A Senhora Viscondessa

By S. de Magalhães Lima

Project Gutenberg's A Senhora Viscondessa, by Sebastião de Magalhães Lima

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org


Title: A Senhora Viscondessa

Author: Sebastião de Magalhães Lima

Release Date: February 27, 2008 [EBook #24710]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A SENHORA VISCONDESSA ***




Produced by Pedro Saborano






A SENHORA VISCONDESSA




A SENHORA VISCONDESSA


ROMANCE ORIGINAL

POR

S. DE MAGALHÃES LIMA




COIMBRA

Imprensa Commercial e Industrial

1875


A TI


    _A ti, que hoje és ideal, e que um dia serás mãe; a ti, que foste
    filha e que has de ser esposa; a ti, mulher, a ti,_

                                                 Consagro este livro.

                                                     _Magalhães Lima_




I

Um baile


Temos baile em casa da sr.^a viscondessa de B ***.

Á porta do palacete param trens sem conta. Descem os convivas,
profusamente almiscarados.

No salão crusam-se os pares: _elles_, fragrantes, como uma rosa de
Bengalla; _ellas_, voluptuosas e tépidas, como uma brisa do Oriente.

A sala é vasta, enorme, quadrangular. A cada canto uma mesa de marmore
oleosa e de difficil lavôr. Do tecto dourado e semicircular pende um
lustre de sessenta lumes, adornado de flores artificiaes e de vidrilhos
verdes. A mobilia, de um estofo azul e assetinado, rivalisa em symetria
com os mais encantados jardins de Granada.

As janellas abertas atraiçoam os segredos dos namorados. Como
relampagos, reflectem-se na praça as vertigens da walsa.

Por sobre a sombra do arvoredo ondeia a luz phantasticamente. A cada um
d'estes banhos despertam as aves nos seus ninhos. E a lua, a doce
companheira da tristeza, vae illuminando o espaço, o mar e as solidões.

As flores derramam uns aromas acres e inebriantes. N'um esplendido vaso
de porcellana de _Sévres_, abre uma mimosa camelia as suas longas e
avelludadas petalas.

Umas plantas exoticas, orientaes, adornam o espaço ladrilhado das
janellas de sacada.

Entra a viscondessa na sala. Os grupos cessam de falar. Em redor d'ella
tudo se apinha, tudo se confunde, tudo se baralha.

A valsa recomeça. Nos espelhos de crystal reflectem-se as estranhas
imagens, que, n'esta noite, povoam o salão. Sobre as piscinas de marmore
debruçam-se as avesinhas artificiaes--pobres avesinhas implumes feitas
de pedra e de calcareo.

Estremecem docemente os cortinados da janella. Os peitos arfam de
cançados; e na parede o papel, como que exhala uns mysteriosos e
prolongados calores.

--Quer v. ex.^a conceder-me esta valsa?--diz um cavalheiro, offerecendo
o braço a uma gentil dama de vinte annos.

E entrou no turbilhão.

--Mas perdão, senhora viscondessa... bem vê que na minha posição...

--Acompanhe-me, Alfredo.

E os dois seguiram para uma saleta proxima, situada á direita do salão.

Os creados serviram o chá. Na varanda fumavam e conversavam os
cavalheiros. Algumas senhoras refaziam a sua _toilette_, em parte
desfeita pelos ardores da dança.

--E acredita a senhora viscondessa, que eu realmente lhe podesse ser
affeiçoado nas condições em que me acho?

--E por que não, Alfredo, se eu o amo loucamente.

Um leve ruido interrompeu o dialogo.

A saleta era assaz confortavel. Uns moveis escuros a guarneciam
tristemente. Ao longo da parede destacavam uns quadros sombrios, meigos,
phantasticos. Em cima do fogão agitava-se o pendulo do relogio, como se
effectivamente nos quizesse recordar uma pulsação dolorosa.

A viscondessa, airosamente sentada n'um fofo sophá, volvia os olhos
nervosos na direcção da porta do baile.

--Ninguem nos ouvirá--exclamava ella de si para si.

E continuou a fallar para Alfredo, que, a longos passos, percorria a
sala de um a outro extremo.

Entretanto a orchestra convidava a uma quadrilha.

Um elegante moço entrou na saleta.

--Venho lembrar a v. ex.^a, minha senhora, que esta quadrilha me
pertence.

A viscondessa acompanhou-o.

Alfredo só, roia um charuto furiosamente, quando novo ruido o despertou.

Defronte d'elle, e ameaçando-o com um punhal, estava um rapaz, cheio de
febre, de odio e de vingança.

--Ouvi tudo--exclamou o intruso. Ou tu me promettes nunca amar a
viscondessa, ou eu te assassino aqui, como um miseravel que és.

--Nunca!...--vociferou Alfredo, arrancando-lhe o punhal da mão. Primeiro
cahirás tu, desgraçado. Já, já fora d'esta casa...........................
..........................................................................

Este incidente, como é natural, perturbou a quadrilha, que então se
dançava. Acorreram todos. Os dois contendores haviam desapparecido da
saleta.

O baile continuou.




II

A Senhora Viscondessa


É uma mulher da moda--chlorotica, anemica, febril.

Olhar vivo, e transparente, como um chrystal. Na sua doce pallidez o que
quer que seja das visões de Schiller. No andar, porte altivo, donairoso,
esbelto. As longas insomnias, apaixonadas, tornaram-n'a triste e
contemplativa, como uma virgem de Murillo.

É viscondessa; faz muitas esmolas e possue trens faustuosos.

Acabam de soar duas horas nos relogios da cidade. Um calor intenso
abrasa as calçadas. Corria o mez de Maio de 1859. No Largo de Camões, o
sol, batendo de chapa, sobre um telhado visinho, reflectira-se
estranhamente nos aposentos da viscondessa.

No corredor presentira-se o ranger de um leito. O cortinado de cambraia
foi delicadamente afastado por uma mão de marfim, pequena e esculptural.

--Virginia, Virginia--gritou uma voz sonora, de timbre metalico e
adocicado.

A porta do quarto, abrindo-se, deixou entre vêr o rosto de uma formosa
creança, loura como um cherubim e tentadora como Eva.

--V. ex.^a chamou, minha senhora?

--Sim, chamei.--Traze-me o meu roupão branco e vem ajudar-me a vestir.

E a viscondessa, bocejando infantilmente tornou a cahir no travesseiro,
doida de somno e ébria de amor.

Adormeceu de novo.

Uma hora volvida veio Virginia encontral-a sentada n'uma poltrona,
defronte do espelho.

Fingia que lia. Do regaço pendia-lhe um romance francez. Com a mão
direita desviava as tranças fartas, que, por vezes caprichavam em
cahir-lhe sobre o peito. O braço esquerdo, abraçando o espaldar da
cadeira, servia-lhe de encosto.

De subito ergueu-se como uma estatua. Procurou um pente e largou-o com
desfastio. Olhou para o relogio, tocou a campainha, e tornou a
sentar-se.

--Estou aqui, minha senhora. Deseja alguma cousa?

--Ah! Estavas aqui. Ora vejam que cabeça a minha que nem sequer havia
dado por tal.--Manda-me arranjar o almoço, anda.

--Por mais que me digam a senhora não anda bôa--murmurava a ladina da
creada, correndo espevitadamente.

A viscondessa, sempre inquieta, ergueu-se novamente. Percorreu o
corredor e entrou na sala de jantar. Dirigiu se a um periquito, que ali
tinha, tirou-o da gaiola e começou de afagal-o meigamente.

--Coitadinho do meu _bijou_--exclamava ella com doçura.

Foi-se depois ao canario, trouxe-o para a mesa, e destribuindo com elle
a comida, que mal provava, introduziu-o no seio.

Um cão pequeno, felpudo, ensaboado e luzente, como verniz, fazia
_pendant_ com os dois personagens, acima descriptos. _Joli_ lhe chamava
a viscondessa. Nunca sahia da sala de jantar. Era o seu theatro d'elle.
Ali aprendêra a ser guloso e concupiscente. Quando a senhora chegava,
elle, de um pulo, saltando lhe ao regaço, para logo principiava de
lamber-lhe as faces e os cabellos. A dona da casa aceitára, sem
repugnancia, este tributo quotidiano.

Alêm do cão havia um gato maltez, elastico, como uma serpente e
indolente como um chin.

Entre o cão e o gato existia uma mediadora: era a viscondessa. Por fim
os dois rivaes fizeram tréguas. Chegaram até a comer no mesmo prato,
brincando como dois amigos.

Nos seus dias de melancholia, a viscondessa, orphã de pae e mãe, sem
parentes, só no mundo e senhora de ricos haveres, reunindo em redor de
si tão variada e interessante familia, sentia-se mais feliz, e
porventura mais esquecida do que nunca.

O gato aquecia, o cão lambia, e as aves entretinham, cantando.

Emfim bateram quatro horas. A Viscondessa bocejou mais uma vez.

--Se elle, ao menos, me amasse...--dizia ella, erguendo-se.

E, continuando pelo corredor, entrou no _boudoir_, onde a esperava a
cabelleireira.

Vestiu um chambrão de cachemira azul; e, sentando-se na cadeira que lhe
offereceram divagou, ao acaso, durante uma hora.

Quando acordou estava realmente encantadora.

O cabello, frisado a capricho, imprimia-lhe um aspecto senhoril e grave.
O rosto desanuviara-se-lhe. Foi ao espelho, e, como flôr que ao sol
desabrocha, sorriu-se maliciosamente.

--Achas-me bonita, assim?--perguntou ella a Virginia.

--Deslumbrante--minha rica senhora.

E a viscondessa, toda vaidade e tentação, foi-se até á cosinha,
pretextando umas ordens para o jantar.

Voltou depois ao quarto. A um ligeiro impulso cahira-lhe o roupão.
Sorrindo-se, envergou umas saias pesadas e cheias de gomma. Remirou-se
novamente ao espelho. Com um pincel, mergulhado em carmim, deu côr ao
rosto, naturalmente desmaiado. Apertado o espartilho e collocada a
_tournure_ enfiou um rico vestido de setim. Chamou Virginia e pediu
alfinetes. Pregou o vestido, pregou o cabello, pregou as saias,
pregou-se a si e sahiu do _boudoir_.

--Ora esta! e não me ia agora esquecendo o _crême
imperatrice_--monologava ella, voltando á saleta.

Defronte do espelho, recuando dois passos e fazendo tregeitos para um o
outro lado, empoeirou-se gravemente.

Extrahiu do gavetão um lenço de cambraia; destapou um vidrito de
_jockey-club_, perfumou-se e entrou na sala do baile.

O piano estava aberto. A viscondessa sentou-se. Dedilhou, ao acaso, uma
escala e aborreceu-se.

Olhou para um espelho, mudou um dos ganchos do cabello e abriu a
janella.

Uma brisa tépida soprava apenas. O sol ia declinando no horisonte. Nas
ruas mexiam-se as multidões apressadamente. Alguns cavalheiros de chapéu
na mão limpavam o suor da testa. As damas, mesmo á janella, agitavam os
leques phreneticamente. Os freguezes entravam nos botequins, e pediam
sorvetes.

Estava proxima a hora do passeio, a hora de luar, a hora de amor.

Seriam oito horas, quando a viscondessa cerrou a janella. Chegára-lhe
finalmente a vontade de jantar.

Caminhou lentamente, deixando após de si um rumor surdo, e mui
semelhante ao remexer de folhas, agitadas pelo vento.

Insaciavel, hysterica, nervosa, sentou-se á mesa pela segunda vez
n'aquelle dia. Provou de tudo sem comer de nada. Bebeu um gólo de
_malvasia_ e fez-lhe uma careta insupportavel. Limpou os labios de coral
e mandou arranjar o trem.

Prompta a carruagem e calçadas as luvas dirigiu-se para o theatro de D.
Maria.

Representava-se a _Vida de um rapaz_ pobre n'essa noite. A Viscondessa
admiravel de bellesa e encanto, provocava de continuo os binoculos das
plateias.

No fim do 3.^o acto a porta da frisa abriu-se. Era Alfredo que entrava.
A Viscondessa sorriu-se.

--Sabe, Alfredo, que o esperei hoje todo o dia?

--E não o ter eu adivinhado, senhora viscondessa?

--Se imaginasse o aborrecimento em que vivo decerto não seria tão cruel
para commigo.

--Mas, minha senhora, a minha posição... emfim... eu não sei...V.
ex.^a...

E a orchestra, tocando uma symphonia, deu o signal de despedida.

--Alfredo, enleiado e timido, sahiu da frisa. A Viscondessa
cumprimentou-o, e, como sempre sorriu-se tristemente. O espectaculo
continuou.

Á sahida do theatro, quando a Viscondessa, acompanhada por um creado,
punha o pé direito no estribo da carruagem um desconhecido, abeirando-se
d'ella entregára-lhe um pequeno bilhete, ligeiramente perfumado.

Os cavallos partiram a galope. Apenas chegada a casa, a senhora, toda
receio e anciedade, abriu o bilhete.

Desengano, desengano cruel! Não era de Alfredo a letra...

Mas de quem poderia ser? A quem attribuir aquellas palavras ardentes?

«Amo-te--escrevêra o anonymo.--Doidamente te amo. Tu decidirás da minha
sorte. Sou pobre, sou operario. Embora! Hei de conquistar-te ainda mesmo
atravez do sangue do meu rival.

--Sempre é muito atrevido!...--exclamava a viscondessa, despindo-se já.

Acendeu depois um charuto, um excellente charuto havano.

A pouco e pouco foram-se-lhe os olhos estreitando. Para um lado pendeu a
cabeça abrasada, e para outro o braço, cuja mão deixava cahir o charuto,
quasi apagado.

Languida, abatida, sensual a senhora adormeceu finalmente.

Virginia chegára pé ante pé e retirára a luz. O palacete, envolto em
trévas, acompanhára o somno da sua rainha.

E assim se passava a vida da Viscondessa.




III

Alfredo


Alfredo da Silveira nascêra embalado pelos sorrisos da fortuna.

Teve uma casa que vendeu. E que bonita casa! Situada na orla da praia
extendia-se deante d'ella o oceano como um vasto lençol, cujas dobras
phantasticas se encolhiam e desencolhiam, consoante as horas e as marés.

N'essa casa viu a luz Alfredo. Ahi, envolto com o maternal carinho,
aprendera elle a entoar as primeiras trovas da infancia; ahi tambem
suspiroso, como um lago, e candido, como o céu, aprendêra a ser um filho
honrado e um cidadão benemerito.

Mas a infancia, esvaecida n'uma manhã de rosas, deixára após de si o
lucto de um coração e a orphandade de uma familia.

A solitaria vivenda, circundada de festões e madre-silvas, sentira-se
isolada e triste. Na viração da tarde já as flores silvestres não
derramavam, como outr'ora, uns aromas tão vivos e tão profundamente
salutares e amenos.

Ausentara-se dali a mulher angelica, boa, virtuosa, cujo espirito,
evolado nas azas da saudade, fôra perante Deus rogar pela felicidade de
seu unico filho.

E Alfredo chorou e chorou deveras...

Estava, porêm, na primavera da vida. Auspiciado pelas brisas da mocidade
demandou a capital, cujo ruido o captava em extremo.

Dirigiu-se para Lisbôa e ahi fixou residencia.

Para qualquer que o visse seria o seu rosto gentil e levemente
effeminado o mais seguro passa-porte de uma fina e aprimorada educação.

Usava de ordinario fato preto a que dava realçe uma esplendida camelia,
artisticamente collocada na _boutonniére_.

Elegiaco por condição nada havia que o satisfizesse. Um vacúo immenso
lhe torturava a existencia. Filho do tédio e vivendo para o tédio o seu
espirito, agrilhoado por uma nostalgia sem limites, experimentava de
continúo um mal-estar insupportavel, atroz, corrosivo, e porventura uma
doença impossivel de definir-se.

A sua compleição delicada, e consumida pelos vinhos, agitava-se
alternadamente entre dois mundos infinitos e contradictorios. Amava e
não amava, queria e não queria, pensava e não pensava.

Alto, magro, nervoso tudo o impressionava com uma fatalidade
irresistivel. O mundo era-lhe um phantasma sombrio, chimerico, cuja
sombra elle amaldiaçoava, a todas as horas, no café, na rua, no bordel,
na sociedade emfim.

Mulheres havia que sonhavam com o seu bigode louro, a sua cabelleira
phantastica, e os seus sorrisos provocadores, ingenuos e ligeiramente
ironicos.

Elle, porêm, detestava as mulheres em espirito, aproveitando-lhes o
corpo e a carne, como um mero passa-tempo social.

Só uma vez amou, e, como Christo, doidamente, loucamente, profundamente.

Então foi ditoso muito ditoso.

A felicidade mirara-se n'elle, como uma donzella no seu espelho. Não lhe
faltaram nem as crenças do berço nem as extravagancias da juventude.
Tudo lhe sorrira, desde o leito que primeiro o amamentou até ao vinho,
ao terrivel vinho que ultimamente o prostituiu.

Fôra ditoso...

Viajando viu muita coisa!

Viu mulheres novas que se abandonavam aos velhos; creanças loucas que se
entregavam ás orgias, cuspindo na face das mães; politicos mercenarios,
que, á maneira das mulheres de Babylonia, alugavam ao primeiro, que na
estrada passava, a honra e a consciencia; exploradores sem conta,
eternas Shylocks da publica miseria; paes que despresavam os filhos,
irmãos que matavam os irmãos, mães que vendiam as filhas.

Viu muita coisa...

Passeando, admirou muito!

No Oriente encontrou mulheres formosas, pallidas, sansuaes. Depois
passou á Grecia, a sábia, a divina mãe, onde Corina mais tarde teve o
seu berço de flores. E ainda percorreu Roma, aquella Roma dos Cesares e
da _rocha tarpeia_ e Verona a patria de Julietta, e a Escocia o theatro
de Macbeth.

Admirou muito...

Bebeu sempre!

Provou o incomparavel tokai, esplendido _falerno_ dos tempos modernos,
encheu-se de absyntho e saboreou o alcool com delicia.

Bebeu sempre...

Fumou com ardôr!

O chibuca, o opio, o havano tudo lhe embriagou os sentidos, fazendo
d'elle uma alma pagã e um corpo lascivo, môrno, cheio de tédio e de
languidez.

Fumou com ardor...

Amou delirantemente!

Lembro-me tão bem...

A onda brincava travêssa sobre a praia longinqua. Uma brisa tépida,
apenas, semelhando um leque de plumas, agitava docemente as vagas do
Oceano. Como o arfar de uma mulher aos vinte annos, assim a natureza
suspirava languida, nervosa, etherea.

E ao longe, atravez das brumas phantasticas, scintillaram seus vestidos
brancos, suas faces pallidas e seu olhar azul.

Sorrira-lhe pela primeira vez o ideal no horisonte da vida.

Aproveitou a serenidade do crepusculo para lhe fallar. Disse-lhe o que
sentia. A creança encarou-o duas, tres, quatro, cinco vezes, sorrindo-se
amavelmente.

Volvidos dias tornou-se a encontrar com ella n'um immenso, escuro
pinhal. Ali confidenciaram largamente. Juraram amar-se.

E elle na sua louca estulta ingenuidade ousou acredital-a.

Desgraçado do moço, que tinha um coração, impossivel de esmagar.

Quando, passados annos, lhe disseram que ella se havia tornado uma
grande mulher do mundo, a eterna _bas-bleu_ dos salões, sentiu-se
inanimado quasi, imbelle, exangue.

Tentou afastar de si o gélido phantasma que o perseguia sem cessar, e
que mesmo em vida lhe seria triste mortalha. Em cata d'ella correu,
voou. Precipitou-se, finalmente n'um theatro, onde, pela quarta vez, a
contemplou mais scintillante que uma esmeralda e mais loura ainda que um
archanjo.

Á sahida do espectaculo experimentou um estranho choque no seu hombro
direito. Olhou e viu-a a ella que lhe acenava com uma das mãos.
Aproximou-se então. No lagedo da sala existia um pequeno bilhete que
elle apanhou cuidadosamente.

«Espero-o amanhã, á uma hora da tarde»--escrevêra ella a lapis.

E, cheio de anciedade, tambem elle esperou pela aprazada hora.

Ao penetrar no seu quarto, d'ella, tremeu involuntariamente. Um singular
ruido lhe captou os sentidos. Emilia jogava, e, na febre do jogo, ria
descompostamente.

Sentou-se ao lado de um desconhecido.

Terminado o jogo seguira-se o _Cognac_.

Beberam todos.

Emilia levantou-se depois, e cerrou hermeticamente todas as janellas do
quarto. Derramaram-se perfumes em larga escala. No centro foi collocado
um braseiro.

D'entro em duas horas estavam todos adormecidos. Só Alfredo, sentindo-se
abafado, morto, enraivecido e não podendo conter mais a asphyxia que
lentamente o devorava, começou de gritar terrivelmente, terminando por
desfechar dois tiros de revolver na direcção da porta de entrada.

Acorreu muita gente. A porta foi arrombada.

Entraram todos.

O feio silencio do tumulo envolvia a casa d'aquella mulher. Para um lado
seis cadaveres de homens com os olhos arregalados, a bocca semi-aberta e
o corpo ensanguentado; para outro lado uma mulher com os vestidos rotos,
o cabello arrancado e as faces horrivelmente maceradas.

«Emilia, Emilia...--exclamava elle repetidas vezes.

E só os echos repeliam:

«Emilia, Emilia...[1]

Desde então para cá Alfredo, endurecido no cynismo e na indifferença,
tem arrastado uma vida monotona, semsabor, aborrecida.

Levanta-se ordinariamente á uma hora da tarde doente, triste, sonhando
uns males terriveis, imaginarios.

Não almoça nunca. O appetite fugiu-lhe com as extravagancias do
estomago. Nem mesmo tem já paladar.

Percorre as ruas authomaticamente olhando as _vitrines_ das lojas, a
cujas esquinas estaciona.

Frequenta os bailes, mais por uma necessidade de espirito do que por um
enthusiasmo juvenil.

Como Falstaff ceia muito: espantosamente, loucamente. Pela madrugada
recolhe-se a um quarto solitario, que alugou e onde vive só, sem creado
nem creada.

