The Project Gutenberg eBook of Scenas do século XVIII em Portugal, by Vaz de Carvalho Maria Amalia This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Scenas do século XVIII em Portugal Author: Vaz de Carvalho Maria Amalia Release Date: April 30, 2023 [eBook #70672] Language: Portuguese Produced by: The Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by The Internet Archive) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK SCENAS DO SÉCULO 18 EM PORTUGAL *** _MARIA AMALIA VAZ DE CARVALHO_ Scenas do seculo XVIII em Portugal PORTUGAL BRASIL Lᴰᴬ SOCIEDADE EDITORA _LISBOA_ DA AUTORA: _Primavera de mulher_ (poema), 1867. _Vozes do ermo_ (versos), 1876. _Serões no campo._ _Mulheres e crianças_ (Notas sôbre educação), 1880-1887. _Contos e fantasias_, 1880. _Contos para os nossos filhos_, 8 edições. _Arabescos_, 1880. _Um conto_, 1885. _Cartas a Luísa_ (Moral, educação e costumes), 1886. _Alguns homens do meu tempo_ (Impressões literárias), 1889. _As crónicas de Valentina_, 1890. _Cartas a uma noiva._ _Pelo mundo fora_, 1896. _Arte de viver na sociedade ou Manual da vida elegante_, 4 edições. _Vida do Duque de Palmela_, 3 vols., 1898-1903. _Em Portugal e no estrangeiro_ (Ensaios críticos), 1899. _Figuras de ontem e de hoje_, 1902. _Cérebros e corações_, 1903. _As nossas filhas_ (Cartas às mães), 2 edições, 1905-1906. _Ao correr do tempo_, 1906. _No meu cantinho_ (Homens. Factos. Idéas.), 1909. _Duqueza de Palmela_ (In memoriam), 1910. _Impressões de História_, 1911. _Cousas de agora_, 1913. _Páginas escolhidas_, 1920. MARIA AMÁLIA VAZ DE CARVALHO SCENAS DO SÉCULO XVIII EM PORTUGAL [Illustration: PER ORDEM PULGENS] LISBOA PORTUGAL-BRASIL LIMITADA SOCIEDADE EDITORA 58--RUA GARRETT--60 RIO DE JANEIRO COMPANHIA EDITORA AMERICANA LIVRARIA FRANCISCO ALVES Reservados todos os direitos de reprodução: em Portugal, conforme preceituam as disposições do _Código Civil Português_; no Brasil, nos termos do convénio de 9 de setembro de 1889 e lei n.ᵒ 2.577 de 17 de janeiro de 1912; nos países convencionados, em harmonia com a Convenção de Berne, a que Portugal aderiu por decreto de 18 de março de 1911. Imprensa PORTUGAL-BRASIL--Rua da Alegria, 100--LISBOA A MARQUESA DE ALORNA CAPÍTULO I O nascimento de Leonor de Almeida.--Seu avô Pedro de Almeida nas guerras da sucessão de Espanha. O seu govêrno da Índia. Sucessos que o assinalaram.--O título de marquês de Alorna.--Sua avó a marquesa de Távora D. Leonor no terremoto. Versos que ela inspirou.--A marquesa de Távora D. Leonor na Índia.--Festas pomposas.--Tragédia de Corneille.--O teatro de Pangim.--Influências atávicas do carácter de Leonor de Almeida.--Influências directas.--O atentado contra D. José.--A prisão dos fidalgos.--O tribunal da inconfidência.--A sentença.--O cadafalso de Belém.--A morte da marquesa de Távora.--Com que altiva elegância ela sofre a execução.--A carnificina de 13 de Janeiro de 1759.--José Maria Távora.--Duelo de morte entre Pombal e a nobreza da côrte.--A política pombalina.--A ferocidade de todos os condutores de homens.--Como é que na bravura de carácter português conseguem destoar vigorosamente os tipos de fôrça.--Lógica medonha da situação.--A marquesa de Alorna na Junqueira.--A marquesa de Alorna e Leonor de Almeida em Chelas. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre, conhecida na literatura portuguesa pelo seu título de marquesa de Alorna, nasceu em Lisboa aos 13 de Outubro de 1750. Foi seu pai D. João de Almeida Portugal, segundo marquês de Alorna, quarto conde de Assumar, veador da casa real, comendador da ordem de Cristo, e capitão de cavalaria na côrte. Foi sua mãe D. Leonor de Lorena, quarta filha dos terceiros marqueses de Távora. É das mais ilustres a ascendência de D. Leonor. Mas não é sómente pelo sangue e pela antiguidade que se recomenda a sua família. A futura marquesa de Alorna tem de quem opulentamente herdar a beleza feminina, o carácter viril e o extraordinário talento. Sem nos perdermos nos meandros de uma remota e complicada genealogia, e indicando, a quem se interessa por êsses estudos a notícia que acompanha a edição completa das obras da marquesa, mandada fazer por suas filhas, basta remontar à origem do título de Alorna, que data do meado do século XVIII, para vermos como êle foi nobremente conquistado pelo avô da nossa biografada. D. Pedro de Almeida, que mais tarde foi marquês de Castelo Novo e herdeiro de seu pai, teve o título de conde de Assumar (3.ᵒ), a comenda de S. Cosme, de S. Damião e de Cristo e mais bens da corôa e de ordem[1]. Distinguiu-se desde os vinte e dois anos como bravo militar e como capitão inteligente e hábil. Nas guerras da sucessão de Espanha D. Pedro militou sob as ordens do marquês das Minas, e comandou um corpo à frente do qual se bateu como um valente na batalha de Saragoça. Depois tão nobremente se portou na de Vila Viçosa, que na participação escrita da batalha, o marechal austríaco Staremberg cita-o como um dos cinco mestres de campo generais que mais denodo e mais bravura manifestaram no combate. Feitas as tréguas e assentes os preliminares do futuro tratado, foi a D. Pedro que se confiou a custosa missão de reconduzir a Portugal, sob a má vontade disfarçada ou clara dos espanhóis, o corpo de tropas que havia tomado parte, debaixo do comando directo do conde da Atalaia, nas duas batalhas de Saragoça e de Vila Viçosa. Esta retirada, que não vem ao caso narrar aqui, foi uma verdadeira odisseia, que deixou lembrado nos fastos da história portuguesa o nome fidalgo de D. Pedro de Almeida. Em tão delicada conjuntura o môço general revelou não sómente a coragem ingénita da sua raça mas o tino, a prudência, a razão clara que são raros em curtos anos, que infelizmente se iam tornando raríssimos na casta a que êle pertencia. Tais provas da mocidade indicavam eloqùentemente o seu nome para futuros serviços prestados à pátria. Estava esta numa das horas mais sombrias da sua degeneração lenta e dolorosa, num dêstes lances de angústia inconsolável que de há três séculos para cá tanta vez a teem pôsto a pique de subverter-se em abismo, que se não sabe bem aonde vai, se ao mar sem fundo, se ao pântano lodoso. Em 1747 foi D. Pedro de Almeida, avô de Leonor, nomeado governador da Índia, num dos momentos mais críticos daquela nossa tão ilustre quanto descurada possessão. O estado da Índia chegara nesse lance ao mais miserável extremo de objecção e abandôno. Um _deficit_ formidável; o govêrno desorganizado e sem prestígio; desfalque na receita dos tributos, grave diminuìção no comércio; paralisia em todos os órgãos, de corrupção em tôdas as células dêsse corpo em que, por um momento, tinha circulado o mais puro, o mais generoso sangue português. A província fôra invadida pelos _maratas_, a raça indomável e feroz, da qual os europeus tremiam, e que só a férrea dominação inglesa, mixto de astúcia e fôrça, de traição e de energia, conseguiu definitivamante amordaçar. D. Pedro de Almeida não teve mêdo à implacável, à selvagem e impetuosa bravura dessa casta de bandidos, e afrontando com supremo valor o poder _marata_ correu ao assalto da fortaleza de Alorna, já que encontrara perdida, ao chegar à Índia, a de Pondá, que pouco havia nos tinha pertencido. Não foi sem resistência que a praça de Alorna foi tomada aos maratas; os portugueses sofreram grandes perdas, e muitos oficiais sucumbiram naquele primeiro assalto das nossas armas, que o desleixo tinha enfraquecido e embotado. Aproveitando, porêm, com a sua costumada habilidade, o prestígio readquirido pelo nome português, na vitória que fôra renhida e bravamente disputada pelos contrários, o marquês de Castelo Novo tomou logo, quási sem resistência, as fortalezas de Bicholim, Avara, Tyracol e Bary[2]. A notícia destas vitórias excitou verdadeiro entusiasmo em Portugal. Estava por um fio a conservação dessas tristes relíquias do poder português na Índia. Se o marquês de Castelo Novo não se apossasse com tão feliz e pronta bravura de umas poucas de praças cobiçadas pelo inimigo, sustendo assim a roda de uma fortuna que tão contrária nos ia sendo, quem sabe se o que possuimos ali seria ainda hoje nosso! A êste homem notável pela decisão do carácter, e pela arte com que executava os seus planos arrojados, se deve porventura a conservação do nosso poder no Oriente. D. João V recompensou o general vitorioso com o título de marquês de Alorna, que lhe foi concedido por um decreto muito honroso em 9 de Novembro de 1750. Leonor de Almeida comemorava com justo desvanecimento e invocava com o legítimo orgulho os heróis da sua raça. Vê-se que tinha razão. Não era sómente pelos serviços de ante-câmara, ou pelas manhas de destros cortesãos, que os seus maiores tinham ascendido à posição que nobremente gozavam. No mesmo ano de 1750, data do nascimento da ilustre mulher, cuja vida tentamos escrever, partia tambêm para o palácio dos vice-reis da Índia outro ascendente seu, o marquês de Távora, pai de sua mãe. Estava êste predestinado, não à celebridade do heroismo, brilhante e prestigiosa, mas à outra, que fica mais profundamente gravada nas almas, que inspira a universal simpatia, que gera as piedosas lendas... à celebridade do martírio. A marquesa de Távora D. Leonor, espôsa dêste novo vice-rei e avó da marquesa de Alorna, fôra uma das fulgurantes belezas da côrte de D. João V, tão rica em formosuras, ou provocadoras e sensuais, ou deliciosamente sugestivas de místicos arrebatamentos de alma. Era natural que assim fôsse; essas mulheres eram indispensável ornato de uma côrte, cuja pompa lembrava a de uma satrapia oriental, cujos requintes galantes, cujo fausto devoto, cujo fanatismo violento e pagão, constituiam o espanto da Europa culta do tempo. Ninguêm entendia como tão extraordinários contrastes se podiam fundir num todo único. Mafra e Odivelas; as devoções a Nossa Senhora, e os amores com a cigana Margarida do Monte; o ajoelhamento permanente diante da côrte de Roma a pedir-lhe bênçãos, indulgências, privilégios, patriarcado, e a crónica apimentada que baixinho se repetia em todo o reino, tudo isto era tão extravagante que se perdia a cabeça na contemplação de tais prodígios. Mas a marquesa de Távora conservou-se impecável no meio deletério e estonteante em que a devoção era um sensualismo mais doce, mais requintado que os outros, e o amor, precisava da sombra sonora e fresca dos claustros, do cheiro do incenso, das flores expirantes entre velas do altar... Por um dêstes segredos de toucador, de que as privilegiadas não confiam de ninguêm o segrêdo precioso, conservou-se ela formosa até aos cinqùenta e cinco anos. Sabe-se isso, porque no ano do terremoto, em que contava justamente essa idade, Teodoro de Almeida escreveu um mau poema, _Lisboa destruída_, no qual se refere à sua rara formosura. Nesse poema, que só viu a luz em 1803, porque o seu autor, é claro, não se atreveu a publicá-lo em vida de D. José I, há uma vinheta em que se vê a miniatura da marquesa D. Leonor, e diz a tradição que era um retrato fidelíssimo em que o artista se esmerou a rogos do poeta. Estão com ela a filha, condessa de Atouguia, a nora, marquesa de Távora e uma neta. Camilo, que é a fonte, fonte inexgotável e genuína, de onde tirámos estas informações, acrescenta naquela sua frase cunhada em oiro de Lei: «O congregado Teodoro de Almeida não extrema a marqueza velha das mais novas, quanto a beleza: Neste ponto avistaram de repente Junto a si três matronas mui formosas. «O certo é que a marquesa aos cinqùenta e cinco anos era ainda uma esbelta senhora, com o aprumo juvenil e o garbo da mocidade sadia e alegre. Ás maneiras fidalgas e altivez de raça ajuntava a superioridade do espírito, essa segunda fidalguia que devia torná-la odiosa à estupidez de suas primas.» Um dos mil poetas detestáveis daquele tempo, dedicou à marquesa de Távora uns versos em que lhe celebrava o denodo na ocasião de embarcar para a Índia, de onde voltou justamente um ano antes do terremoto, para morrer da trágica maneira que sabemos[3]. Em Goa os marqueses de Távora celebraram com festas pomposas, ao gôsto da época, mas espiritualizadas por um toque de talento, que então não era vulgar, a aclamação de D. José I--o rei sob cujo poder êles tinham de vir a sofrer tão afrontosa morte! O espírito da gentil e orgulhosa vice-rainha desentranhou-se em graciosas invenções que revelavam a sua cultura superior. Nessas festas quis ela manifestar aos estrangeiros a magnificência, um tanto ôca, as mais das vezes, fictícia quási sempre, do génio português. No teatro, mandado construir pela marquesa na capital da Índia, e que foi edificado dentro do paço de Pangim, houve durante três dias representações de gala. No primeiro representou-se em francês a peça de Corneille _Porus vaincu par Alexandre_. Dos seis personagens da peça cinco eram franceses e um português; e haver naquela época uma senhora da côrte freirática de D. João V que soubesse apreciar com lúcido critério o valor literário do nome de Corneille, indica da sua parte uma ilustração desproporcionada com o seu triste meio. Só ela tinha, porêm, ali essa cultura fenomenalmente rara, pois que o auditório não entendia palavra... «_mas foi a representação feita com tão vivas expressões, que ajudados de um sumário em português, que a senhora marquesa tinha mandado traduzir da ópera, todos saíram satisfeitos e agradados da novidade, nunca até ao presente vista em Goa_»[4]. Quem talhou os costumes e dirigiu o guardaroupa foi a própria marquesa, que respeitando a côr local, porque a tragédia se passava na Índia, seguiu o rigor dos trajos opulentíssimos, assistindo ela própria a todos os preparativos e trabalhos. Depois da tragédia houve baile e ceia opípara oferecida às fidalgas de Goa. Na noite seguinte representou-se uma ópera portuguesa desempenhada por curiosos, em que entraram os Correias de Sá, irmãos do visconde de Asseca. A esta festa seguiram-se outras em que a vice-rainha continuou a exibir as suas faculdades inventivas e a alta compreensão que possuia da grande vida e do luxo inteligente. Nos intervalos dessas festas, ou no remate delas, mandava distribuir fartas esmolas pelas famílias fidalgas decaídas na miséria, «relíquias dos antigos potentados da Ásia arruinados pela dissipação, e durante os quatro anos do seu vice-reinado subsidiava com mesadas os que não podiam vir ao paço receber as esmolas. Êsses mendigos envergonhados eram os legítimos representantes da Índia portuguesa»[5]. Tinha um defeito a marquesa de Távora: era soberba da sua estirpe em grau inadmissível. Ás suas ironias desdenhosas de fidalga se atribuiu grande parte do ódio que o marquês de Pombal mais tarde manifestou cruamente aos seus. Mas êsse pecaminoso orgulho, de que se contam mil anedotas típicas, transformou-se na fôrça estoica com que suportou o martírio; depurou-se na energia inquebrantável com que recebeu a morte e a tortura moral que a precedeu, sem dobrar nem envilecer a sua bela cabeça aristocrática. * * * * * Neste nosso tempo de alta civilização intelectual em que as noções mais complicadas da sciência humana penetram, por meio da extrema vulgarização das ideas, até nos espíritos menos preparados por uma forte educação técnica para as receberem; neste nosso tempo--quem pode ignorar as influências poderosas que a hereditariedade exerce na formação de um organismo? De um lado a energia indomável do ânimo da marquesa de Távora, o seu amor pelas especulações da inteligência ou pelas graças e encantos da literatura; o fino orgulho de raça que a exalta, a sua capacidade extraordinária de sofrer, com altiva resignação, a injusta fortuna: por outro lado a valentia heróica de D. Pedro de Almeida, a sua superioridade de inteligência e de carácter manifestada em acidentados lances, reflectir-se hão, com as mudanças inevitáveis de circunstâncias e de meio, na fisionomia de Leonor de Almeida, marquesa de Alorna. Mas não sómente influências atávicas tinham de actuar eficazmente no seu espírito; outra fôrça ainda mais enérgica, ainda mais directa e positiva havia de exercer a sua acção dominante nesse temperamento delicado e resistente, enérgico e flexível, capaz de dobrar-se com a graça pendida de uma flor, e de reagir com a inquebrantavel coragem de uma alma de antiga têmpera. A infância de Leonor de Almeida foi obumbrada pela tragédia histórica que, numa espécie de rubra nuvem de sangue, envolveu tôda a sua bela, florescente e poderosa família e a fulminou com raio sinistro. Não contaríamos aqui essa catástrofe por demais conhecida, se não atribuíssemos, tanto a ela em si como às circunstâncias impressionadoras que a revestiram, uma influência decisiva no espírito de Leonor de Almeida. As sombrias ramificações dêsse drama enlaçaram estreitamente o destino da nossa heroína. Á sombra densíssima que a cingiu desde a infância; às lagrimas maternas que lhe regaram a cabeça infantil e deliciosamente linda; ao horror mil vezes lembrado do suplício dos seus; à crudelíssima e longa clausura desse pai adorado, com quem ela viveu em íntima comunhão espiritual; às tristezas da sua adolescência, que buscara na poesia um refúgio abençoado, um voluptuoso anestesiante das torturas da alma; à disciplina férrea a que ela sujeitou o seu alto entendimento--a tôdas estas circunstâncias romanescas e dolorosas deveu ela de-certo parte do seu talento singular. As duas qualidades predominantes desta inteligência de mulher são o vigor quási viril do pensamento experimentado, e a extrema cultura adquirida em longos anos de prisão. Resistiu ao desespêro pelo trabalho e pelo estudo; resistiu ao tédio mortal pela curiosidade viva das cousas, que a teve sempre em comunicação simpática com o mundo exterior. Foi, portanto, a desgraça dos seus, o género especial e trágico e grandioso dessa desgraça immerecida, que fêz dela a mulher forte, desenganada e triste que a vemos ser desde os quinze anos! * * * * * Uma noite, a 3 de Setembro de 1758, espalhava-se pela cidade o lúgubre boato de que el-rei D. José, voltando de, não sei que misterioso passeio nocturno, a caminho da Ajuda, fôra vítima de uma tentativa de regicídio, de que muito a custo escapara com vida. Deveu-se o insucesso parcial da criminosa emboscada ao facto de el-rei, sentindo-se ferido pelo primeiro tiro, disparado (dizem) pelo duque de Aveiro ou pelo seu criado José Miguel, se lembrar de repente de que o cirurgião mor do paço morava na Junqueira, e ordenar, portanto, ao cocheiro que retrocedesse naquela direcção. Morava ali perto o marquês de Angeja, D. Pedro José de Noronha, para cuja casa D. José quis ir, e que, alucinado de surpresa e de terror, recebeu, e deitou na sua própria cama o rei ferido. Os conspiradores, distribuídos em diversos lugares e todos a cavalo, esperaram debalde por D. José, que uma intuìção, que diríeis milagrosa, salvara da morte, contrariando os planos tenebrosos dos seus inimigos. Justamente na ocasião em que êste crime, gravíssimo hoje e verdadeiramente sacrílego naquele tempo, se perpetrava, o marquês de Pombal pedia ao destino um pretexto que o justificasse e favorecesse na guerra com que êle ambicionava pôr ponto ao poder ilimitado, à soberba arrogância da fidalguia portuguesa. Estadista à maneira de Richelieu, de Cromwel, de Frederico II, de Bismarck, o sangue derramado, as torturas impostas, as lágrimas choradas eram-lhe pequeno obstáculo à linha recta da sua implacável e brônzea vontade. Vendo a nação devastada pelas plantas parasitas que lhe sugavam tôda a seiva, a sua ambição foi salvá-la custasse embora muito cara a salvação. O que a história nos conta dessa hora sinistra da vida de Portugal, assombra e enoja a um tempo. Charnecas desertas e incultas, enormes extensões de terrenos despovoados, destruídas as manufacturas da Covilhã, do Fundão, de Bragança, de tôdas as cidades onde os cristãos novos--agora expulsos pela inquisição--tinham feito da sua energia, da sua inteligência, do seu trabalho, do seu amor pelo ganho, instrumento de riqueza para êste país desgraçado; caminhos impraticáveis tornando impossível o tráfego comercial e o transporte de mercadorias ou pessoas[6]; o exército sem disciplina, sem decôro, onde os soldados e até os oficiais subalternos faziam mister de criados dos seus superiores, servindo-lhes à mesa, e executando os mais humilhantes ofícios, quando não pediam como mendigos andrajosos pelas ruas das cidades mais populosas[7]; a têrça parte do solo nacional possuído pela Igreja, e a sentir-se em todo o país a tríplice e funesta influência do clero devasso, ignorante e cobiçoso, da nobreza da côrte, ociosa e insolente, e da inquisição ameaçadora, que, na caça feroz ao judeu, tinha aniquilado tôdas as actividades produtoras, tinha expulsado do país tôdas as fôrças vivas, tinha quebrado e destruído tôdas as energias fecundas. O mau clero embrutecendo, a inquisição queimando os resistentes e depravando sob a influência do seu terror os ânimos que a cobardia dobrava servilmente, tinham feito de Portugal e da Espanha dois países mortalmente condenados. Comercialmente, éramos uma reles feitoria de Inglaterra, que pelo tratado de Methwen nos enfeudava sem defeza aos seus interesses. Espiritualmente, éramos a mina extinta de que Roma extraíu cento e oitenta milhões de cruzados a trôco de privilégios cultuais[8], de canonizações de santos[9], de bulas especiais para diversos usos. Bandos capitaneados pelos primeiros fidalgos da côrte, o duque de Cadaval, o marquês de Cascais, os condes de Aveiro e de Óbidos, traziam Lisboa em permanente susto e permanente sobressalto, espancando as rondas, matando as autoridades que lhes resistiam[10], travando entre si bulhas de que muitas vezes resultavam mortes e gravíssimos ferimentos. Sob a tirania e o livre arbítrio da realeza, e sob o ôco beatério da nobreza e do povo, havia o desenfreamento dos mais baixos instintos, a brutalidade mais soez, a devassidão mais desbragada. O exemplo, partindo de alto, alastrava com vertiginosa rapidez por tôdas as camadas sociais eivadas da mesma ignorância e submersas no mesmo embrutecimento. O _abêtissez-vous_ de Pascal, aplicado pelos jesuítas e pela inquisição, fôra o único meio que Roma encontrára para defender o seu baluarte ameaçado. A Península ibérica fôra o teatro escolhido para essa horrenda experiência, que fazia da mutilação do pensamento uma arma política, e perdoava o desenfreamento audaz dos instintos brutais, contanto que a consciência não tentasse despertar sequer do seu adormecimento e do seu ignóbil torpor... O marquês de Pombal encontrou êste quadro horrendo e grotesco ao tomar posse do país, que pretendia regenerar, na volta da sua longa permanência em Londres e em Viena. Na Inglaterra é claro que Pombal não aprendeu nenhum dos processos da política liberal a que êsse robusto país deve a integridade da sua duração e a solidez da sua grandeza, mas viu--e com que humilhação melancólica para um coração português!--o que era ali a aristocracia comparada ao que estava sendo entre nós! Para o confirmar na idea que ela de-certo lhe inspirou, bastou-lhe assistir ao formar da brilhante e formidável oposição contra o poder corrupto de Walpole, porque não foi num período glorioso da vida política de Inglaterra que Pombal ali viveu. É provável que êle observasse de perto com o seu olhar de miope, tão espirituoso e penetrante, as notáveis e características figuras que constituem essa colisão famosa[11]. Pitt, o futuro lord Chattam, tinha então trinta anos e já pronunciara contra o ambicioso ministro, agarrado ao poder como a ostra à concha, alguns dêsses belos discursos clássicos e pomposamente teatrais, que tão viva impressão produziram no seu auditório político. Carteret, conde de Grenville, formosa figura de estadista e de erudito, falando tôdas as línguas mortas e vivas, inclusivamente o português, brilhava então deslumbradoramente na scena política pela coragem, pela ambição nobre, pela eloqùência declamatória ou pela agudeza e agilidade do debate parlamentar. Chesterfield era o tipo consumado da elegância cortesã, do gôsto cultivado e fino, das maneiras galantes. Garrick acabava de estrear-se, e logo adorado, adulado pela aristocracia londrina, fazia chorar o seu patrício auditório interpretando na scena Shakespeare, como mais tarde o fará convulsivamente rir, arremedando nas salas a figura e os modos estranhos, tão cómicamente dolorosos, de Samuel Johnson, então desconhecido ainda. Pope vivia no pé de perfeita igualdade com a alta sociedade elegante e política do tempo, mas literáriamente era então uma excepção única. Em Inglaterra, como em Portugal, aquele período era da mais desoladora esterilidade literária, mas ali era apenas o intervalo entre duas fases brilhantes. Desaparecera a geração de Addisson, de Prior de Steele, de Congreve, de Foe, de Swift, mas iam aparecer Goldsmith, Fielding, Burke, Collins, Thompson, e outros mais. E em todo o caso a Sebastião José de Carvalho e Melo era indiferente que a literatura estivesse ou não numa fase gloriosa. O que devia impressioná-lo, indigná-lo ali, pela triste comparação a que se via forçado, era a vida intensa, o alto valor social e moral, a utilidade e a fôrça dessa classe aristocrática, que na Inglaterra nunca aceitou privilégios a que não estivessem ligados graves e austeros deveres cívicos, ao passo que nada havia mais estéril, mais imbuído da sua falsa importância, mais perturbador da ordem e do equilíbrio nacional do que a nossa nobreza degenerada, vivendo, salvas excepções raríssimas, que podem apontar-se, dos bens da corôa, da munificência régia e dos abusos e privilégios; voluntáriamente ignorante e gabando-se de o ser, reduzida, pela paz prolongada e pela inércia em que o país caíra nos braços do jesuíta manhoso, ou sob o látego do inquisidor cruel, aos ofícios de ante-câmara e às manhas e intrigas da côrte. D. Luís da Cunha, um dos privilegiados, mas um dos raros que ilustravam a sua classe, melhor do que ninguêm pôs o dedo nas misérias que Portugal chamara sôbre si nesse período sombrio da sua existência nacional. O ministro de D. José, que D. Luís da Cunha[12] indicara como o mais apto para dar algum remédio a tantos males, aproveitou, portanto, o ensejo que a nobreza lhe dava para travar com ela a terrível luta em que afinal foi vencido pelo destino e por ela... É por esta ordem de considerações que o cadafalso de Belêm, erguendo-se diante dos nossos olhos, tristes sim, mas conhecedores das circunstâncias que o explicam e da crueldade semi-bárbara dos costumes e da jurisprudência do tempo, não se nos afigura um facto isolado, sem outra significação alêm da que dá o nosso humanitarismo sentimental da actualidade. Devemos, portanto, emmudecendo a infinita piedade que nos confrange o coração, contemplar as vítimas que ali vieram expirar, à luz de um critério que não é de hoje. Devemos considerá-las, infelizmente, como acusados políticos da peor espécie, réus do maior dos crimes, do que envolvia todos os outros, pois que no tempo de D. José,--o qual foi o representante mais genuíno e mais puro entre nós, dêsse absolutismo monárquico que em tôda a Europa ocidental precedeu e como que preparou, sem o prever nem pressentir, o regímen moderno,--o rei era ao mesmo tempo o pai, o emissário divino, a figura inviolável, impecável e sagrada, cuja mão ungia, cuja dominação exaltava, cujo serviço era tão honroso e glorioso como o do próprio Deus. Não basta, porêm, ver sómente êste aspecto do complexo assunto. É necessário acrescentar que o julgamento dos fidalgos mais directamente suspeitados, a execução do duque de Aveiro e dos desventurados e porventura inocentes Távoras, o aparato inaudito de que êsse acto de tirania se revestiu, as prisões em que tantos inocentes, reconhecidos por tais, foram apanhados na rêde tenebrosa de uma política implacável, tudo isto, na perspectiva longínqua em que o pensador hoje o contempla, não é mais que um lúgubre, um terrível e sangrento episódio dêsse duelo de morte, que o marquês de Pombal, o último português que soube o que era _ter vontade_, travou furiosamente com uma ordem de cousas em que êle via a desgraça de Portugal. Aqueles desgraçados expiavam, ali, não sómente o seu crime, suposto em todos, dizem alguns, real em quási todos, asseveram outros,--mas principalmente, e é esta a face cruel mas terrívelmente lógica do facto--os crimes longos, os crimes imperdoáveis de uma casta inteira, contra a qual se insurgia o espírito impiedoso de Pombal, atribuindo-lhe o estado de decadência da nação, que êle ambicionava erguer como um novo Lázaro do chão da morte... ¿Tinha razão o marquês em atribuir completamente à fidalguia e à fradaria portuguesa a desgraça em que achava êste país? Não tinha. Os frades e os fidalgos ignorantes, soberbos e ociosos eram já produtos e não causas de uma decadência moral e intelectual, que vinha de longe, de muito longe; deviam os seus defeitos a circunstâncias talvez fatalmente consubstanciadas no próprio destino de Portugal, talvez feitas da própria essência do seu organismo. Mas o marquês tinha a sciência do seu tempo, o que não se lhe deve levar a mal, porque, como tão bem diz um grande pensador, o débil alcance da inteligência humana, e a brevidade da nossa vida comparada à lentidão do desenvolvimento social, conservam-nos a imaginação, sobretudo no que respeita às ideas políticas, inteiramente sob a dependência estreita do meio em que habitamos. «A cabeça mais forte da antiguidade, o grande Aristóteles, de tal modo foi dominado pelo seu século, que não pôde conceber uma sociedade sem ter por base a escravidão»[13]. Assim tambêm o marquês de Pombal, não conhecendo o recente segrêdo das leis sociológicas, julgava que a reconstrução de uma sociedade é um acto de pura mecânica. Desbravar o terreno, ou deitar por terra as edificações carunchosas que o atravancavam, transportar para longe o entulho que se amontoara dessas ruínas em grande, e proceder imediatamente, livre de obstáculos e de peias, ao seu trabalho de arquitecto namorado da ordem rectilínea e da simétrica regularidade, parecia-lhe uma tarefa tão legítima quanto realizável. ¿Que fôssem instituìções ou fôssem homens os que embaraçavam a sua obra, que lhe importava? Para êle eram simplesmente obstáculos. Tinha uma concepção das cousas muito diversa da que hoje reina. Nunca lhe poderia entrar na cabeça que a sociedade fôsse, como o indivíduo, um organismo. Não percebia que, da dissolução a que o corpo social tinha chegado, podiam surgir, em resultado de irredutíveis leis orgânicas, novas combinações e novas formas de vida, mas nunca operar-se aí uma cura radical, uma transformação impossível. Os factos provaram-lhe ainda em vida, na sua dolorosa, na sua angustiada velhice, que êle errara nas apreciações e nos pontos de vista. Mas o desmoronamento, quási completo na parte política, administrativa e moral da sua obra, não o pôde esclarecer ainda assim a respeito das causas que o determinaram. Ainda pela consciência e pelo entendimento humano não passara aquele abalo violento, sob a influência do qual nós todos pensamos hoje, tanto amigos como adversários do novo regímen. O marquês não estava em suficiente avanço do seu século para compreender que os fenómenos políticos se regulam, como os outros, por leis naturais! A reconstrução civilista e burguesa que êle sonhara tinha de realizar-se, não no carcomido, no gasto, no anémico Portugal, mas nas outras nações latinas, depois da luta intensa e prolongada contra o regímen anterior, depois da demolição longa e laboriosa, feita pela escola negativa e crítica do século, depois de um interregno de desordem, no meio do embate, sem método preconcebido, de contraditórias fôrças inconscientes, porque nenhum progresso político ou social deixou de ser precedido por êsse período de cáos e de surda germinação. É êle que prepara a nova ordem de cousas, favorecendo de um lado o desenvolvimento dos elementos que virão a constituí-la, estimulando por outro as faculdades reorganizadoras da sociedade pela experiência cruel dos males da anarquia[14]. * * * * * Tão favorável era então o ensejo para que a mão aspérrima de Pombal caísse com todo o seu pêso enorme sôbre a nobreza mais alta da côrte,--que houve muito quem aventasse a hipótese de que tal emboscada não existira, ou antes fôra simulada pelo astuto ministro. Á posteridade, porêm, não parecem duvidosos, nem o atentado contra D. José, nem a culpabilidade do duque de Aveiro. O embaixador francês, que a êsse tempo estava em Lisboa, dizia para a sua côrte, que o duque de Aveiro--carácter imperioso e duro, espécie de relíquia feudal perdida num tempo que já não estava em harmonia com as suas altivas pretensões, e num país onde o feudalismo existira nas ideas sem nunca ter existido própriamente nas instituìções--que o duque de Aveiro era formalmente detestado. Nascera filho segundo, e fôra destinado para a mitra; mas a loucura amorosa do irmão mais velho, cuja fuga para Espanha com D. Maria da Penha de França, casada com Luís de Almada, deu brado naquele tempo, fê-lo logo marquês de Gouveia, e duque de Aveiro mais tarde, quando, contra uma nobre família de Espanha, ganhou a demanda que disputava à sua casa os bens e os títulos daquele ducado. A boa fortuna exaltara-lhe a soberba, fizera-lhe do orgulho indomável uma arma perigosa. Irritavam-no até à epilepsia as audácias reformadoras e niveladoras do ministro e a subserviência e docilidade do rei. Tentou, portanto, matando êste, aniquilar o ilimitado poder daquele. Pelo contrário a família Távora, verdadeiramente típica da lhana e afável fidalguia portuguesa, apenas intratável em questões de precedência, de tratamento, de formas, etc., era estimada e querida em Portugal. Mas à veia satírica da espirituosa marquesa não escapara a fraqueza mais flagrante do ministro de D. José, aquela ânsia de provar com documentos a sua fidalguia, o que não é deveras