A Morgadinha dos Cannaviaes

By Júlio Dinis

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Title: A Morgadinha dos Cannaviaes

Author: Júlio Dinis

Release Date: June 14, 2009 [EBook #29120]

Language: Portuguese


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                                               Rita Farinha (Jun. 2009)




BIBLIOTHECA ESCOLHIDA

XXIII

ROMANCE

III


A MORGADINHA DOS CANNAVIAES

Vol. I




CENTRO TIPOGRAFICO COLONIAL
LARGO BORDALO PINHEIRO, 27 E 28
TELEPHONE 2337




JULIO DINIZ


A MORGADINHA DOS CANNAVIAES

(CHRONICA DA ALDEIA)

DECIMA-SETIMA EDIÇÃO



LISBOA
J. RODRIGUES & C.^a, EDITORES
186--Rua Aurea--188
_1920_




OBRAS DE JULIO DINIZ


A Morgadinha dos Cannaviaes
Os Fidalgos da Casa Mourisca
As Pupillas do Senhor Reitor
Uma Familia Ingleza
Ineditos e Esparsos
Poesias
Serões da Provincia
Agenda Julio Diniz (registo de anniversarios e lembranças)



_Todos os direitos d'esta publicação estão reservados em conformidade
com a lei em Portugal e Brasil_

J. Rodrigues & C.^a




A MORGADINHA DOS CANNAVIAES




I


Ao cair de uma tarde de dezembro, de sincero e genuino dezembro,
chuvoso, frio, açoutado do sul e sem contrafeitos sorrisos de primavera,
subiam dois viandantes a encosta de um monte por a estreita e sinuosa
vereda, que pretenciosamente gosava das honras de estrada, á falta de
competidora, em que melhor coubessem.

Era nos extremos do Minho e onde esta risonha e feracissima provincia
começa já a resentir-se, senão ainda nos valles e planuras, nos visos
dos outeiros pelo menos, da vizinhança de sua irmã, a alpestre e severa
Traz-os-Montes.

O sitio, n'aquelle ponto, tinha o aspecto solitario, melancolico, e,
n'essa tarde, quasi sinistro. D'alli a qualquer povoação importante, e
com nome em carta corographica, estendiam-se milhas de pouco
transitaveis caminhos. Vestigios de existencia humana raro se
encontravam. Só de longe em longe, a choça do pegureiro ou a cabana do
rachador, mas estas tão ermas e desamparadas, que mais entristeciam do
que a absoluta solidão.

Não se moviam em perfeita igualdade de condições os dois viandantes, que
dissemos.

Um, o mais moço e pela apparencia o de mais grada posição social, era
transportado n'um pouco esculptural, mas possante muar, de inquietas
orelhas, musculos de marmore e articulações fieis; o outro seguia a pé,
ao lado d'elle, competindo, nas grandes passadas que devoravam o
caminho, com a quadrupedante alimaria, cujos brios, além d'isso,
excitava por estimulos menos brandos do que os da simples e nobre
emulação.

Contra o que seria plausivel esperar d'este desigual processo de
transporte, dos dois o menos extenuado e impaciente com as longuras e
fadigas da jornada não se pode dizer que fôsse o cavalleiro.

A postura de abatimento que lhe tomára o corpo, o olhar melancolico,
fito nas orelhas do macho, a indifferença, a taciturnidade ou o
manifesto mau humor, que nem as bellezas e accidentes da paizagem
natural conseguiam já desvanecer, o obstinado silencio que apenas de
quando em quando interrompia com uma phrase curta mas energica, com uma
pergunta impaciente sobre o termo da jornada, contrastavam com a viveza
de gestos e desempenado jôgo de membros do pedestre, com a sua
torrencial verbosidade, a que não oppunha diques, e com as joviaes
cantigas e minuciosas informações a respeito de tudo, por meio das quaes
se encarregava de entreter e ao mesmo tempo instruir o seu sorumbatico
companheiro.

Explica-se bem esta differença, dizendo que o cavalleiro era um elegante
rapaz de Lisboa, que fazia então a sua primeira jornada, e o outro um
almocreve de profissão.

O leitor provavelmente ha de ter jornadeado alguma vez; sabe portanto
que o grato e quasi voluptuoso alvoroço, com que se concebe e planisa
qualquer projecto de viagem, assim como a suave recordação que d'ella
guardamos depois, são coisas de incomparavelmente muito maiores
delicias, do que as impressões experimentadas no proprio momento de nos
vermos errantes em plena estrada ou pernoitando nas estalagens, e
mórmente nas classicas estalagens das nossas provincias. As pequenas
impertinencias, em que se não pensa antes, que se esquecem depois, ou
que a saudade consegue até dourar e poetisar a seu modo; esses
microscopicos martyrios, que de longe não avultam, actuam-nos, na
occasião, a ponto de nos inhabilitar para o gôso do que é realmente
bello. A dureza do colchão, em que se dorme, do albardão ou selim sobre
que se monta, o tempêro ou destempêro do heteróclito cozinhado com que
se enche o estomago, a lama que nos encrusta até os cabellos, o pó que
se nos insinua até os pulmões, o frio que nos inteiriça os membros, o
sol que nos congestiona o cerebro, tudo então nos desafina o espirito,
que traziamos na tensão necessaria para vibrar perante as maravilhas da
natureza ou da arte.

Só pelo preço de muitas jornadas se compra o habito de ficar impassivel
no meio dos episodios d'estas pequenas odyssêas, que atormentam e
exhaurem o animo dos Ulysses novatos; mas ai, quando se adquire esse
habito, tambem nos achamos já com a sensibilidade mais embotada para as
commoções do bello.

Examina-se com mais minuciosidade, mas com menos enthusiasmo; analysa-se
mais e melhor; porém a propria analyse é a prova de que se sente menos.
Onde domina o sentimento e a imaginação, mal teem cabida a paciencia e
phleúgma, necessarias aos processos analyticos. O homem positivo e frio
recolhe de qualquer excursão á patria com a carteira cheia de
apontamentos; o enthusiasta e poeta nem uma data regista. Viu menos,
sentiu mais.

Mas Henrique de Souzellas--que era este o nome do cavalleiro--fôra
educado e passado da infancia á plena juventude, em Lisboa,
levantando-se por avançada manhã, frequentando o theatro, o Gremio, as
camaras, parolando no Chiado ou no Rocio, e indo alguns dias no anno a
Cintra, ou qualquer praia de banhos, desenfadar-se da monotonia da
capital.

Desde que fazia perfeito e consciente uso da razão, fôra esta jornada,
em que o encontramos, a primeira levada a effeito, e logo sob tão maus
auspicios, que era para suffocar-lhe á nascença os instinctos de
_touriste_, se porventura quizessem despertar n'elle.

Havia dois dias que cavalgava aquelle rocinante, unico vehiculo
accommodado aos caminhos por que passára. E então que dois dias!
D'aquelles, durante os quaes o céo, uniformemente pardo, parece
desfazer-se em agua, e a chuva cae sem interrupção e com uma teimosia e
constancia impacientadoras; d'aquelles em que a terra saciada rejeita já
a agua que recebe, a qual escorre nos declives, transborda dos algares,
e encharca-se nos terrenos baixos, transformando em brejos as lezirias;
em que as lufadas do sul vergam e torcem os ramos, melancolicamente
despidos, dos álamos e sobreiros, e emprestam aos pinheiraes a voz dos
mares; em que os campos se mostram desertos, a noite se anticipa, e tão
densas nuvens cobrem o firmamento, que parece tomar-nos a persuasão de
que nunca mais o veremos com as suas formosas vestes de azul.

Vejam se, n'estas circumstancias, o pobre rapaz podia deixar de ir
cabisbaixo, triste e dando ao diabo a viagem que commettera.

E para quê e por quê a commettera elle assim?

Em poucas palavras procuraremos satisfazer a natural interrogação, que é
de suppôr nos dirigissem os leitores, se podessem fazel-o.

Este Henrique de Souzellas attingira a idade dos vinte e sete annos,
vivendo, como dissémos, aquella enlanguescedora vida da capital, e
dividindo as attenções do espirito pela politica, pela litteratura e
pelos destinos do theatro de S. Carlos, do qual estava habilitado a
fazer circumstanciada chronica, que abrangesse os ultimos dez annos.

Não concebia vida fóra d'aquillo.

O mundo para elle era Lisboa. Não sentia desejos, nem imaginava
possibilidade de visitar a Europa, quanto mais a provincia; o que seria
maior façanha.

Não que lhe faltassem recursos para realisar qualquer projecto d'esta
natureza.

Henrique herdára dos paes rendimentos bastantes, dos quaes vivia
folgadamente e sem precisar de sacrificar nos altares da economia.

Mas a indolencia lisbonense manietava-o alli. A poucos ia tão direita a
apostrophe de Garrett aos seus «queridos alfacinhas», a qual se pode ler
no livro setimo das _Viagens_.

De certo tempo em deante começou, porém, a incommodal-o uma especie de
vácuo interior, um mal-estar, doença infallivel nos celibatarios sem
familia, quando chegam á idade a que chegou Henrique, e passam a vida
como elle.

Tudo lhe causava fastio. Bocejava em S. Carlos, bocejava nas camaras,
bocejava no Gremio, bocejava no Suisso, no Chiado e nos circulos dos
seus amigos, os quaes principiaram tambem a achal-o insupportavel de
insipidez; porque poucas coisas ha que mais perturbem o espirito, do que
o espectaculo d'um homem que boceja ou dorme, onde e quando os outros
forcejam por divertir-se.

O demonio da hypocondria, esse demonio negro e lugubre, implacavel
verdugo dos ociosos e egoistas, o qual havia muito o espiava,
apoderou-se d'elle em corpo e alma.

Ahi temos, desde esse instante, Henrique muito preoccupado com a sua
pessoa, imaginando-se victima de mil e uma molestias, as mais
disparatadas e incompativeis, suspeitando-se conjunctamente predestinado
para a apoplexia e para a phtisica, para o cancro e para a alienação,
para a cegueira e para as aneurismas, tremendo á leitura do obituario da
semana, folheando livros de medicina, construindo theorias
physiologicas, consultando todos os medicos da capital, experimentando
todo o arsenal pharmaceutico e todos os annuncios, em parangona, da
quarta pagina dos periodicos, e elevando as crenças do seu espirito
amedrontado até ás mysteriosas e nevoentas alturas do credo
homoepathico! Ao mesmo tempo manifestou-se n'elle uma progressiva
degeneração de gôsto; não podia ler uma pagina dos livros que lhe eram
predilectos; desfazia-se sem desgôsto de quadros, móveis, estatuas e
objectos curiosos que colleccionára com paixão; detestava a musica, o
theatro, n'uma palavra, tornára-se um dos maiores flagellos, que podem
pesar sobre a humanidade e que muito em especial causam o supplicio dos
medicos que os aturam.

Foram estes os que, em parte de boa fé, em parte com o desculpavel
intuito de sacudirem de si tal pesadelo, lhe deram um dia de conselho,
que fôsse viajar.

Henrique de Souzellas julgou ouvir uma heresia n'esta palavra: viajar.

Viajar? E as suas aneurismas? E as suas imminencias apopleticas? E as
suas disposições para tantas outras enfermidades? Pois um homem pode lá
viajar com esta bagagem pathologica?

E se lhe désse alguma coisa pelo caminho? Recusou com mau humor a
receita, e ficou na capital.

Exacerbaram-se os padecimentos, repetiram-se as consultas, e os medicos,
como se para isso apostados, a insistirem em que saisse de Lisboa.

--O senhor não tem nada--diziam alguns.

Henrique perdia a cabeça, ao ouvir isto.

Prolongou-se este estado de coisas, até que um dia o hypocondriaco rapaz
persuadiu-se muito sériamente de que estava chegada a sua hora extrema.

Um medico velho e grave, que por essa occasião o escutou, em vez de se
rir d'elle, disse-lhe, muito sisudo:

--Homem! O senhor está realmente mal. Esse estado de imaginação não pode
prolongar-se mais tempo, sem romper por ahi em alguma doença que o
sacrifique. Se quizer salvar-se, saia-me d'aqui, emquanto é tempo.
Quebre por todos os habitos, e escolha entre as fortes impressões de uma
grande capital, como Paris ou Londres, ou as mornas sensações de um
completo viver de aldeia. Os revulsivos e os emollientes curam por meios
oppostos ás vezes as mesmas molestias.

Ora succedeu que n'esse mesmo dia recebesse Henrique um presente de
fructa de uma sua tia, santa creatura que elle, desde creança, não
tornára a vêr.

Vivia regalada em uma aldeia sertaneja do Minho onde na idade de cinco
annos Henrique passára alguns mezes na companhia de sua mãe.

Aquelle presente frugal recordára-lhe esse tempo, já meio apagado na
memoria, e conseguira fazer-lhe saudades. D'ahi uns vagos desejos de
voltar a vêr aquelles sitios.

Por isso ao ouvir o conselho do doutor, Henrique nomeou-lhe a aldeia, em
que esta sua parenta vivia.

O velho facultativo applaudiu a ideia e instou para que fôsse abraçada.

O sobrinho escreveu então á tia, e, passados dias, punha-se a caminho.

Mil vezes se arrependeu, depois da resolução tomada; mil vezes mandou ao
diabo o conselho do medico e phantasiou horriveis exacerbações em todos
os seus males. Os inconvenientes de uma jornada, feita ainda segundo os
velhos processos, com malas, coldres e pistolas, botas de montar e
almocreve, ampliava-lh'os a proporções estupendas, o prisma da
hypocondria.

No momento em que nos associámos ao cavalleiro, caira elle n'um
desalento profundo, n'um quasi convencimento de proxima anniquilação, do
qual nem a loquacidade do almocreve, condimentada, como era, de pragas
eloquentes e de cantigas pouco edificantes, o conseguia arrancar.

Havia mais de uma hora que estavam luctando com as difficuldades da
ascensão do ingreme e escabroso caminho, que torneava o monte como as
voltas de uma helice.

Era este monte uma como irregular pyramide, levantada no meio da
amplissima bacia, onde tinha assento a aldeia que Henrique demandava;
por isso o estafado rapaz não podia atinar a razão de conveniencia pela
qual, tendo de procurar o valle, assim porfiavam em descrever as
fastidiosas curvas da quasi interminavel espiral, que os approximava do
vertice.

Não se concebe uma estrada menos logica do que aquella.

No nosso paiz são porém frequentes estas faltas de logica nas estradas.

O almocreve havia-se separado por momentos de Henrique com o fim de
encurtar distancias, seguindo por um atalho só franqueavel a gente de
pé.

Henrique nem desviára os olhos para o fundo valle, que se abria á
esquerda, velado pela densa nevoa d'aquella atmosphera saturada de
humidade, nem prestava attenção á agreste e selvatica paizagem, do lado
direito, toda encrespada de pinheiraes nascentes e de espinhosas
tojeiras.

Os olhos procuravam, em anciosa interrogação, o mais alto da flexuosa
ladeira que subia, no sitio em que ella, formando um cotovello, furtava
á vista o seguimento ulterior.

N'estas curvas das estradas sorri sempre de longe ao viajante, cançado e
aborrecido, que pela primeira vez as trilha, uma promettedora esperança.

--D'alli verei talvez o termo do caminho--pensa elle.

Mas quantas vezes, ao approximar-se, esta esperança lhe foge!

Assim aconteceu a Henrique, que, ao chegar á almejada inflexão e quando
esperava principiar emfim a descer para o valle e approximar-se da
aldeia, viu que o macho, pratico no caminho, e á disposição de cujo
instincto elle collocára a razão, dobrava ainda para a direita e
continuava a contornar e a subir o monte. A espiral não terminára ainda.
Henrique olhou em torno de si, profundou a vista nas sombras do valle,
nada pôde descobrir, que lhe promettesse a aldeia procurada. Muita
arvore, povoação nenhuma!

Teve um paroxismo de impaciencia!

--Isto não é estrada!--exclamou elle, exasperado.--São os nove circulos
do Inferno de Dante virados para fóra.

E a luz do dia a fugir cada vez mais, e a chuva a augmentar, a calar
através do grosso gabão de jornada que Henrique vestia! O desgraçado
vergava sob o pêso da sua consternação.

Ajuntou-se-lhe outra vez o almocreve, assobiando com fleugma
desesperadora.

--Com um milhão de demonios!--bradou-lhe Henrique, não podendo
conter-se.--Essa maldicta terra foge deante de nós, homem!

--Estamos quasi lá, meu patrão. É alli logo adeante--respondeu o
almocreve, sem se alterar. Vê aquella capellinha branca em cima
d'aquelle monte? pois fica já para além da povoação. É a ermida da
Senhora da Saude. É um instante.

--Desde as duas horas da tarde que me dizes que é um instante, e eu
estou acreditando que cada vez nos afastamos mais. Pois se a aldeia fica
alli em baixo, para que diabo subimos nós? Ás voltas que temos dado,
estou persuadido de que vamos tão adeantados como quando principiámos a
subir.

--Pois olha que dúvida! Se se fôsse a direito lá por baixo, era mais
perto, mas...

--Mas foi então pelo prazer de trepar, que me trouxeste por aqui?

--Não é isso, patrão; mas bem vê v. s.^a que o caminho lá por baixo é
todo cortado por quintas e campos, e é preciso dar taes voltas, que a
final fica mais longe. Depois, com a chuva que tem caído, faz lá ideia
de como estão os riachos por lá! Só o esteiro do almargeal é para uma
pessoa se afogar. Mas tenha o patrão paciencia, que pouco falta agora.
Vê v. s.^a aquelle tronco de sobreiro que parece, visto d'aqui, um frade
de capuz?

--É alli?

--Não, senhor--disse o homem, rindo;--mas vêem-se d'aquelle sitio as
primeiras casas da aldeia.

--As primeiras!--murmurou Henrique em tom lastimoso; e penderam-lhe os
braços com mais desalento e augmentou-se-lhe a flexão da columna
vertebral.

O almocreve proseguiu, para o distrair:

--Tenho passado por estes sitios muita vez com neve de se cortar á faca
e de noite. E olhe que nunca tive mêdo. Qual historia! Mêdo? Isso sim! E
vamos lá! o sitio não é dos mais seguros. Vê o senhor essa cruz preta,
ahi á sua mão direita, pregada no tronco d'esse pinheiro? Pois ahi mesmo
mataram um homem, que vinha com uns centos de mil réis da feira franca
de Vizeu, fez pelo S. Miguel um anno. E ainda hoje se está para saber
quem foi. N'um ermo d'estes só os santos podem valer a uma creatura.

Henrique sentiu-se pouco á vontade com as elucidações do cicerone; olhou
para elle com desconfiança e quasi julgou vêr moverem-se sombras
suspeitas por entre os troncos dos pinheiros. Apalpou nos coldres os
cabos das pistolas, e approximou as esporas dos ilhaes da cavalgadura.

Dentro em pouco attingiam o indicado tronco de sobreiro, de junto do
qual deviam avistar a aldeia.

Henrique olhou; viu lá no fundo do valle muitas arvores, mas continuou a
não enxergar vestigios de casas.

--Onde está a aldeia que dizias, homem?

--D'ahi já se vê--disse o almocreve, correndo para alcançar o
cavalleiro.--Não vê v. s.^a, além, além, aquelles pinheiraes mansos?

--Vejo, sim.

--Pois já são da freguezia. Se fôsse mais claro havia de avistar a casa
do guarda. É a tapada dos Bajuncos, que pertence á morgadinha dos
Cannaviaes.

Henrique não respondeu. A distancia a que ficava ainda a tal tapada
fel-o suspirar.

Emfim, passados minutos, principiaram a descer para o valle, costeando
sempre obliquamente o monte.

Cem passos andados, fez-lhe o almocreve notar um pequeno ponto branco,
que se divisava ao longe por entre a rama do arvoredo, mas já
indistinctamente, em virtude do adeantado da hora e da intensidade da
neblina.

--Lá está a capella da freguezia--dizia o homem.

--Alli? É um seculo para lá chegar!

--Qual! Estamos aqui, estamos lá. Eh, russo!

E applicou uma vigorosa vergastada nas ancas do macho, que accelerou o
passo.

O homem continuou:

--Até se fôsse mais dia podia-se vêr d'aqui a pedra, que está no
cemiterio novo, e que é da familia da morgadinha dos Cannaviaes. Foi a
mãe d'ella a primeira pessoa que lá se enterrou, e até hoje mais
ninguem. O povo, como o outro que diz, tem sua aquella em se enterrar
fóra da egreja. Elle, a falar a verdade... Eu bem sei que tudo vae do
costume... mas emfim a gente foi creada n'isto... Mas a pedra é coisa
asseada. É como as que estão na cidade.

Henrique, transido de frio, quebrado de desalento, já nem attendia ao
que o homem ia dizendo.

Cerrára-se a noite de todo, quando attingiram emfim o valle. O terreno
mudava agora de aspecto. Appareciam já, aqui e alli, alguns indicios de
cultura, annunciando a proximidade de um povoado. Os caminhos
estreitavam, internando-se no valle, e seguiam tortuosamente por entre
muros tôscos de pedra ensossa, silvados e sebes naturaes. A chuva, que
não cessára de cair, transformára estes caminhos, onde o declive não
dava escoamento ás aguas, em charcos e tremedaes.

Novos indicios da vizinhança da aldeia iam successivamente apparecendo.

Aqui era uma manada de bois soltos, em direcção do curral, guiados por
uma creança de palhoça e pernas nuas, os quaes paravam a olhar com
aquella expressão de composta curiosidade, que lhes é peculiar, para o
recem-chegado visitante da aldeia. Não faltou receio a Henrique, que
suppôz a estes bonacheirões quadrupedes a indole travêssa e bravia dos
touros, a cuja chegada tantas vezes fôra assistir em Lisboa.

Mais adeante passava por elles uma fileira de carros a vergarem sob o
pêso do matto e atroando os ares com o chiar incómmodo das rodas sob o
eixo, incómmodo para os ouvidos cidadãos de Henrique, cujos nervos se
irritavam com elle, mas apparentemente agradabilissimo para os
conductores aldeãos, que ou dormiam ou cantavam com aquelle
acompanhamento.

N'um e n'outro ponto deparavam-se-lhe já algumas casas de tectos de
colmo, de cujas innumeras fendas saía um fumo espêsso, que a atmosphera
humida mal deixava elevar nos ares. No olfacto deshabituado de Henrique
de Souzellas o cheiro resinoso e activo das pinhas e das agulhas sêccas
dos pinheiros, queimadas no lar, produziam sensações muito longe de
serem agradaveis.

Augmentava-se-lhe com tudo isto a funda melancolia que já lhe tomára o
animo.

--Tantas fadigas para este resultado!--pensava elle.--Sair de Lisboa
para me enterrar n'esta aldeia escura e suja! Enganou-se o parvo do
doutor. Cuidava que me salvava e matou-me. Eu morro por certo aqui. Deus
lhe perdôe o homicidio.

Os caminhos succediam-se aos caminhos, qual mais tortuoso e incómmodo de
trilhar; as curvas complicavam-se como as ruas de um labyrintho. Aqui
subiam; desciam mais além, para subir outra vez. Umas vezes caminhavam
em terreno descoberto, outras penetravam em tão estreitas quelhas,
apertadas entre paredes argilosas e humidas e toldadas de ramos
entrelaçados, que só o instincto do animal podia evitar-lhes os perigos.
Ora soavam as patas do macho como em chão lageado, ora amortecia-lhes o
som um terreno, que a chuva encharcava, e a agua lamacenta vinha
salpicar o rosto do cavalleiro.

As casas eram já frequentes, e algumas de menos humilde apparencia.

Os cães, que, pelo timbre de voz, mostravam ser gigantes, ladravam
raivosos por dentro dos portões ou de sobre os muros das quintas, ao
ouvirem os passos da cavalgadura ou a voz do almocreve, que falava ou
cantava sempre.

Outras vezes era um inharmonico grunhir suino que accusava a vizinhança
das córtes ou, partindo de um casebre rustico, o chorar de creanças,
entremeado com os ralhos das mães e com as pragas dos chefes de familia.

O almocreve não desistira das suas funcções de cicerone, que sómente
interrompia para saudar alguns conhecidos seus, a cuja porta passavam.

--Estes campos e lameiros--ia dizendo--são da morgadinha dos Cannaviaes;
andam arrendados a um compadre meu.

E exclamava para dentro de uma casa terrea, escassamente allumiada por
uma candeia:

--Boas noites, tia Escolastica. Como vae a pequenada?

--Ai, é vossemecê, sr. José? Então não entra?--respondia-lhe uma voz
feminina.

--Agora, não, ámanhã.

E proseguiu para Henrique:

--É uma santa creatura. A morgadinha...

Henrique interrompeu-o:

--Onde fica a final, a quinta de Alvapenha? onde mora minha tia? Não me
dirás?

--É logo ahi adeante, meu patrão. Em nós passando umas casas amarellas
que ha ahi... é logo ao pé. Essas casas que digo são tambem da
morgadinha, mas ha uma demanda pelos modos.

O almocreve falava pela decima ou undecima vez na morgadinha. Até esta
periodica referencia a uma personagem que elle não conhecia,
impacientava Henrique de Souzellas.

E continuavam a succeder-se em enredado dedalo as quelhas e azinhagas, a
ponto de fazer perder toda a orientação. Umas vezes ouviam o ruido das
levadas, que as ultimas chuvas tinham engrossado; adeante, transpunham
uma ponte rustica, escutando das profundezas do despenhadeiro, que ella
atravessava, o fragor das cascatas nos açudes ou o ranger das rodas dos
moinhos.

Henrique a cada momento imaginava cair n'um abysmo.

--São os açudes do Casal--dizia o almocreve berrando para se fazer ouvir
através do estrondo da torrente.--Pertencem á morgadinha dos Cannaviaes.

Henrique nem alento já tinha para falar.

Ao triste e quasi sinistro aspecto d'aquella aldeia tão cerrada lhe
envolveu o coração a nuvem de melancolia, que cedeu sem resistencia ao
crescente torpor que o invadia, como o que desespera da vida e da
salvação.

Mais adeante, excitou-lhe ainda as attenções uma toada plangente,
melancolica, monotona, que exacerbou estes effeitos.

--É uma fiada em casa do Tapadas--disse o almocreve.--É um dos maiores
amigos do pae da morgadinha. Vê aquelle muro acolá?

--Eu não vejo nada. Deixa-me!

--Pois pertence já á quinta dos Cannaviaes, que a morgadinha...

--Outra vez! Cala-te para ahi com essa morgadinha--exclamou Henrique.

Era evidente emfim que estavam em pleno coração do povoado. As casas
appareciam mais juntas. De algumas saía um surdo rumor de vozes que
tinha o que quer que era de lugubre. Era a corôa rezada em familia a
Nossa Senhora. A voz grave do lavrador casava-se com a voz quebrada e
trémula do avô, com a voz sonora e fresca da mãe, e a juvenil das
raparigas e creanças n'aquelle piedoso côro, produzindo um effeito que
acabou por levar ao auge a impaciencia do nosso spleenetico viajante.

--Sumiu-se essa endiabrada quinta de Alvapenha, que não a acabamos de
attingir?

O almocreve d'esta vez nem respondeu; sacudiu uma chicotada sibilante
junto ás orelhas do muar, o qual com desusada rapidez galgou uma ladeira
orlada de arvores, volveu á direita e, á voz do almocreve, estacou em
frente de um portão de quinta resguardado por um telheiro rustico.

--É aqui--disse o guia.

--Até que emfim!--exclamou Henrique, suspirando. Suspiro de conforto e
de tristeza ao mesmo tempo, como o do homem cançado da vida, quando
antevê o repouso do tumulo. Em Henrique era intima a convicção de que a
quinta de Alvapenha lhe havia de servir de cemiterio.




II


O almocreve assentou duas vigorosas pancadas no solido portão de
castanho, deante do qual tinham parado.

As primeiras vozes, a responderem-lhe, foram as de dois cães, que
acudiram de longe ao signal e vieram ladrar á porta com furia, que fez
agourar mal a Henrique da cordialidade da recepção que o esperava. De
facto as intenções dos quadrupedes não pareciam demasiado hospitaleiras.
O almocreve divertia-se excitando-os de fóra com uma vara de vime,
apesar de quantas recommendações de prudencia lhe fazia Henrique, não em
demasia socegado.

A final ouviu-se uma voz aspera e rouca, chamando os cães á ordem, se é
licito, sem irreverencia, empregar n'este caso a phrase consagrada para
outro genero de algazarra.

Henrique ouviu rodar a chave, correr os ferrolhos, levantar a aldraba,
gemerem os gonzos, e emfim um homem de lavoura alto e magro, trazendo em
punho um lampeão de frouxissima luz, appareceu-lhes á porta e saudou-os
com a fórmula do estylo:

--Ora Nosso Senhor lhes dê muito boas noites.

E, levantando a luz á altura do rosto de Henrique, poz-se a miral-o com
a menos ceremoniosa curiosidade.

--É o sobrinho cá da senhora, não é verdade?

--Sou eu mesmo.

--Está um tempo muito azêdo. Eu já julgava que não vinham. Entre.

Henrique não se resolvia a acceitar o convite, porque lhe continuavam a
impôr respeito os olhares ferinos e os rugidos surdos dos dois
façanhosos quadrupedes, cuja má vontade era a custo refreada.

--Entre, entre--insistia o homem.

--Mas esses animalejos?...

--Ah! isto não faz mal. Sae-te p'ra lá, Lobo: passa, Tyranno!

Lobo! Tyranno! Que nomes! E dizia o homem que não faziam mal!

--C'os diabos! ti'Manuel--disse o almocreve--em occasião de se esperarem
hospedes, não se soltam assim os cães. Os diabos não são nenhuns
cordeiros. Olhe no outro dia o sr. Joãosinho das Perdizes, que por pouco
lhes deixava nos dentes as barrigas das pernas.

--Forte perca!--resmoneou o outro.--Não trouxesse cá os d'elle. Não tem
dúvida; entre o senhor, que elles não lhe fazem mal.

--Não entro; assim é que não entro--teimou Henrique, a quem as palavras
do almocreve acabaram de fortificar na sua resolução.

O homem em vista d'isto encolheu os hombros e bradou:

--Ó Luiz!

Uma creança de cinco annos, e quasi nua, correu ao chamamento.

--Enxota para lá esses cães, que aqui o senhor tem mêdo.

A creança, á palavra mêdo, fitou Henrique com uns olhos espantados, e
tomando do chão um tronco de tojo, deu-se a zurzir desapiedadamente nas
feras, que, com todos os signaes de respeito, de orelha baixa e cauda
abatida, fugiram deante d'ella.

O orgulho de Henrique de Souzellas ficou um tanto maltratado com o
desfecho da scena; mas a prudencia consolava-o, dizendo-lhe que andára
ajuizadamente.

--Agora vossemecê--disse o camponez para o almocreve--arranje-se como
puder e mais a bêsta ahi pelas lojas, emquanto eu ensino o caminho ao
senhor.

--Vão, vão com Nossa Senhora, que eu cá me arranjarei. Muito boas
noites, sr. Henriquinho.

--Adeus, José--disse Henrique, passando para a mão do guia a esportula
da gorgeta, e após seguiu, com as pernas trôpegas de cavalgar, o homem
do lampeão.

Não era para dissipar a impressão penosa, que subjugava o espirito de
Henrique, o aspecto que lhe offerecia, áquella hora da noite, a parte da
quinta, por onde era conduzido para a casa de Alvapenha.

Primeiro, trilhou o pavimento molle de um quinteiro ou eido, estradado
de altas camadas de matto e embebido de chuva, d'onde se exhalava um
cheiro de cortumes, pouco de lisonjear o olfacto mal habituado a estes
aromas campezinos. A luz do lampeão a custo conseguiu evitar a Henrique
o tropeçar n'um carro desapparelhado, n'uma dorna, n'uma pia para
gallinhas, e em outros objectos que atrancavam o quinteiro. Transpondo a
cancella que terminava este, seguiram por uma rua de folhas;
atravessaram diagonalmente a horta, pelo carreiro que a dividia;
ladearam a eira e a casa do cabanal, e, effectuados mais alguns rodeios,
acharam-se finalmente junto da escadaria de pedra, por onde se subia
para uma especie de patamar ou varanda alpendrada, que servia de um
modesto portico á casa de Alvapenha.

A propriedade da tia de Henrique era um genuino typo de casa rustica, á
moda do Minho.

Ao subir as escadas, e apesar de mal poder divisar os objectos á escassa
luz que os allumiava, recebeu Henrique a primeira impressão agradavel de
toda aquella mal estreada excursão.

Estas escadas, esta varanda de pedra e este alpendre avivaram n'elle
memorias, quasi apagadas. Lembrava-se agora vagamente de ter brincado
alli, a cavallo n'esse mesmo parapeito, então, como agora, enfeitado de
uma formidavel cohorte de aboboras meninas, victimas votadas ás festas
do proximo Natal.

A um canto do patamar deparou-se-lhe ainda um grande vaso de louça, que
elle, havia vinte e tantos annos, conhecera, e ao qual tinha a ideia
vaga de haver quebrado uma aza; abaixou-se no intento de se certificar,
e viu que de facto ainda lhe faltava a aza, sendo este o unico estrago
que após tanto tempo o velho utensilio soffrêra.

--É admiravel!--não pôde deixar de exclamar Henrique ao fazer a
descoberta, vendo que em oito dias operava maior reforma nos seus
aposentos em Lisboa, do que n'um quarto de seculo se realisava em
Alvapenha.

O hortelão bateu á porta e disse para dentro que era o sobrinho da
senhora que chegava.

Seguiu-se um mexer de cadeiras, um trocar de vozes, um arrastar de
passos; moveu-se a chave na fechadura; abriram-se as portas e no limiar
appareceu de braços abertos a tia Dorothéa, e por traz d'ella, elevando
a luz acima do hombro da ama, a criada Maria de Jesus, a que, havia
trinta annos, lhe era companheira e interessada em lagrimas e pesares.
Já Henrique lhe andára ao collo no tempo em que estivera creança na
quinta.

Deante da figura esbelta, do typo varonil e do comprido bigode de
Henrique, a sr.^a Dorothéa reprimiu as suas expansões e quasi recuou.

Nunca mais vira Henrique desde que este, aos cinco annos, deixára
Alvapenha, e dir-se-hia que esperava ainda encontrar os mesmos cabellos
louros e annelados e o mesmo rosto menineiro da travêssa creança de
outros tempos, em vez do homem feito, em que os vinte e tantos annos
volvidos o tinham transformado.

Ha d'estas illusões na gente.

A mais segura razão não está precavida contra ellas; a infundada
surpreza invade-nos de subito, e os labios não podem prender a
exclamação que a denuncia.

--Pois na verdade tu és o Henriquinho?!--disse espantada a boa senhora.

--Eu julgo que sim, tia Dorothéa.

--Tu! Ai como estás um homem! Ó Maria de Jesus, você não quer vêr isto!?

--Parece mesmo um soldado!--disse a criada, igualmente estupefacta.

--Credo, mulher! Santissima Trindade! Você que está a dizer? Nossa
Senhora nos livre de tal!--exclamou a ama, em cujo conceito o soldado
estabelecia a transição do homem para o diabo.

No entretanto Henrique de Souzellas abraçava a tia, que havia tanto
tempo que não vira, e ella correspondia-lhe, beijando-o com todo o
carinho e chorando.

Chorando por quê? Por quê? Pela muita bondade que tinha n'aquella alma.
A bondade é um rico manancial, que brota lagrimas ao toque da menor
commoção.

Henrique não tinha ainda bem conseguido libertar-se dos roxeados
amplexos e mais provas de affecto de sua tia, quando se sentiu prêso em
novos laços. Era Maria de Jesus, que o abraçava tambem e lhe pespegava
nas faces dois beijos muito chiados, como aquelles que veem a ferver do
coração, e isto acompanhado de um--Ai o meu rico filho!--tão eloquente
como os beijos.

Henrique, habituado ás etiquetas da civilisação urbana, que estabelece
entre amos e criados distancias desconhecidas na aldeia, extranhou um
pouco a familiaridade, mas sujeitou-se a ella sem reflexões.

Maria de Jesus dizia, ainda admirada:

--Ó senhora! Não que uma coisa assim! Pois é este o menino que vinha á
cozinha limpar o tacho, em que se fazia a marmelada!

--É verdade! E que boa marmelada cá se fazia!

--Lambareiro!--disse a tia, sorrindo.--Se eu soubesse que eras assim,
não tinha mandado lavar o tacho do dôce, que ainda hoje serviu.

--Sim? Então ainda se faz dôce cá em casa, como d'antes?--perguntou
Henrique.

--Pois então? todos os annos. Mas valha-me Deus! E não querem vêr nós
aqui postas á palestra! Entra, menino, entra cá para dentro, que está
frio e tu deves vir cançado.

--Um pouco, um pouco, tia Dorothéa.

E Henrique entrou para a sala.

Demoremo-nos no limiar para informar o leitor sobre as pessoas, em cuja
casa se vae alojar com Henrique de Souzellas.

Não se imagina a santa paz de espirito, a placidez de paraiso, que estas
duas mulheres--D. Dorothéa e Maria de Jesus, ama e criada--gosavam na
quinta de Alvapenha, onde Henrique de Souzellas ia procurar allivio aos
seus muitos e variados males.

Ambas da mesma idade, ambas muito aferradas aos seus habitos, ambas
muito tementes a Deus e amigas do proximo, as duas celibatarias passavam
alli uma vida, rescendente a um suave perfume de santidade, como o da
alfazema e do rosmaninho, que lhes aromatizava as gavetas e de que se
repassava toda a roupa branca, objecto muito dos seus cuidados.

A inalteravel harmonia, mantida havia tantos annos entre as duas,
poderia ser exemplo á maior parte das familias d'este mundo. Entre
velhas, que nunca tiveram filhos, circumstancia que em geral faz o humor
mais acre e desabrido, era tanto mais para admirar o caso.

Tinham ellas porém a precisa tolerancia para fazerem mutuas concessões;
cada uma fechava os olhos aos pequenos caprichos da outra, e tudo corria
bem. Nunca a dentro d'aquellas paredes se ouviu uma só palavra, que, por
mais alto pronunciada ou por menos expressiva de paciencia, destoasse da
invariavel monotonia dos seus habituaes dialogos.

Eram um exemplo edificante para os vizinhos, que, pela maior parte,
devorados por demandas entre primos e irmãos, paes e filhos, marido e
mulher, mostravam infelizmente ser esta abençoada semente caída em
improductivo terreno.

As discordias intestinas nas familias do seu conhecimento affligiam as
duas sexagenarias e augmentavam o numero de Padre-Nossos com que todas
as noites se faziam lembrar dos santos, de quem eram validas,
pedindo-lhes a felicidade dos outros tanto ou mais do que a sua propria.

Ouvir rezar as duas santas velhas--e era essa a occupação dos seus
curtos serões--equivalia a escutar uma resenha das differentes
calamidades, que perseguem e apoquentam o genero humano, e que ellas,
d'esta maneira, pretendiam evitar.

--Um Padre-Nosso e uma Ave-Maria a S. Marçal, para que nos livre do
fogo--dizia D. Dorothéa, e seguia-se o Padre-Nosso.--Outro a Santa Luzia
milagrosa, para que nos dê vista e claridade na alma e no corpo; outro a
S. Braz, para que nos proteja da garganta; outro a S. Vicente, por causa
das bexigas, etc. Seguia-se um Padre-Nosso por todos os que andam sobre
as aguas do mar; outro por os pobres sem abrigo nem alimento; outro por
os orphãos; outro pelos doentes; um pelos vivos; outro pelos mortos; um
pelos justos; outro pelas almas do purgatorio, não hesitando até a sua
caridade em transpôr as portas do inferno e pedir tambem a remissão dos
condemnados. E ainda depois d'esta minuciosa e longa enumeração, um
ultimo Padre-Nosso fechava a primeira serie, comprehendendo todos os não
contemplados por esquecidos, ou por não terem logar na classificação.

Compunha a segunda serie a menção especial de cada uma das pessoas
fallecidas das suas relações: parentes, amigos e conhecidos, por cujo
«eterno descanço entre os resplendores da luz perpetua» oravam com
verdadeira compunção. N'esta phalange ia tambem D. João VI, por quem,
havia quarenta annos, se costumára a rezar D. Dorothéa, e não era ella
mulher que rompesse com habitos semi-seculares. Era esse talvez o unico
Padre-Nosso que a alma do monarcha recebia no Céo, com procedencia do
seu antigo reino.

Quanto ás qualidades physicas, a imaginação dos leitores pintar-lh'as-ha
melhor do que a minha descripção. Forçosamente conheceram uma d'estas
boas velhas, para quem nos sentimos attrahidos; a quem se estima e com
quem se brinca ao mesmo tempo; que nos podem inspirar sacrificios e
simultaneamente nos tentam a travessura; a quem mystificamos agora e
logo beijamos respeitosamente a mão; contra quem não reprimimos
impaciencias, escutando depois submissos os seus nunca terminados
sermões.

Ora estas velhas assim teem quasi sempre um typo uniforme, que é o
reflexo exterior da bondade do coração; esse era o typo da tia Dorothéa
com o seu vestido rôxo, o seu lenço castamente cruzado no peito, a sua
touca de folhos alvissimos e de fitas escuras, o mólho de chaves á
cinta, o livro de orações na algibeira e os oculos a marcarem no livro a
reza habitual.

Maria de Jesus de igual maneira. Era apenas uma edição popular da mesma
alma. Succedêra de mais com ellas o que é sempre de esperar de uma longa
e intima convivencia; haviam reciprocamente adoptado maneiras e modos de
pensar e de vêr e de dizer as coisas uma da outra, a ponto de qualquer
d'ellas ser como que uma premissa d'onde a modo de conclusão, se deduzia
a outra facilmente.

Tudo isto percebeu logo Henrique de Souzellas ao primeiro exame que fez
das duas santas mulheres.

Entremos agora com elle para dentro da sala.

Quem, vinte annos antes, tivesse visitado a casa de Alvapenha e ahi
voltasse de novo com Henrique julgaria, á vista da uniforme disposição
de coisas mantida alli dentro em tão distantes épocas, que todo esse
tempo não fôra mais do que um sonho de momentos.

Encontraria os mesmos móveis, na mesma collocação; as mesmas cobertas
nos leitos, apenas mais desbotadas; as mesmas ou iguaes cortinas nas
janellas; o mesmo cheiro de feno e alfazema na atmosphera dos quartos,
os mesmos quadros na parede, as mesmas jarras nas cómmodas.

A memoria de Henrique, aquella inconstante e leviana memoria de rapaz
estouvado, sentia-se acordar, á vista d'aquillo tudo.

A sala tinha uma physionomia caracteristica.

Supponha-se uma não muito ampla quadra de pouca altura, toda pintada a
óca, e alumiada por duas mal rasgadas janellas de peitoril, com os seus
competentes assentos de pedra, um defronte do outro, com meias cortinas
de cambraia sempre corridas--pleonasmo de discrição que se não
justificava, visto que as janelas, abrindo para a quinta, não tinham
vizinhança de cujos olhares precisassem de recatar-se. O tecto era de
almofadas de castanho, em tempos pintado de azul, agora de uma côr
duvidosa. Havia quinze annos que D. Dorothéa falava em o mandar retocar,
mas o projecto, momentoso como era, ia sendo adiado de primavera para
primavera. Orlava a sala, no alto, um friso ou cornija saliente, onde
coroadas maçãs de inverno aguardavam, em vistosa fileira, a completa
maturação, e derramavam no aposento o mais agradavel aroma. O pavimento,
apesar de muito picado de caruncho, andava limpo e _escafunado_--termo
do vocabulario de casa--que mettia gôsto vêl-o. Cada parede era um museu
de estampas de devoção. Poucos santos e santas da côrte celestial não
estavam alli representados e com um colorido, que era o maior peccado, a
que estes bemaventurados haviam dado logar cá no mundo.

Cá se via Santa Quiteria e as suas sete companheiras; Santa Anna
ensinando Nossa Senhora a ler; o Senhor dos Passos, venerado em S. João
Novo, no Porto; o Bom Jesus de Bouças, representação da imagem, que,
segundo reza a respectiva chronica, é obra das mãos de José de
Nicodemus; os Santos Martyres de Marrocos, da igreja de S. Francisco,
etc., etc. Sobre a cómmoda de pau preto era devotamente venerado o mais
rubicundo, menineiro e bem disposto Santo Antonio, que ainda modelaram
as mãos de santeiro afamado. E seja dito de passagem que não sei por que
a tradição popular dá a este austero franciscano o aspecto chorudo de um
moderno reitor de farta abbadia de aldeia.

No interior da redoma onde se abrigava o santo estava estabelecido o
museu de raridades da tia Dorothéa. Eram flores artificiaes,
concharinhas e caramujos, um rosario de caroços de azeitonas, uns poucos
de vintens de prata, enfiados e pendentes do braço do menino Jesus, que
o santo sustentava ao collo, veronicas, escapularios, uma campainha
benta, uma medida do braço do Senhor de Mattosinhos, um pão do sacco de
Santa Isabel, que vae na procissão de Cinza, no Porto, e outros objectos
curiosos.

A mobilia da sala consistia em cadeiras de palhinha, que gemiam quando
entravam em serviço, como militar, cujas articulações o rheumatismo
invadiu; mesas cobertas com colchas de chita; bahús cravados de pregaria
amarella, disposta em lettras e arabescos; uma papeleira de pau santo, e
uma gaiola com um canario decrepito, objecto, havia muitos annos, das
tentações de um gato, mais decrepito do que elle e pertencente ás
classes inactivas.

Henrique, adivinhando por todo aquelle cheiro de beatitude e de
antiguidade que alli se respirava, os habitos da casa, sentia já certo
desconfôrto, como de quem é arrancado de subito ao ambiente, em que se
educou e vive, e engolfado n'um ambiente extranho; especie de asphyxia
moral, não menos angustiosa do que a do peixe fóra da agua.

A saudade que ao principio sentira, dissipára-se já. O perfume da
saudade é como o de certas flores, que só se percebe quando de longe o
recebemos. Se, illudidos, as tentamos aspirar de perto, dissipa-se.

Acontecera isto com Henrique.

Cada vez portanto se lhe radicava mais funda a crença de que não seria
por muito tempo que se demoraria alli.

--Os emollientes do doutor--pensava elle, emquanto sua tia falava--serão
efficazes para quem os pudér soffrer sem enjôo, mas para mim...

No entretanto sentou-se.

--Ora o Henriquinho!--dizia ainda D. Dorothéa, pondo-se de braços
cruzados em contemplação defronte d'elle.--Ó menino, onde foste tu
arranjar esses bigodes tamanhos? Então isso agora usa-se?

Pergunta que sobremaneira embaraçou Henrique.

--Quem quer usar, usa, tia. Não é obrigação--respondeu elle, com leve
mau humor.

--Em nome do Padre e do Filho!--dizia Maria de Jesus, benzendo-se e
tomando logar ao lado da ama.--Até nem sei que parece, lembrar-se a
gente que trouxe este marmanjão ao collo!

O termo «marmanjão» não soou bem a Henrique. Principiava tambem a
impaciental-o o vêr as duas embasbacadas deante d'elle; um homem sujeito
a uma exposição d'estas, por mais que faça, não atina com o modo de
arrostar com ella, que não seja ridiculo. Ora Henrique, como todo o
homem da sociedade, o que mais que tudo temia n'este mundo era o
ridiculo.

Felizmente acudiu-lhe a caridosa intervenção da tia Dorothéa, que fez
perceber á criada a conveniencia de ir preparando a ceia de Henrique,
que havia de querer recolher-se. Henrique, apesar de não costumar cear,
acceitou a ideia, porque o frio, as fadigas e a má alimentação dos
ultimos dias, haviam-lhe desafiado o appetite. Demais, o espanto de D.
Dorothéa, quando lhe ouviu dizer que as ceias não entravam nos seus
habitos, foi tal que lhe tirou o animo de rejeitar.

--Não ceias! Ó menino, que me dizes? então vaes-te deitar sem ceia? Ora
essa! Por isso vocês são uns pelens. Vejam lá que arranjo este! ficar
toda a santa noite sem alguma coisa que dê sustento ao estomago, que
aconchegue. Nada, nada; a ceinha em todo o caso. E tu has de tambem
querer mudar de fato?

--Eu venho bastante molhado.

--Ai, então depressa, menino, que não ha nada peor do que a roupa
molhada no corpo. Ó Maria... ou deixe estar, eu vou... Anda,
Henriquinho, anda lá, que eu guio-te ao teu quarto para te arranjares.

Meia hora depois, Henrique banhado, enxugado e commodamente vestido,
saboreava uma gorda gallinha de canja, sobre uma mesa coberta de toalha
lavada, e na melhor louça da copeira.

Elle que tinha sempre severidades de critica contra os mais afamados
cozinheiros de Lisboa, estava achando deliciosa aquella comida
primitiva, com que o regalava a tia.

Esta sentou-se a vêl-o comer, e com a mesma familiaridade, que Henrique
já anteriormente extranhára, Maria de Jesus sentou-se ao lado da ama.

Ambas tinham ceado já; pois que o faziam ao cerrar da noite.

Emquanto Henrique comia, ellas, sem deixarem de o observar com a natural
curiosidade de quem havia tanto tempo não tivera um hospede, faziam-lhe
perguntas, ás quaes elle ia respondendo conforme lhe era possivel.

--Tu dizias-me na tua carta que estavas doente; pois olha que na cara
não o parece.

--Não--concordou a criada--tem boas côres, e, vamos, a magreza inda não
é lá essas coisas.

Era este o ponto fraco de Henrique; respondeu logo ao reclamo.

--Não me digam isso! Então não vêem como estou? Pois isto é lá côr de
saude? de febre, será. Gordo? pois acham-me gordo?!

--Gordo, não digo, mas assim, assim... E depois como vieste de
jornada... Mas a final que molestia é a tua, menino?

--Eu sei lá, tia Dorothéa? Nem os medicos a conhecem bem. É, entre
outras coisas, uma tristeza, uma melancolia, que me não deixa, que me
persegue por toda a parte. Ás vezes parece-me que sinto apertar-se-me
dolorosamente o coração; outras, são palpitações, ancias... Tenho quasi
vontade de chorar, irrito-me, impaciento-me, não quero que me falem,
nada quero vêr, nada quero ouvir; não leio, não durmo, não como.
Finalmente todo eu sou doença e tristeza.

A boa tia Dorothéa olhava com sisudez e attenção para o sobrinho,
emquanto elle falava, e na physionomia iam-se-lhe desenhando, ao
ouvil-o, os mais expressivos signaes de espanto e consternação.

Assim que Henrique terminou a exposição, ella disse-lhe com uma adoravel
candura:

--Então é assim uma especie de mania!

Á palavra «mania» Henrique sobresaltou-se. Seria a consciencia que se
sentiu ferida?

--Mania? Ó tia Dorothéa! Mania! Veja bem, olhe que o termo é forte?
Mania!

--Sim, menino--insistiu ingenuamente a boa senhora--pois olha que não é
outra coisa. Pois isto de estar triste sem ter de quê... sim... porque
não te morrendo ninguem, nem te doendo nada...

Ó poetas devaneiadores, ó almas melancolicas, que percebeis no sussurrar
das brisas, no ciciar das folhas, no murmurar dos arroios, queixas
occultas de dryades e de nayades, sentidas vibrações das harpas de fadas
aereas, que vivem em palacios de nuvens; ó corações inoculados de
poesia, que vos confrangeis e gottejaes lagrimas sinceras ao desmaiar do
dia, ao desfolhar das arvores no outomno; poetas, que escutaes, com
Victor Hugo, as vozes interiores, os cantos do crepusculo, e com elle
adivinhaes os mysterios dos raios e das sombras, perdoae a involuntaria
blasphemia da tia Dorothéa, que não contem o menor fermento de malicia;
perdoae-lhe a dura expressão de que ella se serviu para caracterisar os
vossos arroubamentos, as vossas tristezas vagas, os vossos devaneios, e
crêde que, apesar da phrase, terieis n'ella uma alma mais afinada para
sympathisar comvosco, do que tantas que por ahi fazem gala de vos
comprehender melhor.

Henrique não podia porém digerir a expressão, de que se servira a tia,
para diagnosticar o seu mal.

--Mania!--repetia elle--essa agora! Sempre é forte de mais. Mania, não,
tia Dorothéa, lá isso não. Mania!

--Eu lhe digo--acudiu a criada.--Não vá sem resposta; que está quasi
como o cunhado da Rosa do Bacello. A senhora não se lembra? Andou
aquella alminha por ahi sempre triste, sempre a falar só, até que a
final lá foi parar...

--Aonde?--perguntou Henrique, erguendo os olhos interrogadoramente para
a criada.

--Lá foi parar a Rilhafolles--concluiu esta, espevitando a véla o mais
naturalmente d'este mundo.

Henrique de Souzellas pulou com a sinceridade.

Nem acabou de sorver a ultima colhér de caldo de arroz, que lhe estava
sabendo como nunca manjar lhe soubera.

--Então não comes mais?--perguntou a tia.

--Muito agradecido; eu o mais que tenho é somno.

--Pois sim, mas é preciso fazer por comer--insistiu ella.

--Ora vá mais este côxão--disse a criada.

--Não é possivel--teimou Henrique, e insistiu para se recolher ao
quarto.

--Tens razão, tens--concordou a tia Dorothéa--deves estar fatigado. Vae
com Nossa Senhora, menino. E deixa-te lá de pensar e estar triste, que
isso não é bom. É fazer por espairecer. Come, bebe, passeia, que é o que
dá saude. Nada de malucar.

--Sim--accrescentou a criada--e não queira estar doente, que não tem
graça nenhuma.

--E olha, Henriquinho, tu tens por ahi com quem te podes distrahir. O
brazileiro Seabra, que tem uma casa como um palacio; o Augustito do
doutor, que é um bom mocinho. E depois vae dar um passeio por ahi, um
dia até os moinhos outro dia até á ermida da Senhora da Saude. Agora me
lembra: a Lenita já mandou ahi outra vez saber se tinha chegado o
hospede--disse D. Dorothéa.

--Não foi só a morgadinha...

--Ahi está você a chamar-lhe tambem a morgadinha.

--Então, senhora?! isto é o costume. Mas todas as outras senhoras
mandaram tambem o Torquato saber do sr. Henrique. A sr.^a D. Victoria e
a Christininha.

--Ai, pois cuidadosas são ellas! Tu has de te entender com aquella
gente. É uma gente muito dada e sem ceremonia. É preciso lá ir. Olha,
ámanhã podes ir visital-as. É um passeio bonito.

Henrique, que tinha estado distrahido durante a conversa das duas, nem
se dava ao trabalho de intervir no dialogo em que ellas dispunham já do
seu tempo e traçavam-lhe planos de vida.

--Mas vae descançar, menino, vae e faze por dormir. Olha lá, tu costumas
dormir com luz?

--Não, tia, não costumo.

--É porque n'esse caso... Ó Maria, onde está aquella lamparina, que me
serviu quando eu estive doente, ha seis annos?

--Está lá dentro, senhora; se a senhora quer eu...

--Vê lá, menino...

--Não tia, não quero.

--Ha pessoas que não podem dormir ás escuras--dizia a criada.--Eu,
graças a Deus, durmo bem de qualquer fórma.

--Pois sim, mas nem todos são como você. Olha, ó Henriquinho, has de vêr
se queres o travesseiro mais alto ou...

--Muito agradecido, tia Dorothéa, tudo deve estar bom--disse Henrique,
procurando fugir ás muitas reflexões, perguntas e conselhos, com que as
duas o iam perseguindo até o quarto.

--Olha, ó menino, tu bebes agua de noite?

--Ás vezes.

--Você poz-lhe agua no quarto, Maria?

--Puz, sim, minha senhora; pois então? Já minha mãezinha dizia, que
antes sem luz do que sem agua.

--Bem, então está bom. Então muito boa noite, menino.

--Boa noite, tia.

--Ai, é verdade. Has de vêr se queres mais roupa na cama.

--Não hei de querer, não, tia.

--Olha que está muito frio. Você quantos cobertores lhe deitou, ó Maria?

--Cinco, senhora.

--Cinco!--exclamou Henrique, quasi horrorisado.--Cinco cobertores!

--É pouco?

--Pouco?--É de morrer esmagado debaixo d'elles.

--Ai, quer não! Olha que está muito frio.

--Bem, bem; eu cá me arranjarei.

--Então, muito boa noite.

--Muito boa noite, tia.

E Henrique ia a fechar a porta.

--Olha...--disse ainda a tia.

Henrique parou.

--Não sei o que é que me esquece...

--Não ha de ser nada, tia; boa noite.

--Não esquecerá?... Eu sei?... Emfim... boa noite. Ai, é verdade...
Sempre é bom ficar com lumes promptos.

--Ai, sim; lá isso sempre é bom.

--Vês? não que bem me parecia.

--Já lá estão, senhora--disse a criada de longe.

--Melhor; então muito boa noite nos dê Nosso Senhor, menino.

--Muito boa noite, tia.

E Henrique conseguiu fechar a porta.

Estava finalmente só.

--Que desastrada lembrança a minha!--disse o pobre rapaz, ao fechar a
porta sobre si.--Como posso eu viver com esta santa e virtuosa gente,
que chama manias aos meus padecimentos? Que futuro de impertinencias me
espera! Ai, Lisboa, Lisboa, e pensar eu que só posso voltar para ti á
custa de outra jornada!

O quarto de Henrique era arranjado com simplicidade. Um alto leito de
almofadas na cabeceira e rodapé de chita, tão alto que se não dispensava
o auxilio de cadeira para trepar acima d'elle, uma commoda com um
pequeno espelho, um bahú, um lavatorio e duas cadeiras mais, constituiam
a mobilia toda.

Henrique de Souzellas sentiu a falta de mil pequenos objectos de
toucador, a que estava habituado. Aquelle estrictamente necessario não
lhe promettia grandes confortos.

Deitou-se. A roupa da cama era de linho alvissimo e respirava um asseio
e frescura convidativos: os travesseiros, de largos folhos engommados,
possuiam uma molleza agradavel ás faces; o colchão de pennas abatia-se
suavemente sob o peso do corpo fatigado.

Henrique conchegou a roupa a si; á falta de velador, pousou o castiçal
no travesseiro, e, abrindo um livro que trouxera de Lisboa, poz-se a
ler, para obedecer a um habito adquirido.

Não teria ainda lido um quarto de pagina, quando ouviu a voz da tia
Dorothéa, que lhe dizia de fóra da porta:

--Ó menino, tu já te deitaste?

--Já, sim, tia Dorothéa.

--Olha se tens cautela com a luz. Eu tenho um mêdo de fogos!

--Esteja descançada, tia. Eu apago já.

--Então será melhor. S. Marçal nos acuda.

E afastou-se, rezando ao santo.

Henrique continuou a ler.

D'ahi a pouco a mesma voz:

--Tu já dormes, Henriquinho?

--Não, tia, ainda não durmo.

--Olha que não vás adormecer sem apagar a luz. Eu tenho um mêdo de
fogos! Não descanço, emquanto não vejo tudo apagado em casa.

Henrique perdeu a paciencia.

--Pois pode socegar, olhe.

E apagou a véla, meio zangado.

--Fizeste bem, fizeste bem; isto já é tarde, e é melhor fazer por
dormir. Então, muito boas noites.

--Muito boas noites--respondeu Henrique quasi amuado; e ageitando-se na
cama, dizia comsigo:--E esta! Já vejo que nem ler me é permittido aqui.
Olhem que vida me espera! É isto o que me devia curar? Que fatalidade!

Dentro em pouco, os dois felpudos cobertores de papa, unicos que
conservava dos cinco primitivos, começaram a fazer o seu effeito,
insinuando nos membros cançados da jornada um agradavel calor.
Convidavam ao somno o som da agua n'um tanque que ficava por debaixo das
janellas do quarto e as gottas da chuva, que dos beiraes do telhado
caíam compassadas na taboa do peitoril.

A noite socegára. De quando em quando apenas algumas lufadas de vento,
já menos impetuosas, faziam bater as vidraças.

Eram como estes estados, que succedem a um choro aberto. Correm ainda
algumas lagrimas nas faces, mas já não brotam novas dos olhos: saem
ainda do peito os soluços, porém mais espaçados; dentro em pouco será
completa a serenidade.

Henrique começou a experimentar uma languidez, um delicioso bem-estar
n'aquelle confortavel leito e no meio d'aquelle socego; fecharam-se-lhe
enfraquecidos os olhos, e deslisou suave, insensivelmente, no mais
profundo, tranquillo e restaurador somno, que, havia muito tempo, tinha
dormido.





III


Ao romper da manhã, quando a consciencia principia, pouco a pouco, a
acudir aos sentidos, até então tomados pelo torpôr de um somno profundo,
Henrique de Souzellas sonhava-se commodamente sentado em uma cadeira de
S. Carlos, disposto a assistir ao desempenho de uma opera favorita.

Moviam-se os arcos nas cordas dos violinos, violoncellos e contrabassos;
sopravam, a plena bôca, os tocadores dos instrumentos de vento; agitavam
descompostamente os braços os ruidosos timbaleiros; dedos amestrados
faziam vibrar as cordas da harpa; a batuta do mestre fendia airosamente
os ares, e comtudo não chegava aos ouvidos de Henrique, de toda esta
riqueza de instrumentação, mais do que uma nota unica, arrastada,
continua, plangente, baixando e subindo na escala dos tons, e sem formar
uma só phrase musical.

Era de desesperar um _dilettante_ como elle; torcia-se na cadeira,
inclinava convenientemente a cabeça, fazia das mãos cornetas acusticas,
e sempre o mesmo resultado!

Este violento estado de attenção, este esforço do sensorio, principiou
n'elle a obra de despertar; principiou pois pelos ouvidos, mas cêdo se
transmittiu a todos os outros orgãos.

Antes de dar a si proprio conta do que era aquelle som, e quasi
esquecido ainda do logar em que estava, Henrique abriu os olhos.

A luz do dia penetrava já pelas frestas mal vedadas das janellas e
espalhava no aposento uma tenue claridade.

Veio então a Henrique a consciencia do logar em que estava, e uma
alegria profunda lhe dilatou o coração.

O leitor se ainda não padeceu de insomnias, de pesadêlos, ou de somnos
febris, não avalia por certo o contentamento intimo, que se apossa das
desgraçadas victimas d'esses demonios nocturnos, quando por excepção
elles as deixam em paz, e lhes respeitam o somno de uma noite completa.
Acordar só aos raios da aurora é um dos mais ineffaveis prazeres, a que
elles aspiram na vida.

Penetra-lhes então nos membros um insolito vigor; a arca do peito
expande-se-lhes mais livre e as sombras do espirito dissipam-se-lhes com
aquelle clarão matinal.

Foi o que succedeu a Henrique. Pela primeira vez depois de muitos mezes,
dormira de um somno a noite inteira.

Sentia-se com isto tão bom, tão vigoroso, tão contente que teve vontade
de cantar.

Mas o som, que o acordára, aquella nota unica, em que se confundiam
todas as notas da sonhada orchestra, ainda lhe soava aos ouvidos.

Prestando-lhe a attenção de acordado, conheceu que era o chiar dos
carros--o mesmo som, que na vespera o irritára, agora assim a distancia,
estava-lhe agradando, como nota extrahida por mão habil das cordas de um
violino.

Não resistiu mais tempo ao impulso que n'aquella manhã o incitava ao
exercicio, rara disposição no indolente filho da capital, que tinha por
habito ouvir o meio dia na cama.

Ergueu-se e abriu as janellas.

Não é licita a comparação entre a mais surprehendente transmutação de
uma d'essas apparatosas magicas, que tanto extasiam as multidões
embasbacadas nas plateias e camarotes de um theatro, e as que de
instante para instante, realisa a natureza. Descerrando o véo de nuvens
que encobre o fulgor do sol, elevando, acima do horizonte, esse
magestoso lampadario do mundo, ou o brilhante reflectidor que illumina
as noites desanuviadas, a natureza opéra, a cada momento, as mais
admiraveis e completas metamorphoses.

Durante o somno de Henrique realisára-se um d'esses effeitos magicos.

Abrandára gradualmente a violencia do sul; o vento, mudando, voltou em
sentido opposto a grimpa do campanario; dispersaram-se as nuvens;
luziram trémulas por momentos as estrellas, empallideceram perante o
alvor do dia, e quando o sol assomou por sobre a crista das serras,
estendia-se-lhe deante um vasto manto azul, tapetando a estrada, que
tinha a percorrer. Só, muito para o occidente, ainda algumas nuvens
amontoadas formavam uma como franja, que o astro nascente em breve
tingiu de carmim e de ouro.

Foi pois a luz de um dia esplendido e a brisa, cheia de aromas, que vem
dos campos nas alvoradas serenas que penetraram no quarto de Henrique,
quando elle abriu as janellas.

A inesperada surpreza quasi lhe soltava do peito uma exclamação de
prazer!

A aldeia, aquella mesma aldeia, escura e triste que, com o coração
apertado, atravessára na vespera, parecia outra.

O sol da manhã baixára sobre ella, dissipára-lhe as sombras,
colorira-lhe as verduras, reflectira-se-lhe nas presas, dispersára-se em
iris cambiantes na espuma das torrentes e cascatas naturaes, perfumára-a
de aromas, animára-a de cantos, transformára-a emfim na mais risonha
paizagem, em que os olhos de Henrique, pouco habituados ás esplendidas
galas do Minho, tinham nunca repousado.

O inverno despojára parte d'essas galas; embora! Até da propria nudez de
algumas arvores resultavam encantos. As folhas crestadas, os ramos
despidos, as moitas sem flores infundem tristeza; mas não tem a tristeza
poesia tambem? Pode haver completa paizagem onde não haja uns tons
escuros de melancolia?

Henrique de Souzellas, debruçado na varanda de pedra do quarto, não se
cançava de admirar aquella scena.

Parecia-lhe estar assistindo a um milagre de fadas, que, n'um momento,
elevam, nos ermos, jardins e paços, como os de Armida e Alcina.

Pois era esta a mesma aldeia, através da qual elle cavalgára de noite?

Os accidentes do terreno, aquelles accidentes, que tão do fundo da alma
amaldiçoára na vespera, produziam, vistos então d'alli, os mais
pittorescos effeitos. Abatia-se-lhe aos pés um não muito profundo valle,
opulento em vegetação, e que a certa distancia se continuava insensivel
e gradualmente com uma amenissima collina.

Além, um bello bosque de carvalhos seculares, que o inverno, privando-os
de folhas, tingira quasi da côr da violeta, contrastava com a fronde
sempre verde das laranjeiras nos pomares vizinhos, fronde por entre a
qual se divisavam abundantes os dourados fructos, poupados pela mão do
lavrador. As copas, como umbelladas dos pinheiros mansos, desenhavam nas
encostas e eminencias fronteiras as mais suaves ondulações. Dispersos
aqui e alli, e entremeiados com a verdura, grupos de casas campestres,
alvejantes á luz do sol, moinhos e azenhas, noras toldadas de ramadas
conicas, eiras, pontes rusticas, as mesmas talvez que com mau humor
trilhára na vespera, tão sinistras então, como graciosas agora; extensas
e virentes campinas e lameiros, onde pastavam numerosas manadas de gado.
Mais longe a igreja com a sua alameda á entrada e o cemiterio, onde um
só mausoléo avultava ainda; uma ou outra casa apalaçada, ennegrecida
pelo tempo; algumas ruinas, consolidadas pelas heras, revestidas de
musgos, douradas de lichens; finalmente, tudo o que tenta os
paizagistas, tudo o que exalça os poetas, tudo quanto suspende os passos
ao viajante; e, encobrindo todo o quadro, um tenuissimo sendal de
vapores azulados, dando-lhe a apparencia de uma das mimosas composições
a pastel da mão de Pillement.

A mudança de aspecto da scena operou não menor mudança nos sentimentos e
disposição do enlevado espectador que das varandas de Alvapenha a estava
observando.

--É preciso sair! é preciso sair!--disse Henrique comsigo.--Quero vêr
isto de perto; quero entranhar-me n'estes bosques, quero trepar por
aquelles montes, debruçar-me d'aquellas ribanceiras.

E vestindo-se á pressa, e sem sentir a necessidade de uma escrupulosa
_toilette_, saiu do quarto.

Encontrou nos corredores a tia Dorothéa, que o saudou amavelmente.

--Muito bons dias, menino, então como passaste tu a noite?

--Deliciosamente minha querida tia--respondeu elle, abraçando-a com
maior affecto e bom humor do que na vespera.

O que é sentir-se a gente bem!

--Então não estranhaste?

--Estranhei immenso!

--Sim?!--disse a tia, mortificada.

--Dormi a noite de um somno, e acordei bem disposto; o que para mim é a
mais estranha das occorrencias.

A tia sorriu satisfeita.

--Pois antes assim. E agora...

--E agora quero sair, quero vêr esta terra, que me está parecendo um
paraiso terreal.

--Espera, menino. Não vás sem almoçar.

--Almoçar! Pois que horas são?

--Não é cêdo; são já sete horas.

--Já sete horas!

E Henrique insensivelmente desviou os olhos para a janella, para vêr
como era a natureza, a uma hora a que raras vezes a examinava.

--E então acha que se pode almoçar ás sete horas?

--Por que não? Se está já prompto.

--Bom; almocemos. O doutor disse-me que tomasse os habitos da aldeia.
Principiemos por este.

Entrando para a sala do jantar, Henrique viu deante de si uma taça de
leite espumante, tépido, odorifero, extrahido de pouco tempo.

Foi por elle que principiou o almoço.

Pela primeira vez na sua vida disse elle ter bebido o leite verdadeiro,
o leite que não faz mentir a analyse dos chimicos, de que os
physiologistas exaltam as qualidades nutritivas, de que os poetas das
georgicas cantam as delicias e virtudes; só agora os comprehendeu elle,
que bem differente d'aquillo era o aguado e quantas vezes derrancado
sôro, a que estava habituado na cidade.

D. Dorothéa, almoçando, e Maria de Jesus, servindo, falaram, segundo o
costume, continuadamente.

Henrique, d'esta vez, falou tanto como ellas.

Ouvia-as já com mais attenção e respondia-lhes com mais vontade e
paciencia.

Falaram em muitas coisas.

A tia deu parte ao sobrinho de que varias pessoas da vizinhança,
sabendo-o chegado, lhe tinham mandado presentes de gallinhas,
offerecendo-se, ao mesmo tempo, para lhe mostrarem as raridades da
terra; disse mais que as senhoras da quinta do Mosteiro tambem tinham já
mandado saber d'elle, Henrique, e lembrou que seria delicado ir
visital-as aquella manhã.

Henrique concordou em tudo, quasi sem reparar em quê, e terminando o
almoço apressou-se a sair para o campo.

--E se te perdes, menino?--lembrou a tia.

--Se me perder, farei por achar-me.

Riram-se muito as boas mulheres e deixaram-o ir.

Dentro em pouco, Henrique atravessava a quinta, que tambem então lhe
parecia graciosa, de uma graça bucolica, a que não estava habituado. O
aspecto melancolico da vespera desvanecera-se. Até para ser completa a
mudança, estavam encadeados nas casotas o Lobo e o Tyranno, cujas boas
graças comtudo procurou conquistar, atirando-lhes biscoutos.

Foi um passeio delicioso o que elle deu. Tudo quanto via lhe era
novidade, tudo lhe captivava a attenção e o distrahia dos seus lugubres
pensamentos.

Depois de muito andar, de subir collinas, de descer valles e costear
ribeiros, foi sair a um pequeno largo, ao fim do qual havia uma casa
terrea, caiada de branco, com portas verdes e janellas envidraçadas,
sendo os vidros em alguns dos caixilhos substituidos por papel. Á porta
d'esta casa estava muita gente parada; mulheres, velhos, moços,
creanças, uns sentados, outros deitados, outros a pé e encostados á
umbreira, e todos apparentemente aguardando alguma coisa ou alguem do
lado de uma das ruas, que vinha terminar no largo, e para a qual se
dirigiam todos os olhares.

Henrique approximou-se d'esta casa com alguma curiosidade, que cêdo
satisfez, vendo em uma taboleta, suspensa no alto da janella, a seguinte
pomposa inscripção: «Repartição do correio», e, como a confirmar o
distico, um córte feito na porta para a recepção das cartas.

Lembrando-se da conveniencia de avisar o empregado do correio para lhe
serem remettidas a Alvapenha as cartas que lhe viessem de Lisboa,
Henrique entrou na repartição.

Consistia esta n'uma loja apenas, mobilada com um banco de pinho e
dividida por um mostrador, para dentro do qual se alojava todo o pessoal
do serviço, isto é, um homem por junto; e era este o sr. Bento
Pertunhas, personagem importante na terra, e a cuja intelligencia e
solicitude estavam confiadas mais do que uma funcção. Além de servir, em
interinidade permanente, como muitas vezes são as interinidades do nosso
paiz, este cargo, dito por elle, de «director do correio», estava de
posse s. s.^a de uma das cadeiras de latim e de latinidade, com que se
procura em Portugal fomentar nos concelhos ruraes o gôsto pelas lettras
antigas; era ainda regente e director da philarmonica da terra, armador
de igreja em dias festivos, ensaiador de autos e entremezes populares,
e, quando Deus queria, auctor de alguns tambem.

Vendo entrar Henrique nos seus dominios, o illustre funccionario tirou
cortezmente o seu bonnet de pelle de lontra e ergueu-se da banca para
cumprimentar tão honrosa visita. Nos cumprimentos que formulou disse o
nome de Henrique.

Admirado por ser já conhecido, Henrique interrogou o latinista e,
achando-o muito informado de tudo quanto lhe dizia respeito,
convenceu-se de que estava na presença de um esmerilhador de vidas
alheias do mais fino quilate e de um falador de assustar.

Com o fim de cortar a divagação, em que o homem entrára a respeito de
certa viagem que fizera a Lisboa, perguntou-lhe Henrique se o correio
não chegára ainda.

--Saiba v. s.^a que ainda não--respondeu o sr. Bento Pertunhas--mas não
deve tardar; o homem que d'aqui vae buscar as malas á villa, se bem
andasse, já cá podia estar. Esse formigueiro de gente, que v. s.^a ahi
vê á porta, está á espera d'elle. Hoje então, que chegam as cartas do
Brazil, ninguem pára com este povo. Dão-me cabo da paciencia. Isto é um
inferno! Eu sirvo este logar interinamente, emquanto o empregado está
paralytico; porque eu tenho outro cargo publico; sou professor de
latinidade.

--Ah!...

--É verdade, mas a minha vocação era para as artes. Meu pae queria que
eu fôsse padre e mandou-me ensinar latim; mas já então a minha paixão
era a musica. Eu ainda queria que v. s.^a me ouvisse tocar trompa, que é
o instrumento que mais tenho estudado... Se v. s.^a se demorar ha de
fazer-me o favor...

--Com muito gôsto.

--Não poder um homem seguir no mundo a sua vocação!

--Ainda assim não se pode queixar muito. O cultivo das lettras latinas
deve-lhe proporcionar gosos; porque emfim para quem possue instinctos de
arte, a leitura dos poetas já é um lenitivo contra as agruras da vida.

O mestre Pertunhas fitou Henrique com olhos muito abertos.

--Os poetas? Os poetas latinos! Ora essa! Então parece-lhe que pode
achar-se gôsto em lêl-os? Ai, meu caro senhor, eu por mim tenho-lhe uma
vontade!... O latim!... a mais destemperada e desesperadora lingua que
se tem falado no mundo! Se é que se falou--accrescentou em voz baixa.

--Então duvida que se falasse latim?--perguntou Henrique, sorrindo.

--Eu duvido. Não sei como os homens se podessem entender com aquella
endiabrada contradança de palavras, com aquella desafinação que faz dar
volta ao juizo de uma pessoa. Sabe o senhor o que é uma casa
desarranjada, onde ninguem se lembra onde tem as suas coisas quando
precisa d'ellas e passa o tempo todo a procural-as? Pois é o que é o
latim. Abre a gente um livro e põe-se a traduzir e vae dizendo: «As
armas, o homem e eu, canto, de Troia, e primeiro, das praias.» Quem
percebe isto! Ora agora peguem n'estas palavras e em outras, que elles
punham ás vezes em casa do diabo, e façam uma coisa que se entenda! É
quasi uma adivinha. Ora adeus! E depois--continuou elle, enthusiasmado
com o riso de Henrique, suppondo-o de approvação--e depois as
differentes maneiras de chamar a um objecto? Isso tambem tem graça. Nós
cá dizemos por exemplo: «reino e reinos» e está acabado; lá não senhor;
diz-se _regnum_ e _regna_ e _regni_ e _regno_ e _regnis_ e até
_regnorum_. Ora venham-me cá elogiar a tal lingua!

Henrique estava achando delicioso o odio entranhado de mestre Bento
Pertunhas á latinidade que ensinava com a proficiencia, que o leitor
pode imaginar, depois do que ouviu.

--Ai, meu caro senhor--continuou o atribulado _magister_--eu se me vejo
um dia livre d'este amaldiçoado latim, faço uma fogueira, na qual me hei
de regalar de vêr arder o Tito Livio e os Virgilios todos tres.

É de advertir que mestre Bento falava sempre no plural, ao referir-se a
Virgilio.

Quer-me parecer que para este interprete da litteratura latina tinham de
facto existido tres Virgilios, provavelmente irmãos, e cada um auctor de
cada um dos tres volumes da edição, que lhe servia de texto. Dizia
Virgilio 1.^o, 2.^o e 3.^o, como quem se refere aos monarchas homonymos,
que succederam n'um mesmo reino.

--Não me salvo se morro mestre de latim--proseguia elle.--Afunda-me no
inferno o trambolho da syntaxe.

Ia continuar, quando toda a gente, que Henrique viu fóra da porta,
principiou em desordenada azafama a entrar para a loja, que em breve não
comportava mais ninguem.

--Ahi vem o homem, sr. Pertunhas; ahi vem. Graças a Deus, que ahi
vem!--diziam todos á uma.

O funccionario principiou a impacientar-se.

--Então! então! Por onde ha de elle entrar, fazem favor de me dizer?
Saiam, saiam. Não ouvem? Então não fazem caso das minhas ordens? Dêem
logar. Não vêem que estão molestando este senhor?

Cada um dos reprehendidos n'estes termos indignava-se, ao vêr que os
outros não obedeciam ás ordens, mas, pela sua parte, não cedia um passo,
como se lhe valesse algum especial privilegio.

--Saia você, mulher--dizia um.

--E você por que não sae? Olha agora!

--A todos ha de chegar a vez. Descance. Se tiver carta lh'a darão. Lá
por estar aqui não é que...

--Pois então saia tambem. Ora essa!

--Ó santinha, não empurre.

--Ó filho, quem é que lhe faz mal?

--Por onde é que se quer metter, homem de Deus?

--Eu não sou menos que os outros.

--Que quereis vós d'aqui, canalhada?

--Não bata, que ninguem lhe tocou, seu velhote.

--Espera que eu te falo.

Estas e analogas vozes abafavam n'um rumor tumultuoso as agudas
declamações do «director do correio», o qual obrigou Henrique a passar
para dentro da teia, para se salvar das ondas populares.

Henrique estava achando igualmente curiosa a indignação do homem e a
alvoroçada anciedade do povo.

Ha de facto poucas scenas tão animadas, como a da chegada do correio e
da distribuição das cartas em uma terra pequena. Durante a leitura dos
sobrescriptos, feita em voz alta pelo empregado respectivo, um
observador, que estude attento as impressões que essa leitura opéra nos
semblantes dos que ávidos a escutam, como que vê levantar-se uma ponta
de cortina, corrida a occultar-nos as scenas da comedia ou da tragedia
da vida de cada um.

Que hora de commoções aquella, em que se abrem as malas, onde veem
encerrados porventura os destinos de tantas pobres familias! Quantas
vezes verdadeira boceta de Pandora, d'onde se espalham as desgraças e os
pezares!

