Romanceiro geral

By Teófilo Braga

The Project Gutenberg eBook of Romanceiro geral, by Theophilo Braga

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Title: Romanceiro geral

Compiler: Theophilo Braga

Release Date: July 12, 2023 [eBook #71173]

Language: Portuguese

Credits: Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at
         https://www.pgdp.net

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK ROMANCEIRO GERAL ***





                            ROMANCEIRO GERAL

                         COLLIGIDO DA TRADIÇÃO

                                  POR

                            THEOPHILO BRAGA

    Procuré con mi sudor
    Y con inmenso trabajo
    Juntar diversos romances
    Que andavan discarriados....
                         ROM. GENERAL, de 1594.

                                COIMBRA

                        IMPRENSA DA UNIVERSIDADE

                                  1867


                              DO COLLECTOR

As primeiras poesias portuguezas, conservadas casualmente nos
Chronicons, não são de origem popular, e o seu valor litterario acha-se
destituido pela auctoridade de João Pedro Ribeiro. Depois do Concilio
de Trento a musa do povo foi banida da egreja, aonde tomava parte na
liturgia, participando tambem da inspiração hymnica. Os latinistas
ecclesiasticos e o cultismo provençal excluiram-na das côrtes. Dom
Diniz, apprendendo a fazer versos na lingua provençal, desprezou o
verso octosyllabico, inteiramente popular e do genio rythmico da
lingua, pelo endecasyllabo _de diez syllabas a la manera de los
limosis_, como diz o Marquez de Santillana. Os nossos Cancioneiros são
aristocraticos.

No tempo de Dom Fernando começa a sentir-se a influencia normanda, isto
é, a implantação das tradições do norte e dos diversos povos, trazidas
pelos aventureiros que divagavam então pela Europa vivendo d’este seu
mister.

O cyclo da Tavola Redonda é imitado nas aventuras dos passos d’armas,
na _Ala dos Namorados_ e da _Madre Sylva_, nos _Doze de Inglaterra_,
desenvolvendo-se a ponto de crear um typo messianico em Dom Sebastião,
em tudo similhante a el-rei Arthur. No maravilhoso popular encontram-se
vestigios das superstições germanicas, e o cyclo carolino toma o
sentimento cavalheiresco da _fidelidade_ allemã como principio de
unidade, em vez da _independencia_ altiva do genio franko.

No seculo XVI a eschola italiana absorveu a attenção dos espiritos
a ponto de sacrificarmos o genio nacional ás exagerações classicas.
Foi Gil Vicente o unico que não desprezou o sentimento popular,
decidindo-se abertamente por elle, com mais franqueza do que o douto
Sá de Miranda, que tergiversa entre a seducção estrangeira e a indole
do nosso povo. Emquanto o endecasyllabo novo se expraia nas eclogas
enfadonhas do gosto siciliano, a redondilha popular salva-se com
a facilidade chistosa de Gil Vicente. O povo ia elaborando a sua
poesia maritima, inspirado pelo sentimento profundo da aventura, a
que o proprio Camões, classico do fundo d’alma, não se eximiu de
modo que a influencia que recebeu não fosse o caracteristico por
onde é hoje admirado na Europa. A _Historia tragico-maritima_ era o
nucleo das narrações em prosa d’onde havia de sahir já feito o verso
octosyllabico, verso por assim dizer falado, da mesma sorte que
das Chronicas hespanholas saiu a maior parte e a mais celebre dos
Romanceiros antigos.

A perda de Alcacer Kibir foi o termo da edade heroica de Portugal; o
povo, no desalento, nas extorsões de uma dominação extranha, volveu-se
ás suas esperanças imaginarias, atou as tradições do campo de Ourique
aos destinos da patria, fel-a o Quinto Imperio do mundo. De facto as
prophecias nacionaes são a unica poesia popular do seculo XVII. As
reminiscencias do cyclo de Arthur e as esperanças do genio celtico
vêm coadjuvar a mente popular na formação de um ideal messianico. Dom
Sebastião tornou-se o Encoberto que hade vir soltar o sonho em que
Portugal succederá na gerarchia das grandes nações. De todos os povos
da Europa, nós fômos o ultimo que deu importancia á poesia popular. As
discussões dos philologos allemães sobre o Niebelungen, a publicação
das epopeas francezas dos seculos XII o XIII, a polemica sobre a
originalidade dos poemas de Ossian e a critica homerica encetada por
Vico, concorreram bastante para o esclarecimento da grande these
das creações anonymas, renovando o amor pela restauração d’estes
thesouros perdidos. Entre nós os que primeiro recolheram algumas
poesias primitivas, por mera curiosidade erudita, foram Fr. Bernardo
de Brito, Miguel Leitão e Manuel de Faria e Sousa, que mutuamente
reproduziram essas quatro duvidosas reliquias dos seculos XII e XIII.
Sobre todos, Garrett foi quem descubriu a poesia popular das nossas
provincias. Que delicadissimo artista para perceber a alma do povo!
Não lhe comprehenderam o alcance do trabalho entre nós; em um prologo
se queixa elle com pesar d’esta insufficiencia. A chamada geração nova
atirou-se ao verso octosyllabico, pondo-se a rimar solaos e baladas,
superfetações ridiculas, sem imaginação, nem arte. Muitos dos romances
que formam a presente collecção, já andavam na lição de Garrett melhor
dramatisados, e com um colorido encantador. Desanimámos por vezes,
quando confrontavamos as versões que recolhiamos com as d’elle, sempre
mais primorosas e extensas. Por fim vimos, e as palavras de Garrett
o confirmam, que elle por vezes de muitas variantes formava um só
romance, supprindo versos, ou completando-os pelos manuscriptos do
Cavalleiro de Oliveira. Assim apresentou um trabalho excellente sob
o ponto de vista artistico, pelo gosto de Percy, mas que não merece
a absoluta confiança dos que quizerem surprehender a alma do povo na
elaboração da sua poesia. Esses sessenta romances, que a todo o custo
alcançámos de pessoas que não sabem _dizer_ sem _cantar_, e que logo
que as interrompem perdem o fio da cantilena, de outras supersticiosas
e que temem de ser escarnecidas, todos estes romances foram, por
assim dizer, apanhados em flagrante delicto do enthusiasmo popular.
Comparámo-los com as versões de Garrett, e creio que aonde lhes são
inferiores assenta a sua valia. A classificação adoptada não é a de
Duran: é tirada da natureza da poesia popular, que por si mesmo se
divide e aconselha as partes em que se deve agrupar. A poesia do povo
não é uma habil curiosidade; como um facto profundo do espirito, não
deve de ser estudada somente pelo lado artístico; é principalmente pelo
lado psychologico que a sua rudeza e ingenuidade pittoresca tem valor.
A presente collecção, pode sem orgulho nacional dizer-se, é composta
do que ha de mais bello e antigo na poesia popular da Peninsula; quasi
todos estes sessenta romances que andam na tradição, se encontram nas
velhas recopilações hespanholas, mas aqui melhor dramatisados, mais
breves e simples, e tal vez mais puros, porque passaram directamente da
versão oral para a lição escripta. Quando a observação nos confirmou
a grande verdade que ha na poesia do povo e fez vêr n’ella a sua
principal belleza, para de logo um sentimento de respeito venerando
obrigou a conservar sempre na sua rudeza as coplas e narrativas que
iamos recolhendo. E assim, para os homens que se dedicam a este
genero de trabalhos, para os psychologos que procuram surprehender as
manifestações da alma na sua verdade, diante d’esses protesto, em nome
da probidade do homem e da intuição de artista, que todos os romances
populares que da tradição recolhi são estremes e genuinos.




                           ROMANCEIRO GERAL

  FLOR DOS ROMANCES ANONYMOS DO CYCLO CARLINGIANO E DA TAVOLA-REDONDA




          I--ROMANCES COMMUNS AOS POVOS DO MEIO DIA DA EUROPA


1

Romances da Dona Infanta

(_Versão da Beira-Baixa_)

    Andando a Dona Infanta
    No seu jardim passeava;
    Deitou os olhos ao mar,
    Viu vir uma grande armada:

    «Dizei-me, oh meu capitão,
    Dizei-me por vossa alma,
    Marido que Deos me deu
    Se ahi vem na vossa armada?
    --Diga-me minha senhora
    Que signaes é que levava?
    «Levava cavallo branco,
    Cavallo branco levava,
    Levava cella amarella,
    Por cima sobredourada;
    E adiante de si levava
    A cruz de Christo pregada.
    --Eu o lá vi, oh senhora,
    Elle na guerra ficava,
    Com tres chagas bem abertas
    E todas eram mortaes.
    Por uma se via o sol,
    Por outra o bello luar;
    Por outra tambem se via
    Rica bola de jogar.
    «Ai triste de mim viuva,
    Ai triste do mim coitada!
    Ir-me-hei por esse mundo
    Chamando-me desgraçada.
    Ai triste da só viuva,
    De mim que nemja de si.
    --Quanto dereis vós senhora
    A quem o trouxera aqui?
    «Dera-lhe ouro e prata,
    Fôra mais rico que mim.
    --O vosso ouro e a vossa prata
    Não me servem para mim.
    Eu sou soldado de el-rei,
    E não posso estar aqui;
    Mas quanto davas, senhora,
    A quem o trouxera aqui?
    «Tres laranjaes que tenho
    Todos tres os dera assim.
    --Não quero os seus laranjaes
    Não me servem para mim;
    Que sou soldado de el-rei
    E não posso estar aqui.
    «Os tres moinhos que tenho
    Todos tres os dera a si;
    Um que móe pau de canella,
    Outro móe pau do Brazil;
    Outro móe rica farinha
    Que el-rei me manda pedir.
    --Eu não quero os seus moinhos,
    Não me servem para mim;
    O que dereis vós, senhora,
    A quem o trouxera aqui?
    «Essas tres filhas que tenho,
    Todas tres quizera dar,
    Uma para vos vestir,
    Outra para vos calçar,
    A mais linda d’ellas todas
    Para comsigo casar.
    --Eu não quero as vossas filhas,
    Não me servem para mim.
    O que dereis mais, senhora
    A quem o trouxera aqui?
    «Não tenho mais que lhe dar,
    Nem você mais que pedir.
    --Inda tem mais que me dar,
    E eu tambem que lhe pedir:
    Esse corpo delicado
    Para commigo dormir.
    «Merece ser arrastado
    O maroto que tal diz
    Ao rabo do meu cavallo,
    Á roda do meu jardim.
    --Não se amofine, senhora,
    Que eu consigo já dormi.
    O anel de cinco pedras
    Que eu comvosco reparti.
    Que é da vossa metade,
    Pois a minha eil-a aqui?
    «Pois a minha ametade
    Esqueceu-me no jardim.
    Vão-me já chamar meus manos,
    Que o venham conhecer;
    Se elle o meu marido for
    Eu o quero receber;
    E se algum maroto fôr
    Veja como se hade haver.»


2

Dona Catherina

(_Variante da Beira-Baixa_)

    ’Stando Dona Catherina
    No seu jardim assentada,
    Com um pente de ouro na mão
    Seu cabello penteava.
    Deitou os olhos ao largo
    Viu vir uma grande armada;
    Capitão que ’nella vinha
    Trazia-a mui bem guiada.

    --Catherina, Catherina,
    Catherina de Menezes,
    Sabbado vou para França,
    Catherina que quereis?
    «Saúdai-me o meu marido,
    Que por lá o achareis.
    --Diga-me minha senhora
    Que signaes levava elle?
    «Levava cavallo branco,
    E espada de Marquez;
    Capote de camellão
    Forrado de setim verde.
    --Pelos signaes que me daes
    Não o vi senão uma vez;
    Vi-o morrer em França,
    Enterral-o em Santa Inez.

    Já Catherina chorava
    Lagrimas de tres a tres.

    --Calai-vos oh Catherina,
    Casae commigo outra vez.
    «Senhoras da minha laia
    Não casam mais que uma vez.
    --Quanto déreis vós, senhora,
    A quem vol-o traga, aqui?
    «Dera-lhe armas e cavallos,
    Que cresceram de Dom Luiz.
    --Suas armas, seus cavallos
    Não me servem para mim;
    Que eu sou capitão da armada,
    Já me vou para o Brazil.
    Quanto déreis mais, senhora,
    A quem vol-o traga aqui?
    «Dera ouro, dera prata,
    Fôra mais rico que mim.
    --O seu ouro e sua prata
    Não me servem para mim;
    Eu sou capitão da armada
    Já me vou para o Brazil.
    Quanto déreis mais, senhora,
    A quem vol-o traga aqui?
    «As tres azenhas que tenho
    Todas tres te dera a ti;
    Uma móe cravo e canella,
    A outra móe serzelim,
    Outra móe rica farinha
    Para el-rei, mais para mim.
    --Vossas azenhas, senhora,
    Não me servem para mim,
    Sou capitão das armadas,
    Já me vou para o Brazil.
    Quanto dereis mais, senhora,
    A quem vol-o traga aqui?
    «Uma pereira que eu tenho
    No meio do meu jardim,
    Pois quando ella dá pêras
    O rei m’as manda pedir.
    --Eu sou capitão da armada,
    Já me vou para o Brazil;
    Quanto déreis mais, senhora,
    A quem vol-o traga aqui?
    «Essas tres filhas que eu tenho
    Todas tres te dera a ti,
    Uma para te calçar,
    Outra para te vestir,
    A mais linda d’ellas todas
    Para comtigo dormir.
    --As suas filhas, senhora.
    Não me servem para mim,
    Sou capitão das armadas
    Já me vou para o Brazil.
    Quanto dereis mais, senhora,
    A quem vol-o traga aqui?
    «Não tenho mais que vos dar,
    Nem vós mais que me pedir.
    --Ainda não me offereceu
    Esse seu corpo gentil.
    «Cavalleiro que tal fala,
    Cavalleiro que tal diz,
    Merece a lingua arrancada,
    Cortada pelo nariz.
    Levantai-vos meus criados,
    Vinde-lh’o fazer assim,
    Ao rabo do meu cavallo,
    Ao redor do meu jardim.
    --Os criados que a servem
    Já me serviram a mim,
    As suas filhas, senhora,
    Tambem são filhas de mim.
    Suas azenhas, senhora,
    Tambem pertencem a mim;
    Sua pereira, senhora,
    Tambem me pertence a mim.
    Suas armas e cavallos
    Tambem pertencem a mim;
    Seu ouro e a sua prata
    Tambem pertencem a mim.
    O anel que vos eu dei
    Quando eu d’aquí sahi,
    Mostrai-me a vossa metade,
    Pois a minha eil-a aqui!
    O anel que vos eu dei
    Que se nos partiu no chão,
    Mostrai-me a vossa metade,
    Aqui está o meu quinhão.


3

Romances de D. Martinho de Avizado

(_Versão da Beira-Baixa_)

    --Grandes guerras ’stão armadas
    Entre França e Aragão!
    Mal o hajas tu mulher,
    Mais a tua criação;
    Sete filhas que tiveste
    Sem nenhuma ser varão!

    Respondeu logo a mais velha
    Com todo o seu coração:

    «Dê-me armas e cavallo
    Que eu irei por capitão.
    --Tendes o cabello louro,
    Filha, conhecer-vos-hão!
    «Dê-me cá uma thezoura,
    Verei-o cahir no chão.
    --Tendes os olhos fagueiros,
    Filha, conhecer-vos-hão.
    «Quando passar pelos hombres
    Eu os ferrarei no chão.
    --Tendes os peitos crescidos,
    Filha, conhecer-vos-hão.
    «Mande fazer um justilho
    Que me aperte o coração.
    --Tendes as mãos mui mimosas,
    Filha, conhecer-vos-hão.
    «Lá virá vento e chuva,
    Que ellas se callejarão.
    --Tendes o pé pequenino,
    Filha, conhecer-vos-hão.
    «Dê-me cá as suas botas
    Encherei-as de algodão.
    --Tendes o passo miudo,
    Filha, conhecer-vos-hão.
    «Quando passar pelos hombres
    Farei passo de ganhão.
    --Filha, se fores á guerra
    Como te lá chamarão?
    «Dom Martinho do Avizado,
    Filho do Rei Dom João.»

    --Ai minha mãi que me morro,
    Morro-me do coração;
    Os olhos de Dom Martinho,
    Mi madre, matar-me-hão,
    O corpo tiene de hombre,
    Os olhos de mulher são.
    --«Convidai-o vós, meu filho,
    Que vá comvosco jantar,
    Se então elle fôr mulher
    Em baixo se hade assentar.

    Dom Martinho de Avizado
    Cadeira mandou chegar,
    Com o seu capote em cima
    Para mais alto ficar.

    --Ai minha mãi que me morro,
    Morro-me do coração,
    Os olhos de Dom Martinho,
    Madre minha, matar-me-hão.
    O corpo tenia de hombre,
    Os olhos de mulher são.
    --«Convidai-o vós, meu filho,
    Que vá comvosco enfeirar,
    Elle então se for mulher
    Ás fitas se hade pegar.
    «Oh que espadas finas estas
    Para hombre guerrear!
    Oh que fitas para damas,
    Quem lh’as pudera mandar.
    --Ai minha mãi, que me morro,
    Morro-me do coração,
    Os olhos de Dom Martinho,
    Madre minha, matar-me-hão!
    O corpo tenia de hombre,
    Os olhos de mulher são.

    --«Convidai-o vós, meu filho,
    Que vá comvosco dormir,
    Que se elle for mulher
    Não se hade querer despir.
    «Tenho feito juramento,
    Espero de o cumprir,
    De emquanto eu andar na guerra
    As ceroulas não despir.
    --«Convidai-o vós, meu filho,
    Que vá comvosco nadar;
    Que se elle for mulher
    Certo, se hade acovardar.

    Dom Martinho de Avizado
    Primeiro o mandou entrar:

    «Ide vós mais adiante
    Para me ires ensinar!
    Cartas me vêm da terra,
    Cartas de muito pezar;
    Meu pai que já é morto,
    Minha mãi está a acabar.
    Tenho seis irmãs mais novas,
    Quero-as ir amparar;
    Venha a casa de meu pai
    Se commigo quer casar.
    Sete annos andei na guerra,
    Sete annos por capitão,
    Sem ninguem me conhecer
    Se eu era mulher ou não.

       *       *       *       *       *


4

Dom Martinho

(_Variante da Beira-Baixa_)

    --Oh que guerras vão armadas
    Entre França e Aragão!
    Ai de mim, que já estou velho,
    Não as posso vencer, não.
    De sete filhas que tenho
    Sem nenhuma ser varão!

    Respondeu-lhe uma mais nova,
    Respondeu-lhe com rasão:

    «Venha uma espada e cavallo,
    Eu serei já capitão.
    --Tendes os olhos grandes,
    Filha, conhecer-vos-hão.
    «Quando passar pelos homens,
    Abatel-os-hei ao chão.
    --Tendes o cabello longo,
    Filha, conhecer-vos-hão.
    «Venha uma thezoura d’oiro,
    Vel-o-heis cahir ao chão.
    --Tendes as mãos muito brancas,
    Filha, conhecer-vos-hão.
    «Virão calmas e geadas,
    Que ellas negras se farão.
    --Tendes o pé pequenino,
    Filha, conhecer-vos-hão.
    «Venham uns sapatos grandes,
    Que os pés n’elles crescerão.
    --Tendes o passo miudo,
    Filha, conhecer-vos-hão.
    «Quando passar pelos homens
    Darei passo de malhão.»

    --Os olhos de Dom Martinho,
    Minha mãi, matar-me-hão.
    Elle o corpo será de homem,
    Os olhos de mulher são.
    --«Convida-o tu, meu filho,
    Um dia para o pomar,
    Que se elle mulher fôr
    Ao agro se hade apegar.

    Dom Martinho de avisado
    Ao doce se foi lançar.

    --Os olhos de Dom Martinho,
    Minha mãi, me hãode matar!
    --«Convida-o tu, meu filho,
    Um dia para o jantar,
    Que se elle mulher for
    Aos bancos se hade assentar.

    Dom Martinho de avisado
    Cadeira mandou chegar:

    «Oh que cadeira tam baixa
    Para um homem se assentar.
    --«Convida-o tu, meu filho,
    Um dia para feirar,
    Que se elle mulher for
    Ás fitas se hade apegar.

    Dom Martinho de avisado
    Ás espadas se foi lançar:

    «Oh que espadas tam pezadas
    Para um homem guerrear;
    Oh que fitas para damas,
    Quem lh’as pudera levar.
    --Os olhos de Dom Martinho,
    Minha mãi, me hão de matar.
    --«Convida-o tu, meu filho,
    Um dia para dormir,
    Que se elle mulher for
    Não se hade querer despir.

    Dom Martinho de avisado
    Se foi logo descalçar:

    «Tenho feito juramento,
    Espero de o não quebrar,
    Em quanto eu andar na guerra
    As ceroulas não tirar.
    Tenho feito juramento
    Protesto de o cumprir,
    Em quanto eu andar na guerra
    A camisa não despir;
    E a espada de meu pae
    Entre nós hade dormir.

    --Os olhos de Dom Martinho,
    Minha mãi, me hãode matar!
    --«Convida-o, tu, meu filho.
    Um dia para nadar,
    Que se elle mulher for
    Logo se hade acovardar.

    Dom Martinho de avisado
    Se foi logo descalçar:

    «Entre, entre o cavalleiro,
    Já o vou acompanhar;
    Os sinos da minha terra
    Aqui os ouço tocar!
    A minha mãi já morreu,
    Meu pai se está a finar;
    De sete manas que tenho
    Aqui as ouço gritar.

    «Abra-me as portas, meu pai,
    De todo o seu coração;
    Sete annos andei na guerra
    Sem me conhecer varão;
    Mas só no fim dos sete annos
    Conheceu-me o capitão,
    Conheceu-me pelo riso,
    Que por outra cousa não.»


5

Dom Barão

(_Variante da Foz_)

    Já se começam as guerras
    No campo de Dom Barão:

    --Triste de mim que sou velho
    As guerras me acabarão!
    «Dê-me armas e cavallo
    Serei seu filho varão.
    --Tendes o cabello loiro,
    Filha, conhecer-vos-hão.
    «Dae-me cá uma thesoura,
    Que eu já o deito ao chão.
    --Tendes as mãos pequeninas,
    Filha, conhecer-vos-hão.
    «Metel-as-hei n’umas luvas,
    Nunca d’ellas sairão.
    --Tendes o pé pequenino,
    Filha, conhecer-vos-hão.
    «Metel-os-hei n’umas botas,
    Nunca d’ellas sairão.
    Dae-me armas e cavallo,
    Serei seu filho varão.
    --Tendes os peitos mui altos,
    Filha, conhecer-vos-hão.
    «Incolherei os meus peitos
    Dentro do meu coração.»

    O capitão dos soldados
    Um grande amor lhe tomou;
    Dom Barão como discreto
    De nada se receiou.

    --Oh mi padre, oh mi madre,
    Grande dor do coração,
    Os olhos do soldadinho
    São de mulher, de homem não.
    --«Convida-o tu, meu filho,
    Que comtigo vá cear,
    Porque no partir do pão
    Se virá a delatar,
    Que se elle o partir ao peito
    Por mulher se hade mostrar.

    Dom Barão como discreto
    De nada se receiou;
    Pegou na faca de ponta,
    Pão e queijo estransinhou.

    --«Bota-lhe cadeiras altas,
    Cadeiras baixas a par;
    Porque elle se mulher for
    Nas baixas se hade assentar.

    A donzella por discreta
    Na mais alta quiz estar.

    --Minha mãi, minha mãesinha,
    Eu morro do coração;
    Os olhos do soldadinho
    São de mulher, de homem não.
    --«Convidae-o vós, meu filho,
    Que comvosco vá feirar,
    Que se elle mulher fôr,
    Ás fitas se hade apegar.

    Dom Barão como discreto
    Foi uma espada apreçar:

    «Oh que bellas fitas estas
    Para damas adornar.
    --«Convida-o tu meu filho
    Que comtigo vá dormir;
    Que se elle mulher fôr
    Então se hade descobrir.

    Dom Barão como discreto
    De nada se receiou;
    Vestiu camisa e ceroulas
    E com elle se deitou.

    --Oh mi padre, oh mi madre,
    Grande dor do coração;
    Os olhos de Dom Barão
    São de mulher, de homem não.
    --«Convida-o tu, oh meu filho,
    Que comtigo vá nadar;
    Que se elle mulher fôr
    Desculpa vos hade dar.

    Dom Barão como discreto
    De nada se receiou;
    Chamou pelo seu creado
    Uma carta lhe entregou:

    «Novas me chegam agora,
    Novas de negro pezar;
    E os sinos da minha terra
    Já ouço repinicar,
    Ou meu pae que já é morto,
    Ou está para enterrar.
    --Montae-vos oh Dom Barão,
    Que eu vos vou acompanhar.

    Lá chegando á sua terra
    Viu seu pae a passear.

    --Que foi isso Dom Barão,
    Quem vos vem acompanhar?
    «Um genro de vocemecê
    Se o quizer acceitar.


6

Romance de Gerinaldo

(_Versão de Traz-os-Montes_)

    «Gerinaldo, Gerinaldo,
    Pagem de el-rei mais querido,
    Queres tu oh Gerinaldo
    Tomar amores commigo?
    --Vós como sois ama minha
    Senhora zombais commigo?
    «Eu não mango Gerinaldo,
    Que eu bem deveras t’o digo.
    --Diga-me minha senhora
    Quando heide ir no promettido?
    «Lá da uma para as duas,
    Que meu pae esteja dormindo.

    Inda bem não era a uma
    Gerinaldo ao postigo,
    Descalço de pé e perna
    Para não fazer trupido.

    «Oh quem bate á minha porta,
    Oh quem é o atrevido?
    --É Gerinaldo, senhora,
    Que aqui vem ao promettido,
    Descalço de pé e perna
    Para não fazer trupido.
    «Pousa ahi as tuas armas,
    E deita-te aqui commigo.

    El-rei sonhava um sonho
    Que bem certo lhe sabia:
    Ou deshonram a Infanta,
    Ou me roubam o castillo.
    Levantou-se el-rei da cama
    Com desgraçado sentido,
    Pegou em a sua espada
    E foi dar volta ao castillo;
    Achou-os ambos na cama
    Como mulher e marido:

    --«Eu se mato a Gerinaldo
    Criei-o de pequechinho!
    Eu se mato a dona Infanta
    Fica o reinado perdido.
    Meto-lhe a espada no meio
    Para que sirva de aviso.

    Acordou o Gerinaldo,
    Ficou mais morto que vivo.

    «Não te assustes Gerinaldo
    Que meu pai o tem sabido,
    Se nos quizera matar
    Poder estava comsigo.
    Não te assustes Gerinaldo
    Vem ter com o rei ao castillo.

    --«D’onde vens oh Gerinaldo,
    D’onde vens espulverido?
    -- Venho de matar caça,
    Senhor, da borda do rio.
    --«Não me mintas Gerinaldo,
    Que nunca me tens mentido.
    -- Venho de regar as flores
    Que ellas o estavam pedindo!
    --«Pois toma-a por tua mulher,
    E ella, a ti por marido.


7

Romance da Noiva roubada

(_Versão de Almeida_)

    --Deos vos salve minha tia,
    Na vossa roca a fiar!
    «Venha embora o cavalleiro
    Tam cortez no seu falar.
    --Má hora se elle foi, tia,
    Ma hora torna a voltar!
    Que já ninguem o conhece
    De mudado que hade estar.
    Por lá o matassem mouros,
    Se assim tinha de tornar.
    «Ai sobrinho de minha alma,
    Que és tu pelo teu falar!
    Não vês estes olhos, filho,
    Que cegaram de chorar?
    --E meu pai e minha mãi,
    Tia que os quero abraçar?
    «Teu pai é morto, sobrinho,
    Tua mãi foi a enterrar.
    --Que é da minha armada, tia,
    Que eu aqui mandei estar?
    «A tua armada, sobrinho,
    Mandou-a o fronteiro ao mar.
    --Que é do meu cavallo, tia,
    Que eu aqui deixei ficar?
    «O teu cavallo, sobrinho,
    El-rei o mandou tomar!
    --Que é da minha dama, tia,
    Que aqui ficou a chorar?
    «Tua dama faz hoje a boda,
    Amanhã se vae casar.
    --Dizei-me onde é minha tia,
    Que me quero lá chegar.
    «Sobrinho não digo, não,
    Que te podem lá matar.
    --Não me matam, minha tia,
    Cortezia eu sei uzar.
    E onde faltar cortezia
    Esta espada hade chegar.

    --Salve Deos, oh la da boda,
    Em bem seja o seu folgar!
    --«Venha embora o cavalleiro,
    E que se chegue ao jantar.
    --Eu não pertendo da boda,
    Nem tam pouco do jantar;
    Pretendo falar á noiva,
    Que é minha prima carnal.
    Vindo ella lá de dentro
    Toda lavada em chorar,
    Mal que viu o cavalleiro,
    Quiz morrer, quiz desmaiar.
    --Se tu choras por me veres,
    Já me quero retirar;
    Se é os teus gastos que choras,
    Aqui estou para os pagar.
    «--Pagar devia com a vida
    Quem me queria enganar,
    Quando te deram por morto
    Nessas terras d’alem-mar.
    Mas que fiquem com a boda,
    E bem lhes preste o jantar,
    Que os meus primeiros amores
    Ninguem m’os hade quitar.

    --Venha juiz de Castella,
    Alcaide de Portugal;
    Que, se aqui não ha justiça
    Co’ esta espada a heide tomar.


8

Romance do Alferes matador

(_Versão da Covilhã_)

    --Indo eu por quelha abaixo,
    Topando por quelha acima,
    Olhei para uma janella,
    Onde vi ’star trez donzillas.
    Aquella de azul claro
    É linda em demasia,
    Tenho de a ir buscar
    Inda que me custe a vida.

    As dez horas eram dadas
    E elle á porta batia.

    «Quem bate á minha porta
    Deshoras á porta minha?
    --É um grande cavalleiro
    Que vem buscar sua filha,
    «Minha filha não ’stá em casa,
    Foi para a de sua tia,
    Que a mandou cá buscar
    Para uma função que havia.

    Deitou os hombros á porta,
    Não uzou mais cortezia;
    Entrou pela casa dentro
    Com toda a sua ousadia,
    E foi direito a um quarto
    Aonde a filha dormia.

    «Oh filha faz, pela honra
    Antes que te custe a vida;
    Honra as barbas a teu pae,
    Que brancas na cara as tinha.

    Pegou-lhe pelos cabellos
    Foi-a arrastar pela villa,
    E depois de a ver morta
    A sua mãi a trazia.

    --Aqui tendes oh D. Anna,
    Oh Dona Anna vossa filha,
    Honrada e virtuosa,
    Mas porem custou-lhe a vida.
    «Antes a quero ver morta
    Que a sua honra perdida,
    Justiça venha do céo
    Que na terra não a havia,
    E caia sobre um Alferes,
    Matador da minha filha.


9

Romance da Romeirinha

(_Versão de Traz-os-Montes_)

    Por aquelles montes verdes
    Uma romeira descia;
    Tão honesta e formosinha
    Não vae outra á romaria.
    Sua saia leva baixa,
    Que nas hervas lhe prendia;
    Seu chapellinho cahido
    Que os lindos olhos cobria.
    Cavalleiro vae traz d’ella,
    Alcançal-a não podia;
    Alcançou-a descançando
    Debaixo da verde oliva,
    Á sombra da arvore benta.
    Que está no adro da ermida:

    «Eu te rogo, cavalleiro,
    Por Deos e Santa Maria,
    Que me deixes ir honrada
    Para a santa romaria.

    Cavalleiro de malvado
    De amores a accomettia;
    Pegaram de braço a braço,
    Qual de baixo, qual de cima.
    A romeira por mais fraca
    Logo debaixo cahia.
    No cahir lhe viu á cinta
    Um punhal que elle trazia,
    Com toda a força o arranca,
    No coração lh’o mettia.

    --Da vingança que tomaste
    Eu te peço romeirinha,
    Que o não digas em tua terra,
    Nem te vás gabar á minha.
    «Heide dizel-o em tua terra,
    Heide-me ir gabar á minha
    Da vingança que tomei
    Da affronta que me fazias;
    Que matei um vil cobarde
    Com as armas que elle trazia.

    Tocou a campa da ermida
    A campa que retinia:

    «Eu te peço, ermitão,
    Por Deos e Santa Maria,
    Que enterres esse traidor
    Lá na tua santa ermida.


10

Romances da Infanta de França

(_Versão da Covilhã_)

    Dom João foi para caça,
    Foi á caça á porfia,
    Anoiteceu-lhe n’um bosque,
    Era o que elle mais temia;
    Seus cavallos por ferrar,
    Era o que elle mais sentia!
    Lá pela noite adiante
    Um lindo cantar ouvia,
    Deitem os olhos ao largo
    Viu lá estar uma donzilla,
    Penteando o seu cabello
    Em um tanque de agua fria.

    --Que fazeis aqui, senhora,
    Que fazeis aqui donzilla?
    «Sete fadas me fadaram
    No collo de madre minha,
    Fadaram-me por sete annos,
    Por sete annos e um dia.
    Hoje se acabam os annos,
    Á manhã por noute o dia;
    Bem podera o cavalleiro
    Levar-me na companhia.
    --Desde, já minha senhora,
    Eu tudo isso lhe faria;
    Dizei-me, oh minha senhora,
    Se ides de anca ou de silha?
    «Eu vou de anca, oh cavalleiro
    Que isso é da honra minha.

    Lá pelo caminho adiante
    Ella se pôz a sorrir.

    --Do que vos rides, senhora,
    Do que rides vós donzilla?
    «Eu rio-me do cavalleiro
    E da sua cobardia,
    Achar donzilla no campo
    E guardar-lhe cortezia.
    --Tornemos atraz senhora,
    Tornemos a traz donzilla,
    Que deixei a minha espora
    No tanque da agua fria.
    «Adiante, oh cavalleiro,
    Eu atraz não tornaria,
    Se a espóra era de prata
    Meu pai de ouro lh’a daria.
    --Dizei-me, oh minha senhora,
    De quem é que vós sois filha?
    «Sou filha do rei de França,
    Neta do rei de Castilla.
    --Pelos signaes que me daes
    Vós sois uma mana minha!
    Mal hajam todos os homens,
    E quem em mulheres se fia;
    Cuidando que levo esposa
    Levo a uma irmã minha!
    Abram-se esses palacios,
    Venha toda a fidalguia,
    Trago aqui uma mana
    Ha sete annos que a não viram.
    Venha cá, senhora mãi,
    Ande vêr a sua filha,
    Cuidei trazer nóra sua
    E trago uma mana minha.

    Levantou-se a sua mãi
    Da cadeira aonde estava:

    --«Se tu és a minha filha
    Anda cá para os meus braços,
    Se tu és a minha nóra
    Ai tens os teus palacios.


11

A Encantada

(_Variante da Foz_)

    Indo um cavalleiro á caça
    Á caça de altanaria,
    Lá chegando ao alvoredo
    Viu estar uma donzilla.

    --Que fazeis ahi senhora?
    Que fazeis aqui donzilla?
    «Sete fadas me fadaram
    No ventre d’uma mãi minha:
    De eu aqui estar sete annos,
    Sete annos e mais um dia.
    Sete annos são acabados
    Hoje se acaba o dia;
    Se quereis oh cavalleiro
    Levai-me por companhia,
    Não me leveis por senhora,
    Não me leveis por donzilla;
    Levai-me por estrangeira
    Que achaes na terra perdida.
    --Montai-vos aqui, senhora,
    Montai-vos aqui, donzilla,
    Ou nas ancas ou na sella,
    Onde fôr mais honra minha.
    Montou-se logo a donzella
    Foi seguindo o seu caminho,
    Lá chegando á estrada
    De risos o accommettia:

    --De que se ri oh menina?
    De que se ri oh donzilla?
    «Rio-me do cavalleiro
    E da sua cobardia,
    De achar menina na serra
    E lhe guardar cortezia.

    --Deixai-me agora chorar
    Olhae a minha mofina!
    Oh quem perdeu o que eu perco
    Grande pena merecia.