permitido a um homem que em tanta maneira excedia o nível do seu tempo, e cujo alto espírito o devia pôr ao abrigo de tais aberrações de entendimentos medíocres. Ficaram na tradição os chasques de prosápia orgulhosa com que ela se desforçava da decadência do poder da sua casta, e do advento dessa outra potência irresistível de que Sebastião José de Carvalho foi um dos mais genuínos e mais célebres e prestigiosos representantes, e que êle no entanto parecia renegar com as suas ideas fantásticas acêrca da própria fidalguia. Desta loquacidade mordaz de mulher ofendida à cumplicidade do nefando regicídio vai um abismo, e conquanto a história dê uma causa, mais íntima, mais justificável quási, à suposta cumplicidade dos Távoras, pois se contou, e escreveu, que a marquesa filha tinha as boas graças do rei, e êsse escândalo causava a desolação de sua honesta sogra, ainda assim um triste ponto de interrogação subsiste em face dêsse processo misterioso, mais instaurado e vencido para meter espanto e terror a uma dada ordem social, do que escrupulosamente conduzido para levar a luz de uma convicção inabalável à consciência dos que assistiram ao desenvolvimento das suas peripécias tremendas. Durante alguns dias de suspensão e de indeterminada angústia ecoou vagamente no público a notícia do crime, sem que um passo sómente fôsse dado para a busca e prisão dos réus. Todos êles foram colhidos com extraordinária facilidade, quando Sebastião José de Carvalho, acordando de súbito do fingido torpor em que pareceu ficar paralizado, mais uma vez demonstrou por um golpe de irresistível mestria, a sua implacável vontade e a sua fôrça pronta e sagaz. Depois de três meses de um dêsses soturnos silêncios, cortados de ansiedade sombria, que tanta vez precedem os cataclismos da natureza e os da sociedade, no dia 13 de Setembro de 1758 foram cercadas as casas do marquês de Távora, D. Francisco de Assís, o vice-rei da Índia das festas teatrais e das pomposas cerimónias; do conde de Atouguia D. Jerónimo de Ataíde; do conde de Óbidos D. Manuel de Assís Mascarenhas; de D. Manuel de Sousa Calhariz; do conde de Vila Nova, Manuel de Távora; do desembargador António da Costa Freire, de muitas outras pessoas suspeitas; de todos os jesuítas do reino, e afinal, o que principalmente importa para a nossa história, do marquês de Alorna, D. João de Almeida Portugal, pai de Leonor, gentil e diserto cavaleiro de vinte e cinco anos, que fôra ou estava para ser nomeado embaixador em Paris, e cujo crime baldadamente se procura em todos os documentos do célebre e crudelíssimo processo. O duque de Aveiro, de todos aqueles em quem incontestávelmente recaem as mais graves suspeitas de haver perpetrado o crime, ou de o ter feito executar por mandatários seus, estava na sua quinta de Azeitão, nessa Sintra da Outra Banda, onde as grandes famílias portuguesas do século XVII e do século XVIII tinham tão lindas, pitorescas, majestosas e artísticas vivendas, hoje reduzidas a ruínas abandonadas, a ruínas ignóbeis, que nenhum luar de saudade espiritualiza e doura, de que nenhum culto reverente consagra a tradição melancólica. Diz-se que êle se preparava para fugir, tendo sabido do movimento de tropas que se notara em Aldeia Galega, por onde inesperadamente passara um corpo de cavalaria, e tambêm das prisões de Lisboa, cuja notícia soara com a rapidez misteriosa com que os casos graves se propagam. De todos aqueles a quem o ministro omnipotente desejou prender só lograra escapar José Policarpo de Azevedo, cuja trágica odisseia Camilo Castelo Branco há de narrar com a sua linguagem de tão máscula e inimitável elegância, de tão grave e impressionadora tristeza. O marquês de Alorna não soube nunca a que fatalidade inexplicável devera o achar-se envolvido no horrendo trama. O duque de Chatelet na _Viagem em Portugal_, que fêz, muitos anos depois dos acontecimentos, e em que miúdamente se refere a muitos actos da administração de Pombal, diz que foi atribuída a cumplicidade do marquês ao facto, aliás absolutamente inocente, de êle haver emprestado uma espingarda de caça ao filho do duque de Aveiro, que no próprio dia do atentado contra a vida do rei, lh’a tinha pedido. ¿Mas quem não vê hoje, na distância em que estamos, que o fim de Pombal era muito diverso daquele que então lhe atribuíam as suas vítimas desgraçadas?! O que êle queria era castigar, humilhar, amordaçar, inutilizar, vencer essa fidalguia da côrte, que a cada instante se erguia como um obstáculo, como um tropêço diante dos seus planos de audaz reformador da sociedade portuguesa. Áspero de génio, inflexível de vontade, de natureza cruel como todos os condutores de homens (nem com índole diversa êles o seriam), pouco se importava com a inocência ou com a culpa dêsses fidalgos arrogantes, que ousavam defrontar-se com êle em permanente oposição. O que pretendia era destruí-los de vez, ou emmudecer para sempre os que por ventura lograssem escapar à vindicta da lei. O marquês de Alorna, generoso, altivo e franco, falando alto e bom som com a sua hombridade de fidalgo, e sabendo o que dizia porque tinha ilustração e talento, raros então na sua classe--com certeza que devia ser dos mais notórios na oposição ao homem que todos julgavam _inimigo da nobreza_, e pronto a cercear-lhe os privilégios e as regalias. Pagou com uma prisão de dezoito anos êsse crime de rebeldia mental. Emquanto se efectuava em Azeitão a captura do poderoso duque de Aveiro, e na côrte a dos outros suspeitos, reinava em Lisboa um terror súbito, ressurgido após três meses de espectativa já quási adormecida, porque tinham aparecido, afixados em tôdas as esquinas, dois decretos, um dos quais datado de 9 de Dezembro, em que se narrava, na enfática e declamatória linguagem do tempo, o atentado de que el-rei nosso senhor tinha por milagre escapado, anunciando-se exposta às vistas do público, na cocheira do paço, a carruagem onde el-rei ia, quando lhe foram disparados os tiros; e outro, datado de 13 do mesmo mês, em que se tomavam as mais vexatórias disposições para que os culpados não pudessem fugir, ordenando várias precauções administrativas e políticas, que a tirania do tempo de sobejo legalizava. No dia 14 de Dezembro foi presa e conduzida ao convento das Grilas a marquesa de Távora D. Leonor. A marquesa D. Teresa, nora desta e amada pelo rei a ponto de a poupar impudentemente em todo o processo, foi conduzida para o convento das comendadeiras de Santos, onde se conservou com uma tença régia, e rodeada de cómodos e confortos até à morte. A duquesa de Aveiro foi para o Rato[15], a condessa de Atouguia para Marvila; a marquesa de Alorna e as suas duas filhas, crianças adoráveis de seis e sete anos foram para Chelas. Criou-se uma junta ou tribunal chamado da _inconfidência_, presidido pelos três secretários de estado, e o lúgubre processo correu envolto em profundo segrêdo, conhecendo-se apenas, que seguia o seu curso, pelas prisões que vinham, de vez em quando, sobressaltar Lisboa, fazer tremer de horror a mais qualificada fidalguia da côrte, e povoar de altos dignitários e de cortesãos, outrora validos, os fortes do Tejo e os cárceres do Estado. Ainda hoje se não sabe o que no seio da Junta se passou. Previu-se, porêm, desde logo que ia mais longe, do que primitivamente se podera supôr, o alcance e a significação dêsse processo, eivado da terrível pecha de todos os processos políticos em que os réus já vão responder ao tribunal préviamente sentenciados. Tal foi o sistema do absolutismo triunfante em tôdas as fases da sua história, em todos os pontos em que o seu poder se exerceu; tal foi o sistema do jacobinismo violento da convenção, e do _comité de salut public_ na França revolucionária, e o sistema da França napoleónica, no processo do joven duque de Enghien--o sangue de Condé! * * * * * A 13 de Janeiro de 1759, por uma madrugada nevoenta e triste «por entre castelos pardacentos de nuvens esfumaradas, que a espaços saraivavam bátegas de aguaceiros glaciais», a cadeirinha da marquesa de Távora D. Leonor chegou ao largo de Belêm, onde se erguia o cadafalso em que tôda a sua família ia expirar. O fúnebre cortejo constava primeiramente de um esquadrão de dragões, em seguida dos ministros criminais que tinham julgado o processo iníquo, e que vinham a cavalo, uns com a toga, outros de capa e volta. O corregedor da côrte, atrás dêsses, era quem precedia a caixa negra entre dois padres, onde a marquesa se dirigia ao suplício. Alas de tropa cercavam o préstito. «Á volta do tablado postaram-se os juízes do crime, aconchegando as capas das faces varejadas pelas cordas da chuva. Do lado da barra reboava o mugido das vagas que rolavam e vinham jofrar espumas no parapeito do cais. Havia uma escada que subia para o patíbulo. A marquesa apeou-se da cadeirinha, dispensando o amparo dos padres. Ajoelhou no primeiro degrau da escada, e confessou-se por espaço de cinqùenta minutos. Entretanto martelava-se no cadafalso. Aperfeiçoavam-se as aspas, cravavam-se pregos necessários à segurança dos postes, aparafusavam-se as rôscas das rodas. Recebida a absolvição, a padecente subiu entre os dois padres a escada, na sua natural atitude altiva, direita, com os olhos fitos no espectáculo dos tormentos. Trajava de setim escuro, fitas nas madeixas grisalhas, diamantes nas orelhas e num laço dos cabelos (tinha sido presa ao sair de um baile na embaixada inglesa), envolta numa capa alvadia roçagante. «Assim tinha sido presa um mês antes. Nunca lhe tinham consentido que mudasse a camisa nem o lenço do pescoço. «Receberam-na três algozes no tôpo da escada, e mandaram-na fazer um giro no cadafalso para ser bem vista e reconhecida. «Depois, mostraram-lhe um a um os instrumentos das execuções, e explicaram-lhe por miúdo como haviam de morrer seu marido, seus filhos e o marido de sua filha. Mostraram-lhe o masso de ferro que devia matar-lhe o marido a pancadas na arca do peito, as tesouras, as aspas em que se haviam de quebrar os ossos das pernas e dos braços ao marido e aos filhos, e explicaram-lhe como era que as rodas operavam no garrote, cuja corda lhe mostraram e o modo como ela repuxava e estrangulava ao desandar do arrocho. A marquesa então sucumbiu, chorou muito ansiada, e pediu que a matassem depressa. O algoz tirou-lhe a capa e mandou-a sentar num banco de pinho no centro do cadafalso, sôbre a capa que dobrou devagar, horrendamente devagar. Ela sentou-se. Tinha as mãos amarradas e não podia compor o vestido que caíra mal. Ergueu-se e com um movimento do pé concertou a orla da saia. O algoz pôs-lhe a mão no lenço que lhe cobria o pescoço.--_Não me descomponhas_--disse ela, e inclinou a cabeça, que lhe foi decepada pela nuca de um só golpe»[16]. Fazemos a longa transcrição do suplício da marquesa, porque, depois de Camilo ter deixado, fundida em bronze, esta escultura de soberbo horror, parecia-nos artístico sacrilégio qualquer tentativa de imitação ou de aproximação. Isto que aí fica escrito é definitivo, é inultrapassável. Ao lê-lo as carnes arrepiam-se, e aquele vento de que fala a escritura passa sôbre as nossas cabeças, pondo-nos os cabelos em pé. A carniceria continuou lenta, medonha, infindável, sob o nevoeiro sinistro e o plúmbeo céu triste e calado. Depois da marquesa de Távora, o primeiro a morrer entre suplícios foi José Maria Távora, o filho segundo dela, criança de vinte e um anos, mimoso pagem louro, cuja beleza de efebo comovia os corações mais duros. Levava o seu lindo traje preto de cortesão, e meias de sêda côr de pérola. Supremo requinte de graciosa e juvenil garridice! Quantos sonhos em flor desabrochariam sob aquela fronte de adolescente... _Front pâli sous des baisers de femme_, ...que tanta vez se iluminara com a esperança da glória ou se espiritualizara de fugaz melancolia em caprichosos e vagos devaneios de _Cherubin_. E no entanto êle, que não conhecia nem de nome a maldade ou o ódio, teve o seu corpo aspado, quebrado, esmigalhado pelos ferozes instrumentos do mais bárbaro suplício, em castigo de um crime que não sonhara em cometer. Atrás dêle morreu o irmão mais velho, o marquês Luís Bernardo, espôso daquela a quem a crónica escandalosa do tempo atribuía a cumplicidade num adultério régio. Depois o conde de Atouguia, seu cunhado, e os três réus vilões, que apareceram, descalços, em mangas de camisa, e que até ali, na promiscuidade do sangue e do suplício tiveram, como insígnia que os separasse dos seus fidalgos companheiros, aquele ignóbil desalinho que parecia roubar-lhe à morte a dignidade... Depois de um intervalo em que os carrascos descansaram, seguiu-se o suplício do marquês de Távora Francisco de Assis, o velho general encanecido no serviço público, e do duque de Aveiro, talvez de todos o único culpado, e por fim o de António Álvares Ferreira, o sacrílego executor do crime, pelo qual todos morriam, o que dera na sagrada pessoa de el-rei nosso senhor,--à hora em que êle regressava ao paço da Ajuda depois de uma nocturna excursão de galhofeiro o amoroso Júpiter--o tiro que lhe havia rasgado a preciosa carne do seu braço. Durou dez horas o nefando espectáculo a que uma turba enorme, mosqueada de medonhas caras negras de olhos fuzilantes, assistia com mórbida, perversa e brutal curiosidade. * * * * * Estremece-nos a alma de piedade e de pavor ao relembrar que há século e meio apenas era, não direi sómente permitido, mas, o que é mais, sancionado pela jurisprudência humana tamanho acervo de inolvidáveis horrores. E isto não só neste canto da península, neste limite extremo da Europa, afastado então de todo o convívio scientífico com o resto do mundo, mas ainda na própria França, onde pela mesma época, pouco mais ou menos, a canivetada de Damiens--um doido!--em Luís XV era castigada por um suplício muito mais atroz, se em tal inferno pode haver gradações, e pelo menos muito mais fecundo em requintadas invenções de horror, porque nas feridas abertas a tenazes rubras, até chumbo derretido lhe deitaram, esquartejando-lhe depois o miserável corpo atado a quatro cavalos robustos incessantemente chicoteados pelos algozes praguejantes[17]. ¿E sabem quem ali, naquela cidade onde reinava o idílio _pompadour_ e as graças pastoris de Watteau e de Bernis assistia ao medonho espectáculo canibalesco? Era, nas janelas da praça de Gréve, alugadas por alto preço, tôda a nobreza e tôda a alta finança. Era _la cour et la vile_ em pêso, que viera, com a ferocidade que tanto aproxima as civilizações apodrecidas da barbarie extrema, saciar-se perversamente daquela tortura e daquele horror!... Nesse ponto, Portugal _menos civilizado_, deixara à ignóbil turba-multa das praças e das vielas o privilégio de tão doce vista! A França não! Eram as suas marquesas de altos penteados voluptuosos, de riso cristalino, o riso que ecoava pelos salões esplêndidos de Versailles, que iam ali cevar-se de sensações violentas e de frémitos de agonia! Eram as suas financeiras opulentas, as suas actrizes afamadas, a _élite_ intelectual daquele mundo falso e garrido, que aplaudia a tragédia repugnante e atrocíssima, achando já sem sabor para o seu gôsto embotada a inspiração soberba do Cid ou as ardentes objurgações de Hermione e de Fedra... * * * * * Os adversários do marquês de Pombal atribuem _exclusivamente_ ao ministro de D. José a culpa desta execução, que fêz naquele tempo estremecer de horror a Europa, sobretudo porque eram da mais alta fidalguia os executados; mas o historiador imparcial terá de reconhecer que, embora a índole naturalmente dura do marquês não recebesse do trágico acontecimento a impressão que ela devia inspirar-lhe, embora lhe houvesse sido possível obstar à morte cruel de alguns dos padecentes, a verdade é que a responsabilidade do espantoso caso cabe tanto ao ministro e ao rei, que não perdoaram, como aos juízes abominávelmente subservientes que subscreveram a sentença e julgaram o processo, como ao tempo, aos costumes relaxados e crueis simultâneamente, à completa incapacidade que ainda então havia em todos os povos, de dar à _vida humana_, à _dor humana_ a suprema importância que nós hoje, bem mais felizes, aprendemos a dar-lhe. ¿Tão duro como era Pombal, tão inflexível e enérgico de vontade como êle, podia um ministro de hoje mesmo ao abrigo da lei escrita, permitir tais crimes? Não deminuiu talvez a sôma de bem e de mal arbitráriamente dividido pela humanidade, mas deminuiu de um modo extraordinário a possibilidade em que ela está de expandir à vontade os seus instintos crueis. Se, como diz Spenser, o progresso se faz muito mais sentir na inteligência que na moral, em todo o caso a inteligência domina bastante o homem social para amordaçar permanentemente nêle a fera primitiva. Se não lucra o princípio abstracto da moral, lucra certamente e muitíssimo a civilização, a vida do homem, a segurança dos indivíduos, a ordem das sociedades[18]. Quem, pois, tentar arrancar ao livro do passado uma das suas páginas e convertê-la em história, não poderá fazer juízos absolutos, nem sujeitar a um critério que não seja relativo os acontecimentos e os homens que descrever e julgar. O tempo estabelece entre os mesmos factos passados em momentos diversos as diferenças mais profundas. O crime de hoje pode ter sido a razão de Estado de hontem. A crueldade implacável de um homem do antigo regímen não tem a significação e o valor que as nossas actuais ideas lhe dão. O passado está cheio de factos que para nós são crimes e que foram nêle heroicidades. ¿Que lista enormíssima de algozes, desde Torquemada, não conta a inquisição, e no entanto foram criminosos todos êsses homens que obedeceram ou julgaram obedecer a uma lei de salvação pública e de política suprema? Quantas execuções sumárias, quantas crueldades inauditas e atrozes não ordenaram Gama, Albuquerque, Pacheco e Pizarro, os nossos heróis peninsulares! ¿E mereciam êsses homens sentar-se então no banco de ignomínia em que hoje se punem crimes tais? Deve notar-se, entre parêntesis, que sendo a fraqueza de vontade um dos característicos da alma portuguesa, os homens que entre nós mais destacam, é pela dureza de aço do seu querer que se distinguem! Exemplos: o infante D. Henrique, que deixou morrer o irmão em Fêz, mas não cedeu um ápice do que entendia necessário à grandeza da pátria que ilustrou; todos os capitães _terríveis_ que acabamos de citar, e cuja vida está cheia de actos de uma suprema e implacável fôrça; finalmente Pombal, em quem a _vontade_ é positivamente a faculdade predominante. De resto não se pode ser político, isto é, exercer esta imoral sciência, que nenhum esfôrço de coração, nenhuma alta aspiração espiritualista conseguirá tornar nobre e bela, senão escravizando sob a pressão de uma energia brônzea as fraquezas que nos circundam! Foi sempre êste o sistema dos grandes políticos. Luís XI foi um dos príncipes a quem a França mais deveu. Aniquilou o feudalismo, destruiu o poder dos grandes vassalos, cuja indisciplina selvagem se opunha à centralização e à grandeza da pátria francesa! Quantos crimes na vida de Luís XI, que a posteridade se não atreveu a julgar com demasiado rigor, vendo que êle obedecia a uma razão poderosa do bem pátrio e de salvação civilizadora, vendo sobretudo que se êle matou, perseguiu e rebaixou os poderosos, levantou os humildes, e protegeu contra a tirania dos grandes o seu _pobre povo_ oprimido! D. João II fêz julgar tambêm--com que irrisório julgamento!--o duque de Bragança, e apunhalou o duque de Vizeu, e no entanto Portugal considera-o um grande rei, e Izabel a Católica chamava-lhe o _homem_, achando nêle, por excelência, o tipo da energia e da prudência régia. Tôdas as execuções de Richelieu foram feitas, como as de Pombal, ao abrigo da jurisprudência do seu tempo. Chalais, Marillac, Montmorency, Bouteville, todos responderam perante tribunais criados para o caso, de comissões e juntas nomeadas à maneira do tribunal da inconfidência, e todos foram implacávelmente sacrificados à política monárquica e centralizadora do ministro. Anular o terrível efeito da dispersão de fôrças políticas do país, robustecer a monarquia, destruindo a nobreza, poder intermediário entre ela e o povo, e que a neutraliza muitas vezes, preparar _inconscientemente_, pelo advento e a exaltação da classe média, a democracia de hoje--e é esta a obra que durou, de tantas empreendidas pelo marquês de Pombal--tal foi a sua missão, superior nalguns pontos à sua própria vontade, da qual êle nem sempre teve a consciência definida e clara. Richelieu tambêm teve um único fim: criar a monarquia una, poderosa, que depois foi a de Luís XIV. Tambêm êle--¿e quem lh’o havia de vaticinar que o não indignasse furiosamente?--foi um predecessor terrível do terrível Robespierre, um preparador inconsciente da revolução burguesa de 89, e nesse ponto as ideas dos dois ministros e o resultado final da sua obra parecem-se imensamente. No entanto Richelieu e Pombal morreram sem remorsos do que haviam feito, julgando ter obedecido à divisa que era de ambos: _Salus populi suprema lex est_. Esta mesma doutrina atroz, mas como nenhuma eficaz, salvou a França, pelo _terror_, da invasão estrangeira, da desmembração e da ruína. ¿Quem pode aplaudir os medonhos crimes do _terror_? ¿E quem não sabe que o povo francês lhe deveu a salvação? A linha recta, a inflexibilidade terrível, a implacável resolução são os predicados e tambêm os defeitos dêsses políticos sombrios, dêsses sinistros estadistas--para quem o fim justifica todos os meios--e o indivíduo em si não passa de um zero, e só tem importância a sociedade, exactamente como para a implacável natureza só tem valor a espécie. Não nos espanta por isso, conquanto nos encha o coração de lágrimas, essa execução dos fidalgos, que está na lógica da férrea política pombalina. Mais nos repugnam--porque não tiveram a mínima influência política,--as longas clausuras, as lentas dores inflingidas friamente em dezoito longos anos de prisão a tantos inocentes! O marquês de Alorna foi um dêles e em Chelas a espôsa e as duas pequeninas filhas, agradeciam a Deus, de mãos postas, diante do altar onde a extrema piedade ortodoxa de uma, e o poético instinto religioso das outras as prostravam, a graça infinita que Deus lhes fazia, em conservar ao menos com vida, embora no desamparo e no frio, e na privação de tudo, embora nas masmorras da Junqueira, aquele querido ausente, que podia, tão bem como os outros, ter expirado em tratos no cadafalso de Belêm. É a sombra tenebrosa e gigantesca dêsse cadafalso, em cuja história, por isso mesmo, nos demorámos tanto, que vai enublar a mocidade, que vai exaltar intensamente a viva imaginação de Leonor de Almeida, a heroína dêste livro. NOTAS DE RODAPÉS: [1] _Memórias históricas e genealógicas dos grandes de Portugal_, por D. António Caetano de Sousa. Nestas memórias se encontra a genealogia da família de Távora, de Assumar, etc. [2] Estas praças que fazem parte das _Novas Conquistas_, ainda hoje pertencem à corôa portuguesa. Alorna fica na província de Pangim. Está edificada a fortaleza sôbre o rio Mhaporá, que ali toma o nome Alorna. Terá hoje 1:668 habitantes, 308 fogos e 63 praças de guarnição. [3] Como especime do estilo do tempo e do abismo ou antes tremedal imundo em que caíra a poesia na pátria de Sá de Miranda, de Ferreira e de Camões, aí vão os versos que caracterizam uma época: Vai, oh formosa heroína, Do mar essas ondas sulca, Que, se é Vénus na beleza Vénus nasceu das espumas, Se és Divindade, não temas Da salgada água a fúria, Que até impera nos mares Immortal a formosura. Vai ser de Thetis inveja, Ser de Neptuno ventura, Das sereias lindo encanto. Das nymphas formosas injúria. Os tritões e as Napeias Sendo alegres testemunhas, A nau--carroça; tu--Deusa, Passeia as ondas ceruleas. Vai que é pequeno hemisfério, Um só mundo às luzes tuas, E quem em um só não cabe Justamente o outro busca. São do sol os diamantes Produção brilhante e sua; Se produz lá um sol tantos Três que farão? Conjectura. Vai examinar o oriente De onde sai a luz mais pura, Verás do teu nascimento Belo esplendor, cópia justa. * * * * * Vai! conheça o mundo todo, Mais alto poder divulga, Que o sexo que em ti domina, O sangue que em ti circula. (C. CASTELO BRANCO, _Noites de insónia_). [4] _Anual Índico Lusitano_ dos sucessos mais memoráveis e das acções particulares do primeiro ano do Felicíssimo govêrno do il.ᵐᵒ e ex.ᵐᵒ sr. Francisco de Assis de Távora, marquês de Távora. [5] Camilo Castelo Branco. [6] _Testamento político de D. Luis da Cunha._ [7] Costigan, _Sketches of society and manners_. [8] A capela real metropolitana e depois a patriarcal, podendo celebrar festas com pompa igual à do Vaticano. Os beneficiados poderem usar meias de uma certa côr. Uma colegiada na capela real com seis dignidades, dezoito cónegos e doze beneficiados. Requerimento de Alexandre Gusmão a el-rei D. João V. Inéditos. Os padres poderem rezar três missas em dias de finados. [9] El-rei D. João V conseguiu elevar à categoria de santos da côrte do céu Luís Gonzaga, Estanislau Kotska, João Francisco Regus Vicente de Paula, Camilo Lellis. [10] Tableau de Lisbonne. O cavaleiro de Oliveira. Camilo Castelo Branco. [11] Macaulay, _Essays_. [12] No seu _Testamento político_ D. Luís da Cunha aconselha a D. José que chame para seu ministro a Sebastião José de Carvalho. [13] Comte, _Cours de philosophie positive_. [14] Comte, _Cours de philosophie positive_. [15] Chegou esta, para comer um duro pão regado com lágrimas, a ser criada das freiras e andar descalça, vestida de chita, como a última das mendigas. [16] Camilo Castelo Branco. [17] Michel Chevalier, _Le marquis de Pombal_, _Revue des deux mondes_. [18] Escrevendo há mais de treze anos estas palavras, mal sonhávamos que havíamos de publicá-las num tempo em que elas já não teem exacta aplicação. Nós somos os desgraçados contemporâneos dos horrores da _grande guerra_, dos crimes inauditos da Rússia e da Alemanha, e que de longe vimos o morticínio horrendo de que foram vítimas inocentes as filhas e o filho do Czar, e o assassínio atroz dos Pais, os que chegámos à velhice saciada de horror, vendo a humanidade peor do que nunca foi, vendo a civilização a tão falada _civilização_ num retrocesso tenebroso que nos apavora e nos assombra. Tudo que afirmamos com tamanha fé, nos parece falso, ilusório, mentido. O _sentimento do horror_ há tanto desconhecido tornou-se a apossar dos nossos cérebros e dos nossos corações. Um pavor medonho oprime hoje as almas. _Pensar_ é descer ao mais negro e profundo dos abismos! CAPÍTULO II Leonor em Chelas.--Antiguidade e origem dêste convento.--Vida conventual.--As cartas do marquês de Alorna a sua mulher.--Não são escritas com sangue.--Correspondência entre Leonor e o pai.--O incidente entre Leonor e o arcebispo de Lacedemónia.--Versão correcta e autêntica dêste incidente que anda desfigurado nas biografias de Leonor.--Estudos.--Leitura dos filósofos franceses.--Lutas de Leonor com o pai, a mãe, a condessa do Vimieiro.--O esquecimento do passado e do presente procurado no estudo.--Confiança que Leonor tem no pai.--Festas de Chelas.--Outeiros.--Representação de Atália.--Intermédios jocosos.--Coragem e alegria de Leonor através de todo o seu infortúnio.--O problema religioso.--Ilusões simpáticas do espírito de Leonor.--O marquês de Alorna condena Voltaire a ser queimado.--Admirável resposta de Leonor.--Discussões acesas de Leonor com os confessores do convento.--Lutas de consciência.--Antagonismo entre Leonor e o seu meio.--Fantásticos projectos de salvar seus pais.--Cartas a Luís XV e a Voltaire.--Mau francês e óptimos sentimentos.--Controvérsias literárias e poéticas entre o marquês de Alorna e Leonor.--Bom senso e bom gôsto do marquês.--O que Leonor diz a respeito do amor.--A Zamparini e várias anedotas da côrte.--O marquês de Gouveia e Maria de Almeida.--Entusiasmo com que Leonor antevê a factura existência dos seus no campo.--Influência de Rousseau.--Dois projectos de casamento para Leonor.--Retrato de um fidalgo ignorante.--Versos de Chelas.--Os sonhos de Leonor.--O príncipe azul.--Morte do rei que vem libertar a família de Alorna. Como no anterior capítulo foi dito, a 14 de Dezembro de 1758 entravam a marquesa de Alorna e suas filhas Leonor e Maria, no convento de Chelas. Fica, como se sabe, nos subúrbios de Lisboa êste mosteiro, ao qual frei Luís de Sousa consagra longos períodos de que citaremos os que seguem: «Junto à cidade de Lisboa, ao norte dela, em distância de quási uma légua, há um vale por cópia de quintas e frescura de hortas e pomares assás deleitoso, que chamam Vale de Chelas. Havia nêle pelos anos em que vamos, de 1223, uma igreja tão antiga na primeira fundação que, sem haver quem disso duvidasse, se referia ao tempo em que a primitiva igreja florescia com favores do céu e perseguições da terra, porque sendo regada com rios de sangue de infinitos mártires, que cada hora padeciam, tomava fôrças do mesmo ferro e fogo com que era perseguida, e ia crescendo e pulando, e tomando posse do mundo. Assim é cousa certa que deram ocasião a se fundar esta igreja os gloriosos mártires S. Felix e Santo Adriano, porque padecendo ambos em tempo de Diocleciano imperador, animosa e santamente pela fé, Felix em Gerona de Catalunha, aonde veio buscar o martírio, fugindo da cidade Scilitana em que nascera, e da de Cesária em África, onde seus pais o criavam no estudo, e Adriano sendo martirisado em Nicomédia de Bithinia, por varios casos, e em tempos diferentes, vieram as santas relíquias de ambos, com muitas de outros companheiros do martírio aportar neste vale, e no lugar da igreja onde naquele tempo chegava o mar, que agora lhe fica longe quási meia légua. Foram os mártires conhecidos pela relação de quem os acompanhava, mas logo reconhecidos e reverenciados por meio de esclarecidos milagres que obraram. «Edificou-lhes igreja a devoção de Lisboa, e foram honrados nela debaixo do nome de S. Felix, ou porque padeceu em terras de Espanha, ou porque foi o primeiro em chegar ao vale; e em testemunho da grande antiguidade ficou com o nome quási trocado no povo, chamando-se S. Pero Fins de Achelas. «Na entrada dos mouros, que depois sucedeu, de crer é que o mêdo e a confusão que por castigo do céu oprimia os ânimos, usaria do remédio mais fácil para salvar as santas relíquias, que era enterrá-las no mesmo lugar e encomendá-las aos mesmos santos»[19]. * * * * * «Lançados os mouros de Lisboa pelo braço e valor de el-rei D. Afonso Henriques, purificadas as igrejas que haviam em pé, e reedificadas pouco a pouco as que estavam em ruína, foi povoada esta de frades, o que se vê das provisões e outros instrumentos autênticos do cartório dela, que particularmente vimos, notámos e cotámos»[20]. Parece que os mouros reconquistando Lisboa aos leonenses expulsaram de Chelas seus habitantes, e converteram a igreja em mesquita, porquanto el-rei D. Afonso Henriques, tratando de purificar e restituir ao culto divino vários templos que os infieis tinham profanado, fôra um dêles o convento de Chelas, sendo celebrante o bispo de Lisboa D. João Peculiar, e assistindo o soberano à cerimónia da purificação e ao descobrimento e transladação das relíquias que estavam em duas caixas de mármore, as quais foram colocadas na capela mor, de modo que ficaram servindo de altares de S. Felix e de Santo Adrião[21]. Primeiramente foi o convento duplex, e povoado pelos cónegos regrantes de Santo Agostinho. Deixou depois de ser duplex, e só nêle ficaram religiosas; não se sabe, porêm, o ano em que isto sucedeu. O que, porêm, de tudo que acêrca dêle se escreveu pode com certeza deduzir-se, é que êste convento de Chelas é dos mais antigos e memoráveis de Lisboa. A porta principal da entrada é de um lindo gôsto manuelino. O convento vasto, mas sem nenhuma beleza de arquitectura digna de nota. O côro em 1883 ainda se podia considerar um pequeno museu[22] onde se encontravam várias obras artísticas, tais como quadros, jarras de merecimento, imagens de prata, loiças do Japão, etc. * * * * * Não se recomendavam pela austeridade da clausura nem pelo ascetismo contemplativo das monjas os conventos do século XVIII em tôda a Europa ocidental. Passara havia muito o tempo dos milagres, das visões místicas, da _loucura da cruz_. Já ninguêm se supliciava em martírios de uma pungitiva delícia, na expiação de grandes paixões terrenas, ou na esperança ardente de uma sonhada bemaventurança. Um frígido sôpro passara, esterilizante e devastador, pelas almas e pelas consciências do tempo. Leonor de Almeida não teve, pois, a sentir ali uma pressão que em parte alguma já existia nessa época. Pelo contrário; seria doce e calma a vida conventual para quem não tivesse lá dentro um desgôsto a minar-lhe a existência. Reflecte-se uma espécie de suavidade íntima, de alegria transcendente no rosto das mulheres consagradas desde a mocidade à vida do claustro ou às missões da caridade. Despindo as tumultuosas paixões e as intermitentes alegrias humanas, elas despem tambêm a faculdade de se interessarem, de se entristecerem, de vibrarem ao influxo dos sentimentos mundanos. Apagado nas almas o sombrio ascetismo mediévico, essa nevrose de que o mundo cristão sofreu tão intensamente durante séculos, ficou a doce calmaria conventual a substituí-lo. As rezas variadas, as minuciosas práticas do culto, o cultivo caprichoso das mais lindas e cheirosas flores, a produção geitosíssima de flores artificiais, de paramentos ricamente bordados, de doces em que se exibia a fantasia colectiva de cada convento, as distracções inocentes que dava a cada uma êste trabalho, para todos proveitoso, a tagarelice natural a pobres mulheres ignorantes sem responsabilidade de árduos deveres nem compreensão nítida do seu sacrifício, as visitas à grade de parentes e amigos enchiam ali o monótono giro dos dias e dos anos. O século XVIII tinha tambêm os seus _outeiros_, as suas _eleições_, as