Scenas do século 18 em Portugal

By Maria Amalia Vaz de Carvalho

The Project Gutenberg eBook of Scenas do século XVIII em Portugal, by
Vaz de Carvalho Maria Amalia

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Title: Scenas do século XVIII em Portugal

Author: Vaz de Carvalho Maria Amalia

Release Date: April 30, 2023 [eBook #70672]

Language: Portuguese

Produced by: The Online Distributed Proofreading Team at
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PORTUGAL ***





                    _MARIA AMALIA VAZ DE CARVALHO_

                                 Scenas
                            do seculo XVIII
                              em Portugal


                          PORTUGAL BRASIL Lᴰᴬ
                           SOCIEDADE EDITORA
                                _LISBOA_




                              DA AUTORA:


  _Primavera de mulher_ (poema), 1867.
  _Vozes do ermo_ (versos), 1876.
  _Serões no campo._
  _Mulheres e crianças_ (Notas sôbre educação), 1880-1887.
  _Contos e fantasias_, 1880.
  _Contos para os nossos filhos_, 8 edições.
  _Arabescos_, 1880.
  _Um conto_, 1885.
  _Cartas a Luísa_ (Moral, educação e costumes), 1886.
  _Alguns homens do meu tempo_ (Impressões literárias), 1889.
  _As crónicas de Valentina_, 1890.
  _Cartas a uma noiva._
  _Pelo mundo fora_, 1896.
  _Arte de viver na sociedade ou Manual da vida elegante_, 4 edições.
  _Vida do Duque de Palmela_, 3 vols., 1898-1903.
  _Em Portugal e no estrangeiro_ (Ensaios críticos), 1899.
  _Figuras de ontem e de hoje_, 1902.
  _Cérebros e corações_, 1903.
  _As nossas filhas_ (Cartas às mães), 2 edições, 1905-1906.
  _Ao correr do tempo_, 1906.
  _No meu cantinho_ (Homens. Factos. Idéas.), 1909.
  _Duqueza de Palmela_ (In memoriam), 1910.
  _Impressões de História_, 1911.
  _Cousas de agora_, 1913.
  _Páginas escolhidas_, 1920.




                      MARIA AMÁLIA VAZ DE CARVALHO


                         SCENAS DO SÉCULO XVIII
                              EM PORTUGAL


                   [Illustration: PER ORDEM PULGENS]


                                 LISBOA
                        PORTUGAL-BRASIL LIMITADA
                           SOCIEDADE EDITORA
                          58--RUA GARRETT--60

                             RIO DE JANEIRO
                      COMPANHIA EDITORA AMERICANA
                        LIVRARIA FRANCISCO ALVES


 Reservados todos os direitos de reprodução: em Portugal, conforme
 preceituam as disposições do _Código Civil Português_; no Brasil,
 nos termos do convénio de 9 de setembro de 1889 e lei n.ᵒ 2.577 de
 17 de janeiro de 1912; nos países convencionados, em harmonia com a
 Convenção de Berne, a que Portugal aderiu por decreto de 18 de março
 de 1911.


         Imprensa PORTUGAL-BRASIL--Rua da Alegria, 100--LISBOA




                         A MARQUESA DE ALORNA




                              CAPÍTULO I

 O nascimento de Leonor de Almeida.--Seu avô Pedro de Almeida nas
 guerras da sucessão de Espanha. O seu govêrno da Índia. Sucessos que
 o assinalaram.--O título de marquês de Alorna.--Sua avó a marquesa
 de Távora D. Leonor no terremoto. Versos que ela inspirou.--A
 marquesa de Távora D. Leonor na Índia.--Festas pomposas.--Tragédia
 de Corneille.--O teatro de Pangim.--Influências atávicas do carácter
 de Leonor de Almeida.--Influências directas.--O atentado contra
 D. José.--A prisão dos fidalgos.--O tribunal da inconfidência.--A
 sentença.--O cadafalso de Belém.--A morte da marquesa de Távora.--Com
 que altiva elegância ela sofre a execução.--A carnificina de 13 de
 Janeiro de 1759.--José Maria Távora.--Duelo de morte entre Pombal e
 a nobreza da côrte.--A política pombalina.--A ferocidade de todos os
 condutores de homens.--Como é que na bravura de carácter português
 conseguem destoar vigorosamente os tipos de fôrça.--Lógica medonha da
 situação.--A marquesa de Alorna na Junqueira.--A marquesa de Alorna e
 Leonor de Almeida em Chelas.


Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre, conhecida na literatura
portuguesa pelo seu título de marquesa de Alorna, nasceu em Lisboa aos
13 de Outubro de 1750.

Foi seu pai D. João de Almeida Portugal, segundo marquês de Alorna,
quarto conde de Assumar, veador da casa real, comendador da ordem de
Cristo, e capitão de cavalaria na côrte. Foi sua mãe D. Leonor de
Lorena, quarta filha dos terceiros marqueses de Távora. É das mais
ilustres a ascendência de D. Leonor. Mas não é sómente pelo sangue e
pela antiguidade que se recomenda a sua família. A futura marquesa de
Alorna tem de quem opulentamente herdar a beleza feminina, o carácter
viril e o extraordinário talento.

Sem nos perdermos nos meandros de uma remota e complicada genealogia,
e indicando, a quem se interessa por êsses estudos a notícia que
acompanha a edição completa das obras da marquesa, mandada fazer por
suas filhas, basta remontar à origem do título de Alorna, que data do
meado do século XVIII, para vermos como êle foi nobremente conquistado
pelo avô da nossa biografada.

D. Pedro de Almeida, que mais tarde foi marquês de Castelo Novo e
herdeiro de seu pai, teve o título de conde de Assumar (3.ᵒ), a comenda
de S. Cosme, de S. Damião e de Cristo e mais bens da corôa e de
ordem[1]. Distinguiu-se desde os vinte e dois anos como bravo militar e
como capitão inteligente e hábil.

Nas guerras da sucessão de Espanha D. Pedro militou sob as ordens do
marquês das Minas, e comandou um corpo à frente do qual se bateu como
um valente na batalha de Saragoça. Depois tão nobremente se portou na
de Vila Viçosa, que na participação escrita da batalha, o marechal
austríaco Staremberg cita-o como um dos cinco mestres de campo generais
que mais denodo e mais bravura manifestaram no combate.

Feitas as tréguas e assentes os preliminares do futuro tratado, foi a
D. Pedro que se confiou a custosa missão de reconduzir a Portugal, sob
a má vontade disfarçada ou clara dos espanhóis, o corpo de tropas que
havia tomado parte, debaixo do comando directo do conde da Atalaia, nas
duas batalhas de Saragoça e de Vila Viçosa.

Esta retirada, que não vem ao caso narrar aqui, foi uma verdadeira
odisseia, que deixou lembrado nos fastos da história portuguesa o
nome fidalgo de D. Pedro de Almeida. Em tão delicada conjuntura o
môço general revelou não sómente a coragem ingénita da sua raça mas
o tino, a prudência, a razão clara que são raros em curtos anos, que
infelizmente se iam tornando raríssimos na casta a que êle pertencia.

Tais provas da mocidade indicavam eloqùentemente o seu nome para
futuros serviços prestados à pátria. Estava esta numa das horas mais
sombrias da sua degeneração lenta e dolorosa, num dêstes lances de
angústia inconsolável que de há três séculos para cá tanta vez a teem
pôsto a pique de subverter-se em abismo, que se não sabe bem aonde vai,
se ao mar sem fundo, se ao pântano lodoso.

Em 1747 foi D. Pedro de Almeida, avô de Leonor, nomeado governador da
Índia, num dos momentos mais críticos daquela nossa tão ilustre quanto
descurada possessão.

O estado da Índia chegara nesse lance ao mais miserável extremo de
objecção e abandôno. Um _deficit_ formidável; o govêrno desorganizado
e sem prestígio; desfalque na receita dos tributos, grave diminuìção
no comércio; paralisia em todos os órgãos, de corrupção em tôdas as
células dêsse corpo em que, por um momento, tinha circulado o mais
puro, o mais generoso sangue português. A província fôra invadida pelos
_maratas_, a raça indomável e feroz, da qual os europeus tremiam, e que
só a férrea dominação inglesa, mixto de astúcia e fôrça, de traição e
de energia, conseguiu definitivamante amordaçar.

D. Pedro de Almeida não teve mêdo à implacável, à selvagem e impetuosa
bravura dessa casta de bandidos, e afrontando com supremo valor o poder
_marata_ correu ao assalto da fortaleza de Alorna, já que encontrara
perdida, ao chegar à Índia, a de Pondá, que pouco havia nos tinha
pertencido. Não foi sem resistência que a praça de Alorna foi tomada
aos maratas; os portugueses sofreram grandes perdas, e muitos oficiais
sucumbiram naquele primeiro assalto das nossas armas, que o desleixo
tinha enfraquecido e embotado.

Aproveitando, porêm, com a sua costumada habilidade, o prestígio
readquirido pelo nome português, na vitória que fôra renhida e
bravamente disputada pelos contrários, o marquês de Castelo Novo tomou
logo, quási sem resistência, as fortalezas de Bicholim, Avara, Tyracol
e Bary[2].

A notícia destas vitórias excitou verdadeiro entusiasmo em Portugal.
Estava por um fio a conservação dessas tristes relíquias do poder
português na Índia. Se o marquês de Castelo Novo não se apossasse com
tão feliz e pronta bravura de umas poucas de praças cobiçadas pelo
inimigo, sustendo assim a roda de uma fortuna que tão contrária nos ia
sendo, quem sabe se o que possuimos ali seria ainda hoje nosso! A êste
homem notável pela decisão do carácter, e pela arte com que executava
os seus planos arrojados, se deve porventura a conservação do nosso
poder no Oriente.

D. João V recompensou o general vitorioso com o título de marquês de
Alorna, que lhe foi concedido por um decreto muito honroso em 9 de
Novembro de 1750.

Leonor de Almeida comemorava com justo desvanecimento e invocava com
o legítimo orgulho os heróis da sua raça. Vê-se que tinha razão.
Não era sómente pelos serviços de ante-câmara, ou pelas manhas de
destros cortesãos, que os seus maiores tinham ascendido à posição que
nobremente gozavam.

No mesmo ano de 1750, data do nascimento da ilustre mulher, cuja vida
tentamos escrever, partia tambêm para o palácio dos vice-reis da Índia
outro ascendente seu, o marquês de Távora, pai de sua mãe. Estava êste
predestinado, não à celebridade do heroismo, brilhante e prestigiosa,
mas à outra, que fica mais profundamente gravada nas almas, que inspira
a universal simpatia, que gera as piedosas lendas... à celebridade do
martírio.

A marquesa de Távora D. Leonor, espôsa dêste novo vice-rei e avó da
marquesa de Alorna, fôra uma das fulgurantes belezas da côrte de
D. João V, tão rica em formosuras, ou provocadoras e sensuais, ou
deliciosamente sugestivas de místicos arrebatamentos de alma. Era
natural que assim fôsse; essas mulheres eram indispensável ornato
de uma côrte, cuja pompa lembrava a de uma satrapia oriental, cujos
requintes galantes, cujo fausto devoto, cujo fanatismo violento e
pagão, constituiam o espanto da Europa culta do tempo. Ninguêm entendia
como tão extraordinários contrastes se podiam fundir num todo único.
Mafra e Odivelas; as devoções a Nossa Senhora, e os amores com a cigana
Margarida do Monte; o ajoelhamento permanente diante da côrte de Roma a
pedir-lhe bênçãos, indulgências, privilégios, patriarcado, e a crónica
apimentada que baixinho se repetia em todo o reino, tudo isto era tão
extravagante que se perdia a cabeça na contemplação de tais prodígios.

Mas a marquesa de Távora conservou-se impecável no meio deletério
e estonteante em que a devoção era um sensualismo mais doce, mais
requintado que os outros, e o amor, precisava da sombra sonora e fresca
dos claustros, do cheiro do incenso, das flores expirantes entre velas
do altar...

Por um dêstes segredos de toucador, de que as privilegiadas não confiam
de ninguêm o segrêdo precioso, conservou-se ela formosa até aos
cinqùenta e cinco anos. Sabe-se isso, porque no ano do terremoto, em
que contava justamente essa idade, Teodoro de Almeida escreveu um mau
poema, _Lisboa destruída_, no qual se refere à sua rara formosura.
Nesse poema, que só viu a luz em 1803, porque o seu autor, é claro, não
se atreveu a publicá-lo em vida de D. José I, há uma vinheta em que
se vê a miniatura da marquesa D. Leonor, e diz a tradição que era um
retrato fidelíssimo em que o artista se esmerou a rogos do poeta. Estão
com ela a filha, condessa de Atouguia, a nora, marquesa de Távora e uma
neta.

Camilo, que é a fonte, fonte inexgotável e genuína, de onde tirámos
estas informações, acrescenta naquela sua frase cunhada em oiro de Lei:

«O congregado Teodoro de Almeida não extrema a marqueza velha das mais
novas, quanto a beleza:

    Neste ponto avistaram de repente
    Junto a si três matronas mui formosas.

«O certo é que a marquesa aos cinqùenta e cinco anos era ainda
uma esbelta senhora, com o aprumo juvenil e o garbo da mocidade
sadia e alegre. Ás maneiras fidalgas e altivez de raça ajuntava a
superioridade do espírito, essa segunda fidalguia que devia torná-la
odiosa à estupidez de suas primas.»

Um dos mil poetas detestáveis daquele tempo, dedicou à marquesa de
Távora uns versos em que lhe celebrava o denodo na ocasião de embarcar
para a Índia, de onde voltou justamente um ano antes do terremoto, para
morrer da trágica maneira que sabemos[3].

Em Goa os marqueses de Távora celebraram com festas pomposas, ao gôsto
da época, mas espiritualizadas por um toque de talento, que então não
era vulgar, a aclamação de D. José I--o rei sob cujo poder êles tinham
de vir a sofrer tão afrontosa morte!

O espírito da gentil e orgulhosa vice-rainha desentranhou-se em
graciosas invenções que revelavam a sua cultura superior. Nessas
festas quis ela manifestar aos estrangeiros a magnificência, um tanto
ôca, as mais das vezes, fictícia quási sempre, do génio português.
No teatro, mandado construir pela marquesa na capital da Índia, e
que foi edificado dentro do paço de Pangim, houve durante três dias
representações de gala. No primeiro representou-se em francês a peça de
Corneille _Porus vaincu par Alexandre_. Dos seis personagens da peça
cinco eram franceses e um português; e haver naquela época uma senhora
da côrte freirática de D. João V que soubesse apreciar com lúcido
critério o valor literário do nome de Corneille, indica da sua parte
uma ilustração desproporcionada com o seu triste meio. Só ela tinha,
porêm, ali essa cultura fenomenalmente rara, pois que o auditório não
entendia palavra... «_mas foi a representação feita com tão vivas
expressões, que ajudados de um sumário em português, que a senhora
marquesa tinha mandado traduzir da ópera, todos saíram satisfeitos e
agradados da novidade, nunca até ao presente vista em Goa_»[4].

Quem talhou os costumes e dirigiu o guardaroupa foi a própria
marquesa, que respeitando a côr local, porque a tragédia se passava
na Índia, seguiu o rigor dos trajos opulentíssimos, assistindo ela
própria a todos os preparativos e trabalhos. Depois da tragédia houve
baile e ceia opípara oferecida às fidalgas de Goa. Na noite seguinte
representou-se uma ópera portuguesa desempenhada por curiosos, em que
entraram os Correias de Sá, irmãos do visconde de Asseca. A esta festa
seguiram-se outras em que a vice-rainha continuou a exibir as suas
faculdades inventivas e a alta compreensão que possuia da grande vida e
do luxo inteligente.

Nos intervalos dessas festas, ou no remate delas, mandava distribuir
fartas esmolas pelas famílias fidalgas decaídas na miséria, «relíquias
dos antigos potentados da Ásia arruinados pela dissipação, e durante
os quatro anos do seu vice-reinado subsidiava com mesadas os que não
podiam vir ao paço receber as esmolas. Êsses mendigos envergonhados
eram os legítimos representantes da Índia portuguesa»[5].

Tinha um defeito a marquesa de Távora: era soberba da sua estirpe em
grau inadmissível. Ás suas ironias desdenhosas de fidalga se atribuiu
grande parte do ódio que o marquês de Pombal mais tarde manifestou
cruamente aos seus. Mas êsse pecaminoso orgulho, de que se contam mil
anedotas típicas, transformou-se na fôrça estoica com que suportou o
martírio; depurou-se na energia inquebrantável com que recebeu a morte
e a tortura moral que a precedeu, sem dobrar nem envilecer a sua bela
cabeça aristocrática.

       *       *       *       *       *

Neste nosso tempo de alta civilização intelectual em que as noções
mais complicadas da sciência humana penetram, por meio da extrema
vulgarização das ideas, até nos espíritos menos preparados por uma
forte educação técnica para as receberem; neste nosso tempo--quem
pode ignorar as influências poderosas que a hereditariedade exerce na
formação de um organismo?

De um lado a energia indomável do ânimo da marquesa de Távora, o seu
amor pelas especulações da inteligência ou pelas graças e encantos
da literatura; o fino orgulho de raça que a exalta, a sua capacidade
extraordinária de sofrer, com altiva resignação, a injusta fortuna:
por outro lado a valentia heróica de D. Pedro de Almeida, a sua
superioridade de inteligência e de carácter manifestada em acidentados
lances, reflectir-se hão, com as mudanças inevitáveis de circunstâncias
e de meio, na fisionomia de Leonor de Almeida, marquesa de Alorna.

Mas não sómente influências atávicas tinham de actuar eficazmente no
seu espírito; outra fôrça ainda mais enérgica, ainda mais directa e
positiva havia de exercer a sua acção dominante nesse temperamento
delicado e resistente, enérgico e flexível, capaz de dobrar-se com a
graça pendida de uma flor, e de reagir com a inquebrantavel coragem de
uma alma de antiga têmpera.

A infância de Leonor de Almeida foi obumbrada pela tragédia histórica
que, numa espécie de rubra nuvem de sangue, envolveu tôda a sua bela,
florescente e poderosa família e a fulminou com raio sinistro.

Não contaríamos aqui essa catástrofe por demais conhecida, se
não atribuíssemos, tanto a ela em si como às circunstâncias
impressionadoras que a revestiram, uma influência decisiva no espírito
de Leonor de Almeida. As sombrias ramificações dêsse drama enlaçaram
estreitamente o destino da nossa heroína.

Á sombra densíssima que a cingiu desde a infância; às lagrimas
maternas que lhe regaram a cabeça infantil e deliciosamente linda;
ao horror mil vezes lembrado do suplício dos seus; à crudelíssima
e longa clausura desse pai adorado, com quem ela viveu em íntima
comunhão espiritual; às tristezas da sua adolescência, que buscara
na poesia um refúgio abençoado, um voluptuoso anestesiante das
torturas da alma; à disciplina férrea a que ela sujeitou o seu alto
entendimento--a tôdas estas circunstâncias romanescas e dolorosas
deveu ela de-certo parte do seu talento singular. As duas qualidades
predominantes desta inteligência de mulher são o vigor quási viril do
pensamento experimentado, e a extrema cultura adquirida em longos anos
de prisão. Resistiu ao desespêro pelo trabalho e pelo estudo; resistiu
ao tédio mortal pela curiosidade viva das cousas, que a teve sempre em
comunicação simpática com o mundo exterior.

Foi, portanto, a desgraça dos seus, o género especial e trágico e
grandioso dessa desgraça immerecida, que fêz dela a mulher forte,
desenganada e triste que a vemos ser desde os quinze anos!

       *       *       *       *       *

Uma noite, a 3 de Setembro de 1758, espalhava-se pela cidade o lúgubre
boato de que el-rei D. José, voltando de, não sei que misterioso
passeio nocturno, a caminho da Ajuda, fôra vítima de uma tentativa de
regicídio, de que muito a custo escapara com vida.

Deveu-se o insucesso parcial da criminosa emboscada ao facto de el-rei,
sentindo-se ferido pelo primeiro tiro, disparado (dizem) pelo duque de
Aveiro ou pelo seu criado José Miguel, se lembrar de repente de que
o cirurgião mor do paço morava na Junqueira, e ordenar, portanto, ao
cocheiro que retrocedesse naquela direcção.

Morava ali perto o marquês de Angeja, D. Pedro José de Noronha, para
cuja casa D. José quis ir, e que, alucinado de surpresa e de terror,
recebeu, e deitou na sua própria cama o rei ferido.

Os conspiradores, distribuídos em diversos lugares e todos a cavalo,
esperaram debalde por D. José, que uma intuìção, que diríeis milagrosa,
salvara da morte, contrariando os planos tenebrosos dos seus inimigos.

Justamente na ocasião em que êste crime, gravíssimo hoje e
verdadeiramente sacrílego naquele tempo, se perpetrava, o marquês de
Pombal pedia ao destino um pretexto que o justificasse e favorecesse na
guerra com que êle ambicionava pôr ponto ao poder ilimitado, à soberba
arrogância da fidalguia portuguesa. Estadista à maneira de Richelieu,
de Cromwel, de Frederico II, de Bismarck, o sangue derramado, as
torturas impostas, as lágrimas choradas eram-lhe pequeno obstáculo à
linha recta da sua implacável e brônzea vontade.

Vendo a nação devastada pelas plantas parasitas que lhe sugavam tôda a
seiva, a sua ambição foi salvá-la custasse embora muito cara a salvação.

O que a história nos conta dessa hora sinistra da vida de Portugal,
assombra e enoja a um tempo. Charnecas desertas e incultas, enormes
extensões de terrenos despovoados, destruídas as manufacturas da
Covilhã, do Fundão, de Bragança, de tôdas as cidades onde os cristãos
novos--agora expulsos pela inquisição--tinham feito da sua energia, da
sua inteligência, do seu trabalho, do seu amor pelo ganho, instrumento
de riqueza para êste país desgraçado; caminhos impraticáveis tornando
impossível o tráfego comercial e o transporte de mercadorias ou
pessoas[6]; o exército sem disciplina, sem decôro, onde os soldados
e até os oficiais subalternos faziam mister de criados dos seus
superiores, servindo-lhes à mesa, e executando os mais humilhantes
ofícios, quando não pediam como mendigos andrajosos pelas ruas das
cidades mais populosas[7]; a têrça parte do solo nacional possuído pela
Igreja, e a sentir-se em todo o país a tríplice e funesta influência
do clero devasso, ignorante e cobiçoso, da nobreza da côrte, ociosa e
insolente, e da inquisição ameaçadora, que, na caça feroz ao judeu,
tinha aniquilado tôdas as actividades produtoras, tinha expulsado
do país tôdas as fôrças vivas, tinha quebrado e destruído tôdas as
energias fecundas. O mau clero embrutecendo, a inquisição queimando os
resistentes e depravando sob a influência do seu terror os ânimos que
a cobardia dobrava servilmente, tinham feito de Portugal e da Espanha
dois países mortalmente condenados.

Comercialmente, éramos uma reles feitoria de Inglaterra, que pelo
tratado de Methwen nos enfeudava sem defeza aos seus interesses.
Espiritualmente, éramos a mina extinta de que Roma extraíu cento e
oitenta milhões de cruzados a trôco de privilégios cultuais[8], de
canonizações de santos[9], de bulas especiais para diversos usos.
Bandos capitaneados pelos primeiros fidalgos da côrte, o duque de
Cadaval, o marquês de Cascais, os condes de Aveiro e de Óbidos, traziam
Lisboa em permanente susto e permanente sobressalto, espancando as
rondas, matando as autoridades que lhes resistiam[10], travando
entre si bulhas de que muitas vezes resultavam mortes e gravíssimos
ferimentos. Sob a tirania e o livre arbítrio da realeza, e sob o ôco
beatério da nobreza e do povo, havia o desenfreamento dos mais baixos
instintos, a brutalidade mais soez, a devassidão mais desbragada. O
exemplo, partindo de alto, alastrava com vertiginosa rapidez por tôdas
as camadas sociais eivadas da mesma ignorância e submersas no mesmo
embrutecimento. O _abêtissez-vous_ de Pascal, aplicado pelos jesuítas
e pela inquisição, fôra o único meio que Roma encontrára para defender
o seu baluarte ameaçado. A Península ibérica fôra o teatro escolhido
para essa horrenda experiência, que fazia da mutilação do pensamento
uma arma política, e perdoava o desenfreamento audaz dos instintos
brutais, contanto que a consciência não tentasse despertar sequer do
seu adormecimento e do seu ignóbil torpor...

O marquês de Pombal encontrou êste quadro horrendo e grotesco ao
tomar posse do país, que pretendia regenerar, na volta da sua longa
permanência em Londres e em Viena. Na Inglaterra é claro que Pombal não
aprendeu nenhum dos processos da política liberal a que êsse robusto
país deve a integridade da sua duração e a solidez da sua grandeza, mas
viu--e com que humilhação melancólica para um coração português!--o que
era ali a aristocracia comparada ao que estava sendo entre nós!

Para o confirmar na idea que ela de-certo lhe inspirou, bastou-lhe
assistir ao formar da brilhante e formidável oposição contra o
poder corrupto de Walpole, porque não foi num período glorioso da
vida política de Inglaterra que Pombal ali viveu. É provável que
êle observasse de perto com o seu olhar de miope, tão espirituoso
e penetrante, as notáveis e características figuras que constituem
essa colisão famosa[11]. Pitt, o futuro lord Chattam, tinha então
trinta anos e já pronunciara contra o ambicioso ministro, agarrado ao
poder como a ostra à concha, alguns dêsses belos discursos clássicos
e pomposamente teatrais, que tão viva impressão produziram no seu
auditório político. Carteret, conde de Grenville, formosa figura de
estadista e de erudito, falando tôdas as línguas mortas e vivas,
inclusivamente o português, brilhava então deslumbradoramente na
scena política pela coragem, pela ambição nobre, pela eloqùência
declamatória ou pela agudeza e agilidade do debate parlamentar.
Chesterfield era o tipo consumado da elegância cortesã, do gôsto
cultivado e fino, das maneiras galantes. Garrick acabava de estrear-se,
e logo adorado, adulado pela aristocracia londrina, fazia chorar o
seu patrício auditório interpretando na scena Shakespeare, como mais
tarde o fará convulsivamente rir, arremedando nas salas a figura e os
modos estranhos, tão cómicamente dolorosos, de Samuel Johnson, então
desconhecido ainda. Pope vivia no pé de perfeita igualdade com a alta
sociedade elegante e política do tempo, mas literáriamente era então
uma excepção única. Em Inglaterra, como em Portugal, aquele período
era da mais desoladora esterilidade literária, mas ali era apenas
o intervalo entre duas fases brilhantes. Desaparecera a geração de
Addisson, de Prior de Steele, de Congreve, de Foe, de Swift, mas iam
aparecer Goldsmith, Fielding, Burke, Collins, Thompson, e outros mais.

E em todo o caso a Sebastião José de Carvalho e Melo era indiferente
que a literatura estivesse ou não numa fase gloriosa. O que devia
impressioná-lo, indigná-lo ali, pela triste comparação a que se via
forçado, era a vida intensa, o alto valor social e moral, a utilidade
e a fôrça dessa classe aristocrática, que na Inglaterra nunca
aceitou privilégios a que não estivessem ligados graves e austeros
deveres cívicos, ao passo que nada havia mais estéril, mais imbuído
da sua falsa importância, mais perturbador da ordem e do equilíbrio
nacional do que a nossa nobreza degenerada, vivendo, salvas excepções
raríssimas, que podem apontar-se, dos bens da corôa, da munificência
régia e dos abusos e privilégios; voluntáriamente ignorante e
gabando-se de o ser, reduzida, pela paz prolongada e pela inércia em
que o país caíra nos braços do jesuíta manhoso, ou sob o látego do
inquisidor cruel, aos ofícios de ante-câmara e às manhas e intrigas da
côrte.

D. Luís da Cunha, um dos privilegiados, mas um dos raros que ilustravam
a sua classe, melhor do que ninguêm pôs o dedo nas misérias que
Portugal chamara sôbre si nesse período sombrio da sua existência
nacional.

O ministro de D. José, que D. Luís da Cunha[12] indicara como o mais
apto para dar algum remédio a tantos males, aproveitou, portanto, o
ensejo que a nobreza lhe dava para travar com ela a terrível luta em
que afinal foi vencido pelo destino e por ela...

É por esta ordem de considerações que o cadafalso de Belêm,
erguendo-se diante dos nossos olhos, tristes sim, mas conhecedores das
circunstâncias que o explicam e da crueldade semi-bárbara dos costumes
e da jurisprudência do tempo, não se nos afigura um facto isolado, sem
outra significação alêm da que dá o nosso humanitarismo sentimental da
actualidade.

Devemos, portanto, emmudecendo a infinita piedade que nos confrange
o coração, contemplar as vítimas que ali vieram expirar, à luz de um
critério que não é de hoje. Devemos considerá-las, infelizmente, como
acusados políticos da peor espécie, réus do maior dos crimes, do que
envolvia todos os outros, pois que no tempo de D. José,--o qual foi o
representante mais genuíno e mais puro entre nós, dêsse absolutismo
monárquico que em tôda a Europa ocidental precedeu e como que preparou,
sem o prever nem pressentir, o regímen moderno,--o rei era ao mesmo
tempo o pai, o emissário divino, a figura inviolável, impecável e
sagrada, cuja mão ungia, cuja dominação exaltava, cujo serviço era tão
honroso e glorioso como o do próprio Deus.

Não basta, porêm, ver sómente êste aspecto do complexo assunto. É
necessário acrescentar que o julgamento dos fidalgos mais directamente
suspeitados, a execução do duque de Aveiro e dos desventurados e
porventura inocentes Távoras, o aparato inaudito de que êsse acto de
tirania se revestiu, as prisões em que tantos inocentes, reconhecidos
por tais, foram apanhados na rêde tenebrosa de uma política implacável,
tudo isto, na perspectiva longínqua em que o pensador hoje o contempla,
não é mais que um lúgubre, um terrível e sangrento episódio dêsse
duelo de morte, que o marquês de Pombal, o último português que soube o
que era _ter vontade_, travou furiosamente com uma ordem de cousas em
que êle via a desgraça de Portugal.

Aqueles desgraçados expiavam, ali, não sómente o seu crime, suposto
em todos, dizem alguns, real em quási todos, asseveram outros,--mas
principalmente, e é esta a face cruel mas terrívelmente lógica
do facto--os crimes longos, os crimes imperdoáveis de uma casta
inteira, contra a qual se insurgia o espírito impiedoso de Pombal,
atribuindo-lhe o estado de decadência da nação, que êle ambicionava
erguer como um novo Lázaro do chão da morte...

¿Tinha razão o marquês em atribuir completamente à fidalguia e à
fradaria portuguesa a desgraça em que achava êste país?

Não tinha. Os frades e os fidalgos ignorantes, soberbos e ociosos
eram já produtos e não causas de uma decadência moral e intelectual,
que vinha de longe, de muito longe; deviam os seus defeitos a
circunstâncias talvez fatalmente consubstanciadas no próprio destino de
Portugal, talvez feitas da própria essência do seu organismo.

Mas o marquês tinha a sciência do seu tempo, o que não se lhe deve
levar a mal, porque, como tão bem diz um grande pensador, o débil
alcance da inteligência humana, e a brevidade da nossa vida comparada
à lentidão do desenvolvimento social, conservam-nos a imaginação,
sobretudo no que respeita às ideas políticas, inteiramente sob a
dependência estreita do meio em que habitamos. «A cabeça mais forte
da antiguidade, o grande Aristóteles, de tal modo foi dominado pelo
seu século, que não pôde conceber uma sociedade sem ter por base a
escravidão»[13].

Assim tambêm o marquês de Pombal, não conhecendo o recente segrêdo
das leis sociológicas, julgava que a reconstrução de uma sociedade é
um acto de pura mecânica. Desbravar o terreno, ou deitar por terra
as edificações carunchosas que o atravancavam, transportar para
longe o entulho que se amontoara dessas ruínas em grande, e proceder
imediatamente, livre de obstáculos e de peias, ao seu trabalho de
arquitecto namorado da ordem rectilínea e da simétrica regularidade,
parecia-lhe uma tarefa tão legítima quanto realizável. ¿Que fôssem
instituìções ou fôssem homens os que embaraçavam a sua obra, que lhe
importava? Para êle eram simplesmente obstáculos. Tinha uma concepção
das cousas muito diversa da que hoje reina. Nunca lhe poderia entrar
na cabeça que a sociedade fôsse, como o indivíduo, um organismo. Não
percebia que, da dissolução a que o corpo social tinha chegado, podiam
surgir, em resultado de irredutíveis leis orgânicas, novas combinações
e novas formas de vida, mas nunca operar-se aí uma cura radical, uma
transformação impossível.

Os factos provaram-lhe ainda em vida, na sua dolorosa, na sua
angustiada velhice, que êle errara nas apreciações e nos pontos
de vista. Mas o desmoronamento, quási completo na parte política,
administrativa e moral da sua obra, não o pôde esclarecer ainda assim a
respeito das causas que o determinaram.

Ainda pela consciência e pelo entendimento humano não passara aquele
abalo violento, sob a influência do qual nós todos pensamos hoje, tanto
amigos como adversários do novo regímen.

O marquês não estava em suficiente avanço do seu século para
compreender que os fenómenos políticos se regulam, como os outros, por
leis naturais!

A reconstrução civilista e burguesa que êle sonhara tinha de
realizar-se, não no carcomido, no gasto, no anémico Portugal, mas nas
outras nações latinas, depois da luta intensa e prolongada contra
o regímen anterior, depois da demolição longa e laboriosa, feita
pela escola negativa e crítica do século, depois de um interregno de
desordem, no meio do embate, sem método preconcebido, de contraditórias
fôrças inconscientes, porque nenhum progresso político ou social deixou
de ser precedido por êsse período de cáos e de surda germinação. É
êle que prepara a nova ordem de cousas, favorecendo de um lado o
desenvolvimento dos elementos que virão a constituí-la, estimulando por
outro as faculdades reorganizadoras da sociedade pela experiência cruel
dos males da anarquia[14].

       *       *       *       *       *

Tão favorável era então o ensejo para que a mão aspérrima de Pombal
caísse com todo o seu pêso enorme sôbre a nobreza mais alta da
côrte,--que houve muito quem aventasse a hipótese de que tal emboscada
não existira, ou antes fôra simulada pelo astuto ministro.

Á posteridade, porêm, não parecem duvidosos, nem o atentado contra D.
José, nem a culpabilidade do duque de Aveiro.

O embaixador francês, que a êsse tempo estava em Lisboa, dizia para a
sua côrte, que o duque de Aveiro--carácter imperioso e duro, espécie
de relíquia feudal perdida num tempo que já não estava em harmonia com
as suas altivas pretensões, e num país onde o feudalismo existira nas
ideas sem nunca ter existido própriamente nas instituìções--que o duque
de Aveiro era formalmente detestado.

Nascera filho segundo, e fôra destinado para a mitra; mas a loucura
amorosa do irmão mais velho, cuja fuga para Espanha com D. Maria da
Penha de França, casada com Luís de Almada, deu brado naquele tempo,
fê-lo logo marquês de Gouveia, e duque de Aveiro mais tarde, quando,
contra uma nobre família de Espanha, ganhou a demanda que disputava à
sua casa os bens e os títulos daquele ducado.

A boa fortuna exaltara-lhe a soberba, fizera-lhe do orgulho indomável
uma arma perigosa. Irritavam-no até à epilepsia as audácias
reformadoras e niveladoras do ministro e a subserviência e docilidade
do rei. Tentou, portanto, matando êste, aniquilar o ilimitado poder
daquele.

Pelo contrário a família Távora, verdadeiramente típica da lhana
e afável fidalguia portuguesa, apenas intratável em questões de
precedência, de tratamento, de formas, etc., era estimada e querida em
Portugal.