Lê e escreve no restaurante, sua habitual residencia.

Na noite em que o encontrámos no salão da viscondessa, recolhia-se elle
a casa mais melancholico do que o costume.

--Mas quem será o maldito rival?--monologava elle de si para comsigo.
Acham pouco ainda? pois bem. Tambem tu cahirás, minha querida
viscondessa. Tentou-te o demonio estupido: serás uma das suas victimas.

E entrou no café.

    [1] Este facto que para muitos passará por inverosimil, deu-se,
    todavia, proximo de Lisbôa, em 1854.




IV

Contrastes


O amor é o laço que une duas almas.

Quando as tempestades rugem, e os ventos bramem, e os mares se
encapellam, a mãe, candido alento, apertando o filho contra o peito, diz
amor; e o amor que é medo, afujenta o medo, e o amor, que é aprehensão,
combate a aprehensão, e o amor, que é timidez, destróe a timidez.

Felizes, mil vezes, aquelles, que sabem amar e que tambem são amados!

A vida, sombria em si desabrocha por um beijo de mãe; e n'esse beijo,
sêllo de Deus sobre a terra, que immensa effusão de affectos e que
nobilissimo trasbordar de enthusiasmo.

Ó minha mãe, ó meu abrigo, tu, com o teu coração, foste o anjo
providencial, que em mim encarnaste o sentimento do bem.

No esplendido poema da creação, em que tomam parte as aves com os seus
cantos maviosos e os homens com o seu trabalho, quasi se poderia dizer
que um suave perfume, ethereo e subtil, põe a terra em communicação com
o céu.

Perguntae ao rio, porque geme, e ao oceano, porque brame, e ás arvores,
porque crescem, e á terra, porque produz, e á nuvem, porque corre, e á
flor, porque perfúma? Perguntae...

Amar, ser amado...--que sublime virtude, minhas senhoras.

Ás horas da tristesa, á tardinha, n'aquelles raros momentos, em que as
arvores, estatuas da melancholia, nos deixam ouvir um funebre soluço; á
hora em que o gentil pegureiro desfere na frauta umas sentidas notas;
n'essa hora em que os crentes, saudando o creador, ajoelham aos pés da
cruz:--como não é esplendida a visão do nosso espirito, iriada pelas mil
côres da ventura e do amor.

Apparecei, sonhos da mocidade! Surgi de novo, ó santas crenças da minha
vida!

Porque é que, com os primeiros raios do amor, desapparecem as alegrias
primeiras, os indiscretos descuidos da infancia, os mimosos cantares da
meninice?

Porque é que a mulher, amando, deixa de se pertencer a si, perdendo a
individualidade e a iniciativa, a fim de se consagrar exclusivamente a
um homem, ideal de perfeição e de virtude?

Porque é que o amor nos faz tristes, abatidos e concentrados?

Quem não sentiria, uma vez, ao menos, na sua vida, a dôr, que nos
arrebata o coração e as lagrimas que nos inundam os olhos, ao
despedir-mo-nos da pessoa que amamos?

Mulheres, que tendes amado o que na austeridade do sacrificio, tendes
aprendido a virtude e o desinteresse--fallae por mim.

Homens, que em meio de vossos trabalhos e avergados ao peso das paixões
vos sentis, muitas vezes, desfallecer--abri o coração, mostrae a dôr que
vos opprime.

É doce o amor--pensa o mundo. Mas para amar, quantas inquietações,
quantos supplicios!

É verdade que todos invejam uma mulher amada; é verdade que todos
anceiam esse ineffavel momento, de poder dizer a um ser bom, generoso,
sincero, sympathico, um ser, que nos delicia pelo seu olhar e que nos
apraz pela sua bellesa--amo-te, sou teu; sim, sou teu, porque tu és o
bom amigo sonhado em noites de intimos affectos; adoro-te, porque tu és
a minha inspiração, a minha alma, a minha vida, o meu eterno pensamento:
mas para tudo isto que lucta, que enorme lucta, meu Deus!

Amar é comprehender: comprehender a verdade, elevar-se ao bem pela
contemplação do que é perfeito, subir até ao bello, guindar-se até ás
luminosas regiões da arte e da consciencia.

O mundo fica-nos para traz; esquecem-nos as ambições; perdem-se os
enthusiasmos; fojem-nos as lucidas chimeras da juventude: tudo se
desvanece pelo amor.

Amar, ter um filho... que superior ventura se póde comparar a esta?

Um filho é uma parte de nós mesmo, uma continuação do nosso nome, da
nossa existencia, do nosso viver.

Um filho?!... Quem se não terá enternecido ao contemplar essas louras
creanças, vestidas de branco, e que, durante o dia, brincam nos jardins?

Um filho?!

Como é bella esta palavra e como ella sôa bem aos nossos ouvidos.

Ó santo amor paternal, ó paes, ó mães--vós que tendes chorado com as
dores de vossos filhos e rido com as suas alegrias--dizei-nos--haverá,
porventura, n'este mundo felicidade que se vos compare?

O amor de mãe é muito, mas não é tudo. Aos quinze annos, todos nós
sentimos um vago ideal, que nos illumina o espirito, umas seductoras
imagens que nos transportam a um ser longinqúo, mas realmente existente,
um ser que é nosso, porque o sonhamos e que nos pertence, porque desde a
infancia o anteviramos, claro, limpido, transparente, á semelhança de um
horisonte que um dia contemplamos e que não mais nos esquece.

Esse ser é um marido; esse ser é uma esposa: um vinculo os prende--o
amor; um ideal os incita--os filhos; uma virtude os reune--a
conveniencia.

Á viscondessa tambem lhe chegára a sua vez. Sonhára e fora feliz.
Alfredo era o doce amante, que lhe alimentava a phantasia ardente;
Alfredo, o louro rapaz, era a formosa visão, que aos quinze annos, ella
tivera por companheira inseparavel da sua vida.

Sejamos como a viscondessa. Amemos e seremos felizes.




V

No restaurante


Um mez volvido, após os acontecimentos, acima descriptos,--em Junho de
59--entrava eu casualmente n'um café do _Caes do Sodré_, situado por
baixo do _Grand Hotel Central_--quando ouvi a voz de Alfredo, que de
longe me chamava.

Ebrio e tumultuoso extendeu-me a mão direita, offerecendo-me um banco de
palhinha em um dos extremos da mesa.

Com elle estavam quatro amigos, por egual risonhos e embriagados.

Sobre a pedra de marmore, pegajosa e cheia de cinsa de charuto, viam-se
entre outras cousas cinco chavenas de café, quasi esgotadas, duas
garrafas de cognac e uma de absyntho.

--Não podias vir em melhor occasião--exclamava Alfredo com o cotovello
direito apoiado sobre a mesa e a cabeça inclinada sobre a mão.

--Antes de mais, vae-me bebendo esse cognac e ouve-me depois.

Alfredo tirou em seguida um masso de cartas do bolso interior da
sobrecasaca, e desatando uma fita verde que as envolvia, começou de
abrir uma por uma.

--Mal sabem vocês que temos por aqui uma paixão fidalga. Nem mais nem
menos do que de uma viscondessa.

Esgotou um calix de absyntho, accendeu o charuto e encetou a leitura.

..........................................................................

«Meu bom Alfredo.--Sabes que te amo e que te amo devéras. Não se passa
uma hora, um minuto, um instante em que a tua doce imagem, pura como
Eva...

--Devem notar que este pura como Eva tem sua graça e é
original--reflexionava Alfredo.--Ah! Evas! ah, puras! ah, vestaes do
lodo e da chocarrice...

«... pura como Eva, não venha irradiar-se sobre mim como luz redemptora
e supremo consolo. Nem eu sei dizer-te o que sinto, meu amigo. Tenho
ciumes dos que te acompanham. E não ser eu tambem homem para te seguir
sempre e por toda a parte!

--Variante á mulher-homem de Girardin... Adeante.

«Que triste condição a da mulher, impellida a viver isolada do mundo e
da sociedade...

--Sim, sim, bem te entendo, meu anjo.

«Vem, Alfredo, vem; vem ver-me muitas vezes, se queres que eu viva feliz
e alegre.»

«A Viscondessa de B***.»

--Ora aqui teem Vocês o primeiro specimen da feminil intelligencia.
Vamos ás outras e sem commentarios.

E n'isto Alfredo esvasiou de novo um calix de absyntho.

«Meu unico amigo.--Uma immensa, uma profunda saudade me agita o
espirito. Sinto que me és e serás sempre um alento magnanimo.

«Á meia noite, quando a lua campeia no seu eterno throno de magestade e
de bellesa, apraz-me pensar em ti, nos teus caprichosos desejos, e nas
tuas phantasticas promessas.

«Eu amo o silencio, porque é vago, ethereo e cheio de sombras. Ha dias,
entrando n'um pinheiral, cuja verde ramagem se agitava doce e
harmoniosamente, como uma harpa do céu,--lembrei-me de ti.

«Ao acaso procurei um outeiro, onde me sentasse. Ao longe o oceano, como
um leão esfaimado, enchia a terra com a sua musica rouquenha e
sepulchral. Aproximava-se o crepusculo. Umas nuvens ainda, retintas
pelos raios afogueados do sol, percorriam o espaço de norte a sul.

«Sentindo-me isolada e só, tremi involuntariamente. Soltei um grito e vi
uma creança que para mim corria de braços abertos. Foi uma apparição de
Deus.

«Que linda, que formosissima creança!

«Pensei, então, em ti, meu amigo, mais do que nunca; e, Deus me perdôe,
pensei na creança, que, um dia, fructo das minhas entranhas, uniria para
sempre as nossas duas existencias, n'um unico beijo, n'um unico abraço,
n'uma unica ideia.

«Adeus, meu filho. Crê em mim, crê no futuro.

«A Viscondessa de B***.»

Alfredo, não podendo mais suster o riso, soltou uma furiosa gargalhada,
deixando, ao mesmo tempo, cahir a carta que mal sustinha entre os dedos
frouxos e nervosos.

--Ah! Ah! Ah!... Parecia-me mesmo um lyrio esta viscondessa, um lyrio a
desabrochar. Se não fosse eu, ainda hoje estaria romantica. Ora oiçam
esta, que é a ultima.

..........................................................................

«Meu Alfredo.--A tua convivencia modificou-me fortemente. Comtigo
murcharam as doces illusões que outr'ora me sorriam como estrellas do
céu.

«Como a flor tristemente pisada pelo pé do viandante, assim o meu
espirito succumbiu, sob a influencia do teu halito febril.

«Sem embargo, eu adoro-te, Alfredo.

«Tu polluiste-me as faces com os teus beijos escaldados, profanaste-me o
corpo com as tuas paixões impuras, fizeste de mim uma mulher material,
viciosa, corrupta.

«Eu pedia-te um amor puro, nobre, immaculado, e tu só me deste um desejo
vil, trivial, insensato.

«Que fizeste da minha honra, Alfredo?

«Porque me não amaste d'outro modo?

«E queres-me ainda assim? pois bem: serei tua, tua para sempre.

«A Viscondessa de B***.

--Absyntho, rapaz--gritou o amante da viscondessa, batendo com a bengala
no marmore da mesa.

E o creado, desarrolhando uma garrafa, offereceu-a ao freguez.

No relogio do restaurante soaram, então, 2 horas da madrugada.

Alfredo, bebendo sempre, resmungava imperceptivelmente. Ao lado d'elle
os amigos proseguiam na mesma tarefa.

O dono do restaurante, vendo que o caso se demorava, mandou vir um trem.

Sobraçou Alfredo, a este tempo, já quasi debaixo da mesa, e introduziu-o
na carruagem, cuja almofada era simultaneamente occupada por um cocheiro
e um policia.

Fez o mesmo aos restantes e fechou as portas do estabelecimento.

Eu sahi tambem; mas, ao contrario dos outros, aterrado e confuso, com o
que ali havia presenciado e ouvido.

Pensei em Luiz Veuillot e segui para casa.




VI

Sem sahir do mundo


Alfredo era um rapaz do seu tempo, e, como tal, um filho dedicado dos
cafés, um amador do fumo e um apreciador exaggerado _du vieux cognac_.

No proprio desalinho ostentava elle uma generosidade fidalga, que o
tornava sympathico e bem quisto por todos os que com elle mais de perto
privavam.

Era exaltado em extremo, inconstante e leviano. Quando lhe fallavam em
amor sorria-se meigamente.--Amor?...--respondia elle, como que acordando
de um longo somno--Sim! já gostei d'elle. Hoje troquei as boas amigas
pelos bons manjares.

E virava costas de aborrecido,

E, no entanto, as mulheres gostavam d'elle--talvez por essa rasão.--Não
gostam as flores das borboletas?

A vida exterior, activa, intelligente é que, por via de regra, gera a
inconstancia. De modo que aquillo que n'uma mulher constitue um crime de
lesa-dignidade, é para o homem uma quasi urgencia, filha, sem duvida,
das circumstancias especiaes que o rodeiam.

O homem obedece, em geral, mais ao seu organismo do que á sua vontade. A
leviandade provêm, muitas vezes, de um impulso de temperamento. A
imaginação nem sempre póde ser domada. Á uniformidade oppõe-se a
variedade. A phantasia aprecia melhor esta do que aquella.

Ora semelhantes rasões não se dão já na mulher. A mulher tem uma vida
limitada, restricta, puramente interior e domestica. Deve ter na sua
existencia um unico amor, um unico interesse, um unico pensamento. E
desde o momento que isto se despresar--podeis acreditar-me--em vez de
uma mãe, em vez de uma esposa, em vez de uma irmã, apenas tereis deante
de vós uma amante, isto é, uma companheira para alguns meses de praser e
de sensualidade.

Creio porêm que tal vicio é puramente peninsular. Em Portugal é costume
fazer a côrte da rua para as janellas. O namoro, se existe, é
simplesmente no olhar. Tudo falla, menos o coração. E só depois de
casados, reconhecem, então os noivos, que realmente os não fadára Deus
um para o outro. Triste inconsequencia, na verdade, que muitas vezes
traz comsigo o divorcio e emquanto a nós o peior de todos os desgostos,
o desgosto do lar domestico.

Entre nós é a educação da mulher um fado quasi secundario. Que aprendem
ellas nos collegios? que sabem ellas quando se casam? Por ventura
saberão talhar os seus vestidos? porventura saberão manter o aceio e a
limpesa, tão necessarios á cosinha como ao resto da sociedade conjugal?

Tudo, menos isso. Diz-se mulher do _high-life_, aquella que melhor valsa
n'uma sala, a que mais prende pelos arrebiques do _coquettismo_, emfim,
a que fôr mais imaginosa, a que tiver lido alguns romances francezes e a
que mais amada souber fazer-se, n'um salão. Pouco monta que seja
dedicada a seus filhos, e amiga do seu marido. A questão é ter côrte. O
resto de nada vale, porque está abaixo dos sentidos; e os sentidos, são,
n'este assumpto, uns mui respeitados directores.

Não quero eu com isto dizer que a educação do homem seja superior á
educação da mulher. Os rapases nascem egoistas. Não amam o desinteresse,
porque são naturalmente utilitarios e desconfiados. Desejam uma esposa,
mais pelo dinheiro que ella lhes traz do que pela estima que os póde
tornar felizes. D'esta maneira o casamento entre nós é um acto de
commercio uma garantia de futuros interesses, muito de preferencia a uma
garantia de amor.

Alfredo, porêm, desviára-se d'esta norma. De creança aprendêra elle a
sondar a sociedade com todas as suas corrupções e inconsequencias. De
sobejo sabia que a dança, toda exterior e ficticia, era a perversão do
ideal conjugal. Por instincto aborrecêra o salão, soalheiro de intriga e
de pequeninas miserias. Conhecedor dos homens, e das cousas cahira,
finalmente, n'um indifferentismo, até certo ponto, deploravel, para um
rapaz, mas, de certo, necessario e fatal para todo o organismo, digno de
outra aspiração que não fosse a do animal, por naturesa inerte e
estupido.

Alfredo resumia, portanto, uma energica reacção contra o estabelecido, e
um vago aspirar para um futuro, ainda não bem definido.

Saudemos esse futuro.




VII

Entre amigos


Tudo disposto e preparado.

Somos quarenta convivas á mesa. A viscondessa está bella,
verdadeiramente bella, sem os artificios que deslumbram, nem as vaidades
que enojam. Completa agora vinte e seis annos, volvidos entre o regaço
da mãe que se finou e os beijos do pae cuja existencia, por duvidosa, se
ignora. Alfredo está tambem, mas triste, acabrunhado, pesaroso, olhando
indifferentemente as pessoas que o rodêam, comendo pouco, bocejando
muito e bebendo mais.

Dois creados serviam a sôpa. Pelo lado direito da mesa,
parallelo-grammo, offerecia-se a sôpa _Julienne_ alternada pela esquerda
com a sôpa _allemã_.

Um mysterioso silencio envolvia quasi todos os hospedes. Umas leves
palavras apenas se trocavam de par para par. Nos calices transparecia o
_xerez_--o louro e ingenuo xerez dos estomagos delicados.

Esgotados os primeiros copos e retirada a primeira coberta de peixe com
molho á ingleza, appareceu o _Chateau-Lafitte_. Alfredo, reclinando-se
na cadeira, sorriu-se meigamente. Um cavalheiro importuno,
levantando-se, de cópo erguido, disse:

«Minhas senhoras e meus senhores: n'este vinho, eu saúdo a França, mãe
desvelada do pensamento moderno.»

E todos beberam.

Entretanto o silencio recomeçara novamente. Os creados, em nervoso
phrenesi, retiravam os pratos sujos para logo os substituir por outros
lavados. Telintavam os talheres de prata. Quatro bicos de gaz alumiavam
a mesa, matisada de flôres, cuja côr deliciava todos os olhos e cujo
perfume embriagava todas as pituitarias. Na parede, pintada a
azul-dourado, destacavam uns quadros comicos, alegres, folgasões, uns
quadros de caçador logrado, perfeitamente pittorescos, perfeitamente
escolhidos.

Estava-se n'um _vol-au-vent_ de frangos. O vinho correspondente era, se
bem me lembro, Madeira sêcco. Conversava-se já de extremo para extremo.
Algumas damas, agitando os leques, abriam os olhos, afogueadas em calor.
Por ordem da viscondessa abriram-se as janellas. Uns cégos, que, então,
passavam na rua, começaram de tocar uns velhos landúns, perfeitamente
detestaveis e anachronicos.

«O fado! o fado!--gritou Alfredo.

E os homens principiaram a tocar o fadinho das salas.

Servida uma _mayonnaise_ de linguados, servida ainda uma _galantina_ de
gallinha com aspic, passou-se a um _ponche à la romaine_. As rolhas do
champague saltavam ferventes e impetuosas, como uma catadupa de
topasios. Os creados corriam como possessos. As senhoras apoiavam as
faces rubras, sobre o hombro direito dos namorados. No espaço campeava a
lua, na sua doce pallidez, espreitando meigamente o festim da
viscondessa.

Seriam dez horas da noite, quando, depois de concluidos os
assados--patos com azeitonas, perús com truffas e espargos--se começou a
tirar o doce. Comiam uns podim _saboyon au rhum_ e outros _bavaroise_ de
fruta. O licôr escolhido era o _Chartreusse_. Alfredo, erguendo-se,
propôz um brinde.

«Bebo á saude da senhora viscondessa--exclamou elle--á saude da sua
felicidade, e á saude de seu futuro filho.»

E, sem mais poder suster-se de pé, cahiu sentado na cadeira. Todos o
olharam com um olhar interrogativo. A viscondessa, encarou-o, com uma
santa e terna delicadesa. Os outros, por prudencia, calaram-se.

Cá fóra numerosas tropas atravessavam as ruas. Portugal, constitucional,
saùdava o seu nunca--esquecido vinte e quatro de Julho.

Terminados os brindes, que foram immensos e ruidosos, continuaram todos
para o salão. Só Alfredo, por confiança na casa, ousou ficar á mesa, a
cujo extremo adormeceu. E, suspeitando que fumava, dormiu um longo e
pesado somno.

Quando realmente deu por si soavam tres horas nos relogios da casa. Meio
adormecido e meio acordado, olhou e viu duas sombras, que, a um recanto
do aparador, se agitavam docemente. Aproximando-se mais reconheceu então
uma das creadas da casa, conversando airosamente com um garboso gentil
homem.

--Ora pois!--regougou elle.--Nem mais nem menos. Tudo corre bem e todos
teem rasão...

E sahiu, assobiando a carta adorada da Grã-Duquesa.

Na carta que eu tive, Amelia formosa,

Me disseste amor...




VIII

De passagem


Entre um bom jantar e um bom espirito existe, ao que parece, uma
profunda analogia. _Tous les gens d'esprit sont gastronomes_--dizia
Balzac. De todos os animaes, o unico, que sabe comer, é o
homem--escrevia um outro auctor francez. D'este modo o jantar entre
amigos é uma quasi necessidade da nossa existencia e um salutar
incentivo a duas ou tres horas de boa e franca jovialidade.

Em Portugal dão-se jantares, mais como ostentação vã, do que
verdadeiramente como meio de melhor expandirmos os nossos affectos, as
nossas ideias, os nossos desejos, as nossas ambições. A nossa mesa
distingue-se das mesas estrangeiras, não só pela má escolha das comidas,
senão tambem pela exaggerada seriedade com que costumamos assistir a
taes solemnidades. Dir-se-hia que, em taes momentos, estamos
presenciando o enterro de nossos paes.

Ora o jantar, o bom jantar, sadio e leve, deve sobretudo correr alegre,
isento de malquerenças, semeado de phrases espirituosas e de anecdotas
interessantes. O jantar é, por via de regra, um pretexto para
solidificar velhas relações de amisade; um pretexto para nos rirmos á
vontade, um pretexto para conversarmos intimamente.

