Os meus amores: contos e balladas

By Trindade Coelho

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Title: Os meus amores
       Contos e baladas

Author: Trindade Coelho

Release Date: August 30, 2007 [Formerly #22463, now included with #17503]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS MEUS AMORES ***




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OS MEUS AMORES


TRINDADE COELHO


*OS MEUS AMORES*

(Contos e Baladas)

_2.^a edição_


LISBOA

Livraria de António Maria Pereira

50, 52--Rua Augusta--52, 54

1894




_LISBOA_

Tipografia e Estereotipia Moderna

11--_Apóstolos_--11




Ao Doutor

António Xavier Perestrelo




«_Os Meus Amores_»


_Folhas dispersas dos meus anos de ouro,
Vivo enxame das minhas alvoradas,
Tenho zelos de vós, folhas sagradas,
As Desdémonas sois de um outro mouro.

As brancas horas que eu em sonhos douro,
Essas horas febris, iluminadas,
Ei-las fugindo, em tristes debandadas...
Levais nas asas todo o meu tesouro.

Folhas: subi, voai ao céu tão alto,
Que o céu em estrelas vos converta e mude,
Lá nas longínquas ilusões que exalto;

Como as frementes águas de um açude,
Levai a Deus, no derradeiro salto,
O derradeiro adeus da juventude_...

_Luís Osório_.




IDÍLIO RÚSTICO

_A Fialho de Almeida_.


Quando atravessou a povoação, rua abaixo, com o rebanho atrás dele,
era ainda muito cedo. Ao longo das ruas tortuosas, as portas
conservavam-se fechadas, e não vinha das habitações o mais
insignificante ruído. Dormia-se a sono solto por todas aquelas casas.
Apenas algum cão, subitamente acordado em sobressalto pelo chocalhar do
rebanho, ladrava do alto dos escadórios de pedra onde ficara de
sentinela, ou de dentro das curraladas, onde levara a noite fazendo
companhia aos novilhos. Donde em onde, galos madrugadores entoavam
matinas sonoras, que eram como risadas vibrantes de boémios, nalguma
estúrdia, a desoras...

Mas passadas as últimas casas, o silêncio condensava-se para toda a
banda, numa grande pacificação de templo adormecido. Nem vivalma pela
ladeira que levava ao rio, por um caminho em zig-zags. Fulgiam no céu
azul-escuro cardumes prateados de estrelas. A toda a largura, a
paisagem era torva e indecisa, imersa numa luz muito mortiça que nem
era bem a da madrugada, nem era bem a da noite. No entanto a manhã era
calma; nem rumores de brisa pela rama das azinheiras velhas que faziam
guarda ao córrego por onde o rebanho tomara. Cigarras, grilos nas
ervagens, rãs que coaxavam nas regueiras, era o mais que se ouvia acima
do rumor brando dos chocalhos. Nem um balido de ovelha em todo o rebanho
que se ia submissamente à mercê do pequeno pastor, parando se ele
parava a colher as amoras frescas dos silvados, recomeçando marcha se de
novo ele se punha a caminhar.

Quando passou rente ao meloal da fidalga, ouviu-se o ruído de um tiro,
que o eco levou para longe.

--Não gastes pólvora, António!--recomendou o pastor.--Ouviste?

E logo a voz do guardador:

--Madrugas hoje, Gonçalo!

--P'ra que saibas: cá um homem não tem medo.

--Está bem. Adeus!

--Saudinha.

A esse tempo ia-se já definindo a manhã, na luz, no som, na cor. Invadia
a amplidão da cúpula celeste uma tinta alvacenta, onde as estrelas
feneciam no seu brilho. Ao alto, na ladeira de além, entravam de fazer-se
nítidas as linhas sinuosas das cristas, onde enormes rochedos tinham
altitudes de uma imobilidade misteriosa e sinistra... Neste assomo
de alvorada, as coisas iam despertando lentamente para a alacridade
vigorosa da luz. Das moitas e sebes, calhandras em bandos levantavam-se
repentinamente, em voo perpendicular, e cortavam ares fora, chilreantes
e alegres, até se perderem de vista por detrás dos arvoredos e cabeços.
De cauda em riste e orelhas imóveis, o rafeiro espreitava as ervagens
secas, onde algum réptil passasse vagaroso.

--Busca, Turco!--fazia-lhe o Gonçalo que tinha medo às cobras.--Busca,
valente!

À medida que descia a ladeira, um marulhar monótono de águas ouvia-se,
mais e mais distinto. Era o rio que parecia perto; mas primeiro que lá
se chegasse ainda era preciso andar... Era um poder de passos e de
paciência,--reflectia o pastor, a quem aborreciam de morte os
intermináveis torcicolos da vereda. Ia andando, descendo sempre, à
frente do rebanho silencioso. E quando os sapatos começaram de calcar
areia, e ali, perto, o rio lampejava, sob aquele céu ainda estrelado,
o Gonçalo desabafou:

--Uff! até que enfim!--E pensava aliviado:--Nada mais fácil do que
terem-me saído os lobos!...

Mas vista àquela hora, e no meio de tal silêncio, a corrente líquida
tinha o que quer que fosse de sinistro, que evocava lembranças
aterradoras, espectros dos que ali mesmo tinham morrido afogados, numa
luta desesperada com as águas, clamando em vão que lhes acudissem, em
tamanho transe aflitivo. A margem de lá, especialmente, era toda
acidentada de rochedos informes, blocos medonhos, por entre os quais no
Inverno o vento assobiava lúgubre, e as águas faziam remoinho, o que era
um perigo para os pobres barcos que se aventurassem incautos, num
descuido involuntário--simples remadela pouco a tempo, manobra menos
segura de leme, ou impulso errado de vara.

E então, cabeços enormes de um lado e doutro, projectando sobre o largo
leito do rio a sua sombra pesada e desconforme, que mais triste fazia o
sitio e parece que mais solitário, pois fechavam-no bruscamente, fazendo
limitada a paisagem.

A todo o comprimento da margem, o rebanho pôs-se então a beber manso e
manso, e sem o mínimo ruído.

Foi quando o Gonçalo acabou de se convencer que na margem de lá, um
pouco mais abaixo, outro rebanho bebia também.

--Tate, Gonçalo! Aquela chocalhada...

E imóvel, remordendo o lábio, com o ouvido à escuta, pensava:

--Ora se será ela?...

Súbito, estremeceu. Ante o seu espírito infantil perpassou, como um
clarão de relâmpago, a imagem de uma rapariga, pastora como ele, com
quem se havia encontrado mais vezes, mas que havia muito não vira.

--Ai, se fosse a Rosária!... dizia consigo.

E impondo silêncio ao rebanho, que acabara de beber, pôs-se atentamente
à escuta do tilintar dos chocalhos na margem oposta.

«O rebanho parecia o mesmo, lá isso... Agora o pastor é que podia ser
outro que não a Rosária...»

Senão quando, uma ideia lhe acudiu que o fez sorrir de contente. Atirou
ao chão a manta e o marmeleiro, e puxando para diante o bornal, feito da
pele de uma ovelha branca, morta pelas segadas, tirou de lá a sua
flauta e pôs-se a tocar apressadamente um trecho de cantiga rústica.

No mesmo instante, uma voz muito sonora gritou-lhe:

--Eh lá, Gonçalo, és?

O pastor desatou a rir.

--Uh lá, Rosária, eu mesmo! Guarde-te Deus, pimpona!

E logo a voz fresca da rapariga lembrou:

--Não te esqueceu a moda, rapaz!

--Isso esquece ela!... Ouviste, Rosária?--Se outra fosse que ma
tivesse ensinado...

Neste meio tempo já o Gonçalo retomara a manta e o marmeleiro para ir
ter com a Rosária. Mas primeiro perguntou:

--Boto pela ponte, ou és tu que vens, ó cachopa?

--Vem tu daí. Por cá sempre é outra coisa p'r'as ovelhas. Hã?

--Basta!

E dando o sinal da partida, o Gonçalo pôs-se em marcha. Daí a
pouco, entrava mais o rebanho pela velha ponte mourisca, toda severa de
construção nos seus três arcos lançados sem elegância, atufados de
parasitas seculares que a faziam pitoresca, heras, silvas, ortigas
bravas.

A meio da ponte, mão piedosa fizera construir pequeno oratório ao Senhor
Salvador, cujo rosto sereno, espreitando por grades de arame, diziam dar
coragem a barqueiros e almocreves, que ante o pequeno e humilde nicho
com respeito se descobrissem, e com devoção rezassem uma velha prece que
era como um talismã precioso para livrar de maiores
desgraças--naufrágios no rio, e então maus encontros por aqueles
caminhos escabrosos, que eram um perigo constante para homens e animais.

Daí a pouco, as duas crianças estavam perto uma da outra, cada qual
seguida do seu rebanho.

--Ora viva a Rosária!--disse o pastor muito alegre, parando defronte da
cachopa.

--Bons dias, Gonçalo; então que ventos?

Entre os dois travou-se então um longo diálogo em que se contaram tudo o
que haviam feito desde aquele dia em que ambos tinham voltado juntos da
feira dos Caniços.

--Por sinal que nem rês se vendeu!--lembrou o Gonçalo.

--Por sinal!--disse com pena a Rosária.

Mas ele contou que viera por ali muitas vezes, muitas, sempre na fé que
a encontrava. «Vê-la agora, só por milagre de santo; quem o havia de
sonhar! Nanja ele...»

--Mas se eu estive tão doente!--volveu triste a Rosária.

E como o outro acudiu a informar-se, ela explicou:

--Umas quartãs que me tiveram mondada! A peste as mate! Febre que era
mesmo lume desde manhã até ao escurecer... Uma assim!

E na sua ingenuidade infantil, contou ao Gonçalo que muitas vezes, na
febre, sonhara com ele, que se encontravam os dois por montes e prados,
como agora tinha acontecido, «tal e qual».

--Assim te Deus salve, ó Rosária?--atalhou rápido o pastor, a quem
enchiam de orgulho os sonhos daquela pequena amiga.

--Assim; pois que dúvida?--tornou-lhe confiada a Rosária.

--Não!--disse agastado o Gonçalo.--Não hás-de dizer assim... Diz certo,
hás-de jurar direito.

--Pois assim me Deus salve...

--Como é verdade...--Diz tudo, Rosária!--suplicava o pastor.

--Sim, volveu-lhe paciente a companheira,--como é verdade que sonhava
que nos encontrávamos--concluiu por fim, muito risonha.

E sem disfarçar o júbilo, prestes o Gonçalo a certificou de que também
não a esquecera. «Tanto é que tirava da flauta as cantigas todas que
ela lhe tinha ensinado.»

--Lembras-te?

A Rosária faz que sim com a cabeça. E logo, batendo na flauta de
sabugueiro, o pastor apressou-se a declarar:

--Saem daqui sem falhar uma.--E resoluto:--Vá feito, Rosária, pede por
boca!

A Rosária pediu então a _Pastorinha_.

--Eu é da que mais gosto,--explicou.--É a mais linda.

--E é!--concordou o Gonçalo.--Ora escuta lá.

E levando aos lábios a avena, pôs-se a tocar a _Pastorinha_, enquanto a
Rosária, com a sua vozita em surdina, entrava a tempo com a letra:

Onde _vás_, ó Pastorinha,
Ai-li, ai-li, ai-li, ai-lé...

--Sabes essa! É mesmo assim!--disse-lhe a Rosária a rir-se.

--É como vês!--afirmou contente o Gonçalo.

Aos seus pés tinham-se deitado os rafeiros, e já os dois rebanhos,
confundidos, andavam na pastagem.

--Olha as ovelhas juntas!--notou o Gonçalo.

--Também nós nos quedámos juntos,--volveu-lhe a pequena, sorrindo.--As
pobres dão-se bem, são amigas...--continuou com júbilo.

--E nós também, ora também, Rosária?

--Também--respondeu afoita a pastora.

E foram-se ter conta no rebanho, que choviam as coimas e as denúncias.

       *       *       *       *       *

A esse tempo, no céu alto e lavado a estrela da alva fenecera por fim, e
o horizonte começava de carminar-se ao de leve. Por todo o céu em
cúpula, a luz fresca e viva da manhã vibrava harmonias estranhas que iam
despertar tudo, a cor da paisagem e a música dos ninhos, cantigas de
perdizes e rumor de gente por moinhos e atalhos. Manhã de Verão, serena,
tranquila, dulcíssima. Ia pelo ar um movimento extraordinário de
asas--passarada alegre que saía agora dos ninhos e voava a matar a sede
à borda das ribeiras, andorinhas que deixavam as suas casinholas em
recôncavos de rocha e tomavam para hortejos convizinhos onde a vegetação
era mais rica de seiva e mais fácil a presa dos insectos, perdizes
gralhadoras que iam de monte em monte, tordos, poupas, melros. Nos
vinhedos das encostas, por entre os renques verdejantes, gente em mangas
de camisa ia fazendo as vindimas. Pelos caminhos, em torcicolos,
viam-se os que desciam aos moinhos, tangendo machos carregados de
taleigos, e berrando-lhes cada _chó_! que se ouvia na outra ladeira. Já
nas povoações próximas sinos chamavam para a missa de alva ou tocavam a
ave-marias. Nas quintas e casas fumegavam os tectos, dizendo horas de
almoço. De modo que o sol quando rompeu, solene e triunfante no céu
imaculado, encontrou muita vida pelos campos, toda a natureza acordada
para a labuta interminável do dia. Numa clareira elevada, dominando o
rio e um trecho de paisagem para sul, tinham-se sentado os dois pastores
e continuavam conversa.

Ao pastor parecia-lhe agora mais bonita a pequena amiga, com a sua cor
trigueira levemente pálida desde que tivera as maleitas. Não se
lembrava com que santa que ele tinha visto se lhe parecia agora a
Rosária...

--Mas o cabelo assim cortado...--disse com mágoa, mirando-lhe a cabeça
nua, e passando a mão pela dele,--é que te não fica bem!

«Melhor fora que lhe tivessem deixado as tranças. Negras, de mais a
mais, que era como ele gostava...»

--Promessa da mãe se eu melhorasse--explicou a Rosária--Lembranças... A
gente quando está aflita...

--...Quando está aflita...--repetiu como um eco o pequeno. E depois,
amuado:--Se promete os olhos...

A rapariga fitou-o, espantada.

--...é porque tos tirava!--concluiu convicto.

Houve um momento de silêncio, em que o Gonçalo se pôs a escavar o chão
com uma pedra, e a Rosária a torcer um fio saliente do seu vestido
grosseiro. Ouviam-se as ovelhas chocalhando nas pastagens, ia a passar
na rodeira, longe, um carro que chiava, com uvas para algum lagar.

--Não falas, Rosária?--perguntou o pastor sem levantar os olhos para
ela.

--Também tu...--começou com medo a pequena,--logo te zangas! Olhem a
lembrança dos olhos! Se a mãe fazia isso, credo!--E depois
animando-se:--Já foste à Senhora dos Remédios?

O Gonçalo fez sinal que não tinha ido.

--Pois foi lá que deixámos as tranças, eu mais a mãe. Num prego ao lado
do altar, um lacinho verde nas pontas. Ficou lindo.

O pastor teve um movimento de enfado, não lhe agradava a conversa. E
para acabar com ela:

--Que enfim como melhoraste...--fez que concordava, pondo o bilro a
girar.--Olha como dança...--E depois, mais pensativo, batendo com o
bilro nos dentes:

--Que às vezes as promessas pouco fazem...--E interrompendo:--Sabes quem
fez este bilro?

--Foste tu, aposto.

Bateu no peito e fez com a cabeça que sim, mostrando-lho
orgulhoso--«que visse os _torneados_.» Depois continuou:

--Vai uma pessoa andando e os santos não se importam. Ora, os
santos!--Olha a minha Joaquina, tu não conheceste. A gente bem rezou e
bem promessas fez, mas ela foi-se.

E pondo-se de joelhos, começou a procurar pelo rebanho.

--Aquela ovelha, a branca, não vês? A que se vai agora deitar... Pois
era p'ra Nossa Senhora, repara que é a melhor.--E deitando-se para
trás:--Lá anda ela a pastar!--concluiu desalentado.

--Mas tinha de ser,--volveu-lhe triste a Rosária,--que as promessas
sempre fazem, lá isso...

E convicta, a pequena contou casos acontecidos para convencer o Gonçalo
de que sempre valiam as promessas. No entanto, deitado de costas, com a
jaqueta a fazer de travesseiro, as pernas em ângulo tocando-se com os
joelhos, o Gonçalo soprava pela palha o bugalhinho que constantemente ia
subindo e descendo, acompanhado pelo olhar bondoso do cão que ali perto
se deixara estar sentado. E contando, contando casos, a Rosária ia
entretendo o pastor. Mas quando ela fazia pausa, logo o rapaz acudia,
firme na sua objecção:

--Ora! mas a nossa Joaquina morreu-se! Coitadinha da Joaquina!

       *       *         *       *       *

À medida que o sol ia subindo, no céu glorioso e fulvo, iam os dois
conduzindo as ovelhas para sítios mais ensombrados, para se livrarem da
estiagem que ia valente. Calor de rachar, ali por volta do meio-dia, que
foi quando tomaram para a banda das azinheiras, e para os pinheirais,
depois. E sempre ao lado um do outro, os dois companheiros levaram de
conversa quase o dia inteiro. Nunca tinham dado fé que as horas
passassem tão depressa. Ainda armaram aos pássaros, mas foi o mesmo que
nada, os demónios andavam espantados e já conheciam as esparrelas.

--Olha lá não caiam,--tinha dito o Gonçalo, já cansado de estar à
espreita, agachado, com o fio da armadilha preso ao dedo.--Se eles
fossem tolos...

E foi-se a recolher as esparrelas, dando ao demónio os pássaros. Ela
então propôs que jogassem a pocinha.

--E o fito, ó Rosária? Sabes jogar ao fito? No adro, aos Domingos de
tarde, bato-me com qualquer, sabias?

E generoso:--Mas a ti dou-te partido: vinte e cinco às quarenta...

Como o tempo rendia, jogaram tudo--a pocinha, o fito, as necas, a
bilharda. Na bilharda, como o rafeiro trazia à mão, era ele que ia
buscar o pauzinho, quando zinia longe.

--Turco, traz cá!

       *       *        *       *       *

No entanto, ia descaindo a tarde. Ao alto, o largo céu esmorecia no seu
azul suavíssimo. Em todo o espaço o ar estava tranquilo e sereno, e já
começava para poente a decoração fantástica do ocaso. Parece que se
ouvia mais distinto o marulhar das águas no rio; já não faiscava assim
tão viva a areia branca das margens.

Foi quando o Gonçalo lembrou que era melhor irem-se chegando, mais as
ovelhas, para as terras onde tinham de pernoitar. E fitando fixamente os
olhos negros da Rosária, disse-lhe assim:

--Mas olha o que prometeste... Inda vais feita no que disseste?

«Ora que lhe custava a ela! Já que as ovelhas tinham andado juntas todo
o santo dia, que mais era que dormissem no mesmo curral, essa noite?»

--E o mais, ó Rosária?--perguntou de novo com interesse.

A pequena ficou perplexa. Mas como o pastor não cessava de a olhar,
respondeu:

--Também.--E sorriu-se.--Pois eu...

Só depois desta segunda promessa o Gonçalo se levantou, e deu o sinal
de partida, assobiando aos cães.

Daí a pouco, estavam de marcha para o curral, Quando passavam a velha
ponte, a obliquidade dos raios do sol fazia alongar desmedidamente pelo
areal a sombra dos três arcos. Nas rugas da corrente, uma luz alaranjada
tremeluzia, tirando à água a sua translucidez normal.

--É bonito!--fez notar o pastor.

A Rosária explicou logo:

--São as moiras a caçar com redes de oiro, sabias?

Para a outra banda, um pouco mais abaixo, assomavam à flor da corrente
as cabeças dos dois rapazotes do moleiro. Dentro da _chata_ que vogava
serenamente, a mãe com o mais novito ao colo não os perdia de vista,
enquanto o pai, em mangas de camisa, de pé num topo de fraga, lhes ia
ensinando as _manobras_. Ao fundo, três vitelas passavam o rio a vau,
muito devagar, parando a espaços, alongando o pescoço para a veia de água
serena, bebendo mansamente. Sobre o vitelo das malhas brancas, o
guardador cantarolava, acenando com o chapéu ao moleiro--«boas tardes!
boas tardes!» Ao sair da ponte, o rebanho teve de se afastar um pouco
do caminho: aproximava-se um almocreve com a longa fila de machos
carregados, tilintando campainhas.

--Adeus pequenos! cumprimentou.

--Venha com Deus!--tornaram-lhe ambos.

E de novo se puseram em marcha. As ovelhas continuavam confundidas,
confraternizavam os cães como bons e leais amigos. À frente, o Gonçalo
ia tocando na flauta o mesmo que a Rosária cantava. O brando rumor dos
chocalhos, que se levantava de todo o rebanho, casava-se com a música,
fundindo-se numa nota subtil, de um pitoresco ingénuo de balada...

Até que chegaram a um topo de serra, escurentado de matagal rasteiro, e
então, parando um momento, o Gonçalo perguntou, colocando na sua frente
a Rosária, e pondo-lhe à cara a flauta, na direcção em que devia olhar.

--Vês além... neste direito? Resvés do castanheiro, não enxergas?

A outra fez que sim com um gesto, e interrogou:

--Então é ali?

--Ali mesmo--volveu-lhe já de marcha.

E repousando a mão direita sobre o ombro esquerdo da rapariga,
repetiu-lhe muito contente:

--É mesmo além.

Numa terra de restolho, um largo quadrado de cancelas marcava o espaço
que as ovelhas tinham de ocupar essa noite.

--Falta pouco; a gente vai pelo atalho que é só mau p'ra quem passa a
cavalo.

E como ele ia expansivo, e a companheira não dava palavra, quis então
saber:

--Estás triste, ó Rosária?

--Triste... não. Já agora... tem de ser--volveu-lhe cabisbaixa.

--Huum! Arrependeu-se...--volveu consigo o pastor.

       *       *       *       *       *

Até que por fim chegaram, tinha anoitecido havia instantes. Gado para
dentro e toca a merendar; o que era de um era doutro: ele ainda trazia
azeitonas, um naco de queijo, pão. Mal acabaram de comer, o Gonçalo
apontou para a cabana que ficava ali perto, e propôs que se deitassem:
estavam moídos da soalheira de todo o dia e da caminhada agora.

Quando o Gonçalo e a Rosária entraram na cabana e se deitaram sobre o
colmo, cobrindo-se com as mantas, e achegando para a cabeça um do outro
os bornais que faziam de travesseiro, cerrara de todo a noite, e
formigueiros de estrelas cintilavam vivezas de prata polida no azul
indefinido do céu.

--E os lobos?--perguntou a Rosária com medo.

--Não há perigo--tranquilizou-a o Gonçalo.--Isso é lá com os cães.

       *       *       *       *       *

Pouco a pouco, foi-se extinguindo no curral a música triste dos
chocalhos. A ladrar, os cães faziam eco. O rebanho devia dormir
profundamente, imerso no mesmo sono em que jazia prostrada toda a
Natureza, ao largo. Dentro da cabana, os dois conversaram algum tempo,
num ciciar brando de vozes, até que por fim, vencidos da fadiga, se
deixaram adormecer,--quando a história das moiras encantadas ia no seu
melhor episódio...

E lá no alto céu, mesmo sobre a cabana, a estrela da tarde não era nem
mais pura nem mais luminosa do que a alma simples e boa daquelas duas
crianças...

Quando ao repontar da manhã se levantaram, e saíram a ver o céu...

--Bonito dia, Gonçalo!

--Bonito dia, Rosária! Olha...

...na calma placidez do azul, bandos de pombas mansas iam voando...
voando...




SULTÃO

(Copiado do Natural)

_Ao meu Henrique e a Beldemónio, seu amigo_.


I


Ao cair da tarde, o Tomé da Eira entrava em casa, cansado, esfalfado de
andar um dia inteiro a mourejar no campo.

--Meus pecados, boa tarde!--dizia ele para a mulher, com um sorriso a
afectar seriedade.

Vinha logo o pequeno, o Manuel, de mãos postas pedindo-lhe a bênção.

--Deus te abençoe.

--Pai, olhe que o «Sultão»... ia a dizer o pequeno.

--Bem sei! atalhava logo o Tomé.--O «Sultão» é um maroto e tu és outro.

E enquanto procurava no bolso da jaqueta a sua bela navalha de
_meia-lua_, que lhe custara um pinto havia bons quinze anos, e abria a
gaveta do pão, o Tomé punha-se a fazer de interesseiro consigo mesmo,
resmungando alto p'ra que a mulher o ouvisse:

--É que por este caminho não tenho um dia descansado... Nem uma hora...

Vinha a mulher com as azeitonas, com o queijo, sem dar palavra.

--...Pois vamos já que já era tempo... Porque p'ra mim há-de chegar... A
modos que vou já cansando...

Mas o Tomé não era homem que dissesse estas coisas de coração.
Pareciam-lhe longos, intermináveis, os aborrecidos Domingos que passava
sem ir campos fora, madrugador como um melro.

--Uma aquela como outra qualquer! dizia o bom do Tomé encolhendo os
ombros, como quem está desgostoso com um génio assim.

Partiu uma ampla fatia, um naco de queijo muito branco, do leite da sua
cabrada, e veio sentar-se, consolado, ao fundo da larga escada de pedra
que dava para a rua, arregaçado, em mangas de camisa, muito à vontade.

Costume velho do Tomé:--mal se sentava, mastigando o «bocado», dizia
logo para o filho:

--Ouves, Manuel? Bota cá fora o «Sultão».

O rapazito corria o caravelho de uma pequena porta lateral, que rangia
nos gonzos ao impulso dos seus bracitos roliços, e punha-se a pular de
contente, dizendo cá da rua:

--«Sultão»! Sai cá p'ra fora, «Sultão»!

No fundo negro do pequeno cortelho, na moldura rectangular da porta
baixa, destacava-se então a cabecita parda de um jumento, orelhas em
riste, grandes olhos de uma tristeza perpétua, num movimento moroso de
pálpebras pestanudas...

E ali se quedava parado, absorto, muito bem posto nas suas pequeninas
pernas delgadas, a olhar o Tomé que o chamava,--um grande riso de
alegria nas feições amorenadas, contente de ver o seu «Sultão».

Mas o pequeno jumento não avançava um passo, divertindo-se em arreliar o
Tomé, fitando-o com um ar estagnado. Altivo na sua nobre linha de
quadrúpede de boa raça, alguém lhe poderia ler no olhar, mole e
impassível, o frio, gelado desprezo a que parecia votar o dono...

Mas era àquilo mesmo que o bom do lavrador achava graça. E punha-se
então a falar muito sério, entre resignado e cortês, para o pequeno e
desdenhoso jumento--o pão e o queijo esquecidos numa das mãos, na outra
a navalha de _meia-lua_:

--Então, «Sultão», não vens?

--Não! parecia responder-lhe o animal. E abstracto, continuava a
envolvê-lo no seu olhar profundo. A quebrar a harmonia daquela
imobilidade de estátua, apenas de quando em quando uma pequenina patada
na soleira, zap!

--Zangado, «Sultão»? perguntava o lavrador.--De mal comigo?

E prestes voltava a cara para a outra banda, para se rir à
vontade...--que não fosse vê-lo o «Sultão»... Metia entre dentes um
pedacito de queijo, logo uma côdea de pão, e fazendo umas grandes rugas
na testa, de quem começa a zangar-se, voltava-se então muito sério:

--Ficas aí, «Sultão»? Já não és meu amigo?

O jerico abatia um pouco as orelhas, inclinava o pescoço, parece que
fazendo-se humilde...

--Então se és, anda daí. Olha...--E mostrava um pedacito de pão.--P'ra
ti se vieres...

O «Sultão» dava três passos, e ficava fora do cortelho. E por se vingar,
o Tomé carregava o semblante numa seriedade muito pesada, e erguendo o
rosto iracundo chamava-lhe interesseiro, maroto, afirmando que já lhe
não dava o pão. E desfechando-lhe enfim a ameaça de o vender a um
cigano, entrava a tratá-lo por senhor--_sôr_ «Sultão»...

Mas o pequeno jumento ia andando muito devagar... andando... orelhas
baixas, pescoço caído, a modo de arrependido, parece que pedindo perdão
da arrelia.

Nervoso, sapateando, o Tomé voltava a cara para a outra banda, a rir
como um perdido.

--Diabo do jerico! diabo do ratão! Capaz é ele de fazer rir as pedras,
o mariola!--E tossia de engasgado, uma migalhita de queijo na goela.

No entanto, o «Sultão» ia avançando, muito ronceiro, até que tocava com
o focinho, levemente, nos joelhos do lavrador. O Tomé sacudia-o:

--Sai-te p'ra lá! dizia ele muito amuado, sem se voltar.--Cuidas talvez
que te não conheço, cuidas? Já te não quero, vai-te!

Mas como que irreflectidamente, fingindo não querer, chegava-lhe ao
focinho um pedacito do pão, o melhor da fatia. «Sultão» lançava um olhar
oblíquo, entre sorrateiro e medroso, levantava cautelosamente o beiço
superior, a tremer, e roubava-lho da mão.

Pazes feitas! Era então rir a perder, numas casquinadas agudas, muito
estrídulas.

--Credo, homem! dizia de cima, da janela, a Sr.^a Josefa.--Até pareces
doido!

--Você assim rouba seu dono? Diga! Você assim rouba seu dono? perguntava
o Tomé, nuns grandes gestos.--Vamos que eu lhe não queria dar da
merenda? Ladrão, de mais a mais!... Ora bem! agora brinque.

Era precisamente o que o Tomé queria:--ver o «Sultão» a brincar.

...Nada, com efeito, meus amigos, que mais divertisse o bom do
lavrador, e melhor o indemnizasse daquelas fainas laboriosas que lhe
consumiam os dias, imperturbavelmente, perpetuamente, sob sóis
causticantes e chuvas torrenciais.

Por isso, era de ver como ele ria, com uma boa vontade deliciosa, das
«partidas» e «diabruras» do «Sultão»! Às vezes, o pequeno jumento,
ferido não sei por que vespa invisível, despedia sem mais nem menos
numa carreira aberta, focinho entre as pernas dianteiras, agitando a
cauda, por aquela rua fora. Rompia de toda a banda num alarido o
rancho pacífico das galinhas, que já no ar andavam como doidas,
cacarejando, como se um pé de vento as levasse. Acudia gente aos
postigos, às portas, às janelas, a ver a polvorosa; e súbito se
inundava a rua de rapazes, rotos, descalços, alguns quase nus, correndo
atrás do burro, gritando-lhe, acenando-lhe, espantando-o--como se o
mesmo vento de folia os houvesse varrido a todos, varrendo a própria
rua... E um lá ia a terra, e sobre esse passavam os outros, e sobre
todos voava o «Sultão», apupado, perseguido, aclamado, na malta
espavorida dos inimigos...

--«Sultão»! eh lá! «Sultão»!

Súbito, como se lhe estalasse a corda, o animal estacava, e logo de
volta dele postava-se a rapaziada, mas num alor de nova fuga, não lhe
desse na bolha atacá-los... E abriam alas de repente, quando ele,
tomado de novo acesso, voava para as bandas do dono, que por se não
deixar atropelar investia com o «Sultão» de braços abertos, o que era,
já se vê, um modo de o abraçar, fingindo medo. E vinham as gargalhadas
estrídulas, os rogos para que pusesse tréguas, as súplicas para que se
acomodasse, recuando o lavrador até ao último degrau da escada, onde
se deixava cair,--derrotado!

--P'ra lá, «Sultão»! p'ra lá! fazia então o Tomé, opondo-lhe os pés,
desviando-o, apoiando-se nos cotovelos, muito inclinado para trás, a rir
como um perdido.

Então o pequeno jumento estacava, ofegante. Mas prestes rompia a
girândola dos coices, em que era exímio, sacudindo muito as patas, cauda
no ar, muito direita, ao mesmo tempo que o Tomé solícito dava aos
rapazes o aviso de se arredarem--«porque era doido, aquele demónio»!...

Outras vezes, parece que variando de táctica, entrava de seguir muito
cauteloso, num ronceirismo pérfido, como um borrego ou como um cão,
certa mulher que passava. Até que lá ia uma focinhada, e logo após os
saltos do costume, respondendo com uma ameaça de pinotes à surpresa da
viandante.

--Dê, tia Luísa! bata nesse maroto! fazia de lá o Tomé, com ares de
zangado. E depois, batendo o pé, pedindo que lhe dessem uma
verdasca:--«Sultão»! venha já p'r'aqui! intimava.

E se encontrava um cão? Se encontrava um cão, ia logo direito a ele,
muito devagar, cauda caída, orelhas murchas, num cumprimento humilde
de focinho. O cão regougava, desconfiado, entreabrindo a dentuça,
preparando a sua dentada. Não dava o «Sultão» sinais de medo, e humilde
prosseguia para o outro, propondo paz. Mas ao primeiro latido, recuava um
passo, espertando da sua indolência passiva; e de espinha arqueada
ganhava o terreno perdido--fitando impassível o cão... O bruto formava
então o salto, regougando forte, o pêlo eriçado; e ao investir para a
primeira dentada, salvava-o de um pulo o «Sultão», evitando-o, até que
por compaixão lhe dava um pequenino coice, «mais feitio que outra
coisa», pondo em fuga o mastim, corrido, ganindo, vencido:

--Eh! valente! gritava-lhe então o Tomé.

E com duas palmadas na anca, espantava-o enfim para o cortelho, dizendo
ao correr a caravelha:

--Não há dinheiro que te pague, assim me Deus salve!

E comido o caldo-verde da ceia, nunca o Tomé da Eira ia para a cama sem
primeiro descer a ver o «Sultão»,--de candeia na mão esquerda, e na
direita, contra o sovaco, a bela quarta do grão, acogulada.

Muitas vezes acontecia esquecer-se o Tomé a vê-lo comer, de candeia
atenta, encostado à manjedoura, sorrindo: e, de cima, a Sr.^a Josefa
tinha de intervir então, gritando-lhe pelas frinchas do sobrado:

--Tomé, vê se te vens deitar, meu pasmado! olha que são horas.

E piamente, como fanático, achava verosímil a lenda da burra que
falou,--história que uma tarde, passando, o abade lhe contara. Tanto
que mais de uma vez, dando ao burro as boas-noites, estranhou com certo
desgosto que o «Sultão» lhe não respondesse:

--Boas noites!

       *       *       *       *       *

Mas o demónio, que sempre as arma, armou-lha também um dia! Foi ao
cortelho, de manhã cedo, e não encontrou o burro. Ficou parvo! Pôs-se a
mirar, espantado, a loja que lhe pareceu enorme, e além de
enorme--gelada...

--Ó Josefa! Josefa! entrou de gritar da rua.--Ó Josefa!

A mulher assomou à janela, sobressaltada.

--Queres apostar que me roubaram o burro, ó mulher?!

--Que te roubaram o quê? fez a Sr.^a Josefa, muito atónita.

--O burro, o «Sultão»! Vem cá ver que mo roubaram!

E como ao tempo acudira já o Manuel, em camisa, descalço, romperam todos
três na gritaria, defronte do cortelho vazio:

--À d'el-rei! À d'el-rei! À d'el-rei!

Até que o regedor, que era compadre, intervindo estremunhado, pôs na
peugada do burro, mais dos larápios, os cabos que compareceram.

Mas em vão! Um a um foram regressando, pelo dia adiante, e desfechando
ao peito abatido do Tomé a negra e vazia palavra:

--Nada!...


II


Dois anos depois. Tarde de Agosto. Ao longe, fechando o horizonte que a
eira dominava, as arestas dos montes quebravam-se numa sombra igual, e
embaciavam ainda o poente as suaves, brandas pulverizações doiradas da
última luz do sol. Riscos vermelhos de nuvens, como grandes vergas de
ferro levadas ao rubro, destacavam imóveis num fundo verde-mar,
esvaecido e meigo, raiado de listrões de uma coloração leve de laranja.
Pequenos algodões transparentes, com alvuras de neve, cortavam aqui e
além, alegremente, a monotonia profunda do azul. Num deslado, sob os
castanheiros próximos, surgiam os telhados da aldeia, a torre branca da
igreja, as paredes caiadas da escola.

A vasta eira comum, levemente acidentada, apresentava àquela hora o
aspecto tranquilo e de paz de uma grande oficina em repouso. Poucas
«medas», iam no fim as colheitas: mais uma semana, duas quando muito, e
estaria tudo recolhido. Já sobre a palha das «parvas» ou ao sopé das
«medas» altas, entre os utensílios da trilha e a criançada estrídula que
brincava, os da lavoura descansavam--vermelhos da soalheira intensa de
todo o dia, alguns deitados, em mangas de camisa, peito nu, arregaçados
os braços musculosos, numa prostração regalada de matilha que alfim tem
a sua hora de sossego, após um dia de caçada. Parecem prostrados da
fadiga os próprios malhos, os trilhos, as pás, os «baleios» que levaram
todo o santo dia varrendo o chão em volta das «parvas». E aqui e ali,
dando uma sensação agradável de fartura, perfilam-se os altos sacos no
meio das rasas, extravasando de grão. Além, gente em mangas de camisa,
ao redor de um grande montão de palha triturada, vai «limpando»--visto
que sopra um «ventinho». E sente-se sobre as pás a chuva do grão, ao
mesmo tempo que a palha, voando, faz monte da outra banda, e os
«baleios», em mãos de mulheres, não cessam de arrebanhar o grão,
varrendo em roda num afã... Em certo ponto, carros vazios; um além, de
altíssimas «angarelas», vai-se enchendo de palha; enquanto outros,
atulhados de sacos, em rimas entre as cancelas mais baixas,
estridulamente chiando abalam para as tulhas, levados pelos bois
gigantes.

Eiras além, livres dos trilhos que ficavam em cima da palha, levas de
bois caminhavam vagarosamente, as largas orelhas pendentes, caudas
oscilantes afagando nas ancas espaçosas o luzidio pêlo. E lá vão
encosta abaixo, roçando pelos troncos ásperos dos castanheiros a enorme
corpulência, fartar o largo bandulho à serena água das ribeiras,
sorvendo vagarosamente, impando a cada sorvo, pesadamente,
monotonamente, parece que insaciáveis no meio da água em que se atolam,
submissa...

Ao fundo da eira, rente aos castanheiros escuros, um rancho de mulheres
cantava alegremente, em coro. Acabara de ensacar-se o último grão da
farta colheita do Tomé da Eira.

--Colheita rica, sim senhor! vinham dizer-lhe os vizinhos.--A primeira
da aldeia!

--Qual? isso sim! vão vocês ver a tulha. Muita palha, é que vocês hão-de
dizer, muita palha e pouco grão...

E muito azafamado, sem prosápias de maioral nem jeitos de soberba, as
mangas arregaçadas pelos cotovelos, o Tomé ia e vinha, dando ordens,
repetindo avisos, distribuindo aqui e além as últimas tarefas.

--Aí vai um saco, ó tu! É p'r'as «rabeiras». Que não fique nem um
grão, ouviram? É aviar, toca a aviar! Cautela que não fique por aí
alguma coisa esquecida: essas pás, esses «baleios», tudo isso.
Margarida! ó Margarida! qu'é da tua rasa? Deixa! se vai no carro está
bem.

E era como um doido a meter-se no serviço de todos, muito expedito,
loquaz, alegre, pedindo pelas bentas almas que se não deixassem agora
dormir...

--Vamos lá! vamos lá! As pás, ó tu que cantas? Deixa-me por aí alguma,
que eu depois te ensinarei, ouviste?--Que faz aí no chão esse
«rasouro», ó coisa?--Olha p'r'o que estás a fazer, tu: esses sacos que
fiquem bem atados.

O criado, que ia abalar com a carrada, perguntou, já de «aguilhada» no
ar, se era preciso mais alguma coisa.

--Não, podes ir. Ouves? lá em casa que tenham a ceia a horas. Avia-te.
Ouves, Francisco? Não piques os bois, a carrada é valente. A passo,
deixa ir os animais a passo. Vai-te.

Como o carro chiava, levantou a voz para dizer:

--Olha, descarrega na tulha do meio. Na tulha do meio, não ouves? Os
bois para o lameiro.

Mas o Francisco apontou dois sacos que ficavam:--«seria preciso vir por
eles?»

--Não vale a pena, lá irão.

E depois, para aquela gente, observou que bem sabia ele quem os
levava, aqueles dois sacos...

--Com mil demónios! Apostar que vocês não adivinham?

«Eles sabiam lá?... Quem quer podia levar os dois sacos, olhem agora!»

--O «Sultão», sabem? o «Sultão»! Esse é que os levava. E digo-vos então
que valia o dobro a colheita, assim me Deus salve!

Alguns riram da lembrança. «Tinha graça que a cisma do animal não lhe
passava nem à mão de Deus Padre!»

--A modos que isso é já mania, ó Sr. Tomé?

Nisto, porém, o lavrador soltou um «oh!» de surpresa. Voltaram-se
todos--«que era?» Na estrada que a eira dominava, um homem ia passando,
a cavalo.

--Vocês não querem ver, ó rapazes?! perguntou o lavrador, fazendo-se
pálido.--Aquele burro, hein? se não é o «Sultão» é o diabo por ele...

Recordaram:--«estrela malhada na testa, a mão direita branca»...

--É ele, com um milhão de diabos! não há que ver! E aquele é o ladrão!

E cuspindo nas mãos, e arregaçando mais as mangas da camisa, arrancou,
de um abanão, o cabo de uma «espalhadoura» e botou a fugir direito à
estrada.

Prestes ouviu-se um berreiro, as mulheres do rancho em alarido:

--Que o mata! gritavam todas.--Ai que o mata! Acudam! Ai a desgraça! Nem
a alma lhe deixa! Acudam!

Os homens deitaram a correr atrás dele, afluía gente de todas as
bandas da eira, os cães ladravam.

--Então, Sr. Tomé? olhe que se perde, Sr. Tomé! diziam-lhe, já
agarrados a ele.--Largue o cabo, que se desgraça! Tudo se faz a bem,
Sr. Tomé, largue vossemecê o cabo!

--Qual bem nem qual diabo! Qual larga? Arreda! Racho-lhe as costelas,
mais a vocês, se me não largam! Arreda!

E esbracejava furioso, levando-os de roldão, agarrados a ele mais ao
cabo. Chegou a ferir um, os outros desanimaram por instantes.

--Vê, Sr. Tomé?!

«Não via nada, não queria ver coisa nenhuma! Arreda!» E num rompante de
ira, abrindo brecha com um «sarilho», de um pulo saltou à estrada, aos
tropeções nas pedras que encontrava, mal se equilibrando.

--Abaixo! intimou.--Você é um ladrão!

--Um quê?

--Um ladrão! É meu esse burro! Hei-de matá-lo aqui, seu patife!
Deixem-me! larguem-me! Há-de aí ficar estendido, como um cão!

E no meio da malta em alvoroço, com a arreata do burro na mão esquerda,
e na direita o minacíssimo cacete, berrava que o deixassem, que ia tudo
raso--«com seiscentos milhões de diabos!»

Seguiu-se altercação, vieram razões de parte a parte, insultos.

--Já lhe disse que você é um ladrão!

--Ladrão será você!--tornou-lhe o outro já de pé, avançando de punhos
cerrados.--E não mo diga outra vez, que o racho!

Aflitas, algumas mulheres voltavam-se, de mãos postas, para a
capelinha próxima, rogando o socorro da Virgem. O lavrador entrava de
tremer como varas verdes, desfigurava-o a raiva, uma saliva muito branca
bordejava-lhe os cantos da boca. Pela camisa rota, via-se-lhe já um
pedaço de ombro. Tinham, alfim, conseguido arrancar-lhe o cacete, mas
agora esbracejava, punhos no ar sobre aquelas cabeças em desordem.

Já, para uns certos do grupo, o homem do burro se desculpava:--«tinha-o
comprado a uns ciganos, fossem lá adivinhar que o burro era roubado...»

--Vê, Sr. Tomé? acudiram logo uns poucos.--O homem não tem culpa.--E
gritavam-lhe aos ouvidos:--Não tem culpa! Comprou o animal na boa fé.
Vês--aí está!

--Mente! objectava incrédulo o Tomé, cada vez mais irado.--Mente!

--Mente?! perguntava o outro de lá, assanhado.

--Como um judeu! cuspia-lhe da outra banda o Tomé.

De modo que para o convencerem, foi preciso afinal levá-lo quase à má
cara, chamar-lhe homem de rixas, despropositado, bulhento. Ele então,
abrindo os braços como se fosse para nadar, sossegou um pouco,
amainou,--prometeu levar aquilo com paciência, às boas. Chegou quase a
pedir desculpa, limpando com a manga branca as bagas das
camarinhas.--«Mas tinha perdido a cabeça, que lhe queriam?»

Chegou-se por fim a um acordo. «Sim, senhores, acomodava-se, mas
punha uma condição: largasse ele o burro, e o burro é que havia de
resolver...»

--Serve-lhe o contrato?

--Qual contrato?

--Mau! Larga-se o burro, você entende? deixa se o burro às soltas.
Depois, é p'ra onde ele for. Se o burro larga p'ra trás, lá p'r'as
bandas donde você vem... Você donde vem?

--Dos Casais.

--Pois aí está. Se o burro tomar p'r'os Casais, o burro fica seu...

--E tomando direito à aldeia, é do Sr. Tomé,--concluíram alguns do
grupo, conciliadores.

--Nem mais! Serve-lhe assim? Diga se lhe serve assim.

Por um desfastio, o outro concordou. Mas lá lhe parecia história que o
burro tomasse para a aldeia... Vinha de tão má vontade, que até lhe
custara tirá-lo de casa.

--Olhe que vai pr'os Casais! Digo-lhe então que vai pr'os
Casais...--afirmou.

--Melhor p'ra você. Mas nós veremos p'ra onde vai. Você está pelo
dito?--quis saber o Tomé.

--Sim senhor, estou! Pois que dúvida tem que estou? disse-lhe o outro
num rompante. Olhe: uma, duas, três; às três largo-lhe a arreata.

Ia já a abrir a boca para dizer--«uma!»

--Alto! fez o Tomé. Espere lá um pouco. Primeiro hei-de fazer duas
festas ao animal.

E pôs-se a bater-lhe na anca, no pescoço, no peito, demorando-se um
pouco a fitá-lo de frente, «para que o animal o conhecesse.»

--«Sultão»! gritou-lhe de repente. Eh! «Sultão»!

O burro estremeceu... Dir-se-ia que no fundo da sua memória, a
lembrança porventura adormecida daquele nome despertara subitamente...

--Eh! Eh! riu-se muito satisfeito o lavrador. O burro, agora, vira-se
p'ra ali. Isso. Nem é p'r'os Casais nem p'r'o lugar. Assim. Eh! Eh!

E afastou-se para o lado, aguardando.

Uma ansiedade dominava naquele momento os do grupo; o Tomé pôs-se a
roer as unhas, nervoso...

--Então você porque espera? perguntou.

Ouviu-se logo a voz do outro, dizendo:

--À uma!...

O Tomé sentiu um calafrio; sapateava nervoso, cheio de medo, o olhar de
esguelha, e entre os dentes ferrados o polegar da mão direita...

--...às duas!

--Ih! c'um raio!... dizia baixo o Tomé.

E sem querer, os olhos cerraram-se-lhe com força.

--...às três!

Foi então um barulho de palmas, um berreiro atroador de vivas e
gargalhadas! O Tomé vencera: corriam todos a abraçá-lo, afirmando que
o caso era para foguetes.

--Viva o Sr. Tomé! Viva o «Sultão»! Aquilo é que é burro!

--Aquilo é que é amigo, hão-de vocês dizer!--emendava o Tomé a rir.
Tenho-os com dois pés, que não valem metade...

--Oh! Sr. Tomé! protestavam alguns.

--Isto não é com vocês, mas é como quem se confessa... Está visto que
não é com vocês.

E ria, ria como um perdido, enquanto, estrada fora, o «Sultão» corria
que voava, cauda no ar, corda de rastos, perdendo-se por fim lá ao
fundo, na poeirada imensa da estrada, como que nimbado num resplendor
de apoteose. E na peugada do burro, esbaforido e como doido, seguia
agora o lavrador, após o fraternal abraço, pregado no dos Casais...

Quando o Tomé chegou a casa, ofegante, a suar, cheio de gestos e de
palavras entrecortadas de riso, já o «Sultão», relinchando, pateava à
porta do antigo cortelho, numa grande impaciência, um «rap-rap»
contínuo na soleira.