Mas à veia satírica da espirituosa marquesa não escapara a fraqueza
mais flagrante do ministro de D. José, aquela ânsia de provar com
documentos a sua fidalguia, o que não é deveras permitido a um homem
que em tanta maneira excedia o nível do seu tempo, e cujo alto espírito
o devia pôr ao abrigo de tais aberrações de entendimentos medíocres.

Ficaram na tradição os chasques de prosápia orgulhosa com que ela se
desforçava da decadência do poder da sua casta, e do advento dessa
outra potência irresistível de que Sebastião José de Carvalho foi um
dos mais genuínos e mais célebres e prestigiosos representantes, e que
êle no entanto parecia renegar com as suas ideas fantásticas acêrca da
própria fidalguia.

Desta loquacidade mordaz de mulher ofendida à cumplicidade do nefando
regicídio vai um abismo, e conquanto a história dê uma causa, mais
íntima, mais justificável quási, à suposta cumplicidade dos Távoras,
pois se contou, e escreveu, que a marquesa filha tinha as boas graças
do rei, e êsse escândalo causava a desolação de sua honesta sogra,
ainda assim um triste ponto de interrogação subsiste em face dêsse
processo misterioso, mais instaurado e vencido para meter espanto e
terror a uma dada ordem social, do que escrupulosamente conduzido
para levar a luz de uma convicção inabalável à consciência dos que
assistiram ao desenvolvimento das suas peripécias tremendas.

Durante alguns dias de suspensão e de indeterminada angústia ecoou
vagamente no público a notícia do crime, sem que um passo sómente fôsse
dado para a busca e prisão dos réus. Todos êles foram colhidos com
extraordinária facilidade, quando Sebastião José de Carvalho, acordando
de súbito do fingido torpor em que pareceu ficar paralizado, mais uma
vez demonstrou por um golpe de irresistível mestria, a sua implacável
vontade e a sua fôrça pronta e sagaz.

Depois de três meses de um dêsses soturnos silêncios, cortados de
ansiedade sombria, que tanta vez precedem os cataclismos da natureza e
os da sociedade, no dia 13 de Setembro de 1758 foram cercadas as casas
do marquês de Távora, D. Francisco de Assís, o vice-rei da Índia das
festas teatrais e das pomposas cerimónias; do conde de Atouguia D.
Jerónimo de Ataíde; do conde de Óbidos D. Manuel de Assís Mascarenhas;
de D. Manuel de Sousa Calhariz; do conde de Vila Nova, Manuel de
Távora; do desembargador António da Costa Freire, de muitas outras
pessoas suspeitas; de todos os jesuítas do reino, e afinal, o que
principalmente importa para a nossa história, do marquês de Alorna, D.
João de Almeida Portugal, pai de Leonor, gentil e diserto cavaleiro de
vinte e cinco anos, que fôra ou estava para ser nomeado embaixador em
Paris, e cujo crime baldadamente se procura em todos os documentos do
célebre e crudelíssimo processo.

O duque de Aveiro, de todos aqueles em quem incontestávelmente recaem
as mais graves suspeitas de haver perpetrado o crime, ou de o ter feito
executar por mandatários seus, estava na sua quinta de Azeitão, nessa
Sintra da Outra Banda, onde as grandes famílias portuguesas do século
XVII e do século XVIII tinham tão lindas, pitorescas, majestosas e
artísticas vivendas, hoje reduzidas a ruínas abandonadas, a ruínas
ignóbeis, que nenhum luar de saudade espiritualiza e doura, de que
nenhum culto reverente consagra a tradição melancólica.

Diz-se que êle se preparava para fugir, tendo sabido do movimento de
tropas que se notara em Aldeia Galega, por onde inesperadamente passara
um corpo de cavalaria, e tambêm das prisões de Lisboa, cuja notícia
soara com a rapidez misteriosa com que os casos graves se propagam.

De todos aqueles a quem o ministro omnipotente desejou prender só
lograra escapar José Policarpo de Azevedo, cuja trágica odisseia Camilo
Castelo Branco há de narrar com a sua linguagem de tão máscula e
inimitável elegância, de tão grave e impressionadora tristeza.

O marquês de Alorna não soube nunca a que fatalidade inexplicável
devera o achar-se envolvido no horrendo trama. O duque de Chatelet na
_Viagem em Portugal_, que fêz, muitos anos depois dos acontecimentos,
e em que miúdamente se refere a muitos actos da administração de
Pombal, diz que foi atribuída a cumplicidade do marquês ao facto, aliás
absolutamente inocente, de êle haver emprestado uma espingarda de caça
ao filho do duque de Aveiro, que no próprio dia do atentado contra a
vida do rei, lh’a tinha pedido.

¿Mas quem não vê hoje, na distância em que estamos, que o fim de Pombal
era muito diverso daquele que então lhe atribuíam as suas vítimas
desgraçadas?! O que êle queria era castigar, humilhar, amordaçar,
inutilizar, vencer essa fidalguia da côrte, que a cada instante se
erguia como um obstáculo, como um tropêço diante dos seus planos de
audaz reformador da sociedade portuguesa. Áspero de génio, inflexível
de vontade, de natureza cruel como todos os condutores de homens (nem
com índole diversa êles o seriam), pouco se importava com a inocência
ou com a culpa dêsses fidalgos arrogantes, que ousavam defrontar-se com
êle em permanente oposição. O que pretendia era destruí-los de vez, ou
emmudecer para sempre os que por ventura lograssem escapar à vindicta
da lei.

O marquês de Alorna, generoso, altivo e franco, falando alto e bom som
com a sua hombridade de fidalgo, e sabendo o que dizia porque tinha
ilustração e talento, raros então na sua classe--com certeza que devia
ser dos mais notórios na oposição ao homem que todos julgavam _inimigo
da nobreza_, e pronto a cercear-lhe os privilégios e as regalias. Pagou
com uma prisão de dezoito anos êsse crime de rebeldia mental.

Emquanto se efectuava em Azeitão a captura do poderoso duque de Aveiro,
e na côrte a dos outros suspeitos, reinava em Lisboa um terror súbito,
ressurgido após três meses de espectativa já quási adormecida, porque
tinham aparecido, afixados em tôdas as esquinas, dois decretos, um
dos quais datado de 9 de Dezembro, em que se narrava, na enfática
e declamatória linguagem do tempo, o atentado de que el-rei nosso
senhor tinha por milagre escapado, anunciando-se exposta às vistas
do público, na cocheira do paço, a carruagem onde el-rei ia, quando
lhe foram disparados os tiros; e outro, datado de 13 do mesmo mês, em
que se tomavam as mais vexatórias disposições para que os culpados
não pudessem fugir, ordenando várias precauções administrativas e
políticas, que a tirania do tempo de sobejo legalizava.

No dia 14 de Dezembro foi presa e conduzida ao convento das Grilas
a marquesa de Távora D. Leonor. A marquesa D. Teresa, nora desta e
amada pelo rei a ponto de a poupar impudentemente em todo o processo,
foi conduzida para o convento das comendadeiras de Santos, onde se
conservou com uma tença régia, e rodeada de cómodos e confortos até à
morte.

A duquesa de Aveiro foi para o Rato[15], a condessa de Atouguia para
Marvila; a marquesa de Alorna e as suas duas filhas, crianças adoráveis
de seis e sete anos foram para Chelas.

Criou-se uma junta ou tribunal chamado da _inconfidência_, presidido
pelos três secretários de estado, e o lúgubre processo correu envolto
em profundo segrêdo, conhecendo-se apenas, que seguia o seu curso,
pelas prisões que vinham, de vez em quando, sobressaltar Lisboa, fazer
tremer de horror a mais qualificada fidalguia da côrte, e povoar de
altos dignitários e de cortesãos, outrora validos, os fortes do Tejo e
os cárceres do Estado.

Ainda hoje se não sabe o que no seio da Junta se passou. Previu-se,
porêm, desde logo que ia mais longe, do que primitivamente se podera
supôr, o alcance e a significação dêsse processo, eivado da terrível
pecha de todos os processos políticos em que os réus já vão responder
ao tribunal préviamente sentenciados. Tal foi o sistema do absolutismo
triunfante em tôdas as fases da sua história, em todos os pontos em que
o seu poder se exerceu; tal foi o sistema do jacobinismo violento da
convenção, e do _comité de salut public_ na França revolucionária, e o
sistema da França napoleónica, no processo do joven duque de Enghien--o
sangue de Condé!

       *       *       *       *       *

A 13 de Janeiro de 1759, por uma madrugada nevoenta e triste «por entre
castelos pardacentos de nuvens esfumaradas, que a espaços saraivavam
bátegas de aguaceiros glaciais», a cadeirinha da marquesa de Távora D.
Leonor chegou ao largo de Belêm, onde se erguia o cadafalso em que tôda
a sua família ia expirar.

O fúnebre cortejo constava primeiramente de um esquadrão de dragões,
em seguida dos ministros criminais que tinham julgado o processo
iníquo, e que vinham a cavalo, uns com a toga, outros de capa e volta.
O corregedor da côrte, atrás dêsses, era quem precedia a caixa negra
entre dois padres, onde a marquesa se dirigia ao suplício.

Alas de tropa cercavam o préstito.

«Á volta do tablado postaram-se os juízes do crime, aconchegando as
capas das faces varejadas pelas cordas da chuva. Do lado da barra
reboava o mugido das vagas que rolavam e vinham jofrar espumas no
parapeito do cais. Havia uma escada que subia para o patíbulo. A
marquesa apeou-se da cadeirinha, dispensando o amparo dos padres.
Ajoelhou no primeiro degrau da escada, e confessou-se por espaço
de cinqùenta minutos. Entretanto martelava-se no cadafalso.
Aperfeiçoavam-se as aspas, cravavam-se pregos necessários à segurança
dos postes, aparafusavam-se as rôscas das rodas. Recebida a absolvição,
a padecente subiu entre os dois padres a escada, na sua natural
atitude altiva, direita, com os olhos fitos no espectáculo dos
tormentos. Trajava de setim escuro, fitas nas madeixas grisalhas,
diamantes nas orelhas e num laço dos cabelos (tinha sido presa ao sair
de um baile na embaixada inglesa), envolta numa capa alvadia roçagante.

«Assim tinha sido presa um mês antes. Nunca lhe tinham consentido que
mudasse a camisa nem o lenço do pescoço.

«Receberam-na três algozes no tôpo da escada, e mandaram-na fazer um
giro no cadafalso para ser bem vista e reconhecida.

«Depois, mostraram-lhe um a um os instrumentos das execuções, e
explicaram-lhe por miúdo como haviam de morrer seu marido, seus
filhos e o marido de sua filha. Mostraram-lhe o masso de ferro que
devia matar-lhe o marido a pancadas na arca do peito, as tesouras, as
aspas em que se haviam de quebrar os ossos das pernas e dos braços ao
marido e aos filhos, e explicaram-lhe como era que as rodas operavam
no garrote, cuja corda lhe mostraram e o modo como ela repuxava e
estrangulava ao desandar do arrocho. A marquesa então sucumbiu, chorou
muito ansiada, e pediu que a matassem depressa. O algoz tirou-lhe a
capa e mandou-a sentar num banco de pinho no centro do cadafalso,
sôbre a capa que dobrou devagar, horrendamente devagar. Ela sentou-se.
Tinha as mãos amarradas e não podia compor o vestido que caíra
mal. Ergueu-se e com um movimento do pé concertou a orla da saia.
O algoz pôs-lhe a mão no lenço que lhe cobria o pescoço.--_Não me
descomponhas_--disse ela, e inclinou a cabeça, que lhe foi decepada
pela nuca de um só golpe»[16].

Fazemos a longa transcrição do suplício da marquesa, porque, depois
de Camilo ter deixado, fundida em bronze, esta escultura de soberbo
horror, parecia-nos artístico sacrilégio qualquer tentativa de
imitação ou de aproximação. Isto que aí fica escrito é definitivo, é
inultrapassável. Ao lê-lo as carnes arrepiam-se, e aquele vento de que
fala a escritura passa sôbre as nossas cabeças, pondo-nos os cabelos em
pé.

A carniceria continuou lenta, medonha, infindável, sob o nevoeiro
sinistro e o plúmbeo céu triste e calado.

Depois da marquesa de Távora, o primeiro a morrer entre suplícios foi
José Maria Távora, o filho segundo dela, criança de vinte e um anos,
mimoso pagem louro, cuja beleza de efebo comovia os corações mais
duros. Levava o seu lindo traje preto de cortesão, e meias de sêda côr
de pérola. Supremo requinte de graciosa e juvenil garridice!

Quantos sonhos em flor desabrochariam sob aquela fronte de
adolescente...

    _Front pâli sous des baisers de femme_,

...que tanta vez se iluminara com a esperança da glória ou se
espiritualizara de fugaz melancolia em caprichosos e vagos devaneios de
_Cherubin_.

E no entanto êle, que não conhecia nem de nome a maldade ou o
ódio, teve o seu corpo aspado, quebrado, esmigalhado pelos ferozes
instrumentos do mais bárbaro suplício, em castigo de um crime que não
sonhara em cometer.

Atrás dêle morreu o irmão mais velho, o marquês Luís Bernardo, espôso
daquela a quem a crónica escandalosa do tempo atribuía a cumplicidade
num adultério régio.

Depois o conde de Atouguia, seu cunhado, e os três réus vilões,
que apareceram, descalços, em mangas de camisa, e que até ali, na
promiscuidade do sangue e do suplício tiveram, como insígnia que os
separasse dos seus fidalgos companheiros, aquele ignóbil desalinho que
parecia roubar-lhe à morte a dignidade...

Depois de um intervalo em que os carrascos descansaram, seguiu-se o
suplício do marquês de Távora Francisco de Assis, o velho general
encanecido no serviço público, e do duque de Aveiro, talvez de todos
o único culpado, e por fim o de António Álvares Ferreira, o sacrílego
executor do crime, pelo qual todos morriam, o que dera na sagrada
pessoa de el-rei nosso senhor,--à hora em que êle regressava ao paço
da Ajuda depois de uma nocturna excursão de galhofeiro o amoroso
Júpiter--o tiro que lhe havia rasgado a preciosa carne do seu braço.

Durou dez horas o nefando espectáculo a que uma turba enorme, mosqueada
de medonhas caras negras de olhos fuzilantes, assistia com mórbida,
perversa e brutal curiosidade.

       *       *       *       *       *

Estremece-nos a alma de piedade e de pavor ao relembrar que há século
e meio apenas era, não direi sómente permitido, mas, o que é mais,
sancionado pela jurisprudência humana tamanho acervo de inolvidáveis
horrores. E isto não só neste canto da península, neste limite extremo
da Europa, afastado então de todo o convívio scientífico com o resto
do mundo, mas ainda na própria França, onde pela mesma época, pouco
mais ou menos, a canivetada de Damiens--um doido!--em Luís XV era
castigada por um suplício muito mais atroz, se em tal inferno pode
haver gradações, e pelo menos muito mais fecundo em requintadas
invenções de horror, porque nas feridas abertas a tenazes rubras, até
chumbo derretido lhe deitaram, esquartejando-lhe depois o miserável
corpo atado a quatro cavalos robustos incessantemente chicoteados
pelos algozes praguejantes[17]. ¿E sabem quem ali, naquela cidade onde
reinava o idílio _pompadour_ e as graças pastoris de Watteau e de
Bernis assistia ao medonho espectáculo canibalesco? Era, nas janelas da
praça de Gréve, alugadas por alto preço, tôda a nobreza e tôda a alta
finança. Era _la cour et la vile_ em pêso, que viera, com a ferocidade
que tanto aproxima as civilizações apodrecidas da barbarie extrema,
saciar-se perversamente daquela tortura e daquele horror!... Nesse
ponto, Portugal _menos civilizado_, deixara à ignóbil turba-multa das
praças e das vielas o privilégio de tão doce vista! A França não! Eram
as suas marquesas de altos penteados voluptuosos, de riso cristalino,
o riso que ecoava pelos salões esplêndidos de Versailles, que iam ali
cevar-se de sensações violentas e de frémitos de agonia! Eram as suas
financeiras opulentas, as suas actrizes afamadas, a _élite_ intelectual
daquele mundo falso e garrido, que aplaudia a tragédia repugnante
e atrocíssima, achando já sem sabor para o seu gôsto embotada a
inspiração soberba do Cid ou as ardentes objurgações de Hermione e de
Fedra...

       *       *       *       *       *

Os adversários do marquês de Pombal atribuem _exclusivamente_ ao
ministro de D. José a culpa desta execução, que fêz naquele tempo
estremecer de horror a Europa, sobretudo porque eram da mais alta
fidalguia os executados; mas o historiador imparcial terá de reconhecer
que, embora a índole naturalmente dura do marquês não recebesse
do trágico acontecimento a impressão que ela devia inspirar-lhe,
embora lhe houvesse sido possível obstar à morte cruel de alguns
dos padecentes, a verdade é que a responsabilidade do espantoso
caso cabe tanto ao ministro e ao rei, que não perdoaram, como aos
juízes abominávelmente subservientes que subscreveram a sentença e
julgaram o processo, como ao tempo, aos costumes relaxados e crueis
simultâneamente, à completa incapacidade que ainda então havia em todos
os povos, de dar à _vida humana_, à _dor humana_ a suprema importância
que nós hoje, bem mais felizes, aprendemos a dar-lhe.

¿Tão duro como era Pombal, tão inflexível e enérgico de vontade como
êle, podia um ministro de hoje mesmo ao abrigo da lei escrita, permitir
tais crimes?

Não deminuiu talvez a sôma de bem e de mal arbitráriamente dividido
pela humanidade, mas deminuiu de um modo extraordinário a possibilidade
em que ela está de expandir à vontade os seus instintos crueis. Se,
como diz Spenser, o progresso se faz muito mais sentir na inteligência
que na moral, em todo o caso a inteligência domina bastante o homem
social para amordaçar permanentemente nêle a fera primitiva. Se não
lucra o princípio abstracto da moral, lucra certamente e muitíssimo a
civilização, a vida do homem, a segurança dos indivíduos, a ordem das
sociedades[18].

Quem, pois, tentar arrancar ao livro do passado uma das suas páginas
e convertê-la em história, não poderá fazer juízos absolutos, nem
sujeitar a um critério que não seja relativo os acontecimentos e os
homens que descrever e julgar. O tempo estabelece entre os mesmos
factos passados em momentos diversos as diferenças mais profundas.

O crime de hoje pode ter sido a razão de Estado de hontem. A crueldade
implacável de um homem do antigo regímen não tem a significação e o
valor que as nossas actuais ideas lhe dão. O passado está cheio de
factos que para nós são crimes e que foram nêle heroicidades. ¿Que
lista enormíssima de algozes, desde Torquemada, não conta a inquisição,
e no entanto foram criminosos todos êsses homens que obedeceram ou
julgaram obedecer a uma lei de salvação pública e de política suprema?
Quantas execuções sumárias, quantas crueldades inauditas e atrozes
não ordenaram Gama, Albuquerque, Pacheco e Pizarro, os nossos heróis
peninsulares! ¿E mereciam êsses homens sentar-se então no banco de
ignomínia em que hoje se punem crimes tais?

Deve notar-se, entre parêntesis, que sendo a fraqueza de vontade
um dos característicos da alma portuguesa, os homens que entre nós
mais destacam, é pela dureza de aço do seu querer que se distinguem!
Exemplos: o infante D. Henrique, que deixou morrer o irmão em Fêz, mas
não cedeu um ápice do que entendia necessário à grandeza da pátria que
ilustrou; todos os capitães _terríveis_ que acabamos de citar, e cuja
vida está cheia de actos de uma suprema e implacável fôrça; finalmente
Pombal, em quem a _vontade_ é positivamente a faculdade predominante.

De resto não se pode ser político, isto é, exercer esta imoral
sciência, que nenhum esfôrço de coração, nenhuma alta aspiração
espiritualista conseguirá tornar nobre e bela, senão escravizando sob a
pressão de uma energia brônzea as fraquezas que nos circundam!

Foi sempre êste o sistema dos grandes políticos.

Luís XI foi um dos príncipes a quem a França mais deveu. Aniquilou o
feudalismo, destruiu o poder dos grandes vassalos, cuja indisciplina
selvagem se opunha à centralização e à grandeza da pátria francesa!
Quantos crimes na vida de Luís XI, que a posteridade se não atreveu a
julgar com demasiado rigor, vendo que êle obedecia a uma razão poderosa
do bem pátrio e de salvação civilizadora, vendo sobretudo que se êle
matou, perseguiu e rebaixou os poderosos, levantou os humildes, e
protegeu contra a tirania dos grandes o seu _pobre povo_ oprimido!

D. João II fêz julgar tambêm--com que irrisório julgamento!--o duque
de Bragança, e apunhalou o duque de Vizeu, e no entanto Portugal
considera-o um grande rei, e Izabel a Católica chamava-lhe o _homem_,
achando nêle, por excelência, o tipo da energia e da prudência régia.

Tôdas as execuções de Richelieu foram feitas, como as de Pombal, ao
abrigo da jurisprudência do seu tempo. Chalais, Marillac, Montmorency,
Bouteville, todos responderam perante tribunais criados para o caso,
de comissões e juntas nomeadas à maneira do tribunal da inconfidência,
e todos foram implacávelmente sacrificados à política monárquica e
centralizadora do ministro.

Anular o terrível efeito da dispersão de fôrças políticas do país,
robustecer a monarquia, destruindo a nobreza, poder intermediário
entre ela e o povo, e que a neutraliza muitas vezes, preparar
_inconscientemente_, pelo advento e a exaltação da classe média, a
democracia de hoje--e é esta a obra que durou, de tantas empreendidas
pelo marquês de Pombal--tal foi a sua missão, superior nalguns pontos à
sua própria vontade, da qual êle nem sempre teve a consciência definida
e clara.

Richelieu tambêm teve um único fim: criar a monarquia una, poderosa,
que depois foi a de Luís XIV. Tambêm êle--¿e quem lh’o havia de
vaticinar que o não indignasse furiosamente?--foi um predecessor
terrível do terrível Robespierre, um preparador inconsciente da
revolução burguesa de 89, e nesse ponto as ideas dos dois ministros e o
resultado final da sua obra parecem-se imensamente.

No entanto Richelieu e Pombal morreram sem remorsos do que haviam
feito, julgando ter obedecido à divisa que era de ambos: _Salus populi
suprema lex est_.

Esta mesma doutrina atroz, mas como nenhuma eficaz, salvou a França,
pelo _terror_, da invasão estrangeira, da desmembração e da ruína.

¿Quem pode aplaudir os medonhos crimes do _terror_? ¿E quem não sabe
que o povo francês lhe deveu a salvação?

A linha recta, a inflexibilidade terrível, a implacável resolução são
os predicados e tambêm os defeitos dêsses políticos sombrios, dêsses
sinistros estadistas--para quem o fim justifica todos os meios--e o
indivíduo em si não passa de um zero, e só tem importância a sociedade,
exactamente como para a implacável natureza só tem valor a espécie.

Não nos espanta por isso, conquanto nos encha o coração de lágrimas,
essa execução dos fidalgos, que está na lógica da férrea política
pombalina.

Mais nos repugnam--porque não tiveram a mínima influência política,--as
longas clausuras, as lentas dores inflingidas friamente em dezoito
longos anos de prisão a tantos inocentes!

O marquês de Alorna foi um dêles e em Chelas a espôsa e as duas
pequeninas filhas, agradeciam a Deus, de mãos postas, diante do altar
onde a extrema piedade ortodoxa de uma, e o poético instinto religioso
das outras as prostravam, a graça infinita que Deus lhes fazia, em
conservar ao menos com vida, embora no desamparo e no frio, e na
privação de tudo, embora nas masmorras da Junqueira, aquele querido
ausente, que podia, tão bem como os outros, ter expirado em tratos no
cadafalso de Belêm. É a sombra tenebrosa e gigantesca dêsse cadafalso,
em cuja história, por isso mesmo, nos demorámos tanto, que vai enublar
a mocidade, que vai exaltar intensamente a viva imaginação de Leonor de
Almeida, a heroína dêste livro.


NOTAS DE RODAPÉS:

[1] _Memórias históricas e genealógicas dos grandes de Portugal_, por
D. António Caetano de Sousa. Nestas memórias se encontra a genealogia
da família de Távora, de Assumar, etc.

[2] Estas praças que fazem parte das _Novas Conquistas_, ainda hoje
pertencem à corôa portuguesa. Alorna fica na província de Pangim. Está
edificada a fortaleza sôbre o rio Mhaporá, que ali toma o nome Alorna.
Terá hoje 1:668 habitantes, 308 fogos e 63 praças de guarnição.

[3] Como especime do estilo do tempo e do abismo ou antes tremedal
imundo em que caíra a poesia na pátria de Sá de Miranda, de Ferreira e
de Camões, aí vão os versos que caracterizam uma época:

    Vai, oh formosa heroína,
    Do mar essas ondas sulca,
    Que, se é Vénus na beleza
    Vénus nasceu das espumas,

    Se és Divindade, não temas
    Da salgada água a fúria,
    Que até impera nos mares
    Immortal a formosura.

    Vai ser de Thetis inveja,
    Ser de Neptuno ventura,
    Das sereias lindo encanto.
    Das nymphas formosas injúria.

    Os tritões e as Napeias
    Sendo alegres testemunhas,
    A nau--carroça; tu--Deusa,
    Passeia as ondas ceruleas.

    Vai que é pequeno hemisfério,
    Um só mundo às luzes tuas,
    E quem em um só não cabe
    Justamente o outro busca.

    São do sol os diamantes
    Produção brilhante e sua;
    Se produz lá um sol tantos
    Três que farão? Conjectura.

    Vai examinar o oriente
    De onde sai a luz mais pura,
    Verás do teu nascimento
    Belo esplendor, cópia justa.

           *       *       *       *       *

    Vai! conheça o mundo todo,
    Mais alto poder divulga,
    Que o sexo que em ti domina,
    O sangue que em ti circula.

                               (C. CASTELO BRANCO, _Noites de insónia_).


[4] _Anual Índico Lusitano_ dos sucessos mais memoráveis e das acções
particulares do primeiro ano do Felicíssimo govêrno do il.ᵐᵒ e ex.ᵐᵒ
sr. Francisco de Assis de Távora, marquês de Távora.

[5] Camilo Castelo Branco.

[6] _Testamento político de D. Luis da Cunha._

[7] Costigan, _Sketches of society and manners_.

[8] A capela real metropolitana e depois a patriarcal, podendo
celebrar festas com pompa igual à do Vaticano. Os beneficiados poderem
usar meias de uma certa côr. Uma colegiada na capela real com seis
dignidades, dezoito cónegos e doze beneficiados.

Requerimento de Alexandre Gusmão a el-rei D. João V. Inéditos. Os
padres poderem rezar três missas em dias de finados.

[9] El-rei D. João V conseguiu elevar à categoria de santos da côrte do
céu Luís Gonzaga, Estanislau Kotska, João Francisco Regus Vicente de
Paula, Camilo Lellis.

[10] Tableau de Lisbonne. O cavaleiro de Oliveira. Camilo Castelo
Branco.

[11] Macaulay, _Essays_.

[12] No seu _Testamento político_ D. Luís da Cunha aconselha a D. José
que chame para seu ministro a Sebastião José de Carvalho.

[13] Comte, _Cours de philosophie positive_.

[14] Comte, _Cours de philosophie positive_.

[15] Chegou esta, para comer um duro pão regado com lágrimas, a ser
criada das freiras e andar descalça, vestida de chita, como a última
das mendigas.

[16] Camilo Castelo Branco.

[17] Michel Chevalier, _Le marquis de Pombal_, _Revue des deux mondes_.

[18] Escrevendo há mais de treze anos estas palavras, mal sonhávamos
que havíamos de publicá-las num tempo em que elas já não teem exacta
aplicação.

Nós somos os desgraçados contemporâneos dos horrores da _grande
guerra_, dos crimes inauditos da Rússia e da Alemanha, e que de longe
vimos o morticínio horrendo de que foram vítimas inocentes as filhas
e o filho do Czar, e o assassínio atroz dos Pais, os que chegámos à
velhice saciada de horror, vendo a humanidade peor do que nunca foi,
vendo a civilização a tão falada _civilização_ num retrocesso tenebroso
que nos apavora e nos assombra.

Tudo que afirmamos com tamanha fé, nos parece falso, ilusório,
mentido. O _sentimento do horror_ há tanto desconhecido tornou-se a
apossar dos nossos cérebros e dos nossos corações. Um pavor medonho
oprime hoje as almas. _Pensar_ é descer ao mais negro e profundo dos
abismos!




                              CAPÍTULO II

 Leonor em Chelas.--Antiguidade e origem dêste convento.--Vida
 conventual.--As cartas do marquês de Alorna a sua mulher.--Não são
 escritas com sangue.--Correspondência entre Leonor e o pai.--O
 incidente entre Leonor e o arcebispo de Lacedemónia.--Versão correcta
 e autêntica dêste incidente que anda desfigurado nas biografias
 de Leonor.--Estudos.--Leitura dos filósofos franceses.--Lutas de
 Leonor com o pai, a mãe, a condessa do Vimieiro.--O esquecimento
 do passado e do presente procurado no estudo.--Confiança que
 Leonor tem no pai.--Festas de Chelas.--Outeiros.--Representação de
 Atália.--Intermédios jocosos.--Coragem e alegria de Leonor através
 de todo o seu infortúnio.--O problema religioso.--Ilusões simpáticas
 do espírito de Leonor.--O marquês de Alorna condena Voltaire a ser
 queimado.--Admirável resposta de Leonor.--Discussões acesas de Leonor
 com os confessores do convento.--Lutas de consciência.--Antagonismo
 entre Leonor e o seu meio.--Fantásticos projectos de salvar seus
 pais.--Cartas a Luís XV e a Voltaire.--Mau francês e óptimos
 sentimentos.--Controvérsias literárias e poéticas entre o marquês
 de Alorna e Leonor.--Bom senso e bom gôsto do marquês.--O que
 Leonor diz a respeito do amor.--A Zamparini e várias anedotas da
 côrte.--O marquês de Gouveia e Maria de Almeida.--Entusiasmo com que
 Leonor antevê a factura existência dos seus no campo.--Influência
 de Rousseau.--Dois projectos de casamento para Leonor.--Retrato de
 um fidalgo ignorante.--Versos de Chelas.--Os sonhos de Leonor.--O
 príncipe azul.--Morte do rei que vem libertar a família de Alorna.


Como no anterior capítulo foi dito, a 14 de Dezembro de 1758 entravam a
marquesa de Alorna e suas filhas Leonor e Maria, no convento de Chelas.
Fica, como se sabe, nos subúrbios de Lisboa êste mosteiro, ao qual
frei Luís de Sousa consagra longos períodos de que citaremos os que
seguem:

«Junto à cidade de Lisboa, ao norte dela, em distância de quási uma
légua, há um vale por cópia de quintas e frescura de hortas e pomares
assás deleitoso, que chamam Vale de Chelas. Havia nêle pelos anos em
que vamos, de 1223, uma igreja tão antiga na primeira fundação que,
sem haver quem disso duvidasse, se referia ao tempo em que a primitiva
igreja florescia com favores do céu e perseguições da terra, porque
sendo regada com rios de sangue de infinitos mártires, que cada hora
padeciam, tomava fôrças do mesmo ferro e fogo com que era perseguida, e
ia crescendo e pulando, e tomando posse do mundo. Assim é cousa certa
que deram ocasião a se fundar esta igreja os gloriosos mártires S.
Felix e Santo Adriano, porque padecendo ambos em tempo de Diocleciano
imperador, animosa e santamente pela fé, Felix em Gerona de Catalunha,
aonde veio buscar o martírio, fugindo da cidade Scilitana em que
nascera, e da de Cesária em África, onde seus pais o criavam no estudo,
e Adriano sendo martirisado em Nicomédia de Bithinia, por varios casos,
e em tempos diferentes, vieram as santas relíquias de ambos, com
muitas de outros companheiros do martírio aportar neste vale, e no
lugar da igreja onde naquele tempo chegava o mar, que agora lhe fica
longe quási meia légua. Foram os mártires conhecidos pela relação de
quem os acompanhava, mas logo reconhecidos e reverenciados por meio de
esclarecidos milagres que obraram.

«Edificou-lhes igreja a devoção de Lisboa, e foram honrados nela
debaixo do nome de S. Felix, ou porque padeceu em terras de Espanha,
ou porque foi o primeiro em chegar ao vale; e em testemunho da grande
antiguidade ficou com o nome quási trocado no povo, chamando-se S. Pero
Fins de Achelas.

«Na entrada dos mouros, que depois sucedeu, de crer é que o mêdo e a
confusão que por castigo do céu oprimia os ânimos, usaria do remédio
mais fácil para salvar as santas relíquias, que era enterrá-las no
mesmo lugar e encomendá-las aos mesmos santos»[19].

       *       *       *       *       *

«Lançados os mouros de Lisboa pelo braço e valor de el-rei D. Afonso
Henriques, purificadas as igrejas que haviam em pé, e reedificadas
pouco a pouco as que estavam em ruína, foi povoada esta de frades, o
que se vê das provisões e outros instrumentos autênticos do cartório
dela, que particularmente vimos, notámos e cotámos»[20].

Parece que os mouros reconquistando Lisboa aos leonenses expulsaram de
Chelas seus habitantes, e converteram a igreja em mesquita, porquanto
el-rei D. Afonso Henriques, tratando de purificar e restituir ao culto
divino vários templos que os infieis tinham profanado, fôra um dêles
o convento de Chelas, sendo celebrante o bispo de Lisboa D. João
Peculiar, e assistindo o soberano à cerimónia da purificação e ao
descobrimento e transladação das relíquias que estavam em duas caixas
de mármore, as quais foram colocadas na capela mor, de modo que ficaram
servindo de altares de S. Felix e de Santo Adrião[21].

Primeiramente foi o convento duplex, e povoado pelos cónegos regrantes
de Santo Agostinho. Deixou depois de ser duplex, e só nêle ficaram
religiosas; não se sabe, porêm, o ano em que isto sucedeu.

O que, porêm, de tudo que acêrca dêle se escreveu pode com certeza
deduzir-se, é que êste convento de Chelas é dos mais antigos e
memoráveis de Lisboa.

A porta principal da entrada é de um lindo gôsto manuelino. O convento
vasto, mas sem nenhuma beleza de arquitectura digna de nota. O côro em
1883 ainda se podia considerar um pequeno museu[22] onde se encontravam
várias obras artísticas, tais como quadros, jarras de merecimento,
imagens de prata, loiças do Japão, etc.

       *       *       *       *       *

Não se recomendavam pela austeridade da clausura nem pelo ascetismo
contemplativo das monjas os conventos do século XVIII em tôda a Europa
ocidental.

Passara havia muito o tempo dos milagres, das visões místicas, da
_loucura da cruz_. Já ninguêm se supliciava em martírios de uma
pungitiva delícia, na expiação de grandes paixões terrenas, ou na
esperança ardente de uma sonhada bemaventurança. Um frígido sôpro
passara, esterilizante e devastador, pelas almas e pelas consciências
do tempo.

Leonor de Almeida não teve, pois, a sentir ali uma pressão que em parte
alguma já existia nessa época. Pelo contrário; seria doce e calma a
vida conventual para quem não tivesse lá dentro um desgôsto a minar-lhe
a existência.

Reflecte-se uma espécie de suavidade íntima, de alegria transcendente
no rosto das mulheres consagradas desde a mocidade à vida do claustro
ou às missões da caridade. Despindo as tumultuosas paixões e as
intermitentes alegrias humanas, elas despem tambêm a faculdade de
se interessarem, de se entristecerem, de vibrarem ao influxo dos
sentimentos mundanos.

