O Mysterio da Estrada de Cintra. Cartas ao Diário de Noticias

By Ramalho Ortigão et al.

The Project Gutenberg EBook of O Mysterio da Estrada de Cintra, by 
José Maria Eça de Queiroz and Ramalho Ortigão

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org


Title: O Mysterio da Estrada de Cintra
       Cartas ao Diário de Noticias, terceira edição

Author: José Maria Eça de Queiroz
        Ramalho Ortigão

Release Date: February 12, 2007 [EBook #20574]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O MYSTERIO DA ESTRADA DE CINTRA ***




Produced by Pedro Saborano (This file was produced from
images generously made available by National Library of
Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)







O Mysterio da Estrada de Cintra


COLLECÇÃO ANTONIO MARIA PEREIRA


EÇA DE QUEIROZ E RAMALHO ORTIGÃO




O Mysterio da Estrada de Cintra


Cartas ao _Diario de Noticias_


Terceira Edição emendada e precedida d'um Prefacio


LISBOA

Livraria de Antonio Maria Pereira, Editor
50--RUA AUGUSTA--54

MDCCCXCIV


LISBOA
TYPOGRAPHIA E STEREOTYPIA MODERNA
11--Apostolos--1.^o




+PREFACIO DA 2^a EDIÇÃO+


CARTA AO EDITOR D'O _Mysterio da Estrada de Cintra_


Ha quatorze annos, n'uma noite de verão no Passeio Publico, em frente de
duas chavenas de café, penetrados pela tristeza da grande cidade que em
torno de nós cabeceava de somno ao som de um soluçante _pot-pourri_ dos
_Dois Foscaris_, deliberámos reagir sobre nós mesmos e acordar tudo aquilo
a berros, n'um romance tremendo, businado á baixa das alturas do _Diario
de Noticias_.

Para esse fim, sem plano, sem methodo, sem escola, sem documentos, sem
estylo, recolhidos á simples «torre de crystal da Imaginação», desfechámos
a improvisar este livro, um em Leiria, outro em Lisboa, cada um de nós com
com uma resma de papel, a sua alegria e a sua audacia.

Parece que Lisboa effectivamente despertou, pella sympathia ou pela
curiosidade, pois que tendo lido na larga tiragem do _Diario de Noticias_
o _Mysterio da Estrada de Cintra_, o comprou ainda n'uma edição em livro;
e hoje manda-nos V. as provas de uma terceira edição, perguntando-nos o
que pensamos da obra escripta n'esses velhos tempos, que recordamos com
saudade...

Havia já então terminado o feliz reinado do senhor D. João VI. Fallecera o
sympathico Garção, Tolentino o jocundo, e o sempre chorado Quita. Além do
Passeio Publico, já n'essa epoca evacuado como o resto do paiz pelas
tropas de Junot, encarregava-se tambem de fallar ás imaginações o sr.
Octave Feuillet. O nome de Flaubert não era familiar aos folhetinistas.
Ponson du Terrail trovejava no Sinai dos pequenos jornaes e das
bibliothecas economicas. O sr. Jules Claretie publicava um livro
intitulado... (ninguem hoje se lembra do titulo) do qual diziam
commovidamente os criticos:--_Eis ahi uma obra que ha de ficar!_... Nós,
emfim, eramos novos.

O que pensamos hoje do romance que escrevemos ha quatorze annos?...
Pensamos simplesmente--louvores a Deus!--que elle é execravel; e nenhum de
nós, quer como romancista, quer como critico, deseja, nem ao seu peor
inimigo, um livro egual. Porque n'elle ha um pouco de tudo quanto um
romancista lhe não deveria pôr e quasi tudo quanto um critico lhe deveria
tirar.

Poupemol-o--para o não aggravar fazendo-o em tres volumes--á enumeração de
todas as suas deformidades! Corramos um veu discreto sobre os seus
mascarados de diversas alturas, sobre os seus medicos mysteriosos, sobre
os seus louros capitães inglezes, sobre as suas condessas fataes, sobre os
seus tigres, sobre os seus elephantes, sobre os seus hiates em que se
arvoram, como pavilhões do ideal, lenços brancos de cambraia e renda,
sobre os seus sinistros copos d'opio, sobre os seus cadaveres elegantes,
sobre as suas _toilettes_ romanticas, sobre os seus cavallos esporeados
por cavalleiros de capas alvadias desapparecendo envoltos no pó das
phantasticas aventuras pella Porcalhota fóra!...

Todas estas cousas, aliás sympathicas, commoventes por vezes, sempre
sinceras, desgostam todavia velhos escriptores, que ha muito desviaram os
seus olhos das perspectivas enevoadas da sentimentalidade, para estudarem
pacientemente e humildemente as claras realidades da sua rua.

Como permittimos pois que se republique um livro que sendo todo
d'imaginação, scismando e não observado, desmente toda a campanha que
temos feito pella arte de analyse e de certeza objectiva?

Consentimol-o porque entendemos que nenhum trabalhador deve parecer
envergonhar-se do ser trabalho.

Conta-se que Murat, sendo rei de Napoles, mandara pendurar na sala do
throno o seu antigo chicote de postilhão, e muitas vezes, apontando para o
sceptro mostrava depois o açoite, gostando de repetir: _Comecei por ali_.
Esta gloriosa historia confirma o nosso parecer, sem com isto querermos
dizer que ella se applique ás nossa pessoas. Como throno temos ainda a
mesma velha cadeira em que escreviamos ha quinze annos; não temos docel
que nos cubra; e as nossas cabeças, que embranquecem, não se cingem por
emquanto de corôa alguma, nem de louros, nem de Napoles.

Para nossa modesta satisfação basta-nos não ter cessado de trabalhar um só
dia desde aquelle em que datámos este livro até o instante em que elle nos
reapparece inesperadamente na sua terceira edição, com um petulante
arzinho de triumpho que, á fé de Deus, não lhe vae mal!

Então, como agora, escreviamos honestamente, isto é, o melhor que
podiamos: d'esse amor da perfeição, que é a honradez dos artistas, veio
talvez a sympathia do publico ao livro da nossa mocidade.

Ha mais duas razões, para auctorizar esta reedição.

A primeira é que a publicação d'este livro, fóra de todos os moldes até o
seu tempo consagrados, pode conter, para uma geração que precisa de a
receber, uma util lição de independencia.

A mocidade que nos succedeu, em vez de ser inventiva, audaz,
revolucionaria, destruidosa d'idolos, parece-nos servil, imitadora,
copista curvada de mais deante dos mestres. Os novos escriptores não
avançam um pé que não pousem na pégada que deixaram outros. Esta
pusilanimidade torna todas as obras tropegas, dá-lhes uma expressão
estafada; e a nós, que partimos, a geração que chega faz-nos o effeito de
sahir velha do berço e de entrar na arte de muletas.

Os documentos das nossas primeiras loucuras de coração queimámol-os ha
muito, os das nossas extravagancias de espirito desejamos que fiquem. Aos
vinte annos é preciso que alguem seja estroina, nem sempre talvez para que
o mundo progrida, mas ao menos para que o mundo se agite, Para ser
ponderado, correcto e immovel ha tempo de sobra na velhice.

Na arte, a indisciplina dos novos, a sua rebelde força de resistencia ás
correntes da tradição, é indispensavel para a revivescencia da invenção e
do poder criativo, e para a originalidade artistica. Ai das litteraturas
em que não ha mocidade! Como os velhos que atravessaram a vida sem o
sobressalto de uma aventura, não haverá n'ellas que lembrar. Além de que,
para os que na edade madura foram arrancados pelo dever ás facilidades da
improvisação e encontram n'esta região dura das coisas exactas,
entristecedora e mesquinha, onde, em logar do esplendor dos heroismos e da
belleza das paixões, só ha a pequenez dos caracteres e a miseria dos
sentimenos, seria dôce e reconfortante ouvir de longe a longe, nas manhãs
de sol, ao voltar da primavera, zumbir no azul, como nos bons tempos, a
doirada abelha da phantasia.

A ultima razão que nos leva a não repudiar este livro, é que elle é ainda
o testemunho da intima confraternidade de dois antigos homens de lettras,
resistindo a vinte annos de provação nos contactos de uma sociedade que
por todos os lados se dissolve. E, se isto não é um triumpho para o nosso
espírito, é para o nosso coração uma suave alegria.

    Lisboa, 14 de dezembro de 1881

    De V.

    Antigos amigos

    Eça de Queiroz

    Ramalho Ortigão


+O MYSTERIO DA ESTRADA DE CINTRA+




+EXPOSIÇÃO DO DOUTOR*** +


I


Sr. redactor do _Diario de Noticias_

Venho pôr nas suas mãos a narração de um caso verdadeiramente
extraordinario em que intervim como facultativo, pedindo-lhe que, pelo
modo que entender mais adequado, publique na sua folha a substancia, pelo
menos, do que vou expôr.

Os successos a que me refiro são tão graves, cerca-os um tal mysterio,
envolve-os uma tal apparencia de crime que a publicidade do que se passou
por mim torna-se importantissima como chave unica para a desencerração de
um drama que supponho terrivel com quanto não conheça d'elle senão um só
acto e ignore inteiramente quaes foram as scenas precedentes e quaes
tenham de ser as ultimas.

Ha tres dias que eu vinha dos suburbios de Cintra em companhia de F..., um
amigo meu, em cuja casa tinha ido passar algum tempo.

Montavamos dois cavallos que F... tem na sua quinta e que deviam ser
reconduzidos a Cintra por um criado que viera na vespera para Lisboa.

Era ao fim da tarde quando atravessámos a charneca. A mellancolia do logar
e da hora tinha-se-nos communicado, e vinhamos silenciosos, abstrahidos na
paizagem, caminhando a passo.

A cerca de talvez de meia distancia do caminho entre S. Pedro e o Cacem,
n'um ponto a que não sei o nome, porque tenho transitado pouco n'aquella
estrada, sitio deserto como todo o caminho através da charneca, estava
parada uma carruagem.

Era um _coupé_ pintado de escuro, verde e preto, e tirado por uma parelha
côr de castanha.

O cocheiro, sem libré, estava em pé, de costas para nós, diante dos
cavallos.

Dois sujeitos achavam-se curvados ao pé das rodas que ficavam para a parte
da estrada por onde tinhamos de passar, e pareciam occupados em examinar
attentamente o jogo da carruagem.

Um quarto individuo, egualmente de costas para nós, estava perto do
vallado do outro lado do caminho, procurando alguma cousa, talvez uma
pedra para calçar o trem.

É o resultado das sobrodas que tem a estrada, observou o meu amigo.
Provavelmente o eixo partido ou alguma roda desembuxada.

Passavamos a este tempo pelo meio dos tres vultos a que me referi, e F...
tinha tido apenas tempo de concluir a phrase que proferira, quando o
cavallo que eu montava deu repentinamente meia volta rapida, violenta, e
caiu de chapa.

O homem que estava junto do vallado, ao qual eu não dava attenção porque
ia voltado a examinar o trem, determinara essa queda, colhendo
repentinamente e com a maxima força as redeas que ficavam para o lado
d'elle e impellindo ao mesmo tempo com um pontapé o flanco do animal para
o lado oposto.

O cavallo, que era um poldro de pouca força e mal manejado, escorregou das
pernas e tombou ao dar a volta rapida e precipitada a que o tinham
constrangido.

O desconhecido fez levantar o cavallo segurando-lhe as redeas, e,
ajudando-me a erguer, indagava com interesse se eu teria molestado a perna
que ficára debaixo do cavallo.

Este individuo tinha na voz a entoação especial dos homens bem educados. A
mão que me offereceu era delicada. O rosto tinha-o coberto com uma mascara
de setim preto. Entrelembro-me de que trazia um pequeno fumo no chapeu.
Era um homem agil e extremamente forte, segundo denota o modo como fez
cair o cavallo.

Ergui-me alvoroçadamente e, antes de ter tido ocasião de dizer uma
palavra, vi que, ao tempo da minha queda, se travara lucta entre o meu
companheiro e os outros dois individuos que fingiam examinar o trem e que
tinham a cara coberta como aquelle de que já fallei.

Puro Ponson du Terrail! dirá o sr. redactor. Evidentemente. Parece que a
vida, mesmo no caminho de Cintra, pode às vezes ter o capricho de ser mais
romanesca do que pede a verosimilhança artistica. Mas eu não faço arte,
narro factos unicamente.

F..., vendo o seu cavallo subitamente seguro pellas cambas do freio, tinha
obrigado a largal-o um dos desconhecidos, em cuja cabeça descarregára uma
pancada com o cabo do chicote, o qual o outro mascarado conseguira logo
depois arrancar-lhe da mão.

Nenhum de nós trazia armas. O meu amigo tinha no entanto tirado da
algibeira a chave de uma porta da casa de Cintra, e esporeava o cavallo
estirando-se-lhe no pescoço e procurando alcançar a cabeça d'aquelle que o
tinha seguro.

O mascarado, porém, que continuava a segurar em uma das mãos o freio do
cavallo empinado, apontou com a outra um rewolver á cabeça do meu amigo e
disse-lhe com serenidade:

--Menos furia! menos furia!

O que levára com o chicote na cabeça e ficára por um momento encostado á
portinhola do trem, visivelmente atordoado mas não ferido, porque o cabo
era de baleia e tinha por castão uma simples guarnição feita com uma
trança de clina, havia já a este tempo levantado do chão e posto na cabeça
o chapeu que lhe caira.

A este tempo o que me derribara o cavallo e me ajudara a levantar tinha-me
deixado ver um par de pequeninas pistolas de coronhas de prata, d'aquellas
a que chamam em França _coups de poing_ e que varam uma porta a trinta
passos de distancia. Depois do que, me offereceu delicadamente o braço,
dizendo-me com afabilidade:

--Parece-me mais commodo acceitar um logar que lhe offereço na carruagem
do que montar outra vez no cavallo ou ter de arrastar a pé d'aqui á
pharmacia da Porcalhota a sua perna magoada.

Não sou dos que se amedrontam mais promptamente com a ameaça feita com
armas. Sei que ha um abysmo entre prometter um tiro e desfechal-o. Eu
movia bem a perna trilhada, o meu amigo estava montado em um cavallo
possante; somos ambos robustos; poderiamos talvez resistir por dez
minutos, ou por um quarto de hora, e durante esse tempo nada mais
provavel, em estrada tão frequentada como a de Cintra n'esta quadra, do
que apparecerem passageiros que nos prestassem auxílio.

Todavia confesso que me sentia attrahido para o imprevisto de uma tão
extranha aventura.

Nenhum caso anterior, nenhuma circumstancia da nossa vida nos permittia
suspeitar que alguem podesse ter interesse em exercer comnosco pressão ou
violencia alguma.

Sem eu bem poder a esse tempo explicar porquê, não me parecia tambem que
as pessoas que nos rodeavam projectassem um roubo, menos ainda um
homicidio. Não tendo tido tempo de observar miudamente a cada um, e
tendo-lhes ouvido apenas algumas palavras fugitivas, figuravam-se-me
pessoas de bom mundo. Agora que de espírito socegado penso no acontecido,
vejo que a minha conjectura se baseava em varias circumstancias dispersas,
nas quaes, ainda que de relance, eu attentara, mesmo sem proposito de
analyse. Lembro-me, por exemplo, que era de setim alvadio o forro do
chapeu do que levara a pancada na cabeça. O que apontára o rewolver a F...
trazia calçada uma luva côr de chumbo apertada com dois botões. O que me
ajudára a levantar tinha os pés finos e botas envernizadas; as calças, de
casimira côr de avelã, eram muito justas e de presilhas. Tinha esporas.

Não obstante a disposição em que me achava de ceder da lucta e de entrar
no trem, perguntei em allemão ao meu amigo se elle era de opinião que
resistissemos ou que nos rendessemos.

--Rendam-se, rendam-se para nos poupar algum tempo que nos é precioso!
disse gravemente um dos desconhecidos. Por quem são, acompanhem-nos! Um
dia saberão por que motivo lhes sahimos ao caminho mascarados. Damos-lhes
a nossa palavra que ámanhã estarão nas suas casas, em Lisboa. Os cavallos
ficarão em Cintra d'aqui a duas horas.

Depois de uma breve reluctancia, que eu contribuí para desvanecer, o meu
companheiro apeou-se e entrou no _coupé_. Eu segui-o.

Cederam-nos os melhores logares. O homem que se achava em frente da
parelha segurou os nossos cavallos; o que fizera cair o poldro subiu para
a almofada e pegou nas guias; ou outros dois entraram comnosco e
sentaram-se nos logares fronteiros aos nossos. Fecharam-se em seguida os
stores de madeira dos postigos e correu-se uma cortina de seda verde que
cobria por dentro os vidros fronteiros da carruagem.

No momento de partirmos, o que ia guiar bateu na vidraça e pediu um
charuto. Passaram-lhe para fóra uma charuteira de palha de Java. Pella
fresta por onde recebeu os charutos lançou para dentro do trem a mascara
que tinha no rosto, e partimos a galope.

Quando entrei para a carruagem pareceu-me avistar ao longe, vindo de
Lisboa, um omnibus, talvez uma sege. Se me não illudi, a pessoa ou pessoas
que vinham no trem a que me refiro terão visto os nossos cavallos, um dos
quaes é russo e o outro castanho, e poderão talvez dar noticia da
carruagem em que íamos e da pessoa que nos servia de cocheiro. O coupé
era, como já disse, verde e preto. Os stores, de mogno polido, tinham no
alto quatro fendas estreitas e oblongas, dispostas em cruz.

Falta-me tempo para escrever o que ainda me resta por contar a horas de
expedir ainda hoje esta carta pela posta interna.

Continuarei. Direi então, se o não suspeitou já, o motivo porque lhe
occulto o meu nome e o nome do meu amigo.


II


Julho, 24 de 1870--Acabo de ver a carta que lhe dirigi publicada
integralmente por v. no logar destinado ao folhetim do seu periodico. Em
vista da collocação dada ao meu escripto procurarei nas cartas que houver
de lhe dirigir não ultrapassar os limites demarcados a esta secção do
jornal.

Por esquecimento não datei a carta antecedente, ficando assim duvidoso
qual o dia em que fomos surprehendidos na estrada de Cintra. Foi quarta
feira, 20 do corrente mez de julho.

Passo de prompto a contar-lhe o que se passou no trem, especificando
minuciosamente todos os pormenores e tentando reconstruir o dialogo que
travámos, tanto quanto me seja possivel com as mesmas palavras que n'elle
se empregaram.

A carruagem partiu na direcção de Cintra. Presumo porém que deu na estrada
algumas voltas, muito largas e bem dadas porque se não presentiram pela
intercadencia da velocidade no passo dos cavallos. Levaram-me a suppol-o,
em primeiro logar as differenças de declive no nivel do terreno, com
quanto estivessemos rodando sempre em uma estrada macadamisada e lisa; em
segundo logar umas leves alterações na quantidade de luz que havia dentro
do _coupé_ coada pela cortina de seda verde, o que me indicava que o trem
passava por encontradas exposições com rellação ao sol que se escondia no
horisonte.

Havia evidentemente o designio de nos desorientar no rumo definitivo que
tomassemos.

É certo que, dois minutos depois de termos principiado a andar, me seria
absolutamente impossivel decidir se ia de Lisboa para Cintra ou se vinha
de Cintra para Lisboa.

Na carruagem havia uma claridade bassa e tenue, que todavia nos permittia
distinguir os objectos. Pude ver as horas no meu relogio. Eram sete e um
quarto.

O desconhecido que ia defronte de mim examinou tambem as horas. O relogio
que elle não introduziu bem na algibeira do collete e que um momento
depois lhe caiu, ficando por algum tempo patente e pendido da corrente,
era um relogio singular que se não confunde facilmente e que não deixará
de ser reconhecido, depois da noticia que dou d'elle, pellas pessoas que
alguma vez o houvessem visto. A caixa do lado opposto ao mostrador era de
esmalte preto, liso, tendo no centro, por baixo de um capacete, um escudo
de armas de ouro encobrado e polido.

Havia poucos momentos que caminhavamos quando o individuo sentado defronte
de F..., o mesmo que na estrada nos instara mais vivamente para que o
acompanhassemos, nos disse:

--Eu julgo inutil asseverar-lhes que devem tranquilisar-se inteiramente em
quanto á segurança das suas pessoas...

--Está visto que sim, respondeu o meu amigo; nós estamos perfeitamente
socegados a todos os respeitos. Espero que nos façam a justiça de
acreditar que nos não têem coactos pelo medo. Nenhum de nós é tão creança
que se apavore com o aspecto das suas mascaras negras ou das suas armas de
fogo. Os senhores acabam de ter a bondade de nos certificar de que não
querem fazer-nos mal: nós devemos pela nossa parte annunciar-lhes que
desde o momento em que a sua companhia principiasse a tornar-se-nos
desagradavel, nada nos seria mais facil do que arrancar-lhes as mascaras,
arrombar os stores, convidal-os perante o primeiro trem que passasse por
nós a que nos entregassem as suas pistolas, e relaxal-os em seguida aos
cuidados policiaes do regedor da primeira parochia que atravessassemos.
Parece-me portanto justo que principiemos por prestar o devido culto aos
sentimentos da amabilidade, pura e simples, que nos tem aqui reunidos.
D'outro modo ficariamos todos grotescos: os senhores terriveis e nós
assustados.

Com quanto estas cousas fossem ditas por F... com um ar de bondade
risonha, o nosso interlocutor parecia irritar-se progressivamente ao
ouvil-o. Movia convulsivamente uma perna, firmando o cotovello n'um
joelho, pousando a barba nos dedos, fitando de perto o meu amigo. Depois,
reclinando-se para traz e como se mudasse de resolução:

--No fim de contas, a verdade é que tem razão e talvez eu fizesse e
dissesse o mesmo no seu logar.

E, tendo meditado um momento, continuou:

--Que diriam porém os senhores se eu lhes provasse que esta mascara em que
querem ver apenas um symptoma burlesco é em vez d'isso a confirmação da
seriedade do caso que nos trouxe aqui?... Queiram imaginar por um momento
um d'esses romances como ha muitos: Uma senhora casada, por exemplo, cujo
marido viaja ha um anno. Esta senhora, conhecida na sociedade de Lisboa,
está gravida. Que deliberação ha de tomar?

Houve um silencio.

Eu aproveitei a pequena pausa que se seguiu ao enunciado um tanto rude
d'aquelle problema e respondi:

--Enviar ao marido uma escriptura de separação em regra. Depois, se é
rica, ir com o amante para a America ou para a Suissa; se é porbre,
comprar uma machina de costura e trabalhar para fóra n'uma agua furtada. É
o destino para as pobres e para as ricas. De resto, em toda a parte se
morre depressa n'essas condições, n'um _cottage_ á beira do lago Genebra
ou n'um quarto de oito tostões ao mez na rua dos Vinagres. Morre-se
egualmente, de tisica ou de tedio, no esfalfamento do trabalho ou no enjôo
do idyllio.

--E o filho?

--O filho, desde que está fóra da familia e fóra da lei, é um desgraçado
cujo infortunio provém em grande parte da sociedade que ainda não soube
definir a responsabilidade do pae clandestino. Se os paes fazem como a
legislação, e mandam buscar gente á estrada de Cintra para perguntar o que
se ha de fazer, o melhor para o filho é deital-o á roda.

--O doutor discorre muito bem como philosopho distincto. Como puro medico,
esquece-lhe talvez que na conjunctura de que se trata, antes de deitar o
filho á roda ha uma pequena formalidade a cumprir, que é deital-o ao
mundo.

--Isso é com os especialistas. Creio que não é n'essa qualidade que estou
aqui.

--Engana-se. É precisamente como medico, é n'essa qualidade que aqui está
e é por esse titulo que viemos busca-lo de surpresa á estrada de Cintra e
o levamos a occultas a prestar auxílio a uma pessoa que precisa d'elle.

--Mas eu não faço clinica.

--É o mesmo. Não exerce essa profissão; tanto melhor para o nosso caso:
não prejudica os seus doentes abandonando-os por algumas horas para nos
seguir n'esta aventura. Mas é formado em Paris e publicou mesmo uma these
de cirurgia que despertou a attenção e mereceu o elogio da faculdade.
Queira fazer de conta que vae assistir a um parto.

O meu amigo F... poz-se a rir e observou:

--Mas eu que não tenho curso medico nem these alguma de que me accuse na
minha vida, não quererão dizer-me o que vou fazer?

--Quer saber o motivo porque se encontra aqui?... Eu lh'o digo.

N'este momento porém a carruagem parou repentinamente e os nossos
companheiros sobresaltados ergueram-se.


III


Percebi que saltava da almofada o nosso cocheiro. Ouvi abrir
successivamente as duas lanternas e raspar um phosphoro na roda. Senti
depois estalir a mola que comprime a portinha que se fecha depois de
accender as velas, e rangerem nos anneis dos cachimbos os pés das
lanternas como se as estivessem endireitando.

Não comprehendí logo a razão porque nos tivessemos detido para similhante
fim, quando não tinha caído a noite e íamos por bom caminho.

Isto porém explica-se por um requinte de precaução. A pessoa que nos
servia de cocheiro não quereria parar em logar onde houvesse gente. Se
tivessemos de atravessar uma povoação, as luzes que principiassem a
accender-se e que nós veriamos atravez da cortina ou das fendas dos
stores, poderiam dar-nos alguma idéa do sitio em que nos achassemos. Por
esta fórma esse meio de investigação desapparecia. Ao passarmos entre
predios ou muros mais altos, a projecção da luz forte das lanternas sobre
as paredes e a reflexão d'essa claridade para dentro do trem
impossibilitava-nos de distinguir se atravessavamos uma aldeia ou uma rua
illuminada.

Logo que a carruagem começou a rodar depois de accezas as lanternas,
aquelle dos nossos companheiros que promettera explicar a F... a razão
porque elle nos acompanhava, prosseguiu:

--O amante da senhora a quem me refiro, imagine que sou eu. Sabem-no
unicamente n'este mundo tres amigos meus, amigos intimos, companheiros de
infancia, camaradas de estudo, tendo vivido sempre juntos, estando cada um
constantemente prompto a prestar aos outros os derradeiros sacrificios que
póde impôr a amizade. Entre os nossos companheiros não havia um medico.
Era mister obtel-o e era ao mesmo tempo indispensavel que não passasse a
outrem, quem quer que fosse, o meu segredo, em que estão envoltos o amor
de um homem e a honra de uma senhora. O meu filho nascerá provavelmente
esta noite ou ámanhã pela manhã; não devendo saber ninguem quem é sua mãe,
não devendo sequer por algum indicio vir a suspeitar um dia quem ella
seja, é preciso que o doutor ignore quem são as pessoas com quem falla, e
qual é a casa em que vae entrar. Eis o motivo por que nós temos no rosto
uma mascara; eis o motivo porque os senhores nos hão de permittir que
continuemos a ter cerrada esta carruagem, e que lhes vendemos os olhos
antes de os apearmos defronte do predio a que vão subir. Agora
comprehende, continuou elle dirigindo-se a F..., a razão por que nos
acompanha. Era-nos impossivel evitar que o senhor viesse hoje de Cintra
com o seu amigo, era-nos impossivel adiar esta visita, e era-nos
impossivel tambem deixal-o no ponto da estrada em que tomámos o doutor. O
senhor acharia facilmente meio de nos seguir e de descobrir quem somos.

--A lembrança, notei eu, é engenhosa mas não lisongeira para a minha
discrição.

--A confiança na discrição alheia é uma traição ao segredo que nos não
pertence.

F... achava-se inteiramente d'accordo com esta maneira de ver, e disse-o
elogiando o espírito da aventura romanesca dos mascarados.

As palavras de F... accentuadas com sinceridade e com affecto, pareceu-me
que perturbaram algum tanto o desconhecido. Figurou-se-me que esperava
discutir mais tempo para conseguir persuadir-nos e que o desnorteava e
surprehendia desagradavelmente esse córte imprevisto. Elle, que tinha a
replica prompta e a palavra facil, não achou que retorquir á confiança com
que o tratavam, e guardou, desde esse momento até que chegámos, um
silencio que devia pezar ás suas tendencias expansivas e discursadoras.

É verdade que pouco depois d'este dialogo o trem deixou a estrada de
macadam em que até ahi rodara e entrou n'um caminho vicinal ou n'um
atalho. O solo era pedregoso e esburacado; os solavancos da carruagem, que
seguia sempre a galope governada por mão de mestre, e o estrepito dos
stores embatendo nos caixilhos mal permittiriam conversar.

Tornámos por fim a entrar n'uma estrada lisa. A carruagem parou ainda uma
segunda vez, o cocheiro apeou rapidamente, dizendo:

--Lá vou!

Voltou pouco depois, e eu ouvi alguem que dizia:

--Vão com raparigas para Lisboa.

O trem prosseguiu.

Seria uma barreira da cidade? Inventaria o que nos guiava um pretexto
plausível para que os guardas nos não abrissem a portinhola?
Entender-se-hia com os meus companheiros a phrase que eu ouvira?

Não posso dizel-o com certeza.

A carruagem entrou logo depois n'um pavimento lageado e d'ahi a dois ou
tres minutos parou. O cocheiro bateu no vidro, e disse:

--Chegámos.

O mascardo que não tornara a pronunciar uma palavra desde o momento que
acima indiquei, tirou um lenço da algibeira e disse-nos com alguma
commoção:

--Tenham paciencia! perdôem-m'o... Assim é preciso!

F... approximou o rosto, e elle vendou-lhe os olhos. Eu fui egualmente
vendado pelo que estava em frente de mim.

Apeámo-nos em seguida e entrámos n'um corredor conduzidos pela mão dos
nossos companheiros. Era um corredor estreito segundo pude deduzir do modo
por que nos encontrámos e démos passagem a alguem que sahia. Quem quer que
era disse:

--Levo o trem?

A voz do que nos guiara respondeu:

--Leva.

Demorámo-nos um momento. A porta por onde haviamos entrado foi fechada á
chave, e o que nos servira de cocheiro passou para diante dizendo:

--Vamos!

Démos alguns passos, subimos dois degraus de pedra, tomámos á direita e
entrámos na escada. Era de madeira, ingreme e velha, coberta com um tapete
estreito. Os degraus estavam desgastados pelos pés, eram ondeados na
superficie e esbatidos e arredondados nas saliencias primitivamente
angulosas. Ao longo da parede, do meu lado, corria uma corda, que servia
de corrimão; era de seda e denotava ao tacto pouco uso. Respirava-se um ar
humido e impregnado das exhalações interiores dos predios deshabitados.
Subimos oito ou dez degraus, tomámos á esquerda n'um patamar, subimos
ainda outros degraus e parámos n'um primeiro andar.

Ninguem tinha proferido uma palavra, e havia o que quer que fosse de
lugubre n'este silencio que nos envolvia como uma nuvem de tristeza.

Ouvi então a nossa carruagem que se affastava, e senti uma suppressão, uma
especie de sobresalto pueril.

Em seguida rangeu uma fechadura e transpozemos o limiar de uma porta, que
foi outra vez fechada á chave depois de havermos entrado.

--Podem tirar os lenços, disse-me um dos nossos companheiros.

Descobri os olhos. Era noite.

Um dos mascarados raspou um phosphoro, accendeu cinco velas n'uma
serpentina de bronze, pegou na serpentina, approximou-se de um movel que
estava coberto com uma manta de viagem, e levantou a manta.

Não pude conter a commoção que senti, e soltei um grito de horror.

O que eu tinha diante de mim era o cadaver de um homem.


IV


Escrevo-lhe hoje fatigado, e nervoso. Todo este obscuro negocio em que me
acho envolvido, o vago perigo que me cerca, a mesma tensão de espírito em
que estou para comprehender a secreta verdade d'esta aventura, os habitos
da minha vida repousada subitamente exaltados,--tudo isto me dá um estado
de irritação morbida que me aniquilla.

Logo que vi o cadaver perguntei violentamente:

--Que quer isto dizer, meus senhores?

Um dos mascarados, o mais alto, respondeu:

--Não ha tempo para explicações. Perdôem ter sido enganados! Pelo amor de
Deus, doutor, veja esse homem. Quem tem? Está morto? Está adormecido com
algum narcotico?

Dizia estas palavras com uma voz tão instante, tão dolorosamente
interrogativa que eu, dominado pelo imprevisto d'aquella situação,
approximei-me do cadaver, e examinei-o.

Estava deitado n'uma _chaise-longue_, com a cabeça pousada n'uma almofada,
as pernas ligeiramente cruzadas, um dos braços curvado descançando no
peito, o outro pendente e a mão inerte assente sobre o chão. Não tinha
golpe, contusão, ferimento, ou extravasamento de sangue; não tinha signaes
de congestão, nem vestigios de estrangulação. A expressão da physionomia
não denotava soffrimento, contracção ou dôr. Os olhos cerrados
frouxamente, eram como n'um somno leve. Estava frio e livido.

Não quero aqui fazer a historia do que encontrei no cadaver. Seria
embaraçar esta narração concisa com explicações scientificas. Mesmo sem
exames detidos, e sem os elementos de apreciação que só podem fornecer a
analyse ou a autopsia, pareceu-me que aquelle homem estava sob a
influencia já mortal de um narcotico, que não era tempo de dominar.

--Que bebeu elle? perguntei, com uma curiosidade exclusivamente medica.

Não pensava então em crime nem na mysteriosa aventura que ali me prendia;
queria só ter uma historia progressiva dos factos que tinham determinado a
narcotisação.

Um dos mascarados mostrou-me um copo que estava ao pé da _chaise-longue_
sobre uma cadeira de estofo.

--Não sei, disse elle, talvez aquillo.

O que havia no copo era evidentemente opio.

--Este homem está morto, disse eu.

--Morto! repetiu um d'elles, tremendo.

Ergui as palpebras do cadaver, os olhos tinham uma dilatação fixa,
horrivel.

Eu fitei-os então um por um e disse-lhes serenamente:

--Ignoro o motivo porque vim aqui; como medico d'um doente sou inutil;
como testemunha posso ser perigoso.

Um dos mascarados veiu para mim e com a voz insinuante, e grave:

--Escute, crê em sua consciencia que esse homem esteja morto?

--De certo.

--E qual pensa que fosse a causa da morte?

--O opio; mas creio que devem sabel-o melhor do que eu os que andam
mascarados surprehendendo gente pela estrada de Cintra.

Eu estava irritado, queria provocar algum desenlace definitivo que
cortasse os embaraços da minha situação.

--Perdão, disse um, e ha que tempo suppõe que esse homem esteja morto?

Não respondi, puz o chapeu na cabeça e comecei a calçar as luvas. F...
junto da janella batia o pé impaciente. Houve um silencio.

Aquelle quarto pesado de estofos, o cadaver estendido com reflexos lividos
na face, os vultos mascarados, o socego lugubre do logar, as luzes claras,
tudo dava áquelle momento um aspecto profundamente sinistro.

--Meus senhores, disse então lentamente um dos mascarados, o mais alto, o
que tinha guiado a carruagem--comprehendem perfeitamente, que se nós
tivessemos morto este homem sabiamos bem que um medico era inutil, e uma
testemunha importuna! Desconfiavamos, é claro, que estava sob a acção de
um narcotico, mas queriamos adquirir a certeza da morte. Por isso os
trouxemos. A respeito do crime estamos tão ignorantes como os senhores. Se
não entregamos este caso á policia, se cercámos de mysterio e de violencia
a sua visita a esta casa, se lhes vendámos os olhos, é porque receavamos
que as indagações que se podessem fazer, conduzissem a descobrir, como
criminoso ou como cumplice, alguem que nós temos em nossa honra salvar; se
lhes damos estas explicações...

--Essas explicações são absurdas! gritou F. Aqui ha um crime; este homem
está morto, os senhores, mascarados; esta casa parece solitaria, nós
achamo-nos aqui violentados, e todas estas circumstancias teem um mysterio
tão revoltante, uma feição tão criminosa, que não queremos nem pelo mais
leve acto, nem pela mais involuntaria assistencia, ser parte n'este
negocio. Não temos aqui nada que fazer; queiram abrir aquella porta.

Com a violencia dos seus gestos, um dos mascarados riu.

--Ah! os senhores escarnecem! gritou F...

E arremessando-se violentamente contra a janella, ia fazer saltar os
fechos. Mas dois dos mascarados arrojaram-se poderosamente sobre elle,
curvaram-n'o, arrastaram-n'o até uma poltrona, e deixaram-n'o cair,
offegante, tremulo de desespero.

Eu tinha ficado sentado e impassivel.

--Meus senhores, observei, notem que emquanto o meu amigo protesta pela
colera, eu protesto pelo tedio.

E accendi um charuto.

--Mas com os diabos! tomam-nos por assassinos! gritou um violentamente.
Não se crê na honra, na palavra de um homem! Se vocês não tiram a mascara,
tiro-a eu! É necessario que nos vejam! Não quero, nem escondido por um
pedaço de cartão, passar por assassino!... Senhores! dou-lhes a minha
palavra que ignoro quem matou este homem!

E fez um gesto furioso. N'este movimento, a mascara desapertou-se,
descahindo. Elle voltou-se rapidamente, levando as mãos abertas ao rosto.
Foi um movimento instinctivo, irreflectido, de desesperação. Os outros
cercaram-n'o, olhando rapidamente para F..., que tinha ficado impassivel.
Um dos mascarados, que não tinha ainda falado, o que na carruagem viera
defronte de mim, a todo o momento observava o meu amigo com receio, com
suspeita. Houve um longo silencio. Os mascarados, a um canto, fallavam
baixo. Eu no emtanto examinava a sala.

Era pequena, forrada de seda em pregas, com um tapete molle, espesso, bom
para correr com os pés nús. O estofo dos moveis era de seda vermelha com
uma barra verde, unica e transversal, como têem na antiga heraldica os
brasões dos bastardos. As cortinas das janellas pendiam em pregas amplas e
suaves. Havia vasos de jaspe, e um aroma tepido e penetrante, onde se
sentia a verbena e o perfume de _marechala_.

O homem que estava morto era moço, de perfil sympathico e fino, de bigode
louro. Tinha o casaco e collete despidos, e o largo peitilho da camisa
reluzia com botões de perolas; a calça era estreita, bem talhada, de uma
côr clara. Tinha apenas calçado um sapato de verniz; as meias eram de seda
em grandes quadrados brancos e cinzentos.

Pella physionomia, pela construcção, pelo corte e côr do cabello, aquelle
homem parecia inglez.

Ao fundo da sala via-se um reposteiro largo, pesado, cuidadosamente
corrido. Parecia-me ser uma alcova. Notei admirado que apesar do extremo
luxo, d'um aroma que andava no ar e uma sensação tépida que dão todos os
logares onde ordinariamente se está, se falla e se vive, aquelle quarto
não parecia habitado; não havia um livro, um casaco sobre uma cadeira,
umas luvas cahidas, alguma d'estas mil pequenas coisas confusas, que
demonstram a vida e os seus incidentes triviaes.

F..., tinha-se approximado de mim.

--Conheceste aquelle a quem caiu a mascara? perguntei.

--Não. Conheceste?

--Tambem não. Ha um que ainda não fallou, que está sempre olhando para ti.
Receia que o conheças, é teu amigo talvez, não o percas de vista.

Um dos mascarados approximou-se, perguntando:

--Quanto tempo póde ficar o corpo assim n'esta _chaise-longue_?

Eu não respondi. O que me interrogou fez um movimento colerico, mas
conteve-se. N'este momento o mascarado mais alto, que tinha saido,
entrara, dizendo para os outros:

--Prompto!...

Houve uma pausa; ouvia-se o bater da pendula e os passos de F..., que
passeiava agitado, com o sobrolho duro, torcendo o bigode.

--Meus senhores, continuou voltando-se para nós o mascarado--damos-lhe a
nossa palavra de honra que somos completamente estranhos a este successo.
Sobre isto não damos explicações. Desde este momento os senhores estão
retidos aqui. Imaginem que somos assassinos, moedeiros falsos ou ladrões,
tudo o que quizerem. Imaginem que estão aqui pela violencia, pela
corrupção, pela astucia, ou pela força da lei... como entenderem! O facto
é que ficam até amanhã. O seu quarto--disse-me--é n'aquella alcova, e o
seu--apontou para F.--lá dentro. Eu fico comsigo, doutor, n'este sofá. Um
dos meus amigos será lá dentro o criado de quarto do seu amigo. Ámanhã
despedimo-nos amigavelmente e podem dar parte á policia ou escrever para
os jornaes.

Calou-se. Estas palavras tinham sido ditas com tranquillidade. Não
respondemos.

Os mascarados, em quem se percebia um certo embaraço, uma evidente falta
de serenidade, conversavam baixo, a um canto do quarto, junto da alcova.
Eu passeava. N'uma das voltas que dava pelo quarto, vi casualmente, perto
d'uma poltrona, uma coisa branca similhante a um lenço. Passei defronte da
poltrona, deixei voluntariamente cair o meu lenço, e no movimento que fiz
para o apanhar, lancei despercebidamente mão do objecto caido. Era
effectivamente um lenço. Guardei-o, apalpei-o no bolso com grande
delicadeza de tacto; era fino, com rendas, um lenço de mulher. Parecia ter
bordadas uma firma e uma corôa.

N'este momento deram nove horas. Um dos mascarados exclamou, dirigindo-se
a F...

--Vou mostrar-lhe o seu quarto. Desculpe-me, mas é necessario vendar-lhe
os olhos.

F. tomou altivamente o lenço das mãos do mascarado, cobriu elle mesmo os
olhos, e sairam.

Fiquei só com o mascarado alto, que tinha a voz sympathica e attrahente.

Perguntou-me se queria jantar. Comquanto lhe respondesse negativamente,
elle abriu uma mesa, trouxe um cabaz em que havia algumas comidas frias.
Bebi apenas um copo d'agua. Elle comeu.

Lentamente, gradualmente, começámos a conversar quasi em amizade. Eu sou
naturalmente expansivo, o silencio pesava-me. Elle era instruido, tinha
viajado e tinha lido.

De repente, pouco depois da uma hora da noite, sentimos na escada um andar
leve e cauteloso, e logo alguem tocar na porta do quarto onde estavamos. O
mascarado tinha ao entrar tirado a chave e havia-a guardado no bolso.
Erguemo-nos sobresaltados. O cadaver achava-se coberto. O mascarado apagou
as luzes.

Eu estava aterrado. O silencio era profundo; ouvia-se apenas o ruido das
chaves que a pessoa que estava fóra ás escuras procurava introduzir na
fechadura.

Nós, immoveis, não respiravamos.

Finalmente a porta abriu-se, alguem entrou, fechou-a, accendeu um
phosphoro, olhou. Então vendo-nos, deu um grito e caiu no chão, immovel,
com os braços estendidos.

Ámanhã, mais socegado e claro de recordações, direi o que se seguiu.

     *     *     *     *     *

P.S.--Uma circumstancia que póde esclarecer sobre a rua e o sitio da casa:
De noite senti passarem duas pessoas, uma tocando guitarra, outra cantando
o fado. Devia ser meia noite. O que cantava dizia esta quadra:

    Escrevi uma carta a Cupido
    A mandar-lhe perguntar
    Se um coração offendido...

Não me lembra o resto. Se as pessoas que passaram, tocando e cantando,
lerem esta carta, prestarão um notavel esclarecimento dizendo em que rua
passavam, e defronte de que casa, quando cantaram aquellas rymas
populares.


V


Hoje, mais socegado e sereno, posso contar-lhe com precisão e realidade,
reconstruindo-o do modo mais nitido, nos dialogos e nos olhares, o que se
seguiu á entrada imprevista d'aquella pessoa no quarto onde estava o
morto.

O homem tinha ficado estendido no chão, sem sentidos: molhámos-lhe a
testa, demos-lhe a respirar vinagre de _toilette_. Voltou a si, e, ainda
tremulo e pallido, o seu primeiro movimento instinctivo foi correr para a
janella!

O mascarado, porém, tinha-o envolvido fortemente com os braços, e
arremessou-o com violencia para cima de uma cadeira, ao fundo do quarto.
Tirou do seio um punhal, e disse-lhe com voz fria e firme:

--Se faz um gesto, se dá um grito, se tem um movimento, varo- lhe o
coração!

--Vá, vá, disse eu, breve! responda... Que quer? Que veio fazer aqui?

Elle não respondia, e com a cabeça tomada entre as mãos, repetia
machinalmente:

--Está perdido tudo! Está tudo perdido!

--Falle, disse-lhe o mascarado, tomando-lhe rudemente o braço, que veiu
fazer aqui? Que é isto? como soube?...

A sua agitação era extrema: luziam-lhe os olhos entre o setim negro da
mascara.

--Que veiu fazer aqui? repetiu agarrando-o pelos hombros e sacudindo-o
como um vime.

--Escute... disse o homem convulsivamente. Vinha saber... disseram-me...
Não sei. Parece que já cá estava a policia... queria... saber a verdade,
indagar quem o tinha assassinado... vinha tomar informações...

--Sabe tudo! disse o mascarado, aterrado, deixando pender os braços.

Eu estava surprehendido; aquelle homem conhecia o crime, sabia que havia
ali um cadaver! Só elle o sabia, porque deviam ser de certo absolutamente
ignorados aquelles successos lugubres. Por consequencia quem sabia onde
estava o cadaver, quem tinha uma chave da casa, quem vinha alta noite ao
logar do assassinato, quem tinha desmaiado vendo-se surprehendido, estava
positivamente envolvido no crime...

--Quem lhe deu a chave? perguntou o mascarado.

O homem calou-se.

--Quem lhe fallou n'isto?

Calou-se.

--Que vinha fazer, de noite, ás escondidas, a esta casa?

Calou-se.

--Mas como sabia d'este absoluto segredo, de que apenas temos conhecimento
nós?...

E voltando-se para mim, para me advertir com um gesto imperceptivel do
expediente que ia tomar, accrescentou:

-- ... nós e o senhor comissário.

O desconhecido calou-se. O mascarado tomou-lhe o paletot e examinou-lhe os
bolsos. Encontrou um pequeno martello e um masso de pregos.

--Para que era isto?

--Trazia naturalmente isso, queria concertar não sei quê, em casa... um
caixote...

O mascarado tomou a luz, approximou-se do morto, e por um movimento
rapido, tirando a manta de viagem, descobriu o corpo: a luz caiu sobre a
livida face do cadaver.

--Conhece este homem?

O desconhecido estremeceu levemente e pousou sobre o morto um longo olhar,
demorado e attento.

Eu em seguida cravei os meus olhos, com uma insistencia implacavel nos
olhos d'elle, dominei-o, dísse-lhe baixo, apertando-lhe a mão:

--Porque o matou?

--Eu? gritou elle. Está doido!

Era uma resposta clara, franca, natural, innocente.

--Mas porque veiu aqui? observou o mascarado, como soube do crime? Como
tinha a chave? Para que era este martello? Quem é o senhor? Ou dá
explicações claras, ou d'aqui a uma hora está no segredo, e d'aqui a um
mez nas galés. Chame os outros, disse elle para mim.

--Um momento, meus senhores, confesso tudo, digo tudo! gritou o
desconhecido.

Esperámos; mas retraindo a voz, e com uma intonação demorada, como quem
dicta:

--A verdade, prosseguiu, é esta: encontrei hoje de tarde um homem
desconhecido, que me deu uma chave e me disse: sei que é Fulano, que é
destemido, vá a tal rua, n.º tantos...

Eu tive um movimento avido, curioso, interrogador. Ia emfim saber onde
estava!

Mas o mascarado com um movimento impetuoso pôz-lhe a mão aberta sobre a
bocca, comprimindo-lhe as faces, e com uma voz surda e terrível:

--Se diz onde estamos, mato-o.

O homem fitou-nos: comprehendeu evidentemente que eu tambem estava ali,
sem saber onde, por um mysterio, que os motivos da nossa presença eram
tambem suspeitos, e que por consequencia não eramos empregados da policia.
Esteve um momento calado e accrescentou:

--Meus senhores, esse homem fui eu que o matei, que querem mais? Que fazem
aqui?

--Está preso, gritou o mascarado. Vá chamar os outros, doutor. É o
assassino.

--Esperem, esperem, gritou elle, não comprehendo! Quem são os senhores?
Suppuz que eram da policia... São talvez... disfarçam para me
surprehender! Eu não conheço aquelle homem, nunca o vi. Deixem-me sair...
Que desgraça!

--Este miseravel ha de fallar, elle tem o segredo! bradava o mascarado.

Eu tinha-me sentado ao pé do homem. Queria tentar a doçura, a astucia.
Elle tinha serenado, fallava com intelligencia e com facilidade. Disse-me
que se chamava A. M. C., que era estudante de medicina e natural de Vizeu.
O mascarado escutava-nos, silencioso e attento. Eu fallando baixo com o
homem, tinha-lhe pousado a mão sobre o joelho. Elle pedia-me _que o
salvasse_, chamava-me seu _amigo_. Parecia-me um rapaz exaltado, dominado
pela imaginação. Era facil surprehender a verdade dos seus actos. Com um
modo intimo, confidencial, fiz-lhe perguntas apparentemente sinceras e
simples, mas cheias de traição e de analyse. Elle, com uma boa fé
inexperiente, a todo o momento se descobria, se denunciava.

--Ora, disse-lhe eu, uma cousa me admira em tudo isto.

--Qual?

--É que não tivesse deixado signaes o arsenico...

--Foi opio, interrompeu elle, com uma simplicidade infantil.

Ergui-me de salto. Aquelle homem, se não era o assassino, conhecia
profundamente todos os segredos do crime.

--Sabe tudo, disse eu ao mascarado.

--Foi elle, confirmou o mascarado convencido.

Eu tomei-o então de parte, e com uma franqueza simples:

--A comedia acabou, meu amigo, tire a sua mascara, apertemo-nos a mão,
dêmos parte á policia. A pessoa que o meu amigo receava descobrir, não tem
decerto que vêr n'este negócio.

--De certo que não. Este homem é o assassino.

E voltando-se para elle com um olhar terrivel, que flammejava debaixo da
mascara:

--E porque o matou?

--Matei-o... respondeu o homem.

--Matou-o, disse o mascarado com uma lentidão de voz que me aterrou, para
lhe roubar 2:300 libras em _bank-notes_, que aquelle homem tinha no bolso,
dentro de uma bilheteira em que estavam monogramadas duas lettras de
prata, que eram as iniciais do seu nome.

--Eu!... para o roubar! Que infamia! Mente! Eu não conheço esse homem,
nunca o vi, não o matei!

--Que malditas contradicções! gritou o mascarado exaltado.

A.M.C. objectou lentamente:

--O senhor que está mascarado... este homem não era seu amigo, o unico
amigo que elle conhecia em Lisboa?

--Como sabe? gritou repentinamente o mascarado, tomando-lhe o braço.
Falle,diga.

--Por motivos que devo occultar, continuou o homem, sabia que este
sujeito, que é extrangeiro, que não tem relações em Lisboa, que chegou ha
poucas semanas, vinha a esta casa...

--É verdade, atalhou o mascarado.

--Que se encontrava aqui com alguem...

--É verdade, disse o mascarado.

Eu, pasmado, olhava para ambos, sentia a lucidez das idéas perturbada, via
apparecer uma nova causa imprevista, temerosa e inexplicavel.

--Além d'isso, continuou o homem desconhecido, ha de saber tambem que um
grande segredo occupava a vida d'este infeliz...

--É verdade, é verdade, dizia o mascarado absorto.

--Pois bem, hontem uma pessoa, que casualmente não podia sair de casa,
pediu-me que viesse ver se o encontrava...

Nós esperavamos, petrificados, o fim daquellas confissões.

--Encontrei-o morto ao chegar aqui. Na mão tinha este papel.

E tirou do bolso meia folha de papel de carta, dobrada.

--Leia, disse elle ao mascarado.

Este approximou o papel da luz, deu um grito, caiu sobre uma cadeira com
os braços pendentes, os olhos cerrados.

Ergui o papel, li:

_I declare that I have killed myself with opium._

(Declaro que me matei com opio).

Fiquei petrificado.

O mascarado dizia com a voz absorta como n'um sonho:

--Não é possivel. Mas é a lettra dele, é! Ah! que mysterio, que mysterio!

Vinha a amanhecer.

Sinto-me fatigado de escrever. Quero aclarar as minhas recordações. Até
ámanhã.


VI


Peço-lhe agora toda a sua attenção para o que tenho de contar-lhe.

A madrugada vinha. Sentiam-se já os ruidos da povoação que desperta. A rua
não era macadamizada, porque eu sentia o rodar dos carros sobre a calçada.
Tambem não era uma rua larga, porque o echo das carroças era profundo,
cheio e proximo. Ouvia pregões. Não sentia carruagens.

O mascarado tinha ficado n'uma prostração extrema, sentado, immovel, com a
cabeça apoiada nas mãos.

O homem que tinha dito chamar-se A. M. C. estava encostado no sofá, com os
olhos cerrados, como adormecido.

Eu abri as portas da janella: era dia. Os transparentes e as persianas
estavam corridos. Os vidros eram foscos como os dos globos dos candieiros.
Entrava uma luz lugubre, esverdeada.

--Meu amigo, disse eu ao mascarado, é dia. Coragem! é necessario fazer o
exame do quarto, movel por movel.

Elle ergueu-se e correu o reposteiro do fundo. Vi uma alcova, com uma
cama, e á cabeceira uma pequena mesa redonda, coberta com um panno de
velludo verde. A cama não estava desmanchada, cobria-a um _edredon_ de
setim encarnado. Tinha um só travesseiro largo, alto e fôfo, como se não
usam em Portugal; sobre a mesa estava um cofre vasio e uma jarra com
flores murchas. Havia um lavatorio, escovas, sabonetes, esponjas, toalhas
dobradas e dois frascos esguios de violetas de Parma. Ao canto da alcova
estava uma bengala grossa com estoque.

Na disposição dos objectos na sala não havia nenhuma particularidade
significativa. O exame d'ella dava na verdade a persuasão de que se estava
n'uma casa raramente habitada, visitada a espaços apenas, sendo um logar
de entrevistas, e não um interior regular.

A casaca e o collete do morto estavam sobre uma cadeira; um dos sapatos
via-se no chão, ao pé da _chaise-longue_; o chapeu achava-se sobre o
tapete, a um canto, como arremessado. O paletot estava caido ao pé da
cama.