Os estrangeiros, comprehendem de ordinario estas festas, tirando os
casacos, bebendo bem e comendo melhor. Nós outros, os portuguezes que,
não obstante sermos uma caricatura viva de tudo quanto vem de fóra,
tanto queremos primar pela gravidade que comprehendemos perfeitamente o
contrario. Mal nos rimos, porque nem mesmo rir sabemos. O espirito nem
sempre se amolda com todas as modulações de linguagem. Parece que á
lingua portugueza foi vedado o dizer ligeiro, amavel, faceto, que tanto
distingue a França moderna. Nós somos um povo, naturalmente indolente,
um povo de _apaixonados_, como tão bem nos definiu M.^me de Sevigné.

Voltemos, porém, á cosinha.

Tem um grande defeito: falta-lhe como em geral ao nosso viver, a boa
elegancia, o sabor, a pimenta, que torna as comidas mais gostosas e mais
facilmente digestivas. Não temos originalidade, e por isso imitamos. O
unico prato que a meu vêr existe classicamente portuguez, mas
soberanamente enjoativo, é o leitão. Na provincia, sobretudo, assa-se um
leitão a proposito de qualquer festa. São nossos, exclusivamente nossos,
o leitão e os foguetes.

Depois note-se--na nossa mesa não ha aquelle aceio que tanto seria para
desejar, e que tão proverbial é entre os ingleses. Uma toalha,
perfeitamente branca, aromatica, transparente, é já de si um notavel
passo para um bom jantar. As indigestões nascem quasi sempre do mau
tempero das comidas: parece que se odeia a agua e lavam-se os
mantimentos como em baptismo de mouros.

Entre as classes mais altas da sociedade são despresadas as comidas
vegetaes. Só o povo as aprecia; e porisso tambem é elle em geral mais
robusto, mais fortemente organisado, e mais naturalmente atreito á
espontaneidade e ás alegrias da vida.

O temperamento depende das condições alimenticias em que nos
encontramos. O bom e o mau humor tambem d'ellas provêm. No modo, porque
nos alimentamos reside, pois, uma grande parte da nossa felicidade.

As comidas, demasiadamente gordas, geram a obesidade tão peculiar aos
nossos provincianos; ao passo que o alimento vegetal torna o homem
ligeiro, amavel e espirituoso.

Á mesa da viscondessa respirava-se um invejavel aceio e uma limpesa
pouco vulgar entre nós. A propria toalha attrahia, não só pela sua
extrema brancura, senão tambem por uma deliciosa fresquidão, que de
ordinario exhalava.

Grave era a viscondessa, mas espirituosa. Ninguem sabia tratar melhor os
seus hospedes, nem com mais liberdade. Como aphorismo passava já em
julgado que eram bons, substanciosos e alegres os jantares da
viscondessa.

É que, á parte os seus caprichos, a viscondessa comprehendeu a vida
moderna, tal qual ella deve ser: commoda, aceiada e elegante.

Nem porisso lhe queiramos mal, mas antes façamos por imital-a.




IX

Pobresa e miseria


É singelo o quadro; tocante até.

Uma pobre velha, habitando uma alcova humida e sombria, treme de frio,
gemendo por vezes. Serve-lhe de leito uma pouca de palha enxarcada e
nauseabunda. Ao lado uma panella velha, tosca e ligeira, cuja grande
utilidade é aparar a agua, que a miudo se despenha do telhado.

Por uma fresta, lavrada no alto da parede, côam-se tristemente uns
tenues raios de luz. Dir-se-hia que á desgraça até o sol é vedado.

Pelo soalho esburacado e carcomido occultam-se uns bichos infernaes,
molles, gellalinosos. O tecto, artisticamente cinzelado pelo longo e
imperioso trabalho da aranha, quasi se não distingue d'entre a escuridão
que cerca o aposento.

E Maria, a desventurada creatura, jaz immersa em intima dôr, abandonada
aos vermes que lhe róem as carnes syphiliticas, negras, cobertas de
pustullas e de putrefacção. Querem conhecel-a?

Rica e formosa, fôra esta mulher. Cheia de venturas e mimos deslisára a
sua vida, sem mais attritos do que aquelles que ordinariamente nos dá o
tempo e a natureza.

Acariciada pelo anjo do amor e embalada nos sonhos gentis da opulencia,
Maria sentiu-se a um tempo admirada e requestada pela mais guapa
fidalguia do seu paiz.

Seus paes, habituados áquelle unico thesouro, eram inexoraveis no
cumprimento das suas profundas e intimas affeições. Nada exigia, que
para logo não fosse satisfeito. O mais leve capricho tentavam-no elles
realisar com a satisfação de um escravo, que por sua senhora arriscára a
vida.

Assim cresceu aquelle arbusto. Descuidado e candido, não houve vento que
lhe açoutasse as tenras vergontesa. O sol, saúdava-o todas as manhãs, e
a primavera encontrou-o viçoso, coberto de flôr e de esperanças.

Veiu, porém, a tempestade. O sul rugiu temeroso. No espaço
precipitaram-se as nuvens, prenhes de electricidade. A arvore, mal
segara, tremeu na sua raiz, e desappareceu da terra.

Onde estava Maria? Porventura iria ella em busca de algum anjo bom, seu
irmão?

Fragil, como qualquer mulher, Maria não ousára resistir á fatalidade que
a dominava. Fugiu. Fugiu romanticamente, por um lençol, atado á janella
de sacada, e á meia-noite.

Como quer que fosse o facto, em si escandaloso, excitou naturalmente a
indignação publica. A burguesia commentou-o á noite nos clubs e cafés,
concluindo por ver n'elle uns laivos de obscenidade, impossivel de
admittir-se no seio de uma familia honesta e séria.

Em que pese, porém, aos nossos indigenas sociaes, o caso era mundano, e
frequentissimo até em mulheres demasiadamente imaginosas.

Ao cabo de dois annos, Maria resuscitou; não para a vida, mas para a
morte.

O rosado do rosto transformára-se-lhe subitamente numa pallidez
transparente, sepulchral, doentia. Os olhos, encovados, haviam perdido o
seu primitivo brilho. Nada existia já que não fosse triste e
profundamente doloroso.

A mulher virtuosa cahira victima indefesa, ás mãos de um maltrapilho
infame. O miseravel seductor, retirára comsigo o seu dinheiro e o seu
carinho.

Abandonada a si, Maria, refractaria ao trabalho, sem pae, sem mãe, sem
irmãos, sem amigos, olhou em redor de si, e viu a sociedade que de longe
lhe acenava.

Correu a ella com um filho nos braços. Engolphou-se nos seus prazeres,
trocou a honra pelo pão quotidiano, pôz em almoeda a consciencia pelo
futuro do innocente, que ao lado d'ella soffria e chorava tambem.

Era nobre, e pagava pela corrupção commum...

A mocidade ganhou-a, como poude. Viveu-a, e tanto bastava.

Depois chegou a velhice e a tristesa; depois a pobresa e a miseria.

Julio, a este tempo já era crescido, e velava pela mãe sollicitamente.

De que poderiam comtudo valer os minguados ceitis com que lhe era
remunerado o seu trabalho de todos os dias?

Se elle e ella adoecessem, quem mais os trataria? quem, porventura, se
amerciaria d'aquella terrivel indigencia?

--Ninguem!...--respondia-lhe logo a consciencia.

E a consciencia não costuma mentir.

      *      *      *      *      *

Julio viera, pois, da fabrica e encontrára sua pobre mãe moribunda, sem
remedio, sem medico e sem dinheiro.

Parou no limiar da porta. Encarou a velha de frente e viu-lhe os braços
estendidos em signal de compaixão. Extactico, cego, allucinado,
entrou-se o desventurado moço em profundo scismar.

Ao descerrar as palpebras amortecidas por um somnambulismo
infernal--Julio, emxugando os olhos, com uma ponta da blusa, sorriu-se,
como se do céu houvera baixado uma inspiração sagrada.

--Desgraçado de mim!--exclamava elle doridamente.--Trabalhar um dia
inteiro e não ter á noite que comer... É triste... muito triste...
Esgotar o sangue das minhas veias, em alheio proveito, e receber, no fim
da semana, um vil salario, que mal me chega ás primeiras necessidades da
vida... É infame... muito infame... Alugar as minhas faculdades e o meu
pensamento, sem outro fim que não seja o proprio aviltamento e a propria
degradação... É vil... muito vil.. Oh! meu Deus!... antes a morte! mil
vezes a morte...

E assim cahiu inanimado o honrado moço sobre o desventurado cadaver de
sua santa mãe.

A scena era realmente tão obscura, que mal poderia provocar as vistas
d'esse mundo, que é louco e grande.--Passou, como tudo o que é modesto,
desapercebida e ignorada.

      *      *      *      *      *

No dia immediato um raio de sol, espreitando muito de soslaio pela
fresta do telhado, apenas encontrára a solidão e a ruina, na mesma
alcova, onde Julio e sua mãe, por tanto tempo agonisaram.

No cemiterio mexia-se uma porção de terra, afim de occultar aos olhos do
mundo o desditoso cadaver d'aquella santa e virtuosa velha.

Julio nem sequer achára uma mortalha, para envolver o corpo de sua mãe.

Rasgou a blusa n'umas poucas de tiras, e, assim auxiliado, por mais
alguns farrapos, que ainda lhe restavam d'outr'ora, arranjou a cobrir o
corpo infectado e pestilente de sua mãe. Porque o principal
effectivamente era occultar o crime _d'esta grande peccadora_...

Entretanto a sociedade ria-se nos botequins, e as tabernas continuavam
sempre atulhadas de povo.

O mesmo Julio teve a coragem de transportar o cadaver para o cemiterio e
de ahi lhe prestar as derradeiras homenagens.

Como não havia carniça, não appareceu o abutre!

Consciencia de Cain é jóia que só se mercadeja no alto mercado.

Foi mais uma lei do mundo.

Convêm, comtudo, registral-a para desafogo de todos nós.




X

Cousas dos Homens


Permitta-nos a leitora que um pouco nos demoremos sobre este incidente
do nosso romance. Mais tarde volveremos a fallar da viscondessa. Por
agora historiemos os factos que mais concorreram para o triumpho da
nossa heroina.

Quem era Julio? quem era Maria? e porque motivo foram elles chamados
para aqui?

Leitor: conheces a miseria? porventura já te foi dado contemplar esse
estranho espectaculo, que a cada passo se nos representa diante dos
olhos?

Á beira da estrada, _ella_, estendendo-te a mão carcomida e triste,
pede-te esmola; na escuridão do templo, cheia de vergonha, _ella_
occulta-se ás vistas da gentalha; no recesso das florestas, arrasta-se
como um reptil, de tal maneira que nós não sabemos quem _ella_ é, se um
animal, se um homem.

E, todavia, _ella_, a canalha, é filha de Deus como nós.

E, todavia, _elle_, o _Ninguem_ errante da sociedade, o _anonymo_
sublime do universo, elle, o, _trabalhador_, tambem, como nós, tem
intelligencia sentimento e vontade.

Quantas vezes, ao passar por uma rua escura e humida não tropeçamos nós
com um d'esses desherdados, de faces lividas o aspecto sombrio, que, não
tendo um travesseiro, onde repousar a cabeça, nem uma bilha d'agua, onde
refrigerar a sede, nem um vestido, onde aquecer as carnes, vive ao
acaso, alumiado, apenas, pela luz das estrellas da noite, alentado pelo
orvalho do céu e ao abrigo vil das lageas das escadas?!

E, no entretanto, este ser existe.

Existe nas officinas do trabalho, e chama-se proletario; existe nos
campos, e chama-se jornaleiro; existe nos hospitaes, e chama-se
miseravel; existe nas prisões, e chama-se criminoso; existe nas rodas e
nos hospicios, e chama-se engeitado; existe nas ruas e nas escadas, e
chama-se maltrapilho; existe no universo, por toda a parte espalhado, e
chama-se escravo.

Sim! o escravo é o leproso sem familia, a quem só é dado sentir a dôr
das suas chagas. Elle, coitado! não tem casa, nem tem jardim, nem
flores, nem amigos, nem alegrias; elle, o escravo, tem apenas, como um
magro cão vadio, uns ossos que róe durante o dia e umas tristesas que o
acompanham durante a noite.

E nada mais tem, o escravo!

O vicio é, em geral, uma triste consequencia da falta de meios.
Perguntae ao pobre, porque se embriaga, á mulher porque se prostitue, e
ao escravo porque se vende.

Embriago-me--responder-vos-ha o pobre--porque me quero esquecer do
sangue que vertem as minhas feridas.

Prostituo-me--dir-vos-ha a mulher--porque tenho fome.

Vendo-me--exclamará o escravo--porque a sociedade me repudia.

E teem razão. Todos tres procuram o vicio, como alivio, como necessidade
do seu espirito.

Julio era um d'esses: pertencia á rara pleiade dos independentes,
d'aquelles que o Estabelecido odeia e renéga.

Muitas vezes, em creança, o pobre moço, sentado na areia da praia, e
olhando o mar além, dissera em conversa intima, em que o homem interroga
a consciencia, a razão, e tudo quanto o cerca:

«Como é grande o mundo, meu Deus!»

E n'uma esperança eterna, e n'uma ambição sem limites, Julio ficava-se
horas e horas em prodigiosa concentração, que bem lhe denunciava a
lucta, a cada passo travada no espirito nervoso e inquieto.

Mas n'este mundo são as ambições como as espumas do mar: um vento as
traz e um vento as leva.

Que importavam as illusôes, se com as primeiras folhas do outomno, ellas
tinham de cahir uma a uma?

As flores d'alma vão-se com o outomno da vida.

Nem sempre porém as borboletas adejam sobre as flôres; nem sempre o
mesmo sol illumina as campinas.

Ante o cadaver de sua mãe, Julio emmudecera. Quando a sério, e a sós
comsigo mesmo pensou na vida que no futuro o esperava, quasi
instinctivamente teve vontade de se suicidar.

Olhando, porém, para o céu, ajoelhou. Um raio de esperança lhe
illuminava a alma, até então em trévas.

Felizes os que, como elle, sabem esperar!

A esperança conduz Colombo, e descobre mundos!




XI

Na taberna

Entrava-se por um beco immundo, torcia-se á direita, e estava-se lá, no
antro do crime, em que a vida e a fortuna se joga, o bem estar, a
tranquilidade, o socego, toda a harmonia da existencia humana.

Exteriormente, apresentava a taberna um aspecto mesquinho e lugubre. Um
distico, apenas, no alto da parede indicava aos transeuntes que ali «_se
vendia vinho verde_.»

No largo portal da entrada, coroado por um ramo de louro, viam-se uns
traços obscenos, riscados a giz, e, ao parecer, escriptos em maré de
embriaguez.

Portas a d'entro, reinava uma alegria feroz, confusa e tristemente
desconsoladora.

Uns jogavam, riam outros, e gritavam todos.

--Salto no valete--dizia um.

--Mico no terno--interrompia outro.

E assim, ébrios de vinho e ambiciosos de fortuna, jogavam elles, sem
outro alento que não fosse o vicio e o esquecimento.

De subito, uma gargalhada estrugiu pelos ares.

Por uma das mesas, esgravatada e cebenta, rolou veloz um enorme cangirão
de vinho, por onde á porfia bebiam os convivas alegres.

A taberneira, mulher roliça e de cabello na venta, servia com respeito
os freguezes, na maioria lavradores e campinos.

A um canto, e sobre o junco, que cobria o lagedo da sala, estava um
berço, onde uma creança dormia tranquillamente, em companhia de um gato
malhado, velho hospede na casa.

Ao lado do berço um cão, apoiado sobre as mãos e com a orelha levantada,
olhava filamente na direcção da porta de entrada.

Para além do balcão, duas pipas de vinho e uma pratelleira, cujas
divisões continham pão, queijo e figos; tudo, já se vê, velho,
amarellecido pelo tempo, e modico no preço.

--Viva o nosso Julio!... viva!...--exclamaram os jogadores, voz em
grita.

O saúdado moço, de braços crusados e em mangas de camisa, nem sequer
lhes respondeu.

Entrou, passeou a vista pela sala, e quedando-se com pesar, vociferou:

--Nem mãe, nem... dinheiro...

Como por encanto, fez-se um silencio sepulchral na taberna. O jogo
parou; e instinctivamente erguidos, correram todos á presença do Julio.

Prestes, porém, se apagou a mudez, a fim de novamente ser interrompida
pela mais temerosa de todas as vozerias.

--Não póde ser; não póde ser. Abaixo a tyrannia. Vamos a acabar com
elles. Malhados de uma figa... Queremos sangue e mais sangue... que nem
um só escape... Querem-nos roubar o nosso trabalho... os infames...
Ladrões abaixo... Não queremos ladrões... A elles... todos a elles...

A taberneira exasperada, pedia ordem, levantando os braços. Em cima do
balcão latia o rafeiro agudamente. O gato, espreguiçando-se, escoara-se
com mysteriosa perfidia, por entre as pipas vasias. Um raio de lua,
reflectindo-se phantasticamente sobre a cara da creança, que chorava,
produzia um contraste singular, e sobremaneira interessante. Dir-se-hia
que pela innocencia velava o céu em toda a sua magestade e grandesa.

N'um momento a porta rangeu nos gonzos.

--Em nome da lei declaro presos os desordeiros--bradou um vulto.

--Em nome de que lei?--retorquiu um dos agitadores.

--Em nome da nossa lei, em nome da lei portugueza--insistiu o primeiro,
descobrindo-se.

Á vista do policia, até a taberneira gritou. Vergado ao peso de uma mão
de ferro, aspera e cortante, e apanhado a sós, o espião do governo,
atravessado por tres fortes navalhadas, rolou immediatamente aos pés de
Julio, que para elle olhava desconsoladamente.

Momentos depois a taberna estava só, escura, e triste.

      *      *      *      *      *

Quem, dois dias depois, entrasse n'esta mesma casa, e attentasse nos
personagens, ali reunidos, pouca differença de certo havia de notar.

Lia um dos operarios em voz alta a _Revolução de Setembro_, quando
inopinadamente se lhe deparou a seguinte local:

«Ante-hontem, cerca da meia noite, deu-se um grave tumulto n'uma taberna
situada para as bandas de Alfama. A policia anda em cata dos
desordeiros, e de crêr é que, em breve, elles soffram o justo castigo
das suas loucuras.»

Taes palavras foram, como é natural, ouvidas com terror, da parte dos
circumstantes.

Um silencio profundo envolvera a taberna. Mudos e reflexivos, ninguem
ousava proferir uma palavra.

De repente apagou-se o gaz. O ruido tornara-se insupportavel, medonho,
confuso.

--Traição... traição...--repetiram todos.

E o silencio recomeçou de novo.




XII

Perigos e consequencias


N'este nosso paiz ficam muitas vezes impunes os crimes mais graves,
castigando-se os mais insignificantes.

A lei penal muitas vezes dá existencia aos crimes, imaginando penas para
delictos imaginaveis.

Parece que a justiça social nem sempre cumpre o seu dever. O roubo corre
muitas veses authorisado pela lei, n'um inpudor por tal fórma insólito,
que de vergonha faria córar uma bachante.

A cada passo, e com a maior facilidade, se sancciona uma injustiça. Quem
não tem padrinho, morre mouro--diz o rifão. E o certo é que o pobre, o
eterno Job da orphandade,--se não morre mouro, morre, pelo menos, de
atrophia, indigente, sem pão, sem agua, e o que é mais, sem espirito.

Ao percorrer as humidas cavernas--morada e abrigo dos proletarios--de dó
se nos enlucta o sentimento. Como é que a Providencia tão prodiga e
generosa; como é que o sol, alargando seus raios encantadores, tanto
pelas cumiadas das montanhas mais longinquas como pela escuridão dos
valles mais reconditos--como é que todo este mixto de luz e de céu, póde
consentir o infortunio no mundo?

A aspiração é sêde que se não extingue. Mas aspirar sem esperança;
anceiar sem uma possibilidade de realisação final, deve ser triste,
muito triste, para já não dizer desesperador.

Para voar, concede a naturesa azas á aguia. Assim tambem para sermos
livres, rigorosamente livres, para executarmos os vastos planos da nossa
vontade, carecemos nós de meios, sem os quaes tudo nos seria baldado e
inutil.

E dizem que a lei é egual para todos!

Entre dois cidadãos--um casado, outro solteiro, um pobre outro rico--que
soffrem a mesma pena, onde é que está a egualdade?

Divagando, porém, iamos fugindo do nosso caminho. Voltemos ao romance.

A policia não afrouxára nos seus esforços. Indagou, correu, perguntou.
Ao cabo de uma semana, estavam seis individuos dados por suspeitos.
Entre elles indigitára-se Julio como um dos principaes cumplices no
crime acima descripto. Se fôra ou não acertada a escolha, isso só os
factos posteriores o poderão affirmar. Por agora basta que o leitor nos
acompanhe.

Dolorosa é a recordação do carcere. Sem luz e sem ventilação, são as
nossas cadeias uns verdadeiros antros, cuja atmosphera impregnada de
particulas venenosas, quasi sempre gera no seu seio os vicios mais
execrandos e as doenças mais incuraveis.

Um drama simples e vulgar ao mesmo tempo, poderá, talvez, iniciar-nos
nos verdadeiros mysterios d'este inferno.

Ouçamol-o.

Um homem rico decahira um dia da sua fortuna. Habituado ás commodidades
da vida, encontrou-se repentinamente privado do necessario. Acostumado
aos falsos amigos, viu-se sem amigos. Olhou. Quatro filhos o encaravam.
Uma esposa lhe sorria. Fôra bom o seu coração. Nunca até ali se dera um
unico facto que lhe manchasse a consciencia. Examinou os bolsos.
Dinheiro não havia já. Recorreu ao trabalho. O trabalho fez-se esperar.
Mendigou. Ainda era pouco. Os filhos continuavam a chorar. A esposa
continuava a morrer. Que fazer, pois? Roubar. E roubou. Roubou um pão
porque tinha fome. E dois. E tres. E quatro. A lei, inexoravel como a
Parca, encontrou-o uma noite. Levou-o para o Limoeiro. Pediu-se,
sollicitou-se, em nome da desgraça. Tudo embalde! Os poderes publicos
cumpriam o seu dever. N'uma casita humida, situada ao Salitre,
definhavam, ao cabo de cinco dias, quatro creanças e uma mulher. No
Limoeiro creava-se mais um monstro, e inutilisava-se um homem. E tudo
isto com uma prodigiosa simplicidade.

