rufino parecia acreditar na influencia da religiâo; nem o homem da barba bicuda no heroismo dos Castros e dos Albuquerques; nem mesmo o poeta dos olhinhos bonitos na bonitice dos olhinhos... Tudo contrafeito e postiÃo! Com o Alencar, que differenÃa! Esse tinha uma fà real no que cantava, na Fraternidade dos povos, no Christo republicano, na Democracia devota e coroada d'estrellas... --J· deve ser bem velho esse Alencar, observou D. Diogo que rolava bolinhas de pâo entre os longos dedos pallidos. Carlos, ao lado, emergiu emfim do seu silencio: --O Alencar deve ter bons cincoenta annos. Ega jurou pelo menos sessenta. J· em 1836 o Alencar publicava coisas delirantes, e chamava pela morte, no remorso de tantas virgens que seduzira... --Ha que annos, com effeito, murmurou lentamente Affonso, eu ouvi fallar d'esse homem! D. Diogo, que lev·ra os labios ao copo, voltou-se para Carlos: --O Alencar tem a idade que havia de ter teu pai... Eram intimos, d'essa roda _distinguÃe_ d'entâo. O Alencar ia muito a Arroios com o pobre D. Joâo da Cunha, que Deus haja, e com os outros. Era tudo uma fina flÃr, e regulavam pela mesma idade... J· nada resta, j· nada resta! Carlos baix·ra os olhos: todos por acaso emmudeceram: um ar de tristeza passou entre as flÃres e as luzes como vinda do fundo d'esse passado, cheio de sepulturas e dÃres. --E o pobre Cruges, coitado, que fiasco! exclamou Ega, para sacudir aquella nevoa. Craft achava o fiasco justo. Para que fÃra elle dar Beethoven a uma gente educada pela chulice de Offenbach? Mas Ega nâo admittia esse desdem por Offenbach, uma das mais finas manifestaÃıes modernas do scepticismo e da ironia! Steinbroken accusou Offenbach de nâo saber contra-ponto. Durante um momento discutiu-se musica. Ega acabou por sustentar que nada havia em arte tâo bello como o _fado_. E appellou para Affonso, para o despertar. --Pois nâo à verdade, snr. Affonso da Maia? V. exc.^a tambem à como eu, um dos fieis ao fado, · nossa grande creaÃâo nacional. --Sim, com effeito, murmurou o velho, levando a mâo · testa, como a justificar o seu modo desinteressado e murcho. Ha muita poesia no fado... Craft porÃm atacava o fado, as _malagueÃas_, as _peteneras_--toda essa musica meridional, que lhe parecia apenas um garganteado gemebundo, prolongado infinitamente, em _ais_ de esterilidade e de preguiÃa. Elle, por exemplo, ouvira uma noite uma _malagueÃa_, uma d'essas famosas _malagueÃas_, cantada em perfeito estylo por uma senhora de Malaga. Era em Madrid, em casa dos Villa-Rubia. A senhora pıe-se ao piano, rosna uma coisa sobre _piedra_ e _sepultura_, e rompe a gemer n'um gemido que nâo findava--_â-â-â-â-â-ah_... Pois senhores, elle aborrece-se, passa para outra sala, và jogar todo um robber de whist, folheia um immenso album, discute a guerra carlista com o general Jovellos, e quando volta, l· estava ainda a senhora, de cravos na tranÃa e olhos no tecto, a gemer o mesmo--_â-â-â-â-â-ah!_... Todos riram. Ega protestou com impeto, j· excitado. O Craft era um sÃcco inglez, educado sobre o chato seio da Economia Politica, incapaz de comprehender todo o mundo de poesia que podia conter um ai! Mas elle nâo fallava das _malagueÃas_. Nâo estava encarregado de defender a Hespanha. Ella possuia, para convencer o Craft e outros britannicos, bastante pilheria e bastante navalha... A questâo era o _fado_! --Onde à que vocà tem ouvido o fado? Ahi pelas salas, ao piano... Com effeito assim, concordo, à chÃcho. Mas ouÃa-o vocà por tres ou quatro guitarristas, uma noite, no campo, com uma bella lua no cÃo... Como nos Olivaes este verâo, quando o marquez l· levou o _Vira-vira_! Lembras-te, Carlos?... E estacou, como entalado, no arrependimento d'aquella memoria da _Toca_ que levianamente evoc·ra. Carlos permanecera silencioso, com uma sombra na face. Craft ainda rosnou que, n'uma linda noite de luar, todos os sons no campo eram bonitos, mesmo o chiar dos sapos. E de novo uma estranha desanimaÃâo amolleceu a sala; os escudeiros serviam os dÃces. Entâo, no silencio, D. Diogo disse pensativamente, com a sua magestade de leâo saudoso que relembra um grande passado: --Uma musica tambem muito _distinguÃe_ antigamente eram os _Sinos do mosteiro_. Parecia mesmo que se estavam ouvindo os sinos... J· nâo ha d'isso! O jantar terminava friamente. Steinbroken volt·ra ·quella falta da familia real no sarau, que desde a vespera o inquietava. Ninguem alli se interessava pelo PaÃo. Depois D. Diogo surdiu com uma velha e fastidiosa historia sobre a infanta D. Isabel. Foi um allivio quando o escudeiro trouxe em volta a larga bacia de prata e o jarro d'agua perfumada. Ao fim do cafÃ, servido no bilhar, Steinbroken e Craft comeÃaram uma partida ´·s cincoentaª e a quinze tostıes para interessar. Affonso e D. Diogo tinham recolhido ao escriptorio. Ega enterr·ra-se no fundo d'uma poltrona, com o _Figaro_. Mas bem depressa deixou escorregar a folha no tapete, cerrou os olhos. Entâo Carlos, que passeava pensativamente fumando, olhou um momento o Ega adormecido, e sumiu-se por traz do reposteiro. Ia · rua de S. Francisco. Mas nâo se apressava, a pà pelo Aterro, abafado n'um paletot de pelles, acabando o charuto. A noite clare·ra, com um crescente de lua entre farrapos de nuvens brancas, que fugiam sob um norte fino. FÃra n'essa tarde, sà no seu quarto, que Carlos decidira ir fallar a Maria Eduarda--por um motivo supremo de dignidade e de razâo, que elle descobrira e que repetia a si mesmo incessantemente para se justificar. Nem ella nem elle eram duas crianÃas frouxas, necessitando que a crise mais temerosa da sua vida lhes fosse resolvida e arranjada pelo Ega ou pelo VillaÃa: mas duas pessoas fortes, com o animo bastante resoluto, e o juizo bastante seguro, para elles mesmos acharem o caminho da dignidade e da razâo n'aquella catastrophe que lhes desmantelava a existencia. Por isso elle, sà elle, devia ir · rua de S. Francisco. Decerto era terrivel tornar a vÃl-a n'aquella sala, quente ainda do seu amor, agora que a sabia sua irmâ... Mas porque nâo? Havia acaso alli dois devotos, possuidos da preoccupaÃâo do demonio, espavoridos pelo peccado em que se tinham atolado ainda que inconscientemente, anciosos por irem esconder no fundo de mosteiros distantes o horror carnal um do outro? Nâo! Necessitavam elles acaso pÃr immediatamente entre si as compridas legoas que vâo de Lisboa a Santa Olavia, com receio de cahir na antiga fragilidade, se de novo os seus olhos se encontrassem brilhando com a antiga chamma? Nâo! Ambos tinham em si bastante forÃa para enterrar o coraÃâo sob a razâo, como sob uma fria e dura pedra, tâo completamente que nâo lhe sentissem mais nem a revolta nem o chÃro. E elle podia desafogadamente voltar ·quella sala, toda quente ainda do seu amor... De resto, que precisavam appellar para a razâo, para a sua coragem de fortes?... Elle nâo ia revelar bruscamente _toda_ a verdade a Maria Eduarda, dizer-lhe um ´adeus!ª pathetico, um adeus de theatro, affrontar uma crise de paixâo e dÃr. Pelo contrario! Toda essa tarde, atravÃs do seu proprio tormento, procur·ra anciosamente um meio de adoÃar e graduar ·quella pobre creatura o horror da revelaÃâo que lhe devia. E ach·ra um por fim, bem complicado, bem cobarde! Mas que! Era o unico, o unico que por uma preparaÃâo lenta, caridosa, lhe pouparia uma dÃr fulminante e brutal. E esse meio justamente sà era praticavel indo elle, com toda a frieza, com todo o animo, · rua de S. Francisco. Por isso ia--e ao longo do Aterro, retardando os passos, resumia, retocava esse plano, ensaiando mesmo comsigo, baixo, palavras que lhe diria. Entraria na sala, com um grande ar de pressa--e contava-lhe que um negocio de casa, uma complicaÃâo de feitores o obrigava a partir para Santa Olavia d'ahi a dias. E immediatamente sahia, com o pretexto de correr a casa do procurador. Podia mesmo ajuntar--´à um momento, nâo tardo, atà j·.ª Uma coisa o inquietava. Se ella lhe dÃsse um beijo?... Decidia entâo exagerar a sua pressa, conservando o charuto na bÃca, sem mesmo pousar o chapÃo... E sahia. Nâo voltava. Pobre d'ella, coitada, que ia esperar atà tarde, escutando cada rumor de carruagem na rua!... Na noite seguinte abalava para Santa Olavia com o Ega, deixando-lhe a ella uma carta a annunciar que infelizmente, por causa d'um telegramma, se vira forÃado a partir n'esse comboio. Podia mesmo ajuntar--´volto d'aqui a dois ou tres dias...ª E ahi estava longe d'ella para sempre. De Santa Olavia escrevia-lhe logo, d'um modo incerto e confuso, fallando de documentos de familia, inesperadamente descobertos, provando entre elles um parentesco chegado. Tudo isto atrapalhado, curto, ´· pressaª. Por fim n'outra carta deixava escapar _toda_ a verdade, mandava-lhe a declaraÃâo da mâe; e mostrando a necessidade d'uma separaÃâo, emquanto se nâo esclarecessem todas as duvidas, pedia-lhe que partisse para Paris. VillaÃa ficava encarregado da questâo de dinheiro, entregando-lhe logo para a viagem trezentas ou quatrocentas libras... Ah! tudo isto era bem complicado, bem covarde! Mas sà havia esse meio. E quem, senâo elle, o podia tentar com caridade e com tacto? E, entre o tumulto d'estes pensamentos, de repente achou-se na travessa da Parreirinha, defronte da casa de Maria. Na sala, atravÃs das cortinas, transparecia uma luz dormente. Todo o resto estava apagado--a janella do gabinete estreito onde ella se vestia, a varanda do quarto d'ella com os vasos de chrysantemos. E pouco a pouco aquella fachada muda d'onde apenas sahia, a um canto, uma claridade languida d'alcova adormecida, foi-o estranhamente penetrando da inquietaÃâo e desconfianÃa. Era um medo d'essa penumbra molle que sentia l· dentro, toda cheia de calor e do perfume em que havia jasmim. Nâo entrou; seguiu devagar pelo passeio fronteiro, pensando em certos detalhes da casa--o sof· largo e profundo com almofadas de sÃda, as rendas do toucador, o cortinado branco da cama d'ella... Depois parou diante da larga barra de claridade que sahia do portâo do Gremio; e foi para l·, machinalmente attrahido pela simplicidade e seguranÃa d'aquella entrada, lageada de pedra, com grossos bicos de gaz, sem penumbras e sem perfumes. Na sala, em baixo, ficou percorrendo, sem os comprehender, os telegrammas soltos sobre a mesa. Um criado passou, elle pediu cognac. Telles da Gama, que vinha de dentro assobiando, com as mâos nos bolsos do paletot, deteve-se um momento para lhe perguntar se ia na terÃa-feira aos Gouvarinhos. --Talvez, murmurou Carlos. --Entâo venha!... Eu ando a arrebanhar gente... Sâo os annos do Charlie, de mais a mais. Cae l· o peso do mundo, e ha ceia!... O criado entrou com a bandeja--e Carlos, de pà junto da mesa, remexendo o assucar no copo, recordava, sem saber porque, aquella tarde em que a condessa, pondo-lhe uma rosa no casaco, lhe dera o primeiro beijo; revia o sof· onde ella cahira com um rumor de sÃdas amarrotadas... Como tudo isto era j· vago e remoto! Apenas acabou o cognac sahiu. Agora, caminhando rente das casas, nâo via aquella fachada que o perturbava com a sua claridade d'alcova morrendo nos vidros. O portâo fic·ra cerrado, o gaz ardia no patamar. E subiu, sentindo mais pela escada de pedra as pancadas do coraÃâo que o pousar dos seus passos. Melanie, que veio abrir, disse-lhe que a senhora, um pouco cansada, se fÃra encostar sobre a roupa;--e a sala, com effeito, parecia abandonada por essa noite, com as serpentinas apagadas, o bordado ocioso e enrolado no seu cesto, os livros n'um frio arranjo orlando a mesa onde o candieiro espalhava uma luz tenue sob o abat-jour de renda amarella. Carlos tirava as luvas, lentamente, retomado de novo por uma inquietaÃâo ante aquelle recolhimento adormecido. E de repente Rosa correu de dentro, rindo, pulando, com os cabellos soltos nos hombros, os braÃos abertos para elle. Carlos levantou-a ao ar, dizendo como costumava: ´L· vem a cabrita!...ª Mas entâo, quando a tinha assim suspensa, batendo os pÃsinhos--atravessou-o a idÃa de que aquella crianÃa era sua sobrinha e tinha o seu nome!... Largou-a, quasi a deixou cahir--assombrado para ella, como se pela vez primeira visse essa facesinha eburnea e fina onde corria o seu sangue... --Que est·s tu a olhar para mim? murmurou ella, recuando e sorrindo, com as mâosinhas cruzadas atraz das saias que tufavam. Elle nâo sabia, parecia-lhe outra Rosa: e · sua perturbaÃâo misturava-se uma saudade pela antiga Rosa, a outra, a que era filha de Madame Mac-Gren, a quem elle contava historias de Joanna d'Arc, a quem balouÃava na _Toca_ sob as acacias em flÃr. Ella no emtanto sorria mais, com um brilho nos dentinhos miudos, uma ternura nos bellos olhos azues, vendo-o assim tâo grave e tâo mudo, pensando que elle ia brincar, fazer ´voz de Carlos Magnoª. Tinha o mesmo sorriso da mâi, com a mesma covinha no queixo. Carlos viu n'ella de repente toda a graÃa de Maria, todo o encanto de Maria. E arrebatou-a de novo nos braÃos, tâo violentamente, com beijos tâo bruscos no cabello e nas faces, que Rosa estrebuchou, assustada e com um grito. Soltou-a logo, n'um receio de nâo ter sido casto... Depois, muito sÃrio: --Onde est· a mamâ? Rosa coÃava o braÃo, com a testasinha franzida: --Apre!... Magoaste-me. Carlos passou-lhe pelos cabellos a mâo que ainda tremia. --V·, nâo sejas piegas, a mamâ nâo gosta. Onde est· ella? A pequena, aplacada, j· contente, pulava em redor, agarrando nos pulsos de Carlos para que elle saltasse tambem... --A mamâ foi deitar-se... Diz que est· muito cansada, depois chama-me a mim preguiÃosa... V·, salta tambem. Nâo sejas mono!... N'esse instante, do corredor, miss Sarah chamou: --Mademoiselle!... Rosa pÃz o dedinho na bÃca cheia de riso: --Dize-lhe que nâo estou aqui! A vÃr... Para a fazer zangar!... Dize! Miss Sarah erguera o reposteiro; e descobriu-a logo escondida, sumida por traz de Carlos, na pontinha dos pÃs, fazendo-se pequenina. Teve um sorriso benevolo, murmurou ´good night, sirª. Depois lembrou que eram quasi nove e meia, mademoiselle tinha estado um pouco constipada e devia recolher-se. Entâo Carlos puxou brandamente pelo braÃo de Rosa, acariciou-a ainda para que ella obedecesse a miss Sarah. Mas Rosa sacudia-o, indignada d'aquella traiÃâo. --Tambem nunca fazes nada!... Semsaborâo! Pois olha, nem te digo adeus! Atravessou a sala, amuada, esquivou-se com um repellâo · governante que sorria e lhe estendia a mâo--e pelo corredor rompeu n'um chÃro despeitado e pÃrro. Miss Sarah risonhamente desculpou mademoiselle. Era a constipaÃâo que a tornava impertinente. Mas se fosse diante da mamâ nâo fazia aquillo, nâo! --Good night, sir. --Good night, miss Sarah... SÃ, Carlos errou alguns momentos pela sala. Por fim ergueu o pedaÃo de tapeÃaria que cerrava o estreito gabinete onde Maria se vestia. Ahi, na escuridâo, um brilho pallido d'espelho tremia, batido por um longo raio do candieiro da rua. Muito de leve empurrou a porta do quarto. --Maria!... Est·s a dormir? Nâo havia luz; mas o mesmo candieiro da rua, atravÃs do transparente erguido, tirava das trevas a brancura vaga do cortinado que envolvia o leito. E foi d'ahi que ella murmurou, mal acordada: --Entra! Vim-me deitar, estava muito cansada... Que horas sâo? Carlos nâo se movera, ainda com a mâo na porta: --⦠tarde, e eu preciso sahir j· a procurar o VillaÃa ... Vinha dizer-te que tenho talvez de ir a Santa Olavia, alÃm d'·manhâ, por dois ou tres dias... Um movimento, entre os cortinados, fez ranger o leito. --Para Santa Olavia?... Ora essa, porque? E assim de repente... Entra!... Vem c·! Entâo Carlos deu um passo no tapete, sem rumor. Ainda sentia o ranger molle do leito. E j· todo aquelle aroma d'ella que tâo bem conhecia, esparso na sombra tepida, o envolvia, lhe entrava n'alma com uma seducÃâo inesperada de caricia nova, que o perturbava estranhamente. Mas ia balbuciando, insistindo na sua pressa de encontrar essa noite o VillaÃa. --⦠uma massada, por causa d'uns feitores, d'umas aguas... Tocou no leito; e sentou-se muito · beira, n'uma fadiga que de repente o enle·ra, lhe tirava a forÃa para continuar essas invenÃıes d'aguas e de feitores, como se ellas fossem montanhas de ferro a mover. O grande e bello corpo de Maria, embrulhado n'um roupâo branco de sÃda, movia-se, espreguiÃava-se languidamente sobre o leito brando. --Achei-me tâo cansada, depois de jantar, veio-me uma preguiÃa... Mas entâo partires assim de repente!... Que sÃcca! D· c· a mâo! Elle tenteava, procurando na brancura da roupa: encontrou um joelho a que percebia a fÃrma e o calor suave, atravÃs da sÃda leve: e alli esqueceu a mâo, aberta e frouxa, como morta, n'um entorpecimento onde toda a vontade e toda a consciencia se lhe fundiam, deixando-lhe apenas a sensaÃâo d'aquella pelle quente e macia onde a sua palma pousava. Um suspiro, um pequenino suspiro de crianÃa, fugiu dos labios de Maria, morreu na sombra. Carlos sentiu a quentura de desejo que vinha d'ella, que o entontecia, terrivel como o bafo ardente d'um abysmo, escancarado na terra a seus pÃs. Ainda balbuciou: ´nâo, nâo...