Procuraram-se todos os bolsos dos vestidos do morto: não se encontrou
carteira, nem bilhetes, nem papel algum. Na algibeira do collete estava o
relogio, de ouro encobrado, sem firma, e uma pequena bolsa de malha
d'ouro, com dinheiro miudo. Não se lhe encontrou lenço. Não se pôde
averiguar em que tivesse sido trazido de fóra o opio; não appareceu
frasco, garrafa, nem papel ou caixa em que tivesse estado, em liquido ou
em pó; e foi a primeira difficuldade que no meu espírito se apresentou
contra o suicidio.

Perguntei se não havia na casa outros quartos que communicassem com
aquelle aposento e que devessemos visitar.

--Há, disse o mascarado, mas este predio tem duas entradas e duas escadas.
Ora aquella porta, que communica com os demais quartos, encontrámol-a
fechada pelo outro lado quando chegámos aqui. Logo este homem não saiu
d'esta sala depois que subiu da rua e antes de morrer ou de ser morto.

Como tinha então trazido o opio? Ainda quando o tivesse já no quarto, o
frasco, ou qualquer envolucro que contivesse o narcotico devia apparecer.
Não era natural que tivesse sido aniquilado. O copo em que ficara o resto
da agua opiada, alli estava. Um indicio mais grave parecia destruir a
hypothese do suicidio: não se encontrou a gravata do morto. Não era
natural que elle a tivesse tirado, que a tivesse destruido ou lançado
fóra. Não era tambem racional que tendo vindo áquelle quarto,
esmeradamente vestido como para uma visita cerimoniosa, não trouxesse
gravata. Alguem pois tinha estado n'aquella casa, ou pouco antes da morte
ou ao tempo d'ella. Era essa pessoa que tinha para qualquer fim tomado a
gravata do morto.

Ora a presença de alguem n'aquelle quarto, coincidindo com a estada do
supposto suicidado ali, tirava a possibilidade ao suicidio e dava
presumpções ao crime.

Aproximámo-nos da janella, examinámos detidamente o papel em que estava
escripta a declaração do suicida.

--A lettra é d'ele, parece-me indubitavel que é--disse o mascarado--mas na
verdade, não sei porque, não lhe acho a feição usual da sua escripta!

Observou-se o papel escrupulosamente; era meia folha de escrever cartas.
Notei logo no alto da pagina a impressão muito apagada, muito indistincta,
d'uma firma e de uma corôa, que devia ter estado gravada na outra meia
folha. Era portanto papel marcado. Fiz notar esta circumstancia ao
mascarado: elle ficou surprehendido e confuso. No quarto não havia papel,
nem tinteiro, nem pennas. A declaração pois tinha sido escripta e
preparada fóra.

--Eu conheço o papel de que elle usava em casa, disse o mascarado; não é
d'este; não tinha firma, não tinha corôa. Não podia usar d'outro.

A impressão da marca não era bastante distincta para que se percebesse
qual fosse a firma e qual a corôa. Ficava, porém, claro que a declaração
não tinha sido escripta nem em casa d'elle, onde não havia d'aquelle
papel, nem n'aquelle quarto, onde não havia papel algum, nem tinteiro, nem
um livro, um _buvard_, um lapis.

Teria sido escripta fóra, na rua, ao acaso? Em casa d'alguem? Não, porque
elle não tinha em Lisboa, nem relações intimas, nem conhecimento de
pessoas cujo papel fosse marcado com corôa.

Teria sido feita n'uma loja de papel? Não, porque o papel que se vende
vulgarmente nas lojas não tem corôas.

Seria a declaração escripta n'alguma meia folha branca tirada de uma velha
carta recebida? Não parecia tambem natural, porque o papel estava dobrado
ao meio e não tinha os vincos que dá o _enveloppe_.

Demais a folha tinha um aroma de pós de _marechala_, o mesmo que se
sentia, suavemente embebido no ar do quarto em que estavamos.

Além d'isso, pondo o papel directamente sobre a claridade da luz,
distingui o vestigio de um dedo polegar, que tinha sido assente sobre o
papel no momento de estar suado ou humido, e tinha embaciado a sua
brancura lisa e assetinada, havendo deixado uma impressão exacta. Ora este
dedo parecia delgado, pequeno, feminil. Este indicio era notavelmente
vago, mas o mascarado tinha a esse tempo encontrado um, profundamente
efficaz e seguro.

--Este homem, notou elle, tinha o costume invariavel, mechanico, de
escrever, abreviando-a, a palavra _that_, d'este modo: dois TT separados
por um traço. Esta abreviatura era só d'elle, original, desconhecida.
N'esta declaração, aliás pouco ingleza, a palavra _that_ acha-se escripta
por inteiro.

Voltando-se então para M. C.:

--Porque não apresentou logo este papel? perguntou o mascarado. Esta
declaração foi falsificada.

--Falsificada! exclamou o outro, erguendo-se com sobresalto ou com
surpreza.

--Falsificada; feita para encobrir o assassinato: tem todos os indicios
d'isso. Mas o grande, o forte, o positivo indicio é este: onde estão 2:300
libras em notas de Inglaterra, que este homem tinha no bolso?

M. C. olhou-o pasmado, como um homem que acorda de um sonho.

--Não apparecem, porque o senhor as roubou. Para as roubar matou este
homem. Para encobrir o crime falsificou este bilhete.

--Senhor, observou gravemente A.M.C., falla-me em 2:300 libras: dou-lhe a
minha palavra de honra que não sei a que se quer referir.

Eu então disse lentamente pondo os olhos com uma perscrutação demorada
sobre as feições do mancebo:

--Esta declaração é falsa, evidentemente, não percebo o que quer dizer
este novo negocio das 2:300 libras, de que só agora se falla; o que vejo é
que este homem foi envenenado: ignoro se foi o senhor, se foi outro que o
matou, o que sei é que evidentemente o cumplice é uma mulher.

--Não póde ser, doutor!, gritou o mascarado. É uma supposição absurda.

--Absurda!?... E este aposento, este quarto forrado de seda, fortemente
perfumado, carregado de estofos, illuminado por uma claridade baça coada
por vidros foscos; a escada coberta com um tapete; um corrimão engenhado
com uma corda de seda; ali aos pés d'aquella volteriana aquelle tapete
feito de uma pelle de urso, sobre a qual me parece que estou vendo o
vestigio de um homem prostrado? Não vê em tudo isto a mulher? Não é esta
evidentemente uma casa destinada a entrevistas de amor?...

--Ou a qualquer outro fim.

--E este papel? este papel de marca pequenissima, do que as mulheres
compram em Paris, na casa Maquet, e que se chama papel da Imperatriz?

--Muitos homens o usam!

--Mas não o cobrem como este foi coberto, com um _sachet_ em que havia o
mesmo aroma que se respira no ambiente d'esta casa. Este papel pertence a
uma mulher, que examinou a falsificação que elle encerra, que assistiu a
ella, que se interessava na perfeição com que a fabricassem, que tinha os
dedos humidos, deixando no papel um vestigio tão claro...

O mascarado calava-se.

--E um ramo de flôres murchas, que está ali dentro? um ramo que examinei e
que é formado por algumas rosas, presas com uma fita de veludo? A fita
está impregnada do perfume da pomada, e descobre-se-lhe um pequeno vinco,
como o de uma unhada profunda, terminando em cada extremidade por um
buraquinho... É o vestigio flagrante que deixou no veludo um gancho de
segurar o cabello!

--Esse ramo podiam ter-lh'o dado, podia tel-o trazido elle mesmo de fóra.

--E este lenço que encontrei hontem debaixo de uma cadeira?

E atirei o lenço para cima da mesa. O mascarado pegou n'elle avidamente,
examinou-o e guardou-o.

M. C. olhava pasmado para mim, e parecia aniquillado pela dura logica das
minhas palavras. O mascarado ficou por alguns momentos silencioso; depois
com voz humilde, quasi supplicante:

--Doutor, doutor, por amor de Deus! esses indicios não provam. Este lenço,
de mulher indubitavelmente, estou convencido que é o mesmo que o morto
trazia no bolso. É verdade: não se lembra que não lhe encontrámos lenço?

--E não se lembra tambem que não lhe encontrámos gravata?

O mascarado calou-se succumbido.

--No fim de contas eu não sou aqui juiz, nem parte, exclamei eu. Deploro
vivamente esta morte, e fallo n'isto unicamente pelo pezar e pelo horror
que ella me inspira. Que este moço se matasse ou que fosse morto, que
caisse ás mãos de uma mulher ou ás mãos de um homem, importa-me pouco. O
que devo dizer-lhe é que o cadáver não póde ficar por muito mais tempo
insepulto: é preciso que o enterrem hoje. Mais nada. É dia. O que desejo é
sair.

--Tem razão, vae sair já, cortou o mascarado.

E em seguida, tomando M. C. pelo braço, disse-me:

--Um momento! Eu volto já!

E sairam ambos pela porta que communicava com o interior da casa,
fechando-a á chave pelo outro lado.

Fiquei só, passeando agitadamente.

A luz do dia tinha feito surgir no meu espírito uma multidão de
pensamentos inteiramente novos e diversos d'aqueles que me haviam occupado
durante a noite. Ha pensamentos que não vivem senão no silencio e na
sombra, pensamentos que o dia desvanece e apaga; ha outros que só surgem
ao clarão do sol.

Eu sentia no cerebro uma multidão de idéas extremunhadas, que á luz
repentina da madrugada voejavam em turbilhão como um bando de pombas
amedrontadas pelo estridor de um tiro.

Machinalmente entrei na alcova, sentei-me na cama, encostei um braço no
travesseiro.

Então, não sei como, olhei, reparei, vi, com extranha commoção, sobre a
alvura do travesseiro, preso n'um botão de madreperola, um longo cabello
louro, um cabello de mulher.

Não me atrevi logo a tocar-lhe. Puz-me a contemplal-o, avida e longamente.

--Era então certo! ahi estás pois! encontro-te finalmente!... Pobre
cabello! apieda-me a simplicidade innocente com que te ficaste ahi,
patente, descuidado, preguiçoso, languido! Pódes ter maldade, pódes ter
malvadez, mas não tens malicia, não tens astucia. Tenho-te nas mãos,
fito-te com os meus olhos; não foges, não estremeces, não córas; dás-te,
consentes-te, facilitas-te, meiga, doce, confiadamente... E, no emtanto,
tenue, exigua, quasi microscopica, és uma parte da mulher que eu
adivinhava, que eu antevia, que eu procuro! É ella auctora do crime? é
inteiramente innocente? é apenas cumplice? Não sei, nem tu m'o poderás
dizer?

De repente, tendo continuado a considerar o cabello, por um processo de
espírito inexplicavel, pareceu-me reconhecer de subito aquelle fio louro,
reconhecel-o em tudo: na sua côr, na sua _nuance_ especial, no seu
aspecto! Lembrou-me, appareceu-me então a mulher a quem aquelle cabello
pertencia! Mas quando o nome d'ella me veio insensivelmente aos
labios,disse commigo:

--Ora! por um cabello! que loucura!

E não pude deixar de rir.

Esta carta vae já demasiadamente longa. Continuarei ámanhã.


VII


Contei-lhe hontem como inesperadamente havia encontrado á cabeceira da
cama um cabello louro.

Prolongou-se a minha dolorosa surpreza. Aquelle cabello luminoso,
languidamente enrolado, quasi casto, era o indicio d'um assassinato, d'uma
cumplicidade pelo menos! Esqueci-me em longas conjecturas, olhando,
immovel, aquelle cabello perdido.

A pessoa a quem elle pertencia era loura, clara de certo, pequena,
_mignonne_, porque o fio de cabello era delgadissimo, extraordinariamente
puro, e a sua raiz branca parecia prender-se aos tegumentos craneanos por
uma ligação tenue, delicadamente organisada.

O caracter d'essa pessoa devia ser doce, humilde, dedicado e amante,
porque o cabello não tinha ao contacto aquella aspereza cortante que
offerecem os cabellos pertencentes a pessoas de temperamento violento,
altivo e egoista.

Devia ter gostos simples, elegantemente modestos a dona de tal cabello, já
pelo imperceptivel perfume d'elle, já porque não tinha vestigios de ter
sido frisado, ou caprichosamente enrolado, domado em penteados
phantasiosos.

Teria sido talvez educada em Inglaterra ou na Allemanha, porque o cabello
denotava na sua extremidade ter sido espontado, habito das mulheres do
norte, completamente extranho ás meridionaes, que abandonam os seus
cabelos á abundante espessura natural.

Isto eram apenas conjecturas, deducções da phantasia, que nem constituem
uma verdade scientifica, nem uma prova judicial.

Esta mulher, que eu reconstruia assim pelo exame d'um cabello, e que me
apparecia doce, simples, distincta, finamente educada, como poderia ter
sido o protagonista cheio de astucia d'aquella occulta tragedia? Mas
conhecemos nós porventura a secreta logica das paixões?

Do que eu estava perfeitamente convencido é que havia uma mulher como
cumplice. Aquelle homem não se tinha suicidado. Não estava decerto só, no
momento em que bebera o opio. O narcotico tinha-lhe sido dado, sem
violencia evidentemente, por ardil ou engano, n'um copo d'agua. A ausencia
do lenço, o desapparecimento da gravata, a collocação do fato, aquelle
cabello louro, uma cova recentemente feita no travesseiro pela pressão de
uma cabeça, tudo indicava a presença d'alguem n'aquella casa durante a
noite da catastrophe. Por consequencia: impossibilidade de suicidio,
verosimilhança de crime.

O lenço achado, o cabello, a disposição da casa, (evidentemente destinada
a entrevistas intimas) aquelle luxo da sala, aquella escada velha,
devastada, coberta com um tapete, a corda de seda que eu tinha sentido...
tudo isto indicava a presença, a cumplicidade de uma mulher. Qual era a
parte d'ella n'aquella aventura? Não sei. Qual era a parte de A. M. C.?
Era o assassino, o cumplice, o occultador do cadaver? Não sei. M. C. não
podia ser extranho a essa mulher. Não era de certo um cumplice tomado
exclusivamente para o crime. Para dar opio n'um copo de agua não é
necessario chamar um assassino assalariado. Tinham por consequencia um
interesse commum. Eram amantes? Eram casados? Eram ladrões? E accudia-me á
memoria aquella inesperada referencia a 2:300 libras que de repente me
tinha apparecido como um novo mysterio. Tudo isto eram conjecturas
fugitivas. Para que hei de repetir eu todas as idéas que se formavam e que
se desmanchavam no meu cerebro, como nuvens n'um ceu varrido pelo vento?

Há de certo na minha hypothese ambiguidades, contradicções e fraquezas, ha
nos indicios que colhi lacunas e incoherencias: muitas cousas
significativas me escaparam por certo, ao passo que muitos pormenores
inexpressivos se me gravaram na memoria, mas eu estava n'um estado morbido
de perturbação, inteiramente desorganisado por aquella aventura, que
inesperadamente, com o seu cortejo de sustos e mysterios, se installara na
minha vida.

O senhor redactor, que julga de animo frio, os leitores, que
socegadamente, em sua casa, lêem esta carta, poderão melhor combinar,
estabelecer deducções mais certas, e melhor approximar-se pela inducção e
pela logica da verdade occulta.

Eu achava-me só havia uma hora, quando o mascarado alto entrou, trazendo o
chapeu na cabeça e no braço uma capa de casimira alvadia.

--Vamos, disse elle.

Tomei calado o meu chapéu.

--Uma palavra antes, disse elle. Em primeiro logar dê-me a sua palavra de
honra que ao subir agora á carruagem não terá um gesto, um grito, um
movimento que me denuncie.

Dei a minha palavra.

--Bem! continuou, agora quero dizer-lhe mais: aprecio a dignidade do seu
caracter, a sua delicadeza. Ser-me-hia doloroso que entre nós houvesse em
qualquer tempo motivos de desdem, ou necessidades de vingança. Por isso
affirmo-lhe: sou perfeitamente extranho a este successo. Mais tarde talvez
entregue este caso á policia. Por ora sou eu policia, juiz e talvez
carrasco. Esta casa é um tribunal e um carcere. Vejo que o doutor leva
d'aqui a desconfiança de que uma mulher se envolveu n'este crime: não o
supponha, não podia ser. No emtanto, se alguma vez lá fóra fallar, a
respeito d'este caso, em alguma pessoa determinada e conhecida, dou-lhe a
minha palavra de honra, doutor, que o mato, sem remorso, sem repugnancia,
naturalmente, como corto as unhas. Dê-me agora o seu braço. Ah!
esquecia-me, meu caro, que os seus olhos estão destinados a ter estas
lunetas de cambraia.

E, rindo, apertou-me o lenço nos olhos.

Descemos a escada, entrámos na carruagem, que tinha os stores fechados.
Não pude vêr quem guiava os cavallos porque só dentro do coupé achei a
vista livre. O mascarado sentou-se ao pé de mim. Via-lhe uma pequena parte
da face tocada da luz. A pelle era fina, pallida, o cabello castanho,
levemente annelado.

A carruagem seguiu um caminho, que pelos accidentes da estrada, pela
differença de velocidade indicando acclives e declives, pelas alternativas
de macadam e de calçada, me parecia o mesmo que tinhamos seguido na
vespera, no começo da aventura. Rodámos finalmente na estrada larga.

--Ah, doutor!, dizia o mascarado com desenfado, sabe o que me afflige? É
que o vou deixar na estrada, só, a pé! Não se póde remediar isto. Mas não
se assuste. O Cacem fica a dois passos, e ahi encontra facilmente
conducção para Lisboa.

E offereceu-me charutos.

Depois de algum tempo, em que fomos na maior velocidade, a carruagem
parou.

--Chegámos, disse o mascarado. Adeus, doutor.

E abriu por dentro a portinhola.

--Obrigado! accrescentou. Creia que o estimo. Mais tarde saberá quem sou.
Permitta Deus que ambos tenhamos no applauso das nossas consciencias e no
prazer que dá o cumprimento de um grande dever o derradeiro desenlace da
scena a que assistiu. Restituo-lhe a mais completa liberdade. Adeus!

Apertámo-nos a mão, eu saltei. Elle fechou a portinhola, abriu os stores e
estendendo-me para fóra um pequeno cartão:

--Guarde essa lembrança, disse, é o meu retrato.

Eu, de pé, na estrada, junto das rodas, tomei a photographia avidamente,
olhei. O retrato estava tambem mascarado!

--É um capricho do anno passado, depois de um baile de mascaras! gritou
elle, estendendo a cabeça pela portinhola da carruagem que começava a
rodar a trote.

Via-a affastando-se na estrada. O cocheiro tinha o chapeu derrubado, uma
capa traçada sobre o rosto.

Quer que lhe diga tudo? Olhei para a carruagem com melancolia! Aquelle
trem levava comsigo um segredo inexplicavel. Nunca mais veria aquelle
homem. A aventura desvanecia-se, tinha findado tudo.

O pobre morto, esse lá ficava, estendido no sophá, que lhe servia de
sarcophago!

Achei-me só, na estrada. A manhã estava nevoada, serena, melancolica. Ao
longe distinguia ainda o trem. Um camponez appareceu vindo do lado opposto
áquelle por onde elle desapparecia.

--Onde fica o Cacem?

--De lá venho eu, senhor. Sempre pela estrada, a meio quarto de legua.

A carruagem, pois, tinha-se dirigido para Cintra.

Cheguei ao Cacem fatigado. Mandei um homem a Cintra, á quinta de F., saber
se tinham chegado os cavallos; pedi para Lisboa uma carruagem, e esperei-a
a uma janella, por dentro dos vidros, olhando tristemente para as arvores
e para os campos. Havia meia hora que estava ali, quando vi passar a toda
a brida um fogoso cavallo. Pude apenas distinguir entre uma nuvem de pó o
vulto quasi indistincto do cavalleiro. Ia para Lisboa embuçado em uma capa
alvadia.

Tomei informações a respeito da carruagem que passara na vespera comnosco.
Havia contradicções sobre a côr dos cavallos.

Voltou de Cintra o homem que eu ali mandára, dizendo que na quinta de F.
tinham sido entregues os cavallos por um criado do campo, o qual dissera
que os senhores ao pé do Cacem, tinham encontrado um amigo que os levara
comsigo em uma caleche para Lisboa. D'ahi a momentos chegou a minha
carruagem. Voltei a Lisboa, corri a casa de F. O criado tinha recebido
este bilhete a lapis: _Não esperem por mim estes dias. Estou bom. A quem
me procurar, que fui para Madrid._

Procurei-o debalde por toda a Lisboa. Comecei a inquietar-me. F. estava
evidentemente retido. Receei por mim. Lembraram-me as ameaças do
mascarado, vagas mas resolutas. Na noite seguinte, ao recolher para casa,
notei que era seguido.

Entregar á policia este negocio, tão vago e tão incompleto como elle é,
seria tornar-me o denunciante de uma chimera. Sei que, em resultado das
primeiras noticias que lhe dei, o governador civil de Lisboa officiou ao
administrador de Cintra convidando-o a metter o esforço da sua policia no
descobrimento d'este crime. Foram inuteis estas providencias. Assim devia
ser. O successo que constitue o assumpto d'estas cartas está por sua
natureza fóra da alçada das pesquizas policiaes. Nunca me dirigi ás
authoridades, quiz simplesmente valer-me do publico, escolhendo para isso
as columnas populares do seu periodico. Resolvi homiziar-me, receando ser
victima de uma emboscada.

São obvias, depois d'isto, as rasões por que lhe occulto o meu nome:
assignar estas linhas seria patentear-me; não seria esconder-me, como
quero.

Do meu impenetravel retiro lhe dirijo esta carta. É manhã. Vejo a luz do
sol nascente atravez das minhas jelozias. Oiço os pregões dos vendedores
matinaes, os chocalhos das vaccas, o rodar das carruagens, o murmurio
alegre da povoação que se levanta depois de um somno despreoccupado e
feliz... Invejo aquelles que não tendo a fatalidade de secretas aventuras
passeiam, conversam, moirejam na rua. Eu--pobre de mim!--estou encarcerado
por um mysterio, guardado por um segredo!


P. S. Acabo de receber uma longa carta de F. Esta carta, escripta ha dias,
só hoje me veiu á mão. Sendo-me enviada pelo correio, e tendo-me eu
ausentado da casa em que vivia sem dizer para onde me mudava, só agora
pude haver essa interessante missiva. Ahi tem, senhor redactor, copiada
por mim, a primeira parte d'essa carta, da qual depois de ámanhã lhe
enviarei o resto. Publique-a, se quiser. É mais do que um importante
esclarecimento n'este obscuro successo; é um vestigio luminoso e profundo.
F... é um escriptor publico, e descobrir pelo estylo um homem é muito mais
facil do que reconstruir sobre um cabello a figura de uma mulher. É
gravissima a situação do meu amigo. Eu, afflicto, cuidadoso, hesitante,
perplexo, não sabendo o que faça, não podendo deliberar pela reflexão,
rendo-me á decisão do acaso, e elimino, juntamente com a letra do
autographo, as duas palavras que constituem o nome que firma essa longa
carta. Não posso, não devo, não me atrevo, não ouso dizer mais. Poupem-me
a uma derradeira declaração, que me repugna. Adivinhem... se poderem.
Adeus!




+INTERVENÇÃO DE Z.+


Nota do Diario de Noticias.--No original da carta publicada hontem havia
algumas palavras a lapis, nas quaes só fizemos reparo depois de impresso o
jornal. Essas palavras continham esta observação: _A photographia do
mascarado foi feita em casa de Henrique Nunes, rua das Chagas, Lisboa.
Talvez ahi possa haver noticia do sujeito photographado._

Antes de darmos á estampa a longa carta de F..., cuja primeira parte nos
foi hontem enviada pelo medico, é dever nosso tornar conhecida uma outra
importantissima que recebemos pela posta interna, assignada com a inicial
_Z._, e que temos em nosso poder ha já tres dias. Esta carta, que tão
estreitamente vem prender-se na historia dos successos que constituem o
assumpto d'esta narrativa, é a seguinte:

Senhor redactor do _Diario de Noticias_.--Lisboa, 30 de julho de
1870.--Escrevo-lhe profundamente indignado. Principiei a ler, como quasi
toda a gente em Lisboa, as cartas publicadas na sua folha, em que o doutor
anonymo conta o caso que essa redacção intitulou _O mysterio da Estrada de
Cintra_. Interessava-me essa narrativa e segui-a com a curiosidade
despreoccupada que se liga a um _canard_ fabricado com engenho, a um
romance á similhança dos _Thugs_ e de alguns outros do mesmo genero com
que a veia imaginosa dos phantasistas francezes e americanos vem de quando
em quando acordar a attenção da Europa para um successo estupendo. A
narração do seu periodico tinha sobre as demais que tenho lido o merito
original de se passarem os successos ao tempo que se vão lendo, de serem
anonymas as personagens e de estar tão secretamente encoberta a mola
principal do enredo, que nenhum leitor poderia contestar com provas a
veracidade do caso portentosamente romanesco, que o auctor da narrativa se
lembrara de lançar de repente ao meio da sociedade prosaica, ramerraneira,
simples e honesta em que vivemos. Ia-me parecendo ter diante de mim o
ideal mais perfeito, o typo mais acabado do _roman feuilleton_, quando
inesperadamente encontro no folhetim publicado hoje as iniciaes de um nome
de homem--A. M. C.--accrescentando-se que a pessoa designada por estas
lettras é estudante de medicina e natural de Vizeu. Eu tenho um amigo
querido com aquellas iniciaes no seu nome. É justamente estudante de
medicina e natural de Vizeu! O acaso não podia reunir tudo isto. Havia por
tanto o intuito de fazer cobardemente uma insinuação infamissima. Isto não
é licito a romancista nenhum.

A primeira impressão que senti foi a da repulsão e do tedio. Saindo de
casa pouco depois da leitura do seu periodico, procurei o meu amigo para
lhe ler a passagem que lhe dizia respeito, e pôr-me á sua disposição no
caso que precisasse de mim para pedir quanto antes á redacção do _Diario
de Noticias_ a satisfação de honra, que homens de educação e de brio não
poderiam de certo recusar a semelhante aggravo.

Em casa do meu amigo acabo porém de saber, cheio de confusão e de
surpresa, que elle desappareceu e que é ignorado o seu destino!

Este desapparecimento e a coincidencia achada na carta do doutor levam-me
desgraçadamente a acreditar que por extranhas fatalidades o meu infeliz
amigo se acha involuntariamente envolvido n'este tenebroso negocio. A data
do desapparecimento d'elle condiz perfeitamente com a que encontro na
carta do seu correspondente. É claro que ha pois em volta da pessoa de A.
M. C., uma intriga real, uma emboscada talvez, uma traição.

Serei tristemente obrigado a ter por veridica, no todo ou em parte, a
noticia que leio na sua folha?

Julgo do meu dever assegurar o seguinte:

Não sei o que o meu amigo A. M. C. ia fazer alta noite a essa casa
desconhecida, tendo uma chave d'ella, martello e pregos. Não sei porque se
declarou auctor do assassinato, negando-o depois. Ignoro a intima verdade
d'estas contradicções.

Mas o que sei, aquillo de que posso já dar testemunho, e não só eu, mas
amigos, mas numerosas pessoas, é que na noite que se mostra ter sido a do
assassinato elle esteve, até quasi de madrugada, em minha casa,
conversando, rindo, bebendo cerveja.

Saiu talvez ás tres horas da noite.

Declaro tambem, e isto póde ser egualmente apoiado por seguras
testemunhas: que ás nove horas da manhã do dia seguinte estive no quarto
d'elle. Ainda dormia, acordou sobresaltado á minha voz, e tornou a
adormecer em quanto eu procurava entre os seus livros um volume de Taine.

As donas da casa que o hospedam disseram-me que elle entrara pela
madrugada.

--Ali pela volta das tres e meia, conjecturavam ellas.

Ora da minha casa, d'onde saiu ás tres, até casa d'elle, onde entrou ás
tres e meia, o caminho que é longo, occupa justamente este espaço de
tempo.

Por consequencia, respondam: quando commetteu elle o crime? O emprego do
seu tempo está todo justificado: das nove da noite até á madrugada em
minha casa, n'uma conversa jovial e intima; da madrugada até ás nove, n'um
somno pacifico em sua propria casa.

Resta unicamente a meia hora do caminho, da qual não ha testemunhas. É
crivel que em meia hora podesse ir alguem a essa casa, preparar opio,
fazel-o beber a um homem, falsificar uma declaração e vir socegadamente
dormir? Tem isto logica?

Demais o crime foi commettido n'uma casa, o opio foi deitado n'um copo
d'agua, dado traiçoeiramente. O cadaver estava meio despido. Tudo isto
indica que entre o assassino e o desgraçado houve uma entrevista, tinham
conversado intimamente, tinham rido decerto; o que depois morreu tinha
talvez calor, poz-se livremente, tirou o casaco, contaram porventura
anedoctas, e n'um momento de sede, o opio foi dado n'um copo d'agua. E
tudo isto se faz em meia hora! em _meia hora!_ Devendo, meus senhores,
descontar-se d'esta meia hora o tempo que vae de minha casa á casa do
crime, e d'ahi a casa de A. M. C.! Póde isto ser?

Agora outro argumento: Eu conheço A. M. C.: o seu caracter é digno,
impeccavel; o seu coração é compassivo e simples; a sua vida é laboriosa e
isolada; não existe n'ella nem mysterio, nem aventura, nem pathetico:
estava para casar, sem romance, trivialmente.

Eu sabia de todos os seus passos, conhecia as suas relações. Estou certo
que nunca viu o assassinado, o qual, no dizer do doutor, parecia
extrangeiro, sem relações aqui, e domiciliado ha pouco tempo em Portugal!

Poderia ser um encontro casual, uma rixa inesperada? Impossivel. Se o
homem foi encontrado estendido n'um sophá, morto com opio!

Poderia M. C. ter sido assalariado para commetter este crime? Que loucura!
Um homem da sua intelligencia, do seu caracter, da sua elevação de
espírito! Além de que, hoje o emprego de homicida, regular e devidamente
retribuido como uma funcção publica, não existe nos costumes.

Póde-se conceber que um homem que premedita um crime esteja até ao momento
decisivo distrahido, espirituoso, desabotoando os seus paradoxos, bebendo
cerveja? E que depois vá socegadamente dormir, e que um amigo que o visite
na manhã seguinte encontre sobre a sua banca de cabeceira, uma chavena de
chá e um livro de historia?

E dê-se isto com um homem de caracter timido, de habitos modestos, homem
de estudo, sem energia de acção, e de uma notavel franqueza de impressões!

Se me perguntarem, porém, porque apparece M. C. de noite n'aquella casa
com um martello, com pregos, e se declara assassino,--isso não o sei
explicar.

Suspeito que haja uma grande influencia que peza sobre elle, alguem que
com promessas extraordinarias, com seducções indisiveis, o obriga a
apresentar-se como auctor do crime. M. C. evidentemente sacrifica-se. Por
quem, ignoro-o. Mas sacrifica-se, e na ignorancia de que estas dedicações
são sempre desapreciadas perante o trabalho da policia, quer expiar o
crime de outro; perde-se para salvar alguem.

Com que interesse? por que seducções? Não sei explicar. Elle, tão
indifferente ao dinheiro! tão rigido de costumes e de sensações!

Pois bem! M. C. póde sacrificar-se; póde-o fazer. Nós, seus amigos, é que
não podemos consentil-o. O seu corpo, que lhe pertence exclusivamente,
póde dal-o á infecção d'um carcere, ou ao peso d'uma grilheta. Mas o seu
caracter, a sua honra, a sua reputação, a sua alma, essa pertence tambem
aos seus amigos, e a parte que nos pertence havemos de defendel-a
corajosamente.

Não! M. C. não foi o assassino. Dil-o a evidencia, a fatal logica dos
factos, a terrivel mathematica do tempo, o conhecimento do seu caracter, e
a coherencia dos temperamentos, que é uma verdade nas sciencias
physiologicas. Não, não é o assassino. Se o diz, está louco, _mente_.
Digo-lh'o claramente, em frente, diante dos seus proprios olhos fitos
sobre os meus:--Se te declaras o auctor d'esse crime, _mentes_!

Elle tem de certo o senso moral transviado. Se me deixassem fallar-lhe!...
Esclareçam-lhe, pelo amor de Deus, aquella rasão cheia de escuras nuvens
da paixão e da dôr! Isto é afflictivo! Honra, amor, familia, esperança,
tudo esqueceu esse homem! Que se lembre, o desgraçado, que não é só n'este
mundo. Que se lembre que talvez a estas horas, no fundo da provincia, sua
mãe, suas irmãs, sabem já que elle está aqui apontado como assassino! Que
se lembre da terrivel deshonra, do seu futuro perdido, das horas
solitarias da prisão, da atroz vergonha de um interrogatorio publico, e do
echo profundo que faz na alma humana o ruido sinistro dos ferros da
grilheta.

Não ponho no fim d'esta carta o meu nome, porque presinto vagamente n'este
grupo de successos, confusamente conglobados perante a minha apreciação, a
passagem mysteriosa e fatal de um crime que vae poderosamente na direcção
do seu fito, esmagando e despedaçando os estorvos que o impecem. Ora eu
não quero que a publicidade do meu nome leve os cumplices no attentado de
que se trata, ou porventura a policia, a aniquillar ou a embaraçar de
qualquer modo a intervenção expontanea que eu proprio vou ter no
descobrimento dos reus. Conto com os meus recursos, mas preciso para os
pôr em pratica de toda a minha liberdade.

Creia-me, senhor redactor, etc--_Z._




+DE F... AO MEDICO+


I


Julho 21 à 1 hora da noite.

--Meu querido amigo.

--Ignoro se estás em tua casa, para onde te dirijo esta carta, ou se
continuas, como eu, permanecendo aqui em carcere privado. Em qualquer dos
casos, recebidas agora ou encontradas mais tarde, estas letras ficarão
encerrando para aquelle de nós que houver de as ler a lembrança proveitosa
das horas mais extraordinarias da nossa vida.

Escrevo mais para coordenar e fixar na memoria estes momentos do que para
empregar n'outro destino puramente hypothetico esta carta. Será uma pagina
das minhas confidencias que entregarei á discrição ou ao acaso da posta,
reservando-me o direito de lhe pedir que m'as restitua a seu tempo.

Não tornei a ter noticias tuas desde que nos separámos hontem á noite,
pouco tempo depois de termos entrado na sala em que estava o cadaver. O
mascarado que se encarregára de me conduzir ao quarto onde me acho deu-me
o seu braço e disse-me ao ouvido um nome de mulher, a indicação de uma rua
e o numero de uma porta. Era o nome da pessoa que sabes e a designação da
casa em que ella mora! Creio que involuntariamente estremeci, mas consegui
dizer serenamente:

--Não o comprehendo.

Este individuo era o mesmo que na carruagem se conservára sempre calado, o
mesmo que na sala me observava com attenção e desconfiança.

Aquella estatura, aquella falla, aquella voz, posto que apenas perceptivel
ao meu ouvido, não eram novas para mim.

Elle respondeu fallando-me ainda mais baixo:

--Não poderá sair d'aqui antes de dois ou tres dias. Veja se precisa de
escrever uma carta ou de mandar um recado.

Passou-me pela mente uma idéa a respeito d'aquelle homem... Se fosse...

Occorreu-me que teria um meio de desenganar-me se era effectivamente ou se
não era um amigo intimo que eu tinha ao meu lado: arrancar-lhe o relogio;
bastar-me-hia apalpal-o, ainda vendado como eu estava, para reconhecer o
dono. A ser o individuo que eu suppunha, a caixa do relogio teria a lisura
do esmalte e no centro a saliencia de um brasão.

--Escreverei duas linhas, disse eu; quererá dar-me um lapis?

Tinhamos chegado ao quarto que me era destinado e eu desvendei-me ao tempo
em que elle saia promettendo trazer-me o necessario para escrever. O
individuo que voltou com papel e pennas não era o mesmo que acabara de
sair. Assim tinha eu perdido a occasião de confirmar uma suspeita ou de
desvanecer uma duvida.

Em todo o caso escrevi duas linhas ao meu creado serenando-o com relação
ao meu desapparecimento.

--Mais nada? interrogou o desconhecido tomando o meu bilhete.

--Nada mais.

Um sentimento de delicadeza e uma sombra de desconfiança impediam-me de
escrever directamente á pessoa a quem o mascarado se referira.

Fecharam a porta e fiquei só.

Achei-me n'um quarto de interior, bastante espaçoso, mas sem janella. A um
lado havia um lavatorio; sobrepostas a um canto tres malas de viagem, de
coiro de Varsovia com pregos d'aço, estrelladas com senhas de caminhos de
ferro, d'hoteis e de paquetes; a que estava por cima das outras tinha em
grandes lettras pretas sobre uma tira de papel este distico:
_Grand-Hotel-Paris_; uma das senhas era dos paquetes inglezes da carreira
da India. Para outro lado do quarto havia uma cama. Completava a simples
guarnição d'este aposento um sophá forrado de marroquim verde, collocado
no meio da casa defronte de uma ampla mesa em que estava posta a minha
ceia á luz fulgurante de um grande candeeiro com largo _abat-jour_.

Queres que te confesse a verdade? Agradou-me aquelle recolhimento, aquelle
socego, aquella solidão, depois da grande sobreexcitação em que me tinha
achado!

Estirei-me no sophá, puz-me a olhar machinalmente para o circulo da luz
trepidante projectada pelo candeeiro e contornada no tecto pela abertura
do _abat-jour_, e começaram a desafogar-se-me os comprimidos spasmos do
coração em bocejos longos acompanhados de estremecimentos nervosos, que me
convidavam suavemente ao repouso. A minha imaginação occupada n'um
trabalho inconsciente, similhante ao dos sonhos, ia tirando no emtanto do
caso que eu presenceára as ramificações mais illogicas e mais
phantasticas. Os successos por que passámos desde a estrada de Cintra até
á minha entrada n'este quarto appareciam-me redemoinhando convulsamente no
ar como um enorme enigma figurado, cujos objectos tumultuavam impellidos
pelos pontapés de diabinhos sarcasticos, que se riam para mim e me
deitavam de fóra as linguasinhas em braza.

Fui caindo mollemente n'um despego languido, fecharam-se-me os olhos,
adormeci.

Ao acordar, depois de um somno breve mas socegado e reparador, encarei na
ceia que reluzia aos meus olhos.

Havia sobre a mesa um pão, uma caixa de lata com sardinhas de Nantes, uma
terrinasinha de _foie gras_, uma perdiz, uma fatia de queijo e tres
garrafas de vinho de Bourgogne, lacradas de verde; junto d'estas, quatro
garrafas de soda. Na argola de prata do guardanapo estava passado o
sacarolhas. Sobre uma bandeja de metal erguia-se um feixe de charutos côr
de chocolate, luzidios, gordos, apertados nas extremidades com duas fitas
de seda carmesim. Em cima da caixa das sardinhas achava-se collocado o
instrumento destinado a abril-a. O copo era de cristal finissimo, o garfo
de prata dourada, a faca de cabo de madreperola, os pratos de porcellana
brancos, cercados de um estreito filete dourado e verde. Atirei
rapidamente com os pés para o chão. Sentei-me no sophá, senti a fome
encavallar-se-me no dorso, carregar-me na cabeça para cima da ceia,
cingir-me a cinta com as suas pernas esgalgadas e cravar-me no estomago
vasio os acicates da gula.

Ao mesmo tempo ergueu-se-me do outro lado da mesa a abantesma do susto,
cravando os olhos em mim e espalmando por cima das iguarias a sua mão
descarnada e tremula com um gesto prohibitivo e solemne. Atarantado,
perplexo, escutei então dentro de mim um breve dialogo similhante áquelles
que Xavier de Maistre travava de quando em quando com a _besta_, na sua
viagem á volta do quarto.

Havia uma voz pausada e grave que dizia:

--Attenta no que fazes, temerario! abre teus olhos, inconsiderado mortal!
Essa perdiz, cujo peito insidioso e perfido está lourejando a teus olhos,
foi apimentada com arsenico. Aquelle Chambertin, que te espera como uma
onda da lagoa Stigia, embuscada por detraz d'aquelle lettreiro
envernizado, apparentemente simples, elegante, convidativo, mas em verdade
tenebroso e fatal como o distico do festim de Balthazar, aquelle vinho,
que te offerece um beijo refalsado e fementido, está destemperado com
acido prussico. As truffas, lubricas, venaes, devassas, envoltas n'esses
figados de pato, estão empapadas nos temperos lethaes da cosinha dos
Borgias!

A outra voz, insinuante e meiga, dizia n'uma vaga melodia de sereia:

--Come, se tens fome, estupido! Estás com medo do papão, maluco?... Põe os
olhos n'esse lacre: não será um penhor seguro da pureza do liquido que
elle tapa a marca d'esse abonado sinete? Não vês hermeticamente fechada,
chumbada e garantida com os mais especiaes lavores a lata d'essas
sardinhas pescadas nas costas de França e cosinhadas ha seis mezes em
Marselha? Não vês religiosamente grudada e sellada com as etiquetas
insuspeitas e sagradas da acreditada casa Chevet essa terrina de _foie
gras_? Suppões acaso, ó parlapatão, que meio mundo se conjurasse para te
arrancar essa vida inutil? Come, bebe e dorme; aproveita nos braços da
sabedoria as horas gostosas da solidão com que te brinda o acaso.
Deleita-te conversando depois comtigo e repousando-te no seio tepido da
melancolia, d'essa deliciosa fada que só apparece evocada pelos namorados
e pelos solitarios, e que é na terra a irmã mais nova da tristeza, a irmã
_gatée_, a irmã feliz!

Eu no entanto havia cortado a caixa de sardinhas, desgrudado a tampa da
terrina e desarrolhado uma garrafa de vinho e uma garrafa de soda que
misturára n'um copo.

Puz-me por fim a comer com apetite, com valor, com delicia, com uma
especie de bestialidade voluptuosa, sentindo vagamente adejarem em volta
de mim os espiritos beneficos do carcere que bafejaram as prisões de
Silvio Pellico.

É singular isto: achava-me bem!

Depois da ceia accendi um charuto e comecei a passear no quarto, dizendo
comigo:

--Visitemos o paiz!

Na parede que ficava ao lado da porta por onde se entrava havia uma outra
porta. Examinei-a. Estava apenas segura com um ferrolho exterior. Afastei
a cama encostada á parede em que se achava esta porta e abri-a.

Era uma armario na espessura do muro, largo, profundo, dividido a meia
altura por um prateleiro espaçoso e solido.

Occorreu-me que ao fundo do armario haveria talvez um tabique delgado
atravez do qual me seria possivel escutar o que se passasse na casa
contigua.

Penetrei no armario, estendi-me no prateleiro, escutei. Do outro lado
havia um ruido volumoso e macisso. Parecia que se estava arrastando um
movel pesado e grande.

O fundo do armario era effectivamente formado por um tapamento franzino.
Era possivel que tivesse havido primitivamente uma porta no logar em que
se fizera o armario. Havia um ponto em que a argamassa caíra, e eu via
deante de mim um pedaço de ripa atravessada diagonalmente e descarnada da
cal.

Peguei no saccarolhas, e no logar indicado fui esburacando devagarinho e
progressivamente o cimento do muro, até operar um orificio imperceptivel,
pelo qual me era dado vêr a luz e ouvir distinctamente o que se dizia do
outro lado.

Eis-aqui o que ás onze horas e meia da noite se estava passando no quarto
contiguo áquelle que me serve de prisão:


II


Havia dois homens que arrastavam um grande leito de madeira do logar em
que elle estava para ao pé da parede que divide a casa em que me acho
d'aquella em que se passava a scena que descrevo, e exactamente para junto
do logar em que eu acabava de abrir o buraco que me servia de olho e de
orelha.

Um d'esses homens dizia assim:

--Será o que muito bem quizer, mas eu é que não torno a vir cá a andar aos
trambulhões com os moveis á hora da meia noite.

--Ha de ter muita razão de queixa! tornava o outro. Dou-lhe uma libra para
me ajudar, quero saber se não é melhor isto que estar lá em baixo
estendido ao pé da mangedoura, á espera que chegue o trem para ir tratar
dos cavallos, a enfastiar-se sem ganhar vintem.

Aquelle que dizia estas palavras, comquanto se expressasse claramente,
tinha todos os defeitos de pronuncia que distinguem os extrangeiro que
falla portuguez. Pela aspiração especial de certas vogaes e pela
contracção habil com que pronunciava os aa, era por certo allemão.

O que primeiramente fallára, proseguiu:

--É bom lucro... Parece que é bom lucro, mas eu para mim não o quero. E
olhe que não encontra seis homens aqui na rua que entrem cá de noite, a
estas horas, ainda que os pese a oiro!

--Para mudar uma cama!

--Não é pela cama, é por ser a casa que é!

--Ora adeus! que tem a casa?!...

--Não tem nada! É uma graça! Ella é de tal casta que o senhorio teve-a
quatro annos por alugar, foi sempre baixando na renda e por fim dava-a já
de graça e não tinha alma viva que lhe pegasse! A ultima gente que cá
morou esteve só duas noites, e foi-se d'aqui tolhida com as coisas que lhe
appareceram e com as trapalhadas que ouvia... Cruzes demonio! cruzes
diabo!

--Petas! historias da vida!

--O senhor! não me diga que são petas! Pois eu não vi a familia!?... não
estive com elles!? Fugiram de noite, fugiram á segunda noite que dormiram
cá, estarrecidos de medo.

--Então que viram elles?

--Elles não viram nada.

--Então ahi tem!

--Não viram, mas ouviram.

--Haviam de ouvir boas coisas!

--Ouviram, sim senhor, ouviram. E não foi só a elles que succedeu isso,
foi a todos quantos cá moraram. E era gente de bem, que não mentia, que
não tinha precisão de mentir, que tinham pago a sua renda e que ficaram
com ella perdida!

--Então que ouviam elles?

--O senhor bem o sabe!... O que elles ouviam? Ouviam pancadas nas portas,
quando ninguem batia, nem lhes tocava! Ouviam espirrar o lume e estalarem
os carvões exactamente como se estivessem abanando á fogueira, quando
estava a cozinha só e o fogão apagado! Sentiam o bater das asas de um
passaro que principiava a voar pelas casas apenas se apagavam as luzes;
ouviam-o arquejar e bufar approximando-se cada vez mais dos que estavam
deitados, pairando tão rente das camas que se lhe sentia o estremecer das
pennas, o calor de lume que elle deitava do bico e ao mesmo tempo o frio
de neve que fazia a mover as azas!

--Ora adeus! tinham ouvido fallar n'isso e pareceu-lhes que sentiam o tal
passaro, de que já fallavam os inquilinos anteriores, os quaes tambem
tinham ouvido fallar n'elle, não havendo ao fim de contas ninguem que
verdadeiramente o tivesse ouvido.

--Então o senhor não sabe porque foi que elles fugiram, os ultimos que
estiveram cá, faz agora quatro annos?

--Ouvi fallar n'isso, mas por alto, não me deram pormenores.

--Eis ahi está porque o senhor não acredita! A coisa foi esta: Elles eram
gente pobre mas honrada: marido, mulher e uma filha de seis annos. Para o
que désse e viesse dormiam todos juntos na mesma sala. A pequenita a quem
elles não contavam nada por causa do medo, estava n'uma caminha a um lado.
Dormiam com luz na lamparina, e como trabalhavam muito de dia e estavam
cansadissimos á noite, lá pegavam no somno apesar do barulho das faúlas do
fogareiro e das argoladas nas portas. Vae senão quando, á segunda noite
que passavam cá, accordam aos gritos da creança. Tinha-se apagado a luz.
Accenderam-na a toda a pressa. A porta do quarto estava fechada por
dentro. Os fechos das janellas achavam-se corridos. No quarto não havia
mais ninguem. Mas a roupa da cama da creança estava cahida a dois ou tres
passos de distancia do berço em que ella dormia, e a pequenita, nua,
tranzida de medo, branca como o travesseiro e tremendo como varas verdes,
disse, quando lhe chegou a falla que teve perdida por um bocado, que
sentira umas cousas como os pés de uma gallinha muito grande que se lhe
pousavam na cama; que se achara depois descoberta e ouvira umas coisas
suspiradas envoltas em soluços e beijos, mimos que mettiam medo e que ella
não entendia, emquanto um peito coberto de pennas se lhe roçava pelo seio
nu. A mãe então vestiu-lhe á pressa uns fatinhos, embrulhou-a n'um chale,
estreitou-a nos braços, poz-se a dar-lhe beijos e acalental-a com o bafo,
e saiu para a rua aterrada e como doida. O homem, que era valente e
destemido, correu a casa toda com luz e sem luz, mettendo-se por todos os
cantos e recantos, rangendo os dentes e picando as paredes enfurecido com
uma faca de ponta que levava em punho. Não appareceu ninguem! Ninguem
podia ter saido! Ninguem podia ter entrado! No dia seguinte foi levar a
chave do predio ao senhorio, dizendo-lhe que se algum dia tivesse dinheiro
lhe compraria esta casa para elle mesmo a deitar abaixo com um picão e a
machado, para lançar o fogo a quanto podesse arder, e calcar depois aos
pés e salgar o monte de cinzas que ficasse no chão.

--Pois senhor, eu nenhuma d'essas cousas tenho ouvido, e é esta a segunda
noite que durmo aqui.

--Gabo-lhe o gosto! E não tem medo?

--Nenhum.

--Por isso por ahi dizem do senhor o que dizem!

--Então que dizem por ahi de mim?

--Dizem, com o devido respeito, que o senhor é um allemão da Moirama e que
tem partes com o demonio.

--Mais um bocadinho para traz, que eu o ajudo! exclamou o estrangeiro,
mudando de tom.

--Isto assim?

--Ainda mais... um quasi nada... até ficar a cabeceira unida á hombreira
da porta... Basta!

--Não quer mais nada?

--Mais nada. Aqui tem a sua libra e leve d'ali uma d'aquellas velas para
que o avejão lhe não appareça na escada ao apanhal-o ás escuras.

--Não o diga a rir, que eu pela minha parte não me rio! o senhor gosta...

--A fallar-lhe a verdade gosto!

--Seu proveito! Olhe lá: quando se aborrecer com as almas que andam cá,
veja se passa ahi para a casa que fica ao lado!

--Bem me queria a mim parecer que a casa do lado tambem tem...

--Se tem! Essa então é o diabo, é o proprio diabo que lá mora!

O homem que viera ajudar á mudança da cama accendeu a luz e desceu a
escada. O allemão ficou só, fechou a porta e principiou a despir-se para
se deitar.

O dialogo que eu acabava de ouvir tinha-me impressionado singularmente e
despertado em mim o mais curioso interesse.

Sem procurar directamente indagar cousa alguma, começava a entrar pelo
modo mais extranho no conhecimento de factos que, posto que deturpados
pela superstição ou pela ignorancia, explicariam de certo o desfecho a que
viemos assistir e a presença do cadaver na sala em que o fomos encontrar.

Agora nós, meu interessante e precioso visinho.


III


A cama do allemão tinha ficado, como disse, por baixo do meu buraco de
observação. O meu visinho deitou-se e soprou a vela. O quarto ficou ás
escuras, e eu senti os colchões que rangiam com o peso do corpo que se
ageitava para dormir.

--Ah! tua amas o murmurio dos espiritos invisiveis?... exclamei eu,
dirigindo-me mentalmente ao philosopho que me ficava do outro lado do
muro. Aprazem-te as ondulações sonoras das moleculas da vida animal que
vagueiam dispersas no espaço, procurando o sopro mysterioso que as
condense para entrarem na corrente dos seres vivos? Queres encadear ao teu
espírito esses elos informes e incoerciveis, que ligam o mundo das cousas
conhecidas ao mundo dos seres ignotos? Ora vamos lá a ver como tu empregas
as tuas faculdades de _medium_...

E pensando isto, bati-lhe com os nós dos dedos na parede tres pancadinhas
seccas, methodicamente espaçadas, como as dos signaes maçonicos.

Senti roçar a mão d'elle pelo papel que forrava o muro, como quem
procurasse apalpar algum signal do rumor que ouvira.

Entrei então a repetir com successiva frequencia o rebate que lhe dera
percorrendo differentes pontos da parede que servia de fundo ao armario.

Percebi que elle se sentava na cama. Ouvi estalar um phosphoro.
Accendeu-se a luz. Parei. Houve uma pausa, durante a qual me conservei
silencioso e immovel. O meu visinho apagou finalmente a luz ao cabo de
alguns minutos, e eu recomecei a bater devagarinho e repetidamente como
primeiro fizera. Elle, tendo escutado por algum tempo ás escuras, accendeu
outra vez a vela e começou a examinar o espaço da parede, junto da qual
lhe ficava a cama.

No momento em que a chamma da vela perpassava na mão d'elle por defronte
do meu buraco, soprei-lhe de repente e apaguei a luz.

O allemão, que se achava de joelhos em cima da cama a revistar a parede,
expediu um pequeno grito, que me pareceu mais de surpresa que de terror,
com quanto o acompanhasse um estrondo pesado e extremamente significativo.
O que produzira esse estrondo fôra o baque do corpo d'elle, cahindo da
cama abaixo.

Logo depois ouvi a voz do visinho perguntando com decisão e firmeza:

--Quem está ahi?

Respondi-lhe:

--Sou eu.

--Quem és tu?

--E tu quem és?

--Frederico Friedlann, cidadão prussiano.

--Ah! disse eu.

--Viajo por conta da primeira fabrica de productos chimicos de Buda Pesth,
os quaes sou encarregado de tornar conhecidos dos grandes industriaes da
Europa.

--Bem! observei.

Elle continuou impassivelmente:

--Contou-me um judeu meu amigo que havia em Lisboa tres predios de que
elle tinha noticia, os quaes se achavam abandonados depois de algum tempo
de terem ganhado fama de serem habitados por almas do outro mundo. Resolvi
morar successivamente nas casas que elle me indicou e é esta a primeira
que habito. Componho um livro com investigações a respeito do espiritismo.
Poderei saber agora a quem me dirijo?

--Pois não! tornei-lhe eu. Chamo-me fulano, e vivo dos rendimentos das
minhas propriedades, ora viajando, ora residindo em Lisboa, e occupando-me
de quando em quando com a politica ou com a litteratura, quando não tenho
outra cousa menos insipida e menos inutil em que agitar a minha ociosidade
e o meu tedio. Não sou espiritista.

