Historias das Ilhas : (Reminiscencias dos Açores e da Madeira)

By Azevedo

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Title: Historias das Ilhas
        (Reminiscencias dos Açores e da Madeira)

Author: Maximiliano de Azevedo

Illustrator: Celso Herminio

Release date: January 26, 2025 [eBook #75220]

Language: Portuguese

Original publication: LISBOA: Parceria Antonio Maria Pereira, 1899

Credits: Pedro Saborano, Laura Natal and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.)


*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIAS DAS ILHAS ***


                          HISTORIAS DAS ILHAS




                       _MAXIMILIANO DE AZEVEDO_


                               HISTORIAS

                                  DAS

                                 ILHAS

               (Reminiscencias dos Açores e da Madeira)


                      DESENHOS DE CELSO HERMINIO




                                LISBOA
                    PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
                           LIVRARIA EDITORA
                     _50, 52--Rua Augusta--52, 54_
                                 1899

                                LISBOA
                   TYPOGRAPHIA E STEREOTYPIA MODERNA
                        Becco dos Apostolos, 11




[Ilustração]
                        O Casamento do Veterano


    ¿Su esposo la perdona aunque lo infama?
    ¿Ama y perdona?--Es imposible; no ama.
    CAMPOAMOR.


                                   I


No dia em que o Jorge casou com a filha da Isabel houve grande reboliço
no Castello de S. João Baptista. Depois da missa regimental, o padre
capellão de caçadores 10 recebeu os noivos, com prévia dispensa do
prelado da diocese, na grande capella da fortaleza. Era numerosa a
assembléa, formada especialmente pelos curiosos.

Officiaes e soldados, logo que o batalhão destroçou, correram para o
templo, onde já encontraram muitas mulheres, algumas de _manto_,
aguardando anciosas a chegada do cortejo nupcial, e fazendo em voz
baixa e com enorme dispendio de gestos, abundantes commentarios,
qual d’elles mais frisante, á resolução tomada pelo cabo de
veteranos.--Escolher para mulher uma raparigota, que podia á vontade
ser sua neta!--

--Eu cá por mim, exclamava a Luiza Braga, escancarando a boccaça meio
desdentada, ía jurar que lhe deram _coisa para querer bem_. Aqui
onde me vêm, _destrinço_ o Jorge desde rapaz pequeno, e nunca lhe
descobri tenções de casar. Não era então aos cincoenta e oito annos,
que estando com o juizo todo, havia de... Nada! Nada! Elle bem sabe que
«albarda nova em burro velho é matadura certa».

--E a quem o Jorge foi buscar?... Á Rosa!... acudiu a Josepha Julia,
cunhada do sargento Migueis, piscando muito o olho esquerdo, unico de
que era possuidora.

--Eu não digo que a rapariga seja _somenas_, mas sempre é filha da
Isabel, e ninguem desmente o seu sangue. D’arredio, d’arredio, é que eu
gosto de vel-as a ambas!

--Deixe a tia Luiza estar que a Rosa tambem não é nenhuma santinha,
replicou a Josepha. Não lhe quero pôr _pitafe_, mas se foi verdade
aquella historia com o sargento Luiz...

--Não seria, menina. Olhe que a Isabel é rata sabia e não a deixava ir
á noite, sósinha, para o baluarte de S. Pedro. O 33 da artilheria é que
disse, que tinha lá visto os dois, mas como todos lhe conhecem a má
lingua... Pois não foi elle que andou por ahi a espalhar que a menina
Josepha olhava para o alferes da segunda, um homem casado e pae de
filhos?!

A Josepha, ao ouvir estas palavras, que lhe foram quasi segredadas,
poz-se vermelha que nem malagueta, e redarguiu promptamente:

--Tão damnada é a lingua d’elle, como as que repetem o que o marau
vomita. _Ubei!_

--Ó menina, olhe que eu não tenho falas com o 33!

--Nem deve ter, que a tia Luiza, por ter essa edade, não escapa a
similhante navalha. Sempre que o tio Braga passa ao pé d’elle, apanha a
sua risadinha e é apontado com o dedo...

A velha despediu-lhe um olhar terrivel, enguliu em secco, e atalhou:

--Bem, bem, não se fala agora nas patifarias do 33. Em todo o caso o
Jorge devia saber que a Rosa não era para a sua bocca.

--E que pode empanzinar com o petisco, accrescentou a outra, já de
perfeito accordo.

N’esta occasião sentiu-se o ruido dos passos de muita gente que vinha
atravessando a parada, e os noivos d’ahi a instantes entravam na
capella, acompanhados pelos padrinhos, pelos convidados e pelas pessoas
que, impellidas pela curiosidade, tinham ido esperal-os á porta da
casa terrea, onde a viuva do sargento José de Medeiros vivia desde ha
muito, por mercê dos governadores do castello. O Jorge, aprumado dentro
da sua farda de gola alta, botões muito lusidios e divisas alvas de
neve, mal deitava os olhos para a gente que o rodeava, e, com a cara a
escaldar, seguiu machinalmente pela capella adeante, ao lado da noiva,
que vestida de cassa branca semeada de raminhos vermelhos, e toucada de
grinalda e veo, dava mostras de vergonha, mal deixando ver os grandes
olhos pretos por baixo das longas pestanas assetinadas e bastas. No
rosto oval, branco e pequenino, esbatia-se um rubor intenso.

Nunca tinha imaginado poder tornar-se o alvo da attenção de tanta
gente, e, se não fosse uma vergonha, fugiria d’alli, a bom correr.

Agora é que deveras se arrependia de ter acceitado a grinalda e o veo á
menina Elvira, filha do capitão da segunda companhia de caçadores 10,
que estava casada, desde o mez anterior, com o tenente Aurelio Joaquim,
ajudante da praça. Se tivesse trazido como tencionava, o seu lenço
de seda de barras azues, não daria tanto nas vistas. Era tambem esta
a vontade do Jorge, porém a Isabel insistira pelo veo, proclamando-o
«coisa muito mais fina».

O cortejo rompeu atravez da multidão, direito ao altar, onde havia de
effectuar-se a ceremonia.

Notaram alguns dos presentes, e antes de todos a Luiza Braga, que a
Rosa tinha córado mais ainda, e estremecido levemente, ao dar com os
olhos no sargento Luiz, que, muito apertado na fardeta côr de pinhão,
se bamboleava, com ar de escarneo, na primeira fila dos curiosos.

--Nem aqui mesmo a deixa! Já é pouca vergonha! murmurou a Luiza ao
ouvido da Josepha Julia.

--Elles lá se entendem, regougou esta ultima, e concluiu, suspirando:
«Tal desgraça!»

Entretanto o padre capellão ia tartamudeando as palavras sacramentaes,
e o sargento Luiz muito satisfeito de si cofiava o farto bigode louro.

--Olhem! Lá está o sr. governador! murmurou a Luiza Braga para as
mulheres que a rodeavam.

O coronel Jeronymo Cardoso acabava effectivamente de surgir a uma
porta lateral da capella e deitava olhares perscrutadores para os
noivos, sem comtudo esquecer as dores cruciantes, que lhe impunham os
terriveis joanetes.

A Isabel tinha querido que o Jorge o convidasse para padrinho, e
chegara até a sondar _sua incellencia_ com exito razoavel, mas o
veterano puzéra os pés á parede, e a despeito de uma formal reprimenda
da futura sogra, insistiu em escolher o José Maria, seu camarada desde
o cerco do Porto, que lá estava na egreja á ilharga do amigo, tentando
aprumar quanto possivel o corpo já muito derreado pelos janeiros.

O jantar do casamento foi em casa do Jorge.

Tudo correu bem e só houve de notavel o pregar a Isabel, já um tanto
avinhada, uma furiosa descompostura na Luiza Braga, porque a viu á
porta da rua, espreitando.

Os convivas apaziguaram a questão e d’alli a pouco despediram-se, indo
o José Maria, um quasi nada alegrote, acompanhar a Isabel, até casa.

--Parecemos tambem dois noivos, disse o velho, batendo-lhe, com a
mão aberta, no meio das costas, e foi-se embora a trocar as pernas,
em quanto a viuva lhe gritava do limiar da porta que «para um marido
_tanto_ fino só a rainha que estava em Lisboa!»

N’aquella noite, mercê das copiosas libações, dormiram mais
profundamente alguns dos habitantes do burgo militar, que pousado
no isthmo que liga a peninsula do Monte Brazil ao resto da ilha
Terceira, olha sobranceiramente para Angra atravez das suas numerosas
canhoneiras.


                                  II


O Jorge tinha perto de cincoenta e oito annos.

Alto, espadaudo, bem conservado, era, sob o ponto de vista militar,
um exemplo vivo do que tinha sido o exercito portuguez, em quanto
o governou a disciplina implantada pelo marquez de Campo Maior, e
conservada pelos officiaes que tinham servido com o famoso organisador
inglez. Era um gosto vel-o perfilar-se deante de um superior e
fazer-lhe a continencia com todos os tempos e prescripções da ordenança!

Aos domingos, para ir á missa regimental, punha ao peito o habito da
Torre Espada, que tinha ganho no cerco do Porto, por estar umas poucas
de horas a disparar sósinho um obuz, contra umas alturas, cujo accesso
convinha a todo o custo impedir ás tropas de D. Miguel. As demais
praças que primeiro guarneciam a bocca de fogo e outras que vieram
substituil-as, tinham ido cahindo, a pouco e pouco, ás balas de um
regimento transmontano, espalhado em atiradores na frente da bateria.

--Maior Africa tu fizeste, dizia-lhe n’essa tarde o primeiro tenente
José Victorino Damasio, em ficares com ambos os braços, do que em
escapar ás ameixas d’aquella sucia! Tu és doido! Servir sósinho um
obuz!...

--Ó meu tenente, redarguiu o artilheiro ilheu com cara muito seria,
pois elle _havera_ de estar calado, tendo uma bocca tanto grande e
sempre escancarada?! Até parecia mal!

--Em todo o caso foi doidice, continuou o tenente a rir.

--Saiba V. S.^a que muitos senhores officiaes tambem dão cá á gente
d’esses maus exemplos. V. S.^a desculpe, mas parecia mesmo doidinho,
quando n’aquelle dia em que lhe atravessaram o corpo com uma bala,
queria á fina força, mal lhe fizeram o primeiro curativo, continuar a
commandar a sua peça. Eu bem me lembro! Só á má cara é que o arrancámos
de lá. Por isso, accrescentou o Jorge, indicando a insignia da Torre
Espada que ornava o peito de José Victorino, fez muito bem o nosso
Imperador dando a V. S.^a essa fitinha azul ferrete.

--Pois tambem tu a mereces e has de tel-a, affirmou o official.

E teve effectivamente uma das quatro destinadas a artilheiros, na ordem
do dia relativa ao combate.

Todas as testemunhas lhe foram favoraveis no inquerito, em que se
baseou a concessão.

Ainda assim o Jorge, embora no seu intimo estivesse a babar-se de
gosto, não se fartou de desculpar-se para com os camaradas, dizendo
que tudo aquillo era obra do tenente José Victorino, e que, verdade,
verdade! o que elle tinha feito, fazia-o qualquer galucho.

Depois da convenção de Evora Monte, mandaram-o para a sua terra, para a
ilha Terceira, e d’alli a annos arranjaram-lhe passagem a veteranos e o
emprego de fiel do material de guerra.

Tinha á sua conta o armazem fronteiro á porta dos carros do castello de
S. João Baptista.

Alli, ou n’uma courella do Monte Brazil, que os governadores lhe davam
para cultivar, gastou elle durante muitos annos as longas horas do dia,
que sempre lhe pareciam curtas.

Era um gosto visitar o armazem, n’aquelle tempo.

Pelo pateo, rodeado de um muro baixo, espalhavam-se com symetria as
pilhas de balas cuidadosamente pintadas de preto, e descançavam, em
dormentes de madeira, os antigos canhões de ferro e de bronze, tão bem
conservados, como se na vespera tivessem vindo da fabrica. Alegrando o
quadro, floresciam em volta do recinto hortensias e gyrasoes.

Lá dentro, no casarão apenas allumiado pela claridade coada atravez das
frestas envergadas e pela que vinha da porta, alongavam-se em cabides,
dos dois lados, soquetes de massa negra e cabo vermelho, emparelhados
com as lanadas e os sacatrapos. Os espeques, encostados ás paredes,
nos cantos, continuavam a uniformidade do tom vermelho, quebrado tão
sómente pela côr de chumbo das pernas da cabrilha, postas ao centro, em
cabide mais forte, que sustentava tambem, inferiormente, o molinete, o
cadernal e o moitão d’aquelle apparelho destinado ás manobras de força
da artilheria.

Toda esta ordem e aceio eram devidos ao Jorge. Raro pedia fachinas
para o coadjuvarem. Só quando havia que remover algum peso de muitas
arrobas, e assim mesmo!...

Descançava emquanto engulia o boccado.

O jantar fazia-lh’o a Isabel, por um ajuste, que havia entre ambos.
Farto de rancho andava elle até aos olhos, e por isso queria «comida
feita por mão de mulher». Demais, a viuva bem precisava que a
ajudassem, coitada! e não lhe exigia nenhum disparate.

Ás vezes, em logar d’ella, ia a filha levar-lhe o comer. Quando o
contracto principiou, a Rosa já era crescidota, mas ainda assim, uns
dias por outros entornava-lhe o jantar, porque ia de corrida, para
se despachar mais depressa. Apesar d’isto o veterano nunca chegou a
zangar-se, porque ao encaral-a, perdia o animo, vendo-lhe aquelles
olhos tão pretos e tão bonitos!... E nunca disse nada á Isabel...

Quando o caso succedeu a primeira vez, a Rosa ficou muito contente, e,
voltando no dia seguinte, poz a cestinha no chão mal viu o Jorge, e
deu-lhe, em agradecimento, um abraço e um beijo.

Ao sentir a carne fresca e macia da rapariguinha tocar-lhe no rosto, o
velho ficou exquisito, e d’alli em deante não estava bem ao pé da Rosa.
O beijo voltava-lhe á memoria, e com elle a noção vaga de alguma coisa
que tinha perdido, e que todos os mais gosavam...

--Nada! Nada! pensava por fim. Eu com isto dou em maluco. O melhor é
dizer á Isabel que fica roto o nosso ajuste, que não me arranje mais a
comida.

Mas que motivo lhe havia de dar? E custava-lhe tanto vel-a menos vezes,
a Rosinha!

Passou-se tempo, a pequena tornou-se mulher, e um dia o Jorge tomou a
Isabel de parte e falou-lhe em casar com a filha, de quem era «muito,
muito amigo!»

A viuva do sargento Medeiros ficou banzada.

Podia lá entrar-lhe na cabeça que o veterano quizesse aquella gaiata,
que não tinha onde cahir morta e que, de mais a mais, no respeitante
a juizo... Quantos amargos de bocca já tinha tido em razão d’este
particular!... Se havia de ter outros peiores ou de vel-a perdida,
mais valia aproveitar aquelle amparo, que lhe cahia do ceu aos
trambulhões... É verdade que o noivo podia ser avô da Rosa, mas era
homem decidido, e saberia conserval-a no bom caminho.

Ainda assim, por descargo de consciencia, mostrou á filha as coisas
como eram: que o Jorge tinha muita edade e que não seria portanto o
marido que mais lhe conviesse. Lembrou-lhe, porém, que elle avezava bem
bons vintens, que só querendo-lhe deveras é que se teria resolvido a
pedil-a em casamento, e que não se parecia em nada com os bandalhos,
que andam por esse mundo a desinquietar as raparigas.

--E a final que proveito é o d’ellas, as mais das vezes? perguntava com
acrimonia a viuva, fincando as mãos nos quadris, bem especada ao meio
da casa. Arranjarem filhos, sem ter apanhado marido!

A Rosa não se decidiu logo. Custava-lhe a tomar o pedido a serio.--Seu
marido, o tio Jorge!...

Bem sabia que o Luiz tinha olhado para ella por brincadeira, sem tenção
de casar; mas quiz fallar-lhe, para ver que effeito lhe produziria
a noticia. O sargento ouviu a participação, achou que o pedido do
veterano se justificava com a belleza da Rosa. Elle proprio desejaria
fazer o mesmo ... mas não podia, porque o pae o tinha obrigado a
prometter casamento a uma prima, em Lisboa, e seria matal-o de desgosto
o escolher outra. O que faria com certeza, era ficar solteiro.

A Rosa não o acreditou, mas ficou-lhe agradecida por aquella
explicação. Esperava até que o sargento a tratasse mal, quando soubesse
dos projectos de casamento. Ainda assim jurou comsigo mesma, que havia
de se vingar acceitando o primeiro que a quizesse para mulher, uma vez
que podesse gostar d’elle. Mas o Jorge, não! Era tão velho!

Um dia a Isabel entrou fula, pela porta dentro.

A Luiza Braga, a quem ella contara o pedido do Jorge, tinha-lhe dado
uma gargalhada nas bochechas, dizendo-lhe que o veterano estava de
certo a caçoar com ellas, e que tirassem d’alli a sua ideia.

--Elle é isso? bradou a Rosa, tambem furiosa. Pois negra seja eu, se
não estiver casada antes de um mez!

Tinha cumprido a promessa.


                                  III


Tres semanas depois do casamento houve tourada de corda em S. João de
Deus.

O Jorge, logo que a Isabel falou em irem todos ao divertimento,
condescendeu, dizendo que não queria a rapariga para freira nem para
bicho do buraco, e d’alli a boccado saíam do castello pela porta dos
carros, os noivos na frente, a Isabel e o José Maria um pouco mais
atraz.

Os caçadores da guarda piscaram os olhos uns para os outros
cubiçosamente ao verem a Rosa, e um de S. Miguel, mais descarado,
commentou, a meia voz, que nenhum d’elles apezar de moços, se benzeria
com um «peixão de estoiro» como aquelle que o velho tinha apanhado.

O José Maria, que ainda ouviu a graçola, cuspiu-lhes a phrase:
«Galuchada atrevida!» mirando de soslaio o chocarreiro.

Depois de descerem até Angra e de atravessarem parte da cidade,
cujas ruas, de ordinario pouco concorridas aos dias santos, mais se
despovoavam n’aquelle domingo por causa da tourada, os quatro subiram
até ao arrabalde de S. João de Deus, onde já enxameava uma grande
multidão.

Dos mirantes, pouco mais altos que uma pessoa, debruçavam-se muitas
damas, a quem os donos das casas sempre reservam os melhores logares,
e por traz d’ellas ou dos lados apinhavam-se as mulheres do povo,
merecendo geralmente umas e outras os olhares de quem buscasse apenas
caras bonitas, sendo porém as segundas mais dignas da attenção do
pintor de costumes, em razão da variedade dos trajos, que ostentavam
quasi sempre com extremada garridice.

Algumas, as mais estimadas, tinham vindo com o _manto_ caracteristico,
muito encaloradas dentro d’aquelle envolucro de alpaca preta, egual
á da saia, que, franzido em volta da cintura, lhes cobria o tronco,
os braços e a cabeça, formando por cima um tecto á laia de telha,
duro graças ao forro de papellão que o reveste pelo interior. Quantos
rostos não parecem mais encantadores no fundo d’aquelle nicho, quando
entrevistos na semi-obscuridade do _manto_, que mão pequenina, ás vezes
bem calçada, sorrateiramente descerra á altura do pescoço, para logo
o fechar unindo-lhe as bordas deanteiras, de modo a ficar apenas um
orificio, atravez do qual os olhos dardejam curiosos!... E o effeito
não falha, porque o pomo vedado é o mais appetecido.

A par do _manto_, que em muitas se via descahido para traz por
causa do calor, figuravam os capotes de longo cabeção e pesado capello
terminado posteriormente em forma de travesseiro. Este abrigo, que
constitue abobada por cima da cabeça e resguarda as faces com as abas
verticaes, acabadas em bico á altura dos hombros, tinham-o tambem
deitado para as costas algumas das donas, não menos encaloradas que
as dos _mantos_, ao passo que outras, mais cautelosas, os haviam
guardado dobradinhos a preceito, dentro da casa e em sitio escolhido.
Nada! Que o capote para muitas é a bem dizer um dote.

Do matiz formado pelos chales e lenços de seda ou de chita, que
adornavam as restantes mulheres do povo, destacava-se um ou outro
capote e lenço, para ser ainda maior a diversidade dos trajos.

Quando o Jorge e os companheiros chegaram ao logar da festa, já
remoinhavam pelas ruas, aos bandos, os rapazes do povo, trajando bellas
roupas de _panno fino_, chapeus de feltro e alvas camisas, com os
collarinhos unidos por dois grandes botões de ouro, lavrados em relevo
imitante a filigrana e encadeados pelo pé. Só os velhos e a maioria dos
_senhores da cidade_ buscavam refugio nos mirantes e janellas.

Por entre os passeiantes esgueiravam-se, a espaços, as retardatarias.
Estas--duas lindas moçoilas do campo--faziam resoar na calçada as solas
de pau das _galochas_ pregadas, em volta, de tachinhas amarellas,
e enfeitadas no peito do pé com bordados escarlates a sobresahirem
do fundo azul da carneira. E como ambas corriam ligeiras com aquelle
calçado tão difficil de suster nos pés! Ora! Se até iriam dançar, a
menos que o tirassem, para bailar em palmilhas de meias!

Quem primeiro veiu fallar ao Jorge foi o João Matheus, um leiteiro
que tinha a freguezia de muitos moradores do Castello. O veterano
quasi não o conheceu, tão differente o achou, de quando elle ia por
lá ao seu negocio, de manhãsinha, mettido n’uma grande camisa de
linho e coberto com o classico barretinho de malha, parente muito
proximo do solideo ecclesiastico. O leite, levava-o em duas grandes
cabaças escuras, amarradas aos extremos de um bordão ligeiramente
curvo, que lhe assentava pelo meio no hombro esquerdo. Agora estava
outro inteiramente, salvo no varapau, e no _pé fresco_, moda tão
predilecta do povo açoriano: o fato cifrava-se no dos outros populares,
e a cobertura da cabeça, ou, mais rigorosamente, do cocoruto era
a famosa carapuça de panno azul, orlada na peripheria com um vivo
encarnado e rematada dos lados por duas orelhinhas da mesma côr,
reviradas para cima. Para seguir ainda mais á risca a moda popular
terceirense, tinha pendente ao meio da testa, saindo por baixo da
carapuça, um caracol de cabello feito a primor.

O veterano levou os companheiros para casa do José de Mello, que já
o tinha convidado muitas vezes, e que mal accommodou em bom logar do
mirante a Isabel e a Rosa, carregou com os dois velhos para dentro
de casa, ancioso por dar-lhes a provar uma pinga de vinho novo da
Graciosa, que as duas mulheres não acceitaram, mas que os tres homens
foram escorropichando por tigelas de barro não vidrado, acompanhando-o
de milho cosido com funcho, tremoços, favas e milho torrado, e outros
_hors d’œuvres_, patentes na meza e destinados ás visitas.

A mulher do José de Mello, sentada a par da Isabel, disse-lhe que
tomasse cuidado á passagem do bicho, porque eram já seis os touros que
lhe tinham saltado para o mirante.

Mas o conselho não foi ouvido, porque o estalar de um foguete provocou
immediatamente um enorme borborinho. Do touril, estabelecido n’um
quintal proximo, acabava de sair o boi. Correram-lhe ao encontro os
_aficionados_, pulando e gritando com desespero.

Appareceu finalmente um touro de pequeno corpo e de côr escura, preso,
pelas hastes emboladas, a um comprido cabo, que quatro homens seguravam
pela extremidade opposta, e largavam ou colhiam para dar fuga ao animal
ou obrigal-o a parar.

Traziam os quatro, á laia de uniforme, calças brancas, alvas camisas
avivadas de encarnado, e bonnets de copa baixa, apenas differentes dos
que usam vulgarmente os cosinheiros por terem tambem vivos d’aquella
côr.

A _viseira_ que lhes occultava a metade superior do rosto, é que
originou a denominação de _mascarados de corda_, com que o povo da
ilha então os designava.

Todos quatro coxeavam mais ou menos, visto que em obediencia ao seu
tradicional plano de uniformes, traziam os pés, tão deshabituados
de constrangimento, n’aquelle dia apertados em sapatos de bezerro,
legitimos representantes, para o caso, dos celebrados borzeguins da
tortura inquisitorial.

O touro passou de corrida pela frente do mirante do José de Mello. Um
enxame de homens e rapazes seguiu-o de tropel. Tanta diligencia faziam
por uma ou duas marradas, que ás vezes viam coroadas as suas aspirações.

N’isto, um d’elles, mais atrevido, tropeçou e cahiu, e d’aqui resultou
que outros dois tambem se estatelassem na calçada.

O touro estava perto, e, ou porque os mascarados não podessem a tempo
segural-o ou porque desejassem «animar o divertimento», conseguiu
chegar aos tres, e depois de uma focinhada prévia dispunha-se já para
mimoseal-os com festa mais valente, quando o cabo, esticado com força,
lhe deu a _pancada_, obrigando-o a retroceder e arrancando-lhe um
mugido doloroso.

Decididamente a tourada promettia ser boa.

Os tres levantaram-se no meio de risadas estrepitosas, e um d’elles,
com a cabeça partida, foi curar-se á botica proxima, sem que mais
ninguem désse importancia a similhante bagatella.

Apezar de ser fanatica pelo divertimento, a Rosa tornou-se pallida mal
viu o sangue, e descórou mais ainda, porque ao afastar os olhos deparou
no mirante contiguo o sargento Luiz, a fital-a persistentemente, com um
ar muito triste, como de quem sentisse grande pena de estar a vel-a,
mas que não podesse desviar d’alli a vista, nem o pensamento. Afinal
cobrou animo e, com simulada indiferença, mostrou concentrar a attenção
no touro, que já ia a distancia, rodeado por uma caterva menos densa.
Alguns dos perseguidores, vendo as barbas do visinho a arder, tinham-se
refugiado nos vãos das portas, ou dependurado das grades de algumas
janellas mais baixas.

--Não havia de olhar para elle!... Se até lhe tinha raiva!... Quando
o Luiz a namorava, jurava-lhe um amor por ahi além, e afinal deixou-a
casar com outro... Bem fraco amor!... Nem já se lembrava de que ella
existia. Tinha-a encarado, por um simples acaso. Iria apostar que
olhava já para outro sitio... Nem já alli estaria talvez...

E, para certificar-se, olhou novamente e viu outra vez o Luiz, sempre a
miral-a com a mesma persistencia.

Revoltou-se e sentiu uma grande vergonha, por adivinhar que n’aquella
teimosia estava a prova de que elle não a julgava mulher de bem, e a
suppunha capaz, depois de casada, de olhar para outro homem, que não
fosse o marido.

Ia dizer-lhe pela expressão do semblante a indignação que o atrevimento
lhe causava, mas não poude, porque ao encarar com o Luiz conheceu que
o seu olhar não era petulante, mas de supplica, e ainda mais terno do
que no dia em que elle lhe tinha dicto que a _Rosinha era a flôr do
Castello_, e que _morria de amores_ por ella.

O que estava certamente era ralado de pena, porque, em obediencia ao
pae, a tinha perdido!... Podia lá querer tornal-a má mulher, embora
fosse unicamente nas boccas do mundo!... Até merecia dó o infeliz...
Pois não o havia desprezado, para casar com o Jorge?... Coitado!...

No emtanto proseguia o divertimento na sua monotonia habitual.
Percorridas as ruas do transito, o boi já vinha quasi a passar pela
segunda vez em frente da casa do Mello, continuamente excitado pelos
bordões, guardasoes, lenços, e até pelos casacos despidos pelos
capinhas improvisados, que assim toureavam em mangas de camisa.

Perplexo, estonteado, o boi estacou ao meio da rua, olhando em derredor
e escarvando o chão com as patas deanteiras. Afinal, escolhido o ponto
de ataque, partiu como seta em direcção a uns cinco homens, mais
impertinentes em atiçal-o, mas que desappareceram por encanto, mal
suspeitaram a arremettida. Sumido o alvo, o touro não parou na corrida
e foi galgar de um salto o mirante do João de Mello, antes que os
_mascarados_ lhe dessem a pancada.

Um reboliço, uma gritaria infernal.

Estes refugiavam-se esbaforidos no interior da casa, aquelles saltavam
para a rua, e dois ou tres, paralysados pelo medo, deixavam-se ficar
no mesmo sitio, de olhos fechados, mãos nos ouvidos, entregues ao seu
destino.

Mas subiu da rua uma gargalhada estrondosa, seguida de palmas e apupos.
Era a Isabel, que ao pular do mirante não tinha podido evitar que as
saias se levantassem, e dava com isto um espectaculo, se não agradavel,
pelo menos original.

A Rosa, colhida improvisamente no meio da sua abstracção, viu o touro
cahir-lhe ao pé e desmaiou de susto: mas o sargento Luiz, n’um abrir e
fechar de olhos, saltou do mirante onde estava, tomou-a nos braços e
afastou-a do animal, a que os _mascarados de corda_ esticavam no
entretanto o cabo e obrigavam a descer para a rua.

Quando acordou do seu passageiro desmaio, a mulher do Jorge sentiu que
a beijavam e ao abrir os olhos viu-se nos braços do Luiz.

Os dois veteranos conseguiram afinal romper atravez dos que tinham
fugido para dentro da casa, e assomavam á porta, sem que nenhum d’elles
soubesse ainda ao certo o que era passado. O José Maria como que viu o
beijo, mas não teve bem a certeza, pois que todas as vezes que bebia
uma gota a mais, ficava tonto e via coisas perfeitamente imaginarias.
Convenceu-se de que fôra uma historia armada pelo vinho, quando lhe
explicaram o succedido.

Para fugir aos agradecimentos, que o Jorge lhe dava sem a minima
desconfiança, retirou-se logo o sargento, envolvido pela Rosa n’um
olhar de reconhecimento e admiração.

A Isabel veiu furiosa da rua e quiz por força que se retirassem logo.
Temia que o rapazio continuasse a dirigir-lhe chufas.

Não disse palavra a Rosa na volta para o Castello. Se por acaso
dava com os olhos no marido, voltava a cara para outro lado, com um
movimento brusco. Ao meio da rampa que vae dar á ponte levadiça, parou
para descançar, e olhou para traz, sem saber porque.

O Luiz tinha-a seguido, de longe.

Não deram por isto os dois velhos, nem a Isabel. Notou-o comtudo a
Luiza Braga, que vinha logo após o sargento, em companhia da Josepha
Julia.

--Com cedo principiam! cochichou ella ao ouvido da amiga.

--Principiam? acudiu a outra ennojada. Continuam!


                                  IV


Nos dias seguintes a Rosa pensou, pensou muito, medindo o alcance da
loucura que tinha feito em casar com o Jorge.

Só depois do beijo, que lhe escaldava ainda a bocca, percebeu que havia
alguma coisa na ligação do homem com a mulher, que o marido com toda a
sua amizade não lhe tinha feito conhecer.

Por aquelle beijo o sargento apossara se d’ella com um predominio,
que o Jorge nunca lhe tinha imposto, em tantos dias de intimidade.
Sentia-se fraca, indefesa perante um ascendente ineluctavel, e pela
primeira vez sabia como o homem chega a avassallar a mulher, a fazel-a
coisa sua.

Tudo isto passava tumultuariamente no espirito da rapariga, como
vaga percepção, sem que ella, intelligente mas ignorante, tivesse
bem a consciencia do mundo novo de sensações e ideias que acabava de
revelar-se-lhe.

O que de mais comprehendia, era que apenas o Luiz quizesse, não
poderia resistir-lhe, e que sabendo aliás que se tornaria uma creatura
desprezivel, seria d’elle, d’elle inteiramente.

--Ai! E podiamos estar casados um com o outro! scismou.

Uma semana depois o sargento, certo de que o veterano estava longe,
passou-lhe pela porta. A Isabel, tinha-a elle avistado da muralha do
castello, a descer a ladeira contigua ao Relvão.

Quando o viu prestes a entrar, a Rosa ficou toda a tremer, e quiz
refugiar-se no interior da casa, porém o Luiz disse-lhe que só desejava
dar-lhe duas palavras, e que depois a deixaria em paz para todo o
sempre; mas que se ella o não escutasse, tinha deixado no quarto a
espingarda já carregada, para acabar de vez com o seu tormento.

A Rosa ainda balbuciou que elle queria desgraçal-a; que se sumisse
d’alli, ou que se veria obrigada a chamar por alguem. Podiam tel-o
visto. Supplicou-lhe de mãos postas que a deixasse, que se fosse embora.

Certo de que não o tinham visto, o Luiz fechou a porta rapidamente,
tomou nos braços a linda rapariga e tapou-lhe com beijos a bocca, para
que ella não gritasse.

       *       *       *       *       *

Só quando o sargento lhe disse adeus, e lhe pediu muito que para
o futuro fosse vel-o ao quarto d’elle, pois alli seria perigoso
continuarem a encontrar-se, é que a Rosa viu bem o que tinha feito.

Jurou que nunca mais tornaria, mas sentiu logo que havia de tornar,
indefesa contra a seducção, que ainda lhe fazia vibrar todo o corpo em
frémitos de goso.

A segunda entrevista foi no quarto do amante.

Ninguem a reconheceria, vendo-a passar na rua. Ia de manto, e para
maior segurança, pedira á mãe emprestadas as botas, sob o pretexto de
que as suas lhe _pisavam_ e que precisava ir á cidade. Estando
quasi a chegar ao quarto do Luiz, apanhou um susto enorme: encontrou-se
com o marido, que devia passar a manhã no monte Brazil.

O Jorge não andava a espial-a. Cumpria simplesmente uma ordem do
inspector do material de guerra, que o tinha mandado chamar ao
Castello, para lhe dar certas explicações relativas ao embarque de umas
peças velhas de bronze, que deviam recolher á Fundição de Canhões.

Os dois amantes, muito conchegados um ao outro, estiveram tempos sem
fim de ouvido á escuta por traz da porta, que ella tinha fechado
subtilmente. Não sentiram nada. Apenas as pulsações desordenadas do
coração de Rosa.

--És uma tola, disse-lhe por fim o sargento, dando-lhe um beijo. Podia
lá conhecer-te, com esse disfarce! De mais a mais como é velho, deve
ter a vista cançada.

--Elle, a vista cançada? Estás a ler. Vê perfeitamente. E para longe,
ainda melhor do que eu.

Quando tornou para casa, ainda ia receiosa.

O marido appareceu d’alli a uma hora. Não fazia differença.

As entrevistas continuaram.

N’uma d’ellas a Rosa, ao sair do quarto do Luiz, topou a Josepha Julia,
que a mirou dos pés á cabeça e fez um gesto de escarneo.

--Se me conheceu!... pensou a mulher do veterano, abalada pelo medo.
Era o mesmo que sabel-o toda a gente!

Mas logo encolheu os hombros, e disse comsigo resolutamente:

--Ora adeus! O que está feito, está feito!

       *       *       *       *       *

D’alli a poucas horas já effectivamente andavam de bocca em bocca as
infelicidades conjugaes do cabo de veteranos. Para não levantar falsos
testemunhos, a Josepha, muito encolhida debaixo do lenço, cosida
com as paredes e a passinhos ligeiros, tinha seguido a _mulher do
manto_. Mal teve a certeza de quem ella era, correu a casa da Luiza
Braga. A velha prometteu guardar segredo, mas, tendo ficado só e vendo
entrar-lhe pela porta dentro o 33 da artilheria, a pedir-lhe linha
preta para coser um botão do casaco do uniforme, não teve mão em si e
poz tudo em pratos limpos, sem dizer, já se vê, quem lh’o tinha contado.

A Josepha já estava em casa, costurando ao pé da janella do rez do
chão. Tinha feito solemne protesto de não trocar falas com o maldizente
do artilheiro, mas ouviu-lhe a «grande novidade», condimentada com
varios pormenores inventados pelo narrador.

Benzeu-se, exclamou que podia ser tudo uma refinada mentira, que a Rosa
era levantadinha de cabeça, mas que chegasse a tanto, lá isso não lhe
parecia.

--Pois diga-_le_ que não. Quem viu, é pessoa incapaz de mentir.

--E quem é que viu? perguntou a torta em sobresalto.

--Nun xe xabe! como dizia o gallego.

--Então pode não ser verdade. Bem sei que o marido é velho...

--Vê?... Já acreditou!

--Não acreditei nada. Vá-se d’aqui, _seu_ grande má lingua!

Fechou a janella, com um accrescimo de indignação. No fundo estava
radiante. Para o libello famoso, já tinha editor responsavel.

       *       *       *       *       *

A Isabel foi aos ares no dia seguinte, quando soube pelo tio Braga o
que a voz publica attribuia á Rosa, e até pregou uma valente bofetada
no alviçareiro. Se lhe fez doer, não lhe causou o minimo espanto, de
habituado que elle andava a tomar o peso ás mãos da cara metade.

Podia lá entrar-lhe na cabeça que a filha, casada tanto de fresco, já
enganasse o marido!... Ainda se estivessem recebidos ha mais tempo!...
Ella tinha-se prendido por sua livre vontade, e nem sequer podia dar
como desculpa o Jorge ser velho e pouco proprio para encantar uma
rapariga. Tudo isto a mãe lhe fizera ver um cento de vezes, antes do
casamento.

Não levou um credo para chegar a casa da filha e como a apanhou
sósinha, disparou-lhe tudo á queima roupa. Uma de duas: ou conseguia
atrapalhal-a e apanhar-lhe a confissão da culpa, ou, se fosse tudo
mentira, a indignação havia de patentear bem clara a innocencia.

A mulher do veterano encarou com a mãe, e disse pausadamente estas
palavras, cujo effeito foi observando:

--Sim, senhora, é verdade o que lhe disseram. Fiz isso, porque não
posso aturar meu marido, e porque só do Luiz é que eu gosto e hei de
gostar sempre.

A Isabel cahiu sentada para cima de uma arca, e rompeu n’um grande
choro, arrepellando-se, dizendo mal á sua vida.

--Cuidado, minha mãe! Olhe que se meu marido entrasse agora por ahi
dentro, a desgraça ainda havia de ser maior.

--Lá isso era, porque descobria toda a verdade, e ... Deus te
livrasse!...

--É o que pode fazer com esses alaridos.

--_Ubei!_ Permitta Deus que elle nunca desconfie!... Ora a minha
desgraça!... Mas o que eu não quero,--fica sabendo!--é que me tornes a
olhar para aquelle _bonecro_ de engonços! Ha de ser isto assim, ou
sou eu mesma que prego a ambos uma boa lição, com estas mãos que Deus
Nosso Senhor me deu!

--Mau! Já vejo que não temos nada feito, disse a Rosa, afastando-se da
mãe. Se as suas tenções são essas, o melhor é ir já, já ter com o Jorge
e declarar-lhe tudo. Ande! Vá! Assim ao menos deixo de penar por uma
vez!

