O Padroado Portuguez na China

By Alberto Feliciano Marques Pereira

Project Gutenberg's O Padroado Portuguez na China, by A. Marques Pereira

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Title: O Padroado Portuguez na China

Author: A. Marques Pereira

Release Date: March 18, 2010 [EBook #31693]

Language: Portuguese


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                     O PADROADO PORTUGUEZ NA CHINA


                          A. MARQUES PEREIRA

                     O PADROADO PORTUGUEZ NA CHINA

                  (Impresso requisitado por um amigo)


                                  LISBOA
                    IMPRENSA DE J. G. DE SOUSA NEVES
                         65--Rua da Atalaia--67
                                   1873




A JOSÉ MIGUEL VICTOR DE FIGUEIREDO




Um excellente amigo meu da China (e, Deus Louvado, ainda ahi os tenho de
molde que me tira a vontade de enxergar os fundibularios covardes que
tentaram e lograram com a mais infame das ciladas molestar-me nos
excessos do brio) tendo visto uma das tres pequenas cartas que adiante
se lêem, cheio de honesto e constante interesse pelo assumpto que
levemente suggerem, e julgando dos ocios do esclarecido jornalismo
politico lisbonense com a ingenuidade de um portuguez distante:
pediu-me, por carta, que lhe mandasse, colligida em volume, toda a
controversia que antecedêra e seguíra o que tinha lido.

Respondi-lhe que a _controversia_ toda pouco mais era, e nem sequer
chegaria a dar um folheto; que a uma segunda carta minha, que a _Gazeta
do Povo_, publicou, não houvera mais resposta: silencio este que, não
podendo ser attribuido á victoria cesárea dos meus abreviados
argumentos, tambem com inteira justiça se não podia imputar á
insufficiencia d'aquella folha, a qual desde logo manifestára que a
replica, a ter lugar, não cabia á sua redacção effectiva, mas a um seu
illustrado collaborador e amigo; e finalmente que já se annunciava a
substituição da _Gazeta_ pelo _Paiz_, e que não era de presumir que este
cuidasse em tomar dos collaboradores d'aquella o legado triste, e
felizmente descurado havia mezes, de desmentir e annullar os restantes
direitos do nosso padroado portuguez na China.

Insiste o meu amigo, pela recemvinda mala, em que lhe mande o folheto,
entendendo que, por muito exiguo que seja, sempre terá a efficacia de um
brado ou um gemido em causa de tanta justiça.--Não sei recusar-lhe nada,
e até o muito que o estimo quasi me não deixa sorrir da sua confiança em
brados ou gemidos a favor de causas justas. Permitta-me porém a sua
amisade que declare aqui bem explicitamente que a unica pretensão e o
unico intuito d'esta pequenina copilação é satisfazer a um pedido seu, e
sem demora de um paquete.


Lisboa, 21 de fevereiro de 1873.




I


Em 19 de fevereiro do anno findo, sobre a leitura de justissimas
considerações do meu referido amigo, dirigi a seguinte carta ao _Diario
de Noticias_, que a publicou em 20:


                                                     Ex.mo sr. redactor,

Com respeito á nossa colonia de Macau, ha tres questões palpitantes,
importantissimas, que a imprensa periodica de Lisboa conhece, creio eu,
comquanto as não discuta. São a ratificação do tratado de 1862; as
alfandegas chinesas em territorio portuguez; a emigração. A solução da
primeira depende da habilidade e pericia do nosso plenipotenciario.
A da segunda da inteiresa e energia das primeiras auctoridades do
estabelecimento. A da terceira da rigorosa e imparcial observancia dos
regulamentos, e do bom accôrdo com a diplomacia inglesa. A nenhuma
dellas me refiro n'esta carta. Sobre a primeira e terceira tenho
escripto em demasia, tanto livre como officialmente. Da segunda sou
victima, e portanto suspeito perante o programma de uma folha incolor.
Existe porém uma quarta questão pendente, esquecida ha muitos annos, mas
nem por isso pouco importante para a colonia de Macau. A solução d'esta
depende do sr. ministro da marinha e do governo. Refiro-me ao padroado
portuguez na China, e reduzo-me a historial-o em poucas palavras. O
bispado portuguez de Macau, erecto pela bulla de Gregorio XIII, de 23 de
janeiro de 1575, comprehendeu em seu principio toda a China e Japão,
terras e ilhas adjacentes. Em 1588 foi creado o bispado de Funay, no
Japão, e em 1690 os de Pekim e Nankim. Innocencio XII, logo depois,
reduziu consideravelmente os limites dos bispados da China, que
abraçavam, além das provincias do imperio, a Tartaria, Tongking e todas
as ilhas. Esta circumscripção foi que designou ao de Macau as provincias
de Kuang-tung, Kuangsi e as ilhas que a ellas pertencem,--e assim durou
até não ha muitos annos. Seguiu-se a concordata, ratificada em 6 de
fevereiro de 1860, que pelos artigos 3.º e 4.º e annexo _A_ reduziu
ainda o padroado portuguez na China á diocese de Macau, e esta á
provincia de Kuang-tung e ilhas adjacentes, com excepção de Hongkong.
Esta diocese, por estar de si bem determinada, não exige para o seu
completo reconhecimento a circumscripção prévia que a mesma concordata
estabelece necessaria para as da India. Comtudo em 1872 os missionarios
da congregação da _Propaganda_ conservam-se em toda a provincia de
Kuang-tung com um bispo estrangeiro, a despeito da justissima antipathia
das christandades; e a Santa Sé mantem a recusa da confirmação do bispo
apresentado pelo real padroeiro na fé dos citados artigos.--Lembrar a
necessidade que tem de um bispo a diocese de Macau, viuva ha vinte
annos, e a obrigação que tem o governo de se fazer ouvir do supremo
chefe da egreja para que considere e afaste a obstinada lesão dos nossos
direitos, já tão diminuidos, é, sr. redactor, o objecto d'esta minha
carta, que abreviei quanto me foi possivel.

S. C., 19 de fevereiro de 1872.

                                                          De v. ex.ª

                                                     _A. Marques Pereira_




II


Na _Gazeta do Povo_ de 27 li depois isto:


NOTICIAS DE MACAU E QUESTÃO DO PADROADO

......................................................................

«A proposito de coisas de Macau, mencionemos uma carta assignada pelo
sr. Marques Pereira em 19 do corrente mez, e publicada no _Diario de
Noticias_. Seu objecto principal é ácerca do padroado da China, e da
questão da escolha e confirmação de bispo para Macau.

Censura o sr. Marques Pereira a recusa da Santa Sé áquella confirmação,
chamando-lhe obstinada lesão dos nossos direitos.

Para que o publico não seja induzido em erro por taes asserções de
pessoa que é tida por entendida nos negocios de Macau, contrapomos
áquella carta algumas observações sobre o mesmo assumpto, copiadas da
_Correspondencia de Portugal_ de 29 de janeiro ultimo. Este excellente
jornal é pouco lido no paiz, e por isso mui limitado numero de
individuos conhecerão aquellas observações.

Julgamos, pois, fazer bem em vulgarisal-as, para que na apreciação de
assumpto tão importante, se julgue com a imparcialidade e exempção de
preconceitos que elle reclama.

---

«Está confirmada por Sua Santidade a transferencia do sr. bispo eleito e
confirmado de Macau para a diocese d'Angra, da qual já mandou tomar posse.

«Está pois vaga a mitra de Macau, e é, a nosso vêr, uma urgente
necessidade provêl-a sem demora. A falta dum prelado sagrado n'aquella
cidade é mui prejudicial para seus interesses religiosos e civis. Mas a
apresentação do novo bispo de nada servirá, se o governo não quizer
acceitar as respectivas bullas com as restricções de jurisdicção
exaradas nas do sr. D. João, quando foi confirmado bispo de Macau, ou
com outras.

«O sr. marquez de Sá da Bandeira, com o tino e sensatez que lhe dá o
muito conhecimento que possue dos negocios do ultramar, resolveu, na
ultima vez que foi ministro da marinha, acceitar aquellas bullas, o que
os ministros seus predecessores tinham recusado.