--Pois faz mal! O espiritismo é um systema e póde bem succeder que venha
ainda a ser uma religião.

--Puff! exclamei eu rindo.

--O quê! continuou elle. O materialismo, guiado de um lado pelas
conquistas das sciencias physicas e naturaes e de outro lado pelo
relaxamento dos costumes contemporaneos, e pela depressão successiva e
assustadora da moral, vae comendo no campo da philosophia o espaço não já
muito vasto em que residia a fé. Novas crenças e novas doutrinas virão
successivamente sustituir as crenças e as doutrinas mortas por que se
regulava o sobrenatural. O homem, que, segundo todas as probabilidades,
não poderá nunca prescindir do maravilhoso, d'esse attractivo supremo da
sua imaginação, irá então naturalmente buscar ao espiritismo, modificado e
aperfeiçoado pela sciencia futura, a theoria de uma tal ou qual
sobrevivencia que o lisongeie, e a base de correlações ainda não estudadas
dos seres que existem com aquelles que os precederam e com os que se lhes
hão de seguir. Os espiritistas de hoje serão de entre todos os philosophos
contemporaneos que não querem acceitar em absoluto o dogma esteril e
desconsolador da materia omnipotente, os unicos que hão de collaborar na
philosophia do futuro.

--Ora ha de me dar licença que lhe pergunte uma cousa...

--Tem-me ás suas ordens.

--Sem com isto querer fazer aggravo ao seu juizo!

--Estimarei muito satisfazer a sua curiosidade, qualquer que seja a
natureza d'ella.

--Acredita em alguma das cousas em que esteve ahi fallando o homem que
veiu ajudal-o a mudar a cama?

Esta pergunta era capciosa. Eu queria desenganar-me se estava fallando com
um doido, com um visionario, com um monomaniaco, ou simplesmente com um
homem de espírito extravagante, com um excentrico.

--Eu não creio nem tambem descreio de cousa alguma que ouço, responde-me
elle. É meu systema admittir tudo quanto esteja para se provar e duvidar
de tudo aquillo que me apresentem como cousa positiva. É o unico meio
prudente de nunca nos affastarmos muito da verdade. Se escutou a conversa
de ha pouco, tem uma parte da historia d'esta casa. Neguei quanto me disse
o homem que esteve aqui porque me obriguei com o senhorio do predio a
desvanecer com as minhas informações o anathema que pesa sobre a sua
propriedade. A verdade é que tenho ouvido distinctamente ha duas noites
consecutivas um rumor insistente e prolongado similhante aos estalidos que
produz ao ateiar-se uma fogueira de carvão, e tenho aqui sobre uma banca
um busto de Allan Kardec que, sem eu poder explicar como nem porquê, se
move, sem que ninguem lhe toque, do centro da mesa em que o colloquei para
uma das extremidades d'ella. O pó agglomerado em volta da base do busto, e
que eu tenho o mais escrupuloso cuidado em não espanar nunca, vae deixando
successivamente sobre a superficie da mesa o vestigio d'esse movimento
vagaroso, lento, quasi imperceptivel, mas progressivo e constante. N'esta
porta ao pé da qual colloquei hoje a cama, ouço em cada noite, ora por
duas, ora por tres vezes, uma argolada perfeitamente clara e distincta.
Abro imediatamente a porta (mudei a cama para este ponto a fim de poder
fazel-o do modo mais rapido), fica sempre inexplicavel para mim a razão
porque se levanta a argola do ferrolho e bate de per si mesma na porta!

Todas estas cousas eram asseveradas pelo prussiano com a emphase da
sinceridade e da convicção mais profunda!

--E d'esta casa de cá, observei-lhe eu, que tem ouvido? o que sabe? que
lhe consta?

--Eu lhe digo...

--Sinceramente!

--Por mim pessoalmente nada tenho ouvido. O inquilino que me precedeu
conta que ouvia no silencio da noite um rumor confuso de vozes, o estalar
de risadas e o telintar de dinheiro. Alguns visinhos têem visto entrar
vultos mysteriosos. Tudo isto porém se explica do modo mais natural d'este
mundo.

--Qual é então o seu juizo, vejamos?

--É evidentemente...

--Diga! diga!

--Presumo eu, pelo menos...

--Vamos! sem rodeios, francamente!

--De duas uma: ou uma loja maçonica, ou uma casa de jogo.


IV


As palavras do allemão acabavam de lançar no meu espírito a luz subita de
uma revelação que me obrigava a meditar.

O que se passava por mim, o mysterio que me cercava, o cadaver que vira, a
presumpção--ainda que vaga--da concorrencia de um ou mais amigos meus
envolvidos n'este acontecimento, tudo isto era tão extraordinario e tão
grave que eu não ousava referil-o ao homem desconhecido que o acaso me
deparava por visinho.

Era já positivo para mim que me achava em Lisboa. Desejava naturalmente
saber qual era a rua e a casa em que estava; não me occorria porém um
pretexto plausivel para levar o allemão a dizer-m'o, sem que eu o
interrogasse de um modo ambiguo, que poderia levantar sobre a situação em
que me acho suspeitas talvez perigosas para a segurança das pessoas
compromettidas n'este negocio. Contentei-me pois em allegar o incommodo a
que me obrigava a posição em que estava, e dei as bôas noites ao meu
visinho. Elle despediu-se batendo no muro tres pancadas espaçadas por
pausas eguaes ás d'aquellas com que eu primeiro lhe despertára a attenção.
Lembrou-me que poderia ser mação aquelle homem, e que nas circumstancias
em que eu estava me serviria a protecção que lhe pedisse em nome de
juramentos reciprocos e de compromissos communs. Dei-lhe então uma letra,
elle respondeu-me com outra e assim construimos successivamente a palavra
da senha.

--_Salut, mon frêre!_ exclamou elle.

--Segredo! disse-lhe eu baixinho, respondendo com os nós dos dedos no muro
ao sinal que me déra.

Fechei em seguida o armario, cheguei a cama para o logar d'onde a tinha
removido, e deitei-me vestido.

Não podia dormir. Principiei a pensar e a entristecer.

N'esta casa, debaixo d'estes mesmos tectos, está morto um homem, moço,
elegante e bello, que entrára aqui, cheio talvez de esperanças,
d'alegrias, de projectos no futuro, e que de repente caiu para todo o
sempre, envenenado por mão mysteriosa, ignorado, desconhecido, só, longe
de uma mulher amada que o espera talvez a esta hora, longe da familia que
o acarinhou em pequeno, longe dos logares saudosos que o viram nascer, da
mãe lacrimosa que lhe cerrasse os olhos, do pae angustiado que em nome da
humanidade lhe lançasse a derradeira benção.

Desventurado rapaz! quem sabe as torturas por que passou o teu espírito
para se desprender violentamente da terra, deixando na sociedade o seu
corpo inerte, impassivel, mudo como a interrogação de um enigma posto
anonymamente no meio de uma pagina branca? quem sabe os pensamentos que a
morte immobilisou no teu cerebro? quem sabe os affectos que ella enregelou
no teu coração, onde ha pouco tempo ainda golphava abundantemente a
fecunda seiva d'essa mocidade esterilisada e extincta agora para sempre?

Pobre moço! tão digno de lastima como és, merecedor talvez de profundas
saudades, ahi estás adormecido no teu somno eterno, vestido de baile,
coberto com uma manta de viagem, estirado n'um sophá, insensivel para
sempre ás alegrias e ás amarguras d'esta vida miseravel; e não haverá por
ventura uma só lagrima que commemore, na historia breve da tua passagem na
terra, este praso tão pungentemente melancolico em que os mortos estão
esperando dos vivos o derradeiro e supremo favor que a humanidade póde
dispensar áquelles que mais présa e que mais ama: a doação da cova em que
reside o esquecimento!

Os olhos d'aquelles que te amam ainda não choram por ti. Estão fechados
talvez pelo somno tranquillo e doce, atravessado em sonhos pela tua imagem
querida; estão por ventura fitos no conhecido caminho por onde esperam
sentir-te chegar, conhecer-te o passo retardado, ouvir-te a voz
cantarolando a ultima valsa que o baile te deixou no ouvido, vêr-te
finalmente apparecer, descuidado, risonho e feliz.

Coitados!... Os passos d'aquelle que ainda hoje talvez se despediu da vós
contando voltar a encontrar-vos poucas horas depois, não tornarão a medir
o caminho da casa em que o esperam; a sua voz não responderá mais á voz
que o chame; os seus olhos nunca mais se embeberão nos olhos que o
fitavam; os seus labios não voltarão outra vez a approximar-se dos labios
que se collavam nos d'elle!

Eu não choro a tua memoria, porque não te conheço, porque nunca nos
encontrámos, porque não sei quem és. Mas não quero insultar a dôr que
adeja sobre a tua morte, deixando-me dormir na mesma casa em que jazes
insepulto, em quanto alguem te espera vivo no mundo.

Foi impelido por estes sentimentos, meu querido amigo, que eu me levantei
da cama em que me estendera e vim para a mesa em que ceei, passar a noite
escrevendo-te estas longas paginas, que de certo estimaremos ler um dia,
em disposição de espírito bem differente d'aquella em que ambos nos
achamos hoje.

Tinha em pouco mais de meio a narração que te estou fazendo, quando o
silencio que me envolvia, cortado apenas pelo fremito da minha penna no
papel, foi interrompido pelas vozes dos mascarados fallando baixo no
aposento que atravessei antes de entrar n'aquelle em que estou. Tinha
terminado o paragrapho anterior a este quando o mesmo rumor se repetiu, e
tive então curiosidade de escutar o que se dizia. Approximei-me da porta e
collei o ouvido ao buraco da fechadura, pelo qual nada via. Não sendo
natural que os nossos aprisionadores estejam ás escuras, é provavel que
haja um corredor, uma passagem ou um pequeno quarto entre aquelle em que
eu me acho e o quarto proximo em que elles fallam. Não podia perceber o
que diziam. Apenas de quando em quando alguma palavra solta e destacada me
chegava ao ouvido. Dispunha-me a vir continuar a escrever ou a terminar
esta carta, quando um levantou mais a voz e eu ouvi distinctamente estas
palavras:

--Mas as notas de banco, 2:300 libras em notas! Não as trazia elle?

--Sei que as trazia, dizia outra voz.

--É atroz então!

Estas palavras, unicas que ouvi, fizeram-me a impressão que podes
calcular!

É provado para mim que a casa a que fomos trazidos não é um simples ninho
consagrado a entrevistas d'amor, como eu primeiro suppuz. Das hypotheses
do prussiano é absolutamente necessario acceitar uma: isto ou é uma casa
de jogo ou uma loja maçonica. Assim o provam convincentemente os ruidos
que se ouviam na morada contigua. N'um retiro de paixões ternas não se
escancaram risadas a horas mortas ao som do dinheiro que telinta nas
mezas. A referencia dos vultos mysteriosos feita pela visinhança permitte
a suspeita de reuniões secretas. O tinir do ouro, as risadas, o mesmo
aspecto do _boudoir_ em que estivemos não consentem duvidar-se que esta
casa é uma caverna de jogo e de orgia.

As palavras que ha pouco ouvi suggerem-me sobre estas supposições a mais
tenebrosa suspeita.

O desgraçado que jaz ahi dentro podia ter sido victima de um homicidio,
premeditado com o intuito de roubar-lhe a quantia que elle trazia comsigo.

Occorre uma contradicção: na suggerida hypothese para que foram buscar um
medico? Explicam-n'o as palavras que ouvi. Os criminosos, que tinham
propinado opio á sua victima com o intuito de a roubarem, encontram
illudido este projecto com o desapparecimento das notas que lhe suppunham
na algibeira. N'esta conjectura sobrevem-lhes um recurso extremo: procurar
um medico que não possa denunciar o crime, mostrar-lhe o opio, e quererem
por esta prova de zelo, de solicitude, de confiança na sua innocencia,
affastar de si a presumpção do crime, e crear as difficuldades de um
mysterio! É possivel que eu não attinja exactamente a verdade do que se
passou. O indubitavel porém é que o desapparecimento já constatado da
somma que o assassinado trazia comsigo não póde adunar-se dentro d'esta
casa com a probidade e com a honra.

Depois d'isto é quasi escusado dizer-te qual é a determinação que vou
tomar. O meu visinho prussiano é um homem um tanto phantastico, mas
parece-me sincero e honrado. Vou fechar esta carta, subscriptal-a e
pedir-lhe que a lance no correio. Acharei facilmente meio de a passar para
o quarto d'elle. Se conseguir arrombar completamente, sem que me
presintam, o tapamento que serve de fundo ao armario, passarei eu em vez
de expedir a carta. No caso contrario, apenas se abrir aquella porta,
precipito-me sobre a pessoa ou pessoas que me embargarem o passo, e
abrirei o meu caminho como todo o homem de bem que em sua consciencia
delibera passar por cima de meia duzia de miseraveis.

Se te achas aqui, encarcerado como eu, por Deus juro-te que nos veremos
ámanhã. Se estás solto, se receberes esta carta, e vinte e quatro horas
depois não souberes de mim, escreve a Frederico Friedlann, _posta
restante, Lisboa_. Elle te procurará no logar que indicares e te dirá onde
estou.--Adeus.--_F_

     *     *     *     *     *

Nota.--Juntamente com a carta publicada achavam-se as seguintes folhas de
papel escriptas pela mesma lettra das cartas do medico, anteriormente
publicadas n'esta folha:

F... não appareceu. No mesmo dia, dois dias e tres dias depois de haver
recebido a extensa carta que elle me dirigiu e de que enviei logo a
primeira parte, depois as seguintes, a essa redacção, procurei por todos
os meios ter noticias d'elle. Foram inuteis todos os esforços que
empreguei. Escrevi a Frederico Friedlann. Não houve resposta. Mandei ao
correio e soube que ainda ali se achava a carta que lhe dirigi e na qual
lhe aprasava uma entrevista.

Estou vivamente inquieto, sobresaltado, cuidadoso.

F... é um homem arrebatado, irascivel, pundonoroso até o delirio. Receio
do seu caracter e da violencia das suas determinações uma explosão que
teria podido talvez ser-lhe fatal.

Apresso-me porém a declarar-lhe, senhor redactor, que discordo
completamente da opinião d'elle emquanto á qualidade moral das pessoas com
quem estivemos reunidos na casa onde encontrámos o cadaver.

O mascarado alto, com quem tive occasião de fallar por mais tempo, não
póde ser uma assassino cobarde. F...  demorou-se pouco tempo comnosco, não
pôde attentar nos individuos que o rodeavam. Ouviu apenas uma phrase, que
para mim proprio é ainda inexplicavel e terrivel, e baseou n'ella a sua
indignação e o seu odio.

Eu tratei apenas com um d'esses homens--o mais alto--mas com este fallei
incessantemente durante todo o espaço de uma noite. Não podia estudar-lhe
os movimentos da physionomia, mas via-lhe os olhos grandes, luminosos,
scintillantes. Ouvia-lhe a voz metallica, pura, clara, vibrante,
obedecendo naturalmente, na modulação das inflexões, ao fluxo e ao refluxo
dos sentimentos.

Nas discussões que tivemos, na conversação que travámos, nos diversos
incidentes que acompanharam o inquerito de A. M. C., escutei-lhe sempre
com interesse, com sympathia, algumas vezes com admiração, a palavra
sincera, facil, despresumida, espontanea, original, pittoresca sem
litteratismo, eloquente sem propositos oratorios,--limpido espelho de uma
alma energica, integra, perspicaz e sensivel. Tinha arrebatamentos
enthusiasticos, indignações convictas, concentrações melancolicas, que se
via provirem d'esse fundo de lagrimas, que todas as naturezas
priveligiadamente boas e honestas têem no intimo da sua essencia.
Pareceu-me finalmente um coração leal e honrado, e não é facil enganar-se
por este modo, depois de uma provação suprema e definitiva como aquella em
que nos achámos, um homem com a minha experiencia do mundo e a minha
pratica dos fingimentos humanos. Estas são, senhor redactor, as principaes
considerações que do principio logo me impediram de tornar publico o nome
do meu amigo violentamente retido em carcere privado. F... é um homem
conhecido, é quasi um homem celebre; em Lisboa ninguem ha que não conheça
o seu nome entre os escriptores mais applaudidos, ninguem que não distinga
a sua figura altiva, esmerada, picante, entre os vultos extremamente
uniformes dos passeios, das salas e dos theatros.

Se eu communicasse á policia o desapparecimento do meu amigo, é quasi
seguro que ella encontraria meio de o descobrir. Mas não equivaleria isto
a denunciar simultaneamente como criminosos o mascarado alto e os seus
companheiros que eu todavia considero innocentes?

A carta de F..., apesar da revelação que encerra sobre o desapparecimento
das 2:300 libras, confirma por outro lado a convicção em que eu me acho.

Na carta de F... encontra-se o seguinte periodo:

     *     *     *     *     *

«Occorreu-me que teria um meio de desenganar-me se era effectivamente ou
se não era um amigo intimo que eu tinha ao meu lado: arrancar-lhe o
relogio: bastar-me-hia apalpal-o, ainda vendado como eu estava, para
reconhecer o dono. A ser o individuo que eu suppunha, a caixa do relogio
teria a lisura do esmalte e no centro a saliencia de um brasão.»

Ora o relogio a que n'estas linhas se allude, se bem lembrado está, é
exactamente o mesmo que descrevi na segunda carta que enviei a esse
periodico, o mesmo que usava o mascarado que ia sentado defronte de mim na
carruagem, e que eu lhe vi por algum tempo fóra da algibeira do collete,
suspenso na corrente. Logo, o mascarado que conduziu F... ao quarto em que
elle se acha preso, é effectivamente um amigo d'elle, intimo e particular.

Posso eu, sem semear remorsos que mais tarde entenebrecerão talvez a minha
vida com uma sombra eterna, denunciar á policia uma particularidade, um
nome, uma circumstancia positiva, que a ponha no encalço d'este crime e no
descobrimento das pessoas, innocentes ou culpadas, que circulam fatalmente
em torno d'elle?

As mesmas noticias que lhe tenho dado, as cartas que precipitadamente
comecei a escrever-lhe, e que hoje, posto que acobertado pelo anonymo, me
vejo na obrigação moral de concluir e desenlaçar, não serão já perante a
severidade incorruptivel, despreocupada e fria dos homens de bem, uma
traição aos imprescriptiveis deveres da amisade, um aggravo á
inviolabilidade do sigillo, uma offensa a esse culto intimo que se baseia
na delicadeza, no melindre, no primor,--culto que para as almas honradas
constitue uma parte dos principios supremos da primeira das religiões--a
religião do caracter?

Mas podia tambem calar-me? ficar mudo, impassivel, inerte, neutro, diante
d'este successo obscuro mas tremendo? Podia acaso acceitar na
impassibilidade e no silencio a responsabilidade terrivel de um homicidio
tenebroso, do qual sou eu a unica testemunha com iniciativa, com
liberdade, com faculdade de acção?...

Decidam-no as pessoas que por um momento quizerem imaginar-se nas
circumstancias excepcionaes e unicas em que eu estou.

Na onda de conjecturas, de planos, de determinações, de obstaculos em que
me achei envolvido, assoberbado, só, escondido, inquieto, nervoso, sem um
unico momento que perder, uma só cousa me occorreu, possivel, clara,
solvente: publicar anonymamente o que me succedera, entregar por este modo
á sociedade a historia da minha situação e esperar dos outros, do publico,
a solução do problema que eu não sabia resolver por mim.

Nem uma palavra de conselho, de analyse, de critica!

Estou profundamente triste, abatido, doente. Preciso de liberdade. Não
posso ficar eternamente immovel, como um condemnado, com o pesado fuzil de
um segredo soldado a um pé.

Dois dias depois de receber esta minha carta, senhor redactor, terei
partido para fóra do paiz. As ambulancias do exercito francez precisam de
cirurgiões. Vou alistar-me como facultativo. O meu paiz dispensa-me, e eu,
como todo o homem na presença dos infortunios irremediaveis, sinto a doce
necessidade de ser util. Fica sabendo o meu destino. Um dia saberá o meu
nome.

Despedindo-me--seguramente para sempre--dos seus leitores, cuja attenção
tenho largamente prendido com a narrativa d'este caso lugubre, seja-me
permittido acrescentar uma derradeira palavra:

A. M. C., cujo nome não ouso delatar escrevendo-o por extenso n'esta
pagina, A. M. C., que eu não incriminei nem denunciei, apesar de tudo
quanto em contrario quiz allegar o amigo d'elle que sob a letra Z. veiu
defendel-o n'este mesmo logar, A. M. C., quaesquer que sejam as causas que
o levaram a intervir nas circumstancias que rodeiam o crime, conhece-o
interiormente, tem o fio do trama que eu debalde procurei achar.

Se estas linhas chegarem aos olhos d'esse moço, uma coisa lhe peço em nome
da sua honra e da sua dignidade, em nome da honra e da dignidade das
pessoas envolvidas em tão extranho successo. Procure no correio uma carta
que lhe dirijo n'esta mesma data. N'essa carta verá quem eu sou, onde
poderá enviar as suas cartas ou vêr-me e fallar-me pessoalmente. Se a sua
idade, se as condições da sua posição na sociedade, se os interesses da
sua carreira, a tranquillidade da sua familia, a incompetencia da sua
auctoridade, ou outra qualquer razão o impedirem de acompanhar este
acontecimento até á ultima das suas consequencias, arrancando a um tal
mysterio a secreta verdade que elle envolve, dirija-se a mim,
collaboraremos juntos n'essa obra, que tenho por meritoria e honrada. Eu
acceitarei clara e abertamente para todas as consequencias e para todos os
effeitos a responsabilidade que d'ahi provenha, e terei meio de salvar o
seu nome, a sua pessoa e a sua honra de qualquer suspeita que o ensombre
ou o macule.

Emquanto a ti, meu querido e meu honrado F..., não creio que sejas victima
de uma emboscada traiçoeira e indigna! O teu unico perigo está, a meu vêr,
no teu impaciente melindre, nos teus delicados escrupulos, no teu valor,
finalmente, e no teu brio.

Que te matassem cobardemente no carcere clandestino que ha pouco tempo
ainda tu illuminavas com a tua pachorra e a tua alegria, não póde ser. Que
a esta hora tenhas sido obrigado a jogar a tua vida trocando em desaggravo
de honra uma estocada ou um tiro com algum dos teus mysteriosos
commensaes, isso acho logico, e é possivel.

Punge-me não sei que vago e triste presentimento... Meu pobre F...! Se
estará destinado que não nos tornemos a vêr! Se o dia fatal em que
regressámos ambos de Cintra, descuidados, contentes, suspirando com as
nossas alegrias, sorrindo com os nossos infortunios, terá acaso de ser o
ultimo d'essa doce convivencia que por tanto tempo nos juntou!...

E são as amarguras alheias, são as desgraças dos outros que nos arrastam
envolvidos no turbilhão implacavel e terrivel da crua solidariedade
humana!

Que remedio?!

Se a vida é isto, aceitemol-a corajosamente como ella é, e ávante!
aprenda-se a ser desgraçado, visto que é essa a mais segura maneira de se
ser feliz!




+Segunda carta de Z+


Senhor redactor.--Acabo de vêr publicada na sua folha de hoje uma carta em
que o doutor..., com uma insistencia malevola, torna a inculcar, como
cumplice no attentado de que elle se fez o historiador voluntario, o meu
pobre amigo A. M. C.

Disse-lhe na minha primeira carta, senhor redactor, que eu ia com o
auxílio unico da minha coragem e da minha astucia, pôr-me ao serviço da
curiosidade de todos, procurando penetrar e desfiar a tenebrosa historia
que ha mais d'uma semana, vem todos os dias successivamente, no folhetim
do seu jornal, apresentar deante d'um publico attonito um quadro
mysterioso e lugubre.

Não pude, porém, descobrir nada: indagações, interrogatorios, visitas aos
logares, tudo foi inutil. A historia perde-se cada vez mais n'uma nevoa
que a afoga: e o meu pobre M. C. lá está ainda--não sei se n'um retiro
voluntario, se n'uma sequestração forçada.

Na impossibilidade de descobrir, physicamente, por essas ruas, a verdade,
resolvi ir buscal-a ás mesmas cartas do doutor. Analysei-as, decompul-as
palavra por palavra. E sem contar os processos, apresento os resultados.

O _Mysterio da estrada de Cintra_ é uma invenção: não uma invenção
litteraria, como ao principio suppuz, mas uma invenção criminosa, com um
fim determinado. Eis aqui o que pude deduzir sobre os motivos d'esta
invenção:

Ha um crime; é indubitavel; é claro. Um dos cumplices d'este crime é o
doutor ***. Elle está envolvido no anonymo: não tenho por isso duvida em
apresentar esta accusação formal. Se o seu nome fosse conhecido, se as
suas cartas estivessem assignadas, eu, só com provas judiciarias, me
atreveria a escrever esta grave affirmativa.

Sim, o doutor *** é o cumplice d'um crime: o meu pobre amigo M. C. é um
desgraçado incauto, sobre quem se querem fazer recahir as suspeitas que se
possam ter já, e as provas que mais tarde venham a juntar-se. Este crime,
que existe, apparece-nos envolvido nas roupas litterarias d'um mysterio de
theatro. As cartas do doutor *** são um romance pueril. Vejamos.

É possivel que n'uma cidade pequena como Lisboa, em que todos são
visinhos, amigos de _tu_, e parentes, o doutor *** que parece ser um homem
notado na sociedade, vivendo n'ella, frequentando as suas salas e os seus
theatros, não conhecesse nenhum d'estes quatro mascarados, que pelas suas
indicações pertencem a essa mesma sociedade, se sentam nos mesmos sofás,
escutam a mesma musica nos mesmos salões e nos mesmos theatros?

Uma mascara de velludo preto não basta para disfarçar um conhecido. O seu
cabello, o seu andar, a sua estatura, a sua figura, a sua voz, as suas
mãos, a sua _toillete_, são bastantes para revelar, trahir o individuo. O
doutor *** pois nunca os tinha visto? O quê? Pois eram tão galantes, tão
distinctos, governam tão bem as suas parelhas, fallam tão bem as suas
linguas, pareciam tão ricos, e o doutor *** um medico, um homem
relacionado, um velho dilletante de S. Carlos, nunca os viu, nunca os
percebeu, n'esta terra, em que toda a vida se concentra nos doze palmos de
lama do Chiado! E F... tem um amigo intimo entre os mascarados, diante de
si, na carruagem, joelho com joelho, e não o reconhece, pelas mãos, pelos
olhos, pelo corpo, pelo silencio até! Comedia!

E o menos conhecido, o menos celebre dos rapazes de Lisboa, mascara-se no
carnaval de Turco, enche-se de barbas, cobre-se de plumas, veste-se de
Mephistopheles, de Ci-devant, ou de Melão, e não ha ninguem que no salão
de S. Carlos, não diga ao passar por elle: _lá vae fulano!_ E é de noite,
ás luzes, e as mulheres olham-nos, e estamos distrahidos, e não estamos
n'uma estrada, de dia, surprehendidos e violentados! Tanto nos conhecemos
todos! Comedia! Comedia!

E aquelles mascarados, são tão innocentes, tão ingenuos, que vão procurar,
n'um momento tão perigoso, o homem que pelas suas relações, pela sua
posição, pela sua intelligente penetração, mais facilmente os poderia
reconhecer.

Se lhes era repugnante serem descobertos, para que procuraram aquelle
homem? Se lhes era indifferente, para que se mascararam?

E depois, para que era um medico? Era para verificar a morte? Para acudir?
Para salvar? N'esse caso então que homens são esses, que em logar d'ir á
botica mais proxima, a casa do primeiro medico rapidamente, logo,
logo,--vão em socego mascarar-se nos seus quartos, para irem ao
crepusculo, para uma charneca, a duas legoas de distancia, representar os
velhos episodios de floresta dos dramas de Soulié?

Suppunham por ventura que elle estava morto? Para que era então um medico,
uma testemunha? E se não receavam as testemunhas para que punham nos seus
rostos uma mascara, e nos olhos dos surprehendidos um lenço de cambraia?
Comedia! Comedia sempre!

Veja-se o doutor *** diante do cadaver: não ha ali uma palavra que seja
scientifica: desde a serenidade das feições até á dilatação das pupillas,
tudo é falso n'aquella descripção symptomatica.

E que homens são, o doutor *** e o seu amigo F... que na rua d'uma cidade,
dentro d'uma casa, com os braços livres, não deitam a mão àquelles
mascaras? Como é que, sendo generosos e altivos supportam certas
violencias humilhantes? Como é que, sendo honestos e dignos, acceitam pela
sua attitude condescendente uma parte da cumplicidade?

E A. M. C.! Como o representam ali, pueril, nervoso, timido, imbecil e
coacto! Elle d'uma tão grande força de temperamento! d'uma tão energica
coragem! d'um tão altivo sangue frio! Como se póde acreditar n'aquella
astucia infantil, com que o doutor *** o envolve?

--O que admira é que não deixasse vestigios o arsenico!

--Mas foi o opio! responde M. C., segundo conta o doutor ***.

Qual é a imbecil ingenuidade do homem que possa descer a esta simplicidade
lôrpa?

E emfim, que mulher é aquella, que ahi se entrevê?  Porque a quer o
mascarado salvar? Que roubo é aquelle de 2:300 libras? Sejamos logicos:
dado o typo do mascarado, cavalheiroso e nobre, como é que elle, vendo que
o crime teve por origem o roubo, procura salvar e tem considerações por
uma mulher que mata para roubar?

Se elle suspeita que o crime commetido por essa mulher teve por mobil a
paixão, como explica o roubo?

Demais, se desconfiava que ella estivesse envolvida n'aquelle facto, se
estava tão ligado com ella que a queria salvar, por que a não procurou
logo, por que a não interrogou, em logar de ir surprehender gente para as
estradas, e vir fazer _tableau_ em volta d'um cadaver?

Ah! como toda esta historia é artificial, postiça, pobremente inventada!
aquellas carruagens como galopam mysteriosamente pelas ruas de Lisboa!
aquelles mascarados, fumando n'um caminho, ao crepusculo, aquellas
estradas de romance, onde as carruagens passam sem parar nas barreiras, e
onde galopam, ao escurecer, cavalleiros com capas alvadias! Parece um
romance do tempo do ministerio Villele. Não fallo nas cartas de F... que
não explicam nada, nada revelam, nada significam--a não ser a necessidade
que tem um assassino e um ladrão de espalmar a sua prosa ôca, nas columnas
d'um jornal honesto.

Deducção: o doutor *** foi cumplice d'um crime; sabe que ha alguem que
possue esse segredo, presente que tudo se vae espalhar, receia a policia,
houve alguma indiscrição; por isso quer fazer poeira, desviar as
pesquisas, transviar as indagações, confundir, obscurecer, rebuçar,
enlear, e em quanto lança a perturbação no publico, faz as suas malas, vae
ser cobarde para França, depois de ter sido assassino aqui!

O que faz no meio de tudo isto o meu amigo M. C. ignoro-o.

Senhor redactor, peço-lhe, varra depressa do folhetim do seu jornal essas
inverosimeis invenções.--Z.




NARRATIVA DO +MASCARADO ALTO+


I


Senhor redactor.--A pessoa que lhe escreve esta carta é a mesma que n'essa
aventura da estrada de Cintra, popularisada pela carta do doutor ***,
guiou a carruagem para Lisboa. Sou já conhecido, com a minha mascara de
setim preto e a minha estatura, por todas as pessoas que tenham seguido
com interesse a successiva apparição d'estes segredos singulares; eu era
nas cartas do doutor *** designado pelo--_mascarado mais alto._--Sou eu.
Nunca suppuz que me veria na necessidade lamentavel de vir ao seu jornal
trazer tambem a minha parte de revelações! Mas desde que vi as accusações
improvisadas, sem analyse e sem logica, contra o doutor*** e contra mim,
eu devia ao respeito da minha personalidade e á consideração que me merece
a impeccavel probidade do doutor *** o vir affastar todas as contradicções
hypotheticas e todas as improvisações gratuitas, e mostrar a verdade real,
implacavel, indiscutivel. Detinha-me o mais forte escrupulo que póde
dominar um caracter altivo: era necessario fallar n'uma mulher, e arrastar
pelas paginas de um jornal, o que ha no ser feminino de mais verdadeiro e
de mais profundo: a historia do coração. Hoje não me retêem essas
considerações; tenho aqui, diante da pagina branca em que escrevo, sobre a
minha mesa, este bilhete simples e nobre:--«Vi as accusações contra si e
os seus amigos, e contra aquelle dedicado doutor ***. Escreva a verdade,
imprima-a nos jornaes. Esconda o meu nome com uma inicial falsa apenas. Eu
já não pertenço ao mundo, nem ás suas analyses, nem aos seus juizos. Se
não fizer isto, denuncio-me á policia.»

Apesar porém d'estas grandes e sinceras palavras, eu resolvi nada revelar
do crime, e contar apenas os factos anteriores que me tinham ligado com
aquelle infeliz moço, tão fatalmente morto, motivado a sua presença em
Lisboa, e determinado esse desenlace passado n'uma alcova solitaria, n'uma
casa casual, ao desmaiado clarão de uma vela, ao pé de um ramo de flores
murchas. Outros, os que o sabem, que contem os transes d'essa noite. Eu
não. Não quero ouvir apregoar pelos vendedores de periodicos a historia
das dores mais profundas d'um coração que estimo.

Senhor redactor, ha tres annos a casa onde eu mais vivia em Lisboa,
aquella em que tinha sempre o meu talher, e a minha carta de _whist_, onde
ria as minhas alegrias, e fazia confidencias das minhas tristezas, era a
casa do conde de W. A condessa era minha prima.

Era uma mulher singularmente attrahente: não era linda, era peior: tinha a
_graça_. Eram admiraveis os seus cabellos loiros e espessos; quando
estavam entrelaçados e enrolados, com reflexos d'uma infinita doçura de
ouro, parecia serem um ninho de luz. Um só cabello que se tomasse, que se
estendesse, como a corda n'um instrumento, de encontro á claridade,
reluzia com uma vida tão vibrante que parecia ter-se nas mãos uma fibra
tirada ao coração do sol.

Os seus olhos eram d'um azul profundo como o da agua do Mediterraneo.
Havia n'elles bastante imperio para poder domar o peito mais rebelde; e
havia bastante meiguice e mysterio, para que a alma fizesse o extranho
sonho de se affogar n'aquelles olhos.

Era alta bastante para ser altiva; não tão alta que não podesse encostar a
cabeça sobre o coração que a amasse. Os seus movimentos tinham aquella
ondulação musical, que se imagina do nadar das sereias.

De resto, simples e espirituosa.

Dizer-lhe que os meus olhos nunca se demoraram amorosamente na pureza
infinita da sua testa, e na curva do seu seio seria d'um extranho orgulho.
Tive sim, nos primeiros tempos em que fui àquella casa, um amor
indefinido, uma phantasia delicada, um desejo transcendente por aquella
doce creatura. Disse-lh'o até; ella riu, eu ri tambem; apertámo-nos
gravemente a mão; jogámos n'essa noite o _écarté_; e ella terminou por
fazer n'uma folha de papel a minha caricatura. Desde então fomos amigos;
nunca mais reparei que ella fosse linda; achava-a um digno rapaz, e estava
contente. Contava-lhe os meus amores, as minhas dividas, as minhas
tristezas: ella sabia ouvir tudo, tinha sempre a palavra precisa e
definitiva, o encanto consolador. Depois, tambem, ella contava-me os seus
estados de espírito nervosos, ou melancolicos.

--Estou hoje com os meus _blue decils_, dizia ella.

Faziamos então chá, fallavamos baixo ao fogão. Ella não era feliz com o
marido. Era um homem frio, trivial e libertino; o seu pensamento era
estreito, a sua coragem preguiçosa, a sua dignidade desabotoada. Tinha
amantes vulgares e grosseiras, fumava impiedosamente cachimbo, cuspia o
seu tanto no chão, tinha pouca orthographia. Mas os seus defeitos não eram
excepcionaes, nem destacavam. Lord Grenley dizia d'elle admirado:

--Que homem! não tem espírito, não tem mão de redea, não tem _ar_, não tem
grammatica, não tem _toilette_, e todavia não é desagradavel.

Mas a natureza fina, aristocratica, da condessa, tinha occultas
repugnancias, com a presença d'esta pessoa trivial e monotona. Elle no
emtanto estimava-a, dava-lhe joias, trazia-lhe ás vezes um ramo de flores,
mas tudo isso fazia indifferentemente, como guiava o seu _dog-cart_.

O conde tinha por mim um enthusiasmo singular: achava-me o mais
sympathico, o mais intelligente, o mais bravo; pendurava-se orgulhosamente
do meu braço, citava-me, contava as minhas audacias, imitava as minhas
gravatas.

Em tempo a condessa começou a descorar e a emagrecer. Os medicos
aconselhavam uma viagem a Nice, a Cadix, a Napoles, a uma cidade do
Mediterraneo. Um amigo da casa que voltava da India, onde tinha sido
secretario geral, fallou com grande admiração de Malta. O paquete da India
havia soffrido um transtorno; elle tinha estado retido cinco dias em
Malta, e adorava as suas ruas, a belleza da pequena enseada, o aspecto
heroico dos palacios, e a animação petulante das _maltezas_ de grandes
olhos arabes...

--Queres tu ir a Malta? disse uma noite o conde a sua mulher.

--Vou a toda a parte; mas, não sei porquê, sympathiso com Malta. Vamos a
Malta. Venha tambem, primo.

--Está claro que vem! gritou o conde.

E declarou que não fazia a viagem sem mim, que eu era a sua alegria, o seu
parceiro de Xadrez e o inventor das suas gravatas, que me roubava n'um
navio, e que me deixava seu herdeiro.

Cedi. A condessa estava encantada com a viagem; queria ter uma tempestade,
queria ir depois a Alexandria, á Grecia, e beber agua do Nilo; haviamos de
caçar os chacaes, ir a Meca disfarçados--mil planos incoherentes que nos
faziam rir...

Partimos n'um vapor francez para Gibraltar, onde deviamos tomar o paquete
da India.

Passámos no cabo de S. Vicente com um luar admiravel, que se erguia por
traz do cabo, dava uma dureza saliente e negra aos asperos angulos
d'aquella ponta de terra e vinha estender-se sobre a vasta agua como uma
malha de rede luminosa. O mar ali é sempre mais agitado. A condessa estava
na tolda, sentada n'uma cadeira de braços, de vime, a cabeça adormecida,
os olhos descançados, as mãos immoveis, uma sensação tão feliz na attitude
e no rosto.

--Sabe, disse-me ella de repente, baixo, com a voz lenta;--estou com uma
sensação tão feliz de plenitude, de desejos satisfeitos...

E mais baixo:

-- ... e de vago amor ... Sabe explicar-me isto?

Estavamos sós, no alto mar, sob um luar calmo, o conde dormia; a longa
ondulação da agua arfava como um seio, sob a luz; sentia-se já o magnetico
calor d'Africa. Eu tomei-lhe as mãos e disse-lhe n'um segredo:

--Sabe que está linda!

--Oh! primo! interrompeu ella rindo. Mas nós somos amigos velhos! Está
doido! O que é fallar de noite, sós, ao luar, em amor! Ah! meu amigo,
creia que o que senti, inexplicavel como é, não foi por si, graças a Deus,
foi por alguem que eu não conheço, que vou encontrar talvez, que não vi
ainda. Sabe? Foi um pressentimento... Ahi está! Como o luar é traiçoeiro,
meu Deus! E eu que estou velha!

Eu ia responder, rir. Uma luz brilhou a distancia na bruma nocturna: o
capitão approximou-se:

--Conhecem aquella luz?

--Nunca viajei n'este mar, capitão--respondi.

--São portuguezes, não?... Aquella luz é o pharol de Ceuta.

Era uma luz melancolica, e humilde. Nenhum de nós se importava com Ceuta.
D'ahi a momentos descemos á camara. Eu estava surprehendido, nunca tinha
ouvido á condessa palavras que caracterisassem tanto o estado do seu
coração. Achava-se n'aquelle periodo em que um amor pode apoderar-se para
sempre d'uma existencia.

Que succederia se lhe apparecesse um homem bello, nobre, forte, que lhe
dissesse de joelhos, uma noite, sob o luar como ha pouco, as coisas
infinitas da paixão?

Na manhã seguinte avistámos o môrro de Gibraltar. Desembarcámos. N'uma
praça, á entrada, um regimento inglez, de uniformes vermelhos, manobrava
ao som da canção do general Boum.

--Detesto os inglezes, disse a condessa.

--O quê?! gritou o conde com uma voz indignada. Os inglezes! Detestas os
inglezes?

E voltando-se para mim, com uma attitude profundamente pasmada e abatida:

--Detesta os inglezes, menino!


II


Sr. Redactor.--Em Gibraltar fomos para _Club House-Hotel_. Os quartos
abriam sobre a muralha do mar; viamos defronte, afogada n'uma luz
admiravel, uma linha de montanhas, e mais longe, do lado do estreito, nas
brumas esbatidas, a terra de Africa.

Fomos passeiar logo n'um d'aquelles carros de Gibraltar que são dois
bancos parallelos, costas com costas, assentes sobre duas rodas enormes,
puchados por um cavallo inglez robusto, rapido, e tendo já adquirido nas
convivencias hispanholas um espirito teimoso.

O bello passeio de Gibraltar é uma estrada, que, a meia vertente por cima
da cidade, contorna a montanha, e é orlada de _cottages_, de jardins, de
pomares, cheios já das extranhas e poderosas vegetações do Oriente, aloes,
nopaes, cactus e palmeiras; e vê-se sempre, atravez da folhagem, lá no
fundo, a azul immobilidade luminosa do Mediterraneo.

A condessa estava encantada: aquella luz ampla e magnifica, a agua pesada
pelo sol, o silencio religioso do espaço azul, as brumas vaporosas e róxas
das montanhas, a vigorosa força das vegetações, tudo dava áquella pobre
alma contraida uma expressão inesperada. Ria, queria correr, tinha
_verve_, e uma luz bailava-lhe nos olhos.

Fomos sentar-nos no jardim de Gibraltar. Os senhores inglezes
artilharam-no talvez um pouco de mais. Não ha fontes, mas ha estatuas de
generaes; as pyramides de balas estão encobertas pelas moitas de rosas, e
a estupida impassibilidade dos canhões assenta sob arbustos de magnolias.
Mas que serenidade! Que silencio abstracto e divino! Que ar immortal!
Parece que as cousas, os seres vegetaes, a terra, a luz, tudo está parado,
absorto n'uma contemplação, suspenso, escutando, respirando sem rumor! Em
baixo está o Mediterraneo, liso como um setim, delicado, coberto de luz.
Mais longe vaporisadas, docemente esbatidas nas nevoas azues, as duras
fórmas do monte Atlas. Nada se move: apenas ás vezes uma pomba passa,
voando com uma serenidade ineffavel. Um momento veiu-nos de baixo, onde
passava um regimento de Highlanders, o som das _cornemuses_ que tocavam as
arias melancolicas das montanhas da Escocia. E os sons chegavam-nos doces,
ethereos, como se fossem habitantes sonoros do ar.

A condessa tinha ficado sentada, e immovel, calada, penetrada d'aquella
admiravel serenidade das cousas, da beleza da luz, do somno da agua, dos
vivos aromas.

--Não é verdade, disse, que dá vontade de morrer aqui, brandamente, só...

--Só? perguntei eu.

Ella sorriu, com os olhos perdidos na bella decoração do horisonte
luminoso.

--Só... disse ella, não!

--Ah! minha rica prima, cuidado! cuidado! observei eu. Começa-se scismando
assim vagamente, vem um pequeno sonho bem innocente, acampa no nosso
coração, começa, a caval-o, e depois, querida prima, e depois...

--E depois vae-se jantar, disse o conde que tinha chegado ao pé de nós,
radiante por ter apertado a mão de um coronel inglez, e colhido um cacto
vermelho.

Descemos ao hotel. Á noite passeavamos no Martillo. Era a hora de
recolher; uma fanfarra ingleza tocava uma melopéa melancolica. Ouviu-se no
mar um tiro de peça.

--Chegou o paquete da India, disse o nosso guia. E no alto do morro um
canhão respondeu com um echo cheio e poderoso.

--Desembarcam, no dia em que chegam, os passageiros? perguntei.

--Os militares quasi sempre, senhor. Vão desembarcar lá em baixo, com
licença do governador.

Quando pelas 10 horas entrámos, depois de termos passeiado ao luar nas
esplanadas, sentimos na sala de _Club-House_, ruido, vozes alegres,
estalar de rolhas, toda a feição de uma ceia de homens. A condessa subiu
para o seu quarto. Eu entrei na sala, com o conde. Officiaes inglezes que
vinham de Southampton, e que iam para a estação de Malta, tinham
desembarcado, e ceavam.

Nós tinhamo-nos sentado, bebendo cerveja, quando tive occasião de
approximar d'um dos officiaes inglezes que estava proximo de mim o frasco
de mostarda. O frasco caiu, sujou-me, elle sorriu com polidez, eu ri
alegremente, conversámos, e ao fim da noite passeiavamos ambos pelo braço,
na esplanada que ficava defonte das janellas do hotel e que está sobre o
mar. Havia um amplo e calado luar que espiritualisava a decoração
admiravel das montanhas, a vasta agua immovel.

Eu tinha sympathisado com aquelle official, já pelo seu perfil altivo e
delicado, já pela feição original do seu pensamento, já por uma gravidade
triste que havia na sua attitude. Era moço, capitão de artilheria, e
batera-se na India. Era loiro e branco; mas o sol do Indostão tinha
amadurecido aquella carnação fresca e clara, aprofundado a luz dos olhos,
e dado aos cabellos uma côr fulva e ardente.

Passeiavamos, conversando na esplanada, quando, repentinamente, abriu-se
uma janella, e uma mulher com um penteador branco, apoiou-se levemente na
varanda, e ficou olhando o horisonte luminoso, a melancolia da agua. Era a
condessa.

O luar envolvia-a, empallidecia-lhe o rosto, adelgaçava-lhe o corpo, dava
á sua forma toda a espiritualisação de uma figura de antiga legenda: o seu
penteador caia largamente ao redor d'ella, em grandes pregas quebradas.

--Que linda! disse o official parando, com um olhar admirado, e profundo.
Quem será?

--Somos um pouco primos, disse eu rindo. É casada. É a condessa de W.
Parte para Malta ámanhã no paquete. A bordo levar-lhe-hei o meu amigo para
a entreter contando-lhe historias da India. Adora o romanesco aquella
pobre condessa! Em Portugal, nem nos romances o ha. Caçou o tigre,
capitão?

--Um pouco. Falla o inglez sua prima?

--Como uma portugueza, mal; mas ouve com os olhos, e adivinha sempre.

Separámo-nos.

--Arranjei-lhe um romance, um lindo romance, prima--disse eu entrando na
sala, onde o conde escrevia cartas, cachimbando;--um romance onde se caçam
tigres com rajahs, onde ha bayaderas, florestas de palmeiras, guerras
inglezas, e elephantes...

--Ah! como se chama?

--Chama-se Captain Rytmel, official de artilheria, 28 annos, em viagem
para Malta, bigode loiro, um pouco da India nos olhos, muito da Inglaterra
na excentricidade, um perfeito _gentleman_.

--Um bebedor de cerveja! disse ella, desfolhando a flôr de cactus.

--Um bebedor de cerveja! gritou o conde erguendo a cabeça com uma
indignação comica. Minha querida, diante de mim, pelo menos, não digas
isso se não queres fazer-me cabellos brancos! Estimo os inglezes e
respeito a cerveja. Um bebedor de cerveja! Um moço d'aquella perfeição!...
murmurava elle, fazendo ranger a penna.

Ao outro dia subiamos para bordo do paquete da India, o _Ceylão_. Eram 7
horas da manhã. O morro de Gibraltar mal acordada tinha ainda o seu
barrete de dormir feito de nevoeiro. Havia já viajantes e officiaes sobre
a tolda. O chão estava humido, havia uma confusão violenta de bagagens, de
cestos de fructa, de gaiolas de aves; a escada de serviço via-se cheia de
vendedores de Gibraltar. A condessa recolheu-se á _cabine_, para dormir um
pouco. Ás 9 horas quasi todos os passageiros que tinham entrado de
Gibraltar e os que vinham de Southampton estavam em cima; o vapor
fumegava, os escaleres affastavam-se, o nevoeiro estava desfeito, o sol
dava uma côr rosada ás casa brancas de Algesiras e de S. Roque, e ouvia-se
em terra o rufar dos tambores.

A condessa, sentada n'uma cadeira indiana, olhava para as pequenas
povoações hispanholas que assentam na bahia.

O official inglez, Captain Rytmel, conversava a distancia com o conde, que
adorava já a sua figura captivante e altiva, as suas aventuras da India, e
a excentrica fórma do seu chapeu, que elle trazia com uma graça distincta
e audaz. O capitão tinha na mão um album e um lapis.

--Captain, disse-lhe eu tomando-lhe o braço, vou leval-o a minha prima, a
senhora condessa. Esconda os seus desenhos, ella é implacavel e faz
caricaturas.

A condessa estendeu ao inglez uma pequena mão, magra, nervosa, macia, com
umas unhas polidas como o marfim de Dieppe.

--Meu primo disse-me, Captain Rytmel, que tinha mil historias da India
para me contar. Já lhe digo que lhe não perdôo nem um tigre, nem uma
paisagem. Quero tudo! adoro a India, a dos Indios, já se vê, não a dos
senhores inglezes. Já esteve em Malta? é bonita?

--Malta, condessa, é um pouco de Italia e um pouco de Oriente. Surprehende
por isso. Tem um encanto extranho, singular. De resto é um rochedo.

--Demora-se em Malta? perguntou a condessa.

--Uma semana.

A condessa estava torcendo a sua luva; ergueu os olhos, pousou-os no
official, tossiu brandamente, e com um movimento rapido:

--Ah! vae deixar-me ver o seu album.

--Mas, condessa, está branco, quasi branco; tem apenas desenhos lineares,
apontamentos topographicos.

--Não creio; deve ter paisagens da India, ha de haver ahi um tigre, pelo
menos, a não ser que haja uma bayadera!

E com um gesto de graça victoriosa, tomou o album da mão do official.

O capitão fez-se todo vermelho. Ella folheou o livro e de repente deu um
pequeno grito, córou, e ficou com o album aberto, os olhos humidos,
risonhos, os labios entreabertos. Olhei: na pagina estava desenhada uma
mulher com um penteador branco, debruçada a uma janella, tendo defronte um
horisonte com montanhas e o mar. Era o retrato perfeito da condessa. Elle
tinha-a visto assim na vespera, ao luar, á janella do _Club-House_.

O conde tinha-se approximado.

--Como! como! És tu, Luiza! Mas que talento! É um homem adoravel, capitão.
Que desenho! Que verdade!

--Oh! não! não! disse o capitão. Hontem estava no meu quarto, em
_Club-House_; instinctivamente tinha o album aberto, e o lapis, sem eu
querer, sem intenção minha, espontaneamente, fez este retrato. É um lapis
que deve ser castigado.

--O quê! gritou o conde, é um lapis encantado. Capitão, está decidido que
vae jantar commigo, logo que cheguemos a Malta. Já o não largo, meu caro!
Ha de ser o nosso _cicerone_ em Malta. Mas que talento! Que verdade!

E fallando em portuguez para a condessa:

--E um bebedor de cerveja, hein?

N'esse momento uma sineta tocou: era o almoço.


III


Talvez extranhe, senhor redactor, a escrupulosa minuciosidade com que eu
conto estes factos, conservando-lhes a paizagem, o dialogo, o gesto, toda
a vida palpavel do momento. Não se admire. Nem tenho uma memoria
excepcional, nem faço uma invenção phantasista. Tenho por costume todas as
noites, quando fico só, apontar n'um livro branco os factos, as idéas, as
imaginações, os dialogos, tudo aquillo que no dia o meu cerebro cria ou a
minha vida encontra. São essas notas que eu copio aqui.

Á mesa do almoço estavam já sentados os passageiros. O nosso logar era ao
pé do capitão. O commandante do _Ceilão_ era um homem magro, esguio, com
uma pelle muito vermelha, d'onde sahiam com a hostil aspereza com que as
urzes saem da terra, duas duras suissas brancas.

Ao seu lado sentavam-se duas excentricas personalidades de bordo: o
_Purser_, que é o commissario que vela pela installação dos viajantes e
pelos regulamentos de serviço, e mr. Colney, empregado do correio de
Londres. O _Purser_ era tão gordo que fazia lembrar um grupo de homens
robustos mettidos e apertados n'uma farda de marinha mercante. Mr. Colney
era alto e secco, com um immenso nariz agudo e enristado, em cuja ponta
repousava pedagogicamente o aro de ouro dos seus oculos burocraticos. O
_Purser_ tinha uma fraqueza que o dominava--era o desejo de fallar bem
brazileiro. Tinha viajado no Brazil, admirava o Maranhão, o Pará, os
grandes recursos do imperio. A todo o momento se approximava de mim para
me perguntar certas subtilezas de pronuncia brazileira. Mister Colney,
esse, era gago e tinha a mania de cantar cançonetas comicas. Os outros
passageiros eram officiaes, que iam tomar serviço na India, algumas
_misses_ alegres e loiras, um _clergiman_ com doze filhos, e duas velhas
philantropicas, pertencentes á Sociedade educadora dos pequenos
patagonios.

Logo que Captain Rytmel entrou na sala, seguindo a condessa, um homem que
se debatia gulosamente no prato com a anatomia de uma ave fria, encarou-o,
ergueu-se, e com uma alegria ruidosa gritou:

--_Viva Dios!_ É Captain Rytmel! Eh! querido! mil abraços! Está gordo,
hombre, está mais gordo!

Envolvia-o nos braços robustos, olhava-o ternamente com dois grandes olhos
negros. Captain Rytmel depois do primeiro instante de surpreza, em que se
fez pallido, apressou-se a ir apertar a mão a uma senhora, extremamente
bella, que estava sentada ao pé d'aquelle homem guloso e expansivo, o qual
era um hispanhol, negociante de sedas, e se chamava D. Nicazio Puebla.