ª Mas ella estendeu os braÃos, envolveu-lhe o pescoÃo, puxando-o para si, n'um murmurio que era como a continuaÃâo do suspiro, e em que o nome de _querido_ susurrava e tremia. Sem resistencia, como um corpo morto que um sopro impelle, elle cahiu-lhe sobre o seio. Os seus labios seccos acharam-se collados n'um beijo aberto que os humedecia. E de repente, Carlos enlaÃou-a furiosamente, esmagando-a e sugando-a, n'uma paixâo e n'um desespero que fez tremer todo o leito. A essa hora Ega acordava no bilhar, ainda estirado na poltrona onde o cansaÃo o prostr·ra. Bocejando, estremunhado, arrastou os passos atà ao escriptorio de Affonso. Ahi ardia um lume alegre, a que o reverendo Bonifacio se deixava torrar, enrolado sobre a pelle d'urso. Affonso fazia a partida de whist com Steinbroken e com o VillaÃa: mas tâo distrahido, tâo confuso, que j· duas vezes D. Diogo, infeliz e irritado, rosn·ra que se a dÃr de cabeÃa assim o estonteava melhor seria findarem! Quando Ega appareceu, o velho levantou os olhos inquietos: --O Carlos? Sahiu?... --Sim, creio que sahiu com o Craft, disse o Ega. Tinham fallado em ir vÃr o marquez. VillaÃa, que baralhava com a sua lentidâo meticulosa, deitou tambem para o Ega um olhar curioso e vivo. Mas j· D. Diogo batia com os dedos no pano da mesa, resmungando:--´Vamos l·, vamos l·... Nâo se ganha nada em saber dos outros!ª Entâo Ega ficou alli um momento, com bocejos vagos, seguindo o cahir lento das cartas. Por fim, molle e seccado, decidiu ir lÃr para a cama, hesitou por diante das estantes, sahiu com um velho numero do _Panorama_. Ao outro dia, · hora do almoÃo, entrou no quarto de Carlos. E ficou pasmado quando o Baptista--tristonho desde a vespera, farejando desgosto--lhe disse que Carlos fÃra para a Tapada, muito cedo, a cavallo... --Ora essa!... E nâo deixou ordens nenhumas, nâo fallou em ir para Santa Olavia?... Baptista olhou Ega, espantado: --Para Santa Olavia!... Nâo senhor, nâo fallou em semelhante coisa. Mas deixou uma carta para v. exc.^a vÃr. Creio que à do snr. marquez. E diz que l· apparecia depois, ·s seis... Acho que à jantar. N'um bilhete de visita, o marquez, com effeito, lembrava que esse dia era ´o seu fausto natalicioª, e esperava Carlos e o Ega ·s seis, para lhe ajudarem a comer a gallinha de dieta. --Bem, l· nos encontraremos, murmurou Ega, descendo para o jardim. Aquillo parecia-lhe extraordinario! Carlos passeando a cavallo, Carlos jantando com o marquez, como se nada houvesse perturbado a sua vida facil de rapaz feliz!... Estava agora certo de que elle na vespera fÃra · rua de S. Francisco. Justos cÃos! Que se teria l· passado? Subiu, ouvindo a sineta do almoÃo. O escudeiro annunciou-lhe que o snr. Affonso da Maia tom·ra uma chavena de ch· no quarto e ainda estava recolhido. Todos sumidos! Pela primeira vez no Ramalhete Ega almoÃou solitariamente na larga mesa, lendo a _Gazeta Illustrada_. De tarde, ·s seis, no quarto do marquez (que tinha o pescoÃo enrolado n'uma _boa_ de senhora de pelle de marta), encontrou Carlos, o Darque, o Craft, em torno d'um rapaz gordo que tocava guitarra--emquanto ao lado o procurador do marquez, um bello homem de barba preta, se batia com o Telles n'uma partida de damas. --Viste o avÃ? perguntou Carlos, quando o Ega lhe estendeu a mâo. --Nâo, almocei sÃ. O jantar, d'ahi a pouco, foi muito divertido, largamente regado com os soberbos vinhos da casa. E ninguem decerto bebeu mais, ninguem riu mais do que Carlos, resurgido quasi de repente d'uma desanimaÃâo sombria a uma alegria nervosa--que incommodava o Ega, sentindo n'ella um timbre falso e como um som de crystal rachado. O proprio Ega por fim · sobremesa se excitou consideravelmente com um esplendido Porto de 1815. Depois houve um _baccarat_ em que Carlos, outra vez sombrio, deitando a cada instante os olhos ao relogio, teve uma sorte triumphante, uma ´sorte de cabrâoª, como a classificou o Darque, indignado, ao trocar a sua ultima nota de vinte mil reis. ¡ meia noite porÃm, inexoravelmente, o procurador do marquez lembrou as ordens do medico que marc·ra esse limite ´ao natalicioª. Foi entâo um enfiar de paletots, em debandada, por entre os queixumes do Darque e do Craft, que sahiam escorridos, sem sequer um troco para o ´americanoª. Fez-se-lhes uma subscripÃâo de caridade, que elles recolheram nos chapÃos, rosnando bÃnÃâos aos bemfeitores. Na tipoia que os levava ao Ramalhete, Carlos e Ega permaneceram muito tempo em silencio, cada um enterrado ao seu canto, fumando. Foi j· ao meio do Aterro que Ega pareceu despertar: --E entâo por fim?... Sempre vaes para Santa Olavia, ou que fazes? Carlos mexeu-se no escuro da tipoia. Depois, lentamente, como cheio de cansaÃo: --Talvez v· ·manhâ... Ainda nâo disse nada, ainda nâo fiz nada... Decidi dar-me quarenta e oito horas para acalmar, para reflectir... Nâo se pÃde agora fallar com este barulho das rodas. De novo cada um recahiu na sua mudez, ao seu canto. Em casa, subindo a escadinha forrada de velludo, Carlos declarou-se exhausto e com uma intoleravel dÃr de cabeÃa: --¡manhâ fallamos, Ega... Boa noite, sim? --Atà ·manhâ. Alta noite Ega acordou com uma grande sÃde. Salt·ra da cama, esvazi·ra a garrafa no toucador, quando julgou sentir por baixo, no quarto de Carlos, uma porta bater. Escutou. Depois, arrepiado, remergulhou nos lenÃoes. Mas espert·ra inteiramente, com uma idÃa estranha, insensata, que o assalt·ra sem motivo, o agitava, lhe fazia palpitar o coraÃâo no grande silencio da noite. Ouviu assim dar tres horas. A porta de novo batera, depois uma janella: era decerto vento que se erguera. Nâo podia porÃm readormecer, ·s voltas, n'um terrivel mal-estar, com aquella idÃa cravada na imaginaÃâo que o torturava. Entâo, desesperado, pulou da cama, enfiou um paletot, e em pontas de chinelas, com a mâo diante da luz, desceu surdamente ao quarto de Carlos. Na ante-sala parou, tremendo, com o ouvido contra o reposteiro, na esperanÃa de perceber algum calmo rumor de respiraÃâo. O silencio era pesado e pleno. Ousou entrar... A cama estava feita e vazia, Carlos sahira. Elle ficou a olhar estupidamente para aquella colcha lisa, com a dobra do lenÃol de renda cuidadosamente entreaberta pelo Baptista. E agora nâo duvidava. Carlos fÃra findar a noite · rua de S. Francisco!... Estava l·, dormia l·! E sà uma idÃa surgia atravÃs do seu horror--fugir, safar-se para Celorico, nâo ser testemunha d'aquella incomparavel infamia!... E o dia seguinte, terÃa-feira, foi desolador para o pobre Ega. Vexado, n'um terror de encontrar Carlos ou Affonso, levantou-se cedo, esgueirou-se pelas escadas com cautelas de ladrâo, foi almoÃar ao Tavares. De tarde, na rua do Ouro, viu passar Carlos, que levava no break o Cruges e o Taveira--arrebanhados certamente para elle se nâo encontrar sà · mesa com o avÃ. Ega jantou melancolicamente no Universal. Sà entrou no Ramalhete ·s nove horas, vestir-se para a _soirÃe_ da Gouvarinho, que pela manhâ no Loreto par·ra a carruagem para lhe lembrar ´que era a festa do Charlieª. E foi j· de paletot, de _claque_ na mâo, que appareceu emfim na salinha Luiz xv onde Cruges tocava Chopin, e Carlos se install·ra n'uma partida de bezigue com o Craft. Vinha saber se os amigos queriam alguma coisa para os nobres condes de Gouvarinho... --Diverte-te! --Sà faiscante! --Eu l· appareÃo para a ceia! prometteu Taveira, estirado n'uma poltrona com o _Figaro_. Eram duas horas da manhâ quando Ega recolheu da _soirÃe_--onde por fim se divertira n'uma desesperada flirtaÃâo com a baroneza d'Alvim, que · ceia, depois do champagne, vencida por tanta graÃa e tanta audacia, lhe tinha dado duas rosas. Diante do quarto de Carlos, accendendo a vela, Ega hesitou, mordido por uma curiosidade... Estaria l·? Mas teve vergonha d'aquella espionagem, e subiu, bem decidido como na vespera a fugir para Celorico. No seu quarto, diante do espelho, pÃz cuidadosamente n'um copo as rosas da Alvim. E comeÃava a despir-se, quando ouviu passos no negro corredor, passos muito lentos, muito pesados, que se adiantavam, findaram · sua porta em suspensâo e silencio. Assustado, gritou: ´Que à l·?ª A porta rangeu. E appareceu Afonso da Maia, pallido, com um jaquetâo sobre a camisa de dormir, e um castiÃal onde a vela ia morrendo. Nâo entrou. N'uma voz enrouquecida, que tremia: --O Carlos? esteve l·? Ega balbuciou, atarantado, em mangas de camisa. Nâo sabia... Estivera apenas um momento nos Gouvarinhos... Era provavel que Carlos tivesse ido mais tarde com o Taveira, para a ceia. O velho cerr·ra os olhos, como se desfallecesse, estendendo a mâo para se apoiar. Ega correu para elle: --Nâo se afflija, snr. Affonso da Maia! --Que queres entâo que faÃa? Onde est· elle? L· mettido, com essa mulher... Escusas de dizer, eu sei, mandei espreitar... Desci a isso, mas quiz acabar esta angustia... E esteve l· hontem atà de manhâ, est· l· a dormir n'este instante... E foi para este horror que Deus me deixou viver atà agora! Teve um grande gesto de revolta e de dÃr. De novo os seus passos, mais pesados, mais lentos, se sumiram no corredor. Ega ficou junto da porta, um momento, estarrecido. Depois foi-se despindo devagar, decidido a dizer a Carlos muito simplesmente, ao outro dia, antes de partir para Celorico, que a sua infamia estava matando o avÃ, e o forÃava a elle, seu melhor amigo, a fugir para a nâo testemunhar por mais tempo. Mal acordou, puxou a mala para o meio do quarto, atirou para cima da cama, ·s braÃadas, a roupa que ia emmalar. E durante meia hora, em mangas de camisa, lidou n'esta tarefa, misturando aos seus pensamentos de cÃlera lembranÃas da _sÃirÃe_ da vespera, certos olhares da Alvim, certas esperanÃas que lhe tornavam saudosa a partida. Um alegre sol dourava a varanda. Terminou por abrir a vidraÃa, respirar, olhar o bello azul d'inverno. Lisboa ganhava tanto com aquelle tempo! E j· Celorico, a quinta, o padre Seraphim, lhe estendiam de longe a sua sombra n'alma. Ao baixar os olhos viu o dog-cart de Carlos atrellado com a _Tunante_, que escarvava a calÃada animada pelo ar vivo. Era Carlos decerto que ia sahir cedo--para nâo se encontrar com elle e com o avÃ! N'um receio de o nâo apanhar n'esse dia, desceu correndo. Carlos aferrolh·ra-se na alcova de banho. Ega chamou, o outro nâo tugiu. Por fim Ega bateu, gritou atravÃs da porta, sem esconder a sua irritaÃâo: --Tem a bondade d'escutar!... Entâo partes para Santa Olavia, ou quÃ? Depois d'um instante, Carlos lanÃou de l·, entre um rumor d'agua que cahia: --Nâo sei... Talvez... Logo te digo... O outro nâo se conteve mais: --⦠que se nâo pÃde ficar assim eternamente... Recebi uma carta de minha mâi... E se nâo partes para Santa Olavia, eu vou para Celorico... ⦠absurdo! J· estamos n'isto ha tres dias! E quasi se arrependia j· da sua violencia, quando a voz de Carlos se arrastou de dentro, humilde e cansada, n'uma supplica: --Por quem Ãs, Ega! Tem um bocado de paciencia commigo. Eu logo te digo... N'uma d'aquellas subitas emoÃıes de nervoso, que o sacudiam--os olhos do Ega humedeceram. Balbuciou logo: --Bem, bem! Eu fallei alto por ser atravÃs da porta... Nâo ha pressa! E fugiu para o quarto, cheio sà de compaixâo e ternura, com uma grossa lagrima nas pestanas. Sentia agora bem a tortura em que o pobre Carlos se debatera, sob o despotismo d'uma paixâo atà ahi legitima, e que n'uma hora amarga se tornava de repente monstruosa, sem nada perder de seu encanto e da sua intensidade... Humano e fragil, elle nâo pudera estacar n'aquelle violento impulso de amor e de desejo que o levava como n'um vendaval! Cedera, cedera, continu·ra a rolar ·quelles braÃos, que innocentemente o continuavam a chamar. E ahi andava agora, aterrado, escorraÃado, fugindo occultamente de casa, passando o dia longe dos seus, n'uma vadiagem tragica, como um excommungado que receia encontrar olhos puros onde sinta o horror do seu peccado... E ao lado, o pobre Affonso, sabendo tudo, morrendo d'aquella dÃr! Podia elle, hospede querido dos tempos alegres, partir, agora que uma onda de desgraÃa quebr·ra sobre essa casa, onde o acolhiam affeiÃıes mais largas que na sua propria? Seria ignobil! Tornou logo a desfazer a mala; e, furioso no seu egoismo com todas aquellas amarguras que o abalavam, arranjava outra vez a roupa dentro da commoda, com a mesma cÃlera com que a desmanch·ra, rosnando: --Diabo levem as mulheres, e a vida, e tudo!... Quando desceu, j· vestido, Carlos desapparecera! Mas Baptista, tristonho, carrancudo, certo agora de que havia um grande desgosto, deteve-o para lhe murmurar: --Tinha v. exc.