Apagado nas almas o sombrio ascetismo mediévico, essa nevrose de
que o mundo cristão sofreu tão intensamente durante séculos, ficou
a doce calmaria conventual a substituí-lo. As rezas variadas, as
minuciosas práticas do culto, o cultivo caprichoso das mais lindas e
cheirosas flores, a produção geitosíssima de flores artificiais, de
paramentos ricamente bordados, de doces em que se exibia a fantasia
colectiva de cada convento, as distracções inocentes que dava a cada
uma êste trabalho, para todos proveitoso, a tagarelice natural a
pobres mulheres ignorantes sem responsabilidade de árduos deveres nem
compreensão nítida do seu sacrifício, as visitas à grade de parentes e
amigos enchiam ali o monótono giro dos dias e dos anos.

O século XVIII tinha tambêm os seus _outeiros_, as suas _eleições_, as
suas festas de locutórios e de igreja.

Acudiam poetas às solemnidades do _abadessado_ e, desde Filinto
até Bocage, quantos ali fizeram brilhar o seu engenho, glosando
motes, improvisando sonetos, repetindo quadras e décimas amaneiradas
e requintadas. Os filhos segundos das primeiras casas do país
interrompiam então as tropelias de toureiros, as arruaças nocturnas
com que se deleitavam em assustar o burguês pacífico, e vinham tambêm
espreitar sob o véu que a meio lhes ocultava o rosto, os lindos olhos
coriscantes, os rubros lábios risonhos, as morenas faces penugentas
como pêssegos, das suas primas e parentes, as lindas noviças, as doces
raparigas destinadas ao serviço de Deus, por não haver cá fora quem
as quisesse sem dote, ou por não consentirem as famílias que elas
deslustrassem a sua altiva prosápia em casamentos menos dignos da
preclara origem do seu nome.

Era um tempo estranho êste. A crença primitiva embotara-se nas almas,
deixando ainda nos lábios o seu vocabulário especial, a sua tecnologia
sagrada. Ninguêm se revoltava ainda abertamente contra os abusos de
um regímen religioso e político que, degenerando da sua nobre origem,
tinha conservado os defeitos e perdido as grandes qualidades que o
haviam feito longamente viver; ninguêm se revoltava em palavras, mas
as obras correspondiam ao relaxamento de tôda a disciplina, à tibieza
crescente de tôda a fé.

Leonor de Almeida, dentro do convento de Chelas, pôde, mercê dessa
transformação completa da disciplina conventual, ler, pensar,
instruir-se, formar uma concepção pessoal do mundo e da vida, sem que
ninguêm ousasse intervir no fôro íntimo da sua juvenil consciência.

Ninguêm, engano-me. Intervinham amiudadas vezes o pai, a mãe, a amiga
mais querida de Leonor, a condessa de Vimieiro, Teresa de Melo Breyner,
a quem ela, em versos e cartas, chama poéticamente e arcádicamente à
moda do tempo, a sua Tirce. Mas a todos estes ela iludia com hábeis
sofismas, ou contradizia com rigorosos argumentos. O mais penetrante
espírito com que o seu se correspondia era o do pai, o marquês de
Alorna, muito mais ilustrado, muito mais inteligente que o vulgar da
sua classe e do seu meio, mas imbuído de muitos dos preconceitos de
ambos.

Temos felizmente à vista parte das cartas inéditas dirigidas por Leonor
de Almeida ao marquês seu pai, e por elas podemos reconstruir a vida
das três senhoras no convento de Chelas, modificando e corrigindo com
a publicação de documentos autênticos alguns dos erros que se notam no
prólogo às obras poéticas da marquesa, publicadas em seis voluno ano de
1844.

Nesse prólogo, que não traz nome de autor, mas no qual se sente a
inspiração da filha da marquesa de Alorna, D. Henriqueta, então dama
camarista da senhora D. Maria II, se diz que o marquês de Alorna, pai
de Leonor, escrevia à espôsa do seu cárcere da Junqueira, tendo por
tinta o próprio sangue. Exagêro romanesco êste, que se acha desmentido
no prefácio do folheto escrito pelo próprio marquês de Alorna, e
publicado mais tarde pelo presbítero José de Sousa Amado, sob o título
que damos em nota[23].

Citemos o período que explica e esclarece êste ponto importante da vida
do prisioneiro:

«Naquelas prisões, onde por tanto tempo gemeu a inocência e o
merecimento, os presos eram privados de tinteiros, talvez pelo receio
de se relacionarem uns com os outros, ou com suas famílias. O autor,
porêm, desta memória excogitou um meio que muito bem lhe surtiu, para
haver tinta; e foi lavar os pés das cadeiras que lhe deram pintadas de
vermelho, com o vinagre que lhe ia ao jantar.»

Foi com esta tinta, de um róseo desmaiado, que temos à vista, que o
marquês escrevia à mulher e à filha.

Sem serem própriamente as clássicas masmorras de séculos mais cruéis
do que êste, que ainda o era tanto, os cárceres da Junqueira eram
suficientemente escuros e lôbregos e infectos para que não seja
necessário acrescentar à sua história tenebrosa a lenda do sangue usado
como tinta pelos prisioneiros desgraçados.

Em algumas das celas em que os presos viviam--como, por exemplo, na
do marquês--tão débil era a claridade do dia que penetrava por uma
estreita fresta, que a luz tinha de estar perpétuamente acesa para que
os infelizes que ali habitavam podessem escrever ou ler ou remendar
os seus miseráveis andrajos[24]. Por falta de tratamento e de curativo
ali enlouqueceu o conde de S. Lourenço, ali morreram o conde de Óbidos
e o conde da Ribeira. Ali sofreu inocente a mais atroz miséria D.
Martinho de Mascarenhas, o filho do duque de Aveiro, conhecido entre os
presos pelo _Marquesito_, e a cuja caridade engenhosa, a cuja bondosa
solicitude o pai de Leonor tanto deveu na sua enclausuração. O marquês
de Alorna foi, porêm, dos poucos que suportaram, em plena integridade
mental e sem grandes sofrimentos físicos, êsse período tenebroso e
cruel, êsse período de tormentosa perseguição que durou dezoito anos.

As cartas de Leonor, e algumas do marquês, que tivemos a fortuna de
ler, revelam os finos quilates dêsse carácter de fidalgo, fiel à
religião em que se criara, e na qual achou confôrto e fôrça para o
longo suplício; fiel à instituìção monárquica a cujos abusos devia a
sua imensa desgraça e a dos seus; coerente consigo próprio, como se não
pode ser nas épocas de transição, tais como aquela em que a filha vai
desenvolver-se e vai viver. O marquês de Alorna viajara, vira a côrte
de França no seu ainda absoluto esplendor de etiqueta e luxo; comparara
as cousas lá de fora com as nossas, e percebia a fundo a abjecta
decadência em que a pátria tinha caído.

No prefácio das obras, já citado, vem a narração do incidente,
ligeiramente cómico, havido entre Leonor e o arcebispo de Lacedemónia,
mas em circunstâncias que as cartas que temos à vista contradizem.

Nem o arcebispo ameaçou Leonor com as iras do marquês de Pombal, nem
a condenou a dois anos de clausura ainda mais estreita do que já era
a sua; nem tão pouco a gentil poetisa de Chelas lhe deu a resposta
_corneliana_ de que reza o prefácio. Foi muito mais pacífica e muito
menos romanesca a sua entrevista com o prelado. Ouçam-na tal qual ela a
narra a seu pai, em uma das suas cartas:

«Chegou meu irmão a Lisboa, bem galante e estimabilíssimo, não obstante
as melhoras de minha mãe, o ar frígido e coado das grades meteu mêdo ao
médico e não houve remédio de condescender com os desejos que ela tinha
de o ver. Passados três dias de meu irmão estar em Lisboa fêz que,
muito impaciente de ver minha mãe, obtivesse um tácito consentimento
da prelada, entrasse com um barril de água, que lhe custou, mas deu
tudo de barato. Jantou connosco, tivemos um dia de folga, todos juntos,
e saíu meu irmão à noite, segundo o costume conventual, o qual admite
aqui infinitas pessoas com qualquer pretexto. Minha mãe estava fora da
cama, muito contente com o filho, e nós igualmente com o irmão, nem
por sombras imaginávamos que isto seria prejudicial a coisa nenhuma.
Entretanto as freiras, furiosas contra nós, davam conta aos prelados,
com o aspecto mais horroroso que é possível, e no dia seguinte veio
a aia da prioreza chamar-me a mim e à mana, da parte do arcebispo de
Lacedemónia. A primeira coisa que me lembrou foi responder que não
queria lá ir. Mas permitiu Deus que minha mãe julgasse o contrário, e
fomos ambas, eu e a mana. Ao entrar na grade apresentaram-se-nos dois
homens; um dêles valia por um esquadrão; era uma baleia de rebuço em
um capote de baeta usada, um daqueles cónegos que pasma _à l’aspect
d’une soupe_, e sem mais cumprimento com as pupilas se assentaram os
nossos dois prelados. Êste gordo era o inspector, e o arcebispo, de
menor volume, disse: «V. Ex.ᵃˢ podem estar a seu gôsto.» Sentámo-nos,
escarrou êle, tossiu e se _rengorgeant_ na cadeira, principiou: «Sua
majestade, a quem constou o atentado que hontem cometeram seu irmão
e v. ex.ᵃˢ, violando a clausura, me manda repreender a v. ex.ᵃˢ
ásperamente, e é servido ordenar que v. ex.ᵃˢ não tornem à grade até
segunda ordem, e que andem vestidas honestamente, e que as suas criadas
se reformem nestes oito dias, passados os quais, se o não fizerem, tem
a prelada ordem para serem expulsas.» Eu e a mana ouvimos em silêncio,
modestamente, estes quatro versos, e acabada uma grande prelenga que
êle fêz sôbre as imunidades da clausura, respondi eu que o nome augusto
de sua majestade bastava para que pessoas que tinham sido educadas com
honra olhassem só com respeito quaisquer ordens, e que eu segurava a
s. ex.ᵃ que elas seriam executadas com fidelidade e prontidão. Porêm,
que o nome _atentado_ era tão horroroso, que depois de protestarmos
a nossa obediente submissão, restava ainda pôr na sua verdadeira luz
o pretendido _atentado_ e convertê-lo numa acção generosa, digna da
piedade dos nossos legisladores, e alêm disso conforme às liberdades
que eram concedidas a minha mãe. Pintei-lhe com côres bastantemente
vivas um filho que despreza o trabalho mais penoso para consolar uma
mãe aflita, e satisfazendo com o seu cansaço as apertadas leis da
clausura. Disse-lhe que havia uma multidão de casos idênticos, e que
só _dezesseis anos_ de pezares sem esperança de alívio davam motivo a
que abusassem do nosso estado as nossas acusadoras... A respeito dos
vestidos os nossos não foram invejados senão por limpos, e o arcebispo
mesmo se riu das respostas filosóficas (_sic_) que lhe dei, e da
prontidão com que me quis logo vestir de côr à sua escolha, achando-me
muito honrada, que el-rei se dignasse dar ordens em uma matéria que eu
muitas vezes deixava ao arbítrio do mercador... A reforma das criadas
consiste em dois covados de cassa postos na cabeça. Considere v. ex.ᵃ
que dificuldades e que casos fazem rodar um arcebispo de Lisboa aqui,
chamar-nos, repreender-nos, e no fim dizer-nos que não necessitávamos
de enfeites _porque somos muito bonitas_. Ria-se meu querido pai, e
olhe para estas cousas como merecem.»[25]

Esta citação dá o estilo epistolar de Leonor de Almeida, que sómente
ousámos alterar na pontuação e na ortografia, pois que ambas são muito
defeituosas. Viva e pronta na réplica, animosa na crise, sem covardia
de género nenhum, nem moral, nem física, e usando com facilidade
e graça a fraseologia peculiar do seu tempo em que a _filosofia_
intervem a propósito de tudo. Contamos por inteiro a anedota por
não ser inteiramente conforme à que se conta no prefácio das obras
poéticas da marquesa de Alorna, e por esta última versão ter sido
inalterávelmente repetida por todos os biógrafos que se teem ocupado da
nossa poetisa[26].

       *       *       *       *       *

Nos dezoito anos do seu cativeiro, a primeira e mais querida ocupação
de Leonor de Almeida consiste no estudo e na leitura incessante de
todos os livros que lhe vêm parar às mãos. Não preside a essa leitura
nem método rigoroso, nem critério seguro. Em Portugal, e naquele tempo
não o havia nem nos melhores espíritos.

Muita vez Leonor se entusiasma por um autor que não merece êsse preito,
muita vez mistura à lista de grandes mestres, em literatura ou em
filosofia, um nome absolutamente medíocre; outras vezes, falando de
autores mais célebres, deixa entrever que os compreende mal, ou que não
os compreende de todo.

Mas a sêde de saber devorante, angustiosa, intensa e viva, como uma
paixão que é nela absorvente, ilude-lhe deliciosamente os longos anos,
os intermináveis dias da sua estreita e monótona clausura.

Leonor estuda latim e com singular aproveitamento; estuda o francês,
o italiano, o inglês, o alemão; chega a estudar o árabe! Aprende e
cultiva a música, canta no côro as belas melopeias sacras da liturgia
católica e conventual, e na grade, no lucutório, nos serões da
abadessa as cançonetas italianas com letra de Metastásio, as árias dos
compositores do tempo, franceses e italianos.

Por conselho do Dr. Inácio Tamagnini, seu médico e seu amigo, põe-se um
belo dia a estudar lógica, declarando ao pai que «não basta a lógica
natural, que isso não é mais que um caminho andado para a saber, e por
melhores que sejam as disposições, se a arte nos não diz que cousa
é _proposição lógica_, se nos não faz conhecer que cousa é _idea da
imaginação_ ou do _entendimento_, quais são os erros que nos vêm
dos sentidos e quais da autoridade, que cousa é crítica, o que são
as ideas simples ou complexas, o _silogismo_, o _maior_, o _menor_,
a _conclusão_, antimema, dilema, sorite, etc., nada disto revela a
natureza.»[27]

Portanto, ei-la que lê com afinco o professor Félice, o padre Teodoro,
e Wolfio, e Verney e Port Royal, aconselhando estes autores e estes
livros ao _Marquesito_ de Gouveia, companheiro de cárcere do marquês
de Alorna, e que êste sonhara dar mais tarde por marido a D. Maria de
Almeida, a encantadora e fina irmã de Leonor, tão letrada ou quási
tão letrada como ela, e para agradar à qual não bastam a nobreza,
a elegância patrícia, a formosura viril, é tambêm indispensável a
_filosofia_ e a lógica!

A respeito dêste novo estudo compreendido sob os conselhos do bom
médico, a quem o marquês de Alorna manda agradecer da Junqueira, a
vida e a educação intelectual da talentosa filha, eis como o pai lhe
responde inteiramente ao corrente do assunto versado:

«Parece-me muito bem o estudo da lógica, de que depende tudo quanto
cabe no discurso humano, e muito particularmente a poesia e a retórica.

«Desta última arte tambêm seria conveniente que visses algum tratado.

«Nesta matéria bem sabes que te tenho falado há muito tempo. A lógica
que algum dia te inculquei foi de Port Royal. Não conheço a de Mr.
Félice, mas como nessa matéria não se pode inventar nada de novo tudo
vem a dar no mesmo, com mais ou menos impertinência. É estudo algum
tanto fastidioso, principalmente para os que teem mais lógica natural,
mas os desta casta em pouco tempo o poderão devorar, e melhor é que não
se dilatem nêle com excesso, porque nesta matéria o demorado artifício
faz algum dano à boa natureza. Esta casta de lição tem um certo tempo
em que consiste a sua conveniência, e da mesma forma que é muito
proveitoso ter regras para se não equivocar com falsas aparências, como
sucede muitas vezes aos poetas, tambêm o espírito sofístico não presta
para nada.»

No meio dos seus estudos mais enfadonhos, as horas de distracção são
tomadas pela leitura.

Pede licença ao pai para ler Rousseau[28] e Condillac, e Diderot, e
Voltaire: decora Racine e Corneille, e ainda mais, Crébillon tambêm,
a quem a França chamou por muito tempo o seu Sofocles! Lê Pope, lê
Boileau, lê Cervantes. Tudo que lê a encanta, sem grande crítica, sem
muita finura de percepção, sem um pensamento de síntese a que tanta
leitura se subordine, mas devorada de curiosidade, e justificando
o dito de Fontenelle de que _basta a curiosidade para alimentar a
existência_.

De vez em quando, as influências de que já falámos e a superstição
implacável do seu meio, congregam-se numa espécie de conspiração contra
essa insaciável sêde de saber, que fatalmente há de ir minando nela a
integridade e a pureza da sua fé católica, a sua ingenuìdade de menina
e môça, e transformando-a numa criatura em absoluta desproporção,
em mal disfarçado antagonismo com a sociedade hipócrita e beata,
ignorantíssima e formalista, até ao fanatismo e à demência, em que ela
pelo seu nascimento e posição será chamada mais tarde a viver.

Então, da alma fogosa e irrequieta de Leonor saem palavras quentes
de viva eloqùência, defendendo o acesso dêsse _mundo interior_ cujas
visões a distraem, cujas maravilhas a enlevam, cujos prazeres puramente
espirituais a trazem absorta e esquecida da vida rial tão pungente e
tão lúgubremente solitária!...

Não, isso é que ela não consente que lhe roubem, essa vida fictícia
que ela edificou com os seu livros, com os seus poetas, com os amigos
dilectos da sua inteligência ávida e curiosa!

Nem os pedidos assustados da querida mãe, que ela envolve em carícias,
em cuidados, em requintes de filial meiguice; nem os conselhos
prudentes dêsse pai, a quem a sua alma se confessa com tão inefável e
incansável ternura de todos os instantes, com quem o seu espírito tanto
se compraz em conversar livremente, nem as cartas e as súplicas da
amiga, entre tôdas preferida, a demovem do seu plano.

E êste plano é bem próprio dêsse século literário que tanto viveu
pelo espírito, e que embora em Portugal não irradiasse os esplendores
intelectuais que teve lá fora, ainda assim nos deu aqui alguns
representantes típicos da ânsia de saber, de prescrutar, de sondar, de
conhecer que é como que o seu cunho inconfundível e profundo. Consiste
em estudar sempre, em estudar tudo, em fugir, pelos interesses vivos da
inteligência, às ansiedades extenuantes da vida quotidiana, em esquecer
o presente rial e concreto, pelas distracções violentas, que a uma
imaginação tão irrequieta e tão ardente oferecia o mundo infinito da
erudição, da poesia e da arte!

E depois é necessario não esquecer que Leonor de Almeida tinha no
passado um fantasma sanguinolento e trágico: o cadafalso de Belêm!
Tinha no presente um pesadelo lúgubre a entenebrecer-lhe a existência,
sempre que por um momento a abandonava a seu estranho sonambulismo
de erudita e de poetisa: o cárcere em que o pai ia consumindo hora a
hora a sua virilidade florente e bela! Tinha permanentemente a pairar
como nuvem lúgubre e prenhe de tempestades essa incerteza do seu
destino, êsse pavor do desconhecido, que o capricho e a tirania de
um homem omnipotente podia transformar em eterna clausura rigorosa e
inquebrantável[29].

Por isso, segundo mil vezes o repete, o estudo é a disciplina que
ela impôs ao espírito para o furtar ao desespêro, é o seu _alibi_
artificialmente inventado, com que ela se furta às visões tenebrosas
que lhe enchem de angústia a mocidade.

Muito orgulhosa, muito _viva_, muito rica de energia e de fôrça
espontânea, tendo uma destas organizações fadadas para o movimento,
para a luta, para o desdobramento magnífico de maravilhosas faculdades
complexas, ela sente quanto lhe é fácil sucumbir, logo que, defrontando
com o seu próprio destino, o contemple face a face, na trágica
realidade que o reveste.

E por isso foge de si própria, e por isso pede ao pai com eloqùência
sentida, que a deixe estudar, ler, trabalhar, para não sofrer muito,
para não cair vencida a meio do seu caminho áspero e duro!

«Minha mãe diz que sempre que abre os livros que v. ex.ᵃ sabe que eu
tenho, lhes encontra uma blasfémia. É certo que o seu modo de falar
(_sic_) que é inteiramente diverso da excessiva devoção de minha mãe
pode produzir êste efeito. Emfim, eu que me limito sempre ao que v.
ex.ᵃˢ podem querer, procuro modelar o horror desta melancólica inacção
com a lição que me é permitida. Leio tôdas as manhãs Bourdaloue ou
Fénélon, e depois disto história, poemas, lógica, metafísica. São as
matérias de que gosto e creio que me são permitidos os livros em que me
instruo, porque nenhum dêles deixa de ser nomeado por v. ex.ᵃ.

«A história natural faz as minhas delícias, e se v. ex.ᵃ me privar
disto, seguro que me priva daquilo que mais me recreia. Concluindo,
estou pronta para queimar mr. Buffon e todos os que me vierem à mão
dessa espécie.»

O pai que é, como já dissemos, um homem de sólido bom senso, que tem a
prudência dos pais, aguçada pela inteligência do meio em que a filha
terá de viver, não desanima e continua a aconselhar!...

Uma vez, por exemplo, escreve-lhe depois de lhe falar largamente de um
refutador de Voltaire, e a respeito das obras dêste:

«...Nisto é que me fundo, segundo o que alcança o meu entendimento,
para pretender que tu não leias muitas obras de Voltaire. A maior parte
são dignas de fogo, assim como o teem sido das censuras da Igreja,
e por êsse motivo até as que não teem embaraço devem ser lidas com
cautela. Êste autor é tido justamente pelo mais prejudicial que tem
havido há muito tempo, por ser católico, e depois disto não tanto pela
sua sabedoria como pela sua grande arte de falar. Com efeito não será
fácil encontrar-se outra maior, mas ao mesmo tempo nem sei que houvesse
nunca mais mal empregada, porque uma grande parte das suas obras, bem
se pode dizer afoitamente que compreendem quanto há de pior na escola
do deismo, do materialismo, do desafôro e da mais _alta patifaria_.
Fala em diferentes lugares como nunca falou um infiel nem hereje
contra a igreja romana. Procura sempre com o maior cuidado ocultar ou
destruir quanto nela houver de edificativo, e exagera quanto pode o
que se lhe tem visto de débil e humano. Essas coisas que a todos devem
fazer horror, são muito nocivas aos juizos novos, vivos e femininos,
e sem embargo de destituídas de provas, e às vezes opostas às mais
leves luzes naturais, são ditas com expressões tão engenhosas que o
demónio depara, e proferidas de um modo tão deliberado que fazem muitas
vezes grande impressão, principalmente em quem for mais sensível à
fôrça do consoante. Mas não é só Voltaire o autor pernicioso de quem
tu deves ter cuidado de fugir; há outros, tambem modernos, de que te
deves igualmente precatar, e contra os quais a lição de Bourdaloue e de
Fénélon não é certamente preservativo bastante.

«O teu entendimento, tambêm podes ter a certeza que não basta, porque
não houve até agora nenhum que fôsse livre de tentação e de ilusão;
mas alêm disto a minha conta tambêm se funda em que muito maior será
o proveito literário que vocês tirem dos livros que lhe não podem
preverter o coração e o juizo, do que dêsses que, por conta da moda e
de um apetite cego, se arriscam a resultar-lhe grande dano. No que
toca a história natural ninguêm no mundo com razão a pode condenar. É
das lições mais indiferentes que pode haver, mas sôbre a de mr. Buffon,
e só no que respeita a anatomia, me parece que não convêm a uma pessoa
do teu estado pela liberdade filosófica que tomou, etc.»[30] Ao que
Leonor, já se vê, se submete na aparência. Logo, porêm, que o conflito
se declara abertamente, ela ilude a vontade dos que a cercam ou lhe
resiste com pertinácia invencível, embora envolta nas formas do mais
cerimonioso respeito, da mais formal submissão.

É que rialmente sem êsse forte derivativo do estudo, que é nela uma
idea fixa, seria incomportável o seu destino[31].

«Em vinte e dois anos que já conto não se acha paciência nem filosofia
bastante para sofrer inalterávelmente tanto dano sem a esperança do
futuro.»[32] «Estes dias (o dia dos anos da mãe) em que se renovam as
memoráveis ideas que temos do passado, parece-me que trazem consigo um
pêso formidável.»

E esta idea de distrair-se violentamente para esquecer, aparece
mil vezes sob diversas formas, mas sempre expressa com sinceridade
espontânea.

O seu temperamento, diz ela, é muito melancólico. «Quando estou
divertida não sinto nada; quando rezo, e sou tão miserável que me não
diverte isso nada, sofro infinitamente.»

--«O que me custa é considerar a nossa infelicidade. É ver preso,
oprimido, pobre e tão distante a v. ex.ᵃ, é ver como se desbaratam
tôdas as ideas de felicidade que minha mãe formou, e a impossibilidade
que desgraçadamente tenho para poder desempenhar os meus desejos a
benefício de meus pais. _Estas são as causas das montanhas que tenho
sôbre o peito, e dos meus desfalecimentos._»[33]

É contra esta tristeza medonha que a sua impressionável e ardente
imaginação reage com insólita vivacidade. E sem afectação nem
fingimento, assim como descreve ao pai as torturas que a pungem longe
dêle, tambêm lhe narra as distracções com que ilude ou anestesia o seu
sofrer.

Nas noites de inverno reùnem-se no quarto de uma. Cantam, dansam,
dizem versos, falam em literatura, recitam poesias italianas.

Outras vezes há no convento exames dos respectivos estudos que teem
versado.

Leonor, mais erudita e sisuda, dá conta dos primeiros oito séculos
da história eclesiástica. (!) Maria, aquela doce e poética Maria que
Filinto Elísio crismara em Daphne, como crismara Leonor em Alcipe, é
examinada em poesia e em música!

Na eleição da abadessa acodem aos outeiros de Chelas, já celebrado
por ter enclausuradas as duas lindas, discretas e infelizes filhas do
marquês de Alorna, os poetas do tempo, os fidalgos tafuis parentes de
ambas, os belos espíritos curiosos daquela estéril quadra literária,
Garção, Filinto, etc.

E Leonor, alegre e vivaz, atira-lhe da janela para o pátio, em que se
êles atropelam curiosos e ávidos de vê-las, os motes alambicados, os
conceitos _preciosos_, ao estilo do tempo.

--Alcipe, venha mote!--clamam de baixo os vates freiráticos.

E _Alcipe_, e a irmã _Daphne_ e a companheira _Amaryllis_ (!) respondem
infatigáveis, e as décimas chovem, entrelaçam-se os _acrósticos_, e o
soneto desdobra-se monótono e falsamente majestoso, com o seu remate,
que pretende ser conceituoso e que é banal, como tôda essa poesia
dos outeiros e saraus poéticos do nosso século XVIII, tão vazio de
pensamento e tão pobre de forma.

Um dos encantos com que Alcipe deslumbra o seu auditório consiste
na memória prodigiosa que ela possue e que manifesta, repetindo a
décima galanteadora ou o alambicado soneto, mal o seu autor acaba de
improvisá-lo.

Há uma vibração de intensa alegria na descrição incorrecta,
desordenada, sem relêvo plástico, mas cheia de vida, que Leonor faz ao
pai dêsses dias de agitação, de festa, de comoção literária.

Vê-se que ela foi feita para brilhar, para gozar acremente e
violentamente da vida,--não da vida feita pelos obscuros e ásperos
deveres quotidianos, que dessa triunfam sómente os temperamentos
contrários ao de Leonor de Almeida: os que aceitam as tarefas monótonas
com resignação inquebrantável e o pêso do destino adverso com passiva
tranqùilidade, os que sabem enfastiar-se com coragem e aborrecer-se com
fleugma heróica;--mas da outra, da mais brilhante, que se compõe de
dias felizes e noites vitoriosas, da que embriaga o espírito, da que
excita perigosamente os sentidos, da que exalta em agudos espasmos a
imaginação e a fantasia...

Leonor não tem, infelizmente para ela, os salões esplêndidos de uma
côrte artística e literária como aqueles em que brilharam Vitória
Colona ou Margarida de Navarra, madame de Lafayete ou a marquesa de
Sévigné...

Não tem um centro de polida e graciosa conversação em que se toquem
ao de leve, polvilhando-os de oiro, os assuntos mais fúteis e os
mais áridos, os mais técnicos e os mais gerais, como aquele que, no
seu tempo, em Paris se substituía à própria côrte de Versailles, e
acabava por ofuscá-la absolutamente, aquele em que a parisiense, sua
contemporânea, se vingava com brilho incomparável da longa obscuridade
a que a mulher fôra condenada, no qual ela surgia envolvida nos mais
subtis encantos da inteligência, e nas mais deslumbradoras pompas
da beleza e da elegância, rainha voluptuosa de um mundo que a arte
iluminava com a sua luz azul, que a literatura impregnava do seu
capitoso encanto, e onde até a filosofia se fazia ligeira, acessível e
risonha para que ela a assimilasse, a propagasse, a compreendesse e lhe
rendesse culto.[34]

E emquanto lá fora a apoteose da mulher se celebra magnificamente,
ostentosamente, no meio do requintado luxo de uma época de sensualismo
espiritualizado--é muito obscuramente, no ridículo outeiro de um
convento do extremo da península, que esta criatura, feita para brilhar
na mais ampla e mais elevada esfera, se deleita em mostrar o seu
inquieto espírito, borboleta embriagada pelo néctar de uma falsa poesia.

¿Mas que importa o scenário, se ela o transfigurara com a sua
imaginação de chama? ¿Se ela o enfeita com tôdas as pompas de seu
espírito de sonhadora? ¿Se ela consegue ali conhecer o intenso gôzo de
ser admirada, de todos o mais forte, o mais entontecedor para certos
organismos de excepção?

Numa das oito noites consagradas à _festa da eleição_ Leonor representa
com Maria de Almeida, sua irmã, algumas scenas da tragédia de Racine
_Atália_. Atália é Maria de Almeida. Eis como ela a descreve:

--«A mana ficou linda. Estava de donaire[35] com um vestido de uma
espécie de velilho que se usa agora (porque a pragmática vai-se
profanando fortemente), com o fundo côr de rosa e prata, com listas
negras para fazer a rainha viúva, um véu do tal velilho branco e
prata, penteadas de plumas côr de rosa e negras.

«Eu ia vestida de um velilho azul claro e prata, com listas azul
ferrete, que é a côr que me fica melhor. O meu vestido foi copiado
de uma estampa do sumo sacerdote, e tinha barbas que me chegavam à
cintura.»[36]

Depois desta grave tragédia racineana, houve ainda um intermédio jocoso
em que Leonor reaparece vestida de _frialeira_[37], com gibão côr de
rosa e prata, mantéu verde e saia arregaçada, côr de rosa, branca, côr
de fogo e prata[38].

No baile que se seguiu à representação, tôdas as noviças de Chelas
queriam dansar com as duas irmãs. É que elas são de-veras lindas e
deliciosas de espírito, graça, gentileza e veia cómica. Leonor com o
seu belo rosto altivo, de uma correcção que não exclue o mimo, a bôca
finamente e espirituosamente recortada numa linha rubra e sinuosa, o
cabelo opulentíssimo que se levanta nos voluptuosos penteados do tempo,
ou que se espraia em ondas pelas espáduas esculturais, inspirando à
irmã versos entusiastas[39]; Maria, mais pálida, mais melancólica,
de olhar estranho e doce, e cuja voz celebrada por Filinto[40] é a
delícia dos serões de Chelas, como será mais tarde a delícia dos saraus
aristocráticos de Lisboa, onde ela aparecerá envolta no misterioso véu
de etérea graça com que se cobrem aquelas que a morte tem de colher em
flor!...

       *       *       *       *       *

No dia dos anos do pai, mesmo preso e distante como está, da mãe
doente e triste, ou de qualquer das duas irmãs, há festa em Chelas
para obedecer ao tradicional costume antigo, cuja memória não deve
quebrar-se.

A iniciativa engenhosa de Leonor é que faz tudo. De dia vai ela para a
cozinha, arregaça as mangas, põe a nú os seus braços de deusa de uma
plástica impecável e de uma brancura lirial, e rola as finas massas,
e bate as alvas espumas, e manipula os saborosos cozinhados e faz ela
própria o jantar com a elegante majestade com que lavavam roupa as
princesas de Homero. Depois, findos os trabalhos grosseiros do dia,
vestem ambas belos vestidos de setim côr de laranja ou côr de rosa que
elas próprias cortaram e fizeram, de que inventaram ou executaram os
bordados ou as rendas, e convidando alguma amiga preferida, ou mesmo
descendo ao locutório e recebendo algum amigo dilecto, partilham com
êles do seu pequenino banquete. Á noite dansam, cantam, tocam, riem até
que o uso conventual as obrigue ao sossêgo da noite.

Quanta vitalidade, que poderoso optimismo bebido nas suas belas e
pacificadoras leituras, as filhas de Alorna não manifestam nesta
reacção contra a injusta fortuna e o bárbaro destino!

Não são lânguidas heroínas de um romantismo bastardo, são duas
organizações perfeitas, de pronta e viva sensibilidade, tão acessíveis
à dor como ao prazer, tão capazes de sofrerem com violência como de
gozarem com arrebatamento.

No meio da sua miséria, das suas iniqùidades, da tirania negra que
pesava sôbre as almas e sôbre os corpos, da superstição que nublava os
horizontes, era optimista e forte o século XVIII; e os seus filhos não
teriam obrado tão altas maravilhas, se a vontade fôsse nêles amolecida
e doente como nos seus descendentes miseráveis! A _sensiblerie_
começava, é certo, a ser moda em França, e a formular-se em livros,
em tratados filosóficos, em tiradas trágicas, em quadros simbólicos,
etc., etc. Mas a emotividade vibrante, estranha doença moderna, que
nos faz tão fracos, tão susceptíveis, de um melindre tão mórbido ante
as próprias dores e as alheias, não existia ainda. Foi o produto de
uma lenta evolução que então começava. Os defeitos grandíssimos e as
grandíssimas qualidades de que o passado se reveste aos nossos olhos,
vem justamente dessa ausência quási absoluta de sentimentalismo e de
ternura.

É isto que o faz ao mesmo tempo duro como o granito e resistente e
forte como êle. Despreza a vida humana, é verdade; mas não se enternece
diante das suas próprias dores, o que é um grande bem e quási que uma
virtude.

Ás grades de Chelas acodem os amigos mais queridos da família de
Alorna. Garção é um dêles[41], e Filinto Elísio é outro. Nas obras do
erudito escritor e nas da futura Marquesa de Alorna encontram-se as
poesias que entre si trocavam os dois. Uma vez doente, e julgando-se
perto da morte, Leonor consagra a

Francisco Manuel do Nascimento um soneto, que ela apelida ao terminá-lo:

    Do rouco cisne a voz talvez extrema[42].

É Filinto quem lhe pôs o nome poético de Alcipe que ela nunca mais
deixou de usar nos seus versos. A amiga mais querida, é, como já
dissemos, a condessa de Vimieiro, D. Tereza de Melo Breiner, a autora
da _Osmia_, e irmã de Pedro de Melo Breiner, tambêm grande amigo das
enclausuradas senhoras. Tamagnini, o conde dos Arcos, Pedro Inácio
Quintela, administrador da casa de Alorna, Frei Alexandre da Silva,
depois bispo de Malaca, eis os outros amigos a quem, na truncada mas
preciosa correspondência que a Marquesa de Fronteira nos confiou,
Leonor de Almeida se refere com mais freqùência.

Não é natural que fôssem muito mais numerosos os seus visitantes do
tempo em que estar fora da privança de el-rei e do primeiro ministro
constituía um crime, quanto mais viver sob o permanente castigo que
ambos teimavam em infligir a esta família desventurada.

Os dezoito anos de cativeiro de Leonor não teem, pois, peripécias
interessantes ou dramáticas. Os únicos acontecimentos desta existência
conventual, monótona e triste, é dentro do espírito da nossa heroína
que temos de os procurar. Teem um interêsse de psicologia, não teem
nenhum outro. O corpo dela, preso dentro das grades de um convento, não
pode sequer mover-se para alcançar a saúde que naquele meio asfixiante
a ia de todo abandonando.[43]

Mas nunca o seu espírito repousa, pois que mil problemas das mais
diversas ordens e procedências se movem e agitam dentro dêle.

