A agua profunda

By Paul Bourget

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Title: A agua profunda

Author: Paul Bourget

Release Date: October 2, 2009 [EBook #30161]

Language: Portuguese


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    Notas de transcrição:

    Foram corrigidos diversos erros tipográficos, que por serem de pouca
    importância, e não afectarem o significado do texto, não merecem
    especial referencia.

    No livro impresso a utilização de aspas (« ») foi feita de forma
    muito irregular. Recorremos à versão original da obra em francês
    de forma a resolver todas as situações que nos pareceram duvidosas.
    Isto resulta numa ligeira diferença em relação ao livro impresso
    em português (Lisboa, 1904), mas mais fiel ao que o autor pretendia.




                        COLLECÇÃO HORAS DE LEITURA


                              PAULO BOURGET

                             A AGUA PROFUNDA




                            LIVRARIA EDITORA
                             GUIMARÃES & C.ª
                        108--Rua de S. Roque--108
                                 LISBOA

                                  1904




I


Ha certos proverbios que, passando d'um paiz para outro, tomam uma
physionomia tão differente, que bastaria uma tal variação para provar
que os caracteres nacionais se conservam na realidade radicalmente
distinctos e irreductiveis.

O francez, por exemplo, diz, a respeito d'um homem feliz «que nasceu
impellicado», e o inglez «que nasceu com uma colher de prata na bocca».

Dois rifões, duas raças, dois destinos: d'um lado um povo voluvel,
espirituoso, elegante, amando a galanteria, apaixonado pelo prazer e
naturalmente divertido;--do outro lado uma nação avida, dominada pelo
positivo e que até no luxo quer o conforto.

São aquelles dois traços caracteristicos que resaltam d'um primeiro
proverbio; vejamos outro.

D'alguem muito circumspecto diz o francez: «não ha peor agua do que a
agua quieta», o italiano: «as aguas tranquillas destroem as pontes» e o
inglez: «as aguas tranquillas correm profundas». E os trez teem razão.

O francez é tão expansivo e sociavel, que uma alegria que não communique
não é completa; um pesar que guarde no intimo do seu coração é um
dobrado pesar. Julga os outros por si, e, na presença d'alguem menos
expansivo, está desconfiado.

O italiano, por natureza reflectido e previsto, possue a desconfiança no
mais elevado grau. Vê na reserva uma ameaça, no silencio uma cilada, é
que Machiavel era de Florença, do paiz aonde a astucia é sempre
acompanhada da gravidade, e o machiavellismo fez carreira.
Orgulhar-se-ha com a bella allegoria que pinte uma arca de Noé,
resplandecente de luz, sobre o glauco Arno ou o Tibre flávo.

Nos inglezes o espirito realista é acompanhado da mais tacita e
meditativa melancolia.

Observae uma carta do seu paiz e vereis como Manchester está nas
proximidades dos lagos e do condado de Wordsworth.

A cada momento empregam um aphorismo de voracidade rapace. Teem comtudo
uma graça rude que não perdem ainda mesmo nos momentos mais criticos. E
a verdade é que o Anglo-Saxão se nos apresenta na sua historia e na sua
litteratura: duramente brutal, quando é brutal e excessivamente
sonhador, quando é sonhador.

Estas duas pequenas phrases encerram uma grande verdade.

É, porém, justo que se diga que os casos de psychologia ethnica teem
innumeras excepções.

A prova está na recordação d'esse poetico proverbio inglez sobre as
«aguas profundas» que o meu espirito me sugeriu--ó ironia--no proprio
momento em que pretendo contar uma aventura parisiense, succedida no
outomno passado, e cuja heroina não tem, com certeza, nas veias a minima
gotta de sangue britanico. E, comtudo, nenhuma imagem me parece resumir
melhor a impressão que em mim produziu esse pequeno drama sentimental,
quando me foi referido, em intima confidencia, cujo mysterio respeitarei.

Tendo-se desenrolado essa tragedia intima, sem escandalo, entre um
pequeno numero de personagens, bastará uma simples troca de nomes para
conservar um incognito cuja necessidade o leitor reconhecerá certamente,
desde que admitta, apezar da singularidade de certos detalhes, que tudo
n'ella é verdadeiro.

Terminada a narração, comprehenderá a leitora, se se interessou pelos
segredos da delicada mulher cuja historia se faz na _Agua Profunda_, que
irresistivel coincidencia compelliu o historiador d'este episodio
romanesco a inscrever na sua primeira pagina a synthese do velho proverbio?

Encontrará tambem, casualmente, uma especie de symbolo no contraste
frisante entre o cunho parisiense dos logares e do meio onde se
desenrolaram os incidentes d'esta chronica de costumes, e a visão do que
se passa além da Mancha, avocada ao espirito pelo aphorismo inglez: a
corrente obscura e silenciosa d'um rio da Irlanda por entre os seus
prados, a immobilidade vaporosa d'um lago da Escocia na solidão das suas
montanhas vestidas de urze?

Ainda mesmo que ella seja no fundo d'uma sensibilidade affectuosa pouco
communicativa e a escrava d'esses deveres de severidade, d'esses
deleterios prazeres a que obriga a infelicidade sempre cubiçada d'uma
situação em evidencia, aquelle contraste não é o de toda a sua existencia?

Preferia, talvez, em volta das suas emoções, das suas esperanças, dos
seus pezares, um quadro que lhe recordasse a sua propria vida: a prova
d'um vestido em casa d'uma modista celebre; visitas em Monceau, os
Campos-Elysios, o arrabalde de S. Germano; a volta para casa; a mudança
de vestuario; jantar fóra ou receber; e acabar o dia em qualquer reunião
com pretensões a elegante, ou no camarote de algum theatro em que se
exhibam peças para fazer rir.

É forçoso, porém, que estas luctas quasi mortiferas do coração e do meio
tenham uma especie de attractivo doentio, disfarçado, mas bem intenso, e
que correspondam, nas sensibilidades mais apuradas, a uma inexplicavel
necessidade de emoções violentas.

Só assim se explica que Paris e a sua sociedade--ou melhor dizendo--a
mescla, phantasticamente formada, que constitue o seu grande
mundo--Paris, então, e as suas sociedades (é necessario o plural)
continuem a attrahir, a prender um sem numero de pessoas que, pela sua
fortuna, são inteiramente livres e se encontram em condições de se
libertar d'um tal meio.

Amaldiçoam, quotidianamente, o captiveiro e a sua atmosphera moral e não
se vão embora, como se não se podesse viver n'outra parte.

A anecdota aqui referida, provará effectivamente como esta cidade, que
realisa a cada momento a celebre phrase do Imperador sobre o
_impossivel_ encerra de tudo na sua decoração estravagante, até grandes
almas...




I

Seguindo uma pista


Disse já que este episodio datava do outomno passado; mas teria sido
muito mais correcto, asseverando que foi n'essa epocha que se deu o seu
epilogo. Porque a parte dramatica da aventura não foi, como acontece
quasi sempre, mais do que a explosão d'uma mina ha muito tempo preparada
pelos acontecimentos. É possivel tambem que, apezar de tudo, se não
fosse um simples acaso, e bem inesperado, nunca ella tivesse rebentado,
como acontece ainda maior numero de vezes.

É assim a vida humana: o inevitavel e o imprevisto acham-se n'ella
tão intimamente ligados e confundidos, que ao observarmos attentamente
essa sequencia de causas e de effeitos, sente-se uma inexprimivel
impressão de logica e de incoherencia, na qual só a crença n'uma suprema
razão de todas as coisas nos permitte presentir uma acção providencial.

Mas é este um ponto de vista generico e que a nossa philosophia concebe
depois de demorada observação; tal philosophia porem é impotente, quando
procura interpretar da mesma maneira acontecimentos d'uma radical
insignificancia: o que, por exemplo, precipita a tragedia que vou
contar, a simples visita d'uma senhora a um armazem de novidades.

A formosa dama de que se trata e que chamarei, conservando-lhe o
titulo--este detalhe é de pequena importancia--a baroneza de Node,
estava muito burguezmente apreçando tapeçarias. Ouvira dizer que o
grande armazem em questão havia recebido um variado sortimento de
tapetes do Oriente. Tinha, por isso, ido ali, no principio d'uma tarde
de novembro, com a esperança de que áquella hora, por ser a de menor
concorrencia, melhor poderia realisar as suas compras.

Effectuadas estas, dirigia-se para a sahida, com passo lento, deleitando
o olhar, mesmo contra sua vontade, com a observação d'esses milhares de
objectos de tão differentes proveniencias e para tão diversos usos,
amontoados no balcão, pendurados nas paredes, empilhados nas estantes e
dispostos nas vitrines. O quadro é sufficientemente conhecido para
que mereça a pena reproduzil-o.

A joven baroneza tinha entrado no armazem ás duas horas, não eram ainda
tres e já essa multidão, que desejava evitar, começava a envolvel-a por
todos os lados.

O vasto compartimento regorgitava com esse formidavel affluxo feminino
que parece dar razão aos prophetas da democracia. O sonho da igualdade
universal não se acha realisado completamente no dedalo d'um semilhante
imporio? Não se encontram ali confundidas todas as classes n'uma mistura
estravagante? A modesta esposa do funccionario com mil e oitocentos
francos de vencimento acotovela a consorte do judeu financeiro, cujos
lucros no jogo de fundos se elevam, em 31 de dezembro, a meio milhão. A
provinciana, para a qual a viagem a Paris constitue um acontecimento,
passa rente á estrangeira que vae de São Petersburgo ao Cairo e de
Cannes a New-York com a mesma facilidade com que ella veio do seu hotel
da praça Vendôme. A mundana, cujo automovel de grandes dimensões a
aguarda á porta, crusa-se com o estudante do bairro Latino que caminha a
pé ao longo das ruas, para não desfalcar o modesto orçamento do seu
viver de bohemio, com a quantia de sessenta centimos que pagaria n'um
_tramway_.

O colossal bazar não constitue, pois, uma tentação para todos os
desejos, uma occasião propicia para occorrer a todas as faltas?

Mesmo uma grande senhora, que nos ultimos cincoenta annos só tenha tido
fornecedores especiaes, recorre por fim a esse banal e commodo
mercado, e transige em ir passear até lá, como fez a baroneza de Node, a
despeito de aquella promiscuidade forçada, com aquelle seu todo
aristocratico, patricio, que se não imita e que se não define. Sabe-se
apenas quem o possue.

É uma maneira particular de olhar, de andar, um porte caracteristico,
onde ha a timidez e a afouteza, a altivez e a naturalidade, um pouco de
orgulho e de simplicidade, um não sei quê, emfim, em que entram todos
esses predicados em proporções convenientes.

Mas todas as mulheres os surprehendem, e todos os homens.

Por certo que a baroneza de Node não denunciava, ao analysar a sua
figura, nada de particularmente notavel, parecendo até, á primeira
vista, que deveria passar desapercebida, por toda a parte; era uma
mulher mais baixa do que alta, muito gentil, mas d'uma gentileza um
tanto fransina, um pouco delicada, de olhos pretos, d'uma notavel
ternura, cabellos castanhos, iguaes a todos os cabellos castanhos, e
d'um talhe fino, esbelto, semilhante a todos os talhes finos.

As suas toilettes não eram nem muito severas, nem demasiado vistosas.

N'esse dia, usava um vestido de passeio, de veludo castanho com
applicações côr de hervilha clara, um chapeu adequado, sem o menor
caracter de excentricidade.

E, comtudo, os cavalheiros e as senhoras que se cruzavam com ella
seguiam-na com um olhar mais persistente e curioso e os empregados
da casa caminhavam ao seu encontro com uma sollicitude mais caracterisada.

Pormenores interessantes: as orelhas garridamente guarnecidas, os dentes
muito brancos e muito iguaes, a finura das mãos e dos pés corrigiriam,
sem duvida, o que o seu aspecto geral tivesse de indifferente, se não
fosse o tal «não sei quê». Mas ella tinha-o, e não sei tambem porque,
sabia que o tinha.

Um muito leve, um imperceptivel traço de impertinencia, pairava, mais
accentuado quando se não desejava tornar notada, nas suas narinas finas
e nos seus labios sensuaes.

Era o unico senão d'aquella physionomia. Quando nada despertava a sua
attenção, como no caso presente, emanava de todo o seu ser um certo
desprazimento que tanto poderia revelar a apathia d'uma mundana exhausta
de frivolidades ou uma extrema preoccupação de si propria.

Este ar de enfado estava de tal modo impresso no seu rosto delicado que
modificava logo a impressão que o seu porte aristocratico havia suscitado.

--«É uma mulher vulgar», diziam de si para si os visitantes que se
sentiam attrahidos para outras clientes de aspecto mais jovial.

«Como é formosa!» pensavam os rapazes, que se encontram sempre em
abundancia n'estes pontos de concorrencia feminina, promptos a seguir
indistinctamente uma mulher bonita sem se lhe approximarem, para depois
pensarem n'ella não menos indistinctamente.

E, portanto, se um d'elles seguisse attentamente a gentil baroneza,
teria visto a sua physionomia d'uma friesa, que parecia dever
conservar-se sempre impassivel, contrahir-se numa expressão de aguda
curiosidade, n'um determinado momento da visita ao grande armazem; um
brilho intenso illuminar o seu olhar quasi melancolico, e parar de repente.

Era forçoso que no meio d'essa multidão agitada, que se movia e expunha
n'uma atmosphera cada vez mais suffocante, tivesse observado alguma
coisa ou alguem que despertasse n'ella emoções bem vivas e profundas,
porque uma tão instantanea metamorphose, que para o observador estranho
seria imperceptivel, a um simples golpe de vista.

Um perfil observado e reconhecido, entre tantos outros, ao fundo d'uma
escada que se preparava para descer, era a causa da sua emoção; por isso
os seus pequeninos pés se movem com grande rapidez para a transpor o
mais breve possivel, olhando sempre por sobre as cabeças dos
transeuntes, para não deixar de ver aquella cuja presença a havia
impressionado tão vivamente.

Não tinha o facto em si apparentemente nada de anormal; aquella pessoa
era nada mais e nada menos do que uma das suas primas mais intimas,
quasi uma irmã, a jovem marqueza de Chalinhy.

Mas a baroneza de Node tinha motivos muito especiaes (o decorrer da
narração o demonstrará) para ligar uma extrema importancia aos mais
insignificantes actos e gestos d'essa supposta amiga:

--«Valentina aqui?» dizia ella, deslisando rapidamente por entre a
multidão cada vez mais compacta dos compradores. Era guiada pelas duas
grandes plumas pretas que guarneciam o chapeu da senhora de Chalinhy
«depois de se ter recusado a sahir comigo a pretexto de ter que fazer
visitas? Era então uma desculpa por não querer andar comigo... Reconheço
bem que está mudada. Tem suspeitas. Já o disse a Norberto depois da
estada em Deauville... Esta recusa em sahirmos juntas e depois que lá
esteve... Quando se quer saber a verdade sobre as coisas importantes é
necessario lançar mão dos mais insignificantes pretextos... Pelas suas
maneiras, quando nos encontrarmos, verei o que ha em tudo isto...».

Este monologo envolvia um d'esses terriveis segredos que a vida elegante
muitas vezes occulta com as suas formulas banaes. Ao termina-lo, as suas
faces, habitualmente descóradas, estavam rosadas; os seus movimentos
tinham tomado uma tal celeridade, que, apesar dos obstaculos, já quasi
se encontrava junto d'aquella que perseguia.

Alcançal-a-hia em alguns segundos apenas, quando, repentinamente,
começou a demorar o passo, como se uma nova idéa a determinasse a
augmentar a distancia que a separava da senhora de Chalinhy.

É que, envolvendo sua prima n'um olhar observador, estudando-a, sem que
ella a visse, a baroneza de Node, acabava effectivamente de sentir uma
nova sensação, a principio confusa e inconsciente, depois definida e
precisa, a ponto de se tornar o inicio d'uma curiosidade tambem
nova, mais extraordinaria e mais viva ainda: parecia-lhe que a outra
atravessava a multidão como alguem que procure confundir-se n'ella, a
fim de fazer perder a pista a quem pretenda seguil-a.

A marqueza levava um vestido escuro, que não attrahia as attenções.

O véo de málhas apertadas que escondia o seu rosto, parecia ter sido
escolhido propositadamente para tal fim. Caminhava ligeira, como uma
pessôa que tem pressa, e sem olhar para nenhum d'esses mil objectos
differentes que se achavam expostos por toda a parte em torno de si.

--«Aonde irá ella?...»

Ainda esta pergunta não tinha penetrado no pensamento de Joanna, e já
ella lhe respondia mentalmente da fórma porque o fariam noventa e nove
por cento das parisienses.

--«Aonde póde ir uma mulher bonita, de trinta annos, e que se occulta?

«Será possivel que Valentina, a gráve e prudente Valentina, vá para uma
entrevista amorósa ou regresse d'ella?»

Tudo no seu caracter protestava contra semilhante hypothese.

A baroneza de Node sabia-o melhor do que ninguem, tendo sido educada com
ella, e encontrando-se, por circumstancias que lhe não eram muito
lisongeiras, ao corrente dos segredos mais intimos da vida da sua prima.
Mas quando uma mulher não é honesta--e Joanna não o era--não acredita
nunca, sem reserva, na irreprehensivel virtude d'uma outra. Por isso é
que o mais leve indicio a punha no rasto do que a humanidade em
linguagem de giria, chama um «embrulho» e vel-a hemos, apezar de dizer
respeito á sua melhor amiga, desenvolver um talento de investigação tão
completo como o d'um velho magistrado.

Eram uns nadas que tinham facil explicação: a recusa em sahirem juntas,
com o pretexto de ter que fazer visitas, e depois esta entrada no grande
armazem de novidades!

Bastava que a marqueza de Chalinhy não tivesse encontrado as pessôas que
ia visitar, e que depois, passando pela rua de Rivoli, deante da fachada
principal do grande armazem se tivesse lembrado, á ultima hora, de fazer
qualquer compra. Era ainda uma insignificancia o seu fato escuro, o seu
veu expesso e a sua passagem quasi furtiva atravez da multidão. E
portanto, esta tão vaga, tão gratuita hypothese d'um mysterio culpavel,
contrabalançava já, no espirito de Joanna, a longa experiencia que tinha
a respeito da natureza de sua prima, por isso que a seguia de longe e
sem se approximar d'ella.

Via-a caminhando sempre com aquelle passo rapido de quem vae direito a
um fim, sem uma distracção, sem uma paragem, seguindo de galeria em
galeria, e alcançar por fim uma porta affastada que dá para o angulo da
rua Saint Honoré em frente da rua Croise des Petits Champs.

No momento em que a senhora de Chalinhy empurrava a enorme meia porta
envidraçada, foi detida por um grupo de pessoas que pretendiam entrar.
Teve que esperar um minuto, e voltou-se. A espionadora, que se
achava só a alguns metros de distancia, para não ser surprehendida em
flagrante delicto da sua ignobil espionagem, não teve senão o tempo
sufficiente para se voltar tambem e fingir que analysava uns objectos
que se achavam ali proximo.

Valentina de Chalinhy tel-a-hia reconhecido, ou tendo-a visto não se
julgaria reconhecida por sua prima?

Quando se voltou de novo, Joanna não viu mais as duas plumas pretas, que
a orientavam n'esta caminhada atravez da multidão. A crescente suspeita
continuava a aguilhoal-a tão fortemente, que correu para a porta afim de
chegar o mais depressa possivel ao vestibulo, do qual se devisavam tres
ruas ao mesmo tempo, e descobriu aquella que espionava.

A senhora de Chalinhy estava fallando com o cocheiro d'uma carruagem,
que evidentemente ali a aguardava, e que retinha o seu cavallo
impaciente no meio da rua Saint Honoré, ouvindo attentamente a direcção
que lhe dava a sua cliente, com a mão collocada no portinhola aberta.
Fez um gesto que designava haver comprehendido. As plumas negras
perderam-se na carruagem, a pequenina mão fechou a porta e o cavallo
partiu em direcção ao Louvre, tão rapidamente que a baroneza de Node não
teve tempo de procurar outra carruagem que lhe permittisse seguir a
pista em que o mais inexperado dos acasos a tinha lançado.

Chamou um cocheiro que passava, depois um segundo. Ao seu appello
responderam o primeiro com um insolente silencio e o ultimo com um
ligeiro movimento de hombros. Ambos tinham já freguezes.

--«Como sou tola!...» disse comsigo a baronezazinha.

«Não a tornarei a apanhar, com certeza...

«O que é preciso saber é se ella sahiu de casa na sua equipagem...» E,
obedecendo machinalmente ao instincto de policia secreto, despertado
n'ella por este encontro, seguia já pelo passeio em direcção á praça do
Palais-Royal. Preparava-se para passar em revista as equipagens que ali
esperavam collocadas na rectaguarda umas das outras. Não teve
necessidade d'uma demorada observação para reconhecer, entre os criados
de libré que estacionavam deante da grande porta, João, o lacaio da
marqueza. Um pouco mais distante o cocheiro José, assentando na
almofada, a parelha de cavallos baios atrelados a um _coupé_ com as
armas de Chalinhy.

Valentina tinha executado a classica manobra: havia descido da carruagem
official d'aquelle lado, a fim de justificar a demora em outra parte,
confirmando assim o dictado.

«Antes de chegar aonde não quer ser vista, a mulher que sae, vae sempre
a um logar em que quer que a vejam». E aonde vae uma mulher que não quer
ser vista?




II

Historia rapida d'um odio antigo


Para comprehender os sentimentos que uma tal descoberta produziu em
Joanna de Node, é necessario precisar uma situação de facto já indicada,
e um estado d'alma mais essencial ainda.

Certos actos são por si mesmo tão graves que parecem tocar os limites da
nossa culpabilidade. Podem, comtudo, ser ainda aggravados com a maldade
dos sentimentos que nos compelliram a pratical-os.

Advinha-se logo ás primeiras phrases d'esta narrativa: que, á data em
que a historia começa, existia entre a baroneza de Node e Norberto de
Chalinhy, marido de Valentina, uma ligação muito intima. Esta intimidade
durava já havia mais de um anno.

Se attendermos a que não eram só os laços de parentesco que uniam as
duas primas co-irmãs mas que, além d'isso, tinham sempre sido
inseparaveis haviam crescido e brincado juntas, entrado na sociedade
juntas, e que uma tal intimidade fôra sempre acompanhada, e continuava
ainda a sel-o, d'aquella afabilidade de palavras e maneiras que
constituem a graça acariciadora das amisades femininas--ver-se-ha
como uma tal perfidia ultrapassa muito os limites d'esses coquetes
delictos mundanos que quotidianamente se commettem, com o nome, n'outro
tempo tão grave, e hoje tão insignificante, de adulterio.

O verdadeiro crime d'esta aventura, não estava propriamente na falta em
si, n'uma traição que a fraqueza d'um coração perturbado, um casamento
infeliz--Joanna estava separada de seu marido havia tres annos,--um amor
partilhado, podiam explicar. O verdadeiro motivo do delicto era, porém,
peor que o proprio delicto. Consistia principalmente na mais mesquinha,
na mais incomprehensivel, na mais violenta das paixões de que as
naturezas seccas e desprendidas, como a sua, sejam capazes: A baroneza
de Node não amava Chalinhy, odiava Valentina, e desde a sua longinqua
infancia, por motivos tão impenetraveis, tão intimamente nascidos no
recondito da sua alma que ella propria o ignorava a principio. E ainda
hoje mesmo não estava muito consciente d'isso.

Não se reconhece facilmente que se _inveja_ alguem--é aquelle o termo
que melhor exprime este enigma moral--porque equivale a reconhecer
tacitamente uma certa inferioridade em relação á pessoa que se inveja, e
a existencia em nós proprios d'um sentimento aviltante.

Mas, por mais que dissimulemos os nossos baixos instinctos, a sua
vilania não é menos intensa sob as apparencias hypocritas de que os
revistamos aos nossos proprios olhos; e era bem a intoleravel revolta de
todo o seu ser deante da felicidade de outro ser, que Joanna tinha
começado a sentir por Valentina, ha muito, quando eram apenas duas
creanças que corriam pelas alleas do parque, de tranças cahidas, e que
continuava a sentir havia trinta annos. No destino de sua prima, só
Joanna via bom exito, e no seu, o infortunio. Pensando e sentindo assim,
laborava n'um grande erro. É que a inveja engana-se sempre que aprecia a
alegria dos outros, e é essa a sua primeira punição. Exaggera-a e soffre
muito com isso.

Engana-se tambem muitas vezes quando, em seguida, trata de preparar a
infelicidade que deve constituir a sua vingança. Nove vezes em dez, os
seus esforços, falseados pelo odio, produzem precisamente o effeito
contrario.

Como muitos dos nossos maus sentimentos, que nos permittem proceder mal
achando sempre desculpa para isso, a inveja de Joanna por sua prima
tinha-se insinuado no seu coração sob a apparencia de delicadas
susceptibilidades. Os paes das duas primas eram irmãos; chamavam-se,
conforme o costume francez que destruiu a nobreza multiplicando os
titulos nobiliarchicos--quando pelo contrario toda a casa nobre deveria
ser vinculada n'um só dos seus membros, seu representante--um o conde e
o outro o visconde de Nerestaing. Valentina era filha do mais velho.
Este é que tinha herdado o magnifico solar de familia que lhe dava o
nome e que partilha, com os de Rambures e de La Tour Euguerrand, a honra
de ser na Picardia a mais bem conservada das fortalezas construidas
contra a invasão ingleza.

Nerestaing data de 1338, da epocha do armsticio que o Papa Bento XII
impoz ao rei Eduardo III.

Pelo facto de nas partilhas ter pertencido esta maravilha de
architectura ao representante da familia, tinha o mais novo sido
desterrado para uma quinta proxima, denominada «Os Salgueiros» e que
pertencia por acaso aos Nerestaing, devido á liberalidade de um parente.
Joanna tinha lá nascido, e as suas mais longinquas recordações
d'infancia mostravam-lhe o modesto palacete--um antigo pavilhão de
caça--onde cresceu, e, por contraste, a senhorial vivenda em que
habitava sua prima.

Estas impressões retrospectivas accentuavam-se. Via-se ainda creança,
indo procurar Valentina, á qual tinha fallecido a mãe, para a convidar a
passar algumas semanas em sua companhia. Seu tio ia viajar, para se
distrahir do desgosto que o torturava. Perdera inexperadamente a esposa,
em pleno vigor da vida e cheia de saude. Foi então, durante a
permanencia da orfã junto d'ella, que principiou o soffrimento de
Joanna. Teve sempre aquelles pequenos defeitos que são como que reacções
involuntarias do nosso systema nervoso. Era impulsiva e facilmente
irritavel, desigual e caprichosa, guardando sempre para o dia seguinte o
trabalho da vespera, desarranjada e estragada, emfim uma d'essas
machinas cerebraes mal equilibradas e em que os medicos modernos veem
logo um exemplar frisante de hysterismo.

Sua mãe, que não conhecia a commodidade das desculpas physiologicas,
censurava-a sempre pelas suas propensões maldosas, muito
principalmente desde que Valentina vivia com ella, em virtude da
comparação entre as duas. A que mais tarde se devia tornar a gentil
castellã do glorioso Nerestaing, era, com effeito, uma creança muito
equilibrada, muito prudente, muito circumspecta, uma pequena senhora,
emfim, e a tia, seduzida pelos seus encantos, estimava-a mais do que á
sua propria filha, ao mesmo tempo que, por uma piedade natural, mas não
menos imprudente, prodigalisava á pequenita, que não tinha mãe, os mais
indulgentes afagos.

O secreto e irresistivel instincto de antipathia quasi animal que tinha
tornado insupportaveis a Joanna taes elogios e taes ternuras,
justifica-se talvez, para uma creança de treze annos, pelo ciume da
affeição materna. Esta aversão tinha-se tornado tão intensa, que um dia
que entrou só no quarto de Valentina, encheu de tinta os cadernos que
estavam sobre a mesa, despedaçou os objectos que encontrou no armario,
deitou ao chão e pisou aos pés o retrato de sua prima, loucamente,
furiosamente. Passados dezesete annos, recordava-se ainda do temor, do
susto que tinha tido quando a senhora de Nerestaing, que a procurára por
toda a casa, a foi encontrar n'aquelle abominavel acto de vingança. E
foi sua propria prima quem pediu e alcançou perdão para ella. Um tal
delicto tinha, pelo menos, dado como resultado a partida de Valentina,
quasi em seguida, para casa d'um outro parente. A mãe comprehendera tudo.

Por uma anomalia apparentemente estranha, mas que se torna bem
logica perante a reflexão, o ciume que tinha por Valentina, foi a causa
de que, durante os annos da juventude, Joanna se ligasse a elle mais
intimamente. Invejar alguma pessoa é pensar n'ella. É sentir por ella.
É, por uma d'estas dualidades desharmonicas, tão familiares á nossa
natureza emotiva, sentir ao mesmo tempo attracção e repulsão pela sua
presença. A inveja não é, a principio, nem é nunca o odio puro. É mais e
menos, por isso que com ella ha sempre de mistura uma admiração
dolorosa, involuntaria, revoltada, mas uma admiração em todo o caso, por
consequencia, uma especie de amor. Assim se explicam na existencia dos
artistas, por exemplo, aonde esta paixão complicada tem como que o seu
dominio proprio, as alternativas de exagerada admiração e de descredito
entre dois rivaes, tão sinceras quanto são contradictorias.

Dos treze aos dezoito annos, esteve Joanna persuadida de que não tinha
melhor amiga do que Valentina, e era verdade, no sentido de que nenhuma
das suas companheiras d'aquella epocha lhe causava impressões tão
fortes. Ou fosse porque a fascinassem as bellas qualidades de sua prima,
ou porque se revoltasse contra ellas, inteiramente, com uma amargura
irritada, tinha-a sempre no pensamento. Quando entraram juntas na
sociedade, modificou-se por algum tempo, a sua sensibilidade mal
equilibrada, por isso que Joanna teve, então, pela primeira vez, um
successo superior ao de Valentina. Esta, que se salientára sempre,
emquanto as duas viveram n'um meio restricto, pela verdadeira
seriedade, pela delicadeza simples, pela harmonia e suavidade de todo o
seu ser, passou logo ao segundo plano, quando começaram a figurar n'um
outro theatro. Havia em Valentina uma predilecção especial pela modestia
e pelo retrahimento, e em Joanna um desejo de se divertir e de brilhar
que faziam d'uma a mais desconhecida das comparsas, n'uma primeira
visita, jantar ou baile, e attrahiam em volta da outra todas as
attenções tão superficiaes, mas tão estonteantes, de que as «coquetes»
ingenuas são muitas vezes victimas, n'essa edade da transição em que nas
mulheres desponta o desejo de agradarem.

O caso é que Joanna se matrimoniou logo no primeiro anno do seu commum
debute--e primeiro do que sua prima! A ancia d'este triumpho--o mais
lisongeiro para as mulheres--não foi extranha á facilidade com que deu o
«sim» ao pedido do barão de Node.

É preciso acrescentar que este casamento satisfazia ao completo edial
que paes, desejosos d'um bom partido para suas filhas, poderiam esperar
no anno da graça de 1890. O noivo era uma figura esbelta, possuia um
bello nome, uma boa furtuna e o prestigio que exercem, apezar de tudo,
mesmo sobre pessoas de linhagem distincta que viveram durante muito
tempo na provincia, «os parisienses».

Julio de Node era frequentador das corridas; pertencia a um dos melhores
clubs e salientava-se entre essa «coterie» que faz a moda no verão, em
Deauville; nas caçadas, nas margens do Sena e Oise, no outomno; em Pau e
na Riviera, no inverno e na primavera em Paris, n'esse Paris que vae
da praça Vandome a Longchamps.

Joanna via-se, antecipadamente, gosando uma vida de continua agitação
n'esse turbilhão que tanto seduz muitas mulheres.

O seu orgulho por causa d'esse casamento era tão profundo, tão completo,
que acabara de cicatrizar a antiga ferida da inveja. Taes cicatrizes
estão, porém, sempre tão proximas de reabrir!

Nunca, antes, nem depois, estimou tão intensamente sua prima.

Chegára ao extremo de a lamentar, quando comparava o brilhante destino
que a esperava com o futuro da supplantada Valentina. Mais tarde teria
ella que lhe inspirar egual piedade, mas sem ser fingida.

Faz-se só justiça reconhecendo, para explicar, ou antes desculpar as
amarguras das suas desillusões, que se este casamento tinha, a despeito
das apparencias seductoras, motivos para não ser muito venturoso, tinha
tambem outros para não ser completamente infeliz.

Joanna teve um só filho que nasceu em condições bem tristes.

Foi necessario sacrificál-o para salvar a mãe. A maternidade foi-lhe,
desde esse momento, defeza.

Seu marido, que procurava como tantos outros augmentar a furtuna,
transaccionando constantemente com os cento e vinte mil francos que
constituiam o liquido dos seus haveres, encontrou-se compromettido,
pouco a pouco, por muitas especulações infelizes. Jogou para reparar as
perdas e perdeu mais. Pediu a assignatura de sua mulher, que lh'a
deu a principio, negando-lh'a depois, por conselho dos paes, para não
prejudicar a sua independencia.

