Contos e Lendas

By Luiz Augusto Rebello da Silva

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Title: Contos e Lendas

Author: Luís Augusto Rebelo da Silva

Release Date: October 29, 2009 [EBook #30359]

Language: Portuguese


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CONTOS E LENDAS




REBELLO DA SILVA


CONTOS

E

LENDAS


Introducção--A torre de Cain--O castello de Almourol
A camisa do noivado
A ultima corrida de touros em Salvaterra




LISBOA
LIVRARIA EDITORA DE MATTOS MOREIRA E COMP.ª
67--Praça de D. Pedro--67
1873




DECLARAÇÃO


_A propriedade d'esta edição pertence a Henrique de Araujo Tavares,
subdito brasileiro._




LISBOA
LIVRARIA EDITORA DE MATTOS MOREIRA E COMP.ª
67--Praça de D. Pedro--67
1873




INTRODUCÇÃO

    Dicebam que: in nidulo meo moriar, et sicut palma multiplicabo dies.

                                                    Job cap. XXIX v. 18


As pequenas composições, que hoje principiâmos a publicar, são de um
homem, que nunca do mundo quiz mais do que a tranquilla obscuridade, que
faz de ordinario o supplicio de tantas vaidades. Ministro sincero de um
Deus de paz, assentou-se aos pés da cruz e d'ali viu aproximar o inverno
da velhice, com a mesma serenidade com que tinha visto passar as
illusões da juventude, e com que havia atravessado os perigos da edade
viril. Satisfeito com a sua pobreza, não invejava (se é que invejou
alguma cousa!) senão a uncção apostolica e a eloquencia persuasiva dos
primeiros confessores da fé nas grandes epochas da regeneração moral do
mundo. Chegado quasi ao termo do seu desterro, quando a hora da
liberdade estava a soar, reclinou a cabeça para acordar sem dôr na
manção do jubilo, patria suspirada de suas mais doces esperanças, unica
impaciencia de uma alma, que longe da morada celeste se entristecia
captiva.

A virtude n'elle era risonha e desassombrada. Nascia de dentro, não
aspirava a grangear applausos, nem se desvanecia com os respeitos
mundanos. Se alguma vez peccou foi por excesso de bondade. Nunca ouviu
queixas que a sua bocca se não abrisse para as suavisar, nem viu
lagrimas, que a sua mão as não enxugasse logo. Por isso em muitas
occasiões, elle, o ancião experimentado, revellava a simplicidade da
pomba, enganado pelos artificios dos hypocritas. Por mais que o
advertissem, a sua caridade não se cansava, e embora faltasse a si,
nunca faltou aos pobres. Se o convenciam de erro, se lhe mostravam a
illusão, sorria-se, e respondia: «Louvado seja Deus! Ainda bem que até
me deu para esses!» Dito isto cheirava com pausa a sua pitada de
esturro, e ia catar, ou alporcar os craveiros, até o relogio do
estomago, unico relogio que havia em casa, o avisar de que eram horas da
refeição. Vinha então recolhendo-se de vagar, alargava o passeio pela
cosinha, rondando o almoço ou o jantar, não sem se arriscar a alguma
jaculatoria da tia Brizida, matrona sexuagenaria, que tinha a seu cargo
a economia domestica e o baixo e mixto imperio da dispensa e da
capoeira.

A ultima doença do padre Vigario, occasionou-a o zelo pelo serviço
d'Aquelle, que nunca fez tambem esperar os desvalidos. Por baixo de
immensa cerração, caindo a chuva em torrentes, e soprando o vento, frio
e agudo, metteu-se á meia noute ao caminho da serra, para levar as
consolações da Egreja a uma de suas ovelhas, que agonisava em
desabrigada choupana. Á volta o corpo tremia sacudido por uma sesão de
febre, e o rosto vinha mais pallido, do que a face de um moribundo.
Deitou-se para não se tornar a levantar.

Ferido no seu posto, como soldado intrepido, elevou o espirito, abençoou
a enfermidade, e bem com Deus e com os homens, ao terceiro dia adormeceu
para sempre. O Vigario levou todos os bens comsigo. Para se sepultar foi
preciso que os visinhos fizessem uma derrama. Mas em compensação nunca
houve funeral tão rico de prantos e louvores. Despovoaram-se os logares
da freguezia e dos arredores para o acompanhar, e quando o corpo saiu do
presbyterio, o chôro de toda a aldeia honrou aquellas cinzas tão amadas.
Com razão! Não era o velho parocho o pae, o amigo, o bemfeitor de todos?
Em vida constituira os pobres seus herdeiros, por isso não deixava de
seu mais do que a sobrepeliz e a batina remendada, em que o
amortalharam, e o crucifixo de marfim, que unira ao coração na
derradeira despedida.

O premio não foi só a corôa de gloria!... Por mais desvairada, ou
corrompida, que uma geração corra ao precipicio, os exemplos salutares
sempre se lhe gravam na lembrança, e a rudeza dos camponezes, apezar dos
vicios esquecidos nos idilios, não é usualmente a que resiste mais á
proveitosa lição das boas obras. Pelo menos assim aconteceu na parochia.
A ama, á qual o Vigario legára sómente a memoria de suas virtudes,
encontrou logo a hospitalidade, affectuosa, não de um, mas de muitos
habitantes, que se lhe offereceram para acolherem sua velhice. O cão do
Pastor, companheiro constante de tantos dias de fadiga, tambem achou
quem se condoesse, e o fosse levantar da sepultura sobre que gemia
saudoso. As pobres alfaias da casa, o breviario usado, os poucos livros
da estante, e um, ou outro movel de seu uso quotidiano, disputados como
reliquias, repartiram-se á sorte por evitar contendas, e hoje mesmo,
depois de largos annos, o tempo, que tudo gasta, não amorteceu ainda a
recordação do sacerdote exemplar, cujos ossos repousam á sombra dos
cyprestes plantados pelas suas mãos no cemiterio da aldeia.

Este foi o homem e o ecclesiastico venerando.

Do poeta, que era, que sempre tinha sido, quasi sem o cuidar, raras,
rarissimas pessoas dariam noticia. Fugia da fama que dão as lettras, com
um cuidado egual pelo menos áquelle, com que se furtava envergonhado ao
pregão da sua caridade. Pejava-se tanto de si, e por tal receava ser
visto, que se a direita se escondia da esquerda nas esmolas, a penna não
se occultava menos discreta quando escrevia. O padre prior tinha pouco
vagar para livros volumosos. Nos curtos ocios que as obrigações lhe
concediam, distrahia-se deixando vaguear a phantasia pelas recordações
do passado, enganando assim as tristesas do presente, ou ligando em
algumas scenas soltas as remeniscencias, ainda vivas, dos dias da
mocidade. E em quanto o vento lhe sacudia os caixilhos das janellas, e a
chuva, chapinhando, lhe fustigava os telhados, enchia elle uma ou duas
paginas á luz do ponderoso candieiro de latão amarello de tres bicos,
talvez o traste mais luxuoso de toda a sua mobilia. Assim nasceram em um
recanto obscuro da aldeia estes _Contos e Lendas_, escriptos sem emendas
e com admiravel rapidez, em lettra grada, direita, e garrafal, para
regosijo dos compositores, que cegam a miudo os negalhos de missanga de
certos auctores, muito nossos conhecidos, aos quaes Deus não castigue em
desaggravo de suas victimas.

Se o padre Vigario vivesse, ainda não soltava seguramente da gaveta os
papeis fechados a tres voltas e meia de chave. Foram precisas repetidas
instancias para m'os confiar. Poucos mezes antes da sua morte é que
alcancei licença para fazer d'elles o uso que julgasse mais opportuno,
com tanto que o nome do verdadeiro auctor nunca figurasse «porque dizia
elle, não são cousas estas para um sacerdote da minha edade matar o
tempo, quando podia rezar, meditar as suas praticas do domingo, ou
examinar a sua consciencia. Mas não sei como isto é; assim que me sento
diante da mesa e pego da penna, não posso valer-lhe, e apesar de todos
os protestos, entram commigo as malditas historias, e não ha
resistir-lhe. Se fosse crendeiro jurava que me faziam bruxarias.»

A bruxaria era o que hoje se chama a vocação! A sós commigo perdia de
vista as realidades da vida, e quasi sem o saber, deixava-se arrebatar
pelas visões do mundo phantastico, aonde antes d'elle já se entranharam
muitas outras que a admiração saúda como principes da intelligencia.
Vingava-se porem d'este máu sestro (era a sua phrase) pondo de lado as
escriptas frivolas apenas as acabava e nunca mais fallando d'ellas.
Rabiscava umas tantas folhas de papel (com este desprezo tratava a
inspiração!) e sem as tornar a ler, juntava o novo caderno ao antigo
maço. Uma fita de nastro vermelho atava tudo. Esquecia-se depois d'este
e dos outros até ao inverno seguinte, em que voltava ás suas historias
com extremo pavor da tia Brizida, confidente dos seus segredos, a qual
representava nos serões litterarios do presbyterio o papel, que a
tradição attribue á famosa ama de Molière. Em lisa fé temia ella
devéras, que o demonio perdesse um dia a paciencia á força de
esbofeteado, e de escarnecido pelo Vigario n'aquelles papeis, e que se
desforrasse torcendo o pescoço ás gallinhas e frangos, ou chupando o
sangue aos coelhos, transformado em raposa ou em ginete. Nunca acordava,
que não esperasse encontrar a capoeira vasia! Se é bom estar bem com
Deus, dizia, não é máu estar em paz com o demonio. A casa do presbyterio
não era grande, nem espaçosa, mas sorria de longe á vista caiada por
fóra e rodeada de canteiros de flôres. Vestia-se de um tal ar de festa,
que namorava pela bellesa rustica e logo a distancia promettia a
hospitalidade que nos dias do Prior estava convidando de longe com os
braços abertos a quantos lhe batiam á porta. Situada na corôa de um
outeirinho, alvejava por entre a folhagem prateada das faias, cujos
troncos lisos e direitos o vento meneava graciosamente. O pateo
ajardinado, cercado de alegretes, era todo viço e frescura, e tres cepas
enroscadas e collossaes, cobriam com a sombra de seus pampanos as
parreiras, aonde amadureciam na estação os mais formosos cachos de
moscatel e de ferral-tamara. Em volta da risonha morada, penduravam-se
as vinhas pelas encostas das collinas até ás margens de um ribeiro,
toldado de salgueiros e chorões que se torciam para beijarem a agua. Por
entre as vinhas apparecia em malhas o verde mais fechado das hortas
mettidas entre vallados de piteiras, em quanto ao lado sussurrava a
levada correndo pelas regueiras. Os pomares, copando-se, encantavam de
espaço em espaço os olhos offerecendo-lhes bosques fechados, e
embalsamando tudo em roda com sua fragrancia. Subindo pelos outeiros,
que ondeavam desde a planicie até ás montanhas torreadas no extremo
horisonte, os troncos nodosos e robustos das oliveiras trepavam de
socalco em socalco até á cortina de pinheiros, cujas cabeças, de um
verde triste, a viração balouçava lá em cima meneando-as entre mormurios
ao cair da tarde.

A ribeira vinha de cima, e ora rebentando entalada, ora espraiando quasi
adormecida, na areia alva e fina do leito, despenhava-se mais abaixo com
estrepito, entrando no logar opulenta com as aguas recebidas. Aquelles
pampanos cingidos de arvoredos, aquelles valles viçosos de hortas e
pomares; os variados tons que zebravam as encostas dos montes e
collinas, desde a esmeralda viva dos prados até ao louro cendrado das
paveias; os rosmaninhos e as boninas esmaltando as veigas; o rio
precipitando-se aqui, mais adiante correndo manso e limpido e depois
esperguiçando-se sobre as relvas; de dia o sol inundando de luz dourada
todo o quadro, de noute o clarão da lua tocando-o de meiga melancolia,
compunham um espectaculo de tanto enlevo que a vista fugia com a vontade
e com o coração para aquelles casaes debruçados das collinas fazendo
nascer desejos de pedir pousada em algum d'elles, para vêr romper o luar
por entre o arvoredo e de ouvir brincar a aragem com os ramos aos
primeiros raios brancos do alvor matutino.

Era sobre tudo ao anoutecer que a aldeia se animava. As chaminés
expelliam o fumo em penachos caprichosos; os cepos estalávam no lume; e
as creanças, como enxame buliçoso, brincavam defronte das portas. As
mães cosinhavam a ceia, em quanto os velhos e os mancebos descansando do
trabalho, aguardavam encostados, ou assentados, a hora proxima da
refeição e do repouso.

Que saudade causa no tumulto das cidades a ideia do pôr do sol nas
aldeias! N'esta occasião, em que a fadiga do corpo como que faz mais
docil o espirito, é que o padre Vigario, desembocava de uma das
azinhagas com o seu Horacio, ou o seu Salustio debaixo do braço, e vinha
conversar o seu pedaço com os anciãos da terra, para saber as novidades,
e espreitar as rixas e discordias, afim de as compôr. Correndo a mão
pela cabeça das creanças, ralhando com umas, afagando outras,
informava-se de tudo, sanava as malquerenças, e conseguia pelo respeito
de seus annos e qualidades, que os moradores da parochia formassem uma
só familia. Mestre e passa-culpas eterno dos rapazes, estes, mal o viam,
voavam em bandos a agarrar-se-lhe á loba e ás mãos, por entre vozes e
saltos com uma algazarra, que dava rebate a toda a aldeia. No verão, nos
dias de maior calor, era sempre certo o prior, á tardinha, debaixo da
parreira, que lhe cobria a varanda, com o livro aberto e os oculos de
prata, que lhe escorregavam até á ponta do nariz. Lia e passeiava. De
tres, ou de quatro em quatro voltas, parava, batia na caixa de tartaruga
e sorvia com delicias uma pitada, deitando os olhos pelos canteiros a
vêr se alguma flôr carecia de rega, ou de amanho. Quando o sol declinava
punha na cabeça o venerando tricornio, pegava da bengala de canna da
India e castão de prata, e sahia a tomar um pouco de ar. Era a phrase
modesta, empregada por elle para designar as suas marchas forçadas de
legua, legua e meia, e ás vezes duas leguas por montes e quebradas.

Quando o encontrei por acaso, e travei conhecimento com elle, poucos
homens vigorosos, na flôr da edade, poderiam acompanhal-o no seu passo
largo e egual. Abordoando-se á bengala por costume e não por
necessidade, despejava caminho como andarilho mais valente. De estatura
elevada, secca, mas encorpada, carregava sem esforço com o peso de uma
velhice verde e alegre. Nos olhos cinzentos e vivos brilhava um toque de
finura risonha, e a bocca não pequena, mas engraçada, animava o rosto e
dava-lhe expressão agradavel, avivada de constante jovialidade. A
brandura do animo correspondia ás promessas da physionomia, e o tracto
intimo denunciava as prendas d'aquelle caracter, honrado, severo só
comsigo, inflexivel e incapaz de se torcer em pontos de consciencia ou
de melindre. Na convivencia com o padre Vigario, aprendi mais do que me
ensinariam muitos annos de leitura. Convalescente e magoado, devi-lhe a
saude do corpo, a saude e o conforto da alma.

Este velho desterrado por gosto e eleição sua em um canto do mundo,
n'uma aldeia ignorada, era mais sabio na sua humildade, do que muitos
que se pavoneiam de lidos e eruditos. Em dous preceitos unicos encerrava
toda a sua philosophia:--paciencia e amor. Com a primeira supportava os
trabalhos e os revezes sem desmentir a serenidade da alma; graças ao
segundo, o coração, purificado pelos annos, abria-se a todos os
sentimentos nobres, e palpitava com orgulho memorando as glorias da
patria. Fiado nos pronuncios do futuro mitigava a dôr das desgraças
presentes, com as esperanças de melhor porvir, tão crente e enthusiasta,
como se acabasse de entrar na epocha das illusões. Entendia e applicava
o Evangelho pelos affectos ardentes da sua alma, abraçando como filhos e
irmãos todos os afflictos e necessitados; e pelo amor, finalmente, não
perdoava mas agradecia as offensas, as injustiças, e até as calumnias,
provações da virtude, não se lembrando d'ellas senão para pagar o mal
com o bem.

Horacio, Salustio e Tacito eram os seus auctores mimosos, a par de
Camões, de Ferreira e de Sá de Miranda. Familiar com os escriptores da
antiguidade, e com os modernos de mais nome, seria preciso colhel-o
desapercebido, e espertar a veia natural e espirituosa da sua
conversação, para se apreciar devidamente os thesouros encobertos
d'aquella vasta erudição e os prodigios de uma memoria em verdade rara.
As citações acudiam-lhe espontaneas; os ditos agudos e as anecdotas
encadeavam-se; as scenas e os quadros pintados com vivesa admiravel,
succediam-se e ligavam-se. Parecia que a sua voz ressuscitava de repente
os homens e as cousas, que as cinzas dos grandes varões de Roma e da
Grecia, dos heroes de todos os tempos e de todas as nações tornavam a
juntar-se, a tomar corpo e a animar-se e que os viamos mover e fallar
como se os estivessemos contemplando nos dias do seu esplendor. As
ruinas de Athenas, as do velho Lacio, os monumentos da meia edade, e os
episodios de epochas mais proximas, evocados pelo encantamento
irresistivel d'aquella imaginação creadora, como que volviam subitamente
ao primeiro sêr, apparecendo uns em toda a formosura da arte classica,
erguendo-se outros pela religiosa inspiração da arte christã.

Á noute era um prazer e um exemplo, observal-o sentado na immensa
poltrona de couro, com a ama á direita e o cão somnolento á esquerda, a
velha cabeceando de rocca á cinta e engrolando Padres-nossos, o animal
piscando os olhos com uma orelha fita e outra derrubada. Dos dous
companheiros do serão o mais attento e sisudo era de certo o cão!
Medindo sempre o dono com a vista, o mastim nunca perdia occasião de lhe
coçar o focinho pelo joelho, quando suppunha o ensejo favoravel. O
bofete de pau santo e pés torneados, o candieiro de latão e a anarchia
dos papeis completavam o pitoresco painel do lar domestico. Passada uma
hora, o unico que não dormia era o Vigario; a sua penna continuava a
ranger sobre o papel, ao som dos roncos assobiados da tia Brizida.
Quando as palpebras se lhe faziam pesadas, o prior arrastava a cadeira,
mettia dous dedos na argola do candieiro, e recolhia-se ao quarto no
meio das recommendações da ama sobre os perigos do fogo, sobre a falta
de cuidado no abafo, e sobre mil outros casos provaveis. Estas
recommendações não se calavam, senão quando a respiração alta e
compassada do ouvinte convenciam a oradora do effeito suporifero da sua
eloquencia.

Em um d'estes serões, a que assisti, caiu o dialogo sobre não sei qual
de nossos reis, e o Vigario innocentemente deixou escapar o segredo das
suas vigilias. A curiosidade de comparar a escripta do solitario com o
seu talento de narrar, obrigou-me a pedir-lhe, sem attender a desculpas,
que me lê-se alguns _Contos e Lendas_. Oxalá que o leitor seja do meu
voto. Ainda me não arrependo do que disse d'elles ao auctor, que tremia,
como se a minha opinião valesse alguma cousa. Não os reputei perfeitos,
longe d'isso, mas asseverei-lhe que seriam talvez folheados sem fastio.
Arriscaria um juizo temerario?!... No seu acanhamento o prior sempre
resistiu a apurar o manuscripto para a imprensa, e quando m'o entregou,
pouco antes da sua morte, foi com a final e irrevogavel condição de
nunca descubrir o nome do auctor, se me atrevesse a importunar os prelos
(assim se expressou) com as puerilidades de um velho creança. Possam os
_Contos e Lendas_ do padre Vigario, cuja ultima vontade estou cumprindo,
merecerem alguns momentos de attenção, não por si, mas pelas memorias
que recordam. Correm já sujeitos ás vecissitudes da publicidade tantos
filhos espurios da mesma invenção, que mais esta, entrando no mundo das
lettras, não usurpará de certo logar, que pertença de direito ás obras
primas dos poetas festejados. Em todo o caso, sem audacia não ha
fortuna. Lanço-a á corrente!... A sorte bôa, ou má que faça o resto!

Valle, 30 de septembro de 1866.




A TORRE DE CAIN

LENDA DO SECULO XI


I

De um bom irmão um mau christão

O monge começou assim a sua historia:

No tempo em que os walis de Cordova tinham quasi todo o reino sujeito, é
que succedeu o que vou contar. Estava o conde D. Henrique a entrar por
dias, e com elle vinham boas lanças para o ajudarem a resgatar do poder
dos infieis as provincias de Portugal. A essa hora nos castellos da
fronteira não se descansava de dia, nem de noite; ninguem despia as
armas; e quer luzisse a manhã, quer cerrasse a tarde, o clarão das
almenáras, ou o rebate das trombetas não consentia nem leve repouso aos
defensores da verdadeira lei. Nas ameias, ou no campo da peleja, não se
socegava um momento. Os melhores castellos ainda tinham a voz dos
descridos; muitas terras pagavam-lhes tributo; e as bellas tapadas do
Minho e do Alemtejo eram para elles correrem os veados, os ursos e os
javalis. Do marmore de nossas pedreiras arrancavam as columnas e as
ricas laçarias de seus paços. Tudo na abençoada primavera d'este formoso
jardim chamado Portugal era dos sarracenos e em tudo punham o seu
deleite. Nas campinas floridas, em que a lua nasce suave como sorriso
infantil, e o ceu brilha radioso como olhar de virgem namorada, a
tristeza até parecia desmaiar o sol. Antes de o tragar o inferno, cujo
é, o arabe sensual passava pelo paraiso, que nos tinha roubado! Por isso
a saudade do que perdeu lhe punge tão viva hoje o coração!...

--E não havia cavalleiros, que lhes estalassem as lanças no peito,
bradando: esta terra é nossa! acudiu Martin Paes.

--Havia! redarguiu o frade. Mas eram poucos. N'aquelles dias de
captiveiro todos inclinavam a fronte, regando de lagrimas os sulcos da
charrua, guiadas por mãos de escravos. Deus exalte o braço victorioso,
que nos deu outra vez a terra de nossos paes, que fez nossos, a casa em
que abrimos os olhos, o cemiterio aonde dormem os que nos amaram, a
arvore que nos cobriu com a sombra a infancia e a velhice, e a fonte que
ferve ao pé do rosal!... N'aquelle tempo, quando o mouro passava,
baixavam todos a vista, porque elle era o senhor.

--Mas a terra havia de ser então quasi um deserto, padre?

--Não. As espigas douravam-se nas searas como agora; os campos
vestiam-se de relvas e de arvoredos; as noras gemiam nas hortas; e os
gados pastavam nos montes. Mas a terra, tão alegre por fóra, toda era
magoa e desconsôlo por dentro; porque a terra, em que sômos escravos,
mesmo que seja a da patria, parece-nos mais só e vasia, do que um êrmo.
A casa alheia, a courella que é de outro, e o fogo accêso na lareira a
medo, fazem-nos chorar, porque nada d'aquillo é nosso, e hoje, ou
amanhã, podem dizer-nos: sáe! O reino vivia, como vive agora; o que
estava morto era o coração do homem. Resplandecia o mesmo sol, corriam
as mesmas aguas, nasciam as mesmas flôres; porém as creanças não
brincavam por baixo dos pampanos da vinha, como brincam estas; e a
donzella assustada, tremendo de se vêr formosa, não se assentava
tranquilla, como aquella, debaixo da amendoeira em flôr ouvindo
descantar o rouxinol por cima da cabeça. O harem do sarraceno, aberto
diante d'ella, como um abysmo, fazia-a empallidecer. De um momento para
outro podia ser obrigada a escolher entre a deshonra e a morte.

--Que martyrio não seria a vida assim?!...

--Era! Foi!... Mas viveu-se, e por quantos annos!... O dia declina.
Faz-se tarde. Quereis que continue?

--Oh, de certo. Fallae!... Todos vos ouvimos.

--No tempo que disse, lavrava a discordia entre dous ricos homens nas
terras de Alem-Douro, afirmavam uns que por amor dos lindos olhos de
certa dama, juravam outros que por causa da aposta de um cavallo. De
seus castellos os dous inimigos, postos defronte, corriam o campo
talando vinhas, pomares e cearas, e mal um se descuidava, o outro,
assaltando-o, vinha logo acordal-o a ferro e fogo. Em suas mesnadas, ou
companhas de homens d'armas, ardia a guerra em toda a furia. Nos casaes
assolados de ambos, o solarengo ou o pastor nunca sabia se ao anoutecer
recolheria os frutos, e os rebanhos a salvo, ou se despertaria ao clarão
das labaredas, para enterrar algum dos seus assassinado.

Por fim o cavalleiro mais velho accommetteu o paço acastellado do
contrario, e tomou-o á traição, deixando a cabeça do senhor cravada nas
ameias. Aconteceu isto vespera de S. João, por alta noute, quando todos
festejavam o bemdito Santo com fogueiras, cantigas e follias. O
cavalleiro tinha um filho e um irmão. O filho de edade tenra; o irmão
temido pela indole e pelo braço. Entraram e sairam os annos assim; a
creança fez-se homem; e de parte a parte a aversão das duas familias
cada vez crescia mais. O rio que as separava, tingiu-se de sangue por
muitas vezes, e os sinos não cessavam de dobrar na egreja pelos que
morriam. O tempo, que tudo gasta de dia para dia, parecia avivar mais
aquella rixa. A este tempo o herdeiro do cavalleiro assassinado era já
um mancebo louvado pela destresa nas armas e pela prezença gentil a
cavallo e nos saráus. Chamava-se D. Moço Ansures, e vendo-o passar,
esbelto e affogueado da carreira, com o falcão no punho, as donzellas
sorriam-se e córavam, e os homens saudavam-o admirando a fiel imagem do
rico homem morto na vespera de S. João.

D. Moço ainda não dissera a mulher nenhuma: amo-te! Um dia, por
desgraça, viu a neta do senhor do solar inimigo, e logo o coração
esquecido da vingança guardou para sempre a doce imagem. O sangue do pae
derramado á falsa fé, as malquerenças de tantos annos, as promessas da
meninice e da juventude, tudo d'ahi em diante se apagou da sua alma para
não vêr outro sol, outra luz, senão a dos bellos olhos, que o tinham
feito seu captivo. Segredos de Deus! Do maior odio rebentou o mais
constante amor!... Correram mezes, e o affecto escondido saltou aos
olhos de todos. Os parentes lançaram em rosto ao mancebo a sua fraqueza,
mas a paixão pôde mais, que as memorias do tumulo, que deixava sem
vingança. Por ultimo, cansados das guerras dilatadas, os rancores
cederam, e o casamento ajustou-se. Uma rosa veiu unir as duas casas
inimigas. O sorriso de uma dama veiu aplacar no sepulcro os que não
podiam dormir o somno eterno, e os que haviam jurado não perdoar.
Aprazou-se para vespera de S. João o ditoso enlace. Seria proposito, ou
acaso? N'esse dia contavam-se justamente quatorze annos, que o pae de D.
Moço de Ansures fôra assassinado.

O homem põe e Deus dispõe!