A senhora, que se chamava Carmen, era cubana, e segunda mulher de D.
Nicazio; era alta, de fórmas magnificas, com uma carnação que fazia
lembrar um marmore pallido, uns olhos pretos que pareciam setim negro
coberto de agua, e cabellos annelados, abundantes, d'esses a que
Beaudelaire chamava _tenebrosos_. Vestia de seda preta e com mantilha.

--Estavam em Gibraltar? perguntou Captain Rytmel.

--Em Cadix, meu caro, disse D. Nicazio. Viemos hontem. Vamos a Malta.
Volta para a India? Ah! Captain Rytmel, que saudade de Calcuttá! Lembra-se
hein?

--Captain Rytmel--disse sorrindo friamente Carmen--esquece depressa, e
bem!

No emtanto nós olhámos curiosamente para Carmen Puebla. O conde achava-a
_sublime_. Eu admirado tambem, disse á condessa:

--Que formosa creatura!

--Sim! Tem ares d'uma estatua malcreada, respondeu ella seccamente.

Olhei para a condessa, ri:

--Oh prima! É uma mulher adoravel, que devia ser em miniatura para se
poder trazer nos berloques do relogio; uma mulher que de certo vou roubar,
aqui no alto mar, n'um escaler; uma mulher cujos movimentos parecem musica
condensada! Oh prima! confesse que é perfeita... Menino! accrescentei para
o conde, passa-me depressa a soda, preciso calmantes...

No emtanto Captain Rytmel, sentado junto de Carmen, fallava da India, de
velhos amigos de Calcuttá, de recordações de viagens. A condessa não
comia, parecia nervosa.

--Vou para cima, disse ella de repente, mandem-me chá.

Quando a viu subir, Rytmel ergueu-se, perguntando ao conde:

--Está incommodada a condessa?

--Levemente. Precisa de ar. Vá-lhe fazer um pouco de companhia, falle-lhe
da India. Eu, não posso deixar este _carril_...

Eu tinha interesse em ficar á mesa defronte da luminosa Carmen,
concentrei-me sobre o meu prato. O capitão tinha tomado logo o seu
excentrico chapeu indio, orlado de veus brancos.

Ao vel-o seguir a condessa, a hispanhola empallideceu. Momentos depois
ergueu-se tambem, tomou uma larga capa de seda á maneira arabe de um
_bournous_, enrolou-a em roda do corpo, e subiu para a tolda, apoiada
n'uma alta bengala de castão de marfim.

O almoço tinha acabado. Fallava-se da India, do theatro de Malta, de lord
Derby, dos Fenians; eu enfastiava-me, fui apertar a mão ao commandante, e
fumar para cima um bom charuto, sentindo a brisa fresca do mar.

A condessa estava sentada n'um banco á pôpa; ao pé d'ella o capitão
Rytmel, n'um _pliant_ de vime.

Carmen passeava rapidamente ao comprido da tolda; ás vezes, firmando-se
nas cordagens, subia o degrau que contorna interiormente a amurada, e
ficava olhando para o mar, emquanto a sua mantilha e a sua capa se enchiam
de vento, e lhe davam uma apparencia ondeada e balançada, que a
assimilhava áquellas divindades que os esculptores antigos enroscavam no
flanco dos galeões!


IV


D. Nicazio Puebla, que o _Purser_ me apresentara já, viera fumar para o pé
de mim.

--Esteve na India, Caballero? perguntei-lhe eu.

--Dois annos, em Calcuttá. Foi lá que conheci o capitão Rytmel.
Conviviamos muito. Jantavamos sempre juntos. Fui á caça do tigre com elle.
Cacei o tigre. Deve ir a Calcuttá! Que palacios! Que fabricas!

--O capitão é um valente official.

--É alegre. O que nós riamos! E bravo, então! Se lhe parece! Salvou-me a
vida.

--N'alguma caçada.

--Eu lhe conto.

Tinhamo-nos approximado da pôpa, fallando. N'este momento vi eu a
hispanhola encaminhar-se para o logar em que a condessa fallava com
Rytmel, e com uma resolução atrevida, a voz altiva, dizer-lhe:

--Capitão, tem a bondade, dá-me uma palavra?

A condessa fez-se muito pallida. O capitão teve um movimento colerico, mas
ergueu-se e seguiu a hispanhola.

Eu approximei-me da condessa.

--Quem é esta mulher? Que quer?... disse-me ella toda tremula.

Eu soceguei-a e dirigi-me a D. Nicazio.

--Viu aquelle movimento de sua mulher?

--Vi.

--É inconveniente: e o cavalheiro responde de certo pelas phantasias ou
pelos habitos d'aquella senhora...

--Eu! gritou o hispanhol, eu não respondo por coisa alguma. O senhor que
quer? É um monstro essa mulher! Livre-me d'ella, se póde! Olhe: quel-a o
senhor? Guarde-a. Está sempre a fazer d'estas scenas! E não lhe posso
fazer uma observação! É uma furia, usa punhal!

--Esta mulher, fui eu dizer á condessa, é uma creatura sem consideração e
parece que sem dignidade. Não a olhe, não a escute, não a perceba, não a
presinta. Se houver outra inconveniencia eu dirijo-me ao commandante, como
se ella fosse um grumete insolente. É pena... é terrivelmente linda!

A hispanhola no entanto, junto da amurada, fallava violentamente ao
capitão Rytmel que a escutava frio, impassivel, com os olhos no chão.

O conde subiu n'este momento. Outras senhoras vieram, os grupos
formavam-se, começavam as leituras, as obras de costura, o jogo _do
boi_...

Eu approximei-me de D. Nicazio e disse-lhe sem lhe dar mais importancia:

--Então esta sua senhora dá-lhe desgostos?

--É sempre aquillo com o capitão. Foi desde a tal caçada ao tigre... Quer
que lhe conte?...

--Diga lá.

Sentei-me na tenda onde se fuma, accendi um charuto, cruzei as pernas,
recostei a cabeça e, emballado pelo lento mover do navio, cerrei os olhos.

--Um dia em Calcuttá, começou o hispanhol, dia de grande calor...

Mas não, senhor redactor. Eu quero que esta historia a saiba do proprio
capitão. Ahi tem a tradução fiel de uma das mais vivas paginas de um dos
seus albuns de impressões de viagem.

     *     *     *     *     *

...«Sabes, escrevia elle a um amigo, que o sonho de todo o negociante que
chega á India é caçar o tigre.

D. Nicazio Puebla quiz caçar o tigre. Sua mulher Carmen decidiu
acompanhal-o. Essa, sim, que tinha a coragem, a violencia, a necessidade
de perigos de um velho explorador Hundodo! Eu estimava aquella familia.
Combinámos uma caçada com alguns officiaes meus amigos, então em Calcuttá.
A duas leguas da cidade sabiam os exploradores que fora visto um tigre.
Tinha mesmo saltado, havia duas noites, uma palliçada de bambus, na
propriedade d'um doutor inglez, antigo colono, e tinha devorado a filha de
um malaio. Dizia-se que era um tigre enorme, e formosamente listrado.

Partimos de madrugada, a cavallo. Um elephante, com um palanquim, levava
Carmen. Um boi conduzia agua em bilhas encanastradas de vime. Iam alguns
officiaes de artilheria, cipaios, tres malaios e um velho caçador
experimentado, antigo brahmane, degenerado e devasso, que vivia em
Calcuttá das esmolas dos nababos e dos officiaes inglezes. Era destemido,
meio louco, cantava extranhas melodias do Indostão, adorava o Ganges, e
dormia sempre em cima de uma palmeira.

Nós levavamos espingardas excelentes, punhaes recurvados, espadas de dois
gumes, curtas, á maneira dos gladios romanos, e o terrivel tridente de
ferro que é a melhor arma para a lucta com o tigre. Ia uma matilha de
cães, forte e dextra, da confiança dos malaios.

Ás 11 horas do dia penetravamos em plena floresta. O tigre devia ser
encontrado n'uma clareira conhecida. Iamos calados, vergando ao peso
implacavel do sol, entre palmeiras, tamarindos, espessuras profundas, n'um
ar suffocado, cheio d'aromas acres. Toda aquella natureza estava
entorpecida pela calma: os passaros, silenciosos, tinham um vôo pesado; as
suas pennas coloridas, vermelhas, negras, roxas, doiradas, resplandeciam,
sobre o verde negro da folhagem. O ceu mostrava uma côr de cobre ardente;
os cavallos marchavam com o pescoço pendente; os cães arquejavam; o boi
que levava a agua mugia lamentavelmente; só o elephante caminhava na sua
pompa impassivel, em quanto os malaios para esquecer a fadiga, diziam, com
a voz monotona e lenta, cantigas de Bombaim.

Estavamos ainda distantes do tigre: nem os cavallos tinham rinchado, nem o
elephante soltara o seu grito melancolico e doce. Todavia achavamo-nos
proximo da clareira.

Eu cheguei ao palanquim de Carmen e bati nas cortinas. Carmen
entreabriu-as: estava pallida da fadiga do sol e do prazer do perigo; os
olhos reluziam-lhe extraordinariamente. Anciava pela lucta, pelos tiros,
pelo encontro da fera. Pediu-me uma cigarrette e um pouco de cognac e
agua...

Eu desde que a conhecia tinha muitas vezes olhado Carmen com insistencia,
e tinha visto sempre o seu olhar negro e acariciador envolver-me
respondendo ao meu.

Tinha-lhe algumas vezes dado flores, e uma noite que n'um terrasso em
Calcuttá, olhavamos as poderosas constellações da India, o ceu pulverisado
de luz, ella tinha um momento esquecido as suas mãos entre as minhas. A
sua belleza perturbava-me como um vinho muito forte. E alli, n'aquella
floresta, sob um céo affogueado, entre os aromas das magnolias, Carmen
apparecia-me com uma belleza prestigiosa, cheia de tentações, a que se não
foge.

--Ah Carmen, disse eu, quem sabe os que voltarão a Calcuttá!

--Está rindo, capitão...

--Na caçada do tigre póde-se pensar n'isto: o tigre é astuto; tem o
instincto do inimigo mais bravo e do que é mais lamentado.

--Ninguem hoje seria mais lamentado que o capitão.

--Só hoje?

--Sempre, e bem sabe por quê.

De repente o meu cavallo estacou.

--O tigre! o tigre! gritaram os malaios.

Os cavallos da frente recuaram; os cipaios entraram nas fileiras da
caravana. Os cães latiam, os malaios soltavam gritos guturaes, e o
elephante estendia a tromba, silencioso. De repente, houve como uma pausa
solemne e triste, e um vento muito quente passou nas folhagens.

Estavamos defronte de uma clareira coberta de um sol faiscante. Do outro
lado havia um bosque de tamarindos: era ali decerto que a fera dormia.
Voltei-me para D. Nicazio: vi-o pallido e inquieto.

--D. Nicazio! dê o primeiro tiro, o signal d'alarma!

D. Nicazio picou rapidamente o cavallo para mim, murmurou com uma voz
suffocada:

--Quero subir para o elephante. Carmen não deve estar só; póde haver
perigo...

Fallei aos malaios, que desdobraram a estreita escada de bambu, por onde
se sobe ao dorso dos elephantes. O Carnak dormia encruzado no vasto
pescoço do animal. D. Nicazio subiu com avidez, arremeçou-se para dentro
do palanquim, e de lá, pela fenda das cortinas, espreitava com o olho
faiscante e medroso.

Mas estão foi Carmen que não quiz ficar dentro do palanquim, pediu,
gritou, queria montar a cavallo, sentir o cheiro á fera.

--Tirem-me d'aqui, tirem-me d'aqui! Não fiz esta jornada toda para ficar
dentro d'uma gaiola...

Não havia sella em que mulher montasse, nem cavallo bastante fiel; não se
podia consentir que Carmen descesse. Mas eu tive uma idéa extranha,
perigosa, tentadora, imprevista: era pôl-a á garupa do meu cavallo.
Disse-lh'o.

Ella teve um gesto de alegria, quasi se deixou escorregar, agarrando-se ás
cordas do palanquim, pelo ventre do elephante; correu, pôz o pé no meu
estribo, enlaçou-me a cintura, e com um lindo pulo, sentou-se á garupa. Os
officiaes exclamavam que era uma imprudencia. Ella queria, instava e
apertava-me contra a curva do seu peito, rindo, jurando que nem as garras
do tigre a arrancariam d'alli...

Os malaios preparavam os tridentes, dispunham a matilha. Eu, como levava
Carmen á garupa, tinha-me collocado atraz do grupo, cerrado, com os pés
firmes nos estribos, attento, os olhos fitos na espessura dos tamarindos.

Mas nem se ouviam rugidos, nem um estremecimento de folhagem.

Carmen apertava-me exaltada.

--Vá! Vá! pediu-me ella baixo. O tigre, o tigre! Dê o signal.

Ergui um rewolver e disparei. O echo foi cheio e poderoso. E logo ouviu-se
um rugido surdo, lugubre, rouco, que era a resposta do tigre. Estava
perto, entre os primeiros tamarindos. A matilha rompeu a ladrar...

--Que ninguem se alargue! disse o velho brahmane, que tinha trepado a uma
palmeira, e de lá olhava, farejava, ordenava!

Todos conservavam a espada ou tridente inclinado em riste, esperando o
salto do tigre. Eu déra uma _cuchilla_ a Carmen, tinha na mão da redea um
forte rewolver e na outra um punhal curvo...

De repente os arbustos estremeceram, as altas hervas curvaram-se,
sentiu-se um bafo quente, um cheiro de sangue, e o tigre veiu cair, com um
rugido, diante dos caçadores, no meio da clareira, estacado, e immovel.

Era muito comprido, de pernas curtas e espessas, a cabeça ossea, os olhos
fulvos, ferozes, n'um movimento perpetuo e convulsivo; e a lingua vermelha
como sangue coalhado, pendia-lhe fóra da bocca.

Um momento o tigre arrastou-se, batendo os ilhaes com a cauda. Depois com
um gemido profundo, saltou. Mas os cães, arremessando-se, tinham-no
prendido no ar, pelas orelhas, pela pelle espessa do pescoço, pelas
pernas, vestindo-o de mordeduras, rasgando-o, rugindo, cobrindo-o todo.
Alguns ficaram logo despedaçados.

E no instante em que a fera tendo cuspido todos os cães, ficou só,
magnifico, e de cabeça alta o brahmane fez um signal. Duas balas partiram.
O tigre rugiu, rolou-se freneticamente no chão. Estava ferido.
Immediatamente ergueu-se, arremessou-se sobre os homens. Todos tinham o
tridente e os punhaes enristados, o ventre da fera veio rasgar-se nas
laminas agudas. Prendera porém um malaio entre as garras, e rasgava-lhe o
peito. Á uma todos enterravam as facas no corpo do animal, e elle,
succumbindo sob o peso, sob as feridas, varado por uma bala, debatia-se
ainda ferozmente, esmigalhando na agonia os membros do pobre malaio.

--Nada de bala! nada de bala! gritava o brahmane.

Eu estava fascinado. Carmen convulsivamente apertada a mim, com os olhos
chammejantes, vibrando por todo o corpo, dava gritos surdos d'excitação. O
tigre ficara estendido, escorrendo sangue. Eu devorava-o com a vista,
seguia-lhe a mais pequena contracção dos musculos. Vi-o arquear-se de
repente, e com um pulo vertiginoso arremessar-se sobre mim e sobre Carmen.
Com uma determinação subita, disparei um tiro do meu rewolver no ouvido do
cavallo que montavamos. O animal caiu sobre os joelhos, nós rolámos no
chão. O tigre levava um pulo elevado, roçou pelas nossas cabeças, foi cair
a distancia, revolvendo-se na terra. Ergui-me, arrojei-me a elle,
cravando-lhe o punhal entre as patas dianteiras com um movimento rapido,
que lhe foi ao coração. O tigre ficou morto. Abaixei-me, e com uma faca
malaia em fórma de serra cortei-lhe uma pata, e apresentei-a a Carmen.

--Hurrah! gritaram todos, e o echo d'este grito estendeu-se pela floresta.

Carmen tinha-se approximado do tigre morto, acariciava-lhe a pelle
aveludada, tocava-lhe com as pontas dos dedos no sangue que escorria.

--Hurrah! hurrah! continuavam gritando os caçadores.

Carmen, então, arremessando-se aos meus braços, beijou-me na testa com
enthusiasmo, dizendo alto:

--Salvou-me a vida! Devo-lhe a vida!...

E mais baixo, murmurou-me ao ouvido:

--Amo-te.

A tarde cahia. Sentiamos os braços fracos, e grande sede. Começámos a
dirigir-nos para Calcuttá. Descançámos n'uma plantação de indigo. E ao
começar da noite, com archotes accesos e cantando, partimos alegremente
para a cidade, pela floresta, n'um caminho conhecido e seguro. As luzes
davam á ramagem attitudes phantasticas; passaros acordando esvoaçavam; e
sentia-se o fugir dos chacaes. Era como a volta d'uma caçada barbara, das
velhas legendas da India. Carmen tinha aberto as cortinas do palanquim. Eu
montava, ao lado d'ella, o cavallo do malaio morto. Ella inclinou-se para
mim e com a voz abafada:

--Juro-te, disse-me, que te amo, como só no nosso paiz se ama. Juro-te que
em todas as circumstancias, sempre darei a minha vida pela tua, quererei
os teus perigos, serei a tua creatura, e só te peço uma cousa.

--O quê?

--É que de vez em quando, quando não tiveres melhor que fazer, te lembres
um pouco de mim.

O momento, o sitio, os perfumes acres, as phantasticas sombras da
floresta, a luz dos archotes, a belleza maravilhosa e fatal de Carmen, os
tiros, os sons das trompas, os relinchos dos cavallos, os gritos dos
chacaes, tudo me tinha perturbado, exaltado, e esquecendo o senso e a
logica, disse-lhe:

--Juro-te que te amo, que sempre te serei leal, e que no dia em que vires
que te esqueço, quero que me mates!

Ella segurou a mão que lhe estendi, e com uma caricia humilde, com um
gesto de fera que rasteja, curvou-se toda na grade do palanquim, e
beijou-me os dedos.

A noite, no entanto, enchia-se de enormes estrellas scintillantes...»


V


Ao terceiro dia de viagem do _Ceylão_, um dia antes de avistarmos Malta,
um official inglez, ao almoço, lembrou que n'aquelle dia fazia 28 annos o
principe de Galles. Quasi todos os officiaes que estavam a bordo conheciam
o principe, estimavam o seu caracter, o seu temperamento eminentemente
_byroneano_. Resolveram, com accedencia do commandante, celebrar a data e
valsar á noite, na tolda, á luz d'um _punch_ collossal.

O jantar foi já ruidoso; o Champagne resplandeceu como opala liquida nas
taças facetadas; a pesada _pale ale_ espumou; o Xerez ferveu na _soda
water_. Carmen, pela sua belleza e pela extranha _verve_ da sua agitação,
foi a alegria d'aquelle pesado e longo banquete de annos reaes.

Houve _toasts_, á rainha e aos principes inglezes, ao lord-almirante, á
companhia _P. and O._; e um inglez rico fez um _speech_ aos estrangeiros:
_The count and countess of W_.

--Peço um _toast_, disse Carmen, de repente.

Os copos tiniram, estalaram as rolhas.

--Á caçada do tigre! aos palanquins de cortinas brancas! aos caçadores que
salvam as damas que têem á garupa!

A maior parte não comprehendeu, alguns riram, mas como o _toast_ era
excentrico, foi escoltado d'applausos.

--_Oh! shocking!_ disse ao meu lado uma velha irlandesa, que tinha pelo
amplo ventre do _Purser_ uma fascinação concentrada.

--_Not at all, Madam!_ disse eu, é apenas o sangue meridional. Aquella
viveza, aquelles olhos luzentes, é o sangue meridional: se ella agora
quebrasse todas as garrafas de encontro ao tecto da sala, era o sangue
meridional...

A ingleza escutava, como quem se instrue.

-- ... Se ella tomasse de repente a roda do leme e arremessasse o paquete
contra um rochedo, era o sangue meridional; se ella ousasse arrancar com
mãos impias os seus oculos, milady...

--Ouh! gritou ella.

-- ... era ainda o sangue meridional!

--_Oh! very shocking the_ sangue meridional.

Os officiaes inglezes, esses, estavam enthusiasmados com Carmen.

No emtanto, as senhoras tinham-se erguido; e em volta do conde juntára-se
um grupo de bebedores convictos e serios. Serviu-se o cognac e os alcools.
Carmen ficára entre os homens, bebendo licôr, rindo e fumando cigarrettes.

A condessa subira pelo braço de Captain Rytmel.

D. Nicazio, esse, comia impassivelmente o seu queijo adornado de mostarda,
de salada, de vinagre, de sal, de rabanos e d'um leve pó apimentado de
Ceylão.

Não sei como, fallou-se de mulheres, e de caracteres femininos.

--Eu, disse logo Carmen, comprehendo a gravidade devota das _misses_: como
senhoras inglezas é sua educação; nasceram para serem hirtas, loiras,
frias e leitoras da _Revista d'Edimburgo_. Estão na verdade do seu
caracter: um pouco menos vivas seriam de _biscuit_, um pouco mais seriam
_shockings_. Mas o que eu detesto, são as canduras allemãs, os modos
virginaes de creaturas que, pelo seu clima, pelo sol do seu paiz,
pertencem ao que a vivacidade tem de mais petulante. Uma hispanhola, uma
italiana, uma portugueza, caindo no _missismo_, e dando-se ares vaporosos,
hypocritas e beatos, serve sempre para esconder um amante, quando não
serve para esconder dois.

Aquellas palavras eram evidentemente uma allusão sanguinolenta ás maneiras
reservadas da condessa, que, sendo loira, discreta, suave, contrastava
poderosamente com aquella trigueira e ruidosa hispanhola.

--Perdão, _señora_, disse-lhe eu em hispanhol: hoje as verdadeiras
maneiras não são o _salero_, são a _gravidade_. O _salero_ póde ser bom no
theatro, na _zarzuella_, nos corpos de baile, nas gravuras de uma viagem á
Hispanha, mas é de todo o ponto inconveniente n'uma sala.

Ella empallideceu levemente, e fitou-me:

--_Caballero_, perguntou, _es usted pedante de rhetorica?_

Eu ri-me, estendi-lhe a mão, e tudo acabou com um novo _toast_.

Mr. Cokney, que escutava a hispanhola, tinha attendido ás nossas palavras,
tinha achado um som pittoresco e extranho n'aquelle dizer--_pedante de
rhetorica_, e exclamava para os outros inglezes, rindo:

--_Oh yes, Pedantt de Rhetoric, it is very phantastic!_

Entretanto, a noite caia. Eu senti-me pesado, recolhi á _cabine_, adormeci
ligeiramente. Pelas nove horas subi á tolda. Fiquei surprehendido.

Não havia luar, nem estrellas, nem vento. Ao fim da tolda ardia o _punch_.
Era enorme, a sua chamma larga, azulada, phantastica, subia, palpitava,
fazia sobre o navio toda a sorte de reflexos e de sombras. Dos logares
escuros saiam risadas de _flirtations_. Havia uma flauta, e uma rebeca. E
já um ou outro par valsava em roda da _clara-boia_ da tolda.

A mastreação do navio, tocada em grandes linhas azuladas pela luz do
_punch_, fazia lembrar um galeão de legenda, o paquete de Satan.

Algumas senhoras estavam vestidas de branco, e quando nos circulos da
valsa passavam sob a zona da luz, e eram envolvidas n'uma claridade
phosphorica, os vestidos brancos tomavam tons espectraes, os cabellos
louros luziam com um encanto morto, havia em tudo aquillo como uns longes
de dança macabra...

Carmen estava possuida da mesma agitação da chamma do _punch_, travava do
braço a um, valsava com outro, escarnecia, tinha replicas, batia o leque.
D. Nicazio, esse resonava perto da amurada. De vez em quando
entornavam-lhe _punch_ pela bocca: elle abria uma frestado olho:

--_Thank you_, caballeros! e adormecia.

--Onde está captain Rytmel? disse de repente Carmen. Tragam-n'o... Quero
valsar com elle.

Rytmel conversava com a condessa socegadamente, longe da luz.

--Rytmel! Rytmel! chamaram varias vozes.

Vimol-o approximar-se contrariado, mas rindo.

--Uma valsa, gritou-lhe a hispanhola.

A flauta começou: ella tomou os hombros do capitão, e despediram em
grandes circulos; os vestidos de Carmen enchiam-se d'ar, os seus cabellos
desmanchavam-se; a luz do _punch_ tremia; ao compasso rapido, os giros
vertiginosos, enlaçados, pareciam vôos, lembravam a valsa do diabo cantada
por Byron. Ella vergava nos braços de Rytmel, com a cabeça errante, os
olhos cerrados, os beiços entreabertos e humidos.

--Bravo! Bravo! gritavam os inglezes em roda.

A luz do _punch_ erguia-se, balançava-se, valsava tambem. Carmen e Rytmel
passavam como sombras, levados por um vento leve, cheios dos reflexos
idealisadores da chamma azul. O som frenetico da flauta perseguia-os;
parecia que elles iam voar, desapparecer entre as cordagens, dissipar-se
na noite. Os inglezes gritavam, erguendo os chapeus:

--Hip! hip! hip!

Eu notava na condessa, entretanto, uma vaga sobre-excitação: estava
observando de longe com os olhos resplandecentes, o seio arquejante.
Apenas a valsa findou, ella tomou o braço do capitão, e ouvi-lhe dizer
n'uma voz grave e reprehensiva:

--Não dance mais.

Fiquei surprehendido. Que havia? Um segredo? Pois a condessa, tão altiva,
tão casta, tão timida!...

Approximei-me d'ella.

--Prima, é tarde. Não quer descer?...

Ella olhou-me serenamente, sorrindo.

--Não. Porquê?

E affastou-se com o capitão Rytmel para ao pé da tenda onde de dia se
fumava, e agora deserta e quasi escura.

Eu machinalmente fui-os seguindo, cheguei-me imperceptivelmente pelo lado
opposto, e quasi sem querer ouvi.

O capitão dizia-lhe:

--Mas porque duvida? Eu desprezo aquella mulher. A nossa amisade nada
perde, e nada soffre. Ella foi para mim um capricho, e historia de um
momento. Agora nem uma recordação é...

Continuaram fallando baixo, e melancolicamente. Eu fui encostar-me um
momento á amurada. Erguera-se vento, e o vapor começava a jogar...

Quando me approximei de novo dos grupos ruidosos, ouvi casualmente Carmen
que dizia:

--Onde se some aquelle capitão Rytmel? Desappareceu outra vez com a
condessa, não viram? Vamos procural-os.

Comprehendi a traição. Corri rapidamente, sem ser percebido, á tenda
_fumoir_, entrei, sentei-me n'um banco, conversando alto, ao acaso. A
tenda estava apenas allumiada por uma lanterna. A condessa ao ver-me
apparecer assim tão bruscamente, fizera-se pallida de colera.

Mas n'este momento chegavam alguns officiaes, gritando:

--Rytmel! Rytmel!

Eu adiantei-me, dizendo:

--Que é? Estamos aqui; não queremos dançar mais...

Os officiaes affastaram-se. A condessa percebeu que eu a tinha salvado de
uma situação penosamente equivoca, e o seu olhar agradeceu-me,
profundamente.

--Desça, condessa, desça, segredei-lhe eu.

Ella disse com um sorriso melancolico a Rytmel:

--Está frio, adeus!

Rytmel e eu voltámos para o grupo dos officiaes.

Eu queria-me vingar-me de Carmen; lembrou-me o tornal-a o centro de ruido,
e d'orgia.

--Señorita! disse-lhe eu, cante-nos uma _seguidilla_ ou uma _habanera_!
Faz um bello effeito no alto mar. Estão aqui _gentlemen_ que nunca ouviram
a musica dos nossos paizes.

--Sim, sim, gritaram todos. _Uma seguidilla_!

Ella queria recusar-se, descer ao beliche.

--Não, não, cante, mylady, cante!

Os pedidos eram instantes, e ruidosos. Ella cedeu, ergueu a voz, no meio
do silencio, acompanhada pelo monotono ruido do vapôr e pelo vento
crescente, e cantou com uma voz forte e languida:

    Á la puerta de mi casa
    Hay una piedra mui larga...

Os inglezes estavam extaticos. No fim os applausos estalaram como
foguetes, encheram-se os copos, um gritou:

--Pela _señorita Carmen!_ hip! hip! Hurrah!

Os applausos echoaram no mar.

Ella estava extremamente embaraçada, comprehendia que só, no meio
d'aquellas acclamações de homens, a sua posição era equivoca e ousada.

--Ora vejam! disse eu então, com uma bonhomia mephistophelica, é pena que
as senhoras não ouvissem, e que estejamos aqui sós, entre rapazes, na
pandiga.

Carmen deitou-me um vivo olhar de odio: eu estava vingado.

Um dos inglezes, no entanto, Mr. Reder, continuava, erguendo o copo, cheio
de _punch_:

--A Carmen Puebla! Hip! hip! hip!

--Hurrah! responderam os outros enthusiasmados.

E o echo triste do mar, repetiu:

--Hurra!

Tocou uma sineta. Eram onze horas. Apagaram se as luzes. Quasi todos
desceram rapidamente. Havia um forte vento de noroeste. O balanço do navio
crescia. Navegavamos então á vista da terra d'Africa. Quando a tolda ficou
deserta, sentiu-se mais vivamente o vento uivar nas cordagens, e bater a
grande pancada do mar.

De espaço a espaço a sineta marcava os quartos: e a voz melancolica do
marinheiro de vigia, dizia, pausadamente:

--_All is well_.

Havia duas horas que eu tinha descido ao beliche. Estava n'aquella confusa
penumbra que não é o somno, nem a vigilia, mas um vago sonho vivo que se
sente e que se domina: via a condessa passar n'uma nuvem com Rytmel,
alegre, bebendo cerveja; via Carmen vestida de monge, dançando sobre a
corda bamba; e estas visões confundiam-se com o balanço e com o bater do
helice.

De repente senti uma pancada pavorosa. O navio estremeceu, parou, ressoou
um grande grito.


VI


Dei um salto, corri á porta do beliche:

--_Stewart! Stewart!_

_Stewart_,(Criado dos quartos.) apareceu esguedelhado, quasi nú.

--Que é? Estamos perdidos? Batemos n'um rochedo?

--Não sei. Não ha de ser nada, o navio é seguro.

Ouvia em cima marinheiros correndo, o movimento que se faz n'um perigo.

--Estamos perdidos, pensei eu, vestindo-me com uma precipitação
angustiada.

A cada momento esperava ver o navio descer, afundar-se, e uma enorme onda
pesada entrar, alagar a _cabine_.

Corri á tolda. Giravam lanternas. Quasi todos tinham subido: os vestidos
brancos, os penteadores das mulheres, davam aos grupos um vago mais
lugubre. A officialidade estava impassivel.

--Que foi? que foi? perguntei a alguem.

--Não se sabe, quebrou-se a machina. Mas temos sobre nós um terrivel
vendaval...

--Estamos perdidos!

--O navio é seguro, respondeu o outro.

Ao lado diziam:

--O capitão devia deitar as lanchas ao mar.

O ceu estava limpo: luziam estrellas. O vento assobiava mais forte. O
navio tinha aquella oscillação lugubre de bombordo a estibordo, que têem
os grandes peixes mortos quando boiam ao cimo d'agua. Olhei os astros, o
ceu impassivel, a agua negra,--e senti um immenso despreso pela vida.

Em roda de mim a cada instante ouvia-se versões contradictorias. Uns
diziam que ficariamos _á capa_, esperando firmemente o mau tempo; outros
que o navio estava perdido... Um official disse ao passar:

--Oh, senhores! isto não vale nada: concerta-se; já me aconteceu duas
vezes d'Aden a Bombaim.

Não havia a menor confusão ; tudo continuava tão sereno e regular, como se
caminhassemos n'um largo rio, á clara luz do sol. O commandante, emfim,
appareceu:

--Meus senhores, disse elle, é apenas um contratempo. Houve um desarranjo
grave na machina. Não sei se poderei navegar. Com calmaria, talvez. Mas
com o vento que vem sobre nós, é caso para um atrazo de quatro ou cinco
dias.

No emtanto, o vento crescia. Havia por todo o mar flocos de espuma.
Ouvia-se no horisonte um ruido surdo, como o marchar de mil batalhões.

A maior parte dos inglezes, pesados de somno e de vinho, tinham voltado
para as _cabines_, indifferentes ao perigo. Algumas _ladies_, tranzidas,
mas graves, ficaram no convez.

Em baixo, os engenheiros e os machinistas trabalhavam poderosamente, e sem
cessar.

Captain Rytmel approximou-se de mim.

--É um perigo, e é um perigo sem lucta. Este imbecil d'este commandante
navegou de mais para sul. Estamos perto da costa d'Africa. Se o vendaval
nos apanha agora atira-nos para lá... Todavia o nosso engenheiro de bordo,
Pernester, é um homem de genio. Onde está a condessa?

Descemos á sala commum. A condessa lá estava, encostada á mesa, serena e
pallida.

--Suba, prima, suba, disse eu. Ao menos em cima vê-se o ceu, a agua e o
perigo!

Viemos encostar-nos á amurada, agarrados ás cordagens. As estrellas davam
uma claridade nebulosa. As ondas profundamente cavadas, orladas de espuma,
reluziam sob aquella luz vaga. O vento era terrivel.

--Porque não deitam lanchas ao mar? dizia a condessa. Ao menos luctava-se,
havia a coragem. Mas ser arremessado o paquete para a Africa como uma
baleia morta!...

Ella quis passear, mas o movimento do navio era muito violento; era
necessario encostar-se ao braço de Captain Rytmel. Eu difficilmente me
equilibrava. A pancada da onda contra o costado tinha um som lugubre. A
sineta de bordo tocava com uma voz desconsolada as horas e os quartos.
Tinham-se accendido mais pharoes no alto dos mastros. O ruido do vento de
temeroso, parecia uma passagem violenta de almas condemnadas.

Desci á camara para beber cognac, porque o frio era agudo. Carmen, sentada
no sophá, no alto da sala, estava ali immovel, com os olhos vagos, as mãos
crusadas.

--Morremos, hein? perguntou ella.

--Tem medo? disse eu.

--Um pouco, de morrer affogada. D'uma bala ou d'uma facada, não me
custava. Mas aqui, estupidamente, n'este antipathico elemento, é cruel! Ao
menos não morro só! Lá se vae a sua linda prima!...

--Porque odeia a pobre condessa? disse-lhe eu, sorrindo.

--Eu! de modo algum. Acho-a piegas, detesto aquelles ares sentimentaes,
deshonra a Peninsula. Ahi está.

--Não é isso: é porque suppõe que Captain Rytmel se interessa de mais por
ella.

--E que me importa a mim esse cavalheiro?

E deu uma curta risada.

No emtanto o ar abafado da sala, o movimento do navio perturbava-me. Subi
á tolda. A condessa e Rytmel não passeavam. Tinham-se sentado, segundo
deprehendi, debaixo da _tenda_. Eu, de pé, atravez da lona podia escutar,
apesar do ruido do vento.

Uma curiosidade indomavel, a necessidade de comprehender a situação do
espirito da condessa, a certeza de que estavamos na afflição d'um
perigo,--e as acções humanas n'esses momentos não se podem sujeitar ao
criterio da vida trivial,--tudo me levou a ir escutar, apesar das
repugnancias do meu caracter. Acerquei-me, fiz ouvido d'espião:

--E custa-lhe morrer?

--Muito e nada, respondia a condessa. Muito porque morre commigo o
primeiro interesse que tenho na vida, que é a sua amisade; nada, porque,
francamente, sou eu feliz?

--Se a minha amisade é para si um interesse profundo...

A condessa calou-se.

--Oh! comprehendo-a bem, disse Rytmel. Sabe por que não é feliz, apesar da
minha amisade? É porque não é a minha amisade o que o seu coração precisa.
Oh! deixe-me fallar! É o amor profundo, inalteravel, omnipotente, que
esteja em todos os momentos da sua vida e em todas as idéas do seu
espirito; que viva do prazer e viva do sacrificio; que seja a ultima rasão
da vida, a consolação, a esperança, o ideal absoluto; que pelo que ha de
mais ardente prenda os seus olhos, e pelo que ha de mais elevado prenda a
sua alma...

--Cale-se, cale-se, dizia a condessa. É uma loucura fallar assim... Vamos
passear, vamos ver o mar.

O vento agora era terrivel. O mar estava como agua de sabão a perder de
vista. O navio oscilava perdidamente, e sem rumo. No emtanto, na machina
trabalhava-se sempre.

Rytmel continuava fallando á condessa.

--Cale-se, cale-se, dizia ella, baixo, e como vencida.

--Não; devo dizer-lh'o: esta palavra «amisade» é falsa. D'aqui a duas
horas talvez, estamos perdidos. Ao pé da morte a sinceridade é uma
justiça. Digo-lh'o. Amo-a. Não se erga. O vento levará comsigo esta
confissão. Amo-a. Se estamos culpados depois d'estas palavras, o mar é um
bom tumulo e o mar lava tudo. Amo-a...

--Não diga isso. É um engano; é apenas sympathia. Demais o amor a que nos
levaria? ou ao despreso ou á tortura...

Eu ouvia mal. Elles fallavam baixo. A tormenta chegava. O navio gemia
lamentavelmente. As cordagens, que o vento quebrava de repente, assobiavam
como cobras. Os marinheiros corriam. Sentiam-se a voz do commando, os
martellos, os trabalhos na machina. Uma vaga entrou, alagou o convez.

De repente senti um movimento dentro da tenda: a condessa ergueu-se; a sua
voz era alta e vibrante:

--Captain Rytmel, pensa em sua honra que vamos morrer?

--Penso, condessa.

--Pois bem, quero dizer-lh'o então: amo-o!

E depois de um momento:

--Oh! amo-o, repetiu ella com uma explosão de paixão. Já que tenho a
certeza de que morro pura, quero morrer sincera. Adoro-o.

N'este momento um ruido extranho tomou o navio.

Percebi uma forte dominação de oscillação, uma resistencia contra a vaga.
Os movimentos da embarcação já não pareciam inertes. Via-se que ella tinha
retomado a sua vitalidade... Então senti o helice... o helice! O navio
movia-se. Via-se a onda esmigalhada pela prôa. Caminhavamos! Eu saltei
para a abertura que desce á machina.

--Que é? perguntei a um official que subia.

--Um milagre de Pernester!

Todos tinham corrido. Era uma anciedade.

O capitão trepou rapidamente pela escada de ferro polida que do interior
da machina sobe ao pavimento do navio.

Estava radiante.

--Imaginem que Pernester...

--Sim, sim, interrompi, mas então?

--Vamos a caminho. Agora sopra, tormenta, sopra! Ámanhã estamos em Malta.

--Bravo, Pernester! bravo! gritavam todos.

O grande homem subiu a escada da machina, offegante, impassivel, vermelho,
grave, ainda com a gravata branca do jantar. Esponjou a calva, e disse
n'um tom suave:

--_Now, I should enjoy a nice glass of beer..._


VII


No dia seguinte chegámos a Malta. Era de noite, não havia estrellas. A
agua da bahia estava immovel e negra. Via-se defronte _La Valette_,
elevada como uma collina, altiva como um castello, pespontada de luzes. Em
redor do paquete as gondolas corriam silenciosamente tendo á popa, esguia
e alta, uma lanterna pendente. Havia um grande silencio, uma suavidade
ineffavel. Os gondoleiros remavam calados. Aquillo era doce e regular.
Sentia-se o mysterio italiano e a policia ingleza.

Desembarcámos: fomos para Clarence Hotel, na Strada-Reale, defronte da
celebre igreja de S. João. Rytmel hospedou-se em casa dos officiaes
inglezes. D. Nicazio e Carmen vieram para Clarence-Hotel, tambem. Os tres
primeiros dias em Malta foram occupados em percorrer os monumentos: o
palacio dos grã-mestres, os palacios chamados _Estalagens_, e que eram
pertencentes ás differentes nacionalidades da ordem, as grandes ruas
brancas, com elevadas e altivas casas no gosto da Renascença, e os
arredores de Malta, Citta-Vechia, Bengama, Boschetto, e a ilha de Calypso,
que tem tantos encantos em Homero e que é um rochedo humido, cheio de
cavernas tenebrosas. Desde o primeiro dia, Rytmel e alguns officiaes iam
jantar a Clarence-Hotel. A condessa comia sempre nos seus quartos. O
ruido, a petulancia da mesa, era Carmen. Deixara-se logo seguir sempre por
um rapaz francez, espirituoso e ligeiro, louro e ardente, um Mr. Perny,
_viajante por tedio_, dizia elle.

Carmen não se approximava de Rytmel. Havia entre elles como uma separação
combinada e discreta. Rytmel, pelo contrario, não se affastava de nós em
todas as excursões ao campo, ás fortificações, á bahia; todas as noites
nos acompanhava ao theatro. O conde tinha ficado logo captivado das
grandes tranças louras d'uma rapariga que nós viamos sempre na 1.^a ordem
do theatro, com a tez ingleza e os olhos malteses, d'uma frescura de
_miss_ e movimentos de andaluza, e que era uma radiosa Mademoiselle Rize,
dançarina em disponibilidade. De resto, o conde não podia separar-se de
Rytmel.

Ali, em Malta, os movimentos da condessa e do official não estavam tanto
sob o dominio da minha vista. Eu, ás vezes, não via a condessa um dia,
dois dias, absorto na companhia de alguns officiaes inglezes, em passeios
no mar, no campo, em ceias e no jogo. Comprehendia porém que aquella
paixão da condessa a dominava absolutamente. Rytmel parecia-me tambem
perdidamente namorado.

Não lhe quero dizer, senhor redactor, os raciocinios interiores, que me
determinaram a ser indifferente áquella situação. Comprehenderá claramente
os motivos por que resolvi não saber, não olhar, não perceber, isolar-me
n'uma discripção completa e delicada.

Pouco tempo depois de chegarmos a Malta, tinhamo-nos relacionado com lord
Grenley, que estava ali passando o inverno e curando os seus _blue
devils_. Tinha vindo de Inglaterra n'um lindo _yacht_, chamado _The
Romantic_, que nós viamos todos os dias na bahia bordejar, fazendo reluzir
ao sol os seus cobres polidos e o seu esvelto costado branco. Lord Grenley
ligára-se muito com o conde. Era tambem o Intimo de Rytmel.

Carmen tinha-se encontrado pouco com a condessa, a não ser no theatro,
onde a crivava de olhares impertinentes, em plena e altiva indifferença da
condessa. Carmen, irritada, não vivendo nas relações de _ladies_, não a
encontrando, como nos sete metros do tombadilho do paquete, sob a acção
dos seus largos gestos e das suas asperas ironias, desforrava-se á mesa de
Clarence-Hotel, envolvendo indirectamente Rytmel em toda a sorte de
allusões e de palavras causticas. A sua ultima tactica era instigar sempre
Mr. Perny contra o official, arremessal-o contra todas as idéas, todas as
opiniões de Rytmel; não sei se com a esperança perversa de um duello, se
apenas pelo gosto de o vêr contrariado...

Um dia fallava-se da India. Rytmel dizia a transformação fecunda que a
Inglaterra lhe tinha feito. Uma grande risada interrompeu-o. Era Perny.

--Ri-se? disse Rytmel, levemente pallido.

--Rio-me? Estalo de riso, tenho apoplexias de riso. Que _transformação
fecunda_ fez a Inglaterra á India? A transformação da poesia, da
imaginação, do sol, n'uma coisa chata, trivial e cheia de carvão. Eu
estive na India, meus senhores. Sabem o que fizeram os transformadores
inglezes? A traducção da India, poema mysterioso, na prosa mercantil do
_Morning Post_. Na sombra dos pagodes põem fardos de pimenta; tratam a
grande raça india, mãe do ideal, como cães irlandezes; fazem navegar no
divino Ganges paquetes a tres _schellings_ por cabeça; fazem beber ás
_bayaderas_, _pale ale_, e ensinam-lhes o jogo do _criket_; abrem
_squares_ a gaz na floresta sagrada; e, sobre tudo isto, meus senhores,
desthronam antigos reis, mysteriosos, e quasi de marfim, e substituem-n'os
por sujeitos de suissas, crivados de dividas, rubros de _porter_, que
quando não vão ser forçados em _Botany-Bay_, vão ser governadores da
India! E quem faz tudo isto? Uma ilha feita metade de gelo e metade de
rosbeef, habitada por piratas de collarinhos altos, odres de cerveja!

Captain Rytmel ergueu-se risonho, approximou-se de mim, e disse:

--Peço-lhe que no fim do jantar pergunte áquelle engraçado doido o seu
logar, a sua hora e as suas armas.

E foi sentar-se serenamente. Eu, á sobremesa, affastei-me com Perny, e
transmitti-lhe as palavras do meu amigo.

Perny riu, disse que estimava os inglezes, que apreciava os seus serviços
na India, que tinha sido instigado por Carmen a contrariar Rytmel, que o
achava um adoravel _gentleman_, que pedia das suas palavras as mais
humildes desculpas, que o seu logar era por toda a parte, as suas armas
quaesquer...

--Mas, dadas essas explicações, disse eu, nada temos que vêr com as
armas...

--Ah! perdão; disse o francez, ha ainda uma pequena cousa: é que eu acho
que o penteado de Captain Rytmel é profundamente offensivo do meu caracter
e da dignidade da França. Isto é que exige reparação.

Nomearam-se padrinhos n'essa noite. Combinou-se que o duello não fosse em
Malta: Rytmel era official, e os duellos nas praças d'armas têem as mais
severas penalidades. Era difficil, porém, estando n'uma ilha ingleza, não
se baterem em territorio inglez. Resolveu-se então que o duello fosse no
alto mar, a um tiro de canhão da costa ingleza. Lord Grenley emprestou o
seu _yacht_ e partimos de madrugada com um vento fresco e um sol alegre.
As cousas foram rapidas. Puzemo-nos á capa a 5 milhas de Malta, arriámos o
pavilhão inglez, a marinhagem subiu ás vergas, e como havia egualdade de
nivel, um dos adversarios foi collocado á pôpa e outro á prôa. O sol
davanos de estibordo. Éram 7 horas, pequenas nuvens brancas esbatiam-se no
ar. O duello era ao primeiro tiro, havendo ferimento grave. Lord Grenley
deu o signal, os dois adversarios fizeram fogo. Perny deixou cahir a
pistola, e abateu-se sobre os joelhos. Estava gravemente ferido com a
clavicula partida. Foi deitado n'uma _cabine_ preparada. Levantou-se o
pavilhão inglez e navegámos para Malta. Vinha cahindo a tarde.

Eu dirigi-me logo aos quartos de D. Nicazio. Carmen estava só.

--Sabe o que fez? disse-lhe eu. Perny está ferido.

--Isso cura-se, eu mesma o curarei... agora o que é sério, é o que se está
tramando aqui dentro d'este hotel... Eu não sei bem o que é, desconfio
apenas... Diga ao conde que vigie a condessa!

Eu encolhi os hombros, dirigi-me ao quarto da condessa: estava o conde,
Rytmel, e Lord Grenley. O ferimento de Perny fôra declarado sem perigo, o
capitão estava tranquillo. Conversava-se alegremente. Combinava-se uma
visita á ilha de Gozzo, a oito kilometros de Malta. Grenley tinha proposto
a excursão, e offerecia o seu _yacht_. O conde esquivava-se, dizendo que o
mar o incommodava, no estado nervoso em que estava.

--Menino, é aquella maldita Rize! veio-me elle dizer em voz baixa,
tenho-lhe para amanhã promettido um passeio a Bengama.

--Mas, então?

--Acompanha tu a condessa. Vae Grenley e Rytmel. Faze-me isto. Bem vês!
Mademoiselle Rize é exigente, mas pobresinha d'ella, tem o sangue maltez!

Mais tarde, quando eu atravessava para o meu quarto, um vulto veiu a mim
no corredor e tomou-me pela mão.

--Escute, disse-me uma voz subtil como um sopro.

Era Carmen.

--Se é um homem de honra, cautella amanhã com o passeio a Gozzo.

E desappareceu.


VIII


No outro dia ás seis da manhã fui a casa de Rytmel. A condessa havia
estado durante a noite sob o dominio d'uma extrema agitação nervosa, mas
não queria renunciar ao passeio de Gozzo. Encontrei Lord Grenley com
Rytmel, tomando chá.

Pareceu-me pela fadiga das suas physionomias, que se não tinham deitado:
lord Grenley decerto que não, porque estava de casaca, como na vespera, e
tinha ainda na _boutonniêre_ um jasmim do Cabo, murcho e amarellado.

--Bonita madrugada! disse Rytmel.

Tinham aberto a janella, o ar fresco entrava; nas arvores do jardim
cantavam os passaros.

--Adoravel! disse eu. A condessa esteve toda a noite doente, mas não se
transtorna o passeio...  Outra cousa: tem um rewolver, Rytmel?

--Para quê?

--Disseram-me que era muito curioso atirar aos passaros que se escondem
nas cavernas, em Gozzo. Ha um echo excentrico. Precisamos de uma arma.

Rytmel deu-me um pequeno rewolver marchetado.

--Leve-o: eu tenho as algibeiras cheias da albuns e de canetas para tirar
desenhos... Ah! Sabe que este Grenley não vae?

--Porque? como assim, mylord?

--Um jantar official com o governador disse Lord Grenley, é horrivel.
Tenho uma pena immensa...

Ás sete horas fomos buscar a condessa. O marido acompanhou-nos até o caes
Marsa-Muscheto.

Notei ao entrar no _yacht_ que a equipagem estava augmentada e havia um
piloto arabe.

Largámos com um vento fresco, ás oito horas da manhã; as gaivotas voavam
em roda das velas, as casas brancas de _La Valette_ tinham uma côr rosada,
ouviam-se as musicas militares, o ceu estava d'uma pureza encantadora.

A condessa, um pouco excitada, olhava com uma alegria avida, para o vasto
mar azul, livre, infinito, coberto de luz.

--O que são as mulheres! pensava eu. Esta, tão altiva e tão discreta, está
encantada por se vêr só, com rapazes, n'um _yacht_, no alto mar. É para
ella quasi uma aventura!

Eu, confesso, estava embaraçado. A minha situação era um pouco pedante.
Representar eu alli o marido, a familia, o dever, diante de duas creaturas
moças, bellas, namoradas, e ser eu, aos vinte e quatro annos, ardente e
apaixonado, o encarregado de fazer a policia d'aquelle romance sympathico!
_Á la grace de Dieu!_ O mar é largo, o ceu profundo, a honra existe, daqui
a duas horas estamos em Gozzo, passeamos, rimos, jantamos, e ao anoitecer,
quando Deus espalhar o seu rebanho de estrellas, voltaremos na viração e
na phosphorescencia, calados, ouvindo o piloto arabe cantar as doces
melopeas da Syria, ao ruido languido da maresia...

Rytmel tinha descido a dar as ordens para o almoço. A condessa ficara de
pé, á prôa, com um vestido curto de xadrez, botinas altas, envolta n'uma
manta escoceza, de largas pregas. Nunca eu a vira tão linda.

Costeavamos Malta com vento oeste.

Approximamo-nos da ilha de Cumino. Rytmel veio-nos dizer que deveriamos
almoçar, e que ao fim de meia hora desembarcavamos em Gozzo, na _Calle
Maggiara_; iriamos vêr as curiosidades da ilha, tornariamos a embarcar
para tornear Gozzo, e vêr as terriveis cavernas, onde o mar se abysma e se
perde, e ao anoitecer tocariamos o caes de La Valette.

O almoço foi muito alegre. Havia Champagne, um Rheno adoravel, um guizado
arabe e um piano na camara. Captain Rytmel, cujo aspecto me parecia ter
uma preoccupação inexplicavel, fez ao piano depois do almoço interminaveis
improvisações. Caminhavamos sempre. Casualmente, tirei o relogio, e tive
um sobresalto! Havia duas horas e meia que tinhamos descido! Ora quando o
almoço começára, faltava-nos meia hora para desembarcar em Maggiara!
Porque seguiamos então? Subi rapidamente á tolda. O piloto arabe estava ao
leme. Não se via quasi a terra: iamos no mar alto, navegando com uma
extraordinaria velocidade sob o vento.

--Onde está Gozzo? gritei ao arabe em inglez, depois em francez, depois em
italiano.

O arabe nem sequer se dignou olhar-me. N'este momento Rytmel e a condessa
subiam.

--Onde está Gozzo? perguntei eu a Rytmel.

--Ha talvez uma bruma, respondeu elle vagamente e voltando o rosto.

O horisonte porém estava limpo, puro, sem mysterio, a perder de vista. Ao
longe via-se uma sombra indefinida que denunciava a terra: e nós
affastavamo-nos d'ella!

Corri á bussola. Navegavamos para Oeste.

--Navegamos para Oeste, Captain Rytmel! affastámo-nos de Malta! Que é
isto? Para onde vamos?

Rytmel olhou longamente a condessa, depois a mim e disse:

--Vamos para Alexandria.

Num relance comprehendi tudo. Rytmel fugia com a Condessa!...

Eu fitei Rytmel, e disse-lhe tremendo todo:

--Isso é uma infamia!

Elle empallideceu terrivelmente; mas a condessa, interpondo-se, com uma
voz vibrante:

--Não! sou eu! Sou eu que vou para Alexandria.

--N'esse caso sou eu o infame, prima.

Houve um silencio. Os olhos da condessa estavam humidos. Correu para mim,
tomou-me uma das mãos, murmurou entre soluços:

--Que quer? Ninguem tem culpa. Amo este homem, fujo com elle.

Rytmel tomara-me a outra mão.

--Agora, dizia, é impossivel voltar. É um passo dado, irreparavel...

Eu estava succumbido: aquella situação imprevista, deixava-me sem
raciocinio, sem voz, sem vontade.