^a razâo... Partimos ·manhâ para Santa Olavia e levamos roupa para muito tempo... Este inverno comeÃa mal! N'essa madrugada, ·s quatro horas, em plena escuridâo, Carlos cerr·ra de manso o portâo da rua de S. Francisco. E, mais pungente, apoderava-se d'elle, na frialdade da rua, o medo que j· o ro÷ra, ao vestir-se na penumbra do quarto, ao lado de Maria adormecida--o medo de voltar ao Ramalhete! Era esse medo que j· na vespera o trouxera todo o dia por fÃra no dog-cart, findando por jantar lugubremente com o Cruges, escondido n'um gabinete do Augusto. Era medo do avÃ, medo do Ega, medo do VillaÃa; medo d'aquella sineta do jantar que os chamava, os juntava; medo do seu quarto, onde a cada momento qualquer d'elles podia erguer o reposteiro, entrar, cravar os olhos na sua alma e no seu segredo... Tinha agora a certeza _que elles sabiam tudo_. E mesmo que n'essa noite fugisse para Santa Olavia, pondo entre si e Maria uma separaÃâo tâo alta como o muro d'um claustro, nunca mais do espirito d'aquelles homens, que eram os seus amigos melhores, sahiria a memoria e a dÃr da infamia em que elle se despenh·ra. A sua vida moral estava estragada... Entâo, para que partiria--abandonando a paixâo, sem que por isso encontrasse a paz? Nâo seria mais logico calcar desesperadamente todas as leis humanas e divinas, arrebatar para longe Maria na sua innocencia, e para todo o sempre abysmar-se n'esse crime que se torn·ra a sua sombria partilha na terra? J· assim pens·ra na vespera. J· assim pens·ra... Mas antevira entâo um outro horror, um supremo castigo, a esperal-o na solidâo onde se sepultasse. J· lhe percebera mesmo a aproximaÃâo; j· n'outra noite recebera d'elle um arrepio; j· n'essa noite, deitado junto de Maria, que adormecera cansada, o presentira, apoderando-se d'elle, com um primeiro frio d'agonia. Era, surgindo do fundo do seu sÃr, ainda tenue mas j· perceptivel, uma saciedade, uma repugnancia por ella desde que a sabia do seu sangue!... Uma repugnancia material, carnal, · flÃr da pelle, que passava como um arrepio. FÃra primeiramente aquelle aroma que a envolvia, fluctuava entre os cortinados, lhe ficava a elle na pelle e no fato, o excitava tanto outr'ora, o impacientava tanto agora--que ainda na vespera se encharc·ra em agua de Colonia para o dissipar. FÃra depois aquelle corpo d'ella, adorado sempre como um marmore ideal, que de repente lhe apparecera, como era na sua realidade, forte de mais, musculoso, de grossos membros de Amazona barbara, com todas as bellezas copiosas do animal de prazer. Nos seus cabellos d'um lustre tâo macio, sentia agora inesperadamente uma rudeza de juba. Os seus movimentos na cama, ainda n'essa noite, o tinham assustado como se fossem os de uma fera, lenta e ciosa, que se estirava para o devorar... Quando os seus braÃos o enlaÃavam, o esmagavam contra os seus rijos peitos tumidos de seiva, ainda decerto lhe punham nas veias uma chamma que era toda bestial. Mas, apenas o ultimo suspiro lhe morria nos labios, ahi comeÃava insensivelmente a recuar para a borda do colchâo, com um susto estranho: e immovel, encolhido na roupa, perdido no fundo d'uma infinita tristeza, esquecia-se pensando n'uma outra vida que podia ter, longe d'alli, n'uma casa simples, toda aberta ao sol, com sua mulher, legitimamente sua, flÃr de graÃa domestica, pequenina, timida, pudica, que nâo soltasse aquelles gritos lascivos, e nâo usasse esse aroma tâo quente! E desgraÃadamente agora j· nâo duvidava... Se partisse com ella, seria para bem cedo se debater no indizivel horror de um nojo physico. E que lhe restaria entâo, morta a paixâo que fÃra a desculpa do crime, ligado para sempre a uma mulher que o enojava--e que era... Sà lhe restava matar-se! Mas, tendo por um sà dia dormido com ella, na plena consciencia da consanguinidade que os separava, poderia recomeÃar a vida tranquillamente? Ainda que possuisse frieza e forÃa para apagar dentro em si essa memoria--ella nâo morreria no coraÃâo do avÃ, e do seu amigo. Aquelle ascoroso segredo ficaria entre elles, estragando, maculando tudo. A existencia d'ora ·vante sà lhe offerecia intoleravel amargÃr... Que fazer, santo Deus, que fazer! Ah, se alguem o podesse aconselhar, o podesse consolar! Quando chegou · porta de casa o seu desejo unico era atirar-se aos pÃs d'um padre, aos pÃs d'um santo, abrir-lhe as miserias do seu coraÃâo, implorar-lhe a doÃura da sua misericordia! Mas ai! onde havia um santo? Defronte do Ramalhete os candieiros ainda ardiam. Abriu de leve a porta. Pà ante pÃ, subiu as escadas ensurdecidas pelo velludo cÃr de cereja. No patamar tacteava, procurava a vela--quando, atravÃs do reposteiro entreaberto, avistou uma claridade que se movia no fundo do quarto. Nervoso, recuou, parou no recanto. O clarâo chegava, crescendo: passos lentos, pesados, pisavam surdamente o tapete: a luz surgiu--e com ella o avà em mangas de camisa, livido, mudo, grande, espectral. Carlos nâo se moveu, suffocado; e os dois olhos do velho, vermelhos, esgazeados, cheios de horror, cahiram sobre elle, ficaram sobre elle, varando-o atà ·s profundidades d'alma, lendo l· o seu segredo. Depois, sem uma palavra, com a cabeÃa branca a tremer, Affonso atravessou o patamar, onde a luz sobre o velludo espalhava um tom de sangue:--e os seus passos perderam-se no interior da casa, lentos, abafados, cada vez mais sumidos, como se fossem os derradeiros que devesse dar na vida! Carlos entrou no quarto ·s escuras, tropeÃou n'um sof·. E alli se deixou cahir, com a cabeÃa enterrada nos braÃos, sem pensar, sem sentir, vendo o velho livido passar, repassar diante d'elle como um longo phantasma, com a luz avermelhada na mâo. Pouco a pouco foi-o tomando um cansaÃo, uma inercia, uma infinita lassidâo da vontade, onde um desejo apenas transparecia, se alongava--o desejo de interminavelmente repousar algures n'uma grande mudez e n'uma grande treva... Assim escorregou ao pensamento da morte. Ella seria a perfeita cura, o asylo seguro. Porque nâo iria ao seu encontro? Alguns grâos de laudano n'essa noite e penetrava na absoluta paz... Ficou muito tempo, embebendo-se n'esta idÃa que lhe dava allivio e consolo, como se, escorraÃado por uma tormenta ruidosa, visse diante dos seus passos abrir-se uma porta d'onde sahisse calor e silencio. Um rumor, o chilrear d'um passaro na janella, fez-lhe sentir o sol e o dia. Ergueu-se, despiu-se muito devagar, n'uma immensa molleza. E mergulhou na cama, enterrou a cabeÃa no travesseiro para recahir na doÃura d'aquella inercia, que era um antegosto da morte, e nâo sentir mais nas horas que lhe restavam nenhuma luz, nenhuma coisa da terra. O sol ia alto, um barulho passou, o Baptista rompeu pelo quarto: --â snr. D. Carlos, à meu menino! O avà achou-se mal no jardim, nâo d· accordo!... Carlos pulou do leito, enfiando um paletot que agarr·ra. Na ante-camara a governante, debruÃada no corrimâo, gritava, afflicta:--´Adiante, homem de Deus, ao pà da padaria, o snr. dr. Azevedo!ª E um moÃo que corria, com que esbarrou no corredor, atirou, sem parar: --Ao fundo, ao pà da cascata, snr. D. Carlos, na mesa de pedra!... Affonso da Maia l· estava, n'esse recanto do quintal, sob os ramos do cedro, sentado no banco de cortiÃa, tombado por sobre a tosca mesa, com a face cahida entre os braÃos. O chapÃo desabado rol·ra para o châo; nas costas, com a gola erguida, conservava o seu velho capote azul. Em volta, nas folhas das camelias, nas aleas areadas, refulgia, cÃr d'ouro, o sol fino d'inverno. Por entre as conchas da cascata o fio d'agua punha o seu choro lento. Arrebatadamente, Carlos levant·ra-lhe a face, j· rigida, cÃr de cera, com os olhos cerrados, e um fio de sangue aos cantos da longa barba de neve. Depois cahiu de joelhos no châo humido, sacudia-lhe as mâos, murmurando:--´â avÃ! à avÃ!ª--Correu ao tanque, borrifou-o d'agua: --Chamem alguem! chamem alguem! Outra vez lhe palpava o coraÃâo... Mas estava morto. Estava morto, j· frio, aquelle corpo que, mais velho que o seculo, resistira tâo formidavelmente, como um grande roble, aos annos e aos vendavaes. Alli morrera solitariamente, j· o sol ia alto, n'aquella tosca mesa de pedra onde deix·ra pender a cabeÃa cansada. Quando Carlos se ergueu, Ega apparecia, esguedelhado, embrulhado no robe-de-chambre. Carlos abraÃou-se n'elle, tremendo todo, n'um chÃro despedaÃado. Os criados em redor olhavam, aterrados. E a governante, como tonta, entre as ruas de roseiras, gemia com as mâos na cabeÃa:--´Ai o meu rico senhor, ai o meu rico senhor!ª Mas o porteiro, esbaforido, chegava com o medico, o dr. Azevedo, que felizmente encontr·ra na rua. Era um rapaz, apenas sahido da EscÃla, magrinho e nervoso, com as pontas do bigode muito frisadas. Deu em redor, atarantadamente, um comprimento aos criados, ao Ega, e a Carlos, que procurava serenar com a face lavada de lagrimas. Depois, tendo descalÃado a luva, estudou todo o corpo de Affonso com uma lentidâo, uma minuciosidade que exagerava, · medida que sentia em volta, mais anciosos e attentos n'elle, todos aquelles olhos humedecidos. Por fim, diante de Carlos, passando nervosamente os dedos no bigode, murmurou termos technicos... De resto, dizia, j· o collega se teria compenetrado de que tudo infelizmente find·ra. Elle sentia das vÃras da alma o desgosto... Se para alguma coisa fosse necessario, com o maximo prazer... --Muito agradecido a v. exc.^a, balbuciou Carlos. Ega, em chinelas, deu alguns passos com o snr. dr. Azevedo, para lhe indicar a porta do jardim. Carlos no emtanto fic·ra defronte do velho, sem chorar, perdido apenas no espanto d'aquelle brusco fim! Imagens do avÃ, do avà vivo e forte, cachimbando ao canto do fogâo, regando de manhâ as roseiras, passavam-lhe n'alma, em tropel, deixando-lh'a cada vez mais dorida e negra... E era entâo um desejo de findar tambem, encostar-se como elle ·quella mesa de pedra, e sem outro esforÃo, nenhuma outra dÃr da vida, cahir como elle na sempiterna paz. Uma restea de sol, entre os ramos grossos do cedro, batia a face morta de Affonso. No silencio os passaros, um momento espantados, tinham recomeÃado a chalrar. Ega veio a Carlos, tocou-lhe no braÃo: --⦠necessario leval-o para cima. Carlos beijou a mâo fria que pendia. E, devagar, com os beiÃos a tremer, levantou o avà pelos hombros carinhosamente. Baptista correra a ajudar; Ega, embaraÃado no seu largo roupâo, segurava os pÃs do velho. AtravÃs do jardim, do terraÃo cheio de sol, do escriptorio onde a sua poltrona esperava diante do lume accÃso, foram-o transportando n'um silencio sà quebrado pelos passos dos criados, que corriam a abrir as portas, acudiam quando Carlos, na sua perturbaÃâo, ou o Ega fraquejavam sob o peso do grande corpo. A governante j· estava no quarto d'Affonso com uma colcha de sÃda para estender na singela cama de ferro, sem cortinado. E alli o depuzeram emfim sobre as ramagens claras bordadas na sÃda azul. Ega accendera dois castiÃaes de prata: a governante, de joelhos · beira do leito, esfiava o rosario: e Mr. Antoine, com o seu barrete branco de cozinheiro na mâo, fic·ra · porta, junto d'um cesto que trouxera, cheio de camelias e palmas de estufa. Carlos, no emtanto, movendo-se pelo quarto, com longos soluÃos que o sacudiam, voltava a cada instante, n'uma derradeira e absurda esperanÃa, palpar as mâos ou o coraÃâo do velho. Com o jaquetâo de velludilho, os seus grossos sapatos brancos, Affonso parecia mais forte e maior, na sua rigidez, sobre o leito estreito: entre o cabello de neve cortado · escovinha e a longa barba desleixada, a pelle ganh·ra um tom de marfim velho, onde as rugas tomavam a dureza d'entalhaduras a cinzel: as palpebras engelhadas, de pestanas brancas, pousavam com a consolada serenidade de quem emfim descanÃa; e ao deitarem-no uma das mâos fic·ra-lhe aberta e posta sobre o coraÃâo, na simples e natural attitude de quem tanto pelo coraÃâo vivÃra! Carlos perdia-se n'esta contemplaÃâo dolorosa. E o seu desespero era que o avà assim tivesse partido para sempre, sem que entre elles houvesse um adeus, uma dÃce palavra trocada. Nada! Apenas aquelle olhar angustiado, quando pass·ra com a vela accÃsa na mâo. J· entâo elle ia andando para a morte. O avà sabia tudo, d'isso morrera! E esta certeza sem cessar lhe batia n'alma, com uma longa pancada repetida e lugubre. O avà sabia tudo, d'isso morrera! Ega veio com um gesto indicar-lhe o estado em que estavam--elle de robe-de-chambre, Carlos com o paletot sobre a camisa de dormir: --⦠necessario descer, à necessario vestir-nos. Carlos balbuciou: --Sim, vamo-nos vestir... Mas nâo se arredava. Ega levou-o brandamente pelo braÃo. Elle caminhava como um somnambulo, passando o lenÃo devagar pela testa e pela barba. E de repente no corredor, apertando desesperadamente as mâos, outra vez coberto de lagrimas, n'um agoniado desabafo de toda a sua culpa: --Ega, meu querido Ega! O avà viu-me esta manhâ quando entrei! E passou, nâo me disse nada... Sabia tudo, foi isso que o matou!... Ega arrastou-o, consolou-o, repellindo tal idÃa. Que tolice! O avà tinha quasi oitenta annos, e uma doenÃa de coraÃâo... Desde a volta de Santa Olavia, quantas vezes elles tinham fallado n'isso, aterrados! Era absurdo ir agora fazer-se mais desgraÃado com semelhante imaginaÃâo! Carlos murmurou, devagar, como para si mesmo, com os olhos postos no châo: --Nâo! ⦠estranho, nâo me faÃo mais desgraÃado! Aceito isto como um castigo... Quero que seja um castigo... E sinto-me sà muito pequeno, muito humilde diante de quem assim me castiga. Esta manhâ pensava em matar-me. E agora nâo! ⦠o meu castigo viver, esmagado para sempre... O que me custa à que elle nâo me tivesse dito _adeus_!! De novo as lagrimas lhe correram, mas lentas, mansamente, sem desespero. Ega levou-o para o quarto, como uma crianÃa. E assim o deixou a um canto do sof·, com o lenÃo sobre a face, n'um chÃro contÃnuo e quieto, que lhe ia lavando, alliviando o coraÃâo de todas as angustias confusas e sem nome que n'esses dias derradeiros o traziam suffocado. Ao meio dia, em cima, Ega acabava de vestir-se quando VillaÃa lhe rompeu pelo quarto de braÃos abertos. --Entâo como foi isto, como foi isto? Baptista mand·ra-o chamar pelo trintanario, mas o rapazola pouco lhe soubera contar. Agora em baixo o pobre Carlos abra÷ra-o, coitadinho, lavado em lagrimas, sem poder dizer nada, pedindo-lhe sà para se entender em tudo com o Ega... E alli estava. --Mas como foi, como foi, assim de repente?... Ega contou, brevemente, como tinham encontrado Affonso de manhâ no jardim, tombado para cima da mesa de pedra. Viera o dr. Azevedo, mas tudo acab·ra! VillaÃa levou as mâos · cabeÃa: --Uma coisa assim! Creia o amigo! Foi essa mulher, essa mulher que ahi appareceu, que o matou! Nunca foi o mesmo depois d'aquelle abalo! Nâo foi mais nada! Foi isso! Ega murmurava, deitando machinalmente agua de Colonia no lenÃo: --Sim, talvez, esse abalo, e oitenta annos, e poucas cautelas, e uma doenÃa de coraÃâo. Fallaram entâo do enterro, que devia ser simples como convinha ·quelle homem simples. Para depositar o corpo, emquanto nâo fosse trasladado para Santa Olavia, Ega lembr·ra-se do jazigo do marquez. VillaÃa coÃava o queixo, hesitando: --Eu tambem tenho um jazigo. Foi o proprio snr. Affonso da Maia que o mandou erguer para meu pai, que Deus haja... Ora parece-me que por uns dias ficava l· perfeitamente. Assim nâo se pedia a ninguem, e eu tinha n'isso muita honra... Ega concordou. Depois fixaram outros detalhes de convite, de hora, de chave do caixâo. Por fim VillaÃa, olhando o relogio, ergueu-se com um grande suspiro: --Bem, vou dar esses tristes passos! E c· appareÃo logo, que o quero vÃr pela ultima vez, quando o tiverem vestido. Quem me havia de dizer! Ainda antes de hontem a jogar com elle... Atà lhe ganhei tres mil reis, coitadinho! Uma onda de saudade suffocou-o, fugiu com o lenÃo nos olhos. Quando Ega desceu, Carlos, todo de luto, estava sentado · escrivaninha, diante d'uma folha de papel. Immediatamente ergueu-se, arrojou a penna. --Nâo posso!... Escreve-lhe tu ahi, a ella, duas palavras. Em silencio, Ega tomou a penna, redigiu um bilhete muito curto. Dizia: ´Minha senhora. O snr. Affonso da Maia morreu esta madrugada, de repente, com uma apoplexia. V. exc.^a comprehende que, n'este momento, Carlos nada mais pÃde do que pedir-me para eu transmittir a v. exc.^a esta desgraÃada noticia. Creia-me, etc.ª Nâo o leu a Carlos. E como Baptista entrava n'esse momento, todo de preto, com o almoÃo n'uma bandeja, Ega pediu-lhe para mandar o trintanario com aquelle bilhete · rua de S. Francisco. Baptista segredou sobre o hombro do Ega: --⦠bom nâo esquecer as fardas de luto para os criados... --O snr. VillaÃa j· sabe. Tomaram ch· · pressa em cima do taboleiro. Depois Ega escreveu bilhetes a D. Diogo e ao Sequeira, os mais velhos amigos d'Affonso: e davam duas horas quando chegaram os homens com o caixâo para amortalhar o corpo. Mas Carlos nâo permittiu que mâos mercenarias tocassem no avÃ. Foi elle e o Ega, ajudados pelo Baptista, que, corajosamente, recalcando a emoÃâo sob o dever, o lavaram, o vestiram, o depuzeram dentro do grande cofre de carvalho, forrado de setim claro, onde Carlos collocou uma miniatura de sua avà Runa. ¡ tarde, com auxilio de VillaÃa, que volt·ra ´para dar o ultimo olhar ao patrâoª, desceram-no ao escriptorio, que Ega nâo quizera alterar nem ornar, e que, com os damascos escarlates, as estantes lavradas, os livros juncando a carteira de pau preto, conservava a sua feiÃâo austera de paz estudiosa. SÃmente, para depÃr o caixâo, tinham juntado duas largas mesas, recobertas por um panno de velludo negro que havia na casa, com as armas bordadas a ouro. Por cima o Christo de Rubens abria os braÃos sobre a vermelhidâo do poente. Aos lados ardiam doze castiÃaes de prata. Largas palmas d'estufa cruzavam-se · cabeceira do esquife, entre ramos de camelias. E Ega accendeu um pouco de incenso em dois perfumadores de bronze. ¡ noite o primeiro dos velhos amigos a apparecer foi D. Diogo, solemne, de casaca. Encostado ao Ega, aterrado diante do caixâo, sà pÃde murmurar:--´E tinha menos sete mezes que eu!