O cavalleiro morto tinha, como disse, um irmão, que lhe queria mais do
que á propria vida. Haviam nascido ambos vespera de S. Pedro, e escusado
fôra procurar mais do que uma vontade e um affecto nas duas almas. D.
Inigo Lopes, era o nome do irmão mais novo, andava ausente. Acertou
chegar de longe, quando estavam pregando as taboas do caixão do infeliz.
A dôr fez de D. Inigo uma estatua, e sete dias com sete noutes o viram
todos jazer deitado sobre a sepultura. Parece que a terra, comendo-lhe
os ossos do irmão, consumia ao mesmo tempo n'elle tudo que tinha de
humano. Quando rompeu a alva do oitavo dia, e se levantou, trazia a
cabeça e as barbas brancas como neve. Envelhecêra ali um seculo em sete
dias! Nem um lagrima nos olhos seccos! Nem um soluço do peito mudo.
Deixou sobre a campa espada e arnez, e levou só comsigo o punhal. Ao
entrar ainda fizera o signal da cruz, mas, saindo, Jesus! voltou as
costas ao altar. Os anjos nos defendam!

O que fez sete dias com sete noutes D. Inigo só e encerrado na capella?
Se alguem o soube foi a cova fria. Contavam, depois, que um monge na
ultima noute vira a pedra do tumulo erguida sem lhe tocarem, e um corpo
crescer da sepultura e a mão do morto apertar a mão do vivo. Illusões!
Quem vae nunca mais torna. O que não foi fabula, porque todos o
presencearam, foi ao oitavo dia rebentar com o primeiro raio de luz uma
rozeira do centro da cova, tão viçosa e robusta como se existisse ha
muitos annos. Que frescas rosas e que lindos botões nos ramos! Mas se
queriam apanhal-os por devoção, murchavam nos dedos; se tentavam cortar
uma pelo pé, o sangue corria da haste como se corresse de veia aberta.
Em cada ramo abriam sete rosas brancas e sete rosas vermelhas. E que
outros tantos dias se contavam tambem desde que o corpo do valente
cavalleiro descera á sepultura trespassado de sete feridas.

Nunca mais se soube, ou se fallou de D. Inigo. Dizia-se que sete annos
com mais cinco vagueára como peregrino, pelos desertos, que Deus pisou,
comendo das ervas do monte, bebendo da agua das nascentes, dormindo ás
inclemencias do tempo. Que vida penitente a d'aquelle Santo! Vozes do
mundo! O Senhor, que lê nos corações, ha muito que tinha desviado os
olhos d'elle. Com ser christão nascido nunca mais ajoelhára á cruz, ou
se encommendára á Virgem. Quasi ao cabo do longo desterro anouteceu-lhe
no deserto da Tentação ao atravessar pela terceira vez a Palestina.
Valha-nos Maria Santissima!... De repente as areias inflammaram-se em um
mar de fogo; o ceu cobriu-se de trevas; e nas pontas recortadas das
altas rochas dançaram, crusando-se, milhares de luzeiros. Ouviu-se então
na vasta solidão do ermo um brado immenso. D. Inigo respondeu, e o
pacto, que ali firmou, foi tão negro, que a lua tornou-se côr de sangue
e sumiu-se, que as estrellas esconderam tremulas a sua luz. O christão
acabáva de vender ali a alma ao inferno pela vingança. Desde aquella
hora seguiu-o sempre por toda a parte, como a sombra segue o corpo, a
imagem do irmão assassinado. Ajoelhára ao poder de Satanaz, elle que não
se prostrára diante da cruz, e rasgando as veias afirmára o juramento.
Quando se ergueu soou o cantar do gallo por tres vezes no espaço,
repetido pelos echos, e risadas tremendas, levantando-se das aguas
immoveis do Mar Morto, applaudiram a victoria do espirito do mal. O
reprobo escarneceu do passado. Uma blasphemia atroz saltou-lhe da bocca.
Mas elle que se ria de Deus e do inferno, estremeceu sentindo fugir-lhe
a terra debaixo dos pés, como horrorisada do peso do seu crime. Aos
primeiros passos o clarão dos relampagos cegou-lhe a vista. O temporal
rebentava ao mesmo tempo no mar aonde as ondas se empolaram como serras,
no ceu aonde os trovões estalavam uns apoz outros; na terra, que se
abria em voragens, e no deserto, aonde o furacão, bramindo, cavava
abysmos, e alteava montanhas, revolvendo em vortice as areias. Cedros
antigos, como os do Libano, desabavam de pancada. As feras, timidas que
nem cordeiros, acoutavam-se submissas nos povoados. Os homens elevavam
suas orações a Deus pedindo-lhe piedade. Quando tudo se fazia humilde e
pequeno para a supplica, porque riria só o orgulho do culpado? D'ali em
diante não passou uma hora sem elle se despenhar mais e mais fundo no
precipicio. Raiava a manhã um dia e curvado sobre a corrente do Jordão,
debruçava o cantaro e enchia-o. As ramas das arvores enfezadas
torciam-se em toldo raro sobre a ribeira. A duas passadas de distancia
caíra um velho desfallecido de sede e de fadiga. Bastava uma gota
d'aquella agua para lhe restituir a vida. D. Inigo negou-lh'a
entornando-lhe de proposito o cantaro diante dos olhos para lhe
exacerbar o tormento, diante dos olhos que estavam tragando de longe a
agua, que o maldito derramava zombando da sua agonia, e dizendo-lhe por
mofa: «chama pelo teu Deus e pede-lhe uma nascente ao pé de ti!» O
Senhor não accudiu com prodigios ao seu servo. Quiz que expirasse
vencedor do inferno. Mas, desde aquelle crime, a sêde intensa ateiada
nas entranhas do reprobo, nunca mais se aplacou. Os rios e as fontes
convertiam a fresquidão em fogo para o abrazar. A gota de agua negada no
deserto pesára na balança do Senhor largos seculos de culpas.

Cumpridos doze annos, D. Inigo voltou, sem se saber como, á terra em que
nascera. Disseram que um cavallo da côr da noute, com os olhos todos
chammas, o trouxera em breves instantes da Judeia a Portugal. A cauda
varria o pó, a respiração era toda fogo, e as crinas ondeavam ao vento.
Diante d'elle as mais altas montanhas encolhiam-se e tornavam-se
outeiros; o mar e os abysmos solidificados aplanavam-se; e no perpassar
do galope infernal os carvalhos inclinados tremiam e beijavam o chão,
flexiveis como juncos. Cavallo e cavalleiro não corriam, voavam! Debaixo
da ferradura magica as aguas tomavam a dureza do diamante: a terra
oscillava, e mil faiscas, saltando da cratera dos vulcões, vinham coroar
o rei do fogo. Ao romper da aurora o corsel retrahiu-se, e estacou.
Apontava o dia no topo de uma cruz de pedra. Não passou d'ali. Á medida
que ia aclarando a manhã adelgaçavam-se-lhe as formas e do primeiro raio
de sol dissolveu-se desfeito em fumo.

Quando acabou de desapparecer tangia um sino. D. Inigo olhou e conheceu
o sitio. Estava junto da egreja aonde fôra sepultado seu irmão. Ao
primeiro passo que deu, descerrou-se o portal por si mesmo; ao segundo
illuminou-se a capella repentinamente; ao terceiro as rosas vermelhas
cairam seccas e as brancas floriram juntas. Um cantico suave dentro
levantava o _Ave maris stella_. Estava aplacada a vingança do morto. A
fé, porem, debalde chamava ali por Inigo; elle não a ouvia. A voz do ceu
em vão lhe offerecia o perdão; elle, surdo, não escutava a palavra de
misericordia! Orava n'aquelle momento a Deus, muito longe, um santo
hermita pelo maior peccador. Arrebatado em espirito, viu um homem
cuspindo por odio na cruz á porta de uma egreja. O anjo Custodio,
ajoelhado no cruzeiro, banhava de lagrimas as vestes luminosas; mas o
desacato gelou-lhe o pranto, e, cobrindo o rosto com as azas, subiu na
aragem até se perder nos raios dourados do sol nascente.

«A tua clemencia, Senhor, é infinita! exclamou o justo. Haverá perdão
para o que renega o teu Santo nome?»

N'este ponto a visão sumiu-se; as portas da ermida fecharam-se com
estrondo; e uma voz, semelhante á da tempestade, bramindo nas selvas,
repetiu ao longe: _memento, homo, quia pulvis es!_


II

Não ha gosto sem pesar

N'aquelle tempo, em terras de alem Douro, que rico homem era mais
poderoso e rico do que D. Ordonho, conde? Estendendo a vista dos eirados
do castello por valles, montes e campos, sabia que tudo era seu. A um
aceno trinta cavalleiros mettiam o pé no estribo, e centos de homens de
armas e peões seguiam o seu pendão. Descendia da grande raça dos
primeiros lidadores das Asturias, raça de bronze nos odios, e de ferro
nas vinganças. A edade gasta os mais fortes, e açor velho não se remonta
ás aguias. Quando na carreira o vento lhe sacudia as madeixas brancas,
D. Ordonho sentia que os annos não haviam passado em vão. Só a neta, a
formosa Auzenda, unico amor da sua vida, podia distrahil-o das horas de
tristeza. Mais do que filha, porque duas vezes era o sangue da sua alma,
um sorriso d'ella quebrava-lhe a vontade, e uma lagrima só d'aquelles
olhos lindos, transformava em cordeiro o leão embravecido.

Os atalayas vigiam dos altos miradouros da torre de menagem. Os homens
de armas crusam-se nos eirados. Espreitam se rompe ao longe uma lustrosa
cavalgada, que se espera?

O sol já se escondeu de traz do ultimo outeiro; desmaiaram os
derradeiros clarões no topo da cruz de pedra; levantou-se por fim a lua
sobre as campinas, e nenhum cavalleiro, ou sombra d'elle, se avista em
larga distancia ao redor.

No castello era vespera de noivado. Auzenda, a bella Auzenda, ia
casar-se com Moço Ansures. Estava por horas a festejada vespera de S.
João, e por horas tambem estavam a cumprir-se quatorze annos desde que
os monges negros rezaram o officio de finados em volta da tumba do
cavalleiro assassinado.

Porque se via Auzenda tão pensativa olhando do seu balcão para a corôa
do outeiro, que fica defronte? Cordova e Granada, os dous Edens da
formosura, entre mil não se ufanavam de possuir perola de egual valia.
Aquella belleza era sem par. Sorria-lhe o ceu nos labios; ondeavam os
cabellos em tranças d'ouro soltas á briza; e os olhos azues, aonde amor
suspira, oh! quem podéra vencel-os depois de vencidos por elles! Delgado
cinto aperta-lhe as roupas no corpo esbelto. O veu de tisso bordado ora
folga livre com o vento, ora desce em pregas graciosas sobre o seio
palpitante. Ao raiar da alva tinha saido. Os pés, como os da corsa
gentil, que a acompanha, fogem tão leves, que mal trilham os musgos das
fragas na serra ingreme. As rozas accendem o rubor na face assetinada
desmaiando os lyrios. Boninas e cecens tecem a coroa silvestre pousada
na fronte. Ajoelhou á cruz solitaria, e a oração matinal subiu casta e
pura do coração ao throno do Senhor, no meio das fragrancias da aurora.
O vestido branco desenha confusamente as fórmas, e visto de longe
fluctua nos vapores da madrugada. Dir-se-hia visão celeste que os raios
da primeira luz vão desvanecer. Ella a chegar, e um cavalleiro a correr
do lado opposto. O açor do Douro remata-lhe o capello de aço. É D. Moço
Ansures. Ajoelha a seu lado e juntos offerecem a Deus as premicias do
amor.

--Voltais logo? perguntou a donzella corando.

--Ao cerrar da tarde! responde mettendo-a na alma com o apaixonado
olhar.

--Tão tarde!?

--Quereis que fique? Mas o voto que fiz?!...

--Não! Mas!...

--Ao cerrar da tarde, vivo ou morto, estarei aqui!

Separaram-se. Elle despediu o cavallo pelas gargantas da montanha, ella
seguiu-o com a vista, saudosa até desapparecer por traz do ultimo
outeiro.

Porque chora a bella Auzenda? O que lhe diz o coração? É por isso que a
donzella scismava sosinha ao cair do dia no seu balcão? Seriam receios
de noiva a combatel-a, ou saudades de namorada? Baixou a tarde,
fechou-se a noute, e quando as estrellas começavam a tremer na abobada
do ceu, recolheu-se suspirando. Quasi ao mesmo tempo soava a sineta da
atalaya. Donas, cavalleiros e pagens principiavam a entrar no castello,
attraidos pelos festejos. As armas reluzentes, as plumas de côres
diversas, os tabardos de matizes variegados deslumbravam, vistos á luz
dos fachos. O som das trompas, os latidos dos lebreus, os relinchos dos
cavallos, e as vozes dos peões animavam de mil ruidos alegres o quadro
do noivado. O conde Ordonho sobresaia no meio de todos pela estatura.
Era como o carvalho antigo abrigando os arbustos debaixo da sombra. O
seu brado vencia o estrepito.

--Pagens! Escudeiros! Fazei honra! exclamava cortejando os
recem-chegados com a bocca cheia de riso.

Falta, porem, um homem na festa e com elle tudo falta. A ultima hora do
dia, segundo sua promessa, deveria tel-o trazido aos pés de Auzenda, e
com a noute cerrada não chegava!... Do lado das montanhas não havia
rebate de mouros. As almenáras apagadas não davam signal de inimigos.
Que motivo demorava pois o mancebo, quando o amor estava-o chamando tão
meigo e desejado? Porque se ausentára n'aquelle dia, em que tantos
estremos o convidavam a não se apartar dos bellos olhos que o prendiam?
Um juramento sagrado! Um voto! Promettera a Deus, para expiar aos olhos
de todos a união das duas casas, passar doze horas ajoelhado sobre o
tumulo de seu pae. Por isso deixára Auzenda junto da cruz de pedra ao
romper da aurora. Por isso as horas passavam e a saudade impaciente da
noiva as contava tão vagarosas!


III

Deus seja comnosco

Na sala de armas do castello soam mil vozes de jubilo. Que luz faisca
das malhas pulidas e que reflexos, que cegam, saltam dos dourados
capellos! Cavalleiros moços fallam de amores, inclinados sobre os
estrados das donas e donzellas. Violas e doçainas acompanham as coplas
dos trovadores. Mais adiante, em turbilhões de cem côres, em collos
ondeados e graciosos, giram e volteam as dansas, e o olhar furtivo de
alguns pares promette, em breve, dias semelhantes a mais de um solar.

Na vasta quadra apparelhada para o festim em quanto os convivas não
entram, o vento geme por entre frizos e laçarias dos delgados
columnellos. A lua, alta no ceu, entorna pelos vidros corádos das
frestas golphadas de luz branca. De repente as trompas quebram o
silencio. Avizinha-se, e já se reflete nas paredes, o clarão de muitas
tochas. Povoa-se a sala, innundada de luz subitamente. Os escanções
enchem as taças e fazem-as circular em roda. Saudes, acclamações, e
vozes crusam-se, trocam-se e voam em confusão jovial de um a outro
extremo da casa. D. Ordonho parece remoçado. Á sua direita senta-se
Auzenda. Da esquerda um escanho vazio aguarda D. Moço Ansures. Defronte,
em outro escanho, tambem vazio, estaria o pae do noivo, se podesse
deixar a sepultura. Cobre-o um veu de luto.

A meio do banquete as dansas tornam a entrançar os pares como grinaldas
vivas do festejo. Pelas portas abertas do alcacer enxameiam
incessantemente donas, cavalleiros e monges, convidados pela
hospitalidade quasi regia do rico-homem. As taças cheias de licor
espumoso correm de mão para mão. D. Ordonho, de pé, alça a sua, e com a
fronte erguida brada:

--Á paz dos christãos! Á ruina e confusão dos infieis! «Uma longa
acclamação responde á sua voz: «Assim findem todas as discordias entre
irmãos!»

Ainda não tinha pousado o vaso na mesa quando, voltando a vista, soltou
um grito. Os convivas olharam tambem e ficaram immoveis com as taças
suspensas.

No logar vazio destinado a honrar a memoria do pae de Ansures, appareceu
de repente um homem sentado. Vestia armas pretas com a viseira callada e
na cotta o açor bordado. Descalçando o guante direito, e empunhando a
primeira taça cheia, ergueu-a lentamente.

--Bem fallado, conde Ordonho! (exclamou.) Á paz da noute de S. João!..

Não bebeu, derramou o vaso, e o vinho, maculando a toalha, tornou-se
vermelho e vivo como sangue. No sitio em que pousou a taça uma malha de
ferro em braza queimou a alvura do linho. Alçou então a viseira. Os
olhos, as feições o os modos eram exactamente os do cavalleiro
assassinado havia quatorze annos; porem os cabellos e as barbas brancas
lembravam, que por cima do seu corpo passára o frio da sepultura.

Alguns dos que o viram desejaram fugir, mas, petreficados por um poder
occulto, não poderam mover-se. O horror gelava a todos.


IV

Enterro por noivado

Aqui Fr. Munio fez uma pequena pausa. Depois proseguiu:

Dava meia noute. A sineta da hermida repicou tres dobres compassados. Ao
primeiro as dansas estacaram. Homens e damas, suspensos e petreficados,
ficaram immoveis como estatuas. Ao segundo os sons emudeceram nas cordas
das violas e alaúdes. A ultima nota tremeu solitaria e reboou pelos vaõs
profundos das salas. Era surdo o sopro das trompas, e o canto dos
jograes transformou-se repentinamente em _dies iræ_ que retumbou. Os
cabellos erriçaram-se de horror. Ao terceiro dobre o castello tremeu e
vacillou dos alicerces, como se um terramoto o abalasse. Os eirados
jogaram, as torres inclinaram pendidas. E o cavalleiro negro? Ainda o
sino dobrava já tinha desapparecido. Que susto! Que pavor! Que immensos
clamores! Muitos intentaram fugir. Debalde! As portas, sem ninguem lhes
tocar, fecharam-se adiante d'elles. O portal maciço gemeu nos quicios e
cerrou-se por si mesmo. Mãos invisiveis alaram as dobradiças.

Ai noute de S. João, noute aziaga! Valiam reinos os olhos que por amor
de ti choraram; a alcachofra benta ardendo não brotou a flor de
esperança; o palmito symbolico, em vez de rozas e de fructos, só ramas
de cypreste esfolhou sobre o leito do noivado. Nos paços do conde
ninguem se entendia. Estava sobre elles o poder do inferno. O suor frio
borbulhava nas faces dos cavalleiros, e o tremor dos mais ousados fazia
tinir a espada contra a espora. De repente raiou uma pluma de fogo na
escuridão. Cresceu, alastrou-se e em breve as nuvens de fumo
enrolaram-se com as labaredas enroscadas nos grossos madeiros dos
tectos. Jesus! Acudi! O castello está a arder! Tudo isto se viu e se
obrou em um abrir e fechar de olhos. E as portas cerradas, e os eirados
tão altos, e o fosso tão fundo! N'este momento rompeu a lua outra vez o
toldo sombrio, que a velava, e o seu clarão pallido lançou como um
sudario sobre o rochedo talhado a pique, que se aprumava a curta
distancia sobranceiro ao castello. As aguas, rebentando ali á sombra de
antigos choupos, ferviam de encontro ás fragas, e despenhadas espumaram
batendo em cachões no leito da ribeira, que lá em baixo bramia
arremessada por entre a bronca penedia.

Aonde está D. Ordonho? Junto de Auzenda desmaiada! Com ella nos braços
por entre as chammas, que lhe crestavam o rosto, não correu, voou
baixando de andar em andar, até ao terreiro. Ahi, olhando, viu tudo
cerrado, as labaredas serpeando cada vez mais vivas e o castello pedra
por pedra quasi a desconjuntar-se. Os cavalleiros escondiam as lagrimas
envergonhados.

--Erusigis! Escudeiro!... A minha acha adamascada! clamou o senhor de
St.ª Olaia. Este pulso pode com ella. Nem diamantes a embotaram. Aqui
todos! gritou depois em grande brado.

Palpitou a esperança esmorecida nos peitos mais desalentados.
Ergueram-se as achas... Golpes de cem machados, rigor furioso de cem
robustos braços ferem a um tempo com ancia mortal a porta maciça e
chapeada. O roble gemeu, o ferro chispou fogo, os gonzos tremem... Mas
nas taboas nem signaes dos finos gumes. Os machados, estalando, lascam
até aos cabos. Por cima do ruido das pancadas e do alarido das vozes
rompem risadas altas. D. Ordonho volveu os olhos. Na coroa do rochedo
campeia o cavalleiro negro. As aguas espumavam por baixo dos pés do
corcel; a mão direita brandia um facho; a esquerda só peava com as
redeas o cavallo preto, quasi no ar sobre o abysmo.

--Conde Ordonho! Esta fogueira faltava á tua festa do S. João. Accendi-a
eu. Pago as arrhas da formosa noiva.

--Maldito!...

--Esquecias já D. Pedro Ansures, morto por ti ha quatorze annos?! Chegou
o dia e a hora das ultimas contas. O sangue dos teus vingará o sangue
dos meus. Cumpriu-se o voto de Inigo Lopes.

Ditas estas palavras, como se o inferno as soprasse, as chammas em vagas
furiosas investiram o castello por todas as partes. D. Ordonho ajoelhou.
No hombro tinha reclinado outra vez o lindo corpo de Auzenda sem
sentidos. As faces desbotadas da donzella tocavam o rosto queimado do
velho; as tranças de ouro misturavam-se com as madeixas brancas; os
olhos languidos, em que expirava a doce luz da vida, cerravam-se
mortaes.

--Castigai-me, Senhor! bradava o conde, chorando como creança. O sangue
verteu-o esta mão culpada.... Feri a cabeça do peccador saciado de annos
e de amarguras! Mas esta innocente! O que fez para acabar assim?...
Poupai-a em vossa justiça!.

Dizendo isto apertava a neta contra o coração. O que não daria n'aquelle
instante o senhor de tantos vassallos e castellos por alguns palmos de
terra livre, por uma respiração pura da briza nocturna, que nos serros
vizinhos refrigerava as miserias do escravo?

O conde ergueu-se de novo. As almas viris podem vergar um momento, mas
não quebram... As maiores dores calaram-se diante da sua dôr; o pranto
enxugou-se em todos os olhos; e os mais intrepidos estremeceram, vendo
passar muda e terrivel aquella vingança! Eil-o vai o velho fronteiro!
Nem capello de aço lhe cobre a fronte núa, nem arnez lhe veste o peito
descoberto. Leva porem a morte escripta no rosto. O sombrio clarão do
desespero reluz nas orbitas ensanguentadas. A voz emudeceu nos labios,
brancos e descorados. Deixai-o ir! É o castigo de Deus que se adianta!
Inclinai-vos! É o santo amor de pae que o inspira!

A aguia real não caiu logo. Varado o peito, sobe e perde-se nas alturas
para depois baixar inerte. Vai morrer longe da terra sobre as nuvens.
Que fogo ameaçador na vista immovel! Que fria raiva no vôo lento!
Guarde-se o falcão. Primeiro perderá a vida que o rei dos ares. Assim
era D. Ordonho!... A lua escondeu-se. A tormenta rugia ao longe. O vento
lastimava-se soturno. A distancia, nos outeiros e plainos, refletia-se o
clarão avermelhado do incendio. O fumo em rollos salpicados de faiscas
estendia-se como toldo immenso. As aguas e o furacão confundiam os
bramidos. Os relampagos lambiam a crista dos montes. O trovão estourava
em estampidos medonhos.

A aza negra da tempestade varria a face da terra.... Que vulto é
aquelle, que as labaredas rodeiam emoldurando-o encostado ao arco no
eirado da torre Albarran? Fogem-lhe aluidas debaixo dos pés as lageas
abrazadas e não recúa. Sobre a cabeça crusam-se mil centelhas e não as
sente. Ao lado estalam e desabam os madeiros com fragor, racham-se e
abatem as paredes, e não as vê! O temporal fustigando os cedros,
estronca-os; o raio, fuzilando, lasca os penhascos da montanha; as
torrentes, crescendo tumidas, inundam as margens como rios caudalosos.
Que escudo cobre, pois, aquelle homem que todos os perigos e horrores da
vida conjurados não o aballam? A desesperação! Que lhe importam ao
desgraçado as ameaças do ceu, ou as ruinas da terra? Esconde no seio a
peior das mortes. Morrera em vida. O castello de seus avós será o
sepulcro do ultimo descendente de uma grande raça.

Soltou por ultimo do peito um rugido immenso. A côr livida da ira
dava-lhe á face o aspecto de um cadaver. Encurva o arco, reteza a corda,
e a vista mede o espaço. Ai do que aparar o tiro! A seta só espera um
aceno para voar sibilando ao seu alvo....

Tres vezes estalou o trovão, e tres vezes um lençol de fogo jorrou dos
ceus abertos. Soa distinctamente o galope de um cavallo. As ferraduras,
raspando as fragas, fazem saltar as faiscas umas atraz das outras. Armas
brancas, capello sem viseira, no peito o açor do Douro. Será D. Moço
Ansures? Á claridade dos relampagos, á luz do facho sacudido pelo
cavalleiro negro, viram todos o corsel do mancebo ennovelado sobre a
aresta do precipicio, quasi a escorregar pelas rochas aprumadas. Cavallo
e cavalleiro arquejam suspensos de um fio sobre o abysmo. O que Inigo
lhe disse, o que elle respondeu, ninguem o ouvio. O vento bramia forte.
Pouco depois descortinava-se D. Moço enristando a lança meio corpo
debruçado para o precipicio, e o renegado arremeçando o facho ás aguas
para se rodear de trevas. O braço do Maldito alçou de subito a espada e
o golpe descia já... quando uma seta passa assoviando. O mancebo vio
então o seu inimigo rolar aos pés do ginete e logo apoz um corpo dobado
nos ares, resvalar, batendo nas pontas das rochas até se atufar
dilacerado e disforme nos cachões da nascente, que espirram a grande
altura espuma e sangue.

Do castello, no eirado fronteiro, uma voz cheia e vibrante levanta
brados de triumpho, e por momentos avulta a estatura gigante do conde
Ordonho, cosida nas chammas, immovel e magestosa, com os cabellos soltos
ao temporal. Depois abateu-se a torre com grande estrepito, as
quadrellas alluiram-se, as traves accesas remoinharam e cairam, e entre
os destroços, como em leito tranquillo, o velho guerreiro adormeceu do
somno eterno. Honra ao que morre amortalhado em suas armas e envolto no
seu pendão! Ao cabo de sessenta annos de pelejas o fronteiro sepultou
comsigo a orgulhosa raça de riba d'Ave, e do seu castello só ficaram de
pé aquella torre negra, que alem vemos, e a hermida aonde jazem os ossos
de Pedro Ansures.

--E D. Moço? perguntou Martim Paes.

--E Auzenda? acudiu D. Nuno.

D. Moço, cumprindo já de noute o seu voto, teve um presentimento, e,
cravando esporas no cavallo, despediu a carreira veloz por cabêços,
fragas, e alcantis. Já perto do castello, deu-lhe no rosto o clarão do
incendio e viu-o arder. Apertando o corsel, correu como louco, e só
parou quando o facho do cavalleiro negro lhe cegou os olhos. O que
succedeu então já vos contei. Apenas Inigo expirou, desfez-se o
encantamento. D. Moço buscou Auzenda. Encontrou-a, mas sem vida!
Levaram-a os monges á capella, puzeram-lhe na cabeça uma corôa de
cecens, e a terra comeu de quinze annos a formosura mais invejada das
Hespanhas.

