The Project Gutenberg EBook of O Conde de S. Luiz, by Tomaz de Melo This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: O Conde de S. Luiz Author: Tomaz de Melo Release Date: May 22, 2009 [EBook #28928] Language: Portuguese *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CONDE DE S. LUIZ *** Produced by Júlio Reis, Carlo Traverso, Leonor Silva and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net Notas de transcrição: O uso do hífen nesta obra é bastante inconsistente; o mesmo se passa com a ortografia. Assim, ocorrem por exemplo "entregara" e "entregára"; "ante-mão" e "antemão"; "dirigindo se" e "dirigindo-se". A grafia não foi harmonizada, por não ser possível determinar a intenção original do autor. Nesta edição em texto simples, o texto em negrito foi colocado entre = e o texto em itálico foi colocado entre _. O texto em superscrito está colocado dentro de ^{ }. [Ilustração: Capa] Biblioteca Portuguesa Ilustrada D. TOMAZ DE MELO O CONDE DE S. LUIZ LIVRARIA BARATEIRA 34, Rua do Duque, 36--T. Trind 1264--LISBOA O CONDE DE S. LUIZ [Ilustração: Publicidade à "Bibliotheca Portugueza Illustrada"] EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL SOCIEDADE EDITORA LIVRARIA MODERNA: R. Augusta, 95 * TYPOGRAPHIA: R. Ivens, 45 e 47 BIBLIOTHECA PORTUGUEZA ILLUSTRADA *Nova collecção economica a 200 réis o volume* Contendo 200 a 250 pag. com 5 illustrações originaes de pagina * * * * * É esta bibliotheca exclusivamente constituida por livros nacionaes, dos nossos melhores escriptores, custando cada volume de cerca de 250 paginas, em magnifico papel, com 5 illustrações originaes e expressamente feitas para esta publicação, apenas *200* réis, ou *300* réis, bellamente encadernado em capas especiaes a côres. ROMANCES PUBLICADOS *Os Fidalgos do Coração de Ouro* (Chronica do reinado de D. Sebastião) por M. Pereira Lobato. Dois vol., broc. 400 rs., enc. n'um só, em capas especiaes, 500 rs. *A Queda d'um Gigante*, (continuação do antecedente). Um vol., broc. 200 rs., enc. 300 rs. *A Baroneza de la Puebla*, (romance do seculo XVI, continuação dos 2 anteriores). Um vol., broc. 200 rs., enc. 300 rs. *Estandarte Real*, (conclusão dos romances anteriores). Um vol., broc. 200 rs., enc. 300 rs. *Lição ao Mestre*, por Teixeira de Vasconcellos. Tres vol., broc. 600 rs., enc. n'um só 700 rs. *A Mascara Vermelha*, (romance historico) por M. Pinheiro Chagas. Um vol, broc. 200 rs., enc. 300 rs. *Juramento da Duqueza*, (continuação do antecedente) por M. Pinheiro Chagas. Um vol., broc. 200 rs., enc. 300 rs. *Noites Perdidas*, livro de contos, de Betamio d'Almeida. Um vol., broc. 200 rs., enc. 300 rs. *Esboços de apreciações litterarias*, de Camillo C. Branco. Um vol., br., 200 rs., enc. 300 rs. *Conde de S. Luiz*, por D. Thomaz de Mello. Um vol. br., 200 rs., enc. 300 rs. *A PUBLICAR:* *Duello nas sombras*, por A. F. Barata,--*Annel mysterioso*, de Alberto Pimentel, etc., etc. ASSIGNATURA PERMANENTE BIBLIOTHECA PORTUGUEZA ILLUSTRADA X D. THOMAZ DE MELLO O CONDE DE S. LUIZ ROMANCE ORIGINAL SEGUNDA EDIÇÃO [Ilustração: Logótipo da sociedade editora] LISBOA EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL _Sociedade editora_ LIVRARIA MODERNA || TYPOGRAPHIA _R. Augusta 95_ || _45, R. Ivens, 47_ 1903 I Era no anno de 18*** N'um palacete proximo á Calçada de Santo André, vivia, em companhia de seu filho e de duas creadas, D. Marianna de Mendonça, filha bastarda de Manuel Pires de Athayde, que fôra em tempos de pouco saudosa memoria alcaide-mór da cidade de * * * Poucos mezes antes de morrer, Manuel Pires de Athayde, entregára a sua filha dezeseis mil cruzados em dinheiro, afóra joias e outros objectos de valor, pedindo-lhe ao mesmo tempo que acceitasse por esposo a Alvaro de Mendonça seu primo co-irmão, moço serio e de bom porte, e, além d'isso, possuidor de riquezas quasi eguaes ás que o alcaide-mór lhe legava. Recusando, a principio, o noivo que o pae lhe indicava, D. Marianna, por ultimo, não teve mais remedio senão acceder aos seus desejos. Tres mezes depois, com grande alegria de todos os parentes, recebeu se com Alvaro de Mendonça na freguezia dos Anjos. O pobre velho parecia apenas aguardar a realização d'este ultimo desejo para volver a alma ao Creador, entre as lagrimas da filha e dos amigos que o estremeciam. Ao cabo de oito dias de casada, D. Marianna ficava sem pae. Manuel Pires de Athayde não se havia enganado na escolha; Alvaro de Mendonça era o exemplo dos maridos. A sua proverbial honestidade tornava-o estimado em todos os logares onde apparecia, acompanhado quasi sempre pela esposa, digna e respeitada como elle. Ao fim d'um anno, a Providencia, prodiga em lhes proporcionar todas as venturas, concedeu-lhes a maior que póde dar aos que deveras se amam sobre a terra, e que medem o mundo todo, pelo curto espaço do seu domicilio: um filho. Manuel--tal foi o nome do recemnascido--de dia para dia se tornava mais robusto. Era um gosto vel os á tarde por sobre os canteiros do seu pequeno jardim, correndo com o Manuelito, e disputando entre si, qual dos dois alegraria mais a creancinha. Marianna, por esse tempo, teria uns dezoito a vinte annos, Alvaro trinta e quatro. Amor, saude, mocidade, riquezas e um filho! Que lhes faltava para serem felizes? Pelo espaço de doze annos, trabalhando mais do que as forças lh'o permittiam, afim de melhorar o futuro da creança, correu a vida de Alvaro de Mendonça, sem que uma só vez podesse D. Marianna deixar de levantar as mãos aos céus, para agradecer á Providencia o esposo que lhe havia concedido. Uma circumstancia apenas lhes toldava de vez em quando o iris da sua felicidade; eram os continuos receios que um velho primo lhes infundia, sobre a precoce intelligencia do estremecido fructo dos seus amores patriarchaes. «Não puchem pelo rapazola se o não querem ver no cemiterio, dizia-lhes elle muitas vezes. Um talento como este deve ser muito poupado. Se meu pae não me tem acudido a tempo, retirando-me do collegio, talvez lhes não estivesse agora dando este conselho. Eu fui o mesmo que o Manuelito; aprendi a grammatica portugueza de _fio a pavio_ em menos de um mez. Não percebia bem o que dizia, é verdade, mas sabia tudo de cór, que era até um gosto ouvirem-me. Sabem o que fez meu pae? Annuiu aos desejos do mestre, que era um doidinho por mim, e retirou-me do collegio para que não estudasse mais. É certo que estou hoje sem saber coisa alguma, porquanto a grammatica esquece muito, mas pelo menos tenho vida e saude, que é o principal.» A despeito d'estas e de outras judiciosas reflexões, Manuel continuou a frequentar a aula, onde era querido por todos os professores e condiscipulos. Estes, longe de lhes causar inveja o seu inquestionavel merecimento, todos á uma se ufanavam em lh'o proclamar. Aos quinze annos já tinha feito os exames de philosophia e latinidade. Quando mais venturosa sorria a existencia de Alvaro de Mendonça, coroada pelos louros de seu filho, a Providencia, como se já estivesse fatigada de lhe sorrir, fez com que o anjo da morte, descendo lentamente sobre o seu leito, lhe cerrasse para sempre os olhos. D. Marianna de Mendonça, ainda que dotada de intelligencia clara e reflexiva, faltava-lhe comtudo aquella experiencia do mundo impossivel de conseguir a qualquer senhora que, como ella, tivesse vivido apenas entregue aos cuidados de sua casa. Abatida pelo golpe que acabava de soffrer, muito fazia a infeliz viuva em administrar a sua casa de portas a dentro, e bem assim seguir a educação de Manuel, que de mez a mez fazia mais rapidos progressos, continuando a disfructar uma irreprehensivel saude, apezar de todos os prognosticos de seu primo, o ex-grammatico, que se não cançava de lembrar á viuva o absurdo da sua insistencia em que o pequeno continuasse no collegio. Entre as pessoas que ordinariamente frequentavam a casa da viuva, distinguia-se o commendador Felix Justino de Araujo, homem probo e honesto para todos que tinham a honra de lhe merecer a sua confiança, o que elle prodigamente espalhava afim de conquistar as geraes sympathias. Corriam varias edições ácerca da sua mysteriosa individualidade, chegando algumas pessoas a levar o seu arrojo a ponto de dizerem que o commendador não passava de um refinado velhaco, e que, mais dia menos dia, as suas gentilezas teriam de ser desmascaradas em praça publica; isto tudo, já se vê, proferido em voz baixa, depois de com elle terem gasto os joelhos das calças, nas respeitosas zumbaias que diariamente lhe dispensavam. É que já n'essa epocha, a raça de commendadores que hoje invade a capital começava a manifestar-se com toda a força do seu prejudicial desenvolvimento. Era muito de ver se como toda aquella gente o tractava no tocante a futeis banalidades. Riam-se uns dos outros, e todos em sua presença disputavam entre si, qual deveria ser o seu primeiro thuribulario. Uns diziam que era viuvo, outros que era casado com uma mulher de baixa esphera, de quem tinha duas filhas, porém que se não atrevia a apresental-a na sociedade, em virtude das suas maneiras pouco distinctas. A sua riqueza ninguem ao certo a poderia saber; porém o faustuoso luxo com que se tractava levava a suppôr que enormes rendimentos havia herdado da sua nobre ascendencia, cujos brazões nobiliarios fariam estremecer de inveja qualquer puritano. Uma noite em que D. Marianna de Mendonça se queixava amargamente de um certo procurador, lembrou-lhe uma das suas amigas que talvez lhe fosse conveniente entregar a administração da casa ao commendador, se elle porventura a isso estivesse resolvido, e que ella mesma lhe falaria a tal respeito. A viuva acceitou de bom grado o que a sua intima lhe propozera, e falando esta com o commendador, ao cabo de oito dias Felix Justino de Araujo tinha geral procuração para arrendar, subrogar, ou alienar qualquer propriedade, se por ventura assim o julgasse conveniente para o futuro do seu Manuel que, segundo o dizer do administrador, era tanto para elle como se fosse seu proprio filho. Não tardou muito tempo que o magnate fizesse uso de uma das condições da procuração. Uma fazenda que Alvaro de Mendonça herdára por morte de uma tia, tres ou quatro annos depois de estar casado com a filha de Manuel Pires de Athayde, foi-lhe vendida em hasta publica. A venda fôra de um excellente resultado para a viuva, segundo o commendador affirmava, porquanto o seu principal rendimento eram arvores de fructa, e essas mais anno menos anno cairiam todas ao pezo d'uma epidemia que, segundo as suas observações agronomicas, teria de grassar d'alli a tempo, assaltando todas as fazendas sem exceptuar uma unica. Em face d'esta cruel prophecia, quem se negaria a separar-se de qualquer terreno, por mais dolosa que fosse a venda? O commendador empregou esse dinheiro n'uma industria cujo dividendo deveria exceder dez por cento. Quasi todos deram os parabens á viuva pelo bom negocio que vinha de fazer, attendendo não só á grande differença do rendimento, como tambem a ter-se livrado d'esse terrivel cataclysmo, a que estava exposta conservando uma só arvore. Assim decorreram dezoito mezes sem que D. Marianna tivesse a mais pequena razão de se arrepender da plena confiança que tinha depositado no seu administrador. Por este tempo, Manuel, que havia saído do collegio, chegou se a sua mãe, dizendo-lhe que desejava partir para o Rio de Janeiro, afim de se dedicar á vida commercial, para que se sentia com decidida vocação. Recordando lhe ao principio a loucura do seu projecto, a pobre mãe ponderou-lhe a pouca necessidade de buscar em terra estranha o que já possuia na sua patria: a riqueza. Por essa epocha, os bens da casa montavam a uns trinta contos de réis, graças á herança que Alvaro de Mendonça havia recebido por morte de sua tia, e ás economias que a viuva fizera durante aquelle tempo. --Com o dinheiro que possuimos, dizia-lhe sua mãe, poderás dedicar-te ao commercio, mas aqui em Lisboa. É verdade que não tens um unico parente que te proteja, mas, graças a Deus, temos meios. Partires, e deixares-me, filho, acho que será uma grande loucura, ajuntou ella, arrazando-se-lhe os olhos de lagrimas. Em todo o caso, farás o que te aprouver. Não quero que um dia me lances em rosto que o muito amor que te consagro foi a causa de cortar a tua carreira. N'essa noite, quando appareceu o commendador, D. Marianna manifestou-lhe os desejos de Manuel. --Que vá, respondeu elle rapidamente. Seu filho é activo, audaz, intelligente e emprehendedor. Póde um dia, se Deus o ajudar, vir a ser um grande homem. Não tenho filhos, acrescentou, porém se um dia os tiver, nunca os hei de contrariar nas suas resoluções, se ellas forem justas como as de Manuel. --Mas que precisão tem elle de expôr a sua saude n'um clima tão perigoso? Trinta contos ou perto d'elles que possuimos não será o sufficiente para se viver em qualquer parte do mundo? -Porém se seu filho é ambicioso, e capricha em adquirir um capital pelo seu trabalho, é justo que sua mãe lhe impeça a sua determinação? Faça o que quizer, mas tome o meu conselho, deixe-o partir. Deus ha de guial-o, porque Manuel é bom, honesto, moral e, sobre todas estas coisas, muito trabalhador. --E que dinheiro se lhe deve entregar, sr. Felix? dez contos, quinze, vinte... que lhe parece? --Vossa excellencia está louca! acudiu apressadamente o commendador. Entregar contos de réis a um rapaz da edade de seu filho! Lançar Manuel n'um paiz como o Rio de Janeiro, proporcionando-lhe os meios de se perder! Nem por sombras! Quaes contos de réis! Com seis moedas desembarquei eu em S. Paulo, e ao cabo de doze annos possuia uma fortuna para cima de dez mil libras! Contos de réis! Só essa me faria rir! A passagem paga, meia duzia de moedas, e as cartas de recommendação que para ahi lhe entregarei, são mais do que o sufficiente. --Mas não me disse v. ex.ª que meu filho era um rapaz de juizo, honesto e moral? Que receio teremos em lhe entregar o que realmente lhe pertence? Não é elle o meu unico herdeiro? --Fará vossa excellencia o que entender, e se lhe quer entregar tudo quanto possue, faça-o; está no seu direito, e lavo d'ahi as minhas mãos. Se quer que lhe preste as minhas contas, estou muito prompto a fazel-o. Sabe que o unico interesse que tenho em tudo isto é apenas o seu bem estar, e o futuro de Manuel. Se quer estragar tudo quanto tenho feito em seu proveito, é senhora das suas acções, póde fazel-o, que desde este momento me considero desligado de todos os meus encargos. Esta linguagem, rude mas na apparencia sincera, produziu no animo debil de D. Marianna o resultado que o commendador desejava. Affeita a obedecer-lhe em tudo, havia-se deixado dominar completamente por aquelle homem que, segundo a opinião de todas as pessoas que frequentavam a sua casa, havia sido um anjo salvador. Dois annos depois da sua administração, os vinte contos de réis, que rendiam á viuva cem mil réis por mez, haviam subido a um rendimento de um conto e seiscentos por anno, graças á applicação que elle dera a esses capitaes. Quanto ao producto da propriedade, era um segredo, que mais dia menos dia seria revelado como surpreza agradavel. Que razão teria ella para o arguir de mau administrador? Estas e outras circumstancias faziam com que D. Marianna obedecesse cegamente a quanto elle lhe impunha. No dia immediato, Manuel chegou-se a sua mãe, afim de saber o que se havia passado entre ella e o commendador. --Sinto deveras que me queiras abandonar, porém se essa é a tua vontade, vae, e que as minhas orações, acompanhando-te sempre, te possam salvar de todos os perigos. Quanto a dinheiro ajuntou ella, esperançada em que o commendador se resolvesse a entregar-lhe maior quantia, dir me-has quanto necessitas. --Nunca pedi contas nem a minha mãe nem ao sr. commendador, mas supponho que não farão grande differença nos capitaes que devemos possuir quatro ou cinco contos de réis para me estabelecer, mas ainda assim, se minha mãe suppõe que essa quantia é muito avultada, contentar me-hei com menos, ou por ultimo, com aquillo que julgarem conveniente. É tudo quanto tenho a dizer-lhe, accrescentou elle, pregando os olhos no olhar turvo e entristecido de D. Marianna. No dia seguinte a viuva foi ao escriptorio do commendador e contou lhe o que passára com Manuel. Felix de Araujo, depois de a ter escutado, insistiu serenamente em que seria uma grande loucura entregar a seu filho uma quantia superior a essa de que tinham falado na vespera, repetindo porém, que estava no seu direito de fazer o que lhe aprouvesse. Todos os espiritos, por mais debeis que sejam, teem um momento na vida, em que uma circumstancia, ou um milagre providencial lhes dardeja um raio de valor. A maneira, o gesto, o olhar, com que a viuva fitou o commendador, foram sufficientes para que elle comprehendesse que todos os esforços seriam inuteis. D. Marianna estava resolvida a entregar a seu filho a quantia que elle lhe havia, senão pedido, pelo menos indicado. Não havia remedio! Era forçoso entregar esse dinheiro no momento em que lhe fosse exigido, para que se não realisassem certos boatos que lhe tinham chegado aos ouvidos, de que mais dia, menos dia, as suas gentilezas seriam desmascaradas! --Seja o que vossa excellencia quizer, disse elle, depois de alguns instantes de reflexão. Que quantia quer? --Quatro a cinco contos de réis. Como tudo o que possuo é em dinheiro, não haverá duvida em os receber por estes oito dias. --Oito dias! replicou o commendador, simulando grande tranquillidade de animo, hoje mesmo se vossa excellencia quizer; não tenho mais trabalho do que tiral-o d'aquelle cofre, ajuntou elle, apontando para um grande armario de ferro. --Posso portanto ficar tranquilla? --Póde, mas lembre-se, minha senhora, que vae fazer a desgraça de seu filho. Conheço o Rio de Janeiro, e sei o que póde succeder a um rapaz da edade de Manuel, achando-se possuidor de similhante quantia. --Será o que Deus quizer, respondeu a viuva despedindo se. Quem, momentos depois, commettesse a indiscrição de o espreitar, no pequeno gabinete do escriptorio, conheceria immediatamente pela sua perturbação, que os trinta contos de réis em que consistia a fortuna d'aquella familia não estavam tão seguros quanto ella os julgava. Oito dias depois, quando tudo estava preparado para a viagem de Manuel, sua mãe dirigiu-se a casa do commendador, afim de receber os cinco contos de réis, e encontrou-o sereno e bem disposto, mas insistindo ainda em que tão grande quantia seria prejudicial a um moço inexperiente como seu filho. --Já disse ao sr. commendador o que tinha a dizer-lhe, respondeu D. Marianna, sentando-se tranquilamente a seu lado. --Visto não haver meio algum de a convencer, queira vossa excellencia ter a bondade de me passar um recibo d'esse dinheiro. Levantando-se serena e fleugmaticamente, o commendador dirigiu se ao armario de ferro, tirou de dentro d'elle um pequeno cofre e collocou-o sobre a secretaria de que D. Marianna se tinha approximado para passar o recibo. O commendador, depois de contar os maços de notas de dez moedas, poz junto de D. Marianna os que prefaziam a quantia exigida. N'este momento a viuva acabava de assignar o recibo. --Se não fosse a profunda sympathia que vossa excellencia sempre tem sabido inspirar-me, creia que de hoje em deante, deixaria de lhe administrar os seus bens, e pedir-lhe-hia que mandasse buscar vinte e sete contos de réis que alli tenho n'aquelle cofre; digo que os mandasse buscar, porque grande parte d'esse dinheiro está em ouro e em prata, com que vossa excellencia não poderia. Não o faço, porque além de todas as outras circumstancias, affeiçoei-me ao Manuel, mais do que se elle fosse meu proprio filho, como já uma vez lh'o disse. Se algumas desconfianças começassem a agitar o espirito da viuva, todas se desvaneceriam em presença d'esta scena. Havia uma dupla intenção nas palavras do commendador: a primeira inspirar á viuva profunda confiança no deposito dos seus capitaes; a segunda, evitar ainda a entrega dos cinco contos de réis. A primeira saiu-lhe bem, a segunda não foi tão favoravel. --Então quando é a saida da galera? perguntou elle a D. Marianna. --Ámanhã, ás duas horas da tarde. --Não me comprometto a ir ao bota-fóra; ser-me-ia penoso acompanhal-o ao começo da estrada da sua infelicidade. --Será o que Deus quizer, respondeu tristemente a pobre mãe, pegando nos maços de notas e mettendo-os dentro do seu sacco de veludo. Cinco minutos depois, acompanhada pelo commendador, entrava D. Marianna para uma sege, e seguia caminho de casa. No dia seguinte, ás duas horas da tarde, desprendendo se dos braços de sua mãe, entrava Manuel de Mendonça na galera _Boa Ventura_, e ao cair da tarde perdia de vista o que ha de mais caro na vida: mãe e patria. «Acautele-se do commendador» foram as ultimas palavras que Manuel dissera a sua mãe. Ao cabo de tres mezes, a viuva recebeu uma carta de seu filho, em que lhe participava que tinha chegado depois de uma feliz viagem, e que esperava em pouco tempo estabelecer-se vantajosamente com uma casa commercial. * * * * * Assim passaram mais oito mezes. As mezadas que D. Marianna recebia de Felix de Araujo continuavam a ser-lhe entregues com a mesma religiosa pontualidade, o que fazia com que todas as pessoas que chegaram a duvidar da honestidade do commendador começassem a proclamal-o homem de evidente credito. Durou isto perto de um anno. As cartas que Manuel escrevia a sua mãe eram cada vez mais consoladoras. N'algumas, mandava-lhe dizer que os seus maiores desejos seriam tel-a a seu lado. Um dia, finalmente, escreveu lhe seu filho, mandando-lhe pedir encarecidamente que retirasse quanto antes os capitaes que tinha na mão do commendador, porque lhe tinham dado as peiores informações a seu respeito, sendo a primeira não se chamar Felix Justino de Araujo, mas simplesmente Domingos de Andrade. Afflicta com esta carta, a infeliz senhora procurou um advogado, que fôra muito amigo de seu defunto marido, e communicou-lhe os seus receios. N'esse mesmo dia, o doutor acompanhou-a a casa do commendador. Este, ao vel-a, comprehendeu immediatamente do que se tractava. --Tencionando retirar-me para o Rio de Janeiro, venho prevenir vossa excellencia de que desejo levantar da sua mão os capitaes que honestamente me tem administrado. Se não fosse o desejo de ir ver meu filho, continuaria a aproveitar me da zelosa e desinteressada administração do sr. commendador. --E sabe vossa excellencia se n'este momento lhe poderei entregar esse dinheiro? Não m'o confiou para negociar, afim de que tivesse maiores lucros do que estando na sua mão? Na vespera de seu filho partir para o Brazil, quando dei a vossa excellencia os cinco contos de réis, que me exigiu, não me promptifiquei a entregar lhe quanto aqui tivesse? Vossa excellencia não comprehende a possibilidade de que esse dinheiro esteja empregado em qualquer negocio, e de que n'esse caso me seja difficil devolver-lh'o de um momento para o outro? Felizmente não succede assim, pelo que dou graças a Deus! Quanto o estimo! Vossa excellencia, por qualquer circumstancia, deseja retirar das minhas mãos os seus capitaes, e não tem o sufficiente valor de m'o dizer de cara a cara! Pois, minha senhora, continuou elle, simulando um gesto de profundo resentimento, e levantando um pouco a voz, eu, que tenho a coragem das minhas acções, escudado pelo meu nome e pela minha honestidade, declaro aqui, alto e bom som, que sou eu que exijo, que vossa excellencia retire d'aqui os seus fundos, e quanto antes. Havia tanta dignidade nas palavras do commendador, a sua voz era tão firme, tão altivo e tão seguro o seu olhar, que D. Marianna chegou a convencer-se de que era uma ingratidão o que vinha de fazer. --Ha perto de quatro annos, continuou o commendador dirigindo se ao advogado, que eu administro os bens d'esta senhora. O seu rendimento, que não chegava a um conto e duzentos por anno, subiu a um conto e seiscentos. Uma propriedade que lhe valia o muito quatro contos de réis, vendi-lh'a e appliquei o producto d'ella n'um negocio, que rende para cima de doze por cento. Que necessidade tenho eu d'isto tudo? Tenho empregado trabalho e tempo; e preciso eu por ventura de capitaes alheios para fazer as minhas transacções? Escusado será dizer que não. Para que o fiz? Para o seu bem! Boa paga, não haja duvida. Que esta lição me sirva! Pois, minha senhora, ajuntou elle, voltando-se para D. Marianna, rogo a vossa excellencia que ámanhã, sem falta, até ás onze horas da manhã, encarregue alguem de me tomar contas, e queira vossa excellencia vir tambem, afim de me passar recibo do dinheiro que tenho na minha mão. Hoje mesmo, se lhe fosse possivel, apezar de ser tarde, muito prazer me daria. --Ámanhã aqui estarei, visto assim o exigir, respondeu D. Marianna, olhando ao mesmo tempo para o advogado, como que esperando a sua opinião. --Sendo onze horas aqui viremos, disse o jurisconsulto, despedindo se do commendador. --Que lhe pareceu? perguntou a viuva ao chegarem á porta da rua. --Um homem honesto, ferido pela ingratidão que acaba de receber, respondeu fleugmaticamente o doutor. Em todo o caso, accrescentou elle, faça vossa excellencia o que quizer; sendo dez horas estarei em sua casa. No dia immediato, conforme haviam combinado, apresentou se o advogado em casa de D. Marianna de Mendonça. Ás onze horas metteram-se n'uma traquitana, e dirigiram-se ao escriptorio do commendador. Contra todos os usos da casa ainda estava fechado. --Que lhe parece isto? perguntou D. Marianna ao advogado, com mais receio do que na vespera ao perguntar-lhe como lhe havia parecido. --Que é um homem ferido pela ingratidão, e que anda a tratar de levantar dinheiro para a embolsar d'essa quantia, respondeu elle ingenuamente. Momentos depois começaram a apparecer varios individuos. O physionomista que de perto os observasse, veria em todos elles a mesma sombra de receio que se revelava no rosto pallido e transtornado de D. Marianna de Mendonça. D'alli a duas horas ainda Felix de Araujo não tinha apparecido. --Que lhe parece isto tudo doutor? dizia a viuva ás cinco horas da tarde, olhando para o advogado, que a contemplava com uma physionomia alvar. Que é um refinado ladrão que nos deixa a todos desgraçados! accudiu um individuo que ouvira a pergunta feita pela viuva. O commendador Felix Justino de Araujo havia fechado o escriptorio. Domingos de Andrade fugira, roubando dinheiro a todos aquelles que, como D. Marianna de Mendonça, o haviam depositado nas suas mãos. Cinco dias depois D. Marianna, com a razão perdida, entrava para a casa dos doidos no hospital de S. José. II Pelos fins do anno de 1858, vivia n'uma pequena casa da Rua do Meio, freguezia de Nossa Senhora da Lapa, Jeronymo de Almeida, honrado mestre de obras, em companhia de sua mulher e de uma filha de dezeseis annos, chamada Martha. A excentricidade de caracter do operario, fazia com que todos os visinhos o detestassem. Para elle, não havia domingos nem dias santificados que o obrigassem a distrair-se do seu trabalho. A sua janella encontrava-se sempre fechada. O cultivo do microscopico jardim era a unica distracção que n'esses dias se permittia. Alli entre sua mulher e sua filha, Jeronymo mondava o pequeno canteiro de hortaliça, que duas horas depois tinha de fazer as delicias da refeição domingueira. No armario da cozinha, esperava desde a vespera a garrafa do Cartaxo que figurava á sua meza, sobria sempre, porém honradamente disfructada com o suor do rosto. Emquanto Jeronymo trabalhava no pequeno horto, Balbina, a esposa, assentada na cadeira de costura, largava apenas a agulha para agradecer a Deus o marido que a Providencia lhe havia destinado. Martha, a preguiçosa Martha como Jeronymo n'esses dias lhe chamava, escondia os ferros de engommar, para seguir seu pae, sorrindo-se e gracejando a cada passo que elle dava pelo jardim. Toda a visinhança da rua do Meio se mordia de despeito ao contemplar a beatifica tranquillidade d'aquella pobre mas venturosa familia; até uma sobrinha do sr. regedor, que se finava de inveja ao contemplar os olhos verdes de Martha, chegou a dizer ao sr. padre prior que era impossivel que toda aquella gente não tivesse grande peccado na consciencia, attendendo á constante reclusão em que vivia. O sacerdote, que conhecia o invejoso caracter da menina Gertrudes, passou de leve sobre o caso, e contentou-se apenas em responder-lhe que era tal a confiança que depositava na virtude d'aquella familia, que não teria duvida alguma, embora se sacrificasse a pôr fóra de casa a velha ama, a admittir Martha a viver em sua companhia, entregando-lhe nas mãos as chaves da dispensa, e tudo quanto possuia de mais valor. Gertrudes desanimou na lucta, contentando se apenas em desacredital-a em voz baixa, quando por ventura alguma das amigas lhe falava a seu respeito. Defronte da casa de Jeronymo morava uma pobre velhinha, que se tornava um mysterio para toda a visinhança, passando apenas despercebida da familia do operario, pouco affeita a importar-se com as vidas alheias. A apparencia de sua casa, o seu trajar emfim, tudo revelava summa pobresa, porém nunca a sua mão se estendeu a pedir o obulo da caridade. A velha costumava sair todas as manhãs a fazer as compras. Um dia a porta conservou-se fechada, e a tia Marianna, segundo lhe chamavam, não apparecia. Ou por curiosidade, ou por interesse, não faltou quem lhe batesse ao postigo. Em resposta ouviram-se apenas uns gemidos. O regedor chamou dois cabos de policia e mandou immediatamente arrombar a porta. Encontraram-n'a exanime sobre o leito. A infeliz havia adoecido com a febre amarella; foi esse um dos primeiros casos que se dera na freguezia da Lapa. Atterrados, não houve quem quizesse approximar se da enferma. Não tardou muito que o facto transpirasse por toda a visinhança. No momento em que o regedor, dois metros affastado da porta, dava as suas ordens para que fossem buscar a maca afim de conduzirem a velha ao hospital da rua do Sol, Martha, a loira Martha, saiu de casa e atravessou a rua, dirigindo-se ao logar do sinistro. --Onde vae a menina? perguntou o sr. Venancio da Conceição. --Levar esta gotta de caldo á visinha, respondeu Martha ao previdente regedor. --Não consinto similhante loucura! disse elle; a velha foi atacada pela febre amarella, e vae immediatamente para o hospital. --O que vocemecê não me póde impedir, é que eu pratique uma obra de caridade; e demais, veja se está no seu direito de mandar para o hospital uma pessoa que se póde curar em sua casa. --Essa mulher não se póde tratar em sua casa, não tem familia. --E quem lhe disse ao sr. que não tem quem a trate? acudiu Martha, afastando o regedor e dirigindo se para o interior da casa da tia Marianna. Ora essa! ajuntou ella, e se eu a quizer tratar, ha de alguem oppôr-se?! Creio que não. Com sua licença, sr. regedor; e entrando animosamente, dirigiu-se a uma alcova, onde a desgraçada, extorcendo-se em dolorosas agonias, cravava os olhos n'um pequeno crucifixo, collocado sobre uma commoda. Os cabos, regedor, e todos quantos alli se encontravam, olhavam-se mutuamente sem proferir uma só palavra. --Assim o quer, assim o tenha, disse a auctoridade, depois de alguns instantes de reflexão. Se ella fosse minha filha ou coisa que me pertencesse, por certo que não havia de lá entrar. Eu cá é que não tomo nada, acrescentou elle olhando com receio para dentro da casa. Instantes depois, saía Martha de casa da velha. --Mandem chamar immediatamente um medico, disse ella voltando-se para o regedor. Póde ser que ainda lhe possamos acudir. Pelo facto de ser uma pobre mulher, bem vê que não a devemos deixar morrer ao desamparo. E dizendo estas palavras, tornou a entrar para dentro da casa da tia Marianna. --Vá á botica pedir soccorros, disse o regedor, voltando se para o cabo geral, e que venham immediatamente; porquanto, esta mulher pelo facto de ser pobre, não devemos deixar morrer ao desamparo, ajuntou elle, secundando as palavras de Martha, e repetindo-as como se fossem suas proprias. O cabo geral, sem mais hesitar, voltou as costas aos circumstantes, e resmungando subiu a rua do Meio, dirigindo-se aonde a auctoridade o havia mandado. Não tardou muito que á porta da tia Marianna se ajuntasse um circulo de curiosos. As visinhas a quem o terror da cruel epidemia havia infiltrado nos animos o mais terrivel desalento, debalde vociferavam contra a estulta caridade de Martha, e a pueril condescendencia do regedor, em annuir aos desejos da filha do mestre de obras. Revestindo-se emfim de todo o seu poder, o sr. Venancio da Conceição convenceu o auditorio, repetindo-lhe pela segunda vez, que, pelo facto da tia Marianna ser uma pobre, não a deviam deixar morrer ao desamparo. N'este comenos, appareceu o mestre Jeronymo. --A sua filha está doida de todo! diziam uns. -Já tres vezes que vamos avisar a sr.ª Balbina para que a retire d'aquella casa e ainda não houve meios, acudiu uma ajuntadeira de calçado, que nem por isso gozava de muitos bons creditos na visinhança. --Que loucura! que loucura! dizia a capellista. --Parece que está a zombar da cholera do Senhor! acudiu respeitosamente a tia Monica, beata que vivia de resas por conta das fidalgas de Buenos Ayres, quando os seus affazeres não lhe permitiam conversar com o Todo Poderoso por conta propria. --Se Deus a arrasta ao leito da moribunda, elle mesma a salvará, respondeu fleugmaticamente mestre Jeronymo, lendo-se-lhe, apezar de tudo, um certo receio pela vida da criança que estremecia. --Muito estimo que assim penses, acudiu Balbina, que saira n'este momento de casa. O mesmo pensei eu quando Martha me foi pedir uma gotta de caldo; entregando-lh'o, entreguei a a Deus. --Pois olhe, sr.ª Balbina, disse a capellista, fosse ella minha filha, não lh'o consentia. --Cada qual tem o seu modo de pensar, sr.ª Margarida, e Deus fez-me assim; mas deixemo nos de mais dize tu, direi eu, e vamos a ver o que se poderá fazer por aquella infeliz. E sem mais reflexionar, entrou n'esse recinto mortuario, por onde momentos antes sua filha havia desapparecido. --_Avé Maria, cheia de graça, o senhor é comvosco, benta sois vós_, dizia a beata. Forte impostora! accrescentou ella; aquillo não é senão para se fazer valer na visinhança. III Meia hora depois d'esta veridica scena, que acabamos de descrever, appareceu o medico. --É alli, disse-lhe o regedor, apontando para a porta da tia Marianna. --Siga me, disse o doutor, voltando-se para a autoridade. O lance era fatal, não havia que hesitar. Amaldiçoando n'esse momento a má estrella, que o conduzira áquella posição, com as faces lividas de susto e de terror, o sr. Venancio seguiu o medico. Junto ao leito de Marianna, fazendo lhe uma fricção nos joelhos, Martha, a filha do operario, debalde tentava chamar á vida essa que, n'um olhar turvo e desvairado, parecia contemplar lhe a angelica formosura. Balbina, com um pequeno frasco chegado ao labio superior da enferma tentava fazel a aspirar o conteùdo do vidro. De pé, contemplando este doloroso quadro, Jeronymo pedia a Deus se compadecesse de sua familia. Approximando-se da enferma, o medico tomou-lhe brandamente o pulso, e voltando-se em seguida para Martha, pediu-lhe uma véla, afim de melhor analysar a vista da moribunda. --Encontro-a muito debil, disse o esculapio em voz baixa; é de suppôr que não a possamos salvar; comtudo, far-se-ha a diligencia, ajuntou elle cravando os olhos no rosto pallido e abatido de Martha. Abrindo em seguida a caixa dos medicamentos, começou de applicar lhe os que o seu estado exigia. --Esta senhora pertence á sua familia? ajuntou o medico voltando se para Jeronymo. --Não, senhor; comtudo minha filha interessa se muito por esta desgraçada; e se não fosse Martha, talvez a tivessem mandado para o hospital. --Se a teem removido d'este leito, ao chegar lá seria um cadaver, retorquiu o doutor, palpando a fronte da enferma. --Parece lhe que poderemos ter esperanças? perguntou Martha, approximando se do leito. --Veremos á noite. Sendo sete horas, se poder, voltarei; e, despedindo-se dos circumstantes, saiu d'aquella casa, levando impressa na memoria a imagem candida e celeste da filha do operario. Os moveis da tia Marianna reduziam se ao pequeno leito de espinheiro onde jazia, uma enorme papelleira, um bahu, e quatro cadeiras de palhinha, completamente estragadas nos assentos. Roupas, se as havia, estavam fechadas; e nem ella lh'o podera responder, nem era dado a Balbina o perguntar-lh'o n'esse momento. Dirigindo se a casa, trouxe d'alli quanto necessario lhe pareceu afim de alliviar no que podesse os incommodos da enferma. --Sempre lhe gabo a pachorra, disse a sr.ª Margarida, ao ver os lençoes alvos como a neve, que a mulher do operario levava no braço. Estar estragando assim as suas roupas brancas com quem pouco póde viver! Não era eu, que Deus me livrasse! E demais, sr.ª Balbina, uma pobre de Christo como a tia Marianna, mais lhe valera o ir para o hospital. Supponha a senhora que fica para ahi entrevada, quem ha de sustental-a? --Deus nunca faltou a pessoa alguma, sr.ª Margarida; e demais, cada qual que se metta com a sua vida, que eu pela minha parte nunca me intrometto com as alheias, respondeu Balbina, cortando pelo fio as palavras da capellista, e dirigindo-se para casa da tia Marianna, onde a esperavam Martha e seu marido. A velha havia recobrado a razão, e sorria-se brandamente para a filha do operario, como se n'aquelle olhar significativo estivesse agradecendo a Deus o anjo que a Providencia lhe havia deparado n'esse momento de suprema angustia. Jeronymo e Balbina, assentados n'um bahu, olhavam para aquelle quadro enternecedor, pedindo ao mesmo tempo nas suas preces silenciosas que lhe livrassem sua pobre filha. Meia hora depois de arranjada a cama, a velha sentiu-se mais alliviada. As horriveis dôres por que passara, iam-lhe diminuindo a pouco e pouco, e á face, de pallidez mortal, subira-lhe de novo o calor e a vida. Nem uma só das visinhas, approximando se á sua porta, foram pelo menos indagar o estado da sua doença. Ás sete horas, como o havia promettido, voltou o doutor. A enferma estava livre de perigo. IV Oito dias depois, com grave assombro da visinhança, a tia Marianna, envolta n'um capotezinho azul, apparecia de novo á janela da sua casa. Os effeitos da febre amarella haviam-lhe passado desapercebidos pela sua organização de ferro. Ao vel-a, ninguem poderia acreditar que essa mulher, aos sessenta e seis annos, podesse haver resistido aos golpes d'uma doença, que tanta gente nova e robusta ceifára n'aquellas immediações. Todos viam na sua convalescença, começando pela beata, um favor da Providencia; e nem uma só bocca se abriu para dizer, quanto a dedicação da pobre Martha ajudára aquelle verdadeiro milagre. Almas vis e denegridas que não comprehendeis o bem, como poderieis soltar a voz para elogiardes a virtude, se nos vossos corações não existe mais do que a inveja e a podridão! Sem valor de praticardes o bem, fere-vos o goso que experimenta o coração, que se entrega aos deleites da caridade. A apotheose do proximista, echoando nos ouvidos do misanthropo, deve produzir-lhe um effeito atroador, como o som do ouro espalhado pela pobresa, no tympano do avarento. Ninguem da visinhança se atrevera a soccorrer a pobre doente, ninguem repartira o seu jantar com a infeliz; porém, quando a viram de pé, salva, proclamando por toda a parte o quanto era devedora á familia do operario, todas as visinhas, consumindo-se de inveja, lhe voltavam as costas para não ouvirem os elogios que a velha do coração lhe prodigalizava. Desde esse momento, a pouca affeição que todos consagravam á familia de Jeronymo, tornára-se em decidida aversão. Começando pelo sr. regedor, e acabando na sr.