O General Carlos Ribeiro

By Camilo Castelo Branco

The Project Gutenberg EBook of O General Carlos Ribeiro, by 
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco

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Title: O General Carlos Ribeiro
       Recordações da Mocidade

Author: Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco

Release Date: June 19, 2008 [EBook #25846]

Language: Portuguese


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O GENERAL

CARLOS RIBEIRO

(Recordações da mocidade)

por

CAMILLO CASTELLO BRANCO




Porto
Livraria Civilisação
de
Eduardo Da Costa Santos--Editor

MDCCCLXXXIV




O GENERAL CARLOS RIBEIRO




_A propriedade da primeira edição d'este livro pertence, no imperio do
Brasil, aos srs. Faro & Lino, proprietarios da Livraria Contemporanea,
moradores na rua do Ouvidor n.º 74--Rio de Janeiro._




O GENERAL

CARLOS RIBEIRO

(Recordações da mocidade)

por

CAMILLO CASTELLO BRANCO




Porto
Livraria Civilisação
de
Eduardo Da Costa Santos--Editor

MDCCCLXXXIV




AO VISCONDE DE BENALCANFOR




                                          _Meu querido Ricardo Guimarães._



_Recebe a dedicatoria d'este folheto como um cartão de despedida. Vou-me
embora._

_Naturalmente, escreverás dez linhas sinceras da minha necrologia. Dize
que fui teu amigo trinta e seis annos; e que, á medida que eu ia lendo
as tuas prosas progressivas e remoçadas, nunca pude imaginar que
tivesses envelhecido._

_Folgo de te não vêr ha muito tempo. Imagino que te deixo rapaz
engrinaldando os festoens das tuas primaveras de ha trinta e seis annos
para os offereceres aos nossos 50:000 leitores--um rico auditorio!
Continua tu a ministrar-lhes os teus cabazes de flores, visto que, por
impedimentos especiaes de regimen e outros estorvos complicados de
engrenagens financeiras, não podes deitar-lhes perolas._

_Adeus, Ricardo. A Chimica subterranea espera a minha alma. Vou
mineralisar-me. Levo apenas, como saudade, uma flecha de luz reflexa do
nosso passado, que me não deixa ir contente ao meu destino de azote,
amoniaco e outros gazes. É a nostalgia dos teus e dos meus folhetins de
1854. A proscripta ignominia do carroção do Torto--aquelle toiro de
Phalaris, puxado a vaccas--que então esbatemos para a treva medieval, em
outro paiz dar-nos-ia a celebridade immorredoura de Guesto Ansur, o
salvador authentico das cem donzellas lusitanas tributadas ás prezas
obscenas do khalifa. Tambem nós, visconde, salvamos centenas de
donzellas portuenses das orgias do execravel defuncto «Manoel José
d'Oliveira»--aquelle Mauregato coiraçado, com espaduas alcatroadas,
musculatura de um lenho rijo e inflexo como os braços da forca, e
articulaçoens de cobre azinhavado, onde eram contundidas as carnes
virginaes. Se não fomos nós, quem foi que remiu das contusões e
d'aquelle fôro ignobil as meninas portuenses, actualmente allodiaes e
intactas, salvo seja, nos seus quadris e nas suas espaduas? Pois tens
acaso noticia de que o Oliveira Martins, no seu livro sociologico das
«Raças humanas e civilização primitiva», nos encadeasse nos elos do
transformismo evolutivo do carroção em carro Ripert? Sabes que elle
consagrasse um capitulo áquelle dolmen de castanho--a ara celta do
sanguinario Irminsulf dos nossos ferocissimos avós? Nem uma palavra!
«Isto faz vontade de morrer!» como disse Alexandre Herculano, muito
menos offendido dos ingratos._

_Emfim, Ricardo, esta carta, sobre ser uma confirmação, quasi posthuma,
de fidelidade no affecto a um dos meus mais velhos amigos, deve ser-te
não menos agradavel como exemplo consolador de que as vidas mortificadas
tem uma compensação--é acabarem com um sorriso. N'este paiz, os
bastardos da Fortuna prostituta, se fizeram exame de instrucção
primaria, devem morrer com a serenidade de sabios. D'antes, havia a
immortalidade da alma e as recompensas eternas como esteio a infelizes
sub-lunares. Hoje em dia, aquelles dogmas, especie de _caput mortuum_,
não amparam muita gente; mas ha coisa melhor: é a eschola primaria que
levanta o discipulo ao nivel da felicidade do professor a tres tostões
por dia com dez mezes de atraso. Depois, morre-se de uma anazarca de
philosophia com uma ligeira complicação de fome. Assim se explica o
grande furor da instrucção nacional que tu, com uma seriedade estranha
aos nossos habitos, inspeccionas observantissimamente._

_Vai, fiscalisa, evangelisa. Dilata, quanto em ti couber, as celullas
conscientes dos hemispherios cerebraes do Alemtejo e Algarve. Dá-lhes um
elasterio grande, expansivo, na razão inversa das retracçoens da mucosa
do estomago, á qual não chega a tua alçada tonica. Lembra eruditamente
aos pedagogos que ninguem se exalça ás glorias do Thabor sem ser
arrastado pela Rua da Amargura. Dize-lhes, afinal, que a posteridade,
mediante as suas confrarias e os seus dobres a finados, lhes dará
brindes de missas geraes em dia de Fieis Defunctos--muito distinctos dos
defunctos infieis. E, pelo que me diz respeito, recommenda-me tambem aos
suffragios pios da Patria--esta querida mãe interessante, incapaz de
tirar de difficuldades um filho vivo: mas, depois, tira-lhe a alma do
purgatorio, sendo preciso._

_T. C.--S. Miguel de Seide. 6 de dezembro de 1883._

                                                     _C. Castello Branco._





Gabriel de Mortillet, professor de Anthropologia, publicou, n'este
corrente anno (1883), o seu livro _Le préhistorique antiquité de
l'homme_. Em mais de uma pagina o sabio professor menciona
respeitosamente Carlos Ribeiro, o geologo portuguez, que tão
brilhantemente fez as honras da casa lusitana aos congressistas
estrangeiros que estiveram aqui a discutir assumptos de anthropologia e
archeologia prehistorica.

O general Carlos Ribeiro falleceu em 13 de novembro de 1882. A
satisfação de se vêr tão culminantemente inaltecido no livro europeu de
Mortillet não a gosou; e pena foi, porque seria essa a mais idealmente
querida das suas recompensas. Bem sabem que os premios, os galardões
substanciaes que n'este _reinosinho_ _de 90 leguas_, como lhe chamava
Garrett, auferem os sabios do quilate de Carlos Ribeiro são por tal modo
notorios e fallados que a gente, pelo commum, apenas tem noticia dos
taes sabios quando lhes vê o retrato posthumo no _Occidente_.

Estes homens trabalham em segredo como os alchimistas. Na Academia Real
das Sciencias conversa-se, uma vez por outra, a respeito d'elles, com
uma grande admiração do tamanho dos bocejos. Para os socios velhos a
anthropologia apenas tem a caracteristica academica de ser palavra
grega, e como tal a reverenceiam; mas ha d'elles que professam, muito
pela rama, o _quantum satis_ d'umas sciencias abstruzas que assentam os
seus laboratorios para além das fronteiras da historia. É inexacto,
porém, que o insigne academico discursasse monologos paleontologicos
diante dos seus confrades pouco porosos e assás impermeaveis ás
infiltrações da sciencia nova. Não. Elle tinha socios no martyrio--o
Ferreira Lapa, o Thomaz de Carvalho, o Bocage, o Latino Coelho, o Corvo,
o Aguiar, os quaes, se não encontraram, como Carlos Ribeiro, vestigios
de um ser intelligente nas camadas terciarias, seriam muito capazes de o
achar, se o procurassem, o _Anthropopithecus_.

