O que fazem mulheres: Romance philosophico

By Camilo Castelo Branco

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Title: O que fazem mulheres
       Romance philosophico - Quarta edição

Author: Camilo Castelo Branco

Release Date: July 18, 2009 [EBook #29435]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O QUE FAZEM MULHERES ***




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                                  OBRAS

                                    DE

                          CAMILLO CASTELLO BRANCO

                              EDIÇÃO POPULAR

                                   LVII

                            O QUE FAZEM MULHERES




    VOLUMES PUBLICADOS

    N.º 1--Coisas espantosas.
    N.º 2--As tres irmans.
    N.º 3--A engeitada.
    N.º 4--Doze casamentos felizes.
    N.º 5--O esqueleto.
    N.º 6--O bem e o mal.
    N.º 7--O senhor do Paço de Ninães.
    N.º 8--Anathema.
    N.º 9--A mulher fatal.
    N.º 10--Cavar em ruinas.
    N.os 11 e 12--Correspondencia epistolar.
    N.º 13--Divindade de Jesus.
    N.º 14--A doida do Candal.
    N.º 15--Duas horas de leitura.
    N.º 16--Fanny.
    N.os 17, 18 e 19--Novellas do Minho.
    N.os 20 e 21--Horas de paz.
    N.º 22--Agulha em palheiro.
    N.º 23--O olho de vidro.
    N.º 24--Annos de prosa.
    N.º 25--Os brilhantes do brasileiro.
    N.º 26--A bruxa do Monte-Cordova.
    N.º 27--Carlota Angela.
    N.º 28--Quatro horas innocentes.
    N.º 29--As virtudes antigas--Um poeta portuguez... rico!
    N.º 30--A filha do Doutor Negro.
    N.º 31--Estrellas propicias.
    N.º 32--A filha do regicida.
    N.os 33 e 34--O demonio do ouro.
    N.º 35--O regicida.
    N.º 36--A filha do arcediago.
    N.º 37--A neta do arcediago.
    N.º 38--Delictos da Mocidade.
    N.º 39--Onde está a felicidade?
    N.º 40--Um homem de brios.
    N.º 41--Memorias de Guilherme do Amaral.
    N.os 42, 43 e 44--Mysterios de Lisboa.
    N.os 45 e 46--Livro negro de padre Diniz.
    N.os 47 e 48--O judeu.
    N.º 49--Duas épocas da vida.
    N.º 50--Estrellas funestas.
    N.º 51--Lagrimas abençoadas.
    N.º 52--Lucta de gigantes.
    N.os 53 e 54--Memorias do carcere.
    N.º 55--Mysterios de Fafe.
    N.º 56--Coração, cabeça e estomago.
    N.º 57--O que fazem mulheres.




                         _CAMILLO CASTELLO BRANCO_

                                O QUE FAZEM

                                  MULHERES


                            ROMANCE PHILOSOPHICO


                                QUARTA EDIÇÃO


                                   1907
                      PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
       Livraria editora e Officinas Typographica e de Encadernação
                          Movidas a electricidade
                          _Rua Augusta--44 a 54_
                                  LISBOA




1907
OFFICINAS TYPOGRAPHICA E DE ENCADERNAÇÃO
MOVIDAS A ELECTRICIDADE
Da Parceria Antonio Maria Pereira
_Rua Augusta, 44, 46 e 48, 1.º e 2.º andar_
LISBOA




A TODOS OS QUE LEREM


É uma historia que faz arripiar os cabellos.

Ha aqui bacamartes e pistolas, lagrimas e sangue, gemidos e berros,
anjos e demonios.

É um arsenal, uma sarrabulhada, e um dia de juizo!

Isto sim que é romance!

Não é romance; é um soalheiro, mas tragico, mas horrivel, soalheiro em
que o sol esconde a cara.

    Como da seva mesa de Thyestes
    Quando os filhos por mão de Atreu comia.

Escreve-se esta chronica em quanto as imagens dos algozes e victimas me
cruzam por diante da phantasia, como bando de aves agoureiras, que
espirram de pardieiro esboroado, se as acossa o archote de um phantasma.

Tenebroso e medonho! É uma dança macabra! um tripudio infernal! cousa só
semelhante a uma novella pavorosa das que aterram um editor, e se
perpetuam nas estantes, como espectros immoveis.

Ha ahi almas de pedra, corações de zinco, olhos de vidro, peitos de
asphalto?

Que venham para cá.

Aqui ha cebola para todos os olhos;

Broca para todas as almas;

Cadinhos de fundição metallurgica para todos os peitos.

Não se resiste a isto. Ha-de chorar toda a gente, ou eu vou contar aos
peixes, como o padre Vieira, este miserando conto.

Os dias actuaes são melancolicos; a humanidade quer rir-se; muita gente,
séria e sisuda, se compra um romance, é para dar treguas ás
despoetisadas e pêcas realidades da vida.

Sei-o de mais. Eu tambem compro os livros dos meus amigos, para
espairecer de meditações serumbaticas em que me anda trabalhado o espirito.

Sei quantos devo, e que favores impagaveis me deveria, leitor bilioso,
se eu lhe encurtasse as horas com paginas galhofeiras, picarescas,
salitrosas, travando bem á malagueta, nos beiços de toda a gente, afóra
os seus.

Tenha paciencia: ha de chorar ainda que lhe custe.

Se respeita a sua sensibilidade, fique por aqui; não leia o resto, que
está ahi adiante uma, ou duas são ellas, as scenas das que se não levam
ao cabo, sem destillar em lagrimas todos os liquidos da economia animal.

Este romance foi escripto n'um subterraneo, ao bruxolear sinistro de uma
lampada.

Alfredo de Vigny não diz que escreveu um drama, ás escuras, em vinte
dias? E Frederico Soulié não se rodeava de esqueletos e esquifes?

E outros não se espertaram com todos os estimulos imaginaveis de terror?
Menos o do subterraneo... este é meu, se me dão licença.

Pois foi lá que eu desentranhei do seio estes lobregos lamentos.

No fim de cada capitulo, vinha ao ar puro sorver alguns átomos de
oxigenio, e todos me perguntavam se eu tinha pacto com o diabo.

Almas plebeias! não sabem o que é a fidalguia do talento, que tem
alcaçar nos astros, e nos antros lobregos da terra; não entendem este
fadario do «genio», que elles chamam «excentricidade», como se não
houvesse um nome portuguez que dar a isto.

O leitor sabe o que isto é? Já sentiu na alma o apertar de um caustico?
Excruciaram-no, alguma vez, os flagellos da inspiração corrosiva, como
duas onças de _sublimado_?

Se não sabe o que isto é, estude pharmacia, abra um expositor de chimica
mineral, e verá.

Não cuidem que podem ler um romance, logo que soletram. Precisam-se mais
conhecimentos para o ler que para o escrever. Ao auctor basta-lhe a
inspiração, que é uma cousa que dispensa tudo, até o siso e a
grammatica. O leitor, esse precisa mais alguma cousa: intelligencia;--e,
se não bastar esta, valha-se da resignação.

Ora, está dito tudo.

Leiam isto, que é verdadeiro como o «Agiologio» de Ribadaneira, como as
«Peregrinações» de Fernão Mendes, como todos os livros legados de
geração a geração com o sinete da crença universal.




A ALGUNS DOS QUE LEREM


Não será uma acção meritoria amoldurar em fórmas verosimeis a virtude,
que os pessimistas acoimam de impraticavel n'este mundo? Hão de só crer
nas façanhas do crime, nas hyperboles da maldade humana, e negar as
perfeições do espirito, descrêr o que ultrapassa as balisas de uma certa
virtude convencional, que não custa dores a quem a usa?

Se os espanta as excellencias da mulher que vou debuxar, antes de m'as
impugnarem, afiram-se pela natureza, interroguem-se, concentrem-se no
arcano immaculado da sua consciencia. Se me rejeitam a verdade de
Ludovina, se me dizem que a este inferno do mundo não podia baixar tal
anjo, sabem o que é esse descrer? é apoucamento de alma para idear o
bello; é o regelo do coração que rebate as imagens ainda aquecidas do
halito puro da divindade.

Se a mulher assim fosse impossivel, o romancista que a inventou, seria
mais que Deus.




CAPITULO AVULSO

PARA SER COLLOCADO ONDE O LEITOR QUIZER


Francisco Nunes...

Que nome tão peco e charro! _Francisco Nunes!_

Pois se o homem chamava-se assim!?

Deus sabe que tristezas eram as d'elle por causa deste _Nunes_. O rapaz
tinha talento de mais para escrever folhetins lyricos, e outras cousas.
Pois nunca escreveu por que não queria assignar-se _Nunes_.

Ha appellidos que parecem os epitaphios dos talentos.

Um escriptor _Nunes_ morre ao nascer.

Bem o sabia elle.

Houve em Portugal um escriptor chamado _Antonio José_. Se a inquisição o
não queima, ninguem se lembrava hoje d'elle.

Francisco Nunes só poderia viver na memoria da posteridade, se S.
Domingos fizesse o milagre de reaccender as fogueiras nos subterraneos
do theatro de D. Maria.

Outros lá soffrem tractos agora, mas é em cima, no palco... Se, ao
menos, Francisco Nunes escrevesse uma comedia...

Não escrevia nada; mas falava muito, e, quasi sempre, sósinho, em casa,
e na rua. Não incommodava ninguem; era um anjo; tinha só a perversidade
de chamar-se _Francisco Nunes_.

Elle ahi vae, faz agora tres annos, por uma rua do Porto, vizinha da de
Cedofeita, falando só, e falando, ao que parece, enraivecido. Ninguem o
escuta, se não eu, porque lhe vou na alheta, com subtis sapatos de
borracha.

Esta rua, por um lado, tem raros edificios; pelo outro é marginada por
um comprido muro de quintaes que pertencem ás casas da rua parallela.

Nunes, de tempo a tempo, sustem o monologo para puxar com sorvos
sibilantes o vapor de um charuto. Depois, faz um tregeito iracundo, com
o pé com sanha, e prorompe na imprecação interrompida, do seguinte theor:

«Arado pelo fogo do inferno seja o torrão maldito onde nasceu a folha
d'este charuto!

«A chuva candente de Sodoma e Gomorrha tisne a folha do tojo e do
carrasco que nascer no terreno que te produziu!

«Frieiras, gotta, paralysia, e morte tolham os dedos que te colheram!

«O sol, que te seccou, morra nos olhos de quem te trouxe aqui!

«As mãos que te enrolaram, charuto infame, sequem-se e mirrem-se
como as das mumias de Memphis.

«E para vós, contractadores, caixas, comarqueiros, e estanqueiros do
contracto do tabaco, para vós o inferno illimitado, a região tenebrosa
dos condemnados, onde ha o ranger dos dentes, e o sempiterno horror!

«Para vós, Borgias, para vós, raça de Locusta, e de Brinvilliers, para
vós, envenenadores impunes, o patibulo n'este mundo, d'onde fugiu
espavorida a vergonha e a justiça; e as caudaes de sulphur em combustão
eterna nas furnas tartareas, onde é de fé que dá urros medonhos um
condemnado chamado _Nicot_, que trouxe para a Europa o tabaco, e teve a
impudencia de o trazer a Portugal em 1560, onde viera com embaixada de
França.[1]

«Porque os vossos charutos, propinadores de venenos, ennegrecem as
substancias organicas, como o acido sulphurico.

«São amargos e causticos como o acido nitrico.

«Calcinam os beiços como o acido hydrochlorico.

«Queimam a laringe como o acido phosphorico.

«Laceram o esophago como o acetato de chumbo.

«Fulminam e despedaçam como o acido hydrocianico.»

Em quanto elle repuxava o vapor do incombustivel rôlo de erva-santa (que
blasfemia! _santa!_) façamos tremendas reflexões:

Um «manual de chimica para uso dos leitores de romances» é instantemente
reclamado. Sente-se na litteratura este vazio desde que a novella é um
extendal da sciencia humana; e esta póde, sem immodestia, graduar-se assim.

Quando se escreviam bacamartes para as gerações soffredoras, que os
lêram, o sabio repunha ahi em azedo vomito as indigestas massas, que
ainda agora resistem ao dente roaz da carcoma e da ratazana, nos lotes
esboroados das bibliothecas.

O in-folio era uma crença, uma religião, uma faculdade d'aquellas gordas
almas, que resumavam pingue chorume por tres mil paginas em typo-breviario.

Não vos faz melancolia vêr a lombada d'esses enormes volumes aprumados
n'uma estante? Não ha n'aquelle aspeito triste alguma cousa que vos faz
crer que o in-folio chora pelo frade?

Agora não se escreve d'aquillo, posto que o saber humano seja mais
vasto, e opulentado com as vigilias de dois seculos laboriosos. Reina o
romancista, que é o successor do frade, na ordem das intelligencias
productivas.

Ora, o romancista ha-de, por força de sua natureza scientifica, despejar
no romance a sciencia que lhe traz intumecido o estomago intellectual; e
o romance, assim, deixará de ser lido, se o conselho superior de
instrucção publica não organisar os estudos de modo que as sciencias
transcendentes, em consorcio com as da natureza physica, desbravem o
espirito-charneca de muito leitor sandio, que não póde entender a
iracundia chimica de Francisco Nunes.

O qual continuou assim:

«Ha cinco seculos que a raça proscripta de Israel soffreu em Pariz uma
perseguição sanguinolenta. Morreram milhares de judeus entre labaredas,
porque a calumnia, infamando a religião do Messias, disse que o povo
judaico tentára envenenar as fontes e poços de França.

«E vós, judeus christianisados, caixas do tabaco, derramaes o veneno á
luz do meio dia, abris as vossas tendas, vendeis pelo preço de vossas
carroagens a droga homicida; mataes a mocidade de uma nação, que asfixia
ás mãos dos velhos: a vós, que alimentaes o vicio alheio com o crime
proprio, quem vos obriga a fumar um charuto de vintem?

«Portugal, tu queimavas os judeus industriosos, a quem deveste os
melhores livros de sciencia, as obras primas da arte, os dinheiros
extorquidos á pobre raça, que tão caros pagou os trinta dinheiros que
Judas não comeu! Queimavas o povo inoffensivo, nação de cafres, e dás
refrescos, e condecorações, e honrarias, e montes de ouro aos
envenenadores publicos, aos sicarios de charuto, que te desentranham a
alma n'um rôlo de fumo negro.

«Que é dos vestígios da civilisação christã? Que é da egide que protege
o fraco dos affrontamentos do forte? Em que lapide está escripta a lei
que assegura a vida do homem?

«A Roma pagã era o sanctuario da justiça. Ahi os propinadores de venenos
eram clandestinos. A mão cruenta do verdugo ia arranca'-los ao segredo
das suas fornalhas, e mandava-os de presente ao diabo. «Lucius Cornelius
Sylla, a tua lei de supplicio para os empeçonhadores vale só de per si
uma legislatura d'esta horda de togados rotos, que nos espremem da
algibeira 1$960 réis diarios, por cabeça.

«Aqui, ha o morrer sem recurso de revista, o expirar em vomitos negros,
o tossir rispido da bronchyte, as asthmas offegantes, o ronco profundo
da pieira laringea, os deliquios da cabeça atordoada, a podridão dos
dentes, as fendas carboniformes dos beiços, os abcessos pulmonares, as
hemorrhagias de sangue apostemado:--ha tudo isto, debaixo d'este céo
impassivel, na presença do codigo criminal, n'um paiz, onde trabalha a
electricidade por arames, onde se comem _omelettes sucrées_ e
_soufflées_, e d'onde se mandam rapazes para o extrangeiro estudar
BENEFICENCIA «Mentira! Mentira e escarneo!

«Se quereis beneficiar este paiz, não mandeis lá fóra, oh parvos
governadores da Barataria, não mandeis lá fóra estudar o processo do
bem-fazer.

«Vêde-me este moço, que apenas tem vinte e dois annos, e já precoces
sulcos da doença lhe enrugam a fronte. A cutis macilenta, onde deviam
vicejar as rosas da adolescencia, adhere aos ossos desmedulados e
cariados; uma tosse violenta lhe reteza os musculos do pescoço,
expedindo das glandulas salivares um pus granuloso, pardo, e
alcalino. As faculdades intellectuaes estão entorpecidas n'esse mancebo.
Estimulando-se com cognac e absynto, esta especie de cretino,
bestificado por uma enfermidade incuravel, apenas consegue dizer tres
tolices ácerca de Donizetti, sentado n'um mocho de botiquim, encostando
o corpo enervado á banca dos licores incitantes.

«Sabeis quem reduziu esse vegetal a tão quebrantado estiolamento?

«Foi o charuto!

«O contracto do tabaco empeçonhára a seiva d'esse moço, que os fados,
menos poderosos que os caixas, talvez tivessem destinado para exercer o
magisterio do folhetim, maximo esforço de intelligencia, n'uma época, e
n'um paiz, cujo amor ás letras não vale a correspondencia de uma local
bem poetica como a do baile do sr. fulano.

«Voltae para esse corpo achacadiço e apodrentado o vosso animo
beneficente, Sanchos-Panças lerdos, pantalões administrativos!

«Chamae a juizo os vampiros que sugaram o soro d'esse sangue aguado que
o faz tolhiço para tudo.

«Fazei a autopsia de um charuto como este--proseguia Francisco Nunes,
parando e contemplando as nervuras negras do rôlo de folha, que
semelhava uma rolha de cortiça queimada--e vereis que ha aqui dentro um
talo de couve lombarda, uma carocha secca, uma folha de leituga, uma
casca de bolota, e tres grãositos excrementicios de rato ou coelho.

«Horrivel, e sujamente infernal!

«Senhores deputados! não se mata assim impunemente um povo![2]

«As nações tyrannisadas, quando a oppressão requinta, erguem-se como um
só homem, e fogem para o Aventino.

«Os envenenadores congregaram-se em conciliabulo de abutres, e crearam o
charuto de vintem, a pitada do meio grosso, e o cigarro onde cresce o
musgo como em parede velha. Cadafalso para os envenenadores!

«O conselho de saude, bandeado n'este tripudio de canibaes, forma o
cortejo scientifico das parcas que nos arrebanham para a região dos
suicidas. Morte ao conselho!

«Não ha typhos, nem cholera, nem febre amarella, senhores deputados! Ha
charutos, ha o meio-grosso, e o cigarro. A epidemia não está nos canos,
senhores; está n'estes canudos, por onde os contractadores cospem
affronta e morte na face do povo!

«Que elles sejam malditos setenta vezes sete vezes, como se dizia no
Oriente!

«Na hora do trespasse, a alma d'elles, tisnada pelo remorso, será negra
como este charuto, d'onde eu sorvi um pus que me requeima os bofes...
Vae-te, infame!»

E, assim rugindo, n'uma como inprecação do moribundo atormentado,
arremessou o charuto por cima do muro para o quintal.

    [1] É para espantar a memoria de Francisco Nunes, em crise de
    tamanha angustia! Aquella nesga de historia destoava da virulencia
    da apostrophe; mas foi dita com sanhudo entono.

    [2] É ordinario este estylo; aqui não ha unidade; o impeto afrouxa,
    e descáe na vulgaridade tacanha do artigo de fundo. É defeito de
    todos os nossos oradores de inspiração: remontam-se; a gente está a
    ve'-los luctar com as aguias; e, quando mal se precata, vê-os cahir,
    a disputarem a presa do escaravelho que se rola no chão. Francisco
    Nunes tem lastimaveis desegualdades n'esta apostrophe.




I


--Ludovina, já pensaste a resposta que has-de dar a teu pae?

Pergunta que faz a sua filha uma senhora de nobre presença, quarenta
annos, ainda frescal, chamada Angelica, e casada com o sr. Melchior
Pimenta, empregado na alfandega do Porto.

Ludovina respondeu:

«Como hei-de eu responder, se ainda não vi o homem?

--É um homem como os outros;--replicou D. Angelica--são todos o mesmo,
menina. Teu pae sabe o que faz. Um homem é quem melhor conhece outro
homem. Se elle te disse que achou um bom marido, não póde enganar-se.

«Ora essa, mãe! E se eu antipathisar com elle?

--Deves casar, como se sympathisasses.

«Bravo!... e depois?

--E depois, virá a sympathia. Imaginas lá com que repugnancia eu casei?
Casaram-me, deixei-me levar porque era uma creança, vivia na aldeia, e
sonhava com os vestidos e os bailes, e os theatros do Porto. Depois, teu
pae... teu pae adorava-me, dava-me mais do que eu ambicionava, e sem
saber como, nem porque, contentei-me tanto com a minha sorte, que não
invejava a de ninguem. Tinha vaidade em ser bonita, vestir com gosto, e
chegar onde as mais ricas não podiam chegar. Via homens elegantes,
reconhecia a differença que os fazia superiores a teu pae, e, comtudo,
nunca me passou pela cabeça a loucura, a ingratidão, o crime da
infidelidade.[3] Posso dizer que principiei a amar meu marido, quando as
outras mulheres se enfastiam. Aqui tens o que nunca te disse. Não ha
homem nenhum que seja indigno da estima de uma mulher.

«Mas a mãe sabe que eu... amo outro homem.

--Eu não sei se amas outro homem... Sei que namoras outro homem, e entre
namorar e amar está o reflectir, menina. Esse rapaz que te manda
romances e cartas entre as paginas... (não te inquietes, que sei tudo, e
tudo pouco vale...) esse rapaz quem é? Um filho-familia, sem posição,
sem modo de vida, que te ama, que será teu marido, se tu quizeres; que
viverá das tuas sopas, se as tiveres para ti, que se envergonhará da sua
dependencia, quando o amor obedecer á razão; que se enfastiará dos teus
carinhos, se quizeres prende'-lo com elles a ti, ou ao berço de teu
filho. Se quizesses exemplos, dava'-tos. Tens ouvido censurar duas
ou tres amigas, que tens, casadas com homens ricos de cabellos brancos?

«Ainda hontem li um folhetim contra as mulheres que se deixam seduzir
pela «fortuna» de estupidas creaturas...

--Lêste? De quem era o folhetim? Se o auctor fôr rico, e tiver quarenta
annos, o auctor é insuspeito, e, n'esse caso, digo-te que sujeites o teu
destino á determinação do folhetim. Escreve uma carta ao auctor, e
conta-lhe que és uma menina pobre, virtuosa, com excellentes joias de
espirito. Offerece-lhe o teu coração, e promette que has-de levar-lhe a
felicidade com a pobreza. Se elle te vier buscar, peso-te a ouro ao
santo que fizer o milagre. Ora, se o folhetinista é um talento raro, um
elegante de grande bigode e luneta, mas pobre, faz-lhe o mesmo
offerecimento, prevenindo-o de que és tão pobre como elle. Se o
folhetinista te vier pedir, é um dia de festa n'esta casa...

Aprende, creança. Os rapazes pobres, se vivem na boa sociedade, criam
ahi ambições, que uma menina sem riqueza não satisfaz. Pois não os
conheces tu, Ludovina? Não os vês no baile e no theatro namorando um
dote como quem namora uma mulher? Não és tu a mesma que censuras a
indignidade de certos homens, que recebem resignados todas as repulsas,
e teimam sempre em esquadrinhar um dote, como se fizessem voto de
casarem ricos, ainda á custa de vergonhas? Vê lá se entre os
folhetinistas aspirantes ao casamento de especulação se te depara o
nome que hontem lêste... Talvez ainda não reparasses em outra injustiça
que se faz ás mulheres pobres, se a fortuna lhes dá maridos ricos. Não
ha por ahi rapazes com grandes patrimonios? Recebem elles, por ventura,
em casamento meninas virtuosas e pobres? Não. Procuram-nas ricas, e
fiscalisam menos a vida honesta da noiva, que o numero de acções do
banco, ou o valor da propriedade paterna. Os moralistas de gazeta que
dizem d'isto? Sacrificam, talvez, a sua indignação ao amor do sexo: não
dizem nada, e rebentam por outro lado em imprecações contra a mulher,
que os elegantes ricos rejeitam, e os ricos sem elegancia procuram.

Olha, filha, se te não fosse penosa a experiencia, deixava-te casar por
paixão, como se diz, com o primeiro moço pobre que te encantasse.
Depois, quando saísses a passeio com teu marido, levarias um vestidinho
de chita, por não poderes levar um de _glacé_. Os taes censores de
folhetim ver-te-iam mal trajada, e diriam, no auge da sua pena: «pobre
rapariga, fez um casamento infeliz!» Ao teu lado passaria uma das tuas
amigas, ricamente vestida, pelo braço de um velho com quem a casaram as
conveniencias. Os mesmos censores diriam: «Que mal empregada mulher em
semelhante alarve!» Já vês que o estimulo da compaixão, que fizeste, era
o teu vestido de chita; e o estimulo de inveja, que fez a tua amiga, era
o vestido de seda.

«Mas se eu fosse feliz com o meu vestido de chita, e o homem do meu
coração?

--Isso é romance, menina. Nunca é feliz com um vestido de chita a mulher
que tem amigas com vestidos de seda. Hoje reina a opinião publica,
Ludovina, não é a consciencia de cada um. O agente principal do espirito
de uma mulher é a modista. Se ha casadas que envelhecem disputando ás
netas a melhor eleição de um talhe de vestido, que farão as solteiras?

Basta de razões insignificantes, que devem humilhar a tua razão,
Ludovina. Eu nunca embaracei esse ligeiro conhecimento que tens com o
Ricardo de Sá, por saber que nunca seriam tardias as reflexões que te
faço agora. Não pódes casar com esse homem sem desgostar teus paes, e
grangear para ti o infortunio, e para elle o arrependimento. Se
soubesses o que deve ser o arrependimento entre casados, a maior prova
de amor que podias dar a esse rapaz, seria esquece'-lo. Tu sabes que
vivemos do ordenado de teu pae: temos podido manter a decencia e o luxo
até dos teus caprichos de formosa; porém, nada mais podemos. Se tivesses
um grande dote, a primeira a diligenciar o teu casamento com Ricardo de
Sá, seria eu. Assim, reprovo-o, opponho-me, e serei eu a encarregada de
dizer a esse cavalheiro que a tua vontade não é livre, ou que a tua
escolha foi outra.

«Não diga tal, mamã. Se casar com o homem que me destinam, a escolha não
é minha. Deixem-me, ao menos, este desforço... Fique a responsabilidade
da acção a quem me obriga.

--Pois teus paes acceitam a responsabilidade, Ludovina.

O dialogo rematára assim, quando se fez annunciar Ricardo de Sá.

D. Ludovina, com os olhos humedecidos, e desconcertado o semblante,
disse á mãe que não podia ir á sala, e recolheu-se ao seu quarto. Foi D.
Angelica receber a visita.

Ricardo esperava-a na sala, correndo o teclado do piano, com a
sem-cerimonia de um visitante habitual. Apertou-lhe a mão, beijando-a ao
estylo da França, cousa que elle vira fazer a quatro ou cinco viajantes
distinctos do Porto, que tinham conhecido, em Pariz, a «mesa-redonda»
dos hoteis onde estiveram. Ahi vão á pressa dois traços d'este Ricardo
de Sá. É um bacharel formado em direito, filho de outro bacharel que faz
requerimentos, em quanto o filho, reservado para a magistratura, destino
em que se dispensa vocação, faz cartas de namoro com letra ingleza, e
timbra em comprar no _Moré_ os mais anilados _enveloppes_, e o melhor
papel-setim de fimbria dourada.

Lê, e empresta os romances aos namoros; commenta-os na margem das
paginas, e addiciona-lhes appendices manuscriptos de lavra sua, quando a
catastrophe merece ser corrigida.

Além d'isto, o bacharel tem tres bengalinhas, que reveza, todas muito
bonitas, com os punhos de massa de marfim, formando uma o grupo das
graças, outra o das musas, e a mais embrincada é uma Suzana a saír do
banho, espreitada pelo olho lascivo dos arreitados juizes de Israel.
Ricardo de Sá consome as manhãs, que principiam para elle ás onze
horas, dividindo os cabellos em delgados fasciculos, e lustrando cada um
d'elles com um cylindro de cera. Aguça, quanto possivel, as guias do
bigode, encerando-as, e enverniza a pera com um oleo contido no decimo
nono frasco da terceira serie. Depois, o laço da gravata, e a collocação
symetrica do pseudo camapheu é obra de fôlego que lhe dá tempo de
assobiar dois actos do _Trovador_, a aria valida do _Rigoletto_, e o
acto final da _Lucia_. De seguida, a compostura airosa das lapellas do
fraque, a ultima demão de escova, e o aprumo do chapéo onde não ha um
fio erriçado, tolhem muitas vezes a saída do peralta, que se encontra
com a terrina da sopa do jantar.

O bacharel nutre-se de ar puro, e d'alguns escropulos de carne de boi. O
pae, homem roliço e respeitador das immunidades do estomago, suppõe que
seu filho desbarata a pequena mezada nas casas de pasto, e não se
assusta da inappetencia.

Ricardo crê que o seu estomago destacou tecidos para o coração,
reservando para o funccionalismo alimenticio um estomago-miniatura, o
_quantum satis_ das compleições sylphidicas. Convicto da excrecencia
espiritual, crê-se dotado de fluidos nêrveos, magnetismo, electricidade,
etherisação. Julga-se em fim anestesico, espasmodico, dynamico, em fim
tudo o mais que não se entende.

Não ama as mulheres, pranteia-as como victimas do seu poder fascinante.
Algumas vezes, tem a piedade de as não encarar para as não abysmar.
Outras, exerce a crueza da experiencia, fitando-as com o olho
carregado de electricidade, fala-lhes com um timbre magnetico que
elle sabe, e, não ha que vêr, o somnambulismo é prompto, a attracção é
irresistivel como a da cobra-cascavel do Canadá apoz o tangedor da flauta.

Crê tudo isto o bacharel, e ha velhacos que lh'o ouvem com a sisudeza da
crença, e lhe não receitam um curativo de causticos.

D. Ludovina Pimenta é uma das suas somnambulas, e a menos victima de
todas. Ricardo distingue-a, impondo-se a obrigação cavalheirosa de
corresponder-lhe quanto em si cabe para que a infeliz desilludida não
tente contra a existencia. Vae ve-la todos os dias, conversa litteratura
com a mãe, toma uma chavena de chá sem assucar, e despede-se ás onze
horas, dizendo que vae esperar no seu quarto a hora da inspiração
matinal para continuar a sua obra intitulada: O SECULO PERANTE A SCIENCIA.

É o que podemos esquadrinhar ácerca do bacharel Ricardo de Sá.

Os homens assim não se pintam; a zombaria não os enxerga na profundeza
da sua toleima... são o Rubicon do folhetim, a desesperação da comedia
desde Aristophanes até Molière.

O original anda por ahi. Tenho-lhe assestado tres vezes a machina
photographica, de rosto; sahiu-me sempre aquillo.

    [3] Perdoem-lhe a mentira pela intenção boa com que a diz...




II


«Ludovina fica hoje no quarto--disse D. Angelica, respondendo á pergunta
admirada do bacharel.

--Doente?

--Sim, passageiramente doente; mas é tão debil a pequena, tão melindrosa...

--É um corpo que não póde com o espirito... Eu comprehendo o que são
esses desfallecimentos d'alma. A filha de v. ex.ª tem uma organisação
muito semelhante á minha. As minhas enfermidades são sempre quebrantos,
estherismos, lethargia, procedentes das fadigas intellectuaes, ou dos
anceios do coração. Compleições infelizes, não acha, minha senhora?

--Oh! infelicissimas, de certo...

--Se, todavia, v. ex.ª tivesse a bondade de dizer a sua filha que
fizesse um esforço para me vir contar os seus padecimentos, talvez que
uma medicina toda espiritual...

--A curasse?... talvez...

--Sorriso de incredulidade, não é assim? V. ex.ª é sobejamente
espirituosa para desconhecer a influencia que exerce uma alma sobre
outra, quando as correntes magneticas...

--Não lhe dá treguas a sua paixão magnetica, sr. Sá!... A Ludovinasinha
queixa-se de enxaqueca... Eu voto, d'esta vez, por medicamentos
caseiros... Talvez que uns sinapismos...--proseguiu ella, rindo, sem
ferir o orgão maniaco do bacharel--dispensem uma descarga electrica.

--V. ex.ª não quiz entender-me, ou eu tenho sido confuso na exposição
das minhas convicções.

--É clarissimo sempre, sr. Sá; mas desconfio da inefficacia da sua
vontade sobre a enxaqueca de Ludovina. E depois, convém-nos que ella
esteja doente por um quarto de hora. Vamos falar a respeito d'ella.

--Tenho razões para suspeitar que minha filha não é indifferente a v. s.ª.

--De certo, não.

--Póde dizer-me até que ponto me devo lisonjear com a affeição que
Ludovina lhe merece?

--Voto á sr.ª D. Ludovina um sentimento profundamente respeitoso...

--Só?

--Uma affeição nobre e desinteressada...

--Amor?

--De certo... amor... reflectido, e bem intencionado...

--Uma paixão verdadeira, não é verdade?

--Quanto em mim cabe, minha senhora... quanto é possivel
apaixonar-se um homem de vinte e oito annos, apalpado já pelas
desillusões, e esterilisado tanto ou quanto pelos ventos contrarios dos
revezes da alma...

D. Angelica fez um geito de quem ouvia chamar; ergueu-se com a mais
destra simulação, dizendo:

--Minha filha tocou a campainha... As creadas não a ouvem de certo, eu
volto já...