Eu, amigo do conde!... Eu, cumplice d'aquella fuga! Além d'isso, alli, no
meio d'aquelles dois amantes encantadores, que me supplicavam apertando-me
as mãos, eu sentia-me ridiculo--e isto augmentava o meu desespero. A
condessa, no entanto, continuava:

--Primo, disse ella, que importa? Estou deshonrada, bem sei. Mas que
queria? que eu ficasse ao lado de meu marido, amando este, n'uma mentira
perpetua, vivendo alegremente instalada na infamia? Essa situação nunca! É
suja! Ao menos isto é franco. Rompo com o mundo, sou uma aventureira, fico
sendo uma mulher perdida, mas conservo-me para um só e sendo pura para
elle.

--Captain Rytmel, disse eu, então mande deitar uma lancha ao mar.

--Que quer fazer? gritou a condessa.

--Eu? ganhar a terra. Acha que tambem não é uma infamia installar-me
n'este navio?

--Está louco, disse Rytmel, ha só um escaler a bordo. O vento cresce, o
mar incha. O escaler não se aguentará dez minutos.

--Melhor! Um escaler ao mar! gritei eu.

--Ninguem se mecha! bradou Rytmel.

E voltando-se para a condessa:

--Mas diga-lhe que é a morte! Que cumplicidade tem elle? Foi forçado, foi
levado. Não responde por nada.

--Um escaler ao mar! gritava eu.

Mas, de repente, Rytmel tomando um machado correu ao bordo d'onde pendia o
escaler, cortou as correias de suspensão; o barco cahiu na agua com um
ruido surdo, ficou jogando sobre as ondas meio voltado, sobrenadando como
um corpo morto.

Eu bati o pé, desesperado.

--Ah que infamia! capitão Rytmel! Que infamia!

E por uma inspiração absurda, querendo desabafar, fazendo alguma cousa de
violento, gritei para alguns marinheiros que estavam á prôa:

--Ha algum inglez ahi que preze a sua bandeira?

Todos se voltaram admirados, mas sem comprehender.

--Pois bem! gritei eu, declaro que esta bandeira cobre uma torpeza, tem a
cumplicidade da deshonra, e que é sobre toda a face ingleza que eu cuspo,
cuspindo no pavilhão inglez.

E correndo á popa cuspi, ou fiz o gesto de cuspir sobre a larga bandeira
ingleza. Um dos marujos então de certo comprehendeu porque teve um
movimento de ameaça.

--Ninguem se mova! gritou Rytmel. Eu sou o offendido. Meu amigo, disse
elle com a voz suffocada, tem razão: desde que abandonei Malta, deixei de
ser official inglez. Sou um aventureiro. Esta bandeira, com effeito, não
tem que fazer aqui!

Adeantou-se, arreou o pavilhão de tope da popa.

E n'uma exaltação tão insensata como a minha, arremessou o pavilhão ao
mar; as ondas envolveram-n'o, e por um estranho acaso, no encontro das
aguas, a bandeira desdobrou-se, e ficou estendida sem movimento, serena,
immovel, á superficie do mar, até que se afundou.

Rytmel, então, por um impulso romanesco e apaixonado, tomou um lenço das
mãos da condessa, amarrou-o á corda da bandeira, e içando-o rapidamente,
gritou:

--De ora em diante o nosso pavilhão é este!

Eu achava-me no meio de todas aquellas scenas violentas, como entre as
incoherencias d'um sonho.

N'um movimento que fiz, senti no bolso o rewolver: não sei que desvairadas
ideias de honra me hallucinaram, tirei-o, engatilhei-o, brandi-o, gritei:

--Boa viagem!

--Jesus! bradou a condessa.


IX


Rytmel precipitou-se sobre mim e arrancou-me o rewolver.

Eu murmurei simplesmente:

--Bem! Será no primeiro porto a que chegarmos.

A condessa então adiantou-se, livida como a cal e disse (nunca me esqueceu
o som da sua voz):

--Rytmel, voltemos para Malta.

--Voltar para Malta! Voltar para Malta! Para quê, santo Deus!

Eu interpuz-me, disse as cousas mais loucas:

--Rytmel, dê-me esse rewolver, sejamos homens. Que as nossas acções tenham
a altura dos nossos caracteres. Nada mais simples. Nem a paixão póde
retroceder, nem a honra condescender. A solução é a morte. Eu mato-me,
fugi vós para bem longe...

Mas a condessa, que era a unica que parecia ter ainda uma luz de razão
dentro de si, repetiu, com a mesma firmeza, onde se sentia a dôr oculta:

--Rytmel, voltemos para Malta.

Elle olhou-a um momento: a consciencia da nossa odiosa situação pareceu
então invadil-o, subjugal-o; vergou os hombros, obedeceu, foi dizer
algumas palavras ao capitão do _yacht_.

D'ahi a um instante corriamos sobre Malta.

Houve um grande silencio, como o cançasso d'aquella lucta da paixão.
Rytmel passeava rapidamente pelo convez, e sob a serenidade do seu rosto,
sentia-se a tormenta que lhe ia dentro.

--Aqui está! disse elle de repente, parando e cruzando os braços, com um
extranho fogo nos olhos. Acabou tudo! Voltamos para Malta. Que mais
querem? Que nos resta agora? Dizer-nos adeus para sempre, para sempre!
Iamos a Alexandria; estavamos salvos, sós, novos, felizes! E agora?
Felicidade, amor, paixão, esperança, alegria, acabou tudo. Ah, pobre
ingenuo! Fallam-te na honra! Que honra a que me vae matar todos os dias, a
que me arranca do meu paraiso, a que me torna o ultimo desditoso! Honra!
Que me resta a mim? Uma bala na India. Morrer para ali, só, como um cão.

A condessa não dizia nada, com os olhos perdidos no mar.

E Rytmel vindo para mim, tomando-me o braço, com um gesto desesperado:

--Vês tu! Vês isto?  Eu soffria tudo por ella; a deshonra, a infamia, o
desprezo; abandonava o mundo, renegava a minha farda, queria a pobreza, o
escarneo, tudo por ella. Diz-se a um homem--amo-te, vae-se fugir com elle,
está-se n'um navio, e de repente, a meia hora da felicidade e do paraiso,
quando já se não vê terra, vem um escrupulo, uma mágoa, uma saudade do
marido talvez, uma lembrança d'um baile, ou d'uma flôr que ficava bem--e
adeus para sempre! e quer-se voltar; e tu, miseravel, soffre, chora,
arrepella-te, e morre para ahi como um cão. Meu amigo, eu não tenho voz,
nem força: previna o piloto: a senhora condessa tem pressa de chegar a
terra!...

--William! William! gritou a condessa, precipitando-se, tomando-lhe as
mãos. Mas tu não percebes nada?  Em Malta, como em Alexandria, eu sou tua,
só tua... tua deante de Deus, tua deante dos homens...

N'este momento ouviu-se a voz distante de um sino!

Eram os sinos de Malta. A terra ficava defronte.

A suavidade da hora era extrema; o ar estava ineffavelmente limpido.
Viam-se já as aldeias brancas, o altivo perfil de la Valette. O sol
descia. Os seus ultimos raios obliquos faziam scintilar os _miradouros_.
Distinguiam-se no caes os vendedores de flores. Duas gondolas corriam para
nós. Houve um grande ruido nas velas, assobios de manobras, o navio parou,
e a ancora caiu na agua! Tinhamos chegado. Os sinos de Malta continuavam
repicando.


X


Quando desembarcámos corri ao hotel. O conde ainda não tinha vindo do seu
passeio a Bengama com Mademoiselle Rize. Rytmel foi encerrar-se em casa,
n'um triste estado de exaltação e de paixão.

Carmen veio logo procurar-me ao meu quarto. Entrou rapidamente,
perguntou-me:

--Voltaram? como foi?

--Sabia então alguma cousa? interroguei admirado.

--Tudo. Por um acaso. Sabia que queriam fugir. Durante toda a noite Rytmel
andou fazendo preparativos. Era uma combinação de ha trez dias. Lord
Grenley sabia. E agora?

--Agora, disse eu, tudo terminou. A condessa naturalmente parte no
primeiro paquete.

--Duvido. Mas se não partem, ha uma desgraça. É uma fatalidade, bem o sei,
mas que quer? Amo aquelle homem, amo Rytmel. Demais é uma obrigação,
salvou-me a vida. É sobretudo uma paixão estupida que me roe, que me mata.
E ainda me não mata tão depressa como eu queria. Faço tudo para me matar.
Ponho-me a suar, levanto-me e vou apanhar o orvalho para o terraço. Para
que vivo eu? Vivia d'esta paixão. Cresceu desde que o vi agora. E diga-me
quem o não ha de adorar? Ás vezes lembra-me matal-o!...

Conversámos algum tempo. A pobre creatura tinha nos olhos um fulgor
febril, na face uma pallidez de marmore. Eu procurei calmal-a. Começava a
sympathizar com ella...

A condessa não sahiu do seu quarto dois dias. Eu contei ao conde que ella
tivera em Gozzo um susto terrivel, porque tinhamos estado em perigo, na
visita ás cavernas da costa, onde a navegação é cheia de desastres. Estive
quasi sempre, depois, com Rytmel. Lentamente a esperança renascia no seu
espirito. Accommodava-se, ainda que com certas repugnancias, a uma
situação mais racional, ainda que menos pura. Era um convalescente da
paixão. E, ao fim de cinco dias, senhor redactor (tanto a natureza humana
é cheia de conciliações!) ao fim de cinco dias a condessa appareceu no
theatro, fresca, radiante, e ao lado da brancura dos seus hombros reluziam
as dragonas de ouro de Captain Rytmel!

Entrámos então n'uma vida serena, sem romance e sem lucta. Os corações
tinham calmado, e fallavam baixo. O conde passeava no campo com
mademoiselle Rize; lord Grenley fumava, cheio de tédio, o seu cachimbo de
opio; eu jogava as armas com os officiaes inglezes; D. Nicazio negociava;
Rytmel tinha um ar feliz e mysterioso; a condessa recebia, guiava os seus
poneys, e todas as noites, no theatro, fazia reluzir ao gaz o louro
esplendor dos seus cabellos e a pallidez preciosa das suas perolas. Santa
paz!

O tempo estava adoravel. Malta resplandecia, a bahia reluzia ao sol, os
jardins floresciam, os olhos das maltezas suspiravam. Era o tempo das
flôres da laranjeira. Só Carmen emmagrecia e vivia retirada.

Mr. Perny entrava em convalescença: passava o tempo deitado n'um _sophá_,
de dia compondo uma opera comica, á noite jogando com alguns officiaes, e
salpicando a gravidade britannica de _calembourgs_ bonapartistas.

Uma occasião, ao sair de casa d'elle, onde tinha perdido algumas duzias de
libras, recolhia eu a Clarence-Hotel levemente irritado, e sentindo um
prazer excentrico em cantar o _fado_ pela ruas de Malta, a mil legoas do
Bairro Alto. O pavilhão que nós habitavamos em Clarence-Hotel dava sobre
um jardim todo escuro d'arvores e de moitas de flôres.

Ordinariamente o conde e eu entravamos pelo jardim. Tinhamos uma pequena
chave que abria a portinha verde no muro, todo coberto de musgo e de copas
d'arbustos orientaes. N'essa noite, ao abrir a porta, cantando em voz
alta, senti sumir-se rapidamente na espessura das folhagens um vulto. O ar
estava sereno, accendi um phosphoro, e áquella luz trémula, entrei na
sombra, para descobrir o vulto, entre as ramagens. Mas a pessoa, vendo-se
seguida, e sentindo a impossibilidade de se esquivar rapidamente,
retrocedeu, com uma naturalidade visivelmente artificial, e proferiu o meu
nome. Era Carmen.

--Que faz aqui? disse eu.

--Mato-me. Não lhe disse que sempre que suava de noite, me erguia e vinha
apanhar o orvalho?

Mas ella estava completamente vestida de seda preta, e tinha sobre os
hombros uma larga capa escura, de fórma arabe, com grande capuz!

--Ah! minha cara, disse eu, mata-se mas é d'amores. A esta hora, com essa
_toillette_, n'este jardim, com este aroma de laranjeiras!... Que historia
me vem contar d'orvalhos e de suor?

--Digo-lhe a verdade. Imagina que eu não preferiria aqui n'esta sombra
encontrar alguem?...

--E D. Nicazio? Peça a D. Nicazio que lhe faça a côrte. Que lhe dê uma
serenada, que suba por uma escada de corda, que a seduza n'este jardim...

Emquanto eu fallava, davam horas na Igreja de S. João, e Carmen mostrava
uma agitação impaciente. A todo o momento olhava para a porta do jardim,
torcendo freneticamente uma luva descalçada.

Eu comprehendi que ella esperava _alguem_. Alguem, isto é, _el querido, el
precioso, el saleroso, el niño_ de toda a legitima andaluza. Affastei-me
discretamente, como um confidente, e no momento que pisava a rua areada
que levava ao pavilhão, senti a porta do jardim ranger com uma ternura
plangente.

--É elle, pensei eu. É o _niño_. Pobre Carmen! Bebe vinagre, apanha os
orvalhos por causa de Rytmel, e mal chega a noite, não póde ser superior a
vir receber debaixo das laranjeiras algum cabelleireiro francez com voz de
tenor, ou algum tenor maltez com bigodes de cabelleireiro.

Subi ao meu quarto, mas não tinha somno; a noite era suave e languida,
mordia-me uma aspera curiosidade, e com a astucia d'um ladrão napolitano,
desci as escadas, costeei o muro do jardim, debrucei-me, espreitei, e vi
Carmen. Estava só!  Extrema surpreza!

--E _el querido?_ perguntei-lhe eu rindo.

Ella voltou-se em sobresalto e perguntou-me com a voz agitada:

--Qual _querido_?

--O que entrou agora?

--Não entrou ninguem.

--Eu vi.

--Conheceu?

--Não, onde está?

--Abriu as asas, voou! disse ella rindo-se e affastando-se em direcção aos
seus quartos.

--Diabo! pensei eu. É uma segunda edição da Torre de Nesle. Recebe-os,
parte-os aos bocadinhos e enterra-os na areia!

No emtanto, tinha a curiosidade excitada. _Alguem_ tinha entrado
mysteriosamente, com uma chave falsa de certo, porque só o conde e eu
tinhamos a chave d'aquella porta do jardim. Mas onde estava esse _alguem_?
 Teria entrado, e saído logo? N'esse caso não era uma entrevista d'amor!
Mas se não era um segredo de coração, para que era o mysterio, a hora
escura, o silencio, a chave falsa?

_Alguem_ teria ficado escondido no jardim? Corri-o todo, arbusto por
arbusto, jasmim por jasmim. Estava deserto.

Deitei-me preoccupado com aquella aventura. No outro dia, ao almoço, um
criado em voz alta declarou que se tinha achado no jardim um pequeno
punhal e que o hospede a quem elle pertencesse o reclamasse em baixo, no
_office_. Era um punhal, de fórma curva como se usa no Hindustão. Tinha
sido encontrado n'uma moita de buxo, de tal sorte que não parecia perdido,
mas voluntariamente arremessado. Ninguem reclamou o punhal.

Tudo isto me causava uma singular curiosidade.

--Diabo! dizia eu commigo, estamos em terra italiana, apesar da policia
ingleza, e é provavel que apesar da muita cerveja que habita Malta, ainda
por ahi haja alguma _agua tufana_. Sejamos prudentes.

Na noite seguinte, pela uma hora, eu, sentado á minha secretaria, escrevia
para Portugal, quando senti no corredor passos rapidos, e a porta abriu-se
violentamente.

Abafei um grito de terror. De pé, á entrada do quarto, livida, com os
cabellos desmanchados, um penteador branco cheio de sangue, estava a
condessa.

--Que foi? bradei.

Ella tinha caido n'um sophá, muda, com os olhos fixos, meio loucos, os
dentes trémulos.

Eu borrifava-a d'agua, tomava-lhe as mãos, fallava-lhe baixo, e
perguntava-lhe, aterrado, dando-lhe os nomes mais doces para a serenar:

--Que foi, minha querida, que foi?

Via-lhe os vestidos cheios de sangue.

--Feriram-n'a?

Ella fez um gesto negativo.

--Então? então? disse eu.

A pobre senhora queria fallar, erguia-se, suffocava, anciava, parecia
n'uma agonia.

De repente atirou-se aos meus braços e desatou a chorar.

--Fale, diga, insistia eu.

--Mataram-n'o, disse ella.

--Mataram quem?

--Rytmel.

--Como? Onde?

--No jardim... Vá!


XI


Corri ao jardim. Os meus passos instinctivamente, apressaram-me para o
lado da pequena porta verde aberta no muro.

Estava aberta. Ao lado, junto de uma moita de baunilhas, estendido no
chão, levemente apoiado no cotovello, vi Rytmel.

--Então? gritei-lhe, abaixando-me anciosamente para elle.

--Só ferido...

--Como? onde?

Não respondeu, os olhos cerraram-se e desfalleceu sobre a relva.

Corri ao tanque, trouxe um lenço ensopado em agua, molhei-lhe as faces e
as mãos: a ferida era na parte superior do peito, do lado direito, por
baixo da clavicula. Vi que não era mortal.

Eu estava n'uma extrema hesitação. Para onde levar aquelle homem?

O mais racional era conduzil-o a um quarto do hotel; mas isso era dar ao
facto uma publicidade ruidosa, fazel-o cair sob o dominio da policia,
arrastar até á acção dos tribunaes inglezes o nome da condessa. Porque eu
tinha comprehendido tudo. Sabia agora, bem, quem na vespera entrára
rapidamente pela porta verde com uma chave falsa. Sabia bem a quem
pertencia o punhal indio achado nas moitas de buxo. Comprehendia a
commoção de Carmen, quando eu a surprehendera ali, no jardim, embuçada
n'um _burnous_, esperando. E comprehendia desgraçadamente a que quarto se
dirigiam os passos de Rytmel dentro do jardim de _Clarence-Hotel_.

Era, pois, necessario encobrir aquella aventura. E Rytmel, apesar dos
obscurecimentos do desmaio e da dôr, tinha-o pensado tambem, porque me
disse com uma voz expirante:

--Escondam-me em qualquer parte!

Sahi logo á rua. Passava um daquelles carros ligeiros, d'um só cavallo,
que percorrem, com extrema velocidade, e com immensa doçura, as ruas
inclinadas de _La Valette_. O _vatturino_ era italiano. Fallei-lhe
vagamente n'um duello, dei-lhe um punhado de _shellings_, ameacei-o com os
_policemen_, e pul-o absolutamente ao serviço do meu segredo.

Collocámos Rytmel no carro; com mantas fizemos-lhe uma especie de ninho,
commodo e molle, e o cavallo trotou rapidamente, pela rua de S. Marcos,
para casa de Rytmel. Ahi grande rumor entre os officiaes inglezes. Eu
contei uma incoherente historia d'assalto ao florete, em que a minha arma
subitamente se tinha desembolado. A historia era inacceitavel; mas era
facil comprehender que havia por traz d'ella um segredo delicado, e isto
era o bastante para a altiva reserva de _gentlemen_.

Rytmel, aos primeiros curativos, serenou e adormeceu.

Tudo tinha sido feito em silencio, desapercebidamente. Fui tranquilizar a
condessa. Eram tres horas da noite. Havia temporal, e eu sentia quebrar o
mar nas rochas da bahia. Tudo dormia em Clarence-Hotel.

--Agora nós! disse eu. E dirigi-me ao quarto de Carmen.

Havia luz. Abri a porta, corri o reposteiro, entrei. A luz era frouxa,
desmaiada. Ao principio não distingui ninguem e ouvi apenas soluçar. Emfim
sobre um sophá, deitada, enroscada, sepultada, vi Carmen, com a cabeça
escondida, o penteado solto, coberta de sangue e abraçada a um crucifixo.
Ao pé, sobre uma mesa, havia uma garrafa de _cognac_ e um pequeno frasco
azul facetado. Quando sentiu os meus passos no tapete, Carmen levantou-se
um pouco no sophá. N'aquelle momento a sua belleza era prodigiosa.

Tinha os cabellos soltos: os olhos reluziam como aço negro, e o penteador,
aberto sobre o peito, deixava vêr a belleza maravilhosa do seio.

Confesso que não foi a idéa da vingança e do castigo que me tomou o
espirito diante d'aquella mulher tão terrivelmente possuida da paixão.
Lembraram-me as figuras tragicas da arte, lady Macbeth e Clithemnestre, e
tanta belleza, tanto esplendor, fizeram-me subir ao cerebro um vapor de
amores pagãos.

Ella tinha-se erguido e, com uma voz secca:

--Que quer?

Eu fiquei calado.

--Bem sei. Vem buscar-me. Fui eu que o matei. Está ahi a policia, não?
Estou prompta. É pôr um chale.

--Ninguem o sabe, disse-lhe eu baixo, e, sem saber por quê, commovido.

--Que me importa? Não o occulto. Matei o meu amante. Fui eu. Ah! pois quê?
nós outras damos a nossa vida, a nossa alma, entregamos todo o nosso ser,
pomos n'isto toda a nossa existencia, a nossa honra, a nossa salvação na
outra vida, e lá porque vem outra que tem os cabellos mais loiros ou a
cinta mais fina, adeus tu, para sempre! olá creatura! despreso-te, tu
foste para mim o momento, o capricho, a _futilidade_. Ah! sim? Então que
morra. Que quer mais? Vá buscar os _policemen_.

Eu disse-lhe então, em voz baixa:

--Fui encontral-o banhado em sangue.

Ella olhou-me desvairadamente um momento, e de repente, arremessando-se
sobre o sophá, abraçou-se ao crucifixo e com grandes lagrimas, com um
delirio de soluços:

--Ah, meu Deus, perdoae-me! Perdoae-me, Jesus! Perdoae-me! Fui eu que o
matei! Estou doida de certo. Pobre Rytmel! Rytmel da minha alma! Não o
torno a vêr, não lhe torno a fallar! Acabou-se para sempre!... Jesus, o
que eu sinto na cabeça!... Em Calcuttá adorou-me, aquelle homem. Ajoelhava
aos meus pés, eu queria morrer por elle. Diga-me,escute: enterraram-n'o?
Está muito ferido? Eu não o feri no rosto? não, isso não! Vá depressa. Vá
buscar a _policia_!... Mas porque me não prendem? Ah meu pobre Rytmel! eu
morro, eu morro, eu morro! D'aqui a pouco começam a tocar os sinos!..

Ergueu-se com gestos de louca, foi ao espelho, compoz o cabello com ar
desvairado, e de repente voltou a abraçar, apaixonadamente, o crucifixo
negro.

--Escute, disse-lhe eu. Rytmel não morreu.

--Não morreu? gritou ella.

De repente, arrojou-se aos meus braços que a ampararam, tomou-me a cabeça
entre as mãos, e fitando-me com uma grande angustia:

--Dize-me: não morreu? Está salvo?

--Está, disse eu.

--Juras?

--Juro.

--Quero vêl-o, quero vêl-o já! gritou ella. O meu chale, o meu chale!
Procure-me ahi o meu chale. Aposto que não lhe fizeram bem o curativo...
Positivamente não lh'o fizeram! Se não lhe acudo! Que diz elle? Chora?
Pobresinho! Adormeceu? Onde é a ferida? Maldita seja eu! maldita seja eu!

Com uma exaltação delirante procurava abrir as gavetas, derrubava os
moveis, arremessava as roupas, fallando, gesticulando, e ás vezes
cantando.

--Meu Deus, faz-se tarde! Que ando eu a procurar? Que horas são? Elle
falou no meu nome?

Veio tomar-me o braço:

--Vamos.

--Onde?

--Vêl-o. Quero vêl-o. Quero! não me diga que não. Quero pedir-lhe perdão,
amal-o, servil-o, ser a sua criada, a sua enfermeira...

Parou, e desprendendo-se do meu braço:

--E a outra? Não a quero vêr lá! Ella está lá? Não quero que ella o trate.
Mato-a, se a vejo. A outra, não, não, não! Não a deixe chegar ao pé
d'elle. Peço-lhe a si. Não, não a deixe chegar. Eu só, só eu basto.

Subitamente cerrou os olhos, estremeceu, deu um grande suspiro, e caiu no
chão immovel.

Levantei-a, deitei-a no sophá, borrifei-a d'agua; e ella com uma voz
expirante:

--Eu morro! eu morro... chame um padre. Não lhe tinha dito...
Envenenei-me.

--Envenenou-se? gritei aterrado.

--N'aquelle frasco, alli!


XII


O medico, apressadamente chammado, declarou que não havia perigo. Carmen
tinha tomado o veneno n'um preparado fraco, e n'uma porção diminuta. Podia
porém receiar-se que a sua extrema susceptibilidade nervosa, a exaltação
dos seus espiritos, provocassem uma febre cerebral. Mas, ao despontar do
dia, adormeceu, vencida por uma prostração absoluta, em que a vida só se
fazia sentir pelos _ais_ soluçados que se lhe desprendiam do peito.

Fui então vêr a condessa. Não se tinha deitado. Ficára embrulhada n'um
chale, sentada aos pés da cama, n'uma attitude absorta de dôr e de inercia
que me encheu de piedade. Era dia. Mas as janellas conservavam-se
fechadas, e as luzes ardiam melancolicamente. As jarras estavam cheias de
flôres.

Sobre uma pequena mesa havia um serviço de chocolate, de porcelana azul,
para duas pessoas. O chocolate tinha arrefecido, as flôres murchavam.

--Então? disse ella quando me viu.

--Então! elle está curado, e bom n'um mez. A condessa deve partir dentro
de quinze dias.

--Ao menos quero dizer-lhe adeus... um momento, um instante que seja! Não
me póde impedir isto: não m'o impeça, não?

--De modo algum, prima. Eu mesmo lh'o facilito.

--E ella?

--Ella, minha prima? Entrei no quarto d'ella para a arrastar ao primeiro
_policeman_ que passasse. Sahi jurando que em toda a parte aquella mulher
me havia de achar a seu lado para a defender e, se ella o quizesse, para a
amar.

--Tem talvez rasão. É uma verdadeira mulher.

--É mais do que isso, minha prima... Se alguma vez a paixão se encarnou
n'este mundo n'um aspecto divino foi n'aquella mulher. É a deusa da
paixão. De resto tem a grande qualidade:--a logica.

Eu, na realidade, tomara por Carmen uma grande admiração! Eu, que na sua
saude e na sua belleza nunca lhe dissera uma palavra galante, era agora
nas suas horas de dôr e doença, o seu fiel _cavalliere serviente_. Vi-a
convalescer sob os meus cuidados: D. Nicazio tinha ido para Sicilia.
Sustentei os primeiros passos que ella deu no seu quarto, extremamente
magra, com o olhar quebrado, uma transparencia morbida na physionomia, e a
imaginação doente.

Começou logo a entregar-se a longas orações, a leituras piedosas. O seu
intento era entrar n'um convento em Hespanha, e ali, matar o seu corpo na
penitencia e na dôr. Passava agora os dias nas egrejas. Estava mudada nos
seus habitos e nas suas maneiras. A sua belleza mesmo tomava uma expressão
ascetica. Tinha-se verdadeiramente desligado do mundo. Ás vezes olhava-me,
e dizia de repente, lembrando o convento:

--É triste! Aos vinte e oito annos!

Mas a exaltação religiosa retomava-a, e então perdia-se em esperanças,
idéas de uma redempção pela oração, pelo jejum, pelo silencio e pela
contemplação. N'aquelle espirito visitado por todas as paixões, e sempre
n'uma vibração exaltada, entrava por seu turno o sombrio catholicismo
hispanhol, e vendo o logar deserto das outras idéas do mundo, acampava lá
serenamente.

Um dia pediu-me para ir vêr Rytmel antes de partir para Hispanha.

--É como irmã da caridade que o quero vêr!

Levei-a a casa de Rytmel, uma noite. O quarto estava mal alumiado pela
desmaiada luz de velas de stearina. A pallidez de Rytmel era dolorosa
sobre a brancura do seu travesseiro. Carmen entrou, arremessou-se de
joelhos ao pé da cama d'elle, tomou-lhe uma das mãos e ficou ali soluçando
longo tempo. Rytmel chorava tambem.

Eu tinha-me encostado á parede, e sentia invadir-me uma tristeza, profunda
e insondavel como a noite. Um visinho, cuja janella abria para o estreito
pateo, para onde dava tambem uma janella de Rytmel, tocava n'esse momento
na sua rebeca, com uma melancholia plangente, a walsa do _Baile de
mascaras_, que, sendo doce e tenebrosa, desperta não sei que idéas de
festa e de morte, de amor e de claustro.

Rytmel queria levantar Carmen, fallar-lhe. Mas ella estava prostrada, com
o rosto escondido na beira de leito, soluçando; e apenas a espaços dizia:

--Perdôe-me, perdôe-me!

Rytmel por fim, com uma ternura insistente, ergueu-a, tomou-a nos braços,
disse-lhe as coisas mais elevadas e mais doces; e com uma meiguice e um
encanto infinito beijou-a nos olhos.

A pobre creatura córou, eu senti renascerem-se as lagrimas. Querido e
pobre Rytmel! como elle teve n'aquelle momento a ternura ideal, e o divino
encanto do perdão!

Ella com uma simplicidade, em que já se sentia a immensa força interior
que lhe dava a fé, fallou a Rytmel de Deus, do convento em que queria
entrar, da ordem que preferia, com palavras naturaes e tocantes, que nos
enchiam de magoa. Por fim beijou a mão do seu amante.

--Adeus, disse ella. Para sempre! Resarei por si.

E ia sahir, de vagar, succumbida, quando de repente, á porta do quarto,
parou, voltou-se, olhou-o longamente; os olhos encheram-se-lhe de uma luz
sombria e terrivelmente apaixonada; o peito arquejou-lhe; empallideceu, e
com os braços abertos, os labios cheios de beijos, n'um impeto da sua
antiga natureza, correu para se atirar aos braços d'elle com o phrenesi
das velhas paixões. Mas quando tocou no leito, estacou, cahiu de joelhos,
e n'um grande silencio e n'um grande recolhimento beijou-lhe castamente os
dedos! Depois tomou-me o braço, e sahimos.

Ao outro dia chamou as criadas e repartiu por ellas todos os seus
vestidos, rendas e _toilettes_. Deu as suas joias a um padre inglez para
as distribuir pelos pobres. Frascos, bijouterias, essencias, tudo
destruiu.  Confessou-se, esteve todo o dia resando na egreja de S. João e
preparou-se para partir. Todos os que a conheciam choravam.

Á noite, quando fazia a sua pequena mala, mandou-me chamar, fechou a porta
do quarto e entregou-me o seu testamento, para eu o deixar depositado em
Malta, de sorte que D. Nicazio o recebesse á sua volta da Sicilia.
Deixava-lhe tudo.

Depois foi silenciosamente ao espelho, tirou uma rede da cabeça e o seu
immenso cabello caíu, quasi até ao chão, em grossos anneis, esplendido,
forte, immenso, e d'uma poesia sensual.

Tomou uma thesoura, e febrilmente, a grandes golpes, abateu aquellas
tranças admiraveis, que teriam sido uma gloria publica no tempo da Grecia.

Eu estava absorto pela belleza, magoado com o desastre. Parecia-me já
aquillo o começo do claustro.

Carmen apanhou o cabello caído, embrulhou-o n'um lenço, e, entregando-m'o,
disse:

--Guarde essa lembrança. É a verdadeira Carmen, a outra que eu lhe deixo
ahi. Agora peço-lhe uma derradeira cousa. Prepare tudo e leve-me a Cadiz.
Ámanhã... é possivel?

--Ámanhã não; mas dentro d'uma semana, juro-lh'o, teremos visto do mar as
montanhas de Valencia.

Ella no entanto passava rapidamente as mãos pelos cabellos, dando-lhes uma
feição masculina. Era encantadora assim. A sua belleza tomava uma
expressão ingenua de um extraordinario mimo. Ella sorria ao espelho, eu
olhava-a, e via, entre as duas luzes, a sua imagem, como n'um leve vapor
azulado e luminoso. Ella, lentamente, esquecida, tinha tomado o pente e
compunha o geito do cabello. Eu por traz d'ella sorria. Ella, no enlevo do
espelho, na surpreza de se achar linda com o cabello cortado, sorria
tambem. Parecia-me ver-lhe as faces tomarem a côr da vida e o seio a
ondulação das paixões. Ia dizer-lhe alguma cousa doce, chamal-a ao
mundo... De repente arremessou o pente, e curvando a cabeça, foi
silenciosamente ajoelhar diante de uma cruz grande, que havia junto do seu
leito, e sobre a qual agonisava um Christo com a cabeça pendente, a testa
gottejante, os braços distendidos, o peito constellado de chagas!


XIII


D'ahi a doze dias, a condessa e o conde voltavam no paquete da India a
Gibraltar. O conde partia triste: Mademoiselle Rize ficava, e o Chiado
esperava-o! De mais, o estar só com a condessa embaraçava-o: as
melancholias d'ella, as suas lagrimas inexplicaveis, a sua pallidez
apaixonada, toda a incoherencia do seu caracter, que aquelle excelente
libertino explicava pelo _nervoso_ e pelo histerismo, davam-lhe uma certa
fadiga enfastiada, e, como elle dizia, embirrava com romantismos. A
condessa, essa, partia resignada: Rytmel depois da sua convalescença iria
para a Italia, para aquecer as forças ao sol de Napoles, e mais tarde em
Paris, e depois em Lisboa, teriam alguns mezes livres, para, como diziam
os antigos poetas, os tecerem d'ouro, seda e beijos.

Foi com saudade que os vi embarcar. Eu ali ficava para cumprir um dever
melancholico: acompanhar a Cadiz aquella infeliz Carmen, ainda ha pouco de
uma belleza tão radiante, e agora vencida pelas amargas penitencias.

Lord Grenley, que ia para Cadiz dentro de quatro dias, tinha-nos
offerecido, a Carmen e a mim, o seu _yacht_. Aceitei com alegria. Era um
transporte commodo e livre, e lord Grenley uma companhia symphatica,
porque me assustava a idéa de ver durante uma longa viagem no mar, a
debilidade de Carmen estiolar-se ao meu lado. Emfim uma tarde partimos.

Era ao escurecer, o ceu estava nublado, quasi chuvoso. Carmen ia
profundamente doente. Magra, transparente, livida, sem poder suster-se,
sem dormir, alimentando-se quasi só de chá, a sua vida parecia estar a
todo o momento a passar os limites humanos. Não erguia os olhos dos seus
livros de orações. Aquella exaltação a que faltava a terra procurava
febrilmente todos os caminhos do ceu.

Foi com uma grande tristeza que vi Malta sumir-se nas brumas da noite.
Nunca mais tornaria a ver aquella branca cidade. Não fôra ali feliz. Mas
amamos todos aquelles logares em que por qualquer sentimento ou por
qualquer idéa a nossa natureza palpitou fortemente. E ali tinham ficado
lagrimas minhas.

Logo no primeiro dia de viagem, Carmen esteve expirante. Havia um forte
balanço. O mar era grosso, e nós receavamos mau tempo quando nos
avisinhassemos das correntes do golpho de Lião.

Carmen quasi sempre queria estar na tolda, ao ar, ao sol, vendo o mar.
Arranjava-se-lhe uma cama, e ali ficava, olhando, scismando, soffrendo, e
conversando com o capellão de lord Grenley, velho cheio d'uncção, que
tinha um encanto singular fallando das cousas do ceu. Aquella scena era
profundamente triste, sobretudo de tarde; o sol cahia, a immensa sombra
começava a cobrir o mar: Carmen fallava baixo: nós, em redor,
escutavamol-a, ou, calados, seguiamos o correr da maresia, olhavamos o fim
da luz. Um marinheiro escossez vinha ás vezes cantar as arias das suas
montanhas, cantos de uma tristeza suave e larga como a vista de um lago.

Ao terceiro dia de viagem, Carmen, subitamente, teve um grande accesso de
febre e quiz confessar-se. O medico disse-nos que ella não chegaria a ver
as montanhas da Hispanha. Que horas dolorosas! Não imagina, senhor
redactor, que intensidade têem, na vasta extensão das aguas, as dôres
humanas! Junta-se-lhes o sentimento da immensidade, e não sei que terrivel
instincto do irreparavel.

A confissão de Carmen foi longa. Quando terminou quiz fallar-me.

--Adeus! disse-me ella, vou morrer.

Disse-lhe que não, quiz dar-lhe esperanças ephemeras.

--Não, não, respondeu ella, nada de enganos. Tenho coragem. Quem a não tem
para ser feliz? Chame lord Grenley.

Começou então diante de nós a fallar da sua vida. Disse-nos qual fôra a
sua mocidade, os desvarios do seu coração, a exigencia das suas paixões, e
fallou-nos da sua ligação com Rytmel, com elevação, como de um sentimento
quasi legitimo. Não teve uma queixa, uma saudade, um desdem. As ultimas
palavras da sua vida eram dignas. Depois tirou um rozario do seio.

--Veiu de Jerusalem, disse-me, dê-lh'o a _ella_.

Eu tinha os olhos humedecidos, Carmen, entretanto, empallidecia
terrivelmente.

--Levem-me para cima, quero vêr o mar, quero vêr a luz.

Era uma manhã nebulosa e triste. O mar estava mais sereno. Collocámos
Carmen cuidadosamente sobre almofadas e mantas, voltada para Malta. Lá
tinha ficado a sua vida. Esteve muito tempo calada, com as mãos cruzadas.

--Que terra é aquella? perguntou mostrando com a mão tremula, uma linha
escura no horisonte.

--A Africa, respondeu lord Grenley.

Ella ficou olhando vagamente:

--Fui uma vez a Tanger, disse com uma voz lenta, era nova então! Era
feliz! Estava um dia lindo... Era em maio...

Calou-se. E voltando-se para mim:

--Faz agora mezes que passámos n'esta altura, lembra-se? E aquelle _punch_
a bordo do _Ceylão_? Quando eu cantei uma habanera! Eu cantava então... O
que é ser alegre! Tudo acabou, nunca mais! nunca mais!

E como fallando comsigo mesma:

--Tanta paixão, tanta inquietação! E aqui está: venho morrer só, no meio
d'este mar. Pobre de mim! E no fim, se eu em nova, em solteira, o tivesse
encontrado, a elle... Eu pedia pouco então: um coração leal. Tive gostos
simples sempre. As loucuras vieram depois... O marinheiro que canta as
arias escocezas, onde está? Chamem-n'o. Não, não o chamem que me vae fazer
chorar.

Nós escutavamol-a; a sua alma fallava como um passaro canta ao morrer. As
nuvens desfaziam-se, o azul aclarava, ia apparecer o sol.

--Vejam isto, continuou ella. Em nova diziam-me _és bonita, amo-te!_ E
agora que morro aqui, quem se lembra de mim? Os que me conheceram onde
estão? Uns mortos, todos esquecidos. Estão agora alegres, amam outras, vão
para os theatros. E eu estou aqui a morrer. E _elle_? lembrar-se-ha de
mim? Tambem não. Choro, choro, quando penso que o não vejo, que não está
aqui, que morro e que elle se não lembra de mim!

E soluçava, com a cabeça escondida no travesseiro.

--Rytmel é uma alma nobre. Estima-a, creia...

--Mas esquece-me! dizia ella suspirando e limpando os olhos. De resto, de
mim ninguem se lembra. Eu não sou uma mulher de quem se seja enfermeiro.
«Estás boa? estás alegre? amo-te». «Estás a morrer? Vae-te fazer enterrar
para outro sitio!» É bem triste este mundo!

Lord Grenley, com os olhos rasos d'agua, mordia convulsamente o seu
cachimbo.

--Guarde bem os meus cabellos, sim? dizia-me ella. Diziam que eram
bonitos. Se eu por acaso não morresse, haviamos de ir todos a Sevilha. Que
lindo que é Sevilha. Á tarde, nas _Delicias_, todo o mundo traz um ramo de
flores.

De repente abriu demasiadamente os olhos como deante d'uma cousa pavorosa;
levou as mãos á face, gritou:

--Meu padre, meu padre, tenho medo. Não é já o castigo, não? Se cáio no
inferno, meu Deus!

--O inferno é uma visão, minha pobre senhora! dizia o capellão. Os
castigos de Deus não são feitos com o fogo.

--Tem razão, tem razão. Sinto-me morrer, venham todos. Lembrem-se de mim,
sim?

Alguns marinheiros tinham-se approximado. O capellão ajoelhou: todos
tiraram os barretes, resavam baixo. Lord Grenley ficara de pé, descoberto,
immovel. Grossas nuvens escuras corriam outra vez no ceu. O vento começava
a assobiar.

--Adeus, disse-me ella. Dê-me a sua mão. Bem. Fui uma boa rapariga, por
fim... Um pouco estroina, talvez... Lord Grenley, obrigada. Que tristeza,
ter morrido alguem no seu _yacht_!... Que é aquillo, além, ao longe? É a
terra? São nuvens. Ah! meu querido Rytmel! ah! meu amor, ouve-me, onde
estás tu?

Duas grandes, tristes lagrimas, correram-lhe na face: teve ainda força
para as enchugar. Depois sorrindo:

--Olhem, não pensem em mim com tristeza. Sómente ás vezes, quando
estiverem juntos, e elle estiver tambem, lembrem-se d'esta pobre rapariga
que para aqui morreu no mar... E digam: pobre Carmen! ahi está uma que
sabia amar devéras!

E dizendo isto, estremeceu, fallou desvairadamente em Malta, em Sevilha,
em Rytmel, e, dando um gemido profundo, morreu.

O sino de bordo começou a tocar lentamente, Lord Grenley curvou-se,
beijou-lhe a testa, e cerrou-lhe os olhos. Eu chorava.

Então um velho marinheiro approximou-se, e sobre aquelle corpo, que fôra
Carmen, estendeu a bandeira ingleza.


XIV


Imagine, senhor redactor, em que lamentavel estado de espirito nós
ficámos. Lord Grenley encerrou-se no seu camarote, eu e o capellão ficámos
velando junto do cadaver. A tarde descia. Uma nevoa extensa cobria o mar.
O rugido do vento era lugubre. Todos estavam profundamente apiedados. A
velhos marinheiros, que tinham naufragado no mar da India e dobrado o
Cabo, eu vi saltarem as lagrimas...

--Pobre creança! diziam elles.

Para aquellas rudes naturezas simples, essa mulher nova, vestida de
branco, pallidamente linda, era a _miss_, a virgem, a creança! Um
arranjou-lhe uma corôa d'algas seccas, e foi piedosamente pôr-lh'a sobre o
peito. Era o ramo de flôres do mar.

Eu pensei algum tempo em conduzir o corpo de Carmen até Hispanha, mas o
piloto observou-me que teriamos ainda 4 ou 5 dias de viagem, e o corpo não
podia esperar na sua pureza durante esta longa demora. Por isso resolvemos
deital-o ao mar, quando viesse a noite. Assim, ficámos o capellão e eu,
durante a tarde, junto do cadaver, lembrando as suas bellezas e as suas
desgraças.

A noite caiu; cobriu as aguas. O capellão desceu. Fiquei só. Havia sobre o
cadaver, pendente d'uma corda, uma lampada. Descobri-lhe o rosto,
afaguei-lhe os cabellos. A sua belleza tinha-se fixado n'uma immobilidade
angelica, como se a morte lhe tivesse restituido a virgindade. A curva
adoravel do seu seio apparecia em relevo na bandeira que a cobria: nunca
tanta força tinha produzido tanta graça! Olhei-a durante muito tempo,
enlevado na sua contemplação. As lagrimas cahiam-lhe dos olhos.

--Pobre creatura! dizia eu na solidão dos meus pensamentos, pobre
creatura! vaes para a mais profunda das covas, para a sepultura errante
das aguas. Uma febre d'amor consumiu-te na vida, uma tempestade eterna te
agitará na morte! Condiz o tumulo com a existencia! Como o mar tu foste
bella, orgulhosa e ruidosa. Como o mar tu tiveste as tuas tormentas, as
tuas calmarias occultas, as tuas grutas, os teus monstros secretos, a tua
elevação religiosa, a tua espuma immunda. Como sobre o mar, sobre o teu
cerebro correram as doces idéas geniaes e puras como vélas de pescadores:
as pesadas ambições modernas, rápidas e incisivas como rodas de paquetes;
as brutaes exigencias do temperamento, estupidas e victoriosas como
_monitores_ armados. Despedaçaste-te de encontro á fria reserva d'um amor
que se extingue, como elle se esmigalha contra a escura insensibilidade
das rochas. Como elle tem o vento que é o seu tyranno, tu tiveste a
paixão. Vae, pobrezinha, repousar em paz, no fundo das algas verde-negras!
Triste destino! Quem mais do que tu, sentiu, amou, estremeceu, córou,
quiz, venceu? Quantas lagrimas causaste! Quantas loucas palpitações!
Quantos desejos para ti voaram como bandos de pombas! Quantas vozes
perdidas te chamaram! Quanta fé fizeste renegar! Quanta altivez fizeste
succumbir! E tanta vida, tanta acção, tanta vontade, um tão grande centro
vital como tu foste, um grumete amarra-lhe duas balas aos pés e atira com
elle ao mar! E aqui jaz o ruido do vento, e aqui jaz a espuma da onda!

De que te serviu o ser, o que fizeste ao sangue, á vontade, aos nervos, ao
pensamento, que trouxeste do seio da materia? Que idéa deixaste, que
memoria, que piedade? Que foste tu mais do que um corpo bello, desejado e
photographado? Fizeste parte, durante a vida, d'aquellas insensiveis
bellezas naturaes, que o homem usa e arremessa. Foste como uma camelia, ou
como a penna d'um pavão. Foste um adorno, não foste um caracter. Nunca
tiveste um logar definido na vida, como não terás um tumulo certo na
morte! Adeus pois para sempre, oh doce ephemera! o teu destino é a
dispersão!

Por isso aqui estás só! Os que te amaram onde estão? onde estão os que tu
amaste? Aqui estás só, vestida com o teu penteador branco, na tua manta de
xadrez, sobre o convez d'um navio, só, sempre no meio de homens, como na
vida! Não ha uma flôr aqui que se te deite em cima, nem uma renda em que
se te envolva a face morta. Morres entre cordagens, no meio de rudes
marinheiros, que veem agora da sua ração d'aguardente. Nem um padre
catholico tens que te falle dos anjos, doces camaradas da tua mocidade.
Nem um parente, sequer, te comporá a dobra do teu lençol! Não se cantará
nenhum responso em volta do teu caixão. Não farás scismar as noivas que te
vissem passar no teu enterro. As mãos alcatroadas de velhos marinheiros te
arremessarão ao mar!

Pois bem, minha pobre amiga! que importa? Estás na logica do teu destino,
que é a revolta. Viveste longe das estreitas conveniencias humanas, morres
em plena liberdade da natureza.

Não verás o teu leito cercado de parentes avidos, de criados
indifferentes, de padres que te dêem os santos oleos bocejando, n'um
quarto escuro e abafado, entre o cheiro dos remedios: morres diante do
ceu, aos emballos do mar, ao cheiro da maresia, entre velhos marinheiros
da India, que te choram, sob o sublime ceu, na plena liberdade dos
elementos!

Não serás vestida com velhas sedas, não levarás na cabeça antigas corôas
funebres, não te cobrirão com galões de ouro falso; irás com o teu
penteador branco, como para uma alegria nupcial!

Não te pregarão n'um caixão estreito, nem te apertarão como um fardo;
terás o contacto das cousas vivas; as lagrimas do mar correrão sobre os
teus cabellos; poderás toucar-te d'algas; os raios do sol poderão ir
procurar-te como antigos amantes dos teus olhos, e a tampa do teu esquife
será o infinito azul.

Não sentirás em volta de ti no teu enterro cantos em mau latim, o som das
campainhas, a voz aguda dos meninos do côro, os commentarios estupidos da
multidão, as grosseiras enchadadas do coveiro. Serás lançada á tua cova do
mar no meio de um silencio militar, levando por mortalha a bandeira
ingleza, ao cantochão infinito dos ventos e das aguas.

Não ficarás para sempre apertada em cinco palmos de terra, sentindo a bôca
das raizes pastar o teu seio e a multidão dos vermes entrar no teu corpo
como n'uma cidadella vencida. Não! a tua morte será uma perpetua viagem:
viverás nas grutas transparentes de luz, guardarás os thesouros
mysteriosos, visitarás as cidades de coral que luzem no fundo do mar,
amarás o corpo encantado d'algum louro principe, outr'ora pirata normando!
Andarás dispersa no elemento, sombra infinita, alma da agua!

Sobre o teu tumulo não virão sentar-se os burguezes, benzer-se os
sachristães, cacarejar as gallinhas; sobre a tua azul sepultura errará o
vento, melancolico velho que visita os seus mortos.

Não terás um epitaphio metrificado por um poeta elegiaco, e approvado pela
camara municipal; serão os reflexos ineffaveis das estrellas que se
encruzarão para formar sobre a tua sepultura as lettras do teu nome...

Um marinheiro bateu-me no hombro.

--São 11 horas, disse elle.

Ergui-me em sobresalto, e pensando nas vãs chimeras que se tinham estado
formando no meu cerebro n'aquelle triste scismar, disse commigo:

--Pobre de mim! Tinham-me esquecido os tubarões.

Eram 11 da noite. Não havia estrellas. Todos estavam reunidos na tolda.
Tinham-se posto lanternas nas cordagens, e accendido archotes.

Dois marinheiros tomaram o cadaver nos braços. O padre abençoou-o.
Ligou-se-lhe ao corpo com uma corda a bandeira ingleza. Os grumetes
trouxeram duas balas. Uma foi amarrada aos pés, outra ao pescoço. As
botinhas d'ella, de seda preta, appareciam fóra da orla do vestido e da
bandeira que a envolvia. As luzes dos archotes faziam tremer sobre o mar
vagas claridades. No silencio sentia-se o estalar da rezina.

O sino de bordo começou a tocar. Os marinheiros elevaram o corpo á altura
proxima da amurada. Então ergueu-se um canto grave, melancolico, de uma
infinita tristeza. O padre resava com as mãos impostas sobre o cadaver. E
affastando-se, disse:

--_In eternum sit!_

Todos responderam:

--_Amen!_

O vento gemia. Lord Grenley adiantou-se e disse em voz alta:

--N'este dia, a bordo do _Romantic_, navio inglez, morreu Carmen Puebla,
de nação hispanhola, e para eterna protecção do seu corpo, como sendo
sepultada em territorio britannico, foi amortalhada na bandeira ingleza.
_In pace_.

--_Amen!_ responderam os marinheiros.

--Em nome do Padre, disse o capellão, do Filho e do Espirito, santa seja a
sepultura a que ella é deitada, e que fique como em terra sagrada n'estas
aguas do mar!

--_Amen!_ murmuraram os marinheiros.

--Ao mar! disse lord Grenley com voz forte.

Os dois marinheiros suspenderam o cadaver sobre o mar; todos se
approximaram, fazendo circulo com os archotes; o cadaver, arremessado,
mergulhou com um som lugubre, desappareceu, e a espuma das vagas
correu-lhe por cima.

Os archotes foram apagados n'um triste silencio. O navio affastava-se. Eu,
encostado á amurada, tinha os olhos fitos no ponto vago onde o corpo
desapparecera. Ella alli ficava morta. Encheu-me o peito uma longa
saudade. Lembrava-me d'ella, dançando no convez do _Ceylão_, rindo á mesa
de _Clarence-Hotel_. Tudo tinha acabado. Nunca mais! nunca mais! Alli
ficava com uma bala aos pés!

O vento refrescou.

--Vento d'Eeste! disse o marinheiro de quarto.

--Vem de Malta... pensei eu.

E as minhas ultimas lagrimas cairam sobre o mar...


XV


Cheguei ao fim das minhas confidencias.

Quando desembarquei em Lisboa a condessa tinha ido para Cintra. Vi-a, ao
fim d'esse verão, em Cascaes. Ella mostrava-se alegre, o que era talvez
uma maneira de estar triste! Cascaes estava imbecilmente jovial: _batia-se
o fado!_ No inverno seguinte a condessa encontrou-se, em Paris e em
Londres, com Rytmel. Voltou d'essa viagem mais triste e mais pallida.
Lentamente, pareceu-me que a confiança do seu coração se affastava de mim.
Apartei-me, n'uma reserva discreta. Nunca mais nos nossos dialogos, todos
exteriores e ephemeros, se alludiu á viagem de Malta.

Eu, no entanto, continuava recebendo de Rytmel as cartas mais expansivas e
mais intimas. A nossa amisade, que a exaltação e o acaso das paixões
formara, affirmava-se agora n'uma communhão serena de sentimentos e de
idéas. N'uma d'essas cartas Rytinel fallava-me de miss Shorn, uma rapariga
irlandeza...

«É uma neta dos bardos, uma sombra ossianica, a alma da verde Erin!»
dizia-me elle.

No começo d'esta primavera recebi uma carta de Rytmel que continha estas
palavras:

«Parto para ahi: um quarto livre e solitario em tua casa; bons charutos;
uma casa affastada e livre n'um bairro pobre; um _coupé_ escuro com bons
_stores_; reserva e amisade.--_Frater, Rytmel_.»

Executei escrupulosamente as suas determinações.

Ha sessenta dias, talvez, Rytmel chegou, no paquete de Southampton.
Pareceu-me mais triste, mais concentrado.

Havia certamente um segredo, uma preoccupação, um cuidado qualquer, que
habitava no seu peito. Esperei que elle se abrisse expansivamente commigo
n'alguma das longas horas intimas, em que, no jardim de minha casa,
fallavamos na essencia dos sentimentos. Nunca dos labios d'elle saiu uma
confidencia: apenas duas ou tres vezes o nome de miss Shorn, que segundo
elle me disse, era uma relação recente de sua irmã, appareceu vagamente no
indefinido da conversação.

A sua vida em minha casa, era de um extremo recolhimento.

Parecia mais um refugiado politico do que um amante amado. Não tinha
relações nem convivencias. Ás vezes de manhã saía n'um _coupé_
cuidadosamente fechado, que perpetuamente estacionava á porta.

De tarde, ás oito horas, saía tambem, e só o via no outro dia ao almoço,
em que elle apparecia sempre levemente contrariado pelas cartas que lhe
vinham de Londres e de Paris. Notei por esse tempo umas certas tendencias
mysticas no seu espirito, de ordinario tão positivo e tão rectilineo.
Surprehendi-o mesmo uma vez lendo a _Imitação_.

N'um caracter logico e frio como o de Rytmel, aquelle estado de espirito
era de certo o symptoma de uma grave perturbação do coração.