É a historia de Valjean sem o auxilio do arcebispo!

Ao moço-operario não succedeu, felizmente, outro tanto. A Providencia
encarregou-se de velar por elle. E o certo é que a evasão de cinco
presos deu-se rigorosamente n'esta época. Julio foi um dos que, a salvo
da prudencia, recuperaram a liberdade.




XIII

Continuação


Seriam 2 horas da madrugada. A lua brilhava em pleno espaço. O Tejo era
Sereno. Apenas de longe em longe um rumor surdo, vago, incomprehensivel,
acordava a naturesa do seu pacifico somno nocturno.

Por sobre as mansas aguas deslisava um bote suavemente. As estrellas,
reflectindo-se na bahia, similhavam, pela vivacidade irrequieta do
brilho, um cardume de peixes em debandada. A viração era fresca, e
deliciosamente salutar.

Cantavam os remeiros, umas tristes canções, repassadas de melancholia e
de patriotismo. Os remos, batendo na agua, produziam o effeito de um
chrystal facetado, em desordem, mas atrahente.

Nem uma dissonancia sequer apparecia n'este immenso panorama, a um tempo
eloquente e respeitavel.

É que a alma da naturesa, symbolo do infinito sobre a terra, é
incomparavelmente superior á alma do homem, expressão do contingente e
do relativo.

As montanhas, elevavam-se a distancia, na firme immobilidade de
phantasmas. Dormia a cidade socegadamente. No convez de um navio
mercante ladrava um cão da Terra-Nova. Nas embarcações de guerra
ouvia-se distinctamente e com rarissimos intervallos o passo moroso das
sentinellas.

Os catraeiros cantavam sempre:

    «Vai alta a lua! na mansão da morte
    Já meia noite com vagar soou;
    Que paz tranquilla! dos vaivens da sorte
    Só tem descanço quem ali baixou.»

E ao longe os echos repetiam a ballada do poeta.

O escaler abicou, emfim, á praia. A aurora começava a roxear o
horisonte. Uma luz delicada, fina, como a porcellana, transparecia por
entre nuvens.

Um vulto de homem, embuçado n'um largo capote, saltou á praia.

Julio, fugitivo, tomára a prompta resolução de por algum tempo se
occultar no bairro de Alcantara.

Duas palavras ainda sobre elle:

Julio era um rapaz ambicioso. Amava egualmente a liberdade e o trabalho.

De têmpera rija, era o seu caracter. Odiando o jesuitismo, por
instincto, não poucas vezes chegára a commetter excessos e desvarios.

Frequentava a taberna, do mesmo modo que nós frequentamos o café; ali
discursava com os companheiros, concluindo sempre em favor da liberdade
e contra a reacção.

Na noite em que o prenderam exclamára elle para os camaradas de
trabalho:

«Nem sempre a escravidão ha de pesar sobre nós. Quem tiver coragem,
acompanhe-me. Uma vez que não querem a paz, acceitaremos a guerra, mas
uma guerra sem tréguas, uma guerra eterna e violenta.»

D'este modo Julio era a perfeita personificação do escravo, que,
sentindo a grilheta ao pé, deseja emancipar-se e tornar-se homem, como
os seus similhantes.

Alfredo, não tendo coragem para realisar os seus planos, embora bom e
generoso no fundo, tornara-se devasso, e adormecera inconscientemente
nos braços da sensualidade estupida. Julio, não! Julio estava puro;
reagia ainda com heroicidade contra a geral corrupção da sociedade.

Entre estes dois homens, ambos moços e sympathicos, existia uma
differença apenas: Alfredo pertencia á mocidade dos cafés,
incomparavelmente mais inutil que a mocidade da taberna, composta, na
generalidade, por operarios honestos, como Julio.

Mais tarde, porém, nos encontraremos novamente com Alfredo.




XIV

Novos mundos


Penetremos em Alcantara.

É um bairro pobre, habitado por operarios, n'uma grande parte, e por
homens do mar.

Na extrema do riacho, para a direita, alveja uma pequena casa, situada
na falda de um monte.

Para ahi entrou Julio, a fim de se occultar ás pesquisas da policia.

Durante o dia conservava-se fechada a casa, como querendo demonstrar ao
publico, que ella era realmente deshabitada.

Á noite quatro operarios, voltando do trabalho, batiam de mansinho á
porta.--Julio percebendo pelo toque ser os companheiros, levantava-se da
enxerga em que de ordinario jazia, e dava volta á chave.

No interior da habitação reinava a miseria em toda a sua hediondez.

Uma enxerga apenas, abrigava, durante a noite, cinco esqueletos de
homens, sem alegria, sem pão e sem futuro. Os mumias da desgraça!

De manhã, ao levantar, reuniam quatro ou seis trapos velhos, e, por
vergonha, occultavam á multidão os proprios ossos do corpo.

Na cosinha existiam, por acaso, duas côdeas de brôa, arrancadas aos
dentes das cadellas leprosas, uma bilha com agua e um pequeno ramo de
carqueja.

A estes quatro animaes, trabalhadores n'uma fabrica de lanificios, se
incorporara Julio.

Pouco tempo, porém, durou similhante situação. Ao cabo de alguns mezes a
policia lançára as suas vistas para os lados de Alcantara. Isto
soube-se, e chegou aos ouvidos de Julio, a este tempo já viciado por
toda a casta de corrupção.

Com nova tão para desesperar, quasi endoideceu o moço-operario. Uma
noite mesmo, encontrando um policia civil, e tomando-lhe da mão direita,
disse:

--Olé--sabe quem eu sou? Ah! não sabe? pois bem: fique sabendo...

E fugindo, estendeu-o no chão com uma fortissima bofetada.

Assim se passaram alguns dias, de louca anciedade. Por tradicção
conhecia Julio um velho aldeão, de quem a mãe repetidas vezes lhe
fallára. Uma noite, deixando o casebre de Alcantara, demandou a
provincia, onde lhe sorriram os primeiros raios de felicidade.

Mas Julio já não era o mesmo homem. O desanimo ganhara-o por momentos. É
condão da miseria transformar o homem physica e moralmente num monstro
de paixões.

A barba crescera-lhe. O corpo definhava-se-lhe a olhos vistos. No
coração principiavam os espinhos a crescer e a vegetar. Emfim, aos pés
do operario um abysmo, um immenso abysmo se abria.

E ai do homem, que um momento escorregar no precipicio; porque para esse
não haverá salvação possivel.

A mulher, que uma vez peccou, habilita-se a ser uma eterna peccadora. O
homem que um dia se prostituiu, fica para sempre prostituido.

Nem sempre, porém, nos abandonam os anjos do céu.

Á beira do despenhadeiro tivera Julio o seu anjo da guarda.

Abençoada a mão, que n'um raio de amor nos traz a esperança e a
consolação!




XV

Primeiros amores


Um sol ardente batia de chapa sobre um eirado de pedra, em cujo espaço
se abrigava cuidadosamente o fructo de uma boa colheita de milho.

Ao lado, e fóra do alpendre, elevavam-se tres medas de palha, unico
alimento annual, aos pacientes trabalhadores d'aquelle campo.

Por entre as louras e amontoadas espigas brincavam em candida innocencia
duas formosas e galantes creanças.

A tarde declinava docemente. No pinheiral longinquo gemia a rôla uns
tristes e magoados queixumes. Os cantos jubilosos dos lavradores iam
perder-se nas solidões distantes. O céu era sem nuvens; e as aguas de
chrystal, mansas e innocentes, como as lagrimas de uma creança,
deslisavam com ligeiros attritos, atravez dos terrenos pedregosos.

Um cão preto, guardador de gados, saltando alegremente, annunciára em
repetidas curvas, a proxima chegada de seu dono.

A pouca distancia d'ali assomou logo um velhote de rosto prasenteiro e
agradavel. As duas creanças, erguendo-se de um pulo, desappareceram por
entre a sombra do arvoredo.

Apenas um moço, altivo, de tez morena e bronseada, permanecêra na mesma
posição sem dar por cousa alguma do que em de redor d'elle se havia
passado.

O velho chegou, trazendo os dois pequenos pela mão. Olhou com piedade
para a estatua da tristesa, que tão profundamente o impressionava,
abeirou-se d'ella, e prorompeu nos seguintes e magoados termos:

--Então que é isso, meu Julio? tão triste e pesaroso? já lhe não valem
de nada as palavras d'este velhote, que tanto do coração lhe quer? e
esta familia que é a sua? Ora vamos, mostre-se alegre para comnosco.
Aperte-me esta mão que é rude, mas honrada. Seja-me franco, se alguma
cousa o afflige. Nada receie. Olhe que todos nós o estimamos devéras.

--Meu Pae...--exclamava Julio, debulhado em lagrimas,--meu bom Pae...

O lavrador, puxando por um lenço encarnado, que habitualmente trazia no
bolso direito da jaqueta, muito de soslaio limpou os olhos humedecidos.
As duas creanças, acompanhando-o, como que por instincto lhe beijavam as
mãos bemfazejas.

O sol, atufando-se nas aguas do oceano, reverberava por sobre a terra
silenciosa os seus derradeiros raios. A brisa era tépida, como a noite.
Algumas folhas sêccas, prenuncio do outomno, alastravam o sólo.

Julio entrara-se em doloroso scismar. A sós comsigo mesmo, pensou muitas
vezes no suicidio, companheiro e amparo dos que soffrem. Mas não. Uma
esperança o alimentava. Um vago ideal o seduzia.

Após profundo meditar alçou a cabeça para o céu. A imaginação cedera o
seu logar á intelligencia. Julio estava salvo. A seu lado respirava um
archanjo celeste.

Olhou. Cecilia, a pomba immaculada, depositara aos pés do seu amante uma
bolsa, cheia de libras, thesouro de trabalho e de economia.

Que esplendida creança! e que nobilissima abnegação!

--Tu aqui, Cecilia?...

--Sim, aqui, ao pé de ti, meu Julio. Tudo adivinhei. Se é preciso que
partas, parte: vae procurar a fortuna, por que tanto anceias. No entanto
lembra-te sempre de que deixas n'esta casa não só um pae que te estima
mas tambem uma mulher que te ama.

--Cecilia, meu doce amor, como eu quizera ser feliz comtigo. Mas tu bem
vês, minha filha: sou pobre, nada tenho. Repudiado pela sociedade, que
me julga um criminoso, apenas a tua e a minha desgraça poderia fazer
n'este momento. Parto ámanhã. Com o nome mudado, entrarei n'uma fabrica.
Trabalharei, trabalharei muito. E tu, Cecilia, que és boa e meiga, como
as estrellas do céu, não me esqueças nunca nas tuas piedosas orações.
Deus ha de ouvir-te, porque Deus tambem é bom. Um dia, quem sabe?
voltarei rico a esta casa. Tenho fé em Deus que hei de voltar. E tu
tambem tens fé, não é assim, Cecilia?

--Fé, meu amigo, só eu tenho na morte. Alguma cousa me diz que a
felicidade não foi feita para nós. Paciencia. Que, ao menos, o céu nos
receba!--é este o meu maior desejo.

Um curto, mas doloroso intervallo se seguiu a estas palavras. Cecilia,
sufocada pelos soluços rasgava com os proprios dentes as pontas do
avental, chorando amargamente.

Julio envidava todos os seus esforços afim de a consolar. Nem um nem
outro, porém, sabiam o que faziam.

--Vamos, meu Julio, assim é preciso. Animo, animo e adeus...

Um abraço os reuniu; e um beijo--um prolongado e triste beijo os
separou.

..........................................................................

Oito dias depois, Cecilia mostrava a seu pae uma carta de Julio, cuja
leitura elle terminou chorando.

--Pobre rapaz!--exclamava o bom do velho, limpando os olhos com as
costas da mão.

E voltando-se para sua filha, começou de beijal-a ardentemente.

Doce esperança do céu lhe illuminára a fronte, encanecida na virtude e
no trabalho!




XVI

Transformações


Eu não sei qual seja melhor: se o ar do campo, se o ar da cidade.

É certo que muitos preferem a provincia á capital. Tambem é certo que os
doentes, por via de regra, se não dão bem nos grandes centros:
Entretanto a cidade, se bem que despida da ingenuidade nativa da aldeia,
tem para mim o supremo encanto da actividade e do trabalho. O silencio
prolongado degenera as mais das vezes n'um aborrecimento deploravel,
quando não é elle o gerador de graves e dolorosas molestias.

A cidade tem as suas ruas illuminadas. Os restaurantes attrahem-nos
docemente. O ruido dos cafés desperta em nós o desejo da mutua
confraternidade. Se por acaso atravessamos uma rua bastante concorrida,
paramos instinctivamente; olhamos para as _vitrines_ das lojas,
admiramos um objecto mais do nosso agrado, e com isso nos deleitamos.

Sobretudo apraz-nos a cidade no inverno, no tempo em que as arvores,
despidas das esplendidas _toilettes_ do verão, se nos mostram tristes e
sombrias como a velhice. Então é-nos o calor mui doce e suave lenitivo.
Á luz pallida do gaz distendem-se-nos os musculos enregelados, e
enchem-se-nos de vida os membros confrangidos.

O café é uma invenção puramente da cidade. _Rendez-vous_ de todas as
classes sociaes, é elle para a humanidade o mesmo que a familia é para o
homem. Á noite, ao cahir da tarde, quando as tristesas--aquellas vagas e
mysteriosas tristesas do crepusculo--começam de entrar comnosco, nós,
incitados por um desejo ardente de meigas e salutares expansões,
procuramos o café naturalmente. Para alli nos dirigimos, como se elle
nos fôra um templo sagrado; lá temos a nossa communhão de ideias e
interesses--uma profunda e natural communhão, onde os amigos se
encontram e os estranhos se abraçam.

E o theatro? e os circos? e os passeios? e a musica?

Imagine-se, pois, o leitor no theatro de D. Maria. A récita é dada em
beneficio de um asylo. A plateia está replecta de espectadores, e nos
camarotes, como que resplandecem, em glorioso desafio, as mais
encantadoras formosuras de Lisboa: Como se disse no segundo capitulo
d'este romance, o drama escolhido para esta noite era a _Vida de um
rapaz pobre_. Apparecêra a Viscondessa, n'uma das frisas da frente,
ostentando, um delicado decote, um cóllo d'alabrasto, ao qual estava
cingido um valioso collar de pérolas. Proxima d'ella, e na frisa
immediata, uma condessa rica, enlêvo dos negociantes accreditados,
mostrava uns braços gordos, a cujos pulsos, por egual gordos e sadios,
se enroscavam umas pulseiras de diamantes, compradas na mais afamada
ourivesaria de Paris. Mais além uma menina loura, ha pouco sahida do
collegio, tomava _poses_ incontestavelmente estudadas ao espelho,
olhando de soslaio para um moço ainda imberbe, _soi-disant_ litterato de
botequim e _claqueur_ improvisado.

E assim succediam os factos, as pessoas e as cousas. Nas torrinhas
estavam, segundo o costume, alguns rapazes, ao parecer entendedores--uns
bons rapazes despretenciosos, á mistura com alguns operarios zelosos e
trabalhadores.

No fim do 3.^o acto, quando Alfredo entrava na frisa da Viscondessa, um
ignorado personagem se levantou nas torrinhas, replecto de amor e de
febre. Desceu as escadas com desusada precipitação, e entrou no
restaurante. Pediu aguardente de canna e bebeu, bebeu sempre... Pediu
uma folha de papel de carta, e com um lapis que trazia no bolso do
casaco, escreveu um bilhete.

Embuçado e trémulo, esperou que o espectaculo terminasse. Quando, por
entre a multidão que sahia do theatro, lobrigou a Viscondessa, sem
atinar com a intenção dos seus actos, allucinado, doido,
perdido--acercou-se della, entregou-lhe o bilhete, e fugiu.

Pobre de ti, meu Julio, espirito leviano e generoso, e agora já
transformado em José Xavier, em virtude das leis do teu paiz.

O ar da cidade, para ti renovado, foi o abysmo que se te abriu aos pés.

Sem mesmo querer, olvidavas a aldeia, que te fôra consolação momentanea
nas agruras da vida; e n'esse esquecimento involuntario ia-se-te a alma
partida com a doce imagem da mulher honrada que por ti velava dia e
noite.

Pobre de ti, meu poeta! e pobre d'aquelles, que, como tu, soffrem as
mesmas e tristes inconstancias, a cujo horrivel imperio não ha nunca
resistir n'este mundo de phantasmas e de vadios.

Pobre de ti!




XVII

Allucinações


Quando alguma ideia nos preoccupa o espirito fortemente, o nosso
primeiro movimento é estar só, isolado, em intimo colloquio com os
nossos desejos.

Momentos ha em que aborrecemos a luz, como supremo escarneo aos nossos
soffrimentos. N'este caso é a conversa de estranhos muitas vezes levada
á conta de uma ironia pungente. Queremos fallar, e não podemos.
Desejamos abrir os olhos, e conservamol-os fechados. Esforçamo-nos por
chorar, e as lagrimas não correm. Então, sequestrados da sociedade, e a
sós com a nossa dor, imploramos de Deus o soccorro da morte e a hora
suave do passamento.

Julio estava perdido. Tentou ser homem, mas embalde.

Pela primeira vez na sua vida entrou n'uma casa de jogo. A sorte foi-lhe
adversa.

Com os cabellos em desalinho, os olhos chammejantes, e o corpo numa
ancia infernal, entrou o apaixonado moço n'um botequim.

Bebeu, e embriagou-se.

A paixão é muitas vezes creança. O amor é caprichoso, quasi sempre
doentio, e por via de regra em extremo exigente.

Ora a febre tem um periodo de excitação, o qual, apenas terminado, gera
o aborrecimento e um indefinivel mal-estar.

É louco o homem que ama sem raciocinio, doidamente entregue aos excessos
da imaginação e da phantasia. Acima do amor está a amisade.

O amor é um relampago em céu de trovoada: passa, e não dura.

A amisade é um sol que, mesmo atravez das tempestades, se conserva: não
tem azas como a aguia, mas em compensação tem raizes como a arvore.

A amisade é sempre amorosa; o amor nem sempre é amigo.

Para amar basta que se seja um bom amigo; para ser amigo é que não basta
só o amor.

O amor é um capricho, que póde provir de uma apparencia mal entendida.

A amisade não! A amisade nasce da reflexão combinada com o tempo.

Quantas vezes não é o amor filho do ciume?

Quantas vezes nos não deixamos nós arrastar por uma simples exaltação do
nosso temperamento?

A nossa esposa deve ser a nossa primeira amiga. Na convivencia ha tempo
para estudo. Ai! d'aquelle que se deixar arrastar pelo fogo das paixões,
porque para esse devem ser as as desillusões um quasi assassinato moral.

Julio estava cego; caminhando ás apalpadellas mal podia atinar com o
caminho.

Depois de ter jogado, depois de ter bebido, sahia para a rua.

Se o jogo é como o vinho uma embriaguez, nem porisso o amor deixa de o
ser tambem.

Quasi nunca a paixão apparece só. Um homem apaixonado é um aventureiro,
um espadachim, que anda atraz da sorte, desafiando-a. E porisso é que os
tres irmãos gemeos--o jogo, o vinho e o amor--caminham sempre unidos e
accordes.

Julio, ébrio, ameaçou as estrellas, riu-se da lua, escarneceu do céu, e
insultou-se a si.

A embriaguez tem d'estas oscillações inexplicaveis: no principio é
vigorosa, athletica, muscular, até que a pouco e pouco enfraquece,
tornando-se inerte, covarde, miseravel: similhante a um homem que,
cahindo no abysmo, solta a principio uns gritos agudos, lancinantes, e
que a final, desesperado e sem força, se deixa escorregar para o fundo,
onde adormece no leito do universal esquecimento.

Julio, sem ser cadaver, era no entretanto um alucinado. E o alucinado só
dista do cadaver, em que aquelle é um morto ambulante, ao passo que este
é apenas um morto inerte, estupido e incapaz de movimento.




XVIII

O escudeiro da senhora Viscondessa


Apenas sahido do theatro o primeiro pensamento de Julio fôra
suicidar-se.

Alguma cousa, porém, impossivel de explicar-se, o prendia á vida. Demais
elle era novo; contava vinte e seis annos, se tanto; possuia aspirações
em larga escala; vastos affectos lhe referviam na mente escaldada. É
verdade que até ahi a pobresa o não deixára sahir do seu silencio. Que
lhe importava, comtudo, a obscuridade do presente, se o futuro lhe podia
ser de amor e de rosas?

Uma lucta desesperadora se lhe travou então no espirito irrequieto.

--Sim! a vida--exclamava elle--oh a vida... e chama-se a isto vida...
Mas se ella de facto me pertence, porque me não hei de eu desfazer
della? se por naturesa, Deus me creou livre; se para mim nada existe na
terra, além d'este fardo importuno a que chamam miseria, para que
persistir n'elle. Não! É mister sahir d'este salão, d'este vil salão!
cuja área denominam universo: procurar um outro, cujo começo é o
cemiterio, e o fim, talvez, a eternidade da materia... Os homens... que
são os homens? uns tristes egoistas sem consciencia e sem pundonor, uns
mercenarios torpes, altivos invejosos e estupidos... perfeitamente como
os outros animaes... Mas aquella mulher! e qual? Cecilia? oh, Cecilia é
uma andorinha cheia de castidade, muito pura e muito simples. E
depois--que lhe devo eu? se me teve amor, tambem eu a amei... se me deu
affectos, tambem eu lh'os retribui. Acima d'ella, porém, está a
Viscondessa. Comparál-as? oh! não, por Deus, Cecilia é uma pobre
rapariga sem arte; falta-lhe a elegancia da Viscondessa, não sabe
fallar, não se sabe vestir, não se sabe pentear... para que hesitar,
pois? Ah! louco, que eu sou na verdade! mas se esta imagem me persegue
por toda a parte, se a não posso apagar da memoria, porque me está aqui
parada, aqui, aqui bem dentro, n'este coração maldicto... Sou pobre!
Embora! tornar-me-hei rico; irei ao Brazil; amontoarei dinheiro sobre
dinheiro; far-me-hei negociante e vendedor de café.