--Venham ver! Venham cá ver! berrava o Tomé para a vizinhança. Ó
António! Ó compadre! Ó Maria Engrácia!

Às janelas assomava gente, perguntando se era fogo.

--Qual fogo, nem qual carapuça! É o «Sultão», mas é! Este inimigo! Ó
Josefa! Josefa! cá temos o burro, este demónio. Assoma.

Ora imaginem agora os senhores, se podem, a efusão do lavrador.
Abraços? E até beijos. Aquilo era um tesouro perdido que reaparecia
alfim. A mulher, do alto da escada, benzia-se, perguntando se o seu
homem teria endoidecido...

--Palavra de rei, «Sultão», palavra de rei! Anda daí pelos sacos. São
só dois. Ó Josefa! Ouves? p'ra cá esse garrafão que está ao pé da arca,
avia-te. A caneca também, ouviste? Essa das riscas vermelhas, a maior.

E atirando as mãos ambas para a albarda, montou muito regalado, de um
pulo.

--Ah!

A senhora Josefa assomava, ajoujada com o enorme garrafão.

--Anda, mulher, põe aqui diante de mim. Avia-te.

Ia a boa da senhora Josefa arriscar uma observação, um conselho,
qualquer coisa de tomo...

--Adeus, minhas encomendas! Não me fanfes, mulher, não me fanfes. Põe
aqui, que mando eu, avia-te. Assim. Está bem.

--Nome do Padre...

--Então que lhe queres? Deu-me agora p'r'aqui!

--Nome do Padre, nome do Filho...

--A caneca! Venha de lá agora a caneca!

--...nome do Espírito Santo!

--Passa bem, ó mulher,--concluiu às gargalhadas, entre as gargalhadas
dos demais.--Ouves? Quando o Manuel vier dos ninhos, esse maroto,
manda-mo às eiras. A trote, «Sultão»! Eh! valente!

E lá parte, veloz como uma seta. Já de longe volta-se do repente:

--Josefa! ó Josefa! nesse alguidar do meio umas sopas de vinho p'r'o
«Sultão», ouviste? No do meio. O grande é muito grande, e esse pequeno
não presta. Ouves? mas quer-se coisa que farte, bem entendido.

E de novo despediu como uma flecha, abraçado ao garrafão. Arreata para a
direita, arreata para a esquerda, pernas a dar a dar, ele lá vai numa
corrida, sumido numa onda de poeira, até chegar às primeiras «medas».

--Vinho, rapaziada! Ó Maria do Carmo, toma lá uma pinga, mulher! Lá por
andarmos de mal há 15 anos isso acabou-se!

E o Tomé atravessou a eira sempre a cavalo no «Sultão», caneca de
vinho para a direita, caneca de vinho para a esquerda.

       *       *       *       *       *

Meia hora depois regressava, o «Sultão» pela arreata, o Manuel no meio
dos sacos, e adiante do Manuel o belo garrafão--sem pinga...

Pelo caminho, a todos o Tomé contava a história, a rir como um perdido,
num ah! ah! de gargalhadas sonoras, muito íntimas.

--Colheita rica, sim senhores, um colheitão!

E parando à porta, ainda a mulher se benzia do alto da escada, mexendo e
remexendo o alguidar de barro:

--Nome do Padre, do Filho, do Espírito Santo.

...Ao mesmo tempo que o Tomé, abrindo os braços, respondia reclamando
as sopas:

--Ámen!




ÚLTIMA DÁDIVA

_Ao dr. A.A. da Fonseca Pinto_.


Distante do rio apenas um tiro de bala ficava o horto do José Cosme,
belo horto ainda que pequeno, todo mimoso de frutas e hortaliças,
fechado entre velhas paredes musgosas, atufadas em silvedo, comunicando
com a estrada por um pequeno portelo mal seguro. E eis ali quanto ao
pobre homem restava dos seus antigos haveres:--o horto, a um canto a
nora, e perto da nora, sob a umbela tufada e virente da antiga magnólia
gigantesca, a mísera casinhola de alpendre, apenas com uma porta e duas
janelitas laterais mas toda pitoresca das heras que a revestiam, que
lhe pendiam dos beirais enlaçadas com as trepadeiras.

De modo que na Primavera, quando as parasitas abriam serenamente os seus
melindrosos cálices sobre esse fundo de verdura reluzente, e a magnólia
toda se toucava de flores fazendo docel à vivenda, aquele pequeno canto
de horto, com a sua nora e com a sua água espelhante e límpida, tomava a
feição ingénua de uma delicadíssima tela de paisagista, aguarela
deliciosa, alegre e idílica, cheia de encantos na poesia rústica da sua
simplicidade.

No Verão, às horas de calor, quando o sol caía a pino sobre a larga
paisagem adormecida e turva, e as árvores da estrada não davam sombra
que aliviasse, aquela tranquilidade com que o José Cosme ressonava sob
o alpendre, braços nus e peito nu, o chapeirão de palha grossa
resguardando-lhe a cara, fazia inveja aos que por ali passavam, cansados
e cheios de poeira, flagelados por aquela estiagem inclemente.

--Ó tio José!--gritavam-lhe do caminho.--Tio José! Ó regalado!

Mas os que entendiam de lavoura, proprietários e maiorais, esses
deixavam dormir o José Cosme e ficavam-se a admirar o horto.

Ora na verdade!... Belo horto, sim senhores! Por aquelas redondezas
não havia outro que se lhe comparasse, tão esmerada era a sua
cultura--tão esmerada e tão completa, pois que de mais a mais nem palmo
de terra ficara inculto. Nas leiras, dispostas com simetria agradável,
verdejavam cheios de viço, frescos e medrados, legumes de todas as
castas--desde a alface muito tenra, de folhas verde-claras, toda
acaçapada no chão húmido das regas, até às trepadeiras das vagens que
enroscadas ascendiam pela basta «rodriga» de castanho aparada com todo o
esmero, formando maciços de verdura sombria que os casulos esguios dos
feijões crivavam de alto a baixo. Árvores, apenas as precisas para
aformosearem o horto, sem prejudicarem com a sombra a vegetação franca
das hortaliças. Mas todas as que havia eram mimosas de frutas nas
estações competentes--cerejas, peras, maçãs, pêssegos mesmo.

Poucas flores: uma coisa que todos notavam com estranheza. Mas desde que
lhe morrera a mulher mais a filha, o José Cosme deixara-se de as
cultivar, e nos canteiros assim devolutos tinha semeado repolhos, que
por sinal vinham enfezados. Só teve o cuidado de não deixar morrer os
goivos. Uma vez por ano, em fins de Maio, colhia-os todos de uma vez, e
ia levá-los em braçado à sepultura rasa das suas defuntas.

Exactamente nessa tarde tinha ele ido ao cemitério fazer a fúnebre
visita. Quando se recolheu era já noite. Mal acabou de cear levantou-se
bruscamente da mesa e foi-se para o horto, com uma grande vontade de
chorar. Estava nas suas horas tristes, nessas horas em que as energias
todas da sua alma e até as do seu corpo vergavam sob o flagelo de uma
dor violenta, exacerbada agora pela saudade dos que lhe tinham
morrido... E para maior desgraça fugira-lhe o bem das lágrimas. De modo
que sem esse lenitivo, aquelas medonhas tempestades custavam o dobro a
suportar. Abstracto, numa espécie de entorpecimento idiota, percorria
sem descanso todas as ruas do horto, cabisbaixo, acabrunhado, autómato.
Se por vezes parava, recolhendo-se numa quietação atenta, logo um
gesto brusco desmanchava a sua imobilidade de estátua, soltava um fundo
gemido, e punha-se de novo a andar.

--Vens ou não vens?--perguntava ele, evocando com dorido esforço a
imagem da mulher ou da filha. Não vinha; e quando aparecia era como se
fosse um relâmpago, apagava-se logo.

Nesta lua com a sua dor as horas iam passando longas. Era já tarde,
talvez a uma da noite. Luz, apenas a das estrelas, pois que o luar
nascia tarde. Pesava sobre toda a paisagem o largo silêncio da noite,
apenas cortado, ao longe, pela melopeia sonolenta do rio.

Um rapaz que ia na estrada olhou por acaso para o horto do José Cosmo e
viu um vulto perpassar de repente e de repente sumir-se num recanto
onde a sombra era mais densa.

--Temos história...--resmungou consigo o rapaz.

E, rente a uma árvore, quedou-se alapardado, à espreita. Não desconfiou
que fosse o José Cosme: aquilo era mariola de larápio que vinha por ali
fazer das suas. Agachou-se então, e pôs-se a procurar uma pedra. Apanhou
duas, para o caso de não acertar a primeira.

--Cão do diabo!--exclamou baixo o rapaz, pondo-se em posição de jogar a
pedra.--Espera que eu te arranjo...--E já ia arremessá-la na direcção do
canto, quando o vulto saiu da sombra e tomou por um carreiro, direito ao
lugar onde o rapaz estava.

--Melhor! Mais a jeito ficas...

E debruçando-se um pouco na parede, pôs-se a fixar o vulto que avançava,
para ver se o conhecia. Quem quer que era trazia a jaqueta sobre os
ombros, alvejavam-lhe as mangas da camisa. A meio do carreiro, mesmo
defronte dele, parou. Foi então que o rapaz se lembrou do José Cosme.
O vulto parecia, com efeito, ser o dele; lembrava-se agora de ter
ouvido que o pobre homem, quando o ralavam saudades da mulher e da
filha, levava noites em claro, a percorrer como doido aqueles carreiros
por onde elas tinham andado.

Quando ouviu soluçar, acabou então de se convencer. Insensivelmente,
deixou cair as pedras e perguntou:

--Tio José! Ó tio José! Sou eu, o Luís... Vossemecê que tem?

O lavrador não respondeu, parece que nem tinha ouvido. O rapaz insistiu:

--Dói-lhe alguma coisa, ó tio José?

--Não dói, não. Sabes que mais? peço-te pelas alminhas que me deixes.
Bem me bondam as minhas aflições. Vai com Deus, vai.

O rapaz ficou surpreendido, triste do tom de súplica dorida que o José
Cosme dera àquelas palavras, e retirou-se silencioso, quase aterrado
agora com a ideia de que poderia ter matado o pobre homem, caso jogasse
a pedrada.

No entanto a noite ia avançando, grave, soturna, sem outro ruído que não
fosse o das águas do rio. E o José Cosme, sem despegar do seu fadário,
ia e vinha pelas ruas do horto, lembrando um autómato ou um sonâmbulo.
Às vezes abeirava-se da porta de casa e punha-se a escutar. Como não
sentia nada, voltava de novo ao seu passeio. Nisto, de uma vez que
passava em frente do cancelo, pareceu-lhe ouvir passos.

--Ó Tomás!

--Sr. José!--respondeu o que entrava, numa voz que era mesmo voz de
barqueiro.

O Cosme sentiu então uma grande vontade de chorar, mas remordendo os
beiços dominou-a. Como o barqueiro estranhasse encontrá-lo a pé, ele
então redarguiu-lhe que nem se tinha deitado.

--Como tinha de madrugar...

--Pois são horas de largar, Sr. José; isto vai p'r'as duas. Não tarda
que comece a amanhecer.--E como estavam à porta de casa:--Será bom
acordar já o pequeno: veste, não veste, é tempo que se vai.--Iam à vela
se o tempo não mudasse. Era bom aviar, por isso.

Mas à ideia de ter de acordar o pequeno, o José Cosme deixou-se cair
sobre o banco que estava debaixo do alpendre, e desatou a chorar
violentamente.

O barqueiro tentou animá-lo, constrangido.

--Então, Sr. José?... O chorar é lá para as mulheres. Olhem agora que
homem!--E tentava levantá-lo, pô-lo de pé.--Limpe lá essas lágrimas, que
vai afligir o pequeno! Ou quer que ele vá a chorar todo o caminho?

O Cosme fez que não com a cabeça, violentamente, e pôs-se a enxugar os
olhos com a manga da camisa.

--Pois então levante-se lá.--E segurou-o com força por baixo dos
braços.--Assim! Lá porque o pequeno vai para o Brasil não fique
vossemecê a pensar que o não torna a ver.

Mas era isso mesmo o que ele pensava...

--Porque não sei que me adivinha que não torno a ver o pequeno--concluiu
a chorar o José Cosme.

--Cismas! lembranças que vêm à gente quando está aflita. Mas há-de
vê-lo que o não há-de conhecer, digo-lho eu. Mais ano menos ano,
aparece-lhe aí rico...

Rico! bem lhe importava a ele que o pequeno viesse rico. O que desejava
era que voltasse e que ele ainda fosse vivo só para o abraçar.

Pois sim, mas era preciso aviar, que tivesse paciência: o José Cosme que
se animasse para animar o pequeno--recomendava o barqueiro.

--Sim... sim...--tartamudeava o Cosme.--Vamos lá com Deus! Com'assimU+2026.

E num profundo ai dolorosíssimo, foi-se direito à porta para chamar a
pequeno. Não havia remédio, tinha nascido em má hora, havia de ser
desgraçado até que o levassem para a cova... Sobre a estreita e humilde
cama o filho dormia profundamente. Que dor, ter de o acordar! Vieram-lhe
tentações de mandar embora o Tomás e deixar dormir a criança. Quem sabe
se a sua sorte futura, se toda a sua vida, valeria a boa tranquilidade
daquele sono! Não tinha coragem para o acordar, fazê-lo vestir: era
quase um pecado quebrar aquele último sono dormido sob o tecto
paterno... O último sono! o último sono!

--Ainda se o deixássemos acordar...--aventurou-se a dizer o triste.

Mas o Tomás que estava com pressa, lembrou secamente que eram horas de
pôr o barco a andar.

O José Cosme acendeu então a candeia, receoso de que a luz o
acordasse, e achegando-se do filho pôs-se a escutar-lhe a respiração.
Dormia!... Mas brandamente pousou-lhe a mão sobre a cabeça e chamou
baixinho, quase ao ouvido, beijando-o, sobressaltado como se fosse
praticar um grande crime:

--Filho, olha que são horas, meu filho...

Quando o pequeno se sentou na cama, estremunhado, ainda sob o
estonteamento do sono, cerrando os olhos àquela hostilidade viva da
luz, o pai agarrou-se a ele num abraço, e ambos romperam a chorar.

--Adeus, pai!

--Adeus, filho!

Confrangido, o Tomás que se deixara ficar à porta, avançou para desatar
aquele abraço.

--Olhe que é tarde, Sr. José. Perdoe, mas olhe que é tarde!

O pai vestiu o pequeno, beijou-o ainda muito, e saíram. Debaixo do
alpendre, o Joaquinzito ficou-se um instante a olhar o tecto.

--A andorinha, filho?--perguntou o José Cosme.--Deixa que eu hei-de
olhar por ela, mais pelos filhos quando os tiver. Vai sossegado.

Mas o pequeno quis vê-la, pediu ao pai que o erguesse, era só um
instante. Lá estava ela, coitadinha! sentiu-a estremecer quando lhe
tocou com as pontas dos dedos...

--Adeus!--disse-lhe o pequeno afagando-a.

A esta palavra, o pai retraiu os braços e tomando o filho no colo
seguiu. Atrás, o barqueiro levava ao ombro a mísera arca de pinho: toda
a bagagem do Joaquim.

Ao transpor o cancelo o José Cosme deteve-se um pouco e perguntou
soluçando:

--Quando voltarás ao horto, meu filho?

O pequeno não respondeu. Chorava constantemente de ver que o separavam
de tudo o que adorava--a andorinha, depois da andorinha o horto, as
árvores, a velha nora, o cancelo, tudo enfim.

Atravessaram então a estrada e tomaram para a banda do rio. Quando o
sentiram murmurar, aperraram mais o abraço, deram-se um longo beijo,
húmido das lágrimas que ambos derramavam. Ah, como o triste pai desejava
que o rio ficasse ainda longe, mui longe, que fugisse diante deles, de
modo que nunca o alcançassem! Mas eis que a areia principiava,
divisava-se já perto o vulto escuro do barco onde os da tripulação
falavam alto.

--Pronto?--perguntou ainda de longe o Tomás.

Do barco responderam que era só marchar, de mais a mais ia romper a lua.

Chegaram enfim. Num leve silêncio de acaso ouviam-se os soluços dos
dois, parece que prolongados infinitamente, na sua expressão de
angústia, pelo deslizar monótono das águas... Aquilo confrangia o
barqueiro, ele também era pai... Por isso, mal chegaram à beira do rio,
apressou-se a dizer para o pequeno:

--Ora bem, Joaquinzinho, beija a mão a teu pai e dize-lhe adeus.

Ouviu-se um chorar lancinante, a voz do pobre José Cosme a querer animar
o filho:

--Então, meu filho?... Deus te abençoe, meu amor... Nossa Senhora te
veja ir.--E fez-lhe prometer que havia de rezar sempre a Nossa Senhora,
ele também lhe rezaria, pois era ela quem dava saúde, quem fazia a
gente feliz.

--Não te esqueças dela mais da alminha de tua mãe e de tua irmã...

Mas o pequeno chorava cada vez mais, agarrado ao pescoço do pai,
beijando-o sofregamente, acarinhando-o, sem forças para dizer palavra.
Então o José Cosme, perdida a esperança de animar o filho, só exclamava
desvairado:

--Valha-me Deus! O Senhor me valha pela sua infinita misericórdia!

E o Joaquim sempre agarrado a ele, beijava-o na cara, na cabeça, nas
mãos. Até que o Tomás teve de intervir, era preciso despegar dali por
uma vez.

--Com'assim, Sr. José, isto tem de ser...--E segurando o pequeno com
força puxou-o para ele. Quando já o tinha nos braços, ouviu-se o José
Cosme que suplicava de mãos postas:

--Só um instante, só um quase-nadinha, Tomás!--E o pobre pai caía de
joelhos na areia, numa atitude de súplica.

Mas nesse momento, o barqueiro saltou de um pulo para o barco, levando
ao colo a criança.

--Rema!--intimou em voz rápida.

O barco recuou então subitamente, ao mesmo tempo que os remos fizeram
_plhau_! sobre a água.

Então o choro do José Cosme tornou-se de uma violência desesperada, ao
ouvir a voz lacrimosa do pequeno dizendo-lhe adeus lá do barco.

--Adeus, Joaquim, adeus!

--Adeus, pai!

--Adeus!

Mas repentinamente, com voz resoluta e firme, o José Cosme gritou na
direcção do barco:

--Tomás! ó Tomás! por alma de teu pai faz lá alto um instante.

Acabou-se! custara-lhe tomar aquela resolução, mas já agora era melhor
ficar sozinho de todo. E segurando nos dentes um pequeno objecto,
arremessou a jaqueta ao areal e de um lance deitou-se a nado. O Tomás
que ouvira o mergulho do corpo, fez recuar o barco; mas o José Cosme,
velho nadador destemido, com meia dúzia de braçadas ganhou-lhe de
pronto a quilha. O filho tinha-se debruçado, na ânsia de esperar o pai,
de o ver ainda outra vez. Num movimento rápido, o José Cosme entregou
ao pequeno o que levava entre os dentes, dizendo-lhe a chorar:

--É a medalha, Joaquim; é a medalhinha de tua mãe, meu filho!...
Reza-lhe, sim?!

E chorando cada vez mais, o pobre José Cosme pediu ao barqueiro que lhe
chegasse o pequeno para o último beijo...

Dado o último beijo, o barco pôs-se de novo em marcha. Vinha a romper a
lua, enorme, torva, afogueada, como se viesse de algum banho de sangue
em região misteriosa de lágrimas... E no silêncio agoireiro da noite,
apenas cortado pelo bater monótono dos remos e pelo bracejar desalentado
do triste nadador, à voz do filho que chamava respondia cada vez de mais
longe--longe como se fora do Infinito! a voz lacrimosa do pai--com o seu
fúnebre _adeus_! que ele bem sabia ser eterno...

       *       *       *       *       *

...Só quando o eco do último adeus do Joaquim, perdido na distância,
diluído no luar que surgia, desfeito no lugente murmúrio das águas,
fundido no derradeiro suspiro da brisa matinal, deixou de chegar à
praia, é que o pobre abandonou o areal e se foi, sempre a chorar,
tiritando ao frio da sua desgraça, como a um vento agudíssimo do Pólo,
na direcção do horto silencioso...




COMÉDIA DA PROVÍNCIA

_A Alberto Braga_.


I

PRELÚDIOS DE FESTA


Esse ano, a festa da senhora das Dores devia ser coisa de estalo. A
começar pelo juiz, todos os da mesa eram de respeito--abonados e
decididos. Tanto assim, que o fogo preso, que afinal era o melhor da
festa, vinha lá de Chaves, longe que nem seiscentos diabos. Mas era obra
de jeito, acabou-se! Tinha-se dito ao homem que trouxesse coisa que
representasse uma cegonha. O homem respondera que sim, e dava mesmo a
entender que traria mais animalejos, uma bicharada, talvez um macaco, se
tivesse tempo de o acabar.

--Homem de uma cana! resumiu o juiz quando acabou de ler a carta. E
correu a espalhar a notícia, orgulhoso de que «no seu ano» a _coisa_
fosse de arromba! Depois, era um despique. No ano atrás, o José da
Loja, que tinha sido o juiz, gabara-se do seu fogo, só porque vinha lá
uma peça que era um castelo a dar tiros, assim: Fff! Pum!

--Ora deixa estar que eu te arranjo... murmurou com os seus botões o
António Fagote. E sorria satisfeito, de se lembrar que na noite do
arraial todo o povo o havia de aclamar, dar-lhe vivas pelo fogo que
apresentara. Espalhou-se a novidade. Uma hora depois, na vila, ninguém
falava noutra coisa.

--Então você já sabe?

--Já sei. A cegonha.

--A cegonha e o mais: um cavalo, um bezerro...

--O que eu quero ver é o camelo. Feio bicho, já viu?

--Pintado. No Monteverde se me não engano. Logo adiante do _Valente Rei
Arauto Fiel_.

Enganava-se.

O escrivão da Câmara, que tinha laracha, encontrou-se na rua com o Alves
aferidor.

--Até que enfim, amigo Alves. Até que enfim vou ter o gosto de o ver
arder.

O outro não percebeu. «Que se explicasse...»

--Um urso, no arraial queima-se um urso.

--Então ardemos ambos, redarguiu embezerrado o Alves.--Também se lá
queima um burro.

Às duas por três, o António Fagote viu a casa cheia de gente. Quem não
ia, mandava recado: todos queriam saber se vinha o animalejo da sua
predilecção.

O homem começava a azedar-se. Chegou mesmo a mandar fechar a porta, por
dentro.

--Põe a tranca, se for preciso.

Mas então era cá da rua:

--Ó Sr. António!

E na porta as pancadas ferviam:

--Truz! truz! truz! Sr. António!

--Éna! c'um raio de diabos!--fazia lá de dentro o homem, furioso.

--O senhor faz favor? É só uma palavrinha.

À janela assomava então o António Fagote, com os óculos na ponta do
nariz e a carta do foguetório na mão.

--O camelo? perguntava zangado.--O urso?! Camelos me parecem vocês,
ouviram? O que o homem diz é isto.

E lia a carta, rematando:

--Uma cegonha, outros animalejos, quem sabe lá o que serão, e talvez o
macaco, se houver tempo de o acabar. E agora, sabem que mais?... Tirava
os óculos e ia-se embora, capaz de os trincar a todos.--Irra!

E lá de si para si pensava que era melhor ter guardado segredo. Não
fosse ele burro... Mesmo porque cada um começou logo a inventar
animais, e todos é que não podiam vir. Claro! E não vindo todos, aí
tínhamos nós descontentes. E havendo descontentes, quem lucrava era o
José da Loja.

--Temos o caldo entornado! pensava aflito o Fagote, amedrontado com
aquele espectro do José da Loja, o seu rival! De mais a mais, já lhe
tinha chegado aos ouvidos que o outro agoirava mal do negócio...

--Farófias! tinha dito o José da Loja. Farófias!

--Pois se mo diz na cara, arrebento-o! vociferava o Fagote, quando tal
soube.

E arrebentava, que o Fagote era homem para isso, tinha pulso. Desde
rapaz que uma lenda de valentia se fizera na sua vida: contavam-se
proezas, desde uma vez que varrera uma feira, por causa de eleições.
Depois, bom olho para a caçadeira. Duma ocasião, que foi preciso dar
montaria aos ladrões, portou-se como um leão, foi ele que deu voz de
preso ao chefe da quadrilha. E como foi que lha deu? A frase ficou
lendária:

--Como-te a alma se te mexes!

--E o outro não se mexeu, que ele comia-lhe a alma! comentavam
convictos.

Como esta, muitas outras. E foi talvez por estas proezas que a sua
figura adquiriu para a velhice o jeito desempenado que tinha. Estava com
60 anos e a sua atitude viril impressionava ainda agora. Não era
nutrido, mas era sanguíneo, tez morena, cara rapada, olhos pequenos, uma
largura de ombros que era o principal indício de força. Pescoço curto.
Mesmo a brincar, quando cerrava os punhos e arremetia com força,
conhecia-se-lhe a rijeza dos músculos naquele movimento sacudido.

--Safa! que isso aí é de ferro! diziam os rapazes. Duma cana, hein?

Mas bom homem, de uma grande franqueza de modos, simples e afável. Para
se sair era preciso picá-lo. E uma vez, quando era juiz ordinário, uma
testemunha tanto o picou em audiência, que ele desceu lá da cadeira,
foi-se a ela e quebrou-lhe a cara. Por isso falava sério quando
prometia arrebentar o José da Loja. A mulher interveio pacificadora:

«Que não desse ouvidos a ditos. Deixasse o homem, que não era tão mau
como o pintavam.»

--Ó mulher! cala a caixa e não me defendas esse velhaco! redarguiu o
Fagote. Do que ele é capaz sei eu.

Mas nesta ocasião, de todas as velhacarias do José da Loja, só lhe
lembrava uma: ter sido juiz o ano atrás!

Isto parecia-lhe com efeito uma velhacaria, feita a ele que era juiz
este ano.

--Pois tu que pensas? dizia ele para a mulher. Quem me meteu a festa
em casa foi ele. Ele é que se lembrou de me escolher, como quem diz:
«entrego-te a vara, sempre quero ver como te arranjas...»

--Nome do Padre, do Filho... A mulher benzia-se «das ideias do seu
António.»

--Sejam ideias, que não sejam! teimou o Fagote. Isto foi tal e qual,
assim me Deus salve!

--Mas quem to disse, homem? Quem foi que to disse?

--Quem mo disse? Olha! E mostrou-lhe o dedo mínimo da mão direita.--Foi
este mindinho. Não falha.

E então desabafou: «que não pensasse o José da Loja, que o havia de
levar à parede. Agora levava! A festa há-de se fazer, e festa de
arromba; _nanja_ como a dele que só levava seis anjos, e não sei
quantos andores, acho que meia dúzia!»

--Ó mulher, então é para que saibas onde chega o brio de um homem!
Caramba! Sendo preciso, ouves? sendo preciso até vendia a camisa do
corpo. Nem trinta sanfonas como o sanfona do José da Loja! E espipava
olhos de cólera para a mulher que remendava uns sacos, compungida de
ver assim o seu António.

E pôs-se então a renovar ordens, recomendações que a mulher já estava
farta de ouvir. «Mas com tempo é que as coisas se pensavam, não era ao
atar das sangrias!»

--Leitões se os cá não houver, manda-se o Miguel à cata deles por
esses povos à roda. Querem-se de 7 semanas, três pelo menos.

A mulher contraveio:--«dois seriam bastantes...»

--Mau que aí principiamos nós!--E pôs-se a assobiar e a rufar com o pé
no soalho, arreliado.--Três é que hão-de ser. Não quero cá dois, porque
dois eram os do _outro_, o ano passado.

A esta razão, a mulher calou-se. O António Fagote gostou do silêncio da
mulher, que o lisonjeava nos seus despeitos contra o _outro_.

--Agora não fanfas tu... insistiu ele, risonho. É assim mesmo que eu
gosto. Sinal é que tens vergonha. A _outra_ tamém não é mais que a ti.

A _outra_ era a mulher do José da Loja, está visto.

--Nem mais, nem tanto, emendou a Luísa Fagote, abespinhada.

--Isso mesmo! abundou o juiz da festa. Não me lembrava agora que antes
de casarem...

--E olha que depois de casada... insinuou a Sr.^a Luísa, de venta no ar,
enfiando a agulha. Cala-te boca.

Façamos de conta que a boca se calou, com efeito. Que não se calou.
Mas neste particular, o resto do diálogo convém que se omita, mesmo
porque afinal nem eu nem os senhores queremos mal à mulher do José da
Loja. Há-de perdoar-me o António Fagote, mas nisto não lhe faço a
vontade. O pudor acima de tudo! E ademais ele bem sabe que eu sou
conhecido da mulher. Adiante. Basta que lhes diga que por uma associação
lógica de ideias a conversa veio parar em vitelas...

--É preciso vermos como há-de ser isso da vitela, disse o António
Fagote. Sem vitela é que se não faz nada. Uma perna sempre se gasta.

Combinaram falar com tempo ao Manuel Cortador, segurar esse negócio. De
mais a mais sabia-se que o pregador dava o cavaco por um bom pedaço de
vitela assada.

--O pregador é que arrasta aí muita gente, observou a Sr.^a Luísa. Para
um bocado de sentimento não há como ele. Quando foi das missões, o que
ele dizia daquele púlpito abaixo! É quanto se pode!

--A mim o devem, se cá vem!--disse orgulhoso o Fagote. Que o homem não
queria vir, desculpava-se com a saúde: que tinha de ir a umas caldas, e
14 léguas a cavalo por estas canículas eram de acabar com ele.

--Isso desaba aí o poder do mundo! Em se sabendo que é o missionário...

Estavam nisto, quando bateram à porta. O Fagote foi ver à janela.

--Bem, muito obrigado. E a senhora mestra? Estimo, estimo.

Era a criada da mestra régia, foram abrir.

--A senhora mestra manda muitos recadinhos, saber como está a Sr.^a
Luísa, e este bilhetinho para o Sr. António.

Entraram todos na saleta. Como era já tarde, o António Fagote foi
acender uma luz.

«Que conversassem, enquanto ele via se tinha resposta.»

--Muito calor, começou a Sr.^a Luísa.

--E então a casa da Sr.^a mestra que é mesmo um forno, disse por demais
a criada.

E antes que a conversa pegasse, avisou a Sr.^a Luísa, ao ouvido, de que
lhe queria uma palavrinha.

Foram para uma varanda que havia nas traseiras. A tarde descaía, numa
serenidade calma. Sentaram-se uma junto da outra, muito familiares.

--Está-se aqui bem! exclamou consolada a Sr.^a Luísa.

--Está. E então bonitas vistas. Mas o que eu queria dizer era pedir-lhe
um favor, disse atrapalhada a criada.

--Se estiver na minha mão...

A outra começou: «A Sr.^a Luísa estava ao facto do que se dizia dela
com o criado do inglês. Decerto estava ao facto. Mas era mentira.
Jurava-lhe pelo que havia de mais sagrado que era redonda
mentira.»--Estamos para casar! é o que estamos! «Ele já mandara vir os
papéis lá da terra, não podiam tardar».--Está claro que eu tenho
afeição ao rapaz...

--Ele esteve aí doente uma temporada, interveio a Sr.^a Luísa, para
dizer alguma coisa.

--Esteve. Umas quartãs que o iam arrebanhando. Mas é aí que eu quero
chegar.

--Que experimente o limão azedo, aconselhou a Sr.^a Luísa. É milagroso
nas quartãs. Não se aflija, que isso não há-de ser nada.--E
dispunha-se a consolar a rapariga, a dizer-lhe tudo o que sabia de bom
para matar quartãs, pensando que era o que ela queria, afinal.

--Não senhora. O rapaz está melhor. Caso é que não recaia. Mas é por via
disso que eu lhe quero pedir um favor.

Chegou para ela o banco de cortiça e confidenciou:

--Já o andam a desinquietar para ir com os mais furtar a bandeira,
qualquer noite. E ele vai, prometeu que sim. Mas veja, naquele
estado! inda não há nada que saiu da cama.

--Pelos modos, os rapazes vão este ano longe pelo pau, disse com pompa
a Sr.^a Luísa.--Muito longe!

--Ouvi que à Ribeira Velha, ao lameiro do Canelas. E logo com quem
eles se vão meter, o Canelas! Se desconfia, vai-se para lá de clavina
e faz alguma desgraça. Mais ele, que é atrevido!

Cautelosa, a mulher do juiz redarguiu que lá onde eles iam pelo pau é
que ela não sabia.

--A outra noite é que para aí estiveram a combinar, o meu António mais
os mordomos. Não ouvi.

--Pois é lá! exclamou a criada. Mas o que eu queria, Sr.^a Luísa, é que
o seu marido me não deixasse ir o rapaz na malta,--suplicou aflita a
rapariga.

--Lá isso, esteja descansada, não vai! prometeu com grande autoridade
a Sr.^a Luísa.--Digo-lhe eu que não vai. E se não quer mais nada...

--Era só isto, muito agradecida à senhora.

Nesse momento entrava o Fagote, em mangas de camisa, os óculos para a
testa.

--Ora pois então aqui vai a resposta. Má letra, a Sr.^a mestra que
desculpe. Mas enfim que leia como puder.

--Então muita maçada co'a festa? inquiriu solícita a rapariga.

--Muita. Faz lá ideia? Maçada e despesa. Olhe que se faz despesa. Todos
os dias são precisas coisas, mais isto, mais aquilo. Aí está que já
hoje mandei pedir para o Porto uma palheta para o clarinete do Alves.

--Chh! fez admirada a rapariga.

--Pois é verdade. Fora o mais! fora o mais! Nicas! E depois de uma
pausa:--Só com o que se gasta no jantar, e é verdade que há muita coisa
de casa, mas só com o que se gasta no jantar, a bem dizer que se fazia
uma horta, além no prado.

--Muita gente... disse a rapariga.

--Muita! e depois de certa aquela... À mesa talvez vinte e quatro
pessoas...

A rapariga benzeu-se!

--Vinte e quatro, p'ra mais que não p'ra menos, insistiu o António
Fagote.--Olhe: o pregador...

--Isso dizem que é coisa asseada! interrompeu a rapariga.

--É. Não o há melhor. Missionário...--explicou o juiz. Pois o pregador,
um; com mais quatro padres, cinco; com quatro músicos, nove; o compadre,
os pequenos, dois, doze.

--A comadre não vem! que pena! fez do lado a Sr.^a Luísa.

--Não. O compadre e os pequenos já disse. Doze. O Morgado da Fonte e o
António Capador, catorze. O Teles, é verdade, Teles escrivão, quinze.
(_Pausa_). Com mais alguém que venha, vinte e quatro. Pode-se contar com
mais de vinte e quatro pessoas à mesa.--E a rir-se: Mas há-de sobrar
muita coisa, graças a Deus... E depois os pobres?

--Isso então é uma praga! exclamou a Sr.^a Luísa. Até parece que vêm do
chão assim... E colocava em pinha os dedos todos das mãos ambas.
Assim...

Mas fazia-se tarde, a rapariga despediu-se.--«Adeusinho! o que havia de
estimar é que tudo corresse como desejavam.»--E se for preciso qualquer
coisa... ofereceu-se. As minhas fracas posses...

--Obrigada. Não faltarão ocasiões. Muitos recadinhos à senhora
mestra...

--E que hei-de estimar que o mano chegue de saúde, concluiu o António
Fagote.

E então explicou à mulher: «Aquele bilhete da mestra era a mandar-lhe
perguntar se sempre era certo vir o macaco de fogo».

--Diz que o irmão, o brasileiro, assim que souber que há macaco de fogo
no arraial, não tem mão em si que não venha. E Deus o queira, porque o
ponho ao pálio. Como três e dois serem cinco.

A senhora Luísa quis saber a resposta que lhe mandara.

--Disse-lhe que sim. Pois?! O que eu quero cá é o brasileiro. Sempre é
homem que sabe dar o merecimento às coisas... Mas o diabo agora é o
macaco! ponderou muito apreensivo. Está para aí meio mundo à espera
do macaco...

A senhora Luísa quedou-se pensativa, absorta no seu receio de que o
bicho não viesse.

--Tate! fez o António Fagote, batendo uma palmada rija na testa.--Dá cá
daí a minha véstia. Manda-se uma «parte» ao homem.

--Também pode ser, concordou a senhora Luísa. Mas hoje é que não,
aquilo já está fechado, o fio.

--Vai amanhã. «Agradeço favores. Traga macaco sem falta». Isto. Talvez
acrescente: «Não se olha a dinheiro». Mas é que acrescento, por via
das dúvidas.

Então, a senhora Luísa confidenciou quase ao ouvido do homem:

--Ouves? já se não pode ir ao lameiro do Canelas pelo pau.

--Hã? qual pau?

--O da bandeira. Todo o mundo já o sabe.

Ele riu-se.

--Todo o mundo, hein? Melhor! Oh! oh! todo o mundo!...

E como ela ficasse estupefacta.

--Nunca ouviste dizer que se põe o ramo numa porta e que se vende o
vinho noutra?

--Ah!...

--Mas são verdes. Pois aí é que vai a história, e cantarolou,
satisfeito:

O ladrão do negro melro
Onde foi fazer o ninho

       *       *       *       *       *

Mas o melhor do caso foi no dia seguinte, quando logo de manhãzinha o
António Fagote sentiu bater à porta, de rijo.

--Vai lá ver o que será, ó Luísa!--disse da cama o Fagote sobressaltado.

Não tardou nada que o José Manco lhe entrasse de rompante pelo quarto.

--Vista-se, homem! Ande daí depressa! Vista-se.

--Há novidade? perguntou logo o Fagote, sobressaltado.

--Vista-se! com dez milhões de diabos! Insistiu o outro.

--Hom'essa! fez espantado o Fagote. Alguém à morte?

--Pior do que isso! resumiu o José Manco.

--Pior do que isso, então não sei...

--Não tardará que o saiba. Avie-se, que eu cá o espero na rua.

O António Fagote vestiu-se à toa, aparvalhado. Foi já na rua que acabou
de enfiar a jaqueta. As correias dos sapatos iam de rastos, não levava
chapéu.

--Pronto! cá estou!

--Venha comigo, avie-se. Abotoe as calças, se faz favor.

E rodaram rua acima.

--Diabo! mas então...? ia perguntando o Fagote.

--Aguarde, que já vai saber. Não tarda.

De quatro escanchadas foram dar ao adro da igreja.

--Roubaram Nosso Pai, aposto?!

--Pior! redarguiu o outro. Pior! Alto aí! Ora arregale-me esses olhos
e veja vossemecê isto, esta porcaria!

E tragicamente, o José Manco apontou para meia folha de papel, pregada
na torre com miolo de pão centeio mastigado. Era um pasquim! Vários
desenhos de animais, sobressaindo um burro de grandes orelhas, aos
coices. E no fundo, em grandes caracteres, isto:--_Farófia_!

Por um pouco, António Fagote, de mãos atrás das costas, amarasmou-se,
com os olhos fitos no papel.

E quando o outro pensava que ele ia romper desaustinadamente numa
escamação, aos lábios do António Fagote aflorou apenas um sorriso.

--Hum! resmungou. Bem sei...

--Não tem que saber,--fez o outro.

--O patife do José da Loja...

--Pois está visto.

--Bem, levará quatro lambadas, epilogou com grande sossego o
Fagote.--Arranque lá isso, e venha você daí, se quer ver.

O José Manco não queria ver, fazia ideia. Mas opinou prudentemente que
era melhor botar o patife ao desprezo.

--Pois sim, disse o António Fagote, dobrando em quatro o papel e
metendo-o na algibeira de dentro.--Pois sim!

Mas o outro que o conhecia, insistiu no pedido, com certos argumentos
arrancados do código penal. «Que não fosse agora pagar por bom
semelhante estafermo. Como mordomo, também era com ele a ofensa, com
ele José Manco. Mas fazia de conta... Como o outro que diz, vozes de
burro não chegam ao céu».

--Bem, levará só uma lambada, atendendo a que mais ninguém viu isto,
disse num grande ar de condescendência o Fagote.--E você vá lá regar a
horta.

Foi-se dali direito à casa do José da Loja. Estava ainda fechada.
Pôs-se à coca, de longe, com a ira muito exulcerada pela arrelia
daquela demora.

--Grande cão! grande cão! monologava.

Até que enfim reparou que a porta se abria. Era o rendeiro em pessoa, de
casaco de lona e chinelos de trança, muito fresco. Não deu pelo António
Fagote senão quando se viu ao pé dele, cara a cara entre o balcão e a
porta.

--Ó Sr. José.

--Dirá.

--Venho aqui saber de um caso.

Tirou do bolso o papel, desdobrou-o, devagar, e depois de lho pôr ao pé
da cara:

--Foi o Sr. José que fez isto?

O outro olhou-o, atónito.

--Sim! se foi o Sr. José que fez isto?

--Nada, eu não senhor.

--Jura pela boa sorte dos seus filhos?

Aqui, o tendeiro entupiu, desconfiado.

--Jura pela boa sorte dos seus filhos? repetiu mais de rijo o Fagote.

O José da Loja, moita! Então o juiz explicou-lhe:

--É porque se jura, muito bem. Se não jura o caso é outro.

--É outro, que outro?!--disse arrogante o José da Loja, num ímpeto,
barriga panda sob o casacório de lona.

--Isto!--E foi-lhe uma bofetada para a cara.--E muito caladinho, que eu
também não digo nada. Agora o papel, olhe! Fê-lo em pedaços, e
atirou-lhe com eles à cara aparvalhada.

Saiu dali e foi _matar o bicho_, tranquilamente, como quem vem de
cumprir uma obra de misericórdia.

       *       *       *       *       *

Na véspera da festa, um sábado às 10 horas da manhã, o fogueteiro
passava enfim num deslado da vila direito à capela da Senhora das
Dores. Largou um foguete, que estrondeou no ar, galhardamente.

--O fogueteiro! chegou o fogueteiro!

Por toda a vila passou um longo frémito de entusiasmo quando se ouviu o
foguete. Desabituados, os cães ladravam, em correria doida pelas ruas.
O rapazio levantou-se em algazarra, e correu ao encontro do fogueteiro,
a admirá-lo, a oferecer-se. Na labuta viva das casas renovavam-se
ordens já dadas. Aquele foguete era a bem dizer o primeiro ruído da
festa, não havia tempo a perder. De casa dos mordomos saíam esbaforidas
as criadas, com ordem de se informarem do que precisaria «o Sr.
fogueteiro». Alguns mais previdentes mandaram almoço, e que dissesse o
que queria para o jantar.

Solenemente, o juiz da festa atravessou quase a correr a vila,
perguntando a todo o mundo se o que estoirara tinha sido efectivamente
um foguete.

--Foi foguete! pois que dúvida! diziam-lhe radiantes. Prometia, sim
senhor! prometia! Se fossem todos assim... Caramba! que estoiro! Pum!

--P'ra que saibam! clamava o António Fagote. E então isto? e punha-se a
girar de volta com o braço--o que é fogo do chão?--Mas tinha-se visto em
calças pardas para que o homem não faltasse. Complicações! Pelos modos
tinham-no convidado para outra festa, com mais bagalhoça, está claro. O
caso tinha estado sério!

Mentia.

--Hein? mas não o enganavam?

--Qual! era o fogueteiro sem tirar nem pôr. Lá ia ele a atravessar as
eiras, com duas bestas carregadas. Caramba! duas cargas de fogo!

O juiz botou a fugir. Quando passou pela porta do abade, gritou cá da
rua:

--Senhor abade! ó senhor abade!

--Que é lá?

--Chegue à janela, faz favor?

--Mas está muito sol, entre você, se quer.

--Só duas palavras:

O abade, um rapaz novo, assomou à janela.

--Que é?

--Chegou o homem!

--O homem! que homem?

--O fogueteiro, quem há-de ser?

--Ah, sim, disse o abade a rir-se, velhaco. E você vai ter com ele?

--De cara.

--Faz-me então um favor?

--Dirá.

--Dê-lhe recados meus.

E retirou-se da janela, a rir, enquanto o António Fagote prosseguia no
seu caminho, esbaforido, espalhafatoso, perguntando a toda a gente se
aquilo tinha sido o fogueteiro.

--Grande homem! com seiscentos diabos!

Quando chegou ao adro estava tudo cheio de rapazes, em redor dos dois
machos carregados. O Fagote cuidou morrer de contente. Foi-se ao
fogueteiro, com fúria.

--Esses ossos! e abraçou-o arrebatado, enternecido, chamando-lhe «seu
amigo, seu grande amigo».

--Rapazes! gritou ele então. E tirou o chapéu da cabeça, muito
solene.--Viva o senhor fogueteiro!

--Viva!

...Isso não juro, porque não reparei. Mas estou em dizer aos senhores
que o António Fagote--chorou!...


II

TIPOS DA TERRA


Desembocaram num largo. Era o ponto mais central da terra,--«_a
praça_.»--Aqui e ali, ao acaso, algumas árvores enfezadas, quase tudo
olmos brancos, vegetavam a medo, com os troncos protegidos por velhas
grades de madeira, desmanteladas. Era um terreiro vasto, muito chato,
com casas em volta,--o que na vila havia de melhor em construções.
Ficava ao meio o pelourinho, exótico, mutilado, de uma pedra grosseira e
muito negra. Era uma alta coluna de oito faces, com o seu anel de
ferro ao meio, e uma argola pendente do anel. A coluna, que se eleva
sobre um pedestal de três degraus, em hexágono, terminava ao alto num
grande _X_ de pedra deitado horizontalmente. Um espigão de ferro, de
três gumes como os floretes de esgrima, irrompia hostilmente do meio do
_X_, perfurando o espaço. Em volta, a casaria era triste, sem estilo,
sem gosto, sem cal. Algumas _pedras de armas_ em velhas paredes
decrépitas, desequilibradas, hidrópicas, atestavam aristocracias
remotas, agora de todo extintas. Ao alto, dominando a negrura
chamuscada dos telhados, o velho castelo, romano de origem, fazia
tristeza com as suas ameias derrocadas, e as grossas paredes em ruínas.
Ao lado do castelo erguia-se destacadamente a velha torre do relógio,
de uma arquitectura primitiva. Tinham dado onze horas, mas eram apenas as
sete: aquele--«_estafermo_»--é que não andava nunca direito. De dia
ninguém o entendia, com o seu ponteiro de ferro girando num mostrador
sem letras, de uma pedra azulada. De noite fartava-se de badalar,
alvoroçando a povoação como se fosse a fogo, ora atrasado ora adiantado,
dando meia-noite quando eram quatro da tarde, e meio-dia mal despontava
o sol.

Eram as sete. Àquela hora é que os--«_figuros_»--da terra, quase tudo
empregados públicos, vinham para o largo, à fresca. Alguns
passeavam,--seu fraque, sua bengala de cana com castão, chapelinho à
banda, sapato branco um ou outro. Nas escadas do pelourinho, sentados,
outros do mesmo feitio cavaqueavam,--coletes desabotoados, perna
cruzada, chapéu para a nuca, às três pancadas. Um de pêra comprida, no
degrau superior, contava facécias. Os outros riam alarvemente,
chamavam-lhe intrujão. Algumas--«_madamas_»--pelas janelas em volta,
nostálgicas, anafadas, de claro. À porta do estanco, em cima, havia
outra roda,--uns de pé, outros sentados em caixas, alguns montando
cadeiras de pinho. Era a--_roda mais forte_,--quase tudo maiores
burocratas:--o Melo da Administração, o Antunes da Câmara, o Escrivão
de Fazenda, o Rodrigues do Real de Água. E outros. À porta, perfilado e
muito cerimonioso, o dono do estanco, alto, esguio, flexível, com a sua
cara rapada e o seu chinó castanho, eriçado e velho. Era de maneiras
feminis, uma falinha melíflua, cantante, viva, muito desempenado
quando andava, saracoteando-se todo, em biquinhos de pés como se fosse
levantar voo. Chamavam-lhe Ernestinho. Não se podia falar diante dele
num rato morto, numa carocha. Aquilo «fazia-lhe nervoso», enojava-o,
ficava-se a cuspinhar meia hora, dizendo constantemente:

--Ai Jesus! ai Jesus! Caticha! Nossa Senhora do Carmo! Nem sei como não
lanço fora.»

E se riam, ele exasperava-se: não compreendia como pudessem falar em
tais coisas... De resto, bom sujeito, finório para o seu negócio,--um
poucochinho beato,--diziam-lhe.

--Meu proveito. Não que eu não quero a minha alma nas penas do inferno,
a arder. Leiam a _Missão Abreviada_, leiam esse rico livro.

