Scenas de viagem

By Visconde de Alfredo d'Escragnolle Taunay Taunay

Project Gutenberg's Scenas de viagem, by Alfredo d'Escragnolle Taunay

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Title: Scenas de viagem
       Exploração entre os rios Taquary e Aquidauana no districto
       de Miranda : memoria descriptiva

Author: Alfredo d'Escragnolle Taunay

Release Date: September 2, 2010 [EBook #33611]

Language: Portuguese


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                                           Rita Farinha (Setembro 2010)




SCENAS DE VIAGEM

EXPLORAÇÃO

entre os rios Taquary e Aquidauana no districto de Miranda.

MEMORIA DESCRIPTIVA

PELO 1^o TENENTE D'ARTILHARIA

Alfredo d'Escragnolle Taunay


Engenheiro geographo,
bacharel em bellas letras pelo Imperial collegio de Pedro II,
bacharel em mathematicas e sciencias physicas,
official da Imperial ordem da Rosa,
condecorado com a medalha de campanha
das forças do sul de Mato-Grosso e ex-ajudante da commissão
de engenheiros junto áquellas forças.



RIO DE JANEIRO

Typographia--Americana--rua dos Ourives n. 19

1868




Ao Illm. e Exm. Sr.

Tenente-General Conselheiro

Polydoro da Fonseca Quintanilha Jordão

O. D. C.

O Autor




                                              Exm. Sr. General.


Tomo a liberdade de offerecer a V. Exc. estes apontamentos colhidos
n'uma viagem trabalhosa e rodeada de perigos.

Quando eu a executava, o sentimento do dever era o meio seguro para
achar menos arduas as contrariedades incessantes que me acommettião. A
esse sentimento unia-se o desejo de corresponder á espectativa de minha
familia e de meus chefes, cumprindo á risca as ordens que me havião sido
dadas.

A lembrança de V. Exc. me era presente n'aquelles momentos e desde então
formei a resolução de collocar debaixo de sua prestigiosa protecção
qualquer trabalho que emprehendesse sobre essa exploração.

Hoje cumpro com uma divida.

Assigno-me de V. Exc.


                             Muito respeitoso amigo e subordinado

                                 Alfredo d'Escragnolle Taunay.


Rio de Janeiro, 12 de Outubro de 1867.




PREFAÇÃO


Incumbido de uma exploração importante n'uma zona de mais de cincoenta
legoas, colhi os dados que ora apresento, procurando tomar notas
minuciosas de tudo quanto pudesse interessar e coordenando-as desde
logo, de modo que formassem com pouco custo um trabalho simples e
despido de pretenções, porém de alguma vantagem para novos e mais
habilitados exploradores, fornecendo-lhes apenas uma base para futuros
desenvolvimentos.

Coube-me a felicidade de ter para companheiro n'essa viagem, o muito
illustrado e digno engenheiro, o meu amigo Dr. Antonio Florencio Pereira
do Lago, capitão d'estado-maior de 1^a classe, cujo espirito
eminentemente methodico e cultivado e cuja intelligencia, ornada dos
mais preciosos dotes da alma, vão-se tornando, felizmente para a nobre
classe a que pertence, de dia em dia mais conhecidos.

Nas crises, porém, de uma peregrinação atribulada, como a que fizemos,
vi-o desenvolver qualidades que demonstrão grande energia e sangue-frio,
e que, servindo-me de proveitosa lição, tornárão para mim a sua amizade
ainda mais preciosa.

Procurei tirar á minha narrativa o caracter official. Em muitas
occasiões não pude livrar-me da technologia scientifica; usei d'ella,
com parcimonia, e, organisando um trabalho singelo, envidei esforços
para que fosse consciencioso e sobretudo veridico.




SCENAS DE VIAGEM




CAPITULO I


As forças destinadas ás operações no districto de Miranda, achavão-se,
desde o dia 20 de Dezembro do anno de 1865, acampadas na margem direita
do rio Taquary, occupando, desde a confluencia d'este com o rio Coxim,
uma extensão de mais de legoa.

Sobre este local existira grande controversia; uns o apresentavão como
excellente ponto de estação para os nossos soldados, dando-lhe as honras
de posição estrategica, outros, contrariando fortemente tal opinião,
fundados no conhecimento da localidade, tiravão-lhe toda a importancia
de que era revestido. Na realidade, o melhor possivel para a formação de
uma colonia, como existe desde 1862 projecto, acha-se o ponto falto de
todas as condições para ser considerado como militar, pronunciando-se a
commissão de engenheiros contra a escolha d'elle, quando fôra
consultada.

Entretanto ahi passárão as forças os mezes da estação pluviosa. Esta
phase do anno, determinada claramente, durante o verão, nas provincias
do interior do Brasil, começa geralmente a 8 de Setembro e vai, com mais
ou menos regularidade, até os fins de Abril. As enchentes e
trasbordamentos de rios n'uma zona baixa e plana, como a de quasi toda a
provincia de Mato-Grosso, são correspondentes a esta época chuvosa,
formando-se, n'uma extensão importantissima, um immenso terreno alagado,
d'onde surgem, de quando em quando, alguns pontos firmes, devidos ás
ondulações dos campos. Entre o Coxim e a villa de Miranda estendião-se
então, impedindo a passagem até a viajantes escoteiros, esses pantanaes
que, chegando em certos _corixos_ a dar nado, impossibilitavão
totalmente a marcha da expedição acompanhada por bagagem pesada e
viaturas de artilharia.

Achava-se assim, pela força das circumstancias, detida a columna, bem
que o commandante d'ella, o bravo coronel Galvão, ardesse em desejos de
começar o trabalho de reoccupação do districto, ainda n'aquelle tempo
todo em poder do inimigo. Por isso acolheu elle pressuroso as
informações que fornecêrão alguns fugitivos da villa de Miranda,
refugiados no Coxim, sobre a possibilidade de abrir uma trilha, que,
seguindo a base da serra de Maracajú, permittisse, pelo desvio dos
pantanaes, a passagem até o rio Aquidauana. Fôra por ahi que se déra a
fuga d'elles, havendo encontrado tão sómente pequenas difficuldades.
Apressou-se pois o commando em ordenar que dous engenheiros seguissem a
reconhecer aquelles terrenos, informando sobre a praticabilidade da
viação e procedendo a uma exploração cuidadosa d'aquella fralda de
serra. Tocou-nos essa commissão sobremaneira penosa, em companhia do
capitão Lago.

No dia 11 de Fevereiro fôra expedida a ordem; fizemo-nos prestes e, no
dia 13, effectuou-se a nossa partida depois de melancolica despedida aos
nossos companheiros, que deixámos, com as forças, do outro lado do
Taquary, onde devião demorar-se ainda perto de tres mezes.

As difficuldades no fornecimento de viveres durante a estada no Coxim,
reflectião-se dolorosamente na nossa matalotagem, onde só viamos, em
quantidade não muito satisfactoria, os generos da mais urgente
necessidade. Não tinhamos a pretenção de viajar como Nababos, nem
possibilidade para isso; mas as provisões, ainda quando para uma
excursão não muito custosa, nos faltavão de todo e antolhavamos
horisontes de certo pouco risonhos. Com immensa dóse de resignação, o
melhor dos provimentos para taes casos, partimos, escudados um no outro
e estribados n'esse sentimento, natural em todos e eminentemente
precioso, que constitue uma opinião philosophica, uma seita; o
optimismo. Partimos.--_Arcades ambo_, ou melhor--_milites ambo_.

Antes de deixarmos o Coxim, talvez para sempre, algumas palavras; e
sejão ellas o nosso adeos, adeos sem saudades, apezar do seu magestoso
Taquary[1], de sua verde mataria, de suas lindas garças, de seu _facies_
melancolico, de seu céo puro e noites scintillantes que terião feito
surgir em nós poeticos sonhos, se o estomago--e quantas vezes!--não
reagisse dolorosamente com exigencias difficeis de satisfazer. A posição
do Coxim é pitoresca,--salutar relativamente á zona em que se ergue esse
torrão--a vegetação bonita. Os terrenos patenteão superabundancia de
arêa, alguma argila; são ondulados sensivelmente, elevando-se até em
outeiros que vão se unir á grande cadêa de Maracajú, a qual, dez a doze
legoas além, levanta-se ao longo do caminho do rio Negro.

O aspecto phytologico não é novo: continuação dos _cerrados_ de Goyaz,
os quaes em occasião opportuna havemos procurado descrever, apresenta os
arbustos que lhes são mais communs: muitas _myrtaceas_, das quaes uma, a
_eugenia dysenterica_ (cagaiteira) quando lá chegámos, curvava-se ao
peso de seus lindos fructos côr de ouro; várias _malpighiaceas_,
avultando o _mureci_ (byrsonima verbascifolia) que tinha seu valor no
mercado improvisado do Coxim, assim como o _piqui_ (caryocar
brasiliense) de Saint-Hilaire e a _marmelada_[2] que é da familia das
_rubiaceas_. Com flôres vimos uma bellissima acanthacea[3], diversas
_hyptis_ e outras labiadas que resistião ao término da estacão da
florescencia. Muitas melastomaceas das tribus _lavoisiera_[4] (capsulas
seccas) e _osbeckia_ (sementes cochleiformes[5]) salpicavão os prados,
formando grupos com _araticús_ (anonaceas) em monticulos, respeitados
pelas aguas, onde sempre encontravamos um _araçá_ rasteiro, de folhas
largas. As _anonaceas_ ahi são muito frequentes, chegando algumas vezes
a attingirem a altura de grandes arbustos.

Junto ao rio, como sempre, a vegetação é mais abundante e luxuriante:
madeiras de construcção, como _aroeiras_, _perobas_, _ipés_, etc.,
muitas _figueiras_, _guanandys_[6], etc, corôão as barrancas que encanão
o rio.

Na passagem para o outro lado apresenta o Taquary a largura de 70
braças, ganhando em profundidade o que perde em superficie: ahi a
velocidade é diminuta; é já um curso importante que mansa e
socegadamente obedece á lei da gravidade. Não ha mais o buliçoso
movimento, o atirar louco, de encontro ás rochas, de alvos lençóes de
liquido, a precipitada corrente ao receber o Coxim, na confusão das
aguas; é a calma de quem não acha mais obstaculos que vencer; a
tranquillidade do descanço. Comtudo no nado a que forão obrigados os
nossos pobres pachidermes, enfraquecidos pelas pessimas pastagens do
local, essa correnteza levou-os a percorrer a diagonal de 140 braças,
impossibilitando-nos longa viagem. N'esse dia, andámos tão sómente um
quarto de legoa até o ribeirão da Fortaleza, caminhando n'uma encosta
elevada, coberta por _papilionaceas_ rasteiras e mato baixo de
_araticús_.

Este tributario do Taquary rola limpidas aguas sobre chão de alvacenta
arêa, e, já sobre tarde, pudemos distinctamente ver innumeros cardumes
de _pirapitangas_ e _corimbatás_ subirem contra a correnteza, descendo
todos, ao alvorecer. Na margem direita uma lindissima _anonacea_, com
folhas lustrosas e ramos pendentes, attrahia as vistas, surgindo com uma
_cecropia_ (embaiba) de um grupo de _melastomaceas_ (rhexias[7]),
_solaneas_ e _araticús_.

D'este ponto começão os terrenos baixos: a barranca abrupta do ribeirão,
na margem esquerda, é o córte alcantilado do ponto firme que se chama
Coxim; pelo outro lado não existe ribanceira; um chão plano, a modo de
lezira, com ligeiras ondulações, se estende quasi de nivel com as aguas,
que, nas enchentes, com summa facilidade invadem grande extensão.

Á noite, furioso furacão açoutou cruelmente as nossas barracas
esburacadas: a nossa comitiva muito soffreu. Os soldados, sem abrigo,
semi-nús, supportárão a inclemencia do tempo; junto a um fogo extincto
que provavelmente os aquecia intencionalmente. Além de dous camaradas,
acompanhavão-nos seis praças e um furriel do corpo de cavallaria do
coronel Dias, os quaes, achando-se transviados, desde a invasão
paraguaya e occultos em diversos pontos, áquem e álém Aquidauana, poucos
dias antes se tinhão espontaneamente apresentado ao commandante das
forças, que os designára para nos servirem de guias em nossos
reconhecimentos.

De alguns dos seus typos conservamos lembrança curiosa. O furriel
Salvador Rodrigues da Silva e os dous irmãos Campos Leite muito nós
ajudárão, e, apezar de terem sido no principio mal considerados,
desmentindo a nossa prevenção contra elles, sempre derão provas de
grande dedicação e disciplina.

Começavamos a nossa viagem debaixo das mais tristes impressões. A
incerteza que nos dominava sobre o estado da zona a percorrer, inundada
completamente,--pantanal medonho--, a approximação dos pontos occupados
pelos inimigos com a força de protecção, em nada respeitavel, que nos
cercava, a perspectiva desanimadora de pouco fornecimento para a
excursão, não constituião motivos para que figurassemos aquella
exploração um passeio agradavel, quando de todos os lados assomavão
senão perigos, pelo menos innumeras contrariedades.

Era pois explicavel o sentimento de tristeza e melancolia que nos
apertou o coração, ao recebermos os abraços de nossos collegas; e, á
noute, quando os échos longinquos repercutírão o signal de _silencio_,
que atroava no acampamento do Coxim, pelas bocas metallicas de suas
muitas cornetas, alvoroçárão-se em nós, na duvida de crises maiores, as
saudades do tempo que tinhamos passado ao lado de nossos companheiros,
se bem houvesse sido pouco invejavel. A braços com a fome, na mais
completa penuria, ahi se tinhão esgotado dias penosos, angustiados até,
em que no soffrer intimo não apparecia o vislumbre de compensação, o
raio de esperança por melhores tempos. Como densas nuvens, prenhes de
tempestades, mil incommodos, prestes a desfecharem maiores males,
pesavão sobre nossos espiritos e relampagos de quando em quando
escurecião-nos as vistas. Entretanto a união que sempre existíra entre
nós, a cordialidade de convivencia, a consolação reciproca, o apoio
mutuo, fazião communs e menos sentidos os desgostos que nos acommettião,
adoçavão os amargores da situação, amenisavão os espinhos do presente.
(Nota A)

Fizemos as nossas despedidas ao Coxim, do alto de um monticulo que
domina o ponto de reunião d'este com o Taquary, o qual de longe rola as
turvas aguas, até encontrar-se com o alvo contingente de seu tributario.
Demos então as costas ao Norte, indo logo depois demandar a margem
esquerda do bello Taquarymirim, que ora afasta-se, ora approxima-se
muito do caminho. É este cortado de continuo por pequenos corregos, os
quaes, ufanos n'aquella época, fenecem ao approximar a estação fria e
secca.

Os campos, que nos cercavão, erão cobertos de _cerrados_; vegetação
baixa, arborescente, comtudo mais vistosa que a de Goyaz. Até ás vezes
algum _vinhatico_[8] levanta-se alteroso, bem que retorcido e sem as
proporções a que attinge nas matas do Rio de Janeiro, como demonstração
da inferioridade de terrenos, cujas causas não hão de ser removidas tão
cedo. Dos outros typos ha abundancia: muitas _myrtaceas_,
_malpighiaceas_, _bombaceas_, _anacardeas_, _terebinthaceas_ e
_dilleniaceas_, das quaes a _lixeira_[9] pareceu-nos commum a todos os
cerrados, _cassias_, _papilionaceas_, _bignoniaceas_, algumas
_melastomaceas_; entretanto predominão ahi visivelmente as _anonoceas_.
(Nota B)

Nosso pouso foi n'uma baixada viçosa, coberta por verdejante tapiz de
bonita gramma, fronteiro a uma das cabeceiras do Taquarymirim e ao lado
de bellos grupos de _boritys_. Lugar encantador para um espirito
tranquillo, cheio de maravilhas para a imaginação de um poeta, fonte de
inspirações para um adorador da natureza, não nos provocou elle mais do
que o prazer do descanço, fruido depois de cançativa e morosa viagem de
duas e meia legoas. Entretanto, quão bellas erão as puras aguas que
revolvião-se em cachões de encontro a cabeços de rochas e, espumantes,
traçavão mil caprichosas curvas?! Da singeleza magestosa e melancolica
do bority nunca se ha de fallar sobejamente. (Nota C)

N'esse mesmo lugar, que denominámos _Pouso dos Boritys_[10], existião os
vestigios de um acampamento paraguayo, formado por occasião do
prolongamento da invasão, em Abril de 1865, até o Coxim e a fazenda de
Luiz Theodoro[11]. Galhos fincados no chão e apoiados uns nos outros,
com a ramagem para cima, formavão ranchos improvisados, em que se havião
abrigado os soldados, sob a coberta do ponche estendido por cima. A
certa distancia, achava-se um cercado para a cavalhada e, pelos
arredores, estavão varios objectos de picaria, ao lado de ossadas dos
cavallos, que erão degolados, á medida que afrouxavão. A ida dos
paraguayos ao Coxim foi feita com celeridade estupenda; a artilharia
passou por lugares medonhos e, em poucos dias, completárão elles uma
viagem redonda de 146 legoas, no tempo da maior inclemencia de aguas. Se
bem tivessem levado excellente cavalhada, voltárão muitos dos
expedicionarios a pé, pois que a peste, commum n'estas localidades,
incessantemente derribava os seus melhores animaes de sella.

Um anno depois, no mesmo mez, occupavão o acampamento dos Boritys, as
forças brasileiras, em marcha sobre os pontos em poder do inimigo e os
seus soldados, aproveitando os ranchinhos paraguayos, procuravão n'elles
substitutos ás barracas que lhes faltavão.

D'ahi por diante os vestigios da passagem dos invasores tornão-se cada
vez mais frequentes; as inscripções nas arvores são amiudadas, umas em
hespanhol, outras em guarany.

No corrego da Porteira, a meia legoa do pouso dos Boritys, uma d'essas
palmeiras tem o tronco coberto de disticos, infelizmente quasi todos
apagados. N'um d'elles pudemos comtudo decifrar o genero de amabilidades
que dirigião-nos os nossos visinhos republicanos. Além da necessaria
invectiva de _infames esclavos_, lia-se--_Los brasileros non son hombres
delante de Lopez_. Mão brasileira exarára já, no meio d'esses insultos,
o contraprotesto _Morrão os paraguayos_, e datára--11 de Junho de
1865.--Singular coincidencia! No dia, talvez na mesma hora em que se
escrevião, no meio dos sertões, essas palavras fatidicas, a bravura, o
canhão e o patriotismo brasileiros executavão aos olhos do mundo aquella
sentença fatal. Riachuelo tinha a sua repercussão instantanea, electrica
e o grito que erguia aos ares a valente maruja do Brasil, echoava, para
assim dizer, n'aquelles longinquos e desertos páramos.

É bem comprehender a monotonia da viagem que faziamos, para avaliar a
impressão moral por nós sentida, ao acordarem-se milhares de
pensamentos, com essa approximação que abria as azas á imaginação desde
muito adormecida.


     «Est Deus in nobis, agitante calescimus illo»


Com muito mais animação, tocámos os animaes e, d'ahi a perto de duas
horas, entravamos na sombria coberta do ribeirão da Mata. N'esta zona os
bosques são mui viçosos; os matagaes mais juntos, mais espessos; os
cerrados em menor numero; demais, a agua dos corregos é limpida e pura
até o rio Negro. Esperem os viandantes pela compensação e despeção-se de
ante-mão de tudo quanto fôr agua mais ou menos potavel.

Por emquanto goza-se junto áquelle bello ribeirão de todas as vantagens
de um excellente pouso: frescor constante, vista sempre amena de pura
lympha, bonita mataria e um pouco além excellente pastagem para animaes.
Quem viaja pelo interior dos sertões deve penetrar-se da importancia
d'essa condição, para que o pouso mereça escolha. Reduzidas, ha muito,
pela falta de milho, á simples alimentação herbacea, as nossas
cavalgaduras não apresentavão fórmas para poderem figurar em torneios,
e, a não ser o receio de descahir de assumpto, fallariamos por extenso
nos nossos transes em poupal-as e nas difficuldades em que nos vimos,
logo nos primeiros dias de viagem, pela morte de uma d'ellas.

O nosso microcosmo indispensavel á vida, bem que o mais diminuto
possivel, não podia soffrer córtes e a carga, que ficava por terra pelo
afracamento de um animal, era imparcialmente repartida pelos restantes.
Curvavão-se sob o peso de cargas babylonicas, porém avançavão sempre.

Começando já a avistar a cadêa de Maracajú, fomos, do ribeirão da Mata,
cortando bonitas pradarias, mais ou menos accidentadas, ornadas, de
quando em quando, por esses grupos de bella vegetação, a que chamão
_capões_[12]. Devidos á acção da humidade, são quasi sempre orlados por
fileiras de _boritys_, que misturão agradavelmente os seus leques á
folhagem tão diversa das _dicotyledoneas_.

Os terrenos continuão seccos, argilo-silicosos; de vez em quando algum
atoleiro, algumas braças inundadas que fazião já termos por certo a
approximação dos tão temidos pantanaes. Entretanto só os deviamos
atravessar poucas legoas áquem do rio Negro e além.... sempre.

Com uma legoa de marcha passámos o _ribeirão Claro_, que bem merece esse
nome pela alvura de suas aguas rapidas e encachoeiradas.

O desbastamento das margens concorre para que essa côr não seja alterada
pela reflexão do verde escuro das arvores. Um unico _bority_, direito
como um mastro, coroado pelas flabelladas palmas, erguia-se garboso no
seu isolamento. A sua posição especial o condemnava naturalmente aos
olhos de quem intentasse lançar um pontilhão para o transito; não
escapou pois aos machados, quando nossos collegas vierão preparando o
caminho para a descida da força sobre Miranda. A utilidade artistica não
o pôde salvar.

Mais além encontrámos outra corrente de agua, ainda mais bella que as
precedentes: o _ribeirão Verde_, que corre, com velocidade consideravel,
por entre margens altas, cobertas de sombria e espessa mataria. O leito
de grandes lages, forradas de limo, e a folhagem basta, dão ás aguas
crystallinas a apparencia que serve para aquella denominação.

O lugar é encantador: massas liquidas de um bello verde se deslisão
prestesmente, galgando as pedras desiguaes que tapetão o alveo, e
precipitão-se, de um degráo, n'uma bacia bastante regular, que recebe a
quéda. Grandes bandos de peixinhos dourados e _pirapitangas_ brincão
entre as rochas, cortando rapidamente a correnteza, quando envolvidos no
turbilhão de aguas.

A disposição de espirito necessaria para dar o devido apreço a essas
bellezas, não se achava em nós. A passagem a váo, difficultosa para os
nossos animaes de sella, tornou-se quasi impossivel para os cargueiros,
que, aos tombos e mergulhando as canastras, transpuzerão, á custa de
muitos esforços, o ribeirão. E aprecie-se assim a natureza!

Á noute, felizmente depois de acampados, copiosa chuva, como nos mais
dias, veio avivar-nos a lembrança de que estavamos na estação das aguas.

Malditas aguas!




CAPITULO II


A manhã levantou-se serena e bella. Ao longe resplandecião de novo
verdor os prados: o ribeirão engrossado, bem que sempre limpido, rolava
bramantes cachões de aguas esverdeadas e o frescor agradavel da
natureza, depois da trovoada da vespera, tornava o sitio tão magicamente
aprazivel, que se ergueu, no fundo de nossas almas, um hymno de gratidão
ao Creador. Entretanto, d'ahi a pouco, a reunião dos nossos animaes veio
arrancar-nos da contemplação de scena tão louçã e nunca se devem dar
poucas graças aos céos clementes, quando se os encontrão ás horas
propicias.

_Away_ pois!

Para medirmos com alguma exactidão as distancias, que tinhão de ser
ministradas ao commando das forças, viamo-nos obrigados a acompanhar um
dos cargueiros que nos dava a maior uniformidade de movimento. A
estimativa era a media do tempo gasto em diversas observações, para
percorrer uma extensão medida, havendo sido tomado para unidade o
minuto, que achámos correspondente a 30 braças ,355.

A nossa qualidade official não nos permittia o pouco mais ou menos:
entretanto caminhar assim, é sobre fastidioso, em extremo cançativo.
Accresce ainda a urgencia de não distrahir-se um momento, consultar a
todo instante o relogio, tomar nota das menores particularidades,
verificar qualquer parada e visar, de quarto em quarto de legoa, o rumo
magnetico, em que se marcha, para o que nos servia a excellente bussola
prismatica do capitão Karter, tão commoda e propria para esses
trabalhos.

Depois de 60 minutos de marcha, passámos uma matinha e, d'ahi a 30
minutos, outra, chamada do _Major_, por pertencer a um official da
guarda nacional de Minas d'esse posto, que explorára aquelles terrenos.

Prolonga-se essa matinha até a descida de uma abrupta rampa
escorregadia, que finda n'um corrego insignificante, o qual se espraia
n'um almargeal. Os pontos encharcados vão-se tornando mais frequentes:
ahi tivemos uma amostrasinha de pantanal. Durante mais de 5 minutos
seguimos uma vereda aberta no capim alto, toda coberta de agua e com um
fundo de hervas entresachadas, que tivemos algum trabalho em vencer.

Com a menor secca acaba esse alagadiço, que se fórma tambem logo ás
primeiras chuvas, devido ao represamento, n'uma pequena extensão, de
aguas, por dous firmes de terra.

Depois de nova mata e novo charco, o terreno começa a dar mostras de
pedregoso, a levantar-se sensivelmente e afinal a subir estreitado entre
massas de rochedos até a celebre passagem do Portão de Roma.

Dous massiços erguem-se ahi, cortados a pique, um fronteiro ao outro,
deixando intermedia uma estreita trilha, toda embaraçada com grandes
lages e matosinhos.

Não sabemos a razão de tal denominação. As difficuldades, os espinhos de
sua vereda, a aberta n'um céo anilado, como se nos afigurava, quando
subiamos a encosta e viamos duas linhas sombrias destacarem-se na
abobada celeste, justificavão muito mais a especificação de _Portão do
Paraiso_. A menos de ligar-se á cidade eterna um sentimento muito
especial de religiosidade, que nunca correu naturalmente pelo espirito
de quem[13] lhe deu o nome, parece elle completamente deslocado n'estas
paragens.

O sitio é sobremaneira agreste e sombrio.

Salvador Rosa, nas fragosidades da Calabria, não encontraria melhor typo
para seu modo artistico. Um salteador, de arcabuz ao lado, dominando o
caminho, outro estirado sobre uma rocha lisa, á espreita, transportarião
a scena para aquellas serranias e nem faltavão, para completo da côr
local, os _agaves_ (pita[14]), que surgião por entre as fendas, nem a
_figueira_ tenaz, a qual, agarrada ás asperezas da pedra, estirava
grossos ramos sobre a senda.

Os paraguayos fizerão rolar as carretas de artilharia por essa passagem
difficultosissima, que obrigou, para o transito das forças, a um prévio
trabalho, feito pelos engenheiros.

Considerado debaixo do ponto de vista scientifico, o Portão de Roma é
uma aberta praticada pelas aguas em rochas metamorphicas. Todos os
rochedos dos lados e leito da trilha, são de grés argiloso concreto. A
verdade tornou-se-nos bem patente, quando, depois de margearmos um
pequeno pantanal, subimos o monticulo fronteiro ao alcantil do Portão.
Ao longe divisavamos uma serie de montes encadeados, que trazião na
superficie diversas linhas continuadas parallelas, as quaes, segundo
parece-nos, mostrão as differentes alturas a que tocárão as aguas de um
antigo lago geologico, que outr'ora aquella bacia encerrou.

Nos cumulos que forão cobertos de todo e depois rapidamente deixados
pela massa liquida, apresentão-se erosões profundas e córtes a prumo,
como os que acabavamos de apreciar.

A mesma disposição de rochedos acha-se no Lageadinho, onde acampámos
n'esse dia (16) junto a um fio de agua que se deslisava por sobre um
chão de pedras, indo de quéda em quéda, perder-se na varzea proxima.

Procuravamos sempre seguir os pousos que as forças, pelas nossas
recommendações, devessem escolher: assim proporcionavamos, de antemão,
as marchas e attendiamos ás conveniencias dos acampamentos futuros.

Do ribeirão Verde ao Lageadinho tinhamos caminhado duas legoas e um
quarto, e, pela natureza do terreno e impedimentos com que se podião
contar, era marcha já penosa. Soubemos comtudo, ao depois, que, por ter
seccado aquelle lagrimal, contra as informações que haviamos colhido,
prolongára-se ella uma legoa além.

No Lageadinho a abundancia de guabirobas (eugenias) forneceu-nos
excellentes fructosinhos. Entre todas faremos especial menção da
_guavyra_[15], cujo fructo assucarado tem sabor mais agradavel e menos
adstringente que o araçá de corôa e é sobretudo muito maior em dimensão.

É um arbusto baixo, de folhas largas, tronco pardacento claro.

Diversas especies de guabirobas ahi se vião, umas do tamanho de plantas
fruticulosas, outras frutescentes; umas com fructos miudinhos
amarellados, outras com bagas maiores, d'aquella côr ou ainda,
esverdeadas.

Á tarde, como de costume, cahio copiosa chuva. Amainou promptamente.
Depois d'ella, descambou o sol por traz de nuvens rôxas, orladas de
fimbrias de ouro e prata, que, por largo tempo, atirárão lindos reflexos
sobre as campinas, até se confundirem com os pallidos clarões da lua, a
qual illuminou, com baça luz, os negros penhascos, portaes d'aquella
entrada colossal, com que defrontavamos.

Deixando o Lageadinho, fomos, com tres e meia legoas, acampar junto ao
corrego da Volta, atravessando sempre campos virentes, cortados ora por
fios de agua alimentados pelas chuvas, ora por matasinhas e capões que
vão apparecendo mais frequentemente, á medida que raleão os cerrados.

Tinhamos dividido a extensão a viajar. Ao meio dia, depois de duas
legoas, descançámos junto ao corrego, chamado do Castelhano, por ter ahi
sido, segundo nos disserão os soldados, fuzilado um official paraguayo
na occasião da excursão ao Coxim.

Repousámos debaixo da folhosa coberta de uma lixeira (dilleniacea[16]),
para comermos um pseudo-jantar, em nada conforme ás regras de
Berchoux[17].


           .... tu, Tityre, lentus in umbrâ, etc.


Tambem os gastronomos nunca imaginárão a possibilidade de figurar em
idyllios, sobretudo a modo dos nossos, e tal vida não comporta
exigencias culinarias.

N'esses casos, quanto mais simples o manjar, tanto mais aturavel. Assim
um pedaço de carne, fisgada n'um espeto de páo, um pouco de sal, fórmão
um _churrasco_ appetitoso que se come com grande gosto, quando o
acompanhão algumas colheres de farinha.

No Coxim, comiamos pura e simplesmente o churrasco: o habito custára-nos
a adquirir, mas o organismo accommodára-se.