Nas grandes cidades dispersam-se estas commoções; passam-se no recato
dos gabinetes de cada um. Lembrem-se porém das vezes, em que teem
segurado com mão trémula na correspondencia, que o correio lhes traz; no
anciar do coração com que lhe rasgam o sêllo; nas lagrimas ou sorrisos
com que lhe interrompem a leitura; no irresistivel movimento de
desespero com que a amarrotam depois, ou nas expansões apaixonadas com
que beijaram o nome que a subscreve; lembrem-se d'isso, multipliquem
depois esses affectos todos, despojem-os das reservas que a etiqueta
impõe ás classes mais civilisadas, façam-os manifestarem-se n'um mesmo
momento e n'um mesmo logar, e digam se concebem muitas outras scenas, em
que mais sentimentos e paixões se agitem em lucta travada.

Chegou emfim o homem das cartas, e a custo conseguiu romper até ao
mostrador, onde pousou a mala. O «director», depois de tossir, de
assoar-se, de suspirar e de limpar os oculos com umas delongas, que
formavam com a anciedade do povo um contraste desesperador, abriu
fleugmaticamente o sacco, extrahiu um não muito volumoso masso de
cartas, que despejou n'um cesto de vime, e tomou apontamentos.

Era digno do pincel de um artista aquelle grupo de physionomias, que
seguiam ávidas todos os movimentos de mestre Bento. Olhos e bôcas
abertas, mãos juntas, pescoços estendidos, a cabeça inclinada para
receber o menor som, tudo caracterisava profundamente a anciedade que
lhes dominava os animos.

Mestre Bento Pertunhas achou a occasião apropriada para dizer a
Henrique:

--Pois, senhor, eu nasci para artista. Quasi sem mestre aprendi a tocar
trompa e, não é por me gabar, mas prezo-me de tocar com certo mimo e
expressão.

Henrique volveu o olhar para o auditorio; apiedou-o a consternação
d'aquellas physionomias. Resolveu valer-lhe.

--Tem a bondade de vêr se ha alguma carta para mim?

--Ah! pois já as espera hoje?

--Não é provavel; porém...

Mestre Bento Pertunhas, em vista d'isto, começou em voz lenta e fanhosa
a leitura dos sobrescriptos.

Seguiu-se novo e não menos interessante espectaculo.

A cada nome proferido, erguia-se quasi sempre uma voz, ás vezes um
grito; estendia-se por cima das cabeças um braço, e, podemos
accrescentar ainda que se não visse, alvorotava-se um coração.

Outros, os não nomeados ainda, olhavam com anciedade para o masso, que
diminuia, e cada vez mais se lhes assombrava o semblante.

--Luiza Escolastica, do logar dos Cójos--lia mestre Pertunhas.

--Sou eu, senhor, sou eu; ai, o meu rico homem!--exclamou uma mulher
joven, apoderando-se ávidamente da carta.

--Joanna Pedrosa, de Serzedo--continuava elle.

--Aqui estou; será do meu Antonio, senhor?--disse uma velha, pobremente
vestida.

--Será do seu Antonio, será--respondeu o insensivel funccionario;--o que
lhe posso dizer é que traz obreia preta.

A mulher, que já tremia ao receber a carta, deixou-a cair, ouvindo
aquellas sinistras palavras. Apanharam-lh'a; e ella, tomando-a, saiu da
loja, a chorar lastimosamente.

--Se foi o filho que lhe morreu, não sei o que ha de ser d'ella--disse
um dos circumstantes.

--Coisas do mundo!--respondeu outro.

Estes commentarios foram interrompidos pela continuação da leitura.

--João Carrasqueiro.

--Prompto, senhor--bradou um velho.

--A mezada, hein?--disse Bento Pertunhas, fitando-o por cima dos
oculos.--O rapaz não se esquece.

--Deus Nosso Senhor o ajude, que bem bom filho tem saido.

--D. Magdalena Adelaide de...

--É a morgadinha, é a morgadinha--disseram a um tempo muitas vozes.

--Agradecido pela novidade; era cá muito precisa a explicação--disse o
Pertunhas: e passando a carta para uma mulher, que era a encarregada de
fazer a distribuição a quem a podia gratificar, accrescentou:

--Leve-lh'a a casa.

E proseguiu:

--Augusto Gabriel...

--É o mestre-escola...

--Ora fazem o favor de estar calados! Esta... como elle vem por aqui...
pode ficar... ainda que... será melhor levar-lh'a a casa, leve, leve
tambem...

--João Cancella.

--É o João Herodes.

--Esse foi a Lisboa.

--Então, quando vier, que appareça.

--O tio Zé P'reira ficou de receber as cartas. É compadre d'elle.

--Eu não quero saber de compadrices. O tio Zé P'reira que se occupe com
o seu zabumba e deixe lá os outros.

A leitura mais ou menos acompanhada d'estes dialogos proseguiu,
redobrando de momento para momento a anciedade dos que iam ficando. Um
fundo suspiro, unisono, melancolico, expressivo de desalento, seguiu-se
á leitura do ultimo nome e ás poucas palavras, com que o funccionario
fechou a tarefa.

--E acabou-se.

Os que ainda estavam na loja sairam cabisbaixos, morosos e com tão má
vontade, como se ainda tivessem esperança de commover a inexoravel
sorte.

Henrique, ficando só com Bento Pertunhas, teve de lhe escutar ainda, por
muito tempo, a narração dos seus passados triumphos artisticos, das suas
amarguras presentes no magisterio, e das suas esperanças em
melhoramentos futuros. Entre as ambições mais inquietas do mestre, a de
obter o logar de recebedor de comarca, proximo a vagar por a morte
imminente do respectivo empregado, figurava em primeira linha.

Depois de varias tentativas, Henrique conseguiu deixar o seu
interlocutor, e continuou o passeio que este episodio interrompera, tão
satisfeito e distrahido, que nem apprehensões lhe causava a ideia de
trazer as botas humedecidas pelas hervas do caminho, ideia que, em outra
occasião, bastaria para o fazer doente.

Ladeava elle um campo, cingido de altas silvas, a procurar saida para a
deveza, da qual um fundo vallado o separava, quando lhe pareceu ouvir um
rumor de vozes, como de alguem, que conversasse perto d'alli.

Parou a certificar-se.

Não se enganára. Era do outro lado da sebe, e na deveza, para onde
tentava passar, que se estava falando.

Espreitou por entre as folhas do silvado que o encobria, e viu uma
scena, que lhe moveu a curiosidade.

Um grupo de creanças e de mulheres do povo escutavam em pleno ar e com
religiosa attenção, a leitura que uma senhora joven e elegante lhes
fazia das cartas, que ellas para esse fim lhe davam. A senhora estava
montada, não como romantica amazona, em hacanêa fogosa, mas modesta e
simplesmente n'um digno exemplar d'aquelles pacificos animaes, a que
Sterne não duvidou dedicar algumas palavras de sympathia nas suas
paginas mais humoristicas, e que Pelletan incluiu entre os
collaboradores da humanidade na grande obra do progresso, ou, deixando a
periphrase, em uma possante e bem apparelhada jumenta.

Á roda as ouvintes encostavam-se com familiaridade ás ancas e ao pescoço
do immovel quadrupede.

A leitora segurava no collo a mais pequena e a mais nua das creanças do
rancho.

Lia com voz agradavel e sonora; e, graças á serenidade da manhã e ao
socego do logar, ouviam-se distinctas, á distancia que ficava Henrique,
as palavras, que ella pronunciava lentamente, como para as deixar
penetrar bem na intelligencia do auditorio.

Henrique reconheceu muita d'esta pobre gente, por a mesma que, momentos
antes, vira na casa do correio.

Mas as suas attenções voltaram-se com especialidade para a leitora.

Era uma mulher muito nova ainda. Uma graciosa figura de mulher, suave,
elegante, distincta, um d'esses typos que insensivelmente desenha uma
mão de artista, quando movida ao grado da livre phantasia; a côr, essa
côr inimitavel, onde nunca dominam as rosas, mas que não é bem o
desmaiado das pallidas, encarnação surprehendente, a que ainda não ouvi
dar nome apropriado.

Os cabellos em fartas tranças, em ondas naturaes, não de todo pretos,
porém, mais distinctos ainda dos louros; a estatura esbelta, sem ser
alta, o corpo flexivel, sem ser languido; um vulto de fada, emfim, com a
magestade, com a graça que deviam ter estas creações da poesia popular,
se fôsse certo tomarem a fórma de virgens, para matar de amores.

Não se concebe attenção tão distrahida, que esta mulher não fixasse;
olhos, que se não voltassem para seguil-a, depois de a vêr passar;
coração, que não se perturbasse na sua presença.

Trajava um singelo vestido de xadrez branco e preto, adornado no collo e
punhos apenas por collarinhos lisos. Descaía-lhe natural e elegantemente
dos hombros um chale de casimira escura, sem lhe occultar as bellezas da
airosa conformação; o chapéo de palha de largas abas, cobrindo-lhe a
cabeça, espalhava pelo rosto as meias tintas, tão favoraveis ás bellezas
delicadas.

Henrique comprehendeu logo a significação da scena, a que, tão
inesperadamente, viera assistir. Aquella mulher parára alli, para ler a
essa gente pobre e ignorante, as cartas que haviam recebido do correio.

Tambem era caridade a acção, muito mais cumprida com o bom modo e com o
carinho com que ella o fazia.

Henrique applicou a attenção.

--...«E por isso, minha mãe»--lia ella--«se Deus me ajudar, espero
dentro em pouco ir a essa terra e darei remedio a tudo. E não me fale
vossemecê mais em vender o cordão e as arrecadas. Diga ao senhorio que
tenha paciencia, que eu satisfarei a tudo.»

Aqui a leitora parou para perguntar:

--Então que historia é esta das arrecadas, Anna?

--É, senhora, que o aluguer estava vencido...

--E não podia falar-me antes de se lembrar do seu filho?

--Ora, senhora, bem basta o que...

--Fez mal. Estar a affligil-o com estas coisas! Elle que precisa de toda
a coragem!

E continuou a ler a carta, no meio das lagrimas e das expansões de
alegria da ouvinte, mais interessada n'ella.

Acabando, deu um beijo na creança, que tinha ao collo, e estendeu a mão
a receber a carta, que outra mulher do grupo lhe passou. Esta era menos
de consolar. Não se falava alli senão de contratempos, de revezes e
desesperanças. Mais do que uma vez teve de suspender a leitura, para
mitigar a dôr e enxugar as lagrimas, que ella estava produzindo na pobre
mulher, a quem era dirigida.

Após esta, ainda outra e outra; uma do marido para mulher; outra de
filho para mãe; outra de noivo para noiva.

Foi com o riso nos labios e inoffensiva malicia nas inflexões da voz e
no olhar, que ella decifrou os mal legiveis caracteres, com que em papel
bordado, pintado e recortado, vinham expressos os mais arrebicados
conceitos amorosos, que ainda dictou uma paixão.

A noiva córava, sorria; mas, no meio da sua modesta turbação, era
evidente que estava exultando de jubilo.

Com esta terminou a leitura.

Henrique não resistiu a esboçar rapidamente o gracioso grupo na
carteira, que trazia comsigo. Não pôde, porém, deixar de dar-lhe um
sabor de idade média, substituindo a jumenta por um palafrem de pura
raça e dando á donzella, pelos trajes com que a desenhou, os ares de uma
castellã rodeada dos seus vassallos.

Não lhe bastou o natural do quadro, quiz revestil-o de um figurino de
convenção. Perdôe-lhe a arte, que julgou servir.

Depois de distribuir mais alguns beijos pelas creanças, a gentil
rapariga passou a que tinha no collo para os braços da mãe e partiu
rodeada de agradecimentos e bençãos, perdendo-a Henrique de vista, por
entre as arvores do caminho.

Aquelle typo delicado de mulher, aquella singeleza do apurado gôsto, em
que não podiam enganar-se olhos conhecedores, como os d'elle, aquella
preciosa perola alli na aldeia! em uma terra para chegar á qual era
necessario fazer uma comprida e laboriosa jornada! D'onde viera ella e
como? que nuvem a trouxera? que viração a transportára?

Em tudo isto ficou a pensar Henrique, e quando se lembrou de que podia,
para esclarecer-se, interrogar alguem do grupo, já não ia a tempo;
tinham dispersado.

Conseguiu finalmente passar para a deveza, e foi sentar-se no logar, em
que lhe apparecera a visão e ahi se demorou algum tempo; mas
lembrando-se de que eram quasi onze horas, levantou-se para não faltar
ás promessas feitas á tia Dorothéa, e que eram: a de visitar as senhoras
do Mosteiro e a de estar em casa pouco depois do meio dia, para não
transtornar a regularidade dos habitos domesticos em Alvapenha.

Pediu pois a uma creancinha que passava, que o guiasse á quinta do
Mosteiro, e ahi chegou depois de um quarto de hora de caminho.




IV


A casa do Mosteiro, com a quinta annexa á casa, como o dava a entender o
nome, pelo qual o povo a conhecia, tinha pertencido em tempo a uma ordem
monastica.

Era um d'estes conventos campestres, que hoje ou se encontram em ruinas
ou transformados em solar de alguma _notabilidade_ provinciana. Ao de
que falamos coubera o ultimo destino.

Incluido, depois do acto dictatorial de 1834, na lista dos bens
nacionaes, fôra, por insignificante preço, vendido a um modesto
proprietario das immediações, mais arrojado do que os vizinhos, ou mais
convencido da estabilidade da nova ordem de coisas politicas, que se
inaugurava no paiz.

E em tão auspiciosa hora lhe acudira aquella inspiração, que, em pouco
tempo, lhe restituia a quinta o capital empregado, regalando-o todos os
annos com não calculados juros, e elle, sem intermittencias, cresceu
d'ahi por deante em prosperidade a ponto de deixar, ao morrer, a familia
no numero das mais abastadas d'aquella terra.

A propriedade do Mosteiro, apesar de varios melhoramentos e reformas
effectuados n'ella, offerecia, ainda claros, muitos vestigios de seus
primitivos usos. Não era raro encontrar-se, aqui e alli, em pé uma cruz
de pedra marcando antigos logares de devoção; no alto de algumas portas
conservava-se visivel o emblema e divisa da ordem, ou restos de
inscripções latinas; nas paredes da arcaria, em que se apoiava a face
posterior do edificio, mantinha-se ainda um azulejo contemporaneo dos
frades; finalmente resistira a successivas reformações certo colorido
monastico, que só após muitos annos se dissiparia de todo.

Entrava-se para a propriedade por uma larga, comprida e magestosa álea
de sobreiros seculares, alcatifada de relva, que, sobretudo dos lados,
por pouco trilhada, crescia espêssa e verdejante. Abria-se, ao fim
d'esta rua, o alto portão do pateo.

Henrique, deixado só pelo guia ao chegar alli, foi caminhando
vagarosamente por esta avenida, dominado por a intima commoção e
sentimento quasi de temor, que se apodera de nós, em todos os logares a
que se ligam memorias do passado.

A phantasia estava-o transportando a tempos, a que não chegavam já as
suas recordações, ás épocas, em que, por entre estas arvores gigantes,
se via passar, como um phantasma, o habito escuro do monge, cuja sombra
o sol, ao declinar no horizonte, tantas vezes projectou, esguia e
estirada, ao longo d'aquella mesma avenida.

Impressionado por esta ordem de pensamentos, chegou Henrique ao portão,
transpondo o qual se introduziu no pateo. Era um largo terreiro de
perfeita fórma rectangular, limitado ao fundo pela fachada da casa, e
lateralmente por elevadas paredes, armadas á maneira de pannos de Arrás,
com tapeçarias de vigorosas heras. A cada uma das paredes encostavam-se
dois tanques de vasta capacidade.

No tempo dos frades vomitavam, sem cessar, as feias e enormes carrancas
de todos estes quatro tanques grossos jorros de fresca e purissima agua;
porém as medidas economicas do ultimo proprietario e as exigencias dos
seus projectos agricolas haviam derivado para outros fins, parte d'esta
abundante veia, de maneira que tres d'aquellas bacias estavam agora
completamente a sêcco.

Os fetos de folhas recortadas, as pegajosas parietarias, os funchos
odoriferos, havia muito que tinham invadido a bôca dos encanamentos
inuteis onde encontravam asylo imperturbado lagartos, aranhas e
myriapodes, e se estabeleciam pacificas colonias de caracoes.

A fachada do ex-mosteiro nada tinha de notavel pelo lado architectonico.
A arte não tivera fadigas, ao concebel-a; o cinzel pouco se embotára a
executal-a; nem uma columna singela, nem um florão, nem um tympano lhe
davam a menos pretenciosa apparencia monumental. Imagine-se uma vasta
casaria de um andar além do terreo, com muitas janellas de peitoril e
uma só varanda de pedra sobranceira á porta principal; acima do telhado,
uma especie de agua furtada, de construcção evidentemente posterior e
aconselhada aos proprietarios modernos por conveniencias de accommodação
domestica; e ter-se-ha concebido o edificio.

Emquanto Henrique se occupava a examinar estas particularidades, um
velhito, que, sentado em um banco de pedra, que havia á porta de casa,
se estava aquecendo ao sol, ergueu-se e veio ao encontro do
recem-chegado, tossindo e arrastando os passos.

Junto de Henrique, o velho, de apparencia meia rustica, meia urbana,
depois de o saudar com grave cortezia, que deixou a descoberto o
_solideo_ fradesco com que resguardava a fronte calva, perguntou se
havia alguma coisa, em que o pudesse servir.

Ouvindo, depois de repetida, a resposta de Henrique, que disse procurar
as senhoras, com nova cortezia lhe fez signal para que o acompanhasse, e
ambos atravessaram o pateo em direcção da casa.

No portal o velho afastou-se de lado com toda a deferencia para deixar
passar Henrique; em seguida abriu-lhe a porta de uma primeira sala, e,
voltando-se, pediu-lhe para que lhe dissesse quem havia de annunciar.
Henrique deu-lhe para esse fim um bilhete de visita, cuja significação
teve de explicar, porque o velho não a comprehendia bem.

A final porém retirou-se por outra porta, levando o bilhete.

A sala, em que Henrique ficou esperando, era toda mobilada com pesadas
cadeiras de couro lavrado e alto espaldar, mesas de pés em espiral, e
pelas paredes alguns ennegrecidos retratos de frades, pertencentes
provavelmente aos antigos proprietarios do mosteiro.

No momento em que o velho servo, que era uma especie de feitor honorario
da casa, abriu outra porta da sala, para ir annunciar á familia a visita
de Henrique, chegaram aos ouvidos d'este, de mistura com um tinir de
louças e de crystaes, as vozes e risos de creanças, que falavam ao mesmo
tempo. Com a entrada do velho produziu-se um certo silencio, e após uma
voz de mulher, de timbre fresco e agradavel, disse audivelmente e como
em resposta ás palavras do criado:

--Ora as etiquetas com que esteve, Torquato! Mande entrar para aqui.

O feitor parece que resmoneou não sei o quê, a que ainda a mesma voz
redarguiu:

--O que não é bonito é fazel-o esperar. Ande, vá.

Torquato--chamemos-lhe assim, visto que assim lhe chamaram--appareceu
outra vez e fez signal a Henrique, de que o esperavam na sala immediata.

Henrique que presentiu ir achar-se na presença de uma mulher nova e
porventura bonita, correu, com instincto de perfeito homem de côrte, os
dedos pelos cabellos, afagou o bigode, ageitou rapidamente o laço da
gravata e entrou.

Era completo o contraste d'este aposento com o primeiro; transpondo
aquella porta dissipava-se todo o perfume antigo, todo o caracter de
vetustez, que até alli reinava em tudo. Era moderno o estuque do tecto,
modernissimo o papel que forrava as paredes, e a mobilia toda de um
cunho de actualidade, visivel aos olhos menos pesquizadores. Como para
tornar mais frizante o contraste, a presença do velho feitor estava aqui
substituida por a de duas creanças, a mais velha das quaes mal passaria
dos seis annos.

O reposteiro, que caiu atraz de Henrique, foi como que uma cortina
corrida sobre o passado. A porta, que elle transpuzera, a barreira que
separava dois seculos.

Sentadas no tôpo de uma longa mesa de jantar, coberta de louça fina
ingleza, estavam as duas creanças que dissemos, com os seus babeiros
brancos e tendo cada qual defronte de si um prato de odorifera sôpa. Em
pé, á cabeceira, presidia ao _lunch_ infantil uma mulher, de quem
Henrique só pôde notar vagamente os contornos geraes do corpo e não as
particularidades das feições, porque, ficando voltada de costas á luz
das janellas, velavam-lhe o rosto umas meias sombras, que não favoreciam
o exame.

Ao vêr entrar Henrique, ella disse-lhe jovialmente:

--Na aldeia a sala de recepções é aquella em que a gente se acha, quando
lhe annunciam uma visita. É assim pelo menos que eu comprehendo o viver
do campo.

--E é assim que eu o aprecio, minha senhora--respondeu Henrique,
approximando-se da mesa.

As creanças, interrompendo a refeição, fitavam o recem-chegado com
aquelles olhos espantados e penetrantes, com que ellas, promptamente, e
quasi sempre com a certeza de um verdadeiro instincto, decidem para si
das sympathias ou antipathias de que lhes é merecedor um estranho, a
quem vêem pela primeira vez.

A mulher, que presidia ao banquete, não suspendeu com a entrada de
Henrique a occupação domestica, na qual estava empenhada. Mostrava
receber-lhe a visita com um perfeito «á vontade», que nada tinha porém
de affectado.

--Não sei se v. ex.^a sabe...--ia dizendo Henrique, quando, ao chegar
perto d'ella, parou subitamente em meio da phrase.

Na mulher, que estava deante de si, reconheceu a leitora da deveza, a
interessante rapariga, que tanto o preoccupára.

Era ella, era o mesmo vestido de xadrez, era a mesma cabeça, agora
melhor apreciada ainda, porque nada havia a encobrir-lhe a fronte de um
primoroso modelo, e os cabellos penteados com tanta graça como
singeleza. Em vez do longo chale de casimira, trazia agora uma especie
de jaqueta, curta e larga, apertada por alamares, de fórma pouco mais ou
menos similhante á que, na nomenclatura das modistas, nomenclatura quasi
sempre absurda, e de mau gôsto, teve depois a impropria e desastrada
denominação de _zuavo_!

A surpreza de Henrique não passou despercebida a quem era causa d'ella e
que lhe correspondeu com um gesto de curiosa interrogação.

--Perdão, minha senhora--disse Henrique, comprehendendo aquelle
gesto--mas ignorava que vinha encontrar aqui uma pessoa, que já me não
era estranha.

--E sou eu essa pessoa?

--É v. ex.^a effectivamente.

--Pois já nos vimos?

--Já... quero dizer, eu já vi v. ex.^a

--Pode ser; pela minha parte confesso-lhe que me não lembra de o ter
visto nunca. Apesar d'isso sei que é o sr. Henrique de Souzellas,
sobrinho d'aquella boa senhora de Alvapenha, a tia Dorothéa; não é
verdade?

--Eu proprio. O conhecimento que tenho de v. ex.^a não é antigo tambem;
data de algumas horas apenas.

A interlocutora de Henrique, ouvindo isto, contrahiu levemente as
sobrancelhas bem desenhadas, fez um movimento de labios e deu á cabeça
uma ligeira inclinação sobre o hombro, d'onde resultou para aquella
gentil physionomia a mais adoravel expressão de estranheza, que pode
animar um semblante de mulher.

--Esta manhã--proseguiu Henrique, a quem os encantos d'aquelle gesto não
tinham passado despercebidos--assisti a uma scena commovente. O logar
era uma deveza; uma joven senhora... joven e... e com outras qualidades,
além d'esta, para excitar attenções, lia, em voz alta, as cartas que
algumas pobres mulheres do povo acabavam de receber pelo correio...

Ella não o deixou continuar.

--Ah! entendo agora. Viu-me? Já andava por fóra? Não o suppunha assim
madrugador. Mas onde estava tão escondido? Vejo que é indiscreto... Não
admira, habitos da cidade. É verdade, é. Aquella gente encontrou-me no
caminho quando eu voltava de uma visita a uns parentes pobres, e não me
deixou sem que eu lhe abrandasse a ancia de coração que a affligia.
Coitados! Que havia eu de fazer? Diga-me, já pensou no supplicio que
deve ser olhar a gente para uma folha de papel escripta, na qual sabemos
que se fala de uma pessoa querida, e não ter poder para decifrar aquelle
enygma? Que martyrio! Eu por mim, confesso que me falta o animo para
recusar pedidos d'aquelles, como me faltaria para negar uma gotta d'agua
ao desgraçado que visse a morrer de sêde. A crueldade seria quasi igual.
Não lhe parece?

Henrique formulou um galanteio, que ella porém não ouviu, entretida já a
escutar o que uma das creanças lhe dizia.

--Lena, olha a Annica, que está a deitar a sôpa d'ella no meu prato.

--Deixa falar, Lena, deixa falar, foi ella que primeiro a deitou no meu.
Não tem vergonha de mentir!

--Então--disse Magdalena, que a este nome correspondia a contracção
familiar, de que se serviam as creanças.--Olhem agora se teem juizo.
Vejam se querem que eu vá dizer á mamã que venha para aqui.

--Não é ella a mãe, visto isso--pensou Henrique, como quem modificava
uma opinião que concebera antes e folgava com a modificação.--Será irmã?
Talvez... Ou mestra... É mais provavel que seja mestra. Esta mulher foi
de certo educada na cidade. Tem uns ares distinctos...

E elevando a voz:

--V. ex.^a está-me recordando uma scena de um precioso livro, que nunca
me canço de ler.

--Qual é?

--Werther.

--Ah!

--Conhece?

--Conheço... quero dizer, li-o, por acaso, ha pouco tempo. Compara-me a
Carlota? É por estar a distribuir as rações d'estas creanças? Que mulher
ha que não seja Carlota, n'essa parte? Em todas as casas se passa uma
scena assim. Bem se vê que não tem familia.

--Por quê?

--Por lhe fazer tanta sensação o espectaculo d'esta.

--É certo--respondeu Henrique com melancolia.--Deve ser essa uma das
causas; mas não a unica--accrescentou galanteadoramente.

E, de si para si, estava encantado de saber que a sua interlocutora
tinha lido Werther.

Magdalena, para mudar de conversa, perguntou-lhe:

--Então que lhe parece esta nossa aldeia?

--Um jardim. Hontem, ao chegar, confesso que me foi desagradavel a
impressão recebida. Nem admira; a noite, o frio, a chuva, o cansaço.
Esta manhã, porém, a transformação foi completa. Estou encantado,
fascinado! N'uma palavra, minha senhora, eu, cidadão em corpo e alma,
reconciliei-me em poucas horas com a vida do campo.

--Desconfie da mudança rapida. Habitos radicados, qualidades ou defeitos
de educação não se perdem assim depressa. Alguns dias aqui, e suspirará
por Lisboa outra vez.

--Talvez não. Hoje estou até em acreditar que tinha razão o doutor, que
me prometteu a cura das minhas doenças, se me costumasse devéras a estes
habitos campestres.

--Ai, prometteram-lhe isso? E espera costumar-se?

--Por que não? Hoje já almocei ás sete horas, já andei mais do que uma
semana inteira ando em Lisboa. E inda tenho por vêr as raridades da
terra.

--As raridades?! E que raridades são essas que inda tem para vêr? A
nossa pobre aldeia não lhe merece essa ironia.

--Então acha tão pouco curiosa esta terra? Do quasi nada que d'ella
observei esta manhã, parece-me até...

--Ai, se fala da natureza, é outra coisa. A cada passo se encontra um
ponto de vista, que nos obriga a uma exclamação. Mas ha por ahi certos
cicerones, que insistem em mostrar aos hospedes as bellezas da arte.
Peça a Deus que o livre d'esse flagello.

--V. ex.^a assusta-me. Embora; se lhes cair nas mãos, farei por achar
curioso o que elles acharem. Vae ser esse o meu systema de cura.
Interessar-me por tudo o que a um homem da aldeia interessa. Foi o
regimen que me prescreveu o medico, quando me receitou o campo, a titulo
de emolliente; se o seguir, salvo-me.

--E não o diga a rir. Se quizer prender-se á aldeia, abjurar os
attractivos da cidade, deve rustificar-se em tudo; principiar por
cultivar o interesse por as questõesinhas da terra; deve, por exemplo,
declarar-se pelo abbade contra a junta de parochia ou pela junta de
parochia contra o abbade; ralhar do regedor na questão com os
taberneiros ou defendel-o. Emquanto não chegar a isso, desconfie da sua
acclimação.

--Farei por conseguil-o o mais depressa possivel. Outra coisa necessaria
é deixar-me convencer ingenuamente dos inexcediveis dotes de espirito
das notabilidades da terra, o que é de rigor; estar em perpetua
admiração deante de uns certos nomes famosos que ha sempre em todas as
terras pequenas, e que nos atiram á cabeça a cada momento. Por exemplo,
aqui já sei de um, com que encherei a bôca a proposito de tudo; é o de
uma celebre morgadinha dos Cannaviaes, pessoa em quem ouço falar, desde
que puz os pés, ou por mim a alimaria que me trouxe, n'este productivo
torrão.

Magdalena sorriu de uma maneira singular, ouvindo isto.

--Então com que, tem ouvido falar muito n'essa morgadinha?

--Oh! mas não faz ideia; de uma maneira desesperadora. Não ha pinhal,
quinta, azenha, choça ou lameiro que não pertença a essa entidade, para
mim desconhecida. Este nome anda-me já nos ouvidos, como um estribilho
de cantiga popular; na estrada, nos campos, em casa de minha tia, na
loja do correio, em toda a parte o ouço pronunciar. Parece que voga nos
ares.

--Isso deve ter-lhe excitado a curiosidade de conhecer a pessoa.

--Qual! tem-me impacientado a ponto de nem perguntar por ella. E demais
parece-me que a estou a vêr.

--Ora diga. Então como a imagina? Annica, não tens ahi um guardanapo?

--Como a imagino? Imagino-a uma morgada, e está dicto tudo; uma senhora
nutrida, a rever saude por todos os póros, encarnada como uma romã,
sobre quem os vestidos á moda assentam como pendurados de um cabide, as
mãos cheias de anneis, meias luvas de retroz, um chapéo com uma
cercadura de rendas, pousado no cocoruto da cabeça... V. ex.^a ri-se?
Acertei?

--Parece-me que sim; mas julgue-o por si já que tem á vista o original.

--Como?!

--A morgadinha dos Cannaviaes, sou eu.

--Vossa Excellencia!...

Henrique de Souzellas, apesar do seu uso do mundo, esteve por muito
tempo sem saber como sair da situação em que se puzera.

Magdalena ria com toda a vontade; os pequenos riam, por contagio, sem
saberem de quê. Tudo augmentava pois a confusão de Henrique.

--Ora confesse--insistia cruelmente Magdalena--confesse que o está
lisonjeando a exactidão das suas conjecturas.

Henrique teve emfim uma lembrança. Tirou do bolso a carteira, em que,
horas antes, esboçára rapidamente a figura esbelta da morgadinha,
rodeada das mulheres do povo, e mostrando-lh'a, disse:

--Veja v. ex.^a se esse esboço, apesar da sua imperfeição, está de
accordo com a estupida concepção, que eu formára.

Magdalena lançou a vista para a carteira e sorriu.

--Ah! desenha?

--Quando os modelos tentam, tenho d'essas ousadias. Os resultados são
lastimosos, como estes. Perdôe-me o original, que julguei possivel
copiar, o desacato, mas...

Magdalena fitou em Henrique um olhar penetrante.

--Isso que diz sabe-me a um galanteio. Devo advertil-o de uma coisa, sr.
Henrique de Souzellas. Não ha nada tão mal empregado como uma fineza no
campo. Tudo quer o seu logar. Em Lisboa talvez o achasse pouco
delicado... ou pelo menos pouco amavel, se me não dirigisse d'essas
phrases conceituosas e bonitas. Vive-se d'isso lá. Aqui acho-as
affectadas e inuteis... Que quer? Influencias da scena. Ha tanta
semceremonia no campo! Aqui todos nos tratamos como parentes: ha de vêr.
Não repara como eu o recebo n'uma sala de jantar, sem nem sequer tirar
os babeiros a estas creanças? Olhe lá que fizesse o mesmo em Lisboa...

--Então v. ex.^a já lá esteve?

--Eu nasci lá e lá me eduquei.

--Ah! bem se vê.

--Ah? Ahi está um _ah_, que eu desejaria muito que me explicasse.

--Não me será difficil fazel-o. É que antes já de ouvir falar v. ex.^a,
só ao vêr certa distincção, certa elegancia de maneiras, conjecturei...

--Basta. É um _ah_ portanto, que tem umas poucas de más qualidades.

--Devéras? Uma interjeição tão innocente!

--Pelo contrario, é a voz mais perfida e inconstante da nossa lingua;
tudo exprime, a hypocrita. O seu _ah_ é vaidoso, adulador e iniquo pelo
menos. Pela vaidade castigue-o algum resto de modestia que ainda se
abrigue no seu coração lisbonense; a adulação competia-me castigal-a,
mas perdôo-lh'a porque quero ainda suppôr que é um symptoma da doença
das cidades, a meu vêr, a principal doença, que o obrigou a procurar a
aldeia; da iniquidade, da injustiça, que faz á educação que se pode dar
na provincia, ha de convencer-se dentro em pouco, quando eu lhe
apresentar minha prima Christina, uma rapariga, que tem vivido aqui
sempre e que protesta contra essa sua opinião; possue tudo quanto pode
dar de bom a educação das cidades, e, o que mais vale, aquillo que lá é
tão facil perder-se depressa, uma candura adoravel. É a irmã mais velha
d'estas creanças--accrescentou, pousando a mão na cabeça dos pequenos,
que comiam e conversavam um com o outro.

--Mas v. ex.^a...

--Perdão. Outra coisa. Já agora que entrei no caminho das admoestações,
permitta-me mais uma, antes de perder o ar grave, que hei de por força
ter. Não me sôa bem o impertinente tratamento de excellencia, que me dá.
Essa excellencia está a pedir-me uma senhoria, pelo menos, e,
confesso-lhe ingenuamente que me custaria a voltar na lingua uma palavra
tão comprida.

--Como quer então que a trate?

--Eu sei?... Olhe, uma ideia! Ha pouco não me comparou á Carlota de
Goethe? Deixe-me pois adoptar uma lembrança d'ella. Está certo de que
tratou o Werther por primo, a primeira vez que lhe falou? É um
tratamento como outro qualquer; e entre nós mais justificado, porque
sendo o sr. Henrique sobrinho direito de D. Dorothéa, e teimando minha
tia Victoria, a mãe d'estes pequenos e de Christina, que D. Dorothéa é
ainda uma especie de nossa tia arredada, e como tal a tratamos, nós a
final de contas vimos a ser uma especie de primos tambem. Pelo menos
assim o sustentou e decidiu hontem minha tia Victoria; e ha de vêr como
por primo o tratará! É um tratamento menos incómmodo; eu chamar-lhe-hei
primo Henrique; chamar-me-ha, se quizer, prima Magdalena, e
desterraremos para sempre a antipathica senhoria e excellencia;
concorda?

--Acceito e acho deliciosa a proposta. Adoptamos o principio falso,
admittido pela fidalguia em Portugal, de que «os primos dos nossos
primos, nossos primos são.»

--Fica pois ajustado?

--Fica ajustado.

--Bem. Mas que ia dizer ha pouco?

--Nem eu já sei... Ah!... Perguntava se tinha estado muito tempo em
Lisboa e o que a obrigou a vir viver para aqui.

--Isso é nem mais nem menos do que pedir-me a historia da minha vida.
Seja; é um sacrificio inevitavel a quem se vê pela primeira vez.
Deixe-me primeiro attender a estes pequenos, que eu principio.

E, depois de partir a cada creança uma fatia de queijo, a morgadinha
principiou:

--A historia é curta e sem peripecias, tranquillise-se. Eu sou filha de
Manuel Bernardo de Mesquita e...

Este nome era o de um dos principaes vultos politicos da época, e que
então militava no campo opposicionista, sendo indigitado para ministro
na primeira reforma ministerial, homem influente, de grande capacidade
politica, tendo sempre advogado no parlamento as ideias mais liberaes, e
militado no partido progressista.

Henrique de Souzellas, que conhecia todas as personagens de importancia
no paiz, fitou Magdalena com olhar estupefacto: tão longe estava de
encontrar alli a filha de um futuro ministro.

--Filha do conselheiro Manuel Bernardo! V. ex.^a?

--Excellencia! Esquece-se da nossa convenção? Repare! É verdade. Não
sabia que meu pae era d'aqui? Eu e meu irmão Angelo, que estuda
actualmente n'um collegio em Lisboa, somos os unicos filhos de meu pae.
Nasci, como disse, em Lisboa, mas as continuas enfermidades de minha mãe
fizeram-nos vir para aqui viver na companhia d'ella; aqui mesmo morreu,
e aqui está sepultada. O Angelo nasceu já n'esta casa. A morte de minha
mãe deixou-me orphã aos doze annos, e incompleta a educação que ella
principiára a dar-me e para a qual, se vivesse, ella só bastaria. Fui
pois obrigada a voltar a Lisboa, onde continuei com mestra a minha
educação. Mas, ao chegar á idade dos quinze annos, receiando meu pae que
os ares da cidade desenvolvessem em mim germens de molestia, que
porventura tivesse herdado, mandou-me outra vez para aqui, onde sempre
passava alguns mezes no anno, e para onde me chamavam tambem habitos
adquiridos em creança. Eu sou muito aldeã. Para aqui vim pois. A morte
de meu tio, passado pouco tempo, impressionou profundamente a minha tia
Victoria, que ficou desde então um pouco... um pouco... com pouca
paciencia para olhar por as coisas domesticas. Isto creou-me novos
deveres; havia aqui muitas creanças, estas duas, outras que estão lá
dentro, e Christina, que era então creança tambem; occupei-me a ajudar
minha tia.

--E tão admiravelmente, que a mais carinhosa mãe o não faria melhor.

--Dou-me bem com as creanças, dou. E a meu pae devo, em parte, o ter
aprendido cedo esta sciencia. Porque é uma sciencia tambem.

--Então como procedeu o conselheiro para a ensinar?

--Eu lhe digo. Meu pae tem em certas coisas umas ideias muito
singulares. Excellentes as acho eu. Oh! não imagina que boa e excellente
alma é a de meu pae! Era eu uma creança, tinha onze annos, talvez,
quando elle, um dia, vindo de Lisboa passar aqui algum tempo comnosco,
me trouxe uma boneca, realmente bonita; uma maravilha de Nuremberg. Nos
primeiros dias não me fartava de a vêr, de a beijar, até commigo a
deitava. Oito dias depois succedia o que era de esperar, já nem d'ella
sabia. Meu pae notou-o.--Então, Lena--aqui todos me chamam assim--já não
gostas da tua boneca?--Disse-lhe eu: Gosto, mas...--Bem sei, já fizeste
tudo o que tinhas a fazer por ella, e como, pela sua parte ella nada faz
por ti, enfastias-te, canças-te de conceber, a cada momento, brinquedos
novos. Tens razão; onze annos já não é idade em que o interesse se
sustente com tão pouco, é necessario mais. Ora dize-me, Lena,--continuou
elle--se eu te mandasse vir uma boneca que movesse os braços e os olhos,
que te sorrisse, que chorasse tambem, que te beijasse até...--Pois ha
bonecas assim?--perguntei eu, admirada.--E desejaval-a?--Oh! se a
houvesse!...--Trago-t'a ámanhã. Não dormi aquella noite a pensar na
boneca. No dia seguinte apresentou-me meu pae uma creança de um anno,
orphã de uma pobre familia, que uma epidemia extinguira, e
disse-me:--Ahi tens a boneca que te prometti, Lena; vou confial-a aos
teus onze annos. Veremos se tens juizo para brincares com ella. É assim
que eu quero que aprendas os deveres de mãe, que é a verdadeira sciencia
apropriada a mulheres. E o que é certo é que eu, dissipado o desgosto
dos primeiros momentos, porque o tive, confesso, costumei-me a querer
áquella pobre creança, fui avara nas suas caricias, troquei por ella
todos os meus brinquedos, e senti-lhe do coração a morte, quando, um
anno depois, ella me expirou nos braços. Quando fui para Lisboa, já ia
educada para amar creanças.

Magdalena contára tudo isto naturalmente, sem a menor affectação, sem
deixar até de attender aos primos, o que augmentava o interesse com que
a escutava Henrique.

--E assim fica sabendo quem é a morgadinha dos Cannaviaes--concluiu
ella, desatando o babeiro das creanças, que tinham terminado o _lunch_.

--É verdade, mas d'onde lhe vem este titulo singular, prima
Magdalena?--perguntou Henrique, tomando ao collo uma das creanças, que a
morgadinha pousou no chão.

--É que eu sou realmente a morgadinha dos Cannaviaes. Quero dizer, minha
madrinha vivia na quinta dos Cannaviaes, uma quinta que fica d'aqui
perto. Era uma senhora velha, rica, elegante e muito caprichosa;
chamavam-lhe todos a morgada dos Cannaviaes. Tomou-me ella affeição, e,
sempre que passeiasse, me havia de levar comsigo; d'ahi começaram a
chamar-me de pequena a morgadinha. Quando ella morreu deixou-me tudo
quanto possuia; n'esse legado entrava a quinta dos Cannaviaes, de que
sou proprietaria ainda. Foi uma como confirmação do titulo, que já desde
creança me tinham dado; e para todos sou aqui a morgadinha, titulo na
verdade pouco elegante e que tão mau conceito fez conceber ao primo
Henrique da possuidora d'elle.

--Retracto-me, prima Magdalena; agora que sei a pessoa a quem elle
pertence, parece-me outro. Acho-o bonito, gracioso...

--Vamos, vamos. Confesse que o titulo não é dos mais romanticos e que,
de boa vontade, escreveria outro nome debaixo do desenho de phantasia
que ahi fez, da mesma maneira que deu á humilde e fiel jumenta, que eu
montava ha pouco, a conformação e orelhas elegantes de um palafrem, e
quasi me transformou em uma amazona ingleza.

Henrique respondeu, sorrindo:

--Na impossibilidade de reproduzir as graças naturaes, soccorri-me ao
expediente das bellezas de convenção. Confesso o meu deploravel erro.

--Olhe que não estamos em Lisboa, primo Henrique. Repare para essas
arvores e refreie o sestro galanteador, com que está.

--Por quem é! Não leve o rigor a tal extremo. Tão injusta é comsigo, que
se recuse a acceitar, como naturaes e sinceras, as phrases que a sua
presença inspira?

--Ai, meu Deus, como refina! Veja como essa creança, que tem no collo, o
está encarando com os olhos espantados. Se ella nunca ouviu falar assim
aqui!

Henrique beijou as faces da creança, movimento em que não ia uma
intenção menos lisonjeira do que nas phrases que dissera, porque elle
percebia que Magdalena era extremosa pelos seus pequenos primos.

Abriu-se, n'este meio tempo, a porta da sala, e entrou, saltando, outra
creança mais crescida, mas ainda de vestidos curtos, trazendo na mão uma
folha de papel.

--Lena--dizia ella em alta voz.--Olha; queres vêr o que o sr. Augusto só
me emendou hoje no thema francez?

Chegando ao meio da sala, parou a olhar com estranheza para Henrique.

--É o sr. Henrique de Souzellas--disse Magdalena.--O hospede da tia
Dorothéa. Esta é Marianna, outra de minhas primas--accrescentou,
voltando-se para Henrique.--Já vê que não faltam creanças n'esta casa; e
ainda ha mais. É o que lhe dá o ar alegre que tem.

Marianna cumprimentou Henrique e não se constrangeu por mais tempo;
mostrando á prima a composição que o mestre lhe emendára, disse:

--Ora vê que não tive muitos erros.

Magdalena sorria, examinando o thema.

Henrique ia a fazer não sei que pergunta a Marianna, quando á mesma
porta, por onde ella entrára, appareceu o mestre, de quem se falava.

Augusto, que assim se chamava o recem-chegado, era um rapaz de pouco
mais de vinte annos de idade; de rosto pallido e physionomia
intelligente.

Ninguem adivinharia n'aquelle typo um mestre-escola de aldeia.

Trajava com simplicidade, porém com asseio e gôsto, e havia em toda a
sua figura certo ar de distincção, que feria quem pela primeira vez o
visse.

N'um leve pendor de cabeça, no olhar penetrante e fixo, e nos labios,
como habituados a fecharem-se á saida dos pensamentos intimos, lia-se o
caracter pouco expansivo d'aquelle adolescente.

Magdalena dirigiu-lhe a palavra, em tom de manifesta deferencia.

--Como vão os seus discipulos, sr. Augusto?

--Optimamente, minha senhora--respondeu o interrogado.

--O sr. Augusto--disse Magdalena, apresentando-o a Henrique--o primeiro
mestre de meu irmão Angelo e hoje mestre de Marianna e Eduardo.

--Esquece-se, minha senhora,--accrescentou Augusto--que de Angelo sou
discipulo tambem, e mais discipulo do que fui mestre.

--Do que me esqueci, e, a falar a verdade, não devia, foi de que de
Angelo é effectivamente mais do que mestre, é amigo; assim como de todos
nós. Este senhor--continuou ella, concluindo a apresentação--é o senhor
Henrique de Souzellas, que se esperava em Alvapenha; é ainda nosso
primo.

Os dois cortejaram-se com affavel delicadeza.

--Teve carta de Angelo?--perguntou em seguida a morgadinha.

--Não recebi ainda o correio de hoje.

--Nem nós; e é de estranhar que meu pae pelo menos não me escrevesse!
Angelo não virá passar a festa comnosco? Pobre rapaz! Parece que renasce
quando se vê aqui. É uma perfeita creança então.

Eduardo, outro primo de Magdalena, que Henrique ainda não vira, entrou
n'este momento na sala, trazendo um masso de cartas na mão. Depois de
cumprimentar Henrique, a quem Magdalena o apresentou, disse para
Augusto:

--A mamã deu-me essas cartas para o sr. Augusto escolher d'ahi aquellas
que eu pudesse ler.

--Eu verei devagar--disse Augusto, guardando-as n'uma pasta que trazia.

--Ah! já temos o Eduardo a ler cartas!--disse a morgadinha, afagando o
primo.

--Pelo que vejo--disse Henrique de Souzellas, vendo Augusto em
disposições de partir--tem uma vida muito occupada?

--E tanto que sou obrigado a pedir licença para me retirar. Tenho de ir
esta tarde a casa do Seabra...

--Ai, lecciona ainda as pequenas do brazileiro?--perguntou Magdalena.

--Ainda, sim, minha senhora.

--E como vão essas mulatinhas?

Augusto encolheu os hombros, sorrindo; gesto que não devia lisonjear a
vaidade do sobredicto brazileiro, se tomasse a peito os dotes
intellectuaes das referidas mulatinhas.

Passados segundos, Augusto retirou-se, apertando a mão a Magdalena que
familiarmente lh'a estendeu, e a Henrique, que a imitou.

--Ia apostar que vae alli uma intelligencia--disse Henrique ao vêl-o
sair--algum d'esses grandes espiritos, que vivem e morrem ignorados e
improductivos, porque os não aquece o sol do favor publico, nem os
bafeja a aura da moda caprichosa. É terra de maravilhas esta, ao que
estou vendo.

--É um rapaz intelligente, é--disse a morgadinha--e uma alma generosa.
Desde tenra idade costumou-se a trabalhar. Não tem familia. O pae foi um
pobre e honrado advogado de um logar perto d'aqui, que morreu quasi na
miseria, deixando-o por educar. A mãe, que era d'estes sitios, para ahi
veio, depois que viuvou. Elle tem sido, pode dizer-se, mestre de si
mesmo. Dirigiu os primeiros estudos de Angelo e hoje é o seu melhor
amigo. A morgada, minha madrinha, legou-lhe um patrimonio para elle se
ordenar: não quiz, e preferiu ser mestre-escola. Meu pae, que lhe
reconhecia intelligencia para mais, tentou dissuadil-o d'isso, mas nada
conseguiu. Não ha quem o arranque d'estes sitios.

--Prende-o talvez alguma paixão?

--Não sei. É certo que é um professor modelo. O seu primeiro despacho
foi temporario; agora, porém, espera meu pae fazel-o effectivo; para o
que já elle fez novo concurso. Já vê que ambições são as d'este rapaz.

--Na verdade! com muito menos fundamentos ha quem aspire a ser ministro.
Mas com certeza o coração entra como elemento no problema d'esse
caracter.

--Mas ainda agora reparo!--exclamou a morgadinha--eu esquecida a
conversar, e sem avisar a minha tia e Christina da sua chegada! Não o
fiz logo, porque as sabia occupadas em umas longas novenas, em que
andam; mas agora é tempo. Vae, Marianna, e tu, Eduardo; ide ambos
dizer-lhes que está aqui o... o primo Henrique de Souzellas.

Marianna e o irmão sairam a correr.

--Vae conhecer duas boas almas--disse Magdalena, voltando-se para
Henrique--minha tia é uma santa senhora, cujo peor defeito é suppôr-se
victima dos criados; e Christina... Christina é um anjo.




V


Henrique de Souzellas sentia-se cada vez mais penetrado da sympathia,
que logo á primeira vista, aquella mulher lhe despertára.

Havia na morgadinha um mixto de candura e de ironia, certa delicada
reserva fluctuando, como uma sombra diaphana, na conversa familiar, a
que tão espontaneamente se dava; um visivel conhecimento dos usos e
etiquetas sociaes, e ao mesmo tempo uma coragem para cortar por elles,
como quem se sentia sobranceira a toda a ousadia, inaccessivel ás
suspeitas dos mais atrevidos: havia tantos enygmas n'aquella sympathica
indole feminina, que poucos seriam impassiveis deante d'ella.

A pensar n'isto se ficou Henrique de Souzellas, calado, immovel,
absorto, seguindo com os olhos os movimentos de Magdalena, que, sem o
menor constrangimento, proseguia nas suas occupações domesticas.

Ouviram-se finalmente passos e vozes de differentes timbres na sala
immediata.

--Ellas ahi veem--disse a morgadinha.

De feito, precedidas por Marianna e Eduardo, entraram na sala D.
Victoria e Christina.

A mãe vinha dizendo:

--É o que eu digo... Não que vocês não querem crer! Ora vejam se isto se
atura... se isto não é para metter uma pessoa no inferno!... Não tem que
vêr!... Não ha ninguem que mais dinheiro gaste com criados e que seja
tão mal servida como eu!... Eu só queria saber o que fazem os criados
d'esta casa? Sim, só queria que me dissessem o que elles fazem, esse
bando de mandriões!... Elle é o Torquato, elle é o Luiz, elle é o
Damião, elle é a Ermelinda, elle é a Rosa, elle é a Violante... e não
havia um só que me viesse dizer que tinha chegado o primo! É forte
coisa!... Compromettem uma pessoa! Então como está?--accrescentou ella,
mudando de tom para cumprimentar Henrique, a quem estendeu a mão.

Magdalena, ao ouvil-a, tinha já trocado com este um olhar malicioso.

Henrique correspondeu delicadamente á saudação das senhoras e procurou
justificar os criados.

--Não m'os desculpe,--atalhou D. Victoria, elevando outra vez o tom de
voz--aquillo é de proposito para fazerem ficar mal uma pessoa; ninguem
me tira isto da cabeça... Aquillo é de proposito!

--Mas a mamã não vê que as criadas estavam comnosco á novena?--lembrou
timidamente Christina.

--Pois que não estivessem. Quem tem serviço a fazer não pode ouvir
novenas.

--Mas se a mamã é que as mandou!

--Pois sim... pois sim... mas... mas ellas é que me deviam dizer que
tinham que fazer. Então eu é que lhes hei de estar a lembrar as suas
obrigações? Não me faltava mais nada! Ora tens coisas, menina! Mas então
vamos a saber, primo Henrique, fez bem a sua jornada?

Henrique principiou a falar para desvanecer a irritação de D. Victoria.

Como nós já sabemos dos pormenores da tal jornada, aproveitaremos a
occasião para dizer duas palavras a respeito das novas personagens, que
estão em scena.

D. Victoria, havendo attingido já a idade respeitavel dos quarenta e
tantos annos, dispensa-nos grandes longuras e esmeros de descripção.
Basta que o leitor saiba que era uma senhora nutrida, bondosa no fundo,
e que sabia muito bem trazer os vestidos escuros da sua viuvez.
Impertinente com os criados, doida pelos filhos e sobrinhos, muito
sujeita a esquecimentos, e confundindo-se facilmente sempre que tentava
forçar o espirito a abraçar alguma ideia mais complexa; mãos rotas com a
pobreza; intolerante, em theoria, com os ladrões e malfeitores, porém
felizes d'elles se d'aquellas mãos lhes dependesse a condemnação; eis o
que era D. Victoria. Christina, porém, tinha dezenove annos; e esta
idade gosa de privilegios, que eu não posso infringir. O leitor não me
perdoaria se me visse passar estouvadamente por deante da prima de
Magdalena, sem um olhar de homenagem á sua juventude e ao seu typo
feminino. Reparemos pois.

Christina era mais bonita do que bella. Não havia n'aquelle rosto uma só
feição, que não fôsse correcta e delicada. Tez alva e finissima; olhos
meigos e quebrando-se com suavidade infantil; bôca, d'onde parecia
sempre prestes a sair um afago ou uma consolação; voz, que da muita
piedade d'aquelle bom coração, tirava ás vezes modulações commoventes;
n'uma palavra, uma figura de cherubim, como as sonharam os mais
inspirados artistas, cuja mão representou na téla os augustos mysterios
do christianismo, tal era a primogenita de D. Victoria. Mas não
procurassem n'ella alguns d'aquelles attractivos, que fixam de repente e
como por magnifico influxo, a attenção dos olhos, uma d'essas
particularidades physionomicas, pelas quaes a natureza, destruindo com
arrojo feliz a geral harmonia de um semblante, consegue tornal-o mais
fascinador; temperavam-se alli tão completamente todas as feições, que a
attenção não se sentia obrigada a passar do conjuncto d'ellas, o que
lhes diminuia muito a intensidade. É o grande senão dos rostos
harmonicamente perfeitos.

Concordava-se em que Christina era galante, ninguem lhe negaria
sympathias; mas o pensamento na ausencia d'ella, não se sentia dominado
por a sua imagem: perdia-a até n'um vago, quando pretendia fixal-a: eram
suaves de mais as inflexões d'aquelles contornos, brandas as tintas que
lhes davam relevo, para que a memoria conseguisse reproduzir facilmente
o typo angelico, de que lhe ficára uma agradavel, mas vaga impressão.

Por um homem, em quem predominasse a razão, Christina poderia vir a ser
adorada; mas nas imaginações ardentes, nos corações inflammaveis,
difficil lhe seria produzir alguma impressão duradoura.

Para bem se comprehender a belleza de Christina, era preciso sondar-lhe
primeiro o coração, apreciar todo o thesouro de sentimentos que alli se
continha; então descobrir-se-lhe-hia nas feições certa belleza ideal,
reflexo de bondade e candura, uma d'essas claridades que as almas puras
e generosas vertem nas physionomias. Se não fôsse receiar-me de
linguagem que saiba a philosophia, diria que a belleza, que possuem umas
mulheres assim, é uma belleza subjectiva.

De tudo isto é natural concluir que Henrique de Souzellas podia
sympathisar com a candida figura de Christina, a qual baixava
timidamente os olhos deante d'elle, córando cheia de enleio e confusão,
mas que qualquer sentimento que ella lhe inspirasse, não conseguiria por
muito tempo desviar-lhe o sentido dos encantos mais attrahentes da
morgadinha--que a muitos respeitos, menos na bondade de coração, formava
contraste completo com sua prima.

Travára-se animada conversação entre as pessoas presentes, e
principalmente entre Henrique, D. Victoria e Magdalena.

D. Victoria quiz ser informada da doença de Henrique. Este passou a
fazer-lhe uma exposição igual, com pequenas variantes, á que fizera á
tia.

Mencionou, como a ella, aquelles vagos symptomas, aquellas tristezas,
impaciencias e desalentos, que tão ingenuamente a boa senhora
classificára como mania.

Emquanto Henrique falava, Magdalena poz-se a rir.

Henrique tornou para ella os olhos.

--Ó menina, de que ris tu?--perguntou D. Victoria, com certo tom de
severidade.

--Rio-me d'aquella doença, tia. Pois já viu alguem padecer d'aquillo?
Ora diga?

--Eu?... mas...

--Pode dizer que não. E comtudo o primo Henrique não mente. Ha
d'aquellas doenças na cidade, ha; mas na aldeia são tão raras, que eu
mesma as estranho já, eu que as vi em outro tempo...

--Então não crê na realidade d'ellas.

--Não lhes estou a dizer que sim? Ouço até que já teem levado ao
suicidio. Acredito-o. Os habitos da civilisação affeiçoam a seu modo a
natureza humana e criam molestias novas, que nem por isso são menos
naturaes. Mas que quer, primo? A minha estranheza, ao vêr um d'esses
doentes em plena aldeia, não é modificada por todas essas considerações.
É como um homem de casaca e gravata branca; não ha nada mais sério e
mais grave n'uma sala de baile, mas colloque-m'o n'um monte, e diga se o
pode olhar a sério.

--Quer dizer que não devo queixar-me aqui, sob pena de zombarem de mim.

--Tanto não digo; mas não o entenderão; isso não.

--Porém a minha doença não é só d'essas, que se não dão na aldeia, prima
Magdalena; eu creio que verdadeiras desordens organicas...

--Ah! tambem?--Com esse aspecto de robustez?!...

--Se eu sei o que tu estás ahi a dizer Lena!--disse D. Victoria, que não
tinha percebido bem o dialogo.

--É que eu, minha tia, teimei em fazer perder ao primo Henrique todos os
maus habitos da cidade, com que veio para aqui. Sem isso não pode
curar-se.

--Sujeitar-me-hei da melhor vontade a tão agradavel dominio.

--Principia mal, se principia com uma fineza. Já o avisei ha pouco...

--Será necessario tornar-me grosseiro, para me salvar? N'esse caso
renuncio á cura.

--Grosseiro, não; basta que seja razoavel e sobretudo...

--Acabe.

--Acabo? eu sei? Eu ás vezes sou sincera de mais.

--Eu adoro as sinceridades.

--Já que o quer... É preciso que seja razoavel e sobretudo...
desaffectado.

Henrique de Souzellas mordeu ligeiramente os labios, córando.

--Então acha?...

--Acho que está sempre a imaginar-se n'um salão; faz uns gastos de
galanteria, desnecessarios e perdidos.

--Ó meninos, eu não vos entendo--repetia D. Victoria.

Magdalena sorriu.

--Digo eu que...

Um criado entrando com as cartas do correio não a deixou continuar.

--Sempre chegou o correio!--exclamou Magdalena com vivacidade, recebendo
as cartas.--Por que veio tão tarde?

--A mulher contou-me lá umas historias de uma quéda, e...

--Coitada! Aconteceu-lhe algum mal?

--Esteja descançada, minha senhora. Ella partiu já e era um gôsto vêl-a
a correr.

Magdalena abriu com pressa a carta recebida.

--É de meu pae--disse ella, olhando-lhe para a lettra e, depois de pedir
licença, começou a ler para si.

--Pois agora--dizia, n'este meio tempo, D. Victoria a Henrique--o que
deve é aproveitar estes bonitos dias para dar alguns passeios. As
pequenas acompanham-n'o. Aonde me dizias tu no outro dia que querias ir,
Christina?

--Eu! disse Christina, córando.

--Tu, sim, menina. Inda hontem me falaste n'isso. Ora onde era?...

--Á Senhora da Saude, mamã.

--Ai, é verdade, á Senhora da Saude. Ahi está já um passeio bonito. Vê?
Saem d'aqui uma manhã cêdo, levam alguma coisa para lá comer, porque o
ar do monte abre o appetite, e a cavallo estão lá n'um instante...

--A cavallo, mamã! d'aqui á Senhora da Saude? Ora! Vae-se muito bem a
pé--notou Christina do lado.

--Isso é por os açudes.

--Pois por onde haviamos de ir?

--Por a Granja, que é melhor.

--Por a Granja! É uma legua!

--Que tem? mas escusam de trepar como cabras por o lado dos açudes, que
é até perigoso; e depois para que hão de ir a pé, se para ahi estão os
cavallos sem fazerem nada? É vontade de se cançarem.

--Mas appetece ainda mais n'este tempo. Só se... só se alli o sr.
Henrique...--disse Christina, embaraçada ao continuar.

--Eu o quê, minha senhora?

--Perdão--interrompeu D. Victoria.--Por que não has de tu chamar primo
ao primo Henrique? pois não chamamos tia á tia Dorothéa?

--Por isso mesmo, mamã,--respondeu Christina--os sobrinhos da tia
Dorothéa não são...

--Não averiguemos d'esses parentescos, priminha,--acudiu Henrique--eu
acceito a proposta da mamã, peço para ser considerado do numero de seus
primos.

Christina baixou os olhos, sorrindo.

Henrique proseguiu:

--Mas parece que receiava por mim, quando falou em ir a pé á Senhora da
Saude. Não sei onde é o logar, mas desde já me comprometto a não cançar.

--Não tem que saber--disse D. Victoria, caminhando para uma
janella.--Ella lá está. Olhe que inda é necessario saber trepar.

--Tendo duas tão galantes companheiras de viagem--tornou Henrique,
depois de reparar no monte escarpado que ficava a alguma distancia
d'alli, o mesmo que o almocreve lhe mostrou--parece-me que daria a pé
uma volta ao globo e que subiria a correr o Pico de Tenerife.

--O que eu lhe digo, primo--accrescentou D. Victoria--é que se acautele,
porque se lhes vae a fazer todas as vontades, tem que vêr.

--Inda que morresse em tão agradavel serviço, teria de agradecer a Deus
a morte.

--Cá me chegou aos ouvidos o cumprimento--disse Magdalena, que
continuava a ler.--Logo ajustaremos contas.

--É implacavel esta nossa prima, não acha?--perguntou Henrique,
sorrindo, a Christina, que por unica resposta só soube sorrir tambem.

--Pois então, é arranjarem, é arranjarem isso e quanto antes, que não ha
que fiar no tempo. Eu se pudesse tambem ia, mas já não são passeios para
mim, e depois estes criados...

Henrique de Souzellas receiou nova divagação sobre o assumpto predilecto
de D. Victoria; mas felizmente acudiu-lhe a morgadinha, que disse,
terminando a leitura da carta:

--Escreve-me o pae que tenciona vir passar comnosco as ferias do Natal e
trazer Angelo comsigo. Promette demorar-se até o dia dos Reis.

As creanças saudaram a nova com gritos de alegria, e saltos de causarem
inveja a um clown de circo.

D. Victoria zangou-se.

--Então que pouca vergonha é essa? Parecem-me um bando de patetas! Ora
vamos! Já quietos. A culpa tem a Ermelinda, que já vos devia ter levado
para a quinta. Ó Senhor, esta praga de criados, que nunca ha de fazer a
sua obrigação!

As creanças reprimiram um pouco mais as expansões de seus jubilos, mas
ainda ficaram cantando a meia voz, em musica de composição d'ellas, o
seguinte:

--Vem o primo Angelo! Vem o primo Angelo! Ora viva, viva! Ora viva, olé!

--Pschiu! Calae-vos!--bradou ainda D. Victoria; e voltando-se para
Magdalena:--Mas então como se entende isso, Lena? Então o pae diz que
vem...

--Nas vesperas do Natal.

--Sim, nas vesperas do Natal, e vae...

--Depois dos Reis.

--Sim; está bem; e... sim... e então o Angelo?...

--O Angelo vem com elle. Quer vêr a carta?

--Não, menina. Mas é preciso não fazer confusão... Então...

--Não ha nada menos confuso... É só isto.

--Sim; pois agora, sim; agora está bem claro. Calae-vos, diabretes! Ó
meu Deus, que consumição! Mas então por que não entregou o criado ha
mais tempo essa carta? Eh! não que vocês dizem que elles...

--Ó tia, pois não ouviu que foi a mulher das cartas que se demorou,
porque...

--Historias! Não me venham para cá com esses contos. Vocês estão sempre
promptos para desculpal-os. São elles...

--Ó Lena, Lena--diziam as creanças--o primo Angelo não torna para
Lisboa?

--Ha de tornar.

--Ora!

--Olha lá, ó Lena--disse D. Victoria--sabes tu o que me lembra?... Mas
eu nem sei... com estes criados que tenho... Mas a mim lembra-me... uma
vez que teu pae vem com o pequeno... e... está agora cá o primo
Henrique... lembra-me a mim... mas, já digo, era se eu pudesse contar
com os criados que temos... lembra-me, juntarmo-nos todos para
consoar... A prima Dorothéa tambem, e aqui o primo; mas era se...

Uma perfeita ovação acolheu o projecto; as creanças levaram as suas
demonstrações de enthusiasmo até o delirio, penduraram-se ao pescoço, á
cinta, ao avental da mãe, gritando todas a um tempo:

--Ai, sim, mamã, sim; mande convidar a tia Dorothéa, mande! E ha de
ficar em casa, sim? Olhe e... e arma-se o presepe... e... e... e havemos
de cantar as janeiras... Mande, mande, mamã, por as alminhas; ora mande.

D. Victoria fingia arrenegar-se com aquella pequenada, e erguia o braço,
como para a fustigar asperamente, mas, contra a sua vontade, rompia-lhe
o riso dos labios.

--Saiam d'aqui!--exclamava ella, quando conseguiu estar
séria.--Saiam!... Não ouvem?... Espera que eu vos falo... Ai, não fazem
caso? Ora esperem... Marianna, já devias ter mais juizo... Então,
Eduardo! Tu tambem? Não tem vergonha! Um homem quasi! Saiam d'aqui,
estafermos!

A ideia das consoadas em familia fôra uma ideia que a ninguem deixára
impassivel. Christina, a timida Christina, não disfarçou um movimento de
jubilo; as mãos ajuntaram-se-lhe instinctivamente, e raiou-lhe no olhar
suave um fulgor pouco costumado.

A propria Magdalena não se mostrou superior áquella tocante puerilidade.

Approximou-se com viveza da tia, e beijando-a nas faces, disse-lhe
affectuosamente:

--Ora ahi está o que é muito bem pensado.

--Pois sim, sim, mas o peor é... os criados--disse D. Victoria.

--Quem fala n'isso? Na noite de Natal quem mais trabalha somos nós.
Demais, teremos, para dirigir as tarefas, a Maria de Jesus, a criada da
tia Dorothéa.

--Isso é que é a perola das criadas! Oh! aquella prima Dorothéa, aquella
sua tia, primo Henrique, é que teve felicidade! Mas dizes tu... Bem se
importam os de cá com a Maria.

--Não tem dúvida. N'aquella noite quanto mais barulho e desordem,
melhor--aventurou-se a dizer Christina, com impeto revolucionario.

--Ahi temos outra! Não, filha; isso é que não. Para barulhos é que eu já
não estou. Então, não.

--Está resolvido--disse a morgadinha, para cortar pelas divagações da
tia.--Aqui o sr. de Souzellas--accrescentou, com maliciosa
inflexão--fica desde já encarregado de transmittir á tia Dorothéa o
nosso plano e, ao mesmo tempo, officialmente convidado.

--Acceito da melhor vontade.

--Não sei se o deverá dizer. É preciso que o avise de que n'aquella
noite todos teem de trabalhar na cozinha; a ninguem se dispensa, um
minuto, pelo menos, de collaboração nos guisados. Por isso veja lá....

--Ó menina, tens coisas!--disse D. Victoria.--Deixe-a falar, primo.

--Não é deixe-a falar. Eu não dispenso ninguem.

--E eu prometto não me recusar. Promptifico-me a tornar detestaveis os
pratos em que puzer a mão. Que mais querem?

Foi alegremente acolhida a promessa.

As creanças, familiarisadas já com Henrique, em quem tinham adivinhado
um humor jovial, o que é sempre para ellas um motivo de attracção,
trepavam-lhe já aos joelhos e dirigiam-lhe perguntas sobre perguntas,
difficultando-lhe as respostas.

--Havemos de jogar o rapa, não havemos?

--Havemos de jogar, havemos--respondeu Henrique.

--E o par ou pernão?

--Tambem; tambem havemos de jogar o par ou pernão.

--E?...

--Tudo, tudo; havemos de jogar tudo.

--Olhe: e sabe contar historias?

--Sei tambem contar historias.

--Então ha de contar-nos, que nós tambem lhe contamos a da Gata
borralheira, a da Maria de pau e a da Menina com as tres estrellinhas na
testa.

--Ora, o sr. Henrique já as sabe--disse, fazendo-se sisuda, Marianna.

--Pois não sei, não, senhora; quem lhe disse que eu as sabia? hei de
querer ouvir isso tudo.

--Ó meninos!--exclamou D. Victoria, que até alli estivera distrahida a
discutir com Magdalena.--Então isso que é? Já para baixo. Ai, se lhes dá
confiança, está arranjado, primo.

--Deixe-os estar, minha senhora, este contacto de alegrias é salutar;
pegam-se.

--E não o diga a brincar--disse Magdalena--que tambem confio n'essas
creanças para o curarem dos seus males.

--Então devéras emprehendeu curar-me?

--Com toda a certeza.

--N'esse caso havemos de discutir devagar esse ponto de pathologia.

--Não havemos, não, senhor. É mau medico o que soffre que o doente o
interrogue sobre a molestia e o tratamento. O medico deve ser obedecido
com fé, e cega.

Christina que, havia muito, defronte de Magdalena, fazia esforços por
lhe chamar a attenção, resolveu-se a falar-lhe.

--Lena--disse ella--que te parece a lembrança que teve ha pouco a mamã?

--A das consoadas? Excellente.

--Não, menina, a do passeio á ermida.

--Ah! Excellente tambem. Marquemos já o dia.

--Quando queres?

--Depois de ámanhã, que é quinta feira.

--Seja.

--Que diz, primo Henrique?

--Quando quizerem, primas; agora mesmo...

--Mas, veja lá, atreve-se a fazer uma madrugada?

--Pois não viu hoje?

--Ai, pois não! Na aldeia não se chama isso uma madrugada. É preciso que
se levante ás horas, a que se deitava na cidade.

--Que estás a dizer, Lena?--acudiu Christina.--Deixa-a falar. Basta que
saiamos d'aqui ás cinco horas.

--Esta innocente Christina! Pois não é o mesmo que eu digo? Pergunta ao
primo Henrique se tinha costume de se deitar mais cêdo em Lisboa.

--Engana-se, prima Magdalena; lembre-se de que, ha perto de um anno, sou
valetudinario.

--Ai, é verdade, que me tinha esquecido. O que vejo é que ha por aqui
muita indolencia.

--Quem a ouvir falar, ha de julgar que será ella a mais madrugadora; ora
havemos de vêr--disse Christina.

Magdalena poz-se a rir.

E o passeio ficou ajustado. A morgadinha lembrou que se convidasse
Augusto, por ser conhecedor do sitio e poder mostrar os mais bellos
pontos de vista.

Henrique saiu finalmente da quinta do Mosteiro, já retardado uma boa
hora ao que promettera á tia Dorothéa.

Um criado serviu-lhe de guia até Alvapenha.

Henrique de Souzellas, ao findar aquella manhã, era inteiramente outro,
do que viera para a aldeia. Todas aquellas horas se haviam passado, sem
que o affligissem os males habituaes, sem que nem sequer pensasse
n'elles. O viver intimo a que assistira, a troca reciproca de affectos
entre os membros de tão numerosa familia, a franqueza cordial com que
fôra recebido, produziram n'elle uma impressão profunda.

Costumado ao viver desconsolador e de gêlo de rapaz solteiro e só; não
passando, nas casas que visitava, além da sala de visitas, esse palco
artificioso e reservado, onde as familias ante as familias representavam
a comedia social, Henrique estranhára, mas agradavelmente, o
espectaculo, quasi novo, d'aquelle interior, d'aquelles modestos
costumes, d'aquellas alegrias, que não se envergonham de apparecer sem
reservas nem disfarces. Foi uma revelação que recebeu. Sorriu-lhe a
ideia de ter um dia uma familia assim; de viver entre creanças que lhe
trepassem aos joelhos, na companhia de affectos, que alli via
manifestarem-se, e até com alguem que ralhasse com os criados, á maneira
de D. Victoria.

Escusado é dizer que a imagem da morgadinha apparecia sempre n'estes
quadros que lhe traçava a phantasia: assim como, nos quadros dos grandes
mestres, apparecem quasi sempre reproduzidas as feições queridas da
mulher que elles traziam no pensamento e a quem deram assim a
immortalidade.

De manhã parecera-lhe a aldeia um paraiso terreal; completára-o a figura
de uma mulher; sem o sorriso d'ella nem o primeiro homem seria feliz no
eden, onde a mão de Deus o collocára.

--Anda, vagaroso, anda--disse D. Dorothéa a Henrique, assim que o viu
chegar.--Se o jantar tiver esturro, a culpa é tua.

--Perdôe-me, tia. Demorei-me no Mosteiro...

--Ah! foste lá? E então gostaste d'aquella gente?

--É uma familia para o coração. Passa-se o tempo alli tão depressa! A
morgadinha, sobretudo, é adoravel!

--Ai, ai; como elle nos vem! Olha lá no que te mettes, menino! A mina
boa é, mas... filho, anda alli encanto, que ainda ninguem descobriu.

Henrique fitou os olhos na tia Dorothéa, que dissera isto com certa
malicia.

--Que quer dizer, tia?

--Tu bem me percebes. Anda lá, anda. Se fizesses tu o milagre, se
quebrasses o encanto, grande coisa seria; mas sempre te digo que não
tomes a coisa a peito, que podes aggravar o teu mal.

Henrique levou o caso a rir, mas é certo que esteve um pouco mais
preoccupado e distrahido no resto da tarde.




VI


O leitor, se alguma vez realisou uma viagem na companhia de qualquer
amigo, ha de ter observado que, durante os primeiros tempos que passam
juntos n'uma terra para ambos desconhecida, tão alheios ás coisas como
ás pessoas, no meio das quaes se vêem, nem por momentos se soffrem
separados; um segue sempre o outro em todos os passos que dá, precisa
d'elle para communicar-lhe as primeiras impressões recebidas, e
pedir-lhe em troca as suas; á medida porém que, pouco a pouco, se vão
familiarisando mais com os logares e com as personagens d'aquelle mundo
novo, afrouxa a constricção d'esses laços, e cada um principia a
readquirir a independencia individual, que de motuproprio havia
abdicado.

Um facto similhante nos succede com Henrique de Souzellas. Encontrámol-o
na estrada; na companhia d'elle entrámos em uma terra, onde tudo nos era
estranho; nada mais natural do que dar o braço um ao outro, passar
juntos a manhã, e fazer, em commum, as nossas visitas. Agora, porém, que
temos já algum conhecimento da terra e da gente, é tempo de nos
declararmos independentes, e sacudirmos o jugo de uma companhia forçada,
a qual, embora seja de um amigo estimavel, se é forçada, é sempre jugo,
em certas occasiões.

Os proprios Castor e Pollux, ou Pylades e Orestes, penso eu, haviam de
ter momentos em que se desejassem sós; se é que não deviam aos deuses a
felicidade de possuirem curtos espiritos, o que não creio.

Deixemos, pois, Henrique de Souzellas entretendo com a tia Dorothéa a
mais pacifica das conversas que podem auxiliar a digestão de um jantar;
deixemol-o no tranquillo recinto de Alvapenha, e vamos associar-nos a um
dos nossos recentes conhecimentos, que é Augusto, o mestre de Marianna e
de Eduardo, aquelle pallido rapaz que entrevimos na sala da casa do
Mosteiro.

Ao sair d'alli, Augusto seguiu através de campos e á beira de vallados,
com aquelle ar pensativo que lhe era peculiar.

O pouco que da historia d'elle soubemos, pelas palavras da morgadinha, é
já bastante para que nos não admire a quasi incessante melancolia de
Augusto.

Aos vinte annos e sem familia! com intelligencia e mal podendo, á custa
de sacrificios, cultival-a, e eleval-a á altura das suas aspirações!
Alma generosa e compassiva, tendo muita vez de limitar-se a chorar os
infortunios que via, porque a pobreza lhe negava meios de remedial-os!..
não serão estas ainda nuvens bastantes para toldarem a luz de uma
existencia, embora a juventude as illumine?

Havia alguns annos que esta disposição para a tristeza se exacerbára em
Augusto. Coincidiu o facto com algumas circumstancias, que convém
referir.

A morgada dos Cannaviaes, madrinha de Magdalena e de quem viera a esta o
nome de morgadinha, pelo qual mais conhecida era na aldeia, havia ao
morrer instituido um legado a favor de Augusto, então creança, com a
condição d'elle abraçar a vida ecclesiastica. O conselheiro, pae de
Magdalena, devia administrar este legado, educando o rapaz nas escolas
de Lisboa ou Porto, desde o dia do seu primeiro exame até o da primeira
missa, porque n'esse lhe entregaria o capital por inteiro.

Isto succedeu no tempo em que a mãe de Augusto, que havia dois annos
viuvára, luctava com a miseria, e o rapaz, pela sua penetração e pelo
enthusiasmo com que aprendia, causava o espanto do velho mestre regio da
localidade.

Foi por todos abençoada a memoria da morgada, por tão bem cabido legado,
que era ao mesmo tempo que remedio ás privações de uma familia, premio e
estimulo á intelligencia e á applicação de uma creança, que promettia
vir a ser... Deus sabe o quê.

Ninguem se lembrou de perguntar a si proprio se a clausula, posta pela
legataria como condição á concessão do beneficio, não podia ser uma
crueldade que o annullasse; se comprar um futuro por dinheiro, sem
querer saber a quantidade de aspirações, de esperanças, de phantasias
que sejam, a que se tem de renunciar pelo contracto, não é uma
iniquidade; se não era uma quasi simonia ir a casa do pobre, e fazendo
luzir os reflexos do ouro nas sombras da miseria, propôr-lhe trocar por
estes thesouros, que o fascinam, os valiosos thesouros da alma. Eu por
mim abomino estes legados condicionaes, que um espirito malevolo,
egoista e desejoso de dominar ainda depois da morte, tantas vezes dicta;
essas meigas generosidades são ás vezes a causa do infortunio de uma
vida inteira; acceites ou recusadas, é raro que depois, a cada provação
que nos experimenta, uma voz interior nos não exprobre o partido que
abraçamos.--«Louco! para que hesitaste em trocar meia duzia de
phantasmas por um bem real? Quem te mandou sacrificar a vaporosos idolos
de poetas o beneficio que te offereciam?»--dirá ella aos que rejeitaram
o pacto.--«Ambicioso!--clamará aos outros--ahi tens a felicidade que
julgaste comprar á custa do que ha de mais nobre na alma humana;
embriaga-te agora no incenso, em que envolveste o altar do bezerro de
ouro, consumindo ahi as tuas mais santas e generosas aspirações.»
Augusto não adivinhou porém logo a crueldade da disposição
testamentaria. Era muito creança ainda; e depois uma ideia nobre o
preoccupou; comprehendeu que ia ser o amparo d'aquella pobre mãe, que só
podia abrigal-o com os extremos do seu muito amor. Seu pae, morrendo,
apenas conseguira deixar uma herança; foi á viuva o dever de velar pelo
filho. Augusto exultou vendo que podia inverter aquelle legado, velando
elle pela fraca mulher, que, para bem o cumprir, esgotaria de certo a
vida.

Redobrou por isso a solicitude no aprender; desenvolveu-se mais e mais a
intelligencia, quasi espontaneamente, pois justo é confessar que bem
rudes eram os cuidados de cultura que o velho _magister_ lhe sabia dar.
Mas quem ignora os surprehendentes effeitos que da intelligencia e do
estudo, da aptidão e da vontade, podem resultar? Dotem um homem d'essas
duas faculdades poderosas e neguem-lhe embora os meios de progresso,
elle caminhará, inventando-os primeiro, se tanto lhe fôr preciso.

E depois, é um grande alento aos espiritos superiores a consciencia de
uma nobre missão a cumprir. Não ha fadigas que tal estimulo não vença;
abnegação, que não inspire.

A Augusto era-lhe incitamento a ideia de que sua mãe precisava d'elle.