E as palavras saíam-lhe a correr, espremidas nos seus lábios delgados,
um poucochinho sibiladas nos _ss_.

--Cigarros, Ernestinho, um vintém deles. Querem-se dos de Lima,
desses fortes.

Declarou que também havia dos «especiais.» Algum senhor queria? Tinham
chegado três maços, p'ra ver. Oito por um vintém.

--Pois guarde-os!--disseram alguns, horrorizados com a ideia de dar um
vintém por oito cigarros.--Guarde-os!

«O senhor engenheiro, quando vinha à vila, perguntava-lhe sempre por
eles. Dos de Lima nem o cheiro, não gostava.»

--Olha o figurão!--disseram a rir. Por esse mundo fora sempre há muito
idiota! forte cavalgadura!

O Ernestinho veio com os cigarros, em feixe nas pontinhas dos dedos. À
porta, antes de os entregar contou-os de novo. Doze. Estavam certos.

--O senhor Ernesto, se faz favor, ponha isto lá no caderno, ao pé dos
outros.

Ernestinho foi para dentro, contrafeito, fazer o apontamento. Houve um
silêncio oprimido, o dos cigarros tossiu para o quebrar, ao mesmo tempo
que num gesto acanhado, receoso, fazia menção de oferecer:--«alguém
era servido?»

Dentro do balcão, ao pé das garrafas com licor, e das botijas de
genebra, Ernestinho somava a conta. Era já taluda.--«E vão dois e dois
quatro e dois seis, seiscentos e vinte! Sabe Deus quando os
receberia!»--E suspirava, arrumando os maços encetados, sob o olhar
tranquilo e indiferente do Santo Antoninho que lá estava em cima, ao
alto das estantes quase vazias, no seu nicho feito de um caixote forrado
a verde, com flores artificiais muito sujas e duas velinhas dos lados.
Mas resignava-se, que não tinha outro remédio. Eram os ossos do
ofício...

Cá fora tinham dado fé, acotovelavam-se chamando asno ao
Ernestinho,--um pulha a quem ajudavam a viver... Se hoje não há
dinheiro, há-o amanhã, essa é boa! E pagava-se, c'os diabos! E
pagava-se. Mas não senhor! aquela besta mostrava sempre má cara, o
alarve! A culpa tinham-na eles, afinal que o procuravam, que o
preferiam. Tomaram os outros ter aquela freguesia...

O dos cigarros fiados anuía, assobiando baixo o _Água leva o
regadinho_. Por fim levantou-se, lentamente, com um ar de enfado, um
sorrisinho de despeito nos lábios, encolhendo os ombros.

--Estender as pernas,--disse. Quem vem daí?

Todos ficavam, era uma estopada andar p'ra trás p'ra diante, naquela
sensaboria da praça.

--Até logo. Você aparece no _sítio_, à noite?

--Apareço, vou à desforra.

E cumprimentando em roda:

--Meus caros! Muito boa tarde, Sr. Ernesto.

Foi-se, puxando para baixo as pernas da calça, alisando as joelheiras.

--Que tal está o asno, hein? Quer, ainda por cima, que o Ernestinho lhe
diga _bem-haja_...

Era um parvo.--Era um tolo.--Tinha dívidas nos outros estancos.--Em toda
a parte.--Lá em casa a família passava fomes.--Um batoteiro de marca.

Houve agitação, alguns puseram-se de pé, outros mudaram de lugares. Ia a
passar um grande carro de palha chiando muito. Ernestinho chegava-se de
novo, muito ronceiro, roendo as unhas.

--Com que então... _ponha lá ao pé dos outros_?--disseram-lhe, para o
lisonjear nos seus despeitos.--Bem bom freguês!

Ele encolheu os ombros e cerrou os olhos, beatificamente, num gesto
de mártir resignado. E não disse palavra--p'ra falar daquele tinha de
falar também deles...

Mandaram vir limonadas,--três limonadas!

--Aí vão trinta réis!

Diabo! era preciso animar aquilo. Assim não tinha jeito. E puseram-se a
falar do tempo, das moscas, daqueles idiotas que andavam na praça a
dar-se ares. Ensoberbecia-os a ideia de que iam tomar três limonadas,--e
sentiam-se felizes, alegres, um tanto estroinas.

O Ernestinho deu dois passos fora da porta, e chamou para a varanda,
onde grandes manjericões floriam:

--Ó Emília! Emilinha!

A mulher assomou, gorducha, muito mole.

--Três limonadas, ouves? Três limonadinhas, depressa.

As conversas animavam-se. Pois senhores! havia de ser difícil encontrar
uma colecção de asnos assim. Falavam dos que passeavam na praça, aos
grupos.--Deus os faz, Deus os ajunta. O palerma do Fernandinho dera-lhe
agora para cantar. Lá andava ele. Volta meia volta,

_Vai alta a lua na mansão da morte_

com umas tremuras na voz, que eram mesmo de o esbofetear. Estava
antipático, aborrecido, desde que andava de namoro com a Marques. Só
tinha uma coisa boa--a caligrafia.--Um talhe de letra
bonito,--confessavam.--E as calças, hein? reparem vocês naquelas
calças, vai flamante. Casualmente, Fernandinho olhou de longe para os
do estanco, disse-lhes _adeus_ com a mão, afável. Corresponderam todos,
muito risonhos, mas a chamar-lhe nomes por entre os dentes:--idiota,
palerma, pechisbeque...

Sozinho, numa lentidão moribunda, olhos nas botas, olhos no céu, o
Teles escrivão passava ao largo, ruminando alguma poesia. Às vezes
quedava-se extático, suspenso, o polegar esquerdo entre os dentes, um
olho cerrado fortemente, a meditar. Vinha um gesto e punha-se de novo em
marcha, contrafeito.

--Ó senhores! mas não me dirão em que anda a parafusar o Teles, aquele
telhudo? E isto:--e pôs-se a imitar o escrivão.

Riram. O Melo imitava-o bem, o alma do diabo, no andar especialmente.
Mas aquilo era um logogrifo. Há uma semana às turras a um logogrifo
em acróstico.

--Isso é o Teles!--fez um que vinha da praça.--Aquilo é um intrujão.
Na rua não é que se adivinham logogrifos. Ó Ernestinho, você ainda tem
daquilo que _ferve_?

O Ernestinho deixou descair o lábio, não percebia...

--Homem! daquilo que vinha numas garrafórias escuras, compridotas...

--Quer dizer gasosas. Uma rolha segura com guitas...

--Ora é isso mesmo, nem mais.

--Bem sei.

Mas não tinha já. Nem mesmo queria mais, p'ra quê? Achavam caro um
tostão...

--Eram aos três para beber uma garrafa...

--Pudera! Por um pataco, trinta réis levando o açúcar, fazia o _Ervas_
uma soda,--objectaram alguns. Ponha lá que em gosto é a mesma coisa.

--E aquela porcaria, ó Ernestinho, e aquela porcaria amarela que
sujava tudo de escuma?

Alguns cuspiram, disseram ao Alves que se calasse, que vomitavam, com
seiscentos diabos!

--Cerveja!--disse o Ernestinho--cerveja! uma coisa que lá p'ra baixo
toda a gente bebe por gosto, as senhoras mesmo.

E com um sorriso de desdém, exclamou:

--O que é ser do calcanhar do mundo! Em nome do Padre, e do Filho...

Mas na praça um grupo altercava. Ouviu-se distintamente a
palavra--«_pulha_»--pronunciada com força. Saíram em tropel, ficaram só
três.--O que pagava as limonadas exultou:--Homem! nem de propósito!
Ficava exactamente quem ele queria, estava mesmo a ver que aquela
súcia lhe chupava o refresco:

--Tó Ruça! já lá vai esse tempo.

Precisamente, a senhora Emília chegava, com os copos numa bandeja:--Que
provassem, diriam se precisava mais açúcar. Mas parecia-lhe que devia
estar bom...

Beberam de um trago, estava óptima. A senhora Emília tinha dedo para
aquelas coisas.

--Obrigado, ó Melo!

--Obrigado, ó menino!

E os dois saíram de rompante, chamando _pato_ ao Melo, rindo-se dele
e limpando os beiços.

Quando o Melo ia sair,--a ver o que ia na praça,--o Ernestinho, muito
cortês, objectou-lhe que faltavam trinta réis:--Se ali não tinha,
depois. Isso era o mesmo...

--Mas trinta réis?!... De que são os trinta réis?--perguntou desconfiado
o Melo.

--Do açúcar, foi do refinado,--explicou o Ernestinho. O mascavado
acabou-se. Amanhã ou depois já devo ter mais. O senhor Melo desculpe.

Não tinha que desculpar; somente notava que aquelas coisas diziam-se no
princípio.--E saiu sem dar mais palavra, furioso:--Uma ladroeira! Três
vinténs não valiam os dois que lhe tinham chupado o refresco...

Na praça tinha cessado a altercação, os grupos, reunidos, formavam uma
grande roda, comentava-se. O Melo quis informar-se:--que lhe
contassem--«_o escândalo_».

Ora! não fora nada: o Veiga que se tinha lembrado que as
correspondências na _Voz do Distrito_ eram escritas pelo Albano.
Disse-lho na cara. O Albano negou, deu a palavra de honra. O Veiga que
é casmurro, teimou:--que não acreditava, ainda assim!--Vai o outro
chama-lhe pulha, iam-se pegando. Ora aí está!

--Mas afinal, quem diabo escreve aquilo?--quis saber o Melo. Aquilo
há-de ser escrito por alguém, está claro.

Dez réis pela novidade! Que havia de ser escrito por alguém sabiam
eles...

--Quem, então?

Divergiam as opiniões. Podia ser Fulano, podia ser Beltrano. Um ou outro
dava a sua palavra de honra que também não era ele, jurava-o. Houve um
que se lembrou se aquilo seria do padre Mendonça.

--Qual! Do padre Mendonça não é. Fazia coisa melhor, se se metesse
nisso. Olha o padre Mendonça, o da _gibreira_ de Braga...

Mas o da ideia insistiu, renitente:--havia ali suas coisas que o faziam
lembrar, certas facécias, como a de chamar _Frei Asneira_ ao Reitor e
_Cabeça de Comarca_ ao Felisberto.

--Pois se é ele, que se regale, pode limpar as mãos à parede. Mente
como um alarve, mente da primeira linha até à última!--disse firmemente
o verdadeiro autor das correspondências. Olhem o que ele diz do juiz
de direito, só calúnias! O juiz! um homem teso! Tem lá o seu fraco
pelas saias, mas isso, que diabo! isso não é defeito.

De resto, eram todos acordes em que as correspondências eram uma
infâmia. O que se chama uma infâmia pegada. Mexericos e mais nada, uma
coisa de soalheiro. E depois, o dizer-se lá que entre os rapazes não
havia duas amizades leais, que era tudo uma impostura...

Houve um silêncio significativo, talvez de aprovação.

--Só de pulha!--rematou, por fim o Nunes da Fazenda, o tal que escrevia
as correspondências com o pseudónimo de _Aramis_. Vejam vocês aquelas
galegadas ao comendador. Aquilo chama-se lá fazer política?!
Discuta-se o homem como presidente da Câmara, sim senhor, discuta-se o
homem público, o funcionário; mas deixe-se-lhe em paz a _marreca_, os
fundilhos das calças; ninguém quer saber se os criados lhe param em casa
ou se não. E depois, aquelas alusões à família, aquelas piadas à D.
Engrácia, pobre velha...

--A quem?--interrogaram uns poucos. À Dona quê?

--À D. Engrácia, está bem de ver. Aquela beata que fazia peúgas de lã
aos missionários é ela. Presumo eu que é ela--fazia o Nunes das
correspondências com um grande ar de suposição. Eu cá foi para onde
deitei.

Os outros não. E como o das correspondências tinha prometido explorar a
crónica beata, aguardariam mais informações. Supunham, no entanto, ser
com a D. Joana, a do--«_chá de erva-cidreira_.»--Outra canalhice! A D.
Joana, para festejar os anos da filha, convidara tudo, _lazarões e
penicheiros_, não fizera política. Depois foi aquela tareia que se
viu:--que o chá era erva-cidreira, que tinham bolor os doces de ovos,
que ela parecia a Quaresma e a filha o Entrudo. Ora isto não se diz, a
pobre mulher doeu-se. Citavam-se de cor frases inteiras da
correspondência. Por exemplo:--_A deusa da festa dizem que recebeu
telegramas de... amor_.--Uma facécia de mau gosto aludindo ao Proença
telegrafista. Depois do que por aí se diz, é forte... Que afinal, quem
sabe lá? Entre os dois que diabo pode haver? Namoro?

No grupo alguns tossiram forte, rindo. O Nunes interveio:

--Não senhores! Isto agora alto lá. A Amélia é uma rapariga séria...

Riram às gargalhadas, foi um barulho com a tosse.

--Quando digo uma rapariga séria... Mau! Acomodem-se lá com o _banzé_,
vocês deixem falar,--tornou o Nunes, formalizado. Quando digo uma
rapariga séria, quero dizer... sim... quero dizer...--e procurava a
frase, entalado,--por exemplo, que ela não é capaz de receber ninguém,
alta noite, lá pelos quintais, como o tal das correspondências quer
fazer suspeitar.

Iam replicar-lhe, mas ele atalhou:

--Chama-se àquilo ser canalha às direitas, arre! Isto agora é falar
franco.

Saltaram-lhe:

--E você jura, ó Nunes? você jura?--perguntou, com gesto perfurante, o
Alves dos Pesos e Medidas.

Não... isso agora...Jurar, não jurava, mas, c'os diabos! pelo que se
via, pelo que se podia julgar...

--Léria!--disseram todos.

O Nunes parece que estava com os beiços com que mamara. Com que então,
para ele era tudo uma récua de _santas_? Desenganasse-se, que era tudo
uma canalha, uma corja de sonsas. Que diabo de ingenuidade!

O Nunes observou modesto, quase agradecido:

--Ingenuidade, eu te digo... Não é bem isso... O que sou é prudente.
Desconto sempre noventa por cento àquilo que vocês dizem, aí é que
está...

--Vocês é um modo de falar,--emendaram alguns.

--Vocês, digo eu, vocês... quando escrevem correspondências,--explicou
sofisticamente o Nunes.

Calaram-se, disfarçaram. Próximo deles, a Amélia toda de verde, com
guarnições de fita preta, caminhava ao lado da mãe, solenemente.
Tiraram todos o chapéu, cortejando risonhos, respeitosos. O Nunes foi
cumprimentá-las, submisso.

--Dar o seu passeio, não é verdade?--E apertando-lhes a
mão:--Vosselência como passou? A senhora D. Amélia? Obrigadíssimo.
Assim... assim...

Então? que diziam àquele calor?

--Abafava-se, ali pelas duas. Que forno!

--O Brasil tal e qual--reforçou o Nunes.

Mas que fora feito, que as não tornara a ver desde os anos? Uma noite
de truz, aquilo sim!

--Olhe, senhora D. Amélia, a flauta... a flauta é que nem por isso, foi
pena! O Abelzito andava constipado.

A D. Amélia explicou. A mãe ficara doente, já não era para aquelas
noitadas.--E em voz mais baixa, quase dolente:

--Depois, veio a _Voz do Distrito_, aquilo chocou-a muito.

--Não há tal!--fez a mãe. Meteu-se-te isso na cabeça. Deixe-a falar,
senhor Nunes.

E por pouco que não chorava ao dizer isto.

O Nunes afectou um sentimento profundo:--Era melhor não falar nisso,
não pensar em tal; todos as conheciam, todos lhes faziam justiça. Tinham
acabado de falar na tal correspondência, agora mesmo. Uma
garotada!--resumiu o Nunes.--E em tom confidencial:

--Anda-se na pista do garoto. Ele há-de aparecer. E depois... e
depois... Muito boa tarde, minhas senhoras! O que for soará. É preciso
dar um exemplo,--concluiu terminantemente. Uma severa lição!

Despediram-se, elas agradeceram ao Nunes--«a parte que tomava no seu
desgosto.»--E seguiram cumprimentando para as janelas, perguntando se
vinham daí, um bocadinho até à capela, espairecer.

As Silvas pediram que subissem. Um bocadinho só. Ficava muito bem
aquele vestido à Amélia.

Não podiam subir, talvez à volta.

--Pois sim, hás-de ver o meu bordado a missanga. O papagaio está quase
pronto, que trabalhão!

Estava na dúvida se lhe poria o bico assim, de gancho. Não gostava. O
risco era do Fernandinho. Já lhes fizera outro, talvez mais bonito.
Coisas de anjinhos:

--Verás.

Os grupos tinham-se reunido em volta do Pelourinho. Passava gente que
vinha do trabalho, da labuta áspera da eira,--homens com malhos, e
mulheres de cestas à cabeça. A tarde descaía numa serenidade calma. No
degrau de cima, o Paula, oficial da administração, com fama de tipo de
chalaça, cantava em surdina umas cantigas de caserna, obscenas,
zaranzando na barriga como se fosse uma guitarra. De volta, os outros
formavam roda. Todos riam, pediam _bis_.

--Tu hás-de conhecer isto, ó Chico,--dizia o Paula para o Francisco
Maria, um cabo que estava de licença. Tu hás-de conhecer isto.

O administrador do concelho, um pobre diabo desmazeladão e filósofo,
afirmava que lhe lembrava Coimbra, a pândega das vielas. Ao Paula
valia-lhe a prenda, palavra de honra que lhe valia a prenda, senão já o
tinha demitido, às vezes que lhe entrava borracho pela repartição. E
pedia a rir, boçalmente:

--Ó Paula, aquela do _bate-bate_, canta lá.

E trauteava as primeiras notas, castanholando com os dedos.--Se era
preciso, o Fernandinho ia pelo violão.

--É verdade, você que fez hoje que não me apareceu na repartição, ó
Fernando?

--Dormi, está claro. Ao senhor doutor acontece-lhe o mesmo às vezes.
Olhem que pergunta!

Mas o Paula tinha-se calado, bocejava.

--Então, ó Paula...--suplicava o administrador.

--Está fechado o realejo... Depois.

Quem lhe dera que fossem as nove para irem até ao «sítio». Ou perder ou
ganhar; tinha ali seis tostões que eram para um _mico_.

--Mas eu não lhe dizia, Sr. doutor? eu não lhe dizia ontem que a _dama_
se negava? Eu estava mesmo a ver aquilo... Bem feito! «gramou» um
entalão que se consolou.

--Quatro coroas.--Na véspera tinha ganho um quartinho.

Nesse momento passava o juiz, sozinho como sempre. Todos tiraram o
chapéu, ele passou gravemente, cortejando.

--Quem eu te quero à perna é o _Aramis_...--rosnou o Teles escrivão que
embirrava com o juiz desde que o suspendera uma vez.--E ainda ele não
sabe tudo...--insinuava perfidamente.

--Pois o resto diga-lho você, diga-lho no _Almanaque de Lembranças_, em
verso--fez de um lado o Rodrigues do Real dU+2019.água.

O Teles, com famas de literato, redarguiu que não dava confiança a
analfabetos.

--E eu a brutos, sabe você?

Mau! que eles lá começavam. Oficiais do mesmo ofício... Ó senhores,
lá porque ambos faziam versos não se seguia que devessem embirrar um com
o outro. Pelo contrário.

O Teles, furioso, disse que não embirrava com o outro, que nem lhe dava
essa importância, essa honra.

O Rodrigues ia saltar-lhe, tiveram mão nele. Mas jurou que doutra vez
seria, que fizesse de conta que já lá tinha na cara quatro bofetadas
tesas.

--Tesas, hein? olá! quatro bofetadas tesas.

Havia de dar-lhas, tão certo como dois e dois serem quatro, só para ter
o gosto de dizer depois, num comunicado, que desafrontara as letras
portuguesas,--ele, o Rodrigues, ele, um simples fiscal do Real dU+2019.Água.

Aquilo fez surpresa, convidaram-no a explicar-se.

--Não senhores! dizia colérico o Rodrigues, com grandes gestos.--Bem sei
que não valho nada. Escrevi, é verdade que escrevi; faço ainda o meu
verso quando me dá na cabeça. Uma rapaziada! Estão maus? Concordo. Mas
não há de ser aquele _négalhé_ que o há-de dizer. Não o julgo
habilitado. Lá porque tem soletrado dois romances, não se segue. Mas o
que mando para público sim, o que entrego aos prelos--é meu!--E batia no
peito com a larga mão espalmada, furioso, numas raivas, de orgulho
triunfante.--Não roubo! nunca roubarei!--afirmou mais alto o
Rodrigues, para que o Teles que se ia retirando, no meio de dois
amigos, conciliadores, o ouvisse.--Repito: não roubo, não faço como
ele!--E as palavras saíam-lhe salivadas, violentas, por entre os
lábios espumantes, atiradas ao Teles como pedradas.

Os outros escutavam agora com interesse. Estavam a dar razão ao
Rodrigues, instintivamente, sem compreender bem o que ele queria
dizer.

--As provas...--e meteu a mão no bolso do seu casaco de lona, com
ímpeto:--as provas, vê-las aqui estão!

Mostrou no ar a brochura verde do _Almanaque de Lembranças_.--Era do ano
que vem, tinha-lhe chegado hoje. Ali estava o Peres do correio que lho
tinha entregado ele mesmo.

--Sou testemunha--confirmou do lado não sei quem.

O Rodrigues, então, afirmou que era preciso historiar, contaria a coisa
em duas palavras. O Sr. Teles, o borra-botas do Sr. Teles, lembrara-se
um dia de ser escritor, de ser poeta. O alarve! Todos os anos--zás!
versalhada para o _Lembranças_...

--Era colaborador--disse o Antunes da Câmara que admirava o talento de
Teles.--Era colaborador.

--Era quê?--interrogou logo o Rodrigues, de mão atrás da
orelha.--Maçador, maçador é que ele era. Nunca lhe admitiram as
asneiras, se me faz favor, nunca! Na _correspondência_ troçavam-no,
chegaram a dizer-lhe que podia fazer fortuna pelas tombas, que o não
chamava Deus para as letras. Aquele _Serei ousado_? é ele, sei que é
ele. Nunca o admitiram.

--Lembro-lhe a _Flor do Campo_, Sr. Rodrigues, lembro-lhe esses
versos--insistiu o Antunes.

O Rodrigues teve um risinho feroz, fitando o Escrivão da Câmara. Não lhe
respondeu. Subiu os três degraus do _pelourinho_, pausadamente, com
pompa, e chamou a atenção dos amigos. Ia ler. Abriu o _Almanaque de
Lembranças_, onde trazia um papel, e rompeu:--«Indignidade».

--Em letras bem graúdas, queiram inspeccionar.

E colou ao peito o _Almanaque_, voltando para fora na página onde o seu
dedo reboludo apontava a terrível palavra, escrita ao alto em
epígrafe.

Houve um sussurro, alguns pediram silêncio. O Rodrigues que lesse.

«Os versos intitulados _Flor do Campo_, que viram a luz no _Almanaque de
Lembranças_ do ano extinto, foram-nos remetidos pelo Sr. José Maria
Teles, escrivão.»

--Copiados por mim, uma letra floreada--esclareceu o Fernandinho.--Ele
depois assinou--e fez no ar, com o dedo, o traço complicado da firma
complicada do Teles.

Pediram silêncio outra vez. O Rodrigues continuou:

«Publicámo-los na convicção de que eram da lavra daquele senhor, pois
que ele os assinava.»

--E então?--perguntaram uns poucos, sem compreender ainda.

--«Pura ilusão!»--continuou solenemente o Rodrigues.--«Escreve-nos o
mimoso e assaz conhecido poeta Sr. Alfredo Mendonça, dizendo que os
versos lhe pertencem, e que o Sr. Teles os roubara (sic) do seu volume
_Lira Matutina_.»

Foi uma estupefacção! O Rodrigues prosseguiu mais alto, fugindo aos
comentários:

«Averiguámos, e disso alfim nos convencemos. Os leitores avaliarão a
probidade do Sr. Teles, a quem mais de uma vez tínhamos fechado a nossa
porta por incapaz. Hoje damos-lhe com ela na cara--por indigno.»

E o Rodrigues fechou o livro com estrondo, como os outros fechariam a
porta na cara do Teles escrivão; tomou praça fora, o livro debaixo do
braço, e foi-se para o estanco do Ernestinho, altivo, solene,--vingado!

Os da roda seguiram-no silenciosos, corridos de vergonha, desnorteados,
porque além de sempre terem julgado o Teles muito superior ao
Rodrigues--e o Rodrigues bem o sabia, olha ele!...--tinham dado uma
sorte de mil demónios, agora é que eles viam! distribuindo no teatro,
por ocasião da festa de Santa Barbara, a _Flor do Campo_ que eles
tinham mandado imprimir avulso--para lisonjear o Teles que tivera o
trabalho de os ensaiar no _Santo António_. Hein? quem diabo havia de
dizer que aqueles papelinhos de cor, uns verdes, outros amarelos,
chovendo sobre a plateia entre o segundo e o terceiro acto, e quase
disputados a murro, num alvoroço de seiscentos diabos, encerravam uma
insídia,--um logro à boa-fé, à credulidade ingénua de toda a comarca!

E relembravam episódios, particularidades quase extintas: o Fernandinho
vestido da menino do coro, batina vermelha e roquete de rendas,
cobrindo-se de teias de aranha lá pelo forro do teatro, de gatinhas e
com um «toco» de vela na mão, aos tropeções, só para ter o gosto de ser
ele a despejar do _óculo_ aquela papelada; o Melo da administração,
vestido de Frei António, sandálias e grande chinó de calva redonda,
feita de uma bexiga de porco, com o Teles em triunfo por entre os
bastidores, seguido pela turbamulta dos companheiros, em hábitos de
frade e fardetas de galuchos, dando vivas ao _poeta_! ao grande Teles,
ensaiador da rapaziada!

Que desastre! Afinal tinha-lhes saído um intrujão! E quase se regalavam
da sorte que tinham dado, pelo prazer que sentiam de o ver agora
humilhado, corrido, esbofeteado pelo ridículo. Bem feito!

O Antunes da Câmara, sobretudo, estava furioso. Fora ele o da lembrança
de se mandar imprimir a versalhada. Escrevera para Coimbra ao Manuel
Caetano, ao Manuel Caetano da Silva, Praça Velha n.^o 11, que mandava os
impressos para a Câmara, e pedira-lhe aquilo como especial favor. O
homem--pronto. Duzentos exemplares, quinze tostões. Quinze tostões que
se tinha combinado dividir por todos, contas do Porto, mas que
desembolsara ele só, afinal. Bem feito! ninguém o mandava ser burro.
Arre! cavalgadura!

E dava patadas no chão, cada vez mais furioso, apopléctico.

--Mas a bem dizer, tudo isso é nada!--continuou comovido o Antunes.--Ó
senhores! e a figura que eu fiz... sim, a figura que eu fiz naquele
intervalo do drama para a farsa?...

Todos desataram a rir, tinha sido fresca... Ele sempre acontece cada
uma! E relembravam:--levantara-se o pano quando os ouvintes menos o
esperavam. Os que tinham sabido lá fora, às doceiras, voltaram
apressadamente com os cartuchos na mão, ensacando os rebuçados. Ia um
reboliço pela plateia. Na «galeria dos camarotes» para onde só iam
senhoras, gente fina, começavam a aparecer caras barbadas de sujeitos
que iam saber «que tal», perguntar se ia uma pinguinha de licor, um
docinho. Em cima, na galeria alta, criadas e raparigas do povo,
debruçadas no parapeito, apontavam para o palco, de olhar atónito.

--Ele que dianho é?--perguntavam.

De baixo, da plateia, todos faziam _chut_! voltados lá para cima:

--Caluda, sua gentalha!

No palco estavam todos perfilados, trajando como na peça. O Freitas da
recebedoria com o seu fato de Marco Aurélio; o Paula de cardeal, báculo
em punho e a cara metida numa estriga; o Fernandinho de menino de
coro, todo lépido; a Ana Pisca muito acanhada no seu fatinho de Olívia;
a Margarida que tinha feito de anjo no quadro final da _Glória_, em que
ela subira num cesto vindimo à «região sidérea dos astros»; o pai de
Santo António, em ceroulas e de saia branca pelo pescoço, lívido como
saíra do túmulo; aquela canalha da tropa--todos enfim!

Nisto, entra pelo fundo o Teles todo de preto, no meio do Melo
vestido de Santo António e do Proença telegrafista que fazia de Frei
Inácio. Avançaram. Em baixo, o Felisberto mandou tocar o Hino da Carta
à meia dúzia de músicos que não entravam na peça. O hino rompeu com
grande estampido de pratos, numa cadência fúnebre. No palco, tudo
imóvel. Ninguém sabia o que era aquilo, não estava no cartaz.
Esquecimento do Fernandinho, talvez... pensavam.

Mas ao acabar o hino, o Antunes da Câmara, com farda de centurião,
durindana e botas de água, irrompe furioso do buraco do ponto e prega um
discurso na bochecha extática do Teles:

«Não era ele o mais competente, de certo, o mais... etc. Mas tinham-no
encarregado, obedecia... e tal. Só sentia não ter frases, oratória,
porque enfim estava falando a um poeta...--colaborador do _Almanaque de
Lembranças_ para Portugal e Brasil--acrescentou voltado para o público,
esclarecendo. Enfim, finalmente... vinha para aquilo: dar-lhe um abraço
em nome de todos...--e abraçou-o comovido, enquanto os espectadores
berravam _apoiados_, dando palmas--«... e para isto»--acrescentou
fazendo com a mão que se calassem, que se calassem depressa.

Houve um sussurro de aplauso, dos camarotes crianças gritavam--«ó
Emilinha!» Era com efeito a Emilinha, a filha do Alves dos Pesos e
Medidas, que saía também do buraco do ponto, vestida de anjo, tules
verdes e muita lantejoula a brilhar.

Ficou-se a olhar a plateia, imóvel, muito fria, ensaiada, enquanto o
Felisberto preludiava na flauta. Em certa altura, num requebro doce da
«melodia», ele fez-lhe com a cabeça «que entrasse», e a Emilinha rompeu
nuns guinchos, cantando a _Flor do Campo_, com música da _Muchagateira_
original do Peres do correio.

O Teles sorria, entre glorioso e modesto, falando a Santo António e a
Frei Inácio:--Era de mais, era de mais, ele não merecia...--Ora essa!
pareciam dizer-lhe os outros--seríamos ingratos se...

A «cantoria» acabou, o teatro parecia desabar com palmas, tudo berrava,
um ou outro cão latia. Se não quando, os do palco desataram a rir,
cosendo-se uns aos outros, fingindo um grande medo de que as bambolinas
do tecto desabassem.

Todos olhavam, curiosos. E naquela expectação viram de repente descer
do alto, sobre o palco, agarrado a uma corda, o Freixedas da Mercearia
vestido de Lusbel, rubro e com chavelhos. Cuidaram de estoirar a rir. Da
boca muito inchada saíam-lhe faúlhas, do algodão a arder que lá trazia
dentro. Fazia caretas horrendas, arremedando Satanás nos ímpetos da
cólera. O pano começou a descer, oblíquo, esfarrapado de uma banda. O
Freixedas, suspenso, atirou fora o algodão e gritou, furibundo:

--Alto! suas bestas! Inda não!...

Voltou-se de costas para o público, e um letreiro que trazia de ombro a
ombro dizia em caracteres amarelos--_C'est fini_! O pano desceu
então, estabalhoadamente. Os espectadores olharam uns para os outros,
não tinham percebido... Foi nesse momento que o Sr. Antoninho, que
tinha estudado em Braga, traduziu de um camarote, em voz alta:

--_É findo_!




V[AE] VICTORIBUS!

_A Maria Lucila_.


Em Dezembro, às seis é noite cerrada. Mais bocado, menos bocado, a
essa hora recolhia do monte o José Gaio, sozinho, sachola ao ombro, um
pouco atarantado com a trovoada que rugia ao longe, em surdina. Por cima
dele, o céu ia-se fazendo cada vez mais negro, dessa negrura espessa
de tempestade que infunde pavor à gente, e da qual os próprios pássaros
têm medo. Cessara de chover. Mas o vento do sul principiava agora,
agitando os grandes ramos despidos dos castanheiros, fazendo-os murmurar
não sei que estranha elegia... A um relâmpago mais vivo, o José Gaio
apressou o passo, e, benzendo-se, rezou a _Magnificat_. O trovão chegou,
depois, lúgubre, cavernoso, alastrando-se em roldões na larga amplitude
do céu. Debaixo dos pés, o José Gaio sentia o caminho lamacento,
encharcado das enxurradas valentes de todo o dia. Mas a ponte já não
ficava longe. Depois, a ladeira, e no meio da ladeira a casa.

--Vamo' lá com Deus! fazia ele animando-se.

Um clarão súbito de relâmpago deslumbrou-o. Diante dele surgiu de
repente a paisagem, e de repente desapareceu, feericamente iluminada.
Deitou então a correr, aterrado; mas tão forte veio em seguida o trovão,
que ele instintivamente parou e levou ao céu as mãos aflitas, num
gesto de quem implora misericórdia. Naquela iminência de perigo as
próprias árvores lhe pareciam imobilizadas pelo terror, à beira do
caminho. E através dos castanhais, o surdo rumor do vento era como a voz
implorativa da natureza, unindo-se à voz dele num longo coro de
suplicas...

O José Gaio ia transido. Mas pior ficou quando de repente, sem saber
donde, alguém chamou por ele, lugubremente:

--Ó José Gaio!

O homem parou. E como perto dele apenas enxergasse os braços da cruz
negra, que era o sinal de ali terem matado o José Tendeiro, há anos,
apertou o passo e tomou por um atalho, direito à ponte. Mas então a
mesma voz tornou-lhe mais de perto:

--Ó José Gaio!

Quis fugir, mas o medo parece que lhe tolhia as pernas. Nisto veio um
relâmpago que iluminou a mil cores a paisagem. Ele cerrou os olhos com
força, nervosamente, ferido por aquele deslumbramento que por milagre o
não prostrou. E quando o trovão bramiu, rudemente, uma imobilidade de
estátua prendia o camponês à terra. Foi então que veio de novo aquela
voz, como um prolongamento do trovão:

--Ó José Gaio!

Ia avançar para ganhar a ponte. Parecia-lhe que, uma vez transposta,
galgaria a ladeira num instante. Mas involuntariamente, cedendo a uma
força violentíssima, entrou de retroceder, cambaleando. Aquele rugir da
água que logo abaixo da ponte fazia cachão, rugir violento mas monótono,
infundiu-lhe um grande pavor. Teve medo e deixou-se retroceder... Senão
quando, estacou ouvindo a mesma voz:

--Ó José Gaio!

E logo atrás da voz, com um rastro, um intensíssimo relâmpago cor de
sangue. Viu tudo vermelho, afogueado, tudo menos aquela cruz preta de
longos braços, sempre abertos e sempre firmes, que pareciam desafiar a
tempestade...

Aquela serenidade da cruz estonteou-o. Dir-se-ia que esse nobre
exemplo de altivez vinha agora humilhar mais a sua fraqueza. Desviou os
olhos e cerrou violentamente as pálpebras. Mas em vão! que fora tão vivo
o deslumbramento, e tanto lhe ferira o cérebro, que num fundo cor de
sangue, como num transparente de mágica, ele via nitidamente
desenhada, sempre firme e sempre altiva, a cruz que o estonteara. Então
deram-lhe ímpetos de fugir; uma onda de coragem parecia dilatar-lhe o
peito impelindo-o. Precisamente nesse momento, a voz tornou a chamar:

--Ó José Gaio!

Sentiu-se alquebrado, transido até ao mais íntimo do seu ser. Um longo
desfalecimento invadiu-o todo, quebrando-lhe a última fibra de energia,
como se quebra um vime seco. Aquela paralisia atacou-lhe também o
cérebro: não formava um só raciocínio nem elaborava sequer uma ideia, a
mais simples. E foi preciso um grande trovão para todo ele tremer,
abalado como a própria terra. Depois, outro relâmpago fez reviver nele
a vida do espírito; sentiu um grande pavor àquele aspecto súbito do
campo que diante dele se perdia de vista, afogueado como se estivesse
todo em chamas. Aqui, um pinhal, uma ermida além, para toda a banda
Casais, surgiam de repente, nítidos nos seus contornos, definidos
maravilhosamente nas suas atitudes. As grandes árvores despidas,
sobretudo, tinham um ar fantástico, nessa pureza nítida de recorte que
traçava na luz as sinuosidades mais delicadas dos troncos e ramarias. No
meio deste cenário de mágica, a um tempo majestoso e tétrico, o triste
camponês sentia-se apavorado, jactitante e quase inerte, ali chumbado à
terra, hirto como a cruz que tinha diante. E nem um só gesto
implorativo, e nem uma só palavra de súplica lhe saía dos lábios
crispados. Porque uma vez que tentara uma palavra, o mais formidável
trovão cortara-lha na primeira sílaba. Depois, aquela voz não o
largava, imperturbável e monótona:

--Ó José Gaio!

E ele, não respondendo nem falando, pensava esconjurá-la, exorcismá-la
como se fosse a voz de um duende. E para esta evocação do sobrenatural
muito concorria, como os senhores compreendem, esse aspecto sereno da
cruz negra, inabalável sob a asa agitada da procela.

Nisto veio a chuva, em grossas gotas a princípio, em cordas de água
depois. Ela varejava-o inclemente, impelida agora por um vento sul
furioso. Não deu um passo para procurar um abrigo, não se mexeu sequer.
Como todo ele ardia em febre, aquele dilúvio era quase um celeste
benefício para a sua cabeça num vulcão. Mas quando os relâmpagos
vieram, aquela reverberação da luz nas cordas de água fez-lhe um
deslumbramento mais forte. E caiu inerte sobre o caminho lamacento por
onde a água escorria impetuosa, ao mesmo tempo que a voz do costume,
sobrelevando o trovão, repetia do lado da cruz:

--Ó José Gaio!

Cobarde, sujo como um sapo, encharcado até aos ossos, como caiu assim
ficou--de borco. Depois, quando abriu os olhos, na larga poça onde quase
tinha a cara, via reflectir-se a cruz, a cada relâmpago. Ela lá estava
no seu posto, altiva, serena, intemerata, recta como um exemplo... E
pois que parara o dilúvio, dos seus braços abertos as gotas da chuva
caíam, vermelhas à luz, como grossas lágrimas de sangue...

Cobarde! Nenhuma comparação pode dar ideia do estado de prostração desse
miserável, reduzido pelo terror a uma quase inacção de besta morta.
Dir-se-ia um imundo trapo ali caído, abandonado ali na lama ignóbil
de um caminho, à espera da enxurrada que o levasse... Era abjecto!... E
enquanto esse animal assim jazia, atordoado, como boi que uma malhoada
prostrou, ao fundo do horizonte, para sul, o encastelamento fantástico
das grandes nuvens plúmbeas, listradas de negro e roxo, metralhando com
fúria o largo espaço, aos quatro ventos, era tudo quanto o nosso
espírito pode conceber de mais grandioso e de mais sublime, épico e
trágico a um tempo, soberbo, majestoso, imponente.

Mas a voz sempre a ouvia, por cima do vento e por cima dos trovões,
aquela voz:

--Ó José Gaio!

Assim largo tempo, horas talvez. O torpor do frio agravava-lhe o outro,
o do medo. Parecia colado à lama, preso ao caminho como se fosse uma
rocha. No entanto, a espaços, tinha a compreensão clara da sua posição
e do seu estado. E então uma raiva súbita galvanizava-o: queria
erguer-se, fugir, desaparecer--erguer-se como aquela cruz, fugir como
aquele vento, desaparecer como esses relâmpagos, que nem deixam rastro
na treva...

Tais rebates de coragem eram, porém, efémeros, impotentes para lhe
provocarem um movimento. Aquele diabo tinha de morrer ali,
miseravelmente, ignobilmente, como um cão a que houvessem amputado as
quatro pernas. E esta ideia, que o instinto de viver lhe sugeriu,
apavorou-o ainda mais que a própria tempestade. Morrer ali! Mas que
dúvida, se ninguém lhe vinha acudir, se não passava por ali vivalma, a
tais desoras! Era horrível! No meio de um caminho, numa noite medonha
de tempestade, ao pé daquela cruz negra de longos braços
hirtos--morrer ali!... Eram então já por ele as lágrimas que essa cruz
parecia chorar?...

Estava nisto, quando num silêncio de acaso ouviu passos à distância.
Vinha gente. Quem quer que era tinha de passar por ali, de tropeçar
nele, talvez. Subitamente, sentiu-se reviver. Estava salvo. Em breve
estaria de pé,--de pé como essa cruz que um relâmpago muito vivo acabava
de lhe mostrar... No entanto, a voz é que se não importava:

--Ó José Gaio!

Mas os passos vinham-se chegando; e então, como se receasse que o
calcassem, reuniu num supremo esforço as máximas energias, e rebolou-se
para um lado, até ficar detrás dumas urzes. Coisa notável foi,
senhores, que esse miserável em vez de gritar calou-se, e todo se
recolheu numa absoluta quietação, com medo que o surpreendessem... E
quem quer que era passou, cabeça nua, diante da cruz gotejante... Aos
ouvidos do miserável chegou um como murmúrio de prece... Não ia só a
rezar; ia também chorando, aquele homem...

...Quem seria?

Um clarão branco de relâmpago fez irromper da treva, lívido como um
espectro, o filho do José Tendeiro...

O desgraçado ia a chorar pelo pai, ali assassinado havia anos, por uma
noite como aquela...

Passou, ladeira abaixo, na direcção da velha ponte. Só aquele cobarde
não se mexeu, prostrado sobre as urzes, quase arrumado à cruz.

E assim esteve horas e horas, até que, noite velha, cessou a tempestade,
perdida num murmúrio longínquo, lá na extrema fímbria do horizonte...
Quando a lua rompeu, lívida num céu de anil, nem a grande sombra da
cruz, incidindo sobre aquele corpo, como um beijo ou uma bênção, logrou
reanimá-lo. Tinha morrido, o estafermo!

Ao outro dia, está claro, foram lá os da justiça. O velho abade foi
depois, buscar o corpo. Os médicos nem lhe tinham mexido.

--Sangue pelos olhos, sangue pela boca, sangue pelo nariz, uma
congestão muito linda--dissera um a rir.

--E muito mal empregada--fizera o outro do lado, indiferente.

Mas quando os da maca disseram a um tempo--_Upa_!--esse bom velho do
abade caiu de joelhos diante da cruz, numa convulsão agudíssima de
choro. E elevando ao céu as mãos mirradas--ao céu que um divino azul
fazia diáfano--ele exclamou, soluçando:

--Senhor! Senhor! a vossa justiça é tremenda, como é infinita a vossa
misericórdia!

...Segredo de confissão...--mas o abade bem sabia quem tinha ali
matado o José Tendeiro...




BALADAS

_A Luís Osório_


I

MARICAS


Vocês lembram-se da Maricas, aquela magrita de cabelos muito
castanhos, quase louros, que morava defronte da redacção, lembram-se? A
boa da rapariga era nossa amiga, pois não era? Sempre benévola e
complacente para as nossas balbúrdias e algazarras de todo o dia e de
toda a noite. E vocês bem sabem que tais elas eram, as nossas
balbúrdias e algazarras...

Eu, na Maricas, admirava uma virtude rara, toda original e
encantadora--a de não mostrar jamais na sua amizade preferência por
algum de nós. Dir-se-ia que era nossa irmã, ou mesmo nossa mãe, pois
que nos queria a todos por igual, a pobre Maricas de olhar azul e
brando...

Não sei se já vos disse: adivinho o interesse com que ela vos
perguntaria por mim, nos meus dias de cábula, pela solicitude e
interesse com que me perguntava por vocês, quando faziam gazeta ao
escritório.

--Então esses cábulas? então esses marotinhos? Doente, algum?

--Na estúrdia, Maricas. Andam todos por lá...

--Ora vejam!--fazia ela quase escandalizada.

Ah, como eu me lembro neste momento da vivacidade franca dos sorrisos
que nos mandava, quando todos em pinha, furando pelos ombros uns dos
outros, palreiros conversávamos com ela de janela para janela, num
_tête-à-tête_ que durava horas, muito familiares, muito dados, quase que
chamando-lhe por tu e ela a nós!

Como eu me lembro!

Ela tinha sempre uma resposta e um sorriso para cada uma das mil
perguntas que lhe fazíamos, e então uma grande paciência inexaurível.
Nós, os estroinas, quase que chegávamos a adorar aquela ingenuidade
singela do seu coração de vinte anos. A boa da Maricas era adorável,
toda ela bondade e paciência para os nossos distúrbios e para as nossas
algazarras de toda a hora e de todo o instante.

Mas como se familiarizou ela connosco e nós com ela, é que me não
lembra, e porventura a nenhum de vocês, acho eu. O que é certo, rapazes,
é que nós como que a considerávamos uma companheira de redacção, espécie
de directora com casa à parte e viver independente pois que se entrávamos
no escritório (parece mesmo que estou a ver aquela barafunda
de escritório!) e, assomando à janela, a não víamos na sua, dizíamos
quase sem querer, mas invariavelmente:

--Mau! falta hoje a Maricas! Diacho! mas onde iria a Maricas?

E passados instantes debandávamos todos, um agora, outro logo, à
formiga, mal nos convencíamos de que ela passava a tarde fora, em casa
da _freira_ de Quebra-Costas--dessa lembram-se vocês... No entanto,
deveis recordar-vos que ela, no dia seguinte...--coitada!--...a
primeira coisa que fazia era justificar a sua falta, «estive aqui,
estive ali, fui a umas compras com a mamã», um pouco ruborizada e
confusa, como se na realidade a sua obrigação fosse estar ali a
aturar-nos. Por pouco ela nos não pedia de mãos postas que lhe
perdoássemos, a boa da rapariga.

E nós então galhofeiros, brincalhões:

--Sem mais _aquelas_, D. Maricas! A congregação risca-lhe a falta, ora
essa!...

E ela mais confusa, fazendo girar no dedo o seu anelzito de cobra:

--Pois sim, mas é que às vezes...

--Às vezes quê?...

«Não! ora adeus! Ninguém desconfiava que ela estivesse zangada
connosco. Saíra, porque tinha de sair, essa é boa...»

--Pois não era verdade--perguntávamos-lhe--que ela adorava aquela
_trupe_ de boémios?

--São todos muito bons rapazes--dizia já a sorrir.--Todos me tratam
muito bem...

E quando dizia isto, o seu rosto miudinho e muito pálido todo se
iluminava de prazer e sorria de íntima gratidão. Mas porque
simpatizava ela connosco, a pobre Maricas?

Quando nos via em palestras intermináveis, nas libações do _congnac_ e
do café, ouvia-se lá da janela um _pschiu_! muito sibilado.

--Que manda a D. Maricas? É servida?

E ela, levantando os olhos da costura, com ares de formalizada:

--Mando que escrevam, que trabalhem! Já fizeram o jornal?

O cuidado que lhe dava o jornal!

--Ora faz favor de não falar em coisas tristes? Olhem agora que
lembrança, o jornal!

Ela então, por única resposta, dizia-nos às vezes que na semana passada
o tipógrafo viera queixar-se de que havia falta de originais, quantas
vezes o garoto da imprensa viera pedir as provas emendadas.

E por falar em provas:--a Maricas sabia todos os sinais das emendas,
todos.

--Olhe lá, Maricas, está aqui uma letra a mais nesta palavra.

--Risco por cima, risco à margem, e um _d_ cortado; é fácil.

--Um _m_ de pernas para o ar, e esta?

--Risca-se, e um três cortado, à margem. Está farto de o saber...

Quando via algum sentado à mesa, a rabiscar, pedia sempre que lhe fosse
mostrando as tiras, à medida que as escrevesse, talvez porque adivinhava
que isso era um estímulo. A gente fazia-lhe então a vontade, e mal
escrevia a derradeira letra pegava da tira e dizia-lhe para a janela,
acenando-lhe com o papel:

--Maricas, cá está uma, vá contando. Veja: escrita de alto a baixo.

À terceira que se lhe mostrava, ela saía-se de lá com um _bravo_! e
recomendava, solícita, cinco minutos de folga, enquanto se fumava um
cigarro.

A Maricas era quem nos cortava as cintas para o jornal e quem nos fazia
a goma nos dias de expedição. Que ricas cintas e que bela goma! Em
paga, quando o jornal chegava da imprensa, quase sempre nos sábados à
noite, o primeiro exemplar era para ela. Como a rua era estreita
atirava-se-lhe da janela.

--Maricas, aí vai ainda fresquinho!

--'stá bem, obrigada. Vou ler, até amanhã.

Corríamos todos à janela, a dar as boas-noites à nossa amiga.

--Durma bem, ouviu?