Com a tarde, continuámos viagem, percorrendo mais légoa e meia até uma
matinha que o já citado corrego da Volta atravessa. Obrigados pela
noute, armámos barracas.... «_Suadentque cadentia sidera somnos_».
Infelizmente nuvens de mosquitos se alvoroçárão ao derredor dos ouvidos,
perturbando as doces consequencias de um somno reparador, ao passo que
imprecações de continuo levantavão-se do grupo dos nossos camaradas, a
despeito da fogueira colossal que havião preparado. Assim pois,
decidimos nunca mais acampar dentro de matas, abandonando além d'isso
aquelle modo de viajar que, sobre não dar o descanço preciso aos
animaes, fatiga-os com excesso pelo facto de receberem cargas e serem
descarregados quatro vezes seguidamente.

Reunida a nossa recovagem, démos, no dia seguinte, começo á viagem
habitual, passando, d'ahi a hora e quarto, o bonito corrego do Perdigão,
assim chamado, do nome de um sertanejo que levantára uma choupana junto
á sua margem esquerda.

Muitas e bonitas macaúbas[18] dominão o baixo matagal que as cérca,
vencendo-as em altura um grupo de _boritys_, cujos fructos attrahião
innumeros bandos de aráras, umas todas azues[19], outras de papo
vermelho[20] ou amarello alaranjado[21].

A mais que modesta habitação de Perdigão não escapou á furia
incendiadora dos paraguayos, ficando como vestigios os esteios
carburetados. Ainda sobrevivião á invasão do mato alguns restos de
cultura e poucos pés de quingombôs (hibiscus esculentus), e algodoeiros
(gossypium), entre aboboreiras e pés de melancia (cucurbita citrullus)
resistião ao abandono.

O que levára aquelle pobre fugitivo da sociedade a procurar tão remotos
sertões, pisados a vez primeira pela planta de seu pé, abandonando os
povoados, alheio a todo o resto do mundo, vivendo vida de exilado? Fôra
a necessidade para, por tal preço, obter a impunidade, ou o espirito
melancolico de retiramento? Ainda ahi não se achou em salvo: os
invasores paraguayos topárão a trilhada que elle abrira e o expulsárão
de seus dominios pacificos e incontestados.

Hoje aquella trilha é caminho muito seguido, dando passagem contínua a
viajantes, carros e lotes de animaes, de modo que o anachoreta Perdigão
deve procurar novos desertos onde vá a gosto «_placatâ omnia mente
tueri_», na phrase de Lucrecio.

Do corrego do Perdigão, levou-nos a trilha, depois de 41 minutos de
marcha, á mata que intitulámos das _Jaós_[22], pelos incessantes pios
que denunciavão ahi a presença d'aquellas aves. É uma gallinacea, do
tamanho de um frango, sem cauda, de côr pardacenta clara: anda
commummente em terra, dando, como a perdiz, um vôo horisontal e pouco
prolongado: a carne é alva e muito delicada.

O seu pio começa por uma nota destacada e alta, a que succedem, com
intervallo de dous a tres segundos, tres outras rapidas e mais baixas.

N'essa mata havião os paraguayos deixado uma barcaça (nota D), que
vinhão puxando desde o rio Aquidauana, para os casos de passagens de
rios: media 45 palmos de comprimento e 4 de boca.

Achando-se em bom estado, com mui pequenas reparações, podia
perfeitamente servir para as forças, quando chegassem á margem direita
do rio Negro.

N'esse dia fomos, sem chuva, acampar, depois de 2-{1/4} legoas de
marcha, perto do corrego _Fundo_, que obrigou-nos á parada pelo estado
atoladiço de suas margens, posto que a quantidade de boritys não
tornasse difficil o lançamento de um pontilhão, para nos dar segura
passagem.

Entre o capim crescia ahi uma linda _orchidea_ terrestre cuja flôr de um
rôxo suave, apresentava a massa pollinica pulverulenta, caracter
particular á tribu das _neottias_ de Lindley.

Reconhecemos tambem nos campos uma _scrophularinea_ de flôr esverdeada,
e uma _bignoniacea_, com caule um tanto sarmentoso, a qual expandia
lindas flôres, côr _solferino_ (carmesim ligeiramente roxeado) que vimos
depois com admiração nos pantanaes, como adiante o diremos.

Nos cerrados repetem-se os typos com frequencia: mangabeiras (hancornia
speciosa, Gomez) com suas candidas flôres hypocrateriformes, muitas
myrtaceas, _lixeiras_, grandes e pequenas[23] (dilleniaceas), etc., etc.
Entretanto o aspecto de todos elles é muito mais vistoso, continuando a
predominar em numero os _araticús_ (anonaceas).

Na margem esquerda do rio Negrinho, a tres legoas do corrego Fundo, as
quaes constituírão a marcha do dia 18, acampámos debaixo de magnifica
cópa de folhudas arvores, formando um excellente pouso, se não fossemos
atormentados pelos muitos _mosquitos_, _muriçócas_ ou _pernilongos_.

Obrigava as vistas uma bella figueira, com volumoso tronco, ao lado de
uma _pitombeira_[24], que deu-nos excellentes fructinhos, e a cujos pés
florescia uma_ cof[oe]a_ ostentando, nas suas flôres azues, um brilho
metallico muito especial.

O rio Negrinho, entre margens sempre umbrosas, vai perto confundir suas
aguas com as do rio Negro, trasbordando com extrema facilidade, depois
de algumas chuvas e inundando as cercanias. Perto d'elle, haviamos
atravessado algumas braças de pessimo transito, pois que o caminho vara
por um aguaçal com fundo lodoso. A côr sombria do capim, a tarde que
descahia depois de um dia toldado de nuvens e chuvoso, os comoros
pardacentos de cupins, tornavão aquella natureza tristonha e melancolica
em extremo.

O rio Negrinho não dava commodo váo: passámos por cima de uma pinguela
natural que a quéda de um grosso madeiro formára, transportando as
nossas cargas ás costas.

Depois de legoa e meia, feita em terrenos já bastante encharcados, ás
vezes por extensos almargeaes[25], outras por matas, em que existem
bastantemente os _aucurys_ (palmeiras de folha estreita) chegámos ao
_Potreiro_, onde um grande rancho de palha abrigou-nos contra a chuva,
que começava a cahir e promettia dever de durar.

O Potreiro é um vallesinho, fechado quasi circularmente, por dous ramos
da serra de Maracajú, a qual vinhamos avistando, havia mais de dez
legoas.

Era ahi que se fazia a reunião do gado, pertencente ao cidadão Alves
Ribeiro, com destino ao acampamento do Coxim e cuja obtenção, pela falta
de cavalhada, ia se tornando cada vez mais custosa.

O lugar é insalubre, em razão da humidade que ressumbra constantemente
do solo: por isso a estada n'esse ponto, prolongada por mais de mez, foi
extremamente nociva ás forças, sobretudo quando as aguas, em Maio,
contra a expectação, attingirão ao maximo crescimento, nos pantanaes.

No Potreiro organisámos os trabalhos, que deviamos enviar ao commandante
das forças: traçámos o caminho topographicamente, acompanhando-o uma
ligeira memoria descriptiva, que marcava os pousos e os lugares, onde se
tornavão precisos alguns melhoramentos.

O caminho, como já o havemos feito sentir, é uma simples trilha. De
natureza argilo-silicosa (época terciaria), póde ser considerado secco,
com excepção de alguns pontos, que serião facilmente transpostos. Com
exclusão do Portão de Roma, proximidades do Lageadinho, margens de
corregos e ribeirões, os declives são sempre bons.

Refazendo-nos de forças e tomando provisão de carne, deixámos o Potreiro
no dia 26 de Fevereiro, para dirigirmo-nos á passagem do rio Negro, onde
começava a vereda, que dizião ter sido deixada por alguns fugitivos de
Miranda.

Ahi nascião tambem as incertezas; dominava a indecisão. Sem guia, iamos
correr risco de uma exploração que nos parecia, como realmente o foi,
penosissima, cheia de perigos e sobretudo infructifera.




CAPITULO III


A nossa verdadeira missão ia ter principio. Verificar a possibilidade de
uma passagem, até o Aquidauana, no tempo das aguas, quando os pantanaes
se tornão intransitaveis, seguir, ao longo da serra de Maracajú, uma
pretendida senda, que fugitivos havião aberto; observar a natureza dos
terrenos e os obstaculos que pudessem impedir a descida das forças nos
mezes de Abril e Maio, continuar ainda mais a exploração até o rio
Aquidauana, cuja margem esquerda estava occupada pelo inimigo, apromptar
os meios de passagem para aquelle rio, era o nosso programma, vasto e
brilhante, importando não pequena responsabilidade, mas cuja boa
execução principalmente dependia de meios, que não nos tinhão sido
ministrados. Oito soldados nos acompanhavão e, d'esses, nenhum tinha
conhecimento da tal passagem, aliás com rações, sómente para onze dias,
e armados com fuzis de pederneira, nos quaes as balas só entravão
partidas!

Um unico machado era propriedade nossa particular.

As chuvas que não cessavão, cahindo de continuo fortes rajadas, havião
arruinado, quasi totalmente, a carne preparada no Potreiro, de modo que,
de lá, partimos com as provisões meio esgotadas, confiados apenas no
muito gado que vaguea pelos campos, por onde deviamos passar. Iamos
viajar á tôa, esperançados em que nosso bom fado nos facilitasse caminho
e alimento.

Era muito exigir.

Não procuravamos, nem mereciamos a terra de Promissão; nunca nos guiou
portanto a nuvem de fogo, nunca nos cahio o manná de Jehovah.

Desde a sahida do Potreiro, comprehendemos as difficuldades que nos
esperavão, e forão desde logo se complicando.

As terras, já nimiamente baixas, apresentavão grandes extensões
completamente alagadas, a que se seguião matas de _aucurys_ (nota E),
onde a humidade continua mantinha o terreno ennatado, sempre lodacento,
que nos custou boas horas para vencer.

A trilha ia, além de tudo, tornando-se cada vez mais apagada: as
_taquaras_, nos cerrados, cruzavão-se emmaranhadas, deixando apenas
passagem para pedestres; nas varzeas, a agua já era muita e as abertas
indecisas.

Viagem fadigosa, em que se descarregavão incessantemente os cargueiros,
vencendo depois de um dia completo de marcha, legoa e meia tão sómente!

Quasi ao cahir a noute, acossados logo dos mosquitos, entravamos na mata
do rio Negro, quando nos deteve os passos uma _corixa_ (nota F), fonte
de novas contrariedades.

Esta _corixa_ dava nado em toda sua extensão, obrigando-nos a fazer
_pelotas_, que devião transportar nossas cargas. Nada mais expedito: um
couro bem secco, levantado nas quatro pontas, que se ligão por cordeis
ou tiras, recebe os pesos que, são solidamente amarrados, de modo a
formarem um systema immovel, em cima do qual assenta-se o passageiro,
como melhor puder. Depois de lançada á agua com todo o cuidado, atira-se
um nadador á frente da pelota, levando entre os dentes a cordinha que a
guia, ao passo que um segundo ajuda a mantel-a na boa direcção,
empurrando-a de quando em quando.

A impressão que recebe o viajante bisonho, ao sentir-se em tão singular
embarcação, é profunda; parece-lhe que, a lodo momento, o fragil bóte
improvisado vai submergindo-se pouco a pouco e que a agua invade por
todos os lados.

Entretanto depois passavamos, com perfeita tranquillidade, não as mansas
aguas de corixas, mas a forte correnteza de rios caudalosos, em pelotas
que levavão para mais de seis arrobas: tal era a confiança que nos
inspirava a pericia natatoria dos irmãos Campos Leite, homens preciosos
para esse serviço e incansaveis.

O tempo que haviamos gasto na transposição d'essa corixa, fez com que
chegassemos, com a noute já fechada, á margem direita do rio Negro, e,
muito depois de nós os animaes de carga e camaradas.

A lua veio então esclarecer a nossa posição, que podia, por momentos,
tornar-se muito critica.

De nivel com a margem, corria furioso o rio, parecendo dever trasbordar
e invadir o terreno, em que contavamos passar a noute; e a rapidez das
aguas, a mataria baixa, com vestigios recentes de uma d'essas temiveis
cheias, não pouco nos inquietavão.

Entretanto imaginámos expedientes, que, salvando-nos momentaneamente,
não nos promettião agradavel perspectiva: soltar os animaes, suspender
as canastras e mais objectos nas arvores mais altas, procurando nós
mesmos refugio na rama extrema.

Tivemos crueis momentos de anxiedade.

Por isso, com prazer immenso, indescriptivel, ouvimos um dos soldados
gritar: o rio está baixando!

Corremos todos a examinal-o.

A descensão das aguas era, na realidade, sensivel aos olhos: em breve,
deixárão meio palmo descoberto, minutos depois, dous palmos e, d'ahi a
pouco, meia braça. A facilidade, com que se davão essas oscillações,
demonstrão a proximidade das cabeceiras: com effeito, a pouca distancia
ficava a serra, d'onde procedem as nascentes do rio.

Á hora em que nos recolhemos, elle baixára mais de braça e, no dia
seguinte, as margens estavão barrancosas, como o são normalmente.

O rio Negro apresenta ahi 20 a 30 braças de largura: a velocidade é de 3
a 4 palmos por segundo, profundidade de 10 a 12, não fazendo váo em
parte alguma. Depois de um curso muito irregular por terrenos
empantanados, recebe o Tabôco, e, ora entre margens, ora espraiando-se
pelos campos, vai ter ao rio Paraguay.

As suas proximidades são perigosas pelos paúes, que com elle visinhão:
as febres intermittentes, paludosas e outras graves enfermidades
originão-se ahi dos miasmas deleterios, produzidos pela acção solar
sobre os depositos vegetaes que as enchentes atirão nos campos e
abandonão, quando dá-se o escoamento das aguas.

Na etiologia da molestia, que grassou na força e a dizimou, depois da
sua estada junto ao rio Negro, a--paralysia dos membros inferiores ou
paraplegia--, devem ser assignalados o ar humido e vapores corruptos,
que, por mais de mez, respirárão aquelles que se achárão debaixo de sua
perniciosa influencia.

O chão, sobre que assentava o acampamento geral, era uma verdadeira
_turbeira_: com poucos palmos de profundidade, tiravão os soldados,
junto ás barrancas, agua, de poças d'onde sahião páos, que, seccados,
servião para alimentar o fogo de suas modestas cosinhas.

Mais tarde fallaremos, com algum desenvolvimento, n'essa enfermidade,
que roubou-nos tantos companheiros, n'um curto intervallo de tempo.

Passámos o rio Negro em pelotas, e, ás 10 horas do dia 26 de Fevereiro,
achavamo-nos na sua margem esquerda, n'uma estreita trilha que devia-nos
guiar, sempre em _rumo certo_, asseverára-nos na vespera, _seriamente_,
um indio do Potreiro.

O tal aborigene não professava os principios de Epaminondas: entretanto,
ainda n'aquelle dia, davamos á sua asserção toda a fé, a estimavamos
valiosa,


          «N'aquelle engano d'alma, ledo e cego,
          Que a fortuna não deixa durar muito.»


Fomos acampar junto á serra que, a 500 braças do rio, ergue-se empinada;
e ahi aproveitámos o sol para seccar as nossas roupas, que tinhão-se
ensopado em diversos mergulhos de canastra, nos alagadiços.

Diante de nós abrião-se os campos além, com cerrados ao longe; á nossa
direita, havia um matosinho com olhos d'agua, e, á esquerda,
levantava-se uma serrania elevada, cujos cabeços mais proximos
reflectião ao sol, grandes quebradas vermelho-rubras, confundindo-se os
mais afastados, n'uma linha continua, com o azul do céo.

A serra de _Maracajú_[26] percorre a direcção constante, media de N. N.
E. a S. S. O., desde perto do Piquiry até as ramificações na republica
do Paraguay e na provincia do Paraná. Interrompida de quando em quando,
ás vezes seguida, e com alturas diversas, destaca ramos, que correm, ou
parallelamente, ou ainda perpendicularmente, como o vimos no Potreiro.

A sua estructura geologica é de grés argiloso, compacto em certos
pontos; tendo soffrido a acção de aguas, manifestada, em muitos lugares,
pelas extensas linhas parallelas, como já o haviamos observado na serra
da Cabelleira, em Goyaz, e em todos os serrotes do caminho do Coxim.

É evidente que o lago, cuja existencia parece-nos[27] tão claramente
patenteada, tomava proporções de mediterraneo, á vista da extensão
occupada, e o estudo comparativo das diversas alturas, que se notão
n'essas differentes cadêas, deve trazer resultados interessantes, dando
certeza scientifica n'esta curiosa questão.

A serra de Maracajú não foi, de certo, resultado de erupção, mas sim de
levantamento, devido a algum terremoto, das camadas da região que a
cerca, e que apresenta os mesmos typos geologicos.

A vegetação acompanha as dobras e declives da serra até o topo: só os
pedaços de desaggregação achão-se desnudados.

O aspecto que esses pontos apresentão, é quasi sempre regular: ora, são
córtes a pique, ora, fórmas abauladas; algumas vezes, á semelhança de
arcos com irradiações, outras, traços continuados e dispostos
parallelamente: a côr é visivelmente de barro, a disposição schistosa.

Existe controversia sobre o nome que deva ter essa cadêa de montanha:
para uns é a serra de Amambahy[28], para outros, de Maracajú. Parece-nos
que o primeiro nome só póde convir á sua parte meridional, quando dá
nascimento ao rio d'aquelle nome, antes de penetrar no territorio da
republica e de estender os seus braços para as provincias do Paraná e
Rio-Grande do Sul, a cujo systema oreographico vão pertencer.

No primeiro pouso junto á serra, verificámos que o nosso ultimo pedaço
de carne estava arruinado: comemos comtudo um saboroso churrasco de
queixada, morto na vespera, cujos restos forão devorados pelos nossos
camaradas.

Embaidos com esperanças no muito gado, não consideravamos então o perigo
de nossa situação e adormecemos com a doce persuasão, que em breve
concluiriamos aquella peregrinação.

No dia seguinte (27) puzemo-nos em marcha, encontrando, logo ao sahir,
tres a quatro trilhas, que levavão para direcções mui differentes.

Seguindo, ao acaso, por uma d'ellas, fomos esbarrar n'um pantanal:
tomando outra, de volta ao ponto de partida, fomos ter a um matagal
impenetravel. Comprehendemos então, que erão ellas formadas pelas
pisadas do gado, que deviamos só confiar na bussola, e, quanto nos fosse
possivel, ir cortando sempre a rumo sul.

Essa marcha, cançativa para nossos animaes e sobretudo para os homens
que nos acompanhavão de pé, não pôde prolongar-se por muito tempo, pela
grande quantidade de _sapé_ cortante (anatherium bicorne) e _cragoatás_
(bromelia spinosa).

Esbarrámos de novo com uma mata fechada de _mimosaceas_ espinhosas, que
foi necessario rodear, depois de perdermos muito tempo.

Logo depois atravessámos uma campina, coberta por gramineas mui
rasteiras, na qual gastámos mais de uma hora, pela natureza do chão
fôfo, em que se atolavão os animaes. Observámos que, n'aquellas
pradarias perfidas, não se nota o rasto de nenhum animal, e que, por
instincto, procurão sempre desviar-se d'ellas, percorrendo uma fita mais
solida, intermedia entre o campo e os bosques, que bordão a fralda da
serra.

Essa zona, além de difficultosa, a unica viavel, offerece desvios mui
longos, voltas muito extensas, de modo que, para marcharmos um quarto de
legoa, na boa direcção S., faziamos tres quartos, virando quasi sempre
para L., mas raras vezes a O.

A viagem, assim em zig-zag, tornava-se muito monotona; pois que, tomando
ponto de referencia em alguns dos cabeços da serra, sempre os viamos na
mesma posição em que os tinhamos observado.

Desanimados, sem róta certa nem esperança de a encontrarmos, acampámos,
quasi ao anoitecer, n'uma varzea, não muito humida, despida de arvores,
a que chamão _barreiro_.

São campos salinos, em que se fórmão poças de agua notavelmente salgada,
com sabor muito apreciavel para os animaes, que ahi se reunem, em grande
quantidade, não só mammiferos como aves.

Uma graminea pardacenta, muito baixa, que parece vegetar com
difficuldade, algumas _synanthereas_, espalhadas aqui e acolá, e poucos
pés de _mimosas_, constituem o aspecto botanico d'esses barreiros. Ás
vezes tambem apparece uma bignoniacea, o _para-tudo_[29], principalmente
para os lados do Apa e norte da republica do Paraguay.

N'esse barreiro vimos innumeras pégádas de gado. Ao longe mugião rezes,
acordando em nós a esperança de fazer caçada proveitosa, pois que
confiavamos na certeza dos tiros de nossos soldados.


            «Desejos sempre vãos, reaes só dôres!»


D'ahi a horas, voltárão os caçadores, cabisbaixos, merencorios: nenhuma
pontaria acertára. O gado, bravio em extremo, fugia apenas presentia
qualquer vulto e sua obtenção, por arma de fogo, tornava-se tão
difficil, quanto a de qualquer animal das selvas. Refreando as redeas á
appetencia, que se havia despertado ao som dos tiros, para melhores
occasiões, passámos a noite, impacientes pela manhã. Entretanto esse
primeiro dia devia de ser o resumo de toda a nossa viagem.

A narrativa de infelicidades sempre uniformes não póde de certo affectar
senão uma fórma descriptiva, cuja prolongação hade impreterivelmente
tocar, tão de perto, os dominios da monotonia, que a repercussão é
infallivel no espirito do leitor.

Consideremos, pois, as miserias por alto, englobadamente e apressemos a
narração, que não deixa de ser custosa.

Fiquem os soffrimentos por minutos, por segundos, aos que lhes sentirão
os espinhos.

Em todos os dias subsequentes, andámos perdidos; ora, estacados por
muitos dias em pousos, á espera de nossos animaes que fugião, 6 e 7
legoas atraz, perseguidos dos mosquitos; ora, caminhando por cerrados
inundados, ora abrindo veredas em taquaraes, que afinal nos obrigavão a
retroceder, ora emfim, rodeando as campinas, de que fallámos já,
cahindo, para distracção, em grandes pantanaes.

A zona que percorriamos era uma baixada, alagada pelas aguas da serra e
estreitada por duas lombas; uma junto ao monte, coberta de
_taquarissima_ e _aucurys_ e a outra fronteira com cerrados, que não
podiamos alcançar em razão dos pantanaes, que encontravamos, apenas
tentavamos descer.

Aquella região é a mais ingrata possivel.

Com o gado, que entretanto avistavamos, pastando em grandes manadas, não
podiamos mais contar: milhares de decepções tinhão-nos convencido da
impossibilidade em obtel-o.

Tudo nos corria em contrario: nenhum fructo, a agua pessima e sempre
quente: os nossos animaes afracando, outros fugidos, nós completamente
perdidos e arcando, desde muitos dias, não com essa falta de alimentação
que haviamos anteriormente sentido no Coxim, mas com a verdadeira
_fome_, descarnada e horrorosa.

Sustentavamo-nos com duas chicaras de chá, uma ao sahir do pouso, outra
ao anoitecer, medidas e reguladas, em attenção ao terrivel _ámanhã_.

Os soldados chupavão miolo[30] de macaubeiros; comião _jatobás_[31]
verdes, cujo sabor desagradavel sobrepuja ao cheiro nauseabundo.

Esses nossos fieis companheiros de viagem e soffrimentos trazião-nos
sempre, com admiravel lealdade, a sua insufficiente colheita de fructos.

N'esse estado de depauperamento de forças, a anorexia era completa;
custára-nos apenas o primeiro dia de fome, nos outros, sentiamos
nauseas, syncopes frequentes e completa turbação de vista.

Entretanto nunca o desanimo pairou sobre nós. Como n'um naufragio,
procuravamos, luctando e debatendo-nos, uma sahida para essa crise.

Abandonámos cargas e canastras no mato.

Alliviando os animaes, que nos restavão, caminhavamos sem cessar, apezar
do estado de fraqueza que nos acabrunhava, interrogando as menores
treitas, consultando a cada momento o horisonte, fazendo continuo fogo
sobre rezes, cuja vida illesa ficava garantida pelo nosso
_caiporismo_... e, sobretudo, pela distancia, em que erão atiradas.

Oito dias d'esse martyrio ingente que nos esgotava as forças, havião-se
passado, nos quaes só tinhamos vencido onze legoas.

Decidimos, tomando para O., ir cahir na parte conhecida do pantanal,
embora estivesse ella completamente coberta pelas aguas. Não podiamos
continuar semelhante viagem, debaixo de auspicios tão negros e
terriveis; não deviamos, sem grave imprudencia, teimar em achar caminho,
por onde só havião passado algumas pessoas, acossadas do inimigo, e
occultando os signaes de sua fuga.

Assim, pois, voltando as costas á serra, seguimos por uma trilha firme
de gado, em direcção ao poente, caminhando n'este rumo mais de uma
legoa.

Encontrámos, com alegria estrondosa, córtes nas arvores, que
significavão a passagem recente de um homem. Ainda mais, esbarrámos n'um
pouso de fugitivos abandonado, e, o que é melhor, com um mato de
palmeiras, que nos derão palmitos e côcos.

A agua excellente de um corrego e aquelles ingredientes formárão uma
refeição solemne, com a qual surgio em nós a esperança de podermos ter
outras melhores: vestibulo para momentos mais suaves, a que tinhamos
feito completo jus.




CAPITULO IV


No dia 4 de Março, pelas onze horas da manhã, alcançámos o caminho do
pantanal.

Haviamos, na nossa digressão, escapado aos alagadiços do rio Negro, que
davão nado, e restava-nos a parte mais secca, para chegarmos ao Tabôco
e, com facilidade, á aldêa da Piranhinha, d'onde deviamos ir ter aos
Morros.

Esta parte, mais enxuta, apresentava comtudo uma profundidade em aguas,
que nos incommodava sobremaneira. Viajando continuamente com as botas
molhadas, chegámos ao pouso da Piuva[32], onde um soldado conseguio
emfim..... matar uma rez.

A rapidez, com que foi ella esquartejada, a fogueira, que chammejou
logo, atirando ardente calor sobre immensos pedaços de carne espetados,
o olhar devorador de todos, a impaciencia que obrigava a comer partes
semi-crúas, attestárão a importancia d'esse tiro abençoado.

Julgavamos, eu e o meu companheiro, dever de ter appetite feroz, como o
dos soldados: entretanto, nossos estomagos mais delicados, mal podérão
aceitar uma minima porção da alimentação necessaria.

Apraziamo-nos, porém, em apreciar o movimento continuo das facas, o
trabalho incessante dos queixos que funccionavão, depois de tantos dias
de quasi absoluto descanço, a modo das mandibulas dos heróes
pantaguelicos de Rabelais.

Durante toda a noite não se cessou de comer.

A fogueira, de continuo, assava _churrascos_, que desapparecião
fantasmagoricamente e despedia, sobre aquelle grupo faminto, reflexos,
que fazião reluzir a avidez de seus olhares, a sofreguidão de sua
occupação.

A manhã de 5 pareceu-nos mais risonha.

O aspecto das cousas havia-se modificado radicalmente e podiamo-nos
considerar salvos do perigo imminente.

Então, por uma das prerogativas felizes do espirito humano--a
reluctancia ás reminiscencias desagradaveis--os tempos de desgraça
parecia-nos se tinhão passado em época mui remota, talvez nos dominios
de tétrico sonho.

Só cuidavamos no presente, que se abria para um futuro de doces
compensações.

Accresceu á nossa satisfação um pucaro de delicioso mel de _jaty_ (Nota
G), que nos trouxe um camarada.

N'aquelles cerrados havia grande abundancia de colmêas, e, d'ahi por
diante, podiamos adoçar alguma bebida.

Até a margem direita do rio Tabôco, o terreno todo constitue, com
pequenos intervallos, um pantanal de muitas legoas de extensão, o qual
nos não custou, comtudo, muitos dias de viagem, pela firmeza da trilha
em que se anda.

No principio das aguas e no seu final, pelo embeber das terras e depois
pelo seu deseccamento lento, o transito é mais penoso, quando a natureza
do sólo não se opponha á formação de atoleiros e tremedaes[33], como em
alguns pontos em que prevalece o elemento arenoso.

Os pantanaes, no districto de Miranda, produzidos, como dissemos atraz,
durante a estação chuvosa, pelo trasbordar de todos os rios, ribeirões,
corregos e regatos, que cortão aquella zona de terreno muito baixa e
plana, estendem-se entre o Aquidauána e o rio Negro, occupando muitas
legoas, desde a base da serra do Maracajú até o rio Paraguay, nas quaes,
só de ponto em ponto distante, se encontra lugar firme e secco, em
alguma collina mais elevada nas planicies.

A invasão das aguas nos campos, sensivel nos principios de Novembro,
toca ao maximo nos meiados de Fevereiro e Março, decrescendo em Abril e
escoando-se em principios de Maio.

Esta regra, fixa para a zona que percorremos, soffre grande alteração
nas proximidades do rio Paraguay, por isso que, quando os rios seus
tributarios já inundárão os campos, elle vai lentamente engrossando;
trasbordando por seu turno, quando os contingentes tendem a baixar,
dando-se o escoamento dos pantanaes de Miranda.

O caracter, que tem o trasbordamento d'aquella massa enorme de aguas, é
muito importante.

Os lugares proximos ficão completamente alagados; as mais altas arvores,
cobertas, mal deixão vêr a extrema rama, e grandes canôas, senão
vapores, navegão livremente, a tres e quatro legoas de distancia do
verdadeiro alveo do Paraguay.

As enchentes, ás vezes, forção a que os rios do districto de Miranda
sejão refluidos e despejem de novo nos campos a agua que não encontra
vasante.

N'essa occasião, a navegação faz-se com extrema facilidade e celeridade;
as canôas cortão, como diz-se, a _rumo certo_, e abrevião de muitos dias
a viagem, sobretudo quando ella se faz rio acima, por encontrarem aguas
placidas e dormentes, e não a correnteza contraria de um curso veloz.

A _zinga_ habitual, que o barqueiro finca no leito do rio, para fazer
caminhar a canôa, é então substituida por compridos páos de forquilha,
para aproveitar os ramos das arvores submersas e afastar d'elles a
barquinha, na occasião precisa.

Os pantanaes, que atravessámos, offerecem á vista um aspecto de
vegetação com caracter particular, o qual reproduz-se uniformemente pelo
numero limitado de generos de plantas que resistem, em inundações
periodicas, á immersão de suas raizes, durante mezes inteiros, e á
seccura completa, durante o resto do anno.

_Monocotyledoneas_, sobretudo _cyperaceas_, abundão naturalmente,
durante as aguas, e differentes especies de capim, entre o qual
_nympheaceas_ e outras plantas palustres se expandem, cobrem grandes
espaços, nos quaes só cresce um arbusto, o _mureci-penina_[34]
(byrsonima chrysophylla), unico que apparece nos verdadeiros pantanaes.
Nos campos alagados, capões e cerrados, surgem de dentro d'agua.

Com admiração vimos lindas _convolvulaceas_, cujas flôres azul-celestes
(hypom[oe]a) casavão-se agradavelmente com as corollas, côr-solferino
(carmim-roxeado), de uma notavel bignoniacea (caule sarmentoso).