Quando ainda aos seus treze annos fôsse já bem conhecida a grandeza dos
sacrificios que lhe exigiam, não hesitaria talvez, instigado por aquella
aspiração; quanto mais que ainda mais lhe tinham animado os sonhos, as
doces imagens, tão gratas ao coração do adolescente, e a que teria de
renunciar.

Suspirava por o dia do seu primeiro exame, o qual, graças aos esforços
empregados, não se fez esperar muito.

Quando se approximava a occasião, o pae de Magdalena mandou vir Augusto
para Lisboa e hospedou-o em sua casa até que chegou o dia.

Não confiando demasiadamente no ensino publico da aldeia, o conselheiro
quiz que o seu pequeno hospede recebesse algumas lições de um professor
da cidade, e d'este obteve as melhores informações da intelligencia do
rapaz, que só por milagre d'ella conseguira sair muito pouco eivado dos
vicios do ensino de campo.

Augusto demorou-se algumas semanas em casa do conselheiro. A final fez o
exame, no qual foi felicissimo, obtendo n'elle as mais distinctas
qualificações.

Imagine-se o effeito que a noticia produziu na aldeia. Exaggerando-se,
dizia-se por lá que em toda Lisboa corria a fama do rapaz, e houve até
quem não hesitasse em affirmar que a creança confundira os mestres, que
fôra uma maravilha.

O mestre-escola reclamou para si a gloria do acontecimento, fundando-se
em que, através do discipulo, resplandecia a sciencia do mestre.

Os invejosos disputavam-lhe porém tão inquestionavel gloria e riam-se
d'elle.

A pobre mãe, essa, levou todo o dia a chorar de prazer e a render graças
á Virgem, a quem tanto encommendára o filho.

Voltou Augusto á terra.

Era o rapaz o assumpto de todas as conversas: olhavam-o como um
prodigio. Todos o queriam vêr, como se até alli o não tivessem visto
bem, e de feito todos o foram vêr; nem o abbade, nem o administrador,
nem o presidente da camara faltaram. Foi tudo. Pois bem, de tantos que o
viram, não houve um só que não notasse que o pequeno vinha triste.

Ninguem contestava o facto: que elle como que saltava aos olhos; as
interpretações é que variavam.

--Aquillo é dos ares de Lisboa; a quem não está costumado... dizia um.

--São canceiras de estudos--aventava outro.--Ha lá coisa que puxe mais
por uma pessoa do que o estudo!

--Não que vocês cuidam! Um exame sempre abala a gente cá por
dentro--dizia um doutor, que levára dez annos a vencer um curso de
cinco.

Fôsse pelo que fôsse, Augusto trouxera de Lisboa uma melancolia, que os
ares da sua terra não dissiparam e que augmentava sempre que lhe falavam
no futuro e no legado da morgada.

Quem mais a estudou, e sentiu aquella subita melancolia, foi, como era
de suppôr, a receiosa mãe. Deus sabe que noites mal dormidas, que sustos
e que intimos terrores ella lhe causou! Perguntas, supplicas, arguições,
lagrimas, promessas, nada tiravam de Augusto, que teimava em responder
que nada tinha que o affligisse, que era a illusão de quem o via a
tristeza que lhe suppunham, e, para confirmar o que dizia ria; mas era
mais triste aquelle riso, do que o pranto, em que se desafogasse.

Para breve estava a entrada de Augusto no collegio de Lisboa, onde, á
custa do legado da defuncta proprietaria dos Cannaviaes, devia continuar
nos seus estudos, quando o rapaz pediu para ficar algum tempo na aldeia.
Não se pôde atinar com os motivos d'este pedido. Indolencia não era;
pois no entretanto começou a estudar os rudimentos do latim com o
illustre professor, que o leitor conhece já, mestre Bento Pertunhas.

A saude vacillante da mãe de Augusto declinou n'esse inverno; o que veio
dar outro motivo á demora do filho.

Dias e dias passou o pobre rapaz sentado á cabeceira do leito dividindo
os seus cuidados entre o estudo e os carinhos pela estremecida enferma.
Dois annos se passaram d'esta vida, e quando, ao fim d'elles, Augusto
abandonou aquelle leito, foi depondo um beijo nas faces geladas de um
cadaver.

Era orphão.

A vaga sombra de melancolia, que já lhe toldava o rosto,
condensou-se-lhe mais então. Era quasi um negrume de tristeza.

Por esse tempo, veio o conselheiro trazer Magdalena para a aldeia, pois
receiava pela saude d'ella se persistisse em Lisboa.

O conselheiro propunha-se levar comsigo Augusto, quando voltasse a
Lisboa. Uma manhã, porém, este, de pouco mais de quinze annos,
procurou-o e disse-lhe com uma gravidade, que revelava uma tenção
meditada e irrevogavel:

--Venho prevenir v. ex.^a de que desisto do legado da sr.^a morgada. Não
quero ordenar-me.

O conselheiro fitou-o, estupefacto.

--Não queres ordenar-te! Por quê?...

--Já não tenho mãe a quem amparar. Por ella forçaria a minha vocação sem
remorsos; por interesse proprio não o posso fazer; parece-me um
sacrilegio.

O conselheiro era um homem muito do seculo. O seu trato social, a
frequencia dos circulos politicos e elegantes, haviam-lhe dado todas as
boas e más qualidades, que caracterisam aquella classe de homens, e
sabe-se que a candura de sentimentos não entra no numero das mais
habituaes d'essas qualidades. Tinha uma razão clara, mas fria; se
abraçava uma boa causa, não o fazia cedendo ao enthusiasmo, mas sómente
depois de ponderar fleugmaticamente os fundamentos em que ella se
baseava; assim era que, em politica, se costumára a contemporisar,
espaçando a adopção de qualquer medida, inquestionavelmente boa, para
tempos em que fôsse mais conveniente; não se apaixonava por utopias,
desconfiava d'ellas; havia muito tempo que desviára dos olhos o prisma
encantado, através do qual olham o mundo os poetas e todos os mais
sonhadores; costumára-se a marcar por modelo nas differentes carreiras
da vida, não um typo ideal dotado de todas as virtudes, limpo de todos
os defeitos e vicios; assentára a menor altura o alvo: parecia-lhe que
bom fito eram já os individuos que tinham conseguido maior consideração
na sua classe; as maculas que elles tivessem, eram, por esse facto,
maculas auctorisadas. O pensar de outro modo era pensar de romance;
agradavel para entreter, porém mau nas applicações ás coisas da vida.
N'uma palavra, o conselheiro era um homem de bem, mas na esphera
mundana; não um d'aquelles typos de pureza crystallina, através da qual
parece passarem sem desvio os raios da luz celeste, mas já um tanto
embaciado do bafo social, que não o fazia ainda totalmente opaco.

Por isso sorriu á declaração de Augusto. A carreira ecclesiastica não
lhe parecia tão escabrosa como o futuro sacerdote a fazia; nem tão dura
a lei, como em theoria se mostrava. O conselheiro não pensava necessario
tomar ao pé da lettra certos deveres impostos; o mundo seria, como elle,
tolerante em naturaes infracções; por tudo isso se riu. Fez a Augusto
uma longa dissertação sobre as vantagens da vida ecclesiastica, sobre os
muitos interesses que lhe promettia, e a leviandade com que elle queria
renunciar a uma carreira segura movido pelas instigações de um espirito
timorato ou de uma visão phantastica.

Augusto insistiu. Sem córar perante o sorriso sceptico do conselheiro,
declarou que não abraçaria a vida ecclesiastica sem que se sentisse com
a coragem precisa para cumprir todos os deveres que ella lhe impunha;
que era precisa uma grande abnegação, e que elle, depois da morte de sua
mãe, não tinha a certeza de a conseguir. Nos interesses não pensava, e
se pensasse, seria isso a primeira prova de não estar preparado para a
missão de que se queria encarregar.

Quando alguem abraça com lealdade e franqueza uma boa causa,
difficilmente é vencido. O conselheiro, costumado a não recuar nas mais
acerbas luctas do parlamento, calou-se dentro em pouco ás objecções
d'aquella creança. Como que teve remorsos de tentar sequer desvanecer as
illusões a que o via abraçado,--illusões pelo menos as suppunha elle;
parecia-lhe uma obra satanica envenenar com um sorriso aquelle ideal, em
que vivia.--Respeitou-o e calou-se.

--Alguma creancice amorosa dos quinze annos--pensou para si. Deixemos ao
tempo convencel-o. Não me encarregarei eu d'esse papel, que é pouco
sympathico. Quem me restituira aquellas canduras! Teria alcançado menos
no mundo, mas talvez tivesse gosado mais... ou melhor...

O conselheiro cedeu apparentemente, esperando que a reflexão
modificaria, mais tarde, as ideias do rapaz.

Exigiu d'elle que a ninguem annunciasse as tenções, em que estava de não
se ordenar, pelo menos emquanto não passasse mais tempo sobre aquella
resolução.

E uma vez que ficava na terra, pediu-lhe o conselheiro que se
encarregasse da primeira educação de Angelo, então de nove annos; pois
mais confiava para isso em Augusto, do que no professor official.

Augusto acceitou com prazer a incumbencia, que, sobre adequada aos seus
gôstos, lhe abria uma carreira, que elle já imaginára adoptar.

De então nasceu uma intima amizade entre Angelo e Augusto. Foram rapidos
os progressos do discipulo, e não menos reaes as vantagens que ao mestre
resultaram do ensino, que lhe desenvolvia cada vez mais a
intelligencia.--O conselheiro tinha motivos para estar satisfeito da
escolha.

Ao fim de um anno as repugnancias de Augusto em acceitar o legado eram
as mesmas; o egoismo paternal do conselheiro não o deixou ser muito
ardente a combatel-as.--Espaçou-se mais uma vez a decisão.

Outras lições appareceram a Augusto, as quaes elle acolheu com gôsto; o
mestre-escola reclamava tambem muitas vezes o seu auxilio; compadecido
da sua velhice, Augusto nunca lh'o recusou.

O velho acabou por declinar n'elle o serviço todo, sem que Augusto
consentisse em receber por isso o menor estipendio.

O publico não se cançava de perguntar quando seria que o rapaz
principiaria os seus estudos em Lisboa e por que o não fazia já. Como
não obtivesse resposta, commentava o facto, como costuma commentar todos
os que não entende.

No entretanto a educação de Augusto não ficára estacionaria. Com grandes
sacrificios a continuára elle; e n'um êrmo, como era aquella aldeia,
tinha muito de milagre o que fazia.

O latim de mestre Bento já mal satisfazia ás impaciencias do espirito
d'este discipulo enthusiasta; e não era raro que a intelligencia de
Augusto visse mais fundo nos textos, do que a experiencia do mestre.

O acaso favoreceu os desejos do estudante.

N'uma freguezia proxima estava, como abbade, um doutor em theologia,
homem de solido saber e de reputação extensa.

Um dia em que, por convite do seu collega, viera assistir e prégar na
festa do orago da aldeia, o padre encontrou-se com Augusto na sacristia
e, conversando-o, admirou-lhe a penetração, captivou-se da sua modestia
e lamentou não estar mais perto d'elle, porque o auxiliaria, como
pudésse, nos estudos.

Augusto perguntou-lhe se era sincera aquella vontade; affirmando-lhe o
padre que sim, respondeu que não seria então estorvo a distancia, porque
elle a venceria.

E d'ahi em deante, duas vezes por semana, ás quintas feiras e domingos,
franqueava legua e meia dos mais escabrosos caminhos, para ir ouvir as
lições do erudito abbade. Assim se aperfeiçoou na latinidade, cultivou a
philosophia e adquiriu o gôsto pelos nossos velhos prosadores e poetas.
Vinha de lá carregado de livros para ler durante a semana. Toda a
bibliotheca do padre lhe passou pelas mãos.

Era porém o theologo classico exclusivo e nada visto em linguas e
litteraturas modernas.

A sorte não recusou ainda a Augusto um novo mestre.

Entre os muitos estudos de estradas, de que os governos em Portugal
fazem preceder, vinte annos antes, a construcção definitiva de uma só,
que de ordinario sae sempre como se não fôsse tão estudada, um houve que
levou á aldeia, em que eu e o leitor nos achamos, um engenheiro que ahi
fez quartel e centro de operações, durante tres mezes inteiros.

A casa em que elle se alojou ficava proxima da de Augusto. Cêdo travaram
conhecimento os dois. O engenheiro o menos que possuia eram livros de
mathematica; mas, emquanto a litteratura moderna, trazia nas malas e
bahús uma excellente provisão.

Não tendo que fazer ás noites, entreteve-se a ensinar o francez a
Augusto e a ler-lhe os livros da sua bibliotheca portatil. Voavam as
horas a Augusto n'aquelles serões; n'elles aprendeu todos os nomes da
nossa litteratura moderna, bem como os principaes da de França e de
Inglaterra.

Quando o engenheiro partiu da aldeia já Augusto sabia o francez bastante
para se aperfeiçoar por si; este amigo deixou-lhe em lembrança grande
parte dos seus livros, que Augusto releu muitas vezes.

Attingiu finalmente Angelo a idade de precisar do collegio. O
conselheiro, ao leval-o comsigo, insistiu mais uma vez com Augusto para
que viesse tambem e acceitasse o legado da morgada. Foi em vão,
encontrou-o ainda inabalavel.

E d'esta vez fez publica a sua desistencia, e o ambicionado patrimonio
foi concedido a outro.

Mezes depois morria o velho mestre-escola da aldeia.

Augusto escreveu ao conselheiro, declarando-lhe que pretendia aquelle
logar, que já havia muito tempo servia, e pedindo-lhe para que se
interessasse por que elle o obtivesse. O conselheiro quiz tirar-lhe da
ideia tal projecto; escreveu-lhe que, na idade em que estava Augusto, o
não ter ambições era indicio de uma profunda doença moral; que a posição
a que elle aspirava, equivalia a uma sepultura estreita a que se
acolhesse vivo. Augusto persistiu porém no intento; o conselheiro
empenhou-se por elle em Lisboa. Conseguiu que uma portaria, meio pelo
qual se faz em Portugal tudo que é contra lei expressa, o dispensasse da
idade que ainda não tinha, pois mal completára dezenove annos, e Augusto
foi por conseguinte admittido a concurso para tão pouco disputado logar
e provido n'elle por tres annos. O conselheiro, a quem não fôra
impossivel obter-lhe despacho vitalicio, quiz vêr assim se, no fim de
tres annos, o obrigava a abandonar tão laboriosa e mal recompensada
carreira, e de proposito o fez despachar temporariamente. Comquanto o
legado da morgada tivesse tido já outra applicação, o conselheiro não
hesitaria em proteger, em qualquer carreira, o mestre de seu filho.

Mas ao fim de tres annos, Augusto, apesar de por experiencia conhecer já
os espinhos da profissão, apresentou-se novamente ao concurso para obter
novo despacho. Na época em que abrimos esta narração, voltára Augusto de
pouco de ultimar a nova prova; e estava pendente ainda a decisão do
ministerio competente. D'esta vez tivera um competidor, homem muito
protegido por influencias da localidade, as quaes ainda não tinham
podido vencer a do conselheiro, que pugnava por Augusto.

Desde que fôra para Lisboa, Angelo não se esquecera de escrever
amiudadas vezes a Augusto, contando-lhe dos seus estudos, e
descrevendo-lhe a sua vida na capital; e quando vinha a férias,
procurava transmittir ao que fôra seu mestre a sciencia que durante o
anno adquiríra.

Foi assim que Augusto principiou a estudar a lingua ingleza, a
geographia e a historia.

Recebido o primeiro impulso, a sua intelligencia e applicação faziam o
resto.

Um homem que havia na aldeia e com quem cêdo teremos de travar
conhecimento, um velho herbanario, para alguns um sabio, para outros um
louco, para todos um homem honrado, concorreu tambem, com o seu
contingente, para a educação de Augusto.

De tempos a tempos, este velho mysterioso apresentava-se em casa d'elle
com um pacote de livros debaixo do braço e, sorrindo, pousava-lh'os em
cima da mesa.

Eram quasi sempre aquelles, que Augusto mostrava ou sentia mais desejos
de possuir. Da primeira vez, Augusto fitou o herbanario com espanto.
Ninguem o suppunha rico; como podia elle pois obter aquelles livros,
alguns dos quaes eram de preço? O velho porém disse-lhe, ao perceber-lhe
a surpreza:

--Não queiras saber da minha vida, rapaz. Suppõe que eu tenho a
servir-me uma vara de condão ou uma fada qualquer, e deixa correr.

Augusto acabou por persuadir-se de que o herbanario tinha accumulado
riquezas, á fôrça de economias: porque de economias vivera sempre.

De pequeno merecera áquelle velho uma singular sympathia, e com affecto
de pae fôra sempre tratado por elle.

Resignou-se a acceitar sem reflexões; até porque sabia ser facil o
escandalisar o velho com ellas. O que fazia era evitar, na presença
d'elle, qualquer palavra que pudésse denunciar desejos de possuir um
livro qualquer. Mas o velho, como se tivesse de facto algum poder
occulto a informal-o, ás vezes parecia adivinhar; e trazia-lhe livros
que Augusto devéras desejava, mas a respeito dos quaes tinha a certeza
de lhe não ter falado, nem eram d'aquelles que o velho conhecia.

A seu pesar via-se quasi inclinado a adoptar a crença supersticiosa do
povo a respeito d'aquelle seu velho amigo.

Pensando melhor, pareceu-lhe procederem de Angelo as informações, pelas
quaes o velho se guiava na escolha. Não lhe attribuia porém o presente,
porque as economias de Angelo não chegavam para tanto.

Depois de tudo quanto temos dito de Augusto, poderá ainda o leitor
estranhar os ares pensativos com que o vemos?

Poucos passos andados, depois que saiu do Mosteiro, encontrou Augusto a
distribuidora das cartas, que lhe entregou uma sobrescriptada para elle.
Era de Angelo.

Augusto abriu-a immediatamente e leu-a ainda pelo caminho.

Era uma extensa carta, em que se succediam os periodos em um d'esses
longos, incoherentes e diffusos arrazoados, que constituem a essencia de
uma carta de amigo para amigo.

Angelo falava dos seus estudos, de saudades da terra, de esperanças e de
projectos, projectos que, n'aquellas idades, nascem e morrem a todo o
instante. Terminava esta carta, em que lhe participava a sua vinda á
aldeia pelo Natal, com o seguinte periodo:

«Peço-lhe que diga á Lindita que se não esqueça de mim. Dentro de poucos
dias conto ir vêr os coelhos do quintal d'ella, e ajudal-a a tirar a
agua do poço. O pae d'ella chega ahi ao mesmo tempo que esta carta; leva
um livro para si.»

Augusto sorriu, ao ler o _post-scriptum_.

--Pobre Angelo!--murmurou elle,--Deus não permitta que sobreviva á tua
ultima creancice essa sympathia por Ermelinda. Estas generosas affeições
de creança muitas vezes, ao crescer, envenenam o coração.

Havia tanta amargura n'estas reflexões de Augusto!

E, como absorvido n'ellas, caminhou para casa do recoveiro Cancella, que
era o pae da pequena, a quem na carta se alludia.




VII


A casa do recoveiro Cancella ficava n'uma das mais estreitas ruas da
aldeia e ao lado de um pequeno quintal, objecto dos cuidados e das
diversões do proprietario, que alli gastava algumas horas disponiveis da
sua occupada e laboriosa vida.

Cancella era um verdadeiro Judeu errante da aldeia. A maior parte do
tempo ia-se-lhe nas estradas; pernoitava hoje n'uma estalagem; viam-o
ámanhã já a mais de seis leguas de distancia; acotovelava um dia a
multidão nas ruas e feiras da cidade; no outro entretinha os curiosos da
sua terra, deixando-lhes entrever os thesouros da experiencia adquirida
á custa de muitos annos de fadigas.

As estradas em Portugal e os novos meios de transporte, que
conjunctamente vieram, não destruiram totalmente esse typo dos antigos
tempos, anterior a ellas. Além da época, que parecia dever marcar-lhes
limite á existencia, passaram, sustentados pela fôrça dos habitos e
justificados pelas irregularidades do serviço das postas; e Deus sabe
quando de vez acabarão. Mas Cancella era além d'isso um recoveiro de uma
especie rara e superior. Em todas as profissões ha sempre, no meio do
vulgo, que as exerce sem enthusiasmo nem consciencia dos gôsos,
superiores aos interesses, que ellas podem offerecer, certo grupo de
escolhidos, que as idealisam, e enxergam um raio de poesia através das
sombras, uma flor entre os espinhos. Cancella era d'estes; era o poeta
da sua profissão. Tinha em si o que quer que era de um _touriste_, e
assim aproveitava todos os ensejos que se lhe offerecessem de explorar
algum ponto do paiz, ainda por elle desconhecido.

Este instincto levava-o frequentemente a Lisboa. As muitas relações do
conselheiro, pae de Magdalena, com as familias da aldeia, e a barateza
relativa das recovagens operadas por este meio primitivo,
proporcionavam-lhe algumas occasiões d'isso, as quaes o Cancella de
boamente aproveitava. Era de uma d'essas expedições que elle devia
voltar aquella manhã, como o dava a entender a carta de Angelo.

Quando porém Augusto lhe bateu á porta, achou-a ainda fechada; escutou á
fechadura, mas não pôde verificar o menor signal de que alguem estivesse
dentro.

--É cêdo ainda--pensou comsigo.--Vejamos se estará em casa do compadre.

Seguiu mais para deante pela rua por onde viera.--A poucos passos mais,
e do lado opposto, deparou-se-lhe outra casa de aspecto não menos
rustico do que a primeira, uma pequena casa terrea, de uma só porta e
uma só janella, e com o respectivo quintal ao fundo.

Do interior vinha um sussurro de vozes, como de conversa animada;
julgando que seria o Cancella, de quem o proprietario era, além de
vizinho, confidente e compadre, Augusto empurrou a porta, que estava
apenas cerrada e entrou.

A primeira sala achou-a deserta. Era um aposento quadrado, todo adornado
á volta de cruzes de pau, para as devoções da via sacra, e de imagens de
santos e santas em caixilhos de todos os tamanhos. Mais do que os outros
enramalhetado e enfeitado, via-se alli o bento registo de uma confraria,
havia pouco tempo instituida na terra pelos missionarios, o qual
occupava o logar de honra n'aquella devota exposição.

Era recente na aldeia o estabelecimento d'esta confraria, sociedade um
tanto mysteriosa, por meio da qual seus interessados instituidores só
visavam a dar o reino do céo aos filiados, contentando-se _apenas_, em
paga, com o do mundo, do qual, lembrados de antigos tempos, teem
saudades já. Os missionarios, certos evangelisadores em terras onde a
palavra do Evangelho não é chave que abra a porta, pela qual entraram os
martyres no céo, lá andavam por aquelle tempo, na aldeia onde se passa a
acção d'esta historia, plantando a vinha, que elles chamavam do Senhor;
as mulheres, abandonando os lares, seguiam-os como rebanhos; o culto
catholico era por elles cada vez mais arrebicado com orações absurdas e
ceremonias ridiculas, e o eterno anathema da ignorancia contra o
progresso da sociedade servia de thema predilecto aos seus barbaros
discursos.

Ardente proselyta d'estes apostolos de fé duvidosa, a sr.^a Catharina do
Nascimento de S. João Baptista, a metade feminina do casal em questão,
tomára por modo de vida as devoções da igreja, onde ia chorar as
desgraças da humanidade, que tão fóra via andar da estrada direita.

Augusto pouco se demorou n'esta sala; respeitando a alcova conjugal, que
era vedada aos olhares profanos por uma colcha de chita de largas e
folhudas ramagens, tomou pelo corredor, que conduzia á cozinha d'onde
lhe continuava a chegar aos ouvidos o som de vozes, que primeiro o
attrahira.

Ao contrario do que esperava, porém, só uma pessoa encontrou na cozinha,
comquanto falasse com a vivacidade que em poucos dialogos se mantem.

Esta pessoa era o dono da casa, o sr. José do Enxerto, ou vulgarmente
chamado ti' Zé P'reira--nome que lhe vinha do popular e ruidoso
instrumento, o classico zabumba, que nas nossas aldeias tem ainda hoje
aquelle nome.--Era muito para vêr e admirar a mestria, com que o nosso
homem o sabia tocar nas festas e arraiaes, á frente das procissões e
cêrcos, e finalmente em todas as solemnidades publicas.

O ti' Zé P'reira era homem dos seus quarenta e tantos annos; tinha no
rosto, principalmente no nariz, vestigios evidentes das suas sympathias
pela divindade celebrada nos antigos dithyrambos. Esposo da sr.^a
Catharina do Nascimento de S. João Baptista, vivia em perenne sabatina
com a sua cara metade, sujeitando-lhe todas as suas acções, mas salvando
sempre o direito de protestar pela palavra. Ganhava a vida no officio de
hortelão e, aos domingos e dias de festa, á fôrça de rufos e pancadaria
na retesada pelle do seu companheiro inseparavel--o zabumba. Era aos
cuidados e vigilancia d'este par conjugal que o recoveiro Cancella
confiava o seu mais precioso thesouro, a pequena Ermelinda, uma mimosa
creança, que lhe ficára á sua viuvez tão cheia de saudades, e a quem
elle mais queria do que á menina dos olhos.

Ermelinda era afilhada da familia Zé P'reira, e a mesma a quem ouvimos
referir-se Angelo no fim da carta.

Zé P'reira estava, como dissémos, só na cozinha, quando Augusto alli
chegou: sentado, no meio da sala, sobre um alqueire voltado com o fundo
para o ar, viradas as costas para a porta e a face para o lar apagado e
vazio, falava, gesticulava e mudava de tom desde a nota mais grave e
rouca da sua escala de barytono, até o mais agudo e desafinado falsete.
A lingua pegava-se-lhe ao céo da bôca, difficultando-lhe suspeitosamente
a articulação de algumas syllabas; era evidente que se apossára do
hortelão o espirito familiar, o qual n'este caso, era um verdadeiro
espirito, na accepção chimica do termo.

Ze P'reira era um homem baixo, já grisalho, sufficientemente nutrido, de
olhos vesgos e que mais vesgos se faziam quando o enthusiasmo, o rapto
artistico se apoderava d'elle; usava de umas suissas que pareciam tentar
sumir-se-lhe pela bôca dentro; tinha longos braços, accommodados ás
difficuldades e evoluções da sua arte, e pernas que, do joelho para
baixo, lhe divergiam em angulo de mais de trinta graus.

Quando Augusto deu com elle, o homem monologava, gesticulando:

--Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!... É forte desgraça!...
Aqui estou eu!... Um homem casado... casado á face da igreja... que me
casou em dia de S. Thiago o abbade que foi... e que Deus tenha em
descanço. Não faltou nada... correram-se banhos deante de quem os quiz
ouvir, e não houve quem puzesse impedimento... porque eu não devia nada
a ninguem... sempre fui liso de contas... Sou casado com a Catharina do
Nascimento de S. João Baptista, filha do Antonio Canhestro, do logar dos
Fójos... E casado para quê? Faz favor de me dizer? Para que casei eu?...
Forte desgraça a minha! Casei-me para isso!... Para vir para casa e
achal-a vazia, o lume apagado e o caldo na horta... e a mulher a papar
missas e novenas lá por essas igrejas... Ora, senhores, que é forte
desgraça a minha! É forte desgraça!... Bem morria eu de frio e de
fraqueza, se não fôsse aquelle quartilhito... o ultimo, que sempre me
deu sua aquella... sim... sempre me conchegou o estomago. Não que dizem
que o vinho que faz, que o vinho que acontece... Pois casem-se com uma
mulher que vá de madrugada para a igreja e venha de lá quando muito bem
lhe pareça, e verão depois se o vinho não serve de cobrir muita lazeira
que se soffre... verão depois... Ora, senhores, que é forte desgraça a
minha!... Diz que Deus que disse, que a mulher que era a carne da nossa
carne e o osso do nosso osso... Deus devia de vez em quando tornar a
dizer estas coisas... para não esquecerem... como se faz na escola com a
taboada. A minha Cath'rina já o não sabe, aposto... e pelos modos os
padres não lhe dizem isto na igreja... pois deviam dizer!... A carne da
minha carne e o osso do meu osso!... mas é carne e osso que me não fazem
caldo... Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!... Como ha de um
homem, se isto assim continua, pegar na enxada para dar uma cavadela, ou
fazer qualquer sachada?... E tambem quero vêr como hei de no arraial e
procissão de Santo Amaro, que não tarda ahi, dar sequer um rufo assim
mais tal... assim mais scientifico? Eu se fôsse bispo...

A caudalosa corrente d'este soliloquio foi interrompida pela apparição
de nova personagem á porta do quintal.

--Deixe estar, meu padrinho, deixe estar; tenha um bocadinho de
paciencia. É um instante emquanto accendo o lume e lhe faço o caldo.
Verá.

A pessoa, que assim falava ao entrar para a cozinha, era uma rapariga de
doze annos, alva e franzina, como a mais delicada creança da cidade, com
os olhos negros e expressivos de intelligencia e de doçura, e com os
mais formosos cabellos louros que ainda enfeitaram uma cabeça infantil.
Não havia n'elles sombra, que desvanecesse aquella côr deslumbrante;
reflectia-se-lhes a luz nas ondas, naturalmente lustrosas, como em
tenuissimos fios de metal; usava-os soltos e caidos, sem vislumbre de
artificio, de um e de outro lado do collo.

Condizia com a expressão angelica do semblante o suave e affectuoso
timbre de voz com que falára.

O leitor prevê de certo que é Ermelinda, a filha do Cancella, ou
Lindita, como geralmente na aldeia lhe chamavam, a creança que tem na
sua presença.

Ermelinda sobraçava um mólho de hortaliça, que fôra colher ao quintal, e
dirigia-se com ella para o lar, que o descuido e a indifferença conjugal
deixavam ainda apagado áquella hora do dia.

Dando, porém, com os olhos em Augusto, parou, sorrindo-lhe.

--Ai, pois estava ahi, sr. Augusto?! E o meu padrinho talvez sem
reparar.

A estas palavras o desditoso marido voltou a cabeça e fitou em Augusto
um dos seus desemparelhados olhos.

--Olá, sr. Augusto! Viva! Passe muito bem! Entre; esta casa é sua... De
jantar não lhe offereço... porque... porque... Forte desgraça a minha...
Olhe! repare para este desaforo!... Venho para casa, morto de
trabalho... e vejo o lar apagado! A minha mulher está a ouvir missa, a
confessar-se, a commungar... a tomar todos os sacramentos... acho que os
está a tomar todos... Louvado seja Deus! Vem ahi tão limpa de
consciencia, como eu estou do estomago... Ora, senhores...

--Deixe estar, padrinho... Verá como isto se arranja depressa... Olhe; o
lume já está accêso--dizia Ermelinda, accendendo effectivamente o lume
no lar.

--Já o devias ter feito antes, Lindita,--disse Augusto, sentando-se
junto d'ella.

--Mas se inda agora vim das prêsas, onde fui lavar a roupa?

--Pobre pequena--disse o Zé P'reira--tambem não te ha de faltar lazeira,
tambem!

--A mim? Agora. Não que eu não saí de casa com as algibeiras vazias.

--Pois sim... mas é sempre preciso coisa que conforte... Inda se tu
bebesses... já não digo um quartilho...

--Credo, meu padrinho! Que está a dizer?

--Que espanto!... Ora, senhores, que parece que o vinho é bebida
amaldiçoada, que todos lhe teem mêdo! É vêr se o padre na missa...

--Padrinho! padrinho! que vae dizer?--interrompeu Ermelinda, quasi
aterrada.

--Eu digo o que é verdade, rapariga!... Tenho minha presumpção de nunca
dizer senão a verdade... Lá o pespeguei na cara do sr. juiz de direito e
mais do sr. doutor delegado e mais doutores, quando fui a um juramento,
por causa d'aquellas pancadas no recebedor... É que nenhum d'esses
santalhões, d'esses missionarios me teem que ensinar n'esse ponto... Os
missionarios!... Eu, um dia, tiro-me dos meus cuidados e dou-me ao
trabalho de lhes ir perguntar, quando elles estiverem no pulpito, se
Deus lhes manda que tirem as mulheres de casa, para que os maridos não
tenham que comer, quando voltarem do trabalho... Um dia inda lhes vou
perguntar... isso vou...

--Olhe; a agua não tarda a ferver; verá que dentro em
pouco...--continuou Ermelinda.

--Bem, Lindita, bem--disse Augusto--em paga da boa vontade, com que
trabalhas, vou dar-te uma alegre nova.

--A mim? Diga.

--Trago-te visitas de alguem, que em poucos dias te dará em vez de
visitas, um abraço.

--De quem? Ah!... Angelo escreveu-lhe?

--Como adivinhaste depressa!

--Pois de quem mais havia de ser? Mas diz que... em poucos dias...
Então?

--Tel-o-hemos cá pelo Natal.

--Fala verdade?

--Assim m'o diz n'esta carta. Queres ler?

--Para quê?--respondeu a rapariga, fitando porém o papel com os olhos
cheios de curiosidade.

--Ora lê, lê... Até para vêr se ainda te recordas das lições, que eu te
dei.

--Ai, lá isso... mas, o caldo do meu padrinho...

--Deixa que o lume é que o ha de aquecer e não a tua presença.

Ermelinda approximou-se; tomando a carta das mãos de Augusto, começou a
lêl-a com intensa curiosidade.

Zé P'reira proseguiu no seu monologo:

--A religião, senhores--dissertava elle--não manda tal... Isso é que não
manda... A religião é a palavra de Deus... e Deus disse... sim... Deus
disse... Deus disse muita coisa... Disse que por este deixarás pae e
mãe. Ora a santa madre igreja é mãe, é, sim, senhores; que tem lá isso?
mas não é mais mãe do que a outra mãe... e então... senhores, uma mulher
não deve deixar por ella o seu marido; porque o marido, senhores, é o
tudo de uma casa, e o ganhapão da familia. Ora, senhores, que é forte
desgraça.

O monologo do desconsolado conjuge e a leitura de Ermelinda foram
interrompidos por uma voz potente, que cantava na rua.


  O dinheiro paga tudo,
  Não se fica a dever nada;
  Toma, toma o limão verde,
  Ó da fresca limonada.


E logo em seguida estalaram as taboas do soalho no corredor sob uns
passos pesados e ruidosos, e no limiar da porta da cozinha desenhou-se a
figura agigantada e herculea do recoveiro Cancella, pae da Ermelinda.
Cancella, ou o João Herodes, que assim tambem lhe chamavam por ter
creado, nos autos em que era actor applaudido e popular, o typo do
sanguinario e infanticida rei da Judéa, fôra pela natureza dotado de uma
estatura e robustez, dignas de Adamastor.

Encontrava-se n'elle uma d'essas felicissimas realisações dos
temperamentos sanguineos que, sem ameaçarem de insultos apopleticos, dão
riqueza ao sangue, vigor aos musculos e á physionomia o aberto e
colorido da saude e os reflexos da satisfação interior.

A barba negra e espessa cercava-lhe as faces córadas, e o natural fulgor
dos olhos parecia augmentado sob o duplo arco de bastas sobrancelhas,
que, quando contrahidas, os rodeavam de sombras ameaçadoras, d'onde
fuzilavam relampagos. Era formidavel então!

O riso pairava-lhe porém, nos labios, quando na presença de amigos,
descobrindo-lhe duas fileiras de alvissimos e bem dispostos dentes,
d'esses que os excessos e absurdos culinarios ainda não deterioraram.

Parando á porta da cozinha, o Herodes (ás vezes lhe chamaremos assim,
cedendo ao geral costume na aldeia) procurou com a vista alguem, que
mais que tudo trazia na memoria--a filha.--Esta, pela sua parte, mal o
reconheceu, correu a lançar-se-lhe nos braços.

O pae pegou n'ella, como se fôsse uma penna, levantou-a á altura dos
labios e pousou-lhe nas faces dois sôfregos e ruidosos beijos, ainda
palpitantes de todo aquelle intenso amor paternal.

--Ah!--exclamou, pousando-a no chão e respirando como quem acabava de
satisfazer uma intensa necessidade do coração.--Isto consola que nem o
copo de agua que a gente, em dias de calma, pede á borda da estrada,
quando se leva a bôca secca e queimada de poeira! Mais do que isso me
sabem estes dois beijos que te dou, pequena. Que querem?... Ó sr.
Augusto! tambem por cá?

--Esperava-o, Cancella.

--A mim?--continuou o homem, pousando no chão uma mala que trazia.--Pois
aqui me tem. Mas, dizia eu, um homem quando anda lá fóra, e pensa no que
lhe irá por casa, sente ás vezes uns sustos, que parece que lhe fazem
tudo escuro... As desgraças, para succederem, não põem muito... De um
momento para outro... E depois a gente ouve por lá conversas, vê coisas
que parece que são agouros... e que nos fazem a noite no coração... Umas
vezes é um enterro... outras, um desastre... um fogo... um... E as
creanças sós, e os paes fóra de casa!... Ai! Isto é de ralar o coração
de uma pessoa... Eu bem sei que em boa companhia me fica a pequena. Aqui
o compadre, tirante lá a sua aquella pelo sumo da uva... Quantos foram
já hoje, compadre, hein?... mas, tirante isso, é homem de bem: a comadre
é uma santa, que só tem o defeito de querer ser santa devéras... mas
emfim... tudo isso não obsta; uma coisa é uma pessoa saber o que lhe vae
por casa, outra... Tremem-me as pernas sempre que entro na aldeia. A
primeira alma de Christo, que encontro, estou sempre a vêr quando me vem
dar alguma nova má. Salta-me cá por dentro o coração, que ninguem faz
uma ideia; eu bem canto a vêr se disfarço, mas... Ai, filha da minha
alma, quando me passa pelo pensamento que te posso um dia vir achar
doente!... Assim me succedeu com tua mãe... Deixei-a uma vez tão
satisfeita e alegre, e vae, quando voltei, a primeira pessoa que
encontro, diz-me á queima-roupa: «Venha, sr. João, venha, que já não vem
sem tempo. Corra a casa, se ainda quer vêr sua mulher...» Foi como se
recebesse uma descarga em cheio no peito... corri, e...

A commoção impediu-o de continuar; disfarçou como envergonhado d'aquella
fraqueza, beijando a filha outra vez.

Ermelinda percebeu a perturbação do pae e disse-lhe carinhosamente:

--Para que está agora a pensar n'essas coisas que o affligem, meu pae?

--Deixa-me cá, rapariga. Isto ás vezes tambem faz bem. Mas, por isso,
quando entro em casa e te vejo, pequena, e te vejo com boas côres e
alegre... nem eu sei o que tem mão em mim, que não me ponho a dançar.
Ah!... ah!... Ninguem tem uma filha como eu! Olhe que não, sr. Augusto;
mal fica a mim dizel-o, mas... Lá por Lisboa e por o Porto ha muita
menina galante, isso ha; muita inglezinha loura, bonitas como anjos, mas
cabellos assim dourados?--e passava com orgulho os dedos pelos bastos
cabellos de Ermelinda--mas uma pelle assim delicada,--e afagava-lhe com
as mãos a face, quasi a mêdo--mas olhos assim a metterem-se mesmo pelo
coração á gente?--e beijava-lh'os com paixão--isso é que eu ainda não
vi, nem tenho de vêr. Como o Senhor concedeu um anjo d'estes a um
selvagem como eu, é que não sei... É a imagem da mãe!... Ella tambem era
poucochinho de si... miudinha e... Mas não pensemos n'estas coisas. Sim,
senhores; eis-me aqui outra vez, e por signal com a minha vida por
arranjar e eu posto á taramela. Trago-lhe uma encommenda, sr. Augusto, e
muitos recados, muitos.

--Já sei; Angelo escreveu-me.

--Escreveu? Ah, sr. Augusto, que rapaz aquelle! Aquillo é uma perola!
Com tres milheiros de demonios do inferno! d'alli ha de sair coisa
grande. Eu não queria morrer sem vêr o que saía d'alli. Brinca como uma
creança, mas, quando quer, põe-se sério, e fala como homem. E nada de
soberbas, nem de ares enfastiados, como tomam aquelles senhores da
cidade, quando conversam com uma pessoa rustica... Qual historia! Elle
tudo quer saber, tudo pergunta... isso é um nunca acabar, quando lá me
pilha... Então como vae fulano? e sicrano? e se já se fez aquella casa,
e se já acabou aquella obra, e se já casou este, e se inda vive aquelle,
e mais para aqui, e mais para acolá, e tudo quer muito explicado... Ah!
ah! ah!... tem diabo o pequeno... Pois cá a respeito da rapariga?...
Isso é uma comedia!... Não se farta de me ouvir falar d'ella... Ah, sr.
Augusto, ás vezes chego a ter pena de que isto nascesse minha filha.

Ermelinda fitou o pae com olhos espantados.

--Sim, filha,--proseguiu elle.--Deus não te devia dar a um homem como
eu, que emfim... Com os diabos! lá alma e coração... não quero que haja
ahi quem me leve a barra adeante. Eu por um amigo... e com mil demonios,
até por um inimigo, se não fôr soberbo, vamos lá, dou a camisa do
corpo... Mas o mundo... Bem, bem, eu cá me entendo. Vamos á minha
tarefa. Mas que tem você estado para ahi a prégar, compadre, desde que
eu entrei? Humh! humh! parece-me que já se cantou a gloria, hoje, visto
que já se está ao sermão.

Effectivamente Zé P'reira tinha apenas concedido ao seu compadre um
olhar de distracção e um aceno de mão, e voltára de novo ás suas queixas
amargas contra a sorte e contra a esposa.

Interrogado pelo Herodes, Zé P'reira reproduziu uma das suas
lamentações; o compadre, emquanto desenfardelava a mala, ia cortando com
reflexões proprias essa longa jeremiada.

--Então com que a ti' Zefa deixou-o sem caldo, hein? É mal feito, a
falar a verdade. Lume apagado em casa de familia é coisa triste... Aqui
está um livro para si, sr. Augusto... Mas deixe lá, compadre, que a
minha pequena arranja-lhe n'um ai algumas berças... Tambem eu estou em
jejum desde as cinco horas da manhã... mas estes missionarios! Ah! com
seiscentas mil duzias de demonios, eu ainda queria um dia...

--Deus nosso Senhor seja n'esta casa--disse uma voz gemida á porta da
cozinha.

--E o demo na do abbade--resmungou Herodes.

Era a sr.^a Catharina do Nascimento de S. João Baptista, typo de beata,
que dispensa descripção, que regressava a casa depois de completar o
cyclo das suas devoções.

--Viva a comadre!--disse o João Cancella, continuando a mexer na mala.

Ermelinda foi beijar a mão á madrinha.

Augusto saudou-a affavelmente.

O marido obrigou o corpo a uma meia rotação sobre o alqueire, e,
voltando-se para a mulher, disse-lhe, agitando os braços e as mãos,
espalmadamente abertas:

--Mulher dos meus peccados, mulher de não sei que diga, olha que a
paciencia um dia acaba-se, mulher! Isto não pode continuar assim,
mulher! Eu não me casei para que tu me andes a ganhar indulgencias na
igreja, mulher!... Isto são preparos, mulher?... Um homem chega a casa e
acha o caldo por fazer, porque a senhora sua esposa deu em ouvir nove
missas por dia e uma duzia de novenas!

--Cala-te, cala-te,--retorquiu azedamente a devota metade do Zé
P'reira--cala-te para ahi, desalmado. Excommungado seja o mafarrico, que
assim me quer attentar logo que entro em casa! Olha lá que não morresses
de fome! Estás mal acostumado. Louvado seja Deus! Já não ha quem queira
soffrer n'este mundo mortificações! cuidas que não tens de soffrer as do
purgatorio? E Deus nos queira dar só o purgatorio e livrar-nos das penas
do inferno. Que muito mal fazemos por lhe merecer misericordia! Ora que
não ha de uma pessoa poder ter as suas devoções, que não venha encontrar
lamurias em casa! Ó minha rica Mãe do céo, seja para desconto dos meus
peccados! Sume-te, inimigo mau! E eu que deixei de rezar oito estações,
que prometti á Senhora da Rocha, e vae... Ora digam como ha de esta
gente cumprir os jejuns que manda a santa madre igreja, se, por duas
horas de espera, já se choram todos! Bemdito e louvado seja o
sacratissimo coração de Maria! Ó homem de Deus, e então aquelles santos
eremitas, que viviam no deserto de raizes e de agua das fontes...

--Que lhes prestasse. Haviam de andar muito gordos. Eu queria-os vêr com
uma enxada a trabalhar todo o dia no campo, e que lhes dessem depois
raizes para roer, a vêr se gostavam. Ora, senhores, que é forte desgraça
a minha! Mulher, a religião manda que olhemos pelo nosso cadaver. É má
christã a mulher que deixa o seu marido na penuria. Isto é que os padres
deviam ensinar. Vae-lhes lá perguntar se, quando chegam a casa, não teem
a sôpa e o toucinho á espera d'elles?

--Cala-te, tentador, que me andas a tentar, cala-te, tem vergonha n'essa
cara. Olha agora! Eu queria vêr-te com o trabalho do sr. padre Domingos.
Coitadinho! desde as cinco horas da manhã até agora a confessar!

--Confessar é parolar; ora adeus!

--Tu estás doido, alma perdida?!

--E cuidas que elle não leva marmelada nos bolsos?

--Ó chagas do seraphico S. Francisco, ainda mais terei de ouvir?!

--Mulher, deixemo-nos de historias; com jejuns ninguem engorda. Só os
santos... de pau.

--Vamos, vamos--disse o Herodes, intervindo.--Não vale zangarem-se por
causa d'isso. A minha pequena deve ter o caldo quasi feito. Comam-o em
santa paz e deixem-se de testilhas, que não é bonito; e muito menos
entre marido e mulher. Você, compadre, tambem tem culpas em cartorio;
vamos lá. Ha por ahi umas certas capellas, onde passa tambem bastante
tempo em devoção; emquanto á comadre, acredite o que lhe digo: a palavra
de Deus não é tão difficil, que uma pessoa precise de estar tanto tempo
a ouvil-a explicar. Eu cá penso que, fazendo a gente aquillo que lhe diz
o coração, e que não sente nenhuma aquella em fazer, vae por caminho
direito. E mais vale fazer o que Deus manda, do que levar a vida a pedir
perdão por o não ter feito. E tambem não é bonito estarem agora as
mulheres, horas e horas, pegadas ao confessionario, como lapas nos
rochedos, nem...

--Compadre!--atalhou escandalisada a sr.^a Catharina--compadre! É essa a
educação que dá á sua filha? São coisas que se digam deante de uma
creança de doze annos? Ande lá, ande lá... Ora Deus queira que lhe não
encontre ainda o pago. Era bem melhor que lhe ensinasse, ou mandasse
ensinar, a doutrina; que é mesmo uma vergonha o pouco que sabe d'ella.

--Bem tenho eu tempo para isso. A minha Ermelinda não deixa passar pobre
á porta, a quem não dê esmola; creança que não afague; velho ou velha,
que não corteje; reza todas as manhãs a oração, que a mãe lhe ensinou, o
Padre-Nosso e a Ave-Maria, onde se diz tudo o que se deve dizer a Deus;
de dia trabalha, como filha de pobre que é, e mulher de casa que ha de
ser... O Senhor me perdôe, se mais é preciso ainda, que mais não sei eu
ensinar-lhe.

--Não tenha soberbas, compadre, não tenha soberbas! E cautela com o mimo
que dá á pequena, que é o que perde muitas almas.

--Que mimo, que mimo? Logo eu com este genio de repentes é que hei de
dar mimo a esta pobre creança, que nem o da mãe conheceu!

--Ora diga, compadre, acha que é muito bem feito, da sua parte, deixar
andar a rapariga com esses cabellos soltos? Não sabe que o demonio...
cruzes! arma com elles laços ás almas das creaturas?

--Fracas prisões são as do diabo, se as forja só de cabellos!... Então,
por causa das tentações é que a comadre rapou os seus? Ah! ah! Tem
coisas! É teima velha! Eu já lhe disse, comadre: Deus, que deu á pequena
esses cabellos tão bonitos, é porque lh'os quiz dar. Se quizer, que
lh'os tire, eu é que não.

--Deus cerca-nos de tentações, para que nós as vençamos.

--Forte tentação venceu a comadre! aposto que os não cortaria assim, se
os tivesse como os da minha Ermelinda, hein! Cortar os cabellos á minha
filha, eu?! fazer d'aquella cabeça de cherubim uma d'essas cabeças
tosquiadas, que por ahi andam!

--Talvez ainda se arrependa!

--Deixe lá, comadre. O que eu vejo é que, junto de Deus e da Virgem, se
pintam anjos, como a minha pequena, e não figuras... respeitaveis, como
a da comadre; ora então...

A beata, apesar de trazer sempre na memoria o _Vanitas vanitatum_ do
_Ecclesiastes_, não foi inteiramente insensivel ao remoque do compadre.
Azedou-se-lhe o humor, e, voltando-se para Ermelinda, disse-lhe como
para descarregar sobre ella a má vontade com que estava ao pae:

--Sae-te p'ra lá. O senhor meu homem tinha muita pressa de jantar!
Deixar assim uma creança fazer uma fogueira d'estas! Nem para assar um
boi! É preciso não ter consciencia.

E tirou do lume um pequeno cavaco, para justificar o dicto.

Zé P'reira monologava ainda. Augusto continuava examinando o livro
recebido.

Ermelinda afastou-se do lar com timidez. No animo d'aquella creança, que
era de uma organisação nervosa, excepcional na aldeia, exercia a beata
uma especie de fascinação, um mixto de respeito e de terror, capaz de
dissipar todos os risos dos seus labios infantis. Era outra na presença
da madrinha, fitava-lhe nas faces descarnadas e macilentas os bellos
olhos negros; seguia-lhe, quasi assustada, o movimento dos labios
austeramente contrahidos; tremia ao escutar-lhe a voz aguda e
penetrante, falando nas penas do inferno; chorava á menor reprehensão
que d'ella recebia, e comtudo amava-a, amava-a, porque Ermelinda na sua
candura de creança, suppunha a madrinha uma santa; avultavam-lhe, como
virtudes beatificantes, os defeitos da devota velha; a innocente
julgava-se uma grande peccadora quando, depois de ter na mente aquelle
perfeito typo, voltava a olhar para si, para o fundo da sua consciencia;
e que negros e hediondos peccados lá encontrava! Uma pequena mentira que
dissera; um domingo em que faltou á missa; um juramento que, sem o
sentir, lhe saira da bôca; um jejum que não guardára, e outros crimes da
mesma fôrça. A amedrontada creança chegava a receiar pela salvação da
alma.

É sempre funesta a influencia que exercem sobre a infancia os caracteres
como os da beata.

O Herodes percebeu a impressão sob a qual estava a filha e acudiu-lhe.

--Toma lá, Ermelinda--disse elle, tirando da mala uma pequena medalha
com um retrato.--É um presente do nosso amigo Angelo para nós, ou antes,
para ti...

Ermelinda pegou no retrato com não reprimido alvoroço. Era outra vez a
creança.

A madrinha lançou para a medalha um olhar obliquo e reconheceu o
retrato.

--Em nome do Padre e do Filho e do Espirito Santo!--rompeu ella, com um
espanto exaggerado.--Este homem não tem a cabeça no seu logar, por mais
que me digam! Elle quer perder a filha de certo! A fazer a cabeça doida
a uma creança!

O Herodes, ouvindo estas palavras, pousou com impeto a mala no chão, e
com os olhos chammejantes e as faces injectadas, vociferou, cedendo o
campo á cólera, que se lhe accumulou no seio:

--Com seiscentos milhões de diabos! Você que está ahi a dizer, mulher?
São os sermões dos missionarios, que lhe teem assim afiado a lingua e
deitado peçonha na baba? Com effeito! Saiba que dou mais pela creança,
de quem é aquelle retrato, do que por quantos sotainas lhe ouvem os seus
peccados todas as semanas e por quantas beatas andam comsigo a dar
marradas no lagêdo da igreja. Fazer a cabeça doida á minha filha! Tenha
mão na lingua, comadre, que lhe não soffro tanto. Doida lh'a trazem a
vossemecê os missionarios e os sermões. Seu marido fôra eu, que a mania
lhe tirava.

O Zé P'reira, apesar dos seus desgostos domesticos, zelava a dignidade
do casal; e não levava á paciencia que outro, além d'elle, dissesse
d'aquellas verdades á mulher; por isso, ouvindo-as, através dos sonidos
que lhe chiavam nos ouvidos, levantou-se, e sustentando-se nas pernas
vacillantes, e bracejando sempre, bradou:

--Compadre! Eu sei quaes são os meus deveres! Compadre, prudencia!...
Compadre, eu não consinto... Ora, senhores, que é forte coisa!
Compadre!... veja que eu é que sou aqui o chefe da familia e esta é
minha mulher! Pschiu... Basta... Compadre... basta. Então? Ora,
senhores.

Mas o Herodes já nada attendia; cada vez mais lhe crescia a vermelhidão
nas faces; a irritação rompera os diques da cordura e ameaçava engrossar
cada vez mais. Ás exclamações de Zé P'reira respondia já azedamente.

--Ora adeus, temos conversado... Seja homem, que bem precisa... Não
basta dar á lingua... Na taberna não é que se governa a casa...

A sr.^a Catharina abstinha-se agora prudentemente.

Ermelinda, pallida, a tremer, abraçou o pae, quasi chorando.

Augusto, que fôra alheio ao principio da contenda, conheceu emfim que
precisava de intervir. Saiu-lhe difficil a empreza.

Ensurdeciam os ouvidos dos contendores, a um o sangue, a outro o vinho.

Depois de muito custo, conseguiu emfim apazigual-os. Deram-se mutuas
satisfações, e separaram-se apertando as mãos.

Augusto retirou-se com João Cancella e Ermelinda.

O par conjugal ficou, renovando-se cêdo entre elles a interminavel
contenda em que viviam.




VIII


Saindo de casa do Zé P'reira, Augusto teve de escutar, ainda por muito
tempo, as vociferações e pragas, com que o Herodes acoimava a fraqueza
do compadre, que assim deixára a mulher tomar sobre si um ascendente
offensivo da dignidade varonil. Augusto ouviu tudo com resignado
silencio e attenção um pouco distrahida, conseguindo emfim a custo
soltar-se das mãos do seu interlocutor, que, no fogo da exposição de tão
justos aggravos, lhe segurava os braços com pouco affavel vivacidade; a
final, porém pôde deixal-o e voltou a casa.

Entrando no seu quarto, um pequeno e modesto quarto, mobilado com uma
banca, poucas cadeiras e uma estante, cheia de livros, Augusto respirou.

Era alli o seu logar de descanço; a escola era em outra casa vizinha.
N'esta não havia, a amargurar-lhe as horas do repouso, vestigios que lhe
recordassem as do supplicio.

Leitor philantropo, que, abrazado em santo amor da humanidade, só
entrevês delicias na tarefa do ensino, e fazes d'este vigiar e
encaminhar o espirito infantil, que desabrocha e respira pela primeira
vez no fecundo ambiente da sciencia, um seductor quadro de phantasia,
perdôa-me a palavra, supplicio, de que me servi, e perdôa ainda mais ao
caracter de Augusto o ter saido exacta a expressão, que te feriu os
humanitarios instinctos.

Eu bem sei que é uma sublime missão a do mestre: e que é uma graciosa e
amoravel idade a da infancia, e poucos melhor do que Augusto possuiam
presente o ideal de uma e amenisavam á outra com branduras os amargores
do penoso tirocinio;--mas que importa? nem por isso é menos real o
supplicio. A cultura dos espiritos é como a cultura das terras. O
lavrador exulta, estremece de prazer, vendo pullular do solo, arado e
semeado de pouco, os rebentos do grão que o calor fez germinar, e
volverem-se as folhas, estenderem-se e enflorarem-se os ramos, penderem
os fructos e colorirem-se das tintas da madureza; mas, emquanto vergado,
coberto de suor, arquejante, se afadiga a arrotear o terreno duro e quem
sabe se ingrato aos seus cuidados, muita vez lhe fallece o alento, e se
olha de quando em quando para o céo, não é para lhe agradecer, com risos
os gôsos que elle lhe dá; mas para lhe pedir, com lagrimas, a fôrça que
lhe mingúa.

De igual modo, se é grato ao cultor das intelligencias o vêl-as
desenvolver, florir, fructificar; ardua, improba, desesperadora é muita
vez a tarefa da sua primeira educação. É mister possuir um grande
thesouro de ideal, para que o suave e risonho typo, que da infancia
concebemos, não se transtorne, na phantasia d'estas victimas d'ella, em
não sei que figura diabolica e maligna, que lhes envenena todos os
momentos de alegria.

Além d'isso, o pobre professor de instrucção primaria, sobre quem pesam
os mais fastidiosos encargos da instrucção, não pode ser comparado
absolutamente ao agricultor do nosso simile; é antes o jornaleiro
contractado por magro salario, para, á fôrça de braço, lavrar o solo,
d'onde, mais tarde, romperá a vegetação, que elle não terá de vêr e que
a outros concederá os gôsos e o beneficio. Venceu tambem o humilde
professor, e por o mesmo preço que o jornaleiro, que não vão mais longe
com elle as liberalidades dos nossos governos, venceu as maiores cruezas
do magisterio; mas não verá tambem o resultado das suas fadigas.
Fogem-lhe as intelligencias, que educou, justamente quando com mais amor
as devia contemplar, e, se o destino reserva a qualquer d'essas
intelligencias um futuro de glorias, raro é que volvam um olhar
agradecido para as humildes mãos, que as sustentaram, quando ainda não
tinham azas para voar.

Quasi todos os grandes homens commettem esta ingratidão. Falam nos seus
mestres de philosophia, de mathematica, de litteratura, e não salvam do
esquecimento, pronunciando-o, o nome do primeiro mestre, do que os
ensinou a ler.

Considerações da ordem das que acabamos de fazer, quero acreditar, não
são as que mais preoccupam o pensamento da maioria d'esses pobres
diabos, que, por noventa mil réis annuaes, se deixaram ligar á atafona
do ensino primario da aldeia; porém devem ser, além das miserias de tão
mesquinha sorte, causas de grandes torturas moraes para alguma alma de
instinctos e aspirações mais elevadas, que o destino amarrasse, como por
escarneo, a este poste de expiação. N'esse caso estava por certo a alma
de Augusto. No vasto mundo, que os livros abrem ás imaginações, que na
vida real não encontram deleite, refugiava-se elle nas horas em que as
suas obrigações lhe permittiam respirar.

D'esta vez, porém, por pouco tempo lhe foi dado saborear esse prazer.

Soaram nos vidros da janella pancadas repetidas e chamou-o de fóra uma
voz bem conhecida d'elle.

Era a do mestre de latim, o sr. Bento Pertunhas.

--Sr. Augusto, ó meu querido sr. Augusto. _Amice!_ Pode falar a um amigo
e colega?--dizia elle.

Augusto foi abrir-lhe a porta, não reprimindo um gesto de enfado.

O latinista entrou esfregando as mãos.

--A ler, hein! sempre a ler! sempre amarrado aos livros!--dizia elle,
batendo no hombro a Augusto.--Invejo-lhe mais a pachorra do que o
proveito. Olhe que não medra com isso; nem ninguem lhe agradece as
canceiras que toma. Meu rico, por dois dias que um homem passa cá n'este
mundo, tolo é o que se mata. E então n'este paiz!... Faça como eu.

E, imitando com a bôca os sons da trompa, seu instrumento predilecto,
poz-se a examinar os livros que via sobre a mesa.

--Então que estava lendo? que estava lendo?... Poh! poh! poh!...
Versos... Ora que nunca pude gostar de versos!... Poh! poh!... E não é
agora porque se diga que não tinha quéda; não, senhores; em tempos fiz
até algumas quadras... Poh! poh!... já se sabe, até certa idade, mas
nunca fui muito para ahi... Poh!... A minha vocação é para a musica...
Poh! poh!... Lá para a musica, sim... Poh! poh! poh!... Herman e
Dorothéa--continuava elle, examinando os livros.--Novellas... Poh!... E
isto que é? _Confessions_ de Rousseau--n'este nome deixou aos diphtongos
o valor portuguez--Poh! poh! As Metamorphoses... Latim! Oh que massada!
Poh! poh! poh! poh!...--E o Ovidio, que lhe chegára ás mãos, foi
arremessado como se estivesse em braza.

Augusto não pôde conservar-se sério, ante o instinctivo movimento de
repulsão do mestre.

--Então que boa fortuna o traz por aqui, sr. Pertunhas?--perguntou elle.

--Ai, é verdade; eu lhe digo ao que venho. É para lhe pedir um favor,
meu caro sr. Augusto. Eu bem sei que é abusar da sua bondade...
_Quousque tandem, Catilina_... Mas, é por esta vez...

--Já sei; quer que lhe vá dar lição aos rapazes.

--Ah! grande maganão, que adivinhou--exclamou o mestre, abraçando
Augusto com effusão.--É isso mesmo, se lhe não custasse...

--Irei.

--É que... eu lhe digo, eu tinha hoje de ir ao ensaio da philarmonica...
Percebe o senhor? Os Reis estão ahi á porta e as outras festas do Natal,
e não ha tempo a perder... Percebe? E eu tenho ainda umas peças do
_Trovador_ para ensinar á minha gente. São muito bonitas... Poh! poh!
poh! E então este anno, que pelos modos temos cá o conselheiro e mais o
pequeno... Não contando com esse sujeito que ahi chegou a Alvapenha.
Chama-se Henrique de Souzellas, é sobrinho da velha, da D. Dorothéa, e
julgo que ainda aparentado no Mosteiro. Lá chamam-lhe primo. Esteve lá
esta manhã um par de horas, logo que saiu da minha repartição. Dizem-me
que é filhote de Lisboa, solteiro, rico e sem modo de vida. Rico e sem
modo de vida! Que lhe parece, hein? Olhe que sempre ha gente muito
feliz! Aqui para nós, sabe ao que me cheira a visita d'este senhor?
Aquillo é mosca que vem ao cheiro do mel. Que diz, hein? Ninguem me tira
d'isto. Pois não lhe parece, hein?

--Não sei bem o que quer dizer com a imagem--respondeu Augusto,
levemente enfadado.--Além de que não posso adivinhar as intenções de um
homem que pela primeira vez encontrei esta manhã.

--Pois está claro que não; nem eu; mas emfim uma pessoa logo tira pelo
que vê... Ora pois diga, um rapaz de Lisboa, afeito a divertimentos, a
boa musica, _et coetera_, andar leguas e leguas para se metter n'este
desterro... Porque isto é um desterro. Sim, deve concordar que não é
natural. Mas se a gente se lembrar de que a morgadinha, _et coetera_...
O senhor bem me percebe... Todos, hoje em dia, sabem o preço ao
dinheiro, meu amigo.

A verbosidade do mestre Pertunhas estava evidentemente incommodando
Augusto, que não redarguia.

--Nada, nada; alli anda plano, com certeza. Pelos modos, já depois de
ámanhã vae o rapaz acompanhar as pequenas á ermida da Saude. Ah!... mas
agora me lembro! o senhor é tambem da sucia.

--Eu?!

--Com certeza. Disse-m'o o Damião, que tem ordem das pequenas para o
convidar. Se ainda não recebeu o recado, ha de recebel-o. Em todo o
caso, observe-o e verá se eu tenho razão.

--Vou jantar, sr. Pertunhas, que já ha muito para isso me chamou a
criada--disse Augusto, erguendo-se como para fugir áquella conversa.--Em
seguida irei aos seus rapazes.

--Então vá, vá. Deus lhe pague o favor que me faz e permitta que eu lhe
não peça muitos d'estes. E eu tenho esperanças... Sabe que ando com
ideias de arranjar o lugar de recebedor, que está, como diz o outro, a
encher dias? Já falei ao conselheiro; mas o conselheiro promette muito e
falta melhor, sobretudo a um homem que não tenha influencia em eleições.
O sr. Joãozinho das Perdizes interessa-se por mim, é verdade; mas, por
outro lado, o Seabra brazileiro faz-me guerra. Eu ando a vêr se consigo
pôr o Seabra a meu favor, porque emfim... Mas vá, vá jantar, que eu
espero.

--Se quizer fazer-me companhia...

--Muito obrigado. Eu já jantei. O meio dia é a minha hora. Jante á sua
vontade.

Augusto saiu da sala. Mestre Bento Pertunhas, ficando só, deu algumas
voltas cantarolando, sentou-se depois, e pegando na pasta de Augusto,
poz-se a examinar os papeis que ella continha.

Ao mesmo tempo simulava umas variações de trompa, á fôrça de contracções
e esgares dos labios.

A pasta, victima da indiscreção do mestre, era a mesma que Augusto
trazia, quando o vimos no Mosteiro.

Entre os documentos contidos n'ella algum achou o mestre Pertunhas mais
curioso do que as escriptas e themas dos discipulos, pois, ao lêl-o,
desenhou-se-lhe no semblante a mais intensa curiosidade e cessou de todo
a exhibição acustica, que com tanto ardor encetára.

Leu-o até o fim com crescente avidez; e depois, olhando em volta de si,
para verificar que não era observado, dobrou-o e sorrateiramente o
escondeu no bolso. Fechou outra vez a pasta, pousou-a no sitio d'onde a
tirára, continuou a ler ou a fingir que lia com toda a attenção um livro
e encetou novas variações de trompa.

--Então já! Apre! Isso é jantar a vapor--disse o latinista, pondo-se a
pé, logo que Augusto voltou.

E momentos depois sairam juntos.

Querendo poupar os leitores á semsaboria de assistir a uma lição de
latim e a um ensaio da philarmonica, deixal-os-hemos ambos, para
voltarmos ao Mosteiro.

Ao fim da tarde, depois do jantar, estavam as duas primas sentadas ao
parapeito do muro da quinta, d'onde, por sobre almargens e pomares
vizinhos, a vista se espraiava em amplissimo horizonte até umas nuvens,
que pareciam limital-o.

D. Victoria saboreava, no seu quarto, as delicias da sesta habitual. As
creanças brincavam a alguma distancia, e os risos e os clamores d'ellas
vinham como um chilrear de passaros aos ouvidos das duas raparigas, que,
a cada momento, se surprehendiam em meditativo silencio.

A natureza estava serenissima. No occidente desenhavam-se estreitos e
longos traços nebulosos, a que o sol dava um colorido tão ardente, que
se o pintor paizagista o produzisse na palheta, hesitaria, ao passal-o á
tela, com receio de que o acoimassem de exaggerado. O verde dos campos
apresentava a gradação vigorosa, que a luz de um formoso dia de inverno
costuma dar-lhe.

Christina interrompeu o silencio por fim.

--O que eu não sei--principiou ella--é como o primo Henrique de
Souzellas...

--Onze!--atalhou a morgadinha, sem desviar os olhos do ponto da
perspectiva, que fitava.

--Onze quê?--perguntou Christina, erguendo os d'ella.

--Com esta são onze as vezes que, esta tarde, depois de um longo
silencio, abres a bôca para me falares no primo Henrique de Souzellas,
uma vez que está decidido que seja primo.

Christina fez um gesto de despeito e córou levemente.

--E então que queres dizer com isso?

--Eu? Nada. Digo só que são onze vezes com esta.

--Não sabia que era prohibido falar-te no primo Henrique. Bem, n'esse
caso falaremos em outra coisa. Está um tempo muito bonito: nem parece
dezembro.

--Não; vae magnifico para os nabaes--replicou Magdalena zombeteiramente.

--Se não mudar com a nova lua--continuou Christina, ainda formalisada.

--É excellente para seccar os milhos, que bem precisavam ainda d'isso,
principalmente os das terras baixas.

E, acabando de dizer estas palavras, a morgadinha desatou a rir.

--Não sei de que te ris!--acudiu Christina, cada vez mais séria.--Pois
não é esta a conversa de que tu gostas?

--Ai, muito. Eu sou doida por estas coisas de lavoura; bem sabes.--E,
mudando repentinamente de tom, accrescentou:--Ora vamos, Christe; não te
zangues commigo.

--Não, mas é que ás vezes não te entendo, a falar verdade. Vens com umas
coisas que mettem raiva--respondeu-lhe Christina, sempre agastada.

--Já estou arrependida; peço perdão. Fala lá á tua vontade no primo
Henrique, fala; que eu não contarei as vezes que o fizeres.

Christina reproduziu o gesto de impaciencia.

--Agradeço a tua generosidade, mas já não tenho mais que dizer d'elle
agora; por isso...

--Pelo menos completa a duzia.

--Lena! Então! Olha que se continuas com isso, fazes-me sair d'aqui.

--Sempre queria que te vissem agora, Christe, esses que andam por ahi a
gabar a docilidade do teu genio, as branduras da tua indole; queria que
te vissem essa cara arrenegada, para saberem que tambem ha um acidozinho
na tal doçura... Mas fazes-me a graça de só para mim teres d'essas
franquezas.

Christina sorriu, ainda que não de todo aplacada, ao ouvir esta reflexão
da prima.

--E não sabes a razão d'isso?--respondeu-lhe ella--a razão é o genio que
tens, Lena. O teu gôsto é mortificares uma pessoa. Não ha santo que não
perdesse a paciencia comtigo.

--Que injustiça! que ingratidão! Eu, que sou a victima das tempestades
que o teu genio pouco expansivo te junta no coração a todo o instante!
Se alguma coisa te faz chorar, guardas as lagrimas para o meu quarto; se
te irritam, vens desafogar as tuas cólerazinhas sobre a minha cabeça. E
pagas-me assim!

--És muito infeliz commigo. Pobre Lena!

--Vamos, vamos, Christe! esquece o que eu disse ha pouco. Não te posso
vêr assim.--E tomando um tom natural, mas sob o qual transparecia ainda
certa malicia, Magdalena continuou:--Pois é verdade, dizias tu que não
sabias por que o primo Henrique de Souzellas...

Christina fez um movimento impaciente, como para levantar-se.

--Então que é isso? Não me acceitas a expiação?--perguntou Magdalena,
sorrindo.

--Não; não quero que se fale mais no sr. Henrique de Souzellas. Vejo que
te não é agradavel que as outras se occupem d'elle. Sejam quaes forem as
razões que tens para isso...

--Bravo! Foi admiravel de maldade o entono com que disseste esse: «Sejam
quaes forem as razões.» E venham-me falar na candura d'esta creança!

--Eu não quero dizer...

--O que queres dizer, não sei; mas vejo que não és senhora tua quando se
fala n'este assumpto.

--Que lembrança!--tornou Christina, cada vez mais embaraçada--pois
imaginas devéras que eu?...

--E por que não?

--Lena!

--Não ha nada mais natural.

--Se queres, juro-te...

--Ah! atalhou a morgadinha, pondo-lhe a mão nos labios.--Isso não, que é
mais sério. Jurar não te deixo eu. Conheço os escrupulos da tua
consciencia, e não quero obrigar-te a remorsos. «Juro!» E com que
ousadia ias pronunciar um juramento falso!

--Falso!

--Falso, sim; falso como os que o são. Olha, minha pobre Christe, queres
então que te fale com toda a franqueza? Esta conversa trouxe-a eu de
proposito para confirmar umas suspeitas, que se me formaram e que vejo
agora que eram fundadas.

--Suspeitas! que suspeitas?...

--O primo Henrique de Souzellas deixou em ti uma tal ou qual impressão.

--Lena!

--Conheci isso ainda quando elle cá estava; verifiquei-o depois e agora.
Então! tem juizo. Commigo sê sempre o que tens sido. Eu góso ha muito do
privilegio de conversar á vontade comtigo e de te vêr sem aquella
timidez que tens deante dos outros. Com o teu genio, precisas de uma
pessoa, como eu, com quem não tenhas acanhamento e em quem possas até
descarregar algumas maldadezitas; e acredita que me lisonjeio com me
dares a preferencia.

--Mas como imaginaste?...

--Continuas? Não tens de que te envergonhar pelo interesse que por
ventura te inspirou esse rapaz. Henrique de Souzellas é elegante, é
espirituoso, affavel, possue uma intelligencia cultivada e muito trato
do mundo...

--Mas...

--Faça favor de me ouvir--atalhou Magdalena, pondo um dedo nos labios.
Reconhecendo todas essas qualidades n'aquelle nosso primo, não quero por
isso concluir que seja natural e prudente denunciares-te já. E nem
receio que isso aconteça, para te falar sinceramente, porque te conheço
o genio timido e porque... porque te conheço o genio timido e mais nada.

Havia mais alguma coisa, havia, mas não era coisa que se dissesse.
Magdalena sabia demais que Henrique não saíra d'aquella primeira visita
demasiado impressionado por a imagem de Christina; sabia talvez,
suspeitava de certo, não me atrevo a dizer que lisonjeada algum tanto,
que no coração do hospede de Alvapenha reinava outra imagem mais
persistente. Mas vejam as leitoras se, sendo este o seu pensamento, ella
o poderia formular? O remedio pois era completar a phrase como a
completou.

Christina já não tinha ousadia para negar, nem ainda coragem para
confessar. Encostando a face á mão, calou-se e deixou falar Magdalena.

A morgadinha proseguiu:

--É preciso que saibas, Christe, que é mais facil conhecer os defeitos
de uma pessoa, do que as suas boas qualidades. Os defeitos são
imprudentes e linguareiros, denunciam-se, dão signal de si, basta meia
hora para se descobrirem em qualquer logar que habitem. As boas
qualidades, não; essas são modestas, humildes, discretas; sabem
esconder-se. São precisos annos para as descobrir todas. Mas com que
olhos de espanto me estás fitando! Parece que te causa estranheza o meu
sermão? Eu te digo a que elle vem. Logo que falei com este nosso
primo... e quem sabe se o futuro virá confirmar, em relação a mim, esse
titulo, que por phantasia lhe dou? escusas de corar por eu dizer isto,
Christe...; mas, dizia eu, logo que falei com elle, saltaram-me aos
olhos muitos dos seus defeitos.

--Quaes são?--perguntou Christina com viveza.

--Socega; são ligeiros felizmente, e parece-me que os poderá ainda
perder; sobretudo se continuar a viver aqui. Quiz-me tambem logo parecer
que no fundo havia uma mina de bons sentimentos por explorar. Nasceu
logo em mim a vontade de o sondar, a vêr se conseguia purifical-o do que
n'elle houvesse de menos heroico. Então que queres? para a aldeia era um
passatempo como outro qualquer. Mas redobrou-se em mim este desejo e
revestiu em mim mais sério caracter, desde que vi a impressão que este
sobrinho da tia Dorothéa te causára.

--Lena! Como te deu para suppôr que eu me apaixonei assim em poucas
horas? Julgo que me imaginas apaixonada?

--Não, ainda não; inclinada, agradada, attrahida... ou outro qualquer
termo d'esta fôrça, que deixarei á tua escolha, isso sim. Para isso não
é preciso muito tempo. As razões, pelas quaes julguei isto, dispensa-me
de t'as dizer, que pouco valem. Suppõe que foi por um tacto especial,
por uma qualidade occulta, como a do tino que dizem que teem certos
medicos para reconhecerem o mal sem estudarem muito o doente.

--Pois o tino enganou-te.

--Enganaria; mas deixa-me continuar. Se este senhor primo intruso fôr
realmente o que eu imagino que é, resta-me preparal-o para o tornar mais
digno do amor d'esta boa Christe, que em tal caso favorecerei; se não
fôr, declaro-lhe já guerra e guerra de morte. A ti competia fazer isso
tudo, como a mais interessada, mas desconfiei da tua credulidade e boa
fé e da tua experiencia. Olha, estou certa que o que mais te attrahiu em
Henrique foi exactamente o que n'elle ha de peor. Certo verniz
mentiroso, certo colorido, que é preciso ter visto muita vez, e em
muitos individuos differentes, para se ter na conta devida. Illude,
agrada a quem não está costumado, e pode causar graves enganos e
desenganos mais graves ainda. Por emquanto o que elle nos mostra é mais
da sociedade em que vive, do que d'elle proprio. É necessario deixar
cair a primeira capa, para que o natural appareça.

--Não sabia que era assim facil enganar-se uma pessoa a respeito de
outra--notou Christina, sorrindo.

--Se é! Lembras-te do que tantas vezes conta tua mãe? Que, quando ha
annos foi a Lisboa, comprou lá por bom preço um cofrezinho que ella
suppunha preciosissimo, e que chora hoje a sua tentação, desde que o
verniz brilhante, que elle tinha, caiu e ficou á vista a realidade? pois
o mesmo acontece muitas vezes em contractos de outra ordem e bem mais
sérios do que este. Ha vernizes maravilhosos, que illudem os
inexperientes.

Houve um instante de silencio, no fim do qual Christina perguntou,
olhando pela primeira vez fita para Magdalena:

--Ora dize-me, Lena, qual será a razão pela qual eu não devo acreditar
que esses pensamentos te occorreram, porque era o teu destino, e não o
meu, que vias dependente do estudo que fazias?

A morgadinha fixou na prima um olhar triste e cheio de amargas
recriminações.

--Por uma razão muito poderosa, Christe, porque ias abrir o coração a um
sentimento mau, que macularia o teu caracter generoso e candido--a
desconfiança. Porque me offenderias, duvidando da lealdade, com que te
falo, quando te falo séria; e porque me farias mal sem necessidade e
immerecidamente, pois que a consciencia me diz que t'o não merecia.
Satisfaz-te esta razão?

A voz de Magdalena perdera o tom de ironia, que ás vezes tinha, e tomára
quasi o da commoção.

Christina arrependeu-se logo do que dissera, e, tambem commovida,
apertou as mãos da amiga.

--Não faças caso do que eu disse, Lena; perdôa-me. Quando eu duvidar de
ti, pedirei a Deus que me tire a vida, porque terei já, para tudo e para
sempre, envenenado o coração.

A morgadinha readquiriu outra vez o seu bom humor.

--Estamos quasi a cair no sentimentalismo. Cautela! Saldemos antes as
nossas contas, como mulheres de juizo. Em compensação da pequena offensa
que me fizeste, vaes-me fazer uma confissão formal, a qual até agora
tens evitado. Ora confessa, adivinhei o estado do teu coração? Dize.

Christina hesitou.

--Vamos,--insistiu a morgadinha--acredita que preciso de uma declaração
para me guiar... E crê que é para bem teu.

--Que queres que te diga? Eu não me sinto apaixonada.

--Mas já te disse que me bastava um termo menos violento... um
«agradada», por exemplo.

--Confesso que...

--Olha, se queres, podes até parar ahi. Esse «confesso que...» já diz
muito. Agora deixa-te guiar por mim. Eu vigiarei. Afianço-te que não
corro o perigo de me apaixonar por elle; creio que ha alli um excellente
coração, mas que queres? Não é o typo que me agrada... o meu ideal como
se costuma dizer.

--E então qual é o teu ideal?

--Ai, eu sou muito exigente. Desespero de o encontrar. Quero-o assim uma
especie de archanjo S. Miguel, animo de guerreiro em figura de cherubim;
e não sei onde o procure.

N'este sentido se prolongou o dialogo entre as duas primas, até que D.
Victoria, findando a sua sesta, veio ter com ellas á quinta. Segundo o
costume, ralhava contra os criados, a quem, não sei por que processo,
attribuia umas dôres de cabeça com que acordára.

No dia seguinte, Henrique voltou de manhã ao Mosteiro; redobrou de
galanteio com Magdalena, a qual redobrou de ironia. Christina já mal
podia disfarçar a pena que lhe causava o pouco que era attendida, mas a
sua timidez não a deixava luctar.

De tarde, Henrique teve de condescender com o padre, procurador de
Alvapenha, que se promptificou a mostrar-lhe as raridades e monumentos
da terra. Assim, com grande pesar seu, foi obrigado a renunciar á nova
visita ás senhoras do Mosteiro, para gastar as expressões da sua
admiração deante das alfaias da sacristia parochial; da tosca esculptura
de não sei que imagem de santo, a qual passava por um primor; de uma
sala nua, com uma mesa ao centro, forrada de baeta verde e cadeiras á
volta, que era a sala das sessões do corpo municipal; e de umas
pyramides de ripa, que tinham servido, havia oito annos, em festejos
officiaes.

