The Project Gutenberg EBook of Ruy o escudeiro: Conto, by Luís da Silva Mousinho de Albuquerque This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Ruy o escudeiro: Conto Author: Luís da Silva Mousinho de Albuquerque Release Date: June 9, 2007 [EBook #21786] Language: Portuguese *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK RUY O ESCUDEIRO: CONTO *** Produced by Pedro Saborano. Para comentários à transcrição visite http://pt-scriba.blogspot.com/ (This book was produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) RUY O ESCUDEIRO. Conto. POR L. DA S. MOUSINHO D'ALBUQUERQUE. Remedios contra o somno buscar querem, Historias contão, casos mil referem. Camões, Lusiadas, Canto 6.º, Est. 39.ª LISBOA: 1844. _Typ. da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis. Largo do Pelouriho, N.º 24._ _O manuscripto original do presente Poema foi dadiva generosa de seu illustre Auctor, feita á Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis, que desejando corresponder a tão obsequioso offerecimento empenhou os recursos artisticos, de que podia dispor, para que a edição fosse primorosa, e provasse o adiantamento da gravura em madeira e da typographia em Portugal nestes ultimos annos._ _Os Editores._ RUY O ESCUDEIRO. CANTO PRIMEIRO. Desbaratado, e roto o mouro hispano, Tres dias o grão Rei no campo fica. Camões, Lusiadas, C. 3.º, E. 53.ª A Cruz azul, que em campo prateado No escudo de Henrique reluzia, Em cinco o Filho já tinha cortado Por memoria dos Reis, que roto havia: De Castro-verde o campo dilatado O novo Rei com o arraial cobria, Livres os seus, e os mouros fugitivos, Partião os despojos, e os captivos. Do arraial no meio se elevava Do grande Affonso a lenda triumfante, Em torno á qual o vento balançava As dos Cabos do Exercito prestante, De Pero Pais, que seu pendão guiava, Dos Venégas do Aio prole ovante, De um Sousa, de um Vallente, e de outros fortes Nos perigos, e na gloria ao Rei consortes. Em seguida á do Rei se distinguia Tenda semi-real, que alli plantára Heroe, cujo valor não desmentia O sangue da Borgonha, que o formára; Pedro Affonso, a quem déra a luz do dia Amor, que o hymineo não consagrára, Digna estirpe de Henrique, e em obras suas Galardão do cuidado ao aio Fuas. No circumstante campo, vasto, aberto, Que inda ha dois sóes medroso, e trepidante Víra a furia cruel, conflicto incerto Do Sarraceno em lanças abundante Contra o Christão, que anima o Chefe experto, E no Deus de seus pais a fé constante, Trombetas, e ataballes uns tangiam, Outros em novo canto assim diziam. HYMNO. Vai fugindo o Sarraceno Mais prompto do que avançou, Que todo o poder terreno Por Christo desbaratou O braço aos perros fatal De Affonso de Portugal. Cada um dos Cavalleiros, Que por Christo ao campo vem, Cem dos infieis guerreiros Na peleja ante si tem; Mas tudo cede ao real Affonso de Portugal. Cinco Reis de infieis mouros Contra os de Christo vieram, D'elles teve Affonso os louros, As costas a Affonso deram, Deu Deus esforço immortal A Affonso de Portugal. Sobre o campo da victoria, Onde Christo lhe appar'ceu, E pr'a o escudo em memoria As proprias Chagas lhe deu, Ao throno alcemos real Affonso de Portugal. Este Heroe, que Deus ajuda Tome a nossa vassallagem: Sempre ao povo seu acuda Ou Elle, ou sua linhagem: Seja pr'a sempre real A coroa de Portugal. Sempre entro nós haja Rei Natural de nossa terra, Que na paz conduza a grei, E que a defenda na guerra, Qual o primeiro real Affonso de Portugal. Em quanto uns assim cantam dos soldados, Vão outros pelo campo divagando: Estes colhem despojo inda espalhado, Aquelles secco matto vão cortando; Ascende ao ár o fumo, que enrolado Das accezas fogueiras vem manando, Onde est'outros preparam o alimento Dos membros lassos próvido sustento. Já o Sol menos ardente Para o ponente descia, Temperando a calma do dia A fresca brisa nascente, No occaso reluzente, De ouro e de purpura ornado, Guarnece o ceo azulado A orla de nevoa espessa, Novo dia que arremessa Pintando um dia acabado. Tinha chegado A hora amena, Nos nossos climas Tão suave, tão doce, e tão serena, Hora, que em tempos De paz dourada, Dos lavradores É tão presada; Quando termina Do dia a lida, Quando o descanço Restaura a vida. Sopra da tarde Grata frescura Reanimando Murcha verdura. Vem o novilho, Já libertado Do duro jugo, Pascer no prado. Sobem dos campos Os segadores. Ledos cantando Ternos amores. Gentil mancebo, Que amor encanta, Ao som das córdas As penas canta, Em quanto em giros Linda pastora Co'a dança leve Mais o namora, Hora sem par, em que o cadente dia Traz repouso, ternura, e alegria! Pedro Affonso no emtanto, em cujo peito A pár da intrepidez móra a piedade, Guerreiro sem igual, Christão perfeito, Vai demandando a erma soledade Do provecto Ermitão, asilo estreito Onde fugindo as pompas, e a vaidade, A Deus e á penitencia consagrára O venerando velho a vida cára. N'uma colina, apenas exalçada Sobre a vasta planicie calorosa, Uma exigua Capella era elevada N'aquella idade barbara, e piedosa: Do velho Ermita a cellula acanhada Jazia ao lado, uma sobreira annosa, Co'a larga rama o tecto protegia, E do profano olhar a defendia. Ante a porta do sacro monumento Com toscos páus estava retratado O sacrosanto lenho do tormento, Em que o Filho de Deus fôra pregado: Dentro sculptado via-se o momento Em que o Corpo sem vida, reclinado Da Mãi nos braços, vai, qual creatura. O Creador baixar á sepultura. Alli da noute na primeira vela P'ra o Rei, do sacro livro possuido, A campana soou, que o tempo assella Do celeste Emissario promettido, P'ra que em luz, que a do Sol mais clara e bella Fosse Christo por elle percebido, Promettendo-lhe a coroa, e a victoria Da sua estirpe, e do seu povo a gloria. Naquelle instante o velho venerando, De giolhos aos pés da Cruz alçada, Estava o fim do dia consagrando, Como do dia consagrára a entrada. Raros alvos cabellos fluctuando Se viam sobre a frente despojada; E a barba, que lhe o vento sacudia Em ondas, sobre o peito lhe descia. Na piedosa oração todo engolfado Estava o santo velho por tal sorte, Que nem sequer sentiu chegar-lhe ao lado, Do Escudeiro seguido, o Varão forte. Pedro Affonso parou, seu peito, armado De audacia contra os perigos, contra a morte, Toca a vista do Ermita por tal geito, Que não sabe se é medo, se respeito. Mas o moço Escudeiro, que o seguia Bem diversa impressão experimentava, Do Ermita a quietação, quasi a apathia Da sua alma c'o estado contrastava; Em seu peito um volcão latente ardia, Dos desejos no pelago nadava, Estava n'essa idade, em que o repouso É não só mal; mas mal o mais penoso. Ruy era o seu nome. Á luz viera Sob o tecto paterno junto ao Douro; Seu Pai, no nome igual, a vida dera Com Henrique pugnando contra o mouro. Jámais paterno affago conhecera, Que a triste viuvez, envolta em chôro Ruy, unico bem que lhe restára, No berço filho posthumo embalára. Unica flôr, que lhe esmaltasse a vida, A mãi no tenro filho cultivava, Nelle a imagem do pai, reproduzida, Embellezada ainda, idolatrava. No Joven desde a infancia alma atrevida Namorada da gloria se mostrava, Com coração ardente, e generoso, E a um tempo amante, meigo, e carinhoso. Indole a tudo prompta, a tudo ousada No porte do mancho transluzia: Na estatura esbelta, e levantada Co'a ligeireza a robustez se unia: Sobre a frente morena, e dilatada A negra liza comma lhe descia, Nos olhos vivos, e de côr escura Temperava o fogo bellico a ternura. Não era lindo, não, que expressão tanta Destroe a symetria da lindeza; Porem mais do que o lindo arrastra, encanta, Interessa, move, e a attenção tem presa. Sem ter severo olhar, que o riso espanta, Séria a sua expressão, toca em tristeza, Trasborda n'ella uma alma forte e ardente, Que tudo póde ser, salvo indiff'rente. Tal era formado No vulto, e nas cores, Que era a Marte asado, Era asado a amores. Qual brilha entre as flores O cravo fragrante, Tal elle prestante Entre os mais brilhára, Ou tal se elevára Entre os companheiros, Como nos outeiros O olmo alteroso Sobre o bosque ergue o cume alto, e frondoso. No patrio tecto, desde o berço vira Do nobre pai o escudo pendurado, A cota, que inimigo ferro abrira, Inda tinta do sangue não vingado. Mil vezes entre pranto á mãi ouvira Contar paterna gloria e triste fado, Mil co'a infantina mão tocado havia A herdada lança, que ha brandir um dia. Entre memorias taes do patrio dano Do filho de Ruy crescera a idade; Volvido haviam já anno apoz anno Conduzindo o vigor da mocidade, Quando a mãi, que respeita como arcano Do extincto Esposo a ultima vontade, No dia em que seu lucto revivia Ao filho bem amado assim dizia. «Martyr da fé Christãa teu Pai na guerra «Pela Cruz deu a vida peleijando; «Fatal golpe o prostrou na propria terra, «Que para Christo andava conquistando. «Ah! se lá donde o summo bem se encerra «Elle, oh filho, nos vê, ver-me-ha chorando, «Dar-te o preceito, que houve do Consorte «Quando a alma entregou nas mãos da morte. «Alli fica, me disse, aquella lança, «Que só de infiel sangue foi manchada, «Alli deixo esse escudo por herança, «Esse elmo, essa cota, e essa espada: «Se o summo Deus tiver de nós lembrança, «E que um filho haja em ti, oh bem amada, «Meu nome lhe darás, e essa armadura «Sob a qual encontrei a morte dura. «Dar-lhe-has esta Cruz. Isto dizendo «Do peito a separou por vez primeira, «E o braço, já sem força, a custo erguendo, «Aos labios a levou por derradeira. «Dir-lhe-has, que se a paz acho morrendo «A esta insignia a devo verdadeira, «Devo-a de Christo á fé, que a vida guia, «Que ensina a fallecer sem agonia. «Dize-lhe que a conserve ao peito unida, «Que ao lado seu cinja a paterna espada, «Aquella p'ra o guiar á eterna vida, «Esta p'ra ser a seu Senhor votada; «Que indomito na pugna asp'ra e renhida, «A fraqueza respeite desarmada; «Que preze a honra; fuja da cobiça, «E da moleza vil, que o vicio atiça. «Assim fallou teu Pai.... e a penetrante «Ferida em rouxo sangue se esvaia. «Sumiu-se a voz no peito palpitante, «Aos olhos se apagou a luz do dia: «Soou da minha dita ultimo instante, «Já d'esta alma a ametade não vivia; «Mas dentro de meu seio palpitava «Penhor, que a ficar viva me obrigava. «Vivi, a força achei, que me vigora «No maternal amor, oh filho amado, «Cáro penhor de um laço, doce outr'ora; «Mas roto, quando apenas estreitado! «A ti mancebo, a ti pertence agora «Restituir-me aquelle que hei chorado, «Se, como espero, em ti vir renascida «A virtude d'essa alma ao ceo subida. «Da tua infancia os dias acabaram, «Já teus membros tem força e tem destreza, «Aquelles, que o esposo me roubaram, «Saibam que não fiquei só, sem defeza. «Sangue vil minhas veias não herdaram, «Nem coração sugeito a tal fraqueza, «Que ao filho de Ruy estorve a gloria «De ter por Deus, e pelos seus victoria.» De Ruy a viuva, assim fallando, Do muro antigo as armas desprendia, E os humidos olhos enchugando, O filho de Ruy d'ellas cobria. O mancebo, de nobre ardor córando. Com respeito a armadura recebia, Que já na dura guerra exp'rimentada, Fôra do pai com o sangue consagrada. Um captivo entretanto apparelhava O bruto ardente, que se apraz na guerra, Que impaciente o freio mastigava, Co'a vigorosa mão cavando a terra; Já armado sobre elle cavalgava Quem do ninho paterno se desterra, A procurar do mundo as aventuras, Gratas a poucos, para tantos duras. Da triste mãi os olhos macerados Por largo espaço a marcha lhe seguiram; Ao perde-lo porem entre os silvados De uma nevoa de pranto se cobriram. Seus animos, do filho sustentados, Ao arrancar-se d'elle sucumbiram. Sentiu a triste, a dôr, magoa, anciedade, Que só conhece a maternal saudade. Segue no emtanto o moço a varia estrada Que o Mondego do Douro distanceia, Na terra, dos Beroens Beira chamada, Onde o Vouga entre as serras serpenteia, Do Bussaco transpõe serra elevada, E bem depressa a vista lhe recreia Valle ameno, co'as