«Se o digno actual ministro da marinha não fôr d'esta opinião, então é
inutil a apresentação de novo bispo, e só servirá para renovar já
cansadas questões, que não levarão a melhor resultado do que até agora.

«Se o governo sinceramente quer attender ás necessidades religiosas de
Macau, entre em cordeaes negociações com a Santa Sé para restringir, ao
menos provisoriamente, a desmedida extensão da diocese de Macau.

«Proponha-se que o novo bispo seja confirmado com a jurisdicção
limitada, não á cidade de Macau, como foi o ultimo bispo eleito, mas á
contigua denominada peninsula de _Heang-cham_ e ilhas chinezas
circumvizinhas. Actualmenle não ha n'estes territorios missionarios nem
estabelecimentos alguns da _Propaganda Fide_, e portanto nenhumas
difficuldades se suscitariam.

«É sufficiente terreno e população para uma excellente missão,
proporcionada aos nossos meios, pois tudo comprehenderá 500:000 a
600:000 habitantes, que teem continuo trato com os portuguezes, cujos
costumes e leis mais ou menos conhecem, e parte delles por vezes teem
aproveitado a protecção da nossa bandeira, fugindo á guerra civil, ou ás
extorsões dos seus mandarins.

«Uma missão n'estes limites, dirigida com zelo, habilidade e
perseverança por alguns missionarios portuguezes, auxiliados pelo clero
indigena chinez ou de Macau, conseguiria, em algumas dezenas de annos,
christianisar, senão toda, decerto uma grande parte da população, e
preparal-a talvez para acceitar gostosa o nosso dominio temporal,
aproveitando o governo portuguez algum ensejo favoravel, facil de se dar
no estado de desorganisação politica e social em que se vê o grande povo
chinez.

«A guerra civil, que sempre mais ou menos lavra na China, e a renovação
da guerra com estrangeiros, que é inevitavel, mais tarde ou mais cedo,
renovarão as circumstancias, tão infelizmente desaproveitadas, que
occorreram na ultima famosa guerra entre o celeste imperio e a
França e Inglaterra. Ha mais de dez annos poderiamos possuir a peninsula
de _Heang-cham_, se não fôra a criminosa incuria, quasi incrivel, d'um
ministro d'aquella época e dos seus empregados.

«Preparar taes resultados será ao mesmo tempo um grande serviço á
religião e á civilisação, e ao engrandecimento e gloria da patria.

«A occasião é a melhor possivel. O prestigio e influencia da França nos
negocios da China está sustado por largos annos. Os interesses politicos
e religiosos d'aquella potencia é que nos podiam contrariar;
estabelecendo seus missionarios, capellas, hospitaes e escolas no
referido territorio, como tem feito em todo o resto da provincia de
Cantão, em Kuang-si e no Hainão, extensissimos paizes, comprehendidos de
direito na diocese de Macau, mas ha muitos annos de facto perdidos para
o padroado real, pela falta de cumprimento das obrigações do padroeiro.

«Não ha, pois, receio que a França venha oppôr difficuldades ao indicado
accôrdo com a Santa Sé, que julgamos não se recusará a elle, nem
rasoavelmente o póde fazer. Para nós, Portuguezes, nada tem de
indecoroso, como o poderão julgar alguns animos possuidos de exaggerado
e insciente patriotismo.

«Devemos francamente reconhecer que foi justa a restricção imposta pelo
Summo Pontifice nas bullas da confirmação do mencionado ultimo bispo
eleito de Macau, e que o será se se repetir esse facto, com o qual o
governo deve contar, se apresentar novo bispo.

«Se Portugal não cumpre a concordata na parte onerosa, como póde exigir
o pleno cumprimento d'ella na parte benefica e de privilegio?

«É já tempo que os ministros, os representantes do paiz e a imprensa que
se diz liberal, deixem esse systema de declamações apaixonadas, quando
se trata da questão do padroado, que não estudam, ou não querem estudar,
com a imparcialidade e justiça que ella exige.