ª O marquez veio j· tarde, abafado em mantas, trazendo um grande cesto de flÃres. Craft e o Cruges nada sabiam, tinham-se encontrado na rampa de Santos;--e receberam a primeira surpreza ao vÃr fechado o portâo do Ramalhete. O ultimo a chegar foi o Sequeira, que pass·ra o dia na quinta, e se abraÃou em Carlos, depois no Craft ao acaso, entontecido, com uma lagrima nos olhos injectados, balbuciando:--´Foi-se o companheiro de muitos annos. Tambem nâo tardo!...ª E a noite de vigilia e pezames comeÃou, lenta e silenciosa. As doze chammas das velas ardiam, muito altas, n'uma solemnidade funeraria. Os amigos trocavam algum murmurio abafado, com as cadeiras chegadas. Pouco a pouco, o calor, o aroma do incenso, a exhalaÃâo das flÃres forÃaram o Baptista a abrir uma das janellas do terraÃo. O cÃo estava cheio d'estrellas. Um vento fino susurrava nas ramagens do jardim. J· tarde Sequeira, que nâo se movera d'uma poltrona, com os braÃos cruzados, teve uma tontura. Ega levou-o · sala de jantar, a reconfortal-o com um calice de cognac. Havia l· uma ceia fria, com vinhos e dÃces. E Craft veio tambem--com o Taveira, que soubera a desgraÃa na redacÃâo da _Tarde_, e correra quasi sem jantar. Tomando um pouco de Bordeus, uma _sandwich_, Sequeira reanimava-se, lembrava o passado, os tempos brilhantes, quando Affonso e elle eram novos. Mas emmudeceu vendo apparecer Carlos, pallido e vagaroso como um somnambulo, que balbuciou: ´Tomem alguma coisa, sim, tomem alguma coisa...ª Mexeu n'um prato, deu uma volta · mesa, sahiu. Assim vagamente foi atà · ante-camara, onde todos os candelabros ardiam. Uma figura esguia e negra surgiu da escada. Dois braÃos enlaÃaram-no. Era o Alencar. --Nunca vim c· nos dias felizes, aqui estou na hora triste! E o poeta seguiu pelo corredor, em pontas de pÃs, como pela nave d'um templo. Carlos no emtanto deu ainda alguns passos pela ante-camara. Ao canto d'um divan fic·ra um grande cesto com uma corÃa de flÃres, sobre que pousava uma carta. Reconheceu a letra de Maria. Nâo lhe tocou, recolheu ao escriptorio. Alencar, diante do caixâo, com a mâo pousada no hombro do Ega, murmurava: ´Foi-se uma alma de heroe!ª As velas iam-se consumindo. Um cansaÃo pesava. Baptista fez servir cafà no bilhar. E ahi, apenas recebeu a sua chavena, Alencar, cercado do Cruges, do Taveira, do VillaÃa, rompeu a fallar tambem do passado, dos tempos brilhantes d'Arroios, dos rapazes ardentes d'entâo: --Vejam vocÃs, filhos, se se encontra ainda uma gente como estes Maias, almas de leıes, generosos, valentes!... Tudo parece ir morrendo n'este desgraÃado paiz!... Foi-se a faisca, foi-se a paixâo... Affonso da Maia! Parece que o estou a vÃr, · janella do palacio em Bemfica, com a sua grande gravata de setim, aquella cara nobre de portuguez d'outr'ora... E l· vai! E o meu pobre Pedro tambem... Caramba, atà se me faz a alma negra! Os olhos ennevoavam-se-lhe, deu um immenso sorvo ao cognac. Ega, depois de beber um gole de cafÃ, volt·ra ao escriptorio, onde o cheiro d'incenso espalhava uma melancolia de capella. D. Diogo, estirado no sof·, resonava; Sequeira defronte dormitava tambem, descahido sobre os braÃos cruzados, com todo o sangue na face. Ega despertou-os de leve. Os dois velhos amigos, depois d'um abraÃo a Carlos, partiram na mesma carruagem, com os charutos accÃsos. Os outros, pouco a pouco, iam tambem abraÃar Carlos, enfiavam os paletots. O ultimo a sahir foi Alencar, que, no pateo, beijou o Ega, n'um impulso d'emoÃâo, lamentando ainda o passado, os companheiros desapparecidos: --O que me vale agora sâo vocÃs, rapazes, a gente nova. Nâo me deitem · margem! Senâo, caramba, quando quizer fazer uma visita tenho d'ir ao cemiterio. Adeus, nâo apanhes frio! O enterro foi ao outro dia, · uma hora. O Ega, o marquez, o Craft, o Sequeira levaram o caixâo atà · porta, seguidos pelo grupo d'amigos, onde destacava o conde de Gouvarinho, solemnissimo, de gran-cruz. O conde de Steinbroken, com o seu secretario, trazia na mâo uma corÃa de violetas. Na calÃada estreita os trens apertavam-se, n'uma longa fila que subia, se perdia pelas outras ruas, pelas travessas: em todas as janellas do bairro se apinhava gente: os policias berravam com os cocheiros. Por fim o carro, muito simples, rodou, seguido por duas carruagens da casa, vazias, com as lanternas recobertas de longos vÃos de crepe que pendiam. Atraz, um a um, desfilaram os trens da Companhia com os convidados, que abotoavam os casacos, corriam os vidros contra a friagem do dia ennevoado. O Darque e o Vargas iam no mesmo coupÃ. O correio do Gouvarinho passou choutando na sua pileca branca. E, sobre a rua deserta, cerrou-se finalmente para um grande luto o portâo do Ramalhete. Quando Ega voltou do cemiterio encontrou Carlos no quarto, rasgando papeis, emquanto o Baptista, atarefado, de joelhos no tapete, fechava uma mala de couro. E como Ega, pallido e arrepiado de frio, esfregava as mâos, Carlos fechou a gaveta cheia de cartas, lembrou que fossem para o _fumoir_ onde havia lume. Apenas l· entraram, Carlos correu o reposteiro, olhou para o Ega: --Tens duvida em lhe ir fallar, a ella? --Nâo. Para que?... Para lhe dizer o que? --Tudo. Ega rolou uma poltrona para junto da chaminÃ, despertou as brazas. E Carlos, ao lado, proseguiu devagar, olhando o lume: --AlÃm d'isso, desejo que ella parta, que parta j· para Paris... Seria absurdo ficar em Lisboa... Emquanto se nâo liquidar o que lhe pertence, ha-de-se-lhe estabelecer uma mezada, uma larga mezada... VillaÃa vem d'aqui a bocado para fallar d'esses detalhes... Em todo o caso, ·manhâ, para ella partir, levas-lhe quinhentas libras. Ega murmurou: --Talvez para essas questıes de dinheiro fosse melhor ir l· o VillaÃa... --Nâo, pelo amor de Deus! Para que se ha de fazer cÃrar a pobre creatura diante do VillaÃa?... Houve um silencio. Ambos olhavam a chamma clara que bailava. --Custa-te muito, nâo à verdade, meu pobre Ega?... --Nâo... ComeÃo a estar embotado. ⦠fechar os olhos, tragar mais essa m· hora, e depois descansar. Quando voltas tu de Santa Olavia? Carlos nâo sabia. Contava que Ega, terminada essa missâo · rua de S. Francisco, fosse aborrecer-se uns dias com elle a Santa Olavia. Mais tarde era necessario trasladar para l· o corpo do avÃ... --E passado isso, vou viajar... Vou · America, vou ao Japâo, vou fazer esta coisa estupida e sempre efficaz que se chama _distrahir_... Encolheu os hombros, foi devagar atà · janella, onde morria pallidamente um raio de sol na tarde que clare·ra. Depois voltando para o Ega, que de novo remexia os carvıes: --Eu, est· claro, nâo me atrevo a dizer-te que venhas, Ega... Desejava bem, mas nâo me atrevo! Ega pousou devagar as tenazes, ergueu-se, abriu os braÃos para Carlos, commovido: --Atreve, que diabo... Porque nâo? --Entâo vem! Carlos puzera n'isto toda a sua alma. E ao abraÃar o Ega corriam-lhe na face duas grandes lagrimas. Entâo Ega reflectiu. Antes de ir a Santa Olavia precisava fazer uma romagem · quinta de Celorico. O Oriente era caro. Urgia pois arrancar · mâi algumas letras de credito... E como Carlos pretendia ter ´bastante para o luxo d'ambosª, Ega atalhou muito sÃrio: --Nâo, nâo! Minha mâi tambem à rica. Uma viagem · America e ao Japâo sâo fÃrmas de educaÃâo. E a mamâ tem o dever de completar a minha educaÃâo. O que acceito, sim, à uma das tuas malas de couro... Quando n'essa noite, acompanhados pelo VillaÃa, Carlos e Ega chegaram · estaÃâo de Santa Apolonia, o comboio ia partir. Carlos mal teve tempo de saltar para o seu compartimento reservado--emquanto o Baptista, abraÃado ·s mantas de viagem, empurrado pelo guarda, se iÃava desesperadamente para outra carruagem, entre os protestos dos sujeitos que a atulhavam. O trem immediatamente rolou. Carlos debruÃou-se · portinhola, gritando ao Ega:--´Manda um telegramma ·manhâ a dizer o que houve!ª Recolhendo ao Ramalhete com o VillaÃa, que ia n'essa noite colligir e sellar os papeis de Affonso da Maia, Ega fallou logo nas quinhentas libras que elle devia entregar na manhâ seguinte a Maria Eduarda. VillaÃa recebera com effeito essa ordem de Carlos. Mas francamente, entre amigos, nâo lhe parecia excessiva a somma, para uma jornada? AlÃm d'isso Carlos fall·ra em estabelecer a essa senhora uma mezada de quatro mil francos, cento e sessenta libras! Nâo achava tambem exagerado? Para uma mulher, uma simples mulher... Ega lembrou que essa simples mulher tinha direito legal a muito mais... --Sim, sim, resmungou o procurador. Mas tudo isso de legalidade tem ainda de ser muito estudado. Nâo fallemos n'isso. Eu nem gÃsto de fallar d'isso!... Depois como Ega alludia · fortuna que deixava Affonso da Maia--VillaÃa deu detalhes. Era decerto uma das boas casas de Portugal. Sà o que viera da heranÃa de Sebastiâo da Maia, representava bem quinze contos de renda. As propriedades do Alemtejo, com os trabalhos que l· fizera o pai d'elle VillaÃa, tinham triplicado de valor. Santa Olavia era uma despeza. Mas as quintas ao pà de Lamego, um condado. --Ha muito dinheiro! exclamou elle com satisfaÃâo, batendo no joelho do Ega. E isto, amigo, digam l· o que disserem, sempre consola de tudo. --Consola de muito, com effeito. Ao entrar no Ramalhete, Ega sentia uma longa saudade pensando no lar feliz e amavel que alli houvera e que para sempre se apag·ra. Na ante-camara, os seus passos j· lhe pareceram soar tristemente como os que se dâo n'uma casa abandonada. Ainda errava um vago cheiro de incenso e de phenol. No lustre do corredor havia uma luz sà e dormente. --J· anda aqui um ar de ruina, VillaÃa. --Ruinasinha bem confortavel, todavia! murmurou o procurador dando um olhar ·s tapeÃarias e aos divans, e esfregando as mâos, arrepiado da friagem da noite. Entraram no escriptorio de Affonso, onde durante um momento se ficaram aquecendo ao lume. O relogio Luiz XV bateu finalmente as nove horas--depois a toada argentina do seu minuete vibrou um instante e morreu. VillaÃa preparou-se para comeÃar a sua tarefa. Ega declarou que ia para o quarto arranjar tambem a sua papelada, fazer a limpeza final de dois annos de mocidade... Subiu. E pous·ra apenas a luz sobre a commoda, quando sentiu ao fundo, no silencio do corredor, um gemido longo, desolado, d'uma tristeza infinita. Um terror arrepiou-lhe os cabellos. Aquillo arrastava-se, gemia no escuro, para o lado dos aposentos d'Affonso da Maia. Por fim, reflectindo que toda a casa estava acordada, cheia de criados e de luzes, Ega ousou dar alguns passos no corredor, com o castiÃal na mâo tremula. Era o gato! Era o reverendo Bonifacio, que, diante do quarto d'Affonso, arranhando a porta fechada, miava doloridamente. Ega escorraÃou-o, furioso. O pobre Bonifacio fugiu, obeso e lento, com a cauda fÃfa a roÃar o châo: mas voltou logo, e esgatanhando a porta, roÃando-se pelas pernas do Ega, recomeÃou a miar, n'um lamento agudo, saudoso como o d'uma dÃr humana, chorando o dono perdido que o acariciava no collo e que nâo torn·ra a apparecer. Ega correu ao escriptorio a pedir ao VillaÃa que dormisse essa noite no Ramalhete. O procurador accedeu, impressionado com aquelle horror do gato a chorar. Deix·ra o montâo de papeis sobre a mesa, volt·ra a aquecer os pÃs ao lume dormente. E voltando-se para o Ega, que se sent·ra, ainda todo pallido, no sof· bordado a matiz, antigo logar de D. Diogo, murmurou devagar, gravemente: --Ha tres annos, quando o snr. Affonso me encommendou aqui as primeiras obras, lembrei-lhe eu que, segundo uma antiga lenda, eram sempre fataes aos Maias as paredes do Ramalhete. O snr. Affonso da Maia riu d'agouros e lendas... Pois fataes foram! No dia seguinte, levando os papeis da Monforte e o dinheiro em letras e libras que VillaÃa lhe entreg·ra · porta do Banco de Portugal, Ega, com o coraÃâo aos pulos, mas decidido a ser forte, a affrontar a crise serenamente, subia ao primeiro andar da rua de S. Francisco. O Domingos, de gravata preta, movendo-se em pontas de pÃs, abriu o reposteiro da sala. E Ega pous·ra apenas sobre o sof· a velha caixa de charutos da Monforte--quando Maria Eduarda entrou, pallida, toda coberta de negro, estendendo-lhe as mâos ambas. --Entâo Carlos? Ega balbuciou: --Como v. exc.^a pÃde imaginar, n'um momento d'estes... Foi horrivel, assim de surpreza... Uma lagrima tremeu nos olhos pisados de Maria. Ella nâo conhecia o snr. Affonso da Maia, nem sequer o vira nunca. Mas soffria realmente por sentir bem o soffrimento de Carlos... O que aquelle rapaz estremecia o avÃ! --Foi de repente, nâo? Ega retardou-se em longos detalhes. Agradeceu a corÃa que ella mand·ra. Contou os gemidos, a afflicÃâo do pobre Bonifacio... --E Carlos? repetiu ella. --Carlos foi para Santa Olavia, minha senhora. Ella apertou as mâos, n'uma surpreza que a acabrunhava. Para Santa Olavia! E sem um bilhete, sem uma palavra?... Um terror empallidecia-a mais, diante d'aquella partida tâo arrebatada, quasi parecida com um abandono. Terminou por murmurar, com um ar de resignaÃâo e de confianÃa que nâo sentia: --Sim, com effeito, n'este momento nâo se pensa nos outros... Duas lagrimas corriam-lhe devagar pela face. E diante d'esta dÃr, tâo humilde e tâo muda, Ega ficou desconcertado. Durante um instante, com os dedos tremulos no bigode, viu Maria chorar em silencio. Por fim ergueu-se, foi · janella, voltou, abriu os braÃos diante d'ella n'uma afflicÃâo: --Nâo, nâo à isso, minha querida senhora! Ha outra coisa, ha ainda outra coisa! Tem sido para nÃs dias terriveis! Tem sido dias d'angustia... Outra coisa!?... Ella esperava, com os olhos largos sobre o Ega, a alma toda suspensa. Ega respirou fortemente: --V. exc.^a lembra-se d'um Guimarâes, que vive em Paris, um tio do Damaso? Maria, espantada, moveu lentamente a cabeÃa. --Esse Guimarâes era muito conhecido da mâi de v. exc.^a, nâo à verdade? Ella teve o mesmo movimento breve e mudo. Mas o pobre Ega hesitava ainda, com a face arrepanhada e branca, n'um embaraÃo que o dilacerava: --Eu fallo em tudo isto, minha senhora, porque Carlos assim me pediu... Deus sabe o que me custa!... E à horrivel, nem sei por onde hei de comeÃar... Ella juntou as mâos, n'uma supplica, n'uma angustia: --Pelo amor de Deus! E n'esse instante, muito socegadamente, Rosa erguia uma ponta do reposteiro, com _Niniche_ ao lado e a sua boneca nos braÃos. A mâi teve um grito impaciente: --Vai l· p'ra dentro! deixa-me! Assustada, a pequena nâo se moveu mais, com os lindos olhos de repente cheios de agua. O reposteiro cahiu, do fundo do corredor veio um grande chÃro magoado. Entâo Ega teve sà um desejo, o desesperado desejo de findar. --V. exc.^a conhece a letra de sua mâi, nâo à verdade?... Pois bem! Eu trago aqui uma declaraÃâo d'ella a seu respeito... Esse Guimarâes à que tinha este documento, com outros papeis que ella lhe entregou em 71, nas vesperas da guerra... Elle conservou-os atà agora, e queria restituir-lh'os, mas nâo sabia onde v. exc.^a vivia. Viu-a ha dias n'uma carruagem, commigo, e com o Carlos... Foi ao pà do Aterro, v. exc.^a deve lembrar-se, defronte do alfaiate, quando vinhamos da _Toca_... Pois bem! o Guimarâes veio immediatamente ao procurador dos Maias, deu-lhe esses papeis, para que os entregasse a v. exc.^a... E nas primeiras palavras que disse, imagine o assombro de todos, quando se entreviu que v. exc.^a era parenta de Carlos, e parenta muito chegada... Atabalho·ra esta historia de pÃ, quasi d'um fÃlego, com bruscos gestos de nervoso. Ella mal comprehendia, livida, n'um indefinido terror. Sà pÃde murmurar muito debilmente: ´Mas...ª E de novo emmudeceu, assombrada, devorando os movimentos do Ega que, debruÃado sobre o sof·, desembrulhava a tremer a caixa de charutos da Monforte. Por fim voltou para ella com um papel na mâo, atropellando as palavras n'uma debandada: --A mâi de v. exc.