Não se cuide que eu, com o selvagismo de um minhoto sem litteratura,
pretendo molestar os hereditarios joanêtes da Academia. Nego. Os meus
joanêtes de socio correspondente acham-se tambem compromettidos.
Considero a Academia Real uma arca da sapiencia humanal, de reserva para
a catastrophe de um diluvio de ignorancias eminentes. Respeito-a como um
banco das nossas riquezas espirituaes, banco sem transacções, com
accionistas todos de prenda, dando-se ares de estar sempre em
liquidação; mas não liquida. Se não vive muito ao sol ardente que
refunde o velho mundo, tem a vitalidade sombria do obituario. Quando um
socio vae continuar na vida eterna o somno das suas sessoens, os
confrades vivos gemem-lhe o elogio funebre, uma Nenia em periodos
redondos, _ore rotundo_, na prosa da fundação do estabelecimento; em
seguida, recolhem-se a brunir velhos adjectivos e a escovar algumas
metaphoras de fivellas e rabicho, para a necrologia de um futuro
confrade morto. De resto, muito mais modestos que justos juizes dos seus
productos, os academicos, quanto ao estipendio das suas lucubraçoens,
são mais abstemios que os anachoretas da Thebaida, e fazem livros mais
em conta do que Santo Antão e S. Pacomio faziam balaios. Elles desdenham
briosamente a cubiça gananciosa dos quarenta immortaes assalariados da
Academia franceza; mas prelibam com delicias a justiça posthuma, o
galardão do elogio funebre--esta rica moeda portugueza incorruptivel em
que não entra a liga do oiro vil.

Tornando ao _Anthropopithecus_. Toda a gente sabe o que é, na
Prehistorica, o _Anthropopithecus_; mas eu não me dispenso de fallar
d'este sujeito que nos precedeu ha 240:000 annos, pouco mais ou menos.
Supponho que não serei desagradavel ás Senhoras menos lidas em
anthropologia, para as quaes os vocabulos _pliocene_ e _miocene_, o
_mammifero primata_, o _prognatismo_ são as jaças do limpido diamante
da sua erudição.

Mortillet, com bastante logica e com lucidissima observação mais
convincente que a logica, affirma que o homem quartenario primitivo era
algum tanto differente do homem actual. O craneo do nosso antepassado
das cavernas differe consideravelmente do craneo do leitor. O illustre
professor de anthropologia é, portanto, obrigado a concluir que os
animaes intelligentes que petiscavam lume e lascavam pedras na época
terciaria não eram homens na accepção geologica e paleontologica da
palavra; mas sim animaes de outro genero, _precursores do homem_, na
escala dos seres. A este precursor, intermedio ao anthropoide conhecido
e ao homem actual, chamou Mortillet um _Anthropopithecus_. Claro é que
a especie humana conhece o avô, o _anthropoide_; mas não conhece o pai.
Orfan e posthuma, a desgraçada!

Carlos Ribeiro havia descoberto nas margens do Tejo o silex lascado em
terrenos terciarios e quartenarios, accusando um trabalho intencional e
intelligente no animal precursor do homem. No Congresso Internacional de
Bruxelles (1872), duvidaram, mórmente o douto Bourgeois, que nos
exemplares expostos por Carlos Ribeiro houvesse trabalhos intencionaes
que provassem a existencia de um individuo capaz de petiscar lume e
lascar pedras na época terciaria. A favor do sabio portuguez apenas se
insurgiu a opinião auctorisada de mr. Franks.

Na exposição internacional de Paris (1878) o nosso geologo apresentou os
exemplares, entre os quaes Mortillet apartou 22 com vestigios
irrefutaveis de trabalho intelligente. Cartailhac abundou no parecer do
seu collega e de outros especialistas.

Afinal, Carlos Ribeiro triumphou desassombradamente quando os
congressistas na obra de Monte-Redondo, em Ota, confirmaram em novos
exemplares a sua opinião refutada em Bruxelles. Desde então, nos annaes
da anthropologia e prehistoria foi assignalada como irrefutavel a
existencia do Anthropopithecus em Portugal. Era o terceiro. Bourgeois
tinha explorado um em Thenay. Em honra do inventor, esse vestigio do
animal intelligente anterior ao homem chamou-se _Anthropopithecus
Bourgeoisii_. Mr. Rames achára o segundo em Cantal, o qual foi chamado
_Anthropopithecus Ramesii_. O de Portugal, descoberto por Carlos
Ribeiro, recebeu o glorioso nome _Anthropopithecus Ribeiroii_.[1]

Uma observação caturra ao sabio Mortillet: Este genitivo alatinado e
ligeiramente macarronico, _Ribeiroii_, parece pertencer tambem á época
terciaria, á prehistorica da lingua de Plinio, o moço. _Ribeiroii_ em
genitivo indica o nominativo _Ribeiroius_. O extremado anthropologista
devera ter escripto _Anthropopithecus Riberii_, ou, mais euphonico,
_Ribeirensis_. Espero e ouso pedir aos futuros congressistas que
adoptem esta errata, afim de que o nome glorioso do nosso concidadão não
vá latinamente deturpado pelas edades fóra.

Posto isto, a leitora naturalmente deseja saber que figura tinha o
_Anthropopithecus_. Os sabios não satisfazem cabalmente a curiosidade
de sua excellencia. Calculam apenas que elle era muito mais pequeno que
o homem, attendendo á pequenez das pedras que lascava para seu uso; mas,
a respeito do animal portuguez, a julgar pelo tamanho dos silex,
presume-se que elle anatomicamente fosse mais encorpado que os outros.
Isto é concludentissimo e consolativo, minhas senhoras. Mr. Abel
Hovelacque, outro sabio, presume que aquelle nosso pai pequeno seria do
tamanho dos actuaes macacos maiores.[2] Na verdade, os srs.
bispo de Coimbra, conselheiro Nazareth e varios tambores-mores accentuam
e affirmam a procedencia d'aquelle patriarcha mais avantajado no tamanho.

Bastará de sciencia? Mas o que não posso, minha senhora, é esquival-a ao
desaire de proceder de macaco. Não lhe assevero que seja de chimpanzé,
de gorilha, de orango. A minha esvelta leitora é o typo aperfeiçoado de
todas estas familias. Segundo o genealogico Hoeckel, vossa excellencia
promana de um pitheco, derivado de um lemur, producto de um kanguru. É a
primeira vertebrada, e não direi primeira «mammifera» para evitar
equivocos. Em todo caso, exquisita arvore de geração, na verdade; mas,
se a minha delicadeza se dóe, sciencia obriga; porque, emfim, este
folheto é uma obra de vulgarisação, _à la portée des gens du monde_.
Pertendo ser mais util que agradavel ás senhoras modernamente
orientadas, as quaes, entre os flagicios acusticos dos seus pianos e o
moinho estupidamente burguez das suas maquinas de costura, abrem um
parenthesis á discreta biologia.

E tenham muita fé, minhas senhoras; _porque as sciencias de
observação_, diz Letourneau na _Biologia_ mais avançada, _exigem
primeiramente de quem as quer cultivar um acto de fé_. Acto de fé!
Tambem a sciencia positiva reclama a sua _virtude theologal_. Pelos
modos, é precisa tanta fé para acreditar no Jehovah de Moisés e no
Messias de S. João Evangelista, como no «Pantheismo» de Espinosa, na
«Vontade» de Schopenhauer, e no «Inconsciente» de Von Hartmann. Por
tanto, façam suas excellencias um acto de fé como biologas, e outro acto
de caridade como catholicas, prestando-me a sua benevola attenção.