E no dia seguinte, a Maricas repetia a cada autor frases e frases do
artigo publicado, jurava que nos conheceria no estilo ainda que
mudássemos de pseudónimo. De resto, sempre benévola: achava tudo muito
bom, «escrito com muita graça e muito bem», como ela dizia.

Nos serões que fazíamos e que por via de regra não passavam de um
interminável cavaco, dizia-se mal das mulheres, discutiam-se escândalos,
desvendavam-se segredos, tal e qual como em todas as redacções... Mas da
Maricas ninguém tinha que dizer senão bem; era a privilegiada naquelas
sessões de má língua. Quase sempre a conversa degenerava em
algazarra--um que se lembrava de cantar, outro que ia pela guitarra e
gemia fados com acompanhamento de violão. E era de ver o Santos Melo,
de olhos cerrados e cabeça à banda, como cantava a sua quadra predilecta:

Sei cantigas misteriosas,
Cantigas de endoidecer,
Que os lírios dizem às  rosas,
Que as rosas me vêm dizer.

Mas no meio desta inferneira havia sempre um que recomendava silêncio.

«Com mil demónios! não viam que a Maricas não podia pregar olho...»

Todavia...--ó suprema bondade!--...ela nunca se queixava quando no dia
seguinte nos vinha dizer até que horas durara a estroinice, o que se
tinha tocado, o que se cantara, quem tinha rido mais, e, até, as vezes
que as cadeiras tinham caído.

«Ora viam?! Não a tínhamos deixado dormir! A Maricas que desculpasse;
palavra de honra! doravante...»

Ela então acudia logo, como a remediar uma grande desgraça:

--Não, não, eu até gosto. Entretém-me vê-los alegres, faz-me bem, ora
essa...

       *       *       *       *       *

Pois, meus amigos, a boa da Maricas--morreu! vocês não sabiam! E morreu
tísica, a desgraçada Maricas! Só depois que o soube, é que eu comecei a
pensar naquela tossezinha muito seca em que às  vezes a
surpreendíamos, naquele branco pálido das suas faces, no bistre das
suas olheiras, naquela magreza transparente das suas mãozitas de
marfim...

Pobre Maricas!

Haverá três meses que ela me desapareceu da sua janela, onde
continuei a vê-la depois que o jornal acabou. Eu sabia lá para onde ela
tinha ido?!...

Mal diria eu que estavas no cemitério, tão longe e tão só! porventura na
vala comum, sem umas folhas de rosa sobre a tua sepultura
humilde,--onde neste instante cai chuva e chuva! Ainda se as noites
fossem todas de luar... Minha triste amiga! como eu agora relembro cheio
de mágoa a tua frase de infinita bondade e de infinita resignação:

--...«Entretém-me vê-los alegres, até me faz bem»...

Compreendo agora tudo: vivias da nossa alegria, já que a tua alma era
triste... Mas porque foi que nos não disseste, pobrezinha! que nessa
frase singela ia a revelação do pressentimento que tinhas da tua morte
prematura?! Triste criança que nós não mais veremos!

       *       *       *       *       *

Olha, Maricas, escrevi quatro tiras. Já me não dizes--_bravo_!--ora
não?...

       *       *       *       *       *

...Bom Deus! bom Deus! para que a terra produza diamantes, e dela
rebentem flores, são talvez precisos estes corpos a avigorar-lhe as
seivas...


II

PARA A ESCOLA


No velho casarão do convento é que era a aula. Aula de primeiras
letras. A porta lá estava, amarela com fortes pinceladas vermelhas, ao
cima da grande escadaria de pedra, tão suave que era um regalo subi-la.
Obra de frades, os senhores calculam... Já tinha principiado a aula
quando a Helena entrou comigo pela mão. Fez-se um silêncio nas
bancadas, onde os rapazes mastigavam as suas lições e a sua tabuada,
num ritmo cadenciado e monótono, cantarolando. E ouviu-se então a voz
da Helena dizer para o senhor professor, um de óculos e cara rapada,
falripas brancas por baixo do lenço vermelho, atado em nó sobre a testa:

--Muito bons-dias. Lá de casa mandam dizer que aqui está a
encomendinha.

Oh! oh! a encomendinha era eu, que ia pela primeira vez à escola. Ali
estava a encomendinha!

--Está bem, que fica entregue. E lá em casa como vão?

E enquanto o velho professor me tomava sobre os joelhos, a Helena
enfiava-me no braço o cordão da saquinha vermelha, com borlas, onde ia
metido nem eu sabia o quê. Meu pai é que lá sabia... E ali estava eu
entre os joelhos do senhor professor, com o _bonnet_ numa das mãos e a
saquinha vermelha na outra, muito comprometido. A Helena, que sorria
contrafeita, baixou-se para me dar um beijo, e disse-me adeus.

--Adeus, Josezinho, logo venho cá pelo menino.

Choraminguei, quis sair na companhia dela.

--Não, agora o menino fica--disse-me a Helena.--Isto aqui é a escola, é
onde se aprende a ler.--E agachando-se, diante de mim:--Olhe tanto
menino, vê?

--Mas fica tu também--disse-lhe eu então.

Nas bancadas houve hilaridade geral. O mestre teve de intervir,
iracundo:

--Caluda, sua canalha! Não vêem que está gente de fora? Caluda, que vai
tudo raso com bolaria!

Foi então que reparei em toda aquela rapaziada. Ah, eles eram todos
meus conhecidos! Vivam lá vocês! E estavam todos alegres, p'los modos.
Reanimei-me. Então já eu podia ficar, estavam ali os meus amigalhotes,
cheguei mesmo a rir das caretas que me faziam alguns, o Estêvão
principalmente.

--Isto é preciso muita paciência, senhora Helena, muita soma de
paciência. Um mestre precisa de ser um santo.--(Pausa. Olho duro sobre
as bancadas.)--Mas está bem, diga lá que a encomendinha cá fica. Em boa
hora entrasse...

--Entrou, ele há-de estudar. Ora há-de, Josezinho?

Das bancadas alguns acenavam-me que não, arregalando muito os olhos.

--É verdade,--insistiu por sua vez o professor--o menino há-de estudar
as suas lições, não é assim?

--Diga, sim senhor--ensinou-me então a Helena.--Hei-de estudar muito e
ser sossegadinho na aula, diga.--E a meia voz para o professor:--isto em
casa é o vivo mafarrico; faz lá ideia?

Ele riu, já sabia; as crianças são todas assim, enquanto estão no mimo
das mães. Mas uma vez metidas na escola, as coisas mudavam um pouco. E
piscando o olho, designou a palmatória. A Helena ficou transida.

--Faz milagres, Sr.^a Helena. Digam lá o que disserem, olhe que faz
milagres.

Eu tinha percebido. Começava de novo a _embezerrar_, com vontade de sair
quando a Helena saísse. Aquilo sabia eu para que servia, a
palmatória...

--Mas para o nosso Zezito não há-de ser precisa, ora não?

--Diga assim: não senhor, porque eu hei-de cumprir com as minhas
obrigações, diga.

--Ora aí é que está--atalhou o professor.--Vê, Sr.^a Helena? Aqui já os
pequenos têm a sua obrigaçãozinha, os seus deveres a cumprir, as suas
coisas...

--Sim senhor, sim, enquanto que em casa...

--Em casa é o que nós sabemos. Tudo são mimos, meu menino isto, meu
menino aquilo. Vão assim criados à lei da natureza, sabe vossemecê? É
mau isso, péssimo! Porque é que os rapazes são todos teimosos?--E bateu
num «Monteverde» pousado sobre a mesa, dizendo:--Olhe, aqui está neste
livro: «_de pequenino_...

--..._é que se torce o pepino_»--concluiu rápida a Helena, orgulhosa de
saber o que estava no livro, coitada!

--Nem mais. A modos que isto faz rir. Um pepino é uma coisa que se cria
na horta...

Risota dos rapazes!

--Ora vê isto, Sr.^a Helena? vê estes brutinhos?--E com entono, de
palmatória alta, fazendo-se carrancudo:

--Caluda, seus fedelhos! Caluda, porque se peço licença à Sr.^a Helena,
começo numa ponta e levo tudo a eito, corro tudo a bolos, tudo, mas o
que se chama tudo!

E fitou-os altivo, sereno, minaz. Sob aquela ameaça, os rapazes ficaram
transidos, cabisbaixos, olhos pregados nos livros. É verdade que ele
podia pedir licença à Sr.^a Helena, e mesmo diante dela _cascar_ de
rijo... Uma sombra de terror passou por toda a sala, sossegaram; até o
Estêvão deixou de me fazer caretas.

--É o que vê, Sr.^a Helena--disse então vitorioso, a sorrir-se, o bom
do professor.--É o que vê! Um mestre sem palmatória é um artista sem
ferramenta, não faz nada. _Santa Luzia_ milagrosa! Aqui onde a vê tem
feito muitos doutores.

--Essa?--perguntou ingenuamente a Helena, disposta a venerar aquele
pedaço de pau de buxo, se na verdade ele tivesse feito muitos doutores.

--Não, mulher, se não foi esta, outras como esta, essa é boa! Isso não
faz ao caso.

Pela resposta bem se vê que foi indiscreta a pergunta da pobre Helena.
Também ele, velho naquele ofício, muitas vezes investigara com mágoa
o motivo por que a sua palmatória não fazia um único doutor... Morreria
sem ter essa «glória,» decerto! Forte martírio que a Helena veio
recordar-lhe!...

Houve uma interrupção, um rapaz que se levantou e de braço no ar pedia
para ir lá fora.

--_Licéte_!--foi como ele disse, arremedando o latim _licet_. Outros
havia que diziam, por troça, _Aniceto_!

--Ora já a mim me admirava,--tornou-lhe o professor.--Se tu não havias
de pedir para ir lá fora, tu...--E ficou-se a fitá-lo, meneando
pausadamente a cabeça.--Ora vá você lá fora.

O rapaz saiu apressado, com grande estrupido de pés.

--Olá?--chamou zangado o Sr. professor.

O outro assomou à porta, contrafeito.

--Para a outra vez faz-se menos barulho com esses pés, ouviu? Não sei se
percebes... Ora já que tem tanta pressa, eu não tenho nenhuma; faça
favor de esperar um pouco.

Pôs-se então a correr a vista pelas bancadas, resmungando:

--Tu não... tu não... tu não... Tu, olá, venha cá!

Levantaram-se uns poucos, foi um barulho.

--Canalha!--gritou-lhes então, batendo o pé.--Corja de atrevidos!
Sentados, já!

Grande silêncio nas bancadas. Um perguntou de lá, humilde, se era ele,
apontando para o peito.

--Sim, és tu, p'ra que queres os olhos? Avance e perfile-se.

Mediu-o de alto a baixo. Depois:

--Isso mesmo. Essa mão no bolso é que não é do _regulamento_, fora com
ela. Agora, sim senhor. Ora vês além aquele sujeito? o tal das
pressas?...

--Vejo, sim senhor.

--Bem sei que vês, se o não vissem é porque eras cego; que tal está o
palerma? Ora acompanhe-o, já sabe p'ra quê. E sempre quero ver se tenho
de vos ir lá buscar pelas orelhas.

Saíram. Mal tinham salvado a porta, gritou-lhes o Sr. professor:

--Olá?

Eles assomaram, outra vez, atrapalhados.

--Então, seus cabeças de avelã, torres de vento, então não falta nada?

Os dois puseram-se a coçar a cabeça, muito comprometidos. Faltava com
efeito alguma coisa...

--Então é aí?

Eles avançaram até ao meio da sala, tropeçando um no outro.

--Ora passa por esta vez, em atenção a estar aqui a Sr.^a Helena.--E
enrugando o sobrolho, comandou em tom marcial:--Ordinário! marche!

Faltava aquilo. Em obediência aos seus velhos hábitos de militar, dava
o Sr. professor aquela voz, sempre que mandava algum aluno cumprir
ordens suas:

--Ordinário! marche!

Sentou-me então no joelho e perguntou:

--Olha lá, Josezinho, tu queres ser militar, queres? Assim como o Sr.
capitão do destacamento, que lá está aboletado em casa, queres?

--Corneta, mais queria ser corneta. Ou então como o Sr. prior, dizer
missas.

Riram-se. Quem sabia lá o que dali sairia? Mas o Sr. professor fez
notar que era bom que os pequenos tivessem já assim uma tendência
qualquer. E pôs-se a puxar-me o nariz, a dar-me palmadinhas nas
bochechas.

--Corneta ou prior, hein? Pois isso é que é preciso escolher.--E para a
Helena:--Pois olhe que os tenho conhecido, Sr.^a Helena, que respondem a
pés juntos que não querem ser nada. Mau sinal, péssimo, Sr.^a Helena!
Quando eles assim dizem, de ordinário assim fazem, depois. Nunca são
gente.--E virando-se para mim:--Mas então, Josezinho, em que ficamos?
Corneta ou prior?

Preferia ser prior. Sempre me parecia melhor, mais bonito, especialmente
em dias de festa, com aquela capa toda doirada...

--Muito bem, escolheste bem. «_Telha de igreja_...

--..._sempre goteja_»--concluiu a Helena que ainda hoje é forte em
adágios.

O bom do professor tinha finalmente chegado onde queria.

--Prior, então! Está muito bem, seu reverendo. Pois olha, Josezinho,
para ser prior é preciso estudar, saber ler no missal, ora é?

--É.

--Ah!... Não é assim que se diz. É, sim senhor--emendou a Helena.

O Sr. professor teve um gesto de indulgência.

--Mas tu não sabes ainda, ora não?

--Não senhor.

Ele então, fingindo uma grande surpresa, perguntou se o que eu trazia
na saca era um livro.

--Querem ver que é um livro?...

--Diga--ensinou a Helena--é o meu livro para aprender a ler. Mostre-o lá
ao Sr. professor, tome.

Houve na sala um murmúrio, ao verem a capinha verde, toda lustrosa, do
meu livro.

--Muito bem! muito bem!--aplaudiu o Sr. professor.--Mas este livro é
mesmo para aprender a prior... O menino já tinha dito lá em casa que
queria ser prior, ora já?

Fiz que sim com a cabeça. Era verdade aquilo; mas como é que ele o
sabia?

--Bem se vê por este livro. É livro para prior. Queres então principiar,
não queres?

--Quero, sim senhor,--ensinou ainda a Helena e eu repeti.--O que eu
quero é dizer missa quanto mais cedo melhor, diga.

--Primeiro do que aqueles?--perguntou voltando-me para as bancadas.

Então fui eu mesmo que respondi:--«Sim senhor!»--contente com a
lembrança de vir a dizer missa, e de a vir a dizer primeiro do que todos
aqueles. Até podia acontecer que o Estêvão das caretas me ajudasse a
alguma...

--Ora então está muito bem, estamos entendidos.--E com intenção, ferindo
muito as palavras, para mas gravar no espírito:--A primeira coisa que é
precisa para prior é saber bem isto, vês?--E punha-me diante dos olhos o
livro aberto na primeira página.--Isto aqui é já missa, chama-se o _a b
c_, e é aquilo que os priores dizem quando vão para o altar.

--_Ito_?--inquiri curioso, furando a página com o dedo.

--Sim, isto. E amanha já me hás-de trazer sabido daqui até ali. Hein?
valeu?

--Diga que sim, menino, diga. Valeu, sim senhor.

Eram as seis primeiras letras, ainda me lembro bem. A minha primeira
lição!

_A B C D E F_!

A minha primeira lição!

--Ora sabe vossemecê o que isto é, Sr.^a Helena? isto que eu tenho
estado a fazer?

--Sim senhor, sei... é assim... como quem diz... é...

--Não sabe, não admira,--disse complacente o Sr. professor.--Puxar o
gosto, Sr.^a Helena, puxar o gosto é que isto é. Nem todos os mestres o
fazem, todos o deviam fazer. O pequeno, assim, até já vai estudar com
mais gosto, digo-lho eu; olé se vai!

«Mas ele não a queria demorar mais, tinha lá em casa as suas
obrigações, as suas voltas, e deviam ser horas.»

--Pois isso é verdade, Sr. professor; mas não sei que é, custa-me a
separar do menino...--disse a boa da Helena, quase a chorar.

--Foi ama, deu-lhe o seu leite, aí é que está a coisa. Pois tenha
paciência. Aprender é tão preciso como mamar--concluiu numa prosa que é
mesmo poesia.

--Pois é preciso, é!...

E a pobre Helena beijou-me, para se ir embora. Quando me beijou, senti
na minha cara as lágrimas daquela boa amiga. Retirava-se, deixando-me
ainda sobre o joelho do meu velho professor, quando este a chamou:

--Sr.^a Helena!

--Meu senhor!--respondeu, levando aos olhos o avental.

--Já agora, espere mais um instante.

Percorreu com a vista, minuciosamente, as bancadas todas da aula.
Depois, intimou:

--Tu, Francisco, olá, chega acima. E tu do lado, como te chamas, abaixo
um pouco.--E virando-se para a pobre mulher lacrimosa:--Ora é ali,
Sr.^a Helena, ali é que é o lugar do pequeno. Leve-o lá, ande, que lhe
não deve pesar.

E dos braços do meu professor passei para os braços da ama. Novo beijo,
lágrimas mais quentes, e saiu a boa da Helena, deixando-me no meu
lugar...--o meu primeiro posto na arriscada milícia das letras...

Depois, só vi isto: o mestre a sorrir-se para a porta e a conversar por
acenos com a pessoa que estava de fora. Pequeno como era, percebi, no
entanto. O mestre vinha a dizer na sua mímica:

--Bolos?... Não?!... Perdoe a Sr.^a Helena, mas isso, quando forem
precisos... Pois sim... lá isso sim... pequeninos... Han? mesmo com a
mão?... Está bem... Descanse... Mesmo com a mão...

E ela devia sorrir por entre lágrimas, porque foi também por entre
lágrimas que o bom velho se sorriu, dizendo adeus...

       *       *       *       *       *

...Helena, minha boa amiga! Acabo de chegar ao fim da viagem que
principiei nesse dia. Não volto mais à escola! Venho hoje restituir-te,
querida amiga, aquele beijo--dulcíssimo beijo aquele!--que tu então me
deste. E afinal não fui prior, ora vê!... Mas ainda bem. Se o fosse,
acho que parecia mal beijar-te, minha boa e santa amiga! Pois ainda bem
que não fui prior, ainda bem... Não é verdade, Helena?

Em Coimbra, no dia do meu acto de formatura.




TRAGÉDIA RÚSTICA


I

_Madrugada de segunda-feira de Entrudo, tapada dos Nobres, Alentejo, à
porta do José Grilo_


Truz! truz! truz!

Os de casa acordaram, sobressaltados.

--Schiu! nem pio!--fez o José Grilo para a mulher.--Moita!

--Truz! truz! truz!

Do seu cubículo, a Ana, filha do José Grilo, pôs-se a chamar pelo
pai.--Bem ouvia, que deixasse bater. Algum bruto que se queria
divertir...

Mas logo outra vez na porta:

--Truz! truz!

--Arre que é bruto! vá bater ao inferno, quem é! gritou de dentro o José
Grilo, zangado. E pois que se pôs à coca, de orelha fita, olhos
cravados na telha-vã do casebre, sentiu distintamente os passos de
alguém que fugia.

--Eu não te disse? aquilo foi bruto que se quis divertir--explicou ele
para a mulher.

Mas palavras não eram ditas, pareceu-lhe ouvir o vagir de um
cachorrinho, mesmo rente à porta. Veio-lhe logo à ideia que lhe tinham
vindo pôr zorro...

--Ó mulher, queres tu ver que há novidade?

De um pulo saltou da cama, embrulhou-se na manta e abriu a porta do
casebre.

--Ele que demónio de embrulho...?

Pegou-lhe com muito jeito. Era efectivamente uma criança, envolta em
dois trapinhos muito velhos.

--Coitadinho! fez o ganhão achegando ao peito a criancinha.

--Grandes cadelas!--E pôs-se logo a fazer uma algazarra, alarmando a
gente da casa.

--Andem! a pé! levantem-se! está aqui este inocentinho que vem dar os
Bons-dias à gente!

Correu a filha, veio a mulher. Mas ao tempo, já o bom do José Grilo
metera a criança na cama, visto que a pobrezinha estava gelada...

--Ele quem diabo há por aí que tenha leite? A filha do António das
Varedas, é verdade, a Brites que lhe morreu o cachopo.

Despediu imediatamente a filha, a Ana, à procura da Brites que
chegasse o peito ao inocentinho. E da porta, gritando para a rapariga
que ia correndo:

--Que se não demore, ouves? que se lhe paga aquilo que for.

Mas a mulher do José Grilo, a senhora Joana, de pé no meio da casa, a
saia amarela deitada pela cabeça, de braços cruzados, muito
embezerrada, permanecia sem dizer palavra.

--Ó mulher, nada de aflições, é tal e qual como se fosse nosso, faz de
conta...--observou-lhe logo o José Grilo que percebia o ar taciturno da
fêmea.

Ela só redarguiu que _nosso_ era um modo de falar. Seria dele, mais
de qualquer desavergonhada...

O José Grilo, que estava a enfiar as calças, parou no serviço e
pregou-lhe uma gargalhada.

--Ajeita-me o pequeno, ouves? Vê lá que talvez esteja molhado. E
deixa-te de cantigas, que hoje é dia de Entrudo.

A mulher ia reguingar; mas ele, pegando-lhe de um braço, levou-a ao pé
da criança, afirmando-lhe às  risadas que sim, que o pequeno era filho
dele.

--O pequeno?... mas é que pode ser cachopa--disse o José Grilo para a
mulher.--E certificando-se:--Nada! é rapaz.

Seguiu-se uma altercação. A senhora Joana, a chorar, ia jurando pela
sua salvação que «o crianço» era filho do seu homem.

--Ai Jesus que estou perdida! chamava ela muito cómica, braços no ar, o
balandrau da saia amarela enfiado pelo pescoço num jeito de
sobrepeliz.--Má hora em que me eu casei! ai Jesus que vai ser de mim!

--Olha que é rapaz, ouves? anda cá ver que é rapaz--disse-lhe de lá o
José Grilo, muito fleumático, debruçado sobre a criança.

Mas como visse que a mulher continuava num estardalhaço, muito
aflita, desaustinada pelos cantos da casa, o José Grilo virou-se para
ela e disse-lhe muito solene:

--Pois assim me Deus salve como não é meu o rapaz.

Ao ouvir assim falar o seu José, a senhora Joana voltou-se logo para
ele, olhos esbugalhados, muito suspensa.

--Juras pelas cinco chagas, ó homem?

--Juro pelas cinco chagas.

--Assim te Deus dê saúde, ó José?

--Assim me Deus dê saúde.

--Preto sejas tu como o teu chapéu?

--Preto seja eu como o meu chapéu.

A senhora Joana botou-se logo a correr para um canto da casa, e abrindo
a arca de pinho, do bragal, entrou aos beijos a uma Nossa Senhora da
Conceição, pegada na face interna da tampa, com bocadinhos de hóstia.

Depois desabafou, muito aliviada:

--Ai!

O José Grilo pôs-se a rir.--«O demónio da Joana, com ciúmes!»

--Mas ciúmes de quê, ó mulher? não farás favor de me dizer de que diabo
tens tu ciúmes?--perguntava muito casto o amigo José Grilo, sereníssimo
diante da mulher desconfiada.

A outra, muito delambida, redarguiu com ironia--«que o seu homem era um
santinho...»--O José Grilo ia defender-se. Mas ela, atalhando logo,
reguingou de alto:

--Sabes tu que mais? estafermos é o que mais há. Olha a cadela que
enjeitou este...

Aqui, fez uma suspensão; depois perguntou, muito lampeira:

--Mas quem seria a grande cadela?

Pôs-se então a mirar muito o pequeno, a ver se lhe dava ares de alguém,
murmurando frases de ódio, moralistas:

--Precisava ser enforcada, a tua mãe; quem quer que é tem mesmo
entranhas de lobo.

O pequenino entrou a vagir, muito friorento, embrulhado numa camisa do
José Grilo.

--É fome, coitadinho! o infeliz inda não sabe que coisa é mamar--disse
contristado o lavrador.

Foi-se logo à porta, a ver se a Brites chegava. Mas quem vinha com a
Ana era a outra, a Doroteia do António das Veredas.

--Tua irmã, tua irmã é que se cá precisava. Que demónio vens tu cá
fazer? Ouves? não me dirás que diabo vens tu cá fazer?--E deu um bofetão
na filha, «para que soubesse dar o recado».

A Doroteia pôs-se a explicar que a rapariga não tinha culpa. A irmã é
que a mandara para levar a criança, porque ela, adoentada, fazia-lhe
mal sair de casa assim cedo...

--Só se lhe queres tu dar de mamar--insistiu ainda o José Grilo, virado
para a Doroteia, irreverente pelos seus dezanove anos inda virgens.

A senhora Joana fez-lhe de dentro que se calasse:

--Credo, homem! essas coisas não se dizem, nem por graça.

--Eu sei lá se não se dizem?--observou o lavrador, muito zangado.--Dá cá
daí o pequeno.

Veio a senhora Joana com o embrulhinho, que entregou ao José Grilo. O
lavrador depô-lo nos braços da Doroteia, com mil cuidados, e depois
ele mesmo ajudou as mulheres a ajeitar o pequenino, em termos que fosse
bem quente.

--Roda forte, ouves? E diz lá a tua mãe que eu de tarde por lá apareço,
p'ra ver isto do ajuste.

A rapariga saiu. E como o lavrador desse fé que tinham ali ficado os
farrapos, gritou para a rapariga:

--Ó D'roteia! espera que inda cá ficou isto.

Então pôs-lhe os farrapos ao ombro--uns pedaços miseráveis de velha
chita--e a Doroteia partiu onde à irmã.


II

_Quarta-feira anterior a Domingo Gordo. Monte do Rosário. Em casa de
António Palma, casado com Rufina Maria_


O António Palma tinha acabado de jantar, rodeado da pequenada. A mulher,
a Rufina, principiava a lavar a loiça, quando à grade do quinchoso uma
voz chamou:

--Ó Sr.^a Rufina!

Vieram os pequenos, veio o António Palma, a mulher com as mãos
fumegantes. Foi preciso fazer calar o _Farrusco_ para se poder ouvir o
que dizia aquela mulher que lhes estava falando do caminho.

--Queria-lhe uma palavrinha, a si mais ao seu homem.

O Palma foi abrir o cancelório. E foi com grande desgosto que deu de
cara com a Francisca Fortunata, de grande ventre alçado, uma
desavergonhada que tinha fugido ao marido, o José Tomás negociante de
gado. Entrou, fizeram-lhe uma recepção fria. Os próprios pequenos
olhavam desconfiados e silenciosos aquela grande mulher gorda que eles
não conheciam. Ela sentou-se logo num saco, muito esfalfada, enquanto
o Palma e a mulher afectavam procurar ambos um banco, acotovelando-se,
com trejeitos de quem se sentia arreliado com a visita. O _Farrusco_
investiu com a mulher, achando-a estranha; mas uma vez enxotado com o
pontapé do Palma, fez-se na casa um grande silêncio, e a mulher começou
assim:

--Venho pedir por caridade e esmola que me deixem aqui estar uns dias.
Já vêem como eu ando, isto deve estar por pouco. Logo que tenha o meu
filho, em arribando da quebreira do parto, deixo-os e vou-me embora. Lá
em casa de minha mãe aquilo é uma grande miséria, passam-se dias que
não comemos. Não há uma cama, a gente dorme sobre umas palhas, sem
jeitos de roupa com que se cubra. Mas eu ando neste estado, bem vêem
como eu ando...

Aqui desatou a chorar, levando aos olhos o avental miserável. O Palma e
a mulher diziam não sei que monossílabos, o _Farrusco_ rosnava. A outra
prosseguiu:

--Não é por mim, sabem? não é por mim. É este inocentinho que tem de
nascer no chão, como os cães... Bem sabem que isto custa. Pouco se me
dava de morrer, afinal, mas queria que o meu filho vivesse...
Coitadinho!

Ergueu-se num ímpeto, depois caiu de joelhos, mãos erguidas para o
Palma e para a mulher.

--Pelas cinco chagas de Nosso Senhor! exclamou.

O Palma fez para a mulher um gesto resignado e de lástima. Cada um de
seu lado, ajudaram-na a levantar-se, dizendo-lhe submissamente que tudo
se havia de arranjar, que sossegasse.

--Que a falar os pontos de verdade, Sr.^a Fortunata, vossemecê é que
tem a culpa desses trabalhos, disse-lhe logo o Palma.

Ela escondeu a cara no avental, fazendo-lhe com a mão que se calasse.

--Má sorte daquele pobre José Tomás, acabou-se! Quando ele casou com
vossemecê antes tivesse quebrado uma perna.

Ela chorava cada vez mais, parecendo muito aflita.

--Agora aí o tem, anda por esses caminhos que parece doido. Nem gado,
nem o diabo. Des'que vossemecê alvorou que o rapaz não vai a uma feira.
Pois olhe que era homem para juntar, videiro como poucos.

Pôs-se a fazer um cigarro, olhando os pequenos atónitos. Depois
continuou:

--Esteve aqui um destes dias, por sinal que sentado nesse mesmo
saco...

A Fortunata levantou-se num ímpeto, como se o saco a repelisse. O
Palma prosseguiu:

--Sente-se vossemecê, mulher, o saco não faz ao caso. Pois foi aí
mesmo que ele esteve, até parecia um pobre de pedir. Nem botões na
camisa, coitado! Mas pela conversa bem se vê que inda lhe não quer mal.
Que a bem dizer ele quase não conversa, anda a modos que amalucado,
sempre a levar a mão à cabeça, como se lá dentro aquilo andasse azoado.
E mais é que bem pode o rapaz dar em doido...

A senhora Rufina foi de parecer que doido já ele andava. Passavam-se
dias que não aparecia em casa do tio José Garção, que o levara logo
para ele, mal a Sr.^a Fortunata o deixara. Por onde andava? que fazia?
Contava-se que uma noite dormira numa coutada, no mesmo telheiro que os
porcos. Que doutra vez fora ter com o vigário para que lhe baptizasse o
filho, dizendo que já tinha nascido.

--No filho inda ele aqui se pôs a falar, lembrou o Palma.--Anda com
ela ferrada que o filho já nasceu.

Aqui, a Fortunata, de pé junto à porta, rompeu numa choradeira, ouvindo
falar no filho. O Palma interveio, condoído, dizendo que se não
afligisse, que o filho sempre teria uma caminha onde nascesse.

Ela ia ajoelhar, o Palma não deixou.

--Não é por vossemecê, mulher, assim me Deus salve como não é por
vossemecê. Mas é que o inocentinho que aí traz esse é que não tem
culpa. Faço de conta que é o pai que me pede, o pobre José Tomás.
Vossemecê bem sabe que eu era amigo do José Tomás. Diabo! a gente já
diz _era_, já fala nele como se o pobre tivesse morrido...

Nisto vieram chamar o Palma, que no lameiro ali em baixo andavam uns
bois que não eram dele. Foi-se a buscar um marmeleiro, e depois,
quando já ia para sair, disse em resumo:

--Fique vossemecê então, Sr.^a Fortunata. Ouves, Rufina? Talvez que ela
inda não jantasse. Faz-lhe a cama lá dentro, e o resto arranjem-se.

Caso é que a Maria Fortunata, amanhecendo para Domingo Gordo, desentupiu
e teve um filho. Mas nem sequer o tinha ainda beijado, nem lhe tinha
feito uma carícia, quando por volta do meio-dia a avó do pequeno ali
chegou, vinda de longe. O Palma que estava no quinchoso, a dar a bolota
aos cevados, ficou espantado:

--Pois senhores! havia de jurar que você adivinha, Sr.^a Ana!

Ela, sem mais rodeios, perguntou se a criança já tinha nascido.

--Já nasceu, sim senhora, vá lá dentro se a quer ver. Venha daí.

Mas iam ainda à porta, quando a velha, filando o braço do Palma, lhe
perguntou num sobressalto:

--Vivo ou morto, Sr. António?

O Palma percebeu. O estafermo da velha queria que a criança nascesse
morta. Aquilo fez-lhe nojo, deram-lhe ganas de correr a mulher a
pontapés. Conteve-se. Mas todo ele vibrou de cólera, quando em presença
do pequenino a velha, sem o beijar, perguntou o que se lhe havia de
fazer.

O Palma, furioso, repeliu a mulher com desprezo. E como ela insistisse
com a pergunta: «que se há-de agora fazer a isto?» ele redarguiu,
irado;

--Dar-lhe de mamar, está bem visto. Inda você pergunta o que se há-de
fazer à criança. Talvez você queira que o pequeno vá já cavar...

A velha ia falar.

--Nem pio, seu estafermo! Que tal é o amor que você lhe tem, que inda
nem sequer a beijou. Nem a mãe o beijou ainda, coitadinho! Você já viu
uma cadela quando tem os filhos, já viu? Com mil diabos, qualquer
cadela vale mais que vocês duas.

O Palma ia-se pondo amarelo, a Sr.^a Rufina interveio, aconselhando-o a
que saísse.

--Saio, e vou-me embora, ouviste? Ouviste? Aparelho a égua e vou-me de
véspera até à feira.

Pôs-se a procurar pelos cantos, aqui os estribos, além o freio da égua.

--Tanto faz ir amanhã cedo, como ir já agora. É já de cara. Mete-me
qualquer coisa nos alforges, que vou já aparelhar a égua.

Daí a meia hora, o Palma montava à porta, no meio do rancho dos
cevados, e chamando a mulher dizia-lhe com má cara:

--Em estando capaz, rua!

--Daqui a três dias, talvez...

--Então até daqui a quatro. Ouves? E olha se defumas a casa, quando
esses estafermos saírem.

Ora o António Palma a virar costas, e a velha a sair porta fora--com o
embrulhinho do neto ao colo...

Como ela corre, a maldita! Parece que o leva roubado...

Onde passou ela o dia? Onde passou ela a noite? Não sei. Caso é que na
madrugada seguinte, a desavergonhada abandonava o pequenino à porta do
José Grilo.

Madrugada de Fevereiro, nevava...


III


Quando a Doroteia saiu com o pequeno, para o levar à irmã, tinha
amanhecido havia pouco. A neve cessara; mas um nordeste frigidíssimo
retalhava a cara da rapariga, encolhida sob aquela atmosfera de gelo.
Nunca o souto que ia atravessando lhe parecera tão comprido e tão
triste. Os grandes castanheiros despidos, cheios de neve até ao alto,
faziam-lhe mais viva e mais cortante aquela impressão de frio. O chão
estava coberto de neve; e lá em cima, muito alto, o céu muito azul
anunciava um dia de sol.

A rapariga ia triste. Dir-se-ia que a tristeza lhe nascia toda
daquele lado em contacto com o pequenino...

Por isso quando passou pela azenha, e que a mulher do Paulo lhe
perguntou o que levava ali, erguendo a voz sobre o ruído forte da
levada, a rapariga entrou de chorar e respondeu que era um enjeitadinho.

--Um quê, mulher? que dizes tu? insistiu a outra.

Mas o moleiro, que vinha chegando, especou diante da mulher, e repetiu
como um eco:

--...Um enjeitadinho.

Entreolharam-se os três, numa incerteza vaga.

--Sim, um enjeitadinho, deve ser isso...--continuou o moleiro.--E
daí... pode ser que não seja...

A rapariga, muito impaciente, perguntou se sabiam alguma coisa.

--Nada! pode ser que a história seja outra--elucidou o moleiro.--Onde
foi que isso foi posto?

--Esta madrugada, à porta do José Grilo.

--Olá! isso então pode ser coisa dele--observou a rir o moleiro.--Esse
diabo não é seguro.

Puseram-se a rir da lembrança. Já dentro do moinho, o homem pôs-se a
explicar à rapariga:

--É que ontem à noite veio aqui um homem pedir pousada, um homem a
modos que adoidado. Boa figura de homem, por sinal. Assim às  primeiras,
tanto eu como a Luísa tivemos o nosso medo...

--Ó Doroteia! interrompeu a mulher do moleiro, dá cá o menino e
senta-te. Vou-lhe dar de mamar, que o pobrezinho há-de ter fome.

A Doroteia passou a criança para os braços da moleira. Foi uma alegria
ao verem-no sugar no peito, minúsculo, com os olhitos inda fechados.

--Meu rico anjinho, meu amor! A fome que o desgraçadinho tem! Quem seria
a desavergonhada?...

--Mas depois? inquiriu a Doroteia, voltando-se para o moleiro.

--Depois, dormiu cá, aí lhe demos da ceia e aí ficou. Mas dá-se o caso
que o homem não pregou olho em toda a noite, sempre a malucar, num
falatório pegado. «Que o filho era dele, que se a cabra da mãe
teimasse em o enjeitar, ele ia dar parte à justiça.» Um arrazoado
assim, muito comprido.

Espantada, a Doroteia ia falar.

--Mas espera, que o melhor da festa é que o homem tão depressa dizia
isto, como dizia que o filho já tinha nascido, que era muito lindo, que
onde ele o tinha escondido ninguém lho ia roubar.

Ficaram-se um instante a mirar consolados a criança.

A pobrezinha vagia, mamando com sofreguidão.

--Mas então sempre ele sabe do filho, reatou com interesse a
Doroteia.--Ora! assim este enjeitadinho soubesse quem era o pai,
coitadinho!

A Sr.^a Luísa, que não gostara que se recolhesse o homem, resumiu com ar
compungido:

--Um doido, o pobre de Cristo! Deixá-lo ir!

Fez-se um silêncio, mirando todos a criança. A taramela do moinho
batia, num ritmo vivo. Maquiando uns sacos, o moleiro explicou ainda
que o homem alvorara muito cedo, debaixo de neve, sem ao menos dizer
obrigado. Mas que perguntando-lhe onde ia aquelas horas, o outro lhe
respondera:--«Para a feira. Vender um gado.»

--Ora vá lá o diabo entender isto!--rematou por fim o moleiro. Um doido
a vender gado.

Conversaram sobre o caso, algum tempo. Até que a Doroteia, com pressa
por causa da irmã, pegou outra vez na criança e abalou pela porta fora,
direita à casa do pai.

--Olha os trapos, ó Doroteia! olha que deixas cá isto.--E o Paulo
correu a levar à rapariga os trapos segunda vez esquecidos, e que eram
todo o enxoval do triste pequenino...

Ia mais contente, a Doroteia. Ao menos levava a certeza de que a
criança não ia com fome. E para que também não fosse com frio, a boa da
rapariga achegava ao peito o enjeitadinho, numa solicitude toda
materna.

--Louvado seja Deus! ia dizendo a rapariga. Como haverá gente que seja
capaz destas crueldades! A nevar, e deixa-se assim um inocentinho,
embrulhado em dois farrapos, na soleira de uma porta! Vamos que o José
Grilo não dava fé! Ali se morria de frio o anjinho, capaz de virem
depois os cães e comê-lo.

E espreitando pela fenda estreita do xaile:

--Meu anjinho! que ruim cadela que foi a tua mãe, ora foi?

--Foi! rugiu uma voz detrás dela, como um eco.

A Doroteia deitou a fugir, espavorida. Mas aquele homem que já de
longe a acompanhava, sem ela dar fé, corria também atrás dela, e não
tardou que a filasse, como um lobo. A rapariga soltou um grito, ia cair
com o susto; mas valeu-lhe que nesse mesmo instante uma voz que ela
conhecia gritou ali de perto:

--Larga a rapariga, ó José Tomás! Larga a cachopa!

E de um pulo, o pastor caiu entre os dois, separando-os.

--É o José Tomás que está doido,--explicou o pastor.--Desde que a
mulher lhe fugiu, que o pobre anda assim, coitado!

Mas palavras não eram ditas, eis que o José Tomás de novo se arremessa
à rapariga.

--Tu que levas aí? Tu levas aí o meu filho!--rugiu ele com voz
furiosa.

E como se sentisse agarrado, e visse que acudia mais gente, o pobre
lançou-se por terra, de joelhos sobre a neve, as mãos erguidas,
impetrando a chorar que lhe dessem o seu filho...

A Doroteia cobrou ânimo, ao ver-se rodeada de gente.

E fez-se luz no seu espírito, quando reparou que os trapos do
enjeitadinho eram reconhecidos pelo doido que os estava mirando, a
rir-se...

--Conheces? perguntou-lhe a rapariga.

No êxtase em que caíra, mirando e remirando os farrapos, o doido não
respondeu.

--Se conheces isso? perguntaram-lhe uns poucos.

Nem palavra. Nada a não ser um riso nervoso que o sacudia todo. Como
estava de joelhos, quiseram levantá-lo; mas ele então opôs-se, caindo
sobre os calcanhares.

E ria... ria... enquanto dos olhos amortecidos, cravados no miserável
farrapo, as lágrimas corriam, copiosas...

Mas daí a pouco, pelas palavras soltas do doido, todos ficaram
percebendo. Os farrapos que embrulhavam a criança eram da saia da mãe. A
mãe era a mulher do José Tomás, e o pequenino era filho dele... A
grande cadela tinha abandonado o pequeno, depois de ter fugido ao
homem!

--Um raio venha que a parta! rogou do lado o pastor.--Ora vês aí um
estafermo que precisava que a matassem!

O José Tomás pôs-se a rir muito, fitando aquela gente. Uma forte
impressão de piedade estampava-se em todos os rostos.

--Ó Doroteia! chamou então um dos do grupo. Traz aqui o menino. Um pai
deve sempre beijar o seu filho. Traz cá o pequeno, ó rapariga.

Mas não foi preciso; que o José Tomás, sempre de joelhos sobre a neve,
foi para ela de mãos postas humilde como um rafeiro... E como aos
lábios do pai a rapariga achegasse o pequenino, no silêncio que se fez
ouvia-se o rir convulso do louco, beijando de joelhos o filho.

Como se fora uma chuva de pétalas, do céu de madrepérola a neve caía
mais densa...--ao mesmo tempo que nos ramos altos dos castanheiros, como
no seio imenso de um órgão, o vento sul--gemia...




ABYSSUS ABYSSUM...


Nesse dia, os dois pequenitos tinham jurado que haviam de ir ao rio.
Assim eles tivessem uma coisa boa!... Mas que tentação para ambos, o
rio! Ainda lhes soavam aos ouvidos, com todo o seu entono vibrante de
ameaça, aquelas terríveis palavras com que a mãe os intimidara, um dia
que lhe apareceram em casa tarde e às más horas.

--Ouvistes?--ralhara-lhes a mãe.--Olhai se ouvistes: se voltais ao rio,
mato-vos com pancada. Andai lá...

Ih! como ela dissera aquilo, Mãe Santíssima! Colérica, ameaçadora, com
a mão em gume sobre as suas cabecitas loiras... Lembravam-se de haver
tremido, cheios de susto, muito chegados um ao outro, humildes sob
aquela ameaça terminante. E então, nesse dia, eles não tinham ido ao
rio. Aos pássaros sim...--lá estavam as calças rotas do Manuel a
dizê-lo--...aos pássaros é que eles tinham ido. Ao rio era bom! a mãe
que o soubesse...

Ah, mas então não os deixassem dormir naquele quarto. Logo de manhã,
mal abriam as janelas, a primeira coisa que viam era o rio, uma
corrente muito lisa e esverdeada, serpeando entre os renques baixos dos
salgueiros. Lá estava a ponte velha, donde os rapazes se atiravam
despidos, de cabeça para baixo, e então o barquinho branco do
fidalgo,--lindo barquinho!--sempre à espera que o fidalgo o desamarrasse
para passar à grande quinta que tinha na margem de lá.

De modo que o primeiro desejo que logo pela manhã assaltava os dois
rapazes era o de irem por ali abaixo, muito madrugadores, tão
madrugadores como os melros, meterem-se dentro do barco, desprendê-lo
da praia, e deixá-lo ir então por onde ele quisesse, contanto que fosse
sempre para diante... Quando fechavam as janelas para se deitar, a sua
vista seguia, mesmo através da escuridão da noite, a linha que ia dar ao
barco. Era o seu--«adeus até amanhã!»--àquele pequeno objecto que valia
tesouros, que para os dois valia mais que tudo, tudo...

Ah! tivessem eles assim um barquinho, que não queriam mais nada...

--Mais nada?

--Isso não... mais alguma coisa. E a mãe que não ralhasse, está visto.

Mas nessa manhã, bela manhã, na verdade! a mãe viera acordá-los mais
cedo. Ia já pela aldeia um claro rumor de vida--gente que passava para
os campos, os solavancos dos carros no empedrado péssimo da rua, os
patos da vizinhança que saíam em rancho para a digressão pelos prados,
grasnando ruidosamente, levantando-se em voos curtos, espantados da
agressão acintosa dos rapazes. Havia mais de uma hora que ali perto
se ouvia o retimtim agudo do martelo do ferrador atarracando cravos na
bigorna. Já o reitor passara para a missa, em batina, muito hirto e
vagaroso, as chaves da igreja na mão esquerda e na direita a cabacita do
vinho. E àquela hora, onde iria já a missa! A última beata, encapuçada
e lenta, recolhera, trazendo consigo a esteira em que ajoelhara na
igreja. Havia mais de meia hora que o João carpinteiro, no meio da rua,
dava com valentia num carro cujo eixo _ardera_ na véspera, e que era
urgente compor, p'los modos. Até o Ernestinho do estanco abrira já a
loja, e subira à varanda a regar os manjericos. Começos da labuta
diária, enfim; os senhores sabem.

Pois como lhes disse, a mãe viera nessa manhã acordar mais cedo os dois
pequenos.

--Fora, mandriões, vamos! É preciso afazerem-se a madrugar, que tal
está! Ai, ai, dia claro há que tempos, vem aí o sol, e os morgadinhos
na cama.--E enquanto falava, ia-lhes abrindo as janelas.--Persignar e
vestir, vamos! Calças... colete... os jaquetões... tomem.

E pôs-lhes tudo sobre a cama.

--Mãe, a bênção!--balbuciaram os dois, tontos do sono ainda.

--Deus os abençoe. Que Deus não abençoa mandriões, ouviram? Ora eu já
volto. Queira Deus que não vos encontre cá fora, tendes que ver.

Os dois sentaram-se na cama para se vestir, contrafeitos, fechando os
olhos àquela hostilidade viva da luz que invadira o quarto num jacto
repentino e brutal. Pela abertura larga da camisa assomava-lhes o peito
que eles afagavam numa última carícia, suavemente, docemente. Seria
tão bom tornar a adormecer, assim mesmo sentados! O mais novito ainda
tentou deitar-se outra vez, pesaroso de ter de abandonar já o aconchego
morno da cama, onde se estava tão bem! onde os sonhos eram tão lindos!

Mas a mãe não tardava ali. Era preciso vestirem-se, que remédio! Foi
então que o Manuel, mais esperto do sono, olhando para o campo o achou
encantador, todo resplandecente de verduras.

--Bonita manhã, não vês? As árvores parecem mais lindas, repara. Porque
será?

O outro encolheu os ombros, não sabia: só se fosse por não haver
nuvens...

Pela janela aberta, avistava-se um trecho de paisagem que a luz viva da
manhã fazia muito nítida. As vinhas tinham um verde encantador, muito
suave, trepando encosta acima, fazendo contraste com a rama escura das
laranjeiras que cerravam alas nos pomares húmidos das baixas. Revestidos
de folhagem, ascendiam ares fora os olmos gigantescos. Pedaços de horta
estavam em toda a pompa do seu viço e da sua frescura. Viam-se as rodas
das noras, latadas compridas a cuja sombra regalam as merendas.

Um renque de choupos esguios marcava a borda do rio que nessa manhã
deslizava muito sereno, esverdeado de águas, espelhante sob aquele céu
imaculado.

--Ah! ah!...--riu-se o Manuel, contemplando-o.--O rio! Que te parece?
Olha que é lindo, o rio; ora é, ó António?

--É, lá isso... Mas _tamém_ de que vale?--tornou-lhe com desalento o
irmão.--A gente não pode lá ir... Olha se a mãe o soubesse, han?--E
mirando por sua vez a paisagem perguntou:--Já reparaste no barco, ó
Manuel?

--Tão bonito!

Os dois riram.

--Parece pintado de novo... E nem se mexe, repara.

--Pudera!...--explicou o Manuel--...amarrado com uma corda...--E depois
radiante, gesticulando para o irmão:--Mas eu era capaz de o
desamarrar...

--Ai eras!--disse duvidoso o António, para o incitar.