Muitos grupos de _araçás_, chamados vulgarmente de corôa, levantão-se,
aqui e alli, no meio do capim. Disserão-nos que esses fructos produzem
febres intermittentes; a razão nos não parece clara, entretanto nenhum
sertanejo deixa de afiançar, com toda a energia, que o _araçá do
pantáno_[35] _dá sempre maleitas_.

Observámos que, á medida que as aguas vão subindo, o capim
desenvolve-se; razão pela qual, nas proximidades do rio Paraguay,
podem-se arrancar pés de algumas braças de comprimento. As abertas
n'elle indicão as trilhas e pisadas de gado, as quaes são excellentes
guias para lugares enxutos.

O aspecto de um pantanal é profundamente melancolico: o viajante fica
possuido de um sentimento contristador, ao atravessar aquellas paragens,
em que o perigo póde sorprehendel-o a cada instante.

O chão furta-se ás suas vistas indagadoras. O bater monotono dos pés dos
animaes na agua, os sombrios aspectos que o cercão, os comoros de cupins
que, com escura côr, surgem, aqui, acolá, de entre moutas de capim
pardacento, o silencio de toda essa natureza tristonha e anormal,
acabrunhão a alma e a prostrão grandemente.

O horisonte parece acanhado: o céo como que pesa, com curva mais
abatida, sobre aquella scena de desolação.

O sertanejo, comtudo, passa calmo e cantando: apenas, de vez em quando,
examina, debruçando-se sobre as aguas paradas, se os perfidos enleios
das hervas não lhe impedirão a passagem.

Muitas vezes, para um viajor novato, o receio não é fóra de proposito.
De repente sobe a altura da agua: já toca o sellim; mais um passo, o
cobrirá--é uma _corixa_--. Apear-se dentro d'agua, formar uma pelota
para as suas cargas, atirar-se, prestes a nado, com a corda entre os
dentes, é questão de minutos, para o prático, e origem de mil
aborrecimentos, para quem não o fôr.

Os viventes, que se encontrão nos pantanaes, achão-se em relação com o
seu _facies_ tristonho. É o desadornado _socó_, que esvoaça pesadamente,
indo pousar desairoso sobre as torres de cupim; é o desaprasivel
_tuyuyú_, com o pescoço vermelho e bico longo, que cruza-se nos ares com
o desengraçado _tabu-yáyá_[36]. Alegra, de quando em quando, a vista
alguma _garça_ que, com rapidez, corta o azul do céo, estirando o
elegante collo e reflectindo, ao sol, o branco esplendido de sua
plumagem; rompem, de quando em quando, o silencio, barulhentos bandos de
_patos_ (anas) e _marrequinhas_, que erguem custoso vôo ao minimo ruido.

Nos firmes, as pégádas da temivel _onça pintada_ não são raras, assim
como as do _tamanduá bandeira_ (myrmecophaga jubata) que encontra sobeja
alimentação nos muitos formigueiros e casas de cupins.

O gado dá-se perfeitamente no pantanal: durante o dia, desce elle todo
para os lugares inundados, porém não atoladiços (o que evitão com muito
cuidado) recolhendo-se, á prima noite, para os pontos descobertos ou
para os _barreiros_, onde pastão em grandes manadas.

Estas salsas pousadas constituem uma das grandes riquezas da provincia,
para a creação de rezes: ahi achão ellas o sal necessario para a
alimentação, tornando-se-lhes a carne tão saborosa, que dispensa
qualquer preparação, para ser deliciosa ao paladar.

As poças, que se fórmão nas depressões d'aquellas regiões salinas,
contém uma agua que os animaes bebem com avidez, voltando, de muitas
legoas além, para saciarem ahi a sêde, apezar de qualquer outra que
possão encontrar.

Já o dissemos, é um lugar curioso de reunião: nas arvores pousão grandes
cohortes de aligeros e melodiosos cantores[37], ao passo que numerosos
rastos de _porcos_[38], _veados_, _antas_, _tatús_, e etc., indicão a
continua frequencia d'esses animaes.

Assim como o homem ahi vai esperar motivos para grandes façanhas
cynegeticas, a _onça_, por instinctos mais naturaes, nunca se arreda
muito d'esses lugares, tão bem providos para os seus appetites ferozes.
Bem junta ao chão, atraz de qualquer moutasinha, prepara ella o bóte que
deve dar-lhe a posse do pobre vivente, que se colloca na sua terrivel
esphera de actividade. Obrigada a retirada cautelosa, quando se
approximão as numerosas varas de _queixadas_, vai ella mais longe
esperar algum, que se atraze e separe-se da columna respeitavel
d'aquelles suinos, cujos dentes compridos e aguçados, com razão, lhe
inspirão receios.

Nos barreiros o chão é sempre firme e, apezar de inundado por muitos
mezes, nunca se torna atoladiço. Tinhamos feito observação que, em todos
aquelles campos, onde crescem as _synanthereas_--perpetuas do campo--, o
terreno é sempre estavel: de modo que, de longe, ao avistarmos as
campinas, que só differençavão-se, por terem ou não aquellas plantinhas,
podiamos com confiança atravessal-as ou procuravamos cuidadosamente
rodeal-as.

Poder-se-hia, com menos certeza comtudo, dizer o mesmo, quanto a umas
_mimosaceas_, indicadoras quasi sempre de um local enxuto.

Fugiamos, pelo contrario, cautelosamente das varzeas limpas e vistosas,
em que traiçoeira e virente grama occultava atoleiros continuos e
perigosos--_Latet anguis in herbâ_.

Custosa experiencia fez-nos observar essas particularidades, que de
muito servirão-nos, no seguimento d'aquella viagem.

Os habitantes do sul de Mato-Grosso procurão, nas épocas de grande
carencia de sal e sua consequente e excessiva carestia, tirar, dos
terrenos salinos, aquelle necessario condimento, a despeito de haver
difficuldade n'essa extracção e os meios empregados serem mui
grosseiros.

Nas proximidades de Coimbra existem terrenos, já conhecidos e explorados
com vantagem, d'onde extrahe-se o chamado _sal da terra_, que vende-se
completamente impuro.

Em 1855, quando as communicações terrestres, interrompidas pela previsão
da proxima navegação do Paraguay, por alguns mezes, deixárão de fornecer
o sal para consumo de todos os pontos da provincia, aquelles
barreiros[39] tornárão-se fonte de extraordinario ganho para alguns e,
por isso, centro de attracção para muitos especuladores.

Entretanto a ganancia achou-se a tempo frustrada, pela entrada de um
navio que, cortando aguas acima o Paraguay, foi abastecer de sal o porto
de Corumbá e a capital da provincia. Era uma barca de nacionalidade
paraguaya; a primeira que aproveitava-se do tratado de navegação entre o
Imperio e a Republica.

A essa seguirão-se logo outras, estabelecendo um movimento commercial
activo, que deu o ultimo golpe á especulação da utilisação dos
barreiros.

A decepção foi merecida, a idéa comtudo não deve perder-se.




CAPITULO V


A crise, em que se achou a provincia de Mato-Grosso, por occasião da
invasão de 1865, veio renovar os apuros pela falta de sal, até que de
novo recomeçassem as recovagens a transportar este genero das provincias
beira-mar. Era a renovação obrigatoria dos meios de communicação
antigos, cujo estabelecimento demorado deu lugar ao espirito
ganancieiro.

Em Cuyabá vendeu-se o alqueire de sal a 600$000 rs. e em pouco tempo
subio a mais de conto!

Entretanto um pouco de industria[40] suppriria ao sal recebido do
exterior, ou, pelo menos, attenuaria muito as consequencias de sua
diminuição.

A França, por occasião do bloqueio continental, recorreu aos seus sabios
e o assucar de beterraba livrou-a do jugo colonial: a sciencia deu as
mãos á industria, ajudando a politica espantosa, que podia desfechar
golpe mortal no poder inglez.

Em Mato-Grosso, não se tornavão precisos os esforços intellectuaes dos
mestres da sciencia. Com pequenos melhoramentos, força de vontade e de
trabalho, tirar-se-ião grandes quantidades de sal, cortando os vôos á
especulação abusiva e altamente reprovavel. Todos comtudo se sujeitão ás
imposições dos monopolistas, que, na razão crescente da carencia,
alteavão cada vez mais o preço de seu genero, na carreira vertiginosa de
lucros exorbitantes.

Entretanto os barreiros jazem abandonados, entregues aos animaes, que
ali obtem, pela lambedura, o que tanto custa aos homens.

A indolencia parece ter assentado sua séde em Mato-Grosso.

Existe nos campos d'aquella provincia, uma população _sui generis_,
meramente entregue á creação de gado, com habitos arraigados, que a
inhabilitão para qualquer outro trabalho.

No districto de Miranda, ou se é negociante ou fazendeiro.

A vida do fazendeiro é marcar, em certas épocas do anno, os bezerros,
_costear_ o gado, de quando em quando, e negociar com elle.

Sua fazenda é uma área de terreno indeterminada, muitas vezes com 5, 10,
20 e mais legoas de extensão, tendo, em certo ponto, um rancho, coberto
quase sempre de palha, raras vezes de telha, que serve de vivenda ao
dono d'essas gigantescas propriedades, onde caberião, á larga, dez a
doze grão-ducados ou principados allemães.

Ahi passará elle toda sua existencia; 50, 60 annos, sem que lhe corra
pela idéa a necessidade de um melhoramento em suas terras, em sua
palhoça, a fruição de um canto aprazivel, de um pomar. Raras vaccas
mansas rodeão um espaço limpo só pelas patas do gado; porém dezenas de
milhares de rezes percorrem as suas campinas desertas e innumeros touros
mugem ao longe.

Este aspecto desolador é o mais frequente: entretanto a descripção, que
nos fizerão, da fazenda das Pirapitangas[41], pertencente ao Sr. barão
de Villa-Maria, indica da parte do seu proprietario, espirito de
actividade e gosto pelo trabalho, pouco communs na provincia.

Uma alteração profunda no systema actual de viver não hade comtudo
soffrer detença: a passagem para a vida agricola.

A epidemia que grassa entre os cavallos, produzirá a modificação de que
fallamos.

Não ha cavallo que resista a essa peste, depois de poucos annos de
trabalho, de modo que, em certas épocas, qualquer animal attinge a
preços despropositados.

Em alguns annos, a difficuldade em obter cavalhada tem impossibilitado o
_costêo_[42], sem o qual o gado se torna arisco e bravio, como o que
avistavamos na base da serra de Maracajú.

Transportada da Bolivia em 1857, começou aquella enfermidade a grassar
entre os cavallos, com todos os caracteres de epidemica. Hoje tornou-se
endemica.

A destruição foi quasi completa; mal escapárão alguns, em localidades
salubres e aos quaes se poupára o excesso de serviço.

Desde então, annualmente reapparece: ora, atacando com pouca
intensidade, ora, levando cavallos aos centos, augmentando com o calor,
na estação das aguas, diminuindo com o frio e lavrando, sobretudo, na
razão da agglomeração de animaes muares, como aconteceu com os da
expedição, durante a estada no Coxim, onde morrêrão quasi todos os
burros, não escapando um só cavallo.

A zona, em que actua esse mal, estende-se do sul do districto de Miranda
até Cuyabá, exactamente em todos os pontos, onde se dão as inundações
periodicas e o alagamento dos campos.

Nos lugares mais altos, em Nioac e junto á serra, é molestia pouco
conhecida, e, do outro lado da cadêa, não penetrou ella, ficando
limitada nos locaes, em que achou condições favoraveis para o seu
desenvolvimento.

O governo da provincia, attendendo á estabilidade d'essa molestia, cujos
effeitos ruinosos, ha muito, se fazem sensiveis, mandou contratar um
veterinario em França, para vir estuda-la e fornecer meios de
combate-la, visto como, sem resultados apreciaveis, continuão as
applicações, que experimentão os fazendeiros.

Disserão-nos que se déra a vinda para o Brasil d'esse especialista, o
qual, porém, ficára no Rio de Janeiro; não se tratando mais de chama-lo
á provincia, em cujo seio dão-se, em escala crescente, os casos de
destruição de todos os animaes muares.

Os prodromos da molestia são variadissimos. Ás vezes, manisfestão-se por
simples ruidos no ventre: excrementos reseccados e duros, inappetencia
completa, magreza repentina. Outras vezes, com falta de todos aquelles
symptomas, apparece a impossibilidade ou difficuldade em beber, ficando,
comtudo, largo tempo, o animal, com a cabeça mettida n'agua,
demonstrando o seu desejo.

Succedem-se então phenomenos, cujo final obrigatorio é a morte.

Ora os animaes ficão tristonhos e, em poucos dias, vão definhando até
morrerem; ora tornão-se espantadiços; correm, sem direcção certa,
girando até cahirem, ou seguindo diagonalmente; ora completamente cégos;
ora surdos.

Em todos os casos, as cadeiras ficão tolhidas, a parte posterior
derreada e o animal arrastra as patas trazeiras com difficuldade e
cançaço, d'onde provém a especificação de _peste-cadeira_ ou de
_cadeiras_.

Pessoa habilitada procedeu á autopsia de um cavallo, victima d'aquella
enfermidade, e encontrou, como era natural, alteração profunda na medula
espinhal.

Um curioso de algum merecimento, o Sr. João Lemes do Prado, depois de
esgotados muitos remedios, para subtrahir algum de seus cavallos á
peste, usou com proveito do _crótalo_, extrahido da cobra cascavel.

Entretanto, nunca os escapos recobravão o antigo vigor e, apezar de
gordos, empregavão extraordinario esforço nas subidas e descidas de
rampas.

Parece fóra de duvida, pelos singulares phenomenos na locomoção,
inherentes a essa enfermidade[43], que a lesão na espinha dorsal,
propaga-se ou repercute-se nos lóbulos cervicaes, como o demonstrão as
interessantes experiencias e acertadas indagações de Flourens, na
vivi-secção.

Havemos, mais adiante, de verificar curiosas relações entre a peste dos
animaes, e a que dizimou parte da columna expedicionaria, confirmando a
esclarecida opinião de Backewel, Chadwick, Harrison e Graves, quando
tratão da connexão entre as epidemias e epizootias.




CAPITULO VI


Entretanto, a 10 de Março, achavamo-nos na margem direita do rio Tabôco,
o qual, contra as previsões de nossos soldados, que trilhavão já caminho
conhecido, dava nado de lado a lado, n'uma extensão de mais de 30
braças, quando a sua largura normal não excede de 18 a 20.

Passámos a noite debaixo de um laranjal, que servia de pomar á casa do
cidadão Joaquim Alves de Souza, a qual teve de hospedar aos paraguayos,
quando elles ião para o Coxim, e fôra testemunha dos attentados que ahi
praticárão.

Esses hospedes incommodos forão tratados com urbanidade tão bem fingida,
que não duvidárão em deixar o dono da casa em sua fazenda, com promessas
de leva-lo com toda familia para a villa de Miranda. Um camarada,
havendo, n'essa occasião, tentado fugir, foi pelos soldados fustigado,
amarrado a um pé de _piuva_[44] (peroba) e quasi esfolado pelas pontas
do açoute.

Depois d'aquella execução barbara, a que assistio o misero patrão, com
custosa indifferença, partírão elles, promettendo voltar breve,
concluida a expedição ao norte do districto.

Se elles cumprírão a palavra, Joaquim Alves julgou-se com razões
ponderosas para não fazer o mesmo.

Apenas voltárão as costas, fugio com toda sua gente para os matos,
tomando depois caminho de Sant'Anna do Paranahyba.

Vingárão-se os paraguayos do logro, feito á ingenuidade de homens
brutaes e barbaros, queimando as casas e dependencias, e destruindo tudo
quanto encontrárão.

A denominação de _Tabôco_ é de origem guaycurú: significa _fundo_,
apezar de seu pouco volume de aguas habitual.

Alguns indios, porém, d'aquella nação, havendo habitado junto a um
peráu, formado n'uma das voltas do rio, derão-lhe em toda a extensão
aquella especificação pouco conveniente.

Officialmente e nos mappas da provincia diz-se _Dabôco_, muito
erradamente e sem razão.

Suscitando-se, em Agosto de 1866, a dúvida a respeito do nome exacto,
colhemos a certeza não só da boca de pessoas conhecedoras da lingua
guaycurú[45], senão dos proprios naturaes d'aquella nação.

Os que dizem _Dabôco_ a todo o trance, não se firmão em principio algum,
a menos que apresentem, como autoridade, dous ou tres mappas da
provincia, em que apparece aquella palavra escripta por um _D_.

O rio, no lugar da passagem, tem a margem direita alta, a esquerda baixa
e paludosa depois das inundações, frequentes, em razão da proximidade
das cabeceiras, se bem de pouca duração. Bellas figueiras e alguns pés
de _ingá_ (ingá edulis) tornão esse lado umbroso, ao passo que o outro é
completamente descoberto.

Um pouco abaixo, o rio bifurca-se: um ramo segue direcção, no rumo médio
O.; o outro diverge para S. O., deixando intermedia uma comprida insua
rasa e arenosa.

Os desmoronamentos da barranca direita deixão perceber a natureza
completamente arenacea dos terrenos proximos, o que tambem póde explicar
o nome de _fundo_, dado em certa época a um rio que, carregando grandes
porções de arêa, modifica com facilidade o leito em que corre.

Fallárão-nos, na realidade, nas diversas phases por que elle tem
passado, assignalando-se datas, não mui remotas, em que a sua
profundidade variou extraordinariamente.

Ao chegarmos junto ao Tabôco, a noite, ha muito, tinha cahido. Nuvens
carregadas de chuva pesavão no horisonte, estendendo um véo tristonho,
por entre o qual a lua, a custo, diffundia raios amortecidos e tibios.

As arvores, formando densa mouteira, lançavão sombras vigorosas sobre a
superficie turva do rio que rolava, engrossado pelas chuvas passadas,
toldadas aguas, em cujo seio, de quando em quando, abria-se, com o
espadanar do salto de algum peixe, um vão luminoso.

Com o nosso approximar, um bando de _capivaras_[46] (hydroch[oe]rus
capibara) atirou-se ao rio, afundindo-se com estrondo, e indo surgir na
margem opposta, ao passo que barulhentos _quero-quero_[47], acordando,
com estrepitosos gritos, os echos, cruzavão-se nos ares com precipitado
vôo.

Ahi achavão-se vestigios da passagem de numerosa comitiva, e, ao aclarar
o dia, reconhecêrão os soldados serem pisadas de indios, a despeito de
não apreciarmos os signaes que differençassem essas pégádas, das de
qualquer outra planta de pé, como com razão o affiançavão elles.

Esses homens são de uma sagacidade espantosa; nunca se enganão e
conhecem perfeitamente os rastos de todos os animaes. Ao depois, vimos
nos indios demonstração de um tino tão fino, que reconhecem, pela
impressão do pé no terreno, a pessoa que a deixára.

O Tabôco dava nado de lado a lado: recorremos aos couros e o passámos
com difficuldade, perigando, n'essa occasião, a fragil pelota, em que se
mettêra o nosso collega Lago.

N'esse dia (10) deviamos emfim chegar á aldêa dos indios da Piranhinha:
aligeirando pois a marcha, tomámos aquella direcção, tendo á frente dous
soldados, conhecedores d'esses lugares, que caminhavão com a confiança
que lhes faltára junto á serra, isto é, cortando campos, seguindo
trilhas imperceptiveis e rompendo por veredas cobertas pelo matagal e
capim.

Haviamos deixado a serra de Maracajú e iamos então fraldejando um ramo
d'ella, o qual segue para o sul, parallelamente á cadêa, em cujo novo
encontro achava-se a aldêa.

Os campos são pouco dobrados; o verdor das arvores, o capim crescido
denotavão, que, havia tempo, não lavrava fogo n'elles.

Cerrados, como sempre, se estendem por todos os lados; n'elles apparecem
com frequencia as _bignoniaceas_[48], as quaes tem menos representantes
nos das outras provincias: continuão comtudo a predominar os _araticús_.

Caminhando uma legoa e tres quartos na direcção media S., attingimos ao
morrete que faz ponta ao ramo, que, então, diverge para N. S. e vai
unir-se á serra, a qual avistavamos de novo, dominando, com pincaros
recortados, o aldêamento da Piranhinha.

D'aquella ponta de morro, parte o caminho, que leva ao Aquidauana e ao
porto, chamado do Souza, onde existia então um destacamento paraguayo,
com uma guarnição de pouco mais de cem homens, a qual vigiava o rio e a
estrada do Tabôco, pela qual presumião dever de descer a força
brasileira.

Ao dobrarmos aquelle promontorio, avistámos, na distancia de tres a
quatro legoas, uma columna de fumaça, que, maculando com rolos
alvacentos o puro campo do céo, subia pesadamente, destacando de si
ligeiros flócos, em breve dissipados ao sopro da brisa.

Era o fogo do invasor atirado aos campos do Brasil, era o signal da
usurpação.

Indicava aquelle ponto negro a posse, depois da perfidia, o dominio após
a violencia: posse momentanea que o governo de Lopes havia de pagar bem
caro, dominio temporario, que custou milhares de vidas, nas grandes
questões á mão armada, que se debatêrão nas planicies da republica do
Paraguay.

Caminhando uma legoa e um quarto d'aquelle morro, passámos o lindo
regato das Piranhinhas, no meio de luxuriante mata, finda a qual,
começámos a trilhar estrada, que mostrava signaes de muita frequencia.

Na realidade n'uma volta além, achava-se a aldêa, cujos ruidos, cada vez
mais crescentes, denunciavão vida e animação.

Os baques de machados, confundião-se com o cantar de gallos e o vozear
de homens, formando um concerto, que então preferiamos aos mais sublimes
acórdes do autor de Ernani, pois significava-nos o final de todos os
soffrimentos; alegrava-nos o espirito e o corpo, abrindo largos
horisontes ao nosso direito de compensações.

Em breve, diante de nós, corrêra um indio.

Noticia importante circulou pela aldêa.

Ouviamos grande vozeria, algazarra continuada, e, quando surgírão ante
nós as primeiras palhoças, uma chusma de gente armada se atirou ao nosso
encontro.

O aspecto não era agradavel. Chegárão alguns a apontar para nós: a vista
porém dos soldados que lhes erão conhecidos, o nosso passo pouco
bellicoso, o nosso acompanhamento, em nada medonho, dissipárão logo
qualquer dúvida.

A reacção foi estrepitosa. Explicámos a razão de nossa chegada, e,
cercados, quasi em braços, no meio d'aquella boa gente, fomos ter a casa
do capitão José Pedro, que nos acolheu, não como chefe de indios, mas
como um filho da civilisação.

Não pouca estranheza nos causava a apparencia de nossos novos amigos,
pintados de _genipapo_ e _urucú_. Fallavão, com volubilidade espantosa,
lingua que nos parecia então extraordinariamente aspera e estavão
armados, uns com lanças, chuços, espadas, quasi todos com espingardas e
clavinas.

Depois de fartarem, por mais de uma hora, a curiosidade, que lhes
causavamos, a um aceno do capitão deixárão a palhoça, em que nos
achavamos, e podémos, afinal, comer socegadamente uma gallinha cosida
com arroz, que teria merecimento em qualquer parte do mundo.

A noite passou-se em narrar a José Pedro os acontecimentos que havião
precedido a guerra com o Paraguay, os successos do sul e os nossos
triumphos, que muito o enthusiasmárão.

Fallou-nos elle, com verdadeiro sentimento respeitoso, do Imperador, de
Suas altas attribuições e mostrou-se conhecedor reconhecido da
benevolencia, que o monarcha brasileiro nutre pelos indios de Seu
Imperio.

Narrou-nos, com côres vivas e expressivas, a invasão, suas phases;
elogiou o comportamento de varios individuos de sua tribu, nunca fallou
de si, e, mostrando sempre os principios de uma boa educação esboçada,
deu-nos prova de intelligencia clara e capaz de desenvolvimento.

O capitão José Pedro de Souza sabia lêr e escrever; mantinha em sua
aldêa severa disciplina; organisára uma escola de meninos, na qual
figuravão os seus dous filhos e sempre se havia mostrado affeiçoado aos
brasileiros, unindo-se com elles nas horas de infelicidade.

Era digno, debaixo de todos os titulos, de obter do governo imperial a
confirmação do posto, que lhe fôra concedido pelo virtuoso missionario
frei Marianno de Bagnaia, sob cujas vistas foi educado, na aldêa dos
Quiniquináos do Bom-Conselho, além do rio Paraguay[49].

Estabelecidos na aldêa do _Naxe-daxe_ ou de _Santa Cruz_, a 6 legoas da
villa de Miranda, tinhão os indios Terenas procurado um refugio, por
occasião da invasão dos paraguayos, dedicando-se logo ao plantio, apezar
da carencia de sementes e grãos, em que se achárão.

Entretanto, quando chegámos, já havião colhido boa quantidade de arroz,
algum milho e mandioca, da qual fazem excellente farinha.

Na manhã do dia seguinte, aquelles generos com mel e rapaduras figurárão
nos presentes, que o mulherio, em peso, veio offerecer aos dous hospedes
da nação terena.

Retribuimos com moedas de prata de duzentos réis; o que causou alegria
manifesta.

Muitas mulheres, na confusão, accusavão não ter sido contempladas e só
se retiravão depois de satisfeitas as suas exigencias, voltando com
dadivas novas para fazerem jus á nova distribuição de dinheiro.

O capitão livrou-nos de mais sacrificios pecuniarios, levando-nos a
passeio. A aldêa preparava-se para uma festa e varios indios _padres_
cantavão debaixo de alpendres de _perypery_[50], para que o mel colhido,
de dias, fermentasse depressa.

Fallaremos, em capitulo separado, de todas essas ceremonias e mais
costumes dos indios de Miranda; ainda depois do muito que se tem dito a
este respeito, é estudo curioso esmerilhar as praticas especiaes d'essa
gente, que tem conservado o seu typo bem caracteristico, apezar do longo
contacto com os brancos.




CAPITULO VII


No dia 11 de Março, dizendo adeos áquella boa gente e acompanhados pelo
capitão José Pedro e mais alguns dos seus, tomámos a trilha que
communicava a aldêa com a localidade em que se achavão os refugiados, a
3-{1/2} legoas. (Nota H)

Para penetrarmos no reconcavo da Piranhinha, haviamos caminhado
completamente a E.; desfazendo a volta, isto é, tomando rumo O.,
chegámos de novo á ponta de morro, de que acima fallámos e dirigimo-nos
para a serrania.

Em breve começou a ascensão.

As matas tornavão-se mais frequentes: o declive era já agro.

De repente desciamos; logo após subiamos cançativa rampa.

A trilha, entaliscada entre fileiras de rochedos altos, seguia ora por
baixo de taquaraes, ora por entre densos matagaes.

Comprehendia-se que era caminho de refugiados.

A meiga luz da tarde nos esclarecia paisagens lindissimas: erão
quebradas de montanhas, que deixavão a vista estender-se por sobre um
rico docel de verdura, nos declives além: erão crystallinas aguas, que,
serpeando entre grossos matacões, despenhavão-se--borbulhantes
cascatas--riscando de branco a pedra negra e sumindo-se por escuras
fendas.

As sombras cobrião já as profundezas do valle, que muito ao longe
avistavamos; galgavão apressadas as primeiras dobras da montanha e só
alguns raios descorados de sol allumiavão a rama extrema das arvores,
que corôavão o topo da serra.

Haviamos caminhado já tres legoas e um quarto, e temiamos, que a noite
nos sorprehendesse n'essas brenhas.

Com o cahir da tarde, subimos uma rampa tão ingreme, que obrigou-nos a
apear de animal e a galgal-a de pé.

Era o ultimo degráo que restava vencer, antes de chegar ao chapadão, que
se estende sobre a cadêa.

Na realidade, pouco depois, pisavamos um terreno plano, silicoso,
coberto de cerrados.

O crepusculo, cada vez mais fraco, mal deixava distinguir a trilha.
Emfim cahia a noite fechada, quando, por entre a folhagem de umas
moutas, vimos brilhar luzes......

Era o final de nossa viagem: era o repouso, não para algumas horas, para
uma noite; mas sim para dias, semanas......

Era o descanço, a tranquillidade! a vida!

Era o socego depois de tantos trabalhos, a quietação depois de tanto
movimento!

Quantos sentimentos em nós se alvoroçárão!

A responsabilidade official estava salva. Haviamos cumprido a parte mais
custosa de nossas instrucções, e cumprido, com risco de saude, com
sacrificio penoso, com perigo de vida.

Démos tudo por bem empregado.

O recebimento cordial e espontaneo, que nos esperava, constitue um
d'esses factos, que o homem de sentimento nunca mais esquece. Homo
sum......

O nosso actual amigo, o Sr. João Pacheco de Almeida recebeu-nos e
acolheu-nos, em sua palhoça, com a nobreza, com que um principe
hospedaria em seu palacio.

A longa convivencia, na qual estivemos, por muitos mezes, com esse digno
cavalheiro, é uma lembrança, que sempre em nós desperta a gratidão.

       *       *       *       *       *

Passámos a noite em excellentes redes: o somno foi reparador.

A curiosidade, de que se achavão possuidos todos os refugiados, em
saberem noticias da força que os vinha proteger, do que se passára desde
Janeiro de 1865, era modificada pelo desejo de dar-nos o descanço depois
de tanta atribulação e assim podémos desfructar repouso longo e
tranquillo, que ainda durava, quando o sol já ia alto......

O acampamento de João Pacheco occupava uma área de 20 braças quadradas.
Um bello corrego dividia-o em duas partes, ambas sombreadas, mais do que
convinha á saude, por magnificas arvores de construcção.

Amontoavão-se, n'esse pequeno espaço, 18 a 20 casinhas que parecia
tinhão-se encostado umas ás outras, apertando o circulo, para
protegerem-se reciprocamente.

Á medida que o receio dos paraguayos[51] diminuia, as palhoças ião se
affastando, a procurarem mais espaço e liberdade.

A meia legoa d'esse nucleo, formára-se outro ao redor do fazendeiro
Francisco Dias, cujo nome servia para designar aquelle acampamento. A
posição era muito pitoresca: a serra faz ahi um reconcavo, todo cercado
por morros alcantilados, que fechão uma planura de pouca extensão, porém
muito aprazivel.

As fórmas singulares, que tomão as montanhas, a brisa constante que ahi
reina, mantida por duas grandes abertas que correspondem, tornão esse
lugar eminentemente ameno e saudavel.

Todas as pessoas, em numero superior a 100, que compunhão aquelle
acampamento, vierão comprimentar-nos no dia seguinte ao de nossa
chegada, e no rancho de João Pacheco reunio-se a quasi totalidade do que
o districto de Miranda continha em autoridades e fazendeiros.

A desgraça extrema não se descreve: esses homens achavão-se todos de pés
no chão, cobertos de farrapos, ostentando no rosto o soffrimento
prolongado, o martyrio de muitos mezes.

Obrigados ao trabalho para viverem, manejavão, com ardor digno de
admiração, o machado e a fouce e luctavão com todas as dificuldades da
inexperiencia n'esse serviço pesado, para proverem o sustento de suas
familias.