--O’ rapariga, o que estás tu a dizer?

--Que hei de gostar sempre do Luiz, ou eu não me chame Rosa. Sim,
senhora! Resolvi-me a tudo. Dizem mal de mim? E eu que me ralo! Ellas
falam, porque se mordem de inveja!

--Ai que está variada! exclamou a Isabel, levantando-se e erguendo os
braços para o ceo. Deram-lhe volta ao miolo, olá se deram. Oh! Mas isto
não pode ser, e tendo-se voltado para a filha, continuou, voz em grita:
Se me não tomas juizo, eu racho-te ... racho-te de meio a meio! Cuidas
que por estares assim espigada, me não provas os cinco mandamentos?

--A minha mãe não me entendeu. Olhe! Se fizer isso, se quizer
apartar-me do Luiz, queimada seja eu pelo fogo do inferno, se na
primeira occasião em que me pilhar a sós com meu marido, não lhe conto
a coisa toda como ella é, tim-tim por tim-tim. E reforçou o juramento
levantando tambem para o ceo o braço direito, com a mão bem espalmada.

A Isabel, que se tinha benzido ao ouvir fallar no inferno, descahiu
outra vez para cima da arca, aos soluços.

--Está doida! Doida varrida!

A rapariga aproveitou este ensejo e approximou-se da mãe, pé ante pé:
fallou-lhe ao ouvido, carinhosamente; demonstrou-lhe que só havia uma
coisa que fazer--evitar que o Jorge descobrisse, O mal já estava feito,
e nem Deus teria poder para destruil-o. Mas se a Isabel quizesse, as
coisas continuariam assim, e nunca o velho saberia o que diziam, pois
ninguem se atreveria a ir contar-lh’o. Mais dia menos dia, como já era
bastante edoso, podia apanhar uma macacôa que o levasse para a terra
da verdade, e já ella ficaria livre para casar com o escolhido do seu
coração.

--O sargento casar comtigo?... Espera por essa! Tanto como da primeira
vez, murmurou a Isabel em tom lamentoso. O que elle quiz foi ... o que
se está vendo; mas se julgar novamente o caso mal parado, fica certa
de que nunca mais lhe pões a vista em cima. Os homens são assim! E
concluiu, ainda mais lamuriante: Ai! A minha triste vida! Para o que eu
estava guardada!

--Isso era bom, se o Luiz não gostasse tambem de mim; mas gosta muito,
acredite, gosta muito, affirmou a Rosa, fallando ao mesmo tempo que a
mãe. E está tão arrependido de me ter deixado casar, tão arrependido!...

--Historias da vida! Mas, ó mulher, foram esses os exemplos que eu te
dei? Pois não tens vergonha!... Emquanto fui casada, respeitei sempre
as barbas de teu pae, e depois de viuva...

Ia proseguir mas calou-se a um olhar meio serio, meio de escarneo, que
a Rosa lhe dardejou sem levantar a cabeça ligeiramente inclinada para
o chão, mas arregaçando de subito as palpebras, a fim de trazer bem a
lume os olhos negros e expressivos.

Por fim recuperou ousadia e perguntou com voz ainda titubeante:

--Porque olhas para mim d’essa maneira? Porque dás ouvidos ao que dizem
certas linguas?... Ainda que tivesse sido verdade, não me podiam dizer
nada, porque uma viuva não deve a cabeça a ninguem.

--Nem me dava com isso maus exemplos? interrogou a filha, com apparente
serenidade.

--Está visto que não... Quero dizer ... não dava, se não houvesse
escandalo, se não soubesses ... de nada.

--E se eu soubesse de tudo? perguntou Rosa, certa já de conquistar
o auxilio da mãe. Olhe! Sempre lhe quero contar... Eu teria talvez
uns seis annos ... ou nem tanto... Uma tarde, a mãe tinha ido para
dentro de casa, e estava a conversar com aquelle cabo de artilheria
muito alto e louro--um rapaz bem bonito, por signal--a quem gommava a
roupa... Lembra-se? Eu andava a brincar na rua. Passou a Luiza Braga e
perguntou-me quem estava lá dentro com a minha mãe. Respondi-lhe que
era a sua irmã de Agualva ... a tia Marianna. A velha acreditou-me,
e foi-se embora. Se não fizesse o que fiz, ella tinha ido por esse
Castello infamar a minha mãe, e ficavam todos certos do que alguns
diziam e muito poucos acreditavam. Mas sabe o que valeu?... Foi não
passar pela cabeça á Luiza que, n’aquella edade, eu já soubesse mentir.
Sabia, porque a mãe, de outra vez, me tinha ensinado a mesma resposta,
para quando alguem me perguntasse o que ella me perguntou.

--Eu não me lembro de nada d’isso, murmurou a Isabel, com a voz a
tremer.

--Lembro-me eu, e ainda bem que menti! Deus não me castigará, por eu
ter livrado a minha mãe de tantas afflicções.

Em voz baixa, n’uma supplica repassada de ternura, accrescentou:

--E tambem não a castiga, se a minha rica mãe quizer ajudar-me a sair
d’esta consumição.

--Foi praga que me rogaram! Foi praga!...

A Isabel não poude levar por deante o epiphonema, porque a filha,
cingindo-lhe as costas com o braço direito e achegando-a a si
brandamente, segredou:

--Bom! Bom! Deixe estar que não se arrepende... e ha de me dar razão
algum dia, vendo-me feliz.

--Deus te ouvisse, filha, Deus te ouvisse! Mas o que tu me obrigas a
fazer!... Olha! O melhor era deixares aquelle ... não sei que diga!

--Outra vez!... Escolha: ou a mãe consente em ajudar-me, ou eu digo
hoje mesmo tudo a meu marido!

--Não, mulher, não lhe digas nada!

E com os olhos em alvo, as mãos erguidas, os dedos enclavinhados, a
viuva exclamou:

--Seja tudo pelo amor de Deus!


                                  IV


O José Maria andou uns poucos de dias a parafusar, antes que se
resolvesse a dizer ao Jorge umas coisas, que lhe tinham contado muito
em segredo a respeito da Rosa, e que elle acreditou, porque eram o
complemento e a confirmação da scena entrevista em S. João de Deus.

Esteve quasi decidido a calar-se, porque dava razão ao dictado «Entre
marido e mulher não mettas a colher», e tambem porque lhe custava muito
ir destruir para sempre a alegria ao seu antigo camarada.

Quando andava n’estas indecisões, e já principiava a desculpar a
Rosa, pensando que talvez a coisa não tivesse ido a mais, e que ella
sempre havia de ter algum respeito pelos cabellos brancos do marido,
adregou-lhe passar á porta da Luiza Braga.

--Pst! Pst! fez-lhe esta, lá de dentro.

--Isso é commigo?

--Entra, ó José Maria, que te quero perguntar uma coisa.

--Tu! Ha de ser fresca!...

Entrou e foi sentar-se n’um moxo.

--O que eu te quero perguntar, disse a velha, que estava a engommar
um collarinho, é se o teu amigo já sabe o que rosna por ahi a canalha
brava.

--Qual meu amigo?

--O Jorge! Mas tambem elle só deve queixar-se de si mesmo. Não se
mettesse com a Isabel, nem com gente da sua geração.

--Cala-te, mulher, que já não te vejo bem! replicou o veterano,
levantando-se n’um impeto.

--Eh senhor! Tu endoideceste! Por eu não querer que o Jorge ande
enxovalhado por essas boccas ruins, é que tu!... Ainda em cima?...
Sempre sou bem tola!

O velho conheceu que se tinha excedido, e ancioso por saber o que mais
propalavam os maldizentes, moderou-se e murmurou:

--Dize lá o que querias dizer.

--Queria mas já não quero... Julgas talvez que não sou tambem amiga
do Jorge? Pois ainda ha migalha estive quasi _garreando_ com a
... cala-te bocca!... com uma certa pessoa, por não lhe poder ouvir
que se elle não vae ás do cabo com a Rosa, é porque uma casa sempre se
governa melhor, quando são dois, em logar de um só, a carregarem com as
despezas.

--Dois?

--_Bei_, Senhor! Pelos modos o sargento Luiz recebeu, pelo ultimo
paquete, uma _mancheia_ de patacas, que lhe deixou um tio lá de
Lisboa...

--Fecha-me essa bocca suja, grande excommungada!

Juntando á palavra o gesto, o José Maria bateu-lhe com a palma da mão
em cheio nos beiços, e, antes que a Luiza se recobrasse do susto, sahiu
pela porta fóra, de escantilhão.

--Hei de contar tudo ao Jorge! resmungava elle, pela rua adeante. Não
quero que ande vendido. Hei de contar-lhe tudo, e vae ser hoje mesmo!
Que grande pouca vergonha!...

Com mais temor que resentimento, a Luiza foi á porta, para seguil-o com
a vista. Não poude furtar-se a dizer com os seus botões que, tirante o
Braga, todos os soldados do cerco do Porto eram homens de uma canna só.


                                   V


Foi na courella cultivada pelo Jorge no monte Brazil, que o José Maria
encontrou d’alli a pouco o seu antigo companheiro de armas.

Primeiro que entrasse no assumpto, falou de mil ninharias: das lagostas
que na vespera tinha pescado na bahia do Fundão; na queda que o
corneteiro-mór reformado ia dando na Quebrada, quando andava a apanhar
cracas.--Ainda que se não esmigalhasse na rocha empinada e de temerosa
altura, e fosse cahir no mar, não escaparia de certo ao mergulho, pois
elle a nadar era mesmo um prego!

Foi tagarelando, tagarelando, mas sem alludir á Rosa. Todas as vezes
que a rapariga lhe acudia á lembrança, parecia que se lhe punha um nó
na garganta.

Afinal o Jorge deu por isto, e foi o proprio que perguntou:

--O’ José Maria, tu estás, a modos, exquisito? Parece que tens uma
coisa para me dizer e que não te _astreves_...

O outro ainda lhe retorquiu com um «Olha lá!...» e quiz fingir ar de
riso. Mas não poude levar por deante a dissimulação e disse por fim,
deixando-se cahir sentado n’uma pedra:

--Pois tenho, tenho muito que te dizer.

--Se é da Rosa, não me digas nada! respondeu-lhe o amigo com
arrebatamento. Sei que ella não vae á tua bola, e pódes ter ouvido
por ahi qualquer coisa contra a rapariga, e vir então buzinar-me os
ouvidos... Se adivinhei, não tenhas esse trabalho!

--Ó Jorge, pois tu fazes de mim similhante ideia?! perguntou o José
Maria todo sentido e levantando-se de esfuziote. Metteu-se-te na cabeça
que eu fosse capaz de dizer coisas, de que não tivesse a certeza? Bem!
Bem! Como te deram volta ao juizo, já aqui não está quem falou ... isto
é, quem ia falar!

--Sim, cala-te, que é o melhor! Só faltava que tambem tu me viesses
ralar o interior, que já anda bem consumido. Só Deos é que sabe!...

E tendo lançado para longe o sacho com que andava cavando, levou ambos
os punhos aos olhos, e desatou a soluçar. Coisa que não fazia desde
creança, chorou--chorou lagrimas abundantes, que lhe escorriam pelo
rosto e pelas mãos.

Certificou-se o José Maria de que mais ninguem podia ver o amigo,
chegou-se a elle e passou-lhe um braço em volta do pescoço.

--Então! Que diabo! Isso não vale a pena! disse-lhe com meiguice. Pois
ha mulher que mereça a vida de um homem? Não te lembras da minha serva
de Deus? Bem amigo d’ella que eu era: vi-a morrer e ainda por cá estou.
Com essas coisas dás cabo de ti.

--Tu, tu é que dás. Para que vieste bulir commigo? Deixasses-me quieto!
E dizendo-lhe isto de mau modo, o Jorge arredou-se do camarada e ficou
de costas para elle, sem comprehender que fosse dictada pela amizade
aquella confidencia.

Pois não lhe trazia a certeza de que elle já receiava? Receiava, sim,
mas não queria acreditar, desejoso de que o tempo viesse a embotar
aquella duvida, e esperançado em que por fim se conhecesse que a
rapariga estava innocente, como lh’o dizia o seu espirito cheio de
rectidão. E ainda no peior dos casos, se em verdade a Rosa fosse má
mulher, para que haviam de lh’o dizer, se mais dia menos dia elle mesmo
descobriria tudo, com certeza?

Por isso nem queria encarar com o seu antigo camarada. Qualquer outro
já teria pago bem caro o atrevimento!

O José Maria entendeu que se devia ir embora, o que era aliás seu
desejo desde que alli estava.

--Haja saude, Jorge, e não me fiques querendo mal.

O outro encolheu os hombros desabridamente, sem mudar de posição.

--Não te ponhas com maus modos, homem! Aprender até morrer, bem diz o
dictado.

E chegando-se mais, concluiu:

--Por me dares esse _pago_, não cuides que ouvindo algum marau
dizer poucas vergonhas de ti, deixe de saltar-lhe para cima com vento
fresco, apesar de velho e estropiado. Haja saude!

Ia a afastar-se, quando foi agarrado violentamente por um braço.

--Poucas vergonhas! Que poucas vergonhas dizem de mim? perguntava o
Jorge, meio suffocado. Anda, põe já tudo em pratos limpos, se não
queres fazer-me acreditar que te saiste com essa, para te vingares da
minha resposta. Não! Não!...

E emendou, supplicante:

--Se não queres ver-me estalar de paixão, conta-me o que sabes, José
Maria, conta-me o que sabes! Pelo amor de Deus!

Foi então que o outro lhe referiu por miudo não só o que tinha visto,
mas o que andava nas boccas do mundo. Quando o ouviu falar na suspeita
de que fosse connivente na sua infamia, o Jorge teve um ataque de raiva
e quiz saber por força quem tinha contado aquillo, para lhe apertar as
goelas, até lhe fazer deitar cá para fora toda a lingua malvada.

Apesar do que a revelação lhe fazia soffrer, reaccendendo lhe
desconfianças, que a pouco e pouco se tinham ido aplacando, o seu
primeiro impulso foi justificar a mulher, mostrar ao amigo que o tinham
enganado, que a Rosa continuava pura como a neve. Se em S. João de
Deus ella estava ao pé do sargento Luiz, era porque o medo do touro
lhe fizera perder a cabeça. Pois o José Maria não a tinha tambem visto
amarella como cera, quando os dois a foram encontrar? Demais, a Isabel,
que tambem não podia ver o tal _bonecro_, explicou depois que não
havia nada que se lhe dizer, e que até devia agradecer-se ao pobre
rapaz o ter acudido á Rosa, quando todos fugiam assustados.

--Cantigas da viuva! objectou o José Maria. O que ella quiz foi
desculpar a filha. Olha! Pergunta-lhe se tambem deves agradecer ao
bandalho, o beijo que elle pregou em tua mulher!

--Um beijo? Quando?

--N’essa mesma occasião. Como se julgava a sós com a rapariga, visto
os mais terem debandado, tomou esse atrevimento ... mas eu que vinha
adiante de ti pude ainda vel-o.

--Viste-o? Tens a certeza?...

--Pareceu-me que sim. Bem sabes que eu, bebendo uma pinga a mais...

--Pareceu-te! Eu pergunto se tens a certeza!...

--Antes de passar a porta que dá para o quintal onde elles estavam,
ouvi a modos a bulha de um beijo, e como fui dar com o sargento ainda a
amparal-a, acredito que elle a beijasse, como dizem por ahi.

--Se não viste, para que repetes o que pode ser mentira? E olha que
nos dias que se seguiram, lembro-me muito bem, ella não fez differença
nenhuma. Nunca se tirava de ao pé de mim. E sempre alegre!... Se
tivesse feito o que dizem, não sabia sustentar aquelle disfarce.

--Isso é o que tu julgas. As mulheres, quando pendem para a banda do
arrocho...

--Ainda que quizesse pôr pé em ramo verde, não podia, respondeu o Jorge
com impaciencia. Em quanto eu estou fóra de casa, a Isabel não perde
a filha de vista. Já te disse! Não ha uma hora do dia em que a Rosa
esteja desacompanhada.

--E de noite?... perguntou o José Maria, que inconscientemente tomava
calor perante as objecções do camarada, e, excitado pela controversia,
dizia coisas, que não lhe sairiam da bocca n’outra occasião.

--De noite está ella deitada commigo!

Mas calou-se de repente, não se atrevendo a continuar na defeza, por se
lembrar de que tinha o somno pesado, e que, vinte vezes que a mulher se
levantasse, elle de certo não acordaria.

--Pois a Rosa seria capaz?...

A afflicção de novo o estrangulou. Descria de todos, de tudo.
Arrepanhou-se-lhe o interior do peito, ao de cima do estomago, e todo
esfriou lá por dentro, como se lhe tivessem amputado subitamente essa
parte do corpo, substituindo-a por uma grande pedra de gelo.

É que lhe tornava o ciume ainda com maior furia, perdida a esperança
que pouco antes o animava, quando elle, na ancia de desculpar a mulher,
em vez de persuadir o amigo, a si proprio se convencia.

Mas o outro comprehendia, afinal, a grande asneira que tinha feito.

Fosse a Rosa effectivamente má mulher, e nem mesmo assim elle devia dar
aquelle passo.

Obedecendo a um momento de zanga, acabava de perder um amigo, para
quem se tornara mensageiro do maior de quantos desgostos se lhe podiam
annunciar, e fazia-o para sempre desgraçado.

Quiz ainda emendar a mão, desmanchar ou pelo menos attenuar o mal que
acabava de causar, mas o Jorge percebeu-lhe as intenções, e atalhou,
despedindo-o com um gesto a que o José Maria obedeceu:

--Pois sim, será o que tu dizes... Mas certas coisas, mais vale um
homem cosel-as comsigo mesmo. Adeus!


                                  VI


Quando julgou o camarada já bastante longe, de modo que lhe podesse
furtar as voltas para não ser visto por elle no regresso a casa, o
Jorge saiu da courela de terra e tomou o caminho do Castello, quasi a
correr, ancioso por se encontrar com a Rosa.

Mas foi abrandando o passo.

O que ia dizer-lhe?

Podia lá contar-lhe o que os maraus!... Se o fizesse, é porque a
julgava capaz d’isso, e então escusava de perder palavras, quando o que
devia fazer unicamente era...

Teve uma hallucinação. Pareceu-lhe que via diante dos olhos a cara
d’aquelle soldado miguelista, a quem matara no cerco do Porto,
enterrando-lhe no peito a espada de um alferes de caçadores 5, que o
outro acabava de tornar cadaver, abrindo-lhe a cabeça com a coronha
da espingarda. Viu outra vez n’aquelle rosto a expressão medonha da
anciedade, da afflicção e desespero do infeliz, que assim perdia a
vida em plena mocidade. Os olhos, os olhos muito abertos, a saltarem
das orbitas, o iris completamente emmoldurado pela alva, diziam tão
energicamente o immenso odio contra o matador, que o Jorge recuou
apavorado... No fim do combate passou, por acaso, ao pé do morto. Os
olhos já estavam embaciados, mas ainda lhe expressavam o mesmo odio.

Entrou-lhe pela primeira vez bem clara no espirito a noção de quanto
é horrivel dar a morte a um nosso similhante, e pediu a Deus que nunca
mais o puzesse n’aquella dura extremidade. Assim lhe aconteceu. Até ao
fim da guerra não tornou a matar ninguem, pelo menos que visse, que
soubesse, pois que as balas, granadas e bombas lançadas pelas boccas de
fogo que elle apontava não errariam de certo o alvo... Mas como não via
essas mortes, era como se as não fizesse.

--Havia então de matar a Rosa!... A Rosa de quem, apesar de tudo,
gostava tanto!...

Mas se ella effectivamente o tivesse enganado?

Subiu-lhe outra vez á garganta uma onda. Viu tudo côr de sangue...
N’esse caso, esmigalhava-a, estraçoava-a, para que nenhum outro homem
lhe gosasse o que era seu, muito seu!

Chegou ao pé de casa.

Lá dentro tudo em socego.

A Rosa, embainhando uma saia de chita, cantarolava a meia voz e em tom
sentimental a modinha da _Saudade_, em quanto a Isabel, que havia
tempos estava quasi sempre em casa d’elles, o que era muito do gosto
do Jorge, espertava o lume para se coser a ceia. A sopa de couves com
feijão fervia n’um suave romrom dentro da panella de ferro e espalhava
por toda a casa um aroma capaz de fazer crescer agua na bocca ao menos
famelico.

Sentiu-se menos resoluto, perante aquella tranquilidade.

--Porque todos a accusavam, havia ella de ser culpada?... E se
estivesse innocente?

Enterneceu-se, invadido por uma grande commiseração.

Em consciencia, quasi lhe achava desculpa, mesmo no caso de ser verdade
o que diziam. Para que a tinha escolhido assim tão nova? Deus é que
não lhe devia ter posto no coração, aquelle immenso amor! Bem sabia
que estava adiantado em annos, que tinha o rosto cavado de rugas e
o cabello quasi todo branco, mas desde que se apaixonára pela Rosa,
sentia dentro de si o viço, o frescor, a alegria dos mais formosos dias
da mocidade; respirava desafogadamente e com delicia, achando o mundo
mais bello do que nunca, e antevendo um futuro longo, feliz. Ás duas
por tres, nas vesperas do casamento, dava por si a rir, a cantar. Era
moço outra vez.

A Rosa, certamente, é que não o via do mesmo modo.

Tudo isto lhe passou de tropel no pensamento, ao entrar em casa.

Mas tinha que desabafar por força, se não rebentava.

Deu as boas tardes ás duas mulheres, lavou as mãos, sacudiu a terra do
fato e foi sentar-se n’um canto, sem saber como havia de começar.

A sogra forneceu o pretexto, perguntando-lhe se queria que tirasse a
ceia do lume.

--É que eu mesmo tenho vontade! resmungou o veterano.

--Hein? inquiriu a Rosa, sem largar a costura, mas fitando os olhos no
marido.

--Quem anda com o interior ralado, não tem vontade de comer!

A rapariga encolheu os hombros, e continuando a coser disse por entre
dentes:

--Nunca tive geito para adivinhações.

--Ah! Tu não adivinhas o que eu tenho?... Pergunta-o por esse Castello,
e verás como toda a gente sabe dar-te a explicação. Ah! Que se fosse
verdade!...

E o velho levantou-se, fazendo um gesto de ameaça.

A rapariga empallideceu levemente, mas recobrou animo, por ver o marido
ainda duvidoso. Levantou-se tambem, arrumou a costura rapidamente, e
perguntou com grande ousadia, fingindo-se embespinhada:

--Se fosse verdade o que? Não tenho geito para adivinhações, já disse!

A Isabel, que, pelo sim pelo não, tinha tirado a panella do lume, veiu
postar-se ao lado da filha, para lhe accudir em caso de necessidade.

O Jorge falou, falou, a principio com desabrimento e violencia, depois
com menos força, como se o desabafo a pouco e pouco lhe minorasse a
acuidade do tormento. Disse tudo o que o amigo lhe tinha contado, sem
nomear, já se vê, o José Maria.

Ouviu-o a Rosa com um sorriso desdenhoso, como se désse pouca
importancia a tudo aquillo. Depois, cruzou os braços, deixou cahir
o corpo sobre a perna esquerda, e ficou a miral-o atravez dos olhos
semi-cerrados, meneando a cabeça e batendo febrilmente no chão com a
ponta do pé direito. Dir-se-hia que mal continha a impaciencia. Tinha
tido muito medo ao perigo quando o sentia longe, mas agora que o via
diante de si, affrontava-o ousadamente, chegava quasi a pensar que o
havia exagerado.

Pela sua parte a Isabel acompanhou a objurgatoria com uma gesticulação
larga, em que a indignação e o espanto se traduziam alternadamente, e
tanto que o genro se remetteu ao silencio, bradou com toda a energia:

--E ha quem metta a sua alma no inferno com esses falsos testemunhos!

--Ha, sim, minha mãe! acudiu a Rosa, com voz aspera e vibrante. E
tambem ha quem não se envergonhe de os acreditar e repetir!

--Credo, credo! Tal desgraça! murmurou a Isabel não atinando com outra
phrase.

--Eu não digo que seja tudo verdade, acudiu o velho entibiado pela
ousadia da mulher, mas alguma coisa ha de haver! O dictado não mente:
voz do povo, voz de Deus.

--Voz do diabo! atalhou a Rosa de prompto, e com o pescoço estendido e
a cara bem defrontada com a d’elle perguntou: Mas se acredita o que lhe
disseram, para que veiu ter commigo? Se fiz tudo isso, se não presto,
devia arredar-se de mim por uma vez!

--Não! Lá isso não! Se tivesses feito aquellas poucas vergonhas...

A voz estrangulou-se-lhe na garganta, que apenas emittiu um som cavo.
Ao mesmo tempo o Jorge, como se tivesse um lampejo momentaneo da
verdade, cresceu para a rapariga, os braços hirtos, crispadas as mãos,
em acção de agarral-a pelas guelas.

--O’ Jorge! gritou a Isabel, abraçada ao genro. Olha que está
innocente! Juro-te por tudo o que quizeres!

--Pela alma do José de Medeiros?...

--De meu marido? titubeou a viuva. Oh! Homem, não se deve bulir em quem
está descançado ha tantos annos.

--Pela alma de José de Medeiros?... insistiu o veterano, em voz surda.

--Sim, sim, juro! Assim elle esteja em gloria! Juro!

--Jurou! disse elle quasi comsigo mesmo, e accrescentou em voz ainda
mais fraca: Mas então para que anda a corja a vomitar aquellas
patifarias?

--Porque tem inveja da gente! retorquiu a Isabel com energia mas em
tom lamentoso. Pois não sabes o que é a costumada pouca vergonha
n’este maldito Castello? Está uma alma christã muito socegada da sua
vida, trabalhando dentro da sua casa e nem por isso escapa áquellas
navalhas!... Se nem o proprio _sôr_ governador se livra!... É
ouvir o que dizem d’elle... Que anda vestido como um pelintrão ... que
não faz bem á pobreza ... que é bruto ... que é malcreado... Vale-lhe
ser solteiro, quando não...

Nem o Jorge nem a Rosa lhe escutavam a tagarellice. Alheiada de tudo,
a rapariga tinha ido sentar-se, muito carrancuda, ao pé da janella
e olhava para o exterior. O velho, alçado no meio da casa, a cabeça
apertada entre as mãos, não sabia o que havia de crer, com a duvida,
a envolvel-o, a cingil-o, a devoral-o, como serpente, que se lhe
houvesse enroscado no corpo e lhe estivesse esmagando o peito e
fincando os dentes fundo, muito fundo, no coração.

Por fim, ainda impressionado pelas revelações do José Maria:

--Mas o que elle me contou?... Coisas tão bem explicadas ... parecendo
tão certas!... Quem podia inventar tudo aquillo?

--O proprio marau que t’o foi metter no bico!

--Cale-se! Não é capaz d’isso!

A viuva ía responder, mas a Rosa, que adivinhou quem a tinha
denunciado, gritou-lhe do seu logar, batendo nos joelhos com as mãos
abertas.

--Não se cance, minha mãe. Por mais que diga, creia que perde o seu
tempo. Fia-se menos na gente, do que nos seus amigos velhos. Não admira!

--Tens razão! Sim! Foi o José Maria! exclamou a viuva. Não podia ser
outro. Ah! Que a primeira vez que o apanhar!...

--Não foi elle! Cale a bocca! intimou o Jorge. Deus a livre de lhe ir
dizer uma palavra de tudo isto!

--Mas ó homem!...

--Nem palavra! Entendeu?...

--Bem! Bem! Haja saude! Não lhe digo nada. Mas não admira que o José
Maria... Se nunca poude levar á paciencia o teu casamento!... E tinha
razão. Se eu não tivesse consentido, estavamos livres d’esta freima.
Valha-me Nossa Senhora!

E afogou o resto da phrase n’um grande choro de carpideira,
entrecortado de soluços e arrancos.

--Cale-se, senhora, cale-se para ahi! ordenou-lhe o velho, aturdido e
impacientado.

--Não, senhor, não me calo! Até os proprios animaes defendem os seus
filhos.

N’uma explosão de ternura, correu para Rosa, beijou-a e murmurou,
chegando-a a si:

--Ainda que todos te criminem, eu sempre direi que estás innocente!

E como a rapariga, desafeita ainda a hypocrisias, a afastasse um pouco,
sentindo apesar de tudo instinctiva repugnancia pelo que a mãe estava
fazendo, continuou queixosamente:

--Elle é isso? Já me não queres ao pé de ti?... Tomas raiva a toda a
gente, vendo-te accusada por quem só te devia defender?... Coitadinha!

Enxugou uma lagrima hypothetica, e com a mão no hombro do genro
exprobrou-lhe que elle fizesse côro com a malta dos invejosos. Sim! O
que os Cains não podiam levar á paciencia é que elle fosse feliz com
a Rosa, não obstante aquella differença das idades, havendo tantos
maridos tão novos como as mulheres, e até mais novos, que andavam
apontados a dedo, pelo castello e pela cidade.

--Anda! Faze a vontade a essa corja! continuou a viuva. Sabes que mais?
Antes de vocês casarem, vieram dizer-me que o que tu querias era uma
enfermeira para te tratar, porque d’aqui a pouco havias de tornar-te, a
bem dizer, um poço de doenças, e que eu não devia, por ser uma dôr de
alma, condemnar a pobre pequena a uma vida de negra! Eu sei lá o que me
vieram buzinar aos ouvidos! Pois eu deixei-os falar, e, como ella era
muito tua amiga consenti no casamento... É que eu não sou como tu, não
faço a vontade aos maraus!

--Já a mandaram calar, minha mãe! É o melhor que pode fazer! disse-lhe
a filha, com os nervos irritados pela discussão.

--Bonito! Agora és tu!... Pois não me calo, em quanto não vir as coisas
no seu logar!--E com a mão posta outra vez no hombro do veterano: O’
Jorge, deveras não estás ainda arrependido? Vê aquelle botãosinho de
rosa! Anda! Pede-lhe perdão!...

Como elle resistisse, chegou-se á filha e tentou impellil-a para o
marido.

A rapariga então é que não quiz e foi para o lado opposto do quarto, a
chorar de raiva.

--Vês! Vês como a fazes penar! murmurou a Isabel ao ouvido do Jorge.

Approximou-se da filha, aconselhando-lhe, em voz alta, que não se
apoquentasse, que não chorasse d’aquella maneira, e comminando-lhe em
voz baixa, lavar d’ali as suas mãos, se ella continuasse a fazer-se
fina.

Ao cabo lá conseguiu que os dois se abraçassem, e exclamou satisfeita:

--Ora até que tiveram juizinho! Bom! Vamos a isto, que a ceia já não
deve estar muito quente.

E foi deitando o feijão com hervas para a terrina, onde já tinha migado
o pão de milho.

Sentaram-se á meza.

O Jorge bebeu uns goles de agua, para ver se tragava as lagrimas,
que ainda lhe entumesciam as palpebras e quasi lhe espirravam dos
olhos.--Apezar do seu desejo furioso de acreditar na innocencia da
mulher, conhecia que a felicidade lhe tinha fugido para sempre.

A Rosa sentia no fundo do coração um certo dó por aquelle pobre velho,
que lhe queria tanto; mas não lhe perdoava os sobresaltos por que
acabava de passar, e, ainda menos, o ser obrigada, por causa d’elle,
a não ver o homem que a tinha enlouquecido. E quando horas depois o
Jorge, vencido por tanta lucta, dormia profundamente, ella, muito
arredada para o outro lado da cama, as lagrimas a escorrerem-lhe a
quatro e quatro para o travesseiro, perguntava a Deus se vida assim não
seria mil vezes peior do que a morte.


                                  VII


Passou-se um mez.

O Luiz, sabedor do que tinha havido em casa do Jorge, andava retrahido,
pois «não queria levar as coisas para o tragico» dizia elle, e «embora
a rapariga fosse tentadora a valer, não merecia que por sua causa
se fizessem asneiras de marca maior». Esta restricção, diga-se de
passagem, estabelecia-a tambem a respeito de todas as outras mulheres.

Demais a Genoveva acabava de voltar da Graciosa. Era uma matronaça
ainda bem disposta, com quem o sargento, segundo rezava a chronica
escandalosa da cidade, já tinha tido os seus dares e tomares.
Encontraram-se por acaso no caminho de S. Pedro e reataram relações.
Aquella, sim, que não podia accarretar-lhe semsaborias. Se já era
livre durante a vida do seu antigo patrão, mais o estava agora, que
tinha ficado remediada com a herança deixada pelo conego Ricardo á sua
ama e enfermeira de tantos annos. E sabia fazer-se estimar. Como tinha
ainda fresco o dinheiro produzido pela venda de um predio na Graciosa,
dava amiudados presentes ao amante, que recusou a principio, cheio de
nobre desinteresse, mas que depois, não querendo fazer desfeita, os
acceitou cheio tambem de gratidão.

A Isabel soube d’isto e para acabar de todo com os «malditos amores»,
origem para ella de tantos phrenesis, foi dizer tudo á filha.

Pareceu-lhe bom o resultado.

Se até alli a Rosa andava exquisita, tomou-se desde então ainda mais
taciturna. Nunca saía de casa, e levava sentada o dia inteiro, sem
dizer palavra, com a vista parada, como se estivesse a olhar para
dentro de si mesma, interrogando-se.

--Já está arrependida, julgava a Isabel.

A Rosa não acreditou que tudo aquillo fosse verdade, se bem que o
retrahimento do amante lhe tivesse causado uma desillusão profunda. O
Luiz não a atraiçoava com a Genoveva, lá isso não!--Achava até ridicula
semelhante rivalidade; não a tomava a serio.--Mas em todo o caso, não
era homem para arrojos, nem sacrificios. Cego pelo amor, atrevera-se a
muito; agora, estava com medo das consequencias, incapaz de imital-a,
a ella, que se tinha arriscado a tudo, e que não hesitaria, se elle a
quizesse levar comsigo, em deixar o marido, receiosa tão somente por
acabar de perder-se na opinião de todos, e d’este modo não ser digna de
gosar, algum dia, a felicidade para que se julgava destinada. Pois o
Luiz não conheceria que só o amor a tinha arrastado áquellas loucuras,
e que se estivesse casada com elle, mulher nenhuma seria mais honrada?
Sim, o amante ainda havia de recompensal-a de tudo o que lhe fazia
padecer.

Era a sua esperança, a sua crença.

Mas o procedimento do Luiz desorientava-a, quasi lhe fazia perder a
coragem. Chegava a querer-lhe mal, mas iria padecendo até esse dia
feliz.

Ao marido já tinha raiva.

--Pois não era elle a causa de todas aquellas desgraças? O unico
obstaculo, que não a deixava ser feliz?

O Jorge, pela sua parte, andava como atordoado. Parecia viver n’um
sonho. Ainda o assaltavam desesperos subitaneos, quando julgava a
denuncia verdadeira, e então sentia impetos de matal-a e matar-se; mas
em breve acalmava, porque lhe acudiam á memoria as explicações dadas
pelas duas mulheres.--A mãe não podia estar combinada com a filha!

Via a Rosa melancholica e taciturna, mas via-a! Tinha-a sempre alli,
como coisa legitimamente sua. Possuia-a sem medo de ninguem. Não
trocava a sua sorte pela de outro, ainda que fosse verdade o que...
Não! Era uma falsidade, uma perfeita mentira!

--Não me perdoou ainda eu julgal-a tão mal e tem razão, pensava o
Jorge, por vel-a n’aquella attitude. E até se arrependia de não ter
forçado o amigo a declarar-lhe o nome do mentiroso, para se vingar, e
vingar a sua pobre mulher, que estava innocente.

Lembrava-se de pedir-lhe perdão, de propor-lhe sairem da Terceira
para S. Miguel ou para outro logar ainda mais distante, onde ninguem
os conhecesse, onde não chegasse a calumnia. Mas ao encontral-a tão
reservada, calava se, perdia o animo, e a duvida logo recomeçava no seu
trabalho surdo e implacavel.

--Pois senhores, dizia comsigo a Isabel fiada n’este apparente socego,
pelos modos não chega a haver trabuzana. Tenho de levar um cyrio á
Senhora do Livramento.

--Muito cuidadinho, recommendava ella, quando alguma vez ficava a sós
com a filha. O Jorge está aqui, está certo de que tudo foi mentira.
Mas ai de ti, se lhe fizesses voltar as desconfianças. Era capaz de
matar-te!

--Entre mortos e feridos sempre ha de escapar alguem, objectava a
rapariga. E espero em Deus mandal-o adeante.


                                 VIII


No dia de S. Pedro á tarde a Isabel aconselhou á filha e ao genro que
fossem dar um passeio, e como suppunha que não lhes agradassem os
sitios mais concorridos, lembrou o monte Brazil. Mettidos entre quatro
paredes, sem nunca se distrahirem, pensava ella, estariam sempre de mau
humor, e difficilmente acabariam de congraçar-se.

Não os acompanhou, porque a sós poderiam entender-se melhor. De mais a
mais, já tinha feito bem o seu dever.

Os dois acceitaram o conselho, e foram pelo caminho, que a meia encosta
ladeia o monte, passando á ilharga das ruinas da antiga casa de
recreio dos governadores da praça, e vae ter a uma plataforma de rocha
sobranceira ao mar.

Pelas aguas tranquillas da angra, que deu o nome á cidade, deslisavam
alguns barcos, onde familias da burguezia e do povo andavam a
recrear-se em honra do santo pescador.

Chegados ao extremo do caminho, o velho sentou-se n’um comorosinho
coberto de relva já amarellecida pela soalheira, e a Rosa, para estar
bem longe d’elle, foi para a beira da plataforma, e descahiu os olhos
para o mar. Avistou-o em baixo, ao deante da rampa, que desce em
vertiginoso declive e termina em empinada muralha banhada na base pelas
aguas, alli escuras e profundas.

Um barco ia rodeando o monte, de volta para a cidade. A Rosa conheceu
logo os passageiros. Eram o dr. Brum, um rapaz moreno e cheio de vida,
e a mulher, uma loura de afamada belleza. Tinham casado por grande
paixão, uns quatro mezes antes. Ella reclinava a cabeça no hombro do
marido. Pareciam ainda na lua de mel.

--Como eram felizes!

N’esta occasião o veterano, ainda no mesmo logar, suspirou, entregue
aos seus tristes pensamentos.

--Que suspirasse! Que padecesse! Que tinha ella com isso? O que lhe
importava, era o impecilho do velho tel-a ido buscar, para reduzil-a
áquella desgraça. Maldito!

Desejosa de ver mais tempo o barco, já quasi a occultar-se por traz
da bateria de Santo Antonio dos artilheiros, desceu dois passos pelo
ingreme talude.

Em direcção contraria, e como o primeiro a curta distancia da costa,
vogava outro bote. Á ré tambem um homem e uma mulher.

Provavelmente mais um casal feliz.