Como é de suppôr, Henrique passou uma tarde deliciosa.




IX


Dois dias depois da chegada de Henrique, e n'aquelle que se destinára
para o passeio á ermida, Christina foi mais madrugadora do que as aves.
Á hora, a que estas ainda se não ouvem chilrear, já a prima de Magdalena
abandonava o leito, receiosa de se fazer esperar pelos companheiros da
projectada excursão matinal. Quasi não dormira toda a noite aquella
rapariga, com tal preoccupação.

As estrellas viram-a erguer, e tiveram muito tempo de se despedirem
d'ella, antes de se esconderem discretas ante o apparecimento do dia.

Christina vestiu-se á pressa e dirigiu-se ao quarto de Magdalena. Esta
dormia ainda. O projecto de passeio á ermida não a alvoroçára tanto.
Christina foi acordal-a ao leito.

A morgadinha abriu os olhos e fitou-os admirada na prima.

--Que queres tu, Christina? Que lembrança foi essa hoje de andares
estremunhando a casa esta noite?

--Levanta-te, preguiçosa, levanta-te. Não o dizia eu hontem? Então são
estas as madrugadas em que falavas?

--De certo que não são madrugadas; isto é noite é o que é.

--Dentro em pouco é dia. Queres vêr?

E, dizendo isto, Christina abriu para traz as portas das janellas e
correu as cortinas.

A estrella da manhã, Venus, aquella brilhante e ao mesmo tempo suave
estrella, que umas vezes assiste no crepusculo ás melancolias da
natureza, outras vezes na aurora ao renascimento dos seus jubilos,
scintillava mesmo defronte do leito de Magdalena.

--Vês?--disse Christina.

--Muito pouco. É esse o teu sol? Como vae alto! É pena que não alumie
melhor do que esta lamparina.

Christina sentia redobrar com estas delongas a sua impaciencia, quasi de
creança.

--Anda, Lena, anda. Assim não chegamos a vêr do alto da ermida o romper
do sol.

--Pois queres vêr isso de lá?! Que crueldade! Em uma manhã de dezembro!

--Está tão bonita, que parece de primavera.

--Triste lembrança a nossa hontem de combinarmos este passeio. Isto é lá
coisa que se faça? Vale por uma viagem aos pólos.

Christina não fazia senão ir do leito de Magdalena para a janella e
voltar da janella para o leito, em virtude d'aquella irresistivel
necessidade de movimento, embora sem ordem nem fim, que experimentamos
quando nos deixamos apossar da impaciencia.

--Não fazes ideia como está bonito cá fóra; n'alguns pontos ainda se vê
neve.

--Oh, que agradavel e tentadora belleza! Ainda se vê neve!... Parece-me
que já estou gelada... Com essa palavra tiraste-me o alento que ia
ganhando. Vês?

--Mas não está frio; até parece que aqueceu o tempo. Então, Lena!...
Elles... não tardam por ahi. Cuidas que te vae custar muito, e é um
engano; aqui estou eu, que não sinto frio nenhum.

--Ora, mas tu estás em condições muito particulares. Quem tem uma
fogueira no coração, não precisa...

--Ahi principias com as tuas coisas!

--Eu não sei; o que é certo é que esse teu enthusiasmo pelos passeios
matutinos não é natural. Quantas vezes recusaste acompanhar-me quando eu
t'os propunha? Ora, se me dás licença, eu explico isso.

--Não quero saber de explicações; veste-te, anda.

--Seja! Infeliz lembrança a d'este passeio. E foi d'aquella tia
Victoria, que nem por isso nos quiz acompanhar. Não, que já tem juizo;
dorme a estas horas o somno da madrugada, que é uma consolação. Que
sorte de invejar!

E a morgadinha, continuando assim a exaggerar o sacrificio d'aquella
madrugada e a alludir aos motivos secretos a que attribuia o ardor e
heroicidade da prima ante os rigores de dezembro, tudo isto de proposito
para a vêr impaciente, principiou a vestir-se.

Christina ficára á janella, espiando os progressos do amanhecer e
transmittindo á prima as observações que fazia.

--Olha, eu que digo?... já o Manoel vae abrir o portão... Não ouves os
pardaes?... É dia claro já... Havemos de chegar com sol á ermida, o que
não tem graça nenhuma... Avia-te, Lena... Has de ser a ultima a estar
prompta... Ahi vae já o Luiz com o almoço. É que não chegamos lá senão
ao meio dia. Elle ahi vem! Eu bem digo.

--Elle! Quem é esse elle que vem ahi?

--Pois quem ha de ser? Então não é o primo Henrique que nos acompanha?

--É o primo Henrique, é o sr. Augusto e é o Luiz, que tua mãe teimou em
mandar com o almoço. Não sabia qual dos tres te merecia as honras de um
«elle».

--Eu dizia o primo Henrique, que já ahi está no pateo--disse Christina,
que n'esta occasião correspondia ao cumprimento, que o recem-chegado lhe
fazia de baixo.

--Então, com effeito já chegou?--perguntou a morgadinha,
admirada.--Bravo! Nunca o esperei. Ai, Christe, que me parece que elle
tambem tem alguma coisa no coração!

--Tambem o julgo--respondeu Christina, despeitada;--é vêr como hontem te
falou.

--Socega. Quando o coração tem alguma coisa, não se fala assim com a
pessoa que causou esse mal.

--Não sei o que elle me está a dizer--disse Christina, olhando para o
pateo.--Posso abrir a janella, Lena?

--Eu já estou preparada para soffrer todas as crueldades esta manhã.
Abre lá a janella, abre. Fala-lhe.

Christina correu a vidraça.

A voz de Henrique chegou distinctamente aos ouvidos de Magdalena.

--Então aquella grande madrugadora da nossa prima, onde está?--perguntou
elle a Christina.

Christina respondeu, sorrindo:

--Está a fazer a diligencia que pode para ficar prompta antes do meio
dia.

--Oh, que vingança a minha! Ella que tanto falou da minha
indolencia!--disse Henrique jovialmente, e continuou falando sempre de
Magdalena, e elevando a voz ás vezes para se dirigir directamente a
ella, mas sempre sem receber resposta.

Esta insistencia impacientou Christina, para quem elle nem um galanteio
tivera ainda.

--De maneira que nós, priminha--continuou Henrique--damos uma lição de
mestre áquella arrogante de hontem. Estou ancioso por que ella nos
appareça; quero vêr a coragem, com que ousa apresentar-se.

--Eu vou chamal-a--disse sêccamente Christina, e veio dizer a Magdalena,
com certo modo, que não podia escapar a esta:--Olha se appareces alli ao
sr. Henrique de Souzellas, que não descança emquanto te não vê.

A morgadinha, que acabava de ajustar ao espelho as tranças, dando ao
penteado a mais singela e graciosa disposição, voltou-se para a priminha
e disse-lhe sorrindo:

--Isso são já ciumes? Mal sabes quanto gósto de te vêr assim! Ao menos
ha já vida n'esse teu coração, minha pobre pequena. O que te peço é que
não me odeies, só porque esse rapaz se lembrou de perguntar por quem não
via.

--Estás a imaginar ciumes, como hontem imanavas...

--Amores? justo; e com a mesma felicidade em acertar; podes ir
accrescentando. Mas, parece-me que ahi está mais alguem no pateo. Ouço
falar. Vae vêr. Será Augusto? N'esse caso, espera-se só por mim para
completar a caravana. E eu estou prompta. Marchemos.

Augusto havia effectivamente chegado ao pateo.

Henrique trocára com elle alguns cumprimentos, e principiaram depois
ambos a passeiar, um ao lado do outro, á espera das que deviam ser-lhes
companheiras na romagem.

A conversa manteve-se pouco animada. Augusto não era expansivo com as
pessoas, a quem o não prendiam habitos de longa intimidade; Henrique,
talvez por não conhecer a extensão e natureza dos conhecimentos de
Augusto, abstinha-se de falar dos assumptos, em que entraria de mais
vontade. Falaram pois de coisas indifferentes a ambos, e quasi frivolas;
no frio, na chuva, no inverno e no verão, nos prós e contras da vida do
campo e de varios outros assumptos sêccos de si e já além d'isso muito
esgotados, e tudo cortado por aquellas pausas e silencios constrangidos
e insupportaveis, que o leitor ha de conhecer por experiencia.

Digamos nós a verdade; estes dois homens não sentiam um pelo outro
aquella subita e inexplicavel sympathia, que abre os corações e dá
margens a confidencias.

Nos dois curtos encontros que tinham tido, manifestára-se entre elles
certa frieza mais que ceremoniatica, uma quasi desconfiança instinctiva.

Chegaram as senhoras. Foram acolhidas com prazer por ambos. Ainda quando
não fôssem senhoras o seriam; a chegada de um terceiro, quando dois
indifferentes estão na presença um do outro, em entrevista forçada e
fatigadora, é sempre saudada interiormente como uma redempção.

Magdalena e Christina vinham ambas formosas, com a especie de mantilhas
ou capuzes de que usavam, adequados aos rigores de uma manhã de
dezembro.

Appareceram ambas a rir. Foi o caso que, passando proximo do quarto de
D. Victoria, pé ante pé, para não a acordarem, esta presentiu-as, e
mesmo do leito perguntou-lhes:

--Então já vão, meninas?

--Vamos, tia; vamos, mamã--responderam as duas a um tempo.

--O Luiz já partiu com o almoço?

--Já partiu, já, minha senhora.

--E ides agasalhadas?

--Como se fôssemos para a Siberia--respondeu Magdalena.

--Olhae, sempre levem os guarda-chuvas por cautela. E ide com Nossa
Senhora.

--Cá os levamos. Adeus, tia; adeus, mamã.

--Adeus, filhas; até logo, se Deus quizer. Olhae lá, não vos estafeis.

Ora os taes guarda-chuvas é que não iam. Para quê? Com uma manhã
d'aquellas, que nem de inverno parecia, pois que até o frio abrandára
com o vento! Por isso é que vinham ainda a rir.

Chegando ao pateo, cumprimentaram os seus dois companheiros. Henrique,
depois de formular um galanteio a Magdalena, offereceu-lhe
attenciosamente o braço, que Magdalena recusou com alguma impaciencia,
porque se lembrou de Christina.

--Muito obrigada, primo,--disse ella com vivacidade.--Mas é preciso que
o advirta de que não vamos passeiar pelas avenidas de um parque. Vamos
trepar montes, atravessar ribeiras, costear precipicios, e para tudo
isso é necessaria a completa liberdade de movimentos. Ha occasiões, em
que melhor nos servem os nossos dois braços, do que o braço de outro,
embora seja o de um heroe.

--Mas de certo que não é á borda dos precipicios que esse auxilio se
escusa--replicou Henrique.

--É, muitas vezes é. Ha bordas tão estreitas, que mal cabe n'ellas uma
pessoa só; felizmente que a natureza nos dá um braço então... um braço
de giestas, por exemplo.

--Vê lá, Lena,--disse Christina ao ouvido da prima.--Talvez seja melhor
que acceites. Resta-me, a mim, o braço de Augusto.

--Se continuas com essas loucuras, Christina, obrigas-me a odiar-te. Sr.
Augusto--continuou voltando-se para este--espero que tome a direcção do
nosso passeio; ninguem melhor conhece os mais bellos pontos de vista;
leve-nos por lá, embora tenhamos de comprar as bellezas á custa de
perigos e de fadigas. Partamos!

O monte onde se erigira a capella da Senhora da Saude, afamada por seus
milagres e pela sua romaria n'um circulo de muitas leguas de raio, era
uma elevada rocha vulcanica, que dominava as freguezias ruraes de mais
de dois concelhos. Estendiam-se-lhe aos pés as alcatifas da mais rica
vegetação; banhava-lh'os a agua dos ribeiros, das levadas e torrentes,
arterias fertilisadoras de extensas veigas e pomares; mas elle, o
gigante orgulhoso e selvagem, recebia aquelles preitos, olhava
sobranceiro aquella opulencia, e, como se fizesse gala da sua rudeza, em
vez de cobrir os hombros com o manto real, que lhe estendiam aos pés,
permanecia aspero, severo e nú, como nas épocas primitivas, em que uma
convulsão tremenda o evocára do seio da terra, para o consolidar em
colosso.

Apenas, como symbolo de realeza, coroava-lhe a fronte alta a alameda,
que, havia perto de um seculo, a piedade christã plantára em volta da
ermida, para refrigerio e conforto dos devotos christãos que alli iam.
Era custosa a ascenção por o lado, por onde os nossos romeiros, contra
os conselhos de D. Victoria, a emprehendiam. Quando, ao sair de uma
longa rua, apertada entre muros de quintas, Henrique achou de subito
deante de si a mole immensa e talhada quasi a pique, que lhe disseram
tinha de subir; elle, que raro em Lisboa estendia além do Rocio os seus
passeios, com medo das ingremes calçadas da cidade alta, julgou ouvir um
absurdo.

Parou a contemplar o monte, como hesitando em atravessar o riacho, que
d'elle o separava.

O riacho, engrossado pelas aguas da chuva dos dias anteriores, levantava
um bramido atordoador ao cair em toalha dos açudes e ao escoar rapido
pela cal da azenha, que lhe obstruia o leito e cuja enorme roda movia.

Áquella hora, ainda pouco clara da madrugada, este sitio da raiz do
monte tinha não sei que aspecto selvagem e melancolico, que quasi
infundia pavor. Os altos choupos, em que se enroscavam, como serpentes
negras, os troncos flexuosos e despidos das vides; mais longe, o
cannavial, ondulando ligeiramente ao perpassar através d'elle a briza da
madrugada, e, aqui e além, um d'esses degenerados aloes dos nossos
climas, debeis e enfezados, como se os devorasse a nostalgia da sua
verdadeira patria, eram accessorios que concorriam para o effeito geral
do quadro.

A morgadinha, percebendo a hesitação de Henrique, deu-lhe alento com
lançar-lhe em rosto a sua pusillanimidade. Henrique encheu-se de brios e
atravessou, com não menor denodo do que os outros, o riacho, por o
passadiço de altas pedras, collocadas a pequena distancia umas das
outras, e que as aguas a cada momento ameaçavam cobrir.

Atravessada a corrente, seguia-se escalar o monte; para isso tornava-se
indispensavel caminhar em continuados zigue-zagues, aproveitando os
córtes que a fouce do tempo conseguira abrir n'aquella massa granitica e
os toscos degraus, com que uma arte rudimentar procurára facilitar, por
aquelle lado, o accesso da ermida á piedade dos devotos.

As difficuldades para Henrique eram continuas.

A cada momento os embaraços d'este forneciam motivo para risos da parte
de Magdalena. Christina não lhe podia levar a bem que se risse
d'aquillo.

Para compensar as fadigas de tão trabalhosa ascensão, havia porém, a
paizagem, que, a cada passo andado, a cada angulo que se dobrava,
apparecia mais surprehendente e maravilhosa.

Poucos peitos teriam fôrça para reprimir um brado de admiração.

As nevoas d'aquella manhã de dezembro não eram bastantes para velarem a
belleza do quadro.

Á medida que os nossos quatro peregrinos iam subindo, ampliava-se-lhes
mais e mais o horizonte; avelludava-se a relva da planicie, parecia
aplanarem-se os outeiros vizinhos, e os campos tomavam a apparencia dos
canteiros de um jardim.

Henrique não retinha o enthusiasmo, que aquelle espectaculo lhe causava.

--É magnifico! é admiravel! é soberbo!--dizia elle, a cada momento e
quando não era inquietadoramente preoccupado com os perigos do caminho.

O enthusiasmo de Augusto não era menos vivo! Dir-se-ia que eram os
montes a sua patria, e que a melancolia nostalgica, que o opprimia na
planicie, se ia dissipando á medida que subia a encosta.

Magdalena e Christina tambem não estavam menos impressionadas por o que
viam. Esta, porém, tinha uma causa secreta a aguarentar-lhe o prazer,
que as bellezas naturaes lhe pudessem occasionar.

Era esta causa a mesma dos seus leves despeitos de pela manhã.

Henrique continuava a ser todo attenções e galanteios com Magdalena;
parava a cada momento n'aquelles pontos do caminho, que lhe pareciam
mais difficeis de vencer, para lhe offerecer a mão a ella, sempre a
ella, a quem dirigia tambem todas as reflexões que o aspecto da paizagem
lhe suscitava e nunca á esquecida Christina que, n'esses momentos, quasi
achava a manhã desagradavel e o sitio feio e sombrio.

A morgadinha respondia sempre em curtas phrases a Henrique e recusava
insistentemente o auxilio, que elle lhe offerecia.

--Estou a suspeitar que esses offerecimentos do primo são mais devidos á
necessidade, que sente, de quem o auxilie, do que ao empenho de nos
auxiliar--disse ella sorrindo.--A falar verdade, para quem tem passado a
vida a trilhar os passeios do Chiado, que admira? Eu fui creada n'isto.
Tenho um pouco de alpestre. Adeante.

E de uma occasião, em que estava perto d'elle, disse-lhe a meia voz:

--Pode ser que Christina careça mais do seu braço, primo. Ainda não teve
a lembrança de lh'o offerecer.

Henrique só então deu por esse esquecimento; apressou-se a remedial-o,
offerecendo a Christina tambem o braço, que esta recusou, córando.

--Então por que recusas?--perguntou-lhe a morgadinha, em voz baixa.

--Porque não quero abusar da delicadeza d'elle, nem da tua.

A morgadinha abanou a cabeça em ar de reprehensão, fitando-a, mas não
lhe disse nada.

Pouco a pouco ia sendo mais completo o silencio em torno d'elles. Já
tinham passado acima dos rumores do valle, que não subiam a mais de meia
encosta. Chegaram emfim ao cimo do monte; tudo annunciava o proximo
apparecimento do sol.

--Chegamos a tempo!--exclamou Magdalena que, deitando a correr, fôra a
primeira que attingira a planura. Sua Magestade ainda se não levantou.

Os outros estavam, dentro em pouco tempo, ao pé d'ella.

Houve um longo espaço de silencio, concedido espontaneamente á
contemplação d'aquella perspectiva solemne.

As primeiras palavras, que se disseram, foram ditas em voz baixa,
n'aquelle tom, que insensivelmente lhes damos, quando na presença de um
espectaculo grandioso e bello. Fala-se baixo e pouco: não se formulam
longos periodos de aprimorado estylo, nivela-se a eloquencia de todos em
simples phrases, como estas:

--É bello!

--É magnifico!

--É sublime!

E nada mais. Pouco mais disseram os quatro na occasião de que falamos. E
eu, por analogas razões, os imitarei, desistindo de descrever o que só
bem se aprecia, quando pela vista se abrange o conjuncto de todo o
panorama. O leitor, que nunca visse alguma scena similhante, não a
imaginaria pela descripção, forçosamente pallida, que ahi lhe deixasse
d'ella; e para o que a viu, a memoria lhe preencherá bem a lacuna.

Desvanecida a primeira impressão, que não deixa ao espirito a serenidade
precisa para os processos da analyse, principiaram, como é costume, a
fazerem notar uns aos outros os sitios mais conhecidos.

Isto manteve por momentos uma perfeita e desenleada familiaridade entre
os quatro.

Christina descuidou-se da sua timidez e despeitos; Magdalena dos seus
projectos e desconfianças; Henrique e Augusto deixaram tambem a sua
mutua frieza.

--Lá está o Mosteiro--disse Magdalena, apontando para o logar
indicado.--Como parece pequeno, visto d'aqui!

--É verdade--respondia Christina--e olha, Lena, como se vêem bem as
janellas do teu quarto.

--Lá está aquella que tu abriste esta manhã para cumprimentares...

Sentindo a mão de Christina comprimir-lhe o braço, concluiu:

--Para cumprimentares a estrella d'alva.

--As janellas do quarto da mamã julgo que ainda estão fechadas.

--Tanto não posso eu distinguir; comtudo afianço-te que sim. A tia
Victoria não é muito matinal.

--Aquella casa acolá não é a de Alvapenha?--perguntou Henrique,
apontando n'outra direcção.

--É--respondeu Augusto--e, mais adeante, alli tem a deveza, em que
passou ante-hontem. Não é verdade?

--É justamente. Com effeito! Foi um soberbo passeio, o que eu dei!
D'aqui é que se vê. Lá vejo umas prêsas, por onde me lembro de ter
passado tambem.

--Vê, acolá, aquella casa que tem uma capella ao lado?--perguntou
Magdalena, apontando para um ponto distante.

--Perfeitamente.

--É a minha quinta dos Cannaviaes.

--Ah! É verdade, lá estão uns cannaviaes, se me não engana a vista.

--Justamente. Não sei se sabe que ha n'aquella capella uma imagem de
Nossa Senhora, muito milagrosa.

--Sim? hei de visital-a.

--Coisa que se lhe peça, fazendo-se o voto da meia noite, é
concedido--disse Christina, fitando d'esta vez Henrique, com a expressão
da mais insinuante sinceridade.

--Que quer dizer o voto da meia noite?

--Tem uma pessoa de rezar á meia noite, e sósinha, sete estações no
altar da Senhora--continuou Christina.

--Só isso? Boa é de cumprir a promessa. Já vejo que não ha aqui na terra
desejo que se não satisfaça.

--Mais devagar,--acudiu Magdalena, sorrindo--pouca gente se atreve até a
ir lá á meia noite, porque a alma de minha madrinha passeia a horas
mortas por a sua antiga casa, dizem.

--Cada vez sinto mais desejos de lá ir--accrescentou Henrique, depois de
ouvil-a.

--Além, entre aquellas arvores, sr.^a D. Magdalena, vive um
philosopho--disse Augusto, indicando outro ponto de perspectiva.

--É verdade; o bom do tio Vicente.

--Tio Vicente? Quem é o tio Vicente? Temos mais algum tio, com que eu
possa augmentar o meu parentesco na aldeia?

--O tio Vicente é um santo velho, que se occupa a colher hervas pelos
montes e valles para fazer remedios, que dizem milagrosos. Ainda é nosso
parente, mas em grau muito arredado; comtudo chamamos-lhe tio, assim
como quasi toda a gente por aqui.

--Que sombras negras são aquellas que se vêem no adro da
igreja?--perguntou Christina.

--Na igreja? Ah! acolá? É verdade, parece um cordão de formigas--disse
Henrique de Souzellas.

--São as mulheres que vão ouvir o missionario--respondeu a
morgadinha.--Escutem, lá está a tocar o sino.

Effectivamente chegavam ao alto do monte as debeis mas sonoras badaladas
do campanario da aldeia.

--A estas horas principiam as lamentações d'aquelle pobre Zé P'reira,
que tão mal olhado anda por a mulher, desde que ella deu n'essas
devoções--notou Augusto, sorrindo, ao lembrar-se da scena domestica a
que na vespera assistira.

--Degenerou aquella mulher!--disse Magdalena--e, se quer que lhe fale a
verdade, sr. Augusto, custa-me vêr o Cancella deixar a Lindita entregue
assim a essa gente quando sáe da terra. A pequena é tão apprehensiva!

--Visto isso, já chegou aqui á aldeia a influencia dos
missionarios?--perguntou Henrique.

--E não tem lavrado pouco!--tornou Magdalena.

Christina, que era um poucochinho devota, censurou timidamente as
palavras da morgadinha.

--Primo Henrique--disse ella--julgo que ainda será preciso o seu auxilio
para livrar do contagio esta innocente Christina.

--Prompto, prima Magdalena; para as boas causas tenho sempre armada a
minha vontade.

--Olha, Lena, não vês?--exclamou Christina--são os pequenos que nos
estão a dizer adeus das janellas do mirante.

De facto nas mais altas janellas do Mosteiro agitavam-se uns lenços
brancos.

Marianna e Eduardo haviam-se erguido para saudarem, de longe, a irmã e a
prima. Estas tiraram tambem os lenços e corresponderam-lhes aos signaes.

Interrompeu-as a voz de Henrique, dizendo:

--Annuncio a v. ex.^{as}, que chega o rei da creação.

Effectivamente o cume do telhado da ermida e as franças despidas da
alameda já se tingiam de luz.

Todas as vistas se voltavam para o oriente. Assignalava-o uma esplendida
faixa de purpura, que, em insensivel graduação, desmaiava para as
extremidades até se perder de todo no azul-celeste.

Rompia já, do meio d'ella, um pequeno segmento do sol, depois, o astro
inteiro apparecia afogueado e vermelho, como um escudo de metal
candente, e logo se desprendeu da terra, d'onde parecia surgir, e subiu
nos ares, como um brilhante aerostato, ao qual se rompessem as prisões
que o retinham.

O monte inundou-se de luz. O valle, em baixo, estava ainda envolto nas
meias sombras da madrugada.

Nisto appareceu do outro lado da capella um dos criados de Alvapenha,
que veio annunciar que o almoço estava prompto.

--Pois devéras temos um almoço?--exclamou Henrique, sinceramente
surprehendido.

--Graças á previdencia de minha tia, previdencia de que eu zombava em
casa, mas que sou obrigada a admirar agora. De facto, parece-me que
estes ares do monte e frescuras da madrugada lhe devem ter aberto o
appetite--respondeu Magdalena. E logo após continuou para
Henrique:--Agora é occasião mais accommodada de pôr em prática os
recursos do seu galanteio, primo. Quer dar o braço a Christina?

Henrique, em quem a morgadinha suspeitára a intenção de lhe render a
ella a fineza, que assim declinou na prima, teve de condescender,
limitando-se a exprimir n'um olhar as suas queixas, olhar que Magdalena
fingiu não perceber.

E conversando e rindo, dirigiram-se para o logar onde, sobre uma mesa de
pedra e lousa e ao ar livre, estava disposto o almoço.

D. Victoria não era senhora, que se saisse mal de emprezas d'estas. A
alvura da toalha, a excellencia da louça e o bem disposto e apurado das
iguarias convidavam.

Não se concebe appetite refractario a um tal conjuncto de
circumstancias. O fastio, n'este caso, seria um fastio mórbido,
correspondente a lesão organica e como tal sem poesia.

Henrique e Augusto principalmente fizeram, como era natural, justiça á
cozinha do Mosteiro.

Henrique, que parecia haver esquecido as suas mil e uma doenças,
conversou animada e espirituosamente.

Contaram-se anecdotas; Augusto applaudiu as de Henrique; este riu com
vontade das que ouviu a Augusto.

A morgadinha, por sua propria mão, preparou o chá.

N'estas alturas do almoço encetou novamente Henrique o tiroteio de
amabilidades, de que por muito tempo não sabia prescindir.

Dir-se-ia ser este o signal para se perturbar a santa harmonia do
congresso. Parecia que todos os outros, mais ou menos, se sentiam
contrariados.

Henrique ficára sentado junto da parede da capella. Inclinando-se sobre
o espaldar da cadeira a saborear um charuto havano, descobriu umas
letras escriptas na parede, exactamente por cima da cabeça.

--Bravo!--exclamou, depois de as ler para si--não imaginava que havia
poetas na aldeia! Querem ouvir?

E leu:


  Se estás mais perto do céo
  N'estas alturas da serra,
  Ai, porque tens, peito meu
  Inda saudades de terra?

  Em vez-de erguer os olhares
  Á luz d'este firmamento,
  Desço-os á sombra dos lares,
  Onde tenho o pensamento.


--É pena que a chuva apagasse o resto. Quem é o bardo, prima?

--Não sei; da aldeia de certo que não é--respondeu Magdalena, com
indifferença.

Augusto ergueu-se da mesa e foi passeiar para a alameda.

--Da aldeia, não, diz a prima; e por que não? Com esta natureza é facil
crearem-se os poetas. Eu estou vendo n'esta quadra a folha solta de um
romance. Aqui a serra de algum Bernardim inedito, tão capaz de escrever
saudades, como de as sentir. Os lares, pela sombra dos quaes o olhar do
poeta trocava os esplendores do céo... algumas d'essas casas, que ahi se
vêem em baixo. Quem sabe se não será até o Mosteiro? Eu, por mim,
confesso que se estivesse hoje aqui só, ou em outra
companhia--accrescentou, olhando significativamente para a
morgadinha-não teria dúvida em subscrever esta quadra, como a exacta
expressão do meu sentir, porque...


  Em vez de erguer os olhares.
  Á luz d'este firmamento


Eu tambem...


  Os _abaixaria_ aos lares
  Onde tenho o pensamento.


Christina levantou-se tambem da mesa e foi ter com Augusto á alameda.

Magdalena, que a seguiu com a vista, não disfarçou um gesto de despeito
ao ficar só com Henrique.

--Prima Magdalena,--disse em tom mais affectuoso Henrique, passado
tempo, e depois de mais algumas palavras--deixe-me falar-lhe com
franqueza, agora que estamos sós. Conhecemo-nos ha dois dias; eu, porém,
sinto-me tão seguro já do que lhe vou dizer, que não hesito. Não pode
imaginar a indelevel recordação que me ficará d'esta manhã.

--Perdão,--atalhou Magdalena--diga-me primeiro o que é isso que me vae
dizer. Prepara-se para me agradecer o almoço? Eu sou como os reis; gosto
de estar prevenida do sentido das felicitações que me dirigem, para ir
preparando uma resposta adequada.

-Que prazer tem em ser cruel!

-Deixemo-nos de loucuras--continuou Magdalena, séria já.--Quem ouvisse o
sr. Henrique de Souzellas havia de suppôr que se preparava para me fazer
uma declaração.

-Uma declaração do mais puro affecto, do mais sincero sentimento, por
que não?

-Ah! Pois, se eram essas de facto as suas intenções, peço-lhe desista
d'ellas.

--Por quê?

--Porque não posso escutal-o.

--Ou não quer.

--Ou não quero; seja.

--Teria eu a desventura de chegar tarde, prima? Acaso o seu coração
já...

--Que impertinente pergunta? Se _já_, não tenho ainda no sr. Henrique a
necessaria confiança para o tomar por confidente. Conhecemo-nos apenas
de hontem, que é o mesmo que não nos conhecermos.--E accrescentou logo
depois:--Christina, anda ser arbitra n'uma disputa entre mim e o primo
Henrique.

--Que vae fazer?--perguntou-lhe Henrique, admirado.

Christina approximou-se; Augusto seguiu-a. Henrique não desviava os
olhos da morgadinha que, sem lhe dar attenção, proseguiu para Christina:

--O primo Henrique falava com certa exaltação da doçura do teu caracter;
o meu amor proprio disse-me que--era pouco delicado estar assim a
lisonjear uma mulher na presença de outra--e redargui por isso, pondo em
dúvida a asserção e affirmando que havia um fermentozinho de maldade na
tua doçura. Elle nega por impossivel, eu insisto e estamos n'isto. Agora
dize tu.

Christina córou intensamente e não teve que responder.

Henrique, que nas palavras de Magdalena julgou ouvir algumas que, pelo
sentido e inflexão, com que foram dictas, lhe eram dirigidas, acceitou
desaffrontadamente a posição, em que Magdalena o collocára, e respondeu:

--Venci eu! O facto de querer a priminha poupar uma réplica amarga á
accusação que lhe fazem, é a mais eloquente prova, já não digo só da
doçura, mas da natureza angelica do seu caracter. Já vê, prima
Magdalena, que «quando uma das mulheres que diz, fôr como a nossa boa
Christina, não se podem admittir essas revoltas de amor proprio, a que
alludiu.»

A morgadinha percebeu tambem o duplo sentido d'estas ultimas palavras;
mas fingiu não comprehender.

Henrique, ao desviar por acaso os olhos, encontrou os de Augusto fixos
n'elle, emquanto um sorriso lhe dissipava um pouco dos labios a grave
expressão que lhe era habitual, temperando-a com não sei que de ironico,
que não escapou tambem a Henrique.

Os olhares d'estes dois homens trocaram-se por momentos, sem que nenhum
parecesse disposto a baixar-se deante do outro.

Desviou-os porém uma dupla exclamação de Magdalena e de Christina,
dizendo:

--Olhem o tio Vicente por aqui!

Dobrava effectivamente n'aquelle momento a esquina da ermida, e
approximava-se da mesa do almoço, o velho herbanario, em que já temos
falado no decurso dos passados capitulos.




X


Era uma expressiva figura de ancião o herbanario.

A fronte larga e desaffrontada de cãs, os olhos ainda vivos e
penetrantes e, em toda a physionomia, permanentes indicios de habituaes
meditações e por ventura de passados infortunios, elevavam aquelle
semblante muito acima da vulgaridade. Os annos ou, mais ainda do que os
annos, os pezares haviam subjugado n'elle a robustez de outros tempos;
os habitos de solidão, que adquirira, a pouco e pouco lhe amoldaram o
caracter até fazerem do velho um d'esses typos excepcionaes, que
atravessam o mundo entre a estranheza de quantos os rodeiam, a ninguem
permittindo sondar os mysterios que guardam comsigo e para si, e creando
para uso proprio regras de viver, sem attenção ás convenções sociaes.

Era um enigma vivo.

Nas aldeias acompanhava-o uma fama quasi de nigromante; attribuiam-lhe
curas milagrosas, obtidas com os simplices, a cuja cultura e colheita
consagrava as maiores attenções e canceiras.

Ninguem lhe queria mal, que a ninguem o fizera nunca. Poucos porém
ousariam, depois do esconder do sol, ir procural-o á isolada casa em que
vivia, escondida n'um quintal, que era cultivado com todo o amor pelo
velho.

Em todos os casos intrincados vinham consultar o herbanario, e elle,
como seguro da sua proficiencia, em caso algum recusava o alvitre.

Em resultado de leituras aturadas, mas sem escolha nem methodo, de uns
alfarrabios herdados de um tio frade que tivera, adquirira imperfeitas e
mal digeridas noções de sciencia, de que se mostrava orgulhoso. Livros
de medicina antigos, alguns de jurisprudencia, outros de logica e de
astronomia, constituiam a sua mesclada bibliotheca. Entre os livros mais
predilectos e consultados contava um exemplar da _Polyantheia_ de Curvo
Semedo.

O herbanario principiára em creança uma educação tal ou qual, que
revézes de familia haviam interrompido.

Os meios conhecimentos, que das suas habituaes leituras extrahira, e os
erros, que de taes livros assimilára, eram os elementos, com que chegou
a architectar uma sciencia informe, que na aldeia passava por
maravilhosa.

E o caso era que a fama do homem voára de freguezia em freguezia, de
concelho em concelho, e de muito longe o vinham ouvir como a oraculo.

Os costumes do velho, que errava por valles e montes á procura dos
simplices, cujas occultas virtudes conhecia, as suas maneiras rudes, a
austeridade da physionomia, a franqueza, sem contemplações, com que
dizia quanto pensava, tinham gravado fundo na imaginação popular aquelle
typo, para ella quasi lendario.

Depois de se sentar á mesa, o herbanario estendeu familiarmente a mão a
Augusto, que lh'a apertou com affecto.

--Bons dias, rapaz,--disse o velho; e, dirigindo-se a Magdalena e
Christina, accrescentou com maneiras paternaes:--Adeus, pequenas;
grandes madrugadas hoje!

Voltou-se depois para Henrique, e fitou-o com olhos inquisidores e quasi
desconfiados, terminando por lhe dizer simplesmente:

--Guarde-o Deus!

Henrique correspondeu-lhe no mesmo tom.

Sem mais o attender, Vicente voltou-se para Magdalena e perguntou-lhe
com voz audivel para Henrique, e referindo-se a elle:

--Quem é?

Henrique respondeu com ligeiro tom de mofa:

--O homem que, melhor que ninguem, está habilitado a responder a essa
pergunta.

O velho nem sequer o olhou.

--Este senhor--respondeu Magdalena--é sobrinho de D. Dorothéa; está
hospede em Alvapenha. Veio para aqui restabelecer-se da saude.

Vicente tornou a examinar Henrique.

--Então é doente?... Não parece... Olhar vivo... Côres boas... voz sã...
Umh!...

Magdalena julgou perceber que as maneiras rudes do velho estavam
desagradando a Henrique; por isso apressou-se a intervir, respondendo
jovialmente:

--A doença d'este senhor é um pouco de imaginação.

--E grandes effeitos nascem d'ahi--acudiu sentenciosamente o velho.--Lá
veem na _Polyantheia_ muitos casos curiosos. Um homem, por ter comido
umas amoras, foi atacado de dôres de cabeça, de que morreu. Pois tanto
scismou que das amoras lhe viera o mal, que até se lhe formou no craneo
uma pedra do feitio de uma amora.

--Com effeito!--disse Henrique, com ironica expressão de pasmo--ahi
estava um cerebro de concepções rijas!

--É divertido!--disse Vicente, com ligeiro sarcasmo e olhando para
Magdalena.

--Pelo contrario--acudiu a morgadinha--o seu mal é a melancolia. Não é
verdade?

--Eu já não sei qual é o meu mal. Estou quasi a dar razão á tia
Dorothéa, que lhe chamou mania.

--Mania e melancolia não são a mesma coisa--emendou o velho.--Tambem lá
na _Polyantheia_ se diz isso bem claro. A melancolia é sem ira nem
furia, porque procede de humor frio, e a mania de sangue quente ou
cólera requeimada.

--De cólera requeimada? Deve ser uma coisa terrivel!--continuou
Henrique, no mesmo tom.

Magdalena, receiando que a ironia dos commentarios de Henrique acabasse
por irritar o velho, perguntou a este:

--Parece-lhe que terá cura a doença?

--Pode ter; mais rebeldes melancolias se curam. Este é divertido a
final. Umh!... Mas contra tristezas e manias não ha como as folhas de
ouro em caldo de frangão com flores de borragem e de herva cidreira.

--Este é como os calvos, que vendem aos outros pomadas para fazer nascer
o cabello; é um argumento vivo contra a efficacia da beberagem que
receita para as manias--disse Henrique a meia voz para Augusto, que lhe
ficava proximo.

O velho, que não tinha ainda dado mostras de offensa pelas maneiras
impertinentes de Henrique, córou d'esta vez e faiscou-lhe nos olhos um
relampago de irritação.

Havia-se sentido ferido no ponto mais melindroso da sua dignidade.

--Está bom, menino,--replicou elle amargamente.--Não diga mais, para se
não envergonhar depois. Eu calo-me; e desculpe-me se falei. Estou
costumado a vêr pobres e ricos virem a minha casa pedir-me o favor de os
attender. Ainda assim ahi vae mais um conselho, apesar de m'os não
pedir. Seja attencioso com a velhice que não é baixeza nenhuma. Mas que
é isto?--exclamou, mudando de tom e olhando para um redemoinho de folhas
sêccas que o vento trouxera até perto d'elle.--As folhas veem d'este
lado! Então virou o vento? É verdade. Ah! sim?... Percebo.

E, depois de olhar para o ar, continuou:

--Mudanças tão repentinas!... Umh!... Já me não agrada aquelle azul e
aquellas nuvens.

E levantou-se.

--Dou-lhes meia hora, e verão tudo isto coberto e quem sabe o mais que
virá! Aconselho-os a que vão descendo o monte, que não é seguro descel-o
quando as enxurradas engrossam. Eu, por mim, já me não demoro, que não
tenho confiança na firmeza das minhas pernas. Oh! n'outros tempos!...
Emfim tudo tem de acabar. Adeus!

E, sem mais palavras, sobraçou a caixa de lata, em que archivava as
hervas medicinaes e outras substancias, que andava colhendo, e partiu,
depois de dizer adeus a Augusto, a Magdalena e a Christina.

Logo que o herbanario desappareceu, Henrique soltou uma risada, em que
parecia haver o que quer que era de forçado.

--É realmente curiosa esta antigualha--disse elle, que interiormente
sentia já remorsos pela maneira por que tratára o velho.

--Ai, primo Henrique; que ainda está muito pouco preparado para viver na
aldeia!--disse a morgadinha.--Tem uns melindres e uma maneira de vêr as
coisas! Tudo lhe parecem faltas de attenções, propositos de offender!
depois ha um sarcasmo cruel nas suas palavras, a que os espiritos não
estão aqui habituados e de que se sentem por isso feridos. Isso não é
bom! Se vae assim, ou terá de nos deixar cêdo, ou grandes desavenças
suscitará por ahi. Não repara que estes modos são proprios do campo?

--Perdôe-me, prima Magdalena; mas confesso que nunca tive demasiado
geito para lidar com doidos. Deve confessar que este homem...

--É um homem de bem--atalhou Augusto com voz firme e com uma severidade
de expressão, que até alli não mostrára ainda.

Henrique voltou-se admirado e fitou-o em silencio. Augusto arrostou
firmemente aquelle olhar.

--Não o nego--respondeu Henrique, pouco depois--mas infelizmente os
homens de bem envelhecem, como os outros, e a extrema velhice traz a
imbecilidade.

--Engana-se; esse homem, apesar de algumas phantasias, tem ainda um
juizo são e uma razão clara.

--Acha?--tornou Henrique, já algum tanto azedado.--Ha de dar-me licença
de não fazer obra por as suas apreciações... se me é permittido.

--Procede mal--redarguiu Augusto.--Porque eu conheço aquelle homem ha
muito e o senhor acaba apenas de o vêr pela primeira vez. Foi o senhor
quem primeiro deu ás suas palavras um tom irritante, que desafiou uma
digna correcção. Não lhe ficaria mal se tivesse sido mais generoso. A
consciencia lh'o está dizendo n'este momento melhor do que eu.

--Lê fundo nas consciencias dos outros!

--Não é difficil. Em todos os homens a consciencia tem uma só maneira de
ser. Reprova sempre o mal, aponta sempre a culpa.

--Estou admirando a subita loquacidade que se lhe manifestou! Até aqui
suppunha-o taciturno. Vejo que lhe mereço a fineza de abrir uma excepção
aos seus habitos de laconismo em meu favor. Muito agradecido. Isso que
dizia eram maximas ou pensamentos moraes? Não reparei.

Augusto córou, mas respondeu com firmeza:

--Nem uma nem outra coisa; é um genero muito mais modesto do que
qualquer dos dois. Simplesmente um preceito de civilidade.

Henrique ia responder irritado, mas conteve-se e tornou com dobrada
ironia:

--É verdade, é verdade... esquecia-me que a civilidade entra no seu
programma... de mestre-escola.

--Justamente; tenho alguns discipulos que lisonjeiam o mestre;
rapazinhos da aldeia, pobres, rotos e descalços, mas n'esse ponto podem
dar lições a elegantes filhos das cidades.

--Pois estimarei, nas minhas longas horas de ocio, aqui na aldeia,
dever-lhe algumas lições tambem. Comtudo, como, felizmente, as
circumstancias em que estou me permittem prescindir do beneficio do
estado, que o subsidia, ha de conceder-me que pague as lições que
receber.

--Nunca me envergonhei de acceitar a recompensa do meu trabalho, se o
discipulo pode dar-m'a... sem sacrificio.

--E acceita-a em toda a especie de moeda, não é verdade?--perguntou
Henrique, cada vez mais petulantemente.

Augusto respondeu com a mesma serenidade:

--Não faço tambem escrupulo n'isso, comtanto que me fique o direito
salvo de pagar na mesma especie de trócos, quando julgar que os devo.

O dialogo ia, como vamos vendo, de momento para momento adquirindo mais
acerbo caracter.

Christina, que já tremia de assustada, cingiu o braço de Magdalena, como
para convidal-a a intervir.

Esta não o tinha ainda feito por uma simples razão. Desconhecia Augusto.
A audacia com que o via repellir as ironias do seu adversario, a firmeza
inalteravel, com que lhe sustentava o olhar, o sorriso, que, em desdens,
rivalisava com o d'elle, eram tão novos para a morgadinha, que a
surpreza, que d'ahi lhe vinha, nem a deixava ainda perceber a utilidade
de uma intervenção. O aviso de Christina chamou-a, porém, á realidade.

--Tem-me querido parecer, ainda que me custa a acreditar, que isso entre
os senhores é uma altercação--disse ella por fim.--Vejam que só teem por
testemunhas duas mulheres, que mal lhes podem servir de padrinhos, se a
contenda tomar outra feição. Por isso não é muito para louvar a escolha
que fizeram da occasião, para uma justa tão pouco... amavel.

--Perdão, prima Magdalena; reconheço a minha culpa, e a grosseria do meu
proceder. Mas aqui o sr. Augusto, costumado a impôr aos discipulos o seu
pensamento, quiz estender até mim este despotismo de... _magister_...
Ora o meu pensamento pugnou pela sua independencia...

--Desculpe; suppondo-o um homem de brio e de pundonor, julguei que me
agradeceria, se conseguisse modificar-lhe uma opinião desfavoravel, que
levianamente formou de quem lh'a não merecia. Vejo que prefere ser
injusto. Seja-o. Pense o que quizer. Mas o que eu não soffro é que se
diga deante de mim uma palavra contra um homem que respeito e de quem
sou amigo, sem que erga a voz a defendel-o. Se não costuma fazer o mesmo
por os seus, nem sente viva e irresistivel a necessidade de o fazer,
lastimo-o; é porque não os tem.

--Com mais paz de espirito se discutirá tudo isso depois--disse
Magdalena.--É de crêr que, como sempre, haja de parte a parte razão e
aggravos. Agora convido-os, antes de descermos, a visitar a ermida, cuja
porta está sempre, dia e noite, aberta aos devotos que a piedade aqui
traz. E tal é o prestigio que a defende, que não consta de um só roubo
sacrilego, que se fizesse n'ella.

Entraram na ermida. Era um pequeno santuario, todo forrado de azulejo
antigo, com ennegrecidas pinturas a fresco nos apainelados do tecto,
representando episodios da Paixão; os altares, adornados de columnas e
florões de talha dourada, attestavam nos muitos ex-votos que d'elles
pendiam e nos quadros, cuja perspectiva deixava a perder de vista a dos
desenhos chinezes e que representavam milagres de todo o genero, a fé
ardente com que era adorada a imperfeita esculptura da Virgem.

E apesar de tudo tinha este templo um ar de solemnidade manifesto.
D'onde lhe vinha elle? Da sua mesma pobreza e nudez, do silencio que
reinava em torno, da altura a que se erguia, do isolamento em que
estava.

Alli dentro demoraram-se os quatro visitantes, Magdalena e Henrique
examinando alguns dos quadros dos milagres; Christina, que prolongára
mais do que a prima a oração que fizera, contemplando a imagem da
Senhora; Augusto com os olhos fitos nas columnas do altar, porém, não
sei se pensando n'ellas.

Esperava-os uma surpreza á saida.

Realisára-se o prognostico do herbanario.

O vento sul que, segundo elle notára, soprava já havia algum tempo,
viera condensar os vapores, que arrasta de ordinario na sua corrente, e
empanar com elles a limpidez do firmamento. O azul do céo semeiára-se,
pouco a pouco, de pequenos flocos brancos, de manchas irregulares e de
longos e encurvados veios que lhe davam uma apparencia quasi marmorea.
Cêdo estas massas de nuvens cresceram, tocaram-se, confundiram-se,
acabando por tingir uniformemente toda a extensão do firmamento. Ao
mesmo tempo, outras nuvens, mais pesadas e mais escuras, começaram a
erguer-se do sul e caminharam impetuosas no espaço, como montanhas
moveis, que viessem em pavorosa carreira, de encontro ás serras, que as
aguardavam firmes.

Um denso véo de nevoeiro escondia já a paizagem, quando sairam da
ermida.

--Depressa!--exclamou Augusto--já não ha tempo a perder! Desçamos antes
que a tormenta nos colha.

--Tem medo?--disse Henrique em tom de mofa.--Um montanhez!

--Talvez tenha; em todo o caso ha de vêr que não é de inimigo pouco
digno de o inspirar. Por agora peço-lhe tréguas ás zombarias e, por amor
d'estas senhoras, aconselho-o a que trabalhe por apressar a descida.
Felizmente que o criado já partiu. É um embaraço de menos.
Vamos.--Detendo-se, porém, disse para Magdalena:--Se descessemos por o
outro lado, minha senhora?

--Para quê?--respondeu esta.--É um momento, emquanto chegamos abaixo.

A tempestade caracterisava-se cada vez mais; crescia a cerração do ar;
os álamos gemiam, vergados pela impetuosidade das lufadas do sul; a
chuva principiou por grossas gottas, e cêdo augmentou assustadoramente;
havia na atmosphera surdos rumores de tempestades longinquas; algumas
nuvens tomavam uma côr terrea, outras um carregado de chumbo, ambas
igualmente sinistras.

Christina, pallida de susto, murmurava em voz baixa orações fervorosas;
Magdalena sorria para a animar, mas ella propria estava inquieta.

Não era de facto uma empreza de todo facil o descer o monte por um tempo
d'aquelles. O caminho, já de si ingreme e precipitoso, era quasi
impraticavel quando as correntes se despenhavam por elle, como em
catadupas, e os ventos vinham despedaçar-se furiosos de encontro ás
arestas salientes da rocha.--Era necessario estar muito amestrado para o
descer sem perigo.

Augusto era de todos o que melhor o conseguiria; assim não tivesse de
repartir os seus cuidados por tantos. De pequeno se costumára áquellas
aventuras; e já então seguia, sem vertigem, a mais estreita borda dos
despenhadeiros do monte.

A tudo porém attendia agora, desenvolvendo uma actividade e pericia, que
inspirava alento e confiança aos mais. Agil, como um animal montez,
girava em volta da pequena caravana, de que tacitamente fôra reconhecido
chefe. Ora adeante a dirigir os passos pelos logares de mais facil
transito, ora á retaguarda a dar a mão a Magdalena, que vira em
embaraço, ou a amparar Christina, a quem muita vez chegou a levantar nos
braços, para a fazer franquear um ponto do caminho, em que ella parára,
sentindo que lhe resvalavam os pés no declive e na humidade do chão. O
proprio Henrique, que não era o menos embaraçado do rancho, e nem isso
admira, só a custo podia prescindir, em certos lances, do auxilio de
Augusto.

O amor proprio e orgulho do hospede de Alvapenha iam um tanto
mortificados n'esta retirada ingloria. Nenhum dos seus muitos talentos e
aptidões, de tanto valor no terreno, tambem escorregadio, das salas de
baile, lhe valiam para alli. Era evidente a sua inferioridade n'este
momento; ora Henrique não era homem que, tendo consciencia disto,
ficasse indifferente; mas que remedio? Procuraria mais tarde uma
compensação.

Não descrevemos todos os episodios d'esta laboriosa descida, alguns dos
quaes sómente a preoccupação, em que iam os animos, impedia achar
risiveis; porém que mais tarde deviam, como é costume, vir a ser
alimento de animadas e joviaes recordações.

Assim foi que, a meio da encosta e em sitio em que se lhes cortava ao
lado do caminho, que cautelosamente desciam, uma ribanceira quasi a
pique e erriçada de fragas salientes e angulos de rocha, em cujas fendas
e sinuosidades apenas os tojos e as giestas e algum pinheiro enfezado
tinham conseguido vegetar, uma violenta rajada de vento, desprendendo a
mantilha de Magdalena, depois de a revolutear no espaço arremeçou-a ao
abysmo.

Ficou suspensa nos espinhos das tojeiras, porém em logar, onde seria
difficil o accesso, de qualquer lado que se tentasse.

Magdalena, no momento, não pôde reter um grito, que fez parar com terror
Henrique e Augusto que caminhavam adeante. Voltaram-se assustados.

A morgadinha, com a cabeça descoberta, tranças ligeiramente
desordenadas, as faces um pouco pallidas, sorria já do seu exaggerado
susto.

A rir, explicou o succedido, pedindo perdão pelo sobresalto que
involuntariamente causára.

--Descança em paz!--disse ella, olhando para a mantilha; e
accrescentou:--Sigamos.

--Mas não será possivel tiral-a d'alli?--perguntou Augusto, examinando o
sitio.

--Para quê? Não podemos demorar-nos agora com isso--respondeu Magdalena.

--Eu desço a cortar uma canna lá abaixo aos Moinhos e volto n'um
momento--insistiu Augusto, dispondo-se a executar o que dizia.

Henrique notou, sorrindo:

--O alvitre é de homem prudente. Cuidei que os montanhezes não eram de
tão bom aviso.

E, animado pelo desejo de humilhar Augusto, por quem se sentia
humilhado, e ao mesmo tempo cedendo á influencia que sobre elle exercia
a fascinadora figura de Magdalena, Henrique arrojou-se a uma
desnecessaria imprudencia.

Sem dar tempo a que o impedissem ou lhe fizessem qualquer reflexão,
deixou-se escorregar no despenhadeiro, segurando-se com as mãos á borda
do caminho; tenteou com os pés as fendas e as anfractuosidades da rocha,
até conseguir firmal-os; segurou-se ora a uma raiz saliente, ora a um
ramo mais tenaz; á fôrça de vontade dominou a sua impericia em
exercicios d'esta ordem, e finalmente conseguiu, estendendo o braço,
segurar a mantilha, que o vento arrojára ao precipicio.

Depois, com dobradas difficuldades e por ventura redobrados perigos,
pôde, roçando-se como reptil, e ferindo as mãos nas asperezas da rocha e
nos espinhos das tojeiras, em que se firmava, pousar outra vez os pés em
terra, sem acceitar a mão que Augusto lhe offerecia, e com gesto
radiante entregou a mantilha a Magdalena, fixando em Augusto um olhar de
triumpho.

Os espectadores d'esta scena haviam-a presenciado sem soltar uma
palavra, sem fazer um movimento, quasi gelados de susto e de espanto.

Quando Henrique voltou com a mantilha, Augusto meneou a cabeça
murmurando:

--Que imprudencia!

--Na verdade!--disse Magdalena, ainda nervosa com a impressão que este
incidente lhe causára--foi uma loucura; uma loucura imperdoavel.

E a perturbação era tal, que nem acertou com uma phrase de
agradecimento, com que pagasse a imprudente galanteria, que mais
desejava reprehender, do que recompensar.

Esta reserva offendeu Henrique; serviços a seu vêr de menor importancia,
tinham merecido a Augusto mais calorosas palavras.

Revoltou-o esta ingratidão.

Mal sabia elle que estava sendo ainda mais ingrato, não concedendo
sequer um olhar ás faces desmaiadas pelo terror, aos labios trémulos e
aos olhos arrasados de lagrimas, com que o fitava Christina. Ella, que o
tinha seguido muda de susto e de anciedade em toda aquella louca
aventura, ella que, ao terror do perigo, ajuntava a affligil-o o
desespêro de vêr que fôra outra a que inspirava aquellas loucuras!

Aguardavam-os em baixo novos trabalhos a vencer. Com a fôrça das
enxurradas, que se precipitavam clamorosas pelas vertentes e algares,
era provavel que a levada que corria na raiz do monte tivesse engrossado
mais e acabasse de cobrir a ponte rustica, que á vinda já tinham
encontrado quasi submersa.

Augusto, prevendo isso, voltou-se para as senhoras, dizendo:

--Eu vou adeante assegurar-me do estado da ponte, para no caso de estar
já coberta, como é provavel, vêr se o moleiro nos abre a porta do
moinho, a fim de passarmos por lá. Vão descendo devagar, que eu volto.

--Então deixa-nos sós?--exclamou Christina, assustada.

--É um instante.

--Não sei se nos atreveremos a dar um passo sem a sua indicação--disse
Magdalena.

--O peor está passado. Além d'aquella pedra já vêem o ribeiro e a ponte;
o caminho indica-se por si.

E dizendo isto, desceu agilmente por uma especie de escadaria aberta na
rocha, a qual mais depressa o devia conduzir ao logar que demandava.

Henrique ia agora na frente; após, seguia-se Magdalena. Christina
fechava o cortejo.

O mau humor de Henrique augmentára de ponto, em consequencia dos receios
com que as duas raparigas tinham visto Augusto abandonar, por momentos,
a direcção do rancho.

Ficava assim bem evidente a pouca ou nenhuma confiança que lhes estava
merecendo o auxilio de Henrique, representando assim elle n'aquella
contingencia, em vez do papel de protector, o de protegido, que o
humilhava.

Obrigado a digerir, como pudésse, o seu fundo descontentamento, Henrique
perdera com isso aquella volubilidade de conversação que mantivera todo
o dia.

Nunca, na presença de Magdalena, deixára passar tanto tempo sem formular
um d'esses galanteios que a impacientavam e obrigavam a uma resposta,
nem sempre demasiado affavel.

Magdalena, por seu lado, não se sentia com disposição para falar.
Christina menos.

Este silencio acabou por exasperar Henrique.

Haviam já percorrido grande parte do caminho, que os distanciava do
riacho. Avistavam-se as aguas turvas e impetuosas, que, com mais fragor
do que nunca, se contorciam n'aquelle apertado leito.

Foi então que Henrique desafogou o seu resentimento.

--Estou devéras arrependido, prima Magdalena,--disse elle com leve
ironia--do meu espontaneo movimento de ha pouco. Devia lembrar-me de que
ao nosso cavalheiroso guia devem pertencer todos os triumphos e toda a
gloria d'esta jornada: mas como d'aquella vez se me figurou que era
demasiado cauteloso para heroe...

Uma simultanea exclamação de Magdalena e de Christina não o deixou
proseguir.

Voltando-se para saber a causa, que a motivára, viu-as paradas,
pallidas, olhando com anciedade para a base do monte.

Seguindo a direcção do olhar d'ellas, Henrique reconheceu a causa
d'aquelle duplo grito.

Refiramol-o em poucas palavras.

Quando Augusto chegou ao ribeiro, para averiguar se a ponte estava ou
não transitavel, surprehendeu-o um espectaculo inesperado.

O herbanario que, prevendo tempestade e receioso dos perigos de que em
taes condições a descida era acompanhada, se apressára a partir, não
conseguira chegar ao ribeiro, antes do desencadeamento da borrasca. O
andar vagaroso e precavido do velho e as frequentes pausas que fazia, ou
para descançar ou para colher a rara planta montezinha, o insecto, o
verme, o mollusco ou o mineral de occultas virtudes, elementos da sua
pharmacopeia, foram retardando de maneira que a chuva apanhou-o a meio
caminho, e mais difficil de descer lhe tornou a metade, que lhe faltava.
Assim, não obstante haver partido antes dos outros, não lhes levava
muitos passos de avanço.

Ao chegar á levada, encontrou já as pedras do tosco passadiço, a que se
dava o nome de ponte, cobertas pela agua. O velho deu-se pressa em
descer para a passar ainda a pé enxuto; mas a levada, agora torrente
caudalosa, ganhava corpo de momento para momento; cêdo já não se viam
signaes de ponte. O herbanario parou, embaraçado. Acima ficavam-lhe os
açudes, transformados em impetuosas cataractas; abaixo, o moinho, em
cujas enormes rodas espumava a corrente com espantoso fragor.

O velho Vicente hesitou. Era para causar vertigens o que via. As aguas,
sem transparencia, occultavam de todo a vista das pedras.

Tenteou com o bordão o sitio, em que as suppôz. Encontrou a primeira,
pousou um pé n'esse ponto; firmou-se como pôde, para resistir á fôrça da
corrente; tenteou outra vez, reconhecendo outra pedra, deu mais um
passo, e outro, e mais outro, até que de repente, ou por esvaímento de
sentidos ou por se firmar em falso, vacillou e, perdendo o equilibrio,
caiu na levada para o lado dos moinhos.

Foi n'este momento que Augusto chegou; viu-o pois cair, viu-o
estrebuchar, luctando com a impetuosidade das aguas; reconheceu a
urgente necessidade, para evitar uma horrivel desgraça, de acudir, sem
perda de tempo, ao pobre velho, que a torrente arrastava para os lados
do moinho.

Cedendo a este pensamento, Augusto franqueou, quasi de um salto, o
espaço, que o separava ainda do ribeiro, e lançou-se á agua.

Era a vez de Augusto revelar coragem. Henrique tambem a possuia, mas
abusava d'ella ou, por vaidade malbarateava-a em ninharias. Ainda n'isto
se revelava o seu amor de ostentação. Imaginava-se sempre n'um palco,
deante de espectadores que o viam e applaudiriam, se desempenhasse bem o
papel de homem perfeito. Fraco perante doenças imaginarias, arriscaria,
para evitar o ridiculo, a propria vida, assim como suffocaria, por
ventura, um impulso generoso, que não pudésse harmonisar-se com a
convenção, que se chama elegancia.

Eram estes os defeitos que Magdalena adivinhára n'elle.

Augusto era differente.

As suas grandes qualidades guardava-as com modestia dos olhos estranhos,
para sómente as revelar, quando pudéssem ser uteis.

Ao vêr cahir a mantilha de Magdalena, não arriscou temerariamente a vida
para a buscar. Procurava com placidez os meios de o fazer, com mais
segurança, embora com menos romanticismo; mas, para salvar uma vida,
para obedecer a um instincto, verdadeiramente nobre e generoso, nada o
fazia recuar.

Logo que Augusto voltou a terra e auxiliou o herbanario a subir para a
margem, Magdalena, respirando emfim com desafogo, respondeu ás
anteriores palavras de Henrique, dizendo em suave tom de censura:

--Bem vê que nem sempre é cauteloso o nosso guia, primo Henrique. Sabe
tambem arriscar a vida, quando uma razão de humanidade lh'o pede. A sua
imprudencia de ha pouco... agradeço-lh'a, mas... não posso approval-a.
Confesse que não foi tão justificada como esta.

Henrique tinha a razão clara bastante e a consciencia justa para vêr
que, apesar da sua façanha cavalheiresca, ficára, d'esta vez ainda,
inferior ao seu companheiro.

Qualquer que fôsse o desgosto, que a descoberta lhe produzisse, é certo
que teve sobre a rebellião dos maus instinctos poder sufficiente para se
obrigar a ir apertar a mão a Augusto.

O velho Vicente estava pallido e extenuado pelo esforço da lucta com a
corrente; ainda assim abraçou tambem Augusto, dizendo:

--Agradeço a Deus o haver-me dado esta occasião de te dever a vida,
rapaz. Era um prazer que desejava levar da terra, quando a deixasse.

Magdalena e Christina rodeavam o velho de cuidados.

Appareceram, emfim, do outro lado do ribeiro, os criados enviados por D.
Victoria com guarda-chuvas e roupas de agasalho. Com elles vinha tambem
o moleiro, a quem mandaram chamar para dar passagem pelo moinho, visto
estar obstruida a ponte, e ao mesmo tempo para que as senhoras pudéssem
ahi dentro mudar de fato.

Augusto seguiu o herbanario a casa.

Passada meia hora saíam tambem do moinho os outros todos, depois de
haverem renovado a roupa, que a chuva repassára.

No Mosteiro, D. Victoria recebeu a filha e a sobrinha com muitas
exclamações e ralhos por não terem ido prevenidas com guarda-chuvas,
como ella lhes recommendára; estas iras cêdo se derivaram sobre os
criados, a quem, entre outros delictos, attribuia o de a não haverem
avisado de que na vespera passára por alli o caldeireiro ambulante,
repenicando nos seus arames, o que, sendo prognostico infallivel de
chuva, faria com que ella, sabendo-o, se oppuzesse a tal passeio.

Em Alvapenha, D. Dorothéa e Maria de Jesus não levantaram menor celeuma,
ao vêrem chegar Henrique. Fizeram-o metter na cama, cobriram-o de
cobertores, emborcaram-o de _punch_ e taes mêdos lhe insinuaram, que as
apprehensões pathologicas de Henrique agitaram-se e tentaram
reapossar-se da sua antiga victima.




XI


Censuravel descuido tem sido o nosso em não conduzir o leitor a um dos
logares mais importantes da aldeia, onde se passam os singelos episodios
d'esta narração.

Que se diria de um _cicerone_ que, por esquecimento ou proposito,
deixasse de apresentar um viajante, recem-chegado a uma cidade, na
assembleia, club, gremio, ou o que quer que seja, onde se reunem as
principaes personagens d'ella, onde se compendiam as grandes questões e
interesses locaes, as pequenas vaidades e intrigas, as modas ephemeras,
os voluveis caprichos que agitam os espiritos, onde se commenta o boato
de hontem, se dão ao de hoje mil versões diversas e se adivinha já o de
ámanhã?

Pois no mesmo delicto incorremos nós, chegando a este undecimo capitulo,
sem ter guiado os leitores á venda de Damião Canada, a qual podia
dizer-se o verdadeiro coração d'aquelle organismo social.

Tudo quanto na terra havia de certa representação alli ia falar da coisa
publica e tambem da particular;--da particular dos outros mais do que da
propria, entenda-se.

Aproveitemos um resto da tarde, em que a natureza após horas continuadas
de chuva e de temporal, como que procurou respirar e permittiu que o
sol, já no occaso, levantasse uma ponta do manto de nuvens que o
envolvia, e mandasse os raios amortecidos ás cristas das serras
fronteiras; aproveitemos este intervallo de socego para entrarmos na
taberna.

Tinham passado dois dias depois do passeio ao monte, que descrevemos.

Henrique de Souzellas teve de condescender com uma leve angina, que lhe
legaram os rigores d'aquella excursão, e ficou em Alvapenha,
entretendo-se a escrever cartas aos amigos e a scismar n'uma imminente
desorganisação da larynge, a que imaginava conduzirem-o os seus
incómmodos actuaes.

No Mosteiro nada tambem occorreu, que mereça narrar-se ao leitor.

Deixemos, pois, por momentos, os nossos conhecidos, e vejamos o que
dizem os frequentadores do estabelecimento de Damião Canada.

Brilhante é a assembleia alli reunida. Além do proprietario, barriguda e
rubicunda figura, que, assim posta ao pé das pipas, podia servir de typo
para a representação de um Sileno, havia varias individualidades de peso
nos destinos de toda a comarca.

Dê-se primeiro menção ao nosso já conhecido Bento Pertunhas, a quem as
humanidades não faziam soberbo a ponto de recusar-se a entrar em
communicação social com os seus conterraneos.

Observada esta deferencia, mencionemos os mais.

Um era nem mais nem menos do que o sr. Joãozinho das Perdizes, em quem
já temos ouvido falar por mais do que uma vez.

Era o dicto sr. Joãozinho morgado e proprietario em uma das freguezias
proximas, chamada de Pinchões; mas propriedades e morgadia andavam-lhe
tão embaraçadas em redes de demandas e de hypothecas, que Deus nos
acuda.

Os autos, que diziam respeito á casa das Perdizes, enchiam um cartorio.
Graças, porém, ao seu genio despreoccupado e folgazão, o sr. Joãozinho
deixava aos procuradores os cuidados judiciaes; os cuidados agricolas
aos rendeiros e feitores; os do futuro, a Deus ou ao diabo; e para si
não reservava nenhuns.

Proseguia n'aquella vida airada, que já lhe era necessidade. Frequentava
as feiras, onde ia para jogar e fazer trocas de cavallos com os ciganos,
e ás vezes para dar e levar sovas monumentaes.--Nos mezes de caça, a
vida do morgado era perfeitamente nómada: estendia por leguas e leguas
as suas excursões venatorias, contentando-se com qualquer cama e comida,
de que, de ordinario, participavam os cães, que o acompanhavam;
distrahia-se tambem a conquistar os corações femininos da freguezia,
calando com dinheiro algumas queixas mais acerbas e insoffridas de um ou
outro pae, marido ou irmão. Em todas as tabernas das freguezias vizinhas
tinha contas em aberto, o que não obstava a que entrasse em todas com
ares de conquistador e expendesse alli as suas opiniões absolutas, com
grande exhibição de berros e de punhadas.

Com todas estas qualidades, era o sr. Joãozinho das Perdizes um homem
verdadeiramente popular entre os da sua freguezia; movia-os no sentido
que quizesse.

Tudo por lá era o sr. Joãozinho; não havia funcção, rixa, solemnidade
official, para que elle não fôsse consultado. É que a superioridade do
morgado das Perdizes não era d'aquellas que intimidam e acanham o povo;
ninguem hesitava em falar-lhe e em procural-o em casa, porque, falando e
vivendo com elles, o sr. Joãozinho não constrangia ninguem. Os seus
defeitos, a sua vida de feiras e de tabernas eram outras tantas causas a
popularisal-o; justo é porém que se diga que algumas boas qualidades
tambem para isso concorriam. O sr. Joãozinho não era avarento, nem
soberbo. Sentado a beber, e com dinheiro no bolso, não consentia que
pessoa alguma, desde o mais rico proprietario até o jornaleiro mais
miseravel, recusasse tomar assento a seu lado. Não eram poucos os
filhos-familias que resgatára de soldado, sem a menor caução ou
interesse, chegando a ficar empenhado para os livrar; e se algum
desgraçado se via perseguido pela justiça, encontrava, fôsse qual fôsse
a enormidade do crime, asylo seguro na herdade das Perdizes, que em
certas épocas era um perfeito valhacouto de malfeitores.

Graças, pois, a estas e analogas qualidades, era o sr. Joãozinho uma
verdadeira potencia eleitoral.

Eis ahi o homem moralmente.

Pelo lado physico, supponham um sujeito de trinta e cinco annos, gordo,
vermelho, de longas e encaracoladas melenas em desordem, bigode aparado
e a barba quasi sempre mal feita ou por fazer. Na maneira de vestir
inculcava os habitos da vida e um certo desleixo com sua pessoa, que lhe
era peculiar. Trazia o collete quasi sempre desapertado e com alguns
botões de menos de modo que os peitos da camisa formavam hernia pela
abertura; entre as calças descaídas e o collete avistava-se o cóz das
ceroulas, no qual era geito muito seu o enfiar a mão; ao pescoço trazia
um lenço de seda escarlate, negligentemente atado e com longas pontas
fluctuantes; uma jaqueta de pelles com alamares, calças de fazenda
chamada pelle do diabo, botas de montar e esporas constituiam o resto do
vestuario. O cigarro, que quasi sempre fumava até ás ultimas,
crestára-lhe profundamente as pontas dos dedos e o canto dos labios. O
palito andava-lhe sempre atraz da orelha; a navalha de ponta na
algibeira, e, para qualquer parte que ia, acompanhava-o uma tumultuosa
matilha de galgos, podengos e perdigueiros.

Segunda e não menos importante personalidade era a do sr. Eusebio
Seabra, chamado por antonomasia--o Brazileiro.

Era um homem de cincoenta annos; bem figurado e sisudo, de falar
compassado e com seus quês de oraculo, phrases sentenciosas e ares de
protecção a todo o mundo.

Saira creança da aldeia e fôra tentar fortuna ao Brazil. Por lá esteve
quarenta annos, e voltou o homem grave que vemos e rico. Como enriqueceu
não sei, e ninguem na terra o sabia. Veio edificar uma casa no sitio em
que nascera, uma casa grande de cantaria e azulejo, com tres andares e
varandas, jardim com estatuas de louça e alegretes pintados de verde e
amarello, o qual jardim tinha mais fama n'aquellas aldeias vizinhas do
que os jardins suspensos da Babylonia. Trouxera um papagaio e uma arara,
igualmente famosos, e uma botica homoepatica, que elle proprio
manipulava.

As ambições de Eusebio Seabra limitavam-se a vir a ser a primeira
personagem de influencia na aldeia. Para isso principiou por fazer
alguns reparos na igreja parochial, presenteou com vestidos novos todos
os santos dos altares, e mandou renovar um sino, que havia doze annos
tocava a rachado. Fez á sua custa a festa do orago, chegando a mandar
vir fogo preso da cidade e um aerostato, que ardeu a pouca altura do
chão. Apesar, porém, de todos estes beneficios á localidade, o
conselheiro Manoel Bernardo, pae da morgadinha, comquanto vivesse quasi
sempre em Lisboa, continuava a fazer-lhe sombra e a contestar-lhe as
ambiciosas vistas. Por isso, apesar da apparente amizade com que Seabra
o acolhia e lisonjeava até, conservava por elle no fundo uma má vontade,
um ciume, de que eram de receiar, tarde ou cêdo, explosões.

Seabra era tão asseiado, quanto o sr. Joãozinho das Perdizes descurado
no seu vestir. Usava sempre de suissa irreprehensivelmente talhada em
volta do queixo; camisa muito lavada; peito aberto e tres grandes botões
de brilhantes; no trajo combinavam-se as variegadas côres de uma ave da
America; e o ouro, distribuido com profusão por todos os accessorios da
sua pessoa, attestava os bons resultados dos seus quarenta annos do
Brazil. Passeiava pela aldeia de chinelos de marroquim verde ou sapato
de tapete, e era tal n'elle a delicadeza do andar, que voltava a casa
sem que uma mancha ennodoasse a alvura das suas meias de algodão fino.
Aos domingos e dias de festa indignava a relva dos caminhos, calcando-a
com bota de polimento.

Além d'estes dois e do nosso conhecido Zé P'reira, que bebia, em
silencio, ao pé do taberneiro, havia um padre, coadjuctor da freguezia,
dois lavradores abastados e já de avançada idade, e outros que
deixaremos confundidos na massa indistincta dos comparsas.

No momento, em que entramos, usava da palavra o brazileiro, que estava
sentado á porta da taberna, na mais limpa cadeira do estabelecimento.

--Pois é verdade--disse elle--fômos todos da mesma creação. O
conselheiro Manoel Bernardo saiu d'aqui para Lisboa um anno depois de eu
ir para o Brazil. Andámos ambos na mesma escola, que era a do padre
Joaquim, alli pelo sitio da Corredoura. Vossemecê ha de estar lembrado,
sr. Luiz--accrescentou, dirigindo-se com a affabilidade protectora, que
o caracterisava, a um dos lavradores.

--Ora se estou! muito bem. Era na casa em que hoje mora o Chico da
Luciana.

--É verdade que sim. Pois alli andei eu e o conselheiro e aquelle ratão
do Vicente, herbanario, que era já rapaz taludo. Lembra-me, como se
fôsse hoje, de quando jogavamos todos tres a pedra no terreiro da
Corredoura.

--Olha lá, hein!--diziam dois lavradores com um sorriso cortezão nos
labios--então com que o sr. Seabra tambem jogava a pedra! Eh! eh! eh!...

--Ora, como um homem. Eu fui levadinho da bréca. Boa sóva levei de minha
mãe, por causa de umas calças novas que rompi.

--Ora vêdes?--diziam os outros.

--Ai tempos, tempos!--disse, suspirando, o brazileiro.

--Quem havia de dizer então ao que v. s.^a e o conselheiro tinham de
chegar!--notou lisonjeiramente o sr. Bento Pertunhas.

--Eu sim--respondeu com toda a sua modestia o brazileiro.--A que cheguei
eu? Comi candeias accêsas pelo Brazil, para arranjar um boccado de pão
para o resto da vida; com isso me contento. O mais, sou um pobre diabo
que ninguem conhece, um homem ignorante, sem principios. Elle é outra
coisa.

--Não é tanto assim--insistiu Pertunhas--todos sabem que v. s.^a se
quizesse...

--Olhe, meu caro amigo, eu conheço-me; se tivesse o juizo de muitos, que
por ahi vejo figurando, então havia de me vêr na brecha; porque, não é
por me gabar, mas não me tenho por menos do que muitos d'elles.

--Ora pois, não, não--disseram os lavradores, Pertunhas e o padre.

--Alguns que até ministros teem sido...

--Por essa estou eu...

--O conselheiro mesmo...--resmungou o padre, fungando uma pitada
jesuitica--sim, aqui para nós...

--Tanto não digo--continuou o brazileiro, mais jesuiticamente ainda.--O
conselheiro... vamos... Faça-se-lhe justiça. Eu não quero dizer que elle
seja uma coisa por ahi além... sim... Que diabo tem elle feito a
final?... Mas... Não é dos peores, não é dos peores. Faça-se-lhe
justiça. Não é homem de grandes talentos... isso não; nem mesmo de
grande fundo. Sim... Devemos confessar que esta é a verdade... Mas...
emfim, vamos andando... Cada um faz o que pode--concluiu o brazileiro,
depois de ter feito justiça ao conselheiro.

--No que elle tem andado mal é em prometter mais do que pode fazer. Ha
quantos annos nos anda a falar na estrada, e até hoje ainda nem palmo
d'ella?--opinou Pertunhas.

--Meu amigo, engana meninos e chupa-lhe o pão: diz o dictado--ponderou o
brazileiro.

--A falar verdade!...--disse um dos lavradores--com a influencia que
elle tem, podia...

--Ora adeus! palanfrorio--atalhou o padre--bem me fio eu na influencia
do conselheiro.

--Eh! eh! eh!--respondeu o brazileiro, agradado do scepticismo do padre,
e accrescentou com um sorriso velhaco:--Não, elle diz que fala com os
ministros, que tal, que sim senhores, que domina o partido. Emfim...
Elle lá o sabe.

--Para mim é que elle vem de carrinho...

--Eu não sei--concluiu com requinte de velhaquez o brazileiro.

--Pois eu cá--disse o sr. Joãozinho, que estivera bebendo em silencio, e
descarregou um murro na banca, que fez tilintar os copos.--Eu cá já
disse; se os taes homens das bandeirolas me tornam a passar por as
terras, sempre lhes meço as costas com um marmeleiro, que lá tenho, e
que já me serviu para varrer a feira de Santo Estevão. Uns mariolas!...

E como para desafogar o pêso da sua amabilidade, despediu um pontapé a
um podengo, que lhe viera roçar por as pernas, e fel-o sair ganindo.

--Dizem que vão principiar outra vez com os trabalhos das
estradas--informou o taberneiro, enchendo de novo o copo ao sr.
Joãozinho.

--Pois que vejam no que se mettem. Cautelinha commigo!--resmungou
este.--Faço como d'aquella vez em que eu e a minha gente queimámos toda
a papelada da camara e do escrivão da fazenda.

--Agora no inverno é que elles hão de principiar com os trabalhos.
Sempre se fia em boa!--disse, encolhendo os hombros, mestre Pertunhas.

--Vossemecê é que está a ler--veio-lhe á mão o brazileiro.--Então não
sabe que as eleições são em fevereiro?

--Ai, é verdade! não me tinha lembrado d'isso!--exclamou o padre.

--Tambem não sei como será d'esta vez essa historia das eleições--acudiu
o sr. Joãozinho.--Cá eu e a minha gente ainda estamos a vêr no que param
as coisas. Eu já não estou para ser logrado. Até agora tenho dado ao
conselheiro a freguezia em pêso, sem pedir nada, ou se pedi foi o mesmo
que não pedisse. Vou curar-me de tolo; agora sempre havemos de entrar
n'uns ajustes. Se o homem não estiver cá por umas contas, não anda o
filho de meu pae.

--Ora adeus!--disse o padre cura.--O conselheiro tem artes para o levar.

--A mim? Está enganado. Não querendo eu? Então você não me conhece. Em
eu embirrando, sou como um borrego teimoso.

--Quando se fala em estradas, já estou a tremer--disse um dos
lavradores.--O que elles veem cá fazer é cortar-nos os campos, e a final
não sei para que servem.

--Isso não é assim--atalhou o brazileiro, tomando uns ares
cathedraticos, cheios de gravidade.--Vossemecê é ignorante e por isso é
que fala d'esse modo.

--Eu digo...--tartamudeou, intimidado, o lavrador.

--Pois sim: mas não deve metter-se a falar em coisas que não entende. As
estradas não servem para nada! As estradas são meios de communicação
e... facilitam o... o... o trafego commercial e augmentam por
conseguinte a riqueza das nações... Porque o trabalho representa um
capital..., sim, senhores, mas... mas um capital... sim... um capital
morto... quero dizer um capital que não vive... Quero dizer... sim...
supponhamos: o credito por exemplo... O credito..., sim... ahi está o
credito... Pois que é o credito?... O credito é... é o credito...
depende de muitas coisas... Por outra, supponhamos... se nós não
tivessemos estradas... Uma supposição... Partamos de um principio. A
producção excede o consumo... Quero mesmo que o consumo exceda a
producção... Sim, quero mesmo isso... Muito bem... D'ahi que resulta?
Está claro que um desequilibrio. E depois?... Depois, boas noites... Não
havendo estradas... Ahi está que se diz por ahi que a livre exportação,
que tal, que sim senhores... mais isto, mais aquillo... Pois não é
assim. É preciso que se attenda tambem ás condições economicas dos
povos. Sim... eu digo: O commercio deve ser livre... Muito bem... Em
termos já se sabe... Mas... o commercio livre... a livre troca...
entendamo-nos... É preciso clareza de ideias... Quando eu digo que...
Ora supponhamos... supponhamos que não havia estradas... Os transportes
eram mais difficeis e portanto mais caros... E se além d'isso os generos
fôssem escassos e... Diz vossemecê, para que servem as estradas? Ora
diga-me uma coisa, sr. Manoel, supponhamos que... os impostos
indirectos... não precisamos de ir mais longe... os impostos
indirectos... Sempre queria que me dissesse o que havia de fazer.