Um dêsses problemas, o mais sério para uma consciência sincera e lúcida
daquela época, era o religioso. Leonor de Almeida que, com o volver dos
anos, se fêz estreitamente devota e intransigentemente aristocrática,
era áquele tempo ledora assídua da enciclopédia, das obras de Alembert,
Diderot, Helvetius, Rousseau, etc., etc. Muita vez ilude e torneia a
dificuldade de conciliar esta leitura com as ordens expressas que tem
do pai, apresentando só um lado das doutrinas em que se embebe, ou
um aspecto dos livros que quotidianamente folheia, mas é de ver que
num espírito de mulher, acessível às influências externas--e sempre
espêlho que reflecte e não luz que irradia--estas leituras aturadas
haviam de produzir o seu efeito natural.

Nesta fase activa e interessante da sua vida espiritual, Leonor
partilha com muitos espíritos do seu século, educados na tradição
católica, uma doce e simpática ilusão.

Ela pretende conciliar o racionalismo filosófico com a religião bebida
na infância. Quer amar um Deus corrigido pela razão, uma religião
mondada de superstição e de abusos, uma Bíblia que Voltaire houvesse
préviamente aprovado, um evangelho em que o _Vicaire Savoyard_ não
encontrasse crítica alguma que apontar.

A _sã filosofia_, que estava então no seu fulgurante início,
patrocinada pelos reis, pelos príncipes, pelos bispos e pelos
grandes, não fôra ainda levada ao seu têrmo lógico por Saint-Just e
Robespierre... A velha sociedade julgava possível subsistir, inteira,
hierárquica, em pleno gôzo dos seus preconceitos, riquezas, privilégios
e excepções, desmoronados ao vento da ironia voltaireana, os alicerces
seculares em que assentava o seu domínio positivo.

Não admira que uma criança inteligente e sonhadora, tendo tido ocasião
de perceber a baixeza moral a que a superstição levara êste país,
tivesse a mesma ilusão que então deslumbrava tantos entendimentos
luminosos...

Leonor sentia-se permanentemente sob a censura disfarçada ou clara dos
que mais íntimamente privavam com ela. O próprio pai, esclarecido como
era, sentia mêdo ao perceber os assomos de independência espiritual,
que ela deixava transparecer nos conceitos, e naturalmente derivava de
cada uma das suas leituras.

Vejâmos as cartas com que Leonor respondia às observações prudentes e
cautelosas dêste amigo do seu coração, com o seu espírito melhor se
entendia.

«Eu li muitas vezes as _Reflexões_ de mr. de Bossuet, li parte da obra
de l’Abbadie, que me fatigou, mas que tornarei a ler com mais gôsto.
Fora disto tenho lido quanto achei a favor da religião, com desejo de
fortificar a doutrina com que me criaram. Agora há muito tempo que me
privo dessas leituras, de propósito, julgando que uma coisa superior
a tôdas as razões humanas escusa delas; e tratando de nutrir o meu
coração de virtudes que teem por fundamento esta crença, cultivo o
entendimento com os conhecimentos próprios para um génio curioso, sem
esperar daqui mais fruto que o de livrar-me da ociosidade e arruinar
de alguma sorte a fôrça da melancolia.

«Jámais entrou nos motivos da minha aplicação algum espírito de
singularidade e uma vaidade _gentílica_ como v. ex.ᵃ lhe chama,
incompatível com a modéstia de que desejo animar as minhas acções.
Gosto de saber quanto cabe nas minhas fôrças, mas antes quero ser
ignorante do que indócil.»[44]

E noutra carta sôbre o mesmo assunto a que volta freqùentemente,
revelando bem a importância que êle tem para o marquês de Alorna,
solícito conselheiro de sua filha, e talvez, como é natural do
seu sexo, do seu tempo e da sua raça, um pouco aterrado ante uma
superioridade feminina, a que êle não percebe aplicação prática de
espécie alguma:

«Sôbre Voltaire não acho que dizer, porque v. ex.ᵃ entende da matéria
melhor do que eu. Sôbre a controvérsia sou proìbida a falar por todos
os princípios, e até devo a S. Paulo a obrigação de me escusar o meu
parecer absolutamente. Contudo êle é reputado como um grande filósofo
e como o assombro dêste século. Eu me lastimo dos seus erros, mas
não posso deixar de confessar a v. ex.ᵃ que me vieram as lágrimas
aos olhos quando vi que v. ex.ᵃ lhe dava sentença de queima! De que
servem homens queimados, meu querido pai? Por ventura reconhecem êles
a verdade na fogueira? Não é Deus só quem deve pôr têrmo aos nossos
dias? Se Deus sofre os homens miseráveis sôbre a terra, que direito
teem os homens para os não sofrer? Eu conheço que v. ex.ᵃ tem muita
virtude e muito juizo para decidir bem, mas eu que son mulher, com o
coração muito pequeno, quando se fala em matar sempre me aflijo pelo
sentenciado, seja quem for. Não está mais na minha mão!

«Deus terá piedade da minha fraqueza se não é boa, em conseqùência
do preceito--de amar o próximo como a mim mesma;--queira Deus que
eu não diga alguma tolice que desagrade a v. ex.ᵃ, mas copiei o meu
sentimento, e disfarçá-lo parecer-me ia pior».[45]

Êste trecho é de uma incomparável nobreza e até de uma simplicidade
eloqùente e _sentida_, bem rara no estilo de Leonor de Almeida e da
geração sua contemporânea em Portugal. Bastava êle para justificar o
que no anterior capítulo escrevemos sôbre a concepção errada e cruel
que acêrca da justiça havia naquele tempo entre nós, até nos espíritos
mais cultos.

O marquês de Alorna tem direito a ser contado entre um dêles, e no
entanto, de ânimo leve, numa carta à filha escrita do cárcere, onde
agonizou dezoito anos, vítima da prepotência régia e da justiça da lei,
vê-se que êle condena à _pena de queima_ êsse Voltaire que defendeu
Calas, e que fêz ouvir a sua voz eloqùente e viva, a sua voz que tinha
asas e asas de fogo, em prol de tôdas as vítimas da iniqùidade humana,
da iniqùidade social, da iniqùidade religiosa!

Tão pouco preço se dava então à vida do homem e ao seu sofrimento.
Tão impiedosa e dura era a alma em que a superstição imprimira a sua
negra influência, e que a tirania criara aos seus peitos de fera! _The
milk of human kindness_, êsse leite da bondade humana, de que fala o
poeta inglês, não corria certamente nas veias dos nossos maiores. Foi
êste século que melhor do que tudo o sentiu, o criou, o fêz jorrar em
mananciais permanentes da alma da humanidade, amolecida por tantas
dores!... É bem verdade, e já aqui mesmo o repetimos, que pagámos
com uma porção de energia êsse acrescentamento das nossas faculdades
afectivas; mas abençoado o contrato que nos fêz bons, muito embora nos
deixasse mais fracos...

A questão religiosa vê-se que é, a par de outras que teem relação com
a sua superioridade literária, a origem de maiores tormentos para o
espírito de Leonor de Almeida. É tão curiosa esta fase da sua vida
íntima, que não resistimos a transcrever algumas das cartas que mais a
esclarecem:

«Vou-me restabelecendo com os esforços da medicina e da filosofia;
uma sem outra me seriam inúteis. Leio moderadamente, porque assim o
preciso para viver, e _apenas largo os livros não acho em redor de mim
senão contradições que me tiranizam_. A verdade e v. ex.ᵃ, que são
os objectos que me obrigam a estudar, são quem me consola das perdas
que faço, talvez, na opinião dos outros. A maior parte das pessoas
com quem falo estão sempre de parecer contrário ao meu, e aquelas
que concordam comigo ou não m’o confessam ou são tambêm vítimas dos
caprichos dos outros. As sciências são um nome vago, insignificante, e
elas em si mesmas são reputadas como um meio de ostentação; os melhores
entendem que elas servem como um meio para saber argumentar, e não
lhe vêem o fim com que eu as olho, de nos procurarem a felicidade e
regularem os costumes. Ontem tive vários argumentos com o confessor de
minha mãe, que sendo homem de infinito propósito e bom coração, está
entestado das ideas vulgares a respeito dos filósofos modernos, e não
admite absolutamente nenhum princípio honesto na aplicação fora, do
que serve únicamente para a salvação eterna. Tudo inutiliza. Chama à
poesia sciência de pagãos, à matemática sciência de loucos, à física
meio de estabelecer nova religião; emfim prognostica que daqui a dez
anos seguramente haverá alguma seita ou uma total _transtornação_ do
cristianismo. Esforcei-me inútilmente para provar que os filósofos,
ainda que erravam em muita cousa, não eram, contudo, incompatíveis com
o cristianismo sublime. E que a natureza que êles profundavam, era
aquela obra magnífica, que mais que tôdas provava a existência de Deus,
que êles olhavam com respeito as suas leis, de que Deus era o autor,
e que Jesus Cristo não veio senão aperfeiçoar. Inexorável a tôdas as
conseqùências que eu tirava dêstes princípios tão verdadeiros, recorreu
ao ordinário meio dos que teem sistema e não teem razão, encheu de
nomes injuriosos os escritores mais célebres dêste século e às injurias
e gestos apostólicos deu o valor de convicções. Pretendia tirar
argumentos contra Newton e outros herejes da sua irreligião, e nunca
pôde admitir o princípio de que em matéria scientífica vale mais o dito
de um sábio hereje, do que o de um santo ignorante.

«Eis aqui os homens de mais juizo e de maiores luzes que por cá temos!

«Eu que não quero, nem levemente, afastar-me da sujeição que devo à
Igreja e às ideas de meus pais, quero que v. ex.ᵃ me diga o que crê a
respeito dêstes pontos, em que os argumentos caíram, e que minha mãe
não pode decidir, porque não estudou nem ao menos leu nada sôbre estas
matérias. Sendo a minha razão livre como tôdas, a natureza e a ternura
me persuadem que só admita o que meu pai admitir.

«Disse eu que a conquista da América tinha sido um atentado contra
a espécie humana, porque a conversão daqueles povos devia ser menos
obra de cães de fila, espada e artilharia espanhola, que da razão e da
brandura; que Maomet persuadira a mentira com ferro e fogo, e Jesus
Cristo a verdade por meio da sua cruz e da missão dos seus apóstolos;
que não havia direito nenhum que permitisse tirarem-se as terras a seus
próprios donos, para se darem aos tiranos que as conquistaram. E que a
bula em que se fazia aos americanos a honra de os admitir na espécie
humana era escusada, porque êles antes disso já eram homens. Diziam-me
que devo crer que tudo isso foram obras meritórias.

«Os homens que se sacrificam por princípios de religião fazem-me
lembrar os sacrifícios de Osiris, de Saturno, de Hércules, de Marte, e
tanto fanatismo me parece uma coisa como outra.

«Não me absolveu o confessor porque eu lhe disse isto, e o de minha
mãe, a quem fui falar para me dizer os termos em que havia de ficar
para me absolverem, disse mil _arengas_, das quais vim a coligir que
êle, no fundo, estava nos meus princípios, e que o não queria confessar
para o não levarem ao santo ofício.

«Eu, que não tenho mêdo do santo ofício, como não tenho mêdo da
sem-razão e dos erros, quero saber se hei de mudar de opinião, porque o
confessor me reservou a absolvição até minha total emenda. O pecado que
eu confessava era o de ter dito diante de pessoas menos aplicadas o meu
sentimento nestas matérias.

«Lembrando-me ao mesmo tempo o texto de S. Paulo, em que nos recomenda
_não escandalizar_ os fracos; esta imprudência me atraíu tôda esta
arenga que me tem aborrecido, porque quanto mais medito menos saída
lhe acho. Os confessores são quási todos ignorantes e gente a quem
nunca exporei as minhas dúvidas.

«Torquemada e outros inquisidores são no meu conceito Nero e Calígula,
Cromwell[46] e outros monstros dêstes.

«Isto dizem que é pecado; será, mas é de razão e de piedade! V. ex.ᵃ
é meu pai, tem mais sciência que os frades, e tem-me mais amor, para
desejar o meu verdadeiro bem. Prouvera a Deus que me podesse confessar,
escusava-me o trabalho de aturar estes piedosos preocupados, ignorantes
e fanat... êste nome é proìbido. Perdôe-me v. ex.ᵃ enfadá-lo com estas
impertinências, mas só com v. ex.ᵃ é que me entendo, meu querido pai.

«Disse eu que todos os filósofos assentaram que a terra se movia;
dizem-me que eu disse uma blasfémia, porque Copernico foi condenado e
Galileu obrigado a desdizer-se.

«Disse que o clima era origem da côr negra nos homens, e que a povoação
da América era um mistério incompreensível, e provei estas duas
proposições. Responderam-me que a maldição de Cham e não _viagens
imaginárias_ eram a solução. Tudo isto é ridículo para quem tem lido
como eu, e o partido de calar-me que eu tomo há muito tempo, se basta
para tranqùilizar-me aparentemente, consterna-me porque receio que
minha mãe apreenda alguma coisa que a aflija, e assim tome v. ex.ᵃ
o trabalho de a tranqùilizar sôbre os meus princípios, e de dizer o
que quer que eu faça. Tôdas estas coisas compadeço eu com a pureza do
cristianismo. Eu olho para o evangelho e para os apóstolos como meus
mestres, tudo quanto os contradiz não admito, e a Igreja nossa mãe a
respeito e a olho com a mais submissa veneração. Contudo os homens são
sempre homens, e assim os considero. Se eu podesse escrever quanto
me lembra, v. ex.ᵃ veria que abomino as questões, e que a docilidade
é o que mais me agrada. Porêm, cada um dá diversa interpretação aos
termos em que argumento, e quando digo _razão, verdade, amor da ordem_,
entendem-me _sistema, ensino e transtornação_; neste têrmo sofrerei
eternamente um martírio quási incomportável...»[47]

Esta carta dá-nos em flagrante realidade a luta que nesse tempo se
tratava em muitas almas piedosas e elevadas, que compreendendo a pureza
inefável do cristianismo, e vendo-o interpretado por um sacerdócio ou
fanático até à loucura, ou ignorante até à sordidez boçal, não sabiam
conciliar contradições tão violentas como afligidoras.

Leonor de Almeida não conta senão os combates de consciência de uma
pobre mulher isolada, talvez um pouco puérilmente vaidosa da sua
incompleta sciência, bebida em leituras truncadas, sem método e
sem guia; mas que eloqùência sublime tem essa luta obscura quando
a relacionamos com tudo que a consciência humana tem sofrido para
se resgatar do cativeiro em que jazeu presa longos séculos! Com que
piedosa ternura, nós as almas libertas dêste tempo, devemos contemplar
os que padeceram suplícios sem conto para que a verdade relativa que
hoje é nossa posse atingisse emfim a sua alforria e o seu império!
Quantos mártires expiaram em fogueiras, em húmidas masmorras infectas,
em morticínios crudelíssimos, em hecatombes abomináveis, a aspiração
que tiveram à liberdade da sua consciência, à integridade do seu
pensamento, à expansão inteira da sua independência mental! E os
que tinham nascido nobres e francos e sinceros, e se corromperam e
degradaram rastejando na sombra corrupta da hipocrisia e da mentira,
porque lhes faltava a heroicidade com que se afronta o martírio, ou
porque os amolecia a sensibilidade estranha dos que sentem a própria
vida identificada a outras vidas?!

E os que sofreram como Leonor a luta ingente, a luta dolorosa entre
as doutrinas bebidas no leite maternal, sugeridas com infinito amor
por lábios de mel e olhos de inefável brandura, e sentiram irromper da
lição dos livros ou da observação dos factos, ou da lógica triunfante
do espírito reflectido e lúcido, a verdade que não pode ser nem
desmentida nem dominada, a verdade que baptiza como água lustral,
que queima como o fogo do céu, que pulveriza como raio destruindo os
edifícios erguidos pelos sofismas da hipocrisia ou pela imaginação
ignara das multidões?!

É grande, é imensa a dívida que contraímos com êsses que sofreram para
que nós conhecêssemos a tranqùila beatitude e a serêna alegria da
consciência libertada!

E não são pueris as queixas de Leonor logo que nos lembrarmos que para
pensar livremente, tudo que então valia um pouco em Portugal ou teve de
fugir, ou teve de degradar-se pela mentira!

Filinto, Ribeiro Sanches, Garção, Bocage, José Anastácio da Cunha, e
tantos e tantos outros lá estão a provar que o receio do confessor
pusilâmine não era uma desculpa vã!

E no entanto devemos confessar que quem estava na lógica da sua crença
eram os que discutiam acremente com a juvenil _livre-pensadora_ de
Chelas!

Não havia conciliação possível entre o velho e o novo credo.

Não se tratava do evangelho livremente comentado pelo espírito
individual, tratava-se da Igreja, poder político e poder social,
ao mesmo tempo que era poder religioso, e cujos dogmas definidos,
rigorosamente formulados, por um clero que, depositário da verdade, a
tinha traído em benefício dos seus interesses, formava hoje um corpo
que ou havia de triunfar inteiro ou inteiro caír.

O confessor da marquesa de Alorna, profetizando para dali a alguns anos
o cataclismo supremo em que a velha sociedade se afundasse, revelava
um tino, uma previdência e uma penetração bem raras no clero português
daquela época, e muito superior, em todo o caso, à filosofia optimista
e à incoerência anti-católica da sua contendora juvenil.

Com certeza que a esta carta comovedora, escrita ao pai, e que é como
a confissão palpitante de uma alma sincera, e que busca entre agonias
a verdade e a luz, o marquês, mais lógico consigo próprio e com a
educação que lhe tinha modelado e formado a inteligência, respondeu
pondo-se francamente do lado da autoridade e da tradição contra a
indisciplina da filha e a _vaidade gentílica_ do seu entendimento.

Mas não se limitou a esta escaramuça entre ela e os dois confessores a
inquietação da consciência de Leonor.

A amiga Tereza de Melo Breiner escreveu-lhe, lamentando a sua
índocilidade aos conselhos da Igreja, e mais de uma vez ou a chistosa
ironia ou a grave reflexão de Leonor dá lugar a conflitos entre ela e a
mãe, ou a amiga, ou os frades que a cercam.

A erudita reclusa conhece os textos dos doutores, as opiniões de S.
Paulo, de Santo Agostinho, de Tertuliano, as conclusões dos concílios,
as matérias sôbre que versam as diversas bulas, e confunde não raro os
seus adversários, mostrando-se muito mais instruída do que êles nos
assuntos que debatem em perpétuas controvérsias.

Mais uma carta sôbre o mesmo assunto, e com respeito à condessa
do Vimeiro: «Já vejo que v. ex.ᵃ tem curiosidade sôbre o que diz
Tirce[48] a respeito dos filósofos. Na realidade, esta estimável amiga,
o único defeito que tem é a tenacidade em certos pontos, e persuadida
uma vez de que a filosofia era o móvel das minhas acções, independente
de outros princípios mais sagrados, é impossível arrancar-lhe dos
miolos esta preocupação. Na carta que há mais tempo me escreveu e
a que deu origem a graça de D. Alexandre[49], discutia largamente
êsses pontos, e eu dei a resposta que então me pareceu razoável e
digna de mim e dela... A consideração que eu faço dos inferiores, o
desprêzo das acções más cometidas por fidalgos, o ódio à injustiça e
a contradição que isto tem com o sistema de certa fidalguia ridícula
que governa o mundo, são pontos críticos, e quem vê por outro modo
as coisas não me dá as desculpas, nem a razão que eu mereço. Tirce
(condessa de Vimeiro), que é uma santa, parece-lhe muito a propósito
que tôdas as coisas vão adubadas de frases místicas,--eu que amo a
religião e que a respeito muito para introduzi-la a torto e a direito,
e que tudo nesta parte que pode parecer uma afectação me aborrece
muito, emquanto tenho razão não cito livros santos. Como não sou
hereje, nem tenho tentações contra a fé, escuso de fazer a minha
protestação a cada instante, contentando-me com cativar o coração com
as verdades do evangelho sem dar nisso contas a ninguêm. Agradam-me as
coisas como são e prescindo de exterioridades equívocas. Tirce tem tido
por isto uma grande inquietação, querendo quási para seu sossêgo, que
eu lhe reze o _credo_ em cada carta. O meu génio já v. ex.ᵃ o conhece e
não é para ceder senão à ternura. A razão alheia é como a minha, e por
isso não me desvio do que julgo bem feito por motivo nenhum. Escrevi a
primeira carta na qual, sem abaixar o meu estilo a condescendências
aborrecíveis, cuidei de explicar-me segundo o sistema da nossa santa
religião, nos termos mais simples que me foi possível, e na boa
intenção de tranqùilizar a minha querida amiga e de salvar-me da idea
injuriosa que talvez ela tenha da minha submissão aos filósofos. Falei
com uma pessoa instruída, e desafio S. Paulo para que ache na minha
carta uma palavra condenável. Que efeito teve? Nenhum.

«Ficou Tirce como dantes, porêm calada. Torna outra vez a entender
comigo, e verá v. ex.ᵃ pelas minhas cartas com que fundamento. Eu quási
que estou tomando o partido de me calar. Na última carta dizia coisas
muito mais cristãs que em nenhuma das que remeto a v. ex.ᵃ, mas estou
certa que não há de bastar cousa nenhuma.»

Mas não é sómente a sua leitura dos filósofos e enciclopedistas, de
Alembert, a quem ela chama _o carácter mais amável_[50], de Voltaire,
que ela considera o _maior dos homens do século_[51], de Rousseau, _o
genio filósofo o mais raro e o mais estranho_[52], de Diderot, _menos
encantador que de Alembert, mas tão estimável como êle_[53]; não é
sómente a sua intimidade com os grandes escritores do tempo que a põe
em antagonismo permanente com o seu meio.

É tambêm na sua qualidade de poetisa, de _mulher de letras_, bicho
raro para a época, que de todo se esquecera ou de todo ignorava que
tivesse havido no século XVI uma floração encantadora de latinistas,
de eruditas e de literatas em tôrno da poética figura da princesa D.
Maria, nessa côrte de D. Manoel, que foi umas das mais brilhantes da
Renascença. O talento feminino foi sempre para o homem de tôdas as
épocas e de tôdas as nações uma anomalia repugnante, uma monstruosidade
inquietadora.

O talento, que é quási sempre o exagêro esplêndido de uma faculdade
da imaginação ou de uma espécie da sensibilidade, não se contenta
fácilmente com a obscuridade da vida doméstica.

Na transformação completa que a democracia imprimiu à sociedade
moderna, o talento da mulher, se é de escritora ou de artista, pode
tomar a forma especial de um produto cotado no mercado como outro
qualquer, e sendo assim hoje, o homem inteligente e ilustrado, se
não aplaude a mulher que trabalha pelo cérebro, chega ao menos a
compreender que o tolher-lhe o direito de trabalhar seria um criminoso
abuso da sua fôrça.

Na Inglaterra contemporânea centenas de mulheres escampam à miséria e
à perdição pelo trabalho. São romancistas, são jornalistas, escrevem
nas Revistas, colaboram em publicações especiais, publicam relações
de viagens, monagrafias de sciência ou de arte, pequenos tratados de
economia doméstica, etc. A França do século XIX conta entre os seus
mais altos espíritos e mais robustos escritores duas mulheres, uma das
quais ganhou com a pena manejada pela sua pequena mão nervosa a quantia
modesta, mas apetecível de um milhão!

Basta para emmudecer a vaidosa prosápia de qualquer burguês desdenhoso
da actualidade esta cifra, e a apresentação daqueles factos
incontestáveis.

Mas o Portugal do século XVIII, que a mão poderosa de Pombal tentava em
vão arrancar ao mais abjecto obscurantismo, à mais completa inanidade
mental, e que apenas sob êste valente impulso dava alguns sinais de
galvanizada energia nas indústrias práticas, nas sciências positivas,
o Portugal sem poesia, sem arte, sem elegância mundana, o Portugal dos
fidalgos analfabetos e arruaceiros, dos gordos capelães hipócritas e
devassos, dos parasitas, dos bobos, das velhas condessas beatas que
expiavam a banhos de água benta os pecados galantes da mocidade, o
Portugal em que soou o riso de Tolentino degradante e cómico, de que
Filinto fugiu assombrado, em que Bocage não achou lugar, e onde êle
chorou e blasfemou até morrer de libertinagem, de tédio e de agonia,
o Portugal asfixiante e meio bárbaro do tempo não tinha lugar que
oferecesse a uma mulher escritora, a uma mulher de talento superior e
de alto e desanuviado critério.

O seu meio ou havia de escorraçá-la a golpes de grosseiro escárneo, ou
havia de imporse-lhe, calando-a, humilhando-a, vencendo-a.

Percebiam isto muitos dos que a cercavam. Percebia-o a própria Leonor,
e como é seu hábito, hábito encantador e que enternece como uma flor
azul, nascida entre as fendas de uma agreste rocha--não é a doçura a
faculdade predominante dêste temperamento--é ao pai que ela confessa
mais êste conflito do seu destino.

Ouçamos o que numa carta lhe diz:

«Depois de ter estudado, como v. ex.ᵃ sabe e com o fim único da
minha felicidade, formei um pequeno plano para as minhas acções, que
sendo conforme com as intenções dos meus queridos pais, eu podesse
contentar-me tambêm e praticá-lo livremente. Meditei as minhas
obrigações a respeito de Deus, da sociedade, de mim mesma; avaliei
quanto me era possível, o estado do mundo, e principalmente o da minha
terra, e resultou daqui assentar fixamente que eu não podia ter uma
hora de sossêgo, se me lembrasse um só dia de escrever para o público.
Que a êste só serviam verdades disfarçadas ou mentiras positivas, que
a liberdade (ídolo do meu entendimento) seria uma vítima infeliz das
máximas estranhas da minha terra, e que se queria ter fortuna com ela
servisse o jugo da opinião pôsto pelas tôlas de idade, pelas ignorantes
de título, e por outros indivíduos semelhantes, a que eu chamo em
segrêdo baixa plebe.

«Cuidei de distinguir bastantemente o carácter das pessoas com quem
falo, e com quem estabeleço muito acauteladamente as minhas relações
literárias, debaixo da inspecção adorável da minha querida mãe.
Assentei que o número havia de ser muito pequeno e com efeito o é.
Mas fixo êste, tudo aquilo que não contradiz a idea que eu tenho
da virtude e da felicidade, que são para mim o mesmo, livremente o
pratico e com isso me recreio. Assentando fixamente que os meus versos
não encontram o parecer de nenhuma das pessoas a quem os mostro, de
quem quero o prémio, ora os dirijo a um, ora a outro dos três amigos
nossos que me entendem; e gosto de o fazer assim, porque me agradam os
ingleses bons e os alemães, onde vejo êste método estabelecido, como um
meio para facilitar e acender mais a imaginação. O gôsto da moralidade
tambêm me persuade a isto, porque fácilmente se oferecem reflexões,
supondo que alguem me escuta do que falando só. Parece-me alêm disto
que o meu trabalho não é uma honra, nem uma lisonja que faço áqueles
homens, mas sómente um sinal da minha gratidão pelo que êles contribuem
para o meu adiantamento com as suas conversações, com os seus livros, e
com a emulação que me dão com as suas obras. Nenhum dêles estima essas
coisas vãs que só teem valor entre os que sabem pouco. Filinto é um
carácter original para a nossa terra. Conhece bem que a felicidade está
em si, que lhe não vem dar honras que lhe fazem os fidalgos, não os
distingue senão pela virtude ou pelos talentos. É um filósofo incapaz
de sujeitar-se a lisonjas, nem de gabar-se das que recebe. V. ex.ᵃ
o conhecerá, e verá que dista muito da idea que v. ex.ᵃ forma. Neste
têrmo, achando, quási de portas a dentro, quanto era necessário para me
ocupar agradávelmente para aqui é que escrevo, não quero que me leia
ninguêm que possa reparar no que digo, porque quero falar o que entendo
e o que me inspiram a razão e a virtude.»[54]

Descontando no que a fraseologia do tempo tem de especial, de
affectado--e é isto justamente que imprime data--vê-se que os
sentimentos de Leonor estão a par do que mais elevado e nobre havia no
século. Não aceita da crença em que a educaram senão a puríssima moral
e a requintada essência evangélica; dos preconceitos sociais que bebeu
com o leite destaca lúcidamente tudo que há nêles de exagerado e iníquo.

Nós que fomos educados sob um regímen absolutamente oposto ao que
naquela época reinava, só pelo raciocínio conseguiremos dar um
verdadeiro aprêço a esta independência de um espírito de mulher, que a
tirania das ideas e a dos costumes não logrou acobardar, nem vencer.

De uma das fantasias mais simpáticas do romanesco espírito de Leonor
encontramos na correspondência inédita vários documentos.

Imaginou dirigir-se a Luís XV, a Voltaire, a diversos personagens
influentes da côrte de França e interessá-los pela causa de seu pai.
Não podemos afirmar que as cartas atingissem o seu destino, ou mesmo
que elas chegassem a ser enviadas áqueles a quem são dirigidas, mas
não resistimos à tentação de transcrever alguns trechos dos rascunhos
encontrados. Aqui estão em primeiro lugar passagens da carta dirigida a
Luís XV. O francês é defeituoso. Hoje, qualquer rapariga educada pelos
novos métodos, escrevia mais correctamente. Mas que entusiasmo pelos
seus essas cartas traduzem!

«_Sire. Avec le plus profond respect, avec la plus douce espérance dans
ces vertus qui ont acquis à Votre Magesté le glorieux titre de Bien
aimé si propre à faire la douce attente des malheureux, je viens oh
grand roi, faire retentir mes plaints devant votre trône auguste..._

«_Une malheureuse fille de vingt deux ans, vous demande, Sire, avec
des larmes, la protection pour un père et une famille que pendant
l’espace de quatorze ans ont épuisé tout l’horreur du destin le plus
rigoureux..._

«_Je suis prisionière depuis l’âge de huit ans avec ma mère et ma sœur.
Dans le temps où je commençais à goûter le délicieux plaisir d’être au
sein de ma famille, je fus arrachée des bras paternels; je vis traîner
mon malheureux père dans un afreux cachot._

«_Les frères, la mère, le père de celle qui m’a donné le jour, deux
oncles, je les ai vue tous expirer dans le plus honteux tourment._

«_Mon cœur affligé par ces blessures qui saignent toujours a nourri
dans le malheur les précieuses connaissances des biens qu’on m’enleva.
Chaque jour m’apporte un nouveau trait, chaque instant où je considère
ma famille avec les marques honteuses de l’infidélité, tout mon sang
bouillonne, je me sens mourir avec les désirs impuissants de faire voir
l’innocence et l’honneur de ceux qui me l’ont fait connaître dès le
berceau._»

Não é menos interessante nem menos romanesca nos intuitos a carta a
Voltaire do que a carta dirigida a Luís XV por intervenção de um dos
seus ministros.

Ao rei de França Leonor pedia a intercessão poderosa junto dos poderes
da terra para libertar seu pai. A Voltaire ela pede a rectificação de
apreciações que mais tarde lançarão a sombra de uma negra suspeita
sôbre a inocência da sua família estremecida.

E sempre a mesma ânsia de reabilitação, é sempre a mesma actividade
incansável de espírito, e sempre, ai de nós! o mesmo francês laborioso
e terrível!

«_C’est au defenseur de l’infortuné Calas que je porte mes plaintes. Un
cœur navré par la douleur, enflammé par la gloire, et charmé par vos
écrits sublimes, m’inspire un désir ardent de justifier devant les yeux
d’un sage, ma famille trop honnête pour endurer la calomnie._

«_C’est de vous, monsieur, que je me plains; c’est monsieur de
Voltaire, cet homme illustre qui brave les préjugés, cet ami du genre
human qu’avec la même plume dont il défend le juste opprimé répand le
poison de l’opprobe sur des innocents parce qu’ils n’eurent pas le
bonheur de naître en France. Votre siècle de Louis XV vient de tomber
dans les mains d’une jeune infortunée, que dans la catastrophe du
Portugal est envellopée avec sa famille dès son plus bas âge._

«_C’est moi, monsieur, la petite fille des marquis de Tavora._

«_Ces illustres malheureux, morts dans un echafaud, n’on point purgé,
la honte attachee au crime mais subi avec de l’honneur et du courage
des revers de son sort._

«_Ah monsieur! Si vous n’êtes point ému à la vue du tableau effrayant
de nous même, que penserai-je de la philosophie?_

«_Quel homme de bronze aurait pû écrire ce que vous dites, aprés avoir
connu les secrets ressorts de notre chute._

«_Savez vous que mon grand père a été l’objet de la haine du premier
ministre? Savez-vous que ma grand mère après son retour des Indes
orientales, n’avait jamais vû le moine que l’on fait son confesseur? La
moindre connaissance, le moindre soupçon des malheurs que menaçaient
mon Roi et ma patrie aurait obligé mes parents à verser volontairement
jusqu’à la dernière goutte de son sang? S’il était possible que l’on
pût concevoir cet horrible projet dans ma famille, un seul l’aurait
pensé, que les autres, renouvellant les creautés anciennes, eussent,
comme Brutus, fait mourir leurs enfants mêmes._

«_Les préjugés sont trop puissants dans le pays que m’a vue naître, et
celui de l’honneur[55] était le partage de ma famille. L’amour du Roi,
la paix de la societé, et le bien être de la famille, occupaient dans
ce temps de tenèbres les cœurs de mes parents._

«_Quand la maligne ambition, ce fiéau du genre humain, d’accord avec
l’envie, nous plangea dans le sein de l’amertume, la nature avec tous
les charmes, la grandeur, cette charmante folie des humains, étaient
notre partage. Les êtres les mieux partagés par la nature, étaient
aussi les mieux assortis par la fortune. Des époux jeunes e amoureux,
des femmes jolies e honnêtes, des pères tendres, tout nous promettaient
un bonheur inaltérable, quand l’orage vint tomber sur nos têtes. Je
fus arrachée des bras de mon père à l’âge de huit ans, avec ma plus
jeune sœur, et ma mère; quel tableau horrible! Dans cet âge heureux
des plaisirs et de l’amour, arrachée des bras d’un jeune époux le
plus aimable, qui joignait à la félicité d’êfre sage, et d’avoir des
lumières qu’il avait puisées en France, les grâces de la figure! Un
jeune homme aimable, un homme de lettres et de probité, fut arraché de
ses bras, dans une nuit funeste, et dans le même jour elle se vit sans
époux et sans père!_»

       *       *       *       *       *

Como o marquês de Alorna fôsse grande entendedor em literatura, um
dos assuntos freqùentemente versados entre a filha e o pai era o da
poesia. O marquês admirava francamente o engenho de Leonor; achava
_maravilhosas_ as suas odes, _admiráveis_ os seus sonetos, e entre os
dois travam-se engenhosas palestras sôbre letras.

«O que me parece que te tem atrazado muito,--escreve-lhe êle um dia,--é
a demasiada crítica, e uma especulação excessiva da natureza e gôsto
verdadeiro dos poemas, juntamente com a preocupação dilatada a favor do
verso sôlto. Se não fôsse isso, e o demasiado trabalho e melancolia que
te fizeram adoecer, terias a estas horas composto coisas prodigiosas e
talvez de grande vulto.

«O bem que tem é que ainda estás a tempo de reparar o perdido. Se
te quiseres dar às obras morais, no gôsto de Pope e mais poetas
moralistas, farás maravilhas, com que todos fiquem espantados e te
resulte grande nome.