D. Moço, desde esse dia, não viveu. A saudade matou-lhe a alegria, a
esperança, e a juventude. Nunca mais vestiu armas. O que iria pedir ás
batalhas? A gloria? Não tinha com quem a repartir. A morte? Para quê?
Não a sentia já no peito? A liberdade da terra do seu berço? Ai! Nem
essa ideia mesmo podia fundir já os gelos d'aquelle coração!... Sombra
do que fôra, o que fazia o desgraçado n'este desterro cruel, sem
affectos, sem amigos, sem consolações? Como o carvalho, que o raio feriu
na força do crescimento debruça os ramos mirrados e se torce e definha
até cair, a dôr e a memoria, verdugos implacaveis das existencias
desgraçadas, minavam-lhe a vida, seccando-lh'a na raiz.

Sobre a madrugada o somno pousava-lhe a medo nas palpebras molhadas de
lagrimas. Então a febre do delirio representava-lhe junto do leito a
doce imagem, que trazia no coração. Era ella! Via-a, como nos dias
ditosos. A mesma grinalda de flores do campo sustinha os cabellos louros
que fugiam em ondas; as mesmas roupas alvas desenhavam as formas
virginaes; nos olhos sempre a luz suave do amor, que o fizera tão feliz;
nos labios aquelle sorriso em botão, que se abria casto como a rosa. O
mancebo queria estreitar a visão querida ao peito, e acordava, chorando,
porque só abraçára o ar. N'este tormento agonisou por mezes até que
Deus, compadecido, lhe enviou a morte a um mosteiro humilde, aonde se
recolhera.

Quando o amortalharam, os monges acharam-lhe unido ao peito, sobre o
coração, um laço de cabellos; e no quarto de alva o frade, que ficára
orando a velar a tumba, contou depois que vira apparecer uma dama,
formosa como os anjos, e inclinar-se triste sobre o corpo. De dentro do
ataude saiu um braço, e ella, com a sua mão na mão do morto, passar-lhe
um annel no dedo e cingir-lhe a corôa de boninas que trazia, na fronte
descorada. Um guerreiro de armas negras, e de estatura descommunal, por
tres vezes lutou para romper o circulo luminoso, que a rodeava, e outras
tantas, vencido por braço invisivel, se prostrou com a face no pó do
templo. Eram as nupcias dos mortos, o noivado de Auzenda e de Ansures?
Era ainda a sombra de Inigo Lopes perseguindo na donzella o sangue
inimigo e a vingança contra o conde Ordonho? Altos mysterios de Deus.
Quem ousaria prescutar os segredos da sua justiça, e os prodigios da sua
clemencia infinita?!




O CASTELLO DE ALMOUROL[1]

CONTO DO SECULO XVII


I

--Ai, Virgem Santissima! Não ganha a gente para sustos! Não bastava esta
praga dos castelhanos, que vem ahi, dizem, um poder do mundo d'elles
pelo Alemtejo abaixo?! Ó sr. Romão Pires, d'onde elles estão aqui á
nossa quinta é muito longe?

--Não é nada perto, não, sr.ª Brizida de Sousa! Mas lá diz o adagio: aos
que muito correm quebram-se-lhes as pernas... Socegue. O sr. conde de
Villa Flôr anda com elles a contas e não é para graças.

--O sr. conde é muito bom senhor, bem sei, e de grande fama sempre ouvi
dizer... Mas se elle ficasse mal agora?

--Ficavamos nós peior, isso é verdade... Melhor o hade fazer Deus. Oh,
se meu senhor e amo fosse vivo!... Não estava eu aqui posto ao canto
como um estafermo!...

--Ora não diga isso por quem é. O sr. Romão já andou demais por essas
guerras e tragou bem maus bocados. Descanse, descanse, que o merece... O
que seria de mim sósinha n'estes palacios confusos, sem pregar olho ha
umas poucas de noites com medo... E que medo! Fantasmas e almas do outro
mundo! Ó sr. Romão Pires, diga-me: o demonio--salva tal logar--terá
poder de subverter comsigo no inferno corpo e alma uma creatura
baptisada e remida nas santas aguas?...

--Conforme! Se não estiver em estado de graça!...

--Credo! S. Braz e S. João! Meus ricos santos da minha alma, valei-me!
Subvertida em corpo e alma?! Deus de misericordia!... Sabe que mais?
Quero que me escreva já e já á sr.ª D. Magdalena, contando-lhe tudo
isto. Ella não póde consentir que a sua criada velha uma noite d'estas
desappareça nas garras do inimigo tentador do genero humano. Jesus!...
Diga-lhe que nos venha livrar d'este inferno, senão... eu cá por mim
fujo! Primeiro a salvação da minha alma...

--Tambem eu não gosto nada d'isto, sr.ª Brizida. Mas animo forte e
coração á larga. O demonio parece que entrou de semana comnosco, e, pelo
que vejo, não leva geito de nos querer largar. Desde que viemos para
esta quinta...

--Desde que viemos... diz muito bem! Olhe, Brizida de Sousa me não
chamasse eu, se depois da primeira noite não mettesse um bom par de
legoas entre o demonio e quem se présa de christã baptisada na freguezia
de Santa Catharina de Lisboa, nascida de paes catholicos, tementes a
Deus, e sem eiva, nem leiva de mau sangue!... Mas o amor, que tenho á
minha menina, coitadinha, tudo me faz supportar com paciencia... Espere!
Não ouviu bulha? Assim a modo de ferros arrastados pelo sobrado?

--Nada. Foi cadeira, ou banco deitado no chão lá em cima. De dia não é
que elles fazem das suas...

--É verdade. Guardam-se para a noite. Que noites, que eternidade de
noites, Senhor Deus de misericordia! Parece que nunca a gente lhes vê o
fim. E que me diz então a estas despedidas de maio e entradas de
junho?!...

--Não são de convidar, sr.ª Brizida! Velho sou, mas não me lembro de
anno mais carrancudo. Chuvas, relampagos, trovões e ventanias que levam
tudo pelos ares! Safa!

--E nós, coitados, n'este ermo, n'este desterro! Ai minha Senhora Santa
Barbara! se a tua serva e devota não deixa aqui os ossos, grande milagre
será. Escute!... Agora não foi engano!... Não ouviu risadas lá em cima
no vão das casas?

--Não é nada. São os rapazes do feitor jogando as escondidas.

--Pois, sr. Romão Pires, affirmo-lhe por minha alma, que em Lisboa,
quando minha senhora D. Magdalena me chamou e me disse: «Brizida, a sua
menina anda fraquinha e enfezada, e o irmão tambem, os phisicos não
acertam com o remedio, e fr. João entende que estas tosses do peito,
assim teimosas, não se despegam senão com mudança de ares. Bem sabe, não
posso sair da cidade por estes dias mais chegados--e é assim, coitada,
por causa da sua demanda--acompanhe-me os meninos, e conte que fico tão
socegada como se eu mesma fosse...» Quando me disse isto, e eu lhe
beijei as mãos pela mercê, se podesse adivinhar o que nos esperava aqui,
asseguro-lhe que me encolhia como a tartaruga na concha; e viesse quem
quizesse... Isto não é palacio, nem quinta, é um verdadeiro inferno!
Deus salve a minha alma!

--A sr.ª Brizida não diz o que sente. Vindo a sr.ª D. Maria e o sr. D.
Pedro, ninguem a arrancava de ao pé d'elles.

--Tem razão. Ninguem! A ella creei-a, mamou o meu leite, e sua mãe não
lhe quer mais, não, deixe-me ter esta presumpção... A elle vi-o nascer,
e os primeiros braços, que o embalaram, foram estes que hade comer a
terra. Tão pequeninos os conheci, e tão formosos e crescidos os vejo
agora, que não me posso costumar a crer, que um dia hei de ter o gosto
de os abraçar homens!... Quando me ponho a olhar para elles, parece-me
ás vezes que não póde ser, e que tudo isto é sonho...

--Então!? Elles fazem-se homens, e nós fazemo-nos velhos. Não ha
remedio. O mundo vae assim.

--Bem sei. Mas, não os acha muito delgados, muito afinadinhos? Dizem que
é da edade e do muito crescer, e que hão de encorpar depois. Deus
queira! São os negregados estudos, que me ralam o corpo e a alegria dos
meus meninos. A sr.ª D. Maria manhãs e tardes inteiras á almofada,
bordando de branco, de matiz, e a ouro. E com que perfeição!... Que
dedinhos de fada aquelles! E o sr. D. Pedro? É mesmo uma dôr de alma
vel-o dia e noite amarrado á banca dos livros, e que livros! Latins,
gregos, e não sei que outras trapalhadas de _retroricas_... Quem tem a
culpa de tudo, o culpado de tudo o que póde acontecer, é o teimoso do
sr. fr. João, que á fina força quer o sobrinho sabio. Depois que
falleceu o pae, (Deus o tenha em gloria!) não se nos tira de casa, e
tanto ha de quebrar-me a cabeça ao meu menino, que um dia treslê. Pois
olhe, sr. Romão Pires, vá com o que lhe diz uma ruim cabeça: mais vale
asno vivo, que doutor morto.

--O sr. fr. João, atalhou Romão Pires, aproveitando uma pausa da sr.ª
Brizida, é muito bom tio, e desde que morreu meu senhor e amo tem sido
um segundo pae para os meninos. Quer os sobrinhos prendados e de grandes
merecimentos. Não lh'o levemos a mal. Sangue illustre e bens da fortuna
possuem elles...

--Por isso mesmo! Não precisava atanazarmos tanto! Não m'os deixa
respirar. Mestres d'isto, mestres d'aquillo, musica para aqui, dansa
para acolá... latins, _pholosophias_, ai, que barafunda! Nem eu sei como
as pobres creanças não teem endoudecido. Cá por mim já o miolo ha muito
tempo me tinha dado volta, tão certo como chamar-me eu Brizida de Sousa.

--Ninguem aprende sem trabalho. O sr. fr. João não é nenhum nescio...

--Nem eu lh'o chamo. Deus me livre. Nescio?... No convento e na côrte
dizem que não ha outro doutor como elle.

--Pois então deixe-o, que bem sabe o que faz. Estes sobrinhos são a luz
dos seus olhos, e depois tão meigos, tão applicados...

--De mais, de mais, para a edade, sr. Romão Pires. Assustam-me. Não
parecem d'este mundo, nem d'este seculo. O sr. fr. João é muito
extremoso, e o que faz é por desejar o seu bem d'elles, mas, graças a
Deus, a casa é rica e não era preciso amofinar-me tanto os meus
meninos...

O dialogo de que acabamos de ser fieis e escrupulosos expositores, era
travado em uma antiga sala, vasta e pouco allumiada por estreitas
janellas, cujas vidraças de postigo mal deixavam coar o dia. Das paredes
em reboco pendiam farrapos soltos dos pannos, que as tinham forrado. Em
outras partes as colgaduras adheriam ainda aos filetes, e representavam
em suas pinturas desvanecidas figuras descommunaes, debaixo de arvores
anãs, e no meio de arbustos e flores monstruosas. Os tectos, cujas vigas
lavradas inculcavam a paciencia de um artifice do XV seculo, subiam a
grande altura, enegrecidos pelo fumo da immensa chaminé de pedra, ornada
de leões de marmore nas bases, e rematada com um brazão de relevo alto,
orlado de ramos de silvas e amoras.

O sr. Romão Pires, escudeiro de quasi setenta annos de edade, enxuto de
carnes, e amarello como uma cidra, erguia-se direito e aprumado como uma
das faias mais direitas da quinta. Nascêra e fôra creado desde a
infancia n'aquella casa, e não conhecera nunca outros amos senão D.
Vasco, e D. Magdalena. Acompanhára seu senhor, assim lhe chamou sempre,
em todas as campanhas da guerra da restauração, pelejando esforçadamente
ao lado d'elle, e assistindo aos cercos e batalhas mais notaveis desde
1642. A historia dos perigos, em que se tinha achado, e a narração das
proezas de seu amo, enfeitada de episodios e commentarios, serviam de
saboroso pasto aos serões da familia, obrigada a engulir como artigos de
fé todas as aventuras da nova «Tavola Redonda,» que a imaginação do
escudeiro entretecia na tela interminavel de sua cansativa Illiada.

A sr.ª Brizida de Sousa, que tão avexada ouvimos queixar-se das
apparições, era matrona de mais de cincoenta annos. Baixa, roliça e
risonha, suas faces lisas, cheias e coradas ainda tinham a frescura de
duas maçans rainetas. As feições, pouco accentuadas, e quasi infantis,
sumiam-se entre as roscas das nedias bochechas, e os seus ares beatos
brigavam na candura affectada com uma larga experiencia da vida. Toda
aquella pequena e buliçosa matrona respirava aceio, cuidado, devoção, e
azafama. Collaça de D. Magdalena, e casada com um dos caseiros mais
abastados do morgado, depois ama de leite da filha primogenita da casa,
enviuvára sem filhos, nem saudades do estado, resumindo todos os
affectos nos seus extremos pela fidalga, e na idolatria das duas
creanças, que trazia sempre na boca e no coração.

Trajava por costume roupas escuras. As toucas alvissimas, caidas talvez
de mais para a testa, e o córte dos vestidos á beguina, affirmavam o
programma da sua virtude inaccessivel. Supersticiosa, e com a memoria
recheada de orações, de visões, e de devotas crendices, o seu defeito
capital era occupar-se muito com as vidas alheias, enfiando um rosario
de conselhos a proposito de tudo, e mexericando, por indiscreta, amos,
criados, e hospedes, mas sem intenção ruim. Todos se encobriam d'ella,
quanto podiam, porém ninguem a aborrecia. Temiam-se da intemperança de
suas confidencias, mas confessavam a bondade do seu caracter, que era na
verdade excellente.

Romão Pires, tirando a estafada repetição de suas campanhas,
representava em tudo o opposto d'ella. Sério, como um santão,
embizourado, e quasi sempre com a aguda barba escondida na gargantilha,
se levantasse a vista e a curiosidade para os negocios dos outros,
cuidaria faltar a Deus, a si, e ao mundo. Sua boca era sagrada, e
segredo que lhe caisse no peito ficava sepultado n'elle profundamente.

Apesar d'estas qualidades contrarias e talvez mesmo pelas possuir, era o
conselheiro nato da sr.ª Brizida em todos os casos intrincados, e o
defensor convicto dos seus mêdos e indiscrições.--«Boa alma! Boa alma!
respondia aos que a censuravam. Tem o defeito de fallar de mais, mas é
uma santa pessoa.»--Brizida pagava-lh'o. Para escutar a milessima edição
das guerreiras epopeias do escudeiro, até fazia o sacrificio de
suspender a loquacidade propria!...

O sr. Romão Pires, amortalhado na eterna roupeta e n'umas calças côr de
pulga, esguio, comprido, e hirto, com um par de oculos de azelha montado
no cavallete do interminavel nariz, não desabotoava a seriedade do
rosto, nem dava ferias ao enfado chronico senão para sorrir á sua
comadre Brizida. Aquelles olhos verdes desbotados não se animavam senão
para festejar algum bom dito da matrona, cujas fallas assucaradas
contrastavam com a voz rouca e soturna do antigo campeão da
independencia portugueza. A predilecção honesta, mas decidida dos dois
um pelo outro, não escapára aos criados, e todos acreditavam que, cedo
ou tarde, o vinculo matrimonial ainda viria apertar mais estreitamente a
união de duas almas já tão intimas.

A quinta, em que residiam havia duas semanas, situada na margem direita
do Tejo, estendia as matas e charnecas até á ribeira, que separa Paio
Pelle da villa de Tancos, da qual a casa, construida sobre uma colina,
distaria pouco mais de dois ou tres tiros de espingarda. Era palacio
antigo, talvez fundado por meiados do seculo XIV, accrescentado, e
reparado pelos fins do XVI. As ameias, já derrubadas em muitos lanços de
muro, proclamavam a sua velha e legitima nobreza. Duas alas terminadas
por torres fortificadas em tempos mais remotos, saindo fóra do corpo
principal do edificio, formavam os lados do espaçoso terreiro, rasgado
diante da fachada, cujas doze janellas de architectura irregular olhavam
para elle. No terreiro se tinham jogado cannas e corrido touros nos
anniversarios festivos dos senhores.

A casa era antiga, como dissemos, e estava muito velha. Nas juntas e
articulações das pedras carcomidas cresciam tufos de viçosas
parietarias. Uma arcada sombria, sustida por grossas pilastras,
resguardava as entradas das duas escadas, que subiam em volta de caracol
até ao primeiro andar. Outra porta, por baixo do centro da arcada, dava
serventia por uma rampa para os subterraneos allumiados ao rez do chão
por agulheiros. No piso nobre corria uma fileira de salas nuas, frias e
tristes, lageadas de ladrilho. Sobre os corredores por onde o ar e uma
luz escassa a custo circulavam, abriam as alcovas suas portas
envidraçadas. Seguiam-se muitos aposentos, mais ou menos escuros,
crusados de passagens, de escadas furtadas, e de portas falsas, compondo
desde o andar terreo até aos vãos debaixo dos telhados, uma rêde
inextricavel, um verdadeiro labyrintho. A casa de jantar, forrada de
carvalho em molduras, prolongava-se á maneira de refeitorio entre dois
extensos corredores. Na extremidade de um d'elles baixava uma escada
para o jardim, na outra empinavam-se os degraus da escada, que ia para
os vãos, os quaes por cima corriam em largura e comprimento da casa. As
torres communicavam-se com o corpo do edificio por duas portas esguias e
abobadadas, aferrolhadas havia longos annos. Os eirados, meio abatidos,
vertiam-lhes dentro em torrentes as chuvas caudaes do inverno.

O jardim, ornado de canteiros e de poiaes azulejados, com um tanque de
pedra no meio, e um satyro hediondo entornando a urna desforme, creava
algumas roseiras e craveiros degenerados entre urtigas, papoulas, e
malmequeres bravos. As hortas mais cuidadas pegavam com as terras de
pão, cingidas de vallados altos, defendidos com pitteiras. O aspecto do
palacio era carregado de melancholia. Rodeado de solidão justificava em
sua tristeza as queixas, que ouvimos á sr.ª Brizida. Porque escolhera,
porém, D. Magdalena aquelle êrmo para abrigo dos filhos e dos criados,
quando tinha tantas propriedades mais alegres e reparadas aonde podessem
respirar, longe do bulicio da côrte o ar do campo?

D. Magdalena descendia da familia illustre dos Coutinhos Noronhas, de
que fôra tronco e progenitor o marechal Gonçalo Vaz Coutinho, senhor do
couto de Leonil, e meirinho-mór por el-rei D. Fernando na comarca da
Beira. Formosa, discreta e recatada, perdera seu marido, D. Vasco
Mascarenhas, mestre de campo dos exercitos de D. João IV e D. Affonso
VI, havia tres annos, e ainda não enxugára as lagrimas da viuvez. Em
edade de merecer e de acceitar requebros, tinha-se recolhido na sua casa
de Lisboa, aonde não recebia senão as visitas de alguns amigos antigos
da familia, guiando-se em tudo pelos conselhos de fr. João Coutinho, seu
irmão, grande sabio, e doutor em canones e theologia, o qual se
encarregára de dirigir a educação litteraria dos sobrinhos.

D. Vasco Mascarenhas, tão distincto pelo nascimento, como pelas
qualidades do caracter e do espirito, unira ás propriedades de sua casa,
já mui rica, o senhorio da villa de Paio Pelle e do castello de
Almourol, que sua mulher lhe trouxera em dote, mas quasi sempre occupado
na côrte com os negocios politicos e no serviço activo das armas, só
duas vezes visitára de fugida aquelle solar desamparado, que principiava
a cair em ruinas, entregando o grangeio das terras e a cobrança dos
direitos do donatario, com excessiva confiança, diziam os murmuradores,
á probidade equivoca do feitor Paulo Rodrigues, camponez avido e ladino,
que mais as disfructava como usurario, do que as geria como
administrador. Avisada de que o palacio e as fazendas se arruinavam
n'aquellas mãos viscosas, D. Magdalena resolvera ver por seus olhos o
verdadeiro estado das cousas, na companhia de seu irmão, fr. João
Coutinho, ficando para depois decidirem ambos o que julgassem mais
conveniente.

Outra razão serviu de estimulo para a partida dos filhos da casa,
dissimulada com o pretexto da necessidade da mudança de ares. Antigas
relações de parentesco ligavam a familia dos Mascarenhas com o segundo
ramo dos Noronhas, cujo opulento morgado possuia grandes bens na mesma
comarca, aonde existia o solar dos Coutinhos. O logar do Arripiado, que
tão viçoso beija as aguas do Tejo, defronte de Tancos, com dilatados
campos e charnecas, pertencia ao velho D. Nuno, cujo filho unico, D.
Affonso de Noronha, saira da côrte para o exercito do Alemtejo. D.
Affonso, illustre pelo berço, e já illustre pelo valor, vira crescer em
belleza, primeiro com assombro, depois com paixão ardente, sua prima D.
Maria de Mascarenhas, e não encobrira de seu pae o amor, que ella lhe
inspirava. D. Nuno confiou este segredo á ditosa mãe, e ella, não
podendo desejar casamento mais vantajoso, nem mais da sua escolha, antes
de dar o sim, quizera, comtudo, sondar disfarçadamente as inclinações da
donzella. Conheceu com alegria, que D. Affonso começára a apoderar-se
d'aquelle coração, que em sua innocencia principiava a balbuciar apenas
as primeiras e vagas aspirações de um sentimento, que não sabia definir
ainda.

Corria o anno de 1663. D. João de Austria, á frente das armas
castelhanas, tentára o derradeiro esforço, invadindo Portugal com
dezeseis mil soldados, e os nossos generaes, juntando as forças, mal
conseguiram oppor-lhe cinco ou seis mil. A cidade de Evora, que devia
ser um dos baluartes da resistencia, accommettida no dia 14 de maio,
capitulára, depois de pouco honrada defeza. Este revez aggravou os
receios, e as partidas de cavallaria inimiga chegaram a insultar
Alcacer. D. Sancho Manuel convocára immediatamente os officiaes a
conselho, e só um voto, o d'elle, approvára a conveniencia de ferir a
batalha, que as ordens do governo prescreviam como remedio extremo. A
pericia de Schomberg, temendo como inevitavel o desastre, viu n'elle o
ultimo precipicio da independencia; mas a feliz temeridade do conde de
Villa Flor, fechando os olhos á prudencia, applaudia o encontro decisivo
dos dois exercitos, como o unico meio, embora desesperado, de salvar a
provincia e o reino da sujeição estrangeira.

O povo de Lisboa, assustado, furioso, e alvorotado nas praças, assaltára
as casas de Sebastião Cesar, do marquez de Marialva, e de Luiz Mendes de
Elvas. A todas as horas se aguardavam noticias da marcha das tropas, e
todos tremiam. Um lance repentino podia sepultar para sempre as
esperanças de Portugal!

A filha de D. Magdalena, D. Maria de Mascarenhas, mais velha desoito
mezes do que D. Pedro, seu irmão, contava n'esta epocha dezesete annos,
e sem vaidade merecia ser admirada como uma formosura completa. Talvez
que o unico senão de tanta belleza fosse a sua mesma perfeição
irreprehensivel. No rosto, graciosamente emoldurado pelas luxuosas
tranças, confundiam-se os lirios e as rozas na mais mimosa frescura. A
bocca, fina e espirituosa, córada como um botão nacarado, breve como um
suspiro, quando o sorriso a animava, tinha uma expressão adoravel. Nos
olhos pretos, que as assedadas pestanas cobriam ás vezes de uma sombra
de enlevada melancolia, a luz serena raramente se inflammava, mas sua
tranquillidade languida deixava adivinhar, que se a paixão dormia ainda,
facil lhe seria, despertando, illuminar de subito e vivo fulgor aquellas
pupilas descuidadas. A mão parecia formada pelo modelo de uma estatua
primorosa. O pé estreito e arqueado pousava-se tão leve e elegante, que
a vista como que involuntariamente se alçava a buscar nos hombros as
azas da Silphide. A voz tinha condão seductor. A estatura, um pouco
acima de ordinaria, e flexivel como a hastea de uma flor, tambem se
dobrava como ella, parecendo que o esbelto corpo de melindroso não podia
com o doce peso da fronte, em que as mil graças da primeira enamorada
primavera competiam umas com as outras sem se vencerem.

As posições e os gestos em sua desafectada singeleza respiravam a
attracção, que o calculo debalde se esforça por imitar. Tudo desmentia o
arteficio. O requebro das maneiras, o imperio irresistivel da vista e do
sorriso, e a magia arrebatadora das fallas e do semblante, nasciam
espontaneos, prendendo os sentidos e a admiração. A formosura da alma
ainda era maior, se é possivel. O coração retratava-se na fronte
limpida, e os infinitos thesouros de ternura e de abnegação, que por ora
concentrava nos extremos de filha e de irmã, quando se abrissem a
affectos mais vehementes, promettiam todas as venturas ao amor ditoso. A
pureza mais casta, a da ignorancia sublime da infancia, vestia-lhe de
candura todos os pensamentos. O pejo era n'ella tão sensivel, que
affrontado não só faria corar o rosto, mas o corpo. Compassiva e
caridosa sabia conciliar a altivez do sexo com a brandura da indole a
firmesa da vontade. Os dotes do espirito esmaltavam as qualidades
moraes.

Talvez não houvesse na corte dama ou donzella tão instruida na lição das
boas letras. Os melhores livros de prosa e as obras mais acceitas e
castigadas dos poetas portuguezes, hespanhoes e italianos, escolhidos
por Fr. João, eram a sua companhia certa nas horas de repouso.

D. Maria presava em D. Affonso de Noronha todas as distincções, que o
exaltavam. Valia menos, porem, a seus olhos a illustração do berço, do
que a elevação do caracter e a fidalguia das acções, que em edade tão
verde quasi o haviam tornado um paladino. Não seria mulher, comtudo,
senão a confirmassem n'este juizo a presença insinuante do mancebo, a
gentileza do seu porte e a nobre expressão da sua phisionomia. Os olhos
da donzella, sempre pensativos, encontrando os olhos vivos e rasgados do
primo, aonde riam as illusões da vida e da juventude, nunca fugiam
d'elles, senão a furto, e as rosas mais accezas das faces confessavam o
que tentaria encobrir em vão se acaso soubesse dissimular. Nunca os
labios dos dois tinham soltado uma palavra, que revelasse o que sentiam.
Amavam-se. A alma de um trazia sempre gravada a alma do outro, mas só a
eloquencia da vista, indiscreta ás vezes, traira o segredo. D. Affonso,
não podendo por mais tempo calar a chamma, que o abrazava, tinha
declarado ao pae, momentos antes de metter o pé no estribo e de partir
para a campanha, que este amor encerrava todo o futuro de suas
esperanças, entregando-lhe a sorte d'elle. Sabemos que D. Nuno não
perdera a occasião, e que D. Magdalena applaudia o enlace proposto.