As mulheres, por seu lado, não se esquivavão da mais ardua tarefa.
Causava dó vêr debeis moças socando, por esforço de braços, o milho para
reduzil-o a farinha ou descascando no pilão o arroz.

Todos com persistencia exemplar e espirito immenso de resignação,
curvavão-se ás crueis exigencias da occasião e, cumprindo com a
imperiosa lei do trabalho, vivião vida penosa e altamente precaria,
depois do esbulho de todos os seus bens e dos dolorosos trances de fuga
ante um inimigo feroz e implacavel.




CAPITULO VIII


No dia 24 de Março, partimos em direcção ao rio Aquidauana, cuja margem
direita deviamos explorar, como recommendavão-nos as instrucções.

Alguns moradores dos Morros nos acompanhavão n'este reconhecimento, em
que havia perigos a correr, por qualquer eventualidade possivel, quando
não provavel.

O Sr. João Pacheco, entre todos, primava pela dedicação e energia;
costumado a andar de pé longas distancias, servia-nos de excellente
guia, caminhando com toda a galhardia diante de nossas cavalgaduras, que
com difficuldade seguião-lhe os ligeiros passos.

O rio Aquidauana, em Marco de 1866, formava a linha divisoria material
entre o Brasil e a republica do Paraguay e o districto todo de Miranda,
a mais linda porção da provincia de Mato Grosso, achava-se occupado
debaixo do titulo de districto militar de Mbotety[52].

A margem esquerda era guardada por um forte destacamento e
cuidadosamente rondada em toda sua extensão, e, bem que, desde Maio de
1865, o presidente Lopez houvesse prohibido[53] a transposição do rio
aos seus soldados, as correrias, no outro lado, tinhão-se dado varias
vezes, com grande susto da população dos Morros.

Iamos assim, apezar da falta de meios para isso, effectuar um verdadeiro
reconhecimento militar.

Dirigindo-nos pois para o acampamento de Francisco Dias, que distava do
nosso meia legoa, como já o havemos dito, reunimos ahi mais alguns
companheiros, com os quaes galgámos a encosta oriental da bacia em que
está encerrado aquelle acampamento.

A trilha, aberta pelos cascos de animaes, dá difficil transito, subindo
as rampas abruptas d'aquellas fragosidades.

De certa altura, dominámos os picos vizinhos: alargou-se-nos o
horisonte; as grandes cópas dos madeiros ficárão ao nivel comnosco e
nossos olhares se atiravão além e bem ao longe.

No cume, a paizagem tomou amplidão immensa. Erão campos, a perder de
vista, verdejantes aqui, azues mais adiante e roxeados nos extremos
limites, cortados por grupos raros de bosques, ao passo que continua
mataria mostra o curso das aguas do Aquidauana.

Taes aspectos da natureza são profundamente melancolicos: o espirito
como que se atira por essas immensidades, que recordão o indefinido do
oceano, sem terem comtudo aquella magestade que encanta a alma,
lançando-a n'uma prostração incomprehensivel.

Para o habitante do litoral, as vastidões terrestres acordão milhares de
recordações saudosas; suave tristeza se apodera de nós e transporta o
espirito ás bellas praias do mar.

Outro sentimento contristador dominava-nos então.

Atraz de um morrete longinquo achava-se a villa de Miranda, presa do
estrangeiro e fogos, em um ponto e outro pela campina, lembravão a
occupação inimiga.

Muitos dos nossos companheiros se embebecêrão então na contemplação
sombria que dominára o mouro, quando, do alto da rocha dos Suspiros,
elle lançára as derradeiras vistas sobre os formosos campos de Granada e
talvez as palavras de Aixa fossem de novo bem cabidas, como exprobração
merecida.

Essa scena desappareceu no descambar da serra.

Por todos os lados novamente cercárão-nos matas espessas, e o sol, a
furto, desenhava, por entre a folhagem, seus circulos fugaces no
caminho.

Os ribeirões succedião uns aos outros, tombando de quéda em quéda e
despenhando-se pelos declives abaixo.

Como primeiros exploradores, fomos-lhes applicando nomes que nos
parecião mais convenientes, ora procurando um distinctivo que os
tornasse facilmente conhecidos; ora consagrando-os á lembrança de
nymphas classicas ou americanas; assim passámos o ribeirão da
Congonha[54], mais adiante o de Euterpe e, meia legoa além, o de
Catharina Pazes, uma lindissima quiniquináo, que habitava nos Morros.

Junto a este ultimo, tomámos ligeira refeição, comendo, debaixo de
aprazivel sombra, a matalotagem preparada de vespera e bebendo a pura
lympha d'aquelle bello riacho.

Continuando a descer, achámo-nos em breve na planicie, abrindo-se ante
nós os campos, que levão a _Camapuan_[55], illuminados então pelo brilho
do sol em seu zenith.

Tencionavamos visitar dous aldeamentos indios, collocados a 7 legoas do
ponto de nossa partida: por isso tomavamos direcção E., da qual deviamos
divergir para S., quando procurassemos as margens do Aquidauana.

Assim pois caminhando, n'aquelle primeiro rumo, mais tres legoas, fomos
pousar junto ao lindo corrego das _Palmeiras_, na casa do cidadão
Valerio de Arruda Botelho que recebeu-nos franca e amavelmente.

Ahi tivemos um agradavel dia de falha, que nos proporcionou a
jovialidade de nosso amphitryão.

Foragido de Miranda, Botelho conservára-se, por muitos mezes, occulto
com sua familia nas matas de sua propria fazenda do Embauval, perto do
rio Miranda, apesar da passagem continua dos paraguayos por suas terras.

Afinal transportára-se com crianças, e cargas para a margem direita do
Aquidauana, depois de uma perigosa viagem de dias, entre as rondas
inimigas.

O lugar de sua nova habitação era encantador: magestosos boritys,
banhando os pés nas aguas rapidas do corrego, se erguião fronteiros a
ella, e na fralda de um morro abaulado coberto de vegetação, que se
estende para N. E., formando com outras pontas isoladas, um systema
perfeitamente distincto. A grande serra corre para S., elevada como
sempre e dependurada desde ahi sobre o ribeirão das Pirapitangas, que
deviamos atravessar quatro vezes.

Deixando as Palmeiras no dia 26, em companhia de Valerio fomos á aldêa
do _Oauassú_[56] onde alguns indios quiniquináos havião procurado
refugio, depois de expulsos de suas palhoças do _Euagaxigo_, além
Aquidauana.

Tomando sensivelmente a E. N. E., fomos do Oauassú ao aldeamento da
_Boa-Vista_, formado pelos indios laianos, distante do outro tres e meia
legoas. O caminho de communicação era uma apertada trilha atirada por
sobre lindos campos, ora perfeitamente planos, ora dobrados mais ou
menos profundamente.

De quando em quando, fraldejavamos um d'aquelles picos destacados ou
passavamos por abertas estreitas entre morretes, cujos córtes a prumo
obrigavão a attenção.

A aldêa da Boa-Vista estava situada n'um outeiro encostado a varios
morros e constava de cincoenta a sessenta ranchos de palha.

Os indios nos acolhêrão do modo o mais sympathico e cordial. Achámos um
rancho feito de proposito, em attenção á nossa visita e ahi nos
obsequiárão com grandes mostras de respeito.

Os laianos da Boa-Vista moravão, antes da invasão, a uma e meia legoa da
villa de Miranda, e d'entre elles se tiravão os melhores camaradas para
o trabalho de roças, serviço de canôas e _costêo_ de gado. Como quasi
todos os indios, são excellentes cavalleiros e domadores destemidos.

Em honra á nossa chegada, o capitão José Vieira organisou dançados, que
durárão até alta noute, formados tão sómente pelo desejo de
festejar-nos, posto que faltasse o incentivo obrigatorio para taes
divertimentos a--aguardente.

Diante de um pifaro e um tambor, collocárão-se tres rapazes e igual
numero de raparigas, os quaes, de mãos dadas, avançavão e recuavão,
imitando os gestos e movimentos titubantes dos embriagados.

Conforme a perfeição ou inexactidão na imitação, colhião os dançadores
applausos dos circumstantes ou apupadas, o que fazem batendo a mão
aberta de encontro á boca.

A toada é sobremaneira monotona; o dançado igualmente; quando não ha o
elemento que transforme o fingido em triste realidade: então todos tem
n'elle parte com ardor e furia indescriptiveis, até cahirem
completamente exhaustos.

Ao som d'aquella musica insipida, adormecemos.

Depois de combinarmos, no dia seguinte, com Vieira, sobre o ponto de
reunião em que elle devia se achar com vinte de seus indios[57] junto ao
Aquidauana, despedimo-nos d'aquella gente simples, voltando á casa de
Valerio, onde de novo falhámos um dia.




CAPITULO IX


Acabada a digressão, dirigimo-nos no dia 29 para a margem direita do rio
Aquidauana.

Atravessando o ribeirão das _Pirapitangas_, fomos seguindo, de novo, a
serra na direcção S., até chegarmos junto á margem do rio, depois de
2-{1/2} legoas de marcha. Os aspectos do terreno continuão os mesmos.

As margens são aprumadas, cobertas de vegetação vigorosa, na qual
avultão os elegantes taquarussús, que fórmão grupos compactos,
entremeados com elevadas macaúbeiras.

O Aquidauana é o mais bello rio caudal, que se encontra em todo o
districto de Miranda: as mais lindas paizagens se fórmão em seu correr;
as mais animadas scenas se achão em suas vizinhanças.

A abundancia de pesca e caça ahi se encontra por modo prodigioso.

A natureza virgem, os viventes que lhe infundem o movimento, aquellas
matarias tão verdejantes, aquellas aguas puras e crystallinas a
reflectirem um céo de saphyra, a serra azulando ao longe, levão o extase
a uma alma artistica e a atirão n'essa alegria pura e suave, repassada
de tristeza, que Horacio tão bem exprimio pelo--_flebile nescio quid_.

Lembrar-nos-hemos sempre de um ponto de vista, que attrahiria os olhares
do ente menos admirador do bello.

O rio, ahi, descendo em rapida _corredeira_, morre de repente n'uma
bacia, que se abre regularmente no reconcavo de barrancos, cortados a
pique.

Ahi as aguas dormem: circulos ligeiros mal encrespão a
superficie,--ultimos impulsos da correnteza--e, em ondulações
concentricas, vão desapparecer de encontro ás margens.

Ora a brisa geme na folhagem delicada dos taquarussús e brinca sobre as
aguas; ora é o vento, que, vergando os flexiveis colmos, anima aquella
scena com harmonia mais grandiosa. Assim a vimos.

No alto das margens alcantilosas, as arvores estremecião aos embates de
forte sopro: as elevadas cannas se enroscavão, se confundião, se
debatião frementes, ás vezes, ligando os flexuosos topos ás copas das
macaúbas, outras abatendo-os até tocarem o chão.

O sereno lago, perturbado pelas lufadas, reflectia, de quando em quando,
o sombrio de nuvens que orlavão o azul celeste das abertas, por entre as
quaes o sol estirava raios destacados de scintillante luz.

Centenares de passaros esvoaçavão: uns tocados pelo vento, com as azas
meio encolhidas; outros cortando, com vôo mais firme, a ventania e
suspendendo-se n'ella. Muitas marrequinhas brincavão n'agua, sobre a
qual brancas garças deslisavão-se veloces, ao passo que lontras fazião
reluzir ao sol o pello lustroso, mergulhando de continuo e nadando com
ligeireza.

Tudo isto gritava, tudo isto piava, unindo mil vozes diversas,
produzindo mil sons differentes que, combinados no espaço, davão á
natureza aquella animação e vida, só proprias das obras do Creador.

Outra vez vimos essa bacia debaixo de novo aspecto. Tudo era calma; as
aguas não se movião; as arvores não se mexião.

O silencio da natureza como que se deixava ouvir; permitta-se-nos essa
expressão arrojada.

Um calor abrasador abatia e enervava a vida; luz deslumbrante penetrava
tudo.

A mataria, illuminada nos seus recantos mais sombrios, não tinha
mysterios; as arêas apparecião no fundo de esverdeadas aguas, e só
cardumes de peixes, symbolo do mutismo, nadavão em todos os
sentidos.....

O rio Aquidauana nasce de vertentes da grande serra de Maracajú[58].
Recebe, depois de algumas legoas de curso, os rios Cachoeirinha e
Cachoeira, tomando desde então importante volume de aguas, engrossado
pelos ribeirões _Dous Irmãos_, do _Taquarussú_ e _Uacôgo_[59], que
entrão pela margem esquerda e de _João Dias_, corregos do _Paxexi_ e da
_Paixão_, que desaguão pela margem direita.

Do ribeirão de João Dias, onde existe a ultima corredeira, o seu curso é
livre de obstaculos, com profundidade quasi constante de 8 a 10 palmos,
e largura média de 30 braças.

Navegavel para grandes canôas n'uma extensão de quasi 40 legoas, fenece
no rio Miranda pelo lado direito, confundindo as suas aguas claras e
puras ás revoltas e barrentas d'aquelle rio.

O seu nome é de origem uaycurú.

Um capitão dos cadiuéos tem a mesma denominação, com o accrescimo de um
T.--Taquidauana.

Não nos podérão explicar o que significa.

Nas matas d'esse rio habitão os animaes vulgares da fauna brasileira:
_onças_ (felis variarum specierum), _antas_ (tapirus americanus),
_lobinhos_, _jaguatiricas_, (felis pardalis, Neuwied), _raposas_,
_macacos_, (simia v. sp.), _tamanduás_, _tatús_ (Dasypus v. sp.), muitos
_queixadas_ (dicotyles labiatus), etc.; _lontras_ (lutra), _ariranhas_
(lutra brasiliensis) e _capiváras_ atravessão, a todo instante, a
correnteza; em seus campos proximos pullulão _cervos_ (cervus paludosus,
Desm.), _veados_ (cervus rufus, c. campestris), _emas_ (rhea americana),
_ceryemas_ (dicholophus cristatus.); nos cerrados, _jabotís_ (testudo
tabulata), muitas _cobras_ venenosas (crotalus horridus, bothrops
Neuwiedi, b. surucucú, boipébas, urutús, etc.) e reptis de outras
sortes.

Em aves ha os _jacús_ (penelope marail), _jacu-cácas_ (penelope
jacucáca, Spix.), _jacutingas_ (penelope leucoptera, Neuwied), _mutuns_
(crax v. sp.), _jaós_ (crypturus noctivagus) e _aracuans_[60], _tucanos_
(rhamphastos v. sp.), _araçaris_ (pteroglossus), muitas _pombas_,
_gralhas_, _periquitos_ (psittacula v. sp.), _papagaios_, (psittacus v.
sp.), _aráras_, enfeitão a ramagem das arvores, ao passo que os
_inhumas_[61] (palamedea chavaria), _jaburús_ ou _tuyuyús_[62],
_tabuyayás_[63] (ciconia m.), _socós_ (ardea), _curicácas_ (ibis
melanopsis) e bandos de numerosos _patos_ (anas) e _marrequinhas_ pousão
nas ribeiras ou se agrupão nos rochedos e insuas do rio. (Nota I)

Em pescado o Aquidauana é fartissimo.

Abundão os _jaús_, os _sorubys_, _dourados_, em certos mezes _pacús_,
_pirapitangas_, _corimbatás_ e _pacu-pebas_, _papa-terras_ (geophagus,
Heckel), _raias_, etc., etc.

O _jaú_ é o maior peixe dos rios de Mato-Grosso: extremamente voraz, não
duvida atacar o homem[64]. A resistencia que tal monstro faz, quando
agarrado ao anzol, é prodigiosa e não são raros os exemplos de grandes
canôas viradas na sua pesca.

O _soruby_ (platystoma), chamado mais commummente na
provincia--pintado--, é peixe de pelle, com malhas pardacentas em fundo
escuro. A cabeça é chata, com appendiculos como a dos bagres e occupa um
terço do comprimento total: a carne é saborosa, bem que um tanto forte.

O mais abundante e ao mesmo tempo um dos mais delicados peixes de
Mato-Grosso é o _pacú_, (prochilodus, Agassiz) tambem chamado _caranha_,
do qual Pison diz: «melioris saporis et nutrimenti habetur, quàm sargus
Europeus»: tem côr pardacenta, azulada n'agua, escamas pequenas com
reflexos dourados; geralmente 2 a 3 palmos de comprimento. É achatado.

Em certas occasiões, dá tal abundancia de gordura, que alimenta
proveitoso commercio de azeite. A quantidade é prodigiosa.

Nas enchentes do Paraguay, os _pacús_ seguem o movimento das aguas em
grandes cardumes, que ficão, na retirada d'ellas, presos em poças dos
campos e lagôas, onde morrem á mingoa d'agua e por causa da elevada
temperatura.

O ar fica então inficionado muitas legoas em derredor.

Contárão-nos que, em certos pontos perto do rio Paraguay, fica o chão
forrado, em extensões importantes, com camadas de 2 a 3 palmos d'esses
restos.

A gordura do pacú é preconisada para varias molestias: dizem ser de
grande efficacia na pica malacia, pelo enjôo que causa ao enfermo.

Um dos peixes, com razão, mais apreciados dos rios da provincia, é a
_pirapitanga_ (species characini), chamado em Goyaz _jurupensen_ (?) e
pelos indios guanás _araráitiissi_ (peixe de rabo vermelho). As suas
dimensões nunca são extraordinarias; attinge no maximo a tres palmos de
comprido; mais commummente regula de um 1 a 2 palmos. A carne, com
listras vermelhas, é consistente, saborosa, bem que, como a dos outros
peixes de rios, seja crivada de perigosas espinhas bifurcadas.

As pirapitangas sobem os ribeirões e corregos até onde encontrão agua
sufficiente. Muitas vezes, ficão retidas em poças mais fundas até a
época das enchentes. No corrego dos Laianas apanhámos algumas de bom
tamanho, apezar da agua ter apenas 1/2 palmo de profundidade.

No Aquidauana é muito rara a presença dos monstruosos _sucurys_, assim
como a das perigosissimas _piranhas_ (myletes macropomus).

São habitantes predilectos do grande Paraguay.

Da voracidade da piranha se ha fallado sufficientemente: nada resiste
aos dentes aguçados de myriades d'aquelles peixes[65], que no ardor da
fome, devorão-se uns aos outros, com rapidez prodigiosa.

Os _sucurys_[66] (boa murina), verdadeiros representantes
antediluvianos, chegão a dimensões que os tornão entes deslocados na
natureza proporcional de nosso globo. Vimos uma d'essas serpentes, com
30 palmos de comprido e 15 de circumferencia na barriga; era comtudo
muito nova, pois que o nosso amigo, o tenente de guarda nacional, João
Faustino do Prado nos asseverou attingirem muito além de 6 braças,
contando-nos a este respeito um episodio curioso nas historias de
sucurys.

N'uma viagem a Cuyabá, passando elle pelos pantanaes do Piquiry,
observára de longe um touro, o qual disparava em todos os sentidos,
parecendo retido por um extenso cipó, que conheceu era um enorme sucury.
De mais perto notou aquella curiosa contenda. A serpente, depois de
estirar-se o mais possivel, retrahia-se de vagar, trazendo, de rastros
ao chão, o seu adversario exhausto.

Com o approximar de gente, o touro deu um arranco desesperado e partio á
disparada, bramando loucamente. O sucury deu de si até ficar da grossura
de tres dedos: depois começou a encolher-se, arrastando a presa que,
extenuada por tantos esforços, de novo se deixára cahir.

A victoria era certa; o final conhecido.

Um novo elemento perturbou a peripecia natural. O facão do homem, de um
golpe, cortou o sucury e deu a liberdade ao touro. Este, erguendo-se de
um só pulo, sacudio a cabeça e, arrojando-se pela campina, com o tronco
da serpente pendurada ao pescoço, em breve desappareceu d'aquelle
theatro, onde devêra achar a morte.

Ás vezes, os sucurys atacão as onças e antas com exito[67]. Entretanto
n'uma margem do Paraguay, o capitão Francisco Domingos da Costa Pereira
vio uma onça arrebentar um sucury, por quem fôra enlaçada.

Com uma facasinha o homem defende-se perfeitamente d'essas serpentes:
basta uma ligeira picada, levantando as escamas para obrigal-as a
desapertar os seus fataes enleios.

Já em occasião opportuna fallámos sobre os ferrões que os sucurys tem ao
redor do anus, e o que pensamos a tal respeito[68].

As rochas, sobre que rolão as aguas do Aquidauana, são de grés; em
muitas partes, o seu leito é completamente silicoso, em outras,
argiloso; lamacento, raras vezes. N'estes ultimos pontos reunem-se os
_corimbatás_[69] (schizodon, Agassiz), _piáus_, _traíras_ (erythrinus),
_bagres_, etc. Os seixos rolados abundão nas margens e entre elles o
_silex_ e os _silicatos_ de ferro.

As enchentes do rio nunca sobem a grandes alturas; raramente trasbordão,
não só pela elevação dos barrancos, senão pela facilidade com que se
escoão as aguas no rio Miranda, o qual corre por campos baixos e faceis
de serem inundados.




CAPITULO X


Do primeiro pouso junto ao Aquidauana, seguimos a O. fraldejando sempre
a serra, que se eleva, cada vez mais, com pincaros escalvados e talhados
até a base.

Os sitios são agrestes e sombrios; as plantas sexatiles se agrupão de
lado a lado da trilha que sobe e desce, conforme as dobras extremas da
serrania.

De vez em quando, descobrem-se as corredeiras do rio, cujo ruido se ouve
de longe; de vez em quando descortinão-se pedaços de campo distante, com
lindas arvores, a modo de vergeis.

N'um ponto, a vereda parece ir esbarrar n'um córte a pique de montanha:
a paizagem é ahi muito curiosa e eminentemente pitoresca.

Penetra-se então n'uma fenda monstruosa que dá passagem ao viajante,
entaliscando-o n'um corredor humido, cujas gotejantes paredes achão-se
tapetadas por achamalotadas _begonias_, _argyrostigmas_,
_capillus-veneris_, _adiantos_, etc.

Depois, sahe-se em campo: ahi acaba a serra[70].

As campinas, queimadas pouco tempo antes, reverdecião depois das ultimas
chuvas, e se estendião vicejantes, a perder de vista, como tapiz vistoso
salpicado de flôresinhas mimosas[71].

Caminhámos 2-{1/2} legoas até o corrego do Paxexi, onde fizemos pouso,
aproveitando ranchos abandonados e em ruinas.

A noite cahio serena: a trovoada do dia dissipára-se ao sopro de forte
ventania e tão sómente fugaces relampagos rasgavão um massiço de nuvens,
amontoadas em um ponto do horisonte. Roncos longinquos, intervallados,
mal se ouvião, rompendo o silencio crepuscular, tão solemne n'aquellas
paragens.

A lua subio então, espargindo sua meiga luz sobre a natureza e
infundindo aquella doce tristura, que acompanha essas noites de calma e
tranquillidade.

O dia da Paixão de Christo, em que estavamos, mais nos engolfava n'essa
meditação melancolica, que, sem méta, sem direcção certa, se atira no
espaço, e durante a qual os olhos da materia se fixão, sem vista, n'um
ponto, ao tempo que os olhos da alma vagueão pelos mundos além creados,
pelo indefinido e indeterminado.

De repente, atraz de um morro erguêrão-se nuvens rubras, densas na base,
flocadas acima e adelgaçadas. «São os paraguayos, disse-nos o velho
indio Palhá, que estão vaquejando no Taquarussú, a 5 legoas d'aqui;
queimão á noite os campos, para chamar o gado _esparramado_
(espalhado)...»

Sahindo de Paxexí com a madrugada, fomos em direcção ao porto de D.
Maria Domingas, o qual deviamos examinar como ponto de passagem para as
forças. Estavamos então a uma legoa de distancia d'elle.

Já se havião reunido a nós os indios da Boa-Vista, que vinhão constituir
a nossa guarda de protecção. Montados em bois, marchavão uns atraz dos
outros, com a lentidão grave d'aquelles ruminantes, a qual não sería
alterada, ainda quando apparecessem os inimigos.

Já começavamos então a avistar grandes manadas de gado: as _pontas_
pastavão em compactos grupos, que se apartavão com a nossa chegada,
fugindo as vaccas e bezerros, ao passo que os touros paravão, para
olhar-nos com desconfiança e sobranceria. Ás vezes, de um ponto
afastado, corria ao nosso encontro um d'elles; estacava junto ao caminho
e ahi nos esperava com ar de desafio e resolução. Bastava, comtudo, um
simples grito, um aceno para desvial-o, senão para afugental-o bem
longe[72].

O caminho vai sempre seguindo o rio, o qual ora sahe em campo limpo, ora
d'elle se separa por uma mata espessa e sombria.

Passavamos, de quando em quando, por tapéras[73]; erão ranchos vastos
cobertos de _herva de S. Caetano_[74], rodeados de urzes e espinhos;
erão moendas, engenhos, queimados em parte, cortados pelos machados do
invasor; em toda a parte, signaes de desolação e destruição inutil e
barbara. Só a natureza, no brilhantismo de seus verdores, consolava ao
derredor as vistas, cançadas de tamanhas provas de vandalismo; ella que,
embora desfigurada pela mão do homem, procura de continuo reparar os
estragos que tenha soffrido.

O porto de _D. Maria Domingas_, chamado pelos indios, _alinána_, é uma
larga aberta na mata. Dava passagem aos carros que, das fazendas da
margem direita do rio, se dirigião para a villa de Miranda.

Esse lugar fôra testemunha de uma das poucas scenas de resistencia no
longo periodo da occupação paraguaya e apresentava gloriosas mostras
d'aquelle feito de armas: varias arvores varadas por balas e cinco
ossadas humanas.

Em Maio de 186 , dezeseis indios terenas, occupados em fazer ahi
rapaduras, tinhão sido atacados por duzentos paraguayos, os quaes,
recebidos de dentro da mata por um fogo vivo e certeiro, em poucos
minutos forão obrigados á retirada, abandonando não só mortos como
feridos, que morrêrão ás mãos de seus encarniçados inimigos.

Cada vez que uma caravana india passa por junto d'esses restos,
levanta-se um clamor immenso: uns quebrão os ossos, outros insultão as
caveiras, cuspindo n'ellas e calcando-as aos pés; outros riem-se
estrepitosamente e dirigem motejos aos manes paraguayos.

Prohibimos demonstrações d'essa barbara expansão ao nosso sequito, que,
a custo, conservou-se calado, ao passar duas vezes por diante dos
alvejantes craneos, na entrada e sahida da mata: entretanto alguns
indios, descendo de seus bois, apanhárão uns ossos que levárão
escondidos.

O porto de D. Maria Domingas offerecia as melhores condições para uma
passagem de forças, estando a outra margem occupada pelo inimigo. Pouco
frequentado, afastado da estrada por onde os paraguayos presumião dever
descer a nossa gente, com váo seguro e commodo, com uma boa mataria para
protecção na transposição, era além d'isso o ponto onde convergião todos
os caminhos do districto e cuja posse cortava as communicações entre os
postos do Taquarussú e Souza, então existentes mais proximos do rio e
que deviamos primeiro atacar.

Ahi decidimos que se effectuaria a passagem e trabalhámos sempre n'esse
sentido, apezar dos estorvos que se levantárão contra essa escolha
razoavel e conveniente. Como, entretanto, não se realisárão as nossas
previsões e falhárão os nossos planos pela demora das forças brasileiras
e retirada dos paraguayos em Agosto, deixaremos de parte essas questões
que tinhão interesse immenso no momento e que o terião no futuro, se
houvessem surtido effeito as providencias, que n'aquelle sentido
tomámos.

As terras, que atravessámos, pertencião a D. Maria Domingas de Faria,
senhora estimada pelas suas excellentes qualidades e virtudes. As suas
posses importantes estèndião-se em toda a margem direita e esquerda do
Aquidauana e n'ellas estavão estabelecidos os seus parentes mais
chegados e filhos, entre os quaes temos o prazer de contar um amigo, o
sympathico fazendeiro--João Mamede Cordeiro de Faria.

Tangidos violentamente de suas propriedades pela invasão, havião todos
esses pacificos habitantes fugido de suas fazendas, indo, depois de mil
trabalhos e peripecias, se refugiar a 50 legoas d'ahi, junto ao rio
Taquary, a 7 legoas do lugar onde acampou a força no Coxim.

Sahindo do porto de D. Maria Domingas, fomos pousar no laranjal de
Francisco Dias, que estava então acoutado nos Morros, e, no dia
seguinte, chegámos ao porto do Pires, a uma legoa do entrincheiramento
paraguayo.

Ahi esperava-nos a maior contrariedade. Haviamos combinado com vinte e
tantos moradores dos Morros, para que nos fossem esperar n'aquelle
ponto, bem armados e com munição sufficiente para defesa, no caso de
sermos perturbados na ultima legoa, que restava fazer.

Apressáramos a viagem, com o fim de não nos tornar esperados; deixáramos
de parte muita curiosidade que examinar; haviamos desprezado o
entretenimento de pescas e caçadas em completa perda.

Verificando os nossos recursos, o municiamento e armas, achámo-nos com
18 pessoas mal armadas e municiadas só a um ou dous cartuxos.

Os indios revelavão receio latente: a cada instante ouvião toques de
caixa e cornetas, os quaes, entretanto, apezar de nossa boa audição,
nunca podémos perceber.

A cada instante nos avisavão que os paraguayos estavão em vigilancia
continua e que erão muito valentes. Accrescia ainda que, n'aquelle dia,
haviamos desconfiado da passagem de gente para a margem direita, por
causa de pontas de gado que parecião vir tangidas dos lados do porto do
Souza e que, por diversas vezes, havião passado diante de nós, n'uma
corrida tremenda.

Assim pois, perigos nos cercavão sem a protecção conveniente para os
casos de aperto: continuar, fôra temeridade improficua; proseguir, passo
inconsiderado.

Resolvemos por isso fazer-nos na volta dos Morros, cortando campo em
direcção a um dos picos da serra em que ficava a nossa pousada.

Assim, voltámos as costas ao sul, havendo préviamente lançado fogo á
campina que, abrasada pelo sol, incontinente despedio ao céo rolos de
negrejante fumaça.

Minutos depois apparecia, na margem de lá, outra fumaça, em signal de
aceitação de desafio, como usavão os paraguayos.

Desappareceu, porém, debaixo do formidavel aguaceiro que, por mais de
meia hora, despejárão as nuvens, protegendo a nossa retirada e impedindo
qualquer tentativa de perseguição.

N'esse mesmo dia (2 de Abril) chegámos ao nosso acampamento, onde
encontrámos os commodos que tanto consolo nos havião dado depois dos
dias penosos de nossa primeira viagem; ficando em nós, d'aquella
digressão ás bellas margens do Aquidauana, a immarcessivel recordação de
dias alegres e felizes.




CAPITULO XI


Depois de alguns dias de obrigatorio descanso, remettemos ao commando
das forças, acampadas então no rio Negro, os desenhos e relatorios de
nossa viagem ao Aquidauana, cuidando desde então nos meios de passagem
d'aquelle rio, a qual, segundo as communicações que recebiamos, devia se
effectuar em meiados de Junho.