«O que fizeres à imitação de Camões há de ser muito agradável a todos,
desviando-te ao mesmo tempo do amoroso, que neste grande autor se
mostra com demasia. Eu entendo que êste género lamuriento foi uma
das coisas que mais deitou a perder e desacreditou a poesia. O que
ela agora, para se estabelecer no conceito de tanta gente que lhe é
contrária, necessita mais que tudo, é que haja poetas que preguem em
verso como S. Paulo, como Séneca, etc., e a _uma mulher da tua ordem e
da tua criação é a quem isso compete mais que a ninguêm_.»

O preconceito aristocrático, que é no marquês de uma fôrça
indestrutível, manifesta-se em mil frases características no género da
última citada; aqui vai outra ainda mais frisante, que arrancamos a
outra carta.

--«...Não há dúvida que o conde de Tarouca era às vezes algum tanto
empolado, mas tambêm é certo que aqueles a quem a natureza não deu uma
certa expressão eloqùente a ideas fora do comum, não querem nunca achar
naturalidade onde encontram qualquer elevação, e tudo querem reduzir
ao seu modo de falar e pensar rasteiro. Não digo isto a respeito de
nenhuma pessoa determinada, e só acrescento que quando encontrares
algum dêstes amantes da natureza (por naturalidade), será bom que
examines que tal é o seu estilo, e se o achares pertencente à classe
baixa podes ter por suspeitoso tudo que lhe ouvires a respeito de
elevações, principalmente de autor contemporâneo!»

Sôbre questões de técnica poética discutem, não raras vezes, os dois
eruditos correspondentes. Que lição para os que perdem a coragem e o
ânimo à menor contrariedade da vida, não dá êste homem no vigor da
virilidade, enclausurado, perseguido, cheio de privações crudelíssimas,
separado de todos os seus, e esta mulher em viço de anos, bela,
nobilíssima, prometida a uma existência de alegria e luxo, encerrada
desde a infância num triste convento, e tendo, apesar disso, suficiente
liberdade de espírito, suficiente heroicidade de ânimo para se
entreterem em discussões literárias, em controvérsias intelectuais, em
comentários eruditos às respectivas leituras, em matérias emfim que os
afastassem a ambos da contemplação do seu atroz destino sem esperança.

Leonor é pela poesia sôlta sem auxílio da rima, o marquês contradiz
neste ponto eruditamente o gôsto de sua filha.

--«É certo que vendo-te há tempos infinitos não fazer outra coisa
senão odes alatinadas, gabando cada vez mais esta casta de obra até
te mostrares de todo encantada a seu respeito, tive receio de que aí
ficasses para sempre, e que nunca mais te podessem reduzir a intentar
outra espécie de composições. Dêste modo não tem dúvida nenhuma
que perderias infinito daquela galanteria e grande arte de agradar
que todos te admiram, porque a maior parte da gente, entrando nela
innumeráveis poetas, não estão a favor da soltura do verso, nem é
natural que admitam as tais odes senão se forem poucas, e atendendo a
muitas outras coisas mais agradáveis da mesma autora. As ditas odes,
vista a sua natureza, tambêm me fazem temer do teu génio, que te
não separasses nunca delas, e com isso tinha tambêm mêdo que certas
imperfeições nas tuas produções, em lugar da emenda fôssem sempre a
crescer!... Alêm disto ficarias dêsse modo sem nunca chegares a ter
de todo a rima às tuas ordens, como acham todos preciso para um poeta
dizer em verso tudo que quiser, e sem cuja posse em tal grau não pode
ser admitido no dia de hoje nos primeiros assentos do Parnaso. O verso
sôlto com as circunstâncias que tu dizes é admirável, confesso que
dêsse modo não lhe faz a rima nenhuma falta, mas da forma que tu o
pintas aí é que está a maior dificuldade, e para a sua fabrica haverá
muitas mais prisões e quebradoiro de cabeça. Que a rima dá fôrça a
infinitas coisas que sem ela seriam semsabores, não tem dúvida nenhuma.
Será preocupação, mas da forma que todos estão encasquetados a favor
dessa dificuldade aparente, necessita o verso sôlto para agradar um tal
carácter que serão sem comparação em maior número os versos rimados
que possam parecer excelentes. A dita dificuldade sempre se exigiu na
poesia, e assim parece preciso para suprir a sublimidade que nem sempre
se pode encontrar, principalmente nas obras mais compridas. Entre os
antigos a diabrura dos pés ainda era de mais trabalho...

«Veremos as odes de Laura e Petrarca[56]. Entendo que serão excelentes
e sôbre o amor platónico não haveria pouco que dizer. Creio que o teu
é dessa casta (o que ela celebrava numa ode em que se fingia Petrarca
ou Laura), mas como a maior parte do mundo está a êste respeito de um
materialismo terrível, por essa razão estou pelo que já disse, e acho
preciso evitar-se tudo a que pela malignidade das gentes se pode dar
uma má interpretação.»

Leonor é que se não deixa fácilmente convencer. Apesar do bom senso
e do gôsto apurado do pai, ela cheia da sua razão, defende-se
enérgicamente.

«Diz v. ex.ᵃ que eu estou em termos de tresler em matéria de poesia,
quando eu entendo que nunca estive em melhores termos do que estou
presentemente.

«Será talvez demasiada presunção, porêm, se v. ex.ᵃ me conhecer bem,
verá que, o que eu disse não é o efeito de uma sujeição servil aos
antigos dos quais me desgostam infinitas coisas. É certo que as odes
de Horácio me agradam infinitamente, e que sempre me agradaram coisas
similhantes na nossa língua. Bem vejo que a rima é um adorno muito
bonito, porêm desnecessário em muitos casos quando a medida é certa e
o verso por si harmonioso. As odes pedem um certo vôo que não sofre a
mínima sujeição, e a das consoantes é lei forte que

    Maudit soit le premier dont la verve insensée
    Dans ces bornes étroits renferma la pensée.

«Não se encontrará fácilmente uma ode rimada que seja boa, e eu
aconselhava a todos que as fizessem assim, que lhe chamassem cantigas,
versos ou coisas, como chama um galante poeta da nossa terra a tôdas as
suas composições. V. ex.ᵃ não é dêste parecer, e é esta a minha única
desconsolação, porque a não ter esta razão de descontentar-me, tôdas as
mais estão da minha parte. V. ex.ᵃ bem sabe que cada palavra ou contêm
uma idea simples ou complexa, ou se desvia ou se dirige ao todo do
discurso. Não é possível que em tôdas as palavras das rimas se ache uma
concordância admirável com o desenho do poeta, e em tendo de quebrar o
discurso no fim do verso, já se rebate o vôo e sublimidade que exige
esta sorte de poema, nascem ideas novas, constrange-se a mente, não
corre como de fonte o tal licor de Castalia, e só numa língua em que
as palavras tenham muitas rimas consentirei que as odes sejam rimadas.
O poeta distingue tanto a poesia da rima que sendo o verso cheio,
harmonioso, livre e de palavras puras não prova menos recreio nos que
chamamos soltos que nos rimados. O ponto está em que as ideas sejam
claras, poéticas e bem formadas; o desenho regular e sublime segundo o
género em que escreve. Estou vendo que v. ex.ᵃ não há de gostar nada
do meu poema da _Morte_, porque é feito em verso sôlto. Nem o exemplo
de Camões, de João Franco(!) e de outros me poderão resolver a rimar
a tal obra, porque a autoridade que um e outro se arrogaram de falar
latim à portuguesa não é para se imitar. A esta hora está v. ex.ᵃ
fazendo muito escárneo da minha suficiência, porêm eu tendo, graças a
Deus, uma vontade bastantemente dócil, o meu entendimento tem muito
pouca sujeição, e diz _Almeno_[57] que eu sempre digo a torto e a
direito quanto quero.»

Eis como ela responde ao que o pai lhe diz a respeito de quanto é
necessário a uma mulher evitar assuntos amorosos que se prestem a
interpretações malignas.

--«O que eu compreendo sempre do amor, o que me obrigou a fazer
versos sôbre alguns assuntos ternos, vem a ser que o amor é o vínculo
suavíssimo e a primeira virtude da natureza humana; sempre o considerei
só digno das grandes almas, e tal qual o pinta ou o exige Platão.
Só êste apareceu aos meus olhos, e se há alguma coisa criminosa
ou perigosa de que se não deva falar, não é isso que eu entendo
quando falo de Laura e Petrarca. Estes dois amantes do século XIII,
gabados pela inocência e constância do seu amor e dos seus costumes,
pareceram-me dignos de os louvar nos meus versos, e como um autor
francês supôs Laura poetisa, e não aparecem os versos que ela fêz, as
duas odes são de Laura.

«Uma supondo Petrarca ausente na sua embaixada da Espanha, outra,
simplesmente explicando os seus sentimentos em resposta a uma canção
dêle.»

Ainda a respeito do amor, leiamos êste trecho de outra carta tão
singularmente característico do tempo, e não precisando de data para
que um crítico o reconheça imediatamente como pertencendo ao nosso
alambicado século XVIII.

--«Vejo o que v. ex.ᵃ me diz sôbre o amor. Êste sentimento ou paixão
que domina o mundo, segundo tenho observado, creio que assim como o
sono foge das pálpebras molhadas de lágrimas, assim êle se desvia dos
corações ocupados dos grandes trabalhos. Eu tenho lido e meditado muito
para ignorar absolutamente o que seja a natureza, e v. ex.ᵃ verá nos
meus _serões_, o meu coração sem algum véu. Mas verá igualmente a minha
antipatia por tudo isso. Eu tenho um gôsto nímiamente metafísico[58],
quási tudo me desgosta e me fatiga fora dos discursos e dos exercícios
da alma. Simplesmente sou apaixonada de platonismo, e creio que os
corações cândidos não poderiam nunca admitir outras ideas a respeito
do amor. Mas tudo isto se passa em mim em razão de discurso, e jámais
tomarei interêsse particular nestas matérias, que não seja dirigido
pela razão de uns pais que sabem únicamente o que me convêm. Eu tenho
bastante reserva nas minhas ideas; ninguêm sabe de que partido eu sou
em certas coisas em que a decisão é perigosa, pode v. ex.ᵃ descansar
nesta matéria.»

De resto não havia nenhuma afectação de falsa inocência de modéstia
hipócrita nas relações estabelecidas por escrito entre a filha e o
pai. Leonor não é uma _inocente_. Conhece pela sua leitura a vida, nem
parece que na educação daquele tempo houvesse o cuidado exagerado, e às
vezes contraproducente, que hoje há em livrar as raparigas de todo o
conhecimento rial das coisas.

A prova do que dizemos é que Leonor, no intento de distrair o pai,
conta-lhe as anedotas _salgadas_ do tempo, que de fora penetram até ela
através das grades de Chelas.

--«Uma coisa que tem feito grande bulha e em que nunca falei a v. ex.ᵃ
é na célebre actriz que exauriu os bolsos de todos os casquilhos e veio
pôr à viola a nossa terra, porque tendo (segundo entendo) pouquíssimo
merecimento, sabe encantar a todos e tem dado assunto a tôdas as
palestras, muito verso, muita apologia, muita satira, porêm tudo junto
é papel para aquentar camisas, e fica com muito honrada serventia. A
tal _madama_ chama-se Zamperini, não é demasiado bonita, canta muito
bem, e dizem que declama excelentemente; mas para crer isto precisa-se
fé, pois tudo quanto dizem é muito afastado das regras dessa arte,
que as necessita como qualquer outra. Dizem que é muito afectada,
nímiamente desembaraçada, e outras circunstâncias que impõem para os
ignorantes da nossa terra. O nosso Inácio Quintela tem desembolsado os
seus cabedais, o Anselmo da Cruz, o condinho de Oeiras ao princípio, e
um círculo grande de adoradores que aparecem pintados numa satira que
lhe fizeram.[59] É de um carácter muito singular. Com tôdas quantas
bugiarias pôde aprender no teatro engana a todos... Eu já estou
enfastiadíssima de Zamperini, mas não quis deixar de lhe dar estas
notícias que teem interessado tôda a nossa terra.»

Êste trecho e outros similhantes sôbre o valido da imperatriz da
Rússia, sôbre as pieguices freiráticas que ela se não cansa de repelir,
etc., etc., dá a nota da intimidade que havia entre Leonor e o pai.
Êste acompanha-a sempre com o mais prudente conselho, com a admiração
mais estimulante, com a bondade mais perfeita. O amor do pai, pode
chamar-se a única grande alegria moral que Leonor recebe durante os
anos do cativeiro.

       *       *       *       *       *

Referimo-nos já por mais de uma vez a D. Martinho de Mascarenhas, filho
do duque de Aveiro, e encarcerado na Junqueira com o marquês de Alorna.

O pai de Leonor planeara que ao sair da sua prisão lhe daria a mão de
sua filha mais nova D. Maria de Almeida; e êste projecto, que não foi
levado a efeito, pois que nunca D. Maria I restituiu os seus títulos e
honras ao filho do homem que tinha tentado assassinar seu pai, enche,
no convento de Chelas, de romanesca alegria as três enclausuradas
senhoras.

As duas poetisas--Maria tambêm escrevia versos e tem uma graça
indescritível de expressão nas suas cartas--muito letradas ambas
como se sabe, baptisaram de Tancredo o marquesito de Gouveia[60],
acrescentando que só no herói do Tasso haviam encontrado as qualidades
cavalleirescas que distinguiam o carácter do jovem fidalgo português.

Leonor escrevia-lhe de Chelas: «Meu estimado mano.--Dou a v. ex.ᵃ
os parabens do dia de hoje e lhe seguro que a sua vida me interessa
imediatamente à de meus pais, pelo dobrado motivo do seu merecimento e
por depender dela o contentamento da pessoa mais amável que eu conheço
nêste mundo. V. ex.ᵃ pode julgar-se o homem mais feliz do mundo todo;
os sentimentos que premeiam os seus ferros e os cuidados que v. ex.ᵃ
tem no meu triste pai[61], devem suavizar tôdas as amarguras. Neste
_vale de lágrimas_ (como diz a Salve-Raínha), não era possível uma
aliança tão linda sem se merecer por desgostos tais como o nosso.
Que dias tão alegres nos tem preparado o infortúnio! Alegre-se v.
ex.ᵃ e consolêmo-nos mútuamente até que Deus quebre obstáculos tão
tiranos.» E outra vez no meio de uma carta dirigida ao pai: «E v.
ex.ᵃ, mano Tancredo, não me esquece um instante. V. ex.ᵃ, que é o
estimável companheiro de meu pai, tem parte com êle em todos os nossos
pensamentos.»

Quando a doença de D. José bastante pronunciada para tornar provável
a sua morte próxima dá alguma remota esperança de liberdade à infeliz
família de Alorna, Leonor com a sua habitual expansão, escreve ao pai
pintando-lhe os quadros de felicidade familiar, que a fantasia lhe
representa. «Vamos, como diz o mano Tancredo para o Vimeiro, para
Almeirim[62]; a nossa sociedade, até Deus olhará para ela com gôsto.
Nunca a virtude se há de desviar dela e a liberdade fará tôda a sua
delícia.»[63] «As ideas em tumulto não sofrem nenhuma ordem, quando
escrevo--acrescenta Leonor na desordenada alegria com que a desnorteia
a esperança, ou o prenúncio de uma próxima libertação.--O coração cheio
de sentimento e num tremor de impaciência desacomoda-se para escrever.
Nada me contentava agora senão voar e entrar como um pintasilgo por
essas janelas para conversar com v. ex.ᵃ. Que gôsto teria em vos ver?
Já lá estou... Vejo a v. ex.ᵃ alegre, e num cárcere, quási sem luz,
descorado, magro e com tôda a impressão dos seus trabalhos... Será
assim, meu querido pai? Melhor fôra que v. ex.ᵃ viesse aqui aonde eu
me acho. Só, em uma pequena casa, rodeada de livros, escrevendo com
as lágrimas nos olhos o que me não cabe no coração. Achar-me ia uma
célebre figura, com um roupão côr de fogo, forrado de peles escuras,
o capuz na cabeça, sem pós, despenteada, com tôda a desordem de quem
sente infinitas saudades. Que me diz v. ex.ᵃ ao delírio desta carta?...
Se v. ex.ᵃ visse o apetite, o alvorôço e as saudades com que eu estou,
tudo acharia pouco. Devéras, meu querido pai, o coração avistando a
meta desejada corre com uma velocidade atrás dela, que nem o tempo
incansável pode alcançá-lo... Diga v. ex.ᵃ ao mano Tancredo que a
condessa está convidada para madrinha da mana, para que tudo seja
completo.»

A idea de viver com os pais no campo (em Almeirim) lisonjeia-lhe
estranhamente a imaginação educada por Jean Jacques Rousseau, que então
andava revelando os encantos da simplicidade, os encantos da natureza,
às frívolas raínhas dos salões de Paris.

E tôda imbuída das máximas da filosofia reinante, de que eram
propagandistas os seus autores queridos, escreve ao pai, o velho
fidalgo que achava Voltaire digno de queima:

«Eu cuidei que ainda tinham algum poder sôbre v. ex.ᵃ os atractivos de
uma côrte brilhante, e que a glória, que de um certo modo se entende
ligada à ostentação, podia ser alguma tentação para v. ex.ᵃ que perdeu
o tempo melhor da sua vida no seio dos desastres (_sic_). Vejo que
não falta nada a v. ex.ᵃ, meu querido pai, e que avalia a felicidade
segundo a filosofia, que dá mais valor a ser homem que a ser fidalgo,
e isto que concorda inteiramente com os meus princípios dá-me um gôsto
inexplicável. Não aspira v. ex.ᵃ senão a uma vida oculta e tranqùila,
aspira a provar todo o preço da sua existência, aspira a tôdas as
delícias do coração sensível, e eu não aspiro senão a procurar-lh’as
e a gostar com v. ex.ᵃ os prazeres que se ignoram no tumulto da
côrte. Diz v. ex.ᵃ que «se esqueceu que poderia ser grande doutor
se aproveitasse todo êsse tempo», e eu digo que tudo quanto v. ex.ᵃ
podesse adquirir não produzia mais do que v. ex.ᵃ possue na disposição
em que se acha.

«E agora vou falar com o mano Tancredo. Pode v. ex.ᵃ segurar-lhe que
a sua linda noiva gostou sumamente das novas que êle dá do que sabe.
Estimou muito que soubesse as duas línguas italiana e francesa. Riu com
a medicina, desejando mais que êle antes fôsse físico do que médico.»

O perfume avelhantado de tôdas as cartas de Leonor é que é o seu
encanto supremo para o crítico. Como elas pertencem pelo estilo ao
tempo de que são datadas!... E como a par disso elas teem o cunho
individual da mulher que as escrevia, tão diversa das mulheres
portuguesas da sua classe, tão namorada de erudição a ponto de
parecer muitas vezes um poucochinho pedante. Mas essa leve tintura de
pedantismo deve ser-lhe perdoada se a considerarmos a natural reacção
de um espírito inteligente e culto contra a boçalidade que distinguia a
sua classe e a sociedade de que ela fazia parte muito a seu pezar. Os
que pretendem conhecer a fundo a ignorância do tempo em que destacaram
excepções raríssimas, leiam as descrições da sociedade portuguesa no
tempo de D. Maria I, feitas por estranhos sempre mais capazes de verem
bem aquilo que vêem pela primeira vez.[64] Ela mesmo dá mais de uma
vez ao pai nas suas cartas exemplos dessa boçalidade que a desespera.
Eis um dêles:

«Estávamos na grade com as primas S. Miguéis e outras pessoas de
confiança, de sorte que uma delas estava cantando algumas cançonetas,
cuja letra era de Metastásio, e caindo naturalmente a conversação sôbre
a galanteria dêste poeta, disse o Principal Boto em tom de doutor, que
o Metastásio não fizera mais que copiar Tibullo e Catullo, os quais
não andavam pelas mãos de todos, e por essa razão nos admirávamos
tanto das belezas de Metastásio, porêm êle que as achara já na língua
latina _traduzidas do grego_, não fizera mais do que roubar-lhes o
pensamento para as pôr nas suas obras. Eis aqui como por cá se fala,
meu pai, e se v. ex.ᵃ viesse havia de ouvir muitas destas. A uns que o
estabelecimento das Vestais fôra formado segundo a idea das Virgens do
Evangelho, a outros que as almas felizes eram conduzidas por _Júpiter_
aos Eliseus--mil frioleiras daqueles mesmos que teem a confiança de
criticarem as mulheres que podiam mandá-los jogar o pião com os rapazes
de escola.»[65]

Outras vezes fala dos desdens que pela _mulher aplicada_--é esta a
frase do tempo--teem e manifestam os rapazes fidalgos, os que levam a
vida em arruaças, façanhas de picaria, guitarradas nocturnas, orgias de
baixo nível. Beckfor mais de uma vez se refere ao gôsto de freqùências
baixas que há nos moços da fidalguia portuguesa, os quais se não
pejam de ter por amigos os picadores, os boleeiros, os lacaios, etc.,
com quem dansam o fado, e se associam para as grossas pancadarias.
Tudo que se lê com respeito à casta aristocrática em Portugal,
revela claramente como ela voluntáriamente abdicou, abastardando-se,
anulando-se, embrutecendo nas convivências de parasitas, bobos e
ignorantes de má laia... Tolentino é recebido nas grandes casas pelos
lados mais degradantes do seu carácter, pela veia de pedinte e de
adulador, que tão negramente macula o seu estro admirávelmente cómico.
A aristocracia, à qual sómente restavam os privilégios adquiridos
sem nenhuma das virtudes ou das heróicas façanhas que os haviam
justificado, havia fatalmente de desaparecer da scena social, logo que,
abolidos êsses privilégios e disperso aos quatro ventos o património
que os representava, ela aparecesse tal qual era, tal qual uma educação
corruptora e péssima a tinha feito lentamente, salvas raras excepções
que destacam com pitoresco relêvo, e que por isso mesmo não constituem
regra.

Leonor de Almeida percebia tudo isto. A sua inteligência mais vigorosa
do que feminilmente delicada, não lhe deixava a respeito da sua classe
em Portugal qualquer ilusão consoladora.

É por isso que tão ardentemente busca distanciar-se do _meio_ em
que nasceu e em que pensa terá de viver, é por isso que estuda
infatigávelmente, protestando por êste modo contra a ignorância que a
invade como uma maré lodosa e turva.

Duas vezes, durante o cativeiro de Leonor de Almeida, tiveram seus pais
o projecto de a casar, como naquele tempo se casava por conveniência de
família, por alto interêsse de raça.

Um dos noivos que para ela desejaram foi D. João de Bragança, o futuro
duque de Lafões, de quem falaremos mais tarde, já velho áquele tempo, e
que então, receoso da tirania política de Pombal, andava casquilhando e
brilhando pelas côrtes de Viena e de Versailles.

A êste projecto um tanto fantasioso, e que parece não ter tido sólidos
alicerces, pôs ponto o bom senso incontestável de Leonor e do marquês.

O outro noivo que quiseram dar-lhe, e com êste se adiantaram bastante
as negociações, que felizmente Leonor de Almeida conseguiu malograr a
final, era D. Brás da Silveira, filho primogénito de D. Nuno de Távora,
o qual, por ser irmão segundo do marquês de Távora, estava na prisão da
Junqueira juntamente com o marquês de Alorna. Uma filha de D. Nuno de
Távora casara com o conde da Redinha, e êste enlace de uma sua parenta
próxima com o filho do perseguidor da sua família inteira, desgostava
profundamente D. Leonor de Almeida. A sua principal objecção ao
casamento preconizado por seus pais, era ficar em virtude dêle cunhada
do conde da Redinha. Isto é que o ânimo cavalheiroso e tão ultrajado de
Leonor não podia aceitar livremente.

A propósito dêstes seus parentes Silveiras fêz Leonor nas cartas ao
pai um espirituoso e expressivo retrato que não deve ficar eternamente
inédito, porque representa mais que uma individualidade, a final de
contas obscura, representa a figura típica do fidalgo português,
enfatuado, ignorante e ridículo. O retratado é D. Bernardo da Silveira,
irmão daquele que os marqueses de Alorna desejavam para noivo de sua
filha.

Ouçamos, pois, esta num dos seus raros momentos de _verve_ endiabrada e
natural.

«O carácter da família dos Silveiras é coisa muito célebre. Parecem-me
fidalgos de província. O primo Bernardo é um daqueles que se pintam, e
eu o pintara se v. ex.ᵃ me desse licença para dar quatro gargalhadas
à custa do meu futuro cunhado, sem que isso ofendesse as minhas
obrigações, mas falar com meu pai é pensar alto, e vou dizendo:

«É um mocetão pela figura do mano, mas de cara muito peor, contudo,
persuadido da sua gentileza, crê piamente que andam nos seus ferros
tôdas as belezas do mundo e toma um ar de satisfação muito célebre que
faz rir.

«Com o desembaraço de colegial julga-se sábio, e zomba das belas
letras de que não entende nada, celebrando sempre a profundidade dos
autores de direito canónico, e os toiros, qualquer destas coisas muito
interessante em uma companhia de senhoras.

«Não crê na aplicação das mulheres, e trata-nos sempre com ar de
superioridade e de ignorantes, fatigando-se com explicações e pequenas
histórias bastantemente impertinentes.

«Como a tia Maria tem assoprado muito a vaidade dêste e abusado da
paciência, moleza e bondade do outro, observa-se uma certa altivez que
vistos ambos, parece o primo Bernardo um sogro, que me faz obséquios,
porque intenta casar seu filho comigo, e o outro um enteado, sem
confiança com o padrasto. Eu e a mana, defronte dêstes dois indivíduos,
tambêm nos podiam pintar, e se acaso se vê na minha cara a variedade
de coisas que me passam pela cabeça, tambêm haveria de que rir. A tia
Maria, em ar de Sybilla Comea, trata-me com o maior carinho, e eu
correspondo como devo, mas estou muito costumada a reflectir para não
distinguir o que é, do que parece. Do primo Brás (o futuro noivo) dará
minha mãe notícias, mas eu não posso fiar de ninguêm esta anedota.

«Para agradar à sua noiva, que é aplicada, começa agora os seus
estudos, por um jardim botânico e umas estufas.»

Quando o pai teima em apresentar a Leonor de Almeida as vantagens
sociais do casamento com D. Brás da Silveira, ela responde-lhe com
melancolia impressionadora:

«Estou nas fatais circunstâncias de ter que decidir-me, com um susto
inexplicável e com o mais vivo desejo de acertar e de ser útil aos
interesses de v. ex.ᵃˢ. Se me pertence a glória de ir com as minhas
ansiosas diligências libertá-los, pereçam todos os sistemas em que
eu tinha fundado a minha felicidade própria, e será uma sorte assás
digna de satisfazer-me aquela em que eu puder servir o meu querido
pai, e procurar o inteiro restabelecimento de minha mãe. Nada mais me
pode obrigar ao sacrifício da minha liberdade, e a tomar o trabalhoso
encargo de mãe de família. O coração e o pensamento todo ocupado das
minhas perdas e das minhas aquisições apresenta-me como um desastre
o sair dos braços da minha mãe, da casa de v. ex.ᵃ, para outra
desconhecida, onde me não leva nenhum princípio dos que a natureza
nestes laços poderia apresentar. O rapaz é um homem sem estudos; que
julgará dos meus? Tem uma irmã aliada com o algoz que abomino. Como
poderei eu ver de perto similhante gente? Mas representa meus avós (é
filho de um tio direito da marquesa de Alorna); trabalha na liberdade
de minha mãe, anuncia vagamente a de v. ex.ᵃ! Se me conseguir... oh!
meu querido pai, tomara antes de separar-me desta casa, abraçar nela
a v. ex.ᵃ, tomara que v. ex.ᵃ viesse aqui ensinar-me qual é o meu
dever. V. ex.ᵃˢ ambos é que melhor do que eu poderiam remediar tantas
perplexidades. Eu não sei o que digo, não sei o que faço, vivo em uma
escuridade impenetrável... Deus me socorra, e me faça atinar com o que
for melhor...»

Felizmente para a nossa biografada, o pai não teimou em dar-lhe para
marido um homem que Leonor não respeitava nem amava, e a sonâmbula
gentil do cláustro de Chelas continuou a ler, a sonhar, a instruir-se,
a reflectir na plena liberdade do seu indisciplinado e ardente espírito.

Pena é que não tenhamos outras revelações do que ela então pensava e
sentia, alêm das que encontramos nas suas cartas ao pai. Por muita
confiança que aos vinte e vinte e quatro anos se tenha nos pais, nunca
é a êles que uma alma juvenil se confessa inteiramente.

Os versos de Leonor feitos em Chelas e publicados no primeiro volume
das suas obras, são ainda menos reveladores do que as suas cartas.

Pelo modo de versejar, Leonor pertence inteiramente nesta primeira fase
da sua vida à escola pseudo-clássica do século XVIII, no que ela tem de
mais falso e de pior.

Uma interminologia enfadonha, uma quantidade incontável de nomes e
de alusões mitológicas--não da bela mitologia grega tão naturalista,
tão profunda nos seus símbolos, tão ladina nas suas encarnações
humanas,--mas de uma falsa mitologia, dentro da qual se não lobrigava
uma idea única, e que abonando em favor da erudição de Leonor, diz
muito pouco do seu coração e da sua sensibilidade.

O que, porêm, temos das suas belas cartas, de sobejo nos deixa perceber
quantos sonhos se abrigariam naquela ardente imaginação de rapariga.

Tancredo--o infeliz filho do duque de Aveiro, a que estava reservado
um destino tão negro--era o príncipe azul de Maria de Almeida. Leonor
havia de fantasiar mil vezes o seu. Não sabia donde êle tinha de surgir
um dia, mas estava certa de que viria na hora própria e de que não
seria parecido com nenhum daqueles que os interesses da família por
mais de uma vez tinham tentado impor-lhe.

Para _êle_ cuidava com esmero da sua formosura singular em que tantas
vezes ingénuamente se revê, com adorável garridice; para _êle_ adorna
o seu espírito de tôdas as graças, de tôdas as riquezas, de todos os
encantos... Será bravo como um herói; há nela a paixão _corneliana_ de
tôdas as grandezas épicas; mas será tambêm cultivado como um sábio,
eloqùente como um poeta, e profundo como um filósofo.

Bayard e Voltaire encarnados num só homem. Conversará com discreta
graça dos mil assuntos que a preocupam; terá as aspirações que ilustram
o seu tempo, pressentirá tôdas as grandes innovações de que ela antevê
com secreto enlêvo a próxima alvorada.

Nos cláustros húmidos e melancólicos do seu mosteiro escondido, Leonor
evoca essa figura maravilhosa, que não encontrará de certo jámais, e
nessa evocação mágica se consola de tôdas as lutuosas tristezas da
realidade.

Os que nunca viveram pela imaginação não podem conceber o que seja êste
dom milagroso com que ela enriquece os seus eleitos. Não sabem que na
pobreza, na solidão, na clausura, é possível ser-se feliz quando se
possue a chave de oiro dêsse país das quimeras a que sobem os que teem
asas!

E dêsse vago sonambulismo de poetisa, de erudita e de fantasista
adorável despertou um dia de súbito Leonor de Almeida ao sentir dobrar
fúnebremente todos os sinos de Lisboa, anunciando a morte de um rei, a
morte do rei que esmagara todos os seus.


NOTAS DE RODAPÉ:

[19] Frei Luís de Sousa, _Hist. de S. Domingos_.

[20] Frei Luís de Sousa, _Hist. de S. Domingos_.

[21] Manuel Bernardes Branco, _Hist. das ordens monásticas em Port._.

[22] Manuel Bernardes Branco, _Hist. das ordens monásticas em Port._

[23] _As prisões da Junqueira durante o ministério do marquês de
Pombal_, escritas ali mesmo pelo marquês de Alorna, uma das suas
vítimas.

[24] _As prisões da Junqueira durante o ministério do marquês de
Pombal_, escritas ali mesmo pelo mesmo marquês de Alorna, uma das suas
vítimas.

[25] Correspondência inédita.

[26] António Augusto Teixeira de Vasconcelos; Camilo Castelo Branco, no
_Dicionário Universal_; D. António da Costa, na _Mulher em Portugal_,
etc., etc.

[27] Correspondência inédita de Leonor de Almeida.

[28] Correspondência inédita.

[29] Correspondência inédita. Refere-se às constantes ameaças de a
fazerem freira, que lhe vem aos ouvidos, trazidas por várias pessoas.

[30] Correspondência inédita.

[31] Idem.

[32] Idem.

[33] Correspondência inédita.

[34] _La femme au dix-huitième siècle._ Goncourt. _Les origines de la
France contemporaine._ Taine. Memórias. Cartas, correspondências do
tempo.

[35] Atália de donaire!

[36] Correspondência inédita.

[37] Camponesa de Frielas.

[38] Correspondência inédita.

[39] Obras da marquesa de Alorna, tomo 1.

[40] Obras de Filinto Elísio.

[41] Teófilo Braga, _Hist. de literatura_.

[42] _Poesias da Marquesa de Alorna_, tomo 1.

[43] Correspondência inédita.

[44] Correspondência inédita.

[45] Correspondência inédita.

[46] A alusão a Cromwell mostra bem claramente a ignorância do tempo, e
a sua falta de critério histórico. Cromwell equiparado a Calígula e a
Nero! Compare-se esta idea acêrca do grande _protector_ inglês, com o
retrato dêste feito por Carlyle!

[47] Correspondência inédita.

[48] Era assim que Leonor chamava à amiga Teresa.

[49] Refere-se a um caso assim narrado noutra carta: «Alexandre de
Sousa, que é uma das pessoas mais vivas que conheço, estando connosco
(na grade) deram Avè-Marias ao tempo que êle estava merendando. Fêz
várias caretas célebres pelo descómodo de largar o prato, pôs-se de
joelhos, enguliu o bocado, etc., e finalmente não concluíu a manobra
senão depois delas rezadas e tudo acabado. Cada uma das pessoas que
ali estava, disse sua graça sôbre a falta de devoção, e eu em tom de
justificação irónica, respondi: «O sr. D. Alexandre bem sabe que Deus
quer que o adorem em _espírito e verdade_, que olha só para o culto
interno e que o mais são _fórmulas_ para nós, com que êle não se dignou
fazer cumprimento. Eu julguei ter-me explicado bem, mas foi o contrário
que sucedeu. Creio que S. Paulo não acharia na minha proposição a
mínima liberdade.»

[50] Correspondência inédita.

[51] Idem, idem.

[52] Idem, idem.

[53] Correspondência inédita.

[54] Correspondência inédita.

[55] Como nesta simples frase se vê bem a leitora assídua da
enciclopédia e dos filósofos e moralistas do século XVIII! Que longe
ela coloca Leonor de Almeida do ideal devoto e mediévico a que ela
porventura julga ser ainda fiel! A honra _um preconceito_ é da
disciplina de Voltaire e não da môça educada pelos moldes épicos da
cavalaria antiga.

[56] As de Leonor de Almeida, publicadas nas suas obras completas.

[57] O dr. Inácio Tamagnini.

[58] Frase impagável.

[59] Nas _Noites de Insónia_ Camilo refere-se a esta satira.

[60] É assim chamado tanto na correspondência inédita de Leonor de
Almeida, como nas _Prisões da Junqueira_, do marquês de Alorna.

[61] Vide _Prisões da Junqueira_.

[62] Propriedade da casa de Alorna.

[63] Como isto está datado.

[64] Costigan, Beckford, Châtelet, _Tableau de Lisbone_.

[65] Correspondência inédita.