               II--ROMANCES DE SUPOSTA ORIGEM PORTUGUEZA


12

Romance da Sylvana

(_Versão de Lisboa_)

    Passeava-se Sylvana
    Pelo corredor acima;
    Viola de ouro levava,
    Oh que bem que a tangia!
    E se ella bem a tangia,
    Melhor romance fazia.
    A cada passo que dava,
    Seu padre a accommettia:

    --Atreves-te tu, Sylvana,
    Uma noite a seres minha?
    «Fôra uma, fôra duas,
    Fôra, meu pae, cada dia;
    Ma’las penas do inferno
    Quem por mim las penaria?
    --Penal-as-hei eu, Sylvana,
    Que las peno cada dia.
    Foi-se d’ali a Sylvana,
    Mui agastada que ia;
    Foi-se encontrar com sua madre
    Lá no adro da ermida:

    --«Que tens tu, minha Sylvana,
    Que tens tu, oh filha minha?
    «Oh, quem tal pae não tivera,
    Quem não fôra sua filha!
    Que me accommette de amores
    Oh minha mãi, cada dia.
    --«Vae, filha, vae para casa,
    Veste uma alva camisa,
    Que o cabeção seja de ouro,
    As mangas de prata fina:
    Deitar-te-has no meu leito,
    Eu no teu me deitaria...
    E hade valer-nos a Virgem,
    A Virgem Santa Maria.

    Lá junto da meia-noite
    Seu padre que a accomettia:

    --Se eu soubera, Sylvana,
    Que estavas tão corrompida,
    Oh! las penas do inferno
    Por ti las não penaria...
    --«Esta não é a Sylvana,
    É a mãe que a paria;
    Tambem pariu Dom Alardos,
    Senhor da cavalleria,
    Tambem pariu a Dom Pedro,
    Principe da infanteria,
    Tambem pariu a Sylvana
    Que seu pae a accomettia.
    --Oh mal haja, que haja a filha.
    Que seu padre descobria!
    --«Oh mal haja, que haja o padre
    Que sua filha commettia.

    Manda-a metter n’uma torre
    Que nem sol, nem lua via;
    Dão-lhe a comida por onça,
    E a agua por medida.
    Ao cabo de sete annos
    Eis a torre que se abria...
    Assomou-se a Sylvana
    A uma ventana mui alta,
    Foi-se encontrar com su madre
    Lavrando n’uma almofada:

    «Estejaes emb’ora, madre,
    Oh madre da minha alma;
    Peco-vos por Deos do céo,
    Que me deis um jarro d’agua;
    Que se me aparta a vida,
    Que se me arranca a alma!
    --«Dera-t’a eu, filha minha,
    Se a tivera salgada,
    Que ha sette para outo annos
    Que por ti sou malcasada.
    Se teu padre tem jurado
    Pela cruz da sua espada,
    Quem primeiro te desse agua
    Tinha a cabeça cortada.

    Assomou-se a Sylvana
    A outra ventana mais alta;
    Foi-se encontrar com os irmãos,
    Que estavam jogando as cannas:

    «Estejaes emb’ora irmãos,
    Meus irmãos já da minha alma,
    Peço-vos por Deos do céo
    Que me deis um jarro d’agua,
    Que se me aparta a vida,
    Que se me arranca a alma.
    --Dera-t’a eu, irmã minha,
    Se a tivera empeçonhada:
    Que nosso pae tem jurado
    Pela cruz da sua espada,
    Quem primeiro te desse agua
    Tinha a cabeça cortada.

    Assomou-se a Sylvana
    A outra ventana mais alta,
    Foi-se encontrar com seu pae
    A jogar a embocada:

    «Estejaes emb’ora, padre,
    Padre meu já da minha alma:
    Peço-vos por Deos do céo
    Que me deis um jarro d’agua,
    Que se me aparta a vida,
    Que se me arranca a alma...
    E de hoje por diante
    Serei vossa namorada.

    --Alevantem-se, meus pagens,
    Criados da minha casa,
    Uns venham com jarros de ouro,
    Outros com jarros de prata:
    O primeiro que chegar
    Tem a commenda ganhada,
    O segundo que chegar
    Tem a cabeça cortada.

    Os criados que chegavam
    Sylvaninha que finava,
    Nos braços da Virgem santa
    Dos anjos amortalhada.

    --Vai-te emb’ora, Sylvaninha,
    Sylvaninha da minha alma,
    Tua alma vae para o céo,
    A minha fica culpada.


13

Romance de Bernal-Francez

(_Versão da Foz_)

    «Oh quem bate á minha porta,
    Quem bate, oh quem está ahi?
    --São cravos minha senhora,
    Flores lhe trago aqui!
    «Eu não abro a minha porta
    A taes horas de dormir.
    --Se me não abres a porta
    Morto me acharás aqui.
    «Ai se é Bernal-Francez
    A porta lhe vou abrir.....
    Ao abrir a minha porta
    Se apagou o meu candil!
    Ao subir a minha escada
    Me cahiu o meu chapim.
    Peguei n’elle nos meus braços
    Levei-o pelo jardim,
    Mandei lavar pés e mãos
    Em aguinha de alecrim;
    Vestir camiza lavada,
    Deital-o ao par de mim.

    Era meia noite dada:

    «Não te viras para mim?
    Se tu temes a meu pae
    Elle longe está de ti;
    Se temes os meus criados
    Elles estão a dormir;
    Se temes o meu marido
    Más novas venham aqui.
    --Eu não temo a teu pae
    Que elle sogro é de mim;
    Não me temo dos criados
    Que mais me querem que a ti;
    Não me temo da justiça
    Que a justiça é por mim.
    A teu marido não temo
    E d’elle nunca temi...
    Teme tu falsa traidora
    Pois o tens ao par de ti.
    Deixa tu vir a manhã
    Que eu te darei de vestir,
    Te darei saia de gala,
    Roupinha de cramesi;
    Gargantilha colorada,
    Pois que tu o queres assi.

    --«Deixa-me ir por’qui abaixo
    Com minha capa cahida,
    Quero ver a minha amada
    Se é morta ou se inda viva.

    --Que fazeis oh cavalleiro
    A taes horas por aqui?
    --«Venho vêr a minha amada
    Que ha dias que a não vi.
    --A tua amada, senhor,
    É morta que eu bem n’a vi!
    Os sinaes que ella levava
    Eu te los direi aqui:
    Levava saia de gala,
    Roupinha de cramesi,
    Gargantilha colorada,
    Pois o ella o quiz assim.

    --«Monta, monta meu cavallo,
    Quanto poderes montar,
    Só n’aquella sepultura
    É que eu posso descançar:
    Abre-te oh penha constante
    Que me quero lá meter,
    Já que fui o causador
    Da minha amada morrer.
    Abre-te oh penha sagrada
    Esconde-me ao par de ti!
    Do fundo da sepultura
    Uma triste voz ouvi:

    «A mulher com quem casares
    Seja Anna como a mim;
    E as filhas que tu tiveres
    Tem-as sempre ao pé de ti,
    Para que não aconteça
    O que aconteceu a mim.


14

Romance do Conde Niño

(_Versão de Traz-os-Montes_)

    Vae o conde, conde Niño
    Seu cavallo vae banhar;
    Em quanto o cavallo bebe
    Cantou um lindo cantar:

    --Bebe, bebe, meu cavallo,
    Que Deos te hade livrar
    Dos trabalhos d’este mundo,
    E das areias do mar.
    --«Esperta, oh bella princeza,
    Ouvide um lindo cantar;
    Ou são os anjos no céo,
    Ou as sereias no mar!
    «Não são os anjos no céo,
    Nem as sereias no mar,
    É o conde, conde Niño
    Que commigo quer casar.
    --«Se elle quer casar comtigo
    Eu o mandarei matar.
    «Quando lhe deres a morte
    Mandai-me a mim degollar;
    Que a mim me enterrem á porta,
    A elle ao pé do altar.

    Morreu um, e morreu outro,
    Já lá vão a enterrar;
    D’um nascêra um pinheirinho,
    Do outro um lindo pinheiral;
    Cresceu um e cresceu outro,
    As pontas foram junctar,
    Que quando el-rei ia á missa
    Não o deixavam passar.
    Pelo que o rei maldito
    Logo as mandava cortar;
    D’um correra leite puro,
    E do outro sangue real!
    Fugira d’um uma pomba
    E do outro um pombo trocal,
    Sentava-se el-rei á meza,
    No hombro lhe iam poisar:

    --«Mal haja tanto querer,
    E mal haja tanto amar;
    Nem na vida, nem na morte
    Nunca os pude separar.


15

Romance da Promessa de noivado

(_Versão da Covilhã_)

    --Oh menina da mantilha
    Guarde-me esse lindo rosto,
    Que eu vou para a minha terra,
    Em vindo caso comvosco.
    Lá dos quatro para os cinco,
    E dos cinco para os seis,
    Menina se eu não vier,
    Menina casar-vos-heis.
    --«Filha eu quero-te casar
    Que é o teu tempo venido.
    «Senhor pae estou casada
    Não tenha duvida n’isso.

    Agarrou no seu fatinho
    Abalou por ai alem,
    E ia de terra em terra,
    E de logar em logar.
    Já levava a bocca secca
    De por elle procurar;
    Os seus olhos como punhos
    De por elle ir a chorar.

    «Móra aqui um cavalleiro
    Da minha terra natural?
    --Aqui móra, sim senhora,
    Anda na caça a caçar;
    Se elle é de muita pressa
    Eu o mando lá chamar.
    «Elle a pressa não é muita
    Que por elle heide esperar.

    Elle á noite quando veio
    Começou-se a admirar:

    --Quem vos trouxe aqui, senhora,
    Á minha terra natal?
    «Foram as suas saudades
    Que fizeram cá chegar.
    --Tenho os meus filhos pequenos,
    Que Deos m’os deixe criar,
    Tenho a minha mulher moça
    Que Deos m’a deixe gosar.
    A menina que isto ouviu
    Cahiu morta para traz.

    --Que farei aqui, senhora,
    Que farei a tanto mal?
    --Pegue-lhe pelos cabellos
    E mande-a deitar ao mar!
    --Não farei isso, senhora,
    Na mi terra natural;
    Mando fazer um caixão
    Com a tampa de crystal,
    E na pia da agua benta
    A mandarei sepultar


16

Romance de Dom Aleixo

(_Versão da Foz_)

    Na cidade de Madrid,
    Na melhor que el-rei tenia,
    Havia um cavalleiro
    Dom Aleixo se dizia,
    O cujo tal cavalleiro
    Namorava uma donzilla;
    Ella lhe pediu tres cousas
    Que ao seu corpo convenia:
    Uma, que fosse sósinho
    Sem mais outra companhia,
    Outra pela meia noite
    Quando a gente dormia.
    Inda as dez não eram dadas
    Dom Aleixo se vestia,
    Seu capacete de grana,
    Seu chapeu á bizarria.
    Pegando na sua espada
    Foi para vêr sua amiga;
    Chegando a um alvoredo
    Penhascos o cobririam:

    --Não me atireis com pedras
    Que pedras é cobardia;
    Pucha pela tua espada
    Que eu tambem trago a minha.
    Se algum d’aí não a tem
    Eu lhe emprestarei a minha.
    Cessae, cessae oh villões,
    Não useis de mais porfia,
    Quero fazer testamento
    Da fazenda que tenia:
    A minha alma dou a Deos,
    E á Virgem Santa Maria;
    O meu corpo tão valente
    Já o dou á terra fria,
    Coração á minha dama
    Discreta Dona Maria.

    Rescordou Dona Maria
    Do somno em que jazia:

    «Quem te matou Dom Aleixo?
    Quem te matou vida minha?
    --Os ladrões de teus irmãos
    Já me tiraram a vida.
    Perde quem anda de noite
    Ganha quem anda de dia;
    Perde quem tem seus amores
    Que d’elles se não retira.
    Puchou por um faquim de ouro
    Que á sua cinta trazia:

    «Quero sacar a minha alma,
    Quero levar companhia.


17

Romance de Dom Pedro

(_Versão da Beira-Baixa_)

    «Oh minha mãi quem me dera
    Vêr-me em Castilha do mar;
    Tenho desejos de ir ver
    A minha mãi natural...
    --«Se tens desejos de ver
    A tua mãi natural;
    Mas Dom Pedro foi á caça
    Em vindo lhe irei contar.
    Da caça que elle trouxer
    Te mandará um casal:
    De duas perdizes uma,
    De tres coelhos um par.

    Ella a sahir pela porta
    Dom Pedro a entrar o quintal.

    --Que é da minha rosa branca
    Que me não vem abraçar?
    --«Tua rosa branca, Dom Pedro,
    Está em Castilha do mar?
    Olha o que ella ia dízendo,
    Que se não pode contar:
    «Que em sua caza não tinha
    Cama para se deitar!
    Olha o que ella ia dizendo,
    Que se não pode dizer:
    «Que em sua casa não tinha
    Um pão para se comer!
    Bem puderas tu meu filho
    Minha benção alcançar;
    Como vieste da caça
    Ir-m’a já lá arrastar.

    --Ála, ála meus criados,
    Meus cavallos vão ferrar,
    Com ferraduras de bronze
    Para melhor caminhar.

    Dou sete voltas á cerca,
    Sem n’ella poder entrar;
    Viu lá entrar uma preta
    Que se estava a pentear.

    --Abri-me as portas oh preta,
    Põe-m’as já de par em par!
    Menina que lá está dentro
    Já a lá vou arrastar.

    «--Dae-me alviçaras Dom Pedro
    Dae-m’as, bem m’as podeis dar;
    Que vos nasceu um infante
    Lindo como um crystal.

    «--Novas vos trago, senhora,
    Novas de muito pezar;
    Que Dom Pedro está á porta
    Jura de vos vir matar.
    «Dê-me a mão, oh minha mãe,
    Ajude-me a levantar,
    Que Dom Pedro está á porta
    Jura de me vir matar.

    --Deixa-te estar oh filha
    Que eu o vou assocegar!
    Que Dom Pedro é attencioso
    Logo me ha de querer falar.

    Pegou-lhe pelos cabellos
    E elle a foi arrastar;
    Andára mais de tres leguas
    E sem lhe querer falar.

    «Olha para traz Dom Pedro,
    Olha se queres olhar,
    O teu cavallo é branco
    Veio já do meu signal.
    Leva-me áquella ermida
    Que me quero confessar,
    Se não, confesso-me a ti
    Por eu já não ter logar.

    --Mal o haja a tua mãe
    Que te deixou levantar.
    «Mal haja a tua, Dom Pedro,
    Que taes conselhos quiz dar.
    Cá te fica um infante
    Cá o darás a criar,
    Não o dês a tua mãe
    Que jura de m’o matar;
    Da-o cá antes á minha
    Que ella o dará a criar.
    --Fica-te aqui rosa branca
    N’este campo de alegria!

    Com a ponta da espada
    A cova ali lhe fazia;
    Com as lagrimas dos olhos
    A terra lhe amollecia.


18

Romances da Filha do Imperador de Roma

(_Versão de Traz-os-Montes_)

    O imperador de Roma
    Tem uma filha bastarda,
    A quem tanto quer e tanto
    Que a traz mui mal criada,
    Pedem-lh’a Duques e Condes
    Homens de capa e de espada;
    Ella isenta e desdenhosa
    A todos lhe punha taxa:
    A uns que não eram homens,
    Outros que não tinham barbas;
    Aquelle que não tem pulso
    Para puchar pela espada,
    Dizia-lhe o pae sorrindo:
    --Inda hasde ser castigada!
    De algum villão de porqueiro
    Te espero ver namorada.

    Por manhã do Sam João,
    Manhã de doce alvorada,
    Subiram a uma ventana
    Uma ventana mui alta.
    Viu andar trez cegadores
    Fazendo sua cegada;
    O mais pequeno dos tres
    Era o que mais trabalhava;
    De seu garbo e gentileza
    A infanta se namorava.
    Ali estava a aia discreta
    Em que toda se fiava:

    «Vês, aia, aquelle ceifeiro
    Que anda n’aquella cegada?
    Condes, Duques, Cavalleiros,
    Nenhum que o ceifeiro valha.
    Vai-m’o chamar em segredo,
    Que ninguem não saiba nada.

    --«Bom cegador vem commigo,
    Que te quer falar minha ama.
    --Eu não conheço a senhora,
    Nem tam pouco a criada.
    --«Cegador de boa estreia
    Trazes a vista mui baixa;
    Alça os olhos e verás
    A estrella da madrugada.
    --Vejo o sol que vem nascendo,
    Não vejo a estrella d’alva.
    --«Estrella ou sol, vens commigo?
    --Irei pois, quem pode manda.

    Entraram por um postigo
    Que a porta ainda era cerrada;
    No camarim da princeza
    O bom do ceifeiro estava.
    --Senhora, que me quereis,
    Pois venho á vossa chamada?
    «Quero saber se te atreves
    A fazer minha cegada.
    --Atrever, me atrevo a tudo,
    Trabalho não me acobarda!
    Dizei vós, senhora minha,
    Onde é a vossa cegada.
    «Não é no monte ou no vale,
    No baldio ou na coutada;
    Cegador, é nos meus braços
    Que de ti estou namorada.

    Lá junto da meia-noite
    Ao cegador perguntava:

    «Dizei-me bom cegador
    De quem eu fico pejada?
    --Eu sou filho de um porqueiro,
    E meu pae porcos guardava.
    «Oh triste de mim, oh triste,
    Oh triste de mim coitada!
    Bem me dizia meu pai:
    Tu hasde ser castigada.
    Pediram-me Condes, Duques,
    Homens de capa e d’espada,
    E agora eis-me aqui
    De um porqueiro deshonrada.


19

O hortelão das flores

(_Variante da Beira Baixa_)

    --Não venho por te vêr, nem por te dar valor,
    Venho por erguer olhos e a vista no sol pôr.
    Falar quero á princeza, o amor me traz rendido,
    A ti peço conselho, velha do tempo antigo.

    «Vista traje mudado, cante em seu bandolim,
    Boquinha de crystal, faces de seraphim.

    --Um bom conselho velha me deste para mim;
    Não farão de mim caso, se me virem assim.
    Com Deos te fica velha mais a tua porfia,
    Mas se eu a render, velha, tens tensa cada dia.
    Eu vou bater o mato, caçar altanaria,
    Mas se ella me escapar em ti me vingaria.

    --Abri lá essas portas, oh hortelão das flores,
    Venho em traje mudado falar aos meus amores.

    --«Senhor podeis entrar, que tendes sempre acerto;
    Senhor, sois Dom Duarte, que bem vos reconheço.

    --Oh que varandas altas, com cem palmos de alteza,
    Diz velho de bom tempo se ali vem a princeza?

    «Para as varandas altas, para tomar a fresca
    Costuma vir sósinha quasi sempre a princeza.

    --Se ella te perguntar quem é o estrangeiro,
    Dize que é um teu filho vindo lá d’outro reino.
    Que varandas tão altas, que jardim bem plantado;
    Soubera o que hoje sei, que o tinha passeado.

    «Oh regador dos cravos venha para mais perto
    Conversar a princeza com prazer discreto.
    Oh regador dos cravos venha para o mirante
    Olhar para a princeza com olhos de diamante.

    --Mandaram-me cá vir, não sei se é verdade.
    --«Tão verdade não fôra, espelho bello e claro.

    --Tendes-me aqui senhora, mandae como a vassallo,
    Já estive em noite escura, agora é dia claro;

    Dae-me, que tenho sêde, um pucarinho de agua!
    --«Aqui vos mato a sêde, espelho bello e claro.

    --A mim não ha quem mate a sêde continuada...
    --«Vem cá falar commigo ámanhã de madrugada.
    Alluga uma burrinha, que o não saiba ninguem,
    Que eu quero para sempre ir d’aqui para alem.

    --Como a levarei, senhora, com quem irá d’aqui?
    Filho d’um corta carne, que apregôa aqui!

    --«Não se me dá que o sejas ou que apregôe aqui.
    --Alluguei a burrinha, vá-se despedir.

    --«Adeos oh fontes claras e poços de agua fria,
    Eu já não ouço aqui rouxinóes ao meio dia.
    Se meu pae perguntar quem é que me queria,
    Dizei que a desgraça não é a que me guia.
    --Cala-te, Magdalena, lagrimas de peregrina!
    Nos reinos estrangeiros melhor agua haveria.
    Tambem ha claras fontes, poços de agua fria,
    E canta o rouxinol á hora do meio dia.

    --«Pareces Dom Duarte! oh que fortuna a minha,
    Tornemos ao palacio a dizel-o á rainha:
    Rainha e mãe senhora, humildo-me ao castigo,
    Aqui está Dom Duarte, que vem por meu marido.
    Rainha e mãe senhora, que pena me acompanha,
    De não achar meu pae senhor de toda a Hespanha.
    Rainha e mãe senhora, humildo-me com dor,
    Não tem a quem pôr culpa, é mui cego o amor.»


20

O Duque da Lombardia (_Variante da Beira-Alta_)

    Por manhã de Sam João,
    Manhã de doce alvorada,
    Ao seu balcão muito cedo
    A Infanta se assomava.
    Viu andar tres cegadores
    Fazendo sua cegada;
    O mais pequeno dos tres
    Era o que mais trabalhava.
    Fitta que traz no chapeo
    De ouro e seda era bordada.
    Fina prata que luzia
    A foice com que ceifava.
    De seu garbo e gentileza
    A Infanta se namorava.
    O ceifeiro vae ceifando...
    Bem sabe elle o que ceifava.

    «Vês, aia, aquelle ceifeiro
    Que anda n’aquella cegada?
    Vae-m’o chamar em segredo,
    Que ninguem não saiba nada.

    Entraram por um postigo,
    Que a porta inda era cerrada;
    No camarim da princeza
    O bom do ceifeiro estava:

    «Quero saber se te atreves
    A fazer a minha cegada?
    --Atrever me atrevo a tudo,
    Trabalho não me acobarda.
    «Não é no monte ou no vale,
    No baldio ou na coutada;
    Cegador é nos meus braços
    Que de ti estou namorada.

    Passou todo aquelle dia,
    O mais da noite passava,
    Ceifando vae o ceifeiro...
    Bem sabe o que elle ceifava.

    «Basta, basta, cegador,
    Feita está tua cegada;
    Vae-te que meu pae não venha
    Antes de ser madrugada.

    Palavras não eram ditas
    El-rei á cama chegava:

    --«Com quem falas, minha filha,
    Tão cedo de madrugada?
    «Falo com esta minha aia,
    Que me tem desesperada;
    Uma cama tão malfeita
    Que dormir me não deixava.
    --«É forte essa tua aia
    Que a barba tem tão cerrada!
    Vista-se já a donzella,
    Que antes de ser madrugada,
    Pelo barbeiro do algoz
    A quero ver barbeada.

    O cegador muito enchuto
    Sua sentença escutava;
    Com uma mão se vestia,
    Com a outra se calçava.
    Saltou no meio da casa,
    Como se não fôra nada:

    --Venha já esse barbeiro
    Com a navalha afiada:
    Ao Duque da Lombardia,
    Verêmos quem faz a barba.

    O imperador mui contente
    Depressa ali os casava:
    Não quiz senhores, nem condes,
    Homens de capa ou de espada,
    Senão só o cegador
    Que andava em sua cegada.
    Sahiu-lhe um Duque reinante,
    Senhor d’alta nomeada,
    Pois tudo é sorte no mundo,
    A sorte foi bem deitada.


21

Romance de Dona Agueda de Mexia

(_Versão do Alemtejo_)

    Era uma menina bella,
    Discreta e bem parecida,
    Dom João a namorava,
    Mil requebros lhe fazia.
    Por fidalgo e gentil moço
    Ninguem tanto a merecia;
    Mas o pae d’aquella moça
    Por melhor conselho havia
    Casal-a com um mercador
    Que áquellas partes vivia.
    Dom João quando isto soube
    Por pouco se não morria:
    Foi se d’ali muito longe
    Sem dizer para onde ia.
    Tres mezes por lá andou,
    Tres mezes n’essa agonia.
    Mandou sellar seu cavallo
    Sem cuidar no que fazia;
    Deitou por esses caminhos
    Sem saber adonde ia.
    O cavallo é quem andava,
    Cavalleiro obedecia;
    Passou por terras e terras
    Nenhuma não conhecia.
    Á sua tinha chegado,
    Onde estava não sabia.

    Té que veio a passear
    Á rua da sua amiga;
    As casas onde morava,
    Janellas aonde a via,
    Tudo é coberto de preto
    Mais preto que ser podia.
    Mandou chamar uma dama
    Por Deos e á cortezia:

    --Dize-me tu por quem trazes
    Ausencias tam doloridas?
    «Trago-as por minha senhora
    Dona Agueda de Mexia,
    Que é com Deos a sua alma,
    Seu corpo na terra fria;
    E por vós foi, Dom João,
    Por vosso amor que morria.

    Dom João quando isto ouviu
    Por morto em terra cahia;
    Os seus olhos não choravam,
    Sua bocca não se abria.
    Mirava a gente em redor
    A vêr o que elle faria.
    Foi-se direito á egreja
    Onde a sua dama tinha:

    --Eu te rogo, sacristão,
    Por Deos e Santa Maria,
    Que me ajudes a erguer
    A campa da minha amiga.

    Ali a viu tão formosa
    Tal como d’antes a via.
    Pôz os joelhos em terra,
    Os braços ao céo erguia;
    Jurou a Deos e á sua alma
    Que mais a não deixaria.
    Puchou por um punhal d’ouro
    Por lhe fazer companhia.
    Permittiu a virgem santa
    A virgem Santa Maria,
    Que se não perdesse uma alma
    E um milagre fazia:
    A defuncta a mão direita
    Ao seu amante estendia,
    Seus lindos olhos se abriram
    A sua bocca sorria;
    Volta á vida que se fôra
    Com todo o amor que não se ia.
    Seu pae o foram buscar,
    Já estava na agonia;
    Vêm amigos, vêm parentes
    Todos com grande alegria;
    E a Dom João dão a esposa
    Que mui bem a merecia


22

Romance do Casamento e mortalha

(_Versão do Minho_)

    Lá das bandas de Castella
    Triste nova era chegada;
    Dom João que vem doente,
    Mal pesar da sua amada.
    São chamados tres doutores
    Dos que têm mais nomeada:
    Que se algum lhe desse a vida
    Teria paga avultada.
    Chegaram os dois mais novos,
    Dizem que não era nada;
    Por fim que chega o mais velho
    Diz com voz desenganada:

    --Tendes tres horas de vida
    E uma está meia passada;
    Essa é para o testamento,
    Deixar a alma encommendada.
    A outra é para os sacramentos,
    Que inda é mais bem empregada;
    Na terceira as despedidas
    Da vossa dama adorada.

    Estando n’estas conversas
    Dona Isabel que é chegada.
    Ergueu os olhos para ella
    Com a vista já turvada:

    --«Ainda bem que vieste,
    Minha prenda desejada;
    Que tanto queria ver-te
    Nesta hora minguada,
    «Tenho fé na Virgem Santa,
    N’ella venho confiada,
    Que me hade ouvir e salvar-te,
    Que teu mal não será nada.
    --«Oh que se eu chegar a erguer-me,
    Minha rosa namorada,
    No vaso d’este meu peito
    P’ra sempre serás plantada,
    Com as bençãos de um Arcebispo,
    E de agua benta regada,
    Com a estóla da santa egreja
    Ao meu coração atada.
    Estando n’estas conversas,
    Sua mãe que era chegada:

    «--Que tens tu, filho querido
    D’esta alma amargurada?
    --«Tenho mãe que estou morrendo,
    Que esta vida está acabada;
    Com só três horas por minhas,
    E uma já meio passada.
    «--Filho de minhas entranhas,
    N’esta hora minguada,
    Lembra-te se algo deves
    A alguma dama honrada.
    --«Minha mãe, que devo, devo,
    E Deos me não peça nada!
    Dona Isabel, que em má hora
    Por mim fica diffamada.
    Mas deixo-lhe mil cruzados
    Para que seja casada.
    «--A honra não se paga, filho,
    Mil cruzados não é nada.
    --«Já lhe deixo mais duzentos
    E a cruz da minha espada.
    «--A honra não se paga, filho,
    Os cruzados não são nada.
    --«Deixo-a a estes tres doutores
    Muito bem encommendada;
    E a vós, minha mãe, vos peço
    Que a tenhaes bem guardada.
    O que com ella casar
    Tem uma villa ganhada;
    O que lhe disser que não
    Tenha a cabeça cortada.
    «--A honra não se paga, filho,
    Nem com terras é comprada:
    Se a essa dama lhe queres,
    Não a deixes deshonrada.
    --«Pois fique esta mão já fria
    Na sua mão adorada;
    De Dom João é viuva,
    Condessa será chamada.


23

Romance da Nau Catherineta

(_Versão de Lisboa_)

    Ora da nau Cath’rineta
    D’ella vos quero contar,
    Sete annos e mais um dia
    Andou nas aguas do mar.
    Não tinham lá que comer,
    Nem mais quê para manjar,
    Deitaram sólas de môlho
    Para o domingo jantar.
    A sóla era tão dura
    Não a puderam tragar.
    Deitam sortes á ventura
    A vêr quem se hade matar!
    Logo foi cahir a sorte
    No capitão general.

    --Sóbe, sóbe marujinho
    Áquelle tópe real,
    Vê se vês terras de Hespanha,
    Ou praias de Portugal.
    «Não vejo terras de Hespanha,
    Nem praias de Portugal,
    Vejo sete espadas nuas
    Todas para te matar.
    --Acima, acima, gageiro
    Áquelle tópe real,
    Vê se vês terras de Hespanha,
    As praias de Portugal.
    «Alviçaras, capitão,
    Meu capitão general;
    Já vejo terras de Hespanha
    E praias de Portugal.
    Tambem vejo tres meninas
    Debaixo de um laranjal:
    Uma sentada a cozer,
    Outra na roca a fiar,
    A mais formosa de todas
    Está no meio a chorar.
    --Todas tres são minhas filhas,
    Oh quem m’as dera abraçar!
    A mais formosa de todas
    Comtigo a heide casar.
    «A vossa filha não quero,
    Que vos custou a criar.
    --Dar-te-hei tanto dinheiro
    Que o não possas contar.
    «Não quero o vosso dinheiro
    Pois vos custou a ganhar.
    --Dou-te o meu cavallo branco
    Que nunca houve outro igual.
    «Guardae o vosso cavallo
    Que vos custou a ensinar.
    --Que queres tu, meu gageiro,
    Que alviçaras te heide eu dar?
    «Eu quero a Nau Cath’rineta
    Para n’ella navegar.
    --A Nau Cath’rineta, amigo,
    É de el-rei de Portugal;
    Mas ou eu não sou quem sou,
    Ou el-rei t’a hade dar.




       III-ROMANCES QUE SE ENCONTRAM NAS COLLECÇÕES HESPANHOLAS


24

Romances do Conde prêso

(_Versão de Trás-os-Montes_)

    Prêso vae o Conde, prêso,
    Prêso vae a bom recado;
    Não vae prêso por ladrão,
    Nem por home’ haver matado.
    Mas por violar a donzella
    Que vinha de Sanctiago.
    Não bastou dormir com ella,
    Se não dal-a ao seu criado!
    Accommetteu-a na serra,
    Mui longe do povoado;
    Por morta ali a deixára
    Sem mais dó, sem mais cuidado.
    Foi á presença do rei
    Onde o Conde era levado:

    «Eu te requeiro, bom rei,
    Pelo Apostolo sagrado,
    Que n’esta sua romeira
    O fôro seja guardado.
    Da lei divina é casar-se,
    Da humana ser degollado;
    Não ha fôro ou privilegio
    Onde Deos é o aggravado.

    Disse o rei aos do conselho,
    Com semblante carregado:

    --Sem mais detença este feito
    Quero já desembargado!
    --«Visto está o feito, visto,
    Julgado está, bem julgado;
    Ou hade casar com ella,
    Ou senão... ser degollado.
    --Pois que me praz, disse o rei,
    O algoz seja chamado;
    Ou já casar com a romeira,
    Ou aqui ser degollado.
    «--Venham algoz e cutello,
    (Respondeu o accusado)
    Antes morrerei mil vezes,
    Antes que ser deshonrado!
    Não me enterrem na egreja
    Nem tam pouco em sagrado:
    N’aquelle prado me enterrem
    Onde se faz o mercado.
    Cabeça me deixem fóra,
    O meu cabello entrançado;
    De cabeceira me ponham
    A pelle do meu cavallo,
    Que digam os passageiros:
    Triste de ti, desgraçado!
    Morreste de mal de amores,
    Que é um mal desesperado!


25

Dom Garfos

(_Variante da Beira Baixa_)

    Lá abaixo vem o Conde,
    Prêso vem, arreatado,
    Não por furtos que haja feito,
    Nem por homens que ha matado;
    Foi por zombar da romeira
    Que vinha de Sanctiago.
    A romeira era nobre,
    A el-rei se ha queixado.
    Mando que case com ella,
    Ou que seja enforcado!

    Não heide casar com ella,
    Nem heide ser enforcado!
    Quem me dera aqui meus pretos,
    Ou meus velozes cavallos,
    Ou meu sobrinho Dom Garfos,
    Que eu me vira bem vingado.

    Palavras não eram ditas
    Dom Garfos era chegado:

    «Quem vos trouxe aqui, meu tio,
    Tão prêso e arreatado?
    Não por furto que haja feito,
    Nem por homens que ha matado?
    --Foi por zombar com a romeira
    Que vinha de Sanctiago;
    A romeira era nobre
    A el-rei se ha queixado.
    Manda que case com ella,
    Ou que seja enforcado.
    Vae tu falar com el-rei,
    A vêr se me ha perdoado.

    Entrou por palacio dentro:

    «Deos vos salve, meu bom rei!
    Mandae-me soltar meu tio,
    Se não eu o soltarei.
    --«Vae Dom Garfos para casa,
    Dorme um somno descançado;
    Das onze pr’a meia noite
    Teu tio será soltado.

    Lá pela noite adiante
    Acordou sobresaltado!
    Disse p’ra sua mulher
    Que um sonho tinha sonhado:

    «Lá no Terreiro do Passo
    Está meu tio enforcado.
    --Não digas isso zombando,
    Que esta noite ouvi um brado.

    Com uma mão veste a capa,
    Com outra sela o cavallo;
    A um pretinho que tinha
    Uma lança lhe ha dado.
    Foi-se ao Terreiro do Paço
    E viu seu tio enforcado!
    «Deos te perdôe, meu tio,
    Deos te tenha perdoado.

    Sete condes caminhavam
    A verem o enforcado;
    A um mata, outro degolla,
    Só um lhe ha escapado;
    E esse mesmo que escapou
    Foi a unha de cavallo.

    --«Oh Dom Garfos, oh Dom Garfos,
    Não sejas desatinado,
    Mataste-me já seis condes,
    Os melhores do meu reinado.
    «E a vós tambem proprio Rei,
    Se cá estivesses em baixo;
    Mas como estaes de ventana
    Palraes nem um papagaio!
    Mas n’uma filha que tendes
    Eu me verei bem vingado.

    Vae Dom Garfos para casa,
    Quatro facadas lhe ha dado:

    «Uma é á honra de tu padre,
    Outra á honra de tu madre;
    Outra por minha saúde
    Que te as haja mui bem dado!
    Outra por seres traidora,
    Que me não has acordado.


26

Justiça de Deos

(_Variante da Beira-Alta_)

    Prêso vae o conde, preso,
    Prêso vae a bom recado;
    Não vae preso por ladrão,
    Nem por homem ter matado,
    Mas por violar a donzella
    Que vinha de Sanctiago:
    Não bastou dormir com ella,
    Senão dal-a ao seu criado.
    Accommetteu-a na serra,
    Mui longe do povoado:
    Por morta ali a deixara
    Sem mais dó, nem mais cuidado.
    Chorou tres dias, tres noites,
    E mais teria chorado,
    Senão que Deos sempre acode
    A amparar o desgraçado.
    Passou por ali um velho,
    Um pobre velho soldado,
    As barbas brancas de neve,
    Em sua espada abordoado.
    Vieiras traz na esclavina,
    O chapeo d’ellas cercado;
    Chegou-se á pobre romeira
    Com muito amor, muito agrado:

    --Não chores mais, filha minha,
    Filha, de mais tens chorado;
    Que esse villão cavalleiro
    Prêso vae a bom recado.

    Levou comsigo a donzella
    O bom velho do soldado,
    Vão á presença d’el-rei
    Onde o conde era levado.

    --Eu te requeiro, bom rei,
    Pelo Apostolo sagrado,
    Que n’esta tua romeira
    O fôro seja guardado.
    Da lei divina é casar-se,
    Da humana ser degollado:
    Que não valem fidalguias
    Onde Deos é o aggravado.

