The Project Gutenberg EBook of Os Descobrimentos dos Portuguezes nos Seculos XV e XVI, by António Filipe Marx de Sori This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Os Descobrimentos dos Portuguezes nos Seculos XV e XVI Author: António Filipe Marx de Sori Release Date: February 4, 2009 [EBook #27992] Language: Portuguese *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS DESCOBRIMENTOS *** Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) A. F. MARX DE SORI DESCOBRIMENTOS DOS PORTUGUEZES NOS SECULOS XV E XVI CAUSAS QUE OS DETERMINARAM SUA IMPORTANCIA E CONSEQUENCIAS MAIS NOTAVEIS QUE D'ELLES RESULTARAM 1867 TYPOGRAPHIA DE CASTRO IRMÃO Rua da Boa-Vista, palacio do conde de Sampaio LISBOA A. F. MARX DE SORI DESCOBRIMENTOS DOS PORTUGUEZES NOS SECULOS XV E XVI CAUSAS QUE OS DETERMINARAM, SUA IMPORTANCIA E CONSEQUENCIAS MAIS NOTAVEIS QUE D'ELLES RESULTARAM LISBOA TYP. DE CASTRO IRMÃO--RUA DA BOA-VISTA (Palacio do conde de Sampaio) 1867 AO ILL.MO E EX.MO SR. CONSELHEIRO Antonio Raphael Rodrigues Sette OFFERECE O Auctor. As linhas que seguem não foram primitivamente destinadas á publicidade pela imprensa; são apenas uns modestos apontamentos colligidos e ordenados para uma lição em concurso, cujo ponto foi tirado quarenta e oito horas antes. O sr. A. da Silva Tullio, talvez tão sómente para me obrigar, quiz honrar este modesto trabalho inserindo-o em artigos no _Archivo Pittoresco_. Hoje a empreza d'esta excellente folha brinda-me graciosamente com aquelles artigos, impressos em folheto. Proporciona-me assim o poder agora offerecer publicamente este ephemero trabalho ao meu bom amigo o sr. conselheiro A. R. R. Sette, a quem desde a origem foi dedicado, como testimunho de gratidão. O limitado da distribuição, por alguns amigos sómente, é prova de como reconheço a insufficiencia de um trabalho onde apenas se póde descortinar veneração patriotica pelos heroicos feitos dos nossos antepassados. _Marx de Sori_ DESCOBRIMENTOS DOS PORTUGUEZES NOS SECULOS XV E XVI Causas que os determinaram, sua importancia e consequencias mais notaveis que d'elles resultaram Direi primeiro quaes foram as causas que determinaram os descobrimentos dos portuguezes nos seculos XV e XVI, para depois narrar esses descobrimentos, e por ultimo tratar das consequencias mais notaveis que d'elles resultaram. Gomes Eannes de Azurara, escrevendo a sua _Chronica de Guiné_, diz que foram cinco as causas que determinaram o sr. infante D. Henrique a emprehender as navegações, e a mandar navios portuguezes aos descobrimentos da costa africana. Era a primeira causa ignorar-se ao certo quaes paizes e quaes habitantes existiam para além do cabo Bojador, visto que nada de verdadeiro se podéra averiguar da fallada viagem de S. Brandão, no seculo VI; e porque nenhum outro principe trabalhava n'isto, se decidíra a fazel-o o sr. D. Henrique, por honra de Deus e del-rei. A segunda consideração foi toda commercial, attendendo-se aos proveitos que haviam de seguir-se para este reino de se achar n'aquellas terras alguma povoação de christãos, ou alguns portos onde se podesse sem perigo fazer bom mercado. Importava a terceira razão ao conhecimento, que instava obter, de qual era, e até onde chegava, o poderio dos moiros, que se dizia muito maior do que commummente se pensava. Assentava o quarto fundamento no desejo de encontrar algum principe catholico, que, por amor de Christo, o ajudasse contra os inimigos da fé, na guerra que lhes movêra durante trinta e um annos, sem auxilio de rei nem de senhor de fóra de Portugal. Era, finalmente, o quinto motivo o grande desejo que havia de dilatar a santa fé e trazer a ella todas as almas que se quizessem salvar, chamando-as ao gremio da egreja, e dando-lhes ingresso na religião christã. Não podêmos deixar de accrescentar a estas cinco algumas outras razões, não indicadas pelo erudito chronista, mas que certamente se apresentaram ao espirito do sabio infante, e que, se não foram as deliberativas, deviam contribuir efficazmente para o decidir em seus tão porfiados como aventurosos commettimentos. É claro que o illustrado principe havia de ter noticia das navegações dos antigos povos, navegações mais ou menos fabulosas, mais ou menos longinquas, como foram as do carthaginez Hannon, de Sataspes, de Polybio, de Meneláo, de Necháo, de Eudoxo, e ainda outras cuja descripção tem chegado até aos nossos dias. N'algumas d'estas navegações se dizia haver sido costeado todo o continente de Africa, saíndo de Alexandria, passando as columnas de Hercules, dobrando a grande fronteira de Africa, entrando no mar Erythreo e ancorando em Suez. Ao Ophir de Salomão, á viagem de Marco Polo ao Cathayo no seculo XIII, devemos juntar as antigas navegações dos portuguezes, que já em tempos do sr. rei D. Affonso IV chegavam ás ilhas Canarias, ou antigas Fortunadas, navegações de que especialmente o estudioso infante devia ter cabal conhecimento, e que muito influiram de certo para apressar os primeiros passos em tão arriscada empreza. Chegára o infante D. Pedro de Veneza, onde residíra por muito tempo. Era então, no seculo XV, Veneza a nação que distribuia por todos os portos do Mediterraneo os productos da Asia. Tinha Veneza as mais estreitas relações com o Egypto e com a Persia. Os venezianos devassavam aquelles riquissimos emporios, e conheciam, como nenhum outro povo, a grandeza do Oriente. Eram elles quem melhor podia informar ácerca do tão celebrado reino do Preste João, principe que se dizia pertencer ao gremio do catholicismo, possuir vastos dominios, numerosos subditos e grandes thesouros. Presumimos, portanto, que traria o infante D. Pedro basta colheita de taes noticias, que mais deviam estimular os aventurosos desejos de seu irmão; de seu irmão, que, dotado de esclarecido entendimento, não podia forrar-se ao desgosto de ver que Portugal, tendo repellido os moiros para fóra d'esta terra, jámais conseguiria alargar os seus limites territoriaes, avançando as fronteiras cercadas já por principes catholicos, senhores de poderosos exercitos. O mar, porém, banhando Portugal em toda a sua extensão, vindo beijar as suas praias e morrer debatendo-se contra os seus rochedos, estava como que convidando o nobre infante a buscar n'elle, e por elle, os dominios que a terra da Europa lhe recusava. Apropriada era a occasião. A espada do mestre de Aviz ganhára a coroa de D. João I; e se o heroico valor do condestavel alcançára em Aljubarrota firmar o solio do monarcha, a marinha portugueza não ficára ociosa, nem deixára de contribuir efficazmente para a independencia da patria. Foram os navios portuguezes que, indo ao Porto, á sempre leal cidade do Porto, buscar os reforços de que necessitavam os oppressos sitiados em Lisboa, conseguiu, a despeito das balas da armada castelhana, com a qual travou rijo combate, e da sentida morte do valente commandante Ruy Pereira, desembarcar os soccorros tão opportunos, que, obrigando o monarcha hespanhol a levantar o cêrco de Lisboa, o predispoz para as tregoas celebradas em 1411 entre as duas coroas. Chegára, pois, o momento. De Lisboa saíram logo em 1412 os primeiros navios, mandados pelo talentoso infante com ordem para costear a terra de Africa, e, dobrando o cabo de Nam, passarem ávante. Mas nem bastavam ainda as cautelas tomadas, nem as relações obtidas, nem as concebidas esperanças. Faltava ainda, antes de proseguir no emprehendimento, assegurar a partida e a chegada tranquilla dos modernos navegantes. Urgia alcançar um ponto que, servindo de base ás futuras operações, fosse o centro d'onde podessem velejar, e aonde acolher-se do rigor dos temporaes os navios que saíam a descobrir. Mais ainda instava que esse ponto fosse situado por modo asado a impedir as depredações e a estorvar as piratarias dos corsarios barbarescos, os quaes, desembocando do estreito, cairiam de certo sobre os pacificos mercadores, e, roubando-os e levando-os ao