^a nunca lh'o disse... Havia um motivo muito grave... Ella tinha fugido de Lisboa, fugido ao marido... Digo isto assim brutalmente, perdÃe-me v. exc.^a, mas nâo à o momento de attenuar as coisas... Aqui est·! V. exc.^a conhece a letra de sua mâi. ⦠d'ella esta letra, nâo à verdade? --â¦! exclamou Maria, indo arrebatar o papel. --Perdâo! gritou Ega, retirando-lh'o violentamente. Eu sou um estranho! E v. exc.^a nâo se pÃde inteirar de tudo isto emquanto eu nâo sahir d'aqui. FÃra uma inspiraÃâo providencial, que o salvava de testemunhar o choque terrivel, o horror das coisas que ella ia saber. E insistiu. Deixava-lhe alli todos os papeis que eram de sua mâi. Ella lerÃa, quando elle sahisse, comprehenderia a realidade atroz... Depois, tirando do bolso os dois pesados rÃlos de libras, o sobrescripto que continha a letra sobre Paris, pÃz tudo em cima da mesa, com a declaraÃâo da Monforte. --Agora sà mais duas palavras. Carlos pensa que o que v. exc.^a deve fazer j· à partir para Paris. V. exc.^a tem direito, como sua filha ha de ter, a uma parte da fortuna d'esta familia dos Maias, que agora à a sua... N'este masso que lhe deixo est· uma letra sobre Paris para as despezas immediatas... O procurador de Carlos tomou j· um wagon-salâo. Quando v. exc.^a decidir partir, peÃo-lhe que mande um recado ao Ramalhete para eu estar na _gare_... Creio que à tudo. E agora devo deixal-a... Agarr·ra rapidamente o chapÃo, veio tomar-lhe a mâo inerte e fria: --Tudo à uma fatalidade! V. exc.^a à nova, ainda lhe resta muita coisa na vida, tem a sua filha a consolal-a de tudo... Nem lhe sei dizer mais nada! Suffocado, beijou-lhe a mâo que ella lhe abandonou, sem consciencia e sem voz, de pÃ, direita no seu negro luto, com a lividez parada d'um marmore. E fugiu. --Ao telegrapho! gritou em baixo ao cocheiro. Foi sà na rua do Ouro que comeÃou a serenar, tirando o chapÃo, respirando largamente. E ia entâo repetindo a si mesmo todas as consolaÃıes que se poderiam dar a Maria Eduarda: era nova e formosa; o seu peccado fÃra inconsciente; o tempo acalma toda a dÃr; e em breve, j· resignada, encontrar-se-hia com uma familia sÃria, uma larga fortuna, n'esse amavel Paris, onde uns lindos olhos, com algumas notas de mil francos, tÃm sempre um reinado seguro... --⦠uma situaÃâo de viuva bonita e rica, terminou elle por dizer alto no coupÃ. Ha peor na vida. Ao sahir do telegrapho despediu a tipoia. Por aquella luz consoladora do dia de inverno, recolheu a pà para o Ramalhete, a escrever a longa carta que promettera a Carlos. VillaÃa j· l· estava installado, com um bonà de velludilho na cabeÃa, emmassando ainda os papeis de Affonso, liquidando as contas dos criados. Jantaram tarde. E fumavam junto do lume, na sala Luiz XV, quando o escudeiro veio dizer que uma senhora, em baixo, n'uma carruagem, procurava o snr. Ega. Foi um terror. Imaginaram logo Maria, alguma resoluÃâo desesperada. VillaÃa ainda teve a esperanÃa d'ella trazer alguma nova revelaÃâo, que tudo mudasse, salvasse da ´boladaª... Ega desceu a tremer. Era Melanie n'uma tipoia de praÃa, abafada n'uma grande _ulster_, com uma carta de Madame. ¡ luz da lanterna Ega abriu o enveloppe, que trazia apenas um cartâo branco, com estas palavras a lapis: ´Decidi partir ·manhâ para Paris.ª Ega recalcou a curiosidade de saber como estava a senhora. Galgou logo as escadas: e seguido de VillaÃa, que fic·ra na ante-camara · espreita, correu ao escriptorio d'Affonso, a escrever a Maria. N'um papel tarjado de luto dizia-lhe (alÃm de detalhes sobre bagagens)--que o wagon-salâo estava tomado atà Paris, e que elle teria a honra de a vÃr em Santa Apolonia. Depois, ao fazer o sobrescripto, ficou com a penna no ar, n'um embaraÃo. Devia pÃr ´Madame Mac-Grenª ou ´D. Maria Eduarda da Maia?ª VillaÃa achava preferivel o antigo nome, porque ella legalmente ainda nâo era Maia. Mas, dizia o Ega atrapalhado, tambem j· nâo era Mac-Gren... --Acabou-se! Vae sem nome. Imagina-se que foi esquecimento... Levou assim a carta, dentro do sobrescripto em branco. Melanie guardou-a no regalo. E, debruÃada · portinhola, entristecendo a voz, desejou saber, da parte de Madame, onde estava enterrado o avà do senhor... Ega ficou com o monoculo sobre ella, sem sentir bem se aquella curiosidade de Maria era indiscreta ou tocante. Por fim deu uma indicaÃâo. Era nos Prazeres, · direita, ao fundo, onde havia um anjo com uma tocha. O melhor seria perguntar ao guarda pelo jazigo dos snrs. VillaÃas. --Merci, monsieur, bien le bonsoir. --Bonsoir, Melanie! No dia seguinte, na estaÃâo de Santa Apolonia, Ega, que viera cedo com o VillaÃa, acabava de despachar a sua bagagem para o Douro, quando avistou Maria que entrava trazendo Rosa pela mâo. Vinha toda envolta n'uma grande pelliÃa escura, com um vÃo dobrado, espesso como uma mascara: e a mesma gaze de luto escondia o rostosinho da pequena, fazendo-lhe um laÃo sobre a touca. Miss Sarah, n'uma _ulster_ clara de quadrados, sobraÃava um masso de livros. Atraz o Domingos, com os olhos muito vermelhos, segurava um rÃlo de mantas, ao lado de Melanie carregada de preto que levava _Niniche_ ao collo. Ega correu para Maria Eduarda, conduziu-a pelo braÃo, em silencio, ao wagon-salâo que tinha todas as cortinas cerradas. Junto do estribo ella tirou devagar a luva. E muda, estendeu-lhe a mâo. --Ainda nos vemos no Entroncamento, murmurou Ega. Eu sigo tambem para o Norte. Alguns sujeitos pararam, com curiosidade, ao vÃr sumir-se n'aquella carruagem de luxo, fechada, mysteriosa, uma senhora que parecia tâo bella, d'ar tâo triste, coberta de negro. E apenas Ega fechou a portinhola, o Neves, o da _Tarde_ e do Tribunal de Contas, rompeu d'entre um rancho, arrebatou-lhe o braÃo com sofreguidâo: --Quem Ã? Ega arrastou-o pela plataforma, para lhe deixar cahir no ouvido, j· muito adiante, tragicamente: --Cleopatra! O politico, furioso, ficou rosnando: ´Que asno!...ª Ega abal·ra. Junto do seu compartimento VillaÃa esperava, ainda deslumbrado com aquella figura de Maria Eduarda, tâo melancolica e nobre. Nunca a vira antes. E parecia-lhe uma rainha de romance. --Acredite o amigo, fez-me impressâo! Caramba, bella mulher! D·-nos uma bolada, mas à uma soberba praÃa! O comboio partiu. O Domingos ficava choramingando com um lenÃo de cÃres sobre a face. E o Neves, o conselheiro do Tribunal de Contas, ainda furioso, vendo o Ega · portinhola, atirou-lhe de lado, disfarÃadamente, um gesto obsceno. No Entroncamento Ega veio bater nos vidros do salâo que se conservava fechado e mudo. Foi Maria que abriu. Rosa dormia. Miss Sarah lia a um canto, com a cabeÃa n'uma almofada. E _Niniche_ assustada ladrou. --Quer tomar alguma coisa, minha senhora? --Nâo, obrigada... Ficaram calados, emquanto Ega com o pà no estribo tirava lentamente a charuteira. Na estaÃâo mal alumiada passavam saloios, devagar, abafados em mantas. Um guarda rolava uma carreta de fardos. Adiante a machina resfolegava na sombra. E dois sujeitos rondavam em frente do salâo, com olhares curiosos e j· languidos para aquella magnifica mulher, tâo grave e sombria, envolta na sua pelliÃa negra. --Vai para o Porto? murmurou ella. --Para Santa Olavia... --Ah! Entâo Ega balbuciou com os beiÃos a tremer: --Adeus! Ella apertou-lhe a mâo com muita forÃa, em silencio, suffocada. Ega atravessou, devagar, por entre soldados de capote enrolado a tiracollo que corriam a beber · cantina. ¡ porta do buffete voltou-se ainda, ergueu o chapÃo. Ella, de pÃ, moveu de leve o braÃo n'um lento adeus. E foi assim que elle pela derradeira vez na vida viu Maria Eduarda, grande, muda, toda negra na claridade, · portinhola d'aquelle wagon que para sempre a levava. VIII Semanas depois, nos primeiros dias d'anno novo, a _Gazeta Illustrada_ trazia na sua columna do _High-life_ esta noticia: ´ O distincto e brilhante _sportman_, o snr. Carlos da Maia, e o nosso amigo e collaborador Joâo da Ega, partiram hontem para Londres, d'onde seguirâo em breve para a America do Norte, devendo d'ahi prolongar a sua interessante viagem atà ao Japâo. Numerosos amigos foram a bordo do _Tamar_ despedir-se dos sympathicos _touristes_. Vimos entre outros os snrs, ministro da Filandia e seu secretario, o marquez de Souzella, conde de Gouvarinho, visconde de Darque, Guilherme Craft, Telles da Gama, Cruges, Taveira, VillaÃa, general Sequeira, o glorioso poeta Thomaz d'Alencar, etc. etc. O nosso amigo e collaborador Joâo da Ega fez-nos, no ultimo _shake-hands_, a promessa de nos mandar algumas cartas com as suas impressıes do Japâo, esse delicioso paiz d'onde nos vem o sol e a moda! ⦠uma boa nova para todos os que prezam a observaÃâo e o espirito. _Au revoir!_ª Depois d'estas linhas affectuosas (em que o Alencar collabor·ra) as primeiras noticias dos ´viajantesª vieram, n'uma carta do Ega para o VillaÃa, de New-York. Era curta, toda de negocios. Mas elle ajuntava um _post-scriptum_ com o titulo de _InformaÃıes geraes para os amigos_. Contava ahi a medonha travessia desde Liverpool, a persistente tristeza de Carlos, e New-York coberta de neve sob um sol rutilante. E acrescentava ainda: ´Est·-se apossando de nÃs a embriaguez das viagens, decididos a trilhar este estreito Universo atà que _cancem as nossas tristezas_. Planeamos ir a Pekin, passar a Grande Muralha, atravessar a Asia Central, o oasis de Merv, Khiva, e penetrar na Russia; d'ahi, pela Armenia e pela Syria, descer ao Egypto a retemperar-nos no sagrado Nilo; subir depois a Athenas, lanÃar sobre a Acropole uma saudaÃâo a Minerva; passar a Napoles; dar um olhar a Argelia e a Marrocos; e cahir emfim ao comprido em Santa Olavia l· para os meados de 79 a descanÃar os membros fatigados. Nâo escrevinho mais porque à tarde, e vamos · Opera vÃr a Patti no _Barbeiro_. Larga distribuiÃâo d'abraÃos a todos os amigos queridosª VillaÃa copiou este paragrapho, e trazia-o na carteira para mostrar aos fieis amigos do Ramalhete. Todos approvaram, com admiraÃâo, tâo bellas, aventurosas jornadas. Sà Cruges, aterrado com aquella vastidâo do Universo, murmurou tristemente: ´Nâo voltam c·!ª Mas, passado anno e meio, n'um lindo dia de marÃo, Ega reappareceu no Chiado. E foi uma sensaÃâo! Vinha esplendido, mais forte, mais trigueiro, soberbo de _verve_, n'um alto apuro de toilette, cheio de historias e de aventuras do Oriente, nâo tolerando nada em arte ou poesia que nâo fosse do Japâo ou da China, e annunciando um grande livro, o ´seu livroª, sob este titulo grave de chronica heroica--_Jornadas da Asia_. --E Carlos?... --Magnifico! Installado em Paris, n'um delicioso appartamento dos Campos-Elyseos, fazendo a vida larga d'um principe artista da RenascenÃa... Ao VillaÃa porÃm, que sabia os segredos, Ega confessou que Carlos fic·ra ainda _abalado_. Vivia, ria, governava o seu phaeton no Bois--mas l· no fundo do seu coraÃâo permanecia, pesada e negra, a memoria da ´semana terrivelª. --Todavia os annos vâo passando, VillaÃa, acrescentou elle. E com os annos, a nâo ser a China, tudo na terra passa... E esse anno passou. Gente nasceu, gente morreu. Searas amadureceram, arvoredos murcharam. Outros annos passaram. Nos fins de 1886, Carlos veio fazer o Natal perto de Sevilha, a casa d'um amigo seu de Paris, o marquez de Villa-Medina. E d'essa propriedade dos Villa-Medina, chamada _La Soledad_, escreveu para Lisboa ao Ega annunciando que--depois d'um exilio de quasi dez annos, resolvera vir ao velho Portugal vÃr as arvores de Santa Olavia e as maravilhas da Avenida. De resto tinha uma formidavel nova, que assombraria o bom Ega: e se elle j· ardia em curiosidade, que viesse ao seu encontro com o VillaÃa, comer o porco a Santa Olavia. --Vae casar! pensou Ega. Havia tres annos (desde a sua ultima estada em Paris) que elle nâo via Carlos. Infelizmente nâo pÃde correr a Santa Olavia, retido n'um quarto do _Braganza_ com uma angina, desde uma ceia prodigiosamente divertida com que celebr·ra no Silva a noite de Reis. VillaÃa, porÃm, levou a Carlos para Santa Olavia uma carta em que o Ega, contando a sua angina, lhe supplicava que se nâo retardasse com o porco n'esses penhascos do Douro, e que voasse · grande Capital a trazer a grande nova. Com effeito, Carlos pouco se demorou em Rezende. E n'uma luminosa e macia manhâ de janeiro de 1887, os dois amigos emfim juntos almoÃavam n'um salâo do _Hotel Braganza_, com as duas janellas abertas para o rio. Ega, j· curado, radiante, n'uma excitaÃâo que nâo se calmava, alagando-se de cafÃ, entalava a cada instante o monoculo para admirar Carlos e a sua ´immutabilidadeª. --Nem uma branca, nem uma ruga, nem uma sombra de fadiga!... Tudo isso à Paris, menino!... Lisboa arraza. Olha para mim, olha para isto! Com o dedo magro apontava os dois vincos fundos ao lado do nariz, na face chupada. E o que o aterrava sobretudo era a calva, uma calva que come÷ra havia dois annos, alastr·ra, j· reluzia no alto. --Olha este horror! A sciencia para tudo acha um remedio, menos para a calva! Transformam-se as civilisaÃıes, a calva fica!... J· tem tons de bola de bilhar, nâo à verdade?... De que ser·? --⦠a ociosidade, lembrou Carlos rindo. --A ociosidade!... E tu, entâo? De resto, que podia elle fazer n'este paiz?... Quando volt·ra de FranÃa, ultimamente, pens·ra em entrar na diplomacia. Para isso sempre tivera a _blague_: e agora que a mamâ, coitada, l· estava no seu grande jazigo em Celorico, tinha a _massa_. Mas depois reflectira. Por fim, em que consistia a diplomacia portugueza? N'uma outra fÃrma da ociosidade, passada no estrangeiro, com o sentimento constante da propria insignificancia. Antes o Chiado! E como Carlos lembrava a Politica, occupaÃâo dos inuteis, Ega trovejou. A politica! Isso torn·ra-se moralmente e physicamente nojento, desde que o negocio atac·ra o constitucionalismo como uma phylloxera! Os politicos hoje eram bonecos de engonÃos, que faziam gestos e tomavam attitudes porque dois ou tres financeiros por traz lhes puxavam pelos cordeis... Ainda assim podiam ser bonecos bem recortados, bem envernizados. Mas qual! Ahi à que estava o horror. Nâo tinham feitio, nâo tinham maneiras, nâo se lavavam, nâo limpavam as unhas... Coisa extraordinaria, que em paiz algum succedia, nem na Romelia, nem na Bulgaria! Os tres ou quatro salıes que em Lisboa recebem todo o mundo, seja quem fÃr, largamente, excluem a maioria dos politicos. E porque? Porque as _senhoras tÃm nÃjo_! --Olha o Gouvarinho! Và l· se elle recebe ·s terÃas-feiras os seus correligionarios... Carlos que sorria, encantado com aquella veia acerba do Ega, saltou na cadeira: --⦠verdade, e a Gouvarinho, a nossa boa Gouvarinho? Ega, passeando pela sala, deu as novas dos Gouvarinhos. A condessa herd·ra uns sessenta contos de uma tia excentrica que vivia a Santa Isabel, tinha agora melhores carruagens, recebia sempre ·s terÃas-feiras. Mas soffria uma doenÃa qualquer, grave, no figado ou no pulmâo. Ainda elegante todavia, muito sÃria, uma terrivel flÃr de _pruderie_... Elle, o Gouvarinho, ahi continuava, palrador, escrevinhador, politicote, impertigadote, j· grisalho, duas vezes ministro, e coberto de gran-cruzes... --Tu nâo os viste em Paris, ultimamente? --Nâo. Quando soube fui-lhes deixar bilhetes, mas tinham partido na vespera para Vichy... A porta abriu-se, um brado cavo resoou: --Atà que emfim, meu rapaz! --Oh Alencar! gritou Carlos, atirando o charuto. E foi um infinito abraÃo, com palmadas arrebatadas pelos hombros, e um beijo ruidoso--o beijo paternal do Alencar, que tremia, commovido. Ega arrast·ra uma cadeira, berrava pelo escudeiro: --Que tomas tu, Thomaz? Cognac? Cura÷o? Em todo o caso cafÃ! Mais cafÃ! Muito forte, para o snr. Alencar! O poeta, no emtanto, abysmado na contemplaÃâo de Carlos, agarr·ra-o pelas mâos, com um sorriso largo, que lhe descobria os dentes mais