Ricardo de Sá fez mentalmente o seguinte monologo:

--D. Angelica vae propôr-me o casamento da filha. Eis-me entalado n'uma
crise imprevista! Está explicado o enygma da carta que Ludovina me
escreveu hoje. Receia que eu me esquive á proposta; e tem razão. Eu não
caso. Esta mulher está abaixo dos meus calculos. Lisonjeia um amante,
mas não póde satisfazer as complicadas necessidades de um marido... É
horrorosa a minha posição!... Sei que faço uma victima... de certo a
mato... Estudemos uma evasiva, não obstante...

O monologo continuava, quando Ludovina, conduzida machinalmente por sua
mãe, se collocava atraz de uma vidraça da alcova immediata á sala.

D. Angelica era um assombro de esperteza. A leitora já admirou a
eloquencia persuasiva com que ella abalou o coração da filha; já disse,
de si para si, que, com tal mãe, não ha filha que rejeite o casamento de
um brasileiro rico; já leu as paginas que ahi ficam á mãesinha para que
ella saiba os argumentos com que se vence a desobediencia das filhas, em
casos identicos. Pois, se gostou e admirou as palavras de D. Angelica,
ha de tambem admirar-lhe as obras.

D. Angelica viu o mais secreto do animo do bacharel; previu o
desenvolvimento da conversação, e quiz dar á filha o mais rude, mas
tambem o mais proveitoso desengano.

--Nada era... ou era muito... Queria saber como v. s.ª estava--disse a
matreira esposa do sr. Pimenta.

--E ella como está agora?

--Soffre bastante... Falei-lhe no seu magnetismo, e a tolinha córou...
Era talvez o clarão da descarga electrica, seria?

--V. ex.ª sempre «fazendo espirito» com os axiomas da sciencia... Ha de
convencer-se... A experiencia lhe apontará as evidencias...

--A mim? ora essa! Terá v. s.ª a infausta idéa de me magnetisar?
Adormecer-me... isso é facil; bastam os livros que tratam da sciencia,
não é precisa a acção... Não «faço mais espirito» como v. s.ª diz...
Vamos á nossa pratica interrompida que é muito séria:

Disse o sr. Sá que minha filha lhe merecia um sentimento profundamente
respeitador, uma affeição nobre e desinteressada, um amor reflectido e
bem intencionado, e finalmente uma paixão, que não era bem uma paixão,
por quanto desillusões, revezes, _et coetera_, lhe haviam... não me
recordo...

--Esterilisado a alma...

--Foi isso... Em toda a sua resposta só ha de desagradavel essa
esterilidade de alma; todavia, eu creio que tão boa alma ha de sempre
florescer e fructificar, quando a cultura fôr confiada a uma mulher de
bom coração, meiga, docil, maviosa, em fim, a uma que não inveje as
boas qualidades de minha filha.

--De certo... assim o penso, minha senhora--balbuciou o bacharel,
forçado pelo silencio interrogador de D. Angelica.

--Minha filha ama-o, sr. Sá. Ama-o delirantemente, perdidamente, quer
ser sua ou da sepultura, não acceita admoestações nem esperanças
tardias, quer unir-se ao esposo da sua alma, mas já, já, senão... diz
que, mais tarde, será victima da sua paixão. Sabia v. s.ª que era
tamanho o seu dominio n'aquella innocente alma?

--Sabia... desgraçadamente sabia.

--_Desgraçadamente!_... essa palavra faz tristeza! Pois nem sequer o
orgulho de ser assim amado o alegra?

--Sim, minha senhora--tartamudeou o bacharel, afagando as guias do
bigode--tenho orgulho de ser assim amado... _Desgraçadamente_ disse eu,
porque me doem os soffrimentos da sr.ª D. Ludovina...

--Estando na sua vontade o mais facil e desejado remedio d'elles? é
singular!

--Ainda assim... ha situações na vida...

--Sei o que quer dizer--atalhou a zombeteira senhora--ha situações em
que quizeramos immediatamente felicitar as pessoas que soffrem por nossa
causa. Isso é assim... Pois bem. Tratemos definitivamente da felicidade
da nossa Ludovina. Minha filha, como v. s.ª sabe, não tem dote. É pobre,
supposto que o fausto com que vive queira desmentir esta triste verdade.
Em riquezas de espirito é millionaria. Nas do coração, sabemos nós o
que ella é. A «fortuna» porém, é muitas vezes a inimiga da verdadeira
felicidade, não é assim?

--De certo, minha senhora...

--V. s.ª tem uma habilitação, tem uma vasta intelligencia, sobram-lhe
expedientes para grangear o sufficiente para duas almas venturosas;
agouro a ambos uma felicidade duradoura. Entrego-lhe minha filha, na
certeza de que nunca me será turvado o prazer d'este instante de
expansão maternal pelo arrependimento da minha leviandade. Dê-me um
abraço, que já começo a consideral'-o meu filho.

--Minha senhora--disse o enfiado bacharel, extendendo a mão a D.
Angelica--eu estou cordealmente penhorado pela confiança que mereço a v.
ex.ª. Cumpre, porém, reflectir n'um passo tão momentoso. Eu amo em
extremo a sr.ª D. Ludovina, toda a minha ambição é identifica'-la ao meu
destino sobre a terra, mas, minha senhora, eu não posso dispôr da parte
de obediencia que devo a meu velho e respeitavel pae, sem consulta'-lo,
porque dependo d'elle, em quanto não entrar na carreira da magistratura,
e o cabedal dos meus estudos não me abona tanto quanto v. ex.ª imagina
que póde proporcionar-me a intelligencia.

--Pensa mui judiciosamente--redarguiu D. Angelica formando com a
prolongação dos beiços, e o abrimento dos olhos, um tregeito de mui
sisuda approvação--e qual conjectura v. s.ª que seja a resposta de seu pae?

--Não sei, minha prezada senhora...

--Se fôr negativa?

--Se fôr negativa...

--Obedece?

--Como filho dependente; mas os dias da minha existencia serão poucos, e
attribulados...

--Mas isso é horrivel, sr. Sá! Minha pobre filha succumbe... V. s.ª mata
a mulher que mais o amou, a unica n'este mundo que o compreendeu, um
anjo que não viu outro homem digno d'ella... Que diz a uma mãe
consternada, sr. Sá?

--Minha senhora... a nossa posição é desgraçadissima.

«Remedeie-a, que póde. Se seu pae o não acceitar casado, tem a casa de
sua mulher, onde será recebido como filho... Oh! que insensibilidade! o
senhor não ama Ludovina!

--Se a não amo! Isso mata-me, snr.ª D. Angelica!

«V. s.ª é que mata uma santa, uma martyr...

--Segui'-la-hei na morte...

«Pois o melhor é viverem ambos!--disse D. Angelica, desafivelando a
mascara da amargura, e abrindo o riso mais galhofeiro e fulminante que
imaginardes, leitores phantasiosos--V. sr.ª tem sido logrado
desapiedadamente, snr. Ricardo de Sá. Peço-lhe que viva muito tempo,
porque uma pessoa como v. s.ª não deve morrer, em quanto a tristeza, que
foge ao riso, andar por este mundo. Snr. Sá, é preciso dizer-lhe que
minha filha ouviu esta nossa scena comica, e acredite que o magnetismo
não operou a approximação. Eu comecei a falar-lhe em minha filha
para pedir ao seu cavalheirismo que não a inquietasse, porque vae
esposar um homem que seu pae lhe escolheu. V. s.ª alumiou-me o
entendimento, deu-me um alegrão inapreciavel; e voltou as minhas idéas
para o lado opposto. Fui buscar minha filha, para assistir ao
espectaculo do coração de v. s.ª, e dei-lhe um bello espectaculo. Snr.
Sá, a sua posição é desagradavel, e faz-me pena, por não dizer tedio. Um
homem como v. s.ª nunca devera erguer os olhos para uma menina honesta.

D. Angelica retirou-se da sala, soberba como uma rainha na descida do
throno.

O auctor possivel do SECULO PERANTE A SCIENCIA, emergindo do estupor
momentaneo, procurou a bengalinha de Suzana a saír do banho, e caminhava
atordoado para a porta, quando entravam Melchior Pimenta, e um sujeito
desconhecido ao bacharel.

--Ólá, por cá, snr. Sá?

«É verdade, snr. Pimenta.

--Ninguem lhe falou?! estava sósinho?!

«Saiu da sala, n'este instante, a snr.ª D. Angelica.

--E Ludovina?

«Está de cama, creio eu.

--De cama!? ella ficou boa quando eu saí... Alguma dôr de cabeça...

«Creio que sim... Dá-me as suas ordens, snr. Pimenta?

--Saude, meu amigo, appareça á noite, que lhe quero dar o
conhecimento d'este meu amigo, que será provavelmente o marido de minha
filha...

«Sim?... estimo muito conhecer... Ás suas ordens, meus senhores.

Saíu; e o snr. João José Dias (que é o tal), franzindo a testa, disse ao
pae da esposa promettida:

--Que diabo de cousa é isto? Cuidei que me picava o bom do homem com os
galhos do bigode! Eu corto as orelhas ambas e duas, se aquillo não fôr
um patarata!

«É um pobre diabo que lê novellas, e não é mau rapaz--respondeu o snr.
Melchior, limpando o suor da testa.

--Novellas!... hum!--este _hum_ do snr. João José Dias é uma cousa
semelhante a um grunhido roufenho; aquelle _hum_ é a these de uma
dissertação que elle, em tempo opportuno, ha de fazer contra a leitura
immoral dos romances--A sua filha lê novellas, snr. Melchior?--continuou
elle pondo os olhos de esguelha, como molosso desconfiado.

«Entretem-se com a mãe, ás vezes, n'essa leitura; mas lê sómente as que
a mãe já tem lido.

--Pois não faz bem. As novellas são a perdição das mulheres. Lá no Rio
está aquillo mal de religião e virtude desde que pegaram a ler romances
as moças. Em minha casa é sujidade que não entra. Eu já uma vez, para
ver o que era aquillo, puz-me a lêr uma novella, chamada... chamada...
era de um tal... d'um tal _Kocles_, ou _Koques_, e, meu amiguinho, era
maroteira de ferver bicho.

A snr.ª D. Angelica interrompeu a parlenda acrimoniosa de João José
contra os romances.

«Aqui t'o apresento--disse Melchior.

D. Angelica mirou-o de alto a baixo, e fez-lhe uma ligeira cortezia. No
rosto expressivo da sympathica senhora, liam-se estas dolorosas
palavras: _Minha pobre filha, que impressão vaes receber!_




III


João José Dias devia orçar pelos seus quarenta e cinco annos. Era de
estatura menos que mean, adiposa, sem proeminencias angulares,
essencialmente pansuda, porque João José tinha uma serie descendente de
panças, desde a papeira côr de rosa até ás buchas das canellas ventrudas.

Nas faldas de uma testa estreita, chata, e rugosa, como um elytro da
concha de um cágado, luziam os olhos pequenos e esverdinhados de João
José. As palpebras tumidas e pillosas como a casca da fava,
enviezavam-se para dentro, formando á raiz das pestanas um rebordo
purpurino. O nariz, sem base nem ossos, nem cartilagens, devia ser a
desesperação de Falopio e de Bichat: rompiam-lhe d'entre os olhos as
ventas já formadas, com a ponta arregaçada e as azas convexas,
dilatando-se até ás alturas dos ossos malares, entupidos nas bochechas
gordurentas. Os beiços eram bicolores; nacarinos no centro, e rôxos para
as extremidades quasi invisiveis sob os refegos relachados dos musculos
limitrophes. João José tinha quatro dentes incisivos de brilhante
esmalte, entalados nos outros quatro, formando de commum accordo as
saliencias irregulares de um pedaço de crystal bruto. Os dentes laniares
ou caninos tinham uma crusta de carie, e algumas luras chumbadas. Os
vinte malares estavam no goso das suas funcções triturantes, com quanto
amarellados de saes terreos, e regorgitamentos do bolo indigesto.

João José não tinha pescoço: as espaduas ladeavam-lhe os bocios da
garganta, alteando-se ao nivel das orelhas escarlates, com bolbos da
mesma côr, e não sei que excrescencias no lobulo, simulando pingentes de
coral.

Disse-se que era todo barriga o homem, já que Buffon e Cuvier asseveram
que é homem, feito á imagem e semelhança de... não ousamos escrever a
blasphemia. O que se não sabe é que a barriga lhe marinhava peito acima,
até levar de assalto o campo onde fôra pescoço.

As pernas de João José eram dois cepos, postos em peanha a uma esphera
armilar. Tão curtas eram ellas, e tão desmesurados os pés, que me não
seria difficultoso convencer-vos de que a natureza, em hora de
travessura, fez da porção de materia, destinada para perna e pé, duas
partes eguaes, juntou-as e o ponto de juncção denominou-o calcanhar.

As botas de João José tinham incriveis expansões de couro: eram um
oceano de bezerro cortado de ilhas. Os joanetes do pé direito formavam
um archipelago. No remanescente das milhas despovoadas, o pé era raso e
chão como uma lousa de mercieiro.

Deram-se uns longes para auxiliar a phantasia de quem não conhece o snr.
João José Dias. Para os que o viram, a pintura, vae tacanha e inhabil,
aqui o confesso, envergonhado do meu descredito.

Vamos á biographia da pessoa, e veremos que boa alma se nichou n'este
hediondo envolucro.

João foi cachôpo para o Brasil, e estreou-se n'uma loja de molhados,
onde grangeou renome de rapaz videiro e possante. Abraçava uma talha de
azeite de tres almudes, e aguentava com ella do armazem para a loja, sem
impar. Levantava do sobrado para o balcão o peso das tres arrobas com os
dentes. Punha a prumo meia pipa de cachaça, e levava á bôca, sem gemer,
um barril de dois almudes, com o braço testo na aza. Isto constou na rua
dos Pescadores, e, ao terceiro anno, João era alliciado por varios
patrões, que disputavam o lanço.

Não pertencem á alma estes esclarecimentos, bem o sei; mas a alma de
João José formou-se então. A probidade, a lisura, a honradez do boçal
caixeiro nunca foram desmentidas pela gaveta do patrão. Os convites,
feitos á sua cubiça de melhores ordenados, repelliu-os sempre, dizendo
que nunca deixaria a casa onde comera o primeiro bocado de pão. O
augmento de ordenado vinha sempre espontaneo dos patrões: podendo
inculcar-se com as propostas dos vizinhos, nunca João José se queixou
dos pequenos ganhos.

Os paes de João eram uns pobres fazendeiros de Celorico de Basto, que se
desfizeram do unico cevado e de uma vitella para pagarem a passagem do
rapaz. João não esqueceu estes sacrificios nem as lagrimas que vira
no rosto da mãe, quando, em Miragaia, lhe deu um quartinho em ouro
embrulhado em seis camadas de papel.

Os lucros dos tres primeiros annos foram quasi todos enviados a seus
paes, e, d'ahi em diante, metade do ordenado vinha repartido em pequenas
mesadas para os velhos, que lh'os devolviam em roupas brancas.

João José, morrendo um socio da casa, achou-se herdeiro da terça parte
do negocio. Pudera então retirar-se com haveres sobejos para viver
descançado na patria; mas, para obviar os desarranjos da liquidação,
continuou na sociedade.

Veiu a Portugal em 1835, comprou no Minho a cerca de um convento, e,
deixando o uso-fructo aos paes para que vivessem regalados, voltou ao
Rio de Janeiro, onde achou fallida a sua casa commercial, e
compromettida a compra que fizera na terra.

Tinha sido escandalosamente roubado o pobre homem.

Aconselharam-no que intentasse acção judiciaria contra os socios.
Rejeitou o alvitre, dizendo que Deus os julgaria. Acceitou os enormes
creditos que lhe offereceram, estabeleceu-se, e dentro de doze ou treze
annos pagou as dividas de seus socios, e liquidou cem contos de réis
fortes, entre os quaes, diz elle, e dizem todos os que o conheceram, não
havia cinco réis adquiridos deshonrosamente.

Chegou a Portugal em 1848. O pae era morto e a mãe octogenaria estava
entrevadinha, pedindo ao Senhor que a não remisse das penas d'este
mundo sem ver seu filho.

João José Dias assistiu seis annos aos longos paroxismos de sua mãe,
adoçados com as lagrimas da felicidade. Em 1854 finou-se a velha nos
braços do filho, dizendo-lhe que fizesse feliz uma moça pobre, casando
com ella já que Deus lhe déra a riqueza.

Passado o luto, o capitalista veiu ao Porto, e conheceu casualmente, na
alfandega, Melchior Pimenta, que lhe fez um pequeno serviço na brevidade
de uns despachos.

Alguns dias depois, encontrou o empregado da alfandega com uma formosa
menina pelo braço, e perguntou-lhe se era sua filha. No dia immediato
foi á praça, e colheu de alguns negociantes informações ácerca da filha
de Melchior.

Todos á uma lhe disseram que a menina gosava de excellente opinião; mas
tinha só o defeito de querer hombrear em luxo com as filhas dos
negociantes mais abastados. Um dos informadores accrescentou que os
tafetás, as rendas, e as pelliças da filha do empregado da alfandega não
pagavam direitos.

Esta mordedura dos malevolos não magoou João José Dias.

Fez-se encontradiço com Melchior, e falou-lhe dos seus teres, e da
tenção que tinha de mudar de estado, até para cumprir uma promessa que
fizera a sua mãe. Disse-lhe Melchior que era acertada a resolução, e
muito facil o realisa'-la. Replicou o brazileiro pedindo que lhe
indicasse alguma menina honesta. Pimenta pediu tempo para pensar, e o
capitalista, com a rude franqueza de uma boa alma, disse que a sua
escolha estava feita. Averiguada a cousa, a escolhida era a filha do sr.
Melchior Pimenta, que não cabia n'um sino.

--Isto é um modo de falar...--observou João José--Sem que sua filha dê o
sim, nada feito. Eu sei que estou no calçado velho, e não trajo cá á
moda dos janotas, como por ahi dizem. A sua filha é muito nova, e
quererá um rapaz. Fale com ella, diga-lhe a verdade, eu irei lá se o
senhor quizer; se ella quiz, muito bem; se não quiz, ficamos amiguinhos
como d'antes.

--A minha filha é docil e ajuizada: ha-de querer o que eu quizer. Foi
educada por uma mãe, que teve melhores principios que eu, e faz com que
ella lhe obedeça, tractando-a como irmã. Posso dizer-lhe que minha filha
será sua esposa; mas bom é que o senhor nos dê o prazer de frequentar a
nossa casa, para conhecer o coração da minha Ludovina.

É este o resumo do grande dialogo que precedeu a apresentação do sr.
João José Dias a D. Angelica.

      *      *      *      *      *

Não querendo eu, nem por sombras, indispôr contra os meus fieis
escriptos o imperio do Brazil, peço ao meu sisudo editor que faça
estampar o seguinte epilogo d'este capitulo:

João José Dias adquiriu com exemplar probidade os seus bens de fortuna.

Foi bom filho.

Levou a honra commercial ao primor de embolsar credores roubados pelos
socios que o roubaram a elle.

Foi trabalhador, quando precisava acreditar-se pelo trabalho; e foi-o
tambem, na opulencia, como o ultimo dos seus servos.

Nunca teve escravos, comprados ou alugados: remiu alguns na decrepitude,
e deu-lhes uma cama onde o ultimo instante da vida lhes fosse o primeiro
de bem-estar.

Que mais virtudes, ou maiores encomios a um bom caracter? Se pintei João
José Dias feio, não é d'elle a culpa, nem minha. João José Dias era
realmente muito feio.

Do Brasil vem muita gente galante.

Tenho na pasta um esboço de romances onde figuram quatro brasileiros
bonitos.

Hão-de ver com que isenção de animo se escreve n'esta provincia das
lettras.

Acabou-se o epilogo, e preveniu-se uma crise litteraria no Brasil.




IV


--Então a pequena está incommodada?--perguntou Melchior a sua mulher,
que não declinava os olhos do cepo informe do sr. João José Dias.

--Um pouco incommodada.

--Vaes dizer-lhe que venha á sala, menina?

--Irei.

--Estou boa, papá--disse Ludovina entrando subitamente, e cortejando o
hospede, que ella reconhecera de o ter visto outra vez.

--Tem a bondade de sentar-se, snr. Dias?--disse Melchior ao acanhado
brasileiro, que mal pudera gaguejar um «creado de vossa senhoria» que
corrigiu bruscamente em «vossa excellencia.»--Minha filha, quando hontem
te disse que a Providencia me deparára para ti um digno marido, era
d'este senhor que te falava.

--Tenho muito prazer em conhece'-lo--atalhou Ludovina com uma
affabilidade e desembaraço que espantou a mãe, alegrou o pae, e
lisonjeou o noivo.

--Para satisfazer a uma exigencia d'este cavalheiro--continuou
Melchior--é preciso que tu digas se acceitas livremente a minha
escolha, ou direi melhor a escolha com que te distinguiu o sr. Dias.

--Acceito muito de minha livre vontade--respondeu com firmeza D. Ludovina.

--Não lhe restam escrupulos?--tornou Melchior inclinando-se para o
brasileiro.

--Não, senhor--disse elle--Estou satisfeito; o que eu não queria era que
a menina viesse um dia a arrepender-se... e...

--Não espero tal desgraça...--interrompeu Ludovina, sem fitar os olhos
no brasileiro.

--Da minha parte, hei-de fazer o possivel por lhe não dar desgosto,
porque o meu natural é bom, e ninguem, até hoje, se deu mal comigo.

Ludovina ergueu-se, e pediu licença de retirar-se por um instante. D.
Angelica entendeu-a, e seguiu-a pouco depois. Foi encontra'-la no
quarto, afogada em soluços, curvada sobre o leito.

--Que é isto, filha?

--Nada, minha mãe...

--É muito, Ludovina; que tens?

--Precisão de desabafar assim. Estas lagrimas não fazem mal a ninguem. É
uma victima que se entrega ao sacrificio, mas deixem-a chorar... Que
vida, que futuro, meu Deus!

--Ludovina, não chores, e escuta-me. Eu não imaginava que teu pae te
dera a semelhante homem. Tens razão... É repugnante, e horroroso. Não
casarás com elle, menina.

--Hei-de casar, minha mãe. Mal o vi ainda; não tive ainda tempo de
sentir repugnancia ou horror... Choro como victima, mas não d'elle; é do
outro que me matou.

--Isso é que é cobardia, Ludovina! Pois não te fez nojo esse miseravel?

--Fez, fez; mais que nojo... É preciso que elle se não persuada que
minha mãe lhe mentiu, quando lhe disse que a sua intenção era dar-lhe
parte do meu casamento. Devo casar muito depressa, o mais breve que seja
possivel.

--Casar por vingança?... Isto é um desforço desgraçado...

--Não caso por vingança, que elle não vale o odio. Caso para salvar a
nossa dignidade, minha mãe. Hei-de simular quanto possa o contentamento
da mais feliz mulher. Não tenho já coração para sentir desgostos. Será
tudo estupidamente alegria na minha vida. Toda a gente dirá que eu
amo... meu marido. As pessoas que souberem do meu namoro com esse
infame, dirão que devia ama'-lo muito pouco a mulher que se deixou casar
com um homem ridiculo. Quero que se diga isto; quero que me assaquem a
calumnia de que eu sou mais uma das mulheres que se venderam á riqueza.
O que nunca ninguem dirá é que eu infamei o homem que me comprou...
nunca, meu Deus!... Pois a mãe está chorando agora, depois de me ter
ensinado a ver o mundo como elle é? Não se arrependa, minha boa mãe.
Deu--me a maior prova de amor fazendo-me escutar o que esse homem
disse... palavras de tanta afflicção como vergonha para mim... Fiquei
bem, estou desopprimida... vê? já não choro.

D. Angelica abraçou com vehemencia a filha, beijou-a como beijaria a
creancinha de peito, e saíu, enxugando as lagrimas. Entretanto,
conversavam assim, na sala, os snrs. João José Dias e Melchior Pimenta:

--Gostou dos modos da pequena, snr. Dias?

--Gostei muito; mas, a falar-lhe a verdade, pareceu-me que ella não
olhava direita para mim!

--Recato de moça, pejo, e acanhamento, não acha que é muito natural?

--Isso sim; mas dava aquellas respostas tão... tão... tão desenganadas,
que parecia ter por mim sympathia de mais tempo...

--Minha filha tem muito juizo, snr. Dias...

--Não duvido.

--E então quiz desde logo agradar a seu pae e a seu futuro marido.

--Ora, olhe; o senhor não se lhe dá que eu tenha com sua filha, cá em
particular, uma conversasita?

--Pois não, snr. Dias! todas as vezes que quizer. Eu mesmo desejo que
sonde o coração de Ludovina, e reconsidere a sua tenção, se vir que ella
o não merece. Eu vou manda'-la.

--Faça-me esse favor.

Melchior procurou a filha, reparou nos indicios das lagrimas, e fingiu
que os não percebia. Dizendo-lhe que viesse á sala, accrescentou:

--Lembra-te que fazes a tua felicidade e a de tua familia. Esse homem
não será só teu marido, será um protector de todos os teus, e fará a tua
independencia n'uma sociedade onde a formosura se estima como um meio de
alcançar «fortuna», e a «fortuna» como um meio de se alcançar tudo.
Entendeste-me, filha?

--Entendi, meu pae.

Ludovina entrou jovialmente na sala.

--Minha senhora,--disse o brasileiro, gaguejando--Eu fui toda a minha
vida negociante, apenas sei ler e escrever, e digo as cousas assim como
ellas me vem á idéa. Ora bem; a menina está resolvida a ser minha
companheira de toda a vida?

--Sim, senhor, disse ainda ha pouco que sim.

--É verdade que disse; mas póde ser que o dissesse para contentar seu
pae, e lá no interior sentisse outra cousa.

--Disse o que sentia, e repito o que disse.

--Quem sabe se a senhora tinha alguma sympathia por ahi, e que lá por eu
ter alguns vintens seu pae a fizesse voltar-se para outro lado?

--Não, senhor, eu não tenho affeição a alguem.

--Porque depois eramos ambos desgraçados; e eu devo dizer-lhe, que tudo
o que eu mais tenho estimado n'este mundo é a minha honra; até hoje,
louvado Deus, ninguem lhe pôz o dedo sujo; e seria mais facil eu deixar
que me tirassem a vida do que a honra. Trabalhei muito anno para a
conservar, cheguei até esta edade sem ser offendido, e assim d'estes
cabellos brancos que me vê, se alguem me atacasse a minha honra,
tornava aos meus vinte e cinco annos. A menina entende-me?

--Creio que entendi, e sinto que v. s.ª me esteja offendendo com as suas
supposições injuriosas.

--Isto é um modo de falar, sr.ª D. Ludovina, e perdoará se a offendi.
Tudo o que lhe digo é em bem seu, e meu. Eu sou o que está vendo; a
menina é nova e linda; se vê que se ha de arrepender, diga-me a verdade
do seu coração, que eu arranjarei as cousas de modo que seu pae se
queixe de mim e não da senhora.

--Já disse a v. s.ª que desejo ser sua esposa; não sei que mais deva
dizer-lhe. Não me hei de arrepender, porque espero merecer sempre a sua
estima e confiança; mas tenho um favor a pedir-lhe.

--Diga lá, seja o que fôr.

--Desejava que ficassemos na companhia de meus paes.

--Ficaremos; e quando formos passar algum tempo á nossa casa de
Celorico, a nossa familia irá comnosco. Era só isso?

--Não tenho outra ambição.

--Isso pouco é... Ha-se de fazer tudo que a menina quizer: graças a
Deus, temos mais que o preciso para satisfazer as nossas vontades.
Agora, se quizer dizer a seu pae que já lhe disse o que tinha a dizer,
vá lá, que eu fico á espera d'elle e de sua mãesinha para me despedir,
até á noite.

D. Ludovina chamou o pae, sem saír da sala. Melchior, lendo o bom
resultado das suas reflexões na cara jubilosa do radioso
capitalista, convidou-o a jantar, quando elle se despedia. João José
disse que jantára tres horas antes, e jantaria segunda vez com tão
amavel companhia. Estava inspirado!

E cumpriu a promessa. Jantou, fez muitos brindes, e o ultimo, e mais
solenne que fez foi o seguinte:

_Á saude de quem de hoje a um anno ha de ser meu compadre, e minha
comadre!_

Melchior Pimenta agradeceu.

D. Angelica franziu a testa, fez-se branca de cera, e levou o calix aos
labios.

D. Ludovina córou até ás orelhas.

A leitora faça o que quizer.

Eu não ri, nem córei: deu-me para chorar como uma vide, quando me
contaram isto.




V


Inventou-se uma lua para os casados.

Os irracionaes teem uma lua; essa entende-se, sabe-se o que é. Mas o
aluarem-se, á força, os casados, é uma idéa ingrata á decencia, feia, e
deshonesta.

Uma senhora innocente que diz: «lua de mel» suja os labios, se preza a
pureza n'elles; se, porém, sabe o que diz, se sabe o que é o favo, o
_mel_ da lua, desdenha o pudor, e despreza-se.

Os noticiaristas das gazetas aforaram a phrase, sem saberem, talvez, que
desaforavam as palavras. Os diarios do Porto, em 1856, noticiaram assim
um casamento:


«Hontem ás nove horas da manhã, contraíram o sacramento do matrimonio o
ill.mo sr. João José Dias, rico negociante que foi no Rio de Janeiro,
com a ex.ma sr.ª D. Ludovina da Gloria Pimenta, filha do nosso amigo
Melchior Pimenta. O sr. Dias deve á fortuna a escolha de uma noiva tão
rica de prendas moraes como de formosura angelica. A gentil menina
encontrou um honrado protector, cuja fortuna, sendo immensa, vale menos
que a briosa reputação que tem. Os esposos vão passar a LUA DE MEL á sua
quinta de Celorico de Basto, para onde partiram hontem de manhã
acompanhados dos numerosos amigos dos ditosos consortes. Diz-se que o
sr. Dias vae mandar construir um palacete no Porto, onde tenciona fixar
a sua residencia. Damos os parabens á cidade invicta por tão valiosa
acquisição.


A local está redigida a primor, como lá se faz sempre nas gazetas; mas
aquella LUA DE MEL indigna-me.

Se querem que haja por força uma lua para os que se casam, façamos umas
poucas de luas:

Lua de mel;

Lua de cicuta;

Lua de laudanum;

Lua de tartaro emetico;

Lua de mostarda ingleza;

Lua de oleo de ricino;

Lua de fel da terra;

Lua de salsa-parrilha;

Lua de raspa de veado;

Lua de jalapa;

Luas tónicas, luas antiphologisticas, luas irritantes, luas vomitas,
luas drastricas, etc.

Convém, de seguida, observar, que a lua não influe por egual nos dois
noivos. Cada um deve ter sua, nos casos exceptuados de casamento por
paixão reciproca.

Tal marido é aluado em ovos molles, e sua mulher em jalapa.

Tal noiva saboreia-se nos dulcissimos favos da colmeia lunar, e o homem
enjoa um cozimento salobro de raspa de veado, animal que muitas vezes
lhe lembra, por causa das virtudes medicinaes, e outras causas.

Qual d'essas luas influiria em João José Dias, e qual em D. Ludovina da
Gloria?

Eu não decido, porque sou supinamente ignorante em astrologia
judiciaria. Conto os factos, e deixo as luas ao arbitrio do leitor.

Fez-se o casamento, e effectivamente partiram os conjuges para Celorico
de Basto. D. Angelica tambem foi. Melchior Pimenta ficou para comprar
terreno, e contractar o architecto e alveneis que deviam fazer o
palacete, a toda a pressa.

Os cavalheiros de Basto receberam cartão do casamento. Esta usança das
familias de bem, desconhecida a João José Dias, fôra lembrança da
previdente D. Angelica: o fim era relacionar sua filha com as familias
mais tractaveis de Basto, para que estas visitando-a, segundo o
ceremonial, a distrahissem das melancolias do noivado.

Tudo lhe saíu ao pintar dos seus projectos. A fidalguia circumvizinha
não desdenhou as relações do capitalista. O cartão enviado ás senhoras
dizia:


         D. ANGELICA THEODORINA DA MESQUITA PEREIRA SOUSA
                     PINTO CASTRO LEITE E LEMOS
                 TEM A HONRA DE PARTICIPAR A V. EX.ª
                     O CASAMENTO DE SUA FILHA
                           A EX.MA SR.ª
      D. LUDOVINA DA GLORIA PIMENTA DA MESQUITA PEREIRA SOUSA
                   PINTO CASTRO LEITE E LEMOS
                         COM O ILL.MO SR.
                          JOÃO JOSÉ DIAS


Os appellidos heraldicos abalaram os espiritos pechosos d'aquella
fidalguia de travessão que por alli enxamêa.

Devia ser filha segunda de casa muito distincta a que descera até aos
fabulosos milhões do João da Chan-de-Cima: diziam-n'o assim os que
d'aquelle modo chasqueavam o brasileiro, pouco dado com fidalgos.

Consentiram algumas familias em visitar os noivos. Um dos fidalgos,
esmerilhando a procedencia genealogica de D. Angelica, descobriu que um
seu tio-visavô sahira da casa dos Ciprestes para ir entroncar na
nobilissima familia dos Pereiras e Sousas, em Paços de Gaiôlo, d'onde
era oriunda a avó de D. Angelica. Feito o descobrimento, D. Ludovina
achou-se prima de tudo que faz o lustre e ornamento de Celorico,
Cabeceiras, Arco, e terras de Barroso.

João José Dias tambem era primo dos primos de sua mulher; e, de si para
si, ao bom do homem dava-lhe para rir-se á socapa da parentella. A
lingua não se lhe ageitava a chamar primos aos fidalgos da casa dos
Ciprestes, aos do Reguengo, aos da Capella, e outros que
frequentavam, mais do que elle queria, a casa e o espirito attrahente da
sua sogra, espanto das fidalgas analphabetas.