ª Margarida da Silva, ninguem podia supportar aquella pobre gente, que, fechada quasi sempre em sua casa, de mais coisa alguma se importava a não ser dos seus arranjos domesticos. Quanto mais a tia Marianna proclamava em alto e bom som as virtudes de Martha, maiores antipathias ia inspirando a filha do operario. Quando, acompanhada por sua mãe, saía aos domingos para ir á missa da Lapa, as visinhas zombavam sempre ao vel-a passar. Hoje, porque o seu lenço estava mal engommado, ámanhã porque o seu capote de panno azul já começava a mostrar o fio. A pobre victima fazia que nada percebia dos continuos gracejos que contra ella dirigiam. Chegou a pedir a sua mãe, por tudo quanto havia, que não a obrigasse a ir á missa das onze. --Que te importa o que diz toda essa gente? exclamava ás vezes o sr. Jeronymo. O que elles têem é inveja do teu comportamento. Não tardará muito, se Deus quizer, que tenha ahi uns _ganchosinhos_ que me devem render um par de moedas, verás então como lhes hei de fazer estalar a castanha na bocca, quando te virem o bom capote aos hombros, e o bom cordão de seis moedas ao pescoço. --Pouco me importa com o que elles dizem, respondia lhe Martha. Não tenham de abocanhar no meu credito, o mais, tanto se me dá como se me deu. O que eu queria era ajudar a pobre velhinha. --Pois tambem não tardará muito que lhe façamos algum bem, respondeu o mestre Jeronymo, como se um pensamento lhe acudisse ao espirito. Ámanhã tenciono ir a casa de tua madrinha, para que ella lhe possa obter alguma esmola da senhora Condessa. Que te parece, Martha? Continuou o mestre de obras, cravando os olhos no rosto candido de sua filha, e revelando no gesto o prazer que lhe ia n'alma, ao comparal-a com todas as raparigas suas visinhas. --Muito estimarei que isso não fique no rol dos esquecimentos, respondeu a criança sorrindo-se ternamente para seu pae. Salvamos a pobresinha da morte, é mister não a desampararmos, nem deixal a morrer de frio ou de fome. --De frio não morrerá ella por certo, acudiu Balbina, collocando o ferro de engommar sobre o descanço. Ainda esta manhã lhe dei o capote que punhamos no leito. --Quer dizer, interrompeu Jeronymo, que de hoje em deante... se tivermos frio... --Que nos havemos de contentar com os cobertores, respondeu a caridosa Balbina, tornando a pegar no ferro, e approximando-o da face para lhe calcular o calor. --Seja o que vossês quizerem, que eu, pela minha parte nunca as reprehenderei por qualquer acção boa que praticarem; e já que tivemos a felicidade de salvar a vida d'essa infeliz, é justo não a deixarmos agora morrer ao desamparo. Estou da opinião da Martha. --Ou eu me engano muito, ou a tia Marianna já teve melhores dias, disse Martha. Ha na sua vida algum mysterio que ella nos encobre, mas que, apezar de tudo, adivinhamos, respondeu Martha, com aquella intuição particular que tantas vezes se encontra no coração da mulher. --O mesmo penso eu, ajuntou mestre Jeronymo. Nunca fui homem que frequentasse estas casas, porém reconheço ás vezes um não sei quê nas maneiras da tia Marianna, que me levam a crer que os seus principios não foram como os nossos; e tenho cá na mente, que mais dia menos dia tudo se ha de descobrir. Quando vossês hontem foram levar aquellas camisas a casa da fregueza, e que fiquei aqui em sua companhia, ainda mais me convenci das minhas suspeitas. «Sr. Jeronymo, disse me a tia Marianna, quem sabe se um dia a Providencia, lembrando se de uma desgraçada que abandonou sobre a terra, a tomará de novo debaixo da sua protecção. Se tal acontecer, lembre-se do que lhe digo hoje, nunca serei ingrata para uma familia a quem tanto devo.» Ora, além d'estas palavras serem proferidas, sim... assim como o outro que diz, com uns certos modos finos e delicados, levam-me a pensar que a tia Marianna não é, nem nunca foi o que parece. Em todo o caso, seja ella quem fôr, tem precisão, é necessario soccorrel-a, e hoje mais do que nunca, quando a inveja a começa a perseguir. Vejam lá a capellista! Até essa mesma, que eu suppunha tão virtuosa, como se uniu a todas as visinhas para lhe cortarem na pelle, mais a ti, minha filha! Valha nos Deus, que mundo este! ajuntou o mestre de obras, dirigindo-se para a cosinha, em cuja chaminé Balbina lhe havia posto a ceia a aquecer. N'este momento bateram apressadamente ao postigo. --Que teremos? disse Balbina. Martha levantou-se, e ao reconhecer a voz que da rua lhe falava, abriu immediatamente a porta. Era a tia Monica. --Deus seja comvosco n'esta casa, e que o Senhor lançando sobre nós a sua divina benção, queira proteger a mais santa e a mais virtuosa de todas as familias, disse a beata. Acaba de ser atacada pela febre amarella a nossa visinha Margarida, ajuntou ella. No momento em que me estava vendendo um vintem de meio grosso, a colera de Deus desceu sobre a peccadora e alli jaz sem protecção nem abrigo, porquanto todas as visinhas receiam que tambem o Senhor as castigue pelos actos que teem praticado sobre a terra. Venho pedir a vossemecê, sr.ª Balbina, que se compadeça d'essa desgraçada, e que me empreste esse milagroso frasquinho com que tornou á vida a tia Marianna. --Não foi o remedio que lhe deu minha mulher que fez com que a tia Marianna melhorasse, acudiu o mestre Jeronymo, que da porta da cosinha ouvira as exclamações da beata. Façam o mesmo que fez minha filha. Vão chamar o sr. regedor e peçam-lhe que mande immediatamente buscar-lhe os soccorros, ajuntou o mestre de obras com modo aspero e descontente. Quanto ao frasco, continuou elle, voltando-se para sua mulher, podes emprestar-lh'o se é da tua vontade, porém servir-lhe de enfermeira, maletas me dêem se em tal consinto. Bem basta o que basta, sr.ª Monica. Para outra qualquer pessoa talvez que nem fosse preciso que me pedisse por duas vezes, mas para a sr.ª Margarida! Nem que me pezassem a ouro, ou que santo me fizesse o sr. padre prior. Estou farto e mais que farto da ingratidão, sr.ª Monica. Não foi a sr.ª Margarida a primeira a cortar na pelle de minha filha, por ella ter ido acudir á tia Marianna? E não foi só ella como tambem as outras visinhas! Pois agora que se aguentem como melhor lhes parecer. Que se ajudem umas ás outras, que eu pela minha parte, não consinto que lá ponham o pé, nem minha mulher nem minha filha. [Ilustração: N'este momento a viuva acabava de assignar... (_pag. 15_)] --Cruzes! Credo! Mãe Santissima! Que modos, sr. Jeronymo! E eu que julgando-o um Santo, me atrevi a vir a sua casa. Que a ira de Deus descendo sobre esta morada castigue o maior de todos os peccadores, resmungou a tia Monica á medida que se approximava da porta por onde momentos depois saía apressadamente, olhando ao mesmo tempo para Jeronymo, cujo olhar, incendiado pelo desespero que a praga lhe havia produzido, incutia certos receios no animo da corretora de orações. --Que lhes pareceu o traste? perguntou o mestre Jeronymo depois de alguns momentos de profunda reflexão. --Se meu pae me deixasse ao menos ver o estado em que se encontra essa pobre mulher?... perguntou ingenuamente a caridosa Martha. --Nem por sombras, respondeu o operario. Vamos pedir a Deus pela saude, e depois descançarmos o corpo para o trabalho de ámanhã. Momentos depois, ouvia-se apenas em casa do operario o ciciar d'esta curta, mas eloquente oração: Bom Jesus, todo Poderoso, Filho da Virgem Maria, Soccorrei-nos esta noite E ámanhã por todo o dia. Se na terra não coubermos, Levae-nos Senhor aos céos, Rogae por nós peccadores, Virgem Santa, Mãe de Deus. V Havia dias que tinha chegado a Lisboa, vindo do Rio Grande do Sul, um abastado capitalista por nome Tristão de Almeida, segundo rezava o seu passaporte. Acompanhavam-n'o sua mulher e duas filhas. Trazia apenas tres cartas de recommendação, uma para o visconde de Coruche, outra para o commendador Lopes de Miranda, e a terceira para a casa bancaria de Vaz Mendes e C.ª, extraordinariamente acreditada n'esta capital, não só pela notavel amabilidade dos seus gerentes, como pelo facto de já ter fallido tres vezes. O visconde, o commendador e o banqueiro abraçaram gostosamente o seu recommendado. Como bons farejadores reflectiram que a caça era rara de mais para se abandonar por essas mattas de Lisboa, onde o genero tanto escasseia. Disputada calorosamente entre todos tres a preza que promettia dar para succulenta refeição, transigiram, promettendo, como quaesquer jogadores da vermelhinha, que dividiriam entre todos os despojos da caçada. Deixando-se de vogar na torrente de eternas adulações, Tristão de Almeida olhava para as facecias dos seus aduladores com aquelle olhar de experimentada velhacaria com que todo o homem do mundo se deixa levar, quando, porventura, no amago das lisonjas que lhe disparam, antolha, ou pelo menos fareja o mais leve indicio de estremado calculo. Sem patentear a sua intelligencia ou, ainda mais, deixando-se passar por zote, Tristão ia cercando de lisongeiras esperanças o filão d'essa inexgotavel mina que os tres inseparaveis amigos julgavam descobrir na sua aurifera individualidade. Mulher e filhas ainda não haviam entrado em scena. Constava porém que uma das meninas era de formosura extrema, e d'uma superior intelligencia. Não tardou uma semana que esse homem, ou para melhor dizer esse mysterio fosse discutido em todos os circulos. Quem era? Qual o seu passado, ninguem o sabia; ao passo que elle conhecia a todos, e de todos sabia as chronicas. Se este, antes de ser visconde de tal era apenas Manuel Pinto com barracas de fressureiro, se aquelle, antes de barão, empregava a casca de polvo para tirar em baixo relevo a vera effigie de qualquer monarcha, ensaiando por esta forma a sua industria até conseguir a tiragem por meio do balancé; se aquell'outro, profundo amador do sexo fragil, tivera casa de alcouce no Brazil com o unico fim de matar o tempo. Tristão de Almeida sabia o passado de todos, e todos ignoravam o seu preterito. «É forçoso votar uma quantia para estes tres individuos, pensava elle, passeiando pela varanda do hotel e contemplando as aguas do Tejo que pareciam conhecel-o e sorrir-lhe. Se com vinte ou trinta contos de réis se contentam, satisfarei os seus desejos e poderei conseguir os meus fins. Graças a sir Francis Strolopp, tornei-me desconhecido.[1] Hoje pessoa alguma poderá descobrir que antes de ser Tristão de Almeida fui Felix Justino de Araujo como antes de ser Felix Justino de Araujo fôra Domingos de Andrade. «É forçoso que me arranjem um titulo pelo menos de visconde. Quero ver minha mulher viscondessa, tenho n'isso o maior de todos os meus caprichos. Não que me seja preciso, para casar minhas filhas é-lhes sufficiente o seu dote de duzentos contos de réis. Brevemente encontrarão algum fidalgo arruinado, que tenha por unicos restos de grandeza o seu titulo, e isso... é genero que abunda muito em Portugal. Está decidido, quero um titulo. Começarei por ser apresentado em casa de alguma senhora protectora d'essas escolas de caridade, e dar-lhe-hei uma avultada esmola, afim de a applicar aos seus protegidos. Mas agora me recordo, ajuntava elle, desencostando-se do parapeito da varanda; o ensejo é favoravel. A febre amarella, levando a desgraça a centenares de familias, enlucta-lhes as suas habitações. Vou fundar um hospital. Serei o anjo dos tristes! Beatifica-te, Domingos de Andrade. Eleva-te aos olhos de Deus, Felix de Araujo. Derrama esse ouro que tanto te custou a adquirir, Tristão de Almeida, e serás um dia aquillo que te aprouver.» N'este momento, bateram á porta da sala. Tristão mandou que abrissem, e entrou um criado annunciando o visconde de Coruche. --Que entre, disse lhe Tristão de Almeida retirando-se da varanda e dirigindo-se para o salão. O visconde era um homem de cincoenta annos, mas que parecia ter quarenta quando muito. Dotado d'uma inteligencia regular, já pelos dotes physicos de que Deus fôra prodigo para com ele, já pela riqueza de que por duas vezes havia disposto, era ainda, apezar da sua decadencia, o primeiro rapaz d'esta terra, onde se não envelhece antes dos setenta e seis a setenta e sete annos, graças á temperatura do seu clima. Quando entrava no Marrare de Polimento, toda a moderna geração se curvava deante d'aquelle que havia sido o chefe da velha guarda. Não havia rapaz que não escutasse avido de curiosidade as mil aventuras que se haviam dado n'aquella existencia tumultuosa. Havia sido o terror da banca portugueza no salão do theatro de S. Carlos, como na caixa do mesmo theatro fôra o invejado emulo de todos os seus contemporaneos, em resultado das innumeras conquistas que em cada epocha se permitia. Ninguem montava como o visconde! Os seus cavallos eram os primeiros de Lisboa. Tivera por sotas da sua magnifica sege o Feliciano e o Bem Bom! Aos vinte anos, casara-se com uma prima, a filha do conde de ***. Quinze dias depois, n'um camarote de primeira ordem da Rua dos Condes, estava a viscondessa e defronte dela, noutro camarote da mesma ordem, miss Ellen Barkshead, voltando de vez em quando o rosto para a rectaguarda para melhor falar com o marido da viscondessa. Como se vê, era um homem completo. Dois anos depois entregou a viscondessa a sua meia alma a Deus deixando sobre a terra a outra metade, para ser previamente repartida por uma multidão de mulheres que disputavam entre si o voluvel coração do visconde. Extravagante mais por indole do que por ostentação, o fidalgo deliciava-se nos encantos dos seus desvarios, saboreando as commoções que d'elles lhe resultavam, com o mesmo deleite com que o gastronomo delicia o palladar nos prazeres d'uma variada mastigação. Era o verdadeiro sybarita da estroinice. Senhor d'uma casa de vinte contos de renda, não tardou muito que a visse desbaratada em custosas viagens. Aos trinta annos estava pobre! Tinha por unico recurso a morte de um tio de quem era herdeiro forçado, porém a pertinaz saude do velho fazia com que o pobre visconde estivesse quasi a esmorecer no caminho da vida, onde se assentava desanimado, como o peregrino, a quem o desalento feriu no começo da sua jornada. Um dia, finalmente, o velho aristocrata, mais talvez para acceder aos ardentes desejos do seu arruinado sobrinho do que para descer aos abysmos do inferno, que por direito de conquista lhe pertencia, cerrou brandamente as palpebras, e partiu d'esta para peior, segundo a opinião das suas victimas, deixando por seu universal herdeiro o visconde de Coruche. As privações porque este passára foram completamente esquecidas desde que se encontrou novamente possuidor d'um vinculo cujo rendimento excedia seis contos de réis, e esquecidos tambem se julgaram os seus crédores, porquanto lhes foi necessario lançarem mão de meios pouco brandos para adquirirem, senão a totalidade do devido, pelo menos o capital confiado ao visconde, com juro modico e rasoavel. O fogo d'aquella eterna juventude, amortecido durante cinco annos de amargura, reanimou-se então com todo o esplendor do seu brilho! O visconde tornou a entregar-se a todos os prazeres, com o ardente desejo de quem apenas se recordava d'elles. A sua vida era um mysterio. Todos os dias se dizia que estava arruinado, porém tanto a casa como o trem conservavam-se como no tempo do apogeu da sua riqueza. D'onde lhe viria o dinheiro para tanto? Eis o misterio que a pessoa alguma era dado descortinar. Ao cabo de alguns annos, o vinculo que herdára teve o mesmo resultado que havia tido o que seus pais lhe deixaram, porém desta vez a situação era mais difficil, não tinha parente algum para quem apellar. Não podendo recorrer aos mortos, decidiu-se a explorar os vivos. Escudado pela prestigiosa fama que o acompanhava, fez do seu nome uma industria. Os rapazes que entravam na sociedade desejavam todos ser-lhe apresentados. O visconde conhecia isto, e, esquivando-se a principio, anuia finalmente, não sem mostrar quanta honra ele lhes dispensava colocando-os no rol de seus intimos. Todos á uma dariam metade do que possuiam para se tratarem por tu com o visconde, no que ele era assaz difficil; a sua intimidade era um genero de superior qualidade para que muitos se podessem ufanar de o possuir. Ainda que as suas gentilezas eram por todos conhecidas, todos ou quasi todos lhas desculpavam. Estimado nos principais circulos onde aparecia, nem uma só pessoa se atrevia a dar-lhe a mais pequena mostra de desconsideração. Foi pois o visconde um dos tres individuos a quem Domingos de Andrade, ou o commendador Felix de Araujo, ou Tristão de Almeida, para maior exactidão desta veridica historia, foi apresentado. --Quanto estranhei não o ter encontrado hontem no theatro, meu caro amigo, disse o visconde, reclinando-se commodamente n'uma poltrona. Ha muito tempo que não vejo S. Carlos tão brilhante. O tenor, como sempre, cantou admiravelmente. E no que diz respeito ás toilettes, não póde calcular, e impossivel seria descrever-lh'as. Felizmente não se tem espalhado muito o panico em Lisboa. O cholera de 1833, de que eu tenho uma vaga reminiscencia, aterrorizou muito mais os habitantes do que esta innocente epidemia. Ha um tempo a esta parte, tudo aqui em Lisboa é pobre e acanhado. Da febre amarella, diz-se: tem morrido muita gente; do cholera, dizia-se com espanto: assim mesmo tem escapado alguem. Isso é que foi uma epidemia, meu amigo. --Assim ouvi dizer. N'essa epocha estava eu em Buenos Ayres, respondeu o commendador, notando ao mesmo tempo a estudada desenvoltura com que o visconde o tentava seduzir. Pois eu hontem não fui a S. Carlos, ajuntou elle, por ter tido minha filha alguma coisa indisposta. --N'esse caso fez muito bem, sr. Tristão. O tempo não está para brincadeiras. Eu mesmo, que tenho uma saude de ferro, se n'este momento sentisse a mais leve indisposição, começava por me tractar como estando realmente ameaçado pela epidemia. Em primeiro logar está a nossa saude. Prefiro-a a tudo, até á riqueza. --Porêm quando se reunem essas duas venturas... acudiu Tristão de Almeida, simulando um gesto de pueril ingenuidade. --Então o mundo é um verdadeiro paraiso, pelo menos assim o julgo. Muitos rapazes que por ahi conheço possuem, como eu, saude e dinheiro. Encontro-os sempre curvados ao pezo de uma terrivel fatalidade. Nunca se consideram felizes! Fazem da melancolia a sua companheira inseparavel, e dando-se ares de Antonys, arranjam um farnel de desventuras, e vão com elle por essas ruas da capital armando á compaixão das suas Lesbias. Eu sou o contrario; a minha alegria é chronica. Se eu não tenho coisa alguma que me entristeça, para que demonio hei de dizer mal do mundo que tantos deleites me faz experimentar? --Sou da sua opinião, sr. visconde. O mundo é apenas mau para os tolos, ainda que ha muita gente que diz o contrario. Quem dispozer de boa saude e tiver alguns meios, deve pedir a Deus que o conserve largos annos sobre a terra. Mas voltando agora a outro assumpto, ajuntou Tristão de Almeida, que já começava a impacientar-se, como o leitor, do estirado dialogo do visconde; quanto estimo que me tenha dado a honra d'esta visitasinha, não só pelo prazer da sua companhia, como pela necessidade que tenho de lhe falar. Preciso um conselho seu. --Um conselho meu! exclamou o visconde profundamente admirado. É a primeira pessoa que m'o pede! Todos me chamam um rapaz extravagante, continuou elle, olhando ao mesmo tempo para um espelho que lhe ficava fronteiro; vossa excellencia quer guiar-se pela minha opinião? Provavelmente trata-se da compra d'algum palacio, e alguem houve que teve o mau senso de lhe dizer que eu era um homem de gosto. --Nada, não se trata d'isso. --Então, provavelmente, quer me consultar ácerca da mobilia, ou das carruagens, ou dos cavallos? --Tão pouco, respondeu serenamente Tristão de Almeida. Isso ficará para mais tarde. Por agora trata-se apenas de uma obra de misericordia;--fazer bem aos desgraçados. --Se tal fôr, acho muito justo, e desde já me offereço a ajudal-o em tudo quanto me seja possivel. --Sentemo nos, disse Tristão apontando lhe para o sophá. Minha esposa, que tem o habito de empregar na pobreza a mezada que lhe dou para os seus alfinetes, lembrou-se ha dias de gastar uns contos de réis n'um asylo de creanças desvalidas. Que lhe parece a idéa? --Não a póde haver melhor, respondeu o visconde, e se vossa excellencia m'o permitte, desde já me comprometto a fazer com que minha tia, a sr.ª condessa de Villa Velha, venha immediatamente procural-o afim de o iniciar n'essas associações. Recordo me d'ella, porquanto é uma das mais assiduas obreiras do grande monumento da caridade. Não ha asylo para que não seja consultada e é sempre a sua opinião a que prevalece sobre todas as outras. Se vossa excellencia quer, o meio é muito simples, e torno a repetir-lhe, hoje mesmo me encarrego de tudo. --Pois meu caro amigo, acudiu fleugmaticamente Tristão de Almeida, não me associo á opinião de minha mulher nem á sua. Tenho outra idéa, e creio que será muito mais razoavel. --Sim?... --É verdade. Lembrava-me de fundar um hospital para os enfermos atacados de febre amarella. Isso em primeiro logar; depois, quando este terrivel flagello tiver abandonado Lisboa, então sim, então adoptarei a idéa que teve minha mulher. --Approvo, e desde já devo confessar que tanto eu como sua excellentissima esposa ficamos completamente vencidos. --Approva? --Applaudo. --E dispensa-me a sua protecção n'esta pequena obra de caridade? --Conte commigo, respondeu o visconde puxando pela charuteira e offerecendo um magnifico havano ao seu interlocutor. --Poderemos hoje mesmo começar os nossos trabalhos? perguntou Tristão de Almeida, acceitando o charuto que lhe fôra offerecido. --Quando queira, respondeu o visconde de Coruche, tirando da algibeira do collete uma caixa de phosphoros magnificamente cinzelada. --Vamos então procurar o commendador e seguiremos d'alli para casa de Vaz Mendes. Tanto um como o outro é de suppôr que nos possam ajudar em muito. --Assim o creio, murmurou o visconde, accendendo o charuto e passando-o a Tristão de Almeida. * * * * * Momentos depois entrava este para dentro do trem do visconde. Quando a carruagem saia o portão e voltava para a rua do Ferregial, espantou-se o cavallo da sella, e esbarrando no passeio, atropellou um individuo, deixando-o sem sentidos. Sairam ambos e levantaram o desgraçado. Pegando elles mesmos no corpo inerte da victima, transportaram n'a para o hotel de Bragança. Tristão de Almeida expediu logo dois creados em procura de medico. Por excepção, o doutor não tardou meia hora!... Das feridas que o atropellado recebera na cabeça nenhuma era de gravidade, comtudo não havia tornado a si. Tristão de Almeida, com a mão do enfermo entre as suas, parecia com profundo interesse procurar-lhe a vida nas pulsações. Seria calculo ou verdadeira caridade? Sabia o Deus! Terminado o curativo, o homem descerrou as palpebras, fitando o que havia em torno de si com olhar turvo e desvairado. É melhor deital-o immediatamente, não lhe sobrevenha alguma congestão, disse o doutor tomando o pulso do enfermo. Depois de ordenarem ao criado de mesa que arranjasse um quarto, Tristão de Almeida e o visconde levaram em braços o ferido e deitaram-n'o sobre um leito, pedindo ambos ao medico que voltasse antes da noite. --Começa hoje a espalhar as joias da sua caridade, disse-lhe o visconde com falsa ingenuidade. --Quizera antes ter perdido dez ou doze contos de réis do que ter sido causa de similhante desgraça, respondeu-lhe Tristão. Agora, sr. visconde, ajuntou elle, emquanto vamos tratar dos nossos negocios, será bom recommendar a minha mulher e a minhas filhas que venham para a cabeceira do ferido. --Será uma grande alma, pensava o visconde. --Foi um magnifico prologo, dizia comsigo Tristão. Meia hora depois dirigiam-se ambos para casa do commendador. [Nota de rodapé 1: Tristão de Almeida lera a preclarissima obra de sir Francis Strolopp, e procurando um celebre chimico allemão, conseguira que este lhe transformasse a physionomia a ponto de se tornar desconhecido de si mesmo.] VI --E já lá vão as cinco, as seis, e as sete, e Jeronymo sem chegar! Virgem Santissima que lhe terá acontecido? Isto dizia a infeliz Balbina, olhando ora para o relogio, ora para uma pequena imagem de Nossa Senhora da Conceição, defronte da qual ardia a luz frouxa e melancholica de uma lamparina de azeite. --Ha dezoito annos que somos casados, continuou ella voltando se para a tia Marianna, e nunca tal me aconteceu! E sobretudo n'este tempo! Quem nos diz que elle foi atacado pela febre, e que o levaram; morto talvez; morto, o meu querido Jeronymo? Deus permitta que Martha se não demore. Ella já tinha tempo e mais do que tempo para voltar. --Não se apoquente, sr.ª Balbina. D'aqui á rua de S. Francisco não é tão perto como julga, e demais ainda não ha uma hora que foi. Coitadinha! Desacostumada como está de andar por essas ruas! Porque não havia de me ter deixado ir em sua companhia? Valha-nos Deus! Não ha senão desgostos para os que são bons como vossemecê. --Isso é coisa sabida, tia Marianna; parece que quanto mais a gente quer--como o outro que diz--estar nas graças de Deus, mais o demo que as tece está puxando pelo fio da felicidade! Eu estou como doida! Se Martha se demora mais algum quarto de hora, sou eu quem os vae procurar a _ambos e dois_. Vossemecê fica aqui para o que der e vier, ajuntou a pobre Balbina, passeiando desassocegadamente de um para o outro lado do quarto. --Ainda não tem razão para estar dizendo mal á sua vida. Quem sabe se ambos se encontraram?... --Tenho na mente que não, sr.ª Marianna; e demais, não sei o que me diz o coração. Parece que tudo se está preparando para que haja n'esta casa uma grande desgraça. Se a minha amiga visse a maneira por que hoje nos olhou a tia Monica! Não lhe bastou ter-nos rogado a praga que nos rogou... --Ora deixe-se d'isso, sr.ª Balbina! Não creia em bruxarias. Deus é bom de mais para conceder similhante poder aos mortaes. --Se ouvisse como hoje esteve a _ouviar_ a minha cadella! Diga-o ella! Por mais que pozesse as cadeiras de pernas para o ar, e que voltasse um sapato de solla para cima, não houve meios de fazer com que se calasse o pobre animal! Eu bem sei que tudo isto são coisas, como o outro que diz, que não vem nada ao caso, mas a gente cá tem os seus enguiços, e desgraçadamente a maior parte das vezes saem certos como dois e dois serem quatro. --Pois sim, pois sim, socegue a minha boa amiga, e verá que não tarda muito que os veja entrar por essa porta. É preciso que a gente não seja tão desanimada. De que nos serviria a religião se nos não desse conformidade? Estar agora duvidando da graça de Deus, porque seu marido se demora mais duas ou tres horas! --E como explica vossemecê o elle não ter vindo jantar? --Quem sabe lá se encontrou o seu ganchosinho com que podesse ganhar algum vintem? Ignora vossemecê o seu genio? Aquillo é uma formiga para a familia. Parece-me que se o dia tivesse quarenta e oito horas, quarenta e oito horas seria capaz de trabalhar por dia. N'este momento bateram á porta e a voz de Martha soou melancholicamente atravez das fendas do postigo. Balbina ergueu-se rapidamente para lhe abrir a porta. Martha vinha desfigurada. --O pae, disse ella entre soluços, saíu da obra ao meio dia para vir jantar a casa. Ninguem me pôde dar noticias d'elle. Pedi a um pedreiro para me ajudar a procural-o, mas o pobre sentia-se muito incommodado e esquivou-se a acompanhar-me. Outro que lá encontrei começou a sorrir-se para mim de tal forma que não tive valor de lhe dizer quanto soffria, ajuntou Martha tornando-se vermelha como o lenço que lhe occultava os seus magnificos cabellos. --Infame! exclamou Balbina approximando-se cada vez mais da filha. --Fugi desorientada, continuou Martha suffocada pelas lagrimas, e quando vinha pelo Chiado, encostei-me a uma esquina quasi sem saber de mim. Então senti que me tocavam brandamente no hombro. Despertei como de um sonho, e vi um senhor muito bem vestido, perguntando me o que tinha. Disse-lhe que ia em busca de meu pae, pois receiava que tivesse sido atacado pela febre. O tal individuo compadeceu-se da minha sorte. Aquelle sim; nem siquer reparou se eu era bonita ou se era feia. Teve apenas tempo de me ver as lagrimas e não a côr dos olhos. «Não me atrevo a dizer-lhe que entre commigo n'uma sege, disse-me elle; seria offendel-a; mas espere, que vou chamar dois trens.» Esperei, chegaram duas traquitanas. --Entre, disse-me elle pegando-me na mão esquerda. Do coração lhe affianço, que póde estar tão segura como se fosse ao lado de seu pae, que espero em Deus encontrará com vida, acrescentou o individuo mettendo-me no trem. Entrei sem saber como. Senti bater o guarda lama e os cavallos seguirem a trote. De repente, a sua traquitana tomou a deanteira á minha. Andámos, andámos até que chegou a um sitio onde havia um hospital. Os cavallos pararam. Elle então apeiou-se e perguntou-me os signaes do pae. Dei-lh'os. Entrou para dentro do edificio onde se demorou por alguns minutos, e voltou dizendo-me que não tinha entrado n'aquella casa. Os trens partiram a galope. Fomos a dois hospitaes; o mesmo resultado. Faltava apenas o da rua do Sol. Esse, já eu conhecia de nome quando a tia Marianna adoeceu. Ninguem alli tinha entrado desde as nove horas da manhã. --Vá tranquilla para sua casa, e diga-me onde mora. Dei-lhe o nome da rua e o numero da porta. Pagou ao bolieiro dizendo-lhe que me viesse pôr em casa, o que não acceitei por causa da visinhança. --E quem será esse individuo, para que lhe possamos beijar as mãos? exclamou Balbina, n'um transporte de profundo reconhecimento. --Deus sabe! Oh! mas elle não me mentiu! respondeu Martha. Tenho tanta fé nas suas palavras! Se a mãe visse como elle me disse: «vá para casa, que ainda hoje hei de descobrir onde está seu pae.» --E é muito novo esse homem? interrompeu Marianna. --Uns trinta annos. --Felizmente, ainda se pode dizer que a mocidade não está perdida de todo. N'este momento, Balbina approximava-se da porta, preparando-se para sair. --Mas onde vae? exclamou Martha. Pelo amor de Deus, minha mãe... Tenha prudencia! Onde pretende encontral-o? Na rua? Já vê que se lhe tivesse acontecido alguma desgraça, estaria infallivelmente em algum dos hospitaes, e graças a Deus, tal não succede. --Embora! hei de encontral o, respondeu a pobre mulher tentando dar volta á chave para sair. Marianna e Martha, ajoelhadas deante da pobre esposa, tentavam impedir-lhe a passagem. E ella então, comprehendendo a inutilidade da sua saida, caiu de joelhos deante da imagem de Nossa Senhora. Imitando-a, Martha e Marianna acompanharam-n'a na sua oração. E o relogio, seguindo n'um rumor compassado, continuava na sua material indifferença marcando os segundos e os minutos, ao som da chuva que, batendo de encontro aos vidros, ainda mais sombrio tornava aquelle quadro de amargura. VII Mudando de rumo, o visconde e Tristão de Almeida dirigiram-se primeiramente a casa de Vaz Mendes. Depois de os escutar, o banqueiro annuiu gostosamente aos desejos do seu recommendado, promettendo-lhe desde logo fazer tudo quanto estivesse ao seu alcance para animar uma idéa tão philantropica. D'alli partiram todos tres para casa do commendador Lopes de Miranda. Egual acolhimento, como era de esperar, acrescentando que a mesma idéa exposta por Tristão de Almeida havia sido formulada por elle tres dias antes. Tristão sorriu-se com a velhacaria que lhe era habitual, agradecendo á Providencia que os seus pensamentos se houvessem encontrado com os do excellentissimo commendador. Historiando o atropellamento e matizando a historia dos mais lisongeiros epithetos para Tristão, o visconde de Coruche contou ao commendador o que se havia passado com o operario. --Se vossa excellencia não deu a morte a esse desgraçado, estou certissimo que fará a sua felicidade, disse o commendador, piscando ao mesmo tempo o olho para o visconde. --Ha males que vem por bens, acudiu este fazendo uma careta para Lopes de Miranda. --Mysterios de Deus, respondeu Tristão em voz alta. Fortes nescios, ajuntou elle de si para comsigo. Mal sabem que lhes percebo os signaes. Momentos depois, entravam todos quatro no hotel de Bragança e dirigiam-se ao quarto do ferido. O operario encontrava-se no mesmo estado de anemia. Pessoa alguma havia podido arrancar-lhe uma só palavra. A sr.ª D. Maria Egypciaca, segundo o havia ordenado o seu philanthropico esposo, não tinha abandonado o leito do enfermo. Magdalena e Olympia, de vez em quando approximavam se do quarto. Depois de cumprimentarem a esposa de Tristão, os tres amigos chegaram-se ao enfermo. --Faz pena! disse o commendador, Deus sabe ajuntou elle, se este pobre homem terá alguma pessoa a quem esteja dando sérios cuidados. É uma lastima que se lhe não possa saber o nome. Se descobrissemos quem é a familia, mandar lhe-iamos dizer que estava sob a protecção de vossa excellencia. N'estas epochas de epidemia, a mais pequena demora faz com que todos estejam em cuidados. --Vejamos se é possivel fazel o falar, disse Vaz Mendes, debruçando se sobre o leito do operario. O enfermo continuava no mesmo lethargo. Eram perto de seis horas. Como não houvesse meios de lhe arrancar uma palavra, D. Maria Egypciaca lembrou que seria mais prudente irem jantar emquanto durasse aquelle estado morbido, e deixando o doente entregue a um creado, convidou as visitas a dirigirem-se á casa de jantar. Ao chegarem alli, já Olympia, a filha mais nova de Tristão de Almeida, aguardava que seus paes tivessem dado treguas á caridade para desfructarem o unico gozo da vida, o comer. Minutos depois, appareceu Magdalena, a irmã mais velha. O jantar correu animadissimo! Formosas eram ambas as filhas de Tristão de Almeida; juntando-se á formosura e juventude um dote de duzentos contos de reis, que lhes poderia faltar? Ventilado pela vigessima vez o caso do atropellamento, bem como o valor do visconde de Coruche, que fizera convencer Tristão de Almeida do risco que havia corrido a sua existencia em se ter approximado, do cavallo da sella, discutiu-se a fundação do hospital. D. Maria Egypciaca, que de antemão havia sido prevenida por seu esposo, falou eloquentemente sobre este assumpto, deixando assombrados os hospedes tanto pela sua verbosidade como pelas idéas philantropicas que defendia. Olympia contentava se de atacar com vigor extraordinario cada prato de cosinha que o servente lhe apresentava pelo lado do coração, viscera que apenas lhe estremecia consoante o apimentado dos molhos onde o guizado se mergulhava! Fitando o olhar na comida, Olympia manejava o talher com mais desembaraço do que qualquer malabar de feira, pegando depois n'um oitavo de pão de meio arratel para limpar o prato com o artistico intuito de admirar o bom gosto do estampador. Olympia tinha duas paixões: a cosinha e a ceramica. Se lhe dissessem que morrendo de uma indigestão de ninhos de andorinhas seria depositada n'um sarcophago de Sévres, a filha de Tristão de Almeida apanharia a indigestão de bom grado. Debalde o visconde de Coruche se desfazia em melifluas olhaduras, tudo era inutil; o estomago de Olympia concedía-lhe apenas que as suas vistas se dirigissem ora para o prato que limpava, ora para a porta por onde entrava o criado com o seguimento do _menu_. E, apezar de tudo, essa creatura que tão desenvoltamente usava e abusava dos orgãos da mastigação, perguntando ao criado durante o jantar o que tencionava guardar-lhe para a ceia, tinha o poetico nome de Olympia, como o leitor não ignora, e era formosa, formosa a fazer enraivar de inveja todas as do seu sexo, menos a amavel leitora que sobre estas paginas se debruça. Olympia era uma pomba. Dizia sua mãe que até aos dezoito annos, o unico desgosto que lhe havia dado fôra ter atirado com uma travessa ao rosto pallido de Magdalena, por esta lhe ter comido duas queijadas de Reinholas, resto de tres duzias que seu pae lhe havia trazido de Cintra. Magdalena era a sua antithese. Afôra aquelles dois pasteis, poder-se-ia julgar impolluta no que dizia respeito ao quinto peccado. De uma formosura menos provocadora do que sua irmã, Magdalena sabia insinuar-se no coração de todos os que tinham a felicidade de lhe merecer sympathia. Tinha na tristeza vaga e scismadora do seu olhar uns longes de melancolia que prendiam quem a contemplasse. Sobretudo, o que mais espantava em Magdalena era a harmonia da voz. Assombrava! Os anjos deviam aprendel-a, para espalharem nos seus canticos a musica da palavra. Falava pouco, porém a phrase era sempre correcta. Reservada mais por calculo do que por organização, a irmã de Olympia atravessava a sociedade com a consciencia segura e mathematica dos mil escolhos de que ella se compõe! Ferira-a a aza negra da tormenta? A ave da desgraça esvoaçára-lhe sobre os seus louros cabellos? Desfizera-se-lhe algum sonho luminoso? Sentira o seu coração immenso, golpeado pelo punhal do desengano? Todos o ignoravam, ou para melhor dizer, pessoa alguma se havia demorado a estudar aquella peregrina organização. Magdalena nunca havia amado, porém o seu coração tinha necessidade de amar como os pulmões do ar que respiram. Creando um dia na sua phantasiosa imaginação o typo que ambicionara, quiz-lhe dar vida, formas e animação. Quando mais tarde se lhe sumiu o vago, o impalpavel, o ideal que concebêra e que tombára na tristissima realidade, esmoreceu e curvou-se resignada para chorar a sós as suas lagrimas. Prophetisa da amargura, como veremos na continuação d'esta singela historia, Magdalena parecia adivinhar as supremas angustias que mais tarde lhe haviam de escruciar a pobre alma! Debalde, repetimos, se esforçava o visconde para merecer um olhar de Olympia. Era invulneravel! --Se o homem já terá dado accordo de si, disse o visconde para não estar calado. --Deus sabe! murmurou o amphitrião defendendo uma perna de perdiz da insaciavel voracidade da filha! --Daria tudo para que esse infeliz tornasse á vida, disse D. Maria Egypciaca dirigindo-se ao commendador. Como estará a sua pobre familia! ajuntou ella despejando um copo de vinho do Rheno. --Feliz d'elle, tartamudeou o visconde, se podesse abrir os olhos no momento em que vossa excellencia estivesse á cabeceira do seu leito. Pela minha parte, abençoaria fosse que circumstancia fosse que me trouxesse tal ventura, ajuntou elle, dirigindo-se a Olympia. --Passa me aquelle prato de carne de porco assada, disse Olympia tocando no hombro de sua irmã e sem se atrever a olhar para o visconde. --Não ouves o que te diz aquelle cavalheiro? perguntou D. Maria Egypciaca, voltando-se com modo agastado para sua filha. --Não repare, meu caro amigo, acudiu Tristão, Olympia é muito envergonhada, e demais está pouco acostumada á sociedade. Não ouves o que te diz o sr. visconde? acrescentou elle dirigindo-se á gastronoma. --Ouço, sim senhor, mas não sei o que hei de responder. Magdalena estremeceu de pejo ao ouvir a resposta de Olympia. N'este comenos, o criado que ficara junto do ferido entrou na casa de jantar para participar que elle havia tornado a si, dizendo poucos instantes depois o seu nome e a rua onde morava. Ajuntou em seguida o criado que um sujeito muito bem vestido pedira ao guarda portão para vir reconhecer o doente. --E esse individuo... ainda lá está? perguntou Tristão. --Não senhor. Saiu logo que lhe soube o nome. Disse que ia dar parte á familia que estava com muito cuidado julgando que tinha sido atacado pela febre. --E quem é o doente e como se chama? perguntou vivamente o visconde. --Chama-se Jeronymo e é mestre de obras. --E onde mora? interrompeu Vaz Mendes. --Na rua do Meio á Lapa, respondeu o criado. --Quanto estimo! quanto estimo! exclamou D. Maria Egypciaca. Provavelmente foram chamar-lhe a familia. Que venha, que venha. Pobre gente! Talvez ainda abençõem a fatalidade que lhes aconteceu! Pódes retirar-te, Manuel, ajuntou ella, dirigindo-se ao criado. --Agora, disse Vaz Mendes, já temos por onde começar a nossa obra de caridade. Principiaremos por esse pobre Jeronymo. --Apoiado! bradou o commendador despejando o decimo copo de vinho do Porto, e olhando de soslaio para Olympia, cujos olhos pardos se fitavam ardentemente n'uma torta de maçã. --Se m'o permittem, vou ver o meu protegido disse Tristão, levantando se ao mesmo tempo da cadeira. --E se tambem m'o permittem?... accrescentou o visconde, imitando o movimento do seu amigo. --Mas com o maior prazer, respondeu D. Maria Egypciaca. E não tardará muito que lá vamos, eu e minhas filhas. --Querem vel o? perguntou o visconde voltando-se para o banqueiro e para o commendador. --Da melhor vontade, responderam os dois a um tempo. Levantando se rapidamente seguiram o seu amphitrião. * * * * * --Ora ahi tem a mamã porque eu não gosto de comer á mesa quando temos visitas. Levanto-me sempre com fome. Só eu á minha parte seria capaz de comer toda aquella carne assada, disse Olympia entristecidamente voltando se para sua mãe. --Pois é possivel que ainda tivesses mais vontade? perguntou Magdalena. --Abençoado estomago! disse D. Maria Egypciaca levantando-se da mesa. VIII Deixemos por algum tempo os preclaros bemfeitores do pobre Jeronymo; a inconsolavel esposa rezando á Virgem Santissima; D. Maria Egypciaca abençoando o fructo dos seus burocraticos amores, e volvamos a uma epocha vinte annos anterior a estes successos, quando, perdida a razão, a infeliz D. Marianna de Mendonça deu entrada no hospital de S. José. Como o leitor deve estar lembrado, a viuva não tinha um unico parente sobre a terra. As pessoas que frequentavam a sua casa havia muito que se tinham afastado, em virtude das intrigas urdidas pela sua amiga intima, que annos antes a aconselhára a depositar os capitaes nas mãos do commendador. Até o advogado que fôra acompanhal-a ao escriptorio no dia da fuga de Felix Justino de Araujo, até esse a havia abandonado, para com o seu conselho salvar as victimas do fugitivo. Maria Gertrudes, uma das creadas que lhe era mais affeiçoada, ao vel-a entrar n'aquella situação, dirigiu-se immediatamente a casa da amiga da sua ama participando-lhe o estado em que D. Marianna se encontrava, perguntando-lhe o que queriam dizer aquellas palavras que proferira o commendador--que lhe tinham roubado todos os seus bens. --Que a sua ama sempre propendeu para a loucura, ha muito que o suspeitava, mas que tivesse chegado a esse ponto, é que não podia crer. Vejo-lhe apenas um remedio: metterem-n'a no hospital dos doidos, e, quanto a isso, quem está nas melhores condições é o regedor. E sem mais tir'te nem guar'te, voltou as costas á fiel criada, mostrando-lhe que o sitio por onde tinha de sair era o mesmo por onde minutos antes havia entrado. Esperançada no restabelecimento de D. Maria, a pobre mulher voltou para casa. --Já não ha meios de a soffrer, disse-lhe uma sua companheira. Tem quebrado tudo quanto encontra á mão, e se assim continúa, não temos ámanhã um copo por onde beber. Pela minha parte, entendo que visto a senhora não ter amigos nem parentes, o melhor era dirigirmo-nos ao sr. regedor. --O mesmo disse a sr.