Fallava ás vezes em Carmen, sempre com saudade. Gostava de conversar das
cousas de religião e das legendas do ceu. Fallava na _Trapa_, no socego
immortal dos claustros, e nas chimeras da vida. Eu extranhava-o.

Desde que elle viera para Lisboa eu não voltara a casa da condessa, por um
certo sentimento altivo de reserva e de orgulho. N'esse tempo estava ella
absolutamente livre. O conde achava-se em Bruxellas, onde Mademoiselle
Rise o tinha captivo dos nervosos e ageis bicos dos seus pés, que então
escreviam pequeninos poemas no tablado do _Theâtre du Prince Royal_.

Um dia, inesperadamente, recebi da condessa um bilhete que dizia:

«Meu primo: Se um gelado tomado n'um terraço com uma velha amiga não
sobreexcita excessivamente os seus nervos, espero-o esta tarde em... (era
uma quinta ao pé de Lisboa que ella habitava algumas vezes no verão).
Traga o seu amigo Rytmel.»

Mostrei o bilhete a Rytmel, e pelas seis horas da tarde rodavamos na
estrada de... n'um _coupé_ com os _stores_ corridos.

A condessa tinha acabado de jantar. Passeámos nas sombrias ruas da quinta,
apanhámos flôres, e voltaram aquellas boas horas intimas d'outr'ora,
cheias de abandono e de espirito. A condessa estava radiante.

Ás onze horas da noite fomos tomar chá para o terraço. Havia um admiravel
luar. O terraço tem na sua base um grande tanque, cheio de plantas da
agua, de largas folhas, e de nenufares, e onde poderia navegar um escaler.
A agua escorre alli com um murmurio doce. A hora era adoravel. As redondas
massas de verdura do jardim, os arvoredos, appareciam como grandes sombras
pesadas e cheias de mysterio. Ao longe os campos e os prados esbatiam-se
n'um vapor docemente luminoso e pallido. Havia um silencio suspenso. As
cousas pareciam contemplar e sonhar.

Sobre uma mesa no terraço estava um bule do Japão e tres pequeninas
chavenas de Sévres, uma das quaes, de um gosto original e feliz, era a da
condessa. Tinhamos tomado chá, e eu notava a excentrica fórma, o delicado
desenho, a pura perfeição d'aquella maravilhosa e pequena chavena, que a
condessa chamava a _sua taça_.

--O rei Arthur só podia beber pelo seu copo de estanho... disse Rytmel,
sorrindo.

--E eu só posso tomar chá por esta taça, disse a condessa. Não sei porque,
representa para mim o socego, a felicidade. Quando estou triste e bebo por
ella parece-me que se dissipa a nuvem. Uma flôr que eu queira conservar
ponho-a dentro d'essa chavena, e a flôr não murcha. Demais o chá bebido
por ella tem um gosto especial: ora veja, captain Rytmel! beba!

Toda aquella glorificação da chavena tinha tido por fim o poder Rytmel, na
minha presença, sem isso ser menos discreto, beber pela chavena da
condessa,--encanto supersticioso e romantico, que pertence de grande
antiguidade á tradição do amor!

Rytmel agradeceu, deitou uma gota de chá na pequenina chavena dourada. Eu
no entanto olhava a condessa.

Estava originalmente linda. Tinha o vestido levemente decotado sobre o
seio. E o luar dava-lhe aquelle limbo poetico que todas as claridades
mysteriosas, ou venham de astros mortos ou de luzes desmaiadas, dão ás
figuras louras.

Havia um piano no terraço; a condessa sentou-se, e sob os seus dedos o
teclado de marfim, chorou um momento. O silencio, o infinito da luz, a
attitude contemplativa das cousas, o murmuroso chorar da agua nas bacias
de marmore, tudo nos tinha insensivelmente lançado n'um estado de suave e
vago romantismo...

De repente a condessa elevou a voz e cantou. Era a ballada do _Rei de
Thule_.

Alguem tinha traduzido aquella ballada em rimas populares. E era assim que
a condessa gostava de a dizer, em logar d'usar as palavras italianas com a
sua banalidade de _libretto_.

    Houve outr'ora um rei de Thule
    A quem, em doce legado,
    Deixou a amante ao morrer
    Um copo d'ouro lavrado.

Eu ficara junto do piano, fumando. Rytmel, de pé, encostado á balaustrada,
enlevado no penetrante encanto d'aquella canção, olhava a agua do tanque,
onde tremia a claridade da lua, conservando a taça na mão.

Os dedos da condessa volteavam no teclado de marfim; e a sua voz
continuava, triste como a propria ballada:

    Sempre o rei achava n'elle
    Um sabor da antiga magoa,
    E se por elle bebia
    Tinha os olhos rasos d'agua.

--Não cante mais, disse Rytmel de repente, voltando-se.

Á luz da lua eu vi-lhe os olhos humidos como os do rei da canção, e na sua
mão tremia a pequena chavena dourada.

Ella voltou para Rytmel um longo olhar triste, e a sua voz proseguiu,
vibrando mais saudosa no silencio:

    N'alta esplanada normanda
    Batida da fria onda
    Reune os seus irmãos d'armas
    A uma tavola-redonda...

Parou com as mãos esquecidas sobre o teclado:

--Foi talvez como n'uma noite d'estas, disse ella. Estamos em plena
legenda. O terraço batido da agua, a lua, os velhos amigos reunidos, a
lembrança da pobre amante, que se apaga na memoria d'elle, o presentimento
da morte... Que linda noite para o rei atirar a sua taça ao mar!

E cantou os derradeiros versos da ballada:

    Foi-se com tremulos passos
    Na amurada debruçar...
    E com as suas mãos antigas
    Atirou a taça ao mar!

    Junto ao seu corpo real
    Estão os pagens a velar
    E a taça vae viajando
    Por sobre as aguas do mar...

De repente Rytmel deu um pequeno grito: descuido, movimento, ou
irreprimivel impulso d'um coração que se revela, Rytmel deixara cahir a
pequena chavena ao tanque, entre as folhas dos nenufares.

A condessa ergueu-se, extremamente pallida, apertando com ambas as mãos o
coração: e com os olhos marejados de lagrimas, disse para Rytmel:

--O rei de Thule ao menos esperou que ella morresse!

Elle desculpava-se banalmente, como se todo o mal fosse perder-se aquella
fragil preciosidade de Sévres. A condessa deu-me o braço um pouco tremula,
e penetrámos na sala.

D'ahi a dias foi a catastrophe. Outros que a contem. Eu deponho aqui a
minha penna, com a consciencia de que ella foi sempre tão digna, quanto a
minha intenção foi sincera.




+AS REVELAÇÕES DE A. M. C.+


I


Senhor Redactor.--Dirigindo-lhe estas linhas, submetto-me á sentença de um
tribunal de honra, constituido para julgar a questão levantada perante o
publico pelas cartas do doutor *** estampadas n'essa folha. Obriguei-me a
referir quanto se passou por mim como actor d'esse doloroso drama, e venho
desempenhar-me d'este encargo. Possam estas confidencias, escriptas com o
mais consciencioso escrupulo, conter a lição que existe sempre no fundo de
uma verdade! A existencia intima de cada um de nós é uma parte integrante
da grande historia do nosso tempo e da humanidade. Não ha coração que,
desvendado nos seus actos, não offereça uma referenda ou uma contestação
aos principios que regem o mundo moral. Quando o romance, que é hoje uma
fórma scientifica apenas balbuciante, attingir o desenvolvimento que o
espera como expressão da verdade, os Balzacs e os Dickens reconstituirão
sobre uma só paixão um caracter completo e com elle toda a psychologia de
uma época, assim como os Cuviers reconstituem ja hoje um animal
desconhecido por meio d'um unico dos seus ossos.

     *     *     *     *     *

Sabem que sou natural de Vizeu. Criei-me n'uma aldeia encravada entre dois
montes da Beira; açoitado de quando em quando por meu pae, quando lhe
esgalhava alguma arvore mimosa do quinteiro; abençoado por minha mãe como
a esperança dos seus velhos annos; coberto de prophecias de gloria, como o
pequeno Marcello da freguezia, pelo reitor, o qual algumas vezes depois de
lhe ajudar á missa, aos dez annos de idade, me argumentava na sachristia
as declinações latinas. Era escutado este prodigio por um auditorio
composto do sachristão e do thesoureiro, que com os chapeus debaixo do
braço, coçavam na cabeça e olhavam para mim arregalados e attonitos. A um
recanto, minha mãe sorria, com os olhos banhados de ternura, do fundo da
caverna formada em redor do seu rosto pela côca de uma ampla e poderosa
mantilha de panno preto.

Fiz depois os estudos preparatorios no lyceu da cidade, e vim finalmente
matricular-me em Lisboa na escola de medicina.

Vivo pobre, humilde e obscuramente, tenho a minha existencia adstricta a
uma pequena mezada, á convivencia de alguns companheiros de estudo e ao
trato de duas senhoras velhas e pobres, irmãs de um capitão reformado,
antigo aboletado de meu pae, em cuja casa de hospedes eu tenho por modico
preço a minha moradia na capital.

A unica luz que atravessava a sombra da minha vida de desterro, de
desconsolo e de trabalho, era a lembrança de Therezinha...

Therezinha! a doce, a meiga, a querida companheira, á qual eu consagro
principalmente estas paginas, que são o capitulo unico da minha vida que
ella não conhece, a confissão sincera, a historia completa do unico erro
de que posso accusar-me perante a sua innocencia, a sua bondade, e o seu
amor!

Therezinha! adorada flôr escondida entre as estevas dos nossos montes, que
ninguem conhece, que ninguem viu, de quem ninguem se occupa, e que no
emtanto inundas ineffavelmente a minha mocidade e a minha vida com o
sagrado perfume de um amor casto, puro, imperturbavel e calmo como a luz
das estrellas.

Se tu as entenderás, minha innocente amiga, estas palavras!

Se me perdoarás, tu, a enfermidade passageira e mysteriosa, cuja historia
eu ponho confiadamente nas tuas mãos, pedindo-te, não o balsamo da cura
para uma chaga que está fechada para sempre, mas o sorriso da benevolencia
e do perdão para a vaga e sobresaltada melancolia do convalescente
ajoelhado aos teus pés!

Como quer que tenha de ser, minha noiva, eu entendo cumprir perante a
minha consciencia um dever sagrado contando-te, sem omissões e sem
reticencias, tudo, absolutamente tudo, quanto se passou por mim. A verdade
é que te amo! que te amo, e que te amarei! Outra imagem, incoercivel,
vaporosa, vaga, perpassou por mim, mas esvaiu-se como a sombra de um sonho
doentio, varada sempre pelo teu olhar candido que atravez d'ella se fixava
e se embebia constantemente no meu.

Uma noite, ha dois mezes, recolhendo-me por volta das nove horas a minha
casa, que fica situada em um dos bairros excentricos de Lisboa, encontrei
parada uma carruagem de praça, cujo cocheiro altercava grosseiramente com
uma senhora, que estava em pé junto do trem, vestida de preto e coberta
com um grande veu de renda. Esta senhora trocou algumas palavras com outra
mais idosa que a acompanhava e disse ao cocheiro com uma voz singularmente
fina, tremula, delicada, musical, como nenhuma até então ouvida por mim:

--Onde quer que lhe mande pagar?... Não trago mais dinheiro.

--Importa-me pouco isso, respondeu o cocheiro. Quem não tem dinheiro anda
a pé. Já lhe disse á senhora quanto é que me deve pela tabella. Se não
paga o resto, chamo um policia. Se não traz dinheiro, dê-me um penhor.

Ella então bateu impacientemente com o pé no chão, ergueu a parte do veu
que lhe cobria o rosto, e principiou a descalçar convulsamente uma luva.
Suppuz que iria tirar um annel. O cocheiro apressou-se a passar as guias
pela grade da almofada e apeou. Tinha-me no emtanto approximado, e no
momento em que elle dava o primeiro passo, impellido por uma forte
commoção nervosa, estendi-lhe com as costas da mão uma bofetada que o fez
cambalear e cair de encontro á parelha. E dando-lhe em seguida uma libra,
que trazia no bolso:

--Ahi tem pela bofetada; contente-se com o que lhe deram pela corrida.

Diria que alguem por traz de mim suggerira estas palavras romanticas, a
tal ponto ainda hoje pasmo de as ter eu mesmo inventado como solução
d'effeito oratorio, para similhante contingencia!

O cocheiro levantou a moeda, examinou-a á luz da lanterna, subiu outra vez
á almofada, e partiu dizendo-me:

--Boa noite, meu amo!

Eu, atarantado, confuso, tirei machinalmente o chapeu, e titubiei algumas
palavras vagas, não sabendo como despedir-me da pessoa que tinha ao meu
lado.

Era a primeira vez que me achava perto de uma d'essas formosas senhoras da
sociedade, tenra, fina, delicada, como nunca vi ninguem! Tinha uma
carnação lactea e aveludada, como a petala de uma camelia,--prodigio de
mimo só comparavel ao de uma outra mulher que não conheço, e que uma noite
passou por mim no salão de S. Carlos, encostada no braço de um homem e
envolta em uma grande capa branca de listas côr de rosa.

Aquelles que as conhecem, que as vêem e lhes fallam todos os dias, é
possivel que se não impressionem com o aspecto d'estas creaturas
transcendentes. Para quem as encontra de perto pela primeira vez em sua
vida não ha cousa no mundo que mais perturbe. Homens habituados a arrostar
com as mais violentas commoções, a olharem denodadamente para o perigo,
para a desgraça ou para a gloria, tremem diante d'esta simples coisa: o
primeiro contacto de uma mulher elegante! D'ahi vem o velho prestigio
magnetico das rainhas sobre os pagens, das castellãs sobre os menestreis.
É uma sensação unica. O ser humano bestificado converte-se por momentos
n'um vegetal que vê.

Eu ficara immovel e mudo.

Ella correu-me de cima a baixo com um olhar rapido, e dizendo-me
_obrigada_ com uma commoção tremula, estendeu-me d'entre a nuvem negra das
suas rendas a mão de que tinha descalçado a luva.

Entreguei a minha grossa mão a essa mão delicada, magnetica, convulsa e
fria, e senti percorrer-me todos os nervos um estremecimento electrico
despedido do _shake-hands_ que ella me deu de um só movimento sacudido,
fazendo tinir os elos de uma grossa cadeia que lhe servia de bracelete.

Obrigado a dizer alguma coisa, soltei instinctivamente as palavras
monstruosas de uma formula que se usa em Vizeu, mas que estou bem certo
nunca até esse dia haviam sido ouvidas por tal creatura, e que certamente
lhe produziram o effeito do grito stridulo de um animal selvagem, escutado
pela primeira vez entre mattos desconhecidos.

Vergonha eterna para mim! essas palavras, que eu desgraçadamente
conservara no meu ouvido de provinciano e que a minha bocca deixou
bestialmente cair, foram estas:

--Para o que eu prestar estou sempre ás ordens.

E dizendo isto, tendo-o ouvido com horror a mim mesmo, voltei rapidamente
costas, e affastei-me a passos largos. Ia vexado, envergonhado, corrido,
como se houvesse proferido uma obscenidade sacrilega. Dava-me vontade de
me metter pelas paredes ou de me sumir pela terra dentro! Não me atrevia a
olhar para traz, mas parecia-me que ia envolto em gargalhadas
phantasticas, que não ouvia. Figurava-se-me que tudo se ria de mim, os
candeeiros, os cães noctivagos, as pedras da rua, os numeros das portas,
os letreiros das esquinas, os aguadeiros que passavam uivando com os seus
barris, e os caixeiros que pesavam arroz sobre o balcão ao fundo das
tendas.

Entrei precipitadamente em casa, subi as escadas, fechei-me por dentro e
puz-me a passear ás escuras no meu quarto.

Nas trevas appareciam-me illuminadas por um clarão satanico essas duas
mãos que pela primeira vez acabavam de se apertar na rua--a minha e a
d'ella--uma trigueira, aspera e quente, a outra branca, nervosa e gelada.
Depois entravam a reconstruir-se á minha vista os vultos completos das
pessoas.

Ella, de uma pallidez eburnea, com o perfil melancolico de uma madona a
que tivessem levado dos braços o seu bambino, movendo-se mollemente entre
rendas e setim com uma ondulação de sereia.

Eu, inteiriçado e embasbacado diante d'ella, não sabendo como segurar o
chapeu e a bengala, na mais flagrante e minuciosa ostentação dos meus
defeitos e da minha pobreza incaracterisada e burgueza. Ao lado de quanto
n'ella havia ideal, transcendente, ethereo, ia eu vendo, enormemente
avultado e saliente, quanto o meu aspecto offerecia mais baixo e mais vil:
o casaco comprado ao barato n'um algibebe; as botas de duas solas
torpemente desformadas e orladas de lama; as calças com umas joelheiras
que me dão ás pernas na posição vertical o desenho das de um homem que se
está sentando; os punhos da camisa amarrotados; e a ponta do dedo maximo
da mão direita sujo de tinta de escrever!

Eramos verdadeiramente os antipodas um do outro, postos na mesma latitude
pela estupidez do acaso, e separados logo para sempre por aquellas
palavras terriveis que me zuniam nos ouvidos como os prenuncios de uma
congestão:

«Para o que eu prestar estou sempre ás ordens!»

Não sei que extranha attracção amarrava o meu espirito á lembrança da
mulher que eu acabava de ver! Não era indefinida sympathia, não era
occulto desejo, não era um vago amor. Interrogava-me detidamente, e o
unico movimento que encontrava no meu coração--sinceramente o
confesso--era o do odio. Odio áquella mulher, odio inexplicavel,
monstruoso, como aquelle que imagino ser o de um engeitado á sociedade em
que nasceu!

A distincção aristocratica, a elegancia da raça d'aquella gentil creatura
aviltava-me, enfurecia-me, revolvia no meu interior esse fermento de
rebellião demagogica que todo o plebeu traz sempre escondido, como uma
arma prohibida, no fundo da sua alma.

Aquella mulher tinha certamente, um espirito menos culto do que o meu, uma
rasão menos firme, uma vontade menos forte, um destino menos amplo. Para
compensar estas depressões assistia-lhe uma superiodade repugnante,
inadmissivel: a que procede da casta. Um berço de luxo, uma constituição
delicada, um leito de pennas, a infancia resguardada na sombra, entre
estofos, sobre tapetes, ao som de um piano,--isto basta, para que fique
ridiculo, miseravel, desprezivel ao pé d'ella um homem que se creou ao
clarão do dia, á luz do sol, tendo por tapetes a aspereza das montanhas, e
por melodias o roncar das carvalheiras e o gemer dos pinhaes!

E entre mim e ella será isto perpetuamente uma barreira.

Ella ficará sempre bella, dominativa, seductora por natureza,
instinctivamente captivante, querida, amimada, estremecida, dentro da sua
zona de aromas, de veludos, de cristaes e de luzes!

Eu, entre a minha estante de pinho adornada com um boneco de gesso e a
minha cama de ferro coberta de chita, ficarei sempre tenebroso e
inutil,--desgraçado quando não quiser tornar-me tão ridiculo, e irrisorio
quando tiver a vaidade de não querer ser desgraçado!...

Accendi as duas torcidas do meu candeeiro de latão e tentei estudar.
Impossivel. As letras de um livro que tinha aberto diante de mim
percorri-as com a vista pelo espaço de tres ou quatro paginas,
machinalmente, sem comprehender o sentido de uma só palavra. Deixei o
livro e fiquei por algum tempo inerte, estupido, neutro, com a vista fixa
nas orbitas ôcas de uma caveira que tinha sobre a mesa, e que se ria para
mim com o escancellado sarcasmo que trazem da cova os esqueletos
desenterrados. Aborrecia-me a vida. Apaguei a luz, despi-me e deitei-me.

Tinham-me feito a cama n'esse dia com dois d'esses lençoes de folhos
engommados, com que minha mãe enriquecera liberalmente o meu bahú de
estudante. Estes lençoes tinham a aspereza do linho novo e o cheiro
caracteristico do bragal da provincia.

--Pobre mãe, coitada! pensava eu, deitado e embebido n'essa longinqua
exhalação olphactica da casa paterna. Coitada de ti, que na simplicidade
dos teus juizos julgaste dotar-me com um luxo que faria commoção em
Lisboa, orlando-me dois lençoes com esta enorme renda longamente
trabalhada por ti mesma nos teus bilros infatigaveis! Se soubesses que
este paciente lavor das tuas mãos em dois annos de applicação consecutiva,
ninguem aqui o admirou, ninguem o viu, ninguem attentou n'elle, a não ser
a criada, que esta manhã me perguntou, entre risadas sacrilegas, se os
padres na minha terra se embrulhavam nos meus lençoes em dias de missa
cantada! Que importa porém que o não apreciem os outros?... Toda esta
gente é má, corrupta, perversa! Agradeço-t'o eu, minha obscura, minha
velha amiga. Nos arabescos d'esta renda, que eu estou apalpando na mão e
que tu me consagraste, figura-se-me sentir o correr caprichoso e ondeado
das lagrimas que choraste emquanto o vento ramalhava nas arvores, a
saraiva estrepitava nas janellas, e tu desvelavas as tuas noites de
inverno, resignadamente ajoelhada junto do berço em que rabujava o teu
pequeno. Quando sinto no rosto o aspero contacto dos teus eriçados folhos
bordados, beijo-os piedosamente, beijo-os eu, como se fosse um anjo bom
que me tocasse com a ponta das suas azas purificadoras e brancas!

Mas além do cheiro do bragal, que me envolvia como um afago mandado de
longe, havia na minha cama outro perfume que contrastava singularmente com
este. Era o que aromatisava a pelle d'aquella mulher desconhecida, e que
me ficara na mão que ella apertou. Respirei-o com uma curiosidade
irritante, que me pungia e me dilacerava. Ai de mim! collei os labios na
mão aberta sobre o meu rosto, e principiei a sorver esse mysterioso
respiro de um paraiso ignoto e longinquo.

É monstruoso, infernal, o turbilhão das idéas que esse aroma extranho,
penetrante e cálido, me revolveu na cabeça.

Sentia os fogachos, as palpitações, a hallucinação da febre.

Quando pela manhã me levantei, sem haver dormido em toda a noite, tinha o
travesseiro inundado em lagrimas...

Perdôa-me, Therezinha! minha Therezinha, perdôa-me...

Não foi pensando em ti, meu puro anjo, que eu chorei tanto n'essa noite!


II


Soube d'ahi a dias que a senhora com quem me encontrára era a condessa de
W. A figura d'ella tinha-me ficado moldada na memoria como o rosto de um
cadaver em uma mascara de gesso. Estava no Rocio quando me disseram o seu
nome, ao vêl-a passar em carruagem descoberta.

Ia reclinada para o canto de uma victoria, quasi deitada, morbida,
abstrahida, indifferente, como se uma aureola invisivel a segregasse dos
aspectos e dos ruidos da rua, grosseiros de mais para lhe tocarem. Tinha
uma seducção hallucinante, vestida de verão, com uma simplicidade cheia de
mimo e de frescura, uma graça que se adivinhava mais do que se via e que
menos appetecia ver do que respirar. Levava no seio uma rosa côr de palha,
e uma pequena madeixa de cabellos finos, dourados, transparentes, soltos
do penteado, cahia-lhe na testa.

Cravei os olhos n'ella e tirei o meu chapeu; ella viu o meu cumprimento,
olhou-me, como se eu lhe apparecesse pela primeira vez, com a mesma
indifferença com que olharia para uma vidraça vasia ou para uma taboleta
sem distico, e proseguiu inalteravel e immovel como a imagem preguiçosa da
formosura arrebatada do seu pedestal por um cocheiro agaloado e por dois
cavallos a trote.

Continuei a passear com um amigo com quem estava e cobri tanto quanto[1]
pude com algumas palavras rancorosas a respeito da politica a commoção que
sentia.

Momentos depois, passou na mesma direcção que tinha tomado a carruagem da
condessa, um _coupé_ escuro, sem letras nem armas, com todas as cortinas
cerradas. Esta circumstancia, aliás naturalissima, encheu-me de indignação
e de rancor. Imaginei possivel que aquelle trem seguisse o da condessa e,
não sei por que processo do coração ou do espirito, nasceu-me o desejo de
arrombar essa carruagem e calcar aos pés o homem que lá estivesse dentro.

--Estás a tremer! disse-me o amigo a quem eu dera o braço.

--Não é nada... um estremecimento nervoso.

--Impallideceste, tens os beiços brancos e as orelhas encarnadas...

--Foi uma vertigem. Dá-me isto ás vezes.

--Ahi tens! é o effeito das vigilias e do abuso do tabaco nas funcções do
coração.

--E debilidade resultante da fome, exclamei eu sorrindo e mal podendo
conservar-me de pé. Adeus que vou jantar!

E entrei na primeira carruagem de praça que passou por nós, emquanto o meu
companheiro accrescentava:

--Agora estás afogueado e vermelho como lacre: toma ferro e bromureto.

Quando cheguei a casa tinha febre, e via por fóra do casaco o bater do
coração.

Não tornei mais a encontral-a senão na noite da catastrophe.

O meu romance mysterioso e absurdo acabou então, cedendo o seu logar á
tragedia em que entramos juntos.


III


Foi na noite de 20 de julho passado. Eu voltava de casa de Z... com quem
tinha estado até ás duas horas; ía chegar quando senti atraz de mim os
passos de duas mulheres. Parei. Ellas passaram por mim, descendo do
passeio em que eu estava, e caminhando apressadamente. Entrevi-as á luz de
um candieiro. Uma era alta, sêcca, direita, edosa; a outra--para que hei
de descrevel-a?--era ella. Um relance de olhos, e conheci-a logo.

Ia inquieta, arquejante, abafada em pranto e em soluços. Commoveu-me tanto
o aspecto passageiro d'essa grande angustia, d'essa dôr suprema n'aquella
formosa mulher ha poucos dias ainda tão patentemente feliz, radiosa,
intemerata, que eu daria n'esse momento a minha vida inteira, para a não
vêr assim dobrada na lama de uma rua escura e deserta, pelo que ha mais
violento, mais voluntario, mais hostil, mais implacavelmente humano: a
desgraça... Ella, a viva imagem da delicadeza e do mimo, expressão suprema
da belleza, do dominio, da omnipotencia terreal, via-a de repente
succumbir envolvida pela serpente cuja cabeça eu imaginava segura pelo seu
pé sobre um crescente de lua!

Fiquei por um momento perplexo. Por fim os meus passos apressaram-se para
ella, sahi-lhe ao encontro e disse-lhe convulsivamente:

--Senhora condessa de W..., vejo que chora. É certamente um successo
extraordinario e terrivel. V. Ex.^a parece-me só e desprotegida n'este
bairro; sómente em tão excepcionaes circumstancias eu poderia permittir-me
a liberdade de lhe fallar. Disponha de mim, minha senhora, como se dispõe
de um amigo ou de um escravo para a vida e para a morte.

Ella parecia escutar sem me comprehender, n'uma grande inquietação. Á
ultima palavra que proferi:

--Para a morte!--repetiu ella n'um grito de delirio. Quem lh'o disse? Como
o soube?

E apoiando-se no braço da senhora que a acompanhava, segurou-se n'ella com
um movimento convulso de pavor, ergueu o rosto para mim e fitou-me,
trémula, supplicante, com os olhos hallucinados e lacrimosos.

--Que quer? Diga!--accrescentou ella. Vem prender-me? aqui me tem.
Leve-me.

E tendo dito isto, voltou-se successivamente para todos os lados, olhando
a rua com a mais exaltada expressão da confusão, da vergonha e do medo.
Era a angustia personificada pela maneira mais viva e mais lancinante. Eu
sentia o coração cheio de lastima e de piedade.

--Perdão,--disse-lhe,--socegue, por quem é! Eu nada sei. Não venho
prendel-a, nem venho interrogal-a. Não sou um juiz, nem um espião, nem um
carrasco. É esta a terceira vez que a vejo em minha vida. A primeira foi
n'esta mesma rua ha cerca de um mez, no momento em que um cocheiro lhe
pedia o aluguer de um trem. A segunda vez foi de passagem no Rocio ha
quinze dias. Sou um amigo seu desconhecido, obscuro, anonymo. Suppunha-a
no apogeu da fortuna e da felicidade. Tive-lhe inveja e odio. Encontro-a,
ao que parece, á beira de um abysmo e não acho na minha alma doente e
magoada senão enternecimento e dedicação! é, então, desgraçada como os
outros... coitadinha! coitadinha!

E a minha dôr era profunda e sincera, a minha compaixão illimitada.

--Não sei, tornou ella, estou tão perturbada que não o comprehendo bem;
estou tão afflicta que não o reconheço bem, entrelembro-me apenas... Mas
parece-me generoso e compadecido... Ah! eu não posso ter-me em pé!

Dei-lhe o braço, que ella acceitou, e ficou um momento amparada em mim e
na pessoa que a acompanhava, immovel, com a cabeça reclinada para traz e a
bocca aberta, bebendo ar a longos sorvos.

--Vamos! disse ella depois de uma pausa. Não posso ficar, não posso morrer
aqui; tenho que escrever, preciso de chegar a casa quanto antes.

E fazendo um grande esforço continuou a caminhar apoiada como estava, com
passo vacilante e vagaroso, anciada, arquejante, parando a todo o momento
para receber nos pulmões o ar que lhe faltava.

Eu ia absorvido pelo aspecto de tamanha dôr. Acudia-me de longe a longe
uma palavra, que não me atrevia a pronunciar, receiando que ella podesse
imaginar que eu tentava perscrutar a causa do seu infortunio com uma
indiscrição grosseira.

A rua em que iamos andava-se concertando e estava coberta de uma camada de
seixos britados e soltos, por cima de cujos angulos percucientes e
cortantes eramos obrigados a caminhar. Chegavamos á esquina da rua quando
ella, voltando-se para a pessoa que a acompanhava, e que então vi ser uma
criada, lhe disse:

--Betty, calça-me o sapato. Saiu-me do pé.

A criada ajoelhou-se, e exclamou:

--O setim está espedaçado! O pé deita sangue!

A condessa pareceu não ouvir, e continuou a caminhar resolutamente.

Maravilhava-me e compungia-me o valor d'alma d'aquella debil natureza, e
sentia-me arrebatado a levantar do chão e a transportar nos meus braços
aquelle formoso corpo tão corajosamente subjugado. Felizmente, de uma
travessa proxima desembocou pouco depois um trem de praça, vasio. A
condessa, que tinha visivelmente a maior pressa de chegar, entrou, com a
criada que a acompanhava, na carruagem que eu mandei approximar. Fechei a
portinhola e disse á condessa baixo, quasi ao ouvido, dando-lhe o meu
bilhete:

--Minha senhora, quaesquer que sejam as causas, quaesquer que sejam as
consequencias da extranha aventura que acaba de approximar-se de v. Ex.^a,
vá na firme certeza de que ninguem no mundo saberá do encontro que
acabamos de ter. Se nunca precisar de mim, continuarei como até hoje sendo
na sua existencia um homem inteiramente desconhecido, o qual de ora ávante
considerará as suas relações com v. ex.^a exactamente no estado em que
estavam antes de a ter visto pela primeira vez.

Ella respondeu-me enternecidamente:

--Bem haja por essas palavras de bondade, que são talvez as ultimas
benevolas que eu tenho de ouvir n'este mundo. Quando souber--porque tem de
se saber isto, meu Deus!--o que, desde esta horrorosa noite eu fico sendo
perante a justiça e perante a sociedade, diga á sua mãe, á sua irmã, á sua
amante, se tem amante, que me não odeiem ellas, ao menos! que eu sou menos
criminosa do que lhes hei de parecer, que lhe confessei isto, ao
despedir-me de si, entre a vida e a morte. Adeus!... Não lhe dou a mão...
Sou indigna da amisade das pessoas de bem. O mais que eu posso pedir, eu,
é piedade... Tenha piedade de mim... Adeus!

A carruagem tinha rodado a distancia de alguns passos quando parou outra
vez a um gesto da condessa; ella mesma abriu a portinhola, desceu e
dirigiu-se a mim. Fui ao seu encontro.

--Quero fallar-lhe ainda, disse ella.

E depois de uma pequena pausa, em que parecia coordenar idéas dispersas,
accrescentou:

--Foi talvez providencial o nosso encontro aqui, a esta hora, n'esta
rua... É talvez a unica pessoa que Deus quer permittir que me proteja, que
seja por mim. Tenho um parente a quem vou escrever immediatamente
entregando-lhe este segredo. Receio que elle se não ache em Lisboa. Sendo
assim, não sei de quem me confie. Se tiver no seu coração tanta
misericordia e tanta bondade que queira valer-me, procure-me em minha
casa, ámanhã, ás 11 horas.

E dando-me a sua morada em Lisboa, entrou outra vez no trem que partiu.

Singular commoção a que produziu em mim essa mulher de quem acabava de
saber que tinha commetido um crime; sentia-me inclinado a ajoelhar-me aos
seus pés dilacerados e adoral-a!


IV


No dia seguinte á hora assignada apresentei-me em casa da condessa.

Era um predio de um só andar, simples, branco, todo fechado. Abriu-se-me a
porta da rua, appareceu-me um criado vestido de casaca azul com botões
brancos, collete encarnado, calção curto. Era um homem velho, de cabellos
brancos, polido e nedio como um embaixador, serio como uma estatua,
penteado como um gentleman. Fallou-me em francez e conduziu-me.

As escadas eram pintadas e envernizadas de branco, luzidias como o peito
engommado de uma camisa. Ao meio dos degraus corria um tapete de veludo
passado em varetas de cobre reluzente. No patamar projectava-se da parede
uma concha de alabastro, cheia de plantas de longas folhas, em cima das
quaes gotejava a agua de uma pequena fonte. No alto da escada a mobilia
era branca, as paredes forradas de verde, cobertas de molduras doiradas
encerrando quadros a oleo. A luz, suave e alta, vinha atravez de vidros
baços. Havia o ar sereno e o perfumado silencio de uma tranquillidade
elegante e feliz. Não me parecia o palacio de um fidalgo, nem o palacete
de um burguez, mas sim o ninho domestico de um poeta ou de um artista.

Levantou-se um reposteiro e entrei em uma sala forrada de coiro,
circumdada de sophás e de poltronas com estofos de marroquim cravejado de
aço, grandes vasos de porcelana e alguns bronzes, um dos quaes
representava o busto da condessa, assignado e datado de Milão. Um dos
espessos reposteiros que cobriam as portas estava corrido e deixava ver,
no meio da casa proxima, que era um salão antigo, um piano de ebano
volumoso e longo em cujo flanco se lia em grandes caracteres de prata o
nome de Erard. Junto do piano, inclinado sobre um _fauteuil_, achava-se um
violoncello defronte de uma estante de marfim. Sobre as chaminés de
marmore havia alguns livros e vasos com flores. Os moveis estavam
dispostos de maneira que parecia conversarem baixinho em coisas delicadas
e intimas. Sentia-se que estava ali, domiciliada n'um aconchego feliz, uma
existencia espirituosa e contente: percebia-se no ar e no aspecto das
coisas, o vago prestigio do perfume, da harmonia, do calor, que as pessoas
que ahi tivessem estado haviam derramado em volta de si, conversando,
lendo, fazendo musica. Eu tinha levantado os olhos de um livro sobre a
mesa do centro da sala, quando vi defronte de mim, ao fundo de um grande
espelho, uma figura immovel, tectrica, espectral. Voltei-me rapidamente, e
não pude reprimir um grito de pasmo e de terror. Era a condessa.

Horrivel transformação por que ella passára! Durante as poucas horas que
haviam mediado entre esse momento e a ultima vez que a vira, a condessa de
W... tinha envelhecido dez annos. Os olhos profundamente encovados haviam
tomado uma expressão apagada e immovel; a carne tinha uma côr terrea e
opaca; os musculos faciaes, contrahidos na mais violenta oppressão,
davam-lhe ao rosto, transversalmente vincado por dois sulcos escuros, o
aspecto de uma magreza extrema; os cabellos apanhados todos para traz,
alizados e seguros n'um rolo sobre a nuca, avultavam-lhe o nariz afilado e
despegavam-lhe do craneo as orelhas lividas, de uma saliencia rija e
cadaverica.

Fez-me signal que a acompanhasse. Segui-a com a sensação enregelada de
quem entra nos dominios da morte. Atravessámos uma sala e entrámos em um
dos quartos d'ella. Apontou para um sophá e sentou-se ao meu lado, olhando
para mim, impassivel.

Ficou assim por um momento na mudez de uma dôr intraduzivel, pausa
terrivel em que a alma emerge de um abysmo de lagrimas e se debate
violentamente antes de apparecer na voz. Tinha os labios entre-abertos
como os de quem vae soltar um grito, e o queixo tremulo oscillava-lhe como
o das creanças subjugadas pelo terror no instante de lhes rebentar o
pranto. Por fim disse-me lentamente, com palavras pesadas, firmes,
entrecortadas, como se estivesse retalhando o coração e dando-m'o em
bocados!

--Peço-lhe que não me condemne pelas primeiras palavras que vae ouvir.

E, em voz baixa, depois de um breve silencio, accrescentou:

--Eu matei um homem.

--Que diz?! gritei eu estupefacto. Está louca! enlouquceu!

--Não. Não estou louca, tornou ella grave e serenamente. Não enlouqueci
ainda. E admiro isto. Como têem decorrido estas horas, minuto por minuto,
segundo por segundo, sem que a minha razão succumbisse n'esta desgraça
infinita, sem remedio, sem termo, sem remissão! Matei um homem...
Involuntariamente, sim, mas matei-o. Quero entregar-me aos tribunaes,
estou prompta, estou deliberada. Estendendo os olhos ao meu futuro, não
vejo senão uma esperança, senão um lenitivo unico no prazer de morrer em
tormentos, que eu abençoarei como os maiores beneficios do ceu, de morrer
de fome, de desprezo, de miseria, prostrada no fundo de uma enxovia, no
porão de um navio, ou abandonada em uma praia da Africa, abrazada pelo
sol, sobre as areias ardentes, roida pelo cancro, devorada pela sede e
pela febre. Por mim uma só cousa temo: a loucura que um momento em minha
vida me consinta a alegria horrivel de cuidar que ainda sou amada e feliz;
ou a morte repentina que me arrebate a consolação unica que Deus concede
aos grandes culpados: a liberdade de soffrer. Mas elle... O seu nome
descoberto! o seu cadaver profanado! o seu segredo trahido!...

E fallando, como n'um sonho, abstractamente:

--Desventurado homem! que fatal destino o encaminhou para mim
arremessando-o, de encontro ao meu coração, em que estava a sua morte?
Porque não amou outras mulheres que o mereciam mais do que eu? Porque não
se deixou amar por Carmen Puebla, que o adorava e que morreu por elle? Que
cego, que imprudente, que desgraçado que foi!...

E escondendo a face nas mãos, desatou a chorar n'um pranto convulso e
desfeito, em que a vida parecia despedaçar-lhe o seio e jorrar para fóra
em borbotões de lagrimas e de soluços.

--Vamos,--disse-lhe eu quando esta crise abrandou,--serenemos um momento,
e pensemos no que importa fazer. É então positivo que o conde está morto?

--O conde?... interrogou ella, erguendo-se de subito e enxugando os olhos.
Sim, tem rasão, eu ainda lhe não disse tudo... O homem que eu matei não é
meu marido.

E, postando-se defronte de mim, fitou-me com um olhar hallucinado, e
accrescentou com voz demudada e profunda:

--É o meu amante.

Em seguida ficou immovel, esperando as minhas palavras na postura de um
reu que vae escutar a sentença da bôca de um juiz.

A sensação que experimentei ao ouvir essa confissão breve, sêcca,
inesperada, foi a da surpreza primeiro, de uma instinctiva repulsão
depois. Ergui-me machinalmente e dei alguns passos na casa. A condessa
permanecia na mesma posição, n'uma insensibilidade que tanto podia ser a
prostração do arrependimento como o cynismo da culpa. Eu estava
surprehendido e revoltado. Aquella mimosa e pura estatua, á qual eu
levantára quasi um altar no meu coração, assim repentinamente baqueada
n'um lamaçal, causava-me horror. Poderia supportal-a criminosa; não podia
consideral-a prostituida. Medi-a com um olhar em que senti dardejar o
despreso que ella n'esse momento me inspirava, e depois de um silencio
repassado de magoa:

--É horrivel isso!

Ella estremeceu, cerrou desfallecidamente os olhos e amparou-se vacillante
ao espaldar de uma cadeira.

--Extranha talvez a lastima e o horror que me causa? insisti eu. É
natural. Tendo ouvido que em Lisboa, a sociedade vê benevolamente essas
quedas como incidentes triviaes da existencia domestica. Eu porém que sou
um selvagem, eu que me criei no principio de que a fidelidade é no
caracter de uma mulher um dever tão sagrado como a honra no caracter de um
homem, eu protesto, em nome das unicas mulheres que a minha inexperiencia
me tem permittido conhecer no mundo--em nome d'aquella que me gerou e em
nome d'aquella que eu amo--contra similhante interpretação da liberdade de
amar. Não comprehendo que cáia em tal erro uma pessoa limpa. O adulterio é
uma indecencia e uma porcaria. Matar um homem em taes circumstancias, é
mais do que faltar ferozmente ao respeito devido á inviolabilidade da vida
humana; é faltar egualmente ao respeito da morte... É atirar um cadaver a
um cano de esgoto... É tragico--e coisa ainda mais horrivel--é sujo...

Ella escutava-me em silencio, extatica, como hypnotisada pela minha
instinctiva mas cruel grosseria.

De repente, sem uma exclamação, sem um grito, sem um gesto, caiu
desamparadamente no chão, fulminada, inerte, como se estivesse morta.

Quiz chamar alguem, ia a tocar no botão de uma campainha quando me
occorreu a inopportunidade de qualquer intervenção n'esta scena. Fui para
ella, que ficára estirada de costas sobre o tapete. Levantei-lhe a cabeça.
Não lhe senti o pulso. Ergui-a em peso, tomei-a nos meus braços. A fronte
d'ella pendeu sobre o meu hombro, ficando perto dos meus labios a sua face
desmaiada.

Approximei-me de um sophá. Depois, por um sentimento supersticioso de
respeito, colloquei-a n'uma cadeira de braços, e corri aos aposentos
contiguos áquelle em que estavamos. O quarto proximo era um gabinete de
vestir. Trouxe um frasco de agua de Colonia que estava n'um lavatorio.
Humedeci-lhe as fontes e os pulsos, fiz-lhe respirar o alcool.
Auscultei-a. O coração começava a bater. O pulso reapparecia.

Eu tinha-me ajoelhado junto da poltrona em que ella jazia e contemplava
melancholicamente a sua figura exanime.

Os olhos cerrados, a bocca entre-aberta deixando vêr os dentes miudos e
côr de perola, a cabeça reclinada ao espaldar, davam ao seu rosto, assim
em escorso, a expressão de uma figura d'anjo, ascendendo de um tumulo. Os
pés estreitos e finos, calçados em meias de seda e sapatos de setim preto
sobresaíam da orla do vestido n'uma immobilidade sepulchral. Uma das mãos,
atravez de cuja lividez se via a rede tenue e azul das veias, tendo no
dedo annular um circulo de grossos brilhantes entremeiados de rubis,
repousava-lhe no regaço, e do seu roupão de rendas pretas exhalava-se o
mesmo perfume, o perfume d'ella, que ficára na minha mão a primeira vez
que a vi.

Lembrei-me então da sua figura entrevista de noite, ao gaz de um candeeiro
da rua, tornada a vêr depois, á luz do dia, no Rocio, passando em
carruagem descoberta. E estas coisas, tão vivas na minha lembrança,
faziam-me todavia, a impressão de haverem passado ha muitos annos.

Ella estava velha!

Muitos dos seus cabellos, seccos, baços, como mortos, tinham embranquecido
nas fontes e no alto da cabeça.

A contracção violenta de todos os musculos da dôr transformara n'uma só
noite as suas feições e desfigurára a sua physionomia. Os cantos da bocca
tinham descaído ao peso das lagrimas como ao peso dos annos, e dois vincos
profundos sulcavam-lhe as faces flaccidas na mesma direcção obliqua que
tinham tomado os sobr'olhos, riscando-lhe a testa em rugas curvilineas e
transversaes.

Que medonha, que tenebrosa, que incomparavel angustia devia ter passado em
algumas horas por este desgraçado corpo para o devastar assim!

Na rua, a pequena distancia, um realejo tocava um _pot-pourri_ de varias
operas, e, ao som d'esse corrido martellar idiota da musica mecanica,
pareceu-me ver desfilar em louca debandada no ar, entre mim e a pobre
senhora, como n'uma especie de evocação ao mesmo tempo tragica e grotesca,
todos os grandes symbolos das educações sentimentaes, ladainha viva das
paixões elegantes, girando sob a manivella do seu realejo, n'um redemoinho
funebre, de dança dos mortos, em torno d'esse corpo desfallecido, como as
visões da vida passada, figuradas nos velhos retabulos, em torno do leito
das monjas moribundas.

Era como se, no decorrer d'essa musica, automatica como um andar de
somnambulo, eu visse perpassar no espaço a grande ronda das tentações que
na vida levaram comsigo o destino d'esta creatura: os pallidos Manriques e
os febris Manfredos, trazendo sob a capa das poeticas aventuras a bravura
cavalleirosa de campeador Ruy de Bivar ou do paladino Rolando, a
melancolia de Hamlet, a exaltação sentimental de Werther, a revolta do
Fausto, a sociedade de D. Juan, o tedio de Childe Harold; e toda a legião
dramatica das bellas mulheres amadas: Francesca, Margarida, Julietta,
Ophelia, Virginia e Manon.

E, em grinalda de beijos seccos, de beijos de pau, matraqueados no
instrumento da rua, todas essas figuras d'amorosas legendas bailavam
mysteriosamente ao som da _Traviata_, da _Lucia_, do _Balle in maschera_.

--_Amor! amor! amor!_--tal foi de certo a letra da grande aria que
constantemente lhe cantaram atravez de toda a sua existencia de mulher
bella, instruida e rica.

Foi n'esse mundo moral que a sua imaginação habitou e que se fez o seu
pobre espirito de linda creatura ociosa e desejada.

Como poderia ella adivinhar a honesta serenidade dos destinos simples no
meio de uma existencia tão complicadamente artificial como a sua?

Fóra dos interesses da elegancia, da moda, talvez da arte, que conhecia
ella de serio e de grave na vida senão a religião e o amor? Tinha um
missal e um marido. É pouco para o equilibrio de uma alma, principalmente
desde que o missal cessa de convencer e o marido cessa d'amar.

As que tem um salão, uma carroagem, um camarote na opera, um cofre cheio
de joias, um quarto cheio de vestidos, não pódem ser as singelas mulheres
que passam a vida a dar de mamar aos filhos e a vender cerveja, como diz o
Iago, de Shakespeare; nem podem resumir o seu destino facil em ter filhos,
chorar e fiar na roca, como diz Sancho Pansa. Esta não vendia cerveja, não
a ensinaram a fiar... Chorou apenas.

Quem sabe se na sua dourada existencia a amargura das lagrimas a não
compensou hoje de tudo quanto ignora da amargura da vida!

E tive uma paixão sincera com um remorso profundo das palavras crueis que
lhe dissera.

Que poderia eu fazer para a salvar? Não o sabia. Achava-me porém resolvido
a tudo, a sacrificar-me inteiramente, para lhe valer.

Devo dizer tambem que, vendo-a, ouvindo-a, eu não suppuz nem por um
momento que no homicidio de que ella se accusava podesse haver o que se
chama verdadeiramente um crime, isto é, uma intenção infame ou perversa.
Um criminoso, um cobarde, um assassino, nem chora assim, nem falla assim,
nem se denuncia, nem se inculpa, nem se entrega por esta fórma a uma
pessoa quasi extranha, quasi desconhecida. Ella tinha-m'o dito com a mesma
simplicidade com que o gritaria da janella para a rua, sem a minima
preoccupação de se salvar. Cheguei a pensar por um momento que não tinha
deante de mim senão uma extranha nevrose, um caso de hallucinação, de
delirio raciocinado. Mas o delirio não faz padecer tanto. Tenho visto
muitos loucos no hospital. A expressão d'elles, ainda a mais dolorida, não
apresenta nunca a profundidade d'esta. É preciso ter toda a integridade da
sensibilidade e da rasão para soffrer assim. No padeccimento dos loucos ha
um não sei quê, sem nome talvez na symptomatologia do soffrimento, mas a
que poderiamos chammar--a isolação da alma.

Ao voltar a si, a condessa parecia um pouco mais calma. Para evitar um
recrudescimento de excitação proveniente de uma longa narrativa de
episodios que me pareceu discreto evitar, um pouco como estudante de
medicina, principalmente como homem honrado, disse-lhe:

--Sabe mais alguem d'este caso?
--Sabe-o a minha creada de quarto, a que me acompanhava hontem quando nos
viu, e sabel-o-ha dentro em pouco meu primo H... a quem hoje escrevi. Meu
primo porém está em Cascaes. O morto é um extrangeiro. Ninguem, a não ser
meu primo, o conhece em Lisboa. Ignorava-se mesmo que elle existisse aqui.
Entregal-o aos tramites policiaes, ter de revelar o seu nome, descobrir a
sua naturalidade, a sua familia, eis o que principalmente eu queria
evitar. Conseguido isto, entrego-me aos tribunaes, mato-me, fujo,
enterro-me viva... como quiserem!

--E sabe seu primo como elle morreu?

--Não. Vai saber apenas que está morto...

--Póde contar com o silencio da sua creada, por alguns dias ao menos?

--Posso. Por toda a vida.

--Evite, se póde, que seu primo receba hoje a sua carta. E... _elle_, onde
está?

--Na mesma rua em que nos encontrámos hontem, no predio n.^o...

--Para entrar na casa...

--Ha uma chave--respondeu ella.

E tendo meditado um momento:

--Hontem--prosseguiu--quando lhe disse que viesse hoje a minha casa,
estava louca de desesperação e de horror. Parecia-me que tudo quanto se
approximava de mim me trazia a punição, o castigo, e que tudo quanto se
affastava fugia para longe com o meu ultimo amparo, com o derradeiro
soccorro que eu ainda poderia ter n'este mundo!... Foi n'este delirio que
lhe pedi a V..., um extranho, um desconhecido, que viesse vêr-me... Para
quê?.. nem eu sabia para quê... Para contar isto a alguem, para me
decidir, para ter uma solução, para apressar um desenlace qualquer, para
fugir de mim mesma... Ir á policia era entregar esse infeliz á mais
horrorosa das profanações. Dirigir-me a alguma das senhoras que conheço,
ir bater á porta de uma familia tranquilla, que me receberia na casa de
jantar ao levantar da mesa, que me apertaria as mãos, que me traria os
seus filhos para eu beijar, e depois dizer-lhes de repente: Eu, que aqui
estou, tinha um amante, e matei-o; venho convidal-os para esta festa de
vergonha e de ignominia!... Não. Era melhor fugir para o desconhecido,
entregar-me ao acaso... Em tudo isto pensei confusamente, não sei como,
sem continuidade, sem nexo, aos pedaços, depois que o vi, durante esta
noite medonha. Não tenho hoje mais lucidez de espirito do que tinha
hontem... Não sei o que hei de fazer... Sinto apenas que estou perdida,
que é preciso que alguem venha, que é preciso que me levem... O senhor
parece-me um homem generoso, leal, compadecido e bom... Sabe já o que me
succedeu, sabe onde _elle_ está. Disse-lhe qual era a casa, disse-lhe o
numero da porta. Aqui tem a chave.

E tirando do seio uma corrente de ferro, de elos angulosos como de um
cilicio, que trazia suspensa do pescoço por dentro do roupão, abriu uma
argola que lhe servia de remate, soltou uma pequena chave, e entregou-m'a.

Deixou-se cahir n'um _fauteuil_, inclinou a cabeça para traz e ficou
prostrada, silenciosa, no abatimento, no abandono, no entorpecimento
profundo que d'ordinario se succede ás grandes crises nevralgicas.

Sem saber o que fizesse, pensando todavia que uma ideia qualquer me
occorreria mais tarde como desfecho possivel para esta situação tão
imprevista, tão extraordinaria, guardei a chave. Senti que me era preciso,
primeiro que tudo, sahir d'alli, retomar o ar livre, achar-me a sós
commigo mesmo, reflectir, raciocinar.

--Minha senhora--disse-lhe então--se amanhã, até ao meio dia, eu lhe não
tiver reenviado esta chave, será signal que me prenderam, que está tudo
perdido. Se não souber mais de mim, quero dizer, se lhe não fôr restituida
esta chave, fuja, esconda-se, faça como quizer. Interrogada, negue tudo.
Eu preferirei mil vezes acceitar a responsabilidade d'esta morte a
imputar-lh'a, e, por caso algum do mundo, será jámais o seu nome proferido
por mim. D'aqui até lá, para coordenar as suas ideias, para equilibrar a
sua razão, para não enlouquecer, se quer um conselho de physiologista,
violente-se um pouco, abra uma janella, sente-se deante de um caderno de
papel e escreva o que se passou. Depois queime o que escrever. O unico
meio de dominar uma situação como a sua, o unico meio de verdadeiramente a
comprehender, é analysal-a. Houve um philosofo que deixou aos infelizes
esta maxima: «Se a tua dôr te afflige, faze d'ella um poema.» Vá escrever.
Faça as suas memorias ou faça o seu testamento, mas escreva, e queime
depois. Agora, adeus. Adeus até amanhã, ou quando não, adeus para sempre.

Ella conservava sempre a attitude extatica em que cahira na cadeira de
braços. Tinha a bocca entre-aberta, o labio inferior tremia-lhe, com esse
tocante gesto infantil que toma a desolação no rosto das mulheres, e
grossas lagrimas silenciosas, corriam-lhe em fio pelas faces e gotejavam
lentamente nas rendas do vestido. Fez um movimento para se erguer,
procurando articular uma palavra d'agradecimento. Profundamente
enternecido, dei um passo para traz, inclinei-me com respeito, e sahi.