      *      *      *      *      *

Carlos Ribeiro não andou toda a vida, como Boucher de Perthes, a
esgaravatar nas camadas do globo a certidão de idade do homem. Tambem
elle borboleteou á flôr da terra, com as azas polvilhadas dos matizes da
alegria juvenil, os seus devaneios.

Entre os 15 e 16 annos, fingia eu que estudava chimica na Polytechnica
do Porto. Carlos Ribeiro, n'aquelle anno, 1844, já tenente, com 30 annos
de idade, completava mathematicas com sinceridade e aproveitamento. Era
de estatura mediana, refeito, de espaduas fortes, rosto redondo,
purpurino, com um pequeno bigode cortado na commissura dos labios muito
nacarinos. Grave nas fallas, muito delicado em conselhos e attençoens
com os cabulas; e sympathisava com a minha modesta ignorancia que elle,
confessando a actividade funccional do meu cerebro, ingenuamente
attribuia a eu não possuir compendio de chimica,--uma coisa bastante
necessaria a quem se matricula. Era o _Lassaigne_--parece-me ser este o
nome do sabio naturalista, que alguns condiscipulos generosos me
emprestavam á porta da Academia, quando se avistava o lente, um
ex-frade, Santa Clara, contemporaneo de Orfila, Berzelius e Liebig. Por
que mãos sagradas andava então a chimica portugueza!

Aproveito a occasião para agradecer aos que ainda vivem, se algum vive,
a gentileza do seu emprestimo, para que eu, em honra do frade, sahisse
crystallinamente e triumphantemente do meu acto de chimica sem a macula
de um R.


Já divulguei em um livro este caso á Europa culta.

      *      *      *      *      *

Agora, vou contar outro caso mais trovadorêsco--um episodio da vida
amorosa do defuncto anthropologista, o general Carlos Ribeiro.


Por aquelle tempo, uma senhora esmeradamente educada no gosto da época,
e com uma grande distincção de formosura, abandonára em Lisboa o esposo,
e refugiára-se no Porto com um seductor de condição baixa e bens de
fortuna parallelos. Este casal anticanonico habitava uma casinhola
barata na rua da Sovella, paredes-meias do quarto escolastico de Carlos
Ribeiro. O tenente, quando regressava da aula, via na janella de
peitoril, uma vez por outra, a sua mysteriosa e lepida visinha encaral-o
com uma fixidez perturbadora como um envoltorio de fluidos galvanicos.

Certa estanqueira estabelecida na loja da casa onde se aninharam
aquelles amores clandestinos, informou-o da má vida intima dos
adventicios. Havia desavenças todas as noites, gritaria, choradeira, e
ás vezes repelloens reciprocos, a ponto d'ella cahir no sobrado. D'estas
altercaçoens nocturnas, a informadora podéra liquidar que o homem se
chamava _Bramão_, ella _Gloria_, e que tinha marido na capital. Entre
os epithetos que elle lhe desfechava, o mais accentuado e repetido era
_bebeda, grandissima bebeda_; e a estanqueira justificava a
qualificação, contando que a menina Gloria, assim que o Bramão sahia,
mandava ao armazem da Companhia fronteiro duas garrafas vasias que se
trocavam por garrafas lacradas de 800 reis.--Acho que se emborracham
ambos de dois!--conjecturava a mulher dos tabacos, offerecendo a sua
opinião indecisa ao reflexivo freguez dos cigarros.


Uma noite, foi tamanha a gritaria, que a patrulha bateu á porta da
estanqueira perguntando que gritos eram aquelles no primeiro andar. A
mulher, na sua impaciencia de estrenoitada, respondeu azedamente que era
uma creatura com a sua pinga; que fossem os soldados á sua vida, porque
não havia remedio a dar-lhe á carraspana senão cozel-a; e que cada qual
em sua casa podia embebedar-se como quizesse e quando quizesse. Se
percebiam? perguntava colerica. E a patrulha: que sim, que a cozesse
ella e mais a visinha. E a estanqueira:--Malandros!

Eram então triviaes no Porto estas scenas do Baixo-Imperio, dialogadas
entre o pequeno commercio e os pretorianos municipaes--os _janizaros_
do Costa Cabral. N'aquelle tempo, tudo que era tropa chamava-se
_pretorianos_ e _janizaros_--uns pobres diabos a 30 reis por dia e
rancho de couve gallega com feijão fradinho. Depois é que expluiu o
caceteiro, pago pelos edis, a 480 reis diarios, e mais, consoante a
pressão exercida nos ossos parietaes do _patulea_.

O tenente estava á janella a escutar o alarido, sentia uma compaixão
infinita por aquella formosa senhora; e scismava se a embriaguez seria
refugio de grandes tribulaçoens n'aquella alma que se atirava a um
charco de vinho para apagar a luz do intendimento e da memoria--perturbar
a vida afflictiva da consciencia escorreita.

Na manhan seguinte a esta noite tempestuosa, Bramão sahiu e não voltou
mais.

A estanqueira soube d'ahi a dias da criada de Gloria que a sua ama tinha
vendido a unica pulseira, porque o pelintra do patrão lhe não deixára
vintém; e ajuntou que ella pouco mais tinha que vender, a não ser os
vestidinhos, porque já tinha derretido as joias para sustentar o vicio
do amante, que era jogador e perdia sempre.

A criada, aquecida pelo atríto das revelaçoens, confessou que sua ama
tomava a piella todas as tardes, quando a não apanhava tambem todas as
manhans, bemdito seja o Senhor! Que o patrão vinha de fóra levado de
todos os diabos, e entrava ás testilhas com ella, palavra puxa palavra,
e iam ás do cabo, pancada de criar bicho, e batiam de meias. A senhora,
coitadinha, antes de se emborrachar, chorava lagrimas como punhos, a
contar-lhe a sua vida. Que era filha de gente grande, e casára, contra
vontade sua, com um almofariz da casa real. A estanqueira não
comprehendia o casamento com o almofariz. Carlos Ribeiro emendou para
_almoxarife_, explicando o officio com a sua costumada bondade
illustradora.

Como quer que fosse, a infeliz senhora embriagava-se depois que chorava
lucidamente. Era isso mesmo o que o tenente havia conjecturado com a sua
romantica intuição de 1844.

Da piedade não é trivial a passagem para o amor; mas, se á commoção do
amor precede a do compadecimento, o caso de Carlos Ribeiro é vulgar.
Escreveu o meu amigo a D. Gloria offerecendo-lhe os seus serviços
desinteresseiros n'uma terra em que sua excellencia era hospeda, e não
tinha talvez relaçoens. A visinha respondeu-lhe com uma caligraphia
ingleza, e uma grammatica impenetravel á unha da critica mais
meticulosa. Em meio da sua prosa florida, alinhava-se o alexandrino de
Victor Hugo:

    Oh! n'insultez jamais une femme qui tombe...

O mathematico ficou mais deslumbrado com a contextura da carta do que
ficaria trinta annos depois quando achou em Ota a garantia da sua
immortalidade como homem de sciencia--o Anthropopithecus.


A correspondencia travou-se em phrases recheadas de versos de Hugo e
Lamartine, até que o tenente entrou sósinho, sem os poetas auxiliares, e
sómente com a sua prosa commovida, na alcova da visinha. Era uma alcova
sem pretençoens bysantinas, nem cosmeticos caros; apenas algum
_Patchouli_ nacional, e agua de Colonia, em parodia, fabricada por um
pseudo Farina, e muito almiscar, perfumaria dos gyneceus infestos á
Moral, perdição dos caixeiros de risca ao meio, e grandes absorventes de
licor de Rosa e de Van Switen. Era, em summa, a alcova atrapalhada de
uma _touriste_ que vai vagamundeando a sua vida escoteiramente, sem
reparar se ha estofos, estatuetas, bronzes e Sevres e pavilhão de
ondulaçoens setinosas, com lampejos crús de metaes esmaltados, no leito
das reles estalagens onde pernoita.