                             CAPÍTULO III

 Morte de el-rei.--É despedido brutalmente o marquês de
 Pombal.--Soltura dos presos da Junqueira.--O marquês de Alorna na
 portaria de Chelas.--Orgulho do marquês.--Seus esforços para uma
 pronta reabilitação que alcançou.--Retirada da família de Alorna
 para Almeirim.--Desilusões de Leonor.--Antagonismo moral do pai e da
 filha.--Reacção desbragada do reinado de D. Maria I.--O ministério
 da rainha.--Angeja.--Vila Nova.--Martinho de Melo.--O cardeal
 da Cunha.--Tancredo e Maria de Almeida.--Desgôsto do marquês de
 Alorna.--A côrte de D. Maria I.--A rainha e sua loucura.--O rei.--O
 príncipe do Brasil.--O confessor da rainha arcebispo de Tessalónica
 e o seu leigo.--Os marqueses de Marialva e a sua principesca
 hospitalidade.--Festas típicas da sua casa.--Os Penalvas.--Várias
 figuras do tempo.--O duque de Lafões e o mestre Gluk.--Pitoresco da
 vida portuguesa, mas falta de influência feminina.--A castidade da
 rainha e o teatro.--Do estado lastimável a que êle desceu.--Farças,
 entremesses, tragédias.--Conflito entre Leonor de Almeida e
 o seu meio.--Casamento que a liberta dêsse meio.--O conde de
 Oeynhausen.--Cerimónia do seu baptisado.--Testemunha ocular que a
 narra minuciosamente.--O sermão do frade dominicano.--Oposição do
 marquês de Alorna ao casamento da filha.--Desobediência de Leonor e
 seu casamento com o conde alemão.--Referência de Bocage a Alcipe.


A 24 de Fevereiro de 1777 morria el-rei D. José, e na manhã dêsse mesmo
dia, quando o marquês de Pombal, segundo o costume, se encaminhava
para os quartos em que o seu régio amo agonizava, tolhia-lhe o passo o
cardeal da Cunha, dizendo-lhe em tom altaneiro: «V. ex.ᵃ já não tem
nada que fazer aqui.»

Nesta frase desdenhosa resume-se uma das mais monstruosas ingratidões
da história. O cardeal fôra uma criatura do marquês; para ter chegado
ao fastígio do poder que ocupava agora, não tivera outra recomendação
alêm da que lhe dava, naquele tempo, o prestígio do seu nome. Como
êsse nome, ainda assim, era o de Távora, o cardeal teve a baixeza de
o renegar, só por julgar que isso seria um requinte de côrte feita
ao seu poderoso protector.[66] De resto, vaidoso e ignorante, a sua
Biblioteca, composta de onze mil volumes, inspirava ao conde da Ponte o
conhecido chiste das _onze mil virgens_; e nada mais nulo do que a sua
figura de estadista improvisado por um capricho do marquês de Pombal,
que tão cruelmente expiou a fraqueza de ter confiado nêle, ou o cálculo
de o ter querido como inofensivo companheiro de govêrno.

Formulou-se desde logo um programa completo de reacção, que rápidamente
se pôs em prática em seguida à morte de el-rei.

O primeiro sintoma dessa reacção impudente e súbita foi a desatenciosa
frieza com que o marquês, ontem omnipotente, começou de ser tratado
por todos aqueles que se haviam curvado, em abjecta adulação, ante os
excessos do seu poder e os abusos da sua autoridade.

Uma parte, e a mais louvável do programa dos novos conselheiros da
rainha, consistia em abrir de par em par as portas dos cárceres em que
jaziam desesperadas as vítimas da política pombalina e do ódio de D.
José.

Imagine-se a alegria, o férvido entusiasmo de Leonor de Almeida, quando
a notícia de que iam ser finalmente soltos, depois de um cativeiro de
dezoito anos, todos os sobreviventes da tragédia de Belêm, soou através
das grades que a separavam do mundo, sem contudo, a terem alheado de
nenhum dos seus interesses.

Era uma hora da noite quando o marquês apareceu no locutório de Chelas,
onde o estavam esperando a chorar de convulsa alegria as filhas e a
mulher. Figure-se o que seria o encontro dos dois esposos! Tinham-se
separado havia dezoito anos sem se tornarem mais a ver, nem sequer de
longe. A ela tinham-lhe arrancado dos braços um gentil cavaleiro, na
flor da mocidade, esbelto, airoso, desempenado e forte; êle deixava
uma mulher lindíssima, que a maternidade fizera mais adorável sem
a ter feito menos bela, e cujos olhos, de um azul violeta, cujos
louros cabelos abundantes, cuja fisionomia idealmente fina vemos
magistralmente reproduzida no retrato esplêndido que dela existe
ainda[67]. Que mudança nos dois! O marquês vinha curvo, cansado,
envelhecido e triste. As faces trazia-as precocemente avincadas
pelas meditações dolorosas; nos olhos havia-se-lhe apagado o fogo da
temerária juventude; os cabelos, outrora elegantemente polvilhados à
moda da côrte, vinham brancos sim, mas embranquecidos pelo martírio.
Por sôbre ela haviam rodado pesadamente, lentamente, os dias da
separação e da clausura; mas os vestígios de uma notável beleza ainda
se não haviam de todo apagado nesse rosto que a alegria de ver o seu
adorado ausente purpureava agora.

Nenhum requinte de garridice cortezã restava ao infeliz prisioneiro,
para quem Leonor de Almeida--sabendo que as suas cartas eram
interceptadas e lidas antes de serem entregues--pedia a quem as lesse,
empregando as frases da mais terna súplica, «uma capa de baeta ao
menos que o resguardasse dos rigores do frio no seu húmido càrcere.»[68]

Mas, velho como estava, lá dentro ardia a mesma chama impetuosa
de orgulho. Não queria aceitar a clemência régia como uma esmola
voluntária, senão como um preito justo, uma restiuìção devida a quem
muito a merecia.

Por isso, longe de se dar por satisfeito com a amnistia concedida
a quási todos os presos políticos do tempo de D. José, vê-lo hemos
em breve começar essa demanda longa e complicada da sua completa
reabilitação judicial, requerendo, acompanhado pelo conde de S.
Lourenço, D. João Ansberto de Noronha, e por três irmãos do marquês
Francisco Assis de Távora, a nomeação de uma junta de magistrados para
se pronunciarem acêrca da sua inocência ou culpabilidade. E emquanto
êsse tribunal, que, por ordem da rainha, não tardou a constituir-se,
demorou o seu parecer, o marquês recusou-se formalmente a ficar na
côrte.

Repugnava-lhe o papel de perdoado, a êle que se reputava vítima de um
julgamento iníquo. Foi, portanto, com a família estremecida para o
vale de Almeirim, onde possuía uma das suas mais formosas quintas.

       *       *       *       *       *

As cartas de Leonor, que até aqui nos tinham acompanhado e amplamente
informado, faltam-nos neste momento. Só por intuìção poderemos
reconstruir os sentimentos novos, as emoções deliciosas, as surprêsas
melancólicas de que o espírito e o coração dela forma o teatro já agora
silencioso.

Mais tarde, falando de Almeirim, ela procura descrevê-lo com as frouxas
tintas de que dispunha a poesia falsa do seu tempo:

    Nem pórticos marmóreos, nem colunas
    Que cinzelasse em Paros mão perita,
    Há de achar neste sítio: altos pinheiros
    Formam de espêssa rama o nosso teto,
    E gramínea alcatifa nos of’rece,
    Para pensar logar acomodado.
    Uma fonte serêna ali murmura,
    E mil vezes afoita a fantasia,
    Cuida ouvir revolver-se dentro d’água
    A Naiade gentil que lhe preside.
    Se agita o vento as canas buliçosas,
    Se da serra um rochedo assusta a vista,
    Mitológicos sonhos me recordam,
    Ora aquela que a dor petrificara,
    Ora a Ninfa medrosa e fugitiva
    Que o pudor converteu em verde junco.[69]

Mas é provável que nessa hora singular da sua mocidade, hora de
ardentes esperanças, de violenta reacção contra a desgraça que por
tantos anos perseguiu todos os seus, hora rubra, iluminada de tôdas
as vivas côres de uma imaginação de poeta, Leonor não tivesse uma
predilecção muito pronunciada pelos pinheiros agudos, nem pelos
buliçosos canaviais da sua solitária Almeirim.

Só amam verdadeiramente o repouso no seio da natureza aqueles a quem a
vida frustrou tôdas as promessas feitas, e que dela cessaram de esperar
seja o que for.

Leonor esperava ainda muito do mundo; êle devia-lhe uma famosa
desforra. Emquanto lh’a não desse ou a não persuadisse a poder de
desilusões de que era um devedor insolúvel, Leonor não queria nem
descanso nem solidão.

O que ela provávelmente ambicionava agora, já cansada de regras
conventuais e de rezas e de misticismo, era mover-se, agitar-se, viver
em tôda a plenitude, e tôda a exuberante energia da sua mocidade,
em tôdas as faculdades do seu curioso e irrequieto espírito. Era
participar da alegria dos outros, de que tantos anos estivera
exilada; era falar com gente môça, despreocupada e feliz; ouvir os
discretos galanteios e as floridas frases namoradas dos rapazes do
seu tempo, e manifestar a graciosa agudeza do seu entendimento em
práticas literárias e eruditas com os celebrados engenhos da época;
era resvalar gentilmente entre finos requebros galantes, nos minuetes
dos esplêndidos saraus, acompanhada por um par preferido; era mostrar
emfim a olhos que soubessem apreciar e ver, a sua impecável formosura
peninsular, os seus grandes olhos luminosos e ardentes onde se
reflectia tanta exaltação, tanta espiritualidade e tanta vida.

O duque de Châtelet, que fêz a sua viagem a Lisboa justamente no ano
em que as filhas do marquês de Alorna deixaram o convento de Chelas
(1777), fala do abatimento em que as havia pôsto a longa reclusão
nestes termos precisos: _Vi duas raparigas que tinham entrado para a
prisão, acompanhando os pais, ainda na primeira infância e que saíam
com dezenove e vinte anos parecendo quarenta. (Voyage en Portugal du
duc de Châtelet)._

Ora a verdade é que não pareciam ter quarenta nem tinham vinte. Leonor
tinha vinte e seis anos; tinha vinte e cinco a irmã, e não podiam
parecer muito mais velhas, porque, posterior à data a que se refere o
duque de Châtelet, é o retrato da nossa biografada que ainda hoje se
admira numa das salas da magnífica vivenda dos marqueses de Fronteira,
em Bemfica, e nesse retrato a beleza imperial de Leonor ressalta com
expressão admirável. Não era sómente uma mulher bonita, era uma mulher
encantadora. Tinha a sagacidade crítica, o espírito leve e sarcástico,
e a observação nítida e profunda de um moralista. Nas suas poesias
contaminadas, é certo, pelas pechas da escola pseudo-clássica, em
que fôra educada e à qual subordinava o seu nativo engenho, cheias
de alusões mitológicas indispensáveis ao tempo, revela-se no entanto
um belo poder descritivo e uma fôrça de reflexão viril. Mais tarde
a educação que lhe deram as viagens e o conhecimento da literatura
estrangeira completaram e aperfeiçoaram o seu talento, e ela foi entre
nós, como a Stael em França, uma espécie de iniciadora, de reveladora
do pensamento e da poesia do Norte, que nos eram inteiramente
desconhecidos.

Em Almeirim, nessa espécie de entre-acto no meío de dois dramas
diversíssimos, Leonor sonhou de-certo com os triunfos que o seu
talento lhe ia conquistar, e com as delícias que lhe daria ao sair da
clausura a intimidade da família, agora completa. É tão natural êste
sentimento, que nem o mais scéptico espírito masculino seria capaz de
esquivar-se-lhe.

Mas não tardou que uma nuvem, prenúncio de muita tempestade interna,
ameaçasse de avolumar-se sôbre a fronte da juvenil poetisa.

O seu pai, o seu querido pai, o confidente da sua sombria mocidade, o
amigo com quem ela desabafava todos os seus pensamentos, ainda os mais
ocultos, o juiz continuamente invocado para julgar os seus versos, para
aconselhar as suas leituras, o espírito a que ela chamava irmão do seu,
e com o qual se comprazia em alar-se pelos livres espaços da abstracção
e da filosofia--que diverso lhe aparecia do que ela tinha imaginado em
longas horas de idealizadora e de inspirativa saudade! Que diferente
dessa figura ideal que ela se tinha deliciado em criar na solidão do
seu quarto de Chelas, quando escrevia envolta num roupão de sêda côr de
fogo, com os belos cabelos soltos, e feliz por sentir-se uma heroína
de romance, ou uma gentil figura, digna da história pelo infortúnio e
pela grandeza da resignação.

Oh! o marquês não mudara; era o mesmo homem rígido, inteiro, coerente,
que sempre fôra; seguia a lógica do seu destino, e mais nada. É certo
que êle recebera, pelas suas leituras juvenis, o influxo das ideas
que, provindas da Inglaterra liberal de 1688 e divulgadas pela França
filosófica e investigadora de Bayle, de Montesquieu, de Voltaire,
irrompiam para nós através da espêssa nuvem de preconceitos que nos
separavam do mundo, e se iam insinuando subtilmente nos espíritos mais
aptos para as acolherem. O marquês de Alorna pertencera áquele número,
bastante avultado, de fidalgos inteligentes, mas de uma inteligência
restrita, que aceitavam até certo limite,--imposto por êles--as novas
ideas em ebulição, contanto que elas não passassem da esfera puramente
abstracta para o campo dos factos definitivos e das leis reformadoras.
Queria, é certo, distinguir-se pelo pensamento livre e pelo critério
desassombrado[70] dessa plebe beata ou hipócrita, dissoluta ou
bestificada, que então enxameava, ociosa e resmungando avè-marias,
pelas portarias dos conventos de Lisboa, ou pelos pátios da fidalguia
opulenta, que a alimentava das migalhas dos seus banquetes, ou das
rações do seu refeitório; mas não admitia que essa plebe se emancipasse
pela educação, e se fizesse povo pelo trabalho, pela fôrça e pela
consciência dos seus direitos e deveres.

Depois vira o espírito das novas ideas encarnado no homem que êle
entre todos odiava, e tinha razão para odiar, no algoz da sua família,
no perseguidor da sua casta. A burguesia,--que para o marquês de Alorna
era representada pelo procurador oficioso, pelo boticário esguio e
grotesco, pelo escrevente _pedinchão_, pelo físico condescendente e
mesureiro, por tôda a caterva de aduladores e de parasitas que se
atropelavam nas ante-câmaras patrícias, e de cuja falange retardatária,
Tolentino, infelizmente um dêles, mas um dêles com génio, fêz
depois a sátira brilhante e a descrição pungitivamente exacta,--a
burguesia emancipara-se, levantara-se, enriquecera, civilizara-se,
creara indústrias e comércio e grandes lavouras[71] e manufacturas
florescentes sob a inteligente protecção de Pombal.

A Igreja, auxiliar e amiga da aristocracia em todo o antigo regime,
fôra despojada de grande parte dos seus privilégios e imunidades
pela mão poderosa do grande inimigo de Alorna. O marquês de Pombal
implantava ideas revolucionárias, servindo-se das armas do mais
intransigente absolutismo. Esta contradição fundamental da sua obra
é que a condenou a ser passageira e efémera. No espírito do pai
de Leonor todo êste espectáculo contemporâneo produziu o natural
retrocesso, que mais tarde se produziu tambêm em França no espírito da
nobreza momentâneamente subjugada e namorada pelas generosas concepções
da filosofia do século XVIII, e que essas mesmas concepções executadas
e levadas até às suas conseqùências lógicas encheram de justificado
pavor.

Leonor, que saía do convento cheia de belas máximas, propagadas
pelos filósofos da enciclopédia, e que julgava seu pai inteiramente
convertido às mesmas doutrinas de liberdade e de filosofia, teve
ao primeiro contacto real com o espírito endurecido do desenganado
fidalgo, uma verdadeira e cruel decepção.

Entre o pai e a filha cavou-se então um abismo moral que nunca mais
foi transposto. Êles que tão bem se tinham combinado por escrito, em
generalidades vagas sôbre a inanidade das grandezas, sôbre os prazeres
da filosofia, sôbre o pouco valor das convenções sociais; êles que
tinham ambos dissertado tão largamente sôbre o muito que o bem dos
povos sobrelevava ao bem dos imperantes[72] e sôbre outros temas
igualmente favoritos da filosofia declamatória e vaga do século--ei-los
que se achavam agora divergentes em quási tôdas as matérias que
versaram. A desgraça e os desenganos de um, levavam-no impetuosamente
arrastado por uma corrente contrária áquela que impelia Leonor,
vibrante de aspirações e de sonhos, para um futuro mais desassombrado
de convenções estreitas, mais livre de superstições e de tiranias.

O marquês de Alorna voltara completamente a ser o fidalgo devoto e
ferrenhamente aristocrático, com assômos violentos de revolta feudal,
que deixara de ser por momentos, durante o tempo em que «pérfidas
leituras de filósofos dignos de queima»[73] o tinham afastado do bom
caminho. Aceitava, até às suas conseqùências extremas, os princípios
da reacção que tumultuava impudente e feroz desde o paço, em que o rei
e a rainha viviam ajoelhados no oratório, até à rua; desde os camarins
forrados de tapeçarias de Arras, em que as damas da côrte tocavam no
cravo músicas de Haydn, de Gluck e de Jomelli, até à taverna em que as
rameiras e os mendigos cantavam ao som do violão nacional as sátiras
populares em que figuravam

    Marquês, Mendonça e Mansilha[74].

os poderosos de ontem, hoje vituperados e cuspidos sem dó.

Comandava essa reacção desbragada o novo ministério da rainha, em
que Angeja e Vila Nova da Cerveira representavam a aristocracia
soberba, intransigente e cobiçosa, consumada na arte da cortesania
e da lisonja; em que a figura enigmática de Martinho de Melo se
destacava pela inteligência cultivada e fina, pela mordacidade irónica,
pelo conhecimento profundo das civilizações estranhas de que se
penetrara largamente em França, na Inglaterra e na Holanda, pela hábil
dissimulação com que ocultava, sob a aparência de um fiel servidor da
causa da nobreza, um espírito de radical e de livre-pensador, capaz
no fundo de continuar a obra de Pombal, se o scepticismo não fôsse um
corrosivo, um dissolvente do carácter e da vontade.

Ao pé dêle Aires de Sá e Melo, ministro da guerra e dos estrangeiros,
mas com vocação frustrada para cónego da patriarcal, não se cansava de
recomendar à tropa que rezasse quotidianamente o têrço, beijava a manga
de cada frade que encontrasse no caminho, e benzia-se tantas vezes ao
ouvir missa que era o espanto e a distracção cómica de quem lhe ficava
ao pé.

Quanto ao jôgo de xadrês complicado e subtil da diplomacia europeia,
era letra morta para o devoto ministro, que de resto, na arte da guerra
era tão profano como na de negociador.

O cardeal da Cunha completava êste banal ministério, ao qual devia
incumbir o gigantesco encargo de continuar, aperfeiçoando-a, a obra da
regeneração portuguesa, iniciada pelo grande ministro de D. José. Já
que não podiam nem queriam continuá-la, houve entre elles um preposito
o de restituir ao cemitério da história o Lázaro que a poderosa mão
do grande ministro galvanizara temporáriamente, e n’elle concordavam
com perfeita unanimidade o orgulho de uns, a habilidade de outros, a
demência e a ignorância do maior número.

Para o marquês de Alorna, essa reacção, uma das mais repentinas e
violentas, tinha ainda um grande defeito. Era branda em demasia.

Ao seu ulcerado espírito só satisfaria cabalmente a condenação
de Pombal a penas tão duras como as que êle infligira aos mais
conceituados membros da velha nobreza, e a reabilitação da memória
dos que tinham sido imolados ao que êle supunha um infernal enrêdo do
ministro de D. José. Queria, alêm disso, que os sobreviventes fôssem
restaurados em tôdas as suas honras e todos os seus haveres.

Que a sua própria inocência lhe fôsse reconhecida pela junta congregada
pela rainha, isso tinha êle por certo, e assim se realizou a breve
trecho.

Em Maio de 1777 expediu a soberana um decreto em que se declarava o
marquês de Alorna puro de tôda a culpa de inconfidência restituindo-o
às honras que por direito e nascimento lhe pertenciam[75].

Não ficava, porêm, ainda satisfeito o orgulho do marquês. Uma pretensão
tinha a mais, que muito perto do coração lhe tocava. Vinha a ser a
restituìção dos bens, honras e títulos da casa de Aveiro ao malogrado
primogénito do duque, D. Martinho de Mascarenhas, conhecido entre os
presos da Junqueira pelo _marquesito_.

Nem Latino, o qual explica larga e minuciosamente as diligências que
o marquês de Alorna empregou para êste fim, nem outros escritores que
temos lido, como Camilo Castelo Branco, Pinheiro Chagas, etc., conhecem
os motivos particulares que determinaram o marquês de Alorna a meter-se
ousadamente em tão difícil empreendimento. O leitor, porêm, já pelo
capítulo precedente conhece êsses motivos. A filha mais nova do marquês
de Alorna fôra prometida em casamento ao ex-marquês de Gouveia.

       *       *       *       *       *

Neste ponto permita-se que abramos um parêntesis para contar até ao fim
a lúgubre história de D. Martinho de Mascarenhas.

A instâncias do marquês de Alorna, que desde a sua saída da prisão não
descansava neste assunto, subiu à rainha uma _representação_ de que
Latino Coelho[76] extracta os principais articulados, e em que o filho
do duque de Aveiro se propunha comprovar que não podia ser infamado
pela culpa de seu pai, aduzindo que era immune da pena hereditária por
ser _nobilíssimo_, como descendente de régio tronco. Êste _memorial_
parece haver sido firmado por um letrado de fama áquele tempo na côrte
de D. Maria, chamado Francisco da Costa. E diz Latino que, ou porque o
causídico fôsse fogoso de índole, ou porque a tardança no bom despacho
da rainha azedasse os ânimos do defensor e do mandante, o caso é que o
advogado de Gouveia propugnara com veementes razões os direitos do seu
cliente.

«Trazendo em seu auxílio a constituìção de Arcadio, provava com
jurídicos fundamentos que não cabia aos filhos antenatos ao delito
a infâmia pelos crimes paternos. E agitando e resolvendo em sentido
liberal o mais grave problema dos publicistas, a origem da régia
autoridade, reproduzida em ousadas afirmações a doutrina de S. Thomás
e do padre João de Mariana, de que a suprema potestade no povo residia
e dêle era transferida condicionalmente para que a podesse reassumir e
exercer quando a salvação do Estado o reclamasse.»[77]

Concluía o advogado que os grandes de Portugal não podiam ser sujeitos
à pena de infâmia pelos delitos de seus maiores.[78]

O tom da doutrina, a segurança das asserções, a soberana e imperativa
altivez de tal súplica, respiravam, segundo assevera o historiador já
citado, por um lado a aristocrática altivez dessa nobreza da côrte que
Pombal esmagara por algum tempo, e cujo orgulho agora renascia mais
ulcerado e mais violento, por outro lado a revolucionária doutrina da
soberania nacional, que principiava a insinuar-se nos espíritos mais
adiantados.

O caso é que, no testemunho de muitos contemporâneos bem informados,
tais como o príncipe de Raffadali, que era ao tempo ministro
plenipotenciário de Nápoles em Lisboa, do cavalheiro de Pollon,
ministro plenipotenciário da Sardenha na mesma côrte, do autor das
_Cartas de Lisboa_ extractadas no _Jornal de Murr_, e de outros mais,
sentiu-se a rainha profundamente ofendida pelo desacato à régia
autoridade que nesse _memorial_ era feito, e chegou a manifestar o seu
formal desagrado ao marquês de Alorna, o qual, segundo o seu costume,
se retirou azedado para as suas propriedades longe da côrte.

Confirmando as suas asserções acêrca do desrespeitoso _memorial_,
Latino Coelho publica por extenso o edital do intendente geral de
polícia, datado de 13 de Março de 1781, _mandando recolher todos os
exemplares de vários papéis satíricos em prosa e em verso, e de um
extenso arrazoado em favor de Martinho de Mascarenhas_.[79]

Foram, portanto, absolutamente baldados todos os esforços mais ou menos
hábeis empregados pelo impetuoso marquês de Alorna.

O noivo de Maria de Almeida, o Tancredo dos sonhos heróicos e
romanescos das reclusas de Chelas, não participou do amplo favor com
que, a impulsos e sob a influência dos grandes da côrte, Angeja,
Vila Nova da Cerveira, Marialva, etc., e aproveitados destramente os
melindres de consciência da fraca e desgraçada rainha, se proclamou
judicialmente em alvarás expedidos em diversas épocas a inocência dos
implicados no terrível processo, exceptuando o duque de Aveiro, sua
descendência e os três subalternos seus cúmplices.

A certeza dolorosa de que seriam baldadas as suas diligências com o
fim de reabilitar e de restaurar na perdida jerarquia a D. Martinho
de Mascarenhas, parece haver obumbrado e entristecido ainda mais
profundamente o espírito já sobejamente melancólico do marquês.
Recorreu desde então mais freqùentemente à solidão das suas quintas
e herdades. Muito curioso de sciências matemáticas e de astronomia,
a sua principal diversão era o estudo dos corpos celestes. Numa
das composições mais felizes de Leonor de Almeida, a imitação da
_Primavera_, de Thompsom, refere-se ela por êste modo aos estudos de
seu pai:

    Quando lá nessa Tempe solitária
    No tranqùilo Almeirim as musas honras,
    Ou nas rochas de Almada os céus estudas.
    Lá, combatendo a turba de incertezas,
    Ignorado, a teus pés vês os sistemas
    Que a Newton e a Descartes deram fama.

       *       *       *       *       *

Quando o marquês permanecia algum tempo em Lisboa, não deixavam de
concorrer às suas salas as figuras mais notáveis da côrte de D. Maria
I, que, por aliança ou parentesco, estavam tôdas estreitamente ligadas
com a ilustre casa de Alorna. Visitavam-no tambêm com freqùência os
estrangeiros famosos que por aqui passavam, e os diplomatas que aqui
representavam suas respectivas côrtes. Só infelizmente não brilhava
entre os freqùentadores dêsses saraus elegantes e falados por tanta
maneira o infeliz que havia sido noivo de D. Maria de Almeida. É para
nós, cronista, um verdadeiro enigma esta espécie de abandôno em que D.
Martinho se deixou subverter. Como pode conciliar-se a amizade que o
marquês de Alorna lhe votava, o seu porfiado interêsse em salvá-lo, com
a resolução que o levou a conceder a mão de Maria, a prometida noiva do
ex-marquês de Gouveia, ao conde da Ribeira Grande?

É bem provável que a irmã de Leonor, em quem as mais doces virtudes
da alma feminina--a piedade e o desinterêsse--parecem ter florescido
suavemente, quisesse ser fiel no desamparo e na miséria áquele que lhe
tinham permitido que amasse, quando havia a fundada esperança de que
a corôa de noivado por êle oferecida tivesse o esplendor soberbo de
uma corôa ducal. Mas fôsse qual fôsse o motivo que actuou no ânimo do
marquês de Alorna, o caso é que êle ajustou o casamento de sua filha
com o conde da Ribeira Grande, e que Maria se submeteu em silêncio.

O romance daqueles puros amores foi cortado em flor, justamente na hora
em que a figura, para nós apagada, quási indistinta de D. Martinho,
devia tornar-se trágicamente interessante para uma mulher inteligente,
romanesca e namorada.

O marquês de Gouveia desapareceu. Sumiu-se na onda negra da miséria.
Diz Camilo Castelo Branco que o sustentou até 1804, data em que morreu
numa humilde casinha de Buenos Aires, a bôlsa do conde de Óbidos,
do próprio marquês de Alorna, e finalmente de D. João VI. Timbraram
em socorrê-lo pecuniáriamente, livrando-lhe o corpo das agonias da
fome, já que não podiam ou não queriam livrar-lhe a alma de angústias
lancinantes com que a teimosa memória havia de inferná-la.

Educado, como o eram os fidalgos do seu tempo, na ignorância das
coisas positivas e do trabalho redentor, o infeliz não soube reagir.
Restavam-lhe três caminhos a seguir: o da revolta aberta contra a
iniqùidade da instituìção que o esmagava; o do labor que o emancipasse
das esmolas com que os da sua casta o manietaram e humilharam; ou o da
abjecta submissão à injustiça que lhe faziam. Foi o terceiro que êle
escolheu!

Tancredo era no fim de contas um mediano herói!

Maria de Almeida, essa, como dissemos, casou. Nas raras cartas dela
que temos à vista, respira-se, a par de uma elegância e de uma graça
feminina verdadeiramente encantadoras, a melancolia dolente e vaga da
alma que se sente ferida na mais delicada e secreta fibra das suas
asas. Morreu môça, mas estremecida pelos que a conheceram. Leonor tem
lamentos inconsoláveis na sua musa um pouco ingrata para lhe chorar a
morte prematura. Não era feliz, dizia ela com resignação suavíssima
talvez lembrada das quimeras da sua poética mocidade; mas consolavam-na
a música, os versos e os filhinhos que deixou na primeira infância.

A sua voz era famosa nas salas de Lisboa, os seus versos são
celebrados por Filinto, para quem ela é a formosa Daphne. Desta figura
inteiramente ignorada pela história, apenas entrevista pela crónica
do seu tempo, ressalta para nós, que lográmos através das suas cartas
conhecê-la um pouco, um encanto estranho, uma doçura indizível, como
que um pertinaz aroma de graça aérea e casta.

Na nossa infatigável busca de documentos que nos fizessem penetrar na
intimidade de Leonor de Almeida, topámos, sem querer, com êste pobre
idílio ignorado, cujo remate é de uma tão insondável e silenciosa
tristeza!...

Que nos seja perdoado o termo-nos demorado respirando o perfume que
dêle se exala, como de uma violeta esquecida entre as fôlhas de velino
de um livro de orações.

       *       *       *       *       *

Dissemos que freqùentavam a casa de Alorna as figuras principais da
côrte. É azado, portanto, o ensejo para fazer uma rápida resenha dessa
côrte ainda fulgurante, ainda opulenta, e que foi a última digna dêsse
nome, a um tempo ôco e brilhante, que nós possuímos.

Não era bela a rainha que lhe presidia, mas um viajante inglês, tão
admirável observador como Horácio Walpole e tão fino _dilettante_ como
êste, que ao tempo estava em Lisboa, declarava que era verdadeiramente
impressionadora a gentil majestade do seu porte, a nobre expressão
bondosa e ao mesmo tempo imperativa da sua fisionomia.

De entendimento limitado e educação deplorávelmente defeituosa, essa
pobre rainha foi uma mártir do seu alto destino. Nascera para ser uma
excelente e cuidadosa espôsa e mãe; teve de governar, em crise de
transição tempestuosa e difícil, um país na sua generalidade ainda meio
bárbaro.

De um lado a piedade filial, que foi nela uma virtude acrisolada,
ordenava-lhe que respeitasse absolutamente as decisões, por violentas
que fôssem, com que D. José assinalou o seu reinado enérgico; por outro
lado uma reacção desenfreada, tomando as aparências de justiça, e
usando das armas que a Igreja põe na mão dos seus ministros, impelia-a
para o caminho da mais irreverente demolição de todo o reinado
precedente. Persuadiam-na a que castigasse aqueles que o pai tinha
amado; que reabilitasse os que o pai considerou como seus assassinos;
que desfizesse as sentenças que o pai confirmara; e ora lhe pintavam
com vivas côres o rei que a antecedeu a arder nas chamas do inferno,
pelo mal que tinha feito à fidalguia e aos ministros da Igreja, ora lhe
representavam com côres não menos vivas a sua futura condenação a penas
iguais, se não desfazia tôda a obra iníqua, ideada por Pombal, e que D.
José deixara executar. Esta luta foi dolorosa, foi cruel demais para o
cérebro fraco da infeliz rainha. Endoideceu!

Ouviam-na passar pelos vastos corredores do paço rompendo os ares
desesperadamente com a sua queixa ululante, com o uivo trágico da sua
loucura! Os gritos que ela soltava, agudos, dilacerantes, gritos de
alma penada, que implora o fim da negra expiação, ecoavam lúgubremente
pelas salas da Ajuda ou de Queluz.

Beckford, que lh’os ouviu, compara-os aos trágicos lamentos estrídulos
que as abóbadas do castello de Berkeley repercutiram quando a Eduardo
II foi infligida a mais crua e torturante das mortes.[80]

_Ai Jesus! Ai Jesus!_ gritava ela na amargura infinita da sua agonia,
julgando ver do meio de uma chama enorme, que lhe incendiava o quarto,
lambendo com milhares de línguas de púrpura a cama em que ela se
debatia, surgir o pai tal como o representa a estátua no Terreiro do
Paço, mas negro, calcinado, feito em carvão, emquanto uma multidão
de fantasmas horrendamente desfigurados--os fantasmas de Belêm--o
empurravam para baixo, para o inferno, para o eterno fogo que nunca se
consome, para a chama perpétua que nunca se apaga.[81] Que trágicas
visões shakespereanas as dessa pobre mulher fanática, instrumento
e vítima dos reaccionários que a enlouqueceram! As suas noites sem
sono ou cortadas de pesadelos atrocíssimos, as lutas acerbas da sua
consciência sem bússola e solicitada ardentemente para contrários
lados, as palavras cruéis dos seus conselheiros tão implacáveis no
ódio, tão exigentes na vingança, as incertezas em que se debatia o seu
obscuro entendimento, tudo faz dela a vítima expiatória de crimes cuja
razão de Estado nunca chegou a penetrar.

O historiador alemão Henrique Schaeffer, a quem se deve uma das
melhores histórias de Portugal que possuímos, o benévolo Beckford, que
tão íntimamente simpatizou com a alma portuguesa, o maledicente mas
penetrante Costigan, o duque de Châtelet, que na sua estada em Lisboa
freqùentou o paço e conviveu com a gente mais grada da côrte, todos
são unânimes no juízo favorável que acêrca da rainha formulam por bem
diversas maneiras.

«A rainha, diz Châtelet, é uma mulher verdadeiramente digna de estima
e respeito. Não possue, porêm, um só dos predicados que constituem
uma grande rainha. Ninguêm é mais caridoso e mais compassivo do que
ela. Mas estas excelentes qualidades são viciadas pela mal entendida e
excessiva devoção. O confessor (seria sempre êle?) obriga-a a despender
em devotos e penitentes exercícios o tempo que, sem dano da sua
salvação, poderia consagrar à felicidade dos seus povos.»

Escrevendo isto o duque de Châtelet não sabia que D. Maria I, a infeliz
e trágica rainha, quando passava assim as horas prostrada ante o
altar de Deus terrível, tinha como objecto único o alcançar à fôrça
de orações ardentes, de humildes súplicas, de rezas intermináveis a
salvação, não da sua própria alma, mas da alma dêsse pai que adorava,
e que lhe pintavam como a presa dos castigos do Eterno. Em vão lhe
diziam que era inexpiável o crime dêsse rei que perseguira os servos
da Igreja e os grandes vassalos da monarquia; ela, piedosa e doce
mulher, teimava em persuadir-se, embora pouco ortodoxamente, de que as
sentenças vingadoras e implacáveis do Deus de Israel se podem temperar
pela ternura humilde das nossas súplicas e pela ardente e copiosa
torrente das nossas lágrimas; que a chama deslumbradora e terrível do
Sinai se volvera, para nós, cristãos no dolente e inefável espectáculo
dos suplícios do Calvário!

Por isso chorava e rezava continuamente nos degraus do altar, pedindo
a Deus o perdão do pai que tanto amara, do pai em quem não queria nem
podia ver um condenado sem esperança.

«A misericórdia e a justiça, dizia Beckford, que são o lema com tanta
impropriedade escrito na bandeira do santo ofício, poderiam aplicar-se
com verdade irrefragável a esta princesa boa e virtuosa.»

_A decent fresh looking woman_, chamava-lhe Costigan, o menos cortesão
de todos. Pois até essa frescura física murchou, desapareceu no combate
interno em que a razão da infeliz rainha sossobrou finalmente.

       *       *       *       *       *

Aquele que podia ser seu guia moral, seu companheiro e seu amparo, não
passava de uma das mais grotescas se não da mais grotesca figura da sua
côrte.