Elle era um militar, um sargento. Já se lhe distinguiam as tres divisas
verdes.

Tão alegres aquelles dois, que vinham tocando e cantando. A voz
abarytonada, que entoava o fado, conhecia-a ella.

--Não! Não era possivel!

Debruçou-se mais, correndo quasi o risco de precipitar-se.

--Sim! Eram o Luiz e a Genoveva.

Com os olhos a saltarem das orbitas e os punhos fechados para o barco,
trovejou phrenéticamente:

--Ah! Grandes maraus! Grandes maraus!

O Jorge pareceu acordar de um sonho, levantou-se, olhou para o bote e
apesar da distancia reconheceu o sargento.

--Até que te apanhei! gritou elle, travando rudemente do pulso da
rapariga.

--Hein! O que é?... Largue-me! Largue-me!

E voltou os olhos para o barco.

--Não olhes para lá, olha para mim, para mim, que sou teu marido! Anda!
Nega ainda historia com o sargento... Nega!

--Não nego, e arrependida estou eu de ter negado a primeira vez. Mas
largue-me! Arre!...

Com um esforço violento escapou-se-lhe da mão e como sentisse o pulso a
doer, bradou fula de raiva:

--_Pisar-me_ assim! Pedaço de bruto!

--Olha que eu desfaço-te, grande diabo! E não te cae a cara de
vergonha, por veres que sei tudo! Sempre era muito estupido!... Foi
preciso que me mettesses a verdade pelos olhos dentro, ao avistares o
sargento com outra mulher! Eu bem o reconheci, accrescentou o velho e
apontou para o rival, que mal suspeitava o que alli estava acontecendo
por sua causa. Ah! Padeces o mesmo que me tens feito padecer? Ainda
bem! Ainda bem!

Ella ia responder com uma insolencia, mas calou-se, porque a vóz do
sargento, subindo pela encosta, trouxe-lhe ao ouvido fragmentos de uma
quadra do fado, de envolta com os arpejos da guitarra.

Sabia-a de cór, de a ter ouvido ao amante.

--Perdes o tempo a escutar, que não é para ti que elle está cantando!
disse-lhe o Jorge, com sarcasmo.

Voltou-se enraivecida para o marido, mas, querendo feril-o mais
cruelmente, descambou para a troça.

--Então não querem ver o _fedôr_ do velho! ejaculou, com o dedo
apontado para elle e atravez de uma gargalhada. Julga talvez que se o
Luiz me não quizesse mais, ganhava com isso alguma coisa? Nicles, meu
menino! Não é o mel para a bocca do asno.

E cuspiu-lhe outra risada.

O Jorge ouvia-a estupefacto, sem acreditar.

Para se vingar em alguem, a Rosa continuava nos improperios, como se
a desesperação, que dias e dias tinha represado dentro em si, achando
finalmente sahida, golfasse n’um vomito asqueroso.

--Julgou o mostrengo que era só appetecer uma raparigota, que ainda
mal chegava a mulher, e chamar-lhe sua! Tal desgraça! Juntar a morte á
vida!... Que peccado! O avô casado com a neta! Ah! Ah! Ah!

Meio suffocado pelo desespero e pelo asco, mas curioso de saber até
onde chegaria aquella abjecção, o velho quiz ouvil-a. Não poude
esquivar-se todavia a dizer-lhe com desprezo:

--Grande porca!

--Porco é você! Um porco, que me sujou casando commigo! Porcos os
seus beijos! Desde o dia em que me levou á egreja, tenho nojo de mim!
Veja-se n’um espelho, seu velho tinhoso, e diga-me depois se eu era
para a sua bocca!

O veterano cresceu para ella, chamando-lhe:

--_Valhaca!_ Surrão!

Quiz agarral-a, porém a rapariga furtou-lhe as voltas, e continuou a
provocal-o:

--Muito lhe tenho eu aturado! Nenhuma outra soffria tanto. O que eu lhe
fiz, não é nem a metade do que você merece!

--Eu mato-te, diabo, eu mato-te! Nem já sequer te vejo!

--Nunca me tivesse visto! Oxalá! Fique sabendo que não gosto de você,
nem gostei nunca, nunca! D’elle! D’elle, unicamente!...

E apontou na direcção do bote, que os dois, afastados um pouco da
rampa, não podiam agora ver.

Ouvia-a e cuidava já não ser d’este mundo, ou que tudo se anniquilara
em volta de si. Ainda os espreitava o sol por traz do monte, e elle
julgava-se envolto nas trevas da noite.

--Pois aquella creança, que havia pouco se lhe afigurava tão
innocente e pura, como nas tardes em que ella ia levar-lhe o jantar,
muito rosada, de vestidinhos curtos, saltitante e alegre que nem um
passarinho--aquella creança podia ser a malvada que para alli estava a
falar?! Mais nojenta e descarada do que essas mulheres, que á noite,
quando lhe succedia voltar para o castello mais tarde, o perseguiam
pelas ruas da cidade, com as galochas de pau soando estridulamente nas
pedras da calçada, e que se lhe offereciam desbragadas, em tróca de
pouco dinheiro! Pois aquillo era a sua mulher, a sua querida mulher?!

No emtanto a Rosa tinha-se abeirado outra vez da escarpa, e com os
olhos a brilharem seguia o barco, que se ia afastando de terra.

--Era aquillo, era! Peior ainda que as mulheres de má vida, podia dar
lições a todas ellas!

E para que não existisse um monstro assim, o Jorge correu para a
mulher, agarrou-a pela cintura e atirou-a com força pela rocha abaixo,
dizendo:

--Anda! Vae ter com elle!

O corpo cahiu aos resaltos pela vertente e foi pondo salpicos de sangue
nas arestas que o esfarrapavam, em quanto a voz do sargento Luiz
garganteava ao longe, toda cheia de requebros:

    Mal os meus olhos te viram
    O meu coração te adorou,
    Na cadeia dos teus braços
    Minha alma presa ficou.


                                  IX


O Jorge não poude seguir a mulher no caminho da morte.

Quando ia para despenhar-se, deitaram-lhe a mão o corneteiro-mór
reformado e outro homem.

Preso para conselho de guerra, foi julgado tres mezes depois e
confessou o crime, sem todavia declarar, por mais instancias que lhe
fizessem, os motivos a que tinha obedecido. Os insultos e provocações
com que a Rosa o allucinara, contaram-os ao conselho aquellas duas
testemunhas. Estavam perto, mas não tinham sabido intervir a tempo de
evitar a catastrophe.

Em quanto duraram estes depoimentos, o Jorge, envergonhado não por si
mas por ella, tapava o rosto e cravava na testa os dedos contrahidos.

Impressionou vivamente ao auditorio o discurso do defensor. Quem
apresentava aquella honrosa biographia militar, allegou o moço
official, não era de certo um assassino. Tinha feito uma morte,
praticando aliás um acto de verdadeira justiça social, mas não
commettera um crime, pois estava inteiramente privado da intelligencia
do mal que fazia, o que era previsto pelo codigo.

No fim, o presidente perguntou ao accusado se tinha mais alguma coisa
que allegar em sua defeza.

--A minha pena toda é que V. S.^{as} não possam mandar-me varar por
quatro balas, respondeu o velho, e não pronunciou mais palavra.

Foi absolvido por unanimidade.

O José Maria acompanhou-o a casa, e no intuito de consolal-o disse-lhe
que a Rosa só tinha tido o que merecia.

--Cala-te, homem, cala-te! vociferou o Jorge, e atirou-se para cima da
cama, onde ficou deitado, com a cara voltada para a parede, os olhos
abertos e inexpressivos.

N’isto chegou-lhe á porta a Isabel e não se fartou de injurial-o.

--Peiores que o matador de sua filha, só os malvados do conselho de
guerra, que o tinham absolvido! Tudo uma cafila!

O José Maria dispunha-se a correr com ella, quando a Josepha Julia e a
Luiza Braga, que vinham á descoberta, a levaram d’alli.

--Deixa-o lá, dizia-lhe a Luiza, com o braço mettido no da viuva. Bem
castigado ficou elle, perdendo a sua Rosa. Tens razão para lhe querer
mal, mas, diga-se a verdade, o que a tua filha fez ao Jorge...

--E tu e as mais o que fazem? berrou a Isabel. Mas logo, cahindo no tom
lastimoso, ajuntou: O corpo da pobresinha lá está no fundo do mar ...
ou talvez fosse comido por algum peixe!

Seguiram caladas pela rua adeante.

--Se todos os maridos, que teem razão de queixa das mulheres,
seguissem a receita do Jorge--meditava a Josepha Julia, com azedume de
solteirona--os peixes, de gordos, chegariam a não poder nadar!

Depois, lembrou-se de uma novidade capaz de alegrar a Isabel:

--Não sabeis o que se conta da mulher do sargento Luiz?

--Da antiga ama do conego Ricardo? perguntou, immediatamente a Luiza.

--Isso! Que já a prega na menina do olho ao marido, com um estudante do
seminario!

--E elle que se ha de affligir! acudiu a Isabel com rancor. Não lhe
tirem os moios de renda deixados pelo conego, pois quanto ao mais...

       *       *       *       *       *

Sempre cabisbaixo, andando á pressa e murmurando uma vez por outra
palavras que ninguem percebia, o Jorge só era visto d’alli em deante
nas ruas do castello, quando ia de manhã para o armazem do material de
guerra ou para a terra do monte Brazil, e á tardinha, quando recolhia.

Quem de noite lhe passasse á porta, mesmo fóra de horas, via pelas
frinchas a claridade da candeia, e sentia lá dentro, com frequencia, os
passos do velho, medindo em todos os sentidos a casa terrea, e ouvia de
quando em quando um suspiro mal reprimido. Quando lhe perguntavam se
queria alguma cousa não respondia e ficava á escuta, para continuar na
mesma, apenas ia longe o importuno.

Uma noite o José Maria, embora soubesse que o Jorge, como sempre, o
receberia mal, entrou-lhe á força em casa e fez-lhe ver que elle estava
dando cabo de si, o que era um grande peccado.

--A vida, é Nosso Senhor quem a dá, só elle a póde tirar, retorquiu
o Jorge. Cuidas que se não acreditasse n’isto, já não tinha ha que
seculos?...

E sem rematar a phrase, continuou a passeiar pela casa, alheio a quanto
o rodeava.

       *       *       *       *       *

Em algumas tardes ia sentar-se na rocha, no mesmo sitio d’onde tinha
despenhado a mulher, e deixava-se alli ficar horas esquecidas, olhando
para o mar, talvez a pedir-lhe que lhe restituisse a sua Rosa, de quem
elle, apezar de tudo, ainda gostava tanto!


[Ilustração]




[Ilustração]




                          Os Filhos Do Frade


FREI Antonio entrou na cella do guardião, tremulo, sem forças. O
religioso que o chamou, dissera-lhe apenas:

--Cuido que é para ires a casa do morgado da Fajã.

O guardião, gordo, pausado, pachorrento, disse a uma e uma estas
palavras, que iam fazendo estalar de angustia o coração do franciscano:

--Frei Antonio, o morgado da Fajã manda-me pedir um irmão, que vá
acompanhar esta noite, junto do caixão, a menina Beatriz, que morreu
ainda agora, de repente. Escolhi a Vossa Reverendissima. Vá buscar o
seu breviario e ponha-se a caminho, que d’aqui até lá acima ao monte,
ainda é boa a distancia.

O frade saiu d’alli cambaleando, estonteado. Por milagre chegou á sua
cella, sem cahir ao comprido, sobre as lages do corredor.

Mal fechou a porta, atirou-se de bruços para cima do catre, e mordeu a
coberta de lã grosseira, n’um paroxismo louco, abafando os gritos que
lhe irrompiam do peito em catadupa.

Depois, foi a pouco e pouco serenando, as lagrimas correram-lhe dos
olhos em fio, e o franciscano esteve tempo infinito, de joelhos no
chão, com os olhos erguidos para o alto, mal fitando atravez do caudal
do choro a imagem de um Christo, que estendia lamentoso os braços sobre
o madeiro da Cruz, n’uma attitude de immensa angustia resignada.

E assaltou-lhe a memoria a recordação de uma dôr egual, a da perda da
sua mãe, que morrera assim, de repente, estando a falar com elle. Dôr
egual, não! que maior que todas é a de perder-se a mulher amada.

E elle idolatrava-a com tão immaculado culto, que nem a vista da
donzella profanára aquelle amor. Só agora, declarada a medonha
catastrophe, só depois que o guardião dissera que Beatriz tinha
morrido, frei Antonio percebeu o que eram aquelles extasis, aquelles
arroubamentos ineffaveis, de quando via, ao longo dos caminhos ou na
egreja, a figura gentil e fascinante da morgadinha. Ás vezes, quando
surprehendia no peito o intenso tumultuar da paixão, illudia-se,
rebuscava na memoria passagens dos livros santos e acreditava que
ascetas teriam tido como elle, e mais do que elle ainda, o indizivel
goso de antever em vida apparições como essa, mensageiros de Deus
destinados a fazer-nos crêr nos archanjos e seraphins.

Mas este mysticismo acabava perante a nova fatal. Não! O anjo era-o,
mas da terra! Morto, desfolhado aquelle lyrio de fragrancia extrema:
impossivel, impossivel!...

Saiu da portaria do convento quasi a correr, e como lá fóra, pelo campo
matisado de flores, o sol esparzia ondas de luz, e nas carvalheiras os
melros trinavam alegremente, soltou-se-lhe do peito um longo suspiro
de satisfação e o rosto coloriu-se-lhe de prazer. Se Beatriz houvesse
morrido, o sol ter-se-hia apagado e os passaros nunca mais soltariam os
seus gorgeios.

       *       *       *       *       *

Quando chegou a casa do morgado, as trevas encheram-lhe de novo a
alma. Ao fundo do pateo, n’um quarto baixo, avistou, apenas acabava de
empurrar a porta da rua, que estava entreaberta, um grupo de mulheres
erguendo as mãos ao ceo, e soluçando muito.

Subiu a escada de pedra, passou o alpendre, e logo na grande sala da
habitação fidalga encontrou o pobre pae e viu no rosto afogueado do
velho a verdade inteira.

Tinha morrido Beatriz.

Lá dentro, no seu quarto virginal, transformado em capella mortuaria,
estava a donzella estendida sobre a cama, em quanto não chegava o
caixão, que devia contel-a para sempre, e onde se passaria o drama
horrivel da podridão, quando aquelles labios, ha pouco avermelhados
pelo sangue dos quinze annos, e aquella carne, mais branca e macia do
que as petalas das açucenas, fossem devorados lentamente, cruelmente,
pelos vermes repugnantes.

O frade olhou-a e descreu outra vez da morte. Bem a viu immovel, côr
de cera, esmaecidas as rosas das faces; não acreditou. E quanto mais a
via, mais a duvida o animava, mais o espirito se lhe erguia para Deus,
interrogando, mas não pedindo. Seria excusado implorar-lhe um milagre
para resuscitar Beatriz, porque Beatriz não podia estar morta!

Ainda assim os labios de frei Antonio murmuravam rezas, e quando a
noite já ia adeantada, e todos em casa se tinham recolhido, ainda no
quarto funebre se ouviam as orações do religioso, quebrando aquelle
silencio de coisas mortas, e echoando flebilmente até aos pannos
negros, que forravam as paredes, e de que se destacavam, a um lado, as
chammas compridas, pallidas e immoveis dos quatro cyrios do altar.

Sempre com a mesma crença, quando ficou só e sentiu o ultimo alento
de vida extinguir-se no resto da casa, levantou-se do logar aonde
ajoelhara e chegou-se para o caixão.

Abertas para os lados as duas meias tampas forradas de setim branco,
mostravam atravez de um véu de tule a donzella. O frade viu-a e recuou
inconsciente, como se houvera profanado uma alcova virginal. Coisa
alguma d’aquelle espectaculo lhe trazia ao pensamento a ideia da morte.

Todos, sem duvida, se enganavam. Era horrivel deixar que a levassem
para debaixo das lages da egreja, para o frio jazigo da familia, quando
ella não estava morta, quando a mocidade nunca se expandira tão
exuberante no rosto de Beatriz!

Chegou-se mais. Ergueu o veu, quiz encostar o ouvido ao peito da
donzella, e perscrutar-lhe as palpitações do coração. Não poude. As
tampas do caixão não lh’o permittiam. Pousou a mão tremula regelada na
testa da morgadinha, e pareceu-lhe receber uma impressão de calor.

[Ilustração]

--Então estava viva!

Quiz chamar alguem, correu para a porta, mas lembrou-se dos tristes
sorrisos de desconsolo, que tinham respondido ás suas duvidas, algumas
horas mais cedo.

Tornou para junto d’ella.

--Ah! Se podesse sentir-lhe pulsar o coração!... Porque havia de
hesitar?

Levantou o corpo um quasi nada, e em seguida um pouco mais,
introduzindo as mãos tremulas por baixo dos hombros da donzella. Sem
saber como tirou-a para fóra do caixão, e amparando-a nos braços, e
achegando-a a si, qual mãe que aperta ao seio um filho estremecido,
dirigiu-se cambaleando, quasi louco, para a cadeira de espalda onde
estivera velando o morgado.

Fitou-a, e julgou vel-a sorrir. Chegou-lhe ao coração o ouvido e sentiu
palpitações.

Então na sua alma operou-se uma transformação sobrehumana. Aquella
quadra já não foi para elle camara mortuaria, mas alcova nupcial, e o
frade, perdida a razão, esqueceu tudo, e julgou realidade o que mais de
uma vez se atrevera a phantasiar, e viu-se esposo de Beatriz, sentindo
nos seus braços o corpo da donzella, rendido, indefeso, e gosou toda a
suprema volupia de um primeiro beijo de amor.

       *       *       *       *       *

De repente ouviu-se um gemido doloroso, quasi um grito!

O frade ergueu-se do chão, de golpe.

Beatriz, prostrada por terra, tinha effectivamente voltado á vida, e
acabava de sair do estado cataleptico, que todos tinham julgado morte.

Aterrado, espavorido, fugiu do palacio, soltando brados.

A familia do morgado acudiu e poude adivinhar, horrorisada, o que se
tinha passado.

       *       *       *       *       *

Sessenta annos mais tarde, ha pouco tempo ainda, contava-se esta
historia em Santa Cruz, na Madeira, para explicar o motivo por que dois
velhinhos, muito parecidos e da mesma altura, e que andavam sempre
juntos, eram chamados os _filhos do frade_.

Havia quem dissesse que eram gemeos, mas a opinião encontrava alguns
incredulos.

Consta-me até que um investigador consciencioso estabeleceu, com
documentos irrefragaveis, que um dos irmãos era onze mezes mais velho
do que o outro, porque Beatriz e Frei Antonio...

Silencio! Não é bom revolver o pó das sepulturas.


[Ilustração]




[Ilustração]


                         O Primeiro Desengano


Vestiu pela primeira vez fatos de senhora, no dia em que fez quatorze
annos.

Ainda estou a vel-a entrar pela sala dentro muito envergonhada,
tropeçando na fimbria do vestido comprido, não sabendo se devia rir ou
zangar-se com os gracejos que lhe choviam de todos os lados.

Afinal foi sentar-se ao pé de uma meza, e tirou da floreira uma
rosa, que tratou de desfolhar e de triturar, persuadida talvez de
que escapava assim á attenção geral. Tivesse mais dois ou tres annos
e desejaria prolongar o sentimento de admiração excitado pela sua
formosura juvenil, em que transparecia a candura e singeleza da
creança, da _baby_ da vespera, alliadas á fascinação da mulher
que despontava.

Do meu canto, observava aquella esplendida adolescencia, que assim
desabrochava de subito, e quasi não podia acreditar que os poucos
mezes, que a Georgina tinha estado longe da Madeira, assim houvessem
transformado a minha antiga companheira de brinquedos.

E ao vel-a tão differente, sentia em mim o que quer que fosse novo
e estranho, e, desejando aliás approximar-me d’ella e contemplal-a
muito tempo, tinha a dubia percepção de que alguma coisa nos separava
agora, tornando completo impossivel o falarmo-nos como d’antes, quando,
n’aquellas manhãs de julho tépidas e luminosas, iamos com um rancho
enorme para o banho do mar, e a Georgina, alegre e buliçosa como um
passarinho, pulava na frente do bando, com as suas perninhas brancas e
rosadas, que appareciam abaixo do vestido de cambraya.

Em quanto ella e as senhoras entravam para as barracas enfileiradas a
curta distancia da babugem da maré, nós, os homens--eu já me incluia
no rol--enfiavamos cá fóra os horriveis fatos de banho, quasi sempre á
direita das barracas, para nos livrarmos do sol, que surgia por traz do
cabo Garajao e começava a faiscar nas vidraças do Funchal.

Que bons aquelles banhos!

Era um alvoroço enorme, uma exuberante alegria, quando entravamos
de corrida pelo mar dentro, e, passada a primeira sensação de frio,
gosavamos a deliciosa frescura, fluctuando ao impulso da onda, de mãos
dadas, divisando atravez da limpidez da agua, as pedrinhas brancas
semeadas entre os calhaus do fundo ... e as formas tremulas, fugitivas
das banhistas. Sobre o mar, levemente encrespado pela brisa, formava-se
para o lado do nascente uma esteira luminosa, coruscante. De quando em
quando um de nós fazia repuxar a agua em myriades de gotas, que cahiam
como chuva de fogo, até irem perder-se na espuma branca de neve.

Uma vez a Georgina apanhou um grande susto. Presumindo excessivamente
das suas aptidões de nadadora principiante, quiz afastar-se da
terra, mas lembrou-se de repente de que já não teria pé, de que ia
afogar-se, imaginou-se até levada por uma resaca, e poz-se a bracejar
desordenadamente, gritando, bebendo agua, como se lhe tivessem dado
uma _enterra_. Soffreria provavelmente a morte da Virginia de
Bernardin de Saint-Piérre, sem o acompanhamento grandioso e bulhento
do temporal, se eu não a tivesse agarrado a tempo e conduzido á praia,
Deus sabe com que difficuldade.

Imagine-se a ufania que me causava a recordação da façanha, no momento
em que a Georgina me apparecia sob aquelle aspecto novissimo!

--Ah! Se podesse tornar a salval-a, trazendo-a apertada nos braços!...
Formulava mentalmente este desejo, que parecia de certo uma enormidade
ao meu pudor dos quinze annos, quando notei que a Georgina olhava
fixamente para o meu lado.

Desviou a vista, quando a encarei, mas d’alli a pouco estava a olhar
outra vez.

Senti então um dos maiores prazeres da minha vida. Comprehendi o
motivo por que a julgava outra, adivinhei o que era o sentimento novo
que me dominava.

Valeu-me para a descoberta o andar a ler o _Visconde de Bragelonne_, no
ponto em que se descreve a seducção de La Vallière. Lembrei-me até de
que o maroto do Alexandre Dumas torna quasi cumplices na queda da pobre
Luiza uns passarinhos, que havia na sala e que no momento em que Luiz
XIV cae aos pés da namorada, chilream dentro das douradas gaiolas uma
toada de indizivel concupiscencia, o que ainda mais entontece a futura
carmelita. Ora emquanto eu olhava para a Georgina, tambem cantava um
passaro, um melro, empoleirado n’uma magnolia do jardim. Achei de bom
agouro a coincidencia.

É claro que não emparelhava a Georgina com a La Vallière--via-a como
aquella a quem havia de ser unido para sempre, visto que o amor assim
nos destinara um para o outro.

Com uns restos de duvida, olhei em roda de mim.

No lado da sala onde eu estava, não havia mais nenhum homem, a não ser
o escrivão de fazenda, sujeito de grande bigodeira e voz soturna, que
recitava pelas salas o _Noivado do sepulchro_ e a _Doida de
Albano_.

Era solteiro, mas tinha mais de tres vezes a edade de Georgina. Fiquei
radiante. Era para mim com certeza, que estava olhando. D’alli a pouco
fomos jantar.

Não comi nada, porque ella, apesar de ter ficado ao pé de mim, não me
deu a minima attenção.

Como já tambem conhecia a existencia das _coquettes_, perguntei a
mim mesmo se a Georgina seria uma d’ellas, e resolvi provocar o mais
cedo possivel uma explicação decisiva.

Deparou-se-me o ensejo n’aquella mesma tarde.

Achavamo-nos os dois no extremo do mirante sobre o Caminho do Monte,
vendo os romeiros que voltavam de festejar a Senhora de agosto.

Os mais não podiam ouvir-nos, entretidos como estavam por um dos
espectaculos mais pittorescos dos costumes populares madeirenses. O
som dos machetinhos de Braga, machetes de rajão e violas francezas,
e o sussurro dos descantes e falatorio dos romeiros abafariam alguma
palavra que me escapasse em voz mais alta.

Depois de lhe disparar uma declaração, fiz-lhe não sei quantas
recriminações, pelo que me tinha feito soffrer durante o jantar.

A Georgina escutou-me cheia de pasmo, desviou-se um pouco, e medindo-me
dos bicos dos pés até á cabeça, disse-me com um supremo desdem:

--O menino endoideceu! Não sabe que é ainda um fedelho e que eu já sou
uma senhora! Isso ha de ser somno, por força. O que o Luizinho deve
fazer, é pedir á sua mamã que o metta mais cedo na cama!

Fulo de raiva, ia dizer-lhe uma insolencia, quando se approximaram de
nós a mãe d’ella e a minha.

       *       *       *       *       *

D’alli a dois mezes casava a Georgina com o escrivão de fazenda, e
d’alli a dois annos ... estava eu vingado.


[Ilustração]




                           A Alegria do Mar


O Manuel João abalou dos Cedros aos primeiros arreboes da madrugada, e,
apezar de já ter os seus sessenta bem puxados, não afrouxou na extensa
caminhada até á Horta, a _villa_, como o povo do Fayal teima em
chamar á sua pequena cidade.

Quando chegou ao alto da Lomba, deu um suspiro de satisfação. _A
Alegria do Mar_ ainda não estava no ancoradouro. Só viu fundeado um
patacho e um hiate, e, navegando do Pico para S. Jorge, o paquete da
carreira, que tinha chegado, na vespera, das Flores, com a noticia de
já lá estar a barca, onde o filho voltava dos Estados Unidos.

Ha que annos o rapaz estava ausente, e quasi sempre sem escrever! Mas
o pae não estranhava a falta de noticias. Quando o José se despediu
d’elle e da mãe, a Andreza, pediu-lhe que escrevesse muitas vezes, o
que o Manuel João contrariou, dizendo bruscamente:

--Deixa falar tua mãe, e só gastes o tempo a trabalhar! Cartas são
papeis, não servem de nada. Se poderes mandar alguma coisa, manda
dinheiro. É com elle que a gente se governa!

O rapaz quasi nada lhes mandou, porque não obstante a grande lida em
que andava constantemente, poucas economias conseguiu coalhar. Só nos
ultimos tempos havia tido uma aragem de sorte, de maneira que voltava
remediado. O Francisco Madruga, um visinho chegado dois mezes antes,
contou aos dois velhos que o José tinha um collete de pelles todo
acolchoado de bellas aguias--aquellas moedas de ouro tamanhas e tão
luzidias, que, mal comparadas, fazem lembrar o sol abençoado, e que são
como elle fonte de vida e de alegria!

Tendo descido a ladeira da Conceição, o velho atravessou a disforme
e corcovada ponte, e entrou na cidade, indo parar no caes proximo do
castello de Santa Cruz.

Estava a informar-se, quando o facho do monte da Guia começou a fazer
signaes.

--Talvez aquellas bandeirinhas lhe estejam a responder, lembrou um
barqueiro, apontando para o alto da collina.

Effectivamente era o annuncio de que já se avistava a barca.

--Com este vento, a _Alegria do Mar_ não dá fundo antes d’essas
quatro horas, opinou o mesmo barqueiro.

--Ou das cinco, resmungou outro.

Como lhe sobrava tempo, o Manuel João foi comer alguma coisa a casa de
um primo, que tinha _botequim_ defronte do mercado.

       *       *       *       *       *

A barca deitou ferro á tardinha.

Acossadas pelo vento sueste, pelo _carpinteiro_, as vagas batiam
com força recrescente na muralha da cidade e espadanavam com violencia,
ou formavam grandes rolos na areia. Saltando a cada instante para
o caes, a agua varria-o, de lado a lado, para logo se despenhar em
abundante cascata. Ás vezes, do meio do tapete espumoso apenas emergia,
como ilha exotica, o guindaste de ferro, muito luzidio com os banhos
consecutivos.

Á cautela, os barcos varados no caes tinham sido puxados para a rampa
superior.

Tanto que a _Alegria do mar_ fundeou, appareceu, do lado do
castello, o capitão do porto, seguido do patrão-mór, ambos embrulhados
em gabões impermeaveis. Só ao chegarem á porta da barraca da alfandega,
é que viram ser impossivel a execução do serviço.

--A minha pena, disse o official de marinha, é não ter mandado vir para
terra as tripulações dos navios, que já cá estavam. O barometro desceu
tanto!...

--É que a brincadeira vae ser um boccado seria, alvitrou o patrão-mór,
designando o céo com um gesto circular.

O Manuel João, que tinha acabado de voltar e que os ouviu, perdeu o
acanhamento e perguntou afflicto:

--Ha perigo, sr. capitão? Valha-me Nossa Senhora! Ha perigo de a barca
vir a terra?! Ai! O meu filho, o meu rico filho!...

Compadeceu-se o official de marinha e para socegal-o disse-lhe que
o navio tinha boas amarras, que o temporal havia de amainar, e que
ficasse elle certo de que na manhã seguinte veria o filho ao pé de si,
são e escorreito.

--Deus Nosso Senhor o ouça! Mas que noite eu vou passar!...

E como do alto do caes não via a barca, foi em busca de um sitio d’onde
ao menos podesse enxergar o navio, em que estava o José. Ah! Em casa
do primo havia uma _falsa_ fronteira ao ancoradouro!... D’alli
a pedaço lá estava o Manuel João, olhando para o mar por um oculo
americano que o primo lhe emprestou, e que em tempo claro punha a
Magdalena mesmo ao pé da gente, apezar das cinco milhas que ella dista
do Fayal.

Ainda bruxuleavam os ultimos clarões da tarde. Depois de muitas
tentativas, o velho lá conseguiu descobrir o tombadilho da barca
... e tres homens... Se algum d’elles seria o filho?... Pareceu-lhe
que sim!... O mais alto!... Bastava-lhe poder vel-o bem um instante
sequer... Em vão!... Quanto primeiro lobrigara, desvaneceu-se de todo
com as trevas que augmentavam.

Os olhos, a arderem como se os picassem alfinetes, deixaram de ver.
Não! Viram logo depois uma luzinha, a do pharol de bordo, passar e
repassar no vidro immovel do oculo, a compasso com os balanços do
navio, n’um movimento de vaevem, como a dizer-lhe que não! que não!
que elle não veria o filho! Atordoado, fechou a janella, a que já era
difficil estar, pela violencia da ventania.

Em baixo, no botequim, o primo deu-lhe animo, e, repetindo a prophecia
do capitão do porto, affirmou-lhe que o José, d’alli a meia duzia de
horas, lhe metteria os tampos dentro com um abraço.

--Sabes que mais? Vae dormir, que é a maneira de não sentires passar o
tempo.

Como achou boa a lembrança, o velho deitou-se para cima de um monte de
saccos de milho, e adormeceu pouco depois, a rezar um padre nosso pelo
José e por todos os que andavam sobre as aguas do mar.

       *       *       *       *       *

Por volta da meia noite, acordou estremunhado.

--Está aqui, está na areia! dizia uma voz, que elle não conheceu. Ande,
ó tiosinho, dê-me um copo de aguardente da terra, para me consolar o
interior! Bem vê que estou como um pinto.

Assomou á porta e perguntou ao barqueiro, que assim falava:

--A _Alegria do Mar_ é que está em perigo?

--Bem visto que sim! Aquella já fez a sua ultima viagem. Está aqui,
está feita em estilhas.

O Manuel João desatou a correr pela porta fóra, como um doido, e pela
primeira travessa que topou á mão direita, arremetteu para o lado do
mar.

No sitio aonde foi ter, as vagas não batiam na muralha, porque lhes
quebrava a furia um cómoro de areia.

Ninguem! Nenhum som de voz humana, atravez dos bramidos do temporal!
Não viriam accudir áquelles desgraçados?... Sim! Ao pé da alfandega,
lampejou um clarão avermelhado. Archotes, que marcavam ao navio em
perigo o sitio melhor para encalhar.

--Mas a _Alegria do Mar_ obedeceria ainda ao governo?...

N’isto surgiram ao pé do velho uns vultos, que nem deram por elle, tão
entretidos estavam em observar o ancoradouro.

--Aqui é que ella vem dar!

--_Eh, home!_ Como o sabes?

--Verás! Mas queira Deus que d’esta vez não seja, como quando se perdeu
a baleeira americana. Afogou-se teu irmão e não apanhámos quasi nada.

--Nanja agora. Vem muita familia com dinheiro.

--Ah, _seus_ maraus! _Seus_ grandes ladrões! bradou furioso o Manuel
João crescendo para os _tarraços_, que fugiram desconcertados e foram
ajustar para outra parte os seus planos de rapinagem, infalliveis em
occasião de naufragio.

A sombra escura do navio estava já a curta distancia, pelo garrar
constante da amarração. Sobre o céu acinzentado, que o luar velado de
nuvens allumiava debilmente, os mastros desenhavam linhas negras mal
definidas, e no de traquete brilhava ainda o pharol, fazendo lembrar
pupilla de moribundo a espreitar o golpe de misericordia.

Mas nem se podia olhar para o navio, que a areia levantada da praia
pela ventania, chicoteava como ponta de azorrague, e cegava a quantos
assistiam á catastrophe.

[Ilustração]

Entretanto a barca vinha caminhando lugubremente para a costa, onde
havia de espedaçar-se. Por entre os lamentos da tempestade, mais
horriveis que os uivos de uma alcateia de lobos famintos, já se ouvia
o gemer da mastreação. Despidos das vergas pelo vendaval, os mastros
ainda se conservavam em toda a sua altura, inteiriçados, erectos como
braços chamando por soccorro afflictivamente.

O velho, agachado por traz do parapeito da rua do Mar, foi caminhando
para o Castello Novo, ao perceber que o navio derivava para o nascente.

N’isto sentiu-se uma pancada surda, outra e outra: a _Alegria do
Mar_ tinha dado no fundo. Em volta do velho já remoinhavam muitos
homens, attonitos, anhelantes, por verem que não podiam valer áquelles
desgraçados, que estavam alli tão perto, ao alcance da voz, e que
dentro em pouco seriam victimas da morte cruel, que havia umas pouca de
horas os estava chamando, attrahindo, hypnotisando.

--Só Deus lhes póde acudir! disse alguem ao pé d’elle.

--Quem ha de valer-lhe é o Senhor Santo Christo da Praia! pensou
o Manoel João, cheio de esperança. Pois se aquelle Senhor é tão
milagroso, que, levado em procissão ha cem annos, quando a terra tremeu
uma semana a fio, logo que chegou ao pé da costa fez parar a corrente
de fogo, que rebentara no Pico e vinha atravessando o canal, melhor
podia agora com certeza... Até lhe custava menos!

E, de joelhos, prometteu-lhe uma festa luzida, como aquella que lhe faz
todos os annos a camara da _villa_. Elle por si não aguentava com
os gastos, mas lá estava o collete do seu rapaz... Umas quatro ou cinco
aguias chegariam para a funcção.

       *       *       *       *       *

O temporal estava no seu auge. A bahia, coberta litteralmente de
espuma, tinha o aspecto de um immenso lençol--livida e sinistra
mortalha.

Tombado sobre estibordo, o navio debruçava a mastreação para o lado da
terra, e, ainda mal cravado na areia, estremecia convulsivamente ás
furiosas investidas do oceano.

As ondas, batendo em cheio no costado, repuxavam a enorme altura, e
despenhavam-se em catadupa sobre o convez. Bastaram poucas arremettidas
para quebrar os mastros, sem todavia os separar completamente do casco.

N’este comenos viram-se distinctamente, sobre o fundo cinzento do
céu, tres vultos humanos agarrados á amurada do lado da pôpa. Ainda
escabujavam na lucta suprema da morte.

--Fiquem a bordo! gritou-lhes de terra um homem, alongando as syllabas
e fazendo porta-voz com ambas as mãos.

--A bordo! Podem lá resistir áquelles mares! objectou o patrão-mór,
embora calculasse que seria irremessivelmente envolvido e tragado pela
resaca, o temerario que pretendesse ganhar a costa, nadando.

--Ahi veem elles! Ahi veem elles! bradou subitamente uma voz e
repetiram logo muitas outras.

--Aproveitaram-se dos mastros! Salvam-se com certeza!

Então os espectadores da tragedia olvidaram o perigo e, atravez de
uma aberta da muralha, correram para o areal. Tres ou quatro mais
affoutos entraram pela agua dentro a buscar os naufragos, que vinham
engatinhando ao longo dos mastros, arriscados, uns e outros, a que os
esmagassem aquelles madeiros, já meio partidos e desconjuntados, mas
que ainda se erguiam e baixavam pesadamente ao embate dos vagalhões.

Afinal conseguiram salvar-se tres naufragos, e foram levados em braços
para uma loja perto d’alli.

O velho furou por entre os curiosos, que se apinhavam á porta, e
achou-se no interior da casa.

Mas era difficil ver qualquer coisa, á luz dubia espalhada lá dentro
por uma candeia. Por fim conheceu que dois d’elles eram já de bastante
edade e que sómente o terceiro... Estava deitado sobre uma enxerga, com
os olhos fechados, o parecer quasi cadaverico, os cabellos collados
á testa. Mas a estatura era a mesma do José... E as feições, a côr,
tudo!... Era elle, por força!... Só se Deus Nosso Senhor não fosse de
bondade e misericordia, deixaria que o pobre rapaz...

Examinou melhor o infeliz, que já ia recuperando os sentidos.

--Ah! Se elle abrisse os olhos!...

Faltavam poucos instantes.

Mas quasi teve medo de que a certeza viesse já tão proxima.

--Quem sabia lá se?...

N’esta occasião o naufrago disse umas palavras, que elle não entendeu.

--É americano, notou alguem, ouvindo a phrase dita em inglez, mas com a
pronuncia nasal caracteristica dos cidadãos dos Estados-Unidos.

O Manoel João ficou perplexo.

Sim, o seu José tambem devia saber falar americano... Mas em tal
occasião falaria outra lingua, que não fosse aquella em que a mãe o
tinha ensinado a rezar? Só se não estava bom da cabeça!

N’isto abriu os olhos o naufrago.

--Não era o José!

O velho sahiu d’ali para fóra cambaleando, e parou no sitio onde devia
ter estado sempre, onde podia salvar o filho. Outros certamente o
haviam salvo, em logar d’elle.

--Não! Ninguem mais tinha escapado.