--Impostos, Deus me livre d'elles!--murmurou o lavrador, cujos
instinctos trepidaram á palavra «impostos».

--Isso tambem não é assim... Deus me livre! Não se diz Deus me livre,
porque a riqueza... a riqueza... sim, a riqueza não está na terra...
isto é, a riqueza está na terra... mas é preciso o capital para a
exploração... Percebe?... Ou... supponhamos... por exemplo... Não...
vamos cá por outro lado... Ha um _deficit_ n'um orçamento... desce o
preço das inscripções... Ora bem... Mas... supponhamos que ha boas
estradas, _et coetera_... A riqueza tende a augmentar... e... e... Emfim
lá que as estradas são uteis, isso é que não tem questão.

Toda esta lenga-lenga economica foi escutada pelo auditorio com profunda
attenção.

O brazileiro, assignante e leitor infallivel de varios periodicos
politicos, conseguira, á fôrça de leitura, fixar na memoria certas
phrases de artigo de fundo, e acabára por convencer-se de que possuia
grandes noções de sciencia politica. Em occasiões como esta dava uma
sacudidela ao intellecto, e aquellas phrases como os variados objectos
do interior de um kaleidoscopo, tomavam uma disposição tal ou qual, mais
ou menos regular, e assim lhe saia uma dissertação, como essa que viram.
Em permanente indigestão economica vivia este portento. A doença não é
das mais raras entre politicos.

O sr. Joãozinho das Perdizes abriu desmesurada e ruidosamente a bôca,
depois do discurso do brazileiro, e disse:

--Eu cá por mim não sei d'essas coisas. Não se me dava das estradas para
poder ir á feira de Penafiel com menos trabalho, mas, já disse, que me
não venham mexer na quinta; porque então teem que vêr.

--Pois está arriscado a isso--disse o brazileiro.

--Veremos, depois não se queixem. Temos a historia da papelada outra
vez.

--Houve a ideia de levar a estrada pela Corredoura fóra, depois de tomar
á esquerda pelo Castro e vir direito á Palhoça. Não tinha cruzes nem
cunhos. Ia-me parte da propriedade.

--Ah! ah! ah! Tambem não gosta? Diga-me d'isso!--berrou o sr. Joãozinho.

--Não é não gostar, é que o traçado era pessimo.

--Não sei por quê.

--Só a expropriação da minha quinta por que preço não lhes ficava?

--Elles, para esses casos, lá teem umas leis a seu modo--notou o padre
cura.

--E por onde ha de ir então a estrada?

--O outro traçado, que eu aconselhei ao engenheiro, parte da herdade do
capitão-mór, faz um viaducto nos lameiros, atravessa o pinhal do Conego,
passa o rio n'uma ponte e...

--Oh com os diabos; o que ahi vae!

--Não é tanto como parece; sendo as obras bem dirigidas... Até aos
lameiros só tem a deitar abaixo a casa e o quintal do herbanario.

--Deitar abaixo a casa do herbanario! O pobre diabo rebenta de paixão,
se tal fazem--disse, com certa commiseração, o sr. Joãozinho das
Perdizes, que tinha por o herbanario uma sincera affeição e respeito,
n'elle excepcional, desde que lhe attribuia a cura de um typho que o
tivera ás portas da morte, e de que o velho, dizia elle, o salvára, com
uns cozimentos sómente d'elle sabidos.

--Ora adeus! Antes d'isso morre o homem de doidice. Está maluco de
todo--redarguiu o brazileiro.

--Tambem está um bom magico, está--notou o padre.

--Quer não, que sabe mais do que todos os medicos--acudiu o sr.
Joãozinho das Perdizes; a mim me livrou de uma maligna. Oh que
excommungada!

E principiou a fazer a historia da sua doença.

Os lavradores concordaram em que o homem era sabedor; mas attribuiam-lhe
mais mysteriosa sciencia, do que a da medicina.

--Pois a final por onde devia ir a estrada--continuou o
brazileiro;--tinham ainda o campo dos Brejos do conselheiro, mas n'isso
não se fala, já se sabe.

--Ora! pois está de vêr--concordou o padre.

--E o conselheiro não se ha de oppôr á expropriação da casa do
herbanario, porque pelos modos elles não andam muito correntes--lembrou
um lavrador.

--É verdade; por que seria aquillo?--perguntou outro.

--Elles em tempo eram muito um do outro; e são até
aparentados;--explicou o brazileiro--e o velho ainda hoje é tratado com
familiaridade pela gente do Mosteiro; mas julgo que o homem com aquelle
genio exquisito que tem, disse algumas verdades ao conselheiro, por
occasião de umas eleições, quando elle pôz as auctoridades a trabalhar
por si, e o velho entendia que as coisas não iam bem assim.

--Pois, com os diabos, o Vicente herbanario vale mais do que vinte
conselheiros e toda a familia,--exclamou o sr. Joãozinho, batendo outra
punhada--e queira elle, que o tal senhor não põe mais o pé nas camaras,
mandado cá pela terra.

--Eu gósto de os ouvir,--disse o padre--falam assim, mas em chegando a
occasião, vão todos votar n'elle como carneiros.

O brazileiro encolheu os hombros e sorriu, como confirmando o dicto.

--Pois havemos de vêr o que será!--berrou o sr. Joãozinho.--Isso é
consoante cá umas coisas.

--A falar a verdade--disse o Pertunhas--não tem pago muito bem ao
circulo o nomeal-o ha tantos annos seu deputado; só essa teima agora em
querer obrigar o povo a enterrar-se no cemiterio!

--Essa a falar a verdade!--disse um lavrador.

--Quero vêr se me hão de enterrar a mim!--disse ameaçadoramente o sr.
Joãosinho, como se esperasse ainda depois da morte, impôr as suas
vontades á fôrça de murros e de pragas.

--Deram-lhe para lhe dizer que fazia mal enterrar nas igrejas. É moda e
acabou-se. D'antes enterrava-se lá toda a gente e não havia mais doenças
do que agora--isto dizia o padre.

--Os romanos tinham as suas catacumbas--ponderou o mestre de latinidade,
forçando as suas reminiscencias romanas.

--Vamos--ponderou o brazileiro, como quem vira pretexto de fazer novo
discurso e como homem que punha acima dos despeitos a verdade
scientifica.--O enterrar nas igrejas é anti-hygienico; porque os
chimicos sabem que... o ar que não é puro... é mau para a saude publica.
Ora os cadaveres... em putrefacção produzem uns vapores que corrompem o
ar... Ha uns insectozinhos invisiveis que a gente respira... e vão para
a massa do sangue e corrompem-a... e o resultado é a febre... porque a
febre são os humores a ferver... como o vinho no lagar... e se sáem,
muito que bem; e se não sáem, ficam retidos e azedam o corpo todo.

A theoria physiologica pathologica foi recebida com attenção igual á que
merecera a economica.

--Tudo isso será assim,--disse o padre--mas o conselheiro faz aquillo
por instigações das lojas maçonicas e dos pedreiros livres.

--Pois elle será tambem?...--disse um dos lavradores, arregalando os
olhos assustados.

--Ora que dúvida! Pois aquella gentinha é toda da sucia.

--Corja!--resmungou o sr. Joãozinho.

O brazileiro, que se filiára no Brazil na maçonaria, fez um discurso
sobre os fins da sociedade, que ninguem entendeu; vendo, porém, que não
calavam nos animos aquellas doutrinas, mudou repentinamente de rumo.

--Elle não será mação--disse d'ahi a momentos o padre--mas é vêr o que
elle tem defendido nas camaras; queria roubar ás irmandades e ás freiras
os bens que ellas possuem; appeteceu-lhe o exemplo do cunhado, que se
encheu com a compra do Mosteiro; queria acabar com o santo sacramento do
matrimonio; queria que cada qual seguisse a religião que muito bem lhe
parecesse. Vejam que christão aquelle!

Estas novidades abalaram os lavradores, que formularam algumas palavras
de censura.

--E tambem falou para acabar com os morgados e com os vinculos.

--A falar a verdade, os vinculos...--murmurou o sr. Joãozinho, que por
vezes tropeçára nas disposições da antiga lei vincular, ao caminhar na
estrada da dissipação; porém, recordando-se de um irmão que tinha,
casado e pae de muitos filhos, que mal conseguia sustentar á custa de
muito trabalho, a ideia da abolição dos morgados não lhe sorriu e
exclamou com nova punhada:--Acabem lá com os morgados quando quizerem,
que o que eu lhes digo é, que tem de se haver commigo quem quizer
tirar-me um palmo de terra!

O padre cura continuou a tratar pouco christãmente o conselheiro.

O pae de Magdalena militára sempre, como já dissémos, nas fileiras do
partido mais liberal, e por isso era-lhe em geral pouco affeiçoada a
maioria do clero, que, entre nós, não espósa ardentemente aquellas
ideias.

No principio da sua carreira parlamentar, cedendo ao impulso do
enthusiasmo juvenil, o conselheiro desenrolára desassombradamente a
bandeira do partido progressista e pronunciára os mais absolutos artigos
d'aquelle credo politico; liberdade era então o seu mote favorito; a
liberdade do commercio, do ensino, da imprensa e dos cultos; as reformas
consequentes nos codigos, a desamortisação e desvinculação da
propriedade, tudo advogára com enthusiasmo, no tempo em que estas
palavras soavam ainda como heresias aos ouvidos habituados á lettra de
outro catecismo.

Com o tempo arrefeceu, porém, esse enthusiasmo; dissipou-se-lhe com o
fogo da mocidade. Com quanto liberal ainda de convicção, ensinou-lhe a
politica pratica a rebuçar em formulas mais ordeiras os seus principios
doutrinarios, a contemporisar, e até quando as conveniencias,
infelizmente, nem sempre as publicas, o pediam, a dar alguns passos de
retrocesso e a transigir com o partido opposto.

Se o fizessem ministro não se arrojaria a transformar em projecto de lei
nenhuma d'aquellas medidas por que pugnára nos seus primeiros discursos,
e que tantas malquerenças lhe acarretaram então.

Já atraz dissémos, que o conselheiro era actualmente um espirito pouco
apaixonado do ideal, respirava a atmosphera de desillusão e de
scepticismo, em que nas grandes cidades se vive. Era um perfeito homem
de côrte; tratava cordialmente os seus adversarios politicos, pedindo
d'elles mercês e empregos para afilhados; fulminava-os ás vezes da
tribuna e depois apertava-lhes a mão nos corredores das camaras e nas
praças. Se o julgava vantajoso, pronunciava ainda uma d'aquellas phrases
sonoras, uma d'aquellas sympathicas divisas de politica avançada, que no
principio da sua carreira adoptára com sinceridade; mas não tinha já aos
principios o amor preciso para cair, abraçado n'elles, dos degraus do
poder, se algum dia os chegasse a subir.

Por isso os soldados rasos do seu partido, os politicos em abstracto,
unicos para quem a politica é sempre ideal e logica, o taxavam de frouxo
e tibio; e de gazeta na mão havia muito que lhe dictavam, do obscuro
canto do paiz em que viviam, a estrada direita, de que elle, porém, a
cada passo se desviava.

Apesar d'isso, o partido conservador e o reaccionario, julgando-o por os
seus primeiros discursos, continuavam, de boa ou de má fé, a acoimal-o
de impio, de republicano e de pedreiro livre.

O brazileiro entrou em dissertação a respeito de todas as medidas
politicas a que alludira.

Segundo o costume, ninguem o entendeu.

Ia elle no mais enredado da sua meada oratoria, quando o som de um
tropear de cavallos o interrompeu. Mestre Bento, que fôra espreitar á
porta, voltou-se, exclamando:

--Elle ahi vem! ahi vem o conselheiro!

Todos se levantaram pressurosos para correrem á porta. O que mais de má
vontade o fez foi ainda assim o brazileiro.

Dentro em pouco todos se descobriam. Parava á porta o conselheiro, que
montava um soberbo cavallo branco, e ao lado d'elle Angelo, n'um pequeno
baio de fórmas elegantes e olhar vivo.

O conselheiro cortejou com affabilidade palaciana os seus amigos e
patricios, dizendo a cada um uma phrase lisonjeira, que dissipou quasi
todo o effeito da conversa que descrevemos.

Depois, fazendo signal ao filho de que podia seguir para casa, dispoz-se
para entrar na venda.




XII


O conselheiro levou a sua attrahente amabilidade até se sentar nos
bancos de pinho do estabelecimento de Damião Canada, envernizados já
pelo uso de muitos annos.

Entre os circumstantes era qual mais o cumprimentava e opprimia com
attenções e o flagellava com obsequios.

O conselheiro revestira-se, com muito estudo, de uma physionomia
satisfeita e sem sombras de reserva; tratando a todos por amigos, e
conversando com aquella familiaridade, tão sabida de candidatos a
procuradores do povo, nos circulos que pretendem representar. Até chegou
a levar aos labios o copo de vinho, que um lavrador lhe offereceu.

Não se lhe percebia porém no rosto, ao fazer isto, o menor vestigio de
artificio, e, ao mesmo tempo, mantinha-se ainda n'elle tão apparente a
superioridade intellectual, que os seus interlocutores nunca excediam os
limites da deferencia. O pae de Magdalena era um perfeito homem de
côrte: presença agradavel, modos insinuantes, palavras tão
astuciosamente lisonjeiras, que desvaneciam os proprios que como taes as
tinham.

Alvejavam-lhe já algumas cãs nos cabellos e suissas, que usava talhadas
á moda ingleza; principiava a predominar-lhe nas fórmas certa
rotundidade caracteristica; mas no esmero e até elegancia distincta de
casquilhice pretenciosa, com que vestia, no porte airoso, nos movimentos
ageis, no olhar penetrante como o de poucos, e na viveza das conversas,
havia ainda tantos signaes de vigor e de virilidade, que ninguem se
sentia obrigado a estranhar-lhe certos habitos de rapaz, que não perdera
ainda.

Em Lisboa passava o conselheiro por ser um homem bemquisto das damas, e
não obstante os seus cincoenta e cinco annos, acreditava-se que assim
fôsse, ou quasi se adivinhava, ao primeiro olhar lançado sobre elle.

Possuia o dom especial de se encontrar á vontade em toda a parte, desde
o mais perfumado gabinete da moda, até o menos asseiado local de um
comicio popular. Nas camaras com graves diplomatas, nos cafés com
rapazes estouvados, na sua aldeia com eleitores absurdos, com actores e
actrizes nos bastidores, com padres nas sacristias, com militares nos
quarteis, em toda a parte e com todos se achava este homem á vontade,
acabando, quasi sempre, por captar sympathias.

Podia dizer-se d'elle, que com igual pericia e rara consciencia da
opportunidade, jogava todas as armas: o galanteio cortezão, a phrase
conceituosa, o equivoco subtil, a anecdota picante, o estribilho
popular, a figura oratoria, a maxima moral, e até a praga energicamente
expressiva; mas, como os espadachins de profissão, jogava-as todas com
frieza de animo, cada qual na occasião opportuna e com perfeita
observancia do que o mundo chama conveniencias sociaes.

Muito tinham que fazer com elle os La Bruyères, que, a cada passo, ahi
encontramos no mundo; illudia os mais atilados. Ás vezes parecia
abrir-se tão do intimo, tão completamente e sem condições nem reservas,
havia tal uncção de sinceridade nas palavras, com que falava de si, dos
seus projectos, dos seus sentimentos, que o mais desconfiado jesuita
sentir-se-ia tentado a acredital-o e nem sempre se enganaria; outras,
falava verdade, mas com taes hesitações na voz, com tal mobilidade no
olhar, que, ao consideral-o, a mais ingenua creança experimentaria o
despontar da primeira dúvida.

Já se vê que um homem d'estes era um contendor de muita fôrça, para
poder ser combatido por qualquer dos influentes locaes; o proprio
brazileiro, apesar de toda a sua economia politica, ainda nada pudéra
contra elle; nem ousára romper hostilidades com receio de ficar vencido.

Durante os poucos momentos, que o conselheiro se demorou na loja do
Damião Canada, soube desvanecer muitas das sombras, que a conversa que
precedera a sua chegada havia gerado em alguns espiritos. Tres ou quatro
lisonjas, outras tantas promessas, alguns conselhos modestamente pedidos
com fingida ingenuidade, serviram-o perfeitamente.

Deixemol-o nós na laboriosa e pouco invejada tarefa de manter a
popularidade, e vamos seguir Angelo, que se separou do pae á porta da
venda, para chegar mais depressa ao Mosteiro.

Mettendo a galope o pequeno baio que montava, dirigiu-se para casa com
aquelle alvoroço do coração, que conhece quem já foi estudante e se
recorda ainda do que experimentava ao vêr de longe despontar o telhado
da casa paterna, onde vinha gosar as delicias de umas almejadas férias.

Angelo tinha por este tempo treze para quatorze annos. Era uma agradavel
figura de creança, expressiva de intelligencia e de vida. Tinha nas
feições um mixto da delicadeza de Magdalena e da energia varonil, e ao
mesmo tempo attrahente do conselheiro.

O cabello louro e curto levantava-se-lhe graciosamente em anneis
naturaes, com grande vantagem para a espaçosa e bem modelada fronte.

Quando Angelo chegou ao pateo, era quasi noite fechada. As janellas do
Mosteiro estavam todas obscuras, á excepção das aguas-furtadas,
correspondentes aos quartos das creanças. Angelo desmontou e
cautelosamente se dirigiu a pé para casa.

Torquato dormia á porta, como frequentemente lhe acontecia.--Angelo pôde
assim penetrar sem ser percebido até o mais intimo da casa, até os
aposentos onde dormiam as creanças, e em cujas janellas avistára luz.

A scena que viu, ao entrar alli, insinuou-lhe no coração uma suave e
encantadora alegria.

O mais novo dos seus primos, creança de tres annos, estava meio nú e de
joelhos sobre o leito com as mãos erguidas e os olhos fitos em um
crucifixo que tinha á cabeceira. Magdalena, ao lado d'elle, dictava-lhe
as palavras da oração, que a creança repetia, cheia de fervor.

Nos quartos proximos palravam, ainda acordados, os mais velhos, apesar
das continuadas advertencias da prima.

Angelo approximou-se sem ruido, e quando a morgadinha se abaixava para
beijar a creança, elle estendeu a cabeça e pousou tambem um beijo nas
faces da irmã.

Magdalena soltou uma exclamação de surpreza e cingiu-o nos braços com
effusão.

A creança levantou um brado, que foi o signal de revolta dado a Marianna
e Eduardo, que cêdo abandonaram os quartos e correram a abraçar Angelo.

--Vens só?--perguntou Magdalena ao irmão, quando uma pergunta lhe foi
possivel.

--O pae ficou na loja do Canada--respondeu Angelo.--Estava em sessão a
assembleia dos notaveis. E como estás tu, minha Lena, tu e Christe e a
tia? Como vae toda essa gente?

--Anda tu mesmo sabêl-o.

--Eu vou dizer á mamã--disse Marianna, saindo aos saltos.

--Eu vou chamar Christe--disse Eduardo, imitando-a.

E sairam ambos, pregoando a chegada do primo.

O pequeno que Magdalena deitára, pedia, chorando, para se tornar a
levantar, requerimento que, a rogos de Angelo, foi deferido.

--Dize-me--continuava no entretanto este para a irmã--tens-te enfastiado
muito, aqui só?

--Não, tenho-me divertido até.

--Devéras? E que fazes? Em que passas o tempo?

--Eu sei? O tempo é que passa, sem eu dar por isso. Leio pouco, passeio
muito; trabalho mais.

--Que tens lido?

--Quasi sempre relido.

--O quê?

--Nem eu sei já. O primeiro livro em que pouso a mão, quando os vejo
sobre a mesa.

--O Augusto tem vindo ensinar os pequenos?

--Todos os dias.

--E o tio Vicente? Que me dizes d'elle?

--Vae bom. Caiu no outro dia á levada da raiz do monte; valeu-lhe o
Augusto para o salvar.

--Sim? Pobre homem! Olha n'aquella idade! E a tia Dorothéa?

--Tem de hospede um sobrinho de Lisboa, um Henrique de Souzellas;
conheces?

--Eu não.

--É provavel que por ahi venha. A tia Victoria insiste em que lhe
chamemos primo. Aviso-te d'isso.

--Sim? E a tia? Ralha ainda muito com os criados?

--Coitada! Achei graça, ha dias, á Joanna, que com muita ingenuidade se
me veio queixar de que ella até o anjo da guarda lhe occupava em serviço
proprio. Tu sabes que a tia, quando está com muito somno, tem aquelle
costume de dizer ás criadas que a encommendem ao anjo da guarda d'ellas.
Mas vamos.

--Espera... e... e o Cancella trouxe-vos aquellas encommendas?

--Trouxe.

--É verdade; e a filha d'elle? A Lindita?

--Já cá me ia tardando a pergunta--notou a morgadinha, rindo.--Essa anda
contente, como quem nada tem a penalisal-a; nem saudades.

--Ora vamos, Lena; não te perdôo a malicia.

--Então devéras esse coração está assim tomado?

--Não te informo do meu coração, que o não levo commigo, quando d'aqui
vou. Cá me fica; e uma grande parte d'elle no teu poder. Eu sou que
pergunto; em que estado m'o entregas?

--Muito doente.

--Sim? E o teu?

--O meu? Ah! nem eu sei d'elle. Olha; isto de corações são como as
creanças. As travêssas tantos cuidados dão ás mães, que a todos os
instantes querem saber o que ellas fazem e onde estão; as socegadas
inspiram tal confiança, que nem sequer n'ellas se pensa. O meu coração é
um modelo de serenidade.

--Então ainda nenhum cavalleiro errante ou trovador...

--O sitio é pouco abundante em heroes. O unico d'estas immediações,
capaz de ferir a imaginação e commover os affectos de uma mulher, é o
sr. Joãozinho das Perdizes; mas esse é um Actéon insensivel, que...

--É verdade--disse Angelo, rindo--lá vi tambem esse javali na venda do
Damião Canada. Mas... Não sei que pense, Lena. Eu ainda um dia te hei de
dizer umas coisas.

--A mim? A respeito de quê?

--Do teu coração.

--Que sabes d'elle?

--A seu tempo direi.

--Como te vieram essas presumpções de conhecedor dos corações alheios?
Não tinhas isso, quando d'aqui foste.

--Ás vezes vê-se melhor de longe.

--Os de vista cançada... de muito vêr.

--Bem; depois falaremos. Vamos lá ter com a nossa gente, que o pae não
tarda ahi.

De facto, meia hora depois estava a familia toda reunida n'uma das salas
principaes da casa. O conselheiro, sentado n'uma cadeira de braços,
tinha ao collo Marianna; Christina, a pé, encostava-se-lhe familiarmente
ao hombro; a morgadinha, sentada em tamborete baixo, apoiava o braço, em
que recostava a cabeça, em um dos joelhos do pae. Do outro lado da sala,
D. Victoria, sentada no sofá, servia de travesseiro a um dos pequenos
que, apesar de prometter estar acordado, para que o deixassem ficar a
pé, adormecera. Junto d'este, Angelo fazia frequentemente rir sua tia e
Eduardo, com as historias que lhes contava.

A conversa cêdo se generalisou. Era uma d'essas conversas intimas,
familiares, em que se referem as mais insignificantes circumstancias da
vida domestica; conversas cujo suave perfume só em familia se aprecia.

Pobre do estranho que por acaso se encontra n'um d'esses circulos
apertados pelos estreitos laços da amizade e do parentesco, e se vê
obrigado a ouvir a minuciosa chronica das occorrencias da casa, que não
é a sua! É uma pathetica illusão a de certas familias, que imaginam que
para todos é de igual interesse a narração dos successos domesticos, que
tanto as deleitam, e com ella entreteem o primeiro indifferente que se
lhes depara; tudo trazem á luz, o dicto agudo da creança de tres annos,
os incómmodos que soffreu na primeira dentição, as espertezas do gato
favorito, as razões ponderosas que aconselharam a mudança de um movel, a
combinação economica que favoravelmente modificou o orçamento domestico,
a reforma nos processos culinarios consagrados pelo habito de muitos
annos, o exame comparativo da conserva de um anno e da do anno
antecedente, os defeitos e qualidades de um criado e mil outras pequenas
coisas, que é forçoso escutar com ares de quem as acha curiosissimas, o
que obriga a esforços sobrehumanos.

É natural aquella illusão; e pathetica a dissemos nós tambem, porque os
que mais de coração se entregam á vida domestica, são os mais sujeitos a
ella. Todos estes episodios futeis e pueris os preoccupam e deliciam
mais do que as mais estranhas peripecias, que ainda concebeu a
imaginação de romancista fecundo. E quem se lembra de que é
individualissimo esse interesse, inherente á pessoa e não aos factos, ás
causas que tão curiosos lh'os fazem ser?

Eu e o leitor, estranhos á familia do Mosteiro, vêr-nos-iamos, se
fôssemos escutar todo o dialogo que se travou na sala, na posição da
pessoa indifferente que imaginamos a aturar um d'esses relatorios
domesticos, a que sobre tudo são tão inclinadas as mães de familia.

É verdade que o conselheiro podia achar curiosa a conversa; e o
conselheiro tinha visto e ouvido tanto no mundo, que o que elle achasse
curioso é porque realmente o era. D'esta vez, porém, damol-o por
suspeito, porque o conselheiro tinha coração e, quando esta viscera se
alvoroça com affectos, as intelligencias mais elevadas teem d'estas
sympathicas fraquezas.

O politico, o diplomata reservado, fica fóra do portão da quinta do
Mosteiro; alli dentro, n'aquelle circulo de affectos, era o pae
extremoso, o homem de familia, ingenuo, sincero, aberto a todos, porque
em todos confiava, contente por não ter de estudar na expressão dos
rostos os pensamentos que se guardam; nas palavras o sentido, que
n'ellas não vem explicito.

Era um salutar descanço dos continuados esforços da sua vida de Lisboa;
lá a lucta; aqui o repouso.

Por isso ouvia com attenção e applaudia com vontade as narrações da
cunhada, de Magdalena, de Christina e até da pequena Marianna.

E apesar de todo este encanto, em que parecia cair, o conselheiro não
poderia resignar-se a trocar por elle para sempre o vertiginoso
movimento da sua vida politica.

Eram-lhe já necessidade aquella contenção, aquelle esforço de espirito,
aquellas desconfianças continuas, aquelle jogo de astucias, que lhe
tomavam em Lisboa todo o tempo.

Quinze dias no campo bastavam para o fazerem suspirar por as lides e o
afan da capital; nem os affectos da familia o retinham.

A politica é uma embriaguez; nos intervallos em que o espirito se sente
desanuviado dos vapores em que ella o envolve, pesam-nos os desacertos a
que fomos arrastados; o desgosto do mal feito insinua-se-nos no coração;
cêdo, porém, a violencia dos habitos subjuga os remorsos da consciencia,
e de novo nos arrasta.

O caracter intimo da conversação foi levemente modificado por a entrada
de D. Dorothéa e de Henrique de Souzellas, que de Alvapenha vieram
visitar o conselheiro, mal tiveram noticia da sua chegada.

O conselheiro acolheu com jovial cordialidade a senhora de Alvapenha e
com delicada franqueza Henrique, que elle conhecia de Lisboa.
Frequentavam ambos os principaes círculos da capital e, por mais de uma
vez, tinham trocado algumas palavras ou tomado parte em conversas e
discussões communs.

Passado algum tempo depois dos cumprimentos, o serão animou-se de novo,
fragmentando-se porém a conversação.

D. Victoria tomou á sua parte D. Dorothéa e passou a fazer-lhe amargas
queixas a respeito dos criados do Mosteiro, ao que D. Dorothéa acudiu
com conselhos de resignação christã.

Angelo conversava com Magdalena e Christina, a quem frequentemente fazia
rir.

Henrique e o conselheiro, proximos do fogão, estavam empenhados n'um
dialogo muito animado.

O conselheiro parecia estar falando com muita sinceridade e candura que
surprehendiam Henrique, que ainda o não tinha observado por esta face.

--É uma triste verdade--dizia por exemplo o conselheiro n'um ponto
adeantado da conversa, referindo-se a algumas considerações de Henrique
sobre a felicidade d'aquella vida do Mosteiro.--Tenho esta familia que
vê; todos me querem sinceramente aqui, e não sei resistir á fatal
necessidade que me arranca de todos estes braços para me lançar ao
turbilhão da politica e d'isso que se chama o mundo! Pois amo devéras a
minha Lena, creia.

--É um dever que cumpre. N'estes tempos de má fé politica, quem se sente
com a coragem de se votar, corpo e alma, á defeza despreoccupada dos
bons principios...

Nos labios do pae de Magdalena passou um ligeiro sorriso, meio de
descrença, meio de melancolia.

--Defeza despreoccupada? Isso é quando Deus quer--respondeu elle.--Olhe,
Henrique, visto que me veio encontrar em minha casa, a cuja porta eu
deixo, ao entrar, todas as mascaras e artificios, de que uso no mundo,
vae vêr em mim o homem que talvez não esperasse e que, já lhe digo,
debalde procurará reconhecer um dia, se me observar outra vez em Lisboa.
O que lhe vou dizer não lh'o diria, nem lh'o repetirei lá. É verdade que
estes ares do campo tambem actuarão em si para me apreciar e tomar á boa
parte a franqueza. Lá não acreditaria n'ella; se por acaso não a
aproveitasse como arma politica contra mim...

--Pois julga?...

--Peço perdão, se o offendi com isto. Não era esse o meu intento, mas é
pratica tão geral!... Se um dia fôr politico, o que lhe não desejo,
dir-me-ha.

Dizendo isto, fez uma curta pausa na conversação.

Rompendo de novo o silencio, o conselheiro proseguiu:

--Mas falava ahi de principios, que se defendem com desassombro e
através de tudo. Não sei se quiz ser lisonjeiro e disse o que não
sentia, ou mais do que o que sentia. Em todo o caso, eu, aqui no
Mosteiro, acho-me muito ás ordens da minha consciencia, a qual não me
deixa calar hypocritamente. Estou muito longe de ser esse ideal do homem
politico, a que alludiu. Humildemente o confesso; até porque, se
quizesse sel-o, arriscar-me-hia a achar-me só, não teria partido.
Porque, qual é o que vê nas condições de constancia de opiniões que
disse? Tenho crenças politicas, é verdade; espóso no coração certos
principios que quizera vêr realisados, mas não combato por elles a todo
o transe, nem por elles affrontaria o supplicio; antes, por vezes, entro
em transacções, que são a completa negação da divisa da minha bandeira.
E este peccado não sou eu só que o commetto; é um peccado venial da
nossa época. As grandes ideias, que definem e estremam os campos na
politica, havemol-as eu e os mais calcado muitas vezes aos pés, para
sustentar umas insignificantes fórmulas, um interesse mesquinho, um
capricho pessoal. A politica desce muitas vezes a isto. E ninguem é
isento de culpa n'este mal. Para elle concorrem os mesmos que de fóra
nos julgam severamente. Ha muitos d'estes peccados na minha carreira
publica. E, quer que lhe diga, sabe quando vejo claro n'elles? quando me
persuado de que não são de todo desculpaveis? quando... porque o não
direi? quando sinto remorsos de os ter commettido? É aqui, é perante a
boa fé, a sinceridade, a candura d'esta familia, que me tem amor, e que
me considera um homem perfeito, superior, impeccavel. É perante os
generosos sentimentos da minha Lena, e o caracter nascente d'aquella
creança--e indicava Angelo com o gesto.--Parece-me que tenho n'elles
juizes inflexiveis, e escondo por isso a minha face politica dos seus
olhos penetrantes. Ha muita coisa n'ella, para que o mundo é já
indulgente, mas que receio elles me não perdoassem.

Reparando para o olhar de estranheza, com que Henrique lhe seguia esta
effusão de sinceridade, o conselheiro accrescentou, sorrindo:

--Estou a vêr que não esperava estas palavras da minha bôca; esta
confissão de peccador contricto.

--Confesso que não.

--Então que quer? Surprehendeu-me aqui com o coração aberto. Já agora
deixe-me continuar. Uma das ideias que mais me atormentam sabe qual é?
Vê aquella creança que alli está? Angelo? É uma intelligencia que, de
dia para dia, vejo formar-se com um vigor de vida, que me espanta. Não é
a vaidade paterna que me cega, pode acreditar. Conhecendo-o de perto ha
de dar-me razão. Mas o que ha além d'isso n'elle é um senso
profundamente moral, raro até em idades menos tenras. Pois bem, quando
penso n'elle por algum tempo, e conjectura que não serão poucas as vezes
em que o faço?... quando penso n'elle e no futuro, sobresalto-me. De um
lado, seduz-me abrir-lhe a carreira politica, onde ha grandes triumphos
a embriagar as intelligencias e onde presinto que a d'elle terá o
direito, se não o dever, de procurar um logar; mas, se me lembro de que
na atmosphera d'aquellas regiões não duram muito estas primitivas
canduras da alma, tão adoraveis e consoladoras, quando me lembro de que
Angelo será um dia... o que eu já hoje sou, um pouco desilludido, um
pouco sceptico... com franqueza o digo, hesito em impellil-o ao
redemoinho e pergunto a mim mesmo se mais não valeria dizer-lhe: Angelo,
vive obscuro e tranquillo n'este retiro do Mosteiro, conserva aqui a
ideal pureza da tua alma e procura a felicidade nas satisfações do
coração. A lucta da vida pode embriagar-te, filho, mas não te fará
feliz.

--Mas não admitte possivel que um homem possa atravessar a vida
politica, sem sacrificar um só artigo do seu primitivo credo?

O conselheiro esteve algum tempo silencioso, depois respondeu:

--É difficil. Se um dia a fôrça das circumstancias realisasse, como um
phenomeno natural, uma revolução completa nas camadas politicas do paiz
a ponto de trazer á superficie de uma só vez uma geração nova,
impolluta, inspirada de sentimentos generosos e de sinceras crenças,
então sim, não bastaria o tempo de uma vida para produzir n'esses homens
reunidos, que uns aos outros seriam ao mesmo tempo exemplo e vigilancia,
a inquinação que eu receio. Mas lance esses mesmos homens, um a um, a
sós com os seus principios e com os seus esforços, insulados no meio de
uma camada quasi toda composta de elementos velhos, e cada um, após uma
lucta impotente de momentos, ou se retirará, fiel aos principios, mas
desanimado pela inefficacia da sua intervenção, ou ficará, cedendo á
corrente e deixando-se penetrar do espirito pouco ideal, que rege as
massas. Só um d'esses caracteres de excepção, que são raros na historia
do mundo, é que poderia luctar e vencer na lucta. E a esperar tanto de
Angelo não chega o meu affecto paterno.

--Não o fazia tão pessimista, sr. conselheiro;--disse
Henrique--conceda-me que julgue em demasia carregadas as côres do quadro
que me faz. Eu não creio que a corrupção...

--Se acha forte o termo, substitua-o por... o que quizer, relaxação,
tibieza de fé politica, indifferentismo... em todo o caso será uma
doença social. Assim abrandada a fôrça da expressão, não ponha
difficuldades em adoptal-a. Não se me pode levar a mal o propôl-a, desde
que principiei por me declarar affectado da lepra contagiosa.

--Nunca esperei encontral-o tão desilludido. Eu, que me não tenho ainda
assim por demasiado crente, creio que quem entrar na politica sob a
égide de uma convicção profunda, pode...

O conselheiro interrompeu-o.

--Sabe a coragem mais admiravel? a de que menos exemplos existem? É
aquella de que nos dá uma eloquente mostra a historia do aldeão do
Danubio. Sair um homem de um canto retirado da provincia, um pouco
montanhez, e escudado só da sua boa fé, achar-se de repente no meio de
um circulo luzido, illustrado, elegante, novo para elle, e ousar repetir
ahi aquellas falas rudes, que tanto deliciavam o auditorio da sua terra;
vêr o sorriso nos homens, que a seu pesar respeita, e poder resalvar as
suas crenças d'aquelles sorrisos; sentir o ridiculo a seu lado, e ousar
fital-o; ferirem-lhe os ouvidos, a cada passo, as vozes seductoras da
moral elegante e facil, que hoje domina, e conservar-se fiel á austera e
rude moral que lhe falava entre o rumorejar das folhas da sua aldeia nas
longas horas de vigilia e de estudo, que lá teve; cair embora, mas cair
fiel á consciencia, como um leal cavalleiro da idade média caía pela
dama de quem trazia a divisa: é uma especie de lucta, para que não
abundam lidadores, e nem sempre se deve lançar o labéo de traidores aos
que mentem á sua antiga profissão de fé. A maioria cede com boas
intenções. O perigo está em chegar a persuadir-se de que as suas
convicções eram sonhos, em perder o amor ás utopias. Eu confesso que só
quando aqui estou é que sinto avivar, debilmente, o amor que n'outro
tempo lhes tive.

N'isto annunciou-se a visita do sr. Tapadas, fazendeiro opulento e um
dos influentes eleitoraes da localidade, creatura em corpo e alma do
conselheiro, e tão visto em demandas e subtilezas de processos, como o
mais rabula dos lettrados. Demandista por gosto e officio, levava a sua
paixão pela arte a ponto de comprar as demandas dos outros, só por gosto
de as tratar; especie vulgar no Minho, onde uma legislação
especialissima, reguladora da propriedade rural, fomenta estas
disposições no espirito dos camponios, das quaes os juizes são as
miserandas victimas.

Depois de grande exhibição de cortezias, para a direita e para a
esquerda, o Tapadas dirigiu-se ao conselheiro, que o fez sentar ao seu
lado, concedendo-lhe todas as provas de deferencia e de amizade.

O homem que tão judiciosa dissertação acabava de fazer sobre a politica
abstracta, sentiu, na presença do recem-chegado que de novo o abandonava
o espirito da utopia, e principiou a tratar com elle politica pratica,
sob a feição mais mexeriqueira que ella pode revestir.

Tratou-se dos pequeninos processos de preparar candidaturas, por fôrça
ou vontade dos representantes.

Henrique deixou-os na conferencia e foi sentar-se ao pé das senhoras, no
grupo formado por Magdalena, Christina e Angelo.

Escuso de referir o dialogo em que tomaram parte estes interlocutores;
reproduziram-se n'elle os galanteios de Henrique a Magdalena, a leve
ironia d'esta e as respostas timidas e silenciosos despeitos de
Christina.

D. Victoria e D. Dorothéa entremetteram-se, dentro em pouco na conversa,
e desviando-lhe o curso, fizeram-a cair sobre o assumpto das proximas
consoadas.

Passado tempo, ouviu-se o conselheiro dizer, elevando a voz, para o
Tapadas:

--Pois, meu caro Tapadas, que tenha paciencia este bom povo. Com isso é
que eu não transijo. Ninguem é mais condescendente do que eu, menos no
que pode arriscar a vida de muitos e entre essas as dos que me
pertencem. O abuso ha de acabar. Por estes dias deve chegar uma
portaria, mandando expressamente cumprir a lei. Consegui isso do
governo. O cemiterio fez-se. Eu fui o primeiro a dar o exemplo,
levantando alli o sepulchro para a minha familia. Depois d'isso, graças
a um preconceito tolo, á má fé de alguns padres, á frouxidão das
auctoridades e talvez a alguma incuria minha, ainda ninguem mais se
enterrou alli. No entretanto quasi todos os estios se repetem os casos
d'essas febres que a sciencia attribue em grande parte aos miasmas da
igreja onde a extrema devoção d'este povo accumula em certos dias,
durante horas e horas, uma extraordinaria quantidade de fieis. Portanto,
com isso não transijo. Hei de acabar com o abuso.

--Pois sim... mas agora na occasião das eleições... sr. conselheiro, não
sei se faz bem.

--Para compensação trataremos de apressar o principio das estradas;
tambem o pude conseguir.

--Inda assim... Receio alguns motins.

--Reprimem-se.

--O peor é que ha de haver quem lance mão d'essa arma contra nós.

--Quem?

--Ora! não falta quem. Basta o missionario, que já prégou contra isso.

--Não tenho mêdo. Quando muito, algum motimzito sem consequencia.
Leve-os por bem. E se fôr preciso fale ao ouvido d'esse tal
missionario... O homem que quer? Provavelmente alguma abbadia? algum
canonicato? É preciso vêr isso.

--Elle diz que não quer nada.

--Bem sei, todos dizem o mesmo--disse o conselheiro, com a sua descrença
de homem politico.

Tapadas retirou-se mal assombrado. De facto a opinião publica era, por
toda a aldeia, em extremo adversa aos cemiterios, e elle mesmo não
estava de todo limpo do preconceito geral, mas a sua affeição ao
conselheiro obrigava-o a digerir a disposição legal, conforme podia.

Depois d'elle se retirar, o conselheiro disse, erguendo-se:

--Vem em má occasião a medida, vem; é arrojada para épocas eleitoraes;
se houvesse um chefe habil que a aproveitasse, podia... Em todo o caso
não transijo.

Eram dez horas quando se levantou a sessão, e Henrique voltou com a tia
para Alvapenha.




XIII


Ao outro dia a impaciencia de Angelo não lhe permittiu longa demora no
leito. Tardava-lhe o vêr todos aquelles sitios, tão seus conhecidos;
arvores que uma por uma distinguia, sebes, atalhos de campos, e
quebradas de montes. A custo o puderam reter para o almoço; resignou-se
porém a não ultrapassar, até então, os muros da quinta. Logo porém que
sorveu á pressa o ultimo golo de chá, partiu, veloz como uma lebre, sem
nem sequer dar ouvidos á enfiada de recommendações de sua tia D.
Victoria, que teimava em o querer prevenir, com sócos, gabão e
guarda-chuva, de uma hypothetica mudança de tempo.

Angelo partiu. A tudo que via pelo caminho encontrava ligada uma
recordação e uma saudade; mas seguia sempre, como quem não errava ao
acaso pelos campos, antes era guiado n'aquelle passeio por um intento,
que tinha pressa de realisar.

Atravessou grande parte da aldeia, cortejado, cumprimentado e festejado
por quantos encontrava pelos caminhos, ou ás portas e janellas das
casas, nos campos e nos ribeiros.

Chegou emfim á casa, onde já dissemos morar o recoveiro Cancella e a sua
filha Ermelinda.

Era evidentemente aquelle o termo proposto por Angelo ao passeio
matinal, porque retardou o passo á medida que se approximava, e parou á
porta da casa.

Achou-a fechada, mas não lhe causou isso embaraço.

Como quem estava habituado a vencer estes estorvos, sondou resolutamente
o muro do quintal, construido de pedras soltas, e dispoz-se á escalada.

Com a agilidade e destreza proprias de quem passou na aldeia os
primeiros annos da vida, o irmão de Magdalena trepou sem vacillar até o
alto do muro, e n'um momento pousou os pés no chão do quintal.

Vendo-se dentro da fortaleza, olhou em redor com precaução e, com mais
precaução ainda, se dirigiu para um bosquezito de laranjeiras, que era o
logar de recreio do pequeno horto.

Foi motivo d'estas precauções o ter já avistado, por entre os troncos e
a rama baixa das laranjeiras, um vulto que se lhe figurou conhecido.

Assim se foi approximando sem que o presentissem e, occulto por detraz
de uma sebe de roseiras silvestres, poz-se á espreita.

Era Ermelinda a pessoa que estava no laranjal.

Sentada sobre o tronco partido de uma laranjeira velha, que mezes antes
havia sido derrubada, a filha do Cancella e afilhada da familia Zé
P'reira, tinha todas as faculdades applicadas á decifração dos
hieroglificos caracteres de um pequeno papel manuscripto, que segurava
nas mãos, e lia a meia voz. De quando em quando interrompia a leitura e,
erguendo a cabeça para o céo, parecia repetir o que lera, como se
pretendesse decoral-o.

Angelo applicou mais o ouvido, a vêr se alguma das palavras, que ella
declamava, lhe revelava a natureza do manuscripto.

De facto, de uma vez, a pequena leu em voz mais audivel e elle escutou a
seguinte quadra:


  --Que lamentavel tragedia,
  Que os meus olhos tristes viram!
  E publicam minhas vozes
  Aquelles que não ouviram!

  E principalmente o rei,
  Que se chama o rei tyranno,
  N'esta região remota
  Do Egypto dilatado.


Depois de ler isto, a rapariguita levantou a cabeça e repetiu:


  --Que lamentavel tragedia
  Que meus olhos tristes viram...


Angelo saiu do esconderijo, e sempre vagarosamente, e com precaução,
veio collocar-se por detraz d'ella, sem que fôsse presentido ainda.

Tão perto chegou, que, por cima do hombro de Ermelinda podia já ler as
quadras que ella estava decorando:


  --Tenho mil linguas, mil bôcas...


ia Ermelinda continuar a ler, quando uma respiração mais profunda de
Angelo a fez desviar a cabeça.

Dando com os olhos n'elle, soltou um grito de sobresalto; depois sorriu
e instinctivamente procurou esconder no bolso do avental o papel que
lia.

Angelo segurou-lhe a mão.

--Que estavas a ler, Linda?

--Não é nada...

--Deixa vêr.

--Não deixo.

--Por que não deixas?

--Para não ser curioso. Que modos são esses de andar a escutar a gente?

--Pois sim, sim; mas deixa-me vêr os versos.

--Não são versos. Quem lhe disse que eram versos?

--Pois não ouvi? Que era isso de tyranno e de Egypto, que dizias?

--Que ha de ser?--disse a final Ermelinda, dando-lhe o papel.--São os
versos do auto dos Reis. Sabe agora?

--Do auto dos Reis? Ai, sim; está a chegar o dia! Mas que tens tu com o
auto dos Reis?

--É que este anno meu pae quer que eu seja a Fama.

--Viva! E que bonita Fama que vaes ser! E já sabes os versos?

--Estava a decoral-os.


  --Tenho mil linguas, mil bôcas...


dizia Angelo, lendo no principio.--O que é pena é pôr uma chochice
d'estas na bôca de uma Fama como tu.

--Que está a dizer? Então os versos não são bonitos?

--Oh! pois não são!--exclamou Angelo, gracejando.--São uma perfeição!

E tendo-os corrido com a vista, principiou a lel-os com accentuação e
emphase comicamente exaggeradas.

--Ora ouve lá:


  Sabei que aquelle Herodes,
  Lobo cruel carniceiro,
  Tremendo de inveja pura
  Lhe venham tirar o reino...


--Então que ha que dizer a isto?

E proseguiu:


  Feria raios de fogo
  De seus olhos com mudança;
  E só pretende fazer
  Alvo da sua vingança.


--Isto é claro e sublime!

--Lendo assim, pudéra!--disse Ermelinda, rindo.

É preciso que advirta o leitor que estas quadras e auto, a que nos
estamos referindo, não são obra da nossa imaginação. Por ahi corre
manuscripto o auto, mais ou menos extravagantemente orthographado,
segundo o systema ou o capricho do copista. Em quasi todas as aldeias
dos arredores do Porto podem vêr em cada anno representado este ou outro
analogo, com applauso e gloria da arte. Ás mãos nos veio uma d'essas
cópias, á qual, menos na orthographia, escrupulosamente nos cingimos.

Angelo era talvez em demasia severo na apreciação critica sobre o
merecimento litterario da obra, ao chamar-lhe uma chochice. É raro que a
musa popular não tenha, apesar da sua rudeza, alguma inspiração. N'este
mesmo auto, se encontram vestigios d'ella. Mas não é nossa missão
apreciar as opiniões dos actores que pomos em scena; tão sómente as
registamos, sem nos responsabilisarmos por nenhuma.

Angelo redarguiu á reflexão de Ermelinda:

--Pois bem; para que não digas que é da maneira de ler, que elles
parecem chôchos, repara; vou lel-os agora com toda a seriedade. Ora
escuta.


  Que quantos até dois annos
  Em Belem fôssem nascidos,
  E toda a sua comarca
  Matassem a ferro frio

  Sem excepção a pessoa
  Que nos districtos se achasse,
  Entendendo d'esta sorte
  Que nós lhe não escapassemos.


--Olhem que semsaboria!

Esta divisão administrativa e judicial, em districtos e comarcas, que o
auctor fez na Judéa e que tanto parecia revoltar Angelo, era uma d'estas
liberdades shakspeareanas, que se devem perdoar aos genios.

--E não foi assim?--perguntou Ermelinda, que não percebia ainda o motivo
dos reparos de Angelo.--Pois Herodes mandou matar todas as creanças da
Judéa; então não mandou?

--Mandou, mandou; mas a Fama é que devia contar isso melhor.

--Melhor?! Então não é bonito esse verso?

E Ermelinda, tirando o manuscripto das mãos de Angelo, leu a seguinte
quadra:


  Para livrarem seus filhos
  Da morte dos innocentes,
  Dos braços faziam cruzes
  Aquellas mães impacientes.


Os instinctos populares da filha do Cancella perceberam a belleza,
talvez um pouco rude, do tocante quadro, que estes versos exprimem.

Esta pequena contenda litteraria entre duas creanças podia dar margem a
profundas reflexões a quem para ellas estivesse disposto.

Angelo estava no principio de uma educação esmerada. Principiára já a
desenvolver-se n'elle a intelligencia, e a acordar os instinctos
artisticos que estremeciam já sob as primeiras seducções da fórma.
N'estas épocas criticas, em que esses segredos se revelam, é tal o
encanto em que elles nos trazem que exclusivamente nos votamos ao novo
culto, com a fanatica intolerancia. Onde as louçanias do estylo, os
primores e a sonora harmonia do metro, e o brilhantismo das imagens nos
não afagam os sentidos, recusamos demorar a vista; e escapa-nos assim na
sombra muita belleza real, ás vezes occulta sob a grosseira revestidura
da poesia ou narrativa popular.

É necessario que passe o enthusiasmo, a violencia da paixão nascente,
que venha a frieza de animo necessaria á imparcialidade do juizo, para
que nos não cause repulsão a aspereza, e grosseria até, da fórma e
consigamos apreciar o bello que por ventura n'ella se envolva.

Dá-se com a belleza da ideia e da fórma de qualquer obra litteraria, o
que se dá com a belleza moral e a belleza physica de uma mulher.

Ambas são feitas para nos commoverem e dominarem. Mas, quando o assomar
de um sentir novo começa a alvoroçar o sangue do adolescente, quando
fórmas vagas e formosissimas principiam a encantar-lhe os sonhos de suas
noites febris, a paixão da fórma domina-o; por ella sacrifica tudo; uma
modelação perfeita, um delineamento gracioso poderá decidir da sua vida
inteira, e na fascinação que o cega, nunca verá a formosura da alma, que
se abriga n'uma pouco feliz encarnação. É que para apreciar a belleza
moral, para a vêr transparecer, através do involucro exterior é preciso
deixar passar a vertigem dos primeiros momentos, ou não a ter ainda
experimentado.

Por isso na infancia e nas idades viris é que melhor se apreciam essas
fealdades, que escondem um coração angelico. A adolescencia é impiamente
cruel para com ellas.

Por uma lei analoga é o povo, o simile da creança, porque não tem os
sentidos educados para as mais subtis bellezas da fórma, e é o homem a
quem ella já não fascina, embora ainda e sempre o deleite, como
poderosissimo elemento de belleza litteraria,--são estes os leitores que
mais aptos estão para avaliarem uma ou outra inspiração que, entre
muitos desvarios, tem a humilde musa que visita a cabana do lavrador ou
a officina do artista.

Apesar da defeza de Ermelinda, Angelo não perdoou ao auto.

--Sabes que mais? Não decores isso--disse-lhe elle resolutamente.

--Meu pae quer.

--O que é que quer teu pae?

--Quer que eu entre no auto.

--E has de entrar. Quem te diz que não?

--E quer que seja a Fama.

--E has de ser a Fama.

--E não hei de falar?

--Has de falar. Tinha que vêr uma Fama que não falasse. Para que lhe
serviriam as cem bôcas?

--Então?

--Então; é que não é forçoso que digas o que ahi está.

--E que hei de eu dizer?

--Outra coisa.

Ermelinda olhava Angelo admirada, sem conseguir comprehendel-o.

--Outra coisa! repetiu ella, instinctivamente.

--Olha, proseguiu Angelo.--D'aqui até chegar o dia do auto vae muito
tempo. Eu te darei outros versos para estudares, em logar d'esses.

--E onde os tem?

--Eu os procurarei. Não digas tu nada. Basta que no dia recites, em vez
d'esses, os que eu te der!...

--Mas que dirá meu pae e o sr. Pertunhas?

--O mestre de latim? Pois que tem elle com o auto?

--É quem ensina como a gente ha de dizer.

--Ah! sim? Pois para que elle nada diga, guarda para a occasião os
versos que eu te arranjar. Até ha de ter graça vêr a cara com que elles
ficarão todos, quando lhes sair uma coisa bem differente do que esperam.

--Mas... diga: onde é que vae buscar esses versos?

--Não sairei da aldeia para isso. N'uma visita que d'aqui vou fazer,
conto obtel-os. Agora falemos de outra coisa. Que é de teu pae?

--Saiu a levar umas encommendas. Minha madrinha, d'alli defronte, está
para a igreja e meu padrinho nas hortas. E eu vou tratar do jantar de
meu pae.

--Pois vae, que eu faço-te companhia.

E Angelo seguiu-a á cozinha, e ahi, ella sentada na soleira da porta a
escolher hortaliça, elle a dar de comer aos coelhos e ás gallinhas, se
entretiveram a conversar.

Angelo falou-lhe de Lisboa, dos theatros, contou-lhe enredos de dramas
que o tinham commovido; typos e situações de romances, que se lhe haviam
gravado na memoria; invenções da arte moderna, versos, anecdotas,
contos.

Ermelinda era toda ouvidos a escutal-o.

Passadas horas, Angelo levantou-se e despediu-se, para sair.

--Onde é que vae?

--Vou visitar Augusto, que deve estar agora em casa.

--E ainda o não viu?

--Ainda não. A minha primeira visita foi esta.

--Então vá, que elle deve estar morto por o vêr. Ah!... já sei a pessoa
a quem vae pedir os versos!

--Quem te disse que Augusto os fazia?

--Eu vi-o estar a escrever na parede da capella da Senhora da Saude de
uma vez que eu ia levar o jantar a meu padrinho, que estava a trabalhar
para aquelles sitios.

--E leste-os?

--Não, que não quiz que elle me visse. Mas que havia elle de escrever na
capella? Então não adivinhei?

--Não sei. Adeus.

--Diga.

--E chamavas-me curioso!

E Angelo saiu apressadamente.

Momentos depois estava com Augusto.

A conversa entre ambos teve toda a intimidade da de dois affectuosos
amigos.

Angelo fez a narração dos episodios da sua vida de collegio; das
difficuldades e das bellezas dos seus estudos n'aquelle anno. Augusto,
que da aldeia com elle os seguia, passo a passo, interrogava-o sobre
algumas dúvidas que tinha, e esclarecia ás vezes tambem, graças á sua
poderosa penetração e natural lucidez, as que o ensino do collegio havia
deixado no espirito do seu antigo discipulo.

A geographia e a historia, que eram as disciplinas estudadas n'aquelle
anno por Angelo, deram assumpto a grande parte d'este dialogo.

Augusto inclinára-se aos estudos historicos, inclinação em que o
herbanario o entretinha com frequentes presentes de livros d'aquelle
genero.

Em exame de livros novos, referencias a outros lidos, e leituras de
alguns mais apreciados, passaram os dois grande parte da manhã, até que
por fim Angelo disse a Augusto:

--Ah! é verdade! Tenho um favor a pedir-lhe.

--Qual é?

--Sabe que está para breve o dia dos Reis?

--Sim.

--E portanto o auto com que o povo d'aqui o festeja; aquelle auto em que
o Herodes faz tremer meio mundo?

--Bem sei--respondeu Augusto, sorrindo.

--Este anno teremos a Linda a fazer de Fama. Fama bonita, por certo; mas
se soubesse os versos que lhe deram para recitar!

E Angelo reproduziu, como pôde, as quadras do monologo da Fama no auto
dos Reis.

De quando em quando passava um sorriso pelos labios de Augusto.

--Eu já conhecia isso. É o costume--disse elle no fim.

--Mas não lhe parece que de uma Fama como aquella, se devia esperar
melhor do que isto?

--E então que quer que eu lhe faça?

--Outros versos para o logar d'estes.

--Outros!... Eu?...--perguntou Augusto.

--Por que não?

--Que lembrança!

--Não me venha negar que os faz.

--Versos?

--Sim.

--Quer dizer que os leio.

--E que os escreve. Vamos. Mas se insiste em recusar, diga-me então quem
é que os escreveu na parede da capella da Senhora da Saude, para eu me
dirigir a elle.

--Então houve quem escrevesse versos na parede da capella?--perguntou
Augusto, sorrindo.

--Não que eu visse; mas já duas pessoas m'o affirmaram, e as suspeitas
de ambas recaíram no mesmo homem.

--Quem foram essas pessoas?

--De uma o ouvi agora mesmo. Foi Ermelinda.

--Ah!

--A outra foi Lena.

--Le... A sr.^a D. Magdalena?

--É verdade, minha irmã. E estranhou, com razão, que eu o não soubesse.

--E como o soube ella?

--Leu-os, e pela leitura conjecturou o auctor.

Augusto calou-se como absorvido por um pensamento, que todo o
preoccupava.

Angelo continuou falando, sem que fôsse escutado; a final concluiu,
dizendo:

--Então quer falar ao poeta da Ermida para que me dê o que lhe peço?

--Poesia não lhe pode elle dar, agora se... alguns versos o
satisfazem...

--Sim, sim, venham os versos; que a poesia eu a procurarei n'elles, até
a achar. Desde já lh'os agradeço.

--A elle?

--A ambos--respondeu Angelo, rindo.--E agora diga-me, Augusto: Ainda
está resolvido a viver aqui sempre enterrado? Não pensa em mudar de
vida?

--Nenhuma outra me namora mais; o destino que a bondade da morgada me
offerecia... não tenho coragem para acceital-o. Assusta-me o peso do
crepe.

--Nem eu lhe digo que deva acceitar esse. Mas o Augusto não terá amigos
que ajudem a seguir outros destinos menos obscuros do que este e menos
pesados do que o que o legado lhe impunha? Meu pae já ...

--Que quer? Não me posso vencer até pedir ou acceitar de outrem
auxilios, quando Deus m'os não tem recusado ainda; nem sei até se esses
destinos, que diz menos obscuros, me fariam mais venturoso. Ha indoles
que nasceram affeiçoadas para a obscuridade. Incommoda-as a demasiada
luz. Umas plantas querem ar, e sol e luz; outras vivem ahi em qualquer
canto escuso e obscuro, e lá mesmo dão flôr. Porque é isto não sei,
mas...

--Sei eu--disse uma voz da parte de fóra da janella, junto da qual se
passára o dialogo...

Voltaram-se os dois ao ouvil-a. A figura do herbanario desenhava-se no
vão da janella, como um retrato de velho n'um caixilho de galeria.

--Ah! o tio Vicente!--exclamou Angelo, correndo-lhe ao encontro.

O herbanario encostou-se, ainda de fóra, ao peitoril da janella, ficando
assim com meio corpo para dentro da sala.

--Viva o nosso doutor--disse elle, sorrindo, a Angelo.--Por emquanto
ainda esse coraçãozito está como era. Não esqueceu os seus amigos da
aldeia.

--Está como sempre estará--respondeu Angelo.

--Sempre!--repetiu o velho.--Sempre e nunca são duas palavras de
terrivel significação... Mas emfim... de bom metal é o coração, assim o
não enferrugem os ares da cidade, como ao de... como ao de tantos...

E mudando subitamente de tom, disse para Augusto:

--Com que dizias tu que não sabes porque algumas plantas vivem de pouca
luz e de pouco ar, ahi em qualquer buraco do muro? É porque vivem muito
pelas raizes essas. As plantas vivem do ar pelas folhas e vivem da terra
pelas raizes. Lá diz aquelle livro da _Historia Natural_ que eu tenho.
Umas prendem-se pouco ao chão; precisam, pois, de se abrirem muito ao ar
para poderem viver; outras porém, profundam tanto a terra, com tantas
raizes se seguram, que d'ellas lhe vem todo o sustento e não desdobram
muitas folhas, nem crescem em grandes ramos para o ar. Como umas e como
outras ha homens no mundo. Tu és dos que deixam ganhar raizes ao coração
e d'ellas vivem. Que te importa o mais? essas grandezas que os outros
procuram? Mas é preciso cautela, rapaz! Ha corações como a hera, que
onde quer que se encosta, prende-se com raizes. Quem é assim deve
dirigir com prudencia as suas inclinações. Se para mau lado dobra, se se
encosta a arvore de preço... mal d'elle! que o separarão com fôrça,
fazendo-lhe estalar todas as raizes, que o prendiam.

As palavras de uma obscuridade sibyllina, ditas pelo herbanario, parecia
terem um sentido para Augusto, que visivelmente se perturbou ao
ouvil-as.

--Que está ahi a dizer, tio Vicente!--disse Augusto, sem ousar fitar o
velho.

--Nada. Tonterias de velhice. A prudencia, que os annos dão, vê longe e
fundo, rapaz... É verdade que... ás vezes... o arrojo dos mocos é tambem
guia feliz... Anda lá com a tua estrella, anda. Ao que já vejo, não sei
se te possa chamar louco... como ao principio não duvidei fazel-o. É
certo que é pouco seguro o terreno, em que sustentas os teus castellos.

--Os meus castellos! Que castellos faço eu?

--Não hei de ser eu que t'os mostre... Só te quero avisar que não ponhas
grande fé em sonhos... Lembras-te do que se passou no monte da ermida?

--No monte da ermida?

--Não viste por lá no outro dia uns signaes de trovoada? A inconstancia
é sempre de receiar. O que n'aquella manhã se passou, o que então vi...

--Que viu?... Que se passou?

O herbanario demorou por algum tempo o olhar em Augusto e com tal
expressão, que o obrigou a desviar o seu; depois accrescentou:

--Nada; o que todos os dias acontece. O céo azul fez-se pardo, a luz
clara cobriu-se de sombras, os raios do sol tornaram-se torrentes de
chuva. Pois não te lembras?... E tudo devido a uma mudança... de
vento... a uns ares que vinham do sul...

Augusto não entendia ou fingia não entender estes mysteriosos dizeres do
herbanario. Angelo estava distrahido devéras.

O velho voltou-se, de subito, para este, perguntando-lhe:

--Tem ido ao mosteiro o hospede de Alvapenha?

--Esteve lá hontem.

--É amigo das creanças?

--Parece-o.

--Conta muitas historias ás senhoras?

--Entretem-as bastante.

--E ao... e a teu pae? Ouve-o com attenção?

--Conversaram muito toda a noite.

O herbanario parecia ligar grande valor a estas perguntas, porque a cada
resposta obtida, abanava pausadamente a cabeça com certo ar meditativo.

Augusto relanceava tambem para a fronte, meio contrahida, do velho um
olhar entre curioso e timido.

O herbanario proseguiu:

--Emfim... A desconfiança é um achaque de velhice e nem sempre os mais
felizes são os mais acautelados. Deus que vele, se os bons lhe merecem
ainda a graça da sua protecção.

--O tio Vicente desconfia do primo Henrique? perguntou Angelo, rindo.

--Primo?!--repetiu o velho, admirado.

--Primo lhe chamamos nós, porque a tia Victoria teima que, sendo elle
sobrinho da tia Dorothéa, é nosso primo tambem.

--Ah? Já ahi vamos? E Lena?...

--Lena, Christe, todos lhe chamam por lá assim.

O herbanario poz-se a murmurar algumas palavras inintelligiveis,
terminando por estas:

--E, como no Egypto, é o vento sul que traz a praga dos gafanhotos. Mas
Deus que vele, Deus que vele. E eu não me demoro mais, que vou ainda
d'aqui aos pardieiros de Cernuche.

--Á caça dos sapos, tio Vicente?--perguntou Angelo, gracejando.

--Não, que não é agora o tempo--respondeu, sisudo, o velho.

--Dos sapos! Galante caça, na verdade!--continuou Angelo no mesmo tom.

--Galante não será ella, pequeno,--respondeu o velho;--mas abençoada a
chamarias se te torcesses no leito com as dores do carbunculo, que não
ha remedio mais efficaz para o curar, do que a pelle d'estes animaes
sêcca ao ar livre.

--E a das toupeiras? O tio Vicente tambem caça toupeiras?

--Em seu tempo. Oh! a toupeira é animal de abençoadas virtudes! Basta
que um dente que se lhe arranque, estando ella viva, trazido ao pescoço,
cura a mais desesperada dor de dentes.

--Não deve ser facil operação a de tirar os dentes ás toupeiras--tornou
Angelo.

O herbanario continuou:

--A quinta essencia das toupeiras é milagrosa contra cancros e herpes.

--A quinta essencia das toupeiras!--repetiu Angelo, rindo.

--Não rias, creança--acudiu severamente o herbanario.--Que não é bonito
rir do que os homens doutos asseguram. Eu já o experimentei, logo que o
li n'aquelle grande livro da _Polyantheia_, livro como se não faz hoje
outro.

--E como é que se tira a quinta essencia a uma toupeira, tio Vicente?

--Tomam-se as toupeiras e queimam-se até as fazer em cinzas. Mistura-se
a estas cinzas o sumo de celidonia maior, até haver quatro dedos de sumo
acima das cinzas. Mette-se tudo n'um vidro bem fechado, que se enterra
por dez dias e... e... Bem, bem. Elle ri!... Tolo sou eu em gastar tempo
e paciencia com creanças.

--Espere, espere, tio Vicente... Não vá embora... Então depois de
enterrar tudo isso, que se faz?

--Até logo... Pede a Deus que nunca te seja preciso fazer a pergunta com
menos vontade de rir.

--E assim vae sem me dar um remedio! Olhe, tio Vicente, eu padeço ás
vezes de um somno tão pesado que me não deixa estudar.

O herbanario voltou-se e, com toda a seriedade, respondeu:

--E julgas que não sei de remedio para isso? Experimenta e verás. Mette
um ou dois morcegos debaixo dos travesseiros e eu te affirmo que... Mas
adeus, que se me faz tarde e d'aqui a Cernuche é uma legua.

E o herbanario retirou-se, meio agastado com o scepticismo de Angelo e
sobraçando a caixa de lata e o sacco dos seus thesouros medicinaes.

Angelo e Augusto ficaram rindo da sciencia e das singularidades do
velho, riso em que não entrava, porém, o menor laivo de malignidade;
porque ambos tinham pelo velho uma verdadeira estima, que elle bem lhes
merecia, pois sempre do coração o achavam votado a seu favor.

O dialogo de Angelo e de Augusto prolongou-se ainda, até ás horas do
jantar.




XIV


Eu não sei se esta historia terá leitor tão mal aventurado, que não
possua recordações e saudades associadas á noite de Natal, áquella
festiva e abençoada noite, em que as ruas e os logares publicos se
despovoam, e nos lares domesticos parece crepitar e scintillar o fogo
mais acalentador do que nunca. Se algum desherdado da fortuna ha ahi que
não saiba o que é a festa das consoadas em familia, esse que não leia
este capitulo, que n'elle não encontrará prazer. Se alguns as gosaram já
n'outros tempos, porém hoje erram a essas horas pelas ruas solitarias,
olhando com inveja para cada raio de luz que rompe das frestas de tantas
janellas discretamente fechadas, ouvindo commovidos o ruido das alegrias
que vão no seio das familias, e pela phantasia creando em cada morada um
mundo intimo de affectos e de venturas, como o de que a sorte os privou,
que esses me perdoem as amargas saudades, que por ventura lhes avive
assim.

É certo que não ha noite mais alegre; alegre d'esta alegria que vae
direita ao coração, sem perturbar os sentidos com fumos de embriaguez;
alegre d'esta alegria candida a que o homem é sujeito do berço á
velhice, a qual respeitam os estos das paixões, na idade d'ellas, e o
gêlo do egoismo, no declinar da vida.

Bem escura, bem ventosa, bem fria e humida surjas tu sempre, noite de
vinte e quatro de dezembro, que melhor então se avaliará pelo contraste
a luz, o calor, o conchêgo dos lares, e mais intimos se estreitarão os
circulos da familia em roda da ceia patriarchal.

E vós todos, a quem uma moda tôla não constrangeu ainda a abandonar os
habitos que de pequenos contrahistes, e festejaes ainda o Natal de
Christo, segundo o estylo velho, continuae a manter genuinos esses
costumes nacionaes, que não resultará d'ahi desdouro para o vosso nome
ou brazão. A roda da civilisação, a que applicaes hombros com tanto
denodo, não se cravará por isso.--Podeis, elegantes meninas, cantar lôas
sem escrupulo deante do presepe armado na sala mais intima da casa, que
nem por isso cantareis peor na das visitas as arias italianas, que
aprendestes no collegio; não córeis de collaborar, por excepção, esta
noite nos mesteres da cozinha, que sobra de agua de colonia e perfumes
tendes no toucador para as abluções purificatorias. Homens graves, a
republica perdoar-vos-ha uma pequena infidelidade, a politica do paiz e
da Europa não periclitará desnorteada se, por um pouco, lhe negardes a
vossa attenção; humanisae-vos pois uma vez por anno, e baixae ao seio da
familia os olhares, que ponderosos empenhos vos trazem
sublimados.--Entrae com as creanças em jogos pueris e faceis, que não
destemperareis a intelligencia para as philosophicas cogitações do
_boston_ e do _whist_.

A familia do Mosteiro era fiel ás classicas usanças d'esta noite
tradicional. E n'aquelle anno sobretudo as festas das consoadas deviam
ser coisa falada, graças ao plano de D. Victoria de reunir no Mosteiro a
resumida familia de Alvapenha; plano que vimos approvado por acclamação
por toda a assembleia presente.

D. Dorothéa veio effectivamente na companhia de Henrique de Souzellas e
de Maria de Jesus.

Foram recebidos no Mosteiro por uma completa ovação das creanças.

D. Dorothéa viu-se litteralmente enlaçada em braços infantis, que lhe
tolhiam os movimentos e que, dizia ella, quasi ameaçavam asphyxial-a.

Tudo isto dava motivo a exclamações e risos, que inauguraram um estado
de coisas, o qual nunca mais devia cessar aquella noite.

A balburdia, a azafama festiva que ia no Mosteiro é indescriptivel. Na
cozinha, nas salas, nos corredores tudo era movimento e ruido.

Aqui eram as creanças jogando, a pinhões, o «par ou pernão» e o «rapa»,
jogos popularissimos e de occasião, que, de tão conhecidos, dispensam o
trabalho de descrevel-os. Estes jogos, como é de prever, não se
executavam sem um concurso de vozearia e de algazarra, que desafiava a
impaciencia de D. Victoria, a qual, segundo o costume, ia, pelo que se
passava na sala, ralhar com os criados á cozinha.

No aposento immediato ao quarto de D. Victoria, armára-se o presepe,
deante do qual ardiam seis vélas de cêra em castiçaes de prata maciça.

As duas velhas senhoras, D. Dorothéa e D. Victoria, encetaram logo no
principio da noite uma longa e devota reza, meio recitada, meio cantada,
a qual se continuava com uma interminavel enfiada de Padre-Nossos e
Avé-Marias, a que respondia, em côro, a parte feminina, da familia, as
creanças e as criadas.

Corypheu era a senhora de Alvapenha, que em voz trémula e quebrada pela
idade, entoava em singela cantilena coplas como esta:


  Ó infante suavissimo,
  Vinde, vinde já ao mundo
  Livrar-nos do captiveiro
  D'este jazigo profundo.


E seguia-se um Padre-Nosso e uma Avé-Maria.

Angelo havia ao principio, com as suas travessuras, desordenado um pouco
o andamento regular das rezas, mas D. Victoria tomou o heroico
expediente de o expulsar do congresso, e tudo serenou.

Á sala, onde Henrique de Souzellas conversava com o conselheiro em
assumptos, todos d'esta vez longe da politica, chegaram as surdas
harmonias d'aquellas cantigas e rezas. Henrique mostrou curiosidade de
saber o que era aquillo. O conselheiro, sorrindo, convidou-o a seguil-o
para por si proprio se poder informar.

E, tomando por aposentos interiores, conseguiram ambos introducção na
sala da novena justamente ao lado de D. Victoria e de D. Dorothéa, que,
de embebidas que estavam nas suas orações, nem por elles deram.

O conselheiro e Henrique ajoelharam sisudamente ao lado d'aquellas boas
senhoras, e quando após um dos Padre-Nossos, ditos por D. Dorothéa, se
devia seguir a resposta do côro feminino, este emmudecido, com a chegada
dos dois, a qual desafiára risos a custo suffocados, foi substituido por
um dueto de vozes masculinas, que sobresaltaram primeiro, e
escandalisaram depois ambas as sisudas senhoras.

O tumulto que o episodio produziu fez attrahir as creanças; D. Victoria
teve muito que fazer, muito que reprehender o cunhado, muito que ralhar
com os filhos e com o sobrinho, muito que carpir-se com D. Dorothéa,
muito que recriminar os criados, rindo-se, bem a seu pesar, no meio de
todas estas tarefas.

Terminou confusamente a novena com tal occorrencia. Os desordeiros
sómente capitularam, consentindo em retirar-se, quando lhes prometteram
que se encurtaria a lista dos Padre-Nossos. Henrique voltou com o
conselheiro a admirar o primor que a paciencia de um artista imaginoso
realisára na confecção do presepe, onde estavam representados todos os
episodios da natividade de Jesus, e muitos outros.

Era effectivamente uma complicada machina aquelle presepe, e seria prova
de profunda indifferença artistica passar por elle sem um exame, embora
fugaz.

Este traste antiquissimo na familia gosava de nomeada n'um circulo de
leguas em redor. Havia empenhos para o vêr no tempo do Natal, e se algum
viajante estacionava dois dias na aldeia, encontrava sempre quem lhe
recommendasse o visitar o presepe, como coisa digna de vêr-se.

Consistia elle n'uma espécie de santuario de pau preto, no meio do qual
havia uma pequena gruta toda cravejada de caramujos, e rosas de papel,
com estames de fio de prata. Dentro d'essa gruta estava deitado o menino
Deus, não sobre umas palhas, como a tradição refere, mas graças aos
impulsos do compadecido coração de D. Victoria, que, ainda que tarde,
parecia tentear um lenitivo aos antigos rigores da humanidade, em uma
bonita cama de lençoes de renda com cercadura dourada; colcha de setim
bordado, e colchão e travesseiro da mais macia penugem de aves
americanas. Ao lado, Nossa Senhora e S. José, de proporções quasi iguaes
ás do menino; mais longe a vacca e a mula tradicionaes. Os episodios
porém eram inquestionavelmente o mais interessante da obra. Varios
grupos de pastores, soldados e fidalgos de todos os tamanhos, feitios e
vestuarios, ornavam a scena. Alli um cego tocador de sanfona; um grupo
de gallegos dançando, ao som da gaita de folle; uma pastora com ovos
mais adeante; ao lado, um grupo celebrando um _pic-nic_, perfeita
actualidade, tudo em mangas de camisa, com gravata, e botas de
cano;--outros fumando e bebendo cerveja. Uma amazona ingleza, com o seu
Jockey, galopava pelas cercanias de Bethlem; um vareiro e uma vareira
caminhavam a par com offertas para o menino. Ao longe, nos visos da
serra, appareciam os tres Reis Magos, que deviam levar dez dias a chegar
abaixo.

Não esqueceu ao inspirado auctor d'aquelle monumento esculptural os
muros de Jerusalem. Elles lá estavam coroados de ameias e de milicianos
fardados á ingleza e armados de lanças e arcabuz. Eram gigantes aquelles
guerreiros, pois, não obstante estar a muralha no plano do fundo do
quadro, qualquer d'elles era duas vezes maior do que as figuras do plano
da frente. No alto da muralha arvorava-se a bandeira portugueza. Havia
varios santos espalhados pelas agruras d'aquellas montanhas, e, entre os
additamentos feitos pela devoção de D. Victoria ao presepe, contava-se o
de um Santo Antonio de Lisboa, que, apesar de thaumaturgo, parecia muito
admirado de se vêr n'aquelle tempo e logar. Um gallo colossal soltava do
telhado do presepe o grito annunciador, anjos e cherubins espreitavam do
céo por entre nuvens de algodão e estrellas de ouropel. Era um prodigio!

Descrevendo rapidamente esta maravilhosa fabrica, sentia eu vivo orgulho
de ter revelado ao mundo uma preciosidade sem igual, e a que a unanime
admiração faria cêdo ou tarde justiça; tive porém de abandonar esta
lisonjeira idéa, ao achar-me precedido por um dos romancistas mais
justificadamente populares da nação vizinha. Das paginas de um delicioso
quadro de costumes de Fernan Caballero, a eminente escriptora de que a
Andaluzia se ufana, conheci eu serem não sómente nacionaes, mas
peninsulares pelo menos, estes modelos de presepes, com os seus ingenuos
anachronismos, cunho irrecusavel que o povo imprime a todas as suas
obras de arte. Onde falta o anachronismo, falta a assignatura do povo.

Em todo o caso era digno da menção que d'elle fizemos o presepe do
Mosteiro.

Emquanto Henrique e o conselheiro o estudavam por miudo, D. Victoria
fizera desfilar o cortejo das criadas para a cozinha, onde urgia o
serviço, e seguindo-as ia-lhes demonstrando que eram as peores criadas
do mundo, por isso que, tendo tanto que fazer, perdiam tempo a cantar
lôas deante do presepe. D. Dorothéa cêdo tomou com Magdalena e Christina
o mesmo caminho.

O conselheiro e Henrique ficaram nas salas com os pequenos, e com elles
entraram em jogos, como se fôssem creanças tambem.

O aspirante a ministro, o deputado, o orador, o homem grave e sério das
salas de Lisboa perdera todo o ar diplomatico: agora era sómente o homem
da familia; pueril, travesso, alegre, folgazão.

--Meu caro,--dissera elle a Henrique no principio da noite--vou
fazer-lhe um pedido. Hoje deve ser banido o menor assumpto politico, a
menor discussão séria. Deixe-se correr frivola a conversa da noite, o
contrario seria uma profanação, que attrahiria sobre nossas cabeças as
justas iras dos anjos domesticos que n'estas noites andam invisiveis
misturados com a familia.

--Apoiado,--respondeu Henrique;--acceito e comprometto-me a cumprir a
proposta.

Henrique possuia em alto grau o talento de se tornar agradavel.
Comprehendendo que eram sinceros os desejos do conselheiro, tão frio e
pueril conseguiu mostrar-se, que todos o tratavam como membro da
familia, e ao proprio conselheiro parecia já impossivel que ainda fôssem
tão recentes as suas relações mais intimas com aquelle rapaz.

--Animo, sr. conselheiro,--dizia-lhe Henrique, no momento em que elles
ambos estavam empenhados a jogar a cabra cega com os pequenos.--Coragem,
que temos gloriosos exemplos a animar-nos; até, entre outros, o do meu
homonymo Henrique IV. É sabido o episodio recordado por uma gravura
celebre.

O conselheiro secundava-o, rindo: graças a estes jogos, a sala estava
dentro em pouco em desordem; os moveis fóra da sua posição, o chão
alastrado de cascas de pinhões, que estalavam sob os passos, os tapetes
desviados, as cortinas soltas.

Já por noite avançada, disse o conselheiro para Henrique:

--Falta-nos ainda um artigo importante do ritual d'estas festas, o
principal. É dirigir uma visita á cozinha. Porque a obra principal
d'esta noite é fazer uma ceia e não comel-a. Por isso convido-o a
acompanhar-me lá.

--Com tanto mais vontade, que estou ha muitos dias compromettido a isso
com as senhoras.

--N'esse caso é tempo.

E ambos tomaram pelo corredor, que conduzia á cozinha.

Escusado parece dizer que turba infantil os seguiu tumultuariamente,
annunciando-os ao longe com risadas e gritos de alegria.