flores e a verdura Que nutre do Mondego a limfa pura. De risonha colina no vertente, Que o rio carinhoso em baixo lava, A cidade Conimbrica é jacente, Que então de espesso muro se cercava; N'ella ajuntando estava armada gente Affonso, que attacar apparelhava O agareno Ismar chefe animoso Do transtagano mouro bellicoso. Era Affonso acompanhado D'esse Irmão, de Henrique filho Cavalleiro de alto brilho, Por Dom Fuas educado. Fuas era aparentado De Ruy com os ascendentes, E o sangue de seus parentes No Joven reconhecendo, Seus destinos protegendo, Por escudeiro o ligou A Pedro, que o aceitou, E entregando-lhe a lança, Poz n'elle tal confiança, Que como a filho o tratou. Lá na peleija de Ourique No mais forte das batalhas Rachou elmos, rompeu malhas Ruy, com o filho de Henrique. Ao som da tuba guerreira Seu coração se accendeu; Qual touro, aberta a barreira, Com o mouro accommetteu. Aos golpes da herdada lança Muitos mouros expiraram, Muitos da espada a provança Cáro co'a vida pagaram; E no sangue de inimigos, Que pela Fé derramou, Entre azares, e perigos, Do pai a morte vingou. Do defunto Ruy tal era o filho, Que Pedro Affonso ao ermo acompanhava. Já do cadente Sol o ultimo brilho Nas bordas do horisonte se apagava, De altas idéas no inspirado trilho O provecto Ermitão continuava: Quando subito o rosto alevantando Volveu aos dois o aspecto venerando. ERMITÃO. «Salve prole de Henrique, heroe preclaro, «Salve sangue de Reis, a quem a gloria «Predestinada está no assento claro «De ter, mais que de imigos, a victoria: «Sim, tu triumfarás do abysmo avaro, «Do mundo calcarás pompa, e vangloria, «Todo o fulgôr da humana heroicidade «Sepultando no asilo da piedade. «Onde dos teus a estirpe triumfante «Teve origem irás, nobre e animoso, «Do teu sangue encontrar varão prestante, «Que em ti fecundará germen piedoso; «Deporás a couraça rutilante, «O elmo, o escudo, o ferro temeroso, «Para aspirar á gloria, que não passa, «No retiro e silencio de Alcobaça. «Tu porem, oh mancebo, de que abrolhos «Cheio é para ti campo da vida, «Em que mar procelloso, entre que escolhos «Teus de seguir a róta combatida, «Que lagrimas amargas de teus olhos «Devem correr, no peito que feridas «Pungentes sofrerás, sem ter conforto «Antes que possas recolher-te ao porto! «Melhor fôra p'ra ti, se a natureza «De partes menos bellas te dotára, «Se insensivel ás graças e á belleza «Ao pondenor, á gloria te formára, «Se menos coração, menos viveza «Avara p'ra comtigo te outhorgára; «Que esse, em quem mais esmero põe natura, «Raras vezes mimoso é da ventura. «Os contrarios do Rei que alevantaste «Os menores serão de teus imigos, «Outro mais p'ra temer, outro encontraste «Muito maior no damno, e nos perigos, «Da dôr por esse o calix esgotaste; «Mas, cumpridos teus fados inimigos, «Olhará Deus p'ra ti, e á fonte pura «Te guiará da solida ventura.» Assim disse o Ermita, e reclinando A cabeça no peito, alguns momentos Recolhido ficou; alfim voltando P'ra os dois, que quedos s'tão mudos e atentos Acrescentou com tom solemne, e brando. «Que somos nós mortaes, mais que instrumentos «Dos designios de Deus, da alta sciencia «Da insondavel eterna Providencia? «Marcha aquelle no trilho da grandeza «De tantos precipicios circumdado; «Estoutro das paixões entre a braveza «É no duro combate acrisolado; «Nada um na abundancia e na riqueza; «Outro é do escasso pão até privado; «Mas se a boa ou má sorte os não illude, «Lá tem todos a coroa da virtude.» Estes, e outros discursos repetia O velho, de unção cheios extremada, Que Pedro Affonso n'alma recebia, Qual a semente a terra preparada: O mancebo porem a alma sentia Com violencia tal preoccupada, Que, orando a pár dos dois no monumento, Tinha longe da boca o pensamento. Mas já da noute o estrellado manto Toda a vasta planicie acobertava, Quando Pedro deixando o logar santo Para o regio arraial se encaminhava; Segue em silencio o Joven, em quem tanto Desassocego do Ermitão gerava O vaticinio, que debalde intenta Dissimular a agitação violenta. Alertas vélas passaram, Que do campo a guarda tem, No arraial penetraram, Descobrindo áquem e além Os fógos abandonados Pelos dormentes soldados. Baixou sobre Pedro o amigo Lethargo restaurador; Mas vigilia traz comsigo O cuidado roedor Que no Joven escudeiro Deixou o Ermita agoureiro. Em vão suffocar tentava Curiosidade indiscreta, Que, mal os olhos cerrava, Logo na mente inquieta Se renovava a impressão Das palavras do Ermitão. Assim oppresso, agitado, Da noute as horas seguiu, Até que o corpo cançado Ao somno alfim succumbiu, E o repouso ao pensamento Deu vigor, e deu alento. Ao romper do dia A trompa soava, Cada qual surgia. Cada qual se armava. Aqui os infantes Cerram as fileiras Junto ás ondeantes Variadas bandeiras; Alli vem rinchando Cavallos de guerra O pó levantando Da arida terra. A rosada aurora No aço esplandece. Que co'a luz, que o córa, Em chammas parece. De todos na frente O Rei cavalgava, E da heroica gente Os brios dobrava: As Quinas sagradas A cota lhe ornavam, No pendão lavrados Ao ar tremolavam. Emtanto abatidos A marcha seguiam Os mouros rendidos, Que algemas prendiam. Assim vencedores Os christãos marchavam, E aos frescos verdores Das margens do Mondego se tornavam, Nas campinas de Ourique Alçado rei, o heroe filho de Henrique. FIM DO PRIMEIRO CANTO. CANTO SEGUNDO. A tomar vai Leiria, que tomada Fôra mui pouco havia do vencido. Camões, Lusiadas, C. 3.º, E. 55.ª Para unir n'um só leito amantes aguas Vem o Liz, sobre os seixos murmurando, O Lena vem, nascido de entre as fraguas; Em seu curso modesto, alegre, e brando, Entre a relva mimosa, entre a verdura Cada qual mollemente serpejando. Jámais turvou a limfa clara, e pura O forte remo, a quilha recurvada Com que a industria mortal dóma a natura; Sómente a braça da arvore quebrada, A folha que no outomno cahe sem vida Pelo placido curso foi levada. Nas margens a aveleira entretecida Com o espinheiro está de flôr fragante, A madre silva co'a roseira unida. No espelho das aguas inconstante Reflectida balança alta ramagem De alamo bicolôr, choupo elegante; Dos vimes, e salgueiros a folhagem, Molles chorões, as braças incurvando, Vedam do sol aos raios a passagem. Alli, na primavera, sussurrando, Recolhe a abelha o mel por entre as flôres, E a borboleta as beija volitando, Quando o cantor sublime dos verdores Da aurora ao despontar, e á tarde canta Em frente ao brando ninho os seus amores. A róda leve as aguas alevanta, Que em canaes variados circulando, Levam frescura á sequiosa planta; Em quanto, dos invernos triumfando, Altos pinheiros sempre verdes frontes Reunidos se vêem aos ceos alçando Na encosta, e cumes dos visinhos montes. No meio d'este valle a natureza Um penhasco erigiu, morro isolado, Que das aridas rochas a braveza Abruptas volve aos raios do sol nado; Com aridez igual, igual asp'reza Do occaso, e do sul encara o lado; Orna-o do norte apenas a verdura Em mais suave encosta, e menos dura. Do forte morro ás abas se abrigaram Da destruida Liria os habitantes, Quando da natal terra os expulsaram Dos romanos as armas triumfantes; Para alli seus penates transportaram, E da perdida patria sempre amantes, De Liria ao novo asilo o nome deram, Que os tempos em Leiria converteram. De Vandalos, e Godos povoada Foi depois, gente forte e valerosa, Que com o tempo tambem cedeu á espada Da sarracena raça bellicosa, Na epocha em que a terra celebrada Das Hespanhas sofreu perda affrontosa, E só cantabrios serros abrigaram Os que ao jugo africano se escaparam. Mas alfim vencedor da maura gente, Affonso, no penhasco edificára Recinto marcial forte, e potente, Que de Agostinho aos filhos confiára, Quando do rôto Ismar a ira fremente No povo e no presidio se vingára, E unido a Hauzeri, mouro esforçado Tinha de Affonso os muros conquistado. Ai! daquelle, que atrevido Com temeraria ousadia Do Leão adormecido Os furores desafia! O animal irritado, De crua raiva espumando, Corre o campo, arrebatado Morte e ruina espalhando: Com seus urros espantosos A bronca serra estremece, A luz do raio esplandece Nos seus olhos furiosos. Força não ha tão potente Que a carreira lhe embarace, Que a garra não despedace, Que não rasgue iroso o dente: Té que em fim o imigo alcança, E no côrpo ensanguentado Partido, e dilacerado, Séva as iras e a vingança. Assim de novo a trompa bellicosa Nos valles retumbava, Assim de Affonso a gente valerosa Já de novo se armava, E as bandeiras, que as Quinas adornavam Os Alferes de novo ao vento davam. Nobres, e ricos-homens á porfia Se apromptam sem demóra A castigar dos mouros a ousadia, E em lide vencedora Punir os damnos, com que Ismar irado Todo o transito seu tinha marcado. O escudo embraçou p'ra nobre empreza Pedr'Affonso incansavel, Ao Rei da crua guerra na aspereza Consorte inseparavel, E com elle Ruy para a vingança Com ardor empunhou a herdada lança. Moveu-se a gente bellica segura Na esperança da victoria, Que a quem temer não sabe a lide dura Nunca desmente a gloria, E n'um teso, ao Castello apropinquado O campo expugnador foi collocado. De annoso pinheiro, Que em frente se alçava Do campo guerreiro, Nos ramos pousava Um corvo agoureiro Que abrindo o rostro infausto, e ás azas dando, Parecia estar os mouros malfadando. Os de Agar bramaram Quando alevantadas Em frente enchergaram As Quinas sagradas, E irosos juraram Illeso conservar o logar forte Seus muros defendendo até á morte. Alcaide da gente Seu brio excitava Hauzeri valente, Que a lança empunhava; Mouro forte e ardente, Entre os do bravo Ismar um dos primeiros Denodados, e intrepidos guerreiros. Com garbo, e presteza Discorre a muralha, Dispondo a defeza, Prevendo a batalha, O alcaide, e a firmeza A audacia, e o valor no rosto ostenta Com que dos seus a galhardia augmenta. Ao lado de Hauzeri bella apparece, Piedosa vista em lance tão p'rigoso! Filha linda qual luz quando amanhece Ao romper d'alva em dia caloroso, O turbante, que a frente lhe guarnece Remata alvo penacho precioso Em quanto vão os zephiros brincando Com os anneis sobre os hombros fluctuando. De seda as calças tem da côr da neve, Sobre ellas desce a tunica bordada, Cerulea faixa a cinta circumscreve, Qual a hastea do lirio delicada, Cobre o virginal seio a tea leve Onde a seda co'a lãa fôra tramada, De vermelhos coraes um fio brando Do collo airoso a base contornando. Suaves de Fatima os olhos eram, Vivos ao mesmo tempo e magestosos, Quaes unicos os nossos climas geram, Climas caros ao Sol, climas ditosos; Olhos, foccos de amor, que n'alma imperam Quer languidos, quer meigos, quer irosos; Olhos taes, que se pranto derramaram As mesmas brutas penhas abrandaram. Nas pudibundas faces reluzia A viva côr da nacarada rosa, Que em leve gradação se esvaecia Pela macia pelle melindrosa; Virgem, filha gentil do meio-dia, A côr tinha morena, e tão formosa, Como a que a luz de um Sol claro e brilhante Communica do prado á flôr fragante. Da larangeira em flôr com o deleitoso Aroma o ár da tarde embalsamado Cede em suavidade ao amoroso Hálito de seus labios exhalado. O murmurio do arroio saudoso Entro meudos seixos derivado, O meigo sussurrar do brando vento, Menos magia tem que o seu accento. Quem viu a vermelha rosa N'um ramalhete de flôres De todas a mais formosa Quer nas formas, quer nas côres: Quem da noute socegada No silencioso véo Viu a lua prateada Entre as estrellas do céo: Quem na belleza prestante Do palacio, ou templo santo Viu a corinthia elegante Que remata o molle achanto: Quem entre a familia leve, Habitante da espessura, Viu a pomba côr da neve, Vivo emblema da candura: Não viu mais que uma imperfeita Imagem das maravilhas, Com que Fatima deleita Os olhos, do seu povo entre as mais filhas. Porem, já sequiosos da vingança Os Christãos se aparelham p'ra peleija. Em batalhas o Rei divide as lanças, Marcando a cada uma quem a reja: P'ra o assalto prescreve sem