A barca, durante aquelle tempo, acabara de esmigalhar-se. No
principio tinha abalos convulsivos, erguia-se para tornar a cahir
desamparadamente, luctava, estrebuchava, como se o instincto de
conservação lhe déra forças contra o gigante. E o mar tambem parecia
exasperado por aquella resistencia. Sacudia a pobre _Alegria do
Mar_ com os impetuosos estremeções da féra, que abócca a presa e a
abana e estracinha, para reduzil-a por uma vez á immobilidade da morte.

Ao cabo a tempestade foi amainando, e na praia ficavam dois ilhotes
cravados na areia, a curta distancia um do outro--a proa e a pôpa do
navio, com o tombadilho empinado, quasi a prumo. No da proa ainda
existia um pedaço da borda, a que tinham estado aferrados os ultimos
naufragos, e d’onde os levara a um e um o pavoroso remoinhar das vagas.

Aquelles dois fragmentos informes eram quanto restava da _Alegria
do Mar_, que poucas horas mais cedo, as vélas cheias de vento,
cortava ligeira as aguas do Atlantico; os tres naufragos, os unicos
sobreviventes dos quarenta que alli vinham, todos valentes campeões da
lucta pela vida, alguns a procurarem, com a vista no horisonte, a terra
da patria e antegosando as sonhadas alegrias do regresso.

       *       *       *       *       *

O Manuel João, perdida a ultima esperança, voltou para os Cedros no
outro dia á tarde, mais arrastando-se do que andando por aquella
estrada, que lhe pareceu dez vezes mais comprida.

Logo que a Andreza o avistou, saiu-lhe ao encontro. Já sabia do
naufragio, mas cuidava que o filho tivesse escapado.

Dissera-lh’o por dó um visinho, que acabava de voltar da cidade.

--Onde está o nosso filho, Manoel João? Onde está o nosso filho?

--Ai, mulher, a gente já não tem filho! redarguiu o marido, cahindo
sentado no poial da porta.

--Tu estás doido, homem! gritou a Andreza, aos soluços.

--Quem o deu tambem o podia tirar, obtemperou elle, apontando para o
ceo.

--Dizes isso porque não és mãe! bradou a velha, e fez um gesto de
ameaça para o ente sobrehumano, que o marido acabava de invocar.

--Então, mulher não mettas a alma no inferno! aconselhou o Manoel João,
levantando-se e cingindo-a com os braços. Depois lembrou-se de coisa
muito importante, relanceou a vista em redor, para certificar-se de que
ninguem mais ficaria sabendo aquella nova desgraça, e disse a meia voz:

--Sabes? Como não se encontrou o corpo do nosso José, lá se foi tambem
o collete das aguias!

--O collete das aguias! Seja tudo pelo amor de Deus!

E choraram outra vez, com mais força ainda.


[Ilustração]




[Ilustração]


                              A Lampreia


O jardim, que cingia a casa de Lili, era dividido em grandes
quadrilateros, por alamedas de camelias arborescentes. Na primavera,
as plantas dos canteiros cobriam-se d’um luxuoso manto diversamente
matisado, e nas comas das roseiras do Japão os canarios e toutinegras
davam, desde a madrugada até ao entardecer, concertos infernaes.

Foi n’uma das alamedas que vi a pequenina pela primeira vez. Sentada
n’um banco, parecia indifferente aos esplendores que a cercavam, e
só tratava de segurar de encontro ao peito um grande gato branco,
enlançando-o com os braços por baixo das pernas deanteiras. O animal
supportava pachorrentamente aquella posição, incommoda na apparencia,
e tinha o resto do corpo no collo da creança, com o grande ventre,
forrado de pello macio, pendente n’uma dobra flacida, e os olhos
piscos, ante o brilho intenso de um raio de sol, que, perfurando a
folhagem, vinha pôr uma nodoa clara no peito de Lili.

Esta, quando o pae, o meu amigo Fernando lhe disse quem eu era, apenas
me concedeu um breve olhar obliquo, e estendeu com pouca vontade a face
ao beijo que lhe dei. De improviso o gato, ou porque sentisse mais
forte o abraço, ou porque se assustasse com a presença de um estranho,
escapou-se-lhe das mãos por um movimento rapido, e, depois de longo
espreguiçamento, foi enroscar-se voluptuosamente sobre um monte de
folhas seccas, em que o sol batia de chapa.

A pequenina rompeu n’um grande choro, e mostrou ao pae um dedinho
rosado, onde começavam a gotejar alguns rubis de sangue.

--Um ache, papá; o Moleque fez-me um ache!

Fernando ia applicar ao gato um severo correctivo com uma varinha
que tinha na mão, porém Lili, adivinhando-lhe as intenções, chupou
rapidamente o sangue, e disse muito alegre:

--Olhe, papá, não foi nada. Já passou!

Assim é que ella gostava do gato branco.

N’um domingo, Fernando convidou-me para jantar. Festejava-se a chegada,
a S. Miguel, de um nosso amigo commum. Andavamos os tres a passeiar
pelo jardim e praticando uma soffrivel devastação nas camelias, eis que
ao passarmos em frente da sala de jantar, situada no rez do chão, fomos
detidos pelo dono da casa, que nos fez signal para que olhassemos lá
para dentro, atravez da porta de vidraça.

Ainda pude ver a Lili, descendo sorrateiramente de uma cadeira
encostada ao aparador. Talvez nos presentisse.

--Tem dois defeitos aquella pequena, disse-nos o pae. É gulosa e ...
nem sempre fala verdade.

Continuámos no passeio, tomando eu a defesa da accusada, com o calor
que as causas más inspiram quasi sempre aos advogados.

D’alli a pouco a campainha tocava para o jantar.

Fiquei defronte da Lili. Reparei-lhe na physionomia e notei uma certa
inquietação: os olhos seguiam, a curtos intervallos, a direcção do
aparador, onde luzia a baixella de prata.

--O que tanto lhe attrae a attenção, pensava eu, o que a fascina, são
de certo as gulodices, que resguardadas sob aquelles guardanapos de
linho finissimo, encherão os pratos collocados sobre a pedra do movel.

Chega-se ao _dessert_.

--Sabem que vou ter o gosto de apresentar-lhes um antigo conhecimento?
disse o Fernando.

--Nosso? perguntei.

--Sim, meu Luiz. Já estás nos Açores ha dois annos; ha dois annos,
portanto, que não vês um dos maiores attractivos da capital, isto é,
das montras dos confeiteiros lisboetas--uma lampreia de ovos! Fel-a
a minha cosinheira, que é alfacinha. Francisco, descobre esse prato e
traze-o para a mesa.

O criado fez o que lhe mandaram, e ainda mais, pois que, ao ver o
prato, abriu muito os olhos e a bocca. Não era preciso ter lido a
_Expressão das emoções_ de Darwin, para se conhecer que o homem
estava no auge do espanto.

E não era para menos.

A lampreia lá se achava, muito enroscada, mas faltava-lhe, vimol-o
todos, faltava-lhe a cabeça! Quem lh’a decepára, tinha deixado
vestigios do attentado á borda do prato, n’uns fios de ovos e tiras
de geleia de fructa, que tomavam, ante a gravidade da situação, a
apparencia de um rasto de sangue. Horrivel permenor: um dos olhos da
victima--uma ginja em doce--jazia a um lado, viuvo da orbita!

Lili empallideceu, e deixou cahir da mão a colher que empunhava,
prompta para a lucta da sobremeza, mas ia pegar-lhe outra vez, quando o
pae, deveras zangado, lhe perguntou quem tinha feito aquillo á lampreia.

--Eu não sei, papae.

--Sabes, sim, foste tu mesma!

Lili voltou os olhos para a mãe, e não achou piedade.

--A menina não foi, não senhor, murmurou quasi choramigando. Olhe,
papae, quando eu vim ás tres horas á casa de jantar, andava em cima do
aparador o gato... o Moleque... Foi elle!

O pae reprimiu um sorriso.

--Ah! Foi o Moleque? Pois o Moleque pagará as custas, quando nos
levantarmos da mesa.

A Lili nem sequer provou dos doces e pudins.

Como não estaria aquelle pequenino coração!

Depois do café, servido na sala contigua, Fernando mandou ao creado que
fosse buscar o Moleque, e disse-lhe por fim algumas palavras em voz
baixa.

Decididamente a situação tomava uma gravidade excepcional. Lili
chegou-se á mãe com receio, e ficou a olhar para todos, cheia de
desconfiança.

--Meus senhores, disse-nos o dono da casa, fitando muito a filha. Vamos
ser juizes n’um processo importante. Luiza accusa o Moleque de um
roubo, que é ao mesmo tempo um abuso de confiança... Ah...! Ahi chega o
criminoso.

O gato acabava effectivamente de apparecer ao collo do creado. Se a
Lili se mostrava desconfiada, o Moleque apparentava a maior placidez.
Após o creado, vinha a cosinheira, uma rapariga alta, robusta e mal
encarada; trazia a mão direita escondida atraz das costas.

--Temos, portanto, continuou Fernando, que o Moleque não só praticou um
roubo com abuso de confiança, mas, o que é peior, decepou a cabeça da
lampreia. Vamos julgal-o. Queiram sentar-se.

Emquanto iamos tomando logares, disse-nos elle algumas palavras em
francez. Puzemo-nos ainda mais carrancudos.

A creança via tudo isto com olhares attonitos.

--Dize-me outra vez, ordenou-lhe o pae, que não foste tu que roubaste
a lampreia! Não?... Então foi o Moleque?

--Foi ... balbuciou a pequenina.

--A cara é de reu, continuou Fernando, apontando para o gato, que
Francisco segurava pelas quatro patas. Os dignos jurados entendem que o
Moleque deve soffrer a pena de talião?

--Sim, respondemos com voz soturna.

--Condemno, pois, o Moleque a perder a vida por degolação, sentenceou
Fernando.

--O quê, papae? perguntou a Lili afflicta e sem perceber bem.

--Ó Maria, traz o que o Francisco lhe recommendou?

--Está aqui, disse a cosinheira, passando para a frente a mão direita e
apresentando uma grande faca de cosinha, afiada e luzidia.

--Pois então, corte o pescoço ao gato!

Ainda não esqueci o grito da creança. N’um choro fortissimo correu para
o creado, e arrancou-lhe das mãos o gato, que fugiu espavorido. Depois,
approximando-se do pae, disse-lhe:

--Fui eu, papae, fui eu que comi a lampreia. Mande cortar a cabeça da
menina!

Nós, que já estavamos a rir, sentimos os olhos marejados de lagrimas.»

       *       *       *       *       *

Isto foi ha tres annos.

Lili, que está hoje uma senhorinha, chegou com os paes, no mez passado,
a Lisboa.

O amigo de Fernando, que me contou a historia, foi logo visital-os.

Fernando, ao apresentar a filha, perguntou-lhe sorrindo:

--Lembras-te do caso da lampreia? Desde então, a Lili só mentiu uma vez
... para salvar o Moleque de um castigo merecido.


[Ilustração]




[Ilustração]


                               Mau Homem


Quando o Casimiro passava nas ruas, bamboleando-se nas pernas compridas
e em fórma de parenthesis, as mulheres da villa lançavam-lhe das
portas olhadelas de soslaio, e mais de uma, tendo cuspido para o lado,
resmungava phrases indignadas.

E apenas elle se afastava o bastante para não poder ouvil-as, as
senhoras visinhas, tomando o para seu thema, davam largas á loquacidade.

--Então! Já se viu um marau egual?

--Tal desgraça! Parece mesmo que tem coisa ruim comsigo. Mau homem, por
força!

Era até impossivel que não tivesse alguma morte ás costas. Quem sabia
lá?... Talvez tivesse. A Rosa Moniz chegou uma vez a lembrar que
podia muito bem ser elle, e não o Antonio Garcia, quem tinha morto
o velho, que appareceu com a cabeça partida ao pé do forte de Santa
Catharina. Ninguem vira o Antonio fazer mal ao velho, e lá por se
lhe encontrar em casa uma camisa suja de sangue, não se devia jurar
que fosse elle o criminoso. Coitado! Se estaria a pagar as culpas de
outro?... Chamassem o Casimiro á justiça e veriam quantas testemunhas
appareceriam a accusal-o. Mas apezar d’isto--ou talvez por isto mesmo,
diziam alguns--a fortuna favorecia-o constantemente. É que nunca se
tinha visto ninguem mais feliz em negocio. Não obstante a má fama do
dono, não era só a casa de comida posta pelo Casimiro ao pé da praça,
que estava sempre cheia de freguezes; acontecia o mesmo á lojinha de
fazendas, da ilharga. Admirava que houvesse na villa tanto dinheiro
para se gastar. Verdade é que gente de fóra, de Agualva e da villa de
S. Sebastião, antes queria alli comprar, do que ir á cidade, ás lojas,
da rua da Sé, porque o Casimiro vendia tão barato como o Evangelista ou
o Bento Fartura. E tinha então um geito para aviar os freguezes! Quem
lhe entrasse na loja, sempre havia de comprar alguma coisa, o ponto era
ter dinheiro na algibeira. Ninguem melhor do que elle sabia entender-se
com qualquer comprador. Ora, por uma coincidencia que excitava pasmo
geral, aquella prosperidade tinha começado exactamente desde que a
Luiza viera de S. Miguel juntar-se com o marido e levar aquella vida de
negra.

--Vejam lá o que é a justiça de Deus, em que fala tanto a padralhada!
commentava um dia o escrivão Salles, socialista e livre pensador.

       *       *       *       *       *

A opinião das mulheres, valha a verdade, não encontrava echo na maioria
dos homens. Só um tinha tal raiva ao Casimiro, que se o visse a
afogar-se e lhe bastasse extender a mão para o salvar, ficaria quedo.
Podera! Se depois de o Casimiro pôr a loja, o José Antonio já não
vendia quasi nada, apezar de ter baixado os preços de tudo! Uma noite,
por volta das dez horas, passando elle pela porta do seu inimigo, ouviu
a Luiza a chorar. Pôz-se á escuta. A mulher começou a accusar o marido
de não se importar com ella, de estar com a Margarida, tanto que muitas
vezes depois de fecharem o estabelecimento, elle saía de casa e só
voltava tarde, á noite, a horas mortas.

O Casimiro não respondia nada.

O José Antonio espreitou por uma fisga da porta e viu-o a arrumar as
fazendas n’uma prateleira.

A Luiza continuou:

--Ah! Tu não respondes! É que não tens que responder! Pois eu um dia
pego em mim, e vou a casa d’aquella ganhoa...

O Casimiro atirou ao chão com força uma peça de chita, que tinha na
mão, e voltando-se para a mulher, gritou-lhe:

--Isso é que é falar! Olha que eu!...

--Tu o quê! Não me mettes medo com essa cara de calhau. Talvez queiras
mandar nas minhas falas?

A ranger os dentes, deu dois passos para a mulher.

--Tu estás suffocando commigo, mas eu...

--Embatucaste outra vez, porque és um albardeiro, um corsario!

--Ah! Mulher, não me botes a longe, que eu perco-me por via de ti.

--Não me deites esses olhos, que eu não me faço amarella. Amarella ha
de ficar a Margarida, quando eu...

O Casimiro não se conteve mais tempo e agarrou a mulher por um braço.

--Anda, anda lá! Olha que eu pego a gritar aqui d’el-rei! ameaçou ella.

Ainda não tinha acabado estas palavras, quando a mão do marido,
batendo-lhe no alto das costas, a atirou de bruços, para o chão.

--Aqui d’el-rei! Aqui d’el-rei! Quem m’acode!

O José Antonio não quiz ouvir mais nada e foi de corrida buscar o
administrador do concelho, que estava alli perto, na Assembléa, a jogar
a sua costumada partida de voltarete.

Apenas conheceu a voz da auctoridade, o Casimiro abriu a porta e deu-se
á prisão sem resistir.

       *       *       *       *       *

No dia seguinte, ás dez horas, foi a perguntas, á casa da audiencia.

O juiz, velho de cabello completamente branco e falar pausado, depois
de ouvil-o, censurou-lhe, com azedume mas sem desabrimento, a baixeza
por elle praticada, em abusar da força para bater n’uma mulher, que se
lhe entregara esperando generosidade e protecção, e não violencia e
tyrannia.

O preso escutou silenciosamente as palavras do juiz. A principio
conservou as sobrancelhas cerradas, e o olhar fixo n’um ponto do
sobrado, como se nenhuma attenção prestasse ao que lhe estavam dizendo.
Afinal, porém, as feições distenderam-se-lhe, um tremor convulsivo
começou de agital-o, e ao mesmo tempo que do peito lhe irrompiam os
soluços, foram-lhe as lagrimas rolando pela cara.

--Bem! Bem! disse o juiz. Não se afflija. Pelo que vejo está
arrependido do que fez...

Interrompendo-o com um gesto, e suffocando dentro em si o ultimo
soluço, o Casimiro começou a falar, com voz pouco perceptivel emquanto
o não arrastou o calor da narração. Se o juiz o tratasse mal, não lhe
diria nada, ou seria até capaz de uma violencia. Todavia a maneira
por que o magistrado se lhe dirigira, os conselhos que lhe dera mais
pezaroso que severo, tudo o fôra vencendo gradualmente. Pareceu-lhe que
se o tio João Furtado--o pae do Casimiro, em vez de estar enterrado no
cemiterio de Villa Franca ha muitos annos, lhe apparecesse n’aquella
occasião, usaria das mesmas falas, mas não tão bem feitas como as do
sr. juiz. Para este não queria portanto o marido da Luiza parecer um
mau homem.

       *       *       *       *       *

Contou-lhe a sua vida toda, e o juiz quando elle acabou de falar,
apertou-lhe a mão commovido, e mandou-o embora, recommendando-lhe
prudencia.

As mulheres da villa quando souberam que o Casimiro estava solto e que
não passaria trabalhos, vociferaram que tão bom era o juiz como elle.
Talvez dissessem isto, porque não ouviram o Casimiro.

       *       *       *       *       *

Contou ao magistrado a sua vida: como tinha casado com a Luiza, que
n’esse tempo era a bem dizer uma pequenota, mas que, talvez sem saber,
o puzera como doido. Nem obra de feitiçaria! Estava ainda a vêl-a, no
dia em que o tio João a foi pedir em companhia do filho, responder
muito envergonhada e como se tivesse medo:

--Pois elle vae, senhor! Se a minha mãe leva isto em gosto, eu tambem
levo. Não digo menos de isso.

Os primeiros tempos de casados, viveram-os como se não fossem d’este
mundo. A bem dizer, aquillo era até felicidade de mais. Elle trabalhava
sem descanço o dia inteiro, fazia o seu negocio e á tarde, quando
chegava a casa, lá o estava esperando a Luiza com a ceia prompta, e
extendia ao marido os braços com tanto carinho!

A desgraça foi elle ter de ir ás Furnas por causa de um negocio, que
por signal não lhe rendeu nada.

Como é que a Luiza se perdeu? Como se deixou ir pelas falas do menino
Diogo, filho d’aquelle sujeito que tem uma quinta muito bonita, mesmo á
entrada da villa de Lagoa, á mão direita de quem vae do lado da cidade?

O marido só muito depois veiu a saber tudo.

Uma visinha, a Maria do Jacintho, é que a tinha desinquietado, e uma
noite em que a Luiza foi ceiar com ella, deram-lhe uma gota de vinho a
mais...

--Ah! Que se eu tivesse sabido, matava logo aquella corsaria. Se queria
perder alguem, perdesse as filhas... Mas lá essas não precisaram de que
a mãe as ajudasse!

E o Casimiro, depois d’esta phrase, começou a falar outra vez
vagarosamente, quasi a custo.

Nem sabia dizer ao certo como chegou a descobrir tudo.

Ah! Tinham-lh’o dito. Quando entrou em casa, perguntou-o de repente á
mulher. A Luiza, colhida improvisamente, poz-se a gaguejar, mais branca
do que a cal da parede.

O marido deitou-lhe as mãos ao pescoço e matava-a, matava-a com
certeza, se as visinhas, que acudiram á bulha, não lh’a arrancassem das
mãos.

A pobrinha parecia morta. Chegou-se a pensar que elle a tinha afogado.
Depois foi voltando a si, olhou para todos com os olhos muito abertos e
começou a rir, a rir de tal modo, que uma das visinhas fugiu espavorida
pela porta fóra e as mais sentiram arrepios de frio por todo o corpo.

A Luiza não estava boa de cabeça e poz-se a dizer que tinha morrido,
que o seu anjo da guarda a levava pelo ceo dentro, mas que os outros
anjos fugiam d’ella e não queriam vel-a sequer, porque ... porque... E
desatava a rir e a chorar ao mesmo tempo, rasgando-se, atirando-se ao
chão, quando a não seguravam com força, com muita força.

Esteve assim tres dias. O Casimiro não comeu nem dormiu durante
esse tempo. Ao quarto dia mandou-a para o hospital. Na vespera, de
madrugada, quando a Luiza socegava, elle esteve, vae não vae, a
matal-a, sem força para resistir á tentação. Se a tivesse mais tempo ao
pé de si, era capaz de fazer essa loucura.

Desmanchou a casa e no primeiro vapor foi para a Terceira.

Em Angra não fez nada. Quiz tentar fortuna na Villa da Praia e não se
arrependeu da lembrança. O juiz bem sabia como elle tinha começado o
seu negocio.

       *       *       *       *       *

Quando um dia o Casimiro estava só na loja, entrou-lhe pela porta
dentro uma mulher embrulhada n’uma capa e atirou-se-lhe aos pés,
chorando muito e dizendo:

--Perdoa-me, meu rico marido, perdoa-me!

O primeiro impeto do Casimiro foi agarrar n’ella e atiral-a para a rua,
como um animal ruim. Mas quando, ao crescer para a Luiza, a encarou,
pareceu-lhe que estava a sonhar.

Não era a mesma. Quer dizer, era a mesma, mas tão differente!... O
cabello tinham-lh’o cortado no hospital, para lhe pôrem neve na cabeça.
Os olhos sumiam-se no fundo d’umas covas negras como carvão. As faces,
d’antes tão córadas, e o corpo tão cheio antigamente, estavam só com a
pelle e o osso.

Como aquella desgraçada não tinha padecido!

Sem se levantar do chão, agarrada ás pernas do Casimiro, dizia-lhe no
meio de gritos entrecortados:

--Meu rico marido, não me deites d’aqui para fóra. Por alma de teu pae!

Elle fitou-a muito tempo, poz-lhe a mão sobre a cabeça e disse-lhe:

--A benção de Deus te cubra. Bem! Fica p’ra ahi.

No começo a Luiza servia o marido como uma escrava. Nem a Mimosa, a
perdigueira, era mais humilde. Mas ao fim de tempo, quiz recuperar o
seu antigo logar, e desconfiada de que o Casimiro fazia pouco d’ella
por ter alguma outra mulher, queixava-se, accusava-o.

Muitas vezes elle não lhe dava resposta, mas outras desesperava-se, e
como tinha genio, levantava a mão e...

--Que quer V. S.^a, sr. juiz? concluiu o desgraçado. Eu bem lh’o tenho
dito, mas a Luiza ainda não me entendeu: o vidro que se partiu uma vez,
por muita massa que lhe ponham, nunca mais torna a ser o que era.


[Ilustração]




[Ilustração]




                         A Licença Do Domingo


HAVIA já tres quartos de hora que se distribuira o rancho da tarde, no
quartel de S. João em Ponta Delgada.

Os piquetes, que tinham ído levar a comida ás guardas exteriores,
vinham já de volta e encontravam-se de vez em quando com os soldados
que desciam a rua, aos grupos de dois e tres, alguns de mãos dadas
pelos dedos minimos, lançando para as raparigas, que estavam pelas
portas e janellas, uns olhares provocadores. Se estes galanteios
destoavam grandemente da apparencia pouco seductora dos D. Juans de
fardeta, nem sempre se perdiam.

Dentro do quartel, nas casernas pequenas e abafadiças, tinham ficado
apenas as praças de serviço.

Na da segunda companhia, em redor de uma cama onde está sentado o cabo
José, ha ainda assim grande ajuntamento, e estrugem a espaços enormes
gargalhadas, que interrompem momentaneamente a cantiga, origem da
hilaridade, e chegam até a cobrir os sons da viola que o cabo, um heroe
dos _charambas_, dedilha com uma pericia incomparavel.

Mas que terá o Roque, o 72, que, sem attender aos descantes, anda a
passeiar de um para outro lado, muito pensativo?

É por força cousa séria.

Oh! Mas o rapaz tomou certamente uma resolução, porque abriu a
caixa da roupa, tirou para fóra a fardeta, e vestiu-a, abotoando-se
cuidadosamente. Depois ageitou o bonnet na cabeça e caminhou para a
porta.

--Vaes passeiar, ó Roque? perguntou-lhe o plantão?

--Tu sabes se o _nosso primeiro_ está no seu quarto?

--Saiu ha migalhinha. Foi com o nosso sargento José Luiz passeiar á
doca.

O 72 ficou de má catadura, e pareceu hesitar, mas, resolvendo-se, saiu
da caserna.

--Eh! _Home_, levas uma _cara de calhau_, disse-lhe ainda o
plantão.

No corredor que rodeia o claustro do antigo convento, o 72 encontrou o
impedido do capitão da segunda companhia.

--Ó Francisco, o teu patrão onde está?

--Alli.--E mostrou com o gesto o quarto da extremidade do
corredor.--Acabou ha um instantinho de jantar... Vão aqui dentro os
pratos vazios, disse o rapaz, enfiando o braço na aza de uma cesta que
trazia na mão.--Haja saude, ó Roque!

O outro foi caminhando para o logar que o impedido lhe indicara, mas
insensivelmente diminuiu o passo, e poz-se a coçar a cabeça, n’uma
grande irresolução.

A porta do quarto estava fechada. O 72 pegou com medo na aldrava e
deixou-a cair.

Passaram-se alguns segundos.

--Talvez já cá não esteja, ia o soldado dizer comsigo mesmo, visto não
obter resposta, quando ouviu tossir da parte de dentro.

Pegou outra vez na aldrava e bateu muito de leve.

--Que temos? perguntou uma voz encatarroada.

--V. S.^a dá licença, meu capitão?

--Entre quem é.

--Sou eu, meu capitão ... disse o 72, entrando e tirando o
_bonnet_ com um movimento rapido e desgeitoso, mal viu o official
de cabeça descoberta.

No quarto de inspecção, pequeno e acanhado, havia um forte cheiro a
comida e a fumo de tabaco.

O capitão, sentado n’uma cadeira de palhinha, tosca e despolida, tinha
os cotovellos encostados á mesa e lia um jornal de Ponta Delgada,
o _Echo Michaelense_, tomando a espaços longas fumaças de um
cachimbo de escuma, muito queimado.

Com os calcanhares unidos, os olhos um pouco esgazeados, os beiços n’um
ligeiro tremor, o soldado não se atrevia a falar.

--Que demonio queres tu? perguntou-lhe o capitão Saraiva, ao cabo de
algum tempo e sem interromper a leitura.

--Eu, meu capitão? Saiba V. S.^a que me custa muito vir incommodar a V.
S.^a...

--Mau! Despacha-te! Nunca vocês sabem dizer as cousas por claro. Que
diabo de gente, estes ilheus! E batendo com a mão sobre o jornal,
voltou a cabeça para o soldado, medindo-o com o olhar.

--Elle é verdade meu capitão, mas é que ás vezes _assuccede_ a um
_home_ cada uma...

--Ou te explicas, ou marchas n’um prompto para a caserna! disse o
capitão, com voz irritada. Levantou-se, poz o bonnet na cabeça, puxou o
collete para a cintura, mettendo para baixo do cóz das calças a dobra
da camisa que estava saliente, e abotoou o raglan, inferiormente ao
qual appareciam as borlas da banda, distinctivo usado no batalhão pelos
officiaes de serviço.

--Saiba V. S.^a, meu capitão--começou o 72, dando com as mãos muitas
voltas ao bonnet,--que esta tarde, antes do rancho, eu tinha ido alli
abaixo, ao largo da Matriz...

--Que tenho eu com isso?

--E vae d’ahi, topei com a Rosa, uma rapariga da minha freguezia, e ...
o que me ha de ella dizer? Que hontem á noitinha, quando meu pae ia
recolhendo ás Féteiras...

--Tu és das Féteiras? Aquelle logar que fica no caminho para as Sete
Cidades?

--Saiba V. S.^a que sim... Ao descer uma canadinha, escorregou dos
pés e foi-se abaixo, batendo com o corpo nos calhaus. O pobre do
_hóme_ é velho e d’ahi a quéda deu-lhe uma volta ao interior.
Parece que está mesmo a decidir.

Estas ultimas palavras foram acompanhadas por um choro meio suffocado.

--Bem! E que queres tu então? perguntou o official, com menos rispidez.

--Se V. S.^a me desse licença, eu pegava em mim e ia vêl-o.

--Ás Féteiras? Tira o cavallo da chuva! Porque não pediste a licença
antes do toque da ordem? Não sabes que o batalhão tem pouca força, e
que é preciso fazer escolha nas praças que pedem para ir no domingo á
terra?

--Saiba V. S.^a que sei, mas áquella hora ainda não me _haveram_
dito nada, e como faz hoje oito dias que eu tive licença...

--Sabias que não a apanhávas.

--Mas agora, se V. S.^a me fizesse essa esmola... O pobre do velho
está, vae não vae, a ir para Nosso Senhor, e eu sem lhe poder valer!...
A voz do soldado, entrecortada novamente pelos soluços, pronunciou mais
algumas palavras inintelligiveis.

O capitão, meio zangado, meio condoido, passeiava pelo quarto, com o
cachimbo a um canto da bocca, e as mãos mettidas nos amplos bolsos das
calças de cutim. O 72, cabisbaixo, seguia-lhe os movimentos com um
olhar obliquo e prescrutador.

--Dar-se-ha o caso de que tu estejas a embaçar-me, grande maroto?
perguntou de subito o official, fitando muito o soldado.

--Eu! disse este, cheio de susto. Se minto, mais negro seja que o
carvão!

--Eu sei lá! Vocês todos são frescos. Quem me déra para cá os meus
trinta e cinco annos de serviço, para me livrar da maldita massada de
atural-os! Mentiste ou não mentiste?

--Isto é que se chama! Pergunte o meu capitão á Rosa.

--Teu pae, então, está a morrer?

--A modos que sim, senhor. A dôr de dentro não o larga. Se não foi isto
o que a Rosa me disse, abram-me a cabeça com um calhau!

O soldado continuava a praguejar, em quanto o capitão, sem interromper
o passeio, se recordava do que lhe tinha acontecido, havia já um bom
par de annos, estando elle no Porto, em sargento do 18. Chegou-lhe de
Braga uma carta, participando-lhe que a mãe se achava em perigo de
vida. Pediu licença immediatamente, mas como a ordem tardasse em vir do
quartel general, quando chegou a casa, já a sua _velhinha_ estava
enterrada.

--Pode acontecer o mesmo a este pobre diabo, pensava o capitão. Por
fim, decidindo-se, parou, tirou o cachimbo da bocca e disse com muita
intimativa ao soldado:

--Pois muito bem! Vocemecê vae hoje para a sua terra... É verdade! Não
entras de serviço amanhã?

--Entro de fachina, mas o 12, que é meu camarada e _está de nada_,
fica por mim, se V. S.^a der licença.

--N’esse caso vae e volta ámanhã á noite, antes do toque.

A cara do 72 alegrou-se, sem comtudo se desannuviar completamente.

--Se V. S.^a me deixasse, eu voltava na segunda feira.

--É isto! Querem logo tudo! Bom! Voltas depois de amanhã, antes do
rancho. Serve-te?

[Ilustração]

--Seja pela sua saude, meu capitão! Nosso Senhor é que lhe ha de pagar
uma coisa d’estas.

--Vocês ainda me compromettem com o nosso commandante. Anda, põe-te ao
fresco!

O soldado rodou sobre os calcanhares, depois de fazer a continencia e
dirigiu-se para a porta. Ia já a sair, quando o capitão o chamou.

--Olha lá!

--Prompto, meu capitão!

--Tu... O official hesitou no que ia dizer, depois, lembrando-se de
outra cousa: Pediste licença ao primeiro sargento para vir falar-me!

--Saiba V. S.^a que elle saiu a passeio.

--Mau!... É verdade! Tu sabes se os ovos na tua terra estão baratos?

--Tiram-se a seis por um pataco.

--Pois traze-me umas tres duzias; cá na cidade só pesados a ouro...
Depois te dou o dinheiro.

--Não faz _moléste_, meu capitão.

--Bom, vae-te embora e dize ao sargento que tens licença.

--Sim, senhor, meu capitão.

E saiu.

O rosto brilhava-lhe de alegria. N’um abrir e fechar de olhos, foi
á caserna, despiu a fardeta, vestiu um casaco á paizana, que já
tinha antes de sentar praça e descalçou-se. D’ahi a pouco estava
fóra do quartel, e descia apressadamente a rua de S. João, receioso
de que ainda lhe tirassem a licença. Acompanhava-o a competente
_vardasquinha_, isto é, um valente bordão capaz de matar um homem.
Dez minutos mais tarde saía de Ponta Delgada, pelo lado occidental.

Quando deixou de encontrar gente, e viu diante de si a estrada quasi
deserta, bordejada por paredes caiadas de branco, algumas encimadas
pelas comas do arvoredo, parou por instantes, e poz-se a rir
maliciosamente:

--Tinha embaçado o capitão!

O pae estava tão doente, como elle. Pelo menos, ainda no ultimo domingo
o tinha deixado na freguezia, são e escorreito.

--Fiou-se no que eu lhe disse! pensou. Queira Deus não venha a
descobrir! O que me vale é não haver lá na companhia mais rapazes das
Féteiras.

Foi andando.

--Por fim de contas não era _coisa ruim_ o que tinha feito. No dia
seguinte festejava-se o Espirito Santo, na freguezia. Havia imperio e
bôdo. Faltar, era até um peccado! Se falasse verdade, não lhe davam
licença. Por ter dito que o pae adoecera, não o fazia ir para a cama. O
velho estava ainda esperto e rijo. Podia caír á vontade, que não morria
ás primeiras. Tinha hombros largos, pescoço curto, e a cara, embora um
pouco enrugada, estava sempre vermelha, que se podia ver. Mettia no
canto a muitos rapazes, o _ti Jaquim_.

O Roque avançava que era uma maravilha!

A estrada ia mudando de aspecto. Á direita extendiam-se largas campinas
escuras, subindo gradualmente até acabarem nas collinas, que limitam o
horisonte; á esquerda começa a ribanceira, cujo sopé vae terminar na
costa meridional de S. Miguel em declives abruptos. De cá de cima, em
alguns pontos, avistam-se grandes extensões da praia, que offerece ao
mar uma larga concavidade, onde se desenrola um vasto lençol de espuma.

Para o lado da cidade vinha um cantoneiro.

--Haja saude, tio João de _Mideiros_.

--Haja saude, Roque. Vaes a casa?

--Vou. Esteve lá em baixo hoje?

--Não. Quem para lá voltou agora, foi o sr. dr. Luiz, que já vinha a
caminho da cidade.

--Voltou? Para quê?

--Para acudir a um homem, que teve _uma coisa_ esta tarde. Veiu um
rapaz, o José, chamal-o de _galão_ ... montado, por signal, n’um
burro.

--E a quem deu o mal?

--Não sei. Não tive tempo de perguntar ao José, porque elle voltou
logo, mais o sr. doutor. Aquillo é que é a bondade em pessoa, o sr.
doutor! Fosse outro, que bem se importava!...

--Talvez o doente seja homem rico...

--Pode que seja. O que te sei dizer é que o sr. dr. Luiz pegou em si e
voltou para traz. Eu, como não era ouvido nem chamado no caso...

--Quem será?

--Haja saude, Roque.

--Haja saude, tio João de _Mideiros_.

Estugou o passo.

--Quem seria o individuo? Talvez algum velho. Certamente o sr. padre
Francisco!... Já no verão passado tinha tido um ar de _poplexia_.
Antes seja outro--pensava o Roque--senão como se ha de fazer amanhã a
festa do Senhor Espirito Santo?...

Ao lusco fusco chegava ás primeiras casas do logar, situadas no alto da
encosta, que vae descendo até á egreja. Olhou lá para baixo e sentiu a
mesma impressão, que tivera ao voltar á freguezia, depois de passar no
batalhão os primeiros quinze dias.

Durante aquellas duas semanas andou no quartel a chorar pelos cantos,
ralado de saudades. Saía para espairecer as magoas, corria as ruas da
cidade, parava espantado em frente das lojas, como de antes fazia,
quando vinha da freguezia comprar algum fato, ou por amor da festa do
senhor Santo Christo. Mas voltava para o quartel, ia para a caserna, e
amarrava-se a um canto, sem ao menos ouvir as cantigas tão engraçadas
do cabo José. A sua consolação, uma vez por outra, era tirar do bahu a
_charamela_, que tocava nas Féteiras, e repetir as modinhas que
lhe tinham ensinado por lá. Parecia-lhe então que a caserna, os cabides
de que pendiam os uniformes e as mochilas, os armeiros, e tudo o mais
ia desapparecendo, desapparecendo, e que via na sua frente a egreja da
freguezia, com a casa do _imperio_ do outro lado da estrada; quasi
que até ouvia o sino a tocar para a missa!... Uma vez, esteve quasi a
dar um grito, porque se lhe afigurou que a Maria do tio Thomaz passava
ao pé d’elle, por signal com um vestido de chita clara e um lenço de
seda muito bonito!...

Os outros soldados diziam que o rapaz dava em maluco.

Mas o que o fez pasmar, foi que na primeira vez em que esteve de
licença na terra, não sentiu a alegria que esperava.

De longe, tudo lhe parecia melhor.

Até a casa, tão pequena e pobresinha, que elle julgava preferivel á
caserna, afinal de contas era muito peior.

Um completo desengano.

Mas agora não se demorou a pensar n’isto, e foi descendo a passos
largos em direcção á casa do pae, que ficava mesmo á ilharga da egreja.

Quando passou pela venda, teve tentações de perguntar quem tinha
adoecido, mas não quiz demorar-se e foi andando para diante.

--Se estava _deserto_ por chegar!

A curta distancia de casa passou por elle o carro do doutor, produzindo
estalidos seccos no macadam da estrada.

Vinha do lado da egreja, do sitio onde morava o padre Francisco.

--Não é outro o doente, pensou o 72.

N’isto achou-se ao pé de casa.

Uma coisa lhe fez admiração.

--Que claridade era aquella que saía atravez da porta mal fechada? Não
podia ser da candeia, que a mãe accendia todas as noites.

E pareceu-lhe ouvir chorar!...

--Enganava-se por força.

Empurrou a porta, e logo estacou, boquiaberto, com um arrepio por todo
o corpo, os cabellos em pé.