Sem embargo, o capitalista simulava affectuosa estima aos hospedes, e
contentamento com o ar festivo que sua mulher mostrava, tendo visitas.

D. Ludovina pagava as visitas, passava as noites em sociedade, primava
em tafularia, ensinava as primas a vestirem-se, cuidava dos seus
enfeites com desvelo, e gastava com seu marido o tempo necessario para
projectarem passeios, romarias, e saraus por aquellas redondezas.

Annuia o conjuge, folgazão no rosto, e zangado por dentro. O bom siso
dizia-lhe que sua mulher era uma creança, vezada a bailes, e ainda verde
para gostar da quietação domestica. Bem via elle a innocente alegria com
que Ludovina andava nos honestos brinquedos, e o desapercebimento, se
não desprezo, com que ella acceitava as louvaminhas dos primos.

D. Angelica entendia o que o seu genro calava; conhecia a violencia que
elle fazia ao genio e aos annos ronceiros, para andar n'aquella
lufa-lufa de visita em visita, bifurcado n'um macho, que lhe contundia
as carnes com o chouto ingrato. Receosa de que a impaciencia rebentasse
em fim por algum dito menos delicado á mulher, quiz ella prevenir o
desgosto de ambos, dizendo uma vez á filha:

«Convém conformarmo-nos um pouco aos costumes de teu marido,
Ludovina. Teu homem não foi assim educado, e os annos extranham esta
transição.

--Que quer a mãe que eu faça?

«Que espaces os teus passeios e visitas, que vivas mais em tua casa, que
tenhas com elle algumas horas mais de convivencia.

--Que hei de eu dizer-lhe?!

«O que has-de tu dizer-lhe?!...

--Sim, mamã. Temos occasiões de estar duas horas juntos sem trocarmos
tres palavras. Sou amiga d'elle; mas não sei como hei-de mostrar-lh'o de
outro modo. Se querem que eu não receba visitas, nem vá a casa de quem
me visitou, estarei em casa, contemplando os carvalhos e os
castanheiros; mas eu não creio que se possa viver assim na aldeia. Se
elle ainda me não disse nada, porque ha de a minha mãe censurar-me este
desabafo que eu preciso? Eu a fugir de falar na minha situação, e a mãe
a lembrar-m'a! Cuida que sou feliz? Diga, mãe, está persuadida que eu
devo estar extasiada de contentamento deante de meu marido?

«Não creio que te devas extasiar, mas tambem não approvo que te
arrependas. Como explicas tu a consideração, o respeito com que és
tractada? Pensas que o seres casada com este homem te desmerecesse aos
olhos d'esta gente, que lhe chama parente?

--E a felicidade é isso, mãe?!

«A felicidade não é cousa nenhuma d'esta vida, e, se alguma existe cá, é
a que dá á consciencia da mulher casada o prazer de não envergonhar seu
marido.

--Que palavras! Isso que quer dizer, minha mãe?

«Não t'as applico, Ludovina: respondi á tua pergunta. A felicidade no
amor é um creancice dos quinze annos, e ás vezes dos quarenta; mas o
desengano vem com todos os homens e com todas as edades. Não te
persuadas que a vida te seria aqui mais risonha, por muito tempo, com um
marido de tua escolha. Este homem, d'aqui a tres mezes, has-de ama'-lo
como se ama um amigo. O outro, d'aqui a tres mezes, ama'-lo-ias com o
afflictivo amor da mulher que enfastia, que se vê cada vez mais
aborrecida, e compara os ardores dos primeiros mezes de casada com a
fria sequidão dos que traz o cansaço. Poupaste-te ao maior dos
infortunios, que é esse para a mulher que não quer curar a chaga do amor
a seu marido com a peçonha da infidelidade, comprehendes-me, Ludovina?
Eu não consinto que tu, sequer, recordes alguns exemplos de mulheres
casadas que viste conciliadas com o despreso dos maridos, acceitando a
adoração de outros, como vingança, e fazendo do crime uma necessidade.
Lembra-te só d'ellas como mulheres que casaram apaixonadas, que
doudejaram de alegria nos primeiros tempos, e pareciam cheias de
felicidade para toda a vida. Não te recommendo paciencia, Ludovina,
porque ninguem te dá causa de soffrimento; recommendo-te juizo. Este
homem ha-de merecer a tua amizade: logo que a tenha, viverás da melhor
affeição, da que mais dura n'este mundo; terás o bem que raras vezes
fica de um amor ardente.

Estas e outras palavras modificaram a força motriz de D. Ludovina.
Os passeios rarearam-se, os convites para reuniões foram esquecendo á
mingua de estimulo e as massas amollecidas do sr. João José Dias
recobraram vigor, com não menos gaudio do velho macho que as caminhadas
traziam desmedrado e manhoso.

Estava já a lua de mel em quarto minguante, quando os noivos, voltando
para o Porto, foram hospedar-se na casa paterna, em quanto não alugavam
casa provisoria, onde esperassem que o palacete se fizesse.

João José Dias foi agradavelmente surprehendido em casa de seu sogro.

Convidado para um baile, em que Ludovina ia ostentar preciosissimos
recamos de brilhantes, que seu marido lhe déra na vespera do casamento,
João José Dias ao vestir a casaca nova, que seu sogro lhe mandava ao
quarto n'uma bandeja, viu uma commenda pregada n'ella, e sobre uma salva
de prata um collar com a cruz da ordem de Christo, pendente de um
vistoso laço de fita.

--Que diabo é isto?--disse elle ao creado no requinte do pasmo.

«É um presente que faz a v. exc.ª o sr. Melchior.

--Diz-lhe que venha cá, e pega lá para cigarros--dizendo isto, o
commendador lançou á salva... sete centos e vinte.

Não vos assombre este lance dadivoso de grandeza. Em successos de menor
estimulo á munificencia, sei de outros arrojos de liberalidade, que
desbancam João José Dias.

Ahi vão de passagem dois exemplos:

Um visconde, opulento pelos dons de uma bestial fortuna que o ama como a
cousa sua, compra um quarto de bilhete da loteria hespanhola. O rapaz
que, á custa de muito teimar, lh'o vendera, vae dar-lhe a nova de que a
cautela fôra premiada com quatro mil duros. O visconde manda esperar o
alviçareiro moço e traz-lhe umas calças de cutim sem fundilhos.

Outro, na passagem do rio Douro, escorrega do barco para a corrente, e
mergulha; passados instantes, emerge á tona d'agua resfolegando, e
pedindo soccorro. Travam-no os braços robustos do barqueiro que, em
risco de morte, consegue salva'-lo, Vae leva'-lo á familia, mandam-no
esperar á porta da rua, e recebe, como salvador d'uma vida cara aos
seus, uma vida que os jornaes pranteariam com tarjas da grossura de um
dedo, e vinhetas das mais funebres da typographia, recebe, finalmente,
setecentos e vinte em cobre.

Isto é publico e notorio; mas não estava em chronica. Receio maguar a
modestia dos generosos cavalheiros, por isso resalvo os nomes. Na quinta
edição d'este livro, havidos os consentimentos respectivos, serão postos
em estampa, para inveja de miseraveis sovinas, e estimulo á profusão da
presente raça.

O commendador não era fona. Esse caínho feito não desluz os bizarros
presentes que fazia á esposa e aos sogros. Ludovina era o primor da
casquilhice, e do mais rico em gosto e droga. Para cada baile, para cada
exposição do theatro lyrico, um vestido não visto, só comparavel aos
que trajára antes, e inferiores aos que trazia depois.

Os _leões_ sertanejos, estes cinco ou seis pataratas, senhores de uma
gloria tão productiva, que faz lembrar a dos dominios da corôa
portugueza na Ethiopia, Arabia e Persia, os leões honorificos do Porto,
se assestavam pertinazes os oculos na peregrina esposa do commendador, o
mais que conseguiam era realisar o anexim nacional: «--viam-na por um
oculo.»

João José Dias envesgava o olho de soslaio por sobre as feras; e, a meu
ver, seria elle homem bastante para realisar, já não com um, mas com
todos, a fabula do leão espinotado pelo orelhudo.

O commendador tinha em sua mulher inteira confiança, nada lhe alterava o
conceito bem merecido; todavia era accessivel ao ciume sem causa. Nos
bailes, andava o pobre homem sempre assustado. Não tinha socego, nem
póro que não estilasse o suor da apoquentação. As affabilidades mais
triviaes e innocentes da cortezia, um sorriso de Ludovina ao par
dançante que a deliciava com ensosso palavrorio, o menor gesto de
attenção a que a delicadeza obrigava a festejada dama, isso era um
adstringente doloroso que apertava as entranhas do commendador.

N'um d'esses bailes, em que João José Dias emagreceu duas polegadas na
circumferencia, appareceu Ricardo de Sá, que nunca mais vira Ludovina
desde a vespera da sua derrota.

Audacioso até ao desatino, teve a petulancia de aprumar-se diante de
Ludovina, com a luneta insultante. A filha de D. Angelica pediu o braço
a uma amiga e saíu d'aquella para outra sala. O commendador não fôra
extranho ao acto, e seguiu-a com disfarce. Ricardo, brincando com os
berloques do relogio, e tregeitando o habitual sorriso do homem tragico
de romance, seguiu de longe as duas amigas, simulou um encontro casual,
estacou diante d'ellas, e montou a luneta.

D. Ludovina rodou sobre o calcanhar e voltou-lhe as costas. Á cabeça do
commendador subiu um repuxo de sangue, e os lobulos das orelhas
fizeram-se-lhe escarlates como ginjas.

D. Angelica, que espiava o successo da sala proxima, acercou-se de
Ricardo de Sá, fitou-o com fulminante soberania, e disse-lhe a meia voz:

--O senhor é um miseravel tolo, que incommoda. Se se estima alguma
cousa, não me obrigue a encarregar o boleeiro de minha filha de
responder ás suas provocações.

--Mude de sexo como Theresias, e falle-me depois--disse Ricardo, dando á
perna direita o costumado repuxão dos elegantes.

O commendador veio ao encontro de D. Angelica, e disse-lhe:

--«Aquelle sujeito com quem a senhora falou agora, não é um homem que eu
encontrei em sua casa a primeira vez que lá fui?

--É.

--Que diabo anda elle a prantar-se diante de Ludovina?

--Já reparei n'essa acção repetida. Eu lhe conto, dê um passeio
comigo--E tomando-lhe o braço, D. Angelica continuou:--Este homem foi
uma afeição innocente de minha filha, e é hoje um ente desprezivel para
ella e para mim.

--Escreviam cartas um ao outro?--interrompeu o commendador, bufando.

--Escreviam, sim...

--Porque me não disse isso a senhora?!

--Porque não merecia a pena dizer-lh'o. Que é escreverem-se cartas?

--Não é pouco, acho eu... E como acabou isso?

--Acabou, dizendo eu a esse homem que não voltasse a minha casa.

--E que quer elle agora?

--Vingar-se da unica maneira que póde: affligir minha filha... Ella ahi
vem... não falemos n'isto.

D. Ludovina disse affectuosamente ao marido:

--Vamos embora? eu estou incommodada.

--Vamos, disse a mãe.

--N'esse caso, vou chamar a carruagem; esperem um pouco, que eu venho
já--disse o commendador.

As senhoras foram esperar na sala menos concorrida. D. Ludovina
arquejava em ancias, e falava aceleradamente a sua mãe.

Entretanto, João José Dias entrou na sala onde se dançava, e viu na
porta fronteira Ricardo de Sá encostado, com a luneta em acção, e o
cotovello direito apoiado na mão esquerda.

Foi ao pé d'elle e disse-lhe:

--O senhor sabe quem eu sou?

--Creio que já o vi em alguma parte.

--Faz favor de vir aqui que lhe quero fallar.

Ricardo seguiu-o machinalmente, atravessou um corredor, e parou n'um
patamar deserto:

--Eu sou o marido d'aquella senhora que vocemecê insultou lá dentro.

--Essa é muito boa! Eu não insultei senhora alguma!

--Se insultou ou não, sei eu. Fique-lhe de aviso que a sr.ª Ludovina tem
um marido de quarenta e tantos annos, isso é verdade, mas capaz de pegar
n'uma orelha dos pandilhas como vocemecê, e dar-lhe com a cabeça n'uma
esquina, tem percebido?

O commendador desceu as escadas, e Ricardo de Sá, estupefacto e
aturdido, atravessou o corredor, e entrou nas salas.

Pouco depois, entravam na carruagem D. Ludovina e sua mãe. O commendador
não lhes disse palavra com referencia ao desforço solenne que tirára do
bacharel.

Isto, se eu o não contasse, era cousa que morria ignorada porque o
auctor embrionario do SECULO PERANTE A SCIENCIA nunca a diria.




VI


Esta inquietação damnificou a vida menos má do commendador, e o socego,
apparentemente feliz, de Ludovina. A paz existia; era, porém, como a
serenidade presagiosa de trovoada.

O marido recebia os convites para bailes, e queimava, á surrelfa, as
cartas. Ludovina admirava o esquecimento, sem aventurar uma pergunta.
Estes rebuços são a desgraça das familias, e o rastilho de polvora que
espera uma faisca.

Ao theatro iam raras vezes. O commendador adoecendo quasi sempre no dia
da recita, supportou no estomago muitas papas de linhaça, sem precisão.
O seu achaque postiço era uma inflammação intestinal.

D. Angelica censurava o procedimento do genro; mas calava-se, para não
dar anso á filha de romper em queixumes, que abafava com a esperança de
melhor vida, ou desafogava em carpir-se sósinha. Melchior Pimenta achava
que tudo ia bem, e dava-lhe mais cuidado a esperançosa apparição de
um neto que a irritação de entranhas do capitalista.

Acabára-se o palacete, e fez-se a mudança. O commendador não convidava
os sogros para viverem com elle. Ludovina, reagindo contra a tyrannia
simulada disse que não saía da casa onde nascera, sem levar seus paes.
João José acreditou na resolução, e disfarçou o intento, dizendo que
nunca tivera outro.

Ludovina queixava-se á mãe da reclusão em que vivia cheia de
aborrecimento e tedio; perguntava se era aquella a felicidade que dava o
dinheiro; dizia que a pobreza e o ar livre eram preferiveis ao goso de
cincoenta vestidos que se traçavam no guarda roupa, e da luxuosa mobilia
que ninguem admirava.

D. Angelica, já aborrecida tambem, prometteu á filha entender-se com o
genro, e muda'-lo por meios suaves.

--Que motivo ha, snr. commendador--disse D. Angelica--para se encerrar
n'esta casa, cortando as suas relações com a sociedade que tão bem o
tratava?

«Eu vivo assim melhor.

--Viverá!... não creio. O senhor, quando estivemos em Celorico,
divertia-se nas sociedades, e já no Porto parece que folgava de que o
vissem com sua mulher em toda a parte...

«Estou velho para andar a perder as noites. Esta minha inflammação de
entranhas não me deixa. A saude está em primeiro logar.

--Tem razão; mas n'este mundo só se vive bem, sacrificando-se a gente
uma á outra. O senhor é casado com uma menina habituada aos
innocentes prazeres da sociedade, e eu, se me dá licença, dir-lhe-hei
que não consentiria um casamento entre genios tão contrarios, se
previsse o que está acontecendo.

«Então que é?

--É que minha filha não póde assim viver contente.

«Agora não! ella não se queixa: a senhora é que toma as dôres por ella.

--Não se queixa porque é muito delicada, muito soberba, ou uma sancta. O
peor será quando ella se queixar... Isto assim vae mal, sr. Dias; mude
de vida, confie em sua mulher que é um anjo de virtude, incapaz de
offender a sua dignidade.

«Não duvido; mas estou melhor assim, e ella tambem não está mal, acho
eu. Quem casa vive para seu marido, e para os filhos, se os tem. Isso de
andar de bailarico em bailarico é bom para as raparigas solteiras que
andam á pesca de marido. Até parece mal uma mulher casada a saltarilhar
com um homem que lhe pega pela cinta, e anda alli com a cara ao pé da
d'ella. Nada de bailes, sr.ª D. Angelica. Minha mulher, se quer passear
tem ahi uma carruagem e eu estou prompto a acompanha'-la para toda a parte.

--Pois bem, não se frequentem os bailes, mas conservem-se as relações da
nossa casa. Ludovina tem amigas, que extranham muito a vida encarcerada
que ella passa. Porque não ha-de sua mulher visitar e receber as visitas
de suas amigas?

«E isso de que livra? Isto de mulheres umas com as outras não dizem
cousa boa. O melhor é cada um em sua casa.

--Que razão essa tão... tão singular!

«A final de contas, sr.ª D. Angelica, eu estou em minha casa, e entendo
que faço bem. Não se lucra nada em apparecer. O mundo está uma pouca
vergonha. Eu já sei como está o Porto, e como se vive por ahi. Não quero
que minha mulher ande nas bôcas do mundo. Se Ludovina não fosse ao
baile, onde lhe appareceu o tal namorado que ella teve, não tinhamos
todos a zanga com que sahimos de lá. Em casa, em casa é onde se está
melhor.

--Eu não me responsabiliso pelas consequencias, sr. Dias. Ludovina tem
brios e pundonor; se ella desconfia que v. s.ª a encerra em casa, por
suspeitar da lealdade d'ella, teremos grandes desordens e não terei
poder para accomoda'-las.

«Eu não desconfio de minha mulher; se não vou aos bailes, é porque não
quero que os outros desconfiem, e acabou-se.

O dialogo ficou aqui; mas ha ahi duas linhas que fazem honra á
intelligencia equivoca de João José. Merecem ter segunda edição de
versaletes:

EU NÃO DESCONFIO DE MINHA MULHER; SE NÃO VOU AOS BAILES É PORQUE NÃO
QUERO QUE OS OUTROS DESCONFIEM.

Isto é uma grande idéa, das quatro idéas grandes que apparecem em cada
seculo, e que, por engano, entrou na cabeça inhospita do commendador.

Pesem bem o quilate das duas linhas, que me ministrou João José, e verão
que as melhores d'este livro são ellas.

O marido, que me está lendo, se tem cincoenta annos, e espreita os vinte
de sua mulher, através do vidro embaciado que a experiencia lhe vendeu
caro, não deve já agora perder a esperança de dizer, no auge do seu
ciume, alguma cousa que possa ler-se em lettra redonda.

A indignação fazia os versos de Juvenal; porque não ha de o ciume fazer
as prosas toleraveis dos maridos?

A idéa de João José, se fosse minha, ninguem me aturava a vaidade. Rogo
aos escriptores contemporaneos, e aos futuros sabios, alinhavadores de
remendos alheios, que se escreverem a seguinte maxima:

_Ha maridos que não desconfiam das mulheres; mas não vão aos bailes para
que os outros não desconfiem;_ escrevam por baixo--_O commendador_ JOÃO
JOSÉ DIAS.

As pessoas que melhores idéas engendraram, não teem sido as mais
felizes. O commendador pertence ao martyrologio dos grandes pensadores.
Os fados, os estupidos fados hão de castiga'-lo por essas poucas
palavras com que elle arranjou um nicho, pôdre de barato, no templo da
memoria.

O castigo começa.




VII


Ludovina disse um dia a sua mãe:

--Estou casada ha treze mezes, e sinto-me velha. Até aqui obedeci como
creança, a minha mãe, a meu pae, e a esse homem, que entrou na nossa
familia com certa auctoridade que me intimidava. Eu fui sempre docil,
docil até á pusillanimidade. Se a violencia não fosse tamanha, este
homem que chamam meu marido, teria feito a escravidão da minha alma para
sempre. Assim não póde ser. Sinto-me outra; perdi os costumes de
creança; envelheceram-me com os desgostos continuos, e por isso hão de
soffrer-me agora emancipada.

--Que vem tudo isso a dizer, Ludovina?

--Que quero a minha liberdade, que hei de passar por cima da oppressão á
custa de tudo.

--Ludovina! que linguagem é essa?

--É a da desesperação, e da justiça. Não pratiquei sombra de mau acto,
por onde mereça este amargo viver que me dão. Quero saber porque vivo
apartada das minhas amigas, e dos recreios, d'onde a minha reputação
saíu sempre sem mancha.

--A quem o perguntas, a mim?

--Sim, á mãe, ao pae, e depois pergunta'-lo-hei ao dono d'esta casa, ao
dono dos meus vestidos e dos meus braceletes. Se este me disser que a
minha liberdade é o preço d'essas cousas, deixo-lh'as, e peço a meu pae
a subsistencia que me dava d'antes. Se m'a negarem, Deus me inspirará o
destino que me convém. Isto ha de decidir-se hoje. Ninguem soffria tanto
tempo, por amor proprio, ou pela virtude da paciencia.

--Tens direito a interrogar teu marido, Ludovina; mas sê prudente;
vence-o com razões moderadas, por não dizer humildes.

--E se elle, por maldade ou por ignorancia, suspeitar da pureza das
minhas intenções?

--Fala-lhe como deve falar uma senhora, e confundi'-lo-has.

Veiu o commendador cortar o colloquio. Nunca tão achamboada e trombuda
se mostrára a lerda physionomia do personagem. N'essa occasião, o
achaque intestinal era veridico, segundo o testemunho do semblante. Era
o ideal da fealdade, então, o sr. Dias!

D. Angelica, instada por um gesto da filha, deixára-os sós.

--É a primeira vez--disse Ludovina, sentada n'uma cadeira de braços
estofada, com a formosa face encostada á palma da mão direita, e uma
perna sobre a outra balouçando-se, deixando ver o pé de fada,
através do rendilhado da saia que a velava.--É a primeira vez que
falo a meu marido como se deve falar a um marido. Até aqui tratei-o como
se trata um amigo que se respeita, um tio, um pae d'esses com quem se
não tem muita confiança.

O snr. Dias abriu a bôca para entender melhor. D. Ludovina proseguiu:

--Poucas filhas ha tão respeitadoras como eu lhe tenho sido na qualidade
de mulher. Tudo que ha n'esta casa, snr. Dias, seu tem sido, como seria,
se eu aqui não fosse mais que uma pessoa extranha, sujeita á sua
generosidade. A sua vontade é o movel das minhas acções. Em quanto o
senhor me concedeu a liberdade honesta, que meus paes me concediam,
acceitei-a, sem lh'a agradecer, porque achei isso tão natural como
absurdo e impossivel o contrario. Logo que o senhor, sem me explicar a
causa da sua mudança, de repente me afastou da sociedade, como se faz ás
pessoas incapazes de viverem n'ella, acceitei tambem, sem me queixar, o
captiveiro, e supportei-o seis mezes como uma mulher culpada que expia a
culpa com a paciencia muda. O snr. Dias, sem saber o que fez, expoz sua
mulher aos commentarios offensivos que a sociedade ha de ter feito á
minha ausencia repentina. Deu um escandalo, sem necessidade de evitar
outro. Disse á sociedade que não tinha bastante confiança em mim para me
levar onde ha o bom e o mau.

«Estás enganada, menina, eu não disse isso a ninguem--interrompeu o
commendador, que andou ás aranhas muito tempo antes que traduzisse
para vulgar o estylo sentencioso da filha e discipula de D. Angela.

--Não o disse com a palavra; mas disse-o com as acções. Privando-me de
ir aos bailes, de frequentar o theatro, de receber as minhas amigas de
collegio, e as relações de minha familia, o que diria a sociedade?

«Lá o que ella quizer, menina...

--O que ella quizer, não, snr. Dias! Não consinto que se façam de mim
conjecturas desairosas. Requeiro que o senhor me explique o motivo
d'esta separação injusta a que me fórça.

«Não te zangues, Ludovina... Foi tua mãe que te metteu na cabeça essas
palavras? Bem diz lá o ditado: «Livra-te da sogra, que eu te livrarei do
diabo.»

--Respeite minha mãe, senhor! Eu não falo pela bôca de minha mãe; o meu
silencio até hoje não era estupidez nem insensibilidade: era amor
proprio, e outro sentimento mais nobre que o senhor não entende. Vamos
ao essencial, snr. Dias. Teve alguma razão para me privar de viver como
vivem todas as mulheres casadas da boa sociedade?

«Não, já disse que não. A cousa é outra...

--Qual é essa outra cousa?

«As boas pagam pelas más, e não ha mulher honrada para certa gente que
vae aos bailes e aos theatros.

--Pois eu não estou disposta a sacrificar-me ás mulheres indignas. A
minha consciencia é o meu juiz. Não me importa o que se diz de mim.

«Essa é de cabo de esquadra! Pois não se te importa o que se diz de ti?

--Que se diz, snr. Dias?

«Não sei; mas... elles lá sabem o que dizem.

--Elles quem? accuse-me sem piedade; repita as affrontas que me fazem;
tenha a coragem de calumniar-me, se lhe é preciso inventar os meus crimes.

«Tu estás fóra de ti, Ludovina! Isso não é assim! Ahi anda
espirito-santo de orelha... O teu genio não é esse...

--O meu genio é a minha dignidade, n'este caso. Responda-me: Offendi a
sua honra?

«Não, já disse duas vezes que não.

--Faltei aos meus deveres de esposa?

«E ella a dar-lhe!

--Pois bem: quero viver como vivi nos primeiros seis mezes da nossa
união. Quero ir ao theatro, aos bailes, ás visitas, como ia em solteira.
Quero receber as minhas relações, como as recebi antes de ter metade da
sua riqueza. Quero uma inteira liberdade como premio do meu procedimento
para comsigo. Quero...

«Então isto, pelos modos, é «nós, el-rei, e justiça de Fafe!» Aqui não
ha rei nem roque n'esta casa? é quero, e mais nada?

--Quero, sim, porque é de justiça o que já não tenho a baixeza de pedir;
mas quando não, snr. Dias, meus paes teem uma casa estabelecida, e
sobejos meios para eu me declarar independente d'essas riquezas com que
o senhor me dotou, e que eu, de todo o meu coração, rejeito, porque
não acceito o preço porque fui vendida.

Ludovina, já de pé, com o rosto inflammado, e os bellos olhos
coruscantes de cólera, sahiu de um impeto, deixando o commendador
attonito na mais palerma immobilidade. D. Angelica ouvira tudo;

--Excedeste-te, Ludovina--disse ella--mas fizeste-me orgulhosa de ser
tua mãe. Acceito, de hora em diante, a responsabilidade das tuas
palavras, seja ella qual fôr.

João José Dias nem palavra n'aquelle dia e no seguinte. Ao terceiro
havia theatro lyrico. D. Ludovina mandou buscar camarote. Ás sete horas
e meia mandou pôr os cavallos á sege, e disse a seu marido se a
acompanhava ao theatro. O commendador fez-se verde-garrafa, desenrugou
as palpebras quanto poude, e pasmou os olhos suinos na attitude
imperiosa de Ludovina, que apertava o botão da luva, e enroscava no
collo as marthas.

--Vem, ou não?--repetiu ella.

«Espera, que eu visto-me--disse o commendador, tomado d'uma especie de
susto irreflectido, que em muitos maridos é o corollario de demorados
raciocinios.

Fez impressão o apparecimento de Ludovina. Acharam-n'a mais donosa os
amadores do pallido. O viço da florescencia tinha murchado ao lento
deseccar da melancolia. Ficára a pelle assetinada, com as alvuras do
desmaio, realçando o vivido fulgor dos olhos negros, assombrados da
côr-violeta, que tanto encarece o rosto dolorido. Ponderaram os
analystas que os tecidos cellulares do commendador estavam cada vez
mais chorumentos e luzidios. Segredaram-se, ácerca das medranças d'elle,
pilherias que incitam o riso, e ferem o melindre de ouvidos pudibundos.

Estes colloquios, que a estampa rejeita, ciciavam, por entre frouxos de
riso, nos camarotes, onde estava a propria virtude, com cabellos á
Stuart, e despeitorada á Aspasia.

Ludovina falava com meiguice ao marido, explicando-lhe o entrecho do
_Trovador_, e aguçando-lhe a compuncção nas lamentações finaes da Ponti,
que o commendador denominava uma «comedianta de mão cheia.» O ar de
felicidade que se mutuavam, era o espanto dos observadores, e o castigo
da maledicencia desapontada.

Seguiu-se um baile. A carta de convite não ficou, d'esta vez, no
escriptorio do commendador. Ludovina primou mais que nunca em enfeites.
A inflammação deu treguas ás entranhas de João José Dias. Era para ver
como elle se tornava, sadio e durazio, aos prazeres do mundo.

Mas o interior de João José? Era um incendio para que a philosophia
humana não inventou ainda bomba efficaz! Era o inferno do mouro de
Veneza chorriscando aquelle humano torresmo!

Que via elle para se moer assim? Nada. Ludovina nem, sequer, dançava já
danças de roda, de contacto, de aperto, e raras contradanças acceitava.
Os cavalheiros, que se avizinhavam d'ella, com liberdade, eram os amigos
de seu pae, ou de seu marido. Os outros, repellidos pela sisudez e
gravidade com que os ella recebia, denominavam-na uma virtuosa
grosseira, e apostavam que andava alli influencia de capellão incognito.

Que sandeus ciumes, eram, pois, os do commendador, que a fortuna poupava
á sorte de pessoas tão conspicuas, e bem ageitadas de corpo e alma?

Batei n'esta sáphara, entendedores do coração humano, esmerilhadores do
intimo dos _predestinados_ e _minothauros_ e _Sganarellos_ ao alcance da
sciencia humana.

Cançar-vos-heis sem achar a razão da cousa. O axioma foi proferido ha
quatro annos, e já tem tres edições com esta:



_Ha maridos que não desconfiam das mulheres; mas não vão aos bailes,
para que os outros não desconfiem._

_O commendador_ JOÃO JOSÉ DIAS _(passim)_.




VIII


Raivando contra si proprio, o barão de Celorico...

_O barão de Celorico!_ Personagem novo no conto?

Novo! pois eu não disse já que João José Dias dera cinco mil cruzados ás
urgencias do Estado, e seiscentos mil réis ao official maior da
secretaria onde se fabricam os barões, e cincoenta moedas ao agente
secreto das urgencias do Estado, e das urgencias dos estadistas?

Se não lêram isto já, perderam-se na typographia quatro tiras de
composição a mais rendilhada a buril classico, a mais puritana de
linguagem, com recheio de idéas substanciosas, e gordura de pensamentos!

Finalisava o capitulo VII por um baile de regosijo, que o novo titular
estimulado pelo sogro, resolvera dar aos seus collegas, e mais amigos,
que o felicitaram da mercê.

Esse baile correra amargurado para o barão de Celorico.

Ao caír da noite, recebera elle uma carta anonyma, da qual não pude
haver copia, e, podendo inventar uma, não o faço, que m'o veda o
proposito de fidelidade.

É certo, porém, que o contheudo d'essa carta entendia com Ludovina,
meiga creatura, organisação melindrosa, que tanto a pesar meu hei de
nomear baroneza de Celorico.

Não se póde aferir o grau de calumnia d'essa carta pelas carantonhas do
barão, que a lia. Em carantonha perenne estava elle sempre, lastimoso
Amphitryão, desde que a sombra de um Jupiter de casaca lhe assombrava os
encantos da innocente Alcmena. Qual seria o espirito rasteiro que se
quizesse vasar nas fórmas de João José para enganar-lhe a esposa? Esta
pergunta faço-a aos que leram Plauto, Molière, e Camões. Nem ella, com
tantos mimos e promessas de delicias, vos faria a vós, leitores
sedentos, acceitar a transfiguração hedionda.

O barão tragou a affronta em quanto o bojo o comportava; depois,
rebentou, chamando a sogra ao mais escuro do palacete, e dando-lhe a ler
a torpe carta.

D. Angelica disse conhecer a mal disfarçada letra de Ricardo de Sá;
convenceu-o de que o despeito de uma alma vil devia vir áquella infamia;
appellou da calumnia para a consciencia do barão; obrigou-o a confessar
que nunca sua mulher saíra de casa sem elle; fez, finalmente, resolver o
pestilencial tumor que ameaçava, n'aquella noite, uma supuração
escandalosa.

Raivando contra si proprio, (cá estamos na cabeça do capitulo) o barão
de Celorico, não podia transigir com as razões da sogra. Terminado o
baile, duas ou tres vezes amaxucára a carta na mão convulsa, para a
lançar ao toucador de Ludovina, que desenfeitava as tranças e o pescoço.

--Que tens, meu amiguinho?--disse ella, que o vira, no espelho, fazendo
esgares com os beiços--parece-me que está agitado!

«Estou bom, muito obrigado, estou como se quer.

--Que modo é esse de responder?--tornou ella, voltando-se de subito para
o barão, que passeava, ou antes se rolava de parede a parede com
achavascada impetuosidade.

«Está bom; deixe-me, que eu não estou bom, e qualquer dia dou um estoiro
como uma castanha.

--O senhor está disparatando! explique-se.

«Foi o diabo o nosso casamento, sr.ª D. Ludovina.

--Nada de exclamações; clareza e franqueza, meu amigo! Que é isso?

«É os meus peccados; é o que eu lhe tenho dito duzentas vezes, e a
senhora não quer crer que a sociedade do Porto está corrompida, e quem
aqui estiver não póde dar boa conta de si.

--Vamos aos factos; applique... diga a que vem isso?

«Ahi tem o que é.

E arremeçou-lhe ao regaço a carta amarfanhada, que parecia uma pela.

A baroneza abriu-a serenamente, amaciou-lhe os vincos, e leu, sem signal
de inquietar-se.

«Diz-se aqui que eu tenho um amante--disse ella sorrindo--que se
corresponde comigo. O senhor crê isto? Responda, senhor; crê que eu
tenho um amante?