tardança De cada Capitão qual dever seja, A qual compete de ir na frente a gloria, A qual mais tarde ha de colher victoria. A aquelle, que no nome, qual no peito Tem dos fortes a nobre galhardia, Entrega o grande Affonso satisfeito. Entre as batalhas, a que a frente guia: Na mesma linha põe e de igual geito A que o pendão de Mem Moniz seguia; Bem como a forte gente, cujo ousado Valor tem vido a Sousa confiado. As reservas intrepidas e ardentes, Onde a lucta attrahir maior perigo, Viegas com Martim, e outros valentes Promptos conduzirão sobre o inimigo; Porem de Pedro Affonso armipotente Braço e conselho o Rei quer ter comsigo; Nem desdenha reter junto a seu lado O Joven Escudeiro denodado. As trompas guerreiras O signal entoam, Ao combatte voam As bravas fileiras. Os mouros defendem Debalde a campina, Debalde pretendem, Que os Christãos bradando Co'a lança arremetem, A quanto accommettem Rompendo e prostrando. Qual da serra alpina Partiu destacada A rocha gelada, Que o valle domina, E em forças crestando Na queda espantosa Co'a massa assombrosa Vai tudo rompendo; Assim as batalhas Aos mouros forçavam, E em fuga os lançavam Ao pé das muralhas. Na rocha escarpada O mouro confia; O Christão porfia, E a rocha é trepada. Embora, galgando Por entre os rochedos, Inteiros penedos Descendem troando: As penhas, nas penhas Caindo, arrebentam; Heroicas façanhas Façanhas sustentam; Setas sibilantes Cruzam por milhares Das fundas girantes Com os tiros nos ares. Em quanto os archeiros A morte arremedam, Mais brava os lanceiros Já lucta começam, O escudo, a couraça, A malha cerrada, De morte esfaimada A lança transpassa, E aos golpes da espada O elmo partido No craneo fendido Lhe franqueia a entrada. A escada tremente Á muralha erguida Já foi erigida Pela ousada gente; Do escudo coberto, Com o ferro empunhado, Mais de um segue ousado No ár trilho incerto, E sobre as ameias Mais de um temerario, Entrega ao contrario O sangue das veias. A pugna engrandece, Redobra a fereza, Do ataque e defeza A teima recresce. Já os muros altos Por todos os lados Sentem renovados Continuos assaltos; Hauzeri no emtanto Resiste esforçado, Fero e denodado Desconhece o espanto; Tal, já quasi exangue, Javali ferido Com o dente buido Derrama inda o sangue, E a um tronco acuado, O collo cerdoso Revolve animoso A um, e outro lado. N'isto o intrepido Affonso, a si chamando As reservas, que cauto tem poupado, O decisivo esforço emfim tentando, Ao assalto as impelle denodado. Mal das gentes desliga o regio mando O valor tanto a custo sopeado Armas, clamor de guerra, e tubas soam, E contra o mouro irrisistiveis voam. De todos o primeiro ao morro avança O mancebo Ruy leve, e esforçado, Os penhascos transpõe sem mais tardança Que a anta o precipicio congelado; Fere, derriba, e mata a herdada lança, Foge o mauro tropel desordenado, Ruy segue qual raio a rôta gente Pela porta, que aos seus torna patente. Por ella ruina e morte Penetra, de horror cercada, O valor fallece ao forte, Com a esp'rança abandonada. Cada qual as armas lança, Cada qual arrója a espada. O vencedor na vingança Irritado se enfurece, Céva as iras na matança, A humanidade estremece, Mas a sanha do soldado A sua voz desconhece: Nada p'ra elle ha sagrado, E na crueza incendido Se crê pelo ceo armado, Sobre o infeliz vencido Julgará infidelidade Sentir-se compadecido; Nem o sexo nem a idade Salva do ferro cruento, E de horror e crueldade É o penhasco inteiro um monumento. O Sol cobriu de horror a clara fronte, Espessas negras nuvens o toldaram; As nevoas sobre a borda do horisonte Da roixa côr do sangue se pintaram; Os córvos carniceiros sobre o monte Com o faro da atroz prêza esvoaçaram, E enlutados os ceos, a noute fria Mais cedo pareceu pôr termo ao dia. Farto o soldado emfim de crueldade, Extinctos quasi os miseros vencidos, Amainou pouco a pouco a tempestade, Cessaram os clamores, e os gemidos, Já o Chefe recobra a authoridade Sem força entre os primeiros alaridos, E da victoria no seguro goso Abandonam-se as gentes ao repouso. Mas Ruy, cujo joven peito encerra O preceito da Mãi, do Pai legado, O descanço dos olhos seus desterra, Vagando no Castello desolado. De quente sangue vê fumando a terra, O cadaver encontra abandonado E o misero, que em mais tyranna sorte Sem asar de viver lucta co'a morte. No peito o coração em horror tanto De Ruy se apertou, a alma sensivel Viu, a um tempo com dôr, terror e espanto, P'ra quanto não é fera a scena horrivel; Não podendo suster amargo pranto, Quasi maldiz victoria tão terrivel, Fugindo ao quadro atroz por mais não ve-lo Se entranha para o centro do Castello. Da menagem a torre alli se erguia, No mais alto do morro alevantada, Torre rectangular que descobria Em redor a campina variada, Lá na alta noute, inda hoje triste pia Na muralha com o tempo descarnada O infausto mocho, e no seu seio escuro Se abriga contra a luz morcego impuro. De vigia servia o cume erguido, Na parte media as armas se guardavam, No mais baixo recinto denegrida Em prisão dura os crimes se expiavam. Por caracol estreito, e retorcido Os planos entre si communicavam. Na masmorra o soldado fatigado Não tinha a aquelle tempo penetrado. Na torre entra Ruy, e parecia Fatidico o instincto que o guiava; Á medida que o caracol descia Ancioso seu peito se agitava, Na escuridão completa se immergia, Palpando o muro os passos tenteava, Quando na marcha subito impedido Sente um corpo cahir, e ouve um gemido. Estremece o mancebo co'a surpresa; Mas prompto do repente recobrado, A mão ao corpo estende, e em vez de asp'reza Sente o tacto macio e delicado De anneladas madeichas na leveza, N'um seio feminil brando, agitado; Mais não hesita, o corpo em braços toma, Fóra da torre com o fardo assoma. Mas o corpo que leva entre seus braços Sem movimento está, e a voz perdida, Pendem-lhe os membros com o mover dos passos Qual a vide de olmeiro desprendida; Se o coração, batendo por espaços, No debil ser não revelára a vida, O mancebo por certo acreditára Que da morte os mysterios profanára. Mais o fardo apertava contra o peito, Mais do mancebo o peito se agitava. Parecendo-lhe sentir passo suspeito Que apoz elle nas sombras caminhava, A marcha apréssa, e n'um carreiro estreito Entra a mata, que a um lado a serra brava Selvatica produz, e na espessura Mais densa, o fardo põe sobre a verdura. Qual pasmo sem igual, quando encarando Aquella, que das trevas arrancára, Da lua lhe revéla um raio brando Do peregrino rosto a forma rara; Quando, no vulto immovel attentando, Descobre do mancebo a vista avára As bellezas, que prodiga a natura De Fatima juntou na formosura. A pallidez da morte realçava Merencoria a expressão de seu semblante; Os apagados olhos lhe cerrava A palpebra de cilias abundante; Do seio, que opprimido palpitava, Parecia que um suspiro a cada instante Ia partir, que o moço a vida déra Se nos labios gentis o recolhera. Extatico de pasmo e de surpreza Jaz Ruy com tal vista captivado, Sem cogitar de tanta gentileza Qual seja o miserando infausto estado. Co'a alma em goso estranho absorta e preza Ficára o moço alli como encantado, Se na Bella afllicção mais dura e forte Não parecesse estender o véo da morte. Contrahiram-se as faces melindrosas. Os membros delicados se obduraram, Os labios virginaes, murchas as rosas, Com um moto convulso trepidaram, De suór frio as gotas abundosas Pallida a frente, e o collo lhe banharam, Alevantou-se o seio seu mimoso, Tomou-se o respirar mais afanoso. O imprudente Ruy sahe do lethargo Recobra com o terror o pensamento, Do abandono da triste se faz cargo Naquelle transe horrivel de tormento; Dos olhos lhe rebenta pranto amargo, A Bella aperta ao peito tão violento Como quem quer partir com ella a vida, Ou com ella a existencia ver perdida. Não foi do moço inutil o transporte, Que a Bella entre seus braços estreitada; Ou fosse por que assim o quiz a sorte, Ou milagre de amor: reanimada, De subito escapando ás mãos da morte. Move o collo, ergue a frente debruçada, Cessa a suffocação, livre respira, Abre os formosos olhos, e suspira. Na mesma situação mais de um instante Um e outro ficaram sem fallar-se; Elle de puro goso delirante, Ella como quem busca recordar-se: Mas breve de Ruy vendo o semblante, Sentindo entre seus braços estreitar-se, D'elles se arranca, e em pranto debulhada, Fallando assim, lhe cahe aos pés prostrada. «Oh tu, quem quer que sejas, se a piedade «Entrada pode ter dentro em teu peito, «De uma innocente a misera orfandade, «Desamparo, e miseria tem respeito! «Sei que cahi na tua potestade; «Mas antes de sentir o seu effeito «Morrerei!......» Disse, e as renascidas rosas Pudibunda escondeu nas mãos formosas. «Que do Deus que nos ouve um raio ardente «Te vingue, e me anniquille neste instante, «Se um sentimento indigno esta alma sente «De que haja de córar o teu semblante! «Perde o terror, oh Virgem, tens presente «Um amigo, um irmão cuja constante «Ambição será só de obedecer-te «E contra qualquer perigo defender-te!» Assim fallou Ruy, e alevantando A prostrada Fatima, em mil maneiras Foi seu terror primeiro dissipando, Com gestos, com palavras verdadeiras. N'um penedo que cobre o musgo brando A Virgem se assentou, co'as lisongeiras Expressões de Ruy cobrando alento, Sentiu raiar a esperança em seu tormento. FIM DO SEGUNDO CANTO. CANTO TERCEIRO. Onde está aquella imagem pura, e bella Artificio divino entre nós raro? Onde aquelle olhar brando, que tão caro Me foi, e o resplendor de hua e outra estrella? Ferreira, Soneto, 15.º FATIMA Cavalleiro, se é verdade «O que acabas de dizer, «Na minha triste orfandade «Só tu me podes valer. «Não buscarei disfarçar-te «Qual é minha condição, «De tudo vou informar-te, «Ou sejas sincero, ou não. «Nas terras da Andaluzia «Mouro altivo me gerou, «Cujo nome e valentia «Longe a fama propagou. «De seu braço o nobre Ismar «Conhecendo a fortaleza, «D'estes muros confiar «Quiz a guarda e a defeza. «Do Téjo a margem deixada, «Onde outra arce regia, «Mandou-me vir malfadada «Para a sua companhia. «Sobre o perigo a que me expunha «Saudade lhe déra antolhos, «Que elle em mim seu prazer punha, «Que eu era a luz dos seus olhos! «Nascendo perdi a Madre, «Que em seu seio me formou; «Mas achei tudo no Padre «Que amoroso me creou. «Quer na tregoa socegado, «Quer na fadiga guerreira, «Jámais fui d'elle apartada, «Antes sempre a companheira. «Quando, ainda tenra infante, «Nos campos o acompanhava, «Sobre o cavallo possante «Um captivo me tomava; «E quando em forças crescida «Quiz-me elle mesmo ensinar «A tomar nas mãos a brida, «Os ginetes a domar. «Ora correr me fazia, «Dado ao venatorio trato, «O gamo, que parecia «Nadar nas pontas do matto; «Ora..... Mas ha! que aproveita «Recordar carinho seu?.... «Minha desgraça é perfeita, «Já não vive o Padre meu! «Não vive; que se vivêra «Por certo que a filha cára «O seu braço soccorrêra, «E a todo o custo a salvára! «Hauzeri meu Padre é morto!... «Cavalleiro, ah por piedade, «Se desejas dar conforto «Á minha dura anciedade, «Corre ao campo da batalha, «Ao posto o mais arriscado, «Lá na torre, ou na muralha «Acha-lo-has traspassado. «Do seu escudo brilhante «Aro de ouro em torno gira, «De ouro e purpura o turbante «Tem por tope uma saphira: «É seu alfange pendente «De rico talim bordado, «Obra da filha, e presente «Destinado a melhor fado! «Corre, corre, cavalleiro, «Se tens de mim compaixão, «Se teu peito é verdadeiro, «Se te doe minha afflicção: «Busca o cadaver querido, «Faze-o á filha entregar; «Que eu possa o sangue espargido «Com o triste pranto lavar: «Que eu possa triste e mesquinha «Dar seu corpo á terra dura, «E de quanto caro eu tinha «Expirar na sepultura!» Assim a Virgem moura se exprimia, Mais de um suspiro as vozes lhe cortava, E o pranto, que dos olhos lhe corria, Da linda face as rosas lhe banhava. O mancebo dos labios seus pendia Que no ardor de servi-la se