No fundo, deitado sobre a cama e um pouco voltado para a porta, estava
um homem, já velho, o olhar envidraçado, a cara amarellenta e a bocca
repuxada para uma banda. Era o corpo de um defuncto!

Sentadas sobre uma caixa, tres mulheres soltavam ais, assoando-se a
miude, e dizendo por entre soluços:

--Louvado seja Nosso Senhor!...

Uma d’ellas, a mais velha, quando deu com os olhos no 72, levantou-se e
foi para elle a gritar:

--Ai! Meu rico filho, que já não tens pae!

O Roque bem tinha reconhecido o cadaver, mas attonito, estupido, não
queria acreditar nos seus olhos.

Quando ouviu a mãe, desenganou-se; começou n’um berrar destemperado, e
atirou-se para o chão, onde estrebuchou muito tempo, arrepellando-se e
gemendo sempre:

--Matei o meu pae! Matei o meu pae!

A mãe voltou para junto das companheiras. Uma d’estas segredou á outra:

--O rapaz está variado!

Levantou-se, e com o queixo a bater e todo o corpo n’um tremor
convulsivo, foi sentar-se para um canto.

Só á terceira vez é que poude encarar com o defuncto.

Mettia pavor, á luz amarella dos cyrios.

Sem fazer bulha, o Roque fugiu de casa e foi sentar-se á porta da
egreja. Lá esteve toda a noite a soluçar:

--Matei o meu pae! É castigo de Nosso Senhor!


[Ilustração]


[Ilustração]




                             O Contrabando


TARDE de inverno.

As vagas frisam-se de espuma, e correm umas após outras de encontro
á costa. Da banda do oceano, grandes massas de nuvens pardacentas
orladas de branco, sobrepujam o horisonte,--quaes legiões que alli
estivessem de reserva, promptas para arremetter á voz da tempestade.
As aves aquaticas, aos pios e grasnidos, approximam-se de terra, e
emquanto umas traçam na atmosphera largas curvas, outras, embaladas
pela onda, descançam na agua, d’onde ás vezes se levantam desprendendo
as azas, em que parece librarem-se a custo, para irem saltitar pelas
cristas espumosas, de pescoço estendido á cata de peixe. O vento humido
e carregado de emanações salinas, investe com a riba alcantilada,
percorre-a velozmente, curvando os enfézados arbustos e erguendo
nuvens de poeira, que remoinham até se dispersarem na campina superior.

Em frente da casa dos guardas de alfandega, alçada no sopé dos
rochedos, um homem trigueiro, alto, de apparencia militar, alonga a
vista ao de cima das aguas, e olha com persistencia para o perfil
escuro de um morro, que ao longe, muito para a direita, fecha o
horisonte terrestre, com grande crueza de tons. A ventania sacode-lhe
incessantemente o capote e obriga-o a fechar os olhos de instante a
instante.

No mar divisa-se muito ao largo uma vela, uma só: mas o guarda antevê
perigo imminente, e mal comprehende que o deixassem alli com um unico
companheiro, armados ambos de espingardas detestaveis, quando os
contrabandistas pódem ser muitos, e hão de trazer por certo bellas
carabinas, que nunca erram fogo e que dão tres ou quatro tiros, em
quanto as armas antigas a custo disparam um só.

       *       *       *       *       *

A lancha, mal a noite acabou de fechar, largou de bordo carregada de
tabaco, e navegou para terra cautelosamente. Os remos cahiam na agua
ao mesmo tempo e rasgavam sem bulha o flanco das ondas. Dois outros
maritimos, de sueste enterrado na cabeça, acompanhavam os remadores e
tinham perto de si, á cautela, duas carabinas americanas. Partira da
barca uma segunda lancha, que devia correr perigos eguaes, até se haver
passado todo o contrabando--umas duzentas caixas de tabaco.

       *       *       *       *       *

O João Luiz, o guarda, hesitava em recolher-se na casa de abrigo,
apezar do frio. A denuncia tinha sido clara. Perto d’alli, na pequena
enseada onde o mar é quasi sempre socegado, deviam desembarcar as
caixas de tabaco. Lá estavam doze guardas. Como, porém, junto da casa
tambem se saltava sem difficuldade, o chefe fiscal tinha mandado
guardar o posto pelo João Luiz e pelo Vicente. Não havia ninguem fóra
de serviço.

De repente o João Luiz pensou no Estacio e estremeceu.

Elle bem tinha dito muita vez ao irmão que se desgraçava continuando a
ser contrabandista, e que um homem casado e pae de dois filhos não deve
arriscar a sua vida por um boccado de dinheiro. Palavras perdidas.

O Estacio era teimoso e não largava já o modo de vida, a que se
dedicara. Parecia, a bem dizer, uma tentação. Que lhe importava o ser
mal visto pela gente da alfandega, se em poucas horas ganhava o que
muitos outros não faziam com mezes e mezes de trabalho ao sol e á
chuva? E o caso é que o Estacio andava bem vestido, trazia a mulher e
os filhos que se podiam ver, e ainda ultimamente tinha comprado uma
mobilia americana, e um relogio de parede com uma caixa mais luzidia
que a prata.

O proprio perigo offerecia-lhe attractivos singulares. Ás vezes,
durante as noites de trabalho, elle bem pensava que podia levar, quando
mal se precatasse, com uma bala e não tornar a ver a mulher nem os
filhos, principalmente o mais mocinho, o Manuel, de quatro annos, tão
louro e tão rosado, que parecia tal qual um menino Jesus. Mas as ideias
sombrias passavam rapidas, e o Estacio scismava logo depois que poderia
vir a ter um predio, muitos predios, como alguns senhores enriquecidos
d’aquelle modo, que nem por isso eram menos estimados por toda a gente.
Pelo contrabando ganhava o pão da sua familia e ganhava-o com risco de
vida, o que já não era tão pouco!

Um dia esteve quasi a brigar com o João Luiz, por este lhe dizer que
o contrabandista é um ladrão como qualquer outro, visto que rouba
o Estado e vae contra as leis; mas por fim soltou uma gargalhada e
respondeu-lhe que lá a roubar o Estado ninguem levava as lampas aos
empregados publicos, uns mandriões que passam vida regalada e que
recebem no fim de cada mez uma mão-cheia de dinheiro. Ladrões esses!

       *       *       *       *       *

Noite fechada, principiou a soprar um vento mais frio. O João Luiz
ageitou-se melhor no capote e encolheu-se a um canto da rocha, de onde
se avistava bem o mar, até á costa. Passara-se uma hora ou mais talvez,
quando elle, que á força de estar attento via já tudo indistincto e
como que a apagar-se, julgou sentir bulha do lado da agua. Ia para
erguer-se, mas logo mudou de tenção; foi de rojo até á porta da casa
e chamou em voz baixa o Vicente. Tornado ao mesmo sitio, conheceu
claramente que andava perto um bote.

--Serão contrabandistas ou pescadores? murmurou ao ouvido do outro
guarda, que tinha vindo postar-se ao lado d’elle, tambem com a
espingarda engatilhada, para o que desse e viesse.

Mas não podiam fazer assim fogo, á falsa fé, detraz de um rochedo, como
o ladrão que espera um homem e o mata para roubar. Teve este pensamento
e sem importar-se com as ordens recebidas bradou:

--Quem anda ahi?

Não teve resposta. Repetiu a pergunta. O mesmo resultado. Ainda
duvidoso, e para certificar-se ou intimidar os tripulantes do bote,
disse com voz mais forte:

--Vocês são mudos?! Talvez uma bala os obrigue a falar.

Do bote partiram dois clarões repentinos.

Uma das balas tirou uma lasca de pedra, ao pé do Vicente.

--Ah! Grandes ladrões, esperem lá! gritou o João Luiz e ambos os
guardas, com as armas descançadas na rocha, desfecharam ao mesmo tempo,
quasi instinctivamente.

Do lado do mar pareceu-lhes que viera um gemido, mas, passada a
obcecação momentanea produzida pelos clarões, já não enxergaram a
embarcação.

O silencio da noite era quebrado tão sómente pelo arfar do oceano junto
á rocha.

O estampido fez com que chegassem, em acto continuo, o chefe fiscal e
os doze guardas.

A denuncia tinham-a dado provavelmente os mesmos contrabandistas,
marcando para outro sitio o desembarque, a fim de desnortearem a gente
da alfandega.

O chefe zangou-se muito, por deixar de se fazer a tomadia, mas a
final cahiu em si e absolveu o guarda, pela consideração de que
contrabandistas de tanta audacia não se venceriam ás primeiras. Demais,
o perigo tinha-lhe merecido sempre um especial desagrado.--Duas horas
depois dormia em casa a somno solto.

O João Luiz esteve de serviço toda a noite.

       *       *       *       *       *

Rompeu formosa a manhã immediata.

Quando o guarda se recolhia a casa, o sol já ia alto e lançava myriades
de setas de oiro atravez da atmosphera, lavada pela chuva dos dias
anteriores. O mar, á direita, encrespava-se em ondas curtas, e alongava
na praia linguas de espuma.

Quasi ao entrar na Horta o João Luiz avistou no areal, á borda da
agua, um grupo de homens a rodear curiosamente o que quer que fosse.
Chegaram-lhe simultaneamente aos ouvidos, uns gritos de mulher.

Approximou-se e viu um cadaver extendido na areia.

Reconheceu o Estacio.

No peito, que a camisa aberta e ainda molhada deixava a nu, havia um
buraco pequeno, redondo, negro, de onde gotejava um tenue filete de
sangue.

A mulher do contrabandista, de joelhos ao pé do marido, soltava
gritos penetrantes, arrepellava o cabello e cahia de vez em quando
desamparada sobre o cadaver, em cujo rosto se desenhava constantemente,
persistentemente, a grande ancia que precedera a morte e que a morte
não pudera apagar.

A infeliz cahiu finalmente n’uma atonia profunda, e sentou-se na areia,
sem despegar os olhos de cima do morto, e murmurando no meio de um
tremor:

--Ai! O meu rico marido! O meu rico marido!

Ao pé da mãe o _Manilinho_ chorou em quanto a viu chorar. Depois,
quando ella socegou, approximou-se do pae, poz-lhe as mãosinhas na
cara, e disse a medo, muito admirado:

--Como o pae está frio! E sempre a dormir!

O guarda, horrorisado de si mesmo, pois fôra talvez a bala da sua
espingarda que tinha morto o irmão, olhava para o pequenino, e ao vel-o
tão innocente e tão divinal, levantou os olhos para o ceo, e perguntou
porque seria que Deus, mandando á terra anjos como aquelle, os não
deixava fazer milagres.


[Ilustração]




[Ilustração]


                                Piloto


JÁ vinha anoitecendo, quando o Sergio, de pé descalço e com a trouxa da
roupa enfiada n’um cajado e pendente do hombro, saltou da estrada para
a rocha.

Sobre o horisonte occidental as nuvens, em longas fitas franjadas,
perderam a claridade vivissima de um quarto de hora mais cedo, e tomam
uma côr plumbea esbranquiçada: pelo resto do ceo alastra-se um azul
uniforme, que a diminuição de luz vae tomando mais opaco.

Convencido de que ninguem o vigiava, foi descendo a escarpa de rocha
em direitura ao mar, onde se avistava, muito ao longe, um navio, com as
velas pandas de vento.

--Se alguem me viu é que está o diabo, pensou o rapaz, e novamente
lançou a vista pela ribanceira acima, e pela enfiada dos pincaros,
que recortavam lá muito no alto, sobre o azul, o seu perfil dentado e
sombrio.

Áquella hora, a estrada é pouco frequentada. Só de vez em quando lá
passam tres ou quatro trabalhadores, que foram dar o dia á Horta, e que
voltam para casa, a bom andar, antegostando a ceia, só de avistarem uma
ou outra chaminé lançando pachorrentamente, para a limpidez do ar, uma
espiral de fumo.

O Sergio, depois de olhar por muito tempo, a ponto de os objectos
fixados se lhe tornarem quasi indistinctos, poisou no chão a trouxa,
onde vinha toda a sua roupa e um bôlo torrado rescendendo a milhã
cheirosa, e sentou-se com os pés muito perto da agua, que chapinhava
brandamente no interior da pequena angra formada, n’aquelle sitio,
pelos rochedos da costa sueste do Fayal.

E tempos sem fim, com os olhos fitos em o navio, que bordejava a boa
distancia de terra, ficou absorto no meio d’aquelle grande silencio,
esperando pela canoa, que havia de leval-o a occultas para bordo da
baleeira, conforme tinha tratado com um _senhor da villa_.

Sem saber como, foi perdendo a grande resolução que trazia de
embarcar, para fugir ao recrutamento e não ir para a Terceira, para o
_Castello_.

Obedecia tambem a outra razão: na baleeira ia ter á America, á
_Calafóna_, onde tinha enriquecido o Luiz Garcia, e aquelle senhor
já velho, dono de uma casa de sete janellas ao pé da egreja da Féteira,
e tantos outros!

Nada! O Sergio estava bem decidido, tanto que viera para alli, depois
de dar um abraço na mãe e outro no irmão, mais novo do que elle dois
annos.

Por isso mesmo não era capaz de saber o motivo por que sentia uma ancia
no peito, um aperto na garganta, e tanta vontade de chorar.

Talvez fosse porque a mãe o não tinha acompanhado até ali, para
despedir-se.

--Ora! Se foi justamente para a coisa não dar tanto nas vistas! Um
visinho não lhe queria bem e podia ir participar á _villa_. Ha
gente tão má!...

Mas, fosse o que fosse, o rapaz sentia-se a modos exquisito, e estava
já a pedir que apparecesse quanto antes a canôa.

O que havia de lembrar-lhe agora!...

Todas as historias que lhe tinham contado das baleeiras: a de um
capitão que moía a tripulação a pontapés e chicotadas. Um dia o
cosinheiro respondeu-lhe com uma bofetada, que o estirou no convez.
Foi logo mandado pôr a ferros, e nunca mais ninguem o viu. Contavam
depois os de bordo, que tinha sido cosido a facadas pelo commandante, e
atirado pela borda fóra.

--Mentiras, disse por entre dentes o Sergio, e poz-se a olhar para o
mar, a ver se lobrigava a canôa.

Não viu nada.

--Dando se mal na baleeira, desembarcava em _Béteféte_[1], e havia
de ir parar á _Calafóna_, onde o ouro é tanto, que até se cava com
o sacho!

Mas n’esta occasião lembrou-se de uma coisa, que o Luiz Garcia lhe
dizia ás vezes--que por cada um que voltava vivo, ficavam por lá
muitos, mortos sem se saber de que, se de fome, se de cansaço...

--Pois sim! Apesar d’isso vão de todas essas ilhas navios carregadinhos
de gente para a America. Mal feito fôra não ir eu tambem, concluiu o
Sergio.

Ouviu-se a curta distancia um latido, e logo depois um cão pequeno, de
pello curto, corria para junto do Sergio, muito festeiro, muito alegre.

--Olha o Piloto! Vae-te d’aqui, diabo!

E deu-lhe um pontapé, que o animal evitou fugindo-lhe com o corpo. Mas
d’alli a um instante já voltava, caracolando-se.

--Txeta, _Caim_! exclamou o Sergio mais zangado ainda, e atirou
uma pedra ao cão, acertando-lhe n’um vasio.

O Piloto, ganindo e de cabeça baixa, subiu a rocha, deitou-se no cimo
e poz-se a espreitar o dono, com o focinho extendido sobre as patas, e
os olhos fulvos brilhando na meia obscuridade, como dois carvões mal
apagados.

--Admira que viesse dar commigo! pensava o Sergio, sentando-se de novo.
Se o tinha fechado no palheiro!...

Insensivelmente foi voltando ás idéas de momentos antes.

Mas com essas vinham outras...

Sim! Quando o cão fosse d’alli para casa, havia de empurrar a porta com
o focinho, e se não a podesse abrir, ficaria a raspar com as unhas até
que apparecesse alguem, como tinha feito ainda na vespera, ao tornar
com o dono da _folga_ do José Pedro.

--Mas esta noite volta sósinho!

E a este pensamento o Sergio sentiu a garganta apertar-se-lhe ainda
mais, porque se lembrava de que a pobre mãe teria a mesma idéa e havia
de chorar pelo filho, que já andaria a essa hora sobre as aguas do mar.

Para esquecer-se, começou a recordar-se da _folga_, onde tinha
bailado com a Anna cinco _chamaritas_ a fio, a ponto de o José
Pedro, já de mau modo, dizer o costumado «Caras novas ao terreiro!»

Era boa rapariga a Anna. Quando o vigario da Féteira os via juntos a
conversarem, dizia-lhes por graça: «A modo que vocês ainda me hão de
dar que fazer lá na egreja.»

Um e outro ficavam encarnados como uns pimentões, mas não queriam mal
ao sr. padre por _entícar_ com elles. Se andava sempre com o
_canîcînho_ na agua!...

Lembrou-se depois de que a Anna, apesar do que lhe tinha promettido,
podia cansar-se de esperal-o e casar com outro, por julgar que elle,
colhendo-se á solta, faria como os passaros, e não voltaria ao laço. A
mesma peça tinha pregado a Aurelia ao João Furtado.

Só com esta desconfiança, o rapaz sentiu uma afflicção enorme, que lhe
subia ao peito e o afogava: fincou os cotovellos nos joelhos, apertou a
cabeça entre as mãos e poz-se a chorar desapoderadamente.

Só tinha chorado assim no dia da morte do pae. Uns homens mal encarados
vieram metter o defuncto na tumba. A creança poz-se nos bicos dos pés e
deitou a cabeça por cima de um dos lados d’aquella caixa preta: quando
viu o pae lá dentro, muito amarello, imaginou que aquelles homens é que
lhe haviam feito mal, que o tinham _pisado_ muito e desatou n’uns
taes gritos, que ninguem o pôde calar.

D’ahi por deante nunca mais chorara. Por isso os olhos lhe tinham
tantas lagrimas e o peito tantos soluços.

O Piloto veiu no entretanto chegando-se para o dono, manso e manso;
pousou-lhe as patas deanteiras sobre a perna e começou a lamber-lhe
as mãos e a cara com uma grande meiguice, como se quizesse consolal-o
n’aquella dôr.

O rapaz não teve alma de enxotal-o. Afigurou-se-lhe que não era o cão,
mas a familia, a casa, todos os sitios por onde o Piloto o seguia, que
estavam a chamal-o carinhosamente; que a mãe e a Anna lhe diziam ao
ouvido, baixinho: «Não te vás. Podes ser feliz na tua terra, com a tua
mãe, com a tua mulher!»

Levantou-se de chofre, poz a trouxa ao hombro, e galgou a rocha.
Chegado ao cimo, estacou duvidoso:

--Mas então ia parar ao _Castello_!...

Um senhor da villa promettera-lhe uma vez, que se fosse com elle no
tempo dos votos, o livraria de ir para soldado.

--Não lhe custava a deitar um papel na egreja, affirmava o rapaz.

Na pequena angra entrava n’este momento a canôa. Uma voz dizia
asperamente:

--Onde estará metido aquelle diabo?

O Sergio, já de longe, ouviu isto, e agachou-se um pouco, receioso de
que o vissem apesar do escuro que fazia.

O Piloto, diante d’elle, com as orelhas fitas, olhava ameaçador para o
lado do mar.

--Ó sior, não está ninguem, dizia uma voz com accento africano. O moço
arependeu-se.

--Marau! Tinha jurado!...

E chamou outra vez:

--Eh! rapaz do diabo!... Nada!

Os remos bateram na agua.

       *       *       *       *       *

Quando um quarto de hora depois o Piloto entrou no quintal da casa,
estava tão fóra de si, que até ladrou ao gato. Este não fugiu, mas,
resentido pela singularidade do ataque, levantou a mão severamente para
esbofetear o companheiro. E assoprou.

O Piloto tinha desculpa: não voltava sósinho.


[Ilustração]




[Ilustração]


                              Na Vindima


ESTÁ prestes a findar a rude labutação.

Os cachos túmidos, e alourados pelo sol estivo, já quasi desappareceram
das videiras, e o môsto, o sangue da vinha, corre a flux, denso e
espumante, pela bica do lagar, espremidas as uvas sob os pés dos
homens, que aturam tempos sem fim n’aquelle trabalho, como se os
vapores saídos do engaço lhes augmentassem as forças com a excitação da
meia embriaguez.

A mesma animação nos demais trabalhadores, que, ajoujados ao peso dos
cestos vindimos, levam os cachos para o lagar escuro e fresco. Qual
d’elles, para expandir a alegria ou sentir menos a faina, entôa a
meia voz um dos cantos populares da ilha do Pico, dando á melodia mais
triste uma expressão festival.

Alguns, para mourejar na freguezia de S. Roque, vieram de longe, de
muito longe, e estão alli ha perto de um mez, separados das familias,
anciosos por lhes ganharem um pedaço de pão.

Um d’estes era o João Ignacio.

Tinha abalado da outra banda da ilha, dos cabeços perdidos nos matos
sobranceiros á villa das Lages, deixando a mulher, as filhas--duas
moçoilas frescas e desempenadas, e o filho, um rapazote que dentro em
pouco já poderia ajudal-o.

A mulher, coitadinha! estava muito acabada, não pela idade, mas pela
doença.

Pois o João Ignacio ia ter uma grande satisfação.

Mandado pela mãe, o pequeno tinha feito a enorme caminhada e já andava
alli perto, deitando inculcas, para saber onde encontral-o. Trazia-lhe
noticias frescas de todos os de casa: da doente, das irmãs, e até do
Calçado, muito rosnador com a velhice, e da porca, que estava gorda,
gorda--uma perfeição de animal!

O João Ignacio topou o filho á porta do lagar, onde tinha despejado
mais um cesto.

Deitou-lhe a benção, arredou-o de si um quasi nada para miral-o de
alto a baixo, e tendo-o visto são e escorreito, deu-lhe uma palmada no
hombro.

--Basta que sim! Estaes rijo como...

E sem enunciar o termo da comparação, perguntou pressuroso:

--Como vae a porca?

--_Álhora!_... O pae então pergunta-me pela porca, e não quer
saber da minha mãe?

--Eh! rapaz! A porca custou dinheiro e vossa mãe não me custou nada!


[Ilustração]




[Ilustração]




                          O Jantar Do General


NÃO sei com certeza se o general tinha desembarcado nas praias do
Mindello.

O Garcez, coronel de caçadores 12 e cultor eximio da _arte de dizer
mal dos seus superiores_, affirmava que não; o Dionysio, soldado
de veteranos, dizia que sim, e jurava o até, se alguem se mostrava
duvidoso.

Ora o veterano tinha razão para estar bem informado, porque fôra
impedido do general, durante trinta e oito dos quarenta annos de
serviço attestados pelas quatro divisas brancas, que se lhe estiravam
pela manga da fardeta. Verdade é que ás vezes o Dionysio tinha
singulares confusões--patetices de seiscentos diabos, qualificava o
patrão.

Uma, principalmente foi originalissima. Uma?... Uma serie d’ellas.

O general commandava n’aquelle tempo a nôna divisão militar, hoje
defuncta.

Na Madeira a vida corria-lhe em maré de rosas.

Tendo-se recordado do inglez aprendido em Bragança com o major do
seu regimento,--um official britannico que acompanhára D. Pedro IV a
Portugal e fizera toda a campanha,--o general tornou-se frequentador
assiduo das sociedades funchalenses onde predominava o elemento
estrangeiro.

Pelo seu espirito de velho solteirão impenitente, chegaram até a
perpassar planos casamenteiros, confusos e indeterminados no principio,
claros e definidos logo que appareceu no Funchal miss Lorely, a filha
de um lord, viva e _espiègle_ como uma parisiense, e exuberante da
formosura peculiar das inglezas.

Então o antigo cadete de cavallaria 10, ou não sei quantos, formou
planos estrategicos com uma pericia, que talvez o não acompanhasse
até ao campo de batalha. Pôz ao serviço d’aquelle tardio amor todos
os recursos do seu espirito, que eram poucos, e todas as vantagens da
sua posição official, que eram muitas. Passeios militares, exercicios,
tudo foi largamente aproveitado. E de tarde, no atrio do palacete das
Angustias, onde morava a seductora _miss_, tocava sempre a banda
regimental, cujos effeitos maravilhosos Eduardo Pailleron preconisou,
muito depois e com infinito espirito, no segundo acto da _Edade
ingrata_.

Mas tambem o que elle soffria!...

A prima dos Norfolk e dos Buckingam tinha sabido ou adivinhado que o
senil Lovelace professava, com o maior fervor, o culto do dinheiro.
Jurou logo aos seus deuses, fazer do seu apaixonado um perdulario; e
tão bem se saiu da empresa, que o general offereceu d’alli a pouco um
_lunch_, a ella e á officialidade do batalhão, n’um dia de passeio
militar a Camara de Lobos--o general que, de tanto jantar fóra de casa,
«tinha avenca na chaminé», segundo a phrase malevola do Garcez.

Ora foi justamente por esta occasião, que o Dionysio cahiu na tal
serie de enganos. O patrão--Dionysio depois de reformado continuava a
servil-o--estava a arranjar-se para ir jantar a casa de _miss_
Lorely. A agua circassiana terminara o seu papel, e entrava em scena
o espartilho, quando surgiu um tormento, que fez perder á victima o
desejo de ir ver a beldade. O general acabava de sentir no joelho
esquerdo as presas aguçadas da gotta, a morderem-o cruelmente. A dor
foi tal que lhe arrancou um grito. Ataque para durar tres dias pelo
menos.

--Mas então era preciso mandar uma desculpa.

Pegou numa penna e dispoz-se a escrever no bilhete de visita algumas
palavras em inglez.

Por fatalidade o major só lhe tinha ensinado a falar a lingua de Pope;
quanto a escrevel-a, não se lembrou d’isso. Nem tudo póde lembrar.

--Ó Dionysio?

--Prompto, meu general!

--Tu sabes onde mora aquella senhora ingleza, a quem eu costumo
visitar!...

--E a quem faz o seu pé d’alferes?

--Mau, Dionysio! Sabes onde ella mora?

--Não saberei eu outra coisa!

--Pois então leva-lhe este bilhete de visita, e dize á creada que mando
muitos cumprimentos á senhora, e que lhe peço desculpa de não ir hoje
lá jantar, mas que estou doente.

--Isso não é nada. Ande, vá, olhe que em casa não se lhe arranjou
comida.

--Cala a bocca, pateta! Dize-lhe tambem que estou de cama e que por
isso não posso escrever-lhe.

--Éna que patranha!...

--Meia volta á direita, maroto, e não te esqueças de nada! Estás cada
vez mais urso.

--Somos dois, meu general! respondeu o velho, rodando sobre os
calcanhares e caminhando para a porta, em quanto o patrão lhe atirava,
por entre dentes, os epithetos de «burro, camello e animal». Ao mesmo
tempo agarrava o joelho esquerdo com ambas as mãos, e soltava uns
gemidos surdos, que tinham o que quer que fosse de grunhidos.

De repente gritou:

--Olha lá!

O soldado appareceu á porta, e olhou desconfiado para o general.

--Traze-me jantar da hospedaria do costume. Não te esqueças!

--Sim senhor, fique descançado.

E saíu.

       *       *       *       *       *

Á porta da casa das Angustias, situada no meio de um esplendido jardim,
o Dionysio foi recebido pela Luiza, creadinha madeirense, que á força
de lidar com inglezes se fazia entender por elles, e assim arranjava,
em todos os invernos, excellentes casas para servir.

O veterano, depois de lhe deitar uma olhadela brejeira, apresentou o
bilhete.

--O meu general manda isto á senhora, porque não póde vir cá hoje. Está
com o seu rheumatico.

--_Saim?_ perguntou a creada.

--_Saim, menaina_, disse o Dionysio, que nunca perdia occasião de
imitar a pronuncia madeirense.

--A _mecê_ a modo que está _tirando precipicio_ commigo!
replicou, meio formalisada, a creadita.

--_Precepeicio!_... A minha _mecê_ não quer tirar-lhe nada.
Agora se eu fosse mais novo uns trinta ou quarenta annos...

--Se fosse mais novo? perguntou a rapariguinha já a sorrir.

--Mau! Mau! Basta de conversas, que o patrão mandou-me levar-lhe o
jantar.

--De cá?

--Pois se fôr de cá, melhor ainda, por certos motivos... Cá é que elle
vinha comer o jantarinho, e por conseguinte tambem de cá lh’o pódem
mandar. Pois não acha?

A Luiza transmittiu fielmente o recado a sua ama. O pedido final
produziu o effeito hylariante de uma boa caricatura do _Punch_.

Morta de riso, mas duvidosa ainda, não obstante a fama de Harpagão
do seu apaixonado sexagenario, miss Lorely mandou a Luiza interrogar
novamente o veterano.

--Ó mulher de ... não sei que diga, já lhe expliquei que elle queria o
jantar.

D’alli a pouco um creado, de casaca e gravata branca, entregava ao
soldado um grande açafate, donde se exhalava um perfume capaz de fazer
crescer agua na bocca ao menos glotão.

       *       *       *       *       *

O general quando viu o Dionysio ir tirando do açafate, que lhe derreara
os braços, uns após outros, muitos pratos de porcelana finissima com
excellentes iguarias, ia tendo uma syncope.

--Quanto lhe não custaria aquelle jantar? pensou, e gritou logo para o
veterano:

--Ó patife, não me dirás onde foste buscar tudo isso? Talvez a
essa hospedaria da Entrada da Cidade onde pagam uma libra por dia
os hospedes permanentes! Um jantar assim ... que sei eu?... é um
dinheirão!...

--Cale-se para ahi, resmungou o Dionysio. É um jantar de principe e não
lhe custa um vintém!

--Não custa!

Dionysio explicou tudo.

O general caíu prostrado n’uma cadeira, com a perna ainda mais
espicaçada pela gotta. Depois, tomando uma resolução heroica, tirou
tres libras da bolsa.

--As ordenanças ainda ahi estão?

--Não foi o meu general o proprio que as mandou para o quartel?

--Bem! Pois então irás tu novamente, mas vê lá não me faças outra
asneira!...

--Outra! Qual foi a primeira, diga!

[Ilustração]

--Toma lá este dinheiro, vae á loja de bebidas da Carreira, onde eu
te mandei no outro dia, e pede ao caixeiro que te dê seis garrafas de
vinho da Madeira do melhor.

--Gasta-se tudo isto?

--Pois de certo.--E o general apertou de novo o joelho.--Elle que te
empreste um cesto, e vae levar o vinho, n’um rufo, a casa da ingleza,
com mais este bilhete de visita... Dize á senhora que te enganaste e
que eu amanhã lhe explicarei tudo.

       *       *       *       *       *

Em quanto o general, pelo sim pelo não, ia comendo o jantar, Dionysio
desempenhava conscienciosamente a commissão, até chegar á porta de
_miss_ Lorely, e tambem depois de entregar o vinho á creada.

D’alli a pouco voltou a Luiza com meia libra em oiro, e deu-a ao velho.

--A senhora manda muitos cumprimentos...

Dionysio interrompeu-a:

--Isto é para pagar o vinho?...

A creada desatou a rir.

--Ah! Você ri-se? Pois se a senhora quer pagar o vinho, então ha de pôr
para aqui mais alguma coisa. Diga-lhe que não é uma, que são seis meias
librinhas--tres libras!

A Luiza, rindo a bandeiras despregadas, foi levar o recado á ama, que
riu muito mais ainda.

D’alli a pouco recebia o Dionysio tres libras.

--Aqui levo dinheiro de sobra, disse elle, e ia entregar honradamente a
meia libra do principio.

--Essa é para a _mecê_, fez-lhe notar a creada.

--Acceito para não fazer desfeita. Adeusinho, minha flor, e obrigado!

       *       *       *       *       *

Quando o general acabava de jantar, chegou o Dionysio com as tres
libras.

A explicação foi longa e calorosa.

Tanto gritou o amo como o creado.

--Ora ainda em cima! Por eu lhe zelar o que é seu! respondia o
Dionysio, indignado. Se vocemecê gastasse as tres libras, dava-lhe p’ra
ahi alguma coisa, e nunca mais prestava para nada.

O caso é que o general parecia ter-se restabelecido instantaneamente
da gotta. Vestiu-se á pressa, e foi ás Angustias, pedir desculpa a
_miss_ Lorely.

A ingleza perdoou tudo, e confessou ao seu apaixonado que nunca se
tinha divertido tanto. Partícipou-lhe ao mesmo tempo que, em voltando
a Inglaterra, casaria com um primo, de quem era noiva desde os quinze
annos.

Nem por isso o general deixou d’alli em diante de jantar nas Angustias,
nem a musica de tocar no atrio do palacete.

Se perdia a noiva, não queria perder tambem os jantares.

Quanto ao Dionysio...

Continuou trapalhão como sempre.

E por isso eu, não me fiando no que elle dizia e sem paciencia para
tirar a limpo este ponto historico, termino como principiei:

Não sei com certeza se o general tinha desembarcado nas praias do
Mindello.


[Ilustração]


[Ilustração]




                        O Aprendiz De Barbeiro


A Maria José saiu da Candelária de noite escura, e por isso quando
chegou á Magdalena não estava ainda um unico freguez a fazer a barba na
loja de João Cardoso.

O pequeno d’ella, o Antonio, apenas a viu, largou uma navalha que
estava afiando no assentador e correu para a porta.

A mãe puxou-o para fóra, porque não queria que o mestre ouvisse o que
ella tinha que dizer ao filho.

Vergonhas não se querem assoalhadas.

Olhou para o rapaz, e a voz prendeu-se-lhe na garganta. Tinha pejo, mas
por fim decidiu-se. Ella bem queria lidar como as outras mulheres, que
a bem dizer fazem por toda a ilha o dobro do trabalho dos homens, mas
não podia, por causa d’aquella mão aleijada.

Já não sabia com que cara apparecesse ás visinhas. Tinham todas muita
pena d’ella, é verdade, ajudavam-a a viver, mas ás vezes, por muita
vontade que tivessem, tambem não podiam. Só Deus sabe das faltas, que
cada um padece!

Pedir aos ricos, nem pensar n’isso... Quem nunca soube o que é não ter,
menos acode aos que precisam.

E vae d’ahi lembrou-se, custando-lhe muito, de vir pedir alguma
coisinha ao filho.

O Antonio bem queria fazer-lhe a vontade, mas como? A féria d’aquella
semana já estava gasta n’um fato, que tinha ajustado dias antes, e por
signal bem barato. O mestre João não queria ver em casa maltrapilhos,
não tanto por si, mas por ’môr dos freguezes. Á sua loja iam os
senhores mais ricos da villa.

--Não pódes então dar-me nada? perguntou a Maria José, com os olhos
rasos de lagrimas.

--Posso, sim senhora, mas é tão pouco... A minha mãe bem sabe que se
muito tivesse... Porque estou eu aqui? Para mais a míudo lhe poder
fazer bem, e para ir vel-a de vez em quando. Mas um dia pego em mim e
abalo n’uma d’essas baleeiras!

--Lá isso não, filho, só se queres matar-me! Bom de lei és tu. Excusas
de m’o dizer! Saes todo a teu pae. Ah! Que se aquelle Caim do Gaspar
Dutra não m’o tivesse matado!... Coitadinho! Ainda estou a vel-o a
arquejar, com a cara toda suja de sangue--parecia um bicho!--os olhos
já envidraçados a fincarem-se em mim ... como a querer falar, mas sem
poder! Era para me dizer quem o tinha atirado do alto da rocha.

Mas a esse respeito não restavam duvidas á Maria José.

É verdade que na audiencia em que o Gaspar Dutra foi responder ao Caes
do Pico, porque o suspeitaram do crime, visto andar ha muito de rixa
com o Manoel Luiz, o absolveram por falta de provas, e não appareceu
uma só testemunha de vista.

Mas d’ahi a dias, depois de o malvado embarcar para a America, por ter
ficado muito arrastado com os gastos da justiça, appareceu em casa da
viuva, já perto da noite, a tia Quiteria que tinha uma fazendinha na
rocha, mesmo ao pé da outra por que o Gaspar Dutra e o Manoel Luiz
andavam desavindos.

A velha tomou de parte a Maria José e depois de obrigal-a a jurar que
não diria nada a ninguem, em quanto ella fosse viva, contou-lhe toda a
historia do crime. Estava perto do sitio, mas nem um nem outro a tinham
visto.

--O Gaspar Dutra é que começou a _abregoir_. O Manoel Luiz
desesperou-se e disse-lhe uma má palavra.--Os santos estão no altar!--O
outro poz-se fulo, correu para o Manoel e colhendo-o á falsa fé,
tal geito lhe deu que o _prantou_ pela rocha abaixo. O corpo a
principio não levava muita força, mas depois caíu tão depressa, que
nem uma bala de espingarda. Quando deu no chão da rocha, onde ficou
estatelado e de braços abertos, vinha já de uma altura de tres ou
quatro casas de sobrado. Rebentou-lhe de certo alguma coisa lá por
dentro, tanto que o pobre do homem não disse mais palavra na meia hora
que ainda viveu.

A Quiteria desculpou-se de se ter calado áquelle respeito, dizendo que
o Gaspar Dutra e o irmão não eram _boas folhas_. Se o matador, por
causa d’ella, fosse parar á costa d’Africa, o outro era muito capaz
de lhe fazer alguma, que désse que falar. Era o Gaspar tão ruim, que
andando embarcado tinha querido matar o cosinheiro de bordo, e levara
n’essa occasião duas navalhadas, de que lhe resultou o signal em cruz,
que tinha na barba, do lado esquerdo.

O Antonio ouvira dezenas de vezes a mãe contar a historia, mas nunca
tinha sentido tamanha amargura, um desejo tão furioso de vingança.

Estivesse o pae ainda vivo e a mãe não precisaria de pedir esmola, e já
elle teria ido para a America enriquecer, e não estaria alli a ganhar
tão pouco.

E lembrou-se do pae--das festas que elle lhe fazia quando vinha á noite
para casa, seguido pela _Boníta_, a cadella de gado. Ceiavam, e o
pequenito para adormecer queria sempre que o pae o deitasse no collo.
O Manoel Luiz fazia-lhe a vontade, e mal o Antonio estava pegado no
somno, despia-o todo, deitava-o na cama, com um cuidado, um carinho, de
que nem a propria mãe seria capaz.

Quando o pae morreu, o pequeno tinha oito annos. Mostrou pena, como se
já fosse uma pessoa grande.

N’aquella manhã renascia a dôr.

A mãe com tanta precisão de dinheiro para matar a fome, e o filho tendo
só um pataco que lhe dar!

O mestre João era muito agarrado ao dinheiro e não lhe emprestaria
nada.

Metteu a mão na algibeira, levou-a muito fechada até á mão direita da
Maria José, e deixou-lhe a moeda entre os dedos, escondida. Beijou a
mão da mãe e poz-se a chorar.

N’isto a voz de João Cardoso, chamou de dentro imperiosamente:

--Antonio! Ó Antonio!