suas festas de locutórios e de igreja. Acudiam poetas às solemnidades do _abadessado_ e, desde Filinto até Bocage, quantos ali fizeram brilhar o seu engenho, glosando motes, improvisando sonetos, repetindo quadras e décimas amaneiradas e requintadas. Os filhos segundos das primeiras casas do país interrompiam então as tropelias de toureiros, as arruaças nocturnas com que se deleitavam em assustar o burguês pacífico, e vinham tambêm espreitar sob o véu que a meio lhes ocultava o rosto, os lindos olhos coriscantes, os rubros lábios risonhos, as morenas faces penugentas como pêssegos, das suas primas e parentes, as lindas noviças, as doces raparigas destinadas ao serviço de Deus, por não haver cá fora quem as quisesse sem dote, ou por não consentirem as famílias que elas deslustrassem a sua altiva prosápia em casamentos menos dignos da preclara origem do seu nome. Era um tempo estranho êste. A crença primitiva embotara-se nas almas, deixando ainda nos lábios o seu vocabulário especial, a sua tecnologia sagrada. Ninguêm se revoltava ainda abertamente contra os abusos de um regímen religioso e político que, degenerando da sua nobre origem, tinha conservado os defeitos e perdido as grandes qualidades que o haviam feito longamente viver; ninguêm se revoltava em palavras, mas as obras correspondiam ao relaxamento de tôda a disciplina, à tibieza crescente de tôda a fé. Leonor de Almeida, dentro do convento de Chelas, pôde, mercê dessa transformação completa da disciplina conventual, ler, pensar, instruir-se, formar uma concepção pessoal do mundo e da vida, sem que ninguêm ousasse intervir no fôro íntimo da sua juvenil consciência. Ninguêm, engano-me. Intervinham amiudadas vezes o pai, a mãe, a amiga mais querida de Leonor, a condessa de Vimieiro, Teresa de Melo Breyner, a quem ela, em versos e cartas, chama poéticamente e arcádicamente à moda do tempo, a sua Tirce. Mas a todos estes ela iludia com hábeis sofismas, ou contradizia com rigorosos argumentos. O mais penetrante espírito com que o seu se correspondia era o do pai, o marquês de Alorna, muito mais ilustrado, muito mais inteligente que o vulgar da sua classe e do seu meio, mas imbuído de muitos dos preconceitos de ambos. Temos felizmente à vista parte das cartas inéditas dirigidas por Leonor de Almeida ao marquês seu pai, e por elas podemos reconstruir a vida das três senhoras no convento de Chelas, modificando e corrigindo com a publicação de documentos autênticos alguns dos erros que se notam no prólogo às obras poéticas da marquesa, publicadas em seis voluno ano de 1844. Nesse prólogo, que não traz nome de autor, mas no qual se sente a inspiração da filha da marquesa de Alorna, D. Henriqueta, então dama camarista da senhora D. Maria II, se diz que o marquês de Alorna, pai de Leonor, escrevia à espôsa do seu cárcere da Junqueira, tendo por tinta o próprio sangue. Exagêro romanesco êste, que se acha desmentido no prefácio do folheto escrito pelo próprio marquês de Alorna, e publicado mais tarde pelo presbítero José de Sousa Amado, sob o título que damos em nota[23]. Citemos o período que explica e esclarece êste ponto importante da vida do prisioneiro: «Naquelas prisões, onde por tanto tempo gemeu a inocência e o merecimento, os presos eram privados de tinteiros, talvez pelo receio de se relacionarem uns com os outros, ou com suas famílias. O autor, porêm, desta memória excogitou um meio que muito bem lhe surtiu, para haver tinta; e foi lavar os pés das cadeiras que lhe deram pintadas de vermelho, com o vinagre que lhe ia ao jantar.» Foi com esta tinta, de um róseo desmaiado, que temos à vista, que o marquês escrevia à mulher e à filha. Sem serem própriamente as clássicas masmorras de séculos mais cruéis do que êste, que ainda o era tanto, os cárceres da Junqueira eram suficientemente escuros e lôbregos e infectos para que não seja necessário acrescentar à sua história tenebrosa a lenda do sangue usado como tinta pelos prisioneiros desgraçados. Em algumas das celas em que os presos viviam--como, por exemplo, na do marquês--tão débil era a claridade do dia que penetrava por uma estreita fresta, que a luz tinha de estar perpétuamente acesa para que os infelizes que ali habitavam podessem escrever ou ler ou remendar os seus miseráveis andrajos[24]. Por falta de tratamento e de curativo ali enlouqueceu o conde de S. Lourenço, ali morreram o conde de Óbidos e o conde da Ribeira. Ali sofreu inocente a mais atroz miséria D. Martinho de Mascarenhas, o filho do duque de Aveiro, conhecido entre os presos pelo _Marquesito_, e a cuja caridade engenhosa, a cuja bondosa solicitude o pai de Leonor tanto deveu na sua enclausuração. O marquês de Alorna foi, porêm, dos poucos que suportaram, em plena integridade mental e sem grandes sofrimentos físicos, êsse período tenebroso e cruel, êsse período de tormentosa perseguição que durou dezoito anos. As cartas de Leonor, e algumas do marquês, que tivemos a fortuna de ler, revelam os finos quilates dêsse carácter de fidalgo, fiel à religião em que se criara, e na qual achou confôrto e fôrça para o longo suplício; fiel à instituìção monárquica a cujos abusos devia a sua imensa desgraça e a dos seus; coerente consigo próprio, como se não pode ser nas épocas de transição, tais como aquela em que a filha vai desenvolver-se e vai viver. O marquês de Alorna viajara, vira a côrte de França no seu ainda absoluto esplendor de etiqueta e luxo; comparara as cousas lá de fora com as nossas, e percebia a fundo a abjecta decadência em que a pátria tinha caído. No prefácio das obras, já citado, vem a narração do incidente, ligeiramente cómico, havido entre Leonor e o arcebispo de Lacedemónia, mas em circunstâncias que as cartas que temos à vista contradizem. Nem o arcebispo ameaçou Leonor com as iras do marquês de Pombal, nem a condenou a dois anos de clausura ainda mais estreita do que já era a sua; nem tão pouco a gentil poetisa de Chelas lhe deu a resposta _corneliana_ de que reza o prefácio. Foi muito mais pacífica e muito menos romanesca a sua entrevista com o prelado. Ouçam-na tal qual ela a narra a seu pai, em uma das suas cartas: «Chegou meu irmão a Lisboa, bem galante e estimabilíssimo, não obstante as melhoras de minha mãe, o ar frígido e coado das grades meteu mêdo ao médico e não houve remédio de condescender com os desejos que ela tinha de o ver. Passados três dias de meu irmão estar em Lisboa fêz que, muito impaciente de ver minha mãe, obtivesse um tácito consentimento da prelada, entrasse com um barril de água, que lhe custou, mas deu tudo de barato. Jantou connosco, tivemos um dia de folga, todos juntos, e saíu meu irmão à noite, segundo o costume conventual, o qual admite aqui infinitas pessoas com qualquer pretexto. Minha mãe estava fora da cama, muito contente com o filho, e nós igualmente com o irmão, nem por sombras imaginávamos que isto seria prejudicial a coisa nenhuma. Entretanto as freiras, furiosas contra nós, davam conta aos prelados, com o aspecto mais horroroso que é possível, e no dia seguinte veio a aia da prioreza chamar-me a mim e à mana, da parte do arcebispo de Lacedemónia. A primeira coisa que me lembrou foi responder que não queria lá ir. Mas permitiu Deus que minha mãe julgasse o contrário, e fomos ambas, eu e a mana. Ao entrar na grade apresentaram-se-nos dois homens; um dêles valia por um esquadrão; era uma baleia de rebuço em um capote de baeta usada, um daqueles cónegos que pasma _à l’aspect d’une soupe_, e sem mais cumprimento com as pupilas se assentaram os nossos dois prelados. Êste gordo era o inspector, e o arcebispo, de menor volume, disse: «V. Ex.ᵃˢ podem estar a seu gôsto.» Sentámo-nos, escarrou êle, tossiu e se _rengorgeant_ na cadeira, principiou: «Sua majestade, a quem constou o atentado que hontem cometeram seu irmão e v. ex.ᵃˢ, violando a clausura, me manda repreender a v. ex.ᵃˢ ásperamente, e é servido ordenar que v. ex.ᵃˢ não tornem à grade até segunda ordem, e que andem vestidas honestamente, e que as suas criadas se reformem nestes oito dias, passados os quais, se o não fizerem, tem a prelada ordem para serem expulsas.» Eu e a mana ouvimos em silêncio, modestamente, estes quatro versos, e acabada uma grande prelenga que êle fêz sôbre as imunidades da clausura, respondi eu que o nome augusto de sua majestade bastava para que pessoas que tinham sido educadas com honra olhassem só com respeito quaisquer ordens, e que eu segurava a s. ex.ᵃ que elas seriam executadas com fidelidade e prontidão. Porêm, que o nome _atentado_ era tão horroroso, que depois de protestarmos a nossa obediente submissão, restava ainda pôr na sua verdadeira luz o pretendido _atentado_ e convertê-lo numa acção generosa, digna da piedade dos nossos legisladores, e alêm disso conforme às liberdades que eram concedidas a minha mãe. Pintei-lhe com côres bastantemente vivas um filho que despreza o trabalho mais penoso para consolar uma mãe aflita, e satisfazendo com o seu cansaço as apertadas leis da clausura. Disse-lhe que havia uma multidão de casos idênticos, e que só _dezesseis anos_ de pezares sem esperança de alívio davam motivo a que abusassem do nosso estado as nossas acusadoras... A respeito dos vestidos os nossos não foram invejados senão por limpos, e o arcebispo mesmo se riu das respostas filosóficas (_sic_) que lhe dei, e da prontidão com que me quis logo vestir de côr à sua escolha, achando-me muito honrada, que el-rei se dignasse dar ordens em uma matéria que eu muitas vezes deixava ao arbítrio do mercador... A reforma das criadas consiste em dois covados de cassa postos na cabeça. Considere v. ex.ᵃ que dificuldades e que casos fazem rodar um arcebispo de Lisboa aqui, chamar-nos, repreender-nos, e no fim dizer-nos que não necessitávamos de enfeites _porque somos muito bonitas_. Ria-se meu querido pai, e olhe para estas cousas como merecem.»[25] Esta citação dá o estilo epistolar de Leonor de Almeida, que sómente ousámos alterar na pontuação e na ortografia, pois que ambas são muito defeituosas. Viva e pronta na réplica, animosa na crise, sem covardia de género nenhum, nem moral, nem física, e usando com facilidade e graça a fraseologia peculiar do seu tempo em que a _filosofia_ intervem a propósito de tudo. Contamos por inteiro a anedota por não ser inteiramente conforme à que se conta no prefácio das obras poéticas da marquesa de Alorna, e por esta última versão ter sido inalterávelmente repetida por todos os biógrafos que se teem ocupado da nossa poetisa[26]. * * * * * Nos dezoito anos do seu cativeiro, a primeira e mais querida ocupação de Leonor de Almeida consiste no estudo e na leitura incessante de todos os livros que lhe vêm parar às mãos. Não preside a essa leitura nem método rigoroso, nem critério seguro. Em Portugal, e naquele tempo não o havia nem nos melhores espíritos. Muita vez Leonor se entusiasma por um autor que não merece êsse preito, muita vez mistura à lista de grandes mestres, em literatura ou em filosofia, um nome absolutamente medíocre; outras vezes, falando de autores mais célebres, deixa entrever que os compreende mal, ou que não os compreende de todo. Mas a sêde de saber devorante, angustiosa, intensa e viva, como uma paixão que é nela absorvente, ilude-lhe deliciosamente os longos anos, os intermináveis dias da sua estreita e monótona clausura. Leonor estuda latim e com singular aproveitamento; estuda o francês, o italiano, o inglês, o alemão; chega a estudar o árabe! Aprende e cultiva a música, canta no côro as belas melopeias sacras da liturgia católica e conventual, e na grade, no lucutório, nos serões da abadessa as cançonetas italianas com letra de Metastásio, as árias dos compositores do tempo, franceses e italianos. Por conselho do Dr. Inácio Tamagnini, seu médico e seu amigo, põe-se um belo dia a estudar lógica, declarando ao pai que «não basta a lógica natural, que isso não é mais que um caminho andado para a saber, e por melhores que sejam as disposições, se a arte nos não diz que cousa é _proposição lógica_, se nos não faz conhecer que cousa é _idea da imaginação_ ou do _entendimento_, quais são os erros que nos vêm dos sentidos e quais da autoridade, que cousa é crítica, o que são as ideas simples ou complexas, o _silogismo_, o _maior_, o _menor_, a _conclusão_, antimema, dilema, sorite, etc., nada disto revela a natureza.»[27] Portanto, ei-la que lê com afinco o professor Félice, o padre Teodoro, e Wolfio, e Verney e Port Royal, aconselhando estes autores e estes livros ao _Marquesito_ de Gouveia, companheiro de cárcere do marquês de Alorna, e que êste sonhara dar mais tarde por marido a D. Maria de Almeida, a encantadora e fina irmã de Leonor, tão letrada ou quási tão letrada como ela, e para agradar à qual não bastam a nobreza, a elegância patrícia, a formosura viril, é tambêm indispensável a _filosofia_ e a lógica! A respeito dêste novo estudo compreendido sob os conselhos do bom médico, a quem o marquês de Alorna manda agradecer da Junqueira, a vida e a educação intelectual da talentosa filha, eis como o pai lhe responde inteiramente ao corrente do assunto versado: «Parece-me muito bem o estudo da lógica, de que depende tudo quanto cabe no discurso humano, e muito particularmente a poesia e a retórica. «Desta última arte tambêm seria conveniente que visses algum tratado. «Nesta matéria bem sabes que te tenho falado há muito tempo. A lógica que algum dia te inculquei foi de Port Royal. Não conheço a de Mr. Félice, mas como nessa matéria não se pode inventar nada de novo tudo vem a dar no mesmo, com mais ou menos impertinência. É estudo algum tanto fastidioso, principalmente para os que teem mais lógica natural, mas os desta casta em pouco tempo o poderão devorar, e melhor é que não se dilatem nêle com excesso, porque nesta matéria o demorado artifício faz algum dano à boa natureza. Esta casta de lição tem um certo tempo em que consiste a sua conveniência, e da mesma forma que é muito proveitoso ter regras para se não equivocar com falsas aparências, como sucede muitas vezes aos poetas, tambêm o espírito sofístico não presta para nada.» No meio dos seus estudos mais enfadonhos, as horas de distracção são tomadas pela leitura. Pede licença ao pai para ler Rousseau[28] e Condillac, e Diderot, e Voltaire: decora Racine e Corneille, e ainda mais, Crébillon tambêm, a quem a França chamou por muito tempo o seu Sofocles! Lê Pope, lê Boileau, lê Cervantes. Tudo que lê a encanta, sem grande crítica, sem muita finura de percepção, sem um pensamento de síntese a que tanta leitura se subordine, mas devorada de curiosidade, e justificando o dito de Fontenelle de que _basta a curiosidade para alimentar a existência_. De vez em quando, as influências de que já falámos e a superstição implacável do seu meio, congregam-se numa espécie de conspiração contra essa insaciável sêde de saber, que fatalmente há de ir minando nela a integridade e a pureza da sua fé católica, a sua ingenuìdade de menina e môça, e transformando-a numa criatura em absoluta desproporção, em mal disfarçado antagonismo com a sociedade hipócrita e beata, ignorantíssima e formalista, até ao fanatismo e à demência, em que ela pelo seu nascimento e posição será chamada mais tarde a viver. Então, da alma fogosa e irrequieta de Leonor saem palavras quentes de viva eloqùência, defendendo o acesso dêsse _mundo interior_ cujas visões a distraem, cujas maravilhas a enlevam, cujos prazeres puramente espirituais a trazem absorta e esquecida da vida rial tão pungente e tão lúgubremente solitária!... Não, isso é que ela não consente que lhe roubem, essa vida fictícia que ela edificou com os seu livros, com os seus poetas, com os amigos dilectos da sua inteligência ávida e curiosa! Nem os pedidos assustados da querida mãe, que ela envolve em carícias, em cuidados, em requintes de filial meiguice; nem os conselhos prudentes dêsse pai, a quem a sua alma se confessa com tão inefável e incansável ternura de todos os instantes, com quem o seu espírito tanto se compraz em conversar livremente, nem as cartas e as súplicas da amiga, entre tôdas preferida, a demovem do seu plano. E êste plano é bem próprio dêsse século literário que tanto viveu pelo espírito, e que embora em Portugal não irradiasse os esplendores intelectuais que teve lá fora, ainda assim nos deu aqui alguns representantes típicos da ânsia de saber, de prescrutar, de sondar, de conhecer que é como que o seu cunho inconfundível e profundo. Consiste em estudar sempre, em estudar tudo, em fugir, pelos interesses vivos da inteligência, às ansiedades extenuantes da vida quotidiana, em esquecer o presente rial e concreto, pelas distracções violentas, que a uma imaginação tão irrequieta e tão ardente oferecia o mundo infinito da erudição, da poesia e da arte! E depois é necessario não esquecer que Leonor de Almeida tinha no passado um fantasma sanguinolento e trágico: o cadafalso de Belêm! Tinha no presente um pesadelo lúgubre a entenebrecer-lhe a existência, sempre que por um momento a abandonava a seu estranho sonambulismo de erudita e de poetisa: o cárcere em que o pai ia consumindo hora a hora a sua virilidade florente e bela! Tinha permanentemente a pairar como nuvem lúgubre e prenhe de tempestades essa incerteza do seu destino, êsse pavor do desconhecido, que o capricho e a tirania de um homem omnipotente podia transformar em eterna clausura rigorosa e inquebrantável[29]. Por isso, segundo mil vezes o repete, o estudo é a disciplina que ela impôs ao espírito para o furtar ao desespêro, é o seu _alibi_ artificialmente inventado, com que ela se furta às visões tenebrosas que lhe enchem de angústia a mocidade. Muito orgulhosa, muito _viva_, muito rica de energia e de fôrça espontânea, tendo uma destas organizações fadadas para o movimento, para a luta, para o desdobramento magnífico de maravilhosas faculdades complexas, ela sente quanto lhe é fácil sucumbir, logo que, defrontando com o seu próprio destino, o contemple face a face, na trágica realidade que o reveste. E por isso foge de si própria, e por isso pede ao pai com eloqùência sentida, que a deixe estudar, ler, trabalhar, para não sofrer muito, para não cair vencida a meio do seu caminho áspero e duro! «Minha mãe diz que sempre que abre os livros que v. ex.ᵃ sabe que eu tenho, lhes encontra uma blasfémia. É certo que o seu modo de falar (_sic_) que é inteiramente diverso da excessiva devoção de minha mãe pode produzir êste efeito. Emfim, eu que me limito sempre ao que v. ex.ᵃˢ podem querer, procuro modelar o horror desta melancólica inacção com a lição que me é permitida. Leio tôdas as manhãs Bourdaloue ou Fénélon, e depois disto história, poemas, lógica, metafísica. São as matérias de que gosto e creio que me são permitidos os livros em que me instruo, porque nenhum dêles deixa de ser nomeado por v. ex.ᵃ. «A história natural faz as minhas delícias, e se v. ex.ᵃ me privar disto, seguro que me priva daquilo que mais me recreia. Concluindo, estou pronta para queimar mr. Buffon e todos os que me vierem à mão dessa espécie.» O pai que é, como já dissemos, um homem de sólido bom senso, que tem a prudência dos pais, aguçada pela inteligência do meio em que a filha terá de viver, não desanima e continua a aconselhar!... Uma vez, por exemplo, escreve-lhe depois de lhe falar largamente de um refutador de Voltaire, e a respeito das obras dêste: «...Nisto é que me fundo, segundo o que alcança o meu entendimento, para pretender que tu não leias muitas obras de Voltaire. A maior parte são dignas de fogo, assim como o teem sido das censuras da Igreja, e por êsse motivo até as que não teem embaraço devem ser lidas com cautela. Êste autor é tido justamente pelo mais prejudicial que tem havido há muito tempo, por ser católico, e depois disto não tanto pela sua sabedoria como pela sua grande arte de falar. Com efeito não será fácil encontrar-se outra maior, mas ao mesmo tempo nem sei que houvesse nunca mais mal empregada, porque uma grande parte das suas obras, bem se pode dizer afoitamente que compreendem quanto há de pior na escola do deismo, do materialismo, do desafôro e da mais _alta patifaria_. Fala em diferentes lugares como nunca falou um infiel nem hereje contra a igreja romana. Procura sempre com o maior cuidado ocultar ou destruir quanto nela houver de edificativo, e exagera quanto pode o que se lhe tem visto de débil e humano. Essas coisas que a todos devem fazer horror, são muito nocivas aos juizos novos, vivos e femininos, e sem embargo de destituídas de provas, e às vezes opostas às mais leves luzes naturais, são ditas com expressões tão engenhosas que o demónio depara, e proferidas de um modo tão deliberado que fazem muitas vezes grande impressão, principalmente em quem for mais sensível à fôrça do consoante. Mas não é só Voltaire o autor pernicioso de quem tu deves ter cuidado de fugir; há outros, tambem modernos, de que te deves igualmente precatar, e contra os quais a lição de Bourdaloue e de Fénélon não é certamente preservativo bastante. «O teu entendimento, tambêm podes ter a certeza que não basta, porque não houve até agora nenhum que fôsse livre de tentação e de ilusão; mas alêm disto a minha conta tambêm se funda em que muito maior será o proveito literário que vocês tirem dos livros que lhe não podem preverter o coração e o juizo, do que dêsses que, por conta da moda e de um apetite cego, se arriscam a resultar-lhe grande dano. No que toca a história natural ninguêm no mundo com razão a pode condenar. É das lições mais indiferentes que pode haver, mas sôbre a de mr. Buffon, e só no que respeita a anatomia, me parece que não convêm a uma pessoa do teu estado pela liberdade filosófica que tomou, etc.»[30] Ao que Leonor, já se vê, se submete na aparência. Logo, porêm, que o conflito se declara abertamente, ela ilude a vontade dos que a cercam ou lhe resiste com pertinácia invencível, embora envolta nas formas do mais cerimonioso respeito, da mais formal submissão. É que rialmente sem êsse forte derivativo do estudo, que é nela uma idea fixa, seria incomportável o seu destino[31]. «Em vinte e dois anos que já conto não se acha paciência nem filosofia bastante para sofrer inalterávelmente tanto dano sem a esperança do futuro.»[32] «Estes dias (o dia dos anos da mãe) em que se renovam as memoráveis ideas que temos do passado, parece-me que trazem consigo um pêso formidável.» E esta idea de distrair-se violentamente para esquecer, aparece mil vezes sob diversas formas, mas sempre expressa com sinceridade espontânea. O seu temperamento, diz ela, é muito melancólico. «Quando estou divertida não sinto nada; quando rezo, e sou tão miserável que me não diverte isso nada, sofro infinitamente.» --«O que me custa é considerar a nossa infelicidade. É ver preso, oprimido, pobre e tão distante a v. ex.ᵃ, é ver como se desbaratam tôdas as ideas de felicidade que minha mãe formou, e a impossibilidade que desgraçadamente tenho para poder desempenhar os meus desejos a benefício de meus pais. _Estas são as causas das montanhas que tenho sôbre o peito, e dos meus desfalecimentos._»[33] É contra esta tristeza medonha que a sua impressionável e ardente imaginação reage com insólita vivacidade. E sem afectação nem fingimento, assim como descreve ao pai as torturas que a pungem longe dêle, tambêm lhe narra as distracções com que ilude ou anestesia o seu sofrer. Nas noites de inverno reùnem-se no quarto de uma. Cantam, dansam, dizem versos, falam em literatura, recitam poesias italianas. Outras vezes há no convento exames dos respectivos estudos que teem versado. Leonor, mais erudita e sisuda, dá conta dos primeiros oito séculos da história eclesiástica. (!) Maria, aquela doce e poética Maria que Filinto Elísio crismara em Daphne, como crismara Leonor em Alcipe, é examinada em poesia e em música! Na eleição da abadessa acodem aos outeiros de Chelas, já celebrado por ter enclausuradas as duas lindas, discretas e infelizes filhas do marquês de Alorna, os poetas do tempo, os fidalgos tafuis parentes de ambas, os belos espíritos curiosos daquela estéril quadra literária, Garção, Filinto, etc. E Leonor, alegre e vivaz, atira-lhe da janela para o pátio, em que se êles atropelam curiosos e ávidos de vê-las, os motes alambicados, os conceitos _preciosos_, ao estilo do tempo. --Alcipe, venha mote!--clamam de baixo os vates freiráticos. E _Alcipe_, e a irmã _Daphne_ e a companheira _Amaryllis_ (!) respondem infatigáveis, e as décimas chovem, entrelaçam-se os _acrósticos_, e o soneto desdobra-se monótono e falsamente majestoso, com o seu remate, que pretende ser conceituoso e que é banal, como tôda essa poesia dos outeiros e saraus poéticos do nosso século XVIII, tão vazio de pensamento e tão pobre de forma. Um dos encantos com que Alcipe deslumbra o seu auditório consiste na memória prodigiosa que ela possue e que manifesta, repetindo a décima galanteadora ou o alambicado soneto, mal o seu autor acaba de improvisá-lo. Há uma vibração de intensa alegria na descrição incorrecta, desordenada, sem relêvo plástico, mas cheia de vida, que Leonor faz ao pai dêsses dias de agitação, de festa, de comoção literária. Vê-se que ela foi feita para brilhar, para gozar acremente e violentamente da vida,--não da vida feita pelos obscuros e ásperos deveres quotidianos, que dessa triunfam sómente os temperamentos contrários ao de Leonor de Almeida: os que aceitam as tarefas monótonas com resignação inquebrantável e o pêso do destino adverso com passiva tranqùilidade, os que sabem enfastiar-se com coragem e aborrecer-se com fleugma heróica;--mas da outra, da mais brilhante, que se compõe de dias felizes e noites vitoriosas, da que embriaga o espírito, da que excita perigosamente os sentidos, da que exalta em agudos espasmos a imaginação e a fantasia... Leonor não tem, infelizmente para ela, os salões esplêndidos de uma côrte artística e literária como aqueles em que brilharam Vitória Colona ou Margarida de Navarra, madame de Lafayete ou a marquesa de Sévigné... Não tem um centro de polida e graciosa conversação em que se toquem ao de leve, polvilhando-os de oiro, os assuntos mais fúteis e os mais áridos, os mais técnicos e os mais gerais, como aquele que, no seu tempo, em Paris se substituía à própria côrte de Versailles, e acabava por ofuscá-la absolutamente, aquele em que a parisiense, sua contemporânea, se vingava com brilho incomparável da longa obscuridade a que a mulher fôra condenada, no qual ela surgia envolvida nos mais subtis encantos da inteligência, e nas mais deslumbradoras pompas da beleza e da elegância, rainha voluptuosa de um mundo que a arte iluminava com a sua luz azul, que a literatura impregnava do seu capitoso encanto, e onde até a filosofia se fazia ligeira, acessível e risonha para que ela a assimilasse, a propagasse, a compreendesse e lhe rendesse culto.[34] E emquanto lá fora a apoteose da mulher se celebra magnificamente, ostentosamente, no meio do requintado luxo de uma época de sensualismo espiritualizado--é muito obscuramente, no ridículo outeiro de um convento do extremo da península, que esta criatura, feita para brilhar na mais ampla e mais elevada esfera, se deleita em mostrar o seu inquieto espírito, borboleta embriagada pelo néctar de uma falsa poesia. ¿Mas que importa o scenário, se ela o transfigurara com a sua imaginação de chama? ¿Se ela o enfeita com tôdas as pompas de seu espírito de sonhadora? ¿Se ela consegue ali conhecer o intenso gôzo de ser admirada, de todos o mais forte, o mais entontecedor para certos organismos de excepção? Numa das oito noites consagradas à _festa da eleição_ Leonor representa com Maria de Almeida, sua irmã, algumas scenas da tragédia de Racine _Atália_. Atália é Maria de Almeida. Eis como ela a descreve: --«A mana ficou linda. Estava de donaire[35] com um vestido de uma espécie de velilho que se usa agora (porque a pragmática vai-se profanando fortemente), com o fundo côr de rosa e prata, com listas negras para fazer a rainha viúva, um véu do tal velilho branco e prata, penteadas de plumas côr de rosa e negras. «Eu ia vestida de um velilho azul claro e prata, com listas azul ferrete, que é a côr que me fica melhor. O meu vestido foi copiado de uma estampa do sumo sacerdote, e tinha barbas que me chegavam à cintura.»[36] Depois desta grave tragédia racineana, houve ainda um intermédio jocoso em que Leonor reaparece vestida de _frialeira_[37], com gibão côr de rosa e prata, mantéu verde e saia arregaçada, côr de rosa, branca, côr de fogo e prata[38]. No baile que se seguiu à representação, tôdas as noviças de Chelas queriam dansar com as duas irmãs. É que elas são de-veras lindas e deliciosas de espírito, graça, gentileza e veia cómica. Leonor com o seu belo rosto altivo, de uma correcção que não exclue o mimo, a bôca finamente e espirituosamente recortada numa linha rubra e sinuosa, o cabelo opulentíssimo que se levanta nos voluptuosos penteados do tempo, ou que se espraia em ondas pelas espáduas esculturais, inspirando à irmã versos entusiastas[39]; Maria, mais pálida, mais melancólica, de olhar estranho e doce, e cuja voz celebrada por Filinto[40] é a delícia dos serões de Chelas, como será mais tarde a delícia dos saraus aristocráticos de Lisboa, onde ela aparecerá envolta no misterioso véu de etérea graça com que se cobrem aquelas que a morte tem de colher em flor!... * * * * * No dia dos anos do pai, mesmo preso e distante como está, da mãe doente e triste, ou de qualquer das duas irmãs, há festa em Chelas para obedecer ao tradicional costume antigo, cuja memória não deve quebrar-se. A iniciativa engenhosa de Leonor é que faz tudo. De dia vai ela para a cozinha, arregaça as mangas, põe a nú os seus braços de deusa de uma plástica impecável e de uma brancura lirial, e rola as finas massas, e bate as alvas espumas, e manipula os saborosos cozinhados e faz ela própria o jantar com a elegante majestade com que lavavam roupa as princesas de Homero. Depois, findos os trabalhos grosseiros do dia, vestem ambas belos vestidos de setim côr de laranja ou côr de rosa que elas próprias cortaram e fizeram, de que inventaram ou executaram os bordados ou as rendas, e convidando alguma amiga preferida, ou mesmo descendo ao locutório e recebendo algum amigo dilecto, partilham com êles do seu pequenino banquete. Á noite dansam, cantam, tocam, riem até que o uso conventual as obrigue ao sossêgo da noite. Quanta vitalidade, que poderoso optimismo bebido nas suas belas e pacificadoras leituras, as filhas de Alorna não manifestam nesta reacção contra a injusta fortuna e o bárbaro destino! Não são lânguidas heroínas de um romantismo bastardo, são duas organizações perfeitas, de pronta e viva sensibilidade, tão acessíveis à dor como ao prazer, tão capazes de sofrerem com violência como de gozarem com arrebatamento. No meio da sua miséria, das suas iniqùidades, da tirania negra que pesava sôbre as almas e sôbre os corpos, da superstição que nublava os horizontes, era optimista e forte o século XVIII; e os seus filhos não teriam obrado tão altas maravilhas, se a vontade fôsse nêles amolecida e doente como nos seus descendentes miseráveis! A _sensiblerie_ começava, é certo, a ser moda em França, e a formular-se em livros, em tratados filosóficos, em tiradas trágicas, em quadros simbólicos, etc., etc. Mas a emotividade vibrante, estranha doença moderna, que nos faz tão fracos, tão susceptíveis, de um melindre tão mórbido ante as próprias dores e as alheias, não existia ainda. Foi o produto de uma lenta evolução que então começava. Os defeitos grandíssimos e as grandíssimas qualidades de que o passado se reveste aos nossos olhos, vem justamente dessa ausência quási absoluta de sentimentalismo e de ternura. É isto que o faz ao mesmo tempo duro como o granito e resistente e forte como êle. Despreza a vida humana, é verdade; mas não se enternece diante das suas próprias dores, o que é um grande bem e quási que uma virtude. Ás grades de Chelas acodem os amigos mais queridos da família de Alorna. Garção é um dêles[41], e Filinto Elísio é outro. Nas obras do erudito escritor e nas da futura Marquesa de Alorna encontram-se as poesias que entre si trocavam os dois. Uma vez doente, e julgando-se perto da morte, Leonor consagra a Francisco Manuel do Nascimento um soneto, que ela apelida ao terminá-lo: Do rouco cisne a voz talvez extrema[42]. É Filinto quem lhe pôs o nome poético de Alcipe que ela nunca mais deixou de usar nos seus versos. A amiga mais querida, é, como já dissemos, a condessa de Vimieiro, D. Tereza de Melo Breiner, a autora da _Osmia_, e irmã de Pedro de Melo Breiner, tambêm grande amigo das enclausuradas senhoras. Tamagnini, o conde dos Arcos, Pedro Inácio Quintela, administrador da casa de Alorna, Frei Alexandre da Silva, depois bispo de Malaca, eis os outros amigos a quem, na truncada mas preciosa correspondência que a Marquesa de Fronteira nos confiou, Leonor de Almeida se refere com mais freqùência. Não é natural que fôssem muito mais numerosos os seus visitantes do tempo em que estar fora da privança de el-rei e do primeiro ministro constituía um crime, quanto mais viver sob o permanente castigo que ambos teimavam em infligir a esta família desventurada. Os dezoito anos de cativeiro de Leonor não teem, pois, peripécias interessantes ou dramáticas. Os únicos acontecimentos desta existência conventual, monótona e triste, é dentro do espírito da nossa heroína que temos de os procurar. Teem um interêsse de psicologia, não teem nenhum outro. O corpo dela, preso dentro das grades de um convento, não pode sequer mover-se para alcançar a saúde que naquele meio asfixiante a ia de todo abandonando.