«Ha até conveniencias positivas e puramente politicas, que aconselham a
desistir temporariamente, ou mesmo para sempre, ao direito da actual
circumscripção da diocese de Macau. Isso nos livraria de muitos
embaraços e vergonhas. Firmemos bem o dominio espiritual onde temos o
temporal, tão vacillante nas colonias; e deixemos pretensões que se
tornaram já ridiculas perante a Europa, pelo estado de abatimento e
desorganisação em que está Portugal.»

---

Eis, pois, o que diz a _Correspondencia de Portugal_. Ainda que não
concordassemos inteiramente com as opiniões expostas, as julgamos dignas
de attenção quando se trata de apresentar novo prelado para Macau, o que
tambem entendemos não se dever demorar.»




III


Era uma accusação de induzir o publico em erro. Outras maiores ainda
recebi já da imprensa, felizmente com igual justiça, mas em Lisboa foi,
e é até agora, a primeira que eu lêsse. Maiores ou menores tenho a
fraqueza de levantar todas, emquanto me não chegue a má hora,--e espero
que não chegue,--da consciencia me confirmar alguma. Entendo que a voz
da imprensa deve ser sempre ouvida e discutida, de qualquer lado e até
de qualquer modo que sõe. Chamei a isto fraqueza, e perdõe-se-me á conta
de poder chamar-lhe parvoice. Quando, infamado pelo mais abjecto de
quantos periodicos é crivel que possam existir, pedi ser suspenso do
exercicio do meu cargo e corri aos tribunaes extrangeiros e nossos a
esmagar a calumnia e os calumniadores pelo mais brilhante modo que um
funccionario póde sequer desejar, encontrei na volta o mesmo cargo
provido por insidia venal e patronato, e reclamando perante o ministro
da marinha d'esse dia (que era por signal advogado) tive em resposta
_que me sobejava rasão, mas nada havia a fazer contra factos consummados
de que elle ministro não era culpado e que dariam ao funccionario
demittido hoje a mesma rasão de queixa que eu tinha pelo haver sido
hontem_. D'aqui aprendam quando injuriados, se poderem, os funccionarios
publicos futuros. Eu por mim, dado o caso, reincidiria na tontice, e óro
a Deus que me não accusem d'ella meus filhos quando a miseria se
aprouver de leval-os á idade da rasão.--Trouxe eu isto fóra de proposito
para dizer que respondi á _Gazeta do Povo_, em cujo numero 700 se lê:


«Recebemos do sr. Marques Pereira a carta que em seguida publicâmos. Não
lhe respondemos, porque deixamos esse cuidado ao nosso illustrado amigo
e collaborador, que trata da questão de Macau, e que por estar ausente
só virá a ter conhecimento da carta do sr. Pereira quando a receber
impressa na _Gazeta do Povo_.

Posto que a polemica mais pareça desejar encetar-se com relação ao que
escreveu a _Correspondencia de Portugal_, ao nosso collaborador ficará
pois não só o cuidado, mas a liberdade de fazer o que lhe approuver.

Eis a carta:»

                                  Ex.mo sr. redactor da _Gazeta do Povo_,

Ha poucos dias dirigi ao _Diario de Noticias_ uma breve carta lembrando
a necessidade de se obter a confirmação de um bispo para Macau e os
limites que a concordata ratificada em fevereiro de 1860 designou
áquella diocese. Acrescentei simplesmente que,--logo depois da
concordata,--a recusa de tal confirmação com os limites de jurisdicção
estipulados, e a permanencia dos padres da _Propaganda_ na provincia de
Kuang-tung (quando ainda existem, mesmo na Asia, muitos paizes sem
missões) era uma obstinada lesão dos direitos do padroado portuguez, já
tão diminuidos.

No seu jornal de 27 do corrente, cita v. ex.ª essa minha carta, e, _para
que o publico não seja induzido em erro por ella_, entende dever
contrapôr-lhe um artigo da _Correspondencia de Portugal_ de 29 de
janeiro, que effectivamente transcreve.