Calaram-se. Era bom podê-lo desamarrar, lá isso era. Ambos dentro
dele, sozinhos, isso é que seria bom! E eles então que estavam mortos
por ir às  azenhas, e pelo rio era um instante enquanto lá chegavam. O
barco! Era tão bom andar no barco! E aquele então era lindo, como não
tinham ainda visto outro. Nunca lhes haviam esquecido--olhem lá não
esquecessem!--aquelas tardes em que o fidalgo os levara dentro do
barquinho, ensinando-lhes como se remava.

O Manuel foi o primeiro que se vestiu, e foi logo direito à janela.
Passava naquele instante um bando de andorinhas, chilreando.

--Está um dia lindo, avia-te.

--Olha avia-te! p'ra quê?--perguntou o António torcendo e retorcendo o
pé para enfiar o sapato, apoiado com as mãos ambas na borda da cama.

O Manuel sorriu-se, triste.--Era verdade... Aviarem-se p'ra quê? A mãe
não os deixava ir ao rio... E se não que fossem! «Mato-vos com pancada
se desceis a ladeira.» Já se vê que depois disto...--E os dois
suspiravam, desgostosos. Que pena serem pequenos!

Nisto o António chegou-se também para a janela. Que lindo, o campo!
Mas os olhos dos dois não se desfitavam do barco, fascinados. Demónio de
tentação! E para mais, tinham-no pintado de novo: sobre o branco, a todo
o comprimento, uma faixa azul-clara destacava nitidamente, parece que
apenas meio palmo acima do nível da água.

--Tate, ó Manuel! E se fugíssemos?

--Ora! se fugíssemos!... E depois? A gente tínhamos de voltar...

Ora aí esta! isso é que era o pior! A mãe, depois, era capaz de fazer o
que tinha prometido. E arregalando muito os olhos, imitando a cólera da
mãe:--«Se voltais ao rio...» Ai, ai, a triste sorte!

Recaíram em silêncio. Ficaram-se por instantes a ver o sol que rompia
ao nascente, numa explosão violenta de luz, acendendo coloridos na
largura muito ampla da paisagem.

--Mas palavra que o barco parece pintado de novo... relembrou com
alegria o Manuel.

--Mas é que está, palavra que está. Agora é que há-de ser bom andar
dentro dele...

Os dois riram-se muito àquela ideia encantadora de andarem no
barquinho, assim pintado de novo. Diacho! e porque não? Por isso,
cobrando ânimo, o António disse resoluto:

--Olha agora o medo! Seguro que nos mata.--E puxando-o pela
jaqueta:--Vamos lá, ó Manuel?

O Manuel fez que não com a cabeça, e espreitou se vinha a mãe. Como não
vinha, disse baixo ao irmão:

--À tardinha, hein? dois pulos e estamos lá. Não é tão fácil dar pela
nossa falta, ali à tardinha. A gente finge que vai para o adro.
Levam-se os peões...

--Há-de ser mesmo assim! à tardinha!--concordou o António.--Eh! eh! eu
cá desatraco.

--E eu remo,--disse logo o Manuel com gesto de quem remava.

--Ao leme vou eu: o leme é aquilo que regula--explicou.

--Pois sim, mas à vinda pertence-me a mim, remas tu. Se quiseres
assim...

--Pois está bem, quero! Assim mesmo é que há-de ser!

E recapitulando, para melhor ficarem combinados:

--Ao p'ra baixo remo eu, ora remo?

--Remas.

--E tu regulas, ora regulas?

--Regulo.

--Ao p'ra cima é às  avessas, ora é?

--É.

Muito bem, basta palavra! E ambos ao mesmo tempo, um ao outro se
impuseram segredo...

--Schiu!...

--Schiu!

       *       *       *       *       *

A tarde descaía límpida. Na vasta cúpula do céu, penachos de nuvens
alvejavam, imóveis.

Acesas naquela explosão rubra do ocaso, as arestas dos montes
franjavam-se de púrpura e oiro, na decoração mágica dos poentes.
Começava de cair sobre os campos a larga paz tranquila dos crepúsculos,
e uma quietação dulcíssima e vagamente melancólica entrava de adormecer
a natureza para o grande sono reparador de toda a noite.

...E a tarde ia descaindo, cada vez mais límpida.

Naquela luz indecisa de crepúsculo que mansamente se ia acentuando,
os montes do sul tomavam um torvo aspecto de sombras gigantescas,
imobilizados num fundo em que se iam apagando ao de leve todos os
cambiantes de luz. Os pormenores da paisagem perdiam-se naquela
indecisão vaga de noite que vinha descendo, e uma espécie de silêncio
confrangedor dominava a natureza toda, recolhida num como espasmo
amedrontador e sinistro que dentro de nós evoca a essa hora não sei que
vagos receios ou medos inconscientes que fazem com que na imaginação as
coisas criem vulto, e no mundo exterior obrigam a retina a exagerar as
formas às  coisas...

Muda de gorjeios, atravessando o espaço em voos muito rápidos, a
passarada demandava os ninhos onde se acoitasse do frio que acordava.
Caíam já pesadas sobre os vales as sombras das montanhas, e um
fumozito subtilmente azulado nadava à flor das coisas, velando-as para o
tranquilo sono em que iam adormecer.

E a tal hora e no meio de tal silêncio, o barquinho branco deslizava
mansamente sobre a água tranquila do rio, onde as primeiras estrelas
começavam de lampejar. Dentro dele, os dois irmãozitos silenciosos
iam-se deixando enlevar naquele ruído suave dos remos abrindo fendo
nas águas... Não! era bem certo que eles não tinham jamais sentido uma
tão poderosa e viva alegria--alegria doida que lhes transvazava do peito,
fundindo-se em energia nos músculos e cristalizando-se nos lábios em
sorrisos.

Dentro daquele adorado barco, assim no meio do rio, eram senhores
absolutos da sua vontade, poderiam ir para onde lhes parecesse, livres
de admoestações alheias, sozinhos, independentes. E esta feliz convicção
de liberdade alcançada, fazia-os agora orgulhosos, além de os encher de
alegria. Por certo eles nunca tinham sido tão felizes, e quem sabe se o
seriam jamais?... No entanto a noite acentuava-se. Espertava nas
margens o marulho da água nas raízes fundas dos salgueiros. No céu alto
e sereno cintilavam as estrelas em cardumes.

--Remas, António?--perguntou o do leme.--Olha se a vês...--E apontava
para Vésper, a estrela que mais brilhava.

Tinham os dois concebido o estranho desejo de alcançar a estrela cujo
brilho diamantino os fascinava. Tão linda!

--Anda-me tu com o leme!--tornou-lhe com intimativa o Manuel.--Ai a
estrelinha! Deixa que ela faz-se fina, mas havemos de passar-lhe
adiante, só por isso...

--Olha o milagre! Ela está queda!--fez o outro, convencido da
facilidade da empresa.

--Está queda, está queda, mas sempre na frente de nós; vai lá
entendê-la. Olha como brilha, ó António.

--Mas rema que eu cá vou, falta pouco. Ao direito daquela fraga é que
ela está.

Não era difícil passar-lhe adiante, qual era? Era menos de meia hora
era certo alcançá-la.

E engastada no azul escuro do céu, a estrela parecia brilhar mais,
quanto mais a olhavam.

--De que são feitas as estrelas?--perguntou o mais novito.

--De prata, pois está visto.

Então o outro, lançando um amplo olhar à vastidão infinita do céu,
exclamou:

--Eh! tanta prata!

--O sol, esse é de oiro--disse ainda o Manuel.

--Bem de ver!--volveu-lhe convencido o irmão.--Que eu, se me dessem à
escolha, antes queria as estrelas. Olha que rebanho!

--Pois eu antes queria o sol. Com licença do teu querer, sempre é mais
grande.

E enquanto falavam, os dois não desfitavam olhos da estrela feiticeira
que perseguiam. Os remos, no entanto, iam abrindo fenda na água, com
certo ruído muito doce... E lá no alto céu, dir-se-ia que de instante
para instante a feiticeira estrela mais brilhava, incitando-os.

--Vê-la a fazer assim?--e pôs-se a pestanejar, imitando a palpitação
crebra e irregular da luz sideral.

--É que tem sono--respondeu o outro.

--Olha que não. Aquilo é a fazer-nos negaças, _tamém_ to digo.

--Ai é?! Pois que faça as negaças e que se descuide: se malha cá baixo,
bem se afoga...--E apontando-lhe um punho cerrado, gritou a rir:--Eh,
_boieira_!

Neste momento, uma estrela cadente abriu esteira de prata no azul,
sumindo-se rapidamente. Os pequenos ficaram com medo e ambos murmuraram
em tom de reza as palavras rituais:

Deus te guie bem guiada,
Que no céu foste criada.

--Vês? disse o Manuel que era dos dois o mais supersticioso.--Torna a
apontar para elas... Eu cá não aponto, que nascem «cravos» nas mãos.

--A ti talharam-te o ar, ó Manuel.

--Diz a mãe. À meia-noite levaram-me à fonte e esparrinharam-me água
para o corpo. E a água havia de estar fria... observou, encolhendo os
ombros. Depois, viraram-me para as estrelas e disse então a mãe:

Ar vejo,
Lua vejo,
Estrelas vejo:
O mal do meu corpo
Pr'a trás das costas o despejo.

Riram muito. O Manuel, despidinho, couracho ao colo da mãe, havia de ser
engraçado. E então todos de volta, a ver quando o ar se talhava.

--Mas talhou-se. Agora, em paga, uma vez por ano, ao menos uma vez por
ano, tenho de olhar pelos ralos do lenço p'r'as _cinco chagas_, umas
estrelas que além estão, e rezar uma ave-maria.

--Sempre, sempre?

--Até que morra. Depois de morrer vou morar três dias com três noites
dentro de uma.

--Ora! tornou-lhe incrédulo o irmão.--Tu não cabes lá...

--Não sei: assim é que anda nos livros.

...Mas os braços doíam já dos remos, doíam muito...

Devia ser tarde, e eles sem darem fé, enlevados como iam no desejo
louco de alcançar a estrela.

A noite estava calma, não bulia nas ramagens ramo verde de salgueiro, um
silêncio contínuo dominava tudo em volta. E amolentadora e múrmura, a
água da corrente ia espumando na quilha, com certo ruído de uma brandura
suavíssima e doce.

...Mas os braços cada vez doíam mais!...

Agora, no céu, havia muitas estrelas brilhantes, muitas, mas nenhuma
como aquela, ainda assim. Entretanto os dois pequenos entraram de olhar
menos para ela, pois que irresistivelmente a cabeça lhes pendia para o
peito, e as pálpebras se lhes cerravam, a despeito de todo o esforço.

...E os braços sempre a doerem!...

Por algum tempo, os remos foram com a pá mergulhada na corrente,
cortando-a com levíssimo ruído. Imobilizara-se também o cabo do leme,
sem que nenhum dos dois irmãos desse fé do súbito desleixo do outro.

...E os braços já não doíam, nem ao de leve sequer...

O pequeno barco vogava agora à mercê da corrente, sem impulso algum
estranho. Dentro dele... a música levíssima das respirações dos dois
pequenos adormecidos...

Algum tempo assim. Senão quando, um ruído surdo, e logo um movimento
brusco de balanço, fez acordar o do leme.

Na grande alucinação do perigo, desvairado pelo medo, gritou
imediatamente:

--Manuel! Ó Manuel!

O remador acordou, sobressaltado.

--A estrela? Ainda lá está, olha!--disse incoerente, estonteado pelo
sono.

--Uma fraga de cada lado! Ouves o rio? É já muito tarde!--continuou
aflito o António.

--Então não lhe passamos adiante?--perguntou ingenuamente o Manuel,
referindo-se ainda à estrela.

Mas o irmão, sacudindo-o convulsamente, procurando chamá-lo à realidade,
de novo lhe gritou, com lágrimas na voz:

--Manuel, acorda! Olha que estamos perdidos, Manuel!

E mal conheceram o grande perigo em que estavam, ambos romperam num
choro muito convulso, agarrados um ao outro, feridos de um terrível
susto que a hora e o lugar aumentavam cruelmente. Parecia-lhes medonho
aquele marulhar contínuo da corrente, afligia-os como se fosse o
psalmodiar monótono e rouco de uma legião de espíritos maus,
preludiando-lhes as agonias lentas da morte. Aos dois pequenos os
rochedos informes das margens afiguravam-se-lhes negros gigantes, que
num requinte de malvada indiferença houvessem jurado assistir
impassíveis e mudos à escura tragédia da sua desgraça.

E o barco sempre encalhado, não havia forças que o arrancassem dali.
Tinham perdido os remos. Teriam de esperar que amanhecesse e alguém
viesse acudir-lhes, alguém que ouvisse de longe os seus aflitivos
gritos.

Crudelíssimo transe!...

E então os braços continuavam a doer, doía-lhes agora o corpo todo, ao
mesmo tempo que uma tristeza mais e mais pesada lhes oprimia o
espírito, parece que embrutecendo-os.

--Mas a estrela sempre além...--notou ainda o Manuel, balbuciante de
medo, como se quisesse increpar a própria estrela da sua indiferença
criminosa, no meio daquele enorme infortúnio em que por causa dela
se haviam precipitado.--Se ela pudesse acudir-nos...

Até que por fim, prostrados da fadiga e das lágrimas de novo se deixaram
adormecer, era já alta noite.

Mas na sua fúria constante, a corrente que ali era muito forte não
cessava de bater contra as pedras o pobre barco indefeso. Até que após
tamanho lidar, o rio safou-o de repente para um lado onde as águas se
contorciam em remoinho, e entrou de girar com ele, violentamente.
Quando a água se precipitou para dentro, os dois pequenos assim de
súbito acordados romperam em gritos lancinantes:

--Ai quem acode! Ai Jesus, quem nos vale!

Tinha surgido a manhã, serena, tranquila, cheia de gorjeios e de azul.
Mas como ninguém acudisse e a luta no rio fosse desigual, num repelão
mais violento o pobre barco esfacelado investiu de proa com o abismo e
lá se sumiu para sempre! Feridos de morte, no último paroxismo da sua
enorme dor desesperada, os dois irmãozitos abraçados sumiram-se também
com ele!...

       *       *       *       *       *

...Nesse mesmo instante...--e mais longe do que nunca--...a estrela
feiticeira acabava de cerrar também a pálpebra luminosa!...




MÃE!

_Ao Dr. J.C. da Moita Prego_


Bela cabra, a Ruça!--posso dizê-lo aos senhores. A melhor da manada,
luzida, de pêlo macio, sem saliências de ossos como as outras, altiva
de porte quando à frente do rebanho parecia comandá-lo, badalando
cadencialmente o seu chocalho enorme--tlão! tlão! Era no rebanho a que
mais dava que fazer ao pastor, requerendo vigilâncias particulares no
seu atrevimento, pois que se a deixassem livre não havia árvore a que
não trepasse, oliveira especialmente, nem rebento novo que não
triturasse esfomeada no seu dente acerado de roedora.

E depois, ali onde a viam, estava cara só pelas coimas, que muitas
vezes iludira ela a atenção do pastor, e se ficara por hortas e
quintalórios, causando estragos que os louvados depois avaliavam caro.
Por isso Alípio José, pastor, a quem doíam as denúncias, ao pescoço da
Ruça prendera o chocalhão, para dar do atrevido animal mais fácil
rumor, pois era de timbre muito distinto dos demais, e muito mais
grave.

Em pastagens pelos montados, a Ruça era de uma audácia extrema. Fazia
gosto vê-la trepar às  últimas cumeadas, subir destemidamente às  arestas
superiores dos rochedos, muito serena, erecta nas suas pernas delgadas,
pescoço alto, ajoelhando destemida a retoiçar as ervas dos declives
alcantilados e escorregadios, não medindo perigos nem se importando com
abismos, enquanto as companheiras se ficavam pelas encostas e córregos,
saboreando as giestas, sem se atreverem a segui-la nas suas excursões
arriscadas de _touriste_.

Se a miravam de baixo, sentia-se orgulhosa de superiores audácias, e
então cabriolava em saltos funambulescos, de rochedo em rochedo ou de
garganta em garganta, pouco se lhe dando de perigos. Cobra que
encontrasse por essas paragens era para ela um desespero--tamanha a
fúria com que a perseguia, e a insistência com que se ficava às  marradas
na lura onde se lhe acoitava. O chocalho então badalava com força, e o
Alípio que dormia à sombra das azinheiras, de chapéu sobre a cara,
levantava-se sobre um cotovelo e intimava para o alto, com o seu
vozeirão que fazia eco:

--Toma tento, Ruça!

E depois, de ventre para baixo, estirado sobre a manta, cotovelos
fincados no chão, os queixos entre as mãos espalmadas, Alípio José
ficava-se a olhar a cabra, invejoso daquela facilidade em subir aos
últimos pináculos, admirado dos saltos que ela fazia para salvar
gargantas pedregosas e perpendiculares, onde, se caísse, a morte seria
infalível. E por lá andava dias inteiros a Ruça, naquela
vagabundagem por sítios inacessíveis ao resto do rebanho,
resguardando-se da chuva em recôncavos de rocha, onde as águias faziam
ninho.

       *       *       *       *       *

Foi num desses sítios que a Ruça teve o primeiro filho, e por lá se
deixou ficar, acho que dormindo ou toda a noite velando. Ao outro dia
quis ela descer, e vir para o rebanho que a aguardava. Mais de cem
vezes, fitando o topo da ladeira, Alípio José gritara cá debaixo, cada
vez mais desesperado:

--Volta ao rebanho, Ruça!

E, cuidando que mais lhe feria assim a atenção, punha-se a agitar com
fúria o molho dos chocalhos, gritando sem cessar:

--Ruça! torna ao rebanho, Ruça!

Mas impossível! que a não deixava a quebreira em que toda ela ficara do
parto, nem o pequeno poderia--pobrezinho!--descer por tais ladeiras, de
pedregosas e ásperas que eram.

Mas de noite o frio era intenso naquelas alturas, e o pequeno
congelava unindo-se à mãe que o bafejava para o aquecer, e a si o
aconchegava mais e mais para lhe transmitir o natural calor do seu
corpo enfraquecido e doente.

Por altas horas da noite, na solidão lúgubre daquele sítio,
alcantilado e íngreme, entre penedias escarpadas onde o vento sibilava
lugubremente, num como choro dolente e prolongado, o balido da mãe,
traduzindo angústias e desesperos íntimos, respondia ao vagido fraco do
filhito, cuja vida parecia ir-se apagando de hora a hora e instante a
instante, inteiriçando-se-lhe com o frio os membros delicados e tenros.

Eram assim as noitadas dos desgraçados. Por tais frios e doenças,
impossível dormir. Toda a noite velavam e gemiam, achegando-se mais e
mais num como abraço de eterna despedida--amigos que se iam apartar
para uma longa viagem de trevas, com o coração alanceado pela saudade,
soluçando e gemendo, num adeus! que era infinito, como o infinito amor
que os unia...

E a cada momento, como um dobre de finados, o chocalho badalava
lugubremente, assustando o animalzinho, como se aquele fora o sinal
para o transe derradeiro...

Para maior desgraça, as noites eram sem lua. Encravadas na abóbada, as
estrelas bocejavam dormentes, numa criminosa indiferença por aquela
dor suprema de que eram as únicas testemunhas.

E balando muito, e balando sempre, a pobre cabra imprecava ao céu a vida
do filho, ao menos,--ora súplice em balidos de resignação que uma
profundíssima dor ungia, ora desvairada e louca, em gritos que
significavam blasfémias, blasfémias de desespero contra o céu que a
não ouvia, e contra a morte que bem sentia aproximar-se para lhe
estrangular o filhinho que ela amava tanto.

E a fazer-lhe mais incruenta a sua enorme dor--a ironia acerba da
chocalhada longínqua das companheiras, que se iam pelos montes da outra
banda, deixando-a a ela sozinha com o filho, à espera da morte que era
inevitável.

Então ergueu-se por instantes! Agitou convulsamente o pescoço, e pelo ar
fora o som triste do chocalho espraiou-se lentamente, num adeus! adeus!
de despedida às  companheiras felizes que lá iam, num ruído longínquo de
chocalhos...

       *       *       *       *       *

Naquela solidão os dias eram melhores. Com os primeiros raios do sol
entravam de reanimar-se os dois; pouco a pouco os membros desentorpeciam
e o sangue circulava.

E o cabritinho sem poder ainda descer!...

De pé, ao lado do filho, a pobre cabra lançava olhos compungidos para as
escarpas da ladeira, ia para um lado e outro, desvairada e trémula, como
que a escolher o melhor caminho por onde levasse o filho. Mas eram todas
horríveis! Silvedos e rocha viva era o que mais se via. E depois o rio,
lá baixo, rugia nas cachoeiras, aumentando-lhe o receio.

Impossível! impossível!

E sentia-se enfraquecer à míngua de sustento, pois a erva, por ali,
estava comida e recomida pela pastagem miserável de três dias.

Num momento de desespero, quando os gemidos do filho eram mais dolentes
e crebros, refez-se de coragem a cabra, e segurando entre os dentes o
chibo tentou o primeiro passo, arrastando-o pela ladeira, do lado em que
o declive era menor. Mas em breve desanimou a pobre, que o filhito,
assim arrastado, mais e mais gemia, convulsionado e trémulo...

Impossível! impossível!

Nada que signifique a dor daquela mãe, e traduzir possa em linguagem
toda a gama de sentimentos e emoções no seu balar expressos. Atirou-se
de joelhos sobre o corpinho do filho que hirto chorava e tremia,
estendido para ali, na prostração pesada do último desalento; animava-o
com carícias, aproximava-lhe da boca os úberes já flácidos e
amolentados, convidando-o a mamar, como se aquele leite pudesse levar
ao filho a coragem que a ela própria faltava em tamanho transe
aflitivo...

Mas pouco a pouco a noite ia caindo. Tinha-se já apagado a última
cambiante do poente, e sobre as gargantas dos montes passavam
subtilmente as primeiras névoas, alvadias e ténues. À medida que a treva
se condensava, decresciam os ruídos em todo o horizonte, acentuando-se
cada vez mais a melopeia sonolenta do rio nos açudes. Perpassavam pelo
ar as aves para os ninhos. Bandos de pombas, como flocos voláteis de
arminho, cortavam em voos mansos a profundidade calma do céu, demandando
os pombais e os povoados, onde se acolhessem da noite que vinha caindo.
Revoadas de perdizes e de tordos passavam por ali alegremente, num
chilrear sonoro, caindo de chofre sobre o monte, a esconderem-se nos
estevais e nas urzes. Pelas ervagens secas rastejavam apressados os
répteis, e sob os tojais bravios a lebre buscava a cama...

...E tudo tinha ninho--pombas que voavam e perdizada sonora, quem
passava no ar e quem rastejava no monte, lagartos, sardões, cobras, toda
a colónia vagabunda de répteis e de aves, que passou alegremente o seu
dia, e se ia recolher agora para recomeçar dia amanhã...

Só a desgraçada cabra, ali, junto do filho tenro, não mais fizera
passo. Com as brumas da noite, as brumas da tristeza para o seu coração
alanceado de mãe. Aí vinha o frio inclemente flagelar-lhe o filho...--o
filho que já tremia a ela aconchegado--o triste pobrezinho!

Rompia de toda a banda o gri-gri sonoro dos grilos, vivo e cantante
naquele silêncio que se definia. Cerrou de todo a noite. O céu era
baixo e torvo de nuvens. Estrelejava a espaços a abóbada, irradiando
uma luz mortiça e alvadia, que levava a pensar em últimos transes de
crianças, em que a vida gradualmente se extinguisse, num latejar
vagaroso de pálpebras sonolentas...

Mais álgida fazia a noite, e mais pesada de melancolias, essa torva
aparência da atmosfera e do céu. Noite pior do que as outras, porém
com menos balidos, pois que mãe e filho estavam extenuados de forças e
nem gemer podiam. E a morte que não vinha arrancá-los do abraço em que
se uniram, mal cerrara a noite!

A pequena distância, o monte era cortado de profundíssima garganta em
rocha viva. Do lado oposto, e quase defronte dos moribundos,
acenderam-se na treva dois pontos fosforescentes, de uma claridade
esverdeada rútila. E, imóveis, esses dois olhos estoirados de lobo, a
que parecia terem arrancado as pálpebras, projectavam a sua luz sinistra
na direcção do grupo que velava. A natureza inteira retraía-se num
como pavor medonho, concentrado de íntimos terrores e silêncios lôbregos
de horas altas. Cerrava-se mais no céu a falange muda das nuvens,
densificando-se em tintas negras, impenetráveis e caliginosas, sem
cintilas de estrelas, por fugidias e ténues que fossem...

E sempre, e constantemente imóveis na escuridão pesada, aqueles dois
olhos flamejavam, de instante a instante mais vivazes, perscrutando a
treva da direcção mais exacta do grupo. Transida de susto, arquejando
convulsamente no último paroxismo da sua enorme dor, a pobre mãe não
ousava arriscar um único movimento e mais e mais cerrava contra si o
corpo inanimado do filhito que parecia adormecido.

Assim durante horas que aquele atrocíssimo suplício fez enormes, quase
eternas, tumultuosas de acerbos sofrimentos e de indizíveis angústias,
vazias de esperança na vida do seu pequenino filho.

De repente, aqueles dois pontos brilhantes apagaram-se na treva, e de
novo os viu brilhar a cabra, mas já a maior distância. Estremeceu a
pobre de súbita alegria,--e no abalo que sofreu o seu corpo, até então
retraído, o chocalho badalou. Voltou a correr o lobo, e então a
desgraçada viu errarem na treva, como dois grandes coleópteros de asas
fosforescentes, os olhos até então imóveis do inimigo. E por ali
levou a noite toda, farejando e uivando, até que cansado de perscrutar o
insondável, se foi ladeira abaixo, aos primeiros assomos da madrugada
que vinha, docemente, alumiando píncaros e arestas.

       *       *       *       *       *

Ao romper da alva o céu era azul. Apenas de longe em longe penachos de
nuvens brancas ondulavam as suas cristas alvadias, que se esfarpavam
lentamente ao menor sopro da aragem. Pouco a pouco o azul ia desmaiando,
diluindo-se na luz esbranquiçada que vinha do alto em gradações
imperceptíveis e suaves.

Começavam de animar-se os longes da paisagem, e a retina acusava já as
diferenças mais salientes dos campos e herdades, pedaços esbranquiçados
de restolhos, tons pardos de olivais, terras plantadas de vinhedo, e
pinheirais cerrados galgando desfiladeiros e investindo com o céu no
alto dos montados.

Pelas ladeiras dalém, caminhos e atalhos corriam em torcicolos até ao
areal da margem. Em turbilhões de espuma alvíssima precipitava-se a água
nos açudes, marulhando nos altos penedos marginais, denegridos e
informes, de uma mudez contemplativa e perpétua. Do tecto do moinho, lá
em baixo, uma coluna azulada de fumo elevava-se tranquilamente no ar
sereno e doce, até se desfazer no espaço amplo e benigno, como uma
ambição ou como um sonho...

       *       *       *       *       *

Foi então que Alípio José, à frente do rebanho, de novo abordou àquelas
paragens, no intuito de procurar a cabra tresmalhada.

--Ruça! torna ao rebanho, Ruça!

Mas precisamente a essa hora, a Ruça exalava o último alento, pendida
sobre o cadáver do pobre filhinho morto!...

E ao pino do meio-dia, quando o sol faiscava causticando nos
rochedos--passava na direcção da montanha, crocitando lugubremente, a
esfaimada legião dos amaldiçoados corvos...




ARRULHOS

_A M. da Silva Gaio_.


Ao fundo do jardim ficava o pombal--uma casinhola redonda, com orifícios
triangulares no alto, em toda a volta, alegre na alvura impecável do
muro que falava ao longe, muito ao longe, a léguas de distância.

--Pombal da Morgada! diziam.--Lá se vê além...--E um gesto muito longo
levava a vista horizontes fora, à cata do Pombal da Morgada, que
alvejava longe, muito distante, na meia sombra dos montes sobranceiros,
como um pequenino ermitério cheio de lendas, onde santos de carne e osso
provocassem romarias, promessas avultadas de pessoas ricas, e onde
seriam encantadoras as tardes quentes de estio, à sombra de árvores
seculares em cuja ramagem trinassem pássaros em barda, pardalada sonora,
gralhadora, rindo da nossa merenda e da nossa sem-cerimónia--frangãos
assados e boa vinhaça da terra.

Pombal da Morgada porquê? História singular que vou contar-lhes. A
Morgada era uma senhora rica, muito rica, tinha vinte e cinco anos e
outras tantas quintas, viúva antes de casar, pesarosa da morte
desastrada do noivo--um trambolhão de um cavalo que o matara logo ali,
sem mais pio, num ai.

A recordar esse amor--um casal de pequeninos pombos que ele lhe dera na
véspera, simbolizando, dizia ele, a pureza da sua alma dela, e a
castidade das suas intenções dele...

Muito bem. Fez-se então o pombal, o casal procriou, vieram pombos
novos--todos brancos uns, raiados outros, de um _gris_ delicadíssimo
alguns, todos encantadores, veludíneos, muito mansos.

Belos pombos, na verdade!

Todas as tardes, quando as tintas do crepúsculo começavam de esbater-se
numa uniformidade vagarosa de tons, e a percepção clara das coisas
entrava de se desfazer em imperceptíveis _nuances_ subtis, num
_smorzando_ melancólico onde palpitavam vagos terrores de noite que vem
caindo, quando os vales se cobriam de uma sombra azulada e a vida
cessava no campo e começava no céu em cintilações argênteas de
estrelas--todas as tardes, digo, quem quer poderia ver aberta a
estreita porta do pombal, e uma mulher nova, vestida de preto,
espalhando no pavimento térreo, com solicitudes de _menagère_, as
provisões de um pequeno cabaz que lhe pendia do braço--milho em
abundância e fartura de alpista.

Assim todas as tardes, ia já em quatro anos, que não havia forças que
levassem a Morgada para fora do seu pequeno solar, onde vivia só,
retirada de tudo, a tudo indiferente, impassível a pedidos de amigas
que saíam para as praias, no Inverno para Lisboa, e que a queriam levar
para que se distraísse, para que se alegrasse--«era nova ainda, podia
arranjar noivo, nada mais fácil...»

--E as pombas? objectava.--Mas era pecado deixá-las, dizia consigo.
Quando voltasse estaria deserto o pombal, umas que fugissem, outras que
matassem, haviam de até roubá-las, entrar de noite no pombal, levá-las
todas.

--Que não e que não! insistia renitente;--que tivessem paciência, que se
divertissem muito, ela ficava.

--Platonismos! gargalhavam depois as amigas.--Saudades do outro que
rebentou do trambolhão. Bem tola!

E partiam sós, rindo da Morgada e do seu amor pelas pombas, achando-a
ridícula com aquele seu luto perpétuo, escarnecendo da simplicidade
habitual da sua _toilette_--vestido preto todo liso, muito afogado, um
pequeno _ruche_ no pescoço e mangas, nem uma prega, nem sequer um laço.

Muito respeitadas, as pombas da Morgada. Caçador que as visse não
desfechava sobre elas. Assim, a manada crescia de hoje para amanhã,
desenvolvia a propagação o bom tracto, a habitação confortável, muito
abrigada de ventos, onde a chuva não entrava e os ninhos eram
flácidos--folhas de milho mudadas cada dois dias.

Que bom, ser pombo da Morgada!

A música dos arrulhos, uma volata muito lânguida, começava com o
aclarar, muito cedo, depois do descanso do sono na placidez do ninho,
quando as forças eram sãs e as asas pediam vos.

Hora dos amores!

Pombos atrevidos, sanguíneos, de íris rutilante e índole impaciente,
lançavam-se sobre as pombas, forçavam-nas, perseguiam-nas se voejavam,
ameaçando-as de bicadas primeiro, picando-as nas cabecitas se resistiam,
possuindo-as à força, a tremer, asas em concha, penugem eriçada,
arrulhando muito, arrulhando sempre, caindo desfalecidos depois,
hirtos, pálpebras cerradas, trementes, frementes, em espasmos de luxúria
e paroxismos do gozo; enquanto elas, as pombas, se emplumavam agora de
contentes, sacudindo as asas, pescoço levantado, orgulhosas talvez,
muito felizes.

Outros então, mais meigos ou mais pachorrentos, mais velhos por certo,
quedavam-se horas seguidas, horas longas, defronte da sua eleita, numa
doçura plangente de musicais arrulhos, frementes de desejos, mas pedindo
às  boas, não querendo violências, detestando-as, bem se via,
suplicando, rogando, comovendo. E se logravam intentos, redobravam os
carinhos, havia meiguices de jeitos e friccionamentos leves de
penugens, arrulhos mais doces e toques delicadíssimos de bicos--beijos
com certeza.

Isto todos os dias, nas manhãs enevoadas especialmente. Imagine-se a
vida do pombal àquelas horas:--pombas que voejavam assustadas, esquivas
mesmo, e pombos que as perseguiam; pombas que condescendiam e pombas que
queriam arrulhos: quem não voasse arrulhava, quem não arrulhasse voava;
e tudo gozava--quem era feliz e quem estava para o ser, quem era
sanguíneo e quem era pachorrento.

Ar dos campos, depois; alegres, muito amigos, pousando todos quando um
pousava, retomando voo se um voava, sempre juntos, sempre na mesma
direcção, a beber no mesmo ribeiro, em linha, todos a um tempo, num
ruído muito doce de bicos que sorviam.

Ainda com sol, iam pousar de revoada no telhado da casa onde habitava a
Morgada, participar-lhe por certo que iam recolher, cumprimentá-la ao
balcão da sua janela, alegre de trepadeiras em flor, pousar-lhe nos
ombros, na cabeça as mais ousadas ou as mais amigas, segredando-lhe não
sei que arrulhos que ora a faziam sorrir, ora lhe traziam lágrimas, mas
que sempre provocavam novos afagos, afagos intermináveis:

--Minha pombinha... minha amiguinha... minha querida...

Dali para o pombal, continuar aquela vida de boémios felizões, vida
de concubinagem, numa promiscuidade sem limites e numa libertinagem de
harém.

Poligamia desenfreada!

Excepção a ela, apenas um casal--a melhor pomba da manada, pomba
branca, de uma alvura impecável de neve, e então um pombo raiado, preto
e cinzento, de _nuances_ azuis-escuras, ares aguerridos de lutador
vaidoso, um D. Juan emplumado, tentador.

Era o pombo mais atrevido do pombal, o de génio mais insofrido e
espasmos menos longos, muita vida, numa mobilidade contínua de pescoço,
nervoso, libertino. Pomba que desejasse possuía-a, sem arrulhos prévios,
sem pedidos, brutalmente se resistia, pacificamente porque muitas se lhe
entregavam, preferiam-no, vinham deitar-se-lhe no ninho, disputando
primazias à força de bicadas.

E umas atrás de outras, e dias após dias, sempre assim!

Mas todas fugiam em seguida, não sei se de esfalfadas, se para dar lugar
a outras; uma só, a pomba branca, se quedava ao lado dele, paciente,
resignada, num arrulhar cada vez mais doce, cheio de ternuras, muito
meigo, idealmente brando, que agradava ao raiado, que o ufanava,
incitando-o, convidando-o, provocando-o. Por isso entrou de aborrecer as
outras, achando-as menos pombas, umas desavergonhadas que se iam
entregar a outros, e de se afeiçoar à branca, a ela só, acarinhando-a
muito, arrulhando com ela, alternadamente, ora um ora outro, gemendo
amores.

Não imaginam os senhores nem há nada que possa dar ideia da desordem, da
perturbação que isso levou ao rancho tão dado a instintos cómodos de
poligamia, tão avesso a duetos daquela natureza, onde os pombos eram
de todos e as pombas eram comuns.

E tal desordem subiu de ponto com o proceder do casal que levava dias
inteiros dentro do pombal, sem sair, numa concubinagem que revoltava de
egoísta. E quando saíam não se juntavam com os outros--uma desfeita! uma
ofensa!--tomavam rumo diferente: para a direita se os outros iam para
a esquerda, para a esquerda se os outros iam para a direita, sempre ao
contrário.

Recolhiam mais cedo, com sol ainda, e quando os outros vinham, já os
encontravam no pombal, em ninhos contíguos a princípio, no mesmo ninho
depois!

Um escândalo! Um desaforo!

E planeavam-se ataques, desfeitas ao casal, muitas desfeitas.

Se os dois eram felizes arrulhando manso, entravam os outros a arrulhar
forte, troça talvez, desespero decerto, todos juntos, combinados. E se
isto não bastava, começavam todos a voar, batendo muito as asas,
levantando a palha dos ninhos, precipitando-se sobre o casal, fingindo
quedas, dando bicadas os mais raivosos, ou então os mais despeitados...

Prestes o raiado saltava do ninho, opunha defesas de asas sobre a pomba
branca e tímida que o susto transia, inquieto, colérico; reagia depois,
lutava por fim, levando-os não raro de vencida, obrigando-os a fugir do
pombal em vergonhoso tropel, muito assustados, vencidos. E noite além,
entravam um a um, vagarosos, muito mansos, sem ruído de asas, receando
acordar o casal que dormia aconchegado, muito quente, pescoço escondido
sob a asa veludínea.

Dois meses assim--dois meses!--numa fidelidade conjugal ininterrupta,
digna de servir de exemplo a outros bípedes que eu conheço, que os
senhores conhecem, não?... Vida boa, na verdade, perfumada de arrulhos e
esplêndida de alegrias, passada em belas digressões campos fora,
pousando no mesmo ramo, bebendo na mesma poça, dormindo no mesmo palmo
de ninho, sonhando os mesmos sonhos, talvez...

Mas no fim desse tempo o raiado entrou de ter desconfianças, suspeitas
de inconstâncias e receios de infidelidades, de noite, enquanto dormia.
Havia certa frieza nos jeitos da pomba, menos ternura nos arrulhos,
modos de enfadada às  vezes, certas perrices, resistências mal
disfarçadas. Ficava-se em casa se o raiado saía, impassível a
súplicas, muito mona, com elanguescimentos de pálpebras e quebramentos
de asas, uma desleixada; e espreitando-lhe o voo, tomava para norte se o
raiado ia para sul, vinha tarde e ia aninhar-se só, para lhe fugir.

Estava farta, vê-se. E como os outros a não queriam--rameira do
raiado!--um dia levantou voo e fez-se ao largo.

       *       *       *       *       *

Abade de aldeia, conhecem, desses mui dados aos latins e ao
_vinagrinho_ de Xabregas, muito nacional e muito fino, bons velhos de
_quinzena_ e calça de alçapão, feros, muito rijos, à prova de
reumatismo e à prova de vintém, felizes na sua pobreza, amigos das
crianças, bem humorados sempre, flores de uma árvore que ora vai dando
cardos. Perto do solar da Morgada, a três quilómetros só, havia um assim,
o abade das Donas, bom pregador noutras eras, com famas de teólogo
ainda ao tempo.

--Disse-o o das Donas, colega! disse-o o das Donas!--era assim que
muitas vezes acabavam disputas acaloradas, salpicadas de vários latins,
sobre textos da Bíblia e passagens dos apóstolos.

--Teologia velha, diziam, a genuína!

A casa da residência era uma casa muito antiga, portas em arco, paredes
a desabar,--uma invernada forte e ia abaixo. O pátio da entrada era
térreo, rimas de lenha seca de um lado e doutro, seguia-se a cozinha,
um pequeno corredor, e ao fim uma velha varanda em ruínas que dava para
um quintalório, e cujas pedras se deslocavam, de mal assentes que
estavam.

Preferia-a o bom do abade para a reza das suas devoções, e nessa tarde
quem quer o poderia ver passeando-a a todo o comprimento, óculos na
ponta do nariz, breviário na mão direita, a dois palmos, a esquerda a
segurar a aba da _quinzena_, e um pequeno solidéu com borla
resguardando-lhe a calvície.

A interromper a leitura, de quando em quando, umas pequenas exclamações
de desgosto, arremessos de breviário, e por fim levantando a voz:

--Fome as pombas, Sr.^a Luísa: não fazem senão saltar...

--Bem fartas!--retorquiu de dentro, da labuta da cozinha,--mas têm lá
visita, pomba que arribou.

E depois informando:

--Pomba guapa, toda branca. São agora três ao todo, e então o pombo...

--Huum!... resmungou o abade em voz de reticências.--Percebo... percebo
perfeitamente...--E foi meter-se no quarto, continuar a
leitura.U+2014.Deixá-las! concluiu evangélico.

Era a pomba do raiado, adivinharam, que ali viera parar à reles
pelintragem daquele metro de gaiola feita de um caixão velho, com
grades só na frente, muito suja sempre, arrumada p'r'ali ao fundo da
varanda, húmida de águas entornadas, exalando maus cheiros, um nojo.

Quando a mostrava à criada, o abade dizia-lhe sempre:

--A sua vergonha, Sr.^a Luísa; a vergonha da sua cara. Como se os
animais não fossem também criaturas de Deus...

As pombas eram magras e o pombo era esquelético.

Fez-se de amores com ele, tomou-lhe os hábitos canalhas, manchando a
alvura imaculada das penas na imundície fétida da gaiola em que ambos
se aninhavam, arrulhavam, se espojavam. E como ela era gorda e bem
tratada, flácida de penugens e de carnação consistente, apetitosa, o
pombo não a largava--génio de libertino em corpo de tísico.

Em breve período entrou a pobre de emagrecer, sem forças para voar se
queria voar, quedando-se dias inteiros ao canto da gaiola, encolhida,
tristonha, arrependida talvez de ter deixado o pombal,--saudosa do
raiado, o seu primeiro amor, quem sabe!

E depois, o pombo sujo já não se importava com ela, desprezava-a,
tentara mesmo expulsá-la de parceiro com as outras, dando-lhe maus
tratos,--à intrusa. Dor incomparável!

Mas um dia o ataque foi mais violento e ela teve de fugir, de voar,
descansando amiudadas vezes, porque lhe faltavam as forças, arquejando
sempre, arrastando-se em voos baixos, sentindo vertigens se subia mais
alto. Para passar um ribeiro descansou uma hora, e quando cobrou alento
e começou o voo, viu-se na água e estremeceu, molhou ainda as asas, viu
um corvo na sua própria imagem, um corvo negro que a perseguia
silencioso, traiçoeiramente, que a ia talvez devorar... O que ela tinha
sido e o que era!...

Lembrou-se então do pombal, do seu primeiro ninho, do raiado... Oh! o
raiado!... Receou primeiro, quem sabe se ele a quereria, tinha pomba,
decerto... Iria?... Não iria?... O pombal ficava perto, um voo valente e
estava lá, acharia tudo em casa, era cedo ainda.

Fez-se de voo e partiu.

       *       *       *       *       *

A manhã era calma e o céu era azul. Canções de cotovias vibravam pelo ar
que as balseiras alastravam de aromas, perfumando-o. A estrela da alva
tinha os últimos bocejos para fechar de todo a pálpebra cansada e
adormecer no azul; e o oriente começava de animar-se de um alaranjado
esplêndido--decoração triunfal com que se orna aguardando a visita de
quem tem de rolar pela eclíptica, alumiando o hemisfério e fecundando
tudo--o cardo que rasteja e o cedro que vê longe...

Naquele repontar da manhã, o alto céu era de uma limpidez cristalina.
Evolava-se de toda a banda um perfume virginal de dulcíssima paz, e
pelas ramagens verdejantes a volata suavíssima dos ninhos começava, como
uma saudação ao dia que vinha rompendo. No altar das laranjeiras,
florido como em Domingo de festa, o rouxinol cantava a missa de alva.

Em manhãs plácidas como aquela, quantas vezes a branca não fizera as
suas excursões alegres de _touriste_, na companhia do raiado,
perdendo-se com ele através do horizonte àquela hora tranquilo e para
toda a banda transparente!

Como tudo isto lembrava, agora!

Em todos esses pinheirais, ao largo, os dois haviam descansado muitas
vezes, muitas, expandindo em arrulhos de uma ternura inefável o amor
extraordinário que os unia! Em toda a largura não se descobria um só
campanário ou um só telhado onde não tivessem pousado ambos, alegres,
contentes, doidos! E ela sempre ufana, acompanhava o macho nos seus
voos ainda os mais arrojados, perdia-se com ele para além das serranias
mais distantes, destemida com a companhia que levava--um amigo que
empenharia a vida só para salvar a da amante.

E que bela manhã, aquela! Tudo tão alegre! Era ver como as calhandras
acordavam contentes, e se atiravam ares além no seu voo perpendicular e
rápido!

Entravam de animar-se cada vez mais as ramarias, com a vida dos ninhos;
melros ensaiavam solícitos a sua partitura vibrante. Mas a toda a
largura--nem uma asa de pomba palpitava. Ela só, desalentada e cheia de
mágoas, ia para onde a levava o destino,--quem sabe se para a morte...

Então chegou a branca ao pombal e voejou em torno espadanando as asas
contra o muro, arremetendo os buracos, desejando entrar, faltando-lhe a
coragem, voejando de novo para arremeter em seguida. Os seus antigos
companheiros sentiram-na, conheceram-na, e arrulhando muito, e
arrulhando forte, saíram em tropel e foram pousar no telhado, batendo
muito as asas combinando ataque.

E como a pomba teimava em entrar, corriam a opor-se, vedando-lhe a
passagem.

De repente, um pombo negro abriu muito as asas, agitando-as, tenteou voo
nuns pequeninos saltos nervosos e investiu com a pomba, com a
desgraçada pomba, e os mais após ele. Havia sangue nos bicos e penas
voando em elipsóides, um barulho de asas que se chocavam com fúria. Por
fim um baque, a pomba caiu no chão, toda sangrenta, um olho arrebentado,
bico aberto, num arquejar convulso, cortado de um arrulho gutural de
vida que se esvai lentamente, gradualmente, com dor. Um estremecimento
de membros por fim, uma agitação geral repentina, e--morta!

Ares além, os assassinos em bando voavam à busca talvez de um ribeiro
onde lavassem os bicos ensanguentados...

       *       *       *       *       *

E o raiado?--hão-de os senhores perguntar. Demorem-se um pouco e
vê-lo-ão sair da janela das trepadeiras, alegre, felizão, boémio,
depois de uma noite passada na meia sombra dos cortinados leves de um
leito, a rir, a amar, beijando o colo da Morgada, arrulhando com ela,
arrulhando, ora um ora outro,--debicando... debicando... debicando...




BATALHAS DOMÉSTICAS




BATALHAS DOMÉSTICAS[1]

_A Luís Trigueiros_.


Para o meu propósito, é inútil narrar-lhes esse pequenino e perfumado
idílio, cor-de-rosa, que foi na vida de ambos, durante um ano, o seu
mais vivo encanto. Isto em Lisboa, onde ele, Joaquim Seabra, maior,
empregado de escritório comercial, vivia desde pequeno uma furiosa
vida de trabalho. A mãe tinha-lhe morrido, ainda ele era fedelho: e
passados poucos meses, tinha o Joaquim sete anos, uma doença complicada
levara-lhe também o pai--homem de lavoura, pobre mas honrado, bronco mas
leal, que nascera e levara a vida não me lembra em que aldeia da Beira,
nas abas da Serra da Estrela.

Sentindo-se morrer, o João Seabra pediu os sacramentos. Deram-lhos. E
quando o reitor ia retirar-se, grave, revestido, aconchegando ao largo
peito o vaso sagrado das partículas, solene sob a umbela branca de
grandes ramagens amarelas, o pobre homem preveniu o padre de que em
podendo lhe desejava uma palavra.

--Volto por aqui de caminho, dissera o reitor.

Assim fez. Mas caso é que ao abeirar-se de novo do catre do doente,
junto do qual estava o Joaquim, descalço, mal remendado, o velho,
entreabrindo os olhos e cerrando-os logo para sempre, mal tivera tempo
de lhe murmurar, designando vagamente o filho:

--O pequeno, coitadinho!

De modo que foi o próprio reitor em pessoa, quem, passados dois anos,
veio meter o órfão, como marçano, numa loja de ferragens da baixa,
loja escura, funda, com uma ventana de vidraças, combalida, dando para
uns saguões de prédios contíguos. De marçano subiu com o tempo a
caixeiro; e como era aplicado, humilde, suportando com uma placidez
resignada de beirão um trabalho por vezes superior às  suas forças, pulou
um dia para a escrivaninha da casa, no andar de cima, vaga pela saída
para a cadeia do outro que cometera umas falcatruas.

--Precisava um tiro nos miolos, esse cão! dissera diante dos patrões o
Joaquim.

E a incisiva frase que fora, enquanto remexia a papelada, todo o seu
comentário ao procedimento irregular do companheiro, valera-lhe a
involuntária conquista do lugar, como revelação, que era, das qualidades
fundamentais do seu carácter,--comuns, de resto, ao tipo beirão,
profundamente animal, audaz, sóbrio, musculoso, no fundo generoso e bom.