É ainda a Costigan que vamos pedir a descrição do marido que a política
portuguesa impôs à desventurada mulher. «Ao pé de D. Pedro III,
diz o espirituoso observador irlandês, o próprio rei Carlos III de
Espanha, tão célebre pela fealdade, pode ser considerado um verdadeiro
Adonis. O desalinhado aspecto da cabeleira loura sempre à banda, o
olhar azul claro, parado e estúpido, as feições ásperas, grosseiras
e desarmónicas, tudo lhe dava o estonteado aspecto--a êle, coitado,
que nem vinho provava--de um velho inglês vencido pela quási completa
ebriedade.»[82]

Vivia, de resto, a rezar, encerrado na sua devoção estreita,
formalista, sem generosidade e sem ideal, como uma ostra na sua rude
concha.

Não tinha mesmo sequer uma hora para se informar acêrca das coisas
públicas, que não perceberia, é certo, pois que todo o seu dia se
passava no seu oratório particular, na capela ou nas festas religiosas,
que em Portugal ostentavam naquele tempo o maior luzimento e a mais
soberba pompa. Eram elas o assombro dos viajantes estrangeiros, ainda
os mais cultos e bem informados, que nem no Vaticano tinham visto coisa
que se comparasse à beleza, majestade e perfeição com que na capela da
rainha se executavam as músicas de Jomelli, de Perez, de Haydn e de
outros mestres igualmente célebres.[83]

Quando el-rei acordava dêsse estranho sonambulismo místico, em que a
existência se lhe esvaía, tinha a mais puéril credulidade para tudo que
lhe diziam os homens da nobreza que o cercavam e que eram os chefes da
aristocracia.

O abade Garnier, cura da igreja de S. Luís, que então vivia em Lisboa,
e cujas cartas interceptadas no _Gabinete da abertura_ são fonte
preciosa de informação acêrca dos acontecimentos contemporâneos, pois
que o abade tinha a aguda faculdade observadora peculiar ao seu estudo,
diz acêrca de D. Pedro III isto mesmo, acrescentando que a rainha,
cujo espírito é muito justo, mais circunspecta nas suas falas, mais
moderada, mais prudente e esclarecida nas suas opiniões, não se deixa
tão fácilmente arrastar pelo que ouve em tôrno de si aos interesseiros
áulicos, que, não podendo convencè-la, por isso mesmo a enlouqueceram.
O duque de Châtelet, êsse julga D. Pedro devoto até ao fanatismo;
sombrio e silencioso, constantemente ocupado em preces e procissões.

Como é, pois, que tal rei podia ser um conselheiro eficaz e razoável
para a consciência tímida, nutrida de escrúpulos devotos e alanceantes
da infeliz filha de D. José I?!

Ao pé da rainha e do rei, de quem esboçámos os liniamentos vagos,
aparece uma formosa figura que a morte espreita já, com a caprichosa
preferência que a tem quási sempre atraído para os primogénitos de
Bragança.

É a figura do príncipe do Brasil, D. José. O marquês de Pombal
estremecia e educara políticamente êste môço, em quem antevia
porventura o continuador enérgico e eficaz da obra que êle sonhara, e
da qual chegara a realizar as edificações fundamentais.

Dizia-se, e há cartas de Leonor de Almeida a seu pai, escritas de
Chelas, que se referem com segurança a êste projecto, que a idea fixa
do marquês de Pombal consistia em fazer promulgar em vida de D. José
a lei sálica em Portugal, tornando nulos os direitos de D. Maria I, e
determinando assim que ao rei, seu instrumento passivo, sucedesse o
rei, seu discípulo inteligente.

É muito possível que, se tal houvesse sucedido, o primeiro acto do
príncipe fôsse expedir de si o velho conselheiro de seu avô, o velho
sustentáculo de uma política reformadora e enérgica. O marquês quereria
continuar a dominar absolutamente, fazendo render o serviço feito;
o juvenil monarca teria a natural sêde do mando, que é uma das mais
nobres ambições viris, e o conflito não podia evitar-se entre ministro
e rei.

Assim o vimos recentemente num exemplo famoso, e as leis da história
variam pouco nas suas conseqùências e na sua marcha. Tambêm Guilherme
II era discípulo e querido discípulo de Bismarck, e sabemos como êle
tratou o grande chanceler da Alemanha unificada e poderosa.

Não se pode, porêm, saber ao certo se esta idea germinou no espírito
do marquês de Pombal, ou se gratuitamente lhe foi atribuída pelos seus
inimigos, para mais o indisporem com a rainha D. Maria I. O que se
pode afirmar é que Pombal tinha comunicado ao príncipe do Brasil os
seus dois ódios dominantes, as duas paixões supremas, que moveram tôda
a sua política: o ódio ao inglês e o ódio ao jesuíta. Êle sabia que a
manha subtil e insinuante de um, e a fôrça brutal e triunfante de outro
tinham de minar e destruir esta fraca nação.

Inspirara-lhe igualmente o seu amor ao progresso material, e a sua
repugnância pela educação fradesca, que punha Portugal a cem léguas de
atrazo em relação às outras nações europeias.

Afastado dos negócios o grande ministro de D. José, o príncipe do
Brasil via com desespêro curvada de novo em atitude de abjecta
subserviência, diante do gabinete inglês a côrte de sua mãe.

O objecto da sua grande admiração era José II, imperador da Áustria,
com quem se correspondia através do duque de Lafões. Êste, durante a
sua longa permanência em Viana, privara íntimamente com o imperador
e com os primeiros personagens da sua luzida côrte, uma das mais
namoradas de arte que ainda brilharam no mundo.

O que o príncipe do Brasil mais admirava em José II era a sua concepção
moderna, civilista e centralizadora do Estado, eram as suas reformas
eclesiásticas e pedagógicas, empreendidas e realizadas contra o que
êle, imperador, classificava nas suas cartas como a _dominação dos
fakirs e dos ullemas_, e tendo por fim roubar à tríbu de Levi o
monopólio da inteligência humana[84]; era o seu combate eficaz contra
o ultramontanismo, contra os abusos de autoridade das congregações
religiosas, emfim, o seu amor da liberdade religiosa e do progresso
industrial, tão raros num soberano.

Vendo a natureza ociosa e a fradaria estulta, que ambos tinham
concluído a sua missão histórica, e que, portanto, só podiam ser um
tropêço e um obstáculo, manterem êste pobre país na ignorância e na
inércia, vendo a nossa inferioridade militar, que êle se não cansava
de atribuir à dominação do clero, fatalmente debilitadora da energia
de uma raça, outrora heróica, o príncipe do Brasil sonhava com uma
transformação tão radical no sentido religioso, social e económico,
como essa a que o imperador austríaco estava sujeitando o amálgama de
povos que constituiam o seu vasto e desordenado império, que antes dêle
se tornara um verdadeiro Estado teocrático à moda antiga.[85]

Não é que José II fôsse um liberal no sentido moderno da palavra. O
século XVIII não teve príncipes liberais. Nem José II, nem Frederico
da Prússia, nem Catarina o foram. Foi, porêm, o século em que os
imperantes tentaram introduzir reformas radicais na administração
dos respectivos Estados, usando, para estabelecer essas reformas
revolucionárias, das armas que o absolutismo levado aos seus extremos
limites lhes fornecia a todos. A rápida reacção que no espírito de uns
se operou, a inutilidade dos esforços dos outros, a tempestade medonha
que a boa vontade da maior parte desencadeou na Europa, mais uma vez
vieram confirmar a lei moral de que no mundo é indispensável a harmonia
entre os meios e os fins, e a lei histórica de que não pode vingar nem
frutificar pacíficamente uma revolução vinda de cima.

A crise por que então passou o mundo para que nêle florescesse
a liberdade política é a mesma, pouco mais ou menos, que hoje
atravessamos para que se melhorem e modifiquem as condições económicas
do maior número. E assim como então havia reis e imperadores filósofos,
que queriam dar à burguesia como um favor outorgado, o que ela exigia
como um direito irrefragável, assim hoje há, no ápice do edifício
social o papa, e mais abaixo os estados e soberanos, que querem
atender ao mal-estar das classes desvalidas, e conceder-lhes como
regalias aquilo que êles proclamam como imprescritível obrigação.
Nem a burguesia do século XVIII nem o quarto estado do século XIX
aceitam o favor partindo de cima. Uma conquistou o seu lugar; o outro
conquistá-lo há mais tarde, e muito sangue e muitas catástrofes
individuais e colectivas foram e serão o preço doloroso da conquista.
Será amanhã inútil a intervenção dos poderes estabelecidos, como foi
então efémera a obra revolucionária dos reis, como José e Frederico, e
de ministros como Pombal.

Do programa de José II, que tanto cativara o nosso príncipe do Brasil,
se disse que era a antecipação de tudo que mais tarde e durante a
Revolução fêz a assemblea constituinte. É que tanto a França de 1789
como o imperador da Áustria obedeciam ao mesmo ideal de razão pura,
proclamado pela filosofia do século.

Não admira que essa abstracção encantadora seduzisse tão completamente
o nosso pobre príncipe.[86]

Os que falavam com êle íntimamente percebiam sem custo o doloroso
desdem que as coisas da sua terra, voltadas, desde a morte de Pombal,
ao antigo estado, lhe produziam no cultivado espírito.

Pensava em libertar o seu país e a sua raça do jugo de um fanatismo
esterilizante, reflectido nas ideas e nos factos, desde a religião até
à economia, mas a morte, que teimou em prostrá-lo na flor dos anos, não
lhe deixou pôr em execução os seus projectos grandiosos, poupando-o
à triste decepção que aguarda todos os que julgam opôr eficazmente a
vontade individual ao fatalismo irredutível das correntes históricas
promanadas de remota origem. Assim tambêm o doce visionário que se
chamou Pedro V. morreu antes de ter cumprido as esperanças que sôbre
êle edificara esta nação _messiânica_, que há tanto tempo espera
debalde por um salvador providencial...

       *       *       *       *       *

A morte do príncipe do Brasil, causada por um ataque de bexigas,
as quais, segundo então se murmurou, não foram logo cuidadosamente
tratadas, mais contribuiu ainda para lançar o espírito da já alucinada
rainha num inferno de agonias. O príncipe tinha o seu partido na côrte,
mas tinha tambêm contra si tôda a côrte magna dos conservadores, dos
reaccionários, dos fanáticos que tremiam do seu espírito de iniciativa,
da sua alta concepção da política de um povo, da sua preocupação do
ensino civilista e da administração, de tudo que fazia dêle a antítese
da rotina pachorrenta, que era o lema da sua côrte.

Não pode dizer-se que houvesse crime na sua morte, mas há quem assegure
que não houve tanta solicitude no tratamento da doença quanta seria
necessária para salvar esta vida preciosa.

Entre os que faziam oposição às tendências anti-jesuíticas, e às
aspirações generosas e liberais do príncipe D. José, avulta uma das
figuras mais pitorescas da côrte de D. Maria I, o seu confessor, fr.
Inácio de S. Caetano, mais conhecido pela dignidade de arcebispo de
Tessalónica.

Começara por jornaleiro, assentou praça de soldado, e foi cabo de
infantaria em Chaves; dalí vestiu a estamenha fradesca, e, feitos os
votos, cursou o que então se chamavam as _artes_ no colégio de Nossa
Senhora dos Remédios, em Évora, onde florescia, em todo o seu falso
esplendor, a filosofia desnaturadamente apelidada de aristotélica.

Não era, pois, inteiramente analfabeto, como teem querido dizer,
êsse frade obeso, jovial, de óptimo humor, que o marquês de Pombal
julgou suficientemente inofensivo para fazer dêle o confessor da então
princesa D. Maria. Logo que esta subiu ao trono, fr. Inácio foi elevado
à dignidade arqui-episcopal, à de grande inquisidor e principalmente à
de primeira influência no govêrno.

Acusam-no os que então o viram de perto--e é um dêles o observador
irlandês a que mais de uma vez nos temos socorrido pela sua ampla
informação, e pela sua mordacidade inteligente--de parecer engordar,
e farto e satisfeito, no meio dos desastres da nação que os bons
patriotas julgavam ameaçada de tornar breve a ser uma província de
Espanha.

Beckford, todavia, que viveu na mais estreita intimidade com o
arcebispo, fêz dêle um retrato encantador pela chanternidade, pela
despreocupação das grandezas, pela tolerância boníssima, pelo encanto
pitoresco da sua conversação risonha e maliciosa.

¿Não era um austero; quem o podia ser naquele meio? Não desdenhava,
apesar da suprema dignidade do seu cargo, o prazer, aliás platónico,
de perseguir com chocarrices de antigo furriel, pelas alamedas de
bucho de Queluz--sátiro pesado e folgasão--as ninfas ligeiras e nem
sempre cruéis que constituiam o alegre rebanho das açafatas. O seu tiro
certeiro contra as fraquezas do próximo que cruamente observava não se
distinguia pelos requintes da caridade evangélica.

Mas a verdade tambêm é que era honrado, é que, sendo inquisidor, nunca
se aprouve em perseguir nem odiar, e, tendo um poder absoluto no ânimo
da rainha, contrabalançou, emquanto viveu, as tendências ferozmente
reaccionárias e cruelmente odientas dos ministros do tempo, empenhados
em destruir a obra de Pombal, em não deixar penetrar no baluarte
assediado da sociedade portuguesa as ideas que lá fora eram propagadas
com insistência e acolhidas com avidez, e em restabelecer, na sua
antiga dominação soberba, a teocracia e a nobreza associadas na mesma
obra de retrocesso político e social.

Deve-se ao arcebispo de Tessalónica o não terem logo os jesuitas
reassumido a primitiva influência. E se depois, considerações
pessoais--porque não era um austero--o fizeram afrouxar na oposição
ao ultramontanismo e à grande fidalguia ambiciosa que já começava a
detestá-lo e a minar-lhe o poder, o certo é que foi sempre mal visto da
cúria romana, a cujas pretensões e exigências abusivas não cessou de
tenazmente opôr-se.[87]

Quando êle aparece acompanhado do leigo _besuntão_, que é seu
cozinheiro, seu criado de quarto, seu secretário e confidente,
curvam-se diante dos dois em atitude de abjecta adulação, chegando
mesmo a ajoelhar-se reverentes ante o arcebispo os mais altos
personagens da côrte. Todos apresentaram _memoriais_ e súplicas; uns
pedem lugares, outros promoções, alguns, mais astuciosos, a simples
bênção de que o arcebispo com a sua grossa malícia fradesca finge não
ser pródigo.

E êle, com aspecto desprezador, sem se enternecer, nem se lisonjear,
atravessa todo êste mundo de aduladores brazonados com a compostura de
um homem que houvesse nascido em berço de oiro. O leigo, na ausência do
arcebispo, é o objecto de quási iguais respeitos e cumprimentos.

São proverbiais as respostas sarcásticas de uma ironia acerada, de uma
agudeza epigramática verdadeiramente flageladora com que o confessor da
rainha retribuía as lisonjas dos nobres pretendentes que o cercavam. É
que, sob o aspecto grosseiro e chão, havia nêle um observador finório,
que sabia ler por detraz dos cumprimentos requintados, das frases
cortesãs, das elegantes reverências, a cobiça vil dos aspirantes de
rendosas prebendas, e o desdem íntimo com que se vingava da cruel
necessidade de o adular essa nobreza orgulhosa do seu sangue, que o
absolutismo dos dois últimos reinados havia envilecido tão sórdidamente.

Por isso o arcebispo, fugindo às pompas da côrte, às solenidades do
conselho, a _êsse mulherio de escada acima_ que lhe punha a cabeça em
água, e que nem mais nem menos era do que a rainha e as infantas, só
se sentia à vontade nos seus aposentos particulares, com um capote
sujo e cheio de remendos, um leitão assado na mesa, e a franqueza mais
risonha e mais sôlta na palavra e no olhar...

O leigo contava-lhe então quantos condes lhe haviam beijado a manga e
quantos tocado o escapulário, e quantos nobres lhe tinham preguntado
pela sua saúde preciosa, e quantos lhe tinham feito respeitosas
mesuras; e o prelado ria, ria em plena alegria de frade obeso e glutão,
que saboreia em liberdade, de envolta com as vitualhas de um bom
jantar, a cómica baixeza de cortesãos vistos por dentro...

Uma virtude cristã, a da piedade, doura e idealiza esta grosseira
figura de frade. Emquanto êle viveu, a rainha não conheceu os tormentos
que mais tarde infligiram à sua consciência de devota e ao seu coração
de filha... O inquisidor mor era pela tolerância absoluta contra
o fanatismo odiento e militante; o confessor da rainha era pelo
esquecimento do passado contra os que pretendiam fazer de vingança
o seu lema de govêrno. Não tem, pois, razão a história em maltratar
quem se recomenda num meio corrupto e cruel por esta divina virtude da
caridade e do perdão.

       *       *       *       *       *

Em tôrno da família real e dos seus apêndices mais próximos, tais como
o ministério, o confessor, etc., reùne-se uma côrte ainda brilhante,
apesar dos golpes com que a mutilara a mão implacável do ministro de
D.José.

Os duques de Lafões e de Cadaval, os marqueses de Angeja e de Marialva
figuram entre os primeiros, e ao pé dêles enfileiravam-se opulentos
titulares, marqueses, condes, viscondes na posse de gloriosos nomes
tradicionais e representando todos antigas casas, ainda não decaídas da
sua primitiva opulência e grandeza, e que contribuíam para dar à vida
palaciana um tom de tradicional majestade hoje perdida.

Era celebrada a hospitalidade portuguesa mesmo entre os que mais
acremente censuravam os nossos defeitos de raça.

A mesa do marquês de Marialva, um dos mais lindos tipos de fidalgo, um
dos mais perfeitos exemplares da velha nobreza, espécie de patriarca
universalmente querido e respeitado desde o paço real até à rua, e que
durante o proconsulado pombalino fôra o desvelado protector de todos
os fracos, logrando muitas vezes alcançar a clemência régia para os
mais ameaçados pela cólera do ministro--à mesa do marquês de Marialva
assentavam-se quotidianamente dezenas de convivas; das cozinhas do seu
palácio saíam por dia _trezentas_ rações distribuídas entre a plebe
parasita da capital; o pátio cheio de seges, de estrume e de lacaios,
lembrando, no dizer malicioso de Beckford, um pátio de mala-posta,
conduzia ao célebre picadeiro, onde o velho marquês se divertia em
assombrar os amigos com os prodígios da sua destra e famosa equitação.

Subia-se dalí para os vastos aposentos, onde uma quantidade enorme de
relógios--engraçada mania do marquês--marcavam em gentis minuetes,
ou em figurações engenhosas, as horas que iam passando alegremente,
ora a ver as curiosidades da Índia e da Itália, que cobriam as mesas
ricamente envolvidas em damasco e veludo vermelho, ora a escutar as
agudas notas da voz de Policarpo, um dos primeiros tenores da capela da
rainha, que se acompanhava a si próprio tocando harpa, e que deliciava
os ouvintes com essa arte admirável, que foi o culto artístico, quási
exclusivo, do nosso século XVIII.

De vez em quando uma porta que se abria, logo fechada, deixava entrar
nas salas interiores uma adorável figura de mulher, de olhos lânguidos
e feiticeiros, olhos de portuguesa a quem um grupo de crianças cercavam
como grinaldas de flores vivas, e que trazia à memória do erudito
estrangeiro, que porventura a lobrigava rápidamente, uma esplêndida
alegoria de Rubens ou de Veronese.[88]

Para a grande sala dos banquetes em dia de mais pomposo ceremonial as
pesadas travessas de prata cinzelada, em que lourejam os leitões e as
grandes peças de caça, são trazidas por um longo séquito de escudeiros
e de capelães, no peito de muitos dos quais brilha a cruz de Cristo ou
de Aviz.[89] Êste modo de ser servido à mesa tem um ar inteiramente
feudal, e transporta a imaginação dos estrangeiros para os dias do
passado, em que os chefes guerreiros são servidos como reis pelos
nobres seus vassalos.

Um dia, no fim de um dêsses banquetes a que se assenta um grupo da mais
fina flor da nobreza de Portugal, correm todos a ouvir um missionário
que reconta terríveis milagres em que a cólera de Deus e a sua vingança
se manifestam medonhamente. A marquesa, os filhos e as filhas escutam
com ansiosa avidez a história milagrosa e terrível. A noite vem caindo
lentamente. Ninguêm se atreve a pedir luz, e a voz do missionário
continua trágica, cavernosa, falando das cóleras divinas e dos
tremendos castigos do Eterno... Assim o banquete da vida portuguesa,
de uma tão naturalista alegria, foi interrompido pela aparição do
lívido fanatismo, e o seu riso de caveira paralizou tôdas as nossas
energias, e o seu sôpro esterilizador queimou a vasta seara das nossas
esperanças, que verdejava ao sol de Deus.

       *       *       *       *       *

Com essa tremenda superstição das coisas sacras, que tão funesta
impressão exerceu no espírito da nossa raça, conciliava muita vez a
fidalguia não só os mais soltos costumes, mas tambêm o mais risonho
paganismo cristão, e o mais desenfreado carnaval de alegria. E senão
vejamos esta scena característica.

Pelos terraços do palácio Marialva, onde metade da família está ocupada
em rezar ladaínhas e terços, e outra metade em tocar à guitarra as
voluptuosas _modinhas_ que Beckford adorava, brilha de repente a luz
trémula e fugaz dos archotes e das lanternas.

Ouve-se a bulha dos remos caindo na água perto das varandas que dão
sôbre o Tejo e de um escaler de cincoenta remadores que aproa ao cais,
sái o velho fidalgo acompanhado do filho D. José e seguido por uma
multidão estranha e pitoresca de músicos, de poetas, de toureiros, de
lacaios, de frades, de anões, de negros, de crianças de ambos os sexos
fantásticamente vestidas.

Vem de uma romaria ao altar de um santo que fica da outra banda do
Tejo. Rompe a marcha um corcundinha anão soprando uma minúscula
trombeta; ao corcunda segue-se um figurão alto, velho, desasado,
gingão, que se pavoneia muito contente no seu uniforme vistoso, e que
já, em não sei qual ilha remota, fêz o papel de governador. Um frade de
catadura feroz, mais alto do que Sansão, dois capuchinhos carregados
com cestos enormes de misteriosas provisões vem logo atrás. Aparecem
em seguida dois tipos não menos característicos: um boticário esguio,
esgrouviado, esquálido, cadavérico e trajando luto pesado; e uma
espécie de improvisador meio pateta, o bobo indispensável ao fidalgo
português, que atira versos destemperados e quadras sem nexo aos
curiosos que acodem de dentro do palácio às varandas para assistirem
ao desfilar da estranha, da pitoresca procissão, cuja rectaguarda é
ainda composta da turbamulta gritadora dos barqueiros e dos criados,
acarretando gaiolas de pássaros, lanternas, cestos de fruta, ramos de
flores, não sabemos que mais!

Vê-se bem que vida intensa, ainda então peculiar à raça portuguesa,
apesar de tôda a sua triste decadência, se traduzia neste voltar da
festa tão pitoresco, tão alegre e tão doidamente ruidoso!

       *       *       *       *       *

Ao lado desta casa de fidalgo português, em quem as tradições antigas
teem uma preponderância acentuada, os Penalvas, mais cultos, mais
letrados, dão às suas festas um cunho de arte cosmopolita.

Na capela tocam-se as músicas mais escolhidas; na livraria aberta
ostentam-se as mais raras e mais antigas edições de clássicos
portugueses e antigos; quadros das escolas italiana e flamenga enchem
as paredes dos vastos salões; flores exóticas e flores dos nossos
jardins enfeitam os vasos antigos da Índia e do Japão; as senhoras não
aparecem, é certo, mas os académicos, os artistas de mais nota, as
ilustrações de todo o género, trocam ali, em conversação animada, ideas
que veem lá de fora e começam a cativar os espíritos mais cultos da
nação.

No meio da festa, em que fraternizam os homens da inteligência e os
homens da nobreza, sob o teto hospitaleiro dos marqueses de Penalva,
travam-se aqui e ali conversações parciais, confidências a meia voz...

O conde de S. Lourenço conta animadamente a sua viagem à Itália, as
impressões de arte que ali colheu, os cardiais com quem conversou...

O estrangeiro, que atentamente o escuta, mal sabe que a longa clausura
da Junqueira determinou no cérebro do nobre prisioneiro a alucinação
que consiste em julgar ter vivido uma vida inteira cheia de viagens, de
sensações, de prazeres completamente imaginários... Passa d’ali para
narrar a sua estada no congresso de Aix la Chapelle, a missão que ali
representou... As palavras do alucinado fidalgo excitam um movimento de
simpatia piedosa em quem o escuta. Foram os tratos da prisão que lhe
causaram aquela estranha perturbação mental.

O cérebro sofre, o orgulho, o belo orgulho da raça, êsse ninguêm lh’o
pôde amortecer! Há poucos dias atirou para o lugar mais recôndito e
mais secreto do paço com a sua chave de camarista, julgando-se mal
recebido pela rainha. Não é vulgar tamanho desprendimento nesse tempo
de vil subserviência ao capricho do monarca.

O conde de Vila Nova, futuro marquês de Abrantes, tem como S. Lourenço
uma mania, mas muito menos interessante.

O seu gôsto mais violento consiste em vestir opa vermelha e andar atrás
do Santíssimo, de campaínha na mão. Não há namorado tão cioso da sua
bela como Vila Nova da sua campaínha.[90] Não admite que outro lhe
toque, que mão profana a faça vibrar. As paróquias que cercam o seu
palácio nunca deixam que o sagrado viático seja conduzido a qualquer
enfêrmo sem prévio aviso feito a Vila Nova, que abala pressuroso a
empunhar a vibrante campaínha. E agita-a cheio de convicção, ou seja
noite alta, ou faça frio de gelar os ossos ao mais intrépido, ou caia
pino sôbre a cabeça dos transeuntes o sol do nosso ardente meio dia
de Julho, ou êle tenha de subir aos últimos andares de um miserável
casebre, ou de descer ao covil subterrâneo da mais imunda miséria.

Ali, no meio da festa, Vila Nova volta ansiosamente a cabeça a cada
movimento desusado com receio de que hesitem em transmitir-lhe o aviso
que porventura lhe seja enviado das duas ou três paróquias de que êle
é humilde servo e sacristão oficioso.

Quem é aquele velho elegante, afectado, garrido, com ademanes e
donaires de pisa-flôres, carmim nas faces e _môscas_ sublinhando o
sorriso inteligente e o agudo olhar brilhante?...

É o duque de Lafões, o fundador da nossa academia, um tipo de
_grand seigneur_ cosmopolita--à maneira do príncipe de Ligne, seu
contemporâneo e de certo seu amigo,--que durante o reinado de D. José
se conservara longe de Portugal, viajando na Europa, brilhando nas
côrtes de Versailles e de Vienna, conhecido de tôda a alta sociedade
europeia como _duque_ ou _príncipe_ de Bragança, convivendo com reis e
com poetas, com artistas e príncipes, com homens de gôsto e homens de
Estado, com _dandys_ e com pensadores...

Para se saber como êle patrocina as artes basta apontar o que êle
foi entre nós para o abade Correia da Serra e mais colegas seus
da academia; o que foi em Vienna para o nosso abade Costa, de que
mais tarde falaremos, e para Gluck, o famoso compositor, o carácter
intratável que lhe consagra a partitura da sua ópera _Helena e Páris_
com uma dedicatória, que faz tanta honra à fina inteligência aberta e
penetrante do duque, apta a compreender e estudar estas questões de
arte de uma subtileza tão delicada, como ao grande artista que nela
formula todo um programa de estética hoje realizado e então entrevisto
apenas.

Citarei algumas palavras dessa dedicatória:

Queixando-se da incompetência e da audácia da crítica do tempo que
condena o método do compositor sem sequer se penetrar dos princípios
que a êle presidem, Gluck conclúe dêste modo:

 «Julgaram-se autorizados a pronunciar-se acêrca de _Alceste_ depois de
 ensaios mal dirigidos e pior executados; calcularam numa sala o efeito
 que a ópera produziria num teatro; é com a mesma sagacidade que em
 uma cidade da Grécia quiseram noutro tempo julgar a alguns passos de
 distância o efeito de estátuas esculpidas para serem colocadas sôbre
 colunas altíssimas.

 «Um dêsses delicados amadores que concentram a alma inteira nos
 ouvidos achou uma ária demasiado áspera, um trecho em extremo
 acentuado ou mal _preparado_ sem conhecer que, _dentro da situação
 em que estava_ essa ária, êsse trecho era o sublime de expressão
 e formava o mais feliz contraste. Um harmonista pedante nota uma
 negligência engenhosa ou um êrro de impressão, e apressa-se em
 denunciar um e outro como pecados irremissíveis contra os mistérios da
 harmonia...

 «É certo que não são mais felizes as outras artes, o que não é para
 elas a crítica nem mais justa, nem mais esclarecida. Vossa Alteza
 adivinha fácilmente a a razão disto. _Quanto mais se procura
 conscienciosamente a perfeição e a verdade mais necessárias se tornam
 na arte a precisão e a exactidão..._»

Vê-se por êste rápido trecho, que não amplificámos mais por não ser o
ensejo oportuno, como, entre o duque e o grande mestre revolucionário,
deviam ser freqùentes e familiares as relações artísticas; vê-se como
o _maestro_ confia na inteligência crítica do fidalgo, e que estreita
comunhão de ideais havia entre um e outro.[91]

O duque voltara a Portugal depois de ter saboreado lá fora o que
tinha de mais requintado a civilização e a alta cultura das primeiras
capitais do mundo. Tentara transplantar para aqui alguma coisa do
muito que admirara e vira, e de feito é a êle que se deve a fundação
da academia e a protecção generosa e inteligente aos trabalhos de
naturalistas e de sábios seus contemporâneos.

Ao lado desta figura de uma tão alta e tão refinada elegância, que pode
bem equiparar-se à de um Richelieu, à de um príncipe de Ligne, à de um
dos muitos que lá fora reùniam aos privilégios herdados do nascimento
as graças adquiridas numa cultura variadíssima e numa educação dada
pelos centros mais esplêndidos da vida intelectual--a sociedade
portuguesa do tempo oferece-nos uma infinidade de outras figuras
secundárias que se destacam ou pelo ridículo ou pelas afectações
características do seu papel social.

Monsenhor de Aguilar, cónego da patriarcal, um personagem do tempo,
aparece saltitante, chilreador, e murmurando a ouvidos indulgentes
segredos _voltaireanos_ contra a Igreja católica, de que vive e que
explora.[92]

A influência fradesca imprimia em Portugal o sêlo da ignorância
beata... A plebe, dissoluta e soez, adorava as procissões que
contentavam as suas moderadas exigências estéticas e religiosas, e
acudia fremente e doida de entusiasmo às touradas, onde o seu amor, o
seu culto da fôrça, era brutalmente acariciado. Não precisava de mais
nada para ser feliz.

A nobreza, essa, livre do jugo de Pombal, reassumiu a arrogância
antiga, governava no paço e nas secretarias do Estado, cuidava em
manter o povo na ignorância que o tinha curvo, submisso diante dos
seus abusos e caprichos, e discutia sériamente os milagres de vários
santos, e as tricas engenhosas de Belzebuth...

Beckford a propósito conta a história da conversão de uma velha inglesa
tísica, cujo corpo é levado à sepultura pelas mãos patrícias de
Assecas, S. Lourenço, Marialvas, etc., todos extasiados pelo milagre
dessa conversão inesperada, emquanto Acciaoli, o núncio, esfrega as
mãos de contente, dá estalinhos com os dedos, e faz figas ao Diabo,
lançando-lhe em rosto o roubo da alma da velha inglesa que o cão
tinhoso já julgava ter nas garras... «Feliz inglesa! exclama um dos do
nobre séquito. No outro mundo teve entrada no paraíso, e neste teve
a subida honra de ser levada à cova por homens da alta nobreza! Onde
houve já ventura assim?»

É verdade que debaixo desta fraseologia ôca e piegas, a história
secreta tem mil anedotas típicas dos costumes do tempo que não condizem
com tamanho zêlo pelo culto sagrado... Mas a Igreja é cheia de mansidão
e indulgência; os mosteiros, como o de Alcobaça e outros, regorgitam de
quanto a abundância tem de mais pantagruélico, e a sciência da vida de
mais requintado e cómodo...

Não há onde melhor se coma e onde mais voluptuosamente se saboreie o
lado material da existência que nesses retiros em que a carne devia
ter-se espiritualizado até ao renunciamento absoluto e ao sacrifício
supremo de tudo. Tanto o contraste entre o que se pratica e o que se
prega é frisante naquela época...

O padre Teodoro de Almeida revira os olhos, faz esgares hipócritas e
visagens devotas, e pronuncia discursos seráficos que o inglês, um
pouco scéptico, de onde colhemos estes quadros, classifica de _first
rate of hypocritical cant_.

Não é possível nomear cada uma das figuras que desfilam diante do
nosso olhar, fotografadas em flagrante realidade pelos observadores do
tempo. São os aduladores flexíveis, subtis, maleáveis, com meneios de
reptil e graças serpentinas; é a anãsinha Rosa, garrida e sentimental,
acompanhando a rainha, que morre por ela, para todos os lados e fazendo
parte integrante da côrte que não ousa rir-se daquela anomalia; é o
bobo João da Falperra, esgueirando-se hábilmente por tôdas as portas
que encontra abertas, e inspirando ao conhecido _leigo_ do arcebispo de
Tessalónica, tão famoso pelos epigramas e agudezas, êste dito tambêm
famoso:

«Na côrte penetram fácilmente homens de mérito superior, santos e
bobos. Os primeiros desaprendem logo que tudo sabem; os santos
fazem-se mártires; e os bobos são os que únicamente prosperam!»

Os fidalgos moços adoram a convivência do baixo povo, diante do qual
se sentem à vontade, sem que a própria ignorância os humilhe. Há nas
ruas de Lisboa serenatas e guitarradas, em que os filhos das primeiras
casas acompanham os seus criados e os amigos dêstes; o conde de Vila
Nova abre na noite de S. Pedro, à multidão da capital, os seus jardins
iluminados com lanternas venezianas, e no baile que desenrola sob as
árvores a sua desenfreada alegria, quermesse flamenga, os herdeiros de
casas principescas misturam-se jovialmente com a escuma das Vielas e
becos da cidade.[93]

É pitoresca, animada, caracteristicamente nacional esta vida, mas
falta-lhe, a espiritualizá-la suavemente, a influência da mulher então
menos que nula, e a cultura geral, que é deficiente e incompletíssima.
Há homens de primeira classe, talvez, mas segue-se-lhes logo, sem
intermédio algum, a massa ignorante e brutal onde não penetrara ainda
um raio de luz civilizadora.

       *       *       *       *       *

A castidade da rainha não permite que uma única mulher pise as
tábuas do proscénio. Depois da quadra luxuosa e pomposíssima em que
a história do teatro português, no dizer curiosamente documentado do
eminente escritor Teófilo Braga, excede em grandeza a dos melhores
teatros do mundo e tem ligados à sua fama os nomes dos mais célebres
arquitectos, como Simão Caetano Nunes e Inácio de Oliveira; dos
melhores pintores e scenógrafos, como Servandoni, disputado à côrte
de Portugal pelas côrtes de França, Inglaterra e Polónia, Bibiena,
Azzolini; de compositores como Cimarosa Paisiello, Piccini, Jomelli;
de cantores como Caffarelli e Gizziello[94],--depois do curto mas
extraordinário esplendor das representações da _Ópera do Tejo_ ou
_Teatro dos Paços da Ribeira_, reduzido a ruínas pelo terremoto no
próprio ano em que D. José o tinha mandado executar pelos artistas
mais brilhantes do tempo, e onde sob a direcção do maestro napolitano
David Perez cantaram os _Castrati_ mais célebres (um dos quais foi
presenteado por el-rei, depois de executar uma _cantata_ de Jomelli
com uma galinha de oiro cercada de vinte e quatro pintainhos tambêm de
oiro),--depois dêsse período de luxo, de extravagante luxo artístico,
que tão pungente contraste faz com a miséria dos tempos e dos povos--o
teatro nacional, sob o reinado de D. Maria, tem apenas para encarnar
as suas criações mais ideais alentados mocetões de faces azues, de
barba, que declamam em grossa voz avinhada as suas queixas de amores ou
cantam em antipático falsete as suas árias e motetes. Noiva gentilmente
envolta em véus virginais, princeza viúva coberta de crepes do seu
luto, joven namorada fugindo à cobiça de um velho tutor libidinoso,
donzela de régio tronco perseguida pelo ódio de um tirano feroz,
Andromaca ou Ifigénia, Zaira ou Inês de Castro, Medéa ou a _Espôsa
Perseana_, tôdas as heroínas da tragédia ou do melodrama, da comédia
ou da ópera teem fatalmente de ser representadas pelos mesmos latagões
membrudos, de atlética musculatura e voz que em vão se esforça para
ter notas aflautadas. A arte chegara a êste apuro lamentável, e depois
de ter sido no tempo de D. João V e D. José decorativa, espectaculosa
e cesarista, mais feita, é verdade, para o regalo dos sentidos do que
para a educação da alma, ei-la que se tornava agora burlesca no aspecto
e nas intenções...