estragados. Achava-o magnifico, varâo soberbo, honra da raÃa... Ah! Paris, com o seu espirito, a sua vida ardente, conserva... --E Lisboa arraza! acudiu Ega. J· c· tive essa phrase. V·, abanca, ahi tens o cafÃsinho e a bebida! Mas Carlos agora tambem contemplava o Alencar. E parecia-lhe mais bonito, mais poetico, com a sua grenha inspirada e toda branca, e aquellas rugas fundas na face morena, cavadas como sulcos de carros pela tumultuosa passagem das emoÃıes... --Est·s typico, Alencar! Est·s a preceito para a gravura e para a estatua!... O poeta sorria, passando os dedos com complacencia pelos longos bigodes romanticos, que a idade embranquecera e o cigarro amarell·ra. Que diabo, algumas compensaÃıes havia de ter a velhice!... Em todo o caso o estomago nâo era mau, e conservava-se, caramba, filhos, um bocado de coraÃâo. --O que nâo impede, meu Carlos, que isto por c· esteja cada vez peor! Mas acabou-se... A gente queixa-se sempre do seu paiz, à habito humano. J· Horacio se queixava. E vocÃs, intelligencias superiores, sabeis bem, filhos, que no tempo de Augusto... Sem fallar, à claro, na quÃda da republica, n'aquelle desabamento das velhas instituiÃıes... Emfim deixemos l· os Romanos! Que est· alli n'aquella garrafa? Chablis... Nâo desgosto, no outono, com as ostras. Pois v· l· o Chablis. E · tua chegada, meu Carlos! e · tua, meu Joâo, e que Deus vos dà as glorias que mereceis, meus rapazes!... Bebeu. Rosnou: ´bom Chablis, _bouquet_ finoª. E acabou por abancar, ruidosamente, sacudindo para traz a juba branca. --Este Thomaz! exclamava Ega, pousando-lhe a mâo no hombro com carinho. Nâo ha outro, à unico! O bom Deus fel-o n'um dia de grande _verve_, e depois quebrou a fÃrma. Ora, historias! murmurava o poeta radiante. Havia-os tâo bons como elle. A humanidade viera toda do mesmo barro como pretendia a Biblia--ou do mesmo macaco como affirmava o Darwin... --Que, l· essas coisas d'evoluÃâo, origem das especies, desenvolvimento da cellula, c· para mim... Est· claro, o Darwin, o Lamarck, o Spencer, o Claudio Bernard, o LittrÃ, tudo isso, à gente de primeira ordem. Mas acabou-se, irra! Ha uns poucos de mil annos que o homem prova sublimemente que tem alma! --Toma o cafÃsinho, Thomaz! aconselhou o Ega, empurrando-lhe a chavena. Toma o cafÃsinho! --Obrigado!... E à verdade, Joâo, l· dei a tua boneca · pequena. ComeÃou logo a beijal-a, a embalal-a, com aquelle profundo instincto de mâi, aquelle _quid_ divino... ⦠uma sobrinhita minha, meu Carlos. Ficou sem mâi, coitadinha, l· a tenho, l· vou tratando de fazer d'ella uma mulher... Has de vÃl-a. Quero que vocÃs l· vâo jantar um dia, para vos dar umas perdizes · hespanhola... Tu demoras-te, Carlos? --Sim, uma ou duas semanas, para tomar um bom sorvo de ar da patria. --Tens razâo, meu rapaz! exclamou o poeta, puxando a garrafa do cognac. Isto ainda nâo à tâo mau como se diz... Olha tu para isso, para esse cÃo, para esse rio, homem! --Com effeito à encantador! Todos tres, durante um momento, pasmaram para a incomparavel belleza do rio, vasto, lustroso, sereno, tâo azul como o cÃo, esplendidamente coberto de sol. --E versos? exclamou de repente Carlos, voltando-se para o poeta. Abandonaste a lingua divina? Alencar fez um gesto de desalento. Quem entendia j· a lingua divina? O novo Portugal sà comprehendia a lingua da libra, da ´massaª. Agora, filho, tudo eram syndicatos! --Mas ainda ·s vezes me passa uma coisa c· por dentro, o velho homem estremece... Tu nâo viste nos jornaes?... Est· claro, nâo lÃs c· esses trapos que por ahi chamam gazetas... Pois veio ahi uma coisita, dedicada aqui ao Joâo. Ora eu t'a digo se me lembrar... Correu a mâo aberta pela face escaveirada, lanÃou a estrophe n'um tom de lamento: Luz d'esperanÃa, luz d'amor, Que vento vos desfolhou? Que a alma que vos seguia Nunca mais vos encontrou! Carlos murmurou: ´Lindo!ª Ega murmurou: ´Muito fino!ª E o poeta, aquecendo, j· commovido, esboÃou um movimento d'aza que foge: Minh'alma em tempos d'outr'ora, Quando nascia o luar, Como um rouxinol que acorda Punha-se logo a cantar. Pensamentos eram flÃres, Que a aragem lenta de Maio... --O snr. Cruges! annunciou o criado, entreabrindo a porta. Carlos ergueu os braÃos. E o maestro, todo abotoado n'um paletot claro, abandonou-se · effusâo de Carlos, balbuciando: --Eu sà hontem à que soube. Queria-te ir esperar, mas nâo me acordaram... --Entâo continËa o mesmo desleixo? exclamava Carlos, alegremente. Nunca te acordam? Cruges encolhia os hombros, muito vermelho, acanhado, depois d'aquella longa separaÃâo. E foi Carlos que o obrigou a sentar-se ao lado, enternecido com o seu velho maestro, sempre esguio, com o nariz mais agudo, a grenha cahindo mais crespa sobre a gola do paletot. --E deixa-me dar-te os parabens! L· soube pelos jornaes, o triumpho, a linda opera-comica, a _FlÃr de Sevilha_... --_De Granada_! acudiu o maestro. Sim, uma coisita para ahi, nâo desgostaram. --Uma belleza! gritou Alencar, enchendo outro copo de cognac. Uma musica toda do sul, cheia de luz, cheirando a laranjeira... Mas j· lhe tenho dito: ´Deixa l· a opereta, rapaz, vÃa mais alto, faze uma grande symphonia historica!ª Ainda ha dias lhe dei uma idÃa. A partida de D. Sebastiâo para a Africa. Cantos de marinheiros, atabales, o chÃro do povo, as ondas batendo... Sublime! Qual, pıe-se-me l· com castanholas... Emfim, acabou-se, tem muito talento, e à como se fosse meu filho porque me sujou muita calÃa!... Mas o maestro, inquieto, passava os dedos pela grenha. Por fim confessou a Carlos que nâo se podia demorar, tinha um _rendez-vous_... --D'amor? --Nâo... ⦠o Barradas que me anda a tirar o retrato a oleo. --Com a lyra na mâo? --Nâo, respondeu o maestro, muito sÃrio. Com a batuta... E estou de casaca. E desabotoou o paletot, mostrou-se em todo o seu esplendor, com dois coraes no peitilho da camisa, e a batuta de marfim mettida na abertura do collete. --Est·s magnifico! affirmou Carlos. Entâo outra coisa, vem c· jantar logo. Alencar, tu tambem, hein? Quero ouvir esses bellos versos com socego... ¡s seis, em ponto, sem falhar. Tenho um jantarinho · portugueza que encommendei de manhâ, com cozido, arroz de forno, grâo de bico, etc., para matar saudades... Alencar lanÃou um gesto immenso de desdem. Nunca o cozinheiro do _Braganza_, francelhote miseravel, estaria · altura d'esses nobres petiscos do velho Portugal. Emfim acabou-se. Seria pontual ·s seis para uma grande saude ao seu Carlos! --VocÃs vâo sahir, rapazes? Carlos e Ega iam ao Ramalhete visitar o casarâo. O poeta declarou logo que isso era romagem sagrada. Entâo elle partia com o maestro. O seu caminho ficava tambem para o lado do Barradas... MoÃo de talento, esse Barradas!... Um pouco pardo de cÃr, tudo por acabar, esborratado, mas uma bella ponta de faisca. --E teve uma tia, filhos, a Leonor Barradas! Que olhos, que corpo! E nâo era sà o corpo! Era a alma, a poesia, o sacrificio!... J· nâo ha d'isso, j· l· vai tudo. Emfim, acabou-se, ·s seis! --¡s seis, em ponto, sem falhar! Alencar e o maestro partiram, depois de se munirem de charutos. E d'ahi a pouco Carlos e Ega seguiam tambem pela rua do Thesouro Velho, de braÃo dado, muito lentamente. Iam conversando de Paris, de rapazes e de mulheres que o Ega conhecÃra, havia quatro annos, quando l· pass·ra um tâo alegre inverno nos appartamentos de Carlos. E a surpreza do Ega, a cada nome evocado, era o curto brilho, o fim brusco de toda essa mocidade estouvada. A Lucy Gray, morta. A Conrad, morta... E a Maria Blond? Gorda, emburguezada, casada com um fabricante de velas de estearina. O polaco, o louro? Fugido, desapparecido. Mr. de Menant, esse D. Juan? Sub-prefeito no departamento do Doubs. E o rapaz que morava ao lado, o belga? Arruinado na Bolsa... E outros ainda, mortos, sumidos, afundados no lodo de Paris! --Pois tudo sommado, menino, observou Ega, esta nossa vidinha de Lisboa, simples, pacata, corredia, à infinitamente preferivel. Estavam no Loreto; e Carlos par·ra, olhando, reentrando na intimidade d'aquelle velho coraÃâo da capital. Nada mud·ra. A mesma sentinella somnolenta rondava em torno · estatua triste de Camıes. Os mesmos reposteiros vermelhos, com brazıes ecclesiasticos, pendiam nas portas das duas igrejas. O _Hotel Alliance_ conservava o mesmo ar mudo e deserto. Um lindo sol dourava o lagedo; batedores de chapÃo · faia fustigavam as pilecas; tres varinas, de canastra · cabeÃa, meneavam os quadris, fortes e ageis na plena luz. A uma esquina, vadios em farrapos fumavam; e na esquina defronte na Havaneza, fumavam tambem outros vadios, de sobrecasaca, politicando. --Isto à horrivel quando se vem de fÃra! exclamou Carlos. Nâo à a cidade, à a gente. Uma gente feiissima, encardida, mollenga, reles, amarellada, acabrunhada!... --Todavia Lisboa faz differenÃa, affirmou Ega, muito sÃrio. Oh, faz muita differenÃa! Has de vÃr a Avenida... Antes do Ramalhete vamos dar uma volta · Avenida. Foram descendo o Chiado. Do outro lado os toldos das lojas estendiam no châo uma sombra forte e dentada. E Carlos reconhecia, encostados ·s mesmas portas, sujeitos que l· deix·ra havia dez annos, j· assim encostados, j· assim melancolicos. Tinham rugas, tinham brancas. Mas l· estacionavam ainda, apagados e murchos, rente das mesmas humbreiras, com collarinhos · moda. Depois, diante da livraria Bertrand, Ega, rindo, tocou no braÃo de Carlos: --Olha quem alli est·, · porta do Baltresqui! Era o Damaso. O Damaso, barrigudo, nedio, mais pesado, de flÃr ao peito, mamando um grande charuto, e pasmaceando, com o ar regaladamente embrutecido d'um ruminante farto e feliz. Ao avistar tambem os seus dois velhos amigos que desciam, teve um movimento para se esquivar, refugiar-se na confeitaria. Mas, insensivelmente, irresistivelmente, achou-se em frente de Carlos, com a mâo aberta e um sorriso na bochecha, que se lhe esbraze·ra. --Ol·, por c·!... Que grande surpreza! Carlos abandonou-lhe dois dedos, sorrindo tambem, indifferente e esquecido. --⦠verdade, Damaso... Como vai isso? --Por aqui, n'esta semsaboria... E entâo com demora? --Umas semanas. --Est·s no Ramalhete? --No _Braganza_. Mas nâo te incommodes, eu ando sempre por fÃra. --Pois sim senhor!... Eu tambem estive em Paris, ha tres mezes, no _Continental_... --Ah!... Bem, estimei vÃr-te, atà sempre! --Adeus, rapazes. Tu est·s bom, Carlos, est·s com boa cara! --⦠dos teus olhos, Damaso. E nos olhos do Damaso, com effeito, parecia reviver a antiga admiraÃâo, arregalados, acompanhando Carlos, estudando-lhe por traz a sobrecasaca, o chapÃo, o andar, como no tempo em que o Maia era para elle o typo supremo do seu querido _chic_, ´uma d'essas coisas que sà se vÃem l· fÃra...ª --Sabes que o nosso Damaso casou? disse o Ega um pouco adiante, travando outra vez do braÃo de Carlos. E foi um espanto para Carlos. O quÃ! O nosso Damaso! Casado!?... Sim, casado com uma filha dos condes d'Agueda, uma gente arruinada, com um rancho de raparigas. Tinham-lhe impingido a mais nova. E o optimo Damaso, verdadeira sorte grande para aquella distincta familia, pagava agora os vestidos, das mais velhas. --⦠bonita? --Sim, bonitinha... Faz ahi a felicidade d'um rapazote sympathico, chamado Barroso. --O quÃ, o Damaso, coitado!... --Sim, coitado, coitadinho, coitadissimo... Mas como vÃs, immensamente ditoso, atà tem engordado com a perfidia! Carlos par·ra. Olhava, pasmado para as varandas extraordinarias d'um primeiro andar, recobertas, como em dia de procissâo, de sanefas de pano vermelho onde se entrelaÃavam monogrammas. E ia indagar--quando, d'entre um grupo que estacionava ao portal d'esse predio festivo, um rapaz d'ar estouvado, com a face imberbe cheia d'espinhas carnaes, atravessou rapidamente a rua para gritar ao Ega, suffocado de riso: --Se vocà for depressa ainda a encontra ahi abaixo! Corra! --Quem? --A Adosinda!... De vestido azul, com plumas brancas no chapÃo... V· depressa... O Joâo Elyseu metteu-lhe a bengala entre as pernas, ia-a fazendo estatelar no châo, foi uma scena... V· depressa, homem! Com duas pernadas esguias o rapaz recolheu ao seu rancho--onde todos, j· calados, com uma curiosidade de provincia, examinavam aquelle homem de tâo alta elegancia que acompanhava o Ega, e que nenhum conhecia. E Ega, no emtanto, explicava a Carlos as varandas e o grupo: --Sâo rapazes do _Turf_. ⦠um club novo, o antigo Jockey da travessa da Palha. Faz-se l· uma batotinha barata, tudo gente muito sympathica... E como vÃs estâo sempre assim preparados, com sanefas e tudo, para se acaso passar por ahi o Senhor dos Passos. Depois, descendo para a rua Nova do Almada, contou o caso da Adosinda. FÃra no Silva, havia duas semanas, estando elle a cear com rapazes depois de S. Carlos, que lhes apparecera essa mulher inverosimil, vestida de vermelho, carregando insensatamente nos _rr_, mettendo _rr_ em todas as palavras, e perguntando pelo snr. _virrsconde_... Qual _virrsconde_? Ella nâo sabia bem. _Erra um virrsconde que encontrr·rra no Crrolyseu_. Senta-se, offerecem-lhe champagne, e D. Adosinda comeÃa a revelar-se um sÃr prodigioso. Fallavam de politica, do ministerio e do _deficit_. D. Adosinda declara logo que conhece muito bem o _deficit_, e que à um bello rapaz... O _deficit_ bello rapaz--immensa gargalhada! D. Adosinda zanga-se, exclama que j· fÃra com elle a Cintra, que à um perfeito cavalheiro, e empregado no Banco Inglez... O _deficit_ empregado no Banco Inglez--gritos, uivos, urros! E nâo cessou esta gargalhada contÃnua, estrondosa, phrenetica, atà ·s cinco da manhâ em que D. Adosinda fÃra rifada e sahira ao Telles!... Noite soberba! --Com effeito, disse Carlos rindo, à uma orgia grandiosa, lembra Heliogabalo e o Conde d'Orsay... Entâo Ega defendeu calorosamente a sua orgia. Onde havia melhor, na Europa, em qualquer civilisaÃâo? Sempre queria vÃr que se passasse uma noite mais alegre em Paris, na desoladora banalidade do _Grand-Treize_, ou em Londres, n'aquella correcta e massuda semsaboria do _Bristol_! O que ainda tornava a vida toleravel era de vez em quando uma boa risada. Ora na Europa o homem requintado j· nâo ri,--sorri regeladamente, lividamente. Sà nÃs aqui, n'este canto do mundo barbaro, conservamos ainda esse dom supremo, essa coisa bemdita e consoladora--a barrigada de riso!... --Que diabo est·s tu a olhar? Era o consultorio, o antigo consultorio de Carlos--onde agora, pela taboleta, parecia existir um pequeno _atelier_ de modista. Entâo bruscamente os dois amigos recahiram nas recordaÃıes do passado. Que estupidas horas Carlos alli arrast·ra, com a _Revista dos Dois Mundos_, na espera vâ dos doentes, cheio ainda de fà nas alegrias do trabalho!... E a manhâ em que o Ega l· apparecera com a sua esplendida pelliÃa, preparando-se para transformar, n'um sà inverno, todo o velho e rotineiro Portugal! --Em que tudo ficou! --Em que tudo ficou! Mas rimos bastante! Lembras-te d'aquella noite em que o pobre marquez queria levar ao consultorio a Paca, para utilisar emfim o divan, movel de serralho?... Carlos teve uma exclamaÃâo de saudade. Pobre marquez! FÃra uma das suas fortes impressıes, n'esses ultimos annos--aquella morte do marquez, sabida de repente ao almoÃo, n'uma banal noticia de jornal!... E atravÃs do Rocio, andando mais devagar, recordavam outros desapparecimentos: a D. Maria da Cunha, coitada, que acabara hydropica; o D. Diogo, casado por fim com a cozinheira; o bom Sequeira, morto uma noite n'uma tipoia ao sahir dos cavallinhos... --E outra coisa, perguntou Ega. Tens visto o Craft em Londres? --Tenho, disse Carlos. Arranjou uma casa muito bonita ao pà de Richmond... Mas est· muito avelhado, queixa-se muito do figado. E, desgraÃadamente, carrega de mais nos alcools. ⦠uma pena! Depois perguntou pelo Taveira. Esse lindo moÃo, contou o Ega, tinha agora por cima mais dez annos de Secretaria e de Chiado. Mas sempre apurado, j· um bocado grisalho, mettido continuamente com alguma hespanhola, dando bastante a lei em S. Carlos, e murmurando todas as tardes na Havaneza, com um ar dÃce e contente--´isto à um paiz perdidoª! Enfim um bom typosinho de lisboeta fino. --E a besta do Steinbroken? --Ministro em Athenas, exclamou Carlos, entre as ruinas classicas! E esta idÃa do Steinbroken, na velha Grecia, divertiu-os infinitamente. Ega imaginava j· o bom Steinbroken, tÃso nos seus altos collarinhos, affirmando a respeito de Socrates, com prudencia: ´Oh, il est trÃs fort, il est excessivement fort!