A chegada repentina dos filhos de D. Magdalena, da aya e do escudeiro,
com alguns criados velhos, colheu de sobresalto o feitor Paulo
Rodrigues. Tomado de subito o manhoso camponez, soubera disfarçar o
embaraço e as apprehensões, mas custara-lhe a conformar-se com a
presença dos amos na casa, que havia tantos annos estava costumado a
olhar mais como sua do que d'elles. Mandou varrer e aceiar á pressa duas
salas e algumas alcovas do andar nobre, para os hospedar, recolheu a
mulher e os filhos nos vãos do palacio, e ainda se lhe carregou mais a
viseira quando soube que a senhora e Fr. João Coutinho poucos dias se
demorariam atraz da familia.

No primeiro dia reinou profundo socego, mas na segunda noute, mal a
ultima pancada do sino batera as doze horas, romperam as diabruras nos
quartos da aya e de Romão Pires. Apagaram-se todas as luzes de repente
por si mesmas. Estalaram nos corredores risadas infernaes. Soaram ruidos
de ferros e cadeias arrastadas. Só ao alvorecer é que tudo desappareceu.

O escudeiro, lembrado dos antigos feitos, apesar do tremor, que lhe
sacudia os membros, quiz fazer e fez cara feia ao demonio. Na terceira
noute levantou-se da cama, engrolando Padres Nossos e Ave Marias,
petiscou lume, accendeu uma vela, abriu a porta de manso e saiu ao
corredor, quasi em vestido de banho, mas com a comprida espada nua
debaixo do braço. Depressa se arrependeu. Aos primeiros passos um sopro
forte apagou-lhe a luz, bramidos roucos e proximos gelaram-lhe o sangue,
e um clarão momentaneo e sulphurio mostrou-lhe, envolto no sudario, um
spectro descummunal e ameaçador.

Esta horrenda visão deu-lhe com os brios em terra; e, virando costas ao
inimigo, logrou refugiar-se no seu catre com a cabeça debaixo das
roupas, acto de valor, em que a sr.ª Brizida de Sousa o acompanhava
conscienciosamente havia muitas horas. Pela manhã os dous velhos
pareciam desenterrados.

O aposento aonde D. Maria de Mascarenhas dormia e uma criada, não foi
mais respeitado, e a donzella, transida de susto, contou em vigilia
continuada as longas horas, que medeiaram até ao amanhecer. D. Pedro
ainda padeceu mais. Acordando sobresaltado ao impulso de mãos brutaes e
no meio de escuridão profunda, sentiu-se arrancar do leito e balouçar
dentro das cobertas entre uivos e rizadas.

Paulo Rodrigues, pelas oito horas veio saber da saude dos amos, e,
ouvindo da sua bocca a lastimosa historia dos tormentos e perplexidades
nocturnas, contentou-se com encolher os hombros, e observou serenamente,
que em vida de seu pae, já tinham muito má fama as casas do andar nobre.

As noutes seguintes não foram mais tranquillas. Os espectros e duendes
tinham de certo reservado aquellas espaçosas salas, e os corredores,
para theatro de suas diabruras. Dir-se-hia até que o tempo conspirado
com elles os ajudava a augmentar o pavor dos hospedes. Rebentaram as
trovoadas de maio tão carrancudas e violentas, que os ceus se abriam em
relampagos, e a terra tremia com o rebombo dos trovões. As chuvas caiam
tão impetuosas que as estradas ficaram convertidas em leitos de
torrentes e as terras baixas em lagoas. O Tejo, cheio e empolado,
alagava as margens, e suas aguas batiam enfurecidas contra os penedos
sobre que se ergue o castello de Almourol, salvando por cima do caes em
cachões de espuma. Ao oitavo dia acalmaram-se as tempestades, mas
redobraram de força os maleficios nocturnos, com terror, e espanto summo
dos recem-chegados.

Avexados, tremulos e fóra de si, reuniram-se todos e determinaram mudar
a residencia para os aposentos do castello, que não tinham desabado
ainda minados pelos seculos e pela indifferença; mas o feitor, que
estabelecera n'elles uma filha casada, dissuadiu-os do proposito,
ponderando que as salas e os quartos do velho edificio dos Templarios,
alem de frios e de mais nus, que os do palacio, não eram menos
perseguidos de visões. Por horas mortas, exclamou elle, as almas dos
cavalleiros tornavam aos sitios, aonde tantos annos os corpos tinham
vivido. Nas guaritas de pedra, pelo adarve das muralhas, e nas salas de
abobada, espectros cobertos com o manto branco, ornado da cruz vermelha
da famosa milicia religiosa, appareciam repentinamente, e no silencio da
noute sentia-se o tinir das grevas e sapatos de ferro sobre as lageas e
ouvia-se a voz das sentinellas. Até raiar a aurora não se calavam na
sala de armas as vozes, as rizadas, e as blasfemias. Escutando esta
descripção horrifica, Brizida de Sousa e Romão Pires olharam
consternados um para o outro, e depois de se persignarem devotamente,
não querendo precipitar-se de Scylla em Carybdes, preferiram supportar
as travessuras menos estrondosas dos duendes da quinta. Escreveram
entretanto a D. Magdalena, pedindo-lhe que os tirasse d'aquelle
purgatorio o mais cedo possivel, ou que viesse sem demora em companhia
do Sr. Fr. João desalojar os espiritos diabolicos, cuja audacia zombava
da agua benta e exorcismos do Vigario de Tancos. Os dous honrados servos
confiavam que a grande sciencia do frade doutor e as virtudes do habito
de S. Domingos sairiam victoriosas com certeza da rebeldia de Satanaz e
da maldade dos seus accessores.


II

Em 1663 campearam ainda intactas as muralhas, as torres, e a cêrca
exterior da fortaleza reconstruida no anno de 1170 por D. Gualdim Paes,
defronte de Tancos.[2] Cinco seculos, passando por cima d'ellas, não
haviam desconjuntado as quadrellas gigantes, nem alluido o cimento
indestructivel, que mesmo ainda agora parecem desafiar a acção do tempo
e o braço infatigavel dos demolidores. A ordem do Templo, transferida de
Castro Marim para Thomar, a séde da sua victoriosa milicia, estendera
rapidamente pela Estremadura os membros robustos. Affonso I,
liberalisando-lhe doações e privilegios, e enriquecendo com largos
senhorios os monges soldados, confiára quasi exclusivamente ao seu valor
a guarda e defeza dos territorios conquistados n'ella. Ega e Soure,
Pombal e a Redinha hasteavam as cores do Templo. A Cardiga, Ceras, e
outras povoações, cobriam-se tambem com as dobras do famoso estandarte
bipartido[3]. As chaves das duas entradas da provincia estavam nas mãos
dos cavalleiros. Defronte da moderna Constança, na confluencia dos dois
rios, o castello do Zezere cortava o passo aos agarenos da Beira Baixa,
em quanto, surgindo do meio das aguas, o castello de Almourol fechava o
caminho aos walis do Alemtejo e da Andaluzia.

As ruinas, que vemos hoje debruçadas sobre o rio, contam aos que sabem
interrogal-as mais de uma pagina da epopeia portugueza. Assentada sobre
um ilheo quasi oval de rochedos sobrepostos, amontoados talvez ali
caprichosamente pelo impeto de violenta irrupção vulcanica, as elevadas
torres do velho castello, que as voltas do Tejo ora encobrem, ora deixam
descortinar de longe, erguem-se mutiladas e enegrecidas pelo halito
mirrador dos seculos. Grinaldas de heras penduram-se em festões das
ameias desmoronadas, ou se arraigam em tufos virentes nos intersticios
dos pannos rotos das muralhas. O arrojo d'aquelles penedos, tão
arremessados que o dedo de uma creança parece sufficiente para os fazer
escorregar com o muro que os corôa, para o leito do rio, espanta os
olhos sobresaltados d'aquelle equilibrio ousado e quasi milagroso.
Areias accumuladas, e alguma terra de alluvião formam o solo, aonde
cravam as raizes os choupos, os salgueiros e os chorões, cujos troncos
torcidos se penduram de cima das fragas até roçarem as aguas com as
ramas descabelladas. Piteiras enormes orlam em algumas partes os
penhascos aprumados, ou rebentam das fendas das rochas meio
precipitadas. Uma vegetação activa e luxuosa veste de verdura aquelle
cahos de moles immensas sustidas ha seculos no meio da ameaça constante
de uma quéda instantanea.

No anno em que passaram os successos, que refere esta veridica historia,
o aspecto do sitio era sim bronco e alpestre, como a natureza o formou,
mas a assolação não o havia visitado ainda, agravando-lhe a melancolia.
Do lado do occidente quatro torres circulares, levantadas como
sentinellas de granito a egual distancia umas das outras, alçavam as
frontes torvas e já tostadas do tempo. Entre a segunda e a terceira
rasgava-se a porta actualmente intransitavel do castello, com a sua
volta de ogiva e grossos batentes de castanho chapeado. No meio do
guerreiro edificio avultava a torre de menagem, e logo adiante, em curto
intervallo, outra quadrada tambem, com os eirados cingidos de ameias.
Uma janella ornada de lavores em ramos, aberta a dois terços da altura,
esclarecia os aposentos do segundo piso, em quanto da parte oriental
duas frestas do mesmo estyllo davam claridade á sala de armas. Cinco
torres guarneciam o lado do nascente. Ahi a muralha subia a grande
altura, acompanhando as sinuosidades do terreno. O caes ficava ao sul, e
o fosso natural, que rodeava os muros, agora cego de entulho, corria
profundo e despenhado. No interior da fortaleza, aonde tudo hoje são
ruinas e pedras soltas, enroscadas de ervas e de silvas, e aonde os
cactus silvestres brotam gigantescos, era o pateo espaçoso por onde se
entrava para os andares. Raras e esguias frestas allumiavam aquelles
aposentos, pouco espaçosos, mas enfeitados de altas e ricas laçarias. Em
1663 a obra da destruição principiava a annunciar-se apenas. Apesar de
nuas, as salas ainda conservavam sua bellesa severa, e nos eirados e
adarves, se não alvejava havia mais de tresentos annos o manto branco
dos templarios, se algumas heras, trepando, se balouçavam á mercê do
vento, e se as torres e muralhas mostravam já a côr adusta, que é para
os monumentos o que são as cãs nos velhos, um testemunho irrecusavel de
que viram e viveram muito, não se tinham esmorecido, comtudo, nem
apagado ainda nenhuns dos vestigios dos grandes dias de lucta. Almourol
no meio do Tejo, similhante a um titão com metade do corpo fóra das
aguas, ainda podia ameaçar forte e intacto, os que ousassem arriscar-se
ao alcance de seus tiros. Firme e inexpugnavel cuidava no vigor de sua
robusta velhice zombar dos seculos, como as creanças zombam dos annos,
bem alheio de suppor, que na transição da edade grave para a decrepidez
sua decadencia seria rapida, e que, espectro de granito, suas ruinas
diriam ás gerações indifferentes da nossa época, que eterno e grande só
é Deus!

Em uma das salas baixas da velha torre de menagem, toda de abobada, e
ornada de mobilia rustica, estavam assentados, um defronte do outro, os
dois ricassos da terra, ligados pelos vinculos do parentesco, e mais
ainda pelas raizes de interesses reciprocos. O feitor Antonio Rodrigues
ajudava piedosamente seu genro e consocio Pedro Lavareda a ingorgitar
copiosas libações de um vinho, que escaldaria outras goelas menos
estanhadas. Sobre a grande mesa de pau santo e pés torneados, que servia
de altar aos dois zelosos sacerdotes do Bacho d'aquelles contornos,
avultava um alentado cangirão de barro, bojudo, e cheio até á boca.
Principiára a anoutecer, e uma candeia enorme de tres bicos, similhante
a monstruoso aranhiço, allumiava a casa escassamente. Duas espingardas,
carregadas e engatilhadas, jaziam ao canto, promptas para servir á
primeira voz.

Antonio Rodrigues era corpulento, espadaúdo, e reforçado. Faces largas e
cheias, bastante roliças, pescoço curto e taurino, cabeça enterrada
entre os hombros, peito amplo e bombeado, e pernas grossas e firmes
denunciavam n'elle o vigor de um atheleta unido a uma saude
inexpugnavel. Inculcava apenas sessenta annos, mas os visinhos do seu
tempo punham-lhe mais dez sem receio de erro, e acertavam. Mas era uma
velhice verde e jovial, que não se inclinava ao peso dos annos, que o
trabalho não desfallecia, antes reanimava, e que promettia, assim viçosa
e robusta, chegar a um seculo completo, rindo-se dos catharros, dos
rheumatismos, e ainda mais da apoplexia fulminante prognosticada pelo
douto Esculapio, o licenceado de Tancos, seriamente amuado por nunca ter
de receitar nem um xarope áquelle cliente invulneravel ás chuvas, aos
frios, e a todas as temeridades, a que um mancebo se não atreveria
impunemente!

Antonio Rodrigues trajava á camponesa, com aceio, mas sem basofia. Gibão
e calças de baeta escura, carapuça de lã, e o inseparavel varapau
ferrado na ponta constituiam o uniforme do activo Triptolemo. Uma grenha
de cabellos grisalhos, crespos e bastos, descia a affrontar-lhe a testa,
pouco sulcada de rugas. O sorriso enroscava-se perenne nos beiços
grossos e córados. Conservava intactos ainda, e brancos de jaspe, como
os de um tubarão, todos os dentes. A barba baixava em andares sobre o
peito, e os olhos castanhos, pequenos, e maliciosos, afogados em
gordura, dir-se-hiam que espreitavam tudo, meio encobertos. A voz
aflautada causava espanto saindo d'aquelle corpo. Finalmente, o nariz
grosso e cravejado de botões vinosos, rubros como rubins, assumia
dimensões quasi phenomenaes. A expressão da phisionomia era dubia. O
observador no primeiro relancear apenas notaria a beatitude do comilão
repleto e do bebedor insaciavel. Attentando melhor, e, comparando o
olhar, o gesto, e o riso mudaria porem logo de conceito, divisando
debaixo d'aquella mascara de Sileno herculeo as feições moraes
significativas da astucia, do egoismo brutal e desentranhado, e de uma
cubiça incapaz pela avidez de transigir com a honra, com a consciencia e
com o dever.

Pedro Lavareda representava o antipoda de seu digno sogro e tio quanto
aos dotes physicos. Um hellenista contemplando-os, tomaria um pelo
alpha, e o outro pelo omega. O genro, magrissimo, quasi esqueleto,
assustava os que o viam com o receio de que um dia lhe saltassem os
ossos das tibias e dos femurs soltos das ligaduras. Braços de polipo,
terminados por mãos e dedos eternos, hombros agudos sobre os quaes o
fato dansava como posto em cima de um cabide, rosto comprido,
escaveirado, e macilento, acompanhado das melenas esguias de um cabello
ruivo e aguado, testa núa que chega quasi á nuca, peito e ventre
espalmados, olhos vesgos, tortos, encovados, mas vivos ou surrateiros,
boca rasgada quasi até ás orelhas, e beiços finos e desbotados,
compunham a lugubre, carrancuda, e exotica pessoa do lavrador mais
atilado, avarento e sem escrupulos d'aquellas immediações. Parecia fraco
e a desfazer-se; mas as pernas delgadas, como fusos, podiam andar
legoas, os braços escamados encobriam uma força alem do commum, e os
olhos vesgos só viam torto para os negocios alheios.

Retrato vivo do aspecto mortificado de um franciscano penitente, o
velhaco ria-se tanto para dentro como o feitor Antonio Rodrigues se ria
para fóra. Uzurario de nascença, hypocrita por indole e verdadeira
voragem de liquidos e solidos, digeria como um abestruz e bebia como um
areal. Quando conversava, sempre em fallas manças, sabia chamar a tempo
uns frouxos de tosse e umas lagrimas de defluxo, que o ajudavam muito a
engulir metade, e ás vezes duas terças-partes das palavras, e é inutil
accrescentar, que as palavras engulidas eram sempre as que o podiam
comprometter ou aproveitar aos outros. Quando o caso o requeria, Pedro
Lavareda, o valetudinario sadio, convertia-se n'uma cascata de prantos.
Tinha as glandulas lacrimaes devassas e chorava como um crocodilo. Ai
dos innocentes que se deixavam orvalhar e amolecer por elle!... Ficavam
quasi sempre sem camisa. No meio d'aquelle rosto afiado erguia-se um
promontorio immenso. Era o nariz adunco e aguçado na ponta, que descia
quasi a beijar o labio superior. Este nariz, delgado e membranoso,
rematava a semelhança que tinha aquella cara com o focinho da fuinha.
Esquecia notarmos que Antonio Rodrigues exercia com applauso geral as
funcções de procurador de dous conventos de freiras, de quatro
irmandades, e que seu genro accumulava com outros arrendamentos
lucrativos a arrematação dos dizimos e premicias da comarca.

--Os de Payo Pelle pagaram por fim? perguntou o feitor ao genro pousando
o caneco despejado em cima da mesa.

--Com lingua de palmo. Elles conhecem-me, sr. tio! respondeu Pedro
Lavareda com um sorriso avinagrado.

--Bem bom!... Sabes o que me dá cuidado agora, homem? É esta gente aqui
mettida. Tomara vel-os pelas costas.

--Pois acabe de os empurrar para a rua, que não deixam cá saudades!
redarguia o outro com meio sorriso acido.

--Isso é facil de dizer, mas... Ao cabo de tudo, Pedro, bem vês, os
donos da casa são elles!...

--Que vão comendo as rendas e que nos deixem. Tão más são ellas!...

--Hum! Podiam ser melhores... Esse é o meu receio. Trazemos isto muito
de rastos, Pedro, e alguma lingua ruim lh'o disse já ou lh'o ha de
dizer.

--Invejas! fallatorios!... acudiu o genro entre dous frouxos de tosse.

--Pois sim!... Olha, não seria melhor offerecermos um nadinha mais pelas
terras e ficarmos com ellas de pedra e cal, do que arrebentar-nos a
castanha na boca uma d'estas manhãs?!

--Nanja eu, tio! Sangue ninguem m'o tira á boa feição, e o dinheiro é
sangue...

--Mas homem!?...

--Deixe lá, sr. sogro, não se metta a abelhudo aonde o não chamam, e
deixe ir a agua ao moinho. Já alguem fallou em lhe levantar a renda da
alcaidasia?...

--Não.

--Pois não faça andar o carro adiante dos bois, e coração á larga. O que
for soará.

Houve um minuto de pausa. Antonio Rodrigues coçava a nuca com o
indicador e o dedo médio da mão direita por baixo da carapuça, e rufava
sobre a taboa da meza com todos os dedos da mão esquerda. As roscas da
barba sumiam-se-lhe na golla alta do gibão, e os olhinhos, homisiados
entre as palpebras meio cerradas, luziam vivos e scintilantes como os do
gato matreiro que espreita a presa. Pedro Lavareda, menos apprehensivo
na apparencia, limpava os olhos chorosos com um quadrado de panno de
linho, em quanto a unha tigrina de um dos dedos da outra mão raspava uma
nodoa conhecida e teimosa do calção sobre o joelho. Ambos meditavam e se
entendiam sem fallar. O feitor de repente levantou meio corpo de cima do
mocho de pinho em que se assentava, colheu o cangirão pelas azas,
sopesou-o por um instante, e emborcando-o, encheu os dous canecos de
louça. Levou depois o seu á boca, encurvando lentamente o braço, e
despejou-o em poucos sorvos, emquanto o sobrinho, coleando primeiro a
lingua pelos beiços, libou com mais vagar e com gestos de amador
consumado o nectar, que espumava na grosseira taça.

--Rapaz, isto não vai bom!... tornou Antonio Rodrigues com um suspiro.
Anda mouro na costa, que eu bem o sinto e cá sei os botões com que me
abotou-o. Esta gente de Lisboa aqui não gosto nada d'ella.

--Ora, tio deixe-se de scismas!... De que tem medo? A aya é uma tonta,
uma pêga douda. O escudeiro não passa de um espantalho de pardaes, e os
meninos.... leram tanto que tresleram. Mostre-lhes um campo de cevada
nascida de oito dias e verá se não lhe dizem que é trigo.

--Mas atraz da pêga e do espantalho tenho muito medo que venha o
milhafre!...

--Qual milhafre?!...

--O frade!... murmurou o feitor em voz abafada e com signaes de
verdadeiro susto.

--E então se vier?!... Lê no seu breviario! O Sr. Fr. João Coutinho sabe
muito de leis e de casos, mas de lavouras não creio...

--Nisso te enganas. É capaz de dar sota e az ao mais pintado!. Creou-se
no campo e administrou muito tempo os bens do convento.

--Ah! Ah!...

--E tenho meus longes de que, mais dia menos dia, ahi o temos pela prôa
com a Sr. D. Magdalena.

--Mau será!... rosnou entre dentes o sobrinho declarando com a unha do
polegar crua guerra a uma verruga, que lhe ornava a ponta do nariz. Máu
será, tio!.... Mas não havemos de perder o somno por isso. Dizia no
mosteiro, aonde me ensinaram, o padre mestre Fr. Hilario, que para todo
o genero de peccado deixou Deus remedio na sua egreja...

Houve nova pausa. Os dous olhavam um para o outro calados mas pouco
satisfeitos.

--Então que dizes, homem?!..

--Se o frade vier.... é pôl-o ao fresco, em vinte e quatro horas.

--Estás mangando, sobrinho?!.. Pôl-o ao fresco? O irmão da senhora, o
tio dos meninos?!...

--Tal e qual. Nem mais, nem menos!! Sacudil-o e depressa.

--Ora! Bugalhos, sr. meu genro!... Sacudil-o?!. Como?...

--Mettendo-lhe medo.

--Ao sr. Fr. João, que é rijo como ferro e valente como as armas?!.. Vai
dormir, Pedro, isso é somno.

--Sim sr., metter-lhe medo, porque não?...

--Com as almas do outro mundo, aposto, como tens feito á lambareira da
aya e ao nescio do escudeiro? atalhou Antonio Rodrigues com uma rizada
de escarneo.

--Com as almas do outro mundo, sim senhor!... Cuida que o frade não
foge?... Hade vel-o em camisa no pateo, mais branco do que os lençoes da
cama.

--Deixa-te de historias, Pedro!... As visões com o frade não pegam. O
que apanhas é algum tiro.... e olha que é caçador que não erra.

--Pois deixe-o ser. Fico por mim. Entregue-me o negocio, e verá....

--Emfim, lá sabes as linhas com que te coses... Mas toma sentido comtigo!
O frade é ladino, sei que vem desconfiado de nós, e tenho muito amor á
pelle.

--Socegue. Eu tambem não tenho odio á minha. Diga-me: se Fr. João vier,
aonde o mette?

--Aonde o metto?!.. Porquê?

--Preciso saber.

--No quarto verde talvez...

--Nada! Dê-lhe o quarto dos armarios.

--Mas!...

Houve outra pausa. O feitor olhava suspenso coçando sempre a nuca. O
genro ria-se para dentro, raspando a nodoa do calção.

--Tu não me dirás o que intentas fazer, Pedro? Tenho medo de ti e do teu
risinho.

--Pois não tenha. Hade tudo correr como um brinco, louvado Deus e sua
mãe Maria Santissima.

--Mau!... Se me resmungas nomes de santos temos maroteira e grande!...
Pedro!... Toma cuidado! Nem uma beliscadura, nem uma picada de agulha no
sr. Fr. João.... Não é por elle, é por mim. Nada de graças pesadas! Não
me quero ver na cadeia comido de pés e mãos. Leve antes a bréca as
terras.

--Ai, tio!.. Não se faça teimoso, e não esteja calumniando as minhas
intenções.. Valha-me a Senhora Sant'Anna.

--Mau! Tornas aos santos!... Que é isto?...

--São passos.

--E vozes... Chega á fresta e vê!

Pedro Lavareda obedeceu.

Um vento rijo e chuveirões puxados com força bateram-lhe na cara, apenas
abriu o pesado caixilho, e arriscou a cabeça para espreitar o que se
passava no rio. O devoto personagem recolheu á pressa o interminavel e
esganado pescoço, rosnou duas interjeições apimentadas, e, enrolando um
lenço por cima da gola do gibão, tornou a affrontar, porem mais abrigado
d'esta vez da furia do aguaceiro. Decorridos instantes de attenta
observação, metteu-se para dentro, cerrou o caixilho, e veiu sentar-se
defronte do tio, com os sobr'olhos e a bocca franzidos. Trazia estampada
no afunilado rosto uma verdadeira elegia.

--Então?!... disse o feitor já sobresaltado com a mimica tetrica do
sobrinho.

--Fallai no mau, apparelhai o pau!... É o frade!..

--Hein!? bradou Antonio Rodrigues, pondo-se de pé de um pulo e
enterrando a carapuça até aos hombros. O frade?!.

--Em corpo e alma! Escripto e pintado!... Tem razão, tio. Anda mouro na
costa.

--Vem a Senhora D. Magdalena?...

--Não. Vem elle só. Isto leva agua no bico, sr. meu sogro.

--Não te dizia eu, Pedro?... E agora?...

--O dito, dito. Contas com Jorge e Jorge na rua.

--Sabes que mais, homem? Vai-me cheirando tudo isto muito a chamusco.
Não gosto nada da vinda do sr. Fr. João assim com este segredo....
Receio....

--_Valaverunt galhetas_, sr. meu tio! como nós diziamos no convento!...
O caso está feio, e d'esta vez a raposa bem podia ficar sem rabo!..
melhor, porém, o ha de fazer Deus e sua Mãe Maria Santissima, minha
madrinha!... Primeiro do que tudo enxuguemos outro caneco. Este bom
vinho alegra a vida e faz crear alma nova. Bom! Agora, a pé! Vá receber
o sr. Fr. João, que ha de vir cansado e aborrecido da jornada.

--E tu?...

--Eu... Fico para pôr em ordem umas cousitas. Escute, meu tio! Dê ao sr.
Fr. João o quarto dos armarios. É essencial.

--Porquê?...

--Pela bocca morre o peixe!... Depois verá. Adeus! Não faça esperar sua
reverendissima e encommende-me nas suas orações á minha devota Senhora
Santa Anna...

--Mau!... Ahi tornas tu com a ladainha dos santos!... Pedro!... Olha
lá?.. Cuidado com a pelle do sr. Fr. João!

--Vá descansado, tio, não hade haver novidade. Vem ceiar?

--Venho.

--Até logo.

E os dous consocios e parentes separaram-se.


III

--Com que então solto anda o demonio por estes palacios confusos, e
afllictos nos vemos com as suas diabruras, Brizida de Souza!?.. Muito me
contam! Mau é isso!... E vossê que diz, Romão Pires? Parece ainda mais
pasmado do que esta boa velha!... Vamos lá, sr. Antonio Rodrigues,
diga-me: aonde é o quartel general de Belzebut? Ha de saber de certo. É
de casa!

--Eu, sr. fr. João!... Sei só que não se póde parar aqui da meia noite
em diante!..

--Ah! sabe isso!?... Ja não é pouco! Pois eu lhe digo: cuidei que sabia
mais. Acho-o tão roliço e anafado, que vejo que engorda com os sustos.

--O sr. Fr. João gosta de brincar, mas em passando uma noite aqui!...

--Ai, meu Jesus da minha alma! Anjo bento de Nossa Senhora
Apparecida!... É da gente botar a fugir, ou de perder o juizo! exclamou
a sr.ª Brizida, pondo as mãos.