V


Tendo fechado a porta do aposento em que ella ficára, ao passar na sala em
que primeiro estivera, occorreu-me de repente uma ideia. Sobre uma das
mezas achavam-se dois grandes albuns. Folheei-os rapidamente. Um d'elles
encerrava apenas uma serie de apontamentos de viagem tomados por uma só
pessoa, segundo se via da uniformidade da letra a lapis e em portuguez.
Entre os apontamentos escriptos estavam collados ou pregados nas paginas
alguns especimens de plantas e de flôres, e viam-se delineados varios
esboços de construcções e de fragmentos architectonicos. Era um album de
estudos. O outro continha uma collecção de pensamentos, de maximas, de
versos, de desenhos, de aquarellas, firmados por muitos nomes diversos. Eu
devorava com os olhos o conteúdo de cada lauda.

Não ousára perguntar á condessa o nome do seu amante. Comprehendia que a
bocca d'ella nunca mais poderia pronuncial-o, e não obstante, eu precisava
de sabel-o, de ver letra d'elle. Estava certo de que esse nome
desconhecido figuraria indubitavelmente entre os que eu estava lendo, que
a letra desejada se encontraria no meio dos escriptos que me estavam
passando pelos olhos. Como poderia porém adivinhal-o, sem tempo, sem
vagar, sem o socego de espirito necessario para meditar a intenção de cada
uma das phrases que ia lendo?... Era-me forçoso abandonar este recurso, e
o album que tinha nas mãos era todavia, talvez, o unico meio que me
restava de poder descobrir o que desejava! Hesitei um momento, e sahi por
fim, levando o livro comigo.

Apenas me achei na rua tomei um trem, que dirigi para minha casa,
acantoei-me na carroagem e puz-me a ler successivamente cada um dos
trechos em verso e em prosa, de que se compunha a collecção.

Sabia pela condessa que o morto era estrangeiro. Esta informação era
insufficiente para que eu o distinguisse n'aquella torre de Babel. De
pagina para pagina ia-me surprehendendo uma nova lingua. Havia francez,
italiano, allemão, inglez, hispanhol... O nome de Ernesto Renan apparecia
sobposto a duas palavras chaldaicas; Garcin de Tassy, orientalista na
Sorbonne, firmava um periodo em lingua hindustanica; Abd-el-Kader tinha
deixado simplesmente o seu nome arabe; a princesa Dora Distria assignava
de Turim um pequeno texto albanez. Nomes portuguezes, apenas dois.

A leitura dos textos não me adiantava mais do que a simples inspecção da
variedade dos nomes e da differença de linguas.

Ao chegar a casa, vi que o numero que a condessa me indicara era o de um
predio de um só andar, pobre de apparencia, quasi fronteiro á casa que eu
habitava, perto de uma esquina, collocado ao lado de um predio mais
saliente, e tendo a porta n'um angulo reintrante que a escondia da parte
principal da rua. Para o lado opposto até á esquina proxima havia uns
armazens deshabitados. Defronte corria um velho muro, ao alto do qual
sobresaiam as ramas seccas de um canavial. A situação topographica da casa
onde estava o morto permittia-me pois entrar e sair d'ella sem ser visto.

Ali dentro haveria talvez um papel, uma carta, uma nota, que me revelasse
o nome que desejava conhecer.

Dei a volta á chave e entrei. No alto da escada, junto de uma porta
cerrada, estava caida uma luva e dois bocados de papel. Um era meia folha
pequena, lisa, em branco. O outro era um pedaço de _enveloppe_; tinha no
alto um carimbo do correio de Lisboa com a data do dia anterior; a um
canto havia inutilizada uma estampilha franceza; no subscripto lia-se:
_Mr. W. Rytmel_.

Este nome achava-se no album da condessa por baixo de dois versos
inglezes.

A luva, que levantei do chão, era de mão de homem, e de pellica branca com
cordões pretos. Por dentro tinha em letras azues a marca de um luveiro de
Londres. Era evidente que tinha achado o que procurava. Rytmel era o nome
do morto.

Abri em seguida a porta que tinha em frente de mim e estremeci de horror.
Estendido n'um sophá estava o cadaver. A expressão do seu rosto inculcava
um socego feliz. Parecia dormir. Apalpei-o; estava frio como marmore.
Collocado perto d'elle estava um copo com um pouco de liquido. Era opio.

Percorri o aposento com um relance d'olhos. No forro de setim preto do
chapeu, que estava caído no chão, vi bordadas em vermelho uma corôa de
barão e duas grandes lettras--um W. e um R.

Não podia perder tempo. Fui para casa, sentei-me pacientemente á minha
banca e abri o album defronte de mim na pagina em que estavam os versos
assignados por W. Rytmel.

É de saber que tenho aquella especie de habilidade que Alexandre Dumas
considera aviltante e vilipendiosa para a intelligencia: sou, como terá
visto pela letra d'estas cartas, um excellente calligrapho. Copiei
escrupulosamente, desenhando letra a letra, por trinta ou quarenta vezes
consecutivas, os dois versos que tinha patentes. Depois principiei a
construir, com letras da mesma fórma das que tinha copiado, outras
palavras differentes. Finalmente, depois de muito estudo e de muitos
ensaios, peguei na meia folha de papel que tinha encontrado na casa em que
se dera a catastrophe, e fiz em inglez com escripta que ninguem no mundo
duvidaria ser a da pessoa que escreveu no album os versos assignados pelo
nome de Rytmel, uma declaração pessoal do suicidio por meio do opio.
D'este modo, quer mais tarde me occorresse, quer não, o meio mais
conveniente de sepultar o cadaver, as suspeitas de homicidio
desappareciam.

A condessa estava salva desde que, antes de mais ninguem, eu entrasse na
casa e collocasse junto do corpo o bilhete que escrevera.

Mas eu ficava sendo um _falsario_. Repeti a mim mesmo esta palavra
sinistra e estremeci de horror. Era preciso achar outro meio, que eu
procurava debalde. E no entanto o tempo corria. Veio a noite. Lembrei-me
que o primo da condessa poderia vir de Cascaes prevenido por ella, e
cheguei a sahir de casa com pregos e um martello para encravar a fechadura
da porta e retardar a entrada no predio onde se achava o morto.
Occorreram-me mil idéas phantasticas, cada qual mais absurda. Passeei por
muito longe, a pé, meditando, inquieto, nervoso, congestionado, estafado,
devorado de febre, palpando no fundo do bolso o bilhete terrivel com que
poderia desviar a responsabilidade da cabeça de um criminoso, tomando
todavia para mim uma parte egual no seu remorso.

Finalmente, por volta da meia noite, sem bem saber porquê, nem para quê,
levado por uma attracção terrivel, atraz de uma suprema inspiração,
cingi-me com o muro, abri a porta, penetrei na casa. Então me encontrei
inesperadamente com o doutor e com a pessoa conhecida no decurso d'esta
historia pelo nome de _mascarado alto_.

O primo da condessa, tendo chegado de Cascaes ao meio dia, acompanhado de
dois amigos intimos, inquieto pelo desapparecimento de Rytmel, que era seu
hospede e vivia como homiziado em casa d'elle em Lisboa, foi ao predio
mysterioso de que possuia uma chave e que sabia ser frequentado
regularmente pelo inglez, e encontrou ahi o cadaver. Conhecendo as
relações de Rytmel com a condessa, ponderando quanto havia de delicado na
necessidade de manter o maior sigillo em volta d'aquella catastrophe, e
julgando por outro lado indispensavel que o testemunho de um medico
constatasse a morte, que poderia ser apenas apparente, planeou e realisou
a emboscada em que surprehendeu o doutor ***, que elle sabia casualmente
que passaria n'essa tarde pela estrada de Cintra.

Sabem o que se passou n'essa noite.


VI


No dia seguinte ás onze horas da manhã, todos nós, os que haviamos ficado
n'essa casa fatal, nos achavamos reunidos, de rosto descoberto, em torno
do cadaver.

O doutor havia sido conduzido ao ponto da estrada de Cintra, em que fôra
tomado na vespera.

F..., encarcerado durante a noite em um quarto interior da casa, havia
communicado com um allemão que habitava o predio contiguo, e passára-lhe
de manhã por um buraco feito no tabique, a carta ao doutor, publicada mais
tarde no _Diario de Noticias_. Em seguida arrombou a porta do quarto que
lhe servia de carcere, e depois de uma altercação violenta, arrancou a
mascara ao primo da viscondessa. Os outros dois mascarados, vendo o seu
companheiro descoberto, tiraram egualmente as mascaras. Um d'elles era
intimo amigo de F...

--Que é isto?... Como póde isto ser?... gritou F... exaltado.

E apontando em seguida para o cadaver, continuou:

--Aquelle homem está morto, e foi roubado. Depressa expliquem-se! como
póde isto ser?

--Meus senhores,--exclamou o _mascarado alto_--o segredo que eu tenho tido
em meu dever guardar dentro dos muros d'esta casa, e que espero fique para
sempre sepultado n'ella, pertence a uma senhora. Uma parte d'este segredo,
aquella que mais particularmente nos interessa, a que explica a presença
d'aquelle cadaver diante de nós, conhece-a este senhor.

E voltando-se para mim ao dizer estas palavras, accrescentou:

--Em nome da nossa dignidade, emprazo-o pela sua honra a que declare o que
sabe.

--Jurei não o dizer--respondi eu--não o direi nunca. Ao entrar aqui, em
presença de um perigo que julguei imminente sobre a cabeça das pessoas
mais particularmente envolvidas n'este mysterio, perdi os sentidos,
desmaiei mulheril e miseravelmente. Falta-me diante do perigo a energia
physica, que é a feição visivel do valor. Não imaginem por isso que tambem
careço de força moral precisa para guardar um segredo, á custa que seja da
minha propria vida! Interrogado por gente mascarada, que não conhecia,
era-me licito mentir, pôr tambem na resposta uma mascara. Diante de gente
de bem, que me interroga invocando a sua honra, o meu dever é calar-me.
Previno-os de que são absolutamente inuteis todas as tentativas que
fizerem para me obrigarem a outra coisa.

--Não é difficil de cumprir o seu dever! observou com ironia o mascarado
alto. O corpo d'aquelle desgraçado não póde ficar ali por mais tempo. É
urgente que tomemos uma deliberação decisiva e que salvemos a
responsabilidade que pesa sobre nós, de modo tal que fique para sempre
tranquilla a consciencia que nos dictar o conselho que houvermos de
seguir. Visto que este senhor se recusa a principiar, começarei eu.

E traçou sobre uma folha de papel as seguintes linhas, que ia pronunciando
ao mesmo tempo que as escrevia:

«_Minha prima._

«Na rua de... n.^o... acham-se n'este momento reunidos diante de um
cadaver os seguintes homens: (seguiam-se os nossos nomes). É um tribunal
supremo constituido pelo acaso e que vae julgar em derradeira e unica
instancia o crime sujeito pela fatalidade á nossa jurisdicção. Se em
presença d'este tribunal a minha prima tiver que depôr, peço-lhe que o
faça.»

--Perdão...--observei eu.--Peço licença para accrescentar uma linha:

«A. M. C. não devolve a chave.»

     *     *     *     *     *

Elle escreveu o que dictei, assignou, dobrou o papel, e disse a um dos
seus amigos:

--Vae já entregar este escripto á condessa de W...

Meia hora depois uma carruagem que percorrera a rua a galope parou á porta
do predio em que estavamos. Rolámos para dentro da alcova o sofá em que se
achava o cadaver, e cerrámos o reposteiro da sala. Abriu-se a porta, e a
condessa entrou.

Seguira o alvitre que lhe propus. As vinte e quatro horas decorridas desde
que eu a deixára até ao momento de partir para ali, tinha-as empregado em
escrever com uma eloquencia apaixonada e febril a historia da sua
desgraça. O caderno que lhe remetto encerra, senhor redactor, a copia da
longa carta dirigida por ella a seu primo. Cedo o logar que estava
occupando nas columnas do seu periodico á publicação d'este documento, que
verdadeiramente se poderia chamar _O auto de autópsia de um adultério_.

Depois direi o destino que démos ao cadaver, e o fim que teve a condessa.




+A Confissão d'ella+


I


Parece-me ás vezes que tudo isto se passou n'uma vida distante como um
romance escripto, que me causa saudades e dôr, ou uma velha confidencia de
que a minha alma se lembra. Mas de repente a realidade cae arrebatadamente
sobre mim, e creio que soffro mais então, por ter a consciencia de que não
devia nunca ter deixado de soffrer. Foi bom que me determinasse a esta
confissão. Contar uma dôr é consolal-a. Desde que me determinei a escrever
estas confidencias, ha no meu peito um alivio e como um movimento de dôres
crueis que desamparem os seus recantos.

O principio das minhas desgraças foi em Paris. Lá comecei a morrer.
Lembra-me o dia, a hora, a côr da relva, a côr do meu vestido. Foi no fim
do penultimo inverno, em maio. _Elle_ estava tambem em Paris. Viamo-nos
sempre. Ás vezes saíamos da cidade, iamos passar o dia a Fontainebleu,
Vincennes, Bougival, para o campo. A primavera era serena e tepida. Já
estavam floridos os lilazes. Levavamos um cabazinho da India com fructa,
n'um leito de folhas de alface. Riamos como noivos...

Havia tres mezes que estavamos em Paris: o conde--creio que o
disse--estava na Escossia com lord Grenley caçando a raposa nas tapadas do
principe de Beaufort.

Houve então um baile no _Hotel de Ville_, um d'esses bailes officiaes em
que uma multidão de praça publica se acotovella sob os lustres,
brutalmente. Tinha eu acabado de dançar uma walsa com um coronel
austriaco, quando a viscondessa de L..., que vivia então em Paris, veiu a
mim, toda risonha:

--Conheces este nome: _miss Shorn?_

--Não. Uma americana?

--Uma irlandeza. Uma maravilha, O prefeito dançou com ella; a condessa
Waleuska beijou-a na testa, Gustavo Doré prometteu-lhe um desenho. Vae ser
apresentada nas Tulherias. No fim, queres que te diga? Acho-a
insignificante. Bonitos cabellos, sim. Não se falla n'outra cousa! Mas tu
deves conhecel-a...

--Porque?

--Tem dançado com Captain Rytmel, parecem intimos. Tu ris?

--Eu?

--Não... tu riste!

--Nunca rio, senão quando quero chorar, minha querida!

--_Tiens, tiens!_--murmurou ella, olhando muito para mim.

E affastou-se. O meu pobre coração ficou em desordem. Ás vezes, na nossa
alma, toca-se de repente a rebate, e as desconfianças adormecidas,
acordam, tomam as suas armas, e fazem sobre nós um fogo cruel.

--Captain Rytmel approximara-se.

--Vem radiante, disse-lhe eu. Quem é miss Shorn?

Elle respondeu gravemente:

--É a amiga intima de minha irmã.

Fomos dançar. Era uma quadrilha. Pareceu-me triste.

Os movimentos da dança lembravam-me as cerimonias d'um culto. O meu ramo
ficou espalhado pelo chão. N'esse instante, sem saber porquê, detestei
Paris, o ruido, o imperio; desejei as sombras de Cintra, os retiros
melancolicos de Bellas, cheios dos murmurios da agua.

Quiz sair. N'uma das ultimas salas uma mulher alta, loira, tomava das mãos
d'um velho extremamente magro e distincto a sua _sortie de bal_.

Captain Rytmel, que me dava o braço, inclinou-se ao passar junto d'ella, e
fallando baixo para mim:

--Miss Shorn! disse elle.

Era realmente linda. Grandes cabellos loiros, fortes, luminosos; os olhos
largos, intelligentes, serios; um corpo perfeito.

N'essa noite chorei. No meu quarto as luzes e o fogão estavam accesos.
Entrei, fui ao espelho precipitadamente. Deixei cair dos hombros o
_burnous_. Ergui a cabeça, olhei a medo. A minha imagem apparecia ao fundo
do quadro n'um vapor luminoso. Achei-me feia. Olhei mais. Tinha os braços
nús, a cabeça erguida em plena luz. Lentamente a consciencia de que eu
estava linda assim, penetrou-me, encheu-me de alegria. É tão bom ser
linda!

D'ali a dois dias houve uma revista militar no campo de Longchamps.
Captain Rytmel acompanhou-me. Eu tinha um logar na tribuna do _Jockey_.
Havia uma enorme multidão. Estava a imperatriz, a córte, a diplomacia;--a
tribuna resplandecia de fardas, de joias, de plumas, de reflexos de seda.
As musicas, os clarins, o rufar altivo dos tambores, o surdo ruído dos
batalhões em marcha, o luzir das bayonetas, as vozes de commando, o
galopar dos cavallos, o brilho dos capacetes, o ceu resplandecente, como
um largo pavilhão azul, tudo fazia palpitar, dava extranhos sentimentos de
guerra e de gloria. E todo o corpo estremecia quando aquellas poderosas
massas passavam gritando:

--Viva o imperador!

Sou uma pobre mulher, mas estremecia tambem!

A infanteria tinha passado. Rytmel fôra fallar com miss Shorn, que estava
em companhia de lady Lyons. O barão Werther, embaixador da Prussia, ficara
collocado junto d'ella.

Ia passar a artilheria e a cavallaria. O imperador, com o seu estado
maior, tinha vindo collocar-se ao pé da tribuna do _Jockey_. Nós todos nos
inclinavamos para ver os generaes que o cercavam: Montauban, o que tomára
Pekim; Canrobert com os seus longos cabellos brancos; a espessa figura de
Besaine; o altivo perfil trigueiro de Mac-Mahon, que viera da Algeria...

Miss Shorn era tambem muito olhada na tribuna do _Jockey_. Dizia-se que a
imperatriz lhe tinha sorrido e que madame de Talouet lhe mandara, sem a
conhecer, um ramo de violetas do polo.

Mas os olhos começavam a voltar-se para o fundo da planicie, d'onde a
cavallaria devia partir, e corria um arrepio d'enthusiasmo perante um tão
grande poder militar. N'essa manhã fallava-se em certas reservas entre o
gabinete de Berlim e as Tulherias. Lembrava-se Sadowa, mil cousas que eu
não sei; e olhava-se muito para o barão Werther, que sorria com o seu
tumido sorriso prussiano.

No entanto, a cavallaria formara em linha. Os clarins tocavam, as
bandeiras desdobravam-se: e de repente aquella enorme massa despediu á
carga cerrada do fundo do campo, para a tribuna do _Jockey_.

Os capacetes, as couraças, as espadas, faiscavam ao sol. O chão tremia sob
o compasso do galope. Sentia-se já o tinir dos ferros. Distinguiam-se já
os coroneis, esbeltos moços condecorados. Ouvia-se o respirar offegante
dos cavallos. O imperador tinha-se descoberto, todos na tribuna estavam de
pé... De repente, por um movimento unico, toda aquella enorme columna
estacou firme, vibrante, immovel, reluzente, agitando as espadas, e
gritando:

--Hurrah! Viva o imperador!

A tribuna, de pé, respondeu:

--Hurrah!

Então, vendo uma tão admiravel cavallaria, uma tão grande força, tanto
prestigio imperial, e tomados do indomavel orgulho das tradições ou
possuidos da febre do sangue militar, muitos officiaes, que estavam nas
outras alas, adiantaram-se, e elevando as espadas, gritaram:

--A Berlim! a Berlim!

Por todo o campo se ouviam agora gritos exaltados:

--A Berlim! a Berlim!

E na tribuna algumas vozes clamavam tambem:

--Sim, sim, a Berlim!

O imperador então, erguendo-se nos estribos, estendeu a mão aberta como
impondo silencio, ou como dizendo: _Esperae!_

Áquele grito inesperado todo o estado maior se tinha apertado em torno do
imperador, e eu que estava nos primeiros bancos da tribuna, vi o marechal
Mac-Mahon deter subitamente o cavallo, voltar meio corpo rapidamente, e
com a mão apoiada no xairel escarlate bordado a ouro, que cobria a anca do
animal, erguer os olhos meio risonhos para o lado da tribuna em que estava
o embaixador da Prussia. Eu segui o olhar do marechal, olhei tambem, e
vi... como hei de dizel-o? Vi Rytmel. Vi-o junto de miss Shorn, curvado,
fallando-lhe, sorrindo-lhe, absorto, afogado na luz dos seus olhos. Ella
olhava-o, extremamente séria, com um longo olhar demorado e convencido, em
que eu vi todo o fim da minha vida!


II


D'hai a dez dias o conde chegou; partimos para Portugal. Durante esse
tempo que ainda estive com Rytmel em Paris, nem eu trahi as minhas
duvidas, nem elle mostrou preoccupações alheias aos interesses do nosso
amor.

Vim para Lisboa; recebia regularmente cartas d'elle. Estudava-as,
decompunha as phrases palavra por palavra para encontrar a occulta verdade
do sentimento que as creára. E terminava sempre--meu Deus!--por descobrir
uma serenidade gradual no seu modo de sentir. Rytmel escrevia-me com muito
espirito e com muita logica para poder pôr o coração no que escrevia.
Evidentemente o seu amor passava da paixão para o raciocinio. Criticava-o:
prova de que não estava dominado por elle. Tinha até já palavras
engenhosas e litterarias. Valia-se da rethorica! Ao mesmo tempo a sua
lettra tornava-se mais firme; já não eram aquellas linhas tortas,
convulsivas e arrebatadas que palpitavam, que me envolviam... Era um
infame cursivo inglez, pausado e correcto. Já me não escrevia como d'antes
em papel d'acaso, em folhas de carteira, em pedaços de cartas velhas, que
denotavam as inspirações do amor, os sobresaltos repentinos da paixão:
escrevia-me em papel Maquet, perfumado! Pobre querido, o que o seu coração
tinha de menos em amor tinha de mais o seu papel em _marechala!_

E eu? É talvez occasião de fallar aqui do meu sentimento. Duvidei fazel-o.
Não queria collocar o meu coração sobre esta pagina como n'uma banca de
anatomia. Mas pensei melhor. Eu já não sou _alguem_. Não existo, não tenho
individualidade. Não sou uma mulher viva, com nervos, com defeitos, com
pudor. Sou um _caso_, um _acontecimento_, uma especie de _exemplo_. Não
vivo da minha respiração, nem da circulação do meu sangue: vivo
abstractamente, da publicidade, dos commentarios de quem lê este jornal,
das discussões que as minhas maguas provocam. Não sou uma mulher, sou um
_romance_.


III


Não pense que digo isto com amargura. A maior alegria que eu posso ter é a
anniquilação da minha individualidade.

Por isso não tenho escrupulos. As almas extremamente desgraçadas são como
as creancinhas: devem mostrar-se nuas.

Além de tudo supponho que estas paginas podem ser uma revelação proveitosa
para aquellas que estejam nas illusões da paixão. Que me escutem pois!

São 11 horas da noite. N'este momento quantas sei eu que soffrem, que
esperam, que mentem, possuidas de um sentimento, que pouco mais lhes dá do
que a felicidade de serem desgraçadas! Tu, minha pobre J..., mulher de
discretos martyrios, a quem tantas vezes vi os olhos pisados das lagrimas!
tu pobre Th..., que tens passado a tua vida a tremer, a receiar, a
humilhar-te, a espreitar, e a fugir..., vós todas que estaes envolvidas
pelo elemento cruel da paixão, quasi fóra da vida, e em lucta com a
verdade humana, vós todas escutae-me!

Desde que amei, a minha vida foi um desequilibrio perpetuo. Não era
voluntariamente que eu cedia á attracção, era com uma repugnancia altiva.
Mil cousas choravam dentro em mim, soffria sobretudo o orgulho. Era
impossivel fazer com elle uma conciliação. Reagiu sempre, protesta ainda.
Parece vencido, resignado, mas de repente ergue-se dentro de mim,
esbofetea-me o coração.

O que eu soffri! o que eu córei! Córei diante da minha pobre Joanna, da
minha velha ama, um anjo cheio de rugas, que sabe sobretudo amar quando
tem de perdoar! Córava diante das minhas criadas. Julgava-me feliz quando
ellas me sorriam, tremia quando lhes via o aspecto serio. Dava-lhes
vestidos, ensinava-lhes penteados. Saíam ás vezes de tarde, recolhiam alta
noite; eu córava profundamente no meu coração, e sorria-lhes.

O olhar dos homens era-me insupportavel: parecia-me envolver uma affronta.
Imaginava que era publica a aventura do meu coração, que era julgada como
uma creatura de paixões faceis, o que dava a todos o direito de me fazerem
córar. Quantas vezes sahi do theatro afogada em lagrimas! Analysava os
gestos, os olhares, os movimentos dos labios. «Fulana olhou-me com desdem!
Aquelle riu-se insolentemente, quando eu passei! Aquell'outra affectou não
me ver.» Se n'uma modista, ao escolher um vestido, me diziam: «Esta côr é
alegre, é bonita!» eu pensava commigo: «Bem sei, aconselham-me as côres
vivas, ruidosas, as côres do escandalo, o género _artiste!_» E saía,
fechava os _stores_ do meu _coupé_, chorava desafogadamente.

Não me atrevia a beijar uma creança; olhava-a com uma ternura ineffavel,
ia a tomal-a nos braços, mas dizia commigo: «Deixa esse pobre anjinho, não
és bastante pura para lhe tocar!»

Devo dizer tudo. Córava diante do meu cocheiro! Sorria-lhe com o maior
carinho: temia a todo o momento uma má resposta, uma audacia, uma palavra
accusadora. Quando eu entrava para a carruagem, e elle se erguia
respeitosamente, eu ficava tão satisfeita d'aquella prova de attenção, que
tinha vontade de o abraçar...

Acha odioso, não?

Defino o meu estado por uma palavra precisa e terrivel: quando meu marido
me apertava expansivamente a mão, eu soffria tanto como se o outro me
atraiçoasse!

Ai de mim! Quantas vezes quiz eu consolar o meu orgulho, pensando nas
glorias dramaticas do soffrimento e do martyrio! Quantas vezes me comparei
ás figuras lyricas da paixão, que contam as legendas da sua dôr ao ruido
das orchestras, á luz das rampas, e que são _Traviata, Lucia, Elvira,
Amelia, Margarida, Julietta, Desdemona!_ Ai de mim! mas onde estavam os
meus castellos, os meus pagens, e o ruido das minhas cavalgadas? Uma pobre
creatura que vive da existencia do Chiado, que veste na _Aline_, que
glorificações pode dar á sua paixão?

E depois é cruel, e é forçoso dizel-o: ha sempre um momento em que uma
mulher pergunta a si mesma se realmente são as grandes qualidades moraes
do seu amante que a dominaram. Porque então haveria justificações. E ha
uma profunda humilhação em nossa consciencia quando nos chegamos a
convencer de que, se amamos um homem, não foi só a nobreza das suas idéas
e o ideal dos seus sentimentos que nos dominaram, mas um _não sei quê_, em
que entra talvez a côr do seu cabello e o nó da sua gravata. Sejamos
francas; para que havemos de disfarçar a pequenez estreita das nossas
inclinações? Para que havemos de colorir de ideal a origem vulgar das
nossas preferencias? Não quero dizer que as elevações moraes não sejam um
auxiliar poderoso á sympathia instinctiva; mas o que na realidade nos
domina é o exterior de um homem. Que todas as que lerem estas confidencias
dolorosas se consultem no silencio do seu coração e digam o que determinou
n'ellas a sensação: se foi o caracter ou se foi a physionomia. E as que
forem francas dirão que na sua vida influiu talvez mais a côr de um
_frack_, do que a elevação de um espirito.

Sim, digo-o, francamente, d'aqui d'este canto do mundo, em que o ruido das
cousas tem o som ôco da tampa de um esquife: os desvarios do coração em
nós outras, nada os absolve, quasi nada os explica.

Fui nova; tive, como todas, as minhas horas de tedio assaltadas de
chimeras; tive os meus romances intimos, que nasciam, soffriam, morriam
entre duas flores do meu bordado. Creei aventuras, dramas apaixonados e
fugas dramaticas, aconchegadamente encolhida na minha poltrona, ao canto
do fogão.

Conheci mais tarde muitos caracteres femininos e a historia de muitas
sensibilidades. Experimentei eu tambem os sobresaltos da paixão--e nunca
vi, nunca soube que estas imaginações, que estas _attracções_ nascessem de
uma verdade da natureza, da logica das circumstancias, da irreparavel
acção do coração. Vi sempre que saíam de um pequeno mundo ephemero,
romantico, litterario, ficticio, que habita no cerebro de todas as
mulheres.

Vejo-o d'aqui a sorrir... Não se admire de me ver fallar assim. Lembra-se
d'aquellas conversações tão intimas e tão sérias na rua de...? Lembra-se
do terraço de _Clarence-Hotel_, em Malta, quando a lua silenciosa cobria o
mar? Não se recorda das minhas idéas então e d'aquellas imaginações que eu
denominava gloriosamente os meus _systemas_? Não se lembra que me chammava
então _philosopho loiro_? O _philosopho_ sentiu, chorou, soffreu, teve por
isso o melhor estudo. Que maior ensino que as lagrimas? A dôr é uma
verdade eterna, que fica, emquanto as theorias passam. Não imagina o que
tenho aprendido da vida desde que sou desgraçada! Não imagina quantas
idéas rectas e precisas saem das incoherencias do pranto!

Por isso hoje não creio em certas fatalidades, com que as mulheres
pretendem esquivar-se á responsabilidade. Não creio no que se chama
theatralmente _as fatalidades da paixão_. A vontade é tudo; é um tão
grande principio vital como o sol. Contra ella _as fatalidades_, as
febres, o ideal, quebram-se como bolas de sabão.

Respondem-me chorando: _a fatalidade!_ Mas, meu Deus! tomemos um
exemplo,--a aventura trivial, a commum, o que se poderia chammar a
_aventura typo_, o que se vê todos os dias, em qualquer rua, no primeiro
numero par ou impar... a aventura que nós acotovellamos no passeio, que
toma comnosco neve na confeitaria Italiana, e que se enterra ao pé de nós
no Alto de S. João.

A scena é simples, de tres personagens. Eu, por exemplo, sou a mulher. Meu
marido é um homem honesto e trabalhador. Cança-se, lucta, prodigaliza-se:
logo de manhã sae para o seu escriptorio, ou para o seu jornal, ou para o
seu officio, ou para o seu ministerio; cercea o seu somno, almoça á
pressa, quebra o seu descanço. Todo elle é attenção, vigilia, trabalho,
sacrificio. Para quê?

Para que os nossos filhos tenham uns _bibes_ brancos, e uma ama aceada;
para que as minhas cadeiras sejam de estofo e não de páu; para que os meus
vestidos sejam de seda e talhados na _Marie_, e não de chita e cosidos
pelas minhas mãos, de noite, a um candieiro amortecido.

Meu marido é um homem honesto, sympathico, serio, affavel. Não usa pós de
arroz, nem _brilhantine_, não tem gravatas de apparato, não tem a extrema
elegancia de ser moço de forcado, não escreve folhetins; trabalha,
trabalha, trabalha! Ganha com o seu cançasso, com os seus tedios, em horas
pesadas e longas, o jantar de todos os dias, o vestuario de todas as
estações. A sua consolação sou eu, o centro da sua vida sou eu, o seu
ideal e o seu absoluto sou eu! Não faz poemas romanticos, porque eu sou o
seu poema intimo, a musa dos seus sacrificios; não tem aventuras porque eu
sou a sua esposa; não tem viagens gloriosas pelos desertos nem o prestigio
das distancias, porque o seu mundo não é maior do que o espaço que enche o
som da minha voz; não ganhou a batalha de Sadowa mas ganha todos os dias a
terrivel e obscura batalha do pão dos seus filhos...

É justo, é bom, é dedicado. Dorme profundamente porque o seu cançasso é
legitimo e puro; gosta da sua _robe de chambre_ porque trabalhou todo o
dia. Julga-se dispensado de trazer uma flôr na _boutonniére_ porque traz
sempre no coração a presença da minha imagem.

Pois bem! que faço eu?

Aborreço-me.

Logo que elle sae, bocejo, abro um romance, ralho com as criadas, penteio
os filhos, torno a bocejar, abro a janella, olho.

Passa um rapaz, airoso ou forte, louro ou trigueiro, imbecil ou mediocre.
Olhamo-nos. Traz um cravo ao peito, uma gravata complicada. Temo o cabello
mais bonito do que o do meu marido, o talhe das suas calças é perfeito,
usa botas inglezas, pateia as dançarinas!

Estou encantada! sorrio-lhe. Recebo uma carta sem espirito e sem
grammatica. Enlouqueço, escondo-a, beijo-a, releio-a, e desprezo a vida.

Manda-me uns versos--uns versos, meu Deus! e eu então esqueço meu marido,
os seus sacrificios, a sua bondade, o seu trabalho, a sua doçura; não me
importam as lagrimas nem as desesperações do futuro; abandono probidade,
pudor, dever, familia, conceitos sociaes, relações e os filhos, os meus
filhos! tudo--vencida, arrastada, fascinada por um soneto errado, copiado
da _Grinalda_!

Realmente! É a isto, minhas pobres amigas, que vós chamaes--_fatalidade da
paixão!_

E no emtanto como corresponde elle a este sacrificio terrivel?

Como tem uma aventura, não póde occultar a sua alegria, toma ares
mysteriosos, provoca as perguntas; compromette-me; deixa-me para ir
esperar os touros em intimidades ignobeis; mostra as minhas cartas em cima
da mesa de um café, ao pé de uma garrafa de cognac; jura aos seus amigos
que me não _ama_, e que é--_para se entreter_; e se meu marido o chicotear
no meio do Chiado, como é vil, cobarde, vulgar e imbecil, irá queixar-se á
Boa Hora!

_Et voilá D. Juan!..._

Não! é necessario demolir pelo ridiculo, pela caricatura, pelo chicote e
pela policia correccional, esse typo indigno que se chama o
_conquistador_. O _conquistador_ não tem attracção, nem belleza, nem
elevação, nem grandeza como typo,--e como homem não tem educação, nem
honestidade, nem maneiras, nem espirito, nem _toilette_, nem habilidade,
nem coragem, nem dignidade, nem limpeza, nem orthographia...

Perdôe-me, meu primo, estas exaltações. Sou impressionavel, vou como se
costuma dizer--_atraz da phrase_. Esqueço ás vezes as minhas dôres
modernas, para me lembrar das minhas velhas indignações.

E pensa que, por condemnar estes amores triviais, eu me absolvo a mim?
Não. Apesar de ter amado um homem de todo o ponto excellente, cuja
superioridade d'espirito o meu primo conhecia e amava, d'uma distincção
tão perfeita e tão completa; posto que a nossa affeição tivesse vivido
n'um meio tão elevado, tão nobre, tão altivo,--apezar de tudo, eu tenho-me
por tão condemnavel como aquellas de quem fallei,--e julgando-me sem
justiça e fóra da graça, faço penitencia diante do mundo.


IV


E quanto, quanto soffri então, na modestia da minha vida, no apartamento
do meu segredo! Quanto desejei ser uma pobre costureira que leva o seu
filho pela mão!

Dentro do meu _coupé_, puxado a largo trote á saida do theatro, envolvida
n'um cachemire, com uma pelle de martha nos pés, e um aroma doce na seda
das almofadas, quantas vezes invejei as pequenas burguezas que saíam das
torrinhas, embrulhadas em disformes mantas de agazalho, pisando a lama!

No dia em que recebia cartas d'elle, saía de Lisboa, fugia, ia para o
campo! Levava-as, amarrotadas e beijadas, ia para a quinta de...,
penetrava nas sombras espessas, ali ficava, longo tempo, envolta no calor
tépido do sol, entorpecida pelo rumor sereno das ramagens, e pelo
murmuroso correr da agua nas bacias de pedra!

Oh doce vida das arvores e das plantas! passividade da relva,
irresponsabilidade da agua, pacifico somno dos musgos, suave pousar da
sombra! quantas vezes me consolastes, e me ensinastes a soffrer calada!
quantas vezes invejei a immobilidade do vosso ser!

Era ali, só, relendo essas cartas crueis, que eu sentia o amor d'aquelle
homem fugir-me como a agua de um regato que se quer tomar entre os dedos.

Que me restaria então?

Voltar outra vez á serenidade legitima da vida? Não podia, ai de mim!
estava para sempre expulsa do paraizo pacifico da familia, da casta sombra
do dever. Lançar-me nas aventuras e na revolta? Meu Deus! isso repugnava
tanto ao meu caracter como o contacto d'um animal viscoso á pelle do meu
peito.

Ficava pois sem situação na vida. Não tinha n'ella um logar definido.
Entrava n'essa legião dolorosa e tristemente miseravel--_das mulheres
abandonadas_.

A minha unica honestidade agora devia ser conservar-me captiva d'aquelle
sentimento. A minha unica absolvição estava na verdade da minha paixão.
Quanto mais me separasse do mundo e me désse ao meu amor; mais me
approximava da dignidade. Nas situações definidas e corajosas ha sempre um
lado honesto; o que repugna ao instincto casto são as conciliações
hypocritas. A posição que me restava, era ser de Rytmel, só d'elle e para
sempre: e eu sentia que elle se ia lentamente affastando de mim como eu me
affastava de meu marido.

Era a minha entrada na expiação.

N'estes amores, o castigo não vem só do mundo: elles mesmo conteem os
elementos da justiça cruel. O coração é o primeiro castigado pela mesma
paixão. A punição da falta contra a honra vem mais tarde pelos juizos dos
homens.

Eu estava então diante da maior miseria moral em que se póde encontrar uma
mulher n'estas condições lamentaveis.

Eu amava Rytmel, Rytmel queria casar.

Que faria, meu Deus? Iria em nome da minha paixão desviar aquella
existencia de homem, da linha natural, simples, humana, que leva ao
casamento, á familia, ao dever?

Devia eu impedir que elle casasse? Mas não era isto impedir, abafar a
legitima expansão da sua vida? Não era proscrevel-o das fecundas e serenas
alegrias da familia, para o ter preso nos asperos, nos estereis
sobresaltos de uma paixão romantica?

Tinha eu o direito de sequestrar aquelle homem para uso exclusivo do meu
coração, encarceral-o dentro d'uma ligação illegitima e secreta, onde elle
se esterilisaria, onde os seus talentos e as suas qualidades se
enferrujariam como armas inuteis, e toda a sua acção social se limitaria a
seguir o _frou-frou_ dos meus vestidos? Não dava isto ao meu sentimento um
aspecto de egoismo animal? Não tirava isto ao meu amor a melhor qualidade:
a virtude do sacrificio?

Poderia eu prival-o de ter um dia os filhos, que fossem a continuação do
seu ser e a sua immortalidade? Podia eu prival-o em nome do meu ideal de
ter na velhice aquella doce e branca companheira, sob cujo olhar pacifico,
o homem justo espera, socegado, o nobre momento da morte?

E era só isto?... Póde um espirito sincero acreditar na duração d'estes
amores exaltados, feitos de sensibilidades e de martyrios, que não têem o
dever por base, e têem a traição por origem? E por dois ou tres annos mais
que esta aventura continuaria, tinha eu o direito de ir quebrar o destino
da _outra, d'ella_, pobre rapariga, que o amava, que edificava a sua vida
sobre o coração d'elle, que se preparava para ser no lar, e para sempre, a
presença da graça e a consciencia viva? Não: isto não podia ser.

Mas por outro lado, era justo que eu, tendo sacrificado por elle tudo,
desde o pudor intimo até á honra social, fosse agora arremessada como uma
luva velha?

Eu que tinha sido tudo quando se tratava da sua imaginação, não seria nada
agora porque se tratava do seu interesse? Não me exilara eu por elle, do
paraizo domestico? Por elle não renunciara as alegrias pacificas da vida,
e a sublime esperança d'uma morte digna? Como eu tinha sacrificado por
elle a honra d'um homem, não podia elle sacrificar por mim as esperanças
romanescas d'uma creança? Era justo ter-me trazido enganada, envolvida,
como n'um arminho, nas apparencias do amor, ter-me conduzido com os olhos
vendados, attrahida, suspensa do rythmo dos seus passos, a um logar
perigoso, a uma situação intoleravel, e chegando ahi dizer-me: «Adeus
agora! eu vou para a felicidade. Tu fica; mas cuidado, que para traz não
pódes voltar; e se deres um passo para diante, vaes abysmar-te na
infamia!».

Não, isto não deve ser: o amor não é uma creação litteraria, é um facto da
natureza: como tal produz direitos, origina deveres. E os direitos do amor
não os abdico.

Pois quê! Por causa da _outra_! Hei de dar tamanha consideração ás
lagrimas que choram dois olhos alheios, que nunca vi, que estão a duzentas
leguas de distancia e não hei de apiedar-me das minhas lagrimas, que
escorrem aqui na minha face, e que eu aparo na tremura das minhas mãos!

«És casada» dizem-me. O que! Porque perdi mais, devo ser attendida menos!
Eu, que vivo quasi fóra do mundo, sem estar ligada a nenhuma d'estas
cousas superiores que amparam a vida, suspensa sobre a morte por um leve
fio, por este amor unico, é por isso que devo ir com as minhas mãos
quebrar esse fio, quebrar esse amor!

Ha algum direito humano que exija isto de mim? Ha alguma piedade que o
veja friamente? Ha alguma consciencia que o justifique? Se ha, essa
consciencia poderia ensinar a serem duros os rochedos do mar!

Mas, meu primo, tudo isto é aqui, n'este papel em que lhe escrevo. Porque
na realidade eu não podia luctar com _ella_! _Ella_ era a _miss_, a que
havia de ser esposa e mãe,--vencia tudo! Elevava-se sobre as velhas
affeições, sobre os velhos erros, como a imagem da virgem sobre o globo
feito de barro e de lama, onde se enrosca a serpente.

Nem tentei luctar!

E foi por esse tempo que recebi uma carta em que elle me dizia: _Parto
para Portugal._

Que vinha fazer? O que era? Vinha despedir-se de mim? Vinha ver as minhas
agonias? Vinha consolar-me? Vinha convencer-me? Vinha de novo dar-se
captivo ao meu amor? Vinha. Nem elle mesmo sabia mais nada!


V


Rytmel chegou. A primeira vez que o vi foi em minha casa.

O conde estava então em Bruxellas. Era noite e na minha sala de musica
achavam-se reunidas algumas pessoas: a marqueza de... velha legitimista,
que fôra a graça da córte toureira de D. Miguel; o visconde de... moço
insignificante e vagamente loiro, que eu acolhia bem, porque sua irmã, que
morrera, fôra a minha intima, a minha confidente de collegio.

Viera tambem a viscondessa de... pequenita creatura petulante e mediocre,
que tinha a graça de ter vinte annos, junta com a desgraça de os não saber
ter e cuja especialidade era o querer parecer profundamente perversa,
quando era apenas perfeitamente incaracteristica. Mas ao pé de mim,
sentado n'um sophá com um abandono asiatico, estava um homem
verdadeiramente original e superior, um nome conhecido--Carlos Fradique
Mendes. Passava por ser apenas um excentrico, mas era realmente um grande
espirito. Eu estimava-o, pelo seu caracter impeccavel, e pela feição
violenta, quasi cruel, do seu talento. Fôra amigo de Carlos Beaudelaire e
tinha como elle o olhar frio, felino, magnetico, inquisitorial. Como
Beaudelaire, usava a cara toda rapada: e a sua maneira de vestir, de uma
frescura e de uma graça singular, era como a do poeta seu amigo, quasi uma
obra d'arte, ao mesmo tempo exotica e correcta. Havia em todo o seu
exterior o que quer que fosse da feição romantica que tem o _Satan_ de Ary
Sheffer, e ao mesmo tempo a fria exactidão de um _gentleman_. Tocava
admiravelmente violoncello, era um terrivel jogador d'armas, tinha viajado
no Oriente, estivera em Meca, e contava que fôra corsario grego. O seu
espirito tinha um imprevisto profundo e que fazia scismar: fôra elle que
dissera da pallida duquesa de Morny: _elle a la bêtise melancolique d'un
ange._ O imperador citava muitas vezes este dito, como sendo
conjunctamente a critica profunda de uma physionomia e de um caracter.

Carlos Fradique tinha por mim uma amisade elevada e sincera. Chamava-me
_seu querido irmão_. Conhecia-me desde pequena, andara commigo ao colo. Em
Paris tornou-se celebre; era o que se poderia chamar um _philosopho do
boulevard_. Tinha sido _l'ami de coeur_ de Rigolboche, e quando ella
rompeu por se ter apaixonado por _Capoul_, Carlos Fradique deixou-lhe no
album uns versos quasi sublimes, de um desdem cruel, de um comico lugubre,
uma especie de _Dies irae_ do dandysmo... Promettia á Rigolboche que
quando ella morresse elle velaria para que ainda além do tumulo ella
vivesse no _chic_, sentindo Paris na sepultura. Algumas das estrophes que
elle traduziu para mim, e que depois se publicaram, fizeram sensação e
escola...

    E eu qu'inda te amo, ó pallida canalha,
      Que sou gentil e bom,
    Far-te-hei enterrar n'uma mortalha
      Talhada á _Benoiton_!
    Irei á noite com Marie Larife,
      Venus do macadam,
    Fazer sentir ao pó do teu esquife
      Os gostos do cancan...
    E no tempo das _courses_, p'lo verão
      --Assim t'o juro eu--
    Irei dar parte á tua podridão
      Se o _Gladiador_ venceu...

Eram dez horas. Carlos Fradique, com uma voz impassivel, quasi languida,
contava as situações monstruosas de uma paixão mystica que tivera por uma
negra antropophaga. A sua veia, n'aquelle dia, era toda grotesca.

--A pobre creatura, dizia elle, untava os cabellos com um oleo ascoroso.
Eu seguia-a pelo cheiro. Um dia, exaltado d'amor, approximei-me d'ella,
arregacei a manga e apresentei-lhe o braço nú. Queria fazer-lhe aquelle
mimo! Ella cheirou, deu uma dentada, levou um pedaço longo de carne,
mastigou, lambeu os beiços e pediu mais. Eu tremia de amor, fascinado,
feliz em soffrer por ella. Suffoquei a dôr, e estendi-lhe outra vez o
braço...

--Oh! sr. Fradique! gritaram todos, escandalisados com a invenção
monstruosa.

--Comeu mais, continuou elle gravemente, gostou e pediu outra vez.

Fallava com um sorriso fino, quasi beatifico. Nós iamos revoltar-nos
contra a cruel excentricidade d'aquella historia.

N'este momento vi á porta da sala, trémula, com um grande espanto nos
olhos, chamando-me baixo, a minha criada Betty. Fui: ella tomou-me pela
mão, foi-me levando, e no corredor, olhando com receio, abrindo n'um
grande pasmo os braços, disse-me ao ouvido:

--É elle!

Encostei-me desfallecidamente á parede, sentindo parar o coração.

Betty, com passos discretos foi abrir a porta do meu _toillette_. Entrei.
De pé junto d'uma mesa, extremamente pallido, estava elle. Apertei as mãos
sobre o peito, fiquei immovel, suspensa. Elle caminhou para mim com os
braços abertos, para me envolver; eu deixei-me cahir aos seus pés, e
calada beijei-lhe os dedos. Elle tinha ajoelhado commigo, e com as mãos
enlaçadas, os olhos confundidos, choravamos ambos. Eu só dizia n'um
murmurio de lagrimas:

--Ha tanto tempo!...

--Minha senhora, minha querida menina, dizia Betty da porta, e aquella
gente, santo Deus, que ha de dizer?

Eu não a escutava. Foi elle que disse sorrindo:

--Tem razão, Betty, tem razão! É necessario voltar á sala.

E deu-me o braço. Entrámos: elle grave, eu meio desfallecida, abstracta,
com os olhos marejados de lagrimas e um sorriso vago nas feições.

Disse o nome de captain Rytmel, e a sua antiga amisade com o conde. Vi a
marqueza sorrir levemente.

E voltando-me para Rytmel:

--O sr. Carlos Fradique, disse eu, antigo pirata.

Os dois homens apertaram a mão.

--A senhora condessa lisongeia-me extremamente. Eu fui apenas corsario,
disse Carlos.

Sentei-me ao piano acordando, a fugir, o teclado. Assim via bem Rytmel. A
luz envolvia-o. Estava mais pallido, o seu rosto apresentava linhas mais
graves. A testa tinha perdido a sua pureza: havia uma ruga estreita e
funda que a dominava.

Fradique continuava fallando. Agora fazia a critica das mulheres do Norte.

--A irlandeza, dizia elle, tem mais que nenhuma mulher, a graça... Sobre
tudo a que vive junto dos lagos! A melhor religião, a melhor moral, a
melhor sciencia para um espirito feminino--é um lago. Aquella agua
immovel, azul, pallida, fria, pacifica, dá um extremo repouso á alma, uma
necessidade de cousas justas, um habito de recolhimento e de pensamento,
um amor da modestia e das cousas intimas, o segredo de ser infinito, sendo
monotono, e a sciencia de perdoar... Exijo na mulher com quem casar, que
tenha as unhas rosadas e polidas, e um anno de convivencia com um lago!

Eu vi Rytmel córar de leve e torcer nervosamente o bigode.

Pelo lucido instincto da paixão, comprehendi que entre aquella
glorificação dos lagos, e os occultos pensamentos de Rytmel, havia uma
affinidade. Lembrou-me a revista de Longchamps, os louros cabellos
irlandezes de miss Shorn, e voltando-me para Carlos Fradique:

--Meu caro amigo, um pouco do seu violoncello, sim?

A sala abria sobre os jardins. A placida respiração do vento fazia arfar
as cortinas. Carlos Fradique começou a tocar uma ballada das margens do
mar do norte, de um encanto singularmente triste. Sentia-se o chorar das
aguas, o feerico correr das ondas, o compassado bater dos remos de um
pirata norvegio, a fria lua. Eu tinha ido com Rytmel para junto da
varanda, e emquanto a pequena melodia soava nas cordas do violoncello,
lembravam-me as antigas cousas do meu amor, o _Ceylão_, as noites
silenciosas em que elle me jurava a verdade da sua paixão e a voz do mar
parecia uma affirmação infinita; lembravam-me os terraços de Malta batidos
da lua, as moitas de rosas de _Clarence-Hotel_, os prados suaves de Ville
d'Avray; via-o ferido, pallido sobre as suas almofadas; via-o a bordo do
_Romantic_, commandando as manobras da fuga, chorando os desastres do
amor... E estas memorias emballavam-se no meu cerebro, confundidas com as
melodias do violoncello.


VI


Ao outro dia eu devia encontrar-me com elle n'essa fatal casa n.^o... Fui,
como sempre, toda vestida de preto, envolta n'um grande veu. Estava
extremamente pallida, palpitava-me o coração de susto. Era aquelle um
momento de transe. Eu decidira ter com Rytmel uma explicação clara,
definitiva, sem equivocos... Uma palavra que elle dissesse, sêcca ou
indifferente, um gesto impaciente, e eu considerar-me-hia como abandonada,
exilada da vida; retirava-me para um _chalet_ da Suissa, ou para
Jerusalem, ou para a melancolia d'um claustro no sul da França. Tinha
determinado assim a solução do meu destino.

Quando cheguei á casa n.^o... elle não estava ainda. Fiquei alli muito
tempo, immovel n'uma cadeira. Os ruidos da rua chegavam-me como no fundo
d'um sonho. A sala tinha uma luz esbatida, atravez dos vidros foscos como
os globos dos candieiros. Eu sentia aquella impressão indefinida, que nos
vem quando estamos durante muito tempo n'um logar socegado e triste,
olhando o silencioso caír da chuva.

De repente a porta gemeu docemente, elle entrou.

Vinha do campo. Tinha colhido para mim um pequenino ramo de flôres miudas
das sebes. Veio apoiar-se nas costas da minha cadeira, e deixou-m'as cahir
no regaço...

Depois, fallando-me baixo, junto da face:

--Andei todo o dia a pensar em si, _á travers champs_.

Não respondi, e com os olhos errantes nas côres do tapete, desfolhei
cruelmente as pequeninas flôres dos prados. Tinha um contentamento amargo
em torturar aquelles delicados seres, que vinham d'elle, e que me parecia
terem d'elle aprendido a mentir.

--Pensei constantemente em si, e o passeio foi encantador, repetiu com uma
voz docemente insistente.

Eu ergui os olhos para elle.

--Responda-me: sabe mentir?

--Mas, meu Deus, disse elle, affastando-se, parece que me quer hoje mal,
minha querida filha!

Não respondi; mas o meu regaço estava coberto de flôres mutiladas.

Elle então ajoelhou ao meu lado, e tomando-me as mãos, espreitando os meus
olhos impassiveis, ficou esperando, n'uma contemplação amante e paciente,
que eu quebrasse aquella imobilidade. Eu sentia todo o meu ser pender para
elle, n'uma attracção insensivel; mas dominava-me. Até que por fim elle
ergueu-se lentamente, arremessou o corpo para um sofá, e ali ficou, como
refugiado, folheando um volume de Musset, que estava sobre a mesa...

Levantei-me, tirei-lhe arrebatadamente o livro das mãos:

--Sabe o que é? Não o comprehendo, e é necessario que me diga, mas
francamente, claramente, syllaba por syllaba, o que tem! Não me ama, é
claro. Escusa de protestar. Vi-o logo pelo tom das primeiras cartas que me
escreveu de Londres. E agora vejo-o pelo seu olhar, as suas menores
palavras, o seu silencio, até. Ha uma cousa qualquer, não sei qual, mas
ha. A verdade é que me abandona, que me não ama. É necessario que se
explique. Isto não póde ser assim. Soffro. Se soubesse! chorei toda a
noite...

E recomecei a chorar deante d'elle, com soluços que me quebravam. Elle
tinha-me tomado as mãos e dizia-me baixo as cousas mais tocantes, em que
havia as ternuras do amante e as consolações do amigo. Affastei-o de mim,
e comprimindo o pranto:

--Não, não, é necessario que me diga claramente tudo. Eu não sei o que te
quero perguntar ou não me atrevo talvez... Mas tu sabes o que me deves
responder... Dize-me a verdade...