captiveiro, lançariam tal desanimo, que, escarmentados, fugiriam os mais audazes de aventurar-se a tão triste fim, qual era o de escapar á lucta dos ventos e dos mares para ir morrer, carregado de ferros, nos calaboiços dos infieis, ou vergado ao mais rude e violento trabalho, sem que os olhos podessem fitar a cruz de Christo, sem que os labios podessem recitar uma oração á Virgem, sem que os braços podessem estreitar um amigo. Regar com o suor do rosto e as lagrimas do coração a terra dos moiros, morrer morte affrontosa sem escutar as palavras do sacerdote christão, era mais do que morrer. Por isso instava e urgia desde logo evitar previdentemente as consequencias, que viriam tão certas como funestas. Ceuta, possuida pelos agarenos, satisfazia a todos os intuitos, aguçava todas as cubiças; Ceuta era necessaria ao illustre infante D. Henrique; Ceuta caíu, pois, em poder dos portuguezes no anno de 1415. Se D. Henrique commandava as forças, o rei D. João, como passageiro e combatente, arvorava o balsão da ordem de Christo na muralha mahometana, abrindo brecha a golpes da rija espada por entre a multidão dos islamistas. Mal reconhecem os moiros a perda que acabam de padecer, quando prestes se ajuntam, pondo em apertado sitio as dezenas de portuguezes que bem defendem a nova perola engastada na coroa dos nossos reis. Vôa alli o heroico principe, como ferida leoa a quem pretendem roubar o filho querido das suas entranhas; e se a novidade do seu apparecimento espalha o terror pelos inimigos, não lhes deixando sentir mais uma vez a tempera da sua adaga, os sitiados, sob o mando do illustre conde de Vianna, irrompem e desbaratam os sitiantes, provando-lhes que até na propria Africa os cavalleiros da Cruz não cedem aos adoradores do crescente um palmo de terra, ainda que para resgatal-o não baste todo o sangue de um heroe, nem toda a vida de um martyr. Levantado o cêrco, por tres mezes se demora o talentoso infante indagando e perscrutando dos viajantes e dos mais instruidos noticias que ambiciona recolher d'esse vasto continente tão desconhecido e tão differentemente julgado. Volta a Portugal o esforçado principe, e mais instantes e mais repetidas são as viagens e navegações sem fructo. O temor prende os nautas ante o formidavel cabo a que chamam Bojador, pelo muito que _boja_ para o mar. As correntes parecem-lhes tão impetuosas e difficeis de vencer, que receiam ser arrebatados e envolvidos por ellas. A effervescencia (rebentação) que observam junto d'elle inspira tal receio, que os mais audazes não se atrevem a porfiar para montal-o. Nem por isso deixam de continuar as tentativas. Em 1418, Bartholomeu Prestrello, um d'estes navegadores, levado por uma tempestade para o sudoeste, quando espera encontrar a morte nas ondas, eis que descobre terra, para ella se dirige, e a que dá o nome de _Porto Santo_, pelo abrigo e repouso que alli encontra. Vem trazer esta alegre nova ao magnanimo Henrique, e logo no seguinte anno volta á ilha de Porto Santo, acompanhado por dois navios commandados por João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira, levando os primeiros elementos da futura colonisação. Prestrello regressa a Portugal; Zarco e Tristão Vaz, descortinando ao mesmo rumo no horisonte um ponto escuro e permanente, para elle se dirigem, e abordam á ilha da Madeira. Estes primeiros fructos não desviam a attenção do perseverante principe do seu principal intuito. Tem elle a satisfação de fazer dobrar em 1429 o cabo Bojador. Gil Eannes, natural de Lagos, conseguiu a façanha. E façanha foi esta para epocha em que a sciencia de navegar era em demasiado atrazo para se oppor não só aos perigos visiveis, que estes eram os menos de temer, mas, e particularmente, aos perigos fabulosos que a tradição conservára e o vulgo repetia a medo; tão tenebrosos se afiguravam. Registam as chronicas e as historias maritimas os preconceitos, não só do vulgo, ou dos menos instruidos, mas ainda de estudiosos e pensadores, de que, passando para o sul de certa latitude, a raça caucasica se tornava negra como a ethiope; de que o mar era tão baixo, que nenhum navio o podia navegar, formando apenas um vasto parcel; não faltando tambem a affirmativa de que o ardor do sol se tornava tão intenso, que ninguem podia viver em taes latitudes. Finalmente, ainda se juntava a este desanimador quadro de receios o boato de visões e phantasmas, com todos os correspondentes attributos do sobrenatural, e com todas as imaginações mais do que sufficientes para intimidar então os mais esforçados. Foi, pois, uma façanha este conseguimento de Gil Eannes, e façanha egualada aos trabalhos de Hercules. Em 1431 sae do Tejo Gonçalo Velho Cabral a descobrir terras para oeste. Chega ás Formigas, e com esta novidade vem para Lisboa. Volta no anno seguinte áquellas paragens, e aporta á ilha que denomina de Santa Maria. Agita-se o povo de Lisboa sobre a conveniencia dos descobrimentos, oppondo razões de peso e gravidade áquellas que lhe apresentam de seductora vantagem. Peleja-se a infausta batalha de Tanger. E por estas razões, ou por se entregar unicamente a Deus e a essa religião que se chama amor da patria, o duque de Vizeu sequestra-se ao bulicio do mundo, deixa a capital, e vae fundar no _Sacro Promontorio_ a primeira eschola de nautica e o primeiro observatorio, primeiros não só de Portugal, como dizem escriptores portuguezes, primeiros da Europa, como accordes testimunham em quasi unanimidade os historiadores estrangeiros. Levantada a Villa Nova do Infante, reunidos em Sagres os mais esclarecidos varões, alli se discutem as theorias mais adiantadas, e se lançam os primeiros fundamentos do mais vasto imperio colonial; e d'alli partem ousados Antão Gonçalves, Diniz Fernandes e Nuno Tristão. Descobrem o Senegal, passam Cabo Verde, e chegam ao Gambia. Tambem d'alli sae Luiz Cadamosto, veneziano ao serviço de Portugal, que aporta ás Canarias, e chega ás ilhas de Cabo Verde. Gonçalo de Cintra deixa o seu nome á bahia onde deixa a vida pelejando em traiçoeiro e desegual combate com os indigenas. Soeiro Mendes levanta o castello de Arguim. Somos chegados a uma epocha fatal. O excelso infante D. Henrique baixa á sepultura. _Mas não morre, porque homens como D. Henrique não morrem._ D'além da campa continúa a vigiar, proteger e guiar os portuguezes. E se a morte--em captiveiro--de seu irmão, o infante santo, devia de ser nuvem negra a escurecer-lhe os derradeiros momentos, as ilhas da Madeira, dos Açores, e dezoito graus da terra africana, seríam outros tantos astros a illuminar-lhe o caminho da eternidade, e a apontar-lhe a futura grandeza de Portugal. Repousa o inclito varão. Sirva-lhe de funebre distico o _moto_ predilecto; e _talent de bien faire_ seja o epitaphio do immortal infante D. Henrique. Proseguem os descobrimentos. Pedro de Cintra chega ao cabo de Santa Maria. Pedro Escobar e João de Santarem vão á Mina. Deixa Lopo Gonçalves o seu nome ao cabo que avista. Fernando Pó descobre as ilhas de S. Thomé, do Principe, de Anno Bom, e a Formosa, que depois tomou o seu nome. Manda el-rei D. João II a Diogo de Azambuja que levante o castello de S. Jorge da Mina, e expede Diogo Cam para proseguir no reconhecimento da costa. Em 1484 acerta Diogo Cam com o rio Zaire, desembarca na margem do sul, e, tomando conta das terras adjacentes em nome do rei de Portugal, alli assenta um padrão em signal da sua passagem, e para assegurar no futuro a posse que hoje nos pretendem contestar. Ainda em 1859, passados 375 annos, tivemos o gosto de ver e tocar o pouco que existia de tão valiosa reliquia. Seguiu Diogo Cam para o sul, e no cabo Negro levantou padrão egual ao que deixára no Zaire ou Congo. Mas el-rei D. João II havia comprehendido o previdente intuito do infante D. Henrique; conhecêra toda a vantagem e medíra todo o alcance do emprehendimento d'aquelle glorioso principe. Ambicionava elle chegar á India. Á