ª D. Maria Clara. Porém, entregar a nossa ama á justiça, nós que lhe queremos tanto! Não seria mais razoavel supportal-a ainda alguns dias, como antes de hontem nos disse o medico? respondeu Maria Gertrudes. --Pois supporte-a vossemecê, que eu pela minha parte já estou farta. E demais, nós as criadas não temos obrigação de aturar doidas. Se a tal me quizesse sujeitar, ia para o hospital de S. José, onde tinha melhor ordenado do que n'esta casa. Vossemecê, que é mais antiga do que eu, se gosta, sopeteie, que quanto a mim, não tenho mais nada se não arranjar o bahu, pôr o capote e o lenço, e pés para que te quero. É que não sei; não sei o que hei de fazer á minha vida. Valha-me Deus, para que estava guardada. --Estivesse eu no seu caso; eu lh'o diria. --Então o que havia de fazer? --Chamar o regedor e ferrar com ella no hospital. --E esta casa? Quem ha de ficar n'esta casa? --Ora essa sr.ª Maria Gertrudes! Ficavamos nós emquanto o filho não viesse. --E sabemos por ventura aonde está o filho? --Onde está! Está no estrangeiro. Bem se vê que a sr.ª Maria Gertrudes não é mulher d'este tempo. Boa está. Olha que grande difficuldade! Pensa talvez que não sei como essas coisas se fazem. Para que servem os correios? Não tem mais nada senão pôr: ao sr. Manuel de tal, e em baixo: pelo correio do Estrangeiro, em letras muito grandes. --Isso lá é verdade; e quanto tempo pode levar isso tudo? --O tempo que leva uma carta ao estrangeiro. Olhe, sr.ª Maria Gertrudes, se vossemecê quer, não diga nada ao criado, que eu _mesmo_ me encarrego de a escrever. Por agora o que devemos fazer é ir a casa do sr. regedor. Já com este são cinco dias que estamos aturando aquella doida, e bem vê que isto não póde durar por muito tempo. --Lá n'isso tem muita razão. --Ora ainda bem; então mãos á obra. * * * * * Maria Gertrudes resolveu-se a ir falar ao regedor. N'essa mesma tarde, a infeliz senhora, que cinco dias antes se considerava rica e cheia de ventura, entrava na enfermaria das alienadas como uma simples pedinte sem protecção e sem abrigo. Quando dois mezes depois, informado pelos visinhos, soube o regedor o que se estava passando em casa de D. Marianna de Mendonça e como os seus creados de dia para dia iam roubando os haveres, entendeu-se com o juiz eleito, e entrando em casa, viram com effeito que não eram mal fundadas as suspeitas da visinhança. A carta remettida para o estrangeiro ainda não tinha chegado ás mãos de Manuel de Mendonça, e a desgraçada continuava no hospital sem que nenhum dos creados fosse indagar o seu estado. No dia seguinte, o juiz mandou tomar posse de tudo quanto existia, e depois de competentemente inventariado, collocou no meio da rua aquelles dedicados servos que tão tranquillamente habitavam a casa de sua ama sem ao menos saberem se ainda existia ou não. Pelo espaço de sete annos, esteve D. Marianna nas enfermarias de S. José. Finalmente, recobrou a razão e deram-lhe alta. Antes da saida pediu para falar com o director. Depois de lhe confiar todos os pormenores da sua vida, perguntou-lhe se durante a sua enfermidade alguem tinha vindo informar-se da sua saude. Sympathizando com as maneiras da viuva e condoido pela sua desgraça, o director levou-a para casa da sua familia. Finalmente, graças ás relações do seu protector, D. Marianna tomou posse do que lhe restava. Entre louça, moveis e roupas brancas apurou dois contos e duzentos mil réis. Alugou uma casa proxima á dos seus protectores, entregou-lhes o resto para lh'o empregarem no que melhor lhes parecesse, até que o destino, cançado de a torturar, lhe proporcionasse a maior de todas as felicidades: devolver-lhe o filho querido da sua alma! Debalde se passaram annos e annos, e o destino sem se compadecer da sua desventura. Os dezeseis vintens que pouco mais ou menos lhe rendiam as inscripções, juntos aos ganhos que os seus bordados lhe produziam, eram mais do que sufficiente para o seu alimento. Infeliz de todo não se considerava D. Marianna, e ingrata seria para com Deus se da sua sorte se queixasse. Era já muito o amparo que lhe concedia a Providencia representada nas pessoas do director e de sua mulher; porém a desgraça que parecia ter-se aninhado no seu coração, não podia permittir-lhe que descesse á sepultura sem que primeiro a bafejasse uma vez ainda com o seu halito envenenador. Levou-lhe em menos d'um anno as duas unicas pessoas que tinha sobre a terra: o director e sua esposa! Aterrada com esse golpe, julgou de novo enlouquecer! Querendo mudar-se do bairro, que lhe recordava os seus protectores, á sombra de cuja amizade tanto tempo se abrigára, lembrou-se de ir viver para a Lapa. Uma tarde saiu, e dirigindo-se para aquelles sitios encontrou na rua do Meio a casa que lhe convinha. Dois dias depois, alugou e mudou para alli a sua pequena mobilia. Foi onde oito annos depois a encontramos atacada pela febre amarella. A pobre senhora, na doce esperança de ainda tornar a vêr seu filho, economizava, quanto cabia em suas forças, os poucos haveres que lhe restavam. «Este dinheiro, dizia ella ás vezes comsigo olhando para as inscripções, não me pertence, é de meu filho; cumpre-me fazer tudo quanto possivel me fôr para lh'o augmentar.» Explicado está portanto o seu modo de viver. IX A physionomia doce e melancholica de Martha impressionára de mais o desconhecido para que a sua promessa deixasse de ser cumprida. Quando ao apear-se no Largo das Duas Egrejas se demorou alguns segundos para pagar ao bolieiro, olhou instinctivamente para um grupo composto de quatro individuos que estavam discutindo. --Se fosse algum de nós que tivesse atropellado o homem, provavelmente estava preso, dizia um d'elles. --Mas como foi o sr. Tristão d'Almeida... acudiu outro. --E o visconde de Coruche, accrescentou terceiro. --Mas elle morreu ou não morreu? --Dizem que está melhor. --Veremos como se porta o brazileiro. --Até agora, não ha razão de queixa, segundo me disseram. Lá ficou n'um bello quarto do hotel, tendo por enfermeiras a mulher do magnata, e as duas filhas. --Tenho pena de não ter sido eu o atropellado, só para ter taes enfermeiras. --Vocês vão d'aqui para o Marrare de Polimento, ou ficam ainda a descobrir a mysteriosa individualidade do menino de ouro, como se diz na minha terra? --Vamos para o Marrare, responderam os outros tres, dirigindo-se pela rua do Chiado. Reflectindo em que o atropellado podia muito bem ser o pae de Martha, o mysterioso protector da infeliz criança seguiu os quatro individuos até á sua entrada no Marrare de Polimento. Entrou tambem. O que primeiro falára do acontecimento ficou á porta assobiando alegremente; os outros dirigiram-se para os bilhares. --Deve estranhar uma pergunta que lhe vou fazer, disse o desconhecido interrompendo o assobio do _dilettante_. Ha tres horas que procuro um individuo que desappareceu de sua casa. Quando me apeei de um trem no Largo das Duas Egrejas, percebi que falavam ácerca de uma pessoa que tinha sido atropellada, e confesso-lhe que commetti a indiscrição de os escutar. Póde ser que seja esse o mesmo individuo que procuro. --Talvez, respondeu amavelmente a pessoa a quem estas palavras foram dirigidas. O que sinto é não lhe poder dizer o seu nome. Sei apenas que está no Hotel de Bragança. Retribuindo n'um aperto de mão a amabilidade com que fôra recebido, o protector de Martha correu immediatamente para o sitio que lhe haviam indicado. Ao chegar perguntou ao guarda portão se ainda alli estava um sugeito que de manhã fôra pizado por um brazileiro. --E não só por um brazileiro como tambem por um visconde, respondeu o guarda portão, como se n'estas palavras quizesse tornar mais illustre o atropellamento, ou diminuir a culpabilidade dos animaes dividindo-a por todos quatro. --É possivel falar lhe? --É possivel vel-o; emquanto a falar-lhe isso fia mais fino, respondeu o guarda portão. Ainda não tornou a si. --Pois obsequiava-me muito se me podesse conduzir ao seu quarto. Minutos depois entrava no quarto do ferido. Jeronymo ainda se encontrava no mesmo estado lethargico. A dôr das feridas havia-lhe diminuído progressivamente, comtudo a perda de sangue tinha sido abundante, e ao pobre operario nem forças restavam para pedir que chamassem a sua familia, de quem n'esse instante tão amargamente se recordava. A imagem de Balbina e de sua filha passava-lhe por entre as visões da febre, como se as visse alli, pregadas á sua cabeceira. Sentia na fronte a mão fina e delicada de Martha, e pousando lhe sobre o coração, que fortemente lhe palpitava, a face de sua mulher incendida pelo terror. Jeronymo via tudo isto como atravez de um sonho. Junto ao leito o desconhecido olhava-o caridosamente, levando-lhe de vez em quando a mão á fronte. Momentos depois os olhos do operario, até alli brandamente cerrados, abriram-se como que para contemplar o desconhecido, que fitando-o parecia descobrir-lhe nas feições alguma similhança com as da pobre Martha. N'este comenos o enfermo fez um movimento como se tentasse falar. Manuel, o creado que lhe servia de enfermeiro, approximando-se suavemente, perguntou-lhe se desejava alguma cousa. --Falar... mas... não posso, murmurou o infeliz Jeronymo, deixando cair sobre o colchão o braço direito que tentára levantar. O desconhecido approximou-se ainda mais. --E ainda não houve meio de se saber quem é este homem? --Ouviu aquellas palavras que elle disse? Foram as primeiras! respondeu o creado. --Como se chama vossemecê, perguntou o desconhecido debruçando-se sobre o leito. --Jeronymo, balbuciou o pobre; e a minha familia mora na rua do Meio, á Lapa. --Basta! bradou rapidamente o desconhecido, e saindo do quarto sem que o criado tivesse tido tempo de lhe perguntar aonde se dirigia, encaminhou-se para o Loreto, afim de procurar uma sege. Martha havía-lhe dado o nome da rua e o numero da porta. Dizendo ambas as cousas ao bolieiro, ordenou-lhe que trouxesse Martha e sua mãe ao Hotel de Bragança o mais depressa que lhe fosse possivel. Foi n'este momento que Manuel desceu á casa do jantar para dizer a Tristão de Almeida que o ferido estava no uso das suas faculdades. Deixemos o mysterioso descobridor do pae de Martha esperando á porta do hotel a mulher e a filha de Jeronymo, e vejamos o que se está passando no quarto do ferido. X --Ora graças a Deus que está livre de perigo, exclamou Tristão de Almeida approximando-se do leito de Jeronymo. Não calcula o quanto me tem feito soffrer a sua prostração. Quero que nos perdôe todo o mal que involuntariamente lhe causamos, eu e o meu amigo visconde. --Mas agora, felizmente, sente-se melhor! perguntou o visconde approximando-se de Tristão. --Nem mesmo sei como me sinto, meus caros senhores, respondeu Jeronymo, como se ainda estivesse sendo victima de uma allucinação. De quanto se passou, continuou elle, com uma voz muito enfraquecida, lembro-me apenas que fui atropellado por um trem, e de nada mais me recordo. Sei que tenho tido umas dôres horríveis tanto na cabeça como em todo este lado direito, e nada mais posso responder a vossa senhoria. O que apenas me mortifica é lembrar-me os cuidados em que deve estar minha pobre mulher e filha, o resto será o que Deus quizer. Tratamento, graças aos senhores, vejo que me não tem faltado. O que eu tambem agora desejava pedir-lhe eram dois favores; o primeiro, que me dissessem onde estou, e o segundo, que mandassem immediatamente a minha casa participar a Martha e a minha mulher que estou aqui, vivo e bem tractado. As infelizes a esta hora cuidam que fui atacado pela febre amarella, e andam á minha procura por toda a parte. --Emquanto ao sitio aonde se encontra, respondeu Tristão, bastará dizer-lhe que está entre amigos, e que nada lhe faltará; emquanto a mandar chamar sua familia, queira dizer-me aonde mora. --Moramos na rua do Meio n.º 7, Lapa, respondeu Jeronymo, fazendo ao mesmo tempo uma dolorosa contracção. --Que é isso, meu amigo? acudiu rapidamente o commendador dirigindo-se ao mestre de obras. --É uma dôr muito grande que me toma a cabeça toda, respondeu elle, levando á fronte ambas as mãos. --Veja se póde socegar um momento, e tranquillize se porque vamos immediatamente chamar a sua familia. --Para que venham mais depressa vou mandar o meu trem, disse o visconde dirigindo-se para a porta. --Bom será, visconde, ajuntou o commendador, quanto mais depressa descançarmos aquella pobre gente tanto melhor para todos. --Se vossas senhorias fossem tão bons que tal fizessem, seria uma grande obra de caridade, disse Jeronymo, tentando sentar-se sobre o leito. --Não faça similhante loucura. Conserve-se como está, e tenha a certeza que d'aqui a meia hora terá a seu lado as pessoas que tanto deseja. N'este momento entrou a sr.ª D. Maria Egypciaca, acompanhada por suas duas filhas. --Já sabemos, graças a Deus, quem é o nosso doente, e onde mora, disse a D. Maria Egypciaca o visconde, que n'esse momento saía do quarto, com o fim de dar ordem ao cocheiro para trazer a familia do ferido. --Quanto estimo, meu Deus! respondeu D. Maria, erguendo para o tecto os seus grandes olhos azues. --Em que sustos estará a sua pobre familia! disse Magdalena olhando para Olympia. --Talvez que nem hoje tivessem que jantar. --Enfim! disse D. Maria Egypciaca depois de ter contemplado o ferido por alguns instantes, Deus tudo quanto faz é para melhor. É certo que teve esta pequena contrariedade, mas graças ao Senhor, está livre de perigo, e vae fazer a felicidade de sua familia. Não é verdade, Tristão? ajuntou ella dirigindo-se ao esposo. --Quantos desejariam ter egual sorte! disse o commendador intromettendo-se na conversação. --Magnifico achado para dirigir as obras do nosso hospital, disse o banqueiro voltando se para Lopes de Miranda. --Do hospital?! perguntou admirado o commendador. --Não ouviste dizer ha pouco que era mestre de obras? --Lembra bem, lembra bem, meu amigo, disse Tristão sentando se n'um pequeno sophá. N'este momento, ouviu se o rumor de muitos passos subindo apressadamente a escada que dava para o segundo andar. Segundos depois abriu se a porta e appareceram duas mulheres. Eram Balbina e Martha. O desconhecido seguia-as de perto. No momento em que Balbina e sua filha se precipitavam sobre o leito de Jeronymo, este fez um supremo esforço para se erguer, porém as dôres que lhe atacavam a cabeça e todo o lado direito tornaram a prostral-o completamente. Todos se compadeceram ao contemplar aquella scena de amargura, até a propria Olympia arrancou dos fundos penetraes do estomago, unica viscera onde a sensibilidade se lhe refugiára, um par de lagrimas que vinham em turvos crystaes, rescendendo mais a fricassé do que a natural piedade. O desconhecido, com os olhos fitos n'aquelle grupo, parecia contemplar a physionomia de Tristão, como se uma vaga reminiscencia lhe houvesse acudido á memoria. O mesmo se passava no espirito do magnata; aquelle individuo não lhe era estranho. Seguido da esposa, approximou-se do leito de Jeronymo e contou a sua familia tudo quanto tinha acontecido. O mesmo fez Balbina e sua filha. --É portanto a este cavalheiro que devemos tudo? disse Tristão. Quanto folgo que tenha concorrido para a felicidade d'esta familia, ajuntou elle extendendo a mão ao desconhecido. Este, retribuindo-lhe o aperto de mão, cumprimentou rapidamente a todas as pessoas e saiu d'aquelle gabinete. --Quem será este moço? perguntou Tristão voltando-se para o banqueiro. --Deus sabe; respondeu Vaz Mendes. Acho-o pouco delicado. --Quer tornar-se mysterioso, acudiu Lopes de Miranda. --Provavelmente é algum rapaz acanhado que não sabe estar entre gente fina, disse D. Maria Egypciaca. --Não sou d'essa opinião; pelo contrario, pareceu-me um moço de um trato finissimo, mas excessivamente modesto para se conservar n'este quarto. Receiava que o cobrissem de elogios. Não achas Magdalena? ajuntou Tristão dirigindo-se a sua filha. --N'isso mesmo pensava eu, meu pae, respondeu Magdalena. Quando o sr. Vaz Mendes o alcunhou de indelicado, de mysterioso o sr. Lopes de Miranda, e de pouco sociavel minha mãe, não concordei com opinião nenhuma d'essas. Julgo o como meu pae: modesto de mais para escutar os elogios de que é merecedor. --Que innocencia! gargalhou Vaz Mendes. Quem se esquiva a ser elogiado? --Muita gente, sr. Vaz Mendes, ainda que não seja senão por egoismo. O elogio frivolo e banal, inscripto no codigo da civilidade, é uma ironia pungente para o que tem a consciencia do seu merito. Ha o louvor que anima e a adulação que fere. O incenso nem sempre é agradavel; está muitas vezes pendente da mão que balança o thuribulo, e comtudo sempre é incenso. --Quer vossa excellencia dizer que os nossos encomios o poderiam offender? perguntou o visconde. --Nem por sombras, sr. visconde! Não era essa a minha intenção, respondeu Magdalena approximando se de sua irmã. --Não seria melhor deixarmos em paz esta pobre gente? disse Olympia em voz baixa para sua mãe. E demais, acrescentou ella, já se vão approximando as horas do chá, e se quer que lhe diga a verdade, estou sentindo uma fraqueza... --Bemdito Deus, respondeu D. Maria Egypciaca, sempre, sempre pensando em comer. --Em que quer a minha mãe que eu pense? tartamudeou Olympia, fazendo-se vermelha como a fita que lhe cingia o collo. No entretanto, o visconde, Vaz Mendes e Lopes de Miranda conversavam em voz baixa n'um dos angulos do quarto. --O que lhes peço, disse Tristão approximando-se de Balbina e de sua filha, é que estejam aqui tanto á sua vontade como em casa propria. Fiquem certas que coisa alguma lhes faltará. Se necessario fôr que seu homem aqui se demore, o que espero em Deus tal não permitta, não consinto que d'aqui se afastem. E emquanto a vossemecê, ajuntou Tristão dirigindo-se a Jeronymo, não se persuada que fica sem trabalho; apenas estiver melhor, ha de fazer-me o plano de uma obra que vamos immediatamente principiar e de que o meu amigo fica encarregado. Nos olhos do pobre Jeronymo deslizaram duas lagrimas de gratidão. Absortas na contemplação de Jeronymo, Balbina e sua filha ouviam as palavras de Tristão como se não as comprehendessem. --Agora que terminaram os cuidados, e que seu marido está livre de perigo, disse o visconde approximando-se do leito do operario, agradeçam á Providencia o ter lhes deparado a mão que os veiu arrancar da pobreza, ajuntou elle, voltando-se para Balbina que o contemplava como que assombrada. --Minha santinha, ás vezes, d'onde a gente menos o espera, é d'ahi que provém ou grande mal ou uma grande ventura, disse Lopes de Miranda approximando-se do visconde. --Será a ultima, acudiu rapidamente D. Maria Egypciaca, collocando protectoramente sobre os hombros de Balbina a sua mão direita, cujos dedos cravejados de brilhantes feriram os olhos verdes e entristecidos da pobre Martha. --Vamos dar ordem para que tragam alguma coisa de comer a esta gente, disse Olympia, puxando pela saia de sua mãe. --Safa, inimigo! Que esta rapariga não pensa n'outra coisa senão em comer, resmungava D. Maria Egypciaca á proporção que, seguida dos seus hospedes, saía do quarto de Jeronymo. * * * * * --Que bem que alli cheira, dizia Olympia dirigindo-se para sua irmã e aspirando os aromas culinarios que rescendiam no corredor por onde atravessavam. Provavelmente foi algum hospede que mandou vir o jantar ao seu quarto. Quem me dera fazer o mesmo! XI Cada vez mais impressionado pela ingenua formosura da filha do operario, debalde tentava o desconhecido afastar para longe da memoria aquella imagem que o perseguia. «Mas, pensava elle, e se tudo isto não passar de uma illusão, d'um capricho de phantasia? «Casar-me hoje, para d'aqui a mezes aborrecer a companheira da minha vida? Continua solteiro Manuel de Mendonça, e se um dia te impressionar como agora algum rosto de mulher, estuda o teu coração e a tua intelligencia, apalpa, mede e analysa esse sentimento que experimentas, e se o considerares estavel, firme e immorredouro, pede então a mão da mulher que o tiver despertado, e torna-a a companheira inseparavel da tua existencia. «Ai, do homem só!» diz Salomão, e eu digo: ai, do homem casado, que sente ao lado da esposa a solidão. E comtudo, é esta a primeira vez que sinto palpitar o coração! Será o amor esta intranquillidade de espirito que ha horas me atormenta? Esta saudade que me traz a ausencia da sua imagem e o desejo ardente de a tornar a ver será ainda o amor? Veremos. «Só ámanhã poderei saber o tempo que me demoro em Lisboa. Se fôr pouco, bem vamos; no mar largo substituirei a sua imagem pela doce contemplação das estrellas, quando por noites caladas ouvir apenas o vogar da minha galera, e de longe em longe o canto rude, mas harmonioso dos marinheiros. Nada, continuava Manuel de Mendonça, se essa é a minha casa e elles a minha familia, para que abandonal-a, trocando a por outros que me são desconhecidos e que, se eu morresse, nem talvez uma lagrima de saudade fossem chorar sobre a minha sepultura. «Mas se eu me demorar, se a imagem de Martha me continua a perseguir? Não póde ser! Não ha de ser, não quero que seja! Estou ainda muito novo para me prender. E demais, affeito a uma vida isolada, como poderia eu cumprir todos os deveres de um bom chefe de familia? Desde os dezeseis annos que me afastei da unica pessoa que tinha n'este mundo: minha mãe. Só, em terra estranha, sem um amigo que me protegesse, alonguei a vista para os horizontes da patria, e extendendo-lhe os braços, debalde lhe pedi noticias d'ella. Desanimado ao principio, vi por ultimo que não tinha outro remedio senão revestir-me de valor, e luctei, e soube vencer. «Quando, possuidor de algum dinheiro, tentei voltar á Europa afim de ver minha mãe, disseram-me na Bahia, poucos dias antes de embarcar, que a pobre estava reduzida á miseria. Vim para Lisboa, e ao chegar descobri a terrivel verdade, que tinha morrido no hospital dos alienados! «Aterrado, saí immediatamente de Portugal, buscando nos transportes de uma vida arriscada esquecer a dôr que me feria. Como eu sorri á tormenta que parecia zombar da minha agonia! Com que desejo ardente de seguir minha mãe eu me lancei em tudo quanto havia de perigoso, e Deus sempre a proteger-me, como se me estivesse guardando para algum fim sobre a terra. E que poderei eu esperar? Que felicidade posso conceber lembrando-me que, emquanto dispendia contos e contos de réis, jazia a minha infeliz mãe nas palhas d'um hospital? «Nada, continuava Manuel de Mendonça, passeiando pelo seu quarto do hotel da Europa. Permitta Deus, ajuntava elle, que ámanhã termine o negocio que espero e que possa levantar ferro quanto antes.» N'este momento, baterem mansamente á porta do quarto. --Entre, disse Manuel, volvendo os olhos para a porta. Um individuo alto e excessivamente delgado levantou o ferrolho, e entrou no gabinete. O homem chamava-se Luiz, por alcunha o _Mascatudo_. A camaradagem que Mascatudo tivera por largos annos com os irlandezes, a bordo dos seus navios mercantes, introduziu lhe por tal forma o vicio de mascar tabaco, que o pobre Luiz, quando o não tinha, era capaz de mascar tudo quanto lhe apparecesse. Contava-se d'elle a seguinte anecdota, que prova a quanto aquelle vicio o arrastava: N'uma viagem a Macau, acabára-se-lhe o tabaco. Receiando a tripulação que se prolongasse a derrota, defenderam todos das maxillas do tio Luiz a preciosa planta que começava a escassear-lhes. Certos e mais do que certos se tornaram os seus receios, a viagem durou mais onze dias do que esperavam. Não havia tabaco a bordo! Dizendo mal á sua vida, a tripulação debalde vasculhava os mais reconditos escaninhos das algibeiras! Ninguem fumava! Um marujo apenas seguia no seu eterno ruminar. Era o tio Luiz. --Forte velhaco! diziam uns. --E eu que ainda o outro dia fui tão tolo que lhe dei dois charutos havanos! --E eu, acudiu outro, perto de meia quarta de rollo. Daria agora por elle um mez da minha soldada. --Um raio me parta se aquelle marau me apanha mais um cigarro em toda a sua vida, dizia com voz rouquenha o timoneiro. --Arrebentado morra eu da sobre gata se aquelle arenque de fumo me leva mais uma cachimbada, acrescentava um velho marinheiro. E gritando e vociferando, iam todos contra o tio Luiz, e elle sempre sereno, tranquillo, ruminando e salivando ao mesmo tempo. Finalmente chegaram a Macau. Á tarde, o commandante chamou o tio Luiz e ordenou-lhe que se vestisse afim de o acompanhar a terra. O marujo empallideceu, mas não teve mais remedio do que cumprir as ordens do commandante. Meia hora depois ouviu-se á ré um grande motim, e viu-se entre os apupos e os risos da tripulação o tio Luiz gravemente compromettido, com uma bota de cano no pé direito e no esquerdo uma especie de sapato de mulher completamente franjado. O tabaco que os seus companheiros injustamente lhe attribuiam, era o cano da bota esquerda, que o tio Luiz mascára durante os onze dias de atrazo. O marujo preparava-se para entrar pelo pé esquerdo se por ventura não deitam ferro defronte da grande cidade. Os creditos foram-lhe de novo restituidos, e desde esse dia o tio Luiz foi conhecido a bordo pela alcunha de Mascatudo. O tio Luiz tinha quarenta e dois annos. O seu valor e honradez faziam com que todos o estimassem. Quando Manuel de Mendonça comprou em Buenos-Ayres uma galera, Mascatudo foi-lhe o mais recommendado entre os tripulantes que lhe inculcaram. Desde esse dia até ao momento que o vemos entrar no hotel, Manuel de Mendonça nunca teve um momento de se arrepender da profunda confiança que n'elle tinha depositado. De todos os seus amigos, como chamava aos seus tripulantes, Mascatudo era o mais intimo, sem que nenhum dos outros jámais levantasse a voz para deprimir as nobres qualidades do seu companheiro de perigos. Mascatudo havia perdido sua mãe, unico parente que lhe restava, e que elle adorava com todo o ardor do seu coração, coração grande e ingenuo, como de todo o homem que passa a vida separado do resto da humanidade, entre a colera dos elementos e a mercê do Creador! Seria esta circumstancia que fazia com que essas duas almas se casassem? Era o! Nos espiritos irmãos pelo infortunio, vasa Deus o balsamo da sympathia para que possam juntos enlaçar os soffrimentos que os pungem. Era bello vel-os, quando á noite, ao lado um do outro, contemplavam em religioso silencio a solidão das aguas, olhando de vez em quando para o céo, como se alli procurassem algum vestigio d'aquellas que lhes haviam dado o ser. Outras vezes, sosinhos na sua camara, Mascatudo contava a Manuel as suas viagens, acabando quasi sempre por lhe ler as cartas que sua mãe lhe escrevia, e que aquelle já ha muito sabia de cór. Era portanto este o amigo a quem Manuel abria inteira a sua alma, e em cujo coração depositava todos os segredos da sua vida aventurosa. --Venho participar-lhe que não poderemos sair d'aqui em menos de cincoenta dias, o que deveras sinto, porquanto é um tempo precioso o que estamos perdendo, disse Mascatudo, encostando-se desembaraçadamente a uma commoda que estava no quarto de Manuel. Se imagino que tal acontecia, juro por Santa Barbara que não era eu que o tinha aconselhado a vir a Portugal. -Pois sinto-o deveras, respondeu Manuel de Mendonça, sobretudo n'esta occasião; e fazendo sentar Mascatudo a seu lado, contou-lhe em poucas palavras a aventura da vespera, não sem lhe mostrar os graves receios que atormentavam a sua alma. --Nunca se arrependa de que a sua presença tenha feito a felicidade de alguem. Dizia minha mãe, que Deus haja, que tudo quanto o Senhor fazia era para melhor. Ora quem nos diz a nós que atraz d'essa borrascasita que lhe arrebentou no coração, não está perto a bonança? --Parece-te portanto... que devo dar azas a isto, que nem eu mesmo sei como hei de chamar? --Olhe, sr. Manuel de Mendonça, dizia minha mãe, que Deus tenha, que o homem só n'este mundo é alvo da perdição. E eu digo o mesmo. Antigamente não pensava assim, porém hoje, que me sinto cançado de trabalhar, parece-me que, apezar das muitas saudades que me ficariam do mar, viveria talvez mais feliz ao lado de minha mulher, tendo a barca sempre em ordem e o porão cheio de mantimentos para sustentar os filhitos, vendo-os alegres a todos, e trepando por este velho mastro, açoitado dos vendavaes. Ha lá nada melhor n'este mundo, como dizia minha mãe, que Deus haja, do que ter a gente umas sopas para comer ao pé de sua familia! Basta a gente lembrar-se que tem quando morrer quem lhe feche os olhos, e lá de vez em quando, quem se recorde da nossa alma, resando-lhe uma oração sobre a sepultura do corpo. Emfim, faça o sr. o que quizer, que eu cá por mim deixo correr a embarcação. O prazer que Manuel de Mendonça experimentava ao ouvir falar do objecto amado, era mais uma prova do seu amor. Foi então que elle reconheceu de verdade o seu estado. --Esperemos, disse elle finalmente de si para comsigo, e vestindo-se saíu com Mascatudo, dirigindo-se a bordo. [Ilustração:--Como se acha? perguntou Martha levantando se da cadeira... (_pag. 85_)] XII No dia immediato aos acontecimentos que presenceamos no hotel de Bragança, a saude de Jeronymo melhorou consideravelmente. O medico que pela manhã o fôra visitar declarou as feridas de pouca importancia, aconselhando, a despeito de tudo, que seria muito mais prudente não removerem d'alli o ferido, attendendo ao estado anormal em que Lisboa se encontrava. Tanto o mestre de obras como a sua familia não se cançavam de agradecer á Providencia a felicidade que tinham achado no meio da sua desventura. Não houve delicadeza que lhe não fosse dispensada por aquella santa familia. A tal ponto foi levada a dedicação de D. Maria Egypciaca, que por tres vezes se levantou da cama afim de se informar do doente. Foram taes as promessas feitas por Tristão ao pobre Jeronymo, que este quasi que dava graças a Deus de ter sido atropellado pelos cavallos do visconde. Phantasiando trezentos planos de vida, o operario julgou ver realizado o seu sonho de vinte annos: um pequeno casal nas proximidades de Lisboa, onde tivesse uma ou duas vaccas, e um garrano que de vez em quando o trouxesse á cidade. Via Balbina com a quarta rasa de milho dirigindo-se á estrebaria para arraçoar a cavalgadura, Martha seguindo-a a poucos passos, em busca da creação, e elle, no centro da horta, ao lado dos seus trabalhadores, ora regando o milho, ora arrancando-lhe as bandeiras, e enfeixando as para as levar á vacca malhada, a sua favorita, essa a quem devia pôr o nome de Estrella, por ser o nome de uma vacca torina que seu pae lhe dera no dia em que Jeronymo fazia quinze annos. Embevecido no seu phantasioso sonho, com as palpebras semi-fechadas, extendia de vez em quando a mão para sua filha, a qual, beijando lh'a n'um transporte de amor filial, fazia ao mesmo tempo votos ao Todo Poderoso para que lhe melhorasse quanto antes o seu querido pae. Balbina, assentada no canapé, olhava ora para Jeronymo, ora para sua filha. Esta, sorrindo meigamente, apontava para o leito de seu pae, como se tentasse mostrar-lhe o socego em que elle repousava. De repente o ferido abriu os olhos, e, como se despertasse de um sonho, apertou brandamente as mãos da filha, fitando-a com toda a ternura do amor paternal. --Como se acha? perguntou Martha levantando-se da cadeira e debruçando-se-lhe sobre o leito. Balbina approximou se. --Tenho menos dôres, balbuciou o enfermo, e espero em Deus que não tardará muito que eu te possa extender estes braços que a muito custo levanto. Mas não me dirão quem é esta santa familia que com tanto amor nos tem tractado? acrescentou elle, dirigindo-se a sua esposa. --Ignoro, respondeu Balbina. --Foi alguem mandado por Deus para nos valer com a sua protecção, continuou elle, como se ainda o acompanhasse aquelle sonho. --Pois olhe, meu pae, acudiu Martha, apezar de tudo, preferia estar em nossa casa a vêl-o aqui entre estas cortinas. --Se d'isto resultar a tua felicidade, e a tua, ajuntou elle voltando-se para Balbina, terei de agradecer a Deus estas dôres que me atormentam. --Pois eu, Jeronymo, ainda que tudo quanto Deus faz é para melhor, desejava bem vêr-te fóra d'este quarto, disse a pobre Balbina olhando ao mesmo tempo para a porta. Esta abriu-se e entrou Tristão de Almeida. Depois de as cumprimentar approximou se do leito de Jeronymo. --Como se sente? perguntou Tristão pegando brandamente na mão do operario. --Melhor; muito melhor. --Quanto folgo! disse Tristão, puchando uma cadeira e abeirando-se do leito. É forçoso que se restabeleça quanto antes para tomar conta da sua obra: um hospital para as pessoas pobres atacadas da febre. --Pelo que vejo, disse Martha, vossa excellencia não se occupa senão da sorte dos desgraçados. --É essa a minha unica ambição, respondeu o magnata fitando o rosto ingenuo da filha do operario. Ámanhã por estas horas já devemos saber o logar designado para o hospital, e, como desde hontem o considero meu empregado, accrescentou dirigindo-se a Jeronymo, não pense que vossemecê e sua familia se estão aqui tornando pezados. Se alguma cousa tem que fazer em sua casa, sr.ª Balbina, disse Tristão voltando se para a mulher do operario, eu lhe mando chamar um trem para que a demora não seja muita. --Não tenho outro remedio senão ir a casa, respondeu Balbina, mesmo por causa da tia Marianna, ajuntou ella voltando-se para Martha. --Visto isso, vou dar ordem a um criado para que lhe chame um trem, e sem attender a Balbina, que pretendia dissuadil-o da sua determinação, o protector da familia de Jeronymo desceu ao primeiro andar. --Ainda não vi melhor coração, murmurou Jeronymo voltando-se para sua filha. --Tudo é muito verdade, meu pae, mas torno a dizer-lhe, preferia que nada d'isto tivesse succedido. Meia hora depois, com grandes esforços de Tristão de Almeida, Balbina dirigia-se n'um trem de bandeirinha para sua casa. XIII Emquanto se estão passando estas veridicas scenas, entremos em casa do visconde de Coruche. --Vê como pões esse pó de arroz, imbecil! Olha que me estás arranhando as costas! dizia o visconde voltando-se para o seu _groom_. --Não é da minha mão, sr. visconde, é uma borbulha que v. ex.