As questões de dinheiro transformaram-se, para este casal sem filhos ao
qual uma continua dissipação perturba a energia moral, em discussões a
principio violentas e que depois degeneraram em disputas. De scena em
scena, a separação tornou-se inevitavel. Deu-se antes de findar o setimo
anno d'este bello enlace, tão «auspicioso» como diziam as noticias de
certos jornaes, quando se celebrou. Durava já havia quatro annos, e
Joanna esperava sem cessar que seu marido pedisse uma desligação mais
completa dos laços conjugaes, para ficar inteiramente livre e reparar,
por uma nova união, a sua fortuna reduzida a menos d'uma terça parte.
Esperava isto, e, apezar das ideias religiosas que professava e das da
sociedade em que vivia a constituissem na obrigação de resistir a um tal
projecto, desejava-o ardentemente.

O artigo 310 do Codigo Civil que permitte a um dos dois conjuges fazer
transformar uma simples acção de separação de pessoas em divorcio, havia
um certo tempo constituia o objecto unico das suas meditações, visto que
um tal artigo lhe abria as portas d'um segundo casamento, muito embora
se achasse em contradicção com a sua attitude, contrariando a familia, e
a sociedade o levasse a mal.

Tudo isto nada valia para ella em face da precaria existencia que
levava, n'um segundo andar da rua Barbet-de-Jouy, aonde se tinha
refugiado, apenas com alguns mil francos de renda,--tanto quanto gastava
em toilettes no principio da sua vida de casada--e a dois passos do
sumptuoso palacio em que habitava a prima, transformada em marqueza de
Chalinhy!

A cada desastre na vida de Joanna correspondia uma mudança feliz na de
Valentina, o que para aquella era como que agudo punhal revolvido na
ferida e cuja ponta resvalasse até o mais intimo da sua alma e rasgasse
a sua propria carne.

Na mesma occasião em que dava á luz, no meio de torturas, o filho para
sempre perdido, casava Valentina com Chalinhy, vinha, em seguida habitar
um sumptuoso palacio na rua Varenne, digno de se comparar com o
historico Nerestaing que lhe pertencia.

Um anno depois dava á luz uma filha, e passado outro anno nascia um
menino, que viviam, cresciam, e cujos encantos faziam a felicidade do
casal. E, depois, umas após outras, inexperadas heranças deram á feliz
mãe uma opulencia que ultrapassava muito as mais exigentes ambições que
havia sonhado para seus filhos. Da mesma maneira que o barão de Node,
Chalinhy frequentava as altas regiões do _sport_ e da moda, com a
differença, porém, de ser tão bom administrador da sua fortuna, como
aquelle era dissipador.

Possuia um geito e feitio especial para defender os seus interesses, não
muito vulgar nas existencias de luxo e prodigalidade.

Porque se nem todas as pessoas abastadas se arruinam, para conservar
uma fortuna é quasi necessaria tanta habilidade como para a adquirir.
Tinha, pois, um dom caracteristico de bem calcular, qualidade esta que
é, em geral, independente da nossa intelligencia e dos nossos habitos. A
prova está em que esse invejavel predicado, de conservar a riqueza
adquirida, se encontra tanto na sociedade mais ignara como na mais
illustrada, ou na mais correcta burguezia.

Chalinhy não apostava a favor d'um cavallo que não ganhasse; não dava ao
seu agente na bolsa ordem para realisar uma compra que os valores
negociados não tivessem uma alta imediata, e comtudo era mediocre
cavalleiro e não menos mediocre bolsista. E se percebia pouco de
questões d'arte, raras vezes se enganava na compra de qualquer objecto
artistico. E assim em tudo o mais.

N'uma palavra, á medida que o viver dos Node se tornava desagradavel, o
dos Chalinhy era cada vez mais intimo e affectivo, espandindo-se e
revelando-se o seu bem estar pelo menos n'estas manifestações exteriores
que fazem dizer ao publico: «que familia tão feliz.»

Como não havia, pois, de reapparecer a antiga inveja cada vez mais
forte, mais intensa, mais arreigada, no coração da prima, separada do
marido, arruinada, vagamente desacreditada ja; como não havia ella de
repetir sempre que passava, em carruagem alugada ao mez, defronte do
perystilo do principesco palacio da rua Varenne o «porque ella e não
eu?» murmurado, quando era ainda creança, á vista das quatro
soberbas torres ameadas do Castello de Nerestaing.

Perigosas palavras, mas que ficariam todavia ineficazes como tantas
outras exclamações de ciume e inveja, soltadas a cada momento n'esse
Paris de luxo e ostentação, por tantas vaidades humilhadas, ás quaes
serve de atroz supplicio a visão da opulencia exhibida pelo proximo.

Quiz a infelicidade que Valentina ou não advinhasse sequer a existencia
de taes sentimentos, ou então que, se realmente os surprehendeu,
pretendesse por uma excessiva generosidade dissipal-os á força de
bondade. É a peor e mais perigosa falta que a invejada pode commetter
para com a invejosa.

Certos processos demasiadamente generosos, pela superioridade moral
exasperam ainda mais a funesta paixão.

No caso presente, havia ainda um outro perigo, que consistia, sobre
tudo, em a parente mais rica associar em todas as suas diversões a menos
afortunada. Almóços, jantares, excursões pela cidade, passeios ao campo,
um camarote no theatro, tudo servia de pretexto a Valentina para poupar
a Joanna a mais pequena despeza e para lhe proporcionor ainda os maiores
prazeres.

Não reflectia, porém, não pensava que tendo Joanna junto de si era tel-a
tambem sempre proxima de seu marido.

Não ha nada mais propicio ás seduções do que esta intimidade entre um
homem novo e uma mulher galante, que um proximo parentesco torna
naturalmente familiares, que se chamam pelo nome de batismo, sahem
juntos sem que ninguem se admire d'isso, escrevem-se quando estão
separados, habituam-se emfim, a todas as intimidades do amor, n'uma
amizade bem depressa perturbada, se um d'elles se deixa invadir de
pensamentos que não sejam d'uma lealdade e simplicidade absolutas.

Depois de tantas humilhações, a tentação de tirar uma desforra, roubando
a Valentina o coração de Chalinhy, tornou-se irresistivel para Joanna.

Tal foi a primeira ambição d'um instincto de vingança feminina, já de si
bem perfida.

Estes desejos de exercer influencia nos sentimentos são sempre
acompanhados d'uma garridice physica, que tem por fim excitar n'aquelle
que vizam a emoção ingovernavel dos sentidos.

Uma vez entrados n'este caminho a provocadora e o seu cumplice não podem
mais responder por si.

O obscuro e terrivel animalismo que impera, a despeito do nosso orgulho
e das conveniencias sociaes, nas relações do homem e da mulher, exerce
por fim o seu predominio fatal.

Quer-se preocupar o marido d'uma rival, prendel-o, perturbal-o--e
desperta-se, como aconteceu a Joanna de Node, a amante d'aquelle com
quem sómente se pretendia brincar--e nada mais.

Passava já d'um anno que esta ligação começara e em logar de encontrar
n'este triumpho sobre sua prima escarnecida e enganada, uma pacificação
para o seu odio, a culpada sentia cada vez maior exaspero. Por uma
contradicção que mostrava absoluta confiança de Valentina, longe de
amortecer o rancor de Joanna, ao contrario, apenas o irritava.

O papel de tola, desempenhado pela marqueza de Chalinhy, era revestido
de muita delicadeza e muita innocencia! Tão morigerada, tão completa,
tinha uma tal maneira de não ver o mal, que não permittia motejos. Não
dava pela sua existencia, pela simples razão de que nunca o havia
praticado, nem mesmo pensado em o praticar. O mundo que começava a
perceber a existencia da intimidade entre Chalinhy e Joanna, não
acreditava, sem reservas, na ignorancia da marqueza.

«Finge que não percebe, por causa dos filhos...» dizia-se. A baroneza de
Node, porém, sabia perfeitamente como lhe tinha sido facil abusar d'uma
creatura que se julgaria aviltada por suppôr a sua companheira
d'infancia capaz d'uma infamia. Sabia tambem, ou antes advinhava, que
esta situação ridicula, para qualquer outra, d'uma esposa enganada por
uma das suas parentas mais proximas e quasi que á sua propria vista, não
provocava no seu meio, nenhum epigramma contra Valentina.

As más linguas misturavam, involuntariamente, á sua ironia sobre uma tal
ingenuidade a expressão irresistivel d'uma estima forçada.

As mais crueis diziam: «Chalinhy tem razão, a sua casta mulher é tão
fastidiosa!...» ou então: «esta pobre Valentina é realmente muito bondosa.»

O que lhe acontece é perfeitamente natural... ou ainda: «Esta Chalinhy é
em verdade virtuosa, bonita, terna e perfeita; mas não sabe agradar
ao marido! É o seu unico defeito; tanto peor para ella...»

Estes ditos e outros iguaes, onde se aprecia a honra do mundo, em
presença d'uma perfeição que desconcerta o seu pessimismo facil, marcam
o extremo da malevolencia.

Não impediam que a marqueza tivesse em volta de si uma atmosphera dum
respeito cada vez mais deferente, e que a sua feliz rival não percebesse
nos mais insignificantes indicios o começo de uma desconsideração.

Uma mulher nova, que se sabe tem um amante, é logo tratada pelas outras
mulheres com uma curiosidade, e pelos homens com uma attenção igualmente
insultantes.

Adivinha nos olhares d'ellas o interesse curioso e por vezes insolente,
que as prende ás clandestinas aventuras amorosas; e no d'elles a secreta
esperança d'um amor possivel.

Contra esta condemnação da sua falta pela sociedade, a mulher que ama
não tem senão um refugio, a felicidade que dá ao ente amado. Ai! Não foi
necessario muito tempo para Joanna perceber que não fazia a felicidade
de Chalinhy, e que o obstaculo a essa felicidade provinha da profunda
affeição que este homem tinha, por quem? Pela propria esposa que trahia!
Muitos maridos infieis são assim: a familia não consegue amortecer
n'elles, de todo, os apetites de gôso e de variedade, que adquiriram em
solteiros.

A familiaridade quotidiana diminue e como que amortece o amor. Acontece
mesmo, é até um caso muito frequente, que a existencia lado a lado,
em logar de produzir a afinidade, a fuzão dos corações, a diminue, e
que, apezar de se verem todos os dias, muitos esposos é como se não se
vissem.

Ainda mesmo que a mulher não seja tão pudica e reservada e o homem
severo e susceptivel, como eram Valentina e Norberto de Chalinhy, estes
retrahimentos intimos tomam por vezes uma tal intensidade, que dão a
explicação facil de muitos erros.

Mas se estas impressões de monotonia e de friesa collocam o que as
experimenta, no lar conjugal, á mercê de todos os caprichos dos sentidos
e até do coração, não deixam com tudo de se achar presos a esse lar, que
abandonam, pelas suas affeições mais intimas.

Engana sua mulher, e não deixa ella por isso de ser a que usa o seu
nome, a mãe de seus filhos, a companheira que occupa no seu pensamento
um logar unico.

Mente-lhe mas respeita-a. Ultraja-a em segredo, e os seus devaneios não
o impedem de pôr acima, muito acima das amantes d'um momento, a
companheira das horas principaes e mais sérias da sua vida.

Foram estes os sentimentos que Joanna de Node encontrou sempre no
coração do amante, durante os doze mezes da sua ligação, os quaes,
facilmente se adivinha, produziam a irritação constante, a tortura
permanente da ferida que a inveja abrira na sua alma!

Se acontecia fazer a menor observação critica que podesse attingir
Valentina, ainda que muito de longe, uma visivel sombra de contrariedade
passava logo pelo rosto de Chalinhy e o seu olhar tornava-se severo. Se
fazia uma allusão á possibilidade de a intriga amorosa, em que se
achavam envolvidos, ser descoberta pela esposa enganada, a angustia do
olhar do seu cumplice mostrava bem evidentemente qual o grande apreço em
que tinha a estima de sua mulher.

Quando surprehendia um d'estes indicios da persistente affeição de
Norberto por aquella que detestava, com um odio misturado de remorsos,
redobrava de sedução junto d'elle.

Tinha o maior interesse em dominar cada vez mais esse homem, e todavia
via-se forçada a prendel-o apenas pelas mais obscuras fraquezas do seu
ser e a seduzil-o pela sensualidade.

N'este brutal dominio era ella a mais forte e esta evidencia
rebaixando-a aos seus proprios olhos, mais excitava ainda a sua inveja.

Calcule-se agora o resentimento que devia produzir n'esta alma
perturbada, completamente minada por pensamentos d'esta ordem, a
seguinte inexperada descoberta: A duqueza de Chalinhy não era o que
parecia? Tinha um segredo na sua vida? Esta irreprehensivel esposa, cujo
marido a si proprio não perdoava o trahil-a, corria Paris n'um trem,
emquanto seu marido a julgava em casa muito resguardada? Tinha encontros
clandestinos, deixando a carruagem á porta d'uma casa com varias
entradas--exactamente como fazia a propria Joanna, quando ia
encontrar-se com Chalinhy? Este modelo de virtudes, cujo elogio tanto a
havia humilhado desde creança e ainda hoje a humilhava mais cruelmente,
não passava d'uma hypocrita, d'uma comediante? Era possivel?




III

Primeiros esforços


É possivel? Joanna tinha os maiores desejos de responder «sim» a esta
pergunta, para que o seu pensamento se apressasse a colligir e amontoar
os argumentos que podiam confirmar esta inexperada, esta fulminante
descoberta.

Quando viu Valentina fechar a porta da carruagem que a conduzia para um
recanto occulto d'esse grande Paris--tão propicio a encontros
mysteriosos,--invadiu-a uma violenta commoção.

N'um só momento, o procedimento da sua orgulhosa prima tinha-a
rehabilitado aos seus proprios olhos, rebaixando aquella ao seu nivel.

E, posto que o facto de Valentina ter abandonado a carruagem á porta do
grande armazem, lhe provasse que a sua primeira supposição era racional,
a sua excitação tornára-se tão viva que se não sentia capaz de
esperar--o que era natural--que a senhora de Chalinhy voltasse, a fim de
verificar a attitude d'esta, interrogal-a mesmo e observar o seu
natural embaraço.

Bastar-lhe-hia metter-se no _coupé_ abandonado, de maneira que no
momento da entrada, depois da visita clandestina, a marqueza a
encontrasse na sua frente e fosse violentada a confessar tacitamente a
falta, só pela natural confusão.

Um tal procedimento exigia, porém, um sangue frio de que Joanna se não
julgava capaz. Mostraria logo pela sua propria perturbação, que
espionava a rival. E esta, advertida por aquella fórma, dominar-se-hia,
depois de passada a primeira impressão. Posta de sobre aviso,
procuraria, de futuro, desnortear qualquer curiosidade que pretendesse
penetrar mais intimamente no segredo que, até ao presente, tão bem tinha
sabido occultar. Não. Para chegar a saber se effectivamente Valentina
tinha qualquer mácula na sua vida, a principal condição era que esta nem
sequer suspeitasse da descoberta. A primeira idêa de Joanna de Node, em
presença do sobresalto d'uma tal revelação, foi fugir, para não ser
vista pela prima, e ir para casa. Lá meditaria sobre o meio mais seguro
de não perder o fio que um phantastico acaso acabava de pôr nas suas
mãos, e que não abandonaria mais. Parecia-lhe até imprudente que
qualquer pessoa da sua intimidade a encontrasse na visinhança do grande
armazem, e podesse denunciar a sua estada ali, n'esta tarde, á marqueza
de Chalinhy.

Só conseguiu tranquilisar-se, depois de ter subido para a carruagem, e
dito ao cocheiro que a conduzisse á rua Barbet-de-Jouy.

--«É possivel?...» repetia ainda emquanto o cavallo d'aluguer da sua
carruagem seguia ao longo das Tulherias, e depois pelo caes e ponte de
Solferino. Mesmo contra sua vontade, tantas provas de seriedade dadas
por Valentina desde a mais tenra infancia, influenciavam no seu
espirito, destruiam a suspeita, luctavam contra a injuriosa hypothese
sugerida repentinamente pelo indicio implacavelmente revelador.

Ha mulheres que praticam a caridade occultamente.

E se Valentina fosse a casa d'alguns pobres, modestamente, sem ir na sua
carruagem, porque esses pobres habitavam n'alguns bairros escusos, onde
a sua equipagem causasse escandalo, ou o cocheiro e trintanario
corressem risco de ser insultados?...

Mas n'este caso teria entrado no armazem como uma criminosa, temendo
evidentemente ser seguida? Sahiria com aquella precipitação e em taes
condicções?

Todos os bairros populares ficam, hoje, nas proximidades dos
_boulevards_ ou de qualquer praça, onde uma mulher rica póde ir com os
seus cavallos, sem necessitar servir-se de carruagem extranha...

«Tel-a-hia Norberto prohibido de dar esmolas?...

«Mas isso é facil de saber. Basta-me perguntar-lh'o...» Fez com a mão o
gesto de apertar a pequena esphera de cautchú do aparelho que serve para
chamar o cocheiro... Ia dar-lhe ordem para, de caminho, parar na rua
Varenne. Eram as commodidades que a sua qualidade de prima
proporcionava ao adulterio.

Deixou, porem, cahir a esphera sem a ter comprimido: «Seria perdel-a se
estava culpada, isso não faria ella.»

Uma primeira tentação--nem sequer a sombra d'uma denuncia--passára
rapidamente pelo seu pensamento, e o mesmo sentimento que, ha annos, a
fazia invejar Valentina, apresentava esta agora aos seus proprios olhos,
n'uma attitude generosa mas não sem uns laivos da sua habitual acrimonia.

«Não o faria...» repetia ainda. «E o que aproveito eu com isso? Não sei,
porventura, que Norberto não se preocupa mesmo nada com os seus actos?
Que deposita n'ella a mais absoluta confiança. Tambem eu a tinha. E
igual. Não se faz, porem, o que acabo de lhe ver fazer, sem haver para
isso muito poderosos motivos...»

--Porque, emfim, podia ser vista por qualquer outra pessoa que não fosse
eu e que não seria certamente tão indulgente...

Onde iria ella?... Ah! Eu o saberei! Mas como?

Era já noite e a baroneza de Node entrara em casa, passado muito tempo,
sem que, atravez d'essas multiplas occupações d'uma tarde
toda:--escrever bilhetes, receber visitas intimas, fazer a sua
_toilette_ para a noite--cessasse de dirigir a si mesma esta pergunta,
para que não obtinha resposta: «Sim, como?»

Se taes pesquizas são já difficeis e trabalhosas para um homem que tem o
previlegio de poder andar por toda a parte, quasi sem ser notado,
para uma mulher, nova, bonita e um tanto elegante, tornam-se
impossiveis. Deve-se pensar. Não lhe é permitido sahir de casa senão
vestida com fato proprio da sua classe. Basta isto para limitar muito o
seu campo d'acção. Ha agencias particulares cujos prospectos, com
promessas de segredo absoluto, pontualidade e rapidez, são enviados, de
tempos a tempos, pelo correio, ás diversas pessoas que, por qualquer
motivo, figuram em um dos numerosos annuarios do mundo parisiense,
grande ou pequeno. Joanna tinha muitas vezes ouvido falar a alguns
homens do meio em que vivia havia dez annos, do perigo de similhantes
processos, para se expôr, de caso pensado, em emprezas certas de
exploração e talvez de _chantage_.

Revelar a policias incompetentes o vehemente desejo de saber o segredo
de sua prima, não era pol-os ao corrente de outro segredo--o seu?

Estes obstaculos, levantados deante da curiosidade do mundo, explicam
como tantas historias adivinhadas e assacadas á bocca pequena, ficam
sempre inverificadas, e, portanto, facilmente negaveis. Poucas pessoas
teem geralmente um tão grande interesse em as conhecer nos seus mais
intimos e insignificantes detalhes, que se aventurem a arrostar com
tantas difficuldades.

A mór parte permanece n'uma incerteza que lhes permitte misturar justos
indicios com infames calumnias, alliviando a sua consciencia com estas
phrases classicas:

«Em todo o caso se não é verdade, podia muito bem sel-o!...--Se é
possivel acreditar-se tudo quanto se diz!...--Eu cá nada vi, e isto são
coisas tão graves!...»--indulgentes formulas tão deploraveis como os
ditos maliciosos que pretendem attenuar.

Attestam bem quanta leviandade ha nas conversas dos salões e dos clubs,
e tambem que n'ellas caminham a par o indifferentismo e a ferocidade!

Mas a baroneza de Node não se achava em presença de um «diz-se»,
tratava-se d'um facto, com consequencias funestas!

O procurar conhecer toda a verdade, sem compromisso proprio, tendo a
luctar com a finura d'uma mulher tão prudente, que havia sido necessario
um inacreditavel concurso de circumstancias para pôr a sua parenta mais
proxima, quasi sua irmã, sobre esta pista, muito vaga, quasi perdida
já--é trabalho para esgotar todas as paciencias, mas não a d'uma invejosa!

Quando, um pouco antes das oito horas, a baroneza sahiu de caza para ir
jantar com os Guy de Sarliévre, das relações de ambas, e aonde sua prima
devia tambem estar--a resolução de pôr inteiramente a claro o enygma,
que subitamente se lhe deparou, era tão irrevogavel como um juramento
corso, e a primitiva idéa estava posta de parte.

O ardor d'uma lucta começada--a mais forte das sensações para os nervos
d'uma parisiense de habitos tão monotonos--dava á sua belleza, um tanto
apagada, uma animação singular. Os olhos pretos, a que faltava muitas
vezes a expressão, tinham um brilho desusado; o rosto quasi sempre
descórado, um vivo colorido; toda a sua pessoa, mixto de frieza e
fadiga, muita vitalidade e movimento.

A impaciencia de tornar a ver Valentina obrigara-a a partir muito cedo
para a casa aonde ia jantar, chegando a sua nevrose ao mais elevado
grau, quando a marqueza de Chalinhy que, por acaso, foi a ultima a
apparecer, entrou, acompanhada pelo marido, na sala em que se achavam
reunidos os convidados--quatorze, contando os recem-chegados.

A marqueza tinha aquella expressão de doçura e candidez que tão bem
sabia guardar, mesmo quando vestia uma _toilette de soirée_, que punha
inteiramente a descoberto os seus hombros finos opulentos, os braços
d'um contorno delicioso, a nuca graciosa e robusta--toda a graça dos
seus trinta annos. Era o agrado da sua encantadora cabeça de cabellos
louros, illuminada pelos olhos d'um azul tão curioso--era o pudor, e a
pureza.

N'este dia usava um vestido á moda do tempo de Luiz XIII, d'uma
tonalidade rosea, com bordados antigos, laços de setim e fivelas de
diamantes. O penteado, em dois espessos bandós, d'onde se escapavam
sobre a testa pequenos anneis, harmonisava com a _toilette_ e lembrava
os retratos d'essas mulheres do primeiro quartel do seculo XVII, que
realisavam tão completamente o typo exquisito da franceza de outro
tempo, por uma mistura unica de delicadeza e distincção, feminidade e
sensatez, gentileza e honestidade.

--«Não é deliciosa esta gentil Chalinhy?...» perguntou alguem atraz da
baroneza de Node, «é preciso que Norberto seja muito tolo para não o
comprehender, pois não é verdade?...»

Era o duque de Arcole que assim falava, dirigindo-se ao visinho, um dos
irmãos Mosé, o conde Abel, um dos parisienses mais circumspectos da
sociedade elegante; tão circumspecto que Luciano d'Arcole ficou sem
resposta.

A justificação de bravo official, que tem um nome glorioso, estava em
que, mesmo com licença, só pensava no seu esquadrão. Não tinha reparado
que a amante de Chalinhy se achava na sua frente. A um rapido signal,
uma leve inclinação de cabeça, feito por Mosé, percebeu a sua
inconveniencia. Joanna, que os via perfeitamente no espelho que lhe
ficava fronteiro, poude observar o gesto dissimulado de Mosé, e que o
duque se ruborisou um pouco.

Quando reconhecia por estes e outros pequenos indicios que se suspeitava
da sua aventura com Norberto, sentia uma viva irritação. N'aquelle
momento, foi-lhe quasi intoleravel que o elogio da prima fosse misturado
com uma expressão mal contida da censura com que a sociedade a feria.

Desejaria poder gritar a Mosé, ao duque de Arcole, a todos os presentes,
os quaes estava bem certa d'isso, tinham já ouvido censurar ou elles
mesmo censurado a sua falta: «Sim, Chalinhy é meu amante.

«É verdade, atraiçoa a mulher comigo. Mas perguntai-lhe tambem a ella,
para que entrevista ia hoje, de carruagem, ás 3 horas da
tarde?...»Desejaria tambem poder fulminar com aquella phrase
vingadora o proprio Chalinhy que se lhe dirigiu para a cumprimentar, com
um certo ar de constrangimento, que já por mais vezes lhe tinha notado,
quando estavam em publico. Nunca se tinha podido habituar a taes
reservas, muito insultantes para esta ligação, e contra as quaes só as
suas caricias eram soberanas--durante os momentos em que as
proporcionava a esse amante, ao mesmo tempo tão invejavel como
incomprehensivel.

Quizera ainda dirigir a phrase insultuosa á propria Valentina, cuja doce
serenidade contrastava, d'uma maneira imprudente, com o seu procedimento
d'aquelle dia, se tal procedimento era culposo, e a verdadeira
confirmação d'essa culpabilidade seria a resposta á pergunta insidiosa
que sua prima ia fazer-lhe em seguida--primeiro passo andado no caminho
d'uma devassa que, por perfidia, se devia transformar, bem depressa, em
denuncia.

--«Cheguei a imaginar que mudarias de tenção» começou Joanna, «e que me
mandasses dizer esta manhã que podiamos sahir juntas. Esperei, porém, em
vão, uma palavra tua...»

--«Acompanhar-te-hei ámanhã se quizeres, respondeu Valentina. Hoje não
tive um momento de meu. Tinha muitas coisas atrazadas que pôr em ordem.
Para a semana vamos para Pont-Yonne...»

--«Percebo, poseste as tuas visitas em dia. Onde foste então?»

--«Oh! A dez casas differentes e só em duas deixei bilhetes.»

--«A maior parte das familias das minhas relações são estrangeiras. É
esta a sua estação em Paris; mas não se comprehende muito bem o que
veem cá fazer, visto estarem sempre em casa.»

Annunciava-se que ia ser servido o jantar, na occasião em que Valentina
acabava de descrever a sua prima como tinha occupado toda a tarde d'esse
dia, acompanhando a descripção com um sorriso tão infantil, tão fresco,
que punha de parte qualquer idêa de mentira.

As duas primas separaram-se.

A senhora de Sarliévre, na qualidade de dona de casa, julgava faltar a
um dever de delicadeza, se não proporcionasse a duas pessoas, suspeitas
d'um amor clandestino, estando em sua casa, mais uma occasião de
passarem algumas horas ao lado uma da outra. Reservou tambem,
naturalmente, a Chalinhy o prazer de conduzir para a mesa a baronesa de
Node. É o processo habitualmente empregado em Paris, pelas mulheres
levianas, quando desejam que lhes façam o mesmo, e pelas mulheres
honestas, quando querem recrutar frequentadores assiduos para os seus
salões.

Enganam-se muitas vezes, pensando que, procedendo por esta fórma, são
agradaveis para com os seus convivas.

Acontece frequentemente que estas complacencias obrigam amantes
arrufados a uma visinhança deveras incommoda e impertinente. Acontece
tambem que magoam certas susceptibilidades um pouco desconfiadas, como
sendo uma indelicadesa. É mostrar muito claramente que se conhecem os
segredos da sua vida. Chalinhy pertencia ao grupo dos amorosos
susceptiveis.

Vinte vezes Joanna de Node o tinha visto, em jantares como este,
sentar-se junto d'ella com o mesmo aspecto melancolico, contrafeito, com
os mesmos modos retrahidos d'um homem que se encontra n'uma situação
falsa, e vinte vezes lhe disse, para o empolgar, para readquirir o
imperio sobre elle, phrases de estimulante ternura como a que lhe
murmurou, quasi em segredo, aproveitando o primeiro bulicio da
instalação á mesa:

--«É uma felicidade para mim passarmos juntos alguns momentos. Ha mais
de uma semana que lá não vaes».

--«Sabes perfeitamente que a culpa não é minha, tenho caçado quasi todos
os dias...»

--«Sei tambem que isso te não pode servir de desculpa,» disse
galantemente. «Tinhas um ar tão contrafeito quando a Emiliana te pediu
para me conduzires á mesa...»

--«Respeito-te muito,» replicou, «por isso confesso-te que fiquei
contrariado... Sempre que jantamos fóra, nos collocam propositadamente
um junto do outro. Sei perfeitamente o que isto significa...»

--«E eu tambem,» respondeu ella. «Sejamos francos, Norberto, não é a
minha pessoa que te preoccupa...»

--«Quem é então?...»

Joanna lançou um olhar para o lado de Valentina, d'uma significação tão
clara que Chalinhy respondeu vivamente:

--«E se tiver por ella toda a consideração? Se desejar evitar-lhe um
desgosto?»

--«E imaginas que ella tem a teu respeito iguaes sentimentos?»
replicou a amante. Depois, com uma expressão singular que ainda esse dia
não tinha tido, deixou escapar dos seus labios um: «Estás bem certo
d'isso?» que acompanhou com um sorriso ainda mais singular, e voltou-se
para o visinho do lado, que lhe perguntou:

--«O que está dizendo o Chalinhy que tanto a faz rir?...»

--«Oh! nada», respondeu, «é a historia d'um marido. São sempre divertidas.»

Poz-se a rir, mas mais alegremente, da enormidade da sua insolencia. Não
pensou senão no effeito a produzir em Chalinhy, e, por acaso, o visinho
a quem se dirigiu n'aquelles termos, era nem mais nem menos do que Paulo
Moraines, o marido «mais marido» de toda aquella sociedade. Peor do que
isso. Era publico e notorio que o luxo da sua esposa fôra pago
primeiramente pelo velho Desforges e depois por um outro dos Mosé, o
conde Abrahão. Mas Moraines não desconfiou nunca das galanterias venaes
da sua Suzanna--da aventura com o elegante Casal, por exemplo, ou da
ligação com o poeta René Vincy.

A herança inesperada da senhora Bois-Daufraines--prima afastada de
Suzanna Moraines--veio trazer ao casal dois milhões de francos,
justamente no momento em que os Desforges e Mosé iam começar a fazer
falta, agora que a idade chegava com o seu fatal cortejo: pontos
dourados na alvura dos dentes, tranças postiças e espartilhos
reparadores! Paulo Moraines tinha a mania de contar a toda a gente a
historia d'essa herança, em todos os pormenores, e accrescentava
invariavelmente: «Vejam o que é ter uma mulher inteligente. Quasi que
nem chegámos a perceber que tinhamos alguns milhares de libras de renda
a mais, tão boa dona de casa ella é!»

Nem uma leve sombra passou pelo rosto aberto do excellente homem, quando
a baroneza de Node deixou escapar, tão gravemente, deante d'elle, o
classico proverbio: «não se falla em corda...»

Ao contrario, insistiu até:

--«Se é escandalo, digam-me que é para o contar á Suzanna. Não poude vir
por estar com uma enxaqueca; mas, em indo para casa, conto-lhe tudo.»

A um novo golpe de vista lançado a Chalinhy, Joanna comprehendeu que não
necessitava empregar nova ironia--ella tinha ouvido a phrase de
Moraines--e começou com este uma animada conversação, uma d'essas
tagarelices dos grandes jantares parisienses, que são a justificação
plena da anthipathia dos homens superiores por esse meio banal.

É manifesta a antithese entre as deficiencias do espirito e os
explendores da decoração.

A sala de jantar do palacio de Sarliévre, com as suas altas paredes
cobertas de magnificas tapeçarias de Arraz, com o esplendido mobiliario
á Luiz XVI, com os elegantes centros de meza e jarras de Saxe, com o
intenso brilho de flores, dos pratos e crystaes, realisava um sonho vivo
da mais requintada opulencia. As seis mulheres assentadas á meza, entre
oito homens, trajando com o maior rigor eram todas formosas, e a
mais velha, Emmelina de Sarliévre, tinha apenas trinta e sete annos.

Eram, além da elegante Joanna e da graciosa Valentina, a muito gentil
senhora de Bonivet, a deliciosa Monniot e a sua amiga, a joven Croix
Firmin.

Se um phonographo recolhesse as phrases trocadas entre estas princezas
da moda e os cavalheiros que as rodeavam, uma tal miseria de espirito e
de idéas, era de fazer chorar!... Mas não. O que se diz n'aquelle meio,
não é a imagem do que se pensa.

A verdade da vida parisiense não está nas palavras. Está nas situações a
que essas «palavras vãs» empregando o dito popular, servem de
indifferente acompanhamento.

Entre essas quatorze pessoas, muitas d'ellas estavam talvez na frente
uma das outras, em situações similhantes á de Joanna para com os esposos
Chalinhy. Quando interesses d'esta ordem occupam o espirito e o coração,
as exterioridades não passam d'um méro alibi, em que a questão
importante é não trahir o drama intimo.

E era verdadeiramente um drama que a baroneza de Node observava na
physionomia do amante, na qual se denunciavam as alternativas do seu
pensamento, agitado pela sua perfida insinuação.