[43] Mas nunca o seu espírito repousa, pois que mil problemas das mais diversas ordens e procedências se movem e agitam dentro dêle. Um dêsses problemas, o mais sério para uma consciência sincera e lúcida daquela época, era o religioso. Leonor de Almeida que, com o volver dos anos, se fêz estreitamente devota e intransigentemente aristocrática, era áquele tempo ledora assídua da enciclopédia, das obras de Alembert, Diderot, Helvetius, Rousseau, etc., etc. Muita vez ilude e torneia a dificuldade de conciliar esta leitura com as ordens expressas que tem do pai, apresentando só um lado das doutrinas em que se embebe, ou um aspecto dos livros que quotidianamente folheia, mas é de ver que num espírito de mulher, acessível às influências externas--e sempre espêlho que reflecte e não luz que irradia--estas leituras aturadas haviam de produzir o seu efeito natural. Nesta fase activa e interessante da sua vida espiritual, Leonor partilha com muitos espíritos do seu século, educados na tradição católica, uma doce e simpática ilusão. Ela pretende conciliar o racionalismo filosófico com a religião bebida na infância. Quer amar um Deus corrigido pela razão, uma religião mondada de superstição e de abusos, uma Bíblia que Voltaire houvesse préviamente aprovado, um evangelho em que o _Vicaire Savoyard_ não encontrasse crítica alguma que apontar. A _sã filosofia_, que estava então no seu fulgurante início, patrocinada pelos reis, pelos príncipes, pelos bispos e pelos grandes, não fôra ainda levada ao seu têrmo lógico por Saint-Just e Robespierre... A velha sociedade julgava possível subsistir, inteira, hierárquica, em pleno gôzo dos seus preconceitos, riquezas, privilégios e excepções, desmoronados ao vento da ironia voltaireana, os alicerces seculares em que assentava o seu domínio positivo. Não admira que uma criança inteligente e sonhadora, tendo tido ocasião de perceber a baixeza moral a que a superstição levara êste país, tivesse a mesma ilusão que então deslumbrava tantos entendimentos luminosos... Leonor sentia-se permanentemente sob a censura disfarçada ou clara dos que mais íntimamente privavam com ela. O próprio pai, esclarecido como era, sentia mêdo ao perceber os assomos de independência espiritual, que ela deixava transparecer nos conceitos, e naturalmente derivava de cada uma das suas leituras. Vejâmos as cartas com que Leonor respondia às observações prudentes e cautelosas dêste amigo do seu coração, com o seu espírito melhor se entendia. «Eu li muitas vezes as _Reflexões_ de mr. de Bossuet, li parte da obra de l’Abbadie, que me fatigou, mas que tornarei a ler com mais gôsto. Fora disto tenho lido quanto achei a favor da religião, com desejo de fortificar a doutrina com que me criaram. Agora há muito tempo que me privo dessas leituras, de propósito, julgando que uma coisa superior a tôdas as razões humanas escusa delas; e tratando de nutrir o meu coração de virtudes que teem por fundamento esta crença, cultivo o entendimento com os conhecimentos próprios para um génio curioso, sem esperar daqui mais fruto que o de livrar-me da ociosidade e arruinar de alguma sorte a fôrça da melancolia. «Jámais entrou nos motivos da minha aplicação algum espírito de singularidade e uma vaidade _gentílica_ como v. ex.ᵃ lhe chama, incompatível com a modéstia de que desejo animar as minhas acções. Gosto de saber quanto cabe nas minhas fôrças, mas antes quero ser ignorante do que indócil.»[44] E noutra carta sôbre o mesmo assunto a que volta freqùentemente, revelando bem a importância que êle tem para o marquês de Alorna, solícito conselheiro de sua filha, e talvez, como é natural do seu sexo, do seu tempo e da sua raça, um pouco aterrado ante uma superioridade feminina, a que êle não percebe aplicação prática de espécie alguma: «Sôbre Voltaire não acho que dizer, porque v. ex.ᵃ entende da matéria melhor do que eu. Sôbre a controvérsia sou proìbida a falar por todos os princípios, e até devo a S. Paulo a obrigação de me escusar o meu parecer absolutamente. Contudo êle é reputado como um grande filósofo e como o assombro dêste século. Eu me lastimo dos seus erros, mas não posso deixar de confessar a v. ex.ᵃ que me vieram as lágrimas aos olhos quando vi que v. ex.ᵃ lhe dava sentença de queima! De que servem homens queimados, meu querido pai? Por ventura reconhecem êles a verdade na fogueira? Não é Deus só quem deve pôr têrmo aos nossos dias? Se Deus sofre os homens miseráveis sôbre a terra, que direito teem os homens para os não sofrer? Eu conheço que v. ex.ᵃ tem muita virtude e muito juizo para decidir bem, mas eu que son mulher, com o coração muito pequeno, quando se fala em matar sempre me aflijo pelo sentenciado, seja quem for. Não está mais na minha mão! «Deus terá piedade da minha fraqueza se não é boa, em conseqùência do preceito--de amar o próximo como a mim mesma;--queira Deus que eu não diga alguma tolice que desagrade a v. ex.ᵃ, mas copiei o meu sentimento, e disfarçá-lo parecer-me ia pior».[45] Êste trecho é de uma incomparável nobreza e até de uma simplicidade eloqùente e _sentida_, bem rara no estilo de Leonor de Almeida e da geração sua contemporânea em Portugal. Bastava êle para justificar o que no anterior capítulo escrevemos sôbre a concepção errada e cruel que acêrca da justiça havia naquele tempo entre nós, até nos espíritos mais cultos. O marquês de Alorna tem direito a ser contado entre um dêles, e no entanto, de ânimo leve, numa carta à filha escrita do cárcere, onde agonizou dezoito anos, vítima da prepotência régia e da justiça da lei, vê-se que êle condena à _pena de queima_ êsse Voltaire que defendeu Calas, e que fêz ouvir a sua voz eloqùente e viva, a sua voz que tinha asas e asas de fogo, em prol de tôdas as vítimas da iniqùidade humana, da iniqùidade social, da iniqùidade religiosa! Tão pouco preço se dava então à vida do homem e ao seu sofrimento. Tão impiedosa e dura era a alma em que a superstição imprimira a sua negra influência, e que a tirania criara aos seus peitos de fera! _The milk of human kindness_, êsse leite da bondade humana, de que fala o poeta inglês, não corria certamente nas veias dos nossos maiores. Foi êste século que melhor do que tudo o sentiu, o criou, o fêz jorrar em mananciais permanentes da alma da humanidade, amolecida por tantas dores!... É bem verdade, e já aqui mesmo o repetimos, que pagámos com uma porção de energia êsse acrescentamento das nossas faculdades afectivas; mas abençoado o contrato que nos fêz bons, muito embora nos deixasse mais fracos... A questão religiosa vê-se que é, a par de outras que teem relação com a sua superioridade literária, a origem de maiores tormentos para o espírito de Leonor de Almeida. É tão curiosa esta fase da sua vida íntima, que não resistimos a transcrever algumas das cartas que mais a esclarecem: «Vou-me restabelecendo com os esforços da medicina e da filosofia; uma sem outra me seriam inúteis. Leio moderadamente, porque assim o preciso para viver, e _apenas largo os livros não acho em redor de mim senão contradições que me tiranizam_. A verdade e v. ex.ᵃ, que são os objectos que me obrigam a estudar, são quem me consola das perdas que faço, talvez, na opinião dos outros. A maior parte das pessoas com quem falo estão sempre de parecer contrário ao meu, e aquelas que concordam comigo ou não m’o confessam ou são tambêm vítimas dos caprichos dos outros. As sciências são um nome vago, insignificante, e elas em si mesmas são reputadas como um meio de ostentação; os melhores entendem que elas servem como um meio para saber argumentar, e não lhe vêem o fim com que eu as olho, de nos procurarem a felicidade e regularem os costumes. Ontem tive vários argumentos com o confessor de minha mãe, que sendo homem de infinito propósito e bom coração, está entestado das ideas vulgares a respeito dos filósofos modernos, e não admite absolutamente nenhum princípio honesto na aplicação fora, do que serve únicamente para a salvação eterna. Tudo inutiliza. Chama à poesia sciência de pagãos, à matemática sciência de loucos, à física meio de estabelecer nova religião; emfim prognostica que daqui a dez anos seguramente haverá alguma seita ou uma total _transtornação_ do cristianismo. Esforcei-me inútilmente para provar que os filósofos, ainda que erravam em muita cousa, não eram, contudo, incompatíveis com o cristianismo sublime. E que a natureza que êles profundavam, era aquela obra magnífica, que mais que tôdas provava a existência de Deus, que êles olhavam com respeito as suas leis, de que Deus era o autor, e que Jesus Cristo não veio senão aperfeiçoar. Inexorável a tôdas as conseqùências que eu tirava dêstes princípios tão verdadeiros, recorreu ao ordinário meio dos que teem sistema e não teem razão, encheu de nomes injuriosos os escritores mais célebres dêste século e às injurias e gestos apostólicos deu o valor de convicções. Pretendia tirar argumentos contra Newton e outros herejes da sua irreligião, e nunca pôde admitir o princípio de que em matéria scientífica vale mais o dito de um sábio hereje, do que o de um santo ignorante. «Eis aqui os homens de mais juizo e de maiores luzes que por cá temos! «Eu que não quero, nem levemente, afastar-me da sujeição que devo à Igreja e às ideas de meus pais, quero que v. ex.ᵃ me diga o que crê a respeito dêstes pontos, em que os argumentos caíram, e que minha mãe não pode decidir, porque não estudou nem ao menos leu nada sôbre estas matérias. Sendo a minha razão livre como tôdas, a natureza e a ternura me persuadem que só admita o que meu pai admitir. «Disse eu que a conquista da América tinha sido um atentado contra a espécie humana, porque a conversão daqueles povos devia ser menos obra de cães de fila, espada e artilharia espanhola, que da razão e da brandura; que Maomet persuadira a mentira com ferro e fogo, e Jesus Cristo a verdade por meio da sua cruz e da missão dos seus apóstolos; que não havia direito nenhum que permitisse tirarem-se as terras a seus próprios donos, para se darem aos tiranos que as conquistaram. E que a bula em que se fazia aos americanos a honra de os admitir na espécie humana era escusada, porque êles antes disso já eram homens. Diziam-me que devo crer que tudo isso foram obras meritórias. «Os homens que se sacrificam por princípios de religião fazem-me lembrar os sacrifícios de Osiris, de Saturno, de Hércules, de Marte, e tanto fanatismo me parece uma coisa como outra. «Não me absolveu o confessor porque eu lhe disse isto, e o de minha mãe, a quem fui falar para me dizer os termos em que havia de ficar para me absolverem, disse mil _arengas_, das quais vim a coligir que êle, no fundo, estava nos meus princípios, e que o não queria confessar para o não levarem ao santo ofício. «Eu, que não tenho mêdo do santo ofício, como não tenho mêdo da sem-razão e dos erros, quero saber se hei de mudar de opinião, porque o confessor me reservou a absolvição até minha total emenda. O pecado que eu confessava era o de ter dito diante de pessoas menos aplicadas o meu sentimento nestas matérias. «Lembrando-me ao mesmo tempo o texto de S. Paulo, em que nos recomenda _não escandalizar_ os fracos; esta imprudência me atraíu tôda esta arenga que me tem aborrecido, porque quanto mais medito menos saída lhe acho. Os confessores são quási todos ignorantes e gente a quem nunca exporei as minhas dúvidas. «Torquemada e outros inquisidores são no meu conceito Nero e Calígula, Cromwell[46] e outros monstros dêstes. «Isto dizem que é pecado; será, mas é de razão e de piedade! V. ex.ᵃ é meu pai, tem mais sciência que os frades, e tem-me mais amor, para desejar o meu verdadeiro bem. Prouvera a Deus que me podesse confessar, escusava-me o trabalho de aturar estes piedosos preocupados, ignorantes e fanat... êste nome é proìbido. Perdôe-me v. ex.ᵃ enfadá-lo com estas impertinências, mas só com v. ex.ᵃ é que me entendo, meu querido pai. «Disse eu que todos os filósofos assentaram que a terra se movia; dizem-me que eu disse uma blasfémia, porque Copernico foi condenado e Galileu obrigado a desdizer-se. «Disse que o clima era origem da côr negra nos homens, e que a povoação da América era um mistério incompreensível, e provei estas duas proposições. Responderam-me que a maldição de Cham e não _viagens imaginárias_ eram a solução. Tudo isto é ridículo para quem tem lido como eu, e o partido de calar-me que eu tomo há muito tempo, se basta para tranqùilizar-me aparentemente, consterna-me porque receio que minha mãe apreenda alguma coisa que a aflija, e assim tome v. ex.ᵃ o trabalho de a tranqùilizar sôbre os meus princípios, e de dizer o que quer que eu faça. Tôdas estas coisas compadeço eu com a pureza do cristianismo. Eu olho para o evangelho e para os apóstolos como meus mestres, tudo quanto os contradiz não admito, e a Igreja nossa mãe a respeito e a olho com a mais submissa veneração. Contudo os homens são sempre homens, e assim os considero. Se eu podesse escrever quanto me lembra, v. ex.ᵃ veria que abomino as questões, e que a docilidade é o que mais me agrada. Porêm, cada um dá diversa interpretação aos termos em que argumento, e quando digo _razão, verdade, amor da ordem_, entendem-me _sistema, ensino e transtornação_; neste têrmo sofrerei eternamente um martírio quási incomportável...»[47] Esta carta dá-nos em flagrante realidade a luta que nesse tempo se tratava em muitas almas piedosas e elevadas, que compreendendo a pureza inefável do cristianismo, e vendo-o interpretado por um sacerdócio ou fanático até à loucura, ou ignorante até à sordidez boçal, não sabiam conciliar contradições tão violentas como afligidoras. Leonor de Almeida não conta senão os combates de consciência de uma pobre mulher isolada, talvez um pouco puérilmente vaidosa da sua incompleta sciência, bebida em leituras truncadas, sem método e sem guia; mas que eloqùência sublime tem essa luta obscura quando a relacionamos com tudo que a consciência humana tem sofrido para se resgatar do cativeiro em que jazeu presa longos séculos! Com que piedosa ternura, nós as almas libertas dêste tempo, devemos contemplar os que padeceram suplícios sem conto para que a verdade relativa que hoje é nossa posse atingisse emfim a sua alforria e o seu império! Quantos mártires expiaram em fogueiras, em húmidas masmorras infectas, em morticínios crudelíssimos, em hecatombes abomináveis, a aspiração que tiveram à liberdade da sua consciência, à integridade do seu pensamento, à expansão inteira da sua independência mental! E os que tinham nascido nobres e francos e sinceros, e se corromperam e degradaram rastejando na sombra corrupta da hipocrisia e da mentira, porque lhes faltava a heroicidade com que se afronta o martírio, ou porque os amolecia a sensibilidade estranha dos que sentem a própria vida identificada a outras vidas?! E os que sofreram como Leonor a luta ingente, a luta dolorosa entre as doutrinas bebidas no leite maternal, sugeridas com infinito amor por lábios de mel e olhos de inefável brandura, e sentiram irromper da lição dos livros ou da observação dos factos, ou da lógica triunfante do espírito reflectido e lúcido, a verdade que não pode ser nem desmentida nem dominada, a verdade que baptiza como água lustral, que queima como o fogo do céu, que pulveriza como raio destruindo os edifícios erguidos pelos sofismas da hipocrisia ou pela imaginação ignara das multidões?! É grande, é imensa a dívida que contraímos com êsses que sofreram para que nós conhecêssemos a tranqùila beatitude e a serêna alegria da consciência libertada! E não são pueris as queixas de Leonor logo que nos lembrarmos que para pensar livremente, tudo que então valia um pouco em Portugal ou teve de fugir, ou teve de degradar-se pela mentira! Filinto, Ribeiro Sanches, Garção, Bocage, José Anastácio da Cunha, e tantos e tantos outros lá estão a provar que o receio do confessor pusilâmine não era uma desculpa vã! E no entanto devemos confessar que quem estava na lógica da sua crença eram os que discutiam acremente com a juvenil _livre-pensadora_ de Chelas! Não havia conciliação possível entre o velho e o novo credo. Não se tratava do evangelho livremente comentado pelo espírito individual, tratava-se da Igreja, poder político e poder social, ao mesmo tempo que era poder religioso, e cujos dogmas definidos, rigorosamente formulados, por um clero que, depositário da verdade, a tinha traído em benefício dos seus interesses, formava hoje um corpo que ou havia de triunfar inteiro ou inteiro caír. O confessor da marquesa de Alorna, profetizando para dali a alguns anos o cataclismo supremo em que a velha sociedade se afundasse, revelava um tino, uma previdência e uma penetração bem raras no clero português daquela época, e muito superior, em todo o caso, à filosofia optimista e à incoerência anti-católica da sua contendora juvenil. Com certeza que a esta carta comovedora, escrita ao pai, e que é como a confissão palpitante de uma alma sincera, e que busca entre agonias a verdade e a luz, o marquês, mais lógico consigo próprio e com a educação que lhe tinha modelado e formado a inteligência, respondeu pondo-se francamente do lado da autoridade e da tradição contra a indisciplina da filha e a _vaidade gentílica_ do seu entendimento. Mas não se limitou a esta escaramuça entre ela e os dois confessores a inquietação da consciência de Leonor. A amiga Tereza de Melo Breiner escreveu-lhe, lamentando a sua índocilidade aos conselhos da Igreja, e mais de uma vez ou a chistosa ironia ou a grave reflexão de Leonor dá lugar a conflitos entre ela e a mãe, ou a amiga, ou os frades que a cercam. A erudita reclusa conhece os textos dos doutores, as opiniões de S. Paulo, de Santo Agostinho, de Tertuliano, as conclusões dos concílios, as matérias sôbre que versam as diversas bulas, e confunde não raro os seus adversários, mostrando-se muito mais instruída do que êles nos assuntos que debatem em perpétuas controvérsias. Mais uma carta sôbre o mesmo assunto, e com respeito à condessa do Vimeiro: «Já vejo que v. ex.ᵃ tem curiosidade sôbre o que diz Tirce[48] a respeito dos filósofos. Na realidade, esta estimável amiga, o único defeito que tem é a tenacidade em certos pontos, e persuadida uma vez de que a filosofia era o móvel das minhas acções, independente de outros princípios mais sagrados, é impossível arrancar-lhe dos miolos esta preocupação. Na carta que há mais tempo me escreveu e a que deu origem a graça de D. Alexandre[49], discutia largamente êsses pontos, e eu dei a resposta que então me pareceu razoável e digna de mim e dela... A consideração que eu faço dos inferiores, o desprêzo das acções más cometidas por fidalgos, o ódio à injustiça e a contradição que isto tem com o sistema de certa fidalguia ridícula que governa o mundo, são pontos críticos, e quem vê por outro modo as coisas não me dá as desculpas, nem a razão que eu mereço. Tirce (condessa de Vimeiro), que é uma santa, parece-lhe muito a propósito que tôdas as coisas vão adubadas de frases místicas,--eu que amo a religião e que a respeito muito para introduzi-la a torto e a direito, e que tudo nesta parte que pode parecer uma afectação me aborrece muito, emquanto tenho razão não cito livros santos. Como não sou hereje, nem tenho tentações contra a fé, escuso de fazer a minha protestação a cada instante, contentando-me com cativar o coração com as verdades do evangelho sem dar nisso contas a ninguêm. Agradam-me as coisas como são e prescindo de exterioridades equívocas. Tirce tem tido por isto uma grande inquietação, querendo quási para seu sossêgo, que eu lhe reze o _credo_ em cada carta. O meu génio já v. ex.ᵃ o conhece e não é para ceder senão à ternura. A razão alheia é como a minha, e por isso não me desvio do que julgo bem feito por motivo nenhum. Escrevi a primeira carta na qual, sem abaixar o meu estilo a condescendências aborrecíveis, cuidei de explicar-me segundo o sistema da nossa santa religião, nos termos mais simples que me foi possível, e na boa intenção de tranqùilizar a minha querida amiga e de salvar-me da idea injuriosa que talvez ela tenha da minha submissão aos filósofos. Falei com uma pessoa instruída, e desafio S. Paulo para que ache na minha carta uma palavra condenável. Que efeito teve? Nenhum. «Ficou Tirce como dantes, porêm calada. Torna outra vez a entender comigo, e verá v. ex.ᵃ pelas minhas cartas com que fundamento. Eu quási que estou tomando o partido de me calar. Na última carta dizia coisas muito mais cristãs que em nenhuma das que remeto a v. ex.ᵃ, mas estou certa que não há de bastar cousa nenhuma.» Mas não é sómente a sua leitura dos filósofos e enciclopedistas, de Alembert, a quem ela chama _o carácter mais amável_[50], de Voltaire, que ela considera o _maior dos homens do século_[51], de Rousseau, _o genio filósofo o mais raro e o mais estranho_[52], de Diderot, _menos encantador que de Alembert, mas tão estimável como êle_[53]; não é sómente a sua intimidade com os grandes escritores do tempo que a põe em antagonismo permanente com o seu meio. É tambêm na sua qualidade de poetisa, de _mulher de letras_, bicho raro para a época, que de todo se esquecera ou de todo ignorava que tivesse havido no século XVI uma floração encantadora de latinistas, de eruditas e de literatas em tôrno da poética figura da princesa D. Maria, nessa côrte de D. Manoel, que foi umas das mais brilhantes da Renascença. O talento feminino foi sempre para o homem de tôdas as épocas e de tôdas as nações uma anomalia repugnante, uma monstruosidade inquietadora. O talento, que é quási sempre o exagêro esplêndido de uma faculdade da imaginação ou de uma espécie da sensibilidade, não se contenta fácilmente com a obscuridade da vida doméstica. Na transformação completa que a democracia imprimiu à sociedade moderna, o talento da mulher, se é de escritora ou de artista, pode tomar a forma especial de um produto cotado no mercado como outro qualquer, e sendo assim hoje, o homem inteligente e ilustrado, se não aplaude a mulher que trabalha pelo cérebro, chega ao menos a compreender que o tolher-lhe o direito de trabalhar seria um criminoso abuso da sua fôrça. Na Inglaterra contemporânea centenas de mulheres escampam à miséria e à perdição pelo trabalho. São romancistas, são jornalistas, escrevem nas Revistas, colaboram em publicações especiais, publicam relações de viagens, monagrafias de sciência ou de arte, pequenos tratados de economia doméstica, etc. A França do século XIX conta entre os seus mais altos espíritos e mais robustos escritores duas mulheres, uma das quais ganhou com a pena manejada pela sua pequena mão nervosa a quantia modesta, mas apetecível de um milhão! Basta para emmudecer a vaidosa prosápia de qualquer burguês desdenhoso da actualidade esta cifra, e a apresentação daqueles factos incontestáveis. Mas o Portugal do século XVIII, que a mão poderosa de Pombal tentava em vão arrancar ao mais abjecto obscurantismo, à mais completa inanidade mental, e que apenas sob êste valente impulso dava alguns sinais de galvanizada energia nas indústrias práticas, nas sciências positivas, o Portugal sem poesia, sem arte, sem elegância mundana, o Portugal dos fidalgos analfabetos e arruaceiros, dos gordos capelães hipócritas e devassos, dos parasitas, dos bobos, das velhas condessas beatas que expiavam a banhos de água benta os pecados galantes da mocidade, o Portugal em que soou o riso de Tolentino degradante e cómico, de que Filinto fugiu assombrado, em que Bocage não achou lugar, e onde êle chorou e blasfemou até morrer de libertinagem, de tédio e de agonia, o Portugal asfixiante e meio bárbaro do tempo não tinha lugar que oferecesse a uma mulher escritora, a uma mulher de talento superior e de alto e desanuviado critério. O seu meio ou havia de escorraçá-la a golpes de grosseiro escárneo, ou havia de imporse-lhe, calando-a, humilhando-a, vencendo-a. Percebiam isto muitos dos que a cercavam. Percebia-o a própria Leonor, e como é seu hábito, hábito encantador e que enternece como uma flor azul, nascida entre as fendas de uma agreste rocha--não é a doçura a faculdade predominante dêste temperamento--é ao pai que ela confessa mais êste conflito do seu destino. Ouçamos o que numa carta lhe diz: «Depois de ter estudado, como v. ex.ᵃ sabe e com o fim único da minha felicidade, formei um pequeno plano para as minhas acções, que sendo conforme com as intenções dos meus queridos pais, eu podesse contentar-me tambêm e praticá-lo livremente. Meditei as minhas obrigações a respeito de Deus, da sociedade, de mim mesma; avaliei quanto me era possível, o estado do mundo, e principalmente o da minha terra, e resultou daqui assentar fixamente que eu não podia ter uma hora de sossêgo, se me lembrasse um só dia de escrever para o público. Que a êste só serviam verdades disfarçadas ou mentiras positivas, que a liberdade (ídolo do meu entendimento) seria uma vítima infeliz das máximas estranhas da minha terra, e que se queria ter fortuna com ela servisse o jugo da opinião pôsto pelas tôlas de idade, pelas ignorantes de título, e por outros indivíduos semelhantes, a que eu chamo em segrêdo baixa plebe. «Cuidei de distinguir bastantemente o carácter das pessoas com quem falo, e com quem estabeleço muito acauteladamente as minhas relações literárias, debaixo da inspecção adorável da minha querida mãe. Assentei que o número havia de ser muito pequeno e com efeito o é. Mas fixo êste, tudo aquilo que não contradiz a idea que eu tenho da virtude e da felicidade, que são para mim o mesmo, livremente o pratico e com isso me recreio. Assentando fixamente que os meus versos não encontram o parecer de nenhuma das pessoas a quem os mostro, de quem quero o prémio, ora os dirijo a um, ora a outro dos três amigos nossos que me entendem; e gosto de o fazer assim, porque me agradam os ingleses bons e os alemães, onde vejo êste método estabelecido, como um meio para facilitar e acender mais a imaginação. O gôsto da moralidade tambêm me persuade a isto, porque fácilmente se oferecem reflexões, supondo que alguem me escuta do que falando só. Parece-me alêm disto que o meu trabalho não é uma honra, nem uma lisonja que faço áqueles homens, mas sómente um sinal da minha gratidão pelo que êles contribuem para o meu adiantamento com as suas conversações, com os seus livros, e com a emulação que me dão com as suas obras. Nenhum dêles estima essas coisas vãs que só teem valor entre os que sabem pouco. Filinto é um carácter original para a nossa terra. Conhece bem que a felicidade está em si, que lhe não vem dar honras que lhe fazem os fidalgos, não os distingue senão pela virtude ou pelos talentos. É um filósofo incapaz de sujeitar-se a lisonjas, nem de gabar-se das que recebe. V. ex.ᵃ o conhecerá, e verá que dista muito da idea que v. ex.ᵃ forma. Neste têrmo, achando, quási de portas a dentro, quanto era necessário para me ocupar agradávelmente para aqui é que escrevo, não quero que me leia ninguêm que possa reparar no que digo, porque quero falar o que entendo e o que me inspiram a razão e a virtude.»[54] Descontando no que a fraseologia do tempo tem de especial, de affectado--e é isto justamente que imprime data--vê-se que os sentimentos de Leonor estão a par do que mais elevado e nobre havia no século. Não aceita da crença em que a educaram senão a puríssima moral e a requintada essência evangélica; dos preconceitos sociais que bebeu com o leite destaca lúcidamente tudo que há nêles de exagerado e iníquo. Nós que fomos educados sob um regímen absolutamente oposto ao que naquela época reinava, só pelo raciocínio conseguiremos dar um verdadeiro aprêço a esta independência de um espírito de mulher, que a tirania das ideas e a dos costumes não logrou acobardar, nem vencer. De uma das fantasias mais simpáticas do romanesco espírito de Leonor encontramos na correspondência inédita vários documentos. Imaginou dirigir-se a Luís XV, a Voltaire, a diversos personagens influentes da côrte de França e interessá-los pela causa de seu pai. Não podemos afirmar que as cartas atingissem o seu destino, ou mesmo que elas chegassem a ser enviadas áqueles a quem são dirigidas, mas não resistimos à tentação de transcrever alguns trechos dos rascunhos encontrados. Aqui estão em primeiro lugar passagens da carta dirigida a Luís XV. O francês é defeituoso. Hoje, qualquer rapariga educada pelos novos métodos, escrevia mais correctamente. Mas que entusiasmo pelos seus essas cartas traduzem! «_Sire. Avec le plus profond respect, avec la plus douce espérance dans ces vertus qui ont acquis à Votre Magesté le glorieux titre de Bien aimé si propre à faire la douce attente des malheureux, je viens oh grand roi, faire retentir mes plaints devant votre trône auguste..._ «_Une malheureuse fille de vingt deux ans, vous demande, Sire, avec des larmes, la protection pour un père et une famille que pendant l’espace de quatorze ans ont épuisé tout l’horreur du destin le plus rigoureux..._ «_Je suis prisionière depuis l’âge de huit ans avec ma mère et ma sœur. Dans le temps où je commençais à goûter le délicieux plaisir d’être au sein de ma famille, je fus arrachée des bras paternels; je vis traîner mon malheureux père dans un afreux cachot._ «_Les frères, la mère, le père de celle qui m’a donné le jour, deux oncles, je les ai vue tous expirer dans le plus honteux tourment._ «_Mon cœur affligé par ces blessures qui saignent toujours a nourri dans le malheur les précieuses connaissances des biens qu’on m’enleva. Chaque jour m’apporte un nouveau trait, chaque instant où je considère ma famille avec les marques honteuses de l’infidélité, tout mon sang bouillonne, je me sens mourir avec les désirs impuissants de faire voir l’innocence et l’honneur de ceux qui me l’ont fait connaître dès le berceau._» Não é menos interessante nem menos romanesca nos intuitos a carta a Voltaire do que a carta dirigida a Luís XV por intervenção de um dos seus ministros. Ao rei de França Leonor pedia a intercessão poderosa junto dos poderes da terra para libertar seu pai. A Voltaire ela pede a rectificação de apreciações que mais tarde lançarão a sombra de uma negra suspeita sôbre a inocência da sua família estremecida. E sempre a mesma ânsia de reabilitação, é sempre a mesma actividade incansável de espírito, e sempre, ai de nós! o mesmo francês laborioso e terrível! «_C’est au defenseur de l’infortuné Calas que je porte mes plaintes. Un cœur navré par la douleur, enflammé par la gloire, et charmé par vos écrits sublimes, m’inspire un désir ardent de justifier devant les yeux d’un sage, ma famille trop honnête pour endurer la calomnie._ «_C’est de vous, monsieur, que je me plains; c’est monsieur de Voltaire, cet homme illustre qui brave les préjugés, cet ami du genre human qu’avec la même plume dont il défend le juste opprimé répand le poison de l’opprobe sur des innocents parce qu’ils n’eurent pas le bonheur de naître en France. Votre siècle de Louis XV vient de tomber dans les mains d’une jeune infortunée, que dans la catastrophe du Portugal est envellopée avec sa famille dès son plus bas âge._ «_C’est moi, monsieur, la petite fille des marquis de Tavora._ «_Ces illustres malheureux, morts dans un echafaud, n’on point purgé, la honte attachee au crime mais subi avec de l’honneur et du courage des revers de son sort._ «_Ah monsieur! Si vous n’êtes point ému à la vue du tableau effrayant de nous même, que penserai-je de la philosophie?_ «_Quel homme de bronze aurait pû écrire ce que vous dites, aprés avoir connu les secrets ressorts de notre chute._ «_Savez vous que mon grand père a été l’objet de la haine du premier ministre? Savez-vous que ma grand mère après son retour des Indes orientales, n’avait jamais vû le moine que l’on fait son confesseur? La moindre connaissance, le moindre soupçon des malheurs que menaçaient mon Roi et ma patrie aurait obligé mes parents à verser volontairement jusqu’à la dernière goutte de son sang? S’il était possible que l’on pût concevoir cet horrible projet dans ma famille, un seul l’aurait pensé, que les autres, renouvellant les creautés anciennes, eussent, comme Brutus, fait mourir leurs enfants mêmes._ «_Les préjugés sont trop puissants dans le pays que m’a vue naître, et celui de l’honneur[55] était le partage de ma famille. L’amour du Roi, la paix de la societé, et le bien être de la famille, occupaient dans ce temps de tenèbres les cœurs de mes parents._ «_Quand la maligne ambition, ce fiéau du genre humain, d’accord avec l’envie, nous plangea dans le sein de l’amertume, la nature avec tous les charmes, la grandeur, cette charmante folie des humains, étaient notre partage. Les êtres les mieux partagés par la nature, étaient aussi les mieux assortis par la fortune. Des époux jeunes e amoureux, des femmes jolies e honnêtes, des pères tendres, tout nous promettaient un bonheur inaltérable, quand l’orage vint tomber sur nos têtes. Je fus arrachée des bras de mon père à l’âge de huit ans, avec ma plus jeune sœur, et ma mère; quel tableau horrible! Dans cet âge heureux des plaisirs et de l’amour, arrachée des bras d’un jeune époux le plus aimable, qui joignait à la félicité d’êfre sage, et d’avoir des lumières qu’il avait puisées en France, les grâces de la figure! Un jeune homme aimable, un homme de lettres et de probité, fut arraché de ses bras, dans une nuit funeste, et dans le même jour elle se vit sans époux et sans père!