Transcripto o artigo, diz por ultimo v. ex.ª que julga as opiniões
d'elle dignas de attenção, posto que não concorde inteiramente com ellas.

Ignoro portanto qual seja a opinião de v. ex.ª sobre o assumpto do
padroado portuguez na China, e absolutamente não comprehendo,--ainda
depois de lêr o artigo da _Correspondencia de Portugal_,--de que modo a
minha brevissima carta, simplesmente historica, possa _induzir o publico
em erro_. N'essa carta indiquei o direito existente, assegurado por um
tratado moderno: a _Correspondencia de Portugal_ propõe que se estipule
um direito novo. Disse eu que, descrevendo a concordata os limites da
diocese, devia haver um bispo portuguez com jurisdicção nesses limites.
Diz a _Correspondencia de Portugal_ que taes limites são ainda
exagerados e conviria reduzil-os á peninsula (aliás ilha) de
Hianchan, de cujo dominio temporal se lhe afigura que viriamos mais
tarde a apossar-nos. Em nada refuta isto o direito que até agora a
concordata estabelece e eu lembrei.

Haveria porém muito, é certo, que discutir no artigo, e, se é intento de
v. ex.ª franquear a essa discussão as columnas do seu jornal,
offereço-me eu a tomar n'ella humilde parte.

S. C., Praça de S. Paulo 13, 1.º;

29 de fevereiro de 1872.

                                                  De v. ex.ª

                                                _A. Marques Pereira._




IV


Em 12 de março veio dizendo o illustrado amigo e collaborador da _Gazeta
do Povo_:


«MACAU--QUESTÃO DO PADROADO

Quando démos as noticias de Macau vindas na precedente malla, aludimos a
uma carta do sr. Marques Pereira, publicada no _Diario de Noticias_,
ácerca da confirmação do novo bispo para aquella diocese, que o governo
tem de apresentar.

Aquella referencia motivou outra carta do mesmo senhor, dirigida a este
jornal, na qual declarando a primeira _simplesmente historica_, diz
que por isso não comprehende como possa induzir o publico em erro.

Ainda que ha escriptores que erram na historia, e ás vezes scientemente,
a nossa allusão não foi decerto á parte historica da carta do sr.
Marques Pereira, mas sim á opinião ou asserção de que a Santa Sé
recusára a confirmação do bispo para Macau, _por obstinada lesão dos
nossos direitos_. A esta opinião do escriptor, segue-se uma instancia ou
conselho ao governo, para que exija a confirmação do bispo de Macau, sem
restricções de jurisdicção, pelo direito estabelecido na concordata;
nada dizendo sobre os deveres a que por ella está obrigado o mesmo
governo e que não tem cumprido.

Ora isto não é _simplesmente historico_. É uma apreciação que julgámos
errada, e um conselho que entendemos mau; rasão porque lhe contrapozemos
o artigo da _Correspondencia de Portugal_, que esclarece a questão, e
mostra que não ha n'este caso da parte da Santa Sé obstinada lesão dos
direitos da corôa portugueza.

O Papa não recusou a confirmação do ultimo bispo eleito de Macau, o sr.
D. João Botelho do Amaral, hoje bispo d'Angra: pelo contrario,
confirmou-o promptamente; mas com a jurisdicção restricta á cidade de
Macau, emquanto o governo de Portugal não cumprir as obrigações do
padroeiro, designadas na Concordata.

É este um tratado ou pacto que estabelece direitos e obrigações para
ambos os contractantes.

Aconselhar, pois, como faz o sr. Marques Pereira, ao governo portuguez
que exija a manutenção dos direitos, sabendo-se que este não tem
cumprido, e que não mostra meios nem disposições para cumprir, as
correlativas, obrigações; é que nos parece se póde dizer desejo de
obstinada lesão contra o direito e a justiça natural.

Ainda que seria nas columnas da _Correspondencia de Portugal_, que
melhor caberia a contestação do artigo que d'ella transcrevemos; comtudo
se o sr. Marques Pereira quizer publical-a n'este jornal, de bom grado o
faremos, pela muita attenção em que temos este conhecido escriptor, sem
que isso nos obrigue a discussão.»