    Disse el-rei aos do conselho
    Com semblante carregado:

    --«Sem mais detença, este feito
    Quero já desembargado,
    «--Visto está o feito, visto,
    Julgado está, bem julgado:
    Ou hade casar com ella,
    Ou senão, ser degollado.
    --«Pois que me praz, disse o rei,
    O algoz que seja chamado;
    Ou já casar com a romeira,
    Ou aqui ser degollado.
    «Venham algoz e cutello,
    Respondeu o accusado:
    Mas antes morrer mil vezes
    Que viver envergonhado.
    Agora ouvireis o velho,
    O bom velho do soldado:

    --Fazeis, bom rei, má justiça,
    Mau feito tendes julgado;
    Primeiro casar com ella,
    E depois ser degollado.
    Lava-se a honra com sangue,
    Mas não se lava o peccado.

    Palavras não eram ditas
    A espada tinha arrojado;
    Despe o gaivão de romeiro,
    Despe as armas de soldado,
    Nos trajos de um santo Bispo
    Apparece transformado!
    Sua mitra de pedras finas,
    De ouro puro o seu cajado;
    Tomou a mão da romeira,
    A mão do conde ha tomado,
    Por palavras de presente
    Ali os tem desposado.
    Choravam todos que o viam,
    Chorava mais o culpado;
    Chorando, pedia a morte
    Por não ficar deshonrado.
    O santo Bispo o absolvia
    Contricto do seu peccado:
    D’ali o levam por morto,
    Que nem o algoz foi chamado;
    Justiça de Deos foi n’elle:
    Antes de uma hora é finado.


27

Romances do Conde Alberto

(_Versão do Porto_)

    Indo Dona Silvaninha
    Pelo corredor acima,
    Tocando sua guitarra,
    Muito bem que a tangia;
    Acordou seu pae da cama
    Com o estrondo que fazia.

    --Que tendes, Dona Silvana,
    Que tendes, oh vida minha?
    «Raparigas do meu tempo
    São casadas, têm familia,
    Eu por ser a mais formosa
    Para o canto ficaria?
    --Não tenho com quem te case
    Neste reino, minha filha;
    Só se fôr o Conde Alberto,
    É casado e tem familia.
    «Mandai-o chamar, meu pae,
    Da sua parte e da minha,
    Que mate sua condessa,
    E case com vossa filha;
    Que traga a cabeça d’ella
    Nesta dourada bacia.

    Eis manda chamar o Conde
    Da sua parte e da filha;
    Matasse a sua condessa,
    Casasse com Silvaninha.
    Veio o Conde mui depressa,
    Mais depressa que podia:

    --Quero mates a condessa,
    Que cases com minha filha.
    --«Como matar a condessa
    Se ella a morte não merecia?
    --Mata, mata, Conde Alberto;
    Antes de uma Ave-maria
    Me traz a sua cabeça
    N’esta dourada bacia.

    Foi o Conde para casa,
    Muito triste que elle ia;
    Mandou fechar seus palacios,
    Cousa que nunca fazia.
    Mandou vestir seus criados
    De luto á maravilha;
    Mandou pôr a sua mesa
    Para fazer que comia.
    As lagrimas eram tantas
    Que pela mesa corria;
    Os suspiros eram tantos
    Que o palacio estremecia.
    Desceu a condessa abaixo
    A vêr o que o Conde tinha:

    »Que tens tu, oh Conde Alberto,
    Que tendes, oh vida minha?
    Conta-me as tuas tristezas
    Como contaes alegrias.
    --«Minhas tristezas são tantas
    Que contar-vos não queria,
    »Conta, conta, Conde Alberto,
    Conta, conta, vida minha.
    --«Manda-me el-rei que te mate,
    Que case com sua filha.
    »Cala-te lá, Conde Alberto,
    Que isso remedio teria:
    Meter-me-has n’um convento,
    Que não veja sol, nem dia;
    Deras-me o pão por onça,
    Agua por uma medida.
    --«Ai! como pode isso ser,
    Condessa da minha vida?
    Diz que te leve a cabeça
    Nesta maldita bacia.
    »Cala-te d’ahi, oh Conde,
    Que isso remedio teria:
    Matarias a donzella
    Que se parece commigo.
    --«Cala-te d’ahi, mulher,
    Que isso não é honra minha.
    »Vou para casa de meu pae
    Nunca mais apparecia.

    Palavras não eram ditas
    El-rei á porta batia:
    Se a condessa era morta,
    Senão elle a mataria.

    --«A Condessa não é morta,
    Anda n’essas agonias.
    »Deixa-me dar um passeio
    Da sala até á cosinha:
      Adeos moças, adeos aias
    Com quem eu me divertia,
    Adeos espelho real
    Onde me via e vestia;
    Que ámanhã por estas horas
    Já estarei na terra fria.
    Dá-me cá esse menino
    Que o quero pentear;
    Dá-me cá o outro mais novo,
    Quero-lhe dar de mammar:
    Mamma, mamma, meu menino,
    Este leite de paixão,
    Que ámanhã por estas horas
    Está tua mãe no caixão.
    Mamma, mamma, meu menino,
    Este leite de pesar,
    Que ámanhã por estas horas
    Vae tua mãe a enterrar.
    Mamma, mamma, meu menino,
    Este leite de amargura,
    Ámanhã por estas horas
    Está tua mãe na sepultura.

    Tocam sinos em palacio,
    Ai, Jesus, quem morreria?

    --Morreu a filha do rei
    Pela soberba que tinha,
    Descasar os bem casados
    Cousa que Deos não queria.


28

Conde Alves

(_Variante da Beira Baixa_)

    Estando a princesa a chorar,
    Filha do rei de Castilla:
    Seu pae se foi ter com ella
    Ao estrondo que fazia:

    --O que é isso, oh Silvana,
    Que é isso, oh filha minha?
    «De tres manas que eu tenho
    São casadas tem família;
    Eu por ser a mais formosa
    Solteirinha ficaria?
    --Não tenho com quem te case
    Na mais alta senhoria;
    Só sendo com o Conde Alves,
    É casado e tem familia.
    «Com esse, meu pai, com esse,
    Com esse é que eu queria;
    Mande-o chamar, meu pae,
    Da sua parte e da minha!
    --Ála, ála, meus criados,
    O Conde Alves vão chamar.
    --«Ainda agora de lá venho,
    Já para lá heide tornar?

    Entrou pelo passo dentro
    Fazendo mil cortezias:

    --«Que me quer a Vossa Alteza,
    Vossa Alteza Senhoria?
    --Quero que mates a Condessa,
    E cases com minha filha!
    --«A Condessa não a mato,
    Que ella a morte não merecia.
    Mando-a deitar aos matos,
    Que os bichos a comeria.
    --Mata, mata, Conde Alves,
    Não me tornes demasia;
    A cabeça me ha de vir
    N’esta dourada bacia.
    Não m’a troques lá por outra,
    Que eu bem a conhecia;
    Que ao seu lado direito
    Um sinal preto teria.

    Foi-se d’ali o bom Conde,
    Cheio de melancholia;
    Mandou fechar suas portas,
    Cousa que nunca fazia!
    Mandou pôr a sua mesa,
    Nem um, nem outro comia;
    As lagrimas eram tantas,
    Que pela mesa corria.

    «--O que é isso, oh bom Conde,
    Que é essa melancholia?
    Conta-me as tuas tristezas,
    Que eu te conto alegrias!
    --«Se eu te contasse tristezas,
    Morta para trás cahirias:
    Mandou o rei que te mate,
    Que case com sua filha.
    «--Isso não, bom conde, não,
    Que eu a morte não merecia;
    Manda-me deitar aos mares,
    Que os peixes me comeria.
    --«Isso não, condessa, não,
    Que o rei logo o sabia,
    A cabeça te hade ir
    N’aquella negra bacia,
    Que te não troque por outra
    Que elle bem te conhecia;
    Que ao teu lado direito
    Um sinal preto teria.
    «--Deixa-me dar um passeio
    Da sala para o jardim:
      Adeos cravos, adeos rosas,
    Adeos flor do alecrim.
    Deixa-me dar um passeio
    Da sala para a cosinha;
    Deixa-me dar de mammar
    Ao filho que tanto queria.
    Mamma, filho, mamma, filho,
    Este leite amargurado,
    Ámanhã por estas horas
    Já teu pai está coroado.
    Mamma, filho, mamma, filho,
    Este leite de amargura;
    Ámanhã por estas horas
    Já estarei na sepultura.
    Anda cá, filho mais velho,
    Que te quero ensinar
    A tua mãe a rainha
    Como lhe haveis de chamar,
    Com o joelho no chão,
    O chapeosinho no ar.

    Estando n’estas razões
    El-rei á porta batia:
    A condessa já é morta,
    Senão elle a mataria.

    --«A condessa não é morta,
    Está n’essas agonias.

    Tocam os sinos na côrte,
    Ai, Jesus, quem morreria?
    Morreu, foi Dona Silvana,
    Por crimes que commettia;
    O pae morreu ás dez horas,
    E a filha ao meio dia.
    Apartar os bem casados
    Era o que Deos não queria.


29

Romances do Conde de Allemanha

(_Versão da Beira-Baixa_)

    Já o sol nasce na serra,
    Já lá vem o claro dia,
    Inda o Conde de Allemanha
    Com a rainha dormia.
    Não o sabia o rei,
    Nem quantos na côrte havia,
    Sabia-o só o princesa
    Juliana sua filha.

    --Juliana, se o sabes,
    Não o queiras descubrir;
    Porque o Conde é muito rico
    De ouro te hade vestir.
    «Não quero seus fatos d’oiro,
    Já os tenho de damasco;
    Inda meu pae não é morto,
    Já me querem dar padrasto!
    As pregas d’esta camisa
    Eu não as chegue a fazer,
    Quando meu pae vier da missa
    Se eu lh’o não fôr dizer.
    As pregas d’esta camisa
    Não as chegue eu a acabar,
    Em meu pae vindo da missa
    Se lh’o eu não fôr contar.

    Estando n’estas rasões
    O pae á porta batia:

    --«Oh que razões serão essas
    Entre uma mãe e a filha?
    «Com bem venha, senhor pae,
    Com Deos seja a sua vinda;
    Tenho para lhe contar
    Um conto de maravilha:
    Estando eu no meu tear,
    Tecendo cambraia fina,
    Veio o Conde de Allemanha...
    --«Algum fio te quebraria?
    Não te zangues, minha filha,
    Nem me faças tu zangar,
    Porque o Conde é divertido,
    Talvez fosse por brincar.
    «Mal o hajam os seus brincos,
    Mais o seu negro brincar;
    Que me pegou por um braço
    E á cama me quiz levar.
    --«Accommoda-te pois, filha,
    Não me faças mais zangar,
    Ámanhã por estas horas
    Vae o Conde a degollar.
    «Levante-se, minha mãe,
    Venha vêr a bizarria!
    E o Conde da Allemanha
    Tambem vae na companhia,
    Com a cabeça n’um prato,
    E o sangue n’uma bacia.
    --Mal o hajas tu, oh filha,
    Fóra o leite que mammaste;
    Sendo o Conde tão bonito
    A morte que lhe causaste.
    «Accommode-se minha, mãe,
    Não me faça mais zangar,
    A morte, que o Conde leva
    Não lh’a faça eu levar.
    --Bem hajas, oh minha filha,
    Mais o leite que mammaste;
    Menina de doze annos
    Da morte que me livraste.


30

O Conde de Allemanha

(_Variante de Trás-os-Montes_)

    Já o sol dava na côrte,
    E já era o claro dia,
    Inda o Conde de Allemanha
    Com a rainha dormia.
    Não no saberia el-rei,
    Nem quantos na côrte havia,
    Sabia-o a Dona Infanta
    Filha da mesma rainha.

    --«Infantinha, se o sabes,
    Não me queiras descobrir,
    Que o Conde é mui brioso,
    De ouro te hade vestir.
    «Não quero vestidos d’ouro,
    Que os tenho de damasco,
    Meu pae ainda é bem novo,
    Já me querem dar padrasto.
    As mangas d’esta camisa
    Não as chegue eu a romper,
    Se quando vier meu pae
    Eu lh’o não fôra dizer.
    Venha, venha, senhor, pae,
    Santa seja a sua vinda,
    Um conto quero contar,
    Um conto á maravilha.
    --Conta, conta, minha filha,
    Que eu gósto do te ouvir!
    «Estando eu na minha cella,
    Dobando seda amarella,
    Veio o Conde de Allemanha
    Tres fios me tirou d’ella,
    --Cala-te lá, oh filha,
    Vamos p’r’a mesa jantar,
    Que o Conde é rapaz novo,
    É menino quer brincar.
    «Mal hajam os seus brinquedos,
    Mal haja do seu brincar,
    Que pegou em mim nos braços,
    Á cama me foi lançar.
    --Dize pois, oh minha filha,
    Que castigo lhe heide dar?
    «Quero escadas dos seus ossos
    Para o jardim passear.
    --Cala-te lá, oh filha.
    Vamos para a mesa jantar,
    Que amanhã por estas horas
    Vae o Conde a degollar.
    --«Arrenego-te, Mariana,
    Mais o leite que mammaste,
    Oh que Conde tão bonito
    E a morte que lhe causaste,
    «Minha mãe, minha mãesinha,
    Venha á janella do canto,
    Venha ver o senhor Conde
    Todo vestido de branco.
    Venha vêr, oh minha mãe,
    Á janellinha do poço,
    Venha vêr o senhor Conde
    Com uma corda ao pescoço.
    Venha, venha, minha mãe,
    Venha p’r’a sala do meio,
    Vêr o Conde da Allemanha
    Feito n’um cravo vermelho.
    --«Mal o hajas tu, oh filha,
    Fóra o leite que mammaste,
    Sendo o Conde tão bonito
    A morte que lhe causaste.
    «Cale-se ahi, minha mãe,
    Ninguem a ouça falar;
    Que a morte que leva o conde
    Não a vá você levar.


31

Romances de Dom Carlos de Montealbar

(_Versão do Porto e Beira-Alta_)

    Estando Dona Silvana,
    Mais Dom Carlos Montealbar,
    Debaixo de uma roseira,
    Debaixo de um rosal,
    Passou por ali um pagico,
    Que nunca elle passasse:

    --Pagico, do que has visto
    A el-rei não vás contar,
    Que eu te dou a minha chave,
    Quanto puderes levar;
    E da parte da senhora
    O que ella te quizer dar.
    «Não quero ouro, nem prata,
    Se ouro e prata me heis dar;
    Quero guardar lealdade
    A quem a devo guardar.

    Pagem, como ignorante,
    A el-rei o foi contar,
    Á casa dos estudantes
    Onde estava a estudar,

    «Deos vos salve, senhor rei,
    E a vossa corôa real;
    Lá deixei o conde Carlos
    Com a princesa a folgar,
    «--Se á puridade o dissesses
    Tença te havia de dar;
    Mas pois tam alto falaste,
    Alto hasde ir a enforcar.
    --«Ganhas-te, mexeriqueiro,
    Com o teu mexericar.
    «Ganhei a morte, senhora,
    E a vida me podeis dar.
    --«Se ella está na minha mão,
    A vida não te heide dar;
    Para outra não fazeres
    Já irás a degollar,
    E ao rabo do meu cavallo
    Te mandarei arrastar.

    Aos sette para outo mezes
    Seu pae que a estava a mirar;

    -«Que me mira, senhor pae,
    Que tanto me está a mirar?
    «--Eu miro-te, minha filha,
    Que me pareces pejada.
    --«Calle-se d’ahi, meu pae,
    Que é das saias mal talhadas.

    Mandou chamar dois obreiros
    A quem elle mais amava,
    Olharam um para o outro:
    »Estas saias não tem nada!

    «--Call’-te, call’-te, minha filha,
    Ámanhã serás queimada!
    --«Não se me dá que me queimem,
    Que me tornem a queimar;
    Da-se-me d’este meu ventre
    Que é de sangue real.
    Ai quem me dera um pagico
    Que me fôra bem mandado,
    Que me levara uma carta
    A Dom Carlos Montealbar.
    «Escreva, minha senhora,
    Em quanto eu vou jantar.
    --«Se elle estiver a dormir
    Façam-no logo acordar,
    Se elle estiver a comer
    Não o deixem acabar.
    «Aqui lhe trago, senhor,
    Novas de grande pesar,
    Que a sua bella menina
    Ámanhã vae a queimar.
    Jornada de trinta leguas
    Temol-a nós para andar.

    Era meia noite em ponto
    Dom Carlos a repousar;
    Chamou um dos seus criados
    O que lhe era mais leal,
    Lhe aparelhasse um cavallo
    Dos que tem melhor andar;
    Doze campainhas d’ouro
    Lhe puzesse ao peitoral.
    Onde vás tu, oh Dom Carlos,
    Sósinho por esse andar?
    Vestiu-se em trajos de frade
    Ao caminho foi esperar.

    --Cesse, cesse, senhor conde,
    Cesse se hade cessar,
    Que a menina que aí vae
    Inda está por confessar.
    «--Confesse-a, senhor padre,
    Em quanto eu vou jantar.
    --Diga-me, minha menina,
    Verdade me hade falar:
    Se algum dia teve amor
    A leigo, crelgo, ou a frade?
    --«Nunca tive amor a crelgo,
    Nem a leigo, nem a padre;
    Tive amores com Dom Carlos,
    Por isso vou a queimar.
    No primeiro mandamento
    O padre nada lhe disse;
    No meio da confissão
    Um beijinho lhe pediu.
    --«Cesse, cesse, senhor padre,
    Cesse se hade cessar,
    Onde Dom Carlos beijou
    Ninguem mais hade beijar.
    --Esse sou, minha senhora,
    Que a venho aqui buscar.

    Tomou-a logo nos braços,
    Puzeram-se a caminhar;
    Correm d’alem os criados
    E puzeram-se a gritar:

    «Senhor padre, deixe a moça,
    Que a manda seu pae queimar!
    --Pois vão dizer a seu pae,
    Que a venha d’aqui tirar.


32

Dona Lisarda

(_Variante da Beira-Baixa_)

    --Oh Lisarda, oh Lisarda,
    Oh Lisarda meus amores,
    Quem dormira uma só noite
    Comvosco n’esses alvores.
    «Dormirieis uma ou duas
    Se não vos fôsses gabar.
    --Tenho feito juramento
    Na folhinha do Missal,
    Menina com quem dormir
    De eu a não ir diffamar.

    Ainda não era manhã
    Ao jogo se foi gabar:

    --Dormi esta noite com uma....
    Não ha na corte uma egual!
    Puzeram-se uns para os outros:
    Quem seria? quem será?
    Aonde estava um irmão
    Á mãe o veio contar;
    A mãe assim que o soube
    Logo a mandou fechar.
    O pae perdeu confiança,
    Lenha lhe mandou cortar.

    «--Oh Lizarda, oh Lizarda,
    O pae te manda queimar.
    «Não se me dá que me queime,
    Nem que me mande queimar;
    Dá-se-me d’este meu ventre
    Que leva sangue real.

    Chegou a uma janella
    Mui triste do coração:

    «Haverá por’hi um pagem
    O qual queira do meu pão,
    Que esse levasse uma carta
    Ao conde de Montalvão?

    Appareceu-lhe um menino
    De sete annos e mais não:

    --«Eu lh’a levarei, senhora,
    Escripta no coração.
    «Se o achares a dormir
    Deixa-o primeiro acordar;
    Se o achares á janella,
    Cartas lhe vás entregar.

    Foi fortuna do menino
    Á janella o ir achar:

    --«Cartas lhe trago, senhor,
    Cartas de muito pesar;
    Menina com quem dormistes
    Ámanhã a vão queimar.
    Não se lhe dá que a queimem,
    Nem que a levem a queimar;
    Dá-se-lhe só do seu ventre
    Que leva sangue real.
    --Ala, ala, meus criados,
    Cavallos ide ferrar,
    Com ferraduras de bronze
    Que não se hajam de gastar.
    Jornada de outo dias
    Esta noite se hade andar.

    Vestiu-se em trajos de frade
    Começou a caminhar;
    Quando chegou ao pé d’ella
    Então já a iam queimar.

    --Quéde, quéde essa justiça,
    Se não a farei quedar,
    A menina que aí levam
    Ainda vae por confessar.
    --Confessae-a, senhor padre,
    Emquanto vamos jantar;
    A confissão é de um anno,
    Ella hade-se demorar.
    --Venha cá, minha menina,
    Faça confissão geral,
    No meio da confissão
    Um beijinho me hade dar.
    «Tenho feito juramento
    Na folhinha do Missal,
    Bocca que beijou o conde
    Frade não hade beijar.

    --Venha cá, minha menina,
    Que a quero confessar;
    No meio da confissão
    Um abraço me hade dar.
    «Não permitta Deos do céo
    Nem os santos do altar,
    Braços que o conde abraçaram
    Frades não hão de abraçar.

    Começa-se elle a sorrir
    No meio da confissão:

    «Pelo rir estás parecendo
    O Conde de Montalvão!
    --Esse sou, minha senhora,
    Criado para a salvar.

    Montou-a no seu cavallo,
    Foi á pressa a caminhar,
    Quando veio a justiça
    Não a puderam alcançar.

    --Digam agora a seus manos ’
    Que a venham cá accusar;
    Digam agora a sua mãe
    Que a venha cá fechar;
    Digam também a seu pae
    Que a mande agora queimar!
    Vae na minha companhia
    Para com ella casar.


33

Dona Areria

(_Variante de Coimbra_)

    A cidade de Coimbra
    Tem uma fonte de agua clara;
    As moças que bebem n’ella
    Logo se vêem pejadas.
    Dona Areria bebeu n’ella
    Logo se viu occupada
    Estando com seu pae á mesa
    Seu pae que muito a mirava:

    --Dona Areria, Dona Areria,
    Parece que estás pejada?
    «A culpa é dos alfaiates,
    Que talharam mal a saia.

    Chamaram-se os alfaiates
    Á sua salla fechada,
    Olharam uns para os outros:
    --Esta saia não tem nada.
    Ao cabo de nove mezes
    Ella será abaixada.

    Arrecolheu-se ao seu quarto
    Muito triste, desmaiada.

    --Dona Areria, Dona Areria,
    Ámanhã serás queimada.

    «Não se me dá que me queimem,
    Que me tornem a queimar;
    Dá-se-me d’este meu ventre
    Que é de mui nobre linhagem.
    Oh quem me dera um criado
    Que me comêra o meu pão;
    Que me levara uma carta
    Ao conde de Montalvão.
    --Escreva, menina, escreva,
    Escreva do coração,
    Que eu lhe levarei a carta
    Ao conde de Montalvão.
    --Aqui tem, oh senhor conde,
    Carta de muito pesar;
    Menina com quem dormiu
    Ella aí vem a queimar.
    --«Se tu me dizes devéras,
    Cavallos mando apromptar;
    A jornada de oito dias
    Ainda hoje se hade andar.
    --Lá ao fim de nove legoas
    Liteiras se hão de encontrar.

    Vestiu-se em trajos de frade
    Ao caminho a foi esperar;
    Em chegando ao pé d’ella
    Aos criados foi falar:

    --«Pára, pára, oh da liteira,
    Que eu te farei parar,
    A menina que vem dentro
    Ella vem por confessar:
    --«Diga-me, minha menina,
    Verdade me hade falar,
    Se teve amores com clerigos
    Ou com frades, mal pesar?
    «Não tive amores com clerigos,
    Nem frades de mal pesar;
    Tive amores com Dom Carlos,
    Por isso vou a queimar.
    --«Lá no meio da confissão
    Um beijinho me hade dar.
    «Onde o conde pôz a bocca
    Padre algum lhe hade tocar.
    --«Pois Dom Carlos sou eu mesmo
    E comtigo heide casar.


34

Romance do Passo de Roncesval (_Versão de Trás-os-Montes_)

    --Quêdos, quêdos cavalleiros,
    Que el-rei os manda contar!

    Contaram e recontaram,
    Só um lhe vinha a faltar;
    Era esse Dom Beltrão,
    Tão forte no batalhar;
    Nunca o acharam de menos
    Senão n’aquelle contar,
    Senão ao passar do rio,
    Nos portos de mal passar.
    Deitam sortes á ventura
    A qual o ha de ir buscar.
    Que ao partir fizeram todos
    Preito, homenagem no altar,
    O que na guerra morresse
    Dentro em França se enterrar.
    Sete vezes deitam sortes
    A quem no hade ir buscar;
    Todas sete lhe cahiram
    Ao bom velho de seu pae.
    Volta redeas ao cavallo,
    Sem mais dizer, nem falar...
    Que lh’a sorte não cahira,
    Nunca elle havia ficar.
    Triste e só se vae andando
    Não cessava de chorar;
    De dia vae pelas montes.
    De noite vae pelo val;
    Aos pastores perguntando
    Se viram ali passar
    Cavalleiro de armas brancas,
    Seu cavallo tremedal?

    «Cavalleiro de armas brancas,
    Seu cavallo tremedal,
    Por esta ribeira fóra
    Ninguem não no viu passar.

    Vae andando, vae andando
    Sem nunca desanimar,
    Chega áquella mortandade
    D’onde fôra Roncesval:
    Os braços já tem cansados
    De tanto morto virar;
    Viu a todos os francezes,
    Dom Beltrão não pôde achar.
    Volta atrás o velho triste,
    Volta por um areal,
    Viu estar um perro mouro
    Em um adarve a velar:

    --Por Deos te peço, bom mouro,
    Me digas sem me enganar,
    Cavalleiro de armas brancas
    Se o viste por’qui passar?
    Hontem á noite seria,
    Horas do gallo cantar,
    Se entre vós está cativo
    A oiro o heide pezar.
    «Esse cavalleiro, amigo,
    Diz’-me tu que signaes traz?
    --Brancas são as suas armas,
    O cavallo tremedal,
    Na ponta da sua lança
    Levava um branco sendal,
    Que lh’o bordou sua dama
    Bordado a ponto real.
    «Esse cavalleiro, amigo,
    Morto está n’esse pragal,
    Com as pernas dentro d’agua,
    O corpo no areal.
    Sete feridas no peito
    A qual será mais mortal:
    Por uma lhe entra o sol,
    Por outra lhe entra o luar,
    Pela mais pequena d’ellas
    Um gavião a voar.
    --Não tórno a culpa a meu filho,
    Nem aos mouros de o matar:
    Tórno a culpa a seu cavallo
    De o não saber retirar.

    Milagre! quem tal diria,
    Quem tal poderá contar!
    O cavallo meio morto
    Ali se pôz a falar:
    --«Não me tornes essa culpa,
    Que m’a não podes tornar;
    Tres vezes o retirei,
    Tres vezes para o salvar;
    Tres me deu de espora e rédea,
    Co’a senha de pelejar.
    Tres vezes me apertou silhas,
    Me alargou o peitoral...
    Á terceira fui a terra
    D’esta ferida mortal.

  VERGEL DE ROMANCES MOURISCOS, CONTOS DE CAPTIVOS, LENDAS PIEDOSAS E
                                XACARAS




              IV--ROMANCES MOURISCOS E CONTOS DE CAPTIVOS


35

Fragmento de um Romance do Cid

(_Versão de Gil Vicente_)

    Ai Valença, guai Valença,
    De fogo sejas queimada,
    Primeiro foste de Mouros
    Que de Christianos tomada.
    Alfaleme na cabeça
    En la mano uma azagaya,
    Guai Valença, guai Valença,
    Como estás bem assentada;
    Antes que sejam tres dias
    De Moiros serás cercada.
    ........................
    ........................


36

Romances de Dom Gayfeiros

(_Versão de Trás-os-Montes_)

    Sentado está Dom Gayfeiros
    Lá em palacio real,
    Assentado ao taboleiro
    Para as tavolas jogar.
    Os dados tinha na mão,
    Que já os ia deitar,
    Se não quando vem seu tio
    Que lhe entra a pelejar:

    --Para isso és Gayfeiros,
    Para os dados arrojar;
    Tua esposa lá têm mouros,
    Não és para a ir buscar.
    Outrem fôra seu marido,
    Já lá não havia estar.

    Palavras não eram ditas
    Os dados vão pelo ar,
    A que não fôra o respeito
    Da pessoa e do logar,
    Tavolas e taboleiro
    Tudo fôra espedaçar:

    --«Sette annos a busquei, tio,
    Sem a poder encontrar;
    Os quatro por terra firme,
    Os tres por cima do mar.
    Andei por montes e valles
    Sem dormir, nem descançar;
    O comer de carne crua,
    No sangue a sêde matar,
    Sangue vertiam os pés,
    Cansados de tanto andar;
    E os sete annos cumpridos
    Sem a poder encontrar.
    Ella estava em Salsonha
    Lá em palacio real!
    Mercê vos peço, meu tio,
    Se m’a vós quizereis dar,
    Vossas armas e cavallo
    Que m’as queiraes emprestar.
    A minha esposa entre mouros
    Eu a quero ir buscar.
    --Minhas armas não te empresto,
    Que as não posso desarmar;
    Meu cavallo bem vezeiro
    Não o quero mal vezar.

    Dom Gayfeiros, que isto ouviu,
    A espada foi a tirar:

    --«Bem parece Dom Roldão,
    Bem parece mal pesar,
    O muito amor que me tendes
    Para assim me affrontar.
    Mandae-me dizer por outrem
    Que me las possa pagar,
    Essas palavras, meu tio,
    Que vos não quero tragar.
    --Bem parece, Dom Gayfeiros,
    Bem se deixa de mostrar,
    Que a falta de annos, sobrinho,
    Em tudo vos faz falar.
    Aquelle que mais te quer
    Esse te hade castigar:
    Fôras tu mau cavalleiro,
    Nunca te eu dissera tal!
    Porque sei que és bom, o disse,
    E agora armar e sellar.
    Meu cavallo e minhas armas
    Ahi estão ao teu mandar,
    E aqui tendes o meu corpo
    Para vos acompanhar.
    --«Só quero ir, meu tio, só
    Para melhor a tirar;
    Venham armas e cavallo,
    Que já me quero marchar.
    «Oh que lindo cavalleiro
    De tão gentil cavalgar!
    --«Melhor sou jogando ás damas,
    Com mouros a batalhar.
    «Se sois christão cavalleiro
    Recado me haveis levar,
    Que digaes a Dom Gayfeiros
    Porque me não vem buscar;
    Pois me querem fazer moira,
    E de Christo renegar.
    Com um rei mouro me casam
    De alem das bandas do mar,
    Dos sette reis da moirama
    Rainha me hão de coroar.
    --«Esse recado, senhora,
    Eu mesmo lh’o heide dar,
    Pois Dom Gayfeiros sou eu,
    Que vos venho a buscar.

    A fala não era dita
    Puzeram-se a caminhar;
    Tirou-a pelo balcão
    Por não haver mais logar.
    Cavalgam, vão caminhando,
    Não cessam de caminhar,
    Por essa moirama fóra
    Sem mais temor, nem pesar;
    Falando de seus amores
    Sem de mais nada pensar.
    Em terras da christandade
    Por fim vieram a entrar,
    As festas que se fizeram
    Não teem conto, nem par.


37

Melisendra

(_Variante de Trás-os-Montes_)

    --Sette annos são cumpridos
    Bem n’os deves de contar,
    Que a Melisendra é cativa
    E a vida leva a chorar.
    Outrem fôra seu marido,
    Já lá não havia estar!

    A seu tio Dom Roldão
    Tal resposta lhe foi dar:

    --«Os sette annos são cumpridos
    Sem a poder encontrar!
    Agora a saber sou vindo
    Que a Salsonha foí parar.
    E eu sem armas, nem cavallo
    Com que a possa ir buscar!
    --Eu sempre te vi com armas,
    Com cavallos a adestrar;
    Agora que estás sem elles
    É que a queres ir buscar?
    --«As vossas armas meu tio,
    Que m’as não queiraes negar;
    A minha esposa cativa
    Como heide eu ir buscar?
    --Em Sam João de Latrão
    Fiz juramento no altar
    De a ninguem emprestar armas
    Que m’as faça acovardar.

    Saltam-lhe os olhos da cara,
    De merencorio falar:

    --«De covarde a mim! ninguem
    Nunca me hade appellidar!
    --Fôras tu mau cavalleiro,
    Nunca te eu dissera tal.

    Dom Roldão a sua espada
    Ali lhe foi entregar:

    --E mais terás o meu corpo
    Para te ir acompanhar.
    --«Mercês, meu tio, heide ir só,
    Só, tenho de a ir buscar.
    --Pois se queres ir só, sobrinho,
    Esta te hade acompanhar;
    Meu cavallo é generoso
    Não o queiras sopear;
    Dá-lhe mais rédea que espora,
    N’elle te podes fiar.

    Andando vae Dom Gayfeiros,
    Andando a bom andar;
    Por essas terras de Christo
    Té á moirama chegar.
    Ia triste e pensativo,
    Cheio de grande pesar,
    Para as portas de Salsonha,
    Sem saber como hade entrar;
    Melisendra em mãos de mouros
    Como lh’a hade sacar?
    Estando n’este cuidado
    As portas se abrem de par,
    El-Rei com seus cavalleiros
    Sahia ao campo a folgar.
    Furtou-lhe as voltas Gayfeiros,
    Pelas portas foi entrar;
    Deu com um christão cativo
    Que ali andava a trabalhar:

    --«Por Deos te peço, cativo,
    E elle te venha livrar,
    Assim me digas se ouviste
    N’esta terra anomear
    A uma dama christan,
    Senhora de alto solar,
    Que anda cativa de mouros
    E a vida leva a chorar?
    «--Deos te salve, cavalleiro,
    Elle te venha ajudar!
    E assim me dê outra vida,
    Que esta se vae a chorar.
    Pelos signaes que me déste
    Já bem te posso affirmar,
    Que a dama que andas buscando
    Em palacio deve estar.
    Toma essa rua direita,
    Que leva ao passo real,
    Lá verás pelas janellas
    Muitas christãs a folgar.

    Tomou a rua direita,
    Que no palacio vae dar,
    Alçou os olhos ao alto,
    Melisendra viu estar
    Sentada áquella janella,
    Tão entregue ao seu pensar,
    Que as outras em redor d’ella
    Não as sentia folgar.
    Rua abaixo, rua acima,
    Gayfeiros a passear:

    «D’onde é o cavalleiro
    De tão lindo passear?
    --«O cavalleiro é christão
    Das bandas d’alem do mar.
    «Se o cavalleiro é christão
    Recado me haveis levar,
    Que digaes a Dom Gayfeiros
    Porque me não vem buscar,
    Em quanto eu presa e cativa.
    A vida levo a chorar.
    --«Esse recado, senhora,
    Vós mesma lh’o haveis de dar;
    Dom Gayfeiros aqui o tendes,
    Que vos vem a libertar.

    Palavras não eram ditas
    Os braços lhe foi a dar,
    Ella do balcão abaixo
    Se deitou sem mais falar.

    Maldito perro de mouro
    Que ali andava a rondar
    Em altos gritos o mouro
    Começava de bradar:

    «--Accudam á Melisendra,
    Que se vae para alem-mar.
    --«Melisendra, Melisendra,
    Agora é o esforçar!

    Aperta a cilha ao cavallo,
    Affrouxa-lhe o peitoral,
    Saltou-lhe em cima de um pulo,
    Sem pé no estribo poisar.
    Tomou-a pela cintura,
    Que o corpo ergueu por lh’a dar.
    Assenta a esposa á garupa
    Para que a possa abraçar;
    Finca esporas ao cavallo,
    Que o sangue lhe faz saltar,
    Os mouros pela cidade
    A correr e a gritar;
    Quantas portas ella tinha
    Todas as foram cerrar,
    Sette vezes deu a volta
    Da cerca sem a passar,
    O cavallo ás outo vezes
    De um salto a foi saltar.
    O rei que vinha da caça
    Lá deitou a desfilar.
    Sentiu logo Dom Gayfeiros
    Como o iam alcançar:

    --«Não te assustes, Melisendra,
    Que é força aqui apear;
    Entre estas arvores verdes
    Um pouco me hasde aguardar,
    Em quanto eu volto a esses perros,
    Que os heide affugentar.
    As boas armas que trago
    Agora as vou a provar.

    «--Renego de ti, christão
    E mais do teu pelejar!
    Não ha outro cavalleiro
    Que se te possa egualar;
    Só se fosse Dom Roldão,
    O encantado sem par.

    --«Calla-te d’aí, rei mouro,
    Calla-te, não digas tal,
    Sou o infante Dom Gayfeiros,
    Roldão meu tio carnal,
    Alcaide mor de Paris,
    Minha terra natural.