Nos teatros da Rua dos Condes e do Salitre freqùentados pela alta
aristocracia, e num dos quais a condessa de Pombeiro, loira, branca,
diáfana, aparece uma noite, seguindo o exemplo que então davam a rainha
e tôdas as damas _du bel air_, acompanhada por anãsinhas pretas, que
no fundo do camarote sublinham com tregeitos e esgares cómicos, mais
divertidos do que a peça, a mímica dos desgraçados actores, e dão uma
espécie de scenário africano à beleza do norte, aérea e fina da juvenil
patrícia portuguesa[95]; nos teatros da Rua dos Condes e do Salitre
representam-se longas trági-comedias _arregladas_ do italiano e do
francês, entremezes tambêm copiados ou traduzidos--perdida a tradição
do teatro admirável de Gil Vicente e das farças e comédias do Judeu e
de outros, em que a vida portuguesa se retrata como num espêlho ainda
mal polido, mas já fiel em dar o contôrno e a expressão.

Acabaram as noites febris da Cecília Rosa, da Zamperini, das irmãs
Pagnietti, da Todi, da Cecília Aguiar; a _embezerrada_ melancolia beata
dos régios personagens distinge em tudo, até no divertimento que mais
devia popularizar-se, e do qual se podia fazer um elemento de educação
e de civilização.

De vez em quando uma farça de Nicolau Luís os _Maridos peraltas_; o
_Viajante_; uma comédia arranjada ou feita por Manuel de Figueiredo o
_Fidalgo da sua própria casa_, o _Dramático afinado_, a _Mulher que
o não parece_, _Pássaro bisnau_; um entremez anónimo, _Fastásticas
basófias, lograções e calotes de D. Harpia_, as _Desordens dos
Paraltas_, os _Casadinhos_, o _Entremez da assembleia do Isque_, de
Leonardo Pimenta e Antas, e outras produções cómicas genuinamente
nossas, conseguem arrancar da entristecida e degenerada alma popular
uma forte explosão de riso alegre e sadio. Mas são raras e abandonadas
pela fidalguia da côrte essas noites de gaudio plebeu e português
de lei, em que aparece a punição risonha dos ridículos da moda,
executada pelos cómicos que saíram do povo e que a êle pertencem como o
excêntrico Nicolau Luís.

Nos teatros régios continua a tradição palaciana das óperas e
oratórias, umas portuguesas, como _Gli Orte Esperide_, de Jerónimo
Francisco de Lima, como _Il Natali de Geove_, de João Cordeiro da
Silva, como _Angélica_, de João Cordeiro da Silva Carvalho, o mestre de
Marcos Portugal, outras italianas, de Piccini e de Perez.

Nos outros teatros, a gravidade sonsa e mazorra da Arcádia impunha à
paciência dos espectadores a longa e fastidiosa melopeia das tragédias,
que a dúbia erudição de Francisco José Freire arranca à pobre e
desfigurada antiguidade de que o seu século ignora completamente o
espírito. É a _Medea_ e o _Edipo_ de Séneca, a _Hecuba_ de Euripides,
a _Efigénia em Aulide_, o _Mitridates_ de Racine que Filinto traduz
no seu português pedregoso e duríssimo, os _Scitas_ e o _Mafoma_ de
Voltaire, e _Alexandre na India_, o _Tamerlão na Pérsia_, o _Faramundo
na Boémia_, e as _Rigorosas leis da amizade cumpridas em Olimpiade_, de
Metastásio, a _Mais heróica virtude_ ou _Zenobia em Arménia_ do mesmo,
e _Constantino o grande_, ou a _Ambição castigada por si mesma_, e o
_Radamisto_, de Crébillon, são dezenas de tragi-comédias, de tragédias,
de melodramas, em que a nota do fastidioso predomina atrozmente, em que
os costumes portugueses, a alma portuguesa, o passado português nunca
ou raríssimas vezes transparecem.

O teatro italiano de Goldoni e Metastásio, o teatro francês do
século XVII, Voltaire e Crébillon, a Grécia inteiramente desfigurada
por traduções inábeis, eis o que alimenta o nosso teatro nacional,
freqùentado pela fidalguia ou patrocinado pela realeza.

       *       *       *       *       *

Eis aqui os traços gerais (em que a cronologia nem sempre é
rigorosamente respeitada, mas cujo espírito nos parece verdadeiro,
pois foi colhido com escrúpulo nos documentos do tempo) da sociedade
que Leonor de Almeida conheceu e teve de aceitar ao sair do tranqùilo
remanso de Chelas e da paragem deliciosa de Almeirim. E esta sociedade
com os seus efeitos de luz e sombra, os seus tons brutais, a sua
separação completa entre os gostos íntimos e as representações
oficiais que a arte traduz, os seus preconceitos esmagadores, a sua
ignorância profunda, que a surpreendeu, e que decerto lhe desagradou
irresistívelmente. ¿Que lugar tinha ela, a erudita, a elegante poetisa
nesse _meio_ em que alguns homens apenas destacavam, e em que Bocage ia
aparecer como um fenómeno imprevisto, de que Filinto fugira indignado,
em que a inteligência tinha apenas um papel secundário, ou quando
muito ociosamente decorativo? Não lhe era permitido sequer dizer o
que pensava, porque o seu tempo estava justamente naquela transição
crítica e perigosa em que a hipocrisia se alia ao fanatismo, e em que a
palavra serve apenas para ocultar o que o espírito cogita... As amigas
afastavam-se porventura assustadas, humilhadas, daquela mulher viril
que bebera nas dores nobremente suportadas a sciência amarga da vida,
e que amando com entusiasmo os prazeres do espírito não pode, por mais
que nisso empregue patéticos esforços, subordinar-se a um _meio_ de
estupidez ou de futilidade.

Cada frase de Leonor era um conceito, e o chilrear inocente e pueril
de crianças que não sabiam o que era sofrer, lutar, dominar-se e
vencer-se, não podia de certo agradar ao seu entendimento viril e
profundamente cultivado.

Os homens--tão inferiores a ela pela inteligência, pela instrução, pela
energia antiga--olhavam-na sorrindo com êsse sorriso insuportávelmente
complacente, que êles se dignam opor ao mistério irritante de um grande
espírito de mulher.

Achavam-na provávelmente deslocada no seu país e no seu tempo, e
riam-se dela, raivosos de a não poderem desprezar...

O pai olhava-a inquieto, divergente de cada uma das suas opiniões
avançadas e ardentemente expostas com aquele calor que as suas cartas
manifestam, menos terno do que fôra na ausência, menos admirador do que
o deixava entrever nas frases escritas que ela relembrava com saudade.

¿Onde é que estavam as queridas ilusões que Leonor com tanto amor
nutrira? Que pena para o observador e para o moralista, que ela não
tenha deixado num _jornal_, como então tantas mulheres escreviam em
França, numa correspondência como as que tornam imortais tantos nomes
femininos que de outro modo a obscuridade subvertera--que pena que ela
não nos tenha deixado a confidência das amarguras que nessa crise da
vida a sua alma suportou! Há um jornal publicado muito recentemente
por uma jovem artista russa, morta na flor da vida, que exprime com
extraordinária intensidade essa dor singular da mulher em completa
desarmonia com o seu destino, com o seu _meio_, com o tempo em que vive!

Essas agonias requintadas que tão poucas teem sofrido, e que só uma
aristocracia diminuta de almas femininas pode experimentar, Leonor de
Almeida sofreu-as em viril silêncio estóico! Apenas percorrendo os
versos que ela fêz depois de sair de Chelas, de certo antes de casar (é
deficientíssima em datas e esclarecimentos cronológicos a edição das
obras da marquesa), encontramos nêles um eco da profunda melancolia
que a devora. Mas são tão pouco simples os versos daquele tempo, é tão
exagerada e tão artificial qualquer das suas formas, que essa expressão
de tristeza não conseguira comover-nos se a não a relacionássemos com
verdadeiras dores suportadas nesse período pela alma de Leonor de
Almeida.

É tão cortado de desilusões o presente que ela sonhara feliz até ao
êxtase, até ao arrebatamento, que a poetisa tem saudades das tristezas
de Chelas; ao menos a essas doirava-as a divina esperança, fada da
mentira, cuja missão é enganar-nos sempre, amolecendo-nos a alma,
roubando-nos a viril coragem do desespêro absoluto:

    Ideias minhas, multidão de ideias,
    Que algum dia da cítara eu fiava.
    Vinde trazer-me as horas que eu passava
    Ao som de menos ríspidas cadeias.

    Bem que tristes, de paz as horas cheias
    Saturno no seu corpo as sepultava
    No feliz tempo em que eu inda ignorava
    Que havia para mim outras mais feias.

    Ide colher aos ermos tenebrosos
    Os ais que lá deixei menos sentidos
    Para modêlo dêstes tão queixosos.

    Talvez que êsses antigos meus gemidos,
    Com que eu domava os monstros furiosos,
    Hoje abrandem meus fados desabridos.

E ainda noutro soneto da mesma época correspondendo à mesma sorte de
impressões:

    Sei que o prazer qual frágil planta dura,
    Que o progresso do tempo traz mudanças,
    E que alegria é sempre mal segura.

    Troco assuntos ditosos, por lembranças,
    Basta a meus hinos glória sem ventura,
    Honra, virtude e _murchas esperanças_.

Mas se esta velada confissão não bastasse para nos guiar nas nossas
investigações íntimas, teríamos em todo o caso o seu casamento.

Entre tantos fidalgos portugueses que freqùentavam a sua casa (alguns
dos quais, infelizmente para ela, corresponderiam por demais ao
retrato típico que ela traça de Bernardo da Silveira) um estranjeiro,
o conde de Oeynhausen Grovemburgo, que ela quer, que ela escolhe, quem
contra vontade do pai, que nem sequer lhe assiste ao casamento, ela
aceita para marido. ¿Há mais claro indício do desgôsto que, entre os
da sua raça e da sua terra, lhe inundou a alma ambiciosa, exigente,
perigosamente exaltada pelo belo?

       *       *       *       *       *

No prefácio das obras de Leonor de Almeida, a que mais de uma vez nos
temos referido, vem a genealogia do conde de Oeynhausen traçada com
escrupuloso esmero pelas suas descendentes. De feito o conde descendia
de uma casa nobilíssima da Alemanha; era primo co-irmão do conde
Schaumbourg-Lippe, o que o não privava de pertencer a essa procissão
innumerável de fidalgos pobres, que então enxameava por tôdas as
côrtes do mundo, e que ofereciam o seu braço de soldado a todos os que
dêle precisassem para combater qualquer causa, fôsse ela qual fôsse,
contanto que rendesse para viver, e viver bem.

Leonor de Almeida, escrevendo ao pai do convento de Chelas, ainda, é
certo, em tempo do marquês de Pombal, referia-se desdenhosamente a
êsse bando de nobres aventureiros, que atrás do conde de Lippe tinham
penetrado tambêm em Portugal e ocupado muitos dos importantes postos do
exército, agora um tanto estrangeirado como de todo estrangeiro era o
seu comandante em chefe.

Citemos, como é nosso costume, a frase textual de Leonor:--«Creio que
tem lugar aqui a reflexão assás comum de que o maior despotismo cava
o princípio em que se despenha. Estamos a pique de nos engulirem os
ingleses ou os castelhanos. Os melhores soldados são os descontentes,
e restam para a frente dos nossos exércitos um estranho (o conde
de Lippe) e _vários bonecos_ que representam por arames como os da
comédia! Bons sucessores dos nossos guerreiros honrados!»

O caso é que um dos tais _bonecos_ a que Leonor se refere aqui, é o
conde de Oeynhausen. Êste, na côrte de Portugal, que a esta hora se
recomendava pela cegueira da superstição e pelo requinte do beatério
baboso, entendeu que o melhor meio de fazer caminho era tornar-se
católico.

Por uma felicidade, que nem sempre um narrador consciencioso dos factos
do passado topa no seu caminho, fomos deparar no livro do malicioso
irlandês Costigan, contemporâneo do conde de Oeynhausen em Portugal,
com a cerimónia imponente e luxuosa do seu baptismo.

O conde de Oeynhausen era respeitado na côrte pelos seus talentos
militares e pelo bom senso e conhecimento do mundo, e estas qualidades
pessoais, juntas à circunstância de pertencer, pelo nascimento, a uma
família de príncipes, levavam a rainha a ser madrinha do novo neófito
do catolicismo.

Na capela da Ajuda compareceu, pois, para êsse fim, a rainha D. Maria
I, acompanhada pelo príncipe seu marido, aquela figura caricatural
de que já demos esbôço imperfeito. Ao pé dos dois via-se Angeja, o
primeiro ministro, obeso, escuro, com baixo aspecto de onzeneiro judeu
e cercado ali mesmo de adulações e cumprimentos que há pouco convergiam
todos para a figura majestosa e imponente do exilado ministro de D.
José! A figurinha esperta, movediça, maliciosa de Martinho de Melo,
lança em tôrno de si os golpes rápidos do seu vivíssimo olhar, emquanto
Aires de Sá, magro, emmaciado, com um grande livro de _Horas_ na mão,
nem repara no que se passa em tôrno dêle, tão do coração se entrega às
rezas e orações ferventes que aquela cerimónia sugere ao seu espírito
de católico, tão ardentemente fixa o olhar extático nas imagens que
resplendem sôbre o altar, e nas cerimónias rituais celebradas junto
dêle. O conde da Ponte, camarista de el-rei e coronel de infantaria,
perfila-se perto do príncipe, com a sua face de eunuco, onde não
transparece o menor vestígio de barba. Endoideceu-lhe há pouco a mulher
que conveniências de família tinham forçado a um casamento odioso,
e vinga-se dela, do destino que o flagelou com secretas amarguras,
do mundo que o não poupa a epigramas e alusões empeçonhadas e a
conjecturas cruelmente indiscretas, fazendo da vida um assunto de
_rabelaiseana_ gargalhada, sendo em cada festa aquele conviva que põe
todos os outros em convulsões de riso, tendo um dito, uma resposta, um
repente, um chiste para cada acontecimento, para cada indivíduo, para
cada circunstância, para cada tragédia que passa... O alvo favorito
dos seus epigramas e ironias é o cardeal da Cunha, empavezado agora,
na sua balofa nulidade, com a importância adquirida na sombra do
grande marquês. Foi o conde da Ponte quem, como já dissemos, visitando
a livraria do cardeal, composta de onze mil volumes, fêz notar ao
bibliotecário que tinha ali sua eminência para servi-lo nem menos de
onze mil virgens!

Aos olhos de Costigan,--o soldado aventureiro doido pela fôrça, como
os da sua raça,--destaca-se a figura marcial do marquês das Minas,
«nascido para homem de guerra e homem de brio», mas tendo naquele
meio, degenerado e tão hostil aos fortes, adquirido defeitos que
lhe deslustram a instintiva nobreza da alma. Superior a muitos dos
seus compatriotas pela inteligência, pela energia e pela instrução,
contava-se que êle não duvidara entrar numa conspiração urdida no paço,
em que os primeiros fidalgos da côrte se tinham munido de _facas de
ponta_, para assassinarem o marquês de Pombal, caso êle tentasse reter
nas mãos o poder que a morte do rei fatalmente lhe arrancava...

A voz do frade dominicano, que se levanta estrondosa, acordando os
ecos da capela, arrancava Costigan à contemplação das diversas figuras
da côrte, salientes por esta ou aquela qualidade mais característica,
e levava-o a concentrar todo o seu poder de atenção nessa espécie de
eloqùência.

O frade extasiava-se ante o mérito daqueles que consagram a existência
à conversão de herejes e de infiéis. Lembrava quanto era extensa,
enorme, incontável a lista dos convertidos às verdades da nossa santa
religião. O seu santo patriarca, S. Domingos, outra coisa não fizera,
em tôda a sua santíssima vida, senão converter ímpios e infiéis
em quási todos os países da Europa, entre os ruins albigenses, os
protestantes da Alemanha e da França, os judeus e mouros de Portugal,
isto sem usar modo algum de fôrça ou compulsão, como êle prègador
afirmava ao seu pio auditório, mas sómente com os estupendos milagres
que operava, e com o flamejante raio da sua palavra poderosa. Desde
êsses remotos tempos até agora não houvera príncipe, nem monarca, tão
zeloso em animar as conversões à Santa Igreja como Sua Fidelíssima
Majestade ali presente, por cujos méritos Nosso Senhor e Nossa Senhora
a haviam de recompensar amplamente com a paz e prosperidade neste mundo
e uma coroa de glória no outro.

--«Deixai, continuava êle, deixai que as innumeráveis conversões,
presenceadas por esta augusta côrte, desde o feliz acesso ao trono de
Sua Majestade a Rainha, confirmem a verdade do que eu digo--deixai que
os sombrios huguenotes da França, os réprobos herejes da Inglaterra, os
seguidores alemães do cruel Calvino e do ímpio Lutero, os quais teem
sido em número incalculável baptisados dentro destas paredes, declarem
quão ferveroso e ardente tem sido o zêlo de Sua Majestade em os fazer
renunciar aos seus erros abomináveis, em se professarem filhos dóceis e
humildes da única Igreja infalível que existe sôbre a terra.

«Oh! que eu não tenha a voz de um milheiro de anjos (exclama em tom
mais férvido o inflamado prègador) para reconhecer dignamente a bondade
da Providência em nos enviar tão excelsa rainha, e para agradecer
ao meu glorioso patriarca S. Domingos por me haver inspirado a mim
o mais humilde, o mais indigno dos seus filhos, com eloqùência, com
argumentos, com retórica bastante, para reduzir e vencer o poderoso
raciocínio e as bem elaboradas objecções do nobre neófito que estamos a
ponto de admitir no seio da santa Igreja visível.»

Neste momento apareceu o neófito, estando já tudo preparado para a
cerimónia de o baptisarem. Ao pé da pia baptismal estava el-rei e a
rainha, e os olhos de ambos os régios personagens se arrazaram de
lágrimas no momento da piedosa celebração.

Tão depressa ela concluíu, a rainha, dirigindo-se graciosamente ao
católico recem-nato, enxugou com o seu próprio lenço de cambráia e
rendas algumas gotas de água benta que tinham caído sôbre os bofes
da sua camisa, dizendo-lhe «que esperava que isso o não constipasse,
pois que era uma espécie de água que nunca fazia mal a ninguêm». A
côrte inteira seguiu-se a cumprimentá-lo amávelmente, emquanto as
lindas vozes da capela real se erguiam para o alto num _Te Deum_
magistralmente executado, que completava a augusta, a pomposa, a
fidalga cerimónia.

       *       *       *       *       *

Em 1779, dois anos depois da sua saída de Chelas, e poucos dias depois
do baptismo do conde de Oeynhausen, Leonor dava-lhe a mão de espôsa,
surda à voz do pai, que se levantava arrebatada e violenta, contra
esta escolha imprevista, esquecida dos mil protestos que havia feito
ao marquês de lhe obedecer sempre em tudo, e principalmente no magno
assunto do seu casamento, sem atender à pobreza do fidalgo alemão,
que estava em completa desproporção com a nobreza do seu nome, e às
dificuldades que por êste motivo o futuro fatalmente lhe guardava.

Sem documentos autênticos e positivos que nos elucidem acêrca das
impressões de Leonor ao deixar o convento e ao entrar no mundo e na
família, não podemos contudo deixar de atribuir a um desgôsto profundo
de tudo que em tôrno de si vira, esta resolução tão estranha e rápida.
O conhecimento íntimo do seu carácter é suficiente elemento para esta
conclusão, que afoitamente perfilhamos.

Os conflitos entre o pai e a filha, seria necessário uma profunda
ignorância da psicologia de ambos para os não agourar desde logo; o
antagonismo entre ela e o _meio_ social em que ia viver, ressalta
naturalmente da leitura das suas belas e generosas cartas, e da análise
documentada da sociedade estranha do seu tempo. Que melhor meio de
fugir a tão grandes dificuldades do que êsse casamento, que ia roubá-la
por muito tempo, talvez para sempre, à influência esterilizante e
deprimente da sociedade portuguesa, à ríspida autoridade, outrora tão
querida, do seu ulcerado pai?

Numa epístola sua a um amigo, Bocage, mais tarde, referindo-se a êsse
gôsto dos países estrangeiros, de que Leonor dá agora a manifestação
primeira, lamenta-se de não poder seguir-lhe o exemplo, planeia tambêm
fugir ao _meio_ asfixiante que o envolve. Êle tambêm:

    ... Como a grande, a majestosa Alcipe
    Com pejo de existir cá onde há morte,
    Ousara demandar no afoito adejo
    Plagas imensas onde tudo é vida.

Mas Bocage, mais infeliz que a poetisa portuguesa, morreu amarrado ao
ignóbil poste da sua miséria, tendo as mais das vezes de contentar-se
com a plebe dos botequins, para lhe dar aquele nectar inebriante do
aplauso ruidoso e sincero, sem o qual a sua alma não podia viver.
Foram êsses botequins o teatro mais freqùente dos raptos do seu sublime
e independente espírito. Leonor fugiu para longe, gozou, conheceu, teve
tôdas as sensações exquisitamente delicadas, que um entendimento como
era o dela precisava para se desenvolver. A flor, porêm, daquela viçosa
fé nas ideas novas, que as suas cartas tão encantadoramente revelam,
murchou de todo no ar artificial das côrtes europeias que freqùentou. A
Leonor que volta é bem diversa daquela que partiu. E bem pode dizer-se
que a fase mais interessante da sua vida acaba aqui! Mas literáriamente
o progresso do seu talento é incontestável.

Como a Stael, ela trouxe a Portugal, de volta da Alemanha, a revelação
da profunda literatura do norte, então totalmente desconhecida por nós,
e o seu gôsto faz-se tão seguro e tão firme que é ela quem muito mais
tarde revela Herculano a si próprio, e o induz a seguir a carreira
das letras, segundo a confissão, feita pelo eminente historiador, que
trasladamos para aqui:

«Aquela mulher extraordinária, a quem só faltou outra pátria que não
fôsse esta pobre e esquecida terra de Portugal para ser uma das mais
brilhantes provas contra as vãs pretensões da superioridade excessiva
do nosso sexo, é que eu devo incitamento e protecção literária, quando
ainda no verdor dos anos dava os primeiros passos na estrada das
letras.»[96]

       *       *       *       *       *

Não podemos seguir Leonor, no desenvolvimento do seu génio poético e
da sua carreira social tão brilhante. Outros o farão. O seu carácter
original que se foi transformando com a idade e com a evolução do
tempo, mais tarde outros o hão de descrever com o brilho e a precisão
que lhe são devidos. Nós com bastante pezar ficamos por aqui.


NOTAS DE RODAPÉ:

[66] Latino Coelho, _História política e militar de Portugal_, etc.

[67] Em Bemfica, na casa dos marqueses de Fronteira.

[68] Correspondência inédita.

[69] Obras poéticas da marquesa de Alorna, tom. II, _Epístola em
resposta ao conde de Ega, Aires de Saldanha_.

[70] Uma vez, tendo-se extraviado uns papéis do marquês, Leonor
escreveu-lhe:

«Bem quisera eu não achar nada que recear nos papéis que estão na mão
do M. (Marquês de Pombal), mas não sei tranquilizar-me lembrando-me
que poderão ser os que pertencem aos estudos de v. ex.ᵃ. Não sei sôbre
que seriam; mas os objectos que principiavam a interessar únicamente
o mundo literário quando v. ex.ᵃ se prendeu, e que certamente já
interessariam a v. ex.ᵃ, são perigosos de tratar em um país despótico,
onde o capricho é únicamente a lei que servimos.

«A política, que principiava a apurar-se muito com o favor da
filosofia, é hoje o objecto que mais interessa os filósofos e em que
os políticos maquiavélicos mais receiam instruir-se. Dizer que os
príncipes são protectores das leis, que o seu poder é restrito por
elas, que a justiça não consiste em oprimir, mas em manter e conservar
os direitos de cada indivíduo que compõe a sociedade, são blasfémias, e
o filósofo que as pronunciar deverá ocultar o seu nome para abrigar-se
das iras do ministério. Tanto nos governa o capricho.»

[71] _Recordações de Jacome Raton--História de Portugal_, etc.

[72] Correspondência inédita.

[73] Correspondência inédita.

[74] Cantigas contra o marquês de Pombal. Fr. Manuel de Mendonça, dom
Abade de Alcobaça, parente do marquês, e fr. José de Mansilha, seu
confidente e amigo.

[75] Latino Coelho, _História política e militar de Portugal_, etc.

[76] Latino Coelho, _História política e militar de Portugal_, etc.

[77] Latino Coelho, _História política e militar de Portugal_, etc.

[78] Idem, _ibidem_.

[79] No referido edital a representação em favor de D. Martinho
é acusada de conter um agregado _de doutrinas erróneas, falsas,
sediciosas e tendentes a sugerir máximas repugnantes... e a indispor e
contaminar os ânimos de pessoas menos instruídas, para as alienar por
êste detestável modo do respeito, obediência e submissão que devem ter
às leis e aos soberanos legisladores delas, os quais tendo recebido o
poder supremo imediatamente de Deus, que os colocou no trono, e a quem
sómente são responsáveis das suas acções, não reconhecem no temporal,
em caso algum, qualquer que êle seja, superior sôbre a terra_.

Êste edital, autêntico como é, bastava para nos edificar sôbre o
espírito que respirava a _representação_ do ex-marquês de Gouveia.

Não podemos, contudo, conciliar estes factos irrefutáveis com o que
sôbre o mesmo assunto relata no n.ᵒ 8 das suas _Noite de insónia_
Camilo Castelo Branco. Dá êle uma cópia da _representação_ feita à
rainha D. Maria I pelo infeliz D. Martinho, representação eloqùente,
mas rastejando pelo excesso da submissão e da humildade, e acrescenta
que foi seu autor o maior jurisconsulto do tempo, o grande Pascoal
José de Melo, e que o mais profundo e glacial silêncio foi a resposta
da piedosa soberana a tão submissa e eloqùente _representação_. Não
nos atrevemos a destrinçar qual dos dois brilhantes e bem informados
escritores se enganou. Afigura-se-nos, em vista das provas aduzidas
por Latino Coelho, o qual parece ter ignorado a hipótese apresentada
por Camilo, que a verdade completa está do lado do autor da _História
política e militar de Portugal no século XVIII_. É tambêm possível que
o primeiro projecto do _memorial_ fôsse escrito, a pedido do marquês de
Alorna, por Pascoal José de Melo, e que êste, conhecendo bem o espírito
de intensa e vigorosa reacção, que presidia ao govêrno de D. Maria I,
não quisesse, em benefício do seu cliente, empregar frases que não
fôssem da mais ortodoxa submissão ao poder absoluto da monarquia. É
natural tambêm que o marquês de Alorna, descontente com essa humildade
extrema, que feria os seus brios de fidalgo um poucochinho rebelde,
encarregasse mais tarde Francisco da Costa de _apimentar_ um pouco mais
o _memorial_, e no cumprimento dessa obrigação o causídico, educado
na tradição liberal da jurisprudência portuguesa, empregaria então as
frases que tão mal soantes parecem ter sido aos ouvidos da rainha,
habituados à lisonja mais abjecta.

[80] Recollections of an excursion to the monastery of Alcobaça and
Batalha by the author of _Wathek_.

[81] O mesmo volume atrás citado.

[82] As for king Peter, our tawny king of Spain, with his monstrous
nose is quite an Adonis when compared to him. He has very hard features
joined to a foolish look, and wears a very ill combed wig generally
to one side, and though he never tastes wine yet to my mind he has
altogether very much the appearance of a stupid old guzzling englishman
about two third drunk.--Costigan, _Sketches of society and manners_.

[83] Beckford.

[84] _Histoire de l’Autriche depuis la mort de Marie Therèse jusqu’à
nos jours._

[85] _Histoire de l’Autriche_, etc.

[86] Beckford.

[87] «Le confesseur de la reine, le dur scholastique, instruit de
l’aversion que la grande noblesse concevait à son égard, commence à
se montrer plus favorable aux intérêts des seigneurs, et quelques
grandes maisons cessent de tenir sur ce prélat les propos désavantageux
qu’elles affectaient de publier. Mais il aura beau faire, il est en
mauvaise odeur à la cour de Rome, instruite par ces nonces qu’il est
opposé aux opinions ultramontaines.» Carta do abade Garnier para
Simonin, 27 de Maio de 1777. Gabinete da abertura.

[88] Beckford.

[89] The huge massy dishes were brought up by a long train of gentlemen
and chaplains several of them decorated with the orders of Christ and
Avis. (Beckford).

[90] Beckford.

[91] Gluck e Piccini. Desnoiterres, _The present state of music in
Germany_, etc., by the doctor Burnez.

[92] Beckford, _Sketches of Spain and Portugal_.

[93] Beckford, Costigan e outros.

[94] Teófilo Braga, _História do teatro português do século XVIII._
Burney, _Present state of music in Germany state and the United
Provinces_. Burney fala com entusiasmo de Gizziello, a quem chama
_musical phenomenon_.

[95] Beckford, _Sketches of Portugal_.

[96] _Panorama_, 3.ᵒ volume, 2.ᵃ série, artigo sôbre a marquesa de
Alorna.


                                  FIM




                                ÍNDICE


  CAPÍTULO I

  O nascimento de Leonor de Almeida.--Seu avô Pedro de
  Almeida nas guerras da sucessão de Espanha. O seu govêrno
  da Índia. Sucessos que o assinalaram.--O título
  de marquês de Alorna.--Sua avó a marquesa de Távora
  D. Leonor no terremoto. Versos que ela inspirou.--A
  marquesa de Távora D. Leonor na Índia.--Festas pomposas.--Tragédia
  de Corneille.--O teatro de Pangim.--Influências
  atávicas do carácter de Leonor de Almeida.--Influências
  directas.--O atentado contra D. José.--A prisão
  dos fidalgos.--O tribunal da inconfidência.--A sentença.--O
  cadafalso de Belêm.--A morte da marquesa de Távora.--Com
  que altiva elegância ela sofre a execução.--A carnificina
  de 13 de Janeiro de 1759.--José Maria Távora.--Duelo
  de morte entre Pombal e a nobreza da côrte.--A
  política pombalina.--A ferocidade de todos os condutores
  de homens.--Como é que na bravura de carácter português
  conseguem destoar vigorosamente os tipos de fôrça.--Lógica
  medonha da situação.--A marquesa de Alorna
  na Junqueira.--A marquesa de Alorna e Leonor de Almeida
  em Chelas.                                                           7


  CAPÍTULO II

  Leonor era Chelas.--Antiguidade e origem dêste convento.--Vida
  conventual.--As cartas do marquês de Alorna a
  sua mulher.--Não são escritas com sangue.--Correspondência
  entre Leonor e o pai.--O incidente entre Leonor
  e o arcebispo de Lacedemónia.--Versão correcta e autêntica
  dêste incidente que anda desfigurado nas biografias
  de Leonor.--Estudos.--Leitura dos filósofos franceses.--Lutas
  de Leonor com o pai, a mãe, a condessa do
  Vimieiro.--O esquecimento do passado e do presente
  procurado no estudo.--Confiança que Leonor tem no
  pai.--Festas de Chelas.--Outeiros.--Representação de
  Atália.--Intermédios jocosos.--Coragem e alegria de
  Leonor através de todo o seu infortúnio.--O problema
  religioso.--Ilusões simpáticas do espírito de Leonor.--O
  marquês de Alorna condena Voltaire a ser queimado.--Admirável
  resposta de Leonor.--Discussões acesas de Leonor com os confessores
  do convento.--Lutas de consciência.--Antagonismo
  entre Leonor e o seu meio.--Fantásticos
  projectos de salvar seus pais.--Cartas a Luís XV
  e a Voltaire.--Mau francês e óptimos sentimentos.--Controvérsias
  literárias e poéticas entre o marquês de Alorna
  e Leonor.--Bom senso e bom gôsto do marquês.--O
  que Leonor diz a respeito do amor.--A Zamparini e
  várias anedotas da côrte.--O marquês de Gouveia e Maria
  de Almeida.--Entusiasmo com que Leonor antevê a
  factura existência dos seus no campo.--Influência de
  Rousseau.--Dois projectos de casamento para Leonor.--Retrato
  de um fidalgo ignorante.--Versos de Chelas.--Os
  sonhos de Leonor.--O príncipe azul.--Morte do
  rei que vem libertar a família de Alorna.                           57


  CAPÍTULO III

  Morte de el-rei.--É despedido brutalmente o marquês de
  Pombal.--Soltura dos presos da Junqueira.--O marquês de
  Alorna na portaria de Chelas.--Orgulho do marquês.--Seus
  esforços para uma pronta reabilitação que alcançou.--Retirada
  da família de Alorna para Almeirim.--Desilusões
  de Leonor.--Antagonismo moral do pai e da filha.--Reacção
  desbragada do reinado de D. Maria I.--O ministério
  da rainha.--Angeja.--Vila Nova.--Martinho
  de Melo.--O cardeal da Cunha.--Tancredo e Maria
  de Almeida.--Desgôsto do marquês de Alorna.--A côrte
  de D. Maria I.--A rainha e sua loucura.--O rei.--O
  principe do Brasil.--O confessor da rainha arcebispo
  de Tessalónica e o seu leigo.--Os marqueses de Marialva
  e a sua principesca hospitalidade.--Festas típicas
  da sua casa.--Os Penalvas.--Várias figuras do tempo.--O
  duque de Lafões e o mestre Gluk.--Pitoresco da
  vida portuguesa, mas falta de influência feminina.--A castidade
  da rainha e o teatro.--Do estado lastimável a que
  êle desceu.--Farças, entremesses, tragédias.--Conflito
  entre Leonor de Almeida e o seu meio.--Casamento
  que a liberta dêsse meio.--O conde de Oeynhausen.--Cerimónia
  do seu baptisado.--Testemunha ocular que a
  narra minuciosamente.--O sermão do frade dominicano.--Oposição
  do marquês de Alorna ao casamento da filha.--Desobediência
  de Leonor e seu casamento com o
  conde alemão.--Referência de Bocage a Alcipe.                      151

*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK SCENAS DO SÉCULO XVIII EM
PORTUGAL ***

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Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg™

Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of
computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It
exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations
from people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™'s
goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will
remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg™ and future
generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see
Sections 3 and 4 and the Foundation information page at
www.gutenberg.org

Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by
U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's business office is located at 809 North 1500 West,
Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up
to date contact information can be found at the Foundation's website
and official page at www.gutenberg.org/contact

Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without
widespread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine-readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment. Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
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While we cannot and do not solicit contributions from states where we
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International donations are gratefully accepted, but we cannot make
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Please check the Project Gutenberg web pages for current donation
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