India, ao paiz das maravilhas. Á India tão fabulosamente descripta. Á India sem passar por terras do arabe ou do persa, e sem necessitar dos navios de Veneza. Rasgado se offerecia já então o horisonte. Devassados os mares até ao cabo Negro, eram vasto campo para largas experiencias e pleitos de ardidez. Se os navios sulcam as aguas em porfiosa procura do extremo ponto de Africa, embaixadores mais ou menos officiosos são mandados por terra com apertadas instrucções e direcção indicada em busca das terras do Preste João das Indias. Archiva a historia os nomes de Pero da Covilhã, ou João Peres da Covilhã, e de Affonso de Paiva, como dois d'estes devotados emissarios. Somos chegados ao anno de 1486. Bartholomeu Dias, Pedro Dias (seu irmão) e João Infante saem de Lisboa em tres navios; demandam o rio Zaire; seguem para o sul; assentam o padrão de S. Thiago na Serra Parda ou Rosto de Pedra; surgem na angra que denominam _das Voltas_, pelos muitos bordos que fazem infructiferamente para montar a ponta do sul, a qual guarda ainda hoje o primitivo nome--_cabo das Voltas_. Correm d'alli para o sul, e quando, passados treze dias, governam a léste, alguns mais dias se passam sem darem vista da terra. Navegam então para o norte e ferram a bahia dos Vaqueiros. Costeiam a terra, e, avistando um ilheu, n'elle deixam o padrão que lhe dá o nome da _Cruz_. Consegue Bartholomeu Dias, contra a mór parte dos votos, continuar para o norte, e, entrando primeiro o navio _S. Pantaleão_ n'um rio, alli fundeiam. _De João Infante_ se fica chamando este rio, nome do commandante do _S. Pantaleão_, e não, como diz um auctor estrangeiro, por ser o nome do infante D. João, que, segundo o mesmo auctor, ia n'esta viagem. Quer Bartholomeu Dias levar por diante a empreza, proseguindo a navegação ao longo da costa; não lh'o consentem, porém, os seus companheiros, e, unanimes em seus votos, obrigam o intrepido descobridor a dar as velas ao vento em direcção á patria. Alguns dias depois avista um formidavel cabo, e, pelas tormentas que o assaltam proximo a elle, chama-lhe _cabo Tormentoso_. Assente n'aquellas immediações o padrão de S. Filippe, e tocando em differentes pontos, vem finalmente largar ancora no Tejo. Bartholomeu Dias dobrára o extremo de Africa. Conseguíra vencer a empreza de 75 annos de trabalho. El-rei D. João II avisadamente substitue o nome de _Tormentoso_, dado pelo ousado navegador ao temivel cabo, pelo de _Boa Esperança_. Previdente signal de quantas esperanças lhe surgiam na mente e no coração. Previdente resolução para despertar arrojos e afugentar temores. Mas, assim como o cabo da Boa Esperança havia de fazer esquecer o das Tormentas, e Vasco da Gama sobrepujar a gloria de Bartholomeu Dias, assim tambem ao sr. D. João II não pertencia mais do que dizer á Europa que havia outro caminho para a India. Ao rei _venturoso_ cumpria aproveitar os aprestos, proseguir no emprehendimento e receber os feudos do Oriente. No sempre memoravel dia 8 de julho de 1497 saem do Tejo, do ancoradoiro do Restello, quatro navios: o _S. Gabriel_, de 120 toneladas, commandado por Vasco da Gama; o _S. Raphael_, de 100 toneladas, commandado por Paulo da Gama; o _Berrio_, de 50 toneladas, commandado por Nicolau Coelho; e uma nau de 200 toneladas, commandada por Gonçalo Nunes. Se o rei, em Montemór, recebe um juramento de Vasco da Gama ao entregar-lhe a bandeira da ordem de Christo, se os freires da mesma ordem são conforto na despedida e rogadores pela prosperidade da viagem, no ceo, junto ao throno do Creador, ainda mais valiosa supplica se ergueu. Os filhos de D. João I oravam de certo pelos nautas que iam rota batida procurar o Preste João e o rei de Calecut. Mas sigamos a esteira d'aquelles navios. Vae n'elles todo o futuro de um reino. N'elles não, vae n'um sómente, porque sómente a um homem podia confiar-se o futuro da patria, e esse homem havia de ser Vasco da Gama. Sigamos a esteira d'aquelles navios; nem pareça menos util, nem menos digno da maior altura, narrar e memorar ainda as menores particularidades em factos que são fastos, em descripções que se tornam por si mesmas, sem galas nem atavios, sem pompas nem louçanias de linguagem, verdadeiras epopéas, epopéas que exaltam a coragem de um povo, que avivam memorias gloriosas, que fazem pulsar apressado o coração, enthusiasmar o pensamento, expandir venturosa a alma, reverdecer e florir a arvore santa do amor patrio. Sigamos pois a esteira d'aquelles navios. Dão elles as velas ao vento, avistam as Canarias, e, passando ávante, vão ancorar na ilha de S. Thiago. Refeita a aguada, navegam ousadamente para o sul, e durante tres mezes só vêem ceo e mar. Governam para a costa, e, descortinando a terra, ferram n'uma grande bahia, que chamam de _Santa Helena_. É ahi ferido o capitão-mór, por causa de Velloso encontrar _aquelle celebre oiteiro mais facil de descer que de subir_; corregem os navios, e, velejando novamente, passam o cabo da Boa Esperança em 22 de novembro, á pôpa arrasada. Entram na angra de S. Braz, desmancham a nau dos mantimentos; e proseguindo avante, luctando com a impetuosidade dos ventos e das correntes, denominam do _Natal_ a terra que costeiam; visitam aquella que chamam da _Boa Gente_, para depois entrarem no rio dos _Bons Signaes_. Aportam a Moçambique, e, livres das traições dos seus naturaes e dos de Mombaça, surgem em Melinde, onde com bom gasalhado recebem pilotos do paiz. Novamente desferindo as velas, vão ancorar em Calecut aos 20 de maio de 1498. Portugal tinha lançado uma ponte para a India! Recebidas as amostras do Oriente, tomados alguns indigenas, supportada a perfidia do Samorim, oppondo sinceridade á traição, attenções e benevolencias aos desdens, lealdade á aleivosia, paz á guerra, o Gama, trajando lucto pelo irmão e companheiro, Paulo da Gama, fallecido na ilha Terceira, vem entrar no Tejo a 29 de agosto de 1499[1], e entregar el-rei D. Manuel as primicias da India, para receber em paga o titulo de _dom_. Alvoroçam-se o reino e a Europa com tal nova. Calculam-se e pesam-se os proventos que podem derivar do extraordinario descobrimento. Ás opposições de longo tempo enraizadas contra as longinquas navegações succedem o afan e delirio com que á porfia pretendem todos visitar as riquissimas paragens d'onde receberam as preciosas amostras conduzidas pelo Gama. Importa, por outro lado, não tanto mandar á India os productos do solo portuguez, mas patentear alli o nosso poderio, para secundar a demonstração que deramos da nossa ousadia. E isto importava não só com respeito ao Oriente, senão, e ainda mais, por interesse da Europa. Mal descança o rei no palacio da Alcaçova. Á Ribeira o prendem de continuo os aprestos e vigilias para novos e mais largos apercebimentos. Começam a levantar-se os paços da Ribeira com o rapido construir das naus e galeões. Não ha mingua de ardimentos onde sobram as virtudes cavalheirescas; não faltam ousadias onde abunda a fé; não esmorecem o valor e coragem onde o amor da patria campeia altivo por sobre todos os outros sentimentos de um povo. Treze navios, sob o mando de Pedro Alvares Cabral, largam do Tejo, e, ou para se desviarem das calmarias do golphão de Guiné, ou levados pela impetuosidade do vento, ou por suspeita de que podem encontrar nova terra, ou ainda outro caminho para a India, tanto se afastam da costa de Africa que aos 43 dias de viagem descortinam um monte, a que chamam _Paschoal_, da paschoa cuja festividade então era. Navegam ao longo da costa procurando um surgidoiro, e tão bom e tão abrigado o encontram, que, ferrando n'elle toda a armada, lhe dão o nome de _Porto Seguro_. Constroe-se e levanta-se na praia uma grande cruz, celebra-se a primeira missa n'aquellas regiões, e pelo nome de _Vera_ ou de _Santa Cruz_ é designada a nova terra abordada por Cabral. Ficam alli dois homens e uma cruz. São decorridos 364 annos, e a cruz domina e protege aquelle vasto