Elle, cruzando os braços, respondeu-me, com uma extrema placidez:

--Mas, minha querida amiga, a verdade é que as illusões do seu espirito
são a nossa desgraça. Não é culpa sua, sei: é uma fatalidade do caracter
feminino. É-lhes insupportavel a serenidade. Na vida pacifica procuram o
romance, no romance procuram a dôr. É necessario que esses pequeninos e
graciosos craneos tenham sempre a honra de cobrir uma tempestade. Que quer
então que lhe diga? Não vim a Portugal espontaneamente? Não tem encontrado
sempre ao seu lado o meu amor, fiel como um cão?--Que mais quer? Acha-me
reservado, diz. E se eu tivesse as violencias d'Othelo, achava-me de certo
ridiculo! De resto, sabe-o bem, amo-a! Digo-lh'o aqui, sentado n'um sofá,
de sobrecasaca, em uma casa que tem numero para a rua, e vou d'aqui a
pouco; n'um _coupé_, jantar, jogar talvez o xadrez, vestir--quem
sabe?--uma _robe de chambre!_ É lamentavel tudo isto, bem sei. E é por
isto que não tem confiança em mim? E diga-me francamente: se eu estivesse
aqui nos paroxismos d'Antony, ou tivesse uma _toilette_ veneziana, ou se
isto fosse uma abbadia feudal, ou se eu partisse d'aqui para conquistar
Jerusalem, diga-me--tinha mais confiança?

--Tudo isso não quer dizer nada.

--Oh minha querida amiga...

--A sua querida amiga, interrompi, nada mais pede que um coração franco e
recto. São tudo pois imaginações minhas? Não ha nada que nos separe? Pois
bem, vou dizer-lhe uma cousa e juro-lhe que é irremissivel, juro que o
digo em toda a frieza do meu juizo, sem exaltação e sem paixão, com o
discernimento mais livre, o calculo mais positivo...

--Mas, meu Deus! Diga...

--E esta resolução, acceita-a?

--Uma resolução... E o que envolve ella?

--Envolve a unica cousa possivel, a unica que me fará crer em si, com a
mesma fé com que creio em mim. Acceita-a?

--Mas como não hei de acceitar?...

--Pois bem, comecei eu.

E tomando-lhe as mãos, disse-lhe junto da face n'uma voz ardente como um
beijo:

--Fujamos ámanhã.

Rytmel empallideceu levemente e retirando de vagar as suas mãos d'entre a
pressão das minhas:

--E sabe que é uma cousa irreparavel?

--Sei.

Elle sentara-se, com os olhos sobre o tapete, e eu no emtanto, de pé junto
d'elle, com a minha mão pousada sobre o seu hombro, dizia-lhe como no
murmurio de um sonho:

--Pensava n'isto ha um mez. Vamos para Napoles. Vamos para onde quizer.
Adoro-te... É como uma pessoa que se deixa adormecer. Adoro-te, e quero
viver comtigo...

Pousei-lhe a mão sobre a testa, ergui-lhe a cabeça, para ver a resposta
dos seus olhos; estavam cerrados de lagrimas.

--Meu Deus! Rytmel, tu choras...

--Não, não, minha querida! estava pensando em minha mãe, que não torno
talvez mais a ver... Acabou-se... Amo-te, amo-te... e... Avante!

E tomou-me nos seus braços, ardentemente, como sellando um pacto eterno.


VII


Fui logo para casa, chamei precipitadamente Betty.

--Betty, disse eu fechando a porta do quarto, Betty, depressa, quero
dizer-te uma coisa. Não me digas que não...

--Santo Deus! Socegue, descance, minha querida menina! Jesus, como vem
pallida!

--Betty, é uma cousa irreparavel... devia ser. Foi pensada a sangue frio.
Vês como estou tranquilla, sem exaltação, sem nervos. É uma resolução
digna. Betty, não me digas que não!...

--Mas, minha rica senhora...

--Não se podia voltar atraz. Demais, sou feliz assim, tão feliz, tão
feliz!

--Bem feliz, ao menos?

--Doidamente. E se não fosse assim, morria...

--Mas então...

--Fugimos ámanhã.

Ella estremeceu toda, deitou-me um grande olhar em que appareciam
lagrimas, e suffocada, com as mãos juntas:

--E eu?

Atirei-me aos seus braços:

--Pois havias de ficar, Betty? Tu vens comnosco, Betty.

E correndo pelo quarto, abria os guarda-vestidos, tirando roupas, batendo
as palmas, e gritando:

--Arranja, Betty, arranja tudo. Depressa! Arranja, arranja!

Mandei pôr a caleche. Eram quatro horas. Desci o Chiado. Ia alegre,
triumphava: a minha vida apparecia-me, larga, cheia, explendida, coberta
de luz. Entrei nas modistas, olhei, escolhi, comprei, com impaciencias de
noiva, e recatos de conspirador. Apertei a mão a algumas amigas.

--Partes? perguntavam-me.

--Para França.

--Com a guerra?

--Não ha guerra. E havendo, não é interessante ver matar prussianos?

Á porta do _Sassetti_, encontrei Carlos Fradique.

--Sabe que parto ámanhã? disse-lhe eu.

--Sabe que parto hoje? respondeu-me. Ia lá, apertar-lhe a mão.

--Mas é inesperado isso! Vae para França? Para quê?

--Ver os campos de batalha ao luar, ou aos archotes. Deve haver attitudes
de mortos muito curiosas.

--Mas vae debalde. Não ha guerra. É positivo. Por isso eu vou para Italia.

--Vae para Italia?... Mas, então... Ah! Vae para Italia? Minha pobre
amiga, quem sabe se isso devia ser! Em todo o caso, em qualquer parte, ou
feliz, ou triste, para a consolar, ou para fazer um _trio_ com o meu
violoncello, sou seu, _adesso e sempre_.

Apertou-me a mão. Não sei porque, aquellas palavras deram-me uma sensação
triste.

Quiz ir ao Aterro. A tarde caía. A agua tinha uma immobilidade luminosa.
Do outro lado os montes estavam esbatidos n'um vapor azulado e suave.
Sobre o mar havia nuvens inflammadas, d'uma côr fulva, como no fundo d'uma
gloria. Algumas velas passavam rosadas, tocadas da luz.

Sentia-me vagamente melancolica. O rio, aquellas casas triviaes, todos
aquelles aspectos que eu conhecia, que eram para mim até ahi quasi
inexpressivos, appareciam-me pela ultima vez que os via, com uma feição
sympathica. Tive uma saudade piegas daquelles logares: quiz sorrir,
escarnecer; mas a verdade era que aquella paisagem, o pesado hotel
Central, o terraço de Braganza-hotel, a grosseira e escura rua do Arsenal,
todas essas cousas alheias a mim, me despertavam inesperadamente o desejo
instinctivo de tranquillidade, de familia, de situações pacificas, fazendo
destacar no fundo da minha vida, n'um relevo negro, a aventura que eu ia
intentar; e apparecendo-me como um ajuntamento de velhos rostos amigos que
se despedem, faziam-me pensar nas cousas irreparaveis, no exilio e na
morte!

A minha carruagem subia a passo a rua do Alecrim. As luzes accendiam-se. O
ceu estava ainda pallido.

Uma senhora passou, só, a pé, levando uma creança pela mão: era uma mulher
nova e distincta; parecia feliz. O pequenino, loiro, gordo, ria, palrava
n'aquella linguagem mysteriosa e doce, que é o que ficou ainda na voz
humana do _a b c_ do ceu.

Como seria bom ser assim uma mulher pacifica, com um equilíbrio suave no
coração, uma _toilette_ fresca, o amor das cousas justas, e um filho pela
mão! Se eu fosse assim seria alegre, amavel, passearia, daria _bonbons_ ao
meu pequerrucho, tral-o-hia vestido de côres leves, com uma flôr no cinto;
conversaria com elle, e á volta, depois do cansaço do meu passeio, amaria
a tranquillidade da minha vida. Elle adormeceria sobre o sofá. A janella
estaria aberta. Grandes borboletas brancas voariam em volta do candeeiro;
eu, ajoelhada, procuraria despil-o, sem o acordar, cantando, baixo, em
segredo, uma melodia dormente de Mozart, e no entretanto a penna do pae
rangeria, a um canto, sobre o papel. Ó perfumados paraizos da vida! como
eu me affasto de vós!

Assim pensava, quando cheguei a casa. No meio do meu quarto estavam
fechadas, affiveladas, sobrepostas as minhas malas. Ao pé uma grande
pelle, apertada na sua correia. Tudo estava prompto, deviamos partir na
manhã seguinte. As minhas idéas simples debandaram.

Senti um extremo desejo de liberdade, de mares abertos, de paizes extensos
e distantes, que se atravessam ao galope da _posta_ ou na velocidade d'um
_wagon_. Era noite. Não pedi luz. O luar entrava no quarto atravez das
arvores do jardim. Sentei-me á janella.

A minha situação appareceu-me então com o prestigio de um bello romance.
Mil imaginações e phantasias cantavam no meu cerebro. Sentia-me á entrada
de uma vida de perigos, de extasis, de glorias. Via-me na tolda de um
paquete entre os perigos de um naufragio: ou n'uma serra espessa, por um
grande luar, n'uma companhia de contrabandistas que cantam á Virgem; ou no
silencio de uma caravana escoltada de _beduinos_, acampando no monte das
Oliveiras, defronte de Jerusalem. Percorreria a Italia; entraria nas
cidades ao galope dos cavallos, ao accender o gaz, quando a multidão enche
os _corsos_ entre fileiras de altivos palacios da Renascença. Via-me em
Napoles, na bahia, por um luar calmo: dormindo sob as vinhas em Ischia; ou
na frescura das grutas do Pausilippo, onde ainda choram as nayades... A
porta abriu-se de repente, um criado entrou com uma carta. Não vi a letra
do _enveloppe_, não olhei sequer, mas sentia-a! Veiu luz. Era verdade, era
de Rytmel! Tive-a longo tempo na mão, incerta, trémula. Pul-a em cima da
pedra d'uma _console_, fui olhar-me ao espelho, vi-me pallida. No emtanto
a carta attrahia-me, parecia-me que luzia sobre o marmore branco. Tomei-a,
pesei-a, senti-lhe o aroma, e de vagar, cançada, suspirando, com os braços
vergados ao peso d'ella, fui-a lentamente abrindo.


VIII


Transcrevo textualmente essa carta terrivel:

«Querida:--Tenho aqui no meu quarto, diante de mim, as minhas malas
fechadas e afiveladas: Tenho o meu passaporte... É verdade! não te
esqueças de tirar o teu. Escrevi a minha mãe. Escrevi a um amigo querido,
que vive na intimidade da minha vida. Por isso bem vês que te escrevo, na
austera firmeza da tua resolução. Sou só. O meu destino tenho-o aqui preso
na minha mão, como um passaro, ou como uma luva: posso pousal-o sobre a
tolda d'um paquete, pol-o n'uma mesa de jogo em cima d'uma carta,
collocal-o na ponta d'uma espada, ou fechar-t'o na mão e dar-t'o. Mas tu
pelas condições da tua vida tens um logar definido no mundo, limitado e
circumscripto. Estás presa, por um annel de casamento, a uma ordem de
cousas, a um certo numero de leis, e és na vida como um navio ancorado no
mar. Por isso é justo que antes de te separares violentamente do teu
centro legitimo, eu, que tenho a experiencia das desgraças, das viagens, e
do espectaculo do mundo, te diga algumas palavras, que, se não me tornarem
mais amado ao teu coração, tornar-me-hão mais estimado ao teu caracter.
Fias-te de mais no amor, minha doce amiga! Abstrae n'este momento de mim,
da minha honra e da minha fidelidade. Fallo do amor, lei ou mysterio ou
symbolo, força natural ou invenção litteraria. Fias-te de mais no amor!
Aquelle amparo superior, aquelle apoio solido e protector, que todo o
espirito procura no mundo, e que uns acham na familia, outros na sciencia,
outros na arte, tu parece quereres encontral-o sómente na paixão, e não
sei se isso é justo, se isso é realisavel!

Creio que te fias de mais no amor! Elle não construe nada, não resolve
nada, compromette tudo e não responde por cousa alguma. É um desequilibrio
das faculdades; é o predominio momentaneo e ephemero da sensação; isto
basta para que não possa repousar sobre elle nenhum destino humano. É uma
limitação da liberdade, é uma diminuição do caracter; especialisa,
circumscreve o individuo é uma tyrannia natural, é o inimigo astuto do
criterio e do arbitrio. E queres que tenha esta base a tua situação na
vida? E crês na estabilidade do amor, tu?... Sim, é possivel, emquanto
elle viver do imprevisto, do romance e do obstaculo; emquanto necessitar
do _coupé_ de _stores_ cerrados; mas logo que entre n'um estado regular,
que se estabeleça definidamente para durar, que se organise, que se
economise, extingue-se trivialmente; e quando quer conservar-se, tem a
miseria de se assimilhar ás chammas pintadas d'um inferno de theatro. E
então, desde o momento que o amor desapparecesse, que rasão de ser tinha a
tua vida, e que justificação tinha que dar de si o teu incoherente
destino? Ficavas sem uma situação definida: tudo te era vedado, ou pela
força das leis sociaes, ou pela altivez da tua honra. Recuar para as
cousas legitimas, arrepender-te, era impossivel: o arrependimento é um
facto catholico, não é um facto social. Continuar e persistir em viver
pelo amor era um equivoco hypocrita, e poderias um dia encontrar-te a
viver na libertinagem.

Imaginas hoje que o amor é a unica tendencia, a unica preoccupação da tua
vida... Não: é apenas idéa dominante na tua natureza. Ha outras
exigencias, que hoje não sentes chamarem dentro de ti, porque teem sido
plenamente satisfeitas no meio legitimo em que tens vivido; mas quando,
mais tarde, estiveres retirada de tudo, fechada no amor como n'uma concha,
sentirás então amargamente que te falta o _quer que seja_ que é a
sociedade, a opinião, o centro d'amisades, o _rang_, as consolações
incomparaveis que dá a estima dos que nos saudam. E o não encontrar então
no mundo o teu logar, elegante, avelludado, agaloado, emplumado e coroado,
dar-te-ha a sensação do abandono; e as consolações que então te quizer
ministrar o amor pela sociedade que te falta, encontrarão aos teus olhos o
mesmo tedio que encontrariam agora as consolações da sociedade pelo amor
que te fugisse. Uma mulher que foge com o seu amante, só pode ter um logar
no _Demi-Monde_; ou então um logar equivoco nas salas, quando é celebre
por um talento ou por uma arte. Ora tu não quererás ir para a Italia
frequentar, em Napoles, Madame de Salmé, nem quererás cantar n'um theatro,
nem commetter a inconveniencia de escrever um livro. A viver modesta, tens
de viver triste; a viver radiante, tens de viver humilhada. E pensas que
pódes, por um anno sequer, viver na intimidade absoluta e no segredo?

O segredo, o refugio, um _ninho_ perfumado n'um quinto andar, são cousas
extremamente doces, no meio da sociedade e das relações do mundo; a
publicidade official da vida dá então um encanto extranho áqueles momentos
de mysterio. Mas a perpetuidade do mysterio deve ser egual áquella
legendaria tortura da beatitude eterna! Quando dois entes se encontram
pelas fataes condições do seu procedimento, obrigados a viverem um do
outro, um para o outro, um eternamente no segredo do outro, quando isto se
não passa na ilha de Robinson, nem entre dois discipulos de Sedwinborg,
nem entre dois desgraçados cheios de fome--mas n'uma cidade ruidosa e
viva, entre duas pessoas positivas e educadas pelo segundo imperio, e que
têem as complacencias do luxo, crê que deve ser amargo.

E depois, pensa! A nossa vida arrastar-se-ha tristemente, de paiz em paiz,
sem um centro amado, sem uma familia, sem um fim. Não teremos, nem durante
a existencia, nem no grave momento da morte, a serenidade de quem é justo.
A nossa vida será como a das sombras romanticas de Paulo e Francesca de
Rimini, levadas pelo vento contradictorio. Morreremos emfim como dois
seres estereis, que nada crearam, e que não têem quem fique na terra com a
herança do seu caracter; e quando todos pelos seus filhos ganham a unica
justa immortalidade, nós sómente seremos mortaes, e para nós mais que para
ninguem será terrivel a lembrança do fim! Perdôa que te escreva estas
cousas. Mas fiz o meu dever. E agora posso livremente, insuspeitamente,
dizer-te que me sinto feliz, e que o momento d'amanhã, quando virmos
desapparecer a terra e nos acharmos sós, no infinito mar,--será para mim
tão bello, que só por elle julgarei justificada a minha vida.»

Quando acabei de lêr esta carta, sentei-me machinalmente deante das malas,
com os olhos fixos, como idiota. Abri uma gaveta, tirei não me recordo que
pequeno objecto de renda, e tornei a fechar, com um movimento automatico,
lugubre, e a ausencia absoluta da consciencia e da vida. Chamei Betty:

--Betty, que horas são?

--Onze, minha senhora.

--Dá-me agua, tenho sede. Dá-me agua com limão...

Quando ella sahiu fui encostar a cabeça á vidraça, a olhar o movimento
ondeado e lento das ramagens escuras. A lua pareceu-me regelada. Betty
entrou.

--Betty, disse-lhe eu n'uma voz sumida, sabes? Tenho medo de morrer
doida...

Ella olhou-me, e viu no meu rosto uma tal expressão d'angustia, que me
disse:

--Que tem, meu Deus, que tem? Chore, minha rica menina, chore...

--Não posso, não posso. Eu morro... Vem para o pé de mim, Betty!...

--Meu Deus, quer-se deitar? diga...

E erguendo os olhos e as mãos, n'uma imploração cheia de dôr, de
desespero:

--Deus me leve para si! Ai! nada d'isto era se a mamã fosse viva, minha
senhora!

Começou a chorar. Eu olhei-a com uma grande afflicção, senti os olhos
humidos, os soluços suffocaram-me, e arremessando-me aos seus braços,
chorei, chorei, chorei amargamente, chorei cruelmente, chorei pela
saudade, chorei pela traição, chorei pelo meu passado legitimo, chorei
pelo encanto dos meus peccados, chorei por me sentir chorar...


IX


Soceguei. Vencida, fiquei n'uma _chaise longue_, muda e como morta. Olhava
machinalmente o tremer da luz.

--Betty, disse eu, deita-te. Eu estou bem. Vae...

Ella saiu, chorando. O quarto estava mal allumiado. Eu via, fóra, as
ramagens do jardim, recortando-se n'um relevo negro sobre o pallido ceu,
cheio da lua. Estive muito tempo assim, olhando, sem consciencia e sem
vontade. Lentamente, creio, comecei pensando em cousas alheias aos
interesses da minha dôr: lembrava-me a fórma d'um vestido que eu tinha
desenhado para a Aline.

Por fim ergui-me, passeei muito tempo no quarto, o movimento chamou-me á
consciencia e á verdade das minhas afflicções. Arranquei a folha d'uma
carteira, e escrevi a lapis tumultuosamente: «Tem rasão, tem rasão.
Espero-o ámanhã ás 10 horas da noite na casa... Até lá não lhe direi que o
amo; só lá lhe direi o que soffro.»

Eu mesma saí ao corredor, e do alto da escadaria, silenciosa, allumiada
por um grande globo fosco, chamei um criado, André, imbecil e indiscreto,
e atirei-lhe o bilhete lacrado, dizendo-lhe:

--Leve esse bilhete já... Vá n'uma carruagem.

E indiquei-lhe a casa de meu primo. Rytmel estava hospedado lá.

Vim sentar-me á janella do meu quarto: vinha um aroma suave do jardim; o
luar, as grandes sombras, tinham um repouso romantico e triste.
Lentamente, a minha desgraça começou apparecendo-me inteira, nitida, em
pormenores, n'uma grande synthese, como se fosse um mappa.

Eu era trahida! Aos vinte e tres annos, com todas as intelligencias da
paixão, com todos os delicados prestigios do luxo, era trahida, era
trahida! Senti então pela primeira vez a presença do ciume, esse
personagem tão temido, tão cantado nas epopéas, tão arrastado pela rampa
do theatro, tão conhecido da policia correccional, tão cruel, tão
ridiculo, tão real! Vi-o! Conheci-o! Senti o seu contacto irritante e
mordente como um corrosivo; a sua argumentação miuda, jesuitica,
implacavel, sanguinaria: todo o seu processo d'acção, que torna de repente
o coração mais puro tão immundo como a toca d'uma fera.

Senti o mais cruel dos ciumes todos; aquelle que se define, que diz um
nome, que desenha um perfil, que nol-o mostra, o nosso inimigo, que nos
enche as mãos d'armas, que nos obriga a avançar para elle. Eu sentia no
meu ciume um ponto fixo--_ella_. Era _ella_, a _outra_! Lembrava-me
confusamente: tinha cabellos louros, finos, espalhados, uma nuvem de ouro
esfiado. Eu tinha-a visto em Paris vestida de roxo na revista de
_Longchamps_. O seu olhar era franco: os homens deviam encontrar n'elle o
quer que fosse, que promettia um destino pacifico. Que secreto encanto se
irradiaria da esbelta fraqueza do seu corpo? Era a simplicidade? Era a
intelligencia? Era a sciencia das cousas do amor?... Como eu ardia por a
conhecer! E não sabia nada d'ella senão que era irlandeza, e que se
chamava Miss Shorn!

Ah sim, sabia outra cousa--que elle a amava!

Conhecel-a! conhecel-a! Mas como? Podia ser, pelas suas cartas! De certo!
Ella devia pôr n'ellas toda a sua intima personalidade. Era loira, era
ingleza, por isso raciocinadora: devia escrever pacificamente, sem
sobresaltos, e sem inspirações da paixão; nas suas cartas provavelmente
desfiava o seu coração. Eu conhecel-a-hia bem, se as lesse! Eu saberia o
estado de espirito de Rytmel, a marcha da sua paixão, pelas cartas d'ella.
Devia lel-as! Era necessario pedil-as, roubal-as, compral-as, eu sei! Mas
era necessario lel-as!

Para pensar assim eu nenhuma _prova_ tinha de que elle recebia cartas
d'ella, mas tinha a _certeza_ que ellas existiam e que o seu coração
estava cheio d'ellas...

Quiz serenar, pacificar-me, dormir.

Deitei-me. O meu pobre cerebro estava n'uma vibração tempestuosa; era como
n'uma tormenta em que veem á superficie da mesma vaga os destroços d'um
naufragio e as flores da alga; no meu espirito revolto, surgiam no mesmo
redemoinho, as cousas graves, e as recordações futeis, as minhas dôres e
as minhas phantasias, os desastres do meu amor, e ditos de operas comicas!
Sentia a chegada da febre. Chamei Betty.

--Betty! não posso dormir, não sei que tenho. Quero dormir por força.
Quero ámanhã todas as minhas faculdades em equilibrio. Se não durmo estou
perdida, endoideço... Dá-me alguma cousa.

--Mas o quê, minha senhora?

--Olha, dá-me aquella bebida que davam á mamã nas insomnias, a que tu
tomas quando tens dôres... Tens?

--Quer opio?

--Não sei! agua opiada, vinho opiado, o quer que seja. Foi o doutor que me
disse...

--Minha querida menina, eu tenho opio. Uma gota, n'um copo de agua. Eu
sei? Talvez lhe faça mal!

--Dá-m'a, o doutor disse-m'o hontem. Dá, depressa.

Bebi. Era agua opiada, creio eu. Não sei. Parece-me que adormeci logo, e
lembro-me que durante o somno sentia-me encaminhar incessantemente, n'um
movimento perpetuo que affectava todas as fórmas; ora lento e pacifico,
como um passeio sob uma alameda; ora rapido, volteado, e era a _walsa_ de
_Gounod_ que eu dançava; ora solemne e melancholico, e era um enterro que
eu acompanhava; ora cortante, escorregadio, veloz, e era em Paris, e era
no inverno, e eu patinava sobre a neve.

Acordei de manhã, serena, e decidida. Mandei pôr um _coupé_. Saí. Fiz
parar á porta de meu primo. Eram duas horas da tarde. Eu sabia, desde essa
manhã, que Rytmel estava com elle em Bellas. Subi. Appareceu um criado
portuguez, Luis, que eu conhecia, um imbecil, atrevido para o ganho,
discreto pelo medo.

--Mr. Rytmel!

--Saiu, senhora condessa.

--Jacques?

--Foi com elle, senhora condessa.

Jacques era um criado antigo de Rytmel.

--Luis, leva-me ao quarto de mr. Rytmel.

Ao abrir a porta do quarto estremeci. Sentia-me humilhada. Fui rapidamente
a uma secretária, revolvi as gavetas, as pequenas papeleiras. Nenhumas
cartas, apenas cartas indifferentes. Irritada, abri as commodas, espalhei
as roupas, procurei nos bahus, nas malas, nos bolsos, ergui o travesseiro.
Tremia, arquejava. Era uma busca inquisitorial, frenetica, desesperada,
infame!

--Luis, disse eu baixo, Luis, tens vinte libras. Tens cincoenta.

--Mas, minha senhora...

--Este senhor onde tem as suas cartas? Tens cem libras. Dou-te tudo,
estupido... Onde tem elle as cartas, elle?

--Oh minha senhora! disse o creado, com uma voz lamentavel, eu não sei.

--Não tens visto? Não tem uma secretária, uma papeleira, uma carteira?...

--Tem. Tem uma carteira de marroquim. Tral-a comsigo. Anda cheia de
cartas...Levou-a decerto. Nunca a deixa.

Sahi, desci a escada, correndo, fugindo d'aquelle desastre, d'aquella
vergonha, d'aquellas confidencias. Atirei-me para o fundo da carruagem.

--A casa! gritei.

Tinha fechado os _stores_; soluçava, sem soluçar[2].

--Betty! Betty! clamei logo no corredor.

Ella appareceu, correndo.

--Betty, disse eu, vivamente, fechando a porta do quarto. Dize-me: aquella
agua com opio não faz mal?

--Porque? sente-se doente?

--Não. Estou bem. Não faz mal?

--Nenhum.

--Juras?

--Juro. Mas...

--Jura sobre estes santos Evangelhos.

--Oh, senhora! Mas porque? Juro. Mas porque?

--Tens opio? Dá-m'o.

--Quer dormir?

--Não.

Ella então olhou-me, fez-se extremamente pallida:

--Mas, senhora condessa, que quer isto dizer?

--Dá-m'o. Dá-m'o, Betty. Pensas que me quero matar?

Ella calou-se.

--Oh, doida! disse eu, rindo. Se me quizesse matar não t'o pedia. Mas sou
feliz... Passaram-se outras cousas, vês tu? Não t'as digo, mas sou feliz.
Sabes o que é? É que me vou logo encontrar com elle.

E com a voz mais baixa, como envergonhada:

--É ás dez horas, e vês tu? Queria dormir para não esperar.

--Oh, minha senhora, não lhe vá fazer mal! De resto, eu lh'o dou. O frasco
d'opio está aqui n'esta gaveta do lavatorio. Não lhe faça isto mal, meu
Deus!

--Não, não, minha Betty! Ah! está na gaveta? Bem. São duas gotas, sim? Não
me faz mal. Estou tão contente! Olha, até nem quero dormir. Fica aqui a
conversar commigo. São cinco horas. Para as dez pouco falta. Não custa
esperar. Está então n'aquella gaveta o frasco... Bom. Sabes, Betty? sou
feliz. Não quero dormir. Conta-me uma historia.

A pobre creatura, vendo-me alegre, sorria. Eu, entretanto, tinha os olhos
fitos na gaveta do lavatorio. Betty fallava, fallava! Eu ouvia as suas
palavras sem comprehender, como se ouve um murmurio d'agua.


X


A tarde descia no emtanto, e eu sentia uma inquietação, uma angustia
crescente.

Meu primo, não sei se poderei contar-lhe miudamente todos os transes
d'aquella noite. Não o exigirá de certo. Nada seria mais terrivel do que
ter de redigir e colorir o meu crime. Perdôe-me a confusão afflicta das
minhas palavras e os arabescos tremulos da minha lettra.

Eram dez horas da noite: fui á casa n.^o... Rytmel estava lá. Achei-o
pallido, e instinctivamente estremeci. Conversámos. Enquanto elle fallava,
eu olhava-o ávidamente, examinava a sua casaca, espreitava o volume que
devia fazer a carteira onde estavam as cartas. E revolvia com a mão humida
o bolso do meu vestido: tinha n'elle o frasco d'opio. Era um frasco de
crystal verde, facetado, com tampa de metal fixa. As palavras de Rytmel
n'essa noite eram muito doces e muito amantes. Procuravam explicar-me a
sua carta, e palpitavam ainda de paixão... Vinham realmente da verdade do
seu coração? Era uma rhetorica artificial á flor dos labios, enganadora,
como um panno de theatro? Não o sabia: só as cartas d'ella m'o poderiam
revelar, e elle tinha-as ali no bolso! Eu via o volume que fazia a
carteira no peito da casaca! Estava ali a sentença da minha vida, a minha
infelicidade insondavel, ou a immensa pacificação do meu futuro! Podia
porventura hesitar?--Elle fallava no emtanto. Eu tremia toda. Olhava
fixamente para um copo que estava sobre a mesa ao pé d'uma garrafa de
crystal da Bohemia. O reposteiro da alcova achava-se corrido; dentro
estava escuro.

Betty tinha ido commigo, e ficára n'um quarto distante, que dava para uns
terrenos vagos...

--E se houvesse um desastre! pensei eu de repente. Não ha pessoas que
succumbiram completamente, cujo adormecimento foi acabar de arrefecer no
tumulo?

Mas eu via sempre a saliencia da carteira, que me tentava como uma cousa
resplandecente e viva. Podia approximar-me d'elle de repente,
enfraquecel-o ao calor das minhas palavras, ir levemente, astuciosamente,
arrebatar-lhe a carteira, saltar, correr, atirar-me para o fundo do meu
_coupé_, e fugir. Mas se elle resistisse? Se perdesse a consciencia da sua
dignidade e da humilde debilidade do meu ser? Se me sujeitasse
violentamente, se me arrancasse outra vez as cartas?

Não podia ser. Era necessario que dormisse tranquillamente! Se as cartas
fossem innocentes, simples, inexpressivas como eu ajoelharia depois, ao pé
do seu corpo adormecido, como esperaria com uma ancia feliz que elle
acordasse! que aurora sublime acharia elle nos meus olhos quando os seus
se abrissem! Mas se houvesse nas cartas a culpa, a traição, o abandono?!

Levantei-me. Rytmel tinha ao pé de si um copo com agua. Bebia aos pequenos
golos quando fumava. Eu deixava-o fumar. Mas eu não sabia como havia de
achar um momento meu, bastante para deitar duas gotas de opio no copo.

Tive um expediente trivial, estupido.

--Rytmel, disse eu, como n'um theatro, como nas comedias de Scribe, com
uma voz imbecilmente risonha,--vá dizer a Betty, que póde ir, se quizer. A
pobre creatura dormiu pouco, está doente.

Elle saiu; ergui-me. Mas ao approximar-me da mesa, defronte do copo,
fiquei hirta, suspensa. Estive assim um tempo infinito, segundos, com a
mão convulsa apertando o frasco no bolso. Mas era necessario, eu tinha-o
ouvido fallar, voltava, sentia-lhe os passos, ia entrar... Tirei o frasco,
e louca, precipitada, mordendo os beiços para não gritar, esvasiei-o no
copo.

Elle entrou. Eu deixei-me abater sobre uma cadeira, trémula em suor frio,
e, não sei por quê, sentindo uma infinita ternura, disse-lhe sorrindo, e
quasi chorando:

--Ah, como eu sou sua amiga! Sente-se ao pé de mim.

Elle sorriu. E--meu Deus!--approximou-se, creio que sorriu, e tomou o
copo! E com o copo na mão:

--E sabe, disse elle, que ninguem o crê mais do que eu!... Se não fosse o
teu amor como poderia eu viver?

E conservava o copo erguido. Eu estava como fascinada. Via o reflexo da
agua, parecia-me vagamente esverdeada. Via as scintilações do crystal
facetado.

Finalmente bebeu!

... Desde esse momento fiquei n'um terror. Se elle morresse? Meu Deus, por
que? Não se dá opio ás creanças, aos doentes? não é elle a clemente
pacificação das dôres? Não havia perigo. Quando acordasse eu seria tão sua
amiga, tão terna com elle, para me absolver d'aquella aventura imprudente!
Ainda que seja culpado, amal-o-hei! pensava eu. Pobre d'elle! Não lhe
bastava ter de dormir assim forçadamente n'um somno pesado e cruel?
Amal-o-hia, culpado. Trahida, amal-o-hia ainda!

Elle entretanto estava calado, no sophá, com a cabeça encostada. De
repente pareceu-me vel-o empallidecer, ter uma ancia, sorrir. Não sei o
que houve então. Não me lembra se fallámos, se elle adormeceu brandamente,
se alguma convulsão o tomou. De nada me lembro.

Achei-me ajoelhada ao pé d'elle. Devia ser meia noite. Estava immovel,
deitado no sophá. Tinham passado duas horas. Senti-o frio, via-o livido,
não me attrevia a chamar Betty. Dei alguns passos pelo quarto em uma
distracção idiota. Cobri-o com uma manta.

--Vae accordar dizia eu machinalmente.
Compuz-lhe os cabellos ligeiramente desmanchados. De repente a idéa da
morte appareceu-me nitida, e pavorosa. Estava morto! Senti como o fim de
todas as cousas. Mas chamei-o, chamei-o brandamente, e com doçura...

--Rytmel! Rytmel!

E andava nos bicos dos pés para o não acordar! Subitamente estaquei,
olhei-o ávidamente, precipitei-me sobre o corpo d'elle, envolvi-o,
gritando suffocada:

--Rytmel! Rytmel!

Ergui-o: a hallucinação dava-me uma força cruel. A cabeça pendeu-lhe
inanimada. Desapertei-lhe a gravata. Amparei-o nos braços, e n'esse
momento senti o volume, a saliencia que na sua casaca fazia a carteira.
Veiu-me a idéa das cartas. Tudo tinha sido pelo desejo de as lêr.
Tirei-lhe a casaca; era difficil; os seus musculos estavam hirtos. Junto
com a carteira havia outros papeis e um masso de notas de banco. Ao
tomal-os, os papeis e as cartas espalharam-se no chão. Apanhei-as,
apertei-as na gravata branca e metti tudo no bolso.

Isto tinha sido feito convulsivamente, inconscientemente. Dei com os olhos
em Rytmel. Pela primeira vez via contracção mortal do seu rosto. Chamei-o,
fallei-lhe! Estava frenetica! Porque não queria elle acordar? Empurrei-o,
irritei-me com elle. Porque estava assim, porque me fazia chorar? Tinha
vontade de lhe bater, de lhe fazer mal.

--Acorda! acorda!

Insensivel! Insensivel! Morto! Ouvi passar na rua um carro. Havia pois
alguem vivo!

De repente, não sei por que, lembrei-me que tinha esvasiado o frasco!
Deviam ser só duas gotas! Estava morto!

Gritei:

--Betty! Betty!

Ella appareceu, arremessei-me aos seus braços. Chorei. Voltei para junto
d'elle. Ajoelhei. Chamei-o. Quiz dar-lhe um beijo: toquei-lhe com os
labios na testa. Estava gelada. Dei um grito. Tive horror d'elle. Tive
medo do seu rosto livido, das suas mãos geladas!

--Betty, Betty, fujamos!

Consciencia, vontade, raciocinio, pudor, perdi tudo aos pedaços. Tinha
medo, sómente medo, um medo trivial, vil!

--Fujamos! Fujamos!

Não sei como saí.

Fóra da porta vi ao longe, no começo da rua, uma luz caminhar! caminhava,
crescia! Havia alguem, vestido de vermelho, que a trazia! Parecia-me ser
sangue! A luz crescia. Esperei, a tremer. Aquillo caminhava para mim.
Approximava-se! Eu estava encostada á porta, na sombra, fria de pedra. A
luz chegou: vi-a. Era um padre, era outro homem com uma opa vermelha e uma
lanterna. Iam levar a alguem a extrema uncção...

Amparei-me no braço de Betty, e principiei a andar,
sem saber para onde, como louca.[*]


[*] Seguiam-se as linhas em que se contava o encontro que teve commigo, as
quaes linhas elimino por se referirem a successos que eu mesmo narrei e
que v. sr. redactor, já conhece.--A. M. C.




CONCLUEM AS REVELAÇÕES DE A. M. C.


I


Convidada a expor o que sabia, a condessa disse de viva voz, com humildade
e com firmeza, a causa e o modo como involuntariamente matara Rytmel.

--Eis as cartas e as notas que elle trazia comsigo--concluiu ella,
collocando sobre a mesa um masso de papeis atados n'uma gravata branca. As
minhas derradeiras disposições, accrescentou, estão feitas. Dêem-me o
destino que quizerem. Inflijam-me o castigo que mereço.

Estavamos todos calados. F... adiantou-se para o centro da sala e ergueu a
voz:

--Castigar é usurpar um poder providencial. A justiça humana que se
apodera dos criminosos não tem por fim vingar a sociedade, mas sim
protegel-a do contagio e da infecção da culpa. Todo o crime é uma
enfermidade. A acção dos tribunaes sobre os criminosos, posto que nem
sempre cesse de facto, cessa effectivamente de direito no momento em que
termina a cura. Sequestrar aquelles em que o mal deixou de ser uma
suspeita physiologica, e por conseguinte uma verdade scientifica, é fazer
á sociedade uma extorsão, que, por ser muitas vezes irremediavel não deixa
de ser monstruosa e horrivel. Todo aquelle que não é pernicioso, é
necessario, é indispensavel ao conjuncto dos sentimentos, ao destino das
idéas, á arithmetica dos factos no problema da humanidade. A natureza do
acto que estamos ponderando, as rasões que o determinaram, as
circumstancias que o revestiram, a intenção que lhe deu origem, tudo isto
nos convence de que a liberdade d'esta senhora não póde constituir um
perigo. Encarcerada e entregue á acção dos tribunaes, seria uma
causa-crime, interessante, escandalosa, prejudicial. Restituida a si
mesma, será um exemplo, uma lição.

E approximando-se da porta, correu a chave que a fechava por dentro,
abriu-a de par em par, e dirigindo-se á condessa, com voz respeitosa e
grave, accrescentou:

--Vá, minha senhora: tem a mais plena liberdade. Poderia disputar-lh'a a
justiça official, não póde empecer-lh'a a rectidão dos homens de bem a
quem foi entregue a decisão da sua causa. O seu futuro, violentamente
assignalado pela desgraça, não pertence aos criminosos, pertence aos
desgraçados. Leve-lhes a melancolica lição d'estes desenganos, e permitta
Deus que perante a suprema justiça, possam os beneficios obscuros e
ignorados que houver de espalhar em volta de si, compensar os erros que
atravessaram o seu passado! Os vestigios da sua culpa ficarão sepultados
n'esta casa.

Nós abrimos-lhe passagem para que sahisse. A condessa, n'uma pallidez
cadaverica, vacillava; faltavam-lhe as forças; não podia sustentar-se em
pé. O mascarado alto deu-lhe o braço. Ella fez um movimento como se
tentasse fallar; o seu rosto contrahiu-se n'uma profunda expressão de dôr;
hesitou um momento; por fim comprimiu os beiços no lenço e sahiu abafando
uma palavra ou estrangulando um soluço.

Momentos depois ouvimos a carruagem affastando-se com aquillo que fôra no
mundo a condessa de W...

Haviamos accordado no modo de occultar o cadaver, o que se tornava tanto
mais facil quanto era inteiramente ignorada a assistencia do capitão em
Lisboa.

Vieramos para o pavimento inferior do predio, a uma casa terrea, a que se
descia por quatro degraus para baixo do solo. Era ao fim da tarde.
Estavamos alumiados com a luz das velas, porque não entrava na loja a luz
do dia. Tinha-se cavado uma profunda cova. Sentia-se o cheiro humido e
acre da terra revolvida. Dois dos individuos a que tenho chamado os
mascarados, seguravam duas serpentinas em que ardiam dez velas côr de
rosa. Do travejamento escuro do tecto pendiam como cortinas pardacentas e
prateadas as teias de aranhas rasgadas pelo peso do pó.

Desenrolámos o fardo que tinhamos collocado junto da cova, e contemplámos
pela derradeira vez a figura do morto estendido sobre a sua manta de
viagem.

Tinham-lhe atado a gravata branca, abotoado o collete e vestido a casaca
azul de botões de ouro, em cuja carcella se via ainda pendida uma rosa
murcha. A cabeça d'elle, na luz a que estava sujeita, era de uma expressão
ideal. Os olhos, de que se não viam as pupillas, apagados e immoveis,
davam ao seu rosto o vago aspecto que apresentam os das antigas estatuas.
Nos labios entre-abertos parecia pairar um leve sorriso sob o bigode
arqueado. Os anneis do cabello, despenteados pelo contacto da manta em que
viera envolto o cadaver, destacavam na lividez da fronte como um vello de
ouro n'uma superficie de marfim.

Havia um silencio profundo. Ouvia-se o bater dos segundos nos relogios que
tinhamos nas algibeiras e o zumbir das moscas que esvoaçavam sobre a face
do morto. Eu fitando-o com os olhos marejados de lagrimas, pensava
melancolicamente...

Pobre Rytmel! Se n'este momento solemne, em que o teu corpo espera á beira
da cova pelo seu descanço eterno, te faltam na terra as pompas funebres
devidas á tua jerarchia; se te não seguiu até aqui um prestito de
uniformes recamados de ouro; se nem sequer tens ao entrar na tua
derradeira morada as orações de um padre e a luz de um cirio, cubra-te ao
menos a benção da amisade! Descendente de lords, moço, intelligente e
bello, quando todas as flores que perfumam a vida desabrochavam debaixo
dos teus passos, apaga-se de subito no firmamento a estrella que presidiu
ao teu nascimento, e tu baqueias como o ente mais despresivel no fundo de
uma sepultura sem lapide, sem nome, na mesma casa em que vieste procurar a
ultima expressão da tua felicidade, á luz das mesmas velas que alumiaram o
teu derradeiro beijo! Os outros desgraçados que morrem têem ao menos na
terra um logar assignalado onde repousam as suas cinzas, e onde podem ir
os que os amaram chorar por elles. É mais cruel o teu destino: tu morres e
desappareces! Não ensombrarão a tua campa as arvores tristes dos
cemiterios. As aves que passarem nos ceus não baixarão a beber da agua que
as chuvas tiverem deixado na urna do teu mausoleu. A lua, terna amiga dos
mortos, não virá beijar por entre a rama negra dos cyprestes, a brancura
da tua campa. O orvalho das madrugadas não chorará nas flores do teu
jazigo. As abelhas não murmurarão em torno das rosas plantadas sobre o teu
corpo. As borboletas brancas não adejarão no fluido de ti mesmo que
podesse romper do seio da terra para a luz da manhã no aroma dos
jasmineiros e dos goivos. Tua mãe, pensativa e pallida, procurará debalde
a grade em que se ampare ao dobrar os joelhos e levantar para o céu esse
olhar de interrogação em que a lembrança dos filhos mortos se envolve como
na tunica luminosa de uma ressurreição.

O _mascarado alto_, curvou-se sobre o cadaver de Captain Rytmel e ergueu-o
vigorosamente pelos hombros. Nós amparámos o corpo e descemol-o ao fundo
da cova. O mascarado, ajoelhando-se depois no chão, cobriu com um lenço o
rosto do morto e disse, como se estivesse fallando a uma creança
adormecida:

--Descança em paz! Eu irei dizer a tua mãe o logar em que repousa o teu
corpo, e voltarei a ajoelhar-me sobre esta sepultura depois de ter
recebido no meu proprio seio as lagrimas que ella derramar por ti. Adeus,
Rytmel! adeus!

E impelliu em seguida para dentro da cova uma grande porção da terra
amontoada aos pés. A terra desabou de chofre sobre o cadaver, levantando
um som baço e molle.


II


Examinámos depois os papeis de Rytmel afim de coordenarmos os seus
negocios. Verificou-se a existencia de mil e trezentas libras em notas do
banco de Inglaterra. Entre as cartas não havia uma só letra de miss Shorn.

Nenhum de nós tinha o espirito bastante socegado para poder reentrar
immediatamente nos assumptos triviaes da existencia. Resolvemos permanecer
ali até que decorressem alguns dias sobre a catastrophe de que tinhamos
sido testemunhas.

O predio em que estavamos foi comprado em nome de lady... a mãe de Rytmel,
e n'elle se guardaram todos os objectos que lhe tinham pertencido. Um
cofre de ferro, damasquinado d'ouro e destinado a receber as cinzas do
morto, foi collocado no logar em que elle se achava sepultado.

O _mascarado alto_ dispunha-se a partir para Londres quando tivemos
noticia da publicação das cartas do doutor n'este periodico. A condessa
declarou que se entregaria á policia, se não levantassemos na imprensa as
suspeitas formuladas na carta de _Z..._ ácerca da probidade do medico, e
se F... se não desdissesse categoricamente das injurias que nos dirigira
na carta imtempestivamente mandada ao dr... por intermedio de Friedlann. A
condessa auctorisava-nos a tornarmos publica a sua historia, dizendo que
tinha deixado para sempre de pertencer ao mundo, para o qual a biographia
que ella lhe legava seria talvez um exemplo proficuo.

Foi então, sr. redactor, que determinámos referir-lhe todos os pormenores
d'este doloroso acontecimento, occultando ou substituindo os nomes das
pessoas que tiveram parte n'elle, e deixando á sociedade a faculdade de as
descobrir e o direito de condemnal-as ou absolvel-as.

A condessa resolveu em seguida entrar em um convento, que ella mesma
escolheu depois de miudas indagações. O _mascarado alto_ acompanhou-a e eu
segui-o a uma villa da provincia do Minho, onde existe ainda, regido com
todo o rigor ascetico do estatuto, um velho convento de carmelitas
descalças, habitado por cinco ou seis religiosas. Estas mulheres
decrepitas vivem como d'antes na pobreza de que fizeram voto, mantendo a
oração, a penitencia e o jejum com a mesma exaltação mystica, com o mesmo
fervor catholico dos primeiros annos das suas nupcias com o divino esposo.
Trazem os pés nus e o corpo constantemente envolto na aspereza estreme do
burel. Não usam roupas de linho nem algodão. Em nenhum dia do anno se
permittem carne ás suas refeições. Comem juntas no antigo refeitorio,
havendo sempre uma que revesadamente se prostra á entrada da sala, segundo
o primitivo uso da ordem, para que as outras lhe passem por cima ao entrar
e ao sair da mesa. Não têem patrimonio de nenhuma especie, nem outro algum
rendimento que não seja o producto dos trabalhos que fazem. Furtadas a
toda a convivencia externa, vivem na clausura mais estreita e na miseria
extrema. Ninguem no mundo tornou a ver as moradoras d'aquella casa desde
que entraram n'ella. As que morrem são enterradas pelas outras no claustro
e cobertas com uma pedra lisa, sem nome e sem data, Não ha distico nem
outro signal que difference as que deixam de existir. A morte para todas
ellas começa no momento em que transpõem o limiar da portaria. Dentro tudo
é sepulchro. A morte é simplesmente a mudança de cubiculo.

Tal foi a casa escolhida pela condessa para recolhimento e asylo do resto
de seus dias.

O exterior do edificio era mysterioso e lugubre. Cingia-o em toda a sua
amplitude uma alta muralha que o disgregava do resto do mundo, cerrando as
casas habitadas pelas freiras ao exame de fóra. Era um predio emparedado.
A muralha, que media a altura de quatro andares, era da côr da estamenha,
sombria e triste, manchada de grandes nodoas esverdeadas e negras como o
capuz de um ermita, uma especie de lençol em que se enrolasse para o
enterro uma casa morta. Havia um ponto em que esta facha se recolhia,
formando o pateo por onde se entrava para o convento, cuja porta, mordida
pelos annos, chapeada e cravejada com enormes pregos, se via no fundo
atravez dos grossos varões de uma grade de ferro. Pelas juntas
desarticuladas das grandes pedras que lageavam o pateo, rompiam moitas de
ortigas, com a rudeza de cabellos hirsutos, sahidos pelos rasgões de um
barrete. Do meio do largo surgia o bocal da um poço, cujo balde seguro por
uma corda de esparto pendia de uma estaca. No chão estavam estendidos os
andrajos das pobres da visinhança, que vinham laval-os ao pé do poço, e
n'esse recinto os deixavam a enxugar juntamente com as enxergas
dilaceradas e apodrecidas dos berços dos seus pequenos. A um canto do
pateo pendia do muro uma corrente de ferro com que se tangia uma sineta
interior. A este signal via-se n'uma abertura da alvenaria rodar no muro
um cylindro de madeira, que por um movimento vagaroso mettia para dentro a
sua superficie concava e mostrava para fóra o seu interior convexo.
Parecia quando isto se ouvia que o taciturno monstro entreabria a
palpebra, deixando vêr uma orbita sem olho. Este apparelho chamma-se a
roda. A condessa pronunciou ahi uma palavra, a que respondeu de dentro uma
especie de gemido, e foi esperar em seguida para junto da porta negra ao
fundo do pateo.

Quando a porta se abriu e o primo da condessa lhe apertou pela ultima vez
a mão, as lagrimas, que até ahi conseguira difficultosamente reprimir,
saltaram-lhe dos olhos.

--Acha horrivel, não é verdade? perguntou-lhe ella com um sorriso em que
transparecia a extranha luz da resignação das martyres antigas. Que queria
que eu fizesse, meu querido amigo? Matar-me? Prostituir-me á convivencia
da sociedade? Não posso. Falta-me o valor para sacrificar ao meu
infortunio a salvação da minha alma, e escuso de dizer-lhe que me falta
igualmente a intrepidez precisa para sacrificar ao socego ordinario da
vida o pudôr do meu coração. Bem vê pois que acceitei a solução mais
suave. Coitado! como lhe doe a tristeza do meu destino! Deixe estar:
prometto-lhe morrer breve, se me não succeder aquella desgraça receada por
Santa Thereza de Jesus: que o prazer de me sentir morrer me não prolongue
mais a vida!

Entregando-lhe em seguida o capuz e o manto de casimira em que fôra
envolvida:

--Adeus, meu primo,--disse-lhe ella deixando-se beijar na testa,--adeus!
Peça a Deus que me perdôe, e aos vivos que me esqueçam.

Aos primeiros passos que ella deu para lá da porta, esta fechou-se do
mesmo modo porque havia sido aberta, sem que ninguem mais fosse visto,
tendo mostrado um buraco lobrego, negro e profundo como a guela de um
abysmo, e a amante de Rytmel entrou no claustro. Os ferrolhos interiores
rangeram successivamente nos anneis, expedindo uns sons intercortados,
similhantes a soluços arrancados de uma garganta de ferro.

O _mascarado alto_ passou parte d'essa noite na villa, esperando a
mala-posta que partia á uma hora. Ao subirmos juntos á carruagem ouvimos
uma especie de rebate em dois sinos de uma igreja. Perguntámos o que era.
O deputado da localidade, que nos acompanhava no _coupé_, respondeu,
atirando fóra um phosphoro com que accendera um charuto:

--São as carmelitas que pedem o soccorro da caridade, porque não teem que
comer.

O cocheiro fez estalar o açoite, e a berlinda partiu a galope, abafando o
vozear entristecido das sinetas com o estrepito que ia fazendo pelas
calçadas estreitas e tortuosas da povoação.

Pouco mais tenho que contar-lhe.

O conde de W... recebeu em Bruxellas uma carta de sua mulher contendo
estas linhas:

«Destituo-me voluntariamente da minha posição na sociedade. De todos os
direitos que por ventura podesse ter, um só peço que não seja contestado:
o direito de acabar. Supplico-lhe que me permitta desapparecer, e que
acredite na sinceridade da minha gratidão eterna.»

O doutor está, como elle mesmo disse, nos hospitaes de sangue do exercito
francez.

Frederico Friedlann partiu repentinamente, no mesmo dia em que lançou no
correio a carta de F..., para ir encorporar-se na segunda _landwer_ do seu
paiz.

F... e Carlos Fradique Mendes achavam-se ha dias em uma quinta dos
suburbios de Lisboa escrevendo, debaixo das arvores e de bruços na relva,
um livro que estão fazendo de collaboração, e no qual--promettem-n'o elles
á natureza mãe que viceja a seus olhos--levarão a pontapés ao exterminio
todos os trambolhos a que as escolas litterarias dominantes em Portugal
têem querido subjeitar as inviolaveis liberdades do espirito.

Se me é licito por ultimo fallar-lhe de mim, saberá, sr. redactor, que
estou recolhido em uma pequena casa na provincia. Se ainda se lembra de
Therezinha, não extranhará que eu accrescente que estou casado ha dias.
Precisava d'isto o meu coração: da paz de um lar tranquillo. Presencear as
profundas commoções romanescas da vida é como ter assistido a um grande
naufragio: sente-se então a necessidade consoladora das cousas pacificas;
então mais que nunca se reconhece que o ser humano só póde ter a
felicidade no dever cumprido.--_A. M. C._




A ULTIMA CARTA


Sr. redactor do _Diario de Noticias_.--Podendo causar reparo que em toda a
narrativa que ha dois mezes se publica no folhetim do seu periodico não
haja um só nome que não seja supposto, nem um só logar que não seja
hypothetico, fica v. auctorisado por via d'estas lettras a datar o
desfecho da alludida historia--de Lisboa, aos vinte e sete dias do mez de
setembro de 1870, e a subscrevel-a com os nomes dos dois signatarios
d'esta carta.

Temos a honra de ser, etc.

    Eça de Queiroz.

    Ramalho Ortigão.




INDICE


Prefacio da 2.^a edição

Exposição do Doutor ***

Intervenção de Z

De F... ao medico

Nota

Segunda carta de Z...

Narrativa do mascarado alto

As revelações de A. M. C.

A confissão d'ella

Concluem as revelações de A. M. C.

A ultima carta

     *     *     *     *     *

Notas de Transcrição:

Palavras aparentemente erradas no livro original [1] "quando", [2] chorar.





End of the Project Gutenberg EBook of O Mysterio da Estrada de Cintra, by 
José Maria Eça de Queiroz and Ramalho Ortigão

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O MYSTERIO DA ESTRADA DE CINTRA ***

***** This file should be named 20574-8.txt or 20574-8.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        http://www.gutenberg.org/2/0/5/7/20574/

Produced by Pedro Saborano (This file was produced from
images generously made available by National Library of
Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)


Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.

Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties.  Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark.  Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission.  If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy.  You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research.  They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks.  Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.



*** START: FULL LICENSE ***

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
http://gutenberg.org/license).


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.