Elle sentiu na ante-camara o fartum acidulado da baga alcoolisada dos
vinhos crassos da Companhia: era o perfume de uma adega do Roncão. Foi
uma nuvem de máos presagios no azul da sua felicidade aquelle cheiro.

Entravam a dialogar na temperatura madrigalesca do ultimo romance de
Arlincourt, quando ella mandou servir vinho do Porto de oito tostoens
com pasteis de Santa Clara e _queques_ da Palaia. O hospede
sacrificou-se cortezmente a algumas libaçoens, pequenos goles
intercalados de perguntas e respostas, deixando o calice opalino em
meio. Ella, entretanto, n'uma exaltação theatral, defendia a these do
adulterio, com reminiscencias peoradas da _Lelia_ de George Sand; e,
como inconsciamente, na abstracção enthusiasta dos largos gestos, ia
engatando uns calices nos outros, em rapida viagem para a região do
Falstaff e da Maria Parda de Gil Vicente. Parecia mesmo uma actriz
franceza _des Variétés_, com uma forte diáthese de bambochata, que
viesse de cear no Café Tortoni com _champagne frappé_, na roda reinadia
de Roger de Bauvoir e Roqueplan. Carlos, quando a viu em afinação mais
que suspeita, sentiu borbulhar-lhe o pranto da ingenuidade; porque ella,
carminada pela ebulição do sangue, esbandalhada, e escandecida pelo que
havia sincero e logico na sua declamação, relampejava uns claroens
electricos que pegariam fogo em carne menos combustivel que a do
artilheiro; porém, a elle, faziam-no chorar as lagrimas entranhadas que
os olhos téem pejo de mostrar, e, reprezadas na alma, chegam a cegal-a
como um collyrio de acido sulphurico concentrado. Figura-se-me que estou
a escrever isto em 1844! Que imagens! que botica!

E a dama, n'uma absorpção de visitada pelo _ecce Deus_, com o iris
acceso e a pupilla retrahida pela atropina da Companhia, não despegava
do fio das ideias, torrencialmente. Tregeitos exquisitos e sacudidos da
escóla melo-dramatica de Emile Doux. Fazia vibraçoens gloticas, cavas,
gutturaes de quem recita threnos. Arredondava phrases repolhudas,
pomposas, de dramalhão, respigadas nos _Dous Renegados_ e no _Captivo
de Fez_. Por baixo do vinho já estava o absintho do odio ao pai que a
violentára a cazar-se; mas a losna não lhe calcinava os nervos sem a
combustão inflammatoria dos extra-finos, muito sêccos, do Alto-Douro.

Acidulada sob a influencia das suas virginaes reminiscencias de menina e
môça, etherisava-se. Ora, é regra corrente que o alcool, submettido aos
acidos, transforma-se em ether. Insignes pharmaceuticos o asseveram.
Todas as commoçoens internas são chimica. Isto, que d'antes se chamava
alma, é uma retorta de cristal da Bohemia em uns sujeitos, e de barro de
Estremoz em outros sujeitos. O grito das paixoens que desfibram e matam
é o estampido da retorta que rebenta. Agora, a differença: se a retorta
é de crystal, os estilhaços, embora embaciados de lagrimas, tem ainda
rutilaçoens que encantam a Arte. E, se a retorta é de barro, os cacos
abeberados nas lagrimas repellem a vista porque parecem lôdo. Edgard
Pöe, Alfred de Musset e Baudelaire, envenenados pelo alcool, são hostias
immoladas a um meio social responsavel--são retortas de crystal feitas
pedaços pela paixão. O Sena cospe ás margens, cada mez, dezenas de
suicidas que apenas tem vinte e quatro horas de nojosa exposição na
Morgue. São os cacos da retorta de barro dissolvidos em lama.

Quanto a Gloria, para ser uma consummada tragica na voz e no gesto,
bastara-lhe uma regra que não se acha bastante inculcada nas prelecçoens
do Conservatorio Real das Artes scenicas, isto é: carregar-lhe no copo.

      *      *      *      *      *

Ácerca d'este elixir vitalisador das citadas Artes scenicas--necessidade
physiologica (o copo, intenda-se, e não as _Artes_) do sangue luzitano
de origem celtibera--não sei quaes sejam as cogitaçoens actuaes do meu
Luiz Augusto Palmeirim, egregio director do Conservatorio Real.
Cumpre-lhe, todavia, estar precavido contra as anemias e opilaçoens
(opilaçoens, no sentido casto de _chloroses_) d'aquelle aviario de
roussinoes e outros passaros que regorgeiam em perpetuo abril, estofando
os seus ninhos com o pollen das flores.--_Pollen das flores_, notem a
figura que é rara n'estes tempos hostis á rhetorica. Ora pois. Que
aquelle seminario das Artes scenicas borborinhe sonoroso de
interjeiçoens tremicullosas como calefrios, arranques tragicos,
morbidezas de bemóes e sustenidos; e que, depois de um purgatorio de
rabecas e pianos,--supplicio indispensavel--rutilem, ao diante, pelas
trapeiras das aguas-furtadas do Bairro-alto as constellaçoens sidereas
das Sarah, das Nilson, das Patti, dos Rubeinstein, n'este paiz de
_Manoel Mendes Enchundia_, da _Canna-verde_, do _Passarinho
trigueiro_ e do _Fado choradinho_. Notem que o dr. Letourneau escreve
que uma ponta de vinolencia é a poesia da digestão[3]; e
tambem affirma que onde quer que se usa a bebedeira, existe uma
litteratura bachante (pag. 45). A regra em Portugal falha praticamente.
Temos a bebedeira sem a litteratura, talvez por falta de editores pouco
serios.

      *      *      *      *      *

D. Gloria, não obstante, seria ridicula hoje em dia que a sciencia
glacial esfriou a admiração pelas mulheres de talento menos methodico,
desvairado por exorbitancias Vadias.

N'aquelle tempo as senhoras que recendiam essencias de macassar, e
tinham sido iniciadas nas assembleias pelos parlapatoens da Restauração,
eram assim. Reinavam os _parvenus_, uns devassos broncos, algum tanto
desbastados pelo esmeril da emigração, ou sahidos das cadeias com uma
grande fome de mundo, de diabo e de carne, os trez amigos figadaes do
corpo, como explica methaphysicamente a _Cartilha da doutrina_ para uso
dos collegios de meninas. Elles tinham as fossas nazaes virgens do nitro
das granadas do Porto; mas eram destemidos fundibularios de patacos
regeitados á sege do sacrificado duque de Bragança que lhes dera patria
sem os inconvenientes da forca, e dilacerára o coração nos sobresaltos
das batalhas. Eram os bagageiros do espolio opimo com todos os
caracteres ethnicos da siganagem portugueza. Compravam conventos com
titulos azues e rebatiam a 17 p. c. os arriscados e sacratissimos
emprestimos aos _Regeneradores_ de 20 e aos _pallikares_ empennachados
da _Belfastada_.

Os _parvenus_ inculcavam como norma da perfeição feminil a _Corinna_
de madama de Stäel, a mesma madama em pessoa a fazer aos psycologos
philosophias, e coisas mais praticas a Benjamin Constant, como a
Récamier ao velho lubrico que fazia, da sua parte, o _Genio do
Christianismo_. Todas e todos muito devassos e eloquentes, boas e bons
para começarem os seus romancinhos ao fogão e concluil-os nas alcôvas.
Foi este o ideal da mulher que os emigrados trouxeram dos _boulevards_
e dos hoteis _garnis_ a 2 fr. e 50 cent., com uma de-mão do verniz de
Mabille.