_» * * * * * Como o marquês de Alorna fôsse grande entendedor em literatura, um dos assuntos freqùentemente versados entre a filha e o pai era o da poesia. O marquês admirava francamente o engenho de Leonor; achava _maravilhosas_ as suas odes, _admiráveis_ os seus sonetos, e entre os dois travam-se engenhosas palestras sôbre letras. «O que me parece que te tem atrazado muito,--escreve-lhe êle um dia,--é a demasiada crítica, e uma especulação excessiva da natureza e gôsto verdadeiro dos poemas, juntamente com a preocupação dilatada a favor do verso sôlto. Se não fôsse isso, e o demasiado trabalho e melancolia que te fizeram adoecer, terias a estas horas composto coisas prodigiosas e talvez de grande vulto. «O bem que tem é que ainda estás a tempo de reparar o perdido. Se te quiseres dar às obras morais, no gôsto de Pope e mais poetas moralistas, farás maravilhas, com que todos fiquem espantados e te resulte grande nome. «O que fizeres à imitação de Camões há de ser muito agradável a todos, desviando-te ao mesmo tempo do amoroso, que neste grande autor se mostra com demasia. Eu entendo que êste género lamuriento foi uma das coisas que mais deitou a perder e desacreditou a poesia. O que ela agora, para se estabelecer no conceito de tanta gente que lhe é contrária, necessita mais que tudo, é que haja poetas que preguem em verso como S. Paulo, como Séneca, etc., e a _uma mulher da tua ordem e da tua criação é a quem isso compete mais que a ninguêm_.» O preconceito aristocrático, que é no marquês de uma fôrça indestrutível, manifesta-se em mil frases características no género da última citada; aqui vai outra ainda mais frisante, que arrancamos a outra carta. --«...Não há dúvida que o conde de Tarouca era às vezes algum tanto empolado, mas tambêm é certo que aqueles a quem a natureza não deu uma certa expressão eloqùente a ideas fora do comum, não querem nunca achar naturalidade onde encontram qualquer elevação, e tudo querem reduzir ao seu modo de falar e pensar rasteiro. Não digo isto a respeito de nenhuma pessoa determinada, e só acrescento que quando encontrares algum dêstes amantes da natureza (por naturalidade), será bom que examines que tal é o seu estilo, e se o achares pertencente à classe baixa podes ter por suspeitoso tudo que lhe ouvires a respeito de elevações, principalmente de autor contemporâneo!» Sôbre questões de técnica poética discutem, não raras vezes, os dois eruditos correspondentes. Que lição para os que perdem a coragem e o ânimo à menor contrariedade da vida, não dá êste homem no vigor da virilidade, enclausurado, perseguido, cheio de privações crudelíssimas, separado de todos os seus, e esta mulher em viço de anos, bela, nobilíssima, prometida a uma existência de alegria e luxo, encerrada desde a infância num triste convento, e tendo, apesar disso, suficiente liberdade de espírito, suficiente heroicidade de ânimo para se entreterem em discussões literárias, em controvérsias intelectuais, em comentários eruditos às respectivas leituras, em matérias emfim que os afastassem a ambos da contemplação do seu atroz destino sem esperança. Leonor é pela poesia sôlta sem auxílio da rima, o marquês contradiz neste ponto eruditamente o gôsto de sua filha. --«É certo que vendo-te há tempos infinitos não fazer outra coisa senão odes alatinadas, gabando cada vez mais esta casta de obra até te mostrares de todo encantada a seu respeito, tive receio de que aí ficasses para sempre, e que nunca mais te podessem reduzir a intentar outra espécie de composições. Dêste modo não tem dúvida nenhuma que perderias infinito daquela galanteria e grande arte de agradar que todos te admiram, porque a maior parte da gente, entrando nela innumeráveis poetas, não estão a favor da soltura do verso, nem é natural que admitam as tais odes senão se forem poucas, e atendendo a muitas outras coisas mais agradáveis da mesma autora. As ditas odes, vista a sua natureza, tambêm me fazem temer do teu génio, que te não separasses nunca delas, e com isso tinha tambêm mêdo que certas imperfeições nas tuas produções, em lugar da emenda fôssem sempre a crescer!... Alêm disto ficarias dêsse modo sem nunca chegares a ter de todo a rima às tuas ordens, como acham todos preciso para um poeta dizer em verso tudo que quiser, e sem cuja posse em tal grau não pode ser admitido no dia de hoje nos primeiros assentos do Parnaso. O verso sôlto com as circunstâncias que tu dizes é admirável, confesso que dêsse modo não lhe faz a rima nenhuma falta, mas da forma que tu o pintas aí é que está a maior dificuldade, e para a sua fabrica haverá muitas mais prisões e quebradoiro de cabeça. Que a rima dá fôrça a infinitas coisas que sem ela seriam semsabores, não tem dúvida nenhuma. Será preocupação, mas da forma que todos estão encasquetados a favor dessa dificuldade aparente, necessita o verso sôlto para agradar um tal carácter que serão sem comparação em maior número os versos rimados que possam parecer excelentes. A dita dificuldade sempre se exigiu na poesia, e assim parece preciso para suprir a sublimidade que nem sempre se pode encontrar, principalmente nas obras mais compridas. Entre os antigos a diabrura dos pés ainda era de mais trabalho... «Veremos as odes de Laura e Petrarca[56]. Entendo que serão excelentes e sôbre o amor platónico não haveria pouco que dizer. Creio que o teu é dessa casta (o que ela celebrava numa ode em que se fingia Petrarca ou Laura), mas como a maior parte do mundo está a êste respeito de um materialismo terrível, por essa razão estou pelo que já disse, e acho preciso evitar-se tudo a que pela malignidade das gentes se pode dar uma má interpretação.» Leonor é que se não deixa fácilmente convencer. Apesar do bom senso e do gôsto apurado do pai, ela cheia da sua razão, defende-se enérgicamente. «Diz v. ex.ᵃ que eu estou em termos de tresler em matéria de poesia, quando eu entendo que nunca estive em melhores termos do que estou presentemente. «Será talvez demasiada presunção, porêm, se v. ex.ᵃ me conhecer bem, verá que, o que eu disse não é o efeito de uma sujeição servil aos antigos dos quais me desgostam infinitas coisas. É certo que as odes de Horácio me agradam infinitamente, e que sempre me agradaram coisas similhantes na nossa língua. Bem vejo que a rima é um adorno muito bonito, porêm desnecessário em muitos casos quando a medida é certa e o verso por si harmonioso. As odes pedem um certo vôo que não sofre a mínima sujeição, e a das consoantes é lei forte que Maudit soit le premier dont la verve insensée Dans ces bornes étroits renferma la pensée. «Não se encontrará fácilmente uma ode rimada que seja boa, e eu aconselhava a todos que as fizessem assim, que lhe chamassem cantigas, versos ou coisas, como chama um galante poeta da nossa terra a tôdas as suas composições. V. ex.ᵃ não é dêste parecer, e é esta a minha única desconsolação, porque a não ter esta razão de descontentar-me, tôdas as mais estão da minha parte. V. ex.ᵃ bem sabe que cada palavra ou contêm uma idea simples ou complexa, ou se desvia ou se dirige ao todo do discurso. Não é possível que em tôdas as palavras das rimas se ache uma concordância admirável com o desenho do poeta, e em tendo de quebrar o discurso no fim do verso, já se rebate o vôo e sublimidade que exige esta sorte de poema, nascem ideas novas, constrange-se a mente, não corre como de fonte o tal licor de Castalia, e só numa língua em que as palavras tenham muitas rimas consentirei que as odes sejam rimadas. O poeta distingue tanto a poesia da rima que sendo o verso cheio, harmonioso, livre e de palavras puras não prova menos recreio nos que chamamos soltos que nos rimados. O ponto está em que as ideas sejam claras, poéticas e bem formadas; o desenho regular e sublime segundo o género em que escreve. Estou vendo que v. ex.ᵃ não há de gostar nada do meu poema da _Morte_, porque é feito em verso sôlto. Nem o exemplo de Camões, de João Franco(!) e de outros me poderão resolver a rimar a tal obra, porque a autoridade que um e outro se arrogaram de falar latim à portuguesa não é para se imitar. A esta hora está v. ex.ᵃ fazendo muito escárneo da minha suficiência, porêm eu tendo, graças a Deus, uma vontade bastantemente dócil, o meu entendimento tem muito pouca sujeição, e diz _Almeno_[57] que eu sempre digo a torto e a direito quanto quero.» Eis como ela responde ao que o pai lhe diz a respeito de quanto é necessário a uma mulher evitar assuntos amorosos que se prestem a interpretações malignas. --«O que eu compreendo sempre do amor, o que me obrigou a fazer versos sôbre alguns assuntos ternos, vem a ser que o amor é o vínculo suavíssimo e a primeira virtude da natureza humana; sempre o considerei só digno das grandes almas, e tal qual o pinta ou o exige Platão. Só êste apareceu aos meus olhos, e se há alguma coisa criminosa ou perigosa de que se não deva falar, não é isso que eu entendo quando falo de Laura e Petrarca. Estes dois amantes do século XIII, gabados pela inocência e constância do seu amor e dos seus costumes, pareceram-me dignos de os louvar nos meus versos, e como um autor francês supôs Laura poetisa, e não aparecem os versos que ela fêz, as duas odes são de Laura. «Uma supondo Petrarca ausente na sua embaixada da Espanha, outra, simplesmente explicando os seus sentimentos em resposta a uma canção dêle.» Ainda a respeito do amor, leiamos êste trecho de outra carta tão singularmente característico do tempo, e não precisando de data para que um crítico o reconheça imediatamente como pertencendo ao nosso alambicado século XVIII. --«Vejo o que v. ex.ᵃ me diz sôbre o amor. Êste sentimento ou paixão que domina o mundo, segundo tenho observado, creio que assim como o sono foge das pálpebras molhadas de lágrimas, assim êle se desvia dos corações ocupados dos grandes trabalhos. Eu tenho lido e meditado muito para ignorar absolutamente o que seja a natureza, e v. ex.ᵃ verá nos meus _serões_, o meu coração sem algum véu. Mas verá igualmente a minha antipatia por tudo isso. Eu tenho um gôsto nímiamente metafísico[58], quási tudo me desgosta e me fatiga fora dos discursos e dos exercícios da alma. Simplesmente sou apaixonada de platonismo, e creio que os corações cândidos não poderiam nunca admitir outras ideas a respeito do amor. Mas tudo isto se passa em mim em razão de discurso, e jámais tomarei interêsse particular nestas matérias, que não seja dirigido pela razão de uns pais que sabem únicamente o que me convêm. Eu tenho bastante reserva nas minhas ideas; ninguêm sabe de que partido eu sou em certas coisas em que a decisão é perigosa, pode v. ex.ᵃ descansar nesta matéria.» De resto não havia nenhuma afectação de falsa inocência de modéstia hipócrita nas relações estabelecidas por escrito entre a filha e o pai. Leonor não é uma _inocente_. Conhece pela sua leitura a vida, nem parece que na educação daquele tempo houvesse o cuidado exagerado, e às vezes contraproducente, que hoje há em livrar as raparigas de todo o conhecimento rial das coisas. A prova do que dizemos é que Leonor, no intento de distrair o pai, conta-lhe as anedotas _salgadas_ do tempo, que de fora penetram até ela através das grades de Chelas. --«Uma coisa que tem feito grande bulha e em que nunca falei a v. ex.ᵃ é na célebre actriz que exauriu os bolsos de todos os casquilhos e veio pôr à viola a nossa terra, porque tendo (segundo entendo) pouquíssimo merecimento, sabe encantar a todos e tem dado assunto a tôdas as palestras, muito verso, muita apologia, muita satira, porêm tudo junto é papel para aquentar camisas, e fica com muito honrada serventia. A tal _madama_ chama-se Zamperini, não é demasiado bonita, canta muito bem, e dizem que declama excelentemente; mas para crer isto precisa-se fé, pois tudo quanto dizem é muito afastado das regras dessa arte, que as necessita como qualquer outra. Dizem que é muito afectada, nímiamente desembaraçada, e outras circunstâncias que impõem para os ignorantes da nossa terra. O nosso Inácio Quintela tem desembolsado os seus cabedais, o Anselmo da Cruz, o condinho de Oeiras ao princípio, e um círculo grande de adoradores que aparecem pintados numa satira que lhe fizeram.[59] É de um carácter muito singular. Com tôdas quantas bugiarias pôde aprender no teatro engana a todos... Eu já estou enfastiadíssima de Zamperini, mas não quis deixar de lhe dar estas notícias que teem interessado tôda a nossa terra.» Êste trecho e outros similhantes sôbre o valido da imperatriz da Rússia, sôbre as pieguices freiráticas que ela se não cansa de repelir, etc., etc., dá a nota da intimidade que havia entre Leonor e o pai. Êste acompanha-a sempre com o mais prudente conselho, com a admiração mais estimulante, com a bondade mais perfeita. O amor do pai, pode chamar-se a única grande alegria moral que Leonor recebe durante os anos do cativeiro. * * * * * Referimo-nos já por mais de uma vez a D. Martinho de Mascarenhas, filho do duque de Aveiro, e encarcerado na Junqueira com o marquês de Alorna. O pai de Leonor planeara que ao sair da sua prisão lhe daria a mão de sua filha mais nova D. Maria de Almeida; e êste projecto, que não foi levado a efeito, pois que nunca D. Maria I restituiu os seus títulos e honras ao filho do homem que tinha tentado assassinar seu pai, enche, no convento de Chelas, de romanesca alegria as três enclausuradas senhoras. As duas poetisas--Maria tambêm escrevia versos e tem uma graça indescritível de expressão nas suas cartas--muito letradas ambas como se sabe, baptisaram de Tancredo o marquesito de Gouveia[60], acrescentando que só no herói do Tasso haviam encontrado as qualidades cavalleirescas que distinguiam o carácter do jovem fidalgo português. Leonor escrevia-lhe de Chelas: «Meu estimado mano.--Dou a v. ex.ᵃ os parabens do dia de hoje e lhe seguro que a sua vida me interessa imediatamente à de meus pais, pelo dobrado motivo do seu merecimento e por depender dela o contentamento da pessoa mais amável que eu conheço nêste mundo. V. ex.ᵃ pode julgar-se o homem mais feliz do mundo todo; os sentimentos que premeiam os seus ferros e os cuidados que v. ex.ᵃ tem no meu triste pai[61], devem suavizar tôdas as amarguras. Neste _vale de lágrimas_ (como diz a Salve-Raínha), não era possível uma aliança tão linda sem se merecer por desgostos tais como o nosso. Que dias tão alegres nos tem preparado o infortúnio! Alegre-se v. ex.ᵃ e consolêmo-nos mútuamente até que Deus quebre obstáculos tão tiranos.» E outra vez no meio de uma carta dirigida ao pai: «E v. ex.ᵃ, mano Tancredo, não me esquece um instante. V. ex.ᵃ, que é o estimável companheiro de meu pai, tem parte com êle em todos os nossos pensamentos.» Quando a doença de D. José bastante pronunciada para tornar provável a sua morte próxima dá alguma remota esperança de liberdade à infeliz família de Alorna, Leonor com a sua habitual expansão, escreve ao pai pintando-lhe os quadros de felicidade familiar, que a fantasia lhe representa. «Vamos, como diz o mano Tancredo para o Vimeiro, para Almeirim[62]; a nossa sociedade, até Deus olhará para ela com gôsto. Nunca a virtude se há de desviar dela e a liberdade fará tôda a sua delícia.»[63] «As ideas em tumulto não sofrem nenhuma ordem, quando escrevo--acrescenta Leonor na desordenada alegria com que a desnorteia a esperança, ou o prenúncio de uma próxima libertação.--O coração cheio de sentimento e num tremor de impaciência desacomoda-se para escrever. Nada me contentava agora senão voar e entrar como um pintasilgo por essas janelas para conversar com v. ex.ᵃ. Que gôsto teria em vos ver? Já lá estou... Vejo a v. ex.ᵃ alegre, e num cárcere, quási sem luz, descorado, magro e com tôda a impressão dos seus trabalhos... Será assim, meu querido pai? Melhor fôra que v. ex.ᵃ viesse aqui aonde eu me acho. Só, em uma pequena casa, rodeada de livros, escrevendo com as lágrimas nos olhos o que me não cabe no coração. Achar-me ia uma célebre figura, com um roupão côr de fogo, forrado de peles escuras, o capuz na cabeça, sem pós, despenteada, com tôda a desordem de quem sente infinitas saudades. Que me diz v. ex.ᵃ ao delírio desta carta?... Se v. ex.ᵃ visse o apetite, o alvorôço e as saudades com que eu estou, tudo acharia pouco. Devéras, meu querido pai, o coração avistando a meta desejada corre com uma velocidade atrás dela, que nem o tempo incansável pode alcançá-lo... Diga v. ex.ᵃ ao mano Tancredo que a condessa está convidada para madrinha da mana, para que tudo seja completo.» A idea de viver com os pais no campo (em Almeirim) lisonjeia-lhe estranhamente a imaginação educada por Jean Jacques Rousseau, que então andava revelando os encantos da simplicidade, os encantos da natureza, às frívolas raínhas dos salões de Paris. E tôda imbuída das máximas da filosofia reinante, de que eram propagandistas os seus autores queridos, escreve ao pai, o velho fidalgo que achava Voltaire digno de queima: «Eu cuidei que ainda tinham algum poder sôbre v. ex.ᵃ os atractivos de uma côrte brilhante, e que a glória, que de um certo modo se entende ligada à ostentação, podia ser alguma tentação para v. ex.ᵃ que perdeu o tempo melhor da sua vida no seio dos desastres (_sic_). Vejo que não falta nada a v. ex.ᵃ, meu querido pai, e que avalia a felicidade segundo a filosofia, que dá mais valor a ser homem que a ser fidalgo, e isto que concorda inteiramente com os meus princípios dá-me um gôsto inexplicável. Não aspira v. ex.ᵃ senão a uma vida oculta e tranqùila, aspira a provar todo o preço da sua existência, aspira a tôdas as delícias do coração sensível, e eu não aspiro senão a procurar-lh’as e a gostar com v. ex.ᵃ os prazeres que se ignoram no tumulto da côrte. Diz v. ex.ᵃ que «se esqueceu que poderia ser grande doutor se aproveitasse todo êsse tempo», e eu digo que tudo quanto v. ex.ᵃ podesse adquirir não produzia mais do que v. ex.ᵃ possue na disposição em que se acha. «E agora vou falar com o mano Tancredo. Pode v. ex.ᵃ segurar-lhe que a sua linda noiva gostou sumamente das novas que êle dá do que sabe. Estimou muito que soubesse as duas línguas italiana e francesa. Riu com a medicina, desejando mais que êle antes fôsse físico do que médico.» O perfume avelhantado de tôdas as cartas de Leonor é que é o seu encanto supremo para o crítico. Como elas pertencem pelo estilo ao tempo de que são datadas!... E como a par disso elas teem o cunho individual da mulher que as escrevia, tão diversa das mulheres portuguesas da sua classe, tão namorada de erudição a ponto de parecer muitas vezes um poucochinho pedante. Mas essa leve tintura de pedantismo deve ser-lhe perdoada se a considerarmos a natural reacção de um espírito inteligente e culto contra a boçalidade que distinguia a sua classe e a sociedade de que ela fazia parte muito a seu pezar. Os que pretendem conhecer a fundo a ignorância do tempo em que destacaram excepções raríssimas, leiam as descrições da sociedade portuguesa no tempo de D. Maria I, feitas por estranhos sempre mais capazes de verem bem aquilo que vêem pela primeira vez.[64] Ela mesmo dá mais de uma vez ao pai nas suas cartas exemplos dessa boçalidade que a desespera. Eis um dêles: «Estávamos na grade com as primas S. Miguéis e outras pessoas de confiança, de sorte que uma delas estava cantando algumas cançonetas, cuja letra era de Metastásio, e caindo naturalmente a conversação sôbre a galanteria dêste poeta, disse o Principal Boto em tom de doutor, que o Metastásio não fizera mais que copiar Tibullo e Catullo, os quais não andavam pelas mãos de todos, e por essa razão nos admirávamos tanto das belezas de Metastásio, porêm êle que as achara já na língua latina _traduzidas do grego_, não fizera mais do que roubar-lhes o pensamento para as pôr nas suas obras. Eis aqui como por cá se fala, meu pai, e se v. ex.ᵃ viesse havia de ouvir muitas destas. A uns que o estabelecimento das Vestais fôra formado segundo a idea das Virgens do Evangelho, a outros que as almas felizes eram conduzidas por _Júpiter_ aos Eliseus--mil frioleiras daqueles mesmos que teem a confiança de criticarem as mulheres que podiam mandá-los jogar o pião com os rapazes de escola.»[65] Outras vezes fala dos desdens que pela _mulher aplicada_--é esta a frase do tempo--teem e manifestam os rapazes fidalgos, os que levam a vida em arruaças, façanhas de picaria, guitarradas nocturnas, orgias de baixo nível. Beckfor mais de uma vez se refere ao gôsto de freqùências baixas que há nos moços da fidalguia portuguesa, os quais se não pejam de ter por amigos os picadores, os boleeiros, os lacaios, etc., com quem dansam o fado, e se associam para as grossas pancadarias. Tudo que se lê com respeito à casta aristocrática em Portugal, revela claramente como ela voluntáriamente abdicou, abastardando-se, anulando-se, embrutecendo nas convivências de parasitas, bobos e ignorantes de má laia... Tolentino é recebido nas grandes casas pelos lados mais degradantes do seu carácter, pela veia de pedinte e de adulador, que tão negramente macula o seu estro admirávelmente cómico. A aristocracia, à qual sómente restavam os privilégios adquiridos sem nenhuma das virtudes ou das heróicas façanhas que os haviam justificado, havia fatalmente de desaparecer da scena social, logo que, abolidos êsses privilégios e disperso aos quatro ventos o património que os representava, ela aparecesse tal qual era, tal qual uma educação corruptora e péssima a tinha feito lentamente, salvas raras excepções que destacam com pitoresco relêvo, e que por isso mesmo não constituem regra. Leonor de Almeida percebia tudo isto. A sua inteligência mais vigorosa do que feminilmente delicada, não lhe deixava a respeito da sua classe em Portugal qualquer ilusão consoladora. É por isso que tão ardentemente busca distanciar-se do _meio_ em que nasceu e em que pensa terá de viver, é por isso que estuda infatigávelmente, protestando por êste modo contra a ignorância que a invade como uma maré lodosa e turva. Duas vezes, durante o cativeiro de Leonor de Almeida, tiveram seus pais o projecto de a casar, como naquele tempo se casava por conveniência de família, por alto interêsse de raça. Um dos noivos que para ela desejaram foi D. João de Bragança, o futuro duque de Lafões, de quem falaremos mais tarde, já velho áquele tempo, e que então, receoso da tirania política de Pombal, andava casquilhando e brilhando pelas côrtes de Viena e de Versailles. A êste projecto um tanto fantasioso, e que parece não ter tido sólidos alicerces, pôs ponto o bom senso incontestável de Leonor e do marquês. O outro noivo que quiseram dar-lhe, e com êste se adiantaram bastante as negociações, que felizmente Leonor de Almeida conseguiu malograr a final, era D. Brás da Silveira, filho primogénito de D. Nuno de Távora, o qual, por ser irmão segundo do marquês de Távora, estava na prisão da Junqueira juntamente com o marquês de Alorna. Uma filha de D. Nuno de Távora casara com o conde da Redinha, e êste enlace de uma sua parenta próxima com o filho do perseguidor da sua família inteira, desgostava profundamente D. Leonor de Almeida. A sua principal objecção ao casamento preconizado por seus pais, era ficar em virtude dêle cunhada do conde da Redinha. Isto é que o ânimo cavalheiroso e tão ultrajado de Leonor não podia aceitar livremente. A propósito dêstes seus parentes Silveiras fêz Leonor nas cartas ao pai um espirituoso e expressivo retrato que não deve ficar eternamente inédito, porque representa mais que uma individualidade, a final de contas obscura, representa a figura típica do fidalgo português, enfatuado, ignorante e ridículo. O retratado é D. Bernardo da Silveira, irmão daquele que os marqueses de Alorna desejavam para noivo de sua filha. Ouçamos, pois, esta num dos seus raros momentos de _verve_ endiabrada e natural. «O carácter da família dos Silveiras é coisa muito célebre. Parecem-me fidalgos de província. O primo Bernardo é um daqueles que se pintam, e eu o pintara se v. ex.ᵃ me desse licença para dar quatro gargalhadas à custa do meu futuro cunhado, sem que isso ofendesse as minhas obrigações, mas falar com meu pai é pensar alto, e vou dizendo: «É um mocetão pela figura do mano, mas de cara muito peor, contudo, persuadido da sua gentileza, crê piamente que andam nos seus ferros tôdas as belezas do mundo e toma um ar de satisfação muito célebre que faz rir. «Com o desembaraço de colegial julga-se sábio, e zomba das belas letras de que não entende nada, celebrando sempre a profundidade dos autores de direito canónico, e os toiros, qualquer destas coisas muito interessante em uma companhia de senhoras. «Não crê na aplicação das mulheres, e trata-nos sempre com ar de superioridade e de ignorantes, fatigando-se com explicações e pequenas histórias bastantemente impertinentes. «Como a tia Maria tem assoprado muito a vaidade dêste e abusado da paciência, moleza e bondade do outro, observa-se uma certa altivez que vistos ambos, parece o primo Bernardo um sogro, que me faz obséquios, porque intenta casar seu filho comigo, e o outro um enteado, sem confiança com o padrasto. Eu e a mana, defronte dêstes dois indivíduos, tambêm nos podiam pintar, e se acaso se vê na minha cara a variedade de coisas que me passam pela cabeça, tambêm haveria de que rir. A tia Maria, em ar de Sybilla Comea, trata-me com o maior carinho, e eu correspondo como devo, mas estou muito costumada a reflectir para não distinguir o que é, do que parece. Do primo Brás (o futuro noivo) dará minha mãe notícias, mas eu não posso fiar de ninguêm esta anedota. «Para agradar à sua noiva, que é aplicada, começa agora os seus estudos, por um jardim botânico e umas estufas.» Quando o pai teima em apresentar a Leonor de Almeida as vantagens sociais do casamento com D. Brás da Silveira, ela responde-lhe com melancolia impressionadora: «Estou nas fatais circunstâncias de ter que decidir-me, com um susto inexplicável e com o mais vivo desejo de acertar e de ser útil aos interesses de v. ex.ᵃˢ. Se me pertence a glória de ir com as minhas ansiosas diligências libertá-los, pereçam todos os sistemas em que eu tinha fundado a minha felicidade própria, e será uma sorte assás digna de satisfazer-me aquela em que eu puder servir o meu querido pai, e procurar o inteiro restabelecimento de minha mãe. Nada mais me pode obrigar ao sacrifício da minha liberdade, e a tomar o trabalhoso encargo de mãe de família. O coração e o pensamento todo ocupado das minhas perdas e das minhas aquisições apresenta-me como um desastre o sair dos braços da minha mãe, da casa de v. ex.ᵃ, para outra desconhecida, onde me não leva nenhum princípio dos que a natureza nestes laços poderia apresentar. O rapaz é um homem sem estudos; que julgará dos meus? Tem uma irmã aliada com o algoz que abomino. Como poderei eu ver de perto similhante gente? Mas representa meus avós (é filho de um tio direito da marquesa de Alorna); trabalha na liberdade de minha mãe, anuncia vagamente a de v. ex.ᵃ! Se me conseguir... oh! meu querido pai, tomara antes de separar-me desta casa, abraçar nela a v. ex.ᵃ, tomara que v. ex.ᵃ viesse aqui ensinar-me qual é o meu dever. V. ex.ᵃˢ ambos é que melhor do que eu poderiam remediar tantas perplexidades. Eu não sei o que digo, não sei o que faço, vivo em uma escuridade impenetrável... Deus me socorra, e me faça atinar com o que for melhor...» Felizmente para a nossa biografada, o pai não teimou em dar-lhe para marido um homem que Leonor não respeitava nem amava, e a sonâmbula gentil do cláustro de Chelas continuou a ler, a sonhar, a instruir-se, a reflectir na plena liberdade do seu indisciplinado e ardente espírito. Pena é que não tenhamos outras revelações do que ela então pensava e sentia, alêm das que encontramos nas suas cartas ao pai. Por muita confiança que aos vinte e vinte e quatro anos se tenha nos pais, nunca é a êles que uma alma juvenil se confessa inteiramente. Os versos de Leonor feitos em Chelas e publicados no primeiro volume das suas obras, são ainda menos reveladores do que as suas cartas. Pelo modo de versejar, Leonor pertence inteiramente nesta primeira fase da sua vida à escola pseudo-clássica do século XVIII, no que ela tem de mais falso e de pior. Uma interminologia enfadonha, uma quantidade incontável de nomes e de alusões mitológicas--não da bela mitologia grega tão naturalista, tão profunda nos seus símbolos, tão ladina nas suas encarnações humanas,--mas de uma falsa mitologia, dentro da qual se não lobrigava uma idea única, e que abonando em favor da erudição de Leonor, diz muito pouco do seu coração e da sua sensibilidade. O que, porêm, temos das suas belas cartas, de sobejo nos deixa perceber quantos sonhos se abrigariam naquela ardente imaginação de rapariga. Tancredo--o infeliz filho do duque de Aveiro, a que estava reservado um destino tão negro--era o príncipe azul de Maria de Almeida. Leonor havia de fantasiar mil vezes o seu. Não sabia donde êle tinha de surgir um dia, mas estava certa de que viria na hora própria e de que não seria parecido com nenhum daqueles que os interesses da família por mais de uma vez tinham tentado impor-lhe. Para _êle_ cuidava com esmero da sua formosura singular em que tantas vezes ingénuamente se revê, com adorável garridice; para _êle_ adorna o seu espírito de tôdas as graças, de tôdas as riquezas, de todos os encantos... Será bravo como um herói; há nela a paixão _corneliana_ de tôdas as grandezas épicas; mas será tambêm cultivado como um sábio, eloqùente como um poeta, e profundo como um filósofo. Bayard e Voltaire encarnados num só homem. Conversará com discreta graça dos mil assuntos que a preocupam; terá as aspirações que ilustram o seu tempo, pressentirá tôdas as grandes innovações de que ela antevê com secreto enlêvo a próxima alvorada. Nos cláustros húmidos e melancólicos do seu mosteiro escondido, Leonor evoca essa figura maravilhosa, que não encontrará de certo jámais, e nessa evocação mágica se consola de tôdas as lutuosas tristezas da realidade. Os que nunca viveram pela imaginação não podem conceber o que seja êste dom milagroso com que ela enriquece os seus eleitos. Não sabem que na pobreza, na solidão, na clausura, é possível ser-se feliz quando se possue a chave de oiro dêsse país das quimeras a que sobem os que teem asas! E dêsse vago sonambulismo de poetisa, de erudita e de fantasista adorável despertou um dia de súbito Leonor de Almeida ao sentir dobrar fúnebremente todos os sinos de Lisboa, anunciando a morte de um rei, a morte do rei que esmagara todos os seus. NOTAS DE RODAPÉ: [19] Frei Luís de Sousa, _Hist. de S. Domingos_. [20] Frei Luís de Sousa, _Hist. de S. Domingos_. [21] Manuel Bernardes Branco, _Hist. das ordens monásticas em Port._. [22] Manuel Bernardes Branco, _Hist. das ordens monásticas em Port._ [23] _As prisões da Junqueira durante o ministério do marquês de Pombal_, escritas ali mesmo pelo marquês de Alorna, uma das suas vítimas. [24] _As prisões da Junqueira durante o ministério do marquês de Pombal_, escritas ali mesmo pelo mesmo marquês de Alorna, uma das suas vítimas. [25] Correspondência inédita. [26] António Augusto Teixeira de Vasconcelos; Camilo Castelo Branco, no _Dicionário Universal_; D. António da Costa, na _Mulher em Portugal_, etc., etc. [27] Correspondência inédita de Leonor de Almeida. [28] Correspondência inédita. [29] Correspondência inédita. Refere-se às constantes ameaças de a fazerem freira, que lhe vem aos ouvidos, trazidas por várias pessoas. [30] Correspondência inédita. [31] Idem. [32] Idem. [33] Correspondência inédita. [34] _La femme au dix-huitième siècle._ Goncourt. _Les origines de la France contemporaine._ Taine. Memórias. Cartas, correspondências do tempo. [35] Atália de donaire! [36] Correspondência inédita. [37] Camponesa de Frielas. [38] Correspondência inédita. [39] Obras da marquesa de Alorna, tomo 1. [40] Obras de Filinto Elísio. [41] Teófilo Braga, _Hist. de literatura_. [42] _Poesias da Marquesa de Alorna_, tomo 1. [43] Correspondência inédita. [44] Correspondência inédita. [45] Correspondência inédita. [46] A alusão a Cromwell mostra bem claramente a ignorância do tempo, e a sua falta de critério histórico. Cromwell equiparado a Calígula e a Nero! Compare-se esta idea acêrca do grande _protector_ inglês, com o retrato dêste feito por Carlyle! [47] Correspondência inédita. [48] Era assim que Leonor chamava à amiga Teresa. [49] Refere-se a um caso assim narrado noutra carta: «Alexandre de Sousa, que é uma das pessoas mais vivas que conheço, estando connosco (na grade) deram Avè-Marias ao tempo que êle estava merendando. Fêz várias caretas célebres pelo descómodo de largar o prato, pôs-se de joelhos, enguliu o bocado, etc., e finalmente não concluíu a manobra senão depois delas rezadas e tudo acabado. Cada uma das pessoas que ali estava, disse sua graça sôbre a falta de devoção, e eu em tom de justificação irónica, respondi: «O sr. D. Alexandre bem sabe que Deus quer que o adorem em _espírito e verdade_, que olha só para o culto interno e que o mais são _fórmulas_ para nós, com que êle não se dignou fazer cumprimento. Eu julguei ter-me explicado bem, mas foi o contrário que sucedeu. Creio que S. Paulo não acharia na minha proposição a mínima liberdade.» [50] Correspondência inédita. [51] Idem, idem. [52] Idem, idem. [53] Correspondência inédita. [54] Correspondência inédita. [55] Como nesta simples frase se vê bem a leitora assídua da enciclopédia e dos filósofos e moralistas do século XVIII! Que longe ela coloca Leonor de Almeida do ideal devoto e mediévico a que ela porventura julga ser ainda fiel! A honra _um preconceito_ é da disciplina de Voltaire e não da môça educada pelos moldes épicos da cavalaria antiga. [56] As de Leonor de Almeida, publicadas nas suas obras completas. [57] O dr. Inácio Tamagnini. [58] Frase impagável. [59] Nas _Noites de Insónia_ Camilo refere-se a esta satira. [60] É assim chamado tanto na correspondência inédita de Leonor de Almeida, como nas _Prisões da Junqueira_, do marquês de Alorna. [61] Vide _Prisões da Junqueira_. [62] Propriedade da casa de Alorna. [63] Como isto está datado. [64] Costigan, Beckford, Châtelet, _Tableau de Lisbone_. [65] Correspondência inédita. CAPÍTULO III Morte de el-rei.--É despedido brutalmente o marquês de Pombal.--Soltura dos presos da Junqueira.--O marquês de Alorna na portaria de Chelas.--Orgulho do marquês.--Seus esforços para uma pronta reabilitação que alcançou.--Retirada da família de Alorna para Almeirim.--Desilusões de Leonor.--Antagonismo moral do pai e da filha.--Reacção desbragada do reinado de D. Maria I.--O ministério da rainha.--Angeja.--Vila Nova.--Martinho de Melo.--O cardeal da Cunha.--Tancredo e Maria de Almeida.--Desgôsto do marquês de Alorna.--A côrte de D. Maria I.