--Então o sr. Antonio Rodrigues crê que esta noite haverá ensaio geral
de Satanaz e da sua côrte, para festejarem a minha chegada?... Muito
bem! Cá estamos. _Cor contrictum et humiliatum deus nom despiciet!_
Pelejaremos com as armas espirituaes, que são as melhores, e com as
temporaes, que tambem servem em certas occasiões! Mas como vamos de
ceia?.. No barco o mau tempo fez-nos jejuar, e sinto-me capaz de tragar
um carneiro assado! E o vinho, aquelle bom vinho de 1655, ainda haverá
por cá uma gota d'elle? Ha de haver. O sr. Antonio Rodrigues, o melhor
copo de Tancos e seus arredores, aposto que não está desprovido de
munições de guerra?

Antonio sorriu e coçou a nuca.

--A ceia está ao lume, e não se demora tres credos. Quanto ao vinho....
esteja vossa reverendissima descansado.

--Sempre estive. Diga-me, Brizida, achei muito pallida a sr.ª D. Maria.
Ella tem passado peior?...

--Não, sr.! Peior não. Mas, com o susto d'estas noites sem somno, a
minha rica menina tem perdido as côres. Ella é tão delicadinha, tão
fraca!.. Ó sr. fr. João, a menina não podia ler um nadinha menos, mais o
sr. D. Pedro, e respirar mais algum ar em Lisboa?

--Não pode, não senhor!... acudiu o frade em voz de trovão. Meus
sobrinhos não se educam para espantalhos de sala!... E vossê é muito
atrevida em se metter a dar conselhos aonde a não chamam!...

--Ai doce Jesus do meu coração! Que disse eu para ouvir uma repostada
assim?!.. Sabe que mais, sr. fr. João? Não sou moura, nem perra, nem
captiva. Pão em toda a parte se come; e se não fosse o amor dos meus
meninos, por esta (e beijou os polegares em cruz) que não aturava uma
hora mais n'esta casa!

--Está bom, Brizida de Souza, está bom! Não se inflamme. Sabe que a
estimo, que todos em casa lhe queremos muito.... mas não me toque n'essa
córda. Sei que me acusam de apoquentar os pequenos com os estudos, e que
elles não teem uma tosse, uma febrita, de que se não torne logo a culpa
aos meus livros!...

--«Vale mais asno vivo, do que doutor morto!» resmungou a velha ainda
irada e incorregivel.

--Mas eu é que não quero na minha familia asnos.... vivos, ou mortos,
mulher!--bradou o frade fazendo-se côr de purpura e sorvendo duas
pitadas com o ruido de um furacão..--Safa! Vossê é capaz de fazer perder
a paciencia ao proprio Job!... Bem! Não fallemos mais n'isto, e não faça
caso dos meus repentes.... Sabe que não sou tão mau como pareço e que
trago sempre no coração os meus dois rapazes...

--Sei! Sei! Por isso digo a todos: o sr. fr. João berra, esbraceja, é um
destemperado, mas passa-lhe logo. Cão que ladra não morde. Livre-nos
Deus de uns sonsinhos que não quebram um prato, mas que ferram o dente
calados....

--Obrigado pelo elogio!... ou antes pela boa intenção. Chame os
pequenos. A ceia ha de estar na mesa; e protesto que me atiro a ella
como Santiago aos mouros!.. Vamos.

A ceia correu farta e alegre, e Antonio Rodrigues foi homem de palavra,
regalando o hospede com algumas garrafas de vinho maduro, que F. João
proclamou rival do melhor que se podesse beber á meza de el-rei. As
proezas gastronomicas do erudito dominicano tinham assombrado o proprio
feitor, cujo estomago insondavel sepultava sem incommodo alimentos de
todas as qualidades, e se carregava de quantidades que eram o espanto e
maravilha dos que assistiam ás suas repetidas campanhas pantagruelicas.
D'esta reputação merecida Antonio Rodrigues viu-se obrigado a arrear
bandeiras. O padre mestre não comia, devorava, não bebia, absorvia!
Regando de copiosas libações cada iguaria rustica, absolvendo as
indigestas com um exorcismo culinario, fazendo desaparecer do prato as
menos pesadas com milagrosa rapidez, dir-se-hia que a fome iberica e
peninsular, a fome de dentes caninos e apetite insaciavel, tomára a
figura corpulenta d'aquelle frade, para realisar em Tancos uma
verdadeira razzia. Tudo tem de acabar, porém, e Fr. João, exalando um
suspiro, e cruzando as mãos sobre o volumoso ventre, deu a empreza por
concluida, murmurando com os olhos meio fechados, e a voz ainda
suffocada do esforço: _Deus nobis hæc otia fecit!_

O reverendo, na meia somnolencia em que se deixou ficar, recostado no
espaldar de couro da vasta poltrona, com as faces afogueadas, e o
barretinho de seda preta derrubado sobre a orelha esquerda, não
offerecia de certo a imagem dos piedosos e extenuados monges, que em
epochas de mais fé edificavam os fieis com o exemplo de sua vida frugal
e contricta. Parecia mais um hippopotamo encalhado, do que um devoto
filho de S. Domingos. Os instinctos animaes prevaleciam, e a fadiga de
uma digestão laboriosa fazia arfar aquella machina de mastigação
continua. D. Pedro e D. Maria contemplavam o tio com a admiração sincera
de creaturas delicadas, que semelhantes excessos não só confundem, mas
atterram. Brizida persignava-se e enfiava os burgalhos do seu rozario em
oração atribulada, esperando ver desabar de um momento para outro o
padre coloçal fulminado por um ataque apopletico. Romão Pires ainda não
podera articular palavra, embuxado com a vista da voracidade incrivel do
irmão do seu amo. Antonio Rodrigues, cujos olhinhos matreiros semelhavam
no brilho duas scentelhas, desfazia a nuca raspando-a desesperadamente
com a unha, e dizia comsigo, que o frade, medindo as forças pela
alimentação, devia prostrar um touro com um murro, e abrir um tigre em
dous, como o faria qualquer mastim faminto ao gato descuidado, que lhe
caisse debaixo das prezas.

--_Deus nobis hæc otia fecit!_ tornou a repetir Fr. João depois de uma
pausa de alguns minutos, recuperando a costumada viveza e
agilidade.--Podemos dizer com verdade que ceiamos como uns padres!..
Minha sobrinha! Não gostei de a ver tão triste. Que nuvem pesa sobre
esse coração? São receios, ou saudades?!.. Socegue que o hade ver são e
escorreito....

--Quem, meu tio? atalhou a donzella distrahida.

--Pois quem hade ser senão aquelle cavalleiro andante que se despedio de
nós e que hade voltar um dia d'estes coberto de louros.... Entendeu-me
agora?

--Oh, meu tio!... acudio ella fazendo-se vermelha como uma roza.

--Está bom! Está bom! Não digo mais nada.... Romão Pires sabe que os
castelhanos tomaram Evora, e que a estas horas hão de estar as mãos com
o nosso exercito?.. O que diz vossa sapiencia?.. Quem vence?!..

--Essa é boa, sr. padre mestre! Quem deve vencer! O sr. conde de Villa
Flor.

--Deus o ouça! Bom é ter fé!.. Mas!--E a larga fronte do frade
enrrugou-se aprehensiva, em quanto os sobrolhos descahiram a ponto de
lhe cobrirem quasi as palpebras superiores--_Deus super omnia_!
murmurou.

Seguiram-se alguns instantes de silencio. De repente a porta abriu-se
com estrondo, e a longa, a defecada pessoa de Pedro Lavareda entrou
impetuosamente pelo aposento, com os olhos espantados, as faces
contraidas, e os cabellos ruivos espetados, representando a imagem viva
do terror e da consternação.

--Os castelhanos!... Os castelhanos!... Elles ahi vem!...

A esta voz de pavor, e de immenso pavor, todos se acharam de pé, não
menos assombrados do que parecia estar o nuncio da nova atterradora.

--Os castelhanos!?.. gritou Fr. João, saltando da cadeira e empunhando
machinalmente um bastão enorme, especie de clava, que o acaso lhe
mostrou encostado a um canto.

--Os cas... te... lha... nos! gemeu Brizida, faltando-lhe os joelhos e
erguendo as mãos.

--Os castelhanos?! exclamou Antonio Rodrigues, arrancando da cinta a
longa navalha de ponta e de mola e floreando-a como uma espada, em
quanto Romão Pires sacudia da bainha a durindana decrepita e preguiçosa.

D. Maria, branca de cêra e silenciosa, encostou-se á mesa para não cair.
D. Pedro, pelo contrario, com o rosto mais animado, os olhos reluzentes,
e a fronte levantada, apertou o punho da pequena espada de côrte, e deu
alguns passos como se quizesse sair ao encontro do perigo.

--Os castelhanos?! tornou a bradar Fr. João. Ás armas! sr. Antonio
Rodrigues chame os criados!... Façamos de Tancos e de Almourol uma
segunda Aljubarrota!...

Dizendo isto limpava a testa inundada de suor, e fulo de raiva e de
impaciencia batia o pé como o corsel insofrido escarva o chão desejoso
de soltar a carreira.

--Mas não seria bom, meu tio, sabermos primeiro o que ha, quem deu a
noticia, e aonde estão os inimigos? observou D. Pedro em voz mansa e com
extrema serenidade.

--_Do manus!_ _Rem acu tetegiste, puer!_[4] gritou o frade sentando-se
commovido e ainda tremulo. Façâmos conselho! Sr. Antonio Rodrigues, em
primeiro logar: quem é e como se chama este correio de más novas?..

--É meu genro e meu sobrinho. Chama-se Pedro Lavareda.

--Ah! Ah!. Pedro Lavareda!?. Nome incendiario e perigoso em pessoa mais
secca do que um cavaco!.. Mas vamos ao que importa. Chegue á falla o sr.
Pedro.... Lavareda! Quem lhe deu a má noticia que nos trouxe?...

--Um almocreve do Crato, que saiu de lá a bom fugir!...

--E que disse o almocreve?...

--Que os nossos foram derrotados, que ficaram todos ou quasi todos no
campo, e que as guardas avançadas de D. João de Austria estavam a entrar
no Crato!...

--Ah! Parece-me carnificina de mais!.. E aonde se deu a batalha?

--Não m'o soube dizer.

--Hum! E o seu almocreve aonde está?...

--Partiu, caminho de Lisboa.

--Oh! E não sabe mais nada?

--Mais nada, sr. padre mestre.

--Pois sr. Pedro.... Lavareda, o seu nome queima!.. Quer um conselho de
amigo?...

--Se vossa reverendissima tiver a caridade de m'o dar!..

--Tenho sim, senhor. Mande passear o seu almocreve, durma sobre o caso,
como nós vamos dormir, e creia que amanhã acorda convencido de que
engulio uma peta mais comprida do que a sua pessoa, o que já não é
pouco.

Os olhos felinos de Pedro, se fossem punhaes, teriam varado o frade, mas
como o não eram, contentaram-se com a expressão humilde e hypocrita de
uma annuencia servil, ao passo que os labios franzidos arremedavam
soffrivelmente um sorriso boçal.

--_Macte puer!_ gritou Fr. João, batendo no hombro de D. Pedro. Tiveste
mais juizo tu só, do que nós todos!... Isto é mentira e mentira mal
armada. Os hespanhoes no Crato!... Uma batalha sem logar sabido!... Um
almocreve invisivel!... Meninos, soceguem! Tia Brizida, alma até
Almeida! Romão Pires, enfie-me na baínha esse eterno chifarote, espanto
e censura viva das espadas de hoje!...

--Então vossa reverendissima já não quer que ponha de aviso os criados?
disse Antonio Rodrigues, que tivera tempo de trocar algumas palavras com
o genro, colloquio, que apesar de curto, não escapara a Fr. João.

--Não, senhor. Deixe-os descansados! Bem bastam logo as almas do outro
mundo!... Sabe que mais? Sinto-me moido, e uma boa cama depois de uma
boa ceia é o melhor remedio para estas molestias. Aonde é o meu quarto?

O feitor esgueirou um volver de olhos interrogador ao sobrinho, que lhe
respondeu com um aceno quasi imperceptivel de cabeça, e, pegando em um
maciço castiçal de prata denegrido, precedeu a especie de procissão de
toda a familia até ao aposento, aonde o douto dominicano havia de passar
a noute. A porta abria-se no topo do comprido corredor do centro; a
camara de D. Pedro ficava-lhe á esquerda, e o pequeno camarim de Romão
Pires á direita. Mettiam-se de permeio dous quartos fechados, e
seguia-se a sala aonde D. Maria dormia, tendo ao pé o leito de Brizida
de Sousa. O aposento, aonde Antonio Rodrigues conduzia Fr. João, nada
inculcava de notavel. Era uma casa vasta, de tres janellas, duas de
peitos e uma sacada, cujas paredes abertas em partes conservavam ainda a
par de largos pedaços das colgaduras de couro, que em melhores dias as
tinham ornado, altos e grandes armarios de pau santo. Os tectos altos e
enegrecidos e o pavimento carunchoso, gemendo e estalando com o peso dos
passos, atestavam a velhice e o desamparo. Um leito antigo, enorme, com
sobreceu e cortinas out'rora verdes, um velador de pau santo arruinado,
e um contador, ainda mais antigo, completavam com tres, ou quatro
cadeiras coxas dos pés, ou mutiladas dos braços, a mobilia nada commoda,
nem opulenta. Cousa singular! N'este quarto, em que a destruição minava,
e esfarelava tudo, as unicas cousas intactas e bem conservadas eram
alguns paineis grandes, retratos de corpo inteiro de guerreiros, damas,
e monges, pintados a oleo, e mettidos em soberbas molduras de carvalho,
lavradas de talha alta.

O padre mestre rodeou com os olhos toda a casa, e perguntou,
sorrindo-se, ao feitor, se ella passava por ser tambem vexada pelas
almas do outro mundo. Antonio Rodrigues abaixou a sua immensa e redonda
cabeça, e Brizida benzeu-se devotamente.

--Bem!... N'esse caso é preciso estar armado e vigilante para a batalha!
Se escaparmos aos castelhanos do Crato, não quero que acabemos nas
garras dos trasgos e diabretes de Tancos. Sr. Antonio Rodrigues, faz
favor! Mande trazer para aqui o meu alforge, que ficou na sala de
entrada. Sr. Pedro Lavareda (exquisito nome (!)) é bom caçador por
certo, e hade ter uma espingarda de mais. Eu tambem gosto de dar o meu
tiro de manhã cedo ás perdizes e ás calhandras por essa charneca. Conto
levantar-me com o sol, e dar um passeio pelas fazendas, para tornar a
ver estas terras em que não ponho os olhos ha um bom par de annos. Para
não ir com as mãos abanando levarei a sua espingarda... Não a heide
tratar mal, descanse!..

--Essa é boa, sr. Fr. João! A espingarda, eu, e tudo o que mandar estão
ás ordens de vossa reverendissima....

--Muito obrigado!... Olhe não se esqueça de me trazer um frasquinho de
polvora.

O tio e o sobrinho sairam, e o frade, chamando de parte a D. Pedro e a
Romão Pires, e pondo as mãos no hombro de cada um d'elles, disse-lhes em
voz baixa:

--_Latet anguis!_ Anda aqui novello! Este sr. Lavareda, com aquella face
compungida de Longuinhos, parece-me fino como um alambre... Os dous,
elle e Antonio Rodrigues, o tio e o sobrinho, estão conjurados contra
nós... Porquê e para quê? O tempo o dirá. Olho vivo, pois, Romão Pires!
Se lhe apparecer visão, ou espectro, receba-m'o ás cutiladas. Eu cá
espero a pé firme os que vierem visitar-me, e a agua benta, que lhes
deitar, hade chamuscal-os de véras.... Muito bem!.. Ahi vem os dous
velhacos.

De feito o sogro e o genro chegavam, um com o alforge, e o outro com a
espingarda e o frasco. Fr. João fallou um pedaço com elles, sempre com a
boca cheia de riso, pedio uma candeia grande para se allumiar até pela
manhã, e despediu-se de todos, sem dar mostras da menor desconfiança.

--O padre prega-t'a na menina do olho, sobrinho! Toma conta! disse
Antonio Rodrigues com o rosto carregado.

--Veremos, sr. meu tio.

--Guarda-te de elle te pôr as mãos. É capaz de estourar um boi.

--Melhor o fará Deus!

--Boas noutes.

--Santa Anna e minha madrinha Nossa Senhora o levem na sua Santa guarda.

--Sentido! Nem uma beliscadura!

Em quanto os dous honrados camponezes conversavam em voz baixa no fim do
corredor, Fr. João Coutinho passava revista minuciosa ao quarto e
parecia ficar inteirado de que as paredes e os armarios não encobriam
portas falsas, nem os sobrados alçapões. Abrindo o alforge depois, tirou
de dentro um par de pistolas. Verificou a carga de ambas, renovou as
escorvas, e passando á espingarda, carregou-a com todo o cuidado,
metteu-lhe uma bala, e pousou-a engatilhada á cabeceira da cama. Feito
isto foi á porta pé ante pé, descerrou-a de manso, e em passo subtil
encaminhou-se ao camarim de Romão Pires, aonde se demorou. Á
volta--davam onze horas--achou tudo como o deixara, rezou pelo seu
breviario, e despindo só o habito, abafou-se, conchegou as colchas,
recostou a cabeça, e, decorridos instantes, os roncos assobiados de um
somno profundo annunciavam que tinha esquecido os castelhanos do Crato,
as almas penadas, e os virtuosos manigrepos ruraes, cuja lealdade não
julgára de bons quilates.

Teria repousado duas horas, quando despertou sobresaltado. O leito,
pesado e maciço, arfava, balouçado como um barco sobre vagas inquietas.
O frade entre-abriu os olhos. A vela do castiçal estava em um terço, e a
luz da candeia brilhava esperta. O quarto continuava deserto e
silencioso. Entretanto o leito não parára de dansar, e, facto mais
singular ainda! a roupa da cama fugia de vagar, sem apparecer mão, ou
braço que lhe tocasse. Fr. João deixou-se ficar, tomando sómente uma
posição que lhe consentisse saltar ao chão de um pulo para travar a
lucta com os duendes e spectros. Tinha as duas pistolas sobre o velador
á cabeceira, e a espingarda ao pé. Entretanto, apesar de animoso e
resoluto, o suor principiava a borbolhar-lhe na testa, e um calefrio
suspeito a correr-lhe a espinha dorsal.

--Isto não vae bem! Queria antes ruido, grilhões arrastados.... a scena
do costume. Esta calada e estes empuchões invisiveis.... sinceramente
sería de fazer tremer as carnes, se eu não soubesse!... Credo!.. Lá se
foi a roupa até aos pés da cama.... Não gosto da graça! Que é aquillo?
As pinturas andam!?.. Oh!...

Aqui poz termo ao soliloquio, e sentando-se na cama, com os poucos
cabellos, que lhe restavam, erriçados em volta da calva, com as feições
contrahidas e a boca pasmada, cravou as pupilas cinzentas e dilatadas no
painel, que lhe ficava fronteiro e que representava um cavalleiro da
edade média coberto de toda a armadura, mas com o rosto sem viseira e os
olhos ameaçadores. Aquella figura severa, como que destacada da moldura,
parecia mover-se por si lenta e lugubremente. Fr. João quiz duvidar do
testemunho dos sentidos, e convencer-se de que era victima de uma
illusão. Esfregou as palpebras, beliscou os braços para despertar a
sensibilidade, mas o retrato continuava a adiantar-se, e um sorriso
tetrico como que lhe franzia os beiços. Ao mesmo tempo os ouvidos
afiados do dominicano colheram, não sem grande pavor, o som amortecido
de ferros que rangiam, e um gemido longo e soturno, semelhante ao gemido
doloroso de afflictivo estertor.

--_Vade retro, Satanaz!_ murmurou saindo da cama cheio de terror. _Ne
nos inducas in tentatione!_

Apenas soltára a meia voz estas palavras, um sopro, semelhante a furacão
medonho, engolphou-se pelo quarto, e apagou de golpe as duas luzes.

Fr. João recuou até ás cortinas do leito, e sentiu vergarem-lhe os
joelhos, e fugir-lhe o animo. Estendendo a mão nas trevas machinalmente,
encontrou uma das pistolas pousadas sobre o velador, e os dedos
apertaram tambem machinalmente a coronha.

De repente um clarão sulcou a escuridade, enchendo o aposento de luz
sulphurea, e no meio de chammas lividas, surgiu e cresceu uma forma
gigantesca envolta nas dobras de sudario branco e fluctuante. Esta
figura descommunal, cuja cabeça era uma caveira, lançava chispas pelas
cavidades dos olhos, e acenava com os longos ossos de esqueleto. O frade
tremeu, e acudiram-lhe aos labios descorados as preces e os exorcismos
recommendados pela igreja contra os maleficios infernaes. Mas as armas
espirituaes não produziram effeito, e, apesar da perturbação momentanea,
tornou a tomar corpo no seu espirito a ideia de que podia ser aquelle
espectaculo uma visualidade, ensaiada para zombar da sua boa fé.
Revestindo-se, pois, de valor e decisão, apontou rapidamente ao vulto,
que tinha diante, a pistola, que não largara da mão, e disparou-a.
Observando que o tiro não causára abalo no phantasma, pegou depois na
outra pistola, e com pontaria mais segura desfechou o gatilho. Uma
risada estridente respondeu ao estrondo da explosão, e o spectro,
mostrando as duas balas, arremessou-as ao chão, aonde o padre mestre as
ouviu rolar. Logo em seguida o clarão sumiu-se de subito, espessas
trevas envolveram o quarto. Fr. João, quasi desmaiado, caiu em uma das
cadeiras proximas do leito, tolhido por um tremor geral em todos os
membros, e paralisado na falla e nos movimentos pelo mais profundo
terror.

Ao mesmo tempo as hostilidades diabolicas não eram menos activas e
violentas nas camaras dos outros hospedes. Romão Pires, apenas se
deitára, e escondera a cabeça debaixo da roupa, com premeditação pouco
em harmonia com os brios de suas falladas campanhas, sentio
apagar-se-lhe a luz, e puxarem-lhe pelos pés o magro e aprumado corpo
até o estatelarem de pancada e sem dó nas taboas do sobrado. O grito de
mêdo e de dor, que soltára estremunhado, teve em resposta um côro de
risadas em falsete. Brizida de Souza acordou espavorida ao frio gelado
de um verdadeiro regador de agua que lhe entornavam sobre a cabeça, e
saltando por a casa em roupas menores, e com a boca escancarada, para
bradar, era comida no ar por mãos pouco caridosas e nada leves, que de
empurrão em empurrão a levaram aos tombos até ao corredor, aonde veiu
encontrar em anagua o honrado escudeiro, tiritando de susto e com uma
das mãos em cada face esbofeteada pelos duendes, com vigor que bem
accusava uma força sobrenatural. D. Maria, encolhida e semi-morta de
pavor, não padecera senão o terror de ouvir estalar ao pé do leito
gargalhadas dissonantes, e arrastar ferros.

No quarto de D. Pedro, os trasgos haviam sido menos felizes, porque
tinham chegado mais atrazados. Dotado de animo varonil e reflectido,
sereno em presença do perigo, e pouco disposto a acreditar na
intervenção dos poderes infernaes, o mancebo, resolvera velar a noute
sem se despir, e com a espada nua ao lado, tinha-se entregado á leitura
de um livro novo, que em breve lhe absorveu a attenção. Feriu-lhe de
repente o ouvido a matinada das investidas no corredor e nos aposentos
proximos. Apagando a luz, e empunhando a espada, aguardou silencioso.

A sua porta abriu-se de feito, pouco depois, e pareceu-lhe aperceber
dous vultos na escuridão. Deixou-os adiantar, seguiu-os, e quando um se
debruçava sobre o leito vasio, e o outro, assoprando n'um buzio tirava
d'elle sons roucos e medonhos, caiu ás pranchadas sobre o musico do
Averno, ao qual o instrumento escapou dos dedos, e que, amedrontado,
principiava a revolver-se pela casa, gritando como um simples mortal
derreado por uma sova. O outro phantasma volveu logo em auxilio do
agredido, mas uma cutilada de D. Pedro, aparada no braço ao que pareceu,
deitou-o pela porta fóra como um vendaval, em quanto o companheiro
tomava o mesmo caminho, mas de rastos e gemendo.

D. Pedro, decorridos instantes, feriu lume, accendeu a vela do castiçal
e a candeia, e examinou attentamente o campo de batalha. Jaziam no chão
um buzio dos usados pelos ranchos da apanha da azeitona, um lençol com
lagrimas de tinta encarnada, e uma caveira de papelão pintada de
amarello.

O mancebo sorriu-se. Aquelles despojos eram o corpo de delicto e ao
mesmo tempo documento vivo da conspiração tramada. Algumas gôtas de
sangue, caidas no pavimento desde metade da casa até á porta,
provaram-lhe que um dos actores do drama nocturno retirara ferido e
assignalado. D. Pedro pegou no castiçal, e seguindo o rasto de sangue
pelo corredor, notou que parava no topo, aonde só existia uma parede
grossa, sem nenhuma saida apparente. Informado do que desejava
verificar, voltou atraz, e encaminhou-se ao camarim de Romão Pires. Á
porta viu duas figuras brancas ajoelhadas. Deteve-se um pouco até se
affirmar. A velha aia e o dorido escudeiro, ambos de joelhos, e ambos
transidos de medo e de frio, esgotavam um defronte do outro todo o
vocabulario de rezas e de interjeições atribuladas, sem se atreverem a
volver aos aposentos. D. Pedro, não podendo suster o riso, fallou-lhes,
animou-os, e, mandando-os acabar de vestir, passou a visitar a camara de
Fr. João.

O frade ainda jazia na mesma posição. Conservava-se quasi exanime na
ampla cadeira. Vendo entrar o sobrinho com o castiçal em uma das mãos e
a espada nua debaixo do braço, estremeceu, e esbugalhou os olhos, mas
não se moveu.

D. Pedro aproximou-se da mesa, accendeu a outra vela, e sem proferir
palavra examinou cuidadosamente o aposento. Nenhum indicio! O inimigo
triumphante não deixára despojos. Terminado o exame, poz o castiçal em
cima do velador, collocou a espada ao pé do castiçal, e, volvendo para
junto da cadeira, d'onde o tio, como paralysado, observava tudo
silencioso, disse-lhe:

--Mas o que foi isto?!..

Fr. João respondeu com um suspiro, e, correu a mão pela testa ainda
inundada de suor.

--Estas pistolas disparadas, estas balas no chão!.. Não me dirá o que
succedeu?!...»

Outro suspiro mais alto.

--Por onde entraram elles?...

O dominicano, que a vista do sobrinho ia reanimando a pouco e pouco,
meneou a cabeça com tristeza, fez um esforço para levantar meio corpo da
cadeira, e apontou com o dedo para o quadro, cuja figura vira minutos
antes soltar-se da moldura, e encaminhar-se para elle.

--Ah!... Foi por esta porta?... observou o sobrinho, pegando no castiçal
e correndo a luz por todo o quadro de cima abaixo. De repente exclamou:
Olhe?!

--O que? disse o frade, pondo-se de pé, mas tão abatido e tremulo, como
se acaso se levantasse convalescente de longa enfermidade.

--Venha meu tio, e veja!