Lia-se então copiosamente a obra emocional de Paul de Kock; e os
hierophantas do reino restaurado folheavam com mão diurna e nocturna a
_Republica_ de Platão, onde o grande legislador, em pleno luxo de
policiamento hellenico, preceituava que as mulheres passassem de mão em
mão. (Livro V.) Esfervilhavam por isso as Xantipas com que os Socrates
altruistas obsequiavam os Alcibiades, e floreciam as Marcias que os
virtuosos maridos Catoens emprestavam aos Hortensios. Assim como nas
lojas maçonicas muitos dos triumphadores de 34--um grupo sahido da
barbaria da idade-media--se chamavam _Catoens_ e _Socrates_, por igual
theor, no sanctuario da familia, usavam os mesmos habitos greco-romanos.
Foi por isso que, em 37, o apocalyptico autor da _Voz do Propheta_
denominou Lisboa uma _caverna de vicios e desenfreamentos_.

Uma franceza, amante varia de varios francezes, mad. Pauline de
Flaugergues, dava o tom em Lisboa, por esse tempo, em versos e frescor
de cutis polvilhada de bysmutho. Rodeavam-na os areopagitas do plectro e
da sintaxe, a mestrança da versejadura--Castilho, Garrett e os outros da
constellação. Esta bohemia trovista foi dada como typo de mulher
emancipada pelo talento. Teve ovaçoens das lyras primaciaes. Damas da
côrte, creadas em novenas e lausperennes, atiraram as camaldulas ás
ortigas e pegaram de fazer muitos gallicismos grammaticaes e pessoaes.
Viveu-se uma rasgada bacchanal á franceza, em que tomaram o seu quinhão
_pro rata_ as mulheres dos marquezes, as filhas dos algibebes e as
esposas dos ex-almoxarifes. É como foi. A D. Gloria era um fructo
bichoso, sorvado, de arvore que não sevou a raiz em terreno alheio mal
adubado. Era cedo ainda. Ás portuguezas faltava-lhes o _savoir-vivre_,
para se aguentarem corrompidas e elegantes. _Jam novus rerum nascitur
ordo._ Isto hoje está melhor--está como deve ser. A mulher cae; mas
sabe cahir n'este palco; e não podia ser assim ha quarenta annos. _Go
ahead!_

O certo é que aquella dama foi a primeira paixão de Carlos--a primeira
que é tão forte e pouco menos tola que a setima e a vigesima nona.

      *      *      *      *      *

Trez mezes volvidos, Ribeiro tinha perdido a alegria, o affecto ao
trabalho, a convicção da sua immaculada probidade, e já luctava com as
duras hostilidades da pobreza. Quanto a Gloria, cada dia mais formosa,
mais fascinadora e mais crapulosa. Elle chegou a pedir-lhe em joelhos e
de mãos erguidas que se abstivesse de beber tão destemperadamente; e
ella, no lucido uso das suas faculdades dirigentes, respondeu que não
podia,--que o embriagar-se era o seu suave e doce suicidio, porque
queria morrer.


Carlos obtivera informações de Lisboa. O pai de Gloria ainda vivia. Era
um bom proprietario rural na comarca de Torres Vedras, tinha sido criado
particular do snr. D. João VI, cazára com uma retreta da snr.ª D.
Carlota Joaquina, e tinha o habito de Christo. O marido era mentecapto e
velho. Perdera a rasão com a queda do snr. D. Miguel e do seu
almoxarifado no Alfeite. Quanto a Bramão, um industrioso, vivia de
apostas ao bilhar no Marrare das 7 portas e era casado com uma peccadora
acirrante, uma trigueira de bigode que se desforrava usurariamente das
perfidias do marido, sendo perfida para todos os amantes.

Meditava Carlos em commiserar o velho cavalleiro de Christo, na
esperança de regenerar a dignidade de Gloria com a convivencia do pai
venerando e das irmans honestas. O velho respondera a quem lhe pediu
compaixão para a filha que a julgava morta, e morta devia estar para
elle; mas que não a repulsaria do seu talher, porque a desgraçada tinha
a seu favor como desculpa o haver casado constrangida.

Quando o tenente, triste pela deixar e alegre por salval-a, lhe
communicou a resposta do pai, ella improperou-lhe a covardia de a não
desenganar, se estava farto de atural-a, e reprovou a missão caritativa
de a reconciliar com a familia, não tendo procuração para isso. Depois,
trocaram-se palavras desabridas.

      *      *      *      *      *

No dia seguinte, D. Gloria deixou a casinha da rua da Sovella e foi para
o Bom Jesus do Monte com um dos leões d'aquelle tempo em que a cidade da
Virgem parecia ser da Venus Callipygia--uma leoneira da Hircania, onde
as epidermes roliças das donzellas de Cedofeita e as ostras da Aguia
d'Ouro eram o pastío nocturno d'aquelles dragoens, producto da
concubinagem do romantico burro de Buridan com a classica burra de
Balaão. D'esta progenie, que herdára da mãe o dom da palavra, e do pai
um amor menos indeciso ás duas maquias, evolucionou-se o _crevé_, o
estoiradinho, um phenomeno embryologico, que encaracola _bellezas_ na
testa exigua de microcephalo, incalamistra o bigode, e tem do D. Juan de
Maraña simplesmente a guitarra com que perverte familias espanholas
vigiadas pela policia medica. De resto e _au fond_, os estoiradinhos
são grupos de moleculas, agregaçoens granulosas, saturadas de marisco,
de cerveja barata da Baviera e nicotina, justificando a formula
excentrica e um tanto paradoxal de Bacon: _o vacuo de mistura com o
solido_. Protegidos pela lei geral do atomismo, agitam-se no turbilhão
universal da materia inconsciente: são «acasos da concorrencia vital»,
como diria Darwin; mas não confundir _concorrencia_ com _selecção
natural_; que a natureza é mais logica e demorada nos seus
transformismos. Pela rapidez com que do _leão_ pujante de 1840 se
engendrou o _catita_ escrophuloso de 1880, é claro que a _selecção_
foi _artificial_, estabalhoadamente, grande celeridade. A este
respeito, os curiosos orientem-se em Topinard, L'ANTROPOLOGIE,
_passim_. Cumpre notar que, no arranjo organico do estoiradinho,
collaboram 65 elementos conhecidos, diz a Sciencia. 65! que
prodigalidade! A não ser a Sciencia, quem diria que a Natureza para
construir um cretino gastou quasi cinco duzias e meia de elementos--os
mesmos que despendeu para fazer o mar, o espaço, o mundo sideral, os
cyprestaes balsamicos do Libano e os fedores humanos da Baixa; o Caneiro
de Alcantara onde os microbios fazem as suas regatas recreativamente, e
o Amazonas, a banheira do sol, espraiando-se em escamas refulgentes; o
Garrett que faiscava, como um cerebro de diamantes facetados, as
_Viagens na minha terra_, e o cerebro do outro Garrett que supurava,
como um tumor apostemado, as _Viagens a Leixões_! Com as ultimas
palavras da biologia é que a Sciencia regeita o dogma da alma, e nos
convence de que o estoiradinho, pelo que respeita á porção cinzenta do
cerebro, deixa de ser o rei da creação para retroceder, por atavismo e
sem hyperbole, á familia dos vibrioens, um quasi infusorio, e pouco mais
que proto-organismo, irresponsavel pelos seus flagrantes delictos de
brutalidade.