--Não, senhora; mas, pelos modos, dizem-no, e a minha honra soffre com
isso.

«Como soffreria com a verdade do aviso?

--Que é? não entendi.

«Se as suas suspeitas condissessem com este aviso, não soffreria mais?

--Matava-a, sr.ª D. Ludovina, dou-lhe a minha palavra de honrado, que a
matava, e tiraria os figados pela bôca ao proprio diabo do inferno, e
tinha alma de metter uma faca no peito para morrer ao pé de si!

Esta rajada sacudiu todas as fibras bambas do barão. Não teve remedio se
não sentar-se, a resumar camarinhas de suor, impando, e arfando como
folle de forja.

Ludovina, mais assustada que compadecida, tomou-lhe a mão, e com a outra
enxugou-lhe a face.

«Soffre porque me não ama, porque me não crê...--disse ella.

--Não faças caso d'isto, não é nada... não é nada--regougou elle.

«Seja superior aos infames que nos invejam, meu amigo. Não lhes dê o
prazer da vingança. A pessoa que lhe escreve, é um miseravel inferior ao
meu desprezo.

--Já sei tudo... não falemos n'isso mais. Deite-se, que eu preciso de
tomar ar.

«Onde vae?

--Vou ao jardim.

«Eu vou comsigo... espere um bocadinho.

--Não venhas cá, deita-te, que está fria a madrugada.

Foi.

Eram tres horas e meia da manhã. As trevas descondensavam-se. A nebrina
do mar serpenteava por entre as ribas marginaes do Douro. O clarão da
lua ia-se descórando ao arraiar do crepusculo. Era a hora menos poetica
das vinte e quatro da rotação d'este planeta, onde ás tres horas e meia
da manhã, dorme toda a gente que tem juizo, e sabe um pouco de hygiene.

O barão de Celorico não dava fé das bellezas matutinas que o rodeavam.
Atravessou, sorvendo haustos de ar fresco, o passeio central do seu
jardim, até parar no muro, que o extremava de outra rua. Esta rua é
justamente aquella por onde vimos passar Francisco Nunes, raivando
imprecações garrafaes contra o charuto incombustivel. N'esse muro havia
uma gradaria de ferro, e portadas interiores. O barão abriu
machinalmente a janella, e viu approximar-se d'ella um vulto embuçado,
que lhe disse:

--Cuidei que tinhas adormecido! que demora foi essa?

--O que é?--exclamou o barão atordoado.

O vulto coseu-se com a parede, e, a passo rapido, desappareceu na meia
escuridão.

Longo tempo, agarrado ás grades, o barão de Celorico, parecia ter
perdido a memoria, a sensibilidade, o senso intimo. A patrulha, que
recolhia ao quartel, vendo aquelle immovel espectaculo, através das
grades, imaginou primeiro seria estatua do jardim; reparando
attentivamente, ouviu o sussurro da respiração cavernosa, e decidiu que
estava alli um homem.

--Olá!--disse um soldado.

«Que é?--respondeu o barão, espertando da lethargia.

--É d'ahi d'essa casa?

«Sou o dono d'ella.

--Então perdoará. Fizemos esta pergunta, porque ha de haver cinco dias
que vimos saír ás quatro horas da manhã um encapotado d'aquella porta
que alli está abaixo, chamamo'-lo, elle deu á canella, e sumiu-se-nos lá
em baixo na travessa.

«D'esta porta que está na parede d'este jardim?--exclamou o barão.

--É como diz.

«A que horas?

--A estas horas, pouco mais ou menos.

«Um homem de capote?

--Tal e qual.

«E não viram mais ninguem?

--Parece-me que vi ahi n'essa grade uma figura de mulher, com lenço
branco na cabeça.

«Obrigado, camaradas, muito obrigado, e boas noites.

O barão arremessou as portadas, e, levando as mãos á cabeça, atirou-se
com brutal frenesi a um banco de pedra. Ao tempo que cáe em cheio, vê ao
pé de si um objecto escuro. Apalpa, repara, examina: era o projectil
fatal do charuto que Francisco Ennes, na vespera, arrojára para dentro.

O barão contempla o charuto na mão convulsa, e desentranha um rugido
fremente, apertando-a, rábido e sanhudo.

--Eis a prova da minha deshonra!--exclama, e ergue-se vacillante e
cambaio. Entra em casa, e vê correr um vulto de mulher através de um
passadiço. Corre impetuoso, e já o não alcança. Tresvariando, grita que
ha ladroes em casa. Affluem os creados, buscam e rebuscam todos os
cantos inutilmente. Ludovina e sua mãe acodem espavoridas, e encontram o
barão, debatendo-se nos braços de dois creados, com um ataque de nervos.
Ministram-lhe soccorros, conduzem-n'o á cama, querem vêr o que elle
fecha na mão direita, e podem apenas lobrigar a ponta queimada de um
charuto. Ludovina inquire com meiguice e pena o que é aquillo, e o
desgraçado, maior e mais eloquente na sua angustia, responde:

«É a nossa morte!

Instam na explicação das respostas, e elle troveja:

--Não quero aqui ninguem!

Pasmam; e retiram-se, atemorisados.

«Estará elle doudo, meu pae?--dizia a baroneza, tremula de medo,
apoiando-se nos braços do espavorido Melchior.

--Parece que sim, minha filha. Chamem-se medicos já. Este homem deve ter
demasiado sangue. É ameaça de doudice, não póde ser outra cousa.
«Que sorte a minha!--disse Ludovina lagrimosa. E foi para o pé do leito
de seu marido.

      *      *      *      *      *

--Se se verificar a demencia--dizia Melchior a D. Angelica, de modo que
só todos nós pudemos ouvir--a administração da casa passa immediatamente
para Ludovina, e Rilhafolles com elle. Este homem saíu muito outro do
que eu imaginava. Ainda me não disse que deixasse o logar da alfandega,
nem me offereceu um emprestimo com que eu possa tentar demanda contra os
possuidores da minha casa. Tenho remorsos de ter dado a este alarve uma
creatura tão perfeita como a nossa Ludovina!

D. Angelica não respondeu.

«Ainda te doe a cabeça, Angelica?

--Bastante.

«Já estavas a dormir, quando o barão gritou?

--Dormitava.

«Mas eu fui ao teu quarto, e já te não encontrei lá!

--Tinha corrido sobresaltada.

«Então pelo que eu vejo tinhas-te deitado vestida...

--É verdade, nem forças tive para desapertar os colchetes.

«Porque me não chamaste, filha?

--Não quiz incommodar-te.

«Ora essa!...

--Até logo, filho, vou ver se descanço um instante

«Vae, vae, menina.

..........................................................................
..........................................................................
..........................................................................

Ha reticencias que não dizem nada.

A litteratura merceeira, para justificar o adjectivo, inventou as
carreiras de reticencias, as quaes correspondem aos pesos roubados da
mercearia.

Eu abri loja, e vou com os outros.

Não me entrem, pois, a desconfiar que os pontinhos juntos fazem borrão
n'este painel de bons costumes.

A sr.ª D. Angelica é excellente mãe, no meu conceito; e, no conceito do
sr. Melchior Pimenta, é excellente esposa.

Póde morrer, que o necrologio já não coxeia.




IX


Não averiguei miudamente o que disse Ludovina a seu marido. Um dos dois
medicos chamados ás sete horas da manhã para examinarem a supposta
demencia, a pedido do Melchior Pimenta, disse-me que encontrára o barão
febricitante, mas sem o menor suspeito symptoma de loucura. Accrescentou
que o enfermo lhes dissera, que bebessem elles a tizana que receitaram;
e lhes mandára pagar a visita, com recommendação de o darem por curado.

Ás nove horas já o barão tinha sahido, sem dizer a Ludovina o seu
destino, nem acceitar o almoço.

Saíra pela porta principal, e entrára na rua para onde olhava a janella
do jardim. Em frente d'essa janella, na margem esquerda da rua, estava
com escriptos uma casa terrea. O barão perguntou, na vizinhança, quem
era o proprietario da casinha, encontrou-o perto, alugou, pagou a casa,
e recebeu a chave.

D'alli foi ao largo de S. Bento. Entrou n'uma loja de ferragem, e
comprou uma clavina trochada, e um par de pistolas de coldres; e,
n'outra parte, as munições de fogo.

Tornou a casa ao meio dia, pediu o almoço, e comeu á tripa fôrra. A
baroneza, e D. Angelica assistiram ao almoço, e não conseguiram
arrancar-lhe tres palavras. Quem o servia era o negro, que o acompanhára
do Rio, e o adorava com o fervor nativo da sua raça. O barão chamou-o no
fim do almoço, e disse em segredo:

«Esta chave é d'aquella casa baixa que tem o numero doze, defronte da
janella do jardim. Vae á loja de ferragem no largo de S. Bento, com este
bilhete. Hão-de entregar-te umas armas, e um embrulho. Pega em tudo
isso, de modo que ninguem cá de casa te veja, fecha-o no tal casebre, e
entrega-me a chave depois.

O barão foi passear no jardim, e recolheu o seu espirito em meditabundas
reflexões.

Poucos dias antes, tinha elle ouvido uma historia que toda a gente sabe.
Era aquelle conto de uma mulher adultera, que o marido inexoravel matára
sem pau nem pedra, pondo-lhe diante dos olhos uma moeda de prata ao
almoço, ao jantar, á cêa, a toda a hora, em todas as situações, até que
a matou. Esta historia entalhára-se na memoria do barão com indeleveis
traços. Contou-a a sua sogra, que a classificou de indecente para se
dizer a senhoras. Contou-a a sua mulher, que não desculpou a victima,
mas reprovou a fereza do verdugo. João José Dias fez a apologia do
verdugo, e disse que «a honra de um homem só assim se vingava.» Ludovina
fitou-o com espanto, e acreditou que o ciume seria capaz de
desenvolver os instinctos ferozes de seu marido.

Era aquella historia o ponto convergente das meditações que o
reconcentraram, por espaço de tres horas. D'esta longa e dolorosa
encubação do pensamento deve-se esperar um parto, um monstro, uma
façanha, mais ou menos plagiaria, da medonha expiação da adultera.

Chamaram-n'o para jantar: disse que jantaria em mesa á parte com sua
mulher. Desceu ao jardim a baroneza, e perguntou-lhe a causa de tal
exquisitice.

--Não dou satisfações--respondeu--Quero jantar, e almoçar sósinho comsigo.

--Isso é o mesmo que...

--Não me replique! tenho dito.

Fazia medo a cara do homem. Esverdinharam-se os refegos da papeira; as
ventas fumegavam soluçando; testa e palpebras, tinham o escarlate da
penca do perú assanhado.

Ludovina estava atterrada, e julgou-se em risco, ali, sósinha. Recuára
para se evadir com dignidade, honrando a retirada, quando o barão lhe
disse:

--Olhe, senhora!

A baroneza voltou-se, e viu o braço do barão erguido em attitude
prophetica; e lá em cima no cucuruto da mão cebácea... o CHARUTO!...

--Que é isso?!--perguntou ella com mais curiosidade que espanto.

--Não sabe o que isto é? chegue-se cá!

Ludovina, indo receosa, disse:

--É um charuto... pois não é?!

--É um charuto! é um charuto! mulher traidora!--ululou o bordalengo com
a grenha irriçada.

Ludovina recuou tres passos, tolhida de medo. O barão crescia sobre
ella, com o braço no ar, arvorando o charuto. A pobre menina temeu as
furias de um doudo, e chamou com afflictivo grito a mãe.

Acudiu D. Angelica, já quando o barão, mettendo as mãos nas portinholas
da japona, á laia de idolo chinez, voltava as costas a sua mulher.

--Isto que é?!--exclamou D. Angelica.

--Está doudo rematado, minha mãe!--disse, a meia voz, a baroneza.

--Vae-se chamar teu pae, que chegou agora. Nós não podemos viver com um
demente...

--Janta-se, ou não se janta?--disse o barão, caminhando para ellas com
socegado semblante.

--Que desordem foi esta, sr. barão?

--Desordem! ora essa é fresca! Aqui, que eu saiba, não houve desordem
nenhuma... Foi sua filha que viu uma cousa que a fez gritar... A culpa é
d'ella.

--Que viste, Ludovina?

--Eu vi um charuto na mão d'este senhor; mas gritei porque elle me deu
berros medonhos, e correu para mim com ares ameaçadores.

--Deixe-a falar, sr.ª D. Angelica--replicou o barão, sorrindo de um modo
que confirmava a demencia--A cousa é outra... Vamos jantar, e, se minha
mulher tem medo de mim, jantaremos todos juntos á mesma mesa.

Melchior Pimenta, informado da desordem, foi ao encontro do grupo que
entrava em casa. D. Angelica, com um só dedo, fez-lhe dois gestos: um ao
longo do nariz, para que se calasse, outro no centro da testa, para que
as protegesse de um doudo furioso.

Sentaram-se á mesa, espionando os menores movimentos do barão. Viram-no
tirar a mão da algibeira, extender o braço por sobre a mesa, e deixar
caír, ao pé do prato da baroneza o charuto.

Ludovina lançou-o ao chão com a faca, dizendo:

--Olhem que porcaria!--E voltando-se para o creado que servia a sôpa:

--Atire isto lá fóra!

--Não atires!--bradou o barão.

--Porque não ha de atirar?!--Disse Melchior Pimenta.

--Porque não quero! e porque sou dono d'esta casa! e porque quero
despicar a minha honra!... e porque vae tudo com mil diabos, ouviu?

Os talheres, os calices, as bandejas, e os pratos, resaltaram duas
pollegadas acima da superficie: tamanho fôra o murro que o barão baixára
sobre a mesa.

Ergueram-se todos. D. Ludovina fugiu por uma porta; D. Angelica por
outra; Melchior Pimenta, enfiado, amarello, sem gota de sangue,
antevendo um violento embate na sua cara com a terrina, seguiu a mulher,
colorindo a retirada com a prudencia.

O barão embolsou o charuto, chamou o preto, e disse-lhe:

--Senta-te ahi, Simão; janta ao pé de mim, que és o unico amigo que eu
tenho.

Ha, n'este lance, motivo para nos condoermos.

O barão não come, apesar do esforço. O bocado entala-se-lhe na garganta,
comprimida pelos soluços. Depõe o garfo, e descáe o rosto, coberto de
lagrimas, sobre as mãos. O preto, que não ousára sentar-se, vendo chorar
o amo, cujo pão comera em liberdade, no espaço de vinte annos, chora
tambem, e pergunta a medo a causa d'aquella afflicção. Responde-lhe em
gemidos o bemfeitor, e ergue-se extenuado, e vacillante, como se os
sentidos o desamparassem. O preto quer conduzi-lo ao quarto; mas o
barão, um momento indeciso, pede o chapéo e sae.

As angustias d'este homem condemnam Ludovina?

Não. Ludovina é innocente como os anjos.

A peçonha mortal, que espedaça o coração d'este homem, tem-na elle na
algibeira: é o charuto de Francisco Nunes.




X


É meia noite e um quarto no relogio da Lapa.

A casta lua dá a sua luz poetica a muitas impudicicias, e tolera o
escandalo resignada. Casta lhe chamam os poetas, e é bem posto o
epitheto. Só ella seria capaz de manter-se pura com tantos exemplos de
corrupção. De mim creio que a tem salvado a distancia que a separa dos
bardos que a namoram; e, se não é a distancia, é a impertinencia das
cartas rimadas que lhe mandam. Muitas mulheres, menos castas que a lua,
teem sido salvas pelo mesmo theor. Os poetas, que amam em verso, são uns
puros desinfectantes da putrida impureza. Se todos fizessemos versos, e
nos amassemos em oitava rima, eu lhes asseguro que este globo era um
viveiro de anjos. A theoria de Hobbes seria uma calumnia, e a de Maltus
um absurdo. Não andariamos travados em permanente lucta, nem a
exuberancia da propagação assustaria os economistas. Havia só o risco de
nos matar a fome; mas cada cysne teria um canto derradeiro com que
esforçar a guerra á prosa que inventou os cereaes, o boi cozido, as
acções do banco e a troca de um romance por quinhentos réis.

Isto occorreu naturalmente da castidade da lua.

Era, pois, meia noite e um quarto no relogio da Lapa, e fazia luar como
de dia.

Ás dez horas e meia, tinha entrado para a casa numero 12, da rua *** um
vulto sinistramente rebuçado: era o barão de Celorico de Basto. A casa
tinha uma janella tosca de madeira, que se abriu cousa de meio palmo,
depois que o encapotado entrou. De vez em quando, um raio da luz, caíndo
sobre a fresta das duas portadas, resvalava no nariz do barão, dando-lhe
o colorido de uma cidra avelada.

Soára o quarto depois da meia noite, quando a janella interior da grade
do jardim se abriu cautelosamente.

Um objecto branco sobresaía na sombra: devia ser o lenço de uma mulher.

Cinco minutos, depois, n'uma extrema da rua appareceu um vulto
encapotado, que fumava, caminhando cosido com o muro do jardim. A figura
da janella desappareceu, e em seguida ouviu-se o ranger subtil da
lingueta de uma chave. Era a porta do jardim que se abria ao
avizinhar-se o vulto.

A distancia de tres passos da porta, o homem que fumava ouviu o ruido de
uma janella que se abria, e parou, voltando-se para a janella. O que
elle viu foi o lampejo da detonação de um tiro, e levou a mão ao hombro
esquerdo. Seguiu-se um pulo incrivel do barão fóra da janella, a fuga
precipitada do vulto, e um segundo tiro, que redobrou a força
motriz do fugitivo.

Apitára uma patrulha ao cabo da rua, duas, tres, vinte patrulhas
apitaram. A cem passos de distancia do local dos tiros, encontraram um
homem extendido na rua, e disseram em voz alta, que o barão
ouvira:--parece que está morto.

O barão, sem apressar o passo, entrou na porta do muro, e deu volta á
chave. Olhou ao longo do jardim, e viu, por entre as sombras dos
arbustos, contiguos á casa, perpassar um vulto, e sumir-se.

Abriu-se outra vez a janella da grade, ao tempo que as janellas das
casinhas fronteiras se abriam. Alguns soldados perguntavam onde se deram
os tiros. Respondiam unanimemente que foram dados alli, e mostrava-se
uma bucha ainda fumegando, no meio da rua.

--Quem está ahi n'essa janella?--bradou um soldado ao barão, que
estivera calado.

--Sou eu, sou o dono d'esta casa.

--E quem é o senhor?

--É o senhor barão--responderam os vizinhos.--Não, d'alli de certo não foi.

--Os tiros?--perguntou o barão.

--Sim, senhor, dois tiros que se deram aqui agora.

--Eu tambem, os ouvi, e por isso cá vim. Mataram alguem, ou foi patuscada?

--Não foi má a patuscada! Está alli adiante um sujeito extendido nas
pedras, e, se não está morto, pouco lhe falta.

--Quem é? conhecem?

--Estão lá dois camaradas que o conhecem. Dizem que é um doutor de uma
casa rica, chamado... lembras-te, 38?

--Acho que elle disse... Almeida.

--É isso, Almeida. O sr. barão conhece-o?

--Não me lembro d'esse nome. Elle ainda lá está? Eu vou lá ver se o
conheço...

O barão seguiu a patrulha, até parar n'um grupo de soldados e paizanos,
que rodeavam uma cadeira, onde estava assentado o ferido. Era coragem de
cynico, ou desatino de demente? Mais que tudo isso: era o ciume!

--Eu conheço este sujeito--disse o barão com admiravel placidez.--E elle
tambem me ha de conhecer, se estiver vivo. Olé, sr. doutor! Está aqui o
barão de Celorico, conhece-me?

O ferido abriu a custo os olhos, e fez um aceno affirmativo,

--Eu offerecia-lhe a minha casa, mas a d'elle é perto d'aqui, acho eu.

--Nós sabemos--disseram os soldados.

--Pobre homem!--proseguiu o barão em tom compadecido.--Ainda a noite
passada elle esteve n'um baile que eu dei...

Agglomeravam-se na rua os curiosos, quando o barão entrou em casa. Não
ouviu o mais leve rumor. Entrou no quarto de sua mulher, e viu-a dormindo.

Parou ao pé do leito, e vascolejou nas mandibulas, alvares uma
gargalhada estrondosa. A baroneza acordou, sentou-se no leito
estremunhada sem saber o que ouvira, nem o que via.

O barão tirou da algibeira o charuto, chegou-lh'o ao pé dos olhos, e
bradou:

--O tal patife não fuma outro.

--Que diz?--exclamou Ludovina.

--Faz-te de novas, mulher perdida! resa-lhe por alma, que a minha honra
está vingada. Agora que digam o que quizerem.

E saíu do quarto, deixando apavorada a pobre senhora, que o julgou n'um
terceiro ataque de loucura.

Ludovina vestiu-se apressadamente, e correu ao quarto da mãe.

Encontrou-a vestida, prostrada sobre o tapete do guarda cama, com a face
caída sobre os degraus do leito. Ajoelhou ao pé d'ella, chamou-a,
ergueu-a, agitou-a com a força da afflicção, e caíu com ella sobre a cama.

D. Angelica abriu os olhos pavidos, e vendo a filha, escondeu a face nas
mãos, exclamando:

--Jesus, meu Deus!

--Que teve, mãesinha, isto que foi

--Nada, infeliz; foi um accidente...

--Por causa dos meus desgostos? ouviu o que aquelle homem me disse?

--Não, minha pobre martyr... imagino o que te diria... Oh... deixa-me
ver se consigo chorar, senão estalo... mas não chores tu, filha, não
quero que nos ouçam... É preciso que eu te salve, antes que a morte me
leve com o encargo da tua reputação infamada...

--Eu não a entendo, minha mãe!

--Não pódes entender-me, Ludovina, não pódes... ai! deixa-me respirar,
que eu não vivo uma hora assim...

A baroneza amparou a mãe até á janella, que abriu. D. Angelica rasgava
com as mãos os espartilhos compressores do collete, e fincava entre os
cabellos os dedos com vertiginoso desespero. N'este frenesi, susteve-se,
comprimindo a respiração, para escutar as vozes que vinham da rua
contigua ao muro do jardim.

Uma dizia:

--Ia morto.

Outra:

--A bala entrou-lhe no peito.

Outra:

--Pobre familia, que bocado tão amargo!

--Aquillo que é?--perguntou D. Angelica espavorida.

--Eu não sei, mãe!

--Esse malvado que te disse?

--Chamou-me mulher perdida; mostrou-me o charuto, dizendo que o patife
não fumava outro; e que lhe resasse por alma...

D. Angelica expediu um grito, um ai vibrante, de uns que o seio
arremessa de si, como se n'esse esforço expellisse um espinho arrancado
ao coração.

Ao grito de Angelica succedeu o terror confuso de Ludovina.

N'este intervallo de silencio a lastimavel mãe concebeu um designio
atroz. Deu um salto para precipitar-se da janella, e achou-se travada
nos braços da filha, que pedia soccorro, a altos brados, repuxando-a
para o interior do quarto, com a força miraculosa da angustia.

Ouviram-se passos no corredor. Ludovina exclamou:

--Entre quem é.

Abriu-se a porta, e surgiu o barão.

D. Angelica lançou-lhe um olhar torvo, e fulminante; fugiu, de um
repellão, aos braços da filha; correu para elle com a sanha de uma
possessa, e atirou-o fóra do quarto com o choque dos punhos furiosos,
exclamando:

«Assassino! assassino!

Ninguem me soube dizer a qual genero do sublime truanesco pertencia,
n'este conflicto, o barão de Celorico. Eu tambem me não cancei em
averiguações, porque o resultado d'ellas seria sujar com salmouras
despicientes um quadro de angustias, que não é novo na vida, mas
afouto-me a dize'-lo que é novo no romance. Melchior Pimenta não
apparecia, sendo o seu quarto paredes meias com o de sua mulher.
Deliciava-se nas profundezas de um somno do qual só podia emergir,
quando a ultima molecula de tres grãos de morphina se perdesse através
dos philtros nervosos. O dormir do somnolento empregado da alfandega
explica-se com as vigilias aturadas de D. Angelica. Vá sem reticencias.

Para nós é mais comprehensivel o espanto da baroneza do que estava sendo
para ella o desespero de sua mãe. Se a pobre senhora suspeitasse que a
demencia do marido era contagiosa; tinha desculpa. Tamanha
afflição, descompostura tal de contorsões, de gemidos, de
arremessos para a janella, chamando a morte, não podia ser procedente do
amor maternal exaltado até á ira da leôa.

Ludovina ajuizava assim; mas não atinava com a razão possivel de
effeitos tão extraordinarios no caracter inalteravel, e quasi duro de
sua mãe.

Instava, supplicando-lhe o desafogo da sua agonia. D. Angelica
apertava-a contra o seio com arrebatada e insolita ternura. Promettia
dizer-lhe tudo, quando pudesse falar, na certeza de que a sua ultima
palavra fosse um adeus a este mundo, e uma confissão de que dependia o
credito de sua filha.

Foi um raio de luz para Ludovina estas palavras, cortadas por gemidos;
esse raio de luz, porém, queimou-lhe o coração. Se Angelica reparasse na
pallidez da filha, demasiado castigo seria da sua falta essa mudança. A
parte da sua dôr, que até alli fôra remorso, seria depois vergonha, e
vergonha de sua filha, tortura mil vezes mais pungente que a mordedura
do remorso para a que soube ser mãe, e affrontou os deveres de esposa.

A baroneza mudou de semblante e de carinho, sentiu-se gelada e inerte ao
pé da mãe, logo que meia luz do enygma lhe aclarou o entendimento.

«A mãe precisa descançar--disse ella com affectado gesto de
carinho--Deite-se, que eu ajudo-a a despir-se, e ficarei ao pé da sua cama.

--Não, filha; eu não tenho descanço n'este mundo, nem no outro. Se ainda
tenho algum direito á tua obediencia, deixa-me só; preciso de
chorar lagrimas que nunca Deus permitta o teu coração as chore. Não
pódes respeitar esta agonia, porque não a comprehendes, innocente
martyr. Se soubesses... poderias abominar-me agora, para te compadeceres
depois.

«Sei, mãe.

--Que sabes tu, Ludovina?! exclamou Angelica, abraçando-a convulsivamente.

«O meu silencio responde-lhe, mãe... Não soffra pela minha deshonra.
Deus sabe tudo; não me importa o mundo; a Providencia fará vêr a verdade
a meu marido, sem que o nome de minha mãe seja sacrificado. Cale-se, por
quem é. Não diga nada ao barão, e poupe meu pae. Eu sinto-me com forças
para não vergar a um peso de infamação que me não cáe sobre a
consciencia. Se o meu amor a póde consolar, não diga o seu segredo a
ninguem; não diga porque eu não sei qual dos dois descreditos é mais
afflictivo para mim...

D. Angelica resvalou dos braços da filha, querendo ajoelhar-se-lhe aos pés.

Ludovina ajoelhou com ella, e n'este momento abriu-se a porta.

Era o barão de Celorico.

--Ouvi tudo--exclamou elle--Perdôa-me, Ludovina, pelas cinco chagas de
Christo. E foge d'essa mulher, que é a causa de eu ser um matador.

--Tem razão; vae, minha filha--disse D. Angelica, afastando-a de si.

--Sr. barão--disse Ludovina--eu não deixo uma mãe culpada para
seguir um assassino. Saia da minha presença, que o detesto. Apenas
romper a manhã, deixo esta casa, deixo-lh'a para que o senhor caiba
n'ella com o seu remorso. Matou um homem, sr. barão, um homem que não
conhecia; matou-o a sangue frio, e será capaz de praticar uma crueldade
menor matando-me a mim.

D. Angelica arrancou-se aos braços da filha com furioso impeto, e
postou-se terrivel diante do barão, exclamando com uma toada de voz
soturna e tremula:

--Com que direito assassinou um homem, scelerado, carniceiro?

O barão tremeu, recuou, e pendeu o queixo inferior relaxado pelo espasmo.

--Responda á amante do homem que matou; á mulher que acceita
voluntariamente a infamia da sua culpa, para ter o direito de pedir
contas ao assassino de Antonio d'Almeida. Querias, com essas mãos tintas
de sangue, tocar em minha filha, miseravel algoz, que és tão estupido
como sanguinario!

Ludovina, cingindo a cintura da mãe, arrastou-a para longe do barão, que
parecia, ao passo que ella falava, ir-se petrificando.

A vehemencia da ira decaíu subitamente em syncope. D. Angelica encostou
a face desfallecida ao seio da filha, que a levantou nos braços, e
deitou no leito.

E voltando-se para o miserando homem, cujo rosto confrangido accusava os
pungimentos do remorso, a baroneza, em tom de cólera mal reprimida, disse:

--O senhor não ha de ser mais feliz que as pessoas a quem deu a
morte, e a eterna vida de lagrimas. Pediu-me perdão? eu já lhe havia
perdoado as suspeitas, as desconfianças, os insultos, as vergonhas a que
hontem me expoz na presença dos seus creados. Tudo lhe perdoei, em
quanto o suppuz demente; hoje, que o considero um criminoso de morte, e
que não tenho quem me defenda das suas mãos póde matar-me, que o não
chamarei á presença de Deus para ser julgado.

--Ludovina--balbuciou o barão, com o rosto coberto de lagrimas--eu matei
esse homem cuidando que era elle o teu amante...

--Era a mim que devia matar-me, senhor.

--Não podia ainda que quizesse, porque a minha tenção era matar-me e
deixar-te viva, para que tu ao menos te lembrasses de mim com pena,
quando já me não visses n'este mundo. Esse homem ainda não morreu,
Ludovina; póde ser que se cure, e eu vou-me ajoelhar aos pés d'elle a
pedir-lhe perdão, e, se tu quizeres, pedirei tambem perdão a tua mãe.

--Não fale n'essa infeliz a ninguem, snr. Dias, a ninguem. Aqui a
deshonrada sou eu. Se o descobrirem como assassino de Antonio de
Almeida, diga, se quer que eu o não amaldiçôe, diga que esse homem era o
meu amante; mas não fale em minha pobre mãe...

«Que dizes tu, Ludovina? Pois tu queres que se diga que eu fui
deshonrado por ti?

--Deshonrado está o senhor, desde já, desde que matou, ou quiz matar por
uma suspeita um vulto desconhecido...

«Elle vinha entrando para o jardim, Ludovina, e tua mãe estava na
janella...

--Cale-se! isso é mentira! minha mãe estava deitada na sua cama...

«Não estava, Ludovina...

--Estava, snr. Dias; não me contradiga, que eu juro contra as suas
palavras em toda a parte.

«Então quem estava na janella, senão tua mãe?

--Era eu; já lhe disse que a deshonrada sou eu; esse homem que matou era
o meu amante; sabe-o todo o mundo; sabia-o o senhor quando o matou; sou
eu a causa de meu amante ser um cadaver, e meu marido um assassino. Sou,
portanto, uma infame mulher que deve saír debaixo d'estas telhas.
Ámanhã, ámanhã ha de fazer-se uma separação eterna entre nós. A sua
honra fica assim completamente desaffrontada. Todos dirão que meu marido
me expulsou com a ponta do pé de sua casa. Todos hão de admirar os brios
do snr. barão que matou o rival, e não desceu á cobardia de matar uma
mulher... Esta resolução é inalteravel; acabou-se tudo entre nós, menos
a vergonha, a infamia, o escandalo que vae fazer dos nossos nomes um
espectaculo para a irrisão de uns, e para a piedade de outros. Eis aqui
a sua obra; a mim, como sua mulher, compete-me acceitar metade da
responsabilidade...

D. Angelica sentou-se no leito, afastou, como em delirio, os cabellos
que lhe cobriam as faces, e pediu uma gota d'agua, com supplicante
instancia, proferindo os nomes das creadas da casa. Ludovina
ministrava-lhe a agua, que ella repelliu com ira. Permaneceu
estarrecida alguns segundos, com os joelhos a prumo entre as mãos;
depois, caíu de chofre sobre o travesseiro, e murmurou longo tempo
palavras inintelligiveis.

O barão tinha saído imperceptivel. D. Ludovina debruçou-se, debulhada em
lagrimas, sobre o leito.

Melchior Pimenta, no quarto immediato, espreguiçando-se fazia com os
abrimentos de boca uma toada em falsete, rispida como o uivar do mastim.

Abençoados quatro grãos de morphina que lhe povoastes o somno de
deleitosas visões!

Melchior Pimenta, eu, quando quero phantasiar um marido bemaventurado,
lembras-me tu.

Se vejo algum, desconcertado como as velleidades da metade que se
despega, para entrar como excrescencia no complemento de outras
existencias, que se reputam inteiras, dá-me vontade de lhes perguntar se
já experimentaram a morphina.

Eu tenho visto a suprema felicidade dos minotauros.

Havia dois que espiritavam a galhofa de Melchior Pimenta; um, que
repudiando, timbroso e austero, a esposa tentada pela cobra d'este
paraizo terreal, onde as cobras inçam como em matagal bravio, recebe uma
carta de dama d'alta estirpe, onde se lhe censura o burguez despique de
peccadilho tão corrente em gente fina. O marido acceitára a correcção e
a mulher incorrigivel. Melchior ria até caír.

Outro, amante da paz caseira e fricassés acirrantes, conhece no aspecto
carrancudo da mulher, e no aguado dos molhos, os desvios do amante:
inventa pretextos para aproxima'-los e ameiga os arrufos com um jantar
campestre.

Outro... Melchior conhecia outro, e eu conheço-o a elle, e mais dez
exemplares que Brantome não archivou,[4] todos aporfiando em
delicias sublunares.