A cozinha do Mosteiro era uma digna cozinha de frades. Occupava um vasto
recinto rectangular, rasgado em amplas janellas e fornecido de bancas
monumentaes, condizendo com a estupenda chaminé, que parecia ainda
saudosa dos odoriferos vapores que outr'ora espalhavam os tachos e as
grelhas monasticas.

Ia indizivel animação na cozinha, quando Henrique ahi entrou com o pae
de Magdalena. Era um barafustar de criadas, um chiar de certãs, um
borbulhar de caçarolas e tachos, um tinir de pratos, um tilintar de
crystaes no meio de uma babel de ordens, de perguntas, de reclamações,
de conselhos, todos attinentes a negocios culinarios. E D. Victoria
ralhava, e a sr.^a de Alvapenha promulgava preceitos, e Maria de Jesus
desdenhava do serviço das collegas, e Magdalena e Christina riam de
todos e de tudo, e Angelo a todos impacientava.

Não se imagina!

A chegada do conselheiro e do seu hospede veio exacerbar a desordem.
Ergueram-se risos e exclamações, as quaes ainda assim eram subjugadas
pelos reparos e censuras de D. Victoria, a qual dizia para o
conselheiro:

--Sempre o mano tem coisas! Olhem agora para o que lhe havia de dar! Vão
lá para dentro, vão. Não venham atrapalhar-nos mais ainda do que
estamos. E o primo Henrique tambem! Ora esta!...

--Não se afflija, mana. Nós não podiamos resignar-nos a ficar alheios á
tarefa principal do dia. E até porque é necessario dar andamento a isto
para chegarmos a tempo da missa do gallo.

--Pois querem ir á missa do gallo?

--Está de vêr que sim.

--Eu tambem vou--disse Christina.

--E eu--acudiu Magdalena.

--Mais um, que irá tambem--disse Henrique.

--E eu, e eu--accrescentaram differentes vozes.

--Ai, minhas encommendas!--suspirou D. Victoria.--Então por que não
disseram isso logo? Agora como ha de ser?

E saiu em direcção á sala da ceia a dispôr as coisas.

É preciso que se diga que D. Victoria vivia na candida illusão de que
era ella quem fazia tudo em casa, emquanto que manda a verdade declarar
que nunca mais regularmente corriam as coisas domesticas do que quanto
dormia esta aliás excellente senhora.

--Mãos á obra, sr. Henrique!--bradou o conselheiro, insistindo na
resolução com que viera.

--Prompto--respondeu Henrique.

--Então? então?... Que vão fazer?--perguntava D. Victoria, afflicta,
voltando á cozinha.

--Querem vêr que preparos?!--dizia D. Dorothéa, sorrindo e olhando com
curiosidade para o que faziam os dois.

--Cumpro uma promessa que fiz a estas senhoras, minha tia--dizia
Henrique, approximando-se da banca, perto da qual trabalhavam Magdalena
e Christina.

--É verdade que sim,--acudiu Magdalena--e eu exijo o cumprimento da
promessa.

--Vamos lá, sr. Henrique,--tornou o conselheiro--acceite-me alguns
preceitos da pratica. A regra é fazer tudo o mais indigesto possivel;
porque essa qualidade é o caracteristico dos manjares d'esta noite.

--N'esse caso, vejo que nasci para cozinhar a ceia do Natal, pois
desafio o melhor estomago do mundo a que subjugue os meus guisados com
os seus succos digestivos.

--Eu já escolhi tarefa--disse o conselheiro, tirando das mãos de
Christina a colhér com que ella mexia o vaso onde se preparava o vinho
quente, esse _punch_ nacional, que n'esta noite seria uma falta
imperdoavel se esquecesse no programma d'aquelle banquete.

Christina quiz resistir; mas o conselheiro venceu, e cêdo principiou a
desempenhar-se d'este trabalho, no meio de hilaridade geral.

Angelo dispensou a tia Dorothéa do trabalho da preparação dos mexidos.

Henrique, seguindo o exemplo do conselheiro, e no seguimento do seu
constante proposito, approximou-se da morgadinha, que n'aquelle momento
se occupava a regar de calda de mel umas recentes rabanadas.

--Peço trabalho, prima Magdalena.

--Não ha falta de braços n'esta repartição, primo Henrique. Vá a outra
porta.

--Agrada-me mais esta tarefa, acho-a ao alcance das minhas fôrças.

--Esta? Como se engana! Não sabe que as rabanadas são a essencia da ceia
de Natal? E logo havia de confiar-lh'as?

--Ah! não ligava tanta importancia a estas representantes da pastelaria
primitiva, notaveis porque recordam a infancia da arte! Emquanto a mim,
já no tempo da peregrinação dos hebreus, Moysés lhes ensinava a cozinhar
d'isto.

Magdalena abanou a cabeça em signal de reprehensão.

--Perdôe ás pobres rabanadas o pouco ar de moda que teem. A sua
elegancia é implacavel, primo Henrique. Um indigesto manjar francez
seria de melhor tom, bem sei. Até n'isso!

--Para provar que estou arrependido da minha irreverencia, consinta-me
que a coadjuve, prima.

--Não pode ser; pesa sobre mim uma tremenda responsabilidade.

--Isso equivale a recusar-me o fôro de familia, que tão humildemente
reclamo.

--Justamente--respondeu Magdalena.--Eu sou muito escrupulosa n'isso. Faz
mal em não reclamar esse fôro de Christina, que talvez encontrasse mais
disposta a conceder-lh'o.

--Mas, se me não engano, foi a prima Magdalena que primeiro me conferiu
o apreciavel titulo de parentesco com que nos tratamos.

--O de primos? Esse sim; mas não tem os privilegios, que lhe quer dar.

--Que privilegios são?

--Ah!... o de collaborar n'uma ceia de consoadas, por exemplo.

--Parece-lhe, priminha, que será muito exigir o que eu peço?--perguntou
Henrique a Christina, que principiára a escutal-os.

--Não ouvi--respondeu esta, córando e sorrindo, como sempre que lhe
falava Henrique.

--Escusado é consultar Christina--acudiu a morgadinha--porque em muitas
coisas pensa ella em opposição commigo. E n'isto...

--E n'isto...

--N'isto de attender a requerimentos, é talvez mais condescendente.

--Ao que estou vendo--disse o conselheiro jovialmente--grandes coisas se
tinham passado aqui, antes da minha chegada. Vejo lavrar uma hostilidade
entre Lena e o sr. de Souzellas, que me dá sérias inquietações.

--E eu julgo que não. Ao que ouvi ao Henriquinho, a primeira vez que viu
a nossa Lena no Mosteiro!...--disse D. Dorothéa, com toda a indiscreção
da sua ingenuidade.

Magdalena procurou acudir a tempo á corrente das revelações, a que viu
disposta a boa senhora.

Veio opportunamente em seu auxilio Angelo, que tendo feito uma digressão
pela sala do refeitorio, voltou com a alegre nova de que a ceia estava
na mesa.

O annuncio foi recebido com apparente enthusiasmo. Suspenderam-se
trabalhos, quasi completos, ultimaram-se á pressa outros, e a companhia
dirigiu-se para o corredor.

Pouco depois de Angelo, chegou D. Victoria, desmentindo-o e pretendendo
suster a corrente, que ameaçava invadir a sala, que ella ainda não dera
por prompta. Já não era tempo. O conselheiro, tomando duas creanças ao
collo, rompia a marcha, e atraz d'elle até a pacifica D. Dorothéa
clamava insubordinada que não recuaria um passo.

E falando e rindo assim entraram na sala.

Estava offuscante de luzes, esplendida de louças e baixellas, enfeitada
de flores e de crystaes e ennevoada dos vapores das iguarias.

Houve um grande rumor de cadeiras arrastadas, uma confusão e
incoherencia de ordens de D. Victoria para marcar logares, infracções
d'estas ordens, que a impacientavam, como se com isso pudésse perigar a
ordem natural e social do mundo, e, como justa consequencia, caía sôbre
a cabeça dos criados uma enfiada de recriminações, que elles por habito
já soffriam com exemplar paciencia.

Restabelecida emfim a ordem, procedeu-se á ceia.

Ceia de Natal! abençoado banquete, ao qual todos se devem sentar nas
mesmas disposições de animo em que ordenava Christo estivessem os que
fôssem orar ao templo; ceia com tanto afan cozinhada, e com tão pouca
vontade comida, falem embora contra ti os medicos e os gastronomos
eméritos, condemnando uns a indigestibilidade dos teus cozinhados,
outros o pouco delicado d'elles; reage contra as ideias novas, que veem
da França e da Allemanha; cerra as fornalhas ás iguarias exoticas e
furta-te ás mãos da extranha geração de Vateis, que aspiram a dominar
pelos paladares o espirito nacional.

Modifiquem embora o caracter vernaculo de todas as outras refeições, mas
respeitem esta, consagrada pelas memorias da familia, justificada pelo
facto de que quasi não é feita para ser comida.

Assim succedia com a do Mosteiro. Apesar das instigações do conselheiro,
das instancias de D. Victoria, das garantias de D. Dorothéa sobre a
innocuidade dos guisados, os pratos corriam á roda da mesa quasi
intactos e intactos voltavam á cozinha d'onde sairam.

Mas se se comia pouco--e de facto, á excepção de Henrique, do
conselheiro e das creanças, quasi ninguem parecia haver-se sentado alli
para ceiar--mas, diziamos nós, se se comia pouco, em compensação
falava-se muito.

O conselheiro a todos dirigia a palavra, demonstrando uma iniciativa
efficaz para baralhar e generalisar as conversas e assim conservar
constante a animação. Tudo desafiava risos, o dito de uma creança, a
anecdota contada por Henrique, as distracções de D. Victoria, as
canduras de D. Dorothéa, os paradoxos sustentados pelo conselheiro, as
allusões da morgadinha a Christina, a confusão d'esta, as maliciosas
insinuações de Angelo.

Assim procedeu o repasto nocturno até á altura das saudações e dos
_toasts_. N'esta parte, justo é confessar que Henrique e o conselheiro
fôram menos abstinentes. Era difficil resistir á preciosidade dos
vinhos.

Passados os reciprocos brindes entre os parentes, o conselheiro,
voltando-se para Angelo, auctorisou-o a propôr tambem um brinde.

Angelo levantou-se então para brindar Augusto.

O conselheiro secundou-o, levando o copo aos labios.

--Ah! o sr. Augusto--disse Henrique, antes de beber e com certo tom de
ironia.--Conheço; é uma ave rara d'estas immediações, que tem brios de
cavalleiro errante sob umas apparencias de philosopho.

--Brios de cavalleiro?--disse Angelo, com vivacidade.--Inda isso não é
tudo, sr. Henrique; pode accrescentar, e alma de heroe tambem.

--Pois dê-se-lhe tambem alma de heroe, e se fôr preciso até consciencia
de santo. Vá á saude da phenix!

E bebeu.

Depois de pousar o copo, proseguiu com o mesmo tom anterior:

--O que vejo é que é perigoso falar com a mais ligeira irreverencia
d'esta personagem; corre-se o risco de vêr voltar contra o impio, que
tanto ousa, os poderes conspirados do céo e da terra. Bem; prometto
acatar essa preciosidade.

--E creia--disse-lhe o conselheiro--que lhe é merecedor de toda a
consideração. Augusto é um d'estes caracteres excepcionaes que vivem á
sombra de uma modestia impenetravel e á sombra d'ella muitas vezes
morrem. É necessario ter a vista muita exercitada n'estas explorações de
almas modestas, para descobrir uma assim.

--Felizmente para os myopes como eu--proseguiu Henrique--ellas fazem ás
vezes a fineza de se despojarem da sua timidez e de se mostrarem á luz.
Não é verdade, prima Magdalena?

--Que admira;--respondeu Magdalena--bem occulto está o fogo na
pederneira, primo Henrique, mas, percutindo-a, salta a faisca.

--Pobre rapaz;--notou a sr.^a de Alvapenha--aquillo nem parece d'este
tempo. O que eu não sei, primo Manuel, é porque elle se não resolveu a
tomar ordens. Recusar o legado da D. Rosa!

--Não seja isso a dúvida. Elle sabe que, adoptando essa ou outra
qualquer carreira, não lhe faltarão recursos para seguil-a até o fim.
Devo-lhe esse auxilio, assim elle o acceitasse; mas tem um genio
singular aquelle rapaz!

--É uma phenix--insistiu Henrique, ironicamente.--Vejo que não é
susceptivel de discussão, impõe-se á gente como um axioma. Eu tenho
habitos de livre pensador, mas... forçar-me-hei a incluir no meu credo
esse dogma.

--Perdão--replicou Angelo.--Um axioma não se demonstra, e a boa alma de
Augusto está todos os dias a demonstrar-se por acções generosas.

--Por favor!! Dêem como não ditas as minhas palavras! Arrependo-me da
minha irreverencia, e se elle aqui estivesse, principiaria a
penitenciar-me na sua presença.

--E é certo que nos falta aqui Augusto. Como te não lembraste d'elle,
Angelo?

--Não viria. N'esta noite não deixaria o tio Vicente.

--Ah, sim. Esquecia-me d'aquelle pobre Vicente.

--É do herbanario que falam?--perguntou Henrique.

--Justamente.

--Outra phenix; e quer-me parecer que tambem pertence ao numero dos
inviolaveis; não é verdade, prima?

--Pertence ao numero dos infelizes, primo, o que é justo considerar-se
uma especie de inviolabilidade.

A resposta collocou Henrique em mau terreno, e por isso apressou-se a
desviar do ponto principal da questão, dizendo:

--Infeliz? Por que lhe chama infeliz? Os visionarios como elle teem em
si os elementos da propria felicidade, e ninguem possue poder de
perturbar-lh'a. Além de que o herbanario gosa aqui na terra de uma certa
soberania, que deve lisonjeal-o.

--E olha que nem em Lisboa ha talvez quem saiba tanto como elle em
coisas de doenças e de remedios, menino,--disse D. Dorothéa, que era uma
das fervorosas apologistas da sciencia do herbanario.

--É na verdade um homem singular!--disse o conselheiro.--D'antes, na
noite de Natal, e em todas as solemnidades de familia, tinhamol-o tambem
por commensal, que ainda é parente arredado da casa. Ha annos porém deu
em tomar a peito o meu procedimento politico e em prégar-me sermões e
dirigir-me censuras, que eu fazia por escutar com a possivel resignação.
Mas um dia foi mais amargo nas suas recriminações e eu achava-me com
maior susceptibilidade; julgo que lhe respondi com bastante acrimonia, e
o homem saiu de minha casa offendido e protestando não voltar mais a
ella. Procurei-o, escrevi-lhe, tentei demovel-o do seu proposito. Não
houve de quê. Havia-o ferido no seu orgulho, e é intolerante n'estas
condições.

--Sei-o já por experiencia;--disse Henrique--que n'uma unica entrevista
que tive com elle, e que durou minutos, deu-me occasião de lhe conhecer
a irritabilidade.

--Vamos, primo Henrique; talvez possa haver quem supponha que n'essa
entrevista não demonstrou o primo peor do que elle possuir as qualidades
de que o accusa.

--Agora--continuou o conselheiro--vão consideravelmente exacerbar-se os
despeites do herbanario contra mim.

--Porquê?--perguntou Magdalena.

--Porquê?... por causa do traçado que se adoptou para a estrada.

--Então?--disseram simultaneamente Angelo e Magdalena.

--A casa e o quintal do herbanario são os primeiros cortados.

--Não pode ser!--exclamou Magdalena, com evidente expressão de susto.

Angelo dirigiu ao pae um olhar tambem inquieto.

Christina não exprimiu menos apprehensiva tristeza.

--É inevitavel. Os dois primeiros traçados tinham certas durezas. O
primeiro era uma luva lançada a uma influencia eleitoral, poderosissima;
o brazileiro Seabra.

--Ah!--disse Magdalena, com certa amargura na expressão e no olhar.

O conselheiro reparou n'ella e em Angelo, em cuja physionomia se não lia
menos intenso desgosto.

--Estou adivinhando que meus filhos votariam por que antes se arrostasse
com os despeites d'esse influente. A logica do sentimentalismo tem
d'essas exigencias absolutas.

Magdalena respondeu:

--Julguei que era a da consciencia, meu pae.

--A consciencia diz-me que ha interesses superiores ás contemplações com
as singularidades de um velho honrado, mas... meio tonto. Na carreira
politica ceder ao coração é morrer ou ser vencido. O sentimentalismo
exaggerado, Lena, tem o inconveniente de dar tanto vulto ás vezes a um
sacrificio individual, que, para o evitar, não duvida prejudicar maiores
e mais geraes interesses e operar sacrificios mais custosos. É muito
tocante na verdade o amor de um velho pelas suas arvores e pela sua
casa; porém, mais respeitavel é o bem-estar e a conveniencia de uma
localidade.

--E é tão necessario para a felicidade d'esta terra o sacrificio a que
se quer obrigar o herbanario?--perguntou Angelo, e Magdalena secundou
com o olhar a pergunta do irmão.

--Eu te digo, Angelo--respondeu o conselheiro, levemente despeitado.--Eu
tinha a vaidade de me suppôr ainda prestavel para esta gente, que me tem
elegido tantas vezes. Dos nossos patricios, deixem-me dizel-o aqui em
familia, não vejo ainda quem dê garantias de desempenhar o mandato,
muito melhor do que eu. Chamasse eu contra mim a animadversão d'este
povo, e elles, á falta de outros, acceitariam ámanhã qualquer nome
inscripto na carteira do ministro; um homem que nunca tivessem visto, e
que nem soubesse em que ponto da carta estava o circulo de que se
propunha ser representante. Mas perdôa-me, Lena, talvez isto te esteja
parecendo um censuravel excesso de vaidade.

--Não, meu pae, ninguem acredita mais do que eu no muito valor da sua
influencia, mas... Ó meu Deus!... isso vae ser a morte do pobre tio
Vicente! Imagine bem o que é n'aquellas idades e com aquelle genio, a
grandeza do sacrificio que vão exigir d'elle?

--Custa-me ser obrigado a isso; porém...

--Valia mais esperar algum tempo. A vida d'elle não pode ser muito
longa. Deixem-o morrer em paz, á sombra d'aquellas arvores a que elle
quer tanto. Que importa passar mais alguns annos sem uma estrada?

--Poesia!--disse o conselheiro, sorrindo para Henrique, que lhe
correspondeu.

--Perdão!--acudiu Magdalena, córando--é caridade.

--Ora vamos, Lena. Sê razoavel. Todos soffrem no mundo sacrificios
maiores do que esse; eu mesmo, que me não tenho ainda assim por victima
da sorte...

--E não haveria outro meio?--perguntou Angelo.--Acaso ha só esses dois
logares para dirigir a estrada?

--Que antes nunca se fizesse!--exclamou Magdalena, apaixonadamente.

--Ahi temos como o sentimento me torna retrograda a minha Lena. Já clama
contra as estradas como qualquer reaccionario convicto. Havia um outro
traçado, mas esse ia destruir completamente os campos do Brejo.

--Ah! então esse, esse! São bens nossos!--exclamou Magdalena com
vivacidade.

--São bens de Angelo, filha, e por ventura aquelles que um dia mais
valiosos se tornarão para teu irmão.

--Os charcos?--disse Angelo, encolhendo os hombros--ora! Só para viveiro
de rãs.

--Hoje pouco mais são do que isso, e como tal nol-os pagariam agora.
Dentro, porém, de alguns annos, operados alli os trabalhos de esgoto,
que eu projecto, verão em que se transforma aquillo. É exigir a um homem
muita abnegação pretender d'elle que sacrifique assim os elementos da
riqueza futura de seus filhos; quanto mais que as vantagens não seriam
taes que...

--Não pediriamos esmola, meu pae--notou timidamente Angelo.

--Nem o Vicente a pedirá. Visto que estaes tão desprendidos de
interesse, que não hesitaes em fazer-lhe sacrificio dos vossos bens,
podeis ceder-lhe o sufficiente para o compensar da perda.

--Mas quem o compensará dos golpes nos seus affectos?--perguntou
Magdalena.

--Tambem tu! São segredos do coração feminino essas compensações.
Deixo-as á tua disposição.

--Meu pae! meu pae! se é ainda possivel atalhar-se!

--É impossivel.

--Meu tio!--secundou Christina.

--Mano! Primo!--disseram a um tempo as senhoras mais idosas.

--O que posso fazer é ir eu proprio falar com o Vicente, para o mover a
consentir na expropriação amigavel, que farei que lhe seja o mais
vantajosa possivel.

--E tem coração para lhe ir propôr isso?

--Dize antes se tenho coragem para arrostar com as iras do velho, e com
as maldições que já sei vae sacudir sobre mim.

Lena calou-se, suspirando.

--Mas vejam a inevitavel fatalidade que me persegue!--continuou o
conselheiro.--Eu, que tinha feito voto de não me entreter de negocios
publicos esta noite! Ai, Lena, Lena, a culpada és tu!

--Eu?! Eu, que abomino a politica! que só ella podia fazer entrar uma
crueldade no coração de meu pae!

--Ó tio, veja se faz com que a estrada vá por outro sitio!--implorou
meigamente Christina.

--Tambem tu, Christe! tambem tu!

--Pudera, mano! Não, que uma coisa assim! Isso é até uma ingratidão para
com um homem a quem esta aldeia tanto deve--disse D. Victoria.

--Pois não é! E logo um quintal onde cresciam tantas plantas de
virtudes!--accrescentou D. Dorothéa.

--Vá vendo, sr. Henrique, como se conspiram todos contra mim. Veja como
um sentimento insignificante organisa uma opposição.

--É uma lição que estou recebendo, sr. conselheiro.

--Meu pae,--insistiu Magdalena--eu espero ainda que, ouvindo o tio
Vicente, se commoverá e trabalhará por alterar esse fatal plano que
principia por arrancar arvores, mas que, pode estar certo, com ellas
arrancará uma vida.

--Romances! Lena, romances! Os romances, lidos em plena aldeia, são
perigosos. Falta aqui nos ares um certo scepticismo que, não sendo em
dóses exaggeradas, tem a vantagem de não deixar vêr as coisas da vida
através do prisma dos livros de imaginação. Mas basta de falar em
politica. Ámanhã procurarei o herbanario. Espero uma recepção de gêlo, e
vou preparado para uma ladainha de recriminações, mas irei. Nada
esperes, porém, da entrevista, Lena; nem o mal, se mal é, se poderia já
atalhar; nem o orgulho de Vicente lhe permittiria expansões á
sensibilidade, que cheguem a commover-me. Conheço-o.

Magdalena não instou. Ficou, porém, pensativa e sem o menor vestigio da
alegria, com que principiara o serão.

N'isto ouviu-se um toque de sino longinquo.

--Já toca para a missa do gallo! Ouvem?--disse D. Victoria.

--Vamos! Não ha tempo para demoras--exclamou o conselheiro,
levantando-se.

Todos o imitaram, menos Magdalena.

--Não vens, Lena?--perguntou Christina.

--Não.

--São amúos, filha!--disse-lhe o conselheiro, indo por traz d'ella; e,
tomando-lhe a cabeça entre as mãos, beijou-a na fronte.

--Não, meu pae, é uma dôr de cabeça tão violenta!

--A maldita politica é o que faz! Pois fica; fica, porque está fria a
noite.

--Far-te-hei companhia, Lena, disse Christina.

--Não, não. Se insistes, obrigas-me a sair.

--Aviem-se!--dizia D. Dorothéa.--Henriquinho, vens?

Henrique, cujo ardor em ouvir a missa da meia noite esfriou desde que
viu Magdalena ficar, respondeu:

--Ó tia... a falar verdade!... se me dispensassem!...

--Vem d'ahi, preguiçoso! anda!

--É que... para um homem doente...

--Ai, não; se te ha de ás vezes fazer mal, então não--apressou-se a
dizer a precavida senhora.

E foi deferido por unanimidade o requerimento de Henrique, a quem cêdo
depois Torquato foi ensinar. o caminho para o quarto onde devia
pernoitar.

O conselheiro, D. Dorothéa, Christina e Angelo fôram para a missa do
gallo.

D. Victoria, Magdalena e Henrique ficaram no Mosteiro.




XV


Fechando-se no quarto, que lhe deram para pernoitar, Henrique de
Souzellas sentiu poucas disposições de dormir. Uma profunda excitação
impedia-lhe o repouso; em parte era devida ás occorrencias d'aquella
noite, tão fóra dos seus habitos de vida; em parte, digamol-o em
verdade, á influencia dos vinhos, com que secundára os brindes do
conselheiro, e com que elle proprio iniciára outros.

A imaginação, excitada como estava, cada vez, entre outras imagens, lhe
representava mais bella a de Magdalena. A especie de hostilidade
permanente, com que a morgadinha o tratava, ainda mais parecia
seduzil-o.

Nos poucos dias que passára na aldeia, havia Henrique, com novos
habitos, adquirido uma maneira de vêr e de julgar as coisas e as
pessoas, differente da que lhe era habitual na cidade, no circulo de
amigos, com quem convivia; assim foi que abjurou tacitamente, e sem dar
por isso, certo scepticismo convencional, que uma antipathica escola
conseguiu pôr muito na moda.

Graças a estas melhoras moraes, tão verdadeiras n'elle como as physicas,
as quaes até o constante pensamento das doenças lhe haviam dissipado,
pudéra elle considerar Magdalena como uma mulher superior ao typo, pelo
qual a mencionada escola costuma modelar o sexo: e acceitou sem má
prevenção a aberta sinceridade d'aquelle caracter sympathico, que
descrevia com enthusiasmo nas suas cartas a um dos seus mais intimos
amigos de Lisboa.

Taes estados de convalescença são porém sujeitos a recaídas.

N'este dia, vespera de Natal, recebera elle a resposta áquellas cartas,
e sob as impressões com que ficou da leitura, tinha vindo para o
Mosteiro.

O amigo ria-se, com todo o elegante scepticismo de um homem da moda, da
candura e da ingenuidade de Henrique. Dizia-se sinceramente penalisado á
vista dos profundos estragos que alguns dias de provincia tinham operado
n'elle. Via-o disposto a idealisar a mulher, a mais perigosa e mofina
monomania que, dizia o tal, pode transtornar o cerebro de qualquer
homem.

Com aquella ausencia de escrupulos, com que todos os dias caracteres,
aliás não pervertidos, levianamente calumniam ou ferem de suspeitas
reputações de todo o genero, elle fazia irreverentes allusões á
morgadinha e zombava de Henrique, que ainda tomava a sério as isenções
de uma rapariga de vinte e tres annos. Acabava por o aconselhar a que
indagasse de algum primo timido e modesto, ainda que menos ingenuo de
certo do que elle Henrique se estava mostrando.

Esta carta fez mal a Henrique. Exacerbou-lhe a doença, que estava em via
de cura. Um espirito mephistophelico parecia havel-a dictado. Henrique
transportou-se pela imaginação, depois de lel-a, a um dos circulos que
habitualmente frequentava em Lisboa; suppoz-se a fazer alli a narração
da sua vida na aldeia, e parecia-lhe estar vendo os sorrisos com que o
escutariam, e elle proprio construia os epigrammas, com que lhe seria
por certo commentada a narração. E então uma vergonha de má indole,
vergonha do homem que põe um preceito de elegancia acima de um dictame
de moral, fazia-o córar, apesar de a sós comsigo mesmo. Voltava a ler a
carta, que lhe parecia dictada pela experiencia e pelo bom senso,
emquanto que a ingenuidade das suas crenças se lhe figurava ridicula e
desarrazoada.

Quem ha que não tenha tido momentos d'estes? Quem se pode gabar de não
ter perguntado um dia aos seus escrupulos mais nobres se não são meros
preconceitos, que ficaram de uma educação acanhada? Quem não poz um
momento em dúvida as sublimes verdades que a mãe lhe ensinou em creança?
Henrique estava passando por um d'esses accessos de scepticismo.
Magdalena era já para elle uma astuciosa, que muito se deveria ter rido
da sua simplicidade; e tanto o incommodava esta ideia, que promettia a
si proprio ser d'ahi por deante mais arrojado. Esta ordem de reflexões
estavam acudindo outra vez a Henrique e recebiam da excitação, que se
apoderára d'elle aquella noite, uma tenacidade maior. Sentindo a cabeça
em fogo, Henrique levantou-se, apagou a luz, e abrindo a janella do
quarto, saiu á varanda que deitava para a quinta, a respirar o ar livre.

A noite era sem luar e sem nevoas. Descobriam-se muitas estrellas no
céo, que com forte scintillação parecia illuminarem a terra de um tenue
crepusculo, que mal deixava distinguir os objectos.

O ar frio da noite estava produzindo em Henrique um prazer, que elle
procurava prolongar.

Não havia passado muito tempo, depois que assim se encostára á varanda
do quarto, quando lhe attrahiu a attenção certo vulto alvacento, que
furtivamente se movia n'uma das ruas da quinta.

Pareceu-lhe uma figura de mulher.

Justamente n'aquella occasião tinha Henrique na memoria o periodo final
da carta do seu amigo.

Por isso occorreu-lhe uma ideia satanica.

--Ah!... Querem vêr que... A dôr de cabeça subita... A insistencia em
ficar só... Percebo... Um primo timido e modesto...

E murmurando estas palavras, um sorriso maligno encrespava os labios de
Henrique.

--Se eu pudésse averiguar isto... Mas ella corre com uma ligeireza que,
antes que eu ache meio de sair para a quinta... já a levará bem longe.

O meio porém não era difficil de encontrar. Da varanda em que estava
Henrique passava-se com grande facilidade para outra immediata, na qual
havia uma escada de communicação para a quinta.

Reconhecendo esta disposição do terreno, Henrique operou n'um momento a
descida, e pouco depois procurava através da quinta os vestigios da
mulher que tinha perdido de vista.

N'esta operação esforçava-se por combinar com a maxima ligeireza a
possivel precaução, para não ser por causa alguma frustrada a sua
pesquiza.

A quinta do Mosteiro era extensa e cerrada toda em volta por um solido
muro de alvenaria. Aqui e alli abriam-se n'elle differentes portas que
deitavam para os diversos logares da aldeia. N'este vasto recinto havia
pomares, lameiros, vinhedos e hortas, por onde Henrique errava á tôa, já
desanimado de ser bem succedido no empenho.

De repente julgou ouvir, a pouca distancia, o rodar de uma chave na
fechadura. Parou por precaução e ficou-se a escutar. Logo depois ouviu o
bater de uma porta e mais nada.

Então adeantou-se rapidamente; n'um momento deu com a porta, que ainda
se conservava aberta.

Saiu por ella para a rua, mas achou-a deserta.

Dirigiu-se á esquina que d'alli avistava; dobrou-a, mas nada viu; as
ruas eram solitarias, e uma só casa terrea que havia ao lado de um
quintal estava discretamente fechada e silenciosa.

Desistindo de proseguir na infructuosa pesquiza, Henrique voltou para a
porta.

--Esperemos aqui por esta donzella destemida que assim anda de noite a
correr aventuras. Ha de ser curioso observar como ella fica, quando me
encontrar por guarda portão. Veremos se ainda depois d'isto durarão
aquelles ares de soberania, com que me trata. Um primo timido e
modesto!...

E, sorrindo á lembrança da scena que se preparava, Henrique fechou a
porta por dentro, e accendendo um charuto, poz-se a passeiar, aguardando
o regresso da morgadinha.

Para não perdermos muito tempo á espera tambem, aproveital-o-hemos a
inquirir de coisas e de pessoas, cujo conhecimento é util á continuação
da nossa historia.

A pouca distancia do extremo da quinta do Mosteiro e n'um sitio a que a
abundancia de vegetação e a suavidade de perspectiva davam o mais
pittoresco aspecto, estava a casa e o quintal do herbanario, casa e
quintal já condemnados pelos lapis e tira-linhas dos engenheiros e
offerecidos em sacrificio aos melhoramentos municipaes e concelhios.

Acharia justificado o quasi terror, com que Magdalena e Angelo escutaram
a nova d'esta expropriação, quem conhecesse a vivenda rustica do
herbanario e soubesse do amor que elle votava a cada objecto d'ella,
assim como da vida que, havia tantos annos, alli vivia escondido e
obscuro.

Para o quintal, que a abundancia das arvores de espinho fazia sempre
verde, abriam-se as janellas da pequena e humilde saleta, onde o
herbanario se entregava ás suas leituras e lucubrações scientificas.
Logo ao pé da porta se estendiam o jardim, em parte de recreio, pelas
flores que o adornavam, em parte de utilidade, pelas simplices
medicinaes, de virtudes mais ou menos problematicas, que o velho n'elle
cultivava.

Vicente tinha entranhada a paixão vegetal, deixem-me assim chamar-lhe.
Adorava as plantas pelas suas flores, pelos seus fructos e pelos poderes
curativos que lhes attribuia. E como se ellas possuissem a
responsabilidade dos effeitos produzidos, assim lhes queria e as
amimava, quando salutares; assim as aborrecia e maltratava, quando
nocivas. A vida isolada e o genio do velho, que sempre fôra dado a
singularidades, augmentaram estas disposicões, que tinham o que quer que
era de pantheistico; e não era raro surprehenderem-o conversando com
ellas, como se convencido de que o estavam comprehendendo.

A borragem, a salva, a fumaria, a herva terrestre, a herva moura, os
trevos, os geranios, as papoulas, as violetas, tão boa camaradagem lhe
faziam, que nem lhe deixavam sentir a solidão.

O herbanario não tinha pessoa alguma ao seu serviço. Elle proprio
cozinhava e por suas mãos fazia todos os mesteres domesticos.

É pois de imaginar que não seria muito complicado o banquete das
consoadas n'aquella casa, e que devia formar em tudo contraste com o que
á mesma hora se celebrava no Mosteiro.

De feito, quando alli eram mais ruidosas as conversas e mais espontaneos
os risos, dois homens apenas, sentados um defronte do outro, a uma
pequena mesa circular, solemnisavam n'aquella modesta sala o santo
anniversario. Um era o proprietario da casa, o outro Augusto, um dos
poucos que se atrevia a frequentar áquellas horas mortas a habitação do
velho.

Além da mesa, sobre a qual estava uma ceia composta de queijo, maçãs,
nozes, castanhas, duas sopeiras com escabeche, especialidade na
confecção da qual o herbanario era eminente, e uma garrafa de vinho do
Porto de promettedora côr de topazio, consistia o resto da mobilia n'uma
estante de pinho, vergada sob o peso de in-folios de grossas
encadernações e folhas vermelhas nos aparos, em algumas cadeiras e
bancos tambem occupados com livros e com varios utensilios empregados
nas explorações scientificas do velho, taes como caixas de lata,
frascos, martelos, foicinhas, limas, os quaes ainda sobravam para
alastrarem o chão.

Todo o recinto era apenas alumiado por um candieiro de azeite, e a
escassa luz, que dos tres lumes que, em attenção á solemnidade da noite,
o velho accendera, ia reflectir-se no vulto alvacento de um Christo de
marfim pendente de um crucifixo negro, que sobresaía n'aquellas paredes
nuas e caiadas.

Havia bastante tempo que aquelles dois homens, sentados defronte um do
outro, guardavam silencio; um d'esses silencios, durante os quaes os
espiritos, como se impacientes com as longuras da palavra, tendo-se
desembaraçado d'ella, voam a par, para adeantarem caminho e voltarem
mais longe a associarem-se á sua mais lenta companheira.

Augusto, com os olhos fixos na luz que illuminava a scena, parecia
alheio a quanto o rodeava.

O herbanario, sem desviar os olhos d'elle, com o braço estendido para o
calice que tinha defronte de si, e a cabeça inclinada, parecia espiar,
um por um, todos os gestos de Augusto, e estudar n'elles os pensamentos
que o preoccupavam. Emfim rompeu o primeiro o silencio:

--Pobre rapaz! Dize-me para ahi tudo o que tens. Para que te mettes a
esconder de mim aquillo que eu ha tanto te leio nos olhos, creança?

--O quê, tio Vicente?--perguntou Augusto, inquieto.

--O quê?! Ouve, Augusto. Deu-te Deus o engenho, sem te esfriar o
coração: são dons do Céo, que se pagam caro e com lagrimas, rapaz.
Bondade de coração, com a cabeça... assim, assim... a dar esmolas aos
pobres se satisfaz; cabeça de fogo, mas coração de gêlo... todos os
meios de levar ao fim ambições, tanto os bons como os maus, todos lhe
servem; mas coração como o teu, com o espirito que tens!... ai, pobre
Augusto, se se escapa ao infortunio, é por milagroso poder do Senhor.

--Não o entendo, tio Vicente,--disse Augusto, com manifesta confusão.

--Não! Olha para mim. E vê se te atreves a repetil-o.

Augusto baixou a cabeça.

O velho sorriu com ar de commiseração e sympathia.

--Tu ainda não sabes fingir. Vamos lá; e cuidas que me não havia de
custar, se não tivesse acertado?--E, depois de breve pausa,
continuou:--Mas ainda quando penso em como tu, uma cabeça forte, assim
te deixaste enfeitiçar!...--E tomando o calice, que tinha defronte de
si, disse com resolução--Quero beber á tua saude, Augusto, e para que em
breve se te desfaça essa loucura.

Quando ia a levantar o calice aos labios, a mão de Augusto susteve-lhe o
braço.

--Não beba. Loucura embora, deixe-me viver e morrer com ella. Sou feliz
assim.

--Ah!--disse o velho herbanario, tomando um ar mais grave; e pousou o
copo, sem desviar de Augusto o olhar penetrante e fixo.

Augusto, depois de um curto silencio, proseguiu com maior vehemencia e
colorindo-lhe as faces um não costumado rubor:

--Sim. Por que o não hei de confessar? Essa loucura que diz, trago-a
commigo, vivo com ella e quasi que para ella. Quero-lhe assim, e não a
desejaria perder. Amor? não é; a tanto não chega... antes um culto, isso
sim. É uma adoração como aquella, em que de pequenos nos educam para com
a Virgem. Que esperanças tenho? Nenhumas. Nem procuro alimental-as. Quer
que lhe diga? Vêl-a; respirar estes ares que ella respira; atravessar
estas devezas em que ella passeia; amimar as mesmas crenças que ella
amima; soccorrer, com o meu óbulo de pobre, a miseria sobre a qual ella
espalha caridosa as dadivas da sua abençoada opulencia... e, ahi está;
são as minhas aspirações; é o futuro que desejo, e com que me contento.
Leu no meu coração, disse; e ha muito que m'o dá a entender; mas não viu
claro de todo, confesse. Julgou talvez que haveria em volta d'este
sentimento um enxame de esperanças loucas, e d'ellas se ria. D'ellas por
certo foi que se riu; é muito generoso para se rir do mais. Enganou-se,
porém, tio Vicente; vê agora que se enganou, não é verdade? Essas
esperanças não existem. Se existissem, bem vê que não estaria aqui. Não
me teria impellido a ambição pelo caminho de realisal-as? Não se me teem
offerecido os meios para tental-o? Mas, veja, quero-lhe tanto, e tanto
me satisfaz esta felicidade a meu modo, que não arrisco um instante
d'ella para tentar uma ventura maior.

O herbanario escutava silencioso, porém meneando a cabeça com ares de
quem não punha demasiada fé n'aquellas palavras.

--Aos vinte annos!...--disse elle por fim--sentir o que dizes... ser
feliz assim!... Deixa passar mais tempo; deixa tomar corpo á paixão e
verás... verás depois...

--Tem dez annos--disse Augusto, sorrindo.

--Dez annos!

--É verdade. De creança a conheço, a paixão que diz; por isso confio
n'ella. Tenho fé em que se não transviará.

--Dez annos!--repetia o velho, admirado.--Porém... ha dez annos...

--Ha dez annos saí eu d'aqui, tio Vicente. Não se lembra? Era então uma
pobre creança da aldeia, educada entre os braços de minha mãe, e
conhecendo, uma por uma, as arvores d'estes sitios e mais nada. Saí
d'aqui e fui para Lisboa. Não imagina as fortes impressões que recebi na
noite que alli cheguei. Nunca a historia mais maravilhosa de fadas e de
encantamentos que ouvia, quando era pequeno, nunca me feria a imaginação
assim! Tudo era novo para os meus sentidos. O rumor, as luzes, os
palacios, os edificios, os carros produziam-me quasi uma vertigem;
sentia-me vacillar. Achei-me, nem sei bem como, de tão atordoado que ia,
n'uma casa onde estava o conselheiro, e em que se reunia, n'aquella
noite, uma companhia numerosa de homens, de senhoras e de creanças,
muitas da mesma idade que eu, e que formavam uma assembleia á parte. A
sala era magnifica; muitas luzes, muitos espelhos, muitas flores, moveis
dourados, tapetes, quadros, crystaes, e para acabar de me confundir, o
piano, objecto novo para mim, e que eu me não fartava de admirar. Tudo
isto me perturbava, como imagina, e por fôrça me havia de dar uns ares
de estupefacto. O conselheiro recebeu-me com affecto; deu explicações ás
pessoas presentes a respeito da minha vida, e deixou-me entregue ás
creanças. Ahi fiquei eu, bisonho rapaz da aldeia, com a minha jaqueta
mal talhada, o meu olhar timido, os meus modos acanhados, no meio de uma
turba de creanças elegantes, que se me figuravam de uma essencia
superior á minha. As creanças são desapiedadas, quando assim em
companhia. Cêdo percebi que estava sendo o alvo da zombaria d'ellas;
riam ao principio com disfarce e falavam-se ao ouvido, olhando-me de
relance; redobravam as risadas e transmittiam reflexões a meu respeito,
cujo sentido julguei adivinhar. Depois dobrou a ousadia n'ellas,
dirigiram-me ditos, gracejos, cada vez menos disfarçados; formaram
grupos em volta de mim; se eu falava, respondiam-me rindo. Então
apoderou-se de mim um profundo desalento, comprimiu-se-me o coração de
tristeza. Lembrei-me, com saudades, das arvores da minha aldeia, do meu
pobre quarto, de minha mãe; e achei-me alli tão só, tão sem conforto nem
amizades, que as lagrimas me vieram ferventes aos olhos. Ainda hoje não
hesito em dizel-o, foi aquelle um dos mais amargos momentos da minha
vida. Nós, quando adultos, esquecemos facilmente os martyrios da
infancia, quando n'esta idade uma sensibilidade exaggerada tão dolorosos
os faz. Foi então que se deu um facto que, na minha piedosa superstição
de rapaz aldeão, quasi me pareceu de intervenção divina. Abriu-se a
porta e entrou na sala uma creança, que eu não tinha ainda visto. Era
uma menina pallida, de gesto affavel e angelico. Vestia toda de branco.
Entrou e approximou-se do conselheiro, que jogava com uns amigos. O
conselheiro, depois de beijal-a, não sei que lhe disse ao ouvido. Ella
correu então a sala com a vista; viu-me e veio direita a mim.

--Não conhecias já da aldeia, Magdalena?--perguntou o herbanario.

--Não; minha mãe veio para aqui no anno em que, por morte da sua,
Magdalena voltou a Lisboa. A affabilidade, a singeleza desaffectada com
que me falou, causou-me um allivio ineffavel. Ainda hoje sinto como que
os reflexos d'aquella suave impressão. Parecia-me ouvir a voz de minha
mãe; tinha o timbre da sympathia. Encheu-se-me logo de confiança o
coração. Com ella não senti mais aquelle acanhamento que me enleiava.
Depois falava-me de coisas que eu sabia tão bem! Perguntava-me a
respeito dos campos, das arvores, das abelhas, dos ninhos dos passaros,
das flores, dos trabalhos do linho... interrogando-me e escutando-me com
tanta deferencia e attenção, que me inspirava coragem, e julgo que me
estava dando ares de mais importancia junto d'aquelles pequenos senhores
e senhoras que, pouco a pouco, se fôram despojando dos seus desdens e
acabaram por me escutar e interrogar tambem com curiosidade. Já uns me
lançavam os braços ao hombro, outros formavam circulo em volta de mim, e
cêdo fui eu a principal personagem d'aquella noite. Essa creança...

--Era Magdalena; adivinhal-o-hia agora, se já o não soubesse. Não podia
deixar de ser ella--exclamou o herbanario, com um fulgor de sympathia a
illuminar-lhe o olhar.--Era ella; sempre assim foi!

--Era. Esta scena pueril teve uma grande influencia no meu espirito.
Hoje ainda, se penso n'ella, acho-a de uma grande significação moral.
Pois não é mais apreciavel n'uma creança esta prova de superioridade de
caracter, do que nas idades em que muitas vezes a razão e o calculo a
impõem a uma indole naturalmente pouco generosa? Alli era tudo
espontaneidade. Desde então a adoro.

O herbanario parecia não ter já animo para sorrir.

--Agora vejo por que trouxeste da cidade aquella grande tristeza. Tão
novo!

--É verdade. Foi esse o motivo. Magdalena foi sempre para mim affavel;
inclinava-se sobre o livro em que me via estudar, corrigia, sorrindo, os
defeitos da minha educação aldeã, e, se reconhecia progressos no
discipulo, manifestava uma alegria que era para mim o maior incentivo e
o maior premio. Fiz os exames. Quando voltei a casa, Magdalena com certo
ar de gravidade, que aquella creança já então tomava, perguntou-me, no
meio de uma conversa propria de creanças: «E sente-se com genio para ser
padre, Augusto?» Já me não lembro do que lhe respondi. Trouxe porém
commigo aquella pergunta; trouxe-a para a solidão da minha aldeia.
Procurei cerrar os ouvidos á voz interior, que desde então m'a repetia
sempre, até junto da cabeceira de minha mãe, cuja maior aspiração era,
como sabe, vêr-me padre. Mas em vão! foi desde então uma dúvida
constante com que luctava. Com a morte de minha mãe tudo mudou. Pela
primeira vez respondi á interrogação, que havia tanto tempo dirigia a
mim proprio, e consegui por fim responder: «Não». Eis o segredo do meu
passado.

--E por que disseste «Não»?

--Porque vi que toda a minha vida era para a consagrar a um sonho; que o
sonharia no altar, no pulpito e no confessionario; que para toda a parte
me seguiria a imagem, a que eu já não podia renunciar, e a qual então já
não contemplaria sem remorsos, como agora o faço. Foi por isto.

--Só? Não te illudirás a ti mesmo, Augusto? Repara bem, que n'isso pode
ir a tua felicidade! Estás bem certo de que não ha uma esperança dentro
do teu coração?

--Se a tivesse...

Ia a continuar, quando julgou ouvir o rumor de passos na rua. Cêdo
batiam na porta duas leves pancadas, e uma voz dizia de fóra:

--Está acordado ainda, tio Vicente?

O herbanario trocou um olhar com Augusto. A voz era de Magdalena.

Augusto ergueu-se com presteza. O herbanario quiz retêl-o.

--Onde vaes?

--Deixe-me sair. Não poderia vêl-a agora. Não estou preparado com a
minha indifferença.

--Pobre mascara!--N'esse caso sae pelo quintal.

--Tio Vicente!--repetiu Magdalena, de fóra.

--Eu vou, minha ave nocturna; eu vou já. Espera--continuou em voz baixa
para Augusto:--dá-me a tua palavra que não escutarás.

--Dou; mas... promette que nada lhe dirá?

--Eu?!... Louco! Assim te pudésse fazer esquecer, quanto mais... Adeus!

Depois de assegurar-se de que Augusto saira pelo lado do quintal, o
herbanario foi abrir a porta da rua á morgadinha.




XVI


--Ora com Deus venha a minha fada; esta querida Lena, que se não esquece
dos seus amigos velhos... Boas festas me trazes pela noite, filha!

No rosto e nas maneiras de Magdalena havia evidentes indicios de
preoccupação.

--Boas noites, tio Vicente! Pouco me posso demorar; eu venho...

O herbanario conduziu-a para junto da mesa, onde estavam ainda os
signaes de refeição, que havia pouco findára. Vendo os dois talheres, a
morgadinha olhou interrogadamente para Vicente:

--Estava alguem comsigo?

--Esteve Augusto, que ceiou aqui. Porquê? Temos por ahi mais alguns
livros a comprar-lhe?--continuou, sorrindo com benevola malicia.--Tenho
eu mais uma vez de chamar em meu auxilio a fada que, de vez em quando,
me ensina em segredo quaes os livros, que o rapaz mais deseja e de que
eu mal sei dizer os nomes? Hei de ainda ouvir calado agradecimentos, que
não mereço, e que elle mais de coração daria, a quem são de justiça
devidos?

--Não, tio Vicente; não se trata agora d'isso.

--Ai, Lena, Lena, que não sei bem o que devo pensar de todas estas
coisas.

A morgadinha parecia um pouco perturbada com as palavras do herbanario.

--Que ha de pensar? Ha nada mais natural? Angelo foi que me deu o
exemplo. Elle sabia o amor que Augusto tem á leitura. Porém o cofre de
Angelo é pequenino, bem sabe; emquanto que eu chego a nem saber em que
hei de consumir o que me sobra. Por isso foi que me lembrei... porém
como não conviria que eu propria fizesse o presente, nem elle de mim o
acceitaria, é que eu lhe pedi que o fizesse em seu nome. Mas falemos de
outra coisa, porque me não posso demorar. Venho ás occultas e emquanto a
minha gente foi á missa do gallo. Tio Vicente, um objecto muito grave me
obrigou a procural-o a estas horas.

--Ah!--disse o velho, sentando-se em tom de gracejo.--Adivinho a
gravidade do caso. O filhito do boieiro, o teu afilhado predilecto, tem
algum principio de sarampo ou de garrotilho, e vens...

--Não, não. Diga-me, tio Vicente, tem muito amor a esta casa e a este
quintal?

O velho tornou-se immediatamente sério.

--Se lhe tenho amor?! Que pergunta!

--Tem?

--Nasci aqui, filha.

--Custar-lhe-ia a...

--A quê?

--A... a...

E Magdalena hesitava.

--Fala!--insistiu o velho, já inquieto.

--A separar-se d'ella?

O herbanario respondeu simplesmente:

--Ah! morreria.

Magdalena fez um gesto de afflicção.

Em Vicente crescia o desassocego.

--Mas... Dize, Magdalena; o que significam essas palavras?

--É que...

--Explica-te!--exclamou o herbanario, quasi imperiosamente.

--Ouça-me, tio Vicente; ouça-me, mas não se afflija. Eu vim de proposito
para o prevenir. Mas, por amor de Deus, socegue; senão tira-me o animo
de continuar.

--Que socegue, e tu a atormentares-me com essas demoras!

--Perdôe... Fala-se em deitar abaixo estas arvores e esta casa, para...

O herbanario de um impeto poz-se a pé. Fulgurou-lhe nos olhos um
relampago de ira terrivel!

Magdalena calou-se, assustada.

--Deitar abaixo estas arvores e esta casa?! Quem?... Quem se atreve?
Pois que venham! que venham!

Mas reparando no terror que estava causando a Magdalena, procurou
reprimir-se, e com uma voz que elle se esforçava por tornar tranquilla,
continuou:

--Mas vejamos. Então querem, dizes tu... Fala, Lena, fala... Dize o que
sabes. Quem é?... Para que fim? Pois quem pode lembrar-se de... Fala,
bem vês que eu estou socegado, filha.

--Ha um projecto de estrada...

--Ah!--disse Vicente, com um grito de raiva.--Não digas mais. Já
sei--continuou com renascente exaltação.--Já sei. Adivinho o resto. É
teu pae que o determina; é teu pae que o resolveu?

Magdalena abaixou a cabeça com dolorosa expressão.

O furor do velho exaltou-se outra vez.

--Teu pae! Teu pae, Lena! Então esse homem jurou matar-me?

--Tio Vicente!

--Elle não sabe o que são para mim estas arvores e estas paredes? Elle
não sabe que a minha alma está n'ellas, presa a estas raizes? que com
ellas se despedaçará? Esse homem sem coração não vê que são estas as
minhas affeições, as unicas? a minha unica familia? Elle, o companheiro
dos meus primeiros annos! que, como eu, ahi brincou, á sombra d'essas
mesmas arvores e sob os olhares de meu pae, que tambem o abençoava, tão
duro de coração se fez que, sem respeito por estas memorias todas, assim
me quer separar do que me dá vida, do que ainda me prende ao mundo? E é
teu pae este homem, Lena?

--Por quem é, tio Vicente; ouça-me. Deixe-me dizer-lhe ao que vim, que
talvez tudo se remedeie ainda.

--Sim, sim; tudo se remediará... com a minha morte. Talvez que ella seja
util a teu pae... Talvez precise d'ella.

--Oh! não creia, não creia.

--É duas vezes doloroso o golpe; porque me separa do que amo deveras e
por vir da mão de quem vem. Eu era amigo de teu pae, Lena. Acredita que
o era... ainda. Conheci-o tão generoso e tão innocente, como teu irmão
Angelo. Muitas vezes me enthusiasmei ao ouvil-o falar dos seus
projectos. E acreditei n'elle. Tinha então no olhar um fogo, que não
mentia. Vi-o seguir a carreira publica e acompanhei-o com a minha fé.
Não tardaram os primeiros desenganos; não lhes quiz dar credito ao
principio. Vieram outros e outros. Fui vendo então que os maus ares
d'aquella terra tinham embaçado o brilho do caracter, que eu julguei
melhor do que os outros. Mas o peor dos desenganos estava-me reservado
ainda. Para teu pae hoje os homens são medidos pelos votos, que podem
lançar na urna eleitoral!

--Por amor de Deus, tio Vicente, não fale assim! Não duvide de meu
pae!--exclamou Magdalena, a quem cruelmente estavam affligindo as
recriminações amargas do herbanario.--Meu pae estima-o e respeita-o. Não
tem o coração endurecido que diz. Elle mesmo ámanhã aqui ha de vir. Verá
então...

--Elle? Ámanhã?...

--Para isso venho prevenil-o. Não o receba com asperezas, tio Vicente;
fale-lhe com brandura. Talvez o commova, talvez seja ainda possivel
valer a tudo. Ainda não está decidido... Julgo... E que estivesse...

--Ámanhã! Teu pae vem aqui ámanhã? E ousa vir elle proprio annunciar-me
o que sabe que vae ser uma sentença de morte?

--Não; elle ignora o mal que isto lhe causa, creia. Sabendo-o, verá
como...

--Teu pae conhece-me, Magdalena. Teu pae conhece-me, e ha muito. Não
julgues que pode errar, calculando o effeito d'este golpe. Mas que
queres tu? ensinaram-lhe já a avaliar em pouco as venetas de um velho
quasi tonto. Homens que trazem o pensamento em interesses tão altos, não
teem vista para estas pequenas desgraças.

Magdalena sentia-se possuir de uma profunda tristeza, ao ouvir falar o
herbanario. Era uma dolorosa provação para o seu amor de filha vêr assim
uma nuvem de desconfiança offuscar a ideal concepção que ella formára do
pae, e não ter fôrças para a afugentar. Ás vezes uma dúvida cruel
fazia-lhe, a seu pesar, suppôr que o herbanario tinha razão. Agora só
conseguia oppôr um gesto supplicante áquellas acerbas accusações, que
por muito tempo ainda desattenderam esta supplica muda.

A final serenou a violencia da irritação do velho; succedeu-lhe, porém,
uma commoção profunda, dominado por a qual disse a Magdalena:

--Socega, Lena; ámanhã eu receberei teu pae sem a menor aspereza.
Fizeste bem em vir primeiro, filha. Se o não esperasse, talvez não
soubesse conter-me. Agradecido. Uma noite é bastante para me preparar.
Agora vae, deixa-me só; deixa-me... chorar.

E cobrindo o rosto com as mãos, deixou-se cair, soluçando, sobre a mesa,
junto da qual se achava.

Magdalena correu para elle, commovida.

--Então, tio Vicente, então! Socegue! Ámanhã meu pae virá. Fale-lhe, e
eu espero que ainda será tempo de evitar... o mal.

--Pode ser, pode ser...--respondia o velho.--E se não pudér, Deus me
acudirá, para não viver por muito tempo fóra da casa em que nasci.

Magdalena já não tinha que lhe dizer.

--Eu pedirei tambem, e Christina, e todos pediremos, como já pedimos.
Tenho esperança.

--Não, filha, não peças tu. Deixa-me só com teu pae ámanhã. Disseste que
tinhas vindo, sem ninguem saber?--continuou elle.--Olha que te não dêem
pela falta. Vae, que é tempo.

--Mas...

--Vae, filha. Eu estou já tranquillo. Bem vês. Deus te recompense a
bondade que tiveste. Vae. Queres que te acompanhe?

--Não é preciso. Vim pela porta das prezas, que deixei aberta. São dois
passos e estou na quinta. Mas, tio Vicente...

--Vae então; e Deus te abençoe.

E o velho pousou a mão sobre a cabeça de Magdalena, que saiu commovida.

E elle caiu outra vez sobre a mesa, sem reter o pranto que lhe rebentava
dos olhos.

É sombria a saudade n'aquellas idades, porque as esperanças são já muito
debeis para lhe darem luz.

Saindo de casa do herbanario, perturbada ainda pelos sentimentos que
alli a tinham agitado, a morgadinha dirigiu-se á pressa para a porta da
quinta, por onde saira. Ao impellil-a para entrar, a porta resistiu.
Este facto surprehendeu e inquietou um pouco Magdalena. Quem poderia ter
fechado a porta? E se effectivamente estava fechada, tornava-se-lhe
necessario um longo rodeio pela aldeia para chegar a outra, que pudesse
encontrar aberta.

N'esta hesitação impelliu outra vez instinctivamente a porta, que lhe
oppoz a mesma resistencia.

Cêdo, porém, sentiu o rodar da chave na fechadura e viu mover-se
lentamente a porta, e no vão, que augmentava, desenhar-se uma figura de
homem.

Antes que pudésse, através da obscuridade da noite, reconhecer a pessoa,
que assim tão a proposito lhe acudia, deram-lh'a a conhecer estas
palavras:

--Muito boas noites, prima Magdalena. Espero que pelo menos me concederá
licença para exercer, junto de si, as humildes funcções de porteiro.

Era Henrique de Souzellas.

Magdalena não foi superior a um vago sentimento de receio, ao
encontrar-se ahi com o hospede de Alvapenha; comtudo esforçou-se por
dominar-se e respondeu, com apparente presença de espirito:

--Ah! É o primo Henrique. Muito boas noites. Ahi temos um requinte de
galanteria, que eu estava muito longe de esperar.

--E de desejar, não?

--E de desejar tambem; confesso-o. Por mais diligente que seja um
porteiro, nunca o é tanto como uma porta aberta.

--Mas é mais discreto.

--Duvido. Em todo o caso, agradeço o incómmodo.

E, dizendo isto, preparava-se para entrar, sem mais explicações.

--Uma palavra, prima Magdalena--disse Henrique, retendo-a por o braço e
com certa expressão nas palavras e no gesto, que redobrou o sobresalto
da morgadinha.--Não ha mais accommodado terreno para um dialogo solemne
do que o limiar de uma porta. Ordinariamente no limiar das portas o
homem muda de mascara; depõe a que apresenta na sociedade e afivela a
que traz na familia, e vice-versa. Ora n'estas mudanças é facil
surprehender o verdadeiro rosto da pessoa.

--Será tudo o que quizer o limiar de uma porta, primo; menos um logar
muito confortavel para serões n'uma noite de dezembro.

E Magdalena tentou de novo seguir para deante.

Henrique susteve-a outra vez.

--Um momento só, prima Magdalena; tenho necessidade de saber se me quer
para alliado ou para inimigo.

--Não vejo a necessidade da alliança que propõe, nem as razões para a
lucta.

--Sejamos francos. A prima deve confessar que a minha presença aqui foi
um desagradavel contratempo. Uma certa altivez e consciencia de
invulnerabilidade, de que tinha o incómmodo de se revestir, sempre que
tratava commigo, depois d'esta importuna occorrencia terá de se
modificar.

--Não havia dado por essa... _revestidura_ que diz; mas, se ella
existiu, far-me-ha o favor de dizer: por que não pode continuar?

--Essa é boa! porque eu faço a justiça á prima de suppôr que não vae tão
longe a sua hypocrisia.

--Hypocrisia!--disse Magdalena, com accento mais severo.

--Perdão; não tive tempo para inventar outro termo mais... brando.
Dissimulação talvez lhe agrade mais. Seja dissimulação. Mas depois do
occorrido...

--Agora exijo eu que se explique, senhor.

--Ora vamos. Seja razoavel. Poder-me-ha dar uma explicação...
edificante... d'esta sua excursão nocturna?

--Obsta apenas a que eu lh'a dê, sr. Henrique de Souzellas, a falta de
uma pequena formalidade: a de lhe reconhecer o direito de interrogar-me.

--Muito bem. Cada vez confirmo mais a minha ideia. A prima é uma mulher
admiravel, uma mulher superior, educada na alta escola de uma sociedade
distincta, sobranceira por isso a pieguices provincianas. Tanto mais me
encanta! E creia que me envergonho só ao lembrar-me do que terá pensado
de mim, vendo-me tomar a sério as suas profissões de fé, tão cheias de
franqueza e de candura. Devo ter-lhe parecido bem ridiculo, não é
verdade?

--Agora é que me está parecendo bem enygmatico!

--Sim? N'esse caso eu me decifro. A prima não ignora que eu a amo.

--Pois ignorava!--atalhou Magdalena, com ironia.

--E sabe de certo, por experiencia do mundo, que para homens como eu, a
indifferenca, a frieza e os desdens redobram o ardor da paixão.

--Sim; já li isso n'um romance.

--A prima tem sido para commigo de uma crueldade revoltante, mas pouco
sincera. Eu resignava-me a soffrer, porque um resto de ingenuidade que
me ficou dos quinze annos, illudia-me na interpretação de taes
resistencias. Tive a puerilidade de a suppôr uma mulher de excepção;
pouco me faltou para a divinisar. Estava reservado para esta memoravel
noite de Natal o desengano.

--Ah! então parece-lhe...

--Que a prima representa admiravelmente o seu papel. Pode gabar-se de
ter illudido um homem habituado ás scenas da comedia social.

Magdalena respondeu, com um tom de voz cheio de severidade e de nobreza:

--Tenho-o estado a escutar, sr. Henrique de Souzellas, sem que eu
propria bem saiba o que me retem aqui: se é a compaixão que me inspira a
profunda doença moral de que o vejo tomado, se a curiosidade de saber a
que tendem todos esses arrazoados. Vejo-o inclinado a imaginar que por
um facto, que a sua pouco delicada indiscreção preparou, eu ficarei de
hoje em deante á mercê da sua generosidade. Conhece-me muito pouco, sr.
Henrique! Ainda quando esse facto não pudésse ter uma explicação
natural, e que me não repugnará declarar quando quizer, saiba que tenho
orgulho de mais para arrostar com tudo, até com a calumnia, de
preferencia a resignar-me ao menor predominio que me seja odioso.

--Bravo!

--Saiba mais, sr. Henrique de Souzellas, que se eu não lhe fizesse a
justiça de acreditar que d'esses seus actos e palavras não é
absolutamente irresponsavel talvez a má influencia da ceia d'esta noite,
bastariam elles para me inspirarem por si e pelo seu caracter o mais
completo desprezo; e então seria, como nunca, manifesta a minha
independencia, porque eu nunca temi os seres que desprezo.

Henrique principiava a ser de novo subjugado pelo tom de severidade e de
energia, com que a morgadinha lhe falava; ainda assim um resto de
scepticismo obrigou-o a replicar:

--Santo Deus! prima Magdalena; não dê um colorido tão pavoroso ás minhas
supposições. Despojal-a de uma crueza deshumana, para a dotar de uma
sensibilidade, verdadeiramente feminil, é uma justiça feita ao seu
coração. E o facto que o acaso me revelou a nada mais me auctorisa. O
pequeno e natural despeito por me haver deixado illudir desvaneceu-se
já, creia; e agora só me resta invejar a sorte de quem tem a
felicidade...

--Basta! Ordeno-lhe que se cale, senhor! Nem mais um instante o
escutarei; poupar-lhe-hei assim os remorsos, que ámanhã teria da sua
infamia...

E animada por uma resolução mais energica, Magdalena caminhou
soberanamente para a porta.

Henrique collocou-se-lhe outra vez deante.

--Um momento mais.

--Deixe-me passar, senhor.

--Não, sem que me ouça antes.

--É uma violencia?

--É uma supplica.

N'este momento saiu da obscuridade da rua fronteira um vulto que avançou
para elles.

--Sr.^a D. Magdalena, se fôr preciso reter o insolente, que se lhe
atravessa no caminho, ponho um braço á sua disposição.

E Augusto, de quem partiram estas palavras, veio collocar-se entre
Henrique e Magdalena.

Ouvindo-o e reconhecendo-o, Henrique estremeceu de cólera. O olhar que
fixou no recem-chegado trahiu a vehemencia da impressão recebida. Depois
succedeu-se-lhe no espirito outra ordem de ideias. Olhou para Magdalena,
em quem não era menor a surpreza causada pela inesperada presença de
Augusto, olhou outra vez para este e soltou uma risada cheia de
malignidade e de ironia, que a ambos fez estremecer.

--Ahi está uma apparição tanto a tempo, prima Magdalena, que aos mais
incredulos infundiria fé na intervenção da Providencia. Que foi sem
dúvida providencial o acaso, que trouxe por aqui, a estas horas mortas,
um tão generoso e intrepido salvador. Não é verdade, prima? O que vale
estar de bem com Deus!

Estas palavras mostraram a Augusto que a sua intervenção, ainda que
generosa e devida a um espontaneo impulso da alma, não fôra porventura
das mais convenientes.

--Senhor!--exclamou elle, indignado, dando um passo para Henrique.

--Socegue--tornou este, com dobrado sarcasmo.--O senhor é um perfeito
heroe de romance; enthusiasta, cavalheiresco, mas, em certas occasiões,
incómmodo de candura, por isso mesmo. Se soubesse o transtorno que veio
causar a um bello dialogo que eu sustentava aqui com a sr.^a D.
Magdalena! Não vê como a deixou embaraçada? Perdeu com a sua vinda o fio
da comedia, que desempenhava com perfeita sciencia de actriz. As almas
ingenuas e generosas, como a sua, sr. Augusto, são ás vezes de uma
impertinencia! Vamos, sr.^a D. Magdalena; não descoroçôe. Assim exgotou
todos os recursos da sua imaginação? Vamos, introduza mais este elemento
de apparição de um heroe no enredo, e organise a comedia com o superior
talento que tem! Eu por mim acceito todos os papeis que me distribuir.

Augusto ia responder, quando Magdalena o atalhou, dizendo com voz firme:

--Perdão; vejo n'esta noite em todos uma notavel disposição para
usurparem direitos, que não possuem! O sr. Henrique, o de me interrogar;
o sr. Augusto o de me defender. A um repetirei o que já ha pouco lhe
disse; se algum dia tiver necessidade de explicar as minhas acções,
fal-o-hei deante de outros juizes, em quem reconheça o direito de o
serem. Ao outro peço licença para lhe lembrar que, se o titulo de
hospede e de parente não fôsse bastante para me assegurar da parte do
sr. Henrique de Souzellas os respeitos que me são devidos, tinha ainda
na minha familia defensores legitimos e não seria por isso obrigada a
recorrer á protecção de um estranho. Meus senhores...

E, inclinando-se senhorilmente, a morgadinha passou por entre elles e
entrou para a quinta, sem que nenhum a procurasse reter.

--Se esta senhora acceitasse a sua protecção e eu teimasse n'aquillo que
chamou a minha insolencia, qual seria, pouco mais ou menos, o seu
procedimento? Poder-se-ha saber?--perguntou Henrique, logo que a
morgadinha desappareceu.

Augusto, em quem a fria altivez da resposta d'ella deixára o desespero
no coração, respondeu acerbamente:

--Procuraria ensinal-o a ser cortez. Bem vê que não me esqueço
facilmente do meu programma de mestre-escola.

--Vejo; é a segunda tentativa de lição que lhe mereço. Permitte-me que
ámanhã o procure para dar principio a um curso de educação mais regular?

Augusto respondeu, sorrindo:

--É um cartel em fórma? Não sei se estarei ensaiado para essa comedia.

--Se o genero tragico lhe agrada mais, dar-se-lhe-ha esse sabor.

--Bem ouviu que se me negou o direito de tomar partido por esta causa.
Qualquer scena d'essas entre nós seria pouco delicada... ámanhã.

--Pois bem, contemporisemos; e até lá é de esperar que algum motivo
occorra que a explique melhor... aos olhos dos outros.

--Como queira; a minha porta não se fecha a quem me procura.

E separaram-se depois de se cortejarem.

--Se me não engano--dizia comsigo Henrique, em caminho do quarto--é um
verdadeiro desafio o que eu acabo de dirigir a este rapaz. Quer-me
parecer que estou sendo bem ridiculo, desafiando um mestre-escola. Se
lhe deixo a escolha das armas, decide-se pela férula. Tem graça! Veremos
o que ámanhã, á luz do dia, eu penso d'isto tudo. Eu já não fico por mim
esta noite. Estou a querer convencer-me de que tenho andado
estouvadamente e com não demasiado cavalheirismo. Que diabo! É que esta
mulher e este creancelho são irritantes. Ella com a sua altivez, elle
com os seus brios. Mas, na verdade, será este o Endymião d'esta esquiva
Diana? Caprichos feminis... É o tal primo ingenuo e timido... A
ociosidade da aldeia para alguma coisa ha de dar. Mas da maneira por que
ella lhe falou... Havia certo tom de sinceridade... Astucias... O que é
certo é que estou em lucta com uma mulher superior... Pois luctemos,
priminha, mas com armas leaes. Não me prevalecerei do segredo que o
acaso me revelou, se segredo existe... Veremos como ella ámanhã me
trata...

Esta scena deixou em Augusto uma perturbação de espirito mais profunda.

As operações mentaes, que o preoccuparam toda a noite, eram d'aquellas a
que repugna chamar pensar. É mais uma febre intellectual, um succeder de
imagens sem ordem nem filiação, que não conduz a nenhum resultado, que
não aconselha nenhum partido, que não esclarece, offusca.

Como se explica esta differença entre os dois? Por um apparente
parodoxo; porque Augusto tinha mais habitos de reflectir. Quando n'uma
vida de episodios uniformes e apparentemente vulgares, o espirito exerce
demasiado a analyse, habitua-se a estudar factos que para outros passam
por insignificantes, e descobre-lhes faces novas e desconhecidas.
Costumado assim a ligar valor a tudo, quando succede que no decurso da
vida se lhe depara um facto de maior vulto, a confusão do primeiro
momento é inevitavel. Assim como a balança de precisão, apropriada para
oscillar com pesos tenuissimos, não é a que pode servir para os grandes
pesos, tambem a intelligencia costumada a pesar subtis accidentes, de
que se compõe o drama habitual da vida, não é a que de subito pode
avaliar algum mais complexo e importante.

A resolução n'estes espiritos, depois de formada, é mais tenaz; mas,
emquanto se não fórma, vae n'elles um tumulto de ideias, que se não
podem analysar.

Não analysemos, pois, as de Augusto.

Magdalena não socegou emquanto não viu Henrique voltar ao quarto, pelo
mesmo caminho por que saíra.

--Que resultará d'isto?--pensava ella.--Que fará elle ámanhã?... É
preciso não me acobardar, ou estou vencida... Mas que se passaria depois
que os deixei?... Veremos ámanhã.

No meio d'esta serie de pensamentos, Magdalena sorriu.

É que lhe occorrera então este pensamento:

--Dizem que nós, as mulheres, temos filtros subtis para nos tornar
amadas. Pois será mais difficil fazer-se aborrecida? Como o conseguirei?


FIM DO PRIMEIRO VOLUME




BIBLIOTHECA ESCOLHIDA

XXIII

ROMANCE

III


A MORGADINHA DOS CANNAVIAES

Vol. II




CENTRO TIPOGRAFICO COLONIAL
LARGO BORDALO PINHEIRO, 27 E 28
TELEPHONE 2337




JULIO DINIZ


A MORGADINHA DOS CANNAVIAES

(CHRONICA DA ALDEIA)

DECIMA-SETIMA EDIÇÃO



LISBOA
J. RODRIGUES & C.^a, EDITORES
186--Rua Aurea--188
_1920_




A MORGADINHA DOS CANNAVIAES




XVII


Não havia mentido a grande scintillação das estrellas na noite de Natal.

A manhã do dia seguinte correspondeu ao augurio meteorologico, rompendo
pura, desennevoada, com um céo azul sem manchas, e um sol de fundir os
gêlos dos montes e os gêlos da velhice.

O frio intenso convidava a sair, e desde pela manhã aldeões de ambos os
sexos, de camisas lavadas e roupas domingueiras, atravessavam os campos,
saltavam sebes e cancellos, desembocavam das azinhagas e quelhas na
direcção da igreja matriz, onde se deviam celebrar as festas da
Natividade.

Era dia santo entre os que mais o são; e os dias santos na aldeia teem
uma feição solemne e festiva, que mal avaliamos nós, os que passamos a
vida nos apertados horizontes das cidades, phantasiando o campo por meia
duzia de pardaes, que chilram ruidosamente nas cópas das enfezadas
arvores das nossas praças e jardins.

Desde que a moda estabeleceu a lei de não solemnisar o domingo nem o dia
santo, com um vestuario mais asseiado, com um prato mais exquisito na
lista do jantar, com uma diversão excepcional, que todos deram em
vestir-se, comer e trabalhar n'esses dias, exactamente como em todos os
da semana, perderam nas cidades os dias do Senhor a feição typica e
interessante, que por muito tempo tiveram; e quem hoje bem os quizer
apreciar tem de ir n'um sabbado pernoitar ao campo, para amanhecer no
domingo ao som do sino, que chama para a missa matinal.

Dirá então se não parece que até o sol tem outra luz e que as arvores e
as plantas se toucaram de flores novas, que guardam de reserva para os
dias de festa.

Este particular aspecto do domingo estava-o logo pela manhã sentindo
Henrique de Souzellas, encostado á varanda do quarto em que pernoitára,
e emquanto esperava que o chamassem para o almoço.

De vez em quando a recordação das scenas nocturnas da vespera
desviava-lhe para outra ordem de reflexões o pensamento; acudiam-lhe
todos aquelles incidentes á memoria, mas vagos e confusos, como se
tivessem sido sonhados; chegava quasi a duvidar da realidade d'elles.

Agora estava experimentando certa curiosidade e tambem receio de saber
como seria recebido pela morgadinha, e que posição deveria tomar na
presença d'ella.

Formava a este respeito varias conjecturas, sem se fixar em nenhuma.

D'estas cogitações veio por fim arrancal-o o toque da campainha
annunciando o almoço.

--Vamos,--disse Henrique--preparemo-nos para o primeiro embate. Apuremos
a vista para n'um relance julgar do estado das coisas, e por elle
regular o meu plano de tactica.

E depois de uma rapida consulta ao toucador, desceu para a sala do
almoço.

Já alli encontrou reunida toda a familia do Mosteiro, e a morgadinha
presidindo á mesa e preparando o chá.

Todos saudaram Henrique, e a um tempo se informaram da maneira por que
elle tinha passado a noite.

Henrique respondeu que a tinha dormido deliciosamente; e, falando,
desviava o olhar para Magdalena, que o encontrou do modo mais natural,
sem timidez nem audacia.

Seguiram-se os cumprimentos em particular, chegando portanto a vez de
cumprimentar Magdalena.

--Bons dias, prima Magdalena,--disse Henrique, estendendo a mão e
fixando-a com olhar investigador.

Magdalena respondeu-lhe ao cumprimento, com sorriso que nada tinha de
affectado nem de constrangido:

--Bons dias, primo Henrique. Devem-lhe parecer horrorosos estes nossos
habitos matinaes. Foi uma indiscreção mandar tocar a campainha.
Esqueci-me de prevenir que respeitassem a indolencia cidadã.

--Eu é que não consentia:--disse o conselheiro--na aldeia como na
aldeia. Em Lisboa tambem as minhas alvoradas são mais tardias.

--Tem razão, sr. conselheiro. Eu proprio não esperei que me acordasse o
toque da sineta. Ha muito que eu namorava a manhã da janella do meu
quarto.

--Eu não pude dormir toda a santa noite--disse D. Dorothéa.--Estranhei a
cama e a casa. Eu cá sou assim, quem me tira do meu ninho!...

--Ó prima, não vá sem resposta--disse D. Victoria--que tambem eu não puz
olho, e mais sou de casa. E por signal que sempre hei de querer saber
quem foi o criado que lhe deu para andar toda a noite por a quinta. Eram
que horas e eu ainda ouvia pés nas escadas de pedra. É verdade; o primo
Henrique não ouviu? Era mesmo junto do seu quarto.

--Não, minha senhora; eu não senti rumor.

E dizendo isto, Henrique procurou os olhares da morgadinha, que
justamente n'aquella occasião lhe servia uma chavena de chá, e que de
novo o fixou sem perturbação nem affectada indifferença.

Henrique sentiu-se embaraçado com isto. Custava um pouco á sua vaidade
este nenhum vestigio de resentimento ou de receio, que encontrava em
Magdalena.

No entretanto D. Victoria continuava a commentar com D. Dorothéa o facto
das passadas que ouvira de noite.

--Deixe-se d'isso, prima. É porque não sabe o que vae. São coisas
d'estes criados. Não faz ideia! É uma pouca vergonha! É preciso
paciencia de santa para os aturar.

--Angelo,--disse a morgadinha ao irmão--entretido como estás a conversar
com as creanças, esqueces-te de servir a Christe, que tambem se esquece
de se fazer lembrar. Que distracções por aqui vão!

Angelo reparou para a prima, que em todo aquelle tempo estivera calada e
caida em uma d'aquellas abstracções, a que ultimamente era sujeita.

--Eu não sei que tem hoje esta Christe--disse Angelo.--Julgo que lhe fez
mal o frio na noite de hontem.

--É verdade, até está falta de côr! Ora queira Deus que não seja coisa
de cuidado. Dóe-te alguma coisa, menina?--perguntou D. Victoria,
apprehensiva.

--Não, mamã--respondeu Christina.

--Ó meninas, vocês tambem são umas desacauteladas. Eu bem te dizia
hontem, Christe, que levasses mais roupa. Tudo é não faz mal, tudo é não
tem dúvida, e depois é que vem o queixarem-se.

Isto disse a senhora de Alvapenha e muitas coisas mais n'este sentido.
Estas reflexões fizeram Henrique desviar os olhos para a pessoa que era
objecto d'ellas.

Christina estava effectivamnte pallida e pensativa; e d'esta côr e
d'esta expressão recebia uns ares de poesia melancolica, que a tornava
mais graciosa.

Henrique notou pela primeira vez a belleza d'esta creança, em que mal
fixára a attenção até alli, e pela primeira vez se demorou a observal-a
com alguma insistencia.

--É interessante esta pequenita--pensava elle comsigo.

Christina ia a levantar os olhos para responder a D. Dorothéa, quando
encontrou os de Henrique a fital-a. Assomou-lhe então ás faces um mal
pronunciado rubor, a palavra resolveu-se n'um sorriso e os olhos
baixaram-se de novo.

--Ha de ser adoravel esta mulher--pensou d'esta vez Henrique, vendo-a
sob novo aspecto.

O conselheiro disse, sorrindo:

--Ora, que estão a dizer? A Christe até está com umas côres muito
bonitas. Triste? Melancolias dos dezoito annos nunca me deram cuidados.
Provavelmente está agora n'algum episodio sentimental no romance da sua
imaginação. Não sondemos aquelles mysterios, mana. Já não é para nós
comprehendel-os, prima Dorothéa.

Todos riam do dito do conselheiro, o que redobrou o enleio de Christina.

A morgadinha, a quem não passára despercebida a impressão, que a prima
d'está vez parecia ter causado a Henrique, quiz aproveitar o ensejo que
havia tanto procurava, e para isso propoz que se désse uma volta pela
aldeia antes da missa do dia. Esperava ella que as attenções de
Henrique, durante o passeio, seriam para Christina, se não decorresse o
tempo preciso para que se dissipasse no espirito do voluvel rapaz a
impressão que o dominava.

A manhã convidava á excursão campestre. A proposta da morgadinha foi
acolhida com applauso. O conselheiro prometteu acompanhal-os até á casa
do herbanario, a quem tinha de visitar aquella manhã.