Em obsequio a estes irresponsaveis é que o bispo sr. D. Antonio Ayres de
Gouvêa tanto e valorosamente impugnou a pena de morte. Todavia, o seu
victorioso repto á forca, mallogrado em Beccaria, em Lamartine e V.
Hugo, seria socialmente mais completo, se s. ex.ª tambem conseguisse
que, em vez do _menu_ pouco peitoral da strychnina municipalense, se
servissem _côtelettes de veau sauté aux truffes_ aos magros cães
vadios, inoffensivos na sua fome e na sua sêde. _Struggle for life._
Sei essa trivialidade erudita; mas a lucta pela existencia não authorisa
que os vereadores sejam carrascos dos cães, em quanto o equilibrio dos
negocios publicos e o pagamento em dia dos 6 por cento das inscripções
lhes permittir comerem o boi. Ora--digamol-o de passagem--o boi era um
Deus entre os egypcios, o divino Apis, e entre nós é o manso e pingue
holocausto de uma bestialidade carnivora; porque nós, os europeus,
comemos os Deuses alheios em bifes, e os proprios em hostias. Sacrilega
pouca-vergonha!

      *      *      *      *      *

Voltando ao drama e ás palpitações do leitor por um pouco suspensas, a
estanqueira contou depois que, emquanto o tenente estava na mathematica
fazendo garatujas na lousa, um esbelto rapaz, todo de preto, com um
cacetete, pantalonas á _hussard_, fazia tilintar o tinido das suas
esporas amarellas no pavimento de D. Gloria. Trabalhosa e fragil senhora!

      *      *      *      *      *

Eu morava na rua Escura, no bairro mais pobre e lamacento do Porto, um
bêcco fetido de coirama surrada, em uma esquina que olha para a viella
dos Pellámes. Eramos dois os estudantes que occupavamos o terceiro andar
com uma retorcida varanda de páo, esmadrigada, n'um escalabro de
incendio, debruçada em ameaças sobre os transeuntes como a varanda de
Damocles, muito mais perigosa que a lendaria espada, cujo gume deve
estar muito rombo e puido da esgrima dos eruditos em Damocles. No
primeiro andar morava a proprietaria, uma adéla que nos cosinhava certas
iguarias dignas de ser expostas ao sêvo das aves de rapina no peitoril
d'aquella varanda. Quanto a ratos, era uma succursal de Montfaucon. O
segundo andar tinha escriptos desde muito, e não havia homem
desesperado, cançado da vida, que ousasse tentar o suicidio n'aquellas
ruinas minacissimas. Quem procurava casa, olhava com terror, e seguia o
seu caminho, como se ali morassem os leprosos de Xavier de Maistre.

Disse-me a patrôa, uma noite, alegremente, que tinha alugado o segundo
andar por deseseis tostoens mensaes a uma creatura, que lhe parecia
mulher de pouco mais ou menos; e acrescentou com uma sensata
indulgencia: «Seja ella o diabo que for, o que eu quero é que me pague
adiantado; senão, minha amiguinha, viella, viella!» e apontava para a
rua com um gesto de braço e dedo perfurante como uma estocada.

Com effeito, a devoluta varanda do segundo andar, tão destroçada como a
minha, aguardava uma Julieta adequada competentemente aos Romeus do
terceiro.

A inquilina entrou e pagou.

Quando eu recolhia da chimica e subia ao meu terceiro andar fazendo
gemer os degráos, olhei curiosamente para a saleta do segundo, e conheci
a Gloria da rua da Sovella. Estava muito acabada, olheiras fundas, os
angulos faciaes descarnados, os beiços roixos, calcinados pela combustão
dos licores. Na epiderme transparente já não lhe revia o rubor setineo
do sangue colorante. Sobre as saliencias malares, manchas rubras que
poderiam ser de vermelhão ordinario ou da febre ethica; os tegumentos
pareciam emplastados por uma camada de velha cêra amarellada. As
cordoveias do pescoço, muito esbagachado, com umas saliencias nodosas
como cordão de S. Francisco.

Havia um anno que ella tinha deixado Carlos Ribeiro immerso em uma
grande commiseração, disia elle; mas eu sabia que era maior a saudade
que o dó.

Procurei o meu amigo que havia concluido o curso e entrára na fileira.
Estava fóra do Porto em serviço. Melhor foi assim, porque a noticia que
eu lhe levava poderia magoal-o ou fazêl-o descer até ao vilipendio de a
visitar.

Ao fim de quinze dias, disse-me a patroa que a _Aurora_--nome de guerra
que se dera D. Gloria--uma noite por outra, recolhia comsigo um
engajado. Fallava sempre com figuras decentinhas a minha patrôa.
«Engajado» era decente. Diziam então as senhoras nos bailes da
Assemblea: «Já estou engajada para a terceira polka».

Quanto á natureza dos engajados, disse-me que eram velhos. Conhecêra o
Rapozeira, um d'oculos. que tinha loja de batinas e galoens para
esquifes, na rua Chan: outro, era amanuense da camara do bispo--ambos
muito borrachoens. E promettia pôl-a no olho da rua, se ella continuasse
a fazer-lhe troça, por noite velha, em cima da cabeça, dansando o
Sarambeque.

O Sarambeque era da natureza bordelenga do _Hulalá_, um bailado
dissoluto, priapêsco das Ilhas Hawai. Eu nunca pude ver a assemblea da
visinha, nem o cavalheiro bestial ajoujado por tal dama ás suas
_soirées_ dansantes. Quem quer que fosse, dava, no repicado sapateio da
sua furia endiabrada de selvagem de Ceylão, oscillaçoens de terramoto ao
predio. Muitas vezes, reciei que, _verbi gratia_, desabada aquella casa
filial das orgias de Sardanapalo, eu fosse o candido bode expiatorio
sacrificado no entulho da derrocada ás iras dos deuses e da senhoria.
Depois, noite alta, havia comedorias--um aziumado de azeite rancido e
alhos, estrugidos emeticos, emanaçoens sulphydricas d'aquellas almas
latrinarias. Lamento, já agora, não ter então colhido notas para hoje me
inculcar um Petronio testemunhal e authentico d'essas ceias de
Trimalcião com iscas de figado e o rascante de Cabeceiras de Basto.

      *      *      *      *      *

Um dia, de madrugada, acordou-me um grande berreiro nas escadas. O meu
companheiro, o bom Machado de Carção, um medico que morreu ha muitos
annos, foi examinar de perto a desordem, e contou-me que um velhote
apopletico, com ares de jarrêta provinciano, estava gritando que Aurora
lhe roubara vinte e cinco pintos da algibeira do collête, depois de o
ter embebedado com genebra.

O roubado sahira em berros para a rua, e os calcêtas, que trabalhavam no
lagêdo arrastando os grilhoens, assobiaram-no. Aurora dava gritos de
innocente contra a calumnia, e a proprietaria intimava-lhe ordem de
despejo immediato. D'ahi a pouco, a ladra era preza pelo cabo de
policia, conduzida á regedoria e de lá para o Aljube.

Fui para a chimica do eggresso e encontrei o tenente Ribeiro. Contei-lhe
o caso que elle me ouviu com os olhos marejados. Depois, pediu-me que
commettesse o delicto infando da vigesima quarta falta na aula, e o
ajudasse a salvar, se possivel fosse, aquella enorme desgraçada, visto
que elle não queria figurar pessoalmente. Mandou-me ao regedor; que
soubesse onde estava o roubado, e lhe restituisse os 12$000 reis para
elle não ser parte á preza. Que lhe referisse eu a sinistra vida de
Gloria para que elle, compadecido, a não mandasse ao tribunal. E que,
depois, fosse eu ao Aljube, e lhe dissesse que, se ella embarcasse no
primeiro vapor para Lisboa a procurar o amparo de seu pai, havia quem
lhe pagasse as despezas.