Mas o ditosissimo, o que vive e morre sem sentir na consciencia o toque
despertador, o _momento_ da predestinação cumprida, esse é um só no meu
catalogo.

Melchior Pimenta, se quizeres um dia erigir estatuas aos deuses
tutelares da tua prosperidade, lembra-te de Ludwig que farejou no opio a
morphina; de Seguin que a descreveu; e de Sertuerner que aperfeiçoou o
processo da extracção.

Sem a morphina, não serias mais feliz que Octavio, que Cicero, que
Domiciano, e tantos grandes e sabios do paganismo que podem, sem
vergonha, apparecer diante de outros não menos sabios, e grandes
senhores da christandade.

Nasceste n'um folle, Melchior Pimenta!

    [4] Veja _Vies des dames galantes_, por le Seigneur _de
    Brantome--Discours premier_.




XI


Mulheres são os melhores juizes de mulheres.

Disseram philosophos e moralistas, uns, grandes santos como S. Paulo, e
outros, grandes atheus como Voltaire, que a mulher é um ser exuberante
de sensibilidade, e apoucado de raciocinio.

D'ahi vem o denegarem-lhes accesso ás sciencias abstractas, ás
politicas, aos parlamentos, ao magisterio, ás regiões intellectivas do
machinismo social, e mandarem-nas cuidar dos filhos, e fiar na roca.

Se o absurdo vinga, se, por alvitre grosseiro do mais forte, a mulher é
um ente inepto para exercitar a razão, com que direito as julgamos e
sentenciamos, segundo a razão, sendo as suas culpas demasias de sentimento?

A injustiça é flagrante e odiosa.

Privam-nas de razão para as excluirem das funcções que a requerem;
sentenceiam-nas pela razão, se o sentimento, seu dom essencial, as
desvia do piso demarcado por ella.

Isto é uma tyrannia, uma inquisição, uma crueza turca.

A mulher não pode ser julgada por nós. Somos os senhores feudaes da
razão. A nossa alçada respira a prepotencia do baraço e cutello. Estamos
em insurreição permanente contra o santissimo apostolado de Jesus, que
baixou seu divino braço por igual sobre o homem e mulher.

Não podemos superintender no fôro do coração, porque a nossa
jurisprudencia é toda de cabeça, e o nosso codigo em pleitos da alma é
estupido ou hypocrita.

Quem é o juiz da mulher? O homem que a despenha do abysmo, onde a lançou
o amor, ao abysmo do opprobrio.

É o homem, que lhe entalha o ferrete da ignominia na face onde imprimira
o beijo da perdição.

O altar onde se adora uma mulher é ao mesmo tempo a ara onde ella se dá
em holocausto. Peccadora por muito sentir e chorar, amar e crer, quando
nos abre céos e céos de alegria e gloria, abrimos-lhe nós o inferno dos
desenganos, e o supplicio extremo do descredito. O mundo não as exila,
mas affronta-as; o coração não as encrimina, mas agonisa na horrivel
soledade para onde a razão o desterra.

E somos nós os juizes, porque entramos n'uma herança usurpada pela força
primeiro, e legalisada depois pelo sophisma escripto.

A mulher foi escrava do braço, antes de o ser da superioridade moral.

Quando o homem chamou a sciencia a dar um testemunho falso da sua
primazia, a mulher, quebrantada pela escravidão do braço, não pôde
remir-se com as forças do espirito.

Ainda assim, o tyranno, receoso da emancipação, fez em redor da escrava
as trevas da ignorancia, para que a razão da mulher não pudesse conceber
da luz o germen que a rehabilitasse.

Pegou de formosa flor, cercou-a de estevas, cobriu-a de sombras por onde
o sol não podia coar uma restea reanimadora.

Esta machinação arteira sobreviveu a todas as borrascas sociaes. Os
fautores, e ainda os martyres da egualdade perante Deus e perante a lei,
nunca proferiram uma palavra, nem verteram gotta de sangue para o
resgate moral da mulher.

O Filho de Maria disse que a mulher era egual ao homem, e levou para o
céo o segredo da sua emancipação.

Ficamos nós cá, os açambarcadores do entendimento escrevendo livros, que
sacrilegamente denominamos de moral derivada do Evangelho, e n'elles
demarcamos a profunda raia que extrema RAZÃO de SENTIMENTO. A razão para
nós, o sentimento para ellas. Se, todavia, o sentimento claudica nos
preceitos da razão pautada e insoffrida, condemnamos a mulher pela culpa
de se deixar perder na escuridade, á mingua de uma lampada que lhe
negáramos.

..........................................................................

Não sei se rasgue estas cinco paginas do manuscripto. Se alguem me
assegura que entre vinte mil leitoras (orça por isto o numero das
senhoras que compram livros em Portugal) se me asseguram que entre as
vinte mil ha duas que me entenderam a parlenda, e me ficam desejando
muita saude e graça para servir a Deus, não rasgo as paginas, embora os
homens me mandem, em portuguezissima phrase, bugiar.

Quando comecei o capitulo, tinha de olho dizer, á quarta linha, que,
ácerca de culpas de mulheres, já mais consulto homens.

Mulheres são os melhores juizes de mulheres.

A respeito de D. Angelica, consultei uma sua amiga de infancia, tão
virtuosa como indulgente; mas virtuosa--não me afiram lá a palavra pelo
elucidario caseiro--virtuosa amando muito e com muito despego de pecos
empecilhos, atravancados pela impostura.

Disse-me ella o seguinte:

«D. Angelica é das poucas mulheres que podem fazer do seu crime um
titulo ao respeito das mulheres que sentem o coração pela dôr.

--Ao respeito!--atalhei eu, com fumos de juiz, vicio do sexo ingrato,
onde por desventura me encontro.

«Sim, ao respeito, porque D. Angelica amando vinte annos um homem,
juro-lhe que não teve uma hora de consciencia quieta, nem intrepidez
para sacrificar o coração ao repouso da consciencia.

--Vinte annos! pois era amor de vinte annos o do tal Almeida que o barão
de Celorico arcobuzou?

«Mais seria, talvez. Angelica era filha segunda de um fidalgo pobre do
Minho. Foi educada comigo, no Porto, no recolhimento de S. Lazaro.
Passava as festas do anno em casa de um doutor, que tinha filhas, e um
filho que se formava n'esse tempo. Esse filho era o Antonio de Almeida,
que o senhor conhece, e D. Angelica amou desde os quinze annos, com o
amor immenso das sympathias contrariadas.

O doutor descobriu a affeição do filho, e impoz-lhe um violento termo,
prohibindo-o de vir ao Porto nos dois ultimos annos da formatura.

As cartas de Antonio de Almeida recebia-as eu, e Angelica relia-as, ao
cabo de dois annos de ausencia, com paixão cada vez mais entranhada.

O fidalgo pobre resolveu casar a filha com um rapaz que se dizia rico.
Melchior Pimenta era filho bastardo de um conego opulento, e litigava a
herança paterna, com a certeza do vencimento.

Angelica saíu do recolhimento sem saber para que fim saía. Friamente
avisada de que havia de casar com Melchior Pimenta, embruteceu, ficou
como tolhida, e desmemoriada do amor que alimentára tres annos.

Quando o coração reviveu do lethargo, a indiscreta menina escreveu ao
pae de Antonio de Almeida, pedindo-lhe que a pedisse ao pae para casar
com seu filho. Que innocencia!

Escreveu ao marido que lhe destinavam, confessando que não podia dar-lhe
o coração.

O doutor, se ella lhe conviesse te'-la ía. Angelica era pobre.
Melchior Pimenta não respondeu á carta, nem deminuiu as instancias.

O fidalgo, informado pelo doutor, agradeceu-lhe a probidade da denuncia,
e accelerou o desfecho.

Angelica não soltou um gemido na presença do pae; sei que apenas lhe
disse: «A historia de muitas mulheres desgraçadas começa como a minha.»
Disse, e pôz a cabeça no altar do sacrificio. Ao marido apenas perguntou
se recebera uma carta d'ella...

Participei a Almeida o casamento de Angelica. Respondeu-me elle que não
acreditava a infamia emquanto a perfida não tivesse o cynismo de lh'a
dizer. Modifiquei as palavras d'esta carta, contando-as á minha amiga.
Ella soluçou nos meus braços muito tempo, e disse com vehemente
resolução: «Pois sou eu que lhe vou dar parte do meu casamento, e
offerecer-lhe a minha casa.» Que fazes tu, menina?--repliquei eu, longe
de suspeitar a resposta: «Faço á prepotencia de meu pae o sacrificio da
minha dignidade, e castigo um homem que me comprou.»

Julguei-a desvairada pela angustia, e reservei para melhor ensejo os
conselhos que os meus vinte e cinco annos, já apalpados por amarguras de
coração, podiam dar-lhe.

Effectivamente, Antonio de Almeida voltou formado, e frequentou a casa
de Melchior Pimenta, que dava bailes, e figurava na primeira plana a
favor de antecipações que fazia sobre o penhor do seu patrimonio.

Deixei de ser a confidente de Angelica, mezes depois. As suas
cartas não eram confidencias: eram lagrimas, queixumes vagos contra a
sua sorte, chagas de consciencia que só a morte podia cicatrisar.
Entendi tudo, e fiz o que faz, ou o que raras vezes faz uma amiga:
consolei-a na queda, como a aconselhára á beira do abysmo. Disse-lhe que
mandasse a consciencia ao pae, e que ficasse ella com o coração. Não lhe
falei em Deus, nem na Virgem, porque no infortunio de Angelica, não
havia que vêr com cousas sobrehumanas.

O doutor farejava um casamento rico para o filho; achou-o, e marcou-lhe
o prazo para se realisar. Antonio de Almeida rejeitou-o com toda a
ousadia da desobediencia. Choveram maldições ás duzias, abriram-se os
cancellos do inferno aos pés do obstinado moço. Peor que tudo isso, o
castigo de Almeida foi ser expulso de casa, sem pão, nem habilitações
promptas para ganha'-lo.

Angelica soube tudo por mim, e por uma carta do doutor, que a
responsabilisava pela desgraça do filho. Vendeu algumas joias que tinha
de sua mãe, e pediu-me a entrega do producto, como dadiva minha, a
Almeida. O brioso moço, não sei como, soubera onde as joias paravam.
Acceitou o dinheiro, comprou as joias e pediu-me que as entregasse a
Angelica.

Duas almas assim nunca se separam. As ligações mais duradouras são as do
crime, quando as virtudes do sacrificio reciproco chegam a esquecer-se
da sua má origem.

Antonio de Almeida trabalhou dia e noite, até ser um advogado de fama.

Melchior Pimenta, ao cabo de quatro annos de casado, tinha perdido a
demanda, e estava pobre. Antonio de Almeida cortou ás suas primeiras
necessidades para emprestar a Melchior o fausto da casa. Angelica
soube-o tarde; mas, sabendo-o, conheceu a pobreza de seu marido, e a
delicada generosidade do seu amigo.

Fecharam-se as portas da sala, acabaram bailes e theatros, resumiu-se a
vida de Angelica ao amor a sua filha, á adoração mais intima do amante,
e aos respeitos affectuosos por seu marido.

Antonio de Almeida acatou o melindre de Angelica. Inventou pretextos
para melhorar-lhe a vida, que ella não desejava melhor. Conseguiu fazer
despachar Melchior Pimenta para a alfandega, comprando o despacho por
alto preço.

Nem este mesmo sacrificio desconheceu Angelica. Os jornaes annunciaram a
corrupção, e a minha atilada amiga adivinhou a causa. Melchior Pimenta,
não. Esse perguntava se os seus merecimentos não eram demasiada
recommendação para o despacho.

Sabe agora a vida de Angelica?

Se alguma vez o seu sestro linguareiro o levar a pôr em romance esta
historia, accrescente que D. Angelica, ao despedir-se de Almeida para
visitar o berço da filha, lavou-lhe muitas vezes o rosto com lagrimas.
Diga que, outras muitas, o amante de Angelica, farto de a esperar na
sala, e já receoso de algum successo triste, procurando-a, ia
encontra'-la ajoelhada ao pé d'esse berço. E, depois que Ludovina se
lançava aos braços de Almeida, com fervor mais de filha que de
creança affeita a mimos e carinhos, o rosto de Angelica incendiava-se de
pejo, como se o affecto e a virgindade do coração travassem peleja.

Em resumo, snr. romancista, acabo por onde principiei, e do que vou
repetir faça uma maxima, por minha conta; mas não a enfileire a par da
do commendador João José Dias:

HA MULHERES QUE PODEM FAZER DO SEU CRIME UM TÍTULO AO RESPEITO DAS
MULHERES QUE SENTEM O CORAÇÃO PELA DOR.

D. Angelica está julgada e punida.........................................
..........................................................................

Entretanto foi Jesus para o monte Olivete:

..........................................................................

Então lhe trouxeram os escribas e os phariseus uma mulher que fôra
apanhada em adulterio: e a puzeram no meio.

E lhe disseram: Mestre, esta mulher foi agora mesmo apanhada em adulterio.

E Moisés, na lei, mandou-nos apedrejar estas taes. Que dizes tu logo?

..........................................................................

Jesus, inclinando-se, escreveu com o dedo na terra.

E, como elles teimavam em interroga'-lo, ergueu-se Jesus, e disse-lhes:
O que de entre vós está sem peccado seja o primeiro a apedreja'-la.

E, tornando a curvar-se, escrevia na terra.

Elles, porém, ouvindo-o, saíram um a um, sendo os mais velhos os
primeiros; e ficou só Jesus e a mulher que permanecia, no meio, em pé.

Então ergueu-se Jesus, e disse-lhe: Mulher, onde estão os que te
accusavam? ninguem te condemnou?

Ninguem, Senhor;--respondeu ella. Então, disse Jesus: Nem eu tão pouco
te condemnarei: vae e não peques mais.

O SANTO EVANGELHO DE JESUS CHRISTO, SEGUNDO S. JOÃO--Capitulo VIII.




XII


Em quanto D. Angelica dormita os somnos curtos e sobresaltados da febre,
a baroneza despertou o pae, chamando-o á ante-camara.

Melchior Pimenta, estremunhado e como ebrio dos aturdimentos da
morphina, extranhou á filha a extraordinaria madrugada, e perguntou se o
barão fizera alguma nova loucura.

--Não podemos continuar a existir n'esta casa, meu pae--disse Ludovina,
sem saber ainda como sahir-se bem de lance tão perigoso para sua mãe.

«Então que houve? esse alarve que fez? será necessario amarra'-lo?

--O necessario é sahirmos; mas a mãe está muito incommodada...

«Que tem ella?!

--Os meus desgostos affligiram-n'a a tal ponto que está ardendo em
febre, e não sei se poderá transportar-se.

«Vamos vê'-la.

--Pois sim vamos, mas não perca tempo. Um medico é o mais urgente
agora. Veja-a; se ella estiver descançando, não a desperte, e vá dispôr
as cousas em nossa casa para nos mudarmos logo, sim, meu pae?

«Mas que fez o bruto?! A gente ha de sair d'aqui sem dar uma satisfação
á opinião publica? Não vês que esta saida precipitada auctorisa a
maledicencia a calumniar-te como o barão te calumnia?

--Não tratemos agora da opinião publica, nem do barão. O pae saberá
tudo. Venha ver a mãe, e vá depressinha, sim?

Melchior Pimenta entrou na camara de sua mulher. Tateou-lhe a testa que
transpirava o suor da febre, sondou-lhe o pulso, afastou-lhe os cabellos
dos olhos, e murmurou:

«Isto é doença séria, Ludovina!...

--Talvez não, meu pae... São afflicções que se curam com o socego da
nossa casa. Não se demore. Vá por casa do medico e mande-o já. Se vir o
barão não lhe diga nada, promette-me?

«Eu sei cá o que farei! Ao despedir-me, tenciono dizer-lhe que me não
codilhou. Tu tens escriptura de dote. Quando quizeres, levantas vinte
contos de réis...

--Pois sim, meu pae, esses negocios não são para agora. O que eu quero é
a saude de minha mãe. Vamo-nos d'aqui embora, que eu torno a ser
feliz... Se é meu amigo, não se demore; tire-nos d'este purgatorio.

Melchior Pimenta ia scismando no divorcio, e nos vinte contos, quando o
barão lhe surgiu na extremidade do corredor.

--Bons dias, sr. Melchior.

«Bons dias, sr. barão.

--Isso hoje foi madrugar!

«Assim é preciso.

--Se não tem muita pressa, dê-me aqui uma palavra.

«Não posso, sr. barão, vou com pressa.

--Olhe cá, sr. Melchior, é preciso que nos entendamos.

«A que respeito?

--A respeito d'estas poucas vergonhas que aqui vão.

«Que chama o senhor poucas vergonhas?

--Homem! vamos falar claro; eu sei tudo, e o senhor, se o não sabe,
saiba-o, e tome tento na sua vida.

«O sr. barão é que já perdeu o tento da sua. Essa cabeça está desmanchada.

--Desmanchada está a sua, e bem desmanchada, sr. Melchior. Entre cá, e
ha de agradecer-me o que eu fiz, vingando a sua honra.

«A minha honra não póde ser offendida nem vingada pelo sr. barão.

--Estou a ter pena do sr. Melchior! Venha aqui dentro que eu conto-lhe
tudo.

«Que ha de o senhor contar?!--disse Melchior entrando na sala.--Quer
contar-me a historia do charuto?

--O charuto! o charuto agora já me não serve a mim; é ao senhor; veja lá
se o quer, que eu dou-lh'o de boa vontade.

«É para isso que me chama, sr. barão? De que me serve a mim esse
ridiculo instrumento com que o senhor está representando perfeitamente o
papel de doudo?!

--Doudo quer o senhor fazer-me, mas ha-de-lhe custar... digo-lh'o eu...
Sente-se ahi, e dê-me attenção, que o caso é muito serio...

Melchior Pimenta sentou-se impacientado. O barão de Celorico proseguiu,
cerrando a porta da sala:

--O senhor tem vivido enganado com minha sogra, acho eu.

«O que?

--Tenha mão, não se atrigue, sr. Melchior. As desgraças são para os
homens, e o remedio é atura'-las quando ellas chegam. Sua mulher não lhe
tem sido fiel.

«O senhor está doudo, e, se não está doudo, é um infame
malvado!--exclamou Melchior erguendo-se com arrebatamento.

--Sente-se, homem; eu não lhe tenho medo, nem metto a fala no bucho.
Ouça, e faça o que quizer; creia ou não, saiba ou não saiba, o que eu
lhe digo é que sua mulher tinha um amante, e eu dei esta noite um tiro
n'esse homem cuidando que era o amante de minha mulher.

«O sr. barão sabe o que está dizendo? Se tem algum resto de juizo,
desdiga-se da affronta que fez á minha honra.

--Affronta?! essa não é má! Pois eu vinguei a sua honra, sem saber o que
fazia, e o senhor ainda diz que o affronto! Ora, meu amigo, o senhor é
que me parece doudo! Acredite o que lhe digo, sr. Melchior. Este
charuto era do amante de sua mulher, que entrava no meu jardim pela
porta do muro, e vinha a esta casa todas as vezes que queria.

«Quem, sr. barão? diga quem, quando não um de nós ha de morrer.

Ludovina entrou precipitadamente na sala.

«Quem?! então não diz quem é o amante de minha mulher--repetiu Melchior,
em quanto a baroneza cravava os olhos no semblante subitamente
desfigurado do marido.

--Que indecentes palavras escuto, meu pae!

«Primeiro as ouvi eu a este miseravel que m'as disse!

--A meu marido? Desculpe-o que elle tem o juizo perturbado. O sr. barão
não disse taes palavras com intenção de offender os pais de sua mulher,
não é verdade? Essa calumnia foi, um desatino, uma irreflexão, não foi
meu amigo? Dê uma satisfação a meu pae, que está afflicto como vê, ou
então crave-se um punhal no seio, antes de repetir na minha presença que
minha pobre mãe está infamada.

«Tens razão, Ludovina--murmurou o barão, com as lagrimas nos olhos--Eu
estou doudo; o que disse é uma mentira; se fôr necessario, eu peço
perdão ao sr. Melchior, e á sr.ª D. Angelica.

--Ouviu, meu pae? Vá, agora vá. Assim fez o que lhe pedi?

«Foi elle que me arrastou para esta sala... Sabe que mais, sr. barão? O
senhor o que deve fazer é recolher-se a um hospital, antes que as
auctoridades o amarrem. Eu vou requerer um exame ás suas faculdades
intellectuaes...

--Meu pae!--murmurou afflictivamente Ludovina--pelo amor de Deus lhe
peço que se retire, quando não, vê-me cahir aqui morta.

«Eu vou, menina.

E sahiu, reatando a meditação no divorcio e nos vinte contos.

--Não lhe disse eu já, sr. Dias--continuou Ludovina baixando a voz com
maviosa brandura, e assumindo ares de penitente--não lhe disse eu já que
o homem ferido pelo senhor era meu amante? que a mulher da janella do
jardim era eu? que a culpada, a adultera, a infame, a digna de morte ou
do seu desprezo é sua mulher?

«Mentes, mentes, Ludovina! eu ouvi tudo o que tua mãe te disse no quarto.

--Que importa o que o senhor ouviu? Tudo quanto meu marido disser contra
mim, tudo o que a sociedade inventar contra a minha dignidade, hei-de
certifica'-lo com o meu silencio, e com o meu divorcio. Tudo o que o
senhor disser contra minha mãe, hei-de desmenti'-lo em publico, pondo em
mim as nodoas que o senhor puzer na reputação d'ella. De maneira que meu
marido, quando cuida salvar a sua honra, sacrifica-a, e provoca o
escarneo do publico. Vê quaes são as minhas tenções, meu amigo?

«Tu não fazes isso, Ludovina!--rugiu iracundo o deploravel homem--Se
fazes tal... Ludovina, se fazes tal...

--Que se ha-de seguir?

«Eu sei!... tu queres matar-me, mulher! mata-me, mas deixa-me a honra,
que eu estimo mais que tudo. Dou-te tudo quanto tenho, deixo-te em
liberdade, torno para o Brazil; mas não digas que me foste infiel; não
digas que esse homem era teu amante. Peço-te isto de joelhos, Ludovina.

Era feio o espectaculo, mas fazia dó a postura humilde do barão.
Ludovina, apiedada ou aborrecida da attitude, pôz-lhe as mãos nas
espaduas, pedindo-lhe, affectuosa, que não estivesse assim.

E continuou:

--Entre nós ha só uma reconciliação possivel. Vou fazer-lhe uma
proposta: se o senhor a acceita, retiro-me contente de sair por um
contracto; se a não acceita, vou de sua casa como fugitiva. O sr. Dias
não dirá a alguem que deu um tiro em Antonio de Almeida; não fará
suspeitar pelo mais pequeno indicio que Antonio de Almeida foi ferido,
quando entrava no jardim d'esta casa; não proferirá o nome de minha mãe,
contando ou ouvindo contar essa desgraça acontecida esta noite. Estas
são as suas obrigações do contracto que lhe proponho; as minhas são as
seguintes: sairei de sua casa, com minha mãe, porque o amor que tenho a
minha mãe é incomparavel ao simples respeito que o sr. Dias me inspira;
sairei, calando o segredo do seu crime, para que ninguem desconfie de
que o senhor me surprehendeu com um amante. Auctoriso e quero que meu
marido diga ás pessoas admiradas da nossa separação que o meu genio
era intractavel, que a minha educação era pessima, que as minhas
impertinencias de rapariga eram insoffriveis. Diga tudo o que lhe
lembrar, em meu desabono, que eu com o meu procedimento desmentirei
alguma desconfiança injuriosa que possa haver. Eu não levo d'esta casa o
valor de um ceitil. Os meus bahus irão como saíram do meu guarda-roupa
de solteira. O senhor fica na posse livre de tudo que tinha, menos de
uma mulher que o ha-de infallivelmente flagellar. Essa mulher sou eu,
sr. Dias, porque o não amo, nem se quer estimo. Respeito-o, temo-o,
d'aqui a pouco hei-de odia'-lo. O homem que o senhor feriu ou matou
creou-me nos braços, foi o primeiro rosto extranho que vi ao pé do meu
berço, ha quinze annos que o via todos os dias, da amizade que lhe tinha
ao amor que se pode ter a um homem delicado, generoso, e confidente das
alegrias e maguas da minha familia, não ia grande distancia. Eu choro
esse homem, sr. Dias, não é só a minha desgraçada mãe que o chora. Se
ella era amante d'elle, eu, como filha, não tenho direito a censura'-la;
como mulher de coração creio que lhe perdoaria. Tenho dito mais do que
devo, e importa ao sr. Dias. Entendeu-me bem, quer que eu repita por
outras palavras o que disse?

--Não é preciso... entendi bem...

--Qual é a sua resposta?

--É necessario pensar, Ludovina.

--Não lhe dou tempo a demoradas reflexões. Eu hei-de sair d'aqui logo
que meu pae volte.

--N'esse caso, faz o que quizeres; mas eu hei-de dizer em toda a parte
que Antonio de Almeida era o amante de tua mãe.

--E eu direi que era o meu amante; darei em publico quantas provas puder
dar para o desmentir; hoje mesmo irei ser a enfermeira d'esse homem, se
elle não tiver morrido. O sr. Dias será tido na conta de assassino, e
assassino ridiculo, que mata o amante de sua mulher, e denuncia adultera
sua sogra, para que se supponha que os seus merecimentos não podiam ser
vencidos por um rival.

--Tu és uma serpente, mulher!--bradou o barão, fazendo com os braços e a
cabeça as azas d'um alambique--És um dragão! foste o demonio que me
appareceste em corpo e alma! Vae-te para as profundas do inferno, e
nunca descanço tenhas noite e dia em quanto me não vieres pedir perdão
de quereres deshonrar teu marido, que te deu palacios, e quintas, e
carruagens, e tudo quanto cobre o sol. Vae-te para onde quizeres,
ingrata mulher, e quando souberes que eu morri doudo vem tomar conta de
tudo isto que é teu, porque o que vocês querem todos é acabar comigo,
para ficarem com isto que eu ganhei com honra a trabalhar como um mouro!

Ludovina voltára as costas ao berreiro virulento de João José Dias.

Entrou no quarto de sua mãe, que não resurgira ainda do torpor febril. A
creada, que lhe assistia, entregou á baroneza uma carta, sobrescriptada
a D. Angelica. Era-lhe conhecida a letra de Antonio de Almeida.
Alvoroçada com a aprazivel certeza de que Almeida vivia, Ludovina abriu
a carta sem reflectir. Apenas viu no topo do papel «Angelica»,
simplesmente «Angelica», estremeceu, caindo em si. Era uma carta do
amante, do amante de sua mãe. Repugnava-lhe o le'-la, mas a amizade
instigava-a, desprezando os escrupulos de uma virtude intempestiva.

Leu o seguinte:


«Angelica, fui ferido com um tiro quando entrava no jardim d'essa casa.
O segredo do meu assassino morrerá comigo. O meu ferimento dizem ser
mortal. Não importa. Morro amando-te. Esperava assim morrer. Mas a tua
honra, minha amiga? Não bastará a minha vida para salva'-la? Dá um beijo
a tua filha, ao nosso anjo que eu não verei jámais. Sacrificamo'-la
ambos, ao verdugo de... A febre deu-me este intervallo. Adeus, até ao
céo dos desgraçados.--_A. de A._»


Ludovina rompeu em gemidos, e caíu de joelhos orando com o fervor da
desesperação. Nada mais triste n'este mundo que o espectaculo d'aquelle
quarto! Não é preciso grande coração e poder de phantasia para acceitar
um quinhão de tamanha angustia. A alma de pedra estala de encontro a
este conflicto que esmorece na pintura. Cada lagrima ardente de Ludovina
bastaria a reaccender a luz de piedade apagada no coração humano. Já
imaginastes uma vida com este immenso horto de agonia? Na previsão
de todos os infortunios, concebeu alguem as torturas d'aquella mãe, e da
filha que acceita a deshonra para salvar-lhe o nome? Desamparados da
esperança e de Deus, cobrae alento nas dores com que não podeis,
agradecei ao vosso anjo mau os supplicios vindos, pedi-lhe mais,
pedi-lh'os todos, menos o calix de Angelica, e Ludovina, porque ha ahi o
succo de todos os venenos provados n'este inferno da vida, obra prima de
uma causa eterna, obra que mais me espanta a mim que a creação dos
astros, do mar, e do homem.

A minha grande prova de Deus, da justiça, e da condemnação é este
inferno. O outro... é inferior á Omnipotencia que deixou, no seio da
creatura, aberta a garganta do abysmo, onde a alma se despenha a
devorar-se.




XIII


Eu costumo reunir alguns peritos em letras magras como estas, e
leio-lhes alguns capitulos dos meus romances, com adoravel modestia e
exemplar submissão. Recito-lhes sempre um preambulo improvisado que
estudo cinco horas, no qual os convido, com humildade de aprendiz
inexperto, a que me corrijam as hyperboles desgrenhadas, me desbastem as
excrescencias da taramelice a que sou atreito, e me recomponham os
desatavios da fórma em que me descuido, se a imaginação desfila comigo
pelos prados floridos do inverosimil.

Tão atilado é o arrolamento que faço dos meus arbitros, que raro de
entre elles se desacredita admoestando ou corrigindo as perfeições que
me escorregam do bico da penna, com primores de fundição esmerada. Esse
raro, porém, se encalha em elegancia que não percebe e deturpa, cá o
inscrevo no meu canhenho de pascacios, e nem sequer desaggravo o meu
talento offendido com resposta comedida. A minha docilidade chega até
este ponto, e não ha ahi que ver mais lhano e brando do que eu sou
á opinião cortada dos meus amigos, que me fazem o obsequio de trazer da
rua quatro superlativos encomiastas, antes de saberem que pabulo vou
dar-lhes á sua admiração faminta.

Ha pouco acabei eu de ler os doze capitulos passados a quatro luzeiros
do orbe litterario, e um d'elles, acabada a girandola dos elogios, teve
a descocada impertinencia de me dizer uma cousa assim:

--Os teus romances do meio em diante adivinham-se.

--Ora essa!

--Adivinham-se, e coxeiam por isso. O sexto sentido do romancista é o
invento da surpresa. A concatenação logica e natural dos successos
damnifica a peripecia, e aguarenta a curiosidade do leitor.

--O leitor é que não é capaz de entender-te essa linguagem
assaralhopada. Tu calumnias o gosto dos meus leitores. Sou informado
pelo orgão da opinião publica, o orgão que eu mais respeito, o meu
editor, que o bomsiso dos consumidores escolhe o romance verosimil,
amalgamado com arte e discernimento, escripto de modo que seja o reflexo
da sociedade, e que possa de per si reflectir tambem na sociedade,
amoldurando-se nas fórmas costumeiras e exequiveis.

--Enfreia lá os impetos, modesto escriptor! não soltes a parlenda
inexoravel. Concordo com o bom senso publico. O natural e o reflectido
da vida apraz e captiva o leitor; mas a previdencia dos capitulos
advenientes esfria o empenho, e dessabora a curiosidade.

--Acceito a correcção, e tu acceita a aposta. Se adivinhares o
enredo dos capitulos subsequentes, eu prescindo dos meus titulos de
Henri Heine, Alphonse Karr portuguez, e escrevo repertorios de hoje em
diante. Se não adivinhares, escreve-me uma critica litteraria em que
has-de provar aos incredulos basbaques que eu alojo na cabeça um d'esses
lobinhos cerebraes que chamam «genio» os galiparlas da nossa terra.

«Acceito, e ahi vae o desenvolvimento do teu romance, nos pontos
essenciaes: D. Angelica póde morrer de uma congestão cerebral, ou de um
typho. Não questiono a morte; é certo que a matas brevemente, e a fazes
pedir, na hora derradeira, perdão do escandalo á filha, e da traição ao
marido. Antonio de Almeida já nos disse que morria, e elle que o diz é
porque o sabe, e tu já o sabias antes d'elle. D. Ludovina vae para a
casa paterna, e, a pedido de Melchior Pimenta, enxuga as torrentes
caudaes do pranto que a saudade maternal lhe arranca, mas teima em não
querer nada do abominado marido. O barão de Celorico, atassalhado pelo
remorso, dispara apostrophes sem grammatica ao espectro de Antonio de
Almeida, pega-lhe a febre socia predilecta dos romancistas pathologicos,
solta quatro urros estridulos ao despegar-se-lhe a alma do sêbo
corporal, e vê'-lo que morre boçalmente, sem deixar nada ao _Hospital do
Terço_, nem ás _Velhas da Cordoaria_! A tua crueldade para com este
homem irá ao extremo de lhe negares até um necrologio na gazeta,
ignominia posthuma com que rematarás a biographia de um homem que teve o
infortunio de ser cevado de enxundias, em quanto tu espirras ossos
por todos os póros. D. Ludovina toma conta da herança, e...

--E, sabendo que tu és um portento de esperteza--atalhei eu--digno de
substituir João José Dias, manda-te convidar pelo seu procurador para
tomar chá ás quartas feiras; namora-te, casa comtigo, e o auctor é
padrinho de primeiro pequeno. Ora, meu amigo, outro officio. Desquito-te
da promessa do elogio; já nem «genio» quero ser á custa do teu estylo
assoprado. Eu já disse em mais de um livro que não escrevo de phantasia.
A verdade e a observação dispoem-me as situações como tu as não
inventas. A natureza, que tu conheces, é tôla, meu amigo.

Disse.