De feito um dos enfeites de talha mais elevado movia-se como um botão
debaixo dos dedos do mancebo, e a pesada moldura, cedendo á pressão,
abriu-se lentamente.

--Ah!.. exclamou fr. João.

--Aqui tem a porta!... e o segredo de tudo.

--Velhacos! bramia o dominicano irritavel, recuperando repentinamente as
côres, a elasticidade dos membros, e a viveza dos olhos. Mas abaixando a
vista, deu com as duas balas das pistolas ainda no chão, e uma nuvem
torrou-lhe outra vez o rosto. Mostrando-as ao sobrinho narrou-lhe o que
succedera e ouviu da boca do mancebo a historia da sua lucta com os
duendes. Fr. João ficou mudo e suspenso por momentos, semelhante a um
immenso ponto de interrogação.

--Saiu d'aqui depois de carregar as armas?... perguntou D. Pedro.

--Cinco minutos quando muito. Cheguei ao camarim de Romão Pires.

--Foi o que bastou. Não mexeu na espingarda? Está certo?

--Como de te estar vendo.

--E metteu-lhe uma bala de calibre?

--Seguramente.

--Muito bem, quer vêr?

E D. Pedro, pegando na vareta, descarregou a arma, tirando as buxas e a
polvora. Da bala não achou noticia.

--Ah! tratantes!.. rugiu o frade, fechando os punhos, e rangendo os
dentes, plectorico de colera.

--Podiam atirar-lhe com tres balas aos pés em vez de duas! Tinham tido o
cuidado...

--De mas empalmar?! Sobrinho! Juro que hão de pagar-m'o caro!... Só
atazanados!

--Dá licença que lhe dê um conselho?...

--Dize, rapaz. Estás um homem, e tens mostrado valer mais, do que nós
todos.

--Se quer apanhar o rato na ratoeira, não faça bulha.

--Bem! Bem! _Do manus! Qui nescit dissimulare nescit regnare_, acudiu
fr. João, esfregando as mãos. Ah! patifes! O que elles se terão rido á
minha custa!...

--Deixe! Riram-se hoje? Amanhã chorarão! Bôas noites meu tio. Socegue,
que bem o precisa.




A CAMISA DO NOIVADO


I

    Assi que bem podem dizer deste rei D. Pedro, que nom sairom em seu
    tempo certos os ditoos de Solon, filosopho, e d'outros, alguns dos
    quaes disserom, que as Leis e justiça erom como teias de aranha nas
    quaes os mosquitos pequenos, caindo, são reteudos e morrem em ella,
    e as moscas grandes e que som mais rijas, jazendo em ellas rompem-as
    e vão-se.

                      Fernão Lopes. Chron. de El-rey D. Pedro. Cap. IX.

Houve tempo em que o monte hoje esquecido de Algoço, na provincia de
Traz-os-Montes, erguia a cabeça soberba acima dos outros logares. As
muralhas de cantaria grossa e as torres quadrangulares do antigo
castello, debruçadas sobre um precipicio despenhado, concordavam com a
melancolia do sitio e com as sombrias tradições, de que as memorias do
povo o entristeciam. Dos altos eirados, como do cimo de um ninho de
aguias, a vista, relanceando, abraçava toda a campina, mosqueada aqui de
arvoredos e soutos, rasa de urzes e charnecas além, e empolada mais
adiante em collinas, que ligadas, e mais ou menos suaves, se seguiam até
beijarem o cinto de cabeços alpestres, ultima barreira dos horisontes.
Ao sopé da montanha, aonde se abria o valle mais fundo, estrepitava uma
torrente. Era o Angueira bramindo entalado na bronca penedia do leito.
Mais ao longe, na coroa dos cerros, os pinheiros meneavam as copas
verde-tristes, e os ciprestes solitarios balouçavam ao vento as pontas
esguias. Por ultimo, ao largo, já quasi aonde não enxergavam os olhos,
recortavam-se de um lado os topes cinzentos da serra de Seabra na
fronteira castelhana, e do outro as cristas dentadas das alturas de
Nogueira, toucadas de gelos eternos.

De tarde, quando começava a escurecer, o nevoeiro, trepando das margens
do rio em cóllos deseguaes, enroscava-se como fumo nas quebradas, e
envolvia n'uma cortina de vapores os mais elevados cumes. Este veu
caprichoso, cujas dobras sacudia a briza, ora se despregava, deixando
entrever confusamente os vultos, ora condensado cerrava tudo em volta do
solar.

Affirmavam os velhos, que as horas de crepusculo e de nebrina eram
tambem as horas dos feitiços. Uma princeza encantada junto da fonte de
S. João guardava os thesouros enterrados de certo magico. Linda como as
estrellas, a maldade do encantador condemnara-a a arrastar-se todo o
anno em figura de serpente. Só na vespera do festejado santo, á meia
noite, quando as follias riam mais alegres na aldeia, é que o fado mau
se quebrava até ao alvorecer. Mal repicava a sineta do campanario, a
moura, banhando-se tres vezes na ribeira, e depondo sobre uma penha as
escamas luzentes, volvia ao antigo ser, resplandecendo n'ella a
formosura rara de uma belleza admiravel.

Assim a tinham visto alguns mais felizes assentada debaixo dos velhos e
copados ulmeiros á beira do tanque, meiga, contemplativa, e vestida de
branco, desnastrando as tranças com um pente de ouro, e cantando aos
espiritos do ar com tão maviosa voz, que se cortava o coração de a
ouvir.

Accrescentavam ainda, que da aldeia alguem a vira já inclinada sobre o
espelho da fonte, caindo-lhe as lagrimas em fio na agua. Uma corsa da
côr da açucena, esbelta, e veloz como a seta, acompanhava-a. Se áquella
hora qualquer lograsse fallar á moura antes de tornar á fórma de
serpente, alcançaria da bella captiva, que era fada, as primeiras tres
cousas que lhe pedisse; mas os acasos ditosos são raros, e em cem annos
pelo menos não havia lembrança de nenhum. A corsa velava, ao menor ruido
batia os pés, e desatava a carreira, e n'um instante desapparecia tudo,
como sonho, sem outro signal mais, do que certo fervor ligeiro nas
aguas, e uma leve nebrina por entre as arvores.


II

Nos dias d'esta veridica historia governava el-rei D. Pedro, chamado o
_Justiceiro_, e tres annos depois o reino parecia outro. Poderosos e
humildes, ricos e pobres, todos eram tratados do mesmo modo, quer
punisse, quer premiasse. Os bons sabiam que o rei os amava como filhos,
os maus tremiam diante da sua face, porque o castigo de suas mãos seria
vingador como a ira de Deus, e rapido como a impaciencia dos opprimidos.
No seu tempo a lei era de um só rosto e a pena não coxeava atraz da
culpa. Entre o crime e a expiação não se interpunham annos, promessas,
ou favores. Devedor honrado, o principe ajustava logo a sua conta a cada
um, e pagava-a immediatamente. Só aos moradores de Algouço, coitados! é
que ainda não chegára a boa sombra do justiceiro, mas assim mesmo
sentiam sua fé tão viva n'elle, que nas maiores afflicções a voz de
todos era sempre: «Valha-nos aqui el-rei D. Pedro!» Por fim valeu, e o
caso devia ser escripto com lettras de ouro pela penna d'aquelle honrado
e singelo chronista Fernão Lopes, mais poeta do que toda uma arcadia, e
grande pintor de vultos e de cousas.

Ainda então se aninhava a povoação de Algouço em volta do castello,
construido para a defender, e da egreja, que estendia sobre as campas a
sombra misericordiosa dos braços da sua cruz. Por ambas as encostas até
á corôa da montanha, aonde se erguiam as torres do solar com os engenhos
armados nos eirados, e as ameias sempre vigiadas, subiam as casinhas da
aldeia, pendurando-se, umas cingidas de verdura, outras negras e
arruinadas de velhice, estas mudas e desertas a desabar, aquellas alvas
e remoçadas dissimulando a pobreza com os ares quasi festivos!! «Deus
nos livre de tão mau senhor!» era o voto dos burguezes de Miranda,
compadecidos da escravidão dos moradores de Algouço, e ainda não diziam
desgraçadamente toda a verdade. Ali o suor de sangue regava os banquetes
da sala de armas e as pompas quasi regias do rico-homem. O pranto da
viuva e as lagrimas dos orphãos molhavam suas mãos, sempre alçadas
contra a miseria dos desditosos para destruir o tecto, que lhes abrigava
o berço, e revolver ás vezes até o chão sagrado do cemiterio aonde
repousavam seus paes, avós, e irmãos.

O mordomo trazia de cór os sulcos de cada arado, e o pezo de cada rez. A
vontade do amo e a cubiça dos servos deixavam mendigos á noite os que
tinham amanhecido remediados!

D. Sueiro descendia dos senhores de Biscaya. N'aquella raça o sangue
nobre confundia-se com a chamma infernal do espirito das trevas desde o
casamento de Diogo Lopes com a Dama-pé-de-Cabra. Verdadeira, ou
fabulosa, a alliança dos altivos barões com os demonios tinha sido
fertil em crimes. N'uma epocha, em que a lança e a espada cortavam as
contendas, calando as leis, e calcando os direitos, os cavalleiros de
Algoço excediam os mais ferozes na braveza, e na crueldade ferina. Vêr
correr prantos, e derramar sangue, para elles era um deleite. Pizar aos
pés dos cavallos as searas maduras, ou atassalhar nos dentes das
matilhas o rebanho, unica riqueza do lavrador, parecia o verdadeiro
objecto das estrondosas caçadas, em que talavam campos e vinhas a
pretexto de montear lobos e javardos. D. Sueiro foi o ultimo d'esta
familia impia. Tres esposas, em seis annos, haviam passado do leito
nupcial para o tumulo, sem nenhuma lhe deixar penhor de tão mal agourada
união. Rosas pallidas, a melancolia d'aquelles muros, desbotando-as em
flor, fanava-as logo? O segredo não transpirou dos labios gelados das
victimas; mas sabia-se que os sorrisos do amor nunca lhes tinham
alegrado a vida. Desceram ao sepulcro, tristes e silenciosas como
existiam d'esde o dia em que haviam entrado aquellas sombrias portas. D.
Sueiro não soltára um suspiro! Se uma lagrima congelada n'aquelle
coração de marmore veio tremer na palpebra, essa lagrima fundia-se
queimada pelo orgulho. O povo accusava-o. A nodoa do homicida
estampava-se na fronte maldicta. O crime das tres esposas fôra a
esterilidade. O ferro, ou o veneno, rompera o laço conjugal. A sepultura
quebrára o vinculo apertado no altar! Era calumnia? Era verdade? Quem
sabe! Mas as noites de Sueiro Lopes podiam espantar os mais ousados.


III

Tinha fama de grande monteiro o castellão. Mál o dia despontava, saltava
logo no cavallo, e a galope, por sarças e estevaes, por montes e
campinas, no meio dos caçadores, entre risos, juras e brados, corria até
á noite. Uma tarde, na primavera, levantou-se-lhe um veado quasi nas
terras de um colono, e a despeito das supplicas do velho, cães e
corseis, salvando valados, e calcando pavêas, arrazaram em minutos o
trabalho de mezes. Sobre as vozerias, latidos, e relinchos soavam, sem
cessar, os gritos de cavalleiro: Avante! Sus! Aboca! Tocavam buzinas,
estalavam lategos, o tropel, ennovelado desappareceu atraz da pista.
Garcia de Marnel, o dono do campo, fôra o melhor besteiro dos sitios. O
mais rijo arco dobrava-se, como vime, em suas mãos, e a seta da sua
aljava atravessara sempre o alvo. De avôs a netos esta robusta e
laboriosa raça lançára raizes profundas no solo, remido pelo seu braço.
Os mais fundos affectos prendiam-a á terra rôta e lavrada com o suor do
trabalho. Na choupana do pequeno casal tinham-lhe nascido viçosas as
primeiras esperanças, tinham-lhe alvorecido os castos amores da esposa e
dos filhos. No altar da egreja haviam sido abençoadas as promessas de
mutua ternura; e agora debaixo da cupula frondosa dos álamos, á sua
porta, o avô, no inverno dos annos, sentia-se renascer nas graças
infantis da neta, mimosa e unica vergontea, que sobrevivia dos ramos
decepados pela morte no velho tronco da familia. Garcia amava tudo isto
com o ardor calado, mas intenso das almas viris, retemperadas pelo
infortunio.

A pobreza honrada nunca lhe curvara a cabeça, nem o peso da enxada lhe
desfallecera o braço. A dor, ferindo-o tres vezes no mais vivo do
coração, a dor mesmo não lhe prostrára o animo. A esposa, por tantos
annos alegria e conforto de suas fadigas, tinha-o deixado a meio caminho
da vida para ir esperal-o na mansão de paz. Dois filhos, amparo da sua
velhice, orgulho da sua alma, ceifados em flôr seguiram a mãe, em quanto
o ancião desgraçado, só e de joelhos não via a seu lado no desterro da
vida, êrmo de consolações, senão a infancia fragil e graciosa de
Silvaninha, duas vezes filha, por que duas vezes era o sangue do seu
sangue. Inclinado sobre tres tumulos, e trazendo sempre diante de si as
sombras da morte, converteu-se-lhe a ternura, com que amava a neta, em
um extremo louco e quasi delirante. Só esta saudade, só este amor o
prendia ainda ao mundo, mas com tal encanto, que muitas vezes pedira a
Deus que lhe dilatasse os dias para não se unir aos que o chamavam do
ceu, senão depois de a ver mulher e feliz.

Quando Sueiro Lopes lhe pisou aos pés dos cavallos os fructos de um
anno, o sangue do velho, remoçado pela ira, pulou nas veias; as faces
cavadas coráram de subito, e os olhos despediram dois relampagos. Saindo
ao encontro do cavalleiro, a voz e o corpo tremiam, mas não de mêdo.

Aquelle campo era o dote da neta, e só por causa d'ella é que supportava
o peso aborrecido de setenta annos de fadigas. «Senhor! Senhor! dizia
elle correndo e clamando, tendes o atalho da esquerda! Ruim caçada
contra um velho e uma donzella!» O rico homem não respondeu. As matilhas
e os cavallos, precipitando-se, partiam á róda d'elle, envoltos em
nuvens de pó, e o afflicto lavrador, de pé e coberto, tinha lançado mão
das redeas do corsel.

Um brado rouco denunciou a raiva do senhor. Depois o látego, silvando,
cingiu o corpo do velho, em quanto o ginete fogoso empinando-se-lhe
ameaçou o peito com ás patas «Fóra! rugiu o cavalleiro. Eis a paga do
conselho!» Garcia desviou-se quasi cego de dôr, e Sueiro, cravando as
esporas nos ilhaes, voou á redea larga por cima das hortas e ceáras,
bradando: «Sus! Abóca!»

O açoute infamante não cortou o corpo, cortou a alma ao desgraçado.
Recuando para a porta, como o tigre, e medindo a distancia com as
pupilas inflammadas, poz os olhos com ancia no arco e na aljava. Um
rujido surdo expirava ao mesmo tempo á flôr dos labios. A vida do homem
orgulhoso e máu estava á mercê d'aquelle arco. Tomou-o e encurvando-o
ajustou a seta. O que no intimo peito diziam o desespero e a colera era
medonho. O rosto não o encobria. Ao apontar o tiro a vista ardente
elevou-se ao ceu. Pedia perdão, ou auxilio?

De repente baixou-a magoada sobre a casinha humilde. Uma voz fresca e
melodiosa cantava dentro. Duas lagrimas rebentaram então dos olhos
seccos do velho; os braços descairam. Quiz vencer-se e resistir, não
pôde. O arco fugiu-lhe das mãos, e a bocca murmurou:

«Fôra matal-a tambem a ella!» Enxugando depois as palpebras entregou a
Deus o castigo do oppressor.

Mas a desgraça entrára no seu campo com Sueiro Lopes.

O mordomo do castello veiu depois, e consumou a ruina. Desde que fôra
aviltado, Garcia não parecia o mesmo homem. A ferida occulta minava-o.
Falecia-lhe a alma e com ella os brios para o trabalho. Os visinhos,
acudindo ao choro da neta, vieram encontral-o morto debaixo de uma
oliveira plantada pelo mais novo dos filhos. A terra, dote da pobre
orphã, confiscada caiu nas mãos de um sobrinho do mordomo, e Silvaninha,
sem parentes, e protectores, teria morrido de frio e de fome se lhe não
valesse a caridade dos amigos do besteiro. Um deu-lhe a casa e o
sustento; outro vestiu-a; e muitos, captivos de sua gentilesa,
soccorreram-a, cada qual com o que podia. No entanto crescia a donzella
em edade e formosura; mas á medida que os annos corriam, o rosto pallido
e os olhos verdes entristeciam-se. Muitas vezes deslisavam-se-lhe pelas
faces as lagrimas e não as entendia. É que o pão da esmola, mesmo dado
com amor, sempre tráva na bocca do infeliz! Ao declinar do dia, olhando
para o tecto da casinha, de que fôra desherdada, apertava-se-lhe o
coração por medo tal, que tinha pena de viver, e que sentia saudades da
sepultura, aonde seu avô descansava, aonde todos os seus dormiam!


IV

Sete annos eram passados desde a tarde em que os moradores de Algoço
tinham lançado sobre o corpo de Garcia do Marnel os ultimos punhados de
terra. Sueiro Lopes, n'esse intervallo, tres vezes casado, e outras
tantas viuvo, cada vez se havia feito mais aspero e cruel.

Mal raiava a manhã as buzinas acordavam logo as solidões. Assim que a
noite se fechava, as frestas ponteagudas da torre de menagem,
illumminando-se, reverberavam o clarão das tochas do festim. Os gritos,
as risadas, as blasphemias da alegria ebria espantavam os que vinham
perto do castello. Os vicios do senhor avivaram-se com os annos. Os
deleites pareciam-lhe mais doces regados de lagrimas e de sangue. O
abutre já não empolgava só a vida e os bens dos villãos; abrazado em
ardor impuro cevava a sensualidade na honra das filhas da aldeia.
Rindo-se do temor de Deus, arrastava sem piedade pelo lodo de amores
infames a innocencia das mais formosas e a virtude das mais honestas. Um
sorriso, um olhar d'elle era como a fascinação do reptil. Por onde
passava, as flores mais frescas, e mais puras caiam desmaiadas.

Silvana contava deseseis annos. Mimosa e esbelta, o setim das faces
realçava a terna pallidez, que revestia de tanto enlevo a brandura
contemplativa dos olhos verdes e transparentes, aonde a alma retratava
os mais suaves affectos. O vivo carmim dos labios abotoando as rosas da
bocca, redobrava os encantos ao sorriso meigo, tornando irresistivel o
requebro e a graça virginal da phisionomia namorada. A voz, fresca e
melodiosa, insinuando-se no coração, era o seu maior attrativo.
Recolhida pela caridade da aldeia, e desvalida, para quem havia de
levantar a vista ou a quem podia confiar o segredo, que a fazia palpitar
de esperança, quando se mirava no cristal da fonte? Vel-a e cubiçal-a
foi tudo a mesma cousa para o rico-homem. Elle, que a um aceno imperioso
sujeitava as mais isentas, podia suppor acaso que Silvaninha lhe desse o
não fugindo a suas caricias? Mas ás primeiras palavras o rubor do pejo
incendiou em chammas o rosto da donzella e nas pupillas de esmeralda
fuzilou a ira. Soltando as mãos envergonhada e offendida, furtou-se ás
garras do açor. A raiva enlouqueceu o cavalleiro. Um juramento
saltou-lhe da bocca por entre sorrisos lividos.

--Não serás esposa sem primeiro seres amante! Pedirás de joelhos o que
hoje engeitas! Sei atalhar os rodeios á corsa. Sei aonde o golpe fere
seguro!

Deus do ceu compadecei-vos de Silvana! Ella mal o escutou. Tremula e
soffocada não suspendeu a carreira senão á porta da cabana aonde morava
a velha Aldonça, conselho e consolação de toda a aldeia. As linguas
maldizentes affirmavam, que a velha não era decrepita, nem mendiga, mas
fada, e que sabia ler nos astros e adivinhar nas aguas. Contavam
prodigios do seu poder! Alguns chegaram a asseverar até, que ella e a
serpente encantada tinham nascido irmans, e se juntavam em colloquio á
meia noute. Quando a donzella appareceu, Aldonça, sentada em um penedo
diante da porta, acabava de espiar a roca; viu-a e sorriu-se. Enrolou
depois a estriga, puxou o fio, e á medida que o fuso girava, e que a
linha se enrolava, meneava a cabeça, como se estivesse vendo, ou
ouvindo, a muito longe dos sentidos cousa de seu gosto.

--Deus vos salve, filha! exclamou por fim. Sei o que vos traz assim
assustada. O açor cubiçou a rolinha? Havia de ser! Estava escripto lá em
cima, e o que ha de acontecer muita força tem. Conta-me tudo. O que te
disse? O que lhe respondeste?

Quando Silvana terminou, redarguiu a velha:

--Louvado Deus! Vem perto a hora e o dia. O destino pode mais que o
homem. A aguia real já a estou vendo voar. Dentro em pouco temos grandes
novidades, filha! Apesar de agudas, as garras do açor não hão de
ferir-te. Vai d'aqui á fonte da moura e dize que sim a quem lá
encontráres. Não te demores. D'onde se não espera vem o remedio. Has de
ser feliz!

Ditas estas palavras, abysmou-se em tão profundo scismar, que parecia
morta. Não quiz saber mais a donzella. Voou á fonte com a fé viva dos
quinze annos e da esperança. Ao pé do primeiro álamo parou e tremeu. Não
vira a serpente, nem a corsa encantada, mas vira um mancebo robusto e
gentil, filho do mais abastado cavalleiro villão das cercanias. Porque
lhe esmorece a ella de subito a vermelhidão das faces affrontadas da
corrida? porque lhe bateu o coração no peito tão atropellado? Tello
Vasques, o melhor besteiro depois da morte de Garcia do Marnel, era o
noivo que as raparigas das cinco aldeias visinhas disputavam com mais
inveja. Debalde! A vista d'elle não se baixára para nenhuma, nem a sua
bocca se abrira para dizer uma palavra terna á mais galante. Silvaninha
fôra a sua primeira e unica paixão. Combateu-a e calou-a por muito
tempo, com receio dos pais, mas por fim, não se podendo conter,
decidiu-se, e veiu ao logar pedir-lhe a mão. Ninguem sabia o segredo do
mancebo senão Aldonça, porque d'essa nada se escondia. E a donzella?...
Tinha-o adivinhado nos olhos, que buscavam os seus, e no proprio
coração, que, alvoroçado, lhe dissera pela primeira vez o que era amor.
Quando parou, Silvana sentira mais, do que vira, que Tello estava alli.
Sem forças para se adiantar ou para retroceder, subiu-lhe ás faces o
rubor em ondas, e a vista não ousou despregar-se do chão. O tremor
convulso que a agitava fazia-lhe arfar o seio.


V

Tello Vasques não estava menos enleado. Corou tambem, e a vivesa natural
dos olhos pretos esmoreceu meio offuscada pela sombra das pestanas.
Encobrindo que a esperava, quiz saudar Silvana; mas a voz negou-se-lhe,
e uma especie de deslumbramento turvou-lhe a vista. A mão suspensa, a
cabeça inclinada, o gesto cheio de timidez retratavam a vontade presa do
enlevo sem força para dissimular, e ainda menos para combater. Assim
ficaram por minutos. Immoveis, calados, contemplando-se, e fallando só
com o coração. A felicidade era tão grande, que não achavam termos que a
pintassem. Quem encostasse a mão ao peito do robusto besteiro,
sentindo-o pulsar agitado, logo conhecia que o amor o fizera seu. Quem
escutasse o palpitar ancioso do seio de Silvaninha não precisava
perguntar-lhe se tambem amava!

Em redor d'elles tudo era paz e serenidade. Por cima o ceu puro
recortando-se por entre a cupula frondosa das arvores. Ao lado a agua,
sussurrando preguiçosa, saltava em arroios mansos, ou sumia-se nas
relvas que aveludavam o chão. Mais longe, a pequena levada afundava-se
com estrepito pelas fendas musgosas dos penhascos debruçados sobre o
valle. Em baixo, no fim da encosta, uma verdadeira alcatifa de hortos,
de pomares, e de campos viçosos, contrastando com o arvoredo sombrio,
que entristecia ao largo a paisagem. Depois, a perder de vista, a côr
arida e melancolica das charnecas desatando-se até aos cabeços da serra,
cujos cimos o sol dourava despedindo-se entre nuvens. Uma brisa louca,
mas amena, doudejáva na campina, ramalhando as folhas, brincando com os
arbustos, empolando e acamando as ervas dos prados. Os rouxinóes nas
moutas rompiam em trinados os deliciosos gorgeios. A cigarra casava a
voz estridula com o coaxar das rãs. As sombras, delgadas ainda,
começavam a fechar-se sobre o valle, emquanto os raios do dia amorteciam
a pouco e pouco no viso dos outeiros, escurecendo o fino azul do
firmamento e o verde fresco das arvores e plantas.

Quando a ternura mutua os deixou respirar, a donzella, volvendo em si
primeiro, e desabotoando o meigo sorriso, ergueu o dedo em ar de
travessa ameaça e disse:

--Vós aqui, Tello! A esta hora, em sitio por onde poucos passam! Que
quereis que digam da pobre Silvana, que não tem senão o seu nome?...

A voz era queixosa, e não irada. O timbre harmonioso avivou no peito do
mancebo o ardor da paixão. Depois os olhos sorriam animados de malicia
tão innocente, que Tello leu n'elles mais do que esperança, leu amor. De
repente ficou outro. Pegando-lhe na mão, e beijando-a, a voz
soltou-se-lhe, e a vista, cobrando valor na vista d'ella, tornou-se tão
eloquente, tão avida de ternura, que ella baixou outra vez as palpebras.

--Silvana! exclamou arrebatado. Quiz Deus que nos amassemos, e que um
não podesse viver sem o outro. Meus paes consentem. Dás-me o sim?

O jubilo transformou a phisionomia da donzella. Depois o carmin das
faces sumiu-se, e as lindas pupillas, um momento radiosas, molhando-se
de lagrimas, lançaram sobre o rosto as sombras da mais resignada
tristesa. Sem retirar, ou entregar a mão, que o mancebo prendia nas
suas, a neta de Garcia do Marnel, esquecido o conselho de Aldonça,
respondeu singelamente:

--Tello, não vos darei já o sim; não quero arrepender-me. O filho de
Ayres Vasques, do mais abastado morador da terra de Miranda, não deve
escolher a sua noiva entre as donzellas mais pobres e desvalidas de
Algoço. Amo! Porque hei de negal-o? Mas pelo muito amor é que receio
acceitar. O que ha de trazer em dote a orphã sustentada pela caridade
dos visinhos senão lagrimas e saudades d'aquelle chão, aonde dorme sem
vingança, porque ninguem lh'a deu, ou pode dar, o velho que duas vezes
foi seu pai, e que por ella morreu de dôr? Não, Tello! Não pode ser!