O rapaz entrou na loja, de corrida.

Já lá estavam dois freguezes.

       *       *       *       *       *

A concorrencia foi grande n’aquelle domingo.

Todos queriam apresentar-se na missa conventual com a cara bem
escanhoada, para que nada deslustrasse o fato de ver a Deus.

João Cardoso, sem perder a presença de espirito, ia desbravando os
matagaes incipientes que, por ausencia da navalha, tinham brotado
n’aquella semana.

Animou-se gradualmente a conversa. De um assumpto politico--a escolha
do futuro regedor--saltou para o phylloxera, que tinha apparecido pouco
antes n’uma vinha do Fayal.

--Aquillo--opinava o Estacio Manuel--é pelos modos um bicho que come a
raiz da cepa, como o caruncho roe a madeira, e o gusano o costado dos
navios.

--Bicho me pareces tu--atalhou o Amaro, do seu canto.--Se fosse bicho
podia-se lá dizer que tinha apparecido uma nódoa d’elle!...

--Nódoa?

--É o que ainda agora li no _Fayalense_. Nódoa de bicho, não
entendo.

O Estacio não se deu por vencido:

--É que as terras aonde elle chega ficam pretas como esses
_mysterios_, que ahi temos por toda a ilha.

O mestre barbeiro ensaboava, n’esta occasião, a cara do terceiro
freguez; suspendeu a operação e voltando-se para o auditorio, exclamou
sentenciosamente:

--Sabem o que lhes digo? que se essa praga de nome tão arrevezado salta
do Fayal para cá, adeus vinhas do Pico! É cada qual entrouxar a roupa e
ala para _Bastão_![2]

Não tinham acabado ainda os applausos provocados pelo dito, quando
entrou na loja um homem trigueiro, muito alto, largo de hombros e um
tanto desmanchado no andar. Na orelha direita d’este colosso luzia
uma arrecada lisa e pequena, e nos pulsos e nas costas das mãos
alastravam-se, em prodiga tatuagem, ancoras e estrellas.

O sino da egreja proxima tocou passados instantes, chamando para a
missa. Era a terceira vez.

Ficaram só dois freguezes na loja. Um, que o mestre começou a barbear,
tinha ouvido a missa das almas. O outro, o da arrecada, coube ao
Antonio, e não mostrou dar grande attenção ao chamar pressuroso do sino.

No entretanto pelo largo batido de sol passavam azafamadas e alegres
as raparigas do povo, com os lenços de chita, de pontas desamarradas,
presos á cabeça somente pelos chapeus de palha de abas largas e copa
baixa, cingida por um cordão de lã encarnada. Para ellas a missa
não é só uma devoção, é o repouso, o esquecimento momentaneo de uma
existencia monotona e trabalhosa.

O Antonio não podia mais. Ainda bem que era aquelle o ultimo freguez!
Depois da missa não viria mais nenhum. Não sabia como se tinha
aguentado tanto tempo. O seu desejo era fugir d’alli, e, quando ninguem
o visse, desatar a chorar desconsoladamente, para ver se lhe passava
aquella ancia, que o affligia. Só por grande milagre não enchera de
lanhos as caras dos freguezes. Felizmente aquella barba depressa se
fazia. Não tinha menos de quinze dias, pouco resistia á navalha.

O rapaz teve de repente um deslumbramento. Na face esquerda do homem
que estava alli, nas mãos d’elle, havia um signal, que a principio se
não podera ver, porque a barba o escondia, e que era exactamente egual
ao do Gaspar Dutra: duas cicatrizes em cruz!

Perguntou, com a voz algum tanto suffocada:

--O senhor é cá do Pico?

--Eu? Sou. E porque?...

--É da Candelária?

--Quem t’o disse?

--Quiz-me parecer. E chama-se?...

--Gaspar Dutra. Tens alguma herança para me entregar? Ha-de ter morrido
muita gente minha, n’estes oito annos que estive na America.

Não havia duvida.

O rapaz sentiu nos ouvidos um zumbido ensurdecedor, faltou-lhe a vista,
passou-lhe um calafrio por todo o corpo. Devia ser assim a approximação
da morte!

Tornou a encarar toda a sua desgraça. Exerceu, porém, um esforço
violento sobre si mesmo, e serenou apparentemente.

O Gaspar não suspeitou de nada. Via-o de costas, afiando a navalha. Por
fim disse-lhe de repellão:

--Anda! Acaba com isto!

--Sim, senhor...

--Tu estás parvo! bradou-lhe o mestre, do outro lado da loja, sem
largar a cara, que já tinha meio rapada.

O aprendiz poz machinalmente mais sabão na barba do freguez.

--És da Candelária? continuou este. Conheces lá muita gente?

--Conheço... Conheço a Maria José, viuva do Manoel Luiz... O senhor
conhece-a?

E os olhos, que se fitavam no fio da navalha virado para a garganta do
Gaspar, levantaram-se n’uma interrogação anciosa.

--Olá se conheço! E tambem conheci o marido... Um grande marau!

O Antonio teve um espasmo. Os nervos contrahiram-se-lhe medonhamente,
e o gume do aço cortou bem fundo no pescoço bronzeado do assassino,
abrindo uma ferida alongada, de onde o sangue espadanou com violencia.

O Gaspar ainda ergueu os braços, soltou um arranco, estrebuxou e caíu
de lado, no chão. Na toalha, presa por baixo da barba, o sangue formava
uma larga mancha vermelha, que se foi extendendo a mais e mais.

João Cardoso e o outro homem, extaticos, boquiabertos, transidos de
pavor, não ousavam approximar-se. Por fim, em quanto o freguez corria
para a porta a gritar «Aqui d’el-rei!», o mestre, vendo a navalha caída
no chão, chegou-se ao pequeno, que estava de parte, todo a tremer, e a
olhar com espanto para aquella massa enorme agitada pelas convulsões da
agonia.

Agarrou-o por um braço e perguntou-lhe:

--Que foi isto, _grandessissimo_ diabo?

E o Antonio, a gaguejar, como um bebedo:

--Foi ... foi elle ... que matou meu pae!


[Ilustração]


[Ilustração]




                               A Allemã


FOI ha bastantes annos que a vi pela primeira vez.

Loução e garrido, balouçava-se brandamente na enseada do Funchal o
_Maria Pia_, vapor da carreira de Lisboa, e rodeado ainda por um
enxame de botes, que tinham levado para bordo passageiros e bagagens,
apromptava-se para deixar, depois de uma visita de tres dias, a
denominada _Flôr do Oceano_.

Eu, debruçado na amurada, e já amargurado pela saudade, seguia
tristemente com a vista um barco que, aproado á terra, ia tornando cada
vez maior a distancia que começava a separar-me dos unicos entes a quem
prezava no mundo.

Estava, havia não sei quanto tempo, n’esta contemplação, quando
attentei n’outro bote, que, fazendo força de remos, demandava
rapidamente o vapor, apesar de o tiro da partida ter já de ha muito
resoado pelas fragas que bordam a Madeira.

[Ilustração]

Não tardou que atracasse ao navio, e momentos depois entrava para o
convez uma senhora com o rosto tapado por um veu cinzento, e amparada
por dois sadios filhos da ilha, em quem reconheci dois _homens
de rede_, os quaes tamanho serviço alli prestam aos tisicos,
transportando-os n’aquelle commodo descanso, tão predilecto dos
creoulos e de todos os que habitam as regiões tropicaes.

Conduziram-a para uma cadeira de vimes, que já estava disposta com
segurança no meio da tolda, do lado da camara de primeira classe, e ahi
a depuzeram com delicadeza á primeira vista pouco consentanea com o
exterior um tanto rude d’aquella pobre gente.

Feitos os ultimos preparativos para a partida, poz-se o vapor em
movimento, aproado a leste, e cortando veloz as mansas aguas da enseada.

Tres horas, talvez, estive a fitar, primeiro as encostas accidentadas
e verdejantes da ilha, que fugiam rapidas para o lado do occidente, e
depois os pincaros abruptos, que coroam aquella enorme massa vulcanica,
e que cada vez se iam tornando menos distinctos, já assumindo uma côr
entre parda e azulada, já assimilhando-se a nuvem que mal sobrepujava a
superficie do oceano, até que finalmente se occultaram de todo.

E eu, ancioso de rasgar com a vista o horisonte para ver uma vez ainda
os que deixára, e enviando-lhes um ultimo adeus na vaga que passava
fugaz ao lado do navio, voltei-me para dentro, triste e desanimado,
como quem de repente se encontra só na vida.

Foi então que a pude ver.

Imagine-se, por um momento, uma d’aquellas divindades esquivas e
vaporosas, de que a phantasia dos bardos do norte povoa os lagos e as
florestas: a mulher que eu tinha deante de mim era mais ligeira, mais
diaphana do que essas creações imaginarias. Á ultima claridade da tarde
observei-a detidamente.

O rosto era de um esplendor lacteo, de uma transparencia de
alabastro; se bem que emmagrecido pela doença, ainda ostentava o typo
septentrional, em toda a sua formosura e pureza.

Contrastando com a pallidez morbida, desenhavam-se-lhe nas faces as
rosas purpurinas e terriveis da tisica.

Nos olhos, do azul mais puro, tristes e resignados, havia uma vaga
aspiração para as espheras brilhantes e luminosas, uns reflexos de além
do tumulo.

Recostada languidamente nas almofadas que estofavam a cadeira, e com a
cabeça, aureolada de finissimos cabellos louros, descahida para traz,
olhava para o mar, com a indifferença e melancholia de quem perdeu de
todo a esperança.

De quando em quando, uma tosse pertinaz fazia arfar-lhe o peito, e por
momentos, se bem que rapidos, transmudava-lhe a expressão do semblante,
de serena em dolorosa.

N’outra qualquer occasião ter-me-hia despertado interesse, mas então
impressionou-me mais vivamente do que nunca, aquella mulher, moça,
bella, e, na apparencia, tão gravemente enferma, que não tinha a seu
lado um parente, um amigo, um enfermeiro sequer.

Os passageiros, que o enjôo não obrigára a recolher aos beliches,
passavam perto d’ella com indifferença, e sómente o capitão se lhe
acercou uma vez, a perguntar-lhe se não julgava melhor descer para a
camara.

--Melhor! respondeu ella em francez e com sorriso entre amargo e
benevolente. Aqui ao menos tenho este ar tão puro. Prefiro ficar.
Obrigada!

E deixando caír novamente a cabeça na almofada, voltou á primitiva
immobilidade.

Quando desci á camara, á hora da ceia, não pude esquivar-me a perguntar
ao capitão informações a respeito da desconhecida.

Eis o que elle sabia:

Viera no anno antecedente da Allemanha, sua patria, em companhia
de um irmão, buscar ao clima benefico da Madeira allivio para os
soffrimentos, que os medicos do seu paiz não tinham sabido debellar e a
que prophetisavam até um proximo e fatal desenlace.

As sinistras previsões scientíficas realisaram-se, porém com uma
differença: a victima não foi ella, mas o irmão, que ferido de
morte subita, a deixou só n’uma terra de estranhos, e apavorada
com o pensamento de ver-se, na derradeira hora, cercada apenas de
indifferentes e mercenarios.

Estar alli nem mais um momento!

Partia pois, esperançada em ter ainda vida bastante, mercê de Deus,
para voltar ao que por tanto tempo aprendera a amar: ia morrer nos
braços da mãe.

Ás dez horas voltei para o convez.

Era uma noite de agosto, limpida e sem lua; mal soprava uma leve
aragem, que ia a pouco e pouco dispersando os rolos do fumo que o vapor
deixava após si.

As estrellas reverberando nas ondas inquietas, afiguravam-se, á vista
illudida, de outros tantos luzeiros fluctuantes na massa fluida.

O silencio imponente da solidão era perturbado apenas pelas pancadas
cadenciadas do helice, e pelo rumorejar surdo da agua em torno do navio.

E em redor tudo immenso: a amplidão etherea e a vastidão dos mares,
o infinito e o seu espelho, como disse madame de Staël. E devassando
os arcanos da natureza, e affrontando-lhe a soberania, o homem, só e
illuminado pelo seu genio, deixando escripta na esteira do navio a
divisa do progresso.

Logo que os olhos se me habituaram á meia obscuridade que reinava no
convez, descobri-a de novo no logar onde a tinha deixado.

Nem eu sei dizer a tristeza que se apossou de mim.

Tornava para os seus, porém elles, em vez da alegria que traz sempre a
volta d’um parente querido, teriam a expectação fatal d’uma desgraça
eminente.

A mãe, ao apertar ao seio a filha, ao cobrir-lhe o rosto de beijos,
sentiria na ardencia da febre que lhe devorava a vida da sua vida, os
amplexos antecipados da mortalha.

E aos vinte annos!... Era bem cedo para morrer, como, da meiga virgem
de Procida, diz o poeta das _Meditações_.

Ao menos, triste consolação! uma vez arrebatada á vida, mão amiga e
carinhosa iria depôr-lhe sobre a campa as coroas votivas da saudade, e
a mesma brisa, que lhe brincara com os cabellos de creança, perpassando
por entre os cyprestes, levar-lhe-hia, nas azas perfumadas, os suspiros
dos que a choravam.

Dois dias depois chegámos a Lisboa.

Perdi-a de vista ao desembarcar, mas nem por isso a esqueci; e mais
tarde, nas horas de melancholia, não poucas vezes aquella mulher, antes
visão que realidade, vinha, circumdada de uma aureola de triste poesia,
pousar-me docemente na imaginação.

       *       *       *       *       *

São passados sete annos e com elles quantas illusões!...

Entremos por momentos na alfandega de Lisboa.

Na casa das bagagens vae um borborinho indescriptivel: os passageiros,
chegados ha pouco da Madeira, no _Maria Pia_, e do Brazil, não
sei em que paquete, reclamam com instancia a propriedade; os fiscaes
impacientam-se; as malas e os bahus fecham-se ruidosamente, depois de
examinados pelas vistas prescrutadoras dos aduaneiros; os carros de mão
giram velozes sobre o asphalto; os sinetes, molhados em tinta azul,
percutem sem cessar os disticos de cada lote...

Eu, á busca d’um amigo a quem esperava, ia correndo os grupos, já meio
desorientado pela confusão, quando sons ainda mais discordantes me
vieram ferir os ouvidos.

Junto de mim, discursava-se com animação, n’aquella lingua que, segundo
já alguem disse, qualquer póde falar mettendo um fio de retroz na
garganta, e que o auctor do _Fausto_, com o melhor fundamento,
poz na bocca do diabo.

Volto-me, para ver quem vinha juntar o seu allemão áquelle motim
destemperado, e vejo...

Quem ha ahi que não conheça as milagrosas propriedades nutritivas
attribuidas ao medicamento, que tem o nome de uma famigerada cortezã
franceza, e que tão apregoado foi pelos jornaes das cinco partes do
mundo?

Pois era _ella_, a allemã ... depois de ter tomado a revalescière
Dubarry.

A principio descri dos sentidos.

Admittia-se porventura que o ente ideal e vaporoso qual ondina do
nevoeiro, que eu entrevira n’outro tempo, se houvesse transformado no
que eu tinha deante de mim!

Mas não havia que duvidar.

O rosto era o mesmo, embora á transparencia alabastrina e ás rosas
da tisica tivesse succedido ... como hei de dizel-o?... o adipe
abundante e as côres sádias da robustez. A cabeça, em vez de
reclinada morbidamente, conservava-se levantada e vivaz. A fraqueza
de valetudinaria transformara-se em fortaleza, que faria inveja ás
nossas matronas de Diu, de que fala Jacintho Freire, ou a um soldado do
imperador Guilherme.

Eu estava indignado!

Scismara sete annos n’aquella mulher, enterrara-a, recitara-lhe nénias
sobre a sepultura, para um dia,--oh! prosa da vida!--ousar apparecer-me
sã, robusta, a vender saude.

Era quasi uma abominação, um crime de leso-ideal; quanto melhor não
fôra que tivesse morrido!

Mas ainda eu não disse tudo.

Dava o braço a um allemão (era-o, com certeza!) de barba loura, e
seguiam-a duas creanças louras, uma ao collo, outra pela mão d’uma
creada tambem loura.

Tudo louro!

Não quiz ver mais nada, e saí precipitadamente da alfandega,
amaldiçoando o sentimentalismo, as allemãs e o cabello louro.


[Ilustração]




[Ilustração]


                              _O Marraxo_


Um calor de rachar pedras, quanto os quatro rapazes descansaram do
trabalho. Já na vespera á tarde se tinha annunciado a léstia pelos tons
vermelhos do horisonte para as bandas do nascente.

Os ricos e remediados podiam fugir-lhe, mettendo-se em casa, com as
portas e as janellas bem fechadas; mas elles, coitados!...

Cá fóra chegavam a toda a parte as breves lufadas do vento abrasado
do Sahara, que parecia não ter perdido um atomo da sua ardencia com o
atravessar centenas de leguas do Atlantico, desde a costa de Africa até
á pequena ilha do Porto Santo. N’aquelle ambiente de forno, as plantas
mirravam-se de tal sorte, que se alguem apertasse entre os dedos as
folhas mais tenues, facilmente as reduziria a pó.

Mas o mar ficava a dois passos do logar do trabalho.

--Que rico banho, graças a Deus! pensavam os quatro.

Atravessaram de corrida o areal a escaldar, e foram-se despir á sombra
de uma saliencia de rocha, junto ao Penedo do Somno.

Na extensa praia que borda o sul da ilha, o ar, como ao de cima de uma
fogueira, trepidava rarefeito. Augmentava-se ainda mais a impressão
do calor, com os offuscantes clarões d’aquella areia amarella e
fina. Ninguem podia respirar, nem que fosse até lá acima, ao pico do
Castello, que muito no alto, ao noroeste, desenhava no ceo baço e
pardacento o perfil regular da sua pyramide.

O mar estava alli ao pé. Todo frescura, espreguiçava-se na praia,
encrespado pelo sopro da léstia: ao largo, porém, com o sol
dardejando-lhe a pino, lembrava um extenso e irrequieto lençol de metal
fundente.

--Sabem vocês uma coisa? disse um dos quatro. A modos que o mar tambem
está encalmado!

E a rir do proprio dicto, o José desceu até ao mar, molhou a mão
direita e benzeu-se devotamente.

Os outros fizeram o mesmo, e investiram para a agua todos a um tempo,
no meio de cachões de espuma, e soltando guinchos com a repentina
impressão do frio.

O Francisco seguido por mais dois nadou para fóra, mas o José, que no
mar nunca tinha sido afoito, deixou-se ficar no sitio onde quebravam as
ondas. A agua nem lhe dava pela cintura.

--Larga-te d’ahi, calaceiro! berrou o Antonio, ao vel-o na occasião em
que virava rapidamente a cabeça, para sacudir da testa os cabellos
gotejando agua.

--Vá quem quizer, que eu cá tenho pouco folego.

--Ah! Tu não vens? Eu já te vou escarmentar.

Mergulhou, e reappareceu ao cabo de poucos segundos: trazia na mão uma
pedra de cal e atirou-a para o José.

--Ah! Vocês querem fazer-me _reinar_? disse este ultimo, deveras
amuado, e correu para o logar onde estava a roupa. Tirou a agua da
cabeça passando-lhe a mão com força, enfiou a camisa e veiu enxugar á
torreira do sol, empoleirado no rochedo que avançava pelo mar dentro.

A umas cem braças de terra, os outros voltaram para traz. Não eram
da mesma força a nadar e por isso vinha mais fóra o Francisco, logo
adiante o Antonio e na frente de todos o Luiz.

Com a mão direita estendida sobre os olhos, á guisa de pala, e
segurando com a outra a fralda da camisa, que o leste sacudia, o José
seguia os movimentos dos amigos com olhares invejosos.

Mas o que viu elle subitamente?...

Atraz do Francisco, a umas quatro ou cinco braças a agua mexia-se, e
divisava-se como que uma sombra escura seguindo os banhistas.

--O que seria aquillo?

Mal tinha formulado mentalmente a pergunta, deu um grito fortissimo.

Ao de cima da agua avistava-se distinctamente uma galha escura e
delgada.

--É um marraxo!

Tremulo de medo, bracejando muito, desatou a chamar os outros, com
gritos entrecortados.

O Luiz, que se tinha deitado de costas para descansar, ouviu-o e olhou
na direcção que os gestos indicavam. Como descobriu a galha do tubarão,
bradou logo:

--Nada com ancia, Francisco, nada com ancia, e não pares!... E tu
tambem, Antonio!... Olhem o que vem lá atraz!

O Francisco voltou a cabeça e passou-lhe pelo corpo um arrepio, como se
a agua tivesse gelado de repente.

Em quanto elle nadasse--estava farto de o saber--o marraxo não atacava,
porque não pode morder sem parar primeiro e virar-se, a fim de voltar
para cima a bocca immensa, armada com sete ordens de dentes cortantes
como aço!

E acudiu-lhe á memoria o triste fim d’aquelle rapaz, que um marraxo
rolara pelo meio, ao pé do ilheo da Cal.

Mais rapidos que as ideias que lhe estuavam no cerebro, só os
movimentos que fazia nadando, e que, desordenados, o iam extenuando a
mais a mais.

Um dos companheiros havia no entretanto chegado a terra.

Como é que o terrivel animal o não tinha já alcançado?... Devia estar
quasi a tocar-lhe nos pés!... Não tardava a rilhar-lhe os ossos!...

Perguntassem-lhe se preferia que um raio o fulminasse, a continuar
n’aquella agonia tremenda, e pediria que no ceo limpido, testemunha
impassivel da tragedia, se formasse de prompto uma nuvem de
tempestade, para lançar-lhe a fita de fogo, que o matasse
instantaneamente.

Já não podia mais. O coração batia-lhe no peito, como se quizesse
arrombar-lh’o.

Tambem já tinha chegado á praia o João.

--Só para elle estava guardada aquella morte horrenda!...

O José lembrou-se de que no sitio onde se despiram tinham visto um
madeiro roliço, que parecia resto de um mastro. Correu a buscal-o.
Despiu a camisa e amarrou-lh’a bem, pelas mangas. Sobre o penedo e com
o corpo inclinado para o mar, não perdia de vista o perseguido nem o
perseguidor.

O Francisco já podia tomar pé, mas fazia bem continuando a nadar,
pois o maior perigo estava exactamente no instante em que parasse, e
assentasse os pés no fundo, para desatar a fugir.

Ia o Luiz atirar uma pedra ao tubarão, mas o José prohibiu-lh’o com um
gesto imperioso, e bradou:

--Nada sempre, ó Francisco, e não tenhas medo!

Um pouco debruçado do penedo, acompanhava com os olhos esgazeados os
movimentos do peixe, tal qual o trancador de baleias no momento de
arpoar. Mas o banhista chegou á babugem da maré e logo o madeiro caíu
entre elle e o marraxo.

--Foge, Francisco! bradaram-lhe os tres, como se fosse preciso o
conselho.

Vendo caír-lhe diante e estacionar ao lume da agua aquella massa
branca, o marraxo voltou-se e fincou-lhe os dentes com ancia.

--Ahi podes tu morder, cachorro! gritou-lhe o João. Surriada!

E contentissimos, os tres atiravam-lhe pedras, em quanto o Francisco se
deixou caír na praia, extenuado e offegante.

Sem dar pela aggressão, o enorme esqualo queria desforrar-se do logro
estracinhando a madeira, mas como a areia já lhe penetrava nas guelras,
mudou de rumo e dirigiu-se para o largo, a galha escura surgindo sempre
ao lume de agua.

Desde aquelle dia o Francisco, por mais calor que fizesse, nunca mais
se metteu no mar.


[Ilustração]




[Ilustração]


                           O Pae Do Jacintho


EU estava debruçado no mainel da ponte, por onde se entra na quinta do
Jardim da Serra.

Pelo ambiente volitavam effluvios perfumados, vivificantes. O sol, em
jorros de luz, animava todo o valle, onde se repercutia sem cessar
o chilro atroador dos passaros empoleirados pelos castanheiros e
carvalhos, e o murmurio do ribeiro, que formava cascata junto á quinta,
para continuar depois serpeando mansamente por entre a penedia musgosa.

O tilintar dos chocalhos do gado, que pastava na encosta visinha, ou as
vozes das lenhadoras cantando pelo caminho do Curral, misturavam por
vezes áquelles sons, uma nota melancholica e destacada.

De fitar a agua fugitiva ia-me penetrando da suave frescura, que
emanava das profundezas do leito escuro da corrente, e ao mesmo tempo
alentava-me a perenne vida, que palpitava em toda a natureza aos beijos
do sol deslumbrante.

Senti uns passos ligeiros, como que medrosos, perto de mim, na ponte.

Era o Jacintho. Vinha com elle um velho--o pae.

Na vespera, quando saí do Funchal tinha visto o cabo surgir ao meu
lado, vestido á paisana e disposto a acompanhar a pé o cavallo que eu
montava.

--Vaes de licença?

--Saberá V. S.^a que sim, por um mez. Eu sou de ao pé da quinta para
onde V. S.^a vae passar estes dias, e já agora sigo aqui ao lado de V.
S.^a, se V. S.^a me dér licença.

E o cabo, sem parar no dispendio das senhorias, não deu parte de fraco
durante o passeio de tres leguas, não ficando nem um instante para
traz do picarso, por mim alugado na rua da Queimada para a encantadora
digressão.

Cicerone consciencioso, não omittiu o nome de nenhum dos
_demeraristas_, que tinham comprado terras á beira da estrada.
Via-se que a Guyana ingleza fôra para elles um verdadeiro Brazil, ao
contemplar as casas brancas, quasi todas com _venezianas_, de que
estavam povoados os terrenos adquiridos.

Antes de me dizer adeus, pediu-me licença para, no dia seguinte, me
apresentar o pae.

Coitado! Via em mim, pobre capitão de caçadores, um potentado, o que
quer que fosse de superior e intangivel, principalmente estando eu alli
perto da casa d’elle, e entendia honrar sobremodo o auctor dos seus
dias dando-lhe conhecimento commigo.

Por isso me appareciam ambos n’aquella esplendida manhã de julho.

       *       *       *       *       *

Ainda rijo, o velho. Encostado a um bordão, com a camisa alva de neve a
saír por baixo do collete, botas e calças brancas, a carapuça na mão,
fitava em mim uns olhinhos curiosos e sorria parvamente, á espera de
que o filho m’o apresentasse.

--Saiba V. S.^a que aqui está o meu pae, disse o cabo.

O velho então ganhou desembaraço e pouco tardou em contar-me toda a
sua vida. Em certos pontos interrompia a narração para mirar o filho,
extatico, embevecido, como se mal acreditasse que o pequenito doente e
franzino de quinze annos antes, se tivesse feito aquelle rapagão cheio
de robustez e capaz de vender saude.

--O que me tem dado muitas _freimas_, sr. capitão, é elle estar
longe de mim. Nunca sei o que lhe terá acontecido ou póde vir a
acontecer. Demais, aqui, ao _meu pé_, sempre me ajudava... Se
por força tinha de saír da minha companhia, então que embarcasse para
Demerara. Lá ao menos podia enriquecer.

--Ou já teria morrido, objectei.

E tratei de fazer-lhe comprehender o que ha de nobre no serviço
militar, e quanto é culpado quem pretende fugir-lhe; mas o velho
abanou a cabeça, e teimou em não se deixar convencer, a despeito da
approvação, que os gestos do filho estiveram a dar-me constantemente.

Lembrei-lhe que o Jacintho, que saíra cabo alguns dias atraz e já
mandava em praças mais antigas, era muito estimado pelos superiores, e
disse-lhe até que d’aquella massa é que se faziam os officiaes como eu.

Não resistiu. Iam-se-lhe os olhos no seu rapaz.

Por cima d’aquellas faces, que os frios e as soalheiras tinham crestado
e a velhice cortava de rugas, mas onde brilhavam ainda as rosas da
saude, correram duas lagrimas de satisfação.

--O filho do Manoel de Jesus ainda está em soldado? perguntou elle ao
Jacintho.

--Está e estará, respondeu este, com ufania. Se não sabe ler!...

--Deveras! Então sempre serviu d’alguma coisa o que fiz por via de ti.
Lembras-te?

A instancias minhas, referiu-me a commovente historia do seu amor de
pae--como tinha conseguido que o filho aprendesse a ler e a escrever.

A escola era muito longe, e elle, receioso de que o pequenito, que
devia andar pelos seus seis annos, cansasse pelo caminho, acompanhava-o
sempre, antes de ir para o trabalho, pelas manhãs asperas e geladas,
quando o vento norte soprava rijamente, mais cortante do que navalhas.
O Jacintho, em muitas occasiões, desatava a choramigar, dizendo que não
sentia os pés e que já não podia dar passada. Então elle pegava-lhe ao
collo, descalçava-o, desabotoava o peitilho da camisa, e aconchegava
ao calor do corpo os pésinhos inteiriçados com o frio. Quantas vezes
sentiu cãibras no estomago, dôres muito finas, depois d’aquelle
contacto regelador!... Mas nem por isso arredava a creancinha, que ia
inclinando vagarosamente a cabeça para o hombro do pae, até que por fim
adormecia. Ao cabo de dois annos de escola, o Jacintho, «como tinha boa
_mimoira_», já sabia ler por cima.

--E não _havera_ de ser enganado, como eu tenho sido e hei de
continuar a ser! rematou o velho, sentenciosamente.

Encareci-lhe com enthusiasmo o seu admiravel procedimento, porém elle
recusou ingenuamente o elogio:

--Não faz mingua o senhor dizer tantas coisas. Se isto é o meu
sangue!...

E pronunciava estas palavras, envolvendo o filho n’um olhar de ternura
infinita, como as aves envolvem em macio frouxel os seus pequeninos
implumes, na meiga concavidade dos ninhos.

       *       *       *       *       *

Foi isto pouco mais ou menos--áparte a fórma--o que me contou o
Silveira. Até aqui, tinha tido na voz uma suavidade, que sobremaneira
contrastava com o aspecto marcial e severo da sua physionomia.

Remexeu-se na cadeira, saccudiu a cinza do charuto, puxou o bonnet
para a testa e acabou assim a narração do caso:

Quatro annos depois, ainda eu pertencia a caçadores 12. O Jacintho, já
na reserva, tinha casado e morava á ilharga da praça do peixe, que como
sabes fica sobre o Calhau.

Com um dinheiro ganho pela mulher nas casas onde tinha servido,
puzeram um botequim. A freguezia começou logo a acudir numerosa, pois
que o rosto alegre e bonito da dona do estabelecimento era magnifico
chamariz. De mais a mais a Rita arranhava o inglez, e d’este modo
conseguia que a loja fosse preferida pelos marinheiros britannicos,
excellentes consumidores de «bebidas de guerra».

O velho assistiu ao casamento do filho e voltou para o Estreito de
Camara de Lobos. Com os seus sessenta e cinco annos bem puxados, ainda
mourejava de sol a sol. Um dia, em que andava trabalhando perto de uma
pedreira, ouviu o grito de: «Lá vae fogo!» annunciando a explosão da
_broca_. Como devia haver mais duas advertencias eguaes áquella,
não se apressou muito. Quando pousou o picão em terra, ouviu a segunda.
Correu para fugir a algum pedaço de rocha, que a polvora explodindo
arremessase a distancia, mas contou demasiado com a ligeireza das
pernas e caíu. A _broca_ rebentou, depois do terceiro aviso
do bota-fogo, e um grande penedo veiu apanhar o pae do Jacintho, e
partiu-lhe uma perna e um braço.

Levado n’uma rêde para a cidade, o pobre entrou no hospital da
Misericordia e alli esteve tres mezes e meio.

A principio o filho, umas vezes só, outras com a mulher, ia vel-o
quasi todos os dias, e carpir a desgraça do pae. Mas as visitas foram
rareando.

--Se elle tem a vida tão apensionada! desculpava entre si o doente.

Nos ultimos tempos nenhum dos dois appareceu por lá.

Quando lhe deram alta, o velho estava aleijado.

A uns enfermeiros que o lamentavam, de o verem sair do hospital
coxeando e arrimado ao bordão, respondeu cheio de confiança:

--Isso era bom, se eu não tivesse o meu filho!

Appareceu-lhe em casa inopinadamente. Não o receberam mal, e até lhe
mostraram agrado, em quanto elle não se explicou.

Depois do jantar, abriu-se com o Jacintho e a nora. Assim aleijado, não
poderia fazer nenhum trabalho: por consequencia voltar para o Estreito
e morrer de fome, vinha tudo a dar na mesma. O Jacintho olhou a medo
para a mulher, que se tinha tornado muito vermelha, e fincava os olhos
no tecto.

Por isto não deu o velho, mas notou que o filho, ao offerecer-lhe a
casa logo depois, gaguejava e parecia quasi não saber o que estava
dizendo. Assaltou-o uma suspeita:

--Seria pesado ao Jacintho?

A resposta indecisa dada por este e o silencio pertinaz da nora,
explicaram-lhe tudo.

--Está bom rapaz! Que queres? Julguei que vivias mais desembaraçado.
Volto para a nossa freguezia. Sempre lá me hei-de arranjar. Fica-te com
Deus, filho, fica-te com Deus!

Agarrou-se a elle, beijou-o muito e saiu pela porta fóra, arrastando
ainda mais da perna aleijada.

       *       *       *       *       *

Tempos depois, vi-o no asylo de mendicidade.

Como sabia isto, disse-lhe do filho tudo quanto merecia aquella infamia.

O velho escutou-me sorrindo tristemente e respondeu por fim, a encolher
os hombros:

--Será verdade o que o senhor me diz, mas que lhe hei-de eu fazer? Se
elle é do meu sangue!...


[Ilustração]


[Ilustração]




                                A Folga


                     (Notas de folklore fayalense)


Tudo prompto em casa do João Furtado, para se receber a coroa do
«Senhor Espirito Santo».

E não é nada cedo. A procissão já saíu da casa do _imperador_, que
foi o ultimo a _coroar_ no anno antecedente, e vem a caminho.

Os visinhos andam tão alvoroçados, que se não fosse o José, sobrinho do
João Furtado, teriam invadido a casa, para verem de mais perto o altar,
armado no quarto de fóra.

Mas não se atrevem, que o rapaz, de sentinella á porta, prega um não
redondo na cara do mais pintado. Além d’isso, todos sabem que elle não
é para brincadeiras, e que poderia ir ás do cabo, temendo que lhe
escangalhassem o que lhe tinha custado tanta lida.

Como elle se revia no altar! Sobre a meza coberta com uma toalha
de renda, nada menos de quatro jarras de flores e de outros tantos
castiçaes com os cyrios ainda por accender. Dão-lhe tanta graça o docel
de cassa branca e as cortinas de barra vermelha, que pendem de cada
lado!

E como está bem clara toda a casa! Nem a egreja, na noite de Natal!
Contando-se bem, são dez os candeeiros de petroleo, uns em cima das
mezas, outros pendurados nas paredes.

Entrassem os visinhos e tambem quereriam ver o quarto seguinte, onde
teem dormido os donos da casa desde o dia em que se casaram, por signal
n’aquella cama coberta com colcha de ramagem. O que porém lhes chamaria
a attenção n’este quarto, haviam de ser as duas mezas que lá estão
unidas pelas cabeceiras, á espera da ceia dos _foliões_.

O João Furtado bem podia ficar satisfeito com o sobrinho, visto que
todas as suas ordens se cumpriram á risca.

O rapaz é que não tinha sombras de satisfação, nem de alegria: triste
como a noite!

Bastava-lhe estar longe da Maria, que vinha de _imperatriz_ no
acompanhamento da corôa.

Verdade seja que triste andava elle sempre, desde que lhe tinha faltado
o pae, e que o tio, vendo-o em riscos de ir para soldado, resolvera
demorar, sem dizer até quando, o casamento ha muito ajustado entre os
dois primos.

Primeiramente o José, por soberba, quiz tirar d’alli a sua ideia,
cuidando que o tio só desejava livrar-se d’elle e arranjar para a
filha um noivo mais rico; não poude! Cada vez gostava mais da Maria,
principalmente a partir da hora em que tinha julgado descobrir n’ella
um certo desapego. Talvez a prima tambem olhasse ao pouco que elle
agora tinha, depois de paga a divida do pae ao Joãosinho Terra, que na
_villa_ emprestava dinheiro a juro. Em quanto o velho não fechou o
olho, todos o faziam com mundos e fundos, e sabidas as contas...

Porém o José curtia de si para si os amargos de bocca, e calava a
paixão, receioso de que, falando, o despedissem por uma vez. Só poderia
adivinhar-lhe o segredo, quem attentasse nos olhos, que elle ás vezes
deitava á Maria, e em que havia tanto amor, tanta cubiça!... Mas isto
mesmo, só o fazia quando tinha a certeza de não ser observado.

Outra coisa, além da ausencia da prima, o estava agora consumindo: o
pensar que nas danças da _folga_ ella ia andar nos braços de um
e de outro. Que se livrasse de dançar com o menino Ricardo, filho do
Joãosinho Terra!

--D’aquella familia, só lhe vinham desgraças!

Um mez antes, na ribeira dos Flamengos, apanhára os dois conversando
muito á mão. É verdade que a prima tinha lá ido lavar uma trouxa de
roupa de freguezes seus, mas tanto não estava fazendo coisa boa, que
apenas o viu, ficou mais vermelha que uma romã.

A corôa approxima-se, que bem se ouvia já a marcha tocada pela
philarmonica e o rufar monotono do tambor dos foliões, como que
marcando o rythmo da musica. Estalavam de instante a instante as
_respostas_, e serpeavam no ar os foguetes a dizerem o logar
exacto em que vinha o cortejo.

Embora consumido, o José não se esqueceu do que lhe competia, e foi
accendendo os cyrios do altar, ao tempo que a tia, com algumas visinhas
e tres senhoras vindas da Horta mediante convite especial, entravam
azafamadas. Tinham estado no terreiro á espera, e foram a uma meza
buscar vellas de stearina, e tambem as accenderam, nos cyrios. Nenhuma
se esqueceu de resguardar-se de algum pingo, pondo o lenço de assoar
á laia de bobeche. Todas, de mão deante da chamma, correram para o
terreiro, a allumiar a corôa.

Um ultimo relance de olhos tranquilisou o José: tudo estava em termos.
Podia entrar a suspirada visita.[3]

Vencido pelo habito e pela geral suggestão o rapaz correu para
a porta, a admirar o acompanhamento, que avançava com a ordem e
solemnidade costumada, impondo respeito e chegando a encantar os menos
propensos á devoção.

Tinha-se calado a musica, mas rufava sempre o tambor dos foliões,
estrugiam os pandeiros e estalavam as bombas.

Mais longe, no couce da procissão, o _Magnificat_ entoado pelos
cantores da egreja matriz do Fayal, dava á solemnidade a nota da uncção
religiosa.