A vida começou então a ter para ele umas entreabertas mais risonhas,
livre dessa prisão estreita da escura loja, onde os seus instintos
hereditários de independência, acordados no fundo de uma natureza
bárbara de hermínio, tinham, de quando em quando, uns bruscos, violentos
repelões de rebelião... Até que um dia, numa dessas guinadas que mesmo
à escrivaninha o assaltavam, pensou em ir à terra onde não voltara desde
pequeno. Ainda lá tinha uns tios, vivia ainda o reitor. E numa
introversão de momentos, mirando através da janela o claro céu azul,
alto naquela manhã serena de Maio, o Seabra teve a remota visão do seu
passado--das coisas da sua infância, da sua pobre e humilde aldeia
encravada num declive de serrania que ao longe elevava o dorso, nitente
de neves eternas. E como se mirasse tudo através de um binóculo
invertido, ele lá via além, muito longe para as sugestões do seu
desejo, muito afastado para as débeis reminiscências da sua memória,
tudo isso que ele dizia em três palavras--«a minha terra!»--isto é,
esse montão informe de velhos tectos chamuscados onde havia um debaixo
do qual nascera; o campanário alto e esguio; a igreja oblonga; a fita
branca do muro do cemitério onde seu pai e sua mãe jaziam; a paisagem
circundante cortada de canais e regueiras, que parecem fios de prata
serpeando na esmeralda das baixas, toda retalhada em hortejos; e então a
velha legião amiga das árvores--o zimbro ao alto dos morros nus; depois,
descendo, as urzes brancas; os piornos; os belos carvalhos altivos; e
já a meio da encosta, estendendo sobre a zona agrícola e hortícola o
verde e tenro pára-sol das suas soberbas folhas--o castanheiro, enfim.

Através da sua vida de balcão, duramente mourejada a mover barras de
ferro, feixes pesados de vergas, ceirões informes de pregaria, com
intermitências raras de descanso, algum Domingo, pelas hortas dos
arredores, ou às  vezes num bote, pelo Tejo,--a sensação melancólica da
sua paisagem nativa não chegara a obliterar-se-lhe no cérebro, nem tão
pouco a lembrança dos seus velhos conhecimentos de infância, dos seus
companheiros de escola que iam todos os dias, de manhã e de tarde, à
lição a casa do reitor, naquele velho sótão da residência, com paredes
denegridas e tecto de madeira com manchas...

E que seria feito deles? Talvez que os não conhecesse, que o não
reconhecessem, agora. Talvez. E esta dúvida, esta desconfiança, dava ao
seu desejo de os ver, de se lhes mostrar,--com o seu fraque, a sua
bengala, a sua cadeia de oiro escorrendo sobre o colete claro--o encanto
subtil e ingénuo de uma vaidade. E acabou de o decidir, enfim, a propor
aos patrões essa viagem, certa imagem de rapariga loira, olhos azuis e
toda rosada de cútis, que ele, sem quase dar por isso, espontaneamente,
insensivelmente, fora sabendo, de longe, que se conservava ainda
solteira...

...a Emília!

E porque seja estranho ao meu propósito, e quase indiferente à história
que lhes vou contando, a crónica preliminar desse consórcio, direi que
a velha estola do reitor os uniu enfim uma manhã--manhã de Julho, na
velha e ampla igreja da freguesia, toda banhada de sol, toda rumorejante
de vozes, e sobre a qual caía sem despejar, como uma chuva alegre de
pétalas, a saraivada metálica dos sinos, repicando... Até que passados
dias, ei-los enfim em Lisboa, instalados não sei em que beco da Baixa,
perto da «obrigação» do Joaquim, que era, como lhes disse, o
escritório.

E aqui rompe a história; e se é do agrado dos senhores, comecemos.

       *       *       *       *       *

Bem, aquele primeiro ano. Por uma banda a Emília a cuidar da casa,
toda se desvelando nos mínimos pormenores do interior, na cozinha, no
amanho das roupas, no decorativo, mesmo, dos quartos e saletas que a
mobília, comprada de novo, tornava alegres e confortáveis. Ele, por
outra banda, trazendo-lhe nos fins dos meses intacto o seu ordenado, e
trazendo-lhe, cada dia, uma carícia mais fresca e mais suave. E dada a
homogeneidade dos seus temperamentos, a proveniência comum das suas
naturezas, originárias do mesmo solo, filhas da mesma raça, temperadas
do mesmo sangue, ricas das mesmas infiltrações de seiva e de saúde,
explica-se logicamente esse paralelismo absoluto de vontades que os
dois levavam na vida, sem um choque nas suas aspirações, sem um encontro
avesso nos seus desejos, sem a mínima divergência no seu modo de ver e
de pensar. Educados em meios diferentes, embora! o que nas suas
naturezas havia de fundamental, e até de intensamente uniforme no raio
visual das suas inteligências, tornara podemos dizer nulo, sem
consequências no fio comum das suas vidas, esse largo período passado
em latitudes diferentes:--ela, onde ambos tinham nascido, debaixo do
mesmo céu, à luz do mesmo sol, à sombra das mesmas árvores; ele,
sequestrado de tudo isso, mas num meio sem cor para ele definida,
pardo, estreito como uma gaiola, e onde, portanto, a sua natureza se
conservara estagnada,--estagnada como uma pequena lagoa, dormente
debaixo do luar melancólico...

Vinha daí, e do fundo ingénuo das suas almas, estreladas das mesmas
superstições, povoadas das mesmas imagens, embaladas, ao nascerem, ao
ritmo da mesma canção, essa forte, dulcíssima corrente de ternura
espiritualizada que era o motor primeiro dos seus abraços, o mais vivo e
fresco perfume dos seus beijos, a mais alta, a mais serena e orvalhada
eflorescência do seu profundo amor... E pois que havia também no sangue
de ambos--bem como no seio de um diamante as iriações mordentes--as
rubras, incandescentes faúlhas de uma animalidade impetuosa, adivinha-se
quanto seria intensa nos dois a vida sexual,--casta a despeito de tudo,
vivente como um largo pâmpano, nimbada, enfim, como certas telas
clássicas, por umas cabecitas loiras de crianças, frescas, ridentes, cor-de-rosa...

Daí, como lhes disse no princípio, esse pequenino e perfumado idílio,
cor-de-rosa, que fora na vida de ambos, durante um ano, o seu mais vivo
encanto...

       *       *       *       *       *

Em certo dia, porém, regressava o Joaquim do escritório, noite cerrada
já, quando uma rapariguita que lhes servia de criada havia dois dias,
vindo abrir a cancela, lhe desfechou estas palavras no acento beirão:

--A minha madrinha está muito mal.

--Muito mal?

--Sim, parece que lhe deu pela cabeça não sei quê.

Joaquim Seabra estacou, como que fulminado. E encostando-se à umbreira,
para não cair, sentiu passar-lhe pelo cérebro, como um tufão de peste,
uma ideia que lhe fez vertigens. Teve um pressentimento... E cobrando
alentos, confuso diante da rapariguita que o olhava, disse-lhe com a voz
trémula, no tom de quem procura, comprometido e humilde, esconder um
pensamento:

--Bem sei... Isso costuma-lhe dar... Uns ataques... Foi depois que veio
da Beira.

--Parece que lhe chamam flatos, volveu-lhe a pequena.--Fica-se como
doida...

--Sim... chamam-lhe flatos... fica-se como doida... É isso.

E como se sentissem passos subindo a escada, inquilino ou pessoa do
andar de baixo,--talvez alguém que o procurasse!--fechou a porta com
força; e apagando a luz, com um sopro trémulo, coseu-se a um canto
impondo silêncio, com a mão sobre a boca arquejante da rapariga.

--Cala-te, ouviste? disse-lhe quase com o bafo--Se te calares hei-de-te
dar dinheiro. Cala-te.

A rapariga calou-se, aniquilada, toda enroscada a um canto, como um
novelo. E passados instantes, quando um grande silêncio envolvia todo o
prédio, ouvindo-se apenas, de quando em quando, o rodar de algum trem
nas ruas próximas, o Seabra tomou nos braços trémulos a pequena, e foi,
cauteloso como um bandido, levá-la à cama.

--Ouves, Luísa? Não faças bulha. Dorme.

E fechando-lhe a porta à chave, respirou, hirto no meio do corredor em
trevas. Devia de ser assim a sepultura: aquele silêncio, aquela
escuridão impenetrável! E ele, como um cataléptico, ali encafuado
vivo...--triturado pela mágoa, roído pela dor, desfeito pela desgraça,
como se milhões de larvas o triturassem, roessem, desfizessem,
implacáveis e cruéis, famélicas da última partícula da sua carne,
sedentas da última gota do seu sangue, famélicas e sedentas até da sua
própria alma... Vivo, ó Deus cruel! ó Deus desapiedado! Vivo e no
entanto... morto: vivo para a sensação esfaceladora da sua atroz
desgraça, do seu cruel, cruciantíssimo martírio; morto, aniquilado,
desfeito, para a visão auroreal das suas esperanças...--as suas
esperanças! revoada alegre de pombas, cândidas, serenas, imaculadas,
que um tufão de desgraça varrera do ninho do seu peito, para longe e
para sempre...

E humilde como um rafeiro ou como um trapo, numa prostração de louco
embriagado, dir-se-ia que o cérebro deixara de funcionar nesse
infeliz--como relógio subitamente parado, marcando um momento fatal!--e
que tudo quanto ele sentia, e que tudo, oh Deus! quanto ele gozava!
era essa impressão aniquiladora do _Nada_, que o fundia na treva
circundante, com ela identificando-o, irmanando-o, confundindo-o, e
tanto e tão intimamente, que ele próprio nela se sentia diluído, e no
silêncio...

Súbito, porém, a um gemido, a um grito, a um ranger, escoado ali de
perto como um réptil, escoado ali de perto, como um verme,
fosforejante na treva à semelhança de um demónio, que agitasse um
_pierrot_ de cascavéis,--uma centelha de vida animou esse corpo
aniquilado, e dentro daquele cérebro fez repontar, como luz de
lâmpada funérea alumiando um cenóbio silencioso, a chama de uma
ideia... E teve então de si próprio a estranha, diabólica visão de um
esqueleto carcomido, desossado, alquebrado, mirando pelo arco imóvel
das órbitas, donde dois feixes de luz escorriam--aquele trapo
miserando ali caído, informe, esquálido, repelente, montão de gelo, e
lágrimas, e trevas...--que era ele também!...

Entretanto, e como por força mesmo dessa alucinação desvairada e
trágica, o cérebro perdera nele a recta, serena faculdade do
raciocínio, ele continuava absorto, incompreendido, estúpido, diante
da «sua desgraça»--como diante de um grande mar de negrume, profundo e
estagnado, por uma noite sem lua e debaixo de um céu sem estrelas,
torvo de um burel cerradíssimo de nuvens, a sombra de um espectro... E
assim em breve, retombou nessa altitude que diremos irracional,--mudo,
aniquilado, desfeito, no meio da treva silenciosa, como no lodo fundo
de um poço um bloco inanimado...

       *       *       *       *       *

No escuro do seu cubículo, a pequena soluçava a espaços. E era como se a
própria treva soluçasse, esse chorar abafado da criança, espavorida das
coisas que a cercavam, para ela misteriosas e fúnebres. Era como se um
alegre pintassilgo, vivo, irrequieto, palreiro, fosse do seu ramo florido
de amendoeira, por uma tarde serena de Abril, pousar, num voo de acaso,
na mansarda tristonha de um morcego, em qualquer frincha desabrigada de
velho muro, abandonado algures...

E porque viera? E para que viera? Não sabia. No entanto, ao contrário do
que lhe tinham prometido, que saudade infinita, repassada de profunda
nostalgia, da telha vã do seu humilde casebre, através do qual passavam
os primeiros alvores da manhã, como um perfumado beijo de frescura! Dois
dias, apenas! Entretanto, já dois dias! Tanto tempo em tão pouco tempo!
E não tornara mais a ver pássaros! e não mais tornara a ouvir, de manhã,
tocando à missa de alva, tangendo à tarde a ave-marias, o seu querido e
alegre sino de aldeia...--além, naquela riba suave e pitoresca,
prateada, beijada do luar àquela hora!... E o fio do seu pensamento,
que outrora derivava límpido, sereno, cristalino, como pequenino
arroio murmurante que vai entre duas alas de flores singelas,
torvelinhava agora estupidamente, desnorteado, ao acaso, convertido num
veio torvo, lodoso e borbulhante, soluçando, como se fora de lágrimas,
oculto sob a folhagem pálida...

       *       *       *       *       *

A dois passos, no corredor escuro, o outro continuava prostrado, junto
da porta que dava para o quarto onde a mulher, deitada, devia talvez
dormir, de borco sobre a roupa revolta, ou no chão talvez... Mas como
acontece às  tempestades da natureza, também a tempestade daquela alma
de homem entrou de se diluir em pranto, pouco a pouco, serenamente,
gradualmente. Chorou. E como se fora o véu das lágrimas que lhe não
deixara ver até então os pormenores do seu infortúnio, deste
permitindo-lhe apenas uma sensação que diremos informe, entrou de se
fazer com a vazante mais lúcido o raciocínio, mais precisa e mais
esperta a ideia que se lhe acendeu no cérebro, como luz que pouco a
pouco vai surgindo na lâmpada de um claustro, alumiando nitidamente,
sob o docel frio das sombras, as arestas marmóreas de um sepulcro...

Ah! mas então, sob a impressão raciocinada e fria da sua tragedia, cujas
linhas contornais pareciam feitas de gelo, uma nova tempestade
rebentou,--como uma trovoada enorme em tarde seca de Maio. E foram
então as imprecações, os gritos estrangulados irrompendo, em surdina,
por entre as maxilas ferradas, do fundo do peito em ânsias. Então foi o
arrancar convulsivo dos cabelos, às  guinadas, teimosamente, num duelo
de loucura com a dor física, desafiando-a, espicaçando-a, dando-lhe a
beber o próprio sangue do peito, rasgado pelas dez unhas crispantes,
lacerantes como se foram de abutre.

--Ah! raios do céu, e não morro!

E como o grito lhe saiu mais alto, prestes levou ao chão, como
beijando-o, os lábios estranhamente rasgados pela cólera. Veio-lhe então
o pudor melindroso da sua desgraça, o medo horrível de que se
divulgasse, de que os outros a soubessem,--de que a pequenita, mesmo, a
conhecesse... O que diriam? o que pensariam? E todo ele se encolhia, e
todo ele se sentia gelado até ao mais íntimo da sua alma, supondo-se
na rua, como outrora, ao vivo e claro sol, levando aderente às  costas,
como um ferrete ou como um cáustico o olhar de «toda a gente»... E com
as unhas ferradas na testa, escondia da própria treva, com as mãos
ambas, o rosto cobarde e arrepanhado.

--Diabos do Inferno! levai-me!

A este novo grito, porém, súbito se recolheu num grande pavor
religioso. Do fundo da sua natureza alguma voz se elevou, serena, doce,
harmoniosa, como na paz tranquila do campo o fumo azul-claro de um
casal... E teve a doce visão de um arco-íris, bonançoso e rutilante,
repontando luminoso no burel aspérrimo da sua alma, onde uma clareira se
abria. E foi quase a sorrir, chorando as primeiras lágrimas tranquilas,
que dos seus lábios quase serenos voou como uma pomba alvinitente, que
transporta no rosado bico um ramo de oliveira, esta palavra de amor:

--Deus!

E para logo sentiu sobre a sua fronte, de manso e manso erguida num
como enlevo de visão, um ruflar de asas de pombas... à hora da alva...
sobre os campos... numa clara manhã de Maio, perfumada...

E como se mão invisível o erguesse, devagar, serenamente, enxugando-lhe
da orla das pálpebras a última lágrima de sangue deposta ali pela sua
alma, o pobre foi submissamente escoando-se para o quarto contíguo, onde
sua mulher estava, o seu anjo, o seu tesoiro, a sua vida... E foi
submissamente, como um cão duramente batido que volta aos afagos do
dono, que sobre os lábios da adormecida esposa, secos, pálidos,
desbotados, ao claro luar vindo do céu, o triste uniu os seus lábios
frementes,--...num beijo suavíssimo de perdão. Ao mesmo tempo que ela,
num delírio, repetia a frase cruel:

--Mais vinho!




NOTAS:

[1] Sendo necessário completar o número preestabelecido de páginas de
cada volume desta _Colecção_, número além do qual se não pode ir e
aquém do qual se não deve ficar,--o editor pediu e obteve do autor, em
vez de novo conto, um excerto do seu livro em preparação, livro
provisoriamente baptizado com o título de _Batalhas domésticas_. O
excerto pode dizer-se que constitui só por si, como os leitores verão,
um trabalho literário, independente e uno, o que de certo modo lhe dá
lugar nesta colecção, ao lado dos precedentes, estabelecendo, além
disso, a transição do espírito do autor para uma nova fase, literária
e artística.

N. do E.




ÍNDICE


Idílio rústico

Sultão

Última dádiva

Prelúdios de festa

Tipos da terra

V[ae] Victoribus

Maricas

Para a escola

Tragédia rústica

Abyssus abyssum

Mãe

Arrulhos

Batalhas domésticas




OS MEUS AMORES E A CRÍTICA


Da Revista Ilustrada (extracto da crónica):--«..._Os meus amores_, de
Trindade Coelho, é um volume de contos para toda a gente, em condições
agradabilíssimas ao paladar de ambos os sexos, e com delicadas
circunstâncias a prazerem, principalmente, ao feminino. Porque uma das
preocupações literárias mais evidentes deste escritor primoroso é
fazer jus à amizade das leitoras, e como dispõe de perícia no ferir de
certas notas emoventes e no tocar certas fragilidades de sentimento,
consegue-o.--_Alfredo Mesquita_.


Jornal da Noite:--«Trindade Coelho--Este ilustre escritor, nosso
talentoso colega do «Portugal», brindou-nos com um exemplar do seu novo
livro de contos _Os meus amores_.

De entre a plêiade de prosadores, que por aí mourejam no mundo das
letras, a individualidade de Trindade Coelho destaca-se distintamente,
e impõe-se à admiração dos que apreciam os talentos brilhantes
privilegiados.

Os trabalhos do ilustre escritor, se pela estrutura original e
encantadora são dignos do maior apreço, pela elegância da forma,
burilada a primor num estilo finíssimo e cintilante, despertam os
mais francos, sinceros e entusiásticos encómios dos que os lêem.

Quem conhece o formoso talento de Trindade Coelho, e o seu belo
carácter, avalia bem, por certo, como ambos estes seus característicos
serão traduzidos no novo livro de contos do nosso distinto colega.»


Diário Popular:--«_Os meus amores_.--Assim se chama um livro de
graciosos contos, retratando aspectos da vida da aldeia e do campo, que
acaba de aparecer, firmado por Trindade Coelho.

O escritor, como verdadeiro artista que é, localiza todas as suas
atenções, de há muito, no trabalho de apreender com fidelidade o
viver campesino, sobretudo da vasta região transmontana, a qual lhe foi
berço. Por isso o seu fabrico literário se aprimora de dia para dia
numa escala crescente de sinceridade, e por tanto mérito: _Os meus
amores_ o atestam, quando postos em paralelo com os primeiros contos
publicados avulso.

Trindade Coelho cultiva com cuidado especial o diálogo que busca e
consegue fotografar com particular exactidão. Em vez dos descritivos,
quase desprezados, são trechos sucessivos de conversas de uma
encantadora rudeza ingénua que formam o estofo principal de todas as
suas produções. Isto e a felicidade com que sabe observar, dão o cunho
pessoal da sua obra, que proporciona agradáveis e confortáveis momentos
de leitura.»

Diário Ilustrado:--«Abrem _Os meus amores_, de Trindade Coelho, com um
admirável soneto de Luís Osório, que depomos nas mãos da leitora, como o
perfumado ramo de cravos valencianos, a flor actual das suas
predilecções femininas: (_segue o soneto inicial._)

E pelo braço do poeta da _Alma lírica_ subimos ao doce convívio
espiritual da alma de Trindade Coelho.

O conto _Mãe_, uma rica jóia engastada neste livro, brilhando aí por
todas as suas facetas cortadas em diamante, e buriladas com a fina arte
de um joalheiro florentino, bastaria para autenticar-lhe o valor e para
aferir os dotes mentais de Trindade Coelho, que tem no seu brilhante
estilo moderno, fluente e sóbrio, incisivo e profundo, vibrátil e
melódico, o diploma do seu notável talento.

É principalmente pela sinceridade intuitiva e pela naturalidade
espontânea que estes contos nos cativam.

O autor diz-nos, sem preocupações de escola e sem pretensões a abrir
caminho pela deslocação do vocábulo ou pela selva escura do escândalo, o
que viu, analisou, observou e sentiu.

As suas doces narrativas, penetradas da alma campestre, deslizam
suavemente, tocadas a espaços de uma inigualável melancolia
contemplativa que lhes duplica o encanto.

Mas nesses singelos contos, artisticamente concretizados, Trindade
Coelho revela o superior poder evocativo da visão íntima, que o
singulariza.

A complexa natureza, para tantos inexpressiva e muda, tem para ele,
como para todos os artistas de raça, atitudes, expressões, cores e
sons, que o autor vê, adivinha, sente e traduz com a fascinadora
eloquência dos iniciados, e o misterioso enternecimento, que só nos
transmite a simples leitura dos poetas.

Há rápidos traços de análise emotiva ou de comoção reflexa que valem
poemas.

E não serão o _Idílio rústico_, a _Mãe_ e outros contos, soberbamente
delineados e intimamente vividos, verdadeiros poemas em prosa?

Felicitamos calorosamente Trindade Coelho, o nosso querido amigo, pelo
seu primeiro livro, que embora glorifique o seu nome, não é de certo o
seu primeiro triunfo.--_Gabriel Cláudio_.»


Jornal do Porto:--«_Os meus amores_.--A colecção António Maria Pereira
aumentou-se de um novo volume original. Intitula-se _Os meus amores_ e
está escrito pelo nosso ilustre colega e literato distinto o Sr.
Trindade Coelho.

Deste livro que, pelas suas destacadas qualidades literárias, deve
achar grande aceitação no nosso público, escreveremos em breve as
palavras apreciadoras que ele merece.»


Correio Elvense:--Trindade Coelho.--Este nosso amigo e festejado
escritor, publicou agora o seu primeiro livro de contos e baladas a
que deu o título: _Os meus amores_, editado pela acreditada livraria de
António Maria Pereira.

Trindade Coelho, que hoje ocupa um proeminente lugar no jornalismo da
capital, fez ainda há pouco algumas das suas melhores armas na imprensa
em Portalegre, onde criou dois jornais, um dos quais ainda vive, que
tiveram vida gloriosa enquanto os animou o trabalho do distinto
estilista.

Não só nos seus escritos passados, mas então, conhecemos o grande valor
que indiscutivelmente possui. Não nos surpreendem pois os seus
triunfos e rejubilamo-nos com eles com a alegria e sinceridade de bons
e sinceros amigos.

Num dos próximos números falaremos da impressão colhida em _Os meus
amores_, agradecendo desde já as expressões afectuosíssimas que
acompanham a dedicatória do livro, que o seu autor nos ofertou.»


Correio do Norte:--«_Os meus amores_.--Contos e baladas.--Trindade
Coelho, o já conhecido e apreciadíssimo escritor, acaba de publicar um
livro de contos com o título acima indicado. É esta uma bela novidade
para o nosso mundo literário, onde Trindade Coelho de há muito soube
conquistar um lugar dos mais distintos, pelo seu belo talento e
poderosas qualidades de escritor.

Limitamo-nos por agora a dar esta simples notícia do aparecimento do
novo livro, para depois escrevermos mais detidamente sobre ele.

Agradecemos ao nosso prezadíssimo amigo a delicadeza do seu
oferecimento.»


O Globo:--«_Os meus amores_.--Mais um livro editado pela livraria de
António Maria Pereira. Intitula-se _Os meus amores_ e subscreve-o o nome
de Trindade Coelho.

Não o lemos ainda porque o recebemos agora; mas há-de ser por certo
trabalho de grande valor artístico, como invenção e como execução,
porque Trindade Coelho é incapaz de produzir uma obra literária má. A
sua educação literária está feita, e os seus numerosos trabalhos tão
apreciados, tão portuguesmente escritos, tão sentidos e tão espontâneos
revelam qualidades de escritor de raça. Ele tanto pode ser um
jornalista eminente como é um contista original.

_Os meus amores_ é uma colecção de contos e baladas. Conhecemos alguns
capítulos, que são primorosos, mas carecemos de ler todo o livro para
não errar na apreciação. Vamos lê-lo com a convicção de que teremos de
saborear um desses raros mimos literários que só os privilegiados de
talento sabem oferecer aos seus leitores.»


Diário de Notícias:--«_Os meus amores_.--_Contos e
baladas_.--Anunciámos, em tempo, o próximo aparecimento deste
trabalho, com que o brilhante contista e nosso colega do _Portugal_, o
Sr. Trindade Coelho, ia aumentar a colecção, já tão valiosa, das
edições do Sr. António Maria Pereira.

O livro acha-se, enfim, publicado, e em nada desdiz do conceito que
desde logo nos autorizaram a emitir os elevados méritos literários do
seu autor, tantas vezes comprovados em numerosos escritos anteriores.

Com uma observação escrupulosa, e um pitoresco estilo, de uma pujança e
de uma riqueza não vulgares, sem atentados contra o bom gosto, nem
rebeldias contra o bom senso, os contos do Sr. Trindade Coelho são, a
todos os respeitos, um verdadeiro primor, uma obra que há-de entrar, sem
hesitações, na aceitação do público, e que há-de ficar longo tempo, a
atestar, numa formosa prova, a riqueza de um espírito, superiormente
educado, dúctil e prontamente maleável.

Porque esses contos são a obra de um genuíno artista, cuja _maneira_,
simultaneamente fácil e apuradíssima, revelando a espontaneidade de uma
fecunda fantasia, traduz e afirma a fina sensibilidade de uma alma
delicadamente temperada, a viveza de um talento exuberante de vigor e de
seiva.

Não pode entrar nos curtos limites de uma simples notícia, a mais
desenvolvida crítica desse trabalho, que tem, na próprio nome do seu
autor, o melhor e o mais seguro título de recomendação para obter do
público a consagração de um largo e legítimo sucesso.

Apenas acrescentaremos que abre o livro um encantador soneto de Luís
Osório--preciosa chave de oiro, na realidade bem merecida por aquele
rico e primoroso escrínio de verdadeiras e puras jóias literárias.»


A Actualidade:--«_Os meus amores_.--Este nome é o de um novo livro da
colecção António Maria Pereira. Pelo título presume-se um volume de
versos; mas não é, o que não quer dizer que nele se não surpreenda
legítima poesia. Trata-se de contos e baladas, originais do Sr.
Trindade Coelho, um dos nossos mais apreciados e brilhantes escritores.

Eis, muito resumidamente, as prendas que distinguem este primoroso
contista:

Estilo correcto, elegante, vivo; descrições ricas de observação e
atraentes tanto pelo colorido como pelo esmerado da forma; despidos de
grandes artifícios os entrechos, mas subjugantes pela muita
naturalidade; o diálogo, em suma, admirável pela singeleza e, sobretudo,
pela propriedade.

Com estes predicados o livro _Os meus amores_, do Sr. Trindade Coelho,
deve incontestavelmente ser de valor. E é. São encantadoras todas as
narrativas que contém. Logo ao abrir depara-se-nos um _Idílio rústico_,
que embriaga e predispõe para a leitura de todo o volume, onde se
encontram quadros soberbos, reproduzidos do natural com um notável poder
de observação e que deixam o espírito suavemente impressionado. Leiam, e
verão que não exageramos na opinião que aí deixamos rapidamente
exposta.

Ao autor o nosso reconhecimento pelo mimo da oferenda.»


Correio da Manhã:--«Registar o aparecimento de um livro bom, linguagem
elevada e singela, desartificioso e artístico, repositório vasto de
observação, vibrado por uma grande impressão pessoal e subjectiva, é
sempre agradável à crónica, neste tempo sobretudo de literatura
gafada, ou de arte ainda literária quase pornográfica.

_Os meus amores_ que amavelmente acaba de nos oferecer Sr. Trindade
Coelho é um livro desses. Colecção primorosa de contos e baladas, em
que no mais despretensioso dos estilos nos conta recordações e idílios e
nos mostra uma galeria rica de tipos e de figuras cuidadosamente
observados e primorosamente expostos.

O último conto _Para a escola_, que dessa bela colecção acabamos de
ler, é encantador de verdade, de singeleza, de arte, e assemelha-se
notavelmente à maneira de Gustavo Droz.

Não é o lugar nem a acasião de fazermos a crítica do livro e a
apreciação deste novo, deste debutante, que ao primeiro assalto parece
estar já senhor da batalha.

É por isso que sinceramente o felicitamos.»


Vanguarda:--«_Os meus amores_.--O nosso colega, o Sr. Trindade Coelho,
que quase só conhecíamos pelos seus libelos acusatórios, acaba de nos
enviar um livro primoroso com este título, no qual a feição carregada e
sombria do agente do ministério público desaparece por completo, para
nos deixar apreciar só o espírito finalmente delicado do homem de
letras conhecedor dos melhores processos de arte e verdadeiramente
sabedor do seu ofício.

Confessamos que nos apraz muito mais admirar este Trindade Coelho, que o
outro que temos visto apertado dentro da negra vestimenta de agente do
ministério público, que parece lhe oblitera às  vezes as suas excelentes
faculdades.»


Primeiro de Janeiro:--«_Os meus amores_.--Acabamos de receber o
formosíssimo livro de contos «_Os meus amores_», de Trindade Coelho.

Não é ainda a ocasião de pormos em relevo todas as qualidades
literárias, complexas e brilhantíssimas, que se evidenciam neste
livro, demonstrando um dos talentos mais vivos e assinaláveis entre os
mais ilustres cultores da prosa portuguesa.

Os contos por onde «_Os meus amores_» se repartem não são apenas
maravilhas de linguagem, onde tão somente se destaquem destrezas e
fulgurações do estilo: a acção que os anima constitui uma deliciosa
galeria de quadros, aspectos íntimos e exteriores da vida, colhidos em
flagrante com uma extraordinária subtileza e lucidez de observação e
trasladados a uma forma superiormente artística, onde há firmemente
acentuados todos os caracteres de uma esplêndida organização
literária.

É um livro vibrante e magnífico--adoráveis páginas intensamente ou
delicadamente emocionadas e primorosamente escritas, cuja leitura é um
verdadeiro encanto.

As nossas cordiais felicitações a Trindade Coelho, a quem agradecemos a
gentilíssima oferta do seu livro.»


Folha do Povo:--«_Os meus amores_.--Está publicada em volume uma série
de _contos e baladas_ com que o Sr. Trindade Coelho, o brilhante
colaborador do _Portugal_, vem enriquecer a literatura _contista_
entre nós, hoje tão querida do público, depois que os trabalhos de
Fialho de Almeida deram a esse género literário um valor até então
mesquinho.

A primeira qualidade que notamos logo nos _contos e baladas_ do Sr.
Trindade Coelho é um estilo muito seu, cheio de uma cristalina
naturalidade, _afastando-se completamente dessas excrescências de mau
gosto_, que ultimamente têm abastardado a língua portuguesa,--prova da
superioridade intelectual do escritor de que nos ocupamos--, visto
que não mira a uma falsa glória, conquistada facilmente pelas
excentricidades de estilo, que são hoje uma verdadeira mania entre
alguns escritores da chamada geração moderna.

O Sr. Trindade Coelho escreveu a sua prosa obedecendo à espontaneidade
das suas impressões, ao seu sentir, sem deixar de se revelar um artista,
porque nunca a frase lhe sai banal, nem tão-pouco envolvida em ouropéis
de mau gosto literário.

E no entanto encanta-nos,--prova de que está ali um primoroso
escritor, um espírito delicado, reproduzindo todos os cambiantes da
natureza por uma forma de observação, que não é desta nem daquela
escola. É simplesmente sua, individual.

Notamos mesmo um progresso no livro do Sr. Trindade Coelho; porque as
suas primeiras produções literárias ressentiam-se de uma tal ou qual
preocupação de _efeito_ no modo de construir a frase. Hoje, o
escritor adquire a independência da sua maneira, do seu processo, e
feito a tirar decorre fatalmente dessa independência, visto que os seus
quadros obedecem apenas a uma rigorosa e fiel reprodução do que o
artista observa em volta de si.

Certamente que o público lerá com encanto o novo livro do Sr. Trindade
Coelho, pelo que felicitamos o autor, e--podemos mesmo dizer--a
literatura portuguesa.--_Silva Lisboa_.»

Diário Ilustrado:--«De tempos a tempos chegava-nos do Alentejo um
periódico que não deixávamos nunca de ler pelo fino gosto literário,
pitoresco e moderno, que se revelava em todos os seus artigos,
incluindo os políticos. Esse periódico era redigido por Trindade Coelho,
cujo talento conhecíamos desde Coimbra, e cuja individualidade
literária víamos agora acentuar-se com um vigor de originalidade
verdadeiramente notável.

De quando em quando, Trindade Coelho obsequiava-nos com um artigo para o
_Diário Ilustrado_ e, vindo estabelecer residência em Lisboa, algumas
vezes tivemos a honra de receber nesta redacção a sua visita, sempre
agradabilíssima para nós, porque a sua conversação cintilante
aligeirava as nossas pesadas horas de trabalho.

Pois bem, Trindade Coelho acaba de reunir num volume--que faz parte da
colecção _António Maria Pereira_--os seus deliciosos contos, cheios de
observação, de verdade, de simplicidade artística, que é, a nosso ver,
suprema expressão de beleza neste género de composições literárias.

_Os meus amores_ são um belo livro, em que o estilo se não contorce
atormentado, como em tantos outros, em que os rebuscados esplendores da
forma literária denunciam uma carência absoluta de espontaneidade. Tudo
ali deriva naturalmente, tanto na sequência lógica dos caracteres e dos
episódios, como na contextura fácil, mas colorida, dos períodos.

Numa palavra, _Os meus amores_ são a obra de um artista, de um homem
que sabe do seu ofício, e que tem uma individualidade bem definida por
traços profundos de verdadeira originalidade.»


Voz Pública:--«_Os meus amores_.--Trindade Coelho, inegavelmente um
talento de primeira água, acaba de brindar a literatura portuguesa com
um excelente livro de contos subordinado àquele título e que constitui
o duodécimo volume da elegantíssima _Colecção António Maria Pereira_.

_Contos e baladas_ é o subtítulo do livro, e muitos ao lerem-no
julgarão que se trata de versos; mas não, é em prosa, em prosa
vernácula, correcta e vibrante que estão escritos os belos contos de
que se compõe este livro, digno a todos os respeitos de ser lido.

São todos eles uns contos ligeiros, encantadores pela espontaneidade e
verdade dos seus tipos e das suas situações, lembrando um tudo-nada os
formosos tipos de aldeia, tão magistralmente desenhados pelo malogrado
autor da _Morgadinha dos Canaviais_ e dos _Fidalgos da Casa Mourisca_.

Lemos de um fôlego o magnífico livro, e ninguém que o comece a ler
deixará de o fazer como nós; tão atraente é a forma por que Trindade
Coelho conduz todos os ligeiros contos de que ele se compõe, que sem
querer, sem se sentir mesmo, chega-se ao fim e fica-se como triste
dele ter acabado.

Todos magníficos, dizemos, mas se alguns há que mais nos prendessem,
foram os que se intitulam _Tipos da terra_ uma galeria curiosa de tipos,
e _A mãe_, um conto de natureza, simples e comovente na sua
simplicidade, e notável pela sua originalidade.

Recomendar o livro de Trindade Coelho é prestar um serviço aos nossos
leitores.»


Ordem do Dia:--«_Os meus amores_.--Este é o titulo do 12.^o volume da
colecção António Maria Pereira, inegavelmente a publicação mais
elegante, mais barata e mais interessante do país.

_Os meus amores_ são uma série de contos e baladas, em prosa, devidos à
pena de um moço talentosíssimo, de há muito conhecido nas lides do
jornalismo, Trindade Coelho, mas que ainda não lançara ao mercado um
livro; com este debuta o autor, e é uma estreia auspiciosíssima a sua.

A leitura do volume, longe de fatigar, faz-se com agrado, e nele é
cultivado um género--o de contos, alguns à maneira de Gustave Droz, que
prendem e interessam o leitor em todo o sentido.

Foi gratíssima a impressão que ele nos deixou no espírito e esperamos
que Trindade Coelho continue a brindar o público com as suas belas
produções, porque estamos certos de que quem ler _Os meus amores_ será
com sofreguidão que esperará novo volume do distinto escritor, tal é o
encanto da sua escritura».


O Sorvete, (com o retrato do autor):--«Dr. Trindade Coelho.--Mais uma
prova do seu brilhantíssimo talento! Mais uma vez justificada a alta
competência e finíssimo espírito de escritor distintíssimo!

O novo livro de Trindade Coelho,--_Os meus amores_--contos e
baladas--editada pela casa António Maria Pereira, de Lisboa, é, no
dizer dos entendidos em literatura,--uma verdadeira jóia.»


O Esposendense:--«_Os meus amores_ (contos e baladas) por Trindade
Coelho.--Faz parte este volume da interessantíssima colecção António
Maria Pereira, tão bem aceite do público, pela superior escolha das
obras publicadas e pela modicidade extraordinária dos seus preços.

_Os meus amores_ é um precioso agrupamento de contos, alguns inéditos,
outros já conhecidos, e que Trindade Coelho espalhara com aplauso por
diferentes jornais do país. Decorridos quase todos em plena aldeia
trasmontana, cujos costumes o autor conhece de sobra, pois é natural de
Trás-os-Montes, e foi durante alguns anos, delegado do procurador régio
numa cidade de província--os contos desta colecção tornam-se
sobretudo notáveis pela propriedade e pela fidelidade da acção,
verdadeiros, nítidos, reais, palpitando da cor própria da paisagem,
vivendo da vida natural, íntima e intrínseca, dos personagens e das
coisas.

Entre as nossas obras literárias originais, _Os meus amores_ merecem,
pois, um lugar à parte, não como uma estreia auspiciosa, que o nome de
Trindade Coelho é já demasiado conhecido de todos quantos se interessam
pela literatura nacional, mas como a poderosa afirmação de um prosador
elegante e de um contista distinto, no meio da grande maioria da chata
vulgaridade indígena.

_Os meus amores_ é, em suma, um livro de valor, bem cabido nas mais
escolhidas bibliotecas.»


O Português:--«_Os meus amores_.--Delicioso título de um livro
delicioso.

O livro é uma colecção de graciosos contos, editorada pelo Sr. António
Maria Pereira; e o autor é o nosso colega do _Portugal_, Sr. Trindade
Coelho, que, nos ócios da magistratura, de que é digno representante,
cultiva as letras com desvelado amor.

Em Coimbra, estudante ainda, era já literato apreciado, colaborando,
com aplauso dos mais doutos, em jornais e revistas, que há mais de dez
anos tornaram o seu nome festejado e querido. Hoje, reúne ao seu título
de jornalista a invejável nomeada de contista esmerado, e brinda as
letras portuguesas com um volume, que está tendo a mais justa e
lisonjeira acolhida.

O primeiro conto do livro, _Idílio rústico_, não obstante ser agora
publicado pela primeira vez, cremos nós, é já nosso conhecido, porque
apareceu manuscrito num concurso literário da extinta _Associação
dos jornalistas_, sendo premiado. Depois da consagração de um júri, terá
agora a consagração do público.

Depois do _Idílio rústico_, vem o _Sultão_, um quadro magnífico da vida
campesina, notável de simplicidade e graça; e a _Última dádiva_; e os
_Prelúdios de festa_; e os _Tipos da terra_; e as _Baladas_; e a
_Tragédia rústica_; e a _Mãe_; e os _Arrulhos_; e as _Batalhas
domésticas_: outros tantos primores, que às  vezes nos fazem lembrar as
deleitosas e serenas paisagens de Daudet.

Agradecendo ao autor a gentileza da sua oferta, congratulamo-nos por
não haver ainda expirado entre nós a literatura sã, que, ou nos
desperte o sorriso ou nos obrigue a lágrimas, não nos deixa no espírito
a impressão doentia das nevroses literárias...»


Jornal da Manhã, Porto:--«_Os meus amores_.--Mais um volume acaba de ser
publicado da colecção António Maria Pereira, por sem dúvida a mais
elegante, a mais escolhida e a mais económica biblioteca que se publica
em Portugal.

É o primeiro livro de Trindade Coelho, _Os meus amores_, contos e
baladas, em que o talentosíssimo escritor acaba de reunir todos os
seus contos dispersos por vários jornais, e alguns inéditos.

Do primeiro ao último, os contos que compõem _Os meus amores_ são
espécimes no género, porque, além de constituírem uma esplêndida galeria
de quadros íntimos, de retratos, de tipos, são a confirmação de uma
verdade já por nós há muito aceite: que o seu autor tem todos os
requisitos de um escritor de primeira ordem; estilista vibrante,
correcto e sempre elegante.

E se formos a escolher o melhor desses contos, ver-nos-emos em sérios
embaraços, porque são todos por igual deliciosos, constituindo a sua
leitura um verdadeiro encanto; entretanto, se há que mostrar
predilecções por algum deles parece-nos que os melhores serão _A Mãe_
e _Para a escola_, aquele uma delicada e emocionante história arrancada
flagrantemente à natureza, e este saudosas recordações de um passado que
não volta.

A edição, escusado é dizê-lo, é nitidíssima.»


O Tempo:--«_Os meus amores_.--Este livro teria vindo melhor nas noites
invernosas para serões às  lareiras crepitantes:--as faíscas de ouro
subindo no tecto, o vento zunindo fora açoitando a chuva, e dentro, no
conforto recolhido, gozar-se o contraste das paisagens alegradas pelo
sol, espelhadas na água rumorosa, com gorjeios e trinados de aves,
paisagens que o Sr. Trindade Coelho sabe encantar com a delícia suave e
subtil de iludidor ameno. Mas não se pode aconselhar o leitor a que se
prive de saboreá-lo desde já, tanto mais que os tempos vão agoireiros
para a arte de manancial, e os que a cultivam têm de separar-se dos
estragadores d'Ela e das cabeças quase vazias que espremem e segregam o
pus nauseabundo do sadismo medíocre.

Estes estão agora entretendo o público arrebanhado para saborear com
prazer as estapafurdices atoleimadas, e que os iguala--o vingador--ao
imbecil que escreveu o _Senhor Dupont_ e aos autores das _Pimentinhas_
e _Berbigões Ardentes_.

Que o livro de glorificadora arte do Sr. Trindade Coelho seja o
perfumador dos excrementícios e apareça em plena luz nas mesas e nas
famílias dos que compravam os outros, é o voto que faz o alinhavador
destas linhas corredias, na certeza de que recomenda à atenção um
artista recolhido que sabe ter força nos traços ténues e meias-tintas
dos seus quadros, que capricha em suavizar idilicamente as dores
vulgares da vida aceite, da materialidade animal, dourando-as com
recantos de natureza chilreante. Que me perdoem insistir na
impertinência: mas, o que no livro mais particulariza o talento de quem
o assina é a compreensão das paisagens, o sabê-las colorir, animar,
pô-las ante os olhos que lêem.

As grandes dores obscuras e sinceras, as brandas afeições, amizades
arreigadas, a placidez do recanto habitado, os amores simples
sustentados por ingénuas crenças e suavizada fé, tudo o que a aldeia tem
de ameno, de atraente, de pitoresco, de consolador, os seus ridículos
mesmo, vestindo atitudes de paródia em teatrinho de curiosos, tudo
reveste bem o Sr. Trindade Coelho, e aligeira com um optimismo de bom
humor, sublinhando aqui e acolá umas notas reais, bem apanhadas, como se
diz, e que refrescam o rosto num aberto sorriso de ventarola. O livro
encanta porque traz todo o aroma da aldeia onde o autor encerrou por
anos a sua nostalgia--a pior de todas: nostalgia de
delegado!--apertando os voos do seu espírito de artista que ama pairar
com a fantasia para o longínquo, para o que se Imagina, para o Distante,
o Inacessível, o Insaciável. Sonhos e fantasias que morreram e se
dispersaram como o fumo e as cinzas das fogueiras a que se aqueceria nas
noites uivantes do Inverno trasmontano; mas que deixaram sementes de
recordação e de saudade donde brotou o livro, escrito decerto nas
horas feriadas do trabalho árido, com a documentação da natureza que
vivifica, com a elaboração pachorrenta de quem não tem pressa e se
compraz na arte libertadora.

Especificar um ou outro conto não é depreciar os não citados, mas dar
preferência pessoal--e talvez pecadora--ao _Idílio rústico_, à _Última
dádiva_, à _Mãe_, às  _Batalhas domésticas_, que fecham o livro e deixam
entrever no autor um desejo de animar os personagens tanto como anima a
natureza onde eles sentiram. Há contos nos _Meus amores_ que fazem
lembrar um Cladel menos retumbante e por isso mesmo livram quem lê da
patada épica do que fez _Créte-Rouge_ e _Ompdrailles_.

O Sr. Trindade Coelho é um escritor tão distinto quanto aclarado pelo
jorro de arte que vem de há muito confundindo os convulsionários do
talento; os serenos no desdém; os entusiastas; o que, despindo o
metafórico, quer significar que ele está em posição artística onde
decerto o seu talento e o seu trabalho continuarão a chamar atenção e
respeito.--_M. Caldas Cordeiro_.»


António Maria, (com o retrato do autor, desenho de Rafael
Bordalo):--«_Os meus amores_ por Trindade Coelho.--A livraria
portuguesa tem tido uma enchente, como raramente lhe sucede, na última
quinzena. Depois do êxito do romance de Abel Botelho e do livro de
memórias de Luís Palmeirim, veio o volume de contos de Trindade Coelho,
com a amável denominação de _Os meus amores_.

Aqui o temos, já todo aberto, já todo lido... É originalíssimo,
agradabilíssimo o modo de escrever, de descrever, de dizer, de contar,
que usa o autor deste belo livro,--agradabilíssimo contista,
escritor originalíssimo, cujo nome a bibliografia regista hoje, tão
notavelmente, como o jornalismo de há muito o registara.

A quem o ler, garantimos, sob a palavra de honra do nosso gosto, algumas
horas muito bem passadas, passeadas por aquelas paisagens e recantos
provincianos que ele pinta, tão real e verdadeiramente como se lá se
estivesse; em companhia daqueles tipos que ele retrata, tão
fotográficos, tão nítidos, que é estar a gente a vê-los, a ouvi-los, a
falar-lhes...

--_Os meus amores_, meus amores, que encanto!»


O Tempo:--«_Os meus amores_.--É como Trindade Coelho intitula a
colecção de formosos contos, publicados em volume, editado pela
livraria do Sr. António Maria Pereira.

Há muito tempo que conhecemos e apreciamos o talento de escritor de
Trindade Coelho, desde quando lhe lemos as suas produções literárias
num jornal de Coimbra, e que eram as primícias de trabalhos mais
primorosos, como são hoje os contos a que nos vimos referindo.

O livro de Trindade Coelho é dos raros que se lêem da primeira à última
página sem um momento de cansaço ou de fastio. O espírito do leitor
delicia-se seguindo todas aquelas cenas campesinas, de uma singeleza
tão comovente, e que nos _Meus amores_ são descritas numa forma em
que se revelam todas as qualidades de um distinto e notável escritor.
Só pode apreciar bem o mérito daqueles contos quem souber quanto
cuidado há no labor paciente do artista para conseguir dar ao estilo o
tom de naturalidade e de espontaneidade, que se requer neste género de
pequenas novelas, talvez o mais difícil de todos.

Não nos demoraremos a falar dos _Meus amores_, que contém preciosas
jóias literárias, e ao qual está, sem dúvida, destinado um honroso
lugar na nossa literatura contemporânea.»


Correio Elvense:--«Trindade Coelho.--Este nosso amigo e festejado
escritor publicou agora o seu primeiro livro de contos e baladas que
deu o título: _Os meus amores_, editado pela acreditada livraria de
António Maria Pereira.

Trindade Coelho, que hoje ocupa um proeminente lugar no jornalismo da
capital, fez ainda há pouco algumas das suas melhores armas na imprensa
de Portalegre, onde criou dois jornais, um dos quais ainda vive, que
tiveram vida gloriosa enquanto os animou o trabalho do distinto
estilista.

Não só nos seus escritos passados, mas então, conhecemos o grande valor
que indiscutivelmente possui. Não nos surpreendem pois os seus
triunfos e rejubilamo-nos com eles com a alegria e sinceridade de bons
e sinceros amigos.