Pela primeira vez ousava, não criticar Valentina na presença do
marido--porque já o tinha feito muitas vezes--mas, atacal-a na sua
qualidade de esposa legitima.

Este: «Estás bem certo d'isso!...» escapou-lhe; sem lhe medir o
alcance, como um echo das phrases que tinha pronunciado para si só,
depois da descoberta pasmosa d'essa tarde. Com o seu instincto de amante
tinha procurado ferir Chalinhy precisamente no ponto mais vulneravel.

Conhecia-o perfeitamente! A physionomia attribulada d'este homem
indicava claramente que a feição predominante do seu caracter era a
incerteza. Um rapaz cheio de timidez, com attitudes imperiosas de
voluntariedade. Esta paixão--porque uma verdadeira timidez é uma pura
paixão, no sentido amplo da palavra--desconcerta todas as analyses. Meio
physica, meio moral, affecta as mais intimas fibras do nosso ser, onde
se effectua a reunião das duas naturezas, a animal e a espiritual.

O seu effeito mais constante é a vacillação da intelligencia e da
vontade ao mesmo tempo; uma não pensando com firmeza e segurança e a
outra não executando com decisão.

Caso estranho! Esta desconfiança em nós mesmo, constitue muitas vezes
uma superioridade. Os bons resultados obtidos por Chalinhy nos seus
negocios provinham d'isso precisamente. Habituara-se a seguir na esteira
dos que vira ser bem succedidos, com um bom senso que, em presença dos
resultados, era uma força, mas que na realidade constituia uma fraqueza.

No casamento acontecia-lhe o mesmo, não se libertava d'uma vez das suas
peias, não tinha força para o fazer, detido pela esposa, tão sensivel
tambem.

Não ha disposição mais propicia aos mal entendidos da existencia
commum, do que os excessos de susceptibilidade. Quando a intimidade
quotidiana não vence a timidez, exaspera-a. Esta especie de perturbação
moral, ainda aggravada pela reserva de Valentina, que o marido
inconsiderado e susceptivel tomava por indifferença, impedia-o de
experimentar pela esposa essa sensação d'amor partilhado, sem a qual
nenhuma união é completa.

Era por causa dos apetites de sensualidade não satisfeitos no seio da
familia que Joanna o tinha attrahido e que continuava a prendel-o.

Sabia-o, e sabia tambem que Norberto tinha pela esposa uma estima nunca
interrompida, a qual o obrigava a permanecer n'um constante estado de
incerteza e irresolução.

Não comprehendia bem Valentina, e, por momentos, receava-a.

Teve Joanna a prova d'isso, ha pouco, durante o jantar, que passou quasi
todo no mutismo d'um homem que está inteiramente preoccupado por uma
idéa fixa--não conversando com ella nem com a sua outra visinha, a
agradavel senhora de Bonnivet, senão o indispensavel para não passar por
grosseiro; e quando se levantou da mesa e que finalmente, se achou só
com a amante, n'um dos angulos da sala, foi por uma allusão á sua
enigmatica pequena phrase de ha pouco, que recomeçou a conversa
interrompida no principio do jantar.

--«Foste bem pouco amavel comigo» disse-lhe n'um metal de voz como de
quem deseja que nenhuma das palavras proferidas chegue a ouvidos
estranhos, e que tantos amantes teem a ingenuidade de adoptar nos
seus segredos!--«Sim bem descaroavel para uma amiga que considera como
uma felicidade passar o tempo na tua companhia. Quizeste unicamente
incommodar-me?»

--«Eu? incommodei-te? E como?»

--«Sábel-o perfeitamente», respondeu. «Como» insistiu Joanna. «Sabes que
me desgosta a nossa situação com Valentina e parece que estás
propositadamente disposta a tornar-me tal situação mais difficil,
magoando-me por sua causa. Que pretendias dizer, quando, a proposito do
pesar que sentia por causa d'ella, receioso de que desconfiasse de nossa
intimidade, me dirigiste a pergunta:

«Estás bem certo d'isso?... E com o resto...»

--«Não pretendia coisa alguma. O receio de perturbares a tranquilidade
de Valentina apavora-te. Obrigas-me a repetir-te ainda mais uma vez que
seria mais prudente teres pensado d'essa maneira n'outro tempo, e mais
conveniente para mim. Quiz dizer simplesmente que ella não é tôla e que
sabe perfeitamente o que se passa em relação aos nossos sentimentos. O
que isso prova é que a sua amisade por ti não é o que a tua fatuidade
imagina, e que se não preocupa tanto comtigo como julgas.

«Eis tudo... Ha muito tempo que te repito que esse receio não passa
d'uma simples chimera. Quando digo os nossos sentimentos, acrescentou
Joanna, é os meus que deveria dizer. Não tens emoções senão por causa
d'ella. Mas não supportarei esta situação por muito tempo...»

Agitou nervosamente o leque, lançando esta ameaça de rompimento, com
um sorriso de desafio. Os calculados vaes vens das brancas e flexiveis
pennas de abestruz faziam chegar junto do amante um effluvio do perfume
de que estavam impregnadas as mais reconditas peças do seu vestuario.

Sentia-se bella, e movia a cabeça com um gesto que mostrava melhor a
alvura do colo. Os seus olhos pretos, meio cerrados, com um olhar
provocante, iam procurar no fundo das pupilas de Chalinhy o pensamento,
longinquo.

Este homem terno e complexo, que, durante todo o jantar se tinha só
preoccupado com a esposa, e que muitas vezes desejava ver terminada uma
ligação tão criminosa para a sua consciencia, sentia n'aquelle
momento,--como muitas outras vezes--um d'estes impetos de desejo, que
produz nas suas victimas a desordem de toda a sua racional energia.

Respondeu n'uma voz quasi imperceptivel:

--«Sabes muito bem que só a ti amo. Vemos-nos tão pouco actualmente, e
isto entristece-me tanto... Esta semana tenho ainda que ir a Pont-Yonne
passar trez dias. Queres que vamos á _nossa casa_, antes de partir?
Queres, ámanhã...?»

--«Sim,» disse Joanna, muito baixo, e mudando rapidamente de tom, como
se a perturbação do amante se tivesse tambem apoderado d'ella «ás quatro
horas. Vou libertar a Valentina», disse em voz alta, pronunciando o
final da phrase com tanta força, que a senhora de Chalinhy, que estava
assentada apenas a alguns passos de distancia, sem que o marido tivesse
dado por isso, voltou a cabeça e, desejosa de terminar uma insipida
conversa com o dono da casa, o aborrecido Sarliévre, perguntou á prima:

--«Fallam de Valentina, que dizem a meu respeito?»

Foi sentar-se ao lado d'aquella que trahia tão abominavelmente havia um
anno, e que se preparava para perder sem remedio logo que estivesse
inteiramente senhora do segredo de que conhecia apenas alguns
indicios--mas que indicios!

Inclinou-se, como para examinar um lindo bracelete da rival, de modo que
as suas cabeças ficavam muito proximas, e n'essa posição observava
Chalinhy. Tinha prazer em authenticar o seu dominio sobre o amante,
forçando-o a assistir a scenas de intimidade que lhe desagradavam. Bem
sabia que n'aquellas occasiões o fazia soffrer; mas acreditava, e não
sem logica, que assim desarmaria a sua resistencia.

Somos geralmente tanto mais fracos quanto menos felizes, e ella tinha
necessidade de aproveitar toda a fraqueza de Chalinhy para a realisação
das combinações que sempre julgára tão longinquas, tão indefinidas,
quando o inexperado acontecimento d'essa tarde, corroborado pela
indiscutivel mentira da marqueza, vinha tornal-as precisas, pela
primeira vez.




IV

Realidades


Taes combinações--ou, mais propriamente, tal combinação era o divorcio
de Chalinhy. Com a natureza suggestionavel que Joanna lhe conhecia, como
não seguira por este caminho desde o principio? O acaso pozera-lhe nas
mãos uma tal arma! Não devia tentar utilisal-a? Vimos já que entre os
sonhos que lhe attenuavam as amarguras de mulher aviltada, o mais
phantastico, mas tambem o mais permanente, era o de um novo casamento.
Mas para isso era necessario que fosse livre. Vimos tambem que esperava
que essa liberdade viesse da iniciativa do marido, conforme o tal artigo
do codigo, mais ou menos rigorosamente interpretado. Esta iniciativa,
tinha dito muitas vezes comsigo mesma, tomal-a hia, em todo o caso, ella
propria, se algum dia se lhe proporcionasse occasião propicia para um
novo casamento, e essa occasião deparava-lh'a o destino.

Era a amante de Chalinhy. Tinha o direito, na conformidade do codigo
feminino, de provar que elle a tinha seduzido, por isso que fôra o seu
primeiro e unico amante, e que portanto, a devia desposar, se um dia
fossem livres...

--Livres!...

--Esta palavra, sempre a mesma, a perseguil-a, como um retornello
d'esperança. Livres? Podia sel-o com um processo judiciario, e Chalinhy
podia sel-o tambem se a mulher o enganasse e tivesse a prova d'isso. Mas
quem lhe forneceria essa prova? Seria ella mesma? A tentação de
denunciar o segredo surprehendido tinha ao principio tocado ao de leve o
espirito da invejosa mas repeliu-a desde os primeiros momentos.
Repelliu-a, e, comtudo, pouco a pouco, foi-se tornando mais persistente.
A prova está na insinuação enygmatica, tão perfidamente feita no
principio do jantar, em casa da Sarliévre. O sobresalto de pundonor que
a levára a repetir depois as suas proprias palavras, dando-lhe uma
interpretação anodina, duraria ainda? Tel-o-hia affirmado com a maior
energia se a interrogassem quando regressava da _soirée_--debaixo da
impressão da promessa d'uma entrevista com o marido da prima. Mas
n'aquelle momento, deitada na cama, e passando em revista atravez do seu
espirito tão insignificantes incidentes com tão importantes
consequencias, teria apenas objectado que no fim de contas havia muitos
meios para chegar a conhecer a verdade.

Pois não era facilimo que o acaso, que lhe deu a conhecer a intriga de
Valentina, se reproduzisse com qualquer outra pessoa! E porque é que
essa outra pessoa não havia de ser o proprio marido? Uma mulher que tem
na sua vida uma aventura occulta, commette geralmente imprudencias;
tinha sido uma verdadeira imprudencia a mudança de trem n'aquella
tarde; e então a maneira como Valentina explicava o que tinha feito
n'essa mesma tarde, equivalia a uma completa confissão.

«Se Chalinhy descobre tudo, não tenho nada de que me penitenciar, e
Valentina não poderá lamentar-se se occupo um logar que não póde ser
d'ella... Mas o que ha a descobrir? Que tem um amante?

«Quem é? Passa esta semana fóra de Paris, não saberei nada. Tanto
melhor, desconfiará menos de mim.

«Ficará para quando voltar... Em todo o caso, ámanhã não deixarei
Norberto pronunciar sequer o seu nome... A minha dignidade exige-o. Não
saberá nada por mim!...»

Se a perigosa e felina creatura podesse penetrar bem no intimo d'esta
resolução,--debaixo de cuja impressão ia dormir--plenamente
satisfeita!--reconheceria haver n'ella mais prudencia do que magnanimidade.

Communicar ao marido indicios tão incompletos não era advertir a mulher?

Não teve grande difficuldade, no dia seguinte, em cumprir, na entrevista
em local occulto que o adultero Chalinhy designou por «nossa casa», a
promessa que fez a si mesma. Não offerece duvida que o desejo de
designar assim o magnifico palacio da rua Varenne, dependia muito da
graça enebriante que a amante desenvolvesse para com elle n'esse dia.
Anciava porque o estonteamento das suas caricias o acompanhasse até
Pont-Yonne, junto de Valentina, e impedisse entre elles a renovação
da intimidade conjugal, que é o receio permanente da amante d'um homem
casado.

Joanna, durante muito tempo, conservou-se alheia a taes receios,
emquanto julgou Valentina inteiramente inaccessivel ao amor; a sua
opinião, porém, modificou-se bruscamente.

As consequencias da mudança na apreciação do caracter da prima
avolumaram-se durante os dias da separação que seguiram a ultima
entrevista, e, portanto, só poude ensaiar por todas as fórmas,
interrogando subtilmente uns e outros, as mais infructiferas
investigações sobre o mysterio cujo rasto havia surprehendido.

Associando o nome d'um novo personagem da sociedade que frequentava, ao
da senhora de Chalinhy, não se calariam todos deante d'ella, uns porque
era sua parenta muito proxima e outros porque era a rival da gentil
marqueza?

Quiz sabel-o a todo o custo, e não conseguiu recolher mais do que os
echos dos elogios que conhecia muito bem, por ter soffrido tanto com
elles. Passando em revista os frequentadores habituaes dos salões da rua
Varenne, não conseguiu tambem fixar as suspeitas n'um unico.

Todos, sem excepção, desde os conquistadores que começavam a envelhecer,
como Casal, Vardes, até aos moços «bellos» de nova geração, um Pedro de
Eysséne, um Maximo de Portille, tinham para com a marqueza de Chalinhy,
as attitudes do natural respeito que se não inventa, que se não finge.

Emana de todo o seu ser, e traduz-se pela maneira especial de olhar
uma mulher, de se approximar d'ella, de lhe falar, com a qual outra
mulher se não pode enganar, por isso mesmo que teem para com ella modos
bem differentes. Por mais imperceptivel que seja a mudança todos a sentem.

Não, não havia entre os individuos que mais conviviam com Valentina, um
unico homem de quem Joanna podesse dizer: «É este!» com uma sombra de
verosimilhança.

Quando se encontrou novamente com os Chalinhy, no regresso de Pont
Yonne, não tinha conseguido colher um unico esclarecimento mais, sobre o
mysterio da vida da sua rival, sabia tanto como no momento em que viu as
plumas pretas do seu chapeu desapparecerem na carruagem, no meio da rua
Saint Honoré; e as ternuras do amante ao tornar a vêr as duas,
abraçando-se, tratando-se por tu, dizendo-se mutuamente palavras de
amisade, não tinha diminuido tambem.

Um unico ponto se modificou.

A semana de isolamento e de meditação amorteceu definitivamente, ou
antes, destruiu por completo os escrupulos que tornavam odiosa para
Joanna a idéa da denuncia ao marido.

Todos os rancores do seu amor proprio ulcerado durante tantos annos, por
uma comparação constantemente renovada, sempre deprimente, tinham-se
condensado num sentimento que ella formulava nas seguintes palavras. Se
manifestava em todas ellas a coragem dos seus intimos desejos, não se
pronunciava nitidamente senão na ultima phrase.

--«Tanto peor para ella, se tomo a minha desforra. Assiste-me todo o
direito de assim proceder desde que tem disfructado todas as venturas e
eu nenhumas... No fim de contas ha n'isto um fundo de justiça!»

As mais hediondas perversidades que possam commetter-se entre mulheres,
estão já envoltas n'este appello á equidade. Quer se trate da ordem
social ou da ordem sentimental, esta palavra justiça, tão solemne, serve
geralmente para nos absolver, perante a nossa propria consciencia, da
inveja da felicidade dos outros.

É sempre opportuno repetil-a n'uma epocha em que se procura envolver em
phrasiologia idealista as mais baixas e menos generosas paixões! Esta
galante mulher, d'um tão perverso egoismo, não raciocinava por sua
propria conta d'um modo differente dos promotores de revoluções. O seu
sophisma era sómente menos perigoso, posto o desejo de prejudicar fosse
ainda mais forte.

Se as vontades muito firmes realizam muitas vezes, com felicidade, os
seus emprehendimentos é porque applicam toda a attenção das suas
faculdades aos menores acontecimentos, e não deixam escapar nenhuma
occasião de operar.

Depois de ter passado, mentalmente, em revista todos os processos de
espionagem possiveis, Joanna acabou por optar pelo mais simples.

Era tambem o que infallivelmente daria o resultado tão ardentemente
desejado: redobrar de intimidade e de persistencia para surprehender
Valentina, em sua casa, a todas as horas. A sua perspicacia de
mulher saberia descobrir um signal qualquer que lhe permitisse exercer
uma acção efficaz. Por experiencia propria tinha aprendido que uma
ligação prolongada cria naturalmente habitos d'uma regularidade quasi
burgueza. A maior parte dos amantes acabam por ter entrevistas quasi
periodicas, em consequencia da necessidade de harmonisar os prazeres
clandestinos com os actos do seu viver habitual.

Quando, ao contrario, taes entrevistas são irregulares, é sempre do lado
da amante que se deve procurar a causa.

É que os momentos de liberdade nem sempre apparecem, e como esta depende
em geral da presença ou ausencia do marido, é na vida d'este que deve
procurar-se o desconhecido do viver da mulher. Aquella, porém, cujo
marido e senhor caça muitas vezes por semana, escolherá antes uma
d'essas tardes em que se julga segura de qualquer surpreza.

Não acontecia assim no caso presente.

Valentina observada? Era-o tão pouco. Podia commetter todas as
imprudencias e com inteira segurança.

Mas, sendo dissimulada a ponto de denunciar a existencia de uma intriga
amorosa, em presença da attitude que tomava, deveria tambem, em tal
caso, ser prudente e por principio.

As verdadeiras hypocritas são assim. Um dos seus caracteristicos
habituaes é uma absoluta discordancia entre o seu modo de pensar e de
proceder. Nunca a marqueza de Chalinhy se retrahira, como uma pessoa
que tem um segredo a occultar na sua existencia.

Era com esta particularidade que Joanna contava. Fez este raciocinio
simples mas evidente: entre os indicios que a tinham decidido a seguir
sua prima de longe, quando a fosse esperar no grande armazem, o mais
decisivo era o da sua maneira de vestir.

Pareceu-lhe que havia n'ella a intenção de passar despercebida.

Pensou que, no dia em que Valentina se preparasse de novo para a
mysteriosa expedição, se vestiria da mesma fórma, senão com o mesmo
vestido pelo menos com egual severidade.

Ainda não tinha passado uma semana, depois do regresso dos primos, e
reconhecia já que o seu feminino talento de inducção lhe havia suggerido
o melhor systema. Só lhe seria necessaria alguma paciencia. Á inveja que
é por natureza uma paixão silenciosa e alimentada de longas impressões,
raras vezes lhe falta.

Joanna nem mesmo teve tempo de empregar a sua.

Foi á rua Varenne, n'aquelle dia, uma segunda feira, pelas onze horas da
manhã, para abraçar a «cara prima» antes d'almoçar e combinar com ella o
que deviam fazer n'essa tarde. Treze dias antes, precizamente á mesma
hora, mas então por méro acaso, fez a Valentina a mesma pergunta: «Vamos
sahir juntas?» e que ella lhe respondeu. «Não posso» dando como desculpa
ter que fazer algumas visitas. Desde que entrára no gabinete
reservado junto do quarto de Valentina, no qual esta costumava,
antes do almoço, tratar da sua correspondencia, teve Joanna um grande
presentimento. A prima tinha o mesmo vestido que levava no celebre dia.
A sua emoção era tão viva que lhe tremia a voz ao formular uma tão
simples e natural pergunta. Tão convencida estava antecipadamente de que
a resposta seria: «Não posso» que ao ouvil-a pronunciou apenas estas
ligeiras palavras de insistencia: «Porque? Que tens que fazer?» ás quaes
a outra oppoz uma explicação ainda mais vaga.

«--Não, effectivamente não posso; tenho umas duas ou tres visitas a
fazer que não devo de fórma nenhuma adiar.»

Joanna desistiu de a interrogar mais com receio de suscitar uma
desconfiança, que poderia deitar por terra o plano concebido pelo seu
espirito, para o pôr em execução opportunamente.

Consistia em, no dia que surprehendesse os signaes reveladores, esperar,
occulta dentro d'uma carruagem com os estóres corridos, á esquina do
«boulevard» dos Invalidos para a rua Varenne, e seguir a equipagem da
marqueza de Chalinhy quando esta sahisse de casa.

A invejosa pensára primeiramente, n'um phrenesi de saber a verdade, em
empregar este meio brutal sem esperar os taes signaes, e todos os dias,
até obter o resultado desejado. O seu bom senso, porém advertiu-a de que
uma operação d'esta natureza não tinha probabilidades de exito, se fosse
repetida muitas vezes.

Uma carruagem de aluguer que segue um «coupé» particular não se nota
á primeira vez; mas á terceira ou quarta se não é apercebida pela pessoa
que vae dentro do «coupé», sel-o-ha pelo cocheiro ou trintanario.

N'aquelle dia, tendo surprehendido a rival com uma toilette tão
significativa para ella, que constituia quasi a certeza da renovação da
scena anterior, como poderia Joanna hesitar?

Deixou a prima ás 11 horas e meia.

Sabia que almoçava ao meio dia e um quarto, que habitualmente mandava
preparar a carrruagem ás duas e meia.

Desde a uma hora que estava no posto de observação anteriormente fixado,
tendo tido a coragem, muito de admirar n'uma senhora da sua educação, de
realizar com o cocheiro d'um trem de praça um d'estes pactos que
estabelecem entre a pessoa que o propõe e a que o acceita, uma muito
aviltante cumplicidade.

--«O seu cavallo será capaz de seguir uma boa parelha que vá com toda a
velocidade?...» perguntou-lhe Joanna, depois de concluido o ajuste.

--«Junte mais dez francos á conta, minha senhora,» respondeu o homem, «e
juro que, em toda a cidade de Paris, não nos escapará.»

Esta familiaridade da parte d'uma creatura de tão infima condição, a
cujo nivel o dialogo travado a rebaixára, fez ruborisar a baroneza de
Node. Não renunciou, porém, por tão pouco, a um projecto de que esperava
um resultado tão simples quão definitivo e completo.

Foi baldado o receio de que o rocinante atrelado á carruagem de
aluguer não podesse acompanhar a magnifica parelha de cavallos inglezes
da prima, e a fanfarronada do cocheiro não teve occasião de ser posta em
experiencia, pela simples razão de que ás duas horas a marqueza de
Chalinhy sahia effectivamente do palacio, mas a pé.

Do seu carro e atravez dos intersticios do pedaço de seda azul, uzado e
sujo, que a mão nervosa apenas affastava, via a prima caminhar pela rua
adiante, lenta e tranquillamente, com o passo d'uma mulher que aproveita
o bom tempo para dar um passeio hygienico. Não pareceu mesmo ter
reparado na anomalia que representava, n'um bairro tão pouco propicio ás
aventuras parisienses, a permanencia d'uma carruagem com os estores
corridos, immovel, no extremo da pacata rua Varenne!

Atravessou o «boulevard», sem se voltar, e chegou ao pequeno jardim dos
Invalidos, que transpoz, sempre com o mesmo passo indifferente.

A baroneza de Node, que disse ao cocheiro que descesse a avenida do
mesmo nome, a passo, não perdia um unico gesto da passeante.

A certeza do bom exito começava já a abandonal-a. Uma tia das duas, a
velha condessa de Nerestaing, morava no caes d'Orsay, junto da esplanada.

Iria Valentina, simplesmente, visitar aquella velha fidalga?

Mas não. Em logar de seguir n'esta direcção, dirigiu-se para o
«boulevard» de Tour-Maubourg. Chegando ali, mandou tambem parar uma
carruagem que passava. O coração de Joanna batia com extraordinaria
violencia.

Decorridos alguns momentos apenas, saberia se a prima ia fazer uma
excursão sugerida durante o passeio, ou se ia á entrevista secreta, que
era a unica explicação plausivel do abandono da sua equipagem no outro
dia, e da sua mentira.

A carruagem que alugou tinha a caixa pintada de amarello, o que
permittia seguil-a com tanta mais facilidade, quanto era certo que
avançava ao trote lento d'um cavallo muito cançado.

Seguiu ao longo do «boulevard» Tour-Maubourg primeiro, depois pela
avenida Duquesne, para contornar a egreja de S. Francisco Xavier, e
ganhar um pouco adeante a comprida arteria popular da rua Vaugirard, que
não abandonou mais até ao Luxemburgo.

Joanna, cuja carruagem rodava a uns vinte metros á retaguarda, pouco
mais ou menos, estava agora convencida que d'esta vez tinha encontrado a
verdadeira pista. Viu a carruagem amarella entrar na rua de Medecis, e
na de Soufflot, seguir ao longo do muro do vasto lyceu Henrique IV.
Nomes que a baroneza de Node nunca tinha sequer visto desenrolavam-se
nas placas das esquinas: «Rua Clovis, R. Etrapa de Thourin... Rua
Mouffetard». Mais algumas voltas ainda, e atravessada a concorrida
arteria da rua Monge, a carruagem attingia o extremo da rua Lacépède que
desemboca em frente do jardim das Plantas.

Ao chegar ali parou. A marqueza de Chalinhy desceu e pagou a corrida,
com uma moeda de antemão preparada--um outro pequeno signal
indicativo de que desejava desembaraçar-se do cocheiro o mais brevemente
possivel.

--«Não iria á Piedade, cuja fachada cinzenta se erguia mais á direita?»
Joanna, cuja carruagem tinha continuado a andar, e agora estava parada
junto da grade do jardim, teve por um momento a idéa que a prima ia
entrar no hospital. A hypothese d'uma visita de caridade que lhe passara
já pela mente com um certo receio, e fôra posta de parte pelo seu odio,
era então verdadeira?... Ainda não. A senhora de Chalinhy esperou no
meio da rua que a carruagem partisse e seguiu a pé pelo estreito passeio
da rua Lacépède. Teria dado uns cincoenta passos, quando muito, e Joanna
viu-a bater á porta d'uma pequena casa com dois andares. A porta
abriu-se. A marqueza, que até ahi parecia completamente extranha a
qualquer desejo de se occultar, lançou em torno um olhar investigador,
como de quem quer ficar bem certa de que não foi reconhecida--e
desappareceu por detraz do batente que se fechou logo. A baroneza de
Node presenceou tudo, tão bem quanto lh'o permittia o afastamento
forçado do seu posto de observação, com uma alegria cruel, a que se
misturava, porém, muito espanto, para ser completa.

Por experiencia propria e pelas confidencias que alguns homens lhe
tinham feito, estava perfeitamente industriada nas condições habituaes
das secretas felicidades prohibidas da alta sociedade parisiense.

Como não havia, pois, de ficar desconcertada, até ao assombro, ao
ver o bairro que a prima escolhera para as suas entrevistas d'amor.
Joanna desceu da carruagem, e, caminhando ao longo do estreito passeio
que a marqueza de Chalinhy percorrera alguns momentos antes, observava
os modestos estabelecimentos d'este começo do arrabalde de S. Marçal:
aqui uma lavanderia, com pouca roupa e pobre; mais adeante uma lojéca de
revendedor; ao fundo uma serralharia de meio preço, e n'outra parte uma
casa de venda de jornaes a dez réis. A accumulação e irregularidade das
construcções, sem duvida contemporaneas da epoca em que Madame de
Miramion construiu todo o bairro de S. Pelagio, hoje destruido, a
humidade dos passeios, os resumbramentos dos descorados rebocos, tudo no
aspecto da velha rua attestava a humildade dos moradores, para os quaes
as visitas mais ou menos regulares d'uma mulher nova, bonita,
superiormente elegante, como era a marqueza, devia constituir um
acontecimento.

O proprio aspecto da casa em que acabava de entrar era de natureza a
provocar a curiosidade e, por consequencia, a investigação, com todas as
consequencias dos artificios escandalosos para extorquir dinheiro que
quasi sempre d'ella derivam.

Era uma casa quadrada, isolada entre duas construcções mais elevadas, ás
quaes se ligava por um muro de regular altura. Os ramos amarellados de
meia duzia de tilias bastante desenvolvidas, ultrapassando o cimo do
muro, denunciavam o luxo de um pequeno jardim.

Estes estreitos e quasi microscopicos talhões de verdura abundavam
ainda, ha vinte e cinco annos, n'esta vertente sudeste do Monte de Santa
Genoveva.

Eram os minusculos destroços, salvos por acaso, dos vastos parques
pertencentes a recolhimentos que George Sand descreveu com tanta poesia
na «Historia da minha vida». A communidade das Augustinhas Inglezas,
onde ella foi educada, era muito proxima, como muito proximo era tambem
o immenso quintal da Misericordia, de que elogia as uvas douradas e os
cravos de differentes côres. Depois, estes pavilhões com jardins teem
desapparecido uns apóz outros. Este da extremidade da rua Lacépède não
devia ter sido mais notavel do que os da rua Rollin ou Boulangers. Hoje,
a sua conservação é uma anomalia que necessariamente attrahe as attenções.

A baroneza de Node passou e tornou a passar, muitas vezes, pelo passeio
fronteiro, para examinar a extranha habitação com uma attenção que cada
vez augmentava mais a sua surpreza. A casa tinha duas janellas no
rez-do-chão, uma de cada lado da porta, e tres em cada um dos andares
superiores. As do rez-do-chão eram guarnecidas de vidros despolidos e
protegidas por estóres; e as sacadas do primeiro e segundo andares não
tinham outra particularidade senão aquella ligeira differença de côr dos
vidros que attestam a grande antiguidade de certos caixilhos.

Eram guarnecidas por bambinellas brancas, com ramagens, cahidas, e com
reposteiros de estôfo, apanhados por braçadeiras, e dos quaes se via
sómente o fôrro de setineta crême e a franja, vermelha e azul, que
os orlava.

Os passeantes estranhos ao bairro, se os havia, que se detivessem a
observar uma tal frontaria, imaginavam sem duvida, por detraz d'ella uma
d'estas doutas habitações burguezas, d'um sabio ou dum professor, como
ha muitas entre o Luxemburgo e o Jardim das Plantas, em consequencia da
proximidade do Muzeu, dos dois grandes lyceus, da Sorbonne. Mas que um
tal logar podesse servir de abrigo aos amores d'uma marqueza authentica,
vinda ali d'um dos mais nobres palacios do arrabalde de São Germano,
constituia uma hypothese tão perfeitamente inverosimil, que era preciso
que Joanna de Node fizesse um exforço enorme para se convencer de que
ella estava lá dentro, e que tinha visto perfeitamente Valentina de
Chalinhy collocar a mão sobre o punho de ferro, que existia a um canto
da porta, á moda antiga, para o fazer soar,--empurrar a porta ao meio da
qual um friso de cobre marcava a abertura d'uma caixa para cartas,
destinada a receber a correspondencia, sem que o carteiro
entrasse--transpôr a soleira, elevada, por tres degraus, do pavimento da
rua... N'aquelle momento lá estava ella, n'um d'aquelles compartimentos
fechados. E com quem?

Qual seria o homem do seu meio, que chegou a esta casa alguns momentos
antes d'ella? Assim devia ser, visto que lhe abriram a porta.

Ou então era ali o abrigo d'alguma aventura ainda mais romanesca? Teria
Valentina, por uma serie de circumstancias que ninguem das suas
relações podia suppôr, procurado uma ligação fóra da sua casta?
Juntar-se-hia ali com ella um rapaz novo que nunca tivesse ido a sua
casa? Que se tratava d'uma intriga amorosa, não havia a menor duvida. O
que poderia oppor-se a que viesse a esta rua, pobre, mas perfeitamente
decente, se fosse ali levada por um motivo justificado? E depois, o
aspecto senão rico pelo menos muito confortavel da casa, não excluia
tambem qualquer idéa d'uma visita de caridade? Valentina estava junto
d'um amante. Mas que amante?

A violencia da curiosidade de Joanna era de tal ordem, que, esquecendo
completamente a prudencia, ficou immovel, no passeio, com a cabeça
levantada, em risco de ser vista do interior, se alguem se lembrasse de
olhar para a rua atravez das bambinellas. Teria talvez, na febre de tudo
saber, batido á porta mysteriosa, offerecido dinheiro aos lojistas
visinhos para os fazer fallar, se um novo acontecimento não viesse de
repente responder á pergunta tantas vezes feita: a paragem d'uma
carruagem em frente d'essa casa, cuja frontaria enygmatica e muda ella
observava com o olhar.

Era um _coupé_ d'aluguer, do qual sahiu um homem ainda novo e que
parecia preocupado por ter chegado tarde, por isso que, depois de bater
á porta, durante o tempo que demoravam a abrir-lh'a, consultou o relogio
e fez um significativo movimento de cabeça. Aberta a porta, entrou
precipitadamente, abandonando o batente que se fechou logo, mas não com
tanta rapidez que Joanna de Node não tivesse tempo de ver quadros,
columnas e uma escada atapetada--mas não distinguindo quem veio abrir a
porta. Com difficuldade conseguiu observar os traços physionomicos do
homem: uma physionomia intelligente, magro, cabellos ainda pretos,
apparentando ter uns 45 annos, com uns olhos tão negros que lhe
pareceram d'um brilho singular. Os seus olhares cruzaram-se e, debaixo
da impressão do d'elle, Joanna córou. Para não parecer que exercia a
espionagem, deu alguns passos para a frente, como uma pessoa que não
está bem certa no caminho. A que classe social pertenceria este homem
que, sem duvida, vinha ter uma entrevista com Valentina de Chalinhy?

Tinha-lhe parecido muito bem posto, e, comtudo não lhe havia dado a
sensação d'uma pessoa pertencente ao meio em que vivia.