Na frente do cortejo tres homens a par: o do meio deitava os foguetes,
o da esquerda transportava as munições, já muito diminuidas pelo
consumo, e o da direita mantinha accesa uma acha de lenha, soprando-lhe
muito, a fim de trocal-a pela que incendiava os foguetes, quando esta
fosse a apagar-se.

Em seguida os quatro _foliões_. Sobre o fato usual, grandes opas
encarnadas de gola verde recortada aos bicos, e de mangas tambem
encarnadas e canhão verde. Nas cabeças, lenços de chita vermelha
amarrados sobre a nuca, as pontas caídas para as costas.

Um traz a bandeira de panno encarnado com toscas applicações de panno
branco, representando as do centro uma corôa e uma pomba, symbolos do
Espirito Santo, e flores as dos quatro angulos.

Dos restantes _foliões_ um toca tambor, e pandeiros os outros.

Seguem-se dois renques de irmãos, todos com varas brancas e precedidos
pelo _estandarte_ de seda branca, em que ha adornos semelhantes
áquelles, porém executados com mais alguma arte.

Dois artistas da mesma força deviam ser com certeza os esculptores das
pombas, que encimam tanto a haste da bandeira como a do estandarte. Eu
chamei pombas aos animaes alli figurados, mas creio que o mais notavel
dos zoologos se daria a perros, tendo de classifical-os.

Agora a parte mais interessante do cortejo--para mim, pelo
menos--constituida pelo beijinho das raparigas bonitas do logar, umas
com vellas accesas, outras espargindo flores, e quatro formando com
varas brancas um quadrado, dentro do qual ia a imperatriz, com a corôa
nas mãos, e de cada lado sua moçoila, uma com o sceptro e a outra com a
salva de prata.

Depois da imperatriz, o imperador. O João Terra _coroava_ pelo
João Furtado, e certo de que augmentava com isto o brilho á festa,
avançava a passos tão regrados e magestosos, como ... o seu collega
Carlos Magno entrando na cathedral de Aix-la-Chapelle. Para ser
completamente feliz só lhe faltava uma coisa: que a casaca lhe não
apertasse nos sovacos, e a bota de lustro no peito do pé.

Fechavam o acompanhamento os cantores da matriz, a philarmonica e um
magote de povo.

Em quanto o cortejo ia enchendo a casa do João Furtado, recrudescia a
foguetada e as bombas rebentavam continuamente.

Chega a imperatriz em frente do altar, desfaz-se o quadrado, cujas
varas, juntamente com a dos irmãos, são guardadas n’uma comprida caixa
para isso destinada.

Desde que entrou, a corôa servia de alvo a confeitos dourados e de
varias côres e a raminhos, cujas flores eram tambem confeitos montados
em arames.

A Maria colloca-a no centro do altar, e logo os foliões, que estavam em
frente alinhados n’uma fileira, entoam a conhecida copla:

    Ó Senhor Esp’rito Santo
    A vossa casa cheira,
    Cheira a cravo, cheira a rosa,
    Cheira a flôr de larangeira.

Um dos que tocam pandeiro levanta mais a voz e prolonga a nota final;
segue-se o outro, descendo uma oitava e vae assim por diante a
cantoria, com trinados á mistura, acompanhada pelo tambor, em que o
folião respectivo dá, segundo o preceito, duas pancadas successivas com
a baqueta, depois outras duas e afinal tres. A estes sons juntam-se por
vezes o dos pandeiros, e estrepitosos vivas ao «Senhor Esp’rito Santo»,
que já se tinham ouvido em toda a passagem do cortejo.

Durante a cantilena dos foliões, as _senhoras da villa_ e
duas _mulheres do monte_ vão compôr o vestido e o penteado á
imperatriz, cuidado aliás inutil a bem dizer, pois se ha «moça bem
pregadinha» é a Maria do João Furtado. Como ella, nenhuma tão esmerada
na sua pessoa e no seu fato.

O José, a quem não passaram despercebidas estas attenções, revia-se na
linda flôr do campo, esquecido de tudo, até do ciume.

Andava n’este comenos o João Terra desempenhando um dos deveres do
imperador: tendo recebido de uma das companheiras da imperatriz o
sceptro, deitara-o nas mãos, sobre um lenço, e percorria toda a sala,
offerecendo aos beijos dos circumstantes a pombinha de prata, que o
adorna.

O ultimo beijo, e de certo o mais fervoroso, foi dado pelo dono da
casa, quando o sceptro já estava no altar. E nem sequer lhe passou pela
ideia o que lhe custava a festa. Custasse o dobro, e elle quereria
assim mesmo gosar aquelle direito.

Já todos tomaram logares. Nos melhores ficam as senhoras da Horta, e á
ilharga d’ellas, depois de lh’os ter amavelmente offerecido, senta-se
muito ancha a mulher do João Furtado.

Lá entra o José, ajoujado com um pratalhaz de arroz doce, e precedido
pelo tio, que se pôz em mangas de camisa para mais á vontade servir
aos convidados a aguardente de pecego, que passará do frasco de
vidro escuro onde está agora, para a bocca dos que hão bebel-a, por
intermedio do mesmo calix. Os pechosos não terão que dizer, porque o
escanção, isto é, o João Furtado, depois de servir cada um dos seus
convidados, limpará a borda do copo á manga da camisa.

Isto de mais a mais é costume tradicional, como tambem é costume
comerem todos o arroz doce pela mesma colher. Á entrada do José, lá
vinha uma espetada verticalmente ao centro do manjar, e com ella vão
todos mettendo para a bocca a competente colherada, e até repetindo a
dose, com grave despeito do dono da casa e não obstante o arroz ter
certo gostinho a fumo, que nem á força de canella desapparecera de
todo.

O José não fugiu com o prato á abusiva repetição, porque estava com
o sentido n’outra coisa. Se não encontrava a prima, por mais que a
procurasse com os olhos!...

Vae porem socegar: a Maria apparece no quarto immediato e ajudada por
outras raparigas põe na meza a ceia dos _foliões_.

Os quatro abancam immediatamente e principiam a devorar com o seu
proverbial appetite.

O rufador, para que o vinho lhe ajudasse a deglutição, disse a graça
costumada--que a pelle do tambor ia estalar de tanto se lhe ter batido,
e que o unico remedio era botar-se-lhe em cima uma pinga. E apenas
apanhou á mão o frasco, deitou uma gota no tambor e entornou para os
gorgomillos tanta vinhaça, que os companheiros romperam em murmurios,
julgando-se lesados.

O segundo folião, antes de beber, faz o brinde habitual:

--Lá vae á saude do imperador de hoje a oito dias!

Ao passo que outro, com a bocca cheia, dispara um «Viva o Senhor do
Esp’rito Santo!»

A ceia desapparecia rapidamente dos pratos. Tinha-a feito a Vicencia,
irmã do João Furtado, afamada em trabalhos culinarios. Áquella mesma
hora temperava ella na cosinha a sopa destinada aos presentes do dia
seguinte, muito saborosa com a grande quantidade de carne de vacca e
_linguiça_, e cada pão dividido em quatro partes apenas, para que
uma unica sopa chegasse para um presente.

Na sala da folga entram muito galhofeiros, com a sobranceria de quem
se julga n’um meio que não o merece, o Ricardinho Terra, o Luiz de
Carvalho e mais dois rapazes da Horta, isto é quatro _estudantes_,
como os appellidam por despreso os moços do campo, que em troca recebem
o qualificativo de _diamantes_, não menos desdenhoso na intenção
do seu ignorado inventor.

Se a presença dos recemchegados desagradou a todos os rapazes do sitio,
que se apinhavam á porta e no terreiro, e que nos bicos dos pés olhavam
a custo para o interior da casa, ao José encheu de verdadeira furia.

D’aqui por diante não mais perdeu de vista o menino Ricardo.

Mas ninguem pensava n’elle, que iam principiar as danças e já se ouvia
o _mestre da viola_, o Joaquim Machado, na cosinha, onde tinha
acabado de ceiar, afinando o instrumento demoradamente, a preceito, sem
dar importancia ás impaciencias dos que anceavam por bailar.

No seculo tinha posição humilde--era sapateiro--mas n’uma _folga_
hombreava em valimento com o proprio imperador. É que sem elle não se
_brincava_.

Apesar d’isto, o João Furtado, fazendo-se interprete dos desejos
geraes, disse-lhe da porta da sala, em voz muito alta.

--O’ Joaquim Machado, pega-me n’essa viola e salta cá para fóra!

--Já se vae! Já se vae! retorquiu o outro, sem se apressar. É preciso
pol-a nos pontos!

D’ahi a pouco appareceu á porta, e conscio da importancia inherente ao
seu cargo, foi sentar-se junto ao altar.

Tiravam-se pares.

O João Terra escolheu a Maria, ao tempo que um _diamante_
perguntava a esta: «A menina quer brincar commigo?». Desvanecida porque
ia dançar com um _senhor da villa_, a quem de mais a mais lavava a
roupa, a filha do João Furtado nem sequer deu resposta ao pretendente
plebeu.

Outros pares se iam formando, levadas as raparigas com espalhafato para
o meio da casa, mas ficando cada _cavalheiro_ a respeito da sua
_dama_ como se fossem vis-à-vis de contradança franceza, e assim
formando-se de cada lado uma fileira, em que os homens se alternavam
com as mulheres. Dois pares consecutivos constituem uma chama-rita e só
com elles se pode já executar a dança.

O dono da casa excitava os renitentes, batendo as palmas e bradando:

--Chega a pares! Chega a pares! Ao terreiro!

Como não principiava a musica, o Ricardinho, que ia dançar com uma das
senhoras mas que não cessava de olhar para a Maria, disse com o entono
de quem quer ser promptamente obedecido:

--Então essa viola não fica afinada por uma vez?

O Joaquim Machado sem se desconcertar, mirou-o altivamente e mastigou
como por de mais:

--Está-se tratando sobre esse mesmo objecto.[4]

Quando o tocador muito bem quiz, rompeu a musica e com ella a
chama-rita. Os dançantes, ao mesmo tempo que acompanhavam a viola
dando estalos com os dedos, bamboleavam-se, saracoteavam-se para a
direita e para a esquerda, e faziam passinhos de dança n’um e n’outro
sentido, avançando e recuando um pouco, para tornarem sempre ao mesmo
sitio.

Um camponio ou _homem do monte_, que era par da dona da casa,
cantou:

    Ao romper da bella _airola_[5]
    Sae o pastor da _gaivana_[6]
    Gritando em altas _vózeas_
    Muito padece quem ama.

    Chama Rita, chama Rosa,
    Chama Rita tão formosa!

Quando o cantador principiava a repetir estes dois ultimos versos
á laia de estribilho, cada homem, estalando sempre com os dedos e
bamboleando-se, recuou seguido pela sua dama, que voltada para elle e
com os mesmos ademanes, parecia attrahida pelo chamamento.--D’isto,
naturalmente, é que a dança tirou o nome.--Chegadas as duas mulheres
de uma mesma chama-rita a altura em que podiam, costas com costas,
trocar a posição, effectuaram a mudança, recuando seguidas agora pelos
seus pares, até que todos entraram no alinhamento primitivo, mas em
ordem inversa. N’esta occasião cada homem fez em relação á dama do
outro par da sua chama-rita, um movimento analogo ao que o sr. Justino
Soares--valha-me o abalisado choreographo!--chamaria «_balancé au
côté_», se desejasse indical-o aos seus discipulos da arte de
Terpsychore.

Succederam-se os versos engendrados pela musa popular. O mestre da
viola, com um vozeirão de baixo profundo, garganteou:

    Coração acima, acima,
    Se não podes correr anda.
    Tudo é pouco, bem n’o sabes
    Para ver a sua dama.

    Chama Rita, chama Rosa,
    Ella que venha cá fora,
    Venha ver o seu amor
    Que lhe quer falar agora!

Quando acabava esta ultima quadra, que pelo numero de versos equivale
ao estribilho com a sua repetição, e que por isto não foi bisada pelo
cantador, o Ricardinho Terra, para saír da monotonia da chama-rita,
valeu-se de uma das marcas dos bailes de roda, com que costuma
variar-se aquella dança, e disse em tom de marcador de quadrilha:

--Roda cheia!

E logo todos cruzaram os braços e deram as mãos trocadas, formando
roda, que depois desfizeram para cada um dos bailadores, enlaçado ao
respectivo par, fazer o que nas contradanças francezas se designa pela
phrase--valha-nos outra vez o nosso Vestris!--_galop au tour_, com
a differença de que o passo é o da chama-rita, ou muito semelhante ao
da polka.

A _folga_ animava-se.

Para excitar ainda mais o enthusiasmo, cruzavam-se os:

--Pega fogo!

--Anda!

--Aquece, rapaz!

O Ricardinho, fitando muito a Maria, cantou-lhe:

    Aqui tens meu coração,
    Se o queres matar, bem podes,
    Olha que estás dentro d’elle
    E se o matas tambem morres.

O José ia disparatando, mas conteve-se porque o Luiz Carvalho, depois
de repetir o ultimo verso da quadra, arreliou o amigo com est’outra,
sempre usada para taes casos, viciando-a como os cantadores populares:

    Assubi ao altar mór
    P’ra accender vellas ao throno,
    Bem tolo é quem se mata
    Por coisas que já teem dono.

O Ricardinho gritou: «Mãosinhas!», o que se executou dando os pares
as mãos, e virando-se cada um dos dançadores alternadamente para os
que lhe ficavam contiguos, ao mesmo tempo que iam todos caminhando
lateralmente como no _grand rond au tour_.

A provocação do Luiz de Carvalho teve esta resposta, do Ricardinho:

    Não ha nada tão perfeito
    Como o amor de um estudante:
    Ainda que seja pobre,
    Sempre tem o amar galante.

Mas um rapaz do sitio corrigiu-lhe de prompto a coarctada, com outra
preparada egualmente para casos identicos:

    Não viera um vento norte
    Que levara os estudantes,
    Para livrar esta terra
    Dos _homes_ extravagantes.

A furia do José de novo acalmou.

Ainda assim difficilmente deixaria de haver um dos barulhos inherentes
a estes passatempos, alguma _poeirada_, se não apparecesse á porta
o padre vigario, na occasião em que, indicada pelo Ricardinho, se
executava a marca «Salta e rema!», na qual cada homem deve, passando
por traz do seu par e tomando-lhe a direita, ir fazer _balancé_
com a pessoa que lhe fica d’este lado, mas sem se darem as mãos, e
repetir o mesmo com a da esquerda. Continuam durante isto o _grand
rond au tour_, e a estalada com os dedos visto que as mãos se acham
livres.

O João Furtado, mal viu o padre, disse em voz muito alta:

--Triloré!

A dança parou logo e todos foram cumprimentar o recemchegado, que vinha
honrar a festa com a sua presença.

--A benção de Deus seja n’esta casa! disse o vigario e depois de fazer
uma venia á coroa, foi sentar-se na cadeira de balouço, que o João
Furtado fizera promptamente desoccupar em obsequio a sua reverendissima.

Mas o desejo do bom do padre, era que as danças continuassem.

Antes de ir para o seminario de Angra, e até quando vinha de lá passar
as ferias com a familia, elle não perdia uma unica folga.

Estes divertimentos attrahiam-o ainda, como tudo o que nos traz para
diante dos olhos já queimados pelas lagrimas da desillusão, os dias
luminosos da mocidade.

Ia recomeçar a chama-rita.

Á pergunta do estylo, que os antigos pares lhes faziam sobre o nome
do escolhido para a nova dança, as raparigas em geral responderam,
tambem segundo o estylo vulgar «O senhor mesmo!», com grave escandalo
dos outros rapazes, que assim continuavam a ser na festa uns meros
espectadores, e que se desforraram com o conhecido protesto:

--Caras novas ao terreiro!

A Maria não imitou o maior numero. Como ouvisse o João Terra dizer que
já não tinha pernas para folias, e não desejando fazer-lhe desfeita,
escolheu o filho d’elle--o Ricardinho. O José ficou embaçado, sem poder
mexer-se, e calado como se lhe tivessem amarrado uma mordaça.

Só o tio deu por isto, e para evitar alguma asneira, travou-lhe do
braço e disse-lhe em voz baixa, terminantemente:

--Anda commigo, diabo!--E como sentisse alguma resistencia,
accrescentou com maior intimativa:--Se não vieres, dou-te na cara, aqui
mesmo, deante de todo este povo!

Lá passar por similhante vergonha, isso é que nunca! E devia ao tio
tantos favores, apesar de tudo...

Acompanhou-o, mas fez logo uma tenção bem firme. Nem Jesus Christo, que
viesse a este mundo, seria capaz de arrancar-lh’a.

O ar da estrada refrescou-lhe a cabeça, sem lhe esfriar a resolução.

Mas as danças continuavam e só a isto é que todos attendiam.--Todos,
menos elle.

A Maria cantava com a sua voz estridula e argentina, bem afamada na
ribeira dos Flamengos:

    Ó Pico, rocha tão alta,
    Retiro dos passarinhos!
    Mais retirada que eu ando,
    Meu amôr, dos teus carinhos!

O José que a ouviu lá fora, resmungou entre si:

--Isso! Isso mesmo! Como se a fogueira inda precisasse de mais lenha!...

E chegou-se para a porta da casa, apparentando indifferença.

A dança animou-se mais, com o crescente enthusiasmo em que estava o
Ricardinho. Mal este gritou: «Cadeia!», as mulheres levaram o braço
esquerdo atraz das costas, á altura da cintura, e os homens deram-lhes
as mãos, indo as direitas de cada par enlaçadas na frente, como no
galope, e as esquerdas n’aquella posição. Será bom dizer que mais de
uma rapariga se tinha prevenido para o caso, resguardando as costas do
vestido no sitio provavel do contacto, por meio de um lenço pregado com
alfinetes. Os pares, assim unidos, avançaram para o centro e recuaram,
passando cada homem á dama que lhe ficava logo á direita, para com ella
executar isto mesmo, e assim successivamente, até encontrar-se de novo
com a que lhe pertencia.

Umas das senhoras da cidade, a Annina Mesquita, bem conhecida pelo seu
romantismo piegas, cantou com uma voz, que, em homenagem á verdade,
deveria chamar-se de canna rachada:

    Encostei-me ao pecegueiro,
    Cobri-me toda de flôr,
    Ai de mim tão pequenina
    Tão perseguida de amôr!

Mas por um pouco não deixava a quadra incompleta, porque estrondearam
perto, contendendo-lhe com os nervos, duas bombas, deitadas da
janella pelo João Furtado, para solemnisar o acabamento da ceia dos
_foliões_. Estes saíram á formiga, deixando a bandeira, o tambor e
os pandeiros, e levando comsigo, embrulhadas n’um lenço, as opas e os
sapatos. Dois tinham de ir para longe, e com similhantes trambolhos nos
pés, arriscavam-se a ficar pelo caminho.

Á «cadeia» seguiu-se a marca «Foge!» equivalente á _grande-chaine_,
mas principiada com a mão direita, e fazendo os homens um movimento
analogo ao _balancé_.

--Quer n’uma, quer n’outra--disse o José comsigo mesmo--o Ricardinho
apertou a mão de Maria!

Não tinha duvida.

Da chama-rita, passou-se aos bailes-de-roda, e a outras danças.

No _sapateia de cadeia_ bailou tambem o Joaquim Machado, tomando
logar no extremo d’uma das fileiras, viola ao peito, os restantes pares
dispostos como na chama-rita.

O José ia estourando de raiva, ao ver a Maria dançar mais uma vez com
o Ricardinho, mas conteve-se e foi tirar a Luiza, filha do regedor da
freguezia. Andou tão alegre, que até cantou esta quadra popular, com
que o João Furtado se escangalhava sempre com riso:

    Uma jaqueta de abob’ra,
    Forrada de melancia,
    As casas de vento norte,
    Os botões de calmaria.

Durante ella, as duas linhas de dançadores avançaram uma para a outra e
recuaram até ao ponto de partida.

E logo o Joaquim Machado atacou, muito emphatico:

    Foge, anda tu, ó meu bem,
    Foge, amor, que eu tambem fujo,
    Fujamos ambos p’ra o matto,
    Para á sombra do tamujo!

O primeiro d’estes versos foi o signal para se executar o «Foge» da
chama-rita, ao qual succedeu a «Cadeia» do mesmo baile. Chegados todos
aos seus logares, o Ricardinho cantou:

    Oh! Sapateia, meu bem.
    Sapateia de cadeia,
    Deixa-me ir banhar no mar,
    No mar que dorme na areia!

O mestre da viola, tocando sempre, retorquiu, com guelas de estentor:

    Oh! Sapateia, meu bem!
    Oh! Sapateia, faz arco!
    Diga o mundo o que disser,
    Já d’aqui me não aparto!

Ao primeiro verso, a fileira do lado do Joaquim Machado voltou-se para
a direita e a opposta para a esquerda, e cada dançante, com excepção
d’aquelle, deu a mão ao seu par e levantou o braço, formando-se assim
uma especie de abobada. O tocador e a dama respectiva passaram então
sob o arco formado pelo par mais proximo, contornaram o par seguinte,
mas pelo lado exterior, e foram passar por baixo do arco do terceiro
par, e assim successivamente. O segundo par executou eguaes movimentos,
logo que deu passagem ao mestre da viola, e todos os mais foram fazendo
o mesmo, com uma regularidade tamanha, que o proprio vigario applaudiu
enthusiasmado.

As danças succederam ás danças, e os pares succederam aos pares, não
porque alguem desse parte de fraco, mas porque era preciso contentar a
todos os que tambem queriam _brincar_ o seu boccadinho.

       *       *       *       *       *

Era noite velha e ainda a folga não tinha acabado.

As tres senhoras voltaram para a cidade n’uma carruagem, alugada para
as levar e trazer; João Terra veiu no seu burrinho, e os quatro rapazes
a pé, visto não ser grande a distancia dos Flamengos á Horta, e a noite
estar fresca.

Não havia luar, mas as estrellas palpitavam com vivo clarão no fundo
negro do ceo, tão limpo de humidade que nem lembrava ceo dos Açores.

O Ricardinho na frente com o Luiz Carvalho, aturava-lhe os remoques,
visto que o outro, não tendo podido n’aquella noite justificar a sua
fama de conquistador, se desforrava com o amigo.

Mettido no vão de uma porta, para onde correra logo que os viu partir,
o José ouviu-lhes a conversa, sem que nenhum dos quatro o presentisse:

--Grande brejeiro, dizia o Carvalho. Quizeste ser imperador sem ter
coroado!

--Fala claro, que não te entendo, voltou-lhe o Ricardinho.

--Talvez não arrastasses a aza á imperatriz? Parabens, que a pequena é
de estalo! Mas o mais certo é não fazeres vaza. A Maria é muito capaz
de judiar comtigo uns poucos de mezes, e deixar-te no fim a chuchar no
dedo.

--O futuro a Deus pertence.

--Pois ella é que nunca te ha de pertencer!

O Ricardo Terra estacou, mesmo á ilharga da porta onde estava o José, e
disse com a prosapia inconsciente dos seus vinte annos:

--Queres tu apostar em como antes de um mez a tenho no meu rol?

O sobrinho do João Furtado sentiu uma vertigem, um desejo phrenetico de
partir, de espedaçar alguma coisa, mas não fez o menor movimento.

Atravez das candeias amarellas que lhe bailavam deante dos olhos,
distinguiu que o fato do Ricardo era claro, e escuros os dos mais.

Quando os viu longe, correu para o mesmo lado e entrou n’uma terra, que
acompanha a estrada durante uma grande extensão, e que é resguardada
por um muro baixo.

Tendo-lhes ganho consideravel deanteira, agarrou n’um pedregulho e
acocorou-se por traz do muro.

Pouco teve que esperar. Deitou a cabeça de fóra cautelosamente.

O Ricardinho vinha á direita. Era o mais proximo.

Apenas o teve a dois passos, ergueu-se de chofre, levantou a pedra com
ambas as mãos, bem acima da cabeça, e atirou-lh’a com quanta força
tinha.

Um grito e o baque de um corpo.

Afastou-se do muro rastejando, e desatou a correr como um coelho em
campo aberto. Ainda foi dançar quatro chama-ritas á _folga_ do
tio, que só acabou quando já era sol nado.

       *       *       *       *       *

Nunca se descobriu quem fôra o assassino do Ricardinho Terra.

Como o pae e o filho se tinham envolvido n’uma tramoia eleitoral,
falaram os jornaes da opposição em vinganças politicas.

O João Furtado é que de alguma coisa desconfiou, e por causa das
duvidas arranjou d’alli a mezes e muito ás occultas, passagem para o
José a bordo de uma baleeira.

O rapaz foi ter aos Estados-Unidos. Um anno depois mandou pedir a prima
em casamento, aconselhando ao tio que fosse mais ella para S. Francisco
da California, pois se haviam de arranjar muito bem.

O João Furtado, como averiguou que o sobrinho estava a caminho da
riqueza, seguiu-lhe o conselho.

A Maria é hoje muito feliz com o marido; mas o sogro, á cautela, não
vive em casa do genro.


[Ilustração]


[Ilustração]




                                O Paiol


ERA temivel o sargento Bernardo quando principiava a contar historias,
mas como rastejava pelos setenta annos e tinha sido um valente,
todos o escutavam com pachorra. Um dia na Malaca, pequena bateria do
castello de S. João Baptista, na Terceira, ouviram-lhe o seguinte caso.
Affiançaram-me depois que a narrativa não era destituida de fundamento.

Demos a palavra ao sargento Bernardo:

«Não sei bem quando isto foi. Lembro-me de que tinha vindo de Lisboa
para S. Miguel em cabo, e que estava lá destacado havia bastante tempo.
O commandante do material era um capitãosinho de má cara, d’aquelles
com quem a gente não engraça, nem á quinta facada.

Por isso o meu commandante, o nosso tenente, nunca era com elle visto,
nem achado.

Um dia começou a fallazar-se do homem. Sabem que mais? Pelos modos
fazia o mesmo que o mestre do cazão de caçadores, que foi n’outro dia
responder a conselho ... cortava-se, mas não era com tiras de panno!
O que elle bifava, era muita e muita arroba da polvora do paiol. Mas
lá na que dava para as salvas não roubava nada, essa lhes juro eu! As
peças davam sempre o mesmo berro.

A coisa tinha-se divulgado, e já se dizia pela cidade que o paiol
estava cheio d’areia, porque a polvora tinha-a queimado o capitão ...
puxando o rabo á sota.

Que jogava era tambem certo. Excommungado!... Deus me perdôe! Não havia
noite nenhuma em que eu estivesse de guarda ao quartel, no castello
de S. Braz, que não me tivesse de levantar por causa do melro. E
quasi sempre duas e tres vezes! Vinha buscar dinheiro, para voltar
para a jogatina. E com que cara de peccado mortal elle andava! Se o
visse á meia noite, em logar escuso, era capaz de pôr-me a crer nas
feitiçarias, em que toda a galuchada de S. Miguel acredita como no
Divino Espirito Santo.

Andavam os taes dictos, quando chegou navio de Lisboa. D’alli a pedaço
disparam esta novidade no castello; o capitão do material vae ser
rendido e já desembarcou o tenente, que vem para o logar d’elle. Fiquei
banzado!

No dia seguinte vi o official novo. Era um perfeito moço, lá isso era!
Alto como uma torre, grosso que nem isto...--O Bernardo abriu muito
os braços, formando circulo.--E então a falar?... Tinha o diabo em si!
Devia ser do Algarve.

Segundo parece, contou logo que no commando geral da artilheria já
se sabia da marosca do capitão, e que elle, tenente, recebera ordem
para ver tudo, coisa por coisa. Se até disse que trazia uma balança de
botica, para pesar as onças e meias onças de polvora!... Era chalaça,
está visto.»

--E o outro, ó tio Bernardo? perguntou um dos que ouviam o veterano.

«O capitão? Se julgam que mudou de cara, enganam-se redondamente. Qual
historia! Até o achei de melhor parecer, quasi a sorrir!

Passados tres dias, começou a entrega. Foram primeiro ás peças,
palamenta, lanternetas...»

--Sim, tudo o que atulhava os armazens do material de guerra,
interrompeu um dos ouvintes. E depois?

--Ah! Vocemecês teem pressa? atalhou o Bernardo. Pois então haja saude!
E ia retirar-se.

Só depois de muito instado, se resolveu a continuar a historia, mas
d’esta vez com certo mau humor.

«No dia em que se devia entregar a polvora fui nomeado para ir com
as fachinas ao paiol, acompanhar os dois senhores officiaes. Eu não
acredito em bruxedos, já lhes disse, mas não sei o que me passou pela
cabeça, quando me deram parte da nomeação. Parece-me que tremi de medo,
o que me não tinha acontecido, podem crer, nas Antas nem no convento da
Serra do Pilar. Ao menos nas linhas do Porto, sabia eu haver-me com os
demos dos Corcundas, mas alli... O coração adivinhava-me alguma coisa.
Á tarde fomos todos para o paiol. Sabem onde elle fica! Saíndo a gente
da cidade para os Arrifes e andando menos de um quarto de hora, topa-o
á sua mão esquerda.

Iamos eu, as quatro fachinas, o capitão da jogatina e o tenente novo.
Os dois senhores officiaes, por signal, tinham jantado bem, muito bem
até! Logo se conhecia...

Chegou-se ao paiol, abriu-se a porta do guarda-fogo e a do
armazem,--tudo sem novidade. Quando eu estava a olhar para os barris
e cunhetes, que já começava a lobrigar alinhados em duas fileiras, o
capitão voltou-se para mim e disse-me:

--O’ cabo Bernardo, você já esteve em minha casa, lá no castello de S.
Braz?

--Saberá V. S.^a que sim, senhor.

--Pois então vá buscar o mappa da carga, que deixei lá por
esquecimento. Peça-o ao fiel, ao 36.

Fiz meia volta e já ia para marchar, quando ouvi:

--Olhe!

Volvi logo á rectaguarda.

--Onde está a balança que lhe deu o fiel?

--Saberá V. S.^a que o fiel não me deu balança nenhuma.

--Cabeça de burro! Pois então volte você ao castello, e peça-lh’a! Como
quereria o 36 que pesassemos a polvora? Tolice fiz eu em dispensal-o.
Estava doente... É verdade! Leve as fachinas para trazerem a balança.

--Bastam duas para a balança e uma para os pesos.

O capitão olhou para mim d’um modo exquisito e disse afinal, como se
lhe custasse:

--Pois sim, deixe ficar um homem.

Quando ia atravessando o guarda-fogo, deitei os olhos para o tenente,
que, sem se importar com o caso, estava alegre a não poder mais. Eu já
disse que elles tinham jantado bem.»

--Ó tio Bernardo, você está dizendo mal dos seus superiores! notou um
dos ouvintes, a rir.

--Leva rumor! acudiu outro. Queremos o resto da historia.

«Elle ahi vae, disse o velho, que estando para acabar um conto, não
era capaz de parar nem á mão de Deus Padre. Quando eu ia pela estrada
abaixo, para o lado da cidade, mais os tres galuchos... tres não,
dois!... tambem lá estava um soldado velho, o 27, que tinha andado
commigo nas sarrafuscas da Patuléa... Ah! mas quando eu ia na estrada,
sentia-me alliviado de um peso de seiscentas arrobas... Não ficava mais
satisfeito deitando ao chão a mochila, depois de uma marcha de oito
leguas. Teria a gente dado uns duzentos passos, e eu ia conversando a
este respeito com o 27, eis senão quando a terra nos treme debaixo dos
pés, e por um pouco não vamos todos de ventas ao chão. Ao mesmo tempo
sentiu-se um estrondo, como se tivessem disparado alli ao pé uma duzia
de peças de quarenta e oito! Que demonio seria aquillo?»

--O que era, tio Bernardo? perguntaram todos com interesse.

«Tremor de terra não seria, trovoada menos ainda.--O paiol! foi o
grito que me saíu da bocca. Voltei para traz, a correr como um doido.

[Ilustração]

D’alli a um instante vi que não me tinha enganado. A parede do
guarda-fogo, do lado da estrada, estava tão esborralhada que não ficara
pedra sobre pedra. O paiol tinha ido pelos ares. Só restavam umas
ruinas fumegantes.

Quando andavamos a revolver o enthulho, para ver se encontravamos o
corpo d’algum d’aquelles pobres de Christo, appareceu-nos o cabo da
guarda, que tinha escapado por estar longe do seu posto... a falar com
uma rapariga. Maroto! Livrou-se da morte, mas precisava meia duzia de
guardas de castigo.»

--E mais ninguem escapou?

--Escapou tambem a sentinella. Apanhou com pedras no corpo e perdeu
dois dedos de uma das mãos, sendo por isso passado a veteranos. Veiu cá
morrer ao castello d’Angra.

--E o que tinha succedido no paiol?

«Ao certo só Deus o pode dizer. O que se averiguou, foi que o maldito
do capitão veiu fora do guarda-fogo, accender um charuto. A sentinella
ainda lhe fez reparo. Estivesse eu lá que sabendo as coisas como
corriam, atirava-me a elle e já não o largava. Boas ganas sentiria o
capitão ao tenente chegado de Lisboa! De mais a mais, queria esconder
a ladroeira. Pouco depois a sentinella apanhou com as pedras e não deu
tino de mais nada.»

--Não se acharam os corpos?

«Achou-se o do tenente, á distancia de uns quinhentos passos.
Reconheceram-o bem. Pelos modos o pobresinho ainda quiz fugir, porque o
_cadavre_ estava menos queimado que os restos dos outros corpos.

Gente que viu de longe aquella desgraça, contava que tinha subido para
o ar um grande esguicho de fogo, tal qual, julgo eu, quando os montes
da ilha vomitavam lume, em tempos que já lá vão muito longe.»

--Sabe o que me parece exquisito, tio Bernardo? notou alguem. O tenente
não desconfiar da marosca do capitão!

--Essa cá me fica! Não disse eu que elle estava transtornado com a
bebida? Coitado! Tive pena d’elle. Era um rapagão como as casas!

--Do capitão é que o tio Bernardo não pode dizer mal. Se elle o não
mandasse embora...

--Tinha eu dado um salto de mil diabos, olá se tinha! Apesar d’isso,
não lhe perdôo. Porque não morreu elle sósinho? Se queria acabar com
estrondo, se não lhe bastavam os tiros da escolta á porta do cemiterio,
que demonio! mettesse-se n’um bote mais um cunhete de polvora, remasse
para o largo, e mecha no caso!... D’aquella maneira pagaram justos por
peccadores. Não lhe perdôo!»


[Ilustração]




[Ilustração]




                            As feiticeiras


OLÁ se elle acreditava em bruxarias!

Com essas historias o tinham embalado.--A avó, mulher _de remate_,
fartara-se de contar-lhe o caso do homem, que estando no Brazil foi uma
noite visitado pela mulher, que vivia em S. Miguel, n’aquella mesma
villa da Lagôa. Havia bem quatro mezes que a triste não recebia cartas
do ausente, e como pelas que um visinho mandava á familia soubesse que
elle estava de saude, desconfiou de que outra lh’o tivesse roubado.
Para se tirar das duvidas, foi ter com uma bruxa, levando comsigo um
collete velho, que o marido antes de saír da ilha tinha suado muita vez
no trabalho, e que por conseguinte poderia servir para o bruxedo. «Ai!
Quem me déra ver meu marido!» disse ella á feiticeira, quando acabou de
explicar-lhe o que padecia. «E eras capaz de ir commigo?» perguntou-lhe
a velha.--«Pois não!»--«Sem te admirares do que visses?»--«De
nada!»--«Pois então vamos vel-o esta mesma noite. Quando me ouvires
dizer: Vamos com os diabos!, repetes isto mesmo, e verás como te faço
a vontade.» Ao bater das doze badaladas, estava á porta da bruxa.
Perto cantou um gallo, de tal maneira que mettia medo. A feiticeira
appareceu: trazia um lençol, para com elle fazer um barco, segundo o
costume d’essas malditas, quando teem de ir para o mar; mudou, porém,
de tenção e voltou a casa. Tinha-se lembrado de coisa melhor. Passados
instantes, partiram. O pau de vassoura em que iam as duas, corria por
ares e ventos mais do que essas estrellas, que passam no ceo deixando
atraz de si um risco de lume. Muito em baixo, avistava-se como que um
lençol escuro, azulado e muito grande, sem fim--devia ser o mar.--A
porta do quarto do marido abriu-se de pancada, mas sem bulha... Se era
por artes magicas!--O traidor lá estava deitado com outra mulher.--Se a
bruxa consentisse, ella matava-os a ambos; mas só lhe deixou arrancar
uma das mangas ao vestido, que a outra, quando se metteu na cama, tinha
deitado para cima de uma cadeira. Assim, levava uma prova contra o
marido, e podia certificar-se em qualquer tempo de que tudo aquillo não
fôra obra de sonho nem de loucura.--Voltaram como tinham ido--o dicto
cabe aqui perfeitamente--em quanto o diabo esfrega um olho, e fizeram
um novo bruxedo, para que o marido tornasse quanto antes.--Ao cabo de
mez e mez e meio, chegava a S. Miguel.--«Estás como um cravo! disse
elle á mulher, quando entrou em casa, e quiz abraçal-a. Repelliu-o e
perguntou-lhe o que tinha feito n’aquella noite, de que marcou a data
precisamente. «Isto é que se chama! Quem se póde lembrar, depois de
tanto tempo?...»--«Lembro-me eu!» E atirou-lhe á cara com a traição,
que o homem negou a pés juntos. Ella então correu á commoda, tirou para
fora a manga, e pondo-a bem á vista do marido, gritou-lhe: «Nega ainda,
se és capaz, nega! Fui lá, vi-te deitado com a brazileira, e arranquei
esta manga ao vestido da _ganhôa_!»--«Mas tu tens estado sempre
na ilha...» redarguiu elle, branco, enfiado. «Sempre, menos n’aquella
noite!»--«Ai! Que esta mulher é feiticeira!» exclamou o homem, fugindo
espavorido. No primeiro navio embarcou para o Rio de Janeiro, e lá
morreu pouco depois: da febre, disseram os cirurgiões; dos novos
feitiços que a mulher e a bruxa lhe fizeram, para que mais nenhuma o
lograsse, affirmava muito convencida a boa da velhinha.

Mas ainda que a avó não lhe tivesse contado esta e outras historias
similhantes, o Francisco Raposo não deixaria de crer em feiticeiras, á
vista de dois casos succedidos com elle.

O primeiro ainda poderia deixar-lhe duvidas. Era pequeno e vinha para
casa, com um molho de lenha miuda. Já era noite fechada. Estava com
somno. De repente, zumba, lenha ao chão! Levantou-a sem mais reparos,
e foi andando. Logo adeante, repetiu-se o mesmo. Sentiu a pelle a
arripiar-se, mas tornou a apanhar o molho. Deu mais cincoenta passos,
e a lenha caiu-lhe pela terceira vez. Sem querer saber dos gravetos,
desatou a correr como um perdigueiro atraz da caça, e só parou em
casa, esbaforido, suando em bica. O pae riu-se e disse-lhe que não
deitasse as culpas ás feiticeiras mas ao João Pestana. «Da primeira
queda, sim senhor, respondeu elle, mas lá das outras...»