Fallando assim, tremula e consternada, mal reprimia o pranto. O mancebo
admirava-a silencioso. As lagrimas deslisando-se, os olhos que a dôr
fazia irresistiveis, e a voz procurando encobrir com dissimulada firmesa
a magoa intima, por tal modo lhe realçavam a formosura, que o besteiro
não sabia se era anjo, ou fada, a que estava adorando ali captivo de mil
attractivos. Attraindo-a, depois, com impeto, e unindo-a ao peito, elle,
o homem forte, o filho de uma raça leal e rude, como o seculo em que
vivia, sentiu rebentar o pranto, e não se envergonhou de o deixar
correr.

--A tua vontade, Silvana, será a minha! disse por fim. Mas por amor te
quero, e não é justo que por amor te perca. O que vale dizer a bocca
não, se os olhos, mau pesar teu, estão dizendo sim? Dizes que o dote que
me trazes é de lagrimas e pobresas? Nunca fui mais rico. Estas lagrimas
piedosas da filha promettem venturas ao marido. E a puresa d'esse
coração é o teu maior thesouro. Hontem não podia viver sem ti, hoje
morria se te perdesse. Silvana!... Não n'o escondas! O senhor tentou-te
de amores, e jurou vingar-se dos despresos? Socega! Deus será comnosco.
O meu arco não erra. A seta vae sempre aonde a mando!

Não cedeu ainda a donzella, mas Tello não se enganára: o coração
desmentia a bocca. Afinal deu o sim, cobriu o rosto, e accêsa em pejo
desappareceu como se toda a aldeia a estivesse vendo. Ficou ajustado,
que no seguinte dia iria Tello ao solar pedir licença a Sueiro Lopes. Os
noivos sem ella não podiam receber-se na igreja de Algoço, e Silvana
desejava tanto que seus amores fossem abençoados, aonde o tinham sido os
de seu pai e seu avô, que o besteiro não ousou contrarial-a. Altos
juizos de Deus! Mal previa o orgulhoso descendente dos senhores de
Biscaia que por causa dos olhos verdes de uma donzella pagaria todas as
culpas da sua geração, todos os crimes da sua vida.


VI

Era domingo. Tudo repousava na aldeia. Sobre a tarde um cavalleiro,
correndo a redea larga, subia a ladeira torcida por entre os penhascos
que findava á porta do castello. Atraz, mas longe, uma vistosa quadrilha
de monteiros, de guarda-coz verde e cintos de couro, passou rindo e
folgando, em quanto os moços de monte sustinham das tréllas as matilhas
impacientes, cujos saltos e latidos formavam condigno acompanhamento aos
alaridos dos caçadores. No meio do prestito jovial uma azemola conduzia
atravessado em duas varas o corpo de um javardo, victima enorme e
cerdosa sacrificada depois de aturada fadiga e renhido combate, segundo
attestavam os golpes, com que suas navalhadas presas tinham descosido os
mais valentes e fugosos cães.

Soavam as buzinas a brava alegria das florestas, e o tropel ruidoso,
trotando, recordava as proesas dos sabujos mais atrevidos, e resava,
entre chufas e galhofas, a oração funebre do pingue eremita, que todos
haviam corrido sem parar desde a madrugada até ao pôr do sol.

D. Sueiro, que se apartára d'elles ao pé da fonte da moura, era o unico
serio e silencioso. Contra o seu costume, a trompa de prata pendia muda,
e nem o ardor da carreira, nem as iras do javali, varado pelo seu
venabulo, lhe arrancavam os sons festivos, que era sempre o primeiro a
levantar. Que magoa, ou que remorso entristecia o senhor de Algoço? Nas
trevas, nas horas atormentadas das noites sem somno, apparecera-lhe a
visão terrivel, com que na raça de Biscaia a sombra de Diogo Lopes
avisava a cabeça da familia de estar proximo o dia dos ultimos e tardios
arrependimentos? Ao pé da fonte apeiou-se, e, com a cabeça entre as
mãos, alongou a vista até aos montes fronteiros. O olhar vago e perdido
dizia que o espirito não se achava ali. De repente rangeram e estalaram
os ramos junto d'elle, e do meio dos loureiros saiu uma figura. Ao ruido
o rico-homem levou a mão ao punho da espada, inculcando sobresalto sem
receio. O mêdo nunca entrára n'aquelle peito inaccessivel á piedade.

--Quem és? O que buscas? bradou irado, medindo com os olhos torvos o
robusto e esbelto mancebo, que de arco frouxo na mão, e frechas passadas
no cinto, se lhe descobria subitamente.

Este não se alterou. Vendo perto de si o homem, que tantas lagrimas
accusavam, assomou-lhe ás faces morenas um leve rubor e as pupillas
negras faiscaram duas chispas. Sueiro Lopes apertou com mais força os
copos da espada.

--Sou o filho de Ayres Vasques, o de Miranda, e a vós buscava!

A firmesa do tom e a concisão da resposta desagradaram ao cavalleiro.
Brilharam os olhos mais sombrios, e um sorriso mau encrespou-lhe os
beiços.

--O que vem pedir o filho de Ayres Vasques ao senhor de Algoço, fóra do
seu castello, n'este logar deserto?

A ironia salpicava de escarneo as palavras pronunciadas com desprezo.

--Venho dizer-vos, redarguiu o besteiro, aspero e frio, que vive em
vossas terras a donzella que ha de ser minha mulher.

--Ah! Só isso?! E é bonita e moça a tua noiva? Por força a conheço
então. Como se chama?

Fallando assim, o tom e os modos de Sueiro estillavam tal veneno, que as
furias do ciume se levantaram no peito do mancebo. Conteve-se, porem, e
retorquiu:

--A mais formosa da aldeia. É a Silvana do Marnel.

--A Silvaninha? A perola de Algoço? Dal-a a um javardo de Miranda?! Pões
alto o pensamento, villão. Muito alto! Manjares de senhor não se dão a
servos.

Foi Deus, ou o anjo custodio, que suspendeu o braço a Tello. A mão
procurou a seta mais aguda no cinto, e os olhos chammejantes apontaram
no peito do rico-homem o logar do tiro. O cavalleiro percebeu, mas
disfarçou. Continuando a pungir o mancebo com mofas, proseguiu:

--Sabes, Tello, que pelos olhos verdes de Silvaninha dera eu o melhor
cavallo e o melhor arnez, e que um beijo d'aquella bocca pagaria o
resgate de um barão? Cuida o villão que eu havia de enterrar na sua
posilga a roza dos nossos sitios?

--Senhor! bradou o besteiro, tremulo de colera e de ciume.

--Fora! exclamou Sueiro Lopes, mettendo o pé no estribo e sacudindo o
látego no ar. Arreda! ajuntou vendo-o adiantar direito e pallido, com
mil ameaças nos olhos e no gesto. Arreda, ou por meu bisavô te juro, que
tantas noutes dormirás na cisterna do meu castello, que de lá te
arranquem cego e doudo!

--Veremos! articulou o besteiro retesando o arco. Só Deus sabe aonde vós
dormireis hoje!

O cavalleiro ja tínha cravado esporas no corsel, e começára a levantar o
galope, quando lhe chegaram aos ouvidos estas palavras. Escutando-as,
parou o cavallo de repente, e voltando rijo sobre Tello, sem baixar a
vista sobre elle, disse-lhe rindo affrontosamente:

--Villão! Não has de ir queixoso, olha bem! No dia em que Silvana tecer
de fios de ortigas, nascidas na sepultura do avô, duas camisas para mim,
dou licença que se chame tua mulher. É uma joia por um ceitil! uma das
camisas será o meu brinde de noivado, a outra desejo-a para me enterrar
com ella no dia seguinte. Até lá que não vos torne a ver a ambos!

A esperança acabou de fallecer no peito ao mancebo. Fez-se branco,
fugiu-lhe a luz da vista, e sentiu-se tão prostrado, como se o sangue se
lhe esvaisse todo. Quiz fallar e correr, mas os pés arraigavam-se ao
chão. A mão inerte não se erguia. A dor immensa tinha-lhe quasi
suspendido a vida. Quando volveu a si para olhar em roda, avistou ao
longe na planicie o vulto do cavalleiro maldito, e pareceu-lhe ouvir
estalar ainda as risadas do seu escarneo. Tello elevou então ao ceu a
vista toldada de lagrimas e caiu em um scismar profundo. Desceu a noute
sem elle dar por si; soprou o vento da serra nas arvores sem elle o
sentir; e as primeiras gotas da chuva, nuncias da tempestade,
orvalharam-lhe a cabeça nua, sem o despertarem da amargura. Ao rebombo
dos trovões é que acordou, e que principiou a afastar-se com passos
vagarosos do sitio, aonde o amor cercado de illusões lhe sorrira alegre,
e aonde deixava calcadas e desfeitas as melhores esperanças da
existencia.


VII

--O açor encontrará a aguia. Sinto-a já voar! Não chores, Silvana, serás
feliz. Diz-to quem o sabe! Tello!.. A frecha do teu arco pode descansar
na aljava. Esta noite, á meia noite, ide ambos ao cemiterio da igreja.
Ajoelhai e rezai sobre a sepultura de Garcia. Como as ortigas crescem e
estão n'ella viçosas! Quando sair o luar, Silvaninha, colhe-as a duas e
duas, e traz-m'as no regaço á fonte da Moura. Vespera de S. João ha de
torcer-se o fio. As duas camisas não hão de faltar. A semana que vem
será a do noivado e a do enterro. Ouvis dobrar o sino? A aguia não
tarda. Enxugai os olhos.

E a velha Aldonça, dizendo isto, ria-se com aquelle ar que fazia da
feiticeira a amiga de todos os afflictos. D. Sueiro puzera por condição,
que só daria o sim, se a donzella lhe fiasse e tecesse de ortigas da
sepultura do avô duas camisas.

--Queres acompanhar-me, Tello? atalhou a donzella suspirando.

--Por que não fugimos nós? acudiu elle a meia voz.

--Por que ninguem foge á sorte! tornou a velha, erguendo-se e sustendo a
mão alva e breve de Silvana entre as suas. Não vos demoreis. Á meia
noite, ao romper da lua, todos tres na fonte da Moura!

Era já escuro, e as estrellas começavam a scintillar. Suspirava a
viração por entre as folhas das arvores, que no cemiterio cobriam de
sombra as sepulturas. As relvas altas ensurdeciam os passos. A roza
silvestre entrelaçava-se com as verbenas e com os goivos. Ao lado da
egreja, entre rosmaninhos, erguia-se uma cruz de pau; tinha entalhado um
arco no topo. Ali repousava de setenta annos de edade e de fadigas o avô
da donzella. Segundo afirmára Aldonça, uma seára de ortigas vestia o
chão. Como o pranto se corre pelas faces de Silvana ajoelhada! Como a
oração sobe pura e fervorosa de seus labios ao regaço dos anjos, que vão
depor aos pés do Senhor! Mais afastado, Tello, tambem de joelhos, orava
com ardor; mas aquelle peito, menos brando, mistura com as preces vozes
de vingança. Por fim levantou-se a donzella, e beijando a terra aonde o
pó dos que amára se volvera ao pó, principiou a cumprir as ordens de
Aldonça. A duas e duas foi apanhando as ortigas. Quando acabava chispou
no outeiro mais proximo a labareda da primeira fogueira, e soou na voz
de bronze do sino o primeiro repique. A lua rompia de traz da serra, e o
seu clarão branco allumiava toda a campina. Era a hora aprazada. O
mancebo deu a mão a Silvana. Tinham ambos tantas cousas dentro d'alma,
que nenhum fallou em todo o caminho.

Quando chegaram não viram senão uma serpente, fugindo por cima dos
penhascos, e uma corsa branca pulando por entre as arvores. A velha
Aldonça appareceu de repente ao pé da fonte, e acenou-lhes. Recebendo
das mãos da donzella as tres regaçadas de ortigas, banhou-as outras
tantas vezes na agua encantada, pronunciando algumas palavras a meia
voz. Passados minutos tirou-as do tanque reduzidas a feveras finas, como
o fio que tece a aranha. Tres dias decorreram. Em todos elles não cessou
de girar o fuso da velha.

No quarto dia dobou-se a linha; no quinto metteram-se as meadas no tear.

Quando a semana pendia só de poucas horas, Sueiro Lopes passou a cavallo
pela choupana, olhou, e viu Aldonça á porta, cozendo com Silvana uma
tela tão branca e transparente, que deslumbrava.

--Guarde-vos Deus! disse detendo-se. Que estais cosendo com tanta
pressa?

E o cavalleiro não tirava a vista dos dedos afilados da donzella que
voavam sobre a costura.

--Estamos cumprindo um voto! redarguiu a velha sem levantar a cabeça.
Aquella é a camisa do noivado, esta é a camisa do enterro. Ortigas do
cemiterio nos deram o fio, e boas fadas nos teceram o panno. Em tres
dias estarão acabadas e em tres dias veremos tambem a noiva no altar e o
morto no caixão.

Ouvindo-a, o rico-homem mudou de côr e largou as redeas ao cavallo. A
velha, vendo-o correr, exclamou, meneando a cabeça:

--Corre! Que mais corre o destino! Ao que ha de ser ninguem escapa!


VIII

Os sinos do presbyterio repicam depois da missa. O povo acotovela-se á
saida do estreito portal, e mais de um moço airoso, de rosto bronzeado,
distrahe a vista furtiva e faz corar de jubilo a donzella, cujos olhos
cheios de reticencias recordam os juramentos da vespera. O ruido dos
pés, o borburinho e os alaridos das creanças, saltando pelo adro, animam
de ar festivo a scena popular. Em quanto o Reitor, curvo e triste, se
encaminha de vagar para a sua morada, estendendo a benção pelos aldeãos,
Silvana, sempre pallida, ampara no braço delicado o corpo de Aldonça. Os
villãos desbarretam-se diante d'ellas, como diante do pastor; as
mulheres acodem a saudal-as; e os rapazes, suspendendo as travessuras,
tomam-as por intercessoras de suas petições. Encostado a uma oliveira
antiga, Tello, de braços crusados, e com o arco a tiracollo, não
desprega a vista namorada da neta de Garcia.

Mas antes das duas trilharem o sitio onde ella as está esperando, um
homem de estatura elevada, semblante jovial, e gestos impetuosos,
apressando o passo, adianta-se, e chega primeiro. É simples o seu trajo.
Guarda-coz de ipre verde desenha o corpo robusto, e a monteira do mesmo
estofo, sem plumas, assenta com desgarre fragueiro sobre os cabellos
pretos, cujos anneis se debruçam sobre o cabeção da golla. Era de villão
o vestido, mas o garbo e o porte inculcavam condição mais nobre. Nas
pupillas inquietas, e por vezes desvairadas, retrata-se a indole
ardente, prompta na ira, facil nos arrebatamentos.

As sobrancelhas, densas e arqueadas, a nuvem que tolda a espaços a
serenidade da phisionomia, a par da tristeza, que lhe sobe em ondas
rapidas ao semblante, denunciando saudades intimas e incuraveis, avivam
as feições de um caracter afeito a dominar, de um coração ferido de
golpe irreparavel, de uma mão que no combate das paixões nem sempre ha
de conservar-se lucida, resultado de passados soffrimentos.

Afagando com a mão direita as compridas barbas, e concertando com a
esquerda o cinto, de que pende a adaga e uma trompa, este homem, que não
póde contar ainda quarenta annos, e que entrára na egreja sem nenhum dos
fieis se lembrar de o ter visto nunca, começou á saida a fallar com uns
e com outros, fazendo perguntas aos mais velhos. Rompendo depois por
entre o povo veiu collocar-se no sitio, aonde o descobrimos diante de
Aldonça e Silvana, tão proximo de Tello que este não perdeu palavra do
que disse. Sem saber porque, o besteiro, de ordinario cioso e assomado,
em logar de se affrontar, estimou quasi a ousadia do monteiro. Parecia
que um presentimento occulto lhe insinuava, que se decidia n'este
momento a sua sorte. Era tão grande n'elle a tranquillidade de animo,
como se a noiva adorada estivesse debaixo da protecção d'aquelle que
duas vezes chamára pae. A velha Aldonça, apenas divisara o hospede,
exclamou como rejuvenescida de repente:

--Filha! Não t'o affirmei? A aguia real saiu do ninho. A hora vem perto.
Ouve o que te disser, obedece ao que te mandar, succeda o que succeder.
Muita fé em Deus e na justiça de Elrei D. Pedro.

--Não é a fé que me falta, redarguiu melancholica a donzella, é a
esperança, mãe!... Elrei está longe e tão alto, que não podem vencer de
certo metade do caminho as queixas da orphã.

--Quem sabe, donzella? atalhou o monteiro, adiantando-se, e admirando a
formosura de Silvana. Pegando-lhe na mão, ajuntou:

--El-rei D. Pedro, filha, vê e ouve de longe. Conta-me tuas magoas.

Fallando assim, o tom da voz era brando. Tello, que o contemplava,
sentiu renascer a esperança, e insensivelmente socegou do maior cuidado.
Ora pallida, ora córada, a neta de Garcia narrava no emtanto a morte
dolorosa do avô, as lastimas da sua infancia, e os amores infames que a
perseguiam. As palavras pintavam a sua alma. Mais compadecida, do que
vingativa, procurava atenuar as crueldades do senhor. Quando terminou, o
desconhecido, sorrindo-se, e soltando-lhe a mão, disse:

--Descansai! Está perto El-rei D. Pedro. É como se vos ouvisse. Mandai a
Sueiro Lopes a camisa da mortalha, não a pediu de balde! Se o cavalleiro
fôr desleal, ou se vos quizer tirar por força, enviai-me este signal.
Deus e El-rei serão comvosco!

Ao mesmo tempo entregou-lhe a trompa de prata e virando-se para Tello,
accrescentava:

--É o vosso noivo?.. Merece-vos? Escolhestes bem?!... Não córeis,
Silvana! Se o besteiro fôr o que mostra em pouco ha de fallar-se d'elle
em Miranda. Adeus! Não vos esqueça!... Ao primeiro perigo, um recado e o
signal. O mais fica para mim.

Dito isto o monteiro sumiu-se por entre as arvores, e Tello estava aos
pés da noiva, que Aldonça animava, annunciando-lhe proximo o termo de
seus pezares.


IX

Quando Tello, ao cair da tarde do outro dia, trepava a pé a ladeira do
castello de Algoço, vinha descendo o mordomo, seguido dos homens d'armas
escolhidos. O mordomo era o cego executor da vontade de Sueiro Lopes;
alma negra do senhor, aonde alcançára com o braço deixára sempre
vestigios dolorosos. Passando pelo besteiro de Miranda, que o aborrecia,
o villico (era o seu titulo n'aquelle tempo) não pôde conter o sorriso,
rosnando por entre dentes: quantos vão que não voltarão! O noivo de
Silvana desprezou o riso, e continuou o caminho; mas á porta
despediram-o asperamente, respondendo que Sua Mercê repousava, e que
ninguem o despertaria para dar audiencia a um villão. A principio Tello
pôde sopear a ira, mas a pouco e pouco a altercação irritou-o, e
levantou a voz. Sueiro Lopes assomou de repente á porta. Inteirado do
motivo da disputa, virou-se para o besteiro, e perguntou:

--A que vens aqui?

--Trazer o que mandastes e pedir o cumprimento da promessa! redarguiu
elle friamente.

O senhor empallidiceu. Um estremecimento, que não soube vencer,
sacudiu-lhe os membros. Lembrou-se da tela alvissima e transparente, que
vira na choupana de Aldonça, e tremeu pela primeira vez da sua vida.
Depressa se recobrou e medindo o mancebo com indizivel escarneo,
replicou:

--Pedi-te duas camisas fiadas e tecidas com os fios das ortigas da
sepultura de Garcia, uma para o teu noivado, outra para a minha
mortalha. Palavra de cavalleiro não quebra! Se cumpriste, não hei de
faltar. As camisas?...

--Eil-as! acudiu o besteiro. Ortigas deram o fio e fadas teceram o
panno.

Era o mesmo que já lhe respondera Aldonça. A maravilhosa tela, que o
noivo de Silvana desdobrou diante de seus olhos, na finura admiravel bem
mostrava não ser obra de mãos humanas. Pegando na mortalha D. Sueiro
tremia. Sobre o peito, em lettras côr de sangue, viu as iniciaes de seu
nome e pondo o estofo contra a luz, retrataram-se-lhe as feições das
tres esposas que tinham passado ao tumulo do seu leito.

--Bem! exclamou. Silvana é tua se a achares. Quanto á mortalha....
Veremos esta noite quem a veste!

Não esperou por mais o besteiro, e partiu, apressando o passo, caminho
da choupana de Aldonça. Um presentimento vago advertia-o de perigo
incerto. A tristeza opprimia-lhe o peito; e todavia, a bôa nova, que
levava, devia alegral-o. A noite fechou-se escura. O tempo tinha mudado.
Rugindo no pinhal o vento arrancava por entre as ramas das arvores
gemidos lugubres. No céu apagavam-se as estrellas umas apóz outras
debaixo do pesado toldo de nuvens, e a lua encobria-se de todo por cima
do ultimo outeiro. Sem saber porque, sentiu-se Tello desalentado. Elle,
o melhor caminheiro dos arredores, o besteiro mais destro dos contornos,
deu por si mais de uma vez arrastando os passos e tremendo. Quando
chegou á choupana, achou a casa êrma e a porta arrombada, e acabou de
crer que os pressagios não mentem. Bastava olhar para dentro para
adivinhar uma scena violenta. A lampada ardia ainda junto do lar, e luz
mortiça deixava ver os escanhos partidos, os vasos de barro pisados, as
arcas espedaçadas. O pobre catre de Aldonça, despido de roupas, jazia em
um feixe. O mancebo parou, e de balde quiz ligar as ideias. O golpe
inopinado tinha-lhe quebrádo as forças. Nem o animo, nem a razão se
prestavam a ajudal-o.

Fôra rapto? Fôra vingança mais atroz? A mudez da cabana não respondia!
Saltaram-lhe então as lagrimas, e a dôr foi tão penetrante, que a não se
encostar caíra desfallecido. Occorreram-lhe as palavras de Sueiro Lopes,
e percebeu-as tarde. Silvana tinha sido roubada pelos servos do
Castello, e áquella hora entrava talvez as portas do Alcacer, que para
ella eram as portas do sepulchro. _É tua se a achares!_ dissera o
roubador. A quem iria Tello pedir justiça? Luctando com a agonia sentiu
que ia enlouquecer. Mas, louco, o que restava á donzella senão a morte
depois da infamia? No auge da desesperação, erguendo as mãos, bradou
atribulado: «Senhor! A vingança é mais vossa, do que minha! Não
embainheis a espada da justiça!»

No meio d'estas vozes pousou-lhe de leve a mão de uma mulher no hombro.
Olhou. Viu Aldonça. Um signal imperioso atalhou em seus labios o grito
que iam soltar. Guiando-o calada, a protectora de seus amores chegou a
um logar deserto, e apontando para um cavallo ajaezado, preso ao tronco
de uma arvore, disse-lhe rapidamente:

--Monta!

O besteiro obedeceu. Entregando-lhe então a trompa de prata, a velha
ajuntou:

--O mordomo de Sueiro Lopes entrou aqui e leva roubada a tua noiva.
Corre, que por tua felicidade corres, e não pares senão na villa de
Miranda. Busca os Paços do conde e apeia-te. Se te perguntarem quem és,
dize que procuras o senhor. Já o viste. É o monteiro d'esta manhã.
Dá-lhe a trompa, conta-lhe o succedido, e faze o que te mandar. Antes de
sol nado estaremos todos juntos outra vez. As duas camisas terão
cumprido o seu fado.

O mancebo, atonito, viu-a desapparecer, e largando as redeas, partiu
direito á villa.


X

Como o Douro vae fundo e impetuoso! Como se arremessa irado contra os
penedos do seu leito! Que trovões rebramam as aguas despenhadas em
cascatas contra as penhas, que lhe opprimem a furia da corrente! Como a
noute se cobre de luto quasi de repente de minuto para minuto! Aos
bramidos do vento responde o estampido longinquo da tempestade. Os
relampagos fuzilam sobre as eminencias.

Lá em cima, nos penhascos fragosos, que villa é aquella, cujas torres
negras estrellam vivas luzes pelas frestas ponteagudas? Seguindo a
margem do rio, Tello Vasques não sente fadiga; o brioso corsel devora a
distancia. Batia a hora de se alçarem as levadiças, quando o mancebo
atravessa pontes e estradas, enfia ruas e villas, e pára no terreiro,
defronte dos Paços do conde e da torre de menagem. Apeia-se, e sobe os
degraus a dois e dois até ao portal da primeira sala. Os guardas
intentam detel-o; mas sem voltar a cabeça, e continuando, responde:
busco o senhor! Ninguem o suspende. De corredor em corredor, de aposento
em aposento chega á sala de armas. Entre os cavalleiros, que passeiam,
divisa o monteiro desconhecido com o mesmo guarda-coz ainda.

Grossas tochas em armeis de ferro illuminam a vasta quadra. Corpos de
armas brunidas, achas, montantes, lanças e adagas entrelaçadas em
caprichosos ornatos enfeitam as columnas, cujos capiteis lavrados
sustentam os fechos da abobada. O monteiro, apercebendo Tello,
encaminhou-se para elle. O mancebo vinha tão soffocado, que pôde dobrar
apenas o joelho e offerecer-lhe a trompa. Foi preciso que elle sorrisse
para o besteiro narrar o successo, que o trazia áquella hora.
Concluindo, o moço ergueu as mãos, e com a vista inflammada bradou:

--Levai-me aos pés de El-rei D. Pedro. Dizem que não conhece grandes,
nem pequenos. A donzella, que roubaram, é pura e santa como a mais pura
e nobre de vossas filhas. Não deixeis sem castigo o rico-homem por ella
ter nascido no berço de um villão!

Á medida que o besteiro fallava, a phisionomia do desconhecido mudava de
aspecto. Os olhos pretos dilatados chammejavam, e o semblante, rosado e
jovial, empallidecia, torvo de severidade. Arquejava-lhe o peito. O
gesto infundia medo até nos que se achavam distantes. Quando Tello poz
termo a suas queixas, e levantou a vista, recuou assustado. A expressão
dos olhos do seu protector era terrivel. Ensanguentados e delirantes
mais se assimilhavam ás pupillas encandeadas do tigre, do que a olhar
humano. A voz cheia, mas presa, gaguejando, fallava tão convulsa, que
pouco se entendia. Adiantando-se, o desconhecido clamou em grandes
brados:

--Lourenço Gonsalves! Acudi! Um rico homem furtou a mais linda de minhas
filhas!

O brado, e a immensa colera, revelaram tudo ao mancebo. Lourenço
Gonsalves era o corregedor da côrte. Ninguem ousaria chamal-o assim
senão el-rei. Tello prostrou-se cheio de esperança.

--Segue-me! Affonso Madeira! o meu cavallo enfreado á porta! A minha
capellina de aço! Gonsalo Vasques de Goes, escrivão da Puridade! Chamae
os desembargadores, relatae-lhes o feito, e lavrae a sentença. Por alma
de Ignez de Castro!... Pelo seu amor! murmurou mais baixo. Antes de
nascer o sol haverá um criminoso de menos no meu reino, e mais uma
justiça de minhas mãos no livro de suas chronicas!

Fallando assim enlaçava a capellina, calçava as luvas de gamo, e com o
açoute cingido, desprendia a acha de armas mais pesada.