Deu ainda alguns passos na direcção da rua Monge, com a idéia de que o
desconhecido a tivesse notado e abrisse talvez a sacada para verificar
se ainda ali se conservava. Voltou a cabeça e reconheceu que as janellas
da pequena habitação continuavam fechadas e que a carruagem que conduziu
o homem se não ia embora. Apoderou-se d'ella a tentação de não se
retirar e esperar que Valentina ou o desconhecido reapparecessem, ou até
mesmo os dois juntos.

Mas que mais tinha a esperar? Para que expôr-se a avisa-los. Tinha já a
tão desejada prova. Restava-lhe apenas saber o uso que devia fazer
d'ella. Subiu para uma carruagem e voltou para o Paris aristocratico--o
Paris de sua prima e d'ella--e a imagem do estranho sitio em que
aquella occultava o romance da sua vida ter-lhe-hia parecido um sonho se
a perfida voz interior á qual no primeiro sobresalto de consciencia
respondeu: «não farei isso» não tivesse recomeçado a pronunciar palavras
muito nitidas, muito precisas, misturadas ás realidades da sua vida
presente e aos mais positivos interesses do futuro. Tinha meio de perder
Valentina para com Norberto. Não o utilisaria?




V

A carta anonyma


É forçoso reconhecer, para honra ou desprestigio da natureza
humana--depende isso do ponto de vista--que muitas das más acções raras
vezes são commettidas expontaneamente, e como taes. As nossas ruins
paixões avantajam-se em nos encobrir a sua perversidade nativa debaixo
dos mais plausiveis pretextos e algumas vezes das mais justas
apparencias. É muito difficil que as reconheçamos em nós mesmo. Toda a
psycologia do crime se encerra na seguinte phrase cynica d'um assassino,
contando a lucta com uma velha mulher sua victima: «Defendia-se a
miseravel!...» Quando uma creatura odeia outra por motivos tão vis como
a inveja, por exemplo, acontece, quasi sempre ver o inimigo tal qual
o seu odio necessita que seja. Praticam-se para com ella as maiores
infamias, e consideram-se como merecidas represalias. Esta illusão, meio
voluntariosa, explica por si só, que certas más acções, d'uma ordem
abominavel, possam ser praticadas por determinados seres, os quaes no
fim de contas, não são verdadeiros monstros. A baroneza de Node--pois
que se trata d'ella--não se deve classificar como tal. A prova está em
que ao entrar em casa, de regresso da excursão de policia improvisado,
de novo respondeu á voz tentadora com um «não» mais energico ainda do
que o primeiro. No tempo que demorou a transpôr a distancia que separa a
rua Lacépède da rua Barbet-de-Jouy, as probabilidades de reconstruir a
sua existencia sobre os destroços da familia de Chalinhy--criminosa
chimera, á qual se abandonára, em pensamento, durante treze dias de
espectação--voltavam de novo ao seu espirito. Por uma variação singular
de sua sensibilidade, desde que sabia a verdade, encontrava mais fortes
argumentos para repellir uma tal idéa, e, portanto, com ella o acto
denunciador que demandava, do que quando duvidava ainda. É que uma
intima, uma apaixonada satisfação d'amor proprio, a inundava
completamente, e, durante uma hora, amorteceu o ardor da antiga ferida
da inveja.

A violencia do odio,--o principal motor da sua alma havia tantos
annos--achava-se paralisado pelo orgulho de conhecer, d'esta vez de
maneira que julgava decisiva, a falta da prima.

A superioridade da virtude conjugal, que todas as mulheres
reconhecem no fundo da sua consciencia, muito embora apparentemente
desdenhem d'ella, já a não possuia mais Valentina de Chalinhy sobre
Joanna, ao contrario poderia antes ter sobre ella uma superioridade,
mostrando-se generosa. «Calar-me-hei e ficaremos quites...» Esta phrase
que repetia em voz alta, «Ficaremos quites...» resumia perfeitamente o
estranho trabalho do seu pensamento desmoralisado pela sua vida. Punha
d'um lado a affronta que tinha feito á prima roubando-lhe o marido, e
encontrava este prato da balança muito leve, comparando-o com o outro no
qual pesava as vantagens que sacrificava--não se julgando culpavel d'uma
infamia.

Devia ir á «Opera» n'essa noite, para o camarote dos marquezes de
Chalinhy, no qual tinha logar certo, uma segunda-feira em cada quinze dias.

Este convite permanente constituia uma das muitas gentilezas de
Valentina para com ella, e que a encantadora mulher empregava para
auxiliar a prima, apezar do desfalque na sua fortuna, a manter-se á
altura da grande vida parisiense. Ordinariamente subia a escadaria do
theatro que conduzia aos camarotes de primeira ordem, com uns
sentimentos de acrimonia constantemente renovados.

Lembrava-se do tempo em que tinha tambem uma frisa de assignatura.
Muitas vezes para lá convidou sua prima, então solteira--e
agora era ella que recebia a esmola humilhadora duma galante
hospitalidade!--N'aquella segunda-feira, depois do episodio da tarde,
uma unica impressão a dominava, um desejo, quasi uma necessidade de
tornar a ver a frequentadora da pequena casa clandestina, espiar,
estudar a sua physionomia, gosar com o contraste entre a marqueza de
Chalinhy, altiva e elegantemente vestida, adulada e virtuosa, que
reinava no meio opulento da sua realeza mundana, e a adultera aviltada,
vestida modestamente, preparando-se para seguir para essa rua perdida
n'um arrabalde afastado.

Propositadamente chegou um pouco mais tarde, para já encontrar Valentina
no camarote.

Teve uma verdadeira decepção, logo que entrou na antecamara que o
precede, por não ver os cabellos louros, os doces olhos azues que
esperava, mas sómente a pequena e caracteristica cabeça da senhora de
Bonnivet, os largos hombros do duque de Arcole, a pallida e fina figura
de Abel Mosé, e o rosto amargurado de Chalinhy, que se adiantou para lhe
dizer:

--«A Valentina pediu-me para a desculpar para comtigo, minha cara
Joanna. Sentiu-se repentinamente um pouco incommodada e deitou-se».

--«Não é nada de cuidado, não é assim?» perguntou Joanna.

--«Não», respondeu Chalinhy, «uma simples enxaqueca.»

Depois no entre acto, e quando estavam sós, sentados n'um mesmo sophá,
na pequena ante-camara, na qual os frequentadores do camarote tiveram a
discrição de os deixar em amavel coloquio, sem que o marido receioso se
offendesse de esta vez, commentou baixo: «Não sei o que ha. Estava
perfeitamente esta manhã. De tarde fez algumas visitas, e recebeu, como
é costume, ás 5 horas. Ás 6 horas entrou tua tia, a senhora de
Nerestaing, e estiveram sós uma meia hora, se tanto, segundo as
informações que colhi. Quando eu cheguei terminaram a conversação.

«Ao sairem as duas da sala em que estavam, pelo aspecto de Valentina,
notei que a senhora de Nerestaing lhe acabava de fallar de qualquer
coisa grave, que me dizia respeito, ou antes que nos diziam respeito...»

--«Lá estás tu novamente com os teus receios» interrompeu Joanna,
encolhendo os seus formosos hombros. «Porque imaginas que a tia de
Nerestaing se occupa com as nossas pessoas?

«Estou um pouco indifferente com ella ha uns dez annos. Não me vê nunca
e nem mesmo pensa em mim. E emquanto Valentina, ninguem tem nada a
revelar-lhe, tenho-me cansado a repetirt'o.»

--«E eu repito-te que Valentina ainda esta manhã não suspeitava de coisa
alguma. Não me teria fallado a teu respeito, sendo tão franca, pela
maneira porque o fez ao almoço. Despedi-me d'ella á uma e meia, e nos
termos mais affectuosos. Fui depois encontral-a completamente
transtornada. Quando lhe perguntei o que tinha, vi perfeitamente que
tremia ao som da minha voz. Quiz apertar-lhe a mão, com difficuldade
conseguiu estender-me a sua. Ás minhas perguntas, respondeu pretextando
uma violenta enxaqueca. Fallei em chamar o medico, recusou. Necessitava
apenas um pouco de repouso. Deixei-a ir, porque eu estava tambem
muito perturbado. Tinha receio de me trahir, se insistisse em querer
saber a causa da sua mudança subita... Se isto não são provas evidentes
de que ignorava tudo e tudo acabavam de lhe contar, o que é então?»

--«E se assim foi?» diz a amante, «e depois»?

--«Como, depois?» replicou Chalinhy.

--«Sim, depois», insistiu ella, «se me amas não deves estar satisfeito
por ter acabado esta situação tão falsa, tão humilhante para mim sem que
tu tivesses concorrido para isso? Não podemos conversar mais agora; vem
alguem.--Tens razão, é Saveuse que chega. Ámanhã ás 11 horas da manhã
irei saber noticias de Valentina. Não é mais do que um pretexto,
tranquiliza-te...» acrescentou ella, com um sorriso d'uma ironia
caracteristica, arregaçando os labios finos ao canto da bocca n'uma ruga
cruel. Pouco depois já os seus labios frementes estavam calmos, e os
olhos, pelos quaes passou um lampejo de cholera, se adocicavam para o
frequentador dos fauteuils d'orchestra que entrava, o barão Saveuse, uma
das peores linguas de Paris. Este velho mal intencionado, pondo sómente
em pratica expedientes equivocos, encontrou meio de se tornar tão temido
pela verdade das suas maledicencias e pelo acerado das suas observações,
que é tão poupado quanto despresado.

A estima d'estas personalidades perigosas e que Joanna mais se esforçava
por adquirir, depois da ligação com o marido da prima; por isso, foi
particularmente amavel para este mau homem, insistindo com elle para que
passasse o acto seguinte no camarote. Era d'estes propagadores da
opinião que queria ter por seu lado, d'estes destruidores de reputações
que desejava ver contra a prima, se em alguma occasião recomeçasse a
vida em condições difficeis de ser bem recebida no seu meio. E depois,
tinha ainda de renovar n'essa mesma noite uma conversação muito grave
com o amante, para ser realisada debaixo do olhar inquisitorial da
senhora de Bonnivet e sobre tudo d'um Abel Mosé. Calculava que Chalinhy
quereria a todo o custo reatar uma tal conversa, e que não podendo
fazel-o no camarote, aceitaria, no final do espectaculo, um logar que
lhe offerecessem na sua carruagem.

Esta imprudencia, que raras vezes commettia, era no caso presente um
acto de sisudez.

Se era inutil o saber-se que um drama intimo se desenrolava no viver dos
Chalinhy, era muito util, em caso de escandalo, que se tornassem bem
patentes as relações de Norberto com ella.

Se o theatro lyrico tem um successo enorme para as senhoras e
cavalheiros da _Sociedade_, não é sómente porque o ruido da musica,
«mais caro do que os outros», como dizia Gautier, acompanha
agradavelmente a conversação, é tambem porque a orchestra e o canto
permittem, que o ouvinte se cale, fingindo que lhes presta a maior
attenção, sendo certo que se entrega a longos soliloquios interiores,
nos quaes uma pessoa negligentemente encostada ao veludo vermelho do
camarote, não trata nem da _Salambô_, nem do _Lohengrin_, nem do _Romeo
e Julietta_--era a opera que se cantava n'essa noite--mas de
problemas tão pouco carthaginezes, germanicos ou italianos, como o que a
baroneza analysava n'aquelle momento, parecendo inteiramente absorvida
pela melodia:--«A Valentina fingiu-se doente.

«Tem receio de se tornar a encontrar frente a frente comigo. Pois bem!
Tanto melhor! Sómente era necessario que não tentasse inventar um
subterfugio, e a sua attitude com Norberto, depois da visita da tia
Chalinhy, dava mostras d'isso... Mas que fim teria em vista? Representar
a comedia da indignação e abandonar a sua propria casa... Como me julga!

«Imaginou que o primeiro acto seria denuncial-a. E eu que estava
resolvida a nada dizer!... Sim, tremeu por se ver descoberta; e quer ser
a primeira a romper--tomando para si o papel mais sympathico. Chamou a
tia, que me detesta, para lhe contar que eu e Norberto a trahimos. É a
verdade, e depois, se for accusada por sua vez, toda a familia estará do
seu lado. Norberto e eu sómente a calumniamos para nos vingarmos... Se é
este o seu plano, veremos. Ah! Não descançarei... Mas é necessario que
Norberto esteja do meu lado,--inteiramente--_é necessario_...»

Este pequeno monologo, começado e recomeçado atravez dos varios
incidentes d'uma representação na opera--commentarios sobre a sala e os
cantores, novas visitas, ver com o binoculo os frequentadores dos outros
camarotes e a orchestra--era extremamente malevolo em determinados
pontos.

A baroneza de Node não estava ainda convencida disso. Sobre uma
particularidade incidia toda a sua perspicacia: a necessidade de não
deixar o enigmatico e complexo Chalinhy entregue ás suas proprias
exhitações. A audaciosa baroneza ficou convencida desde essa tarde que
não podia confiar n'elle.

De balde envolvera o seu corpo esbelto n'um bello vestido de pellucia
encarnada, graciosamente decotado, de maneira a deixar a descoberto os
seus hombros deliciosos, o desejo de estreitar nos braços a amante, uma
tão formosa creatura, com aquella _toilette_ tão provocante e
propositadamente preparada para o estontear, actuou menos no espirito do
marido de Valentina, do que o escrupulo de afrontar os olhares das
pessoas das relações da esposa, que o vissem partir na carruagem com a
outra.

Acompanhou-a até ao _coupé_ e quando, depois de se ter chegado para um
dos cantos para lhe dar logar, ella lhe perguntou: «Não queres que te
leve a casa na minha carruagem?» respondeu: «Agradeço-te muito mas tenho
de ir ao club...» Joanna ficou tão estupefacta com a resposta, que o
deixou fechar a portinhola, sem nada fazer a não ser envolvel-o n'um
olhar tal, que o fez córar.

--«Magoei-a» pensava elle, seguindo a pé a rua Scribe, realmente em
direcção ao club, com o fim unico de, no dia seguinte, poder dar a sua
palavra, sem mentir, de que o ter de ir ali foi o unico motivo da sua
recusa. «Pobre rapariga! Estava tão bonita, tão terna!... Não
comprehende que a não posso defender contra a Valentina a não ser
que esta não tenha provas do nosso delicto.

«E esta entrada dos dois na mesma carruagem, depois da recita na Opera,
estando já Valentina avisada, era realmente uma prova.

«Foi com certeza avisada. A senhora de Nerestaing nunca gostou de mim e
tambem não gosta de Joanna. Quer mostrar-nos a sua má vontade. No fim de
contas podia ter referido só ditos vagos, não apontando factos positivos.

«Eu saberei tranquilisar a Valentina, contanto que a Joanna me não
impeça de o fazer. É um dever para com as duas.»

Estes pensamentos reproduziam perfeitamente a falta de logica da
situação, quasi sempre identica, a que chega qualquer homem, quando se
deixa arrastar á perigosa tentação, tão natural em certas sensibilidades
de ter duas mulheres ao mesmo tempo.

Este dualismo de affecto--porque se Chalinhy trahia Valentina, estava
esta bem longe de lhe ser indifferente--complicava-se, no caso presente,
com os intimos laços de parentesco, muito propicios a estreitar uma tal
ligação, mas que deviam produzir no futuro peripecias bastante
embaraçosas e difficeis. Por mais inconcebivel que um igual erro de
previsão possa parecer, nunca este marido infiel tinha acreditado na
possibilidade de ser abandonado pela mãe de seus filhos, se um acaso a
fizesse conhecedora da verdade.

Tinha até então unicamente receado a sua dôr; pela primeira vez temia a
sua separação. Não antevira tambem, nunca, a possibilidade real de
um rompimento com Joanna, bem que a sua razão lhe demonstrasse que esta
solução seria inevitavel, mais tarde ou mais cedo, e, no final, a sua
salvação. Sempre--e ainda n'essa tarde, mesmo depois de ter tido a
coragem de sacrificar á prudencia a entrada na sua carruagem e as
voluptuosidades que promettiam os olhos da amante, tão tentadora, tão
branca, em contraste com a côr do vestido--sim, sempre, que pensava n'um
tal rompimento, a recordação dos beijos d'essa bocca inebriante
empolgava-o. Esta recordação quebrava e fazia desfallecer a fibra da
lealdade. A sua vontade enfraquecia antecipadamente, sem que esta
fraqueza fosse até ao ponto de o submetter de todo á sujeição que lhe
parecia ler, cada dia mais claramente, nas suas maneiras, por vezes tão
imperativas:

Onde pretendia conduzil-o a amante omnipotente!

Poderia tel-o comprehendido melhor se tivesse podido ver, logo que se
fechou a portinhola do _coupé_, crispar as lindas mãos, e, n'um accesso
de cholera, quebrar o leque e repetir, gritando dentro da carruagem em
que Norberto não tinha querido entrar:

--«Ah! o cobarde! o cobarde! Isto é por causa d'ella, por causa d'ella,
por causa d'ella...»

E recordando-se do que sabia a respeito de Valentina, ria com um riso
insultante, no qual se expandia o seu orgulho ferido...

Não era este orgulho que tinha nos olhos e em toda a physionomia no
dia seguinte, pela manhã, quando transpoz os humbraes do palacio dos
Chalinhy, ás 11 horas, como na vespera. Ás nove, recebeu um bilhete de
Norberto perguntando-lhe se podia ir á rua Barbet-de-Jouy, ao qual
respondeu que não fosse, que ia ella á rua Varenne. A noite fôra-lhe boa
conselheira. Arrependeu-se de lhe haver imposto uma prova, e deante de
testemunhas, á sahida da Opera.

Quando desejamos exercer um supremo esforço sobre alguem, é um erro
tentar outros menores. E depois, desejava sobretudo ver Valentina, e
temia que a visita de Norberto a sua casa tivesse por fim impedir um
encontro entre as duas primas. Como não recebeu mais noticia alguma,
depois do bilhete, concluiu que nenhum novo incidente se havia dado.

Encontrou-o, á sua espera, só, na antecamara da esposa, com o semblante
sempre cheio de inquietação e os olhos inchados por não ter dormido.

--«Ainda hoje a não vi», respondeu á interrogação de Joanna. «Mandou-me
dizer que estava melhor, mas que se sentia ainda muito incommodada para
me receber.»

--«Não é portanto a narração que a tia Nerestaing lhe poderá ter feito a
respeito da sahida da Opera que lhe forneceu novos indicios», diz Joanna
com uma graça na voz e no olhar que suavisava, com uma caricia, a ironia
da reprehensão, e, tomando-lhe a mão, accrescentou: «Chorei muito
hontem, na carruagem, mas, afinal, reconheço que tinhas razão!...»

--«Minha amiga...» respondeu Chalinhy, attrahindo-a para si, e dando-lhe
um beijo, no qual vibrou uma emoção muito differente d'aquelle delirio
dos sentidos em que Joanna habitualmente fazia consistir o seu principal
dominio.

Era muito intelligente para o não perceber logo, e esta evidencia fez
reviver de novo o germen da inveja depositado no intimo do seu coração:
este enternecimento era motivado pela perturbação do marido por causa da
mulher.

Era tambem o reconhecimento para com a amante por se ter associado na
vespera á tranquilidade do seu lar! Beijou-o tambem, e perguntou-lhe com
meiguice:

--«Dás-me licença que a vá ver? Se me receber, disse a amante, será a
prova evidente de que os teus receios são imaginarios...»

--«E se te não receber?...»

--«Recebe-me com certeza», replicou com uma grande convicção que
acompanhou d'um olhar de triumpho, quando a creada veio annunciar: «A
senhora marqueza espera pela senhora baroneza.» A despeito da sua
ousadia, natural e alegre, a amante estava muita nervosa por ter d'ir
assim ao encontro da esposa legitima. Muito embora se achasse
convencida, desde a vespera, de que possuia o meio seguro de responder
ás accusações da rival, não era menos verdade que, sendo estas
formuladas na sua propria casa, Joanna ia talvez assistir a uma scena
extremamente desagradavel, e que se arriscava a ter uma decisiva
influencia no seu futuro. Se, por exemplo, Valentina lhe dirigisse
uma affronta muito violenta e Norberto não tomasse o partido d'ella?...

O coração batia-lhe apressado ao entrar no quarto da prima, ao qual as
bambinellas descidas davam a obscuridade tão preconisada para as
enxaquecas, e suficiente para que a recemchegada não podesse ver a
extrema palidez da doente.

A marqueza de Chalinhy estava deitada, e os seus bellos cabellos louros
formavam uma só trança, que dando volta vinha propositadamente cahir-lhe
sobre o rosto, como que para lhe encobrir a bocca e as faces.

Estas duas feições que ficavam visiveis, perdiam-se na penumbra, mas os
olhos brilhavam intensamente com o brilho da febre.

Por maior que fosse a sua força de vontade--porque recebia aquella de
cujas relações com o marido sabia desde a vespera, com a resolução firme
de continuar a fingir que as ignorava--a sua impressão, em presença da
prima, foi tão violenta, que involuntariamente se lhe cerraram as
palpebras e um tremor convulso lhe agitou todo o corpo sob a coberta de
finos bordados. O seu soffrimento era deveras evidente, para que a
calumniadora o podesse classificar de simples comedia. Mas se Valentina
tinha realmente visto a baroneza, na vespera, em frente da porta da casa
das suas entrevistas, e se imaginava o seu segredo surprehendido, não
era muito natural a sua perturbação, e muito natural tambem que quizesse
medir-se, frente a frente, com a inimiga para, por seu lado, saber com o
que podia contar? Porque então este tremor, quando a perfida se
inclinou para a abraçar. Porque esta retirada involuntaria do seu rosto
afogueado, esta intuitiva contracção de todo o seu ser, que ella
explicou, dizendo n'uma voz quasi apagada:

--«Estou tão nervosa. Passei muito mal a noite. Não posso suportar nem a
luz, nem o contacto de qualquer corpo estranho...»

--«Que tens então?» perguntou Joanna.

--«Um grande cançaço, e uma violenta dôr de cabeça. Quiz ver-te, para te
pedir desculpa por não ter ido hontem á Opera. Mas não podia...
Estiveste até ao fim?»

--«Estive.»

--«E acompanhaste o Norberto?» perguntou a senhora de Chalinhy.

«Elle dispensou a carruagem...»

--«Chegámos ao ponto melindroso,» pensou para si a amante.

«Recebeu-me para me fazer esta pergunta. É o pretexto para uma scena?
Uma scena! Não a terá...». E disse, em voz alta:

--«Não. Offereci-lhe um logar na minha carruagem e elle recusou, dizendo
que tinha d'ir ao club...»

Pareceu-lhe--a penumbra é muito enganadora--que um vivo rubôr subira ás
faces descoradas da marqueza de Chalinhy e que os seus olhos denunciaram
uma muito extranha emoção; mas, no seguimento da sua idéa, não
interpretou devidamente estes signaes, tão faceis comtudo de
comprehender. Não via n'elles a prova de que Norberto adivinhou e
muito bem que a sua traição fôra revelada, d'uma maneira fulminante,
áquella de quem tão facilmente tinha abusado! Um conjuncto de
circumstancias muito casuaes produziu esta revelação mais tarde ou mais
cedo inevitavel; mas a sua coincidencia com a descoberta feita pela
propria Joanna na vespera, dava ao acontecimento uma gravidade decisiva.
Eis os factos em toda a sua simplicidade:--Julio de Node, como a mulher,
pensava tambem em restabelecer a sua casa, cada vez mais compromettida,
por meio d'um novo e rico casamento.

Offerecia-se-lhe agora uma boa occasião. Precisava por isso, da mesma
maneira que Joanna pensára, fazer transformar a acção de separação em
divorcio. Esperava que a mulher lhe não levantasse difficuldades.

Sabia pelo rumor publico, e por informações mais positivas, da ligação
d'ella com o marido da prima. Cortou as relações com toda a familia da
esposa, excepto com a tia de Nerestaing, que, melindrada pelo
procedimento da sobrinha para com ella, tomou o partido do marido.

Julio de Node calculou, pois, que a velha fidalga seria a melhor
mensageira para uma negociação tão delicada. Tratava-se de ameaçar a
baroneza com o escandalo, se não acceitasse o divorcio.

A velha senhora de Nerestaing chegou á rua Varenne, inteiramente
preoccupada com a incumbencia, e persuadida de que Valentina nada
ignorava, e que supportava tudo por causa dos filhos.--Joanna
estava, pois, já em presença dos effeitos produzidos por aquella empreza.

Não a conhecia nos seus detalhes, e, ainda mesmo que a conhecesse,
faltavam-lhe os dados precisos para medir bem o seu effeito na alma
profunda da companheira d'infancia. Conhecia ainda menos a nobreza e a
candura d'uma tão bella alma. Em compensação, julgando-se senhora do
criminoso segredo, occulto por apparencias de encanto e severidade,
interpretou erradamente o rubôr e os modos da prima. Não viu n'elles o
pathético abalo d'um coração, no qual uma suspeita indigna produziu um
grande mal, e que se debatia na agonia negra da duvida.

«Não esperava esta resposta», pensou Joanna.

«O que fará agora? E se eu propria lhe falasse da rua Lacépède?...
Ver-me-hia deante da casa? Saberá que surprehendi a sua intriga amorosa,
e quererá sómente tornar-se livre, dando como pretexto a nossa
intimidade!...»

E depois, alto, com todas as caricias da mais eterna amizade na dicção,
dizia: Em que posso ser-te util, minha querida, que queres que faça?

--«Nada», respondeu Valentina, e, com um sorriso de soffrimento,
accrescentou: «A unica cousa que presentemente podes fazer é deixar-me,
pois que já te vi... Algumas horas de repouso e a doença passará. Não é
mais do que um resfriamento, verás.»

Estendeu a mão a Joanna, e quando esta, para se despedir, pousou de novo
os labios sobre a sua fronte ardente não sentiu o mais pequeno
movimento reflexo, o instinctivo retrahimento animal de todo o momento.

Era que atravez dos vae vens do seu espirito atormentado, n'essa noite,
ora acceitando, ora repellindo as provas convincentes, que,
infelizmente, sua tia lhe deu--as da devassa de Julio de Node--todo o
pensamento da esposa trahida se fixou n'este ponto: «Passam a noite
juntos. Se é verdade o que dizem, vae com ella na carruagem...», e pela
primeira vez esta sensibilidade fina e casta, tão cruelmente
calumniada--em face de apparencias bastante graves--por aquella que a
atraiçoava, sentiu o supplicio do ciume. O facto de saber que os dois
cumplices não tinham aproveitado a opportunidade para irem na mesma
carruagem, deu tréguas, por alguns instantes, á crise de dor moral que
experimentava desde a vespera.

Ia realmente poder descançar e retemperar as forças, emquanto Joanna,
entrando no pequeno salão onde o amante a esperava, ancioso, lhe
dizia--Então Chalinhy?

--«Então! Tinha ou não tinha razão? Tem unicamente uma forte nevralgia e
nada mais... Podes estar tranquilo», continuou com ironia um pouco
differente do insensato motejo que empregou á chegada. «Não serás ainda
d'esta vez obrigado a escolher entre nós ambas, e a preferil-a a ella.»

--«Porque me fallas assim?» disse Chalinhy, estremecendo como quem acaba
de ser tocado n'um ponto muito doloroso. «Sabes muito bem que não ha
para mim nada mais desagradavel...»

--«Porque?»--interrompeu ella.--«É porque te amo e porque te quero só
para mim, entendes, só para mim!...»

E o beijo que acompanhou esta exclamação apaixonada nada tinha de commum
com as caricias ternas que precederam a visita ao quarto de Valentina.

Sem poder reconhecer a verdade completa, sentiu, comtudo, durante a
curta entrevista que estava eminente uma catastrophe. Os poucos minutos
passados n'esse quarto, ligeiramente illuminado, bastaram para lhe dar a
impressão de mudança nos acontecimentos que denunciavam a approximação
do desenlace nas tragedias latentes, como são as que apresentam certas
ligações antecipadamente destinadas a produzirem complicações violentas.

O que lhe importava de Valentina ou de si, se o conflicto entre as duas
chegasse ao periodo agudo que via tão proximo, e em que estava já com
effeito, por motivos muito differentes do que a sua descoberta da
vespera lhe fazia prever? A evidencia de uma crise decisiva no longo
duello que sustentava contra a prima, no seu proprio pensamento, e,
havia um anno, no coração de Chalinhy, fez repentinamente reviver a
energia, por um momento adormecida, do seu antigo odio.

--«É a guerra, pois seja», ia dizendo consigo ao deixar o palacio, cuja
imponente fachada, com as suas largas pilastras de capiteis jonicos, que
acompanham os dois andares, observou durante algum tempo. E pareceu-lhe
ter visto á direita, por detraz d'uma das janellas do quarto de
Valentina, apparecer uma cabeça em atitude de observação.

Era bem verdade que a pobre senhora, ficando só, desvairou de novo com a
idéa d'uma conversa, sem testemunhas, entre o marido e a prima, e fez o
esforço de se levantar para constatar ella mesmo o momento em que
terminaria.

Retirou-se logo que viu a outra voltar a cabeça rapidamente. Joanna
surprehendeu-a na espionagem, bem innocente, comparada com a perseguição
em carruagem desde o «boulevard» dos Invadídos até á rua Lacépède. Uma e
outra espionagem egualaram-se no seu espirito, e a sensação d'uma
batalha travada tornou-se ainda mais intensa.

--«Esta tão doente como eu», pensou Joanna. «O meu instincto tinha
razão. A enxaqueca é fingida... O que quererá ella? Não vejo claro nos
seus designios. Em todo o caso é forçoso tomar-lhe a dianteira. Entre
mim e Norberto ha apenas um obstaculo, acabei de o reconhecer ainda ha
pouco: as illusões que tem a seu respeito. Ella sabe-o tambem como eu...
Que eu seja inepta! Foi para adivinhar se tinhamos fallado a seu
respeito que me chamou ao seu quarto. Comtudo se reconhece que me calei,
vae proceder... Ah! tanto peor para ella; é a guerra». E repetiu com uma
profunda accentuação: «É a guerra!»

A inveja inconsciente, amontoada n'ella por innumeras impressões da
infancia e da juventude, renovou-se com grande intensidade. Esqueceu,
por isso, as regras mais elementares da probidade feminina e as
observações que fizera para comsigo mesmo, em face da sua
consciencia, depois do encontro no grande armazem, na outra semana, e na
vespera, quando voltava da investigação policial. Eis ahi a rasão porque
n'essa noite, ao regressar, proximo da meia noite, do club, o marido de
Valentina encontrou entre a correspondencia da ultima distribuição uma
carta, cujo endereço, escripto em lettra tombada e evidentemente
disfarçada, o impressionou logo. Trazia a marca da estação da praça da
Bolsa.

Abriu-a com o presentimento justificado pela infame carta anonyma, que
continha sómente as seguintes palavras, traçadas com a mesma lettra
disfarçada: _«Um amigo do Conde de Chalinhy convida-o a vigiar o n.º 11
da rua Lacépède. A marquesa de Chalinhy esteve ali ainda hontem ás tres
horas da tarde. Com quem? É o que sem duvida interessa ao marquez... A
bom entendedor...»_

Trazia como assignatura: «Alguem do Club...»




VI

Orgulho de homem


O primeiro movimento de Chalinhy, depois de ler e reler a abominavel
carta, foi amarrotal-a com a repugnancia desdenhosa que merecem taes
missivas, e deitou-a no fogo quasi extincto do fogão do quarto. O
seu segundo movimento, como ouvisse approximar o creado, que havia
chamado, foi tornar a apanhar o papel denunciador que as brazas do fogão
tinha apenas enegrecido nas extremidades e metel-o na gaveta da banca de
cabeceira, d'onde a tirou de novo logo que ficou só. Sabe-se que o
auctor d'uma carta anonyma, tornando-se culpavel d'uma tão despresivel
acção, destruiu de golpe todo o credito do seu testemunho, e, por isso,
a melhor maneira de o punir é annular a sua preversidade, desprezando-a.

Mas, apesar d'isso, noventa por cento das vezes é essa preversidade que
vence a nossa razão. Essas phrases escriptas propositadamente para nos
ferirem n'um ponto bem vulneravel, e que, pelo facto de não terem
assignatura não deviamos ler, lemol-as palavra por palavra.

Deixamos cada syllaba injectar-nos o seu mortal veneno, sentimos rugir
dentro em nós a impotente e dolorosa cholera do homem ultrajado, que não
sabe d'onde vem a tempestade, e que, não tendo a faculdade de se vingar
d'ella, não tem força para a esquecer.

--«Mas o que é isto?... O que é isto?...» É naturalmente a primeira
pergunta suggerida pela cholera. Foram tambem as palavras que o marido
de Valentina repetiu, com uma energia de furor sempre crescente, á
medida que as phrases, que insultavam mais vivamente a sua honra de
esposo, se tornavam cada vez mais nitidas. Analysou, depois,
demoradamente, todos os caracteres d'essas phrases e não chegou a
descobrir um unico traço que correspondesse a uma lettra sua
conhecida, tão grande foi a habilidade de Joanna ao confeccionar essas
funestas linhas. Levou a sua precaução até empregar meia folha de papel
do usado no club de Norberto, porque entre a correspondencia do marquez
encontrou uma carta que d'ali lhe havia escripto, com a terceira e
quarta paginas do papel completamente em branco. Chalinhy reconheceu
logo o papel, e viu n'elle o indicio de que o insulto provinha d'um dos
consocios com quem se encontrara todos os dias.