ª Ou ainda, a proposito da batalha das Thermopylas, rosnando, com medo de se comprometter: ´C'est trÃs grave, c'est excessivement grave!ª Valia a pena ir · Grecia para vÃr! Subitamente Ega parou: --Ora ahi tens tu essa Avenida! Hein?... J· nâo à mau! N'um claro espaÃo rasgado, onde Carlos deix·ra o Passeio Publico pacato e frondoso--um obelisco, com borrıes de bronze no pedestal, erguia um traÃo cÃr d'assucar na vibraÃâo fina da luz de inverno: e os largos globos dos candieiros que o cercavam, batidos do sol, brilhavam, transparentes e rutilantes, como grandes bolas de sabâo suspensas no ar. Dos dois lados seguiam, em alturas desiguaes, os pesados predios, lisos e aprumados, repintados de fresco, com vasos nas cornijas onde negrejavam piteiras de zinco, e pateos de pedra, quadrilhados a branco e preto, onde guarda-portıes chupavam o cigarro: e aquelles dois hirtos renques de casas ajanotadas lembravam a Carlos as familias que outr'ora se immobilisavam em filas, dos dois lados do Passeio, depois da missa ´da umaª, ouvindo a Banda, com casimiras e sÃdas, no catitismo domingueiro. Todo o lagedo reluzia como cal nova. Aqui e alÃm um arbusto encolhia na aragem a sua folhagem pallida e rara. E ao fundo a collina verde, salpicada d'arvores, os terrenos de Valle de Pereiro, punham um brusco remate campestre ·quelle curto rompante de luxo barato--que partira para transformar a velha cidade, e estac·ra logo, com o fÃlego curto, entre montıes de cascalho. Mas um ar lavado e largo circulava; o sol dourava a caliÃa; a divina serenidade do azul sem igual tudo cobria e adoÃava. E os dois amigos sentaram-se n'um banco, junto de uma verdura que orlava a agua d'um tanque esverdinhada e molle. Pela sombra passeavam rapazes, aos pares, devagar, com flÃres na lapella, a calÃa apurada, luvas claras fortemente pespontadas de negro. Era toda uma geraÃâo nova e miuda que Carlos nâo conhecia. Por vezes Ega murmurava um _Ãl·!_, acenava com a bengala. E elles iam, repassavam, com um arzinho timido e contrafeito, como mal acostumados ·quelle vasto espaÃo, a tanta luz, ao seu proprio _chic_. Carlos pasmava. Que faziam alli, ·s horas de trabalho, aquelles moÃos tristes, de calÃa esguia? Nâo havia mulheres. Apenas n'um banco adiante uma creatura adoentada, de lenÃo e chale, tomava o sol; e duas matronas, com vidrilhos no mantelete, donas de casa de hospedes, arejavam um câosinho felpudo. O que attrahia pois alli aquella mocidade pallida? E o que sobretudo o espantava eram as botas d'esses cavalheiros, botas despropositadamente compridas, rompendo para fÃra da calÃa collante com pontas aguÃadas e reviradas como prÃas de barcos varinos... --Isto à phantastico, Ega! Ega esfregava as mâos. Sim, mas precioso! Porque essa simples fÃrma de botas explicava todo o Portugal contemporaneo. Via-se por alli como a coisa era. Tendo abandonado o seu feitio antigo, · D. Joâo VI, que tâo bem lhe ficava, este desgraÃado Portugal decidira arranjar-se · moderna: mas sem originalidade, sem forÃa, sem caracter para crear um feitio seu, um feitio proprio, manda vir modelos do estrangeiro--modelos d'idÃas, de calÃas, de costumes, de leis, d'arte, de cozinha... SÃmente, como lhe falta o sentimento da proporÃâo, e ao mesmo tempo o domina a impaciencia de parecer muito moderno e muito civilisado--exagera o modelo, deforma-o, estraga-o atà · caricatura. O figurino da bota que veio de fÃra era levemente estreito na ponta;--immediatamente o janota estica-o e aguÃa-o atà ao bico d'alfinete. Por seu lado o escriptor là uma pagina de Goncourt ou de Verlaine em estylo precioso e cinzelado;--immediatamente retorce, emmaranha, desengonÃa a sua pobre phrase atà descambar no delirante e no burlesco. Por sua vez o legislador ouve dizer que l· fÃra se levanta o nivel da instrucÃâo;--immediatamente pıe no programma dos exames de primeiras letras a metaphysica, a astronomia, a philologia, a egyptologia, a chresmatica, a critica das religiıes comparadas, e outros infinitos terrores. E tudo por ahi adiante assim, em todas as classes e profissıes, desde o orador atà ao photographo, desde o jurisconsulto atà ao _sportman_... ⦠o que succede com os pretos j· corrompidos de S. ThomÃ, que vÃem os europeus de lunetas--e imaginam que n'isso consiste ser civilisado e ser branco. Que fazem entâo? Na sua sofreguidâo de progresso e de brancura acavallam no nariz tres ou quatro lunetas, claras, defumadas, atà de cÃr. E assim andam pela cidade, de tanga, de nariz no ar, aos tropeÃıes, no desesperado e angustioso esforÃo de equilibrarem todos estes vidros--para serem immensamente civilisados e immensamente brancos... Carlos ria: --De modo que isto est· cada vez peor... --Medonho! ⦠d'um reles, d'um postiÃo! Sobretudo postiÃo! J· nâo ha nada genuino n'este miseravel paiz, nem mesmo o pâo que comemos! Carlos, recostado no banco, apontou com a bengala, n'um gesto lento: --Resta aquillo, que à genuino... E mostrava os altos da cidade, os velhos outeiros da GraÃa e da Penha, com o seu casario escorregando pelas encostas resequidas e tisnadas do sol. No cimo assentavam pesadamente os conventos, as igrejas, as atarracadas vivendas ecclesiasticas, lembrando o frade pingue e pachorrento, beatas de mantilha, tardes de procissâo, irmandades d'opa atulhando os adros, herva dÃce juncando as ruas, tremoÃo e fava-rica apregoada ·s esquinas, e foguetes no ar em louvor de Jesus. Mais alto ainda, recortando no radiante azul a miseria da sua muralha, era o castello, sordido e tarimbeiro, d'onde outr'ora, ao som do hymno tocado em fagotes, descia a tropa de calÃa branca a fazer a _bernarda_! E abrigados por elle, no escuro bairro de S. Vicente e da SÃ, os palacetes decrepitos, com vistas saudosas para a barra, enormes brazıes nas paredes rachadas, onde entre a maledicencia, a devoÃâo e a bisca, arrasta os seus derradeiros dias, cachetica e caturra, a velha Lisboa fidalga! Ega olhou um momento, pensativo: --Sim, com effeito, à talvez mais genuino. Mas tâo estupido, tâo sebento! Nâo sabe a gente para onde se ha de voltar... E se nos voltamos para nÃs mesmos, ainda peor! E de repente bateu no joelho de Carlos, com um brilho na face: --Espera... Olha quem ahi vem! Era uma vittoria, bem posta e correcta, avanÃando com lentidâo e estylo, ao trote esteppado de duas egoas inglezas. Mas foi um desapontamento. Vinha l· sÃmente um rapaz muito louro, d'uma brancura de camelia, com uma pennugem no beiÃo, languidamente recostado. Fez um aceno ao Ega, com um lindo sorriso de virgem. A vittoria passou. --Nâo conheces? Carlos procurava, com uma recordaÃâo. --O teu antigo doente! O Charlie! O outro bateu as mâos. O Charlie! O seu Charlie! Como aquillo o fazia velho!... E era bonitinho! --Sim, muito bonitinho. Tem ahi uma amizade com um velho, anda sempre com um velho... Mas elle vinha decerto com a mâi, estou convencido que ella ficou por ahi a passear a pÃ. Vamos nÃs vÃr? Subiram ao comprido da Avenida, procurando. E quem avistaram logo foi o Eusebiosinho. Parecia mais funebre, mais tisico, dando o braÃo a uma senhora muito forte, muito cÃrada, que estalava n'um vestido de sÃda cor de pinhâo. Iam devagar, tomando o sol. E o Eusebio nem os viu, descahido e mollengo, seguindo com as grossas lunetas pretas o marchar lento da sua sombra. --Aquella aventesma à a mulher, contou Ega. Depois de varias paixıes em lupanares, o nosso Eusebio teve este namoro. O pai da creatura, que à dono d'um prego, apanhou-o uma noite na escada com ella a surripiar-lhe uns prazeres... Foi o diabo, obrigaram-no a casar. E desappareceu, nâo o tornei a vÃr... Diz que a mulher que o derreia · pancada. --Deus a conserve! --Amen! E entâo Carlos, que recordava a coÃa no Eusebio, o caso da _Corneta_, quiz saber do Palma Cavallâo. Ainda deshonrava o Universo com a sua presenÃa, esse benemerito? Ainda o deshonrava, disse o Ega. SÃmente deix·ra a litteratura, e torn·ra-se _factotum_ do Carneiro, o que fÃra ministro; levava-lhe a hespanhola ao theatro pelo braÃo; e era um bom empenho em politica. --Ainda ha de ser deputado, acrescentou Ega. E, da fÃrma que as coisas vâo, ainda ha de ser ministro... E isto est·-se fazendo tarde, Carlinhos. Vamos nÃs tomar esta tipoia e abalar para o Ramalhete? Eram quatro horas, o sol curto de inverno tinha j· um tom pallido. Tomaram a tipoia. No Rocio, Alencar que passava, que os viu--parou, sacudiu ardentemente a mâo no ar. E entâo Carlos exclamou, com uma surpreza que j· o assalt·ra essa manhâ no _Braganza_: --Ouve c·, Ega! Tu agora pareces intimo do Alencar! Que transformaÃâo foi essa? Ega confessou que realmente agora apreciava immensamente o Alencar. Em primeiro logar no meio d'esta Lisboa toda postiÃa, Alencar permanecia o unico portuguez genuino. Depois, atravÃs da contagiosa intrujice, conservava uma honestidade resistente. AlÃm d'isso havia n'elle lealdade, bondade, generosidade. O seu comportamento com a sobrinhita era tocante. Tinha mais cortezia, melhores maneiras que os novos. Um bocado de piteirice nâo lhe ia mal ao seu feitio lyrico. E por fim, no estado a que descamb·ra a litteratura, a versalhada do Alencar tomava relevo pela correcÃâo, pela simplicidade, por um resto de sincera emoÃâo. Em resumo, um bardo infinitamente estimavel. --E aqui tens tu, Carlinhos, a que nÃs chegamos! Nâo ha nada com efeito que caracterise melhor a pavorosa decadencia de Portugal, nos ultimos trinta annos, do que este simples facto: tâo profundamente tem baixado o caracter e o talento, que de repente o nosso velho Thomaz, o homem da _FlÃr de Martyrio_, o Alencar d'Alemquer, apparece com as proporÃıes d'um Genio e d'um Justo! Ainda fallavam de Portugal e dos seus males quando a tipoia parou. Com que commoÃâo Carlos avistou a fachada severa do Ramalhete, as janellinhas abrigadas · beira do telhado, o grande ramo de girasoes fazendo painel no logar do escudo d'armas! Ao ruido da carruagem, VillaÃa appareceu · porta, calÃando luvas amarellas. Estava mais gordo o VillaÃa--e tudo na sua pessoa, desde o chapÃo novo atà ao castâo de prata da bengala, revelava a sua importancia como administrador, quasi directo senhor durante o longo desterro de Carlos, d'aquella vasta casa dos Maias. Apresentou logo o jardineiro, um velho, que alli vivia com a mulher e o filho, guardando o casarâo deserto. Depois felicitou-se de vÃr emfim os dois amigos juntos. E ajuntou, batendo com carinho familiar no hombro de Carlos: --Pois eu, depois de nos separarmos em Santa Apolonia, fui tomar um banho ao Central e nâo me deitei. Olhe que à uma grande commodidade o tal _sleeping-car_! Ah l· isso, em progresso, o nosso Portugal j· nâo est· atraz de ninguem!... E v. exc.^a agora precisa de mim? --Nâo, obrigado, VillaÃa. Vamos dar uma volta pelas salas... V· jantar comnosco. ¡s seis! Mas ·s seis em ponto, que ha petiscos especiaes. E os dois amigos atravessaram o perystillo. Ainda l· se conservavam os bancos feudaes de carvalho lavrado, solemnes como coros de cathedral. Em cima porÃm a ante-camara entristecia, toda despida, sem um movel, sem um estofo, mostrando a cal lascada dos muros. TapeÃarias orientaes que pendiam como n'uma tenda, pratos mouriscos de reflexos de cobre, a estatua da _Friorenta_ rindo e arrepiando-se, na sua nudez de marmore, ao metter o pÃsinho na agua--tudo ornava agora os aposentos de Carlos em Paris: e outros caixıes apilhavam-se a um canto, promptos a embarcar, levando as melhores faianÃas da _Toca_. Depois no amplo corredor, sem tapete, os seus passos soaram como n'um claustro abandonado. Nos quadros devotos, d'um tom mais negro, destacava aqui e alÃm, sob a luz escassa, um hombro descarnado de eremita, a mancha livida d'uma caveira. Uma friagem regelava. Ega levant·ra a gola do paletot. No salâo nobre os moveis de brocado cÃr de musgo estavam embrulhados em lenÃoes d'algodâo, como amortalhados, exhalando um cheiro de mumia a terebinthina e camphora. E no châo, na tela de Constable, encostada · parede, a condessa de Runa, erguendo o seu vestido escarlate de caÃadora ingleza, parecia ir dar um passo, sahir do caixilho dourado, para partir tambem, consummar a dispersâo da sua raÃa... --Vamos embora, exclamou Ega. Isto est· lugubre!... Mas Carlos, pallido e calado, abriu adiante a porta do bilhar. Ahi, que era a maior sala do Ramalhete, tinham sido recentemente accumulados na confusâo das artes e dos seculos, como n'um armazem de _bric-â¡-brac_, todos os moveis ricos da _Toca_. Ao fundo, tapando o fogâo, dominando tudo na sua magestade architectural, erguia-se o famoso armario do tempo da Liga Hanseatica, com os seus Martes armados, as portas lavradas, os quatro Evangelistas prÃgando aos cantos, envoltos n'essas roupagens violentas que um vento de prophecia parece agitar. E Carlos immediatamente descobriu um desastre na cornija, nos dois faunos que entre trophÃos agricolas tocavam ao desafio. Um partira o seu pà de cabra, outro perdera a sua frauta bucolica... --Que brutos! exclamou elle furioso, ferido no seu amor da coisa d'arte. Um movel d'estes!... Trepou a uma cadeira para examinar os estragos. E Ega, no emtanto, errava entre os outros moveis, cofres nupciaes, contadores hespanhoes, bufetes da RenascenÃa italiana, recordando a alegre casa dos Olivaes que tinham ornado, as bellas noites de cavaco, os jantares, os foguetes atirados em honra de Leonidas... Como tudo pass·ra! De repente deu com o pà n'uma caixa de chapÃo sem tampa, atulhada de coisas velhas--um vÃo, luvas desirmanadas, uma meia de sÃda, fitas, flÃres artificiaes. Eram objectos de Maria, achados n'algum canto da _Toca_, para alli atirados, no momento de se esvaziar a casa! E, coisa lamentavel, entre estes restos d'ella, misturados como na promiscuidade d'um lixo, apparecia uma chinela de velludo bordada a matiz, uma velha chinela de Affonso da Maia! Ega escondeu a caixa rapidamente debaixo d'um pedaÃo solto de tapeÃaria. Depois, como Carlos saltava da cadeira, sacudindo as mâos, ainda indignado, Ega apressou aquella peregrinaÃâo, que lhe estragava a alegria do dia. --Vamos ao terraÃo! D·-se um olhar ao jardim, e abalamos! Mas deviam atravessar ainda a memoria mais triste, o escriptorio de Affonso da Maia. A fechadura estava pÃrra. No esforÃo de abrir a mâo de Carlos tremia. E Ega, commovido tambem, revia toda a sala tal como outr'ora, com os seus candieiros Carcel dando um tom cÃr de rosa, o lume crepitando, o reverendo Bonifacio sobre a pelle d'urso, e Affonso na sua velha poltrona, de casaco de velludo, sacudindo a cinza do cachimbo contra a palma da mâo. A porta cedeu: e toda a emoÃâo de repente findou, na grutesca, absurda surpreza de romperem ambos a espirrar, desesperadamente, suffocados pelo cheiro acre d'um pà vago que lhes picava os olhos, os estonteava. FÃra o VillaÃa, que, seguindo uma receita d'almanach, fizera espalhar ·s mâos cheias, sobre os moveis, sobre os lenÃoes que os resguardavam, camadas espessas de pimenta branca! E estrangulados, sem vÃr, sob uma nevoa de lagrimas, os dois continuavam, um defronte do outro, em espirros afflictivos que os desengonÃavam. Carlos por fim conseguiu abrir largamente as duas portadas d'uma janella. No terraÃo morria um resto de sol. E, revivendo um pouco ao ar puro, alli ficaram de pÃ, calados, limpando os olhos, sacudidos ainda por um ou