Esperámos comtudo desde Abril até principios de Julho. As mil
difficuldades que embaraçárão a marcha das forças, a peste, a fome que
acommettêrão os nossos infelizes soldados, o fallecimento de officiaes e
afinal do commandante o bravo general Galvão, erão as causas d'essa
demora desesperadora que, retendo a expedição em mortiferos paúes, ia,
mezes depois, produzir a medonha enfermidade,--a paralysia reflexa--,
adquirida n'aquelle periodo fatal.

Não assistimos ás scenas desoladoras do rio Negro; não presenciámos os
duros trances em que se vio a columna: haviamos, de antecedencia, pago
pesado tributo, com quinhão consideravel de soffrimentos.

Á nossa penna, além d'isso, faltão a precisa energia, as côres vivas
para descrever tão extremas necessidades, a força e enthusiasmo para
traçar a abnegação, o heroismo e resignação que, n'aquelles momentos
tormentosos, patenteou o nobre soldado brasileiro.

       *       *       *       *       *

Durante a estada prolongada, que tivemos nos morros, procurámos estudar
a sociedade que existíra no Baixo-Paraguay, analysar a indole dos
indios, o elemento mais numeroso n'elle, investigar o gráo de
civilisação em que se achão e os resultados da convivencia com os
brancos.

Nunca se apresentará occasião tão favoravel para um espirito indagador.
As grandes provanças descarnão os homens.

No soffrimento e na desgraça, o caracter bondadoso se requinta; o máu se
exaspera e se _irrita_; as paixões nobres ou baixas apparecem então ao
descoberto da mascara que as convenções e conveniencias da sociedade
apresentão aos olhos incautos.

Tinhão se dado as scenas angustiosas da invasão.

O organismo social desarranjado, acabára com as formalidades que, a bem
da moralidade, se costumão respeitar: a hypocrisia fugíra ao longe; a
falsa amizade desapparecêra.

Nos dias lugubres da fugida ante os paraguayos os verdadeiros amigos
forão raros: apresentárão-se rasgos de nobreza de caracter em quem tal
não era de esperar e amesquinhárão-se aquelles com quem se contava.

Nunca o egoismo desenvolveu-se em tão larga escala.

Alguns atopetárão as suas canôas[75] com os objectos mais inuteis,
trazendo de Miranda até garrafas vasias, ao passo que negavão passagem
aos seus affeiçoados da vespera, pretextando falta de espaço.

Outros prohibião a matança de seu gado a pobres refugiados,
maltratando-os por cartas, que declaravão ser-lhes preferivel o roubo
dos paraguayos.

Do conflicto d'esses sentimentos resultárão collisões, cuja lembrança
não deve occupar a attenção d'aquelles que aprecião o homem como typo de
nobreza, e sujeitão ás suas virtudes moraes, a ordem physica das cousas,
brutal e necessaria.

O valor absoluto das idéas do utopista é tão precioso que, ainda com
prejuizo da indispensavel necessidade do conhecimento dos homens,
devemos desviar os olhos das lições d'aquella perigosa experiencia:
bastão os desgostos no correr da vida normal, bastão os desenganos na
sociedade polida, no mundo civilisado, em seus eixos, em seu curso
natural.




CAPITULO XII

OS INDIOS DO DISTRICTO DE MIRANDA


Em dous importantes grupos se divide a raça india, habitante de Miranda:
os _guaycurús_ e os _chanés_. Os primeiros comprehendem tres tribus: a
_guaycurú_, propriamente dita, que vai desapparecendo pelo contacto
immediato com a gente branca, os _cadiuéos_ que, pelo contrario,
conservão-se no estado quasi selvatico, em terrenos proximos aos rios
Paraguay e Nabilek, ainda não bem explorados, e os _beaquiéos_ que
habitão com os cadiuéos[76].

Os _chanés_ subdividem-se em quatro ramificações: os _terenas_, que
constituem os tres quintos da população aborigene, os _laianas_, os
_quiniquináos_ e os _guanás_ ou _chooronós_, de entre todos, os mais
doceis e civilisados.

A lingua é a mesma para todos estes, com algumas alterações que
entretanto não lhes impedem a facil comprehensão reciproca. Os costumes
e praticas geraes: o seu typo, porém, conservando um _facies_ bem
determinado offerece distincções que assignalão caracteristicamente cada
uma d'estas tribus.

O _terena_ é agil e activo: o seu parecer exprime mobilidade; a sua
intelligencia é astuciosa e com propensão ao mal. Aceita com
difficuldade as nossas idéas e conserva arreigados os seus usos
especiaes, talvez por espirito mais firme de liberdade. O homem é
robusto, corpulento, de boa estatura; o seu semblante apresenta o nariz
um tanto achatado na base; as sobrancelhas pouco obliquas, em alguns
individuos bastas e desenhadas com regularidade; ás vezes é pugibarba,
outras tem buço e barbas bem apparentes. A desconfiança transluz nos
seus olhares inquietos, vivos; a dobrez nos seus gestos. Escondem com
gosto os sentimentos que os agitão; fallão com volubilidade, usando do
seu idioma sempre que podem, e indicando o aborrecimento em se
expressarem em portuguez.

As mulheres são de estatura baixa: tem a cara larga, beiços finos,
cabellos grossos e compridos. Ás vezes, o seu typo tem um cunho de
amenidade que admira, grande regularidade nas feições e expressão de
intelligencia. Trazem commummente parte do busto descoberto e uma
julata[77] de algodão cingido abaixo dos seios, com uma das pontas
passada entre as coxas e segura na cintura. Raras mulheres sabem fallar
o portuguez: todas porém o comprehendem bem, apezar de fingirem não
entendel-o. São as mais laboriosas e industriosas da raça india,
guardada a relação necessaria entre a actividade e indolencia proprias
das nações indias.

O _laiana_ é um typo de transição: tem muito melhores instinctos, menos
aversão aos brancos, de cuja lingua se servem sem repugnancia, pelo
contrario, com gosto e facilidade. O homem é mais delgado que o terena,
menos inquieto; a physionomia com tudo é muito menos viva e
intelligente. Os seus habitos de trabalho são mais aproveitaveis, porém
menos constantes e esforçados.

As mulheres geralmente são feias: tem os olhos commummente apertados, a
côr dubia: não é o avermelhado franco do corpo da terena nem o amarello,
algum tanto macilento, da quiniquináo. Entretanto, como em quasi todas
as indias chanés, o talho do corpo é elegante e esbelto, as mãos e pés
pequenos e delicados.

O typo _quiniquináo_ é já mui diverso dos dous precedentes: o homem traz
estampadas no rosto a apathia e placidez: as feições, sem animação, são
regulares e proximamente bellas. A sua força de trabalho é muito
diminuta: elle passa os dias, deitado sobre um couro pellado, sem
saudades do passado, nem receios do futuro; cultiva, com grande custo,
alguns cereaes que a familia come na proporção da colheita; se
abundante, muito; tudo em poucos dias; se nenhuma, passará a côcos e
fructas[78] do mato.

A mulher quiniquináo é bella: pela mistura de raças, facil n'essa tribu
mais relacionada com os brancos e negros e encostada a elles, a côr ou é
de um amarello escuro de canella (caburé) ou de um branco ligeiramente
amarellado. N'este caso, as faces são delicadamente rosadas; a tez pura,
os labios rubros, as gengivas vermelhas. Quasi todas comprehendem o
portuguez: fazem esforços para fallal-o, apezar do vexame que mostrão
experimentar.

O _guaná_, no districto, quasi tem desapparecido nas raças branca, india
ou negra, que o cercão. Vimos porém uma india, chamada Antonia, filha de
pae quiniquináo e mãe guaná, que, sobre ser um verdadeiro typo de
belleza pela venustade do rosto, pelo delicado da epiderme e elegancia
do corpo, tinha summa graciosidade e donaire.

Os _guaycurús_, homens em extremo vigorosos, tem as feições brutaes e
grosseiras; estatura maior que meiã, avantajada, ás vezes, por modo
estranhavel.

O capitão Lapagates, chefe de uma aldêa de cadiuéos, o qual vimos no
Tabôco, era um varão imponente, com rosto expressivo e olhar
intelligente; tinha no trato uma amenidade bondadosa que muito
caracterisava aquelle heróe do forte--Olympo.

É geral a todos os indios aguçarem os dentes, formando pontas finas; é
tambem geral usarem de _urucú_[79] e _genipapo_, para pintarem no rosto
arabescos, figurando desenhos singulares ou para fingirem barbas e
bigodes.

Entre os cadiuéos, comtudo, é isto regalia peculiar ás mulheres e filhas
dos capitães: os mais pintão tão sómente ao redor da boca, o que lhes dá
aspecto curiosamente feroz.

Esses desenhos são, ás vezes, feitos com muita regularidade, ora
simplesmente com alguma tinta corante em vesperas de solemnidades, ora
marcados indelevelmente com uma ponta de agulha em brasa.

É tambem commum a todos os indios do districto[80] o habito da mais
apurada limpeza: lavão o corpo tres ou quatro vezes por dia; por
qualquer tempo que faça, calor ou frio. As mulheres cuidão muito na
alvura de seus pannos e procurão sempre andar limpas, exceptas as velhas
que dão, com o tempo, de mão a esses cuidados.

Os terenas, como acima dissemos, fórmão a maior parte da população india
do districto: as suas aldêas estavão situadas no _Naxedaxe_, a 6 legoas
da villa de Miranda; no _Ipêgue_, a 7-{1/2}; na _Cachoeirinha_, e n'um
lugar a 3 legoas, constituindo um aldeamento chamado _Grande_, além de
outros pequenos centros. Tres a quatro mil individuos moravão n'esses
diversos pontos.

Os quiniquináos aldeavão no _Euagaxigo_, a 7 legoas N. E. de Miranda; os
guanás no _Eponadigo_ e no _Lauiád_[81], em numero de 30 a 40; e os
laianas a meia legoa da villa.

Os guaycurús habitavão no _Lalima_ e perto de _Nioac_ e os indomitos e
falsos cadiuéos em _Amagalobida_ e _Nabilek_, para os lados do rio
Paraguay.

O aldeamento modelo no Baixo Paraguay era incontestavelmente o do
_Mato-Grande_ ou do _Bom-Successo_, perto de Albuquerque, onde os
quiniquináos, debaixo da paternal e intelligente direcção do
virtuosissimo missionario Frei Marianno de Bagnaia, apresentavão os
fructos valiosos da catechese bem entendida. Ahi os indios obrigados a
um trabalho regular, vivião na abundancia, entregavão-se a diversos
officios e aprendião as artes liberaes. Havia uma banda de musica, toda
composta de indigenas. Uma escola de primeiras letras funccionava com
numero crescido de alumnos estudiosos e n'ella se incutião os principios
de religião, de que tanto necessitão aquellas infelizes creaturas.

Uma tribu, que desappareceu do districto quasi totalmente, é a dos
_guaxís_, da qual se encontrão só alguns individuos, confundidos com
gente de outra nação. Esta extincção é devida ao habito
extraordinariamente immoral da morte dos fetos no ventre das mães, as
quaes produzem os vómitos, usando de hervas e raizes apropriadas. Os
laianas vão tambem pouco a pouco se extinguindo e, apezar do contacto
continuo com os mirandenses, iguaes factos se dão entre quiniquináos e
terenas.

Entre os indios acima mencionados, apparecem alguns _caiuás_. Habitantes
do norte da republica do Paraguay, nas cabeceiras do rio Aquidaván, são
prisioneiros de guerra nas correrias que os cadiuéos costumavão fazer
nas terras d'aquella republica. Para esse fim sahião do Nabilek,
passavão os campos da Pedra de Cal[82] e, costeando a serra de Dourados,
ião ter ás aguas do Iguatemy, contravertente do Aquidaván.

Os caiuás erão vendidos depois e passavão, de mão em mão, na qualidade
de captivos, aos quaes chamão _captiveiros_.

A escravidão é a mais doce possivel. O _captiveiro_ faz parte da
familia, come com ella, é tratado como filho da casa; tem até regalias
especiaes. A senhora irá buscar agua á fonte e lavar a roupa que
pertença ao seu escravo e nunca o obrigará a estes serviços. Entretanto
os captivos são vendidos com summa facilidade e por qualquer ninharia,
apezar da longa convivencia que os unão ao senhor.

Os indios do districto vivem na maior ignorancia e indifferença em
materia de religião. A catechese acha-se muito atrazada e tem sido mal
dirigida. Poucos quiniquináos conhecem a significação da Cruz e sómente
alguns guanás usão de nossas preces.

O mais existe nas maiores trévas: entretanto elles tem na lingua uma
palavra para exprimirem Deos, a quem chamão _Nhande-iára_[83].

Cada tribu tem porém um certo numero de _padres_ cantores, os quaes
servem ao mesmo tempo de medicos e feiticeiros: são destinados desde a
infancia ao sacerdocio e ainda crianças aprendem as poucas cantigas que
lhes são particulares. Homens e mulheres servem indistinctamente: nenhum
signal os distingue: nenhum respeito os rodêa.

O mais absurdo fetichismo pareceu-nos ser a religião dos padres: por
qualquer motivo, colheitas, chuva continua, sol ardente, _pendoar_ do
milho, etc., cantarão noites inteiras, denunciando presagios e
conversando com a ave _macauán_, que elles fingem chamar de longe,
imitando o cantar tristonho.

Este passaro é pois para elles um ente sagrado. Entretanto os outros
indios matão o macauán[84] com tão pouca reverencia, que indica o pouco
caso que d'elle fazem. Temos por sem duvida que os proprios padres, em
occasião opportuna, saboreem a carne d'aquella ave, dando de mão aos
principios religiosos e ao encargo de consciencia.

Ás vezes, no meio de suas praticas, o padre faz grosseiros exercicios de
prestidigitação: finge engolir pennas compridas, tira-as do nariz,
introduz flechas no estomago, etc., etc.; entretanto os seus admiradores
são quasi sempre crianças e velhas; os homens passão por diante d'elle,
lançando olhares do mais completo indifferentismo, quiçá incredulidade.

O _padre_, para suas vigilias, veste-se com uma _julata_, ornada de
lentejóulas e presa á cintura por uma especie de talim de contas; pinta
o thorax, braços e cara com genipapo e urucú. Estende um couro diante de
sua porta e n'elle caminha, lenta e compassadamente, avançando e
recuando, a cantar, ora estrondosamente, ora em voz baixa e monotona,
com acompanhamento de um chocalho, que elle segura na mão direita. Na
esquerda empunha um espanador feito de pennas de ema e bordado com
desenhos caprichosos.

Uma familia inteira póde ser de padres: assim pae, mãe e filhos cantão
juntamente noites inteiras, cada um no seu couro, com seu espanador,
cabaça e mais adornos; as mulheres, como os homens, trazem a parte
superior do corpo núa e pintada.

O canto de madrugada soffre uma parada longa: de repente sôa muito ao
longe o grito do _macauán_: responde-lhe o padre; vem-se approximando o
passaro com pios cada vez mais proximos, e, afinal, começão as suas
revelações ao sacerdote. Essa scena não deixa de impressionar, pois a
imitação do cantar do macauán ao longe e successivamente mais e mais
perto, é feita com toda a perfeição.

O padre, como medico, é da mais crassa ignorancia; não usa das plantas
medicinaes que o rodêão e cujas propriedades medicamentosas parece
desconhecer completamente. Elle aparta tão sómente o doente do contacto
com os outros, apalpa-o diversas vezes, sopra no lugar enfermo[85] e
canta frequentemente, consultando o macauán. É a verdadeira medicina
expectante, com formulas charlatanicas proprias da intelligencia do
facultativo e do medicando.

Quando o doente fallece, o medico jacta-se de tel-o deixado morrer por
gosto[86]; nos casos de cura, recebe presentes e por muitos dias é ainda
sustentado pela familia do convalescente[87], a qual tem esta obrigação
durante toda a molestia.

Quando morre um individuo, a aldêa toda entra em alvoroto. A casa do
morto é invadida, e n'ella levantão-se gemidos e gritos agudissimos,
soltos pelo mulherio e crianças[88]. Ora, é um barulho ingente dominado
pelo soluçar estrepitoso do parente mais proximo; ora, é um murmurio
confuso que dura alguns minutos, recomeçando aquellas lamentações, que
se ouvem muito longe.

O corpo fica em casa duas ou tres horas sómente: é logo amarrado em uma
rede enfiada n'um varapáo, que vai carregado por dous parentes. O
enterro dirige-se para o cemiterio, acompanhado por todas as pessoas das
casas por defronte das quaes vai passando; a grita se ergue assim cada
vez mais intensa: todos lamentão-se, todos urrão.

No acto de entregar o cadaver á terra, junto á cova matão-se os animaes
mais queridos do morto, ao qual enterrão com todos os objectos, que mais
affeiçoára. Se, n'esse acto, se apresenta alguem pedindo qualquer animal
ou objecto, obtem-o logo sem difficuldade nem paga, ficando desde ahi
propriedade d'elle.

Os parentes cedem por esse modo rezes, manadas de egoas, etc., etc.,
procurando desfazer-se de tudo quanto pertencêra ao defunto.

De volta do cemiterio, o rancho é abandonado: toda a familia muda-se:
entretanto, durante muito tempo, conserva-se, na palhada desoccupada,
agoa, fogo e cigarros, para que a alma do morto beba, se aqueça e fume.

Eis a idéa que manifestão da immortalidade da alma.

Quando é uma mulher que morre, de volta do enterro, quebrão-se todos os
potes, pratos, etc. O rancho tambem é completamente desmanchado.

Os signaes porque os chanés manifestão a sua dôr, são extremamente
ruidosos. O seu lamentar é em altos gritos.

Mezes depois do fallecimento de um parente, qualquer recordação[89]
provoca scenas de dôr estrepitosa, que é logo acompanhada por todas as
velhas da aldêa: assim, o aspecto de um animal que se pareça com um,
outr'ora affeiçoado do defunto, o apparecimento da lua, a vista de uma
roupagem, são causas de explosão de gritos, que durão muitas horas.

O luto consiste--nas mulheres--em tirar os seus adornos de prata e
ouro[90], brincos e collares, e cortar os cabellos na altura das
faces:--nos homens--em usar de roupas escuras, sem distinctivos nem
enfeites.

A duração do luto varía conforme o gráo de parentesco: o de filho obriga
a um anno; de pae e mãe a muito menos tempo.

Perto de nosso rancho de palha, nos Morros, habitava uma pobre india
velha que lamentava, noute e dia, da morte de seu filho unico, agarrado
pelos paraguayos em fins de 1865 e morto por elles a lançadas. O seu
soluçar mostrava a dôr profunda em que jazia, entretanto seus olhos erão
seccos e nenhuma lagrima se deslisava pelas rugosas faces. Os indios
chorão com muita difficuldade. Ora ella enumerava, n'um cantar monotono,
as virtudes de seu filho; ora pedia á lua que recebesse a alma d'elle;
ora rogava ao sol que aquecesse o lugar em que fôra alanceado.

Era essa infeliz mulher um typo de dôr materna: estava magra como um
esqueleto e vivia n'uma agitação constante.

Quasi sempre aquellas manifestações são indifferentemente patenteadas,
quer pelo fallecimento de um homem ou uma mulher, quer pelo de uma
criança de peito: em todos os casos, é o mesmo ulular; identicas as
ceremonias.

A affeição que as mães demonstrão pelos filhos, que um pae tributa á
familia, a amizade que une os irmãos, são edificantes, os extremos
tocantes.

Assim os paes servirão com toda a dedicação a seus filhos, que lhes
obedecem cegamente. Isto em cada grupo, em cada circulo. Não notámos
particular respeito aos velhos, deferencia á velhice, como acontece aos
indios da America do norte, de cujos costumes, um tanto poetisados, fez
Chateaubriant assumpto de um poema.

D'essa submissão resulta a verdadeira venda que se executa entre o pae
de uma mulher nubil e qualquer homem que a queira para companheira ou
para mero passatempo: a filha sujeitar-se-ha á imposição paterna,
aceitando sem murmurar o esposo, que lhe apresentem ou despresando
aquelle, cuja separação aconselharem.

As mulheres amamentão as crianças por tempo indeterminado: vimos
rapagotes de seis a sete annos, que vinhão correndo suspender-se aos
seios de suas complacentes mães.

Esta pratica faz com que, depois que parem, fiquem as mulheres
completamente estragadas: os seus seios, com a prolongada pressão,
pendem ao longo do corpo, o qual tambem, pelo habito de carregarem as
crianças cavalgando n'um dos quadris, fica arqueado e desengraçado.

O casamento é ceremonia pouco usual: os meios de contrahirem-se nupcias
são presentes e dinheiro, fonte d'onde dimana a mais horrorosa
immoralidade, visto que a ganancia dos paes simplifica todos os
preliminares, que, sem dúvida, erão primitivamente exigidos.

Por dinheiro obtem-se mulher: quer indio, quer branco ou negro, tem
necessidade de sujeitar-se ás condições dos paes, os quaes tambem
aconselhão ás suas filhas a liberdade a mais completa em materia de
fidelidade.

O genio dos indios do districto, em que o ciume é sentimento quasi
desconhecido, concorre para desenvolvimento da mais reprovavel
devassidão de costumes, augmentada pela indole dos habitantes de
Miranda, como adiante mostraremos na parte em que tratarmos das relações
entre as duas raças.

No casamento mais regular e muito mais raro, o noivo escolhe a sua
esposa, quando ainda ella é criança: trata d'ella, dá-lhe roupa,
concorre para a alimentação dos paes dos quaes é considerado filho e
recebe tal tratamento.

Aos 10 annos, mal apontão os peitos, ainda não nubil, é a noiva entregue
ao seu marido e enrolada com elle n'uma esteira, ao redor da qual os
convidados danção, cantando, bebendo aguardente e comendo os presentes
que são a parte mais importante do casamento.

Esse habito de entregarem meninas a homens é geral: d'elle tirão os
progenitores maior lucro, dimanado da luxuria em seus desmandos brutaes,
pois essas infelizes crianças são procuradas e obtem quasi sempre altos
preços. É o effeito de idéas desmoralisadoras e nojentas.

Os indios, que são modelos de affeição pelos filhos, que os tratão com
amizade extremosa, nenhum mal enxergão n'esses estupros, de que as
victimas vem impreterivelmente a soffrer em seu organismo e
desenvolvimento.

As mulheres envelhecem com extrema rapidez: aos 14 annos estão na sua
maior expansão corporea, aos 20 começão a desmerecer, e aos 30 são
velhas (_memés_), cuja decrepidez não se faz esperada.

Para sobrestar essa marcha infallivel e temida, procurarão ellas sempre
provocar os móvitos, para o que usão, por conselhos de suas proprias
mães e velhas da aldêa, de hervas[91], e sobretudo choques e apertos no
ventre. Assim rara é a india, que tenha tres filhos; quasi sempre um ou
dous, concebidos na idade em que a faceirice não é de uso.

Nos Morros, havia uma quiniquináo que, com dezesete annos, abortára já
seis vezes.

No ultimo parto o feto, completamente desenvolvido, havia sido, na
sahida do utero, estrangulado pela propria avó, a qual, desde muito,
declarára que só perdoaria, se a criança fosse do sexo masculino.

Tambem era uma familia de padres, em que todos os componentes pae, mãe,
filhos e filhas, cantavão de continuo, nos atordoando os ouvidos e
perturbando as doces horas do somno. Além d'isso muito se distinguião no
brutal brinquedo chamado _tadik_.

É esse jogo um exercicio a sôcos, á maneira do _box_ inglez[92]. Para
elle enfileirão-se rapazes, mulheres e crianças uns defronte dos outros,
procurando, com o punho fechado, offender a cara do adversario, dando
pancadas sómente até o queixo. Muitas vezes, furão-se os olhos, quebrão
o nariz e com o esforço chegão a desarticular o polegar.

Assistimos ao _tadik_ entre quiniquináos e terenas e, ao prazer do jogo,
união-se sentimentos de grande rivalidade. Entretanto os velhos
separavão logo os contendores, quando estes mostravão animosidade
excessiva. Os dous partidos, havião tomado os nomes de _luzia_ e
_saquarema_, repercussão longinqua das lutas politicas do Brasil!
Où-est-ce que la politique s'était nichée?!....

Acabou a festança, bebendo-se _garapa_ fermentada, que substituia a
aguardente.

       *       *       *       *       *

Cada aldêa tem o seu chefe ou capitão, nomeado, ou pelo governo imperial
ou pelo respectivo director ou pelo consenso de sua gente. O respeito
que elles merecem, é pouco extenso: a subordinação aos chefes é muito
limitada; muitas vezes é um mero titulo sem distincção nem regalias.

Quanto mais civilisados, tanto menos consideração os indios tem pelos
seus capitães. Os guanás não aceitão mais chefe especial. Os
quiniquináos pouco caso fazem do seu velho capitão Flaviano Botelho. Os
laianas sujeitão-se mais; emfim os terenas observão tal ou qual
deferencia, respeitando mais os seus cabeças de tribu.

Quando viajavamos na margem direita do rio Aquidauana, observavamos as
relações que existem entre a civilisação e os filhos das matas.

Em nossos pousos, representavamos (guardadas as proporções e salva a
modestia) o centro civilisado: a poucos passos, com a nossa camaradagem,
pousavão alguns guanás, mais adiante ficavão os quiniquináos, os quaes,
de quando em quando, vinhão misturar-se com a nossa gente; n'um raio
duplo, do nosso ponto ao dos quiniquináos, reunião-se os laianas e,
afinal, a boa distancia, congregavão-se os terenas.

As relações reciprocas entre esses indios erão de cordialidade algum
tanto duvidosa; os terenas são accusados pelos guanás e quiniquináos de
máos e inimigos dos brancos e elles accusão aos outros de serem falsos e
escravos dos portuguezes[93].

       *       *       *       *       *

As raças que habitão o districto, partírão evidentemente da margem
direita do rio Paraguay, do lugar onde hoje existe a nação enima, de que
ellas são naturalmente ramificação. As provas parecem-nos claras e
irrecusaveis.

Além da tendencia manifesta que os terenas tem para fugirem para as
bandas do Chaco boliviano a reunirem-se com outros da mesma tribu que
vivem com os enimas, na lingua existem palavras que demonstrão que a
presença dos guanás[94] no districto foi devida a uma grande immigração.

Assim usão frequentemente do termo _maiána_, que quer dizer semelhante,
quando referem, a objectos familiares, outros que lhes erão estranhos,
por associação natural de idéas.

Chamão pois ao bority--maiana hérena, á semelhança do _carandá_; á
anta--maiana camú, semelhante ao cavallo, etc., o que presuppõe o
conhecimento do carandá e cavallo, anterior ao do bority e anta.

Ora, os boritys existem em grande quantidade em todo o districto, assim
como as antas, e, do outro lado do rio Paraguay não se os conhecem,
sendo pelo contrario extremamente communs os carandás e cavallos.

A conclusão é facil e vem em soccorro do que procuramos sustentar.

A lingua guaná, de formação muito irregular, provém evidentemente do
guarany: ha n'ella palavras identicas, iguaes; exemplo: iuquí, _sal_;
moreví, _anta_;--segundo os laianas: buricá, (guarany) muricá, (guaná)
_burro_.

A sua derivação do idioma guaycurú é clara; não só alguns vocabulos
servem para as duas nações; exemplo _catépaga_, pacú; _achuánaga_,
dourado; mas muitos são sensivelmente modificações, assim é o _aîca_
(guaycurú) e o _acó_ (guaná) que significão _não_.

Comtudo a indole totalmente diversa das duas nacionalidades, as suas
idéas, os seus habitos fizerão com que essas linguas soffressem
alteração profunda, quando falladas. A maneira do guaycurú expressar-se
é arrogante, pausada; as aspirações são energicas; as palavras,
terminando mais particularmente em _a_ e _o_ fechados, são quasi sempre
esdruxulas ou graves. Ha mais abundancia de consoantes e essas com som
dobrado e guttural.

O guaná falla rapidamente, com ligeiras aspirações; a sua linguagem é
uma especie de sibilar continuo: os _i_ repetem-se com frequencia e as
vogaes seguem-se umas ás outras, com quasi tanta profusão quanto, na
lingua allemã, as consoantes.

Na phrase do espirituoso escriptor francez Oscar Commettant «nas
palavras germanicas as vogaes se afogão n'um oceano de
consoantes:--Apparent rari nantes in gurgite vasto».

No guaná é a inversa, com mais moderação comtudo.

As modificações, que cada uma das tribus introduzio, com o tempo, na
lingua chané, constituírão quatro dialectos, os quaes entretanto são
facilmente comprehendidos pelos indios de toda aquella nação.

A tribu guaná[95] falla arrastando a lingua n'uma toada de chôro; cantão
á maneira do pronunciar em certas localidades de S. Paulo, apoiando
muito n'uma syllaba para correrem sobre as outras.

Os quiniquináos tem seus idiotismos especiaes: palavras proprias. Os
laianas tambem as tem.

Os terenas, segundo pareceu-nos, usão do idioma com mais justeza e
perfeição.

Os verbos, n'esse dialecto, são mais regularmente formados, apezar do
capricho que presidio em geral á sua conjugação, as analogias mais
frequentes, as phrases mais completas.

É por esta razão que os brancos do districto aprendem de preferencia a
maneira do fallar dos terenas, e os comprehendem com mais facilidade.

Na lingua guaycurú existe uma particularidade interessante: os homens
fallão por certo modo, as mulheres por outro. Entre os guanás esta
differença existe, porém não se estende a toda a phraseologia.




VOCABULARIO DA LINGUA GUANÁ OU CHANÉ


A


PORTUGUEZ                       GUANÁ

Abobora                         Camé.
Aborreço                        Bôópi.[96]
Acarus (bicho da sarna)         Tchetchá-uahatí (filho da sarna)
Adeos                           Biónne.
Agua                            Unné.
Agulha                          Tôpé.
Ai! (exclamação)                Vûi, ou acacái.
Aipim                           Tchupú.
Aipim (secco)                   Catchó.
Aldêa                           Ptiuôcó.
Alegre                          Elloketí.[97]
Amanhã                          [-A]rôti.
Amar                            Gâchá.
Anta                            Maiána-camú.[98]
Anus                            Cicicó.
Aonde vai?                      Náiênó?
Aprender                        Cequechivó.
Aracuan (passaro)               Uaragá.
Arára                           Parauá.[99]
Arroz                           Nacacú.
Arvore                          Tagatí.
Avental                         Juláta.


B

Bala                            Poití-akêtí.
Banana                          Bánana.
Barba                           Inguenôió.
Barriga                         Djurá.
Bebamos                         Venóutí.
Beber                           Venóuó.
Bebo                            Venóuondí.
Beijo (entre os guanás)         Innê.
Beijo (entre os terenas)        Inní.
Beijo (entre os quiniquináos)   Soquirí.
Bezerro                         Tchetchá-uacá.
Biuá branco (passaro)           Veragajín.
Biuá preto                      Veragaiê.
Boca                            Bahó.
Bocado                          Iapi-tchá.
Boi                             Uó-ôi.
Bom                             Unatí.
Bonito                          Unatí.
Borboleta                       Uacá-vacáí.
Bority                          Maiána hérena.
Braço                           Daké.
Bugio                           Coxêagá.