V


Ora a _Correspondencia de Portugal_ não me culpára de induzir em erro
pessoa alguma, e até o artigo que se extrahira d'ella para me convencer
da culpa (v. pag. 14) antecedêra tres semanas a minha innocente e
brevissima carta ao _Diario de Noticias_. Não vendo assim motivo de a
importunar, e tendo vencido uma doença que me importunou a mim alguns
dias, dirigi mais uma carta á _Gazeta do Povo_, que a inseriu logo e sem
commentarios.

Dizia:

                                Ex.mo sr. redactor da _Gazeta do Povo_,

Por falta de saude deixei de responder logo ao ultimo artigo em que
tratou do padroado portuguez na China, com referencia a uma carta
minha, e em que se dignou franquear o seu jornal á publicação das
modestas considerações que me propuz expender a respeito dum artigo da
_Correspondencia de Portugal_ sobre o mesmo assumpto: artigo que v. ex.ª
transcrevêra como refutação a uma outra carta que dirigi ao _Diario de
Noticias_.

Tratarei de resumir quanto possivel o que tenho a dizer, porque
infelizmente nem a naturesa do assumpto chamaria grande attenção a um
artigo em demasia extenso, nem abusando eu do espaço do seu jornal
corresponderia devidamente ao favor de v. ex.ª

Aceitemos um momento por incontestavel toda a culpa que v. ex.ª e a
_Correspondencia de Portugal_ attribuem ao governo portuguez na questão
do bispado de Macau. Ainda assim me parece que, a não sermos mais
inimigos dos restantes direitos do padroado portuguez do que o são os
proprios agentes da _Propaganda_, deveriamos duplicadamente citar a
concordata para que o governo cumprisse os seus deveres e exigisse os
seus direitos. Querer que o culpado se não arrependa nem se defenda, e
seja unicamente accusador e executor de si mesmo, parece-me injusto.

Mas, sr. redactor, somos nós hoje em verdade tão culpados quanto v. ex.ª
e a _Correspondencia de Portugal_ nos fazem? Pois não foi exactamente
para castigo de nossas culpas que a concordata nos tirou todos os
bispados da China, á excepção do de Macau, e reduziu este mesmo á
colonia portugueza com a provincia de Kuang-tung?

E que succedeu porém?

Ratificada a concordata os missionarios estrangeiros conservam-se em
Cantão sob a exclusiva auctoridade d'um bispo seu que a Santa Sé lhes
confirma, e ao real padroeiro portuguez é successivamente recusada a
confirmação de dois bispos eleitos, ou offerecida com a restricção de
jurisdicção ás tres freguezias da cidade de Macau!

A isto só v. ex.ª me oppõe,--permitta-me que o diga,--o eterno argumento
dos _Annaes da associação da Propaganda_ e publicações similhantes, do
qual muitas vezes se usou com verdade tratando em geral do padroado
portuguez no oriente, e de que muitas mais se abusou com injustiça a
respeito de varias partes do mesmo padroado:--e é que a concordata impõe
obrigações assim como assegura direitos, que no exercicio d'estes deve o
padroeiro cumprir aquellas, e que pois as não cumpre os direitos cessam.

Em primeiro logar, quem viu que as não cumprisse o padroeiro? Se nem um
dia, se nem uma hora lhe foi dado exercer na China a jurisdicção que a
concordata lhe deixou, onde se encontra o testemunho de haver faltado
aos deveres a que se obrigou por ella?

Encontra-se--dir-me-hiam os ecos da associação--na manifesta
incapacidade de os cumprir, porque não admittindo em seus estados ordens
religiosas, não póde provêr missões.

Para tal resposta ser justa fôra mister que ao tempo de celebrar-se a
concordata houvesse em Portugal ordens religiosas, ou que por esse
tratado nos obrigassemos a admittil-as para missionar.