--A rainha e sua loucura.--O rei.--O príncipe do Brasil.--O confessor da rainha arcebispo de Tessalónica e o seu leigo.--Os marqueses de Marialva e a sua principesca hospitalidade.--Festas típicas da sua casa.--Os Penalvas.--Várias figuras do tempo.--O duque de Lafões e o mestre Gluk.--Pitoresco da vida portuguesa, mas falta de influência feminina.--A castidade da rainha e o teatro.--Do estado lastimável a que êle desceu.--Farças, entremesses, tragédias.--Conflito entre Leonor de Almeida e o seu meio.--Casamento que a liberta dêsse meio.--O conde de Oeynhausen.--Cerimónia do seu baptisado.--Testemunha ocular que a narra minuciosamente.--O sermão do frade dominicano.--Oposição do marquês de Alorna ao casamento da filha.--Desobediência de Leonor e seu casamento com o conde alemão.--Referência de Bocage a Alcipe. A 24 de Fevereiro de 1777 morria el-rei D. José, e na manhã dêsse mesmo dia, quando o marquês de Pombal, segundo o costume, se encaminhava para os quartos em que o seu régio amo agonizava, tolhia-lhe o passo o cardeal da Cunha, dizendo-lhe em tom altaneiro: «V. ex.ᵃ já não tem nada que fazer aqui.» Nesta frase desdenhosa resume-se uma das mais monstruosas ingratidões da história. O cardeal fôra uma criatura do marquês; para ter chegado ao fastígio do poder que ocupava agora, não tivera outra recomendação alêm da que lhe dava, naquele tempo, o prestígio do seu nome. Como êsse nome, ainda assim, era o de Távora, o cardeal teve a baixeza de o renegar, só por julgar que isso seria um requinte de côrte feita ao seu poderoso protector.[66] De resto, vaidoso e ignorante, a sua Biblioteca, composta de onze mil volumes, inspirava ao conde da Ponte o conhecido chiste das _onze mil virgens_; e nada mais nulo do que a sua figura de estadista improvisado por um capricho do marquês de Pombal, que tão cruelmente expiou a fraqueza de ter confiado nêle, ou o cálculo de o ter querido como inofensivo companheiro de govêrno. Formulou-se desde logo um programa completo de reacção, que rápidamente se pôs em prática em seguida à morte de el-rei. O primeiro sintoma dessa reacção impudente e súbita foi a desatenciosa frieza com que o marquês, ontem omnipotente, começou de ser tratado por todos aqueles que se haviam curvado, em abjecta adulação, ante os excessos do seu poder e os abusos da sua autoridade. Uma parte, e a mais louvável do programa dos novos conselheiros da rainha, consistia em abrir de par em par as portas dos cárceres em que jaziam desesperadas as vítimas da política pombalina e do ódio de D. José. Imagine-se a alegria, o férvido entusiasmo de Leonor de Almeida, quando a notícia de que iam ser finalmente soltos, depois de um cativeiro de dezoito anos, todos os sobreviventes da tragédia de Belêm, soou através das grades que a separavam do mundo, sem contudo, a terem alheado de nenhum dos seus interesses. Era uma hora da noite quando o marquês apareceu no locutório de Chelas, onde o estavam esperando a chorar de convulsa alegria as filhas e a mulher. Figure-se o que seria o encontro dos dois esposos! Tinham-se separado havia dezoito anos sem se tornarem mais a ver, nem sequer de longe. A ela tinham-lhe arrancado dos braços um gentil cavaleiro, na flor da mocidade, esbelto, airoso, desempenado e forte; êle deixava uma mulher lindíssima, que a maternidade fizera mais adorável sem a ter feito menos bela, e cujos olhos, de um azul violeta, cujos louros cabelos abundantes, cuja fisionomia idealmente fina vemos magistralmente reproduzida no retrato esplêndido que dela existe ainda[67]. Que mudança nos dois! O marquês vinha curvo, cansado, envelhecido e triste. As faces trazia-as precocemente avincadas pelas meditações dolorosas; nos olhos havia-se-lhe apagado o fogo da temerária juventude; os cabelos, outrora elegantemente polvilhados à moda da côrte, vinham brancos sim, mas embranquecidos pelo martírio. Por sôbre ela haviam rodado pesadamente, lentamente, os dias da separação e da clausura; mas os vestígios de uma notável beleza ainda se não haviam de todo apagado nesse rosto que a alegria de ver o seu adorado ausente purpureava agora. Nenhum requinte de garridice cortezã restava ao infeliz prisioneiro, para quem Leonor de Almeida--sabendo que as suas cartas eram interceptadas e lidas antes de serem entregues--pedia a quem as lesse, empregando as frases da mais terna súplica, «uma capa de baeta ao menos que o resguardasse dos rigores do frio no seu húmido càrcere.»[68] Mas, velho como estava, lá dentro ardia a mesma chama impetuosa de orgulho. Não queria aceitar a clemência régia como uma esmola voluntária, senão como um preito justo, uma restiuìção devida a quem muito a merecia. Por isso, longe de se dar por satisfeito com a amnistia concedida a quási todos os presos políticos do tempo de D. José, vê-lo hemos em breve começar essa demanda longa e complicada da sua completa reabilitação judicial, requerendo, acompanhado pelo conde de S. Lourenço, D. João Ansberto de Noronha, e por três irmãos do marquês Francisco Assis de Távora, a nomeação de uma junta de magistrados para se pronunciarem acêrca da sua inocência ou culpabilidade. E emquanto êsse tribunal, que, por ordem da rainha, não tardou a constituir-se, demorou o seu parecer, o marquês recusou-se formalmente a ficar na côrte. Repugnava-lhe o papel de perdoado, a êle que se reputava vítima de um julgamento iníquo. Foi, portanto, com a família estremecida para o vale de Almeirim, onde possuía uma das suas mais formosas quintas. * * * * * As cartas de Leonor, que até aqui nos tinham acompanhado e amplamente informado, faltam-nos neste momento. Só por intuìção poderemos reconstruir os sentimentos novos, as emoções deliciosas, as surprêsas melancólicas de que o espírito e o coração dela forma o teatro já agora silencioso. Mais tarde, falando de Almeirim, ela procura descrevê-lo com as frouxas tintas de que dispunha a poesia falsa do seu tempo: Nem pórticos marmóreos, nem colunas Que cinzelasse em Paros mão perita, Há de achar neste sítio: altos pinheiros Formam de espêssa rama o nosso teto, E gramínea alcatifa nos of’rece, Para pensar logar acomodado. Uma fonte serêna ali murmura, E mil vezes afoita a fantasia, Cuida ouvir revolver-se dentro d’água A Naiade gentil que lhe preside. Se agita o vento as canas buliçosas, Se da serra um rochedo assusta a vista, Mitológicos sonhos me recordam, Ora aquela que a dor petrificara, Ora a Ninfa medrosa e fugitiva Que o pudor converteu em verde junco.[69] Mas é provável que nessa hora singular da sua mocidade, hora de ardentes esperanças, de violenta reacção contra a desgraça que por tantos anos perseguiu todos os seus, hora rubra, iluminada de tôdas as vivas côres de uma imaginação de poeta, Leonor não tivesse uma predilecção muito pronunciada pelos pinheiros agudos, nem pelos buliçosos canaviais da sua solitária Almeirim. Só amam verdadeiramente o repouso no seio da natureza aqueles a quem a vida frustrou tôdas as promessas feitas, e que dela cessaram de esperar seja o que for. Leonor esperava ainda muito do mundo; êle devia-lhe uma famosa desforra. Emquanto lh’a não desse ou a não persuadisse a poder de desilusões de que era um devedor insolúvel, Leonor não queria nem descanso nem solidão. O que ela provávelmente ambicionava agora, já cansada de regras conventuais e de rezas e de misticismo, era mover-se, agitar-se, viver em tôda a plenitude, e tôda a exuberante energia da sua mocidade, em tôdas as faculdades do seu curioso e irrequieto espírito. Era participar da alegria dos outros, de que tantos anos estivera exilada; era falar com gente môça, despreocupada e feliz; ouvir os discretos galanteios e as floridas frases namoradas dos rapazes do seu tempo, e manifestar a graciosa agudeza do seu entendimento em práticas literárias e eruditas com os celebrados engenhos da época; era resvalar gentilmente entre finos requebros galantes, nos minuetes dos esplêndidos saraus, acompanhada por um par preferido; era mostrar emfim a olhos que soubessem apreciar e ver, a sua impecável formosura peninsular, os seus grandes olhos luminosos e ardentes onde se reflectia tanta exaltação, tanta espiritualidade e tanta vida. O duque de Châtelet, que fêz a sua viagem a Lisboa justamente no ano em que as filhas do marquês de Alorna deixaram o convento de Chelas (1777), fala do abatimento em que as havia pôsto a longa reclusão nestes termos precisos: _Vi duas raparigas que tinham entrado para a prisão, acompanhando os pais, ainda na primeira infância e que saíam com dezenove e vinte anos parecendo quarenta. (Voyage en Portugal du duc de Châtelet)._ Ora a verdade é que não pareciam ter quarenta nem tinham vinte. Leonor tinha vinte e seis anos; tinha vinte e cinco a irmã, e não podiam parecer muito mais velhas, porque, posterior à data a que se refere o duque de Châtelet, é o retrato da nossa biografada que ainda hoje se admira numa das salas da magnífica vivenda dos marqueses de Fronteira, em Bemfica, e nesse retrato a beleza imperial de Leonor ressalta com expressão admirável. Não era sómente uma mulher bonita, era uma mulher encantadora. Tinha a sagacidade crítica, o espírito leve e sarcástico, e a observação nítida e profunda de um moralista. Nas suas poesias contaminadas, é certo, pelas pechas da escola pseudo-clássica, em que fôra educada e à qual subordinava o seu nativo engenho, cheias de alusões mitológicas indispensáveis ao tempo, revela-se no entanto um belo poder descritivo e uma fôrça de reflexão viril. Mais tarde a educação que lhe deram as viagens e o conhecimento da literatura estrangeira completaram e aperfeiçoaram o seu talento, e ela foi entre nós, como a Stael em França, uma espécie de iniciadora, de reveladora do pensamento e da poesia do Norte, que nos eram inteiramente desconhecidos. Em Almeirim, nessa espécie de entre-acto no meío de dois dramas diversíssimos, Leonor sonhou de-certo com os triunfos que o seu talento lhe ia conquistar, e com as delícias que lhe daria ao sair da clausura a intimidade da família, agora completa. É tão natural êste sentimento, que nem o mais scéptico espírito masculino seria capaz de esquivar-se-lhe. Mas não tardou que uma nuvem, prenúncio de muita tempestade interna, ameaçasse de avolumar-se sôbre a fronte da juvenil poetisa. O seu pai, o seu querido pai, o confidente da sua sombria mocidade, o amigo com quem ela desabafava todos os seus pensamentos, ainda os mais ocultos, o juiz continuamente invocado para julgar os seus versos, para aconselhar as suas leituras, o espírito a que ela chamava irmão do seu, e com o qual se comprazia em alar-se pelos livres espaços da abstracção e da filosofia--que diverso lhe aparecia do que ela tinha imaginado em longas horas de idealizadora e de inspirativa saudade! Que diferente dessa figura ideal que ela se tinha deliciado em criar na solidão do seu quarto de Chelas, quando escrevia envolta num roupão de sêda côr de fogo, com os belos cabelos soltos, e feliz por sentir-se uma heroína de romance, ou uma gentil figura, digna da história pelo infortúnio e pela grandeza da resignação. Oh! o marquês não mudara; era o mesmo homem rígido, inteiro, coerente, que sempre fôra; seguia a lógica do seu destino, e mais nada. É certo que êle recebera, pelas suas leituras juvenis, o influxo das ideas que, provindas da Inglaterra liberal de 1688 e divulgadas pela França filosófica e investigadora de Bayle, de Montesquieu, de Voltaire, irrompiam para nós através da espêssa nuvem de preconceitos que nos separavam do mundo, e se iam insinuando subtilmente nos espíritos mais aptos para as acolherem. O marquês de Alorna pertencera áquele número, bastante avultado, de fidalgos inteligentes, mas de uma inteligência restrita, que aceitavam até certo limite,--imposto por êles--as novas ideas em ebulição, contanto que elas não passassem da esfera puramente abstracta para o campo dos factos definitivos e das leis reformadoras. Queria, é certo, distinguir-se pelo pensamento livre e pelo critério desassombrado[70] dessa plebe beata ou hipócrita, dissoluta ou bestificada, que então enxameava, ociosa e resmungando avè-marias, pelas portarias dos conventos de Lisboa, ou pelos pátios da fidalguia opulenta, que a alimentava das migalhas dos seus banquetes, ou das rações do seu refeitório; mas não admitia que essa plebe se emancipasse pela educação, e se fizesse povo pelo trabalho, pela fôrça e pela consciência dos seus direitos e deveres. Depois vira o espírito das novas ideas encarnado no homem que êle entre todos odiava, e tinha razão para odiar, no algoz da sua família, no perseguidor da sua casta. A burguesia,--que para o marquês de Alorna era representada pelo procurador oficioso, pelo boticário esguio e grotesco, pelo escrevente _pedinchão_, pelo físico condescendente e mesureiro, por tôda a caterva de aduladores e de parasitas que se atropelavam nas ante-câmaras patrícias, e de cuja falange retardatária, Tolentino, infelizmente um dêles, mas um dêles com génio, fêz depois a sátira brilhante e a descrição pungitivamente exacta,--a burguesia emancipara-se, levantara-se, enriquecera, civilizara-se, creara indústrias e comércio e grandes lavouras[71] e manufacturas florescentes sob a inteligente protecção de Pombal. A Igreja, auxiliar e amiga da aristocracia em todo o antigo regime, fôra despojada de grande parte dos seus privilégios e imunidades pela mão poderosa do grande inimigo de Alorna. O marquês de Pombal implantava ideas revolucionárias, servindo-se das armas do mais intransigente absolutismo. Esta contradição fundamental da sua obra é que a condenou a ser passageira e efémera. No espírito do pai de Leonor todo êste espectáculo contemporâneo produziu o natural retrocesso, que mais tarde se produziu tambêm em França no espírito da nobreza momentâneamente subjugada e namorada pelas generosas concepções da filosofia do século XVIII, e que essas mesmas concepções executadas e levadas até às suas conseqùências lógicas encheram de justificado pavor. Leonor, que saía do convento cheia de belas máximas, propagadas pelos filósofos da enciclopédia, e que julgava seu pai inteiramente convertido às mesmas doutrinas de liberdade e de filosofia, teve ao primeiro contacto real com o espírito endurecido do desenganado fidalgo, uma verdadeira e cruel decepção. Entre o pai e a filha cavou-se então um abismo moral que nunca mais foi transposto. Êles que tão bem se tinham combinado por escrito, em generalidades vagas sôbre a inanidade das grandezas, sôbre os prazeres da filosofia, sôbre o pouco valor das convenções sociais; êles que tinham ambos dissertado tão largamente sôbre o muito que o bem dos povos sobrelevava ao bem dos imperantes[72] e sôbre outros temas igualmente favoritos da filosofia declamatória e vaga do século--ei-los que se achavam agora divergentes em quási tôdas as matérias que versaram. A desgraça e os desenganos de um, levavam-no impetuosamente arrastado por uma corrente contrária áquela que impelia Leonor, vibrante de aspirações e de sonhos, para um futuro mais desassombrado de convenções estreitas, mais livre de superstições e de tiranias. O marquês de Alorna voltara completamente a ser o fidalgo devoto e ferrenhamente aristocrático, com assômos violentos de revolta feudal, que deixara de ser por momentos, durante o tempo em que «pérfidas leituras de filósofos dignos de queima»[73] o tinham afastado do bom caminho. Aceitava, até às suas conseqùências extremas, os princípios da reacção que tumultuava impudente e feroz desde o paço, em que o rei e a rainha viviam ajoelhados no oratório, até à rua; desde os camarins forrados de tapeçarias de Arras, em que as damas da côrte tocavam no cravo músicas de Haydn, de Gluck e de Jomelli, até à taverna em que as rameiras e os mendigos cantavam ao som do violão nacional as sátiras populares em que figuravam Marquês, Mendonça e Mansilha[74]. os poderosos de ontem, hoje vituperados e cuspidos sem dó. Comandava essa reacção desbragada o novo ministério da rainha, em que Angeja e Vila Nova da Cerveira representavam a aristocracia soberba, intransigente e cobiçosa, consumada na arte da cortesania e da lisonja; em que a figura enigmática de Martinho de Melo se destacava pela inteligência cultivada e fina, pela mordacidade irónica, pelo conhecimento profundo das civilizações estranhas de que se penetrara largamente em França, na Inglaterra e na Holanda, pela hábil dissimulação com que ocultava, sob a aparência de um fiel servidor da causa da nobreza, um espírito de radical e de livre-pensador, capaz no fundo de continuar a obra de Pombal, se o scepticismo não fôsse um corrosivo, um dissolvente do carácter e da vontade. Ao pé dêle Aires de Sá e Melo, ministro da guerra e dos estrangeiros, mas com vocação frustrada para cónego da patriarcal, não se cansava de recomendar à tropa que rezasse quotidianamente o têrço, beijava a manga de cada frade que encontrasse no caminho, e benzia-se tantas vezes ao ouvir missa que era o espanto e a distracção cómica de quem lhe ficava ao pé. Quanto ao jôgo de xadrês complicado e subtil da diplomacia europeia, era letra morta para o devoto ministro, que de resto, na arte da guerra era tão profano como na de negociador. O cardeal da Cunha completava êste banal ministério, ao qual devia incumbir o gigantesco encargo de continuar, aperfeiçoando-a, a obra da regeneração portuguesa, iniciada pelo grande ministro de D. José. Já que não podiam nem queriam continuá-la, houve entre elles um preposito o de restituir ao cemitério da história o Lázaro que a poderosa mão do grande ministro galvanizara temporáriamente, e n’elle concordavam com perfeita unanimidade o orgulho de uns, a habilidade de outros, a demência e a ignorância do maior número. Para o marquês de Alorna, essa reacção, uma das mais repentinas e violentas, tinha ainda um grande defeito. Era branda em demasia. Ao seu ulcerado espírito só satisfaria cabalmente a condenação de Pombal a penas tão duras como as que êle infligira aos mais conceituados membros da velha nobreza, e a reabilitação da memória dos que tinham sido imolados ao que êle supunha um infernal enrêdo do ministro de D. José. Queria, alêm disso, que os sobreviventes fôssem restaurados em tôdas as suas honras e todos os seus haveres. Que a sua própria inocência lhe fôsse reconhecida pela junta congregada pela rainha, isso tinha êle por certo, e assim se realizou a breve trecho. Em Maio de 1777 expediu a soberana um decreto em que se declarava o marquês de Alorna puro de tôda a culpa de inconfidência restituindo-o às honras que por direito e nascimento lhe pertenciam[75]. Não ficava, porêm, ainda satisfeito o orgulho do marquês. Uma pretensão tinha a mais, que muito perto do coração lhe tocava. Vinha a ser a restituìção dos bens, honras e títulos da casa de Aveiro ao malogrado primogénito do duque, D. Martinho de Mascarenhas, conhecido entre os presos da Junqueira pelo _marquesito_. Nem Latino, o qual explica larga e minuciosamente as diligências que o marquês de Alorna empregou para êste fim, nem outros escritores que temos lido, como Camilo Castelo Branco, Pinheiro Chagas, etc., conhecem os motivos particulares que determinaram o marquês de Alorna a meter-se ousadamente em tão difícil empreendimento. O leitor, porêm, já pelo capítulo precedente conhece êsses motivos. A filha mais nova do marquês de Alorna fôra prometida em casamento ao ex-marquês de Gouveia. * * * * * Neste ponto permita-se que abramos um parêntesis para contar até ao fim a lúgubre história de D. Martinho de Mascarenhas. A instâncias do marquês de Alorna, que desde a sua saída da prisão não descansava neste assunto, subiu à rainha uma _representação_ de que Latino Coelho[76] extracta os principais articulados, e em que o filho do duque de Aveiro se propunha comprovar que não podia ser infamado pela culpa de seu pai, aduzindo que era immune da pena hereditária por ser _nobilíssimo_, como descendente de régio tronco. Êste _memorial_ parece haver sido firmado por um letrado de fama áquele tempo na côrte de D. Maria, chamado Francisco da Costa. E diz Latino que, ou porque o causídico fôsse fogoso de índole, ou porque a tardança no bom despacho da rainha azedasse os ânimos do defensor e do mandante, o caso é que o advogado de Gouveia propugnara com veementes razões os direitos do seu cliente. «Trazendo em seu auxílio a constituìção de Arcadio, provava com jurídicos fundamentos que não cabia aos filhos antenatos ao delito a infâmia pelos crimes paternos. E agitando e resolvendo em sentido liberal o mais grave problema dos publicistas, a origem da régia autoridade, reproduzida em ousadas afirmações a doutrina de S. Thomás e do padre João de Mariana, de que a suprema potestade no povo residia e dêle era transferida condicionalmente para que a podesse reassumir e exercer quando a salvação do Estado o reclamasse.»[77] Concluía o advogado que os grandes de Portugal não podiam ser sujeitos à pena de infâmia pelos delitos de seus maiores.[78] O tom da doutrina, a segurança das asserções, a soberana e imperativa altivez de tal súplica, respiravam, segundo assevera o historiador já citado, por um lado a aristocrática altivez dessa nobreza da côrte que Pombal esmagara por algum tempo, e cujo orgulho agora renascia mais ulcerado e mais violento, por outro lado a revolucionária doutrina da soberania nacional, que principiava a insinuar-se nos espíritos mais adiantados. O caso é que, no testemunho de muitos contemporâneos bem informados, tais como o príncipe de Raffadali, que era ao tempo ministro plenipotenciário de Nápoles em Lisboa, do cavalheiro de Pollon, ministro plenipotenciário da Sardenha na mesma côrte, do autor das _Cartas de Lisboa_ extractadas no _Jornal de Murr_, e de outros mais, sentiu-se a rainha profundamente ofendida pelo desacato à régia autoridade que nesse _memorial_ era feito, e chegou a manifestar o seu formal desagrado ao marquês de Alorna, o qual, segundo o seu costume, se retirou azedado para as suas propriedades longe da côrte. Confirmando as suas asserções acêrca do desrespeitoso _memorial_, Latino Coelho publica por extenso o edital do intendente geral de polícia, datado de 13 de Março de 1781, _mandando recolher todos os exemplares de vários papéis satíricos em prosa e em verso, e de um extenso arrazoado em favor de Martinho de Mascarenhas_.[79] Foram, portanto, absolutamente baldados todos os esforços mais ou menos hábeis empregados pelo impetuoso marquês de Alorna. O noivo de Maria de Almeida, o Tancredo dos sonhos heróicos e romanescos das reclusas de Chelas, não participou do amplo favor com que, a impulsos e sob a influência dos grandes da côrte, Angeja, Vila Nova da Cerveira, Marialva, etc., e aproveitados destramente os melindres de consciência da fraca e desgraçada rainha, se proclamou judicialmente em alvarás expedidos em diversas épocas a inocência dos implicados no terrível processo, exceptuando o duque de Aveiro, sua descendência e os três subalternos seus cúmplices. A certeza dolorosa de que seriam baldadas as suas diligências com o fim de reabilitar e de restaurar na perdida jerarquia a D. Martinho de Mascarenhas, parece haver obumbrado e entristecido ainda mais profundamente o espírito já sobejamente melancólico do marquês. Recorreu desde então mais freqùentemente à solidão das suas quintas e herdades. Muito curioso de sciências matemáticas e de astronomia, a sua principal diversão era o estudo dos corpos celestes. Numa das composições mais felizes de Leonor de Almeida, a imitação da _Primavera_, de Thompsom, refere-se ela por êste modo aos estudos de seu pai: Quando lá nessa Tempe solitária No tranqùilo Almeirim as musas honras, Ou nas rochas de Almada os céus estudas. Lá, combatendo a turba de incertezas, Ignorado, a teus pés vês os sistemas Que a Newton e a Descartes deram fama. * * * * * Quando o marquês permanecia algum tempo em Lisboa, não deixavam de concorrer às suas salas as figuras mais notáveis da côrte de D. Maria I, que, por aliança ou parentesco, estavam tôdas estreitamente ligadas com a ilustre casa de Alorna. Visitavam-no tambêm com freqùência os estrangeiros famosos que por aqui passavam, e os diplomatas que aqui representavam suas respectivas côrtes. Só infelizmente não brilhava entre os freqùentadores dêsses saraus elegantes e falados por tanta maneira o infeliz que havia sido noivo de D. Maria de Almeida. É para nós, cronista, um verdadeiro enigma esta espécie de abandôno em que D. Martinho se deixou subverter. Como pode conciliar-se a amizade que o marquês de Alorna lhe votava, o seu porfiado interêsse em salvá-lo, com a resolução que o levou a conceder a mão de Maria, a prometida noiva do ex-marquês de Gouveia, ao conde da Ribeira Grande? É bem provável que a irmã de Leonor, em quem as mais doces virtudes da alma feminina--a piedade e o desinterêsse--parecem ter florescido suavemente, quisesse ser fiel no desamparo e na miséria áquele que lhe tinham permitido que amasse, quando havia a fundada esperança de que a corôa de noivado por êle oferecida tivesse o esplendor soberbo de uma corôa ducal. Mas fôsse qual fôsse o motivo que actuou no ânimo do marquês de Alorna, o caso é que êle ajustou o casamento de sua filha com o conde da Ribeira Grande, e que Maria se submeteu em silêncio. O romance daqueles puros amores foi cortado em flor, justamente na hora em que a figura, para nós apagada, quási indistinta de D. Martinho, devia tornar-se trágicamente interessante para uma mulher inteligente, romanesca e namorada. O marquês de Gouveia desapareceu. Sumiu-se na onda negra da miséria. Diz Camilo Castelo Branco que o sustentou até 1804, data em que morreu numa humilde casinha de Buenos Aires, a bôlsa do conde de Óbidos, do próprio marquês de Alorna, e finalmente de D. João VI. Timbraram em socorrê-lo pecuniáriamente, livrando-lhe o corpo das agonias da fome, já que não podiam ou não queriam livrar-lhe a alma de angústias lancinantes com que a teimosa memória havia de inferná-la. Educado, como o eram os fidalgos do seu tempo, na ignorância das coisas positivas e do trabalho redentor, o infeliz não soube reagir. Restavam-lhe três caminhos a seguir: o da revolta aberta contra a iniqùidade da instituìção que o esmagava; o do labor que o emancipasse das esmolas com que os da sua casta o manietaram e humilharam; ou o da abjecta submissão à injustiça que lhe faziam. Foi o terceiro que êle escolheu! Tancredo era no fim de contas um mediano herói! Maria de Almeida, essa, como dissemos, casou. Nas raras cartas dela que temos à vista, respira-se, a par de uma elegância e de uma graça feminina verdadeiramente encantadoras, a melancolia dolente e vaga da alma que se sente ferida na mais delicada e secreta fibra das suas asas. Morreu môça, mas estremecida pelos que a conheceram. Leonor tem lamentos inconsoláveis na sua musa um pouco ingrata para lhe chorar a morte prematura. Não era feliz, dizia ela com resignação suavíssima talvez lembrada das quimeras da sua poética mocidade; mas consolavam-na a música, os versos e os filhinhos que deixou na primeira infância. A sua voz era famosa nas salas de Lisboa, os seus versos são celebrados por Filinto, para quem ela é a formosa Daphne. Desta figura inteiramente ignorada pela história, apenas entrevista pela crónica do seu tempo, ressalta para nós, que lográmos através das suas cartas conhecê-la um pouco, um encanto estranho, uma doçura indizível, como que um pertinaz aroma de graça aérea e casta. Na nossa infatigável busca de documentos que nos fizessem penetrar na intimidade de Leonor de Almeida, topámos, sem querer, com êste pobre idílio ignorado, cujo remate é de uma tão insondável e silenciosa tristeza!... Que nos seja perdoado o termo-nos demorado respirando o perfume que dêle se exala, como de uma violeta esquecida entre as fôlhas de velino de um livro de orações. * * * * * Dissemos que freqùentavam a casa de Alorna as figuras principais da côrte. É azado, portanto, o ensejo para fazer uma rápida resenha dessa côrte ainda fulgurante, ainda opulenta, e que foi a última digna dêsse nome, a um tempo ôco e brilhante, que nós possuímos. Não era bela a rainha que lhe presidia, mas um viajante inglês, tão admirável observador como Horácio Walpole e tão fino _dilettante_ como êste, que ao tempo estava em Lisboa, declarava que era verdadeiramente impressionadora a gentil majestade do seu porte, a nobre expressão bondosa e ao mesmo tempo imperativa da sua fisionomia. De entendimento limitado e educação deplorávelmente defeituosa, essa pobre rainha foi uma mártir do seu alto destino. Nascera para ser uma excelente e cuidadosa espôsa e mãe; teve de governar, em crise de transição tempestuosa e difícil, um país na sua generalidade ainda meio bárbaro. De um lado a piedade filial, que foi nela uma virtude acrisolada, ordenava-lhe que respeitasse absolutamente as decisões, por violentas que fôssem, com que D. José assinalou o seu reinado enérgico; por outro lado uma reacção desenfreada, tomando as aparências de justiça, e usando das armas que a Igreja põe na mão dos seus ministros, impelia-a para o caminho da mais irreverente demolição de todo o reinado precedente. Persuadiam-na a que castigasse aqueles que o pai tinha amado; que reabilitasse os que o pai considerou como seus assassinos; que desfizesse as sentenças que o pai confirmara; e ora lhe pintavam com vivas côres o rei que a antecedeu a arder nas chamas do inferno, pelo mal que tinha feito à fidalguia e aos ministros da Igreja, ora lhe representavam com côres não menos vivas a sua futura condenação a penas iguais, se não desfazia tôda a obra iníqua, ideada por Pombal, e que D. José deixara executar. Esta luta foi dolorosa, foi cruel demais para o cérebro fraco da infeliz rainha. Endoideceu! Ouviam-na passar pelos vastos corredores do paço rompendo os ares desesperadamente com a sua queixa ululante, com o uivo trágico da sua loucura! Os gritos que ela soltava, agudos, dilacerantes, gritos de alma penada, que implora o fim da negra expiação, ecoavam lúgubremente pelas salas da Ajuda ou de Queluz. Beckford, que lh’os ouviu, compara-os aos trágicos lamentos estrídulos que as abóbadas do castello de Berkeley repercutiram quando a Eduardo II foi infligida a mais crua e torturante das mortes.[80] _Ai Jesus! Ai Jesus!_ gritava ela na amargura infinita da sua agonia, julgando ver do meio de uma chama enorme, que lhe incendiava o quarto, lambendo com milhares de línguas de púrpura a cama em que ela se debatia, surgir o pai tal como o representa a estátua no Terreiro do Paço, mas negro, calcinado, feito em carvão, emquanto uma multidão de fantasmas horrendamente desfigurados--os fantasmas de Belêm--o empurravam para baixo, para o inferno, para o eterno fogo que nunca se consome, para a chama perpétua que nunca se apaga.[81] Que trágicas visões shakespereanas as dessa pobre mulher fanática, instrumento e vítima dos reaccionários que a enlouqueceram! As suas noites sem sono ou cortadas de pesadelos atrocíssimos, as lutas acerbas da sua consciência sem bússola e solicitada ardentemente para contrários lados, as palavras cruéis dos seus conselheiros tão implacáveis no ódio, tão exigentes na vingança, as incertezas em que se debatia o seu obscuro entendimento, tudo faz dela a vítima expiatória de crimes cuja razão de Estado nunca chegou a penetrar. O historiador alemão Henrique Schaeffer, a quem se deve uma das melhores histórias de Portugal que possuímos, o benévolo Beckford, que tão íntimamente simpatizou com a alma portuguesa, o maledicente mas penetrante Costigan, o duque de Châtelet, que na sua estada em Lisboa freqùentou o paço e conviveu com a gente mais grada da côrte, todos são unânimes no juízo favorável que acêrca da rainha formulam por bem diversas maneiras. «A rainha, diz Châtelet, é uma mulher verdadeiramente digna de estima e respeito. Não possue, porêm, um só dos predicados que constituem uma grande rainha. Ninguêm é mais caridoso e mais compassivo do que ela. Mas estas excelentes qualidades são viciadas pela mal entendida e excessiva devoção. O confessor (seria sempre êle?) obriga-a a despender em devotos e penitentes exercícios o tempo que, sem dano da sua salvação, poderia consagrar à felicidade dos seus povos.» Escrevendo isto o duque de Châtelet não sabia que D. Maria I, a infeliz e trágica rainha, quando passava assim as horas prostrada ante o altar de Deus terrível, tinha como objecto único o alcançar à fôrça de orações ardentes, de humildes súplicas, de rezas intermináveis a salvação, não da sua própria alma, mas da alma dêsse pai que adorava, e que lhe pintavam como a presa dos castigos do Eterno. Em vão lhe diziam que era inexpiável o crime dêsse rei que perseguira os servos da Igreja e os grandes vassalos da monarquia; ela, piedosa e doce mulher, teimava em persuadir-se, embora pouco ortodoxamente, de que as sentenças vingadoras e implacáveis do Deus de Israel se podem temperar pela ternura humilde das nossas súplicas e pela ardente e copiosa torrente das nossas lágrimas; que a chama deslumbradora e terrível do Sinai se volvera, para nós, cristãos no dolente e inefável espectáculo dos suplícios do Calvário! Por isso chorava e rezava continuamente nos degraus do altar, pedindo a Deus o perdão do pai que tanto amara, do pai em quem não queria nem podia ver um condenado sem esperança. «A misericórdia e a justiça, dizia Beckford, que são o lema com tanta impropriedade escrito na bandeira do santo ofício, poderiam aplicar-se com verdade irrefragável a esta princesa boa e virtuosa.» _A decent fresh looking woman_, chamava-lhe Costigan, o menos cortesão de todos. Pois até essa frescura física murchou, desapareceu no combate interno em que a razão da infeliz rainha sossobrou finalmente. * * * * * Aquele que podia ser seu guia moral, seu companheiro e seu amparo, não passava de uma das mais grotescas se não da mais grotesca figura da sua côrte. É ainda a Costigan que vamos pedir a descrição do marido que a política portuguesa impôs à desventurada mulher. «Ao pé de D. Pedro III, diz o espirituoso observador irlandês, o próprio rei Carlos III de Espanha, tão célebre pela fealdade, pode ser considerado um verdadeiro Adonis. O desalinhado aspecto da cabeleira loura sempre à banda, o olhar azul claro, parado e estúpido, as feições ásperas, grosseiras e desarmónicas, tudo lhe dava o estonteado aspecto--a êle, coitado, que nem vinho provava--de um velho inglês vencido pela quási completa ebriedade.»