imperio. Á sombra da cruz de Cabral repoisaram os homens de 1500--a cruz de Christo tem defendido durante mais de tres seculos a terra de Cabral. E se trocaram pelo de Brasil o primitivo nome, não poderam trocar por outra a primeira edificação que alli fizemos, o primeiro monumento que alli levantámos e o primeiro signal que alli deixámos. É bello meditar como através dos seculos, se afigura ainda hoje pairar sob o ceo brasileiro o symbolo de paz e fraternidade deixado por Pedro Alvares. Possa o emblema da redempção guardar e ser o eterno defensor dos nossos irmãos na terra de Santa Cruz! Destacado Gaspar de Lemos para o reino com tão fausta nova, veleja a armada a 2 de maio, soltando rumo para o temeroso cabo da Boa Esperança. Alli, em desastrosa tempestade, perece Bartholomeu Dias; e assim pôde o tormentoso cabo _tomar de quem o descobriu summa vingança_. Prosegue Cabral, e, visitando a costa da Arabia e da Persia, vae a Calecut, a Cochim e Cananor, d'onde regressa a Portugal trazendo embaixadores a el-rei. João da Nova sae de Lisboa, e caminho da India encontra a ilha da Ascensão, avista a ilhota ou baixio que recebe o seu nome, e ao voltar a Portugal aporta á celebrada ilha de Santa Helena, que dos nossos dias occupa tão larga pagina em a historia da casa real de França e na da politica geral da Europa. D. Manuel é bastante prudente para pensar em tudo, para a tudo attender; não despreza nem olvida o descobrimento de Cabral, e para aquellas terras envia o florentino Americo Vespucio, que, reconhecendo-as, visita a costa, chega ao Rio da Prata, segue para o sul, e se torna ao Tejo para novamente ir áquellas regiões e adquirir a gloria de deixar o seu nome ao novo continente, primeiro avistado e visitado por outros navegadores. Entretanto reclama a India a mais séria attenção. Os moiros, surprehendidos no trato exclusivo d'aquelle vasto emporio, ousam tudo, desde a perfidia até á guerra, para prohibir o commercio aos portuguezes. Incitam os naturaes, e, por mil industrias, armam ciladas, movem contestações e provocam combates taes que fazem perigar o nosso estabelecimento n'aquellas apartadas regiões. Levaramos á India a paz, e pediamos em troca da nossa ousadia e esforço a liberdade de commerciarmos; tornaram-nos a traição e a guerra em troca d'aquelle pacifico intuito. Urgia mostrar que, se os navios recebiam especiarias, tambem jogavam possante artilheria; que os recem-chegados negociantes eram mais experimentados ainda nos botes e estocadas, nas lides e nas pelejas, do que no trafego das quintaladas; que, finalmente, se a cruz de Christo arvorada nas bandeiras, e exposta nas velas das naus e galeões, não dizia guerra, não podia tambem servir de menosprezo nem de symbolo de affronta e irrisão para quem a buscára por egide e trophéo. Predissera o illustre Gama que daria o Samorim trabalhos e perda de fazendas e de vidas. Ao Gama incumbe D. Manuel de voltar á India, para castigar o senhor de Calecut, assentar paz e duradoiro trato com aquelles povos que o bem merecerem, deixando alli navios para guardar e proteger os portuguezes e seus alliados. Vae D. Vasco, confiado na propicia estrella que lhe fôra guia e pharol; vae segunda vez á India aquelle que depois inspira confiança aos assustados companheiros, bradando-lhes:--«Coragem! o mar estremece afflicto debaixo dos meus pés; assim se mostra timido o vencido ante o vencedor.» Tres divisões, compostas de naus, caravelas e galeões, capitaneadas pelo Gama, dão as velas ao vento e singram para o Oriente. Tributa o rei de Quilôa, contrata paz e amizade em Cochim e Cananor, inflige severissimo castigo ao rei e cidade de Calecut, recebe embaixadas de diversos principes, e, coberto de gloria, vem entrar no Tejo, entregando a el-rei o oiro de Quilôa, que, fabricado em monumental custodia, é offerecido pelo venturoso monarcha ao mosteiro de Santa Maria de Belem. Contempla a Europa em extatica admiração o espectaculo que offerece um tão pequeno povo; pequeno contado o numero de individuos que o compõem, grande pelo valor e audacia que provam nos arrojados commettimentos. Só o turco sobresaltado padece desde logo as terriveis consequencias de tal descobrimento. Só a senhoria de Veneza experimenta o golpe profundo que lhe descarregámos no seu commercio. Por isso a Turquia e Veneza, dando as mãos mais uma vez, ligam-se agora contra os portuguezes na India. Iam estes alargando as relações com estender o conhecimento, com ganhar a affeição dos naturaes, e com desempenhar lealmente os compromissos contrahidos. Mas, se alcançáramos o respeito que impõe a força estacionada n'aquellas paragens, faltava ainda, e faltava sensivelmente alli, a força que deriva da auctoridade, a força que, partindo de um centro, se irradia para todos os pontos, e a todos os pontos alcança, illumina e dirige. Vale muito o braço que fere, mais vale ainda a cabeça que dirige. É essencial mandar, á India não, mas para a India, um homem que por todos pense e a todos governe. Medita o rei na melindrosa escolha d'aquelle que deve ser delegado seu e seu representante. Entre milhares de guerreiros, entre centenas de heroes, mal se compadece preferencia que não venha do acaso. Entretanto o rei medita, e, fitando a vista em D. Francisco de Almeida, designa-o e elege-o para tão ardua missão, e com o titulo de vice-rei o envia á India. É D. Francisco o astro ao qual volvemos admirados o pensamento; é o astro que admirâmos cercado pela brilhante auréola formada por todos os nobres portuguezes, que cada dia mais se nobilitam no Oriente. Seguido por vinte e uma velas, navega para a India o nobre Almeida, e, mal tem passado o cabo da Boa Esperança, em Quilôa e Mombaça, substituindo o rei, recebendo pareas e levantando fortalezas, assignala a sua chegada ao Oriente, onde o antecede a fama bem merecida dos seus feitos e victorias. Companheiro e mais que amigo, o bravo D. Lourenço, filho estremecido do vice-rei, é o Hercules portuguez, cujo nome a historia guarda e conserva a tradição em honrada memoria. Chegam á India, constroem fortalezas em Cochim, Angediva e Cananor. D. Lourenço descobre Ceylão, acompanha e comboya as naus de Cochim, e, quando descançado repoisa no rio de Chaul, é improvisamente accommettido pelas forças combinadas do turco e dos reis de Cambaya e Calecut. E de força são taes navios, que cuidam os illudidos portuguezes ver n'elles as naus do reino esperadas n'essa monção. Não vale, porém, muito aos infieis a surpreza com que os nossos foram colhidos. Responde ao atrevimento dos infieis o valor portuguez, e resgata a heroicidade na peleja o descuidado nos apercebimentos para a lucta. Desegual pela inferioridade numerica dos nossos combatentes, dos nossos canhões e dos nossos navios, ainda assim conquista a espada portugueza loiros, que bem depressa hão de trocar-se em cyprestes. Esgotam-se as munições no combate, que, por traição ou receio, deixou de travar-se braço a braço. Aprezados alguns navios do inimigo, vinda a noite, concertam-se os nossos para a pugna no seguinte dia. Apesar de novos soccorros e reforços, mais não ousam os contrarios do que esperar pelo combate. Não se fez esperar; que, mal sopra o vento de feição, os nossos, desferindo as velas, manobram procurando abordar a esquadra de Mir-Hocem. A nau de D. Lourenço, mentindo a virar, é levada pela forte corrente de vasante para sobre uma estacada, contra a qual se encosta e ameaça de soçobrar. Instam com o capitão-mór para passar a outro navio. Não o conseguem, porque D. Lourenço quer ser o ultimo a deixar a nau, e não ha bateis nem esquifes para conduzir toda a tripulação. Os outros navios, havendo antes seguido o capitão-mór, quando chegam a surgir é em tal distancia d'elle, que não podem vencer a impetuosidade da corrente para d'elle se acercarem, nem com os navios, nem com os bateis. Posto em tão grande aperto, a nau de D. Lourenço é rijamente accommettida. Crivada