C

Cabaça                          Tóróró.
Cabeça                          Duúti.
Cahi                            Ingôrôcôóné.
Cahidor                         Icôróóconó.
Cahio                           Iricôóné.
Cahiste?                        Icôrôôcôóné?
Calça                           Bôoró.
Camisa                          Iembênó.
Campo                           Mehúm.
Canella                         Gô-tchó.
Cançado                         Meomí.
Cão                             Tamucú.
Capoeira                        Içomoikéneti.
Cara                            Nôné.
Carandá (palmeira)              Hêrena.
Casa                            Pêti.
Casar                           Ongôiêno.
Cascavel                        Ipôcó.
Cateitú                         Couécó.
Cavallo                         Camú.
Cachaça                         Cumâ-á.
Céo                             Uanukê.
Cerrado                         Chopotícoti.
Cervo                           Uá-iá-jó.
Chão                            Poké.
Chóro                           Inhondi.
Chover                          Ennucó.
Chumbo                          Aketí.
Chuva                           Ucó.
Cobra                           Coit-chôé.
Coitado                         Quixauó.
Colhér                          Tchurupé.
Come                            Niké.
Comer                           Ningá.
Comida                          Nicoconóti.
Comida (entre os quiniquináos)  Nicôningá.
Como                            Cutiá.
Conhecer                        Indjá.
Conheces?                       Ietchòá.
Copular                         Capiú.
Coração                         Ommindjòn (j espanhol).
Corpo                           Munhó.
Corrego                         Notoagá.
Corta (imperativo)              Tetucá.
Cortar                          Tetócoti.
Cortaste?                       Iatêtucôá.
Côxa                            Djuró-kunó.
Criança                         Calliuônó.
Cuia                            Pocó.
Custar                          Côicú.
Custar (entre os quiniquináos)  Ocôòcorí.


D

Dá-me                           Pêrétchá.
Dar                             Boritchá.
Dedo do pé                      Guiiri-djêvé.
Deita                           Imêcá.
De mim                          Nuti.
Dente                           Onué.
Deos                            Iandeará.
Deos                            Ech[-a]iuánukê.
Depois                          Poinú.
Depois d'amanhã                 Poinú-arôti.
De tarde                        Kiacátche.
Devéras                         Quâti.
Dia                             Cátche.
Diga                            Iocó-iucuá.
Digo                            Gôe.
Dinheiro                        Ararapeti.
Doente                          Carineti.
Dormes?                         Imé-coné?
Dormir                          Móngoti.
Dou                             Boritchá-pi.
Dourado (peixe)                 Achuánaga.
Dous                            Pïátcho.


E

Egoa                             Senó-camú.
Ema                              Kip[-a]é.
Espada[100]                      Ann[-a]iti-piritáo.
Espelho                          Nochiògueti (sc. olhador)
Espingarda                       Capuiá-igapêtí.
Espirrar                         Andiicotí.
Esposa                           Iêno.
Escravo                          Hangahá.
Está aqui                        Anníe.
Estás alegre?                    Ellóketi-iôcouó?
Está alegre                      Ellóketi-ôcouó.
Estou alegre                     Ellóketi-ongôuó.
Estás bom?                       Iúnati?
Estou bom                        Unnandí.
Estás cançado?                   Meomí?
Estou cançado                    Memondí.
Estás com fome?                  Epê-cati-cimágati?
Estou com fome                   Hapê-canú-cimágati.
Está no chão                     Annêgó poké.
Estrella                         Hêquêrê.
Eu                               Ondí.
Excrementos                      Ciquêé.


F

Faca                             Piritáu.
Fallo comtigo                    Iundz[-a]i-copí.
Farinha                          Tutup[-a]i.
Farinha (entre os terenas)       Ramucú.
Faze                             Itticá.
Fazer                            Ittuketí.
Febre                            Tchikiití.
Feio                             Cãunati (sc. não bonito).
Filho                            Tchétchá.
Fogo                             Iucú.
Fouce                            Tchápilócoti.
Frio                             Câssati.
Fumo                             Tchâhím.


G

Gallinha                         Tâpihí.
Gallo                            Oiênó-tapihí.
Garrafa                          Limetá.
Gato                             Maracaiá.[101]
Gordo                            Kínnati.
Gostar                           Gâchá-á.[102]
Gostas?                          Queachá?
Gostas de mim?                   Queachá-nuti.
Gosto                            Gâchá.
Gosto de ti                      Gâchá-piti.
Gostoso                          Uchetí.
Grande                           Annáiti.
Guaná (tribu)                    Uaná _ou_ Tchòuórô-ônô.
Guaycurú                         Uaicurú _ou_ Mãiápenó.


H

Historia                         Chêti.
Hoje                             Cohoihênné (os _h_ aspirados).
Homem                            Oiênó.
Hontem                           Tiipó.


I

Idioma (lingua)                  Nhumdzó.
Irmã (entre os terenas)          Haîlê.
Irmão (entre os terenas)         Lêlê.
Irmã mais velha                  Luké.
Irmã do meio                     Moguêtchá.
Irmã mais moça                   Atí _ou_ Anndí.
Isto                             Aará.


J

Jaburú (passaro)                 Côjó.
Jacú-tinga (passaro)             Maiána-uaragá.
Já foi embora                    Piônne.
Jaty (mel de abelha)             Tchulí-tchulí.
Já veio                          Annègò.
Jaú (peixe)                      Muiôti.
Joelho                           Buiú.


L

Lagarto                          Iunãi.
Laiána (indio)                   Láiana.[103]
Lambary (peixe)                  Chivôupè.
Lavar                            Angicãuotí.
Lavemo-nos                       Uachicapú.
Linguagem                        Iundzó.
Lingua                           Nahênê.
Lua                              Co-tchêé.


M

Machado                          Pôhóti.
Macho                            Oiênó-muricá.
Maduro                           Itóuónné.
Mãe                              Mêmê.[104]
Mãe                              Hennó.
Mais                             Poí.
Magro                            Uporití.
Mamma                            Iênné.
Mandary (mel)                    Rôoró.
Máo                              Cáunati.
Mão                              Uon-húm.
Marido                           Immá.
Matar                            Inzucôti.
Mato                             Uó-hi.
Mecher                           Ivirikê.
Meche (imperativo)               Ivirikêá.
Mel                              Mópó.
Melancia                         Andiá.
Menos                            Calliánna.
Mentira                          Ninicó.
Menstruo                         Ittiná.
Meu                              Induguê.
Milho                            Tuupí.
Miolo de palmeira                Namuculi.
Milho fôfo                       Sóbóró.
Muito (adverbio)                 Opôicoati.
Muito (adjectivo)                Tapuiá.
Muito bom                        Unati-âtcho.
Muito gostoso                    Uchêti-âtcho.
Mula                             Senó-muricá.
Mulher                           Senó.
Mutum                            Maiána-uatutú.


N

Nadar                            Alaongôati.
Não                              Acó.
Não custa                        Acó-cõicú.
Não custa (entre os
  quiniquináos)                  Acó-ocô-ocorí.
Não quero                        Acon-gâchá.
Nascer                           Ipuchicá.
Nariz                            Guiirí.
Negro                            Hahóóti.
Ninho                            Nôcó.
Nós                              Uutí.
Nosso                            Utiguê.
Noute                            Ihotí.[105]
Nuvem                            Capací.[106]


O

Olhos                            Unguê ou uké.
Onça                             Sêni.
Orelha                           Inguênó.


P

Padre                            Côchômònetí.
Pae                              Tatá.
Palmito                          Momoôn.
Papagaio                         Coêrú.
Panella                          Tchôrôné.
Parente                          Inhénó.
Parente                          Iningôné.
Passaro                          Chohopennó.
Passeiar                         Iapacicá.
Pato                             Pohahí.
Pé                               Djèvé.
Pega isto                        Oiá-aará.
Peito                            Djahá.
Peixe                            Chojé.[107]
Pensar                           Iquichá.
Perdiz                           Itidichú.
Perna                            Gônú.
Pescoço                          Annúm.
Penis                            Kiú.
Pennas                           Kipahí.
Pimenta                          Têité.
Pinto                            Tchétcha-tapihi.
Piolho                           Aná.
Pirapitanga (peixe)              Araraitti-issí.[108]
Piriquito                        Tchulí-tchulí.
Polvora                          Poití.
Porco                            Gôré.
Porco do mato                    Kimão.
Prato                            Uutá.
Preguiçoso                       Tchuléketi.
Prompto                          Oçoné.
Pulga                            Anatamacú.[109]


Q

Quando                           Namanó.
Quatí (animal)                   Còtéchú.
Quebrar                          Heocoti.
Queixo                           Nónhí.
Quem sabe?                       Emó?
Qente                            Cótotí.
Quero                            Gâchá.
Queres?                          Queachá?
Queria                           Gácha-niní.
Quiniquináo                      Koinu-kunó.[110]


R

Rapaz                            Omoheháu.
Rede                             Toití.
Regrada                          Ittiná.
Remar                            Ivirikê.
Rio                              Uêhó.


S

Saber                            Indjá.
Sabes?                           Iétchoa.
Sangue                           Iti.
Sapo                             Tôrumó.
Sarna                            Uahatí.
Saudades                         Inanguòró.
Seu                              Iutí ou iú.
Sentar-se                        Iavapoquehí.
Seriema (ave)                    Uatutú.
Siga (imperativo)                Tchicá.
Sobrancelha                      Indjêukê.
Sol                              Cátche.
Soldado                          Andâru.
Sombra                           Epêuôgôpê.
Sonhar                           Chapuchatí.
Sonhas?                          Chaputchôné.
Sonho                            Indja-putchatí.
Sovaco                           Umbêkêcu.
Sucury                           Oiênaga.
Suruby (peixe)                   Apópaga.[111]
Sua                              Itiguê.


T

Tatú                             Copohé.
Taquara                          Hetágati.
Temos                            Hape-utí.
Temer                            Bicuátine.
Tens?                            Iapê?
Ter                              Hapê.
Teréna                           Térena.[112]
Terra                            Marihípa.
Testa                            Inucú.
Tolo                             Ietôré.
Tomar                            Mambatí. Namacá.
Touro                            Tôôró.
Trazer                           Iamané.
Tres                             Mopoá.
Trovão                           Unobotí.
Tu                               Iti.


U

Um                               Poichácho.
Umbigo                           Unró.
Unha                             Djiipó.
Urubú                            Uarututú.


V

Vá                               Pehehévo.
Vamos comer                      Nicotiúti.
Vamo-nos embora                  Peháoti.[113]
Vamo-nos lavar                   Uachicapú.
Vás buscar?                      Viapána?
Veado                            Tiipé.
Veio (do v. vir) entre os
  quiniquináos                   Simêné.
Vem cá                           Iôcó.
Vento                            Onauotí.
Verde                            Aõitapú.
Via lactea                       Chamôcôé.
Vim (entre os quiniquináos)      Simôné.
Vim (para ficar)                 Intzioponné.
Vim (para voltar)                Indzimonné.
Você                             Ití.
Vou buscar                       Veaponotí.
Vou-me embora                    Bohoponé.
Vulva                            Iusí.

       *       *       *       *       *

No incendio e saque de Nioac, a 2 de Junho de 1867, perdemos um
diccionario guaná com perto de dous mil vocabulos. Nos papeis que
encontrámos esparsos pelo campo e podémos ajuntar, achavão-se algumas
folhas com as palavras, ainda não em ordem alphabetica, d'este
incompleto vocabulario.


       *       *       *       *       *


*Algumas indicações*

Os pronomes possessivos isolados são:


Induguê                          Meu
Itiguê                           Teu
Iuti ou iú.                      Seu
Utiguê                           Nosso


Entretanto são quasi sempre contrahidos nas palavras, como por exemplo:


_Possessivos da 1^a pessoa_     _Possessivos da 2^a pessoa_

Minha cabeça      Duutí.        Tua cabeça      Totihé.
Minha testa       Inucú.        Tua testa       Inicú.
Meu nariz         Guiirí.       Teu nariz       Quiirí.
Minha boca        Bahó.         Tua boca        Pehahó.
Meu dente         Onué.         Teu dente       Iahoé.
Meu queixo        Nónhí.        Teu queixo      Neôió.
Meus olhos        Ungê.         Teus olhos      Iuukê.
Minha orelha      Inguênó.      Tua orelha      Keinó.[114]
Meu corpo         Munhó.        Teu corpo       Muió.
Meu pescoço       Anúm.         Teu pescoço     Ianúm.
Meu braço         Daké.         Teu braço       Tiakí.
Meu peito         Djahá.        Teu peito       Tchiní.
Minha mão         Uonhúm.       Tua mão         Veaú.
Minha barriga     Djurá.        Tua barriga     Iurá.
Minha côxa        Djuró-cunó    Tua côxa        Chiró-cunó.
Minha canella     Gôtchó.       Tua canella     Guetchá.
Minha casa        Imbenó.       Tua casa        Pinó.
Meu pé            Djêvê.        Teu pé          Hiné.
Meu dedo do pé    Quiri-djêvê.  Teu dedo do pé  Kiriúêvê.
Meu filho         Indjétchá.    Teu filho       Tchi-tchá.
Nossa casa        Vuóvogú.


Os possessivos da terceira pessoa são quasi sempre formados com os
pronomes _iú_.

       *       *       *       *       *

Os adjectivos numeraes vão só até tres:


Um                               Poichâcho.[115]
Dous                             Piátcho.
Tres                             Mopoá.


Os indios continuão presentemente[116] com as palavras portuguezas,
algum tanto adulteradas:


Quatro                           Uátro.
Cinco                            Cinquê.
Seis                             Siês.
Sete                             Siéte.
Oito                             Otcho.
Nove                             Nôie.
Dez                              Iéce, etc.


       *       *       *       *       *

Os pronomes pessoaes são os seguintes:


Ondí  eu.    Ití  tu.    Uutí  nós.   Nôê  elles.
             Nutí  de mim.   Ni  de ti.


Com os verbos emprega-se a particula _pi_ em lugar de _ondi_. Esses
pronomes vão sempre depois do verbo.

       *       *       *       *       *

A conjugação dos verbos é irregularissima e difficil senão impossivel.
São sempre defectivos.


PRESENTE DO INDICATIVO DO VERBO TER (HAPÉ)


Eu tenho                         Hapê ondí.
Tu tens                          Iapê.
Elle tem                         Hapê.
Nós temos                        Hapé utí.
Elles tem                        Hapé noé.


Para a formação do imperfeito accrescentão _nini_.


Inindjoa, nini ondi              Eu tinha.
Innitchiécô                      Tu tinhas, etc.


Outro exemplo:


Eu quero                         Gâcha pi
Tu queres                        Queachá.
Elle quer                        Gachá.
Nós queremos                     Gachá uti.
Elles querem                     Gachá nôê.


IMPERFEITO


Eu queria                        Gachá nini ondi.
Tu querias                       Queachá nini.


Nunca pude organisar a conjugação de outros tempos.[117]


Phrases e exemplos


Sonho comtigo?                        Chaputchononetí (sc. penso na tua cara).

Tenho saudades de ti                  Inangoró gopi ni (sc. saudades eu _pi_,
                                        de ti _ni_).

Dá-me noticias                        Iticá chetí (sc. faze historia).

Nada sei                              Acó índja.

Não estás contente?                   Acó elloketí?

O que tens? Estás incommodado?        Cuti iapê? Calliána unatí?

Estou doente dos olhos                Carineti ukê (sc. doente olhos)

Desde muitos dias?                    Tápuiá cátche?

Desde ante hontem                     Poinú tiipó.

Coitada                               Quixauó.

Adeos                                 Biónne (Eu vou indo).

Adeos                                 Pehehêvo (Pois vá).


       *       *       *       *       *


Estás com fome?                       Epê cati cimagatí?

Sim                                   Aspiração guttural não exprimivel.

Senta-te e come. Toma arroz com       Iavapoquê, niké. Viá nacacú cuanê uacá.
  carne. Queres farinha?                Queachá ramucú?

Não, senhor: quero aipim e aboboras.  Acó, unãi: gachá tchupú iocó camé.

Traz facas e farinha.                 Iamané piritáu, cuané ramucú.

O seu jantar está muito bom. Sua      Unati niké. Cuáti êchotí itucôati
  mulher sabe cosinhar muito            nica ienô. Auó ningá onuongú
  bem: na minha casa nunca              cutiá ionogú.[118]
  comi assim.

Come mais então.                      Niké, igopó.

Não, obrigado. Agora quero agua       Acó mondóuané. Poiáne unné
  e vou-me embora                       gachá. Behopótine.

Quando has de vir?                    Namõ kenaacá.

Outro dia                             Poinu cátche.

Quem sabe se amanhã?                  Etchuáne coecú arôti.[119]

É facto                               Ennómone.


       *       *       *       *       *

_Pois_ e _porém_ vão sempre depois da primeira palavra, exemplo: pois
toma; _nemucá_ toma, _copó_ pois; porém come; _niké_ come _copoé_ porém.

Quando, _namanó_, vem sempre antes. Quando has de vir? _Namanó kinoôké_.




NOTAS


A

Já tivemos a occasião de dizel-o officialmente: a estada do Coxim foi um
lento martyrio, no qual todos extremárão em resignação e calma. A esse
respeito diziamos, depois de examinarmos as fontes de abastecimento que
poderião fornecer viveres ao acampamento do Coxim e reconhecermos a
impossibilidade em que se achavão de satisfazer tal compromisso:

«N'este estado desesperado a força achou-se a braços com a mais completa
mingoa. Reduzida a simples carne, por espaço de mais de mez, muitas
vezes faltou-lhe aquella alimentação exclusiva, que deu em resultado o
apparecimento de varias molestias. Os generos de primeira necessidade
chegárão a preços exorbitantes, aproveitando-se a ganancia e o espirito
de lucro abusivo, da desgraça, a que todos se vião reduzidos. Um
conjuncto, comtudo, de factos tão tristes fez mais realçar as virtudes
que imperão no soldado brasileiro, patenteando o seu caracter
eminentemente soffredor e resignado, a subordinação e disciplina, que
lhe são naturaes.

«Depois de dias, em que nada se distribuia, nenhuma queixa se erguia,
nenhuma exigencia se ouvia: todos se penetravão das difficuldades que
presidião a qualquer providencia que tomar, e calmos esperavão pelo que
lhes reservava a sorte. Não nos compete a apreciação dos factos que
derão em resultado esta ordem de cousas: consignamos simplesmente as
phases por que passou a expedição, nas quaes sempre presenciámos o
comportamento altamente recommendavel do pessoal que a compunha;
galhardo nas marchas e prompto para todos os trabalhos, supportando,
emfim, as maiores privações, a que póde ser sujeito o homem na guerra,
sobretudo nas condições difficeis, que proporcionão distancias immensas
e sertões inhospitos. Depois da mais penosa marcha por centenares de
legoas, rodeada de perigos e incommodos, na qual de continuo lutava-se
com circumstancias imprevistas, acompanhadas de innumeras afflicções,
veio a estada prolongada do Coxim pôr á prova a abnegação e o sentimento
intimo do dever, de que tantos exemplos brilhantes tem dado o
brasileiro, que enverga os distinctivos da vida de privações e de
soffrimentos». Relatorio geral da commissão de engenheiros nas forças em
operações ao sul da provincia de Mato-Grosso, 1866 pag. 48 (Annexo ao
relatorio do ministerio da guerra, 1867).

Quadro exacto da triste situação que apresentava a expedição de
Mato-Grosso, atirada a um canto da provincia, que vinha soccorrer,
reduzida á inacção por obstaculos invenciveis de um lado, do outro pelos
poucos meios, de que dispunha, para, sómente sobre si, emprehender a
offensiva. De nenhum consolo lhe servia o titulo pomposo, com que, a
pedido, a havião agraciado. _Forças_ lhe faltavão; _operações_ era uma
ironia cruel para um espirito philosophico e o sul da provincia de
Mato-Grosso é tão vasto, tão medonhamente erriçado de difficuldades,
sobretudo n'aquella época, quanto o erão os sinistros paúes da Germania
em que se abysmárão as bizarras legiões de Varo. Assim, pois, não nos
illudiamos sobre o presente; e o futuro, como derivação natural, não nos
abria horisontes de flôres.


B

Na viagem, que levámos, nunca podémos fazer senão estudos perfunctorios
d'aquillo que acompanha o caminho: da vegetação só vimos a fita que
segue o trilho, em mineraes, só o que se achava em seu percorrer. Por
isto não nos julgamos habilitados para avançar uma proposição fixa e com
força de regra; entretanto, certo cuidado na observação permitte termos
por certo um facies especial, que distinga, mais ou menos, os _cerrados_
de S. Paulo, Minas-Geraes, Goyaz e Mato-Grosso, que fomos atravessando.
Na primeira d'estas provincias pareceu-nos predominarem as _cassiaceas_
e _terebinthaceas_; na segunda, ao menos na nesga que atravessámos,
_myrtaceas_, na terceira, especialmente _malpighiaceas_ (murecys) até a
villa dos Aboboras, e, d'ahi por diante, de envolta com ellas, uma
_myrtacea_, a _cagaiteira_. Em Mato-Grosso, para os lados do Piquiry, a
quantidade de _guabirobas_ nos cerrados é prodigiosa, e, entre o Coxim e
o rio Negro, na zona em que nos achavamos, figurão com especialidade os
_araticús_ e _rollinias_. Em todos os _cerrados_, todas aquellas
familias se achão representadas, porém o que procuramos fazer notar, é o
predominio de uma d'ellas ou pelo menos o de um genero.

Debaixo do ponto de vista do desenvolvimento, em iguaes condições
apparentes, os mais vistosos são os de Mato-Grosso; os menos, os de S.
Paulo: ahi chega o aspecto d'elles a ser senão desolador, ao menos
contristador. Talvez lhe achemos a causa na maior frequencia de
queimadas de campos, que annualmente são feitas, na approximação das
chuvas.

Os terrenos arenosos apresentão os mesmos typos botanicos; entretanto,
mais desenvolvidos do que nos argilosos. Os areaes entre Bahùs e Coxim e
nas immediações de Sant'Anna do Paranahyba são prova do que avançamos;
assim tambem certos pontos da provincia de Goyaz, quasi ao chegar á
villa das Dôres do rio Verde (Aboboras).

Nos verdadeiros cerrados até Mato-Grosso, observámos a pouca frequencia
das _melastomaceas_, comtudo tão facil de distinguir. Ao entrar, porém,
n'essa provincia, tornão-se ellas muito frequentes, apresentando bellos
exemplares, pelo seu desenvolvimento geral.

Em todos os cerrados sempre notámos a bem conhecida _canella de ema_.

As arvores dos _cerrados_ são quasi todas tortuosas; a casca sempre
escamosa, fendida irregularmente, grossa, merecendo por isso muitas
d'ellas o nome de _jacarés_, devida, ao que nos pareceu, á acção annual
do fogo que provoca esse desenvolvimento do _liber_, obstaculo á
carbonisação que permitte ao vegetal poder continuar o seu penoso
crescimento. As _cassias_, sobre todas, são notaveis por essa alteração
da camada cortical.


C

A folhagem verde-escura da _mauritia_, abre-se como um leque, sustentado
por longos peciolos alveolados no topo de um estipite liso e pardacento
claro, no qual se notão os traços parallelos formados pela quéda das
voltas semi-amplexicaules das folhas. Ao lado d'aquella formosa
monocotyledonea, a _macaybeira_ (acrocomia sclerocarpa) parece acanhada
e fica completamente offuscada; das palmeiras, cujas folhas são todas
revestidas por foliolos, a unica que rivalisa em elegancia e altaneria é
o _auassú_ que os guaycurús chamão _chatellôd_.

Do bority extrahe-se um succo saccharino, usado, depois da fermentação,
como bebida e do qual se póde tirar excellente assucar, como o fez um
official das forças. Os fructos dão em compridos cachos; são ovoides,
com casca rija, amarello-avermelhada, escura e brilho metallico, todos
cobertos por escamas rhomboidaes, que encobrem uma polpa pouco saborosa,
ainda quando preparada com assucar. A amendoa acha-se n'uma loja
monospermica. Em épocas de fome, de muito servírão aos soldados que
procuravão não só os côcos, em concurrencia com as aráras, como em razão
do miôlo que chupavão com grande gosto. Os boritys são sempre indicio de
agua, nascendo só em lugares humidos.

No caminho para Uberaba apparecem, pela primeira vez, no pouso dos
Boritys (a 84 legoas do littoral), nas proximidades do rio Grande,
divisa entre as provincias de S. Paulo e Minas. D'esse ponto em diante,
acompanhão a trilha, que seguírão as forças, atravessando Minas, Goyaz e
Mato-Grosso. Até o rio Negro, a abundancia de boritys é extrema; d'ahi
por diante, vão-se tornando menos frequentes e, para os lados de Nioac e
sul do districto de Miranda, vêem-se raramente.


D

Comprehendendo, de ante-mão, as difficuldades com que lutarião os nossos
collegas na promptificação de canôas, sem as ferramentas precisas nem
trabalhadores habilitados, fizemos lembrada a conveniencia em
transportar aquella barca para junto áquelle rio. As nossas previsões
realizárão-se completamente e os obstaculos que embaraçárão os
engenheiros, no desempenho da commissão a este respeito, justificárão a
importancia que haviamos dado áquella conducção.


E

O _aucury_, do genero attalea, affeiçôa, como os boritys, os lugares
humidos, apparecendo só n'aquelles que são commummente encharcados. O
seu aspecto é baixo; o estipite fino, ás vezes engrossando
extraordinariamente junto ao coroamento das folhas, as quaes tem longos
foliolos delgados. Os fructos (cujos côcos tem 3 bagas monospermias) com
uma bonita côr amarello-alaranjada, e revestidos por uma casca
filamentosa (que não tem máo sabor, sobretudo assada), dão em cachos,
que ás vezes pendem junto ao chão, servindo de pasto aos porcos do mato,
que os procurão com avidez.

Por isso, quando atravessavamos os aucurisaes do rio Negro, onde a
abundancia d'esses côcos era extrema, grandes varas de _queixadas_
(dicotyles labiatus) fugião diante de nós, sendo facil a um dos soldados
derribar alguns d'elles.


F

Qualquer depressão de terreno, qualquer encontro de declives
transforma-se n'essa zona em profundas sanjas, que quasi sempre vírão em
escoantes para os rios. Eis a _corixa_ ou o _corixo_.

A retenção da agua, por muitos mezes, desenvolve então uma vegetação
palustre no meio de moutas de capim, reunindo-se n'ellas frequentemente
as terriveis _piranhas_ (myletes macropomus), que tornão essas passagens
perigosas, pelos lados do Piquiry.


G

A qualidade de mel que dá o jaty é boa, perfumada e clara; entretanto a
quantidade é commummente muito diminuta.

A colmêa é no tronco das arvores, quasi sempre junto ao chão. Pelo
contrario, sempre na parte superior, na _dichotomia_ ou bifurcação de
ramos, faz o seu cortiço a abelha _mandory_ ou _mondori_: _mondé_,
colher, _ira_, mel, o qual é superior ao do jaty, rivalisando com o do
_cacheta_ em sabor e limpidez. A abelha _mandory_ é especie grande,
preta, rajada de amarello.

Seguem-se em qualidade: o _achupé_ (grande e preta), o _sanharão_, o
_borá_ (grande e amarella), o _uruçú_, o _lambe-olhos_, etc.

D'essas abelhas, fomos, no seguimento da viagem, encontrando individuos.
Além d'isso frequentes arvores, cortadas nos lados do caminho,
mostravão-nos a copiosa colheita que fazem os indios, os quaes,
justamente n'aquella época, recolhião o mel para fermental-o, o que dá
lugar ás festas religiosas, em que estavão empenhados, quando chegámos á
aldêa da Piranhinha.


H

Levavamos então um chapéo que compráramos na aldêa: era de palha de
_carandá_ (copernicia cerifera), e muito bem trançado. Esta palmeira,
bastante frequente no norte da provincia, é mais rara no districto. Pela
primeira vez a tinhamos visto quasi ao chegarmos ao Tabôco, occupando um
vasto barreiro com lindos specimens, cujo aspecto era-nos totalmente
novo. Mais alto que a _carnaúba_, com quem tem muitos pontos de relação
(se não fôr ella propria), com estipite, porém, mais fino e ligeiramente
flexuoso, tem as folhas supportadas por longos peciolos erectos, que
fórmão um coroamento em leques, como o do _bority_, mas cujos foliolos
são rigidos e terminados por pontas espinhosas.

A reunião de muitas d'essas palmeiras, cujo tronco é aproveitado para
construcção de casas e curraes, cuja palha é muito utilisada para
chapéos e cujos fructos, pequenos e em cachos compridos, dão algum
azeite, chama-se um _carandal_.

Ahi fórmão ellas moutas compostas de palmeiras rasteiras, no meio das
quaes surge alguma mais desenvolvida, levando agarrados cipós e
parasitas, que vivem nos sulcos das folhas cahidas.

Algumas nopaleas, sobretudo a _opuntia_, com o aspecto tão original, e
uma ou outra dicotyledonea, cuja folhagem agrada tanto pela disparidade,
constituem, ao redor dos elegantes _carandás_, grupos, como que
arranjados pela mão artistica de algum horticultor intelligente.

O _carandá_, que vimos pela primeira vez perto da Piranhinha, apparece,
com abundancia, entre Nioac e a colonia de Miranda. Talvez, no districto
de Miranda, possão ser, por meio de linhas longitudinaes, assignaladas
tres zonas de palmeiras predominantes: a dos _boritys_, do Coxim á villa
de Miranda; dos _carandás_, da villa á colonia de Miranda, e das
_macaúbas_; da colonia ao Apa.


I

Nas proximidades do Aquidauana e na localidade de refugio no cimo da
serra de Maracajú, distante d'aquelle rio cinco legoas, vimos em _aves_,
além das mencionadas: na familia dos _accipitres_, muitos _urubús_
(percnopterus jota), alguns dos quaes completamente brancos
(urubutingas) _gaviões_ e innumeros _caracarás_ (polyborus chimango) que
esvoaçavão, com estridentes pios, por cima das queimadas, para agarrarem
as cobras e reptis, acoçados do fogo. Na familia dos _trepadores_,
avistámos: a _arara azul_ (ara ararauna) com as costas e cauda azul,
peito amarello-alaranjado, a _vermelha_ (ara aracanga), a _rôxa_ (ara
hyacinthinus), á qual convinha mais o epitheto de ararauna (arara
preta), côr que, de longe, parece ter; _tucanos de papo branco_
(rhamphastos toco) especie grande e rara, de _bico preto_ (rhamphastos
ariel), _de papo amarello_ (ramphastos discolorus), que são derribados,
mal lhes toque um bago de chumbo o bico: nas arvores, o desconfiado
_alma de gato_ (coccyzus cayanus) se esgueirava ligeiro por entre os
galhos e o lindo _jacamacira_ (galbula viridis) n'elles pousava
gravemente, emquanto os _pica-páos_ (picus melachloris, robustus, etc.)
em zig-zag se atrepavão, agarrados aos troncos. Entre os _passaros_
figuravão os _sabiás_ (turdus flavipes, _una_, e rufiventer,
_larangeira_), o _bemtevi_ (tyrannus sulphuratus), o _serra-serra_
(carduelis nitens), o _canario da terra_ (carduelis brasilienses), o
_avinhado_ (pitylus nasutus), os _caraúnas_ ou _virabostas_ (icterus
violaceus) os mais animados e barulhentos cantores do sertão, os
_encontros_ (xanthornus tristis) e muitos outros notaveis pela plumagem
e canto que não conheciamos e viamos pela primeira vez.