XIV


Antonio de Almeida esperava em ancias a apparição de D. Angelica. Não
lhe pedira, como vimos, essa derradeira e afflictissima prova de um amor
de vinte e dois annos; mas ve'-la, apertar-lhe a mão, expirar nos braços
d'ella, egualar o escandalo ao flagello de lance tal, isso
alvoroçava-lhe o espirito, attrahindo-lh'o para a unica visão aprazivel
e ao mesmo tempo angustiada que o detinha entre a vida e a morte.

As irmãs de Almeida ignoravam tudo o que se passára, excepto o ferimento
mortal de seu irmão. A denuncia do barão de Celorico fôra segredada ao
enfermo pelo proprietario da casa, seu antigo creado. A policia
devassára do crime, e nada averiguára das respostas concisas e obscuras
de Almeida. Suspeitavam as attribuladas irmãs que seu irmão tivesse
tentado um suicidio, por desgostos desconhecidos, e calasse o desastre
para occultar a fraqueza, e obviar a presumpções nocivas á honra de
alguem, e á propria memoria.

N'estas conjecturas, annunciou-se o barão de Celorico de Basto.
Almeida recebeu a parte d'esta visita com excitamento prejudicial ao seu
estado. Os facultativos conheceram a exaltação inconveniente, e
perguntaram-lhe se a presença do barão lhe era penosa.

--Não é--disse elle--que entre, e venha só, porque é necessario assim.

Entrou o livido barão, fechando a porta. Chegou-se ao leito do enfermo,
e estacou silencioso, com os olhos rasos de lagrimas. Esteve assim
instantes, ergueu as mãos, e ajoelhou sem proferir palavra.

--Que é isso, senhor?--disse Almeida.

«É um desgraçado que vem pedir perdão, snr. Almeida. Quem lhe deu o tiro
foi este malvado infeliz que aqui está diante da sua vista. Eu cuidava
que minha mulher me era infiel, e me deshonrava. Tive uma carta em que
me avisavam d'isso. Encontrei um charuto no meu jardim. Disse-me a
patrulha que do meu quintal saíra um homem fóra de horas. Tentou-me o
demonio a tirar vingança de quem me deshonrava. Vi-o a v. sr.ª, e, sem
pensar no que fazia, dei-lhe dois tiros. Depois soube tudo o que havia;
minha mulher está innocente, e o senhor nunca me fez mal nenhum, e está
ferido por mim. Se me quer entregar á justiça, aqui estou, snr. Almeida;
chame toda essa gente que está em sua casa para ouvir a confissão.

--Levante-se, snr. barão--atalhou Almeida--Não diga a ninguem que me
feriu; fique entre nós esse segredo para sempre. Eu depressa morrerei
com elle, e o senhor viva sem se denunciar a pessoa alguma. Eu sabia
que o meu assassino fôra o senhor. Se quer mitigar o seu remorso,
respeite... a mãe de sua mulher. Se ella um dia precisar dos seus
favores, faça-lh'os como os faria á viuva do homem que matou. Agora, vá
em paz.

O barão retirou, enxugando as lagrimas. Entrou furtivamente em casa, e
escreveu uma carta. Sahiu com o preto, e montou a cavallo á porta de um
alquilador.

A carta, que escrevera, era sobrescriptada á baroneza; da qual carta se
dá o texto viciado com as perdoaveis infidelidades da correcção
ortographica:

«Ludovina, quando receberes esta, teu infeliz esposo já não está no
Porto!!!! Vou por esses mundos de Christo penar o meu crime, até que o
remorso dê cabo de mim!!!! que não tardará!! Fica n'esta casa, que é
tua, minha amada Ludovina; para mim me basta um bocado de terra onde
enterrar os meus ossos!!! Quando souberes o meu triste fim então
perdoarás a teu infeliz e desgraçado marido!! Fui já pedir perdão ao
Antonio de Almeida, e oxalá que eu morresse ao pé d'elle. Pela tua honra
e vida te peço que trates tua mãe com todo o amor e carinho. Faz com que
ella me perdôe o mal que lhe fiz. Não tive animo de ir onde a ella,
pedir-lhe que fosse tão boa como foi para mim aquelle honrado homem, que
Deus permitta não morra. Adeus Ludovina, desgraçada Ludovina!!! para
sempre, adeus! Não me tenhas odio; tem antes compaixão de teu marido,
que te escreveu esta com a cara coberta de lagrimas e o coração
acabrunhado de remorsos. Adeus para nunca mais!!!!!»

Afóra a sobejidão de pontos admirativos, que são talvez signaes
symbolicos da dôr indizivel do barão de Celorico de Basto, o que se nos
depara n'essa carta é a simplicidade, a mudez, a phrase chan de uma
verdadeira angustia. Em lance identico um marido letrado, e concedo até
que romancista, não escreveria cousa mais pathetica e pungitiva.

Ludovina leu esta carta ao pé de sua mãe, que authomaticamente se
deixava vestir para ser transportada n'uma cadeirinha, nem ella sabia
para onde.

Melchior Pimenta trouxera de fóra a noticia do perigoso ferimento de
Antonio de Almeida, e vendo que sua filha não se espantava da nova,
porque não era então maré de fingimentos, ficou perplexo, e scismou no
caso alguns minutos.

Uma idéa, entre muitas idéas (se o leitor concede que Melchior tivesse
muitas idéas) o incommodava. Seria Antonio de Almeida amante de sua
filha, e o barão, por consequencia, quem lhe dera o tiro? Era esta a
conjectura que o preoccupava, quando Ludovina lhe disse que não podia
fazer-se a mudança n'aquelle dia porque a receava perigosa para sua mãe.

«Vem cá, Ludovina--disse o sr. Pimenta, franzindo a testa sobrecarregada
de cuidados--fallemos de espaço, e desembrulha-me este novello. O barão
disse-me, ha pouco, que dera esta noite um tiro n'um homem que era o
amante de tua mãe. Acabo de saber que Antonio de Almeida está ferido.
Contei-te este acontecimento, que te não espantou. Vejo tua mãe doente.
Lembra-me o que teu marido me disse... Quero explicações d'este
mysterio.

--São muito dolorosas para mim as explicações, meu pae.

«Como dolorosas?!

--E muito, meu pae; vergonhosas até para que uma filha se atreva a
dize'-las. Queira ignorar tudo, meu pae, ou tudo saber de outra pessoa
que não seja eu...

«Porque não has de ser tu?

--Porque sou criminosa.

«Criminosa! mas o barão disse que estavas innocente.

--Foi a minha querida mãe que me salvou á custa da sua dignidade.

«Não entendo...

--Entende, meu pae. A amante de Antonio de Almeida era eu.

«Tu! pois tu!...

--Não me culpe, ou culpe-me, mas perdoe-me. Obedeci, quando me casaram
com este homem, obedeci cegamente; mas o coração negou-se ao sacrificio.

«E Antonio de Almeida, meu amigo de vinte annos, que te viu nascer, teve
a ingratidão e a infamia de te fazer a côrte, sendo tu casada?! Foi bem
dado o tiro! Bem hajas tu, barão, que me desaffrontaste, e procedeste
como homem de bem!

--Isso é improprio da sua nobre alma, meu pae. A culpa é minha só. Amei
desde creança Antonio de Almeida, era amiga d'elle até o julgar superior
a todos os homens. Pedi-lhe a felicidade do coração, que só elle
podia dar-me. Amava-me por piedade; fazia-me esmola do seu amor. Fui eu
que o matei. Já que me forçou a esta confissão, dir-lhe-hei mais que, na
posição em que estou, considero-me responsavel das minhas acções más
perante Deus e meu marido. O pae perdeu o direito de me injuriar na
desgraça que lhe devo. Minha mãe foi mais generosa comigo. Fez, não sei
de que modo, convencer-se o barão de que a amante de Antonio de Almeida
era ella. Aqui tem a explicação das palavras que meu marido lhe disse, e
não poude sustentar na minha presença. Minha pobre mãe, depois de
victimar a sua honra á minha salvação, succumbiu á vergonha de si, e á
dôr, talvez, de me ver indigna d'ella. Basta de explicações, meu pae.
Estas palavras tem-me custado annos de vida. Se a minha deshonra
reflecte no seu pundonor, perdoe-me; se me não quer perdoar,
amaldiçoe-me, mas não profira na presença de minha mãe o nome de Antonio
de Almeida. Mereço isto á sua compaixão?

«Não falarei mais n'esse homem por minha honra propria.

--Assim o deve á sua dignidade.

Ludovina foi chamada com urgencia ao quarto de D. Angelica. Encontrou-a
vestida, disposta a sair, com o rosto escarlate do crescimento febril, e
gestos de quem delira.

«Onde quer ir, minha mãe?

--Morrer em qualquer parte, Ludovina... Quero ar...

«Não ha de sair d'aqui; supplico-lhe que não saia, minha mãe.

--Não me dês esse nome... Eu não quero já ser mãe nem esposa...

Ludovina fez sair a creada, que testemunhava este dialogo.

«Não quer ser mãe nem esposa?

--Não. Sou amante de um homem que está moribundo ou morto. Quero que
todo o mundo saiba, que o fui e que o sou. Desprezo tudo, não ha para
mim deveres nem respeitos agora. Se elle está vivo, quero dar-lhe os
meus ultimos instantes. Se morreu, quero chorar e morrer ao pé do seu
cadaver.

«Fale baixo, por misericordia, minha mãe!

--Podem todos ouvir-me, não me escondo d'alguem, agradeço as affrontas,
os desprezos, as injurias, agradeço tudo que fôr martyrisarem-me, com
tanto que me matem depressa.

«Mas, minha mãe, attenda-me por piedade. Vou-lhe contar tudo, se me
escuta... Sente-se, e ouça-me...

--Diz, anjo, diz...

«Antonio de Almeida não morreu, e talvez não morra. O barão escreveu-me
uma carta em que se despede de mim, e me recommenda que lhe peça o
perdão para elle. N'esta casa ignora-se tudo. Meu pae está convencido
que sou eu a amante de Antonio de Almeida...

--Jesus! exclamou D. Angelica.--Como tu me castigas, Ludovina!

«Como eu a castigo, mãe?! por quem é, deixe-me ser boa para o meu
coração, e indigna para todo o mundo. Sinto na alma alegrias tamanhas
d'este meu procedimento!... isto é Deus que me premeia, minha mãe, é
Deus que me dá em consolações do céo as amarguras, que o mundo me possa
dar. Ora, se a mãe me envenena este prazer, mata-me... Deixe-me ser
senhora de uma parte do seu coração e da sua vida. Obedeça-me, sim? não
saia de casa; não saia, que talvez me não encontre viva quando voltar.

Ludovina abraçou-se, a chorar, em D. Angelica. Choravam ambas, com os
rostos unidos, apertando-se cada vez mais. O seio da mãe desafogava de
angustias soffocantes n'aquelle pranto. O da filha fortalecia-se de
animo para arcar com a ignominia do seu descredito.

D. Angelica recaíu no entorpecimento. Ludovina chamou creadas para lhe
assistirem, e executarem as prescripções dos medicos. Melchior Pimenta
esperou que a filha saísse do quarto, e foi sentar-se, meditabundo e
sombrio, ao pé do leito da enferma, tateando-lhe o pulso, e chamando-a
com os maviosos epithetos do carinho. Angelica abria os olhos pávidos,
encarava-o por momentos, e recaía na somnolencia.

Ludovina entrou na carruagem, deu ordem ao boleeiro, e apeou na Lapa. A
trezentos passos d'ahi, morava Antonio de Almeida. Velando o rosto com
um véo negro impenetravel á vista, a baroneza de Celorico, sósinha,
subiu as escadas do amante de sua mãe.

Descia um medico ao qual ella perguntou o estado do enfermo.
Respondeu-lhe que havia esperanças de salva'-lo. A noticia feliz
alvoroçou-a. Receberam-n'a as irmãs de Almeida, maravilhadas de tamanha
prova de estima. O doente conheceu-lhe a voz, agitou-se, quasi desfez o
apparelho do curativo, e chamou-a com ancia.

Ludovina entrou no quarto, só, que assim o pedira ás amigas. Almeida
apertou-lhe a mão, orvalhou-a de lagrimas, e murmurou balbuciante:

«É a boa nova... agora creio que vencerei a morte, minha amiga, filha do
meu coração.

A baroneza ficou muda e convulsa. _Filha do meu coração_ foram palavras
que lhe entraram como fogo no recesso da alma, fogo, porém, que, de
repente, se mudára em sensação de intima doçura. Passados minutos de
mudo anceio, Ludovina curvou-se para o seio de Almeida, e disse:

--A mãe está muito doente; mas sem perigo. A sua carta não lh'a
entreguei, lia-a eu, e occultei-lh'a para a não matar.

--O barão denunciou tudo?

--Nada: tudo se ignora, e toda a gente ignora, só eu sei que ella o
estima tanto como eu. É necessario que o nosso amigo concorra quanto
puder para lhe dar allivio. Tem esperanças, não tem?

--Tenho. Os facultativos disseram agora que o ferimento não é mortal. Já
não morro, minha... minha querida amiga, não quero morrer...

--Escreva a minha mãe, se pode. Diga-lhe isso, que eu levo a carta. Não
fale em mim, não diga que eu vim cá.

Antonio de Almeida escreveu. Ao despedir-se beijou Ludovina na face, e
disse soluçando:

«Será o beijo de um moribundo?

«Não diga tal, sr. Almeida.

«Se fôr...» e desentalando a voz dos gemidos que lh'a embargavam,
proseguiu «se fôr... Ludovina... lembra-te sempre da situação em que te
deu o seu ultimo beijo... teu pae.

A baroneza tremeu uma sezão de instantes. Quiz saír, mas o abalo
quebrantou-lhe as forças, coando-lhe nos nervos o desfallecimento, e a
perda quasi dos sentidos.

Almeida tocou a campainha, e disse á irmã que primeiro chegou:

--O ar d'este quarto fez mal a esta senhora: levem-n'a para a sala, e vá
uma das manas acompanha'la.

Ludovina pediu que lhe mandassem buscar a sua sege, que a esperava na
Lapa.




Cinco paginas que é melhor não se lerem


Este capitulo mira a alvo transcendental.

Nem mais nem menos, quer provar que o Codigo do Imperador
Justiniano--corpo de leis que uma falsa piedade chama «Digesto», sendo
elle a causa indigesta de muitas gastralgias intellectuaes--quer provar,
digo, que o Digesto, entre muitas que não conheço, traz, uma lei de
tamanho absurdo e insensatez, quanta é a indignação com que para aqui a
traslado:

_Pater is est quem nuptiæ demonstrant._

Em portuguez comezinho:

_O pai é aquelle que se diz pae no assento do baptismo._

A versão é de christão catholico, entenda-se.

Aquella regra de jurisprudencia pagã não fala em assento baptismal. Se o
legislador fosse baptisado, como estes de agora, a lei não saía assim.

Contra a qual lei temos a articular:

1.º Que o pae é uma entidade muito mais nobre, efficiente, cathegorica,
e circumspecta. E demonstra-se:

Quem leu a physiologia da geração sabe que ha cinco phenomenos
caracteristicos d'essa funcção de mysteriosa origem. O primeiro d'esses
phenomenos, cuja confusa theoria os imperitos podem lêr nas fontes
respectivas, é influido pela acção de um ser directo e immediato, que os
latinos denominam _pater_, os inglezes _father_, os allemães _watter_,
os francezes _père_, os hespanhoes _padre_, e nós, com mais suavidade
que todos os outros idiomas, _pae_.

_Pae_ quer dizer «productor, gerador» _Parens qui aliquem genuit_--isto
a meu vêr, é claro como tudo o que se diz em latim.

Conclusão: Pae é aquelle que é pae.

2.º Ha paes postiços, paes contra-natura, paes testas de... ferro, paes
_in mente legis_, na presumpção da lei, e na fé dos padrinhos de quem
são compadres, por obra e graça de um sacramento.

Os homens, reconhecendo a inconveniencia de acceitar a natureza feia
como ella ás vezes se apresenta deliberaram, de commum concerto, pôr-lhe
mascara.

E como a natureza paterna era uma das que mais a miudo saía á gente com
as suas deformidades medonhas, resolveram os desvelados reformadores
corrigir os aleijões d'essa natureza, inventando o pae civil, o pae do
assento baptismal, o pae da arvore de geração escripta em pergaminho, o
pae que transmitte os bens e os appellidos, o pae, finalmente, que tem
tudo que é paternal, mas não é pae.

Este invento honra a sagacidade humana; mas a causa que o incitou
deturpa a humanidade, e opprime agramente os corações dos individuos
virtuosos. Todavia, a mascara foi necessaria, logo que as fealdades
deram nos olhos. Hoje acceita-se o remedio do mesmo modo que o travor da
quina se tolera para combater a sezão. Os paladares mais melindrosos
affazem-se á peçonha, e estomago ha ahi de pae postiço, que disputa a
Mithridates a invulnerabilidade.

Eu não applaudo a _Sandice_ como Desiderius Erasmus; mas observo que o
famoso theologo chamava «sandice» o que nós cá, gente bemaventurada da
civilisação, denominamos «Cultura.»

Erasmus não deu pela theoria das mascaras. Pasmado da bonacheirona paz
d'alguns paes impossiveis, exclama o mestre de Bolonha:

«Grande Jupiter! O que ahi não iria de divorcios, e peor do que
divorcios, se a união do homem e mulher não fosse corroborada pela
lisonja, pela complacencia, pelo esquecimento, e pela dissimulação, que
formam o meu cortejo! Que raros não seriam os matrimoniamentos, se o
homem de ante-mão esquadrinhasse os brinquedos da innocentinha noiva!
Que rompimentos conjugaes, se o descuido ou a inepcia, não cegassem o
bom do marido, para não enxergar os tregeitos e os feitios da
companheira querida! Dizem que é toleima isto; deixa'-la ser; mas o
grande caso é que marido e mulher vivem ás mil maravilhas, que reina a
santa paz em casa, e os vinculos da alliança estão rijos. Isto é que é o
essencial. Se ao pascacio dão nomes feios, que se lhe dá elle
d'isso? Ve'-la a infiel a choramingar; para logo o pobre marido lhe
sorve as lagrimas enternecidamente. Qual é melhor, ser assim bom, ou
andar atormentado pelas furias do ciume?»

É boa a pergunta do theologo! O melhor é ser assim bom, ser assim
illustrado, ser assim desbravado das velharias pundonorosas que
obrigaram Cicero e Sulpicio Gallo a divorciarem-se das mulheres, um
porque a sua lhe não respondeu a todas as cartas enviadas do exilio,
outro porque a d'elle teve a impudicicia de saír um dia, sem coifa, á rua.

Aconteceu isto muito depois do reinado de Saturno, quando o pudor, como
pondera Juvenal, já não morava nas primitivas cavernas onde os dois
sexos se luravam sobre colchões de folhagem.

    _Credo Pudicitiam, Saturno rege, moratam_
    _In terris_...

já quando o genio tutelar do hymeneu andava corrido das
pseudo-paternidades que se enxertavam, á sombra d'elle, nos illustres
troncos de Roma:

    _Antiquum et vetus est alienum, Postume, lectum._
    _Concutere, atque sacri genium contemnere fuclri._

«Ó Postumo!--exclama o poeta--pois tu eras, até aqui, escorreito e
atilado, e vaes casar

    _Certe sanus eras: uxorem, Postume, ducis!_

Por esses tempos, a balbuciante civilisação dos espiritos engendrou a
lei contra a qual se escreve este capitulo. As nupcias indicavam o pae:
_pater is est quem nuptiæ demonstrant_. Agora, em pleno seculo de luz,
somos mais romanos que os proprios romanos, tresandamos ao paganismo
fetido, e difficultamos o divorcio para sellar o escandalo com o cunho
sacramental da lei nova.

Como quer que seja, pae é aquelle que é pae, apesar do Direito Romano, e
das Instituições de Direito Civil de Coelho da Rocha.

Não se adduzem os 3.º, 4.º e 5.º artigos da refutação, porque ninguem
supporta um embrechado arripiante de textos latinos: e o auctor, com
quanto assim grangeasse voga de romancista sumarento e condimentoso,
seria lido apenas por tres ou quatro mestres de latinidade.


COROLLARIO

Melchior Pimenta era um dos paes presumidos na intenção do _Digesto_, na
lei citada, do L. 5.º _de in jus voc_, e C. da Rocha no cap.
_Paternidade e filiação legitima_.




XV


D. Angelica, afflicta com a longa ausencia de Ludovina, pedira ao marido
que procurasse a filha. Melchior Pimenta correra a casa, alarmando os
creados, que francamente lhe disseram que a senhora baroneza saíra na
sege. Melchior suspeitou que a destemida Ludovina descera ao infimo
degrau da desenvoltura, visitando o amante á hora do dia, no momento em
que seu marido a abandonava aos terriveis juizos da sociedade. Com as
mãos agarradas á cabeça, entrou o consternado pae no quarto da mulher,
abafando de vergonha, como elle dizia.

D. Angelica, receosa de que tudo já fosse notorio a seu marido,
apavorou-se, e quiz fugir do quarto.

«Que queres tu fazer agora, santa mulher?!--exclamou elle, sustendo-a
com meiga brandura.--Deixa'-la perder-se de todo, já que ella assim o
quer... Ahi tens como Ludovina te paga o sacrificio que fizeste da tua
dignidade e da minha para a salvares. Ainda bem que o procedimento
d'ella te ha de desmentir, Angelica...

--Que dizes?--atalhou a perplexa senhora.

«Que digo? pois eu não sei já tudo? Não me contou ella o que tu fizeste
para capacitar o barão de que Antonio de Almeida era teu amante, e não
d'essa desgraçada que tão mal aproveitou as tuas lições? O que tu
fizeste, não devias faze'-lo sem tomar o meu parecer; porque, a falar
verdade, se corresse o boato de que o escandalo era cousa tua, a minha
honra soffria tanto como a de minha mulher. O que vale é que o barão não
dirá nada, e o falatorio ha de acabar como acabam todos os escandalos,
quando os faladores se cançarem. Mas, Ludovina! Ludovina! onde está esta
mulher que nos anda envergonhando por lá?

«Estou aqui, meu pae--disse a baroneza com angelica serenidade, e
sorriso de meiguice para sua mãe.

--Minha filha, minha santa filha, minha providencia!--exclamou D.
Angelica abraçando-a com arrebatamento.

«Isso não é assim, Angelica!--disse carrancudo Melchior
Pimenta.--Pergunta-lhe de onde vem, e reprehende-a, já que tão boa moral
lhe ensinaste em solteira.

--Silencio, meu amigo. Vae...--atalhou com azedume D. Angelica--vae, e
deixa-nos sós.

«Não tem geito nenhum!--accrescentou o austero pae.--É preciso saber-se
para onde foi teu marido, Ludovina, e ir pedir-lhe perdão, perdão, antes
que a sociedade saiba que elle te abandonou.

--Irei, meu pae.

«Irás; mas entretanto sáes de carruagem, e não dizes onde vaes... Onde
foste tu, diz?

Ludovina abaixou os olhos, e não respondeu.

«Vês, Angelica?--proseguiu com virulencia Melchior--Não respondeu; já
sabes d'onde ella vem... Já se viu no mundo um descaramento assim?

--Nem mais uma palavra a minha filha!--exclamou com impetuosa arrogancia
D. Angelica--Nem mais uma palavra, porque se não, Melchior...

«Se não, o que?--interrompeu elle.

--Minha mãe, pelo seu amor lhe peço...--murmurou a baroneza, apertando-a
ao seio, como se quizesse comprimir-lhe as palavras no coração.

Pimenta sahiu, como entrára, com as mãos agarradas á cabeça. D.
Angelica, beijando soffrega a face da filha, dizia, soluçando:

«Ao que eu te expuz, minha querida victima! ao que tu quizeste
sujeitar-te, Ludovina! Pesa-me mais a tua innocencia diffamada que o meu
proprio descredito. Não, filha, isto não póde continuar assim. Deixa-me
ser virtuosa no crime, deixa-me expiar a minha culpa com menos amargura.
Esta expiação é a maior de todas, Ludovina. O meu coração está cheio de
fel. Tu queres salvar tua mãe e matas-me, anjo do meu coração. É-me
muito mais dolorosa a vergonha que tenho de ti, que da sociedade. Que o
mundo todo me culpe, mas perdôa-me tu, filha!

--Mãe, por piedade... não me turve a satisfação d'esta pequena virtude.
Olhe que não é heroismo isto, não, é a crença, a esperança de que a
felicidade ha-de vir para todos nós, se me não desviarem do caminho por
onde eu a busco...

«Para todos nós, filha! que innocencia, que illusão a tua! D'esta queda
ninguem mais se ergue, e menos eu.

--Ergue, mãe. Verá que o desenlace d'este desgraçado enredo não ha-de
ser o que a mãe espera.

«Oh, filha! tu queres que eu sobreviva a esse infeliz que mataram...

--Ninguem morreu, minha mãe. Olhe... aqui tem uma carta do sr. Almeida;
escreveu-a elle com o proprio punho; está livre de perigo... Veja, veja
o que elle diz...

D. Angelica abriu a carta com fervente soffreguidão, e leu o seguinte:

«Minha prezada amiga. Sei quanto deve ser-lhe penosa a noticia do triste
acontecimento, que hontem se deu. Apresso-me a dar-lhe a certeza do
nenhum risco da ferida, e rogo-lhe que se convença d'esta verdade, para
ser mais suave a cura. De v. exc.ª amigo verdadeiro.--_Antonio de
Almeida._»

«Isto é verdade, Ludovina?--exclamou ella erguendo as mãos, e apertando
a carta ao coração--Isto é verdade, minha filha?

--É, juro-lhe que é...

«Como podes tu jura'-lo? quem o viu?

--Eu, mãe.

«Tu! viste-o, Ludovina? sem repugnancia, minha filha? Que
inspiração tiveste de o visitar? O coração impellia-te? era o coração?
diz, diz, que eu preciso acreditar n'uma influencia divina em tua nobre
alma! Não me respondes, filha! Não queres dar-me a alegria completa! Foi
só por caridade, por compaixão, que o visitaste?

--Foi por amor de minha mãe que o visitei.

«E elle? que fez quando te viu? abraçou-te? beijou-te? chorou nos teus
braços, Ludovina? Disse-te alguma palavra que te espantou, augmentando a
tua piedade? Fala, fala sem pejo. Aqui a vergonha é toda minha. A
reserva já agora é impossivel entre nós, filha. Que te disse? responde...

--Nada, minha mãe...--balbuciou a baroneza.

«Nada?

--Que poderia elle dizer-me... para augmentar a minha piedade? bastava
ser nosso amigo de tantos annos... lembrar-me eu que o vi sempre ao pé
de minha mãe... recordo-me dos affagos que elle me fazia, dos bons
conselhos que me deu sempre, das consolações affectuosas com que
alliviava as minhas maguas, desde que infelizmente casei. Tanto como
isto era sobejo estimulo á minha pena. E, depois, vêr quanto a mãe
soffria... porque o prezava tanto como eu o estimava...

«Basta, minha filha, eu mortifico-te... Ha de custar-te amarguras
terriveis essa delicadeza... Comprehendo-te, minha amiga... Agora vaes
tu dizer-me por que meio has de restaurar o teu credito perante teu
marido... Não me atrevo a aconselhar-te, Ludovina, por que ha em ti
fortaleza de juizo que confunde a minha timidez e fraqueza... Faz o que
quizeres de mim; eu obedeço-te, sigo-te cegamente; acceito conselhos de
ti como do meu anjo da guarda.

--Eu não a aconselho, minha mãe... pelo contrario, supplico-lhe que me
advirta, se eu me desencaminhar do bom caminho onde a consciencia me diz
que estou agora. Toda a minha confiança está posta em Deus, que protege
a innocencia e é misericordioso com a culpa. O mundo será cruel
comnosco; seja, muito embora; nós supportaremos as cruezas do mundo, sem
nos curvarmos aos seus juizos. Minha mãe ha de ajudar-me a vencer os
dissabores passageiros da maledicencia, pensando em me fazer cada vez
mais digna do seu amor. No tocante ao que ha de vir melhorar a nossa
sorte, espero que virá, mas os meios não os sei. Hei de a este respeito
consultar o nosso amigo Antonio de Almeida.




XVI


Consta-me que é geral o cuidado que está dando aos leitores o barão de
Celorico de Basto.

Como este homem captou a benevolencia publica, mórmente a dos maridos,
isso não sei eu.

Caprichos.

Commiseração, lastima e dó, não a faz decerto o marido de Ludovina. Eu
de mim, apesar de quem me forneceu os apontamentos d'esta lugubre
historia, mais de uma vez tenho dulcificado com as amenidades da
linguagem o travor das informações insuspeitas. Faz-me zanga a
felicidade d'este marido, se o confronto com outros «minotaurisados»
iniquamente.

Não transijo com o estupido acaso que travou as relações de João José
Dias e Melchior Pimenta. Rebello-me contra a Providencia, se me dizem
que a Providencia entregára de mão beijada a rara joia de entre as
mulheres a João José Dias.

Riquezas amontoadas pelo acaso, pelo trabalho, pela economia, pelo
latrocinio, pelo talisman do buril, pelo fornecimento dos açougues
humanos na America, essas riquezas, vejo-as, entendo-as, explico-as;
porém, mulheres como Ludovina, corpos e almas de tanta perfeição,
creaturas que privam com os anjos, assim sacrificadas a um Baal
repulsivo de sandice e gordura, isto faz-me materialista, incredulo, e
atheu; ou remontado em assomos de espiritualista, confesso a
Providencia, mas tão sublime, tão ao longe das pequenezas d'este ponto
do mundo, que não cura de saber se o zoupeiro João José casa ou não casa
com a sylphidica Ludovina.

Não vou de encontro ás crenças de ninguem; Deus me livre. Todavia,
raciocinemos, em quanto a razão de si apoucada, não contender com os
dogmas indisputaveis da fé.

Saibamos, pois, o que é feito da sympathica personagem do barão de
Celorico de Basto.

Pesquizei miudamente o itinerário de s. ex.ª, e colhi as seguintes
informações, que podem auxiliar os alienistas no estudo das faculdades
intellectuaes de muitos barões, no primeiro periodo do seu desmancho.

Sei que chegou a Baltar bifurcado n'um garrano, e o preto n'outro.
Apeou-se ahi para reanimar o animo quebrantado da ensuada cavalgadura,
cuja pulmoeira recrudesceu na subida da serra de Vallongo.

Simão, vendo que seu amo rejeitava a vitela proverbial da estalagem da
terra, e, sabendo qual era o prato favorito d'elle, frigiu quatro ovos
com rodelas de cebola, e poz-lhe deante a fritada provocante, cuidando
que o acepipe mimoso abriria o apetite do melancolico barão.
Baldado empenho, perdidos desvelos, mas não perdidos ovos, que os comeu
o contristado preto, asseverando, a cada garfada, que os podiam comer os
anjos, para ver se assim estimulava o jejum de seu amo impassivel.

Reparou o preto, em quanto encovava o almoço, que o barão, de vez em
quando, sacava da algibeira o charuto horrendo, e resmungava em tom
soturno:

--Foste a minha desgraça, tição negro do inferno!

E contemplando-o com os olhos coruscantes de terror, arremessava-o com
frenesis impetuosos, e apanhava-o de novo para o esconder na algibeira!

«Que diabo é isto, senhor?--perguntára timidamente o preto.

--Não vês? é um charuto, que me ha de matar!

«Pois v. ex.ª fuma isso! Bote-o fóra, que tem má cara esse demonio!

N'estas e n'outras praticas semsaboronas, que não prestam para a
tragedia, nem para a farça, chegaram á villa de Torrão, onde o nobre
viajeiro apeou outra vez, e escreveu uma longa carta a sua mulher, na
qual carta entre muitos outros periodos lamuriantes, dizia que não lhe
era possivel fazer passar nada dos gorgomilos para dentro, e protestava
deixar-se morrer de fraqueza para acabar mais depressa com o seu
remorso. Pedia novamente perdão a D. Angelica, e rogava a sua mulher que
tornasse a supplicar em nome d'elle o perdão de Antonio de Almeida.
Outro sim, pedia á baronesa que mandasse dizer trezentas missas por alma
do defunto Almeida, e outras tantas por alma d'elle testador,
quando Deus fosse servido leva'-los á sua presença. O principal da carta
guardava as fórmas testamentarias: faltava-lhe, porém, a condicional
prescripta do «perfeito juizo e claro entendimento», posse de que o
preto duvidava muito, e os da estalagem não duvidaram menos, quando o
barão entrou a gritar que era um assassino, e estava já vestido e
calçado nas profundas do inferno. Almas boas que o ouviram, tiveram-n'o
em conta de possesso, e, se o barão não sáe, era filado pelo padre
Anacleto da Sacra Familia, egresso arrabido, que a piedade da
estalajadeira chamára para resar os exorcismos ao demoniaco.

O barão foi pernoitar na villa chamada Arco: (notem a paciencia de um
romancista que sabe do seu officio.)

O cirurgião da villa, chamado por deliberação do preto para ver o amo,
receitou um cozimento de fel da terra, tomado de manhã, e esfregações de
oleo de amendoas na circumferencia do abdomen.

O barão mandou-o á fava com louvavel discernimento, e escreveu quatro
folhas de papel almaço, que sobrescriptou a sua mulher. O contheudo do
aranzel tremendo era o disparate lastimoso de uma cabeça febril,
apavorada de visões sangrentas, que o forçavam a estropiar a syntaxe de
um modo lastimavel, e a desbancar o methodo do imaginoso Castilho no
invento da orthographia.

No dia seguinte, ás onze horas da manhã, chegou o barão á sua quinta de
Celorico, onde, creio que já se disse, viveram frades n'outro tempo. A
entrada do proprietario nos seus dominios foi assignalada pelo
primeiro accesso de loucura formal.