outro espirro retardado. --Que infernal invenÃâo! exclamou Carlos, indignado. Ega, ao fugir com o lenÃo na face, trope÷ra, batera contra um sof·, coÃava a canella: --Estupida coisa! E que bordoada que eu dei!... Voltou a olhar para a sala, onde todos os moveis desappareciam sob os largos sudarios brancos. E reconheceu que trope÷ra na antiga almofada de velludo do velho Bonifacio. Pobre Bonifacio! Que fÃra feito d'elle? Carlos, que se sent·ra no parapeito baixo do terraÃo, entre os vasos sem flÃr, contou o fim do reverendo Bonifacio. Morrera em Santa Olavia, resignado, e tâo obeso que se nâo movia. E o VillaÃa, com uma idÃa poetica, a unica da sua vida de procurador, mand·ra-lhe fazer um mausolÃo, uma simples pedra de marmore branco, sob uma roseira, debaixo das janellas do quarto do avÃ. Ega sent·ra-se tambem no parapeito, ambos se esqueceram n'um silencio. Em baixo o jardim, bem areado, limpo e frio na sua nudez d'inverno, tinha a melancolia de um retiro esquecido que j· ninguem ama: uma ferrugem verde de humidade cobria os grossos membros da Venus Citherea; o cypreste e o cedro envelheciam juntos como dois amigos n'um ermo; e mais lento corria o prantosinho da cascata, esfiado saudosamente gotta a gotta na bacia de marmore. Depois ao fundo, encaixilhada como uma tela marinha nas cantarias dos dois altos predios, a curta paizagem do Ramalhete, um pedaÃo de Tejo e monte, tomava n'aquelle fim de tarde um tom mais pensativo e triste: na tira de rio um paquete fechado, preparado para a vaga, ia descendo, desapparecendo logo, como j· devorado pelo mar incerto; no alto da collina o moinho par·ra, transido na larga friagem do ar; e nas janellas das casas · beira d'agua um raio de sol morria, lentamente sumido, esvaÃdo na primeira cinza do crepusculo, como um resto d'esperanÃa n'uma face que se anuvia. Entâo, n'aquella mudez de soledade e d'abandono, Ega, com os olhos para o longe, murmurou devagar: --Mas tu d'esse casamento nâo tinhas a menor indicaÃâo, a menor suspeita? --Nenhuma... Soube-o de repente pela carta d'ella em Sevilha. E era esta a formidavel nova annunciada por Carlos, a nova que elle logo cont·ra de madrugada ao Ega, depois dos primeiros abraÃos, em Santa Apolonia. Maria Eduarda ia casar. Assim o annunci·ra ella a Carlos n'uma carta muito simples, que elle recebera na quinta dos Villa-Medina. Ia casar. E nâo parecia ser uma resoluÃâo tomada arrebatadamente sob um impulso do coraÃâo; mas antes um proposito lento, longamente amadurecido. Ella alludia n'essa carta a ter ´pensado muito, reflectido muito...ª De resto o noivo devia ir perto dos cincoenta annos. E Carlos portanto via alli a uniâo de dois sÃres desilludidos da vida, maltratados por ella, cansados ou assustados do seu isolamento, que, sentindo um no outro qualidades sÃrias de coraÃâo e de espirito, punham em commum o seu resto de calor, d'alegria e de coragem para affrontar juntos a velhice... --Que idade tem ella? Carlos pensava que ella devia ter quarenta e um ou quarenta e dois annos. Ella dizia na carta ´sou apenas mais nova que o meu noivo seis annos e tres mezesª. Elle chamava-se Mr. de Trelain. E era evidentemente um homem d'espirito largo, desembaraÃado de prejuizos, d'uma benevolencia quasi misericordiosa, porque quizera Maria, conhecendo bem os seus erros. --Sabe tudo? exclamou Ega, que salt·ra do parapeito. --Tudo nâo. Ella diz que Mr. de Trelain conhecia do seu passado ´todos aquelles erros em que ella cahira inconscientementeª. Isto d· a entender que nâo sabe tudo... Vamos andando, que se faz tarde, e quero ainda vÃr os meus quartos. Desceram ao jardim. Um momento seguiram calados pela alea onde cresciam outr'ora as roseiras de Affonso. Sob as duas olaias ainda existia o banco de cortiÃa; Maria sent·ra-se alli, na sua visita ao Ramalhete, a atar n'um ramo flÃres que ia levar como reliquia. Ao passar Ega cortou uma pequenina margarida que ainda floria solitariamente. --Ella continËa a viver em OrlÃans, nâo à verdade? Sim, disse Carlos, vivia ao pà d'OrlÃans, n'uma quinta que l· compr·ra, chamada _Les RosiÃres_. O noivo devia habitar nos arredores algum pequeno _château_. Ella chamava-lhe ´visinhoª. E era naturalmente um _gentilhomme campagnard_, de familia sÃria, com fortuna... --Ella sà tem o que tu lhe d·s, est· claro. --Creio que te mandei contar tudo isso, murmurou Carlos. Emfim ella recusou-se a receber parte alguma da sua heranÃa... E o VillaÃa arranjou as coisas por meio d'uma doaÃâo que lhe fiz, correspondente a doze contos de reis de renda... --⦠bonito. Ella fallava de Rosa na carta? --Sim, de passagem, que ia bem... Deve estar uma mulher. --E bem linda! Iam subindo a escadinha de ferro torneada que levava do jardim aos quartos de Carlos. Com a mâo na porta da vidraÃa, Ega parou ainda, n'uma derradeira curiosidade: --E que effeito te fez isso? Carlos accendia o charuto. Depois atirando o phosphoro por cima da varandinha de ferro onde uma trepadeira se enlaÃava: --Um effeito de conclusâo, de absoluto remate. ⦠como se ella morresse, morrendo com ella todo o passado, e agora renascesse sob outra fÃrma. J· nâo à Maria Eduarda. ⦠Madame de Trelain, uma senhora franceza. Sob este nome, tudo o que houve fica sumido, enterrado a mil braÃas, findo para sempre, sem mesmo deixar memoria... Foi o effeito que me fez. --Tu nunca encontraste em Paris o snr. Guimarâes? --Nunca. Naturalmente morreu. Entraram no quarto. VillaÃa, na supposiÃâo de Carlos vir para o Ramalhete, mand·ra-o preparar; e todo elle regelava--com o marmore das commodas espanejado e vazio, uma vela intacta n'um castiÃal solitario, a colcha de fustâo vincada de dobras sobre o leito sem cortinados. Carlos pousou o chapÃo e a bengala em cima da sua antiga mesa de trabalho. Depois, como dando um resumo: --E aqui tens tu a vida, meu Ega! N'este quarto, durante noites, soffri a certeza de que tudo no mundo acab·ra para mim... Pensei em me matar. Pensei em ir para a Trappa. E tudo isto friamente, com uma conclusâo logica. Por fim dez annos passaram, e aqui estou outra vez... Parou diante do alto espelho suspenso entre as duas columnas de carvalho lavrado, deu um geito ao bigode, concluiu, sorrindo melancolicamente: --E mais gordo! Ega espalhava tambem pelo quarto um olhar pensativo: --Lembras-te quando appareci aqui uma noite, n'uma agonia, vestido de Mephistopheles? Entâo Carlos teve um grito. E a Rachel, à verdade! A Rachel? Que era feito da Rachel, esse lirio d'Israel? Ega encolheu os hombros: --Para ahi anda, estuporada... Carlos murmurou--´coitada!ª E foi tudo o que disseram sobre a grande paixâo romantica do Ega. Carlos no emtanto fÃra examinar, junto da janella, um quadro que pousava no châo, para alli esquecido e voltado para a parede. Era o retrato do pai, de Pedro da Maia, com as suas luvas de camurÃa na mâo, os grandes olhos arabes na face triste e pallida que o tempo amarell·ra mais. Collocou-o em cima d'uma commoda. E atirando-lhe uma leve sacudidella com o lenÃo: --Nâo ha nada que me faÃa mais pena do que nâo ter um retrato do avÃ!... Em todo o caso este sempre o vou levar para Paris. Entâo Ega perguntou, do fundo do sof· onde se enterr·ra, se, n'esses ultimos annos, elle nâo tivera a idÃa, o vago desejo de voltar para Portugal... Carlos considerou Ega com espanto. Para que? Para arrastar os passos tristes desde o Gremio atà · Casa Havaneza? Nâo! Paris era o unico logar da terra congenere com o typo definitivo em que elle se fix·ra:--´o homem rico que vive bemª. Passeio a cavallo no Bois; almÃÃo no Bignon; uma volta pelo _boulevard_; uma hora no club com os jornaes; um bocado de florete na sala d'armas; · noite a _ComÃdie FranÃaise_ ou uma _soirÃe_; Trouville no verâo, alguns tiros ·s lebres no inverno; e atravÃs do anno as mulheres, as corridas, certo interesse pela sciencia, o _bric-â¡-brac_, e uma pouca de _blague_. Nada mais inoffensivo, mais nullo, e mais agradavel. --E aqui tens tu uma existencia d'homem! Em dez annos nâo me tem succedido nada, a nâo ser quando se me quebrou o phaeton na estrada de Saint-Cloud... Vim no _Figaro_. Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado: --Falh·mos a vida, menino! --Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto Ã, falha-se sempre na realidade aquella vida que se planeou com a imaginaÃâo. Diz-se: ´vou ser assim, porque a belleza est· em ser assimª. E nunca se à assim, Ã-se invariavelmente _assado_, como dizia o pobre marquez. ¡s vezes melhor, mas sempre differente. Ega concordou, com um suspiro mudo, comeÃando a calÃar as luvas. O quarto escurecia no crepusculo frio e melancolico d'inverno. Carlos pÃz tambem o chapÃo: e desceram pelas escadas forradas de velludo cÃr de cereja, onde ainda pendia, com um ar baÃo de ferrugem, a panoplia de velhas armas. Depois na rua Carlos parou, deu um longo olhar ao sombrio casarâo, que n'aquella primeira penumbra tomava um aspecto mais carregado de residencia ecclesiastica, com as suas paredes severas, a sua fila de janellinhas fechadas, as grades dos postigos terreos cheias de treva, mudo, para sempre deshabitado, cobrindo-se j· de tons de ruina. Uma commoÃâo passou-lhe n'alma, murmurou, travando do braÃo do Ega: --⦠curioso! Sà vivi dois annos n'esta casa, e à n'ella que me parece estar mettida a minha vida inteira! Ega nâo se admirava. Sà alli no Ramalhete elle vivera realmente d'aquillo que d· sabÃr e relevo · vida--a paixâo. --Muitas outras coisas dâo valor · vida... Isso à uma velha idÃa de romantico, meu Ega! --E que somos nÃs? exclamou Ega. Que temos nÃs sido desde o collegio, desde o exame de latim? Romanticos: isto Ã, individuos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e nâo pela razâo... Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam sà pela razâo, nâo se desviando nunca d'ella, torturando-se para se manter na sua linha inflexivel, sÃccos, hirtos, logicos, sem emoÃâo atà ao fim... --Creio que nâo, disse o Ega. Por fÃra, · vista, sâo desconsoladores. E por dentro, para elles mesmos, sâo talvez desconsolados. O que prova que n'este lindo mundo ou tem de se ser insensato ou semsabor... --Resumo: nâo vale a pena viver... --Depende inteiramente do estomago! atalhou Ega. Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sÃrio, deu a sua theoria da vida, a theoria definitiva que elle deduzira da experiencia e que agora o governava. Era o fatalismo musulmano. Nada desejar e nada recear... Nâo se abandonar a uma esperanÃa--nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquillidade com que se acolhem as naturaes mudanÃas de dias agrestes e de dias suaves. E, n'esta placidez, deixar esse pedaÃo de materia organisada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e decompondo atà reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo nâo ter appetites. E, mais que tudo, nâo ter contrariedades. Ega, em summa, concordava. Do que elle principalmente se convencera, n'esses estreitos annos de vida, era da inutilidade de todo o esforÃo. Nâo valia a pena dar um passo para alcanÃar coisa alguma na terra--porque tudo se resolve, como j· ensin·ra o sabio do _Ecclesiastes_, em desillusâo e poeira. --Se me dissessem que alli em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilds ou a corÃa imperial de Carlos V, · minha espera, para serem minhas se eu para l· corresse, eu nâo apressava o passo... Nâo! Nâo sahia d'este passinho lento, prudente, correcto, seguro, que à o unico que se deve ter na vida. --Nem eu! acudiu Carlos com uma convicÃâo decisiva. E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se aquelle fosse em verdade o caminho da vida, onde elles, certos de sà encontrar ao fim desillusâo e poeira, nâo devessem j·mais avanÃar senâo com lentidâo e desdem. J· avistavam o Aterro, a sua longa fila de luzes. De repente Carlos teve um largo gesto de contrariedade: --Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este appetite! Esqueci-me de mandar fazer hoje para o jantar um grande prato de paio com ervilhas. E agora j· era tarde, lembrou Ega. Entâo Carlos, atà ahi esquecido em memorias do passado e syntheses da existencia, pareceu ter inesperadamente consciencia da noite que cahira, dos candieiros accÃsos. A um bico de gaz tirou o relogio. Eram seis e um quarto! --Oh, diabo!... E eu que disse ao VillaÃa e aos rapazes para estarem no _Braganza_ pontualmente ·s seis! Nâo apparecer por ahi uma tipoia!... --Espera! exclamou Ega. L· vem um ´americanoª, ainda o apanhamos. --Ainda o apanhamos! Os dois amigos lanÃaram o passo, largamente. E Carlos, que arroj·ra o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face: --Que raiva ter esquecido o paiosinho! Emfim, acabou-se. Ao menos assentamos a theoria definitiva da existencia. Com effeito, nâo vale a pena fazer um esforÃo, correr com ancia para coisa alguma... Ega, ao lado, ajuntava, offegante, atirando as pernas magras: --Nem para o amor, nem para a gloria, nem para o dinheiro, nem para o poder... A lanterna vermelha do ´americanoª, ao longe, no escuro, par·ra. E foi em Carlos e em Joâo da Ega uma esperanÃa, outro esforÃo: --Ainda o apanhamos! --Ainda o apanhamos! De novo a lanterna deslisou e fugiu. Entâo, para apanhar o ´americanoª, os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia. FIM DO SEGUNDO VOLUME Lista de erros corrigidos Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos: +-----------+-------------------------+---------------------------+ | | Original | CorrecÃâo | +-----------+-------------------------+---------------------------+ | Vol I. | | | | | | | | #p·g. 11 | d'um planta | d'uma planta | | #p·g. 25 | n'eses | n'esse | | #p·g. 64 | dehruÃando-se | debruÃando-se | | #p·g. 71 | mesmo olhos | mesmos olhos | | #p·g. 82 | o o que | o que | | #p·g. 151 | appproximava | approximava | | #p·g. 220 | ningnem | ninguem | | #p·g. 222 | pararello | paralello | | #p·g. 290 | quas? | quasi | | #p·g. 326 | pohre | pobre | | #p·g. 345 | extraordinrio | extraordinario | | #p·g. 416 | luvar | luvas | | #p·g. 423 | hespanhla | hespanhola | | #p·g. 428 | o os deus | e os seus | | | | | | Vol II. | | | | | | | | #p·g. 84 | ?uvas | luvas | | #p·g. 276 | o o monoculo | o monoculo | | #p·g. 324 | a? suissas | as suissas | | #p·g. 343 | n'um voz | n'uma voz | | #p·g. 432 | moresse | morresse | | #p·g. 456 | Celerico | Celorico | | #p·g. 475 | n'um longa | n'uma longa | +-----------+-------------------------+---------------------------+ As variaÃıes de vÃvà (vÃvo ou vovÃ) foram mantidas de acordo com o original. As variaÃıes de nomes prÃprios foram mantidas de acordo com o original. No original estâo presentes dois capÃtulos VII (no volume I), rectificados nesta versâo. No volume II verificamos que se passa do capÃtulo IV para o VII e a numeraÃâo dos capÃtulos fica alterada a partir desse momento. Uma vez que nâo h· p·ginas em falta, rectific·mos nesta versâo. End of the Project Gutenberg EBook of Os Maias, by Josà Maria EÃa de QueirÃs *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS MAIAS *** ***** This file should be named 40409-0.txt or 40409-0.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/4/0/4/0/40409/ Produced by Rita Farinha, Alberto Manuel Brandâo Simıes, GraÃa Horta and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal) and Biblioteca Dulce Ferrâo -- Biblioteca-Museu RepËblica e ResistÃncia.) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. They may be modified and printed and given away--you may do practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at www.gutenberg.org/contact For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director [email protected] Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. 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Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For forty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.