Nos campos ha poucas _perdizes_ e _codornizes_: na planura de cima da
serra não as vimos: em compensação, a volateria é sobremaneira
importante em outras qualidades, como já mostrámos.

Entre os _reptis_, além dos _ophidios_ já apontados, avulta o _lagarto_:
os _bactracios_ são os conhecidos geralmente.

Entre os _insectos_ todas as subdivisões são mais ou menos bem
representadas: entre os _nevropteros_ apparece com abundancia o _térmes_
(cupim), nos _hymenopteros_, muitas especies de _maribondos_, de
_formigas_ e _abelhas_: poucos _lepidopteros_: nos _dipteros_ muitos
_mosquitos_, _muriçocas_, _mucuins_ ou _polvoras_, _moscas_, etc., em
alguns pontos do rio, em outros são rarissimos.

Entre as _arachnides_, não pode ser esquecido o _acaride-arachnide_,
_carrapato_ (ixodes) um dos grandes incommodos de quem viaja pelas
matas. No Aquidauana eramos flagellados pelo _rodeleiro_ ou _estrella_
(especie grande), _ruivo_ (especie menor) e _piolho de gallinha_
(especie mui pequena).

N'um dos affluentes do Aquidauana encontrámos curiosos molluscos, com a
conformação do _mechilhão_ (mytilus) e com o interior da costa calcarea
brilhante, a modo de madreperola. «O Pacheco e o Valerio, diz uma de
minhas notas de viagem, affianção que, em certo ponto do rio Paraguay,
ha muitos d'esses restos, sendo até uma bahia denominada das _Conchas_».
Achámos tambem d'essas conchas no ribeirão do Euagaxigo, a 3-{1/2}
legoas da villa de Miranda.




APPENDICE




APPENDICE


Memoria descriptiva do reconhecimento do caminho entre os rios Taquary e
Aquidauana, feito pelos engenheiros capitão bacharel Antonio Florencio
Pereira do Lago e 2^o tenente bacharel Alfredo d'Escragnolle Taunay,
ajudantes da commissão de engenheiros junto ás forças em operações no
sul da província de Mato-Grosso.


I

Exploração entre os rios Taquary e Negro


No dia 13 de Fevereiro passámos, defronte do acampamento goyano, o rio
Taquary e margeando-o á esquerda, fomos, pela necessidade de descanço em
consequencia do grande nado a que tinhão sido obrigados os animaes,
pousar junto ao ribeirão da Fortaleza, com 20 minutos em tempo de
distancia percorrida. A sua margem esquerda é escarpada e necessita ser
rampada para a descida de carros; a direita é baixa e arenosa como o
alveo d'este tributario do Taquary, que, depois de grandes chuvas, nega
passagem a váo. Conta de largura 50 palmos, de profundidade 3, 1-{1/2}
por segundo de velocidade e a elle segue-se uma mata onde existem varias
rampas que podem ser facilmente vencidas. Deixando pelo lado esquerdo o
Taquary e seguindo parallelamente ao seu confluente, o Coxim, que, pouco
depois, desapparece, começámos a acompanhar o Taquary-mirim, o qual ora
afasta-se, ora approxima-se muito perto do caminho, transpondo-se com 32
minutos de marcha um pequeno corrego, cujas ribanças necessitão ser
modificadas, e d'ahi a 43 milhas, outro nas mesmas condições. Com mais
41 minutos passámos um ribeirinho cujos barrancos devem ser cortados
para facilitar a passagem, e pouco depois chegámos á cachoeira do
Taquary-mirim (pouso dos Boritys), junto á qual existem vestigios de um
acampamento dos paraguayos e onde pernoitámos.

A distancia percorrida foi sempre em terreno secco, de base
argilo-arenosa, entre cerrados em que predominão _anonaceas_ (araticús
do campo) e varias especies de _byrsonima_: o caminho é uma simples
trilha, muito visivel porém e sempre seguido.


Tempo gasto                      4 horas e 32 minutos.
[120]Distancia percorrida        8,265 braças, ou 2-{3/4} legoas proximamente.


Deixando o pouso dos Boritys que offerecerá um acampamento regular para
as forças em marcha, com 36 milhas de marcha fomos ter ao corrego da
Porteira, a 77 minutos do qual passámos outro, chegando ao ribeirão da
Mata depois de caminharmos mais 95 minutos. A 50 braças antes d'esta
corrente, existe um terreno baixo que ha de tornar-se alagadiço com a
continuação de chuvas, podendo ser praticada, n'este caso, uma extensa
estiva pelo muito mato, que cobre as margens do ribeirão.

O leito d'este é arenoso; a largura média de 50 palmos, 2 de
profundidade, chegando a negar váo no tempo de grandes enchentes. Ahi
podérão acampar as forças depois de ter sido facilitada a passagem,
rampando-se a margem esquerda.


Tempo gasto                      4 horas 0 minutos.
Distancia percorrida             7,285 braças, ou 2-{8/2} legoas proximamente.


A 16 minutos do ribeirão da Mata, existe uma casa abandonada, proxima a
um capão, denominado Tapera, assim como o corrego, que, pouco adiante,
dirige-se para E. entre margens pouco firmes, permittindo porém a
proximidade do mato fazer-se de prompto uma estiva para a passagem de
cargueiros e carros. D'ahi a 8 minutos passámos um pequeno pantano de 30
braças, que póde dar boa passagem, se as chuvas não augmentarem e o
tempo tornar-se secco; devendo ser este espaço estivado no caso
contrario. Continuando, atravessámos o ribeirão Claro, cujas margens
altas e nemorosas precisão ser melhoradas, com leito pedregoso, largura
de 35 palmos e profundidade de 1-{1/2}. Depois de chuvas continuadas
impede o transito. Depois de 110 minutos chegámos ao ribeirão Verde que
tem margens abruptas, cobertas de mato, leito de grandes lages, váo
pessimo para a passagem de animaes carregados. Tem de largura 65 palmos,
3-{1/2} de profundidade, augmentada porém, durante as aguas, a ponto de
vedar o transito.

A força póde acampar em sua margem direita depois de rampados os
barrancos que encanão este ribeirão.


Tempo gasto                      3 horas 0 minutos.
Distancia percorrida             5,463 braças, ou 1-{1/3} legoas proximamente.


Sahindo do ribeirão Verde, passámos com 63 minutos de marcha um bosque e
d'ahi a 30 minutos a mata ou capoeira do Major com abrupta descida que
vai ter a um pantano, em que gastámos 5 minutos, seguindo-se nova mata e
outro almargeal cortado tambem por mato. O terreno começa a subir:
torna-se pedregoso e entra-se no Portão de Roma: pessima e difficultosa
passagem embaraçada com grandes lages e rochas que se achão na trilha
que serve para a viação. As carretas dos paraguayos passárão por este
desfiladeiro: entretanto será necessario um trabalho preliminar ou um
desvio para conseguir-se facil transito. Continuando a caminhar,
margeámos um lugar pantanoso logo abaixo do serrote e com mais 44
minutos fomos pousar no Lageadinho, onde um pequeno lagrimal dá agua em
toda esta estação.


Tempo gasto                      3 horas e 49 minutos.
Distancia percorrida             6,951 braças, ou 2-{1/4} legoas proximamente.


Deixando o Lageadinho, passámos um lagrimal depois de 65 minutos de
marcha e com mais 65 o corrego do Castelhano, entrando d'ahi a 15
minutos n'uma mata, atravessada por um filete d'agua, seguindo-se
outras, cortadas, de distancia em distancia, por campos dobrados até o
corrego da Volta, onde poderá formar-se o acampamento das forças.


Tempo gasto                      5 horas e 19 minutos.
Distancia percorrida             9,683 braças, ou 3-{3/2} legoas proximamente.


Do corrego da Volta, com 41 minutos de marcha passámos n'um matagal, e
com mais 32 minutos o ribeirão do Perdigão, cujas margens hão de
necessitar de concertos para a facil transposição.

D'este ribeirão, com 44 minutos, entrámos na mata dos Jaós, de 3 minutos
de extensão, onde os paraguayos deixárão uma canôa, que poderá servir
para a passagem do rio Negro, caso seja concertada e transportada para
aquelle ponto. Com 65 minutos chegámos ao corrego da Cachoeirinha, e,
d'ahi ao corrego Fundo, gastámos mais de 40 minutos. Poderá acampar a
força, depois de feita uma estiva nas margens pouco firmes d'este
corrego.


Tempo gasto                      3 horas e 46 minutos
Distancia percorrida             6,860 braças, ou 2-{1/4} legoas proximamente.


Com 119 minutos de marcha fomos do corrego Fundo a um pequeno olho
d'agua, d'ahi a 77 minutos a um lagrimal e com mais 81 minutos ao rio
Negrinho, passando antes por um terreno baixo e alagado. O rio dá váo
commodo no tempo secco: n'esta estação, porém, a profundidade é de 7
palmos, sendo a sua largura de 63. Uma arvore cahida, de uma margem á
outra, servio-nos para a passagem das cargas, e com pouco trabalho
ter-se-ha uma boa pinguela. O váo acha-se a 30 braças mais ou menos
acima do lugar em que está a arvore, subindo pela margem esquerda. O
acampamento na margem direita, depois de passar a mata, é melhor, ainda
que mais distante da agua.


Tempo gasto                      4 horas e 37 minutos.
Distancia percorrida             8,408 braças, ou 2-{3/4} legoas proximamente.


Deixando a margem esquerda do rio Negrinho, depois de passarmos pela sua
mata (onde existem depressões, chamadas _corixas_, que ficão cheias
d'agua e dão nado durante as enchentes), fomos ter, com legoa e meia de
viagem ao Potreiro, pequeno rancho na fazenda dos cidadãos Antonio Alves
Ribeiro, e Tiberio, onde não encontrámos além do gado, que não póde ser
reunido por falta de cavalhada, recurso de qualidade alguma para a
força, nem pessoal para trabalhar na construcção de canôas para a
passagem do rio Negro. D'este ponto até o rio, o caminho apaga-se quasi
completamente; é apenas uma trilha mal aberta por alguns fugitivos de
Miranda, a qual atravessa grandes pantanaes, duas corixas cheias,
charcos e mata muito cerrada. Se os meios para passar o rio estiverem
promptos, deverá a força ir acampar na margem do rio; no caso contrario,
demorar-se-ha junto ao Potreiro.


Tempo gasto                      4 horas e 48 minutos.
Distancia percorrida             8,742 braças, ou 3 legoas proximamente.


A passagem para a infantaria é sempre commoda e facil até o Potreiro;
para os carros, porém, e bagagem será necessario rampar as margens das
correntes que atravessão o caminho e fazer estivados em differentes
pontos. Nas matas, e nos cerrados, ha páos e taquaras que embaráção o
transito; pelo que deverá ir, sempre dianteiro á força, um certo numero
de homens armados de machados e fouces, para removerem estes obstaculos.
Do Potreiro, porém, ao rio Negro, até para homens a pé, o caminho é de
difficil viabilidade, e necessita ser aberto e melhorado para o
transito.

Com excepção do Portão de Roma, proximidades do Lageadinho e margem dos
corregos e ribeirões, os declives do caminho são sempre bons: o leito é
uma estreita trilha, argilo-silicoso, quasi sempre secco até pouco
adiante do Potreiro.

Achamo-nos hoje na margem do rio Negro, sem termos encontrado guia para
o caminho que segue a fralda da serra de Maracajú até a aldêa da
Piranhinha, o qual os soldados desconhecem, e vamos encetar viagem á tôa
e sem indicações certas.

Margem esquerda do rio Negro, 25 de Fevereiro de 1866.


POUSOS PARA A FORÇA


Ao pouso dos Boritys          2-{3/4} legoas
Ao ribeirão da Mata           2-{1/2}   »
Ao ribeirão Verde             1-{3/4}   »
Ao Lageadinho                 2-{1/4}   »
Ao corrego da Volta           3-{1/2}   »
Ao corrego Fundo              2-{1/4}   »
Ao rio Negrinho               2-{3/4}   »
Ao rio Negro                  3         »
                             -------
             Somma           20-{3/4}   »
Do rio Taquary ao rio Negro  20-{3/4}   »


A planta topographica indicará outros pousos, caso não convenhão estes,
e dá os accidentes de terreno e direcções magneticas.


II

Exploração entre o rio Negro e os Morros


No dia 25 de Fevereiro, passando o rio Negro n'uma pelota,
transportámo-nos para a sua margem esquerda, baixa, paludosa e coberta
da mesma vegetação que já tinhamos achado do outro lado. Por espaço de
um quarto de legoa lutámos n'ella com os obstaculos provenientes das
enchentes do rio, sendo obrigados a novas passagens, em pelota, de
corixas cheias e pyrisaes (lugares inundados) e á marcha em terreno
sempre humido e atoladiço. Abre-se depois o campo com cerrados ao longe,
e achámo-nos na base da serra de Maracajú, que era o nosso unico meio de
direcção na procura da trilha, que dizião ter sido aberta pelos
fugitivos de Miranda, na invasão d'este districto no anno passado. Com
effeito avistavamos uma longa e continuada serrania que tinhamos de
deixar á esquerda, fraldejando a sua aba e fugindo ás aguas que cobrião
a estrada seguida no tempo secco até o rio Aquidauana.

A questão era examinar a qualidade de terreno, em que tinhamos de
marchar e saber das vantagens da abertura de um caminho para a força nos
seus primeiros movimentos para o Baixo-Paraguay.

Seguindo pois o rumo S., desde as primeiras horas de marcha,
reconhecemos as difficuldades que tinhamos de vencer na procura
d'aquella supposta trilha e dos vestigios da passagem, bem que recente,
de um homem a cavallo, apagadas de todo ou pelas chuvas ou pelas pégádas
do gado que vaguêa pelos campos, indo a final esbarrar em uma mata tão
cerrada que roubou-nos boa porção do dia, não nos permittindo caminhar
mais de legoa e meia. No pouso verificámos que a carne secca, que
haviamos preparado no Potreiro para a nossa viagem, calculada em oito
dias, pelas passagens nas corixas e pela muita chuva dos dias
anteriores, achava-se de todo deteriorada. A impossibilidade de termos
recursos d'aquelle lugar, pois que a ultima porção de gado recolhido,
fôra levado da fazenda do Retiro para o Coxim e a esperança de podermos
matar alguma das rezes que encontravamos, não nos permittírão duvida
sobre o que deviamos resolver. Dous dias depois caminhando sempre, ora
em terreno pantanoso e atoladiço, até a fralda da serra, ora em cerrados
de difficultosa passagem, achavamo-nos com todos os recursos de boca
completamente esgotados e com a certeza desesperadora da quasi
impossibilidade em matarmos á bala rezes, completamente selvagens e
ariscas.

Os nossos males crescêrão com a fuga de todos os animaes, o que nos
reteve nas mais crueis necessidades, junto ao corrego da Afflicção,
durante dous dias nos quaes sustentámo-nos de fructos silvestres, que os
soldados podérão colher. Conseguindo no terceiro dia alguns dos animaes,
proseguimos viagem deixando quatro d'elles perdidos e canastras
escondidas na mata proxima, alimentando-nos desde então por oito dias de
miôlo de palmeiras e de alguns fructos do mato, soffrendo sempre chuvas
torrenciaes e contrariedades. Em todo este tempo fizemos apenas 11
legoas, apezar de andarmos dias inteiros, ora rodeando charcos
perigosos, ora abrindo picadas em cerrados de intrincadissima taquára.
Em parte alguma viamos uma trilha seguida: quando nos suppunhamos
perdidos, deparavamos algum rancho abandonado, uma arvore cortada, um
signal que indicava acharmo-nos no rumo seguido pelos fugitivos, os
quaes, sem duvida, tiverão interesse em occultar os seus vestigios,
acoçados dos paraguayos, que demandavão o mesmo caminho, como o vimos
pelos signaes de acampamento de forças. Tomando afinal o rumo O. fomos
trilhar a parte, transitavel hoje, do caminho do pantanal, onde podémos
dar fim aos nossos soffrimentos, conseguindo carnear uma rez. No dia 10
passámos o rio _Tabôco_ que achámos de nado e, visitando no dia seguinte
o aldeamento dos indios na Piranhinha, chegámos no dia 11 ao
arranchamento do cidadão João Pacheco de Almeida, onde tivemos
recebimento hospitaleiro e sympathico e onde nos achamos agasalhados.


CAMINHO QUE A FORÇA DEVE SEGUIR

Não existe trilha alguma junto á fralda da serra de Maracajú. O pantanal
que vai até a base d'esta serrania é em terreno fôfo e de perigoso
transito, sobretudo para grande numero de cargueiros e carros: nos
cerrados, o sapé alto, capins e taquaras maltratão os infantes e canção
sobremodo os animaes. Só nos principios de Maio poderão, segundo
informações de pessoas praticas, achar-se estes lugares seccos; época em
que o caminho, chamado do pantanal, conhecido por muitos e trilhado, dá
excellente passagem por occasião da retirada das aguas. A vantagem de
ser a trilha do pantanal sempre firme, não póde deixar duvida sobre o
caminho a seguir, escolhido que seja um guia, conhecedor d'estes lugares
que dê indicações dos lugares em que se encontrão boas aguadas. O
_capataz_ da fazenda do _Tabôco_, o cidadão Antonio Maria Tonhá, é muito
proprio para este serviço.


CONTINGENTE PARA A FORÇA

_Guarda nacional._--Os guardas nacionaes, que existem debaixo das ordens
do tenente coronel Albuquerque, não podem perfazer o numero de 100:
melhores informações sobre seu armamento, fardamento e municiamento,
teremos depois de recebermos resposta ao nosso officio de 17 do corrente
ou conversarmos com o tenente coronel commandante; o que tudo havemos de
communicar com a brevidade possivel.


_Indios._--No aldeamento dos indios terenas, da Piranhinha, encontrámos
a melhor disposição na gente do capitão José Pedro: apresentárão-se-nos
60 moços bons atiradores e proprios para servirem de excellente tropa em
sorprezas e emboscadas.

No aldeamento de Francisco Dias ha 40 homens robustos, em estado de
pegarem em armas: achão-se armados, e só lhes falta cartuxame.

Da gente quiniquináo, acampada em diversos pontos, póde-se contar com 30
homens.

São ao todo 130 indios que estão no caso de servir de contingente á
força. Falta-nos comtudo visitar, a oito ou dez legoas d'aqui, dous
aldeamentos, um quiniquináo e outro laiana, que devem augmentar o numero
de homens e dar alguns alqueires de arroz e milho. Áquem de Miranda ha
tambem outros pontos em que existem indios foragidos.

A indole dos indios é guerreira: votão odio encarniçado aos paraguayos e
estão com estes em continua guerra de emboscada, em que a crueldade e
ferocidade de ambos os lados tem trazido temor e receio reciprocos;
entretanto a inconstancia de genio e a impossibilidade em confiar na
disposição de espirito e firmeza para arrostarem no campo e de frente o
inimigo, os torna apenas proprios para atiradores em matas e
guerrilheiros.


RECURSOS COM QUE DEVE CONTAR A FORÇA

_Gado._--Desde o rio Negro até a Piranhinha vimos immensa quantidade de
rezes, vagando pelos campos em grandes manadas. Entretanto a
necessidade, para o fornecimento, de bons cavallos para rodear-se o
gado, obrigará á espera da terminação da peste que grassa entre os
animaes até fins de Abril, e que tem destruido toda a cavalhada desde o
Coxim até estes lugares.

Um contractador, de posse comtudo de bons animaes, poderá com
facilidade, em todos os pousos da força, reunir a quantidade precisa de
rezes nas fazendas de Joaquim Alves, Fialho, capitão Pires (prisioneiro
dos paraguayos), José Alves de Arruda e outros.

Os cidadãos que pelas informações colhidas, poderão se encarregar do
fornecimento são: Joaquim Alves e Canuto Virgolino de Faria (no Coxim);
mas deverão de antemão comprar cavallos para se acharem em
circumstancias de cumprir com os seus compromissos.

Calcula-se em 13,000 cabeças o gado que existe nas fazendas apontadas
acima, e só póde haver difficuldade na obtenção de rezes com a falta de
cavallos, para o que devem ser tomadas providencias acertadas.


_Cereaes._--As plantações dos refugiados de Miranda, além das limitadas
proporções em que forão effectuadas para proverem unicamente á
subsistencia particular, não derão colheita satisfactoria. O milho veio
muito falhado; o arroz abaixo da expectação: são comtudo os dous generos
que mais avultão. Ha grande difficuldade em reduzir-se o milho existente
á farinha, ou á cangica, pela falta de um monjólo; promettem alguns
alqueires á custa de braços.

Não ha nenhum feijão recolhido: apenas algumas quartas plantadas, que
comtudo pouco podem dar pela falta de chuva e má época em que forão
lançadas em terra.


_Sal._--Ha grande carencia de sal: apenas existem 2 ou 3 alqueires que
estão sendo vendidos.

Os dados que seguem forão todos colhidos com a maior minuciosidade, e
são o resumo de quantidades parciaes, como se vê do mappa annexo:


Milho                             50 alqueires
Cangica                           57   »
Farinha                           10   »
Arroz com casca                  110   »
Arroz socado                     155   »
                                ----
Somma                            382   »



FORÇA INIMIGA

Interrogando diversas pessoas e indios, que têm, desde Janeiro até fins
de Fevereiro, visitado os lugares ainda occupados por forças, colhemos
as seguintes informações:


Na fazenda do Souza              50 a 150 homens
No Espenidio                          200    »
Na Forquilha                          100    »
Em Nioac                              360    »
                                 --------
Ao todo                               810    »


No porto do Souza existe um entrincheiramento a menos de meia legoa do
rio, e entre estes dous pontos uma guarda rendida diariamente, que serve
para vigiar o Aquidauana. N'este entrincheiramento houve ultimamente
augmento de força, pois que ouvem-se agora rufos de tambores e toques de
corneta, o que não acontecia até fins de Janeiro: ha uma peça de
artilharia para defendel-o e uma palissada de grossos madeiros de
aroeira. Iremos com as precauções precisas visitar estes pontos,
communicando logo o que tivermos observado.

A Forquilha e o Espenidio achão-se no caminho de Nioac á villa de
Miranda. Este ultimo ponto está presentemente abandonado, todas as casas
forão queimadas e não ha mais guarnição. É informação de André José dos
Santos, que nos ultimos dias de Janeiro, com 6 companheiros foi
reconhecer o inimigo, voltando no dia 4 de Fevereiro.

A Nioac chegou, a 3 de Fevereiro, Agostinho Joaquim Coelho, assistindo,
de uma mata proxima, ao exercicio de um batalhão de infantaria pesada,
formado em 6 pelotões de 30 filas pouco mais ou menos. A gente que se
acha na fazenda do Souza é aguerrida e regular, o resto dizem constar de
soldados ainda bisonhos. A cavalhada, de que elles dispõem, é boa, como
vimos por alguns cavallos roubados pelos indios.

Usa a infantaria de espingardas á Minié de 1,000 passos, e a cavallaria
de lanças que manejão com muita destreza, de clavinas e espadas. Nas
cartuxeiras trazem os soldados 80 cartuxos: os indios afianção que são
máos atiradores, fazendo comtudo justiça completa á coragem e valor
nunca desmentidos do inimigo.

Os paraguayos desde Maio do anno passado não fizerão mais correrias na
margem direita do Aquidauana; provêem-se de gado, abundantissimo no
outro lado, e considerão o rio divisa do territorio brasileiro.

Existe uma estrada, chamada do Canastrão, pela qual, de Dourados, onde
ha força, e da fronteira podem vir soccorros para coadjuvarem os
contingentes espalhados no districto de Miranda.

Esperão-se aqui cartas de um fazendeiro de Nioac, preso dos paraguayos,
que foi visitado pelo indio laiana Joaquim da Silva em Fevereiro, o qual
dá noticia de mais destacamentos na Ariranha e no Esbarrancado, a 8
legoas além de Nioac.

Suppõe-se que os destacamentos no Souza e Espenidio têem ordem para
concentrar-se, com o apparecimento de nossas forças, em Nioac, afim de,
attrahindo-as até este ponto, poder ser cortada a nossa retaguarda pelo
caminho do Canastrão, que vem do Paraguay a Miranda.


RESUMO

O movimento da força brasileira póde effectuar-se nos primeiros dias de
Maio, tomando o caminho do rio Negro, e depois o do pantanal, que deve
de estar completamente secco, reunida que seja boa cavalhada para o
fornecimento de gado durante a marcha. Com poucos generos póde contar
dos Morros e dos indios. Nas operações, além do Aquidauna, deve esperar
encontrar mais de 1,000 inimigos, entrincheirados o mais das vezes, e
dispostos á resistencia.


RIOS QUE PASSÁMOS

O rio Negro, no lugar de nossa passagem, tem 18 braças: entretanto como
a força deverá vir pelo caminho do pantanal, indicado no nosso trabalho
pelo traço colorido que vai ligarse ao caminho do roteiro do primeiro
reconhecimento, além do Potreiro, é necessario visitar o rio mais baixo
e conhecer a sua largura.

O rio Tabôco tem 30 braças de largura.


_Meios de passagem._--Para o rio Negro devem-se promptificar barcas,
pois que as margens baixas e atoladiças não facilitão a construcção de
uma ponte. O rio[121] tem lugares de bom váo, como o afiança o pratico
Tonhá, que conhece-os perfeitamente. O rio Tabôco é vadeavel.

Para o Aquidauana precisão ser trazidas ao porto do Jatobá, ou ao de D.
Maria Domingas, as canôas do tenente coronel Albuquerque da sua fazenda
do rio Negro e a prancha do cidadão Cardoso Guaporé, o qual já foi
examinar o estado em que ella se acha, por estar escondida, ha mais de
anno, n'uma volta do rio.


DISTANCIA QUE PERCORREMOS


Do rio Negro á entrada do Pantanal       13       legoas

D'ahi á Piuva.                            1-{1/4}   »

Da Piuva aos Dous Corregos.               1-{1/2}   »

Dos Dous Corregos ao Tabôco.              3-{1/2}   »

Do Tabôco á ponta do morro
  d'onde o caminho segue para
  o Aquidauana.                           1-{3/4}   »

D'aquella ponta á Piranhinha.             1-{1/4}   »

     »      »   a João Pacheco.           3-{1/4}   »

De João Pacheco a Francisco Dias.            1/2    »
                                         --------
Somma                                    26         »


A volta pelo caminho do Pantanal não póde exceder de 4 legoas.

Morros, 20 de Março de 1866.


III

Exploração á margem direita do rio Aquidauana


A necessidade de visitarmos dous aldeamentos de indios e reconhecermos a
margem direita do rio Aquidauana e seus diversos portos que derão
passagem aos paraguayos, na invasão do anno passado, fez-nos emprehender
nova viagem, effectuando a nossa partida para aquelles pontos, no dia 24
do mez proximo passado. Seguindo ás vezes a base da serra que viemos
fraldejando, desde o rio Negro, outras cortando-a em diversas e
profundas depressões, visitámos a 7-{1/4} legoas de nosso ponto de
partida o acampamento dos laianas, onde apenas encontrámos 20 homens em
estado de pegar em armas, e viveres em quantidade insufficiente, até
para sustento proprio.

No aldeamento do Oauassú, a 3 legoas do outro, ha igual carencia de
mantimentos e só 9 indios para augmentarem o contingente, que dá a tribu
dos quiniquináos. Tomando d'ahi rumo S., procurámos o Aquidauana, indo
acampar junto á sua margem direita que, desde então, seguimos até a
tapera do Pires, d'onde fizemo-nos na volta dos Morros.

Achão-se junto á borda do rio, que margeámos, differentes casas
abandonadas por occasião da entrada dos paraguayos, as quaes tem cada
qual a sua passagem para o outro lado e porto no rio.

Assim são os portos do Canuto, até onde chegou uma partida inimiga vinda
do Taquarussú, de João Dias, Maria Domingas, Francisco Dias, etc., que
vão apontados no reconhecimento topographico. Examinando cada um d'elles
com cuidado, para indicarmos a passagem mais conveniente para a força,
pareceu-nos o porto de D. Maria Domingas o que satisfaz a todas as
condições precisas. É o unico que dá váo em toda a extensão (30 braças)
com profundidade de 4 a 8 palmos, facilitando assim não só a passagem da
infantaria, como tambem o serviço das barcas, que será feito com muito
mais presteza, tocadas e puxadas á mão.

Além d'isto a força, occupando a margem esquerda, corta a communicação
entre o entrincheiramento do porto do Souza e o do Espenidio e impede
qualquer movimento de concentração que os inimigos procurem fazer. Do
largo da Piranhinha deverão as forças dirigir-se para o porto de D.
Maria Domingas, tendo á frente um bom pratico d'estas localidades, caso
não seja tomada outra determinação.

D'este porto ao do Souza, pela margem esquerda contão-se 4 legoas de
trilha completamente secca e, a não querer cortar campo, é d'elle que
partem caminhos para Miranda, Forquilha, Nioac, etc.


Do porto de D. Maria Domingas ao Eponadig      4 legoas
Do Eponadig á Forquilha                        7    »
Da Forquilha a Nioac                          10    »
                                             ---
Do porto a Nioac                              21    »


Alguns d'estes pontos e mais o Espenidio e o Souza, occupados pelos
paraguayos, fórmão uma linha que fecha em circulo a villa de Miranda;
razão por que foi ella abandonada e queimada, reforçando-se os pontos
estabelecidos em derredor. Assim pois a retirada de Miranda não tem
significação de evacuação de forças, parecendo, pelo contrario, dever
indicar a tenção de melhor defender o territorio, em que se achão e que
fechárão por um cordão de destacamentos desde o Apa até o Souza.

A este ultimo ponto não podémos chegar, pois que um desencontro na
remessa de cartuxos, que tinhamos requisitado do Illm. Sr. tenente
coronel Albuquerque, obrigou-nos a não effectuar este reconhecimento
arriscado e que só póde ser feito á mão armada, pela vigilancia que,
sobre a outra margem, exercem os paraguayos. Mandámos comtudo uma
partida de indios[122] reconhecer, de dentro da mata, a estacada e,
apezar de seus habitos e habilidade na espionagem, não podérão passar
além do piquete que, como já participámos, existe entre o rio e o
entrincheiramento. Este piquete compõe-se de 10 a 12 praças, que se
achavão montadas em burros (o que indica a falta de cavallos) para
cercarem as rezes que conservão, encostadas á margem do rio, para o
consumo. Na frente ha uma bandeira vermelha, junto a um _mangrulho_,
d'onde uma sentinella devassa grande extensão de terreno.