Fui ao Aljube ás 3 da tarde. Lá dentro era noite. Gloria estava
innovelada a dormir sobre uma enxerga a um canto. Ella tinha sahido,
quinze dias antes, de uma enfermaria do hospital de Santo Antonio,
quando a sua visinha, mais feliz, era levada, ainda morna, em uma
padiola para o theatro anatomico. A devassidão emparceirada com a morte
mandaram aquelle esqualido presente ao escalpello da sciencia. Ah!
quantas curvas de musculatura roidas pelo hydrargiro eu retalhei para
hoje poder, como testemunha de vista, jurar que o coração é um musculo ôco!

No soalho em que dormia Gloria, parecia que tinha choviscado lama. A
enxerga era de uma preza, cujo cão de agua, gordo e muito sujo, dormia
aconchegado dos quadris da outra. A dona do cão tinha uma cara cheia de
enygmas, acidentada de periosteos cariados, exfoliados, com barbas.
Seria uma riqueza craneologica para um Haeckel ou Topinard; mas para mim
era simplesmente uma asneira paradoxal em anatomia comparada. Nunca me
esqueceu. Lembro-me sempre da figura indelevel d'aquella mulher, quando
nego a blasphema hypothese do Deus de Moisés e do sr. padre Grainha, um
Deus que fez á sua imagem e semelhança e--o que mais é--á sua custa, um
typo humano com o perfil divino d'aquelle feitio. Contou-me que estava
ali por ter dado uns tabefes n'uma regatona de castanhas cosidas que lhe
deitava o raio do olho ao marido, o João do Corgo, um calceta que andava
a cumprir sentença de toda a vida, innocente, por ter ajudado a matar um
padre. Innocente! Como ella qualificava a iniquidade da justiça social
com seu marido que matára em collaboração um levita! Queria talvez que o
premiassem como quem mata um lobo.

Com referencia á sua companheira, tambem a julgava innocentissima.
Contou-me que se enchera de aguardente até cahir; e logo á entrada
protestára que se havia de enforcar nas grades. Acrescentou, n'uma
irritação de quem tem soffrido injustiças exulcerantes, que a pobre da
creatura não roubára nada; que todo o dinheiro que tinha eram seis
vintens em prata que comprára d'aguardente.

Entretanto, Gloria ressonava.

Era um bonito exemplar de um cancro roído pelos microbios de fóra, de
parçaria com os microzimas de dentro--herança do Paraizo. Isso que ali
tresandava era um dos abcessos estercoraes que genealogicamente nos
vieram do ventre primordial de Eva, nossa matriarca. De lá nos
deriva--divina Iniquidade!--esta syphilisação das almas, transmissivel e
incuravel a despeito dos vários _Robs_ depurantes, _brevet
d'invention_, das pharmacias do Vaticano.

Em quanto ella dormia, fui a minha caza que pegava com o Aljube pelas
trazeiras, e rebusquei no estafado colchão de Gloria os vinte e cinco
pintos, visto que ella os não tinha em si. Lá estavam em uma bolsa de
camurça. Fui com o dinheiro á regedoria, onde compuz o meu primeiro e
inedito romance oral, nada auspicioso, contando á authoridade inflexa
que a preza estava innocente, porque o queixoso, antes de se embriagar,
escondêra o dinheiro no colchão, e não sabia depois onde o mettêra.
O meu romance foi pateado, pelo sorriso do regedor, como
inverosimil--desastre que depois me tem succedido com outros muitos
romances, inspirados por intuitos menos louvaveis e mais verosimeis. Eu
quizera salvar Gloria da imputação de ladra. Em todo caso, o
funccionario, lavrado um auto que assignei como apresentante do roubo,
embolsou o velho devasso, um negociante de fructa da Penajoia, que me
queria dar um pinto de alviçaras, o qual eu regeitei com um pudor
anachronico, arcadiano.

Eu que descera das penedias transmontanas, perfumadas das essencias das
matas altas, vestidas do roziclér das auroras, da purpura vespertina dos
crepusculos, de moitas de rosmaninhos, e resvalára á sargêta da rua
Escura, fui como um archaico _Thesouro de Meninos_, cahido no
enxurdeiro e focinhado por aquelle cerdo da Penajoia; ou, melhor
comparado, era o nenuphar solitario, a impolluta nymphea do pantano
portuguez de 1845.

Quando voltei ao Aljube estava ella muito atordoada, n'uma bestificação,
a queixar-se de fome, porque não comia desde a vespera, e o alcool
causticava-lhe as mucosas. Fui á estalagem da rua de S. Sebastião, ali
ao pé, e mandei-lhe o jantar. Comeu pouco e não quiz vinho. Pediu
genebra que lhe não dei. Ao anoitecer, chegou um quadrilheiro com a
ordem da soltura. Acompanhei-a ao seu segundo andar. Ella olhava muito
pasmada para o colchão que ainda tinha parte dos intestinos de retraço
de palha moída por fora da abertura; mas não fez alguma reflexão em voz
alta. Propuz-lhe a sahida para Lisboa no dia seguinte, com os meios que
o meu amigo lhe liberalisava. Fallei-lhe no perdão do pai, na sua
regeneração--fui tocante; e ella, com uma indolencia idiota, e um
escancarar de bocca:

--Tanto se me dá como se me deu.


A mulher que, um anno antes, citava Lamartine, Victor Hugo e Sand estava
assim estylista: Tanto se me dá como se me deu!

      *      *      *      *      *

Como aquella senhora se despenhou vertiginosamente até cahir no fôjo
immundo de uma devassidão bestialmente suja é phenomeno que só espanta
quem não sabe logica, nem conheceu um exemplo. E quem não conhece trez
exemplos que o dispensem de encadear os elos da logica?

Eis-me na rhetorica!

Eu não ignoro que esta especie de autopse em cadaver estampilhado com a
infamia que não discutem pessoas que se prezam, é um archaismo, uma
subjectividade obsoleta. A escola naturalista estabelece que a
comprehensão publica está por tanta maneira salitrada d'estas podridoens
que não carece da catechese psycologica para perceber o desabamento.

Pois se intendem como foi que aquelle corpo tábido de D. Gloria chegou
assim no enxurro ao ergastulo das ladras, queiram desculpar esse pedaço
de estylo quartenario, que ahi fica para admiração dos archeologos, como
se fosse um craneo dos _Paraderos_ da Patagonia.

Consintam, porém, que eu me imagine, em 1845, na rua Escura, a
interrogar o segredo da miseria humana, DEUS, o _Motor Immovel_, assim
chamado por Aristoteles. Como cahiu na esterqueira do aljube das ladras
aquella pasta de estrume, o farrapo roixo das escareas de uma ulcera
cancerada que, uma só vez, Jesus, com os seus olhos abrasadores de fogo
divino, poderá cauterisar no peito da meretriz de Magdala? Para resgatar
uma judia formosa e dissoluta das presas aveludadas da lascivia
oriental, foi preciso um ente ultra-humano; e, para esse bom exito,
fez-se mister que o Deus--mais conhecido entre as familias pelo _Padre
Eterno_--baixasse da sua metaphysica immaterial ao anthropoide,
encorporando-se n'um gentil nazareno; aliás, talvez não fizesse
nada--palpita-me. Um Deus extreme, categoria ideal incomprehensivel, sem
mescla de homem, com uma organisação desconhecida aos biologos, não
vingaria, com todo o seu _mise en scène_ de trovoens e relampagos,
infiltrar contrição no peito d'aquella mundana, calafetado pelos beijos
dos tetrarcas, dos pretores e dos opulentos chatins da Assyria. É bem
notorio que os feios cornudos diabos do vicio, dispersos no ambiente,
muito familiares com os costumes de planetas, cometas, meteoros, etc., e
_blasés_ em trovoadas, não largam as suas victimas, ainda que a faisca
eléctrica de um corisco lhes queime aquella parte do cavallo morto a que
o anexim portuguez deita a cevada. O diabo tem a enorme força que Deus
lhe deu sobre a nossa fragilidade. Nós somos a pluminha volatil da pomba
redemoinhando vertiginosamente nas convulsoens de uma tromba terrestre.
Fez-se, por tanto, mister a humanidade gentilissima de Jesus, adoravel
na sua vida casta e na sua indulgente misericordia com as peccadoras,
para reduzir aquella á honestidade. Elle tinha escripto com o dedo na
poeira da praça a sentença absolutoria d'uma adultera. Alem d'isso, o
valoroso galileu atagantara com umas disciplinas de esparto as costas da
quasi sempre respeitavel classe commercial, que armara vitrines de modas
e confecçoens no templo. Seria ali que provavelmente a espaventosa
Magdalena, com grandes uzuras, e talvez a gis, ou á custa de meiguices
fraudulentas, comprára as suas pompas--a escarlata persica dos seus
mantos roçagantes, as meadas de pérolas de que ennastrava as suas
tranças loiras, e as essencias aromaticas com que ungira, a despeito de
Judas, os pés do mavioso acariciador das creanças innocentes, e juiz
compadecido das filhas de Jerusalem iscadas da corrupção romana.