Assim monologava o moço operario, de si para comsigo, sem outro alento
que não fosse uma paixão profunda, ardente, vulcanica. Sobre a espaçosa
fronte cahira-lhe o cabello n'um singular desalinho. Os braços, crusados
ao longo da mesa, bem patenteavam a afflicçao que n'aquelle momento o
devorava. No interior do peito referviam-lhe as negras chammas do
supplicio--aquellas chammas infernaes, remordentes, que nos são, como
que o appêlo de Satan sobre a terra.

Adormeceu. Um languido torpôr se lhe apossou dos membros cançados.
N'esses raros momentos de nervosa agitação, uma hora de somno vale mais
positivamente, muito mais, do que uma noite bem dormida.

Quando voltou a si era dia claro no horisonte. Abriu a janella, e tomado
d'uma ancia incuravel, alongou os olhos pelas montanhas longinquas.
Similhante ao peregrino, que, com os olhos ávidos, mede a extensão do
deserto, assim elle tambem mediu a extensão da sua dôr. Se era grande ou
pequena, só o espirito ao certo lh'o poderia affirmar.

Entretanto a Viscondessa, nem sequer se lembrára mais do bilhete
recebido no theatro. No dia seguinte, porém, seriam quatro horas da
tarde, quando Virginia lhe annunciou a visita de um operario.

A Viscondessa, na sua proverbial delicadesa, mandou-o entrar para a
sala.

Um minuto depois parava ao limiar da porta um sympathico rapaz de bigode
preto, macillento e moreno. Trajava modestamente uma bluza azul e uma
calça côr de cinza.

--Disseram-me que a senhora Viscondessa precisava de um
creado--principiou o desconhecido.

--Como se chama?--interrompeu a senhora.

--José Xavier.

--José! pois bem: agrada-me o nome. Póde ficar. Virginia que lhe diga o
que tem a fazer.

E, sem mais, virou-se a viscondessa para o outro lado, retomando a
primitiva posição.

Ao jantar alguns incidentes notaveis se deram. Julio servia á mesa. Com
os olhos sempre fitos na Viscondessa mal pestanejava, o pobre do rapaz.
Por algumas vezes lhe cahiram os pratos da mão; por algumas vezes
substituiu um prato lavado por um outro sujo; por algumas vezes se riu
Virginia a bom rir. Para tal, porém, nem sequer a ama reparou em meio
das suas caprichosas divagações.

Os dias iam correndo em silencio. Julio, ardendo em amor, seguia, como
um cão, os mais insignificantes passos da Viscondessa. Quando ella
passava pelo corredor, occultava-se atraz das portas; se podia,
beijava-lhe a fimbria do vestido; quando ella sahia, entrava-lhe no
quarto de vestir e ali se ficava horas esquecidas n'uma d'estas
allucinações que só conhecem os espiritos febris e nervosos. N'um
momento de cegueira, roubara-lhe o, retracto do album; com elle
adormecia todos os dias, e com elle tambem entrava no serviço da casa.

Entretanto o diabo arma-as, quando menos a gente as espera.

Julio penetrára no quarto de sua ama. Involuntariamente se demorou mais
do que o costume. A Viscondessa entrou cêdo n'esse dia. O escudeiro mal
tivera tempo de se esconder d'entro de um guarda-roupa.

Ia Virginia, segundo o seu habito, a abrir o armario; quando Julio,
dando um pulo para fóra, deixou espavoridas ama e creada.

--Ai! credo! Jesus! gritou Virginia--Ladrões em casa; ladrões, minha
senhora.

--Que é? que é?--exclamou a Viscondessa.

--Pois não viu? O tratante do José aqui fechado!

--O José--retorquiu a senhora!

--O José, sim, minha senhora, o José...

--É verdade, senhora Viscondessa; fui eu, fui eu que commetti este
enorme attentado--obtemperou Julio, trémulo de colera e de raiva. E para
prova, aqui me tem a seus pés, sollicitando-lhe perdão.

--Virginia, disse a Viscondessa, paga a este miseravel, o manda-o
embora.

--Já, minha senhora.

--Bem me queria a mim parecer--murmurava a esperta da creada--que aqui
andava sua cousa encoberta.




XIX

Falla o coração


Será verdade que o coração tambem falla?

Uma cousa é amar, outra cousa é desejar. O amor deriva do coração, foco
de toda a vida humana; o desejo nasce dos sentidos. Ao primeiro pertence
o amor-sentimento, ao segundo o amor-sensação. Até aos trinta annos o
amor póde dizer-se sentimento; o que, por via da regra, não succede já
d'ahi por deante, em que elle se transforma n'um desejo material.

O amor depende, sobretudo, da educação; e assim póde ser maior ou menor,
consoante o estado moral do individuo em que elle se manifesta.

O amor mais verdadeiro é aquelle que se não exprime. A attracção de
sympathias deve dar-se naturalmente sem necessidade de expansões, que
lhes viciem a puresa inicial.

O selvagem, por exemplo, ama até ao ciume. Quando não póde saciar os
seus desejos, apunhala-se a si ou apunhala a amante. É que o selvagem,
na sua natureza desordenada, é um diamante por lapidar.

O ciume accusa falta de confiança na mulher a que nos dedicamos, só por
um inconcebivel egoismo poderemos ser arrastados a um vicio tão
execrando, como abjecto.

Julio amava a Viscondessa com um amor selvagem, forte, violento. Tinha
ciumes della; seguia-a por toda a parte; e não raro succedia fechar-se
n'um quarto, e ahi, com o retracto deante de si, chorár e chorar
copiosamente.

Ora a Viscondessa era de facto uma mulher bem educada, mas soberanamente
viciada pela lisonja dos homens.

Tres são de ordinario as causas do orgulho na mulher: a formosura, a
riquesa e o nascimento.

A formosura, pela demasiada contemplação das proprias qualidades, gera o
_coquettismo_; a riquesa a vaidade; o nascimento a soberba.

A mulher formosa tem em si mesmo a causa da sua destruição. Lisonjeada
pelos homens, torna-se inconstante. Depois, note-se--a inconstancia é um
excesso de ternura, uma superabundancia de bondade.

A simulação é propria ás mulheres. Ao amor fingido de uma mulher
corresponde de ordinario o amor mentiroso de um homem. As mulheres
fingem, porque, desde creanças, as ensinaram a fingir. É um vicio de
educação.

A riquesa é a antithese da virtude. Foi a pobresa que gerou a caridade.
Mulher rica é mulher, quasi sempre, voluntariosa; muito senhora de si,
deseja ser obedecida como rainha.

O nascimento nem sempre é um prejuizo. Ha mulheres aristocraticas em
cujas acções se revela a suprema distincção. É mais para temer-se o
excesso de republicanismo, do que o excesso de aristocracia.

A Viscondessa era simultaneamente formosa, rica e nobre. Se desattendia
as expansões do operario, invisiveis para ella, não era tanto por
orgulho, que realmente não tinha, como, e principalmente, por uns
ligeiros, mas inapagaveis, vestigios da infancia.

É justo que o coração do homem seja equilibrado pela intelligencia da
mulher. Mas Julio amava sem ser amado, o que é decerto uma loucura,
baptisada com o nome de martyrio.

Amor não correspondido, é amor que degenera em odio.

Homem allucinado não reconhece meio termo: ou ama com paixão, ou odeia
com rancor.

Julio, qual outro viajante, deixara-se seduzir por uma miragem doce e
agradavel. Olhou. A vertigem toldára-lhe a vista. Quando descerrou as
palpebras á luz do dia, um peso enorme lhe obscurecia o cerebro. Quiz
pensar e não pôde.--Mas que terei eu, interrogava a si mesmo. E, em
redor d'elle, tudo annunciava um vago e mysterioso silencio.

Estava apaixonado.

O coração batia-lhe d'entro do peito com viva e prolongada violencia. A
cabeça era fria, e os sentidos mal davam accordo de si.

Ai! d'aquelles que só a voz do coração escutam, porque para esses é a
paixão um ignorado martyrio e a vida um tristissimo cemiterio.




XX

Casa burguesa


Era um gosto entrar a gente em casa do sr. Francisco Alves. Tudo
respirava ali um aceio, por tal fórma invejavel, que o espirito em
verdade se sentia bem, muito bem, ante aquella limpesa, tão rara em
Portugal como prodiga em qualquer outro paiz.

No bairro de Alcantara era o sr. Francisco conhecido como um modelo de
philantropia e de bons sentimentos. Os jornaes por vezes resavam da sua
pessoa, assim como da sua catholica esposa, a sr.^a Felisbella de
Menezes.

Emfim o sr. Alves era modesto sem ostentação, simples sem atavios, e
amavel sem rancor.

O sr. Francisco Alves era o que em boa linguagem se póde dizer--um
portuguez de lei.

De um rico tio provinciano herdára elle uns dez contos de reis, em metal
sonante, com os quaes comprou uma mercearia bem fornecida e já bem
accreditada na capital.

Atirou-se, pois, o sr. Francisco ao negocio, e sempre com fortuna e
sempre com bons auspicios.

Um dia virou-se elle para a esposa, e disse:

--Ó Felisbella, se tu quizesses, uma vez que foi esteril o nosso
matrimonio, traziamos um rapasito para casa, e adoptavamol-o como nosso
filho? Que dizes?

--Olha, menino--tu bem sabes que eu estou por tudo o que tu quizeres.
Vae tu mesmo a um asylo se assim te apraz, e escolhe-me lá um pequenote;
mas que seja bonito, entendes?

--Pois está dito, mulher! amanhã tratarei d'isso.

E, com taes intenções, deitou-se á noite o sr. Francisco Alves, n'um
bello colxão de commoda lã.

Veio o rapaz para casa. A sr.^a Felisbella queria-o para doutor, o sr.
Francisco, para merceeiro.

O pequerrucho era engraçado, muito engraçado, cheio de bons ditos e de
palavras amaveis.

Á sr.^a Felisbella tratava elle por _mamã_, e ao sr. Francisco por
_papá_.

--Sempre tem uma graça, este pequeno!--dizia o Alves, ás vezes para a
mulher.

--E os ditos então? se tu lh'os ouvisses... retorquia a bondosa da sr.^a
Felisbella.

--Pois, menina, parece-me que dá em doutor o diabo do rapazelho.

--Ora! se eu bem t'o dizia.

--E tinhas razão, tinhas, lá isso tinhas. E ha de ser um doutor, assim
elle queira.

O rapaz cresceu. Foi para a escola, e deu boa conta de si. Foi para
Coimbra, e tomou grau em direito. Depois metteu-se advogado, e é hoje um
dos mais distinctos homens de lettras do nosso paiz. Sempre grato á
sr.^a Felisbella, visita-a todos os dias. Ao sr. Francisco Alves já
advogou algumas questões, e, ao parecer, com gloria para ambos.

Não parava, porém, aqui a abnegação do sr. Francisco.

Acontecia frequentemente elle vir para casa mais tarde do que desejava.
Se por acaso encontrava algum pobre estendido na rua, ao relento e ao
frio, levantava-o, e trazia-o comsigo. Chegado ao lar mandava-lhe
arranjar uma boa ceia, vestia-o no dia seguinte, e deixava-o seguir o
seu caminho.

E a isto, leitor generoso, chama o mundo ser boçal.




XXI

Considerações


A nossa sociedade é essencialmente burguesa. Actualmente todos gritam
contra o burguezismo, e entretanto ninguem está isento d'esse peccado,
se peccado se lhe póde chamar. E cousa singular! ao passo que a
aristocracia vai descendo até ás regiões do plebeismo, a burguezia, por
seu turno, eleva-se, e tenta em breve ser a Excellencia do paiz.

O moderno fidalgo portuguez não existe já. Antigamente um aristocrata,
_pur sang_, tornava-se respeitavel por uma educação sisuda e por uma
illustração opulenta. Hoje dá-se perfeitamente o contrario. O bom
fidalgo, _faia_ de recente data, abandalha-se na convivencia dos
cocheiros, tocando o fado pelas ruas, durante a noite, picando touros,
usando jaqueta e facha de seda e vivendo entregue á ociosidade, que é o
vicio, e á embriaguez, que é a doença e muitas vezes a morte.

Outr'ora havia um certo pundonor em conservar intactas as tradições de
familia, demonstrando-se assim que a honradez do nome é um dever
sacrosanto para verdadeiros fidalgos.

Agora não! Uma pateada, dada num theatro a uma actriz, um conflicto
levantado em qualquer praça publica, uma desobediencia á authoridade, um
adulterio commettido com a mulher do seu amigo intimo: tudo isto são
peripecias galantes para a nossa mocidade, que, á falta d'outro, tem o
estimulo do egoismo e da arruaça.

Ora eu peço licença a s. ex.^as, os srs. viscondes, para lhes notar que
não é esse o caminho da nobresa. Deus me defenda de offender melindres,
que muito longe estão d'esta regra. Excepções existem, e aliás excepções
respeitaveis.

Afigura-se-nos, porém, que a instrucção é presentemente mais peculiar á
burguesia do que á aristocracia. D'entre os burgueses raro é aquelle que
não tem a sua livraria sufficientemente enriquecida de bons auctores, e
rarissimo ainda mais aquelle que não lê tres ou quatro jornaes todos os
dias.

Os filhos da burguesia seguem as escolas publicas, occupam os primeiros
logares do estado, e possuem actividade e intelligencia em larga escala.

Onde existe maior gráu de moralidade: na aristocracia ou na burguesia? E
o trabalho, d'onde sahe elle? E as revoluções, a quem as devemos nós,
senão á burguesia?

Não ha classe alguma da sociedade que, passado um certo numero de annos,
se não corrompa.

As classes são na sociedade como as instituições: gastam-se e
aniquilam-se, decorrida uma certa phase historica.

A burguesia vai cahindo nos mesmos defeitos da antiga
nobresa--sabemol-o; sem embargo a burguesia tem ainda vantagens sobre a
aristocracia.

Entre a burguesia e a plebe existe, porém, uma outra classe, que ao
mesmo tempo participa da segunda pelo seu nascimento e da primeira pela
sua actividade: esta classe não tem nome; vive do producto das suas
lojas, das suas propriedades e da sua economia. A ella pertencia o sr.
Francisco Alves, expressão de bondade christã e de virtude evangelica.

Aos domingos encontram-se estes _pequenos negociantes_--que outro nome
não sei eu que elles tenham--em longo e aturado passeio pelos campos e
pelas estradas. Ahi, reunidos em familia, comem o seu pedaço de queijo
com pão, e bebem o seu meio quartilho de vinho. E isto apenas aos
domingos, que, aos dias de semana, a alvorada vem quasi sempre
encontral-os no trabalho.

O sr. Alves enfileirara-se n'este grupo ignorado, e delle herdára os
habitos e as tradicções.

E o certo é que se não foi um anjo, na verdadeira acepção da palavra,
foi pelo menos um bom homem, honrado e caritativo.




XXII

Um hospede


N'uma noite tempestuosa em que a caridade, silenciosa sempre e occulta
quasi sempre se encarrega de velar pela miseria sobre a terra,--voltava
o sr. Francisco Alves a Alcantara, onde anciosamente o esperava a
carissima metade da sua alma.

Na occasião, porém, em que descia a calçada da Pampulha, notou elle
vagamente uma sombra que a um recanto permanecia n'uma mudez quasi
sepulchral. Aproximando-se, reconheceu um homem, mais cadaver do que
outra cousa. A tristesa tomou-o, então, dos pés á cabeça. Cheio de
terror, livido, nervoso, lembrou-se o senhor Alves de chamar a policia.
Não era essa, todavia, a tendencia do seu coração generoso e leal. Emfim
esperou. Casualmente passava um trem de praça. Chamou o cocheiro, e
levantando o homem que elle supposéra ebrio, introduziu-o na carruagem.

A sr.^a Felisbella, como de antiga e patriarchal usança era n'aquella
casa, resava a sua corôa, correndo o rosario entre os dois dedos da mão
direita--o index e o polgar. Auxiliava-a em tão piedoso, quanto
catholico mister, uma creada velha, beata pelos modos, quarentona já,
mas amiga da sua ama.

A sala, em que ellas estavam, chamada casa de engommar, representava um
quadrado perfeito, com vinte pés de comprido sobre vinte de largo,
rodeada por doze cadeiras de coiro, antigas, segundo todas as
apparencias, herdadas de parentella abonada.

Ao centro, uma mesa de páu preto, caprichosamente torneada, recebia
invariavelmente, todas as noites, um velho candieiro de metal amarello,
comprado n'um leilão de ferros velhos.

O sr. Francisco Alves, entrando em casa, nem sequer se déra ao trabalho
de incommodar sua mulher. Arrastou o moribundo para um quarto, cuja cama
principalmente sobresahia pela alvura da roupa, e foi elle mesmo chamar
um medico.

N'este comenos concluía a sr.^a Felisbella a sua nocturna devoção.
Ignorando tudo o que em volta d'ella se passava, pegou no candieiro,
pela aza superior; e, arrastando-se com difficuldade--porque a sr.^a
Felisbella era gorda e rheumatica--dirigiu-se para o quarto, parando no
corredor umas tres ou quatro vezes.

A ausencia do marido incommodava-a, porém, sobremaneira. Terá elle sido
preso?--monologava ella de si para comsigo.--Mas o meu Francisco nunca
foi atreito a barulhos. Nada. E quem me diz a mim que algum namorico...

E n'estas duvidas adormeceu a esposa do sr. Alves, merceeiro.

A noite, como todos os contrastes d'este mundo, corrêra alegre para uns
e triste para outros. A sr.^a Felisbella dormira umas boas oito horas,
ao cabo das quaes acordou, pensando no sr. Francisco.

--Ó Francisco, Francisco!--gritava a pobre da mulher com toda a força
dos seus pulmões.

E o sr. Francisco Alves assomou ao limiar da porta.

--Queres-me alguma cousa, Felisbella?--respondeu elle.

A mulhersinha enfiou, apenas viu o marido. Não sabendo com que
desculpar-se, calou-se. Porque a sr.^a Felisbella--diga-se já de
passagem--respeitava devéras o sr. Francisco, a quem na sua mocidade
entregára o coração e a vontade.

Como quer que fosse, porém, o sr. Francisco, prudente como os que o
sabem ser, entrou por si mesmo em explicações. Contou tudo o que durante
a noite lhe havia occorrido; recommendou finalmente o rapaz á vigilancia
de sua mulher, e sahiu.

Quando á tarde voltou a casa, communicaram-lhe que o doente já fallava.
Alegrou-se. N'esse dia bebeu mais um cópo de vinho ao jantar, e deu um
beijo na face direita da sr.^a Felisbella.

Decorrêra um mez.

Em casa do sr. Francisco Alves reina uma alegria desusada. É domingo.
Preparam-se todos para ir jantar ao campo. A sr.^a Felisbella dobra o
seu _chale de toukin_ branco e calça a sua luva de retroz preto. O sr.
Alves leva um chapéu de palha do Chili. E o nosso doente--agora já
restabelecido e companheiro de passeio--traja modestamente um fato
preto.

A comitiva, assim composta, seguia para Queluz. Impossivel nos fôra
descrever a amizade que n'esse dia reuniu aquelles tres entes queridos.

O sr. Francisco Alves brindou o seu hospede, appellidando-o com o doce
nome de filho. A sr.^a Felisbella sorriu devotamente; e a creada, a
velha creada, exclamou sentenciosamente:

«Deus sabe o que faz!»




XXIII

Transição


Na escolha do espectaculo manifesta-se, em geral, o bom gosto do
espectador. Não quero eu com isto dizer que, muitas vezes, não seja a
curiosidade o motor das nossas acções; mas, emfim, o que cumpre saber-se
é que n'um theatro, n'um circo, n'uma exposição está, por via de regra,
representada a civilisação de um povo.

O theatro é hoje o _rendez vous_ da moda. Nos espectaculos, e á vista de
dramas perfeitamente phantasticos e inuteis, aprendem as nossas
elegantes a soletrar os primeiros rudimentos do amor, do _coquettismo_ e
as supremas illusões.

Durante a representação, que devia ser eschola e estudo, occupam-se os
rapases em averiguar procedencias amorosas, em discutir escandalos, em
calumniar mulheres, em fomentar pequenas intrigas de bastidor, emfim, em
passar a vida, rindo á custa dos similhantes.

Ora a missão do theatro não póde, por fórma alguma, estar reduzida a um
mero passa-tempo, sem realidade e sem vantagem, que se possa dizer
immediata. O theatro não é simplesmente um divertimento para os olhos,
mas ainda mais uma lição para o espirito. Não se tracta apenas de seguir
a moda, o figurino, com receio de que os outros nos taxem de retrogados,
de inconvenientes, de provincianos. Por modo algum. Aqui o caso muda um
tanto de figura. É preciso que da nossa parte, haja o bom gosto na
escolha e o bom-senso da critica. Aliás não passaremos nunca de uns
miseraveis authomatos, sem consciencia, sem dignidade e sem brio.

Um dos primeiros empenhos do nosso seculo é agradar. E se é certo que o
habito não faz o monge, tambem não é menos certo que o monge se conhece
pelo habito.

É á França, aquella França egualmente grande pelo pensamento e pela
frivolidade, que nós devemos a introducção dos figurinos na sociedade
europêa. E note-se que o figurino em tudo preside actualmente, por
infelicidade nossa--na mesa, na litteratura, na industria, no commercio,
nas artes, na sciencia, absolutamente em tudo. Nas altas classes sociaes
pelo trajo de um homem avalia-se o trajo de todos os outros homens. No
campo da poesia pelo realismo de um poeta avalia-se o realismo de todos
os outros poetas. E assim seguidamente; porque a uniformidade, embora o
não queiram, é uma lei dos nossos costumes e das nossas cousas.

A elegancia é uma prova de bom gosto, indubitavelmente. Mas a elegancia,
como tudo o que nos pertence, deve ser individual, variada, como o
sentimento humano, e distincta, como o gosto de cada um, isto é deve ser
original.

Durante o inverno, por exemplo, vai-se ao theatro lyrico, não tanto
porque a musica nos delicie o ouvido e nos eleve o espirito,
obrigando-nos á concentração e á melancholia, mas, sim, e
principalmente, porque é do bom-tom, é _chic_ ter assignatura em S.
Carlos.