ª aqui tem. --Uma borbulha! exclamou o visconde, eu nunca tive a mais pequena excrescencia na pelle. Dá-me d'alli aquelle espelho. Sem proferir uma palavra, o _groom_ dirigiu-se ao toucador, e tirando de dentro um espelho em fórma de ellipse, entregou-o ao visconde. --Vejamos, disse este, voltando as costas para um toucador. Com effeito tinhas razão. --D'isso tenho eu tido aos centos e não faço caso algum, ajuntou o criado. --Queres tu comparar a tua á minha pelle? --Eu tambem não digo a vossa excellencia que a minha pelle seja como a sua, digo só que d'isso tenho eu aos centos. Olhe, sr. visconde, se vossa excellencia quer, verá como lhe curo isso n'um momento. Tome o sr. visconde uma... que digo eu? meia pilula das Monicas, ou uma receita que tem as irmãs do padre Bernardo que moram em Jesus, e verá como fica bom no mesmo instante. Isto provavelmente são os humores que andam levantados. --Será o que tu quizeres, respondeu o visconde. Dá-me d'alli uma camisa. --Que camisa quer? --Das mais finas, e põe-lhe os botões de camafeu. --Ou é _serviço_ ou grande pantomimice, resmungou o criado em voz baixa, abrindo ao mesmo tempo a gaveta do guarda roupa e tirando de dentro uma finissima camisa de cambraia. Agora por isso, ajuntou elle approximando-se do visconde, veiu cá hontem e já voltou hoje um individuo que trouxe para vossa excellencia a conta da camisaria. --Dize-lhe que volte no fim do mez. --Recordo a vossa excellencia que estamos hoje no dia 30, e que ámanhã é o ultimo de outubro. --Pois sim; mas eu quando disse no fim do mez, quiz dizer que era para o mez que vem. --Cumprirei as ordens de vossa excellencia. Que fato quer? perguntou elle, dirigindo-se para uma commoda á Luiz XV, sobre a qual estava um cofre de tartaruga. --Um fraque e collete preto, com quaesquer calças de côr. --Agora por isso, sr. visconde, disse o criado pondo nos punhos da camisa dois magnificos camafeus de Italia, veiu cá hontem um individuo com uma conta do alfaiate, e como vossa excellencia não estivesse em casa, disse-lhe que viesse ámanhã, em sendo duas horas. --Fizeste muito mal, respondeu o visconde mergulhando uma pequena escova de dentes n'um liquido pardacento, e levando-a repetidas vezes ao bigode. Já te disse que nunca se mandam receber contas senão no fim dos mezes. --Pois foi exactamente por esse motivo que o mandei cá vir ámanhã, que é o ultimo de outubro. --Já te disse ha pouco que o meu fim do mez é sempre o de novembro, respondeu o visconde encolerizado, passando a escova por sobre o labio inferior, e deixando o côr de chocolate. --O mesmo disse eu ao sr. Alves, quando a semana passada o procurou por causa d'aquella letra de 600$000 réis que se vence no primeiro de novembro. --E elle insiste em não querer a reforma? --Creio que insiste. O alquilé a quem vossa excellencia comprou as eguas baias, foi dizer-lhe que o sr. visconde promettia pagar-lhe tudo no primeiro de novembro. --Veremos o que se ha de fazer, disse o visconde, esfregando com uma essencia a nodoa côr de castanha que lhe descompunha a phisionomia. Dá-me d'alli umas ceroulas de seda. É preciso que vás logo ao Baron que me mande uma duzia de camisolas. --Cumprirei com as ordens de vossa excellencia, respondeu o criado, abrindo a gaveta d'uma commoda, e tirando um par de ceroulas de malha de seda. --Se alguem me procurar ás tres horas da tarde, dize lhe que não volte antes do primeiro de novembro, caso não queira perder o tempo, disse o visconde, atirando para longe com umas lindas chinellas de velludo bordadas a oiro, e vestindo ao mesmo tempo as ceroulas. --Vossa excellencia sae a cavallo ou de trem? --O dia está tão bonito que me parece melhor saír a cavallo. Sim, continuou elle, depois de reflectir alguns segundos, dize ao Marçal que me apparelhe a egua lazã. É necessario montal-a; ha perto de oito dias que não sáe. Depois de collocar sobre uma ottomana o fato do visconde, o criado abriu a porta do toucador, e saíndo foi transmittir as ordens que seu patrão lhe dera. --Sim senhores! a coisa não vae feia, dizia o visconde de si para comsigo. Se não levanto o dinheiro do deposito estou arruinado. O credito escassea-me, os credores, longe de me sustentarem a posição que seria o unico recurso para se embolsarem do que lhes devo, começam a negar-se e até me atormentam. Fazem bem, o futuro lhes dará o pago e tambem Deus, que de vez em quando ainda se recorda de mim. «Não encontro meio algum de salvação! Se apeio os trens, se revelo, ainda que por sombras, o estado da minha casa, não tarda a ruina, seguindo-se a poucos passos a miseria, com toda a sua hediondez que me assusta. «Devo a todos, e aos que me devem não me atrevo a pedir-lhes contas; não, seria uma loucura para a situação em que me encontro. Exigindo-lhes essas miseraveis quantias, seria mostrar-lhes que as necessito, e eu não tenho mais remedio senão representar que estou rico. Quanto custa esta falsa posição! Á custa de quantas insomnias se adquire um nome que não dá honra no presente nem tão pouco no futuro! Que luctas inglorias! Quem me dera ter nascido filho de um lavrador, e gosar em branda paz os encantos d'uma vida tranquilla. E os homens julgam me feliz! quantos dariam metade dos seus haveres para terem o meu nome! Pobres nescios! Vêem os meus trens, os meus cavallos, os meus vestuarios, e mal pensam as horas que todo esse fausto me rouba ao somno. «Vi a meus pés as primeiras mulheres de Lisboa, por mais de uma vez, com as faces incendiadas pela colera do ciume, vi os maridos a contemplarem-me, e eu mudo, indifferente, com o sorriso nos labios, desprezando-as a ellas, e escarnecendo d'elles. «Quanto dera agora por ter amado uma unica vez, e ter consagrado a esse objecto do meu amor toda a exuberancia da minha vida, todo o ardor das minhas paixões. «Rico, saudavel, com uma intelligencia clara e algum tanto cultivada, porque não creei a melhor de todas as instituições: a familia? «Que futuro me espera? Poderei eu sustentar por muitos annos esta vida, sem dinheiro, alicerce indispensavel d'este edificio? Se ámanhã, completamente desanimados os meus credores, comprehenderem a nenhuma vantagem de me conservarem n'esta situação, que poderei fazer? Sair de Lisboa? e para onde? «Que sei eu fazer? Montar a cavallo ou guiar bem um tilbury. É isto o sufficiente? E demais, affeito a este luxo que me rodeia, teria eu bastante valor para lançar mão de qualquer modo de vida, que não estivesse em harmonia com o que hoje tenho? «Se eu podesse encontrar um homem que me emprestasse dez a doze contos de réis, talvez ainda conseguisse levantar-me. Por isso me liguei com o commendador e com o banqueiro, a fim de explorarmos o Tristão, mas ou eu me engano muito ou d'aquella moita não sae coelho. «Aquillo é homem para duzentas ou trezentas libras, que nada me podem remedeiar. Se eu me convencesse do contrario, ajuntava o visconde abotoando o collete, cujos magnificos botões de coral contrastavam com a pallidez morbida do seu aristocratico semblante, se aquelle Tristão de Almeida fosse homem para emprestar uma duzia de contos de réis, separava-me totalmente dos meus companheiros e recorria á sua bolsa. E quem sabe? Quem me diz que a minha salvação se aninha na sua algibeira! «Quem sabe, continuava elle, mirando-se ao espelho, se as suas idéas ácerca do hospital tem no amago o conseguir um titulo. Se assim fosse estava salvo. Tenho alguns amigos no ministerio, homens que até já dispozeram da minha bolsa, póde ser que elles me sirvam para isto. Se fosse dinheiro tinha eu a certeza que m'o negariam, porém um titulo... «Experimentemos, e se são esses os seus desejos, ficarei salvo. E se não forem? Embora, convencel o hei de que um homem na sua posição necessita um titulo, e que para o alcançar basta ter dinheiro». Quando no meio d'estas judiciosas reflexões se preparava o visconde de Coruche para, afastando-se de Lopes de Miranda e do banqueiro, se lançar aos fundos de Tristão de Almeida, entrou de novo o seu _groom_ annunciando lhe o commendador. --Que teremos? disse o visconde comsigo mesmo, pondo ao mesmo tempo as esporas. --Disse lhe que vossa excellencia se estava vestindo, porém, foi tal a sua insistencia que não tive remedio senão fazel-o entrar para a sala. --Dize-lhe que vou immediatamente. Espera! accrescentou elle como mudando de pensamento. Entre rapazes não ha cerimonias. Que venha para aqui mesmo. O _groom_ retirou-se, e acompanhou d'alli a minutos o commendador. --Deve estranhar o tel o procurado tão cedo, exclamou o commendador, dando-se ares de janota, palavra que n'esse tempo principiava a estar em voga. --Por caso nenhum! Estou sempre ás suas ordens. --Podemos conversar á vontade? --Pois não, respondeu o visconde, visivelmente importunado pela presença do commendador, que viera interrompel-o nas suas profundas meditações. Ou por esquecimento, ou por pouca importancia concedida áquella entrevista, o visconde não havia mandado retirar o _groom_. Lopes de Miranda não tardou em fazer-lh'o notar. Córando ligeiramente, o visconde comprehendeu aquelle reparo e mandando retirar o criado, assentou-se n'um sophá, offerecendo um logar ao commendador. --Preciso fazer lhe uma pergunta. Que idéa fórma de Tristão de Almeida? --A melhor que se póde formar; que é uma excellente alma, e desambicioso de todas as grandezas do mundo. --Fala serio? --Quanto se póde falar. --Julga portanto?... --O quê? --Que o seu projecto a respeito do hospital seja movido, pura e simplesmente, pela idéa de pôr em pratica uma obra de caridade? --Assim o creio. --Outro tanto não penso eu, meu nobre amigo. Ha em tudo aquillo um _arrière pensée_, ajuntou Lopes de Miranda, querendo mostrar ao visconde os seus conhecimentos linguisticos. O homem deseja um titulo. Feliz em que o seu pensamento se tivesse encontrado com o do commendador, o visconde, como homem experimentado, calculou que o unico partido de que podia lançar mão, seria o dissuadil-o completamente das suas suspeitas. --Crê portanto o commendador que essa caridade que antes de hontem viu dispensar ao mestre de obras, era movida apenas por um calculo? Quanto se illude! Seria necessario ter avaliado todas as circumstancias que se deram, para formar o seu juizo. O mesmo suppunha eu, mas logo vi o contrario. Ha factos que se não podem fingir, sr. Lopes de Miranda. Seria necessario que Tristão fosse um grande actor, para tão desassombradamente poder jogar com todas as paixões, como fez antes de hontem quando atropellámos esse infeliz. Seria tambem um calculo o interesse com que sua esposa se approximou do leito do moribundo, e calculo foi tambem de suas filhas, quando com as lagrimas nos olhos pediram ao medico informações do doente? Não me considero de uma credulidade parva, sr. commendador, mas a Cezar o que é de Cezar. Se Tristão, tem ou não desejo de entrar na sociedade precedido por um titulo, não me atrevo a dizel-o, o que lhe affianço, é que, se realmente tem esse desejo, não é elle o movel da sua caridade. Homens tem havido muito caridosos que desejam possuir um titulo, e Tristão póde muito bem ser um d'esses individuos. --Pois eu é que não sou da sua opinião, e venho propôr-lhe o seguinte: Como sabe, tenho tido ha dois annos a esta parte consideraveis perdas em resultado da escassez do vinho, e o sr. visconde, creio que tambem n'esta occasião não abunda em dinheiro. Lembrava me por isso que propozessemos a Tristão, mediante um emprestimo de doze a quatorze contos de réis, o obter-lhe um titulo de visconde, ou mesmo de conde. Que lhe parece? --Em primeiro logar, sr. commendador, nem vossa excellencia nem pessoa alguma está auctorizada a saber se eu abundo ou não em dinheiro, e em segundo devo dizer-lhe que estranho sobremaneira que se atreva a propôr-me similhante indignidade! Creio que nunca, nem ao sr., nem a outra pessoa extendi a minha mão para pedir dinheiro, por maior ou menor que fosse a quantia; estou portanto habilitado a pedir-lhe o favor de mudar de assumpto. Comprehendendo a loucura que tinha practicado, o commendador mudou immediatamente de conversação. Pretextando em seguida varios negocios que tinha de tractar, Lopes de Miranda despediu-se do visconde, seguindo d'alli para casa de Vaz Mendes, esperançado de encontrar melhor acolhimento no banqueiro. Dez minutos depois, perfumado, burnido e penteado, o visconde de Coruche n'um irreprehensivel _pied fé_ fazia em branda flexão voltar o pescoço á _Andorinha_, a egua lazã que mandara apparelhar. Saindo do pateo em duas upas obrigadas, a _Andorinha_ levou o visconde, que formulando o seu plano, se dirigia ao hotel Bragança. XIV Quando Manuel de Mendonça e Mascatudo sairam do hotel d'Europa, encaminharam-se para bordo, como o leitor deve estar lembrado. A galera que fôra em Buenos-Ayres comprada por Manuel de Mendonça, era uma formosa barca de duzentas a trezentas toneladas. Era muito de vêr-se o aceio e a disciplina que reinavam a bordo da galera Esperança, habilmente commandada por Manuel de Mendonça, cujos conhecimentos nauticos fariam inveja ao mais experimentado maritimo. Com sobejos motivos chamava elle aos seus tripulantes os seus amigos e companheiros! A amizade e a confiança com que os tractava jámais concorreu para que lhe dessem o minimo desgosto de indisciplina. Durante a folga todos o tractavam como se elle fôra um amigo, no serviço todos o respeitavam como o seu commandante. Quando por qualquer circumstancia se agitava a mais pequena questão entre os marinheiros, e elle apparecia perguntando-lhes a causa, era bello de vêr como esses homens endurecidos pelas luctas dos elementos, se enterneciam ao ouvir as palavras do seu capitão chamando-os á ordem, e expondo-lhes em phrases insinuantes as terriveis consequencias da má camaradagem. Então, aquelles que momentos antes se haviam levantado exaltados pela colera, graças á eloquencia de Manuel, acabavam sempre por se abraçarem. A galera fundeada a pouca distancia da Rocha do conde de Obidos, parecia na sua eterna inquietação aguardar o que era dono e commandante. Quando um velho marinheiro divisou o escaler do capitão, e este sentado á prôa, o maritimo debruçou-se do navio como criada velha que espera á janella a criança que volve ao lar. Então começaram a apparecer os outros marinheiros, esperando anciosamente que o escaler abordasse á embarcação. E a galera agitando-se aos movimentos da corrente, parecia tambem esperal-o inquieta. Finalmente, o escaler atracou, e Manuel subindo por uma pequena escada de corda entrou a bordo seguido por Mascatudo. Quem de perto observasse o tractamento que elle dava aos marinheiros, e ignorasse o logar que occupava, tel-o-ia tomado por um simples navegante. Depois de falar a todos aquelles homens, desceu á camara, e alli, em companhia de Mascatudo, continuou a conversação que uma hora antes havia começado no hotel Europe. --Estamos aqui mais sós para podermos falar, dizia elle ao marinheiro. Ninguem poderá ouvir as nossas palavras a não ser o mar, e Deus que nos escuta. --O mesmo me acontece, respondia-lhe Mascatudo. Não sei o que sinto quando passo uma noite encarcerado entre as quatro paredes de uma hospedaria! Acordar pela noite velha sem ouvir o rumor da agua batendo de encontro á quilha da embarcação, e sem ver o lume de alguma estrella reflectindo-se de vez em quando como se estivesse a acompanhar o meu dormir, parece que é acordar n'um tumulo. --Quero pedir-te um favor, disse Manuel de Mendonça, depois de alguns instantes de profunda meditação. Como já t'o disse, sei apenas que ficaram no hotel de Bragança. Desejava saber quanto se tem passado, mas falta-me o valor para ir eu mesmo proceder a indagações. Terias duvida em ir procurar essa familia da minha parte? --Eu! exclamou o marinheiro. E porque motivo? Foi alguma acção má a que o sr. praticou? Ora essa! É para já. Não tem mais do que dizer-me o sitio onde tenho de me dirigir. --Aonde te disse, ao hotel de Bragança. Se ainda lá estiverem, pede ao guarda portão que te conduza ao quarto. Pergunta por sua mulher ou por Martha, e dize a qualquer das duas que vaes da minha parte saber da saude de Jeronymo. --É só isso o que deseja saber? Veja lá; lembre-se bem, ajuntou Mascatudo, sorrindo-se para o seu commandante. --É só isto. --E o sr. fica á minha espera, aonde? --A bordo. --Volto portanto aqui? --Já se vê. --Quer que vá já? --Quero. --Era melhor ter-me dito isso lá em terra, ponderou judiciosamente o marinheiro. --Quiz antes pedir-te isso sobre as aguas do mar. --Pois então, sr. Manuel de Mendonça, como bom maritimo que sou, irei sondar esses mares desconhecidos, e tenho fé em Deus, que em poucos dias poderemos navegar de vento em pôpa, sem que o mais leve indicio de temporal nos faça perder o rumo. O que eu não quero é vel-o assim entristecido, accrescentou o fiel marinheiro, fixando a vista na melancolica physionomia do seu commandante. --Pensas talvez que me sinto prezo a essa mulher? perguntou Manuel com aquella pueril ingenuidade de que se revestem os espiritos sujeitos ás mysteriosas influencias do amor! --Não sei, respondeu Mascatudo, mas apostava que sim. Ás vezes, tudo está no começar. O maior temporal principia a levantar-se por uma brisa serena. --Espero em Deus que essa aragem que tu adivinhas, nunca seja nuncia de nenhuma tormenta. --Que Santa Barbara e a Senhora da Bonança nos protejam, commandante, disse Mascatudo, levantando-se e preparando-se para cumprir as ordens do seu capitão. --Amen, respondeu Manuel, reclinando a fronte na mão direita. Mascatudo, sem esperar mais observações, saiu da camara, e, subindo ao convez mandou preparar o escaler. Manuel olhava-o em silencio. --Será este o anjo que Deus me mandou á terra, para me acompanhar nas longas noites da minha solidão? pensava elle espraiando os seus olhares entristecidos na direcção do soberbo edificio do hotel Bragança. XV Desembarcando no Terreiro do Paço, Mascatudo tomou o rumo do hotel. Desde que saira de bordo, o dedicado amigo em mais alguma coisa havia pensado senão em Martha. O seu caracter concentrado e ao mesmo tempo sensivel, levava o a acreditar na impossibilidade de ventura na terra, e, muito menos sobre as aguas do mar, sem se possuir um coração fiel e dedicado, qual a sua imaginação o phantasiava. A mulher, essa divina creação que Deus lançou ao mundo para inseparavel companheira do homem, que deante de nossos sorrisos levanta o rosto brilhante de felicidade, e que desmaia a fronte pallida e inquieta, ao enxugar-nos as lagrimas de desventura, concebia-a Mascatudo no seu coração selvatico com toda a força de um vigoroso sentimento. É que a esse espirito, agitado pelas luctas infrenes dos elementos, descêra um dia o anjo do amor, e pousando-lhe as brancas azas na fronte crestada pelos soes, imprimira-lhe o osculo indelevel do soffrimento. Amára uma vez na vida! Amára com toda a força da sua alma, alma joven e inexperiente, para quem o mundo era um jardim florido, e cada pomo um goso, e cada goso uma esperança, e cada esperança uma existencia de immorredouras felicidades! É que a sós entre o mar e o céu, o grito raivoso das paixões humanas, ferindo-lhe os ouvidos, jámais lhe havia interrompido os extasis, quando assentado ao leme da embarcação contemplava os astros que se reflectiam nas aguas prateadas do oceano, vagas como o seu pensamento, indecifraveis como as suas aspirações! Conhecia apenas a ira do mar, mas a colera do homem envenenado pela inveja ou pela traição, jámais a havia sonhado o seu instincto. Por isso vira na mulher o anjo, na sua convivencia a felicidade unica e possivel. Amou! E quão grande teria sido o affecto n'aquella grande alma?! Possuia algum dinheiro das suas economias, julgou-se em circumstancias de casar. Dois mezes depois, Mascatudo realizava no casamento todas as suas aspirações. Curta, porém, foi a sua ventura. A brisa da morte, agitando-se mysteriosamente sobre o tecto do seu ninho, devastou-lhe ao cabo de um anno flôres e fructo! O triste voltou á vida do mar; e quando por noites caladas o seu barco sulcava as aguas do oceano, via-se ás vezes o tio Luiz encostado á amurada da embarcação, contemplando o firmamento, como que perguntando a cada nuvem em que paragem se occultava aquella metade da sua alma. Desde então, Mascatudo viveu apenas para duas sepulturas: a da esposa e a da mãe! --Hei de saber tudo, dizia elle, ao chegar á porta do hotel. Se fôr como a pintam, serei o primeiro a aconselhal-o a que não perca esta occasião. Cumprindo á risca as instrucções que recebera, Mascatudo foi conduzido pelo guarda portão ao quarto de Jeronymo. Balbina já estava de volta de sua casa, aonde tinha ido mais com o intuito de tranquillisar a pobre Marianna do que para tractar dos arranjos domesticos. --Venho aqui da parte do meu commandante, para saber como está o sr. Jeronymo, disse Mascatudo, olhando desassombradamente para o operario e para a mulher e filha. O enfermo, que nada comprehendêra, ficou como abysmado olhando para Balbina. --Creio que me não expliquei bem, ajuntou o marinheiro; venho da parte do individuo que avisou a sua familia do sitio onde vossemecê estava. --Ah! já sei; vem da parte d'esse sujeito a quem somos tão obrigados, exclamou Martha, fazendo-se vermelha como o estofo do sophá onde estava assentada. --Até que perceberam, continuou Mascatudo, approximando-se do leito de Jeronymo. Foi esse mesmo o que me mandou saber da sua saude. --Quanto lhe estamos agradecidos, interrompeu Balbina, dirigindo-se ao marinheiro. Se não tivesse sido aquelle excellente senhor, talvez que ainda a estas horas estivessemos sem saber onde elle parava. Diga-lhe que graças a Deus, o Jeronymo está muito melhor, e que tanto elle como eu e minha filha desejamos saber onde o podemos encontrar para lhe darmos os nossos agradecimentos. --O sr. Manuel, respondeu o marinheiro, póde encontrar-se a bordo da sua galera, e quando alli não estiver, accrescentou, fixando ardentemente os olhos em Martha, que parecia escutal-o com interesse, está no hotel d'Europe, na rua Nova do Carmo. Mas lá por isso não seja a duvida; deixem estar, uma vez que elle se interessa tanto pelos seus, eu farei com que ámanhã ou depois, se por acaso ainda estiverem n'esta estalagem, elle os venha ver a vossemecês. --Quanto estimaria conhecel-o, interrompeu Jeronymo voltando-se para o maritimo. Martha empallideceu ligeiramente. --N'esse caso eu farei a diligencia de o trazer aqui, respondeu Mascatudo, satisfeito por comprehender o que se passava no coração de Martha. Despedindo se de todos, o marinheiro saiu do hotel. --É um anjo, ou eu sou um grande asno, dizia elle comsigo mesmo, emquanto se dirigia para bordo. XVI Deixemos Mascatudo participar a Manuel de Mendonça os resultados da sua entrevista, e encaminhemo-nos a um pequeno gabinete do hotel onde Tristão costuma receber as visitas de mais confiança. O visconde, como o leitor não ignora, tinha resolvido tirar o maior partido que podesse do seu novo amigo; com este fim se havia dirigido para o hotel. Tristão acabava de chegar de casa de um banqueiro, a quem fôra consultar ácerca de uma transferencia de fundos para o Banco de Portugal na importancia de 650:000$000, para lhe não succeder o mesmo que lhe acontecêra com quantia superior a essa, que tinha no banco de Havana, d'onde havia dois annos não recebia juro algum. Vê-se portanto quaes eram as riquezas d'aquelle homem! Ao ouvir estas palavras, ainda mais seguro ficou o visconde no bom exito da sua tentativa, e, ampliando apenas a cifra resolveu-se a preparar quanto antes o terreno que tinha a explorar. --Com que então, meu amigo, disse-lhe o visconde, já sei que os seus protegidos dormem em leito de rosas o doce somno da esperança, acalentados pelas azas brancas do anjo dos tristes. Por esta exuberancia de imagens, poderá o leitor formar a sua idéa psychologica ácerca do caracter do visconde de Coruche. --Assim o creio, respondeu Tristão, offerecendo-lhe um magnifico charuto havano. --E quando principiam os nossos trabalhos do hospital? --Pela minha parte hoje mesmo, se vossa excellencia quizer; porém, vejo que tem tantos negocios a tractar... --Por Deus, meu caro amigo! Para uma coisa d'essas deixaria tudo de parte. Hoje mesmo, se lhe apraz, iremos escolher o local. --Isso é que era ouro sobre azul! Não calcula a anciedade de minha esposa em vêr realizados os seus desejos. Quando se propôe qualquer coisa, não ha quem a dissuada, nem eu o intentaria n'este caso. --O mesmo sou eu. Veremos quem se lança denodadamente na arena da caridade. E como vossa excellencia vae lucrar n'esta obra! Como se conceituará na opinião publica? De que serve a riqueza, se não fôr applicada ao bem? Quantas ha em Lisboa que para nada servem, a não ser para satisfazer os olhares cubiçosos dos avarentos que as possuem! passam miseravelmente emquanto vivos, e, quando morrem teem por unico elogio dos seus herdeiros, o dizerem que sempre foi um homem muito amigo de olhar pela sua casa. É que esses entes, na minha opinião, esquecidos de Deus, atravessam a vida sem conhecerem a verdadeira felicidade que sente aquelle que, extendendo a mão á pobreza, leva o consolo ao ninho do desamparado. Muitos d'esses miseraveis, renegando o povo d'onde sairam, querem chegar-se á aristocracia, transpôr os humbraes do chefe do Estado, e nem ao menos se lembram de seguir o exemplo, abrindo como elle a sua bolsa aos desvalidos, e os seus pulmões á atmosphera corrompida pelos miasmas da epidemia. E ainda a semana passada o joven monarcha desceu ao leito de um moribundo e passou-lhe a regia mão pelo peito, como para sondar se o coração ainda batia. Já que pessoa alguma o segue no seu heroismo; já que a maior parte d'esses satrapas o abandonam, seja vossa excellencia o heroe que venha a empallidecer-lhes o rosto de vergonha, tomando o exemplo d'aquelle santo rei. Havia tanta verdade nas palavras do visconde; era tão singela a sua dicção, tão arrobadas de sentimento as phrases que acabava de proferir, que Tristão, apezar do seu profundo conhecimento do coração humano, hesitou por alguns instantes, sem poder avaliar se essas palavras seriam calculadas, ou se eram apenas dictadas por um coração votado á caridade. Tristão era homem de arrojado animo. Por mais de uma vez sorrira para a morte que se lhe approximava sem que os lábios houvessem mudado de côr ou o seu coração pulsado com maior violencia. Affeito a uma existencia aventurosa, ainda o fascinavam os perigos. A despeito de se considerar bastante avançado em annos, fiava se na sua robustissima compleição, e, sopesando as forças, distinguiu rapidamente o que ainda podia fazer, graças ao seu arrojo, intelligencia e capitaes. Então desenhou-se lhe um mundo inteiramente novo! Julgou-se cercado pela aureola do prestigio, e ouviu pronunciar o seu nome com todas as pompas de uma gloria merecida. Viu-se a edificar um hospital, e mais tarde, elle mesmo, sua mulher e suas proprias filhas, descendo como anjos á cabeceira dos enfermos. Viu os olhos do monarcha iriados de angelica expressão, volvendo-se agradecidos para elle e para sua familia. Fascinou-o a gloria de um renome, e, elevando se nas azas da caridade, creu subir ao ultimo céu das ledices sociaes! --Tem razão e muita razão, sr. visconde. Vamos hoje mesmo dar um grande impulso á nossa idéa. Jeronymo, a quem tenciono entregar a direcção das obras, segundo me consta, tem tanto de intelligente quanto de honrado. O pobre homem por estes dois ou tres dias não poderá sair de casa; vamos nós sem mais delongas escolher o sitio. Em que bairro lhe parece? --No de Santos. Por exemplo lá para as bandas da Pampulha. --Visto isso, vou mandar pôr o trem, e entretanto subo ao quarto de Jeronymo para lhe communicar as nossas intenções. E sem mais demora saiu do gabinete. --Esplendido, exclamou o visconde, contemplando ao mesmo tempo um album de retratos que estava sobre uma banca de jogo. O negocio corre ás mil maravilhas. Em todo o caso, é necessario espaçal-o por mais alguns dias, e em vez de dez ou doze contos, serão vinte ou trinta, hypothecando-lhe... hypothecando-lhe o quê? umas propriedades que eu desejava possuir no Algarve. O homem está sequioso de gloria. Cega-o a vaidade. É um zote que eu domino com a força da minha eloquencia. Bastam-me duas palavras para o conduzir aonde me aprouver. N'este comenos entrou o magnate, dizendo lhe que já estava o trem á porta. Desceram e entraram na carruagem. Tomando pela rua do Arsenal, dirigiram-se ao Corpo Santo. Proximo á egreja grande multidão contemplava um pobre velho, que, estorcendo-se em terriveis convulsões, denunciava ter sido atacado pela febre. Mandaram parar o trem, e Tristão, apeando-se primeiro, dirigiu-se para o grupo. O visconde seguia o sem dar uma palavra. --É um infeliz que foi atacado pela febre, disse um gallego a quem Tristão se havia dirigido. --E tambem pela fome, interrompeu uma vendedeira de hortaliça. --E ainda não appareceu ninguem que lhe fosse buscar soccorros? perguntou o visconde. --Saberá vossa excellencia que ainda não _senhora_, respondeu a vendedeira. --Pois se vossemecê se interessa por esse homem, peço-lhe que se encarregue de lhe chamar os soccorros, accudiu Tristão, approximando-se mais da mulher e entregando-lhe quatro libras. Se elle tem familia, diga-lhe que me procurem logo no hotel Bragança, e vá vossemecê com ella, para lhe dar tambem alguma coisa. O oiro assombrou a vendedeira, que esteve por alguns segundos sem poder soltar palavra. --É uma caridade, meu senhor, porque está cheiosinho de familia, disse finalmente a mulher com voz tremula e commovida. Mas agora outra coisa, meu senhor, ajuntou ella, por quem devo procurar. --Pelo excellentissimo sr. Tristão de Almeida disse vivamente o visconde. Mettendo-se outra vez na carruagem, abandonaram aquelle grupo, pasmado por tanta generosidade, e partiram pela rua da Boa Vista. --A sorte favorece-o, proporcionando-lhe todos os ensejos para pôr em pratica a sua grande obra, dizia-lhe o visconde, fitando-o com um olhar de lynce. --Assim o creio, respondia-lhe Tristão, olhando para todas as ruas por onde passava, com a curiosidade que todos experimentam, ao contemplarem pela primeira vez os logares que lhe são desconhecidos. --Agora me recordo, disse o visconde, parece-me que está uma casa para alugar na rua de S. Francisco de Paula. Se lhe parece vamos vel-a. --Deus permitta que esteja nas condições que precisamos. Finalmente chegaram á rua designada pelo visconde. A casa, segundo elle havia pensado, era magnifica para aquelle fim. O dono morava longe, porém a boa vontade tanto de um como de outro principiava a não admittir difficuldades, e seguiram immediatamente para casa do senhorio. No dia seguinte ás oito horas da manhã, na rua de S. Francisco de Paula, começavam todos os preparativos inherentes á fundação do hospital. O anjo da caridade, invocado por Tristão de Almeida, elevava as suas azas brancas sobre os telhados d'aquelle edificio! XVII --Acompanhas-me, Luiz? Tenho tanto desejo de ir visitar aquella gente... e comtudo não me sinto com valor. --Ora essa, meu capitão, da melhor vontade! Não sei o que li n'aquelles olhos verdes de Martha; ainda se me não poderam tirar da memoria! Póde ser que me engane, mas essa menina é um anjo! Ha na meiguice do seu olhar um não sei quê, que me prendeu! --Será isso uma illusão da tua parte? --Nem por sombras! Se a visse, quando eu prometti a sua mãe que faria com que o senhor lá fosse... --Então mostrou muitos desejos de me ver? perguntou Manuel com essa visivel curiosidade dos namorados, e como desejando prolongar a conversação de Mascatudo. --Se mostrou! Ao principio fez-se branca como a cal da parede, e em seguida tornou-se vermelha como uma romã. Havia tanto interesse no seu olhar, quando me falou a respeito do senhor, que logo comprehendi que alguma coisa se passava no seu coração. --Pois então, meu amigo, o que tem de ser, seja. É Deus que o determina: iremos hoje vel-os. Passava-se este dialogo a bordo da galera Esperança, no mesmo dia e á mesma hora em que o visconde de Coruche expunha a Tristão de Almeida, no gabinete do hotel Bragança, as graves conveniencias que lhe resultariam da sua philanthropica resolução. Subindo á tolda, Manuel mandou apromptar o escaler e veiu para terra em companhia de Mascatudo. Dirigiu se ao hotel. Ao subir a escada que conduzia aos quartos de Jeronymo, sentiu que um mundo novo e inteiramente estranho se desenrolava a seus olhos! Receioso pelo sentimento que lhe perturbava o espirito, o marinheiro quasi pedia á Providencia, que qualquer circumstancia fortuita lhe viesse impedir a realização dos seus desejos! Batendo mansamente á porta do quarto de Jeronymo, ouviu a voz doce e melancholica de Martha que de dentro lhe respondia. Faltou-lhe o valor; foi necessario que Mascatudo o animasse a entrar. Entraram ambos. Reclinado sobre uma poltrona, Jeronymo dir-se-ia um cadaver. A seus pés, assentada n'um tamborete, Balbina olhava-o com gesto de profundo desalento, fitando de vez em quando sua filha que de pé os contemplava! Martha ficou immovel! --Venho saber da saude de seu marido, disse Manuel para Balbina, extendendo ao mesmo tempo a mão ao mestre de obras. Este sorriu-se brandamente para o maritimo, apertando entre as suas aquella mão que se lhe offerecia. --E como se sente? --Melhor, felizmente, muito melhor! respondeu Jeronymo, olhando ao mesmo tempo para sua mulher, e indicando-lhe que approximasse uma cadeira. Manuel, pegando na cadeira que Balbina lhe offerecia, sentou-se ao lado do enfermo. Mascatudo contentava-se apenas em observar os olhos de Martha, buscando em cada movimento descobrir o que lhe passava n'alma. Balbina então relatou a Manuel quanto havia succedido, sem lhe omittir os rasgos de generosidade de que era devedora a Tristão e a toda a sua familia. --E quem é esse homem tão caridoso? perguntou Manuel, como se já n'esse instante se lhe começasse a perturbar o espirito com a idéa de que essa protecção fosse menos devida á caridade do que á formosura de Martha. --Quem é elle, não lh'o podemos dizer, respondeu Balbina. Sabemos apenas que é um senhor muito rico, e que todo o seu fim é fazer bem á pobreza. Agora vae elle estabelecer um hospital para as pessoas atacadas pela febre, hospital de que meu marido é o encarregado. --E não só elle, como sua mulher e filhas, se tem interessado o mais possivel por mim, ajuntou Jeronymo. --Nunca me ha de esquecer aquella noite, menina, tartamudeou Manuel dirigindo-se a Martha. --Quanto lhe devemos, meu caro senhor, acudiu o operario, olhando ora para Manuel, ora para a mulher e para a filha. --Como elle se portou com a nossa filha! Não temos modos de agradecer! disse Balbina visivelmente reconhecida. --É merecedora de tudo! Nada tem que me agradecer, respondeu Manuel olhando ao mesmo tempo para a interessante Martha. Quando a filha do operario, mais familiarizada com a presença do maritimo, se preparava para lhe dirigir a palavra, soaram uns passos no corredor e abriu-se em seguida a porta do quarto. Eram Tristão e o visconde. --Venho prevenil-os de que já temos casa para o hospital, e que ámanhã por estas horas--graças á actividade do sr. visconde--já devem começar os trabalhos, disse Tristão de Almeida, reparando ao mesmo tempo em Manuel de Mendonça e Mascatudo. Estes ultimos olhavam para os recemchegados, sem poderem occultar que as suas presenças se lhes não tinham tornado muito sympathicas. --Estes senhores pertencem á sua familia? perguntou o visconde dirigindo-se a Martha. --Não, senhor, respondeu Martha. E indicando Manuel de Mendonça, accrescentou: este senhor foi quem me encontrou na rua, e que mais tarde descobriu aonde estava meu pae. --Ah! foi este senhor! acudiu Tristão. Quanto folgo em ter o gosto de o conhecer. Se me não engano, n'aquella mesma noite tive o prazer de o encontrar; porém, quando ia para lhe extender a mão, já vossa senhoria tinha saido d'este quarto, ajuntou Tristão dirigindo-se a Manuel de Mendonça e extendendo-lhe brandamente a mão. Se n'aquella noite do atropellamento os olhos de Manuel de Mendonça se haviam cravado particularmente no rosto de Tristão, mais cuidadosamente o fixaram n'aquelle momento. O mesmo se passou com o magnate. Dir-se-ia que esses dois homens já se haviam encontrado alguma vez na vida! Onde? Sabia-o Deus, que n'esse instante os não illucidava! O physionomista que de perto observasse o rosto de Manuel, ter-lhe-ia notado um estremecimento de repulsão no momento em que, extendendo a mão, a sentiu em contacto com a de Tristão de Almeida. A Mascatudo não lhe passou desapercebido. --Queira Deus, pensava elle comsigo, que o sr. Manuel de Mendonça não comece já a imaginar que lhe querem estorvar a pesca. Se elle vê que lhe lançam a fisga, põe-se de ventas á enchente e vae tudo com trezentos mil diabos. Elle é bom, isso lá é que não ha duvida, mas, se lhe pegam fogo ao paiol da polvora, vae tudo pelos ares em mil estilhaços. Tristão e o visconde trocaram ainda algumas palavras entre si, e depois de alguns momentos de silencio, despediram-se de Jeronymo e de sua familia, e sairam do quarto cumprimentando affavelmente Manuel de Mendonça. --Conhece aquelle senhor? perguntou Martha a Manuel de Mendonça, referindo-se a Tristão de Almeida. --Não conheço, respondeu o maritimo, comtudo, parece-me já ter visto aquelle individuo, aonde não me recordo. --O mesmo me pareceu a mim, acudiu Mascatudo. E a elle, se me não engano, tambem o senhor não lhe era estranho. --O que elle me parece é um santo homem, disse Balbina, que não via em Tristão mais do que o protector de seu marido. --Assim o julgo, respondeu Manuel, levantando-se e despedindo-se de Jeronymo. --Já se retira? perguntou Martha, lendo-se-lhe nos olhos o que principiava a sentir no coração. --Tenho de ir para bordo, respondeu Manuel despedindo-se de Martha, e promettendo-lhe voltar no dia seguinte. * * * * * --Então o que me diz, meu capitão? perguntava Mascatudo ao sairem o pateo do hotel. --Que gosto muito d'ella, respondeu Manuel de Mendonça olhando para as paredes do edificio como se buscasse a janella do quarto onde havia ficado a familia do operario. XVIII São dez horas da manhã. Deitado no seu leito de precioso ebano, e fazendo mil conjecturas ácerca de Tristão, a quem na vespera havia convidado para almoçar, o visconde de Coruche, como homem experimentado, palpa, estuda e analysa o terreno por onde tem de caminhar. Tudo estava prevenido para o almoço. Uma grande parte da baixella, que dias antes tinha sido substituida no _prégo_ por outros objectos cuja ausencia se não fazia notar, já estava sobre os aparadores. Entre os riquissimos trabalhos de prata destacava-se um pelo seu grande valor e merito artistico. Era um centro de mesa. Representava as tres graças sustentando uma enorme concha. Era esta, por assim dizer, a ultima reliquia que lhe restava do seu para sempre chorado tio! «Fiz mal, pensava elle, em não ter convidado o commendador e Vaz Mendes, para almoçarem commigo. Podem prever n'isto alguma insidia e intrigarem-me com o meu Cresus! É mais prudente escrever-lhes. E sem mais delonga, levantou-se e desceu ao escriptorio, formoso aposento ao rez do jardim, esplendida e custosamente mobilado. «E pensar que tudo isto é sol de pouca dura! accrescentava elle olhando para as estufas do jardim. Não terei valor para cair com a minha ruina? Hei de ver de pé firme e olhar sereno, sair d'esta casa para o poder dos agiotas, até á ultima, todas estas reliquias? Deus não póde permittir que um homem que tem vivido e gozado como eu, se encontre um dia a braços com a miseria! É forçoso tomar uma deliberação. Tenho ainda uns seis mezes para viver, é pouco; prolongue-se a existencia, custe o que custar. Homicidio é um crime, e deixar-me escorregar na pendente do meu infortunio é um suicidio. Não quero ser criminoso. «Arvores a cuja sombra me abriguei na minha infancia, nem vós já me pertenceis! continuava elle olhando para o vetusto arvoredo do jardim. «Tectos que vistes expirar meus paes, que impia mão de atroz capitalista te manchará o culto? Aqui nasceu meu avô, aqui morreram todos os que tiveram melhor senso do que este desgraçado! «Soberbo choupo para me enforcar com o cordão do meu chambre», dizia elle como se quizesse zombar de si mesmo e contemplando ao mesmo tempo a arvore, que parecia convidal-o ao passo mais acertado que podia dar em toda a sua vida. Abandonando estes lugubres pensamentos, o visconde sentou-se á carteira, e escreveu duas cartas, uma ao commendador, e outra a Vaz Mendes. Pedia em ambas a honra de virem almoçar em sua companhia. Tocou a campainha e entregando as cartas a um criado para que as levasse sem demora ao seu destino, o visconde deu ainda algumas voltas pelo jardim e dirigiu-se á casa de banho. Ao meio-dia em ponto entraram Vaz Mendes e o commendador Lopes de Miranda. --Quanto folgo me não tivessem faltado, disse-lhes o visconde conduzindo-os para a sala de visitas. Tristão, acrescentou elle, vem hoje almoçar commigo, era forçoso pedir que mais alguem lhe tornasse menos pezado o sacrificio. Vamos discutir largamente sobre o hospital. Sabem que já temos a casa arrendada? --Sabemos, responderam ambos. --Um magnifico palacio á Pampulha. --O local não podia ser mais bem escolhido, disse o commendador reclinando-se n'uma poltrona. E quando principiam os arranjos? perguntou Vaz Mendes. --Hoje mesmo; para esse fim os mandei chamar. Vamos comprar tudo o que fôr necessario para que principie a funccionar de hoje a oito dias. --Realmente é um homem de muita caridade este Tristão, interrompeu Vaz Mendes, olhando para uma soberba aguarella de Howell. --Basta o que elle tem feito pelo mestre de obras, ajuntou Lopes de Miranda. --E quem seria capaz, já não digo de mais, mas de tanto? acudiu o visconde. Isto é que é a verdadeira caridade, sem alarde nem ostentação. --Tambem, disse Vaz Mendes, quem tem uma fortuna superior a dois mil contos, o que deve fazer senão dividil-a com a pobreza? --E quantas pessoas conhece o meu amigo, que não são capazes de gastar um ceitil com os pobres? perguntou o visconde. --Concordo, respondeu o banqueiro, olhando de soslaio para um Salvator Rosa, unica pintura que restava da galeria do conde de ***. Ao ouvir-se o rodar de um trem, o visconde approximou-se da janella para se certificar se era a carruagem de Tristão que chegava. Não se enganára. Deixando os dois convidados, desceu ao pateo para o receber. Quando entraram na sala foi uma agradavel surpreza para Tristão de Almeida o encontro dos seus dois amigos. Á hora designada dirigiram-se todos para a sala de jantar, onde um variado e bem servido almoço os esperava. Ao contemplarem a magnificencia da baixella, Vaz Mendes e o commendador entreolhavam-se, assombrados por tanta riqueza. Tristão olhava para tudo com um gesto de profunda indifferença! Um objecto apenas se tornou o alvo da sua attenção: foi o centro de prata, de que já falamos ao leitor. Havia muito que elle desejava occultar a sua admiração; por ultimo não se conteve. --É de suppôr que saiba o que alli tem, disse Tristão voltando-se para o visconde, e apontando ao mesmo tempo para as tres graças. --Sei. É magnifico! Atribuem-n'o ao cinzel não sei de que artista notavel, cujo nome me não lembra, respondeu o visconde. --Vale um bom par de contos de réis, replicou Tristão dirigindo-se a Vaz Mendes. «Forte asno, murmurou o banqueiro para comsigo. «Está doido! pensou o commendador. «Achei! disse o visconde falando com o seu coração. «Fortes nescios! reflectiu Tristão, que pelos differentes jogos das suas physionomias, lhe adivinhára os pensamentos.» Ás quatro horas da tarde sairam todos tres, tendo previamente combinado com o visconde, para que os esperasse no hotel das seis para as sete horas da noite. «Estou salvo! dizia o visconde, á proporção que os via desapparecer. Por qualquer dos dois meios venço. Desfazendo me das tres graças, que já para mim não tem graça, posso vender-lh'as talvez por dez ou doze contos. Mas espera, accrescentou elle como se uma idéa lhe acudisse subitamente, é mais decente, mais elegante mesmo: presenteal-o com esse objecto. Ninguem chegou a mais de mil libras, e, para isso, foi necessario que encontrasse um inglez que as julgava Benevenuto! Mas quando viu que o não era, creio que me não daria nem mais dez libras do que o seu pezo. Se elle o attribue a cinzel, bem estamos; deve pelo menos avalial-o em vinte contos, portanto, em vinte contos avaliará o presente. Não ficarei habilitado a pedir-lhe vinte e cinco ou trinta? Ao centro, visconde, e chegarás ao teu fim! E, sem mais reflectir, chamou o _groom_ e mandou embrulhar as tres graças em finissima toalha de Flandres, ordenando-lhe que as collocasse dentro do _coupé_. Ao cair da tarde, acompanhadas pelo visconde, as tres filhas de Eurynome abandonavam a casa do fidalgo para entrarem de graça em casa de Tristão, que bem caro teria de pagar aquella graça. XIX O hospital da rua de S. Francisco de Paula, em virtude dos esforços do visconde de Coruche e da inexgotavel bolsa de Tristão, estava prompto de tudo. Sem lisonja, podia chamar-se-lhe um hospital modelo! A boa ordem reunida ao aceio e todas as outras condições hygienicas, tornavam aquella instituição a melhor do seu genero. Em Lisboa, Tristão d'Almeida era o assumpto de todas as conversações. Todos falavam na sua caridade; todos se assombravam das sommas fabulosas que dispendia. Além do custeamento do hospital, Tristão collocára cincoenta contos de réis em metal sonante na burra do seu escriptorio, para serem applicados ás familias dos doentes que por ventura alli morressem, deixando por unico legado a fome e a saudade. Além d'estas circumstancias, uma outra havia mais transcendente: era a maneira por que a sua familia se dispunha para receber e tractar os enfermos. D. Maria Egypciaca e suas duas filhas, todas tres com a mesma equipendencia de valor, eram as encarregadas das enfermarias das mulheres. Tristão e o commendador tomaram entregue das do sexo masculino. Oito pessoas entraram no dia da abertura. Por mais perigoso que fosse o estado de qualquer d'esses individuos, não houve um só que deixasse de sentir á cabeceira do leito a voz doce e animadora da mulher de Tristão de Almeida, e de suas duas filhas, sobre tudo de Magdalena. As principaes familias de