abrazava, E mal ella acabou, aos pés prostrado, D'esta sorte lhe volve transportado: «Por piedade, anjo de graça, «Mitiga a acerba afflicção «Que a alma me despedaça, «Que me parte o coração. «Salvarei, pois o desejas, «Esses despojos presados; «E se ao furor das peleijas, «Foram seus dias poupados, «Verás teu pai a teu lado, «Oh bella, n'um curto instante: «Feliz de adoçar teu fado «O teu extremoso amante!» No semblante da Virgem peregrina Rubor vivo a taes vozes apparece; Qual ao raiar da aurora purpurina A viva côr nas nuvens resplandece; Em seu peito porem, que a dôr domina, A surpreza de prompto se esvaece, Com gesto firme, e com solemne accento Confirma assim do moço o nobre intento. «Cavalleiro generoso, «Segue o proposito teu. «Se o ceo para mim piedoso «Salvo tem o Padre meu, «Se ve-lo, abraça-lo ainda «Eu dever a teu cuidado «Pela gratidão infinda «Terás meu peito ligado; «Mas se o Padre, vivo, ou morto, «Me não fôr restituido, «Não busques p'ra mim conforto, «Meu fado ha de ser cumprido. «Jámais Fatima opprimida «Escrava de um vencedor, «A tal extremo abatida «Servirá sob um senhor; «Que antes de ver-me aviltada «Saberei da abjecta sorte, «Da condição exasperada, «Achar allivio na morte.» «Não por certo, exclama o moço Prompto o corpo alevantando, «Se teu mal prevenir posso, «Eu vôo já ao teu mando. «Alenta o peito formoso, «Minóra tanta afflicção, «Confia no ceo piedoso, «Angelica perfeição; «Que aqui pela chamma ardente, «Que n'este peito ateaste, «Juro, que ante o Sol nascente «Verás esse que choraste.» Diz, e qual parte a pedra sibilante Da volteada funda despedida, De Fatima veloz parte o amante, Obedecendo á ordem recebida, De penhasco em penhasco salta avante, Desdenhando escolher senda seguida, Chega ao Castello, ao campo de batalha, Ás torres, á mortifera muralha. Uma vez, outra vez corre o recinto; Mas em vão, com o empenho não atina. Cada corpo examina em sangue tinto, Busca de balde, e em buscar se obstina; É mais forte o amor do que o instincto, Entre as scenas de horror, entre a ruina Só Fatima divisa e seu tormento, Suffoca amor todo o outro sentimento. Desenganado de que em vão procura, Volve Ruy ao centro do Castello, Com um facho acceso desce á cella escura D'onde ha pouco arrancára o fardo bello; Interroga os soldados, a armadura De Hauzeri lhes descreve; mas de ve-lo Nenhum lhe dá signaes; exasperado Volta outra vez ao campo ensanguentado. Na pesquiza injucunda em vão porfia, Inutil tedio! infructuosa lida! Nem novas nem signaes achar podia, Nenhuns ha de Hauzeri morto, ou com vida. No emtanto com o raiar de novo dia Era a Lua no brilho amortecida, E as estrellas mais proximas do oriente Se engolfavam na luz do Sol nascente. Do mancebo o valor succumbe á ideia Da exasp'ração do ser idolatrado; Fatima de antemão de afflicção cheia Contempla em todo o peso de seu fado. Por ve-la anhella; mas ve-la receia, Receia o seu pesar exasperado, Vacilla, treme; mas amor o excita E da matta na senda o precipita. As muralhas transpõe, na brenha escura Já seus tremulos passos avançavam, Receio, impaciencia, horror, ternura Em tropel dentro n'alma lhe luctavam; Tanto mais progredia na espessura Tanto mais seus transportes se exaltavam, Os pensamentos se lhe confundiam, E convulsos os membros lhe tremiam. Fóra de si, sem tino, e delirante Chega emfim ao logar onde deixára O prodigio de amor, cujo semblante De todo o ser antigo lhe mudára...... Mas, oh pungente dôr! funesto instante! É deserto o penedo..... a forma rara Se esvaeceu na sua ausencia breve, Qual com o romper do dia o sonho leve. Ligeira barca, que a favor do vento, Em demanda da praia desejada, Vai rapida cortando o salso argento, Deixando apoz a esteira prolongada, Perde o impulso, a força, o movimento, Em banco ignoto subito encalhada: Tal fica aniquilado, immovel, quedo O surpreso Ruy ante o penedo. Mas depois, prolongando um doce engano, Luctando ainda contra a desventura, Pela Moura clamando, o moço insano Discorre aquem e alem pela espessura; Porem o infausto, extremo desengano Não pode recusar, quando a verdura, Já pelo Sol nascido alumiada, Se lhe antolha deserta, abandonada. «Tudo perdi, desgraçado, Exclama o moço insensato, «Só n'esta alma o seu retrato «Dura com fogo gravado! «Chamma horrivel me devóra, «Fogo intenso, fogo interno! «Tu foges impia e traidora, «Deixas em meu peito o inferno! «Como?... com quem?... para onde!... «Serpe em meu seio esquecida! «Que valle, ou que serra esconde, «Perversa, a tua fugida?..... «Juro pela fé sagrada, «Que de meus avós herdei, «Que em tua raça odiada «Meu tormento vingarei! «Dos teus no perfido sangue «Este ferro hei de ensopa-lo, «De teu pai no corpo exangue «Hei de a teus olhos crava-lo! «Salvei-te a vida, e meus dias «Daria por defender-te, «Mal teu desejo enuncias, «Prompto vôo a obedecer-te. «Volvo de amor transportado, «De puro extremo incendido; «Sou trahido, abandonado, «Enganado, escarnecido!...... «Nem se quer um monumento «Restará de opprobrio tanto; «Nem tu, oh musgoso assento, «Nem tu, oh viçoso manto. Isto diz... Desatinado Prostra co'a espada a verdura. Fere fogo o aço temp'rado Percutindo a pedra dura. Qual cão, de raiva atacado, Distilando a baba impura, Tinto em sangue o olho ardente, Té na pedra imprime o dente; Ou qual o touro insofrido, A crú jogo abandonado, Ardente dardo incendido Tendo no corpo cravado, Salta, brame, urra, e pungido Do fogo sempre ateado, Em corcovos accommette, E contra a têa arremette: Tal o moço furioso Musgo, relva, arbustos, flores, Prostra, arranca, impetuoso Nada poupa em seus furores; Té que emfim com gesto iroso Volve espaldas aos verdores, E do sitio triste, e infausto Se arranca de força exhausto. Affonso, em tanto, em pompa respeitosa Dos ministros de Deus marcha cercado Á capella da Virgem gloriosa, Que no forte Castello havia alçado. Segue-o dos seus a turba numerosa Exultando por ver desagravado Do insulto agareno o logar santo Com o christão sacrificio sacrosanto. Já tinham descendido a curta escada, Que ao pavimento interno conduzia, Da porta o cume agudo transpassado Onde esculptado o Trino Deus se via; Co'a sagrada aspersão tinham mundado Do sacro pavimento a lagem fria, Em canto baixo e triste repetido Psalmo do Rei profeta arrependido. O merencorio som no templo escuro Vagaroso, e solemne resoava, Á piedosa effusão de um zelo puro Devota a multidão se abandonava; Quando Ruy com passo mal seguro Do Castello nos muros penetrava E levado da lugubre harmonia Na Capella entre os mais se confundia. Neste mesmo momento o Celebrante Ante o altar sagrado reverente Se inclinava, e o povo circumstante Baixava até á terra humilde a frente. A tal vista o mancebo delirante Seu barbaro furor desmaiar sente, Sente expirar a raiva, e a fereza, Trocar-se a ira em luto e em tristeza. Os musculos contractos se relaxam, A frente, hirta até alli, no peito inclina, Sobre os olhos as palpebras se abaixam, O fogo abrazador cede e declina. Não de outra sorte as plantas vigor acham Do orvalho na frescura matutina, Como adoça ao mancebo o horrendo estado A pompa augusta, o cantico sagrado. Tal quando arrebatado, e possuido De furias infernaes, castigo horrendo, O do povo de Deus primeiro ungido, Co'espirito das trévas combatendo, Fora de si, convulso, enfurecido, Se estava entre agonias debatendo, Da harpa de David a melodia Seu soffrimento acerbo adormecia. Findou porem a pompa veneranda, Os canticos, e os ritos terminaram; E em alas logo de uma e outra banda Do vestibulo as gentes se formaram; Ao pio vencedor que os rege e manda Mil triumfaes applausos elevaram; E em marcha triumfal, dos seus seguido, É Affonso ao Alcacer conduzido. Alli chegado, próve na defeza Dos muros novamente conquistados, Para que nem por força, nem surpreza Possam mais ser dos mouros retomados. Confia defender-lhe a fortaleza Ao valor de Monteiro, e seus soldados, Em vez de Payo, que perdido a havia De Theotonio co'a gente a quem regia. Mas já n'aquelle tempo o Prior Santo, Que tal era o pensar n'aquella idade! O baculo depondo, e o sacro manto, Alliando a vingança co'a piedade, Entre os mouros fizera estrago tanto Em despique da perda da Cidade, Que em Arronches, por elle aos seus rendida, Fôra de Affonso a lei reconhecida. Ao tempo em que entre os sabios conselheiros O Rei a paz e a guerra discutia, E ao longo das muralhas os guerreiros Folgavam da conquista na alegria; Ruy, a joven flôr dos escudeiros, Monta o cavallo, que da Andaluzia Aos corceis os mais bellos fôra inveja Do manejo na pompa, ou na peleija. Mas não sustenta o moço a redea leve Co'a costumada e dextra gentileza, Que ao soberbo animal motos prescreve Que lhe dobram as graças e a belleza, Deixa-a pender no collo airoso e breve, E submergido em lugubre tristeza, Sair faz ao acaso o bruto bello Pela primeira porta do Castello. O bruto a mão usada não sentindo Co'a frente baixa o trilho proseguia, Tardo no passo, o collo distendido, Partir do damno as magoas parecia; Abandonado a si, não conduzido, Do Lena para a margem progredia; No sitio onde hoje sua perenne fonte Transpõe o passageiro sobre a ponte. O quadrupede docil, como esp'rando A lei de seu senhor na fresca borda Um momento parou, e o moço olhando Com torvos olhos, como quem acorda De sonho ingrato, e á rasão tomando, Móres penas reaes sente, e recorda, Distrahido lhe affaga o collo, e clina, E para a dextra a leve redea inclina. Não longe do logar onde se achava Graciosa a corrente se torcia, Alli viçosa a margem se adornava Das plantas, que o remanso mais nutria, Com graça ao lado opposto se elevava Um mamillo gentil, donde surdia Um fio de agua clara murmurando Qual rôla entre a verdura suspirando. A curta elevação faz que se aviste D'alli do valle ameno a gentileza, Ondulado terreno em frente existe D'onde o cultura tem banido a asp'reza, Alternada co'a vinha alli subsiste A pallida oliveira, e a riqueza Da loura Ceres; fecha o quadro bello Do ceo sobre o azul negro o Castello. Aqui pára Ruy e desmontando A um ramo o corcel liga, e lentamente Vai a placida fonte procurando Onde só gemer possa livremente; Mas junto um peregrino vê, tomando A simples refeição, na herva jacente Seu pobre alforje está desenvolvido, Viatorio bordão jaz estendido. A gorra de aba espaçosa Calva a frente lhe obumbrava, A concha da praia ondosa O capello lhe adornava; De uma correia nodosa, Que o pardo saio apertava, Pendente a cabaça tinha Que a bebida em si continha. Escravo por longos annos De um mouro, que o captivára, Mão gentil da sorte os damnos Compassiva lhe adoçára. Quebrou-lhe os ferros tyrannos; E liberto lhe inspirára Sua devoção singella Ir romeiro a Compostella. Tal se mostrava o Romeiro, Que assim Ruy saudou: «Deus vos salve, Cavalleiro, «Vosso humilde servo sou. «Se do trato meu grosseiro, «Que aqui consumindo estou, «Vos pode o uso ser grato, «Partiremos do meu trato. RUY. «Graças mil bom peregrino, «Deus vos dê feliz successo «Até o vosso destino «E bem assim no regresso. «Ao Apostolo divino «Bom Romeiro o que vos peço «É que na vossa oração «Vos alembreis d'este irmão. ROMEIRO. «Dizei-me, bom Cavalleiro, «Se com o nosso Rei andais, «De Pedro Affonso o escudeiro «Que nome tem, que signaes? «Dizem-me ser tão guerreiro, «De tal pórte, e de obras taes «Que as gentes na lide espanta «E fóra d'ella as encanta. RUY. «Esse escudeiro que dizes «De Ruy o nome tem, «Dos signaes para que ajuizes «Elle mesmo a ver-te vem. «Mais não busques nem pesquizes «Novas; se as trazes de alguem, «Falla palavras seguras «Que eu sou esse que procuras. ROMEIRO. A nova de que ora tracto, Senhor, é tão delicada, Que heis perdoar o recato Com que ha de ser confiada. Dizei-me, onde existe um matto Com um penedo musgado, Onde na noute apparecem Sombras que se desvanecem? RUY. Onde existe?...... O atrevimento Quem te deu de pergunta-lo Venha de sangue sedento Em proprio, e armado indaga-lo; Que á face do firmamento Eu juro que hei de ensina-lo A não juntar a ousadia Á mais baixa covardia! ROMEIRO. Por Christo! não te enfureças Escudeiro generoso, P'ra que a verdade conheças Traz-me acaso venturoso. As apparencias são essas, Mas em caso duvidoso Quem a apparencias se afferra Muitas vezes troca e erra. Attenta no que te digo Que quem partiu me dictou: --Tu me salvaste de um p'rigo A que o padre me guiou, Fujo-te, o padre é quem sigo, Foi elle quem te espiou, Quem te seguiu á espessura Da noute na sombra escura. Mal par'o buscar te apartaste O Padre me appareceu, Tu enganado ficaste Só elle o engano teceu; Mas se acaso te agastaste Com este proceder meu Sabe que maior desgraça Do que a tua em mim se passa. Essa, que p'ra sempre grata Te prometteu jurou ser, Bem longe de ser ingrata, Vai muito além do dever; Amor a consume, e a mata, E se t'o ousa dizer É com a esperança perdida De mais t'o dizer na vida. Distancia, muralha armada E das seitas o rancôr Com barreira triplicada Circumdam a sua dôr: De saudades definhada Triste victima de amor Será de Fatima a sorte Suspirar até á morte.