Levantaram-se todos da mesa, e á excepção de D. Victoria e D. Dorothéa,
todos saíram.

A morgadinha, sob não sei que pretexto, deixou-se ficar um pouco atraz
para dar tempo a Henrique de offerecer o braço a Christina, o que
effectivamente aconteceu.

--Bem,--disse Magdalena comsigo ao vêl-os--agora que os anjos bons de um
e de outro se convençam da obra meritoria que fazem entendendo-se.

E, approximando-se do pae, Magdalena apoiou-se-lhe no braço.

Angelo ia com as creanças adeante.

Approximemo-nos nós de Henrique e de Christina, para vêr se os anjos
bons d'elles ambos accederam ao convite de Magdalena.

--Não ha prazer que se compare ao de um passeio assim pelos campos,
n'uma manhã como a de hoje, e em companhia tão amavel--dizia Henrique,
procurando aquilatar o espirito da sua _partner_, n'um certame de
galanteria, fóra do qual não concebia que se pudesse temperar uma
paixão.

Pobre rapariga! Que eloquentes e apaixonadas respostas lhe estava
porventura ditando a alma! mas o enleio da timidez fechava-lhe os
labios, não lhe deixando formulal-as; apenas pôde responder:

--Está muito agradavel a manhã, está; nem parece de inverno!

--Pelo que vejo, não gosta do inverno? É natural em uma senhora isso.
Faltam-lhe as flores e as aves, suas irmãs. Eu prefiro o inverno, porque
prepara a vida intima, as scenas ao canto do fogão, as leituras em
commum, e traz-me á ideia as imagens de um viver a que a phantasia de
todos sorri; de todos os que teem um resto de coração; refiro-me ás
imagens de uma familia.

Não ha quem sustente mais tremendas luctas do que os timidos. A alma
revolta-se n'elles, com toda a violencia dos seus instinctos, contra não
sei que mysterio de temperamento, que lhes reprime as expansões. Na
apparencia é fraqueza e serenidade, mas no intimo ha esforços
realisados, que os fortes nem concebem sequer.

Christina encobria no seu enleio uma d'estas luctas. Os labios só
puderam responder:

--Na cidade o inverno é mais facil de passar, julgo eu; porém na
aldeia...

--Na aldeia e em toda a parte se pode gosar a felicidade que eu imagino.
Não é fóra das portas de casa que devemos procurar os elementos para
instituir a nossa ventura, e por isso... Mas a prima ha de estar
admirada de ouvir falar assim um homem que completou os seus vinte e
sete annos sem familia. Não é verdade?

Christina só pôde sorrir:

--Mas que quer? Quem muito idealisa arrisca-se a morrer apaixonado do
ideal e abraçado á peor das realidades. É a consequencia legitima e
triste do aspirar demasiado. Até hoje tenho encontrado na vida mulheres
formosas, amaveis, interessantes; porém nenhuma que satisfizesse ás
necessidades do meu coração, de quem me affirmasse a consciencia poder
esperar a realisação do meu sonho. Perdôe-me falar-lhe n'isto, priminha;
é uma ousadia que tomei, porque um instincto me disse que possue no
coração bastante bondade para m'a perdoar.

--Está a gracejar?--disse Christina, em quem redobrava a turbação, e
que, ao mesmo tempo que estava sendo feliz, desejava vêr interrompida a
sua felicidade: contradicções proprias dos timidos.

--A prima é muito moça--continuou Henrique, que não desesperava ainda de
animar esta Galatheia--e talvez por isso lhe causará estranheza este meu
modo de falar. Um dia virá, porém, em que o comprehenderá melhor. Se
então encontrar um desconfortado como eu, peço-lhe que tenha
misericordia d'elle e o salve do desalento, em attenção a quem a
conheceu n'uma época, em que só podia vêr em si, priminha, a aurora de
uma esperança que já não tinha de luzir para elle.

--Mas... salval-o!... como salval-o!...

--Como as mulheres salvam; amando.

--Bem digo eu que está a gracejar--balbuciou Christina, com voz trémula.

--Tem o defeito da innocencia--disse Henrique para si.--Não se lhe tira
uma resposta de geito.

N'isto chegaram defronte da porta, por onde Magdalena tinha saído da
quinta na noite passada.

--Agora deixo-os por aqui--disse o conselheiro--irei encontral-os á
igreja. Vou arrostar com a fera silvestre ao proprio covil.

--Meu pae, lembre-se do que lhe recommendei--disse Magdalena.

--Socega, filha; serei de cera. Até logo.

--Até logo.

E o conselheiro tomou a direcção da casa do herbanario.

--Era tempo!--disse Henrique comsigo.--A minha eloquencia arrefecia na
proximidade d'este gêlo.

A morgadinha havia quasi adivinhado tudo; estudando as physionomias de
Christina e de Henrique, conheceu que se não haviam entendido.

--Ainda não!--murmurou ella.--Pobre Christe! como se deve estar odiando
a si mesma! Como ha de esta creança vencer este obstinado? Mas não perco
ainda as esperanças.

Henrique, na presença d'estes sitios, recordou-se da scena da vespera e
tentou outra vez experimentar Magdalena.

--Esta porta é da quinta do Mosteiro, não é, prima?

--É--respondeu Magdalena, imperturbavel; e voltando-se para Angelo:--O
que te faz lembrar esta porta, Angelo?--perguntou ella.

--Que muitas vezes por aqui saímos, eu e vós ambas já de noite, e sem a
tia saber, para irmos ter com o tio Vicente, que voltava da caça das
borboletas.

--Fica perto a casa d'elle?--perguntou Henrique.

--É alli, logo ao dobrar d'aquella esquina--respondeu Angelo.

Henrique pensava:

--Seria para provocar uma explicação que ella fez a pergunta? Esta
mulher é admiravel! Não lhe sei resistir.

E já lhe não restavam vestigios da impressão causada por Christina.

--Este herbanario--continuou elle em voz alta--deve, pelos seus habitos
excentricos e até pelo solitario do sitio em que vive, ter aqui na terra
certa famazinha de feiticeiro.

--E tem,--affirmou Magdalena--mas de feiticeiro bem intencionado.

--Devem correr muitas fabulas a respeito d'elle, do seu viver.

--É certo que poucos se atrevem a passar aqui de noite, apesar de todo o
bem que elle faz de dia.

--Ah! Então temem-se de passar aqui de noite!... Pobre homem!... O que
lhe valerá é algum espirito forte que ainda por ahi haja, na aldeia. Que
diz, prima Magdalena? haverá?

Antes que a morgadinha respondesse, Angelo disse:

--Á excepção de Augusto, que ahi vem quasi todas as noites, ninguem mais
o visita.

--Ah!... O sr. Augusto vem ahi quasi todas as noites?!

Magdalena luctava para reprimir a impaciencia.

--Lá me parecia que havia de existir algum de coragem. Para tanto não
chegava o seu animo não, prima?

--Tanto chega, que já muita vez alli tenho ido só, e a altas
horas--respondeu Magdalena com a maior firmeza.

--Sim?! E não tem mêdo?

--De quê? De almas do outro mundo? não tenho crença para tanto. De
malfeitores? não os ha aqui. N'esta terra todos me respeitam, nem com
uma suspeita me offendem--disse a morgadinha, accentuando com expressão
as ultimas palavras.

Henrique acudiu immediatamente:

--Longe de mim duvidal-o.

E calaram-se por muito tempo.

Pela sua parte proseguia o conselheiro no caminho para casa do
herbanario. Cruzou-se com varios homens, mulheres e creanças de aspecto
doentio e soffredor, que voltavam de consultar o velho a respeito dos
seus males; eram mancos, ictericos, escrofulosos, creanças de aspecto
rachitico e enfezado, os mais melancolicos exemplares do infortunio
humano.

--São os peregrinos que veem de Meca--disse comsigo o conselheiro.--Pelo
que vejo a clientela do meu velho amigo herbanario mantem-se fiel, como
d'antes. Valha-nos Deus, que o meu severo censor não trata com muito
respeito o codigo.

Entrou emfim a porta do quintal.

Poucos passos andados encontrou-se com o Zé P'reira, que vinha virando e
revirando nas mãos um papel e monologando, segundo o costume:

--Ora! ora! ora!... Estragar o vinho de nosso Senhor com esta
mexerofada! Isso até era um peccado. N'essa não caio eu!

O conselheiro interrogou-o sobre as causas d'aquelle aranzel.

O homem, depois de cortejar, respondeu mostrando uma receita que lhe
dera o herbanario no virtuoso intento de lhe fazer aborrecer o vinho,
causa dos seus males. A receita era extrahida da _Polyantheia_, e tinha
por ingredientes uma cabeça e sangue de carneiro, cabellos de homem e
figado de enguia; mas o doente ia pouco disposto a experimentar-lhe a
efficacia.

Depois de se separar do Zé P'reira, o conselheiro seguiu por uma rua de
limoeiros, e como homem a quem era familiar a topographia do quintal.
Cêdo chegou á vista do herbanario, que dera audiencia _sub tegmine
fagi_.

Estava sentado á borda de um tanque, a que uma d'essas arvores dava
sombra.

O conselheiro saiu emfim de traz dos limoeiros e veio ter com elle.

Ao rumor dos passos, Vicente voltou a cabeça, e, depois de reconhecer
quem era, retomou a sua primeira posição e ficou silencioso.

--Bons dias, Vicente--disse o conselheiro com familiariedade e parando
defronte d'elle.

--Bons dias, Manoel--respondeu o herbanario, deixando-se ficar sentado.

--Saía agora d'aqui um homem, que julgo será rebelde a toda a tua
medicina. Padece de mal que se não cura.

--Os vicios são enfermidades mais rebeldes do que os achaques do corpo,
são.

--Já que tu não appareces no Mosteiro, como d'antes, para solemnisar
comnosco as festas do Natal, vim eu vêr-te.

--Obrigado.

--A tua misanthropia vae-se azedando, Vicente--continuou o conselheiro,
sentando-se á beira do tanque.--Cada vez te estás a sequestrar mais dos
homens, cada vez mais os aborreces.

--Eu não aborreço os homens, enganas-te. Não os aborrece quem passa a
vida a procurar os meios de alliviar os padecimentos dos seus
semelhantes. Estou velho, isso sim; e, como velho, encontro já no mundo
pouca gente com quem me entenda. As ideias do meu tempo passaram. Por
isso deixo-me ficar em casa a pensar n'elle.

--És um homem singular; um verdadeiro philosopho. Ora dize-me: e em que
cogitas tu, quando assim passas uma manhã inteira, sentado n'esse banco,
com os joelhos ao sol, os braços cruzados, e os olhos no chão?

--No passado. Pois não t'o disse já? O domingo reservo-o eu para me
recordar. Ahi está que ha pouco, quando aqui me vim sentar, ao ouvir os
repiques na igreja, lembrei-me de que era, dia de Natal, e o meu
pensamento voltou quarenta annos atraz a um dia igual ao de hoje.
Lembras-te d'elle, Manoel?

--Do dia de Natal de ha quarenta annos? Não.

--Lembro-me eu. Faz hoje mesmo quarenta e dois annos que, mais cêdo do
que estas horas, vieste ter commigo aqui a casa. Tinhas pouco mais ou
menos a idade que hoje tem teu filho Angelo. Meu pae saíra; julgámos nós
ambos boa a occasião de levar a cabo um projecto que havia muito tempo
traziamos na cabeça. Crescia a um canto do muro, além, á beira do poço,
uma pequena faia que alli não podia durar muito tempo; meu pae todos os
dias a ameaçava com a enxada e a custo a tinhamos defendido. Resolvemos
transplantal-a. Deitámos mãos á obra essa manhã, e, no fim de alguns
segundos, estava a faia mudada. Trouxemol-a para onde a deixassem em paz
os hortelões, e para junto da agua que ella já tinha procurado. Conheces
a arvore hoje?

--Não--disse o conselheiro, olhando em roda, como á procura de algum
pequeno arbusto.

--Olha que ha quarenta annos; a planta é hoje arvore. É esta a que me
encosto.

O conselheiro levantou então os olhos para os ramos vigorosos da arvore,
como se lhe parecesse impossivel ter sido removida para alli por suas
mãos.

--É singular como os annos correm, e as arvores crescem depressa--disse
elle, distrahidamente.

--Depois da nossa tarefa, sentámo-nos--proseguiu o herbanario.--Tu
ficaste, exactamente como estás agora, á beira d'este tanque. Então,
lembra-me bem; olhando para os ramos tenros d'este arbusto, que ainda
não sabiamos se viveria, tu disseste: «Fizemos uma obra que durará mais
do que nós.» E eu respondi: «Quem sabe? O machado vem, quando menos se
espera.»

--Como te lembras bem d'essas coisas!--disse o conselheiro, sorrindo
constrangidamente, porque não agourava bem do exordio que abrira a
entrevista.

--Ai, eu tenho boa memoria!

Houve um momento de silencio, que Vicente interrompeu subitamente,
dizendo:

--Mas a final o que te trouxe hoje aqui?

O conselheiro respondeu com resolução:

--Vêr-te, como disse, e ao mesmo tempo falar-te de um objecto grave.

--Sim? E commigo é que vens tratar os objectos graves?

--Por que não? sempre foste homem de bom conselho.

--Nem sempre, Manoel, ou nem sempre pensaste assim.

--Não poderás dizer que deixasse alguma vez de te respeitar. Os nossos
genios differem, os nossos diversos habitos da vida ensinaram-nos a
pensar diversamente a respeito de muitas coisas. D'ahi procedem
divergencias naturaes, que comtudo nos não obrigam a deixar de nos
estimarmos, julgo eu.

--Bem, então dizias tu que vinhas?...

--Trata-se de um negocio de muita importancia, Vicente.

--Dize.

--Responde-me primeiro: tens ainda animo para sacrificios?

--Pouco tenho que sacrificar.

--Tens, e é um sacrificio doloroso.

--Acaba.

--Trata-se de te desapossar d'esta casa e d'este quintal, para abrir por
aqui a estrada em projecto.

O herbanario, contra a expectativa do conselheiro, acolheu sem surpreza
estas palavras, e respondeu, com certa ironia:

--E para que me vens consultar? Posso eu oppôr-me a isso? Avisas-me para
eu me arredar a tempo da sombra d'estas arvores, mais velhas do que eu,
a fim de que não me esmaguem ao caírem decepadas? És generoso, Manoel,
em teres ainda em conta a vida de um homem inutil.

--Ahi estás já com as tuas recriminações. Acredita que eu...

--Não mintas, Manoel, não mintas. Ias dizer que não tinhas tomado parte
n'este projecto. Tem coragem e lealdade, homem, e dize tudo. Entre
mortificares o coração de um velho e pobre amigo e offenderes os
interesses de algum rico e poderoso influente, tomaste o primeiro
partido; e, como os differentes habitos de vida te ensinaram em muitas
coisas, como dizes, a pensar differente de mim, não déste a isso o nome
de ingratidão.

--Ouve.

--Sê franco, que eu te ouvirei.

--Pois bem, serei franco. Sim, confesso-t'o; era indispensavel que esta
estrada se fizesse. Bem o sabes. Estava n'isso empenhada a minha palavra
e a minha honra. Ha muito que os meus adversarios me fazem guerra por
causa d'ella. Trabalhei e consegui, apesar d'esta situação politica me
ser contraria. Tres traçados se offereciam. Um sacrificava uma grande
parte dos bens de meus filhos, de Angelo que não é muito rico, que está
no principio da existencia e que só Deus sabe se no decurso d'ella não
teria occasião de maldizer a imprevidencia de quem devera olhar por os
seus interesses. Querias que o sacrificasse? Sabes que os Brejos,
vendidos hoje, nada valiam; e que dentro em pouco tempo,
convenientemente trabalhados, podem ser de um valor importante. Querias
que o fizesse? ou não me desculpas por o não ter feito?

--Fizeste bem--respondeu o herbanario.

--O outro traçado cortava os bens do brazileiro Seabra. Conheces este
homem? Um elemento que, nas mãos de quem lhe saiba lisonjear e conduzir
a vaidade, pode ser de utilidade para esta terra; mas tambem uma cabeça
que, entregue a si, não faz coisa de geito. O homem oppunha-se
formalmente a esse traçado; se o não attendesse, declarava-se, por
despeito, no campo contrario ao meu. Se vencia (e algumas armas tem para
luctar), imagina a calamidade que seria para este circulo o confiar
áquellas mãos os seus destinos; vencido, era perder a esperança de tirar
dos bem fornecidos cofres, que o homem possue, alguma coisa mais util do
que um sino para a igreja ou vestimentas novas para as imagens dos
altares. Eu ando a catequisar o homem, para vêr se consigo d'elle uma
casa para escolas, melhor do que esse albergue que ahi temos, e um
estabecimento sericicola; se o desattendesse, lá iam as esperanças
d'estes melhoramentos tão uteis, e que o mais que nos poderão custar é
um diploma de visconde ou uma commenda. Sei que te não agradam estes
meios, porém olha que em politica são dos mais innocentes que podem
empregar-se. Já vês pois que o segundo traçado tinha desvantagens para o
circulo, por cujo interesse me empenho devéras; podes crel-o. Resta pois
o terceiro traçado que, lealmente o confesso, não era o melhor, nem
scientifica nem economicamente considerado; eu sabia de mais o que valia
para o teu coração o sacrificio que se te vinha exigir; eu mesmo possuo
memorias ligadas a estas arvores, e não ha homem que, aos cincoenta
annos, veja sem repugnancia desapparecerem os vestigios dos seus tempos
de infancia e de juventude; mas sabia tambem que tu eras uma alma
generosa e heroica, e que não duvidarias comprar, á custa das tuas dores
e saudades, um melhoramento para esta terra, que tanto amas. Esta
estrada, promettida ha tanto, e concedida ainda agora de má vontade,
corre risco de se não fazer, se, quanto antes, não principiarem os
trabalhos; a menor opposição dos proprietarios, o menor embargo
dilatorio, podem ser motivo para o seu adiamento, porventura indefinido.
Por isso tambem me animei, porque contava comtigo, Vicente. Enganei-me?

O herbanario estava cada vez mais pensativo.

--Pensaste bem. A velhice é assim; e eu queria dar mais importancia a
dois annos de vida que me restam, do que á vida nova que vae haver para
esta terra. Fizeste bem.

--Esperava ouvir isso mesmo de ti, Vicente. Além de que, dissipa as
apprehensões com que estás; em toda a parte terás arvores...

O herbanario interrompeu-o:

--Se não entendes o amor que eu tenho a estas, não faças por
consolar-me, Manoel, porque me affliges mais.

--Porém deixa-me dizer-te, Vicente, que no Mosteiro, ou em qualquer das
nossas propriedades, tens sempre um logar vago á tua espera, tanto á
mesa, como ao canto do fogão, e amigos que te receberão com prazer.

--Não receio ficar sem abrigo, Manoel. Em cada choupana de pobre teria
tecto e pão. Conto com a colheita de algum bem que semeei.

--Eu farei com que o contracto da expropriação seja o mais favoravel
possivel. Vejamos, em quanto avalias...

--Não falemos n'isso. A avaliar por o que eu lhe quero, ninguem m'o
pagaria; a não attender a isso, tudo será pagal-o bem.

--Mas...

--Não falemos n'isso, homem. Tenho medo de que estas arvores me ouçam
propôr o preço por que as vendo. Se alguma coisa posso pedir-te,
então...

--Tudo. Dize em que te posso servir.

--Peco-te que decidas a pretenção d'aquelle pobre rapaz, de Augusto; que
te lembres um dia de que aqui na aldeia ha um homem, que tem vinte
annos, um coração e uma cabeça como tu sabes, e que de ti e dos teus, da
gente que dá e vende graças, honras e empregos, só quer um favor... mais
uma justiça: lembra-te d'isso.

--Falas do despacho effectivo para professor? É uma coisa facilima; mais
que elle queira... E antes elle quizesse mais; esse rapaz perde por
modesto. Acredita, ás vezes é mais facil servir os ambiciosos. Nem eu
sei o que tem empatado esse negocio. É certo que ha um competidor, por
quem alguem trabalha; mas não importa; conta com isso, como negocio
concluido.

--Emquanto não vir...

--Hoje mesmo escrevo para Lisboa. É só isso que pedes? Vê lá.

--E que me deixes agora só.

--E não me ficas querendo mal, Vicente?

--Não. Estou a acreditar que tiveste razão, ou pelo menos que suppões
que a tens. Basta-me isso para te perdoar.

--Vêr-te-hei no Mosteiro antes de partir? Depois do dia de Reis volto a
Lisboa, e só tornarei para a campanha eleitoral.

--Não prometto.

--Adeus.

O conselheiro estendeu a mão ao herbanario, que não retirou a sua, e
partiu.

--Está feito!--ia pensando o conselheiro á saída--não foi tão difficil
como julgava. Está razoavel o homem. Quem o viu e quem o vê! O que faz a
idade! Bem! Agora é apressar os trabalhos para antes das eleições, a vêr
se acalmam algum fermentosito de opposicão, que por ahi possa haver, que
pequeno será.

N'estas cogitações chegou á igreja. Magdalena esperava-o no adro.

--Então?--perguntou ella, com anciedade.

--Tudo está remediado; entendemo-nos perfeitamente--respondeu o
conselheiro, com manifesta satisfação.

--Devéras! Eu logo vi que o pae havia de ceder!--exclamou Magdalena, com
alegria.

--Como ceder?--tornou o pae.--Elle é que foi mais condescendente do que
eu esperava. Não oppôz a menor resistencia, nem se queixou muito
amargamente.

--Pois consentiu?!

--Sem grande custo, ao que parecia.

--Ó meu Deus! meu Deus! agora é que eu temo devéras. Pobre tio Vicente!
assusta-me isso que diz, meu pae!

--Ora vamos; a tua imaginação é que te illude. Mas deixa-me aqui falar
com o morgado das Perdizes e com o brazileiro, que julgo que teem que me
dizer. Vae para a igreja, que eu vou já ter comvosco.

E separando-se da filha, o conselheiro dirigiu-se ao grupo, em que
estavam aquellas duas notabilidades.

--Dou-lhes uma boa nova, meus senhores--disse o conselheiro, depois de
cumprimental-os--dentro em pouco temos os alviões a trabalhar cá na
terra. Estive agora com o Vicente; receei resistencias da parte do
homem, que nos obrigassem a expropriações judiciaes, sempre demoradas.
Mas não, achei-o nas melhores disposições; e assim, dentro em poucos
dias...

--Mas, para deante da casa d'elle, talvez os outros proprietarios não
sejam tão doceis--lembrou o brazileiro.

--Bem sabe que são terras insignificantes, cujos possuidores com pouco
se contentam.

--Os antigos possuidores talvez se contentassem com pouco--disse o
brazileiro, sorrindo velhacamente--mas os modernos...

--Pois mudaram de senhorio?

--Por contracto de venda assignado e legalisado hontem mesmo.

--E quem os comprou?

--Este seu criado.

O conselheiro teve vontade de o esganar; conteve-se, porém, dizendo:

--Tanto melhor; quero-me antes com proprietarios illustrados e
independentes, que comprehendam a importancia dos melhoramentos
publicos, do que...

--Isso historias, meu caro amigo; em primeiro logar estão os
melhoramentos particulares. Eh, eh, eh.

--De certo que não ha de querer pôr estorvos a uma empreza como esta.

--Estorvos, não, mas emfim... Amigos, amigos, negocios á parte.

O conselheiro sorriu, emquanto que interiormente mandava ao diabo o
espirito mercantil e interesseiro do seu antigo condiscipulo.

--Pode-me dar duas palavras, sr. conselheiro?--requereu do lado o sr.
Joãozinho das Perdizes.

--Mil que pretenda--acudiu o conselheiro; e tomando o braço do morgado
afastou-se do grupo.

--Eu tenho a pedir-lhe um favor--principiou o morgado.-- Eu, como sabe,
interesso-me muito pelo mestre-escola do Chão do Pereiro, que quer vir
ensinar para aqui. Este negocio está empatado, como sabe; por isso
queria que o senhor escrevesse para Lisboa a este respeito.

--Pois sim, mas...--fez-lhe notar o conselheiro--não sabe que é Augusto
o outro concorrente?

--Então que tem isso?

--Não lhe parece que seria uma injustiça? Um rapaz de merecimento, como
elle é, aqui da terra, que já exerce o emprego ha tres annos e com tanta
intelligencia? e haviamos de...

--É verdade,--atalhou o outro--pois isso é verdade, mas... Emfim, elle
que passe para outra parte.

--Mas se o rapaz quer isto?

--Quer! quer!... tambem o outro quer. Ora essa é fresca. E vamos, sr.
conselheiro, a gente tambem não ha de estar só a fazer favores, sem os
receber quando os pede. Com este já são tres. Pedi-lhe para o meu tio
abbade ser conego; foi tanto conego como eu. Pedi umas caudelarias lá
para a freguezia... estou á espera d'ellas... Ora isto não se faz. O
senhor sabe que eu lhe tenho vencido as eleições com a gente da minha
freguezia, que vae para onde eu a levo. Pois agora não sei o que será. A
não se decidir este negocio depressa...

--Ora não será isso motivo para tanto.

--Com certeza que é--insistiu o sr. Joãozinho.--Então digo-lhe mais: a
mim já me falaram. Ha ahi alguem que não desgostaria dos votos de que eu
disponho, e votar pelos que já estão no poleiro não sei se lhe diga que
não é peor.

O conselheiro, mortificado como estava, disse, sorrindo:

--Não posso convencer-me de que o meu amigo seja capaz de fazer isso por
qualquer causa que possa dar-se. Mas deixe estar que, em relação ao que
me diz, eu verei.

--Mau! Não é «eu verei». Então falo-lhe claro. Se d'aqui até ás eleições
não estiver feito o despacho, não conte commigo.

--Mas quem lhe diz que não ha de estar?

--Pois lá isso...

--Socegue. Hoje mesmo escrevo para Lisboa.

--Bem.

O sino tocava a chamar para a festa.

Terminou o dialogo.

--O peor--ia pensando o conselheiro--o peor é que prometti ao Vicente
que apressaria o despacho de Augusto. Não tem dúvida; é tão magra a
posta, que não vale a pena disputal-a. Para Augusto arranjarei alguma
coisa melhor. É preciso ter ambição por elle. Se elle quizesse ir para
Lisboa?... Mas, pelo que me disse este basbaque, já se maquina no campo
contrario! Hei de sondar o Tapadas, a vêr o que sabe.

Estas conferencias com o brazileiro e com o morgado tinham mortificado o
pae de Magdalena a ponto de não conter um movimento de impaciencia,
assim que viu que o Pertunhas se approximava d'elle, e, á fôrça de
cortezias e cumprimentos, lhe pedia um momento de attenção.

Sabidas as contas, tratava-se do tal emprego de recebedor, que o
latinista com tanto ardor namorava.

O conselheiro descarregou sobre este pouco influente eleitor o mau humor
que os outros lhe causaram, e respondeu desabridamente:

--Ora adeus! O senhor é uma sanguesuga que se não farta de chupar.
Contente-se com o que tem; vá conjugando o _laudo, laudas_, que outros,
com mais merecimentos, nem isso conseguem; e deixe-me.

O mestre Pertunhas ouviu com humilde sorriso a admoestação, e curvou-se
para deixar passar o conselheiro.

Mas lá comsigo dizia:

--Sim? Elle é isso?! Pois veremos se a sanguesuga te não pica.

E entrou tambem para a igreja, com não muito christãs disposições de
espirito.




XVIII


Do dia de Natal ao dia de Reis passou o tempo para o conselheiro em
visitas ás freguezias e aos influentes d'aquelle circulo eleitoral,
visitas a que o acompanhava Henrique de Souzellas, que tomava parte, com
gôsto, n'estas excursões politicas.

Em casa do sr. Joãozinho das Perdizes, na freguezia de Pinchões,
passaram elles um dia. Nos solares do morgado tudo era desordem e
desmazelo; a cada passo se tropeçava n'um podengo ou se trilhava a cauda
a um perdigueiro. Henrique sustentou uma verdadeira lucta com o
proprietario, para esquivar-se a engulir todas as enormes dóses de carne
de porco e de vinho, com que elle, á viva fôrça, o queria regalar.

No quarto em que os hospedes pernoitaram estavam amontoados no meio do
chão uns poucos de alqueires de milho e de castanhas, e aos pés dos
leitos dormiram enroscados dois galgos, que elles não conseguiram
desalojar, e que toda a noite os incommodaram com latidos ao menor rumor
que escutavam fóra.

Henrique lamentou a influencia eleitoral do morgado das Perdizes, que o
obrigava a esta noitada.

Outro dia jantaram em casa do brazileiro, que lhes mostrou toda a sua
propriedade, tendo Henrique de obrigar a sua eloquencia a esgotar-se em
affectadas exclamações, deante dos prodigios de mau gôsto reunidos alli.

As estatuas de louça, os alegretes de azulejo, os arcos feitos de cana,
por onde se entrelaçavam magras trepadeiras; um pequeno modelo de
fragata brazileira com tripulação de altura dos cestos de gavia,
fluctuando n'um tanque circular; uma gruta estucada de azul e com
assentos de palhinha, para onde vinha ler as folhas o sr. Seabra, eram
as principaes maravilhas do jardim. Nas salas mobilia rica, mas vulgar;
lithographias coloridas em custosas molduras douradas; bordados,
diplomas de socio de não sei quantas sociedades brazileiras; tudo
encaixilhado, e no logar de honra a estampa das capellas do Bom Jesus de
Braga. Á impertinencia de admirar estas preciosidades accrescia a de
ouvir e de ter de achar graça a um papagaio que cantava o hymno
brazileiro.

Henrique saíu de lá exhausto de paciencia.

Com estas visitas politicas, passou, como dissemos, todo o periodo das
festas do Natal, sem que entre as personagens da nossa historia
occorresse coisa que mereça nota.

Entre Magdalena e Henrique mantinha-se a mesma lucta moral; nem um nem
outro recordavam declaradamente a scena nocturna, em que tão acerbas
palavras se haviam trocado. Augusto não voltára ao Mosteiro desde então.
Era tempo de férias para as creanças, o que fazia natural esta ausencia,
contra a qual Angelo em vão protestava. Magdalena nunca porém alludia a
ella. Christina passava o tempo, querendo-se mal por a sua timidez, e de
quando em quando amuando de ciumes com Magdalena, que ria d'elles e os
dissipava com uma palavra.

Chegou emfim o dia de Reis, aquelle em que devia realisar-se no pateo do
Mosteiro o auto que, havia muito, mestre Pertunhas andava ensaiando.

Henrique e D. Dorothéa vieram jantar ao Mosteiro, e ficaram para
assistir á solemnidade popular.

Já por vezes temos ouvido falar n'este auto, que promettia ser coisa
memoranda nos annaes dos festejos publicos da terra. Havia mezes que o
sr. Pertunhas esgotava os thesouros da sua sciencia dramatica a
ensaial-o, e vimos com antecipação andar Ermelinda decorando a parte da
Fama, que lhe competia desempenhar.

Estes autos e entremezes, que nas aldeias se representam, são como os
restos grosseiros que da nossa arte primitiva a varredura estrangeira
deixou ficar pelo chão.

Não obstante as extravagancias e as modelações toscas e risiveis de
muitos, é certo que nos mostram que a Euterpe rustica tem conservado
mais fiel a indole peninsular, do que sua irmã, a civilisada musa das
cidades, a cujo paladar já sabem mal as popularissimas redondilhas, tão
apreciadas ainda na Hespanha.

Em occasiões de festa levanta-se em qualquer terreiro ou pateo de quinta
um tablado; veem adornal-o as mais vistosas colchas de chita, das quaes
tambem se formam os bastidores; alugam-se nos depositos mais modestos da
cidade ou villa proxima vestidos de reis, de principes e de guerreiros,
em que se combinam os elementos de épocas e de nacionalidades
disparatadas, e perante uma plateia rustica, ao ar livre, como no
theatro antigo, desfiam-se em cantada choradeira as sentimentaes
peripecias da vida de qualquer santo, ou, entre gargalhadas, os
episodios comicos do algum enredo popular.

A circumstancia de ser o auto d'esta vez desempenhado no pateo do
Mosteiro, e que fôra em parte por deferencia ao deputado do circulo, em
parte por conveniencia dos emprezarios, pela apropriação do terreno a
todos os effeitos, e pela ajuda de custo, que sempre em taes casos
recebiam de s. ex.^a, essa circumstancia, dizemos, augmentava o numero
de espectadores.

Das janellas do Mosteiro gosava-se, como de um camarote de frente, do
espectaculo popular.

O terreiro era destinado para o povo, em grande parte attrahido tambem
pela pipa de vinho, que o conselheiro n'estes dias mandava pôr á
disposição dos seus representados.

Desde a vespera havia grande agitação e azafama no pateo do Mosteiro. Os
artifices levantavam o tablado scenico; pregavam e despregavam taboas;
serravam barrotes; os directores, e á frente d'elles o infatigavel e
imaginoso Pertunhas, davam ordens contradictorias; e os curiosos
estacionavam em magotes, difficultando tudo, censurando o que viam
fazer, e aventando alvitres absurdos.

Herodes, o pae de Ermelinda, andava em brazas. Approximava-se a hora dos
seus triumphos. O genio dramatico palpitava n'elle, cheio de, vida e de
enthusiasmo.

Ia mais uma vez pousar nos hombros o manto da realeza judaica; brandir a
espada infanticida, carregar aquelles sobrecenhos com que fazia chorar
as creanças e estremecer as mães; ia resuscitar Herodes, o déspota
legendario.

Trabalhando e suando, resmoneava os versos do seu papel de tyranno e
insensivelmente fazia gestos e esgares promettedores de effeitos
scenicos futuros.

Os seus collegas eram menos ardentes pela arte. O Herodes olhava-os com
a sobranceria de um Talma, e muitas vezes lamentava sinceramente a
ausencia de vocações dramaticas que auxiliassem a d'elle.

E não sorriam os leitores a esta velleidade artistica do recoveiro; alli
havia fundamentos para ella. O Cancella era o minerio de um tragico,
deixem-me assim dizer. No meio de uma escoria de rusticidade continha
abafado mineral de lei.

Tivessem sido outras as contingencias da sua vida, vêl-o-hiam porventura
arrebatar plateias inteiras com as revelações do genio, que ás vezes
n'um grito, n'um sorriso, n'um gesto se manifesta; mas ainda assim
inculto, não mentia n'elle o verdadeiro enthusiasmo, o sentimento da
arte que lhe afogueava as faces e os olhos, e lhe animava o gesto no
calor do desempenho; não mentia aquella embriaguez que lhe causavam os
applausos da multidão. Não ha verdadeiro genio artistico, que se não
namore do publico, embora o saiba caprichoso, inconstante e ingrato. O
homem, indifferente aos applausos das turbas, nunca será poeta nem
artista de verdadeira inspiração. O amor vivo da gloria adeantou a meio
caminho os emprehendedores d'esta nova conquista de vellocino.

Ermelinda, essa tremia com a commoção de artista novel, á lembrança do
espectaculo, em que pela primeira vez ia entrar.

As senhoras do Mosteiro, ou antes Magdalena e Christina, tinham querido
encarregar-se da _toilette_ da Fama.

Logo de manhã fôra pois a pequena Linda para o Mosteiro, e passava das
mãos de Magdalena para as de Christina e das d'esta para as d'aquella, e
sempre com recato preciso para que ninguem mais lhe puzesse os olhos,
pois que pretendiam reservar para a occasião a surpreza toda. Contra a
curiosidade de Angelo é que mais tiveram que luctar.

Logo depois da uma hora da tarde começou a povoar-se o pateo de
espectadores e, os actores a reunirem-se na parte do tablado, occulto
por as colchas de chita aos olhares da multidão.

Principiava a ensaiar os instrumentos o pessoal da philarmonica,
dirigida por mestre Pertunhas, cuja trompa celebre servia tambem de
batuta.

Chiava já o clarinete, assobiava o flautim, roncava o figle, uivava a
flauta, e todos promettiam aos ouvidos a mais inharmonica das torturas.

Mestre Pertunhas, distribuidas as partituras, e vendo todos a postos,
deu o signal de principiar.

Um, dois, tres; um, dois--dizia ou fazia elle com os olhos e com os
movimentos da cabeça e pés, porque a bôca, essa já estava applicada á
embocadura da trompa. O segundo «tres» era o tempo fatal. Os musicos,
porém, ou por distrahidos, ou por a commoção propria dos actos solemnes,
não corresponderam ao signal, e a nota furiosa, extrahida da trompa do
mestre Pertunhas, achou-se só no espaço, e fugiu envergonhada a
esconder-se na concavidade dos montes vizinhos, deixando na passagem os
ouvidos quasi em sangue.

Este successo foi saudado com uma gargalhada geral, que redobrou quando
as notas dos outros instrumentos, vendo partir desacompanhada a nota
chefe e reconhecendo a falta, saíram alvoroçadas atraz d'ella, cada uma
por sua vez. Foi uma debandada musical de indescriptivel effeito.

O auditorio, o sempre implacavel auditorio popular, apupava. Henrique e
o conselheiro riam, os actores do auto espreitavam detraz da cortina a
vêr o que era aquillo. Mestre Pertunhas barafustava por entre os da
banda, berrando, ralhando, cheio de cólera e de razão.

Uma symphonia com quatro mezes de ensaios! A falar a verdade!

Ordenadas as coisas, rompeu emfim a symphonia.

Os typos dos artistas, marcialmente uniformisados com fardas que fôram
de um corpo de infanteria, eram para tentar o lapis de um Cham ou
Gavarni. Alli um gordo e rubicundo merceeiro, que ameaçava estalar todas
as costuras da farda, primitivamente feita para um individuo de metade
das dimensões d'elle, com as faces insufladas, a testa contrahida e os
olhos injectados para extrahir de um obsoleto serpentão, que embocava
com arreganho assustador, as mais destemperadas notas; acolá um flautim,
de braços compridos e tibias esquinadas, com meio braço fóra das mangas,
com meia perna de fóra das calças, figura em que havia não sei o que de
onomatopaico, tão bem se casava com os silvos, horripilantemente agudos,
que arrancava do exiguo instrumento. O artista pratilheiro era um velho
recurvado, de nariz adunco, faces escavadas, olhos de coruja, suissas em
tufos no meio das faces, e oculos na ponta do nariz. Um zarolha evacuava
os pulmões dentro de um figle; um corcovado e semi-anão repicava os
ferrinhos com uma prodigalidade assustadora; as baquetas da caixa
estavam confiadas ás mãos callosas de um moço de lavoura, de rêpas
hirsutas a cobrir-lhe a testa, olhos esbogalhados e labio pendente. E,
no meio d'estas e analogas figuras, a alma de tudo, o sr. Pertunhas,
torcendo-se, batendo com o pé, suando, arregalando os olhos,
piscando-os, marcando o compasso com a cabeça armada de enorme trompa,
que lhe dava então não sei que apparencias de proboscidiano.

Tal era a philarmonica da terra, que Henrique, o conselheiro e toda a
familia do Mosteiro escutavam das janellas, e á qual tiveram de
dispensar elogios, que o regente acceitou com a modestia de artista que
se conhece. Henrique foi quem mais sublimes esforços fez para soffrer
com paciencia aquellas torturas acusticas. Elle que nem á orchestra de
S. Carlos perdoava uma desafinacão, obrigado a escutar com um sorriso
aquella banda pandemonica!

--Coragem! coragem!--murmurava-lhe o conselheiro, impassivel como
perfeito politico.--Nas occasiões é que os homens se conhecem! Coragem.

--É em extremo forte a provação!--respondia-lhe, gemendo, Henrique.

--Firmeza; que a pallidez do susto nos não atraiçoe--continuava aquelle.

Isto obrigava Henrique a nova lucta; d'esta vez para manter a seriedade.

A final calou-se a banda, sem que se pudesse dizer o que tinha querido
tocar. Succedeu-lhe um intervallo de silencio. Passou pela assembleia o
estremecimento que precede as occasiões solemnes. Os olhares de tantos
espectadores fixavam-se na coberta de chita que já se via ondular.
Ouviu-se um surdo rumor, significativo de anciedade, como se fôra a
resultante do palpitar de tantos corações.

Appareceu emfim a primeira personagem do auto. Era o Herodes.

A alta e membruda figura do pae de Ermelinda, com os seus hombros
largos, as faces injectadas, o olhar faiscante, os cabellos e barbas
negros e espessos, o andar grave e pesado, sob o qual gemiam as
juncturas do tablado, o timbre volumoso de voz e certo arreganho
selvatico, com que falava e gesticulava, imprimia na multidão um quasi
pavor, que nem o conhecimento intimo que tinha do homem conseguia
dissipar.

Herodes trazia manto real e turbante musulmano, borzeguins vermelhos,
corpete de velludilho azul, calções golpeados. Pendia-lhe á cinta um
alfange e uma pistola; ao peito algumas condecorações.

Apparencia geral, a dos prophetas nas procissões.

O auto rompe com um monologo de Herodes.

O tyranno da Judéa, sobresaltado e meditabundo, faz considerações
substanciosas sobre a condição dos reis em geral e a sua em particular.
Principia elle assim:


  Não ha vida mais inquieta,
  Nem mais cheia de cuidados,
  Do que a de um rei que pretende
  Conservar os seus estados.


O Cancella dizia isto em tom pausado, com os braços cruzados, medindo o
palco a passos largos.

Continuavam varias proposições de physiologia do throno, e, do caso
generico baixando ao particular, da these á hypothese, principia a falar
de si. Cancella, conhecedor dos segredos da arte, começava aqui a dar
mais vida á recitação, como para mostrar o maior empenho que tomava a
alma n'este capitulo da especialidade. Referia-se aos annuncios da vinda
do Messias, e inquietava-se; a maré das paixões subia; a voz
traduzia-lhe o crescimento. Depois seguia-se um como reflexo de
desalento, para com mais violencia se exaltarem os affectos. Nos
paroxismos da furia, o Cancella, dando toda a fôrça á sua voz potente,
soltava berros, que participavam da natureza dos do tigre.


  Começarei desde logo
  A publicar leis tyrannas,
  Que aterrem os meus montes,
  Os palacios e as choupanas.

  Será tal o meu furor,
  Tal a minha indignação,
  Que ninguem se atreverá
  A conquistar meu brazão.


O interesse do espectaculo augmentava. Os olhos do publico principiavam
a fixar-se. A excitação de animos a que os transportes de Herodes,
inquieto pelo seu brazão, levára o publico, foi serenada por um chorado
côro de anjos que cantavam atraz da cortina:


  Não temas, ó rei cruel,
  Que te conquiste o docel.


Herodes pára aterrado, ao escutar estas vozes, apesar de lhe afiançarem
a segurança do docel, pela qual elle parecia receioso. Vacilla,
entra-lhe o mêdo no coração, mêdo que procura afugentar com bravatas, em
que ameaçava pôr tudo por terra. O Cancella exprimia tudo isto com
abundancia de gestos e de movimentos.

Aqui é que subia a toda a altura o genio dramatico do Herodes. Para este
final do monologo reservava todos os segredos da arte; apoderava-se
d'elle a musa do palco; desappareciam-lhe deante dos olhos os
espectadores, via o mundo; perdia a consciencia da individualidade
propria; suppunha-se Herodes; e até... ó fôrça da arte!
offuscavam-se-lhe os bons instinctos da indole generosa e quasi chegava
a ter verdadeira ancia de sangue e carnificina. O publico era dominado
por o artista, e n'um d'estes silencios que todos prevêem se
desencadeiará em brados de enthusiasmo e phrenesi, escutava-lhe as duas
quadras finaes:


  Porém o furor me incita!


Dava, ao dizer isto, tres passos á frente, desembainhava o alfange e
abria os braços. Tinha o que quer que era de Adamastor, visto assim.


  O brio dá-me ousadia.


Levantava os braços acima da cabeça, espalmando a mão esquerda.


  Para defender o sceptro
  A favor da tyrannia!


Aqui agitava os braços como azas de moinhos.


  Será cada lança um raio!


E, dizendo isto, tinha nos olhos o fulgurar do relampago.


  Cada espada um corisco,


E o braço, armado do alfange, baixava com a rapidez do simile.


  Cada soldado um trovão,


E trovejava-lhe a voz.


  Cada golpe um basilisco!


E na posição e gesto em que ficava, não era menos terrivel e pavoroso do
que a fera da comparação.

Uma tempestade de applausos rompeu de todos os lados; só as mulheres e
as creanças ficaram silenciosas e immoveis, porque lhes parecia um
peccado applaudirem Herodes. E não sei se, o que fizera menos
escrupulosa n'este ponto a parte masculina, fôra o exemplo partido das
janellas do Mosteiro; porque é certo que em geral os tyrannos no palco
são admirados, mas raras vezes applaudidos.

Herodes, depois de agradecer os applausos publicos, senta-se e segue o
auto.

Dariamos de bom grado na integra tão importante peça dramatica ou pelo
menos circumstanciada noticia d'ella, se não receiassemos o recheio
excessivo para esta ordem de alimentos litterarios, que se querem leves.
Não podemos comtudo resignar-nos a passal-a por alto inteiramente.

Além do Herodes, são figuras do auto: o caixeiro do dito--assim se lhe
chama pelo menos no folheto, o que dá a entender que Herodes era homem
de escripturacão regular,--o capitão das tropas reaes, os tres reis
magos, o anjo, a Virgem, S. José e o menino Jesus, a criada de Santa
Isabel, dois cidadãos de differentes cidades, o criado de um d'elles, a
Fama e duas creanças, chamadas Giraldinho e Amorzinho.

As scenas passam-se successivamente nos paços de Herodes, na lapa de
Belem, e em diversas paragens da estrada do Egypto.

A imaginação do espectador era a encarregada da mudança do scenario.

O poeta corre toda a clave das paixões humanas, vibra todas as cordas do
coração.

Ao terror despertado por Herodes e suas ameaças, succede a sympathia
pelos tres reis, personificados d'aquella vez por tres moços de lavoura,
de manto, luvas de algodão e turbante, os quaes, em lamuria nasal e com
profusão de _xes_, cantarolavam as quadras do seu papel, em uma das
quaes, patrioticamente anachronica, pediam aquelles bons magos ao Deus
nascido a protecção para Portugal.

Excitava a piedade a familia sagrada. O velho S. José, como carpinteiro
que era, apparelhava um madeiro a enxó e plaina, emquanto a Virgem
dormia. A Virgem era um rosado barbatolas, em quem principiava a
despontar o buço da puberdade. O anjo apparecia, como nas procissões,
carregado de cordões de ouro.

No transe da fugida para o Egypto ha uma scena da mais que homerica
simplicidade. Quando os sagrados esposos estão para partir, chega a
elles a criada de Santa Isabel, prima da Senhora, outro mocetão em
trajes femininos, e da parte da ama offerece aos foragidos algum
dinheiro e refrescos; pedindo desculpa por não poder dar quanto queria,
o que tudo a Senhora agradece com as phrases da tarifa, recommendando-se
muito a sua prima.

O comico caminha ao lado do pathetico, como no drama moderno. Ha
personagens, reflexões e scenas sempre apreciadas e já aguardadas pelo
publico, que as saúda com sinceras gargalhadas. D'estas a principal é
evidentemente a que se passa entre um cidadão, de quem a sacra familia
recebe gasalhado, e o criado do mesmo.

É uma scena de disputa domestica, cheia de allusões satyricas á classe
dos criados de servir, a qual era sempre applaudida. O cidadão, depois
de mostrar ao criado, de relogio em punho--anachronismo shakspeareano--a
demora excessiva que elle tivera fóra de casa, diz para o auditorio:


  Não se pode ter criados
  Hoje em dia, n'esta vida,
  Ou quem houver de os ter
  Não lhes deve dar guarida.


N'este ponto do auto houve aquella tarde um pequeno, mas gracioso
episodio.

D. Victoria, que achava esta a parte melhor pensada e mais conceituosa
de toda a peça, de afinada que estava pelo seu modo de sentir, não pôde
conter-se, que não exclamasse:

--Aquillo é que é uma verdade!

A espontaneidade da reflexão fez rir a familia do Mosteiro, riso que
teve ecco em baixo, entre o povo, que enchia o pateo.

A scena comica prolonga-se, mandando o patrão distribuir pelo caixeiro o
rapé ao auditorio; outra liberdade que produzia sempre o maior effeito.

O criado trazia uma enorme tabaqueira, um verdadeiro bahu, e offerecia
pitadas ao publico, dizendo:


  O meu amo, com ser rico,
  Gosta d'estas patuscadas.
  Nunca os senhores tiveram
  As pitadas tão baratas.


Os risos e as galhofas desordenaram, segundo o costume, por muito tempo
a regularidade do espectaculo. Todos tiravam pitadas, todos falavam,
riam e guinchavam, todos fingiam espirrar e não se ouvia senão: «Dominus
tecum» e «Deus te salve» no meio de toda aquella confusão. Porém a um
signal de mestre Pertunhas, que deixou por um pouco folgar o espirito
das massas, tudo entrou na ordem.

Preparava-se nova transição dramatica. O criado, que vae a saír, volta,
dizendo com gesto espantado e tom exclamatorio:


  Jesus, Jesus, que é isto?
  Jesus do meu coração!
  O signal da cruz me livre
  De tão terrivel visão.


Era a Fama que apparecia.

Ermelinda entrava em scena.

No meio d'aquellas figuras rusticas, e mais ou menos grosseiras, que
entravam no auto, a figura delicada e angelica de Ermelinda produzia tão
completo contraste, que um murmurio significativo de profunda sensação
correu o auditorio.

Ermelinda estava surprehendente de formosura. Haviam-se associado ao que
era n'ella dotes naturaes os cuidados de Magdalena e de Christina, para
lhe darem a apparencia superior.

O proprio Henrique, que até alli estivera commentando maliciosamente o
espectaculo, não pôde reter uma exclamação de surpreza, que foi
secundada por o conselheiro. É que parecia que um verdadeiro anjo
occupava agora a scena.

A simplicidade do vestir concorria para esse effeito.

Ermelinda trazia uma longa tunica alvissima e de amplas mangas, que lhe
descia solta dos hombros sem sacrificar a menor belleza dos graciosos
contornos e esbeltas proporções d'aquella creança, que promettia ser uma
mulher esculptural. Os cabellos, cuja côr loura era de uma pureza rara,
caíam-lhe desatados e profusos sobre os hombros, brilhando como fios de
ouro, na alvura dos vestidos; a fronte ficava-lhe livre, e o oval das
faces sobresaía n'aquella moldura natural. Com os braços descaídos, os
dedos encruzados, e a cabeça ligeiramente pendida, em expressão de
melancolia, e os olhos elevando-se para procurarem os de Magdalena e de
Christina nas janellas do Mosteiro, mas que de longe parecia procurarem
o céo, Ermelinda adeantava-se vagarosa, serena, tendo no gesto o encanto
da innocencia, tendo nos passos a hesitação da timidez. Havia tanto de
sobrenatural no vulto candido, franzino e melancolicamente suave
d'aquella creança, que o actor que estava em scena não teve de simular
espanto, porque o sentia real, e não podia desviar os olhos d'aquella
apparição.

O silencio era profundo; parecia que em todos estava actuando a fôrça de
um encantamento.

Como na antiga tragedia, o facto principal da acção, a carnificina dos
innocentes, passava-se fóra de scena. Á Fama competia narral-o.

Ermelinda, a meio do palco, parou. Com uma voz argentina e leve tremor
de commoção, principiou lentamente e no meio de um religioso silencio a
recitar os versos da narração, os quaes, como o leitor já sabe, não eram
os do auto, que mestre Pertunhas se estafára a ensaiar.

Os versos que Ermelinda recitou diziam assim:


  Desci dos celestes córos,
  Por Deus mandada a escutar
  Da infancia as queixas e os choros,
  Para lh'os ir confiar.

  Desci. Na terra, nos mares
  Tanta miseria encontrei.
  Que os meus magoados olhares
  Da terra e mar desviei.

  Desci. E tantos gemidos,
  Tão dolorosos ouvi!
  Que, turbados os sentidos,
  Quiz recuar... mas desci.

  N'esta colheita de dôres
  Pelo mundo todo andei,
  No pranto dos peccadores
  As minhas vestes molhei.

  Vagueando dias e dias,
  Chegára á Judéa emfim,
  Quando um clamor de agonias
  Veio de longe até mim.

  O sol, o sol inflammado
  D'estas terras orientaes,
  Tinha no disco afogueado
  Não sei que estranhos signaes.

  Soavam menos distantes
  Sinistros brados de dôr,
  Choros de mães e de infantes,
  Cantos de morte e terror.

  Vi anjos de azas nevadas
  Em bandos subir ao céo,
  Quaes pombas amedrontadas
  Fugindo á voz de escarcéo.

  «Onde ídes? Quem vos persegue?
  A que tormentas fugis?»
  Um, que triste o bando segue,
  Estas palavras me diz:

  «Somos as almas de infantes
  Mortos em guerra feroz;
  Inda das mães delirantes
  Nos chama a sentida voz.

  «Só a materna saudade
  Nossa carreira detem,
  Embora no céo, quem ha de
  Esquecer, o amor de mãe?»

  Disse e o semblante formoso
  Com as azas encobriu,
  E ao bando silencioso
  Silencioso se uniu.

  Eu segui. Na impia cidade
  Aterrada penetrei...
  Ai, da fera humanidade
  Os meus olhos desviei!

  Que scena! Corre nas praças
  Sanguinaria multidão,
  Como nuvem de desgraças
  Semeando a desolação.

  Cáem por terra sem vida
  Tenras creanças ás mil,
  E uma turba enfurecida
  Corre á matança febril,

  As mães pallidas, chorosas,
  Supplicam, pedem em vão!
  N'essas feras sanguinosas
  Não palpita um coração.

  Outras tentam em delirio,
  Os seus filhos disputar,
  E com elles no martyrio
  Gostosas se vão juntar.

  Sobre a terra ensanguentada
  Eu soluçando, ajoelhei,
  E de intensa dôr magoada,
  A Deus piedade implorei.

  Findava a prece, e uma estrella
  No horisonte despontou,
  Pura, scintillante, bella
  O caminho me traçou.

  Á humilde e escondida estancia
  Da venturosa Belem
  Cheguei; vi um Deus na infancia
  Nos ternos braços da mãe.

  Minha colheita de dôres
  N'aquelle berço depuz,
  Da humanidade aos rigores
  Pedi remedio a Jesus.

  No olhar do divino infante
  Raiou a luz e fulgor,
  Foi a aurora radiante
  Que annuncia um redemptor.


Não se descreve a impressão causada por estes versos, que assim
transformavam a Fama do auto no Anjo da guarda da infancia. Muitas
causas concorriam para produzir este effeito: a figura, a voz e o gesto
de Ermelinda, que lhe davam uma apparencia verdadeiramente angelica, e
depois aquellas palavras inesperadas, aquella exposição desconhecida e
em versos a que a melancolia da toada, em que eram recitados, parecia
augmentar a cadencia metrica. Emquanto debaixo da impressão d'aquella
voz sonora e infantil, ninguem procurava explicar o mysterio. Milagre
lhes parecia e quasi como milagre o acceitavam, e de ouvidos attentos,
collos estendidos e bôcas semi-abertas parecia recolherem, uma a uma,
aquellas palavras, como se de um verdadeiro emissario celeste as
escutassem. O tablado enchera-se pouco a pouco de gente, e ninguem dera
por isso. Os actores que estavam atraz da cortina tinham sido feridos
pelos primeiros versos, differentes dos que elles esperavam; isto
obrigou-os a espreitar. Depois, como arrastados pela magia d'aquella voz
e d'aquelle gesto, vieram adeantando-se, adeantando-se, e cêdo formaram
circulo á volta de Ermelinda. O primeiro da frente era o Herodes. O
espanto, os affectos, o orgulho de pae, a exaltação de artista
combinavam-se para dar-lhe ao rosto uma expressão quasi de extase.
Olhava para a filha como se a visse animada de inspiração divina.

Pertunhas, o ensaiador do auto, que franzira o sobr'olho, prevendo
trapalhada aos primeiros versos recitados por Ermelinda, agora, de bôca
aberta, era de todos o mais espantado. No Mosteiro só Angelo sorria,
elle só interpretava o milagre. Todos os mais escutavam silenciosamente
aquella voz de creança, que, em campo descoberto e no meio de tantos
espectadores, soava distincta e vibrante como se effectivamente tivesse
alguma coisa de sobrehumana.

Depois que ella terminou, persistiu por algum tempo o silencio, sem que
os espectadores pudessem voltar logo a si, nem os actores se lembrassem
de continuar o auto. Henrique foi quem primeiro rompeu este quasi
encantamento. Profundamente impressionado tambem por aquella scena,
exprimiu n'um «bravo» todo o enthusiasmo que sentia. Foi o signal.

O silencio degenerou na mais altisona ovação.

O Herodes esqueceu o papel que desempenhava, o caracter que tinha a
sustentar, a logica da situação, e tomando nos braços musculosos o corpo
debil e franzino da filha, levou-a em triumpho para a beira do palco; os
outros actores disputavam-lh'a; do pateo estendiam-se centenas de braços
para a receberem; das janellas do Mosteiro acenavam-lhe, victoriando-a,
os lenços das senhoras; os homens applaudiam-a com palmas. Herodes
parecia devorar a filha com beijos, afagal-a com lagrimas de enthusiasmo
e de paixão; e Ermelinda foi de braços em braços, entre beijos e afagos,
transportada do tablado para a sala do Mosteiro, onde não foi menos
calorosa a recepção.

Do auto ninguem mais se lembrou, e, apesar dos esforços do mestre
Pertunhas, todos o deram por terminado alli e prescindiram de vêr as
restantes scenas, com grande desgosto dos actores que entravam n'ellas.

O Herodes, ainda vestido de rei, andava como doido pelas salas do
Mosteiro. Seria para rir aquelle enthusiasmo, se não fôsse bastante
pathetico para commover.

--Mas como foi isto, meu Deus? Como foi isto? Que milagre foi este? Ai
que versos, Maria Santissima! Que versos! E como ella os
dizia!--exclamava elle, quasi convencido da milagrosa natureza da scena
que vira.

Magdalena, chamando Angelo de lado, perguntou-lhe:

--Foi Augusto que fez aquelles versos?

Angelo sorriu.

--Por que me perguntas isso a mim?

--Porque o deves saber.

--Então não crês no milagre?

--Responde.

Angelo ia a responder, quando Henrique disse em voz alta para o
conselheiro:

--Se eu digo a v. ex.^a que o Bernardim existe.

--Mas quem é?--perguntou o conselheiro.

--Não sei; porém posso afiançar a v. ex.^a que não são estes os
primeiros vestigios que encontro d'elle. As paredes das capellas dos
montes são as suas confidentes. Não está certa, prima Magdalena, de umas
quadras sentimentaes, que lemos na ermida da Senhora da Saude?

--Sim; recordo-me.

--Não acha entre essas e as do auto analogia de estylo, que a levem a
attribuil-as á mesma pessoa?

--Estou pouco habituada a analysar estylos, primo.

--Mas talvez este lhe seja habitual.

Magdalena fitou Henrique com um olhar de altivez, que o obrigou a
accrescentar:

--Por muito o vêr por ahi desperdiçado por paredes de capellas e ruinas,
e nos troncos das arvores.

Ermelinda foi de uma discreção impenetravel. Quando lhe perguntavam quem
lhe ensinára os versos, sorria, respondendo que não sabia, ou que não
podia dizel-o.

--Apostemos que n'isto entra Angelo?--disse o conselheiro.

O Herodes cada vez parecia mais convencido de que fôra pura inspiração.

Henrique, aproveitando uma occasião em que estava proximo da morgadinha,
disse-lhe ao ouvido:

--Parece-me que ia pôr o dedo no rouxinol silvestre, que tão bem canta
sem se mostrar.

--Sim?

--Não ha muitas noites que eu o vi vaguear n'estas immediações. Estas
aves melancolicas amam as inspirações nocturnas.

--Pois as noites nem sempre são boas conselheiras, primo. É a hora
favoravel á espionagem e ás... calumnias... Mas se sabe quem é, diga-o.
Aqui em minha casa e no seio de minha familia, é sempre bem recebida a
verdade. Não ha quem se tema d'ella.

E a morgadinha, dizendo isto, deixou-o desdenhosamente.

--D'esta vez foi de uma severidade!!--pensou Henrique.--Cada vez me
convenço mais de que o idyllio existe e que vae já muito adeantado. Mas
agora me lembro; e o meu duello com o Romeu, que nunca mais vi? Não foi
má tolice aquella minha! Preciso de procurar o homem para lhe dizer que
o caso não vale a pena.

O despeito de Magdalena pelas palavras de Henrique fôra d'esta vez mais
intenso; quasi chegou a fazel-a desesperar da tenção que alimentava
ainda, pois disse a Christina:

--Ai, filha, que não sei se deva curar-te antes a ti do que a elle.

--Que dizes?!

--Nada. Ha doenças que fazem desesperar os medicos.

Era já noite. Os grupos, que ainda depois do auto se conservaram no
pateo do Mosteiro, a brindarem a hospitalidade dos proprietarios, fôram
dispersando pouco a pouco.

A banda de mestre Pertunhas saiu tambem com o fim de se preparar para as
serenatas a casa do brazileiro e de varias personagens da terra, a quem
era devido o cantar os Reis.

Angelo saíra da sala. Fôra para o fim da rua de sobreiros, anterior ao
pateo da quinta, esperar por Ermelinda para lhe dizer adeus.

Á medida que a noite se cerrava, parecia que se estendiam as sombras á
fronte e ao coração do pobre rapaz.

Era a noite de Reis, a ultima dos dias de férias; na manhã seguinte
devia partir com o pae para Lisboa.

Que amarguras as d'estas ultimas horas! que intensas saudades não se
amontoam no coração das creanças ao expirar o termo d'esse feliz espaço
de tempo, que viveram para os carinhos da familia e para os folguedos
despreoccupados!

Percebe-se em nós mesmos aquella imminencia de lagrimas, que á menor
palavra rebentam.

Quem não terá recordações de infancia a falar-lhe d'isto?

O pateo despovoára-se de gente; através das vidraças da casa viam-se já
brilhar as luzes interiores. Com o olhar fito no chão, a cabeça
inclinada, Angelo permanecia immovel. Cortejavam-o, ao passar, homens e
mulheres, sem que elle désse por isso.

De repente voltou-se, porque ouviu atraz de si uns passos conhecidos.
Era Ermelinda, que voltava para casa. O pae ficára atraz a pôr em ordem
as roupas e mais objectos que serviram no auto.

--Esperava por ti, Ermelinda, para te dizer adeus--disse Angelo.

--Então vae-se embora?

--Vou ámanhã--respondeu Angelo, com a voz presa de commoção.

--Muito cêdo?

--De madrugada.

Os dois calaram-se por algum tempo, olhando para o lado.

--E agora quando volta?

--Eu sei lá? agora... só para agosto.

Novo silencio.

--Então... adeus...

--Adeus, Ermelinda.

E com a voz quasi sumida e os olhos ennevoados de lagrimas, Angelo
estreitou contra o peito aquella que de pequena tratára como irmã, e que
chorava ainda mais do que elle.

Que melancolico fim de dia tão alegre!

A este tempo uma sombra escura passou por elles e estacou.

--Ermelinda--disse logo a voz esganiçada e colerica, que saiu d'aquelle
vulto.

Ermelinda estremeceu ao ouvil-a.

Era a mulher do Zé P'reira que voltava das suas devoções e ficára
surprehendida com o espectaculo que vira. A assustadiça castidade
d'aquella matrona toda se alvoroçou com a tocante despedida das duas
creanças.

Ermelinda approximou-se, a tremer, da madrinha, que rudemente a agarrou
pelo braço e a levou comsigo.

Angelo esteve quasi resolvido a ir tirar das mãos d'aquella harpia a
innocente victima; mas a chegada de Herodes estorvou-o.

A sr.^a Catharina do Nascimento de S. João Baptista ia dizendo, ao levar
comsigo a afilhada:

--Que terão ainda de vêr meus olhos, meu Divino Pae do Céo? Que mundo
este de abominação, meu doce Jesus! Ó Virgem das Dores, isto é para se
vêr e não se crer! Uma creanca, uma creanca de dois dias, se pode dizer,
e já assim com a alma perdida! Ó meu Jesus crucificado!...

--Minha madrinha--dizia Ermelinda, chorando.

--Anda, anda, anda, minha amiga, que já os demonios saltam e riem de
contentes. Teu pae é que tem a culpa. Isto são lá modos? trazer-te por
entremezes, que são artes do demonio, e arredar-te da igreja, que é a
casa do Senhor! É a missa dos domingos, e acabou-se. Os resultados são
estes!... Ai, filha, que muita penitencia te é já precisa para salvares
a alma!

--Minha madrinha, minha madrinha, por as almas não me diga
isso--exclamava Ermelinda, aterrada.

--Os tres inimigos da alma te farão guerra, creatura, assanhados como
cães raivosos... Eu previa isto... É o lucro de andar por essas casas de
Satanaz, onde não ha religião nem temor de Deus... Ó meu divino Jesus, e
para isto tanto padeceste por nós! E nós tão pouco caso fazemos dos
vossos preceitos, meu doce Jesus, filho de Maria Virgem... Depois
queixamo-nos da vossa justiça, quando já ardemos nos fogos do
inferno...!

A pequena Ermelinda tremia cada vez mais.

A velha proseguiu, em todo o caminho, n'estas exclamações, bramando
contra o peccado, contra a familia do Mosteiro, que acoimava de herejes,
contra o pae de Ermelinda e contra esta, e, no seu fervor religioso,
desenvolvia sobre o thema do peccado dissertações não em demasia
apropriadas aos ouvidos de uma creança.

O resultado foi apoderar-se da pequena Linda um excessivo terror. Das
palavras da madrinha, que nem bem entendia, ficára-lhe uma horrivel
convicção de que tinha a alma perdida, e com lagrimas ardentes pagava a
pobre creança bem caro as alegrias d'aquella tarde, de que já tinha
remorsos. Este desalento e pavor quasi a fizeram doente.

Quando o pae voltou, estranhou-a. Elle, que vinha orgulhoso com os
triumphos proprios e com os da filha, sobresaltou-se ao abraçal-a,
Interrogou-a; pediu, ordenou; nada pôde saber que explicasse os
vestigios de lagrimas que descobria n'ella; se instava, provocava-lhe o
pranto; desistiu pois.

Pobre pae! não pôde dormir aquella noite! Logo de madrugada teve de
levantar-se, porque tinha de partir para o Porto em recovagem.

Deixou Ermelinda a dormir; não a quiz acordar; beijou-a na fronte
desmaiada, abençoou-a e saiu.

--Comadre,--disse ao passar por casa do Zé P'reira--ahi lhe deixo a
pequena. Olhe-me por ella, que não está lá muito boa.

--Vá com Deus--disse uma voz de dentro.

Era a sr.^a Catharina.

O recoveiro partiu, silencioso e triste.




XIX


No dia seguinte ao dos Reis partiram para Lisboa, como estava
determinado, o conselheiro e Angelo, o que deu logar no Mosteiro a
muitas saudades. O conselheiro devia voltar sómente por occasião das
eleições geraes que estavam proximas.

Alguns dias depois, n'um domingo em que se festejava na aldeia o
padroeiro Santo Amaro, de quem reza a Igreja a quinze de janeiro, estava
Henrique de Souzellas na sala de jantar de Alvapenha, escutando sua tia
e Maria de Jesus, que ambas o entretinham com longas conferencias de
coisas de pouco interesse e ás quaes elle ligava a minima attenção.

Tinham acabado de jantar havia pouco tempo. A mesa conservava-se ainda
posta; Henrique fumava um charuto, recostando-se para o espaldar da
cadeira; D. Dorothéa, de mãos cruzadas deante da cinta, falava; Maria de
Jesus que, depois de pôr em arranjo a cozinha, viera, segundo o costume
patriarchal, tomar parte na sala na conversa do pospasto, auxiliava a
memoria da ama sempre que esta emperrava, corrigia-lhe as involuntarias
e frequentes inexactidões em que a via cair.

Henrique habituára-se já a estes placidissimos habitos; e apesar de não
ligar attenção á conversa, ou por isso mesmo que lh'a não ligava,
achava-lhe certas virtudes estomacaes, que lh'a tornavam agradavel.

Depois de muitas voltas a conversa caíu sobre as occorrencias do auto
dos Reis.

--Eu ainda estou para saber como aquillo foi!--dizia D.
Dorothéa.--Quando me lembro! Como aquella rapariga falava!

--Ó senhora; olhe que já me disseram que a pequena tinha espirito--disse
Maria de Jesus, com ar de mysterio.

--Olhem o milagre!--respondeu D. Dorothéa.--Por essa estou eu.

--Diz que desde aquelle dia anda amarella e triste, que nem parece a
mesma.

--Então é mais do que certo.

--Ai, a tia Dorothéa tambem com crendices!--disse Henrique,
rindo.--Então parece-lhe que traz espirito aquella creança?

--Pois, menino, aquillo a falar a verdade!

--E não é mais natural suppôr que alguem lhe ensinou os taes versos?

--Mas quem? se o Pertunhas diz que os versos eram outros e até que
aquelles não calhavam bem nas lôas?

--O Pertunhas é um parvo. Houve alguem que ensinou aquillo á pequena e
até suspeito com que fim.

--Não, sr. Henriquinho, olhe que alli anda coisa ruim. Tambem o filho do
Ceboleiro, quando trazia o espirito, dizia coisas tão bonitas, que nem
um livro. A senhora não se lembra?

--Ora se lembra!

--Digam-me--insistiu Henrique.--Quem ha aqui na aldeia que faça versos?

--Versos!--repetiu a D. Dorothéa, admirada.--Ninguem, que eu saiba.

--Ó senhora! Então o João do Trolha? Não deita tão bonitos versos nos
desafios?

--Sem ser o João do Trolha--tornou Henrique, sorrindo.

--Ai, não se ria, sr. Henriquinho; olha que os deita muito bem! Ainda no
outro dia, na noite de Janeiras, não se lembra, senhora, dos versos que
elle botou?


  Viva a senhora D. Dorothéa,
  Raminho de bem-me-queres,
  Quando põe a sua touca
  É a rainha das mulheres.


--E depois a mim:


  Viva a senhora Maria,
  A perola das criadas,
  Quando se chega á janella
  Ficam as estrellas pasmadas.


--Ora com o que você vem, mulher! Não tinham as estrellas mais que fazer
do que pasmarem--disse D. Dorothéa.

--Isso é por dizer, senhora; já se sabe que... sim... como o outro que
diz...

--E além do João do Trolha, quem ha mais que faça versos?--perguntou
Henrique.

--Que eu saiba...--disseram as duas.

--E aquelle Augusto?

--O Augustito do doutor? O filho! Coitado do pobre rapaz. Elle sim!
Credo! Não, aquillo é um rapaz de muito juizo.

--Isso não tira. Então a tia julga que só os tolos fazem versos?

--Tolos não digo, mas...

--Mas um pouco feridos na aza, não é verdade?

--Ora pois então dize-me tu, menino, se um homem sério... sim... um
homem de respeito, faz versos?

--Por que não?

--Versos?!

--Versos, sim, senhora.

D. Dorothéa fez um gesto de incredulidade.

Henrique ia redarguir, quando ouviram passos no patamar de pedra da
entrada e após algumas pancadas á porta da sala.

--Abra, tia Dorothéa--disseram de fóra as vozes de Magdalena e de
Christina, que fôram logo reconhecidas.

E cêdo depois entravam alegremente na sala, em companhia de D. Victoria,
que vinha mais retardada.

D. Dorothéa levantou-se para recebel-as.

--Bons dias ou boas tardes, tia Dorothéa, porque me parece que já
jantaram. Vimos aqui para confiar aos seus cuidados a tia Victoria, que
não nos quer acompanhar a ouvir a palavra eloquente do
missionario--disse a morgadinha.

--Eu não; para apertos e barafundas é que não estou.

--E tu vaes, Lena? perguntou D. Dorothéa.

--Então? Não quero passar por impenitente. Ainda o não ouvi. Pode crer?
Além de que percebi na Christe um fervor, com o qual quiz condescender.

--Dizem que préga tão bem--atalhou Christina.

--Pois prégará, mas eu é que já não estou para sermões--ponderou D.
Victoria.

--Vou eu tambem ouvir o missionario--disse Henrique, levantando-se.--Já
m'o mostraram ha dias. Se os dotes oratorios do homem corresponderem á
figura...

--Então?--interrogou D. Dorothéa.

--É um homem gordo e vermelho, de pulso grosso e, em geral, typo da
grossura do pulso.

--Pois bom é que vás, menino--disse D. Dorothéa--para acompanhares as
pequenas.

--Como quizer, primo,--acudiu Magdalena--mas não se constranja. O
Torquato tambem vae.

--Que quer dizer? Que me dispensa?

--Não; mas que se é só por condescendencia que...

--É por prazer. É por devoção.

--N'esse caso...

E Henrique foi procurar o chapéo para acompanhar as duas primas á
igreja.

O Santo Amaro fôra festejado com espavento na freguezia da sua
invocação. Vesperas, missa cantada, duplo sermão, e procissão á volta da
igreja, nada faltára para solemnisar a festa.

O sermão da manhã fôra prégado por o abbade; o da tarde havia sido
concedido ao missionario, que o aproveitára para uma das suas
catechéses.

A procissão já tinha recolhido, quando chegaram á igreja a morgadinha e
Christina, na companhia de Henrique e de Torquato. Havia no adro muita
gente, e algumas barracas de doce e de café, como n'um arraial.

Pela porta principal da igreja engolfava-se a multidão, como em bôca de
sorvedouro, subitamente aberto no leito de um rio, se precipitam as
aguas impetuosas.

A fama, que pelas aldeias circumvizinhas apregoava o nome do
missionario, attrahira immensa gente a escutar o sermão.

As senhoras do Mosteiro romperam a custo por entre a compacta massa
popular, que se amontoava á porta da igreja, e conseguiram, por
deferencia excepcional dos mesarios, entrar pela sacristia para a
capella-mór.

Tinha um aspecto melancolico o interior da igreja n'aquella occasião.
Pobre de si e pouco alumiada, mais escura e lugubre parecia com a
extraordinaria quantidade de gente que a enchia, na maior parte mulheres
de roupas escuras e em que só alvejava o lenço branco que usavam á
cabeça.

Apesar da quadra ir fria, como de janeiro que era, respirava-se alli
dentro uma atmosphera quente, abafadiça e pouco salutar.

Um surdo murmurio formado por centenares de vozes rezando, a meio tom,
orações e ladainhas, contrastava com as altas vozes de festa, que se
escutavam lá fóra, e requintava a triste impressão que se recebia ao
entrar. Alli um grupo de mulheres, de joelhos, escutavam a leitura de
pias orações, que uma fazia em tom lutuoso, e respondiam em côro com
Padre-Nossos e Ave-Marias; além viam-se outras com as faces rojadas no
chão, batendo no peito e desentranhando exclamações, para commoverem a
Divindade; outras em extase, como Santas Therezas, de braços abertos
deante da imagem da Virgem; outras amortalhadas, em cumprimento de
promessa feita a algum santo. Cavados na espessura das paredes havia uns
pequenos cubiculos, que serviam de confessionarios. Ás portas d'estes
nichos, munidas de um crivo de folha, adheriam, como as lapas nos
rochedos, os vultos escuros das penitentes, fazendo para dentro a
circumstanciada exposição dos peccados da semana, e recebendo de lá
regras de bem viver, preceitos de devoção, ás vezes exaggerada e
inspirada de certa moral de convenção, com que a ignorancia ou a má fé
porfiam em falsificar os simples e luminosos dictames da moral, que a
consciencia reconhece e que o Evangelho apregôa.

Ás vezes despegava d'aquelle crivo de peccados uma das confessadas; e
exhausta de fôrças, abatida de animo, descrendo da misericordia divina,
ia cair com desalento nos degraus do altar de Deus, que o fanatismo
cego, senão hypocrita, lhe pintára inexoravel verdugo. Quando outra se
não succedia a esta, via-se rodar nos gonzos a pequena porta d'estes
cubiculos, e sair de lá um padre de batina, sócos e capote de cabeção,
satisfeito de si, e revendo-se n'aquelles corpos prostrados, n'aquelles
gemidos surdos, n'aquellas lagrimas humedecendo o pavimento do templo,
tristes indicios de desalento moral, com que conseguira quebrantar os
ingenuos espiritos que dirigia pela intimidação cruel.

De tudo isto vinha o aspecto sombrio e lugubre á igreja, que nem as
luzes dos altares, nem as sanefas e cortinas de damasco, que com tanta
arte dispuzera mestre Pertunhas, conseguiam dissipar.

Henrique estava sendo desagradavelmente impressionado por o que via.

Olhava com desgosto para aquelles signaes de um terror supersticioso, e
sentia exacerbarem-se-lhe as prevenções que nutria contra o clero, cuja
influencia moral, aliás justa e vantajosa, é cada vez mais diminuida por
aquelles dos seus membros que pretendiam augmental-a por meios
improprios da sublimidade da sua missão e até dos preceitos da religião,
de que se dizem ministros.

Henrique fez algumas reflexões n'este mesmo sentido a Magdalena, que não
pôde deixar de apoial-as, tanto mais que sabia o animo de Christina, que
os escutava, não de todo superior a este apparato terrorifico.

A hora marcada para o sermão approximava-se; haviam-se já evacuado os
differentes confessionarios, e o povo cada vez se apertava mais em todos
os pontos da igreja e trasbordava para fóra das portas do templo. Quem
de dentro olhasse para a porta principal veria que a grande distancia,
na rua, se prolongava a multidão.

Apenas um confessionario permanecia ainda occupado. Havia mais de uma
hora, que alli estacionava de joelhos uma penitente com a cabeça coberta
por a capa de panno, com que rodeava o crivo do confessionario.

Nem o menor movimento revelava animação n'aquelle vulto.

Henrique notára essa immobilidade, que ao principio o fez sorrir; depois
causou-lhe espanto e acabou, emfim, por o indignar. Qual, porém, não foi
a sua surpreza e a de Magdalena, quando, ao terminar a confissão,
reconheceram as feições da penitente por as de Ermelinda, a filha do
Herodes, a formosa e amoravel creança, que, dias antes, tanto
enthusiasmo causára, agora pallida, abatida, sem aquelles sorrisos nos
labios, que tanta graça lhe davam!

E era esta creança que tão longos peccados tinha a narrar, para assim
ficar tanto tempo aos pés do confessor?

Ermelinda, vagarosa, trémula, tendo claros os vestigios de lagrimas, e,
como que enleiada de vergonha, caminhou por entre os grupos de mulheres
ajoelhadas na igreja e veio cair de joelhos ao lado da madrinha e cêdo
rojava com ella a fronte no chão, que regava de lagrimas ferventes.

Pobre creança! Que negros crimes lavariam aquellas lagrimas? Que culpas
teria a expiar aquella inconsolavel dor?

O confessionario d'onde ella se afastára, abriu-se, emfim, e ás vistas,
que para alli se voltaram, mostrou um padre gordo, córado, de olhos e
fronte pequenos, cabellos grisalhos, rompendo-lhe a um dedo das
sobrancelhas. O homem parou algum tempo a fitar o auditorio.

Espalhou-se no templo um sussurro particular; um movimento commum animou
aquellas cabeças todas, quando este homem appareceu.

Era o missionario.

A sua passagem para a sacristia foi uma passagem verdadeiramente
triumphal. Curvaram-se até ao chão as beatas, beijando-lhe a mão ou as
borlas da batina, e pedindo-lhe a benção, que elle distribuia com
profusão.

Mas a meio caminho da sacristia, para onde se dirigia, surgiu-lhe quasi
do chão um estorvo.

Zé P'reira, o desconfortado marido, estava deante d'elle, gesticulando e
realisando um triplice e admiravel esforço para firmar as pernas, para
abrir os olhos, e para desembaraçar a lingua.