de balas, completamente alagada e assente no fundo, continúa ainda a vomitar a destruição dos inimigos, que se succedem e substituem mais promptamente do que a morte os colhe e arrebata no furor da lucta. E a bandeira do capitão-mór só desce da gavea quando uma bala, levando as duas pernas a D. Lourenço, deixa a nau accommettida de toda a força da armada inimiga, defendida apenas por 24 portuguezes--por 24 heroes! Entregam-se elles a Melequiaz, que não aos rumes, e, quando os inimigos entram no destroçado navio, só encontram restos de christãos. Cada gavea é tão acanhada sepultura para os mortos alli accumulados, como a nau é vasto cemiterio. Á entrada do rio se demora a nossa armada, mas não se atrevem os contrarios a investil-a, tão pouco se julgam vencedores, tanto se arreceiam d'aquelles a quem só a força do destino fez que deixassem de vencer. Quem levará a triste nova ao vice-rei? Urge dar-lhe prestemente noticia do infausto successo. A sorte, designando a Camacho, o obriga a navegar para Cochim. Entretanto adivinhára presago o coração de D. Francisco a morte de seu filho quando viu voltarem sem elle as naus de Cochim e Cananor. Sereno espera a caravela que já se avista. Chega Camacho, e como a occasião é de luctos e tristezas, não de alegrias e festas, passa a fortaleza sem a saudar, e, desembarcando, vae ante o vice-rei, que o recebe grave, mas tranquillo. Estremece Camacho ao aspecto venerando de D. Francisco, o qual, recalcando no peito as ancias de pae extremoso para só deixar apparecer o vice-rei da India, mais severo que urbano, lhe pergunta: «Por que não salvastes á fortaleza, que não é do pae do morto, mas del-rei de Portugal?» Debulhado em prantos, pretende Camacho justificar-se com sentidos lamentos, que sirvam de conforto ao pae que forceja por não parecel-o. «Ora vos ide a descançar, e mandae á caravela que faça sua costumada salva, e eu mandarei na egreja fazer signal pelo defuncto; e o mais deixae, porque quem o frangão comeu ha de comer o gallo ou pagal-o.» Isto responde o nobre Almeida, e nobremente cumpre tal promessa. Só ella o retem na India. Espera as naus do reino, e, mal que chegam, veleja para onde a vingança o impelle e a gloria o aguarda. De caminho para Diu, entra em Dabul, espalha a desolação e terror, entregando ao fogo o que se livra da espada; chega a Bombaim, e d'alli, por seguro portador, envia o leal D. Francisco uma carta a Melequiaz, governador de Diu, prevenindo-o de que o vae atacar. Não quer o illustre Almeida que digam moiros que o vice-rei vencêra por surpreza. Despreza tal soccorro, e, fundeando ante a forte e opulenta cidade, prestes se prepara para um combate que deve decidir do nosso futuro n'aquelles mares. Ajudado de todo o mauritano poder no Oriente, sae Mir-Hocem de Diu, e, fazendo pomposo alardo das suas forças, larga ancora toda a armada bem junto á terra. Confiados na superioridade que dá o numero, estão os moiros descançados, e passam em gritas e prazeres a noite que antecede o combate, e que para a mór parte d'elles é vespera da eternidade. A pique esperam os nossos pela viração. Tão depressa ella enruga as vagas, como afanosamente é aproveitada nos traquetes, e as naus vão dar fortemente sobre os moiros. Trava-se rija a peleja, disputa-se enfurecido o combate. Não é lucta, mas encontro de furor, que alli se vê na sanha com que obstinadamente se perseguem os contrarios. De um e outro lado comprehendem que vae ser decisivo este duello. De um e outro lado succedêra á inimizade o odio, e ao odio o rancor. Celebre nos fastos da historia maritima, foi esta a primeira batalha naval dos tempos modernos, dada segundo as regras de um bem formado plano de tactica, e servirá de doirada pagina em que as futuras gerações leiam a historia de um grande heroe e de um grande povo. Suppre a coragem, o esforço, a ousadia, o atrevimento, a ardidez, onde rareia o numero. Acossados por toda a parte, mas por toda a parte multiplicando-se, como que subdividindo-se, e a toda a parte acudindo, cede, recúa, foge e é desbaratado o inimigo, que para salvar-se procura a terra. Com o seu chefe, internam-se e desapparecem os contrarios, para não mais voltarem á India, deixando a armada em despojo e testimunho da victoria solemne alcançada pelo vice-rei D. Francisco de Almeida no sempre memoravel dia 3 de fevereiro de 1508. Entrega Melequiaz os 24 captivos que recolhêra da nau de D. Lourenço; mais entrega, com largas indemnisações de guerra, os moiros que se encontram na cidade, e alli offerece ao vice-rei que levante fortaleza. Mas D. Francisco entende, como Themistocles entendia e repetia aos gregos, que para ser grande em terra mais preciso era ser grande no mar. Volta Almeida a Cochim, depõe o governo da India, e ao regressar á patria, venerado pelos amigos, temido e admirado pelos contrarios, entra na aguada do Saldanha para morrer morte ingloria e mesquinha em miseravel contenda. E assim, e ás mãos de um selvagem negro, morre um dos mais esclarecidos varões que floresceram no seculo XVI. Diogo Lopes de Sequeira, levando comsigo Fernão de Magalhães, chegára a Sumatra e a Malaca, onde assentou feitoria. Descobríra Tristão da Cunha as ilhas que ainda guardam o seu nome, fôra a Socotorá, desembarcára com Ruy Coitinho na ilha de Madagascar, a que chamou de S. Lourenço, e que simultaneamente visitára Fernão Soares. Havia então em Portugal abundancia de verdades, espadas largas e portuguezes de oiro, que se expediam successivamente para a India. Nem mais verdade, nem espada mais larga, nem portuguez mais de oiro, alli enviámos do que Affonso de Albuquerque. Albuquerque, Napoleão portuguez, foi o primeiro que depois de Alexandre passou á India como conquistador, e, mais do que Alexandre, como civilisador. O braço de Albuquerque rende a forte Ormuz. Ormuz, á qual chamava a pedra do annel formado pela India! Ormuz, onde recebe embaixadores do xeque Ismael, que lhe pedem pareas como tributario, e a quem manda entregar pelouros e lanças, dizendo-lhes que é aquella a moeda com que el-rei de Portugal paga tributo aos reis da India. Ormuz é pouco, fecha apenas o golpho persico. Como o estreito arabico é guardado por Socotorá e Camaram, mais é preciso assentar fortaleza e dominio em Goa e Malaca. Caem, pois, em poder do illustre Albuquerque a doirada Goa e a riquissima Malaca. Expede embaixadores e descobridores para Sião, Duarte Fernandes e Ruy da Cunha ao Pegú, e a Maluco Antonio de Abreu. Assim consegue o esclarecido Affonso dominar da pequena ilha de Goa todo o Oriente, fechar, nas mãos do rei de Portugal aquelle vastissimo emporio, aproveitar e governar o commercio do mundo! Das lides do cêrco descança Albuquerque na fadiga da conquista, repoisando depois na lucta dos temporaes, para em fim se entregar ao duro encargo de reger e administrar tão dilatados dominios, tão extenso commercio, tão variados interesses, tão diversos e numerosos subalternos. Não ha logar para admiração: os acontecimentos succedem-se com incrivel rapidez durante o governo de Albuquerque. Havemos de admirar o genio, o esforço, a ousadia do governador, ou a negrura e perfidia dos invejosos? Nunca tão baixos sentimentos sacrificaram mais nobre victima. Albuquerque, levantando a sua patria ao apogeo do esplendor, ao cumulo da opulencia, recebe em troca de taes serviços a mais negra ingratidão; e, quando o desprezo da corte pretende affrontar o nobre Albuquerque, elle, ralado pelo desgosto, consumido pela febre que o devora, definha e fallece, acolhendo-se á egreja _mal com o rei por amor dos homens, e mal com os homens por amor del-rei_. Indigno do nome portuguez fôra eu, se tratando dos descobrimentos dos portuguezes nos seculos XV e XVI, das causas que os determinaram e dos resultados que derivaram d'esses descobrimentos, deixasse de pronunciar os venerandos nomes do illustre Almeida e do grande Albuquerque. Lamento que me falte o tempo, e que, pronunciando