E apregoam-se já os beneficios da musica classica, como se a nossa
educação e o nosso temperamento nos permittissem ser uns perfeitos
entendedores das harmonias eminentemente profundas de Mozart, de
Beethowen, de Sthephenheller, de Schubert e d'outros mais.

D'aqui infere-se naturalmente que nós, um povo peninsular em quem deviam
brotar as magneticas expansões e os ardentes enthusiasmos, apenas somos
uns meros escravos da moda, indolentes por habito, sem o ideal que
seduz, e privados do raciocinio que illustra.

Os risos, francamente abertos e sinceramente verdadeiros, sóem ainda
encontrar-se nas classes medias, semi-burguesas, para assim o dizer. Só
o trabalho póde dar alegria. E porisso os que não trabalham conservam o
sorriso quasi permanentemente ao canto da bocca, um sorriso amarello,
felino, sorriso desgostoso e desconfiado.

O sr. Francisco Alves sabia rir, porque tambem sabia trabalhar. Não
frequentava os theatros, porque, á similhança dos da sua egualha,
desconhecia a moda totalmente. Vivia para a familia e com ella se
divertia. Tambem tinha amigos. Aos domingos chamava-os, reunia-os a si,
e ia para o campo, ficando-se por lá até á noite.

Comendo, bebendo e rindo á vontade, o sr. Alves estava no seu paraiso,
longe da serpente que tentou Eva a comer do fructo prohibido,
perfeitamente a bem com Deus e comsigo mesmo.

Bem hajam os que, como elle, comprehendem por este modo a felicidade
sobre a terra!




XXIV

Confidencia


Um dia a sr.^a Felisbella apparecêra de luto na missa da Ajuda, dando o
braço direito a um sympathico moço, alto e moreno.

Francisco Alves já não era d'este mundo. A mercearia passára a outro
dono.

«E uma vez que tanto lhe devo, sr.^a Felisbella--dizia o desconhecido
uma noite--forçoso se me torna narrar-lhe toda a minha vida. Fui pobre,
sem recursos. Minha mãe morreu-me nos braços. Coitada! Por amor de mim
soffreu e por amor de mim morreu tambem. Eu quiz trabalhar, e não
encontrei trabalho. Um dia prenderam-me sem culpa formada. Evadi-me da
cadeia. Vagueei incerto até que um honrado camponez me acolheu em sua
casa. Amei-lhe a filha, com quem prometti casar. Era uma boa rapariga;
chamava-se Cecilia. Envergonhei-me de estar n'aquella casa sem nada
fazer. Ella comprehendeu-me. Juntou as suas economias, e atirou-mas ao
regaço. Que prodigiosa abnegação, sr.^a Felisbella! E eu que até então
me chamava Julio vim para a cidade com este nome supposto. Alguns mezes
se passaram. Uma noite--que maldita noite aquella, minha senhora!--fui
ao theatro de D. Maria. Olhei para um camarote, e fiquei fascinado com o
rosto de uma Viscondessa. Depois vieram as allucinações. Tentei
esquecer-me d'ella, mas embalde! Fiz-me seu escudeiro. Apanhado n'um
armario, fui despedido por ladrão. Depois, oh! depois, cahi doente. O
sr. Alves encontrou-me...

(A sr.^a Felisbella limpou uma lagrima).

... e encontrar-me elle, o mesmo foi que estar eu com a Providencia.
Passou-me a loja--que me deu fortuna, e sobretudo passou-me o seu
nobilissimo espirito, que Deus tem em sua santa paz. A sr.^a Felisbella
sabe como eu o amei. Se nunca lhe pedi que me tratasse por Julio, e não
por José Xavier, foi--Deus me perdoe,--por suspeitar que elle se
irritasse contra mim.

E Julio, ajoelhando, beijou as mãos convulsas da sr.^a Felisbella de
Menezes.




XXV

Mais confidencias

Para muito se amar, quer-se silencio e solidão--dizia Balzac.

O amor é por natureza melancholico. Quem ama, soffre. A melancholia não
é uma doença physica, é apenas uma enfermidade moral.

Uma cousa é a tristesa, outra cousa é a melancholia: a primeira parte da
intelligencia e é, por via de regra, filha de intimas preoccupações; a
segunda origina-se no coração, e nasce de um sentimento, que só por meio
da pallidez do rosto exteriormente se manifesta. A velhice é quasi
sempre melancholica.

Entre a melancholia e a saudade existe uma profunda analogia: ambas se
concentram e ambas se alimentam no mesmo ideal, no amor.

A sr.^a Felisbella de Menezes, nos seus dias de vagar, sentava-se á
janella, e apoiando o queixo sobre as mãos, olhava vagamente as
montanhas, os rios e o céu.

Atravez a nuvem que passa e a estrella que scintilla e a lua que
enbranquece, existe sempre uma doce esperança infinita, ethérea,
incommensuravel, que nos é como que o acordar de um sonho de primavera.

Esperar é desesperar--diz o rifão. E entretanto todos esperam; porque a
esperança é o futuro, o glorioso amanhã da humanidade que soffre.

Para a mulher não existe o passado. Que importa o amor, que hontem se
finou com a ingratidão de um amante?

Deixae-nos correr um véu sobre as alegrias de hontem. Deixae-nos
esquecer, fingindo ignorancia e despreso.

O presente é um logogripho, que ninguem decifra. Se agora somos felizes,
quem nos diz, todavia, que essa felicidade se ha de prolongar,
tornando-se eterna e duradoura?

Ao passo que a curiosidade nos estimula o espirito em differentes
direcções, a esperança, pelo contrario, apenas nos incita na direcção de
uma linha recta, cuja extensão é o infinito, vagamente illuminado pelo
sol do futuro.

Oh! o futuro é a dourada cadeia, que põe directamente a terra em
communicação com o céu; o futuro, o que ha de vir, é sempre um orvalho,
que dulcifica os amargores da desventura.

Perguntae ao desgraçado que força occulta e mysteriosa o prende ainda a
este mundo de miserias.

Perguntae ao sabio porque estuda, e ao operario porque trabalha, e á mãe
porque ama, e ao filho porque obedece.

A esperança, para espiritos bem-formados, não é simplesmente uma suave
illusão, mas ainda mais uma verdadeira necessidade da nossa existencia.

Esperar é trabalhar com ardôr, viver com fé, existir com crença e
amizade.

De todas as virtudes sociaes a primeira inquestionavelmente é a
esperança.

O homem, de ordinario, procura a felicidade; a mulher espera-a. Por isso
a condição da mulher, embora mais triste e desconsolada que a do homem,
não deixa ainda assim de ser suavemente acariciada pelo balsamo do céu.

Ser feliz é saber esperar,

Julio adquirira em pouco tempo esta sciencia da vida, graças aos bons
conselhos da sr.^a Felisbella de Menezes.

Crêr, esperar e amar--taes são as tres joias preciosas, sem as quaes a
educação se tornaria esteril e inutil.

Sem crença não póde existir a sublime dedicação de esposa nem a adoravel
abnegação da mãe.

Sem amor, impossivel seria a vida da mulher, cuja missão é christãmente
consoladora e amiga.

Mulheres, que viveis na desgraça, se quereis ser felizes--acreditae no
santo amor de um filho, esperae de Deus a crença na maternidade, e vivei
na intima e doce consolação de vossos maridos.

A familia é amparo da misaria e arrimo dos que soffrem.

Felizes os que sabem cumprir sobre a terra a primeira e a mais
indiscutivel lei da natureza!




XXVI

A Viscondessa


São decorridos quatro annos.

A Viscondessa, docemente reclinada numa _chaise longue_, lê os annuncios
do _Diario de Noticias_, sorvendo, de quando em quando, uns gólos de
café, com a evangelica paciencia de uma mulher aborrecida.

Ao longo da parede do quarto destacam alguns quadros, representando,
entre outras, as magestosas imagens de Ninon de Lenclos, de Marion
Delorme, de Madame Pompadour, da Dama das Camelias, etc.

São nove horas da noite. Alfredo chega; põe o chapéu em cima d'uma
_ètagere_, onde, por acaso, se encontram algumas musicas em desalinho,
e, accendendo resignadamente um charuto havano, vem sentar-se n'uma
cadeira, defronte da Viscondessa.

Virginia, entrando pouco depois, trouxe uma bandeja de prata, coberta de
pequenas garrafas de licôr.

Alfredo sorri-se, o, com os dedos da mão esquerda, dá um geito gracioso
ás guias do bigode.

A Viscondessa, erguendo-se, dirige-se, a passo lento e medido, na
direção da porta de entrada.

--Então já Mabilia? (Era este o nome da Viscondessa.) Porque eu entrei,
assim te retiras immediatamente. Comprehendo tudo. Declaraste-me um amor
profundo, ethéreo, como só o sabe ter uma virgem, e hoje nem sequer
alimentas por mim uma indifferença vulgar, uma d'estas indifferenças que
um estranho facilmente dispensaria a outro estranho. Pobre de ti,
desgraçada, que jámais serás feliz n'esta vida... Quizeste ser rainha,
não é verdade? ao meu amor unico preferiste uma _coterie_ numerosa,
aduladora, que te lisongiasse o paladar já extincto? Pois bem: tu te
arrependerás um dia. Até lá, porém, lembra-te que será eterna e
implacavel a minha vingança, eterna como a Providencia e implacavel como
a tyrannia.

--E és tu quem me falla em vingança; tu, Alfredo, a quem eu, ainda pura,
loucamente entreguei o meu coração e o que é mais ainda a minha honra...
tu! o miseravel, que jurando amar-me te rias de mim nos botequins e nos
restaurantes; tu, emfim, o cynico seductor da minha ingenuidade e da
minha singelesa... oh! não... por Deus, não...

Alfredo, levantando-se, aproximou-se da Viscondessa, e, tomando-lhe a
mão direita, que elle apaixonadamente comprimiu contra o peito,
prorompeu nos seguintes termos:

--Mas ouve, Mabilia--tu bem vês que eu te amo; pois não reparas como
enlouqueço, se me negas a tua affeição? oh! não! tu não has de ser tão
cruel, que me despreses assim de um momento para o outro, não é verdade!
Ora escuta: não vês como bate este nobre coração? e tu has de deixal-o
assim... não... tu és boa, eu bem sei, e serias incapaz de commetter um
crime...

--Alfredo!... Alfredo!...

--Falla, Mabilia... dize, dize que ainda me amas só uma vez... e eu
serei teu, teu para sempre...

--Que te amo!... oh! se te amo!...

E a Viscondessa, pallida, cahiu desmaiada nos braços do seu amante.

No horisonte uma nuvem, passando, toldara momentaneamente o reflexo do
luar. Um doce silencio envolvia o aposento da Viscondessa, cuja face
livida se reflectira de um modo estranho á superficie de um longo
espelho de Venesa. Junto d'ella, ajoelhado quasi, estava Alfredo,
singularmente excitado e nervoso.

Um ignorado personagem, de longa barba até ao peito, baixo e gordo,
assomou ao limiar da porta.

--É a segunda vez, senhor Alfredo, que tenho a honra de o convidar a
sahir d'esta casa, disse o intruso.

--Com que direito?--retorquiu Alfredo, virando-se.

--Com o direito que me dá a minha honradez sobre a sua miseravel
corrupção.

--Senhor!..

--Duas palavras ainda; por Deus! não vale zangar: esta senhora que ahi
está prostrada e quasi morta, foi uma victima do seu cynismo, entende? É
mister que tudo isso seja pago e quanto antes. Aqui tem.

E passando-lhe uma pistola para a mão, o desconhecido, medindo dez
passos na sala, tomou a defensiva.

--Espero que a sua covardia se não estenderá ao ponto--continuou
elle--de fazer com que, em vez de um duello, se dê um assassinato n'esta
casa.

A Viscondessa, languida e sensual, descerrou as palpebras com infinda
morbidez.

No relogio da sala soavam onze horas da noite.

No céu a lua era sem mancha.

Um leve ruido apenas se deixava ouvir, produzido pelos passos na
calçada.

Subito uma detonação feriu os ares.

Alfredo, allucinado, desfechára a pistola sobre o desconhecido.

Uma nuvem de fumo envolveu, conjunctamente, a Viscondessa, a este tempo
já restabelecida, e o seu mysterioso protector, inanimado, ferido e
quasi cadaver.

Virginia correu veloz.

A Viscondessa, soluçando tristemente, chamava ainda Alfredo, sem de modo
algum haver notado a sua rapida fuga.

--Como eu sou infeliz, meu Deus!--exclamou ella.

E ao longe só os echos lhe repetiram os queixumes magoados.




XXVII

Digressão


A mulher nasceu para realisar a sua felicidade por meio do matrimonio.

Sem familia, pedra angular do grande edificio, chamado humanidade, o
progresso seria uma vã mentira e a civilisação um triste retrocesso.

O matrimonio é um complemento da vida humana. Se é verdade que para o
desenvolvimento do corpo carecemos de alimento e de hygiène, tambem não
é menos verdade que para o desenvolvimento do espirito carecemos de
amisade e de consolações.

Não ter familia o mesmo é que sentir o vacuo do espirito, isto é, o
isolamento da propria existencia e o horror da propria vida.

A prostituição da mulher não é simplesmente um vicio, por todos os
titulos condemnavel: é mais ainda--é a ausencia da familia.

Quantas mulheres se não terão perdido á mingoa do carinho maternal!

Entrae nos bordeis. Percorrei serenamente esses antros sombrios, onde a
sordidez se enlaça com o crime. Analysae o riso bestial da mulher
perdida. Não! Ella não se ri, porque ella, filha bastarda de uma
sociedade, que a repudia--ella, apenas, sabe contrahir-se, agitar-se,
fingir, e á maneira de uma féra, aproximar-se dos que lhe trazem comida.

A mulher, que uma noite se vê sem pão, sem officio, sem familia,
prostitue-se ao amanhecer.

E o mundo--que ingrato mundo!--cospe-lhe na face o negro anathema do
desdem o do desamor.

Mulheres, que habitaes a lobrega mansão da desgraça, sabei que se a
opinião vos condemna--o coração absolve-vos!

E depois, de que vos vale a opinião? Que vos trouxe ella na hora da
desdita? Sabe condemnar-vos? Pois bem, em vez da maldição pedi-lhe
virtude e amor.

Oh! a opinião! sua excellencia a deusa opinião, essa é que é de facto a
grande prostituta.

A necessidade conduz a mulher pelo caminho da perdição. É um fado de
todos os dias. Tambem é a necessidade quem conduz o homem pelos atalhos
do crime. Sabiamol-o. Ganhar para comer é uma lei da naturesa. Se os
meios são máos os fins é que são rigorosamente os mesmos. Deixemos as
lamentações para os Jeremias do seculo.

A opinião que se aproxime. Mas quem é ella?--o dinheiro que suborna? a
politica que corrompe? os parasitas que avassalam? o impudor que exulta?
o vicio que contamina? o luxo que esterilisa? a infamia que cresce?

E sabes tu, minha _cocotte_, porque te chamam mulher perdida, sem honra
e sem pundonor? Pois bem, fica aprendendo--é porque tu és simplesmente
uma filha da desgraça.

Queres, porém, ser honesta, virtuosa e candida?

Procura uma familia; trabalha na doce companhia de teu marido; mostra ao
mundo os teus filhos--os filhos das tuas entranhas e do teu amor: que te
importa depois a voz da opinião--a opinião está como a realesa, está
gasta e pôdre.

A Viscondessa não estava, de certo, n'este caso. Uma boa mãe, um bom
marido, um filho terno, tel-a-iam salvado do abysmo que a esperava.

E quantas vezes não é o instincto da maternidade a causa do vicio e do
crime?




XXVIII

Ainda a Viscondessa


No meio de todas as suas loucuras era a Viscondessa uma nobre e
esplendida mulher.

Uma trança preta, côr de azeviche, lhe cobria o cóllo de cysne. A bôcca
esculpturalmente pequena, quasi se desfazia n'um beijo, ethéreo,
imperceptivel, como o ar. Uns olhos verdes e profundos, como os abysmos
do mar, a tornavam simultaneamente imperiosa e meiga. A pequena mão
aristocratica, eclipsava-se-lhe por vezes sob as rendas e os _puffs_ do
vestido. E o pé, ai, o pé era um primor, um verdadeiro primor. Calçava
de ordinario um sapato de setim azul, perfeitamente ajustado a uma meia
de seda, cuja transparencia nos faria logo perguntar com Alphonse Karr,
onde ella collocava a liga--se abaixo se acima do joelho. O seio
arfava-lhe debaixo do espartilho n'uma suave e doce ondulação, symptoma
evidente de uns vedados e amorosos paraisos.

Ás vezes a Viscondessa sahia a cavallo, trajando de amazona. Um véu azul
lhe encobria as feições gentis--similhantemente ao sol, que de subito se
vê surprehendido por uma nuvem. Os admiradores seguiam-lhe o trote do
cavallo, até que ella se perdia na sombra das estradas.

Na praia, a Viscondessa, com os cabellos desgrenhados aos ventos,
poder-se-hia dizer uma actriz sublime, que, no ardor da tragedia,
embriaga os espectadores. E era de vêl-a depois, sahir do banho, com as
fórmas do corpo, exteriormente desenhadas n'um vestido de baetilha... um
encanto...

Depois dos successos precedentemente narrados, a Viscondessa entrára-se
n'uma mysteriosa e doce melancholia. Ninguem, absolutamente ninguem, lhe
poderá adivinhar os intimos pensamentos. Em que pensaria ella? que fatal
preoccupação a distrahia constantemente?

Imagine-se o leitor no mesmo quarto, onde se deu o triste incidente de
alguns dias. O desconhecido duellista, mais que restabelecido, devora um
charuto com solemne lentidão.

--E agora que estou melhor--dizia elle--deixe-me vossa excellencia
declarar-lhe tudo o que penso, tudo o que sinto e tudo o que quero.
Eu--senhora Viscondessa--era um negociante de poucos recursos.--Um dia
tive a fatalidade de a vêr. Segui-a, frustradamente. V. ex.^a, em meio
dos seus esplendores, nem sequer me notáva. Soube que havia um baile em
casa da senhora Viscondessa. Consegui ser-lhe apresentado. Entrei. Creio
que V. ex.^a nem attentou na minha pessoa. Desgraçado de mim! Estava
irremediavelmente perdido. E perdão, senhora Viscondessa! Occultei-me
indiscretamente atraz de um reposteiro. Depois... ai de mim... um punhal
se me cravára no coração. Louco, estupidamente louco, arremetti contra
Alfredo. Elle intimou-me a sahida. Fugi. Por todos os modos tentei
fazer-me observado por V. ex.^a. Vendo a impossibilidade dos meus
esforços, recorri a este ultimo expediente. Fui eu a victima. V. ex.^a
na sua generosidade, tratou-me e prestou-me todo o auxilio que
humanamente podia offertar-me. Pois bem. O meu nome é Henrique, e sou eu
que hoje lh'o declaro, e a sós, sem testemunhas--Amo-a, minha senhora, e
amo-a muito.

Perdão, senhor Henrique,--retorquiu gravemente a Viscondessa. O sr. é
meu hospede, e abusa tristemente da minha confiança. Depois da
provocação feita pelo sr. Henrique a Alfredo, o unico privilegiado do
meu coração, ser-me-ia de todo impossivel ter por V. ex.^a a minima
sympathia...

Henrique, exasperado e colérico, aproximando-se da Viscondessa,
segredou-lhe ao ouvido as seguintes palavras:

--Assim como soube amal-a, saberei tambem odial-a.

N'este comenos entrava Alfredo.

--Muito folgo--minha senhora e meu senhor--em os encontrar aqui
juntos--dialogou elle.--Á senhora Viscondessa, a quem sou devedor dos
maiores beneficios, venho pedir perdão do lamentavel facto aqui
succedido. A este senhor nada direi. Em breve conto partir para a
America; e n'este sentido me despeço de V. ex.^a minha senhora,
jurando-lhe a minha gratidão que será eterna.

--Então parte?--exclamou anciosamente a Viscondessa.

--Sim, minha senhora; negocios impreteriveis me chamam ao Rio de
Janeiro.

--E é, pois, irrevogavel a sua partida?

--Sem duvida; irrevogabilissima, senhora Viscondessa.

E Alfredo, despedindo-se da amante, sahiu.--Henrique acompanhou-o. Cá
fóra. porém, cada um tomou pela sua rua.

Mabilia ainda veiu á janella. Máu grado seu, Alfredo havia
desapparecido.

Julgando-se para todo sempre perdida, chorou então a Viscondessa, e
chorou como poucas mulheres talvez tenham chorado n'este mundo.




XXIX

Indecisões


O orvalho vem do céu á terra; as lagrimas sóbem da terra ao céu.

Mulher que chora, é mulher que sabe amar.

Porque muito chorou, perdoou Christo á Magdalena do Evangelho.

As lagrimas são como o balsamo: retemperam e dulcificam.

Felizes os que sabem chorar!

A creança é como a aurora: ambas choram e ambas alegram.

Em pranto de mulher não se póde crêr--diz o rifão.

Será verdade que ás lagrimas dos olhos nem sempre correspondem as
lagrimas do coração?

Chorar sempre é chorar--affirma um poeta e com razão.

Nada mais facil do que calumniar uma mulher. A nossa sociedade está
colmada de espadachins. Todos os nossos rapazes se apresentam com ares
de Juans Tenorios in _nomine_. Todos têm aventuras a contar. Poucos ha
que se não julguem com direito a insultar as mulheres, coitadas! que, em
verdade, pouco mais têm do que muita paciencia para os aturar.

As lagrimas, em espiritos delicados, são uma necessidade dos seus
corações privilegiados. Não ha odio que ás lagrimas não cêda.

A Viscondessa via fugir-lhe a felicidade. Chorava.

A esposa tambem chora, ao ver desapparecer o navio, que, ao longe, lhe
conduz o esposo querido.

Santas e doces lagrimas, que tantas vezes tendes suavisado sobre a terra
os intimos e dolorosos soffrimentos, como é grandioso o vosso poder!