Lisboa quasi todas desejavam relacionar-se com aquelles quatro anjos do bem que vinham de longes terras para descançar o seu vôo sobre a cidade agonizante! Ao encontrar se completamente restabelecido dos ferimentos, Jeronymo partira para o hospital afim de se encarregar da sua direcção. Ás vêzes, na janella do terceiro andar que olhava para o Tejo, via-se uma criança loura e formosa como os anjos: era Martha. Entristecida, ora parecia buscar n'aquelles horizontes algum objecto que lhe prendia a imaginação, ora descia aos salões do hospital, como se procurasse na morte a branda paz que a sua alma havia perdido sobre a terra! Avaliando a immensa distancia que a separava de Manuel de Mendonça, Martha havia depositado no mais intimo do coração todos os martyrios que a suffocavam! Vira-o pela ultima vez no dia em que seu pae saira do hotel. Manuel dissera-lhe que d'alli a poucos dias iria visitar sua mãe, isto a meia voz, sem que Balbina o notasse. Foi n'esse momento que ella começou a comprehender que lhe não era totalmente indifferente. Mas, d'isto tudo o que poderia resultar? Quem era Martha, para ser amada por um homem como Manuel de Mendonça, um commandante de navios, emquanto ella não era mais do que a filha de um operario! N'esses momentos subiam-lhe á mente mil idéas que a torturavam. Era um tumultuar de receios que nem a sua intelligencia tinha forças para comprehender, nem o seu coração para os supportar. Assim foram passando muitos dias, e Manuel sem cumprir a sua promessa. Tel-a-ia esquecido? Impossivel! Aquelles olhos não lhe haviam mentido! As ultimas palavras que proferira, revelavam bem todo o interesse que ella lhe tinha inspirado. Teria adoecido com a febre? Morrido? Não! Morrer tão novo, tão anciosamente adorado! Deus não consentiria que elle deixasse este mundo sem que Martha lhe houvesse assistido ao derradeiro sopro d'aquella vida, que era todo o seu querer, todo o seu pensar, toda a sua existencia! Manuel vivia, mas havia a esquecido por outra. Magdalena contemplára-o com interesse, n'uma tarde em que se encontraram na varanda do hotel! Ainda que Manuel não lhe respondeu ao seu olhar, podia tudo isso ter sido um calculo. «Quem sabe se eu fui um instrumento da sua vontade, fazendo-me suppôr que era a mim e só a mim a quem elle amava, emquanto o seu coração estava inclinado para a filha de Tristão? pensava Martha. Mas sendo assim, tudo poderei descobrir; e se fôr, buscarei a morte como ultimo recurso á minha desgraça.» Immersa n'estas terriveis conjecturas, Martha desceu ás salas do hospital. Já haviam entrado D. Maria Egypciaca e suas filhas. Notando a profunda pallidez da filha de Jeronymo, as fidalgas, segundo Martha lhe chamava, começaram a receiar pela sua saude. Magdalena foi a primeira a approximar-se-lhe, e beijando a meigamente na fronte, pediu lhe por tudo quanto havia que não arriscasse tanto a sua saude, perdendo as noites ao lado dos doentes. Durante todo esse dia, aonde mais intensos reinavam o perigo e a afflicção, alli se encontrava Martha! Quando ao anoitecer a familia de Tristão se preparava para sair do hospital, Magdalena insistiu com a filha do operario para que tambem se retirasse. Foram inuteis todos os seus esforços. Pretextando que tinha de ficar com seu pae, Martha acompanhou-as até á carruagem e voltando depois para o terceiro andar, tornou a encostar-se áquella janella onde a encontrámos no principio d'este capitulo. Deixemos a infeliz criança enchugando em silencio as suas primeiras lagrimas, e dirijamo-nos ao hotel Bragança. XX São nove horas da noite. D. Maria Egypciaca, de pé, encostada a um bufete, aguarda com palpitante anciedade a volta de seu marido. Olympia, agitando-se impacientemente pelo salão, contempla de vez em quando o mostrador de uma pendula, como implorando aos ponteiros que bem depressa lhe marquem a hora da ceia! Magdalena, reclinada ao parapeito da varanda, fita o astro da noite, que, reflectindo-se sobre as aguas do Tejo as cria de um brilho triste e melancholico. --Não te demores ahi á janella, disse D. Maria Egypciaca, voltando-se para sua filha. A noite, como vês, começa a arrefecer, e os tempos não estão para brincadeiras. --Não receíe, minha mãe, respondeu Magdalena. Sinto-me aqui tão bem. --Faze o que quizeres. --Em todo o caso, se minha mãe está com susto, eu retiro-me, disse Magdalena saindo da janella. --Sabes que já me vae dando algum cuidado esta demora de teu pae. São estas horas e elle sem apparecer. --E é verdade, acudiu rapidamente a filha mais nova. São perto de nove e meia. Provavelmente jantou em casa do visconde e não se lembra que o esperamos para ceiar. --Decididamente não pensas n'outra coisa senão em comer, murmurou Magdalena sorrindo-se para a irmã. Não sabes que a dieta é o melhor preservativo. --Pois continuem as senhoras com a sua dieta que eu, pela minha parte, irei comendo o que me aprouver, respondeu Olympia. Deram as nove e tres quartos e Tristão sem apparecer. --Se teu pae se demora mais dez minutos, vou ao hospital, disse D. Maria Egypciaca. --Se o criado se demora mais cinco minutos, vou ao hospital ver se me dão alguma coisa de comer, tartamudeou Olympia com visivel inquietação! Ao terminar estas palavras abriu-se a porta e entrou Tristão acompanhado pelo visconde. --Não me tornes a apparecer tão tarde, disse D. Maria Egypciaca voltando-se para o marido. Não sabes os cuidados em que temos estado, tanto, eu como as meninas, ajuntou ella, beijando a fronte de seu esposo e cumprimentando ao mesmo tempo o visconde. --Desde que sairam do hospital, não podem suppôr o trabalho que tivemos se não fôra Martha... --Parece uma santa rapariga, disse D. Maria Egypciaca voltando-se para o visconde. --Tal pae, tal filha, minha senhora, respondeu o visconde. Magdalena córou ligeiramente ao ouvir pronunciar o nome de Martha? As suspeitas da infeliz, não eram totalmente despidas de fundamento. Magdalena vira por duas vezes Manuel de Mendonça quando elle fôra visitar o operario. O olhar nobre e varonil do commandante, as suas maneiras altivas e ao mesmo tempo insinuantes, tudo concorreu para que se tornasse sympathico. Manuel não o havia notado ou, pelo menos fingiu ignoral-o. Orgulhosa em demasia, Magdalena jámais teria descido a declarar-se-lhe. Além d'isso, o seu espirito observador fizera-lhe notar que a filha do operario não era totalmente indifferente a Manuel de Mendonça. Quanto ao que se passava no coração de Martha, era um problema difficil de resolver. Uma tarde em que Magdalena deitava para o Tejo o seu magnifico telescopio, viu um escaler com quatro remadores, e um individuo sentado á prôa. Reconheceu n'esse homem o mysterioso personagem que lhe apparecêra no quarto de Jeronymo! O barco seguia Tejo abaixo. Assestando o oculo, seguiu o em todos os movimentos. Por ultimo, abordou a uma embarcação que estava fundeada em frente da rocha do Conde de Obidos. Manuel saía do escaler e subia para bordo. Desde essa tarde, Magdalena não perdia ensejo de olhar para aquella pequena embarcação, e quando por ventura sabia que Manuel de Mendonça estava no quarto do operario, buscava sempre esse momento para o ir ver. --É de suppôr que ainda não tenha ceiado, meu pae, disse Olympia. A ceia deve estar prompta, acho rasoavel que vamos comer alguma coisa. --Quem havia de ser a primeira a lembrar-se da ceia, respondeu Tristão, passando o braço pela cintura de sua filha, e convidando o visconde a sair da sala. Na mesa, esplendidamente adornada pela baixella que Tristão havia comprado, sobresaíam as tres netas de Apollo, com que o visconde havia presenteado o seu amigo. [Ilustração:--Vocemecê anda sobre as aguas do mar?... (_pag. 165_)] --Eis a alegria da meza, disse Tristão voltando-se para o visconde e apontando ao mesmo tempo para o magnifico centro. --O que lhe peço, replicou o visconde, é que me não esteja todos os dias envergonhando com esse objecto, que se algum valor teve para mim, foi o de agradar a vossa excellencia. --Não me cançarei de o gabar, continuou Tristão, offerecendo um logar ao visconde entre sua esposa e Magdalena. --Tenho vindo todo caminho a dizer a seu esposo, que deve acceitar o titulo que brevemente lhe vae ser offerecido, disse o visconde voltando-se para D. Maria Egypciaca. Já tres ou quatro pessoas me disseram que el-rei o senhor D. Pedro V, encantado pelos seus serviços, tenciona agracial o com um titulo condigno ao seu merito. Sabe o que me respondeu? que não queria acceitar coisa alguma; que para recompensa, bastava-lhe o prazer que experimentava em ser util á humanidade. Isto á luz da philosophia é uma grande verdade, mas para o mundo acho uma loucura! --Sou quasi da opinião de meu marido. Basta que se chame Tristão de Almeida. De seus paes herdou esse nome sem a mais pequena macula, é razoavel o seu desejo em o querer conservar até ao ultimo momento da vida. --São vossas excellencias da opinião de sua mãe? perguntou o visconde dirigindo-se ás filhas de Tristão. --Pela minha parte é-me totalmente indifferente, respondeu Magdalena. --E vossa excellencia... accrescentou o visconde voltando-se para Olympia. --Sou da opinião de todos, retrucou Olympia, mastigando o setimo croquette. --Se vossa excellencia resolvesse seu esposo a acceitar o titulo de conde, compromettia-me a fazer lavrar a carta regia em menos de um mez. Ao ouvir pronunciar o titulo de conde, os olhos de Tristão brilharam com uma alegria selvagem. Teria dado muito para ser visconde, mas o que elle nunca poderia suppôr, era que obtivesse o titulo de conde! O visconde comprehendeu-o immediatamente. «Temos homem! pensou elle. O ensejo é favoravel; ha de ser hoje mesmo! Está proximo o dia vinte. Se até esse praso não levanto dinheiro, a ruina é certa! Vão salvar-me as tres graças e o titulo de conde.» A ceia correu animadissima! D. Maria Egypciaca, julgando-se condessa, pensava de ante-mão na gloria que esse titulo lhe ia proporcionar. Desentranhando do amago do seu bestunto todos os nomes de terras mais harmoniosos que tinha ouvido, escolhia de entre esses o que mais euphonico lhe parecia. Tristão, apezar de toda a sua serenidade, olhava ora para a mulher ora para as filhas, como que desejando que a conversação continuasse sobre o mesmo assumpto. Olympia continuava a comer desafrontadamente, sem cuidar na gloria que se lhe preparava! Uma pessoa apenas parecia indifferente ao titulo e á ceia, era Magdalena. A pobre sonhava a felicidade entre o mar e o céu! A sua ventura estava n'aquella barca, para onde ella ao cair da tarde extendia seus olhares entristecidos pelo labutar de uma eterna recordação. * * * * * Quem d'alli a duas horas tivesse entrado na sala occupada por Tristão, teria visto o seguinte: D. Maria Egypciaca em profunda meditação, folheando um livro que mandára comprar, cujo titulo era _Resenha das Familias de Portugal_. Olympia reclinada n'um sophá fazendo o chylo, e resonando profundamente. Magdalena encostada á janella contemplando as estrellas que se reflectiam sobre as aguas do Tejo. E quem, movido de imperdoavel curiosidade, tivesse seguido o visconde e Tristão de Almeida até ao patamar da escada, teria ouvido este ultimo dizer em voz baixa ao visconde: --Sendo tres horas da tarde, poderá ir receber os trinta contos de réis a casa de Vaz Mendes, e se por ventura se vir n'algum outro apuro, peço lhe encarecidamente que se lembre de mim. --Ha de ser com uma condição, respondia lhe o visconde. --Qual? --Acceitar o titulo de conde. --Acceito. XXI No dia seguinte áquelle em que praticâmos a indiscrição de fazer com que o leitor tambem escutasse as ultimas palavras trocadas entre Tristão de Almeida e o visconde de Coruche, achava se este, antes do meio dia, assentado á secretaria do seu escriptorio, chamando todos os criados, e ordenando a cada um que lhe apresentasse as suas contas. Os moços estavam como que assombrados! Nenhum podia acreditar que elle estivesse habilitado a falar d'aquelle modo. Todos sabiam o estado da sua casa, e a unica esperança que lhes restava, eram as promessas de um agiota a quem tencionavam vender as dividas. --Aquillo foi obra de jogo, dizia o cocheiro, refinado velhaco, a quem o visconde havia arrancado á miseria. --Ora, saude! acudiu o trintanario, quem caiu d'ahi abaixo! Quem lhe havia de dar dinheiro para fazer jogo? Ainda não ha muitos dias que elle perdeu cincoenta moedas, e, a respeito de pagal-as, _xó rôlla_. --Dê-me elle o que me deve, o mais tanto se me dá como se me deu! Venha o _baguinho_, e tanto m'importa que fosse ganho ao jogo, como achado, como roubado! --O mesmo digo eu, mestre Domingos, interrompeu o criado de quarto. Tomára eu sempre que elle estivesse muito endinheirado. Ha lá melhor patrão! Já o viram olhar para alguma conta? Mais ainda; quando lhe apresentavamos os roes, e que elle tinha dinheiro na gaveta da secretaria preta, quantas vezes me dizia: Põe lá a conta e tira o dinheiro. Patrões assim, agarral-os é que custa. --Pois sim, tudo isso é uma grande verdade, mas, o que é certo, é que está aqui está sem vintem, disse judiciosamente o cosinheiro. --Isso é lá com elle, mas quem te diz a ti que esse individuo a quem deu os bonecos de prata... --O quê? --Lhe tenha emprestado algum dinheiro. --Anda cá dinheiro, que te quero ver. Tambem tu vives de caretas? Lá que elle tenha querido encostar o homem, não me admira, mas que o brazileiro caisse ao tiro... essa é que não pega. --Que elle está muito contente, é que não ha duvida. --Já tem o _bago_ na mão, hein? Ora adeus? Se o tivesse, a estas horas ninguem o aturava. --Não sei falar n'essas coisas. Venham os soberanos e o mais tanto se me dá que a agua corra para baixo como para cima! --O que parece impossivel é que vossês estejam aqui n'este conluio, murmurando de um senhor que os trata como sua excellencia, disse um velho de perto de setenta annos que acabava de entrar. Aqui estou eu, a quem elle deve mais do que a vossês todos juntos, e ainda não abri bico contra elle. --E o que tem vossemecê com o que nós estavamos falando? disse o cocheiro approximando-se do ancião. --Se lhe parece, bata-me, tartamudeou o velho, encostando-se serenamente a um aparador. Se o sr. visconde souber o que se passou, podem ter a certeza que vae tudo para o meio da rua. --E quem lh'o _havera_ de dizer? acudiu um moço de cavallariça. --Eu! Não serei capaz de lhe contar tudo, _tim tim, por tim tim_? --Eu perca a minha liberdade, se vossemecê tornasse a comer mais pão. --Pensa talvez que me assusta com as suas fadistices? Meu amigo, tenho perto de setenta annos, mas, frangãos assim, para os depennar basta-me a mão esquerda. --Está bom, está bom! Leva de rumor! acudiu o cosinheiro. Quem quizer fazer _banzê_, vá para o meio do pateo, que não é este o logar para dize tu direi eu. E demais aquelle senhor tem toda a razão, ajuntou elle olhando para o velho. É o mordomo do sr. visconde, conheceu-o de criança e não gosta de ver o seu amo offendido. Nada mais natural do que tomar as palhinhas por elle. --Entre vossemecê tambem, se lhe parece, ajuntou o cocheiro, tomando o partido do moço da cavallariça. --Olhe, meu amigo, disse o cosinheiro, dirigindo-se ao cocheiro, commigo não faz vossê vasa. Cá por mim, não lhe digo quantos annos tenho, mas se me faz chegar a mostrada ao nariz, desabo-lhe d'aqui com esta mão de vacca que fica sem saber da cara por tres dias. N'este comenos ouviu-se a campainha do escriptorio. Era o visconde que mandava chamar o mordomo. --Vossa excellencia mandou-me chamar? disse o mordomo ao entrar no escriptorio. --Mandei, respondeu o visconde. Dei ordem a todos os criados para que apresentassem as suas contas. Toma-as a cada de um de per si; bem sabes que não me chama Deus para esses caminhos. É preciso tambem tomar conta dos credores mais teimosos para se lhes dar alguma coisa por conta. Comprehendes? --Perfeitamente. --Lembra-te de gratificares os criados, pobres diabos! Não te parece? --Eu dava lhes, mas era com um pau, sr. visconde. Não ha maior cafila do que são os criados d'este tempo. --Porque dizes tu isso? --Tenho os meus motivos. Isso fica para mais tarde. Não imagina o prazer que terei se vossa excellencia se pozer em dia com toda esta gente. --Bem, podes retirar-te. D'alli a uma hora, dirigia-se o visconde para o escriptorio de Vaz Mendes onde Tristão de Almeida havia mandado ordem pela manhã para que entregasse trinta contos de réis ao visconde de Coruche. * * * * * * * * * * --E para que é todo este dinheiro, sr. visconde? perguntou-lhe o banqueiro, lendo-se-lhe nos olhos a inveja e a cobiça. É para algum outro hospital aonde os meus serviços estão dispensados? --É para a infancia desvalida, respondeu o visconde, mettendo n'algibeira--sem os contar--os maços de notas que recebêra da mão de Vaz Mendes. --Repare vossa excellencia que não contou esse dinheiro, ponderou-lhe o usurario. --Nunca contei dinheiro; para esse fim lá tenho em casa um criado que não faz outra coisa, respondeu altivamente o visconde de Coruche. Pondo insolentemente o chapéu, o fidalgo cortejou o banqueiro e retirou-se para casa. --Salvo! exclamou o visconde, extendendo se commodamente n'um sophá. Falta agora o titulo, ajuntou elle olhando ao mesmo tempo para um magnifico charuto havano, cujo fumo subindo em espiral inundou os aposentos de um perfume doce e innebriante! XXII «Fortes nescios, que idéa formam de mim! O visconde imagina que sou algum minhoto, que foi d'aqui para o Rio de Janeiro varrer o escriptorio do patrão, e que por uma fórma ou outra, adquiri a riqueza que hoje possuo. «Se elle soubesse que fôra o commendador Felix Justino de Araujo quem lhe havia emprestado os trinta contos de réis. «Como a sorte me favoreceu em tudo! continuava elle, passeando ao mesmo tempo pelo seu gabinete. Emprestei-lhe trinta contos, e é possivel que nunca mais os torne a ver, mas, quanto vale aquelle magnifico centro de Benevenuto? Quarenta contos talvez. E dizem que um filho da Grã-Bretanha veiu expressamente a Lisboa para lh'o comprar, e se retirou deixando-o aqui. O archeologo tinha bebido muito n'esse dia! «Não lhe descobriria elle a assignatura? O visconde deve estar satisfeito de me ter logrado! Como elle dirá de si para si: presenteei-o com um objecto que vale mil libras, acenei-lhe com um titulo de conde e o tezo caiu no laço! «Eu poderia prescindir perfeitamente d'esse titulo. Para que quero eu um titulo? só se fôr, para satisfazer os caprichos da Maria. O que já me vae aborrecendo alguma coisa é o tal hospicio. Ainda que nunca houve molestia que sympathizasse com a minha pessoa, póde apparecer alguma, e ter o mau senso de me levar d'esta para melhor. Parece-me que vou dar parte de doente. «Agora me recordo, ajuntou elle. Quem demonio seria aquella mulher que veiu hoje procurar o Jeronymo! Pareceu-me reconhecer as feições. Se não tivesse a certeza que D. Marianna de Mendonça tinha morrido doida no hospital de S. José, havia de dizer que era essa velha. Que similhança, meu Deus! E se fosse ella? Se ainda vivesse? Ora adeus! Se eu fôr a devolver tudo quanto d'aqui levei... Nada... os tempos não estão para graças. Se Domingos de Andrade não houvesse tido juizo em Pernambuco, que teria sido do commendador Felix Justino de Araujo, que passou a ser Tristão de Almeida emquanto se não chamar o conde de... O conde de quê? do que elles quizerem ou do que minha mulher escolher. «Agora por isso, não tenho mais remedio senão comprar alguma propriedade de grande valor. Vou tractar d'isso para a semana que vem. Encarrego o visconde de me arranjar um palacio em Lisboa e uma quinta nos suburbios. Está decidido, sympathizei com aquelle estroina. Parece-me que o estou a ver na casa branca da rua do Arco de Bandeira! Era um verdadeiro demonio, aquelle visconde! Ainda não vi homem mais intrepido ao jogo! Agora por jogo, não tardará muito que principiem a fazer todas as diligencias para me _apanharem_. Vêem bem! N'este momento abriu se a porta, e entrou um criado annunciando o visconde de Coruche. --Que entre, que entre o meu caro visconde, disse Tristão. O fidalgo não se fez demorar. --Quanto folgo em tel-o encontrado, disse o visconde extendendo a mão para o seu amigo. Estive hontem no gremio, e durante a noite não se falou senão em vossa excellencia. O conselheiro Poderosa, que appareceu lá á saida do theatro, disse-me confidencialmente que seria o encarregado por sua magestade de lhe perguntar que nome escolhia para o titulo de conde, que brevemente lhe ia ser offerecido. Estive hontem mesmo para lh'o vir participar. --Dá-me sempre um grande prazer a sua companhia mas para um caso d'esses, seria desnecessario. --Vejo pela sua indifferença que ainda insiste, apezar da promessa, em não acceitar o titulo! Deixe-se d'isso, meu amigo, um titulo é sempre util; e muito util. --Façam os meus amigos tudo quanto lhes aprouver; sujeitar-me-hei ao que fôr do seu agrado. --Não vê o meu amigo, que esse titulo que lhe vae ser concedido, não é favor mas sim uma retribuição honorifica pelo muito do que este paiz lhe é devedor? Diga-me uma coisa, teria vossa excellencia valor de recusar um habito que o general lhe collocasse ao peito, se vossa excellencia se tivesse distinguido n'uma batalha? Creio que não. O mesmo se dá n'este caso. Não está vossa excellencia arriscando a sua vida e a de toda a sua familia? Parece-lhe immerecida essa recompensa? Pode alguem lançar-lhe em rosto a injustiça da mercê? Quem teria o descaro de lhe contestar esse direito? Ninguem, absolutamente ninguem! --Isso lá é verdade. Que eu tenho arriscado a minha vida e de toda a minha familia, não merece duvida alguma. --Então, meu amigo, attendendo a todas essas circumstancias, não falemos mais n'isso, e deixe correr o negocio. --Vá feito, vá feito! gargalhou Tristão de Almeida. --Tem hoje muito que fazer, sr. Tristão? --O que sabe: ir ao hospital. --E depois? --Depois mais nada. --Dá-me a honra de ir jantar a minha casa? --Com muito gosto a receberei. --Vão lá uns amigos a quem desejo apresental-o. --Fique certo. --Então ás cinco? --Conte commigo. --Peço-lhe encarecidamente que não falte, accrescentou o visconde n'um cerrado _shake-hands_, e saindo do gabinete. «Trata-se de me _apanharem_ ao jogo, pensou Tristão. Veremos quem fica logrado, accrescentou elle extendendo-se sobre um sophá.» XXIII Emquanto o visconde de Coruche ordena aos seus criados que lhe preparem um lauto jantar, dirijamo-nos á Rua do Meio, a casa de Jeronymo. São tres horas da tarde. O operario, á mesa do jantar, entre Marianna e sua mulher, olha de vez em quando para a vidraça, como para ver se ainda continúa a chuva. Na face pallida de Balbina, desenha-se-lhe o soffrimento. Marianna parece acompanhal a nas suas tristes meditações. --Vossês não me dirão o que têem? murmurou Jeronymo. Quando a nossa vida se apresenta debaixo dos melhores auspicios, é que principiam a entristecer? O mesmo notei em Martha. Antigamente, era sempre alegre e jovial, agora, custa os dias da vida, primeiro que se lhe arranque um ar de riso. Valha-nos Deus! Não ha felicidade completa. --Isso é uma desconfiança tua, respondeu Balbina. --A mim não me enganam vossês, replicou Jeronymo, levando aos labios um copo de vinho. Pela minha parte, ando cá como o outro que diz, meio desconfiado de uma coisa. Permitta Deus que me engane, ajuntou elle, voltando-se para a tia Marianna, que dirigira um olhar significativo á esposa do operario. --E de que estás desconfiado, Jeronymo? accudiu Balbina, voltando se para seu marido. --Se eu não desabafasse com vossês, que são a minha familia, com quem havia de fazel o? Creio que não era com a tia Monica ou outras quejandas! Lá vae. Ando desconfiado, como ha pouco lhes dizia que a nossa Martha está assim meia apaixonada pelo sr. Manuel. Isto foi uma pancada que me deu o coração; talvez que não passe de um máu juizo. Mas o que é certo, é que nunca mais lhe tenho visto brilhar os olhos de alegria, senão duas ou tres vezes que esteve defronte d'elle. Lá isso é que ninguem me póde negar. --Pois uma vez que foste tu o primeiro a falar sobre isso, pergunta agora á tia Marianna o que estavamos dizendo quando tu entraste, respondeu Balbina, olhando ao mesmo tempo para a sua amiga. --Ha mais de oito dias que andamos a pensar n'isso, disse a tia Marianna voltando se para o operario. --Valha nos Deus, Balbina! E como havemos de impedil-o? --Não sei, respondeu Balbina, profundamente entristecida. Sabes o que me disse a tia Marianna? accrescentou ella. Que o sr. Manuel era por força um homem muito de bem; bastava ver a maneira como elle se portou com a nossa filha. --Tudo isso é uma grande verdade, Balbina, mas, em qualquer dos casos é sempre uma infelicidade. O coração de Martha é... nem eu mesmo sei a que o compare. É uma especie d'estas fasquias que a mais pequena aragem as dobra, mas se lá vem um tufão... ficam logo quebradas pelo meio. Além d'isso, ella bem conhece a distancia que a separa do sr. Manuel, e é capaz como o outro que diz de afogar em si tudo quanto está soffrendo. --Sou da sua opinião, sr. Jeronymo; Martha é um anjo, e será capaz de morrer, confiando apenas a Deus o segredo que a assassina! --Eu só o que desejava saber era a maneira de nos encaminharmos em tudo isto, continuou Jeronymo levantando-se da mesa. --A sr.ª Marianna que nos aconselhe, que é mais velha e tem mais mundo do que qualquer de nós, acudiu Balbina dirigindo-se á sua amiga e companheira. --Que lhes poderei eu aconselhar, meus bons amigos? respondeu a tia Marianna. Se esse individuo é um homem de bem como eu supponho, e se Martha lhe não foi indifferente, é de crêr que mais dia menos dia o possamos tornar a ver, e, n'esse caso estarei muito prompta a falar-lhe. Não lhe vejo outro remedio, sr. Jeronymo. Prouvera a Deus que fosse hoje o dia. Quanto ao que vossemecê diz, que uma grande distancia os separa, não me parece. Não póde elle ser como Martha, um filho do povo? E sendo assim, não vejo desegualdade de pessoas. --E se o não fôr? perguntou Jeronymo. Se fôr um fidalgo, um ricasso... --Torno a repetir-lhe, respondeu Marianna, homem de bem é que eu tenho a certeza que elle é. E a prova foi não ter tornado a apparecer. --Isso lá é que é a pura da verdade, acudiu Balbina. Tinha trezentos meios para a ter visto. N'este momento, parou um trem á porta do operario. Eram as filhas de Tristão que vinham trazer a casa a sua amiga. --Forte delambida! dizia a tia Monica voltando-se para uma visinha, quando Martha se apeava do trem. --Deixe estar, respondia-lhe a visinha, mais dia menos dia, verá aonde aquillo vae parar. --Ainda bem que já lhe fiz a cama, quando o outro dia me vieram pedir informações a seu respeito. --Não sabia d'isso, visinha, não me tinha dito... Quem foi? --Era um homem que me pareceu assim do trato do mar. --Desde que se meteu com as fidalgas já não póde andar se não de trem. Saffa, demonio! E não tem medo das más linguas.... --Nem da colera do Senhor, tia Monica, respondia-lhe a visinha, mettendo-se para dentro de casa como se os seus olhos invejosos não podessem resistir ao olhar candido e celeste de Martha, o anjo dos tristes. Despedindo-se das filhas de Tristão, Martha entrou em sua casa. Vinha excessivamente pallida. Uma breve mancha azulada, partindo das palpebras inferiores até ás proeminencias malares, tornavam-lhe mais scismadores os seus olhos esplendidamente bellos! Dir-se-hia que se tinha levantado de uma grande enfermidade. O busto, ligeiramente inclinado, dava-lhe aspecto de profunda melancolia. A Jeronymo arrasaram-se-lhe os olhos de lagrimas. --Que tem, meu pae? perguntou Martha, approximando-se e beijando-o ternamente na fronte. --Que tenho, filha?! Que hei de ter! Dia a dia te vejo mais triste, e ainda perguntas o que tenho? Saudades da tua alegria, dos teus olhos; onde estão as rosas d'essas faces, que eram a inveja das tuas companheiras de collegio? Onde estão emfim os teus sorrisos, que eram a minha ventura? Pensas que só eu tenho notado a tua tristeza, ha oito dias a esta parte? Enganas-te. Já tua mãe a percebeu e a tia Marianna, e todos, até o teu cão! para quem já não tens um só carinho. Dize-me o que sentes, filha, e se eu, ou tua mãe n'alguma coisa te podemos valer, sê franca, Martha. Quem melhor do que teus paes poderão saber os teus segredos? Martha, lembra-te que és a unica alegria que eu e tua pobre mãe temos n'esta vida. Se és boa, como te creio e como todos te consideram, abre-me o teu coração, não me occultes coisa alguma. Vem, filha; deposita no meu peito todos os segredos que te obrigam a olhar para a terra para onde eu não quero que te deixes ir. Pobre Jeronymo! A dôr tornara-o eloquente! Balbina e a tia Marianna tinham se afastado para occultarem as lagrimas. Apenas Martha se conservava serena como a estatua da resignação. --Que me respondes, Martha? continuava o operario. --Que lhe posso eu responder meu pae. --Senta-te aqui nos meus joelhos, accrescentou Jeronymo, apertando a cintura da filha e approximando-a para si. Vou contar te uma historia. «Um dia, um pobre operario, que tinha por unica familia sua mulher e sua filha, ao sair do trabalho foi atropellado por um trem. Levaram-n'o em seguida para uma grande hospedaria aonde foi caridosamente tratado, sem lhe faltar coisa alguma a não ser a sua familia que ignorava aonde elle estivesse. As horas passavam, passavam, e elle sem apparecer. Então a filha, pondo o capote aos hombros, saiu de casa, procurando o pae como uma louca. «Pessoa alguma lhe dava relação d'elle. A triste desanimára! «Finalmente encontrou um individuo moço, bello, virtuoso. Esse prometteu-lhe procurar seu pae! A infeliz respirou! D'ahi a duas horas o desconhecido dizia-lhe aonde elle estava. «Grata a esta primeira prova de dedicação, a filha do operario principiou a amal-o em silencio! --Não me fale n'isso, meu pae, interrompeu Martha, tentando desembaraçar-se dos braços de Jeronymo. «Depois, proseguiu o operario prendendo-a cada vez mais ao coração, essa criança cheia de ternura, continuou a amar esse homem, sem confiar a pessoa alguma o afecto que a consumia, e hoje, Martha, hoje... está como tu, pallida, triste, adoentada, e seu pae como um louco por a vêr assim.» --Ahi tens a historia, ajuntou elle largando a dos braços e fitando a com os olhos cheios de lagrimas. Martha não proferiu uma palavra. --Não me illudas, filha, esse homem é amado por ti. --Esse homem, balbuciou Martha, é amado pela filha do nosso protector! Hoje mesmo a encontrei olhando para a sua galera, ajuntou ella, caindo desanimada nos braços de seu pae. XXIV --Aposto a minha cabeça em como o visconde ha-de ser tão nescio que se não lembre de arranjar um montesinho antes da ceia. --Se o não fizer alguns motivos tem para isso. Por tolo, não é, decerto. --Tambem, se queres que te diga a verdade, não lhe encontro grande esperteza. Já lá vão duas heranças importantissimas, e ambas tiveram o mesmo fim. Se isto é ser esperto, está o mundo cheio de espertalhões! --Sabes o que eu chamo ser esperto, é saber lavar a sua roupa em familia, como diz o dictado. De quantas lagrimas não lhe tem sido testemunha o seu travesseiro? Vê tu, se já alguem deixou de lhe encontrar o mesmo sorriso? Dizem todos: o visconde está arruinado, é impossivel que possa aguentar por mais tempo aquella opulencia, em menos de um anno hão-de vel-o miseravel, porém desde que morreu o conde, não abandonou o seu palacio, ainda não despediu um criado, ainda não vendeu um cavallo, ainda não deixou de dar almoços, jantares e ceias! Está arruinado: tão arruinado que não ha muitos dias deu um presente, que valia mil libras. Quem dá um presente de mil libras não póde estar pobre. --Isso leva agua no bico!... --E que importa? O que não ha duvida, é que pessoa alguma seria capaz de fazer o que elle tem feito. --Eu tambem não lhe contesto o seu cavalheirismo. --E o que lhe tem custado as mulheres e o jogo? Tomára eu ter o dinheiro que lhe ganhei ha uns vinte annos, quando estive associado com um grande espertalhão que havia em Lisboa, chamado Felix de Araujo. --Felix de Araujo? Não me recordo. --Um vivo demonio, que fez tudo quanto lhe pareceu em Lisboa, acabando por ter uma casa commercial. --Ai, ai, agora me lembro. Por signal que roubou uma senhora, a casa de quem ia muitas vezes! A pobresinha foi acabar os seus dias no hospital de S. José. Já sei. Era um tratante de marca maior, que fez a desgraça de muita gente. Nunca mais se soube d'elle? --Disseram-me que tinha morrido envenenado na Costa d'Africa. Que a terra lhe seja leve, que eu, assim como assim, não tenho razão de queixa da sua pessoa; basta lembrar-me que o pouco que sei a elle lh'o devo. --O pouco que sabe! Se eu soubesse metade... --Aquillo é que eram mãos! Aquillo é que era dar um _salto_ com limpeza, sem que o baralho desse o mais pequeno estallido! E trabalhar com cinco dados! e _tirar_ ao pegote! --É verdade, é verdade! A ultima vez que joguei com elle foi em casa do barão. Por tal signal que me roubou quatorze notas de dez moedas á banca portugueza. --Se aquelle homem não tivesse morrido, com a audacia que possuia, ainda tinha voltado a Portugal... --O que estará fazendo o visconde? --Como não usa de cerimonia para comnosco, provavelmente dá as suas ordens para que tudo se faça segundo os seus desejos. Passava-se este dialogo entre Gil de Carvalho e Bernardo de Paiva. O primeiro, era um jogador de profissão e refinado velhaco, ao qual todas as portas se abriam por um d'esses desleixos imperdoaveis que é susceptivel em toda a sociedade de grandes capitaes. Relacionando-se com os individuos que frequentavam certa sociedade onde o jogo era permittido por distracção, Gil de Carvalho introduziu se nos principaes salões de Lisboa. Ninguem sabia a sua procedencia! As suas maneiras quasi sempre delicadas, resentiam-se comtudo da primitiva educação! Gil teria uns sessenta annos. A sua fortuna era um mytho. Uns diziam que estava pobre; outros, calculando pelo que havia roubado ao jogo, attribuiam lhe riquezas enormes. Bernardo de Paiva era um homem pouco mais ou menos da edade do seu interlocutor. Herdára de seus paes uns vinte ou trinta contos de réis e dissipára-os immediatamente em mil loucuras, sendo a principal o jogo, que ainda hoje o dominava com poder immenso! Bernardo descendia em linha recta de uma das mais distinctas familias de Olhão. Aparentado com muitos individuos de Lisboa, Bernardo com mais algum direito do que Gil de Carvalho, tinha entrada em todas as casas. Ao contrario de Gil, a sua physionomia era sympathica e insinuante. Jantar onde elle estivesse, corria sempre alegre e animado. Além do seu vivíssimo _esprit_, tinha outra qualidade que o tornava estimado em todos os circulos: não dizia mal de ninguem. A sua bocca era sagrada, como judiciosamente affirmava o mordomo do visconde de Coruche. Quando Gil e Bernardo de Paiva se dirigiram para uma saccada que olhava para o pateo, onde se ouviu o rodar de um trem, correu-se um dos reposteiros e appareceu o visconde. --Peço-lhes que me desculpem esta demora, mas não me foi possivel evital-a. Adoeceu de repente o meu mordomo, tenho de o substituir. --Pela minha parte estás desculpado, disse Bernardo de Paiva, sorrindo-se para o visconde. --Repito o mesmo, acudiu Gil. --Não adivinhas, de quem estamos falando? disse Bernardo dirigindo se ao visconde. --N'aquelle mariola de Felix Justino de Araujo, accrescentou Gil de Carvalho. --Não me recordo respondeu o visconde com modo distrahido. --Ora essa! exclamou Bernardo. O commendador Araujo que ia á _Casa Branca_, do Arco do Bandeira. --Ah! Já sei, respondeu o visconde. --Sabes quem eu acho muito parecido com elle, e só agora foi que me lembrou... --Quem?... --O teu amigo Tristão d'Almeida. --E é verdade, respondeu o visconde. Bem me parecia a mim que já tinha visto n'alguma parte uma physionomia que se lhe assimilhasse. --É um homem muito sympathico aquelle seu amigo, interrompeu Gil de Carvalho. --Aonde o viu? perguntou o visconde. --Ha dias, no gremio, aonde me foi apresentado. A proposito, sabe se elle joga? --Duvido, respondeu o visconde. Nem me convinha por modo algum que se jogasse em minha casa, accrescentou elle, que tudo havia planeado para esse fim. --E se elle pedisse? perguntou Gil, tentando ainda profundar-lhe o pensamento. --Isso então era differente. O meu dever é tornar-me sempre amavel para com as pessoas que me dão a honra da sua companhia. --Sou da tua opinião, disse Bernardo de Paiva, que lia no mais intimo da alma do visconde. N'este momento ouviram-se duas badaladas na sineta da loja, e d'alli a pouco entrou um criado de libré, annunciando Tristão d'Almeida. * * * * * --Venho aqui pura e simplesmente para lhe provar o desejo que tenho de estar na sua companhia, disse Tristão, depois de falar ao visconde e aos seus amigos. Se não fôra isso teria ficado de cama. --Mas que teve, meu amigo? perguntou rapidamente o visconde. --Quanto póde imaginar de mais infernal! Todos os symptomas que apresenta a epidemia. Sabe o que fiz? tomei um _grog_ e fui para o hospital. --Que valor! interrompeu o visconde. --Quando alli cheguei, continuou Tristão, augmentaram-se-me os padecimentos. Querem saber os resultados? Vão admirar-se da força da minha vontade. Fui receber um doente, que pouco tempo depois me expirou nos braços. Aquella rapida transposição da vida para a morte, aquelle instante incalculavel que medeia entre o ser e o nada, entre a vontade e abstracção, longe de aterrar, robusteceu-me o espirito e, escudado pela confiança em um mundo melhor e mais perfeito, reanimou-me a ponto de me sentir completamente restabelecido. --É mais uma prova da sua religião, meu caro amigo, interrompeu Bernardo de Paiva. Os que se aterram em presença do moribundo e na observação do cadaver, é porque receiam o desconhecido! Os que se baseiam nos preconceitos do vulgo, apegando se á vida, e receiando a morte, que, segundo as suas crenças, os colloca em contacto com a Divindade, não são mais que uns miseraveis, uns vermes que vivem e rastejam para a sua e nossa deshonra! A morte, para todo o homem de intelligencia clara e illustrada, não é mais que o principio de uma vida infinita. Espiritos pobres e tacanhos que se lamentam a cada segundo, dizendo que lhes peza a vida, empallidecem quando a morte de longe lhes acena com as suas azas, brancas para elles que sopezam constantemente a desgraça nas suas longas noites de interminavel soffrimento. Receiam morrer! Elles que deviam tomar a existencia com um eterno castigo! Que melhor somno para o desgraçado do que o da morte, dormido sob a lousa! Preferem o bulicio da vida á paz do eterno repouso, o andrajo ao sudario, a fome á anniquilação! --Isso é uma grande verdade, mas a maior parte do mundo não pensa como vossa excelencia, respondeu Tristão. Duas ou tres vezes tenho visto a morte deante de mim, e nunca me atemorizou! Tenho a minha consciencia bastante socegada para me apresentar deante de Deus! Não receio o seu julgamento. Diziam-me em Buenos-Ayres que era um homem de um valor desmedido, emquanto eu não passava de um pobre diabo a quem os peccados não perseguiam na existencia, porque nunca os havia procurado. Digo procurado, porque o homem, a maior parte das vezes, pecca mais por vaidade do que por instincto. Tenho umas theorias, falsas talvez para o seculo em que vivemos, mas que apezar de tudo não desprezo. Deus que fez o homem á sua similhança, ao lançal-o ao mundo, revestiu-o de bons instinctos, porém, a sociedade envenenando-lhe o coração, insinuou-o no crime e apresentou-lh'o atravez de um prisma seductor. Então os seus olhos fascinaram-se, a vontade esmoreceu-lhe, e o coração propenso sempre a ser dominado ao primeiro impulso, extraviou-se da razão e lançou-se cego e inexperiente n'esse dedalo artificioso a que a humanidade nos arrasta! Satanaz ri-se, mas Deus, que tudo perdôa, espera o momento supremo para indultar o peccador e á humanidade que o perverteu! Esta é a minha opinião. --Sabem quem hontem ganhou trezentas e tantas moedas? interrompeu Gil de Carvalho voltando-se para o visconde. Aquillo é que foi sorte, accrescentou elle, sem notar o espanto que a sua interrupção havia produzido nos circumstantes. Fez um circo, depois outro, depois outro, e bumba, lambeu tudo quanto havia sobre a banca. --Mas a que proposito vem isso, sr. Gil de Carvalho? perguntou o visconde, emquanto Tristão de Almeida o contemplava com simulado espanto. --Isto veiu a proposito... d'aquillo em que eu estava pensando, respondeu Gil de Carvalho tornando a cahir no mesmo estado de profunda reflexão. --Excentricidade do nosso amigo Gil, acudiu Bernardo de Paiva, olhando intelligentemente para o visconde. O magnate conservava-se frio e sereno como um _yankee_, entre os quaes largos annos havia habitado. --Gosta de