Teria estado com elle n'essa mesma noite?

Talvez que no momento em que atravessava os salões, á sahida, esse homem
o seguisse com o olhar, sorrindo de antemão do papel deitado na caixa e
que caminhava ao seu encontro, sem que, sequer, de tal suspeitasse.

A realidade da existencia da mão que tocou esse papel, do cerebro que
pensou essas phrases, do inimigo desconhecido que lhe vibrou o golpe,
perturbava-o. É uma das duas imagens que a carta anonima naturalmente
suscita: a do odio que a dictou.

A outra imagem é a do facto denunciado por esse odio. Podemos duvidar de
tal facto, o que não devemos é duvidar do odio.

Olha-nos occulto pela sua mascara; e é assim que nos ameaça e nos fere.
E porque?

Um arrepio percorre a fibra mais intima da nossa alma ao contacto d'esse
rancor encoberto, mas muito forte para ter descido a tão grande baixeza
para se saciar. É então que da sensação d'uma pessoa que contra nós
se dirige na sombra, passamos sem querer á segunda: uma suggestão
emanada do papel que nos representa essa pessoa. Para que, odiando-nos
tanto, tenha escolhido entre todas as injurias precizamente aquella, é
porque lhe liga uma capital importancia.

«É porque a julga fundada n'um facto real.»

--«Rua Lacépède? Onde fica esta rua?...» perguntou Chalinhy depois de
ter passado pela imaginação todos os seus consocios do club com os quaes
estava n'uma situação mais equivoca, e não conseguindo fixar as
suspeitas sobre um determinado. Como se vê, procurava uma pista:
começava a meditar, não sobre a origem da carta, mas sobre o seu
contheudo. Foi ao escriptorio buscar um annuario onde podia encontrar a
nomenclatura de todas as ruas de Paris com a indicação do bairro em que
ficam e quaes as arterias differentes que com ellas communicam. Confiou
em que ali descubriria as informações que procurava: «Rua Lacépède,
quinta circumscripção administrativa.--Rua Geoffroy--Saint-Hilaire». E a
seguir como primeiro endereço: «1, Hospital da Piedade».

Esta indicação permittiu-lhe pelo menos precizar a situação da casa que
o denunciador anonymo ironicamente lhe indicava que vigiasse.

Á ideia do hospital associou-se logo a do Jardim das Plantas, que
conhecia por ter alli ido umas quatro vezes na sua vida, se tanto.

A impressão que fizera hesitar Joanna, quando a sua carruagem seguiu a
de Valentina, avivou-se no parisiense elegante, ao recordar-se do
miseravel aspecto d'aquelle bairro.

Só o imaginar a figura da esposa n'um tal meio, pareceu-lhe um absurdo
tão grande, que encolheu os hombros n'um gesto de incredulidade.
Amachucou de novo a carta anonyma, e, tomando-a entre os dois ramos da
tenaz, pouzou-a sobre as achas quasi consumidas, esperando d'esta vez
que o papel ardesse completamente.

--«É uma mystificação imbecil», disse, acabando de desfazer com a tenaz
os destroços enegrecidos; «devia tel-o pensado logo».

Deitou-se impressionado por esta conclusão, que lhe parecia decisiva, e
adormeceu, tão tranquillamente, quanto lho permittia o seu estado de
agitação.

Apezar da certeza de Joanna, e, posto o facto de esta ter sido recebida
no quarto da esposa, o levasse a crer que a sua doença era
effectivamente physica, um invencivel presentimento continuava a dar-lhe
como suspeita a visita da velha senhora de Nerestaing e a attitude de
Valentina depois d'ella.

Foi este pensamento que o decidiu no dia seguinte, pela manhã, quando a
encontrou já levantada e vestida, mas ainda visivelmente incommodada e
muito palida, a referir-lhe, gracejando, o teor da carta anonyma
recebida na vespera. Calculou que a ligeira allusão feita a esse
documento nenhuma importancia teria, se nada houvessem anteriormente
dito a Valentina, e que, pelo contrario, se lhe tivessem feito quaesquer
revelações, talvez encontrasse no tormento que o gracejo lhe
causaria motivo para a interrogar.

--«É verdade», continuou elle, depois de ter começado por lhe declarar
que ia contar-lhe uma historia que a devia fazer rir.

«Imagina tu que tens inimigos que não recuam deante d'uma carta anonyma.
Recebi hontem uma á noite, convidando-me a vigiar-te, quando sáes.

«Parece,» continuou elle, «que tens entrevistas. Vejamos, procura bem...
Não encontras?... 11, rua Lacépède...»

Não tinha ainda acabado de pronunciar estas palavras e já o sorriso se
lhe apagava nos labios, deante do aspecto de terror que vio na
physionomia da esposa. Uma onda de sangue inundou repentinamente o seu
rosto fatigado, que se tornou logo d'uma palidez mortal. Por um
movimento de supplica, que não poude reprimir, poz as mãos. Depois
passando-as por sobre a fronte, como quem soffre muito, disse: «Ah!
vou-me embora» e retirou-se.

Estes evidentes signaes d'uma tão estranha emoção fizeram naturalmente
suppor ao marido que o nome da rua e o numero da casa indicados na carta
anonyma correspondiam a um segredo na vida da esposa. Depois d'isso, os
carinhos que lhe prodigalisava por humanidade, eram tão claramente
misturados com o desejo evidente de a interrogar que ella com facilidade
o adivinhou. Foi por isso que as primeiras palavras que lhe disse
equivaliam a uma supplica, para lhe não infligir essa tortura no estado
nervoso em que se encontrava:

--«Perdoa-me, meu amigo», disse tratando-o por tu e com uma grande
ternura, tratamento que poucas vezes empregava mesmo na intimidade
«perdoa-me se não soube dominar-me quando me falaste d'essa infame carta
que te dirigiram contra mim, senti profundamente a crueldade do mundo, e
isso fez-me muito mal, um extraordinario mal, porque acabava tambem de a
experimentar, e d'uma maneira muito cruel para mim, n'uma outra
occasião.--Não procures saber quando». Pousou a mão sobre o braço do
marido para lhe implorar que não a interrogasse mais.

«Não to diria nunca... Então quando vi que a calumnia tambem procurava
realisar a sua obra junto de ti, todos os desgostos porque tenho passado
nos ultimos dias se me concentraram no coração, e as forças trahiram-me...»

Estava tão tocante assim, de todo o seu ser emanava uma tal certeza de
lealdade e de delicadeza, que Norberto, sentindo acordar em si tudo o
que tinha de honesto e bom, apezar das suas criminosas fraquezas, não
lhe resistiu. Elle que na vespera tinha vibrado de cholera ao ver que
havia quem se tivesse permittido escrever o nome da marqueza de Chalinhy
n'uma phrase de accusação tão clara, acabava agora de observar o effeito
de espanto produzido por essa accusação e ficou physicamente incapaz de
a interrogar, de a forçar á explicação d'uma transformação tão singular.
Era que ao vel-a no proprio momento em que um enygma tão completamente
inexperado lhe surgia deante, não podia mais duvidar d'ella como se
não duvida da luz do dia. Era tambem que, ao ouvir as palavras:
«Acabava tambem de experimentar a crueldade do mundo...» comprehendeu
que tudo adivinhára, e que a sua ligação com Joanna de Node fôra
denunciada a Valentina. Eis pois o motivo porque estava doente havia
quarenta e oito horas. O seu soffrimento constitue a prova de que estava
innocente, ao contrario do marido,--e que o amava.

Chalinhy não percebeu distinctamente todas estas coisas, principalmente
a ultima, que tocava o fundo mais obscuro do seu viver conjugal. Mas
sentia-o e respondia a este lamento tratando tambem por tu a esposa,
pela primeira vez, havia, talvez, muito tempo.

--«É verdade. Estás ainda tão pallida. Talvez te seja necessario mais um
dia de repouso... Se tens tido desgostos, contarmos-has quando estas
miserias passarem. Encontrar-me-has sempre prompto a auxiliar-te e a
proteger-te nos momentos mais difficeis.»

Olhou-o com o olhar cheio d'um infinito reconhecimento pela prova de
affeição que acabava de dar-lhe, respeitando a susceptibilidade do seu
coração.

Depois, como se esta conversa lhe fosse tambem muito incommoda,
levantou-se, dizendo:

«Creio que tens razão e que devo deitar-me... Até logo, e obrigada...»
Imprimiu a esta ultima palavra, acompanhada d'um sorriso forçado, tanta
graça enternecida que Chalinhy ficou commovido e admirado ao mesmo
tempo.

Ficando só, começou a pensar, no pequeno gabinete, absorvido em
reflexões tão contradictorias que sómente a sua incoherencia era para
elle um soffrimento. Muitas impressões oppostas, e hypotheses variadas,
lhe passavam pelo espirito, e sobre tudo muitas coisas confusas para a
sua propria sensibilidade, começavam a desvendar-se sem que podesse
comtudo torna-las nitidas.

Depois que se deixou enlevar pelas seduções que a coquette e
intelligente Joanna lhe exercia no animo, as suas relações com Valentina
tornaram-se cada vez mais automaticas, se assim se póde dizer, e
convencionaes.

É o grande perigo para os casaes que vivem constantemente no grande
mundo. O marido e a mulher cumprem ali uns deveres de etiqueta que
acabam por modelar o seu viver intimo e conjugal pelo mesmo typo da
existencia exterior e social.

Quando se veem, pela manhã, é para fallarem das mais insignificantes
questões que se prendem com as sahidas constantes: quem se deve convidar
para jantar, para ir ao theatro, que convite se deve acceitar.

Alguns acontecimentos dos salões que frequentam e do club, e passou-se
uma hora sem se trocar uma palavra verdadeira.

Almoçaram e ainda mesmo que não esteja presente nenhuma pessoa das
relações, os creados na constante permanencia junto d'elles para os
servir, evitam aquella familiaridade que faz a bonhomia, um pouco
vulgar, mas tão propicia á boa harmonia, á união, das modestas
mezas burguezas.

Mais tarde quando os filhos são já crescidos a professora e o preceptor
constituem mais um elemento de retrahimento, durante a refeição. Logo
que termina, o marido vae, sem demora, tratar dos seus negocios, fazer
visitas, ao club; a esposa passa o tempo na rua, em cumprimentos e
diversões compativeis com o circulo sempre crescente das suas relações
parisienses.

Jantam fóra, ou teem convidados para jantar. Vão ao theatro.

Podiam contar-se as noites que passam em casa, só, na verdadeira
intimidade conjugal, e teem até aposentos separados--como os marquezes
de Chalinhy.

Regressam silenciosos e concentrados, sem mesmo quererem saber um do outro.

Esta ignorancia reciproca de dois conjuges que vivem debaixo do mesmo
tecto, recebem juntos e representam juntos na figuração quotidiana d'uma
existencia da moda, é um dos phenomenos mais incomprehensiveis para os
observadores de fóra.

Só assim se explica, principalmente da parte dos homens, determinadas
cegueiras que seriam deshonrosas se não fossem produzidas pela mais
poderosa das causas de illusão: a cohabitação sem sinceridade, sem
franqueza.

Assim se explicam, pelo contrario, certas mudanças cuja falta de logica
desconcerta a maledicencia d'esses observadores estranhos: um marido que
durante annos desprezou a mulher, volta para junto d'ella, tão
apaixonado, como se acabasse de a conhecer, de a descobrir.
Conheceu-a effectivamente, por um acento de voz, por um gesto. Feliz
quando a que por tanto tempo desconheceu, se lhe não revelou por
qualquer virtude despertada pela ternura d'um outro!

Estas observações, d'uma ordem bem pouco elevada, bem horrivel, cuja
triste verdade será reconhecida por muitos _menages_ invejados pelo
brilho do seu luxo, deviam ser recordadas para completa intelligencia do
seguinte monologo de Chalinhy. Era como se n'alguns simples momentos de
conversação Valentina se lhe tivesse revelado uma mulher que não
conhecia. Ó contradição dos falsos sentimentos! O marido perfido tremia
pelo futuro da sua ligação com a amante e, ao mesmo tempo, esforçava-se
por esquecer a suspeita a respeito da esposa, sugerida pela carta
anonyma e confirmada pela sua agitação quando lhe falou de ella.

--«Como estava commovida ainda agora; e como vale bem mais do que eu!
Não pude resistir a fallar-lhe d'essa infame carta; a citar-lhe a rua e
o numero da casa!

«É uma calumnia ignobil, abjecta, e o que a tia lhe contou, uma verdade
irrefutavel, pois apesar d'isso nada me disse.

«Ter-se-hia calado semanas, annos, sempre, sem o golpe que lhe vibrei,
repetindo semilhante vilania. Como ficou assombrada! Mas era
naturalissimo, desde que tinha no coração o peso de esta outra denuncia!

«Que havemos de fazer, eu e Joanna? Ainda que no momento actual
Valentina se recuse a acreditar o que se passa entre nós, de futuro,
mesmo contra sua vontade, observar-nos-ha, e depois Joanna é tão
audaciosa! Se tivesse aceitado o convite para ir na sua carruagem á
sahida da Opera, e que Valentina o soubesse, teria uma pequena prova em
favor da accusação... Como as suspeitas nascem rapidamente! Quando lhe
mencionei o numero 11 da rua Lacépède, que a vi empallidecer, e que me
olhou um segundo, suspeitei que esta ignominia podia ser verdadeira.
Estava louco!

«Não se mente com aquelle olhar, com aquella voz!

«Não se dão suspiros de dôr, quando se é culpado!... Como estava bella!

«Como eu, ella é sempre tão fria, tão reservada. Se me tivesse,
portanto, enganado a seu respeito? Julguei-a sempre uma mulher honesta,
mas com preconceitos; muito seria, muito circumspecta mas sem affectos,
sem os impetos apaixonados da outra!...

«É quasi impossivel encontrar na mesma mulher tantos predicados: o ardor
e a seriedade; o amor e a estima. N'esse caso as iniquidades do mundo
deixariam de existir. E ellas são enormes! Que a tia me denunciasse,
comprehende-se, ainda que seja bem custoso.

«Mas accusarem-na a ella? Porque uma tal precisão? Para me obrigarem a
ir á rua Lacépède, inspecionar a casa indicada? E com que fim?... Ah!
Nem pensar n'isso! Pensarei mas é em impedir que a sua desconfiança se
transforme em certeza. Não quero tornal-a a ver com aquella
pallidez d'esta manhã, e aquelles modos...

«Joanna deve tambem procurar, por seu lado, que as suspeitas se
desvaneçam para que o nosso amor não redunde n'um medonho escandalo...»

Taes eram os pensamentos, estremamente discordantes, que se agitavam no
espirito d'este homem, ao qual o destino deu a felicidade, na pessoa da
mais nobre e mais delicada das mulheres... E não sabiam, ella
manifestar-se, e elle reconhecer-lhe o merecimento.

As peripecias finaes d'esta aventura darão talvez aos partidarios da
hereditariedade o motivo das incoherencias sentimentaes de que Chalinhy
era victima.

Se pode sustentar-se que os pensamentos dos paes teem influencia no
caracter dos filhos, devia Chalinhy ter sido concebido em horas de bem
intima inquietação para ser assim, indeciso e inaccessivel, susceptivel
de se deixar arrastar e comtudo apaixonado pelas coisas elevadas, avido
de paixão e amante da honestidade, tão fraco para com certas
particularidades do seu caracter, e tão violento, tão implacavel, para
com outras, ia proval-o mais uma vez.

Depois d'esses raciocinios, estava ainda inteiramente preoccupado na
maneira porque, de futuro regularia uma traição, da qual deveria ter
horror, comparando a esposa, tal qual se lhe mostrava agora, á amante.
Mas conheceria elle tambem a amante?

Não tenho sabido descobrir no coração de Valentina a riqueza
occulta da mais ardente sensibilidade como teria advinhado no de Joanna
todas as miserias, toda a sequidão, e uma unica paixão ardente: a
inveja? Reconheceria logo que caracter tão admiravel sacrificára uma
alma tão dura. O ruido d'uma porta que se abria interrompeu-o de repente
nas suas meditações, e viu entrar, como na vespera, á mesma hora, a
auctora da carta anonyma que serviu de ponto de partida á scena entre os
dois esposos, a propria baroneza de Node.

Chegára ligeira e esbelta, com um vestido de passeio. Tendo andado a pé,
o contacto do ar fresco rosara-lhe as faces, e os olhos negros brilhavam
com intensidade.

Vinha constatar pessoalmente o effeito da denuncia.

Não necessitou olhar duas vezes o amante para advinhar que estava ainda
mais perturbado que de costume. Percebeu tambem, distinctamente, que
havia fallado a Valentina. As almofadas d'uma cadeira de braços,
collocada junto do fogão, mostravam que alguem se tinha ali assentado ha
pouco, e um lenço esquecido sobre uma pequena meza attestava que esse
alguem fora a marqueza de Chalinhy.

Não era preciso mais. Joanna concluiu logo que a scena da explicação
devia ter sido violenta.

--«Vim saber noticias de Valentina,» disse dissimulando as suas intenções.

«Ella não se levantou ainda?... Não está melhor?...»

--«Levantou-se», respondeu Chalinhy, «mas tivemos uma conversa que a
incommodou muito. Sentiu-se peior e tornou-se a deitar.»

--«Joanna» acrescentou com uma singular firmeza, «não me enganei,
fallaram-lhe a nosso respeito...»

--«E o que disse?» perguntou ella.

--«Não entrou em detalhes. Não precisou factos nem pronunciou nenhum
nome. Mas comprehendia-a perfeitamente. Contaram-lhe tudo, percebes, e
nada acreditou...»

--«Não comprehendo, então, porque motivo tomas um ar tão solemne para me
annunciar que nada mudou na nossa situação», respondeu Joanna, «a não
ser que...»

--«A não ser que?...» perguntou Chalinhy, visto não ter ella concluido a
phrase, «que queres dizer? Conclue o pensamento...».

--«A não ser que tu proprio desejes que elle mude. Ah! A Valentina é
muito mais forte do que imaginava», continuou com um máo sorriso.

--«Se te tivesse dito que acreditava, protestarias e ter-nos-hias
defendido. Em logar d'isto, fez de generosa, ella que não quiz admittir
que a sua Joanna e o seu Norberto possam enganal-a, e tu preparas-te
para me pedir que seja prudente, para a poupares. Confesso. Diviso este
pedido nos teus labios. Dispenso-te de o fazeres».

Fallou com uma irritação crescente, que provinha da sua profunda
decepção. Esperava encontrar Chalinhy pesaroso, para o interrogar, para
obter d'elle a declaração da carta anonyma, para conseguir que lh'a
mostrasse, e para emfim, o aconselhar a que procedesse a um rigoroso
inquerito, o qual, em sua opinião, devia ser a perda da rival. Todo o
seu plano fora porém, destruido. Porque artificio? Suspeitava-o, sem
comtudo comprehender como a discussão das suas relações com Chalinhy,
tinha substituido a da carta anonyma.

--«Joanna», replicou Chalinhy; com aquella accentuação de voz que se
emprega para com as creanças que não desejamos molestar, «tu não és
justa, nem comigo, nem com Valentina.

«Porque a accusas d'um calculo que não está no seu pensamento, juro-to?
Se a tivesses visto, como eu, aqui, ainda ha pouco, não duvidarias da
sua sinceridade. Soffria e censuram-na ainda. Eis toda a verdade. Não
acreditas?...»

--«Não,» disse, com uma dureza na voz que denunciava o seu odio occulto,
pela prima. Chalinhy cometteu a mais perigosa imprudencia,--estando
collocado, como realmente estava, em consequencia das suas proprias
faltas, entre duas mulheres, uma das quaes apenas o queria por aversão á
outra--appelando para a ternura e para a piedade d'um coração em que
sómente havia sede de vingança! Era exasperar ainda mais este cruel
apetite, e Joanna, cedendo a elle, repetiu: «Não, não acredito. Queres
saber porque? É porque a conheço melhor do que tu, meu caro, muito
melhor, fica certo». Acompanhou esta phrase d'um mau sorriso. Sentou-se,
conservando os olhos abertos, e, no rosto, evidentes signaes de
obstinação. Movia entre os dedos crispados, uma faca de tartaruga para
cortar papel, que se achava sobre a meza a que se encostou, e
ouvia, n'um mutismo pertinaz, Chalinhy perguntar-lhe visivelmente
irritado, por a ver assim increpar Valentina em termos tão insidiosos.

--«O que significa tudo isto? Explica-te: Já uma vez, na semana passada,
quando, jantamos em casa dos Sarliévre, proferiste as mesmas palavras
enigmaticas e acompanhadas do mesmo sorriso... Queres dizer que ha na
vida de Valentina coisas que não vejo, que não sei e que tu sabes? Não
se falla a um homem da mulher que usa o seu nome, de maneira que possa
tornal-a suspeita, quando nada de preciso se diz. O que ha? O que se
passa? Respondes ou não».

Continuava calada, e os seus dedos a brincar cada vez mais nervosamente
com o objecto que servia para occultar a grande agitação interior. Ao
chegar o momento de consumar, por um testemunho directo e pessoal, a
obra da deleção começada pela carta sem assignatura, hesitava, tinha
medo. Chalinhy calou-se tambem. Uma idea, que não lhe tinha ainda
occorrido, atravessava n'aquelle momento o seu espirito, e logo lhe
pareceu evidente. Levantando-se bruscamente agarrou a amante por um
pulso e obrigou-a a olhar para elle.

--«Joanna!» disse subitamente «tu é que escrevestes a carta.» E com a
voz transtornada e como estrangulada pela indignação, repetiu. «Fostes
tu que a escrevestes, fostes tu... Mas confessas então...»

--«Magoas-me» respondeu Joanna levantando-se e debatendo-se contra uma
tão brutal violencia. «É indigno. Deixa-me».

Chalinhy deixou-a, e passando a mão pela fronte como um homem que volta
a si, depois d'um minuto de delirio, disse, envergonhado, quasi
supplicante «Tens razão, é indigno. Perdoa-me. Mas peço-te sem
violencia, responde-me. Recebi hontem uma carta anonyma, rasguei-a e nem
quero pensar no que continha. Se foste, porem, tu que a escreveste, tudo
mudou. O que n'ella se diz é então verdade. Dize, é tua a carta?»

--«Sim, é minha,» respondeu a amante, depois d'um novo silencio.

--«N'esse caso» e a voz de Chalinhy estrangulou-se para articular a
suprema pergunta, «então é verdade?...»

«É verdade, é.» Depois, baixando novamente os olhos, rapidamente, como
não desejando dar a si mesma tempo para se arrepender do que tinha feito
e que era já irremediavel, começou a referir os acontecimentos que já
conhecemos.

Contou o seu encontro com a prima no grande armazem da rua de Rivoli, a
sahida d'esta por uma porta differente d'aquella aonde tinha o _coupé_,
a partida da carruagem, a mentira d'essa noite a respeito do que fizera
de tarde; a tenção formal que tinha feito de nada revelar a Norberto, etc.

Expoz depois o segundo encontro, tendo, é claro, o cuidado de dizer que
fora casual--como tinha visto, na antevespora, sahir Valentina a pé,
seguiu-a quasi machinalmente;--como a prima alugou novamente uma
carruagem, não poude tambem deixar de alugar outra, e que, por isso,
chegaram quasi ao mesmo tempo a esse bairro perdido, proximo do
Jardim das Plantas,--e o resto: A marqueza de Chalinhy sahiu da
carruagem em frente do hospital, seguiu a pé até ao pavilhão da rua
Lacépède, entrou na tal casa, chegando alguns minutos depois, um
individuo em carro de aluguer, o qual consultou o relogio, com a
impaciencia de quem chega tarde para uma entrevista.

--«Continuaria calada, juro-te; mas quando hontem e ante hontem a vi
representar a comedia da suspeita contra nós, comprehendi que sabia ter
eu surprehendido o seu segredo.

«Não foi a tia de Nerestaing que nos denunciou a ella; ella é que nos
denunciou á tia de Nerestaing.

«Calculou que te fallaria no assumpto e quiz tomar a deanteira,
acusando-nos... Então perdi a cabeça. Disse de mim para mim que eramos
solidarios eu e tu, que não podia permittir que te fizesse tal,
havendo-se trahido, e escrevi-te, uma primeira carta... Depois, no
momento de t'a enviar, tive receio de que me despresasses... Comtudo era
por ti, só por ti que te escrevia.

«Sim tive esse receio, disfarcei a lettra e não assignei!... Agora que
sabes tudo, diz-me que acreditas que apenas procedi assim por tua causa,
para que possas defender-te antes que ella te fira.

«Dize que me não desprezas por ter empregado este meio para te avisar.
Oh! dize-me, meu amor, meu Norberto, dize-me.»

Escutou-a, sem a interromper, com uma physionomia que a cada
detalhe dado pela accusadora se foi carregando até se tornar terrivel.

Se é verdade que nos pequenos como nos grandes acontecimentos, segundo a
opinião dos Livros Eternos: «as iniquidades ferem quem as pratica, e que
as más acções ficam com quem as faz» a invejosa estava sendo punida pela
sua repugnante delação, por a propria attitude de Chalinhy.

Podia ver bem no seu rosto, n'aquelle momento, que não existia mais para
elle.

O amante desappareceu para só existir o marido.

Não respondeu á supplica que Joanna lhe dirigiu, atemorisada pela sua
propria obra.

Não lhe podia dizer se a despresava ou não. Só tinha no pensamento a
mulher--_a sua mulher!_--indo a uma entrevista amorosa.

--«A infame!...» exclamou Chalinhy, repetindo «A infame!...» E
dirigia-se á porta que conduzia aos aposentos de Valentina, quando
Joanna se lhe collocou deante, dizendo:

--«Onde vaes?»

--«Ao seu quarto,» respondeu elle. «Obriga-la a confessar».

--«Não farás semelhante cousa. Se lhe fallas agora, comprehenderá que
tudo soubeste por mim. Não farás isso, não tens mesmo o direito de o
fazer...»

--«É justo» disse, fitando-a. Via-a agora como realmente era, e lia até
ao fundo do seu coração. Ficou algum tempo insensivel, sem que ousasse
interroga-la, e, depois, com um gesto rapido e uma grande aspereza na
voz, accrescentou: «Dou-te a minha palavra d'honra que lhe não digo
quem me avisou. Além de que, necessito ainda de outras provas e hei de
tel-as, dou-te a minha palavra tambem...» Sahiu da sala, debaixo da
impressão d'esta ameaça, sem ter para aquella que o havia impellido para
o caminho da vingança, nem uma palavra, nem um gesto.

Ella viu sahir o agente do seu antigo odio, que ia emfim ver saciado,
sem ter força para o deter. Que iria fazer? O intenso furor de que ia
animado, não recuaria, via-se bem, deante de nenhum meio de investigar a
verdade, nem deante de nenhum extremo e punição. Joanna anteviu logo uma
espera feita á porta da casa mysteriosa; a chegada de Valentina no dia
seguinte, no immediato, ou em qualquer dia da semana; e um assassinato...

E seria ella a causadora. Um instinctivo movimento de terror a
precipitou para a porta dos aposentos da companheira de infancia.

Era ainda tempo de reparar uma parte do seu crime, prevenindo-a.

No momento, porém, de pôr a mão no fecho da grande porta, occulta por um
reposteiro de seda verde, graças ao qual o ruido d'essa tragica conversa
não chegou ao ouvido da calumniada--a delatora deteve-se. Encolheu os
hombros e seguiu para o lado opposto, em direcção á porta que conduzia á
escada de sahida, que desceu, dizendo para si:

--«Ella não nos pouparia em igualdade de circumstancias. O furor de
Norberto abrandará emquanto procede ás investigações; e depois não
fará escandalo por causa dos filhos. Abandonal-a-ha, restando-me em
seguida fazer com que case comigo. Eu me encarregarei d'isso...»

E os seus pequeninos pés pousavam nos degráus com uma energia, como se
já se achasse de posse d'aquelle palacio, no qual estava convencida,
dentro em pouco, viria substituir a outra. Crispavam-se dentro das suas
pequeninas botas, como se quizessem esmagar debaixo dos saltos um
remorso que não conseguia anniquilar.




VII

O retrato


Sahindo, pela fórma porque o fez, do pequeno compartimento em que
recebeu o terrivel golpe da espantosa revelação, Chalinhy não pensou no
que fazia. Sentiu que não teria força em si e que necessitava deixar
passar algum tempo antes de proceder. Era sobre tudo necessario que não
visse Valentina. Se a visse, não poderia conter-se, fallar-lhe-hia com
certeza no assumpto e não _devia_ fallar-lhe. Tinha dado a sua palavra a
Joanna e, além d'isso era sua convicção que não surprehenderia a culpada
se não procedesse com dissimulação.

Sahiu do palacio, dizendo que não vinha jantar. Depois da scena d'essa
manhã, a sahida de Chalinhy, sem se ter despedido da esposa, era de
natureza a causar admiração a Valentina, mas elle calculou que se
voltasse a casa não poderia ser superior aos seus nervos e provocaria
uma explicação plausivel. Caminhava depressa, com receio de que Joanna
de Node sahisse logo tambem, e não queria encontrar-se outra vez com
ella. A presença da perigosa amante, n'aquelle momento, era-lhe
physicamente intoleravel. Tinha-o ferido muito bruscamente, muito
brutalmente, n'uma das mais intimas fibras do coração.

Por mais intelligentes e perspicazes que as mulheres sejam não medem com
exactidão certas reacções da alma masculina, quando principalmente
procedem do orgulho molestado. Onde iria o marido repentinamente ferido
na sua dignidade de homem? Nem elle mesmo o sabia.

As palavras inolvidaveis resoavam-lhe ainda aos ouvidos. As imagens
evocadas com intelligencia por a invejosa, fixaram-se no campo luminoso
do seu pensamento em fórmas tão nitidas como se pessoalmente tivesse
assistido á subida da mãe dos seus filhos para a carruagem furtiva, á
descida na rua suspeita, e á entrada na casa equivoca. Esta serie de
factos positivos, não deixaram a menor duvida no seu espirito
suggestionado, sem que desse por isso, pela odiosa paixão que Joanna
tinha desenvolvido.

Por uma invencivel e espontanea associação de idéas, as continuas
impressões mal definidas que experimentou durante a sua estranha
vida conjugal e que tinham por base o silencio, reappareciam agora e
coordenavam-se.

Toda a timidez experimentada na frente de Valentina lhe refluia ao
coração. Tinham agora para elle perfeita explicação na força da
hypocrisia d'essa mulher, tão reservada, tão retrahida, que não teria
mesmo ousado julgal-a capaz da mais simples leviandade, e via-a sempre,
n'essas duas scenas que Joanna observou com os seus proprios olhos: sua
mulher, a marqueza de Chalinhy, deslisando por entre os frequentadores
do grande armazem, para transpor d'uma a outra porta--do seu _coupé_ á
carruagem alugada--como uma adultera ignobil--sua mulher a pudica, a
timida Valentina, aventurar-se a ir a essa rua do arrabalde.

A visão tornava-se precisa, uma verdadeira allucinação, e a revolta
contra esse angelico e puro rosto que por tanto tempo o havia enganado,
sob a impressão do qual tanto se havia enternecido ainda n'essa manhã,
produzia no sangue do marido ultrajado a febre do homicidio. Tendo
caminhado a direito, sem mesmo saber para onde ia, chegou, sem dar por
isso, á estação do caminho de ferro de Montparnasse. Parou por algum
tempo defronte da _gare_ e depois, na incerteza de saber que direcção
devia tomar, uma imperiosa tentação se apoderou d'elle, invencivel desde
logo, a de ir até á rua Lacépède, cujo nome desde a vespera se associava
ao seu d'uma maneira, que lhe pareceu tão ridicula quando leu a carta
anonyma, e que, n'aquelle momento, depois da conversa com Joanna,
lhe parecia tão espantosamente insultante.

Para o inquerito a que ia proceder, até surprehender a esposa no
flagrante delicto de adulterio, o grande, o unico dever da sua vida, não
seria o primeiro ponto a illucidar a existencia da casa onde se
realisavam as entrevistas amorosas?

E depois, mesmo sem esta rasão, não devia Chalinhy experimentar uma
imperiosa necessidade de ver o local onde era arrastada a sua honra
conjugal?

O ciume, uma vez despertado, tem sempre este apetite da realidade
concreta e viva, que supplicia e satisfaz ao mesmo tempo. O irresistivel
desejo do homem que se julga trahido é conhecer todos os detalhes da
perfidia de que é victima; figurar com uma implacavel brutalidade cada
episodio; experimentar o paroxismo da sua dôr ao contacto do immovel e
indestructivel quadro que foi theatro do indelevel ultrage.

Começou para Chalinhy este paroxismo, quando o seu olhar encontrou pela
primeira vez, sobre a placa da esquina da rua que procurava, o nome já
tão detestado. A memoria do sabio naturalista e do sagaz cortezão que
ella perpetuava n'este bairro de miseraveis, parecia bem mal escolhido
para se associar a emoções d'esta ordem! Chalinhy tinha continuado a
andar, parando, de quando em quando, como um provinciano perdido n'este
grande Paris, perguntando informações sobre o caminho a seguir, umas
vezes á policia e outras aos tranzeuntes.