(Os paraguayos chamão _mangrulho_ a uma guarita elevada sobre 2 ou 4
esteios de 40 a 60 palmos, d'onde a vista se estende muito ao longe).

Descendo o rio pela margem direita, chega-se com 4 legoas de marcha ao
porto do Jatobá, que dizem ser vadeavel, depois de um pequeno nado e que
dista do Souza, pela margem esquerda, 2-{1/2} legoas.

Em geral todas as trilhas achão-se apagadas pelo muito capim e falta de
transito: devem ser preparadas quando a força tiver de dirigir-se ao
porto escolhido para a sua passagem.

Distancia que percorremos 23 legoas.


CONTINGENTE PARA A FORÇA OPERADORA

_Guarda nacional._--Segundo as informações, que nos prestou o Illm. Sr.
tenente coronel Albuquerque, commandante do batalhão n. 7 da guarda
nacional, existem 85 praças mal armadas e sem fardamento e poucos
officiaes, tendo-se retirado a maior parte d'elles para diversos pontos
longinquos d'esta provincia. Achão-se os guardas espalhados n'uma larga
zona e são elles os que preparão a maior quantidade de mantimentos, o
que deve ser attendido por occasião de sua reunião que desfalcará, pela
falta de braços, o numero de alqueires de mantimentos com que poderia a
força contar.

Estão tambem qualificados guardas nacionaes indios quiniquináos e
terenas que melhores serviços prestarião englobados nas suas respectivas
tribus, como por exemplo o indio José Pedro, capitão dos terenas, que
deve ser conservado á frente de sua gente pelo respeito que tem sabido
infundir e obediencia que lhe prestão os seus companheiros.

A guarda nacional acampou, de 3 a 22 de Setembro do anno passado, junto
ao capão dos Boritys, tendo-se ahi reunido 66 praças desarmadas, que
forão licenciadas para cuidarem em roçados e plantações. Existe algum
cartuxame para seu municiamento: entretanto ha muitos cartuxos
deteriorados e inserviveis.


_Indios._--Informações frescas colhidas do Sr. João da Costa Lima, que
chegou das aldêas além Aquidauana, dão-nos os meios de apresentar o
total de indios que, além dos guaycurús, cujo capitão Nadô consta vir-se
apresentar com toda a sua tribu, poderá coadjuvar a força.


Terenas           216
Quiniquináos       39
Laianas            20
                  ---
                  275 homens.


Estes indios mostrão a melhor disposição, offerecendo-se com
espontaneidade e servindo com toda a dedicação, como verificámos nos
nossos ultimos reconhecimentos. Achão-se muito atemorisados com a
chegada da força, pois que repetidas ameaças dos fazendeiros, refugiados
aqui e em outros lugares, por causa das rezes que elles são obrigados a
matar para a sua alimentação, tem incutido o temor de que as forças
virão escravisal-os e tratal-os com todo o rigor da guerra. Procurámos
tranquillisar esta pobre gente que, nos calamitosos mezes de invasão,
portárão-se com moderação não natural na esphera e condição em que
vivem.

Os _cadiuéos_, inimigos figadaes dos paraguayos, não merecem confiança
alguma e têem, em varias occasiões, causado tantos damnos aos
brasileiros como aos inimigos.


RECURSOS

Insistindo ainda sobre a importantissima questão de fornecimento e
acquisição de gado, que se tem tornado muito difficultoso, depois da
peste dos cavallos, levámos ao conhecimento do commando das forças a
falta absoluta de cavalhada desde o Coxim até os Morros, onde os
fugitivos de Miranda se achão desprovidos de carne para sustento
proprio, pela destruição completa de todos os animaes, desde Dezembro do
anno passado. O tenente coronel Albuquerque indica os cidadãos, de que
fallámos na nossa ultima participação, prestando-se-lhes os meios para
munirem-se de cavallos.

Ao numero de alqueires, dado no mappa dos mantimentos, que se podem
obter dos habitantes dos Morros, devem ser addicionados mais 45 de
arroz, e de cangica 22. Ponderamos comtudo de novo que o chamamento dos
guardas nacionaes ao serviço das armas, deve diminuir a quantidade de
viveres indicada n'aquelle mappa, por não se achar a colheita concluida,
e pertencerem quasi todos os seus possuidores á guarda nacional. A
requisição que, segundo as nossas instrucções, fizemos de homens para a
construcção de canôas no rio Negro, impossibilita varios cidadãos de
promptificarem os mantimentos que tinhão promettido.

Indagando de diversos pontos d'esta provincia ou de outra que poderião
mandar viveres para as forças no districto de Miranda, apontárão-nos a
villa de Santa Anna do Paranahyba, que dista de Camapuam 60 legoas,
ficando este ultimo lugar, hoje completamente abandonado, a 50 legoas da
villa de Miranda; por agua fallárão-nos na communicação muito frequente
antes da invasão, entre Porto Feliz, em S. Paulo, e o acampamento de
Nioac, descendo canôas carregadas os rios Tieté e Paraná, e subindo o
Ivinheima e Brilhante até Sete Voltas, d'onde, com cinco dias, chegavão
carros a Nioac. Esta viagem, que fazião em 4 mezes, ida e volta, póde
fornecer abundante provimento ás forças no caso de sua demora no
Baixo-Paraguay: indicamol-a por ser esta hypothese possivel e dever
cuidar-se quanto antes na reunião de viveres que, de mais á mais, hão de
tornar-se escassos em territorio devastado e sem recursos.


MEIOS DE PASSAGEM DO RIO NEGRO E AQUIDAUANA

Guiando-nos pelas nossas participações anteriores, que aconselhão a
marcha das forças do Coxim nos primeiros dias de Maio, requisitámos a 6
do corrente 12 guardas nacionaes e indios para irem construir barcos
para a passagem da expedição.

Com difficuldade, apezar das ordens do tenente coronel commandante,
estão-se reunindo as praças pedidas, faltando completamente toda a
especie de ferramenta. Estes homens, como melhores trabalhadores, são os
que preparão a maior quantidade de mantimentos para a força, não se
achando ainda terminada a colheita de milho e arroz, e sobretudo não tem
meio algum de conduzir viveres que cheguem para alimentação, durante o
mez necessario de parada n'um local totalmente falto de recursos como é
o rio Negro. Apezar de tudo vamos tratar de apressar a remessa d'estes
guardas, requisitando mais 12, á vista das instrucções que nos mandão
preparar meios de passagem nos differentes rios, para o trabalho que
temos de fazer nas canôas que servirão no Aquidauana.

Para este ultimo rio deverão subir as canôas do tenente coronel
Albuquerque, do seu acampamento no rio Negro, ficando nós aqui para
mandarmos preparar, com uma serra e um machado, taboas e barrotes que
formarão as barcas na occasião da approximação da força, pois que
qualquer trabalho precipitado póde ser inutilisado pelo inimigo, o qual
parece ultimamente vigiar mais cuidadosamente as margens do rio.

Força maior nos impede de acompanhar os homens que vão ao rio Negro:
levarão para dirigil-os um official carpinteiro habilitado na factura
das canôas. Para guia das forças até o Aquidauana recommendamos denovo o
pratico Antonio Maria Tonhá, homem utilissimo por conhecer perfeitamente
os caminhos e campos por onde se possão abreviar as marchas e saber dos
lugares onde existão boas aguadas.

Para Miranda e Nioac há n'esta localidade muitas pessoas proprias para
servirem de guia.


DISTANCIAS ALÉM DO AQUIDAUANA


Do porto do Souza a Miranda      10 legoas
De Miranda ao Eponadig            9    »
Do Eponadig á Forquilha           7    »
Da Forquilha a Nioac             10    »
                                ---
Do porto do Souza a Nioac        36    »


FORÇA INIMIGA

Duas extensas cartas, cuja integra remettemos, que recebêrão os
moradores d'este lugar do cidadão João Barbosa Bronzique, prisioneiro
dos paraguayos em sua fazenda, desde o anno passado, derão-nos
informações do estado a que se achão reduzidos os inimigos e da força
espalhada em diversos pontos: tem elles nas colonias de Dourados e
Miranda 100; no Brilhante 100; Sete Voltas 10; Vaccaria 100; Agua fria
30; Nioac 500; Taquarussú 200; Porto do Souza 200. Ao todo 1,240 homens,
a que se devem acrescentar os 50 de Miranda que vierão para o Espenidio
e Souza e outros que existem junto do Apa e morro do Canastrão, onde
possuem boa cavalhada. Desde o Porto do Souza até o de Maria Domingas,
os paraguayos têem ultimamente lançado fogo a todos os campos e
desbastado as margens, parecendo ter assim conhecimento dos proximos
movimentos de nossa força.

Morros, 16 de Abril de 1866.




Notas:


[1] Tacoára hy, (tupi).

[2] Não é o _marmeleiro_ de que trata Saint-Hilaire, sob o nome de
Maprounea brasiliensis (euphorbiacea).

[3] Temos o desenho d'ella no album de viagem. Folhas oppostas; corolla
monopetala com um labéolo; antheras didynamas; ovario sobre disco
hypoginio. Flôr com 2-{1/2} pollegadas de comprido; Stygma bipartido.

[4] Folhagem muito delicada; folhas tomentosas e ovario livre; sementes
ovoides.

[5] Em fórma de colher (cochlear).

[6] Calophyllum brasiliense, (Saint-Hilaire). Oanandim, lantim ou
olandy; excellente páo para canôas.

[7] As folhas d'esta planta são muito desenvolvidas. No corrego da
Pontinha (a 8 legoas de Camapuan) vimos algumas com um palmo de largura
e palmo e meio de comprido, lustrosas e completamente glabras.

[8] _Acacia maleolens_ de Freire Allemão.

[9] É conhecido nos sertões do norte por _cajueiro bravo_ ou melhor
_çaimbahiba_ (_çaimbé_ aspera, _yba_ arvore). Curatella çaimbahiba.
(Saint-Hilaire).

[10] Bority ou mority.--Do tupi, _mooro_, nutrir, _ty_, succo.
(_Mauritia vinifera_. Mart. _flexuosa_. Lin.)

[11] A 6 legoas do rio Piquiry; _picá_, pomba; (r) _hy_, agua (L. T.)

[12] Esta palavra derivada do tupi (_caa-poam_, ilha) é com razão
geralmente empregada em todo o Brasil.

[13] O sertanejo Perdigão.

[14] Fourcroya gigantea.

[15] _Gua_, baga; _yrob_, acre (lingua tupi). Psidium _Vell_.--Eugenia
_Mart_.

[16] Familia entre as rosaceas e magnoliaceas.

[17] Autor do poema _La Gastronomie_, publicado em 1800.

[18] _Amaca_, rede; _yva_, arvore (lingua tupi).

[19] Ara Ararauna (especie particular aos sertões de Goyaz e Mato
Grosso).

[20] Ara Aracanga.

[21] Ara Hyacinthinus (Descourtils).

[22] _Crypturus noctivagus._ Começa a piar apenas descamba a tarde.
Martius chama-a _tinamus_ nocturna. Em algumas partes do imperio é
conhecida por _sabelé_. [23] Os banhos das folhas d'esta plantinha são
efficassissimos nas orchites. (Davilla elliptica, Saint-Hilaire).

[24] Sapindus (Saint-Hilaire).

[25] Lugares empantanados, pascigos do gado.

[26] Em lingua tupi quer dizer _páu de cajú_ (mara-cajú). Segundo alguns
_cascavel ao pé_ (maracá jub) da serra. (Glossario).

[27] Toda audacia é permittida em hypotheses. Impressionárão-nos, de
passagem, sem estudo, aquellas linhas que correm parallelas por muitas
legoas. Serão na realidade indicação do que acima tocámos, ou
simplesmente effeitos de infiltrações vagarosas em estratificações,
erosões, etc.?

[28] Amambahy ou Ambaibahy--_Hy_, agua.--_Ambaiba_ ou _embauba_
(urticacea do genero Cecropia). Castelnau dá á porção de serra, que
conhecemos, o nome muito apropriado de serra da Chapada: entretanto
nunca o ouvimos nas localidades, onde os moradores usavão só da
denominação de Maracajú.

[29] Na provincia de Minas chama-se _paratudo_ a uma
amaranthacea,--gomphrena officinalis. A causa do paratudo (bignoniacea)
tem grandes propriedades febrifugas e sudorificas.

[30] Os indios Guanás o chamão _namuculí_.

[31] Esta arvore, _hymenæa_, abundantissima no rio Negro, ia-se tornando
cada vez mais rara. Os seus fructos, quando maduros, são supportaveis e
muito nutrientes: os nossos soldados, no acampamento do rio Negro,
sustentavão-se quasi exclusivamente d'elles.

[32] Contracção de ipé, uva (arvore).

[33] O que, no interior do paiz, se chamão tijucaes, palavra brasileira
tirada da lingua tupi, _tyjuca_ (lama). Usa-se tambem muito do verbo
_entijucar_ por enlamear.

[34] _Mureci penina_ ou pintado. Em Mato Grosso assim chamão o mureci do
pantano. Será com certeza--chrysophylla--a especie? Em todo caso, o
genero é _byrsonima_, bem caracterisado. Com ser malpighiacea, vêm-se os
pares de glandulas bem apparentes; ás vezes desenvolvidas em extremo, em
cada sepala. Do fructo do _mureci_, diz com justeza Pison:--Fructus
maturi gratissimi quidem acore pulatum vellicant, sed stuporem tandem
dentibus inferunt simulque astringendo intensè refrigerant. (De
facultatis simplicium Lib. IV).

[35] Em Mato-Grosso quasi todos pronuncião esta palavra grave.

[36] Ciconia Maguari (G. Temm).

[37] Vimos nas _mimosaceas_ dos barreiros myriades de _vira-bostas_,
(Icterus violaceus, Desc.); _encontros_ (Xanthornus tristis, Desc.) e
_anús_ (Crotophaga, Marcgravio).

[38] Cateitus (dicotyles torquatus) e porcos do mato (dicotyles
labiatus).

[39] Na bahia Negra, abaixo do porto de Coimbra. A proporção de sal para
a terra era, n'um alqueire de mistura, tres quartas partes.

[40] As salinas da margem direita do rio Paraguay são muito mais ricas
em sal, do que as da margem esquerda. Antes da invasão, havia prohibição
de tirar-se sal da bahia Negra, por estar o barreiro em territorio
contestado entre o Brasil e a republica do Paraguay.

[41] Na margem esquerda do rio Paraguay, defronte de Corumbá.

[42] É palavra geralmente usada nas fazendas de gado.

[43] Devida a uma intoxicação paludosa.

[44] Aspidosperma.

[45] Os nossos amigos os Srs. tenente João Faustino do Prado e João
Mamede Cordeiro de Faria.

[46] _Caapi-iára_, dono do capim (Gloss.). Com mais razão, diz Gonçalves
Dias _capi-uara_, derivando uára de goára (habitante que mora, em
determinada parte, por vontade propria). Das capivaras, diz Marcgrav com
exageração notavel:--Noctu ingentem clamorem excitant et horribile fere,
ut Asini solent.

[47] Vanellus cayennensis (Vieill.).

[48] Em Agosto, deviamos de apreciar a magestosa florescencia d'aquellas
bignoniaceas; _ipés_, Tecoma speciosa Vall., _para-tudos e carobinhas_
(jacarandá procera) ostentavão então massiços amarellos e azues da maior
belleza.

[49] Obteve em fins de 1867 esta distincção e em Janeiro do anno
seguinte falleceu na cidade de S. Paulo, onde se achava, depois de uma
viagem ao Rio de Janeiro, com alguns de sua tribu.

[50] _Pery_, junco (tupi).

[51] Desde Maio de 1865 não fazião senão raras incursões, na margem
direita do rio Aquidauana.

[52] Denominação indigena do rio Miranda ou Embotety e Embotetiú, das
palavras, _enimbo_ laço, _tui_ periquito--laço para piriquito. Tambem
tem nome de Aranhahy, Guaxihy e alguns escriptores portuguezes lhe dão o
de Mondego, ainda que pareça este só convir, depois da confluencia com o
Aquidauana.

[53] Uma carta de João Barbosa Bronzique, prisioneiro dos paraguayos, em
sua fazenda do Bonito, deu noticia d'essa prohibição devida, ao que elle
suppunha, aos ataques repetidos dos indios, que se occultavão nas matas
do lado direito do rio.

[54] Ilex congonha, familia das Illicineas (Aquifoliaceas de de
Candolle). Das congonhas fazem os habitantes uma agradabilissima
infusão.

[55] _Cama_ mama, _apuam_ redonda (tupi).

[56] Os oauassús, chamados pelos guaycurus _chatellôd_, são as
magestosas palmeiras de que já temos fallado: os grupos que ellas
fórmão, são imponentes. Os troncos lisos, ligeiramente engorgitados na
base, as cópas erectas e compridas folhas, com um prateado fugaz, as
distinguem de muito longe. Os côcos de bom tamanho dão amendoas com o
valor approximado ás da Bahia e constituem durante certas épocas a
alimentação quasi exclusiva dos indios. Pelo systema phyllotaxico,
preconisado pelo professor Agassiz, a fracção 1/3 representa a
disposição das folhas, occupando os intervallos, as espadices da
inflorescencia. Assemelhão-se os oauassús ás magnificas _oreodoxas_, tão
em moda no Rio de Janeiro: Martius deu-lhes o nome de _attalea
spectabilis_. Em lingua tupi significão folha grande: _oau_ ou _oba_
folha, _assú_ grande.

[57] O laiana pertence á numerosa familia chané: a sua linguagem é a
mesma que a dos quiniquináos, terenas e guanás com algumas alterações:
os seus costumes identicos. O seu typo é caracteristico; a physionomia
muito menos expressiva que a do terena e menos delicada que a dos
quiniquináos; elles têm o nariz afilado, ás vezes pontudo, os olhos
algum tanto divergentes, os labios finos e apertados.

As suas plantações consistião em arroz, milho, feijão; porém as chuvas
falhadas impedião que ellas tivessem aspecto satisfactorio; por esta
razão, não podérão os seus possuidores prometter cousa alguma para as
forças.

[58] O corrego da _Pontinha_, perto de _Camapuam_, é uma das cabeceiras
mais afastadas.

[59] _Uacôgo_, corrego dos Couros (guaycurú).

[60] As _aracuans_, Penelope aracuan (Spix.), são aves de plumagem
escura, pernas curtas, bico preto e forte. É caça procurada pela alvura
e sabor da carne. Este passaro offerece uma particularidade singular.
Quando um grita, é logo acompanhado por todos os companheiros, de modo
que, por qualquer ruido, levanta-se grande alarido em ambas as margens,
o qual vai-se propagando e crescendo. É muito applicavel o--_Vires
acquirit eundo_.

[61] Esta ave conhecida tambem por _inhuma-póca_ canta com regularidade,
de modo que, dizem, póde marcar as horas e tambem annunciar mudanças de
tempo. Tem como a _palamedea cornuta_ excrescencia na cabeça. Marcgravio
diz do canto: Terribilem clamorem edit--_vihu vihu_--vociferando.

[62] O _tuyuyú_ (micteria americana) é a maior das aves ribeirinhas:
todo branco com uma colleira vermelha, tem um bico longo e tubulado.
Nutre-se de peixe e anda no lodo das bordas de rios. A sua altura, fóra
o pescoço, é de 1, m. 2.

[63] O _tabuyayá_ (ciconia maguari) é maior que a garça; tem azas pretas
malhadas de branco: o bico e pernas compridos. Em guarany chama-se
baguary (Martius).

[64] Na nossa passagem do Aquidauana, um soldado foi arrebatado por um
jaù.

[65] Pison diz com razão da carne: «Edulis non solum caro ejus
albissima, sed quod friabilis et sicca optimi saporis».

[66] Familia dos Aproterodontes--Gen. boa--Esp. murina (Principe de
Neuwied e Sellow): boa scytale (Lin.) Estas serpentes apparecem raras
vezes nos affluentes do rio Paraguay, ao passo que abundão nos do rio
Paraná. O grito d'ellas, ê, dizem, estridente. Nunca ouvimos esse ronco
de que tanto se falla no sertão.

[67] Entre as absurdas historias, tocantes a essas serpentes, sobresahe
a referida por Charlevoix, na sua historia do Paraguay, o qual diz que
os sucurys se atirão sobre as mulheres com outro fim, que não o de
devoral-as e cita o testemunho do padre Montoya que confessára, em certa
occasião, uma india _in extremis_: «laquelle étant occupée à laver du
linge sur le bord d'une rivière, avait été attaquée par un de ces
animaux, qui lui avait fait, dit elle, violence: le Missionaire la
trouva étendue par terre au même endroit, etc.»

[68] Relatorio geral da commissão de engenheiros (pag. 22 e 31).

[69] Spix chama-o _pacú-argenteus_, não sabemos se com razão; o pacú
pouca semelhança tem com o corimbatá.

[70] Contra ella tambem bate o rio Aquidauana, formando uma curva
apertadissima. Além, no outro lado, eleva-se o _Morro Azul_, seguindo de
novo a serra até Nioac e para os lados do Apa; baixa, porém, e com
disposição de morretes.

[71] Citaremos uma lindissima _apocynea_ (nerium?), varias _salvia_, a
_ardísia_ (_Ardisacea_), a curiosa _aristolochea galeata_, que se
enrosca nos mais flexiveis encostos; a fragrante _saudade_ do campo
(scabiosa-dipsacea), hyptis (labiadas), _malpighiaceas_ rasteiras com
cambiantes samaridios, a vistosa _gomphrena officinalis_ (o para-tudo de
Minas) _malvaiscos_, etc.

[72] Erão os restos da abundantissima colheita paraguaya; esses campos,
poucos mezes antes, havião contido muitos milhares de rezes. O districto
de Miranda possuia 150,000 cabeças de gado: d'essas, segundo o
testemunho de vista de João Barbosa Bronzique, o infeliz prisioneiro de
que já temos fallado, 60,000 passárão para a republica do Paraguay em
varias pontas e ainda no tempo em que viajavamos pelo Aquidauana
continuavão amiudadas as remessas. A carne do gado d'essas vargens è
saborosissima.

[73] Palavra tupi, usada geralmente: significa _casa abandonada_.

[74] Momordica operculata (Velloso), charantia.

[75] Quasi todos os habitantes de Miranda fugírão embarcados, descendo o
rio Miranda, entrando no Aquidauana e subindo por este até perto do
porto do Souza. Ahi se refugiárão nas fragosidades da serra de Maracajú
(Morros); alguns tomárão caminho de Sant' Anna do Paranahyba. A villa
ficou deserta a 4 de Janeiro de 1865: a 12 entrárão os paraguayos que
n'ella estiverão até fins de Fevereiro d'aquelle anno.

[76] Das outras tribus que refere Castelnau, não ouvimos fallar. Talvez
estejão extinctas ou confundidas com estas.

[77] Tanga, avental.

[78] Muito aprecião o _tarumá_ (Vitex montevidensis) que em Dezembro de
1866 constituia a principal alimentação da gente quiniquináo dos Morros.

[79] Bixa orellana.--Genipa americana.

[80] Léry faz esta justiça ás indias em geral, quando diz: «qu'á toutes
les fontaines et rivières claires, qu'elles rencontrent, s'accroupissans
sur le bord ou se mettans dedans, elles jettent, avec les deux mains de
l'eau sur leur teste et se lavent et plongent ainsi tout leur corps
comme cannes, tel jour sera plus de douze fois» (Histoire de l'Amérique,
pag. 128).

[81] Quasi todos os nomes de lugares e rios do districto de Miranda são
de origem guaycurú.--_Euagaxigo_, significa bando de capivaras;
_Eponadigo_, bando de trairas; _Lauiád_, campo bello; _Nioac_, clavicula
quebrada.

[82] Esses lindissimos lugares forão explorados a vez primeira pelo
intrepido sertanejo José Francisco Lopes, o qual encontrou, n'uma de
suas viagens, uma numerosa partida de cadiuéos, que o acompanhou até
terras do Paraguay.

[83] Palavra guarany que significa Nosso-Senhor. Os terenas usão d'esse
vocabulo. Os outros guanás dizem _Ech[-a]i-uanuké_ (que está no céo).

[84] Herpethoteres. Azara chama _Macaguá_: alguns _acauan_ ou _oacaoam_.

[85] O mesmo fazião os medicos entre os guaranys (Padre Loçano).

[86] Não sabemos se deve merecer fé o que diz Castelnau sobre
assassinatos dos padres.

[87] O mesmo dava-se entre os padres dos guaranys (Padre Montoya).

[88] Léry diz dos tupinambás:--«Ils lamentent de telle façon, que si
nous nous trouvions en quelque village où il eust un mort, ou il ne
fallait pas faire éstat d'y coucher, ou ne se pas attendre de dormir la
nuit. Mais c'éstait merveille d'ouyr les femmes, lesquelles braïllent si
fort et si haut que vous diriez, que ce sont hurlemens de chiens et de
loups» (Histoire de l'Amérique, pag. 392).

[89] Léry refere: «Si elles se ressouviennent de leurs feus parents, ce
sera, faisant les regrets accoutumez, á hurler de telle façon, qu'elles
se font ouyr d'une demi-lieue (H. de l'Amérique, pag. 400).

[90] A que chamão na provincia _lavrados_.

[91] Principalmente o _timbó_ (paullinia pinnata) que tem violentas
propriedades toxicas.]

[92] Batem-se a punho secco, ainda mais geitosamente que os albiões (M.
Ayres de Casal C. B. pag. 234).

[93] Todo o homem branco, pardo ou preto, é portuguez; os indios nunca
usão da denominação de brasileiros: os paraguayos são ainda para elles
castelhanos.

[94] Temos por vezes usado d'essa denominação de uma das tribus da nação
chané, como que abrangendo a todas as outras, porque no districto de
Miranda conhecem-se todos os indios chanés por guanás. Entretanto
perguntando eu, certo dia, a um terena se elle era guaná: _Acó chooronó,
chané cuané téreno enómone_; guaná não, chané ou terena na verdade
(litt.).

[95] Esta tribu habitou primitivamente quasi toda junta á serra chamada
do Chané, no lado direito do rio Paraguay, acima da do Albuquerque,
dando a cordilheirasinha o nome da nação a que pertence? Ou lá esteve
toda a nação? Nas minhas notas encontro ainda uma confirmação de que a
denominação de chané, é valiosissima. Disse-me um quiniquináo:
_Humn[-a]i quechatí cequexivó nhumzó chané?_ O senhor quer aprender a
minha lingua chané? e acrescentou: _Encre nhumzó acó ocohocorí
iaquexovói chané_. Pois minha lingua não custa aprender o chané
(litteralmente). Ao illustrado viajante Henrique de Beaurepaire Rohan
não escapou esta particularidade importante.

[96] O ultimo accento é o tonico: os outros modificão o som das vogaes.

[97] Os dois _l_ soão claramente.

[98] Os laianas dizem _moreví_, como em guarany.

[99] Na lingua tupi _paraguá_, papagaio; d'onde _paraguá hy_, rio dos
papagaios.

[100] Castelnau no seu inexactissimo vocabulario _guaná_ exprime esta
palavra por _ann[-a]iti_ que significa _grande_, ignorando a sua
qualidade de adjectivo, o qual vai modificar _piritáo_, faca. Não merece
confiança a traducção dos outros vocabulos.

[101] Os indios chamavão-me _ungê-maracaiá_, olho de gato. Os guaranys
dizem _mbaracaiá_; na lingua tupi _maracayá_ ou _maracajá_.

[102] Talvez se devesse escrever _ingâchá-á_: em todo o caso não se
pronuncia claramente o _in_, fazendo só soar o _g_, arrastando-o.

[103] A palavra é esdruxula: não sabemos porque se a pronuncia grave.

[104] _Mámá_ em lingua caiuá, muito approximada ao guarany, senão o
proprio.

[105] Os _h_ são todos aspirados com energia.

[106] _Noné capací_, cara de nuvem, era a antonomasia de um de nossos
soldados, por causa da guedelha desgrenhada.

[107] Este _j_ sôa, como em hespanhol, gutturalmente.

[108] Significa _peixe de rabo de sangue_ (vermelho).

[109] Quer dizer _piolho de cão_.

[110] Vê-se claramente que quiniquináo é alteração da palavra india.

[111] Os nomes de peixes são, como este e muitos outros, guaycurús.

[112] Esdruxulo, quando em portuguez é grave.

[113] Os quiniquináos dizem _pahapáti_.

[114] Observa-se a irregularidade de formação. São novas palavras.

[115] Esta palavra é de mui difficil pronuncia. Nunca a podêmos escrever
conforme a ouvimos.

[116] Além de tres dizem _tápuia_ muito, ou _opôicoati_. Para marcarem
épocas, serve-lhes a florescencia do _para-tudo_. Um indio disse-nos:
«Já o para-tudo deu flôres duas vezes e os castelhanos ainda estão em
Miranda».

[117] Os imperativos, que elles empregão muito, terminão quasi todos em
_ca_, exemplo: _iticá_ faze, _tetucá_ corta, _nicá_ come, _angicá_ lava;
dos verbos _ittuketi fazer_, _tetocoti cortar_, _ningá comer_,
_angicóati_ lavar.

[118] Litteralmente _unati_ bom, _niké_ comida. _Cuati_ deveras,
_echoti_ sabe, _itucoati_ fazer, _nica_ comida, _ienó_ sua mulher.

[119] Tambem diz-se _emó_? quem sabe?

[120] Tomámos para estimativa da distancia vencida a média, em diversas
observações, do tempo gasto por um animal carregado em percorrer uma
certa extensão medida; sendo a unidade o minuto que achámos
correspondente a 30 braças, 355.

[121] O rio pareceu-nos profundo e suppomos nunca poder dar váo bom á
artilharia e cargueiros.

[122] Commandada pelo capitão José Pedro de Souza, o qual sempre se
prestou a coadjuvar-nos efficazmente em todos os nossos trabalhos.




Lista de erros corrigidos


Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


  +-----------+--------------------------+-------------------------+
  |           |        Original          |        Correcção        |
  +-----------+--------------------------+-------------------------+
  |#pág.    15| ininvejavel              | invejavel               |
  |#pág.    20| nás difficuldades        | nas difficuldades       |
  |#pág. 23/24| estimativativa           | estimativa              |
  |#pág.    81| Pararaguay               | Paraguay                |
  |#pág.   113| abuntante                | abundante               |
  |#pág.   128| fequentemente            | frequentemente          |
  |#pág.   130| syllada                  | syllaba                 |
  |           |                          |                         |
  |#nota    52| escriptores. portuguezes | escriptores portuguezes |
  +-----------+--------------------------+-------------------------+

Quando há indicações de data em que o ano não se encontra completo, optámos
por apresentá-lo como no original.

Mantiveram-se versões da palavra Aquidauana, tais como Aquidauna.





End of Project Gutenberg's Scenas de viagem, by Alfredo d'Escragnolle Taunay

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK SCENAS DE VIAGEM ***

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Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
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The Foundation is committed to complying with the laws regulating
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considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


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works.

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Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


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