-- Assim carpindo a formosa Ouvi, que nunca enganou, Essa cuja voz piedosa Liberdade me alcançou, Ouvi-lhe a queixa afanosa Que puro amor lhe arrancou. Ah! possa Deus por ti mandar-lhe um dia A paz no ceo, na terra a alegria.»-- Em quanto assim fallava o viandante O alforge e o bordão alevantava, E mal que terminou, no mesmo instante Da cristalina fonte se apartava. O enternecido, transportado amante Debalde uma, e mil cousas perguntava, Mais não volveu resposta o peregrino, E mudo foi seguindo o seu destino. FIM DO CANTO TERCEIRO. CANTO QUARTO. Mas quem póde livrar-se por ventura Dos laços que amor arma brandamente Entre as rosas, e a neve humana pura, O ouro, e o alabastro transparente? Camões, Lus., C. 3.º, E. 142.ª Da socegada noite o astro cadente P'ra plaga occidental já se inclinava: Precursora do Sol resplandecente A matutina estrella scintilava. Do Téjo sobre a placida corrente Nem a mais leve brisa volitava, Jazia a folha immovel no arvoredo Tudo dormia socegado, e quedo. Apenas o silencio prolongado Lá do longinquo charco interrompia A grasnadora raã, do ramo alçado O triste mocho, que agoureiro pia. Eis que ao longo do rio socegado Um fraco som parece que se ouvia Compassado, moroso, e similhante Ao surdo murmurar de agua distante. Distingue-se melhor, em força cresce Pouco a pouco se vem approximando, Com o murmurio das aguas já parece Ouvir-se o som do lenho em lenho dando, Saltando a limpha a espaços resplandece, O cristal se desliza sussurrando. «Alerta companheiros com presteza «Os remos esforçai, que é certa a preza! Assim brada uma voz, e vigorosos Montam nove o batel, que a sombra escura Dos salgueiros encobre, que viçosos A orla adornam da corrente pura: Oito aos remos se lançam pressurosos, Em quanto o Chefe empunha a cana dura, Guiando a barca, que qual seta vôa Ao mourisco batel, que tem na prôa. «Nazarenos!... na lingua arabia grita A gente do batel sobresaltada. «Nazarenos» bradando, esforça, excita O maioral a gente ao remo usada. «Leva remos p'ra já, raça maldicta, «Rendei-vos, perros, ou ireis á espada, Gritam da barca, que veloz singrando Vai o batel dos mouros alcançando. «Lança o croque, a fateicha, afferra, atraca, «Que não possa escapar-se a gente infida, Brada o Chefe Christão, que prompto ataca O batel que desiste da fugida. Por defende-lo o mouro a espada sacca, Trava-se atroz peleija tão renhida Nos barcos afferrados, qual na terra Soe tenaz mostrar-se a horrivel guerra. Do christão bando ao impeto primeiro Dos infieis o barco fôra entrado, Não sem que tres christãos o derradeiro Termo houvessem nas aguas encontrado; Mas logo, atraz dos bancos do remeiro, Peleija o bando mouro intrincheirado Como quem não curando já da vida Antes do que captiva a quer perdida. Brilha no ár vibrando a espada núa, Penetra pelas armas a estocada, Céva no roxo sangue a raiva crúa Do talhador alfange a cutilada. Nenhum pensa em ceder, nenhum recúa Em quanto a força em sangue derramada Ao braço não fallece, e a mão pendente Não deixa o ferro matador jacente. Já dos nove christãos que accommetteram Tres a morte nas aguas encontraram, Cinco do peito aberta a vida deram Que á estocada os mouros lhe arrancaram; Mas as vidas bem caras lhes venderam Que oito tambem dos perros expiraram, E dos sete que restam, tres feridos Vão a vida exhalando entre gemidos. Mas o Chefe Christão só no perigo Crescer sente o valor co'horror e estrago, Qual raio abrazador sobre o inimigo Cahe, bradando em voz alta «San-Tiago. Morte, espanto, e terror leva comsigo, Faz-se o batel de sangue um bruto lago, Onde o maioral mouro acaba a vida E o Christão Chefe a dextra tem ferida. Dos mouros uns ao ferro a vida entregam Outros da barca pavidos saltando Escapados á morte á margem chegam Com o sangue as puras aguas maculando. Assim ao só Ruy a barca legam, Que era elle o que indomito pugnando Tinto no proprio sangue generoso De tantos triumfára valoroso. Ruy, que junto aos muros de Leiria, Principal instrumento da victoria, O que perdêra em paz, e em alegria Co'indomito valor ganhára em gloria, Que Affonso prezador da valentia, Conservando seus feitos na memoria, Quando á mão de Mafalda a mão ligára Com pompa augusta Cavalleiro armára, E depois, quando o genio seu guerreiro A empreza concebeu agigantada De surprehender com bando aventureiro, Com imprevista, subita escalada, O sitio forte, erguido, e sobranceiro, Onde a Virgem Irene sepultada Do Téjo, que soberbo aos mares vem, Por milagrosa campa as aguas tem, Para que gente moura, ou rica preza Com mais difficuldade lhe escapasse, De Ruy commettêra a gentileza Que nas margens do Téjo se emboscasse, E com a usada, indomita braveza Qualquer batel no rio lhe tomasse P'ra que os de Agar vencidos não sentissem N'agua ou terra por onde lhe fugissem. Com animo esforçado o bravo moço Assim cumprido o real mando havia, E dos mouros com o barbaro destroço Das feridas o sangue confundia. Da desigual peleija o alvoroço Que de Ruy dobrára a valentia Cessado tinha, e o braço seu ferido Sente com o corpo já desfallecido, A ferida estancar em vão procura Co'a mão esquerda o Joven animoso, Que a mão, co'a dôr pungente mal segura, Recusa o ministerio caridoso. Do sangue á perda emfim cede a natura, Succumbe á dôr o moço vigoroso. Seu corpo sob as armas desfallece, Cahe prostrado na barca que estremece. Mas antes que do Téjo na corrente Fosse a ordem real executada, Pelo ardente valor da christãa gente Com temerario arrojo era assaltada De Santarem a arce, que imprudente, E no escarpado accesso confiada, De Hauzeri sob o mando, que a regia, O poder dos de Christo escarnecia. Meias adormecidas, sem cuidado As vélas sobre o muro mal vigiam, Quando a escada fatal alevantado Tem o nobre Moniz, que os mais seguiam. Acorda tarde o mouro alvoraçado, Que os confusos clamores desafiam, Que os Christãos da muralha já senhores, Em breve as portas entram vencedores. De Affonso no poder cahiu dest'arte Aquella, que no cume se assentava, Soberba dominando a toda a parte A campina feliz, que o Téjo lava. Inutil foi p'ra o mouro circumdar-te De fortes torreões, co'a gente brava Procurar preservar-te e defender-te, Se uma noute bastou para render-te. Noute cruel e horrivel, em que o córte Da espada anniquillou a audacia tua! Em que a tyranna, despiedada morte A fome saciou barbara e crúa! Em que rios de sangue por tal sorte O fio fez correr da espada núa, Que apenas a seus golpes escaparam Tres, que o fugido alcaide acompanharam. De Sevilha em alta torre O Rei mouro está sentado: D'alli co'a vista discorre Pelo campo dilatado Que o Guadalquivir percorre. Eis que p'ra banda do rio Quatro vê vir cavalgando. Um dos quaes o senhorio Parece que tem do bando, Que segue o seu alvedrio. Vem todos de pó cobertos, Os ginetes vem cançados, Mostras claras, signaes certos De marchar afadigados Mostram aos olhos expertos. Por Deus!» o Rei mouro brada-- Do presago coração O agouro não me agrada! Trazem nova de afflicção Esses que vejo na estrada. Aquelle que vem na frente No cavallo mais formoso, É Hauzeri certamente, Que contra o Christão fogoso Accode a pedir-nos gente. Pelo Profeta vos digo, Que se agua aos brutos não dão Santarem está em perigo De em breve cahir na mão Do Christão nosso inimigo; Porem se a sêde que tem Aos corceis deixam matar, É tomada Santarem, E a nova funesta a dar Fugitivo Hauzeri vem!»-- Mal do Rei mouro acabavam Os discursos agoureiros, Que logo ao rio chegavam Os cançados cavalleiros E beber aos brutos davam. Não tarda que desmontado Ante o mouro commovido Tivesse Hauzeri narrado O desastre acontecido, O caso desventurado. Como Affonso se partira Com sua bellica gente, Como a marcha lhe encobrira, Sobre a villa confidente Como inesperado cahira: Como as vélas surprehendidas São no muro degoladas, As escadas erigidas, As muralhas assaltadas, E as fortes portas partidas: Como a gente, por tal sorte De susto e trevas tomada, Ou passa do somno á morte, Ou corre desacordada Encontrar da espada o córte: Como emfim, perdida a esperança, Da arce os Christãos senhores, Cevando-se na matança, Se esquivára aos vencedores, A buscar prompta vingança, E das aguas confiando A filha, que preservára Com tres só, dos de seu mando, Pr'a elle Rei caminhára Submetter-lhe o caso infando. Assim os mouros souberam De Irene os muros tomados; Grande terror conceberam, Ao vêr a quanto arrojados Os de Christo se atreveram. Porem do Téjo á placida corrente; As barcas sem governo abandonadas, Pouco a pouco do rio brandamente Foram ás verdes margens encostadas: Das aguas no remanso mollemente, De verdes espadanas rodeadas, Com o descer da maré firmes ficaram E no lado bojudo se inclinaram. Á luz volve Ruy, renasce á vida; Mas qual surpreza, qual doce portento! Já não goteja o sangue da ferida, Já o não punge a dôr e sofrimento; Ao recobrar a sensação, perdida Do sangue no espectaculo cruento. Abre os olhos, contempla a formosura Que qual sonho perdera na espessura. Em vez da scena barbara horrorosa, Onde á força da dôr ficou jacente, Volve a si, reclinado na viçosa Relva, que esmalta a borda da corrente. Co'escudo, e lança, a espada bellicosa Dos ramos de um salgueiro está pendente, E a matutina brisa fresca, e pura Junta o sussurro ao da agua que murmura. Jaz a seu lado o elmo desprendido, Do duro peso a frente libertada; O peito, antes das armas opprimido. Livre a aura respira embalsamada; Com tella delicada está cingido O braço, que ferira imiga espada, E a linda moura, lagrymas chorando, Lhe está no seio a frente sustentando. «Visão!... visão do Ceo, sem pár encanto «Inefavel prazer, que me aviventas, «Doce illusão de amor!..... mas esse pranto «Suspende, ah sim, com elle me atormentas. «Nesse rosto tão bello, puro, e santo, «Com cujo aspecto a vida me sustentas, «Deixa vêr um sorriso, um gesto amante; «Vê-lo sequer n'um derradeiro instante! «Ah deixa que em meus braços amorosos «Aperte a imagem que p'ra mim é vida; «Que unidos n'um só ser, ambos ditosos «Nossa essencia vejamos confundida! «Ah Fatima, dos dias meus ditosos «Delicias e prazer, Virgem querida, «Ja não ha quem de mim possa apartar-te «Tu das-me a vida, vivo só p'ra amar-te! Disse Ruy: e a Moura, a quem a ardente Força de um terno amor vence e domina, Sobre o peito do amante a linda frente, Desfeita em meigo pranto, amante inclina. Ruy no peito a aperta vehemente, Triumfa amor, amor só predomina!..... Quando a barca de subito estremece, Co'a luz do raio a margem resplandece. Retumba do trovão o som tremendo, Da distante montanha os echos gemem, Do rio a calma subito rompendo Na borda antes tranquilla as aguas frémem. Á Virgem delirante o choque horrendo A razão restitue; seus membros tremem, Arranca-se assustada espavorida Dos braços com que