Á entrada da antiga claustra, estava um S. Francisco de pau com o seu
habito venerando.

O barão soltou medonhos gritos, clamando que o santo era o phantasma de
Antonio de Almeida. A logica do preto foi insufficiente para
convence'-lo de que o phantasma era o patriarca S. Francisco. Teimando
aquelle em conduzi-lo pela mão ao pé da imagem, afim de convence'-lo com
o tacto, o barão assentou-lhe na carapinha dois murros puxados d'alma,
com os quaes o paciente preto tambem viu phantasmas luminosos.

Os primos circumvizinhos começaram a visitar o genro de D. Angelica, e
saíam espantados do disparatar do barão, que descaía de uma conversação
atilada para a historia do phantasma infesto, que apparecia na casa que
fôra convento.

Fechado e trancado no seu quarto, o infeliz maniaco recitava monologos
estirados em tom cavernoso. O charuto andava sempre á baila nas
apostrophes descompostas, e recebia epithetos que esqueceram a Francisco
Nunes.

Eram decorridas setenta e duas horas de jejum estreme, quando o barão
pediu de comer a altos brados, e comeu porções incriveis de carneiro
guizado com batatas, facilitando o transito d'estas com emborcados
picheis do verdasco, predilecto seu.

Emergindo de uma especie de lethargia de leão sazonatico, o barão urrava
como d'antes, recuando ao phantasma, que já não era S. Francisco
sómente. Qualquer sombra se lhe afigurava aventesma, ou avejão como elle
a denominava. O proprio preto, se lhe assumava de repente á porta do
quarto, ou por entre as arvores da quinta, fugia espavorido á gritaria
rouquenha de seu amo.

Os facultativos chamados pela parentella compadecida capitularam de
demencia a cousa, e receitaram as sangrias e os vesicatorios. Os meios
persuasivos para o levarem á cama nada conseguiram; os da força seriam
inuteis, por que o preto espadaudo e possante, invocava o testemunho da
sua cabeça confusa contra o projecto da violencia. Ninguem se queria
arriscar ao perigo certo de um murro secco do barão.

Contava elle a toda a gente a historia do charuto que já trazia meio
desenrolado n'um canudo de papel...

Se porém acontecia proferir o nome da sogra, vinham-lhe convulsões, e
não acabava o conto. A historia, como elle a contava, fazia rir os
ouvintes. Aquelle charuto fôra-lhe enviado pelo diabo em troca da sua
alma. O charuto infernal obedecia á sua vontade, e despejava uma bala
como uma clavina, em consequencia do que, elle barão, matára um homem,
desfechando-lhe o charuto no peito. Acabada a historia entravam as
larvas a rodea'-lo, e elle a esconder-se de cócoras atraz dos
circumstantes.

Entenderam os cavalheiros de Basto que o barão fugira doudo á sua
familia, e avisaram a baroneza, lembrando-lhe a conveniencia de o
passarem a Rilhafolles, antes que a demencia se tornasse incuravel.
Chegou o aviso já quando Ludovina, avaliando pelas cartas a
desorganisação mental de seu marido tinha partido para Celorico de Basto.

Melchior Pimenta e D. Angelica julgavam temeraria a ida de Ludovina. O
pae (_Pater is est etc._) queria acompanha'-la, receoso de que a
presença d'ella enfurecesse o doudo. A baroneza recusou a protecção do
pae, e respondeu á mãe com palavras que a fizeram córar, posto que
adoçadas pelo respeito filial.

«Quando me casaram com este homem--disse ella--não se estipulou a
condição de que eu o desampararia, se elle enlouquecesse. Augmentam os
meus deveres, agora que elle mais precisa de uma amiga. A consciencia da
minha boa mãe manda-me ir; o coração deseja que eu não vá. Devo obedecer
á sua consciencia, para ser cada vez mais digna do seu coração.»




XVII


Ao cabo de tres semanas, Antonio de Almeida ergueu-se convalescente. As
melhoras de D. Angelica augmentavam por egual com as d'elle; mas uma
outra qualidade de soffrimento lhe amargurava a alma: era a saudade, o
anceio de falar-lhe, a necessidade de recompensa'-lo dos perigos da
morte com as suas lagrimas.

Almeida, porém, não lhe escrevia, não lhe dizia, ao menos, que o seu
amor não succumbira á terrivel catastrophe, que a sua amizade, ao menos,
venceria todos os estorvos.

«Que mal te fiz?

Diz D. Angelica em uma carta que lhe escreve.

«Uma grande desgraça aconteceu; mas essa desgraça foi de nós ambos,
Almeida.

«A bala que te matasse, matar-me-ia. O risco em que a tua vida esteve,
queres tu que eu t'o pague com a minha? A morte repelle-me.

«Quem me dera, meu Deus, quem me dera morrer, se ainda posso
deixar-te de mim uma lembrança triste, meu amigo!

«Este teu silencio dóe-me tanto como se te houvesse perdido, e chorado
na sepultura. Assemelha-se ao desprezo a tua frialdade. Bem sei que não
pódes vir a esta casa, á casa de minha filha; mas que não faria eu para
te encontrar, Almeida?

«Pois é possivel este desfecho de uma paixão que tantas lagrimas me ha
custado! Soffrer vinte e dois annos, envelhecer agradecendo-te os
tormentos e os remorsos que me empeçonharam a mocidade, para agora assim
ser despedida da tua alma, sem que ao menos me digas até que ponto sou
culpada no teu infortunio?

«Oh meu amigo, que infortunios seriam necessarios, que flagellos
inventaria o inferno para me fazer deixar-te!

«Eu tinha d'antes noites desveladas de continuos remorsos--se tinha!...
vós o sabeis, Deus meu!--e, ao cabo d'esse martyrio, sondando-me,
Almeida, sentia-te mais dentro do meu coração, mais senhor da minha alma!

«Conspirassem todas as forças d'este mundo contra mim, fosse eu chamada
para dar conta da minha honra, proferiria o teu nome com orgulho,
offerecendo o rosto para todos os ferretes da ignominia. Isto assim era
amor, amor insensato de mulher que faz da sua deshonra um heroismo!

«E tu pagas-me tão cruelmente, meu amigo! Adivinhas que em tres semanas
os meus cabellos se fizeram brancos? Assusta-te a presumpção de que
a minha face envelheceu? Não pódes já ver em mim signaes desvanecidos da
Angelica dos dezoito annos? Tens razão, Almeida; estou velha, mas o
coração, unica belleza que eu tinha, unico dote que fazia a minha
vaidade de merecer-te, esse, meu amigo, aperfeiçoou-se através de vinte
e dois annos, está hoje como não estava quando te assenhoreaste d'elle,
aperfeiçoou-se em contacto com os dons sublimes do teu, encheu-se de
amor que o ha-de matar, porque já não tenho peito que possa conter tanto
fel!

«Não estou assim repulsiva que te afugente, Almeida. Não imagines o que
fui, nem repares no que sou. Lembra-te só do perdido amor que te dei,
mova-te só a lembrança do muito que a minha alma te quiz; acceita-me na
velhice uma amizade, que te não será pesada agora, nem embaraçosa para
tua felicidade. Diz-me só que o teu silencio não é desprezo nem
esquecimento. Poupa-me á horrivel morte que me faz tremer. Se tudo
perdi, resta-me o recurso da tua commiseração. Imploro-a de joelhos.
Amor, esse sei eu que se não supplica; mas engana-me, Almeida,
engana-me, por piedade. Diz-me que uma dedicação de tantos annos não
póde acabar com o desprezo.»

_Ingrato homem!_ é a exclamação natural com que as leitoras sensiveis
exprimem o seu dó.

Pois decidem de leve, e accusam com a costumada injustiça. Antonio de
Almeida é tão digno de lastima como Angelica. Ora, vejam a seguinte
carta que Ludovina lhe escreveu, antes da sua partida para Celorico:

«Lembra-me que, sendo eu creancinha, sentava-me no collo do meu amigo,
anediava-lhe os cabellos, fazia-lhe muitas meiguices de coração e de
astucia, para no fim lhe pedir um brinquedo, um passeio, uma qualquer
cousa que o meu amiguinho me não sabia negar.

«A creança fez-se mulher, já não sabe ameigar antes de pedir; mas essa
falta vem de eu me esquecer das maviosas e candidas palavras que sabia
então. O coração é bom como era, a affeição maior e mais entranhada, a
confiança de ser bem recebida em meus rogos é mais solida: o que me
falta, como já disse, é o tom carinhoso, a meiguice seductora da
innocencia.

«Não importa. Eu vou pedir ao meu amigo um favor, favor immenso; empenho
para alcança'-lo da sua generosa alma todo o amor que me teve, todas as
recordações doces que o trazem desde o berço de Ludovina até estes dias
tristes que vamos vivendo.

«Peço-lhe, meu amigo, que tire da sua virtude as forças que o coração
não tiver para cumprir uma supplica que vou fazer-lhe em poucas palavras.

«Seja mais forte que a minha pobre mãe. Se vir que ella cáe, sustente-a.
Trabalhe comigo para que o segredo d'aquella noite horrivel se não
descubra á curiosidade infamadora do publico. Não peço que lhe dê
consolações frivolas. Lições de virtude, suspeito que não aproveitam a
minha mãe, sendo dadas pelo meu amigo. A razão está muito longe do
coração. Penso que minha mãe tomaria como esquecimento, ou
desamparo os seus conselhos.

«Conhece bem a situação de minha mãe, sr. Almeida? Siga o que a sua
honra lhe inspirar. Veja que novas desgraças podem seguir-se. Avalie o
que eu tenho feito por ella, e medite na extensão da minha dôr se tudo o
que fiz e faço fôr perdido.

«Não sei dizer o que me está na alma. Pode ser que eu dissesse o mais
confusamente que é possivel o meu pensamento. Lá está o seu nobre
espirito para aclarar a obscuridade d'essas palavras.

«É necessario grande animo para me obedecer? Soffra, meu amigo, soffra
comigo. Olhe que me ha de abençoar, e gloriar-se do seu sacrificio.

«Eu parto hoje para Celorico. Meu marido é digno de pena. Vou ajuda'-lo
a combater os remorsos que o tem levado ao infortunio da demencia.

«Olhe que vida esta, meu amigo! Sirva-lhe o meu exemplo para a
paciencia, e para o heroismo. Adeus. Sua amiga _Ludovina_.»

Esta carta explica o silencio de Antonio de Almeida. Comprehendeu-a com
o juizo prudencial dos quarenta annos. Meditou-a com tanto respeito como
admiração. Recolheu as palavras d'ella com religiosa austeridade, e
violentou a alma a aceitar o juramento da observancia, com pena de
deshonra e villania, se rescindisse alguma vez a alliança que fizera com
a que elle, no intimo de seu coração, chamava filha.

Eu sei de mais que os amadores, em romance de boa escola, não
costumam assim accommodar-se, e obedecer aos ditames da razão. Estas
cousas, como ahi se contam, são naturaes e observadas, e sentidas; por
isso mesmo desagradaveis, em novella, onde o bom é o inverosimil, e o
que mais captiva é o que mais repelle o coração bem formado.

Estes amores de Antonio de Almeida e D. Angelica, tractados por
imaginação de mais pulso, davam para muito brilhar. Estou a ve'-lo a
elle, pelo prisma phantastico dos mestres, erguer-se da cama com a mecha
ainda na aberta chaga, um par de pistolas de doze tiros, nas algibeiras,
entrar, entrar de cabellos hirtos e rosto livido, no quarto de Angelica,
e semi-desfallecido nos braços d'ella, dar largas á parlenda, e
vociferar, por entre amorosas phrases, esconjuros odientos contra o
genero humano, contra a instituição do matrimonio, e contra os deveres
conjugaes! Agora se me afigura vêr Melchior Pimenta assumar no limiar da
porta, e embasbacar petrificado diante do grupo escandaloso. Ha gritos,
injurias, investidas, até que alfim, levados á puridade para um recanto
da casa, ahi combinam um duello de morte, no dia seguinte. Medonha
figuração me avulta agora na imaginação de emprestimo Melchior Pimenta,
após a detonação de dois tiros, cambaleia sobre as pernas, leva a mão ao
seio que espirra golfos de sangue, põe os olhos annuviados no céo
impassivel, que contempla o quadro feio, e expede o derradeiro halito,
nos braços dos padrinhos.

Quantos capitulos desgrenhados cuida o leitor que dava esta
parvoiçada imaginativa? Dois volumes em oitavo com seiscentas paginas,
afóra o subsidio das reticencias, que, na minha opinião d'outro tempo,
foram inventadas para definir a mulher; e na minha opinião d'agora,
inventou-as o primeiro litteratico ôco de idéas.

Ora, que fiquem com Deus os mestres que tão vistosos de zarandalhas nos
embelecam; e, pelo caminho direito, mas escabroso da verdade, vamos
entrar na ultima jornada d'esta historia.




CONCLUSÃO


O barão de Celorico parecia uma creança atemorisada ao pé de Ludovina.
Se a perdia um momento, davam os espectros com elle, e lá ia o pobre
homem gritando, até se acocorar ao pé d'ella, escondendo-se com a roda
do vestido.

Bastava a presença de Ludovina para socegar-lhe os accessos de loucura,
manifestados em exclamações desatadas, quasi sempre seguidas da
apparição do charuto cuja historia elle contava a sua mulher, pelo theor
ridiculo que já lhe ouvimos.

Acudia Ludovina com o inutil remedio da razão, despersuadindo-o da morte
de Almeida. O barão abria a bocca attenciosa, parecia dar mostras de
entender e acreditar; o desfecho, porém, do silencio sereno com que a
escutava, era ver um novo avejão, que o vinha aterrar por cima do hombro
da mulher.

Os primos compadecidos, e os facultativos aconselhavam á baroneza o
emprego dos meios violentos para o curarem. A grande idéa therapeutica
era o caustico e a sangria. A contristada senhora annuiu. Por sua
parte, fez-lhe até carinhos para o induzir a deixar-se sangrar. O barão
replicava que o queriam matar, e de joelhos pedia á mulher que não o
deixasse morrer ás mãos dos seus inimigos, que o perseguiam para lhe
roubarem a esposa.

Resolveram empregar a força. Dois robustos camponios tomaram a peito a
ardua empresa. O cirurgião armado de lanceta esperava o ensejo propicio.
O officioso abbade da freguezia encarregára-se de cingir-lhe um lenço
sobre os olhos. O juiz ordinario pegava na bacia. Varios primos formavam
o corpo de reserva, e a baroneza fugira para não presenciar os
extrebuxamentos do infeliz.

--Agora!--disse o facultativo.

Á palavra _agora_ o barão estava entalado entre quatro braços
cabelludos, e o abbade, á rectaguarda do preso, lançava o lenço com mão
certeira. O barão arquejava, sem comtudo barafustar entre os membrudos
braços. Tudo promettia um propicio resultado, quando o antigo hercules
da rua dos Pescadores sacode um solavanco, e dispara dois murros
simultaneos nas ventas vizinhas. Umas eram as do abbade, o proprietario
infeliz das outras ventas era o juiz ordinario. Investiram de novo
contra elle os athletas: cara lhes foi a façanha, porque apararam um
choveiro de sôcos tremebundos, indo um d'elles por engano, estoirar na
lombada do cirurgião. Rarearam as fileiras. O abbade, o juiz, e os
homens de péga, parte dos primos, e o cirurgião coaram-se
cabisbaixos pela primeira porta que lhes franqueou a fuga atropellada.

N'esse conflicto appareceu Ludovina. O doudo baixou as armas
contundentes, os braços iteriçados que vibravam o ar como duas
mangueiras de malho. Correu para ella, como a pedir-lhe soccorro,
ouviu-lhe as reprehensões com o tremor do medo, e cahiu prostrado da
lucta sobre uma cadeira, apegando-se á saia da baroneza.

Aqui está o viver da deploravel senhora, no espaço de um mez, em
Celorico de Basto. Aquella vida, e as dôres profundas de outras causas,
eram o preço por que se fizera, ou a fizeram opulenta aos olhos da
sociedade, que, ainda assim, a invejava.

O barão desmedrára a olhos vistos. Do antigo João José Dias restava o
arcabouço proeminente de angulos osseos. A panda physionomia, tão rubida
de nediez chorumenta, chupára-se, entanguira-se, cousa de fazer lastima.
Diziam todos que a baroneza, um mez depois, seria uma formosa e rica
viuva. Já dois dos primos, morgados empenhados, botavam suas medidas, e
porfiavam a conquista. As damas, com palavras francamente grosseiras,
iam dando os parabens á baroneza. As que ousaram feri'-la assim, ouviram
resposta que lhes fechou para sempre as portas de sua casa.

A idéa que dominava o barão era a morte de Antonio de Almeida. Ludovina
perdera a esperança de afugentar o phantasma, empregando razões tão
convincentes da vida de Almeida como eram mostrar-lhe cartas
d'elle, que o barão ouvia ler com o sorriso do idiotismo, percursor de
nova berraria.

A ultima que Ludovina lera, quasi certa de que seu marido não a
percebia, foi a seguinte:

«Minha amiga. É já bastante o numero dos infelizes que põem os olhos
lagrimosos no abrigo consolador de Ludovina. Somos já muitos os
desamparados da esperança e da alegria. D'aqui até ao fim da vida é
soffrer, e chorar de modo que o mundo nos não veja as lagrimas: é
preciso que o coração as verta e as absorva; é necessario suffocar os
gemidos, e entreter as dôres, cavando a sepultura.

«Curta será a minha existencia. Quarenta e quatro annos, e a saude
alquebrada, e o coração feito pedaços, é um bom agouro, não é? Mas, para
Ludovina será extensa a estrada da amargura. Tem vinte annos, minha
amiga; vejo-a na aresta do precipicio, a contemplar-lhe a profundeza, e
ahi se lhe hão de prolongar as horas como as do desterrado. Meu pobre
anjo! quem lhe vaticinaria ha dez annos este infortunio?

«A santidade do seu viver devia ser recompensada aqui; mas a fé, a
religião dos desgraçados, ensina que o premio das grandes virtudes não
póde ser dado n'este mundo porque não ha mãos puras que possam tecer a
corôa do martyrio. Espere, Ludovina, com os olhos no céo, e a mão sobre
o seio para esmagar os impetos do coração, que tem accessos de raiva
blasfema.

«Obedeci-lhe, Ludovina.

«Comprimi, abafei, matei a essencia da minha vida, o sentir que m'a
fazia preciosa. Sou para sua mãe uma memoria. D'ella tenho só o nome
escripto no coração, como o epitaphio do affecto que ali morreu recalcado.

«Deu-me um calix, Ludovina. Bebi-o de um trago. Se tem outro,
offereça-m'o; toma'-lo-hei de joelhos.

«Pergunta-me qual é o meu viver?

«É isto, minha amiga. Não sei dizer-lhe que turbação afflictiva me
embaça o animo. Em redor, todos os meus horisontes são tenebrosos. A
mesma sepultura perdeu para mim os encantos de repouso, esse acabar que
é o porto seguro de todos os naufragos d'este horroroso pego.

«Poderei fazer-lhe entender, Ludovina, um quadro triste da minha
imaginação cançada de soffrer? Vejo dois vultos em pé, taciturnos,
sombrios, com os olhos cerrados, travando-se as mãos com a gelida
immobilidade de duas estatuas. Parou a vida externa n'estes dois entes.
Uma tremenda agonia lhes despedaçou a maior parte do coração; o
remanescente são fibras de ferro que resistem ao veneno e á morte. Ao pé
d'elles está a sepultura de ambos, e o anjo da consolação, sentado
n'ella, alimenta ahi a alampada da esperança.

«Adeus, minha santa amiga.»

Esta carta reclamaria notas explicativas, se o entendimento do leitor
não traduzisse a singelo o que ahi se esconde no figurado da linguagem.
A alliança de Antonio de Almeida e Ludovina, sobre um contracto de honra
tão melindrosa, não podia ser tractada com mais recato e pejo, de ambas
as partes. Entende-se o melancolico debuxo que attribulava o
espirito de Almeida. Angelica era a companheira d'esse homem que lhe
dava as mãos á borda da sepultura. A alampada da esperança alimentada
pelo anjo da consolação, era o fito da morte d'onde ambos não desfitavam
os olhos, como a naufragos succede, se no horisonte se lhes recorta um
rochedo salvador.

Ludovina entendeu o viver de sua mãe, e pungidas lagrimas essa carta lhe
desentranhou do coração. Chamou-a para si com grandes demonstrações de
saudade. Pediu-lhe que fosse alliviar-lhe o peso da cruz á qual já não
bastavam seus hombros. Dava-lhe paciente conta do seu viver ao pé do
barão que noite e dia bramava contra os espectros, e já dava aos
facultativos receio de morrer desvariado, a mais acerba de todas as mortes.

D. Angelica, fechada em seu quarto, realisava a imagem que a phantasia
de Almeida adivinhára. Sombria, inerte, reconcentrada, impassivel a
cuidados, carinhos, e desvelos de Melchior Pimenta, apenas dizia que
estava esperando a morte, e repellia com desabrido enfado os lenitivos
de quem quer que fosse.

Nunca mais escrevera a Almeida, e á filha eram mais as lagrimas que as
lettras. Não era a sua uma d'essas dôres que desabafam. Sentia-se tomada
de vergonha, se o coração a mandava abrir-se em desafogados prantos com
Ludovina. Sentia-se ferida de aborrecimento, se não odio, quando o
marido, mais simulado que dorido, lhe repetia as consolações frivolas de
quem não comparte as penas.

Á saudosa carta que a chamava a Celorico, D. Angelica respondera que já
não tinha vigor que a levantasse do seu leito. Supplicava a Ludovina que
lhe perdoasse a ella como causa dos seus tormentos, e lhe acceitasse
como reparo do seu pouco amor maternal os amargos transes que lhe
estavam desfazendo o coração fibra por fibra.

No entanto, disseram os medicos á baroneza que a apparição d'esse homem,
que o barão julgava sua victima, poderia recobrar-lhe a razão,
desopprimindo-a de phantasmas e remorsos, causas principaes da demencia.

Ludovina communicou a Almeida as esperanças dos medicos, sem pedir-lhe o
sacrificio de se verem.

Almeida foi a Celorico de Basto, e encontrou ao pé da baroneza Melchior
Pimenta.

Ludovina turvou-se da surpresa, e assim denunciou aos olhos do pae o
sobresalto em que a puzera a apparição do amante.

Melchior Pimenta, forte da sua indignação, insultou Almeida,
exprobrando-lhe a pertinacia da infamia, e ameaçando-o com a morte, se
elle não sahisse immediatamente d'aquella casa.

Ludovina cobrando forças, disse que só ella tinha direito de expulsar
alguem d'aquella casa. Encruou-se a sanha de Melchior, vociferando
injurias contra a filha, e provocações ao hospede silencioso. E saíu
escandecido de raiva. Almeida quiz segui'-lo, com sereno gesto, sem
assomos de colera, nem proposito de vingança. Impediu-o Ludovina com
lagrimas e gemidos que irritavam as iras paternas. Bem se via que
não estava ali um pae; e, se estava, não era por certo Melchior Pimenta.

Este conflicto atalhou-o o barão. Seguiu-se uma scena de effeito
dramatico. O barão recuava diante de Almeida que lhe extendia a mão.
Ludovina segurava o marido, pedindo-lhe que acceitasse a reconciliação
que Almeida lhe offerecia. Este com palavras afectuosas lhe pedia a sua
estima, e o esquecimento da passada offensa. O barão, ora espavorido,
ora risonho, alternava os olhos entre Almeida e Ludovina.

O leitor já sabe como no theatro se recupera o juizo. Se é mulher a
douda, rigorosamente desgrenhada esfrega os olhos, atira com as madeixas
para traz, e dá fricções seccas ás fontes com frenesi; se, homem, abre a
bocca, espanta os olhos, soleva o peito em arquejantes haustos, despede
o grito agudo obrigado a ambos os sexos, e está pessoa de juizo, capaz
de casar, que é quasi sempre a peor das doudices em que os auctores
fazem cahir os seus doudos, restaurados para a razão.

Pois o barão de Celorico não se curou por esse theor. Os áditos da razão
estavam cerrados de modo que levou longo tempo a despedaça'-los. A
continua assistencia de Almeida ao pé do leito, e as continuadas
insinuações de Ludovina, conseguiram rehabilitar-lhe o juizo, mas
vagarosamente. O barão parecia emergir d'um pesadello atroz quando
reconheceu Almeida. Não houve exclamações nem abraços de pé atraz,
_secundam artem_. Lagrimas, sim, as da baroneza, cujo contentamento
desmentia as conjecturas dos primos que a imaginavam lograda nas
suas ancias de viuvez. O custoso, depois, foi rebocar os estragos que a
demencia fizera no corpo do barão. Foi longa a convalescença. Almeida
quiz despedir-se; mas o enfermo erguia as mãos supplicantes pedindo-lhe
que o não deixasse.

Melchior Pimenta, de volta de Celorico, contou a sua mulher o escandalo
que presenceára. Repetiu contra Ludovina as injurias que lhe dissera em
face. Protestou esbofetear e apunhalar Almeida na presença de
testemunhas que depuzessem no processo da sua honra, e impoz, com
auctoridade, a sua mulher a sahida immediata da casa da adultera.

D. Angelica ergueu-se impetuosa e terrivel, exclamando:

--A adultera sou eu!

--Que dizes, Angelica?!--bradou Melchior.

--Adultera sou eu. Ludovina encobriu a minha deshonra com a sua virtude.
Os nomes insultuosos que lhe dás, repara bem, Melchior, e ve'-los-has
estampados no meu rosto. Se queres lavar com sangue estas manchas,
arranca-m'o do seio!

E assim falando, tirava o lenço que lhe velava os hombros, offerecendo o
peito.

--Endoudeceste, minha querida Angelica?--exclamou Pimenta--Faltava-nos
esta desgraça! Estás douda! maldita seja tua filha que te levou a esta
situação!

«Não estou douda, Melchior! não estou douda! Estou moribunda, e não
quero deixar infamada a teus olhos a minha filha. Se eu te pedisse
perdão do meu crime, acreditar-me-ias?

--Não, não. Tu és uma esposa virtuosa, Angelica! Diz o que quizeres para
salvar Ludovina, que eu não te creio. Reprovo essas demasias de amor,
que ella te está pagando com o amante ao pé de si.

«Melchior!--disse Angelica com firmeza e gravidade--A tua filha está
innocente; a amante de Antonio de Almeida sou eu! Não me perdôes, vinga
em mim a tua deshonra, porque o perdão não t'o peço. Sabias, quando me
acceitaste como tua, que eu não podia pertencer-te. Collocaste ao meu
lado o homem que me fazia odiosa a tua baixeza. Nunca me perguntaste se
era verdadeira a carta que te escrevi em solteira, pedindo á tua
commiseração que me deixasses. A mulher que fez isto, não pede perdão.
Revolta-se com a coragem do desespero, e deixa-se morrer. Confesso o
crime para salvar minha filha. Julga-me tu agora, mas vae pedir perdão
áquella santa que quiz poupar tambem a tua dignidade.

Melchior Pimenta saíu do quarto de sua mulher.

Para se armar do punhal de D. Jayme de Bragança, e do infante D. João?

Para se dar um tiro no ouvido?

Para mergulhar da ponte-pensil, ou despenhar-se dos Arcos-das-Virtudes?

Para scismar e endoudecer?

Não, senhores.

Melchior Pimenta foi para a Alfandega, jantou no hotel de Miss
Mery, e jogou o voltarete até ás onze horas na Assembléa Portuense.

No dia immediato, visitou sua mulher, e recommendou-lhe que desse um
passeio no jardim que estava o dia agradavel. Ás tres horas procurou-a
para jantar ao pé d'ella. Disseram-lhe que a senhora tinha sahido n'uma
cadeirinha, e deixára uma carta para seu marido.

Não vi esta carta, mas infiro o contheudo pelos successos subsequentes.

D. Angelica obteve, vinte e quatro horas depois, licença de seu marido
para entrar n'um convento, situado n'um ermo do Minho. D'ahi escreveu a
sua filha, pedindo-lhe uma esmola para sustentar-se, visto que o
trabalho não bastava para as suas pequenas necessidades.

Ludovina apressou a sua volta para o Porto. Obteve licença para visitar
sua mãe, e demorar-se no mosteiro por tempo indeterminado. Acompanhou-a
o marido e deixou-a com a certeza de a trazer comsigo passados dias.

São decorridas dois annos. A baroneza de Celorico ainda não sahiu do
convento. O barão soffre resignado a certeza de que sua mulher não
sahirá jámais.

A opinião publica diz que Ludovina merece louvores por não ter o
descaramento petulante de apresentar-se como outras muitas, incursas no
mesmo peccado, e declara a alta virtude de D. Angelica, mãe amorosa que
deixa a sociedade para se inclausurar com a filha desamparada.

Melchior Pimenta está bom, e é commensal do barão.

Antonio de Almeida encetou, ha dois annos, uma longa viagem d'onde não
voltou ainda.

O bacharel Ricardo de Sá comprou mais tres bengalinhas, e dá a ultima
demão ao seu SECULO PERANTE A SCIENCIA.

São hoje 15 de fevereiro de 1858.

O unico personagem morto d'esta historia é Francisco Nunes. Expirou ao
cabo de uma violenta apostrophe, expedindo o derradeiro golfo de sangue
com o epitheto mais fulminante que a sua cólera lhe suggeria. Matou-o o
contracto do tabaco.


FIM




SUPPLEMENTO


PREFACIO

O romance estava acabado. Os meus numerosos admiradores, que
eu regalára com a leitura d'essas duzentas paginas, haviam asseverado,
com a costumada franqueza, que este volume era a flor da virtude a
rescender perfumes de deleitosa aspiração para as almas. Um d'esses,
cujo voto muito respeito pela _massa_ de conhecimentos que _amassou_ em
Frederico Soulié e Alexandre Dumas, accrescentou que o romance _O que
fazem mulheres_ era a flor do meu talento. Cheio de encantadora
modestia, perguntei se a virtude da minha heroina precisaria de mais
tres ou quatro capitulos para ser vista a toda a luz celestial com que a
Providencia lhe irradiára o espirito. Disseram-me, á uma, que não
escrevesse mais uma só linha, que deixasse á perspicacia das leitoras o
desvelarem mysterios do coração, que eu não saberia illuminar sem
profana'-los, que deixasse ás lagrimas das almas sensiveis o fecho
d'esta historia, que esperasse, finalmente, alguns annos, para então
escrever a segunda parte da biographia da baroneza de Celorico de
Basto, que talvez os collegios de meninas adoptassem para uso das
educandas.

Convenci-me d'isto, e mandei ao meu editor o romance, com a prophecia de
ser este um livro cuja decima edição apenas bastaria para aquietar as
ancias d'um terço do paiz. Disse-me em linguagem fria o meu editor que
uma virtude em duzentas paginas por quinhentos réis era, pequena de mais
para o comprador que prefere um livro em trezentas. Redargui-lhe, com
argumentos de grande calibre logico e moral, que a unidade da acção era
inatacavel no romance.

_Item_: que o estirar uma idéa para avolumar a lombada de um livro era
chatinar a mercancia litteraria.

_Item_: que muitas capacidades largas e agudas, ás quaes eu submettera o
meu manuscripto, se compromettiam a dizerem que este livro era a quinta
essencia de tudo que se tem escripto acerca das mulheres virtuosas desde
Sancta Agatha até ás Virgens do Thirol.

Chamei em meu abono Aristoteles, Longino, e mais alguns legisladores que
eu não conhecia, para convencer o interprete do publico de que as raias
do meu trabalho de chronista não podiam transpôr as da realidade. Por
quanto:

Não é inventada esta historia;

Não quadram os incidentes imaginados com o essencial de um conto
verdadeiro;

Não tolera um leitor sisudo que se lhe encampe á credulidade enfadonhas
narrativas que agorentam a verosimilhança, ou enfastiam a attenção
benevola.

Após uma renhida desavença da qual ia resultando a perda do manuscripto,
que eu insensatamente sacrificaria ao meu bem entendido orgulho, viemos
ao accordo de se publicar o magro volume com grandes margens, grandes
entrelinhas, exuberancia de reticencias, e alguns juizos criticos dos
meus amigos que serviriam de indigitar ao leitor em que paginas estão as
bellezas que elle não viu.

Concertados assim, estava o typographo com a ultima pagina, quando eu
fiz uma excursão ao Minho, e encontrei no Senhor do Monte o cavalheiro
que me contára o contexto d'este romance, nos ultimos dias do mez de
janeiro proximo passado.

A nossa conversação de algumas horas vae ser trasladada em paginas
supplementares.

Antes, porém, de entrar n'essa tarefa que realmente me dóe, seja-me
permitido verter uma lagrima no degrau do altar onde eu collocára
Ludovina, onde ella se collocára, e de onde se me afigura que...

Não dou ansa a juizos temerarios do leitor. Leiam, e decidam se a
virtude perfeita não é uma utopia impossivel n'um livro que tiver mais
de duzentas paginas.

Cumpre dizer quem é a pessoa, destinada pela providencia dos romances a
figurar n'este supplemento.

V. ex.as de certo a conhecem. Viram-na já muitas vezes no theatro, nos
bailes, e na missa dos Congregados, na dos Clerigos, na do Carmo, em
todas as missas classicas em que se vê tudo, e se ouve tudo, menos o
padre e a missa.

Eu dou os signaes do homem.

Tem uma bella cabeça, uns bellos cabellos, uns bellos olhos... Já
conheceram?