E vós mesmos, ó scepticos mascarados, que tão estupida e egoistamente
sabeis illudir as pobres victimas da vossa stulticia--dizei-nos--em
quantos escriptos, arrancados a corações honestos e indefesos, não
tendes vós encontrado o vestigio de uma lagrima?

Não ha sympathia que pela lagrima não brote e se enraize.

A lagrima é como um lago, na serenidade do seu correr e no reflectir das
suas imagens.

Para esse sangue d'alma--na suave expressão de um poeta--apenas ha um
remedio--a consolação.

A Viscondessa chorava e continuava indecisa.

Semelhante a um arbusto, que, açoutado pelo vento, deixa cahir sobre a
terra o orvalho; assim a Viscondessa, ao dar accôrdo de si, deixou cahir
no seu candido seio as perolas consoladoras do seu espirito.

Bemaventuradas perolas! e oxalá que todos assim as tivessem!...




XXX

Glorias do operario


Entretanto o nosso operario, agora já transformado em negociante, vai
seguindo o seu caminho, a despeito da intriga e da inveja, com que a
sociedade, em geral, costuma premiar o trabalho e a honradez.

Julio, retemperado no cadinho dos grandes soffrimentos, fizera-se homem
repentinamente. Julgando apagada a imagem da Viscondessa no seu
espirito, dedicou-se ao trabalho com fervôr. Levantava-se habitualmente
ás seis horas da manhã, ia receber as ordens da sr.^a Felisbella, e
partia. Só regressava a casa ás oito ou nove da noite, hora em que elle
tomava chá. E este programma, assim praticado, com a regularidade de um
pendulo de relogio, poucas vezes era transgredido, a não ser n'um ou
outro domingo.

A mercearia prosperara a olhos vistos. Diziam os freguezes, e com razão,
que a bôa alma de Francisco Alves em nada ficára a dever ao sr. José
Xavier.

Além da loja tinha, porém, Julio um escriptorio de commissões maritimas,
de cuja responsabilidade auferia annualmente sólidos e lucrativos
interesses.

Em poucos annos adquirira Julio o senso pratico, tão prudente, como
indispensavel nas cousas da vida. O nome de José Xavier acreditara-se
solidamente na _praça do commercio_. Muitos invejavam já a fortuna do
mercieiro; muitos o calumniavam tambem. Entretanto Julio, com aquelle
orgulho que só a consciencia sabe dar, era invariavel, senão implacavel,
na missão que voluntariamente se imposera.

Um dia apparecera-lhe na loja um conhecido, parasita do Chiado.

--Desejo fallar ao sr. José Xavier, começou o _Maryalva_.

--Um seu creado, respondeu Julio.

O recem-vindo descobriu-se solemnemente.

--Um negocio importante me traz aqui, continuou. Acabo de saber por um
amigo intimo que é V. Ex.^a não só um dos mais generosos cavalheiros
d'esta cidade, senão tambem que são brilhantes as qualidades que adornam
o elevado espirito de V. Ex.^a...

--Bem! e depois..., interrompeu o mercieiro.

--E depois, precisando eu de dinheiro, estou certo que V. Ex.^a m'o não
negará...

--A outra porta, amigo, rematou Julio.

--Sempre é bem malcreado..., rosnou o pretendente.

E sahiu.

Com estes factos, porém, contrastavam outros, dignos do maior elogio.

Amanhecera-lhe um mendigo á porta do escriptorio.

--Que quer aqui?, perguntou Julio.

--Eu senhor, sou pobre, não tenho cama, nem pão...--respondeu o
desgraçado.

E Julio, tirando uma libra do bolso, disse:

--Póde procurar-me todos os mezes para receber egual quantia.

E seguiu para o trabalho.

Julio transformára-se, pois, n'um homem severo, sem as paixões que
arrebatam, nem os egoismos que offendem. Á parte a propria felicidade e
a da sr.^a Felisbella, a quem elle tratava por mãe, pouco mais lhe
interessava n'este mundo.

Com a convivencia dos homens tornara-se concentrado, desconfiando de
tudo e de todos. Advogando de preferencia os proprios interesses, era,
todavia, generoso, para quem o devia ser.

Os pobres conheciam-no de longe. E Deus abençoava-lhe as acções,
tornando-o um homem rico, forte e corajoso.




XXXI

O que faz o talento


Uns sóbem e outros descem: é a roda do mundo. Á dos alcatruzes se
similha, segundo Sá de Miranda: uns para baixo, outros para cima, uns
cheios, outros vazios.

A vontade conduz á felicidade. Homem que sabe querer é homem de talento
ordinariamente.

O talento, por si, deixará de ser uma superioridade; quando a egualdade,
sob o mesmo grau, nivelar a educação e a instrucção.

O talento, comtudo, é variavel e complexo: para uns, ter talento é saber
grangear fortuna; para outros, é saber escrever e orar e discutir; para
outros ainda, o talento cifra-se na gravidade da apparencia, e no modo
austero da vida.

A mulher resume por via de regra o seu talento n'um olhar profundo, num
sorriso angelico e n'um espirito facilmente maleavel e insinuante.

A educação faz com que só o homem se ostente em meio do viver social.

A mulher tem uma esphera limitada: o seu mundo é a familia; a sua
convivencia o marido, os filhos, os parentes e os creados. Porisso se
crê, embora erradamente, que só ao homem aprouve Deus conceder o
talento.

A curiosidade é a fonte, não só da sciencia, em geral, como tambem de
toda a humana descoberta. Ora a mulher é sobretudo curiosa. D'aqui a sua
aptidão para todo e qualquer ramo da actividade social.

Somos pela emancipação da mulher. Desejára-mos vel-a ao lado de um
doente, consolando-o e distrahindo-o; desejáramos que as creanças
recebessem d'ella os primeiros rudimentos da linguagem; desejáramos, é
verdade, que por ella fossem exercidos muitos dos mesteres da vida: mas,
a par de tudo isto, somos abertamente contra a sua emancipação politica.

O talento não tem sexo. Ante a critica, ante a illustração, ante o
bom-senso, todos somos eguaes.

Joanna d'Arc, o typo da virilidade e do patriotismo, é por ventura
tamanha como Victor-Hugo, o grande, Victor-Hugo, o humanitario; George
Sand cathedra á altura de Byron, o primeiro poeta do universo.

Para que hesitar, pois? Onde o direito de menospresar aquillo que, ao
contrario, e em consciencia, devêramos santificar?

O que perde o homem é o orgulho, quando não é a inveja. A par de tantas
ambições vale-nos a preguiça, que as domina e refreia.

Porque subira Julio? que força occulta o tornava sympathico e favorecido
da fortuna?

Perguntae á felicidade quem a creou, quem lhe deu origem, quem a tornou
forte e independente!

O acaso é, muitas vezes, e sem o sabermos, a causa da nossa ventura e
das nossas acções.

Mas o acaso não é cego. Depende de uma certa presciencia do futuro.

Julio era modesto, primeiro titulo de recommendação. A modestia torna
sympathicos o talento e a virtude.

Depois, havia n'elle o bom-senso de esperar com resignação tudo o que,
durante a vida, lhe podesse sobrevir. Nada o surprehendia. Estava sempre
prompto para qualquer eventualidade, fosse ella de que natureza fosse.

Tinha, portanto, a rara sciencia de conciliar com a prudencia o
bom-senso.

Porisso tambem subiu, e porisso tambem subirão todos aquelles que assim
procederem.

O mundo depende de geito, apenas. Tão despresiveis são os demasiadamente
Catões como os demasiadamente relaxados.

No meio-termo está a lei de toda a sociedade humana.




XXXII

Vestigios e ruinas


Similhante a um velho castello roqueiro, coberto de hera e parietarias,
assim Alfredo vivia, doente, sem dinheiro, arruinado, mas generoso no
fundo.

O seu fato preto, invariavel em todas as estações do anno, principiara
de tornar-se velho e esverdeado pela acção corrosiva das chuvas doentias
e dos sóes abrasadores. A camelia desapparecera-lhe para sempre do seu
logar habitual. Emfim Alfredo, esgotados os derradeiros recursos
patrimoniaes, era mais um authomato da indigencia, do que
verdadeiramente um homem de espirito, critico e mordaz, qual n'outros
tempos o havia sido.

A sua extrema liberalidade, com os donos dos restaurantes e cafés, fez
com que, ainda durante algum tempo, elle podesse frequentar
gratuitamente estas casas. Passados mezes, porém, os donos dos
botequins, attentando-lhe nas botas rotas e nas calças fragmentadas,
quasi o despediram de vez, mostrando-lhe uma má e feia catadura.

Em tão afflictivo lance recorreu aos camaradas d'outr'ora. Nenhum delles
apparecia já. Todos--e cada um por sua vez,--o tentavam afastar.

Finalmente Alfredo, envergonhado de si e enfastiado do mundo, só de
noite apparecia. Evitando os credores, e cosendo-se com a sombra das
paredes, elle, o filho da luz e do magnetismo da vida, sollictou dos
amigos o pão ázimo da desventura. Á sahida dos theatros--pois que em
casa difficilmente os encontrava--esperava resignadamente a turba
jubilosa dos espectadores conhecidos; por vezes conseguira d'ella uns
magros vintens; por vezes tambem lhe sahira mallograda a tentativa.

Lembrou-se da Viscondessa, a quem, por um louco capricho, mentindo,
affirmára que partiria para o Brazil. Tudo em vão. O orgulho--desgraçado
orgulho!--abafára-lhe no peito esse passo miseravel.

Começou, então, o desalento, como um vidro moido, de consumir-lhe a, já
de si, inutil existencia.

N'um momento lucido em que o espectro da fome, esqualido e magro como
Satan, se lhe desenhava deante dos olhos com as cem boccas hediondas,
Alfredo, a par de um suor glacialmente cortante, experimentou o que
jámais e em sua vida experimentára--uma ancia de trabalho, para o qual,
em verdade, nunca se sentira predisposto.

Embalde, porém, lhe foram essas visões. Passageiro e ephemero se lhe
antolhou o iris da redempção sobre a terra.

Sonharia acaso? Trabalhar... e em que? A intelligencia havia-se-lhe
apagado, ao contacto de uma embriaguez quasi habitual. Sentir, era-lhe
impossivel, uma vez que do coração nada mais restava, além de uma
sensação perfeitamente estupida e material: e vontade, se a tinha, quasi
nem já se revelava.

Do rapaz d'outros tempos, galanteador e elegante, apenas restava uma
sombra. A barba medrára a esmo. O cabello, cobrindo-lhe a góla do
casaco, imprimia-lhe um aspecto singularmente triste e repugnante.
Encaral-o de frente o mesmo era que tomal-o por um salteador disfarçado.

Um dia, foi Julio casualmente surprehendido, no seu escriptorio, por
esta desgraçada victima de uma exaggerada e dolorosa ociosidade.

--Que me quer? interrogou o negociante.

--Eu, senhor, fui rico, e sou hoje pobre, Em nome da mulher, que ambos
amámos, venho pedir-lhe um emprestimo de duzentos mil réis...

--Em nome da mulher que só eu amei e que o senhor perdeu--convido-o a
retirar-se d'esta casa.

--Muito bem! uma vez que assim o querem, far-me-hei ladrão--exclamou
Alfredo.

E fez-se fabricante de notas falsas.




XXXIII

Causas e motivos


Diz-se geralmente que a humanidade esta enfêrma.

A mocidade padece uma horrivel molestia--o tédio.

A corrupção physica caminha a par da corrupção moral. As aguas são
detestaveis; o ar pouco sadio, contaminado de miasmas e de putrefacção.
De modo que as nossas cidades modernas são uns verdadeiros sorvedouros
de existencias humanas, onde os obitos crescem sobre os nascimentos na
razão de um por mil.

Com o movimento das calçadas o pó levantado, introduzindo-se pelos
olhos, pela bocca, pelo nariz, é tambem uma causa de lenta, mas real,
consumpção.

As phthisicas abundam. As molestias de garganta são quasi geraes. Os
homens sentem-se tristes, abatidos, sem espirito e sem vitalidade. As
mulheres, na maioria franzinas e chloroticas, arrastam uma vida
authomatica, sem consciencia nem utilidade.

Faltam os grandes prazeres do campo, os robustos passeios da caça, as
salutares digressões pelos pinheiraes, onde os pulmões se purificam ao
contacto do ar resinoso e sadio.

As praias frequentam-se por moda. Toma-se o banho, e vai-se a um salão,
eschola de dança e de galanteria. Ninguem pensa em passeiar á beira-mar;
e mesmo quando casualmente se passeia pela praia é mais por comprazer do
que por uma natural necessidade do organismo.

Ora tanto o mar como o campo são bons pelo resultado, que d'elles se
tiram. Não só o corpo, mas tambem o espirito devem tomar parte nos
vastos panoramas, nos horisontes limpidos e no vago da natureza.

É verdade que a demasiada concentração póde conduzir a uma nostalgia
perigosa; entretanto, entre dois males, é muito preferivel a tristesa,
embora sombria e consumidora, á alegria extravagante, brutal e
insensata.

Não, meus bons rapases, não é assim que se vive. Vocês são doentes,
porque não têm um ideal, um trabalho util, uma missão civilisadora.

De que vos servem os cafés, com os seus jogos de _dominó_?--Antigamente
conversava-se, contavam-se anecdotas interessantes, e ria-se a gente com
a familia, mas com aquelle bom riso infantil, que é a demonstração de
festa e de regosijo. Hoje não. Hoje, como nos bons tempos romanescos, ha
a cima de tudo isto o aborrecimento de tudo e por tudo.

Ora, minhas senhoras, se a vida em si é triste, façamos por tornal-a
agradavel e util--util sobretudo.

Alfredo era a perfeita imagem do que deixamos dito. A syphilis
contaminara-lhe o organismo. Á pobresa de sangue reunira-se a pobresa de
espirito.

É o que succede com a maioria dos rapazes: quando chegam a completar um
curso estão velhos na intelligencia e gastos no corpo.

Para tamanha molestia um unico remedio ousamos aconselhar:

                _--limpeza--_

isto é:

                _--campo e mar--_

Que s. s.^as, os senhores facultativos, se não irritem comnosco por tão
interessante descoberta.




XXXIV

Latet anguis


A primavera, a doce filha da harmonia e da luz, desentranhava-se em
flôres e fructos. Rejubilavam as aves no arvoredo frondente. O céu era
azul, limpido. Nem uma nuvem lhe maculava a superficie chrystallina e
pura.

Nada mais delicioso do que esta rapida transição de uma estação, agreste
e fria, para uma outra agradavel e sympathica. Dir-se-hia que um velho,
sulcado do rugas, se metamorphoseára subitamente, como o Fausto, n'um
elegante moço, cheio de vida e de aspirações.

As arvores, toucadas de flôr, recebiam das auras vaporosas o amoroso
abraço de todos os annos. O sol, dourando com as suas palhetas luminosas
os arbustos vividos e scintillantes--reflectia-se suavemente sobre as
aguas do ribeiro, que, em amoravel ondulação, serpeavam atravez os
terrenos pedregosos, parando, ora atraz de um rochedo, com o qual
confidenciavam ternamente, ora atraz de uma planta, com a qual se
enroscavam de passagem.

Ao longe os pinheiraes acordavam as solidões com as vibrações da sua
harpa plangente. O rouxinol, casto como a andorinha, desferia a medo o
seu eloquente hymno de amor. É que elle o artista, filho do céu e do
canto, pressentira, primeiro que nenhum outro ser da creação, o
aproximar alegre do sol e da vida.

Meiga como uma mãe dedicada, a pomba, symbolo de virgindade, arrulhava
de manso, muito de manso, como amante que não deseja ser escutada. E a
aguia, a altiva rainha do espaço, guindara-se, por entre nuvens, até ás
ignotas regiões do infinito.

Entretanto--e como que para contrastar--o peixe, o maldicto das trevas,
mal elevara a gélida escama ao lume d'agua, para logo a mergulhar de
novo, no lodo, sua morada habitual. O insecto, o desprotegido do dia,
esperava a noite, sua irmã, para assim deixar em paz o lobrego buraco,
para onde um raio de sol prestes o afugentara.

Os campos eram verdes e promettedores. Percorria-os o boi, quasi sem
cessar, na extrema paciencia dos animaes possantes.

A montanha, despindo o lençol, que durante mezes a envolvera--deixara de
alvejar, afim de se tornar um throno de contemplação e de magestade.

E de facto subia o lavrador á cumiada do seu monte, e de lá, passeando
os olhos avidos em volta do campo, com o qual, em verdes annos, se
matrimoniára--entoava cantos jubilosos e amigaveis.

E a aldeã, resplandecendo de feliz contentamento, apurava a sua saia de
chita que para os dias santos havia sido feita e arranjada.

Cecilia, porém, está de lucto. Os olhos verdes, fartos de chorar,
brilham profundamente como o abysmo dos mares. Ella é triste, coitada! e
sem esperança. Morrera-lhe o pai.

--Olha, Cecilia--dizia-lhe o velho na sua derradeira hora--parece-me que
o teu noivado só no céu poderá ter logar. Perdôa tu ao ingrato assim
como eu lhe perdôo...

E expirou.

Quatro mezes volvidos sobre este caso estava a pobre rapariga
profundamente mergulhada nos seus mais intimos pensamentos, quando uma
leve pancada, vibrada sobre o vidro da janella, a fez estremecer e
agitar.

Mal se levantara ella e já uma sombra, abrindo a vidraça, saltava de um
pulo para o centro da casa.

--O senhor prior por aqui?--exclamou a ingenua catholica.

--É verdade, minha filha. É justamente o teu prior que Deus manda a esta
casa... Sabia que estavas triste. Haviam-m'o dicto as estrellas do céu.
Consolar os tristes é um dever do bom parocho.

--E minha mãe, senhor padre João, consentirá ella...

--A cima de tua mãe está a voz do céu que aqui me traz. Conta-me a tua
vida, Cecilia. Não tenhas receio de mim. Eu saberei aconselhar-te.

A Egreja para tudo tem remedio. Só Deus sabe premiar os bons e castigar
os máus.

E o padre, procurando um escabello, foi sentar-se ao pé de Cecilia.

A rapariga, córando de pejo, conservára os olhos cravados no chão.

Assim durou, por alguns minutos, esta scena.

--Como tu és boa, minha filha--rompeu alfim o padre.

E, sem mais, imprimiu-lhe um beijo na face.

Assim, como a pomba ferida por caçador experiente, assim tambem Cecilia
tentara esquivar-se ás grosseiras amabilidades do seu respeitavel
parocho.

--Embalde--gritava o padre. É Deus que assim m'o ordena!...

E, ao longe, um guitarrista que passava cantava tristemente a seguinte
quadra de Gonçalves Dias:

    «O amor da mulher é qual nuvem
    Que o vento impelle no ar;
    O amor da mulher é voluvel
    É tão vario, como a onda do mar.»




XXXV

Critica


Nós não somos d'aquelles que exageradamente comdemnam o clero.

Nada mais santo, nada mais suavemente consolador do que o bom padre,
especie de medianeiro entre Deus e os homens.

Para quem não tem um pai natural; para aquelles que a Providencia exilou
do seu lado, e que a miseria acolheu no seu seio; para aquelles que,
longe do ruido e das alegrias do mundo, a sós comsigo mesmo sentem o
gottejar das proprias chagas; para os desgraçados, para os infelizes,
para os tristes, o padre, pela sua apparencia christãmente cariciadora,
é mais do que um companheiro, porque é um pai, enviado pelos anjos do
céu aos anjos da terra.

Não foram um simples vicio, uma vã ostentação, e um estulto prurido que
nos levaram a condemnar aquillo que, por sua natureza, deve ser
exemplar, vivo e sacro-santo.

Não! Se condemnámos o máu padre, como planta nociva á humanidade, foi
por um dever.

Quem tem irmãos, e filhas e esposa, não póde existir ao acaso, sem a
necessaria superintendencia em todos os actos da sua vida, d'ellas.

A mulher, que do collegio não tirou a educação conveniente, que um dia
experimentou a immoralidade do confessionario e os espinhos do mundo,
póde ser tudo, menos uma esposa, menos uma irmã, menos uma mãe.

O padre toma parte nas scenas mais luctuosas da familia: se adoecemos, é
elle que nos traz o balsamo ao espirito em trévas; se desesperamos, é
elle que nos faz ver o iris da bonança; se hesitamos, é elle que nos
encaminha e nos dirige.

Então, e porisso mesmo, é que o padre deve ser um bom homem.

O esboço que no precedente capitulo deixámos delineado, posto que
excepção, foi por nós fielmente observado.

Que se não illudam os espiritos timoratos e frageis. Quando máu, ninguem
mais severamente merece ser condemnado do que o padre.

Nas aldeias os exemplos multiplicam-se. A ociosidade, por um lado, e o
celibato, por outro, muito têm concorrido para essa cadeia de lorpesas,
a cada passo relatadas na imprensa e nas differentes casas de reuniões
publicas.

O fanatismo nunca foi religião. Seguir os preceitos do Evangelho, não é
perfilhar as doutrinas do sr. Sousa Monteiro nem as diatribes da
_Palavra_.

Amae-vos uns aos outros como eu vos amei--disse Christo.

Amemo-nos, sim, mas sem corrupção, sem egoismo, sem impuresa.

Que a esposa seja uma conselheira de seu marido e uma perceptora de seus
filhos--tal deve ser o desejo do bom padre.--Porque um padre é acima de
tudo um educador, e como tal carece de muita illustração, de muito bom
senso e de muita heroicidade.

Se os rapases não podem satisfazer a esta nobre missão, escolham-se os
velhos. Se com o clero periga a honestidade das mulheres, acautellem-se
os homens, e aprendam por uma vez a distinguir o bom do mau, aquillo que
lhes convém d'aquillo que lhes não convém.

D'outro modo continuaremos eternamente divididos, odiando-nos como
inimigos, e pelejando uns contra aos outros, cegamente, loucamente, sem
ideal, sem raciocinio e sem vontade.




XXXVI

Toldam-se os horisontes


Nem sempre a felicidade nos sorri. Quando menos o acreditamos,
embacia-se o prisma que sonhavamos perpetuo e immorredoiro, e as
illusões começam de cahir uma por uma.