o moço a tem cingida. «Suspende, ah sim suspende, ó bem amado, «De ti me afasta a propria natureza. «Não contemplas o Ceo de horror toldado, «O rio, o campo envoltos na tristeza. «Foge Christão, que o meu funesto fado, «Sem igual nos rigores, na dureza, «Não me fez para ti, nem consentíra «Que amor em doce laço nos uníra. «Foge, oh Christão invicto, e generoso, «A quem prouvéra ao Ceo que ora não visse; «Mas já que fez teu braço poderoso «Que em teu poder segunda vez cahisse, «Que a teus olhos meu peito o desditoso «Amor sem esperanças descobrisse, «Só te resta fugir sem mais demora «Quem, por seu mal, e por teu mal, te adora. Isto a Moura dizia; mas o amante Nem o trovão, nem seu carpir ouvia, Transportado de amor, e delirante De novo a moça com ardor cingia. De virginal rubor tinto o semblante Fatima seus transportes combatia; Mas a modestia mais lhe agrava a sorte; Que o amor de Ruy torna mais forte. Combate ainda em pranto suffocada, Ora emprega o rigôr, ora a ternura, Ora Ruy argue com voz irada, Ora lhe pinta a extrema desventura, Cego o moço prosegue...... quando alçada De repente ante os dois surge a figura, De Ruy á memoria não estranha, Do venerando Ermita da montanha. O mesmo era, que alli achado havia Na piedosa oração todo engolfado, A mesma longa barba lhe descia Sobre o peito, no vulto magoado Outra expressão porém ora se lia, E com semblante triste mais que irado, Do insano mancebo a mão tomando, Lhe diz com tom de voz sereno e brando. «Tu, filho de Ruy, tu de seus feitos «Assim procuras igualar a gloria? «Assim do Pai os ultimos preceitos, «Filho ingrato, conservas na memoria? «Á Mãi, que o ser te deu, nutrio aos peitos, «Foi esta a promettida alta victoria, «Quando do martyr Pai armas sagradas «Te entregou de seu sangue inda esmaltadas. «Julgas-te generoso, porque a vida «Nos campos das peleijas arriscaste, «Porque valente e audaz da gente infida «Na dura guerra o impeto domaste, «Porque esta moça só, desprotegida «Nos conquistados muros preservaste; «Mas, quando, oh moço audaz, assim fizeste, «De imperio sobre ti que prova déste?.... «Tu, que esquecendo as leis de cavalleiro, «Quando uma Virgem timida, innocente, «Acaba de salvar-te o derradeiro «Sopro da vida, a teu desejo ardente, «Sem respeitar seu desamparo inteiro, «Buscas sacrifica-la impaciente, «Abusar da imprudencia e juventude; «Que assim curas da honra e da virtude! «Mas Deus a protegeu, o o ceo piedoso «Que guardada lhe tem mais nobre sorte «Soube arranca-la ao moço impetuoso «Que ella arrancado havia ás mãos da morte. «Dóma, oh mancebo, o genio teu fogoso, «Sabe ás paixões oppor uma alma forte, «Que em vão procura a honra e busca a gloria «Quem aos desejos seus cede a victoria. «Sabe não tarda a hora que ha marcado «A eterna, e insondavel Providencia «P'ra que d'ella, e de ti se cumpra o fado, «Que não pode prever mortal prudencia, «Mal de quem, com seu sopro envenenado. «Pertender profanar essa innocencia! «Mal de ti, se a cumprir te não dás préssa «Do ceo a ordem, que por mim se expréssa! «Não distante d'aqui, na opposta margem «Um barco mouro o Téjo vem subindo, «Procura Santarem sua viagem, «Um irmão de Hauzeri vem conduzindo; «Saia-mos-lhe ao encontro na passagem, «Da nova aquelles mouros instruindo, «Volverão, esta Virgem lhes daremos, «E assim a Lei sagrada cumpriremos.» Fallando assim, do Ermita venerando A voz era solemne, e magestosa, Via-se a frente calva circumdando Uma aréola clara e luminosa; Subjugado Ruy cede a seu mando, Já na agua nada a barca pressurosa, Já, proximos da opposta ribanceira, Sentem remar dos mouros a bateira. Porem ao som do remo, que devia Para sempre talvez roubar-lhe a amada, No coração do moço renascia A tempestade apenas abafada; Se co'amor o respeito combatia, Não dura a luta na alma apaixonada, Cede o respeito, e o moço exasperado Ao velho falla assim com gesto irado. «Quem, oh velho agoureiro! dependente «Coustituiu de ti o meu destino?.... «Vate de malles, barbaro inclemente, «P'ra que simulas leis do ceo benino?..... «Vai, cessa de ligar teimosamente «A minha sorte ao fado teu mofino, «De perseguir meus dias, de insultar-me, «E co'escuro provir de ameaçar-me. «É tua de Hauzeri acaso a filha?.... «Acaso nos combates me ajudaste?.... «Este braço, esta espada que aqui brilha «Acaso foste tu que os animaste?... «Esta de amor suave maravilha «Acaso foste tu quem a salvaste?... «Não. Entrega-la a barbaros imigos «Só sabes querer, e expo-la a novos perigos. «Ah! se longe de tudo á dôr votado, «Aborreces o mundo, e seus deveres, «Volve ao ermo dos homens sequestrado, «Céva na solidão teus desprazeres, «Não venhas com teu halito empestado «Murchar da vida a flôr aos outros seres, «Nem blasfemes o ceo, querendo que eu veja «Desleixada, a que o ceo quer que eu proteja. «E póde querer o ceo, que eu a innocencia «Nas mãos dos infieis de novo entregue, «Que Fatima infeliz da Fé na ausencia «O Deus que a protegeu blasfeme e negue?... «Póde querer, que a abandone sem clemencia «Ao funesto destino que a persegue?.... «Não, não póde tal querer; nem separado «Soffrerei ser de um bem que o ceo me ha dado. «Aparta-te de mim tu que o projectas, «Aparta-te de mim, antes que iroso «Pelas expressões tuas indiscretas «Me leve o sangue a extremo perigoso! «Ao zelo que por mim, por ella affectas «Prestes pôe termo, foge pressuroso, «Deixa-me, oh velho insano, ao meu destino, «Poupa-me algum funesto desatino! Immovel, qual rochedo, o velho Ermita Do mancebo os transportes escuitava, A compaixão, que seu penar lhe excita, No gesto enternecido se mostrava. Pallida, e sem alento a moça afflicta Aos ceos os lindos olhos levantava, Como quem do poder soberano e forte Submissa, e resignada espera a sorte. N'isto do batel mouro percutida É a barca do remo abandonada: N'agua mergulha a borda, compellida Do veleiro batel pela pancada. Aquella vê Ruy, que lhe era vida, No rio desparecer precipitada, Grita, lança-se ao rio a soccorre-la, Mergulha em vão, em vão quer recolhe-la. Mas o braço do Ermita mysterioso Fatima sobre as aguas amparando Longe a leva do amante impetuoso, Que em vão a está nas aguas procurando, Clama ao batel dos mouros pressuroso, E a filha de Hauzeri prompto entregando, Volve a Ruy, arrastra-o da corrente, E desparece á vista em continente. FIM DO QUARTO CANTO. CANTO QUINTO. Quaes no profundo reino os nus espritos Fizeram descançar de eterna pena C'uma voz de uma angelica Sirena Camões, Lus., C. 10.º, E. 5.ª Vagaroso vem marchando Na vereda um cavalleiro, Nobre ginete montando; Traz o rosto do guerreiro, Que a vizeira alevantada Deixa contemplar inteiro, Co'a acerba dôr concentrada Negra sombra de tristeza Profundamente gravou. Dos olhos seus a viveza Apaga a melancholia, Da intensa magoa a dureza. Tormento de mais de um dia, Froixa luz de escaça esperança Se lê na fisionomia. Pena, que a velhice avança, Infausta paixão ardente Causas são de tal mudança. Como o tronco florescente, Que ha pouco altivo, e frondoso Ornava a selva virente, Que o furor do vento iroso Rebramando enfurecido Desafiava orgulhoso, De insecto voraz roido Na raiz que o alimenta, Murcho abate o cume erguido, Alta a copa não sustenta, Perde da folha a verdura, Que a seiva não alimenta, Guarda só do lenho a altura, Merencorio documento Da perdida formosura; Assim, desde o atroz momento Que Fatima lhe roubou, Com saudade, amor, tormento De Ruy o ser mudou. No fundo d'alma Do triste amante, Nem um instante Ha tregoa e calma. Pena incessante Que nada acalma. Cada dia com o tempo reforçada, Lhe consume a existencia desgraçada. Já, qual soía Quando ditoso, Não impellia O bellicoso Da Andaluzia Filho fogoso Apoz o corredor que a lebre alcança, Ou o gamo leve, que no campo avança. Lá no torneio Já não brilhava, Marcio recreio, Que outr'ora ornava De audacia cheio, Onde arrancava Dextro e valente o premio em nobre luta; Tanto a amarga tristeza a alma lhe enluta! Mesto, isolado, Ermos outeiros Corre, apartado Dos cavalleiros; Só animado Entre os guerreiros Se mostra ainda em frente do inimigo, Quando a tuba guerreira o chama ao perigo. Ignora o infeliz qual seja a sorte D'aquella por quem só lhe é cara a vida, D'aquella sem a qual da espada ao corte A existencia quizera ver perdida. Nas aguas a deixára entregue á morte, Nas aguas víra a Virgem submergida, Longe d'ella com força irresistivel Arrebatado n'esse instante horrivel. Do agoureiro Ermita a milagrosa, Subita apparição, prompta partida, A aréola da frente luminosa, A antiga prophecia d'elle ouvida: A lembrança da Mãi terna e saudosa, Do martyr Pai a ultima ferida, Seus preceitos, legados á consorte, Sellados pela fria mão da morte. As palavras do Ermita, os seus furores Contra elle, tão prompto castigados; Seus primeiros desejos, seus ardores Pelo ceo, como acinte, perturbados; Os olhos de Fatima encantadores, Quaes por ultimo os vira aos ceos alçados, A angelica expressão do seu semblante, Tudo a Ruy se pinta em cada instante. O socego na noute em vão procura, Foge o somno a seus olhos vigilantes; A incerteza, entre as penas a mais dura, Se afferra, roaz cancro, a seus instantes; Se ao cançaço a final cede a natura, Entre um tropel de sonhos delirantes Vagando sem cessar o pensamento, Em logar do repouso acha o tormento. Tal era o miserando, infausto estado De Ruy, que ao acaso caminhava, Só, distante dos seus, e confiado No valor, que a desdita não coarctava; Não distante do muro alevantado, Que a maura gente ainda povoava, Na montanha, que surge graciosa, Qual no deserto a oazis frondosa. Em frente do mancebo se estendia Prodiga de bellezas a natura: Da primeva, robusta penedia A variada, asperrima structura, Que em agulhas, em picos se erigia, Varios na massa, varios na figura, Erectos estes, estes inclinados, Selvosos uns, os outros despojados. Ruinas da vetusta natureza, Monumentos de um mundo transpassado, Culminantes elevam núa a aspereza Os cumes de granito descarnados; Em quanto, circumdando a redondeza Das fraldas, se divisam cumulados Das destruidas rochas os fragmentos Attestando o poder dos elementos. Alli a aerea marcha pressurosa Pára a nevoa do vento saccudida, Alli pára a procella magestosa Nas enroladas nuvens envolvida, A lymfa alimentando, que abundosa Dos penhascos nas veias repartida Surde em cascatas, em limpidas fontes, Em arroios gentis desce dos montes. Lá se veem de granito á massa ingente Do chão calcareo as zonas encostadas, Áquem e álem partidas variamente, Jazer rotas, confusas, deslocadas; Quaes se de interno esforço e de repente Nos fundos alicerces abalados Como involucro fragil rebentassem, E ao novo serro o dia franqueassem. Mais abaixo porem ledo se estende O selvatico manto de verdura, Onde o bafo do estio nunca offende A flôr mimosa, amante da frescura, Onde da hervosa penha se desprende Com murmurio suave a fonte pura, E a mil viçosas plantas succos dando Saudosa corre entre ellas serpejando. No valle agreste e umbroso o medronheiro O rubicundo fructo tem pendente Á sombra do robusto castanheiro, Cuja folha intercepta o sol ardente; O carvalho frondoso, o alto olmeiro Cinge a hera lustrosa estreitamente; Do pinheiro co'as copas elevadas As massas de verdura são coroadas. Na solidão do bosque as tenras aves, Incolas primitivas da floresta, Chamam a vida co'as canções suaves Musica natural que amor empresta; Respondem-lhe de longe os tons mais graves, Merencoria harmonia lenta e mesta Das ondas, que escumando entre os penedos Batem da roca os asperos rochedos. De Alboracim as aguas misturando Do salso mar co'as vagas amargosas, De um lado corre o Téjo, saudando Por derradeiro as praias arenosas; Vão-se do outro os olhos alongando Pelas tumidas ondas procellosas, Que com o tempo sulcarão triumfantes Saudando o patrio sólo as náos ovantes. Ainda então sobre a penha virente Orientaes trophéos não consagrára De Diu o vencedor, nem o eminente