De vinte leitoras, dez estão na duvida. Se v. ex.ª é uma das dez
perplexas, desperte as suas reminiscencias com os seguintes traços:

O nariz é a feição mais caracteristica d'este homem. Na base tem um
promontorio, no centro uma protuberancia, na ponta uma recurva como o
bico de um passaro. Chamam-se estes narizes _Bourbons_. Agora
conheceram-no todas. Na escola dos physionomistas, este nariz tem
significações espantosas. É um nariz que individualisa um homem; é um
livro aberto; é o porta-voz dos segredos da alma; é em summa, uma
biographia.

Foi o que me approximou d'este homem. Se a natureza lhe désse a elle um
nariz vulgar, o leitor não se decidiria na leitura d'este romance. Vejam
de onde eu tirei um livro! O nariz de Cyrano de Bergerac foi causa de
vinte duellos de morte. Do nariz do meu amigo podem pender vinte volumes.

Fascinou-me, e fui eu que me offereci á sua amizade. Achei-o um homem
raro, sabendo profundamente a vida de v. ex.as, quero dizer, todas as
virtudes que v. ex.as escondem, todas as perfeições que a sociedade não
vê, sem lh'as explicarem.

É provinciano o sr. Marcos Leite: dê-se-lhe este nome. Visita o Porto
duas vezes cada anno, uma no carnaval, outra na estação do theatro
italiano.

Consta que nunca teve namoro que o entretivesse nas duas estações.
O nome da mulher, que adora, até á demencia, no carnaval, quasi sempre
lhe esquece na Paschoa seguinte. Em compensação, as mulheres rejeitadas,
quando o leão volta das suas selvas nataes, apenas dão fé que Marcos
está no theatro das suas façanhas pelo estrupído extraordinario do
cavallo, que elle atira em arremettidas e sacões pelas ruas mais sonoras
da cidade eterna. A não serem as mulheres o que providencialmente são,
Marcos Leite seria prea dos dentes do remorso, ha muito tempo. Não ha
uma só das esquecidas damas, que lhe não incendiasse no mais intimo do
peito um amor eterno... de tres semanas.

Algumas possuem cartas de uma paixão tão frenetica, que as exclamações
de Werther, comparadas com ellas, são frias e chatas como um rol de
roupa suja.

Foi, pois, este cavalheiro, respeitavel em todos os sentidos, que me
contou o essencial da historia do barão de Celorico, accrescentando que
tinha visto duas vezes de relance, n'uma grade d'um mosteiro do Minho,
proximo ao seu solar, a figura celestial da baroneza, e a sympathica e
ainda juvenil physionomia de D. Angelica.

Por essa occasião, lhe perguntei eu se traçava alguma rede á virtude
heroica de Ludovina. Respondeu-me o narrador, que não ousava escalar uma
fortaleza em cujo assalto era forçoso triumphar, ou morrer.
Accrescentou, que, nem ainda cooperado por duas primas que tinha no tal
convento, elle se animava a revelar a Ludovina uma affeição, que,
desprezada, se tornaria em loucura furiosa.

Pareceu-me sensata a resposta de Marcos. Que homem conseguiria alvoroçar
aquelle coração, que eu imaginava esmagado sob a pressão de uma virtude
exaltada?

Decorreram quatro mezes, e, como disse no prefacio, fui, ha dias,
surprehendido no Senhor do Monte por Marcos.

Conhecem aquelle saudosissimo arvoredo, que rumoreja na sumidade da
serra, e aquella fresca alameda que está tapetando a entrada para a _mãe
d'agua_? Foi alli que o encontrei, encostado á mesa de pedra, lendo LES
REVERIES de Senancourt; leitura que eu aconselho a todas as pessoas que
precisam idealisar um mundo medio entre o asquerosamente lôrpa em que
vivemos, e o absurdamente inintelligivel que nos promettem as religiões.

Quando me viu, Marcos Leite correu a abraçar-me, exclamando:

«O meu coração tinha-te invocado. Abominaria quantos homens e mulheres
me apparecessem aqui, menos tu, e ella...

--Temos ELLA!

«E tu vieste para este sitio com o coração vazio?!

--Graças a Deus, não, meu poeta. Trago tecidos, membranas, valvulas,
ventriculos, veias, arterias, nervos, sangue, etc. O meu coração está
funccionando com a mais physiologica das regularidades. Respiro
desafogadamente, e completo a digestão de uns succulentos pedaços de
boi, que triturei _sub tegmine fagi_.

«Se vens assim, melhor fôra que não viesses. Eu queria que me
entendesses, como creio que me entendem, ha tres dias, estes rumores da
floresta. Escuta! Vê tu se este ermo, se este sussurro, que parece o
echo esvaido de um mundo remoto, não te está dizendo que o amor é a
vida, que a esperança é a felicidade, que debaixo do céo ha só tres
cousas grandiosas, o homem e a mulher um para o outro, e a soledade para
ambos! Não digas alguma blasphemia! Esse sorriso offende, e é um
sacrilegio aqui. Agradece ao Senhor que nos dá isto, esta fontinha, a
fresquidão d'estas sombras, o murmurio d'estas arvores, o azul do céo,
lá em baixo a melancolia poetica do valle, o som do campanario rural que
repercute na alma...

Marcos Leite tinha razão. Não pude contrafazer, por mais tempo, a minha
indole triste. Entrou-me a saudade no coração, aninhando-se no pequeno
recinto não tomado ainda pela desesperança. Lancei os olhos ao livro em
que lia Marcos, e recolhi á alma as seguintes linhas:

_La paix jointe aux lumières sera le partage d'un homme dans toute une
province. Quant au contentement, on le cherche, on l'espère même;
peut-être l'obtiendrait-on, si la mort ou la décrépitude ne survenaient
auparavant... La vie était bonne, et on lui trouve encore des douceurs
que la raison ne saurait méconnaître. Mais il importe que l'imagination,
renonçant aux écarts, et servant elle-même d'asile contre les peines,
anime seulement le repos que l'âme peut conserver quand elle est restée
pure._

«Que é isto?--perguntei eu tomando de sobre a mesa um papel escripto a
lapis.

--Versos, meu caro; linhas, é melhor dizer linhas. O coração mais poeta
creio que é o menos metrificador.

«Póde saber-se que anjo te roçou a fronte com a aza?

--Não adivinhas quem eu poderei amar assim? Ha uma só mulher n'este mundo.

«A baroneza?

--Com que frialdade proferes esse nome! Chama-lhe antes Ludovina...

«Lê os versos.

Marcos declamou com as mais maviosas modulações do sentimento a seguinte
poesia:

           A LUDOVINA

    Quem ha ahi que possa o calix
    De meus labios apartar?
    Quem, n'esta vida de penas,
    Poderá mudar as scenas
    Que ninguem pôde mudar?

    Quem possue n'alma o segredo
    De salvar-me pelo amor?
    Quem me dará gotta de agua
    N'esta angustiosa fragua
    D'um deserto abrasador?

    Se alguem existe na terra
    Que tanto possa, és tu só!
    Tu só, mulher, que eu adoro,
    Quando a Deus piedade imploro,
    E a ti peço amor e dó.

    Se soubesses que tristeza
    Enlucta meu coração,
    Terias nobre vaidade,
    Em me dar felicidade
    Que eu busquei no mundo em vão.

    Busquei-a em tudo na terra,
    Tudo na terra mentiu!
    Essa estrella carinhosa
    Que luz á infancia ditosa
    Para mim nunca luziu.

    Infeliz desde creança,
    Nem me foi risonha a fé;
    Quando a terra nos maltrata,
    Caprichosa, acerba, e ingrata,
    Céo e esp'rança nada é.

    Pois a ventura busquei-a
    No vivo anceio do amor.
    Era ardente a minha alma;
    Conquistei mais d'uma palma
    Á custa de muita dôr.

    Mas estas palmas taes eram
    Que, postas no coração,
    Fundas raizes lançavam,
    E nas lagrimas medravam
    Com fructos de maldição.

    Em ancias d'alma, a ventura
    Nos dons da sciencia busquei.
    Tudo mentira! A sciencia
    Era um signal de impotencia
    Da vã razão que invoquei...

    Era um brado, um testemunho
    Do nada que o mundo é.
    Quanto a minha mente erguia
    Tudo por terra cahia,
    Só ficava Deus e a fé.

    Lancei-me aos braços do
    Eterno Com o fervor de infeliz;
    Senti mais fundas as dôres,
    Mais agros os dissabores...
    O proprio Deus não me quiz!

    Depois, no mundo, cercado,
    Só de angustias, divaguei
    De um abysmo a outro abysmo
    Pedindo ao louco cynismo
    O prazer que não achei.

    Tristes correram meus annos
    Na infancia que em todos é
    Bella de crenças e amores,
    Terna de risos e flores,
    Santa de esperança e de fé.

    Assim negra me era a vida
    Quando, ó luz d'alma, te vi
    Baixar do céo, onde, outr'ora,
    Te busquei mão redemptora
    Procurando amparo em ti.

    Serás tu a mão piedosa,
    Que se estende entre escarcéos
    Ao perdido naufragado?
    Serás tu, ser adorado,
    Um premio vindo dos céos?

    E eu mereço-te, que immenso
    Tem já sido o meu quinhão
    De torturas não sabidas,
    Com resignação soffridas
    Nos seios do coração.

    Que ternura e amor e afagos
    Toda a vida te darei!
    Com que jubilo e delirio,
    Nova dôr, novo martyrio,
    De ti vindo, acceitarei!

    Se na terra um céo desejas
    Como o céo que eu tanto quiz,
    Se d'um anjo a gloria queres,
    Serás anjo, se fizeres,
    Contra o destino, um feliz.

    Faz que eu veja n'estas trevas
    Um relampago d'amor,
    Que eu não morra sem que diga:
    «Tive no mundo uma amiga,
    Que entendeu a minha dôr.

    «Deu-me ella o estro grande
    Das memoraveis canções;
    Accendeu-me a extincta chamma
    Da inspiração que inflamma
    Regelados corações.

    «Os segredos dos affectos
    Que mais puros Deus nos deu,
    Ensinou-m'os ella um dia
    Que d'entre archanjos descia
    Com linguagem do céo.

    «Os mimosos pensamentos
    Que, de mim soberbo, leio,
    Inspirou-m'os, deu-m'os ella
    Recostando a fronte bella
    Sobre o meu ardente seio.

    «Morta estava a phantasia
    Que o gêlo d'alma esfriou;
    Tinha o espirito dormente,
    Só no peito um fogo ardente,
    Quando o céo m'a deparou.

    «Agora morro no gôso
    D'uma saudade immortal.
    Foi ditosa a minha sorte;
    Amei, vivi: venha a morte,
    Que morte ou vida é-me igual.

    «Igual, sim, que o amor profundo,
    Como foi na terra o meu,
    Não expira, é sempre vivo,
    Sempre ardente, e progressivo
    Em perpetuo amor do céo.»

    Assim, querida, meus labios,
    Já moribundos, dirão,
    Nas agonias supremas,
    Essas palavras extremas,
    Do meu ao teu coração.

    Sabes quem é, n'este mundo,
    Quasi igual ao Redemptor?
    É quem diz: «Sou adorada
    Pela alma resgatada,
    Por mim, das ancias da dôr.»

«Por ora, vejo que supplicas amor--disse eu.--A tua poesia é um
requerimento que póde ficar _esperado_ muito tempo no gabinete do despacho.

--Fala d'outra maneira... Eu soffro demais para te achar graça. Não é um
requerimento esta poesia, meu amigo, é uma expansão de reconhecimento. O
amor ditoso chega a entristecer. Tenho a segurança, a segurança que nos
dá o coração, de que a alma de Ludovina me pertence.

«Por consequencia tens tudo... Enganei o publico...

--Como enganaste o publico?!

«Puz em romance a historia que me contaste, e disse que a baroneza era
uma rocha inabalavel de virtude.

--E receias mentir?!

«Eu já sabia que me não acreditavam... Pois tenho pena, palavra de
honra! A meiga imagem de Ludovina havia de ser sempre nova e pura na
minha imaginação, como o eterno typo das duas formosuras enlaçadas, a do
corpo e a da alma. Rasgava o romance, se elle não estivesse já no prelo,
e o dinheiro d'elle transformado n'um cavallo. É tarde para reivindicar
a minha honra de romancista ingenuo ou palerma, que anda n'este mundo a
querer provar, que as onze mil virgens nunca de cá sahiram.

--Pois que esperavas tu de Ludovina?

«Que morresse abraçada á sua cruz, que désse o exemplo da esposa martyr,
da filha sacrificada ao bom nome de sua mãe; que sahisse apenas da sua
cella para redobrar de paciencia aos pés do altar; que nunca
consentisse que corações degenerados como o teu, e o meu, concebessem a
esperança de profana'-la.

--Estás a fazer a alta comedia, ou crês sinceramente que Ludovina
degenera? Põe de parte a consciencia de romancista, e deixa fallar a do
ente pensante e racional,--e se tu e eu somos indignos de aspirar ao
amor da baroneza, crês que um outro, cahindo das nuvens determinadamente
por ella, a absolveria do crime horrivel de ter coração?

«O coração de Ludovina estava cheio de sensações, que o faziam
participante do amor divino. Que precisão tinha ella do amor dos homens?
Estragou uma bella biographia, essa mulher. Talvez fosse unica, e
apontada á posteridade como molde. Era uma virtude original;
converteu-se em um vicio vulgar. A minha heroina fez bancarrota, falliu,
e deixou-me em hypotheca a palavra que eu dei a paginas 170, pouco mais
ou menos, de que eram solidos os fundos em virtude, e grandes os haveres
em creditos d'esta mulher inimitavel, typica, e biblica, deixa-me dizer
assim, porque ella merecia todos os epithetos levantados e grandiosos.

--Mas que fez a pobre senhora para descredito tamanho?

--O que fez?! é boa! auctorisou-te a canta'-la em quintilhas! Um homem
de mais alma que tu és, vasaria a inspiração em versos endecasyllabos.
Uma mulher assim amada em redondilha maior! É horrivel e immoral!

--Bem! Ainda agora te comprehendi. Estás zombando com ella e comigo, e
não sei se com o publico, a quem prometteste uma virtude enfadonha e
monotona, como deve ser o teu romance, se te não salvares com a rapida
narração que te vou fazer da mais sublime virtude, da virtude por
excellencia de Ludovina.

--Qual virtude?

--A de me receber dez cartas, escriptas com o sangue do coração, e...
não me responder a nenhuma.

--Mas tu disseste-me ainda agora que tinhas a segurança de que a alma de
Ludovina te pertence.

--E tenho.

--Não te respondendo ás tuas cartas? Não entendo.

--Não me respondeu a dez cartas...

--Bem.

--Mas eu escrevi-lhe vinte, e ella respondeu á ultima.

--Ah! isso então muda de figura... E a resposta foi tal que te deu a
segurança de seres o proprietario do coração da baroneza!...

--Queres ver a resposta? Franqueza e confiança. Lê lá.

Era um bilhete que rezava assim:


«Tenho recebido por delicadeza as suas cartas. Basta dar-me v. ex.ª o
nome de amiga para que eu as aprecie. Não me julgava na obrigação de
responder. Hoje, porém, que v. ex.ª me lembra esse dever, peço perdão da
falta, e castigo-me devolvendo-lhe as suas vinte cartas, de cuja
posse sou indigna, porque não soube corresponder-lhe.

«Com verdadeira estima, attenciosa veneradora de v. ex.ª--_Ludovina
Pimenta_.»


--Isto é lisongeiro!--disse eu sorrindo.--Com um documento d'estes, é
indispensavel a posse que tomaste do coração da baroneza. Eu creio que
podia ser assim o proprietario mais abastado do genero...

--Espera lá.. Ainda tenho outros titulos da propriedade. Já agora has-de
examina'-los todos, e dizer-me no fim se os meus direitos serão
litigiosos. Recebi as vinte cartas, e escrevi mais dez. Que dez cartas!
Que estylo! que dez causticos para fazerem supurar um coração!

--Deixas ver a resposta?

--A resposta foram dez cartas.

--Incendiarias?

--Que duvida? Eram as minhas, lacradas, sem um vinco, direitinhas como
foram!

--E teimaste?! Seria necessario muito despejo e indignidade!

--Não teimei: cahi doente, tive febre, assustei a minha familia, e fiz
que me chorassem as minhas primas, companheiras conventuaes da baroneza.
Ao nono dia de enfermidade, a medicina suspeitou que o sangue me refluía
á cabeça. Correu que eu enlouqueceria, ou morreria. A baroneza mandou
saber de mim duas vezes n'um dia.

--Oh! isso é muito! No dia immediato foste agradecer-lhe o cuidado...

--Não fui, não podia ir. O abalo, a certeza, de que era amado,
exacerbou-me a febre, escaldou-me a imaginação a ponto de delirar.
Durante um curto intervallo de tranquilidade de espirito, escrevi á
baroneza uma duzia de linhas quando muito. Dava-lhe parte de que tinha a
morte sentada á cabeceira do meu leito de agonias; dizia-lhe que pediria
por ella ao Senhor, se a gloria celestial me fosse dada como premio do
muito que soffrera, e da muita paciencia com que soffrera na terra os
rigores de uma alma que não quiz comprehender-me; perdoava-lhe com a
mais evangelica generosidade de moribundo, e emprazava-a para me
restituir o coração na eternidade.

--Isso devia fundir em lagrimas de remorso a pobre senhora.

--Estás ludibriando a minha angustia?--interrogou Marcos Leite com
ironico enfado.

--Não ludibrio a tua angustia, faço a apologia da tua astucia. Tu não
tinhas febre, nem vias a morte á cabeceira do teu leito, fala a verdade.

«Tinha febre, palavra de honra, porque sou muito nervoso; e se me
persuado que tenho uma ponta de febre, sinto-me logo em labaredas. Tenho
tido vinte e tantos d'esses typhos, com as vinte e tantas mulheres que
tu sabes. O que vale é ser rapida e segura a convalescença.

--Convalesceste depressa? Já vejo que o teu bilhete conseguiu...

«Um triumpho!

--Como um triumpho?!

«Uma gloria imprevista, um lance tão arrojado de venturas, que ainda
agora me salta o coração no peito.

--Guarda os extases para o fim, e vamos ao ponto.

«Mandou-me visitar por um medico do Porto, que fôra de proposito medicar
D. Angelica.

--Consiste n'isso o triumpho?!

«Que mais querias tu!

--Mais nada... A um doente a maior prova de estima que póde dar-se é
mandar-lhe um medico.

«O peor foi dizer o doutor que a minha enfermidade era imaginaria.
Mandou-me dar longos passeios a cavallo, e a pé, comer alimentos pouco
volumosos e muito substanciaes, e dormir o maximo numero de horas que
pudesse. Reflecti-lhe que sentia a morte no coração; a isto redarguiu,
sorrindo, o medico matreiro, que verificando-se a morte d'esta viscera,
entregasse ao estomago o exercicio das attribuições do coração. Não sei
o que elle foi dizer á baroneza: é certo que os cuidados da parte d'ella
não esfriaram, e eu, melhor avisado, entendi que não precisava morrer
para ser amado. Logo que me ergui do leito...

--Da agonia, ou da dôr para variar...

«Nada de chacóta. D'aqui em diante fala-se serio. Logo que sahi fui ao
convento. Era por uma bella tarde de maio. Soprava de leste uma viração
suavissima, que, sacudindo as urnas das flôres, embalsamava a
atmosphera de fragrantes aromas. No horisonte...

--Se me pudesses dispensar do idyllio!... Guarda as reminiscencias
bucolicas para o inverno, quando estivermos ao fogão. Por mais que
phantasies não deslumbras a realidade do bello espectaculo que nos está
dando aqui a natureza em primeira mão. Descarna as descripções, e diz o
que passaste no convento com a baroneza.

«Estás materialmente estupido, homem. Foi-se-te a poesia toda no fabrico
dos romances. Vocês, os que trabalham no coração humano com o escalpello
sanguinario da analyse, tornam-se áridos, brutaes, e famulentos de
sensações rijas...

--É assim; todavia, prefiro a descripção da tarde de maio á catilinaria
insolente que vaes disparar-me.

«Nem uma nem outra. Vou abreviar o conto, para que a inveja mais
depressa te castigue. A baroneza mandou-me entrar n'uma grade, e
appareceu sósinha. Era a primeira vez que me recebia a visita sem vir
acompanhada das minhas primas ou de D. Angelica.

--Esse facto é profundamente significativo! Vou gosar o prazer de ouvir
um dialogo de amorosas finezas, cortado de suspiros maviosos... Já
principiam as disciplinas da inveja a verberar-me...

«Saberás tu o que se passou?!

--Se sei o que se passou!?

«Sim... dizes com tão ironica zombaria o prospecto do dialogo...

--Nada, não: é que me vou aquecendo ao teu enthusiasmo, e o estylo
principia a aquecer tambem.

«Ahi vae lealmente, a scena final do definitivo triumpho. Eu tinha posto
grandes esperanças na minha pallidez. Tres semanas de cama seriam
capazes de fazer amarello um camarão cosido. A primeira decepção, que
recebi ao entrar na grade, foi dizer-me a baroneza:

«Ninguem dirá que esteve doente, sr. Marcos! A vida socegada de tres
semanas deu-lhe um colorido de saude, que d'antes não tinha.

--Como assim, sr.ª baroneza! Pois a minha pallidez...

«Está enganado; pelo contrario, está côr de rosa, acredite. Eu chamo as
suas primas, e verá se ellas não dizem o mesmo.

--Não chame as minhas primas, sr.ª baroneza. Eu preciso que v. ex.ª me
escute. Este é o momento solemne da vida ou morte. Hei-de hoje ouvir
aqui a minha sentença. A pedra da sepultura já está erguida para mim; o
seu braço suspendeu-a; o seu braço ha-de afastal-a de sobre o peito, que
me esmaga, ou deixa'-la abafar o meu derradeiro gemido.

«Que linguagem, sr. Marcos!--disse ella--Pelo amor de Deus, faça-me a
justiça de me não julgar creança. O infortunio emancipou-me. Não posso
ser illudida, nem illudir-me. Tenho aquella dolorosa penetração que
adquire o espirito á medida que a boa fé do coração se perde. Com que
fim emprega tantos esforços baldados para inquietar-me?

--Eu queria fazer a sua felicidade pelo amor.

«A intenção é generosa, e eu não sou ingrata. Mil vezes agradecida, sr.
Leite; mas o amor não póde dar-me felicidade. Imagino que elle possa ser
a alegria de muitas almas puras e impuras; dou credito a tudo o que se
diz de sublime e celeste ácerca d'esse sentimento, o mais mavioso de
todos: mas sem coração essa flor não póde dar perfumes de uma hora. O
meu coração desfez-se em lagrimas, cuja historia não é nova para o sr.
Marcos Leite. Eu não o amo, não o posso amar, apenas lhe vejo todas as
boas qualidades que se podem desejar n'um amigo. Quadra-lhe esta
affeição? quer-me para sua amiga? está decidido a acceitar deveras este
offerecimento que tantas vezes acceitou, e outras tantas desprezou?

--Desprezei?

«Sim; pois que outro nome se deve dar ás suas cartas escriptas com um
fogo que me deslumbra sem me queimar, instantes depois que me promettia
respeitar a minha posição, compadecer-se dos meus infortunios, e
acolher-me á sua estima como uma alma quebrantada de enfermidades, que
só os melindres d'uma verdadeira amizade podem suavisar? Não é meu
amigo, sr. Marcos. O senhor imaginou que eu tinha uma fibra do coração
capaz de sustentar o peso de alguma grande desgraça, e quiz parti'-la.

«Enganou-se; nem essa já tenho. Que mais quer que eu lhe diga?

--Mais alguma cousa: disse-me v. ex.ª que me não amava; agora diga que
me despreza.

--Não posso. Sou sua amiga: não ha n'este mundo outro homem a quem eu
possa dizer o mesmo. Sou para si, apesar da minha inutilidade, o mais
que posso ser... Agora, se me dá licença, vou ao quarto de minha mãe,
que está doente e só.»

O meu amigo Marcos Leite, fechando assim o dialogo com a esposa de João
José Dias, fixou-me de um modo que parecia perguntar-me a razão porque
eu me não ria.

--Esses triumphos são parecidos com as minhas derrotas--disse-lhe eu.

--É que tu não sabes nada do coração humano!--replicou o singular
provinciano, com um sorriso, que poderia ser definido infatuamento tolo
por quem não conhecesse a intelligencia clara de Marcos Leite.

Vaes agora ver que todos estes atalhos conduzem á estrada real da terra
da promissão--proseguiu elle;--Josué está defronte das muralhas de
Jericó. A trombeta da anniquillação vae soar. A virtude de Ludovina está
abalada desde os alicerces, e desabará como todas as virtudes possiveis
no romance, e impossiveis na vida qual ella é, e como bom é que ella
seja para que este mundo se supporte desde o amanhecer até que o sol
refresca a sua fronte abrasada nas aguas do oceano.. Deleitei-te com
esta nesga de estylo? Até os olhos se te riem quando ouves tolices
euphonicas!... Vou concluir.

--Já?!

--Achas que é cedo?

--Parece-me que o triumpho está muito longe ainda para concluires tão
depressa.

--Lê esta carta, e prova-me que conheces alguma cousa do coração, dando
como infallivel a minha victoria.

Comecei a lêr com ávida curiosidade a seguinte carta de Ludovina:


«Eu procurei este abrigo, cuidando que encontrava n'elle paz,
esquecimento, anceios para Deus, balsamo de piedade para as chagas de
minha mãe e minhas, o desejo suave de morrer com ella, e um acabar a
vida melhor que o principio.

«Gosei alguns mezes, se não a realidade, ao menos a esperança d'estes
bens. Por que infortunio estava confiada ao sr. Marcos a missão de
inquietar-me até me affligir com a mortificação das suas instancias
impertinentes, perdoe-me a clareza da idéa...?»


--Que amabilidade!--disse eu, interrompendo a leitura.

--Lê, e não commentes por ora.

Prosegui, lendo:


«Muito egoistas são os homens, santo Deus! Ha uma infeliz mulher, como
eu, que impressiona um homem como o sr. Marcos. Sou procurada na minha
solidão por v. s.ª que me offerece o seu amor. Respondo-lhe que o
não posso acceitar, porque a infelicidade me tornou dura e insensivel
aos prazeres dos affectos do coração. Conto-lhe a minha vida com aquelle
desabafo e confidencia que fórma as amizades immorredouras. V. s.ª
escuta-me, admira-me, lamenta-me, e faz-me acreditar que a minha dôr é
para si tão respeitavel que não ousará mais despertar-me o desejo de
alegrias impossiveis para mim. Apenas decorridas algumas horas, abro uma
carta sua, em que espero encontrar a linguagem consoladora de um amigo,
e leio um longo queixume contra a minha insensibilidade, e a ameaça de
se matar, porque a sua mortificação é insupportavel.

«Egoismo, e tyrannia!

«Faltava-me a tortura da responsabilidade da sua vida, sr. Marcos! Quem
me dera ser o que creio que se é no grande mundo, que eu não tive tempo
de estudar! Lá, as mulheres experimentadas nas tempestades do coração,
sabem, creio eu, que nenhum homem morre em naufragio. Eu tenho a
innocencia de crêr que o mortifico, que o incommodo com a minha frieza,
que o não satisfaço com o grande affecto de amiga que lhe dou.

«Que futuro me queria dar, sr. Marcos? Pois não conhece a minha posição?
Não adivinha que vivo toda e exclusivamente no amor de minha mãe? Que
entrei n'um caminho de amarguras voluntarias d'onde não posso desviar-me
uma linha, sem converter em remorsos a consciencia das boas acções que
pratiquei até hoje? Deixe-me tambem ser egoista das minhas
virtudes, porque não tenho outro amparo que me sustente a coragem
para soffrer o pouco de vida que me resta.

«Eu avalio o seu coração. Confesso que, ha tres annos, o encontrarmo-nos
seria um designio da Providencia divina. Creio que seriamos felizes; que
teriamos a bemaventurança na terra.

«Agora, porém, não ha futuro para nós, nenhum futuro, meu amigo.

«São as ultimas palavras que lhe dirige a sua sempre amiga _Ludovina_.


--Que esperas agora, Marcos?--perguntei eu.

--Espero que ella se compadeça da minha humildade.

--Humildade não entendo...

--Essa carta é um esforço extremo de quem se quer segurar á aresta do
abysmo. A baroneza é mulher.

--Já sei.

--Cuidei que não sabias, e de certo não sabes o que é uma mulher.

--Então, já não aprendo.

--Vou-te ensinar o que são todas, definindo-te Ludovina.

--Escuto, sem respirar.

--A baroneza ama-me.

--Isso é bem positivo e claro? Vê lá...

--Tenho visto. Ama-me, e está sem forças para manter uma isenção
contrafeita. A mulher, quando se sente enfraquecer, revolta-se contra o
homem que a subjuga.

--E depois?

--Se esse homem acceita humildemente a revolta, é ella mesma a que se
revolta contra si, incriminando-se de ingrata e insensivel.

--É pelos modos uma enfiada de revoltas, de _bernardas_ do coração...

--Estás hoje intractavel!!

--Estou intolerante com os absurdos. Esperas que ella te mande chamar á
grade do mosteiro para assistires á queima d'esta carta na pyra do amor?

--Talvez... Tu és uma creança velha. Não sabes nada. Morres ignorante
dos segredos do coração feminino... Que lastima!

--Não me chores, responde: tiveste o cuidado de avisa'-la que te vinhas
suicidar nas florestas do Senhor do Monte? Meu caro Marcos, eu acredito
que conheces todas as mulheres menos Ludovina. Ha um Waterloo para cada
Napoleão d'estas conquistas incruentas. O teu é a baroneza de Celorico
de Basto. Queres poupar-te a um desgosto de amor proprio? Esquece-a.

--E a omnipotencia da vontade o que é? Hei de triumphar, ou Ludovina é
uma natureza superior á humanidade...

Sahi de Braga. O meu amigo ficou á espera da segunda «revolta» rimando a
quarta poesia em quintilhas, e os primeiros duzentos versos de uma
elegia que elle intitulava o seu epitaphio.

      *      *      *      *      *

Um mez depois encontrei no Porto Marcos Leite.

--Então?--exclamei eu a custo, com as costellas apertadas n'um abraço
homicida.

--A baroneza?

--Sim... diz-me alguma cousa da ultima «revolta».

--A baroneza... cahiu miseravelmente.

--Cahiu?!

--Não o sabias? que estupida espionagem tu trazes nas casas alheias!

--Venceste, pois. Marcos! Oh minha pobre Ludovina! onde eu te havia
posto! O que dirá o publico! Despenhou-se aquelle anjo! Quando
encontrarei eu outro para o throno que ficou vago?!

--E em que lodaçal ella cahiu!...

--Creio...

--Esse _creio_ é uma affronta...

--A ella...

--Querem ver o romancista com ciumes!...

--É compaixão d'ella, e de ti...

--De mim!--tornou elle soltando uma estridente risada--de mim! Pois
cuidas que o lodaçal sou eu!? Restitue-me a minha innocencia na terrivel
torpeza que ella praticou.

--Depressa... que fez ella?

--Cahiu nos braços asquerosos de...

--De quem!

--Do marido! Não te espantas da perversidade!? Estás corrupto!

--Por consequencia está coroada a virtude da minha heroina com o
extremo supplicio.

--Pelo que ouço, denominas resignação o que no meu vocabulario equivale
a baixeza de alma! São tantas as martyres que sorriem á sucapa da tua
compaixão... Confessa que Ludovina não podia dar mais insignificante
testemunho de um espirito menos de trivial. Entregar-se de novo a João
José Dias!

--Cala-te, impio! não cuspas na face da martyr! Conta-me os promenores
d'essa reconciliação. Palpita-me que a promoveu algum grande infortunio...

--Qual? adivinha lá...

--A morte de D. Angelica.

--Justamente: morreu ha tres semanas.

--Atormentada de saudades... pobre mulher!

--Creio que sim. Disseram-me minhas primas que lhe encontraram um
retrato no seio, ainda embaciado pelo ultimo respiro que ella exhalou.
Devia ser o retrato de Antonio de Almeida. Tambem me disseram que viram
ajoelhar Ludovina ao pé do cadaver, e lhe ouviram dizer: «A sua memoria
fica sem mancha, minha mãe!»

--Isso é triste, Marcos! Comprehendes tu a santidade d'essas palavras?

--Comprehendo; mas abomino a melancolia. O mundo acceita estes heroismos
como exquisitices. Eu pertenço a este mundo, dei-lhe o que tinha de bom
no coração, e quero ter grande partilha no cynismo que elle dá em
paga.

--Não importa. Ludovina continua a ser um anjo, confessa.

--Parece-me que o seria, se não sahisse de ao pé do tumulo de sua mãe.
Se João José Dias avilta uma creatura que é só humana, com o seu
contacto, como ha-de elle sustentar as qualidades de um anjo?

--E se Ludovina acceita as torturas da convivencia com tal homem, como
provocações á morte?

--Morrerá estupidamente. Será indigna d'um necrologio, e terá apenas uma
magra local chamando os amigos do marido a assistirem-lhe aos funeraes.

      *      *      *      *      *

Deixemos falar este homem sem alma, leitores!

Ludovina continua a ser a flôr da creação, o espelho de infelizes, o élo
que prende a creatura ao Creador, o anjo que chora, esperando que os
anjos a levem d'este desterro.


FIM





End of Project Gutenberg's O que fazem mulheres, by Camilo Castelo Branco

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information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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