apenas os nomes d'aquelles immortaes varões, tenha de passar em silencio os bravos feitos do intrepido Duarte Pacheco e de outros heroes que levantaram á altura das primeiras marinhas dos passados seculos a marinha portugueza no decimo sexto seculo. Não posso fazel-o, porque é pouco o tempo que me resta para ainda tratar de tantas e tão grandes acções, de tantos e tão nobres feitos, e para satisfazer á terceira parte do meu ponto. Resumirei, pois, quanto podér, nos mais estrictos limites de uma resenha, e não de larga narrativa, os acontecimentos que se succedem. Outro tanto não devia nem podia fazel-o com os anteriores factos. Foi d'elles, e do systema seguido para o seu conseguimento, que se obtiveram os resultados espantosos que passarei a expor. Não podia pois, deixar de consagrar alguns minutos á memoria de portuguezes que logram occupar largas e brilhantes paginas de todos os sinceros historiadores, de todos os philosophos que hão registado o progressivo caminhar dos povos na senda da civilisação, na estrada do progresso. Cruzam-se nos mares as rótas dos galeões portuguezes. A caravela desfralda altiva a bandeira da ordem de Christo, guardando do estrangeiro accesso a costa africana. A galé sulca, e secunda nas paragens do Oriente os esforços dos nossos contra a traição dos naturaes. Levantado o véo, exposto o Oriente a todas as vistas, tornam-se habituaes os portuguezes na manobra dos navios, no conhecimento dos tempos e das costas, e, arrojadamente curiosos, tudo devassam, tudo visitam, tudo observam, buscando os terminos do mundo. É assim que ao perpassar das naus se apresentam as ilhas de Pedro Mascarenhas; é assim que Duarte Coelho vae á Cochinchina, Andrade desembarca na China, Jorge Mascarenhas em Lequeos, Antonio Corrêa no Pegú; é assim que a Asia insular é reconhecida, e que a terra depois chamada Nova Hollanda é expugnada; é assim que o Japão se depara á admiração dos capitães e ao zelo fervoroso dos missionarios. As feridas da espada conquistadora eram curadas com o balsamo da religião. Onde apparecia a espada brilhava a cruz. Quando o soldado bradava «Guerra!», o sacerdote solicitava paz e misericordia. Foi assim que nós conquistámos, foi assim que nós civilisámos... Esqueçamos os desvios de quem por vezes deixou de imitar o padre por excellencia, o missionario por dedicação, o martyr voluntario, o apostolo do Oriente, S. Francisco Xavier, em fim. Morrêra D. Francisco de Almeida ás mãos dos negros, finára-se Albuquerque ralado pelos desgostos, fallecêra el-rei D. Manuel seguindo de perto o seu mais valente capitão, expirára o nobre Gama na India que descobrira. Tão apressados em caminhar para o tumulo como o foram de se immortalisar, presagio devia ser do negro futuro que aguardava a sua patria. Rei venturoso, feliz de ti, que ao legar tantos reinos, tantas glorias e tanto oiro, soubeste escrever em doiradas paginas a historia do teu reinado de vinte e seis annos, tão povoada de heroicidades, tão abundante de nobres feitos, que bem vale por si sómente toda a historia de um povo. E se quiz Deus que uma fosse negra entre tantas paginas de oiro, foi de certo para provar ás futuras gerações que existiu em verdade o reino que aliás tomariam por fabuloso, e que o rei d'esse reino foi um homem, D. Manuel, e não um Deus. Taes homens não morrem, vivem sempre na memoria. E vivem para guardar o que conquistaram, e vivem para dar exemplo dos seus feitos, e vivem para incitar novos commettimentos, e vivem bem de pé, encostados ao leme do galeão, segurando a penna ou empunhando a espada, em quanto vive o derradeiro que os conheceu. Foi a estes homens que governou D. João III. Estavam os ceos serenos e limpidos á hora em que os reis d'armas bradaram «Arrayal!», por elle, turvos e carregados os deixou ao soarem os dobres pedindo orações para a sua alma. Foi com a seiva do reinado de D. Manuel que vegetou o de D. João III--seiva que bem podia sustentar ainda a opulenta e pesada coroa que mais tarde havia de despedaçar-se no solo africano, de encontro ás lanças do infiel. Se já não ascendia a estrella que brilhava no ceo, essa estrella brilhava comtudo, e ainda não descendia. O occaso... era, portanto, imprevisto. Começam as luctas contra quem começa a disputar-nos os proveitos resultantes de emprehendimentos que não foram disputados, e em que sós, e bem sós, nos achámos. Começam a revelar-se as tendencias mercantis para sobrepujar os commettimentos da heroicidade. E estas luctas sustenta-as el-rei D. João III contra a Inglaterra e contra a França, que pretendem frequentar os nossos dominios maritimos. Mas começára a epocha do commercio, repetimos, e se as espadas de Nuno da Cunha e D. João de Castro ceifam loiros immarcessiveis, se Antonio da Silveira e João de Mascarenhas se immortalisam defendendo Cambaya, nem por isso as tendencias se revelam menos em preferir o negocio que produz riquezas ás estocadas que dão morte, ainda que com gloria. É n'este reinado que Martim Affonso de Sousa vae á terra de Santa Cruz, e alli começa a estabelecer colonos, que depois hão de tornar-se n'um grande povo. É tambem n'este reinado que Thomé de Sousa desembarca na Bahia de Todos os Santos, onde lança os fundamentos de uma grande cidade. Mas o tempo insta, e falta-me fallar de tres prestantissimos varões. São elles Corte-Real, Fernão de Magalhães e Christovão Colombo. Nem pelos ter posposto a outros esclarecidos navegadores n'esta brevissima resenha, deixam elles de occupar privilegiados, se não principaes logares, entre os mais illustres e nobilissimos navegadores e descobridores. Fallarei primeiro dos Corte-Reaes. Governava este reino o filho de D. João I. Affonso V acolhia e estimava as arriscadas emprezas a que serviam de incitamento o aturado e porfioso estudar da eschola de Sagres. Deviam alli ter achado as antigas noticias dos descobrimentos e navegações do povo scandinavo além da Islandia e Groelandia, ás terras denominadas Markland, Vinkland, etc., actualmente esquecidas por quem primeiro as encontrára, ou destruidas e submergidas com os infelizes christãos que n'ellas se achavam, ou estes completamente anniquilados e desapparecidos sob formidaveis moles de gelo. Quando em Sagres convergiam toda a luz da intelligencia, toda a força da vontade audaciosa de um povo soccorrido com as luzes e os esforços dos mais esclarecidos e dos mais aventurosos genios de todos os paizes, é claro que não podiam minguar noticias de acontecimentos tão notaveis e tão sabidos poucos decennios antes. A estas noticias, e ao pensamento primordial que presidia então a todas as nossas navegações,--descobrir um caminho, uma passagem para a India,--devemos attribuir o arrojo com que João Vaz Corte-Real, fidalgo da casa do infante D. Fernando, se arriscou a navegar para o noroeste em demanda das terras anteriormente visitadas, ou a fim de passar o mar até encontrar a India. Sabemos que em 1462 João Vaz Corte-Real, com Alvaro Martins Homem, chegára á Terra Nova ou do Bacalhau. Não se encontram, porém, vestigios de terem proseguido estas navegações desde então até ao fim do seculo. Foi em 1500 que o nobre Gaspar Corte Real, auxiliado por el-rei D. Manuel, conseguiu sair do Tejo com dois navios, e, tocando na ilha Terceira, visitar os seus amigos e parentes para depois seguir a derrota de seu pae. Chega á terra que denomina _Labrador_, visita o porto das Malvas, a Terra Verde, o rio Nevado, a ilha do Caramelo ou dos Demonios, e o que hoje se diz _Canadá_. Denominou-se _Canada_, e não _Cá nada_, como se cuida que foram as palavras dos primeiros portuguezes que entraram esse rio: _Canada_, por não ser largo o caminho, que, como desejavam e esperavam, désse passagem para a India; e não _Cá nada_, por deixarem de encontrar o oiro, _porque o oiro que então procuravamos era a India_. Volta Corte-Real a Lisboa, e, partindo novamente para aquellas paragens no anno seguinte, nunca