Creio na conversão de Maria Magdalena; porém a de sancta Maria Egypsiaca
e das trez sanctas Margaridas, uma de Cortona, outra do _Fausto_, e a
terceira de appellido _Gauthier_, essas são fallacias de agiologos e
dramaturgos.

      *      *      *      *      *

A filha do Cavalleiro de Christo, esposa do ex-almoxarife, foi para
Lisboa, decentemente trajada, em beliche de 1.ª classe. Carlos Ribeiro
hypothecára talvez o seu soldo de seis mezes. Se me dessem a escolher,
eu preferiria ter praticado este acto a ter feito a descoberta do
_Anthropopithecus Ribeiroii_.

      *      *      *      *      *

Em 1845, ao deixar o Porto e a chimica para ir jurar bandeiras na
bohemia de Coimbra, despedi-me de Carlos Ribeiro e nunca mais o vi.
Trinta e sete annos de separação absoluta como exordio da eternidade!

Pois que as nossas pesquisas paleontologicas eram em mundos diversos,
nunca mais nos encontramos. Olhavamos as cumiadas de montanhas em
horisontes oppostos: elle--para o acume da Sciencia, a desvendar os
segredos do genesis; eu--para a Arte, a subjectividade esteril. O
archeologo, pelo pregão dos mestres europeus, assumiu a eminencia;
depois, morreu; mas está na posse da immortalidade. Bem boa coisa. Em
quanto eu, graças á magnanima concessão dos meus patricios lettrados,
estive toda a vida, ao sopé da montanha alcantilada, a descrever coisas
feitas pessoas por essas terras quentes dos Brasis, onde ha
fermentaçoens, e avatar e os transformismos darwinistas como em nenhuma
outra fauna.

A este rude caboucar de um terço de seculo, devo eu--ó celestiaes
bebedeiras de gloria!--a exultação atordoante de me ver, aqui ha dias,
conceituado em certa gazeta da capital como _romancista conhecido_.
Li-o em lettra redonda e resisti á apoplexia do jubilo. «Romancista»
_tout court_ era já uma apotheose hyperbolica; porém, de mais a mais
«conhecido», isso transcende os extasis de uma idolatria catholica, que
me colloca na jerarchia litterata de S. Cypriano, de Sancto Athanazio e
d'outros Sanctos Padres romancistas mystagogos maiores da marca. Mas,
visto que assim o querem, este culto pagão muito me penhora. Pois bem!
Quando um plumitivo arrojado, sovando aos pés os conspiradores do
silencio, trepa até não ser de todo desconhecido no Chiado--5.ª essencia
de Babylonia com perfumes de Marrocos--esse petulante genio não
transporá as fronteiras da modestia, se almejar as doidas delicias de
ouvir, um bello dia, nomear a sua pessoa conhecida no não menos
conhecido Poço do Borratem.

Pois é verdade: eu, como novellista, descobri mais anthropoides do que
elle como geologo. Mas faz pena que eu não procurasse ensejo de pedir
aos setenta annos do general as recordaçoens do tenente.

Quanto a Gloria que, por uma inconsciente zombaria de si mesma, ao
atufar-se na noite caliginosa da miseria e da infamia anonyma, se
chamára _Aurora_, se isto fosse um romance, pode ser que eu, n'esta
idade provecta, ainda tivesse explosoens de fantasia rara para fazêl-a
morrer de alcoolismo, no catre do hospital, para onde a levaram
esfragalhada, mordida pelos cães vadios, apupada pelos gaiatos, sovada
pelos pontapés da guarda-municipal, espumando gromos de sangue nos
ultimos vómitos da aguardente.

Mas eu não sei como, nem quando ella morreu; nem sei se é viva e se está
na quinta dos seus avoengos restaurando com capilés e agua de Lourdes o
estomago e os erros da sua mocidade.

      *      *      *      *      *

Este episodio da mocidade do douto general, se eu o contasse ha trinta
annos, teria os recortes, os matizes e filigranas idealistas da poesia
que ainda n'essa epoca de transição enfeitava as suas dissecçoens
nauzeabundas das paixoens animaes. Todo analysta da vida e da morte
vestia umas luvas brancas quando expunha sobre a sua banca de trabalho
uma peça anatomica, um coração para descoser, e sahia com as luvas sem
nodoa. Era isso um grande mal. O romantismo poetico inflorava as
putrefaçoens com côres e subtilezas taes de pétalas e aromas que, em vez
da repulsão pelo podre, punha nas cabeças azoadas as vertigens dos
abysmos. Essa perversa missão da Poesia soffreu o exterminio de todos os
flagellos que estão ao alcance desinfectante e hygienico da Sciencia.
Pouquissimos e esporadicos são já os poetas no termo genuino de
«deturpadores da realidade». Os que ainda rimam deteriorando a verdade
experimental com embustes methaphysicos são uns atavismos que fazem
lembrar, na sociedade actual, as aberraçoens genesicas que remontam o
homem á torpeza selvagem da Australia e á civilisação refinada da Roma
de Juvenal, e da Grecia de Anacreonte. Essa chaga insanavel da besta
humana esvurmará sempre a sua peçonha já em brochuras, já nas partes da
policia por ultrages á veneranda Moral--uma velhinha tão trôpega que,
assim que lhe embarram, cáe no asphalto, e entra a gritar pelo habil
Antunes e por outros habeis que não ganhariam a sua vida officialmente
gloriosa, se a Moral fosse mais acatada e menos atacada. O leitor, se é
uma especie de habil Antunes da vernaculidade, seja indulgente com este
jogo de vocabulos que tambem é um ataque desmoralisado á lingua.

Quanto ao poeta scientifico, genial, racionalista, concluida que seja a
sua obra de sapa e a ultima batalha dada aos deuses, esse tem de
desapparecer como inutil, e ridiculo como um archaismo. Ainda hontem, na
França, Eugène Véron, no seu livro de ESTHETICA, escreveu que _tout le
monde, sauf les idiots, est poète_. A condicional _sauf_, poderia
excluir muitos poetas nossos conhecidos; mas Véron inverteu
paralogicamente a excepção em regra. Elle, se fosse um digno interprete
da Sciencia implacavel, deveria ter escripto: _Ninguem é poeta, excepto
os idiotas._

FIM.


    [1] Bibliothéque des sciences contemporaines. _Le préhistorique
    antiquité de l'homme_, par Gabriel de Mortillet. Paris, 1883, pag. 105.

    [2] Obra citada, pag. 106.

    [3] _La Sociologie_, pag. 44. Paris, 1880.





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