jogar? perguntou Gil de Carvalho voltando-se para Tristão. O visconde e Bernardo estremeceram de raiva. --É uma coisa que ás vezes me diverte, respondeu-lhe Tristão. Não admitto o jogo por vicio, mas, assim de vez emquando, depois de um jantar ou de uma ceia, encontro-lhe alguma distracção, ainda que as poucas vezes que tenho jogado tem sido quasi sempre com uma infelicidade extraordinaria! A ultima foi em França, aonde perdi n'uma só noite duzentos mil francos. O divertimento foi caro, é verdade, mas distrahi-me. Ao ouvir estas palavras, os olhos de Gil de Carvalho brilharam de visivel alegria. Tinha as suas esperanças realizadas! O visconde nem pestanejou! Assim estiveram conversando sobre varios assumptos até que appareceram todos os individuos que o visconde havia convidado. Ás seis horas foram para a sala de jantar, cuja mesa brilhantemente adornada, revelava a opulencia e bom gosto do dono d'aquella habitação maravilhosa. O jantar correu animadissimo! Bernardo de Paiva, como sempre, esteve esplendido de graça. Tristão de Almeida com grave assombro dos convivas que pela primeira vez o viam e sobre tudo do visconde, que o julgava um homem trivial, apresentou-se totalmente opposto ao que o suppunham. «Este homem é um mysterio», pensava o visconde, ao mesmo tempo que saudando-o em repetidas libações, fazia as maiores diligencias de o toldar. Inuteis foram porém todos os seus esforços; o convidado bebia por elles todos, sem que o mais leve indicio de incommodo lhe transtornasse a serenidade da sua imperturbavel physionomia. Ás nove horas, levantaram-se todos da mesa, e foram para outra sala, onde os esperava o café. Tristão de Almeida, como o leitor deve fazer ideia, conhecia todos os individuos que estavam presentes, e melhor do que a elles todos a Gil de Carvalho, com quem por mais de uma vez se havia associado. Ou por calculo ou porque lhe recordassem com saudade as sensações do jogo, Tristão propoz ao visconde que se fizesse monte. --Estão em sua casa, respondeu-lhes o visconde. Eu também não desgosto de vez em quando arriscar duas ou tres duzias de libras. Gil de Carvalho estremeceu de jubilo; Bernardo de Paiva exultou de contentamento. Encontrava um meio de adquirir uma ou duas duzias de moedas, jogando sempre na _alforreca_. --Quem ha de fazer o monte? eu não por certo, disse o visconde, foi coisa para que nunca tive geito. --Nem eu tão pouco, acudiu o commendador. --Visto vossa excellencia ser banqueiro, ajuntou Bernardo de Paiva, dirigindo se para Vaz Mendes, o banqueiro de Tristão de Almeida, pertence-lhe por direito. --Que o faça o sr. Gil de Carvalho que está mais acostumado a pegar em cartas. --Resta agora saber se ha cartas em casa. Mas isso pouco importa, mando-as alli buscar ao Club, disse o visconde. --Estranha coincidencia! exclamou Gil de Carvalho, mettendo as mãos no bolso do peito da casaca, minha mulher tinha-me pedido hoje que lhe levasse dois ou tres baralhos para fazer a paciencia, e ainda aqui estão. Podem servir estas. --Que favoravel acaso! disse Bernardo de Paiva, sorrindo-se intelligentemente para o visconde. «Está a mesma coisa», murmurou Tristão de Almeida, de si para comsigo. --Vamos fazer uma _vaca_? disse o visconde e em voz baixa olhando para o seu hospede, emquanto Gil de Carvalho se approximava d'uma banca para melhor contar os baralhos. --Jogaremos de sociedade, visconde, replicou Tristão de Almeida. --Seja. * * * * * D'alli a dez minutos, as cem moedas que Gil de Carvalho fizera de monte, haviam passado para defronte de Tristão de Almeida, acompanhadas por mais do dobro que os outros peritos tinham perdido. Segundo, terceiro e quarto monte, e o mesmo resultado. Tristão jogava com uma sorte espantosa! Gil de Carvalho tinha perdido a força moral. --Tem dinheiro? perguntou elle ao visconde. --Sirva se, disse-lhe Tristão de Almeida empurrando-lhe um maço de notas. O banqueiro acceitou. Outro monte de cem moedas, e em tres cartadas, todo o dinheiro que estava na mão do intrepido jogador havia passado para o banqueiro. Os olhos de Gil de Carvalho brilharam como uma alegria feroz. Tristão de Almeida, acendeu tranquillamente um magnifico charuto, e sorriu-se para o visconde. --Era justo que se perdessem algumas paradas, murmurou elle, tirando da algibeira do peito uma carteira de chagrin. --Continua a sociedade, visconde? disse o magnate voltando-se para o seu amphitrião. --Continua, meu amigo. Gil de Carvalho baralhou as cartas e deu-as a partir a Tristão de Almeida. --Topo tudo no duque, disse este rapidamente, ao sair a segunda carta do algor debaixo. Gil voltou as cartas a tremer, e á segunda appareceu um duque. --Vou a casa buscar dinheiro, não tenho fé alguma em jogar com capitaes emprestados, disse Gil de Carvalho, collocando o baralho sobre a banca, e saindo sem quasi dar tempo a Tristão de Almeida e ao visconde de lhe fazerem os seus offerecimentos. Tristão havia ganho tres contos e seiscentos mil réis. --Que lhe parece? disse elle voltando-se para o visconde, damos hoje a desforra ao seu amigo Gil de Carvalho, ou guardamos isso para outro dia? --Ficará para outro dia. Convinha me muito ir ao segundo acto do Trovador. * * * * * Ás onze horas os convidados retiravam se, e Tristão de Almeida na carruagem do visconde seguía com elle para o hotel. Mais tarde parava um trem á porta do visconde. Era Gil de Carvalho que fôra a casa buscar mais dinheiro, e uns certos baralhos em que as cartas se pegavam umas ás outras. Descendo rapidamente, entrou no patim. --Os senhores já lá vão para o theatro, disse-lhe o guarda-portão. Gil cuidou morrer de desespero! XXV Alguns esclarecimentos ácerca de Manuel de Mendonça, de quem vossa excellencia e a pallida Martha, ha tempos a esta parte, nada tem sabido. Quando verdadeiramente fascinado pela formosura da filha do operario, saiu do hotel Bragança--vespera da retirada de Jeronymo para sua casa--o maritimo havia-lhes promettido de brevemente os visitar; porém, reflectindo mais pausadamente sobre esse gravissimo assumpto, quiz ainda forcejar com o coração, abafando-lhe quanto podesse a chamma que o consumia! Tudo foi inutil! Ao cabo de dez dias, a pobre alma, cada vez mais preza á recordação de Martha, ia a tal ponto identificando-se com ella, que Manuel resolveu de si para si, ou sahir immediatamente de Portugal ou pedir a filha de Jeronymo. No dia seguinte ao romper da manhã já elle tinha procurado Mascatudo. Fechando-se ambos na camara, participára-lhe a sua resolução. O marinheiro, cujo unico desejo era a felicidade de Manuel, abraçou de boa mente a sua determinação: elle, que sobretudo não comprehendia a verdadeira ventura sem os verdadeiros regozijos da familia! --Hoje mesmo, disse-lhe Manuel de Mendonça, irás informar-te pela visinhança sobre a conducta de Martha, e se fôr como eu supponho, e espero em Deus que seja, ámanhã mesmo irei pedil-a a seu pae. «Que me importa que seja uma triste filha do povo, se o seu comportamento for virtuoso, pensava Manuel de Mendonça, encostando-se á amurada da sua galera. Quem sou eu? continuava elle, um homem sem familia, sem parentes! Que me importam os brazões dos meus antepassados! Em que concorreram elles para esta pequena posição que hoje tenho na sociedade? Quanto sou, devo-o a mim, e só a mim! Está decidido, em oito dias, Martha será minha mulher.» D'alli a meia hora, Mascatudo com o seu fato domingueiro, approximou-se de Mendonça. --Á ordem, meu commandante. --Estás prompto? --Prompto. --Sabes o serviço que me vaes fazer? --Ora essa! --Serás discreto, reservado? --Como uma carranca de prôa. --Bem estamos. Sabes aonde ella mora? --Rua do Meio, á Lapa. --Numero? --Cento e doze. --Tal e qual. Chegas assim como quem não quer a coisa, e pergunta alli pela visinhança, quem é pouco mais ou menos o Jeronymo; se a sua vida é moral e religiosa, se é um homem trabalhador, etc., etc. --Bem sei como essas coisas se fazem, meu commandante. --Em primeiro logar, para que se não desconfie, é falar só de Jeronymo; o resto, vem mesmo sem o perguntares. Entendes bem? --Se entendo... O commandante vem tambem p'ra terra? --Não, espero aqui a resposta. --Então ás ordens, e que a Senhora da Bonança vá em minha companhia. Descendo para o escaler sentou-se á prôa e mandou remar. Uma hora depois, Mascatudo entrou n'uma pequena tenda da rua da Lapa, que ficava quasi em frente da casa de Jeronymo. Approximou-se do balcão e pediu de comer. Á proporção que comia e bebia, o marujo ia adquirindo uma certa intimidade com o caixeiro, offerecendo-lhe de vez em quando do seu copo, em que elle pegava sem se fazer rogar. --Diga-me uma coisa, perguntou emfim Mascatudo. Dá-me noticias d'um mestre de obras, que d'antes aqui morava, chamado Jeronymo? Ha quantos annos o não vejo! --Olhe, respondeu o caixeiro, apontando ao mesmo tempo para a casa do pae de Martha, ainda alli mora n'aquella casinha. --É um bom homem!... E sua mulher ainda vive? --Ainda. --A filha é que deve estar uma senhora? --É toda _mystica_! disse o caixeiro; e enthusiasmando-se com a formosura de Martha, despejou, sem Mascatudo lh'o offerecer, o resto do vinho que estava no copo. --Conheci aquillo uma criancinha, accrescentou Mascatudo, olhando de soslaio para a meia canada que o moçoilo acabava de despejar. --Ha pouco tempo succedeu uma _disinfelicidade_ ao pobre Jeronymo, continuou o caixeiro, que lhe ia custando uma grande _felicia_. --Sim? perguntou Mascatudo. --É verdade. --Então como foi isso? --Eu lh'o conto. Foi atropellado por um fidalgo muito rico, que tem agora um hospital para a rua de S. Francisco de Paula, e como elle ficasse muito mal tractado, sabe o que o fidalgo fez? levou-o para a hospedaria onde estava, tractou d'elle sem lhe faltar nada, e por ultimo empregou o, dando-lhe quinze tostões por dia. Ora veja vossemecê como o diabo as tece! Ha males que vem por bem! Quem me dera a mim encontrar um fidalgo que me atropellasse com a condição de me dar, já não digo quinze porém cinco tostões por dia. Ha dois annos que estou n'esta maldita casa, e o miseravel do patrão ainda me não augmentou o ordenado. Aqui estou ganhando dois mil reis por mez, que como o outro que diz, não me chega nem para beber uma pinga aos domingos. Agora por isso, ajuntou elle, mudando de tom, creio que já despejou todo o vinho. Quer que torne a encher?... --Encha, respondeu Mascatudo, occultando a custa um sorriso. --E ainda ahi não fica, como ia dizendo. Em tal graça caiu a sua familia para com os fidalgos, que é raro o dia, em que as meninas não vém no seu proprio trem buscar a filha de Jeronymo. --E ella porta-se bem? --Diziam que sim, porém agora, já ha quem lhe rosne no credito. Ora aqui para nós tem razão! Uma rapariga tão bonita como a Martha, e pobre como é, andar no luxo em que anda! --Mas talvez que esse luxo lhe tenha sido dado pelas filhas do tal fidalgo, respondeu Mascatudo, sentindo um grande estremecimento no coração. --Tambem isso é verdade; póde muito bem ser, e n'esse caso então, não lhe deviam cortar na pelle. --E quem é que lhe corta na pelle? --Olhe, alli vem uma das visinhas que não lhe faz lá muito boas ausencias: a tia Monica. N'esse momento, a beata, de quem o leitor deve estar lembrado, involta na sua mantilha de merino preto, entrou na tenda. --Deus seja n'esta casa, disse ella, olhando ao mesmo tempo para Mascatudo. --Amen, respondeu este, cravando os olhos no rosto cadaverico da intrusa. --Então como vae isso hoje lá por baixo a respeito da febre, perguntou o caixeiro, que já sabia que era a hora em que ella vinha da baixa. --A colera de Deus continua a castigar os peccadores, respondeu a misera abaixando ao mesmo tempo a cabeça. Hontem, continuou ella, disseram-me que houve uma mortandade espantosa. E estes herejes do sitio sem fazerem uma procissão como tantas vezes lhes tenho pedido! --Porque não mette n'isso o mestre Jeronymo? perguntou o caixeiro á tia Monica, piscando ao mesmo tempo o olho para Mascatudo. --Cruzes! Credo! Virgem da Soledade! Pedir uma coisa d'essas a similhante creatura! De que Deus me livrasse, sr. André! --Pelo que vejo, não é muito amiga do nosso visinho! --E como queria o senhor que uma mulher como eu fosse amiga de similhante homem? --Pois olhe, basta o que elle fez pela tia Marianna, para mostrar que tem bom coração. Lá o que é verdade, deve-se dizer sempre! Ha de haver mez e meio, proseguiu o caixeiro voltando-se para Mascatudo, foi aqui atacada uma mulher pela febre amarella, e ninguem se atreveu a entrar em sua casa; a unica pessoa que o fez, foi Martha, a filha de Jeronymo. Com tanto amor a tractaram, que hoje está viva e sã. Mascatudo sorriu d'alegria ao ouvir a boa acção de Martha. --E porque fez elle isso tudo? resmungou a beata. Sô para que depois se dissesse pela visinhança que eram uns santinhos. Que santinhos de pau carunchoso! --Seja lá pelo que fôr, o grande caso é que salvaram aquella embarcação que ia dar á costa, acudiu Mascatudo. --Pelo que vejo respondeu Monica contemplando o marinheiro, vossemecê anda sobre as aguas do mar? Que o Senhor dos Navegantes, a quem mesmo agora acabo de rezar duas estações, o livre de todos os perigos, meu filho; e possa tambem a Senhora da Bonança andar sempre em sua companhia. Padre nosso que estaes nos céos... continuou ella. --Então o que se diz por ahi de Jeronymo, tia Monica, perguntou Mascatudo, começando a tratal-a com certa confiança. --Ora! O que se ha de dizer! O que se diz sempre d'um homem que consente que sua filha esteja fóra de casa, e que venha a altas horas da noite, muitas vezes acompanhada por um individuo, que vem sósinho com ella dentro d'um trem. Quem elle é ainda eu não pude descobrir, mas, agora que felizmente já consegui encaixar-me no hospital e fazer conhecimento com as meninas... vou descobrir quem é o melro. Mascatudo sentiu um estremecimento por todo o corpo. Elle que a julgava pura como um anjo, começava a duvidar da sua virtude. E não tinha mais remedio senão contar tudo que ouvira. --Agora que já tenho lá entrada como lhe ia dizendo, é que hei de saber qual dos amigos do fidalgo, é o que está acostumado a acompanhal-a. E a boa da tia Marianna, sempre por toda a parte a dizer d'ella mil maravilhas, e eu a saber como os meus dedos, a peça que é a creancinha! Dizem-me que anda sempre muito triste. Deus sabe como ella andará! Que Deus me perdoe de fazer maus juizos!... exclamou a beata curvando a cabeça. Outro que não fosse Mascatudo, teria regeitado as opiniões da execravel beata, porém ferido por aquella primeira impressão, o caracter fogoso e ao mesmo tempo selvagem do marinheiro, levou-o a acreditar em tudo quanto lhe haviam dito! Sem descer a mais indagações, e abandonando ao caixeiro a segunda meia canada que mandara encher, Mascatudo pagou o que devia, e sem quasi se despedir nem d'um nem d'outro, saiu apressadamente da loja. Seguindo pela rua da Lapa, desceu a rua de S. Domingos, e entrando nas Janellas Verdes, alcançou a rocha do Conde de Obidos, aonde embarcou para bordo da galera. Manuel de Mendonça, passeiando á prôa, aguardava com impaciencia o resultado da commissão do marinheiro. Os olhos de Mascatudo arrazados de lagrimas, seguiam os movimentos do seu commandante. O pobre homem receiava os instantes que o approximavam de Manuel de Mendonça, afim de lhe participar o que se havia passado. O escaler abordou finalmente á galera e Mascatudo subiu a escada. --Que soubeste? perguntou Manuel conduzindo-o á sua camara. Revestindo-se de valor Mascatudo contou-lhe quanto tinha ouvido. Manuel de Mendonça sorriu-se brandamente, e olhando para aquelles horisontes, toldados então por uma neblina espessa, fitou a vista no oceano, como que dizendo-lhe que o esperasse. N'essa mesma noite adoeceu com uma febre gravissima, de que lhe resultou estar quinze dias de cama. Foi durante esse tempo, emquanto ao infeliz, entre as visões da febre, se lhe desenhava a imagem da supposta peccadora, que Magdalena na varanda do hospital, assestava de vez em quando o telescopio para descobrir o rasto do commandante da galera. XXVI --Terá a bondade de dizer á sr.ª D. Magdalena que está aqui a sua pobresinha, dizia a tia Monica voltando-se para o guarda-portão do hospital. --A sr.ª D. Magdalena não póde agora recebel-a; acha-se á cabeceira de um doente que está por pouco... respondeu-lhe o guarda-portão. --Pois sim, pois sim, vá sempre dizer-lhe que é a tia Monica, a quem deu ordem para que viesse aqui hoje sem falta. Ande, avie-se; verá se me fala ou não. --Já lhe disse a vossemecê o que tinha a dizer-lhe. Escusa de me importunar mais. --Deixa estar que eu te direi, dizia a velha comsigo. Alcance eu o que desejo, e verás como te ponho no andar da rua, só pelo mal que me estás tratando. Estejas tu meu traste mais oito dias sem cá vir, e eu te direi, como te ponho tambem no meio da rua, minha Martasinha. --Então vossemecê, vae ou não vae! ajuntou a tia Monica em voz alta, voltando-se de novo para o porteiro. --E ella a dar-lhe, e a burra a fugir, disse o guarda-portão, voltando-lhe a cara para a banda, e continuando a varrer o patim. Se vossemecê continua a atormentar-me subo lá acima e digo ao mestre Jeronymo que lhe pegue por um braço e que a ponha fóra da porta. Forte impertinente! cruzes, canhoto! --Ora sempre haviamos de ver isso, se o tal mestre Jeronymo seria capaz de pôr no meio da rua uma pessoa mandada aqui vir por uma das filhas do dono da casa! Faça isso, sr. Antonio, até desejo que o faça. Ande, então... N'este momento, uma enfermeira que vinha de jantar, entrou apressadamente no hospital. --Tem a bondade de dizer á sr.ª D. Magdalena que está aqui a tia Monica, e que lhe vem trazer a resposta d'aquelle recado que lhe encarregou, disse a beata, perseguindo a mulher. --Farei entregue, respondeu a enfermeira, subindo apressadamente a escadaria. --Vossemecê não tem vergonha de estar assim com essa teima? --Pois veremos quem vence--se sou eu ou se é vossemecê; e sentando-se tranquillamente sobre um dos bancos da entrada, a tia Monica começou a olhar para o enraivecido porteiro, com um modo insolente e provocador. Cinco minutos depois, desceu a mesma enfermeira, dizendo lhe da parte da sr.ª D. Magdalena que fosse ter com ella ao terceiro andar. A velha, radiante de gloria e de regosijo, fixou o porteiro do alto da sua magestade, e despedindo-lhe um olhar de compaixão, subiu afoita as escadas, promettendo a si mesma vingar-se do pobre homem, logo que o ensejo lhe fosse favoravel. A principio, o porteiro rugiu de colera, porêm, vendo a inutilidade do seu mau genio, conformou-se com a sorte, e empunhando de novo a vassoura continuou na sua constante operação. Magdalena, ao ouvir as palavras da enfermeira, encarregou a sua irmã o moribundo, e subiu logo ao terceiro andar, aonde mandaram conduzir a velha. Quando ella entrou, Magdalena, encostada á varanda, contemplava o Tejo, no Tejo a galera, na galera Manuel de Mendonça, e n'esse a vida que para ella lhe fugia! --Bons dias, santinha! disse ella approximando-se da tia Monica. --Muitos bons dias, meu anjinho, replicou a asquerosa beata tentando beijar a mão que Magdalena lhe extendia. Já lhe disse que não quero ver esse rosto tão pallido, minha rosa desbotada. Anime-se, ande, ria-se para mim. --Soube alguma cousa? perguntou Magdalena. --Alguma coisa se soube. Ainda não é tudo quanto desejamos; mas de cá se vae a lá, como dizem os hespanhoes. Um amigo d'um sobrinho meu, que está na armada, foi a quem encarreguei. Hoje, seriam oito horas da manhã, quando eu vinha de ouvír as minhas missas, e de pedir a Deus pela minha querida menina, senti baterem-me á porta, abri, e era o Manuel, o tal rapazola. «Que temos?» perguntei-lhe eu. «Que havemos de ter? Já soube onde pára o tal individuo, e quem elle é» respondeu Manuel. --E quem é elle? perguntou avidamente a filha de Tristão de Almeida. --É o commandante da galera Esperança. Tem estado muito doente. Ha mais de quinze dias que não sae de bordo! --Meu Deus! disse Magdalena, eis o motivo porque nunca mais o pôde ver! --Quanto ao resto, accrescentou a beata, posso-lhe dizer quasi com toda a certeza, que alli anda cousa, e anda por isto:--Ha tempos estando eu na tenda do Melro, entrou um homem de tracto do mar e começou a perguntar informações de Martha. Esse individuo não tinha sido senão alguem mandado por elle, para saber se se portava bem ou mal. --E o que lhe respondeu, tia Monica? --Que queria a menina que lhe respondesse! Póde-se julgar mal d'uma pessoa que anda na companhia de dois anjos, como as minhas duas meninas? Embora eu soubesse quem esta familia é, a minha bocca nunca se me teria aberto para dizer similhante coisa! --Parece-lhe portanto que as minhas suspeitas eram bem fundadas? --Se me parece! E faça se bem! As meninas a protegerem aquelle traste, e ella pagando-lhes assim! --Isso não, tia Monica! Pobre rapariga, que culpa tem ella do que se passa no meu coração? O mal que me está causando é involuntario, e tão involuntario que ella propria o desconhece; e demais, se ha alguem culpado em tudo isto, sou eu, eu apenas. --E pensa a menina, que um rapaz como esse tal sr. Manuel de Mendonça, possa descer a olhar para uma mechanica? uma reles filha d'um operario, tendo a palpitar pela sua pessoa, um coração nobre e generoso como o da minha rica menina? Para que havia Manuel de Mendonça querer a filha d'um operario: só se fosse para ser sua criada. --Pois olhe, tia Monica, veja como eu sou, se tivesse a certeza de que Martha era de ha muito amada por Manuel de Mendonça, creia que embora eu morresse de paixão, seria capaz de me sacrificar, a ponto de ser eu a propria madrinha do seu casamento. Hontem estava pensando n'isso. Mas o que eu queria, era ter uma certeza. Se o que tem conservado Martha n'aquelle estado, é uma paixão, serei eu a propria, embora d'isso me resulte a morte, a fazer todas as diligencias de os reunir. Se elle fôr nobre, pedirei a meu pae, que tire de meu dote alguns contos de réis, para collocar aquella pobre criança n'uma posição que lhe não envergonhe os seus pergaminhos. Porém se esse amor que eu supponho existir no coração de Martha, não fôr mais do que uma desconfiança, então Monica, se lhe não fôr indifferente, rico ou desventurado, nobre ou plebeu, Manuel de Mendonça será o meu esposo, porque o amo muito, muito, tia Monica! E a pobre Magdalena, tremula e offegante, debalde tentava occultar as lagrimas que a suffocavam! Era muito de ver-se o contraste d'estas duas creaturas! Magdalena, o amor, a generosidade, a pureza de affectos! Monica, a mentira, a ambição, a crapula emfim de todos os sentimentos! Alma candida e inexperiente, não avaliava sequer a immensa distancia que as separava. A pomba approximava-se d'aquelle asqueroso reptil, sem comprehender com quantas voltas lhe poderia enrolar o seu pescoço de neve! Ao escutar aquellas palavras que tão claramente denunciavam a ingenuidade da sua alma, a tia Monica julgou perder a partida. Além dos lucros que esperava obter servindo de intermediaria n'aquelles amores, havia um outro sentimento que a dominava, mais forte talvez que o primeiro: o desejo de se vingar da familia de Jeronymo! Desejo infundado, sem motivo algum, explicado apenas por aquella profunda inveja que os bons mais ou menos inspiram aos que o não são nem o desejam ser! Envenenando-lhe o seio com o ervado punhal do ciume, a tia Monica poderia fazer com que retirassem a sua protecção ao mestre de obras. Poderia fazer com que Magdalena, odiando a pobre Martha, lhe roubasse a pessoa a quem ella amava, ficando apenas reduzida á miseria e ao descredito que por toda a parte lhe proclamava. Eram estas as suas idéas, idéas que principiavam a desvanecer se, á proporção que ia lendo na alma de Magdalena toda a grandeza d'aquelle coração, immenso como a agonia que o dilacerava! --Veja, continuava Magdalena, se por esse individuo, me póde saber, custe o que custar, se Manuel de Mendonça escreve a Martha, se a vê, ou se por ultimo se encontram. --E se por ventura se amarem? perguntou rapidamente a beata. --Abençoal-os-hei! respondeu Magdalena como se ao pronunciar estas palavras se lhe rasgasse o coração. --E se não se amam! insistiu a velha. --Será meu, disse Magdalena com uma voz debil e melancholica. Tirando depois algumas moedas de prata de dentro de um _porte-monnaie_, entregou-as á tia Monica. --Se elles não se amassem! pensava Magdalena ao despedir-se da velha. --Se Deus me ajudasse! repetia a tia Monica sahindo do gabinete. XXVII Ao cabo de quinze dias, graças á sua robusta compleição, Manuel de Mendonça pôde subir ao convez, esperando, dizia elle, conseguir com a brisa do mar completo restabelecimento. Mas não era esse apenas o motivo que alli o conduzia. Mascatudo havia-lhe dito na vespera, que da galera se via perfeitamente o edificio do hospital, e quasi todos os dias, depois da uma hora da tarde se divisava um vulto na varanda, assestando o oculo na direcção do barco. Achando se completamente restabelecido, Manuel de Mendonça pegou no seu magnifico telescopio e dirigiu-se á prôa do navio afim de descobrir quem tão assiduamente o espreitava. Ao vêr o edificio que Mascatudo lhe designára, já o seu olhar de lynce havia descoberto que alguem o estava observando. Manuel de Mendonça levantou o seu oculo, e descobriu o rosto pallido e insinuante de Magdalena. Não era esse o semblante que elle cuidava encontrar; comtudo, continuou por alguns segundos esperando ainda descobrir a imagem que durante a sua terrivel enfermidade o havia perseguido. Mas tal não succedeu. Magdalena continuando a olhar, parecia não perder um segundo da sua persistente observação. Desalentado, metteu o oculo debaixo do braço, e caminhou serenamente para a ré. Então um milhão de reminiscencias lhe acudiu á memoria. Lembrou-se d'aquelle dia em que Magdalena o contemplára tão demoradamente, quando fôra visitar Jeronymo. «Quem sabe, pensou elle, se esta mulher me ama, e se lançou mão d'alguma intriga para desconceituar a meus olhos a filha do operario? Se tal fosse! Veremos o que pensa Mascatudo. Não façamos juizos temerarios. Que importa que eu vá visitar seu pae? Não lh'o prometti eu?» Erguendo o seu telescopio, Manuel assestou-o pela segunda vez na direcção do hospital, onde Magdalena se conservava ainda no seu posto de observação. O maritimo, voltando as costas desceu á camara onde Mascatudo o aguardava. Quem n'esse momento tivesse entrado no hospital da rua de S. Francisco de Paula, e houvesse subido aquelle terceiro andar, onde Magdalena se achava, teria ouvido o som da queda de um corpo e uma voz entrecortada pelos soluços, soltando estas palavras: --Amam-se, não ha duvida! --Maldito caldo de gallinha, puff, está a escaldar! dizia uma outra voz. Era a de Olympia. XXVIII Graças aos rasgos de valor e profunda dedicação que o dono do hospital da rua de S. Francisco de Paula espalhava a cada a hora sobre a cidade de Lisboa, o seu nome tornou-se popular. Todos á uma desejavam encontrar esse homem, que, arriscando constantemente não só a sua preciosa existencia, como tambem a de sua mulher e duas filhas, se chegava hoje ao leito do moribundo com palavras consoladoras, ámanhã amortalhava o cadaver de outro por cuja existencia batalhára até a ultima. Era de justiça, mais do que justiça, indispensavel até conceder-se-lhe a mercê em que sua magestade dias antes havia falado com o ministro do reino, segundo este havia dito ao visconde de Coruche. Uma manhã em que o visconde, fazendo a sua demorada _toilette_, se preparava para ir ao hospital, foi procural-o o conselheiro Poderosa. --Sua magestade encarregou-me hontem de te procurar, fiado na amisade que existe entre ti e o Tristão da Almeida. --Estou ás ordens de sua magestade, respondeu o visconde. --El-rei deseja agraciar Tristão de Almeida com o titulo de conde, e mandou-me que te viesse procurar com o fim de lhe perguntares qual o nome que deseja juntar ao titulo. --Quanto agradeço a honra que el-rei me dispensa, fazendo-me intermediario para um acto de tanta justiça! Tencionava hoje passar o dia em casa, mas, em virtude das ordens de el-rei, corro immediatamente a casa do meu amigo, afim de lh'o participar, e juntamente pedir-lhe que me diga o nome que deseja juntar a esse titulo. --Nunca se fez um acto de maior justiça, disse o conselheiro. --Escuso de te repetir que sou da mesma opinião. --Realmente, tem-se portado como um heroe. --E suas filhas?! e sua mulher! parece impossivel como tenham escapado a tantos perigos, acudiu o visconde. --É um verdadeiro milagre da Providencia. Mas, aqui para nós, visconde, quem será esse Tristão de Almeida? --Ora essa! Tristão de Almeida, segundo elle o diz, e eu o creio, descende d'uma das principaes familias de Monforte. Seu pae, homem d'um caracter excentrico e ao mesmo tempo muito gastador, quando se encontrou completamente arruinado, mandou este rapaz e um outro irmão para Val-Paraiso, para casa d'um primo que alli estava estabelecido com uma riqueza enorme. Vasco, seu irmão mais velho, ficou empregado na casa gerindo os negocios de seu primo, de quem era o unico herdeiro, emquanto que Tristão dotado de um genio mais energico e emprehendedor, seguiu uma vida aventureira. Ao cabo de cinco annos, isto peço-te que não contes a pessoa alguma, que foi dito confidencialmente por Tristão, ao cabo de cinco annos repito, já elle tinha feito cinco viagens a salvo, introduzindo na Havana uma grande porção de Chins. Feliz em todos os negocios que emprehendia, Tristão d'alli a dez annos estava archi-millionario. Achando-se uma occasião em Buenos Ayres viu n'um jornal que havia fallecido o seu parente, tendo deixado por unicos herdeiros a elle e a seu irmão. --E seu pae? interrompeu o conselheiro. --Já tinha morrido a esse tempo. --Dias depois partiu para Val-Paraiso. A riqueza que seu primo deixara estava calculada em quatro mil contos. Ao cabo de um mez teve a desgraça de perder o irmão. --Que fatalidade! murmurou o conselheiro. --É verdade! vê tu que fatalidade! Tristão, continuou o visconde, reduziu toda a fortuna a dinheiro e partiu para a Europa, onde annos depois se casou com D. Maria Egypciaca, senhora do Minho, com quem fizera conhecimento uma das vezes que viera a Portugal. --É um romance a vida d'esse homem. --Tem coisas admiraveis! disse o visconde. --Com que então, acudio o conselheiro, a sua fortuna póde calcular-se em... --Cinco ou seis mil contos. --Já se póde passar com isso! --Agora, disse o visconde, é um homem d'uma generosidade incalculavel! Se tem cahido nas mãos dalguns individuos que nós conhecemos... --Haveriam tirado um grande partido da sua bolsa, emquanto que tu... --Como graças a Deus não preciso recorrer a ella; mas, se o fizesse, tenho toda a certeza que sempre a encontraria disposta a abrir-se-me. --Eu tambem não digo que tenhas precisão, mas um homem d'esses, pode-se aproveitar para qualquer empreza, grande já se vê, e de que outros tirassem bom partido, tirando o elle tambem. --Ainda não pensei n'isso. --E as filhas são bonitas? --Uma d'ellas, Magdalena, é um anjo de bondade e formosura. --E a outra? --Olympia? Também não é feia, mas é muito gorda. Essa representa o estomago, e a sua irmã o coração. Magdalena ama, suspira e desfaz-se em sentimento. Olympia come, dorme, e emquanto dorme sonha no que ha de comer ao despertar. Afóra isso, é uma creatura esplendida. --Eis a mulher que me convinha, disse o conselheiro. Confesso-te que já não tenho outra distracção senão a meza. Seria capaz de me casar não pelo coração mas sim pelo estomago! Que verdadeiro achado seria para mim essa Olympia! Uma mulher com bom paladar, que deve infallivelmente saber fazer muito bons doces. Que dorme muito e que come muito! --Mas tu d'antes não eras assim! disse o visconde accendendo um charuto. O teu typo era a mulher magra, vaporosa, sentimental. Gostavas das olheiras, das rosetas da febre, e sobretudo da pontinha de tosse, como regularmente se diz. --Isso foi antigamente, meu amigo, quando eu tinha vinte annos, e conservava intacta a riqueza que herdei de meus paes. Porém agora, não; prefiro a mulher sadia, forte, que possa ser uma boa ama de leite para me crear os garotos, se porventura Deus me quizer conceder os deleites da paternidade. --Como tu estás mudado, João! --Que queres? são as circumstancias que me fazem assim pensar. --Pois meu amigo, habilíta-te e terás em Olympia a mulher que te convém. Junta a todas essas qualidades, um dote de trezentos a quatrocentos contos de réis. Que tal, hein? Agora só te peço uma coisa: se á força da tua vontade, ajudada pelos meus esforços, conseguires realizar este sonho... --Dirás. --Has de fazer um novo fardamento ao teu guarda-portão. --Approvo e desde já t'o prometto! Se Olympia fôr minha, o meu guarda-portão terá outro fardamento. Mas agora serio, ajuntou o conselheiro, eu ainda não estou feio de todo, falam por ahi do meu talento, sou filho de gente fina, que mulher se poderá esquivar a conceder-me a sua mão, muito mais, estando eu nas disposições em que me encontro, que é viver pura e simplesmente para comer e dormir e depois accordar para tornar a comer, sem que minha mulher nem os criados de casa me ouçam levantar a voz, a não ser que os pequenos me venham interromper o somno, amotinando me os ouvidos com algum tambor de feira? --Estou d'accordo comtigo, e tanto, que se me falas serio, mas bem serio, entendes, farei com que Olympia te encontre alguma vez, e se te guiares pelos meus conselhos, vencerás a batalha. Se por ventura a fôres visitar ao hotel e falares com a tua futura, não te approximes da janella, erguendo olhares inspirados para o Tejo; não, longe d'isso, faz um gesto de profunda meditação, engatilhando ao mesmo tempo o ouvido em direcção ao corredor e aspirando o aroma das iguarias que se espalha na atmosphera. Não fales nem de flores nem de estrellas, discute-lhe as empadas do José Romão, e os pasteis de nata da rua da Rosa. Não lhe fales de Dumas nem de Eugenio Sue, conta-lhe a biographia de Vatel, promette-lhe a phisiologia de paladar de Brillat Savarin, e conta lhe isto, com os olhos radiantes de enthusiasmo, e as faces incendiadas pelo quinto peccado. Se assim fizeres, Olympia terá um conselheiro e o teu guarda-portão um fardamento novo! --Convem-me, respondeu o conselheiro, e tu, ajuntou elle, porque não aproveitas a poetica Magdalena? O teu espirito ainda ás vezes infantil e sonhador, casar-se-ia admiravelmente com a sua organização. Então é que era, visconde: nós os amigos de tantos annos, casados com duas irmãs, que representavam já oitocentos contos e que representariam seis mil para o futuro! --Se o quizesse fazer, não tinha senão dar o meu sim. Se tu soubesses o que tem ido por essa casa a meu respeito! Magdalena ama-me desde o primeiro dia que me viu. Orgulhosa de mais nunca se atreveu a declarar me o seu amor, mas de sobejo se lhe lê no olhar com que me contempla, na voz que lhe estremece quando por ventura me dirige a palavra, no gesto cuja melancolia me chega ás vezes a causar remorso. Eu tenho sempre feito que nada comprehendo, porém seu pae não o ignora nem a mãe. Falta só dizerem-me em voz clara, o sentimento que a minha presença inspirou á filha. --Pois acho que fazes uma grande asneira, disse o conselheiro. --Eu ás vezes também assim penso, mesmo porque talvez venha no futuro a sentir remorsos de ter concorrido para a morte d'aquella creança. Se tu soubesses quanto soffre. Aquelle ardente desespero com que Magdalena se lança a todos os perigos, penso eu ás vezes ser mais vontade que tem de morrer para não affrontar a minha indifferença, do que realmente caridade. --Mas porque motivo não lhe retribues tu com muito amor, o affecto que essa creança te consagra? --Porque a não amo, João. E como, graças a Deus, não estou na posição de me casar por necessidade, não quero sacrificar os longos annos que ainda me restam de vida, passando os ao lado de uma mulher, que nada tem a desejar, mas pela qual o meu coração não palpita de amor. O motivo é este, apenas este. --Tens-me falado com seriedade em tudo isto? acudiu o conselheiro depois de alguns instantes de profunda reflexão. --Dou-te a minha palavra de honra que tenho. O visconde não mentia. Fiado ainda na sua belleza proverbial, e afeito a que todas as mulheres o estremecessem, pensou que esse sentimento que a pobre Magdalena nutria em silencio por Manuel de Mendonça, era o resultado de uma paixão que elle lhe havia inspirado. Orgulhoso do seu nome, o visconde, apezar da inquestionavel vantagem que lhe poderia resultar d'esse enlace, não queria, diremos, baixar da sua dignidade entregando-se n'uma facil conquista, a essa mulher cujo coração o estremecia, a quem elle nunca poderia ter sido indifferente, attendendo á sua formosura e altas virtudes que a distinguiam. Viu n'um relancear de olhos o proveito que poderia tirar, arranjando o casamento do conselheiro com a irmã de Magdalena. Por essa fórma viveria mais em familia, e se um dia, exasperada de amor e incendiada de paixão, Magdalena se lançasse em seus braços, pedindo-o em casamento, elle então do alto do seu throno de vaidade, extenderia a mão para lhe dar um sim de protecção. Eram estas as suas idéas, as que elle estreitamente guardava no fundo da sua alma. Por isso não mentia, quando respondeu ao conselheiro que lhe estava falando a serio. --Pois então, disse João Poderosa, visto não me teres illudido, digo-te tambem, e muito de coração t'o peço, que me auxilies n'esta tentativa, cuja realização póde fazer a tua e a minha felicidade. Pensa nos meios que temos a empregar; dirige-me em tudo se te apraz; serei um automato se m'o exigires, mas colloca-me ao contacto d'essa mulher. Agora, accrescentou elle, como se um mundo novo se desenrolasse a seus olhos, vou contar a el-rei o que se passou comtigo, e logo, sendo sete horas, antes de ir para o theatro, aqui te venho buscar. Ficamos certos? --Pois não, respondeu o visconde, e á fé de quem sou te prometto, que em menos de um mez, Olympia será tua mulher. Despedindo-se do visconde, o conselheiro seguiu para o paço. * * * * * * * * * * «Vae tudo ás mil maravilhas, pensava elle. Com esta missiva official farei de Tristão quanto me aprouver! Tenho até a certeza que obteria a mão de Magdalena. E porque não hei de requisital-a? Requisital-a não, que ella m'a requisite. Se eu me curvava á filha de um Tristão de Almeida! Parece-me mais razoavel, accrescentou o visconde depois de alguns momentos de graves locubrações, fazer com que o Poderosa consiga a mão de Olympia; feito isso serei eu a entrar em scena. Por agora não, tratemos apenas do titulo. Quem tudo quer tudo perde!» Vestindo-se em seguida, montou n'um magnifico cavallo inglez, e partiu a trote largo, dirigindo se para o hospital. Proximo á calçada do marquez de Abrantes, viu que um homem o chamava de dentro de um trem. Estacando de repente o cavallo, approximou-se do postigo da sege. Era Gil de Carvalho. --Encontrei-o emfim, disse o jogador. Então onde se póde ver o seu amigo Tristão de Almeida? --Aonde se póde ver? por ahi, respondeu o visconde. --Não é isso o que eu queria dizer; perguntava aonde elle joga para lhe pagar as cem libras que sabe. --Ah! o meu amigo Tristão de Almeida? esse já não joga, respondeu o visconde, mas se lhe quer pagar as cem libras, entregue-m'as, que eu lh'as darei. --Peior é essa! exclamou Gil de Carvalho, suspendendo o movimento que fizera para tirar as notas da algibeira. --Então não quer que lh'as entregue? repetiu o visconde, que começava a desconfiar da velhacaria do jogador. --Suppuz que vinha prevenido, mas enganei-me, respondeu Gil de Carvalho. Ámanhã passarei por sua casa. --Pois então adeus, meu amigo, disse o visconde, batendo as pernas ao cavallo. Deixemos o visconde e Tristão de Almeida no jardim do hospital discutindo ácerca do nome que tencionam escolher para o titulo, e subindo pela rua do Conde, vamos a casa da pobre Martha, de quem não sabemos desde aquelle dia em que se prostrou sem sentidos ao ouvir a historia do mestre de obras. XXIX Magdalena, ao ver a cruel realidade das suas suspeitas, resolveu esmagar nos seios d'alma aquelle affecto que lhe era vida, e dirigindo-se a casa de Martha, exigir da sua amizade a revelação de todos os segredos. Havia dias que a pobre criança, cada vez mais enfraquecida, parecia levantar os olhos a Deus, como pedindo-lhe pela sua infinita misericordia que a recolhesse na paz divina de seus braços. Balbina e Jeronymo, sem se retirarem um só momento do lado de sua filha, erguiam de vez em quando os seus olhos supplices e inquietos para a Virgem da Conceição. Martha não falava, afóra algumas palavras á tia Marianna, com quem abria inteira a sua alma. Bem sabia Martha, que n'aquelle peito podia sem receio depositar todos os seus arcanos! A pobre velha havia-lhe jurado nunca revelar a pessoa alguma as confidencias que lhe depositasse no cofre do seu coração! * * * * * * * * * * São duas horas da tarde. Martha na vespera havia peiorado! A febre, augmentando-lhe consideravelmente, dera graves receios ao doutor Hermenegildo, distincto facultativo do hospital do magnate. Ouve-se o rodar de um trem, que pára á porta do operario, e, de dentro d'elle, envolta n'uma comprida capa de velludo preto, apeia-se uma mulher. É a filha de Tristão, Magdalena. Escusado seria dizel-o, que n'essa hora, Olympia, á mesa do _lunch_, saboreia em doce encantamento as altas locubrações d'um intelligente cozinheiro. Contra o seu habito, Magdalena vem completamente só. O olhár e a pallidez do rosto, denunciam-lhe um soffrimento profundo. No pisado das palpebras, adivinha-se-lhe o rasto produzido pelas lagrimas. A sua voz, ordinariamente firme e sonora, perturba-se á mais pequena palavra, como receiando que as lagrimas lh'a interrompam! O descuidado da _toilette_, o desalinho dos cabellos, tudo emfim lhe descobre a tempestade em que se agita o seu coração! Não era Magdalena, era apenas a sua sombra! Bate á porta de Jeronymo, e Balbina vem abrir. Ao vel-a n'esse estado, a mulher do operario não pode occultar o seu assombro. Jeronymo secunda sua esposa na admiração. --Mas que é isto! Valha-me Deus, minha querida menina, disse a mulher de Jeronymo voltando-se para Magdalena. --Preciso falar-lhe em particular, e depois, com sua filha. O que me traz aqui, é grave e muito grave sr.