Excelso pico a torre rematára; Inda a pedra lavrada artistamente O Alcacer real não levantára; Nem a limfa liberta conhecêra A marmorea bacia, que a prendêra; Inda a riqueza então não erigira Do prazer a morada caprixosa, Nem o muro importuno prohibira O transito na selva magestosa; Inda o tronco indignado não sentira Do ferro a cortadura injuriosa, Nem do cordão tyranno a fantesia Immolàra a belleza á symetria. Tal era o quadro que ante o olho amante Do misero Ruy se desdobrava: Parou, e parecia que um instante A amarga dôr no peito se adoçava. Menos pezado e triste no semblante Os olhos pelos cumes alongava; Mas foi curta a impressão, curta a surpreza, Prompto volveu á habitual tristeza. Qual um instante só brilha o luzeiro Do claro sol no meio da procella; Tal da alegria um raio do guerreiro Um momento sómente o vulto assella. Entranha-se na selva, que primeira No seu transito está frondosa, e bella, Segue da agua o arroio fugitivo Co'a frente baixa, o rosto pensativo. Assim caminha, quando o pensamento Sente por modo estranho perturbado. Não, não é illusão, um doce accento Sôa no bosque, terno, e magoado, Em vez do som facticio de instrumento Do murmurio do arroio acompanhado, Merencoria harmonia, canto lindo Qual o da rôla seu amor carpindo. «Oh doce voz! oh canto mavioso! «Ah! que se ella vivêra, assim cantára, «Assim o nosso amor puro, extremoso, «Solitaria, e saudosa lamentára! «Mas, oh noute cruel, fado horroroso! «Nas aguas para sempre a bella, a cara!... Mais não disse, que os olhos se alagaram E os soluços as vozes lhe cortaram. A VOZ. «Bosques sombrios, profundos retiros, «Aguas correntes, aves namoradas «Inda uma vez escutai os suspiros, «Da desditosa, entre as mais desgraçadas; «Inda uma vez escutai meu tormento, «Do meu penar e da minha anciedade «Origem foi um puro sentimento, «Morro de amor, expiro de saudade! «Á dura morte eu por elle arrancada «A gratidão um dever me inspirou, «Vi-o, fallou-me, e d'esta alma encantada «No mesmo instante o dominio usurpou. «Verde floresta, escuta o meu tormento, «Aves, ouvi minha triste anciedade, «Victima sou de um puro sentimento, «Morro de amor, expiro de saudade. «Elle partiu namorado da gloria, «Elle partiu sem curar do meu fado, «De quem o adóra ah talvez a memoria «Não haverá nem sequer conservado. «Por derradeiro escutai meu tormento, «Por derradeiro ouvi minha anciedade; «Se elle trahiu tão puro sentimento «Mate-me amor, morra eu de saudade. «Mas se fiel, se constante e amoroso «Quaes os inspira elle sente os amores, «Aves, cantai, e tu, bosque viçoso, «Dá novo brilho a teus gentis verdores; «Mais que a alegria é feliz meu tormento, «Mais que o prazer feliz minha anciedade, «Que é dom do ceo por um tal sentimento «Morrer de amor, expirar de saudade. Assim cantava a voz melodiosa O canto com suspiros alternando, A saudosa canção, queixa amorosa Iam da selva os echos imitando. A dôr pungente, a angustia que affanosa Iam do moço a vida definhando Mais rapido dissipa o doce accento, Do que a nevoa ligeira aparta o vento. N'um instante da moura aos pés se lança Ruy, subido ao auge da ventura: «Vida da minha vida, amor, e esperança «Dos dias meus, modello da ternura! «Que alma ingrata poderá ter mudança «Sendo de ti amada, oh Virgem pura?.... «Não, mil mortes soffrêra o teu amante «Primeiro que esquecer-te um só instante. Dize-lo; as mãos da Virgem commovida Apertar contra os labios abrazados O mesmo é p'ra Ruy, que a queixa ouvida Completa os seus desejos extremados. «Certo do teu amor, Virgem querida, «Quem de Ruy póde igualar os fados?... «Todo o cruel tormento que hei soffrido «Um só accento teu fez esquecido!.... «Sorte propicia, acaso venturoso, «Que o ser me restitue para a ventura, «Que prodigio feliz do ceo piedoso, «Que força superior á da natura, «O pôde produzir?... Desde o horroroso «Momento em que surgiu por desventura «Esse fantasma horrivel, despiedado «Contra mim acintoso, e conjurado: «Dês que, do odio seu fructo execrando, «Te vi ante meus olhos submergida, «Em vão nas fundas aguas procurando, «Louco de magoa e dôr, salvar-te a vida, «Que o barbaro fantasma, oh crime infando! «Com mais que humana força e desmedida «De ti me arrebatou; que Anjo divino «Protegeu, doce amada, o teu destino?... «Indelevel lembrança! Instante horrivel «Em que, de quanto amava separado «Pelo monstro a meus rogos insensivel, «Na solitaria margem fui deixado! «Por toda a parte em meu furor terrivel «Em vão o procurei desesperado, «Riu-se o fado de mim, e até est'hora «Roubou-o á minha sanha vingadora. «Mas se elle existe acaso entre os viventes, «Se um fantasma não é, parto do averno, «Que a perseguir meus passos innocentes «A ira suscitou do negro inferno; «Por essas magoas juro tão pungentes «Que hei soffrido, por meu amor eterno, «Que saciando n'elle a minha furia, «Heide lavar a tua, e minha injuria. FATIMA. «Ah suspende! mais não digas! «Sim suspende, oh bem amado, «Illudido, alucinado, «Taes blasfemias não prosigas! «Esse, que acusas de morte «Só nas aguas me salvou, «Só elle me confortou «Na tyranna, adversa sorte. «Se ainda conservo a vida, «Se inda me estás contemplando, «Ao Ancião venerando «Minha existencia é devida. RUY. «Como?... Aquelle que arrancar-te «Ousou a meu peito amante, «Que em magoa e dôr incessante «Me fez continuo chorar-te, «Da tua lei o inimigo, «Da tua raça execrado, «Pôde aliviar teu fado, «Protector para comtigo!.... FATIMA. «Prodigios o ceo clemente, «Que meus olhos desvendou, «Por esse mesmo operou, «Que blasfemas imprudente! «Desde o momento horroroso, «Em que de ti separada, «De quanto amava affastada «Fui no caso lastimoso. «A taça da desventura «Misera esgotar devia, «Trazendo-me cada dia «Nova dôr, nova amargura. «Mal de Cintra o alto muro «Me recebeu malfadada, «Foi minha alma transpassada «Dos golpes pelo mais duro. «Soube que o Padre querido «Tão digno do meu amor, «Ao despeito, á magoa, á dôr «Tinha infeliz succumbido. «Inda bem me não feria «Este golpe acerbo, amaro, «Que do meu unico amparo «Se apagára a luz do dia; «De Hauzeri o irmão restante «Que affavel me agazalhára, «Que por filha me adoptára «Viu chegado o ultimo instante. «Solitaria, abandonada, «Sem amigos, sem parentes, «De amor nas chammas ardentes «Por mór tormento abrazada, «Ignorando se vivia «O só ser que ainda amava, «Se o jurado amor guardava, «Se em outras chammas ardia, «Succumbi, em vão luctando «Contra tanta desventura, «E aos golpes da sorte dura «Senti a força expirando: «Nem já o pranto, allivio aos desgraçados, «Os olhos meus vertiam, «Nem já ais, nem suspiros, que exhalados «As penas alliviam, «Soltar podia. Opressos, suffocados «Minha alma consumiam «Em silencio os tormentos, morta a esperança «De poder minha sorte ter mudança. «Uma noute em que só de horror cercada «Ao pezo de meus males succumbia «De pura luz me vejo rodeada «Igual á que no ceo precede o dia. «De espanto e de terror sobresaltada, «Quando convulso o corpo meu tremia, «No centro do clarão o proprio vejo «Que ás aguas me arrancára lá no Téjo. «Era o mesmo; porém mais magestoso «Ora de mim se vinha aproximando; «Qual um astro celeste e radioso «Brilhava o seu semblante venerando, «Um aroma suave e precioso «Estavam suas vestes exhalando, «Na mão tinha uma Cruz resplandecente «Co'a imagem do seu Deus n'ella pendente. «Co'a voz a um tempo grave, meiga, e branda, «Com aspecto sereno, e enternecido, «Disse: Victima triste e miseranda «Até agora de um fado endurecido, «Um Deus Clemente, oh filha, a ti me manda; «Um Deus, a quem um ai, um só gemido «De verdadeira dôr, de penitencia «Move com os peccadores á clemencia. «Surge da magoa horrivel que te oprime, «Cobra força, renasça o teu alento, «Pela esperança do dom alto e sublime «Com que o ceo quer sarar teu soffrimento. «Fructo innocente de expiado crime «Serás da pena qual da culpa isento, «Em ti meu sangue não será contado «Entre aquelle, que o ceo tem rejeitado! «Uma filha, ai de mim! eu tive outr'ora, «Como tu a formára a natureza; «Tinha ella então, como tu tens agora, «Esse dote funesto da belleza. «Uma chamma tyranna, abrazadora «Illudiu da sua alma a singelleza, «Ligou-a o nó de amor, e da desgraça «Ao inimigo audaz da propria raça. «Aos braços de Hauzeri, de amor levada, «Funesto effeito das paixões ardentes, «Cuidando ser feliz, foi desgraçada «Victima das angustias mais pungentes. «O Deus, o Pai, a Patria abandonada «Á misera continuo são presentes, «O roedor remorso, a magoa dura «Lhe foram escavando a sepultura. «Chegado da infeliz o ultimo instante, «Odios, malquerenças, queixas expiraram, «Paterno pranto, com o do esposa amante «Da morte o leito unidos lhe regaram. «Resignados os olhos seus brilhantes «Pela ultima vez aos ceos se alçaram, «Um suspiro exhalou, cuja piedade «As iras aplacou da Divindade. «Fructo infeliz de amor, e de fraqueza «Junto à Mãi expirante tu jazias, «Por ti fallava ainda a natureza, «Tu só na terra a alma lhe prendias. «Tomou-te entre seus braços com viveza, «Tu que a trama cortáras de seus dias, «E com a voz, cortada já da morte, «Assim fallou ao Padre e ao Consorte. «Padre, se ingrata filha, angustia e dores, «Por premio a teu amor só sube dar-te «Neste fructo infeliz de meus ardores «Possas ter quem se empenhe em consolar-te, «E tu, por quem soffri tormento e dores «Sem uma hora se quer cessar de amar-te, «Consente que ella entregue ao pai que imploro «Possa rogar por mim ao Deus que adoro. «Assim fallou a triste, e resignada «O golpe recebeu da dura morte, «Partiu do erro a alma já purgada «A repartir nos ecos do justo a sorte. «Mas de Hauzeri em vão a prenda amada «Reclamei, em memoria da Consorte; «Arrancar-lha não pude, e separado «Fui desde então p'ra sempre do teu fado. «Supplicas, pranto, rogos, ameaças «Para salvar-te estereis empregando, «Fui no ermo chorar minhas desgraças «Aos ceos dos ceos a causa confiando, «Continuo sobre ti de Deus as graças «Com penitentes lagrymas chamando. «Até que a Deus tocou minha agonia, «Deus que benigno a salvação te envia. «Em quanto fallava «A cruz me estendia; «E a dôr que a pungia «Na alma abrandava; «Do Deos que invocava «Tocar-me sentia, «Já menos soffria «Já mais me animava, «E quando acordava «E a mim me volvia «Achava-me o dia «Outra do que estava, «Livre da interna lucta, e na bonança «Começando a antever a luz da esperança. «A celeste vizão reproduzida «Cada noute a minha alma soccorria, «Cada noute na fé santa instruida, «O santo Avô mais firme me fazia. «A antiga exasperação, o tedio a vida «Em merencoria dôr se convertia, «Dissera-me feliz, se a um sentimento «Conseguisse esquivar meu pensamento. Assim Fatima ao transportado amante O terno coração patenteava; Ruy de puro goso delirante No gesto a paixão viva retratava; Vivo rubor da Virgem no semblante Da alma os sentimentos debuchava; A selva, as aves, o arroio, as flôres Formando um templo digno a taes amores. FIM DO QUINTO CANTO. CANTO SEXTO. Tal está morta e pallida Donzella, Seccas do rosto as rosas, e perdida A branca e viva côr co'a doce vida. Camões, Lus., C. 3.º, E. 134.