mais se recebem noticias d'elle. Miguel Corte-Real, seu irmão, dirige-se para a terra do Labrador, e tambem d'alli não volta. Quer Vasco Eannes Corte-Real velejar para as regiões onde lhe desappareceram os dois irmãos queridos; não consente, porém, El-rei, antes manda a outros que vão na infructifera procura dos Corte-Reaes! E o que resta de tanto esforço e ousadia, de tanta coragem e dedicação? A gloria de contarmos entre os Gamas e Albuquerques, Almeidas e Castros, os nobres Corte-Reaes, cuja memoria será tão duradoira como a terra que descobriram e onde pereceram! É o que resta dos Corte-Reaes! Navegára, e tornára-se distincto na sciencia do mar e da guerra o nosso compatricio Fernão de Magalhães. Seguíra para a India na frota de Diogo Lopes de Sequeira, quando aquelle capitão fôra ás ilhas de Madagascar e de Malaca. Na volta de Goa para o reino, naufragando as naus, deveu-se á intelligente energia e ao dedicado serviço de Fernão de Magalhães, com a salvação das vidas, o não se perder toda a fazenda real. Em galardão d'estes trabalhos, pediu Magalhães a el-rei o accrescentamento de duzentos ou de cem réis mensaes na sua moradia; mas D. Manuel, ou por causa de um processo em que fôra envolvido o illustre navegador, ou porque lhe não houvesse ganhado affeição, indeferiu o pedido. Este indeferimento valeu uma grandissima gloria á Hespanha. Fernão de Magalhães, estudando e meditando, recebendo copiosas informações das Molucas e de todo o Oriente, presentiu que havia ainda outro caminho para a India além d'aquelle que fôra descoberto pelo Gama. Crente n'esta esperança, deixa Portugal, e vae offerecer á coroa hespanhola o roubar-nos o exclusivo do commercio oriental, patenteando um outro caminho para alli--sem passar pelos dominios portuguezes. Mais offerece provar que as Molucas pertencem á demarcação de Hespanha, quer pela bulla do papa Alexandre VI, quer pelo tratado de Tordesilhas. Consegue Fernão de Magalhães a necessaria licença de Carlos V, e no dia 1.º de agosto de 1519 sae de Sevilha no navio _Trindade_, seguido por outros quatro navios, _Victoria_, _Santo Antonio_, _Conceição_ e _S. Thiago_, sendo o maior d'elles do porte de 130 toneladas. Vão ancorar em Tenerife, e alli, refazendo-se de agua e mantimentos, recebe Magalhães o conselho de se acautelar dos companheiros, que mais são inimigos promptos a rebellar-se contra elle, do que auxiliares que o ajudem na primeira difficuldade que se deparar. Veleja para a terra de Santa Cruz, entra no Rio de Janeiro, navega depois para o sul, chama _Monte Video_ ao morro situado á entrada do Rio da Prata, e n'este rio surgem todos. Examinam o Rio da Prata para ver se dá a desejada passagem para o mar do Poente, mar avistado por Balboa quatro annos antes, e com este intuito exploram a costa, visitam as enseadas, reconhecem as bahias que descortinam, e ferram n'aquella que denominam de _S. Julião_. Foi alli onde Magalhães teve de supportar, com os trabalhos e perigos da tormenta, os desgostos da rebeldia dos companheiros. Foi alli onde Magalhães se mostrou energico e severo, como não podia deixar de ser capitão que tanto ousava, capitão que taes feitos emprehendia. Saíndo de S. Julião, entra no rio de Santa Cruz, e, novamente desferindo as velas, continúa a navegar para o sul até descobrir o cabo que chamou _das Virgens_, e, descortinando outro cabo ainda mais para o sul, manda fazer grandes festas, porque, pelas fortes marés e outros signaes, presente que terá chegado ao tão desejado estreito que lhe dê passagem para o outro mar. Entra o famoso estreito, denomina _do Fogo_ a terra do sul, e, apesar de abandonado pelo navio _Santo Antonio_, continua a navegar, e chama _Desejado_ ao cabo que pelo sul termina esse estreito. E assim, a 26 de novembro, desemboca com tres navios no mar que denomina _Pacifico_. Segue governando a differentes rumos, alcança a ilha de S. Paulo ou Desaventurada, depois a dos Ladrões, e por ultimo as Filippinas. D'alli, guiado por praticos do paiz, vae aonde a sorte mesquinha quer que seja o ultimo dia de vida de tão infeliz quanto ousado e esclarecido navegador. Chega á ilha de Zebut, e, combatendo contra os naturaes com espantosa desegualdade em numero, contra a perfidia e traição dos indigenas, que, reconciliados, lhe preparam tão infame ingratidão, e contra a falta de polvora, quando os companheiros afflictos buscam salvar-se nas lanchas, Fernão de Magalhães, _o portuguez_, cobre e defende a retirada até ao ultimo, e, guardando-se para derradeiro, é morto alli! Um só navio, o _Victoria_, consegue tocar em Timor, e, commandado por Sebastião d'el Cano, seguir derrota pelo cabo da Boa Esperança, refazer-se de aguada em S. Thiago de Cabo Verde, e entrar a 7 de setembro de 1522 no rio d'onde partíra quasi tres annos antes, tendo feito uma volta completa em roda da terra. De Magalhães resta a gloria, e, em quanto o estreito que conserva o nome do famoso portuguez unir o Pacifico ao Atlantico, não morrerá nem esquecerá o illustre Fernão de Magalhães. Não posso concluir esta abbreviada synopse sem dizer que, se a Hespanha se gloría de ter acolhido o pensamento e prestado navios a Christovão Colombo, se Genova se ufana de ser patria de tal heroe, se á Inglaterra peza de haver desdenhado as offertas do grande homem, Portugal, com o sentimento de não acceitar os serviços do esclarecido navegador, póde jactar-se e ensoberbecer-se por ter sido a eschola e o guia, senão o pharol e a derrota, que levou o illustre descobridor ao novo mundo, a que chamaram _America_, quando deveram nomeal-o _Colombia_. Devo dizer agora quaes foram as consequencias mais notaveis que resultaram d'estes descobrimentos. Ardua tarefa! Difficil é esta parte do ponto. Os resultados que derivaram dos descobrimentos dos portuguezes nos seculos XV e XVI, ou exigem largos dias para se exporem, e grossos volumes para se escreverem, ou então se exprimem e, por assim dizer, se symbolisam em poucas palavras. É realmente grandissimo o horisonte, alegre e risonho o quadro. Sente-se dilatar o peito e bater o coração, podendo dizer-se--sou portuguez--ao relatar quanto deve a humanidade aos portuguezes dos seculos XV e XVI! Resultaram dos descobrimentos dos portuguezes os mais grandiosos successos desde o findar da edade média até hoje. Resultaram, com as maiores revoluções, os maiores beneficios para a humanidade! Foram revoluções capitaes; revoluções que fizeram desapparecer alguns nomes do pequeno catalogo dos estados livres e independentes; revoluções que fizeram elevar pequenos estados ao apogeo do poderio e da gloria; revoluções que transformaram completamente a ordem de importancia relativa de todos esses estados! Resultaram os vastissimos campos, ou ignorados ou esquecidos, e só então amplamente franqueados a todas as sciencias. A todas, porque a todas dissemos:--Ide aprender! As quilhas dos galeões, sulcando mares nunca dantes navegados, patentearam com os novos mares novos climas, novos ceos e novos astros, um riquissimo thesouro de novissimos tratados, quaes nunca melhores poderam homens escrever. Tratados foram estes de todas as sciencias, escriptos indelevelmente pela mão do Creador, archivados na grande bibliotheca do universo, folheados pelos portuguezes antes de outro algum povo! A astronomia e a navegação produzem a hydrographia--completa-se e instrue-se a geographia. A medicina corre ávida em procura dos meios que os novos paizes lhe offerecem como á mais proficua das sciencias. A physica, a chimica... todas as sciencias, em fim, correm a frequentar a vasta eschola aberta pela navegação portugueza. O commercio transforma-se, desenvolve-se e engrandece. Effectua-se a liga das nações pelos laços do commum interesse, e, com tal confraternisar, civilisam-se os povos! Mas volvamos os olhos para a Europa. Vejamos o que faziam a Inglaterra e a Allemanha, a França e a Italia. Luctava uma pela liberdade, a outra