A pequena actividade animal do movimento abrandou um pouco o seu furor.

Augmentou quando os seus pés tocaram no pavimento da rua maldita. Entrou
n'ella pelos quarteirões superiores, que a rua Monge separa dos
inferiores, de maneira que, não vendo logo nas duas linhas de casaria
nenhum predio que correspondesse aos signaes do pavilhão, teve um
momento de duvida, e, portanto, de allivio.

A inspecção dos numeros bem depressa lhe fez comprehender o seu erro.
Deu mais alguns passos e do lado dos numeros impares apparecia a casa
mysteriosa, tal como Joanna lha havia descripto: com as grades de ferro
das janellas do rez-do-chão pintadas de preto, a porta escura elevada
por trez degraus, as sacadas do primeiro e do segundo andar burguezmente
guarnecidas de bambinellas de musselina, e o muro do jardimsinho com as
suas tilias.

Era mais de meio dia, e o sol d'esta bella tarde de novembro estava
limpo do nevoeiro que o velára durante a manhã. O céo azul pallido, onde
fluctuava uma humidade doce, banhava os ramos das arvores meio despidas.

O vento destacava d'ellas, de quando em quando, uma folha côr d'ouro,
que volteava lentamente e vinha algumas vezes cahir para fóra do muro. A
alegria da hora do almoço enchia com a sua expansão a modesta rua. N'uma
casa de pasto, de má apparencia, em cujo frontespicio estavam escriptas
as seguintes palavras, cheias de promessas: «Refeições baratas», vinham
instalar-se varios operarios.

Duas aprendizas, raparigas ainda, da lavandaria proxima, sahiam em
cabello para irem comer, á pressa, a casa da familia, no fundo d'algum
pateo de qualquer das travessas visinhas.

Algumas das janellas do pavilhão estavam abertas, e sahia fumo por dois
tubos de chaminés. Se o honesto aspecto da casa havia surprehendido
bastante o marquez de Chalinhy, estes indicios que mostravam ser ella
habitada regularmente, mais o espantavam ainda. Não estava, então,
deante da casa suspeita escolhida por dois amantes que querem ali
encontrar-se, de vez em quando, durante algumas horas, occultamente.
Mas, então, o desconhecido que Joanna viu chegar em carro de aluguer,
era o habitante permanente d'aquelle casa? Era pouco provavel, em vista
da sua attitude impaciente do homem que chega tarde a uma entrevista
amorosa, e que manda esperar a carruagem para tornar a ir n'ella. Quanto
mais o marido de Valentina estudava o aspecto mudo d'essa casa mais o
seu frenesi dos primeiros momentos, misturado d'uma aguda curiosidade,
acabava por o impellir aos actos mais oppostos ao seu caracter.
Avistando um ferro velho que fumava no seu cachimbo á porta da locanda,
que ficava a alguns passos de distancia, avançou bruscamente para elle e
sem mais preambulos:

--«Queres ganhar uma nota de cem francos?» perguntou Chalinhy.

--«_Ixo_ não se pergunta» respondeu o interrogado. Era um dos
muitos ferros velhos que tanto abundam n'aquelle bairro, um Auvernhez de
cara redonda, que pronunciava o _xim_ classico dos naturaes de Saint
Flour, por o «sim», apezar de viver ha trinta annos em Paris. O seu
olhar vivo denunciava a esperteza campesina tão peculiar n'essa classe
de vendedores ambulantes, que se fornecem das casas de bric-á-brac. Com
a prudencia innata d'um filho do Cantal, acrescentou logo--sempre com a
mesma pronuncia tão pitorescamente caracteristica--«_Ixo_ depende do
trabalho que tiver de fazer.»

--«Tens apenas que me responder a uma pergunta», e indicou o pavilhão:
«Quem móra n'aquella casa?»

--«N'aquella casa?» respondeu o futuro antiquario, com uma finura
nescia, «é o seu dono, está claro!»

--«E quem é o seu dono?» insistiu Chalinhy, imperativamente: «Dou-te
duzentos francos de gratificação se m'o disseres immediatamente, senão
vou perguntal-o a outra pessoa...»

--«É o senhor Dumont», respondeu o auvernhez, depois de ter reflectido.
Pensou, sem duvida, que um dos seus collegas da rua seria menos
escrupuloso, e duzentos francos, em Paris como em Saint-Flour, era muito
dinheiro!

--«É novo ou velho?...»

--«Velho,» repetiu o homem, «e muito doente. Está paralytico. O anno
passado ainda sahia de carruagem; mas este anno vio-o só uma ou duas
vezes...»

--«Recebe muitas visitas?» perguntou Chalinhy.

--«Muito poucas», respondeu o provinciano a quem os duzentos francos
pareciam estar já bem ganhos, e, por isso, deu a conversa por terminada
com a seguinte phrase: «não posso dar mais informações, é raro chegar á
porta, por isso, pouco sei. Tenho que fazer ali...,» e mostrou com o
cachimbo--que para esse fim tirou da bocca--o montão de fragmentos de
metal enferrujado que na sua industria pareciam ainda susceptiveis de
venda.

O gentil homem conhecia não poder continuar o interrogatorio sem se
deshonrar aos seus proprios olhos.

Tirou da carteira as notas promettidas e passou-as para a mão do ferro
velho, que, com um grande espanto, que o seu largo rosto não dissimulou,
o vio atravessar a rua e ir bater á porta do pavilhão.

O plano de Chalinhy era muito simples, concebera-o rapidamente, emquanto
tirava as notas. Conheceu que tinha na carteira, misturados com os seus,
bilhetes de visita da esposa, e que elle se havia encarregado de
entregar, o que, por um contra tempo qualquer, não tinha podido fazer.
Tomou um d'aquelles bilhetes e entregou-o á pessoa que veio á porta--um
creado de quarto já velho, cuja physionomia e vestuario se harmonisavam
mais com o aspecto da casa do que com o do bairro. A cara barbeada, o
comprido avental branco de serviço e o fato proprio correspondiam
perfeitamente á idéa d'um interior burguezmente confortavel, e ainda
mais á escala e atrio que Chalinhy estava observando e que devorava
com o olhar. Sua mulher subiu aquellas escadas na vespera!

Guarnecia-as um espesso tapete. As paredes estavam adornadas com um
estofo escarlate emoldurado por pedaços de tapeçaria expressiva e
vulgarmente chamada «verduras».

Quando o recem chegado disse: «Venho da parte da marqueza de Chalinhy»,
a physionomia do creado ficou tão absolutamente inexpressiva como se
nunca um tal nome tivesse sido pronunciado deante d'elle.

Valentina vinha então a essa casa sem que esse homem achasse a sua
presença extraordinaria. Este novo indicio, d'um estranho mysterio, era
de natureza a elevar ao auge a curiosidade do marido, que insistiu:

--«Entregae um bilhete ao sr. Dumont, e dizei-lhe que a senhora marqueza
de Chalinhy me encarregou d'uma importante e pessoal commissão para com
elle...»

O tempo que o creado demorou a ir e voltar--alguns minutos
apenas--pareceu a Chalinhy tão longo que os mais desorientados projectos
atravessaram o seu pensamento. Lembrou-lhe subir elle mesmo ao primeiro
andar e forçar a porta do aposento d'esse tal Dumont que evidentemente o
ia despedir, o que não era justo. Esta maneira de se apresentar
pareceu-lhe impropria. Comprar o creado quando voltasse e obter sobre os
frequentadores e frequentadoras da casa as informações que o ferro velho
não tinha sabido dar; recusar-se a sahir quando lhe viessem dizer
que o senhor Dumont não estava em casa, tudo lhe passou pela imaginação.

Em breve o criado veio tiral-o de difficuldades, convidando-o a entrar
n'um gabinete do primeiro andar, que servia de ante-camara. Depois
retirou-se, dizendo:

--«O senhor Dumont pede desculpa de o fazer esperar algum tempo. Esteve
muito incommodado esta manhã mas virá o mais breve possivel...»

Posto que a certeza d'uma explicação, que tinha para elle uma
importancia tão tragica, concentrasse o espirito de Chalinhy n'uma unica
e fixa idéa: «como forçar aquelle homem, quando entrasse, a confessar a
verdade?» não poude furtar-se á tentação de olhar em volta de si. A sala
em que se achava tinha uma janella para a rua. Na frente abria-se uma
porta, que o criado com a precipitação, não fechou completamente.
Chalinhy empurrou-a, com um gesto quasi machinal, e viu um segundo
compartimento cujo aspecto causou a sua admiração: era uma especie de
salão bibliotheca, illuminado por tres janellas que davam sobre o
jardim, para o lado do qual o pavilhão tinha a fachada principal. Esta
especie de galeria era vasta e estava mobilada com uma elegancia pessoal
e sobria. Grandes cadeiras de espaldar, estofadas, ao estylo do seculo
17.º, mas que se via serem de construcção moderna. Os livros todos
encadernados, estavam dispostos com ordem em estantes baixas, nas
ultimas divisorias das quaes se viam fragmentos de marmore e de tijolo.
Um buffete collocado proximo d'uma das janellas do jardim tinha ao
pé uma poltrona com rodas o que justificava a informação dada pelo
auvernhez com respeito á doença do dono da casa, o qual devia permanecer
de preferencia n'este salão, a julgar pela alcatifa já bastante usada.
As paredes estavam completamente cheias de varios objectos; quadros a
oleo, aguarellas, quadros em cobre, armas cinzeladas etc., etc. Deante
da secretaria, um cavalete guarnecido d'um estofo antigo de côr rosa
palida, com grandes flores de prata, sustentava um quadro oval.

Chalinhy approximou-se do quadro para o observar, e ao vel-o, teve que
sentar-se, tal foi o seu espanto pelo inesperado, ao reconhecer a pessoa
cujo retrato estava reproduzido na tela. Era sua mãe.

Sua mãe?... Sim, era ella, e pintada por um artista de que bem depressa
conheceu a obra e a assignatura: Miraut. Existia um retrato della, de
corpo inteiro, pintado pelo mesmo artista, no salão do palacio Chalinhy.
Esse grande retrato tinha sido feito no mesmo anno--indicado n'um dos
cantos da tela: 1875. Foi na epocha em que aquelle pintor, hoje velho,
estava em plena voga. Os filhos não tinham nunca visto esta reproducção,
que continha sómente a cabeça e o busto. Sim, era sua mãe, não tal como
a havia contemplado no leito da morte, quatro annos antes, envelhecida
prematuramente, pela terrivel doença que a victimou, um cancro no
figado, com o rosto emmagrecido, amarellecido, e torturado pela dôr--mas
a «mamã» da sua infancia, com os seus bellos olhos avelludados
d'então, tão negros e tão doces no seu olhar d'uma idealidade digna de
Prudhon; com o seu sorriso feliz nos labios finos e flexiveis; com as
madeixas escuras dos seus cabellos que apartava na frente em dois bandós
ondulados, á moda d'então, com a linha correcta e cheia dos seus
encantos, e com a dôr do seu rosto, que tinha a delicadeza da petala da
rosa.

Porque estranho acaso este retrato se encontrava ali, deante d'esse
«bufete», n'uma sala d'esta casa onde vinha, elle, o filho d'essa
mulher, procurar a explicação d'um segredo que affectava a sua honra de
marido? Um acaso? Não. Sobre o mesmo «bufete» existia tambem uma moldura
de couro, com tres divisorias, onde se viam tres photographias de sua
mãe, em epochas differentes,--uma mais nova do que o retrato, outra da
edade de quarenta annos, e a terceira da edade de cincoenta; e, ao lado,
n'uma moldura oval, escura, a reproducção d'uma outra photographia que
elle, Chalinhy, lhe mandou tirar depois de morta.

Uma madeixa de cabellos se divisava através o vidro, e a data do
anniversario para elle sagrado: «5 de setembro de 1897» lia-se a um
canto do cartão. Estaria sonhando? Ainda mais, n'uma terceira moldura,
que fazia «pendant» com a primeira, appareciam-lhe agora photographias
suas: uma que o representava ainda creança, outra aos dezeseis annos, e
ainda outra recente! ... Vendo, como em certos casos de allucinação, a
reproducção da sua propria pessoa, não teria experimentado uma
impressão mais violenta, tão violenta, que chegava ao terror...

Onde estava?... Em casa de quem? Que occulta ligação, e de que nunca
sequer suspeitára, o unia á pessoa que ali vivia entre esses objectos, e
que o conhecia desde a infancia, que conhecia sua mãe desde muitos
annos, que conhecia sua esposa--sem elle o saber?

Um novo indicio, que mais fez desvairar a sua razão, confirmava a
denuncia que o conduzira áquella casa: n'um biombo de seda, collocado
defronte da janella, e no qual se achavam suspensas varias miniaturas de
familia, viu tambem pequenas photographias de Valentina e dos filhos.

A estranheza d'uma descoberta, tão completamente imprevista, que chegava
a ser phantastica, o silencio d'esta sala tão reservada, que o ruido da
rua já de si silencioso difficilmente ali chegava, o contraste entre o
que procurava e o que vinha encontrar--tudo contribuiu para mergulhar
Chalinhy n'uma especie de hypnose, de que o despertou de repente, a
approximação d'um homem, ao qual dez minutos antes se preparava para
exigir uma explicação, ainda mesmo pela ameaça.

Uma porta de dois batentes, que um reposteiro disfarçava entre duas
estantes, se abriu repentinamente. O ruido d'uma pesada cadeira de rodas
annunciou a chegada do doente. O senhor Dumont--porque era elle--estava
immovel na sua cadeira mechanica, que um enfermeiro empurrava. O
paralytico era um homem de sessenta annos, pouco mais ou menos, todo
branco, e que devia ter sido muito bello, porque o seu rosto,
emaciado pelos longos soffrimentos, conservava as largas e nobres linhas
que revelam a raça.

Ligeiras deformações: a bocca um pouco torta e o olho direito algum
tanto elevado, marcavam na sua cara, de uma infinita melancholia, o
stygma da inexoravel nevrose. O braço direito, que não podia mover,
repousava, inerte, sobre a perna, emquanto que com a mão esquerda movia
um punho de cobre ligado á cadeira e com o qual lhe dava a direcção
desejada. O fato, muito apurado, revelava as minucias dos seus cuidados
pessoaes, tão raros n'estes condemnados á morte, e que são como que um
ultimo e pathetico protesto contra a sua inevitavel perda. O brilho dos
olhos, tão notavel n'estas longas agonias, denunciava a lucta
desesperada da energia animal contra a morte proxima.

Não exprimiam esses olhos, brilhantes e muito negros, emquanto as rodas
da cadeira giravam deante da porta, nenhum presentimento da impressão
que n'elles ia apparecer em breve. É necessario dizer--e é a explicação
da facilidade com que o visitante foi recebido--que, na sua ultima
visita á rua Lacépède, n'essa funesta segunda-feira a marqueza de
Chalinhy falou ao doente d'um negociante que tinha lindas estatuetas do
seculo XVIII.

A acquisição d'algum d'esses objectos raros, capazes de figurar n'uma
das suas estantes ou na grande vitrine ao fundo da galeria, era a unica
alegria do paralitico. Por um mal entendido, quiz a fatalidade que
o negociante que Valentina mandou a casa do sr. Dumont, se esqueceu de
lá ir. Quando a sua cadeira rolante transpoz o limiar da porta e que
viu, em logar do bric-a-braquista, a figura de Norberto de Chalinhy, a
sua mão esquerda crispou-se no braço do movel, n'um movimento quasi
convulsivo. Endireitou o busto e uma emoção d'uma intensidade
extraordinaria lhe descompoz as feições. Da sua bocca offegante
escapou-se um intenso grito e bradou aos creados que o acompanhavam,
n'uma ancia angustiada: «parem, parem...». Pararam com effeito, a tempo
de Chalinhy, immovel de surpresa deante d'esta tragica apparição, ver
duas grossas lagrimas a saltarem dos seus olhos fixos e deslisarem pelas
faces macilentas e cavadas. Em seguida o velho disse, como n'um gemido:
«entre, mas entre, entre...». A angustia que se traduziu nas suas
palavras causou, sem duvida, admiração aos creados, habituados aos
signaes da approximação da crise. Fizeram recuar rapidamente a cadeira e
fecharam a porta. Ainda Chalinhy estava sob a impressão do grande abalo
que lhe produzira esta scena, tão terrivel como rapida, quando um dos
creados, precisamente o que o recebeu, tornando a apparecer, a tremer
todo e n'uma grande afflicção, lhe disse:

--«O patrão está com um ataque, e não ha ninguem em casa senão eu e o
enfermeiro...»

--«Onde mora o seu medico?», perguntou Chalinhy. «Eu me encarrego de o
ir chamar».

--«Oh! senhor», respondeu o creado, «não ousava fazer-vos esse
pedido!... Mas depressa, depressa. Ao meio dia e meia hora ainda o
encontra em casa. É o doutor Salvan, e mora no _boulevard_ de
Saint-Germain, n.º 30.»




VIII

O enygma


Da rua Lacépède á casa do extremo sul do interminavel _boulevard_ de
Saint-Germain, onde vivia o celebre especialista de doenças nervosas,
para ficar mais proximo da Salpêtriére, seu hospital, a distancia não
era grande. Durante os dez minutos que demorou em a percorrer, Chalinhy
não tentou mesmo raciocinar a respeito da série de factos, para elle
absolutamente incompreensiveis, que acabavam de dar-se. Na confusão de
todo o seu pensamento em face do enygma a cuja decifração se entregou
apaixonadamente, um ponto luminoso apparecia muito ao longe:
recordava-se de ter visto já o rosto do paralytico surgido deante
d'elle, no fundo d'essa bibliotheca estranha, onde com espanto encontrou
o retrato de sua mãe, o seu, o da esposa e dos filhos... Mas quando?
Aonde? Procurava, no mais recondito da sua memoria, a physionomia d'um
homem ainda novo, no qual a mascara do velho e moribundo, se
justapunha. Era uma d'estas recordações longiquas, tão cheia de
incertezas, em que a realidade se confundia com o sonho... «Dumont...
Dumont...?» Chalinhy, repetia este nome mentalmente. Não conseguia
associal-o ás imagens tão vagas e portanto indistinctas já, que se
agitavam na sua reminiscencia.

Em scenas mal definidas, cujos detalhes inconscientes e incompletos se
esfumavam na sua intelligencia, figuravam conjunctamente sua mãe e o
marido de sua mãe--aquelle que sempre acreditára e que ainda hoje
acreditava, ser seu pae. Mas como se chamava então esse homem que tinha
os mesmos traços de nobresa e o mesmo olhar profundo do doente? E eis
que, de repente, acudiam a essa reminiscencia syllabas indistinctas:
«_Magneville_?... _Raneville_?... _Layneville_?...» Ao mesmo
tempo--porque mysterioso trabalho do seu espirito angustiado?--via a
figura de seu pae, do defunto marquez de Chalinhy, fallecido ha tanto
tempo já. A que proposito se recordava, e por que sentia de novo, depois
de muitos annos o indefinivel incommodo que sempre sentira na presença
d'esse homem do qual nunca tivera a minima razão de queixa, a não ser
talvez a preferencia que manifestava pelo seu irmão mais velho? Mas,
apesar d'isso, elle e o irmão não tinham tido a mesma educação, e
vivido, na casa paterna nas mesmissimas condições? Sem duvida, se seu
irmão não tivesse morrido pouco tempo antes do pae, teria sido bem mais
contemplado do que elle na herança paterna. Um documento encontrado
entre os papeis do marquez, provava bem que havia querido legar ao
filho primogenito toda a parte dos seus haveres de que, em face da lei,
podia livremente dispor. Mas Norberto conhecia muito bem as idéas do
fallecido gentil-homem para se admirar d'esta tentativa de
reconstituição do direito de primogenitura.

Que ligação estabelecia então, de repente, entre as manifestações de
friesa por parte de seu pae e os acontecimentos em que a denuncia da
esposa, feita pela amante, o tinha envolvido? Não saberia dizel-o, nem
tambem que hypothese se esboçava dolorosamente, obscuramente, na sua
imaginação, hypothese logo posta de parte, por ser tão sacrilega como
insensata?... Absurdo pesadelo, que a paragem do trem em frente da casa
do professor Salvan, fez dissipar!

--«Saberei alguma coisa por elle», disse comsigo. «Contanto que lá
esteja!...»

O medico estava effectivamente em casa. Logo que Chalinhy lhe fez
apresentar o seu cartão, no qual escreveu: _Da parte do sr. Dumont, que
está muito mal_, foi immediatamente recebido. Ao primeiro golpe de
vista, o marido de Valentina viu logo que o homem de 45 annos que a
baroneza de Node vira chegar n'uma carruagem de aluguer ao pavilhão da
rua Lacépède era o medico. O professor Salvan tinha na realidade mais
dez annos; mas, perfeitamente conservado por uma existencia
continuamente activa e quasi ascetica, não indicava tanta edade. Era
magro e robusto, com uma cabeça pequena, e cujo rosto attrahente e
imberbe recordava a physionomia napoleonica do seu mestre Charcôt.

No mundo das grandes celebridades medicas e parisienses, onde os ultimos
annos tantas notabilidades se tem manifestado, Salvan figurou sempre em
separado, associando, como o seu amigo e condiscipulo Eugenio Corbiére,
que voltou já ás antigas normas, o catholicismo mais accentuado ao mais
solido talento de clinico e de anatomista.

Mais celebre do que conhecido, os seus immensos trabalhos conservaram-no
sempre affastado dos salões e o gosto pelas investigações puramente
scientificas, da clientela.

A morte do seu unico filho, em 1898, em circumstancias bem
crueis--envenenara-se, longe dos seus, n'um hotel de Napoles, por
desespero d'amor--tornou-o ainda mais concentrado.

Foi desde então que deixou a sua instalação no boulevard Malheserbes,
para se refugiar ali, n'uma casa mais modesta, mas que não lhe
recordasse constantemente a creança tão tragicamente perdida.

Este detalhe prova bem quanto um tal homem tanto em contacto com os
soffrimentos da humanidade, era sensivel, apezar da sua apparente
severidade e indifferença e da dureza do seu penetrante olhar. Eis
tambem a justiça do motivo porque o brilho dos seus olhos feriu Joanna
de Node, quando o observou ao descer da carruagem. O mesmo brilho agudo,
como a lamina d'um bisturi feriu tambem Chalinhy, emquanto lhe descrevia
o ataque que acommettera o sr. Dumont. O medico estava assentado ao
fogão, n'uma pequena sala que servia de gabinete de trabalho a sua
mulher, vestia uma sobrecasaca preta, de luto, que não abandonou mais
desde a morte do filho, e á medida que o marquez proseguia na
descripção, o seu rosto, d'uma expressão tão energica, assombrou-se
visivelmente:

--«Está muito doente, não é verdade?» perguntou Chalinhy.

--«Muito», respondeu Salvan. «Está á mercê do mais pequeno abalo. É
mesmo espantoso como tem resistido a tanto, é espantoso!... Teve o
primeiro ataque ha seis annos. Vinte vezes o tenho considerado perdido;
mas tem uma tal vontade de viver!... E quando verdadeiramente se quer
viver, vive-se... No entanto, devo dizer-lhe que sem os cuidados das
senhoras de Chalinhy, não teria resistido. Teem sido admiraveis de
dedicação as duas. As suas visitas é que o prendem á vida... Tambem se
resolveu a ir vêl-o, fez bem. As dissensões de familia devem
desapparecer deante da morte... Espero que não será ainda hoje, comtudo
não ha tempo a perder, estarei lá dentro de vinte minutos. Póde
annunciar-me.»

Deus! como Chalinhy, escutando estas palavras que mais escureciam ainda
o enygma, desejaria interrogar o professor, convidando-o a explicar-se.
O que aproveitaria com isso? Mesmo que a sua honra o não prohibisse de
entrar n'um assumpto que envolvia uma mentira por parte de sua mãe e de
Valentina, não era evidente que Salvan acreditava no pretexto de
dissensões familiares, imaginado pelas duas mulheres para
justificarem a sua presença á cabeceira do leito d'este moribundo, em
que outro homem da familia ali fosse? O que lhe era então esse senhor
Dumont?

Que sagrado dever vinha cumprir junto d'este infeliz, n'um bairro
escuso, primeiro sua mãe e depois sua esposa--occultando-se d'elle, como
se tinham occultado, com a prudencia de criminosas?

Tinha sido necessario para que conhecesse o segredo d'estas visitas, um
tal concurso de circumstancias! E eram innocentes estas visitas,
demonstrava-o o testemunho do medico declarando-as nobres e da mais
benefica caridade. De que tinham então receio as duas mulheres? Que
elle, filho e marido, lh'as prohibisse? Não. Qual seria então a
imperiosa razão que as dominou, a ponto de nem ao medico terem dito a
verdade, visto que inventaram a fabula d'um parente malquisto.

E o doutor Salvan acreditou na existencia d'este parente, occulto, dos
Chalinhy? Porque? Não entraria ahi o segredo profissional.

Por outro lado, não acontece muitas vezes que um membro deshonrado d'uma
familia se esconde em Paris, mudando de nome? Com certeza que sua mãe e
Valentina tinham contado esta historia ao doutor, mas a verdade é que
tal historia era falsa. Se fosse verdadeira, elle Norberto, o actual
chefe da familia, conhecel-a-hia... Estes retratos, porém, no salão do
doente, representando-o a elle, á mãe, á mulher e aos filhos, em
differentes idades, o que significavam?

A perspectiva agora aberta deante do seu espirito infligia-lhe um
tormento tão forte, que o impedia de sentir a consolação de ser livre
d'uma outra suspeita, da que, duas horas antes, tinha a respeito da esposa.

A sua espectativa actual, por ser d'uma outra natureza, não era menos
terrivel. Reconheceu-o no momento em que voltando á rua Lacépède, o
creado lhe annunciou, com grande consternação, que o doente não
recuperára ainda os sentidos.

Quando ha pouco o medico o felicitou por ter tambem ido visitar o
enfermo, um intenso rubor lhe subiu ás faces pela immerecida saudação.
Que atroz ironia, desde que, realmente, a sua apparição na sala, aonde
nunca havia figurado, senão em effigie, é que produziu no dono da casa
aquelle abalo terrivel, talvez mortal. Comtudo emquanto se affastava da
pequena casa, sempre silenciosa, olhando as velhas tilias cujo ramos
ultrapassavam o muro do jardim, um violento e inolvidavel remorso
começava a perseguil-o. Disse ao cocheiro que o conduziu da rua
Lacépède, ao _boulevard_ Saint-Germain, e d'ali novamente á rua
Lacépède, para o levar á rua Varenne, ao seu proprio palacio.

Uma unica pessoa podia auxilial-o na decifração do enigma que, de minuto
a minuto, se lhe affigurava mais tremendo, e no qual figurava d'um lado
o desconhecido, e do outro sua mãe, sua mulher, os filhos e elle proprio.

--«Não se recusará a fallar-me», dizia elle, «não deve fazel-o. Não pode
deixar-me n'esta horrivel incerteza... Tenho o direito de tudo
saber, pois que se trata d'ella e de minha mãe...

Por maiores que fossem os seus esforços para mostrar a si mesmo a
immutavel soberania do seu titulo de filho e de marido, não podia
esquecer-se da scena com a esposa, duas horas antes, e da mudança
operada na sua situação ao voltar de novo á presença de Valentina.
Deixára-a, completamente desconcertada pelas suspeitas que o zelo
perigoso d'uma parenta imprudente tinha insinuado no seu coração.
Luctava contra essas suspeitas não acreditando na sua veracidade. Ella
que não contava na sua vida um unico facto que merecesse censura, não
tinha zelos, e, a par d'isso, elle que a atraiçoava, recorria, impellido
pela mais calumniosa, pela mais gratuita denuncia, á mais insultante das
investigações. Para iniciar com ella a conversa que lhe daria, emfim, a
luz de que tanto necessitava, era preciso referir-se primeiro a essa
investigação. O que entrevia no fundo d'aquella alma tão terna e tão
reservada, produzia-lhe, n'esse momento, uma vergonha de si mesmo e do
seu procedimento, muito superior ás outras perturbações do seu ser.
Estas emoções de caracter bem diverso, tornaram-lhe horrivelmente
dolorosa a entrada do gabinete aonde Valentina se encontrava depois de
almoçar. Estava junto dos filhos, Francisco e Armanda--o filho tinha o
nome do irmão mais velho de Norberto, morto tão novo ainda, e a filha o
de sua avó. Quando o marido abriu a porta, a marqueza de Chalinhy
acariciava os cabellos annelados das duas formosas creanças, n'uma
attitude muito semelhante á da photographia que estava no salão do
doente, em que nunca as tinha visto.

Uma tal analogia, augmentando de novo em Chalinhy a sensação do
mysterio, deu-lhe força para provocar uma tão dolorosa conversação. Além
d'isso, se todos os signaes, o tremor das suas mãos brancas de mulher em
volta dos cabellos das creanças, o rubor das faces, a expressão dos
olhos, lhe denunciavam bem que ella, por seu lado estava agitada,
vibrante, não sabendo ainda da sua acção recente, de que podia ella
tremer senão do desgosto que lhe confiára pela manhã em termos tão
claros, muito embora disfarçados? A «crueldade do mundo», como tinha
dito, feriu-a, e, por isso, tentava esquecel-a ao contacto das duas
almas candidas descendentes da sua, e cuja innocencia lhe sorria atravez
dos lindos olhos azues e das boccas rosadas. A mãe sorria-lhes tambem,
com um sorriso que nos seus labios nervosos se transformou em tremor,
quando viu entrar Norberto; deixando ir as duas creanças ao encontro do
pae, com a ligeireza e maneiras graciosas d'essas delicadas creaturas
quando estão contentes. Em crises como a que atravessavam marido e
mulher, estas festas tão expontaneas, tão innocentes do filho e da filha
deviam incommodal-os. A antithese entre o pesar que os paes teem no
coração e a alegria communicativa cheia dos encantos da vida, d'essas
sensibilidades tão juvenis, constituem a parte tragica e pungente de
certos dramas de familia. São tambem muitas vezes a sua unica
consolação. É o rejuvenescimento, é o porvir que annunciam esta
alegria descuidada dos filhos ao homem e á mulher que soffrem. Norberto
e Valentina experimentavam por vezes uma e outra impressão, e as suas
primeiras phrases quando, de commum accordo mandaram as creanças embora,
exprimiram essa tristeza e esse prazer.

--«Como estavam satisfeitos na tua companhia» disse Chalinhy,
«deixaval-os gosar um pouco, e tinhas razão! Quando se não é feliz em
creança, arrisca-se a gente a morrer sem nunca o ter sido...»

--«Não os distrahia», respondeu a mãe, «distrahia-me com elles. Quando
tenho momentos de desanimo como aquelle que tive a fraqueza de te deixar
perceber esta manhã, elles fazem-me readquirir a esperança. Mas, como
vês, estou melhor, tive força sobre mim. Não me deitei. Almocei com
elles, visto que me mandaste dizer que não almoçarias em casa, e
acabámos ha pouco...»

Conservaram-se silenciosos durante algum tempo.

Deante d'esta nova prova da benevolencia e energia d'esta alma, que não
queria mostrar-lhe quanto fôra violentamente magoada com a denuncia da
carta anonyma, o marido, perfido e desconfiado, sentiu um remorso mais
vivo ainda, a par d'uma recordação agudissima do mysterio contra que se
debatia. Era forçoso que a esposa lhe ligasse uma importancia capital
para que continuasse a manter a maior reserva sobre um tal mysterio,
pela sua attitude, como uma mulher culpada, quando é certo não
tinha a occultar senão a mais pura dedicação!

Mas porque... E encontrando na sua crescente affeição, força para
confessar o seu degradante accesso de ciume, disse:

--«Valentina venho da rua Lacépède.»

Emquanto pronunciava estas palavras de que só ella no mundo, visto que a
mãe de Norberto tinha morrido, podia medir o tragico alcance, ditas pela
sua bocca, olhou-o com espanto e assombro. Repetiu, como se não podesse
acreditar nas palavras que tinha ouvido:

--«Vens da rua Lacépède... Foste lá depois de me deixares, tendo-te
fallado da maneira porque te fallei! Foste lá...»

--«Sim,» respondeu em voz baixa e com a firmeza oppressa mas decidida
d'alguem que, querendo reclamar um direito, se força a cumprir primeiro
o mais doloroso dever. «Fui num momento de desvario... A carta anonyma,
a indicação tão precisa do numero da porta, a tua perturbação quanto te
fallei... Perdi a cabeça: apoderou-se de mim o ciume; quiz saber e fui...»

--«Ah!» disse ella com um modo que Norberto lhe não conhecia ainda.

«Podeste fazer-me uma cousa semelhante!... Não, não foi a carta anonyma
que te fez ir lá, não foi a denuncia, nem a minha perturbação, foi...
Meu Deus!» e levantou as mãos n'um movimento desesperado.