ª Soberbo ondeia a crina fluctuante De Ruy o ginete bellicoso, Atravez da floresta segue ovante No accelerado trote pressuroso. Excita o nobre bruto o ledo amante, Vivo obedece o animal fogoso Á redea, ha tanto tempo abandonada, Que outra vez com vigor sente empunhada. Seguindo vai o nobre aventureiro Transportado de goso e de alegria A direcção do campo, que o guerreiro Povo de Christo alevantado havia. Doce aspecto, risonho e lisongeiro, Em vez da dôr, lhe exalta a fantezia, Todo quanto carpira, quanto amára A fortuna propicia lhe entregára. Do ginete nas ancas assentada Levar se deixa de Hauzeri a filha, Entregue a amor, e por amor guiada, Suave esperança nos seus olhos brilha. O rosto lindo, a fórma delicada Da natura primor, e maravilha, A pár do Cavalleiro armado e forte, Realisam Cyprina com Mavorte. Sob o braço da Bella, que o estreita, O coração do moço arde e palpita, Elle o sente, ella o palpa, e satisfeita Partilha o goso, que innocente excita. Se ella suspira, elle o suspiro aceita, Se olha-la intenta, ella o olhar lhe evita, Pejando-se que lêa o terno amante Nimia expressão de amor em seu semblante. Assim o bosque frondoso Vão prestes atravessando, Um silencio deleitoso Bella, e amante guardando. Silencio, que amor prefere Á mais ardente expressão, Que no fundo da alma fere, Que transpassa o coração; Que identifica, que enlaça Os que a mesma idéa prende, Que a compaixão, que a desgraça, Que amor, que a ternura entende. Silencio não avalia Alma mesquinha, apoucada, Que sempre placida e fria Do sacro fogo é privada. Em silencio a natureza Vê rolar no immenso espaço Dos orbes a redondeza Que impelliu do Eterno o braço, Em silencio a vaga ondosa Rola no lago profundo, Séria a noute magestosa Envolve em silencio o mundo. Em silencio o vate absorto Antes de pulsar a lira Recebe o influxo e conforto Do talento que o inspira. Em silencio meditando Alcança o sabio a verdade, Vai-se um silencio mirrando O filho da adversidade. Silencio da alma nascido, Caracter do sentimento, Tu es o grau mais subido Ou do goso, ou do tormento. Atraz deixam o bosque, e as claras fontes. Que atravez a verdura vem manando, Co'a varia crista dos erguidos montes, Que se está sobre as nuvens desenhando, Tingem-se de côr varia os horisontes Co'extremo sol nas aguas mergulhando, Os monotonos cumes apparecem Que com o calmoso estio se encalvecem. Ficava-lhes da parte, donde o dia Mais refulgente vibra os esplendores, A Arrabida, entre as nevoas, que tingia O sol cadente de purpureas côres, Com o ramo descendente, que estendia Pelos equoreos campos bolidores, Do Téjo e Sado as fozes separando Com o Cabo do Espichel que vai formando. Não longe, e como filho da montanha, Ficava de Palmella o cume erguido, Ao longe dominando na campanha, Ao perto sobre o valle, enriquecido Pela filha gentil de terra estranha, Que ora alli sobre o ramo seu florido Ostenta a um tempo a flôr, e os pomos de ouro, De perfume e frescura almo thesouro. Jazem-lhe á dextra as aridas campinas Onde com o vento a loura messe ondeia, Calcareas e basalticas collinas Onde a arvore a vista não recreia, Mais longe as em que a limfa cristalina Hoje em prisão marmorea se encadeia, Roubada aos campos, á verdura, ás flores, P'ra alegrar de Lisboa os moradores. Em frente se lhe antolha o pico altivo Co'as naturaes collumnas enfeixadas, Columnas que formára o fogo activo Nas epochas remotas e apartadas, Em que inda o touro, o cervo fugitivo Não pasciam nos campos co'as manadas; Mas só nadantes monstros habitavam Mares, que até aos serros se elevavam. Logo as nuvens rompia mais distante De Monte-junto a molle alevantada, Monte-junto, que a lomba culminante Une a Minde ao nordeste prolongada; As aguas dividindo, que ao levante Vem buscar a planicie, que regada É pelo Téjo, das que ao mar salgado Directas vão correr no opposto lado. Do sol quasi submerso os derradeiros Raios as eminencias só douravam, Das fontes e dos valles os ligeiros Vapores os contornos desenhavam; Sobre as nevoas os cumes dos outeiros Quaes ilhas sobre o mar se alevantavam, E as aves com a ultima harmonia Davam o extremo adeos ao claro dia. Na belleza da scena que os rodeia Fatima nem Ruy não attentavam, Amor as faculdades lhe encadeia, Ao delirio de amor se abandonavam. Qual forte olmeiro a branda vide enleia, Tal a bella e mancebo se estreitavam; É elle o seu apoio, o seu sustento, É ella de Ruy só pensamento. Continúa o silencio dos amantes Nos vivos sentimentos engolfados, Nada sôa nos valles circumstantes Mais que do bruto os passos compassados; Só lá dos valles nos cazaes distantes Ladrar se ouvem os cães, sôar dos gados Monotonos chocalhos tangedores, Com o debil som das gaitas dos pastores. De um fraco ribeiro, Que a calma escaceia, Que na fralda ondeia Do arido outeiro, Cortava o carreiro O leito escabroso: O solo ondoloso Alli se abatia, E a senda descia Ao váo pedragoso. Ao pé da torrente, Gosando a frescura, De um chôpo a verdura Ornava a corrente; Da lua nascente A luz estorvando, A sombra alongando Na estreita passagem, Co'a verde folhagem A senda toldando. O corcel, que excita O bellico amante, Na marcha prestante Um momento hesita; Logo a orelha fita E o trote accelera, Ruy, que o modéra, O fogo percebe Que o bruto concebe Na batalha féra. Com o braço valente A lança endereça, Preme o bruto, e á préssa Transpõe a corrente. «Cinge estreitamente, «Bella, o teu consorte, «Que seu braço forte, «Por ti animado, «Do mais esforçado «Desafia o córte.» Fatima obedece, Seu seio palpita.... N'isto uma voz grita A Bella estremece; No grito conhece A aravia expressão, Que no coração O sangue lhe esfria. Fugir quereria; Mas tenta-lo é vão. Quem vem lá?... Com voz alta e sonorosa Na arabia lingua um mouro perguntava, Brandindo a ferrea lança temerosa O corcel co'as espóras despertava; Com haste igual de sangue sequiosa Outro mouro apoz elle se mostrava: Ruy, que os vê, e em seu valor confia; «Christo e ElRei Affonso:» respondia. Diz. O ginete arremeça, Salta o bruto ardente e forte, Co'a lançada vôa a morte Do mouro a cotta atravessa. Espadana o sangue infido, De um só golpe a alma vôa, Cahe o mouro, e com o ruido Das armas o valle atrôa. Torce a redea o Cavalleiro Contra o segundo inimigo; Mas menos forte o guerreiro Encarar não ousa o perigo: Do ginete á ligeireza Da vida confia o preço, Parte, vôa, e com destreza Vibra a lança de arremeço. Parte a hastea sibilando, O fado dirige o tiro, Cahe Fatima, e ao golpe infando Responde um longo suspiro. Ella cahe, ella suspira, No seu seio palpitante Um covarde ferro aspira O sangue da doce amante. Ruy no peito a sustenta Mudo, louco, exasperado, Nelle o olhar Fatima attenta Quasi da morte apagado. Fitta nelle os olhos lindos Onde amor lucta co'a morte: «Os meus dias estão findos, «Adeus suave consorte! «Amei-te mais do que a vida «Desde esse primeiro instante «Em que a ti fui submettida «Por teu braço triunfante; «Nem a crença, que então tinha, «Nem a ausencia, nem meu fado, «D'esse amor, essencia minha, «Haveriam triumfado. «Nenhum poder sobre a terra «De Ruy me apartaria, «Na ausencia, na paz, na guerra «Fatima tua seria!..... «Mas Deus não quiz que embebido «Em doce paixão terrena, «O premio de um escolhido «Fosse corôa tão pequena: «Não quiz esse Deus clemente «Que a dita nos deslumbrasse, «Que o nosso amor innocente «Sobre a terra se gozasse. «Nasci de um crime, e no crime «Involuntario educada, «Esse Deus, sua Lei sublime, «Foi por mim aos pés calcada: «Tarde conheci seu nome, «E quando a Elle voltei «Um peito, que amor consome, «Imperfeito lhe votei. «Do sangue meu a abundancia «Possa expiar, oh Senhor, «Os erros da minha infancia, «O excesso do meu amor! «Eu vejo a mãi, que me estende «Desde o ceo amantes braços, «Ella a alma me desprende «Dos terrenos embaraços. «Eu vôo, oh esposo, eu vôo «Ao seio da Divindade «Jà seu hymno eterno entôo «Nos umbraes da Eternidade. «Só d'alli, oh doce amante, «P'ra sempre a dôr se desterra; «Lá te aguardo, que um instante «Vive o homem sobre a terra! «Mas ah, se a vida me déste «Quando á morte me arrancaste, «Deva-te a vida celeste «Aquella que tanto amaste. «Derrama, á pressa, derrama «Nesta fronte a agua da vida «Que a seu seio Deus me chama, «Em breve por ti seguida.» Disse. Uma força invencivel Deus infunde ao moço ardente. Desce, e no elmo terrivel Toma a agua da corrente. Chega. Derrama-a na frente Da Virgem agonisante. Ella a sente, e ternamente Une ao peito a mão do amante. Apertou-a contra o seio, A elle os olhos voltou, Um suspiro aos labios veio Exhalou-o, e expirou. Dizem que junto ao ribeiro Doces cantos se escutaram, Que na noute almo luzeiro Os pastores contemplaram. Na seguinte madrugada. Vindo ao sitio os guardadores, Viram a terra escavada Coberta de frescas flôres. Sobre ellas um vulto annoso Candidas roupas trajando, N'um vôo ao ceo pressuroso Alva pomba contemplando. Dizem mais: que os que souberam O caso digno de chôro, Áquella torrente deram O nome de Rio Mouro. Que Ruy na sepultura Longo tempo suspirára, Deposta a nobre armadura, Que do martyr Pai herdára; Que alfim do pranto exhauridos Os olhos seus se seccaram, E seus ais, e seus gemidos Para o Senhor se voltaram. Que do ceo a queixa ouvida, Com balsamo de alta espr'ança Lhe sarou Deos a ferida, Lhe mandou da alma a bonança. De Cintra no ermo escabroso No serro o mais retirado, Além do monte viçoso Monserrate ora chamado, Dois penhascos se elevavam Que immensa louza cobria, E uma caverna formavam Que ao ponente a porta abria; Alli, dos homens remoto, Dos seus proprios ignorado, Ruy sob um nome ignoto Terminou mistico fado. Alli do nascer da aurora Té ao ultimo fulgor Entoava em voz sonora Os hymnos ao Creador. Das plantas da penedia, Dos fructos do agreste monte, Sua comida fazia, Bebida lhe dava a fonte. Assim consumiu seus annos Á solidão consagrados, Té que, cumpridos seus fados, Poz Deus um termo a seus damnos. Partiu-se de entre os humanos Sua alma candida e pura, Os anjos a sepultura Entre as penhas esconderam, E as memorias se perderam Da sua triste aventura. Longo tempo abandonada Jazeu a selvagem gruta, Do lobo, e raposa astuta Foi longo tempo habitada. Té que a prole sublimada Do ultimo lume do Oriente Um asylo penitente No serro agreste erigiu, E de novo alli se ouviu O louvor do Omnipotente. Os annos correram, Que tudo mudando Volvem derribando O mesmo que ergueram; Da suave amante Perdeu-se a memoria, Esqueceu-se a gloria Do Joven brilhante. No castello antigo Berço a seus amores Môchos piadores Só tem seu abrigo; Selvagem verdura C'o a hera lustrosa Da muralha annosa Cobrem a structura: De um lado inda a selva Se mostra virente, Matiza inda a relva Do Lena a corrente, Inda o musgo brando. Vestindo os penedos, S'ta nos arvoredos Amor convidando; Mas já não lastima O echo das fragoas Da triste Fatima As pena, e as magoas. Do Téjo na borda Ind'hoje aos salgueiros O batel co'a corda Prendem os remeiros, A humida esteira Tranquillos sulcando, Vem inda remando De noute as bateiras, Mas da Moura linda, Do Guerreiro amante, No bronco habitante A memoria é finda. De Cintra a viçosa As frescas torrentes Vem inda fluentes Á selva frondosa, Das aves ainda Na matta sombria A doce harmonia Com o dia não finda, Sua doce frescura, Suas limpidas fontes, Seus farpados montes De altiva structura, Sua luz clara e pura, Seu ceo azulado, Seu mar empolado, Que o tempo venceram, Memoria perderam Do Pár desgraçado. Tu só, tu, fantesia inseparavel Das margens do meu Téjo, e seus verdores, Tu, ceo da patria, ceo incomparavel, Que n'alma, qual no campo, espalhas flôres: Só tu resuscitaste o lamentavel Destino de tão firmes amadores; Só tu, do tempo alevantando o manto, Sobre as campas de amor chamaste o pranto. FIM DO CANTO SEXTO E ULTIMO. End of the Project Gutenberg EBook of Ruy o escudeiro: Conto, by Luís da Silva Mousinho de Albuquerque *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK RUY O ESCUDEIRO: CONTO *** ***** This file should be named 21786-8.txt or 21786-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/1/7/8/21786/ Produced by Pedro Saborano. Para comentários à transcrição visite http://pt-scriba.blogspot.com/ (This book was produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email [email protected]. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at http://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director [email protected] Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit http://pglaf.org While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: http://pglaf.org/donate Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: http://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.