pela religião; a França combatia na Italia, e esta destruia-se luctando contra si mesma na escolha de quem havia de a governar. O turco, tomada Constantinopla, era affronta constante e permanente ameaça aos dominios do christão. E se antes tal conseguíra, e se os povos congregados á voz dos reis, e os reis congregados ao grito de Roma, não poderam oppor-se á invasão dos mahometanos, que sería de Roma e da Europa, quando a Europa nem sequer já escutava o bradar de Roma afflicta? Que sería, em taes lances, o rapido e successivo accommetter de hordas sem fim, de innumeros guerreiros, de exercitos de fanaticos, contando-se ás centenas de milhares, guiados pela rapacidade, animados pelo furor religioso? Quem havia de oppor-se a tal invasão? Veneza e Genova, unicas potencias maritimas da epocha, se foram muitas vezes atalaya e escudo da egreja catholica, não poucas transigiram com os inimigos do christianismo em proveito de interesses menos nobres. A França esquecia S. Luiz, e presenciava tranquilla e folgazã os torneios e caçadas em que a fidalguia ostentava a sua vaidosa nobreza. A Inglaterra desmanchára os navios em que embarcára Ricardo para a conquista de Jerusalem. A Hespanha e Portugal, luctando braço a braço com o inimigo da fé, conquistando cada dia um palmo de terra, assentando hoje o arrayal no campo onde hontem ainda se entrincheiravam os contrarios, aquecendo-se agora á fogueira que ha pouco era almenára moirisca, levantando a cruz por sobre o crescente, transformando a mesquita em templo christão, e regando o solo com o sangue dos seus mais predilectos filhos, Portugal e a Hespanha luctavam, e luctavam sós, contra todo o immenso poder dos islamistas. Se estes dois reinos, pela sua posição no extremo occidental da Europa, ficavam como que apartados da communhão das nações nos proventos e utilidades do commercio, bem certos eram na frente dos combates quando se requeria o valor e o esforço. Ultimos estados pela situação geographica, eram tambem os ultimos a embainhar a espada em defesa da cruz. Sangue ardente, provada coragem, dilatada intelligencia, animo audaz, transpõem os mares conhecidos, e, dando mundos novos de presente ao velho mundo, fazem a surpreza e o espanto de quem ouve as modernas maravilhas. Portugal fecha os golphos Persico e Arabico, apodera-se de Malaca; e assim cortados ficam os infindos soccorros que d'alli e por alli vem ao turco. Limitado, apertado n'um determinado territorio, ruge o leão mahometano. Acode Veneza, ferida do mesmo golpe que enraivecera o turco; apresta navios, que, por terra conduzidos ao Suez, no mar Vermelho naufragam ou são destroçados pelas balas portuguezas. Constantinopla e Alexandria bem sentem o prompto decrescer, o rapido definhar do seu commercio. Veneza estremece ao reconhecer que nunca mais os seus navios transportarão para todos os portos do Mediterraneo os riquissimos thesouros do Oriente. Que importa o alongado caminho? Se o mar dá a morte, a terra do turco dá a escravidão, impõe a apostasia, e com a tortura moral a agonia lenta e de todos os instantes, muito peior do que a morte. Franqueado o novo caminho para a India, quem mais passará por terras inimigas do nome christão? A Europa, commovida, fita o attento olhar no horisonte. Deixa a cidade de Constantino, abandona Alexandria, esquece Veneza e o Mediterraneo, e vem saudar o Tejo! Era tempo de que a Europa toda viesse aqui pagar reconhecido preito e sincera homenagem á portugueza heroicidade. Aprestam-se navios, imitam-se os modelos lusitanos, correm-se mais ousadamente as costas, visitam-se com frequencia os differentes portos, robustecem-se os estados, e o turco empobrecido, definhando a olhos visto, sustenta com mão trémula o alfange que por toda a parte cede aos botes da espada portugueza. E tres navios e 160 homens obtiveram, ou antes Vasco da Gama obteve, o que não conseguira toda a Europa caminhando unida em concertados laços, guiada pela palavra de Pedro e animada por Godofredo. Nem S. Luiz, nem Ricardo, nem Alexandre VI, nem Sobieski, nem todos estes heroes feriram tão certeiro golpe no coração do imperio mauritano como n'elle abriu a quilha do _S. Gabriel_! Eis as consequencias que resultaram dos descobrimentos dos portuguezes nos seculos XV e XVI; eis o motivo por que, do ultimo logar em que era contada esta nação, passou a occupar, se não o primeiro, o mais distincto, o mais glorioso, o mais invejado logar no decimo sexto seculo. Eis as consequencias que resultaram para nós. Entendo que não devo descer a minucias, nem citar este ou aquelle provento colhido com os descobrimentos que fizemos. Limitar-me-hei a accrescentar que foram taes as consequencias, que ainda hoje, decorrido tão grande lapso de tempo, são-nos honra e gloria para oppôr aos desdens e affrontas, que se tornam villanias de quem as emprega contra aquelles que ensinaram a todos os povos o caminho do mundo. E seja-me permittido referir-me novamente ao padrão assentado no rio Zaire em 1859, e repetir hoje aqui algumas palavras que então disse ao deixar na praia africana aquelle memoravel symbolo: «Os resultados dos descobrimentos dos portuguezes foram taes que ainda agora podemos exclamar bem alto:--Disputam-nos hoje alguns palmos da terra que aos graus de 20 legoas descobrimos e conquistámos, em troca de muito oiro, muito sacrificio e muita vida, menosprezados pelos povos a quem ensinámos o que podiam alguns milhares de homens animados pelo acrisolado amor da patria. Bem pouco valemos já. Percorram, porém, os areiaes da Africa, visitem os palmares da Asia, admirem as florestas da America, ou naveguem por entre as ilhas da Oceania, que em toda a parte, ou seja no padrão de pedra, na cruz do templo, na muralha da fortaleza, no nome do descobridor ou na linguagem do povo, por toda a parte hão de encontrar vestigios da passagem dos nossos avós, dizendo--honra ao nome portuguez!» Foi esta a herança que nos legaram, que ninguem póde roubar-nos, e que eu considero como a mais gloriosa das consequencias dos descobrimentos dos portuguezes nos seculos XV e XVI. [1] «Nicolau Coelho chegou a Lisboa a 10 de julho de 1499, e Vasco da Gama a 29 de agosto.»--João de Barros. _Dec. I_, liv. IV, cap. XI, pag. 370. «A 29 de julho (alguns dizem de agosto) entrou Vasco da Gama no Tejo, aonde já o esperava Nicolau Coelho, que tinha chegado a 10 de julho.»--_Indice chronologico das navegações, viagens, descobrimentos e conquistas dos portuguezes_. «Vasco da Gama chegou a Lisboa a 29 de agosto, segundo Goes, ou nos principios de setembro, segundo Castanheda, tendo sido precedido, em 10 de julho, por Nicolau Coelho, etc.»--_Roteiro da viagem de Vasco da Gama em 1497_, por A. Herculano e o barão de Castello de Paiva, prologo da 1.ª edição. «A 29 de agosto chegou Vasco da Gama ao patrio Tejo; e sem entrar na cidade, esteve nove dias no mosteiro de Belem, etc.»--_Historia de Portugal_, por Henrique Schæffer. «D'esta ilha (Terceira) partiu Vasco da Gama para Lisboa, aonde chegou a 29 de agosto, sendo recebido del-rei e de toda a corte com as maiores honras, festas publicas e demonstrações de alegria.»--_Annaes da marinha portugueza_, por Ignacio da Costa Quintella. «Da ilha (Terceira) forão muytos nauios em companhia das naos, que todos chegárão juntos a Lisboa, que foi em dezoito dias de Setembro do ano de 499.»--_Lendas da India_, por Gaspar Corrêa, publicadas pela academia das sciencias, sob a direcção de Rodrigo José de Lima Felner, liv. I, cap. XXI, pag. 137 e 138. End of the Project Gutenberg EBook of Os Descobrimentos dos Portuguezes nos Seculos XV e XVI, by António Filipe Marx de Sori *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS DESCOBRIMENTOS *** ***** This file should be named 27992-8.txt or 27992-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/7/9/9/27992/ Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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