ª Balbina. Esta, fazendo toda a diligencia para que Martha se não apercebesse da presença de Magdalena, leva a para uma pequena alcova que deita para o quintal de Jeronymo, outr'ora tão cuidadosamente tratado, e triste ha uns tempos a esta parte, como o coração do seu cultivador. --Estamos sós? perguntou Magdalena para Balbina. --Tão sós que ninguem nos póde ouvir, respondeu Balbina sem comprehender o que se passava em torno de si. --Em primeiro logar, como está a pobre Martha? --Mal! bastante mal, minha boa menina, e tanto que, hoje o medico... --O quê? --Disse-me que me não illudisse, ajuntou Balbina agarrando se á amiga de sua filha. --Pobre anjo! exclamou Magdalena apertando-lhe fortemente as mãos. E o que diz elle a respeito da sua doença? --Que é toda moral, e portanto mais difficil de se lhe encontrar o curativo. --E a que attribue a senhora isso? perguntou Magdalena fitando a mulher do operario. --Eu sei! respondeu esta, tornando a resumir-se ao silencio. --Seja sincera commigo, sr.ª Balbina, e lembre-se que ninguem n'este mundo será capaz de ser mais amiga de sua filha do que eu sou. --Creio o bem, minha senhora. --Pois então porque não abre commigo a sua alma? Diga me não deposita em mim bastante confiança no meu caracter? Olhe, continuou Magdalena, descobrindo inteiramente o rosto. Diga-me se n'estas feições adivinha a menor sombra de hypocrisia? --Por Deus, minha senhora! acudiu rapidamente a mulher de Jeronymo. --Pois então, Balbina, se acredita na lealdade de minha alma, seja sincera commigo, e fale-me como se eu fosse uma outra sua filha. Não imagina o prazer que me vae dar. Como eu serei feliz podendo desabafar n'um coração de mãe, quanta dôr existe n'este meu pobre peito. --Já que tanto insiste, minha senhora, vou confiar-lhe um segredo, que nunca me teria atrevido a revelar, se não fosse conhecer a nobreza da sua alma! O que a minha filha tem, é uma paixão, paixão que a leva á sepultura. --E esse homem que lh'a inspirou, é?... perguntou Magdalena, como se ainda uma pequena esperança lhe restásse. --Esse homem é o commandante da galéra Esperança, o mesmo que descobriu aonde estava meu marido, na noite do dia em que foi atropellado por seu excellentissimo pae. --Manuel de Mendonça! exclamou Magdalena. --Elle mesmo! --E elle? --Nunca mais o tornou a ver. --E como soube tudo isso? perguntou Magdalena. Balbina então contou-lhe quanto se havia passado entre Jeronymo e a filha, não lhe omittindo a circumstancia d'estas terriveis palavras: «esse homem é amado pela filha do nosso protector.» Magdalena pensou morrer. A nobreza d'alma d'aquelle anjo, deixando se descer á sepultura, sem interromper o sentimento que dominava o coração de Magdalena, a sua generosidade, abandonando-lhe por assim dizer aquelle homem que ella amava, e de quem tinha a certeza de ser correspondida, tudo concorreu para que no seu coração immenso tambem como o de Martha, se formassem mil conjecturas tendentes todas á generosidade. «Morrerei, pensava ella, mas salvarei este anjo que tão nobremente se me sacrificou. E que m'importa a vida? De que me serve este eterno martyrio? Vivam! que vivam para serem muito felizes, e abençoarem a minha memoria se eu concorrer como espero para a sua ventura!» --Bem, ajuntou Magdalena voltando-se para Balbina, vá ao quarto de Martha, veja o estado do seu espirito e se ella estiver mais tranquilla, quero-lhe falar. A pobre Balbina sem comprehender o choque que este encontro poderia produzir na alma de sua filha, apressou-se em cumprir as ordens de Magdalena. «Parece que sobre a nossa familia peza uma grande desgraça, continuou a filha de Tristão de Almeida olhando para o pequeno horto. De que serve a enorme riqueza de meu pae! A sua alegria, é sempre aquella eterna mascara com que tenta encobrir as lagrimas que o devoram na eterna solidão de sua alma. Minha mãe, afeita a illudir, tem chegado a convencer-se que é muito feliz, não passando d'uma desgraçada! Eu, que tenho passado uma existencia de tristeza, no momento em que pela primeira vez na vida me poderia considerar venturosa, vem o destino, e corta-me rapidamente o fio da minha felicidade. Olympia, graças ao seu genio, é a unica fadada para a completa tranquillidade da alma! Vive e come, pobre irmã, que seria o mesmo que dizer-te: vive e sê feliz! «Falarei com Martha, e hoje mesmo lançar-me-hei aos pés de meu pae, pedindo-lhe que d'esse dote dos quatrocentos contos que tantas vezes me tem promettido me conceda apenas cincoenta para dar a Martha, e depois de os ver ambos casados, felizes, abençoando a minha mão que lhe estreitou a sua ventura, eu então, ou buscarei a morte, ou fechar-me-hei entre as grades d'um convento!» N'este comenos entrou Balbina. Martha havia accordado e esperava a visita de Magdalena. Esta sem mais hesitar, entrou no quarto da criança, e, occultando a custo as lagrimas que a suffocavam, lançou-se sobre o leito abraçando a pobre amiga. --Ha dias que desejo falar-lhe sobre um assumpto muito importante, porém, a sua eterna reserva para todas as pessoas que deveras a estimam, tem sido a causa de me não ter atrevido, disse-lhe Magdalena. Quem mais do que Martha possue corações verdadeiramente dedicados? accrescentou ella. Não vê que está offendendo a Deus que a protege? Porque pensa em morrer, minha amiga? Não vê que morrendo, mataria sua mãe, seu pae, e que fará soffrer a todos que se interessam pela sua vida? Por que motivo se tem occultado á sombra da sua agonia sem buscar um peito amigo com quem desabafe os seus desgostos? Não tinha minha irmã? Não me tinha a mim? á sua propria mãe? Quem melhor do que ella, podia ser a confidente dos seus segredos? --Segredos! Eu? murmurou Martha. --Sim, Martha; segredos e muito importantes. Não queira negar-me o que sei. --Não tenho coisa alguma a negar, minha boa menina, respondeu Martha, como se já não tivesse forças para sustentar aquelle dialogo. Insciente do mal que as suas palavras poderiam influir no espirito de Martha, Magdalena seguia apenas a que o seu coração lhe ordenava. --Nunca amou ninguem, Martha? Seja sincera commigo. Deposite as suas magoas n'este coração que lhe quer tanto como se fosse sua propria irmã. Os olhos da creança inundaram-se de lagrimas. A mentira jámais havia passado por seus labios! A infeliz não sabia que responder. --Responda, minha irmã. Até hoje homem algum lhe feriu esse coração? Jura-m'o? Haveria ainda algum vestigio de esperança no coração de Magdalena ao insistir n'aquellas perguntas? Sabia-o Deus e a sua alma! Martha sem responder agarrou-se ao pescoço de Magdalena e desatou n'uma torrente de lagrimas. --Perdôe-me, disse ella emfim, mas eu não sabia que o amava. Foi o primeiro homem que meus olhos viram. Havia tanta bondade, tanta nobreza no seu caracter! A quantas pessoas perguntei por meu pae, todas me responderam brutalmente que não sabiam quem elle era. Aterrada com a minha desgraça, encontrei-me só, completamente só. Então, appareceu o sr. Manuel de Mendonça; promptificou-se a procurar meu pae, e encontrou-o. Desde esse dia, a sua imagem ficou-me impressa na memoria. Quiz esquecêl-o, mas era-me completamente impossivel! Dias depois, vi-o. O que eu sentia na minha alma, foi crescendo, crescendo gradualmente, até que reconheci que o amava. Quando já era tarde foi então que comprehendi toda a loucura do meu sentimento, avaliando ao mesmo tempo a immensa distancia que nos separava. Um dia, descobri que esse homem era amado por quem melhor do que eu o merecia. A dôr quebrava-me a alma, mas a ninguem revelava a minha angustia! Desde então, minha boa amiga, entendi que o melhor era esperar resignada o momento em que Deus me chamasse á sua divina presença sem ter deixado no mundo um rastro de ingratidão! Ame-o, sr.ª Magdalena! Amem-se, que são dignos um do outro, e, se um dia se recordarem da pobre Martha, vão ambos, rezem-lhe uma oração sobre a sua sepultura, e lembrem-se da que está no reino dos tristes pedindo a Deus pela sua ventura e pela felicidade do sr. Manuel de Mendonça! --E quem te disse a ti, filha, que esse homem era amado por mim? --O meu coração, respondeu Martha, inclinando a cabeça no travesseiro. --Illudiu-te, e o tempo t'o provará, respondeu-lhe Magdalena. Eu nunca o amei! accrescentou ella, empregando n'estas ultimas palavras todo o valor da sua alma. Eu só quero a tua felicidade, Martha. --A minha felicidade está no céu, respondeu a infeliz, levantando os olhos para o tecto. --Enganas-te! exclamou Magdalena. A tua felicidade está nos braços d'esse homem como a sua ventura deve estar n'um coração nobre e generoso como o teu! Já a mim mesma o prometti, irei hoje preparar o teu bem estar. Agora, filha, accrescentou Magdalena, que esses teus olhos se enxuguem para sempre, e que as lagrimas desçam sobre os meus para jámais os abandonar. E abraçando estreitamente a pobre creança, Magdalena sahiu do quarto, e sem quasi se despedir de Balbina, deixou a casa do operario e partiu para o hotel Bragança! [Ilustração: É de joelhos que lh'o imploro! (_pag. 213_)] XXX Ao chegar ao hotel de Bragança, Magdalena encontrou sua mãe louca de alegria. Já tinha sabido por Tristão e pelo visconde de Coruche, a mercê que sua magestade acabava de lhe offerecer. --Um abraço minha filha! exclamou D. Maria Egypciaca. El-rei, attendendo aos serviços que temos prestado ao paiz durante a epidemia, acaba de encarregar o conselheiro Poderosa, de perguntar a teu pae que nome deseja dar ao titulo de conde que lhe vae ser concedido. Fique portanto sabendo, accrescentou ella, que d'aqui a pouco tempo será filha de uma condessa! Que te parece Olympia? --Parece-me que sua magestade acaba de nos dispensar uma grande honra, respondeu Olympia, para dizer qualquer coisa a sua mãe. --Mas que vejo, Magdalena! disse D. Maria Egypciaca, voltando-se para sua filha. Que tens tu? meu Deus! que terrivel pallidez! --É tão grande a alegria que nossa mãe experimenta só com a ideia do titulo, que nem sequer reparou para o estado em que te encontras! Doe te a cabeça, Magdalena? --Não, respondeu ella; comtudo, sinto-me alguma coisa indisposta. --Pois faz a diligencia de te animares! É de suppôr que venha cá hoje passar a noite o conselheiro Poderosa. Já pedi a tua irmã quasi de mãos postas que se fizesse mais amavel. Veremos como se porta. --Preciso falar-lhe, minha mãe, interrompeu Magdalena, dirigindo-se a D. Maria Egypciaca. --É negocio grave, pelo que vejo! Succedeu alguma novidade no hospital? --Não, por certo. É outro assumpto inteiramente diverso. --Não podemos falar aqui mesmo? perguntou a futura condessa. --Já disse a minha mãe que era uma coisa em particular. D. Maria Egypciaca, seguida por sua filha, entrou no gabinete de Tristão, aonde varias vezes temos conduzido o leitor. --Que queres pois? perguntou ella, reclinando-se commodamente sobre uma cadeira á voltaire. --Venho prevenir minha mãe que desejo entrar para um convento antes do prazo de um mez. --Estás doida, ou variada! exclamou ella como se não acreditasse nas palavras que escutava. --Nem doida, nem variada! respondeu Magdalena. É uma resolução de que ninguem será capaz de me afastar. --Mas que te impelle a similhante determinação? Explica-m'o. Quem melhor do que tua mãe poderá ser tua confidente. --Basta que o saiba Deus, em cujos braços me quero occultar, respondeu-lhe serenamente Magdalena. --Esta rapariga enlouqueceu! acudiu D. Maria. --Já respondi a minha mãe que não estava louca, nem tão pouco variada, accrescentou Magdalena sentando-se no sophá. --Agora que, escudadas por um titulo, vamos brilhar como ninguem na sociedade, é que te queres retirar a um convento? --Quero agradecer ao Senhor os beneficios que lhe devo, recolhendo-me sob os tectos da sua habitação. --Jámais t'o consentiria, e muito menos teu pae. --Torno a dizer a minha mãe, que pessoa alguma poderá impedir a minha resolução. --Mas que pretendes, filha? Amas alguem? Receias que teu pae se opponha á tua vontade? Fala, fala por Deus, mas não me atormentes! Eu que esperava anciosa a tua vinda para te participar a alegria em que estavamos! Que esperava, emfim, passar uma noite agradavelmente na companhia do visconde e do conselheiro Poderosa, o encarregado por sua magestade de nos offerecer o titulo. --Não queria falar em coisa alguma com meu pae, sem primeiro lhe dizer as minhas intenções, ajuntou Magdalena com um sangue frio imperturbavel. --Ah! exclamou D. Maria Egypciaca, levantando-se rapidamente da poltrona. Comprehendo agora que não eram infundadas as desconfianças de teu pae. --Que desconfianças? perguntou Magdalena. --Que amas... --Eu? --Tu, sim... --Quem? perguntou Magdalena tornando se cada vez mais pallida. --O visconde de Coruche! --Que testemunho! Já disse uma vez a minha mãe, que nunca amei, nem seria capaz de amar o visconde. --Assim me queres convencer... --Nunca tentei illudir pessoa alguma, e muito menos a meus paes. --Então outro homem? --Não posso amar! respondeu Magdalena cada vez mais perturbada. N'este momento abriu-se a porta do gabinete, e entrou Tristão de Almeida. Ao contemplar a physionomia de Magdalena, a sua filha predilecta, o pobre pae sentiu um estremecimento que lhe toldou a côr do rosto! Julgou-a atacada pela febre. --Saberás, disse D. Maria Egypciaca, que n'um dia, para nós de tanto regozijo, a tua filha... --O quê? perguntou Tristão, voltando-se para sua mulher. --Quer recolher-se a um convento?! respondeu D. Maria. --Recolher-se a um convento!? perguntou Tristão como se não acreditasse em similhantes palavras. Recolher-se a um convento! accrescentou elle, voltando-se para Magdalena. Tu, filha da minha alma? Abandonares-me? Tu que és a unica ventura da minha vida? Mata-me primeiro, e depois, faze o que te aprouver! Sabes o que significa essa palavra «deixares me!» Ignoras que só tu me tens sustido a existencia? Não conheces inteira a minha vida? Não te contei todos os sacrificios que tenho feito por tua causa? Desconheces o que fiz para te ganhar um patrimonio; para ti, só para ti, que és a vida da minha vida? Deixares-me! quando a existencia começa a sorrir-me... quando os meus cofres cheios de ouro se despejariam ao teu mais pequeno capricho? Deixares-me quando a gloria desce sobre a nossa familia, não digo por esse titulo que não passa de uma miseria, mas pelo que temos feito por esses desgraçados. Se amas alguem, bom ou mau, rico ou pobre, dize m'o, e farei tudo para me não separar do teu lado. Se fôr bom, abraçal-o-hei, se mau, tu o tornarás bom, Magdalena! Pobre, o meu ouro o fará enriquecer, e tu verás cumpridos os teus desejos. Mas deixar-te? Nunca, torno a repetir t'o! --A minha resolução é inabalavel; comtudo, antes d'isso, tenho um grande favor a pedir lhe: Tristão parecia attendel-a sem consciencia de vida. --Segundo meu pae muitas vezes m'o tem dito, o meu dote é de quatrocentos contos?... --O teu dote é tudo quanto eu tenho, Magdalena, respondeu-lhe Tristão, e se ainda mais quizeres, accrescentou elle, mais ainda serei capaz de te adquirir. --Peço-lhe portanto um favor, meu pae. --Dize. --É que d'esse dinheiro, disponha de cincoenta contos para eu poder dotar uma amiga que tenho, se porventura ella resistir á enfermidade que a anniquila. --Terás, não cincoenta contos de réis para essa amiga, mas cem, duzentos ou aquillo que te aprouver! Porém, abandonares me, nunca! Queres esse dinheiro? Ámanhã; hoje; agora mesmo! Se o desejas, não tenho mais do que ir buscal-o a casa do meu banqueiro... É que esse homem perverso por instincto, o unico sentimento grande que havia experimentado na vida era o amor por sua filha! --Juras me que não abandonas teu pae? accrescentou elle pegando nas mãos de Magdalena e levando-as junto ao coração. --Juro que não abandonarei meu pae, respondeu Magdalena apertando-o nos braços! --Parece impossivel! disse Olympia, abrindo ao mesmo tempo a porta do gabinete. Ha mais de dez minutos que está a sopa na mesa, accrescentou voltando-se para Magdalena. --Já vamos, respondeu esta. --Ah! temos lagrimas! ajuntou Olympia sahindo do gabinete. --E quem é essa pessoa que tu queres dotar, Magdalena? perguntou Tristão depois de alguns momentos de silencio. --É Martha, a filha de Jeronymo. --Conta com esse dinheiro, respondeu Tristão. --Obrigada, disse lhe Magdalena. Agora estou mais tranquilla, e, dando o braço a Tristão, sahiram do gabinete, seguidos por D. Maria Egypciaca, e dirigiram-se á casa do jantar. * * * * * * * * * * Apresentado pelo visconde, ás oito horas da noite, entrou o conselheiro Poderosa. O visconde ao notar a pallidez de Magdalena, olhou de soslaio para o conselheiro, como se lhe indicasse o soffrimento que se lhe notava no semblante. Poderosa sorriu se! Depois, ao vêr a obesidade da irmã de Magdalena, o rosado das suas faces, e toda aquella economia exhalando vida e saude, pensou de si comsigo que era essa a unica mulher que lhe convinha. Depois das apresentações do estylo, o conselheiro sentou-se junto do magnate para lhe falar ácerca da missão de que sua magestade o tinha encarregado. No entretanto, o visconde, proximo de D. Maria Egypciaca, entretinha-se com a futura titular, discutindo sobre o nome que devia juntar-se ao titulo. --Minha senhora, dizia-lhe o visconde, eu não tenho a mais leve desconfiança que seu marido lhe usurpe o direito da escolha. O que depende do bello pertence a vossa excellencia, queira vossa excellencia lembrar-se do nome que deve ter esse titulo, accrescentava elle olhando significativamente para Magdalena, nos momentos em que por acaso encontrava os olhos do conselheiro. N'este comenos, o conselheiro, que acabava de falar com Tristão, approximou-se de D. Maria Egypciaca e do visconde. A conversação correu animadissima até ás onze horas da noite. Seguindo as instrucções do visconde, o conselheiro portou-se bizarramente no tocante a dissertações culinarias, falando sempre com muito acerto sobre os diferentes generos de cosinha. O coração de Olympia, ou, para melhor dizer o estomago de Olympia, começou desde esse momento a palpitar pelo joven conselheiro, e a cabeça, que tanta relação tem com essa viscera, principiou tambem a comprehender que era o conselheiro o unico marido que lhe convinha. Ás onze horas, retiraram-se o conselheiro e o visconde, combinando ambos com Tristão de Almeida a hora para no dia seguinte se encontrarem, a fim de se decidir o nome que devia ser escolhido para o titulo. * * * * * D'ali a duas horas, Olympia resonando profundamente, via em sonhos um lauto banquete, e, a seu lado, com a farda de conselheiro, aquelle que na sua vida lhe tinha proporcionado o ensejo de se convencer que no seu todo havia uma outra viscera sem ser o estomago. Magdalena, com o rosto encostado aos vidros da janella, contemplava os astros, adivinhando em cada um d'elles o rosto grave e melancholico de Manuel de Mendonça. XXXI No dia seguinte á entrevista do conselheiro, á mesma hora que este e o visconde se preparavam para ir falar com Tristão, Manuel de Mendonça resolvia procurar informações de Martha. --Se tudo quanto te disse aquella infame beata, não fosse mais do que uma calumnia... pensava Manuel ao mesmo tempo que o proferia a Mascatudo. --Póde muito bem ser que tal aconteça, respondia-lhe o marinheiro. Em todo o caso, se eu fosse ao sr. Manuel de Mendonça... --Que fazias? acudiu rapidamente o capitão. --Ia saber d'aquella pobre menina. --Tomarei o teu conselho. Vou. Não sei o que me adivinha o coração; porém, ou eu me illudo muito, ou Martha está innocente como os anjos. --Estou da sua opinião. No que o senhor fez mal, foi em acreditar nas primeiras palavras d'essa mulher. Se eu sei, tinha-lhe occultado tudo quanto a seu respeito ouvi dizer. --Não te arrependas, Mascatudo; nos teus casos, teria feito o mesmo. --E se essa mulher não passasse de uma infame mentirosa? --E se tudo quanto a tia Monica te disse fosse verdadeiro? Que remorsos não terias n'este momento, se me tivesses dito que a conducta de Martha era irreprehensivel? --Isso lá é que é verdade, sr. Manuel de Mendonça. Em todo o caso, tudo se poderá hoje descobrir. Se o senhor consentisse que eu fosse em sua companhia... --Da melhor vontade e até me fazes muito favor. * * * * * * * * * * Em menos de um quarto de hora, Manuel de Mendonça acompanhado por Mascatudo, desembarcava na rocha do conde de Obidos e, subindo a rampa, dirigia-se para a rua do Meio. --Se lhe parece, disse Mascatudo ao chegarem á rua das Praças, vamos á tenda em que lhe falei. O caixeiro, que já é meu conhecido, póde nos dar mais algumas informações. --Confesso-te que me vae custando esta espionagem, respondeu placidamente Manuel de Mendonça. Seria a delicadeza da sua alma, ou o receio de saber alguma circumstancia menos favoravel ácerca da vida intima de Martha, que fazia com que o maritimo fugisse a mais investigações? Deixaremos isto ao juizo da intelligente leitora, que para casos de tal monta não nos julgamos habilitados. Ao chegar defronte da casa onde habitava a filha do operario, Manuel de Mendonça estremeceu. Lembrou-se da noite em que pela primeira vez a encontrára, quando ella com as supplicas de piedade lhe pediu entre lagrimas que a ajudasse a procurar seu pae. Logo, recordou-se das duas ou tres vezes que a vira no hotel Bragança, quando ainda as boccas maliciosas não se haviam aberto para lhe cuspir o fel da maledicencia. Em toda a pureza angelica da sua castidade, Martha desenhava-se-lhe deante dos olhos, como muitas e muitas vezes a imagem grata de sua mãe lhe apparecia por entre as nevoas da tarde, quando a galera, sulcando as aguas do oceano, o conduzia a estranhos climas onde nem um só coração amigo se lhe approximava. Mascatudo comprehendeu-lhe o soffrimento. --Que devemos fazer? perguntou Manuel. --Sondar estes baixios, e se o rumo não fôr perigoso, seguiremos a nossa derrota, respondeu Mascatudo. N'este momento passava uma carruagem. Manuel olhou instinctivamente para dentro do trem. Ao mesmo tempo, o cocheiro como se já estivesse prevenido, estacou os cavallos. Era Magdalena que vinha dentro da carruagem! Collocando a cabeça fóra do postigo, a filha de Tristão fez um aceno a Manuel para que se approximasse. --Necessito falar-lhe quanto antes, acudiu ella rapidamente, dirigindo se ao maritimo, que a contemplava com um gesto de espanto impossivel de descrever. Provavelmente, accrescentou ella, tenciona ir ver a pobre Martha; não o faça sem primeiro me falar. --Estou ás ordens de vossa excellencia, respondeu Manuel de Mendonça, reconhecendo n'esse momento a filha de Tristão de Almeida. --Mas aqui é inteiramente impossivel por causa da visinhança, accrescentou ella, com uma voz tremula e assustada. --Dir-me-ha então?... perguntou Manuel. --Dirija-se ao passeio da Estrella. Espero-o na montanha; e antes que Manuel tivesse tido tempo de reflectir, Magdalena falou ao cocheiro, e os cavallos partiram n'um trote largo, caminho da rua dos Navegantes. Manuel ficou como assombrado! Não sabia que pensar! Aquella mulher, que na ante-vespera o estivera olhando por um telescopio, seria a confidente dos amores de Martha, ou seria ella mesma que o amava? Aquella insolita maneira de o avisinhar; a perturbação das suas palavras; a visivel pallidez do rosto, que augmentava á proporção que os seus olhos o contemplavam, tudo concorria para que o maritimo ficasse como abysmado. --Que foi isso? perguntou Mascatudo, ao notar a profunda perturbação de Manuel de Mendonça. Manuel contou-lhe o que se havia passado. --E que tenciona fazer? perguntou Mascatudo. --Ir immediatamente para o passeio da Estrella. Que te parece? --Que vá quanto antes, respondeu Mascatudo. Sem mais hesitação, Manuel de Mendonça entrou na rua da Bella Vista, e seguiu para o passeio da Estrella. --Espera-me aqui junto ao lago, disse elle a Mascatudo ao entrarem as portas do passeio. XXXII Espera-o, martyr! Unge-lhe o peito com o divino balsamo do teu nobre sacrificio! Lagrimas misericordiosas foram as tuas, derramadas sobre a face da pobre virgem! Vae, infeliz; fere, profunda, arranca uma por uma as fibras do coração, e que o sangue que d'ahi te gotejar, lavando as nodoas do futuro conde lhe purifique a alma para um dia entrar no reino dos justos com o passaporte de uma retribuição! * * * * * * * * * * Manuel subiu á montanha. Magdalena não faltára. --Venho cumprir com as ordens de vossa excellencia, disse Manuel de Mendonça, approximando-se. --Ah! respondeu ella, como se despertasse de um sonho. E accrescentou, visivelmente perturbada: realmente, deve estranhar o meu proceder, porém, uma circumstancia grave e muito grave me obrigou a procural-o hoje mesmo. Tracta-se de salvar uma pessoa cuja vida me interessa. --Estou ás ordens de vossa excellencia para tudo quanto me fôr possivel. --Sabe que tem estado á morte a filha de Jeronymo? --Não o sabia, minha senhora, respondeu Manuel começando tambem a perturbar-se. --Ha quinze dias que a infeliz, deitada sobre o leito da agonia, olha para o céu que lhe pertence. Hontem, que foi a ultima vez que lá estive, o medico sahiu completamente desanimado. A sua enfermidade é menos physica do que moral, e só á ultima hora lhe podemos descobrir a causa. --E essa causa é?... perguntou Manuel. --Amar um homem que a tem desprezado! Aquelle anjo, occultando a todos o sentimento que a devora, reclinou se sobre a sua sepultura, aguardando apenas que lh'a venham abrir para desprender a alma a Deus! Os olhos de Manuel humedeceram se de lagrimas. Havia tanto sentimento nas palavras de Magdalena, a sua voz, ainda ha pouco perturbada, tornára-se tão firme e tão segura, que elle não pôde ver em Magdalena mais do que uma amiga verdadeira e dedicada de Martha. --E onde existe esse homem que a póde salvar? --Onde existe?... accudiu Magdalena com uma expressão que principiava a denunciar-lhe o seu estado. Esse homem... accrescentou ella, é... o sr. Manuel de Mendonça! --Eu! exclamou o maritimo n'um transporte de indescriptivel alegria. --Sim, continuou Magdalena. O senhor, em cujo espirito adivinhou inteira a sua felicidade. O senhor a quem uma vez encontrou na existencia para nunca mais o esquecer! Mais tarde, o seu coração candido e inexperiente fez-lhe conhecer que o amava. O seu nascimento, a humildade de educação, a pobreza de seus paes, tudo emfim concorreu para que Martha não se atrevesse a declarar a pessoa alguma o amor que o senhor lhe tinha inspirado. Emquanto teve forças, lutou, mas um dia, exhausta, a pobre Martha cahiu como essas flores delicadas que não têem força bastante para supportarem a furia dos elementos. Hontem, finalmente, abriu-me inteira a sua alma, alma candida e serena como a dos anjos que hoje lhe tecem o seu diadema de martyr! Sem lhe descortinar as minhas ideias, resolvi commigo mesma de o procurar, e pedir-lhe que salve da morte a minha pobre amiga. Não sei quem v. s.ª é, porém, julgo-o um homem de bem e capaz de fazer a felicidade de qualquer mulher. Pallida, com as fontes palpitantes e os olhos afogueados por aquella immensa lucta em que a alma se lhe debatia, Magdalena parecia elevar-se nas azas de uma inspiração sublime! Levantando depois a voz que principiava a enfraquecer-lhe, Magdalena pediu a Manuel que lhe concedesse a sua mão para a filha do operario. Manuel não respondeu! E no emtanto as aves chilreando por entre as ramas dos arvoredos vinham como n'um concerto infernal soar aos ouvidos da pobre Magdalena! --Que me diz, sr. Manuel de Mendonça? Hesita? Não a ama? É possivel? Quem póde deixar de amar aquelle anjo?! exclamou Magdalena dando emfim livre curso ás suas lagrimas. --Mas porque chora? perguntou Manuel de Mendonça dirigindo-se meigamente para Magdalena. --Porque choro? Porque avalio a dôr de Martha! Porque a sinto tão viva e tão penetrante como ella que a soffre! Porque choro? Porque sei quanta agonia ha, n'esse amar em silencio, o homem que nunca póde ser nosso! --Pelo que vejo... ama alguem? perguntou Manuel com voz tremula. --Já amei alguem... sim... mas ha muito tempo. Hoje não, sr. Manuel de Mendonça! Hoje, toda a minha vida cifra-se apenas n'uma missão que tenho a cumprir. --E essa missão, é?.. --Vel-o casado com Martha. Vão ambos ser muito felizes. Ella ama-o tanto, tanto como eu seria... Aqui a voz ficou-lhe embargada n'uma torrente de lagrimas. E as avesinhas chilreando por entre a moita dos junquilhos que emmolduravam a montanha, acordavam no espirito de Magdalena um como concerto infernal! Finalmente, Manuel de Mendonça prometteu-lhe que pediria a Jeronymo a mão de sua filha. Apertando-lhe fortemente a mão, Magdalena despediu-se do maritimo e saiu do passeio. Como aturdido por aquelles estranhos acontecimentos, Manuel dirigiu-se para o sitio onde Mascatudo o esperava, e, saindo tambem do passeio dirigiram-se pela rua da Boa Morte. --Para onde vae, sr. Manuel de Mendonça, perguntou Mascatudo vendo que o seu capitão seguia a direcção da estrada do cemiterio dos Prazeres. --Preciso de ar livre, respondeu-lhe Manuel. Escalda-me a febre. Para que haviamos de ter vindo a Lisboa? Era tal a agitação do seu espirito, que Mascatudo nem se atreveu a perguntar-lhe o resultado da entrevista que tivera com aquella senhora. O mais que entre ambos se passou foi um mysterio. Soube-o ella e Manuel de Mendonça. Agora, quando estas paginas escrevemos, Magdalena dorme o somno da morte. Manuel, discreto como a sepultura da pobre amiga, seria incapaz de o revelar. XXXIII Ao metter-se no trem, Magdalena dissera ao cocheiro que parasse na rua do Meio. Ao voltar para a esquerda da rua da Bella Vista, ouviu que a chamavam. Era Monica! Magdalena mandou parar o trem e a beata approximou-se. --Ora aqui a temos outra vez com os olhos arrasados de lagrimas! exclamou ella. São essas as promessas que me tem feito? Pois, minha querida menina, accrescentou a velha, quanto estimo tel-a encontrado! Fique vossa excellencia sabendo, que o amigo do meu sobrinho, com quem me vou encontrar, ficou de me dizer hoje tudo _tim tim por tim tim_! --Pois, sr.ª Monica, respondeu-lhe Magdalena, tirando duas libras do _porte-monnaie_, e entregando-as na mão da beata, escusa de se incommodar mais por minha causa. --Ora essa, minha senhora! accudiu rapidamente a velha, fechando ao mesmo tempo a mão onde as libras se occultavam. Dar-se ha o caso, continuou ella, que não esteja satisfeita com os meus serviços? Se tal succede, ralhe-me, ralhe-me muito mas não me tracte por essa forma. --Não é isso, tia Monica: é que já sei tudo quanto tinha que saber; e, fazendo um signal ao cocheiro, fez com que o trem seguisse a sua direcção, deixando a beata estupefacta pelo que vinha de lhe acontecer. Ter-lhe-ia Manuel de Mendonça contado a historia dos seus amores? Ter-lhe-ia narrado o que se dera entre Mascatudo e a beata? Ignoramol-o! O trem chegou á porta de Jeronymo. Ao apear-se, Magdalena foi recebida de braços abertos por Balbina e pela sua amiga. Como era de esperar, Martha n'aquella noite havia peiorado! --Venho prevenil-a, que ámanhã antes do meiodia, alguem virá pedir-lhe a mão de sua filha, disse Magdalena. Agora mesmo acabo de estar com essa pessoa. Quando prometto, cumpro, embora vá n'isso a existencia. A gratidão não tem phrases! Balbina e Marianna, abraçando-se a Magdalena, confundiam entre as suas, as lagrimas da pobre martyr! --Agora, murmurou Magdalena desembaraçando-se das suas protegidas, cumpre-me falar com Martha. --Mas, é possivel que um senhor d'aquella ordem deseje casar-se com a filha de um mestre de obras perguntou Balbina com as lagrimas nos olhos. --Almas como as de Manuel de Mendonça, olham apenas para a virtude e nunca para o nascimento, respondeu Magdalena. --Manuel de Mendonça?! exclamou Marianna com uma voz tremula e indecisa. E que edade tem esse homem? E quem são os seus paes? ajuntou a pobre mulher approximando-se cada vez mais da filha de Tristão de Almeida. --Infelizmente, não tem paes, respondeu Magdalena. --E sabe vossa excellencia quem elle é, perguntou Marianna. --Sei. --Oh! por piedade! diga m'o! Dar-se-ha o caso que seja... --Quem? perguntou Magdalena visivelmente perturbada. --O meu filho, que ha vinte e tres annos supponho morto! --Como se chama elle? perguntou Magdalena. --Manuel de Mendonça Athayde, respondeu a velha com uma voz enfraquecida. --E seu marido?... como se chamava? ajuntou Magdalena. -Alvaro de Mendonça... --Justiça de Deus! exclamou a filha de Tristão, caindo sobre o canapé, e occultando o rosto entre as mãos. --Oh! mas por Deus não me torture! bradou Marianna, lançando-se aos pés de Magdalena. Diga-me se é elle o meu querido filho! É; não ha duvida! Essa sua perturbação... Vive ainda o meu Manuel, o meu querido filho da minh'alma? Não a deixo, minha senhora, não a deixo emquanto me não contar tudo! --É o seu filho! respondeu Magdalena levantando-se com uma serenidade heroica. Deus que nunca desamparou os que são verdadeiramente bons, concedeu-lhe em mim o instrumento da sua justiça, e n'elle a consolação para a sua velhice. Agora sr.ª D. Marianna, ajuntou ella lançando-se aos pés da velha, sou eu quem lhe devolve o seu filho, que, em nome de Deus e em meu nome, lhe pedimos o perdão para um culpado! Concede-m'o? Marianna não sabia que responder! --É de joelhos que lh'o imploro! ajuntou ella, collocando-se deante da velha, e confundindo as suas vestes de setim negro, com os andrajos da infeliz! --Eu vos perdôo de todo o meu coração! exclamou D. Marianna de Mendonça cahindo sobre o chão. Mas a quem perdôo eu? accrescentou a infeliz senhora, que não pensava senão em ver seu filho! --Obrigada, disse Magdalena levantando D. Marianna, e levando-a de encontro ao coração! Agora que _lhe_ perdoou, vou buscar seu filho, e trazel o aqui mesmo. Com uma physionomia alvar, Balbina contemplava toda esta scena sem a comprehender. Magdalena fechou-se por alguns instantes no quarto de Martha. Afinal sahiu, e, abraçando de novo as suas amigas, entrou no trem, e seguiu para o hospital. No entretanto, Manuel de Mendonça descendo a calçada das Necessidades dirigia-se para bordo. XXXIV «Felizmente, pensava Magdalena, Manuel de Mendonça nem sequer desconfia que Tristão de Almeida foi Felix Justino de Araujo e muito menos Domingos de Andrade. Poderei conseguir tudo sem comprometter meu pae. Vejamos; seriam quarenta, cincoenta contos... Pedir-lhe-hei o meu dote, e será uma retribuição generosa! Ao principio oppôr se-ha ao meu pedido, mas por ultimo, não terá outro remedio senão acceder. Occultarei tudo de minha mãe. Permitta Deus que o possa encontrar no hospital. São estas as suas horas.» N'este momento, o trem chegava á rua de S. Francisco de Paula. Ao entrar o portão, a primeira pessoa que lhe appareceu, foi a criada de Olympia, dando lhe os parabens não só pelo titulo que haviam concedido a seu pae, como pelo lindo nome que elle tinha escolhido: o conde de S. Luiz. Sem lhe prestar attenção alguma, Magdalena perguntou-lhe apenas se alli estivera seu pae. --Ora essa! respondeu a criada de Olympia; acaba agora mesmo de ir para o paço, afim de agradecer a sua magestade. --E Olympia? --Sua irmã está lá em cima na casa de jantar a comer umas gallinholas, que até dá nauseas a quem vê similhante coisa! Mandou fazer umas torradas, e deitar sobre ellas o miolo das tripas. Já viram maior porcaria? E diz ella que é o melhor cozinheiro que tem tido, e que faz pena que esteja no hospital! Magdalena subiu á casa do jantar, onde encontrou sua irmã deliciando o paladar n'uma soberba torrada coberta dos despojos ornithologicos d'aquella innocente gallinhola. --Já sabes o titulo que o papá escolheu? perguntou Olympia. --Sei, respondeu Magdalena quasi sem lhe prestar attenção. --É muito bonito! não achas? --Muito bonito! --Estiveste em casa de Martha? --Estive. --Vae melhor? --Muito melhor. --Não te offereço d'esta gallinhola porque é de suppôr que não esteja ao teu gosto, disse Olympia dissecando a _carcassa_ da avesinha. --Agradeço, murmurou Magdalena deixando sua irmã, e dirigindo-se para o terceiro andar d'onde dias antes contemplava a galera de Manuel de Mendonça. Alli pôde emfim dar livre curso ás suas lagrimas! D'aquella janella por mais de uma vez, insciente da cruel realidade, contemplára o Tejo, no Tejo a barca, na barca o homem, no homem, tudo quanto havia de mais valioso para o seu coração! Fôra d'alli que vira o seu primeiro desengano, quando Manuel de Mendonça, afastando o oculo, lhe denunciava não ser ella a pessoa que tão anciosamente buscava! Só, entregue a uma multidão de pensamentos, Magdalena começou a planear o modo de seu pae restituir os quarenta contos de réis extorquidos a D. Marianna de Mendonça. Magdalena tinha sobejas provas de que a virtude nem sempre havia adejado sobre o proceder de Felix Justino de Araujo. Não ignorava que uma grande parte da sua riqueza tinha sido adquirida em commercios illicitos, porém, o que ella jamais suppozera, é que seu pae tivesse sido capaz de um roubo. Juntem-se a estas grandes agonias, o infeliz amor que lhe ia n'alma, e vossa excellencia que me lê, e, cujo coração é egual ao de Magdalena, diga me se dôres tamanhas podem caber em coração humano! Alli se demorou perto de meia hora. Depois, como se um pensamento lhe acudisse rapidamente á imaginação, a infeliz saiu d'aquelle quarto, lançando-lhe uma ultima e dolorosa despedida! Ao descer ao segundo pavimento encontrou Olympia. --Que tens? perguntou esta ao notar a pallidez de Magdalena. --Doe-me a cabeça. --Isso é fraqueza, respondeu Olympia. Assim estou eu. Magdalena desceu ás enfermarias e depois de dar as suas ordens, entrou no trem e mandou seguir para Alcantara. * * * * * * * * * * «Disse-me que ia para bordo. Já lá deve estar. Mas isto é uma loucura, pensava ella. Uma mulher da minha edade ir procurar um homem a bordo do seu navio? Embora! A minha consciencia está livre e tranquilla! Não foi Deus quem predispoz todas estas circumstancias, servindo-se de mim para sua intermediaria? Que poderei receiar?» Voltando-se para o cocheiro disse-lhe que parasse na rocha do Conde de Obidos. Ao chegar ao boqueirão, Magdalena apeou-se, e dirigindo-se aos catraeiros, pediu a um d'elles que a levassem a bordo da galera Esperança. Todos queriam ser o primeiro a conduzil-a. Escolhendo o mais edoso, desceu a rampa e entrou no bote. Que de poemas se agitavam em sua alma á medida que se approximava da galera! Como ella, escrava de um dever, ia para sempre abandonar a sua ventura! Restava-lhe apenas no meio dos seus infortunios, a grata lembrança de devolver aos braços d'aquelle homem a pobre mãe que elle tão anciosa e infructiferamente havia buscado! A pouca distancia viu Manuel de Mendonça, de pé, encostado á amurada. Com o rosto curvado sobre o peito, olhava para as aguas da corrente, que vinham no seu eterno movimento gemer de encontro á quilha da embarcação. Ao ver aquelle bote que se lhe dirigia por estibordo, reconheceu immediatamente a filha de Tristão de Almeida, e, descendo a escada de corda, veiu recebel-a no momento em que abordava á embarcação. --Preciso falar-lhe, disse Magdalena. E nem mesmo subo, ajuntou ella, olhando tristemente para a galera. Manuel entrou para o bote, e Magdalena mandou que remassem para o caes. Durante o curto espaço de tempo que levaram em chegar á rocha, Magdalena não lhe dirigiu