É assim a vida; é assim o mundo: rodeado de formosas apparencias e
colmado de negra podridão.

Áquelles que possuem o raro condão de saber disfarçar as mais intimas
tristesas da vida; áquelles a quem Deus não dotou com o precioso
instincto da arte; áquelles, emfim, para quem a paciencia é a norma, e
que se não apaixonam, que se não arrebatam, que se não enthusiasmam,
gelados, mudos, frios como o sepulchro.--a esses, pouco pódem importar
as tristesas do poeta e as suas profundas melancholias, que são como que
o lento e sombrio finar da existencia.

Ó noites de agonia, noites de isolamento--como vós sois tristes e duras
de passar! O mundo, que vos detesta, ó doces e amargosas horas da
experiencia, foje de vós! Ao vosso lado só tendes os poetas e os
artistas e os sábios e todos aquelles que no horror da noite procuram o
ideal da humana perigrinação.

Bemdictas sejaes vós, companheiras do tumulo, porque me ensinastes o
soffrer!

      *      *      *      *      *

A Viscondessa era um d'esses raros typos angelicos, que despresando a
opinião das maiorias, porventura o mais estupido de todos os
preconceitos. se entregam febril e vertiginosamente nas azas do seu
capricho, sem outro intento que não seja o louco voar atravez as
idealidades que de continuo se lhe desenham na mente esbraseada.

Eu gósto d'estas mulheres, d'estas candidas andorinhas, que,
superiormente ás outras mulheres, suas irmãs, se alimentam no tepido
halito da primavera, embriagadas e seduzidas pela doce irradiação do
céu.

Se péccam não é d'ellas a culpa. Quem poderá dizer á ave, á meiga filha
da luz: tu voarás para aqui? e ao rouxinol, o adoravel amigo dos poetas:
tu cantarás a taes horas? e ao oceano, o titanico athleta da creação: tu
não correrás? Quem?

A Viscondessa era uma creança com sêde de amor, boa e ingenua como todas
as creanças. Infeliz ou não--o certo é que um dia ella se encontrou sem
amante e sem dinheiro. Alfredo roubara-lhe o coração, e o que é mais
ainda--a crença no amor; Henrique, ingrato explorador, subtrahira-lhe os
titulos da sua fortuna. N'estes termos, que fazer? A quem recorrer se o
amor, assim e tão de subito--se lhe transformára em inimisade e a
fortuna em pobreza?

A Viscondessa, perplexa, hesitante, nervosa, chamou pela sua creada.

--Sabes Virginia--dizia ella á sua amiga--que estamos roubadas?

--Roubadas... minha senhora?!

--Sim, roubadas... e roubadas por Henrique, a quem nós n'esta casa
tratamos com um carinho de irmãs...

--Oh! meu Deus!... meu Deus!... e que havemos de fazer, minha senhora?

E Virginia beijou pela primeira vez na sua vida a angelica fronte da
Viscondessa.

A desgraça tem este condão mysterioso: torna-nos irmãos
involuntariamente.

--Não é verdade, Virginia, que tu nunca me has de abandonar?

--E quem pensará em tal, senhora Viscondessa?

--Pois bem: espera um bocadinho, que me has de levar uma carta á rua da
Emenda.

--O que V. Ex.^a quizer, minha senhora.

A Viscondessa sentou-se á mesa; tomou uma folha de papel e principiou a
escrever nos seguintes termos:

                        «Excellentissimo senhor Barão:

«Pela primeira vez ouso incommodal-o. Se Vossa Excellencia, porém,
adivinhasse a triste situação em que actualmente me encontro, por certo
me desculparia estas instantes linhas. Entretanto, impellida pelas
circumstancias, quero acreditar que Vossa Excellencia se não furtará a
vir procurar-me hoje mesmo.

«E n'esta esperança fecho esta carta, tendo a honra de ser

De vossa excellencia

serva respeitosa

S. C.

Lisbôa

Largo de Camões

A Viscondessa de B***

..............................

Virginia, tomando das mãos da Viscondessa este bilhete, competentemente
sellado com o carimbo da casa, sahiu na direcção acima indicada.




XXXVII

Uma victima


E Cecilia? que será feito d'ella?

Pela callada das trévas, á meia noite, ha sombras que vagueiam pelas
ruas como visões informes, famintas, esqueleticas. Á sahida dos theatros
abeiram-se de nós vultos esfarrapados, cheios de dôr e de vergonha, que
nos estendem a mão carcomida e triste. Cada um d'esses vultos
representa, no grande drama social, uma consciencia offendida ou uma
crença ludibriada. Não se descobrem nunca esses desgraçados, porque não
desejam ser reconhecidos. Se é mãe e tem filhos, pede em nome dos
filhos; se é pae e tem familia, pede em nome da familia; se é só e
miseravel, pede em nome da miseria.

Cecilia não estava precisamente n'este caso. Cedendo, ainda que
violentada, ás seducções do parocho, que por toda a parte a seguia com a
voracidade de um lobo,--a joven aldeã, para quem o ideal se não havia de
todo extinguido, veiu para a capital. Pobre mulher inexperiente,
coitada! que media o mundo pela craveira da sua innocencia...

Emfim, depois de muito indagar, de muito ouvir e muito procurar, soube
ella que o Sr. José Xavier era negociante e residia em Alcantara.

Sem delongas deu-se pressa a rapariga em chegar ao almejado paraiso.
Quando subia a escada, açodada e veloz, como uma gazella, um creado a
reteve.

--Que quer vm.^cê--perguntou-lhe o guarda portão.

--Desejo fallar ao Sr. Julio--retorquiu Cecilia.

--Não é aqui que elle mora; póde procurar n'outra parte.

--Ai! não, enganei-me; é ao Sr. José Xavier que eu pretendo...

E n'isto Julio descia a escada. Cecilia nem sequer o reconhecêra. De
passagem, perguntou Julio ao creado quem era aquella mulher.

--Uma desgraçada que pretende esmola--respondeu o interrogado.

--Pois bem: mande-lhe dar dez tostões.

E o amo sahiu, sem, ao menos, virar a cabeça.

O primeiro pensamento de Cecilia foi correr atraz de Julio. Mas não!
Ella estava vexada, profundamente vexada de si mesmo. Até quasi chegou a
duvidar que fosse aquelle o seu antigo amante.

--Não, decerto não é elle... reflexionava ella comsigo.

--Aqui tem--exclamava o creado, offerecendo-lhe dez tostões--aqui tem,
póde retirar-se.

Cecilia acceitou a esmola authomaticamente. Muda, sem proferir uma
palavra, olhou para o homem como uma alucinada. Só depois, cá fóra,
trémula e nervosa, reconheceu a degradação por que havia passado. Uma
dolorosa agitação lhe percorria os membros febris. Não podendo mais
conter-se, transbordando de raiva e de agonia, desmaiou sobre as pedras
da calçada.

Ó sociedade, ó mysterio dos mysterios, quanta victima tua, não terá
perecido assim, á fome, ao relento e ao frio?

Ó humanidade, ó triste e ignorado _Ashawerus_, como é espinhosa a tua
sorte e tremendo o teu fadario!




XXXVIII

Julio feito barão


--Póde vossa excellencia acreditar, senhora Viscondessa, que emquanto eu
viver nada faltará n'esta casa.

--Oh! Deus o abençoe, senhor barão...

--Agora--e antes de me retirar, permitta-me vossa excellencia, que sem
abusar da sua generosidade eu lhe narre em breves traços uma pequena e
eloquente historia ha pouco succedida entre nós: «Ha de haver já
bastantes annos que um homem ignorado (nada importa o nome) veiu
procurar trabalho em Lisboa. Fugido á lei que o perseguia e afastado da
mulher que amava--entrou n'um theatro. Entre as damas que pela sua
belleza mais realçavam destacava-se uma a quem esse desgraçado entregou
o coração e a vida. Mas, ai d'elle! A sorte perseguia-o horrivelmente.
Elle, coitado, era apenas um operario, um modesto operario, e ella uma
aristocrata, uma distinctissima aristocrata. Correram os dias. O
miseravel, vendo-se fortemente abalado na sua dolorosa existencia,
abandonou a fabrica, e fez-se escudeiro d'essa senhora. Nem um gesto
sequer elle perdera, emquanto lhe fôra dado viver n'aquella casa. Tudo
aproveitou o desventurado, curtindo a sós comsigo a immensa paixão que
tristemente o devorava. Um dia, porém, em que elle, porventura mais
agitado do que nunca, pretendêra subtrahir-se aos fidalgos olhares da
sua ama, uma fatal circumstancia o obrigou a deixar aquella casa.

--Então foi o sr. barão...

--Mais duas palavras, minha senhora, e eu termino: «Infamado e corrido
de vergonha entregou-se o desventurado moço ao trabalho com ardor.
Próspera lhe correra a fortuna. Amparado por dois velhos, hoje mortos,
que durante os primeiros annos lhe serviram de paes progrediu José
Xavier tornando-se honrado e bem quisto dos seus semelhantes. Depois...
oh! depois... Vossa excellencia sabe o resto...

--Sim! depois José Xavier foi feito barão, encontrando na Viscondessa de
B*** a sua mais pura e desinteressada amiga.

E Julio, curvando-se, beijou solemnemente a mão da Viscondessa.




XXXIX

Denuncias e suspeitas


Alfredo, sem recursos, recorreu ao ultimo expediente de um vadio bem
educado: tornou-se falsificador de notas.

Os proprios amigos d'outros tempos, ao saberem d'este facto,
denunciaram-n'o á policia.

Dahi em deante principiaram as indagações e as pesquisas. A lei não
afrouxára em seus esforços. E o certo é que uma manhã Alfredo acordou
n'um calabouço, quasi sem luz e abandonado aos vermes.

O processo correu perante o ministerio publico. Abundaram as provas.
Alfredo era realmente um criminoso. O jury, dando o seu _veredictum_,
houve por bem coudemnal-o a degredo perpetuo, para as costas de Africa.

Embalde lhe foi a appellação interposta pelo advogado para o Supremo
tribunal de justiça. Confirmada a pena o réu teve de partir.

No dia aprasado para a partida, Alfredo, inquieto, nervoso, tremulo,
agitado, pediu papel e tinta. Por uma graça especial fôra-lhe deferido o
requerimento.

Tomando a penna o degredado traçou no papel as seguintes linhas:

«Excellentissima senhora Viscondessa, e minha dedicada amiga.--Seria
vil, e muito vil, que eu, ao deixar esta cidade, me não lembrasse de
Vossa Excellencia. Cheio do contricção e de arrependimento permitta-me
pois, Vossa excellencia, que, por um pouco, ajoelhe ante a sua imagem
generosa.

«É um criminoso que lhe falla, minha Senhora. É um triste e miseravel
peccador que vem pedir-lhe perdão. Conceder-lh'o-ha Vossa excellencia?

Sim! Alfredo não existe já. Condemnou-o a sociedade em nome da lei.
Condemnaram-n'o os seus crimes.

«Dentro em pouco, vestida a estamenha do degredo, o meu nome não terá
razão alguma de ser. Vegetarei como um cadaver, que, privado do
espirito, se vai decompondo fibra a fibra.

«Os homens não me perdoaram. Foi-me negada a honra: tudo me foi negado.
E entretanto eu tinha de viver...

«Vossa excellencia de certo comprehende este terrivel problema do mundo.
Entre duas infamias preferi esta, justamente por ser a maior.

«E assim como os homens foram ingratos para commigo, assim tambem eu fui
ingrato para com Vossa excellencia.

«Perdão, perdão para mim, minha santa amiga, perdão para mim que não
pensava!

«Eu era apenas um triste alucinado, que á maneira de uma sombra, errava
vagamente pelo mundo, com o doloroso pesadello de uma longa enfermidade.

«E porque não morri eu, então, céus?

«Para que mais prolongar este acerbo calix de amargura?

«Não creio nos homens como não creio em Deus.

Deus!... Mas porque infinita maldição me sahe esta palavra dos labios?

«Ah! sim, está ali... bem o vejo... o infernal carcereiro...

«Mas como? Deus com aquella barba? Deus tão velho? Será possivel?

«Ai! senhora Viscondessa, que a febre escalda-me os labios resequidos.
Se ao menos, Deus me trouxesse agua...

«Adeus, minha boa e dedicada amiga; adeus para sempre.

«Nas suas noites de prazer não s'esqueça de libar por mim--por mim, pelo
miseravel condemnado da sociedade, sua irmã.

                                                              _Alfredo._»

..........................................................................

--Um pobre rapaz, coitado!--exclamou a Viscondessa, ao terminar a
leitura d'esta carta.




XL

Ao hospital


Do calabouço passaremos ao hospital. Tudo é enfermidade: com uma
differença apenas--e é que, n'uns adoece o espirito, ao passo que
n'outros adoece o corpo.

Ao percorrermos aquelles longos salões, onde só a doença tem o seu
throno e a morte o seu prestigio; ao pararmos junto d'aquelles leitos
empobrecidos, onde os gemidos da miseria se cazam tristemente com a
dolorosa suavidade da esperança; ao palparmos as chagas, as desventuras
e as mil angustias porque passa a humanidade n'este mundo; ao vermos
tudo isto, o espirito vacilla realmente, e o coração sente-se fatal e
impetuosamente abalado em tudo o que ha de mais santo, de mais nobre e
de mais digno á superficie da terra.

Adoecer na flor da edade, sem protecção, sem carinho, sem a meiguice de
uma irmã, de uma esposa, de uma filha--isso, só a pobreza o poderá
verdadeiramente avaliar.

Ha dores que se não exprimem, que se não definem, e que estão muito
acima das mundanas velleidades.

Como quer que seja, porém, Cecilia encontrou-se uma manhã no hospital de
S. José, doente, triste e perdida a esperança de melhores dias.

Uma phthisica fatal lhe devorava as entranhas, profundamente abaladas. A
tosse augmentava de minuto para minuto. As convulsões recrudesciam. Os
medicos desesperavam da cura. E os enfermeiros, os vis mercenarios do
corpo humano, abanavam as orelhas da cançados e aborrecidos.

Emfim soou a hora fatal. Após uma longa hemoptise, Cecilia abrio muito
os olhos, tornou-se verde--de um verde-negro e sombrio--fez um esforço
sobre si, regougou algumas palavras imperceptiveis, e cahiu para o lado.

Tinha expirado finalmente.

A aurora era então sem mancha; a cotovia annunciava um dia formoso. Tudo
vivia; a luz era o prologo do amor.

Arrastada para uma sala especial, unicamente destinada aos mortos, ficou
o seu cadaver em deposito, até que um esquife o levasse para o
cemiterio.

Sobre o corpo putrefacto d'aquella victima desventurada não houve sequer
quem derramasse uma lagrima.

É que o mundo, no seu estupido cynismo, pensa de ordinario mais em rir
do que em chorar!




XLI

Sorrisos e lagrimas


--Acredita-me, Mabilia: esta felicidade para nós é inalteravel. Deixa
que o mundo murmure no seu louco e estupido egoismo. Nada importa! A
openião das maiorias é, em quanto a mim, uma vil e dolorosa mentira.
Tendo-te a ti, que mais poderei eu ambicionar? Desafio os rios e os
mares para que venham arrebatar-me do coração a tua terna e doce imagem.
Que venham! E eu, impavido, arrostarei com elles, braço a braço, se
tanto fôr preciso.

--Oh! Julio, meu bom amigo, por Deus, não sejas mentiroso; não digas
aquillo que não sentes; se devéras me não amas, para que fallar em tal?
Olha que a experiencia, meu amigo, tem-me sido uma triste e dolorosa
desillusão n'esta vida...

--E és tu quem assim falla? Mas não vês, desgraçada, que essas palavras
me fazem escaldar o coração? Oh! por piedade, não me mates, Mabilia:

N'este comenos Virginia entrou na saleta. Interrompido o dialogo, o
nosso barão tomou, ao acaso, um jornal, que ligeiramente passou pela
vista.

Antes, porém, de o pousar, estacou em uma das locaes, e leu o seguinte:

«Falleceu hontem no hospital de S. José, victima de uma phthisica
pulmonar, uma pobre rapariga, por nome Cecilia da Silva. Parece que uns
amores mal correspondidos foram a causa de similhante infortunio. Por se
ignorar o nome do pae, que se suppõe viver na aldeia, foi o seu cadaver
sepultado no cemiterio dos Prazeres, com uma simples inscripção, gravada
n'uma pequena cruz de madeira.»

--Se me não engano já vi algures esta mulher!--regougou o barão,
repoltreando-se na cadeira, e lançando do seu excellente charuto
_havano_ uma longa e deliciosa bafurada de fumo.




XLII

Tableau


Agora o quadro.

Atravez os quatro personagens, distingue-se um mundo de miserias.

O barão dá o braço á Viscondessa; o dinheiro acaricia a formosura.

Eis a luz.

A doença caminha a par do degredado: o corpo corre parallelo com o
espirito.

Eis a sombra!

      *      *      *      *      *

O espectador que ajuize.




Epilogo


Hontem o amor; hoje a pobreza; amanhã o esquecimento.




Post-scriptum

(Ao leitor)


Este romance não mira aos applausos da galeria. Tão pouco prima, nem
pelo complicado do enredo nem pelo difficil das situações. São capitulos
singelos, estes, que acabam de lêr-se, só pela arte inspirados e por
amor d'ella concluidos.

E a arte é a verdade.

Por muitos hão de estas paginas ser aborrecidas. Por muitos hão de ellas
ser odiadas. Nada importa. A consciencia acima de tudo.

Entendeu o auctor que era sobre tudo _descriptivo_ o romance moderno,
profundamente descriptivo, cheio de analyse, critica, de bom-senso e da
naturalidade; de pouco dialogo e de muita observação; havendo todo o
escrupulo em pôr de parte o devaneio, na dissecação dos homens e das
cousas.

Ao ideal d'este livro presidiram, pois, as realidades presentes e
passadas. O typo da Viscondessa, atraz esboçado, poderá não agradar a
todos, é verdade; mas é, no entanto, um typo real, perfeitamente real.
Uma mulher ingenua, simples, caprichosa, sacrifica o seu coração, a sua
tranquillidade, o seu amor a um elegante rapaz, filho dos restaurantes,
e, como os restaurantes, viciado e corrupto. D'aqui a perdição da heroina
e o triumpho do galã.

Outro tanto succede com a figura angelica da aldeã. Victima do
confessionario, cahiu, andorinha ferida, a quem roubam o ninho e os
filhos; sedenta de prazer, resvalou no abysmo.

Alfredo, se bem que generoso e sympathico, é, todavia, um moço perdido,
alucinado pelos vinhos e pelas grandes ceias, incapaz de conceber outros
pensamentos que não sejam o da sua indolencia e o do seu bem-estar.
Acaba porisso como, naturalmente, devia acabar--nas costas d'Africa.

O contrario quasi se dá com Julio. Trabalhando, vence os escolhos da
adversidade; convivendo com o mundo, torna-se como o mundo, calvo na
corrupção e no cynismo.

E muito de proposito, pois que não fallo aqui na mãe e na esposa,
dediquei este livro ás boas mães e ás boas esposas: ás boas mães, para
que sejam esmeradas na educação das filhas, e ás boas esposas, afim de
que saibam estimar a virtude, como a primeira e a mais indestructivel de
todas as riquezas.

A maternidade é uma fonte de boas acções. Quem sabe se foi este o
defeito da Viscondessa e de Cecilia? O santo amor de mãe despertaria
incontestavelmente n'estas duas mulheres outros mundos muito diversos
que não os da imaginação e os do capricho.

A logica não foi, pois, sacrificada. Antes pelo contrario temos fé em
que será ella a gloriosa redemptora d'este _enormissimo peccado_.

Coimbra,

4 de Fevereiro

da 1874

                                    _O Auctor._


FIM.




INDECE


                                                      Pag.
         Dedicatoria                                     5
    Cap. I Um baile                                      7
      «  II A senhora Viscondessa                       13
      «  III Alfredo                                    25
      «  IV Contrastes                                  37
      «  V No restaurante                               45
      «  VI Sem sahir do mundo                          53
      «  VII Entre amigos                               59
      «  VIII De passagem                               65
      «  IX Pobreza e miseria                           71
      «  X Cousas dos homens                            79
      «  XI Na taberna                                  85
      «  XII Perigos e consequencias                    91
      «  XIII Continuação                               97
      «  XIV Novos mundos                              103
      «  XV Primeiros amores                           107
      «  XVI Transformações                            113
      «  XVII Allucinações                             119
      «  XVIII O escudeiro da senhora Viscondessa      125
      «  XIX Falla o coração                           133
      «  XX Casa burgueza                              139
      «  XXI Considerações                             143
      «  XXII Um hospede                               149
      «  XXIII Transição                               155
      «  XXIV Confidencia                              161
      «  XXV Mais confidencias                         165
      «  XXVI A Viscondessa                            171
      «  XXVII Digressão                               170
      «  XXVIII Ainda a Viscondessa                    183
      «  XXIX Indecisões                               189
      «  XXX Glorias do operario                       193
      «  XXXI O que faz o talento                      190
      «  XXXII Vestigios e ruinas                      203
      «  XXXIII Causas e motivos                       209
      «  XXXIV Latet anguis                            213
      «  XXXV Critica                                  219
      «  XXXVI Toldam-se os horisontes                 223
      «  XXXVII Uma victima                            229
      «  XXXVIII Julio feito barão                     233
      «  XXXIX Denuncias e suspeitas                   237
      «  XL No hospital                                243
      «  XLI Sorrisos e lagrimas                       247
      «  XLII Tableau                                  251
         Epilogo                                       253
         Post-scriptum                                 255





End of the Project Gutenberg EBook of A Senhora Viscondessa, by 
Sebastião de Magalhães Lima

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A SENHORA VISCONDESSA ***

***** This file should be named 24710-8.txt or 24710-8.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        http://www.gutenberg.org/2/4/7/1/24710/

Produced by Pedro Saborano

Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.

Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties.  Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark.  Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission.  If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy.  You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research.  They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks.  Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.



*** START: FULL LICENSE ***

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
http://gutenberg.org/license).


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.