    Gayfeiros, senhor do campo,
    Não tem com quem pelejar;
    Cheio de grande alegria
    Melisendra foi buscar:

    «Ai, se vens ferido, esposo,
    E que ferido hasde estar?
    Eram tantos esses mouros,
    E tu só a batalhar!
    Mangas da minha camiza.
    Com ellas te heide pençar;
    Toucas da minha cabeça
    Faxas para te apertar.
    --«Calla-te d’aí, infanta,
    E não queiras dizer tal,
    Por mais que foram-n’os mouros
    Não me haviam fazer mal:
    São de meu tio Roldão
    Estas armas de provar.

    A Paris já são chegados,
    Já sáem para os encontrar,
    Sete leguas da cidade
    A côrte os vae esperar;
    Sahia o imperador
    A sua filha a abraçar:
    Grande honra a Dom Gayfeiros,
    Os parabens lhe vão dar;
    Por sua muita bondade
    Todas o estão a louvar,
    Pois libertou sua esposa
    Com valor tão singular.


38

Romance de Branca-Flor

(_Versão da Extremadura_)

    --Á guerra, á guerra, mourinhos,
    Quero uma christã cativa!
    Uns vão pelo mar abaixo,
    Outros pela terra acima;
    Tragam-me a christã cativa,
    Que é para a nossa rainha.

    Uns vão pelo mar abaixo,
    Outros pela terra acima;
    Os que foram mar abaixo
    Não encontraram cativa;
    Os que foram terra acima
    Tiveram melhor atina.
    Deram com o conde Flores,
    Que vinha da romaria:
    Vinha lá de Sanctiago,
    Sanctiago da Galliza.
    Mataram o conde Flores,
    A condessa vae cativa;
    Mal que o soube a rainha
    Ao caminho lhe sahia:

    «Venha embora a minha escrava,
    Boa seja a sua vinda!
    Aqui lhe entrego estas chaves
    Da dispensa e da cosinha;
    Que me não fio de moiras,
    Que me não dêem bruxaria.
    »Acceito as chaves, senhora,
    Por grande desdita minha!
    Hontem condessa jurada,
    Hoje moça da cosinha.

    A rainha está pejada,
    A escrava tambem o vinha;
    Quiz a boa ou má fortuna
    Que ambas parissem n’um dia.
    Filho varão teve a escrava,
    E uma filha a rainha;
    Mas as perras das comadres,
    Para ganharem alviçaras,
    Deram á rainha o filho,
    E á escrava deram a filha.

    »Filha minha da minha alma,
    Com que te baptisaria?
    As lagrimas dos meus olhos
    Te sirvam de agua bemdita.
    Chamar-te-hei Branca Rosa,
    Branca-Flor d’Alexandria,
    Que assim se chamava d’antes
    Uma irmã que eu tinha.
    Captivaram-n’a os mouros
    Dia da Paschoa Florida,
    Quando andava a apanhar rosas
    N’um rosal que meu pae tinha.

    Estas lastimas choradas
    Veis la rainha que ouvia,
    E co’as lagrimas nos olhos
    Muito depressa accudia:

    «Criadas, minhas criadas,
    Regalem-me esta cativa;
    Que se eu não fôra de cama
    Eu é que a regalaria.

    Mal se alevanta a rainha
    Vae-se ter com a cativa:

    «Como estás, oh minha escrava,
    Como está a tua filha?
    »A filha boa, senhora,
    Eu como mulher parida.
    «Se estiveras em tua terra
    Que nome lhe chamarias?
    »Chamava-lhe Branca Rosa,
    Branca-Flor de Alexandria;
    Que assim se chamava d’antes
    Uma irmã que eu tinha:
    Cativaram-n’a os mouros
    Dia de Paschoa Florida,
    Quando andava a apanhar rosas
    N’um rosal que meu pae tinha,
    «Se vira’la tua irmã
    Se tu a conhecerias?
    »Assim eu a vira nua,
    Da cintura para cima;
    Debaixo do peito esquerdo
    Um lunar preto ella tinha,
    «Ai, triste de mim coitada,
    Ai triste de mim mofina!
    Mandei buscar uma escrava
    Trazem-me uma irmã minha.

    Não são passadas três dias
    Morre a filha da rainha:
    Chorava a condessa Flores
    Como quem por sua a tinha;
    Porem mais chorava a mãe,
    Que o coração lh’o dizia.
    Deram á lingua as criadas,
    Soube-se o que succedia:
    A mãe com o filho nos braços
    Cuidou morrer de alegria.
    Não são passadas tres horas,
    Uma á outra se dizia:

    «Quem se vira em Portugal,
    Terra que Deos bemdizia!

    Juntaram muita riqueza
    D’ouro e de pedraria;
    Uma noite abençoada
    Fugiram da moiraria.
    Foram ter á sua terra,
    Terra de Santa Maria,
    Metteram-se n’um mosteiro,
    Ambas professam n’um dia.


39

Romance da Moira Encantada

(_Versão do Algarve_)

    Meia noite alem ressôa
    Cerca das ribas do mar,
    Meia noite já é dada,
    E o povo ainda a folgar.
    Em meio de tal folguedo
    Todos quédam sem falar,
    Olhos voltam ao castello
    Para ver, para avistar
    A linda moira encantada,
    Que era triste a suspirar.

    --Quem se atreve, ai quem se atreve
    Ir ao castello e trepar,
    Para vencer lo encanto
    Que tanto sabe encantar?

    Ninguem ha que a tal se atreva,
    Não ha que em moiras fiar;
    Quem lá fosse a taes deshoras
    Para só desencantar,
    Grande risco assim corrêra
    De não mais de lá voltar.

    --Ai que linda formosura,
    Quem a pudera salvar!
    O alvor dos seus vestidos
    Tem mais brilho que o luar!
    Doces, tão doces suspiros,
    Onde ouvil-os suspirar?

    Assim um bom cavalleiro
    Se estava a delatar,
    Em amor lhe ardia o peito,
    Em desejos seu olhar.
    Tres horas eram passadas
    N’este continuo anciar,
    Cavalleiro d’armas brancas
    Nunca soube arreceiar,
    Invoca a linda moirinha,
    Mas não ouve o seu falar;
    Nada importa a Dom Ramiro
    Mais que a moira conquistar.
    Vae subir por muro acima,
    Sente os pés a resvalar!
    Ai que era passada a hora
    De a poder desencantar.
    Já la vinha a estrella d’alva
    Com seus brilhos a raiar.
    No mais alto do castello
    Já mal se via alvejar
    A fina e branca roupagem
    Da linda filha de Agar.
    Ao romper do claro dia,
    Para bem mais se pasmar,
    Sahiu do castello uma nuvem,
    Era apenas a pairar.
    Jurava o povo, jurava
    E teimava em affirmar,
    Que dentro d’aquella nuvem
    Vira a donzellinha entrar.
    Dom Ramiro de enraivado
    De não poder-lhe chegar,
    D’ali parte e contra os mouros
    Grande briga vae armar,
    Por fim ganha um bom castello,
    Mas sem moira para amar.


40

Romance de Nossa Senhora dos Martyres

(_Versão do Algarve_)

    Candida Virgem dos Martyres,
    Formosa Virgem Maria;
    Estrella do céo fulgente
    Clara luz do claro dia,
    Contar todos seus milagres
    Quem contal-os poderia?
    De todos o mais patente
    Acha-se ahi n’essa villa
    De Castro-Marim chamada,
    Que já foi da mouraria.
    É este santo milagre
    De tal poder e valia,
    Que em Portugal e Castella,
    E mais ainda em Barberia,
    A quantos bem o conhecem
    Faz espanto e maravilha:

    Era um christão que passava
    Negra vida que tenia
    Debaixo de duros ferros.
    Lá para as bandas de Arzilla
    Cativeiro mais penoso
    Outro christão não havia.
    O perro mouro infiel,
    Que o comprara em Almeria,
    Por seguro se não dava
    De que lhe não fugiria.
    Sempre o maldito do perro,
    Que receioso vivia,
    Maltratar o pobre escravo
    Com ferrenha mão sohia.
    Já invenção lhe faltava
    De como elle o guardaria;
    Mandou fazer um caixão
    Muito forte em demasia,
    E n’elle sem mais detença
    O triste christão mettia;
    Mas por certo inda o não dava
    Apesar do que fazia;
    Aquella mente maldita
    Em mil receios ardia.
    Nova ideia de tormento
    Alma lhe enche de alegria;
    Com uma grossa corrente
    De pés e mãos o prendia,
    E ainda sobre o caixão
    O indino perro dormia!
    Negro pão e agua turva
    Era o manjar que tenia;
    Mas uma ardente esperança
    Que na Virgem Santa havia,
    Vida nova lhe apontava
    Sobre a que já lhe fugia.
    A Virgem Mãe soberana
    Invocava noite e dia
    Para que lhe désse n’alma
    Vigor que se lhe extinguia,
    E de todo o livrasse
    De tão dura escravaria.
    A Santa Virgem dos Martyres,
    Que todo o seu rogo ouvia,
    D’aquelle espirito afflicto
    Muito bem se condoía;
    O caixão, que em terra estava,
    Cercado d’agua se via,
    E com o perro do mouro
    Que em cima d’elle dormia,
    Á tona d’agua boiando
    Tres dias assim corria.
    Já despontava a manhã,
    A manhã de um claro dia;
    Novas areas se mostram,
    Outras céos, outra alegria!
    Da torre o gallo tres vezes
    Este milagre annuncia;
    Os sinos do campanario
    Repicavam á porfia
    Sem que ninguem os tangesse,
    Porque tudo inda dormia.
    O ladrar de muitas cães,
    Em todo o mar percutia.
    Quando o perro ouviu os sinos
    Sobre tudo se doria,
    Que junto de terra extranha,
    Terra que não conhecia,
    Por sua desaventura
    Com seu escravo se via!
    Encalhado em fina areia
    O mesmo caixão se abria,
    Com rosto mais que magoado
    O mouro ao escravo dizia:

    --Christão, que paiz é este
    De tão alta senhoria?
    Na tua terra, christão,
    Cantam gallos á porfia,
    Tocam sinos, ladram cães
    Logo ao despontar do dia?
    --Esta terra sei que é minha.
    Mas eu não a conhecia;
    Na minha terra, senhor,
    Cantam gallos á porfia,
    Ladram cães, repicam sinos
    Logo ao despontar do dia.

    Assombrado o sarraceno
    Do que do christão ouvia,
    Sem mais pergunta fazer-lhe
    Da corrente o desprendia.

    --Ergue-te, christão, perdoa-me
    Todo o mal que eu te fazia;
    Até hoje eras meu escravo,
    Teu escravo sou n’este dia!

    Para vêr este milagre
    Toda a gente ali corria:
    Com seus gibões encarnados
    Os da justiça assistiam.
    Já todos vão, já se partem,
    Caminho da santa ermida;
    O mouro com viva crença
    O baptismo requeria.
    Eis que aos pés da Virgem Santa
    D’agua uma fonte se abria,
    Tão crystallina e tão pura,
    Que a todos pasmar fazia.
    Com esta agua bemdita,
    Agua de tanta valia,
    Foi logo ali baptisado
    O mouro da Barbaria.
    Baptisado o agareno,
    Ao pé da fresca fontinha
    Se formára um lindo mar
    D’aquella agua que corria.
    E para maior milagre:
    Ao cabo de sete dias
    Mesmo no meio das aguas
    Um verde freixo nascia,
    Que o que mais maravilhava.
    Era o vêr como crescia!
    Desde então ficou a Virgem
    Tendo grande romaria;
    De Portugal e Castela
    Tudo ali corre em seu dia,


41

Romances do Cativo de Argel

(_Lição manuscripta do seculo XVII_)

    --Mi madre era de Hamburgo,
    Mi padre de l’Antequera,
    No hubo perro, ni mouro
    Que por mim ni blanca dera;
    Si no um perro Judio
    Que alcançar-me não debera.
    Daba-me una vida mala,
    Daba-me una vida perra,
    De dia a moêr esparto,
    De noche a pizar canella,
    Com uma mordaça na bocca
    Para lhe não comer d’ella.
    Quiz Deos e Santa Maria
    Dar-me uma Ama tam bella;
    Quando perro ia a caçar
    Cataba-me na cabeza.
    Daba-me a comer pan blanco
    Del que El-Rey Moro comia,
    Daba-me a beber bon vino
    Del que El-Rey Moro bebia.
    Muitas vezes me decia:

    «Christiano, vae p’ra tu tierra.
    --Como me heide ir, mi señora,
    Dexar una Ama tam bella!
    «Mais vale tu liberdade,
    Que amores em terra alheia.
    --Como me heide ir, mi señora,
    Se me falta la moneda?
    «Mete a mão en tu faltriquera,
    Docientos dobrões te dera,
    Cento para teu resgate,
    Cento para tua terra.

    --«Vem ali, oh Christiano,
    Quem te dió tanta moneda?
    --Fue un vecino mio
    Venido de minha tierra.
    --«Queres tu, oh Christiano,
    Seres Mouro arrenegado?
    Dera-te os mais lindos olhos
    Que em Argel foram criados.
    --Como me tornarei Mouro,
    E Mouro arrenegado,
    Se eu já tenho em mi pecho
    A Jesus crucificado?
    --«Se eu soubera, Christiano,
    Que eras assim avisado,
    Em dias de tua vida
    Nunca fôras resgatado.
    «Oh, mi padre, oh mi padre,
    Dexe ir el Christiano,
    Que el no me deve nada,
    Debe-me a flor de mi bocca,
    Dou-lh’a por bem empregada.


42

O Cativo

(_Variante de Lisboa_)

    --Eu vinha do mar de Hamburgo
    N’uma linda Caravella;
    Cativaram-nos os mouros
    Entre la paz e la guerra.
    Para vender me levaram
    A Salé, que é sua terra,
    Não houve mouro, nem moira
    Que por mim nem blanca dera;
    Só houve um perro judio
    Que alí comprar-me quizera.
    Dava-me uma negra vida,
    Dava-me uma vida perra:
    De dia pisar esparto,
    De noite moêr canella,
    E uma mordaça na bocca
    Para lhe não comer d’ella.
    Mas foi a minha fortuna
    Dar com uma patrôa bella,
    Que me dava do pão alvo,
    Do pão que comia ella.
    Dava-me do que eu queria,
    E mais do que eu não quizera,
    Que nos braços da judia
    Chorava, que não por ella.

    Dizia-me então: «Não chores,
    Christão, vae á tua terra.
    --Como me heide eu ir, senhora,
    Se me falta la moeda?
    Se fôra por um cavallo
    Eu uma egua te dera,
    Se fosse por um navio
    Dar-te-hia uma galera.

    --Não fôra por um cavallo,
    Não fôra, senhora bella,
    Que está longe Mazagão,
    Ceuta tem voz de Castella.
    Nem por navio não fôra,
    Que eu fugir não quizera,
    Que era roubar a teu pae
    Dinheiro que por mim dera.
    «Toma esta bolsa, christão,
    Feita de seda amarella;
    Minha mãe quando morreu
    Me deixou senhora d’ella.
    Vae-te, paga o teu resgate,
    E ás damas da tua terra.
    Dirás o amor da judia
    Quanto vale mais que o d’ellas.

    Palavras não era ditas
    O patrão que era chegado:

    --Venhaes embora, patrão,
    E vinde com Deos louvado,
    Que agora recado tenho
    De que chega o meu resgate.
    --«Christão, christão, que disseste!
    Olha que é muito cruzado!
    Quem te deu tanto dinheiro
    Para seres resgatado?
    --Duas irmãs m’o ganharam,
    Outra m’o tinha guardado;
    E um anjo do céo m’o trouxe,
    Um anjo por Deos mandado.
    --«Dize-me, oh christão, dize
    Se queres ser renegado?
    Que te heide fazer mouro,
    Senhor de todo o meu estado.
    --Eu não quero ser judio,
    E nem turco arrenegado,
    E não quero ser senhor
    De todo esse teu estado,
    Porque trago no meu peito
    A Jesus crucificado.
    --«Anda cá, oh filha Angelica,
    Dize-me cá, filha amada,
    Se é pelo christão maldicto
    Que ficaste desgraçada?
    «Meu pae, deixe o christão, deixe
    Que elle não me deve nada;
    Deve-me a flor de meu corpo,
    Mas de vontade foi dada.

    Mandou fazer uma torre
    De pedraria lavrada;
    Que não dissessem os mouros:
    A judia é deshonrada.

    «Viola, minha viola,
    Fica-te aqui pendurada;
    Que os amores da Judia
    Vão por essa agua salgada.




                          V--LENDAS PIEDOSAS


43

Jesus Mendigo

(_Versão do Minho e Beira Baixa_)

    Indo um lavrador p’ra arada
          Ai Jesus!
    Encontrou um pobresinho,
          Ai Jesus!
    E o pobresinho lhe disse:
          Ai Jesus!
    Leva-me n’esse carrinho.
          Ai Jesus!

    Levantou-se o lavrador
          Ai Jesus!
    A pôr o pobre no carro,
          Ai Jesus!
    Levou-o p’ra sua casa
          Ai Jesus!
    Para a melhor sala que tinha;
          Ai Jesus!
    Mandou-lhe fazer a cêa
          Ai Jesus!
    Do melhor manjar que havia,
          Ai Jesus!
    E depois da meza posta
          Ai Jesus!
    O pobre nada comia.
          Ai Jesus!
    Mandou-lhe fazer a cama
          Ai Jesus!
    Da melhor roupa que tinha,
          Ai Jesus!
    Por baixo damasco roxo,
          Ai Jesus!
    Por cima cambraia fina.
          Ai Jesus!

    Era meia noite em ponto,
          Ai Jesus!
    O pobresinho gemia.
          Ai Jesus!
    Levantou-se o lavrador
          Ai Jesus!
    A vêr o que o pobre tinha;
          Ai Jesus!
    Achou-o crucificado
          Ai Jesus!
    N’uma cruz de prata fina.
          Ai Jesus!

    --Meu Senhor, quem tal soubera
          Ai Jesus!
    Que em minha casa vos tinha,
          Ai Jesus!
    Mandava fazer preparos
          Ai Jesus!
    Que a minha casa não tinha.
          Ai Jesus!
    «Cala-te, oh lavrador,
       Ai Jesus!
    Não te enchas de phantasia,
       Ai Jesus!
    No céo te tinha guardado
       Ai Jesus!
    Cadeira de prata fina:
       Ai Jesus!
    Outra p’ra tua mulher.
       Ai Jesus!
    Que tambem a merecia.
       Amen Jesus!


44

Romance de Santo Antonio e a Princeza

(_Versão do Algarve_)

    Achava-se em Realmonte
    Com sua côrte real,
    Casada uma princeza,
    Princeza de Portugal.
    De Antonio, santo varão,
    Do seu paiz natural,
    Devota a princesa era,
    Por crença a mais singular;
    Filha infante ella tinha
    Mais formosa que o luar;
    Mas a infante era um anjo,
    E ao céo se foi parar.
    Toda a côrte lá se ajunta
    Para lhe o corpo levar;
    Mas não consente a princeza
    Que o levem a soterrar.
    Tres dias eram passados
    E ainda por sepultar;
    A mãe em continuo pranto,
    Mas a filha a regelar;
    Sómente ella não chorava,
    Que estava a bom resar
    Ao santo varão Antonio
    Que tanto soubera amar;
    A infante encommendava
    Para lhe a resuscitar;
    Com grande fé verdadeira
    Assim começa a orar:

    --«Santo que sois de mi terra
    Onde não ha outro igual,
    Que por todo o mundo andavas
    Noite e dia a milagrar!
    A esta vossa devota
    Vinde por Deos escutar;
    Aquella que vêdes morta
    Mandae-a resuscitar,
    Mais sete dias de vida
    Depois fazei-a expirar:
    Afugentai-me esta ausencia,
    Que a não posso supportar:

    Inda a oração era em meio
    Já no céo ia a entrar:

    --Sete dias tens de vida
    Podes á terra voltar.--
    Disse Deos e santo padre,
    A vida lhe foi a dar.
    Do atahude se erguera
    A infante de Portugal,
    E com divinal semblante
    Á princeza foi falar:

    «Senhora mãe que choraes,
    Onde me quereis guardar?
    Aqui me tendes na terra
    Onde já não sei estar.
    D’entre as virgens me arrancastes,
    Sem saber, por meu pesar;
    Deixae-me, senhora mãe,
    Que eu no céo tenho um altar;
    Eu apenas vim ao mundo
    Para vos vir consolar.
    Prometteis, senhora mãe,
    De não mais por mim chorar?
    --«Assim o prometto, oh filha,
    Podes para Deos voltar:
    Ora por mim tu que és anjo,
    E que no céo tens altar.

    Os sete dias findavam
    Ao nascer de o luar,
    A alma da bella infante
    Para o céo se viu voar;
    O corpo que era de terra,
    Á terra o foram levar.
    Toda a côrte se espantava
    De não ver a mãe chorar.


45

Romances de Iria a Fidalga

(_Versão de Santarem_)

    «Estando eu á janella co’a minha almofada,
    Minha agulha d’ouro, meu dedal de prata,

    Passa um cavalleiro, pedia pousada:
    Meu pae lh’a negou: quanto me custava!

    Já vem vindo a noite, é tam só a estrada...
    Senhor pae não digam tal da nossa casa,

    Que a um cavalleiro que pede pousada
    Se fecha esta porta á noite cerrada.

    Roguei e pedi, muito lhe pezava!
    Mas eu tanto fiz, que por fim deixava.

    Fui-lhe abrir a porta, mui contente entrava;
    Ao lar o levei, logo se assentava.

    Ás mãos lhe dei agua, elle se lavava;
    Pus-lhe uma toalha, n’ella se limpava.

    Poucas as palavras, que mal me falava,
    Mas eu bem sentia que elle me mirava.

    Fui erguer os olhos, mal os levantava,
    Os seus olhos lindos na terra os pregava.

    Fui-lhe pôr a cêa, muito bem ceava;
    A cama lhe fiz, n’ella se deitava.

    Dei-lhe as boas noites, não mo replicava;
    Tam má cortezia nunca a vi usada!

    Lá por meia noite, que me eu suffocava,
    Sinto que me levam com a bocca tapada....

    Levam-me a cavallo, levam-me abraçada,
    Correndo, correndo sempre á desfillada.

    Sem abrir os olhos vi quem me roubava;
    Calei-me e chorei, elle não falava.

    D’ali muito longe, que me perguntava:
    Eu na minha terra como me chamava.

    Chamavam-me Iria, Iria a fidalga;
    Por aqui agora Iria a cansada.

    Andando, andando, toda a noite andava;
    Lá por madrugada que me attentava....

    Horas esquecidas que por mim luctava;
    Nem força, nem rogos, tudo lhe mancava.

    Tirou do alfange... ali me matava,
    Abriu uma cova onde me enterrava.

    No fim de sette annos passa o cavalleiro,
    Uma linda ermida viu n’aquelle outeiro.

    --Minha santa Iria, meu amor primeiro,
    Se me perdoares serei teu romeiro.

    «Perdoar não te heide, ladrão carniceiro,
    Que me degollaste que nem um cordeiro.


46

Santa Iria

(_Variante da Covilhã_)

    «Estando eu a coser na minha almofada,
    Com agulha de ouro e dedal de prata,

    Veio o cavalleiro pedindo pousada,
    Se lh’a meu pae dera, estava bem dada.

    Deu-lh’a minha mãe, que mui me custava,
    Fui fazer a cama no meio da sala.

    Era meia noite, a casa roubada,
    De tres que nós éramos só a mim levava.

    Eram sete leguas, nem fala me dava,
    Lá para as oito é que me perguntava:

    --Lá na tua terra como te chamavam?
    «Lá na minha terra era eu morgada,

    Cá n’estas montanhas serei desgraçada.
    --Por essa palavra serás degollada.

    Ao pé de um penedo serás enterrada,
    Coberta de rama bem enramalhada.

    No fim de sette annos por ali passava,
    E a todos que via lhe perguntava:

    --Dizei-me, pastores que guardaes o gado,
    Que ermida é aquella que alem branquejava?

    --É de Santa Iria bemaventurada,
    Que ao pé de um penedo morreu degollada.

    --Oh minha santa Iria, meu amor primeiro,
    Perdoa-me a morte, serei teu romeiro.

    «Não te perdôo, ladrão carniceiro,
    Que me degollaste, que nem um carneiro.

    Veste-te de azul, que é a cor do céo,
    Se elle te perdoar, perdoar-te quero.


47

Santa Helena

(_Variante do Minho_)

    ’Stando santa Helena
    Á porta assentada,
    Cosendo mui linda
    Na sua almofada,
    Sua agulha de ouro,
    Seu dedal de prata,
    Veio um cavalleiro
    Pediu-lhe pousada.

    «Se meu pae lh’a dera
    Está mui bem dada.

    Entrou para dentro,
    Logo se assentou;
    Fizeram-lhe a ceia,
    Elle não ceiou;
    Fizeram-lhe a cama,
    Então se deitou.
    Lá por meia noite
    Se alevantou;
    De tres irmãs que eram
    Só n’ella pegou.
    Levou-a p’r’o monte
    E lhe perguntou:
    Como lhe chamavam
    E como a tratavam
    .................

    «Em caz’ do meu pae
    Helena fidalga,
    Agora na tua
    Serei desgraçada.

    Puchou pelo alfange
    E logo a matou,
    Cobriu-a de ramos,
    Ali a deixou.
    Findos sette annos
    Por ali tornou:

    --Pastorinhos novos,
    Que guardaes o gado,
    Que ermida é aquella
    Que está n’aquelle adro?
    --É de Santa Helena,
    Morreu degollada.
    --Minha santa Helena,
    Meu amor primeiro,
    Perdoa-me a morte,
    Serei teu romeiro.


48

Romance da Devota da Ermida

(_Versão de Trás-os-Montes_)

    No alto d’aquella serra
    Está uma bella ermida;
    Uma devota está ’nella,
    Serva da Virgem Maria.
    Uma visinha da porta
    Mau testimunho lhe erguia:
    Ella que andava d’amores
    Com um sacerdote de missa!
    Sacerdote se agastava,
    E ella pena não tinha.
    Veio o marido de fóra:

    «Boa seja a vossa vinda,
    Que vos quero perguntar
    Que vae lá por essa villa.
    --Que te confesses, traidora,
    Que te vou tirar a vida.
    «Quer m’a tires, quer m’a deixes,
    Eu confessar-me queria.
    Marido, se me matares,
    Enterra-me na Ermida
    Aos pés de Nossa Senhora,
    Aos pés da Virgem Maria.

    Prenhadinha de oito mezes
    Para os nove corria;
    No cabo dos nove mezes
    Um lindo cantar se ouvia.
    Abriram a sepultura
    Onde a encontraram parida,
    Com uma menina nos braços,
    Que se chamava Maria.

    --Perdoa-me, oh Mariquinhas!
    Perdoa-me, oh mulher minha!
    «Como te heide eu perdoar
    Se a tua alma está perdida?
    A minha está na gloria
    Dos anjos bem assistida.


49

Oração do Dia de Juizo

(_Versão do Minho_)

    Por aquella noite escura
    Morreu uma criatura,
    Com grande arrependimento,
    Sem receber sacramento!
    Suas culpas e peccados
    Foram á face de Christo.

    --Oh meu senhor Jesus Christo,
    Aqui visitar-vos venho;
    Sou a alma mais perdida
    Que tem o vosso rebanho.

    «Escuta, oh alma zellosa,
    Que primeiro te escutei;
    Ensinei-te a benzer,
    Não quizestes aprender.
    Lá te deixei meus jejuns,
    Sempre passaste comendo.
    Lá te deixei meu Calvario,
    Sempre passaste correndo.
    --«Oh meu filho tão amado,
    Oh meu filho tão querido!
    Filho, salva-me aquella alma,
    Pois que se me vae perdendo.
    «Pois a minha Mãe o manda
    Faço o seu mando correndo:
    Sam Miguel pesae as almas,
    Ponde pesos na balança.

    Os peccados eram tantos,
    Foram com elles ao chão!
    Pôz Nossa Senhora o manto,
    Ficaram pesos suspensos:
    Com a graça de Maria
    Ficou a alminha contente!
    Quem esta oração disser
    Um anno continuamente,
    Terá por certo viver
    Lá no céo eternamente.
    Quem a sabe e não a diz,
    Quem a ouve e não a aprende,
    Lá no Dia do Juizo
    Saberá o bem que perde.


50

Romance do Terremoto de Villa Franca do Campo

(_Lição de Gaspar Fructuoso_)

    Em villa Franca do Campo,
      Que de nobre precedia
      Na Ilha de Sam Miguel
      A quantas villas havia,
    Era de mil e quinhentos
      E vinte e dois que corria,
      Vinte e dois dias d’outubro,
      Quarto da lua seria;
    Correu a terra de um monte
      Que da alta serra pendia,
      E com ímpeto furioso
      Sobre a villa se estendia.
    Alí começa a dar gritos
      A gente que se affligia;
      D’elles chamavam por Deos,
      D’elles por Santa Maria.
    Quando chegou a manhã
      Nenhum d’elles perecia;
      Todos cobertos de terra,
      E de grande penedia,
    Que correu d’aquella serra,
      Que sobre a villa jazia.
      Essa gente que escapara,
      Como pasmada morria.
    Outra que viva ficava,
      Vivendo assi, não vivia.
      Aqui chega Frei Affonso,
      E com a tocha que trazia
    Da Ordem de Sam Domingos
      De Toledo reluzia,
      Esse Padre glorioso
      Que da gloria parecia.
    Para consolar o povo,
      Assi falava e dizia:
      --Confessae-vos, irmãos meus,
      Em quanto vos tem o dia.
    Resae todos o rosario
      Da Virgem Santa Maria,
      Edificae-lhe uma Casa,
      Indo a ella em romaria.
    Tomae-a por valedora,
      Que ella por vós rogaria,
      Tende n’ella confiança,
      Que certo vos valeria.
    Não acaba de falar,
      Quando a casa se fazia,
      Uns acarretando pedra,
      Outros madeira á porfia.
    Trabalham moços e velhos,
      Pessoas de grão valia;
      Até as nobres mulheres
      Serviam sem fantazia.
    Trazem telhas e telhados,
      Que no arrabalde havia,
      Como formigas ligeiras
      Andam a quem mais faria.
    Tanto que em poucos dias,
      A Ermida já servia,
      Já celebram missa n’ella,
      Já lá vão em romaria.




VI--XACARAS E COPLAS DE BURLAS


51

Xacara da Linda Pastorinha

(_Versão da Beira-Baixa_)

    --Deos te salve, Rosa,
    Lindo seraphim!
    Linda pastorinha
    Que fazeis aqui?

    Que fazeis pastora
    Por essa ribeira?
    Tirae-vos ao sol,
    Do sol que vos queima.

    «O sol não me queima,
    Que estou calejada
    Do rigor da chuva,
    Do rigor da calma.

    --Tão gentil senhora
    A guardar o gado,
    Ao longo do rio
    Tão bem repastado.

    «Criado tão nobre
    Com meias de seda!
    Olhe não as rompa
    Por essa resteva.

    --Sapatos e meias
    Tudo romperei,
    Pela pastorinha
    Tudo eu farei.

    «Por altas montanhas
    Ouço gritar gado;
    São as ovelhinhas
    Que me tem faltado.

    --Dê-me cá a cesta,
    Tambem o cajado,
    Que eu lh’as vou buscar
    Com todo o cuidado.

    «Vá-se embora, homem,
    Não me dê tormento;
    Não o posso vêr
    Nem por pensamento.

    --O que está de ingrata,
    Tão impertinente!
    Homens não são lobos
    Que comam a gente.

    «Eu se sou ingrata
    Faço muito bem;
    Quero ser ingrata,
    Assim me convem.

    --O teu gado, Rosa,
    Eu aqui t’o trago:
    Um formoso moço
    Para teu criado.

    Não tenha esse medo
    Que o gado se perca,
    Por aqui passarmos
    Uma hora de sésta.

    «Vá-se d’aí, negro,
    Não me dê mais pena;
    Que aí vem meus amos
    Trazer-me a merenda.

    --Isso é que eu quero
    Que venham seus amos;
    Quero que elles saibam
    Que falamos ambos.

    «Tal razão como essa
    Não a ouvirei;
    Já dirão meus amos
    Que de mais tardei.

    --Diga-lhe, menina,
    Que se demorou
    Com esta nuvem d’agua
    Que tudo molhou.

    «Va-se d’aí, homem,
    Não me dê tormento;
    Não o quero vêr
    Nem por pensamento.

    --Que tem a menina
    Que está agastada?
    No meu coração
    Trago-a retratada.

    Uma vez que quer
    Que me vá embora,
    Lá verá o gado
    Que vae serra fóra.

    «Se vae serra fóra
    Pois deixal-o ir;
    Se o não matarem
    Tornará a vir.

    --Por altas montanhas
    Corre grande p’rigo;
    Oh linda pastora
    Queira vir commigo.

    «Não é de homem nobre
    O dar tal conselho,
    Pois quer que se perca
    O gado alheio.

    --O gado alheio
    Não quero se perca;
    Quero que tenhamos
    Uma hora de sésta.

    «Guardemos a sésta
    Lá para depois;
    Eu quero saber
    Quem é que vós sois.

    --Sou filho da côrte,
    Assisto em palacio;
    Linda pastorinha
    Dae-me um abraço.

    Já me vou embora
    Pela serra acima,
    Linda, pastorida
    Dae-me a despedida.

    «Venha cá, oh homem,
    Venha aqui correndo;
    O amor é cego,
    Já me vae rendendo.

    --Se você me chama
    Eu me vou andando,
    Que a aposta que fiz
    Já a vou ganhando.

    «Bem sei o que queres,
    Queres um abraço;
    O abraço se o deres
    Dá bem apertado.

    O abraço se o deres
    Dá-m’o apertado,
    Para apagar penas
    Que commigo trago.

    --O abraço que der
    Não tem má tenção,
    Cala-te lá, Rosa,
    Que sou teu irmão.

    Quer ella a menina
    Que demos um brado
    Á gente do povo
    Que accudam ao gado?

    «Oh gente do povo
    Accudi ao gado,
    Que foge a pastora
    Com o seu namorado!

    Eu quero fugir,
    Que é ventura minha;
    Depois de pastora
    Irei ser rainha.

    -Se a pastora foge,
    Deixal-a fugir,
    Nem cravos, nem rosas
    Lhe hão de accudir.

    Digo-te a verdade,
    Do meu coração:
    Não sou teu esposo,
    Mas sou teu irmão.

    Digo-te a verdade,
    Oh meu camarada;
    A aposta que fiz
    Já cá vae ganhada.


52

Xacaras dos Conversados

(_Versão de Coimbra_)

    Fui indo áquella casa
    Com pequena confiança,
    Com o sentido apurado,
    Já com a minha lembrança.

    Fui indo ali aos domingos
    E dias santos do anno;
    Procurando a certeza,
    Ou então o desengano.

    Já n’isso lhe ia tocando
    Cora boa sinceridade;
    Para vêr se ella me tinha
    Parte de alguma amisade:

    --Oh que estado tão bonito
    De solteiro bem logrado;
    Mas pretendo a menina
    Se quizer mudar de estado.

    «A resposta ao seu recado
    Eu lh’a darei quando fôr,
    Eu não lhe dou a certeza
    Sem sabêr seu interior.

    --P’ra saber meu interior
    Quinze dias lhe heide dar;
    Bem pode tirar inculcas
    Para se certificar;

    «Vá indo e vá voltando,
    A resposta eu lh’a darei;
    Se você me fôr leal,
    Eu sempre firme serei.

    --Que palavrinhas tão doces,
    Com ellas me consolou;
    Se você jura ser firme,
    Eu tambem leal lhe sou.

    «Sou a mesma que aqui estou,
    E lhe torno a affirmar,
    Se você de mim pretende
    Trate de a meu pae falar.

    --Se essa é a sua duvida
    Eu já d’ella a vou tirar,
    Falando eu a seu pae
    Quero com você casar.

    «Commigo pode contar,
    A certeza eu lh’a darei;
    Se meu pae lhe der o sim,
    Eu sempre firme serei.

    --Eu já com seu pae falei,
    Elle me disse prudente:
    Se você quizer ser minha,
    Da sua parte é contente.

    «Não o diga a muita gente
    Por murmuração não dar;
    Que isto anda em segredo
    Em quanto se não falar.