Mas não; a concordata foi assignada em fevereiro de 1857 e ratificada em
fevereiro de 1860, e a unica obrigação, dever ou condição que,
relativamente ao bispado de Macau, nos impõe é (queira v. ex.ª reparar)
_que se procure pelo real padroeiro augmentar o numero de habeis e
idoneos missionarios, que, além dos existentes_ (em 21 de fevereiro
de 1857), _se empreguem na conservação e na propagação da fé catholica
n'aquellas regiões_.

Ora, eu não vim a esta questão como paladino apaixonado do nosso
governo, ou de qualquer dos nossos governos. Acho-me até presentemente,
e ha dois annos, n'uma situação individual tão iniquamente desattendida
pela nossa entidade chamada governo, que não é de suppôr que eu ande
muito preoccupado pelo empenho de lhe ser agradavel nos meus raros e
pobres escriptos. Mas tambem não sei fazer côro em accusações de que não
tenha inteira consciencia, e no que respeita ao bispado de Macau não me
parece que a indifferença tenha sido tanta que, perante a lettra da
concordata, que acabo de citar, justifique o duro castigo que v. ex.ª
approva. O governo chegou a entregar o seminario de S. José de Macau aos
jesuitas durante dez annos, desde 1862 até ha poucos mezes, e, se isto
não mostra grande respeito á lei, denota ao menos com summa evidencia a
boa vontade que a _Propaganda_ lhe nega. É verdade que em todo esse
tempo os jesuitas nada fizeram a bem d'aquella porção do padroado, antes
se mostraram sempre encarniçadissimos inimigos de taes direitos, mas
nada prova isso contra a boa intenção que presidiu á experiencia de os
admittir.

Mas dirá ainda a _Propaganda_: as missões não podem confiar-se a
experiencias, nem a protestos de boa vontade; a concordata não tem valor
ante o principio _salus populi suprema lex_, e a christandade de Cantão
seria grandemente prejudicada e arriscada, se a deixassemos.

Para v. ex.ª avaliar este argumento, pedirei apenas que se digne lêr o
capitulo vigesimo septimo dos _Apontamentos d'uma viagem de Lisboa á
China e da China a Lisboa_ pelo sr. Carlos José Caldeira. Teria muito
mais que citar, se não receiasse ostentar erudição d'obras que
difficilmente se encontram em Lisboa, e exporia até o muito que a
observação pessoal me suggere se não existisse a deposição do dito
escriptor, por certo conhecidissimo de v. ex.ª Pelo indicado
capitulo--que se intitula _Missões portuguezas na China, missionarios
francezes, padroado real, e a sociedade da propagação da fé_--verá v.
ex.ª como os missionarios franceses e italianos felicitam as
christandades que nos tiraram, e apreciará os beneficios que resultam
para o bispado de Macau do que eu denominei e denomino obstinada lesão
dos nossos direitos.

Já quero porém collocar-me contra o depoimento do sr. Carlos José
Caldeira, quero admittir que seja grande o zelo dos missionarios
estrangeiros no desempenho da missão do bispado de Macau.--Se a Egreja
de Roma é universal e se é verdadeiro o amor que elles teem a esses
christãos, por que motivo se não offerecem a obedecer, emquanto preciso
seja, ao prelado portuguez que aos mesmos christãos pertence?--Porque os
portuguezes desestimam as missões? Não dizem verdade, quando assim
dizem, pois que para a mesma associação da propagação da fé concorre o
povo portuguez annualmente com avultados donativos.--Porque a associação
é incombinavel com o nosso governo? Não me parece, e ainda agora o
mostrei. O governo que admittiu dez annos em Macau os jesuitas,
desaffectos ao nosso pleno exercicio na diocese, não deixa porcerto
d'aceitar a sujeição transitoria dos propagandistas ao mesmo exercicio.