«E eu que estava tão enternecida com a tua delicadeza, esta manhã, e que
dizia commigo: calumniaram-no!... O que te obrigou a ir lá,»
continuou Valentina, approximando-se do marido, com o seu bello e nobre
rosto congestionado pela indignação: «foi a entrevista que tiveste com
Joanna. Veio aqui, fallou-te; o que te disse não sei... Ouvi as vossas
vozes atravez da porta, não quiz porém, escutar o que diziam... Mas
depois que partiu, sem procurar ver-me, comprehendi logo que algum facto
extraordinario se passou entre vós... Adivinhei tudo immediatamente.
Tudo vi... Foi ella que escreveu a carta anonyma, que me seguiu, que me
denunciou, que te indicou a pista que devias seguir tambem para me
surprehenderes!... Ah! a infame! A infame!... Tinham n'esse caso razão.
Ha entre ti e ella uma intriga. Porque lhe consentiste que falasse assim
de tua esposa--da mãe de teus filhos--é que ella é tua...» Deteve-se
deante da palavra amante, que lhe abrazava o coração, e, n'um grito de
legitima revolta da esposa muito ultrajada, protestou dolorosamente:

«Não, não foste lá por teres ciumes de mim, mas sim porque me atraiçoas...

«Querias apenas ter uma prova para te tornares livre, para só te
dedicares a ella.

«Mas que mulher julgas então que eu sou? Dei-te, por ventura, o direito
d'assim me julgares? E ella!... Oh! É triste, profundamente triste! E eu
não merecia tanta ingratidão!...»

--«É naturalissimo que assim penses», respondeu Chalinhy, em voz ainda
mais baixa. Sentia-se incapaz, n'este momento, de discutir factos
evidentes que não eram nada moraes, incapaz de protestar a sua
innocencia com respeito á ligação com Joanna de Node. Necessitava muito
saber a verdade para poder mentir. E depois, como negar a conversa com a
amante, junto da porta do quarto da esposa, e de que esta ouviu algumas
palavras? Como justificar a mudança subita do seu procedimento, depois
da visita de Joanna, precipitando-se na investigação, que se via
obrigado a confessar, visto que entrára em casa sómente com o fim de a
concluir? Accrescentou, solemnemente: «As apparencias são contra mim; e
comtudo...» Hesitou um momento, e depois, em voz mais elevada como para
confirmar a solemnidade do juramento, accrescentou:

«Juro-o sobre a cabeça dos nossos filhos! Não, o meu procedimento não
foi dictado pelo desejo de me tornar livre, não teve uma tão abominavel
intensão. Não obedeceu a um plano anteriormente concebido. Fui um louco,
assevero-te... As tuas visitas a essa rua escusa, as precauções de que
te rodeavas, este segredo da tua vida... Quando cheguei em frente d'essa
casa não consegui dominar a duvida cruel que me torturava... Interroguei
os lojistas da visinhança, e soube quem vivia ali... Não me interrompas.
Era a espionagem, a infame espionagem, sinto-me aviltado pela ter
exercido! Emfim, bati á porta: dei o teu nome para entrar, recebeu-me e
vi o sr. Dumont. Quem é. Valentina dize quem é?...»

Á medida que o marido fallava, contando tudo, com as faces ruborisadas e
com os olhos incendidos pela febre de saber a verdade, o rosto da
joven marqueza mudava de expressão.

Á colera indignada dos primeiros momentos, seguiu-se uma anciedade que
se approximava do terror, quando ouviu a phrase irreparavel.
«Recebeu-me...»

Soffreu uma emoção tão violenta que todo o seu corpo tremia
convulsivamente. Depois, condensando a vontade n'um supremo esforço,
teve a coragem de defender ainda o segredo, que não era seu, contra o
apaixonado inquerito de Chalinhy.

--«Desde que viste o sr. Dumont, sabes já quem é... Um doente a quem fiz
a esmola d'algumas visitas, em cumprimento d'uma promessa solicitada por
pessoa que já morreu... Deixa-me cumprir este dever de caridade até ao
fim. Não o cumprirei durante muito tempo; por isso tem tu tambem a
caridade de mais nada me perguntares...»

--«Obedecer-te-hei», respondeu Chalinhy, «se me jurares tambem sobre a
cabeça de nossos filhos, como eu fiz, que essa pessoa de quem fallas,
essa morta que te exigiu o cumprimento de um tal voto não era...»

Hesitou um segundo, depois, muito baixo, murmurante:« não era minha mãe?
Mas não jures, não pódes jurar... Sei que era ella... Não foi só o sr.
Dumont que vi na casa da rua Lacépède. Vi tambem minha mãe... Está lá o
seu retrato, um retrato que não conhecia, em casa d'esse homem que ainda
conhecia menos! Não é só o seu retrato que lá se encontra, mas tambem o
teu e o meu...»

E, de repente, illuminando-lhe a memoria um d'esses clarões de
reminiscencia que nos fazem recordar n'um instante promenores d'um facto
esquecido ha annos. «Mas eu conheço muito bem esse homem: Recordo-me
perfeitamente d'elle. É Raynevilhe.» E repetiu. «Raynevilhe. Raynevilhe
vinha a nossa casa n'outro tempo e depois desapareceu... Sim, espera.
Recordo-me agora... Um processo... uma condemnação... Desde que sei o
nome reconstituirei tudo... Não era porem nosso parente» continuou elle
seguindo o seu pensamento, «e minha mãe continuou a vel-o secretamente
até fallecer?... Pediu-te depois que o visitasses tu, quando não podesse
lá ir já?... A questão Raynevilhe?... Sim, foi condemnado... Mas qual o
motivo? Qual o motivo? Não me recordo. Sabel-o-hei, vou já a casa do meu
advogado. Elle consultará a collecção da _Gazeta dos Tribunaes_. Quero
saber...»

--«Supplico-te, meu amigo» disse a marqueza de Chalinhy, detendo-o.
«Tranquilisa-te.» E com uma expressão de terror, sempre crescente,
accrescentou ainda: «Não vás a casa do advogado. Não pronuncies o nome
de Raynevilhe a ninguem. Reconheceste-o sim, pois é verdade ser esse o
seu appellido. Emquanto ao processo de que fallaste, existiu tambem e
elle foi condemnado... Mas, que vaes fazer? Queres obrigar os mortos a
fallar?

«Sim. É um amigo d'infancia de tua mãe. Teve piedade d'elle depois que
praticou uma enorme falta pela qual foi horrivelmente punido.

«Quando se viu proxima da morte, teve ainda pena do desgraçado. Era um
doente e vivia inteiramente só, por isso pediu-me para a substituir...
Ah! meu amigo, não ultrages a memoria de tua mãe, depois de me teres
ultrajado a mim! Respeita a sua ultima vontade, como eu fiz...»A
marquesa esquecera por completo as recriminações do principio da
conversa, esquecera Joanna de Node, não se lembrava mais de ciumes;
n'aquelle momento sómente via que era forçoso obstar, por todos os
meios, a que o marido proseguisse no inquerito, por isso concluiu por
dizer: «Promette-me que tudo acabou, que ficarás por ahi! Que queres tu
descobrir mais?»

--«O que quero descobrir mais? Quero saber porque motivo minha mãe me
occultou esse acto de caridade, e porque motivo te pediu que m'o
occultasses tambem.»

--«Valentina,» continuou Chalinhy, supplicante, «começaste a dizer-me a
verdade; vae até ao fim... Como queres tu que acredite? Como queres que
simples visitas de caridade para com um homem condemnado, expliquem a
offerta d'um retrato como o que lá vi, feito tambem a occultas. Nunca
ouvi fallar d'esse retrato, nem eu nem ninguem. Foi feito
propositadamente para esse homem, percebes, _para esse homem_!... E a
minha photographia! Porque a tem tambem sobre o buffete? Não me digas
que é signal de reconhecimento para com a sua bemfeitora. Não, não e
não. Ha outro motivo, forçosamente... Falaste de caridade e não a tens
para commigo ajudando-me a expulsar do espirito uma ideia que se
começou a apoderar de mim, que me tortura, que não quer abandonar-me,--a
repellil-a,» accrescentou com um modo sombrio, «ou a acceital-a.»

--«Qual ideia?» balbuciou Valentina.

--«Teria esse homem, a quem minha mãe proporcionou tantos cuidados até
ao fim da vida, e ao qual tu os proporcionas tambem, depois d'ella, na
sua mão meio de a perder, de nos perder a todos... Não queres que vá a
casa do meu advogado, porque? Porque receias que o seu nome e o nosso
sejam pronunciados juntamente. Figuram, por acaso, juntos ao processo, e
occultavam-m'o sempre?... Não me impedirás de o saber...»

--«Fica sabendo que esse triste acontecimento nada tem de commum
comnosco, respondeu a marqueza de Chalinhy. É sinistro, mas bem simples:
O senhor de Raynevilhe tinha um tio, muito rico, e, achando-se um pouco
embaraçado por falta de dinheiro, arrastado por esse meio parisiense,
como tantos rapazes de boas familias, sendo os restantes herdeiros
d'esse tio todos muito abastados tambem, concebeu a ideia de assegurar
só para elle a herança, que tantos intrigantes invejavam, imitou a letra
do tio e fez um testamento falso. Eis o seu crime. É grande, mas
expiou-o com tantos annos de martyrio... Foi condemnado, e depois que
cumpriu a pena, não viveu, n'esse bairro humilde, senão para os pobres e
para Deus... Podes, em querendo, verificar se o que te digo é ou não
verdade...»

--«Esse homem é, pois, um falsificador, um ladrão,» respondeu
Chalinhy, duramente, asperamente. «E pedes-me que não procure conhecer
os motivos porque minha mãe o tornou a ver, quando sahiu da prisão--para
que tu os conheças tambem? Pode-se ter consideração por um assassino,
por não merecer o desprezo, mas por um falsario, um ignobil falsario!...»

--«Cala-te, meu amigo, cala-te, supplicou Valentina. Não quero ouvir-te
pronunciar taes palavras a respeito d'elle!...» Deteve-se como que
petreficada pela phrase que ousára proferir. Olharam-se mutuamente, sem
que nenhum d'elles tivesse força para continuar uma tão tragica
conversação, que a entrada d'um creado que vinha trazer uma carta tornou
mais tragica ainda. Entregando-a, o creado disse:

--«É do doutor Salvan, para o sr. marquez. A sua carruagem espera lá em
baixo pela resposta.»

--«Diz que fica entregue e que não tem resposta. A carruagem do doutor
Salvan pode partir» accrescentou Chalinhy, depois de ter deitado um
rapido olhar para o bilhete que entregou á esposa, logo que ficaram sós.
Continha apenas dez linhas traçadas, rapidamente, a lapis, pelo medico,
mas que linhas para ella que as lia, debaixo do olhar do infeliz a quem
em vão tentara dissuadir: «_Encontrei o sr. Dumont muito mal. Não pode
fallar. Julgo, comtudo comprehender que deseja vel-o. A sua agitação é
tal que tomo sobre mim a responsabilidade de lhe pedir que conclua a sua
boa acção d'esta manhã, voltando á rua Lacépède, tambem. A minha
carruagem o condusirá. Não abandonarei o doente. Venha, se pode. Á
noite talvez já seja tarde_.»

--«Ah! Norberto,» implorou Valentina, como n'um gemido, «não é possivel
que o deixes morrer assim, que lhe recuses o que pede... Ainda é tempo.
Vem. A carruagem de Salvan ainda não partiu. Vamos n'ella, mas vem! vem!
Corramos!...»

--«Não,» respondeu Chalinhy deixando-se cahir n'uma cadeira, e apertando
a cabeça com as mãos, «não vou. Nada comprehendo, nada sei senão que
esse homem e tudo quanto lhe diz respeito me causa horror.»

--«Cala-te» gritou ella de novo, n'um accesso selvagem; e estreitando-o
nos braços com uma especie de ardôr desesperado, arrastava-o dizendo:
«Mas vem; vem de pressa. Vem. Ah! Queira Deus que não seja já tarde.
Elle é teu pae. É teu pae!...»




IX

A morte


Valentina não accrescentou uma unica palavra á confissão que lhe
escapou, contra sua vontade, e que não fez mais do que antecipar a
inevitavel conclusão a que a convergencia de tantos indicios
reveladores, arrastariam Chalinhy, mais tarde ou mais cedo. Elle, por
sua parte, não fez nenhuma pergunta mais. Seguiu, quasi automaticamente,
a mulher desvairada, descendo com ella a grande escadaria e atravessando
tambem com ella o perystilo. Quando chegaram á porta do palacio o
«coupé» do medico tinha partido já.

--«Meu Deus!» exclamou Valentina. «Deu-se o que eu temia. É muito tarde!
Ah! E pensar que talvez morra n'este instante!...» Foram-lhe necessarios
alguns minutos para arranjar uma carruagem de praça que levou
proximamente meia hora, apezar das reiteradas instancias, em fazer esse
longo trajecto, quasi metade de Paris, que a encantadora mulher tinha
andado tantas vezes, occultando-se. E, comtudo, agora fazia o mesmo
trajecto apertando nas suas as mãos d'aquelle a quem tanto tinha querido
encobrir estas visitas. Norberto continuava calado; mas, de tempos a
tempos, correspondia á pressão d'esses dedos fieis, e, na dor intima em
que se debatia sob o imperio da mais dolorosa das revelações, a presença
da mulher que por tanto tempo desconheceu e que via tão carinhosa, tão
dedicada, enternecia-lhe o coração. Não ignorava actualmente, nada com
respeito ás suas traições. Tinha-o ouvido gemer de dor ao comprehender
que suspeitava d'ella, de maneira tão injuriosa, sugestionado por uma
amante--e que amante!...

Traições, injurias, humilhações, nada tinha a perdoar-lhe porque tudo
havia esquecido na sua piedade pelo marido que soffria, e que ella via
soffrer. Porque se não teria evidenciado mais cedo esta alma tão
retrahida e tão nobre? Porque não revelou tambem Valentina, para com o
homem que amava dedicamente, mais vehemencia n'esse amor, mais
expansões, porque lhe não patenteou toda a intensidade do seu affecto?

Ai de mim! A prophetica formula, do poeta antigo será sempre verdadeiro
tanto no dominio dos modestos destinos particulares como nos das
evoluções sociaes:

«A sciencia em relação á dôr...» a que ás vezes se deve accrescentar e
em relação á falta de cumprimento dos deveres! Sem que a generosa
Valentina desse per isso, a chamma que brilhava nos seus olhos,
n'aquelle momento, provinha da febre que o ciume lhe despertára desde
que sabia da infidelidade do marido.

Perante o vivo pesar que a traição lhe produzia sentia bem quanto o
amava, de maneira que a tenebrosa intriga da invejosa Joanna produziu um
resultado diametralmente opposto ao que ella desejava! E o marido
desleal não estabeleceria tambem n'aquella mesma occasião uma comparação
esmagadora para os seus indignos amores? Valentina e Chalinhy viviam ha
muito tempo já uma vida recondita a par da vida apparente. Havia porém
uma differença é que a reserva do marido servia para atraiçoar a mulher
e a d'ella para cumprir uma missão de piedade filial da qual quiz, a
todo o custo, evitar-lhe a amargura... Experimentariam elles todos estes
sentimentos dentro da carruagem que os conduzia áquella scena
suprema de tristeza e agonia? Liga-se aos nomes, pae e mãe, um
respeito augusto que torna muito penoso termos de associar a elles idéas
como as que deviam de futuro e para sempre, levar ao espirito de
Norberto a recordação dos dois entes que lhe haviam dado o ser. O
adulterio de sua mãe--a condemnação infamante do verdadeiro pae--o seu
nome que não era verdadeiramente o que lhe pertencia. Que vergonhas! Que
miserias! Como se lesse no pensamento do desventurado, Valentina
disse-lhe, rompendo pela primeira vez um tão cruel silencio em frente da
pequena casa aonde o antigo amante da mãe de Norberto acabava de morrer:

--«Fiz a tua mãe a promessa de não te dizer a verdade a não ser que
_elle_ te chamasse para junto de si nos ultimos momentos da vida.
Ameniza-lh'os. É ella que t'o pede, pois é o unico caso em que desejava
que tudo te fosse revelado... Tem a certeza que te está vendo n'este
momento... É talvez a sua ultima expiação...»

--«Não me peças nada em seu nome,» replicou Chalinhy em voz quasi
imperceptivel! «Incutir-me-has menos coragem. Conheço a minha vergonha e
que uso um nome roubado.»

--«Soffreram muito,» respondeu ella. «Expiaram bem as suas faltas! Tu o
saberás!... Tu o saberás!...» repetiu estas palavras por tres vezes com
uma convicção que mesmo n'aquelle momento de angustia fez aflorar aos
labios do filho uma pergunta irritada:

--«Que mais devo ainda saber?»

--«Tudo,» replicou ella em tom grave. «Não são os actos que devemos
julgar na vida são os corações. Ah! Cede aos impulsos do teu n'este
momento solemne, meu Norberto, arrepender-te-hias mais tarde de não
teres perdoado.»

Chegaram á porta da casa defronte da qual se achava o coupé do doutor
Salvan. O cocheiro, que tinha descido da almofada achava-se junto da
porta e ao reconhecer a marqueza de Chalinhy dirigiu-se para ella assim
que desceu da carruagem.

--«O que ha?» perguntou-lhe Valentina percebendo na sua physionomia que
se passava alguma cousa muito grave.

--«Morreu», respondeu o homem, muito baixo, indicando com a mão as
janellas do primeiro andar da pequena casa, com a voz tão indifferente
na sua gravidade fingida que toma a gente do povo para annunciar um
acontecimento tragico e de cuja importancia parece participarem tambem,
só pelo desempenho d'uma tal missão.

--«Morreu!...» repetiu Valentina e apertou a mão do marido para lhe dizer:

«Não teve tempo de saber a tua resposta e a tua primeira recusa,
juro-te....»

«Não é verdade» accrescentou em seguida, dirigindo-se ao cocheiro: «foi
emquanto se dirigiu á rua Barbet-de-Jouy que falleceu?»

--«Justamente, na occasião em que parti. Não sei como isso foi,
comprehendeis, como cheguei n'este instante, o creado que entrava de
chamar o padre é que me contou o accidente». A marqueza de Chalinhy
sentiu que o marido ao receber a triste nova, se apoiava ao seu braço
para não cahir. Conheceu que a commoção produzida pela noticia da morte,
recebida d'aquella fórma, lhe augmentaria os remorsos, por ter perdido a
occasião suprema e unica de mostrar alguma piedade por aquelle que sabia
era seu pae.

Por esse motivo, e ainda para lhe evitar logo uma tal dôr, é que forçou
o cocheiro a precisar um detalhe que devia, era sua convicção, attenuar,
pelo menos n'um ponto, a impressão experimentada por Norberto. Viu,
porem, que a segunda resposta o deixára mais perturbado ainda.
Impallideceu tão horrorosamente que julgou que ia desfallecer. Valentina
ignorava ainda que o ataque que victimou o doente se tinha declarado na
occasião em que deparou inesperadamente com Norberto, julgando receber a
visita do negociante enviado pela marqueza, por isso ella, muito
afflicta, impelliu-o para dentro do carro, dizendo:

--«Estás muito commovido. É conveniente não entrarmos... Se queres
dizer-lhe adeus, voltaremos cá ámanhã...»

--«Não,» respondeu elle. «Quero vel-o, immediatamente.»

--«Ah! meu amigo, perdoaste-lhe. Ah! Ainda bem!»

--«Perdoar-lhe!...» repetia Chalinhy, concentrando n'esta especie de
suspiro todos os sentimentos tão contradictorios que o agitavam: o
horror de ter sido a causa, muito involuntaria, mas a causa, em todo o
caso, d'esta crise ultima a que o moribundo tinha succumbido,--a
revolta sempre fremente da sua honra contra a revelação que lhe fizeram
a respeito da mãe;--uma emoção violenta, á idéa de que, ali, dentro
d'aquelle pavilhão solitario acabava de morrer aquelle que sua mãe amou
e que lhe deu o ser,--um reconhecimento augmentado constantemente pela
esposa mal apreciada e trahida, sim, que elle trahiu como sua mãe tinha
trahido o velho Chalinhy.

Tinha, porventura, o direito de se indignar, de «perdoar», como dissera
Valentina?

Para perdoar não era necessario ter auctoridade para condemnar?

Sentia tambem uma imperiosa necessidade de tornar a vêr, antes da
completa desapparição que ia seguir essa morte, o scenario onde se
desenrolou essa longa tragedia ultima na qual foi iniciado tão
funestamente;--de tornar a vêr as feições do que n'ella foi o heroe, do
homem que tão apaixonadamente se apoderou do coração de sua mãe para que
ella o não tivesse renegado depois do crime:--de procurar sobre esse
rosto immovel o traço d'uma similhança com o seu proprio rosto, a prova
da filiação que lhe tornava de futuro tão cruel o ouvir pronunciar o
nome que continuaria a usar. Batera a essa pequena porta, algumas horas
antes, com uma pungente commoção quando julgava possuir a prova do
adulterio da esposa. O que era isso comparado com o confrangimento da
alma que sentia agora e que quasi o suffocava? A porta abriu-se como da
outra vez. Como da outra vez subiu a estreita escadaria com o seu
tapete, os quadros e a graciosa ornamentação á qual certamente presidira
sua mãe. Como d'aquella vez entrou na ante-camara e depois na
bibliotheca aonde se achava o doutor Salvan, ao qual na perturbação
produzida pela catastrophe, não transmittiram a primeira resposta, por
isso que acolheu os recemchegados, dizendo-lhes:

--«Esperava-os... Deixou já de soffrer e exhalou o ultimo suspiro, n'uma
commoção suave e por sua causa,» accrescentou, dirigindo-se a Norberto.
«Recuperou os sentidos, e pude comprehender que desejava tornal-o a vêr.
Nas paralysias medullares progressivas está-se sempre á mercê d'uma
syncope, e esta deu-se precisamente na occasião em que a minha carruagem
partia. Ouvi o ruido produzido pelas rodas e elle tambem e lançou-me um
manifesto olhar de reconhecimento!... Cinco minutos depois deixou de
existir.... Havia muito já que morrera para o mundo e que entregára a
alma a Deus. Não tendo mais nada a fazer aqui, vou presencear outras
miserias. Ha-as bem peores e que não teem uma santa para as consolar....»

O medico retirou-se e o rodar da sua carruagem--o ultimo ruido da vida
percebido uma hora antes pelo morto--annunciava que esse grande homem de
bem ia, como tinha dito, presencear outras miserias; e aquella a cuja
dedicação rendeu merecido preito em termos d'uma veneração tão
enternecida continuaria na sua missão de caridade cumprida, ha annos, na
velha casa do modesto quarteirão, asylo, n'outro tempo, de tantas
vocações religiosas.

As tilias do jardim, na epocha em que guarneciam a cerca d'um convento,
viram passar por sob a sua sombra no verão e as folhas douradas no
outomno, muitas mensageiras da consolação, mas nenhuma d'ellas tinha o
coração inundado d'uma piedade mais profunda e mais ardente do que essa
mulher quando se ajoelhou na camara mortuaria. Tomou de novo entre a sua
a mão do marido que, em pé, olhava seu pae, immovel na cadeira. A
celeridade dos ataques repetidos não permittiu que transportassem
Raynevilhe--demos-lhe o seu verdadeiro nome--para a cama.

Apenas, para prevenir qualquer choque nas convulsões do ataque, foi
introduzido um travesseiro por detraz da cabeça, sobre o qual se
destacava o seu rosto hirto e cuja extrema magreza attestava o marasmo
d'uma physiologia gasta por muitos annos de doença.

Os labios não cobriam completamente os dentes, que brilhavam na bocca
livida. As palpebras, mal cerradas, deixavam ver o globo vitreo dos
olhos. Mas o doutor Salvan dissera a verdade: apesar dos signaes do
soffrimento que deviam tornar o seu aspecto sinistro, denunciava o
socego, a tranquilidade de redempção emfim alcançada. O padre, chamado á
ultima hora, e que resava a um canto do quarto, tinha já collocado no
peito do morto um crucifixo sobre o qual se cruzavam as suas mãos que
pareciam de cera, e cujos dedos os espasmos do ultimo ataque tinham como
que torcido.

Os cabellos raros e a barba toda branca foram penteados. O jaquetão
de cachemira preta estava abotoado até ao pescoço, e tinham-lho deitado
sobre as pernas, sem duvida para encobrir a deformação dos pés que as
contracções deviam ter produzido. Valentina percebeu, pela violenta
pressão dos dedos do marido sobre a sua mão, que os pensamentos que o
triste espectaculo lhe suggeria eram muito dolorosos. Levantou-se e
conduziu-o á bibliotheca, onde a senhora de Chalinhy, de 1875, sorria na
sua moldura oval, e, chegados ali, disse-lhe grave, acariciadora e
persuasiva.

--«Volta já para a rua Barbet-de-Jouy, Norberto, peço-t'o. Ficarei aqui
mais algum tempo para cumprir um dever; o teu cifra-se apenas em o
coração lhes fazer presentemente inteira justiça...» E com a mão
indicou-lhe primeiro o retrato da mãe e em seguida a porta do quarto
onde repousava o morto. «Entra no meu gabinete e procura na gaveta da
secretaria um cofre de couro; abre-o» e desligou d'um bracelete aonde
estavam presos alguns berloques, uma pequenina chave d'ouro, que lhe
entregou. «Ali encontrarás um sobrescripto que tem por fóra as palavras:
«Para meu marido, depois d'eu morrer», escriptas pela minha mão. Toma
conhecimento do que contem e se desejares voltar aqui, iremos depois
juntos... _É ella que assim o quer_...»

Achava-se tão esgotado por uma série de acontecimentos qual d'elles mais
violento, que obedeceu á esposa, como teria obedecido vinte e cinco
annos antes a uma supplica d'aquella cuja effigie inesperadamente
apparecida n'aquelle mesmo logar se lhe tinha afigurado como mais
compromettidor indicio. Recebeu a chave e deixou-se conduzir por
Valentina até á porta, e meia hora depois, tendo encontrado o cofre de
couro negro de que lhe falou, e dentro do cofre o sobrescripto com a
epigraphe indicada, eis as paginas que começou a ler. Eram todas
escriptas por Valentina e datadas de 3 de setembro de 1897, dois dias
precisamente antes da mãe fallecer. As palavras traçadas no sobrescripto
estavam reproduzidas no principio d'aquellas paginas, cuja primeira
linha, por uma recordação do terno appello feito pela senhora de
Chalinhy a Valentina, o fez logo chorar. Tinha por ventura culpa de não
ter conhecido, então o que era esta mulher! Porque lh'o não teria sua
mãe revelado? Ai! As mesmas reservas da sua vida de casado, conheceu
n'outro tempo, no seio da familia, como filho.

Tinha a pesarem sobre elle as consequencias sombrias e crueis do seu sêr
concebido na mentira e temor. Trazendo tambem o mesmo peso sobre o
coração, como teria sua mãe podido viver com elle n'essa communhão que
suppõe a inteira sinceridade? É a inevitavel expiação das felicidades
prohibidas que pela necessidade do mysterio, não permittem a uma mulher
dizer ao seu proprio filho qual o sangue que lhe corre nas veias e o
nome d'aquelle que deveria chamar seu pae!


«_Para meu marido, depois de eu morrer.»_

                                                   «3 de setembro de 1867

«A mamã esteve hontem tão mal, que o medico julgou que não vivesse
24 horas. Pediu-me que não a abandonasse, ella que de ordinario deseja
sempre que me vá deitar. A enfermeira devia substituir-me depois da meia
noute. Comprehendi logo, pela sua terna insistencia que tinha uma ultima
recomendação a fazer-me, á qual ligava uma extraordinaria importancia.
Não podia suspeitar quanto essa entrevista teria de solemne e que
confidencia me ia ser feita, a qual quero transcrever aqui, n'este
momento em que todas as suas palavras estão ainda tão precisas na minha
memoria. Quer ella, se eu morrer antes de uma certa pessoa, que meu
marido seja o depositario d'este segredo, que não teve força para lhe
revelar. Assim o quer para que um certo dever seja cumprido, dever que
me confiou. Satisfarei os seus desejos deixando depois de mim, se for
necessario, este testemunho. É precizo que eu reproduza as suas proprias
palavras e que não misture com ellas as minhas emoções. Não poderia
expôr d'outra fórma o seu pensamento. Depois d'essa conversa estou
exhausta, estonteada. Só a vejo a ella e só a ella ouço.

«Reinava em volta do palacio um profundo silencio.

«Nesta epocha do anno poucas carruagens transitam pelas ruas Varenne e
Barbet-de-Jouy. A palha que se fez espalhar pelas duas ruas
amorteciam-lhes o ruido.

«Instalei-me á cabeceira da cama, com a minha costura, mas não consegui
fazer nada.

«Pousava-a constantemente para olhar o pobre rosto d'essa mulher,
que era ainda tão bella quando casei, e onde vejo já pronuncios da morte
proxima.

«Fechou os olhos e parecia dormir.

«Rezava mentalmente, pedindo a Deus coragem para me fallar, e quando
levantou as palpebras, vi-lhe no olhar um tão intenso ardôr que advinhei
logo o seu desejo e antecipando-me, para attenuar um pouco o grande
esforço que faria em articular as palavras, disse-lhe:

--«Está muito afflicta, mamã?... Quer alguma coisa de mim? Estou prompta
para lhe fazer o que desejar.»

--«Quero,» respondeu ella. A sua voz tão fraca n'estes ultimos dias
tornou-se forte. Senti que ia gastar os ultimos lampejos da vida. «Como
isto é penoso», acrescentou ainda.

«A sua enorme perturbação assustou-me tanto que lhe disse:--«querida
mamã está muito incommodada. Se tem qualquer pedido a fazer-me sabe que
estou sempre prompta. Espere para amanhã, para depois ou para d'aqui a
oito dias... Terá então já recuperado as forças...»

--«Não,» respondeu, mostrando-me o rosto terrozo, amarellado, «terei ja
morrido. É precizo que te falle agora, Valentina,» continuou, com a sua
voz d'outro tempo, readquirida por um milagre de energia, «repito-te,
vou morrer. Sei-o perfeitamente. Disse-mo o medico quando lhe declarei
que tinha um assumpto extremamente importante a regular. Esse assumpto
consiste em confiar á tua honra um segredo que não deve ser conhecido
de ninguem, excepto de Norberto, em duas circumstancias que
precisarei. Consiste ainda em te encarregar d'uma missão muito delicada,
muito penosa. Se vires que não podes cumpril-a, peço-te que m'o digas
francamente.»

--«Guardarei o segredo, mamã, e se a missão não é impossivel,
cumpri-la-hei. Prometto-lho.»

--«Obrigada,» disse ella, «mas para ter coragem de te fallar, preciso
orar primeiro.»

«Fechou os olhos. Na sua triste figura, tão doente, vi uma expressão de
intensa dôr.

«Os labios descórados recitavam muito baixo uma oração que eu não ouvia.
Tinha medo...

«Quando a oração mental terminou, disse-me:

«Apaga a luz. Não poderei fallar se me vires e eu te vir a ti.»
Obedeci-lhe:

«Vem para o pé de mim», repetiu ella, «muito proxima, e dá-me a tua
mão.» Obedeci-lhe ainda.

«Os seus dedos ardiam em febre e na obscuridade em que nos achavamos, o
som d'essa voz que parecia vir da outra vida,--e não era a confissão
d'uma alma que não pertencia já a este mundo?...--nunca me esquecerá.

--«Minha filha», começou ella, «o que tenho a referir-te deve ser dito
sem interrupção.

«Amei um homem que não era meu marido, que vive ainda e é o pae de
Norberto. Chama-se, direi antes, _chamava-se_ Filippe de Raynevilhe...

«Estando prestes a entregar a alma ao creador e a ser julgada por uma
falta que bastante expiei já e que expio ainda n'este momento, não
tentarei desculpar-me.

«Conheci Filippe antes do meu casamento; era filho d'um dos visinhos do
solar de meus paes, na provincia. Amámo-nos, sem reserva, com a
esperança, com a certeza de um futuro enlace, que um inesperado
acontecimento, uma mortal inimisade entre seu pae e o meu, a proposito
d'uma questão d'interesse, tornára impossivel.

«As duas familias sabiam dos nossos sentimentos.

«A sua obrigou-o a fazer uma viagem, e a minha occultou-me que havia
sido violentado a partir.

«Consenti em casar com o marquez de Chalinhy.

«Repito-te que não procuro justificar-me.

«Precedi mal desposando alguem que não amava, tendo a imagem d'outro no
coração. Mal fiz ainda em não occultar de meu marido a minha
indifferença para com elle. Peor fiz, porém, affastando-o pela minha
frieza, em tomar como pretexto a sua infidelidade para justificar a minha.

«Teve uma amante. Soube-o. Disse comigo que a sua falta de fé conjugal
me tornava livre.

«Encontrei Filippe no mundo, a nossa antiga paixão reviveu; lancei-me
nos seus braços e fui mãe.»

«Ficou como morta. Apertei-lhe a mão com toda a piedade que, perante a
confissão d'uma tragedia tão simples mas tão pungente na sua expressão
muito humana, me enchia o coração. Com a outra mão, a que conservava
livre, acariciava-lhe as faces, como faço algumas vezes, quando soffre
mais e não supporta sequer que lhe toquem. Os meus dedos molharam-se com
as suas lagrimas que lhe corriam dos olhos, silenciosamente, promovidas
pelas caricias, que n'essa noite lhe prodigalizei.