    --Quero recommendar
    Algumas recommendações,
    Temos tratado de tudo
    Faltam agora os pregões.

    «São boas recommendações
    Com que se deve importar,
    Tratemos de os fazer
    E na egreja os ir prantar.

    --Já os banhos são corridos,
    Estamos apregoados;
    Vamos agora tratar
    Do dia d’este noivado.

    «E bem dado esse recado,
    Commigo pode contar,
    Espere mais algum tempo
    P’ra me poder arranjar.

    --Ora vâmos lá com isso,
    Deos lhe a saude conserve,
    Eu tenho casa e vida,
    Não tenho quem m’a governe.

    «Se não tem quem lh’a governe
    Já não é por muito tempo;
    É emquanto não arranjo
    O fato do casamento.

    Eu com isso fui contando,
    Ella ficou descansada;
    Estando na fonte um dia
    Pedi-lhe um pucaro de agua:

    --Que pucaro tão formoso,
    Que agua tão saborosa!
    Tomára ser seu esposo
    P’ra você ser minha rosa.

    «Se essa agua é gostosa
    E gosto que Deos lhe deu;
    Sendo você meu esposo
    Já sua rosa sou eu.


53

A Conversada da Fonte

(_Versão de Penafiel e Coimbra_)

    --Entre canas e canaes
    Agua deve de nascer;
    Menina que estaes na fonte
    Dê-me agua, quero beber.

    «Por um pucarinho novo
    E rodeado de flores,
    Quem me fôra tão ditosa
    Que désse agua aos meus amores.

    Que désse agua aos meus amores
    Mais á Senhora da Guia;
    Diga-me, senhor manata,
    Se vem por alguma via.

    --A via por que aqui venho
    Eu lhe digo na verdade,
    Venho por passar o tempo
    Que é cousa da mocidade.

    «Essa sua mocidade
    Já me vieram dizer,
    Que a sua sabedoria
    Se occupava em saber ler.

    --Não sei ler, nem escrever,
    Nem tambem tocar viola;
    Eu desejava aprender
    Na sua real eschola.

    «Na minha real eschola
    Você não hade aprender,
    Andam mestres mais bonitos
    Desejosos de saber.

    --Oh minha gaia menina,
    Que tão forte me falaes,
    Se até aqui mui vos queria,
    Agora vos quero mais.

    «Ainda mais vos quero eu
    Da raiz do coração;
    Mas tambem comtudo isso
    Não haveis de pôr a mão.

    --Oh que lindas, oh que lindas,
    Pois ellas assim serão?
    Dá-me licença, menina,
    Para vêr como ellas são?

    «A licença vós a tendes,
    Mas por ora ainda não;
    Não haveis de ser o gabo
    Que lhe haveis de pôr a mão.

    --Eu a mão não vol-a ponho,
    Nem menos bulo comvosco;
    Só de estar ao pé de ti
    D’isso faço muito gosto.

    «Tendes gosto desgostae,
    Que não é por via vossa;
    Esta rosa que aqui vêdes
    Já é d’outro, não é vossa.

    --Se ella é d’outro e não é minha,
    Inda o póde vir a ser;
    Menina, diga a seu pae
    Que nos mande arreceber.

    «Isso não lhe digo eu,
    São palavras escusadas,
    Que eu sou rapariga nova
    Para ir governar casas.

    --Outras de menor edade
    São casadas, tem marido,
    Assim serás tu, oh Rosa,
    Quando casares commigo.

    Casarei, não casarei
    Quando vier outra vez;
    Diga, menina, a seu pae
    Que elle tambem assim fez.

    «O recado está dado,
    Vós, magano, vós o déstes;
    Se já sabeis o caminho
    Tornae por onde viestes.

    --O caminho bem o sei,
    Por elle heide de tornar,
    Se vós me deres a prenda
    Que eu aqui venho buscar.

    «Eu a prenda não a dou,
    Que a tenho na janella,
    Para dar ao meu amor,
    Que faz grande gosto d’ella.»


54

Os estudos de Coimbra

(_Versão de Penafiel_)

    --Os estudos de Coimbra
    Para te amar aprendi;
    Com penas e saudades
    Uma carta te escrevi.

    «Com penas e saudades
    O meu coração chorou;
    A carta que me escreveste
    Ainda cá não chegou.

    --Antoninha, cara linda,
    Eu queriate falar;
    A vergonha me retira,
    O amor me faz chegar.

    «Eu falar-te, falaria
    De todo o meu coração;
    Quem me dera adivinhar
    Qual era a tua tenção.

    --A minha tenção é boa,
    Mas é só para comtigo;
    Se eu saír d’esta terra
    Heide-te levar commigo.

    «Eu comtigo não iria,
    Que diria a minha gente?
    Que ficava d’esta terra
    Desterrada para sempre.

    --Oh menina não se assuste,
    Não é caso de assustar;
    Se eu em fama te meter,
    Da fama te heide livrar.

    «Eu a fama não a tenho,
    Mas ella me póde vir;
    Fale baixo, não acorde
    Meu pae, que está a dormir.

    --Teu pae, que está a dormir,
    Está em somno socegado;
    Dize-me, oh minha menina,
    Se eu serei do teu agrado?

    «Oh do meu agrado é,
    Que mais o não pode ser;
    Ausente da tua vista
    Melhor me fôra morrer.


55

Xacara do Cego andante

(_Versão da Beira-Baixa_)

    --Abre a porta, Anna,
    Abre o teu postigo;
    Dá-me um lenço, amor,
    Que venho ferido.

    «Se vindes ferido,
    Vinde muito embora;
    Porque a minha porta
    Não se abre agora.

    --Abri-me vós a porta,
    Ao menos o postigo;
    Venham dar esmola
    Ao pobre ceguinho.

    «Acorde, minha mãe,
    Acorde de dormir;
    Ande ouvir o cego
    Cantar e pedir.

    --«Se elle canta e pede,
    Dá-lhe pão e vinho;
    E o pobre do cego
    Que vá a seu caminho.

    --Não quero o seu pão,
    Não quero o seu vinho,
    Só quero que a menina
    Me ensine o caminho.

    --«Péga, minha filha,
    Na tua roca e linho,
    Vae ao triste cego
    Ensinar o caminho.

    «Espiou-se a roca,
    Acabou-se o linho,
    Agora adiante, cego,
    Lá vae o caminho.

    --Ande a menina
    Mais até alem,
    Que eu ainda sou cego
    E não vejo bem.

    Ande a menina
    Mais um boccadinho;
    Ande mais até
    Áquelle verde espinho.

    Ande a menina
    Por este carreiro;
    Ando até áquelle
    Verde centeio.

    Ai, arreda, arreda
    Para este altinho;
    Que aí vem cavalleiros
    Por esse caminho.

    «Adeos, minhas casas,
    Adeos minhas terras,
    Adeos minha mãe,
    Que tão falsa me eras;

    De Condes e Duques
    Me vi pretendida;
    Agora de um cego
    Me vejo vencida.

    Que gente é aquella
    De cavalleria?...
    --Ai, arreda, arreda
    Para este altinho.

    Se vem cavalleiros,
    Vem devagarinho,
    Que ha muito me tardam
    Por este caminho;

    É a minha mãe
    Mais sua madrinha,
    Que a vem buscar
    Para a terra minha.


56

Xacara da Moreninha

(_Versão do Porto_)

    Frei João se levantou
    N’uma bella madrugada,
    Chega á porta da Morena.
    Da Morena engraçada:

    --Abre-me a porta, Morena,
    Morena da minha alma.
    «Comote heide abrir a porta,
    Frei João da minha alma?
    Tenho o menino nos braços
    O meu marido á ilharga.
    --«Com quem falas, mulher minha,
    A quem dás as tuas falas?
    «Falo com a padeirinha,
    Se cozia ou se amassava;
    Se cozia pão de trigo ’
    Que lhe não botasse agua;
    Se cozia pão de ló
    Uma pinguinha bondava;
    Levantae-vos, meu marido,
    Levantae a vossa casa,
    Mandae as moças á lenha,
    E os criados buscar agua;
    Que o melhor coelhinho
    É o que sae de madrugada.»

    Seu marido que saía,
    Ella muito se aceiava;
    Seu sapato de setim,
    Que de polido estalava;
    Sua mantinha de seda,
    Que o ventinho levantava.
    Chega á porta do Convento
    Por Frei João perguntava;
    Frei João que tal ouvia
    Por vir a correr saltava,
    Pegou-lhe pela mãosinha
    E para a cella a levava;
    Deu-lhe muito de comer,
    Deu-lhe muita marmelada,
    Deu-lhe um copinho de vinho
    Do melhor que a Ordem dava:

    --Fica-te embora, Morena,
    Morena da minha alma,
    Vou á Egreja de Sam Pedro
    Dizer a missa cantada.

    No meio do Evangelho
    O calix cahiu da mão;
    Acodiu o Provincial
    E toda a Religião:

    --O que é isto, meus peccados!
    O que é isto, Frei João?
    --São amores da Morena
    Que trago no coração.

    Moreninha que tal viu,
    Saíu muito apaixonada,
    Já no meio do caminho
    Seu marido encontrava:
    --«D’onde vindes, mulher minha?
    Que vindes tão arreiada?
    «Venho de fazer visitas
    A quem veio á nossa casa.
    -«D’onde vindes, mulher minha,
    Que vindes tão insentada?
    Ou tu me temes a morte,
    Ou tu não és bem fadada!
    «Eu a morte não a temo,
    Pois d’ella heide morrer;
    Temo só os meus meninos,
    D’outra mãe podiam ser.
    --«Confessa-te, mulher minha,
    Faz acto de contrição,
    Que te não tornas a vêr
    Nos braços de Frei João.


57

Xacara do Soldado

(_Versão de Trás-os-Montes_)

    Lá se vae o capitão
    C’os seus soldados á guerra;
    Duzentos eram quintados,
    Eram duzentos de leva.
    Se todos elles vão tristes,
    Um mais que todos o era;
    Baixa traz a sua espada,
    Seus olhos postos em terra.
    Lá no meio do caminho
    O capitão lhe dissera:
    --Porque vás triste, soldado,
    Essa paixão por quem era?

    «Não é por pae, nem por mãe,
    Nem por irmão que eu tivera,
    É pela esposa que deixo,
    Lá tam só na minha terra.
    Este cordão de ouro fino,
    Que sete arrateis bem péza,
    Mais me pesa a mim leval-o,
    Que ao partir lh’o não dera.
    --Soldado, tens sette dias
    Para que voltes a vel-a.
    Se a encontrares chorando,
    Fica sete annos com ella:
    Senão, nem mais uma hora
    Terás de aguardo ou de espera.

    Quem saltava de contente
    O meu soldadito era;
    Deixou estrada direita,
    Por atalhos se mettera.
    Inda não é meia noite
    Á sua porta batera.

    --«Quem bate á minha porta,
    Quem bate com tanta pressa?
    «É um soldado, senhora,
    Que vos traz novas da guerra.
    --Mal haja as novas que traz
    E mais quem veio trazel-as!
    Ergue-te tu, minha vida,
    Assoma-te a essa janella;
    Despede-me esse soldado,
    Que a tam má hora aqui chega.
    --Amigo, vindes errado
    Co’as vossas novas da guerra;
    Deixae-nos dormir em paz,
    Que bem precisamos d’ella.
    Foi-se d’ali o soldado
    Mais prompto do que viera:

    «Bem haja o meu capitão
    Pelo bem que me fizera!
    Com sette dias de aguardo....
    Nem sette horas carecêra
    Para me quitar saudades,
    Livrar-me de toda a pena!
    Tomae lá, meu capitão,
    Os mimos da minha terra,
    Este cordão de ouro fino,
    Que agora inda mais me pésa;
    Minha mulher não precisa,
    Que os primos podem mantel-a.
    --Pois tua mulher tem primos,
    E tu vinhas com dó d’ella?


58

Xacara do Toureiro namorado

(_Versão da Beira-Baixa_)

    Lá acima em Catalunha,
    Junto ao pé de Sevilha,
    Correm os moços um touro
    Que admirar-se podia.
    O touro era tam bravo,
    Ninguem esperal-o queria!
    Nomearam capitão
    Um moço da mesma villa:
    Calçava meia de seda,
    Seu sapato de palmilha,
    Com seu chapeo aprumado
    Com tres plumas que tinha.
    Volta pela rua abaixo,
    Volta pela rua acima,
    Ergueu os olhos ao céo
    A vêr a hora que seria.
    Vae da uma para as duas,
    Já passava do meio dia.

    --Alerta, álerta soldados,
    Álerta, nobre companhia;
    Deitem o touro cá fóra,
    Que já passa do meio dia.

    O touro era tam bravo,
    Ninguem esperal-o queria!
    Esperava-o aquelle moço
    Para mostrar valentia.
    Sette voltas deu ao curro,
    Outras sette á mesma villa;
    Metteu-lhe a chave direita
    Entre a sóla e a palmilha.
    Não lhe accudiu pae, nem mãe,
    Nem irmã, que a não tinha;
    Accudiu-lhe uma esposa
    Pelo amor que lhe tinha,
    Accudiu-lhe toda a gente
    Pela lastima que via.

    --Se eu morrer d’esta morte,
    Como d’ella estou esperado,
    Não me toquem a campana,
    Nem me enterrem em sagrado,
    Enterrem-me áquella quina
    Aonde foi o namorado.


59

Xacara da Tecedeira

(_Versão da Beira-Alta_)

    --Quero fazer uma aposta,
    Ou eu não sei apostar:
    De dormir com Mariana
    Antes do gallo cantar.
    «Tal cousa não faças, filho,
    Que não a hasde ganhar;
    Mariana é mui sisuda,
    E não se deixa enganar.

    Não quiz ali dizer nada,
    Não quiz ali mais falar;
    Vestiu traje de donzella,
    Ao jardim foi passear,

    «Quem é aquella donzella,
    Que alem anda a passear?
    --«É a tecedeira, senhora,
    Que vem das praias do mar;
    Tem a sua têa urdida
    E a falta vem-na buscar.
    «Essa falta eu a tenho,
    Mas não a posso dobar.
    --Dobe-a já, minha senhora,
    Trate de a mandar dobar;
    De noite pelo caminho
    Donzellas não hãode andar.
    «Para a honra da donzella
    Aqui hade hoje poisar.
    --Tendes criados tão moços,
    Mui atrevidos no olhar!
    «Para a honra da donzella
    No meu quarto hade ficar.

    A donzella de contente
    Á noite não quiz cear,
    Estava a cahir com somno
    Que se quiz logo deitar.
    Lá por essa noite adiante
    Mariana de gritar!

    --Cala-te, oh Mariana,
    Não te queiras desgraçar;
    Tinha a têa já urdida
    A falta vim a buscar.
    Aos sete para outo mezes,
    Sem o teu pae reparar,
    Quando te vires pejada
    Eu comtigo heide casar.


60

Despedida de Lisboa

(_Versão de Coimbra_)

    Dom João, que Deos guarde,
    Aviso mandou ao mar,
    Que se aparelhasse o Conde
    Para uma manhã largar.
    O Conde se aparelhou,
    De uma maneira tão bella!
    Era meia noite em ponto,
    Deitou o tiro de leva.
    Deitaram a lancha a terra
    Para a maruja embarcar,
    Uns abordo, outros na praia,
    Outros na lancha a chorar.
    Deitaram novos apitos
    Encastoados em ouro;
    Oh que bello commandante
    Que leva o real thesouro!
    Deitaram novos apitos
    Encastoados em prata;
    Oh que bello commandante
    Que leva a real fragata!
    Deitaram novos apitos
    Encastoados em latão;
    Oh que mestre e contra-mestre,
    Tão malvado guardião.

    Adeos oh Beato Antonio,
    Melhor cousa de Lisboa!
    Deos nos leve a salvamento
    A esta coverta bôa.
    Adeos oh Caes do Tejo,
    Aonde está o cativo;
    Eu me encommendo ao santo
    Que me livre d’este perigo!
    Adeos Fundição de cima
    Do armamento d’el-rei;
    Eu cá vou n’esta viagem,
    Não sei quando tornarei.
    Adeos oh venda do pezo,
    Onde se vende o azeite;
    Adeos Praça da Figueira,
    Adeos saloias do leite.
    Adeos oh caza da India,
    Despacho do algodão;
    Adeos oh caixões do assucar,
    E os faiantes do torrão.
    Adeos Terreiro do Paço,
    Adeos do Paço terreiro;
    Adeos memoria real
    Que és de Dom José Primeiro.
    Adeos tambem Arsenal
    Onde se fazem navios,
    Adeos escalér real,
    És fama dos algarvios.
    Adeos, adeos Corpo Santo,
    Armazem dos pucarinhos,
    Adeos oh moças bonitas,
    Adeos quartilhos de vinho.
    Adeos castellos e torres
    Da cidade de Lisbôa;
    Que eu cá vou n’esta viagem
    Na Corveta Nova Gôa.


61

Á Freira arrependida

(_Versão da Beira-Baixa_)

    Não sei para que nasci
    De tão bello parecer;
    Formosa e gentil mulher,
          E tão bonita.

    Metteram-me a capuchinha
    Cá n’este pobre mosteiro,
    Onde pago por inteiro
          Meus peccados.

    Nunca me faltam enfados
    Em cuidar em tal clausura,
    Pois se me faz noite escura
          Ao meio dia.

    Nunca terei alegria,
    Nem no mundo a pode haver,
    Em cuidar que heide comer
          Em refeitorio.

    Lá juncto ao dormitorio
    Onde dormem as mais madres,
    Suspiram por seculares
          Cá entre nós.

    Em vêr que dormimos sós
    Me causa grande agonia,
    Pois lá pela noite fria
          Já me alevanto.

    Agora faço o meu pranto,
    Já me desvaneço em choro,
    Em cuidar que heide ir ao côro
          Rezar matinas.

    Rezando as horas divinas,
    Lá por esses corredores
    Me lembram os meus amores,
          Por quem morro.

    Toda a minha cella corro,
    Indo-me ver ao espelho;
    Meu rosto já vejo velho,
          Sem que eu queira.

    E a abbadeça ligeira,
    Como malvada leôa,
    Manda que tanjam a Nôa
          E a disciplina.

    Triste, coitada, mofina,
    Que estás mettida entre redes,
    Entre tão fortes paredes,
          Em casa escura.

    A meu pae tórno a culpa.
    E a meus irmãos tambem,
    Podendo casar-me bem,
          Me desterraram.

    A meu pae aconselharam
    Que me não désse o meu dote;
    Porque era melhor sorte
          O ser freira.

    Avisaram a porteira,
    Tambem a madre abbadeça,
    Que me mettesse em cabeça
          Que casaria.

    Eu como menina cria,
    Cuidando que era verdade,
    Que qualquer freira ou frade
          Casar podia.

    Toda a gente me dizia
    Que fosse sem arreceio;
    Que havia aqui mais recreio,
          Divertimento.

    Agora que estou cá dentro,
    Que ainda casar podia,
    Eu vejo-me noite e dia
          Aqui fechada.

    Mais valêra ser casada,
    De noite embalar meninos,
    Do que andar a tocar sinos
          No campanario.

    Quando tudo é solitario
    E estão todas a dormir,
    Ainda estou a carpir
          Mágoa tamanha.

    Minha mãe, que Deos a tenha,
    Deos lhe dê contentamento;
    Deixou no seu testamento
          Que me casassem.

    E se bem não me esposassem,
    Que me botem d’aqui fóra;
    E da casa arrenegasse
          Que não tem homem.




                                 NOTAS


Muitos trovadores provençaes, vendo inutil a galanteria de suas
canções, sem esperança de abrandarem o coração ou pelo menos de
alcançarem um sorriso das castellãs, precipitaram-se na empreza das
Cruzadas; era a resolução extrema a que se entregavam, ao acaso das
peregrinações e dos combates, em vez da vida ociosa dos castellos e das
côrtes do amor, que mais satisfazia a sua natureza meridional. Quando
a Europa, se alevantava levada pelo sentimento religioso, com a idêa
no sancto Sepulchro, o trovador ía acompanhado pelo desalento para
esquecer o sepulchro dos seus amores--a Provença. Assim se espalharam
as grandes tradições cavalheirescas, repetidas na Italia, em Portugal,
Hespanha e na Grecia moderna; tradições que se não prendiam a algum
facto historico, que versavam quasi sempre sobre peripecias e situações
então produzidas pelo estado social: ora se vê um peregrino que pede,
tocando na theorba, hospedagem em seu castello para reconhecer a
fidelidade de sua dama; ora um mancebo volta da guerra ainda a tempo
para salvar a noiva de um casamento forçado; umas vezes uma donzella
disfarça-se em trajos de guerreiro; outras vezes é a historia de uma
romeira accommettida por algum conde em altas serras, aonde ninguem
lhe pode valer. Não se prendendo as versões a facto particular da
historia, eram mais promptamente acceitadas na tradição oral, que as
accommodava ao gosto da phantasia popular, e á prosodia dos differentes
dialectos do Meio Dia da Europa. O povo guardava na memoria o romance
ligeiro, com que o trovador peregrino, na sua passagem, pagava a
hospitalidade; ía-o repetindo, e o recordar-se era como crear novamente
sobre as impressões que tinham ficado: assim dramatisava mais aquellas
partes em que o trovador fôra conciso, era mais plangente onde lhe
falara á paixão, e prescindindo completamente das transições que não
comprehendia. Pons de Capduelh, enamorado trovador da dama Mercoeur,
vae morrer na Palestina, inconsolavel pela morte d’aquella que nunca
lhe acceitou os galanteios; Gancecem Faidit, depois de amar sete annos
a esquiva Maria de Vantadour, alista-se na Cruzada para se tornar mais
digno d’ella; Pierre Vidal, na sua doudice, parte levando na alma
a imagem de Adelaide de Roquemartine, e na imaginação a conquista
do Oriente. D’este poeta encontram-se documentos da sua passagem em
Portugal.

A vinda dos Cruzados pelo Mediterraneo á Terra Santa, e o auxilio que
prestavam na conquista de Lisboa, fazem crer que pelas narrações das
viagens e dos arraiaes espalhassem entre nós essas grandes tradições
cavalheirescas do cyclo carolino, que então percoriam a Europa. Os
factos levam-nos a estas inducções. Existem na poesia popular da Grecia
moderna alguns romances cavalheirescos communs ao Meio Dia da Europa;
espalharam-se ali na tradição pela passagem dos Cruzados. Falando
do romance piemontez, _A Guerreira_, o cavalheiro Nigra determina
as similhanças que se dão entre elle e um canto slavo publicado por
Tommaseo nos seus _Canti Greci_, _illirici_, e com outro canto grego
que traz o conde de Marcellos nos _Cantos da Grecia moderna_; por este
facto assigna-Ihe a Provença por origem, passando para ali no tempo
das Cruzadas. Este romance é em tudo similhante á versão portuguesa
da _Donzella que vae á guerra_, e accresce a circunstancia de ser uma
tradição do líttoral, porque é omissa nas collecções hespanholas.
Um facto analogo se dá com o romance portuguez da _Noiva roubada_,
e com o romance da _Dona Infanta_, cujos paradigmas se podem ver na
citada collecção do conde de Marcellus. Se estes cantos foram levados
para a Grecia pelos Cruzados, e se encontram tambem entre nós, não é
destituida de fundamento a inducção, posto que não pizemos o campo da
historia.


=1 e 2--Romances da Dona Infante.=--São estes romances os mais
repetidos na tradição oral; um allude ao tempo das Cruzadas; no
outro, mais moderno, o Brazil substitue na imaginação do povo o
ponto para onde converge a aventura cavalheiresca. A origem d’estes
romances é litteraria; na _Esposa Fiel_ de Juan Ribera se determina
ella visivelmente. (Duran, Romancero general, n.º 318) Encontram-se
paradigmas nos _Cantos populares da Grecia moderna_, (pag. 152, 162
e 163) no romance catalão de _Brancaflor_, na collecção ingleza de
Percy (Liv.I, p. 261) na Ballada allemã de _Liebesprobe_ (Deutsches
Balladenbech, S. 14) nos cantos da França e da Italia (Du Puymaigre,
_Vieux auteurs castillans_, p. 389). Pode com certeza affirmar-se que é
um dos principaes romances communs aos povos do Meio Dia da Europa.


=3, 4 e 5--Romances de Dom Martinho de Avisado.=--Quasi todos os
romances portuguezes são de origem castelhana e ainda se encontram nos
Romanceiros hespanhoes. _A donzella que vai á guerra_ não apparece
n’essa collecção; apesar d’isso Garrett não o julga originalmente
portuguez. Fala d’este romance Jorge Ferreira de Vasconcellos (Scena I,
acto III; fol. 84 da Aulegraphia) conhecido no seculo XVI pelo _Rapaz
do Conde Daros_. Versões d’elle se encontram no Alemtejo, Extremadura,
Minho, Trás-os-Montes, Beira Alta, Beira Baixa, Açores e Lisboa; a
donzella que vae á guerra, segundo cada provincia, ora se chama Dom
Martinho de Avisado, Dona Leonor, Dom Carlos, Dom João e Dom Barão. Foi
pela primeira vez publicado por José Maria da Costa e Silva nas notas
ao seu poema _Isabel ou a heroina de Aragão_, em 1832. M. Nigra, em
seus interessantissimos estudos da poesia popular do Piemonte (Revista
Contemporanea de Turin, novembro de 1858) publíca um romance piemontez,
intitulado a _Guerreira_, que é como uma variante da versão portugueza:

«Porque choraes, meu pae, porque Choraes? Se tendes de ir á guerra,
eu irei por vós; apromptai-me um cavallo que possa levar-me bem, e um
bom pagem em quem me possa fiar. Tomae meus vestidos cinzentos, dae-me
umas calças e um _gonel_, e com a minha pequena fita fazei-me um laço
sobre o chapéo.» Quando chegou a Nice, eis que sobe aos bastiões: «Oh!
vêde-a! que linda pequena vestida de rapaz!» O filho do rei estava á
janella, a miral-a: «Oh! que pequena tão bella: se ella quizesse ser
minha! Oh minha mãe, minha mãe, ella é uma rapariga! Oh que pequena
tão bella: se ella quizesse ser minha! «--Se queres saber quem é,
leva-a a casa de um negociante; se fôr uma donzella, só ha de comprar
luvas.--Olhae, meus soldados, olhae para estes guantes!--Soldados
que vão á guerra não têm frio nas mãos.--Oh minha mãe, minha mãe, é
certamente uma donzella! Oh que pequena tão linda: se ella quizesse ser
minha!--Se queres saber quem é, leva-a a casa de um ourives; se fôr
uma rapariga, ha de comprar um annel.--Olhae, meus soldados, vêde que
anneis tão bellos.--Soldados que vão á guerra só precisam de espadas
e punhaes.--Oh minha mãe, minha mãe, é certamente uma donzella. Oh que
rapariga linda! Se ella quizesse ser minha!--Se queres saber quem ella
é, leva-a para dormir comtigo. «Ella apagou o candil e mandou para lá
o seu creado.» Oh minha mãe, minha mãe, é certamente uma donzella! Que
rapariga, linda! se ella quizesse ser minha!--Se queres saber quem
é, fal-a passar na agua; se for uma donzella, não se ha de querer
descalçar. Ella despiu uma perna, quando chegou uma carta; a carta diz
que lhe dêem a sua baixa. A pequena a meio caminho se poz a cantar:
«Donzella estive na guerra, donzella voltei de lá».

No romance portuguez também se encontra esta prova do banho, e da carta
que o pagem lhe traz, mas continúa, porque o capitão acompanha-a na
volta á patria e vem a casar com ella. Na licção dos Açores, que traz
Garrett, (t. III, pag. 65) termina egualmente o romance com um conceito
engraçado:

    Sette annos andei na guerra
    E fiz do filho barão,
    Ninguem me conheceu nunca,
    Senão o meu capitão;
    Conheceu-me pelos olhos,
    Que por outra cousa não.

M. Nigra encontrou tambem na Servia vestigios d’este romance. Posto que
se não ache nos Romanceiros hespanhoes, Jorge Ferreira na Comedia da
_Aulegraphia_ traz uns fragmentos em castelhano:

    Pregonadas son las guerras
    Da Francia contra Aragone...
    Como los haria triste
    Viejo, cano o peccador?...

que fazem suppor ter elle existido primitivamente n’esta lingua,
attendendo á grande importancia que o castelhano tinha na corte
portugueza. Tommaseo recolheu nos seus _Canti greci_, _illirici_, etc.,
um canto slavo, cuja similhança com o canto piemontez e portuguez faz
suppor uma origem commum. Tommaseo publicou tambem um canto grego
moderno. Qual será essa origem commum? M. Nigra diz que «os cantos
romanescos communs á poesia romanesca das raças latinas devem, sem se
hesitar, ser considerados como vindos e muitas vezes originarios da
Provença, etc.» M. Nigra julga este romance do tempo das Cruzadas,
passando da Provença para os paizes Slavos e para a Grecia. É o unico
modo como se pode explicar o seu apparecimento na poesia popular das
duas Peninsulas. (Du Puymaigre, _Vieux Auteurs Castillans_, Append. p.
462 e 465.)


=6--Romance de Gerinaldo=--São muitas as influencias das tradições do
norte sobre a poesia do nosso povo. O Conde _Niño_ tem um final como
o romance de Tristão e Yseult; a _Imperatriz Porcina_, de Balthasar
Dias, encontra-se na lenda de _Hildegarda_, recolhida por Jacob Grimm.
O romance de _Reginaldo_ pertence ao cyclo carlingiano; não nos veiu
através da Hespanha, como a maior parte dos romances carolinos; os
dois romances recolhidos das folhas volantes publícados no _Romancero
general_ de Duran (1849-51, tomo I, p. 175 e 176,) differem muito do
nosso; o primeiro é incompleto, e o segundo tem uma côr mourisca da
fronteira. Em cada provincia dão ao pagem feliz diversos nomes; no
Alemtejo _Generaldo_, no Minho e Porto _Girinaldo o atrevido_, e na
Beira, segundo descobriu primeiro Garrett, chamam-lhe _Eginaldo_,
que é a traducção mais proxima de _Eginhart_. Quasi todos os nomes
dos personagens carolinos foram aportuguezados pelo nosso povo, como
Valdovinos, Reinaldos de Montalvão, Roldão, Oliveiros, Beltrão,
Dones Ogeiro, transformados de Bauduin, Reynaud de Monteauban,
Roland, Olivier, Bertrand, Ogier le Danois. O romance portuguez de
_Reginaldo_, tal como corre no Alemtejo, Extremadura, Beira Alta,
Beira Baixa, Minho, apesar de todas as differenças de acção nas
variantes, aproxima-se o mais possivel da tradição, que Jacob Grimm
recolheu do _Chronicon Laurishamense_, (ed. Manheur, 1768, in 4.º, I,
f. 40, 46) e que Vicente de Bauvais refere ao tempo de Henrique III:
«Eginhart, primeiro camarista e secretario de Carlos Magno, alcançou,
pelos bons e leaes serviços na corte, a estima de todos, e sobretudo
o amor de Emma, filha do Imperador. Estava promettida em esponsaes
ao rei da Grecia; e quanto mais o tempo do casamento se aproximava,
mais a intima inclinação d’Eginhart e de Emma se fortificava em seus
corações. Detinha-os o medo de que o rei não viesse a descobrir esta
paixão e se enfurecesse. Por fim o mancebo não pode dominar os seus
transportes; revestiu-se de coragem, e, não podendo communicar com
a joven princeza por algum confidente, veiu protegido pelo silencio
da noite ao quarto d’ella. Bateu levemente á porta do aposento, como
se viera mandado pelo rei, e entrou. Ali protestaram o mutuo amor,
e regosijaram-se nos abraços tão ardentemente desejados. Eis que,
ao romper da alvorada, o mancebo ao retirar-se viu que havia cahido
durante a noite muita neve, e não se atrevia a dar passo da soleira
da porta, porque as pegadas de homem o teriam logo trahido. N’esta
perplexidade, os dois amantes resolveram o que haviam de fazer, e
a menina concebeu um plano atrevido: quiz a toda a força pegar em
Eginhart aos hombros, e antes do rasgar da manhã levou-o até á porta
do seu quarto, e voltou cuidadosamente sobre as mesmas pegadas. Logo
n’esta noite não tinha o imperador pregado olhos; levantou-se, e
mal raiavam os primeiros alvores, se poz a olhar para os jardins do
palacio. Então viu passar por debaixo das janellas a filha, que vergava
sob o doce, mas carregado pezo, e que, depois de o haver deposto,
correu rapidamente sobre os primeiros passos. O imperador firmou-se
bem, para se não enganar, e ao mesmo tempo se sentiu tocado de dor e
admiração; comtudo calou-se. Eginhart que sabia muito bem que mais
hoje ou amanhã chegaria o caso aos ouvidos do rei, resolveu-se, e veiu
ter com seu amo, deitou-se-lhe aos pés, pedindo que o despedisse,
a pretexto de que seus fieis serviços não eram suficientemente
recompensados. O rei ficou silencioso por longo tempo, e refreiou seus
sentimentos; alfim prometteu ao joven de lhe dar uma prompta resposta.
No entanto formou um tribunal, reuniu os primeiros e mais íntimos
conselheiros, e descobriu-lhes que a magestade real fôra ultrajada
pelo commercio amoroso de Emma com o secretario; e em quanto ficaram
todos surprehendidos com a nova de um crime tão inaudito e grave,
explicou-lhes como se haviam passado as cousas, e como observara tudo
com os proprios olhos; depois, quando acabou, pediu-lhes parecer
sobre o facto. A maior parte dos conselheiros, homens prudentes e
inclinados á doçura, foram de voto que o rei pronunciasse de motu
proprio sobre esta circunstancia. Carlos, depois de haver considerado
o caso em todas as suas faces, reconheceu n’este acontecimento o dedo
da Providencia, resolveu usar de clemencia, e casar os dois amantes.
Applaudiram todos com alegria a moderação do rei, que mandou chamar
o secretario e lhe falou assim: «Ha mais tempo devera ter compensado
melhor os teus serviços, se me tivesses já manifestado o teu pezar;
agora quero, em recompensa, dar-te em casamento minha filha Emma, pois
que ella propria, levantando sua cintura, te quiz levar aos hombros.»
Immediatamente deu ordem para que chamassem a filha, que appareceu
muito córada, e em presença da assembleia foi casada com o enamorado.
Deu-lhes um rico dote em bens immoveis, em ouro e em prata: e depois da
morte do imperador, Luis-le-Debonaire fez-lhes presente, por um acto
particular de doação, de Michlinsadt, no Maingan. Os dois amantes,
depois de mortos, foram enterrados n’esta referida cidade. A tradição
oral do paiz conserva ainda a sua memoria, e a floresta vizinha, se
se der credito a esta tradição, se chamou _Odenwald_, porque uma vez
Emma se dirigiu a ella exclamando «O _duwald_! «Oh tu, floresta.»
(_Tradições allemãs_ de Jacob Grimm, ed. franceza de 1838, t. II, p.
149, 152.) O nosso romance popular apenas differe d’esta tradição em
lhe faltar a pequenissima circumstancia da neve e das pégadas. Em nada
altera a acção; os trovistas do Meio Dia só tiraram da tradição os
episodios que conheciam; descreveram a paixão como a sentiam; pintaram
a natureza como estavam costumados a vel-a. É assim qne se transplantam
e naturalisam as tradições e as formas poeticas. Garrett, no engraçado
estudo com que precede a sua versão de Reginaldo, quer achar na ballada
ingleza de _Little Musgrave and Lady Barnard_ uns longes de semilhança
com o nosso romance: (Percy’s _Reliquis_, XI, secç. III, book the
first), o que o leva a julgar a tradição de todos os paizes; no romance
de _Blancefleur_ ha o mesmo episodio do sonno dos dois amantes (v.
2363). Este assumpto era da predilecção dos menestreis populares;
representa a acção que, segundo Edgar Quinet (Revoluções de Italia)
exerceu a poesia provençal, isto é--a fusão do elemento aristocratico
e feudal com o povo, pelo sentimento; a nossa lenda dos amores de
Bernardim Ribeiro e da infanta Dona Beatriz, promettida ao duque de
Saboya, tambem se parece bastante com a de Eginhart, accommodada ao
gosto de uma civilisação mais conveniente. No romance de Reginaldo se
encontram costumes dos povos do norte; o imperador, quando encontra o
pagem dormindo com sua filha,

    Tira el-rei seu punhal d’oiro,
    Deixa-o entre os dois mettido,
    O cabo para a princeza,
    Para Reginaldo o bico.
    Foi-se a virar o pagem,
    Sentiu-se cortar no fio:
    --«Accorda já, bella infanta,
    Triste sonno tens dormido!
    Olha o punhal do teu pae,
    Que entre nós está mettido.»