[82] Vivia, de resto, a rezar, encerrado na sua devoção estreita, formalista, sem generosidade e sem ideal, como uma ostra na sua rude concha. Não tinha mesmo sequer uma hora para se informar acêrca das coisas públicas, que não perceberia, é certo, pois que todo o seu dia se passava no seu oratório particular, na capela ou nas festas religiosas, que em Portugal ostentavam naquele tempo o maior luzimento e a mais soberba pompa. Eram elas o assombro dos viajantes estrangeiros, ainda os mais cultos e bem informados, que nem no Vaticano tinham visto coisa que se comparasse à beleza, majestade e perfeição com que na capela da rainha se executavam as músicas de Jomelli, de Perez, de Haydn e de outros mestres igualmente célebres.[83] Quando el-rei acordava dêsse estranho sonambulismo místico, em que a existência se lhe esvaía, tinha a mais puéril credulidade para tudo que lhe diziam os homens da nobreza que o cercavam e que eram os chefes da aristocracia. O abade Garnier, cura da igreja de S. Luís, que então vivia em Lisboa, e cujas cartas interceptadas no _Gabinete da abertura_ são fonte preciosa de informação acêrca dos acontecimentos contemporâneos, pois que o abade tinha a aguda faculdade observadora peculiar ao seu estudo, diz acêrca de D. Pedro III isto mesmo, acrescentando que a rainha, cujo espírito é muito justo, mais circunspecta nas suas falas, mais moderada, mais prudente e esclarecida nas suas opiniões, não se deixa tão fácilmente arrastar pelo que ouve em tôrno de si aos interesseiros áulicos, que, não podendo convencè-la, por isso mesmo a enlouqueceram. O duque de Châtelet, êsse julga D. Pedro devoto até ao fanatismo; sombrio e silencioso, constantemente ocupado em preces e procissões. Como é, pois, que tal rei podia ser um conselheiro eficaz e razoável para a consciência tímida, nutrida de escrúpulos devotos e alanceantes da infeliz filha de D. José I?! Ao pé da rainha e do rei, de quem esboçámos os liniamentos vagos, aparece uma formosa figura que a morte espreita já, com a caprichosa preferência que a tem quási sempre atraído para os primogénitos de Bragança. É a figura do príncipe do Brasil, D. José. O marquês de Pombal estremecia e educara políticamente êste môço, em quem antevia porventura o continuador enérgico e eficaz da obra que êle sonhara, e da qual chegara a realizar as edificações fundamentais. Dizia-se, e há cartas de Leonor de Almeida a seu pai, escritas de Chelas, que se referem com segurança a êste projecto, que a idea fixa do marquês de Pombal consistia em fazer promulgar em vida de D. José a lei sálica em Portugal, tornando nulos os direitos de D. Maria I, e determinando assim que ao rei, seu instrumento passivo, sucedesse o rei, seu discípulo inteligente. É muito possível que, se tal houvesse sucedido, o primeiro acto do príncipe fôsse expedir de si o velho conselheiro de seu avô, o velho sustentáculo de uma política reformadora e enérgica. O marquês quereria continuar a dominar absolutamente, fazendo render o serviço feito; o juvenil monarca teria a natural sêde do mando, que é uma das mais nobres ambições viris, e o conflito não podia evitar-se entre ministro e rei. Assim o vimos recentemente num exemplo famoso, e as leis da história variam pouco nas suas conseqùências e na sua marcha. Tambêm Guilherme II era discípulo e querido discípulo de Bismarck, e sabemos como êle tratou o grande chanceler da Alemanha unificada e poderosa. Não se pode, porêm, saber ao certo se esta idea germinou no espírito do marquês de Pombal, ou se gratuitamente lhe foi atribuída pelos seus inimigos, para mais o indisporem com a rainha D. Maria I. O que se pode afirmar é que Pombal tinha comunicado ao príncipe do Brasil os seus dois ódios dominantes, as duas paixões supremas, que moveram tôda a sua política: o ódio ao inglês e o ódio ao jesuíta. Êle sabia que a manha subtil e insinuante de um, e a fôrça brutal e triunfante de outro tinham de minar e destruir esta fraca nação. Inspirara-lhe igualmente o seu amor ao progresso material, e a sua repugnância pela educação fradesca, que punha Portugal a cem léguas de atrazo em relação às outras nações europeias. Afastado dos negócios o grande ministro de D. José, o príncipe do Brasil via com desespêro curvada de novo em atitude de abjecta subserviência, diante do gabinete inglês a côrte de sua mãe. O objecto da sua grande admiração era José II, imperador da Áustria, com quem se correspondia através do duque de Lafões. Êste, durante a sua longa permanência em Viana, privara íntimamente com o imperador e com os primeiros personagens da sua luzida côrte, uma das mais namoradas de arte que ainda brilharam no mundo. O que o príncipe do Brasil mais admirava em José II era a sua concepção moderna, civilista e centralizadora do Estado, eram as suas reformas eclesiásticas e pedagógicas, empreendidas e realizadas contra o que êle, imperador, classificava nas suas cartas como a _dominação dos fakirs e dos ullemas_, e tendo por fim roubar à tríbu de Levi o monopólio da inteligência humana[84]; era o seu combate eficaz contra o ultramontanismo, contra os abusos de autoridade das congregações religiosas, emfim, o seu amor da liberdade religiosa e do progresso industrial, tão raros num soberano. Vendo a natureza ociosa e a fradaria estulta, que ambos tinham concluído a sua missão histórica, e que, portanto, só podiam ser um tropêço e um obstáculo, manterem êste pobre país na ignorância e na inércia, vendo a nossa inferioridade militar, que êle se não cansava de atribuir à dominação do clero, fatalmente debilitadora da energia de uma raça, outrora heróica, o príncipe do Brasil sonhava com uma transformação tão radical no sentido religioso, social e económico, como essa a que o imperador austríaco estava sujeitando o amálgama de povos que constituiam o seu vasto e desordenado império, que antes dêle se tornara um verdadeiro Estado teocrático à moda antiga.[85] Não é que José II fôsse um liberal no sentido moderno da palavra. O século XVIII não teve príncipes liberais. Nem José II, nem Frederico da Prússia, nem Catarina o foram. Foi, porêm, o século em que os imperantes tentaram introduzir reformas radicais na administração dos respectivos Estados, usando, para estabelecer essas reformas revolucionárias, das armas que o absolutismo levado aos seus extremos limites lhes fornecia a todos. A rápida reacção que no espírito de uns se operou, a inutilidade dos esforços dos outros, a tempestade medonha que a boa vontade da maior parte desencadeou na Europa, mais uma vez vieram confirmar a lei moral de que no mundo é indispensável a harmonia entre os meios e os fins, e a lei histórica de que não pode vingar nem frutificar pacíficamente uma revolução vinda de cima. A crise por que então passou o mundo para que nêle florescesse a liberdade política é a mesma, pouco mais ou menos, que hoje atravessamos para que se melhorem e modifiquem as condições económicas do maior número. E assim como então havia reis e imperadores filósofos, que queriam dar à burguesia como um favor outorgado, o que ela exigia como um direito irrefragável, assim hoje há, no ápice do edifício social o papa, e mais abaixo os estados e soberanos, que querem atender ao mal-estar das classes desvalidas, e conceder-lhes como regalias aquilo que êles proclamam como imprescritível obrigação. Nem a burguesia do século XVIII nem o quarto estado do século XIX aceitam o favor partindo de cima. Uma conquistou o seu lugar; o outro conquistá-lo há mais tarde, e muito sangue e muitas catástrofes individuais e colectivas foram e serão o preço doloroso da conquista. Será amanhã inútil a intervenção dos poderes estabelecidos, como foi então efémera a obra revolucionária dos reis, como José e Frederico, e de ministros como Pombal. Do programa de José II, que tanto cativara o nosso príncipe do Brasil, se disse que era a antecipação de tudo que mais tarde e durante a Revolução fêz a assemblea constituinte. É que tanto a França de 1789 como o imperador da Áustria obedeciam ao mesmo ideal de razão pura, proclamado pela filosofia do século. Não admira que essa abstracção encantadora seduzisse tão completamente o nosso pobre príncipe.[86] Os que falavam com êle íntimamente percebiam sem custo o doloroso desdem que as coisas da sua terra, voltadas, desde a morte de Pombal, ao antigo estado, lhe produziam no cultivado espírito. Pensava em libertar o seu país e a sua raça do jugo de um fanatismo esterilizante, reflectido nas ideas e nos factos, desde a religião até à economia, mas a morte, que teimou em prostrá-lo na flor dos anos, não lhe deixou pôr em execução os seus projectos grandiosos, poupando-o à triste decepção que aguarda todos os que julgam opôr eficazmente a vontade individual ao fatalismo irredutível das correntes históricas promanadas de remota origem. Assim tambêm o doce visionário que se chamou Pedro V. morreu antes de ter cumprido as esperanças que sôbre êle edificara esta nação _messiânica_, que há tanto tempo espera debalde por um salvador providencial... * * * * * A morte do príncipe do Brasil, causada por um ataque de bexigas, as quais, segundo então se murmurou, não foram logo cuidadosamente tratadas, mais contribuiu ainda para lançar o espírito da já alucinada rainha num inferno de agonias. O príncipe tinha o seu partido na côrte, mas tinha tambêm contra si tôda a côrte magna dos conservadores, dos reaccionários, dos fanáticos que tremiam do seu espírito de iniciativa, da sua alta concepção da política de um povo, da sua preocupação do ensino civilista e da administração, de tudo que fazia dêle a antítese da rotina pachorrenta, que era o lema da sua côrte. Não pode dizer-se que houvesse crime na sua morte, mas há quem assegure que não houve tanta solicitude no tratamento da doença quanta seria necessária para salvar esta vida preciosa. Entre os que faziam oposição às tendências anti-jesuíticas, e às aspirações generosas e liberais do príncipe D. José, avulta uma das figuras mais pitorescas da côrte de D. Maria I, o seu confessor, fr. Inácio de S. Caetano, mais conhecido pela dignidade de arcebispo de Tessalónica. Começara por jornaleiro, assentou praça de soldado, e foi cabo de infantaria em Chaves; dalí vestiu a estamenha fradesca, e, feitos os votos, cursou o que então se chamavam as _artes_ no colégio de Nossa Senhora dos Remédios, em Évora, onde florescia, em todo o seu falso esplendor, a filosofia desnaturadamente apelidada de aristotélica. Não era, pois, inteiramente analfabeto, como teem querido dizer, êsse frade obeso, jovial, de óptimo humor, que o marquês de Pombal julgou suficientemente inofensivo para fazer dêle o confessor da então princesa D. Maria. Logo que esta subiu ao trono, fr. Inácio foi elevado à dignidade arqui-episcopal, à de grande inquisidor e principalmente à de primeira influência no govêrno. Acusam-no os que então o viram de perto--e é um dêles o observador irlandês a que mais de uma vez nos temos socorrido pela sua ampla informação, e pela sua mordacidade inteligente--de parecer engordar, e farto e satisfeito, no meio dos desastres da nação que os bons patriotas julgavam ameaçada de tornar breve a ser uma província de Espanha. Beckford, todavia, que viveu na mais estreita intimidade com o arcebispo, fêz dêle um retrato encantador pela chanternidade, pela despreocupação das grandezas, pela tolerância boníssima, pelo encanto pitoresco da sua conversação risonha e maliciosa. ¿Não era um austero; quem o podia ser naquele meio? Não desdenhava, apesar da suprema dignidade do seu cargo, o prazer, aliás platónico, de perseguir com chocarrices de antigo furriel, pelas alamedas de bucho de Queluz--sátiro pesado e folgasão--as ninfas ligeiras e nem sempre cruéis que constituiam o alegre rebanho das açafatas. O seu tiro certeiro contra as fraquezas do próximo que cruamente observava não se distinguia pelos requintes da caridade evangélica. Mas a verdade tambêm é que era honrado, é que, sendo inquisidor, nunca se aprouve em perseguir nem odiar, e, tendo um poder absoluto no ânimo da rainha, contrabalançou, emquanto viveu, as tendências ferozmente reaccionárias e cruelmente odientas dos ministros do tempo, empenhados em destruir a obra de Pombal, em não deixar penetrar no baluarte assediado da sociedade portuguesa as ideas que lá fora eram propagadas com insistência e acolhidas com avidez, e em restabelecer, na sua antiga dominação soberba, a teocracia e a nobreza associadas na mesma obra de retrocesso político e social. Deve-se ao arcebispo de Tessalónica o não terem logo os jesuitas reassumido a primitiva influência. E se depois, considerações pessoais--porque não era um austero--o fizeram afrouxar na oposição ao ultramontanismo e à grande fidalguia ambiciosa que já começava a detestá-lo e a minar-lhe o poder, o certo é que foi sempre mal visto da cúria romana, a cujas pretensões e exigências abusivas não cessou de tenazmente opôr-se.[87] Quando êle aparece acompanhado do leigo _besuntão_, que é seu cozinheiro, seu criado de quarto, seu secretário e confidente, curvam-se diante dos dois em atitude de abjecta adulação, chegando mesmo a ajoelhar-se reverentes ante o arcebispo os mais altos personagens da côrte. Todos apresentaram _memoriais_ e súplicas; uns pedem lugares, outros promoções, alguns, mais astuciosos, a simples bênção de que o arcebispo com a sua grossa malícia fradesca finge não ser pródigo. E êle, com aspecto desprezador, sem se enternecer, nem se lisonjear, atravessa todo êste mundo de aduladores brazonados com a compostura de um homem que houvesse nascido em berço de oiro. O leigo, na ausência do arcebispo, é o objecto de quási iguais respeitos e cumprimentos. São proverbiais as respostas sarcásticas de uma ironia acerada, de uma agudeza epigramática verdadeiramente flageladora com que o confessor da rainha retribuía as lisonjas dos nobres pretendentes que o cercavam. É que, sob o aspecto grosseiro e chão, havia nêle um observador finório, que sabia ler por detraz dos cumprimentos requintados, das frases cortesãs, das elegantes reverências, a cobiça vil dos aspirantes de rendosas prebendas, e o desdem íntimo com que se vingava da cruel necessidade de o adular essa nobreza orgulhosa do seu sangue, que o absolutismo dos dois últimos reinados havia envilecido tão sórdidamente. Por isso o arcebispo, fugindo às pompas da côrte, às solenidades do conselho, a _êsse mulherio de escada acima_ que lhe punha a cabeça em água, e que nem mais nem menos era do que a rainha e as infantas, só se sentia à vontade nos seus aposentos particulares, com um capote sujo e cheio de remendos, um leitão assado na mesa, e a franqueza mais risonha e mais sôlta na palavra e no olhar... O leigo contava-lhe então quantos condes lhe haviam beijado a manga e quantos tocado o escapulário, e quantos nobres lhe tinham preguntado pela sua saúde preciosa, e quantos lhe tinham feito respeitosas mesuras; e o prelado ria, ria em plena alegria de frade obeso e glutão, que saboreia em liberdade, de envolta com as vitualhas de um bom jantar, a cómica baixeza de cortesãos vistos por dentro... Uma virtude cristã, a da piedade, doura e idealiza esta grosseira figura de frade. Emquanto êle viveu, a rainha não conheceu os tormentos que mais tarde infligiram à sua consciência de devota e ao seu coração de filha... O inquisidor mor era pela tolerância absoluta contra o fanatismo odiento e militante; o confessor da rainha era pelo esquecimento do passado contra os que pretendiam fazer de vingança o seu lema de govêrno. Não tem, pois, razão a história em maltratar quem se recomenda num meio corrupto e cruel por esta divina virtude da caridade e do perdão. * * * * * Em tôrno da família real e dos seus apêndices mais próximos, tais como o ministério, o confessor, etc., reùne-se uma côrte ainda brilhante, apesar dos golpes com que a mutilara a mão implacável do ministro de D.José. Os duques de Lafões e de Cadaval, os marqueses de Angeja e de Marialva figuram entre os primeiros, e ao pé dêles enfileiravam-se opulentos titulares, marqueses, condes, viscondes na posse de gloriosos nomes tradicionais e representando todos antigas casas, ainda não decaídas da sua primitiva opulência e grandeza, e que contribuíam para dar à vida palaciana um tom de tradicional majestade hoje perdida. Era celebrada a hospitalidade portuguesa mesmo entre os que mais acremente censuravam os nossos defeitos de raça. A mesa do marquês de Marialva, um dos mais lindos tipos de fidalgo, um dos mais perfeitos exemplares da velha nobreza, espécie de patriarca universalmente querido e respeitado desde o paço real até à rua, e que durante o proconsulado pombalino fôra o desvelado protector de todos os fracos, logrando muitas vezes alcançar a clemência régia para os mais ameaçados pela cólera do ministro--à mesa do marquês de Marialva assentavam-se quotidianamente dezenas de convivas; das cozinhas do seu palácio saíam por dia _trezentas_ rações distribuídas entre a plebe parasita da capital; o pátio cheio de seges, de estrume e de lacaios, lembrando, no dizer malicioso de Beckford, um pátio de mala-posta, conduzia ao célebre picadeiro, onde o velho marquês se divertia em assombrar os amigos com os prodígios da sua destra e famosa equitação. Subia-se dalí para os vastos aposentos, onde uma quantidade enorme de relógios--engraçada mania do marquês--marcavam em gentis minuetes, ou em figurações engenhosas, as horas que iam passando alegremente, ora a ver as curiosidades da Índia e da Itália, que cobriam as mesas ricamente envolvidas em damasco e veludo vermelho, ora a escutar as agudas notas da voz de Policarpo, um dos primeiros tenores da capela da rainha, que se acompanhava a si próprio tocando harpa, e que deliciava os ouvintes com essa arte admirável, que foi o culto artístico, quási exclusivo, do nosso século XVIII. De vez em quando uma porta que se abria, logo fechada, deixava entrar nas salas interiores uma adorável figura de mulher, de olhos lânguidos e feiticeiros, olhos de portuguesa a quem um grupo de crianças cercavam como grinaldas de flores vivas, e que trazia à memória do erudito estrangeiro, que porventura a lobrigava rápidamente, uma esplêndida alegoria de Rubens ou de Veronese.[88] Para a grande sala dos banquetes em dia de mais pomposo ceremonial as pesadas travessas de prata cinzelada, em que lourejam os leitões e as grandes peças de caça, são trazidas por um longo séquito de escudeiros e de capelães, no peito de muitos dos quais brilha a cruz de Cristo ou de Aviz.[89] Êste modo de ser servido à mesa tem um ar inteiramente feudal, e transporta a imaginação dos estrangeiros para os dias do passado, em que os chefes guerreiros são servidos como reis pelos nobres seus vassalos. Um dia, no fim de um dêsses banquetes a que se assenta um grupo da mais fina flor da nobreza de Portugal, correm todos a ouvir um missionário que reconta terríveis milagres em que a cólera de Deus e a sua vingança se manifestam medonhamente. A marquesa, os filhos e as filhas escutam com ansiosa avidez a história milagrosa e terrível. A noite vem caindo lentamente. Ninguêm se atreve a pedir luz, e a voz do missionário continua trágica, cavernosa, falando das cóleras divinas e dos tremendos castigos do Eterno... Assim o banquete da vida portuguesa, de uma tão naturalista alegria, foi interrompido pela aparição do lívido fanatismo, e o seu riso de caveira paralizou tôdas as nossas energias, e o seu sôpro esterilizador queimou a vasta seara das nossas esperanças, que verdejava ao sol de Deus. * * * * * Com essa tremenda superstição das coisas sacras, que tão funesta impressão exerceu no espírito da nossa raça, conciliava muita vez a fidalguia não só os mais soltos costumes, mas tambêm o mais risonho paganismo cristão, e o mais desenfreado carnaval de alegria. E senão vejamos esta scena característica. Pelos terraços do palácio Marialva, onde metade da família está ocupada em rezar ladaínhas e terços, e outra metade em tocar à guitarra as voluptuosas _modinhas_ que Beckford adorava, brilha de repente a luz trémula e fugaz dos archotes e das lanternas. Ouve-se a bulha dos remos caindo na água perto das varandas que dão sôbre o Tejo e de um escaler de cincoenta remadores que aproa ao cais, sái o velho fidalgo acompanhado do filho D. José e seguido por uma multidão estranha e pitoresca de músicos, de poetas, de toureiros, de lacaios, de frades, de anões, de negros, de crianças de ambos os sexos fantásticamente vestidas. Vem de uma romaria ao altar de um santo que fica da outra banda do Tejo. Rompe a marcha um corcundinha anão soprando uma minúscula trombeta; ao corcunda segue-se um figurão alto, velho, desasado, gingão, que se pavoneia muito contente no seu uniforme vistoso, e que já, em não sei qual ilha remota, fêz o papel de governador. Um frade de catadura feroz, mais alto do que Sansão, dois capuchinhos carregados com cestos enormes de misteriosas provisões vem logo atrás. Aparecem em seguida dois tipos não menos característicos: um boticário esguio, esgrouviado, esquálido, cadavérico e trajando luto pesado; e uma espécie de improvisador meio pateta, o bobo indispensável ao fidalgo português, que atira versos destemperados e quadras sem nexo aos curiosos que acodem de dentro do palácio às varandas para assistirem ao desfilar da estranha, da pitoresca procissão, cuja rectaguarda é ainda composta da turbamulta gritadora dos barqueiros e dos criados, acarretando gaiolas de pássaros, lanternas, cestos de fruta, ramos de flores, não sabemos que mais! Vê-se bem que vida intensa, ainda então peculiar à raça portuguesa, apesar de tôda a sua triste decadência, se traduzia neste voltar da festa tão pitoresco, tão alegre e tão doidamente ruidoso! * * * * * Ao lado desta casa de fidalgo português, em quem as tradições antigas teem uma preponderância acentuada, os Penalvas, mais cultos, mais letrados, dão às suas festas um cunho de arte cosmopolita. Na capela tocam-se as músicas mais escolhidas; na livraria aberta ostentam-se as mais raras e mais antigas edições de clássicos portugueses e antigos; quadros das escolas italiana e flamenga enchem as paredes dos vastos salões; flores exóticas e flores dos nossos jardins enfeitam os vasos antigos da Índia e do Japão; as senhoras não aparecem, é certo, mas os académicos, os artistas de mais nota, as ilustrações de todo o género, trocam ali, em conversação animada, ideas que veem lá de fora e começam a cativar os espíritos mais cultos da nação. No meio da festa, em que fraternizam os homens da inteligência e os homens da nobreza, sob o teto hospitaleiro dos marqueses de Penalva, travam-se aqui e ali conversações parciais, confidências a meia voz... O conde de S. Lourenço conta animadamente a sua viagem à Itália, as impressões de arte que ali colheu, os cardiais com quem conversou... O estrangeiro, que atentamente o escuta, mal sabe que a longa clausura da Junqueira determinou no cérebro do nobre prisioneiro a alucinação que consiste em julgar ter vivido uma vida inteira cheia de viagens, de sensações, de prazeres completamente imaginários... Passa d’ali para narrar a sua estada no congresso de Aix la Chapelle, a missão que ali representou... As palavras do alucinado fidalgo excitam um movimento de simpatia piedosa em quem o escuta. Foram os tratos da prisão que lhe causaram aquela estranha perturbação mental. O cérebro sofre, o orgulho, o belo orgulho da raça, êsse ninguêm lh’o pôde amortecer! Há poucos dias atirou para o lugar mais recôndito e mais secreto do paço com a sua chave de camarista, julgando-se mal recebido pela rainha. Não é vulgar tamanho desprendimento nesse tempo de vil subserviência ao capricho do monarca. O conde de Vila Nova, futuro marquês de Abrantes, tem como S. Lourenço uma mania, mas muito menos interessante. O seu gôsto mais violento consiste em vestir opa vermelha e andar atrás do Santíssimo, de campaínha na mão. Não há namorado tão cioso da sua bela como Vila Nova da sua campaínha.[90] Não admite que outro lhe toque, que mão profana a faça vibrar. As paróquias que cercam o seu palácio nunca deixam que o sagrado viático seja conduzido a qualquer enfêrmo sem prévio aviso feito a Vila Nova, que abala pressuroso a empunhar a vibrante campaínha. E agita-a cheio de convicção, ou seja noite alta, ou faça frio de gelar os ossos ao mais intrépido, ou caia pino sôbre a cabeça dos transeuntes o sol do nosso ardente meio dia de Julho, ou êle tenha de subir aos últimos andares de um miserável casebre, ou de descer ao covil subterrâneo da mais imunda miséria. Ali, no meio da festa, Vila Nova volta ansiosamente a cabeça a cada movimento desusado com receio de que hesitem em transmitir-lhe o aviso que porventura lhe seja enviado das duas ou três paróquias de que êle é humilde servo e sacristão oficioso. Quem é aquele velho elegante, afectado, garrido, com ademanes e donaires de pisa-flôres, carmim nas faces e _môscas_ sublinhando o sorriso inteligente e o agudo olhar brilhante?... É o duque de Lafões, o fundador da nossa academia, um tipo de _grand seigneur_ cosmopolita--à maneira do príncipe de Ligne, seu contemporâneo e de certo seu amigo,--que durante o reinado de D. José se conservara longe de Portugal, viajando na Europa, brilhando nas côrtes de Versailles e de Vienna, conhecido de tôda a alta sociedade europeia como _duque_ ou _príncipe_ de Bragança, convivendo com reis e com poetas, com artistas e príncipes, com homens de gôsto e homens de Estado, com _dandys_ e com pensadores... Para se saber como êle patrocina as artes basta apontar o que êle foi entre nós para o abade Correia da Serra e mais colegas seus da academia; o que foi em Vienna para o nosso abade Costa, de que mais tarde falaremos, e para Gluck, o famoso compositor, o carácter intratável que lhe consagra a partitura da sua ópera _Helena e Páris_ com uma dedicatória, que faz tanta honra à fina inteligência aberta e penetrante do duque, apta a compreender e estudar estas questões de arte de uma subtileza tão delicada, como ao grande artista que nela formula todo um programa de estética hoje realizado e então entrevisto apenas. Citarei algumas palavras dessa dedicatória: Queixando-se da incompetência e da audácia da crítica do tempo que condena o método do compositor sem sequer se penetrar dos princípios que a êle presidem, Gluck conclúe dêste modo: «Julgaram-se autorizados a pronunciar-se acêrca de _Alceste_ depois de ensaios mal dirigidos e pior executados; calcularam numa sala o efeito que a ópera produziria num teatro; é com a mesma sagacidade que em uma cidade da Grécia quiseram noutro tempo julgar a alguns passos de distância o efeito de estátuas esculpidas para serem colocadas sôbre colunas altíssimas. «Um dêsses delicados amadores que concentram a alma inteira nos ouvidos achou uma ária demasiado áspera, um trecho em extremo acentuado ou mal _preparado_ sem conhecer que, _dentro da situação em que estava_ essa ária, êsse trecho era o sublime de expressão e formava o mais feliz contraste. Um harmonista pedante nota uma negligência engenhosa ou um êrro de impressão, e apressa-se em denunciar um e outro como pecados irremissíveis contra os mistérios da harmonia... «É certo que não são mais felizes as outras artes, o que não é para elas a crítica nem mais justa, nem mais esclarecida. Vossa Alteza adivinha fácilmente a a razão disto. _Quanto mais se procura conscienciosamente a perfeição e a verdade mais necessárias se tornam na arte a precisão e a exactidão..._» Vê-se por êste rápido trecho, que não amplificámos mais por não ser o ensejo oportuno, como, entre o duque e o grande mestre revolucionário, deviam ser freqùentes e familiares as relações artísticas; vê-se como o _maestro_ confia na inteligência crítica do fidalgo, e que estreita comunhão de ideais havia entre um e outro.[91] O duque voltara a Portugal depois de ter saboreado lá fora o que tinha de mais requintado a civilização e a alta cultura das primeiras capitais do mundo. Tentara transplantar para aqui alguma coisa do muito que admirara e vira, e de feito é a êle que se deve a fundação da academia e a protecção generosa e inteligente aos trabalhos de naturalistas e de sábios seus contemporâneos. Ao lado desta figura de uma tão alta e tão refinada elegância, que pode bem equiparar-se à de um Richelieu, à de um príncipe de Ligne, à de um dos muitos que lá fora reùniam aos privilégios herdados do nascimento as graças adquiridas numa cultura variadíssima e numa educação dada pelos centros mais esplêndidos da vida intelectual--a sociedade portuguesa do tempo oferece-nos uma infinidade de outras figuras secundárias que se destacam ou pelo ridículo ou pelas afectações características do seu papel social. Monsenhor de Aguilar, cónego da patriarcal, um personagem do tempo, aparece saltitante, chilreador, e murmurando a ouvidos indulgentes segredos _voltaireanos_ contra a Igreja católica, de que vive e que explora.[92] A influência fradesca imprimia em Portugal o sêlo da ignorância beata... A plebe, dissoluta e soez, adorava as procissões que contentavam as suas moderadas exigências estéticas e religiosas, e acudia fremente e doida de entusiasmo às touradas, onde o seu amor, o seu culto da fôrça, era brutalmente acariciado. Não precisava de mais nada para ser feliz. A nobreza, essa, livre do jugo de Pombal, reassumiu a arrogância antiga, governava no paço e nas secretarias do Estado, cuidava em manter o povo na ignorância que o tinha curvo, submisso diante dos seus abusos e caprichos, e discutia sériamente os milagres de vários santos, e as tricas engenhosas de Belzebuth... Beckford a propósito conta a história da conversão de uma velha inglesa tísica, cujo corpo é levado à sepultura pelas mãos patrícias de Assecas, S. Lourenço, Marialvas, etc., todos extasiados pelo milagre dessa conversão inesperada, emquanto Acciaoli, o núncio, esfrega as mãos de contente, dá estalinhos com os dedos, e faz figas ao Diabo, lançando-lhe em rosto o roubo da alma da velha inglesa que o cão tinhoso já julgava ter nas garras... «Feliz inglesa! exclama um dos do nobre séquito. No outro mundo teve entrada no paraíso, e neste teve a subida honra de ser levada à cova por homens da alta nobreza! Onde houve já ventura assim?» É verdade que debaixo desta fraseologia ôca e piegas, a história secreta tem mil anedotas típicas dos costumes do tempo que não condizem com tamanho zêlo pelo culto sagrado... Mas a Igreja é cheia de mansidão e indulgência; os mosteiros, como o de Alcobaça e outros, regorgitam de quanto a abundância tem de mais pantagruélico, e a sciência da vida de mais requintado e cómodo... Não há onde melhor se coma e onde mais voluptuosamente se saboreie o lado material da existência que nesses retiros em que a carne devia ter-se espiritualizado até ao renunciamento absoluto e ao sacrifício supremo de tudo. Tanto o contraste entre o que se pratica e o que se prega é frisante naquela época... O padre Teodoro de Almeida revira os olhos, faz esgares hipócritas e visagens devotas, e pronuncia discursos seráficos que o inglês, um pouco scéptico, de onde colhemos estes quadros, classifica de _first rate of hypocritical cant_. Não é possível nomear cada uma das figuras que desfilam diante do nosso olhar, fotografadas em flagrante realidade pelos observadores do tempo. São os aduladores flexíveis, subtis, maleáveis, com meneios de reptil e graças serpentinas; é a anãsinha Rosa, garrida e sentimental, acompanhando a rainha, que morre por ela, para todos os lados e fazendo parte integrante da côrte que não ousa rir-se daquela anomalia; é o bobo João da Falperra, esgueirando-se hábilmente por tôdas as portas que encontra abertas, e inspirando ao conhecido _leigo_ do arcebispo de Tessalónica, tão famoso pelos epigramas e agudezas, êste dito tambêm famoso: «Na côrte penetram fácilmente homens de mérito superior, santos e bobos. Os primeiros desaprendem logo que tudo sabem; os santos fazem-se mártires; e os bobos são os que únicamente prosperam!» Os fidalgos moços adoram a convivência do baixo povo, diante do qual se sentem à vontade, sem que a própria ignorância os humilhe. Há nas ruas de Lisboa serenatas e guitarradas, em que os filhos das primeiras casas acompanham os seus criados e os amigos dêstes; o conde de Vila Nova abre na noite de S. Pedro, à multidão da capital, os seus jardins iluminados com lanternas venezianas, e no baile que desenrola sob as árvores a sua desenfreada alegria, quermesse flamenga, os herdeiros de casas principescas misturam-se jovialmente com a escuma das Vielas e becos da cidade.