A rasão, pois, é porque não querem, e não querem hoje assim como não
quizeram desde o primeiro dia, ha muito tempo, em que entraram nas
nossas missões da Asia, cheias então de missionarios nossos e providas
com os nossos bispos, e começaram a guerreal-os sem treguas,
tirando-lh'as uma a uma. Fugindo de caminhar no mais pequeno accôrdo
comnosco, esforçavam-se unicamente em combater-nos por modo tal, que os
christãos se entibiavam e mais se afastavam os gentios, vendo em
anarchia a egreja que tinham antes pela mais unida. Dir-se-hia em
verdade que era outra e diametralmente opposta a doutrina que vinham
prégar. Com o desgosto e afastamento dos nossos missionarios e com as
circumstancias politicas que mais tarde se deram, a usurpação--como
sempre succede--ganhou com o tempo os fóros de justiça: e para se nos
tirar o resto do bispado de Macau serve agora a queixa de sermos
descuidosos, como então servia a de sermos ambiciosos.

Por ambiciosos e descuidosos nos castigou--torno a lembral-o--a
concordata, que é lei ha doze annos, e pela qual renunciámos
definitivamente ao padroado em todos os bispados do Japão e da China,
conservando unicamente o de Macau, e este reduzido a metade. E pois que
é lei, e emquanto o seja, entendo que deve cumprir-se, e que deve o
padroeiro portuguez exigir para o bispado de Macau a posse dos limites
que a mesma lei designou. E quando por quaesquer circumstancias se
estipulem novos tratados, cumpram-se esses, de modo que se não tolerem
usurpações á face d'elles, e que nos não deixemos indifferentemente
punir pela falta de cumprimento de deveres que nem sequer fomos
admittidos a praticar. É isto o que me parece justo e digno.

Vou concluir, sr. redactor. Muito mais se me offerecia a dizer, mas não
quero faltar á promessa de abreviar quanto possivel esta carta.
Dil-o-hei se tiver de escrever-lhe mais sobre o mesmo assumpto.

Ajunto por agora só duas palavras necessarias.

Eu não me referi a Sua Santidade. Entendo e creio que a inalteravel
rectidão do supremo chefe da Egreja está muito superior á _obstinada
lesão dos nossos direitos_, de que fallei. Sei bem que esta distincção é
censurada e vituperada pelos proprios auctores do facto, cuja inteira
responsabilidade elles querem que seja do Papa, e por bem o saber é que
mais me apresso a distinguir.--Não fallei pois do Summo Pontifice, e,
quando tal fizesse para significar que o illudiam, não saberia dizer
mais do que o sr. Carlos José Caldeira nas seguintes linhas do capitulo
acima citado:

«A Sua Santidade cabe uma tremenda responsabilidade, e terá talvez de
responder perante Deus, por todo o mal que teria evitado, se quizesse
entrar no verdadeiro conhecimento do estado das christandades na Asia, e
fizesse caminhar pelas vias regulares e honestas a Congregação da
Propaganda Fide, que tanto se afasta dos deveres do seu instituto;
porque se deixa guiar por interesses mundanos e más paixões, e trata com
incrivel leviandade e desleixo os mais consequentes negocios da Egreja.
É por isto que muitos lhe chamam na Asia--_Congregação de destruenda
fide._»

S. C., 1.º d'abril de 1872.

                                                      Sou de v. ex.ª

                                                   _A. Marques Pereira._




VI


O collaborador não tornou até hoje, e diga-se isto sem desdouro seu,
pois que, para mais segura defeza do que escrevêra sem provocação, desde
logo se desobrigára de replicar.

Depois de publicada a carta que precede, indo eu não sei já com que
humilde pretensão ao escriptorio do _Diario de Noticias_, em aprazivel e
variada conversa de minutos junto d'aquella meza feracissima de cujos
escriptos se alastra Portugal e seus dominios, ouvi de um dos srs.
collaboradores certa informação que, dias antes, me faria redigir de
modo algum tanto differente a mesma carta. O folheto acabava
engraçadissimo se eu repetisse agora a informação: nada me auctorisa
porem a fazel-o, ainda que o cavalheiro a não declarou segredo.

Acaba por isso triste, inutil, abstracto--á maneira de esphinge velha,
perdida em areiaes do Egypto... á maneira do padroado portuguez na China.


FIM.





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A. Marques Pereira

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