uma palavra. Manuel não sabia que pensar. Os catraeiros olhando-se mutuamente, conjecturavam entre si, o que seria a causa d'aquelle mysterio. Chegaram finalmente á rocha. Ao subir as escadas, Magdalena voltou-se para Manuel de Mendonça, ergueu o véu que lhe occultava o rosto, e demorou-se fitando-o por alguns instantes. --Vim buscal-o tão apressadamente, porque lhe quero dar o maior prazer que tem experimentado na sua vida. A Providencia fez com que me encontrasse, para lhe depositar nos seus braços tudo quanto tem de mais precioso sobre a terra. Manuel contemplava-a sem comprehender uma palavra. --Não lhe offereço o meu trem; poder se-ia tornar reparado, accrescentou ella; mas, o que lhe peço, é que venha immediatamente a casa de Jeronymo para onde me dirijo. E saltando para dentro do trem, mandou ao cocheiro que seguisse para a rua do Meio. Metteu-se n'uma sege que passava n'aquelle instante Manuel de Mendonça e acompanhou a carruagem de Magdalena. Chegaram ao mesmo tempo á porta de Jeronymo. Magdalena foi a primeira a apear-se, e, entrando rapidamente em casa de Jeronymo, dirigiu-se ao quarto de D. Marianna de Mendonça. A pobre senhora lançou-se-lhe nos braços! --Venho cumprir a minha promessa, disse-lhe Magdalena. Vae ver seu filho! O que lhe peço, é que tenha valor para resistir a este lance! e, abrindo a porta que communicava com a saleta, chamou em voz alta por Manuel de Mendonça. * * * * * * * * * * Vêde a leôa a quem haviam roubado o filho, e que o torna a colher entre as suas garras, e podereis avaliar o que se passou n'aquella eternidade de sensações. * * * * * * * * * * Magdalena, de pé, com os olhos arrasados de lagrimas, contemplava esta scena ao lado da mulher de Jeronymo. Perto de cinco minutos esteve a pobre mãe agarrada ao pescoço de Manuel de Mendonça! Ainda lhe parecia impossivel aquella palpavel realidade! Desprendendo-se emfim do collo de seu filho, D. Marianna lançou-se aos pés de Magdalena, e, beijando-lh'os no transporte de uma alegria assustadora, ergueu-se de novo cingindo-a pela cintura e cobrindo-lhe a face de beijos e lagrimas de gratidão! --Agora, disse Magdalena desembaraçando se de D. Marianna, devemos attender ao estado de Martha. É necessario prevenirmos todas estas circumstancias. Ter-nos-ha ouvido? --Com certeza que não; e demais tem um somno muito pesado, respondeu Balbina enxugando as lagrimas que lhe rolavam pelo rosto. N'este momento, Martha chamava por sua mãe. Balbina e Magdalena dirigiram-se ao quarto da doente. --Que voz foi essa que ouvi na saleta, minha mãe? perguntou Martha sem notar a presença de Magdalena. --Era a minha voz, respondeu a filha de Tristão approximando-se do leito e beijando-a na face. --A sua! exclamou ella. Eu suppunha... --O quê? --Que era... --A voz de Manuel de Mendonça? Não se illudiu. É Manuel que vem hoje pedil-a a seu pae. Erguendo se n'um impeto de suprema vontade, Martha lançou-se ao pescoço de Magdalena. Que lagrimas não foram as d'essas duas mulheres! N'uma, o pranto consolador da alegria; na outra, lagrimas que vinham do coração, abrazando-lhe as palpebras n'um fogo do inferno! --Valor! disse Magdalena, soltando-se dos braços de Martha, é necessario que se restabeleça para em breve conceder a sua mão ao filho de D. Marianna de Athayde! --Ao filho de Marianna de Athayde! exclamou ella sem comprehender uma palavra do que acabava de ouvir! --Sim, ao filho da sua amiga Marianna. --Então Manuel de Mendonça é... --Seu filho. Agora, cumpre-me dar ainda alguns passos para resolver completamente a minha missão, e, abraçando a sua protegida, Magdalena sahiu do quarto e dirigiu-se á saleta aonde Manuel de Mendonça, ainda preso nos braços de sua mãe, agradecia á Providencia o ter-lhe devolvido tudo quanto elle tinha de mais caro n'este mundo. Ao vel-a, D. Marianna lançou-se-lhe de novo ao pescoço e cobriu-a de beijos! Manuel de Mendonça, que fixára o rosto entristecido de Magdalena, cravou os olhos no chão, como receiando que o trahisse o seu olhar. Teria elle comprehendido o que se passava no coração de Magdalena? --Agora, disse Magdalena, retiro-me. Ámanhã sendo meio dia, aqui estarei, por que tenho graves negocios a tractar com vossa excellencia e com seu filho. Extendendo a mão a este ultimo e a D. Marianna, Magdalena retirou-se, caminho do hospital. XXXV Havia quinze dias que sahira o decreto concedendo o titulo de «conde de S. Luiz» ao illustre e philanthropico varão, que, com tanto e tanto afan, continuava a espalhar as joias da sua caridade. A condessa, impando de orgulho e de vaidade, ora se pavoneava pelas ruas mais concorridas da capital, ora embocetada no palacio de S. Francisco de Paula, aguardava o sequito das fidalgas caridosas, que, esquecendo o amarellecido dos seus pergaminhos, iam, movidas pela virtude da moderna titular, fazer antecamara áquella que dias antes se chamava apenas D. Maria Egypciaca. Graças ás repetidas instancias do seu amigo o visconde de Coruche, Tristão de Almeida, ou, para falarmos com mais propriedade, o conde de S. Luiz, fizera um arrendamento a longo prazo de um magnifico palacio em Buenos-Ayres, outr'ora pertencente aos marquezes de... Encarregando-se por especial favor do que dizia respeito ás cavallariças, o visconde, como homem entendido na materia, fez acquisição de tudo quanto n'esse genero havia de melhor. Tornou-se notorio o luxo d'aquella irreprehensivel vivenda. Os fidalgos, que n'esse tempo--menos por necessidade, do que pelo prazer de manifestarem aos quatro ventos do céu o seu desamor pela archeologia--esbanjavam sem dó nem piedade, os mais preciosos objectos de arte, deparados nos empoeirados sotãos dos seus castellos feudaes, correram atropellando-se ao escriptorio do conde de S. Luiz, afim de ver qual seria o primeiro a depositar nas mãos do magnate as nobres reliquias dos seus preclarissimos antepassados. Não tardou que o palacio do conde de S. Luiz se tornasse n'um museu de antiguidades! Retratos houve de familia, que foram jazer empilhados na estrebaria por não lhes permittirem os salões o seu elevado porte. O conde, pagava tudo com prodiga generosidade, o que lhe deu o triste resultado de alguem lhe metter um collar de perolas falsas por barrocas, o que elle generosamente acceitou e pagou, attendendo que esse mesmo collar havia figurado no pescoço de um grande ministro de um excelso monarcha. Juntem se a estas nobres qualidades, uma mesa esplendida, e que o leitor avalie se a casa do conde de S. Luiz seria ou não frequentada. O conselheiro Poderosa, graças ás ausencias do visconde, de dia para dia se tornava mais sympathico para Olympia, para o conde e para a condessa. Olympia adivinhava no conselheiro, não só um marido exemplar, como um dedicado companheiro de mesa, prompto sempre a affrontar qualquer ataque apopletico por mais anormaes que fossem as epochas. O conselheiro comia e bebia por dez conselheiros, o que era extremamente agradavel para Olympia, porém, quando ella um dia notou que depois do jantar, os olhos do seu futuro se fitaram brandamente n'uma othomana que estava proxima, Olympia exultou de alegria, e viu n'esse homem, o unico individuo capaz de fazer a sua felicidade: comer e dormir, acordar e comer! Olympia esperava apenas que o conselheiro a pedisse a seu pae. A condessa sabia d'estes amores. Por mais de uma vez tinha dito a Olympia, que pela sua parte não encontraria a menor opposição. Exceptuando duas pessoas, todos alli viviam felizes: essas duas, eram Magdalena e o conde de S. Luiz! O que entre ambos se havia passado, sabia-o apenas Deus, que ajudára a primeira nos seus pedidos e escutara as promessas do segundo! Quanto á condessa de S. Luiz, ou porque a sua alegria não lhe tivesse dado tempo a reflectir na tristeza do conde e de sua filha ou porque inteiramente lhes não desse importancia, não cuidava senão em distrahir os seus convidados. Aos almoços, succediam-se os jantares, a estes os bailes, de forma que o palacio do conde de S. Luiz tornou se em poucos dias o centro da melhor sociedade de Lisboa. Debalde tentavam Magdalena e seu pae, encobrir a dôr que lhes roubava a felicidade. Este ultimo, vendo constantemente deante dos olhos a imagem grave e severa de D. Marianna de Mendonça, recordando lhe o seu passado; Magdalena lembrando-se do homem que teria feito a ventura da sua alma, mas a cujo sacrificio tinha prendido um juramento! * * * * * Magdalena no dia immediato áquelle em que entregara Manuel de Mendonça nos braços de sua mãe, fechada com seu pae no escriptorio do hospital, communicára-lhe tudo quanto dizia respeito á familia de Athaide de Mendonça. O conde de S. Luiz, que não tinha segredos para sua filha, abrindo-lhe inteira a sua alma, desenhára-lhe em traços rapidos o quadro inteiro da sua vida, accrescentando-lhe, que por ella e só por ella havia incorrido em certas _coisas_ de que se arrependia profundamente. Magdalena exigiu-lhe uma restituição d'aquelle dinheiro extorquido á viuva, compromettendo-se a preparar tudo de forma que a opinião publica ainda mais se levantasse em favor de seu pae, vendo-o entregar cem ou duzentos contos de réis, á filha d'esse homem, para cuja morte involuntariamente havia concorrido. Concordando plenamente em tudo quanto Magdalena exigiu, pediu apenas a sua filha o maior segredo para com a condessa e Olympia, accrescentando a isto a maior brevidade possivel no casamento, o qual, auctorizando aquella restituição, lhe ia devolver a paz ao espirito. Abraçando seu pae, Magdalena assegurou-lhe que partiria immediatamente para casa de Martha, afim de se oferecer para madrinha do seu casamento. Com effeito, ás duas horas da tarde, e não ao meio dia como havia combinado com Manuel de Mendonça, Magdalena entrou em casa do operario. Martha havia passado a noite mais tranquilla. O doutor não se tinha illudido; a sua doença era menos physica do que moral. Desde as onze horas da manhã que Manuel de Mendonça estava ao lado de sua mãe. Já na vespera tinha visto Jeronymo, e já lhe havia pedido a mão de sua filha. Magdalena entrou no quarto de Martha, e, dando-lhe os parabens, offereceu-se para madrinha do casamento. Consummara-se o sacrificio! * * * * * --Quando se realisará esse casamento? perguntava todos os dias o conde de S. Luiz. --Brevemente, respondia-lhe Magdalena! XXXVI Instigado pelos conselhos do visconde, e pela persistente côrte que D. Olympia lhe dirigia, o conselheiro resolveu se emfim a pedir aos condes a mão de sua filha. Eram duas horas da tarde. O conde tinha partido para o hospital, mas, para sua felicidade estava em casa a condessa de S. Luiz, e prompta como sempre, desde as dez horas da manhã, para receber todas as visitas que lhe mereciam a honra da sua amizade. O conselheiro foi introduzido para um pequeno gabinete «á renascença», todo mobilado ao gosto do visconde de Coruche. A condessa não se fez demorar muito tempo. Já esperava que mais dia menos dia o conselheiro se resolvesse a pedir-lhe Olympia. --Quanto folgo vel-o n'esta casa, e a esta hora, disse a condessa, ao mesmo tempo que lhe extendia a mão. Adivinho pouco mais ou menos do que se tracta, ajuntou ella designando-lhe uma othomana, e puxando uma cadeira para si. A condessa queria ser a primeira, sempre, em resolver qualquer questão. --Provavelmente vem pedir a mão de Olympia?... ajuntou ella, sem admittir que o conselheiro lhe dirigisse uma só palavra. Quanto o estimo! e como o conde vae ficar alegre! Pela minha parte, concedo-lh'a da melhor vontade, e, desde já lh'o affianço, que o conde ha-de ser da minha opinião. Tenho toda a certeza que v. ex.ª ha de ser o mais feliz possivel com minha filha. Não parece uma rapariga d'este tempo. Para Olympia é-lhe tão indifferente ir aos bailes, como passar as noites em casa. Não dá importancia alguma ao luxo! O seu gosto é estar em casa e olhar pela dispensa. Nem é mesmo d'essas meninas que passam o dia a lêr livros, como Magdalena por exemplo, que está ás vezes até as duas horas da noite amarrada á sua Biblia, e outros romances quejandos. Olympia detesta os livros, tem-lhes um odio de morte! Lá quanto a isso, parece-se commigo. Foi coisa que nunca pude supportar! Olympia, o seu maior prazer é fazer pudins e fructas de compota. O conselheiro, olhando estupefacto para aquella Niagára de eloquencia, debalde esperava o ensejo favoravel para lhe dizer o fim que alli o havia trazido. A condessa não lh'o permittia! --Em Olympia não ha coisa alguma a desejar, formosura, riqueza, saude, tudo, tudo, accrescentou a condessa de S. Luiz, tirando o lenço da algibeira para limpar o suor que em bagas lhe escorria. --Pois, minha senhora, acudiu rapidamente o conselheiro, aproveitando o ensejo que lhe favorecia a limpeza d'aquella individualidade titular, o que me trouxe a casa dos condes de S. Luiz, foi o mesmo que v. ex.ª com esse instincto que lhe é natural, adivinhou! Escuso portanto de lh'o repetir. --Quanto o estimo, meu querido genro, respondeu a condessa, approximando-se do conselheiro e apertando-lhe ambas as mãos. --Vae fazer-me o mais feliz de todos os homens. --Sim?... respondeu a bojuda matrona, vae vêr: levantando-se, puchou o cordão da campainha. --E crê v. ex.ª que a sr.ª D. Olympia responde aos eccos do meu coração? --Não o comprehendo, sr. conselheiro. Este occultou a custo um sorriso. --Quero eu dizer, se o meu amor será retribuido por sua excelentissima filha? --Ora essa! respondeu a condessa tornando a sentar-se ao lado do conselheiro, se soubesse quanto ella o estima... N'este momento appareceu um criado. --Vá dizer a Maria que participe á Gertrudes que suba ao quarto da aia da menina Olympia, para lhe dizer que venha immediatamente falar com sua mãe. O conselheiro abysmou deante d'aquelle prodigio de memoria, que com tanta facilidade decorava tão grande porção de nomes! D'alli a momentos entrou a aia de Olympia, participando que a menina ainda teria alguma demora, porque se encontrava um pouco indisposta. --Provavelmente ceiou muito. É o seu unico defeito, sr. conselheiro. É muito gulosa esta minha filha. A criada retirou-se. --O mesmo sou eu, minha senhora, respondeu o conselheiro. --Sim? --É verdade. Tenho dias de jantar tres vezes. --Ai que ar! gargalhou a condessa de S. Luiz. Pois realmente, sinto que Olympia não esteja de pé. Em todo o caso, sempre vou lá acima. Talvez que seja apenas um leve incommodo; e, levantando-se saiu da sala, deixando o conselheiro na contemplação de umas gravuras em aço que adornavam as paredes do gabinete. «Isto corre ás mil maravilhas! pensava o conselheiro. Olympia pelo que me parece, consultando o estomago, decidiu de si para si que lhe não era antipathica a minha pessoa. Sua mãe, pelo que se vê, encontrou em mim o seu sonho dourado! Quanto ao conde de S. Luiz por certo que se conforma com tudo que sua mulher decidir! Emfim, será o que Deus quizer! Em todo o caso, foi um achado, um verdadeiro achado, este Tristão de Almeida. E eu que estive para desprezar a sua apresentação!... Desconfio que, apezar de todo o amor que Magdalena experimenta pelo visconde, o meu casamento ainda se ha de effectuar primeiramente do que o seu. Custa-me a acreditar que um caracter como o de Magdalena, possa experimentar pelo visconde, outro sentimento, a não ser o de repulsão. O que fôr verdadeiramente bom e digno, não póde amar senão o que é digno e bom! E demais, Magdalena deve conhecel-o. Tão pouco falado tem elle sido na sociedade de Lisboa.» N'este comenos entrou a condessa; Olympia seguia-a de perto. Se aos vinte annos a pallidez traduz em absoluto a poesia da alma; se o desbotado da face é synonimia dos sofrimentos intimos que lavram o coração, Olympia n'aquelle momento, a despeito da sua anafada estructura, dir-se-ia nutrida estatua da poesia affectada pelas terriveis consequencias de uma gastro enterite! Ao approximar-se do conselheiro, a filha do conde de S. Luiz debalde se esforçava para, n'uma graciosa mesura, cumprimentar aquelle a quem brevemente ia conceder a sua mão. O esophago não lhe permittia a mais leve inclinação do busto. Olympia conservava se firme como um sargento, deante d'esse que era de ha muito o commandante dos seus pensamentos! --Venho agora mesmo de saber por minha mãe a sr.ª condessa de S. Luiz que vossa excellencia deseja estreitar os laços matrimoniaes com a minha pessoa. Se a meu pae lhe não fôr desagradavel a união das nossas almas, estou muito prompta a acceder em tudo aos seus desejos. O conselheiro contentou-se apenas em lhe apertar a mão n'um transporte de reconhecida ventura. --Como já tive o gosto de dizer a vossa excellencia o conde de S. Luiz terá o maior desejo em que este casamento se effectue o mais depressa possivel, portanto, não tem vossa excellencia mais cousa alguma a fazer senão vir hoje mesmo pedir-lhe a mão de Olympia. Meu marido e eu mesma, accrescentou a condessa de S. Luiz, nos temos informado por todas as pessoas que frequentam o nosso palacio, quem vossa excellencia é; deve portanto suppor a honra que nos vae causar, entrando para o seio da nossa familia. --A honra sou eu que a recebo, senhora condessa de S. Luiz, e é tão profundo o meu desejo em ver realizadas as nossas esperanças, que, hoje mesmo, se vossa excellencia acha conveniente... --Se acho, meu genro! O conde de S. Luiz, sendo cinco horas, mais _migalha_ menos _migalha_ deve cá estar. Não falte pois, accrescentou ella extendendo a mão ao conselheiro, que foi recuando sem descravar os olhos de Olympia, até que se retirou. --Até que vês as tuas esperanças realizadas, disse a condessa de S. Luiz voltando-se para sua filha. --É verdade, minha mãe, suspirou Olympia! E agora, para ter forças de supportar todas estas commoções, vou ver se me dão um caldo de cabeça de vitella. XXXVII Segundo havia combinado com a condessa, o conselheiro ás cinco horas da tarde foi procurar o conde de S. Luiz. Este parecia ouvil-o sem lhe prestar attenção alguma; porém, graças á sua esposa, declarou por ultimo que não tinha duvida em conceder-lhe a mão de Olympia. João Poderosa exultou de alegria! Olympia sentia brincar-lhe o travesso amor nas cavidades estomacaes apontando-lhe ao mesmo tempo as flechas de ouro, ao orgão musculoso do corpo humano, a que vulgarmente se chama coração! Momentos depois começaram a entrar convidados para jantar; entre esses vinha o visconde de Coruche. Ao _toast_, a condessa de S. Luiz declarou que estava justo o casamento de sua filha D. Olympia com o conselheiro João Poderosa. Em seguimento aos brindes do estylo, não houve quem deixasse de notar que esta declaração não tivesse sido feita pelo conde. Mas que influencia tinha isso? Não fôra esplendido o jantar?! O que ninguem podia descortinar era o motivo da tristeza do conde de S. Luiz e de Magdalena! Attribuiam a esta ultima, que uma paixão em silencio pelo visconde de Coruche, era a causa da sua terrivel melancolia. Em vez de conversarem com as visitas, de _fazerem sala_, como vulgarmente se diz, Magdalena e seu pae passaram quasi toda a noite n'um pequeno gabinete contiguo a um dos salões. --Planeiam o modo de agarrar o visconde! dizia um individuo que por mais uma vez intentara fazer a côrte a Magdalena. --Como se isso fosse uma coisa muito difficil, respondia-lhe o outro. Não tem Magdalena um dote de quatrocentos contos? --Póde ser que a não ame, e n'esse caso... --Que innocencia! Quem despreza quatrocentos contos? E sobre tudo o visconde que está sem um vintem. --Tomáras tu assim estar. --Olha, quem foi esperto foi o João Poderosa... Quem o ha de agora aturar com quatrocentos contos? --Felizes dos jogadores! --Desconfio que não! Já tem comido do pão que o diabo amassou. Não é o conselheiro que torna a arruinar-se. --Não digas isso. A lei natural é esta: o homem rico, que se arruina e que depois por um bafejo da sorte torna a enriquecer, embriaga-se no fausto e na opulencia, e nunca mais se recorda das terriveis noites de miseria senão quando ellas principiam a despontar vagamente por entre o sol da sua felicidade. --A mim não me succederia outro tanto. --És uma excepção. --A excepção, é o que tu dizes. --Será o que te aprouver. O que eu não estou é para teimas. Já querias aproveitar esta minha opinião para me ferrares uma _estopada_. Adeus. Vou lá dentro ver se tomo um _grog_. * * * * * Á meia noite, retiraram-se todos os convidados. --Como deves estar satisfeita, Olympia, dizia Magdalena voltando se para sua irmã. --Eu! respondeu Olympia. Ora essa! Pelo muito que jantei. XXXVIII O conselheiro saira da casa do conde de S. Luiz acompanhado pelo visconde. Ao despedirem se, este ficou de ir no dia seguinte almoçar com João Poderosa, para saber todos os promenores da sua entrevista com o conde de S. Luiz. São dez horas da manhã. Louco de alegria pelo negocio que viera de fazer, o conselheiro formúla mil planos para o seu dourado porvir! A geada de muitos invernos que lhe nevara no coração, ia desfazer-se aos raios do sol de melhores dias. Ia subir aos pinaculos da felicidade, e contemplar de uma grande altura os lodaçaes da pobreza, onde havia alguns annos se estorcia. N'este momento, entrou um criado annunciando o visconde de Coruche. --Que entre, disse o conselheiro. Minutos depois, entrou o visconde. O fidalgo vinha pallido como uma estatua. --Que temos! Meu Deus! Como vens perturbado! acudiu o conselheiro fitando o rosto do seu amigo. --Uma grande desgraça! Uma grande fatalidade! exclamou o visconde. --Uma grande desgraça?! Uma grande fatalidade?! --Venho agora mesmo de casa do conde de S. Luiz, e... --Morreu Olympia de alguma indigestão?... --Peior! tartamudeou o visconde, sentando-se n'uma othomana. --Peior do que isso?! Ora essa! O que poderia acontecer peior do que isso! --O conde de S. Luiz foi atacado pela febre, e porque forma, meu caro amigo! A sua morte é irremediavel, mas o peior, ainda não é isso, o peior foi o que me disse agora a condessa... --O que te disse a condessa? perguntou anciosamente o conselheiro. --Que Magdalena entrará para um convento no mesmo momento em que seu pae morrer. --Respiro! disse emfim o conselheiro. --Respiras?! perguntou o visconde profundamente admirado. --Sim, cuidei que fosse alguma coisa que me dissesse respeito. --Mas diz-me respeito a mim, louco! Não sabes que amava essa mulher? Que eu era amado por ella? --Pois se tu a amas, e és amado por ella, é collocares-te á porta d'esse convento e não a deixares entrar. --É que tu não comprehendes o seu caracter, João. Não sabes a especie de amor que essa mulher me consagra? Amor que a tem feito soffrer e que lhe vae abrir a sepultura! --Não comprehendo, murmurou o conselheiro. --Pois eu t'o explico. Magdalena dirigindo-se pela opinião geral, julga-me incapaz de ser um bom marido, por estes dez ou doze annos, emquanto tiver sangue na guelra, segundo a phrase de Olympia! Ora, meu amigo, Magdalena é ciumenta como uma leôa, que não admitte que se divida o coração, prefere morrer por mim, abraçada á cruz do seu amor, do que ser minha, sem ter fé na fidelidade da minha alma. Comprehendes? --Olha, se queres que te diga a verdade, não comprehendo bem essas cousas. Ahi tens tu porque eu gosto da minha Olympia. Quanto a essa, estou certo que me não ha de atormentar muito com ciumes, nem aturdir-me com aquelles estirados monologos de sentimento, em que Magdalena está constantemente delirando. Sempre te disse que não trocava a minha felicidade pela tua, se por ventura viesses a ser meu cunhado, o que jámais pude acreditar, e se queres que seja sincero comtigo, nunca me pude aperceber d'essa paixão, que tu dizias ter-lhe inspirado, apezar de m'a estares querendo metter pelos olhos. E que tencionas fazer? ajuntou elle mudando de tom. --Que tenciono fazer! Conformar-me com o meu destino, como ella... --Como ella quê? interrompeu o conselheiro, recolheres te tambem a um convento? --Não, mas esquecel-a em todas as loucuras da vida! No jogo, na embriaguez... --Mau systema, respondeu o conselheiro. --Sabes uma cousa, João? acudiu o visconde despeitado com a serenidade do conselheiro. --Dize, respondeu este fleugmaticamente. --Está-me revoltando essa tua serenidade! Devias interessar-te mais por mim, lembra-te... --Que te sou devedor da minha futura felicidade, mas que queres! Creio pouco na tua paixão. Tenho-te visto trinta vezes apaixonado, e no dia seguinte, curado d'esse sentimento com o coração prompto e limpo para receber outro que te appareça. Se fosses pobre como eu, se tivesses as minhas theorias sobre o dinheiro, então poderia acreditar que estavas penalizado pela entrada no convento, porém como se não dá isso, felizmente para ti, pouco tenho a compadecer-me. Ámanhã por estas horas, completamente esquecido de Magdalena, apaixonas-te por qualquer mulher que seduzes pelo teu ouro e pela tua intelligencia, e appareces-me d'aqui a dias curado d'essa paixão que te atormenta. O visconde mordeu os beiços de raiva. Havia tanto de ironia nas palavras do conselheiro, que não tardou muito que as intenções lhe fossem completamente denunciadas. --Que tencionas portanto fazer? perguntou elle a Poderosa, querendo dissimular a perturbação que lhe haviam produzido as suas palavras. --Que tenciono fazer? Ir immediatamente para Buenos-Ayres. E tu? --Tenho muitas voltas a dar, não poderei ir senão de tarde. E despedindo-se do conselheiro, o visconde saiu, deixando o entregue ás suas profundas reflexões. «Pobre visconde! Realmente, compadeço-te. Quanto melhor te fôra o teres sido sincero para commigo. Se tens sido esperto, apanhavas-me cincoenta ou sessenta contos por me teres conseguido este casamento. Assim, melhor foi, custar-me-ha apenas cincoenta ou sessenta libras!» Meia hora depois, o conselheiro mandou buscar um trem, e dirigiu-se para Buenos-Ayres. XXXIX São tres horas da tarde. O palacio dos condes de S. Luiz, que na vespera ainda brilhantemente illuminado, abria os seus magnificos salões á primeira sociedade de Lisboa, apresenta se agora entristecido como fachada de edificio legendario! É que a morte, estranha e indifferente a todas as grandezas humanas, assenta-se melancholicamente sobre os degraus d'aquellas escadas de marmore, e, erguendo-se de vez em quando, fixa o seu olhar invisivel, que atravessando as salas, vae pousar lugubremente no rosto pallido e cadaverico do conde de S. Luiz! Tristão sente-lhe as mãos frias e descarnadas pesando-lhe sobre o peito. Quer falar; a voz prende-se-lhe na garganta! De vez em quando, levanta um olhar de piedade para um Christo, que de braços abertos o contempla da sua cruz, como se o convidasse a recolher-se ao seu divino seio! Então o conde torna a abaixar os olhos como se aquella imagem o assustasse, e, levantando ao mesmo tempo uma das mãos, pede a Magdalena que se lhe approxime. Ha quatro horas que não fala! Para maior expiação, a sua intelligencia está clara e completamente serena! Magdalena, debruçada sobre o leito, pegando n'um lenço de cambraia, limpa-lhe de vez em quando o rosto banhado por um suor lento e copioso. O seu rosto, denota-lhe o martyrio e a resignação. A condessa, curvada n'uma poltrona, descança a fronte nas mãos, erguendo-se de minuto em minuto para contemplar o infeliz esposo. O seu olhar é triste, mas resignado como o de sua filha. Olympia ao fundo do quarto, sentada n'um sophá tapa os olhos com um lenço de assoar, mastigando occulta e prestidigiosamente, umas bolachinhas de agua e sal. O commendador Lopes de Miranda e o banqueiro Vaz Mendes, ora se approximam dos pés do leito, ora se dirigem aos outros gabinetes, onde uma multidão de individuos esperam com anciedade saber o estado do enfermo. N'este comenos entra o conselheiro Poderosa. Demora-se um minuto olhando para o conde, e, engatilhando um gesto de sofrimento dirige-se para a condessa. Esta extende-lhe silenciosamente a mão, occultando ao mesmo tempo o rosto com um lenço de cambraia. João Poderosa fica immovel por alguns segundos, e em seguimento retira-se para falar com Olympia. Ao approximar-se lhe, a noiva simula um estremecimento de surpreza, e, esquecendo o embrulho das bolachinhas que conservava no regaço, entorna-o, fazendo rebolar as bolachas sobre a alcatifa. O conselheiro curva o busto, e salva os despojos farinaceos que se preparavam para fazer as delicias da mastigação da sua futura esposa! No momento em que o conselheiro principiava o seu dialogo com Olympia, Magdalena, que havia chegado o rosto aos labios de seu pae, volta-se para a condessa. Esta pergunta lhe o que deseja. --Meu pae, necessita estar sosinho commigo e pede a todos que se retirem, responde Magdalena. A condessa levanta-se. Olympia e o conselheiro seguem-n'a. Este ultimo demora se no gabinete com sua futura sogra; Olympia aproveita a occasião de ir á copa tomar uma canja de gallinha. --Sinto que me foge a vida, filha, disse o conde extendendo a mão para Magdalena. Não quero morrer sem ter cumprido os meus e os teus desejos. Agora que me sinto mais tranquillo, vae tu, Magdalena, vae tu mesma buscar D. Marianna de Mendonça. Quero ouvir-lhe o perdão de seus proprios labios, e tambem do Manuel. Vae Magdalena, vae, minha filha, cumpre com este ultimo desejo de teu pae. --E minha mãe?... e toda a gente?... --E o que temos nós com toda esta gente, Magdalena? Trata-se agora da minha consciencia. Quero apresentar-me deante de Deus arrependido de todos os males que causei n'este mundo. Desde que confiei todos os peccados áquelle santo padre que me trouxeste, minha filha, já não receio o desconhecido. Sinto-me muito mais alliviado. Quando eu morrer, Magdalena, dentro da minha secretaria, encontrarás um pequeno cofre de platina; guarda-o, e a mais ninguem confies os segredos que elle encerra. Só tu serás digna d'isso. O meu testamento está na gaveta pequena d'aquella secretaria. Ha quatro dias que foi feito. Parecia adivinhar o que succedia! Foi Deus! Deixo quatrocentos contos a D. Marianna de Mendonça: ainda não é muito, para o que lhe fiz soffrer! Agora, que sabes o principal, vae filha, e possa o perdão d'essa mulher fazer com que a minha alma, voando aos pés de Deus, seja acolhida no seu divino regaço. Afastando-a brandamente, tornou a pedir-lhe que fosse buscar D. Marianna de Mendonça. --Se tua mãe te perguntar onde vaes, accrescentou elle, responde-lhe que é um segredo que juraste guardar a um moribundo. Magdalena, depois de beijar seu pae na fronte, saíu do quarto e atravessou pelo gabinete onde sua mãe conversava com o conselheiro. --Onde vaes? perguntou-lhe a condessa. --Vou saír. --Saír? --Buscar uma pessoa a quem meu pae deseja falar antes de morrer. --E essa pessoa... quem é? --É um mysterio e um segredo, e recommendando á condessa que fosse para junto de seu pae, Magdalena atravessou as salas, e subindo ao quarto, preparou-se para saír. Era tal o respeito e consideração que Magdalena inspirava a sua mãe; tinha tanta certeza da inutilidade de todos os seus esforços, para lhe quebrar qualquer dever, que a condessa resumiu-se ao silencio, e dirigiu-se sem mais reflexões ao quarto de seu marido. --Aonde foi Magdalena? --Buscar uma pessoa a quem desejo pedir perdão antes de morrer, e com quem pretendo ficar sósinho. A condessa, sem responder uma palavra, foi sentar se na mesma poltrona d'onde momentos antes se havia levantado. Amparado por aquelle desejo ardente, o conde de S. Luiz parecia de momento para momento ganhar mais tranquillidade. Um quarto de hora depois, Magdalena entrou de novo no quarto de seu pae, participando lhe a chegada de D. Marianna. O conde fez um gesto significativo a sua mulher, esta comprehendendo o em seguida com uma obediencia passiva, levantou-se e saíu do quarto. Pouco depois entrava D. Marianna de Mendonça e seu filho. Magdalena fechou a porta deixando-os a sós com o conde. Magdalena dissera-lhe apenas que seu pae os queria ver antes de expirar. O conde, ao vel-os parados no meio da sala, extranhos e alheios áquella situação, ergueu se n'um supremo esforço, e, chamando-os pelos nomes, convidou-os a approximarem-se do leito. D. Marianna, accedendo immediatamente aos seus desejos, acercou-se do enfermo. --Lembra-se D. Marianna de Mendonça, recorda-se Manuel, d'um banqueiro chamado Felix Justino de Araujo, que em 1835 a mandou ir um dia em companhia do seu advogado, levantar um deposito de perto de quarenta contos de réis? --Lembro-me, respondeu D. Marianna de Mendonça, fixando demoradamente o semblante do conde de S. Luiz. --Se esse homem, que fez a sua desgraça, que lhe roubou filho, haveres, e por ultimo a razão, debruçado sobre a sepultura, lhe extendesse a mão supplice e arrependida, implorando lhe o perdão para sua alma, que lhe faria? --Perdoar-lhe tudo, para que Deus tambem me perdôe os meus peccados, respondeu ainda D. Marianna. --Perdôa-me tambem, Manuel de Mendonça? disse o conde. Perdoa a este homem, que durante vinte e tres annos o separou de tudo quanto tinha de mais caro no mundo! Perdoa a este homem, accrescentou elle, que conduziu sua mãe á miseria e á loucura. --Perdoae-lhe, Senhor, como eu lh'o perdôo de todo o meu coração, respondeu Manuel de Mendonça, voltando-se para a cruz do Redemptor, juiz supremo d'esta tocante scena. --Morrerei tranquillo, disse então o moribundo, com a voz já enfraquecida. --Que Deus perdôe ao pae d'aquelle anjo, disse D. Marianna caindo de joelhos, e apontando para a porta por onde Magdalena havia saido. --Diz bem, D. Marianna; d'aquelle anjo, accrescentou o conde de S. Luiz. Foi aquella candida pomba a encarregada por Deus para me conduzir á sua divina presença! A ella devo o seu perdão, sr.ª D. Marianna! --E eu devo-lhe o meu filho, respondeu D. Marianna, arrastando-se de joelhos sobre a alcatifa, até se collocar deante do Christo. Pela vossa infinita misericordia, exclamou ella levantando as mãos para a cruz, perdoae-lhe Senhor, como eu de todo o coração lhe perdôo, e queira a vossa infinita vontade conservar-lhe largos annos de vida, para que este arrependido conheça a sinceridade das minhas palavras. --Chamem a minha filha que deve estar n'aquelle quarto, murmurou o conde, voltando-se para Manuel de Mendonça, e apontando para uma porta que separava os dois aposentos. Magdalena entrou immediatamente. Ainda que dotada de uma organização robustissima, a infeliz, já principiava a resentir-se de tantas commoções. D. Marianna, lançando-se-lhe nos braços, debalde tentava occultar as lagrimas. --Falta me aqui uma pessoa a quem desejava ver antes de morrer. Queria abraçar a Martha, a minha companheira do hospital. --Deus favorece-lhe os seus desejos, meu pae. Ha dois minutos que alli estão todos tres: e, abrindo a porta, deu passagem a Balbina, Jeronymo e sua filha. --Approximem-se, meus amigos, disse-lhes o conde de S. Luiz. E, emquanto fôr tempo, accrescentou elle, apertem esta mão, que sempre se lhes extendeu com amizade. As lagrimas embargaram-lhes as vozes. Uma pessoa apenas se conservava n'uma serenidade de martyr. Era Magdalena! --Infelizmente, accrescentou o conde voltando-se para Martha e Manuel de Mendonça, não lhes posso assistir ao casamento mas aqui lhes fica este anjo, continuou elle voltando-se para Magdalena. Esta ficou immovel! Alma temperada nas grandes agonias, a que realeza de martyrio foste arrancar esse diadema que te corôa? Momentos depois, retiraram se todos do quarto. O conde ficou em estado de profunda atonia. Não se ouvia um ruido. Apenas o estremecimento da prece passando pelos labios descorados de Magdalena. Como tudo isto estivesse em socego entraram no quarto a condessa, Olympia, o conselheiro e o visconde de Coruche. Seguiam n'os o commendador e o banqueiro. --Dorme tranquillo! disse o visconde olhando na direcção do leito. --Dorme acudiu a condessa, á medida que se approximava de seu esposo. Magdalena, n'esse momento, adeantou se mais, e debruçou-se a escutar a respiração. --Morto! exclamou a pobre filha, n'um arranco d'alma! Bemdito Deus, que me permittiste salvar meu pae! ajuntou ella caindo sobre o cadaver do conde, e aproveitando nos seus labios o derradeiro calor d'aquelle rosto extremecido. EPILOGO No mesmo dia foi aberto o testamento, tendo por testemunhas o visconde de Coruche, o commendador Lopes de Miranda e o conselheiro João Poderosa. Deixava por testamenteira a sua filha D. Magdalena. Entre varios legados a differentes hospitaes e asylos, avultava a quantia de quatrocentos contos a D. Marianna de Mendonça e Athayde, como um testemunho de eterna recordação pelos muitos favores de que lhe era devedor. A sua fortuna, espalhada por differentes bancos da Europa e da America, excedia a dois mil contos. Quinze dias depois da morte do conde de S. Luiz, ás seis horas da manhã, Manuel de Mendonça recebia-se na freguezia de Nossa Senhora da Lapa com a filha de Jeronymo, tendo por padrinhos dois honrados capitães de navio, e por madrinha D. Magdalena de Almeida. Ao cabo de dois mezes, Olympia concedeu a sua mão ao conselheiro, e o seu coração aos inqualificaveis gozos da cosinha. Gozando em branda paz as delicias do hymeneu, havia comtudo uma terrivel sombra que lhes perturbava a paz domestica: o conselheiro não era capaz de fazer nem um _beefsteak_! Toda a sciencia culinaria de que se vangloriara, era apenas um mytho que elle creára para conquistar o estomago de D. Olympia! Quando emfim sobre Lisboa deixaram de esvoaçar as azas negras do monstro, e que Magdalena fechou as portas áquelle hospital, d'onde não tinha saido desde a morte de seu pae, o visconde de Coruche, vivamente ferido pela grandeza d'alma de Magdalena, lançou se-lhe aos pés e pediu-a em casamento. --Vou casar-me com Deus, respondeu Magdalena, levantando os olhos para o céu! No dia seguinte, Magdalena entrava no convento de ***, onde morreu pouco depois, recebendo as bençãos da pobreza, com quem havia repartido os seus rendimentos. Lopes de Miranda, associado com Vaz Mendes n'uma casa de penhores, abre os seus armarios a todos os objectos de valor que o visconde de Coruche periodicamente lhe envia pelo seu mordomo. Este espera ainda ver seu amo n'um estado florescente, attendendo ao axioma de um dos nossos primeiros vultos litterarios: que um fidalgo arruinado sempre tem cem contos de réis! Quanto á condessa de S. Luiz, uns dizem que está beata, outros asseveram que se tornou capitalista de uma partida de _Roulette_ não sei em que parte da Europa, e de que são feitores Gil de Carvalho e Bernardo de Paiva, tendo-lhe o primeiro ganho a confiança pela paga espontanea das cem libras que devia a seu defuncto marido, e de que nem ella mesma era sabedora. E Martha, e Manuel de Mendonça, e sua mãe, e Balbina e Jeronymo, e Mascatudo? Apezar da tia Monica asseverar aos que á noite se reunem na tenda da rua da Lapa, que foram todos parar aos peixinhos, pessoa de credito affirmou a quem estas paginas escreve, que essa familia, venturosa na sua união, se foi estabelecer nos Estados-Unidos, gosando em doce calma os prazeres de uma existencia honesta, moral e religiosa. E ter-se-hão esquecido da memoria de Magdalena? Nunca! N'aquelles corações não cabia a ingratidão. FIM COMPANHIA PORTUGUESA EDITORA, L.^{DA} PORTO Ultimas Publicações *A Morgadinha do Valongo*. Novela, por Manuel da Câmara, 1 vol. broc. 5$000 *A Verdade*, peça em três actos, por Francisco Lage e João Correia d'Oliveira. 1 vol. 12$500 *A Regeneração*,--Fontes Pereira de Mello, por Eduardo Noronha--1.ª parte. 1 vol. 12$500 *Cariátide*, pelo Visconde de Vila-Moura. 1 vol. 7$500 *Cartas a Luiza*, por D. Maria Amalia Vaz de Carvalho. (Nova edição) 1 vol. 10$000 *Cesar e João Fernandes*, comedia em 1 acto por Alberto de Morais e Mario Duarte. 2$500 *Dom João*, Poema por Silva Gayo. 1 vol. 7$500 *Duas Causas*, peça em três actos por Alberto de Morais e Mario Duarte 1 vol. 8$000 *Fontes Pereira de Mello*, por Eduardo Noronha, 2.ª parte 1 vol. 10$000 *Manhã de S. João*, por Severo Portela, próprio para prenda de anos. 1 vol. 7$500 *Maravilhas Celestes*, por Camilo Flammarion, versão de Alexandre da Conceição. 1 vol. 12$500 *Mundo Novo*. Romance, por Ana de Castro Osorio. 1 vol. 12$500 *O Douro em Brasas...* Crónicas, por Kol d'Alvarenga. 1 vol. broc. 8$000 *O Fado*. Ensaios sobre um problema Etnográfico-Folclórico, por José Maciel Ribeiro Fortes. 1 vol. 10$000 *O Livro da Educadora*, por Paulo Combres (Nova edição) 1 vol. 10$000 *O Martir do Golgota*, por Henrique Peres Escrich. 3 vol. 24$000 End of the Project Gutenberg EBook of O Conde de S. Luiz, by Tomaz de Melo *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CONDE DE S. LUIZ *** ***** This file should be named 28928-8.txt or 28928-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: https://www.gutenberg.org/2/8/9/2/28928/ Produced by Júlio Reis, Carlo Traverso, Leonor Silva and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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