[93] É pitoresca, animada, caracteristicamente nacional esta vida, mas falta-lhe, a espiritualizá-la suavemente, a influência da mulher então menos que nula, e a cultura geral, que é deficiente e incompletíssima. Há homens de primeira classe, talvez, mas segue-se-lhes logo, sem intermédio algum, a massa ignorante e brutal onde não penetrara ainda um raio de luz civilizadora. * * * * * A castidade da rainha não permite que uma única mulher pise as tábuas do proscénio. Depois da quadra luxuosa e pomposíssima em que a história do teatro português, no dizer curiosamente documentado do eminente escritor Teófilo Braga, excede em grandeza a dos melhores teatros do mundo e tem ligados à sua fama os nomes dos mais célebres arquitectos, como Simão Caetano Nunes e Inácio de Oliveira; dos melhores pintores e scenógrafos, como Servandoni, disputado à côrte de Portugal pelas côrtes de França, Inglaterra e Polónia, Bibiena, Azzolini; de compositores como Cimarosa Paisiello, Piccini, Jomelli; de cantores como Caffarelli e Gizziello[94],--depois do curto mas extraordinário esplendor das representações da _Ópera do Tejo_ ou _Teatro dos Paços da Ribeira_, reduzido a ruínas pelo terremoto no próprio ano em que D. José o tinha mandado executar pelos artistas mais brilhantes do tempo, e onde sob a direcção do maestro napolitano David Perez cantaram os _Castrati_ mais célebres (um dos quais foi presenteado por el-rei, depois de executar uma _cantata_ de Jomelli com uma galinha de oiro cercada de vinte e quatro pintainhos tambêm de oiro),--depois dêsse período de luxo, de extravagante luxo artístico, que tão pungente contraste faz com a miséria dos tempos e dos povos--o teatro nacional, sob o reinado de D. Maria, tem apenas para encarnar as suas criações mais ideais alentados mocetões de faces azues, de barba, que declamam em grossa voz avinhada as suas queixas de amores ou cantam em antipático falsete as suas árias e motetes. Noiva gentilmente envolta em véus virginais, princeza viúva coberta de crepes do seu luto, joven namorada fugindo à cobiça de um velho tutor libidinoso, donzela de régio tronco perseguida pelo ódio de um tirano feroz, Andromaca ou Ifigénia, Zaira ou Inês de Castro, Medéa ou a _Espôsa Perseana_, tôdas as heroínas da tragédia ou do melodrama, da comédia ou da ópera teem fatalmente de ser representadas pelos mesmos latagões membrudos, de atlética musculatura e voz que em vão se esforça para ter notas aflautadas. A arte chegara a êste apuro lamentável, e depois de ter sido no tempo de D. João V e D. José decorativa, espectaculosa e cesarista, mais feita, é verdade, para o regalo dos sentidos do que para a educação da alma, ei-la que se tornava agora burlesca no aspecto e nas intenções... Nos teatros da Rua dos Condes e do Salitre freqùentados pela alta aristocracia, e num dos quais a condessa de Pombeiro, loira, branca, diáfana, aparece uma noite, seguindo o exemplo que então davam a rainha e tôdas as damas _du bel air_, acompanhada por anãsinhas pretas, que no fundo do camarote sublinham com tregeitos e esgares cómicos, mais divertidos do que a peça, a mímica dos desgraçados actores, e dão uma espécie de scenário africano à beleza do norte, aérea e fina da juvenil patrícia portuguesa[95]; nos teatros da Rua dos Condes e do Salitre representam-se longas trági-comedias _arregladas_ do italiano e do francês, entremezes tambêm copiados ou traduzidos--perdida a tradição do teatro admirável de Gil Vicente e das farças e comédias do Judeu e de outros, em que a vida portuguesa se retrata como num espêlho ainda mal polido, mas já fiel em dar o contôrno e a expressão. Acabaram as noites febris da Cecília Rosa, da Zamperini, das irmãs Pagnietti, da Todi, da Cecília Aguiar; a _embezerrada_ melancolia beata dos régios personagens distinge em tudo, até no divertimento que mais devia popularizar-se, e do qual se podia fazer um elemento de educação e de civilização. De vez em quando uma farça de Nicolau Luís os _Maridos peraltas_; o _Viajante_; uma comédia arranjada ou feita por Manuel de Figueiredo o _Fidalgo da sua própria casa_, o _Dramático afinado_, a _Mulher que o não parece_, _Pássaro bisnau_; um entremez anónimo, _Fastásticas basófias, lograções e calotes de D. Harpia_, as _Desordens dos Paraltas_, os _Casadinhos_, o _Entremez da assembleia do Isque_, de Leonardo Pimenta e Antas, e outras produções cómicas genuinamente nossas, conseguem arrancar da entristecida e degenerada alma popular uma forte explosão de riso alegre e sadio. Mas são raras e abandonadas pela fidalguia da côrte essas noites de gaudio plebeu e português de lei, em que aparece a punição risonha dos ridículos da moda, executada pelos cómicos que saíram do povo e que a êle pertencem como o excêntrico Nicolau Luís. Nos teatros régios continua a tradição palaciana das óperas e oratórias, umas portuguesas, como _Gli Orte Esperide_, de Jerónimo Francisco de Lima, como _Il Natali de Geove_, de João Cordeiro da Silva, como _Angélica_, de João Cordeiro da Silva Carvalho, o mestre de Marcos Portugal, outras italianas, de Piccini e de Perez. Nos outros teatros, a gravidade sonsa e mazorra da Arcádia impunha à paciência dos espectadores a longa e fastidiosa melopeia das tragédias, que a dúbia erudição de Francisco José Freire arranca à pobre e desfigurada antiguidade de que o seu século ignora completamente o espírito. É a _Medea_ e o _Edipo_ de Séneca, a _Hecuba_ de Euripides, a _Efigénia em Aulide_, o _Mitridates_ de Racine que Filinto traduz no seu português pedregoso e duríssimo, os _Scitas_ e o _Mafoma_ de Voltaire, e _Alexandre na India_, o _Tamerlão na Pérsia_, o _Faramundo na Boémia_, e as _Rigorosas leis da amizade cumpridas em Olimpiade_, de Metastásio, a _Mais heróica virtude_ ou _Zenobia em Arménia_ do mesmo, e _Constantino o grande_, ou a _Ambição castigada por si mesma_, e o _Radamisto_, de Crébillon, são dezenas de tragi-comédias, de tragédias, de melodramas, em que a nota do fastidioso predomina atrozmente, em que os costumes portugueses, a alma portuguesa, o passado português nunca ou raríssimas vezes transparecem. O teatro italiano de Goldoni e Metastásio, o teatro francês do século XVII, Voltaire e Crébillon, a Grécia inteiramente desfigurada por traduções inábeis, eis o que alimenta o nosso teatro nacional, freqùentado pela fidalguia ou patrocinado pela realeza. * * * * * Eis aqui os traços gerais (em que a cronologia nem sempre é rigorosamente respeitada, mas cujo espírito nos parece verdadeiro, pois foi colhido com escrúpulo nos documentos do tempo) da sociedade que Leonor de Almeida conheceu e teve de aceitar ao sair do tranqùilo remanso de Chelas e da paragem deliciosa de Almeirim. E esta sociedade com os seus efeitos de luz e sombra, os seus tons brutais, a sua separação completa entre os gostos íntimos e as representações oficiais que a arte traduz, os seus preconceitos esmagadores, a sua ignorância profunda, que a surpreendeu, e que decerto lhe desagradou irresistívelmente. ¿Que lugar tinha ela, a erudita, a elegante poetisa nesse _meio_ em que alguns homens apenas destacavam, e em que Bocage ia aparecer como um fenómeno imprevisto, de que Filinto fugira indignado, em que a inteligência tinha apenas um papel secundário, ou quando muito ociosamente decorativo? Não lhe era permitido sequer dizer o que pensava, porque o seu tempo estava justamente naquela transição crítica e perigosa em que a hipocrisia se alia ao fanatismo, e em que a palavra serve apenas para ocultar o que o espírito cogita... As amigas afastavam-se porventura assustadas, humilhadas, daquela mulher viril que bebera nas dores nobremente suportadas a sciência amarga da vida, e que amando com entusiasmo os prazeres do espírito não pode, por mais que nisso empregue patéticos esforços, subordinar-se a um _meio_ de estupidez ou de futilidade. Cada frase de Leonor era um conceito, e o chilrear inocente e pueril de crianças que não sabiam o que era sofrer, lutar, dominar-se e vencer-se, não podia de certo agradar ao seu entendimento viril e profundamente cultivado. Os homens--tão inferiores a ela pela inteligência, pela instrução, pela energia antiga--olhavam-na sorrindo com êsse sorriso insuportávelmente complacente, que êles se dignam opor ao mistério irritante de um grande espírito de mulher. Achavam-na provávelmente deslocada no seu país e no seu tempo, e riam-se dela, raivosos de a não poderem desprezar... O pai olhava-a inquieto, divergente de cada uma das suas opiniões avançadas e ardentemente expostas com aquele calor que as suas cartas manifestam, menos terno do que fôra na ausência, menos admirador do que o deixava entrever nas frases escritas que ela relembrava com saudade. ¿Onde é que estavam as queridas ilusões que Leonor com tanto amor nutrira? Que pena para o observador e para o moralista, que ela não tenha deixado num _jornal_, como então tantas mulheres escreviam em França, numa correspondência como as que tornam imortais tantos nomes femininos que de outro modo a obscuridade subvertera--que pena que ela não nos tenha deixado a confidência das amarguras que nessa crise da vida a sua alma suportou! Há um jornal publicado muito recentemente por uma jovem artista russa, morta na flor da vida, que exprime com extraordinária intensidade essa dor singular da mulher em completa desarmonia com o seu destino, com o seu _meio_, com o tempo em que vive! Essas agonias requintadas que tão poucas teem sofrido, e que só uma aristocracia diminuta de almas femininas pode experimentar, Leonor de Almeida sofreu-as em viril silêncio estóico! Apenas percorrendo os versos que ela fêz depois de sair de Chelas, de certo antes de casar (é deficientíssima em datas e esclarecimentos cronológicos a edição das obras da marquesa), encontramos nêles um eco da profunda melancolia que a devora. Mas são tão pouco simples os versos daquele tempo, é tão exagerada e tão artificial qualquer das suas formas, que essa expressão de tristeza não conseguira comover-nos se a não a relacionássemos com verdadeiras dores suportadas nesse período pela alma de Leonor de Almeida. É tão cortado de desilusões o presente que ela sonhara feliz até ao êxtase, até ao arrebatamento, que a poetisa tem saudades das tristezas de Chelas; ao menos a essas doirava-as a divina esperança, fada da mentira, cuja missão é enganar-nos sempre, amolecendo-nos a alma, roubando-nos a viril coragem do desespêro absoluto: Ideias minhas, multidão de ideias, Que algum dia da cítara eu fiava. Vinde trazer-me as horas que eu passava Ao som de menos ríspidas cadeias. Bem que tristes, de paz as horas cheias Saturno no seu corpo as sepultava No feliz tempo em que eu inda ignorava Que havia para mim outras mais feias. Ide colher aos ermos tenebrosos Os ais que lá deixei menos sentidos Para modêlo dêstes tão queixosos. Talvez que êsses antigos meus gemidos, Com que eu domava os monstros furiosos, Hoje abrandem meus fados desabridos. E ainda noutro soneto da mesma época correspondendo à mesma sorte de impressões: Sei que o prazer qual frágil planta dura, Que o progresso do tempo traz mudanças, E que alegria é sempre mal segura. Troco assuntos ditosos, por lembranças, Basta a meus hinos glória sem ventura, Honra, virtude e _murchas esperanças_. Mas se esta velada confissão não bastasse para nos guiar nas nossas investigações íntimas, teríamos em todo o caso o seu casamento. Entre tantos fidalgos portugueses que freqùentavam a sua casa (alguns dos quais, infelizmente para ela, corresponderiam por demais ao retrato típico que ela traça de Bernardo da Silveira) um estranjeiro, o conde de Oeynhausen Grovemburgo, que ela quer, que ela escolhe, quem contra vontade do pai, que nem sequer lhe assiste ao casamento, ela aceita para marido. ¿Há mais claro indício do desgôsto que, entre os da sua raça e da sua terra, lhe inundou a alma ambiciosa, exigente, perigosamente exaltada pelo belo? * * * * * No prefácio das obras de Leonor de Almeida, a que mais de uma vez nos temos referido, vem a genealogia do conde de Oeynhausen traçada com escrupuloso esmero pelas suas descendentes. De feito o conde descendia de uma casa nobilíssima da Alemanha; era primo co-irmão do conde Schaumbourg-Lippe, o que o não privava de pertencer a essa procissão innumerável de fidalgos pobres, que então enxameava por tôdas as côrtes do mundo, e que ofereciam o seu braço de soldado a todos os que dêle precisassem para combater qualquer causa, fôsse ela qual fôsse, contanto que rendesse para viver, e viver bem. Leonor de Almeida, escrevendo ao pai do convento de Chelas, ainda, é certo, em tempo do marquês de Pombal, referia-se desdenhosamente a êsse bando de nobres aventureiros, que atrás do conde de Lippe tinham penetrado tambêm em Portugal e ocupado muitos dos importantes postos do exército, agora um tanto estrangeirado como de todo estrangeiro era o seu comandante em chefe. Citemos, como é nosso costume, a frase textual de Leonor:--«Creio que tem lugar aqui a reflexão assás comum de que o maior despotismo cava o princípio em que se despenha. Estamos a pique de nos engulirem os ingleses ou os castelhanos. Os melhores soldados são os descontentes, e restam para a frente dos nossos exércitos um estranho (o conde de Lippe) e _vários bonecos_ que representam por arames como os da comédia! Bons sucessores dos nossos guerreiros honrados!» O caso é que um dos tais _bonecos_ a que Leonor se refere aqui, é o conde de Oeynhausen. Êste, na côrte de Portugal, que a esta hora se recomendava pela cegueira da superstição e pelo requinte do beatério baboso, entendeu que o melhor meio de fazer caminho era tornar-se católico. Por uma felicidade, que nem sempre um narrador consciencioso dos factos do passado topa no seu caminho, fomos deparar no livro do malicioso irlandês Costigan, contemporâneo do conde de Oeynhausen em Portugal, com a cerimónia imponente e luxuosa do seu baptismo. O conde de Oeynhausen era respeitado na côrte pelos seus talentos militares e pelo bom senso e conhecimento do mundo, e estas qualidades pessoais, juntas à circunstância de pertencer, pelo nascimento, a uma família de príncipes, levavam a rainha a ser madrinha do novo neófito do catolicismo. Na capela da Ajuda compareceu, pois, para êsse fim, a rainha D. Maria I, acompanhada pelo príncipe seu marido, aquela figura caricatural de que já demos esbôço imperfeito. Ao pé dos dois via-se Angeja, o primeiro ministro, obeso, escuro, com baixo aspecto de onzeneiro judeu e cercado ali mesmo de adulações e cumprimentos que há pouco convergiam todos para a figura majestosa e imponente do exilado ministro de D. José! A figurinha esperta, movediça, maliciosa de Martinho de Melo, lança em tôrno de si os golpes rápidos do seu vivíssimo olhar, emquanto Aires de Sá, magro, emmaciado, com um grande livro de _Horas_ na mão, nem repara no que se passa em tôrno dêle, tão do coração se entrega às rezas e orações ferventes que aquela cerimónia sugere ao seu espírito de católico, tão ardentemente fixa o olhar extático nas imagens que resplendem sôbre o altar, e nas cerimónias rituais celebradas junto dêle. O conde da Ponte, camarista de el-rei e coronel de infantaria, perfila-se perto do príncipe, com a sua face de eunuco, onde não transparece o menor vestígio de barba. Endoideceu-lhe há pouco a mulher que conveniências de família tinham forçado a um casamento odioso, e vinga-se dela, do destino que o flagelou com secretas amarguras, do mundo que o não poupa a epigramas e alusões empeçonhadas e a conjecturas cruelmente indiscretas, fazendo da vida um assunto de _rabelaiseana_ gargalhada, sendo em cada festa aquele conviva que põe todos os outros em convulsões de riso, tendo um dito, uma resposta, um repente, um chiste para cada acontecimento, para cada indivíduo, para cada circunstância, para cada tragédia que passa... O alvo favorito dos seus epigramas e ironias é o cardeal da Cunha, empavezado agora, na sua balofa nulidade, com a importância adquirida na sombra do grande marquês. Foi o conde da Ponte quem, como já dissemos, visitando a livraria do cardeal, composta de onze mil volumes, fêz notar ao bibliotecário que tinha ali sua eminência para servi-lo nem menos de onze mil virgens! Aos olhos de Costigan,--o soldado aventureiro doido pela fôrça, como os da sua raça,--destaca-se a figura marcial do marquês das Minas, «nascido para homem de guerra e homem de brio», mas tendo naquele meio, degenerado e tão hostil aos fortes, adquirido defeitos que lhe deslustram a instintiva nobreza da alma. Superior a muitos dos seus compatriotas pela inteligência, pela energia e pela instrução, contava-se que êle não duvidara entrar numa conspiração urdida no paço, em que os primeiros fidalgos da côrte se tinham munido de _facas de ponta_, para assassinarem o marquês de Pombal, caso êle tentasse reter nas mãos o poder que a morte do rei fatalmente lhe arrancava... A voz do frade dominicano, que se levanta estrondosa, acordando os ecos da capela, arrancava Costigan à contemplação das diversas figuras da côrte, salientes por esta ou aquela qualidade mais característica, e levava-o a concentrar todo o seu poder de atenção nessa espécie de eloqùência. O frade extasiava-se ante o mérito daqueles que consagram a existência à conversão de herejes e de infiéis. Lembrava quanto era extensa, enorme, incontável a lista dos convertidos às verdades da nossa santa religião. O seu santo patriarca, S. Domingos, outra coisa não fizera, em tôda a sua santíssima vida, senão converter ímpios e infiéis em quási todos os países da Europa, entre os ruins albigenses, os protestantes da Alemanha e da França, os judeus e mouros de Portugal, isto sem usar modo algum de fôrça ou compulsão, como êle prègador afirmava ao seu pio auditório, mas sómente com os estupendos milagres que operava, e com o flamejante raio da sua palavra poderosa. Desde êsses remotos tempos até agora não houvera príncipe, nem monarca, tão zeloso em animar as conversões à Santa Igreja como Sua Fidelíssima Majestade ali presente, por cujos méritos Nosso Senhor e Nossa Senhora a haviam de recompensar amplamente com a paz e prosperidade neste mundo e uma coroa de glória no outro. --«Deixai, continuava êle, deixai que as innumeráveis conversões, presenceadas por esta augusta côrte, desde o feliz acesso ao trono de Sua Majestade a Rainha, confirmem a verdade do que eu digo--deixai que os sombrios huguenotes da França, os réprobos herejes da Inglaterra, os seguidores alemães do cruel Calvino e do ímpio Lutero, os quais teem sido em número incalculável baptisados dentro destas paredes, declarem quão ferveroso e ardente tem sido o zêlo de Sua Majestade em os fazer renunciar aos seus erros abomináveis, em se professarem filhos dóceis e humildes da única Igreja infalível que existe sôbre a terra. «Oh! que eu não tenha a voz de um milheiro de anjos (exclama em tom mais férvido o inflamado prègador) para reconhecer dignamente a bondade da Providência em nos enviar tão excelsa rainha, e para agradecer ao meu glorioso patriarca S. Domingos por me haver inspirado a mim o mais humilde, o mais indigno dos seus filhos, com eloqùência, com argumentos, com retórica bastante, para reduzir e vencer o poderoso raciocínio e as bem elaboradas objecções do nobre neófito que estamos a ponto de admitir no seio da santa Igreja visível.» Neste momento apareceu o neófito, estando já tudo preparado para a cerimónia de o baptisarem. Ao pé da pia baptismal estava el-rei e a rainha, e os olhos de ambos os régios personagens se arrazaram de lágrimas no momento da piedosa celebração. Tão depressa ela concluíu, a rainha, dirigindo-se graciosamente ao católico recem-nato, enxugou com o seu próprio lenço de cambráia e rendas algumas gotas de água benta que tinham caído sôbre os bofes da sua camisa, dizendo-lhe «que esperava que isso o não constipasse, pois que era uma espécie de água que nunca fazia mal a ninguêm». A côrte inteira seguiu-se a cumprimentá-lo amávelmente, emquanto as lindas vozes da capela real se erguiam para o alto num _Te Deum_ magistralmente executado, que completava a augusta, a pomposa, a fidalga cerimónia. * * * * * Em 1779, dois anos depois da sua saída de Chelas, e poucos dias depois do baptismo do conde de Oeynhausen, Leonor dava-lhe a mão de espôsa, surda à voz do pai, que se levantava arrebatada e violenta, contra esta escolha imprevista, esquecida dos mil protestos que havia feito ao marquês de lhe obedecer sempre em tudo, e principalmente no magno assunto do seu casamento, sem atender à pobreza do fidalgo alemão, que estava em completa desproporção com a nobreza do seu nome, e às dificuldades que por êste motivo o futuro fatalmente lhe guardava. Sem documentos autênticos e positivos que nos elucidem acêrca das impressões de Leonor ao deixar o convento e ao entrar no mundo e na família, não podemos contudo deixar de atribuir a um desgôsto profundo de tudo que em tôrno de si vira, esta resolução tão estranha e rápida. O conhecimento íntimo do seu carácter é suficiente elemento para esta conclusão, que afoitamente perfilhamos. Os conflitos entre o pai e a filha, seria necessário uma profunda ignorância da psicologia de ambos para os não agourar desde logo; o antagonismo entre ela e o _meio_ social em que ia viver, ressalta naturalmente da leitura das suas belas e generosas cartas, e da análise documentada da sociedade estranha do seu tempo. Que melhor meio de fugir a tão grandes dificuldades do que êsse casamento, que ia roubá-la por muito tempo, talvez para sempre, à influência esterilizante e deprimente da sociedade portuguesa, à ríspida autoridade, outrora tão querida, do seu ulcerado pai? Numa epístola sua a um amigo, Bocage, mais tarde, referindo-se a êsse gôsto dos países estrangeiros, de que Leonor dá agora a manifestação primeira, lamenta-se de não poder seguir-lhe o exemplo, planeia tambêm fugir ao _meio_ asfixiante que o envolve. Êle tambêm: ... Como a grande, a majestosa Alcipe Com pejo de existir cá onde há morte, Ousara demandar no afoito adejo Plagas imensas onde tudo é vida. Mas Bocage, mais infeliz que a poetisa portuguesa, morreu amarrado ao ignóbil poste da sua miséria, tendo as mais das vezes de contentar-se com a plebe dos botequins, para lhe dar aquele nectar inebriante do aplauso ruidoso e sincero, sem o qual a sua alma não podia viver. Foram êsses botequins o teatro mais freqùente dos raptos do seu sublime e independente espírito. Leonor fugiu para longe, gozou, conheceu, teve tôdas as sensações exquisitamente delicadas, que um entendimento como era o dela precisava para se desenvolver. A flor, porêm, daquela viçosa fé nas ideas novas, que as suas cartas tão encantadoramente revelam, murchou de todo no ar artificial das côrtes europeias que freqùentou. A Leonor que volta é bem diversa daquela que partiu. E bem pode dizer-se que a fase mais interessante da sua vida acaba aqui! Mas literáriamente o progresso do seu talento é incontestável. Como a Stael, ela trouxe a Portugal, de volta da Alemanha, a revelação da profunda literatura do norte, então totalmente desconhecida por nós, e o seu gôsto faz-se tão seguro e tão firme que é ela quem muito mais tarde revela Herculano a si próprio, e o induz a seguir a carreira das letras, segundo a confissão, feita pelo eminente historiador, que trasladamos para aqui: «Aquela mulher extraordinária, a quem só faltou outra pátria que não fôsse esta pobre e esquecida terra de Portugal para ser uma das mais brilhantes provas contra as vãs pretensões da superioridade excessiva do nosso sexo, é que eu devo incitamento e protecção literária, quando ainda no verdor dos anos dava os primeiros passos na estrada das letras.»[96] * * * * * Não podemos seguir Leonor, no desenvolvimento do seu génio poético e da sua carreira social tão brilhante. Outros o farão. O seu carácter original que se foi transformando com a idade e com a evolução do tempo, mais tarde outros o hão de descrever com o brilho e a precisão que lhe são devidos. Nós com bastante pezar ficamos por aqui. NOTAS DE RODAPÉ: [66] Latino Coelho, _História política e militar de Portugal_, etc. [67] Em Bemfica, na casa dos marqueses de Fronteira. [68] Correspondência inédita. [69] Obras poéticas da marquesa de Alorna, tom. II, _Epístola em resposta ao conde de Ega, Aires de Saldanha_. [70] Uma vez, tendo-se extraviado uns papéis do marquês, Leonor escreveu-lhe: «Bem quisera eu não achar nada que recear nos papéis que estão na mão do M. (Marquês de Pombal), mas não sei tranquilizar-me lembrando-me que poderão ser os que pertencem aos estudos de v. ex.ᵃ. Não sei sôbre que seriam; mas os objectos que principiavam a interessar únicamente o mundo literário quando v. ex.ᵃ se prendeu, e que certamente já interessariam a v. ex.ᵃ, são perigosos de tratar em um país despótico, onde o capricho é únicamente a lei que servimos. «A política, que principiava a apurar-se muito com o favor da filosofia, é hoje o objecto que mais interessa os filósofos e em que os políticos maquiavélicos mais receiam instruir-se. Dizer que os príncipes são protectores das leis, que o seu poder é restrito por elas, que a justiça não consiste em oprimir, mas em manter e conservar os direitos de cada indivíduo que compõe a sociedade, são blasfémias, e o filósofo que as pronunciar deverá ocultar o seu nome para abrigar-se das iras do ministério. Tanto nos governa o capricho.» [71] _Recordações de Jacome Raton--História de Portugal_, etc. [72] Correspondência inédita. [73] Correspondência inédita. [74] Cantigas contra o marquês de Pombal. Fr. Manuel de Mendonça, dom Abade de Alcobaça, parente do marquês, e fr. José de Mansilha, seu confidente e amigo. [75] Latino Coelho, _História política e militar de Portugal_, etc. [76] Latino Coelho, _História política e militar de Portugal_, etc. [77] Latino Coelho, _História política e militar de Portugal_, etc. [78] Idem, _ibidem_. [79] No referido edital a representação em favor de D. Martinho é acusada de conter um agregado _de doutrinas erróneas, falsas, sediciosas e tendentes a sugerir máximas repugnantes... e a indispor e contaminar os ânimos de pessoas menos instruídas, para as alienar por êste detestável modo do respeito, obediência e submissão que devem ter às leis e aos soberanos legisladores delas, os quais tendo recebido o poder supremo imediatamente de Deus, que os colocou no trono, e a quem sómente são responsáveis das suas acções, não reconhecem no temporal, em caso algum, qualquer que êle seja, superior sôbre a terra_. Êste edital, autêntico como é, bastava para nos edificar sôbre o espírito que respirava a _representação_ do ex-marquês de Gouveia. Não podemos, contudo, conciliar estes factos irrefutáveis com o que sôbre o mesmo assunto relata no n.ᵒ 8 das suas _Noite de insónia_ Camilo Castelo Branco. Dá êle uma cópia da _representação_ feita à rainha D. Maria I pelo infeliz D. Martinho, representação eloqùente, mas rastejando pelo excesso da submissão e da humildade, e acrescenta que foi seu autor o maior jurisconsulto do tempo, o grande Pascoal José de Melo, e que o mais profundo e glacial silêncio foi a resposta da piedosa soberana a tão submissa e eloqùente _representação_. Não nos atrevemos a destrinçar qual dos dois brilhantes e bem informados escritores se enganou. Afigura-se-nos, em vista das provas aduzidas por Latino Coelho, o qual parece ter ignorado a hipótese apresentada por Camilo, que a verdade completa está do lado do autor da _História política e militar de Portugal no século XVIII_. É tambêm possível que o primeiro projecto do _memorial_ fôsse escrito, a pedido do marquês de Alorna, por Pascoal José de Melo, e que êste, conhecendo bem o espírito de intensa e vigorosa reacção, que presidia ao govêrno de D. Maria I, não quisesse, em benefício do seu cliente, empregar frases que não fôssem da mais ortodoxa submissão ao poder absoluto da monarquia. É natural tambêm que o marquês de Alorna, descontente com essa humildade extrema, que feria os seus brios de fidalgo um poucochinho rebelde, encarregasse mais tarde Francisco da Costa de _apimentar_ um pouco mais o _memorial_, e no cumprimento dessa obrigação o causídico, educado na tradição liberal da jurisprudência portuguesa, empregaria então as frases que tão mal soantes parecem ter sido aos ouvidos da rainha, habituados à lisonja mais abjecta. [80] Recollections of an excursion to the monastery of Alcobaça and Batalha by the author of _Wathek_. [81] O mesmo volume atrás citado. [82] As for king Peter, our tawny king of Spain, with his monstrous nose is quite an Adonis when compared to him. He has very hard features joined to a foolish look, and wears a very ill combed wig generally to one side, and though he never tastes wine yet to my mind he has altogether very much the appearance of a stupid old guzzling englishman about two third drunk.--Costigan, _Sketches of society and manners_. [83] Beckford. [84] _Histoire de l’Autriche depuis la mort de Marie Therèse jusqu’à nos jours._ [85] _Histoire de l’Autriche_, etc. [86] Beckford. [87] «Le confesseur de la reine, le dur scholastique, instruit de l’aversion que la grande noblesse concevait à son égard, commence à se montrer plus favorable aux intérêts des seigneurs, et quelques grandes maisons cessent de tenir sur ce prélat les propos désavantageux qu’elles affectaient de publier. Mais il aura beau faire, il est en mauvaise odeur à la cour de Rome, instruite par ces nonces qu’il est opposé aux opinions ultramontaines.» Carta do abade Garnier para Simonin, 27 de Maio de 1777. Gabinete da abertura. [88] Beckford. [89] The huge massy dishes were brought up by a long train of gentlemen and chaplains several of them decorated with the orders of Christ and Avis. (Beckford). [90] Beckford. [91] Gluck e Piccini. Desnoiterres, _The present state of music in Germany_, etc., by the doctor Burnez. [92] Beckford, _Sketches of Spain and Portugal_. [93] Beckford, Costigan e outros. [94] Teófilo Braga, _História do teatro português do século XVIII._ Burney, _Present state of music in Germany state and the United Provinces_. Burney fala com entusiasmo de Gizziello, a quem chama _musical phenomenon_. [95] Beckford, _Sketches of Portugal_. [96] _Panorama_, 3.ᵒ volume, 2.ᵃ série, artigo sôbre a marquesa de Alorna. FIM ÍNDICE CAPÍTULO I O nascimento de Leonor de Almeida.--Seu avô Pedro de Almeida nas guerras da sucessão de Espanha. O seu govêrno da Índia. Sucessos que o assinalaram.--O título de marquês de Alorna.--Sua avó a marquesa de Távora D. Leonor no terremoto. Versos que ela inspirou.--A marquesa de Távora D. Leonor na Índia.--Festas pomposas.--Tragédia de Corneille.--O teatro de Pangim.--Influências atávicas do carácter de Leonor de Almeida.--Influências directas.--O atentado contra D. José.--A prisão dos fidalgos.--O tribunal da inconfidência.--A sentença.--O cadafalso de Belêm.--A morte da marquesa de Távora.--Com que altiva elegância ela sofre a execução.--A carnificina de 13 de Janeiro de 1759.--José Maria Távora.--Duelo de morte entre Pombal e a nobreza da côrte.--A política pombalina.--A ferocidade de todos os condutores de homens.--Como é que na bravura de carácter português conseguem destoar vigorosamente os tipos de fôrça.--Lógica medonha da situação.--A marquesa de Alorna na Junqueira.--A marquesa de Alorna e Leonor de Almeida em Chelas. 7 CAPÍTULO II Leonor era Chelas.--Antiguidade e origem dêste convento.--Vida conventual.--As cartas do marquês de Alorna a sua mulher.--Não são escritas com sangue.--Correspondência entre Leonor e o pai.--O incidente entre Leonor e o arcebispo de Lacedemónia.--Versão correcta e autêntica dêste incidente que anda desfigurado nas biografias de Leonor.--Estudos.--Leitura dos filósofos franceses.--Lutas de Leonor com o pai, a mãe, a condessa do Vimieiro.--O esquecimento do passado e do presente procurado no estudo.--Confiança que Leonor tem no pai.--Festas de Chelas.--Outeiros.--Representação de Atália.--Intermédios jocosos.--Coragem e alegria de Leonor através de todo o seu infortúnio.--O problema religioso.--Ilusões simpáticas do espírito de Leonor.--O marquês de Alorna condena Voltaire a ser queimado.--Admirável resposta de Leonor.--Discussões acesas de Leonor com os confessores do convento.--Lutas de consciência.--Antagonismo entre Leonor e o seu meio.--Fantásticos projectos de salvar seus pais.--Cartas a Luís XV e a Voltaire.--Mau francês e óptimos sentimentos.--Controvérsias literárias e poéticas entre o marquês de Alorna e Leonor.--Bom senso e bom gôsto do marquês.--O que Leonor diz a respeito do amor.--A Zamparini e várias anedotas da côrte.--O marquês de Gouveia e Maria de Almeida.--Entusiasmo com que Leonor antevê a factura existência dos seus no campo.--Influência de Rousseau.--Dois projectos de casamento para Leonor.--Retrato de um fidalgo ignorante.--Versos de Chelas.--Os sonhos de Leonor.--O príncipe azul.--Morte do rei que vem libertar a família de Alorna. 57 CAPÍTULO III Morte de el-rei.--É despedido brutalmente o marquês de Pombal.--Soltura dos presos da Junqueira.--O marquês de Alorna na portaria de Chelas.--Orgulho do marquês.--Seus esforços para uma pronta reabilitação que alcançou.--Retirada da família de Alorna para Almeirim.--Desilusões de Leonor.--Antagonismo moral do pai e da filha.--Reacção desbragada do reinado de D. Maria I.--O ministério da rainha.--Angeja.--Vila Nova.--Martinho de Melo.--O cardeal da Cunha.--Tancredo e Maria de Almeida.--Desgôsto do marquês de Alorna.--A côrte de D. Maria I.--A rainha e sua loucura.--O rei.--O principe do Brasil.--O confessor da rainha arcebispo de Tessalónica e o seu leigo.--Os marqueses de Marialva e a sua principesca hospitalidade.--Festas típicas da sua casa.--Os Penalvas.--Várias figuras do tempo.--O duque de Lafões e o mestre Gluk.--Pitoresco da vida portuguesa, mas falta de influência feminina.--A castidade da rainha e o teatro.--Do estado lastimável a que êle desceu.--Farças, entremesses, tragédias.--Conflito entre Leonor de Almeida e o seu meio.--Casamento que a liberta dêsse meio.--O conde de Oeynhausen.--Cerimónia do seu baptisado.--Testemunha ocular que a narra minuciosamente.--O sermão do frade dominicano.--Oposição do marquês de Alorna ao casamento da filha.--Desobediência de Leonor e seu casamento com o conde alemão.--Referência de Bocage a Alcipe. 151 *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK SCENAS DO SÉCULO XVIII EM PORTUGAL *** Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. Project Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away--you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. 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