Tambem no thalamo de Brunhilde e Sigurd, e na pyra, se collocou entre
ambos uma espada (Ampère, _Litterature du Nord_; Michelet, _Origines_,
p. 32). Já nos romances de cavalleria, quando o esposo encontra Yzeult
dormindo com o amante entre a relva, retira-se tranquillo, porque ha
entre ambos uma espada (Michelet, _Histoire de France_, t. II, c.
1, prope finem). A significação d’este symbolo cavalheiresco era o
respeito, como ainda no seculo XV se usava, quando o procurador do
archiduque Maximiliano desposou Maria de Bourgonha, e dormiu com ella
separado por uma espada núa. (Grimm, _Antiguidades do Direito Allemão_,
p. 170.) No romance popular o cabo voltado para a princeza e o fio
para o pagem, denota aquelle symbolo juridico da Lei Ripuaria: «que
uma mulher livre que desposasse um escravo contra a vontade da familia
devia escolher entre a espada e a roca, que o rei ou o conde lhe
apresentassem. Se pegava na espada, era preciso que ella matasse com
suas mãos o escravo; se escolhesse a roca, devia permanecer tambem na
escravidão.» (Lex Rip. 58, 18, d’après Michelet, _Origines_, p. 31.) Na
Hespanha havia tambem um costume em que a mulher renegava o marido de
inferior condição depois de morto, e tornava a alcançar os seus fóros.

Uma das verdades da poesia popular é o seu apparecimento logico; o
romance de _Gerinaldo_ encontra-se em Hespanha e Portugal, justamente
até onde se estendeu a acção da poesia provençal; o genio hespanhol,
impulsionado pelo sentimento cavalheiresco da _honra_, e o caracter
portuguez, dominado pela integridade do _dever_, acceitam esta creação
dos trovadores da Provença, em que a dama do solar, a filha do hidalgo
se deixa amar por um homem de condição inferior. Cumpre citar aqui a
auctoridade de Edgar Quinet no seu brilhante livro das _Revoluções de
Italia_: «A feição caracteristica dos trovadores é que quasi todos são
filhos de servos que, pelo acaso do genio, pela elevação do coração,
se acham por instantes em uma relação de egualdade ficticia com a
aristocracia feudal. Entrando no solar o filho do povo, o trovador,
todo emoção, ingenuidade, alma, poesia, paixão, é immediatamente
deslumbrado pelo encanto da dama sua soberana; ousa apenas levantar os
olhos para ella. D’onde resulta, que pela sua propria origem, o amor
dos trovadores nasceu de relações inteiramente novas, que repugnavam á
antiguidade, em que a mulher se torna o forte, e o homem fica o ente
fraco. As relações dos sexos estão invertidas: é a mulher que protege,
e o homem que necessita do apoio. Do lado d’ella está a auctoridade,
o mando, o pleno poder; para elle ha só timidez, a submissão do
servo. O trovador dedica-se a uma pessoa, que das alturas sociaes em
que está collocada o domina, o opprime com a superioridade; é sempre
para elle um ser inaccessivel.» (p. 80). Em outro logar o profundo
pensador dá ainda mais relevo a esta idea: «O começo da sociedade
moderna é a alliança da castellã e do filho do povo sobre os confins
da barbaria; n’este laço chimerico, n’este momento de extasis que
aproxima as duas extremidades da humanidade e casa duas condições que
no decurso dos seculos estiveram sempre desunidas, está verdeiradamente
encerrado o nascimento civil do mundo moderno. Emancipação real do
escravo pelo amor d’aquella a quem elle pretence, instincto manifesto
de fraternidade social, egualdade das almas, tudo está contido nestes
esponsaes invisiveis da dama nobre com o humilde servo» (p. 85). Todos
estes sentimentos nos são despertados ao lêr o romance de _Gerinaldo_;
é incontestavelmente de origem provençal, e tanto que até pode servir
como prova do pensamento luminoso de Quinet. Cada vez nos convencemos
mais do que uma vez disse Jacob Grimm: que não ha uma só mentira na
poesia popular.

Este romance canta-se em Freixo de Espada á Cinta; é mais breve do que
na lição de Garrett; differe em pequenas circumstancias, e no desenlace
principalmente. El-rei vae dar com o pagem dormindo com a infanta por
causa de um sonho, um pezadello sinistro, _que bem certo lhe sahia_; no
_Reginaldo_ de Garrett, é já dia e não apparece o pagem para trazer os
vestidos a el-rei, caso que o leva a serias desconfianças. Na versão do
Alemtejo remata com um epigramma: el-rei castiga o pagem dando-lhe a
filha por mulher. O final do romance, como traz o Romanceiro de Garrett
(t.II, p. 161), parece não pertencer-lhe, como ampliação que afrouxa
as situações; antes parece mais uma addição do romance hespanhol de
_Virgílios_. Nas collecções hespanholas o romance de Gerinaldo termina
sem a ampliação da versão de Garrett.

O romance de _Gerinaldo_ encontra-se no Romanceiro de Duran; a primeira
versão (n.º 320) é a das Asturias, aonde se encontram tambem vestigios
da Náu Catherineta, e uma versão da _Rainha e Captiva_. A segunda
versão (n.º 321), tambem anonyma, é um romance que os cegos vendem
em folha volante, aonde se não encontra a segunda parte do Reginaldo
de Garrett, que é visivelmente uma interpollação. Na Andaluzia ha um
_Corrio_ ou romance tradicional de Gerinaldo:

=Carrerilla de Gerineldo=

    «D’onde vienes, Gerineldo,
    Tan triste y tan affligido?
    --Vengo del jardin, señora,
    De regar flores y lirios.
    «Gerineldo, Gerineldo,
    Mi camarero es Pulio
    El que te pondrá esta noche
    Tres horas á mi servicio.
    --Como suy vuestro criado,
    Señora, os burlais comigo.
    «No me burlo, Gerineldo,
    Que de veras te lo digo:
    A la una de la noche
    Has de venir al castillo,
    Con zapatitos de seda,
    Para que no seas sentido.»
    Esto le digo la Infanta,
    Y al punto se ha despedido,
    Diciendole Gerineldo:
    --Señora, será cumplido.

    DURAN, t. I. p. 177.


=7--Romance da Noiva roubada=--Na bella collecção dos _Cantos populares
da Grecia moderna_, feita pelo conde de Marcellus, na quinta parte,
que encerra as legendas, se encontra uma intitulada o _Rapto_, em tudo
semelhante ao romance portuguez. Eil-a:

«Em quanto estava assentado e comia a uma mesa de marmore, meu cavallo
nitriu e o meu sabre estrepitou. Disse então para mim: Casam a minha
bella; abendiçoam-na com outro; para outro a corôam, desposam-na, e
dão-lhe outro marido. Levanto-me e vou direito aos cavallos, que são
ao todo setenta e cinco: qual é dos meus setenta e cinco cavallos, o
que pode faiscar no Levante e dar consigo no Poente? Todos os cavallos
que me ouvem gotejam sangue; todas as eguas que me escutam abortam.
Mas um velho, um velho corcel, com quarenta feridas: «--Eu sou velho e
feio, não me dou com as viagens; mas pelo amor da minha bella senhora
emprehenderei a corrida, porque ella me trazia de comer no avental
arregaçado, e de beber na cova da sua mão.» Sella immediatamente o
cavallo, e immediatamente o monta. «Cinge a cabeça com uma toalha de
nove almas, não puches a redea, nem craves as esporas, porque isso
me lembraria a minha mocidade, e eu seria como um pôtro e semearia os
teus miollos em um campo de nove covados.» D’uma chicotada no cavallo
adianta quarenta milhas; redobra e faz quarenta e cinco; e caminhando
roga a Deos:--Meu Deos, fazei com que encontre meu pae entrançando
sua vinha. Pediu como christão, como sancto foi ouvido, e encontrou
seu pae podando a vinha.--Bem andaes, meu velho; mas de quem é essa
vinha?--Para lucto e desgraça é do meu filho Janaki. Hoje dão um outro
marido á sua bella. Com outro a abendiçoam, para outro a corôam.--Oh
dize-me, dize-me, bom velho, ainda os encontrarei á mesa?--Á mesa
os encontrarás, se tiveres um bom cavallo; se tens só um rocim,
encontral-os-has na benção.--D’uma chicotada no cavallo avança quarenta
milhas; redobra, e faz quarenta e cinco, e caminhando, vae orando a
Deos.--Meu Deos, fazei com que eu encontre minha mãe regando no seu
jardim! Como christão o pediu, como sancto foi ouvido, e encontrou
sua mãe regando o jardim. Bem andaes, minha velhinha; de quem é este
jardim?--Para desgraça e luto é do meu filho Janaki. Hoje dão um outro
marido á sua bella; com outro a abendiçoam, coroam-na para outro.--Oh!
dize-me, dize-me minha velha, encontral-os-hei ainda á mesa?--Á mesa tu
os encontrarás, se tiveres um bom cavallo; se tiveres só um rocim, tu
os encontrarás na benção.--D’uma chicotada no cavallo galga quarenta
milhas, redobra e faz quarenta e cinco. O cavallo começa a relinchar e
a donzella o reconhece. «Minha filha, quem conversa comtigo? quem te
fala?»--É meu irmão mais velho, que traz o meu dote.--«Se é teu irmão
mais velho, sae para ir dar-lhe de beber. Se é teu amante, sáio eu, e
mato-o.» É meu irmão mais velho, que me traz o dote.--Ella pega em um
copo d’ouro, para sair e dar-lhe de beber.--Põe-te á minha direita, ó
encantadora, e dá-me de beber pela esquerda.--O cavallo ajoelhou e a
donzella se achou sobre elle. Então desfillou como o vento. Os turcos
pegam em seus mosquetes, mas já não alcançam nem o cavallo, nem a
poeira d’elle. Aquelle que tinha um bom ginete viu a sua poeira; os que
só tinham um rocim, nem sequer a avistaram». (_Chants populaires de la
Grèce Moderne_, p. 140.)

Uma outra conclusão, que se tira da ubiquidade d’estes romances, é
que o povo adopta sempre aquelles que não dizem respeito a facto
algum particular ou historico; os romances communs aos povos do
Meio Dia da Europa, são apenas acções cavalheirescas de imaginação,
aventuras inspiradas por um certo ideal; isto se confirma pela grande
vulgarisação dos romances do cyclo da Tavola Redonda, e pelo pequeno
numero dos romances carolinos na Italia, na Hespanha e nullo quasi em
Portugal. Na forma portugueza, e grega d’este romance se encontra a
côr local de cada povo: comtudo o nosso parece mais antigo; as _terras
d’alem mar_ lembram-nos o modo como o povo designa as expedições á
Terra sancta.

=8--Romance do Alferes matador=--Este romance ainda não tinha sido
recolhido da tradição oral; veiu da Covilhã, a mina mais rica destas
preciosidades, e aonde se encontram as versões mais puras. Pela
confrontação com os romances francezes e italianos está incompleto,
porque a donzella apenas se finge morta para salvar a sua honra:
circumstancia que não seria omittida, se o nosso rhapsodo popular
completasse a historia. Gerard Nerval (Bohème galante, pag. 71) traz
uma canção bourbonesa, _La jolie Fille de la Garde_, tambem conhecida
na Picardia. No Pays Messin foi recolhida uma outra versão por M. du
Puymaigre (_Vieux Auteurs_, t. II, p. 478):

    Au chateau de Beufort y avait trois belles filles
    Elles sont belles, belles comme le jour;
    Trois do nos capitaines leur vont faire 1’amour.
    ....................................................
    Le plus jeune des trois, celui qui la courtise,
    A mis la bell’sur son cheval grison,
    Puis ils l’ont emmenée droit á la garnison.

    Deux ou trois jours après, la belle est tombée morte,
    Sonnez, trompette, et le tambour joli:
    Voilà la belle morte sans en avoir joui.

    Il faut enterrer dans l’jardin de son père;
    Au dessus de sa tombe on mettra par écrit:
    «Voilà la belle morte sans en avoir joui.»

    Deux, ou trois jours après, le père qui se promène
    A vu le tombeau frais... «Mon pèr’si vous m’aimez,
                Faites ouvrir la tombe;
    J’ai fait trois jours la morte pour mon honneur garder.

Nos _Canti populari_, raccolti da Oreste Marcoaldi (pag. 163) vem um
romance similhante, na colleção de Caselli (Chans populaires d’Italie,
pag. 203), que o dá como do reproduzido Piemonte.


=9--Romance da Romeirinha=--O grande uso das peregrinações e romagens
como pena ecclesiastica e civil na edade media, produziu uma tal
perturbação na familia, que muitas vezes os maridos vieram encontrar as
mulheres já casadas; tudo isto originava muitas tradições. A promessa
de romaria era tambem hereditaria como o castigo na penalidade heroica;
Josselin fica herdeiro da peregrinação á Terra santa, que seu pae
promettera. No testamento de el-rei D. Diniz se lê: «Item, mando que
um Cavaleiro, que seja homem de boa vida, e de verguença, que vá por
mi á Terra Santa dultramar, e que estêe hi por dous annos compridos se
a cruzada for servindo a Deos por minha alma etc.» (Provas da Historia
Genealogica, por Antonio Caetano de Sousa, t. I, pag. 101.) As mulheres
tambem faziam romarias, e, expostas aos perigos da estrada e da
pirataria, não poucos romances tiveram origem das situações difficeis
por que passaram. Nos nossos romances do _Conde Preso_, se vê o
fundamento d’aquella carta que escreveu San Bonifacio a Guthbert, bispo
de Cantorbery, ácerca das romarias das mulheres: «A maior parte d’ellas
succumbem e muito poucas voltam com a sua castidade.»[1] As leis
protegiam os peregrinos, coadjuvadas pelas excommunhões dos canones
dos Concílios. A lei bávara diz: «Que ninguem faça mal ao estrangeiro,
porque uns viajam por Deos, outros por necessidade, e todos precisam
de paz». O concilio de Latrão em 1123 excommunga os que vexarem os
peregrinos que vão a Roma ou a outro qualquer logar de devoção. No
romance portuguez de Dom Garfos, o conde é enforcado por ter violado
a romeira de Sanct’Iago. Este romance da _Romeirinha_, que anda na
tradição oral de Trás-os-Montes e Minho, encontra-se tambem, na parte
essencial da acção, com alguns romances populares da Italia. Pode-se
apresentar como o typo dos romances communs ao Meio Dia da Europa; o
cavalleiro Nigra e Du Puymaigre determinaram os paradigmas.

M. Amador de los Rios, nos romances asturianos, que publicou em 1861 no
_Jahrbuch_, traz um em tudo similhante ao nosso; refiro-mo ao essencial
da acção. (Vid. Du Puymaigre, t. II, p. 465.)

O _Rico Franco_ do Romanceiro hespanhol (Du Puymaigre, 406) a
_Montferrina_ (Caselli, pag. 190), _O Corsario_ (Du Puymaigre, t. II.
p. 406), _Le beau Marinier_ colligido de Beaurepière, e o _Barzas
Breiz_, appresentam bastantes situações identicas.

=10 e 11--Romances da Infanta de França=--A versão da Beira-Baixa é
notavel por appresentar uma fusão natural de dois romances o _Caçador_
e a _Infeitiçada_, que traz Garrett, (Romanceiro t. II. p. 21 e 32). O
final, que não apparece em nenhuma das lições de Garrett, encontrei-o
tambem em um fragmento que recebi de Penafiel. A versão da Foz tem os
dois romances confundidos, e nella se nota o processo de abreviação que
se dá continuamente nos romances populares. Estes mesmos dois romances
vêm nos Romanceiros hespanhoes com o nome de _Infantina_ e _Romance
de la Infanta de Francia_. (Duran, t. I, p. 152). O espirito d’este
conto meio decameronico é manifestamente de origem franceza; as nossas
versões vieram-nos da tradição de Hespanha, como se vê pela perfeição
d’ellas, quasi sempre mais bem acabadas do que as castelhanas. Saem
da ultima demão. «A versão portugueza, segundo Fernando Wolf, está
mais proxima do original francez do que da versão hespanhola. Ambas
tratam o mesmo assumpto, o logar da scena em ambas é perto de Paris;
a lubricidade dos _Fabliaux_, um tom desenvolto e a crença nas fadas,
acham-se notadas no primeiro d’estes romances.» (Proben, S. 54). As
duas versões que appresentamos, assignalam a influencia normanda na
poesia popular portugueza. Gil Vicente no _Auto dos Quatro Tempos_,
traz uma cantiga franceza:

    Ay de la noble
    Villa de Paris, etc.

que nos comprova esta asserção; basta-nos porem esse paradigma, para
fundamental-a melhor:

    Nons étions trois filles,
    Bonnes à marier;
    Nous nous en allâmes
    Dans un pré danser.
    Nous fîmes rencontres
    D’un joli berger.
    Il prit la plus jeune,
    Voulut l’embrasser.
    Nous nous mîmes toutes
    A l’en empêcher.
    Le berger timide
    La laissa aller;
    Nous nous en criâmes:
    «Ah! le sot berger!
    Quant on tient l’anguille
    Il faut la manger.
    Quant on tient les filles,
    Faut les embraser.»

Charles de S. Malo traz esta canção a pag. 379 das _Chansons
d’autrefois_, referida ao anno 1660 como anonyma. Gerard Nerval
recolheu na Normandia um romance popular, que é o pensamento das nossas
versões, mas com aquella graça facil que caracterisa o genio francez.
Du Puymaigre, d’onde o reproduzimos (Vieux auteurs Castillans, p. 251,
t. II), tambem o ouviu cantar na Borgonha e no Pays-Messin:

    Après ma journée faite
    Je m’en fut promener,
    En mon chemin rencontre
    Une fille à mon gré;
    Je la prit par sa main blanche,
    Dans les bois je l’ai menée.

    Quant elle fut dans les bois,
    Elle se mit à pleurer:
    --Ah! qu’avez-vous, ma belle,
    Qu’avez-vous à pleurer?
    --Je pleure mon innocence,
    Que vous me l’allez ôter.

    --Ne pleures pas tant la belle
    Je vous le lesserai.
    Je la pris par sa main blanche
    Dans les champs je l’ai menée;
    Quant elle fut dans les champs
    Elle se mit à chanter.

    --Ah, qu’avez-vous la belle,
    Qu’avez vous à chanter?
    --Je chante votre bêtise
    De me laisser aller,
    Qand on tenait la pule
    Il fallait la plumer.

Já o sr. Duran tinha dito d’este romance: «Todo indica que este romance
es de origen frances, é imitacion de alguna trova caballeresca. De
todas maneras é bellissimo por su natural sencillez, y por la festiva e
punzante expresion de sus ideas, tan propria de las crónicas bretonas
e de los cantos de los Troberos.» (Rom. Gener. p. 152, t. I).

Ha na _Infeitiçada_, que Almeida Garrett colligiu, e na versão da Foz,
um lance dramatico de quasi todos os romances populares: é o cavalleiro
que se encontra com sua propria, irmã:

    «Deixai-me agora chorar,
    Olhai a minha mofina;
    Cuido que levo mulher
    E levo a uma irmã minha!

Este mesmo desenlace se encontra no romance de _Branca-Flor_:

    Ai triste de mim coitada,
    Ai triste de mim mofina,
    Mandei buscar uma escrava,
    Trazem-me uma irmã minha.

                 (Pag. 103, n.º 38.)

No romance catalão _Las dos Germanas_, publicado por M. Milà y
Fontanals (Observationes sobre la Poesia popular, p. 117) a cativa
dá-se a conhecer por uma cantiga de berço. Na _Bella Infanta_ ha tambem
um reconhecimento. No romance de _Dom Bueso_, recolhido por Amador de
los Rios, o cavalleiro encontrou uma donzella que estava lavando em
uma fonte fresca. Leva-a comsigo; já proximo de casa, ella recorda-se
d’aquelles sitios, e é quando Dom Bueso reconhece sua irmã Rosalinda.
Na poesia grega, onde o amor não é conhecido com a simplicidade ingenua
dos povos modernos, a mulher é quasi sempre a que se apaixona de um
modo irresistivel, a que se sente arder em um fogo ignoto; veja-se
Sapho, Phedra, Pasiphae; o heroe não comprehende essa hallucinação.
Na poesia hespanhola o cavalleiro é quasi sempre tambem incitado
pelas graças das donzellas. A rudeza das armas fazia-lhe esquecer os
devaneios ferventes. No romance da _Encantada_ e da _Infeitiçada_, a
donzella é que se dirige ao cavalleiro, e que ri da sua ingenuidade.

Uma ballada allemã intitulada a _Filha do rei encontrada_, que Du
Puymaigre traduziu (Vieux auteurs Castillans, t. II, p. 365) versa
sobre a mesma peripecia, mas illuminada pela melancholia vaga do norte:
«Um rei tinha uma filha pequenina; chamava-se Annellein. Sentou-se
ás abas de um bosque sobre uma pedra. Veio um vendilhão estrangeiro
por ali; atirou-lhe uma fita de seda: «Agora é preciso que tu me
sigas.» Levou-a para casa de uma mulher, que tinha uma estallagem, e
deixou-a para servir. «Estallajadeira, minha estallajadeira, tomae
para vos servir essa minha filhinha.»--Oh sim, sim, é o que eu quero;
heide tratal-a bem, heide ser como uma mãe para ella. «Passado certo
tempo, já se contavam annos, eis que passa um senhor a cavallo, indo
em busca de uma mulher. Passou pela casa da estallajadeira; a rapariga
lhe trouxe vinho. «Estallajadeira, minha cara estallajadeira, é vossa
filha? ou é mulher de vosso filho? como é tão bella?--Não é minha
filha, nem tão pouco mulher de meu filho: é a pobre Gudeli; ella ensina
os quartos aos hospedes.--Estallajadeira, minha cara estallajadeira,
deixai-me ficar uma noite ou tres, tantas quantas me fizer conta.--Oh
sim, sim, isso é o que eu quero. Eu vos hospedarei tanto tempo quanto
quizerdes.» O cavalleiro tomou a bella Annelein pela mão, e a conduziu,
para o quarto de dormir; levou-a para uma bella cama e perguntou-lhe
se quereria dormir junto d’elle. O Duque tirou a sua espada d’ouro
e pol-a entre os dois corações. A espada não hade ferir nem cortar,
mas Annelein hade ficar como uma virgem criança. «Ah Annelein, olha
agora para mim. Conta-me a tua sorte, dize-me tudo o que sabes, tudo
o que te lembra. Dize-me quem é a tua mãe?--O senhor rei é meu pae, a
rainha é minha mãe; eu tenho um irmão que se chama Mannigfalt: Deos
sabe por onde elle agora anda.--Já que teu pae é o rei, e tua mãe a
rainha, e que tens um irmão chamado Mannigfalt, eu apérto a mão de
minha irmã.» E quando rompeu a madrugada, a estallajadeira veio à porta
do quarto: «Levanta-te, priguiçosa, levanta-te, vem dar de almoçar
aos hospedes.»--Oh não, deixa dormir a bella Annelein; serve tu os
viajantes; minha irmã Annelein já não é criada.» Monta-se a cavallo,
e leva sua irmã á garupa; toma galhardamente sua irmã pela cintura e
leva-a atrás de si. E quando chegou á corte, veiu sua mãe ao encontro:
Bem vindo sejas, meu filho mais essa terna mulhersinha.--Não é uma
mulhersinha, é vossa filha, que tinhamos perdida ha tanto tempo.
«Sentaram á meza a bella Annelein, deram-lhe peixe frito e cosido;
meteram-lhe no dedo um annel d’ouro: «Até que fôste encontrada, minha
filha real.» (_Volksliedei_, S. 186) Uma outra ballada allemã, de uma
orphan, que vae bater á porta de uma irmã casada, para a servir, tem
sua analogia com a _Branca-Flor_ (Deutsches Balladenbuch, S. 10).
Esta mesma peripecia se encontra em cantos suecos, dinamarquezes, em
um fragmento do poema bretão _Les Breiz_ (M. de Villemarqué, _Barzaz
Breiz_, t. I, p. 137-180), nos _Cantos populares do Norte_ (Marmier,
p. 175), nos _Cantos populares da Grecia moderna_ (Conde de Marcellus,
p. 146). O maravilhoso feérico das margens do Rheno tambem apparece
n’estes romances da _Infanta de França_, e _Encantada_. M. Du Puymaigre
indica a maior parte dos romances em que se encontram situações
analogas de reconhecimento, cujas collisões formam ordinariamente os
lances da poesia popular. (Vid. Vieux auteurs castillans, t. II, p.
357, 374).


=12--Romance da Silvana=--É dos mais populares e antigos; encontra-se
em Lisboa, Ribatejo e Beira Alta. Já no seculo XVII D. Francisco Manuel
de Mello o cita como velho, como se deprehende d’aquelle verso do
Fidalgo apprendiz: _Uma letra nova quero_, que diz Brites, recusando-se
a escutar este romance que Gil lhe ia cantar á guitarra. (Pag. 247).
A _Silvana_ faz lembrar a Myrrha da mythologia grega. Pertencerá ella
ás ficções eruditas do cyclo greco-romano? Não parece o combate de
Tristão com o Morouhet de Irlanda uma imitação o combate de Theseu
com o Minotauro? Arthur não é trahido por Ginebra, como Hercules por
Djanira? Têm ás vezes origens caprichosas estas tradições do povo. O
principio da _Sylvana_ anda quasi sempre confundido com o romance do
_Conde Alarcos_. Foi pela primeira vez publicado por Almeida Garrett,
que o dá como originario portuguez. (Rom. t. II, p. 98). Encontra-se
porem nas Asturias, e o sr. Amador de los Rios o publicou no _Jahrbach
für romanische und englische Literatur_, _t. III_, _p. 284_, com o
titulo de _Delgadina_: «O rei tinha tres filhas, cada qual como uma
flor, e a mais nova d’ellas todas chamava-se Delgadina. Estando um dia
á meza, estando um dia a comer, seu pae que a estava a mirar, seu pae
que tanto a mirava.--Porque é que me olhaes, meu pae? Porque é que me
estaes a olhar?--Ólho, filha, porque quero sejas minha namorada.--Isso
é o que Deos não quer, nem a Virgem soberana. Deos do céo não quer
que eu seja tua namorada. O pae quando isto ouviu a levou para uma
torre; não lhe dava para comer, mais que sardinhas salgadas; não lhe
dava de beber mais que summo de laranja. Delgadina, morta á sêde, foi
pôr-se a uma janella, e vendo os irmãos que estavam a par dos grandes
de Hespanha: Oh meus irmãos, meu irmãos, se me daes um pingo de agua,
que o meu coração se quebra, e a minha alma se parte.--Não t’a darei,
Delgadina, pois se o soubesse meu pae a vida me tiraria com a ponta da
sua espada. Delgadina morta á sêde, foi pôr-se a outra janella, viu
suas irmãs estarem bordando tea de Hollanda: Oh manas, manas queridas,
mandae dar-me uma pouca de agua.--Não t’a darei Delgadina, Delgadina
não darei, porque perderia a vida se é que meu pae o soubesse.
Delgadina morta á sêde, foi pôr-se a outra janella, e vendo seu pae
já prestes a partir para a caçada: Meu pae, vós que sois meu pae,
dae-me vós uma gota de agua?--Eu te darei Delgadina, se tu commigo
falares.--Ouvirei as vossas falas, bem contra minha vontade. Os criados
que elle tinha, todos foram buscar agua, uns a trazem em jarros de
ouro, outros n’um gomil de prata. Ao primeiro que chegou, mandou sua
corôa dar, ao que chegou derradeiro, manda a cabeça cortar. O leito de
Delgadina estava de anjos cercado, e a cama de seu pae toda cheia de
diabos.»

A lição portugueza é mais extensa e mais primitiva, nada perde da sua
originalidade; porque os romances asturianos, segundo Amador do los
Rios, são de origem extranha, accommodados ás toadas antigas:

=Faustina=

_(Variante de Coimbra)_

    O Conde da Villa-Flor,
    Por ser o Conde maior,
    De tres filhas que elle tinha
    Clarinhas como o sol;
    Uma se chama amada,
    Outra se chama querida.
    Outra se chama Faustina
    for ser a mais fidalgada.

    --Queres tu, filha Faustina
    Ser a minha namorada?
    «Não permitta Deos do céo,
    Nem a Virgem consagrada,
    Que eu, sendo sua filha,
    Seja sua namorada.
    --Deixa vir a mãe da missa,
    Que eu lh’o saberei dizer:
    Ora vinde mulher minha,
    Ver o que aconteceu:
    A nossa filha Faustina
    De amores me prometteu.
    Dizei lá, oh mulher minha,
    O que Faustina mereceu?
    --«Torre de pedra lavrada
    Para meteres Faustina!
    Deras-lhe o pão por onça,
    Agua por uma medida.

    Ali tiveram Faustina
    Por sete annos encerrada:
    Davam-lhe agua por onça,
    E da carne mais salgada.
    Ao cabo de sete annos
    Faustina sem ser findada;
    Foi-se d’ali a Faustina,
    Tristinha e desconsolada,
    Assobindo uma ventana
    Outra ventana mais alta,
    D’ahi viu estar suas manas
    Cosendo em uma almofada:

    «Deos vos guarde, manas minhas,
    Manas minhas da minha alma;
    Peço-vos pelo amor de Deos
    Que me deis uma pinga de agua!
    «--Deos te guarde, oh Faustina,
    Oh mana da minha alma,
    O nosso pae nos jurou,
    P’los cópos da sua espada,
    Que quem désse agua á Faustina
    Sua cabeça é cortada.

    Foi-se d’ali a Faustina,
    Tristinha e desconsolada,
    Assobiu a uma ventana,
    Outra ventana mais alta,
    D’onde via estar sua mãe
    Lavrando a ouro e prata:
    «Deos vos guarde, oh minha mãe,
    Mãe minha da minha alma!
    Peço pelo amor de Deos
    Que me dê uma pinga d’agua.
    --«Deos te guarde, oh Faustina,
    Oh filha da minha alma;
    Ha sete annos que eu vivo
    Com o teu pae mal casada.
    Foi-se d’ali a Faustina,
    Tristinha, desconsolada,
    Assobiu a uma ventana.
    Outra ventana mais alta,
    D’onde viu andar seu pae
    Passeando n’uma sala:

    «Deos vos guarde, oh meu pae,
    Oh pae meu da minha alma;
    Peço pelo amor de Deos
    Que me deis uma pinga de agua.
    --Deos vos guarde, oh Faustina
    Minha filha mal fadada.
    Eu pedi-te a mão direita
    Tu não m’a quizeste dar.
    «Aqui tem a mão direita,
    A esquerda se a quizer!
    --Venham as jarras de prata
    De ouro se as houver;
    Quero dar agua á Faustina,
    Que já é minha mulher.
    Corram, corram, cavalleiros,
    A dar agua á Faustininha;
    O que primeiro chegar
    Hade ter uma prenda minha.

    A agua era chegada,
    Era findada Faustina!
    No meio d’aquelle largo
    Um tanque d’agua apparecia.
    Vieram sete senhoras
    Domingo de madrugada
    Para levarem Faustina
    Para o céo em corpo e alma.
    Nossa Senhora do Pranto
    É que a pranteava,
    Tu morreste, Faustininha,
    P’la honra de seres honrada.
    Nossa Senhora do Pranto
    Era quem a pranteava;
    No seu pranto, que dizia:
    Domingo de madrugada
    Vieram sete demonios,
    Dormiram em tua casa
    Para levarem teu pae
    P’r’o inferno em corpo e alma.

Aqui está completa a versão apontada por Garrett, de que apenas deixou
alguns versos (Rom. t. II.) É um facto curioso vêr como o povo vae
confundindo os romances, produzindo inconscientemente situações novas.
O nó da acção é imitado pelo povo dos romances do _Conde de Allemanha_.
Nossa Senhora do Pranto, que vem prantear a desgraçada, dá ao romance
uma côr de alta antiguidade; era um velho uso de Portugal, já prohibido
no tempo de D. João I.


=13--Romance de Bernal Francez=--Anda na tradição oral da Beira Baixa
e Estremadura, e já Garrett o tinha encontrado nos manuscriptos
do cavalleiro de Oliveira, por onde _aperfeiçoou_ a lição mais
circumstanciada e extensa que vem no Romanceiro, t. II, pag. 129. A
versão da Foz é egualmente dramatica, e superior por se ter respeitado
n’ella a sua rudeza nativa. Tenho para mim que o romance é formado de
duas partes distinctas que a tradição confundiu, e que o povo não sabe
discriminar; o pensamento da primeira parte, isto é a difficuldade que
sente a esposa diante de seu marido, encontra-se no _Romancero General_
(Duran, n.º 298) na _Adultera castigada_; a segunda, parece formar-se
do romance _El Palmero_ (Duran, n.º 292) em que o cavalleiro vem ver se
vê a sua amada e lhe dizem que é morta por amor d’elle.

Circumstancias do dialogo, desfecho, e o caracter principal da acção,
revelam-nos manifestamente a fusão dos dois romances, que pelo andar do
tempo e pela desmemoria do vulgo se uniram. Porem de todos os romances
hespanhoes que mais se parecem com este é o da _Bella mal maridada_
(Ochoa, Tesoro, p. 490) que já vem citado na Comedia de _Rubena_ por
Gi1 Vicente:

    Cantará o Demo um grito
    _Das las mas lindas que yo vi_.

O romance hespanhol principia assim:

    La bella mal maridada
    _Das las lindas que yo vi_.

Este romance foi muito imitado em Portugal pelos poetas cultos dos
principios do seculo XVII.


=14--Romance do Conde Ninho=--Pertence pelo seu caracter maravilhoso ao
cyclo da Tavola Redonda. Encontra-se na tradição oral dos Açores, e em
Trás-os-Montes foi novamente recolhido. Na lição de Garrett (Rom. t.
III, p. 7) não se encontra o _cantar_ que o conde armou. Nesta versão
o rei manda cortar as arvores que rebentam das sepulturas dos amantes,
porque o não deixam ir á missa; correm d’ellas leite e sangue, que
symbolisam os sexos; situação que faz lembrar, se não é directamente
imitada, o mais popular de todos os romances da Europa na edade media
_Tristan e Yseult_. Eis como essa deliciosa imagem se encontra na
seguinte passagem do _Tristan_: «Et de la tombe de monseigneur Tristan,
yssoit une ronce belle et verte et bien feuilleue qui alloit par dessus
la chapelle, et descendoit le bout de la ronce sur la tombe de la reyne
Yseult et entroit dedans. La virent les gens du pays et le comptèrent
au roy Marc. Lo roy la fist couper par troys foys et, quant il l’avoit
le jour fait couper le lendemain estoit aussi belle comme avoit aultre
fois esté, etc.» (_Tristan, Chevalier de la Table ronde_, fol. CXXIV).
Este mesmo maravilhoso se encontra no _Lord Thomaz and fair Annet_,
(Percy, Reliques of ancient english poetry, t. III, p. 296); no _Prince
Robert_, e no _The Douglas Tragedy_ (Walter Scott, Minestrelsy of
the Scottish Border, t. III, pag. 59, t. II, pag. 224). O romance de
Tristão era conhecido já em Portugal no tempo de D. Diniz, como se vê
do seu Cancioneiro:

    Qual mayor poss’e o mui _namorado_
    _Triste_, sey ben que non amou o seu,
    Quant’eu vos amo......(Pag. 53.)

Tambem no Catalogo dos _livros de uso_ de el-rei D. Duarte, (Sousa,
Provas da Hist. Genealogica, t. I, p. 544) se encontra citado o livro
de _Tristam_. As almas dos amantes voam na forma de pombas; nas lendas
ecclesiasticas, e no hymno latino de Santa Eulalia, a alma do justo
ascendia para o céo na apparencia do uma pomba. Portanto não é nem
provençal, nem francez, ou normando, como pretende Garrett. O nome
do conde Niño é talvez a forma hespanhola de conde _menino_. Garrett
chama-lhe Nillo, e diz que não é nome portuguez; com tudo Bernardes, na
_Floresta_, traz um nome de santo similhante, o que bastava para o povo
o adoptar.