O segundo caso é que não admittia a menor duvida. Já era um homem. Pela
noite velha ia subindo aquelle caminho, que passa por cima da Ribeira
Quente e d’onde se avista um grande pedaço da costa. Levava ao hombro,
por tal signal, uns pés de batata doce, que o tio Joaquim lhe tinha
encommendado. Por acaso virou-se para traz, e o que viu?... O mar todo
em fogo ... um fogo muito branco, como se a lua se tivesse delido na
agua. E ainda mais transido ficou, avistando uns vultos esbranquiçados
a caírem da rocha para o mar, deixando faiscas por onde passavam, em
quanto alli perto n’um chão imitante uma eira, dançavam outros de mãos
dadas, aos pinchos, soltando umas gargalhadas e uns gritos muito finos,
eguaes aos que dão certamente no inferno os condemnados, sempre que
vêem chegar mais uma alma, para soffrer as penas eternas.

Tendo-lhe ouvido a historia, um senhor de Villa Franca disse-lhe que a
claridade do mar era do phosphoro de certos mariscos, e que o mais fôra
inventado pelo medo.

A primeira explicação, não a entendeu o Francisco; e em quanto ao
medo, não fôra elle tamanho que lhe fizesse perder os pés de batata
doce. E tanto eram bruxas, que o caso lhe tinha acontecido no dia
d’ellas--n’uma terça feira.

       *       *       *       *       *

Não admira, pois, que tendo-lhe começado os negocios a correr mal e a
fortuna a desandar, elle attribuisse tudo isto a obra de feitiçaria.
Duas vezes seguidas se lhe estragou a sementeira do milho, em quanto as
dos visinhos estavam que se podiam ver. Apodreceu-lhe tambem o batatal,
não escapando sequer a batata já colhida, que toda _azougou_.
Seria natural tudo isto?

Para mais desgraça, tinha-lhe adoecido a melhor das duas vaccas, e o
ferrador, não se entendendo com a doença, disse-lhe afinal, porque
era homem de bem, e não quiz ganhar-lhe mais dinheiro: «Haja saude,
Francisco e não voltes cá. Fica-te com esta: o que a vacca tem é mau
olhado, e com esse não me sei haver. Vê se falas ao curandeiro das
Furnas, mas antes de lá ir, trata de saber quem daria quebranto á pobre
da alimaria.

Foi isto o que de todo o convenceu.--Mas quem poderia desejar-lhe tanto
mal, quem?--Tinha vivido sempre bem com toda a gente; a nenhum visinho
dera nunca razão de queixa...

Zangas sérias só as tinha tido com o primo João da Arruda, por causa
da herança da tia Gertrudes, mas esse já não era capaz de fazer-lhe
damno, que estava ha mais de seis mezes na terra da verdade. Morrera
talvez pelo desgosto de ficar mal na demanda, em que um e outro tinham
gasto rios de dinheiro. Tivera-lhe muita raiva, mas sem nunca poder
satisfazel-a, graças a Deus!... Mostrava-lh’a bem n’aquelles olhares
atravessados, que lhe deitava todas as vezes que passavam um pelo outro.

Sim! D’esse estava livre!

Da familia do primo só restavam duas irmãs, ou para melhor dizer uma
só, visto que a mais velha já não se levantava da cama e era como se
não existisse. E mesmo a outra, a Marianna, estava quasi sempre em
casa, parece que a tratar da doente.

Lembrou se de que ia atraz da vacca, da ultima vez em que a encontrara.
E sem querer estremeceu.

--Seria a corsaria que lhe andava a dar quebranto?...

A avó sempre lhe dizia: Deus nos livre do poder da má mulher.

Recordou-se melhor d’aquelle encontro.

A prima passou por elle sem trocarem, está bem de vêr, o Deus te
salve, e já deviam ir longe um do outro, quando o Francisco, sem saber
porque, se voltou para traz. Pareceu-lhe que o tinham obrigado áquelle
movimento. E viu os olhos da irmã do João da Arruda pregados n’elle,
como os do irmão, e talvez a mostrarem-lhe ainda maior zanga. Teve
ganas de moel-a com pancadas, mas deixou-a ir em paz, visto que ella
seguiu o seu caminho apenas o encarou.

Dois dias depois--agora é que ligava estas coisas--adoecia-lhe a vacca.

Tratou de saber se mais alguma pessoa lhe poderia querer mal, e não
descobriu nenhuma, nenhuma.

Tirou inculcas e veiu ao conhecimento de que a Marianna já pouco ia á
missa. Da ultima vez que lá foi, chegou quando o sr. padre já estava no
altar e saíu antes de se ter dicto a ultima palavra do santo sacrificio.

--Não quer deixar por muito tempo a irmã sósinha em casa, explicou
alguem.

--Não será por outra razão? perguntou o Francisco, muito assomado. Não
pode estar bem na egreja, quem anda mettido com o demonio!

--Ui! Isso é que é falar! respondeu o outro, mal convencido.

Quem lhe dava todos os amens, era uma irmã do pae, a tia Lauriana,
que morava sósinha e que para algumas pessoas tinha fama de bruxa e
de saber _lêr a dita_. As coisas que ella contou ao sobrinho,
deixaram-o estupefacto, sem pinga de sangue. Entre outras, disse-lhe
que ha gente que para atormentar um inimigo compra um coração de
boi preto--boi de outra côr não serve--, pendura-o na chaminé, e
todos os dias o vae espicaçando--quanto mais funda a picada, maior o
tormento--com uma tesoura aberta em cruz, e dizendo ao mesmo tempo
uma oração de resultados tão certos como os da reza da peneira,
que serve para adivinhar o futuro. Á medida que o coração se torna
escuro e mirrado, tambem o inimigo emmagrece, e perde saude, alegria,
felicidade. Egualmente proclamou os effeitos da terra de cemiterio,
colhida n’uma sexta feira á meia noite.

--Ui, homem, não te lembras da minha prima Luiza?... Não! Não te podes
lembrar, disse-lhe a tia Lauriana. Pois a Luiza casou com um rapaz,
que tinha tido amores com uma bruxa. E vae esta pegou em si e botou-lhe
feitiços. E o pobre de Christo andava depois a gritar pela casa, a
_oviar_ como um cão e a esconder-se debaixo das mezas e cadeiras.
Ás duas por tres a Luiza estava na mesma. Só muito depois melhoraram...
Arranjei-lhe eu ... quero dizer, arranjou-lhe alguem o remedi o... e
poz-se a benzer a cabeça de ambos ... e elles então lançaram de si uma
coisa com alfinetes ... mas viveram pouco mais tempo.

O Francisco perguntou á tia o que pensava da Marianna e da irmã.

--Tu gostas d’ellas? Assim eu gosto, respondeu a velha. Ainda bem que
fizeste o irmão gastar com a justiça quasi tudo o que tinha. Nem elle
nem as irmãs se lembraram nunca de me dar nada.

--E serão feiticeiras as duas? Serão ellas que me fazem mal, mesmo
encafuadas na toca?

--Não digo menos d’isso, redarguiu a tia Lauriana, e aconselhou-o a
vigial-as, a ir ás escondidas ao pé da casa das primas. Se sentisse
cheiro a hervas queimadas ou algum parecido com esse, podia ficar na
certeza de que todo o seu mal vinha d’alli.

--As feiticeiras defumam sempre as casas, fingindo louvar o Santissimo
Sacramento, quando por fim de contas dizia a velha com entono, o que
ellas teem é pacto com o diabo, a quem rezam como a gente reza a Deus
Nosso Senhor.

O Francisco não queria ainda lançar todas as culpas á Marianna.

Quem sabe se o bruxedo seria feito por algum inimigo, de que elle não
desconfiasse?

       *       *       *       *       *

Em todo o caso tratou de precaver-se contra a influencia malefica, e
tambem para isto lhe foi a Lauriana uma abalisada conselheira.

Por traz da porta pendurou uma faca, de gume voltado para a rua e
um chavelho de boi, a que todas as manhãs queimava a ponta, o que
tambem fazia a um chifre de carneiro, que lhe era companhia constante.
Ao mesmo tempo defumava a casa, _rezando os quartos em cruz_
e deixando o fumo atraz de si. D’esta maneira, se as bruxas lhe
entrassem, como costumam, pelo buraco da fechadura, tornariam logo a
sair.

Ainda receioso de que estes meios não fossem bastantes, preparou-se
para dar uma lição á feiticeira que conseguisse invadir-lhe o
domicilio. Comprou uma navalha com cabo de ponta de veado, amarrou-lhe
um rosario bento e pôl-a aberta, junto á cabeceira da cama. Mal visse
uma bruxa, atiraria a navalha, de modo que se espetasse no chão. E
tanto aquella como as outras que viessem tental-o, ficariam alli
presas, remoinhando estonteadas em volta do rosario, como em torno de
uma luz esvoaçam os mosquitos. Elle então levantar-se-hia da cama,
armado com a competente verdasca, e moeria á bordoada as infernaes
visitantes. Mas esperou-as debalde noites e noites, ás escuras, de
olhos muito abertos, ouvido á escuta.

--Alguem de certo as avisou, explicou-lhe a tia.

O triste foi emmagrecendo; tornou-se amarello, escaveirado.

Os visinhos já lhe sabiam das crendices. Dois d’elles, uns doidivanas
que ás proprias familias se não cansavam de pregar peças, tomaram o
Francisco á sua conta. Moravam á ilharga, e uma noite, emquanto um lhe
distraia as attenções, o outro conseguiu entrar-lhe em casa e amarrar a
uma das pontas da colcha um cordel, que extendeu pelo chão até á rua.
Meia hora depois o Francisco estava deitado, e já ia pegando no somno,
tão estremunhado elle andava pelas continuas vigilias, quando sentiu a
roupa a fugir.--D’esta vez é que eram ellas!-- E atirou-lhes a navalha,
mas, pela precipitação, a ponta não se cravou no solho.--Ainda lhe
escapavam as malditas!--Só por vergonha não gritou por soccorro.

Ainda que lhe revelassem a verdade, não acreditaria. Da brincadeira
tinha desapparecido qualquer vestigio, porque um puxão mais forte
fizera o cordel escapulir da colcha.

Como não vissem o resultado da primeira facecia, os esturdios, tarde
da noite, espalharam á porta do visinho uma porção de sal e de cinza.
Quando o Francisco saía de manhã, para ir tratar das vaccas, sentiu
uma coisa a estalar-lhe debaixo dos pés e ia tendo uma vertigem. Uma
_salgadeira_ á porta!... E de mais a mais tinha-a pisado!

Correu a chamar a tia.

A velha observou de longe e a medo, benzeu-se e murmurou:

--Eh! Senhor! Muito mal te querem, filho. E o que as bruxas te deitaram
á porta!... Sal, azeite, _incensio_, terra de cemiterio ... pois
aquella terra é de cemiterio com certeza! Credo! E tambem pennas, não
vês? accrescentou ella, indicando duas pennas de ave, que alli estavam
por acaso. Manda já varrer tudo isto ... para o lado de fóra, toma
sentido!... E vae queimar as botas com que pisaste o sal. Cruzes!
Cruzes!

Assim se fez. As botas eram novas da vespera.

Por traz das persianas, os dois sustinham o riso a muito custo, e
apenas viram o visinho entrar em casa e a velha ir-se embora, fecharam
a vidraça, e começaram aos pulos, ás gargalhadas, planeando nova
brincadeira.

Arrepender-se-hiam talvez, se podessem ver o Francisco de joelhos
deante do oratorio, erguendo uma supplica ardente para os santos, que
conservava de ha muito constantemente allumiados.

Antes de entrar, tinha hesitado e estivera quasi a obedecer á
tentação...

Sentia ainda uma esperança. É que a vacca parecia melhorar.

Aquelles santinhos, especialmente o representado n’um retrato egual aos
que se tiram hoje em dia ás pessoas[7], quantos milagres não tinham
feito em vida e depois da morte? Porque não haviam de fazer mais um,
a favor de quem lhe rezava com devoção tamanha, o coração opprimido, o
rosto banhado de lagrimas?

E por largo tempo invocou o auxilio milagroso de Santo Antonio.

       *       *       *       *       *

No dia de Natal a vacca amanheceu muito peior. Soltava a cada instante
um mugido tão triste e doloroso, que nem uma alma christã metteria mais
compaixão, dizia depois, na cadeia, o Francisco Raposo.

--Só a Marianna não terá dó do pobre do bicho, pensou elle, quasi a
chorar.

A vacca fitou o dono com uns olhos muito afflictos, como a pedir que
lhe acudisse, que não a deixasse morrer.

Depois teve um tremor por todo o corpo, descaíu a cabeça para o chão,
extendeu muito as pernas, deitou pela bocca uma baba muito grossa, e os
olhos embaciaram-se-lhe.--Estava morta.

--Quarenta patacas perdidas! gemeu o Francisco, e arrimou-se á
humbreira da porta, arrancando os cabellos, praguejando, e batendo
alli tão fortemente com a cabeça, que era um pasmo não a partir.

Ouviu tocar á missa.

Encaminhou-se para a egreja. Escutar a voz do sr. padre vigario, que
sabia dar tão bons conselhos, vêr a hostia consagrada, tudo havia de
socegal-o, e afastar-lhe os pensamentos ruins.

A missa ainda não tinha começado.

--Se a Marianna lá estaria?--Alli é que ella havia de ir, por ser a
egreja mais proxima.

Não estava.

--Hereje! Nem sequer no dia do Natal!...

Mas o sr. vigario dissera já outras duas missas n’essa manhã, e talvez
a prima tivesse ouvido alguma d’ellas.

Viu a tia logo adeante, e foi falar-lhe. D’ahi a momentos, já sabia que
a Marianna não tinha estado na egreja.

--Vi-a hoje, mas não foi na casa de Deus Nosso Senhor. Foi no foral,
que vae dar ao sitio onde ella _véve_. Levava até, pendurada na
mão, uma fressura de boi.

--Eh, senhora! Porque levava ella isso?

--Eu sei lá, Chico! Talvez por ser o que se tira mais barato no
açougue, quasi de graça... Ou quem sabe se?...

A velha calou-se.

--Levava tambem o coração? perguntou-lhe o Francisco anciosamente.

--Pois não, filho! Mas cala-te, que o sr. padre vigario não tarda.

O que mais lhe importava era a missa, depois do que acabava de
saber!--A Marianna ainda não estava satisfeita com o mal que lhe
causara! Sem se valer da bruxaria do coração espicaçado com a tesoura,
já o tinha posto de rastos; o que faria agora, que ia usar d’este meio?
Bem podia elle preparar-se para ficar sem nada: sem a outra vacca, sem
as terras, sem a casa... Se o fogo não lh’a queimasse, deitava-lh’a
abaixo algum tremor de terra. Na ilha ha tantos!... E o demonio
arranjaria de certo mais um, se as bruxas lh’o pedissem.

Ia tão fóra de si, que ainda estava de cabeça descoberta.

Chegou em frente da casa térrea onde moravam as primas.

Da chaminé saía fumo--um fumo negro, signal certo de maldade.

Entrou no quintal, e rodeou a casa, para ir ver o que estavam a fazer
na cosinha.

Tudo parecia abandonado, como se tivesse passado por alli a morte. Uns
pés de couve meio seccos ... uma parreira comida pela doença...

Deante da porta, junto ao cepo de partir a lenha, amarellejava um
machado coberto de ferrugem.

Escutou.

       *       *       *       *       *

Bem triste aquella manhã em casa da Marianna.

Com as faltas de ar que lhe causava a lesão cardiaca, tinha a doente
passado a noite em afflicções, e só depois de já ir o sol bem alto,
pegou no somno, sentada na cama e encostada a umas almofadas e
travesseiros.

A Marianna, a despeito de não ter dormido um instante, saíu devagarinho
e foi á cata de uma senhora, que lhe promettera mandar vir das Furnas
os remedios applicados áquella doença pelo famoso curandeiro.

As hervas e o mais tinham chegado na vespera, á noite. Se o curandeiro
ia envergonhar os cirurgiões!... E com estes e com a botica, as duas
irmãs tinham gasto mais do que podiam. A boa senhora ensinou á Marianna
uma oração, que vinha escripta n’um papel, para ser dicta emquanto se
queimassem as hervas. A pobre pagou os remedios com o ultimo dinheiro
que levava, e tornou para casa.

Á porta do açougue viu uma bella peça de carne. Suspirou, pensando
que nem um caldo poderia dar n’aquelle dia á irmã. E queria-lhe
tanto!...--Quando a mãe lhes faltara, o pae andava mettido com a
cunhada, a Lauriana, e nem pensava nas filhas. Só a irmã mais velha
cuidara na outra, que pouco mais tinha de oito mezes. Era a sua segunda
mãe.

O homem do açougue viu-a e adivinhando o motivo d’aquelle suspiro,
d’aquella tristeza, offereceu-lhe um coração e um pedaço de figado, que
pendiam de um gancho, a escorrerem sangue.

A Marianna quiz recusar, mas por fim acceitou a esmola com
reconhecimento.

Entrou em casa de mansinho. Assim mesmo a doente acordou.

--Aqui veem novos remedios, disse-lhe ella, em quanto accendia o lume.
Estes agora, sim! Curam a toda a gente. Primeiro vou defumar a casa com
as hervas: alecrim, rosmaninho e outras que não conheço. O remedio da
garrafa é para se tomar á noite.

A doente abanou a cabeça, com melancholia.

--No dia de Anno Bom, se Deus quizer, já havemos de ir ambas á missa!
continuou a Marianna muito alegre, e encostou a porta da cosinha, por
ter passado a fumaceira da lenha. Foi ajudar a irmã a sentar-se á borda
do leito e voltou para a chaminé. Logo que a lenha formou brazas,
deitou-as para um fogareiro pequeno, e sobre ellas acamou as hervas do
curandeiro.

Levantou se um fumo espesso e escuro, que invadiu toda a casa.

A Marianna levou o fogareiro para junto da irmã, dizendo ao mesmo tempo:

«A minha casa venho defumar em louvor do Santissimo Sacramento do
altar, com as tres missas do Natal, com as tres hostias consagradas,
com os tres padres vestidos e revestidos...»

A porta escancarou-se violentamente, e o Francisco Raposo, levantando o
machado da lenha com ambas as mãos, cresceu para a Marianna, a gritar:

--Vae-te para as profundas do inferno, bruxa de mil diabos!

O corpo caíu pesadamente no chão, fendido ao meio o craneo pelo golpe
do machado.

A doente abriu muito os olhos, e antes que podesse gritar, resvalou
para cima do corpo da irmã.

Assim deixaram de viver as duas _feiticeiras_.

--Morto o bicho, morta a peçonha! murmurou o Francisco, e foi
entregar-se á prisão.

[Ilustração]

Acabou em Rilhafolles, tres annos depois.




[Ilustração]




                                 Mary


EM quanto nos despedimos, esteve nervosa, commovida.

A familia, como todo o bom inglez, lunchava na sala de jantar
situada ao rez do chão da casa, a curta distancia do taboleiro do
_croquet_, onde jogavamos, eu e a Mary.

O que não diria o bom Thomas, o pae d’ella, se nos visse jogar
d’aquelle modo,--elle que era um taco de primeira ordem, e que nos
considerava a ambos como os seus discipulos predilectos!...

Ah! Mas é que nem eu, nem ella pensavamos no _croquet_, e embora
fingissemos dar uma grande attenção ao caminho que percorriam as bolas
por entre os arcos de ferro, os nossos pensamentos concentravam-se
todos, todos, n’aquella separação eminente, que nos impellira, na
vespera, a declararmos o amor, que havia mezes transbordava dos nossos
corações de dezeseis annos.

Pobre Mary! Com os seus grandes olhos azues velados ligeiramente
de lagrimas, fitava-me com melancholia, continuando talvez a fazer
mentalmente a pergunta, que me dirigira no dia anterior, quando,
afastados um pouco da familia durante o passeio á quinta do Gordon,
tinhamos falado longamente do futuro.

--Porque havia eu de partir? _Why?_

Adivinhava-lhe o pensamento e fugia de encaral-a, porque sentia o peito
a estalar de magua, e dizia de mim para mim, que melhor fôra que em
vez de me mandarem para Lisboa estudar, me deixassem ficar na Madeira,
segundo o conselho da Mary, e assaltava-me o desejo de declaral-o a
toda a gente, de recusar-me terminantemente a embarcar no _Maria
Pia_, que era esperado no dia immediato.

Continuámos a jogar.

Mary, baixando se, como para fazer melhor a pontaria, disse-me com a
voz afogada pelos soluços:

--_Dear! It is for the last time!..._

Sim, era a ultima vez que poderiamos trocar uma palavra em segredo!

Não tardaria que terminasse o _lunch_, a que ella se tinha
subtrahido, pretextando um incommodo de estomago.

Era a ultima vez em que poderiamos combinar os nossos projectos de
futuro esboçados na vespera, e que a nossa ingenuidade considerava
infalliveis.

Então, reanimei-me!

Quiz mostrar a Mary que, apesar dos meus dezeseis annos, não era uma
creança incapaz de uma grande resolução.

Quem me déra poder repetir o que então lhe disse! O que haverá de
mais puro, de mais elevado, do que as palavras que exprimem um
primeiro amor, e que desabrocham da bocca do adolescente, com toda a
sinceridade, candura e enthusiasmo de que é susceptivel uma alma?

Nos intervallos deixados pelo jogo, que seguiamos machinalmente,
mostrei-lhe que eram impossiveis os devaneios formados na vespera; que
era um puro sonho de creança o pensar que ella, herdeira rica, poderia
ser para mim, que nada possuia; mas que forcejaria por merecel-a,
estudando, trabalhando até vencer!

E phantasiava um futuro de triumphos. Antevia o meu regresso á Madeira.
Vinha coberto de gloria, subia a calçada do Monte, e ia depôr com
ufania todos os louros colhidos, aos pés de Mary, que seria então para
mim.

Creancices!

Ella escutava-me, abanando a cabecinha loura, não se deixando convencer
e murmurando sempre:

--_No! Never more!_

Então exaltei-me, duvidei do amor de Mary, accusei-a de querer que eu
representasse um papel pouco airoso, que désse azo a accusarem-me de
especulador...

Convenci-a.

Estendeu-me a sua mão branca, onde ligeiros traços azulados marcavam as
ramificações das veias, e disse-me pausadamente, em portuguez:

--Pois então jure-me que voltará, que não se esquecerá de mim, que
serei sempre a sua querida, a sua adorada!

Oh! Como eu jurei tudo, tudo, mesmo junto ao arco da campainha!

Ajustámos então manter correspondencia activa.

A Clarinha Correia se encarregaria de receber as nossas cartas.

--Nunca mais me esquece? perguntou ella ainda uma vez, fitando de novo
em mim os seus olhos azues, profundos, scismadores.

--_Never more!_ respondi, e estando muito perto d’ella, prestes a
acabar o jogo do _croquet_, quiz beijar-lhe de leve, fugitivamente
o braço alvo e rosado, que saía da manga larga do vestido.

Mary arredou-se com vivacidade e lançou-me um olhar de censura, em que
vinha implicito um _shoking_.

N’aquella occasião levantaram-se da meza, e o taboleiro do
_croquet_ foi logo invadido pelos que tinham estado fazendo honra
ao _pale ale_ e ás _sandwiches_, e vinham para os canapés de
vime gosar a sombra dos grandes castanheiros, que entrelaçavam lá muito
em cima as frondosas ramarias, formando um impenetravel docel.

No dia seguinte chegou o vapor da carreira e d’ahi a dois dias parti
para Lisboa.

Não consegui trocar mais uma palavra com Mary.

Apenas a Clarinha me disse que poderia escrever-lhe.

Boa Clarinha! Os seus quarenta annos de solteirona nunca se tinham
negado a prestar similhantes favores!

       *       *       *       *       *

Que tempo durou a nossa correspondencia?

Não posso dizel-o ao certo.

O coração esquece tão facilmente!

Lembro-me de que as nossas cartas respiravam paixão e enthusiasmo,
desde a primeira até á ultima linha. Eu ás vezes, ao percorrer enlevado
as regras perfeitamente parallelas, que deixara no papel lusidio e
espesso a letra firme, esguia e commercial de Mary, perguntava a mim
mesmo se era crivel que uma loura _miss_ podesse sentir amor tão
vehemente e, o que valia mais ainda, ter a coragem de manifestal-o.

Mas certo dia a duvida desappareceu. Li o espantoso idyllio de
_Romeu e Julieta_, chorei lagrimas de punho com o soffrimento dos
desditosos amantes de Verona, e conclui afinal que se um poeta de além
da Mancha tivera espirito e coração para imaginar e sentir aquelle
incomparavel poema de amor, não era muito que uma ingleza, em toda
a plenitude da mocidade, e habitando de mais a mais um clima quasi
tropical, escrevesse cartas como aquellas.

E eu amava-a, oh! se a amava!... Quantas e quantas vezes me não
aconteceu no meio de uma lição de mathematica ou de physica, na
Polytechnica, caír em profunda abstracção e vel-a, sim! vel-a tal como
era--pequenina, loura, rosada, um tanto diaphana, mas em todo o caso um
typo adoravel de Gretchen mais candida ainda que a do _Fausto_!
Via-a, sem me escaparem sequer uns pequeninos nadas, que a tornavam
mais seductora a meus olhos. Mary não transigia, por exemplo, com as
modas das suas patricias; não transigia completamente, é claro. Apenas
os primeiros assomos da garridice tinham surgido n’ella, com os quinze
annos, Mary abandonára o hediondo calçado que tira a certas inglezas
toda a similhança com Cendrillon.

O seu pésinho--creiam que não é do meu amor o diminuitivo--o seu
pésinho mostrava-se, abaixo da fimbria do elegante vestido, calçando
sempre uma airosa botinha, obra do mais habil «shoemaker» funchalense.

Mary constituia um mixto adoravel da candura ingleza, com a animação e
a elegancia meridional.

Sabe Deus quantas curvas de segundo grau e quantos instrumentos de
optica e de acustica eu deixei de estudar, para scismar unicamente
n’aquella creaturinha fascinante!

Eu queria trabalhar muito, queria colher á farta as taes coroas de
louro antes sonhadas; mas vinha sempre a saudade sentar-se ao meu lado,
diante da meza do estudo, e a nostalgia velar de crepes tudo quanto me
cercava.

Fui entristecendo.

Emprehendeu curar-me, um amigo meu que é hoje deputado, não sei bem se
progressista, se regenerador.--É tão difficil distinguil-os!...

Obedeci-lhe machinalmente.

--Deixarás de ser nostalgico, apenas eu faça de ti um bohemio.

E levava-me a...

Eu sei lá aonde me levava!

No regresso, tarde da noite, assaltavam-me grandes furias;
descompunha-o, protestava nunca mais acompanhal-o, fechar-lhe até a
porta da casa de hospedes onde eu morava: mas esquecia tudo, apenas
elle no dia seguinte, na escola, me dava um abraço apertado e soltava
uma das boas gargalhadas, que ainda não deu em S. Bento, apesar da
comedia em que o vejo mettido. Agora, basta que riam d’elle! É que anda
expiando cruelmente a cumplicidade, que teve na queda d’este anjo.

D’alli a pouco tempo eu estava perdido, na accepção dos paes de
familia, mas tinha-me consolado.

Não se julgue, comtudo, que esquecia Mary.

Pelo contrario!

Pensava sempre n’ella e por amor d’ella estudava, quando a bohemia me
não levava até ás ruas da Baixa...

Tanto Mary me não saía do pensamento, que eu estava de continuo a achar
reminiscencias do seu rosto, umas vezes, outras da sua fina cintura,
da sua mão, do seu pé, nas conquistas faceis que fazia ao lado do meu
amigo, actual deputado, e de Luiz de Almeida, aquelle talentoso poeta e
bohemio engraçadissimo, que a morte aniquilou tão cedo, mas que ficou
memorado no espirito de quantos o conheceram.

       *       *       *       *       *

Uma noite, na rua do Ouro, ia eu com os meus dois companheiros de
extravagancias, quando encontrei, de cara a cara, Henry, um irmão de
Mary de que eu era amigo, e que estava estudando em Londres havia dois
annos. Pelos modos o pae viera ao conhecimento de que Henry se escapava
a miudo do collegio, e fazia frequentes excursões por Piccadily-Circus
e Leicester-Square...

O bom Thomas chamava-o para a Madeira, a fim de regeneral-o.

Feitas as devidas apresentações, os meus companheiros declararam á
queima roupa ao inglez, que sympathisavam immenso com elle, e logo o
convidaram para nos acompanhar n’aquella noite.

Quiz pôr obstaculos, inventei difficuldades, mas tudo foi inutil. O
proprio Henry se insurgiu contra mim e acceitou a offerta com prazer.
Queria despedir-se alegremente de Lisboa. E despediu-se, em companhia
da seductora Lolita, que os meus amigos lhe apresentaram com todas as
formalidades... que foram nenhumas.

Quando no dia seguinte nos separámos a bordo do vapor, eu estive quasi
a pedir-lhe para guardar segredo da aventura; não o fiz todavia,
suppondo que Henry, por conveniencia propria, fosse discreto, e tambem
para não lhe despertar suspeitas ácerca do meu amor pela irmã.

Ai! Porque não o fiz?...

No paquete immediato deixei de receber carta de Mary. Escrevi-lhe
afflicto, perguntando-lhe o motivo d’aquelle silencio.

Não tive resposta.

Mandei cartas, sobre cartas.

Um dia a Clarinha Correia compadeceu-se de mim e enviou-me este
desengano:

«A Mary soube, pelo irmão, coisas terriveis a seu respeito. Esqueça-a,
porque ella já o esqueceu.»

Repelli o conselho, e mandei á Clarinha uma carta, que ella deveria ler
a Mary, e que seria capaz de commover não só os tigres da Hircania, tão
celebrados de poetas e poetastros, mas até um agiota.

A inglezinha resistiu!

Dois annos depois casou.

Como eu estava longe, padeci muito menos que o heroe de _Sous les
tilleuls_, e não fiz nenhuma das incriveis tolices, a que elle se
abalançou no seu exagerado romantismo.

       *       *       *       *       *

Dez annos depois.

N’um dia de sol, galgava eu, em companhia de um amigo, o carreiro
ingreme e fatigante, que vae das Féteiras para as Sete Cidades, na ilha
de S. Miguel.

Apesar de nos terem antes descripto com as côres mais vivas e
fascinantes a belleza do afamado valle, já nos sentiamos invadir pelo
aborrecimento, em consequencia da posição incommoda em que iamos
sobre os burros alugados nas Féteiras, e tambem porque o sol estava
ardentissimo.

Ao nosso lado um rapazelho, descalço, jaqueta de picotilho ao hombro e
cajado ferrado na mão, trepava o carreiro aos pulos, soltando por vezes
o caracteristico «Passa cá i’asno!» e dando com a lingua no ceo da
boca estalos frequentes, para animar os jumentos na trabalhosa ascensão.

Adiante de nós, a uma centena de passos, caminhavam na mesma direcção
dois viandantes, um homem e uma senhora. Elle, com as grandes pernas
pendentes entre as quatro do burrinho e os compridos pés quasi de
rastos pelo chão, balanceava muito os braços e levantava-os com
frequencia, fazendo gestos de enthusiasmo, quando volvia os olhos para
o vasto panorama, que já começava a desenrolar-se por traz de nós, do
lado da beira-mar.

Sobre a cabeça campeava-lhe um capacete branco, envolto em alguns
metros de cassa da mesma côr.

Por detraz e descendo para a gola do casaco amarello claro, havia
melenas louras arruivadas, semelhantes a barbas de milho.

Mas, naturalmente, o que mais nos attrahiu a attenção, foi a
companheira do homem ruivo. Sentada de lado, sobre o albardão do burro,
envolvia-se desde a garganta até aos pés n’um comprido guarda-pó de
hollanda: ao de cima emergia a cabeça, occulta por um chapeu de palha
preta, e embrulhada n’um espesso veo de gaze de seda azul; abaixo
da roda do guarda-pó viam-se pendentes dois objectos escuros, muito
compridos, de fórma estranha, que não raro se agitavam, na ancia de
percutirem as ilhargas do jumento.

Mais de perto conseguimos apurar, que os objectos negros eram dois pés.

E levámos ainda mais longe a observação. Quasi perfurando o linho do
guarda pó, adivinhavam-se umas saliencias osseas, correspondentes aos
hombros, aos cotovellos, e até aos joelhos, não obstante as saias.

--Quanto phosphato de cal daria aquella ingleza? perguntou o meu
companheiro.

Eu ia responder com um gracejo de não melhor gosto, quando attingimos a
cumiada que limita em roda o extenso valle.

--Eh! Senhores, disse-nos o rapaz dos burros--um cerrado michaelense
dos campos--avistam-se d’aqui a _pêuco_ as lagoas.

Apeámo-nos, e, seguindo o conselho que nos tinham dado na cidade,
fomos andando para diante, mas olhando sómente para a nossa esquerda,
a fim de que o valle das Sete Cidades nos apparecesse de subito, e não
gradualmente, á medida que fossemos deixando para traz de nós um morro,
que se erguia á nossa direita.

--Virem-se os senhores agora, disse-nos momentos depois o rapaz. Lá
estão as lagoas em baixo!

Olhámos para a nossa direita... Um deslumbramento!--No ceo pairavam
duas ou tres nuvens, muito brancas, que recortavam cruamente o sinuoso
perfil sobre o azul carregado da atmosphera. Abaixo, uma cadeia
continua de montanhas fechava n’uma enorme cinta de forma elliptica
o valle, em cujo fundo se espelhavam as duas lagoas--azul a maior e
mais distante, de reflectir o firmamento; verde a outra, das algas
que n’ella mergulham e da vegetação, que se debruça pelas encostas
sobranceiras. Na margem da primeira e á nossa esquerda, como que
banhando-se n’aquellas aguas frescas e tranquillas, branqueavam as
casas de um logarejo, em meio de viçosas plantações.

Entre a povoação e as montanhas que limitam por aquelle lado a immensa
cavidade, surgia um monte, de constituição vulcanica e de ilhargas
cortadas por sulcos profundos, segundo as linhas de maior declive.

No cimo abria-se a cratera, de que em epochas longinquas golfaram sem
duvida ondas e ondas de lava incandescente.

Largo tempo permanecemos a contemplar, extaticos, boquiabertos, o
quadro maravilhoso. A magestade imponente do panorama infundia-nos
o sentimento de respeito e de humildade, que fatalmente nos subjuga
perante os grandiosos espectaculos da natureza.

Fizeram-nos, de repente, saír d’aquelle extase, uns gritos soltados
alli perto.

Eram os dois inglezes.

Ella, de costas voltadas para nós, e já sem o veo a cercar-lhe
inteiramente a cabeça, dizia por entre paroxismos de admiração:

--_Ooh!... Splendid!... Magnificent, indeed!..._

Quando me parecia reconhecer aquella voz, a ingleza voltou-se e...

Era Mary!

Era sim, mas tão differente, tão mudada, que cheguei a abençoar
n’aquelle momento a revelação indiscreta de Henry.

Tinha-se tornado ingleza a valer, sob a influencia do deslavado marido.

Estavamos muito perto um do outro. Ella olhou para mim casualmente,
e, sem mostrar a minima commoção, de novo fixou a vista no lindissimo
panorama.

[Ilustração]

Eu então vinguei-me, vinguei-me cruelmente!

Esperei uma occasião em que ella me visse, e olhei-lhe para os pés.

       *       *       *       *       *

Ah! Mas agora noto uma coisa! Tenho escripto tudo isto, como se
estivesse narrando um capitulo da minha biographia.

O heroe do conto não sou eu, affianço-lhes, mas sim o Fernando, pae da
Lili de que já lhes narrei uma aventura.

Antes me julguem indiscreto, do que me acoimem de ingrato!




                           NOTAS DE RODAPÉ:


[1] New-Bedford. É corruptela vulgar nos Açores occidentaes.

[2] Assim chama a Boston o povo dos Açores occidentaes.

[3] A devoção do Espirito Santo espalhada, ao que parece,
no velho Portugal continental pela Rainha Santa, e levada pelos
primeiros colonos para as ilhas, ainda aqui permanece tão profundamente
arreigada, que as festas do Parácleto preenchem grandemente a vida
açoriana desde o domingo de Paschoa até ao da Trindade. Todos os
que a sorte indigitou para festeiros acceitam o encargo com o maior
prazer, e desempenham-o com bizarria muitas vezes incompativel com as
suas posses. Emigra o açoriano, vae lidar para Boston, New-Bedford,
S. Francisco ou para outro ponto da União em que se concentra a
colonisação portugueza; consegue juntar alguns centos de _dollars_
e volta á patria só com o fito de _coroar_ em cumprimento da
promessa, e gasta em dois dias o producto de muitos mezes de trabalho.
Depois embarca novamente para a America, a proseguir na faina, mas nem
de leve arrependido pela sua devota prodigalidade.

[4] Textual.

[5] Aurora.

[6] Cabana.

[7] O actor Ribeiro, que tão notavel desempenho deu ao _Avarento_ de
Molière e a muitas outras peças, esteve em Ponta Delgada no começo da
sua carreira, e fez no theatro Michaelense o papel do santo portuguez
com tamanho exito, que os retratos que tirou vestido e caracterisado
como entrava no applaudido drama sacro, espalharam-se por toda a ilha,
e passaram das collecções artisticas dos seus admiradores, para os
oratorios do povo, e ainda alli são reverenciados--dizem-me--como se
representassem o verdadeiro Antonio de Bulhões. Quem sabe lá se este se
pareceria physicamente com o artista dramatico?




                                INDICE


                                                Pag.

 O casamento do veterano                          1

 Os filhos do frade                              61

 O primeiro desengano                            69

 A Alegria do Mar                                75

 A lampreia                                      89

 Mau homem                                       97

 A licença do domingo                           107

 O contrabando                                  121

 Piloto                                         129

 Na vindima                                     137

 O jantar do general                            141

 O aprendiz de barbeiro                         151

 A allemã                                       161

 O marraxo                                      171

 O pae do Jacintho                              177

 A folga                                        185

 O paiol                                        209

 As feiticeiras                                 217

 Mary                                           235




                        =NOTAS DE TRANSCRIÇÃO.=

Os erros tipográficos evidentes foram corrigidos.

A pontuação, a hifenização e a ortografia foram tornadas consistentes
quando uma preferência predominante foi encontrada no texto original;
caso contrário, não foram alterados.

Nesta versão, o carácter “caret” (acento circumflexo) foi utilizado com
ou sem chaves para representar letras sobrescritas.





*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK HISTORIAS DAS ILHAS ***


    

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Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see
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Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation

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Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by
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Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
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