Num dos próximos números falaremos da impressão colhida em _Os meus
amores_.»


O Dia:--«_Os meus amores_.--Se fosse no século passado, os fazedores de
proémios, prólogos e conversações preambulares com os pios leitores, à
falta de jornalistas que noticiassem ou criticassem, por certo
aproveitariam a ocasião para sobre o nome do autor glosarem vários
elogios ao livro, visto que aquele se chama Trindade e é ao mesmo tempo
um poeta sincero, um escritor de raça, e um observador atento,
qualidades que se equilibram por tal sorte, que do conjunto nasceu uma
obra formosíssima, animada de verdadeira comoção, sentida nas suas mais
pequenas minúcias, sempre elevada, sempre humana e sempre artista.

A vida e a poesia trasmontana encontram-se a cada passo nesta reunião
de contos, que o Sr. Trindade Coelho dialogou com um cuidado meticuloso,
copiando do natural, e em que os personagens foram surpreendidos nos
seus labores de cada dia ou nas suas íntimas cogitações.

Não temos espaço nem tempo para nos alongarmos na notícia deste livro,
e por isso nos limitamos a recomendá-lo como leitura atraente, como
obra de arte tratada com esmero, embora nem sempre com a mesma igualdade
nem com o mesmo fôlego, como uma grande lição literária aos fazedores
de naturalismo brutal.

Ao autor agradecemos a remessa do seu livro, ficando fazendo votos para
que eles sejam tantos, que afoguem os autos e libelos em cujo meio o
magistrado tem de viver, e donde sai amiudadas vezes para nos provar
que quando se é artista lá de dentro, o contacto dos escrivães não
prejudica a índole do escritor.»


Novidades,(entrevista com João de Deus acerca dos
_novos_):--«_Literatura nova_.--Eu conheço limitadamente os novos,
porque não leio jornais, e não os leio porque os literários ocupam-se
na propaganda da imoralidade, e os políticos na propaganda do suicídio,
e na do jogo das lotarias, que seduz principalmente os enjeitados da
fortuna, mais sequiosos de domarem, num acaso da sorte, as agruras da
sua vida. E enquanto o rico joga o supérfluo, o pobre joga os trinta
réis de três quartos de um pão.

Mas aqui está o livro do Trindade Coelho, que me encheu de verdadeira
alegria! É um rapaz de talento! O que é preciso é que ele dispa a toga,
que lhe impede os movimentos. Não o conheço, mas dizem-me que trabalha
muito. Já leu o _Sultão_? Se ainda não leu, não o deixo sair de cá sem
lho ler.

--Li já todo o livro.

--E depois, meu amigo, nós andávamos precisados de uma coisa casta, onde
fossemos purificar o espírito dessas tais observações fisiológicas, e
não sei que mais, que por aí aparecem todos os dias. O livro do
Trindade Coelho tem o que eu chamo graça, e que não posso bem
definir-lhe. Olhe: ali está aquele quadro, em que os traços são
correctos e a execução perfeita, mas não tem graça; e aqui, este, uma
bela cabeça de rapariga, a fisionomia doce, o olhar abstracto: este
tem graça. Até a Virgem Maria se chama cheia de graça, e foi mãe de Deus
por ter graça. A graça na literatura é tudo, mas é muito rara.»


Novidades:--«_Novelas rústicas_.--Trindade Coelho.--_Os meus amores_
(contos e baladas.)--Lisboa, livraria de António Maria Pereira--1891.

No seu penúltimo artigo do _Temps_, dizia M. Anatole France, esse
céptico amável e pirrónico, que tem sido o terrível sapador de todas
as doutrinas axiomáticas da crítica: «Il y a beaucoup moins de lecteurs
pour les nouvelles que pour les romans, par cette raison suffisante que
seuls les délicats savent goûter une nouvelle exquise, tandis que les
gloutons dévorent indistinctement les romans bons, médiocres ou
mauvais.»

O conto moderno é como o romance, essencialmente analítico e
psicológico, escrito em estilo técnico, e destinado sobretudo a
apresentar uma imagem precisa de qualquer meandro torcicolado da alma
humana. A literatura contemporânea tem procurado, quase
invariavelmente, os seus temas entre os vícios, as paixões e todas as
energias depravadas do coração. A arte do Sr. Trindade Coelho é muito
diferente disso, porém. O seu idílico livro de contos e baladas,
aberto sobre um fundo de verdura reluzente, amorosamente evocado da
paisagem trasmontana, e habitado por heróis simples, colhidos com
intencional singeleza no meio do seu viver provinciano, não tem,
decerto, parentesco nenhum com os volumes carimbados com a etiqueta
actualmente em moda. É natural até que o leitor, habituado aos livros
dos escritores realistas, sinta uma profunda sensação de espanto ao
empreender a leitura dos _Meus amores_, duzentas páginas suaves e
simples, sem pedantescas pretensões a passarem como tratado didáctico de
psicologia.

Disse-se de Júlio Dinis que ele era principalmente um paisagista, e que
as suas figuras só serviam para dar expressão e vida à paisagem.

O Sr. Trindade Coelho possui, igualmente, a sensação visual
particularmente desenvolvida, e as suas descrições são também, como as
do autor das _Pupilas do Sr. Reitor_, magicamente poetizadas, como que
apercebidas de longe num esbatido vago de sentimento e de saudade.
Chega-se às  vezes a ter a ilusão de que o artista está ali, páginas a dentro
do seu livro, fazendo reviver no pensamento a álacre impressão
das madrugadas lactescentes e dos poentes doirados da sua aldeia natal,
cuja lembrança, ele conserva sempre viva, como nos versos de Salvador
Rueda:

Por donde voy me sigue como memoria tierna
tu imagen que en mi pecho conduzco en un altar;
¡y mi cerebro canta como una estrofa eterna
el coro que tus árboles entonan á la mar!

Aí têm, para prova, esse trecho de um descritivo de manhã aldeã,
quando o sol começa a subir na linha ainda indecisa do horizonte:

«A esse tempo, no céu alto e lavado a estrela da alva fenecera por fim,
e o horizonte começava de carminar-se ao de leve. Por todo o céu em
cúpula, a luz fresca e viva da manhã vibrava harmonias estranhas que iam
despertar tudo, a cor da paisagem e a música dos ninhos, cantigas de
perdizes e rumor de gente por moinhos e atalhos. Manhã de Verão, serena,
tranquila, dulcíssima. Ia pelo ar um movimento extraordinário de
asas--passarada alegre que saía agora dos ninhos e voava a matar a sede
à borda das ribeiras, andorinhas que deixavam as suas casinholas em
recôncavos de rocha e tomavam para hortejos convizinhos onde a vegetação
era mais rica de seivas e mais fácil a presa dos insectos, perdizes
gralhadoras que iam de monte em monte, tordos, poupas, melros. Nos
vinhedos das encostas, por entre os renques verdejantes, gente em mangas
de camisa ia fazendo as vindimas. Pelos caminhos em torcicolos, viam-se
os que desciam aos moinhos, tangendo machos carregados de taleigos, e
berrando-lhes cada _cho_! que se ouvia na outra ladeira. Já nas
povoações próximas, sinos chamavam para a missa de alva ou tocavam a
ave-marias. Nas quintas Casais fumegavam os tectos, dizendo horas de
almoço. De modo que o sol quando rompeu, solene e triunfante no céu
imaculado, encontrou muita vida pelos campos, toda a Natureza acordada
para a labuta interminável do dia.»


No notável estudo de psicologia literária de M. Fr. Paulhan sobre a
descrição pitoresca, então habilmente apreciados os elementos
constitutivos da pintura do meio, em todas as suas maneiras diversas na
qualidade e na intensidade.

«Chama-se imaginação sensível», diz o distinto observador, «o acto pelo
qual nós nos representamos um objecto ausente, e esta representação,
como tem sido há bastante tempo notada, não é,--principalmente se
considerarmos só certas classes de imagens,--senão uma cópia
enfraquecida de uma sensação. Por exemplo, se eu trato de me representar
um momento, um quadro, uma estátua, qualquer coisa que imagino, se as
minhas recordações são bastante nítidas, é uma espécie de cópia
enfraquecida da sensação que eu terei, se vi realmente o monumento, o
quadro ou a estátua. A imaginação, tomada até no sentido restrito que
lhe damos aqui, varia muito de uma pessoa para outra, quer em
intensidade, quer em qualidade. Por um lado, certas pessoas têm as
imagens, as representações muito mais enfraquecidas, mais vivas, mais
concretas; em uma palavra, as suas imagens aproximam-se muito da
sensação; outras, pelo contrário, são inclinadas para as ideias
abstractas e têm necessidade de um esforço para se representarem as
sensações de uma maneira um pouco nítidas. Tem-se reparado que a visão
mental, nitidíssima em geral nas crianças e nas mulheres, torna-se muito
fraca e por vezes desaparece nas pessoas preocupadas sobretudo de
ideias abstractas, ou habituadas a não exercer a sua imaginação visual.
Eis uma pequena experiência indicada por Wundt, que, mostrando as
analogias entre a imagem e a sensação, parece pôr em relevo também as
diferenças individuais com relação à intensidade com que a imagem
concreta é percebida. Sabe-se que quando fixamos o olhar por algum tempo
num objecto corado, se voltamos os olhos para uma superfície parda,
vemos uma mancha corada da cor complementar da primeira. Se o objecto
era vermelho, a mancha será verde, e reciprocamente; se o objecto azul-índigo,
a mancha será amarela, etc. Ora é possível, mas isto não
sucede a toda a gente, perceber esta cor complementar não só depois de
ter fixado um objecto corado, mas simplesmente depois de o ter
imaginado. Pode-se, por exemplo, pensar numa cruz vermelha: lançando em
seguida os olhos para um papel pardo, deve-se ver uma cruz verde, se há
uma boa imaginação visual.»

Essa imaginação parece tê-la o Sr. Trindade Coelho. A vivacidade,
tonificada quiçá por um poucochinho de nostalgia, do seu descritivo,
que nos dá conjuntamente a impressão da forma, da cor, do som, e até às
vezes do aroma, representa um fenómeno especial de evocação
sensacional. E o maior encanto da sua obra é esse, e, depois desse, a
íntima satisfação que faz aflorar, aos lábios do leitor inteligente, um
sorriso de doce comoção, a cada singelo episódio das suas narrativas,
todas frescas e sadias, e cujo menor mérito não é, decerto, o de serem
escritas numa linguagem airosa e despreocupada, mas tersa e
legitimamente portuguesa.

O livro do Sr. Trindade Coelho não é para ser sujeito a longas análises
introspectivas, o papel da crítica perante _Os meus amores_ é bem fácil,
porque ela deve quase cingir-se à afirmação do seu aplauso
incondicional, ou ao registo da repulsão do processo do escritor, o que
pode muito bem representar uma livre depravação de gosto.

Por mim confesso sinceramente que me deixou no espírito a mais amável
recordação, pura e oxigenada, a leitura dessas belas novelas
rústicas, todas impregnadas de uma ideal graça campesina, tilintando de um
eco amorável de arroio murmurante, que discorre mansamente por entre
margens baixas, bordadas de sécias e papoilas: e, para a minha
simpatia, desejo mencionar especialmente o conto que abre o livro e o
caso do _Sultão_.--_Armando da Silva_.»


Tim Tim Por Tim Tim:--«Um grande poder de observação e uma enorme justeza
de expressão, constituem, quanto a mim, as duas essenciais qualidades
literárias de Trindade Coelho, puras auxiliares da sua alma de
verdadeiro artista, aberta à compreensão ampla da natureza, e fundindo
os fenómenos, as coisas e as criaturas num conjunto nítido que se
desata em descrições opulentas de vida e de calor, fulgurantes
de energias dominadoras, pródigas de imagens que o melhor cristal de
Veneza não teria reflectido tão bem, avigoradas em onomatopeias
possantes que prendem o espírito mais inculto e o obrigam, ali, a fixar
e a compreender o objecto que o autor quis frisar.

E essas qualidades ressaltam brilhantemente de todos os contos que
compõem _Os meus amores_, realçadas ainda pela fina emotividade que o
delicado sentir do autor transmitiu a cada cena onde o coração tem
parte, ou seja o coração de qualquer daqueles dois pequenos do _Idílio
rústico_, ou o da _Ruça_, a bela cabra que no meio de mil angustias de
mãe morre junto ao filhinho. E se o querem surpreender a ele próprio,
a Trindade Coelho, em flagrante de uma ternura honesta, viva e sentida,
vejam o afecto que irradia daquele _Para a escola_, quando fala da
velha e boa criada que o levou ao mestre das primeiras letras.

Se das coisas afectivas, que mais o namoram, e das descrições
naturais, que mais o apaixonam, Trindade Coelho desce a brincar um
pedaço caricaturando uns tipos com tanta sobriedade de _charge_ que mais
nos parece estar fazendo retratos, saem-nos então figurões como os da
vilória da _Comédia na província_, que entretêm a tarde na praça a
dizer mal uns dos outros. Tão verdadeiro nos _croquis_ como nos hábitos.
E quando aos tipos pode juntar um estudo de costumes, aquela _Véspera
da festa_ exemplifica vantajosamente o que ele sabe fazer.

No fim do livro, foi para mim surpresa aquele excerto das _Batalhas
domésticas_, onde me pareceu descobrir uma novíssima orientação do
autor, inspirada porventura numa atmosfera densa de inovações que vai
por aí. Claro que o seu talento adapta-se mais essa forma com a
maleabilidade com que a tudo se sujeita, mas se eu tivesse a
característica literária de Trindade Coelho, evidenciada em tantos
escritos, não a sacrificaria a coisa alguma.

O que o livro é, em suma, é um conjunto de belezas que tem sido
largamente apreciado pelos fanáticos da Arte; e oxalá seja apenas a
promessa de muitos outros, que penas como aquela não devem
calotear-nos na contribuição que nos devem.

--Mas,--perguntou-me um dia destes alguém--porquê _Os meus amores_, e
não qualquer outro título?

Não respondi. E demais eu sei porque deu Trindade Coelho esse nome ao
livro onde há tantos trabalhos de tempos que lhe são saudosos e em que
lhe foi grande parte da alma, da sua bela alma de rapaz que nenhuma
lama deste mundo é capaz de conspurcar.--_Santos Gonçalves_.»


Revolução de Setembro:--«_Os meus amores_, contos e baladas por
Trindade Coelho.--Um livro peregrino, que se lê com encanto e que nunca
mais se esquece. É um talento e é um artista quem escreve assim. Uns
contos singelos, atraentes, delicadíssimos, admiráveis de observação e
de honesto realismo. Esbocetos apenas; mas que admirável simplicidade de
colorido em alguns deles e que tons inapagáveis de verdade!

Uma bela obra de arte e uma altiva lição.

Ali está como se pode chegar ao naturalismo na literatura, sem
estropear a língua e sem chegar às  torpezas da pornografia. Para
atrair, para ser original, para impor a supremacia do seu talento,
para conquistar o aplauso sincero dos que lêem, Trindade Coelho não
precisou de escrever extravagâncias, nem de escalavrar pústulas, nem de
escancarar bordéis.

Aí fica uma rápida notícia do livro. Voltaremos a falar dele, se o
tempo nos chegar para a homenagem que desejamos prestar ao seu autor.»


Correio Elvense:--«_Os meus amores_.--Com poucos dias de intervalo as
letras portuguesas contaram dois ruidosos sucessos de livraria.

Depois de apreciar o _Barão de Lavos_, obra de análise, de profunda
observação, ressentida do exagero do naturalismo e do carácter quase
científico que actualmente se pretende imprimir aos livros, que devem
ser exclusivamente literários, mas que, não obstante este pequeno
senão, confirmou plenamente todas as esperanças que o nome de Abel
Botelho criara com os seus livros anteriores, a crítica tem de render
respeitosa homenagem ao trabalho de um outro escritor novo como aquele
e como ele igualmente distinto pelos brilhantes dotes do seu espírito,
pela sua notável orientação literária e pelo esplendor de forma que
caracteriza todos os seus escritos, mesmo os mais despreocupadamente
feitos.

Sinto um delicioso prazer de consciência ao traçar estas linhas.
Momentos como este são mesmo os únicos oásis em que se reconfortam os
que, dia a dia, esgotam o melhor das suas faculdades na faina
improdutiva e inglória do jornal.

Trato de apreciar o trabalho de um amigo, de alguém a quem me unem
íntimas relações de confraternidade e simpatia e ao ter de formular o
meu juízo conheço que posso manifestar o mais incondicional louvor e
aplauso sem que se suspeite que as minhas palavras são reflexo de um
sentimento pessoal, mas sim a expressão exacta e verdadeira de uma
admiração justamente sentida, solidamente baseada.

O livro a que me refiro intitula-se: _Os meus amores_. E em tudo
corresponde ao encanto deste título.

Com que saudade li as últimas páginas!

Por vezes desejava espaçar essa leitura para demorar o delicado prazer
que sentia, noutras precipitava-a sôfrego de admirar a naturalidade
das descrições, a limpidez e o cristalino do estilo emocionante e
simples, tão delicado e ao mesmo tempo tão poderoso que dá vida aos mais
diversos sentimentos desde o pavor do remorso do assassino José Gaio,
até à recordação saudosa e terna que o autor sente do primeiro dia em
que entrou na aula de instrução primária da sua modesta aldeia.

Dando a impressão singela e despretensiosa que me causaram _Os meus
amores_, não vou referir-me demorada e especialmente a cada um dos
pequenos quadros que formam esse livro verdadeiramente consolador. Na
época actual quando os vícios da sociedade e a decadência dos nossos
dias nos gravam no espírito, a cada hora, um carimbo de desânimo e
descrença, quando a literatura, obedecendo à vertigem mais do que
nervosa, alucinada, que caracteriza o _fin de siècle_, cria as escolas
mais extravagantes que se comprazem em baralhar todas as ideias, em
apedrejar as normas mais impecáveis e até agora consagradas da arte, e
em descrever todos os aspectos da natureza com as palhetas mais escuras
e muitas vezes asquerosas, sente-se conforto, adquire-se ânimo,
desanuvia-se o espírito ao ver que ainda há alguém, a quem sobeja
talento e tenacidade, que escreve 200 páginas de prosa sã, eminentemente
sentida, deliciando-se na descrição das cenas mais simples e tocantes,
na apoteose da natureza em toda a sua magnificência e no convívio da
vida campesina, tão cheia de sinceridade e de encantos, tão livre das
convenções e pretensiosidades que dão um tom falso e mentido aos
sentimentos da sociedade em que vivemos.

Disse em cima que não me alongaria no esmiuçar de perfeições de cada um
dos contos e baladas que formam _Os meus amoes_. Não representa este
propósito ideia de menos consideração pelo livro ou por quem com tanto
amor o escreveu. Ao contrário, sinto que não posso, a não transformar
este artigo num hino laudatório, referir-me especialmente a cada um
daqueles contos e baladas. Mais do que este motivo domina-me o de não
poder alongar demasiadamente a apreciação que estou fazendo.

Muitas das páginas que Trindade Coelho reuniu no seu livro já as
havíamos lido e simultaneamente admirado, publicadas em diferentes
jornais. Como escritor conhecíamos também o primoroso estilista dos
_Meus amores_ pelos seus trabalhos jornalísticos, já na boémia coimbrã,
já em pequenas folhas de província e ultimamente nos jornais da capital,
trabalhos em que ele empregava o escrúpulo e a correcção que nunca
abandonam os verdadeiros artistas.

Pelos seus trabalhos literários há muito que formara a opinião de que
ele se podia alistar sem desdouro ao lado do Conde de Ficalho, de
Fialho de Almeida e de Teixeira de Queirós que, no meu parecer, são, em
Portugal, os mais distintos escritores contemporâneos deste género,
na aparência tão ligeiro, mas no fundo tão complexo e difícil, a que
se denomina: _Contos_.

A leitura do recente livro enraizou-me mais a opinião formada.

Pelo sentimento descritivo, pela verdade dos _tipos_, pela naturalidade
do diálogo, e pela modalidade do estilo que se apropria sem o mínimo
esforço a todas as impressões que pretende transmitir, o autor dos
_Meus amores_ prova que não desconhece nenhum dos segredos do género de
literatura que tão brilhantemente cultiva, e que não é inspirada na
amizade a opinião dos que, não obstante ele terçar agora quase as
primeiras armas, o consideram já como um escritor distintíssimo e num
futuro muito próximo um mestre consagrado.

O livro abre com um soneto formosíssimo e nem podia deixar de ser assim
desde que se saiba que o firma Luís Osório. Pórtico apropriado às
belezas que nas páginas que se seguem se acumulam com uma riqueza
oriental.

Não obstante o meu propósito de não me referir nomeadamente a nenhum dos
pequenos quadros, não posso deixar de dizer rapidamente da impressão que
me causou a _Última dádiva_, um primor de sentimento, uma página emotiva
arrancada em flagrante a uma das cenas em que tão variadamente se
divide a tragédia em que se debate a humanidade; o _V[ae] victoribus_,
onde passa um fôlego de epopeia, em que o estilo atinge alturas quase
desconhecidas, casando-se com uma verdade admirável a grandiosa ideia em
que se inspira o conto; _Para a escola_, quadro delicioso a cuja leitura
cada um de nós sente acordar uma recordação muito querida de infância
descuidada e alegre, e por últimos: os _Arrulhos_, em que Trindade Coelho
ostenta gloriosamente todas as qualidades do seu estilo tão maleável e
tão justo.

Além destes contos, que especialmente destaco pela admiração que me
inspiraram, são modelos de humorismo e de verdade os dois _Prelúdios de
festa_ e _Tipos da terra_.

Quem escreveu os _Prelúdios de festa_ e especialmente os _Tipos da
terra_, é porque estudou com muita atenção, com muito cuidado, os
personagens que mais avultam na vida das nossas aldeias e terras
pequenas. São tipos tirados do natural, com uma perfeição fotográfica
em que Trindade Coelho denota o mesmo rigor de execução que demonstra na
descrição da natureza nos seus mais variados aspectos.

Por últimos, e para não se dizer que eu neste país de má língua realizei
o cúmulo de escrever um artigo só de palavras encomiásticas e sem a
mínima censura ou reparo, devo dizer que não gostei do _Sultão_,
lastimando que Trindade Coelho gastasse tantas páginas de um estilo
formosíssimo num assunto que sem dúvida é verdadeiro, mas que não
comove o leitor, nem lhe imprime, pelo menos assim o julgamos, a mínima
impressão duradoura. Para Trindade Coelho manifestar todos os seus
recursos de estilista, não precisava realmente do _Sultão_.

O livro faz parte da edição mensal de obras portuguesas, editada por
António Maria Pereira, um trabalhador incansável a quem as letras
portuguesas devem assinalados serviços.

Está impresso com o maior escrúpulo e revisto com um cuidado e esmero a
que nem sempre estamos habituados.

Terminando estas linhas tão despretensiosas como sinceras, fazemos votos
para que Trindade Coelho possa continuar a furtar algumas horas à
sensaboria dos autos e a deliciar-nos com novos livros, tão perfeitos
como este, para honra do seu nome de escritor já tão justamente
laureado, e agradecemos ao amigo a oferta do seu livro, arquivando a
dedicatória que ele contém como nova prova de uma amizade a que somos
profundamente gratos, e devotadamente retribuidores.--_Lourenço
Caiola_.»


Tribuno Popular:--«_Os meus amores_.--Recebemos o volume da _Colecção
António Maria Pereira_, que sob aquele título contém alguns contos do
apreciado contista Trindade Coelho.

Pela rápida leitura de dois deles--_O Sultão_ e _Tipos da terra_,
parece-nos que a colecção é estimável, e que os contos são jóias de
grande preço da nossa literatura, pela linguagem pura genuinamente
portuguesa, e pela graça da contextura originalíssima, nacional, sem
laivos de imitação estrangeira, em que se pintam cenas e episódios,
cheios de verdade e de encantadoras descrições, da vida portuguesa nas
províncias.»


O Século:--«_Os meus amores_, por Trindade Coelho.--É um livro de
contos, editado pela casa editorial do António Maria Pereira, a
publicação recente que mais tem emocionado, com justo motivo, o nosso
meio literário, bem pouco acaroável e mazorro no fundo,
sobressaltando-se com tudo quanto perpetra o escândalo de não ser
rotineiro, ou vulgar, e bem pouco emocionável também--diga-se a verdade.

Parece uma contradição; mas não é. Se o nosso bom público fosse dado a
esbanjamentos de emoção artística, não o sobressaltaria tanto a
pessoalidade, e o imprevisto.

O Sr. Trindade Coelho acumula com o seu cargo oficial de magistrado
severo, a profissão, ou antes o desenfastio espiritual de ser homem de
letras, nas suas horas de remanso.

É só, porém, como homem de letras, que nos compete em tal lugar
aquilatar-lhe a estesia, e as faculdades de emoção, ou de atenção
artística.

Ambas estas possui o Sr. Trindade Coelho, em subido grau. A forma
adapta-se perfeitamente ao fundo, e é sempre fluente, vernácula,
concisa, e precisa. É sóbrio no descritivo, e não raras vezes
enternece. Não comete a velharia de desenterrar obsoletos termos
clássicos, sem incisão, sem propriedade, e sem cor, muito parecidos com
o latim, mas que no fundo não são nem latinos, nem portugueses, nem
onomatopaicos, e que fizeram a delícia de Filinto. Nem perpetra também o
mau gosto de empregar neologismos inúteis, e risíveis, possuindo na
linguagem pátria instrumentos magníficos de expressão. Sabe a sua língua,
como raros: e o conto, que é, quanto a nós, a forma mais perfeita, mais
completa, e mais delicada da prosa, e também a mais transcendente e
lapidar, achou nele um hábil e equilibrado intérprete. Os contos
_Sultão_, _Maricas_, _Tipos da terra_, _Mãe_ e sobretudo _Para a
escola_, não contam muitos rivais na língua portuguesa nem nas
estranhas.

O seu pequeno livro há-de ficar na literatura nacional, quando de
centenas de romances em seiscentos volumes já ninguém rememorar o título
sequer.--_Gomes Leal_.»


Revista Ilustrada:--«_Os meus amores_, de Trindade Coelho.--Que
deliciosa impressão me deixou aquele livro, tão adoravelmente simples e
sentido!

Antes, porém, de começar a analisar, conto por conto, esse fino trabalho
de Trindade Coelho, preciso dizer duas palavras explicando a razão
porque me merece tanta simpatia o seu autor, que de nome conheço só.

Li pela primeira vez o seu nome em umas correspondências de Portalegre,
notavelmente bem feitas, e em que ele elogiava muito um pequenito,
distinto em todos os exames.

Aqueles adjectivos de amigo bom e entusiasta fizeram-me convencer de
que--o delegado de Portalegre--era um excelente rapaz.

E digo rapaz, porque todos nós temos o hábito de considerar sempre muito
novos aqueles que são da nossa idade... Depois, graças a uma amiga
minha, escritora de grande talento soube que Trindade Coalho era um
grande admirador de Loti--o meu preferido romancista!--admiração
entusiasta que ele descrevia em cartas deliciosas de uma vibração que
fazia pena não ser repercutida mais longe... Fazia pena ser indiscrição
publicá-las!

Traduzia ele então o «Pescador de Islândia»; tradução esplêndida que a
_Gazeta de Portalegre_ publicou e que o trazia _empoigné_. Para ele era
já uma sugestão, aquele trabalho primoroso.

E desde então, Trindade Coelho ficou sendo para mim um artista. Dava a
Loti todo o valor que ele tinha e que ultimamente alguém se comprazia
em querer negar ao académico gentil.

Em seguida li uma suavíssima elegia escrita à memória de António
Fogaça--uma flor ceifada ao desabrochar!--Eram meia dúzia de palavras
cortadas por soluços:--eu sei, infelizmente, quando se escreve assim!...

Finalmente, o seu nome vibrou de novo aos meus ouvidos, quando os
jornais anunciaram que ele arrancara um preso à cadeia de Portalegre.
Um preso que era um inocente, e que, como tantos outros, estava
condenado a ouvir soar, em vida, a hora da justiça... Publicavam também
o efusivo telegrama em que Trindade Coelho agradecia ao nosso
magnânimo rei o seu perdão.

E eu dessa vez chorei! Como me sucede sempre que um homem põe a
lucidez do seu talento e o entusiasmo do seu coração ao serviço da
humanidade que sofre...

O nome do dr. Trindade Coelho gravou-se então indelevelmente na minha
alma.

Eu só fixo o nome dos bons.

E pensei em que devia ser uma grande mulher a mãe daquele homem! Os
filhos herdam, geralmente, o coração das mães...

       *       *       *       *       *

Ultimamente a imprensa anunciou o livro que acabei de ler. Pedi-o
rapidamente para Lisboa, e li-o de um fôlego.

Abre com um soneto delicioso, escrito pelo espírito gentil de Luís
Osório--uma alma luminosa, que brilha na transparência dos seus versos
filigranados e vibrantes...

Segue-se o _Idílio rústico_--um amor--através do qual nós vemos subir
lentamente a estrela da alva que iluminava, coando a sua doce luz pelo
colmo da cabana, duas cabecinhas gentis, adormecidas junto uma da
outra...

Depois o _Sultão_ um conto singelíssimo cheio de naturalidade, em que o
Tomé nos comunica a sua alegria contagiosa levada à loucura com a
volta do... amigo--bem mais fiel do que muitos outros!

A _Última dádiva_, um braçado de goivos atirados por «um simples» a uma
sepultura onde lhe ficara preso o coração para sair de lá no dia em que
teve de se diluir, na esteira do barco que lhe levara o filho para o
Brasil.

A _Comédia da província_, magnifica de cor local. Magnífica,
principalmente para quem conhece tipos semelhantes e já tem visto a
_Morgadinha de Valflor_--essa pérola!--representada pelo Marques do
correio... vestido de saias! Para quem dá todo o valor a esse esplêndido
estudo de costumes provincianos.

_V[ae] victoribus_, uma sugestão de remorso primorosamente traçada...
_Maricas_, uma adorável poesia escrita em prosa. _Para a escola_, um
beijo de gratidão de uma singeleza adorável. _Tragédia rústica_, um
vibrantíssimo estudo das misérias humanas.

_Abyssus abyssum_, o agonizar de dois anjos, sob o olhar de uma
estrela... _Mãe_, a flor mais linda do ramo, enlevo e agonia de todas
as mães que eram capazes de morrer assim--sem abandonarem os filhos...
E, finalmente, as _Batalhas domésticas_.

Repito, deixou-me uma impressão deliciosa o livro de Trindade Coelho,
que é, a par de um primor de delicadeza, sentimento e arte, um livro
honesto, que não fatiga os homens nem faz corar as mulheres. Por isso
aconselho a todos que o leiam.--_Margarida de Sequeira_.»


Portugal:--«_Livros Novos_.--A acolhida feita ao notabilíssimo livro
_Os meus amores_, do nosso querido amigo e ilustre confrade, Trindade
Coelho, tem sido a que em tempo lhe vaticinámos: em toda a linha o mais
legítimo, o mais espontâneo, o mais unânime e o mais carinhoso triunfo.

Bem o merece o cristalino talento, e a inelutável tenacidade no
trabalho, do brilhante escritor, que em meio dos violentos paroxismos
que na caça de sensações e efeitos novos hoje pavorosamente
desarticulam o _meio_ literário europeu, tem uma força de restringir-se
a soltar suavemente, com uma sobriedade campesina e tranquila, a
melodia emocionante, ingénua e simples do viver aldeão; e que por entre
o estrídulo _hallali_ de obscenidades, imprecações, blasfémias, dores,
gemidos, que doloridamente reboam pelas soturnas naves deste imenso
hospital, que é o mundo, ainda encontra a suprema arte de fazer escutar,
enternecedoramente, um doce _trillo_ sentimental, uma ou outra ligeira
nota afectiva, algum limpo e cativante movimento do coração.

Bem-haja.

Do coro uníssono de quase incondicional aplauso com que a imprensa tem
celebrado a aparição d'_Os meus amores_ transcrevemos hoje um magnífico
artigo do _Correio Elvense_, devido à pena de um dos mais lúcidos e
impetuosos engenhos da novíssima geração.» (_Seguia-se a transcrição._)


Diário Ilustrado:--«_Os meus amores_, contos e baladas, por Trindade
Coelho.--A forja do tempo caldeia-nos o espírito à proporção que
envelhecemos. É por isso que os rapazes se desdoiram às  vezes de ouvir
os velhos, e parece-me que têm razão, porque nem sempre o são juízo de
uma experiência larga, sabe limar as arestas da caturrice no estudo
circunspecto... Eu tenho acompanhado, cantarolando e um pouco a rir com
singular cepticismo, este meu século, que está no fim, e com ele tenho
vindo estudando e aprendendo. Ruíram as teocracias literárias,
revoluteou-se a filosofia, criaram-se novos processos de estilo,
arrancou-se o chiró às  velhas frases, e todo um mundo novo,
extravagante e fantástico tem surgido,--mau grado as fúrias rábidas de
escritores paleontológicos, aparafusados à Arte e à Crítica de há 50
anos e cheios de amor e melancolia... Ora essa aprendizagem do meu
século tem-me custado amarguras aterrantes, desequilíbrios de espírito e
um desfolhar de verdes ilusões, que eu tenho visto irem-me fugindo num
_marche-marche_ triunfal, para nunca mais voltarem,--ai! para nunca
mais voltarem!...

A vida do escritor moderno, toda torturante e nevrótica, dá-me a
impressão tenebrosa dos contos de Poe, postos palpitantemente na vida
real de nossos dias. E lembro Camilo pedindo ao pedaço de chumbo de uma
cápsula o ponto final redentor de agonias crudelíssimas; Júlio Machado,
de pulsos cortados, fitando com olhar sangrento o retrato bem amado do
filho,--a alegria ruidosa dos olhos da sua alma,... e quantos outros,
bom Deus! Dir-se-ia que uma _má sina_ persegue os homens de
letras:--quando não é a navalha de barba, é o revólver, é a consumpção,
é a tísica, é o retraimento amargo, é o abandono próprio e alheio! Por
isso o meu vizinho Gervásio todo se ufana, com certo profundo bom-senso
prático, da insistência com que quer fazer do filho um _artista_
pintor--de portas, e de fora de portas...

Na _troupe_ de escritores em flor do meu tempo,--parece-me que já lá
vão 30 anos, e tudo isto é apenas de ontem!--havia, joeirados com
singular amor de arte pura, uma dúzia de rapazes de incontestável valor
literário, desabrochando esbanjamentos de talento pelas gazetas e
revistas mundanas. Poetas e prosadores, contistas e dramaturgos,
miniaturistas da poesia, do romance e da crónica, dessa plêiade de
rapazes, um tanto insubmissos e um tanto boémios, alguns treparam
triunfantes,--poucos; outros, quase o resto, ou foram ainda verdes da
vida para os cemitérios das suas aldeias, ou, o que é quase o mesmo,
deram-se a calejar as mãos, dissolvendo as suas aptidões de plumitivos
incipientes, nas minas de oiro e de ferro da luta pela vida. Dos
_felizes_, dos que triunfaram,--como quem diz, dos vencidos da
vida,--me sorria eu às  vezes em horas de bom humor, lembrando-me como
eles com um livro de versos foram nomeados cônsules; com um tratado
sobre a cultura do repolho abriram o _Banco Mineral do Douro_, por
acções; com um drama em _D. Maria_ foram eleitos deputados; ou como com
uma crítica do _Salon_ de S. Francisco, se guindaram a bibliotecários
das belas artes e hortaliças correlativas... Dos outros, dos _perdidos_
pouco me lembra! Eduardo Salamonde foi-se a espantar os filisteus do
Pará, aplicando-lhes aos fígados hipertróficos a vermelha caudal da
sua prosa mirabolante; Xavier de Carvalho desapareceu em Paris pelo
alçapão macabro da _correspondência_ barata; Gualdino Gomes anda aí
amparando o seu reumatismo a uma certa _maneira_ de má língua e a uma
bengala de cana; Leopoldino Gonçalves viaja como médico da armada; e
Fortunato, quando as saudades lhe são mais amargas, abandona o Alentejo,
onde toma pulsos a doentes pela tabela da Câmara, e aparece às  vezes
nédio, cor de fiambre, cheio de barbas, a olhar com tédio os copinhos de
cognac do _Leão_...

De todos os rapazes do tempo das minhas alegrias cor-de-rosa, o que me
traz mais doces recordações é Trindade Coelho,--porque eu ligara à minha
a alma dele, num tempo em que dos salgueirais de Coimbra ele me
fazia para uma folha alegre de que eu era director, umas crónicas
soberbas, vivas, rendilhadas, cheias de colorido e de afirmações de uma
personalidade literária. A sua prosa, a um tempo humana e lírica,
dava-me a impressão de um romantismo degenerado... De Coimbra, como
sabem, além de bacharéis anónimos, tem-nos vindo a _elite_ das letras. É
da tradição universitária, fazerem os doutores as suas primeiras armas
de literatos e de poetas, na academia, a intervalos do pesado estudo
do Lobão e do direito público, esvurmado às  cavaleiras do nariz de
Pedro Penedo... Toda a nossa legião distintíssima de poetas e
prosadores modernos deriva literariamente da boémia
coimbrã:--Teófilo, Eça, Junqueiro, João de Deus, Antero, etc. É a
afirmação do bom António Ferreira feita axioma:

     _Não fazem mal as musas aos doutores_.

E não fazem. Tem-se visto. Vão lá inquirir a Junqueiro das belezas do
Código Civil, meio metafisicamente original e meio copiado dos códigos
de Napoleão! Ah, mas em compensação que apareça aí o primeiro advogado
a escrever a _Morte de D. João_ e a _Musa em férias_!

Os cantos de Trindade Coelho são narrativas ligeiras, descrições numa
bela prosa colorida e transparente, trechos de psicologia trasmontana,
e um ou outro caso humano superiormente observado. Sobretudo a _maneira_
do proceder literário deste escritor é deliciosa de cor e de verdade,
sem grandes esmerilhamentos de frase, nem deslumbramentos de imagens na
aparência cor de oiro, que, em regra, não fascinam senão os saloios
ingénuos dos cordões de latão... Tem-se chegado aí, no abuso da
originalidade do estilo, a fazer uma prosa estrelicada, engomada,
cabelinho à banda, com risca, como os caixeiros de modas ao domingo! O
burguês já conhece os processos da _chinoiserie_, e daí não há
espantá-lo com nefelibatismos doentios, de importação barata; bem sabe
ele que debaixo dessas belezas está a oleografia reles de porta de
escada, da sultana escarlate que apara as unhas, ou do frade que enxota
a mosca do nariz,--muito de apreciar nos covis da municipal em
Alcântara...

O livro de Trindade Coelho tem um certo ressaibo de saudável trabalho,
feito com honestidade e sem as preocupações deploráveis que levam os
corifeus da escola moderníssima, mais que zolaísta, à descrição e
estudo de patologias e casos esporádicos, ou não vivos, ou pouco
vívidos. Este livro é quase um parêntesis aberto como uma clareira
consoladora na torrente ultra-realista dos últimos trabalhos
aparecidos, do _sujet_ de um dos quais, que é em todo o caso a
monografia de um carácter, assombrosamente executada, o _Gil Blas_
dizia,--_qu'on ne peut lui serrer la main que par derrière_...

A feição literária de Trindade Coelho parece-me que se define na parte
do livro subtitulada _Baladas_. Os _Arrulhos_, principalmente, são uma
dúzia de páginas encantadoras, que lembram Droz e Daudet. É uma
elegia... trágica, _encadrée_ numa linguagem cor de opala, em que a
gente parece estar vendo Hoffman braço dado a... João de Deus! É uma
obra-prima. Assim a _Tragedia rústica_ e a _Mãe_. Dos _contos_ destaco
eu os _Prelúdios de festa_, _Idílio rústico_, os _Tipos da terra_, onde
há páginas soberbamente observadas, sugestivas, _d'après nature_.
Magnífico o assassino _José Gaio_.

Trindade Coelho é inquestionavelmente um lírico. E nem eu sei como ele
chegou até aqui sem trazer na mala um volume de versos--_Florinhas de
Luar_, por exemplo! Devemos-lhe o grande favor de não conhecer os
dicionários de rimas, senão a estas horas era uma vez um contista
encantador... soçobrado!--_Inácio da Silva_.»


Nova Alvorada:--«_Meu caro Trindade Coelho_.--Sabe você, amigo Trindade,
que as palavras afectuosas que me endereçou no oferecimento do seu
livro _Os meus amores_, vislumbraram no meu espírito um mundo de
saudosas recordações, como se foram fugazes emanações balsâmicas de uma
quadra primaveril que não volta mais--a vida coimbrã?

Parece-me que tenho ainda presente na retina a sua figura um pouco baixa
mas robusta, as _suas feições másculas e enérgicas_, e a sua _allure_ um
pouco receosa ao dobrar a soleira da legendária Porta Férrea.

Com o seu olhar penetrante e incisivo, mas velado por umas lunetas de
grau apurado, sob a pasta de um quintanista, mirando à direita e à
esquerda, entrou você nos _Gerais_ resignado a um dilúvio de troças,
martírios, horrores...

Os segundanistas, de cuja respeitável corporação eu fazia
orgulhosamente parte, não o arreliaram logo, talvez porque lhe não
encontrassem uma fisionomia de chuchadeira, como a de um Armelim, nem um
rosto gretado, empedernido, de homem terciário, como o do bom Rafael do
Ranhados.

Mas em que diabo foram eles depois embicar, os malvados!

Em uma medalha de oiro que você trazia, à guisa de berloque, na corrente!

O amigo arrancou pressuroso a _pedra de escândalo_, de forma que a
tempestade de piada desanuviou-se a tempo no seu horizonte de novato.

Depois, um ou dois anos, aparece o amigo com acentuações de académico
falado, o seu nome a salientar-se das vulgaridades escolásticas, a sua
individualidade a destacar-se, como se fora um _urso_. E assim se
falava do Trindade, como do Luís Osório ou Feijó por causa dos versos,
do Pássaro pela fina chalaça, do Saraiva pela força, do Miguel
Baptista--pobre amigo!--pelo talento e pelas abstracções, do Banalidades
pela gralhadora loquacidade, e tutti-quanti.

Você desencubou o seu nome, pô-lo em evidência--o Trindade--, mas foi por
causa de um excelente resumo das lições de direito romano, de um belo
discurso no centenário pombalino, e sobretudo das suas graciosas
crónicas no _Diário Ilustrado_.

Ah! e lembra-se você daquele ano em que formámos «república» na Rua
da Trindade, tendo por criada a Sr.^a Maria de qualquer coisa, que
denominávamos a _Gorda_, matrona muito caroável e de enxundiosas formas?

Éramos uns poucos:

O Sousa, que já tem o galão branco dos tribunais administrativos,
espírito fácil, perspicaz e alegre, nada para maçadas, que tinha
orientações definidas em política partidária e expedientes reservados de
galopim graúdo contra os progressistas da Barca.

O Manuel Nunes, hoje em Barcelos, muito lucianista, devorando o
evangelho do _Correio da Noite_, sempre em questiúnculas com aquele por
causa dos seus ideais políticos encontrados, grande passeador e jogador
de manilha, um tanto lambaz porque saía mais cedo e sorrateiramente dos
teatros, dizia-se, para comer a ceia dos retardatários, guardada pela
_Gorda_ num cantinho do fogão.

E o Figueiredo que se ria pelos olhos e pelo hirsuto bigode quando lhe
chamávamos o Pegas, o Covarruvias, e lhe líamos um imaginário plano,
rigoroso e draconiano, de reforma dos Estatutos da Universidade? Muito
desconfiado e estudioso, só não encavacava quando lhe dizíamos que ele
se aplicava... 25 horas por dia!

Depois o Rocha Peixoto, o Bicho, de aspecto _sournois_, olhos à bufo, que
não falava ainda que o esmurrassem, pobre caloiro silencioso e
contumaz!

Em seguida o Sérgio Carneiro, o Grilo, seu comprovinciano e hoje
conservador algures, com cara de cera, esboçada, sem feições lavradas,
muito guitarrista e risonho, se bem que inteligente e aplicado.

Éramos mais--você e eu. Você que se metia muito com a literatura,
fechado no quarto, lendo... lendo... escrevendo...; e eu, que por sinal
dediquei um fado aos membros da república, o qual nas vésperas de
feriado se cantava, em algazarra tonitruante, quando o Grilo
condescendia em o acompanhar na guitarra.

Depois de 1883 creio que nunca mais nos vimos. O amigo marchou mais
tarde para Sabugal e eu para Cuba, e hoje está nos tribunais de Lisboa e
eu no berço da monarquia.

Agora vejo-o, literato conhecido e conceituado, a publicar os seus
belos contos em um elefante volume--_Os meus amores_.

E belos na verdade, como todos dizem.

A _Mãe_, aquela cruciante tragédia da pobre _Ruça_, morta de terror e
de amor, é para mim o mais apreciável e sentido conto da sua colecção.

Costuma-se dizer de uma mãe descaroável, de uma Francisca Fortunata--é uma
cabra!--; mas o amigo teve artes de desmentir o erro grosseiro, vingando
as caluniadas afeições dos pobres ruminantes.

Quem ler as angústias da mísera _Ruça_, na expectativa do filhito
devorado pelo esfaimado lobo circunvagante, restituirá àquele
inofensivo animal o sentimento de amor maternal, a natural compreensão
das suas obrigações de mãe e protectora.

E os _Arrulhos_? Se me não engano você escreveu esse conto em Coimbra.
Creio até que um dia, estando a jantar, o amigo recebeu um jornal
qualquer de Vigo, Corunha ou Pontevedra, em que a sua bela produção
vinha traduzida no idioma de Cervantes com o titulo de _Palomas_.

Nos restantes contos, entre os quais me não agradaram menos _V[ae]
Victoribus_, o _Abyssus abyssum_ e o _Sultão_, revela o amigo a força da
sua educada fantasia, moderada por um largo pecúlio de observação; a
sua poderosa intuição artística; o seu diálogo curto, vibrante e
natural; o seu estilo já característico pela feição franca, _saccadèe_,
de dizer e narrar; a propriedade das locuções; o bom emprego dos termos;
a verdade das suas descrições e pinturas, que, ao contrário de muitos,
não repete, tinta para aqui, tinta para acolá e vice-versa, numa
pobreza reles de palheta, que faz lembrar casacos virados ou coisa
semelhante.

Olhe, amigo. Eu careço de jeito para a crítica literária; mas, enquanto
me é licito exprimir a minha humílima opinião, dir-lhe-ei que você
alarga cada vez mais e com mais rapidez a sua reputação de literato
distinto e de contista precioso; e que este conceito é merecido,
atestam-no os seus valiosos escritos dispersos e a sua elegante
brochura recém-editada.

Resta-me felicitá-lo cordialmente, amigo Trindade, a agradecer-lhe a sua
fineza com um abraço de--Velho amigo--_Eduardo Carvalho_.»


Nova Alvorada:--«_Os meus amores_.--Acabamos de ser distinguidos com a
oferenda do novo livro de Trindade Coelho,--o simpático e distinto
escritor que de há tempos se vai honrosamente evidenciando no certame
das letras pátrias, onde já agora a sua individualidade tem uma
reputação firmada.

_Os meus amores_ é o título que o Sr. Trindade Coelho escolheu para o
seu livro de contos e baladas, e se assim lhe chama, segundo cremos,
não é porque estas 200 páginas sejam um auto-historiográfico dos
idílios romanescos do autor, naquela áurea quadra da sua vida
académica, ou um repositório de alheias aventuras amorosas com
acompanhamento obrigado ao bandolim do trovador lendário.

Não. A razão do título parece-nos antes proceder da afectividade
psicológica do autor para com a sua obra, e induzimos isto do soneto
com que Luís Osório prefacia o livro, e cuja primeira quadra diz:

_Folhas dispersas dos meus anos de ouro,
Vivo enxame das minhas alvoradas,
Tenho zelos de vós, folhas sagradas,
As Desdémonas sois de um outro mouro_.

Se não fosse assim, afirmar-se-ia mais uma vez a verdade do
aforismo--o hábito não faz o monge--, porque o _Idílio rústico_, com que
abre esta bela colecção de contos, não seria bastante para justificar
o título sob que se enfeixam.

Mais que o idílio, preponderam no correr do livro a comédia, o drama e a
tragédia: e basta percorrê-lo em rápida leitura, para averiguar-se que
se há na urdidura dos vários contos muitas situações que nos pintam o
ridículo, a desgraça ou o crime, poucas há, entretanto, que nos prendam
o espírito ao devaneio piegas de um Romeu e de uma Julieta.