Quanto á realidade historica d’este romance, alguma se lhe pode
assignar:

Na _Chronica do conde D. Pedro Niño_, narração meio historica meio
fabulosa de Gutierre Diez de Games, se encontram vestigios do romance,
porque ahì se fala em varias aventuras de amores. Como d’ali veio a
tradição para Portugal, é facil de comprehender, porque o conde Niño
foi casado com D. Beatriz, infanta portugueza. Quanto á origem do
nome de _Niño_, diz a chronica: «Segund que de antigüa edad quedó en
memoria, dícen qe vino en Castilla un Duque de Francia, é vivió é moró
en ella grand tiempo, hasta que morió: é dejó dos fijos pequeñeruelos,
é tomólos el Rey, é diólos á un Caballero que los criasse en su casa
del Rey.

El Rey llamabalos siempre los _Niños_: é el su Ayo, cada que alguna
cosa delibrar con el Rey para los Niños, siempre eram mentados Niños.
D’esta guísa los llamaban las otras gentes: assi que á cada uno decían
su nombre apertadamente, é decian encima el _Niño_.» (Cap. I, 10, 15,
pag. 13). O romance fala de um cantar do conde Niño: na Chronica se
lê: «Avia graciosa voz, é alta: era muy denoso eu sus _decires_» (Cap.
X, p. 44). O casamento de Pedro Niño com D. Beatriz de Portugal, filha
do infante D. João, causou-lhe immensos trabalhos, porque a elle se
oppunha el-rei Regente de Castella: «E despues de la respuesta del
Infante andubo Pero Niño mas de medio año por la corte é cerca d’ella,
é vióse en assaz peligros muchas veces por ver á su esposa.» (Cap. III,
Part. III, p. 185). No testamento do conde Pero Niño dispõe que elle e
sua mulher sejam sepultados no côro da egreja de S. Thiago da Villa de
Cigales. Crêmos ter apresentado os principaes traços historicos, para
se vêr a formação do romance popular. Os amores do conde Niño foram
cantados em verso por Villasandíno, poeta do tempo de Henrique III e
João II, como se pode ver pelo _Cancioneiro_ de Baena.


=15--Romance da Promessa de Noivado=--Veio-nos esta versão da Beira
Baixa; é uma variante do romance a _Peregrina_, (Romanc. de Garrett,
t. III, pag. 22). Apresenta collisões novas, taes como a de estar o
cavalleiro já casado e com filhos. A versão de Garrett é artificial,
porque a formou dos fragmentos que obteve do Minho, Extremadura e
Trás-os-Montes, fundidos na lição do Porto: «Contudo aproveitei
bastante d’elles para restituir o texto e dar nexo e clareza à
narrativa.» (Pag. 20). Assim fundiu aquella situação de romance de
Tristão e Yseult, que apparece no _Conde Niño_ e na _Rosalinda_,
de nascerem duas arvores na sepultura dos amantes, e que elle teve
de explicar como logar commum dos romances populares. Na versão da
Beira Baixa é só a amante que morre de tristeza. Garrett diz que nos
Romanceiros Castelhanos nada se encontra parecido com esta singela
historia. No _Romancero General_ do Duran, o _Conde Sol_ (n.º 327) tem
muitos pontos de similhança com o nosso, e tanto que pela extensão
d’elle deduzimos ser o nosso uma abreviação posterior. Foi Walter Scott
o que primeiro descobriu a tendencia que têm os romances populares de
_se aberviarem_.


=16--Romance de Dom Aleixo=--Se não é de origem hespanhola, o primeiro
verso com que o romance principia faz nascer tal suspeita, posto que
nas collecções castelhanas se não descubra. Sabe-o o povo de Lisboa
e da Beira Alta. Nos manuscriptos do curioso Cavalleiro de Oliveira
o encontrou Garrett, por onde restituiu os fragmentos das versões
provincianas. (Rom. t. II, p. 91). Assim a lição que appresenta é
bella, mas não é puramente popular, como elle proprio confessa:
«Ainda assim, algumas raras palavras foram por mim conjecturalmente
substituida.» Ha ali um mysterio que faz estremecer a quem lê: parecem
palavras de um encantamento. A versão da Foz que recolhemos é estreme
e revela-nos o lavor da imaginação popular sobre um thema commum. A
dama pediu ao cavalleiro uma confidencia nocturna, em que elle morre
por traição dos seus cunhados; Dona Maria mata-se ao pé do cavalleiro
moribundo. Na lição de Garrett é ella que se toma de medo e mata o
namorado. Uma é mais bella, a outra simplesmente verdadeira; mas na
poesia do povo, segundo Grimm, á principal belleza é a sua grande
verdade.


=17--Romance de Dom Pedro=--Apparece este romance com o nome de
_Helena_ no Romanceiro de Garrett, t. III, p. 40; anda na tradição
oral da Beira Alta, Extremadura e Lisboa. Da Beira Baixa recebemos uma
variante de uma belleza profunda e inexcedivel; é ali aonde a poesia
popular portuguesa se conserva mais primitiva e completa. O romance
de _D. Pedro_ é mais simples e menos artificioso do que a versão de
Lisboa. Aqui o _cavallo branco_, signal de lucto, demonstra a sua
antiguidade. O final, sobre tudo, é a parte mais delicada; não são as
penitencias do esposo, mas é elle que enterra _a sua rosa branca_, como
quem planta uma flor, o lhe amollece a terra com as lagrimas dos olhos.


=18, 19 e 20--Romances da Filha do Imperador de Roma.=--Estes tres
romances, colhidos em differentes provincias, completam a tradição. Já
Garrett os tinha publicado, unindo-os e cortando aquellas partes em que
a variante destruia a unidade da acção. A primeira parte foi colhida em
Trás-os-Montes, terra fertil de tradições locaes, e aonde, logo depois
da Beira Baixa, se encontram mais thesouros de poesia popular.

O _Hortelão das flores_ é mais antigo.

Este metro, chamado _rimance em endechas_, é pouco frequente na poesia
popular; é ordinariamente de uma incorrecção pittoresca. Recebi o
romance recolhido na tradição oral da Beira Baixa em uma letra tão
falta, de forma legivel, de pontuação e escripto á maneira de prosa,
que não sabemos se o trabalho de interpretal-o destruiria em parte a
ingenuidade simples da creação anonyma!

É um facto curioso comparar este romance, de uma elaboração differente,
com o romance do _Cegador_, versão da Beira Alta e Trás-os-Montes,
que traz Garrett, (Romanceiro, t. III, 98). Ha a mesma peripecia da
princeza se entregar a uns amores desconhecidos, ao filho de um corta
carne, que lhe sae um Duque, como na lição alludida. Este verso podia
cortar-se em redondilha; Jacob Grimm na _Silva de romances viejos_
adoptou a forma monorrima de dezeseis syllabas. Um facto notavel se
descobre n’este romance: O celebre romance de Gil Vicente intitulado
_D. Duardos_, que os Romanceiros, principalmente o de Anvers,
adoptaram, que o povo assimilou e fez quasi de novo, como se pode ver
na lição conservada pelo cavalleiro de Oliveira, apparece-nos aqui
agora, novamente assimilado, mas deixando ainda ver alguns restos
primitivos. A despedida da donzella e as falas de _D. Duarte_, foi o
que o povo conservou na versão da Beira Baixa. São sempre as partes
dramaticas que se perpetuam. Eis o romance de Gil Vicente:

=Dom Duardos=

    En el mes era de Abril,
    De mayo antes um dia,
    Cuando lyrios y rosas
    Muestran mas su alegria,
    En la noche mas serena
    Que el cielo hacer podia,
    Cuando la hermosa Infanta
    Flerida ya se partia:
    En la huerta de su padre
    Á los árboles decia:
    --Quedáos á Dios, mis flores,
    Mi gloria que ser solia;

    Voyme á tierras estrangeras
    Pues ventura allá me guia.
    Si mi padre me buscare,
    Que grande bien me quería,
    Digan que amor me lleva,
    Que no fue la culpa mia:
    Tal tema tomó conmigo,
    Que me venció su porfia:
    Triste no sé a dó vó,
    Ni nadie me lo decia.--
    Alli habla Don Duardos:
    «No lloreis mi alegria,
    Que en los reinos de Inglaterra
    Mas claras aguas havia
    Y mas hermosos jardines
    Y vuesos, señora mia.
    Terneis trecientas donzellas
    De alta genealogia;
    De plata son los palacios
    Para vuestra señoria,
    De esmeraldas y jacintos
    De oro fino de Turquia,
    Con letreros esmaltados
    Que mentan la vida mia.
    Cuentan los vivos dolores
    Que me distes aquel dia
    Cuando con Primalion
    Fuertemente combatia.
    Señora, vos me matastes,
    Que yo a el no lo temia.»
    Sus lagrimas consolaba
    Flerida que esto oia;
    Fuéronse a las galeras
    Que Don Duardos tenia.
    Cincoenta eran por cuenta,
    Todas van en compañia:
    Al son de sus dulces remos
    La Princesa se adormia
    En brazos de Don Duardos,
    Que bien le pertencia.
    Sepan quantos son nacidos
    Aquesta sentencia mia;
    _Que contra la muerte y amor
    Nadie no tiene valia_.

    _Obras_, t. II, p. 249.

=21--Romance de Dona Agueda de Mexia=--Nos _Cantos populares da Italia_,
de Caselli, pag. 204 e 207, encontram-se dois romances, que tem
grande analogia com este, excepto no final, cujo desenlace não é pelo
milagre. Creio mesmo que na tradição portugueza é juxtaposição de algum
troveiro, como succedeu com o final do romance _A Nau Catherineta_ da
versão do Algarve. N’esta versão alemtejana falta a descripção da manhã
de Maio que traz a lição de Garrett (Rom. t. III, p. 116). Nem ella tem
caracter popular, antes parece um descuido de artista, que teve Garrett
quando recompoz as duas versões da Estremadura e Alemtejo para formar o
romance de _Guiomar_. Eis como um d’esses romances se canta no Piemonte:

«Nesta terra ha um mancebo, que pretendia casar; foi pedir a
conversada, e não lh’a quizeram dar. Ficou com esta recusa tão afflicto
e amargurado, que disse adeus aos amigos, e foi-se fazer soldado.
Recebeu carta depois de pouco tempo passado. Uma carta bem fechada, em
que lhe era declarado: «A tua querida amante está de cama a morrer»
Foi-se ter com o capitão. Aos pés d’elle se foi ter: «Capitão, por
vossa alma, a baixa me concedei.» O capitão lhe pergunta: «O que queres
tu fazer?--Quero ir ver a minha amante, que está de cama a morrer.--Já
vinha perto da terra, ouviu os sinos tocar. Tocam sinos n’um enterro, o
defunto quem será? Ao entrar na sua terra, foi quando ouviu resar; era
o esquife da amante, que levavam a enterrar. Mete esporas ao cavallo;
tornou outra vez para trás; morreu-me o meu coração, vou ser outra vez
soldado; «Adeos pae e adeus mãe, e tambem d’ella os parentes; se me
dessem vossa filha, estariam mais contentes.»

Quasi que parece a forma primitiva da versão portugueza que reune um
outro romance piemontez da _Giordanina_.

=22--Romance do Casamento e mortalha=--Foi pela primeira vez publicado
por Garrett (Rom. t. III, p. 32). Não o encontrámos na tradição oral;
extrahimol-o d’aquella artistica collecção para completar este simples
monumento da poesia popular portugueza. De facto não apparece nos
Romanceiros hespanhoes. Em um romance francez _Le Roi Renaud_, ha
alguns longes de similhança; o rei volta da guerra, moribundo quasi;
sua mãe vem ao encontro, e no meio da alegria o filho pede-lhe que
faça uma cama ás escondidas de sua mulher, por que está para expirar.
No restante diversifica a tradição (Du Puymaigre, t. II, p. 480). Nos
cantos italianos existe tambem o romance do _Conde Angilioni_, que
volta quasi moribundo da guerra; é até onde a situação é commum á
França, Italia e Portugal (Tommaseo, Canti populari, t.I, p. 35).


=23--Romance da Náu Catherineta=--Nas antigas relações de naufragio
temos a nossa poesia maritima com toda a profundidade do sentimento;
que importa lhe não déssem fórma poetica? Sente-se uma alma em cada
palavra do marinheiro, que faz a narração do que passou, com aquella
resignação e serenidade de quem ha sofrido muito e tem uns alvores
de esperança que o alentam,--o amor da patria, o culto das tradições
gloriosas que procura conservar integerrimas. Com que uncção crente e
piedosa não desenha elle os maiores transes! Os horrores do desastre
fazem-lhe reconhecer um poder immenso, que adora com uma vehemencia
e ardor capazes de fazer prodigios. Vêem a nau quasi a afundar-se:
«Pelo que, como homens que esperavam antes de poucas horas dar contas
a Nosso Senhor de nossas bem ou mal gastadas vidas, cada um começou
a ter com sua consciencia, confessando-se summariamente a alguns
clerigos, que ahi iam. A este tempo andavam com um retabulo e crucifixo
nas mãos, consolando a nossa angustia com a lembrança d’aquella, que
ali nos apresentavam. Isto acabado pediamos perdão uns aos outros
despedindo-se cada um de seus parentes e amigos, com tanta lastima,
como quem esperava serem aquellas as derradeiras palavras que teriam
n’este mundo. N’isto andava tudo, que se não poderiam pôr os olhos em
parte onde se não vissem rostos cobertos de tristes lagrimas, e de uma
amarellidão e trespassamento de manifesta dor e sobejo receio, que a
chegada da morte causava, ouvindo-se tambem de quando em quando algumas
palavras lastimosas, signal certo da lembrança que ainda n’aquelle
derradeiro ponto não faltava dos orphãos e pequenas filhos, das amadas
e pobres mulheres, dos velhos e saudosos paes, que cá deixavam; e
acabando cada um de satisfazer ao humano com este pequeno mas devido
comprimento, todo o mais certo do tempo se gastava em pedir a Nosso
Senhor remedio espiritual (que do corporal ninguem fazia conta).»[2]
A lembrança viva representa a cada instante as passadas angustias.
A côr da narração é a verdade. O genio aventureiro marítimo do povo
portuguez está dentro d’aquellas paginas; cada palavra é um sentimento
surprehendido na sua ingenuidade. O marinheiro ama a sua nau e
confessa-o irreflectidamente: «levando a phantasia occupada n’esta
angustia, e os olhos arrasados de agua, não podia dar passo, que muitas
vezes não tornasse a trás, para ver a ossada d’aquella tão formosa e
mal afortunada nau, porque posto que já n’ella não houvesse pau pegado,
e tudo fosse desfeito n’aquellas rochas, todavia emquanto a viamos,
nos parecia que tinhamos ali umas reliquias, e certa parte d’esta
nossa desejada terra, de cujo abrigo e companhia, (por ser aquella a
derradeira coisa que d’ella esperavamos) nos não podiamos apartar sem
muito sentimento, etc.»[3]

Isto que o capitão da nau _S. Bento_ sentia era o mesmo que se passava
na alma dos velhos mareantes, que davam aos navios nomes domesticos,
de paixão, com que esqueciam os que lhes tinham imposto no baptismo;
o galeão _S. João_, que naufragou na carreira da India em 1551, tinha
por _alcunha_ o _Biscainho_;[4] a nau _Aguia_ chamava-se vulgarmente
_Patifa_.[5] Este nome da nau _Catherineta_, nome popular que Garrett
julga um diminutivo de affeição dado por graça a algum navio favorito,
parece ter a sua origem do galeão _Santa Catherina do Monte Synai_,
que levou a infante D. Beatriz para Saboya. As memorias do tempo
descrevem-n’o como digno da affeição popular, capaz de deslumbrar
a imaginação do vulgo, e de fazer nascer uma paixão ao mostrar-se
á vista penetrante do marinheiro, que sabe tão bem avaliar o bello
das curvas, dos pontaes, e a mastreação elegante. O galeão de _Santa
Catherina_ começou a ter a sua popularidade nos versos de Gil Vicente,
na tragi-comedia das _Côrtes de Jupiter_:

    Leva gente muito fina,
    Poderosa artilharia,
    E a nau _Santa Catherina_
    Que vae por graça divina
    Co’a a prôa n’Alexandria.[6]

Em uma memoria contemporanea se lê: «e a infante duqueza embarcou esse
dia, que eram 5 de agosto, na nau _Santa Catherina do Monte Synai_, nau
de 700 toneis, _muito formosa_, e de dentro todalas camaras da infanta
pintadas de oiro e forradas de bordados.»[7] Não é hypothese gratuita,
ter a imaginação popular motivo sobre que idealisasse uma nau typica,
como centro de acção para todos os seus romances maritimos. O genio
do povo só exprime os seus sentimentos personalisando e localisando;
d’aqui a multiplicidade das lendas, e ao mesmo tempo um fundo de
verdade em todas ellas.

A lenda da _Nau Catherineta_ não tem uma determinada origem historica;
é a generalidade tetrica de todos os naufragios. Garrett inclina-se a
achal-a no naufragio que passou Jorge de Albuquerque Coelho, vindo do
Brasil no anno de 1556, em que a fome e a ancia de se devorarem e a
resistencia do capitão reflectem muito as cores sinistras da lenda.[8]
Tambem na relação, que por vezes havemos citado, do naufragio da nau
_S. Bento_, se encontram ameaços do horror da antropophagia: «E porque
havia tantos dias que não fizeramos resgate, nem metteramos nas boccas
cousa que nome tivesse, constrangeu a necessidade a muitos serem de
parecer que comessemos este cafre; e segundo se já soava, não era
esta a primeira vez que a desventura d’aquella jornada obrigara a
alguns a gostarem carne humana;[9] mas o capitão não quiz consentir
em tal, dizendo que se cobrassemos fama que comiamos gente, d’alli
até ao cabo do mundo fugiriam de nós, e trabalhariam de nos perseguir
com muito mais odio.»[10] O facto de deitarem muitas vezes sola de
molho, apertados pela fome, como conta ligeiramente a lenda popular,
é frequente nas relações dos naufragios: «mas fizemos a ceia de umas
alparcas que eu levava calçadas, a quem tambem a nossa não menor mingua
fez que não menos gostosas as achassemos.»[11] O gageiro, que era o
diabo que na lenda da _Nau Catherineta_ levantava o temporal, tem
alguma reminiscencia, ou melhor, parece ser fundado no grumete que no
naufragio do galeão _S. Bento_ se benze e chama pelo nome de Jesus ao
ver erguerem-se uns enormes vagalhões a que elle não hade chamar senão
diabos, que vêm em tropelia.

Em todas as narrações de naufragios ha mais ou menos uma sombra do
quadro horrivel da _Nau Catherineta_; fomos apontando alguns factos,
não para determinar origens, mas para reconhecer a generalidade da
lenda.

Na poesia das Asturias encontra-se um pequeno romance chamado o
_Marinheiro_; tem o mesmo colorido, similhante ao final da _Nau
Catherineta_ da versão do Algarve:

=El marinero=

    Mañanita de San Juan
    Cayó un marinero al agua,
    --Que me dás marinerito,
    Porque te saque del agua?
    «Doyte todos mis navios
    Cargados de ouro y de plata.
    --Yo no quiero tus navios
    Ni tu oro, ni tu plata,
    Quiero que quando tu mueras
    A mi me entregues el alma.
    «El alma entrego á Dios
    Y el cuerpo á la mar salado.

Os naufragios frequentes dos galeões da India acharam Uma forma
livre, espontanea, para revelar a extensão do sentimento nos cantos
do genio popular. A _Nau Catherineta_ é uma epopea moderna e por
isso incompleta, porque o tempo não deu logar a accumularem-se os
episodios, nem dependerem mutuamente as _Variantes_. A sua formação
descobre-se na diversidade de versões que ella tem. A Estremadura, o
Minho, o Algarve, Lisboa, Beira-Baixa e Ribatejo, trabalham sobre a
mesma lenda. Mais tarde a variante tornava-se episodio, prendia-se á
unidade do poema. A imagem do diabo, que mostra as meninas debaixo
do laranjal, é de origem puramente christã. O _gageiro_ que sobe ao
mando do capitão, sobre quem cahiu a sorte para ser devorado, e que
promette o grau de cavalleiro, sua filha, o seu navio, se lhe avistar
terras de Portugal, é uma das mil personificações do diabo. Elle produz
a cerração que esconde a praia. O mar, segundo as crenças christãs
vindas do paganismo, era a mansão do diabo. Typhon, o principio do mal,
a quem o mar fora consagrado,[12] transforma-se depois no diabo da
mythologia christã.[13] O espirito supersticioso, a ignorancia das leis
naturaes ainda não vulgarisadas na edade media, estão representadas
no gageiro que suscita a tormenta. Era a crença da egreja. Na vida de
Guibert de Nogent, na _Summa_, de S. Thomaz e no livro de Alberto Magno
_De potentia Daemonum_ apparece este pensamento que vêmos determinado
na poesia popular portugueza. Na _Divina Comedia_ e na _Jerusalem
Libertada_, os ventos são tambem attribuidos ao diabo.

Garrett nas poucas linhas com que precede este monumento da nossa
poesia popular maritima, admira-se de que um povo de argonautas não
exercesse o seu genio creador no romance maritimo.

O século XVI foi a edade da prosa; comtudo o povo é sempre infante,
sempre creador e poeta; mas as imitações classicas infatuadas de
sciencia absorveram as attenções a ponto de excluirem a poesia popular.
O poema cyclo do mar tivemol-o nós. Basta ler as relações das viagens,
dos naufragios, das fomes, das tormentas. Antes de se fixarem na forma
prosaica da _Historia Tragico-maritima_, essas dores foram primeiro
soffridas e communicadas. A _Nau Catherineta_ não tem uma certa origem
historica, como suppõe Garrett, é o germen de uma Odyssea, aonde a
multiplicidade das scenas de naufragio estão reduzidas á generalidade
mais tetrica. Entre os folhetos de cordel do seculo XVIII encontramos a
narração do naufragio da nau _Gloria_, feito em verso por um marinheiro.


=24,25 e 26--Romances do Conde Prêso=--Um facto notavel se dá n’estes
romances: como tres provincias, Trás-os-Montes, Beira-Baixa e
Beira-Alta se apoderaram de uma mesma tradição, e dos diversos modos
como a bordaram. A versão de Trás-os-Montes é simples, não admitte
a intervenção do maravilhoso, que repugna ao genio dos romances
carolinos; a versão da Beira-Alta foi tomando uma côr religiosa, traz
o milagre do romeiro, que era Sanctiago vindo proteger a sua devota.
Sem duvida esta é a mais moderna, por isso que o sentido do romance
antigo, e o instincto da independencia, cavalheiresca, já não é
comprehendido, nem basta para sustentar o romance. Garrett confundiu
as duas versões (Rom. t. II, 289). «Poucas cousas mais bonitas, diz
elle, tem o romanceiro popular da nossa peninsula. Onde nasceu não sei;
mas as collecções castelhanas não o trazem.» A versão da Beira-Baixa
mostra-nos a sua origem hespanhola; chama-lhe _Dom Garfos_, corrupção
do nome _Conde Grifos_ do Romanceiro hespanhol (Duran n.º 324). Não ha
aqui maravilhoso, mas sim uma audacia cavalleirosa, a independencia
altiva que distingue os romances carolinos da França dos romances
carolinos da Allemanha. Sente-se nesta versão a herança do crime
do primitivo direito symbolico, e um tanto da _irmandade heroica_
na presteza com que Dom Garfos acode a seu tio, indo falar ao rei,
desafiando-o, vingando-se a final na filha d’elle, que é sua propria
mulher. Vejamos a lição hespanhola:

=El Conde Grifos Lombardo=

    En aquellas peñas pardas,
    En las sierras de Moncayo
    Fue do el Rey mandó prender
    Al conde Grifos Lombardo,
    Porque forzó uma doncella
    Camino de Santiago,
    La cual era hija de un duque,
    Sobrina del Padre Santo.
    Quejábase ella del fuerzo;
    Quejase el Conde del grado:
    Allá van á tener pleito
    Delante de Carlo Magno,
    Y mientras qu’el pleito dura
    Al conde han encarcelado
    Con grillones á los piés,
    Sus esposas en las manos,
    Una gran cadena al cuello
    Con eslabones doblados:
    La cadena era muy larga,
    Rodea todo el palacio;
    Allá se abre y se sierra
    En la sala del rey Carlos.
    Siete Condes le guardaban,
    Todos han juramentado
    Que si el conde se revuelve
    Todos seran á matalo.
    Ellos estando en aquesto,
    Cartas habiam llegado
    Para que cazen la Infanta
    Con el Conde encarcelado.

Muito se aproxima da versão da Beira-Baixa; ha aqui tambem os sete
condes que o sobrinho mata. A versão portugueza, descubrindo uma
continuação da peripecia, leva-nos a crer que fosse talvez da origem
portugueza, se é que todos os romances cavalheirescos do nosso povo nos
não vieram da Hespanha.


=27 e 28--Romances do Conde Alberto=--Qual será a rasão por que este
romance é o mais vulgar na tradição portugueza? Será porque tem alguma
similhança com o assassinato de Dona Maria Telles pelo Infante Dom
João, para casar com a filha da rainha Dona Leonor? Duran, (Romanc.
General, t. II, pag. 219) quando apresenta o romance do Duque de
Bragança compara-o com o do _Conde Alarcos_, e crê que o da tradição
oral se refere á historia. O romance do _Conde Alarcos_ (Duran, n.º
365), foi tirado dos Romanceiros hespanhoes por Balthazar Dias, e por
elle glosado, como se vê pelo _Index Expurgatorio_ de 1624, que prohibe:
«a sua Glosa, com o Romance, que começa: _Retrahida eatá a Infante_.»
(Pag. 98). Na collecção hespanhola é elle mais extenso, d’onde se
vê que a versão popular foi d’ali abreviada. É um dos retratos mais
completos dos costumes feudaes, e o facto do _emprasamento_, fez
suppor a Duran, que será da epoca de Fernando IV, o _Emprasado_.
Garrett queria á força dar-lhe origem portugueza: «eu me inclino a
que o trovador castelhano alargasse a lyra do menestrel portuguez, do
que vice-versa.» (Rom. t. II, p. 41). Hypothese inadmissivel á vista
dos factos apontados e diante da rasão, porque em todas as versões
portuguezas se encontram somente os traços geraes da lição hespanhola,
resultado das abreviações que vão soffrendo na tradição. O Conde
Alberto tem varios nomes nas diversas provincias: no Minho chamam-lhe
Conde Albano, no Porto Conde Alberto, na Beira-Baixa Conde Anardos,
Dom Duarte, Conde Yano, como colligiu Garrett, e _Conde Alves_, como o
obtivemos d’aquella mesma provincia. Na poesia popular da Catalunha é
conhecido pelo nome de _Conde Floris_. (Milà y Fontanals, Observationes
sobre la Poesia popular, p. 20). Ticknor (Hist. da litteratura hesp. t.
I, p. 131, not. 32) considera esta composição jogralesca de Pedro de
Riano, «como a composição mais pathetica e bella que se tem escripto.»
Guillen de Castro, Mira de Amescua, José Milanes, e Lope de Vega na
_Fuerza lastimosa_, aproveitaram-se dos lances profundamente dramaticos
d’esta creação.

Na versão de Garrett ha o _maravilhoso_ de uma criança que fala ao
peito da mãe; na versão da Beira-Baixa ha uma quasi similhança do
emprazamento da lição hespanhola, o que a torna mais antiga e mais
proxima da sua origem.

Suppõe-se, e Duran no _Romanceiro hespanhol_ o aventa, que este romance
allude á morte dada pelo Infante Dom João a sua esposa Dona Maria
Telles, por intrigas da Rainha Leonor Telles, para casar com a Infanta
Dona Beatriz.


=29 e 30--Romances do Conde da Allemanha=--Estas duas variantes são
egualmente bellas e genuinas da tradição oral; são n’este ponto
superiores á lição de Garrett (Rom. t. II, p. 79) refundida e apurada
no _que lhe pareceu mais legitimo e verosimil_, segundo as lições
castelhanas de Depping e Duran.

Os romances que apresentamos, colhidos immediatamente da tradição oral,
e cheios de repetições que destroem a eurythmia do quadro, são o que ha
de mais pittoresco na inspiração popular. O povo tem em cada romance
uma parte dythirambica, que borda a capricho, em que se liberta da
_assonancia_ forçada; facto já lucidamente determinado por Garrett.
É a parte movel por onde a _variante_ vae de geração em geração
modernisando o romance.

Do Conde de Allemanha diz Garrett: «Facto conhecido da historia de
Portugal ou de outra parte de Hespanha, não sei que o memore este
romance;» Duran, falando da versão hespanhola (n.º 305 do Romancero
general) diz: «Tiene este romance antiquissimo alguma analogia con
el historico del conde Garci Fernandez; pero, un y otro mas parecen
tomados de una fabula caballeresca, que no de un hecho verdadero.»

Derivado do _Cancionero de Romances_ de 1581, impresso em Lisboa,
podemos sem errar, assignar-lhe uma origem litteraria.


=31,32 e 33--Romances de Dom Carlos de Montealbar=--Eis um d’aquelles
romances de que o povo tanto se apossou, que o inverte e borda, a
capricho, tomando a acção como typo de novas situações. Ha aqui
visivelmente a confusão da _Claralinda_ da versão do Porto e Beira
Alta. No _Romanceiro hespanhol_ encontram-se as versões d’onde os
nossos troveiros abreviaram a lição portugueza. O romance _del Conde
Claros_ (n.º 364) é a que parece mais ter contribuido para a versão
portugueza. Depping julga pertencer aquelle romance ás aventuras de
Eginart e da filha de Carlos Magno. A variante de _Dona Lisarda_
(Duran, romance de Dona Aliarda, n.º 329) parece-se muito com a
_Albaninha_ da lição de Garrett, (t. III, p. l5) principalmente nos
gabos do cavalleiro. A variante de _Dona Areria_ é uma confusão do
romance de _Dona Ausenda_. (Vid. _Hist. da Poesia popular portugueza_,
p. 152 e 162).


=34--Romance do Passo de Roncesval=--Depois da Beira-Baixa é provincia
de Trás-os-Montes a mais rica de tradições populares. Veio de lá este
romance; é como um ecco da energia da velha _Chanson de Roland_. O
cavallo levanta-se do meio do destroço para defender-se de que não
faltou á irmandade heroica do cavalleiro.

São assim os cavallos do cyclo carolino, como o cavallo Bayard, que
ao escarvar em terra parecia que tocava lyra! Como veio esta strophe
do poema de Roncesvalles fluctuar na tradição portuguesa? Como se
conservou no romance a memoria local, sendo a que primeiro se oblitera
na tradição? Viria directamente da Hespanha no principio do seculo XVI,
ou já cá existiria, desde que os Cruzados ao passarem pelo Mediterraneo
espalharam entre nós as grandes legendas dos cyclos cavalheirescos
da Europa? Questões estas que se devem propôr, mas não resolver,
sem risco de temeridade. Sabemos que este romance era conhecido em
Portugal no principio do seculo XVI, por isso que o encontramos citado
em Gil Vicente na Comedia de _Rubena_; vem lá o conhecidissimo verso
dos romances de Roncesvalles: _Em Paris esta Dona Alda_, que, podemos
asseveral-o com certeza se derivou para a tradição pelo celebre
_Cancionero de Romances_ de Anvers, reimpresso em Lisboa em 1581. Foi
Garrett o primeiro que recolheu este romance, e por felicidade o não
aformoseou, porque não pode alcançar variante alguma (Rom. t. II, p.
234). Encontram-se versões mais extensas no _Romancero General_ de
Duran, (nᵒˢ 395, 396 e 397) d’onde com certeza foi abreviada a nossa.


=35--Fragmento de um romance do Cid=--Muitos romances populares
portuguezes se encontram citados na obras de Gil Vicente. (Vid. a
Historia da Poesia popular, p. 23, e 138). Este fragmento do Romanceiro
do Cid encontra-se no Auto da Luzitania, (t. III, pag. 270,) e lê-se
por extenso no _Tesoro de los Romanceros_ de Ochoa, p. 185, que o
aponta como um dos mais antigos e mais populares:

    Helo, helo por do viene
    El moro por la calzada,
    Caballero à la gineta
    Encima una yegua baya,
    Borceguies marroquies
    Y espuela de oro calzada,
    Una adarga ante los pechos
    Y en su mano una azagaya,
    Mira y dice á essa Valencia:
    --De mal fuego seas quemada,
    Primero fuiste de moros
    Que de christianos ganada,
    Si la lanza no me miente
    A moros serás tornada, etc.

Pode confrontar-se a variante portuguesa; é no pequeno fragmento mais
bonita, por causa da segunda elaboração que lhe deram cá. Este mesmo
romance foi imitado em Hespanha, como se vê na _Primavera y flor de
Romances_, t. II, p. 36.


=36 e 37--Romances de Dom Gayfeiros=--Pertencem estes dois romances
ao cyclo carolino, caracterisado pela altivez do cavalleiro, e por
brilhantes feitos de armas. O gosto mourisco do seculo XVI vae
modificando os heroes da tradição carlingiana, até os substituir
completamente pelos contos de cativos. A lição de Garrett (Rom. t.
II, p. 250) traz as duas variantes em uma só versão formada pelas
differentes copias que obteve de Trás-os-Montes, e pelo manuscripto
do Cavalleiro de Oliveira, traduzindo nas situações duvidosas a lição
castelhana de Duran (Rom. general n.ᵒˢ 374 a 381). Na tradição oral
nunca os romances são tão extensos; nem o povo sabe o nome dos Doze
Pares, nem do Arcebispo Turpin, para os nomear no sequito que veio
receber os dois amantes. Os romances populares são sempre dramaticos,
raras vezes narrativos, e nunca descriptivos. A lição de Garrett
abunda em descripções, justamente nos pontos em que elle segue a
versão hespanhola, a qual por ser antiquissima, isto é, mais proxima
da sua composição jogralesca, devia de ser assim descriptiva. Duran
julga ser o romance de Dom Gayfeiros o que mais quadra com a memoria
que d’elle deixou Cervantes no Don Quijote (Part. 2, cap. 26). As
versões portuguezas _todas mais curtas do que as lições castelhanas
dos romanceiros_, como Garrett o confessa, denunciam a sua origem, e o
processo da abreviação, que a antiguidade lhes vae dando, reduzindo-as
aos traços mais profundos. Veio-nos o romance, directamente da
Hespanha para a tradição portugueza, e no seculo XVI correu elle na
sua linguagem nativa, por isso que Gil Vicente, na _Comedia de Rubena_
o cita no dialogo da Ama (Tom. II, scena II, p. 27): _Vámonos, dijo
mi tio_, que é o primeiro verso do segundo romance de Gayfeiros que
traz Ochoa no _Tesoro de los Romanceros_, p. 44. Veio do _Cancionero
de Romances_ de Anvers, reimpresso em Lisboa em 1581; collecção
celeberrima, por ser a primeira em que se recolheram os romances
directamente da tradição oral, até então desprezada. Quasi todos os
romances de origem hespanhola, communs aos povos do Meio Dia da Europa,
d’ali se derivaram para a tradição portuguesa. Tambem o romance do
_Mouro Calainos_, aonde se fala de uma cativa que está em Sansueña,
a qual muitas vezes requerida de amores, só os escuta com a condição
de lhe trazerem de Paris tres cabeças dos melhores Pares, pertence ás
aventuras de _Gayfeiros_. É certo que esse mesmo andou na tradição
portugueza, porque no _Index Expurgatorio_ de 1624 se prohibe: «O
Romance do Moro Calaynos y de la Infanta Sybilla.» (Index, Lisboa,
1624, por Pedro Craesbeck, pag. 174).

Uma tradição quasi similhante é a de Mira-Gaia, que se lê no
_Nobiliario_, e que foi romanceada por João Vaz, no seculo XVI.