«Para me provar quanto taes caricias, depois do que acabava de me
confiar, lhe eram agradaveis e doces, agarrou-me na mão livre e levou-a
aos labios. Nunca chorei tanto como n'esse momento.

--«O peor está ainda para dizer», repetiu depois: «quando Norberto
nasceu juro-te que não receberia o nome de Chalinhy se não tivesse tido
outro filho. Não tinha tido força para me conservar uma mulher honesta,
por causa d'esse filho, e não tive tambem coragem para o abandonar.
Illudi a minha consciencia justificando-me com tantos exemplos de eguaes
compromissos que via em torno de mim, e tambem porque a grande fortuna
era minha. Estes miseraveis sophismas foram bem castigados. Se tivesse
fugido com Filippe nada do que aconteceu, e que é medonho, teria
acontecido. Era muito rica, bem o sabes. Vivia no mesmo meio em que tu
vives hoje, sem ter nunca que me preoccupar com as questões de ordem
material. Reynevilhe herdára dos seus uma fortuna muito abalada. Para
viver na sociedade e fazer figura n'ella gastava mais do que os
rendimentos. A infelicidade, soube-o depois, perseguia-o tambem. A
fallencia d'um banco, em que imprudentemente collocára uma parte dos
fundos, acabou de o arruinar. Se ao menos me tivesse dito alguma
coisa!... Mas eu ignorava tudo! Vendo-se na necessidade de mudar de
vida--o que segundo elle imaginava, o desgraçado, equivalia a
perder-me--commetteu um crime. Tinha um tio muito velho e muito rico,
sem filhos. Nenhum dos primos necessitava verdadeiramente da herança.

«O tio falleceu de um ataque, na epocha em que Filippe se achava mais
atormentado, e, tendo sido chamado para junto d'elle, não resistiu á
tentação, destruiu o testamento e fabricou um em que era declarado seu
unico herdeiro... Uma manhã, ao despertar, Chalinhy entrou no meu quarto
e mostrou-me um jornal onde se relatava a descoberta da falsificação e a
prisão de Reynevilhe... Se não enlouqueci repentinamente, foi porque o
olhar de meu marido me fez comprehender que suspeitava da nossa ligação.
Pensei em Norberto, e tive força para me calar...»

--«Ah! pobre mãe!» exclamei, «tem razão em dizer que tudo expiou. Pagou
tudo com a dedicação por seu filho n'esse momento. Tem porventura a
culpa de se ter enganado a respeito do senhor de Reynevilhe e d'elle ser
um miseravel?»

--«Não lhe chames miseravel, porque o não é», interrompeu logo. Quando
classifiquei d'uma maneira tão dura o amante falsario, a minha
imaginação ia alem da sua confidencia. Reportava-se á historia sinistra
d'uma _chantage_. Pela energia com que a sua mão se crispou sobre o meu
braço, reconheci que os seus sentimentos pelo pae de Norberto não eram
de odio e de desprezo. Continuei a escutal-a:

--«Tudo o que Filippe havia feito, fel-o simplesmente porque me amava.
Posso fazer a mim mesma a justiça de que tive a intuição d'isso, desde o
primeiro momento. A certeza d'um horrivel equivoco é que evitou que
succumbisse logo, ali mesmo.

«O meu instincto de mulher não me enganou... Mas», e o tom da sua
voz denunciou um intimo desespero, «como posso provar o que sei tão bem!
Julgam-se os homens pelos seus actos, e este é dos que se não perdoam.
Uns matam porque amam, encontram ainda quem os proteja, quem os lamente,
quem os estime. Para um falsario é a deshonra, a vergonha eterna,
inexplicavel!... E portanto!... Escuta, Valentina, conheces-me. Tão
verdade como eu vou comparecer deante de Deus, nunca mais na minha vida
commetti uma segunda falta, nunca mais. Observaste a minha vida. Vaes
presencear a minha morte. O juramento d'uma mulher no estado em que me
encontro, poderia ser duvidoso?... Pois bem! Juro-te que Filippe não foi
mais culpado do que o que mata porque ama. Não teve senão o amor a
compellil-o ao crime, repito-te, sob juramento, só o amor. A sociedade
tinha o direito de o julgar pela maneira porque o fez castigar. Os seus
tinham o direito de o desprezar e os amigos de não mais o conhecer. Elle
mesmo tinha o direito de se condemnar, como fez tambem... Mas eu, por
causa de quem commetteu o crime, para me não deixar, para viver a minha
vida, porque me amava, emfim, era a unica que tinha o dever de o não
despresar e não o despresei...»

--«Vive ainda?» perguntei-lhe quando terminou. «Sabe que vive e aonde
vive?»

«Posto que não comprehendesse ainda muito bem o fim a que tendia esta
suprema confidencia, percebia comtudo que queria associar-me d'alguma
maneira á sua obra de piedade. Sem duvida tinha continuado a manter
uma correspondencia activa com esse infeliz, retirado longe de Paris, e
tendo-lhe occultado o seu estado, temia que uma carta d'elle, recebida
depois da sua morte, fosse parar ás mãos de Norberto. Ia pedir-me que
fosse eu a mensageira de tão triste situação? Estava já resolvida a
prometter-lhe que contasse comigo. Não presenti senão uma parte da sua
vontade. Podia lá adivinhar a que excesso de dedicação a conduzira a sua
piedade por esse criminoso por amor, do qual era a unica consolação, no
seu tristissimo estado physico!

«Tinha-a muitas vezes ouvido dizer que o mundo está cheio de romances
occultos, mais phantasticos na sua realidade palpitante do que todas as
invenções dos livros.

«Mas que uma aventura como essa fosse possivel--que uma mulher da nossa
sociedade tivesse levado a exaltação do seu sentimento até consagrar a
melhor parte da sua vida a um amante cahido--(e em que desastrosa
queda!)--que encontrasse meio de lhe transmittir a esmola da sua
ternura, por cartas, que o impediram de se matar,--que tivesse
continuado a escrever-lhe durante o tempo do cumprimento da pena--que
tornasse a ver esse amante depois de cumprida a mesma pena; que tivesse
podido não uma vez, mas cem, mil vezes, escapar a todas as exigencias do
seu meio para ir a uma casa perdida ao fundo de um arrabalde, passar uma
hora com elle, reconfortal-o na sua angustia, auxilial-o com os seus
conselhos na sua tortura moral--que esse homem culpavel d'um tão
grande crime, não tivesse mais sob esta influencia, nutrido senão um
unico pensamento, mostrar-se digno d'uma tal amiga, resgatar um instante
de aberração por uma vida inteira consagrada a boas obras--e que as
relações d'esses dois seres se prolongaram assim, de mez para mez,
durante annos, sob a ameaça d'um perigo continuo, n'este Paris do fim de
seculo 19, tão positivo, tão brutal--não, não teria nunca imaginado um
similhante romance e menos ainda que a sua heroina fosse a mãe de meu
marido, esta marqueza de Chalinhy, que tanto me seduzio quando lhe fui
apresentada, por a sua doçura, e comtudo ouço bramir na sua voz de
moribunda todo este martyrio intimo dos seus tragicos amores.

--«... Quando se descobriu tudo», disse ainda, «uma unica idéa o
preocupou: fazer-me saber o motivo porque tinha cedido a essa
allucinação, obter o meu perdão e morrer. Tenho as suas cartas.
Lelal-as-has e saberás então quanto soffri. Ah! o que eu soffri?...
Indicava-me um meio de lhe responder. Obtive d'elle que vivesse. Obtive
que se deixasse julgar e condemnar quando se podia eximir a tudo
suicidando-se. Mas eu não o queria. Amava e tinha fé. Tenho sempre tido
fé, ainda mesmo quando me abandonava a esta felicidade prohibida... Tive
logo a evidencia de que esta horrivel prova era o castigo dos dois, que
Deus não nos puniria depois, se acceitassemos o castigo d'esta cruz. E
que pesada que ella tem sido, para elle até agora, e para mim que devia
escutar os commentarios do mundo a seu respeito, sem ter a
liberdade de o defender, nem mesmo de o chorar! Abafou-se o mais
possivel o crime, por causa da familia, mas não tanto que a noticia do
julgamento não chegasse ao dominio publico... E nos annos seguintes,
emquanto cumpria a pena eu vivia no luxo, na honestidade e não abraçava
nunca o seu filho sem me lembrar: «o pae está na prisão...»; sem o ver,
a elle, na sua cella, que muito bem conhecia pela descripção feita nas
suas cartas. Teve sempre meio de m'as enviar... E mais tarde, quando foi
solto, e que nos tornámos a encontrar em face um do outro, pela primeira
vez depois do funesto acontecimento!... Não padecerei mais ámanhã quando
morrer... Emquanto estava na prisão, uma ironia da sorte quiz que
herdasse, em consequencia da morte subita de um primo que falleceu _sem
testamento_, uma nova fortuna. Foi então que me foi permittido julgal-o
completamente, vendo-o, livre, retirar-se n'um bairro pobre de Paris,
com um nome falso, e começar ahi uma existencia de caridade, que não
teve durante annos outro cambiante, senão procurar miserias a soccorrer,
e as minhas visitas... Até que fiquei detida n'este quarto pela doença
não se passou uma unica semana, quando estava em Paris, que não fosse
vêl-o duas e tres vezes. Viuva, estas visitas tornavam-se-me faceis; mas
n'outros tempos eram em extremo perigosas. Tinha receio principalmente
por causa de Norberto. O que então senti pouco importa. O que importa é
que vou morrer e desespera-me o que elle soffrerá depois da minha
morte...

«Eis o que te desejava pedir, Valentina, que o vás ver quando eu deixar
de existir, para lhe entregares as cartas, que não tive coragem de
destruir, e que te esforces para lhe tornar o golpe o menos doloroso
possivel. É actualmente um velho e um doente. Teve um ataque de
paralisia ha mais d'um anno. Conhece-te. Sabe por mim o que és, e o que
valem os primores do teu coração, pelo qual tenho tanta estima. É esta a
maior prova que te posso dar d'isso!... A tua presença será o unico
lenitivo que poderá receber. E depois, se tenho sido boa para ti, se
conservares de mim alguma recordação, voltarás lá algumas vezes para o
ajudares a esperar o momento de nos juntarmos...»

--«Prometto que farei o que me pedes mamã,» respondi com os olhos
inundados de lagrimas. Só com esta recordação as lagrimas caem ainda
sobre este papel, mas não é de mim que se trata. É preciso que refira
ainda estas outras phrases, que me disse tambem:

--«Norberto deve ignorar tudo, sempre. Mas se a fatalidade quizer que te
achasses muito doente e em perigo de desappareceres do mundo antes de
seu pae fallecer, peço-te que falles. Falla tambem se Filippe reclamar o
filho á hora da morte... Se não absoluto silencio!».

--«Transcrevi esta conversa sem nada omittir, immediatamente, para que
possa, caso qualquer das duas circumstancias se produza, obedecer
inteiramente a essa pobre senhora. Depois será á sua supplica e não á
minha que deve obedecer. Que a ouça como eu a ouvi! E que me
acredite piamente dizendo-lhe que tenho por ella, n'este momento em
que os nossos corações acabaram de bater tão proximos um do outro,
durante essa hora de agonia moral, tanta veneração como piedade!

«Disse-me ainda que o sr. Reynevilhe mora actualmente na rua Lacépède
n.º 11, com o nome de _Dumont_.

                                                             _Valentina._»




X

Epilogo


Eram quatro horas da tarde quando o filho dos dois heroes d'este
doloroso e mysterioso drama d'amor começou a ler as paginas em que a
confissão da morta se achava reproduzida com uma emoção que a escripta e
a redacção denunciavam. Ha muito que era já noite e ainda tinha nas mãos
aquellas folhas, cujas phrases não podia deixar de repetir, uma por uma.
Era como se as palavras pronunciadas nas trevas do leito da agonia,
viessem, com effeito, do tumulo, d'ali, do Père Lachaise, onde tinha
acompanhado sua mãe poucos dias depois que ella confiou os amargos
segredos da sua vida, n'esta confissão suprema.

A marqueza de Chalinhy não quiz que a depositassem no jazigo de familia.
Fez construir no ultimo anno da sua vida um tumulo especial, pedindo que
na frontaria da pequena capella fosse gravado um unico nome: _Armanda_.
O filho conformou-se com esta disposição testamentaria da mãe e viu
n'ella um d'esses caprichos de hypocondria que as pessoas que padecem de
doenças do figado, que tão profundamente alteram o caracter, teem muitas
vezes. Comprehendia agora o motivo occulto d'um tal desejo. E
recordava-se tambem de que ao lado do mausoléo da sua mãe, e quasi igual
a elle, existia um outro completamente novo e que não tinha ainda nenhum
nome gravado na frontaria. Admirára effectivamente uma tal similhança;
mas disseram-lhe que o comprador d'aquelle terreno fizera copiar o
monumento visinho por lhe ter admirado a simplicidade elegante. Esse
comprador, adivinhava-o: era Reynevilhe. O amigo e a amiga quizeram
repousar em mausoléos parecidos já que não podiam reunir-se no mesmo
tumulo. Quem reconheceria o antigo homem escravo da elegante moda
parisiense, o condemnado por falsificador, debaixo d'este appellido
anonymo, este nome quasi impessoal de Dumont? Quando o filho fosse, de
futuro, lançar flôres no tumulo da mãe, como fizera ainda no principio
do mez de novembro, o tumulo do seu verdadeiro pae elevar-se-hia
ali proximo implorando um olhar, um pensamento, um perdão.
Recusar-lh'o-ia?... Não. A transformação que Valentina lhe tinha
annunciado estava-se já operando n'elle. Era-lhe impossivel condemnar
estes dois seres, dos quaes descendia. A sua falta foi tão tragicamente
perseguida pela justiça vingadora, inherente á felicidade criminosa,
que, mesmo no coração d'um extranho, a piedade teria sobrelevado a mais
severa austeridade. Como não havia, pois, um filho de sentir
superabundar nelle essa piedade, jorrando em lagrimas sobre o papel onde
se descobriam ainda os vestigios d'outras lagrimas? E esses vestigios
recordavam ao marido de Valentina a ternura feminina que acabara de
purificar uma aventura culposa no principio, ainda que com muitas
attenuantes,--criminosa depois pela allucinação d'um dos seus
auctores,--ennobrecida mais tarde, mesmo na propria falta, pela
fidelidade e pela dôr. Chegou a mesma aventura ao seu conhecimento
absolutamente purificada por sua mulher. Era para junto d'ella, pois,
que n'aquelle momento voava a sua alma dolorida, porque só por
intermedio d'ella podera reconciliar-se inteiramente com a morta e com o
morto, de cujo adulterio o nascimento o havia tornado cumplice, mau
grado seu, unicamente pelo nome. Fizeram ainda peor! Transmittiram-lhe
no intimo do ser as violentas contradições dos seus actos e das suas
sensibilidades.

O que possuia de nobre e altivo, a instinctiva nobreza que o fizera
soffrer sempre tanto com a mentira da sua traição a Valentina, devia-o a
elles. O extranho romanesco da sua ligação mostrava evidentemente que
tinham sido d'aquelles amantes que respeitam pelo menos os seus corações
e que procediam movidos pela paixão e não pela intriga e pela
galanteria. A fraqueza lamentavel da sua vontade em presença de certas
tentações, provinha ainda d'elles. O peccado do seu amor
transmittiu-se-lhe no sangue e tambem nas commoções do perigo que tinham
corrido para se darem um ao outro. O que tinha de ferozmente timido
derivava d'elles, assim como a desconfiança da doentia susceptibilidade,
o obstaculo levantado ha alguns annos entre si e a esposa, exactamente
como entre elle e sua mãe. Para que a moribunda o não tomasse por
confidente, n'aquella hora suprema, era preciso que tivesse deixado
augmentar muito entre os dois a profundeza do silencio que só
catastrophes como aquella que o feria conseguem despedaçar.

Eis as ideias suggeridas por essas folhas de papel, já um pouco
amarellecidas, a esse homem, subitamente collocado em presença da mais
inesperada, da mais estonteante das revelações--idéas ainda emmaranhadas
e indeterminadas, confusas e incertas. Não se desenhavam na sua reflexão
em tão vivos contornos. Mas no emtanto apossavam-se já d'elle,
condensavam-se levando-o ao reconhecimento apaixonado por Valentina, a
uma necessidade de lhe pagar em ternura, em culto, em veneração, tudo o
que ella tinha feito primeiro pela moribunda, em seguida pelo solitario
da rua Lacépède, e por ultimo por elle proprio! Os acontecimentos
succediam-se depressa, fornecendo-lhe occasião de provar esta gratidão,
e, como acontece sempre quando se está collocado em certas situações
d'uma ambiguidade insoluvel, a volta ao respeito do seu lar não podia
fazer-se senão á custa de quem lh'o tinha feito profanar.

Atravez d'estes pensamentos e absorvido como estava pela evocação de sua
mãe, vivendo de novo pelas palavras da sua agonia, esquecia onde estava
e que antes do jantar, sua mulher recebia habitualmente no pequeno salão
em que se encontrava. Os creados entravam para executar o seu serviço
habitual, accender as luzes, correr os reposteiros e preparar o chá.
Norberto não reparava, deveria prever que Joanna de Node, depois da
fórma porque o tinha deixado essa manhã, viria certamente saber noticias
á tarde.

As recepções intimas das 6 horas da tarde, dadas por Valentina, eram um
magnifico pretexto. Mas Norberto esqueceu completamente a existencia da
amante. Certos accidentes do destino assemelham-se verdadeiramente aos
grandes cataclysmos, ao sahir dos quaes--um incendio como o do Bazar de
Caridade, um tremor de terra como o da Martinica--o homem que conseguiu
escapar se transformou n'algumas horas n'um outro individuo. O abalo ao
mesmo tempo nervoso e sentimental foi demasiado forte. Uma testemunha
d'um desastre quasi perturbador da razão, não poderá readquirir mais nem
as alegrias, nem as dores d'outro tempo, nem esquecer nunca a commoção
soffrida.

Se tinha apenas 25 annos esta manhã, no momento actual tem sessenta, tem
cem. Mofava de si mesmo e da vida, e ella lacerou-o na fibra mais
intima. A sua indifferença acabou da mesma fórma que a sua jovialidade.
Uma outra não se conhecia, nem ao seu proprio coração. Ia em
procura de emoções obscuras atravez de experiencias nas quaes não
chegava a conhecer o verdadeiro gozo.

Todas essas recordações se apagaram d'um golpe. Aniquilaram-se
simplesmente ao contacto d'uma impressão tão forte, tão mordente que não
ha mais prazer em torno d'ella. Este ultimo caso era o que se dava com
Norberto de Chalinhy. A sua intriga com Joanna, na qual os sentidos
tiveram a parte principal, não podia interessal-o mais, senão como um
remorso, depois das horas que acabava de passar. Não se havia mesmo
recordado de tal intriga durante essa tarde, senão para se censurar
amargamente de ter desconhecido por tanto tempo Valentina. Foi por isso
que com uma estranha surpresa misturada de tortura e de irritação, viu
entrar a amante no pequeno gabinete da esposa, pela fórma porque entrou,
sem se fazer annunciar e quando tinha ainda na mão as folhas de papel
depositarias do terrivel segredo. Joanna de Node ia em demanda de
novidades, depois de ter passado toda a tarde em passeio e em visitas,
sempre com a mesma idéa fixa: Chalinhy está na casa da rua Lacépède... O
que terá acontecido?... As mais variadas hypotheses tinham umas após
outras surgido ao seu espirito desde o homicidio que de novo reapparecia
para logo ser repellido, como insupportavel para a sua consciencia, até
á, muito mais provavel e em parte conforme com os factos, d'um inquerito
junto dos lojistas visinhos. Conhecia sufficientemente Norberto, para
não duvidar de que, tendo-lhe promettido nada dizer a Valentina,
deixasse de cumprir a sua palavra.

O que arriscava então em ir ao palacio Chalinhy? Dirigiu-se pois, lá.
Disseram-lhe os creados que a senhora marqueza ainda não havia
regressado, mas que o senhor marquez estava em casa e ella subiu como
tantas outras vezes, com o pretexto de esperar pela prima, mas na
realidade para ter com Norberto alguns momentos de conversa, a fim de o
interrogar.

Viu logo ao primeiro golpe de vista, que continuava a estar muito
perturbado. Por outro lado, aquella secretaria com a gaveta meia aberta,
o cofre de couro, que sabia muito bem pertencer a sua prima, aberto
tambem, a carta cuja lettra não conhecia, porque Norberto a tapou logo
com as mãos; o seu proprio gesto e sobresalto de surpresa que nem mesmo
dissimulou--estes diversos signaes condiziam perfeitamente com o estado
de violencia e de desconfiança em que ella tinha deixado o marido cioso.
Acreditou que, tendo abortado a investigação da rua Lacépède, em volta
da casa suspeita, tomou o partido de forçar o esconderijo onde Valentina
encerrava a correspondencia intima e que estava em via de encontrar ali
a prova em presença da qual a duvida cessaria completamente. O seu
apaixonado desejo de que a rival feliz ha tantos annos, ficasse emfim
perdida para sempre, brilhou na ancia com que a invejosa, apenas entrou
no gabinete, interrogou o amante:

--«Não podeste saber nada lá em baixo?... De quem é essa carta?... de
Valentina...»

--«Não prosigas, Joanna», interrompeu levantando-se e a sua mão
continuava pousada sobre a carta, como para a defender. «Não posso
consentir que me falles de Valentina... Enganaste-te... continuou com
uma firmeza imperativa e que não admittia replicas. «Sim» insistiu ainda
«enganaste-te no que me disseste e escreveste a seu respeito...
Procedeste de boa fé e não te censuro por isso; mas peço-te que nunca
mais entre nós seja feita a mais leve allusão a factos de que nem sequer
me devo recordar, para continuar a prezar-me...»

Joanna de Node ouviu esta declaração, para ella tão completamente
inexperada, com uma estupefacção que a paralisou durante um minuto. Lia
na physionomia d'este homem, que sempre conhecera tão hesitante, tão
complexo, uma resolução inabalavel e viva!

Porque processo a visitante do pavilhão da rua Lacépède, havia
transformado esta vontade habitualmente tão vacillante e agora tão
firme? Joanna não possuia o menor dado que a habilitasse a responder a
esta pergunta. Estava, por outro lado firmemente convencida da
culpabilidade de sua prima para poder suppôr que estes processos
tivessem sido leaes e sinceros.

A uma amiga que lhe pedisse conselho em igual circumstancia, teria sem
duvida, indicado como unico caminho a seguir, uma apparente
condescendencia á illusão d'um marido, tão complascentemente enganado
contra toda a evidencia, mas o odio á esposa triumphante foi n'este
momento mais forte no espirito da amante do que o genio da astucia,
e, com um tom de maldosa ironia, retrucou:

--«Felicito-me por não duvidares da minha boa fé. Muito obrigada...

O que escrevi e o que disse, para fallar como tu, escrevi-o e disse-o
para quem? Para ti...

Não tens em consideração que depois d'isso ficaste n'um tal estado que
me fazias medo. Não vim aqui, esta tarde, senão por esse motivo, pois
estava muitissimo inquieta, temendo qualquer violencia da tua parte. Se
Valentina foi assás habil para conseguir o que eu não consegui, isto é,
para te acalmar, tanto melhor para ella... Mas, lembra-te, bem que no
dia em que me quizeres tornar a fallar a seu respeito e das pretendidas
revelações que a tia ou alguma amiga lhe tivesse feito, não te deixarei
proseguir.

Continuarei a ser sempre sacrificada...»

Norberto fitou-a sem lhe responder. Acabava de communicar com uma alma
magnifica n'uma dessas crises em que uma dôr violenta como que nos
transforma os sentidos, para os quaes toda a sinceridade e toda a
mentira são facilmente perceptiveis. Reconhecia agora, com uma espantosa
evidencia, o fundo do coração de Joanna:--a paixão d'essa mulher por
elle foi sempre alimentada só pelo seu odio por Valentina! A sua longa
fraqueza inhibiam-no de fazer exprobrações que, partindo d'elle, tinham
tanto de ridiculas como de odiosas. Sabendo, além d'isso, o que agora
sabia, nada constituia para elle uma tão grande profanação, contra a
qual toda a sua honra protestava, como ouvir a amante proferir o
nome d'essa mulher admiravel. Resignou-se a ficar calado, e para mostrar
melhor o seu firme proposito de terminar radicalmente uma explicação
insustentavel, começou a pôr tudo em ordem na secretaria, mettendo as
folhas da «Declaração», no sobrescripto, o sobrescripto no cofre, e como
fechasse o cofre com a pequena chave d'ouro, Joanna que vira durante
muitos annos esse pequeno broloque no bracelete de Valentina, começou, a
rir com aquelle sorriso insolente que já duas vezes empregára, tendo-se
d'ambas ellas Norberto revoltado com o ultrage. D'esta vez ainda
estremeceu e as mãos tremeram-lhe. Mas nem uma unica palavra escapou dos
seus labios á qual Joanna poderia retorquir com alguma nova insinuação.

Teria ella, se esta entrevista se prolongasse, tido a audacia de
afrontar a colera reprimida que devorava o amante?

A existencia d'essa chave nas mãos do marido que deixára loucamente
desconfiado, e que encontrava tão estranhamente conformado depois dos
indicios altamente compromettedores, era a prova, para ella, de que uma
scena qualquer se déra entre os esposos, e que, apertada por Norberto,
Valentina empregou o derradeiro artificio das mulheres levadas ao ultimo
extremo: exigir uma inquirição, reclamar que os seus papeis intimos
sejam vistos na sua ausencia. Teem antecipadamente tudo preparado para
que a busca dê em resultado a completa cegueira do accusador. Era assim
que, julgando a prima por si, Joanna de Node interpretava um
reviramento, tão extraordinario no qual não acreditou nos primeiros
momentos, e em que, agora mesmo, só com difficuldade acreditava. Iria
formular esta nova accusação e provocar da parte d'este homem que,
resolvido a romper com ella, se constrangia para a não maltratar, uma
explosão de revolta e de desprezo? A subita chegada da rival, da propria
Valentina evitou-lhe essa má acção.

Inquieta por causa do marido que sabia achar-se em disposição de ler a
confissão da morta, e fatigada por ter cumprido, na rua Lacépède, o
funebre dever, a nobre mulher sentiu uma intensa dôr, quando soube que
Joanna a esperava.--Recordou-se de que, durante horas, depois das
revelações da tia Nerestaing, se havia debatido contra provas
indiscutiveis. (O barão de Node tinha communicado á velha fidalga as
informações colhidas por uma agencia, precisando o nome de um hotel de
provincia onde os dois amantes passaram tres dias e a data. Essa data
coincidia exactamente com uma ausencia simultanea feita por Norberto e
Joanna.)

Depois o ruido das suas vozes, vindo do pequeno salão e a transformação
subita do avisado, dissiparam as ultimas duvidas da confiante Valentina.

Recordava-se tambem ainda de que na sua alma toda generosidade, toda
dedicação, a visão do filho tão terrivelmente, tão subitamente
esclarecido a respeito da mãe, a havia arrastado á piedade.

A mordedura do ciume fôra tão aguda que hesitou em entrar na casa aonde
se achavam os dois cumplices. A sua emoção foi tal que teve de se
apoiar durante um momento contra a parede da casa que precedia o pequeno
salão.

Foi então que, recordando-se da violencia com que a mão do marido
apertou a sua, primeiro ao descer da carruagem quando lhe foi annunciada
tão bruscamente a morte de Raynevilhe, depois junto da cadeira em que o
velho amigo da senhora de Chalinhy jazia immovel para sempre, sentiu de
novo quanto esse homem, fraco e apaixonado, necessitava d'ella. Ao mesmo
tempo, porque era mulher, sentiu um certo orgulho em lhe provar a
nobreza d'um coração, que elle desconhecia até ahi, mesmo em presença
d'aquella por causa da qual a havia esquecido. Disse, para comsigo
mesma: «Não devo saber d'essas vilanias; é a minha unica vingança...» E
teve energia bastante para transpôr a porta do pequeno salão e
cumprimentar Joanna da mesma maneira porque o teria feito oito dias
antes, quando de cousa alguma desconfiava ainda.

--«Vim mais tarde, é uma falta imperdoavel, da qual espero me
desculparás, Joanna... Devias ter preparado o chá. Fazes o obsequio de o
servir emquanto vou tirar o chapeu?»

--«Estou um pouco incommodada», respondeu a outra. «Vim unicamente saber
noticias tuas. Vou-me já embora. Esperam por mim na rua Barbet e é já
tarde.» E, fitando Norberto com um olhar d'um impudôr e d'uma dureza
singulares, accrescentou «Teu marido esperava por ti. Encontrei-o tão
impaciente para te ver, que evidentemente estou aqui demais...» Fixou a
prima d'uma maneira que deixava transparecer todo o seu antigo
odio, exasperado pelo choque inesperado e para ella inexplicavel, que
soffreu n'uma lucta em que tanto desejava triumphar.

Tinha ainda no olhar uma peor e mais insultante ironia, a d'uma mulher
que, mentalmente, diz para outra: «Podes ludibriar á vontade esse
imbecil, mas a mim não me enganas tu, minha menina...» Depois disse
alto: «Supponho que terão muitas cousas que dizer um ao outro. Deixo-os,
pois, na paz domestica!...»

E sahiu, depois de proferir estas palavras, que tinham, na sua bocca,
uma bem insolente significação. Norberto e Valentina sentiram egualmente
a crueldade d'uma tal ironia, n'aquella occasião. Ficaram alguns
instantes sem proferirem uma unica palavra, depois, ajoelhando-se em
frente da esposa e tomando-lhe as mãos entre as suas, o marido infiel
disse quasi em segredo:

--«Será bastante a minha vida inteira para tudo te pagar?...»

--«Pagar-me, o quê?» respondeu Valentina. «O ter-te amado sem t'o saber
mostrar? Conhecel-o agora. Não estou a lamentar-me.» Proseguiu depois,
obrigando Norberto a levantar-se, e appoiando a cabeça fatigada sobre o
hombro d'esse homem que sentia, emfim, pertencer-lhe:

--«Quem devemos lamentar são os que são amados sinceramente e que não
teem direito a sêl-o, os que não podem ser verdadeiros para comsigo
mesmo sem mentir aos outros, aquelles cujas felicidades podiam ter
evitado muitos soffrimentos a si e aos outros... Lastimal-os, tu?»
perguntou ella.

--«Lastimo-os, sim», respondeu Norberto, e na inexpremivel emoção de
tantas maguas e de tantos erros, esses dois entes trocaram o primeiro
beijo de amor que um e outro deram e receberam.

........................................................................
........................................................................

Esta historia d'um episodio romanesco, desenrolado no meio menos
romanesco que existe, a alta sociedade parisiense, não ficaria completa
se o chronista não transcrevesse aqui--sem commentarios, como
vulgarmente se diz em estylo de gazeta--o final d'um dialogo que
surprehendeu uma noite, no theatro, do fundo d'uma frisa, que
habitualmente frequentava, menos para gosar o entrecho das peças que se
representavam no palco (levava-se n'aquella noite um drama no qual se
fazia a apologia em regra da união livre!) do que para admirar aquella
ou aquellas que lhe era licito adivinhar no vasto salão.

Uma das interlocutoras era a senhora de Bonnivet, de que já fallámos e
Saveuse, tambem nosso conhecido, ignorando um e outro que fallavam
deante d'uma testemunha que conhecia o facto bem melhor do que elles
proprios; commentavam:

--«Sabe V. Ex.ª qual é a novidade mais palpitante?» dizia Saveuse, «a
ex-baroneza de Node desposou um americano extremamente rico, chamado
Harris, de New-York, o irmão do primeiro marido da princeza d'Ardêa.»

--«Era uma amiga» respondeu a senhora de Bonnivet. «Se fôr para os
Estados Unidos teremos uma mulher divorciada menos a receber e a sermos
recebidos por ella, conforme os dias. E que qualidade de pessoa é esse
tal Harris?»

--«Um homem encantador, um bonito rapaz e muito apaixonado por ella»,
respondeu Saveuse.

--«Ainda bem!» repetiu a senhora de Bonivet, «tinha todo o direito a
alguma felicidade desde que Chalinhy a deixou tão indignamente. Vamos
tornar a ver este triste personagem. Visto que Joanna vae deixar Paris,
Valentina com certeza lhe permitte que volte por cá. Depois de doze
mezes passados no campo e d'um filho! Acho tudo isto d'um ridiculo
espantoso, repugnante mesmo. Não haveria melhor maneira de fazer saber
ao mundo que se era enganada e que tudo se perdoou?»

--«Não sabe então ainda o melhor», insistiu Saveuse, «que não usam já ou
vão deixar de usar o appellido Chalinhy. Trabalham para restabelecer o
nome de Nerestaing...»

--«É por causa do Castello. Isso é muito _ridiculo_,» replicou ella rindo.

Ha ainda cousas tão profundas como as aguas tranquillas e como as bellas
almas silenciosas. É a ignorancia e a maledicencia das _amigas_ e sobre
tudo dos _amigos_.


FIM




LIVRARIA EDITORA GUIMARÃES & C.ª

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COLLECÇÃO HORAS DE LEITURA

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Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
http://gutenberg.org/license).


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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