Mas, ou bem ou mal baptizado, o que é consoladoramente verdadeiro é que
os contos do Sr. Trindade Coelho constituem uma das mais belas
colecções que no género conhecemos.

Uma urdidura fácil e clara, movimentada em harmonia com os melhores
preceitos da arte.

Uma linguagem correcta e elegante, sempre amoldada à naturalidade das
situações e dos diálogos.

Uns assuntos de felicíssima escolha, a reproduzirem fielmente costumes,
a pôr em jogo com a maior verdade os vícios e as virtudes do povo.

Como os contos magníficos de Bento Moreno, os contos do Sr. Trindade
Coelho são a fiel expressão da vida rústica do nosso povo, e fácil é de
compreender a importância moral que estes livros terão quando as
gerações que nos sucedam queiram inventariar nas suas tradições o modo
de viver, de sentir e de pensar das populações sertanejas, neste
período histórico em que vamos.

Sem descer aos excessos da escola ultra-realista, a que Zola preside
como Sumo Pontífice, o Sr. Trindade Coelho, consegue ser de uma verdade
inexcedível, de um realismo incontestável, de um naturalismo a toda a
prova, que por igual se evidenciam no assunto, na narração e nos
personagens.

E, sobretudo isto, há nos seus contos, como nos de François Copée e
Theodore de Bauville, a artística encenação que, sem desvirtuar-lhe a
naturalidade da forma e do fundo, lhes imprime o atractivo romanesco
que fala à imaginação do leitor.

O _Idílio rústico_, com que o livro abre, é de uma suavidade deliciosa,
e de uma naturalidade tão justa quanto encantadora.

A _Última dádiva_ é a expressão fiel de muitas cenas que a emigração
multiplica cruelmente pelas nossas províncias do norte.

A acção deste conto é conduzida com uma tal unção de sentimentalidade,
que nenhum leitor, por mais rebelde que seja a comoções, se poderá
esquivar a partilhá-la.

O conto--_Tipos da terra_ é a descrição fiel, fidelíssima, da mesquinha
intriga que fervilha invariavelmente em todas as pequenas terras de
província.

_Os Prelúdios de festa_ são de um cómico admirável; _Maricas_ é de um
sentimentalismo comovente; _V[ae] Victoribus_ de uma moralidade
edificante; _Arrulhos_, _Mãe_, _Tragédia Rústica_, tudo, tudo neste
livro é bom, e de útil e agradabilíssima leitura.

A forma--já o dissemos--é correctamente vernácula e elegantemente
rendilhada.

A título de amostra, para aqui trasladámos do conto--_Sultão_--este
belo _croquis_ de uma tarde de Agosto:

«Ao longe, fechando o horizonte que a eira dominava, as arestas dos
montes quebravam-se numa sombra igual, e embaciavam ainda o poente as
suaves e brandas pulverizações doiradas da última luz do sol. Riscos
vermelhos de nuvens, como grandes vergas de ferro levadas ao rubro,
destacavam imóveis num fundo verde-mar, esvaecido e meigo, raiado de
listrões de uma coloração leve de laranja.

Pequenos algodões transparentes, com alvuras de neve, cortavam aqui e
além, alegremente, a monotonia profunda do azul.»

E assim o livro de Trindade Coelho: uma obra à altura da boa reputação
do autor.

A redacção da _Nova Alvorada_ congratula-se com o seu ilustre colega
por tão brilhante produção, e daqui lhe envia um cordialíssimo aperto
de mão.»


A Independência:--«_Os meus amores_.--Acabamos de ler o primoroso livro
de Trindade Coelho, _Os meus amores_. Sem largas aspirações,
modestamente, apenas com a consciência tranquila de quem escreve bem e
com critério,--Trindade Coelho juntou e concatenou no delicioso volume,
que acaba de dar à estampa, algumas produções literárias que a sua
vida de jornalista tinha atirado para a vala comum das páginas de
revistas e diários.

Não é, pois, um trabalho completo, inteiro e homogéneo o que se nos
oferece para apreciar: são pequenas jóias literárias, buriladas por
mão de artista e de um fino sabor de naturalismo.

Considerado assim, sem dependência de escola e confrontação de
originais, o livro é bom.

As suas descrições são perfeitas, correctas, desenhadas por quem se
acostumou, desde criança, a ler muita e a adivinhar mais na bíblia
riquíssima e inexaurível da Natureza.

Há vida e colorido em tudo. As telas dos céus pincelaram-se com as
tintas próprias, e os diversos personagens que nos vão passando sob os
olhos, romanescos e sérios uns, grotescos e ridículos outros, deixam-nos
uma impressão agradável de realismo, e alta compreensão. São tipos
exactos, sem os grandes enfeites que aborrecem e sem frases banais que
enjoam. António Fagote é um espécime do juiz de festa das nossas
aldeias, basofão e vingativo, pronto, olá! a gastar as últimas moedas
da venda do últimos gado e a deixar fulo e arreliado o seu antecessor; e
a deliciosa balada _Mãe_ é uma preciosidade literária, magnificamente
pensada escrita, digna da pena dos nossos primeiros escritores.

Não encomiamos, pois, o valor do livro, dizendo que ele é digno de
figurar ao pé das mais belas produções dos nossos escritores mais
consagrados.»


Correio de Portalegre:--«_Os meus amores_, contos e baladas por
Trindade Coelho.

Acorda-lhes no espírito um eco de simpatia o nome do autor, pois não?

Eu creio bem isso, porque a verdade é que apesar da celeuma que Trindade
Coelho aí levantou, granjeando com o seu génio turbulento algumas
antipatias nenhuma delas alvejou o seu talento, que os senhores
jamais negaram, e lhes ficou sendo simpático. É por isso que escolhemos
para encetar esta secção a produção brilhante do distinto literato,
editada há pouco por António Maria Pereira, um incansável editor
escrupulosíssimo.

Li o livro que o talento do autor recomenda, impondo-o, quase, a
atenção do nosso cérebro, à contemplação da nossa alma; e essa leitura,
feita numas horas que um encanto enorme fez parecer tão breves, deu-me
d'_Os meus amores_ a agradabilíssima impressão de uma carícia, que
persiste a sorrir consoladora.

Trindade Coelho, que os senhores conhecem pelo menos do _Comércio_ e da
_Gazeta_, tem, como viram, o poder invejável de dar à ideia,--algumas
vezes injusta, dirão alguns,--a mais correcta forma, iriada sempre da
limpidez mais viva; e isso, num trabalho feito agora para aparecer
amanhã, à pressa sempre, numa fugida aos calhamaços manuscritos que
demandam a sua atenção de magistrado, e em que o período mais
sugestivo é o do _Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo_.

É-lhes fácil por isso pressupor o livro, que o vagar do autor desbasta,
remodela, lima, muito tranquilamente, muito sossegadamente, sob a
vigilante direcção do seu delicado gosto artístico.

_Os meus amores_ têm poesia, e têm verdade; e na maioria dos seus
diferentes quadros, adorável descrição das cenas simples da vida do
campo, da natureza singelamente formosa, o sentimento vibra
intensíssimo, e é encantadora a frase, que um conhecimento profundo
ditou, de que uma subtil observação ressai. Há ali retratos de um brilho
sem limite, _tipos_ que resumem um estudo fidelíssimo.

É um cofre de belas jóias, o livro, que nos deixa embaraçadíssimo, se
queremos escolher alguma,--tão valiosas são todas.

Todavia,--e isto é uma modesta opinião perfeitamente pessoal,--_V[ae]
victoribus_, de tão grandiosa ideia, e de tão elevado estilo, _Para a
escola_, tão grata, a evocar uma saudosa recordação dos bons tempos de
criança, e os admiráveis contos de fina graça e tão verdadeiros,
_Prelúdios de festa_ e _Tipos da terra_, são os meus eleitos, depois
de uma dificuldade enormíssima de escolha, de entre tantos quadros da
perfeição mais rara, e onde a _Maricas_ e _Arrulhos_ cativam também a
minha admiração.

O livro é, como todos os saídos na _Colecção António Maria Pereira_,
esplendidamente impresso em bom papel, e cartonado elegantemente em
percalina.

Nesta notícia breve, digne-se o distintíssimo autor d'_Os meus
amores_ receber o preito da nossa homenagem, prestada tão agradável como
sinceramente.»


O Nordeste:--«Editado pela casa António Maria Pereira, de Lisboa, em
volume de impressão nitidíssima, escrupulosa, foi recentemente publicado
o primeiro livro de Trindade Coelho--_Os meus amores_, que vieram pôr em
relevo as complexas e brilhantíssimas qualidades literárias do autor,
um _novo_ que já hoje ocupa, por direitos justamente adquiridos, um
lugar proeminente entre os nossos melhores escritores.

_Os meus amores_ têm obtido na imprensa do país uma acolhida
entusiástica, fervorosa e sendo Trindade Coelho um trasmontano, nosso
conterrâneo quase, cometeríamos uma flagrante descortesia se nos
leitores do _Nordeste_ não déssemos conta da aparição desse livro,
juntando ao coro uníssono de aplausos as nossas sinceras saudações.

Escritos em prosa vibrante, fluente e musical, correctíssima, esses
contos, transcendentemente lapidados, com a fina mestria de joalheiro
primoroso, constituem um verdadeiro encanto, cativando-nos com a
espontânea naturalidade da narrativa e com a emocionante escolha dumas
histórias aldeãs, de uma simplicidade campesina, repassadas por vezes
de um sentimentalismo suave, lírico...

A nós, que temos por Trindade Coelho uma vivíssima simpatia, um afecto
antigo e veemente, seguindo com interesse quaisquer particularidades da
sua vida, consolando-nos com os triunfos literários que têm
glorificado o seu nome e com a sua merecida reputação de magistrado
inteligente e trabalhador, ganha durante a sua carreira de delegado do
procurador régio, estava-nos impacientando o desejo de ler o seu livro,
e foi nervosamente, sofregamente, que o abrimos quando o correio no-lo
trouxe. E, agradabilíssima coincidência! sucedeu-nos deparar com o
conto _Para a escola_, quadro tocantíssimo que marca distintamente os
dois mais notáveis estádios da vida do escritor: a altura em que entra
na escola primária, regida por um mísero professor, bondoso e marcial,
de vilota sertaneja, e aquela em que sai de uma outra, habilitado com
as suas cartas de formatura a encetar a carreira pública, na qual de
contínuo evidenciará as suas superiores qualidades de talento e carácter
diamantino.

Essa história, exposta num estilo formosíssimo, maleável e correntio,
deliciou-nos e impressionou-nos profundamente, a ponto--sem pejo o
confessamos...--de lágrimas espontâneas nos marejarem os olhos, tão
enternecedoras são essas páginas que evocam em nós as reminiscências
queridas de um passado que não volta, e no espírito nos reproduzem, com
uma precisão fotográfica, completa, cenas iguais da nossa infância,
como de certo acontecerá a todos quantos lograrem a felicidade de lê-las
e senti-las...

Terminado esse conto, foi de um fôlego, a bem dizer ininterruptamente,
que _devorámos_ o livro, onde o autor, num esbanjamento pródigo de
verdadeiras pérolas literárias, se expande em ligeiras narrativas,
descritas numa prosa colorida e vibrátil, cintilante e rítmica,
apresentando-nos uma série de quadros, colhidos em flagrante, _d'après
nature_, com uma extraordinária lucidez de observação, e um outro _caso_
humano trasladado para páginas de uma forma impecável, acentuadamente
artista, e que são uma eloquente afirmação da distinta personalidade
de Trindade Coelho, ao presente um dos mais assinaláveis e esmerados
cultores da prosa portuguesa.

Não querendo, e não nos sobejando espaço para tanto, ampliar esta breve
notícia a uma crítica a todo o livro, impossível se nos torna enumerar
todos os contos em que ele se reparte, emitindo detalhadamente as
impressões que nos sugeriram. Por isso o nosso aplauso caloroso para
todo o livro, sem predilecções por este ou por aquele conto; e daqui,
desta coluna de modesto jornal de província, enviamos ao nosso
queridíssimo Trindade Coelho, numa efusão de acrisolada estima, com um
aperto de mão, as felicitações que merece, fazendo votos para que não
deixe de ser um cultor assíduo da literatura nacional, e continue a
honrar o seu nome, já laureado, com a publicação de novos e bons
livros.--_José Pessanha_.»


Da Revista do Minho:--«_Os meus amores_.--Poucos livros terão vindo à
luz da publicidade ultimamente em Portugal tão esplêndidos como aquele
cujo título serve da epígrafe a esta notícia. Em todas as suas páginas
se reúne o belo e o agradável, tornando esta obra de sólido mérito, e
estimável debaixo de todos os pontos de vista.

Este volume pertence à formosíssima colecção António Maria Pereira, e é
devido à brilhantíssima pena de um dos nossos mais festejados
escritores--Trindade Coelho.

Não precisamos alongar-nos em chamar a atenção do público para esta
obra, pois é ela sobejamente já bem conhecida dos amadores de bons
livros.»


Revista Ilustrada:--«_Os meus amores_.--Há tempo,--não há
muito,--começou um jornal de Lisboa a publicar, de quando em quando,
umas cartas de província,--_Cartas alentejanas_, nos parece,--assinadas
pelo nome, então desconhecido, de Trindade Coelho. Lida por nós a
primeira, nunca mais nos descuidámos de procurar as outras, e foi com
verdadeiro desprazer que as vimos ir rareando, até deixarem de aparecer
de todo.

Essas cartas eram a revelação de um formoso talento; eram a alvorada
jubilosa e cantante de um bom escritor. Trindade Coelho entrava nas
letras portuguesas pela porta áurea dos vitoriosos, apresentando
natural e simplesmente a sua individualidade, como a fundira numa só
peça o seu talento aliado com a sua observação e o seu estudo, sem
esgrimir com os que tinham chegado primeiro, sem acotovelar os que
avançavam ao seu lado, sem o apregoarem tambores nem charamelas de
apaniguados e sequazes.

Escrevia de um canto da província, da sua terra, em horas desocupadas;
escrevia de assuntos comezinhos, de coisas que tinha ali à mão, das
cenas campestres a que assistia, e, sobretudo, do sentimento que a sua
alma encontrava no tracto simpático da natureza inteira. Falava de um
ou outro livro, que mão amiga lhe fazia chegar à solidão do seu
eremitério, sempre com acerto, propenso ao louvor, despido de invejas.
Era um talento e era um carácter.

Depois, houve na sua vida literária um momento de eclipse. Cremos que
deve ter correspondido ao período ocupado e trabalhoso da sua
formatura. Bom sinal. O estudioso sério sabia reprimir as impaciências
do amor próprio, sacrificando às  altas ocupações do seu curso os
brilhos atraentes da fácil nomeada. O escritor experimentara já o
pulso; agora conhecia a sua força e sabia e podia esperar.

Eis que nos aparece um dia, súbito, no foro, honrando e glorificando
num processo de reabilitação a sua toga de magistrado. O caso deu-lhe
celebridade, e ensejo para ser recordado o nome de homem de letras, que
ele soubera fazer distinto e conhecido logo aos primeiros trabalhos.

Alguns meses de colaboração diária, num jornal bem lançado e bem
redigido, avigoraram no conceito público o renome conquistado, e
Trindade Coelho tomou serenamente, na imprensa do país, o lugar a que
tinha direito, sem ninguém lho discutir nem contestar.

Estreia-se agora no livro, e dificilmente imaginaríamos apresentação
mais prometedora e mais simpática.


_Os meus amores_ são uma colecção de esbocetos, alguns dos quais, como
o _Idílio rústico_, _Última dádiva_, _V[ae] victoribus_!, _Abyssus
abyssum_, chegam a ter a perfeição, o acabamento de verdadeiros quadros.
Revelam o amor, o cuidado, o esmero com que o autor os trabalhou,
solícito na sua obra, no empenho de uma execução imaculada. Não porque
se conheça o esforço; mas sim porque se sabe que sem ele era impossível
conseguir tão completo efeito, tão seguro resultado.

O estilo do prosador é, quase sempre, firme, opulento, erudito, original
e variado. Não tem reminiscências deste ou daquele, e realiza uma das
condições essenciais que deve ter em mira todo o escritor
consciencioso: conservar uma feição própria e individual, sem se afastar
da pureza da língua, evitando ao mesmo tempo o retrocesso arcaico, e
contribuindo para a evolução progressiva dela.

Trindade Coelho, por uma intuição que nos não cansaremos de louvar, em
vez de se cingir a modelos cuja originalidade maior ou menor lhe seria
fácil assimilar, em vez de decorar mestres e de compulsar estilistas,
procurou modo de iluminar a sua frase e de colorir a sua palavra, na
fonte natural de todas as inspirações. Penetrou, para isso, nas camadas
mais primitivas do povo campesino, enriquecendo nesse manancial o
tesouro das locuções, e trazendo de lá, simultaneamente, cenas e
quadros do um sentimento encantador, e de uma singeleza nativa e
adorável.

É de indiscutível beleza a pastoral com que abre o volume.
Afigura-se-nos estar lendo algumas páginas de Longo. A descrição da
madrugada na aldeia, o encontro dos dois pastores, Gonçalo e
Rosária,--Daphnis e Chloe,--têm um sabor antigo, como o de uma
narrativa idílica, passada nos tempos legendários da Grécia, e ao mesmo
tempo toda a verdade de uma cena campestre dos nossos dias. É de um bom
gosto supremo a forma subtilmente delicada como o narrador, deixando
primeiro recear a queda dos seus personagens numa brutalidade
instintiva, os conduz por fim nas asas da inocência e da candura a uma
situação divinamente sublime.

E, finda a narrativa, o leitor fica deliciado e satisfeito, numa doce e
prolongada abstracção, seguindo com os olhos do espírito aqueles dois
vultos de criança a esfumarem-se nas distâncias do espaço e do tempo,
longe, muito longe, numa paisagem ideal, vista nos dias da infância,
vista talvez em sonhos, talvez em Virgílio ou Teócrito, talvez mais
longe ainda, na Bíblia...--seguindo, com os olhos da alma, em esquecida
contemplação, longe, muito longe,

«...na calma placidez do azul, bandos de pombas mansas, voando, voando.»

Em _V[ae] victoribus_!, outro quadro de mestre, há como que um misto do
trágico fatalismo grego e do supersticioso horror cristão. Não é vulgar
a concepção do assunto, nem vulgar, também, o desenvolvimento que o
escritor lhe deu, o cenário é horrível e magnífico. Está bem
descrito; bem descrita a tempestade, que primeiro se anuncia, depois
se aproxima, depois finalmente cresce e se desencadeia numa convulsão
pavorosa e enorme; bem descrito o terror angustioso e supliciante do
mísero assassino, o qual vê, na chama de cada relâmpago, projectada a
cruz negra que marca o lugar do seu crime e que lhe prende os pés ao
chão, enquanto o seu ouvido, alucinado pelo terror, lhe dá a sensação
de uma voz insistente, que detrás de cada árvore, da espessura de cada
moita, de cima de cada pedra, da ressonância de cada trovão, o chama
inexoravelmente pelo nome:--Ó José Gaio! Ó José Gaio! Ó José Gaio!

Bastava simplesmente esta narrativa para granjear a Trindade Coelho
foros de distinto e primoroso escritor. Edgar Poe não enjeitaria o
assunto, se lhe ocorresse, nem o trataria com muita maior perfeição.
Dar-lhe-ia pasto para algumas páginas tão engenhosas como as da _Génese
de um Poema_, para alguma composição tão extraordinária e tão
transcendentalmente bela como _O corvo_ ou _Ulalume_.

Mas como se quisesse mostrar a maleabilidade da sua pena, ou como se
quisesse certificar-se a si próprio da multiplicidade e da variedade das
suas aptidões literárias, o prosador que recortou nos mais perfeitos
moldes aquelas páginas clássicas ou estas sinistras, detém-se na
comovente e lacrimosa narrativa da _Última dádiva_ e nas ligeiras e
facetas descrições dos _Tipos da terra_, dos _Prelúdios de festa_, do
_Sultão_, onde transparecem dotes de observação sarcástica, de ironia
graciosa e de bem humorado espírito.

Um livro de tantas promessas não pode ser, contudo, e por isso mesmo, um
livro definitivo. Trindade Coelho experimenta apenas a mão para se
abalançar a empresa maior, estamos certos disso. Já no final do
presente volume, em nota do editor a um trecho intitulado: _Batalhas
domésticas_, se anuncia a transição da presente fase literária e
artística do autor, para uma outra fase progressiva.

Progressiva, dizemos nós, porque assim o cremos. Qual há-de ser, porém,
a predominante característica dessa fase? Pode a crítica conjecturá-la
desde já? Talvez o pudesse; mas seria arriscado fazê-lo. Porque, a
verdade é que o seu talento tem recursos com que lhe é dado contar, que
o seu temperamento literário tem energias que lhe hão-de abrir novos
caminhos, e que, na sua vida de homem de letras, há já precedentes, que
enormemente o obrigam.

Temos confiança em que a sua prosa, já segura e elegante, despir-se-á
ainda de um ou outro francesismo escusado, e há-de adquirir novos dotes
de clareza, concisão e vernaculidade. Trindade Coelho sabe onde
procurá-los. Não é em léxicos, nem em alfarrábios, nem em cartapácios.
É na escola, aberta sempre a todos os investigadores, onde aprenderam a
falar o português do povo, os seus tipos populares.

Não se pode ser bom prosador, sem se ter o sentimento profundo do som,
da melodia. Uma das maneiras de adquirir perícia nesta forma de
escrever, consiste na pratica de versificar. Fazer bons versos é um
exercício útil para chegar a fazer boa prosa. Não é, porém,
indispensável, bem entendido.

Contudo, não admitimos que repute possuir as qualidades completas de
escritor, aquele que só de uma das duas formas da arte de escrever seja
conhecedor. Os mais elegantes cinzeladores da prosa, são os que
praticaram largamente no manejo da metrificação e da rima.

Trindade Coelho, apesar de todos os dons singulares da sua natureza
artística, teria muito a ganhar, e conseguiria maior fluidez na frase e
maior cadência no período, se praticasse um pouco a arte do verso,
embora como simples exercício. E esteja certo de que lhe vale a pena
empregar todos os esforços para atingir uma perfeição, que não está
longe, e de que o seu talento próprio e a sua estudiosa boa vontade
continuamente o aproximam.--_Fernandes Costa_.»


Aurora do Lima:--«_Os meus amores_, contos e baladas, por Trindade
Coelho. Quando prometi à _Aurora do Lima_ esta ligeira notícia
bibliográfica acerca do livro do brilhante escritor e meu querido
amigo Trindade Coelho, mal cuidava eu que a doença me obrigasse a
retardar o cumprimento da promessa, ao ponto de me encontrar entre os
últimos da última fila, nas saudações entusiásticas à obra e ao seu
autor.

Tenho para mim como certeza indiscutível que o público se começou a
fatigar dessas obras torturantes de análise fria, cruel, desoladora. Os
que se encontram feridos das aspérrimas lutas da vida--e estes
constituem a maior parte dos que lêem e estudam, preferem as obras
consoladoras, de cuja leitura fica uma sensação delicada, uma recordação
docemente suave. Assim, Pierre Loti ainda hoje triunfa sobre Zola,
apesar do enorme _réclame_ que antecede sempre a obra do velho mestre da
escola realista.

Ora o livro do Sr. Trindade Coelho pertence ao número dessas obras
consoladoras, de serenidade e de paz. É um livro sincero, que prende
pela emoção íntima, que interessa pela simplicidade elegante com que
está trabalhado, que impressiona pela correcção impecável do seu estilo,
maleável e harmónico.

Abre-se o livro e depara-se com o _Idílio rústico_, que é uma soberba
tela, amoravelmente tratada, denunciando logo às  primeiras linhas um
alto valor artístico, na verdade rigorosa da observação, na delicadeza
suave do colorido, na simplicidade graciosa dos dois pequenos pastores.

Segue-se-lhe o _Sultão_; e em boa verdade direi que me parece ser este
um dos contos mais formosos do volume, em que pese às  opiniões
contrárias e até ao próprio autor, que não perde ocasião de o
depreciar.

Assunto simples, esse, e todavia absolutamente verosímil. A descrição
da eira, do labutar alegre, da paisagem e dos personagens deste pequeno
quadro, são um primor notabilíssimo de execução artística, de rigorosa e
completa observação.

_Última dádiva_, um episódio comovente, completa a primeira parte do
livro, a que se segue a _Comédia da província_, onde há preciosos
estudos da vida provinciana; as _Baladas_, onde se depara com o formoso
conto _Para a escola_, de um alto valor literário; _Arrulhos_, uma
esplêndida fantasia, etc.

Eis uma ligeira notícia do volume de contos _Os meus amores_, que
tamanho êxito conseguiu obter, acordando de surpresa a habitual atonia
do nosso acanhado meio literário, com os merecidíssimos aplausos que
lhe foram dispensados.

Dos méritos literários de Trindade Coelho falam mais alto do que a
crítica os seus trabalhos, espalhados em todos os jornais do país,
especialmente no _Portugal_, onde escreve como o pseudónimo de _Ch. A.
Verde_, e na _Revista Ilustrada_, do editor António Maria Pereira. É um
infatigável e primoroso jornalista, sabendo dar ao mais frívolo assunto
um delicioso relevo literário, que prende e interessa o espírito do
leitor.--_Luís Trigueiros_.»


Os Gatos:--«Vem a propósito de histórias, falar, bem sei que tarde, dos
_Meus amores_ de Trindade Coelho, como do moderno livro português que
mais juvenilmente fascia o talento de narrar, em poliedros de
multíplices aptidões. Os contos dos _Meus amores_ são pela maior parte
uma bagagem de vida académica, assimilativa (Trindade Coelho, muito
novo, findou há quatro ou cinco anos o curso jurídico) e como tal saem
da pena do escritor ainda sem uma cristalização homogénea de forma e
de processo. Porém na sua factura ondeante lê-se o ascenso de um espírito
buscando a perfeição com escrúpulos de eleito; de sorte que o volume até
como autobiografia se insinua, ele precisando as fases, nótulas, e
predilecções literárias do contista, e enfim, depois de hesitações,
emancipando-o num dos mais delicados microscopistas do coração, das
nossas letras. Como é provinciano, provinciano de aldeia, e natureza
contempladora inda por cima, Trindade Coelho cativa-se principalmente
dos assuntos bucólicos, pequenas cenas de cabana, tempestades de
campanário, pastorais, vida de povo, e sente-se que o não faça por
diletantismo de escritor avocando de cor dramas lambidos, senão por
esse estro de visão retrospectiva dos melancólicos despaísados em
terras hostis, e que protestam contra o egoísmo ambiente, recluindo-se
no passado, como num santuário de múmias adoradas. É a tendência geral
dos nossos mais modernos narradores, buscarem na vida dos humildes,
especialmente dos campos, matéria-prima para seus contos e poemetos. Em
poucos porém a predilecção se escora na sinceridade e conhecimento
prático da vida rústica, e em menos ainda há perspicácias para uma
autópsia sagaz da natureza psíquica e moral do camponês. Grande parte dos
que têm posto o povo em cena, contenta-se com recortar-lhe os andrajos
num cenário de convenção, e com o fazer falar aos bonequinhos mancos
que resultam, aravias mais ou menos inventadas de um pitoresco sorna, em
cuja trama não há vislumbres de alma regional, de carácter profissional,
de individualismo típico, ou de paixão. Se alguma vez tiverem pachorra,
mandem vir a colecção dos contistas rústicos portugueses, e riam à
larga das fantasias lorpas que lá virem. Em diálogos amorosos há por
exemplo coisas únicas! Cavadores de aldeia debitam às  namoradas protestos
de paixão, em linguagem que seria preciosa até na boca de um pisa-flores
do Martinho e da Havanesa. Elas, de lhes retrucar em frase
equivalente, e de se mexerem em cena com os ademanes que a _Dama das
Camélias_ consagrou na cachimónia dos autores, como os mais próprios
para mimar o amor que as enxaqueca.

Em paisagens e descrições de interior, a mesma ausência de detalhe certo
e de visão própria, que reduzem esses quadros, a meras caganifâncias
de aguarelistas amadores. De tal maneira que o grupo de _campestres_ a
quem a arte confia a missão de leccionar aos desregrados habitantes das
cidades, os prazeres simples da vida pastoral, em vez de persuadirem os
seus leitores, o mais que fazem é pintar-lhes o campo como uma banal
imitação da Rua do Ouro, e o camponês como uma arreglo grotesco do
alfacinha.

Ora, entre os poucos argutos dedicados a perscrutar a essência da
paisagem provincial, e a alma do provinciano e do campónio, Trindade
Coelho é dos que mais lucidamente traduzem o seu critério do problema,
em forma de arte, e dos que mais progressivamente vão crescendo à vista
do leitor, que não mais lhe perderá de vista os voos poéticos, e a
singular gracilidade irónica dos seus quadrinhos de género, colhidos em
prolongadas estações nas duas mais típicas províncias de Portugal, o
Alentejo e Trás-os-Montes. Há assim nos _Meus amores_, a par dalgumas
benignas composições representativas da transição crítica do rapaz para
o homem, e do debutante para o laureado, outras de tal guisa iguais,
sóbrias, seguras, que não hesito em as apontar como modelos, e dentro da
minusculeria da sua trama, como verdadeiras e encantadoras obras-primas.
_Tipos da terra_ e _Prelúdios de festa_, por exemplo, são duas narrações
que mordem fundo a atenção de quem nas lê, e que por sua admirável
sobriedade, intuito pictural, e observação ridente sobre o vivo, cuido
que ficarão modelarmente apontadas aos coleccionadores de literatura
típica.

Qualquer das peças abrange apenas o fôlego de uma ou duas dúzias de
páginas, deliciosas porém como factura, admiráveis de bonomia, e de uma
saúde moral que faz desejos de estimar pessoalmente o seu autor.

Aí está efectivamente revelado não só um talento plástico e bastante
rico em cambiantes, como também a pura água de um carácter cheio das mais
finas intenções. _Tipos da terra_ é o quadro satírico de uma má língua
de aldeia, tendo por clube a porta da tenda, por cenário a praça pública,
e por personagens o pessoal burocrático e elegante da terriola.
_Prelúdios de festa_ é um estímulo de festeiros preocupados de qual
fará a festa do orago mais sumptuosamente. Os tons são leves, os tipos
rápidos, a descrição dita a correr, mas no conjunto há um tal
equilíbrio estético, a meia-tinta é tão fluida, e as intenções irónicas
sublinhadas tão de manso, que se adivinha logo um mestre miniaturista,
Hogarth com laivos de Tenier, raro de sabor entre os sensaborões que por
aí medram, e certamente fadado a uma supremacia qualquer no moderno
romance português.--_Fialho de Almeida_.»


Jornal de Santo Tirso:--«_Os meus amores_.--Foi penhorante e comovente
para nós a gentilíssima oferta que Trindade Coelho nos fez do seu
adorável livro de contos, que tem por título a epígrafe desta singela
notícia.

O nome de Trindade Coelho era já gloriosamente festejado quando o
brilhante contista frequentava ainda as aulas da Universidade; hoje,
porém, aparece mais radiantemente no seu precioso livro, onde a
primorosíssima forma se alia com o mais delicado critério de artista
d'_élite_ e com a fina observação de um talento verdadeiramente superior.

O que deixamos dito é profundamente sentido, que a nossa humilde e
obscura pena não está--seja este o seu único mérito!--habituada a vir
entregar ao sagrado lume da imprensa os elogios sandeus que cada dia se
prodigalizam aos medíocres e aos banais, que se desvanecem entre as
ondas desse barato incenso.

Os nossos leitores melhor ajuizarão, em presença do trecho que lhes
oferecemos como mimo de rara valia.»


Diário Ilustrado, (com o retrato do autor):--«Trindade Coelho.--Nesta
áspera vida das letras, cortada de tantas amarguras que ninguém sonha,
há, entre outras, uma grande e profunda alegria,--que nem a todos é dado
experimentar, acrescente-se.

Essa alegria, sentem-na os poucos susceptíveis de compreendê-la,--na
elevada faculdade de admirar o que se impõe pelo dominador prestígio do
talento ao culto mental, e sobretudo no íntimo orgulho de adivinhar,
logo aos primeiros passos, a revelação de Alguém, que vai ser
unanimemente admirado.

Devo a Trindade Coelho, que figura hoje por direito de conquista na
galeria do nosso jornal, este incomparável júbilo.

Adivinhei-o (consintam-me esta vaidade) quando poucos o conheciam;
admirei-o, muito antes dele trazer à literatura pátria o livro _Os
meus amores_, que foi como que a súbita iluminação do seu nome.

Que delicioso livro esse, onde Trindade Coelho nos aparece em toda a
sua inconfundível originalidade de narrador, em todo o desartificioso
encanto da sua maneira de observar e referir, revendo-se-lhe o
temperamento de artista, impressionável e vibrante, na fluidez do
estilo, que lhe repercute nitidamente todas as modalidades!...

O campo, que a maioria dos escritores conhecem superficialmente, de
rápidas excursões alpestres, sem o menor vislumbre de identificação,
vive no livro de Trindade Coelho, com um singular relevo de verdade, com
um profundo sentimento do natural. «Entre os poucos argutos dedicados a
perscrutar a essência da paisagem provincial, e a alma do provinciano e
do campónio, escreve dos _Meus amores_ o nosso grande crítico Fialho
de Almeida, Trindade Coelho é dos que mais lucidamente traduzem o seu
critério do problema, em forma de arte, e dos que mais progressivamente
vão crescendo à vista do leitor, que não mais lhe perderá de vista os
voos poéticos, e a singular gracilidade irónica dos seus quadrinhos de
género, colhidos em prolongadas estações nas duas mais típicas
províncias de Portugal, o Alentejo e Trás-os-Montes.»

Antes dos _Meus amores_, Trindade Coelho começara a afirmar a sua
poderosa individualidade em uma secção do _Diário Ilustrado_, _Cartas
alentejanas_, crónicas expedidas de Portalegre, em um arranque de
talento, com exuberância de fantasia, modos de ver e dizer,
flagrantemente modernos, traços de soberbo humorismo à Vacherai, velados
a espaços de um ligeiro fumo de melancolia, que lhe avivava a frisante
originalidade.

Por esse tempo, o nosso brilhante cronista empreendeu, no exercício
das suas funções de delegado, em Portalegre, a tarefa humanitária de
arrancar um pseudo-criminoso ao rigor da lei, que injustamente o
condenara.

E em torno do nome de Trindade Coelho, que emplumava para os largos
voos, fez-se um coro de bênçãos, como que uma apoteose de amor, que
deverá ter sido na sua vida e para a fina sensibilidade da sua alma
efusiva e entusiasta, um destes supremos júbilos, superiores a todas
as desditas e inacessíveis a qualquer desencanto.

Dá-se em Trindade Coelho e nos transcendentes dotes que o caracterizam e
lhe assinalam o ponto culminante em que se evidenciam, uma dualidade,
verdadeiramente fenomenal.

É que, sendo ele um artista, na rigorosa acepção titular da palavra,
namorado do ideal, amando a Arte com religioso fanatismo, vivendo na
extática adoração de tudo quanto ela sobredoira do seu brilho imortal,
é ao mesmo tempo um funcionário exemplar, um delegado do procurador
régio, que viu de repente o seu nome respeitado e temido, de tal sorte
Trindade Coelho encarna em si, na austeridade do seu carácter e no
correcto exercício da sua profissão, toda a prestigiosa soberania da
Lei. Diz ainda Fialho de Almeida, inteiramente insuspeito, quando se
trata de aquilatar o mérito de um autor:

«Aí está efectivamente revelado não só um talento plástico e bastante
rico, em cambiantes, como também a pura água de um carácter cheio das
mais finas intenções.»

Às vezes, o magistrado recorda-se do artista e estremece de saudade
nostálgica ou treme de frio... legal.

É então que ele murmura, (perdoa a indiscreta alusão, meu caro
Trindade Coelho?) «Ah! que apertada gaiola esta, em que vejo fechado, o
meu espírito! O meu trabalho, amo-o porque é o meu dever. Mas como eu
ando longe, afastado, extraviado... de mim mesmo! Não faz ideia, não!
Dentro desta jaula de ferro, veja! E lá fora, e lá em cima--que amplo
céu azul para voar!»

Mas nesse azul para onde lhe foge o espírito, quantos triunfos ainda o
esperam, meu ilustre amigo?--_Guiomar Torrezão_.»


Revista de Portugal:--(Excerto de um artigo crítico acerca do _Só_ de
António Nobre).--«Alma doente, o Sr. António Nobre soube extrair da sua
doença efeitos de Arte singulares e às  vezes intensos. Outros
atingiram o mesmo objectivo pela descrição das emoções naturais e pelo
apelo aos instintos sãos do coração humano. Acabo de reler o livro
de um escritor também novo: _Os meus amores_ de Trindade Coelho. Com
casos da vida corrente e com sentimentos que podem ser compreendidos
por qualquer dos seus leitores, uma despedida, a afeição de dois
pastorinhos perdidos na solidão do campo, os remorsos de um homicida
junto à cruz da sua vítima, o amor materno de uma cabra que se deixa
morrer sobre o cadáver do filho recém-nascido, consegue o narrador
interessar e comover vivamente o espírito de quem o acompanha através
dessas duzentas páginas impregnadas dos sucos da terra e do suor dos
lavradores. Demonstração cabal de que a Arte é vasta e a capacidade
pessoal decisiva para a beleza das obras.--_Moniz Barreto_.»


Da Vid'Airada: «Trindade Coelho.--Uma vez na sua frente, face a face,
olhando-o bem, medindo-o de alto a baixo,--o que não seria difícil mesmo
no caso de que a medida dos homens se tirasse a palmos--fixando o olhar
no seu olhar, e não perdendo uma só das suas palavras na mais simples
conversa de algum quarto de hora,--ao separar-se ele de nós, porque já
então a gente não se atreve a separar-se dele, tem-se adquirido a
certeza de que aquilo é o que é, e chegado à mais sólida convicção de
que toda a verdade, toda a sinceridade de um temperamento e de um
coração de homem, nunca se manifestaram mais expressivamente, mais
insubmissas ao menor propósito do menor disfarce, do que na sua
fisionomia bem aberta, iluminada em cheio pelo brilho intensíssimo do
seu olhar muito límpido, muito penetrante, se expressam toda a
sinceridade, toda a verdade do seu grande coração e do seu impetuoso
temperamento.

E ao vê-lo partir pela rua fora, decidido e teso, resoluto e rijo, a
cabeça alta, assentando com firmeza o pé pequeno, despejando caminho que
dá gosto vê-lo, não resistem os olhos ao desejo de acompanhá-lo de
longe, até que o percam na dobra da primeira esquina, e a gente diz ou
pensa:--«Demónio!... Com meia dúzia assim, poderia fazer-se _alguma
coisa_ ainda!...»

Porque no meio desta espécie de contágio, que os perversos e as suas
perversões vão espalhando em redor de si, fazendo estremecer os honestos
quando com eles se cruzam, e tentando para o mal os fracos quando
passam--só a presença de homens bons e sãos poderá melhorar este solo e
purificar esta atmosfera.

Na travessia dos dois mundos diversos a que este homem dedicou a viagem
da sua vida,--o mundo literário e o mundo judicial--afigura-se-me
ele, talvez, como um antípoda de si mesmo, ora imprimindo o indelével
cunho da sua vigorosa e honesta individualidade em preciosos documentos
para a dilacerante historia patológica da sociedade portuguesa neste
agonizar de século, quando aponta o implacável índex do Ministério
Público contra os altos réus de certas causas célebres,--ora imprimindo
nalgumas obras de pura arte literária, em que a elegância da forma é
posta sempre ao serviço das emoções mais doces e das mais penetrantes,
esse outro cunho, dessa outra individualidade que nele há, e tão
diversa é, tão original e tão rara, tão contemplativa e tão terna.

...Sim! toda a verdade, e toda a sinceridade do seu grande coração e do
seu impetuoso temperamento!

No tribunal, quando articule algum libelo acusatório em que as suas
palavras se não limitam ao cumprimento do dever de ofício, não tardará
que à serena exposição dos primeiros articulados suceda a expressão
calorosa, indómita, sempre crescente, da indignação, e da cólera, que
lhe provocam e açulam os factos e as razões de que vai deduzindo a
tremenda acusação contra o réu--...esse réu que ali está, ali!
sentado naquele banco, sentenciado já, e de grilheta aos pés!
Agita-se-lhe a circulação do sangue, a respiração acelera-se, a face
ruboriza-se, todas as veias do pescoço e fronte se distendem, o peito
enche, as narinas dilatam-se, tremem, fumegam... A excitação do cérebro
vigoriza-lhe os músculos, afirma-lhe a energia, parece transportá-lo ao
império da força, num arrebatamento em que os dentes rangem, e as unhas
se crispam, punhos cerrados, braços erguidos, completamente desordenado
a frenético!... A voz, sempre vibrante, chega a parar-lhe na garganta,
quase ronca, vociferando, em discordâncias agudas que vêem ferir de
arrepios a espinha dorsal do auditório... Já não é para a justiça dos
homens que ele apela; não lhe bastam, não o saciam as penas máximas
dos Códigos! Quer o castigo do Céu, quer a justiça de Deus!

...O que não tira, ainda assim, que resgatasse da morte civil, bem pior
que a morte natural, um desgraçado que a cegueira da justiça humana
havia condenado por assassino e ladrão--o pobre Manuel Barradas. Muito
comentou a imprensa o facto, espantada de que um agente do Ministério
Público, um feroz acusador, empenhasse dois anos agoniados da sua vida
em apurar uma inocência... Trindade conserva, encadernada, a colecção
desses jornais, e legou-a em vida ao filho, ao Henrique, pondo-lhe no
princípio estas palavras: «Meu filho, pela lei de Deus, a vida é só um
pretexto para boas obras. Observei um dia a lei do Senhor, e Ele, em
prémio da minha obediência, concedeu-me o poder legar-te um pedaço vivo
do meu coração. Queres ouvi-lo bater? Ausculta essas folhas... Bendito
seja Deus! serão ainda minhas as tuas lágrimas enternecidas, e, ainda
depois de morto, viverei na tua comoção e na tua alegria, para a
comoção e para a alegria da minha obra...»

Mas passa a tempestade, e volvido o bom tempo, que singular contraste
nos oferece a outra fase desse mesmo espírito, quando o vulto austero
do magistrado, cedendo o lugar à delicada individualidade do homem de
letras, o desembaraça da toga e o deixa que vá, em mangas de camisa,
muito à vontade e à fresca, pelas tardes serenas do seu bom humor, a
vaguear pelos campos do seu sonho--sonho feito de saudade, dessa muito
viva e muito afectuosa ternura que à sua alma de artista dá, e que a
sua prosa tão sentidamente traduz, a recordação de felizes tempos que
não voltam mais, e que por isso mesmo nunca mais esquecem,--recordação a
que andam para sempre ligados, numa doce e meiga associação de ideias,
certos lugares, certas pessoas, certas orações, certa ermidinha e certo
olmo, que já lá estavam quando ele nasceu, que o embalaram nos
primeiros sonos e lhe deram amparo nos primeiros passos; que ao
baptismo o levaram, e o conduziram à escola; alegrando-se com as suas
alegrias, entristecendo-se com as suas lágrimas...

Nesses momentos, sob o domínio desse lindo sonho, inundado do luar da
sua terra, desanuvia-se-lhe o rosto, alisa-se-lhe a fronte, vê-se
pousar-lhe nos beiços e nas pálpebras a serenidade meiga de um sorriso,
como que o doce agradecimento à alma de sua mãe, que tivesse vindo,
muito devagarinho, muito devagarinho, abeirar-lhe o leito,
aconchegar-lhe a roupa, e pousar-lhe nos olhos e nos lábios a amorosa
carícia dos seus beijos...

Por isso, a música do seu estilo produz sobre a nossa sensibilidade
essas emoções e excitações violentas, em que a tremura dos músculos e a
efusão das lágrimas realizam o fenómeno das emoções reais.

Os seus escritos obedecem sempre à lógica influência desta convicção
em que ele está, quando me diz, bem medindo e pesando cada uma das suas
palavras:

--«Positivamente, meu amigo, o público deseja, antes de mais nada, que o
escritor preste na sua obra o culto que é devido à sua língua. Depois,
deseja que o comovam, que honesta e consoladoramente o emocionem,
preferindo que o assunto do quadro seja a exploração das coisas
triviais da vida, certamente porque reside no Simples a fórmula mais
natural da Verdade... Compreendo que o espírito dos que lêem está
fatigado dessa confusão do _romance_ com o _estudo_, e convenci-me,
enfim, de que a obra de arte literária tem, como primeiro dever, e como
condição primeira de agrado, de ser consoladora e suave, tocada sempre
de uma pontinha ligeira de poesia que vá direita ao coração e
entretenha, em quem lê, as faculdades emotivas, de preferência, mesmo,
às  faculdades intelectuais...»

Releio _Os meus amores_, o livro dos seus contos. É o primeiro deles,
_Idílio rústico_, de uma deliciosa simplicidade de aguarela, parece que
feito sobre um esbatido de céu puríssimo, cor de sovaco de andorinha e
não sei com que singular sabor eucarístico de primeira comunhão... É
um sonho de absinto, que serve de aperitivo divino para a leitura
sôfrega de todo o livro. Dois pastoritos ingénuos, a Rosária e o
Gonçalo, encontram-se e aproximam-se, numa indecisa alvorada de
derriço, cheios de boas tenções e puros ideais. Acontece, porém, que por
viverem longe, raras vezes se falam, e quando essa ventura lhes é dada,
imaginem os que como eles se amem a alegria que inunda aquelas duas
almas! Duma vez, passada alguma dessas ausências longas, quis Deus que
os dois inesperadamente se topassem, pela madrugada, quando iam levando
seus rebanhos ao pasto. Logo combinaram juntarem-se as ovelhas, como
juntos os corações traziam, e desde que nasce o sol até que o sol se
põe, vagueiam nas frescuras marginais do rio, a par, e sós, ele
dedilhando a flauta, ela recordando cantigas, com murmúrios de água
correndo, e balidos suaves dos lanígeros, numa paz de alma idílica de
iluminura. E quando a noite chega, porque lhes custe imenso a
separação, o Gonçalo a convida a continuarem juntos, deixando que as
ovelhas durmam em mistura e que passem eles a noitada sobre o mesmo
colmo, ao abrigo da mesma cabana. Não sem certa instintiva relutância,
Rosária aceita; e como se deitem ao lado um do outro, tornando as
mantas cobertor comum, e pousando as cabeças nos bornais unidos,
parecer-vos-á, como a mim pareceu, que ali rompem os beijos
desmedidos... Nada disso, perversos! A pouco e pouco vai escurecendo, e
os bons dos namorados, numa plácida orquestração final que se smorza,
referem-se casos de moiras encantadas, e assim pegam no sono e
adormecem... Tem a gente remorsos do que foi julgar: sente a tristeza da
maldade nossa.

Depois, depois os outros, que seguem pelo livro fora, e que vamos
bisando e saboreando a pequeninos golos, durante algumas horas bem
fugidas, passeadas por aquelas paisagens e recantos provincianos que
ele nos pinta, tão real e verdadeiramente como se lá estivéssemos; em
companhia daqueles tipos que ele retrata, tão fotográficos, tão
nítidos, que é estar a gente a vê-los, a ouvi-los, a falar-lhes, a
deitar-lhes o braço pelo ombro...

Antes dos seus contos nunca a prosa portuguesa me havia dado, posta ao
serviço da moderna arte, o inefável gozo de tão estranhas, tão novas,
tão encantadoras surpresas! Quisera eu, inédita, bem fresca, pela
primeira vez usada a respeito da sua escrita, esta flagrante
comparação:--dir-se-ia traçada com uma pena de águia... arrancada de uma
asa de pomba.

Os seus livros ficarão pertencendo ao número daqueles que parecem
possuir o raro condão de nunca envelhecerem no espírito de quem os lê.
Reler o que ele escreve é sentir o mesmo prazer, sempre renovado, de
quando se contempla pela centésima vez algum querido, precioso objecto,
que noventa e nove vezes se contemplara já: privilégio esse de eterna
sedução, que só desfrutam as obras em que o artista deixou pedaços da
sua alma.--_Alfredo Mesquita_.»


Do Poema do Ideal:

«_Os meus amores_! que livro
Tão fragante e saboroso!
Centelhas áureas e vivas,
Dum prosador luminoso!

Brisas da serra!
Trechos idílicos
Da nossa terra!»

_Fernandes Casta_.















End of the Project Gutenberg EBook of Os meus amores, by Trindade Coelho

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OS MEUS AMORES ***

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