=38--Romance de Flor e Brancaflor--=Outra vez a peripecia de
reconhecimento, como na _Dona Infanta_, e _Infanta de França_, tão
usada em quasi todos os romances populares da Europa. Corre esta
versão pela Beira Baixa, Minho, Extremadura, Ribatejo, Beira-Alta
e Trás-os-Montes. Publicou-a Garrett, (Romanceiro, t. 2, pag. 183)
dizendo: «Nem os romanceiros castelhanos, nem escriptor algum faz
menção do bello romance da _Rainha e Cativa_.» É porem certo que se
encontra com o titulo _Las dos Hermanas_ na _Primavera y flor de
Romances_, t. II, pag. 38, d’onde é manifesta a origem do romance
portuguez cujas pequenas circumstancias segue. E verdadeira a opinião
de Garrett, quando o faz pertencer ao seculo XII. M. Milá y Fontanals
recolheu um romance similhante _Las dos Germanas_ da poesia popular
da Catalunha, no qual predomina uma completa originalidade; podo
ler-se nas suas _Observationes sobre la Poesia popular_, pag. 117.
O romance portuguez é superior ás lições castelhanas. Du Puymaigre
tira a este proposito uma judiciosa conclusão: «Que os portuguezes
muitas vezes romanceam com mais talento assumptos que se acham nas
collecções dos dois povos; porem esta perfeição denota a sua pouca
antiguidade. De ordinario os romances portuguezes são mais claros,
mais bem desenvolvidos, para que se tomem por primitivos.» (Vieux
auteurs Castilhans. t. II, p. 370). Será este romance um vestigio
remoto e já completamente alterado pela tradição do romance de _Flor
e Blanchefleur_? Os nomes dos personagens são o _Conde Flores_ e
_Brancaflor_ a quem os mouros cativaram:

    Dia de Paschoa florida,
    Andando apanhando rosas
    N’um rosal que meu pae tinha.

O nome de Blanchefleur, nas versões francezas é explicado pelo dia do
nascimento do heroe:

    Li doi enfant, quant furent né,
    De la feate fure nomé:
    La crestiène, por l’honor
    De la feste, et nom Blancefleur

    v.--169--172.

Na versão italiana de Brancaflor as duas mães têm os seus filhos no
mesmo dia:

    Partorirno in una medesma sera
    Di maggio, ch’era la rosa in su la spina...
    Lo fresco giorno di _Pasqua rosata_.

É mui frequente esta data nos poemas da edade media, principalmente
nos de origem oriental. Podemos com certeza asseverar que a versão
portugueza, recolhida da tradição oral, se encontra exactamente quanto
á essencia no romance de _Blancefleur_, desde o verso 55 até ao verso
190 (Ediç. Elzeviriana.) As alterações podem-se explicar do mesmo modo
que Du-Méril descubriu pela analyse das versões hespanholas: «l’esprit
espagnol ne paraît pas l’avoir jamais comprise.» (Introd, pag. LXXIX).
Desde quando andará na tradição portugueza este fragmento do romance de
_Blancefleur_? Que elle era conhecido na Hespanha sabemol-o por Affonso
o Sabio, pelo Arcipreste de Hita e por Francisco Imperial; em Portugal
encontramol-o citado no _Cancioneiro_ de Dom Diniz:

    Qual mayor poss’ e o mays encuberto
    Que eu poss’ e sey de _brancaflor_
    Que lhe non ouv’ eu _flores_ tal amor
    Qual vos eu ey; etc.» Pag. 52.

O romance de _Banchefleur_ encontra-se na tradição de todos os povos
da Europa; andou por certo na tradição jogralesca, como se vê por este
verso:

    Mais a un clerc dire l’oït
    Qui l’avoit léu en escrit.

    V. 51--52.

E assim veio até Portugal pelo tempo dos Cruzados; apoia-se esta
conjectura no facto de se encontrar tambem na tradição da Grecia
moderna em um poema (publicado por Bekher nas _Memorias da Academia das
sciencias de Berlim_ em 1845) o qual fala da antiguidade da tradição.


=39--Romance da Moira Encantada=--Esta lenda foi recolhida no Algarve
pelo sr. Stacio da Veiga e publicada no nº 12 da _Estrella de Alva_.
O maravilhoso feérico das mouras encantadas é do genio popular
d’aquella provincia; tambem ali o romance da _Nau Catherineta_ acaba
phantasticamente; segundo o citado collector, este romance é dos mais
populares do Algarve, e exprime a crença commum e antiga de que na
cidadella mourisca de Tavira, á meia noite, na vespera de Sam João,
apparecia a formosa encantada pedindo que algum cavalleiro viesse
romper-lhe o encanto. Colloca tambem a sua formação nos fins do
seculo XVI, principios do seculo XVII, quando o gosto mourisco foi
imitado entre nós por Dom Francisco Manuel do Mello nas _Tres Musas de
Melodino_, e por Francisco Rodrigues Lobo no seu pequeno Romanceiro.
O final parece imitado do romance da _Moriana_ e do mouro Galvan,
que jogava no jardim com a sua amante, e de cada vez que perdia,
ia-se-lhe uma villa ou cidade. No romance do Algarve Dom Ramiro ganha
um castello, mas sem moira para amar. Isto revela um tanto a sua origem
artistica.


=40--Romance de Nossa Senhora dos Martyres=--O sentimento do
maravilhoso e a inspiração piedosa tornam este romance de aventuras
mais do genio celtico, do que do gosto mourisco. Nos Açores são
vulgares as tradições dos piratas da costa; e na legislação portuguesa
se encontram varias multas applicadas para a _Arca da Piedade_, d’onde
sahia o dinheiro para a redempção dos cativos pelos trinitarios. Foi
colligido este romance no Algarve, pelo sr. Stacio da Veiga; repete-o
o povo na romaria de Castro-Marim no meado de Agosto. A tradição é
antiquissima, a sua forma poetica é porem mais moderna. Frei Luiz de
Sousa no livro IV da _Historia de Sam Domingos_, refere o milagre do
seguinte modo:

«Reinando em Portugal el-rei Dom Afonso III, que foi Conde de Bolonha,
succedeu cair em poder de mouros um homem natural de Penamacor.
Escureceu o tempo as particularidades do nome e calidades da pessoa,
e da occasião e logar do cativeiro. Era o tratamento do amo mais
de inimigo e tyranno, que de amo e senhor. Porque sendo o pobre
cativo seu e fazenda sua, assim se deleitava em lhe fazer cruezas,
como se fora christão livre, ou cuidara que com os tormentos lhe
acrescentára a vida. Não tinha o atribulado outra consolação no meio
dos trabalhos, senão era soccorrer-se ao Santo da sua terra, Sam
Domingos da Sovereira. E quando a força d’elles lhe arrancava algum
gemido (que até o suspirar era culpa diante do barbaro), sempre saia
envolto com o nome de Sam Domingos. Era isto tão ordinario que o
mouro (devia ser algemiado, e d’aqui collijo que o cativeiro seria
em Granada, ou em outra terra de Hespanha, das muitas que então e
muitos annos depois senhoreavam os mouros nella) veio a notar-lhe a
linguagem. E porque não ficasse cousa em que deixasse de o martyrisar,
perguntou-lhe um dia que arenga era aquella que trazia na bocca,
contínua, quando devia chamar por Alá, nomear Domingos, Domingos (é
Alá o nome por que os mouros conhecem a Deos.) Alegremente confessou
elle que trazia na bocca, e tinha na alma tendo por obra de fé e
animo catholico pronunciar claramente e com a lingua o que sentia
o coração: e foi proseguindo que era um santo subido, pouco tempo
havia, da terra ao céo, e conhecido na sua por grandes maravilhas que
obrava, e em quem elle tinha esperança que o havia de livrar das suas
mãos. Caro lhe custou ao pobre a alegria e liberdade da confissão,
pagou-a com rigoroso castigo presente e com outro mais duro que não
tardou. O primeiro não estranhou tanto, como era seu pão quotidiano,
offerecendo-o a Deos por honra da fé. Mas com o segundo se viu
reduzido a termos de desesperação. Julgou o bárbaro que as esperanças
do cativo se deviam fundar em alguma determinação e traça de fugida:
quiz acautelar-se; Vindo uma noite cansado de servir e trabalhar o
dia inteiro, encerrou-o sobre má cêa em um novo genero de masmorra,
que era um arcaz grande e forte, que depois de fechado com mais do
uma chave, lhe ficou para inteira segurança servindo do leito. Mas
parecendo-lhe, que ainda assim o não tinha bastantemente arrecadado,
ia cada dia accrescentando novas cautellas a sua desconfiança. Já lhe
lançava algemas nas mãos, já adobes nos pés, depois de encarcerado
na arca. E tendo-o assim, perguntava-lhe de cima com escarneo, se
esperava ainda no santo da sua terra.................................
............................................................

«Uma noite, depois que o mouro o meteu na triste masmorra, na forma
que temos dito, sobre algemas nas mãos e outros ferros nos pés,
lançou-lhe no pescoço um grosso collar, das argollas do qual sahia
uma forte cadeia de trinta palmos, com que lhe foi dando voltas, e
enrolando o corpo todo. E para dormir mais a somno solto, lançou sobre
o alquifer que vestia um alfange a tiracollo, e prendeu um lebreo que
tinha ás argolas da arca. Feita esta diligencia estendeu-se sobre
ella, e contente com o que tinha de novo acrescentado, bateu-lhe de
cima dizendo que se não esquecesse de fazer oração ao seu Domingos da
Sovereira, que o viesse livrar de suas mãos...... Assim se lançaram
a dormir á noite ambos em terra de mouros: assim amanheceram amo e
escravo em terra de christãos com grande distancia de leguas, em meio,
e á porta de Sam Domingos da Sovereira em Penamacor..... Abriu o mouro
os olhos, viu-se entre montes e cercado de gente, que pelo trajo e
espanto que fazia de sua vista conhecia ser christã. Espantava-se o
enterrado na arca ouvindo linguagem da sua terra e muitas vozes juntas.
Mas nem amo, nem cativo se atreviam a dar credito um aos olhos, outro
aos ouvidos: ambos haviam que era tudo sonho. Em fim, como não é facil
de enganar o sentido da vista, e o mouro viu que tudo o desenganava,
e que estava entre christãos, não por sonhos, senão com effeito, que
via a egreja, e ouvia som de sinos que a infidelidade sobre tudo
aborrece, acabou de caír que não eram palavras mal fundadas as do
seu cativo quando tanta confiança fazia do seu santo. Lembrava-se de
tudo com estranha confusão, e só desejava saber por ultimo desengano
se estava em Portugal. Como tinha conhecimento das linguagens de
Hespanha, perguntou a um de muitos que o rodeavam espantados de tal
invenção de romeiro e tal alfaias de romaria, como chamavam a terra,
e o sitio em que estavam. Quando soube que tinha diante dos olhos Sam
Domingos da Sovereira ficou como fóra de si de pasmado e attonito; e,
conformando-se com o tempo, quiz começar a grangear com cedo quem
por boa conta trocadas as sortes havia de ser seu senhor.... Foi o
mouro logo revolvendo um molho do chaves que lhe pendiam da cinta, e
abrindo cadeados e fechaduras da sua arca. Chegaram os circunstantes
a ver que peças trazia para offerecer em tam grande arca o romeiro
estranho: senão quando dão com os olhos em um Lazaro sepultado, e em
rosto e cores defunto; mas vivo na voz, e envolto em novo genero de
mortalhas, mortalhas de ferro: e tão carregado d’ellas, que de nenhum
membro era senhor, senão só da lingua, com a qual, voz em grita chamava
por Sam Domingos, como quem tinha já sentido onde estava..... Solto em
fim sem outra palavra na bocca mais que Sam Domingos, deixa-se cahir
em terra, abraça-se com ella, beija-a, e vae-se prostrar diante do
altar do Santo...... O cativo cumpriu sua promessa, viveu e morreu
ermitão do Santo. O mouro penetrado da grandeza do milagre pediu o
santo baptismo (divina força da predestinação) e ficou em cativeiro
livre e ditoso servindo a ermida e acompanhando o seu cativo. E por
morte foram enterrados juntos á porta d’ella, onde os cobre ambos uma
só campa com um letreiro que o declara.» Hist. de S. Domingos, Liv. IV,
C. V, f. 211, v. Resumimos o facto deixando de parte os consectarios
moraes e piedosos do chronista. Todas as lendas da edade media tendiam
a _localisar-se_; eis porque apparecem reproduzidas. As tradições dos
cativeiros, e as esmolas na Arca da piedade iam formando estas creações
da mente popular. O milagre é tambem uma das formas do maravilhoso do
povo.


=41 e 42--Romances do Cativo de Argel=--Este romance foi-me offerecido
no Porto, escripto um uma letra que denuncia o seculo XVII. Guardo
este documento, que prova mais uma vez a grande intuição artistica
de Garrett, quando disse: «O romance anda por Lisboa, Ribatejo e
Extremadura fóra;--não deve de ser mais antigo que o meado do seculo
XVII, se a copla em que allude a Ceuta e Mazagão não é _rifacimento_
moderno, como tambem pode ser e me inclino a crer que é, porque
no resto o sabor e o estylo é mais velho.» A lição de Garrett,
(Romanceiro, t. III, p. 77) é mais extensa, mais dramatica, mas não
tem o mimo, a rudeza primitiva, desta versão meio portugueza, meio
hespanhola do dialecto popular usado n’este genero de composições. Diz
mais Garrett, que se não acha nas collecções hespanholas. Eis como ella
anda n’aquelles romances tradicionaes de cativos, de um modo que parece
d’onde sahiram as versões portuguezas:

El Cativo

    Preguntando esta Flerida
    A su esposo placentera
    En un vergel asentada
    Junto á uma verde ribera:
    --Digasme tu, esposo amado,
    De dónde eres? de que tierra?
    Y a dónde te captivaron?
    Y liberdade quien te diera?
    «Yo os lo diré, dulce esposa,
    Estando atenta síquiera:
    Mi padre era de Ronda,[14]
    Y mi madre de Antequera;
    Captiváronme los moros
    Entre la paz y la guerra,
    Y llevaroume á vender
    A Velez de la Gomera.
    Siete dias com sus noches
    Anduve en el almoneda:
    No hubo moro ni mora
    Que por mi una blanca dera,
    Si no fuera um perro moro
    Que cien doblas offreciera,
    Y llevárame á su casa,
    Echárame una cadena;
    Dábame la vida mala,
    Dábame la vida negra;
    De dia majaba esparto,
    De noche molia cibera,
    Echóme un freno á la boca,
    Por que no comiese d’ella.
    Pero plugo á Dios del cielo
    Que tenia el ama buena:
    Cuando el moro se iba á caza
    Quitabame la cadena;
    Echabame en el regazo,
    Mil regalos me hiciera,
    Espulgabame y limpiaba
    Mejor que yo mereciera;
    Por un placer que le hice
    Otro mayor me ofreciera,
    Dierame casi cien doblas,
    En libertad me pusiera,
    Por temor que el moro perro
    Quiza la muerte nos diera.
    Asi plugo a Dios del cielo
    De quien mercedes se espera,
    Que me ha vuelta á vuestros brazos
    Como de primero era.

Timoneda na _Rosa de Amores_, Fernando Wolf na _Rosa de Romances_, e
Duran no _Romancero General_, n.º 258, trazem este romance typo de
todos os romances de cativos. Agora pode-se confrontar a nossa lição
manuscripta, aonde falta o principio e fim que justifiquem as narrações
do cativo. Do _Cancionero de Romances_, de 1581, creio ter-se elle
derivado para a tradição portugueza.

Os piratas do mar, os cativeiros de Argel, a tomada de Constantinopla
pelos turcos, absorvem o sentimento e a imaginação da alma popular no
seculo XVI. Ha o terror e a incerteza da aventura, quer no espirito
da empreza maritima, quer nas descubertas scientificas; os sabios, os
artistas e o povo andam na inquietação de uma genese prodigiosa--a
Renascença. Espalham-se grandes lendas dos trabalhos e dos amores dos
prizioneiros. Cervantes foi heroe; Lope de Vega, em uma das scenas
mais lindas das suas comedias, appresenta a anciedade e a grandeza da
abnegação na hora do resgate. Os trinitarios levam as esmolas, obtidas
por meio de contos dolorosos, e pela recordação dos amigos e parentes
que gemem nos ferros.

Como é possivel tanta delicadeza de sentir na alma popular? Sobretudo
este final:

    Ó mi padre, oh mi padre,
    Deixe ir el Christiano,
    Que el no me debe nada,
    Debe-me a flor de mi bocca,
    Dou-lh’a por bem empregada

é de um mimo capaz de fazer desesperar o mais gracioso artista.
Que mysterios de amor apenas esboçados, deixados adivinhar n’estas
palavras--Debe-me a flor de mi bocca? E que saudade e resignação da
princeza na despedida do cativo, em que dá por bem empregada essa
flor, por ser elle que a leva!


=43--Jesus Mendigo=--É uma daquellas verdades moraes revestida das
formas de uma parabola, e tão simples como Christo as ideava, quando
queria fazer-se entender pelo povo. Pertence propriamente aos povos do
Meio Dia da Europa, quer se busque a sua origem na _Legenda Aurea_, ou
nos Cancioneiros. Falámos especialmente d’ella na _Historia da Poesia
popular_, pag. 123 a 128. Corre no Minho e na Beira-Baixa, d’onde nos
veio mais completa. Vejâmos os paradigmas:

=La ballade de Jésus Christ=

    Jesus Christ s’habille en pauvre }
    «Faites moi la charité,          } _bis_
    Des miettes de votre table
    Je ferai bien mon diner.»

    --Les miettes de notre table,  }
    Les chiens les mangeront bien; } _bis_
    Ils nous rapportent des lièvres,
    Et toi ne rapporte rien.

    «Madame, qu’et’s en fenêtre, }
    Faites-moi la charité,       } _bis_
    --Ah! montez, montez, bon pauvre,
    Un bon souper trouverez.

    Après qu’ils eurent soupé, }
    Il demande à se coucher.   } _bis_
    --Ah! montez, montez bon pauvre,
    Un bon lit frais trouverez.

    Comme ils montaient les degrés     }
    Trois beaux anges les éclairaiant. } _bis_
    «Ah! ne craignez rien, Madame,
    C’est la lune qui parait.

    Dans trois jours vous mourerez, }
    En paradis vous i ez;           } _bis_
    Et votre mari, Madame,
    En enfer irá brûler.»

Esta ballada é popular na Picardia, e Champfleury a recolheu nas
_Chansons populaires des Provinces de France_, p. 5. A nossa lenda
piedosa é mais primitiva, não tem o sêlo ecclesiastico da maldição:
o marido e a mulher, como Philemon e Baucis da antiguidade classica,
gosam ambos a bem-aventurança.

=44--Romance de Santo Antonio e a Princeza=--Esta lenda de Santo
Antonio e a Princeza devemol-a ao cuidado do sr. S. P. M. Estacio da
Veiga, que a recolheu no Algarve, e appareceu no n.º 11 da _Estrella
d’Alva_, Lisboa 1861.

A lenda piedosa, recolhida da tradição oral, é um dos muitos milagres
do santo mais popular de Portugal. Eis como ella se encontra na
_Chronica dos Frades Menores_ de Frei Marcos de Lisboa: «Uma Rainha
de Leão de Hespanha, a qual era natural de Portugal, e devotissima de
Santo Antonio, teve uma filha de onze annos morta tres dias, contra
vontade de el-rei seu marido, e dos principes do seu reino, e fazia
oração ao Santo, dizendo--Bemaventurado Santo Antonio, eu sou vossa
natural, e vim de vossa patria, dai-me minha filha viva.» A cujos
devotos clamores resurgiu a filha e reprehendeu a mãe, dizendo: «Oh,
senhora mãe, nosso Senhor vos perdoe, porque eu estando êntre as
virgens na gloria, o bemaventurado Santo Antonio, com tanta instancia,
por amor de vós rogou a Deos, que me restituiu a vida, e me mandou
que viesse a vós; mas senhora mãe, sabereis que o Senhor me não deu
licença para estar comvosco mais que quinze dias.» Os quaes quinze dias
acabados, a Infante se tornou á gloria.--Chr. Tom. I, Liv. V, c. 33,
fl. 157, etc.

=45, 46 e 47--Romances de Santa Iria=--A lenda, appareceu pela primeira
vez colligida o publicada por Garrett no tomo II, pag. 35 das _Viagens
na minha terra_. Com aquelle grande senso artistico, discute elle as
origens monasticas da tradição da padroeira de Santarem; a differença
que ha na versão popular não é um resultado do duas formações diversas;
o povo quando recebe uma tradição simplifica-a, redul-a aos traços mais
geraes, e é justamente a parte mais bella e inmorredoura da creação
individual que elle perpetúa. Tambem se encontra no Porto esta lenda
piedosa, aonde ouvimos alguns fragmentos com o titulo de _Iria a
Fidalga_; o sentimento popular não podia deixar do perdoar: é, sobre
tudo, isto o que torna a variante da Beira-Baixa superior á lição de
Garrett.

A variante do Minho, ainda que appresentada por um auctor que fez de
lavra sua varias composições-rifacimentos do gosto popular, pertence
ao genio anonymo, e por isso a incluimos. Lê-se na _Revista Universal
Lisbonense_, t. III, p. 329. Esta versão distingue-se das precedentes
por que é narrada impessoalmente. O nome de Helena é uma confusão
de Irene ou Iria. O final estava assim truncado, mas o leitor pode
completal-o por qualquer das versões da Beira Baixa ou Santarem.


=48--Romance da Devota da Ermida=--Foi aqui pela primeira vez recolhido
da tradição oral. O cantar da criança que nasce na sepultura faz
lembrar aquella ballada bretã dos _Tres monges vermelhos_, feita pelo
povo contra os Templarios.


=49--Oração do Dia de Juizo=--A poesia do christianismo é inteiramente
popular, como se vê pelas palavras de Sam Jeronymo: «Ecclesia non
de Academia, sed de viti plebecula orta est.» Que são os Evangelhos
apocryphos senão os cantos dos primeiros neophytos? O Livro dos
pecados, que hade apparecer no dia do juizo, é uma tradição rabbinica e
mussulmana tornada popular nos primeiros seculos da egreja, como se vê
pelo _Evangelho de José o Carpinteiro_. Os rabbinos admittiam que era
S. Miguel quem appresentava as almas a Deos. No _Ensaio sobre as lendas
piedosas da Edade Media_, por Alfred Maury, vem um eruditissimo estudo
sobre a psychostasia e o uso das balanças no Juizo final (pag. 17 a
84), que trataremos de resumir, para mostrar como a lenda portugueza é
formada de tradições primitivas. Nos monumentos egypcios e etruscos se
encontra este symbolismo da alma pezada em uma balança, a que alludem
tambem Homero e Virgilio. Dherma na religião dos Indous, pesa as boas
e más acções. Na Biblia e nos Santos Padres encontra-se esta mesma
allusão metaphorica, bem como nos hymnos de Prudencio e Fortunato.
Principalmente nas obras de arte da edade media, baixos relevos,
pinturas e miniaturas dos manuscriptos, se encontram differentes
representações de Sam Miguel pesando as almas.

Quando o diabo fazia pender a balança para o lado das más acções, era a
Virgem quem fazia prevalecer o pequeno numero das acções boas, como se
vê em Herm. Com. Chr. apud Eccard. Cf. Michelet, _Hist. de França_, p.
310. D’este mesmo sentimento se inspira o drama de Bartolo: L’Homme par
devant Jesus, le diable demandeur et la Vierge defendeur. (Vid. Maury,
loc. cit.)


=50--Romance do Terremoto de Villa Franca do Campo=--Foi este romance
extraído do celebre manuscripto intitulado _Saudades da terra_ por
Gaspar Fructuoso, primeiro historiador insulano. Do cap. V, o copiou
Jorge Cardoso para o _Agiologio Lusitano_, t. 3, p. 415.


=51--Xacara da linda Pastorinha=--Com titulo quasi identico publicou
Garrett (_Romanceiro_, t. III, p. 187) uma variante dos arredores de
Lisboa, em que o guapo galanteador não é irmão, nem vem preoccupado por
alguma aposta. É ali incompleta, e está mal classificada; muitas outras
cantilenas d’este genero temos encontrado na tradição oral, em forma de
descante ou desafio. O povo só conhece na sua poesia a redondilha maior
e menor; e de todas as lições que recebemos do Porto, Trás-os-Montes e
Beira Baixa nenhuma trazia os versos dispostos em forma alexandrina.
De todas as variantes a mais verdadeira é aquela que vem precedida de
um preambulo em prosa, contando como um irmão chegado do Brazil á sua
terra, antes de se dar a conhecer a sua irmã, começou a falar-lhe de
amores, por aposta contra os que lhe diziam ser ella a mais esquiva de
todas as raparigas do logar.


=52, 53--Xacaras dos Conversados=--Aqui está um quadro dos amores
do povo, entre dois conversados, como é estylo de campo; a scena é
bíblica; a Samaritana do poço percebe todas as allusões e responde com
não menos frescura. Na versão de Penafiel, o moço pede de beber por
um pucarinho novo, e _tocadinho de amor_. É uma expressão pittoresca,
tirada do usual da vida, por que é _tocando_ que se vê se a louça está
sã. As fórmas, que o apaixonado furtivamente observa, a rosa com que
symbolisa o seu desejo, e que a cantareira guarda para deixar apanhar a
quem for do seu gosto, dão a este idyllio um colorido tão delicado, que
a mesma naturalidade quasi que faz passar desappercebido.


=54--Os Estudos de Coimbra=--Este canto foi recolhido em Penafiel;
pertence a genero de despique de conversados. Nas aldeas os rapazes e
raparigas namoram-se por cantigas. As quadras improvisadas, lançadas ao
vento, e que os viandantes escutam, são as que ficam na tradição oral,
formando assim naturalmente um pequeno conto de amor.


=55--Xacara do Cego andante=--Garrett determina os paradigmas da
presente xacara em duas balladas escossezas de el-rei James V,
intituladas _The Gaberlunzieman_, e _The Jolly Beggar_ (Percy’s,
_Reliques of ancient english poetry_, Series II, book I, 10).

=56--Xacara da Moreninha=--Esta xacara, anda na tradição popular da
Extremadura e Beira; de Castello Branco foi a versão publicada por
Garrett (Rom. t. III, p. 54) «mas aproveitou-se de outras lições
provinciaes o que foi necessario para lhe dar complemento.» A
_Moreninha_ tem a vantagem do ser recolhida da genuina tradição oral do
Porto. O tal Frei João é tão antigo na lenda portugueza, como o Frei
Jean des Entommeures do _Gargantua_ de Rabalais, se não proveiu d’esta
creação comica, foi por certo tirado das aventuras da vida claustral,
que em ocio santo e beatifica estupidez era consummida. O retrato do
frade da versão popular é similhante ao esboçado em Rabelais; «En
l’abbaye estoit pour lors un moine claustrier nommé frère Jean des
Entommeures, jeune, galant, frisque, debait, bien à dextre, hardi,
adventureux, delibéré, hault, maigre, bien fendu de gueule, bien
advantagé en nez, beau despecheur d’heures, beau debrideur de messes,
beau descreteur de vigiles: pour tout dire sommairement, vrai moine si
ouques en fut depuis que le monde moinant moina de moinerie; au reste,
elere jusque ès dents en matière de breviaire.» (_Gargantua_, C. 27).
Em algumas versões do romance portuguez descreve-se como: Frei João
se levantou ’numa fresca madrugada; Rabelais diz: «Mais le moine, ne
faillit onqués à s’esveiller avant la minuit, _tant il estoit habitué
à l’heure des matines claustrales_. (Id. cap. 41.) Na versão colhida
por Garrett o _manteo de cochonilha_, e a circumstancia dos pretos
que vão buscar agua fazem a tradição portugueza do seculo XVI, e por
isso contemporanea do romance de Rabelais. Nos _Ineditos de Alcobaça_,
publicados por Frei Fortunato de Sam Boaventura, encontra-se frequentes
vezes empregada a palavra _gargantuice_ nos monumentos em prosa do
seculo XIV e XV; o que prova existirem entre nós vislumbres da tradição
a que Rabelais deu desenvolvimento. Na versão de Garrett não vem o
milagre do calix.

=57--Xacara do Soldado=--Foi pela primeira vez recolhida por Almeida
Garrett da tradição oral de Trás-os-Montes, aonde achou tres copias,
sendo uma mais completa do que as outras. Não se encontra nas
collecções castelhanas. Garrett assigna-lhe a data «pelos tempos da
guerra da acclamação, isto é, por meado do seculo XVII.» (Rom. t. III,
p. 167). Nos modernos contos de Don Antonio de Trueba respira-se este
mesmo sentimento popular.


=58--Xacara do Toureiro namorado=--Foi pela primeira vez aqui recolhida
da tradição oral; tem o merecimento de ser um resultado dos costumes
dos dois povos da Peninsula, que se fazem notar pela paixão dos
divertimentos tauromachicos. Não se encontra nada similhante nos
Romanceiros hespanhoes.


=59--Xacara da Tecedeira=--Tem toda a desenvoltura e licença de um
_fabliaux_ francez. A influencia dos troveiros do norte da França não
chegou até nós sómente pelo Arcipreste de Hita, guardado na Livraria
de Dom Duarte, ou traduzido em portuguez; na alma popular apparecem de
longe em longe estas reminiscencias tambem. A xacara é da Beira-Alta;
Garrett porem fundiu-a dentro do romance de _Dom Claros d’alem-mar_
(Rom. t. II, p. 192) por mera diversão artistica, porque nas lições
castelhanas, d’onde as versões portuguezas se derivaram, não apparece
tal situação.


=60--Despedida de Lisboa=--Com dois tostões venci a repugnancia de um
rhapsodo popular para me dictar estas coplas. Assim ficou salva do
esquecimento uma reliquia pura do sentimento das aventuras maritimas
da alma portugueza. A primeira parte faz lembrar as velhas narrações
dos mareantes, como se lêem na _Historia Tragico-marítima_. Será talvez
a abertura de algum romance maritimo já obliterado na tradição? A
despedida do marinheiro não é de saudade, é de sêde do goso de que se
sente privado pela viagem demorada e tormentosa. Esta xacara é como um
truncado florão de architectura manuelina.


=61--A Freira arrependida=--Estas coplas foram recebidas da Beira-baixa
em duas lições fragmentadas, que mal deixavam perceber o sentimento
profundo que encerram. No Manuscripto n.º 338 da Biblioteca da
Universidade existe uma outra lição em letra do seculo XVII, intitulada
_Queixas de uma Freira_, pela qual podémos coordenar as lições da
Beira-Baixa. Eis um grito doloroso do povo contra a direcção monachal,
que a egreja queria dar á sociedade; é um grito inspirado pelo
sentimento da natureza que a Renascença veiu acordar na alma humana.
Sempre uma verdade immensa na poesia do povo.


NOTAS DE RODAPÉ:

[1] Epist. 105 Labbe, Coll. dos Concil., t. VI, col. 1559.

[2] Relação do naufragio da nau _S. Bento_, pag. 55.

[3] Idem, pag. 73.

[4] Idem, pag. 109.

[5] Relação da viagem e sucesso das naus _Aguia_ e _Garça_, pag. 222.

[6] Obras de Gil Vicente, t. II, pag. 414.

[7] Codic. da B. Real publicado pelo senhor A. H, no vol. III do
_Panorama_, pag, 277.

[8] Tomo III do Romanceiro, pag. 87.

[9] Creio que esta passagem se refere á seguinte: «Estes cafres não
deram novas como os quatro homens que mandaramos adiante com recado a
Lourenço Marques, eram mortos ou mataram d’alli perto, porque elles
constrangidos pela fome tomaram um cafre que toparam ao largo do mar, e
metendo-se com elle em um mato, o espostejaram e assaram para fornecer
os alforges; mas como os visinhos d’este o achassem menos, e a terra
seja de areia, vieram pelo trilho a dar com o negocio; e então levando
os nossos á praia, e não se havendo por bem o que d’elles não tomasse
vingança, fizeramnos coitados como crua carniceria.»--Idem, pag. 123

[10] Idem, pag. 135.

[11] Idem, pag. 419.

[12] Plutarch. _De Io et Osir._ 356.

[13] Alfred Maury, _Legendes pieuses_, p. 144.

[14] D’aqui em diante, com pequenas variantes, é similhante ao romance
_Mi padre era de Ronda_, do Cancioneiro de Romances.

                                 FIM.




                                 INDEX

                           ROMANCEIRO GERAL


  FLOR DOS ROMANCES ANONYMOS DO CYCLO CARLINGIANO E DA TAVOLA REDONDA

=I--Romances communs aos povos do Meio Dia da Europa=

N.º de ord.                                                         Pag.

1 Romances da Dona Infanta                 _Beira-Baixa_               1
2 Dona Catherina                           _Beira-Baixa_               4
3 Romances de D. Martinho d’Avisado        _Beira-Baixa_               8
4 Dom Martinho                             _Beira-Baixa_              11
5 Dom Barão                                _Douro_                    15
6 Romance do Gerinaldo                     _Trás-os-Montes_           18
7 Romance da Noiva roubada                 _Almeida_                  20
8 Romance do Alferes matador               _Beira-Baixa_              22
9 Romance da Romeirinha                    _Trás-os-Montes_           24
10 Romances da Infanta de França           _Beira-Baixa_              26
11 A Encantada                             _Foz_                      28


=II--Romances de supposta origem portugueza=

12 Romances da Sylvana                     _Lisboa_                   30
   Faustina (Víd. notas)                   _Coimbra_                 181

13 Romance de Bernal-Francez               _Foz_                      34
14 Romance do Conde Niño                   _Trás-os-Montes_           37
15 Romance da Promessa do Noivado          _Beira-Baixa_              38
16 Romance de Dom Aleixo                   _Foz_                      40
17 Romance de Dom Pedro                    _Beira-Baixa_              42
18 Romance da Filha do Imper. de Roma      _Trás-os-Montes_           45
19 O Hortelão das flores                   _Beira-Baixa_              48
20 O Duque da Lombardia                    _Beira-Alta_               50
21 Romance de Dona Agueda de Mexia         _Alemtejo_                 53
22 Romance do casamento e mortalha         _Minho_                    55
23 Romance da Nau Catherineta              _Lisboa_                   58


=III--Romances que se encontram nas Collecções hesp.=

24 Romances do Conde Prêso                 _Trás-os-Montes_           60
25 Dom Garfos                              _Beira-Baixa_              62
26 Justiça do Deos                         _Beira-Alta_               65
27 Romances do Conde Alberto               _Porto_                    68
28 Conde Alves                             _Beira-Baixa_              71
29 Romances do Conde d’Allemanha           _Beira-Baixa_              75
30 Conde de Allemanha                      _Trás-os-Montes_           77
31 Romanc. do Dom Carlos Montealbar        _Porto e B. Alta_          79
32 Dona Lisarda                            _Beira-Baixa_              83
33 Dona Areria                             _Coimbra_                  87
34 Romance do Passo de Roncesval           _Trás-os-Montes_           89


VERGEL DE ROMANCES MOURISCOS, CONTOS DE CATIVOS, LENDAS PIEDOSAS E
XACARAS:

=IV--Romances mouriscos e Contos de Cativos=

35 Fragmento de um romance do Cid.         _Liç. de Gil Vic._         93
36 Romances de Dom Gayfeiros               _Trás-os-Montes_           94
37 Melisendra                              _Trás-os-Montes_           97
38 Romance de Branca-Flor                  _Extremadura_             103
39 Romance da Moura Encantada              _Algarve_                 107
40 Romanc. de N. Senhora dos Martyres      _Algarve_                 109
41 Romances do Cativo de Argel             _Lição ms._               113
42 O Cativo                                _Lisboa_                  115


=V--Lendas piedosas=

43 Jesus Mendigo                           _Minho e B. B_.           118
44 Romance de S. Antonio e a Princeza      _Algarve_                 201
45 Romances de Iria a Fidalga              _Santarem_                123
46 Santo Iria                              _Covilhã_                 125
47 Santa Helena                            _Minho_                   126
48 Romance da Devota da Ermida             _Trás-os-Montes_          128
49 Oração do Dia do Juizo                  _Minho_                   129
50 Rom. do Terr. de Villa Fr. do Camp.     _Lição ms._               131


=VI--Xacaras e Coplas de burlas=

51 Xacara da linda Pastorinha              _Beira Baixa_             133
52 Xacaras dos Conversados                 _Coimbra_                 139
53 A Conversada da Fonte                   _Penaf. e Coimb._         142
54 Os Estudos de Coimbra                   _Penafiel_                145
55 Xacara do Cego Andante                  _Beira Baixa_             147
56 Xacara da Moreninha                     _Porto_                   150
57 Xacara do Soldado                       _Trás-os-Montes_          152
58 Xacara do Toureiro namorado             _Beira Baixa_             154
59 Xacara da Tecedeira                     _Beira Alta_              156
60 Despedida de Lisboa                     _Coimbra_                 157
61 A Freira arrependida                    _Beira Baixa_             159

*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK ROMANCEIRO GERAL ***

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