O besteiro seguiu-o sem proferir palavra. Os cavalleiros montavam, e uns
apoz outros galoparam para o alcançar. El-rei ia deixando atraz do
cavallo o proprio Tello Vasques, e cego de ira mettia-se pelas terras de
Algoço. Por cima d'esta vertiginosa carreira a chuva cahia em torrentes.
A procella abria os ceus em clarões lividos, desarraigando as arvores
annosas. Quando D. Pedro assomava diante da porta do castello, um vulto
surgiu, que tomou-lhe as redeas, convidando-o a apeiar-se. De um salto
estava em terra e levantando a cabeça via as frestas da torre
illuminadas. O vulto travou-lhe do braço, e disse:

--É ali!

--Vamos! redarguiu o principe, e seguiu-o sem desconfiança.

Uma entrada falsa, além do fosso, cedeu á chave e ao impulso.

--Ide agora e Deus seja comvosco! disse a mesma voz.

Ouvindo vozes e risadas no andar superior, o amante de Ignez de Castro
subiu. No topo da escada de caracol, a scena que se lhe representou
excitou-lhe ainda mais a colera. Perderia o terror salutar do nome
Justiceiro se perdoasse aquelle crime.

Era espaçoso o aposento. Um lampadario allumiava parte d'elle; o resto
mergulhava-se em meia escuridão. No centro da sala, em um leito, com as
mãos ligadas, jazia Silvaninha. Duas voltas de lenço sobre a bocca até
os ais lhe suffocavam! Só os olhos, os lindos olhos, banhados de
lagrimas pediam a Deus a morte, remedio extremo da infamia. Sueiro
Lopes, defronte, sorria-se medindo com a vista a queda lenta da areia
d'uma ampulheta. A seu lado o villico silencioso corria os dados sobre a
mesa. A tela da mortalha, fiada e tecida com as ortigas do tumulo,
estava nas mãos do cavalleiro, e suas palavras, ironicas como punhaes,
atravessavam o peito da infeliz. Estranho ao remorso, o neto dos
senhores de Biscaia cevava na formosura captiva o furor dos zelos.

--Porque choras, Silvana? Dera hontem o melhor arnez e o melhor cavallo
por um sorrir de teus olhos. Pedi-te amor e respondeste não. A tua
prenda foi esta mortalha! Que te acudam agora as fadas, que a teceram, e
os anjos porque chamavas! Brada pelo besteiro villão, que preferiste ao
rico-homem! Grita por el-rei D. Pedro! Por forte que seja o seu braço as
portas chapeadas d'este castello ainda são mais fortes. Em esta areia,
que está por instantes, cahindo toda...

Faltou-lhe a voz. A mão erguida do villico deixou tambem rolar o ultimo
dado. Ao limiar estava el-rei D. Pedro, e nos olhos d'elle brilhava um
clarão terrivel. A pesada acha reluzia em suas mãos.

--Traidor! bradou o principe. Mentes! O braço de D. Pedro quebra e rompe
todas as portas. Vais ver!... Villão! ajuntou fallando ao villico. Solta
as mãos e a boca a essa donzella. Ninguem se mova! Sueiro Lopes, conta
bem os grãos de areia da tua ampulheta. É o tempo que te dou. Vais
comparecer na presença de Deus!

O orgulho indomito do cavalleiro não cedeu. Empunhando a adaga, e posto
que pallido, sempre firme e seguro, voltou-se para D. Pedro e redarguiu:

--Quem dá aqui ordens e ameaça? O verdugo de Pero Coelho e de Alvaro
Gonsalves? O rei carrasco, falso á sua alma e á alma de seu pae?
Imaginas que farei como os outros cavalleiros? Estou no meu solar, e a
quem entra de noite e á má fé chamo-lhe inimigo! Villico! Aperta os
laços da captiva. No alto e no baixo, irado e pagado, não entrego o
castello senão a Deus. A mim, homens d'armas!

--Deus é justo! clamou el-rei, cuja furia não conhecia limites. O
matador de tres mulheres levanta-se contra o seu rei. O perseguidor
cruel de donzellas nega-me o preito e menagem. Bem! Morrerás como villão
ás mãos dos teus villãos. Não mancho em tal sangue o ferro da minha
acha. Villãos! bradou imperioso aos servos do senhor que tinham acudido.
Sou D. Pedro! Sou o rei! Esse que ahi está, rebelde e traidor,
prendei-m'o em quanto os meus não chegam!

A presença e a voz do filho de Affonso IV infundiam terror. Os homens
d'armas temiam, mas não amavam Sueiro Lopes. A ordem foi cumprida.
Depois de curta e desesperada resistencia, o cavalleiro ficou á mercê de
el-rei.

--Passae um laço na cadeia do lampadario, ponde um escanho para elle
subir, e cingi-lhe o nó na garganta! proseguiu o soberano indignado.

--Sou rico-homem por foro de Hespanha. A afronta da morte vil, caírá
sobre vós e sobre todos os filhos d'algo. Pedir-te-hão contas d'ella,
verdugo! gritou o cavalleiro estorcendo-se.

--A Deus as darei, e a mais ninguem! O desleal que violenta donzellas
não é cavalleiro. Quebro-te a espada e o foro com o meu sceptro.

Momentos depois, D. Sueiro estava em cima do escanho, e o villico
enrolava-lhe o laço. Commovida e tremula, Silvana lançou-se supplicante
aos pés do rei. Debalde! D. Pedro, desviando-se, perguntou ao paciente:

--Pedes perdão a Deus e ao teu rei?

--Não!

O pé do principe tombou o escanho e a morte cortou as ultimas palavras
do cavalleiro.


XI

A tropeada de muitos cavallos, soando a par do alarido e vozes do
castello, annunciou á aldeia alvoroçada a vinda do monarcha. Tello
Vasques apparecia á porta quando Sueiro Lopes expirava.

--Besteiro! Por teus olhos vês que me não chamam em vão o Justiceiro.
Corrias como noivo e como esposo... apesar d'isso cheguei primeiro! A
justiça do rei ainda andou mais veloz do que o amor!

Horas depois, a camisa do enterro servia de mortalha a Sueiro na
capella, e os noivos recebiam a benção nupcial, tendo el-rei D. Pedro
por seu padrinho.

Fallou-se muito no besteiro de Miranda, mas o que não esqueceu nunca foi
a justiça que fizera em Algoço a severidade do monarcha.

O castello devolveu-se á corôa, e parece que fôra doado depois ao
primogenito de Tello e de Silvana. Pelo menos assim se disse, e se foi
verdade ou fabula, não sei. El-rei D. Pedro era tão capaz de fazer
cavalleiro um villão, como de justiçar como villão um cavalleiro.




ULTIMA CORRIDA DE TOUROS EM SALVATERRA


I

O Senhor D. José, primeiro do nome, era em Salvaterra um rei em férias.
A verdade é que os maldizentes notavam, em segredo, que Sua Majestade em
Lisboa estava sempre ao torno e o marquez de Pombal no throno. O
proloquio fundava-se na habilidade mechanica do monarcha como torneiro,
e no caracter dominador do marquez como ministro.

Vecejavam os campos em plena primavera. A amendoeira cobria-se de
flôres, os bosques enfolhavam-se, as veigas vestiam-se e matisavam-se, e
a brisa doudejava indiscreta arregaçando o lenço á donzella que passava,
ou roubando um beijo á rosa perfumada. Tudo eram alegrias e canticos...
os rouxinoes nas moutas, o coração nos amores, e a naturesa nos sorrisos
ao sol esplendido que a dourava.

Uma tourada real chamára a côrte a Salvaterra. Os fidalgos respiravam
n'estas occasiões menos opprimidos. Não os assombrava tão de perto a
privança do ministro. Os touros eram bravos, os cavalleiros destros, o
amphiteatro pomposo, e o cortejo das damas adoravel. O prazer ria na
bocca de todos. Por cumulo de venturas o marquez de Pombal ficára em
Lisboa, retido pelo conflicto com o embaixador de Hespanha.

Contava-se em segredo nos recantos do palacio o dialogo travado entre o
enviado castelhano e o secretario de estado portuguez, louvando-o uns em
alta voz, para os ecos d'aquellas paredes repetirem o elogio,
crucificando-o outros sem piedade, para saciarem os odios. As devotas e
os fidalgos puritanos eram pelo hespanhol, e pediam a Deus que os
rebates da guerra proxima despenhassem o plebeu nobilitado. Os
magistrados e os homens de capa e volta, defendiam o marquez e
respondiam com meios sorrisos ás fogosas jaculatorias dos zelosos do
throno e do altar. O marquez de Pombal tinha-se negado com firmesa ás
concessões exigidas imperiosamente pelo governo castelhano.

--Muito bem, atalhou o embaixador, um exercito de sessenta mil homens
entrará em Portugal e fará...

--O quê? perguntara o marquez sorrindo-se com a tremenda luneta
assestada e no tom mais indifferente.

--Fará entender a rasão e a justiça de el-rei, meu amo, a Sua Magestade
e a vossa excellencia! redarguiu meia oitava acima o hespanhol, suppondo
o ministro fulminado.

Sebastião José de Carvalho franziu as sobrancelhas, carregou a viseira,
e cravando a vista e a luneta no diplomata, retorquiu-lhe friamente:

--Sessenta mil homens muita gente é para casa tão pequena, mas, querendo
Deus, el-rei, meu amo e meu senhor, sempre hade achar aonde possa
hospedal-a. Mais pequena era Aljubarrota e lá couberam os que D. João de
Castella trouxe. Vossa excellencia póde responder isto ao seu governo.

E, levantando-se para despedir o embaixador, accrescentou:

--Bem sabe vossa excellencia que póde tanto cada um em sua casa, que
mesmo depois de morto são precisos quatro homens para o tirarem!

O embaixador saíu jurando por _Dios y la Virgen Santisima_ e o marquez
preparou-se para a guerra. O caso é como dizia o nosso Zeferino na
_Sobrinha do Marquez_, que Sebastião José de Carvalho foi um grande
ministro e que fez muito pela nação. Hoje ha menos quem responda assim á
lettra ás ameaças dos estrangeiros. Berra-se muito, dorme-se a somno
solto ao som dos hymnos patrioticos, e depois salva o castello de
madrugada e está salva a patria!

O marquez de Pombal presava as artes e protegia e animava as classes
medias. Esse pouco, que o reino progrediu deveu-se a elle. Se a
industria nunca acabou de sair da infancia a culpa quasi toda foi dos
maus governos que succederam ao seu, e tambem do povo que não quiz
trabalhar deveras... Mas vamos aos touros reaes. D'esses é que o
ministro não gostava nada. Queria-os ao arado e não á farpa, e
parecia-lhe melhor, que os toureadores, sendo fidalgos, servissem o
Estado com a penna ou com a espada, e, sendo mechanicos, que lavrassem,
tecessem e ganhassem honradamente a vida, enriquecendo-se a si e á
nação.

Mas el-rei D. José, cedendo em tudo ao marquez, quanto aos toiros não
admittia reflexões. N'isto era rei a valer e Bragança legitimo. Os
fidalgos sabiam-o e por isso disfructavam dôces prazeres--a satisfação
do gosto nacional, e a contradicção da vontade do ministro. Desatendel-a
sem perigo e pela mão do soberano era para elles um deleite e um
triumpho.

N'estas funcções não vigorava a severidade das ultimas pragmaticas.
Outro motivo de jubilo. Quem queria podia arruinar-se em luxuosos
vestidos, enfeites e toucados. As bordaduras e os recamos de oiro, os
veludos e sedas de fóra, talhados á franceza, resplandeciam constellados
de perolas e diamantes. Por cima dos mais ricos trajos e das mais
vistosas côres desenrolavam-se os anneis ondeados das empoadas
cabelleiras. As damas ostentavam as graças de seus donaires e tufados, e
emoldurando o bello oval dos rostos nos penteados caprichosos sorriam-se
para os gentis campeadores, e seus olhos cheios de luz e de promessas
estimulavam até os timidos.

Correram-se as cortinas da tribuna real. Rompem as musicas. Chegou
el-rei, e logo depois entra pelos camarotes o vistoso cortejo, e vê-se
ondear um oceano de cabeças e de plumas. Na praça resoam brava alegria
as trombetas, as charamellas e os timbales. Apparecem os cavalleiros,
fidalgos distinctos todos, com o conto das lanças nos estribos e os
brazões bordados no veludo das gualdrapas dos cavallos. As plumas dos
chapeus debruçam-se em matisados cocares, e as espadas em bainhas
lavradas pendem de soberbos talins. Os capinhas e forcados vestem com
garbo á castelhana antiga. No semblante de todos brilha o ardor e o
enthusiasmo.

O conde dos Arcos, entre os cavalleiros, era quem dava mais na vista. O
seu trajo, cortado á moda da côrte de Luiz XV, de veludo preto, fazia
realçar a elegancia do corpo. Na golla da capa e no corpete sobresaiam
as finas rendas da gravata e dos punhos. Nos joelhos as ligas bordadas
deixavam escapar com artificio os tufos de cambraeta alvissima. O conde
não excedia a estatura ordinaria, mas esbelto e proporcionado, todos os
seus movimentos eram graciosos. As faces eram talvez pallidas de mais,
porém animadas de grande expressão, e o fulgor das pupillas negras
fuzilava tão vivo e por vezes tão recobrado, que se tornava
irresistivel. Filho do marquez de Marialva, e discipulo querido de seu
pae, do melhor cavalleiro de Portugal, e talvez da Europa, a cavallo, a
nobreza e a naturalidade do seu porte enlevavam os olhos. Elle e o
corsel, como que ajustados em uma só peça, realisavam a imagem do
centauro antigo.

A bizarria com que percorreu a praça, domando sem esforço o fogoso
corsel, arrancou prolongados e repetidos applausos. Na terceira volta,
obrigando o cavallo quasi a ajoelhar-se diante de um camarote, fez que
uma dama escondesse torvada no lenço as rosas vivissimas do rosto, que
de certo descobririam o melindroso segredo da sua alma, se em momentos
rapidos como o faiscar do relampago podesse alguem adivinhar o que só
dois sabiam.

El-rei, quando o mancebo o comprimentou pela ultima vez, sorriu-se, e
disse voltando-se:

--Por que virá o conde quasi de luto á festa?

Principiou o combate.

Não é proposito nosso descrevermos uma corrida de touros. Todos teem
assistido a ellas e sabem de memoria o que o espectaculo offerece de
notavel. Diremos só que a raça dos bois era apurada, e que os touros se
corriam desembolados, á hespanhola. Nada diminuia, portanto, as
probabilidades do perigo e a poesia da lucta.

Tinham-se picado alguns bois. Abriu-se de novo a porta do curro, e um
touro preto investiu com a praça. Era um verdadeiro boi de circo. Armas
compridas e reviradas nas pontas, pernas delgadas e nervosas, indicio de
grande ligeireza, e movimentos rapidos e bruscos, signal de força
prodigiosa. Apenas tocára o centro da praça, estacou como deslumbrado,
sacudiu a fronte e escarvando a terra impaciente, soltou um mugido feroz
no meio do silencio, que succedera ás palmas e gritos dos espectadores.
Dentro em pouco os capinhas, salvando a pulos as trincheiras, fugiam á
velocidade espantosa do animal, e dois, ou tres cavallos expirantes
denunciavam a sua furia.

Nenhum dos cavalleiros se atreveu a sair contra elle. Fez-se uma pausa.
O touro pisava a arena ameaçador e parecia desafiar em vão um contendor.
De repente viu-se o conde dos Arcos firme na sella provocar o impeto da
féra e a hastea flexivel do rojão ranger e estalar, embebendo o ferro no
pescoço musculoso do boi. Um rugido tremendo, uma acclamação immensa do
amphiteatro inteiro, e as vozes triumphaes das trombetas e charamellas
encerraram esta sorte brilhante. Quando o nobre mancebo passou a galope
por baixo do camarote, diante do qual pouco antes fizera ajoelhar o
cavallo, a mão alva e breve de uma dama deixou cair uma rosa, e o conde,
curvando-se com donaire sobre os arções, apanhou a flor do chão sem
afrouxar a carreira, levou-a aos labios, e metteu-a no peito. Investindo
depois com o touro, tornado immovel com a raiva concentrada, rodeou-o
estreitando em volta d'elle os circulos até chegar quasi a pôr-lhe a mão
na anca.

O mancebo despresava o perigo e pago até da morte pelos sorrisos, que
seus olhos furtavam de longe, levou o arrojo a arripiar a testa do touro
com a ponta da lança. Precipitou-se então o animal com furia cega e
irresistivel. O cavallo baqueou trespassado e o cavalleiro, ferido na
perna, não pôde levantar-se. Voltando sobre elle o boi enraivecido
arremessou-o aos ares, esperou-lhe a quéda nas armas, e não se arredou
senão quando, assentando-lhe as patas sobre o peito, conheceu que o seu
inimigo era um cadaver.

Este doloroso lance occorreu com a velocidade do raio. Estava ja
consummada a tragedia e não havia expirado ainda o echo dos ultimos
aplausos.

De repente um silencio em que se conglobavam milhares de agonias,
emudeceu o circo. Rei, vassallos e damas, meio corpo fóra dos camarotes,
fitavam a praça sem respirar e erguiam logo depois a vista ao ceu como
para seguir a alma, que para lá voava envolta em sangue.

Quando o mancebo, dobado no ar, exhalava a vida antes de tocar o chão,
um gemido agudo, composto de soluços e choro, caiu sobre o cadaver com
uma lagrima de fogo. Uma dama desmaiada nos braços de outras senhoras
soltára aquelle grito estridente, derradeiro ai do coração ao rebentar
no peito.

El-rei D. José, com as mãos no rosto, parecia petrificado.

A côrte d'esta vez acompanhava-o sinceramente na sua dôr.

Mas o drama ainda não tinha concluido. Quem sabe?! O terror e a piedade
iam cortar de novas magoas o peito a todos.

O marquez de Marialva assistira a tudo do seu logar. Revendo-se na
gentileza do filho, seus olhos seguiam-lhe os movimentos brilhando
radiosos a cada sorte feliz. Logo que entrou o touro preto carregou-se
de uma nuvem o semblante do ancião. Quando o conde dos Arcos sahiu a
farpeal-o, as feições do pae contrairam-se e a sua vista não se
despregou mais da arriscada lucta.

De repente o velho soltou um grito soffocado e cobriu os olhos,
apertando depois as mãos na cabeça. Os seus receios haviam-se realisado.
Cavallo e cavalleiro rolavam na arena, e a esperança pendia de um fio
tenue! Cortou-lh'o rapidamente a morte, e o marquez, perdido o filho,
luz da sua alma e ufania de suas cãs, não proferiu uma palavra, não
derramou uma lagrima; mas os joelhos fugiam-lhe tremulos, e a elevada
estatura inclinou-se vergando ao peso da magua excruciante.

Volveu, porém, em si decorridos momentos. A livida pallidez do rosto
tingiu-se de vermelhidão febril subitamente. Os cabellos desgrenhados e
hirtos revolveram-se-lhe na fronte inundada de suor frio como as sedas
da juba de um leão irritado. Nos olhos amortecidos faiscou instantaneo,
mas terrivel, o sombrio clarão de uma colera, em que todas as ancias
insofridas da vingança se accumulavam.

Em um impeto a presença reassumiu as proporções magestosas e erectas
como se lhe corresse nas veias o sangue do mancebo que perdera. Levando
por acto instinctivo a mão ao lado, para arrancar da espada, meneou
tristemente a cabeça. A sua boa espada, cingira-a elle proprio ao filho
n'este dia que se convertera para a sua casa em dia de eterno luto!

Sem querer ouvir nada, desceu os degraus amphiteatro, seguro e resoluto
como se as neves de setenta annos lhe não branqueassem a cabeça.

--Sua magestade ordena ao marquez de Marialva, que aguarde as suas
ordens! disse um camarista detendo-o pelo braço.

O velho fidalgo estremeceu como se acordasse sobresaltado, e cravou no
interlocutor os olhos desvairados, em que reluzia o fulgor concentrado
d'um pensamento immutavel. Desviando depois a mão, que o suspendia,
baixou mais dois degraus.

--Sua magestade entende que este dia foi já bastante desgraçado e não
quer perder n'elle dois vassallos... O marquez desobedece ás ordens de
el-rei?!...

--El-rei manda nos vivos e eu vou morrer! atalhou o ancião em voz
aspera, mas sumida. Aquelle é o corpo de meu filho! e apontava para o
cadaver. «Está ali! Sua magestade póde tudo menos desarmar o braço do
pae, menos deshonrar os cabellos brancos do criado que o serve ha tantos
annos. Deixe-me passar, e diga isto.»

D. José vira o marquez levantar-se e percebera a sua resolução. Amava no
estribeiro-mór as virtudes e a lealdade nunca desmentidas. Sabia que da
sua bocca não ouvira senão a verdade, e a idéa de o perder assim era-lhe
insupportavel. Apenas lhe constou que elle não accedia á sua vontade,
fez-se branco, cerrou os dentes convulso, e, debruçado para fóra da
tribuna, aguardou em ancioso silencio o desfecho da catastrophe.

A esse tempo já o marquez pisava a praça, firme e intrepido como os
antigos romanos diante da morte. Dentro do peito o seu coração chorava,
mas os olhos aridos queimavam as lagrimas quando subiam a rebentar por
elles. Primeiro do que tudo queria a vingança.

Por impulso instantaneo, todo o ajuntamento se poz de pé. Os semblantes
consternados e os olhos arrazados de agua exprimiam aquella dolorosa
contensão do espirito, em que um sentido parece concentrar todos.

Deixae-o ir ao velho fidalgo! A magoa, que o traspassa, não tem egual. O
fogo, que lhe presta vida e forças, é a desesperação. Deixae-o ir, e de
joelhos! Saudae a magestade do infortunio!

O pae angustiado ajoelhou junto do corpo do filho e pousou-lhe um osculo
na fronte. Desabrochou-lhe depois o talim e cingiu-o, levantou-lhe do
chão a espada e correu-lhe a vista pelo fio e pela ponta de dois gumes.
Passou depois a capa no braço e cobriu-se. Decorridos instantes estava
no meio da praça e devorava o touro com a vista chammejante,
provocando-o para o combate.

Cortado de commoções tão crueis, não lhe tremia o braço, e os pés
arraigavam-se na arena como se um poder occulto e superior lh'os tivesse
ligado repentinamente á terra.

Fez-se no circo um silencio gelido, tremendo e tão profundo, que
poderiam ouvir-se até as pulsações do coração do marquez se n'aquella
alma de bronze o coração valesse mais do que a vontade.

O touro arremette contra elle... Uma e muitas vezes o investe cego e
irado, mas a destreza do marquez esquiva sempre a pancada.

Os ilhaes da féra arfam de fadiga, a espuma franja-lhe a bocca, as
pernas vergam e resvalam, e os olhos amortecem de cansaço. O ancião
zomba da sua furia. Calculando as distancias, frustra-lhe todos os
golpes sem recuar um passo.

O combate demora-se.

A vida dos espectadores resume-se nos olhos.

Nenhum ousa desviar a vista de cima da praça.

A immensidade da catastrophe immobilisa todos.

De subito solta el-rei um grito e recolhe-se para dentro da tribuna. O
velho aparava a peito descoberto a marrada do touro, e quasi todos
ajoelharam para resarem por alma do ultimo marquez de Marialva.

A afflictiva pausa apenas durou momentos. Por entre as nevoas, de que a
pupilla tremula se embaciava, viu-se o homem crescer para a fera, a
espada fuzilar nos ares e logo apóz sumir-se até aos copos entre a nuca
do animal. Um bramido, que atroou o circo, e o baque do corpo agigantado
na arena, encerraram o extremo acto do funesto drama.

Clamores unisonos saudaram a victoria. O marquez, que tinha dobrado o
joelho, com a força do golpe levantava-se mais branco do que um cadaver.
Sem fazer caso dos que o rodeiavam, tornou a abraçar-se com o corpo do
filho, banhando-o de lagrimas e cobrindo-o de beijos.

O touro ergueu-se, e, cambaleando com a sezão da morte, veiu apalpar o
sitio aonde queria expirar. Ajuntou ali os membros e deixou-se cair sem
vida ao lado do cavallo do conde dos Arcos.

N'esse momento os espectadores olhando para a tribuna real estremeceram.
El-rei, de pé e muito pallido, tinha junto de si o marquez de Pombal,
coberto de pó e com signaes de ter viajado depressa.

Sebastião José de Carvalho voltava de proposito as costas á praça
fallando com o monarcha. Punia assim a barbaridade do circo.

--Temos guerra com a Hespanha, senhor. É inevitavel. Vossa magestade não
póde consentir que os touros lhe matem o tempo e os vassallos. Se
continuassemos n'este caminho... cedo iria Portugal á vela.

--Foi a ultima corrida, marquez. A morte do conde dos Arcos acabou os
touros reaes emquanto eu reinar.

--Assim o espero da sabedoria de vossa magestade. Não ha tanta gente nos
seus reinos, que possa dar-se um homem por um touro. El-rei consente que
vá em seu nome consolar o marquez de Marialva?

--Vá! É pae. Sabe o que ha de dizer-lhe...

--O mesmo que elle me diria a mim, se Henrique estivesse como está o
conde.

El-rei sahiu da tribuna, e o marquez de Pombal, entrando na praça em
toda a magestade de sua elevada estatura, levantou nos braços o velho
fidalgo, dizendo-lhe com voz meiga e triste:

--Senhor marquez! Os portuguezes como vossa excellencia são para darem
exemplos de grandeza d'alma e não para os receberem. Tinha um filho e
Deus levou-lh'o. Altos juizos seus! A Hespanha declara-nos a guerra, e
el-rei, meu amo e meu senhor, precisa do conselho e da espada de vossa
excellencia.

E travando-lhe da mão, levou-o quasi nos braços até o metterem na
carruagem.

D. José I cumpriu a palavra dada ao seu ministro. No seu reinado nunca
mais se picaram touros reaes em Salvaterra.



    [1] A prematura morte do illustre auctor d'este livro não lhe
    permittiu concluir este admiravel romancinho. As paginas, porém,
    escriptas representam um tal primor de litteratura, que fôra falta
    imperdoavel condemnal-as á obscuridade. Os amadores de boas letras
    de certo nos agradecerão a resolução tomada de não os privarmos de
    alguns momentos de não muito vulgar leitura.

                                                               EDITOR

    [2] O castello de Almourol já figurava na epocha da dominação dos
    romanos. D. Gualdim restaurou-o das ruinas e povoou a terra por
    carta de foral.

                                      ELUCIDARIO. Tom. II p. 346--374.

    [3] A balça ou bandeira do Templo era bipartida de branco e preto
    com a cruz vermelha no centro e a lenda: _non nobis, sed nomini tuo
    da gloriam_.

    [4] Concordo. Puzeste o dedo na difficuldade, menino.




DE NOITE TODOS OS GATOS SÃO PARDOS

Por L. A. REBELLO DA SILVA

Remette-se FRANCO DE PORTE para a provincia.

Correspondencia a Mattos Moreira & C.ª. LIVRARIA EDITORA. Praça de D.
Pedro, 68, Lisboa

PREÇO 600 RÉIS

LISBOA

TYP. EDITORA DE MATTOS MOREIRA & C.ª

67, Praça de D. Pedro, 67

1873





End of Project Gutenberg's Contos e Lendas, by Luís Augusto Rebelo da Silva

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WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

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including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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