Dizia o homem:

--Ó sr. aquelle... ó sr. padre, ou missionario, ou lá o que é... eu
quero-lhe perguntar uma coisa. Deus disse... sim, Deus disse... A
religião manda... Quando um homem se casa...

O missionario não esperou pelo fim da inesperada interpellação; com
modos rudes e pulso vigoroso arredou de si o atrevido, e bradou, fulo de
cólera:

--Então que desafôro é este? Deixam um homem n'este estado vir ter
commigo?!

E com maneiras e palavras igualmente asperas impoz silencio ao povo, que
rira do desengano do Zé P'reira. Os mordomos acudiram logo para
afastarem o Zé P'reira d'alli para fóra. Elle deixou-se ir, limitando-se
a dizer mansamente:

--Ora, senhores, que é forte desgraça a minha! Então uma pessoa não pode
dizer o que sente?

Ia elle já fóra da igreja e ainda se lhe ouvia a voz repetir:

--Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!

Quando depois d'esta scena, o missionario passou por Henrique, murmurou
este em voz perceptivel, ao ouvido da morgadinha:

--Diga se este todo e este modo de tratar ovelhas não é mais de magarefe
do que de pastor?

O missionario ouviu estas palavras, pois que se voltou como se uma
vibora o picasse, e faiscou-lhe no olhar o fulgor de um odio pharisaico.
Henrique arrostou-o com audacia provocadora.

O padre entrou para a sacristia.

No entretanto o auditorio dispunha-se para escutar o sermão, o mais
commodamente que era possivel n'aquelle pequeno recinto.

No fim de alguns minutos apparecia no pulpito a figura bem nutrida e
pouco attrahente do famigerado educador dos povos.

Fitou com sobranceria os ouvintes e com particular insistencia fixou em
Henrique, que lhe ficava fronteiro, um olhar, que elle sustentou com
firmeza.

Esta tacita provocação durou alguns minutos, no fim dos quaes poderia
talvez, quem estivesse prevenido, distinguir nos labios do padre um
sorriso rancoroso e perceber-lhe um movimento de cabeça quasi ameaçador:

Emfim soltou o texto latino do sermão.

Seguiu-se nova pausa, e principiou.

Apesar do exemplo de Sterne, que não duvidou entresachar nas paginas
humoristicas da _Vida e opiniões de Tristam Shandy_, um sermão sobre a
consciencia, eu não ouso transcrever para aqui o modelo de eloquencia
sacra, recitado pelo missionario n'aquelle dia.

Ainda se eu pudésse transmittir aos leitores o tom rouco de voz, a
extravagancia de gestos, o decomposto dos movimentos com que o orador
acompanhava a recitação dos descosidos periodos d'aquella indigesta
prática, talvez me animasse á empreza, para lhes dar um exemplo da
vigorosa eloquencia, com que se anda atrazando a civilisação do povo e
prejudicando a verdadeira religião, a despeito dos bons sacerdotes, cuja
voz é abafada por aquella gritaria.

As mais tetricas e pavorosas imagens adornavam o discurso.

Era o enxofre a ferver, o chumbo derretido, as caldeiras de pez, as
fornalhas ardentes, innumeras torturas, a que o menor delicto, tal como
um jejum mal guardado, uma confissão mal feita, uma involuntaria falta á
missa, uma penitencia esquecida, uma oração supprimida, arriscava as
almas por toda a eternidade. Para cada peccado venial uma perspectiva de
tormentos sem fim. O tribunal de Deus foi arvorado em tribunal de Santo
Officio, onde os autos de fé, os pôtros, e cavalletes aguardavam os
delinquentes arrastados até alli; eis o resumo da oração. A fatal e
desesperadora sentença, que o poeta florentino esculpiu no portico do
inferno, traçava-a este sobre os umbraes do tribunal do Eterno.

Na esculptura de Christo, obra rude do buril popular, mostrava o vulto
de um accusador, surgindo alli a pedir vingança, e não o do Redemptor
sublime a implorar e prometter perdão. E tudo isto de mistura com
imprecações contra as modernas instituições sociaes, contra a obra do
seculo, contra os descobrimentos, contra a sciencia, contra tudo em que
se descobrisse o cunho da época e que tendesse a modificar os costumes e
as ideias em sentido menos favoravel á propaganda reaccionaria.

Á medida que a oração progredia, animava-se a voz do orador; augmentava
a desordem dos gestos e refinava a selvageria das imagens.

Ao mesmo tempo os gemidos, os soluços e os ais do auditorio, e
principalmente da parte feminina d'elle iam crescendo em choro
manifesto, em gritos e alaridos. Cêdo era já um angustioso clamor em
toda a igreja. Magdalena, que se sentia, ella propria, um pouco
impressionada por este espectaculo de desolação, voltou os olhos para
Christina. Viu-a trémula, pallida, com as faces banhadas em lagrimas,
tendo no gesto todos os signaes de um intenso pavor.

Assustada com o estado da prima, a morgadinha fez notal-o a Henrique, e
tacitamente lhe communicou as apprehensões que sentia.

Henrique comprehendeu a necessidade de dissipar a funesta influencia que
se estava exercendo no animo timido de Christina.

Sentou-se por isso junto das duas raparigas e principiou a distrahil-as
com commentarios satyricos ás palavras do sermão e á figura do orador,
que ambas offereciam farto alimento para elles.

D'ahi a pouco Magdalena instava já com Henrique para que se calasse.

Previa o perigo que poderiam correr, persistindo n'aquelles commentarios
improprios do logar.

Effectivamente não tinham passado despercebidos, do padre os
commentarios de Henrique, nem os sorrisos mal disfarçados de Magdalena;
e a raiva despertada pela descoberta cada vez inflammava mais o orador,
exacerbando-lhe a virulencia da phrase.

Já não podia tirar os olhos d'aquelle grupo, e por vezes a cólera,
estrangulando-lhe quasi a larynge, interrompera-lhe o discurso.

Alguns ouvintes, seguindo a direcção d'aquelles olhares faiscantes,
haviam attingido já a causa d'elles.

D'ahi algumas murmurações que principiaram a sussurrar pela igreja.

No grupo das beatas, em que estava Ermelinda, fôram ellas mais acerbas
do que nenhumas. A sr.^a Catharina e as suas companheiras fartaram-se de
anathematisar a impiedade e a heresia da gente do Mosteiro, e no coração
da filha do Cancella, dominado pelo terror que o sermão levára ao
cumulo, calavam aquelles dizeres, que a faziam quasi olhar, como se
fôssem já prezas do inferno, para Magdalena e Christina, a irmã e a
prima de Angelo, do seu amigo de infancia, em quem já não se atrevia a
pensar.

N'uma occasião em que o missionario fulminava com mais vehemencia os
progressos da industria moderna e chamava redes do demonio e caminhos do
inferno aos telegraphos electricos e ás vias-ferreas, Henrique
approximando-se dos ouvidos das duas primas, fez não sei que reflexão
tanto a proposito, que a morgadinha não conteve o riso; a propria
Christina sorriu tambem.

Era de mais! O padre pulou no pulpito. Com os olhos em chammas, as faces
apopleticas, os labios espumantes, os punhos cerrados e os braços hirtos
e estendidos na direcção de Henrique, rompeu n'estes violentos termos:

--Fóra do templo, pedreiros livres, que vindes aqui escarnecer da
palavra do Senhor! Fóra do templo, impios libertinos, que não respeitaes
os ministros de Deus, nem o seu altar! Andam lobos no povoado e vieram
esconder-se entre as ovelhas na casa do Senhor! Escorraçae-os, irmãos,
se não quereis que se vos pegue a lepra do peccado e que Deus arraze
esta aldeia, como arrazou Gomorrha e Sodoma. São esses os que trazem das
cidades a peste para as aldeias; são estas as pragas que nos veem com as
estradas e com a civilisação. Fugi d'elles, que trazem o demonio na
alma! Homens sem religião, mulheres sem temor de Deus, mações, pedreiros
livres, vindes para aqui tentar as almas? Eu vos esconjuro! eu vos
requeiro! Vade retró, Satanaz, vade retró! vade retró!...

E de cada vez que repetia a fórmula exorcista, o missionario estendia o
braço na direcção de Henrique.

Este, desde que viu que a imprecação lhe era dirigida, levantou-se e
fitou o padre com ousadia imprudente. Preparava-se para lhe responder
alli mesmo.

Quando o missionario concluiu, o sussurro da igreja degenerou em
desordem. Das beatas transmittiu-se a revolta aos homens do campo, cuja
má vontade, para com a gente das cidades, cresce sempre que se suspeitam
alvo dos desdens ou zombarias d'esta. As ameaças soavam já distinctas,
os varapaus mexiam-se pouco pacificamente, o escandalo tomára proporções
assustadoras.

Christina quasi desfallecia; Magdalena, pallida, mas sem perder a
presença de espirito, que nunca a abandonava, segurou o braço de
Henrique e queria obrigal-o a retirar-se da igreja.

Henrique resistia e procurava falar.

O velho Torquato, trémulo e enfiado, puxava tambem por elle como podia.

O alarido, a confusão, a desordem recrudesciam. O padre tinha perdido a
cabeça, e do pulpito animava a anarchia, berrando e bracejando.

Alguns homens prudentes, e entre elles o santo homem de um cura que
havia na freguezia, obrigaram, quasi á fôrça, Henrique a sair da igreja
por a porta da sacristia.

Ao vêl-o retirar, acompanhado das senhoras, o povo precipitou-se em
confusão para a porta principal, para os vir esperar á saída da
sacristia, e correu clamando atordoadoramente.

E de feito, quando alli chegaram, viram-se em frente de uma impenetravel
parede humana, de centenares de rostos que os fitavam furiosos, de
braços que os ameaçavam, e de bôcas d'onde partiam gritos de «morte aos
pedreiros livres, aos libertinos e aos herejes.»

Magdalena recuou; Christina encostou-se-lhe ao hombro, quasi desmaiada.

Henrique parou á porta, pallido, mas sem recuar deante d'aquella gente
furiosa e ameaçadora.

--Que querem de mim e d'estas senhoras?--perguntou elle, com voz firme.

Em vez de responder-lhe, berraram com mais violencia:

--Morra o pedreiro livre!

--Ensinem esses senhores da cidade!

--Pouca vergonha!

--Isto não fica assim! Isto é de mais!

--Mação!

--Hereje!

--Quero passar!--repetiu Henrique, no mesmo tom imperioso.

--Havemos de ensinar estes fidalgos.

--Excommungados!

--Havemos de lhes dar os risinhos na egreja.

Henrique não podia já reprimir a impetuosidade do genio; deu um passo
para elles, levantando o chicote que trazia na mão.

Era uma imprudencia perigosa. N'um momento uma verdadeira nuvem de
varapaus cruzou-se sobre a cabeça d'elle.

E os gritos de «morra! mata! abaixo os pedreiros livres e herejes!»
levantaram-se mais ameaçadores do que antes. Magdalena susteve, a
tremer, o braço de Henrique.

E o tumulto crescia cada vez mais e cada vez mais augmentava o perigo.

Uma grande pedra, impellida de longe, veio bater na verga da porta da
sacristia, e na quéda ameaçava ferir a cabeça de uma creança que,
entremettendo-se no grupo dos amotinadores, conseguira collocar-se junto
de Magdalena, e de olhos espantados assistia áquillo tudo com infantil
curiosidade, emquanto a mãe afflicta a chamava em altos gritos,
procurando-a no adro. A morgadinha, estendendo as mãos para proteger a
cabeça da creança, foi ferida nos dedos pela pedra. Com gesto sereno, e
em tom desaffectadamente reprehensivo e ao mesmo tempo placido, disse
para toda aquella gente:

--Não vêem que iam matando esta creança?

Esta simples acção, e estas palavras da morgadinha, produziram mais
effeito do que todos os arrazoados e todas as resistencias. Havia
n'ellas claros indicios de uma indole generosa, e a generosidade foi e
será sempre um dos mais poderosos elementos para dominar e commover as
massas. Sabem-o os especuladores politicos, que tanto se esforçam por
simulal-a, quando precisam do povo.

--Quem foi que atirou a pedra?--perguntou um.

--Temos tolice!

--Nada de pedra, olá!

--Então isto é coisa de garotos!

Estava a quebrar-se a furia da onda popular. Os que antes gritavam
«morra» achavam já reprehensivel a primeira tentativa de lapidação. E
comtudo era a pedra a arma mais prompta para executar a sentença. Era
evidente que o maior perigo passára e que um pouco de prudencia
resolveria a crise.

O peor era que Henrique possuia em pequeno grau essa qualidade, e,
irritado pelo insulto, ia commetter talvez algum acto irreflectido,
apesar dos esforços de Christina e de Torquato para o reprimirem.

Uma circumstancia, porém, veio inesperadamente em auxilio d'elles, e
concorreu para dissipar a tempestade.

Foi o caso que, depois de ser posto fóra da igreja o Zé-P'reira, que,
pelas razões que o leitor já sabe, e inda mais depois do mallogro da
interpellação ao missionario, não olhava com bons olhos para este, veio
desconsoladamente sentar-se no adro, sobre os degraus de um cruzeiro,
tendo ao seu lado o popular tambor, instrumento das suas glorias, e que
ainda n'aquelle dia servira á frente da procissão.

Ahi se conservou em quanto durou o sermão. Junto do artista deitára-se a
dormir o seu satellite, o rapaz do bombo, o que, a passadas compassadas
e valentes, secundava os rufos rapidos e febris que o outro executava na
caixa--pancadas que eram, por assim dizer, as virgulas d'aquelles
floridissimos periodos acusticos.

Em posição de cansaço e desalento o Zé P'reira monologava, como era
habito seu, sempre que tinha o cerebro repassado do espirito familiar.

Lamentava comsigo, o bom do homem, o desmazêlo domestico da sua cara
metade; a influencia funesta dos missionarios na paz das familias, e
sobre tudo a indifferença que principiava a perceber nas massas para as
maravilhas do predilecto instrumento, que elle conhecia a preceito.

Era de facto esta uma das causas dos pesares secretos do hortelão.

Desde que, por influencia do mestre Pertunhas, se instituira a
philarmonica na aldeia, Zé P'reira andava triste e desassocegado.

N'aquillo viu elle a morte da sua arte. Um _ceci tuera cela_, como o que
preoccupava e entristecia o arcediago de Notre-Dame de Paris,
analogamente inquietava o nosso homem. O espirito e gôsto publico
entravam em nova phase, preparava-se uma revolução na arte. O reformador
era o mestre Pertunhas; instituindo a banda marcial, verdadeira
extravagancia romantica comparada á simplicidade e nobreza classica dos
portentosos rufos do Zé P'reira, o mestre de latim realisou um
commetimento digno de menção na historia da arte.

Pobre Zé P'reira!

Estas reflexões estavam-lhe acudindo todas, e mantinham-o, havia perto
de uma hora, em uma posição contemplativa deante do tombado instrumento
de seus ruidosissimos triumphos. Lia-se n'aquelles olhares fixos uma
melancolia quasi poetica.

N'esta contemplação o surprehendeu a tumultuosa e subita saída do povo
pela porta da igreja, e as scenas de motim que se lhe seguiram. A
intelligencia pêrra de Zé P'reira não achou logo a explicação do que
via. Pouco a pouco porém os varapaus no ar, os gritos, a confusão,
principiaram a dar-lhe uma vaga consciencia da desordem popular.

Os instinctos ordeiros e pacificos de Zé P'reira acordaram, e o homem
ergueu-se.

Olhou algum tempo para o logar do maior tumulto, e em seguida passou ao
tiracollo a alça do tambor.

Olhou outra vez, e com um pontapé acordou o seu satellite, que,
estremunhado, tomou automaticamente para si o bombo do acompanhamento.

Olhou outra vez, e viu nos ares a pedra que feriu Magdalena. Então o Zé
P'reira não esperou mais nada, tomou uma resolução, fez um signal ao
rapaz, e...

_Pom_--fez a baqueta d'este, caindo com toda a fôrça sobre a retesada
superficie do bombo.

_Taplão, taplão, rataplão, rataplão_...--responderam as baquetas movidas
pelas amestradas mãos do Zé P'reira.

Muitas cabeças de amotinados voltaram-se na direcção do som.

O Zé P'reira proseguiu; adquiria cada vez mais velocidade o jogo das
baquetas; começava a ganhal-o o vapor do enthusiasmo.

Principiou a acudir o povo para junto do artista.

Este tomára-se já do _raptus_, do phrenesi musical. Já não eram só as
mãos, eram os cotovelos, eram os joelhos, era a cabeça que rufavam. De
olhos fechados, dentes ferrados nos labios, ventas offegantes,
contrahidos quasi tetanicamente os musculos do pescoço, a vergal-o para
traz, Zé P'reira parecia endemoninhado. Não via, não ouvia, não sentia,
não tinha consciencia de si, nem dos seus actos; todo elle era fogo,
delirio, convulsão, febre, loucura. Parecia que poderosas correntes
electricas se transmittiam do tambor ao cerebro, e do cerebro ao tambor,
desafiando aquelles movimentos choreicos, aquelles grunhidos surdos,
aquellas visagens extravagantes, aquellas contracções geraes, que o
torciam, desconjunctavam e desfiguravam.

Vencera-o completamente a febre; sangue, nervos, musculos, cerebro, tudo
era dominio seu; congestionado, allucinado, louco, rufou, rufou, rufou
com desespero, rufou até as baquetas se não avistarem, de rapidas que se
moviam; rufou até o ouvido quasi não perceber a descontinuidade dos
sons; rufou finalmente até cair por terra exhausto, no collapso que
succede ás convulsões do espasmo. Se tinha de ser aquelle o declinar de
uma gloria, todos os astros lhe invejariam tão esplendido crepusculo.

O povo inteiro applaudiu o artista.

E quando voltaram a si do extase em que elle os tivera, acharam já
fechadas as portas da sacristia e nem vestigios da familia do Mosteiro.
O povo dispersou pacificamente.




XX


Passados dias voltava o Herodes do Porto, quando nas proximidades da
aldeia encontrou alguns homens a cavallo, que lhe eram desconhecidos.

O leitor que tenha sempre vivido n'uma cidade populosa, onde lhe é
impossivel conhecer todos os que com elle habitam na mesma terra, mal
pode fazer ideia da sensação que produz no habitante de uma aldeia,
villa ou cidade pequena, a presença de uma cara estranha.

Formam-se-lhe logo no espirito mil conjecturas, e a mais inquieta
curiosidade instiga-o a decifrar a significação d'aquelle apparecimento.

Isto aconteceu com o Cancella.

Desde que avistou os desconhecidos, que dissemos, não tirou mais os
olhos d'elles. Eram tres em numero, traziam grandes botas, e largos
chapéos, mantas ao hombro, usavam bigodes e lunetas escuras.

--Passaros de arribação...--pensava o Herodes comsigo--que vento traria
isto para aqui?

E, chegando-se mais de perto, saudou-os cortezmente.

Um d'elles dirigiu-lhe a palavra:

--Olá, ó amigo, onde ha por aqui uma casa habitavel, em que nos
alojemos?

--Por pouco ou por muito tempo, meu amo?

--Por o tempo que levar a construir uns quinze kilometros de estrada.

--Ah! então v. sr.^{as} são engenheiros?

--Julgo que sim.

--Então, visto isso, as estradas sempre vão principiar?

--Antes de arranjarmos casa em que fiquemos, de certo que não.

--Ai, sim, querem uma casa... Eu lhes digo, não tem nada que saber; os
meus amos vão por ahi sempre a direito, e lá adeante, chegando ao pé de
uma oliveira, tomam á sua mão esquerda por um caminho estreito, que tem
uma cancella no fim; depois, logo que virem uma nora, carregam á
direita, seguem sempre ao lado de um muro branco, até chegarem á eira;
ahi tomam por um outro atalho, que está ao lado e vão dar a um
larguinho... Depois não tem que saber, deitam pela rua em frente e
perguntando alli pela estalagem da Mouca, logo lhe dizem.

Os tres cavalleiros olharam uns para os outros, consternados com a
explicação.

Iam a dirigir mais algumas perguntas, quando passou por alli uma
rapariguita, guardando porcos, que parou pasmada a olhar para os
engenheiros.

--Se v. s.^{as} querem, esta pequena vae ensinar-lhes o caminho.

Acceitaram contentes, e cêdo partiam, precedidos por a pequena cicerone.

--Grande novidade!--ficou dizendo o Cancella comsigo--sim, senhor; com
que vão principiar as estradas! Pois nunca cuidei que fôsse nos meus
dias. Então... querem vêr que sempre sae certo o que eu ouvi dizer, que
vae abaixo a casa e o quintal do tio Vicente?... Pois se querem vêr... O
pobre homem estala de paixão, se isso assim é; isso é com certeza...
Pois, senhores... isto de estradas... é bom, é; pois não é? Sempre é
outro arranjo para quem tem de ir á cidade...

Nova surpreza esperava o Herodes n'este regresso aos lares. De longe
ainda, divisou affixado á porta da igreja um edital. Outra circumstancia
que nas cidades nem nos obriga a desviar a cabeça, porém que nas aldeias
toma as proporções de um grande successo.

--Ui! Temos novidade--disse o Herodes ao vêl-o.--Edital á porta da
igreja!--e approximou-se para ler.

Proclamava o chefe do concelho aos seus administrados que, por ordens
terminantes do governo, eram, desde aquella data, expressamente
prohibidos, sob as mais severas penas, os enterramentos no interior da
igreja, e que todos se fariam no cemiterio, para esse fim já construido.
Havia no logar um grupo de populares commentando a ordem e murmurando
contra o governo e contra o conselheiro, e falando de opposição e motim.

--Bom, mais outra!--dizia o Herodes, ao apartar-se do logar.--Grandes
coisas se passaram cá na terra, emquanto eu andei por fóra! O peor é que
não sei se a coisa irá assim ás mãos lavadas; ao que já ouço por ahi
rosnar!... É o diabo!... Eu digo, não sei se é do costume em que uma
pessoa se põe... mas... lembrar-se, a gente de que fica assim á chuva e
ao sol... Mas é do costume, é... Bem sente lá uma pessoa o frio depois
de morta.

E fazendo estas reflexões proseguiu no seu caminho.

Passou por uma pequena capella, erecta á borda de um pinheiral, sob a
invocação da Virgem da Esperança, e reteve-se a fazer oração. Áquella
imagem costumava encommendar a filha, sempre que saía da aldeia, e no
regresso pagava-lhe em fervorosas orações a protecção obtida, e
separava-se d'alli mais consolado e tranquillo. D'esta vez, porém, ficou
triste e sobresaltado. Porquê?

É que se lembrára de que tinha, ao partir, deixado Ermelinda doente, e
estremecia agora na incerteza de como a iria achar.

Esta ideia fel-o apressar o passo, como se quizesse, quanto antes,
tirar-se d'aquella incerteza; mas desde que avistou os telhados e muros
da casa parou irresoluto.

Parece que os objectos inanimados nem sempre teem para nós um mesmo
aspecto. Ha occasiões em que as casas, as arvores, os muros, as portas,
se nos mostram com certos ares melancolicos, e quasi direi pensativos,
que nos enchem de sombras o coração; outras em que umas apparencias de
sorrisos lhes dão uns ares de festa que alegram e convidam.

Ao Herodes apparecia-lhe triste d'esta vez a casa, que de ordinario, ao
avistal-a, lhe enviava um sorriso a dar-lhe as boas vindas.

Seria o effeito das tintas desmaiadas, que dá aos objectos o sol
crepuscular? Seria o reflexo dos presentimentos proprios, que lhe
estavam confrangendo o coração? Mas como lhe acudiram tão de subito
esses presentimentos, a elle, ainda pouco tempo havia tão
despreoccupado! Como lhe occorrera de repente a memoria d'aquelle dia em
que, voltando tambem de fóra, viera encontrar quasi morta a mulher, que
chorava ainda, a mãe de Ermelinda? Phenomenos que se perdem na parte
obscura da vida moral, da qual ainda a analyse não conseguiu devassar as
sombras.

Crescia o sobresalto do pobre homem ao pousar os pés nos primeiros
degraus da escada de pedra. Ao passar pela porta do compadre, não tivera
coragem de perguntar; receiou sair da incerteza.

Foi quasi a tremer que empurrou deante de si a porta da casa, que
encontrou aberta.

Logo ao entrar, recuou espantado e não reprimiu uma exclamação de
surpreza.

Fôra a causa o achar novidades na primeira sala.

Deu com os olhos n'uma fileira de pequenas cruzes de pau preto que
cercavam as paredes, e em alguns caixilhos com imagens de santos, que
não deixára alli ao partir. E ninguem a recebel-o.

--Crédo!--disse o Cancella, desgostoso.--Para longe o agouro! Cruzes
negras á chegada! São coisas da comadre. Maldita velha! Jurou metter-me
scisma em casa e na cabeça da rapariga, e se não lhe
acudo...--Ermelinda!--exclamou, chamando por a filha.

Como não recebesse resposta, passou para os aposentos interiores.

Á entrada do corredor descobriu uma pequena pia de louça cheia de agua
benta, em que mergulhava um ramo de alecrim.

--Mau!--disse o Herodes, cada vez mais descontente.--Vou vendo que a
minha comadre fez por aqui das suas. Ora queira Deus... queira Deus...
Ermelinda!

E correu toda a casa, que não tinha muito que correr, e explorou o
quintal, e sem achar a filha; já inquieto, chegou a um quarto mais
retirado, o unico que ainda não revistára. A porta estava fechada por
dentro, porém a péquena cravelha fraca resistencia oppoz á pressão que
na porta exerceu o Herodes.

Franqueando assim a passagem, parou no limiar.

Moveu-se, ao ruido que elle fez, um vulto que parecia ajoelhado n'um
canto escuro do quarto.

--És tu, Linda? Estás ahi?--perguntou o Cancella, affirmando-se
n'aquelle vulto, sem ainda o reconhecer,

--Meu pae... respondeu com voz fraca.

--Que fazes tu aqui mettida e fechada n'este quarto, filha? no quarto
mais escuro e mais abafado de toda a casa? Chega-te cá, rapariga,
quero-te abraçar e beijar... Então que é isso?... Tens hoje tão pouca
pressa de abraçar teu pae?... D'antes, até ao caminho me vinhas
esperar... Vem cá, minha filha, vem cá... Se soubesses como me
consola...

E estendia os braços para a filha, que lhe viera emfim ao encontro.
Quando, porém, a viu mais perto da luz, calou-se subitamente e
principiou a examinal-a com inquieta anciedade. Depois, como se lhe não
bastasse a luz d'aquelle recinto para desvanecer não sei que suspeitas
assustadoras que o devoravam, trouxe, silencioso ainda, a filha para o
corredor, e continuou ahi a fital-a com os olhos eloquentes de paixão e
de espanto, bradando emfim, com voz consternada:

--Que é isto!... Que tens tu, filha?... Estás doente? Estas não são as
tuas feições... Os olhos pisados... as faces abatidas... sem côr... sem
risos... sem saude!... Linda, tu que tens? Dize: choraste, filha? Estás
doente? Fala! Anda, fala!... por piedade!... por amor de Deus, Linda,
fala!

A rapariga, em vez de responder, desatou a chorar.

--Meu Deus! Isto que é, meu Deus?--exclamava, mais assustado, o
pae.--Choras ainda mais? Que te fizeram, filha? Ó Linda, tu não tens
pena de mim? não chores!... Ou chora, chora, se te faz bem chorar;
mas... fala, dize-me o que tens, dize-me por que choras, filha... Então?

E com voz trémula, com as mãos unidas e o susto no gesto, como no
coração, o pobre homem quasi ajoelhava a implorar da filha a explicação
d'aquelle doloroso mysterio.

Como ella não respondesse ainda, continuou o afflicto pae, cada vez mais
commovido:

--Ai os presentimentos do meu coração! Não sei o que me dizia isto! Não
sei! Meu Deus, meu Deus! E como te pareces com tua mãe n'aquelle dia em
que... Nem quero imaginar... Ó filha, filha, não vês que me matas assim?
Fala!

E beijava-a e afagava-a, e cobria-a de lagrimas ardentes, que mais
lagrimas desafiavam á creança, sem que a fizessem falar.

Nos movimentos desordenados que fazia, o desgraçado parecia louco. Elle
apertava as mãos da filha, levava-as aos labios, abraçava-a, tomava-a ao
collo, pousava-a no chão; ora a attrahia a si, ora a afastava, sem saber
o que fizesse, n'essa incoherencia de actos que produz um espirito
inquieto.

Como para melhor examinar aquellas feições queridas, cujo abatimento e
pallidez tanto o assustavam, afastou da fronte da creança, com as mãos
trémulas, o lenço que lhe envolvia a cabeça; mas de repente retirou-as,
soltando um grito medonho, ergueu-se e recuou com terror.

Depois, fitou a filha com olhar desvairado, e, sem pronunciar uma
palavra, quasi que a arrastou para mais perto da luz, que entrava no
corredor pela porta aberta do quintal; ahi, arrancou com impeto febril o
lenço da cabeça de Ermelinda; um novo grito, mas d'esta vez rouco,
abafado pela dor, cortado pelos soluços, saíu-lhe do seio, e elle, o
desgraçado pae, desatou a chorar como uma creança.

É que aquelles formosos cabellos louros de Ermelinda, que com tanto amor
beijava, que com tanta soberba lhe desatava pelos hombros, o orgulho, o
enlevo do seu coração de pae, aquelles cabellos louros haviam caído aos
golpes de uma tesoura desapiedada e quasi irreverente.

Só quem fôr pae pode conceber toda a desesperadora afflicção em que esta
descoberta lançou o coração d'aquelle.

Ermelinda caiu-lhe aos pés, de joelhos, chorando tambem.

Por algum tempo, nada mais se ouviu alli dentro senão os soluços de
ambos.

A reacção não se fez, porém, esperar muito no animo violento do
Cancella.

Afastou com vivacidade as mãos do rosto, ergueu a cabeça, e, com os
olhos inflammados de raiva e de cólera, disse para a filha, tremendo e
gaguejando, tal era a impetuosidade dos sentimentos que se lhe
amontoavam no coração:

--Quem foi?!... Responde! De quem foi essa mão atrevida que fez isto?...
Fala! Não ouves? Quero sabel-o, para cortal-a mais rente do que te
deixou os cabellos... E tu, desgraçada, tu, consentiste! Má filha, filha
desagradecida e sem coração, que assim deixas que me roubem as minhas
riquezas e alegrias! A teu pae!... É assim que pagas o amor com que te
tenho creado?... a adoração com que de pequenina te tratei? É assim? É
com este desamor?! e com esta ingratidão?!

--Meu pae! meu pae!--implorava Ermelinda, suffocada pelo
pranto.--Perdôe! Não se affiija assim, meu pae, que me mata! Não vê?...
Escute... Para servir a Deus... foi para servir a Deus que eu os
cortei... A vaidade é um peccado grande.

--Quem te ensinou isso?... Quem te aconselhou a que os cortasses?
Fala!...

--Por alma de minha mãe, não me fale assim, que me assusta!

--Vá! Pois já não falo... Eu estou socegado... Mas então? eu não hei de
saber?... Bem vês que eu precíso de saber!... Vá!... Eu sou teu pae.
Ordeno... Peço... Dize, filha, quem foi?

--O missionario...--ia a dizer Ermelinda.

O pae não a deixou proseguir.

--Ah! Já sei! O missionario! É isso! Os padres... as beatas... tua
madrinha! A bruxa a quem eu confiei a filha e que m'a entrega assim!
Vendeu-m'a ás mãos d'esses malvados sem dó, sem consciencia, sem
religião, sem Deus...

--Meu pae, não diga isso! Não fale assim, que é peccado.

--Cala-te que grande, maior peccado fizeste tu, affligindo assim teu
pae! Os missionarios! Quem lhes deu o direito? Quem lhes ordenou...
Deus? Se Deus é assim, se Deus quer estas crueldades... Deus não é Deus,
e eu não o reconheço nem adoro!

Ermelinda tremia de terror, ouvindo estas palavras, que a irritação e o
desespero estavam dictando ao pae. A timida e nervosa creanca
horrorisava-se, ouvindo aquellas phrases audaciosas, e quasi blasphemas,
e a cada momento esperava vêr cair um raio fulminador a castigal-as.

--Por amor de Deus--murmurava ella, com a voz chorosa e quasi
sumida--por alma de minha mãe!...

--Cala-te! não fales em tua mãe, que não mereces dizer esse nome! Tua
mãe! Aquella sim, que sabia como eu lhe queria; que sempre lidou para me
não causar penas, e que só com a sua morte me fez chorar lagrimas, tão
amargas e tantas, como eu choro agora!

E chorava cada vez mais, chorava, como um fraco, aquelle homem forte e
valente, chorava, porque tinha um coração de pae.

Ermelinda lançou-se-lhe nos braços, cobrindo-o de afagos e beijos.

--Perdôe-me, meu pae! perdôe-me!--dizia ella.--Se soubesse... Fui eu que
pedi... Fui eu que sonhei... Não chore assim, meu pae! Não culpe
ninguem, fui eu, eu que pedi a minha madrinha!... Foi por a salvação da
minha alma, porque...

--E foi tua madrinha que t'os cortou?

--Foi, mas... É que o missionario tinha dicto... O missionario é um
santo!... Não olhe para mim d'esse modo, meu pae, que me faz mêdo.

E cobria os olhos com as mãos, para não ver a expressão do rosto do
Cancella.

--Querem matar-me a filha--bradava elle.--Ó meu Deus! pois não é isto um
grande peccado? fazer da creança, linda e alegre, que eu deixei aqui,
esta desgraçada rapariga, sem côr, sem risos, sem alegria! Não é isto um
crime, meu Deus? Não se vos pode amar e servir, Senhor, senão com
lagrimas, com penitencias e com tristezas? Não! Mentem elles! mente esse
missionario! mente essa mulher! mentes tu, filha! e maldicto seja quem
traz assim o desespero ao coração de um pae.

E o Cancella levantou-se exasperado, sacudindo rudemente de si a filha,
cada vez mais gelada de terror e afflicção. Deu alguns passos no
corredor, e voltou ao quarto onde a encontrára. Ella seguiu-o de mãos
postas, chorando, pedindo-lhe que se não affligisse assim. Mas o
Cancella era dominado pela impetuosidade do seu genio. Nem a ouvia. De
repente, parou, fitando os olhos no registo do Coração de Maria, que
alli fôra introduzido por a mulher do Zé P'reira. Estava adornado com
jarras de flores e vélas de cêra; era a esta imagem que Ermelinda fazia
oração, quasi extatica, quando o pae entrou.

--Coração de Maria!--disse o Cancella, quasi desvairado, conservando a
vista fixa na imagem, e como falando para si.--Coração de mãe, e de mãe
extremosa, que foi esta, e bem lanceada de dores. Soube o que é querer a
um filho, o que é vêl-o padecer... o que é perdel-o... E será ella a que
deseja as lagrimas, as tristezas e a morte d'esta creança?... as
desventuras de um pae?... Ella! Não! E se tu o queres--continuou
allucinado, voltando-se para a imagem--e se não podes ser adorada senão
assim, é porque és falsa, falsa como a mão que ahi te pintou, falsa como
as bôcas que te prégam os milagres. Vae-te!

E no accesso de raiva, que cada vez mais crescia n'elle, fez voar o
caixilho, as jarras e os castiçaes pelo ar, e tudo veio fazer-se pedaços
no pavimento.

Ermelinda soltou um grito dilacerante e agudissimo ao vêr aquillo. O
terror seccou-lhe as lagrimas. Com o olhar espantado, as faces quasi
lividas, as mãos juntas, quiz falar, mas não pôde; moviam-se-lhe os
labios descórados, mas não lhe saía a voz da garganta.

Cada vez mais cego pelo desespero, o pae já não a attendia. Passou outra
vez ao corredor, derrubou, em igual accesso de furia o vaso da agua
benta, bradando:

--Vae-te, que estás empestada tambem pelo bafo maldicto da impostura.

Ermelinda lançou-se-lhe aos pés, abraçou-o pelos joelhos para o reter,
mas elle não a sentia, e, continuando a caminhar desorientado, quasi a
levou de rastos á outra sala.

Ahi, imagens, cruzes, esculpturas, tudo lançou por terra, tudo
despedaçava ou rasgava.

N'este impeto de loucura, n'esta cegueira de raiva, não viu a filha que,
como se galvanisada pelo terror, ergueu-se arquejante, com os braços
estendidos, fazendo esforços para falar, e caindo por fim no pavimento
inerte e fria como um cadaver.

Attrahida pelos gritos e rumor que partiam da casa do Cancella, a
madrinha de Ermelinda acudiu a vêr o que era aquillo.

Chegando ao limiar da porta, assistiu ainda ao final da scena que
descrevemos; ia a gritar, mas o olhar e gesto com que a fitou o Cancella
cortou-lhe a fala na garganta.

Era de facto um olhar selvagem e sinistro.

A sr.^a Catharina parou.

--Que vem fazer aqui, mulher?--dizia-lhe o Cancella com voz cavada.

--Eu...

--Vem acabar de matar-me a filha, serpente? Vem empeçonhar estes ares,
onde metteu a tristeza?

E, a cada pergunta que fazia, dava para ella um passo e ella recuava
outro.

Crescia outra vez a impetuosidade nas paixões e nas palavras do Herodes.

--Saia! saia da minha vista, se não quer que eu lhe faça como fiz a
esses feitiços com que me enfeitiçou a filha, com que m'a quiz matar.

A velha ganhou animo ao vêr-se fóra da porta e por isso disse:

--Lá se vê quem a matou. Repare e diga se não tem remorsos, carrasco!

Estas palavras fizeram quebrar a vehemencia do desespero do Cancella.

Voltou-se, e vendo a filha estendida no chão, quasi como morta, com a
pallidez, com a immobilidade, com a apparencia de um cadaver, correu
para ella, soltando um grito angustioso, e principiou a chamal-a pelo
nome, beijando-a, chorando, pedindo misericordia a Deus, pedindo perdão
a ella, soltando palavras sem nexo, arrepellando-se, ferindo-se.

A velha, que já não o temia, ao vêl-o assim, vingava-se agora
chamando-lhe impio, hereje, malvado, assassino da filha, condemnado de
Deus... e elle, o desgraçado, tudo escutava humildemente, com remorsos,
e implorando misericordia.

--Não! ella não ha de morrer-me assim... Deus não pode consentir n'isto.
Não deixará que eu tenha assassinado minha filha. Ah! senti-lhe o
coração!... vive!... senti-lhe o coração bater... Olhe! venha vêr...
pouse aqui a mão, comadre, no peito d'ella, aqui... Não sente? É o
coração, não é? Não lhe parece que não morreu? Ar, ar, é do que ella
precisa.

E erguendo-se, correu, com a filha nos braços, para o meio da rua.

Ermelinda ainda estava sem accôrdo. Juntaram-se algumas mulheres,
attrahidas pelo espectaculo e pelas arguições da beata, que não cessára
de falar.

Foi voz unanime que a pequena estava a expirar. O Cancella tremia e
pedia por amor de Deus que lhe não dissessem aquillo.

Subitamente, soltou um grito de triumpho e poz-se a rir como doido.
Ermelinda tinha aberto os olhos.

Mas, ao fital-os no pae, instinctivamente desviou a cabeça, como se o
aspecto d'elle lhe causasse terror.

--Filha! disse o Cancella, tremendo de interpretar aquelle gesto e com
maior consternação na voz e no olhar.

Ermelinda, sempre com os olhos fechados, começou a tremer
convulsivamente e n'uma anciedade extrema.

--Deixe a pequena!--disse a beata--não vê que lhe faz mêdo? E com razão,
pobre creança! depois do que viu!

--Pois eu hei de fazer mêdo a minha filha?--repetiu timidamente o
pae.--Eu?! Ó Ermelinda... pois tu...

Um estremecimento, que correu pelos membros da rapariga, fel-o calar.
Commovido, consternado, passou-a para os braços da velha, e sentou-se a
soluçar como uma creança, dizendo entre gemidos:

--Perdi o amor de minha filha! perdi o amor de minha filha! Ai que
desgraçado que eu sou!...

A scena era bastante commovente, para que se não sentissem
impressionadas todas as pessoas que ella attrahira alli.

Houve um longo silencio, só interrompido pelos roucos soluços do
infeliz, em quem entrára o desespero no coração.

Este silencio permittiu ouvir-se um vago som, como de musica longinqua,
que, a pouco e pouco, se percebeu ser um côro de vozes femininas; cêdo a
toada e depois da toada a lettra, principiou a tornar-se distincta.

Ouviram-se perfeitamente estas palavras:


  Vinde, vinde, ó missionarios,
  Com a palavra de Deus
  Libertar-nos do peccado,
  Encaminhar-nos aos céos.


O Cancella ergueu a cabeça e poz-se a escutar.

As vozes continuaram:


  Minha alma por vós anceia,
  Ó ministros do Senhor!
  E o meu peito em chammas arde,
  Em chammas do vosso amor.


O Cancella principiou a abanar a cabeça, e os olhos animaram-se-lhe de
um fulgor extranho.

O côro soava cada vez mais perto, e dentro em pouco desembocou na rua,
em que se passavam estas scenas, um singular cortejo.

O missionario, que nós já conhecemos, por o termos visto em pleno
exercicio de suas funcções predicatorias, vinha seguido por uma cohorte
de mulheres de roupas escuras e cabellos cortados, que cantavam em
chorada cantilena estas e analogas quadras, que os missionarios ou os
agentes seus teem quasi sempre o cuidado de vulgarisar como
preparatorios dos animos impressionaveis das mulheres e das creanças.

Ia em meio uma d'estas quadras, quando se approximava a procissão da
casa do Cancella.

Este já estava em pé no meio da rua, á espera d'ella.

O missionario viu aquelle homem grande e immovel no meio do seu caminho,
aquelle agigantado vulto que, virado de costas para o poente, se lhe
apresentava escuro como um phantasma, e não conjecturou bem do que via.
Por isso parou tambem, olhando para elle. O côro suspendeu-se.

O Cancella fitou por algum tempo em silencio o padre, e perguntou-lhe:

--Sabe quem sou?

O padre fez um signal negativo com a cabeça.

--Sou um homem desesperado, um homem que, n'este momento, nem ouve Deus.

O padre olhou inquieto para traz de si e para os lados, como quem
procurava uma saída para caso de necessidade, pois dizia-lhe a razão que
um homem que não ouve Deus não estaria muito disposto a escutal-o, a
elle, humilde creatura.

--Sabe o que lhe quero? Perguntar-lhe por a alegria e por a saude de
minha filha; perguntar-lhe por o amor d'ella, que me roubou;
perguntar-lhe a que demonio offereceu os cabellos d'aquella creança sem
culpa nem maldade; perguntar-lhe com que veneno lhe envenenou o coração,
e depois... depois matal-o.

O padre enfiou; ia a abrir a bôca para falar, mas viu caminhar para elle
o Cancella, viu no ar aquella mão musculosa e larga, e, calculando a
violencia do embate pelo volume do braço, julgou-se de antemão esmagado,
e só pôde encolher os hombros, fechar os olhos, contrahir comicamente as
feições, e suspender a respiração, aguardando n'esta postura o golpe,
que não podia evitar.

Este de facto não foi suave. A mão do Cancella caíu em parte sobre o
cabeção, em parte sobre o pescoço do padre, e com tal fôrça, que este
foi constrangido a ajoelhar.

--Anda, meu impostor do inferno!

E uma forte sacudidela o impelliu para deante e restituiu de novo á
primeira posição. O chapéo rolou a alguns passos de distancia.

--Anda, meu envenenador de almas!

Nova sacudidela seguida de iguaes resultados; e os oculos seguiram o
caminho do chapéo.

--Anda, meu calumniador de Deus!

E d'esta vez o Cancella principiou por collocar o padre em pé, e após,
dando-lhe um forte impulso e soltando-o das mãos, deixou-o ir á mercê da
fôrça transmittida.

O padre estendeu os braços instinctivamente para se amparar na quéda
provavel, e, pé aqui, pé acolá, a passos descommunaes, escapou
miraculosamente de cair, porém não conseguiu parar senão a muitos metros
de distancia.

Escusado é dizer que esta scena não correu entre o silencio dos
espectadores. Mal o Cancella levantou a mão sobre a cabeça do padre, as
beatas ergueram um alarido de atroar céo e terra.

--Aqui d'El-rei!

--Aqui d'El-rei sobre o Herodes!

--Aqui d'El-rei, que matam o sr. fr. José!

--Quem acode ao sr. fr. José?!

--Ai, que matam o santinho do missionario!

E estas e outras vozes pipilavam, uivavam e chiavam aquellas esganiçadas
mulheres, sem que o zelo religioso as decidisse, porém, a intervir mais
activamente.

A celeuma attrahiu gente, e, no numero, alguns cabos de policia, que, em
cumprimento de seus deveres, se acercaram do Herodes, mas com respeito.

Este, porém, não oppoz resistencia.

Tinha-lhe passado a furia e voltou-lhe o desalento.

Assim deixou-se levar em prisão, acompanhado das imprecações das beatas
e dos gritos de indignação dos homens.

As devotas mulheres correram para o missionario.

Umas levavam-lhe o chapéo, outras os oculos, outras o capote.

--Magoou-se, sr. fr. José?

--Doe-lhe alguma coisa?

--Feriu-se?

Mas o padre não se demorou a informal-as. Limitou-se a abanar com a
cabeça negativamente e deitou a correr, como se visse atraz de si ainda
a mão espalmada do Cancella, prompta a cair-lhe outra vez sobre a
cabeça.

Quando o Cancella chegou a casa do regedor, já a multidão engrossára e
em altos gritos pedia o castigo do criminoso.

O regedor tinha a precisa finura para saber condescender com a multidão.
In continenti, redigiu um officio ao administrador, no qual foi tão
feliz que escreveu tres palavras com boa orthographia; e, falando ás
turbas, disse que estavam dadas as providencias, e que o crime havia de
ser punido com todo o rigor das leis.




XXI


O acto violento do Cancella, contra a pessoa do missionario, foi
assumpto das conversações geraes de toda a aldeia. Era com indignação
que se commentava a façanha. Dizia-se que o Cancella fôra apenas o
instrumento de que se servira a gente do Mosteiro para se vingar do
padre, pela occorrencia da tarde do sermão.

Os adversarios do conselheiro aproveitaram o ensejo que se lhes
offerecia para lhe alienarem sympathias e tentarem um cheque, pelo qual
havia muito suspiravam.

O missionario e os seus ardentes sequazes fôram dos mais acerbos
propugnadores d'estas ideias, que reforçavam com muitas accusações, de
hereticos e de impios, contra todos os membros da familia do
conselheiro.

A politica viu n'isto uma arma favoravel para combater o adversario, e
não a desprezou; depois, veio a portaria a respeito do cemiterio,
manifestamente devida á iniciativa do pae de Magdalena, e
impopularissima na aldeia, augmentar a irritação dos animos e servir de
thema a uma violenta diatribe do missionario contra a impiedade da
época, que nem aos fieis concedia a santa consolação de repousar á
sombra dos templos.

Tudo isto começou pois a fomentar uma reacção contra o conselheiro, a
qual ameaçava o resultado da sua candidatura.

Não pequena parte n'esta guerra surda, que principiára a lavrar, tomava
o seu companheiro de infancia e particular amigo o brazileiro Seabra.

Nunca elle sentira entranhada no coração metade da bem-querença que
apparentemente ostentava para com o conselheiro: mas depois de uma
conferencia que tivera com mestre Pertunhas tornára-se mais manifesta a
sua hostilidade e menos observadora de etiquetas e rebuços.

Foi elle, por exemplo, quem teve o cuidado de lembrar que a familia do
conselheiro estava de posse de bens religiosos; circumstancia que o
missionario attendeu, clamando do pulpito contra os delapidadores dos
bens da Igreja.

Foi tambem o brazileiro quem trouxe á flor de agua os antigos excessos
demagogicos, que caracterisaram o principio de carreira politica do
conselheiro, e referira, com modos de horrorisado, a substancia dos
exaltados discursos que elle proferira nas camaras, advogando ideias
cuja só exposição ferira de pavor a imaginação dos povos.

Finalmente, até o principio dos trabalhos para as estradas, cujo
protrahido adiamento fôra até aquelle tempo um capitulo de accusação
contra o pae de Magdalena, servia agora de arma á opposição.

O brazileiro, em attenção a quem se adoptára o traçado que ia ser posto
em execução, era o que provava á saciedade com grande exhibição de
cifras e de razões economicas, ser esse traçado, sobre dispendioso,
irracional.

E cumpre advertir que estes argumentos ouvira-os elle ao proprio
conselheiro, quando este os allegava para vêr se conseguia demovel-o do
empenho que mostrava em que o traçado em questão fôsse preferido aos
outros. Tal era o estado das coisas publicas na terra no dia em que
principiaram os primeiros trabalhos de campo.

Tinham-se passado alguns dias depois da prisão do Herodes.

A aldeia vira-se invadida por um bando de sêres desconhecidos, que
vieram alterar a perenne serenidade de animo de uma população habituada
a considerar como occorrencias de maximo interesse a reforma dos muros
ou das cancellas de qualquer proprietario da localidade.

A cohorte de engenheiros, conductores, apontadores, cantoneiros e mais
operarios vinha, com seus habitos e costumes novos, fazer tantas ou
maiores mudanças na vida moral da aldeia do que nas condições physicas
d'ella as bandeirolas, os niveladores, as enxadas, as pás, alviões,
picaretas, carros de mão e padiolas, de que era armada essa cohorte.

Por isso corria uma verdadeira romagem para o logar onde com a maior
actividade tinham começado os trabalhos. Era como já dissemos, na casa
do herbanario. Pela demolição d'ella, e do quintal que a rodeava,
principiaram as obras.

O velho Vicente assignára dias antes o auto de expropriação e recebera o
preço da venda, estipulado, o qual, por influencia do conselheiro, não
lhe foi muito regateado.

Elle, porém, o desconsolado velho, recebeu-o comovido. Por as arvores
nada quiz; não podia resignar-se a vendel-as. Podia vêl-as cair, como
amigos sacrificados no cadafalso, mas mercadejar-lhes com os restos,
isso não.

O desinteresse e o escrupulo do herbanario serviu á Fazenda Nacional de
compensação ao excessivo preço por que fôram expropriados os bens de que
o brazileiro se apossára, com o patriotico intuito de promover os seus
melhoramentos particulares, preço que por empenho do conselheiro não foi
litigado.

Ao principiarem os trabalhos, alguns grupos populares tentaram resistir,
mas refrearam-se, em parte pelo respeito devido á cohorte de operarios
melhor armados do que elles, em parte cedendo ás imperiosas ordens do
herbanario, que, ao sair pela ultima vez da casa, onde envelhecera, lhes
disse, com voz irritada e severa:

--Quem lhes pediu que defendessem estas arvores? Que amor lhes tendes
vós, para vos amotinardes por causa d'ellas? Para traz!

Os instigadores das massas conheceram que não era aquella a occasião nem
aquelle o pretexto proprio para os seus projectos, e adiaram, em vista
d'isso, a empresa prudentemente.

Era ao fim da tarde de um dia ennevoado e frio, de um d'esses dias em
que os animos mais fortes se deixam dominar de uma melancolia profunda.

Na baixa em que ficava a habitação do herbanario, ia uma azafama
extraordinaria.

O machado demolidor e a alavanca principiaram a sua obra de destruição;
desconjuntavam-se as pedras dos muros, desfazia-se em pó a argamassa
secular, caíam a golpes de machado as vigas dos tectos e os troncos das
arvores, alastrava-se de tijolo e caliça a verdura dos taboleiros, e
cêdo, de toda aquella vivenda tão amena e virente, só restavam ruinas.

Numerosos grupos de já pacificados espectadores seguiam com curiosidade
as operações de devastação; mas, longe d'alli, a maior distancia do que
os indifferentes, assistiam ao espectaculo os unicos olhos que elle
orvalhava de lagrimas, o unico coração que elle devéras apertava de dor.

O herbanario foi sentar-se na encosta de um outeiro vizinho, d'onde se
divisava toda a scena. Com a cabeça pousada na mão e o braço apoiado
sobre o joelho, com voz commovida, dizia adeus a cada arvore, que d'alli
via vacillar e cair, como se fôsse um amigo que o precedesse no tumulo.
Parecia ter fugido para longe, para pelo menos não lhes ouvir o estertor
da agonia.

Ao lado do velho estava Augusto.

Não era tambem sem tristeza que elle seguia os progressos da demolição.

Mais do que uma vez tentára arrancar o herbanario d'aquelle sitio. O
velho, porém, resistiu; queria estar alli até vêr cair a ultima arvore.

Ao pinheiral d'onde assistia á scena, chegava em confusão o alarido dos
trabalhadores, o rumor do manobrar dos instrumentos, e até o da quéda
das arvores cortadas.

O herbanario sempre que via brilhar o machado sobre uma nova arvore,
recordava sentidamente algum episodio do seu passado, a que ella estava
ligada.

--Lá vae aquella faia!--dizia elle, com intensa melancolia--pobre velha!
Era á tua sombra que meu pae me ensinava a ler! Encostava-se áquelle
tronco sobre a grossa raiz que elle tem á flor da terra e pegando em mim
ao collo, guiava-me nas primeiras lições! E viver eu para te vêr cair!

E, ao perceber-lhe balançar as sumidades, o velho fechou os olhos
instinctivamente. Cêdo ouviu um estrondo... Quando os abriu, estava por
terra a faia.

--Agora é a tua vez, pobre carvalho!--dizia algum tempo depois--muito
queria minha mãe áquella arvore! Por suas mãos a plantou bem tenra.
Nunca me sentei áquella sombra, que me não lembrasse da santa mulher!
Parecia que eram vozes tuas, que m'a recordavam, infeliz! Barbaros! Olha
com que desamor a decepam! Perdôa-me, meu velho amigo, mas bem vês que
te não posso valer.

E o carvalho caíu.

--Eil-os agora comtigo, cerdeira. Mal adivinhavas tu, quando o anno
passado te enfeitavas com aquellas cerejas escarlates, que tanto
cubiçavam as creanças, que pela ultima vez o fazias!... Adeus, pobre
amiga, adeus.

E caía a cerdeira tambem.

E caíam, uma após outra, todas as arvores do quintal, os limoeiros, as
nogueiras, os salgueiros e toda a familia vegetal do velho Vicente, que
sentia ir-se-lhe com ella a alma. Memorias de infancia, sonhos de
juventude, e reminiscencias de velho, como aves invisiveis, occultas nas
copas d'aquellas arvores, surgiam agora, espavoridas e desnorteadas, a
procurar o refugio que não encontravam fóra dalli.

Por outro lado os delicados sentimentos do herbanario eram dolorosamente
feridos, ao desmoronarem-se as paredes d'aquella pequena casa, onde elle
envelhecêra e contava morrer, e ao patentear-se indiscretamente aos
olhos irreverentes e curiosos do povo aquelle recatado asylo.

A demolição proseguia com ardor e actividade. Em pouco tempo, só
restavam da casa os muros, meio derrocados; e, no quintal, a serra e o
machado principiavam a exercer no tronco da ultima arvore a sua obra
destruidora. Era o castanheiro da entrada, gigante de outro seculo, que
desafiára os raios de muitos invernos successivos.

A exaltação do herbanario cresceu n'aquelle momento. Ergueu-se, pallido
e trémulo, apoiou-se no hombro de Augusto, murmurando:

--Tambem o castanheiro! Já era arvore quando eu nasci! Como elles se
encarniçam contra elle! Mas não te parece, Augusto, que não soffre muito
o castanheiro?... Sabes? É que elle já não agradeceria a vida, porque
tinha de viver assim desamparado dos seus outros companheiros, que vê
caídos no chão... Tarda-lhe talvez o deitar-se ao lado d'elles... É como
eu.

O castanheiro principiou a oscillar.

--Repara--disse o herbanario, cada vez em tom mais baixo, e apertando o
braço de Augusto.--Elle já treme! Não vês!... Lá lhe deitam a corda...
Vae cair!... Parece-me que estou a sentir aquelle estalar de fibras...

E a arvore caíu com fragor no chão, que por tanto tempo cobrira de
sombras.

Estava ultimada a obra.

O herbanario encostou a cabeça ao hombro de Augusto e rompeu em soluços.

--Então, tio Vicente, tenha animo--dizia-lhe Augusto, igualmente
commovido.

--Se tu soubesses, Augusto, o que eu estou sentindo! Olhar para acolá e
não ver em pé uma só das arvores que eu conheci em pequeno! Parece-me um
sonho isto, um sonho de afflicção! Sinto-me tão só no mundo! Ai! se a
morte me ferisse agora!

A dor, a saudade e o desalento davam uma uncção de poesia elegiaca á
figura, ao gesto e ás palavras do velho, que desvanecia tudo o que
n'elle pudésse haver, nas situações ordinarias da vida, capaz de
desafiar um sorriso nos labios de quem o observasse friamente.

Conceda-se uma lagrima a estas obscuras victimas dos progressos
materiaes, lagrima que não importa uma ironia á civilisação. Exalte-se
embora a rapida carreira da locomotiva, que atravessa, como meteoro, as
povoações e os êrmos; mas não seja isso motivo para condemnar a
compaixão pela violeta dos campos, que as rodas deixaram esmagada á
beira do carril. Inda quando um vencedor tem um papel providencial a
cumprir, e o seu triumpho seja uma obra de redempção, o vencido, desde
que cáe, tem direito a um olhar compassivo, a uma lagrima de saudade.
Não tenteis a louca empresa de anniquilar o sentimento, espiritos áridos
que infundadamente o temeis, como coisa desconhecida á vossa alma sêcca
e esteril. Quem devéras confia nos destinos da humanidade não tem mêdo
das lagrimas. Pode-se triumphar com ellas nos olhos.

Passado algum tempo, e quando já as sombras da noite se condensavam nos
valles e subiam lentamente as encostas dos outeiros, o velho disse para
Augusto:

--Agora que não tenho casa, dá-me por alguns dias o abrigo da tua.

--Por alguns dias?--repetiu Augusto, admirado.--Pois quer deixar-me
depois!

--Quero. Vou com ellas.

E apontou, ao dizer isto, para as arvores derrubadas.

Atravessaram a aldeia á hora a que vibravam nos ares os sons
melancolicos das Avé-Marias.

Em silencio chegaram a casa de Augusto, agora commum para os dois.

--Mettes em tua casa um triste hospede, pobre rapaz!--disse o
herbanario, ao transpor o limiar.--Má companhia te fará a minha velhice.

--Boa companhia me faz sempre a sua amizade, tio Vicente. Nem a sua
presença podia desalentar quem na mocidade é mais fraco e desalentado do
que ninguem o pode ser na velhice.

--Custou-me muito este golpe de hoje! Não contava com elle! Desde hontem
envelheci muitos annos. Podes crêl-o.

Quando Augusto ia a replicar, interrompeu-o uma voz que dizia de fóra da
porta:

--Dão licença?

E no limiar appareceu a figura do mestre Pertunhas, animada de cordiaes
sorrisos.

O herbanario e Augusto não reprimiram um gesto de impaciencia.

O homem entrou.

--Ora Deus seja aqui! Tão grande é o dia como a romaria, sr. Augusto!
Ainda ninguem o viu hoje!... Disseram-me que tinha ido de manhã para
casa do tio Vicente; vou lá... estava um mundo de gente no sitio... Mas
qual sr. Augusto, nem tio Vicente! Então com que escorraçaram-n'o do seu
ninho?... Pobre homem! A falar verdade, n'essa idade! Já sei que vem
para casa do nosso Augusto. Hontem vi para ahi entrar os fardeis. Ainda
bem que o temos por vizinho... Faremos boa camaradagem... Olhe que
tambem fizeram-n'a fresca com o tal projecto de estrada! Uma coisa
assim!... Coisas cá do sr. conselheiro! Vae-se fundir um dinheirão na
tal estrada! E já por ahi se rosnam coisas! Emfim, politicos! politicos!
Todos são os mesmos... Vae por ahi uma poeira dos meus peccados com a
ordem a respeito do cemiterio; e com a historia do Herodes! Sabem que
elle esteve hontem para matar o missionario?... E valha a verdade, dizem
que por ordem de alguem do Mosteiro... Que eu não acredito, mas emfim,
aquella historia no sermão do outro dia... E o tal sr. Henrique, que é
unha e carne com elles... Elle será muito boa pessoa, mas não me
calha... Lá feliz, isso como não sei de outro, com dinheiro e sem
cuidados! E sempre se faz o casamento d'elle com a morgadinha?... Ouvi
dizer que sim.

O herbanario levantou os olhos para fitar Augusto; a apparente
impassibilidade d'este não illudiu o velho.

O Pertunhas não se exgotára ainda:

--Ora agora, quem anda fulo é o brazileiro, o Seabra. Pelos modos, eu
não sei o que ahi houve; o conselheiro não o tratou muito bem, dizem,
n'uma carta que escreveu ao ministro, ou creatura do ministro. Umas
historias muito complicadas, que eu não entendo, mas que promettem dar
de si... Veremos em que ficam as eleições este anno... O conselheiro bem
pode trabalhar, senão... Elle cuidava que era só apresentar-se, e
emquanto a fazer vontades... Que me dizem do sr. Joãozinho das Perdizes?
Será fiel esse? Já me disseram tambem que...

--Ó sr. Pertunhas,--atalhou o herbanario, enfastiado--antes queremos não
saber. Importa-nos pouco a politica.

--Estão como eu... Isto tambem não é politica, mas emfim... Pelo que
vejo estão cançados? Eu tambem não os maço mais... E antes que me
esqueça, ha muitas horas que estou de posse de uma carta para vossemecê,
tio Vicente. É de Lisboa, veio por o correio de hoje. Não lh'a mandei a
casa, porque... não sabia o que era feito d'ella. Eh, eh, eh... Mas como
o vi passar, conjecturei que viria para aqui, e por isso...

O herbanario recebeu a carta, que o mestre Pertunhas lhe deu, e olhando
para o sobrescripto, disse com indifferença:

--É do Manoel.

E abriu-a lentamente.

O mestre de latim deixou-se ficar, na esperança de ouvir novidades.

A meio da leitura o herbanario ergueu-se com impeto e exclamou, cheio de
indignação e de colera:

--Mentiu-me como um vil! Mentiu-me aquelle homem sem dignidade nem
sentimentos! Aquelle homem importa-se menos com a felicidade dos amigos,
com a justiça das causas e com a voz da propria consciencia, do que com
os caprichos e interesses dos poderosos com quem vive!

--Mas que é?--perguntou Augusto, sem atinar com a significação
d'aquellas palavras.

--Lê.

E passou a carta para as mãos de Augusto.

O conselheiro participava n'esta carta ao herbanario que se vira
obrigado a ceder, na questão do despacho de Augusto, a fortes
influencias que se empenhavam n'isto muito mais do que elle julgava; que
mais tarde lhe explicaria tudo. Quanto a Augusto, accrescentava elle,
talvez fôsse isto até uma vantagem; que o logar que pedia era a sua
annullação perpetua, e que elle, conselheiro, havia de luctar contra a
grande modestia do rapaz, trazendo-lhe á luz os merecimentos reaes,
dando-lhe melhor collocação, e que esperava ainda empregal-o na capital.

Era uma carta toda de homem politico, que tudo espera da diplomacia.

Ao acabar de ler, Augusto disse, com um sorriso amargo nos labios:

--Eu sou pouco ambicioso; contento-me com morrer aqui.

--A mim me deu elle, ao partir, a sua palavra de que te faria despachar,
e breve; e quebrou-a como um pêrro! Oh! o que fizeram d'aquelle homem!

--Quê?! Pois é possivel?--perguntou, exaggerando a sua consternação e
espanto, o officioso Pertunhas.--É possível que o sr. Augusto não fôsse
despachado?!

E dizendo isto, passou a desfiar uma série de consolações, qual d'ellas
mais tôla e sem cabimento.

Até que emfim, tendo já novidades para contar, e almejando communical-as
aos frequentadores da taberna do Canada, onde devia estar reunida grande
e luzida assembleia, o Pertunhas saiu, a pretexto de não ser mais tempo
incómmodo, e deixou-os outra vez sós.

--Estão-me guardados para o fim da vida todos os desenganos! todas as
amarguras! todos os desesperos!...--disse o herbanario momentos
depois.--É para se odiar o mundo e os homens vêr um, que conhecemos
generoso e innocente, contaminado tambem!... Pobre Augusto! Não basta
que sejam modestos os teus desejos... nem assim t'os deixam realisar.

Guardados alguns momentos de silencio, continuou, com amargo sarcasmo:

--Por que te não fazes politico? Por que não vaes tambem para a taberna
do Canada dizer tolices sobre a governança do paiz? Talvez levasses
comtigo alguns tôlos, e tinhas n'isso uma recommendação poderosa. Olha
para aquelle basbaque do morgado das Perdizes... ahi tens um
influente... Imita-o... Mas dize: o que tencionas fazer?

--Ficar--respondeu Augusto, com firmeza.

O herbanario fixou-o com um olhar penetrante.

--Ainda?... Mas... não te vae ser suave agora a vida, rapaz. Para se
viver não basta uma... uma loucura. Repara bem. Se quizeres... O Manoel
é leviano, mas creio que ainda não perverso; eu lhe escreverei... talvez
que em Lisboa...

--Não lhe escreva. Sabe que não partiria para Lisboa...

--Mas... repara!... Estás muito novo, Augusto... Tens um longo futuro
deante de ti. E, ficando, o que te espera?...

--A morte que fôsse, a morte de miseria e de fome, ficava. Mas resta-me
ainda o trabalho. Tenho coragem para acceital-o.

O herbanario baixou a cabeça, pensativo.

Soaram n'isto á porta da sala duas pancadas lentas.

O herbanario fez um gesto de enfado.

--Não abras sem eu sair,--disse elle a Augusto, que se erguera--não
estou de animo para aturar importunos.

E passou para uma sala contigua.

Augusto foi abrir ao novo visitante.

Achou-se na presença do brazileiro Seabra.

A grave personagem entrou pausada e sisuda, como homem que sabe fazer
valer a honra que dispensa, visitando um rapaz sem dinheiro.

Augusto offereceu-lhe cadeira para se sentar, sem inquirir do motivo de
tão inesperada visita. O brazileiro sentou-se e principiou:

--Acabo agora mesmo de saber da injustiça que lhe fizeram. Senti-a como
se fôra propria, e venho aqui declarar-lh'o.

Augusto curvou-se, em signal de agradecimento.

--Mas então que quer?--proseguiu o homem.--Hoje em dia é tudo assim.
Padrinhos e mais padrinhos, e o mais são historias. Estamos n'uma época
de corrupção e de immoralidades, e ninguem sabe onde isto irá parar.

Augusto ouviu em silencio os threnos do capitalista, que proseguiu:

--Tôlo é quem não faz como os mais. O mundo está para os velhacos.

Parou, assoou-se, tossiu, e puxando a cadeira para mais perto da de
Augusto, continuou, em tom differente e mais baixo:

--Quando um homem tem uma gotta de sangue nas veias não pode receber as
offensas e ficar-se com ellas assim. O perdão evangelico é muito bonito,
mas não é para homens. Não lhe parece? Eu por mim não gósto de genios de
lama. Falemos como amigos. Nós ambos somos victimas de um mesmo homem. O
sr. Augusto foi enganado e escarnecido por o conselheiro, que se
apregoava seu protector. Ahi temos a protecção que elle lhe deu. Eu
tambem lhe devo finezas.

--V. s.^a?--perguntou Augusto, que não podia saber o que lhe queria no
fim de tudo o brazileiro.

--Eu, sim, senhor. Eu lhe digo como isto foi.

E o brazileiro, puxando a cadeira, approximou-se mais de Augusto, e deu
principio á exposição dos seus aggravos:

--O conselheiro, que joga em politica com pau de dois bicos, andou-me a
causticar, para que eu acceitasse um titulo qualquer... Queria fazer-me
visconde por fôrça. Coisas de que eu me estou rindo... Mas... emfim,
para me livrar d'aquelle importuno, disse-lhe que... fizesse lá o que
quizesse... Pois, senhores, não teve o petulante o atrevimento de
escrever ao ministro, com quem, apesar de se dizer da opposição, mantem
aturada correspondencia; não teve a audacia de lhe dizer que eu andava
sonhando com viscondados, e que a minha mania era attendivel, pois
promettia ser uma fonte de melhoramentos locaes muito baratos ao Estado,
visto que com tão pouco me contentava, e outras coisas n'este gôsto? O
petulante!...

Augusto, apesar dos pensamentos pouco alegres que o preoccupavam,
luctava para se conservar sério perante aquella indignação do sr.
Seabra.

--Mas tem a certeza d'isso?--perguntou elle.--Ás vezes são calumnias...

--Eu vi a carta do ministro em resposta a esta; do ministro não, mas do
secretario, que é o mesmo... Um acaso fez com que ella me chegasse á
mão... O ministro fazia-me o favor de me conceder o titulo; mas era de
parecer que, por cautela, se tirasse antes de mim tudo quanto eu pudésse
dar, porque... porque... por umas tolices de que eu me lembrei a
tempo... Ora ahi tem como elles são!... Que venham para cá com os seus
melhoramentos... Eu lh'as cantarei; prometto-lhes que se hão de
arrepender.

--Mas... talvez haja equivoco.

--Equivoco? Ora essa! Pois eu não li a carta? Ella ha de apparecer em
publico; oh! se ha de! Isto é, não a parte que me diz respeito,
porque... porque emfim são negocios particulares, que não interessam a
terceiros; mas umas ultimas linhas d'ella, umas promessas do ministro,
que põem a calva á mostra a este Catão, que nos anda aqui a prégar
liberdade e independencia! Isso ha de apparecer, e ha de ser lido com
muita vontade.

--Acaso tenciona?...

--Se tenciono?! Pudéra não! Eu lhe afianço que o homem ha de saber com
quem se metteu. Deixe vir as eleições, deixe-as vir. Já ha de achar o
caldo azedado, quando quizer comel-o; isso lhe prometto eu... A lição ha
de leval-a breve.

--Vão guerrear a eleição do conselheiro?

--Faço essa tenção.

--E quem lhe oppõem?

--O candidato que a auctoridade propuzer; um individuo de Lisboa.

--Que nem o circulo conhece?

--Que importa? É uma lição. Aqui não ha politica nem meia politica. Eu
não morro pelo governo, porque eu tambem fui offendido pelo ministro.
Mas é preciso aproveitar tudo. E assim temos por nós a auctoridade, além
dos padres.

Augusto não se sentia com disposições para discutir esta questão
politica; por isso nada mais lhe replicou.

O Seabra proseguiu:

--O que eu quero saber é se o amigo quer entrar na nossa alliança e
acceita uma proposta que eu lhe vou fazer. A vingança é o prazer dos
deuses, e visto que foi tambem offendido...

--Não, senhor, não acceito--acudiu com vivacidade Augusto.

--Escute. Deixe-me concluir. Não sabe do que falo. Pouco se exige. A
coisa é esta: na carta a que me referi, e que por acaso me chegou ás
mãos, fala-se n'uma outra, ou em outras anteriores, em que se tratava,
mais por miudo, de uma curiosa transacção politica que n'esta se revela
claro. O conselheiro é pouco acautelado; haja vista ao extravio d'esta,
e por isso...

Augusto olhava admirado para o brazileiro, como se não pudésse
comprehender onde elle queria chegar.

O Seabra proseguiu:

--Ora, a mim lembrou-me... como o senhor vae muito pelo Mosteiro... sim,
porque julgo que continúa a ensinar os pequenos, e, já se sabe... como
mestre, entrando a qualquer hora no mais intimo da casa, sim... demais
como a D. Victoria é... um tanto descuidada, como todos nós sabemos...
Não sei se me percebe?... Dizia eu... sim, que se ás vezes, por acaso,
encontrasse coisa que valesse...

Augusto levantou-se, indignado.

--Sr. Seabra!--exclamou, cheio de cólera.

--Valha-me Deus, eu não quero dizer... Não me entendeu... Bem vê que se
o senhor devesse obrigações ao conselheiro, eu não ousava... Mas...

--Obsequeia-me muito, sr. Seabra, se não insistir...

--Entendamo-nos. O senhor está no principio da vida. Precisa do auxilio
de alguem. Offerece-se-lhe occasião para fazer serviços ao governo, que
é finalmente quem pode pagal-os; e que se lhe pede para isso? Quasi
nada... O senhor sabe perfeitamente que se não trata aqui de desgraçar
ninguem, de levar ninguem á forca.

--Visto que v. s.^a insiste, sou obrigado a retirar-me.

--Espere, sr. Augusto--acudiu o brazileiro, segurando-o.--Repare no que
faz. Não seja precipitado. Eu estou prompto a fazer alguns sacrificios,
se vir que nas suas circumstancias...

--Visto que v. s.^a não se cala, nem quer que eu me retire, ouça então o
que tenho para lhe dizer. A sua proposta seria para mim o maior dos
insultos, se não fôsse tal a baixeza d'ella, que até despe de toda a
imputação a pessoa que a faz. Os homens, faltos de sentimentos de honra,
não offendem, quando insultam; não se lhes pode pedir razão da infamia,
porque não a conhecem como tal; identificaram-se com ella. Por isso, só
me resta um partido, é convidal-o a sair.

O brazileiro fôra erguendo-se á medida que Augusto falava. Estava
espantado por vêr que um rapaz, sem um vintem de seu, ousasse falar com
tal irreverencia a um homem que tinha dinheiro e crédito em tantos
bancos! A ordem do mundo estava perturbada!

--Ora esta!--disse elle no fim.--Então o senhor ordena-me?...

--Que saia!--respondeu Augusto, indicando-lhe a porta.

O brazileiro estava pasmado. Olhou para Augusto como se duvidasse do que
ouvia; deu dois passos para a porta e tornou a olhar, seguiu outra vez,
e, no limiar, parou para dizer:

--Veja lá o que faz! Eu só lhe digo que me não convem dar a minhas
filhas um mestre de soberbas.

--Decerto que lhe não poderá convir a educação que eu désse a suas
filhas; é natural não querer educar consciencias que sejam juizes da sua
corrupção. Deixe-as ignorantes, para não ser castigado pelo desprezo
d'ellas.

--Quer então dizer...

--Que lhe desejo muito boas noites, sr. Seabra.

O brazileiro saiu, bufando.

Augusto, que ficára só, sentiu-se apertar nos braços de alguem que
entrou, sem elle sentir.

Era o herbanario.

--É assim, é assim que te vingas de todos, rapaz! Esmaga-m'os com a tua
nobreza!

Augusto sorriu-se tristemente.

--O peor é, meu amigo--disse elle--que é a segunda subtracção que hoje
se opéra no meu orçamento, e... a nobreza não nutre!

--Mas consola!--replicou o velho.




XXII


Dias depois das scenas descriptas no anterior capitulo, estava a
morgadinha occupada a escrever n'uma das salas do Mosteiro, quando ouviu
atraz de si correr o reposteiro da entrada.

Julgando que era algum criado, nem se voltou e proseguiu na escripta.

--Retiro-me, se sou importuno--disse a pessoa que entrára, e que ficára
no limiar da porta.

Magdalena voltou-se então e reconheceu Henrique de Souzellas.

--Ah! é o primo Henrique? Pode entrar.

--Eu sei? Ha correspondencias tão delicadas, que demandam a applicação
de todas as nossas faculdades, e a presença de um importuno...

--Mas não se dá agora esse caso; nem quanto á delicadeza da
correspondencia, nem quanto á importunidade do visitante.

--Então utiliso-me da concessão.

--Occupava-me a escrever áquelle pobre Cancella, para o tranquillisar em
relação á filha. Pobre homem! Ainda se lhe não pôde obter fiança, apesar
de meu pae tratar d'isso, a pedido meu. Ha quem trabalhe contra elle. E
como ha de ter padecido na cadeia na incerteza em que está? Quem ha de
dizer que n'aquelle corpo, robusto e forte, se aloja uma alma de tão
delicados sentimentos? Inda lhe hei de mostrar a carta que elle escreve
a pedir-me que trouxesse para o Mosteiro a filha, e a tirasse de casa da
madrinha, que com o seu fanatismo a perdeu... É um modelo para seguir.

--E como vae a pequena?

--Mal. Estou aqui a mentir, fazendo conceber áquelle pobre homem
esperanças, que eu mesma não tenho.

--Que disse o cirurgião?

--Nada animador.

--Como capitulou a molestia?

--Não sei quê de cerebro; nem eu quiz saber. Nunca pude comprehender a
necessidade que tem certa gente de conhecer a natureza da doença que
lhes ameaça roubar uma pessoa querida. Perdel-a ou salval-a, é a questão
que me interessa. Tudo o mais me é indifferente. N'uma pessoa doente
vejo um espirito que hesita entre deixar-me e permanecer. Aos medicos
peço que removam, se podem, aquillo que o faz partir, mas não quero
saber o que é. Julgo natural ao sentimento o considerar assim a molestia
e a morte.

--Á maneira da arte, ainda que hoje o diagnostico entrou na litteratura,
prima. Mas a proposito do Herodes; deixe-me dizer-lhe que está sendo
muito commentada na aldeia a violencia d'elle contra o missionario. É
voz constante que fizera aquillo por influencia nossa, e as honras
d'aquella bem empregada sóva são-nos tambem concedidas inteiras. Imagine
o clamor que por ahi vae!

--Deixe clamar--respondeu Magdalena, encolhendo os hombros.

--Deixo, deixo. Eu sou odiado como um Lucifer, feito homem; seguem-me,
quando eu passo, uns olhos rancorosos, e adivinho que na ausencia não
sou muito bem tratado.

--É bom acautelar-se. Não os irrite. Viu que não era prudente.

--Não receie. Esta gente a final é cobarde.

--Tanto peor. O inimigo cobarde é mais para temer. Bem sabe. Foi uma
desastrada ideia aquella da nossa ida ao sermão do missionario.

--Parece-lhe? Eu não estou arrependido. Bastava-me, como recompensa, o
ter presenciado o accesso de furor rabico do homem.

--Vamos, primo Henrique; confessemos que a situação não foi das mais
agradaveis.

--Sinto-a, principalmente por o incómmodo que tiveram as senhoras e
talvez por esse episodio dar vigor á opposição, que alguem por ahi se
interessa em organisar contra o sr. conselheiro.

--Ah! pois trata-se d'isso?

--Se se trata?! E muito sériamente. A portaria a respeito do cemiterio,
a historia do sermão, e agora o episodio do Cancella, teem feito um
grande mal.

--Oh! se meu pae perdia!...

--Não entendo essa exclamação, prima Magdalena. Ia jurar que era a
expressão de um desejo.

--E por que não? Se isso fôsse motivo para meu pae abandonar de uma vez
para sempre a politica, pedil-o-hia a Deus.

--Conhece pouco ainda o coração humano, prima. Seu pae está votado á
politica para toda a vida. Desengane-se. E se o prendesse n'esta aldeia,
aqui mesmo faria a mais deploravel, impertinente e inutil de todas as
politicas, a politica local.

A morgadinha suspirou, como se reconhecesse a verdade que Henrique
dizia.

Henrique proseguiu:

--Está organisado um club opposicionista na taberna de um tal Canada. O
brazileiro capitaneia a phalange, os padres são os tribunos e a
propaganda estende-se assustadoramente. É preciso olhar por isto e
sobretudo não perder de vista o sr. Joãozinho das Perdizes, cujo voto
seu pae tinha em grande conta, porque representa o de uma freguezia
inteira. É de suppor que o requestem muito e... o homem é fragil. Já vê,
prima, que eu tomo muito a sério os preceitos hygienicos, que me deu o
meu medico, quando parti de Lisboa, e que a prima approvou. Estou a
interessar-me pelas questões locaes, como se aqui estivesse, ha annos.

--E é um bom indicio de cura, pode crer.

--E ainda tem empenho de me curar?

--Empenho, todo; esperança é que menos.

--Ó meu Deus! que sinceridade de medico tão cruel! Seja; escutarei a
sentença com coragem. Diga-me o que pensa de mim. Ha muito que não
falamos n'isto. A ultima vez que o fizemos, um tanto categoricamente,
foi n'uma occasião bem critica. Julgo que o meu procedimento de então
até hoje lhe terá feito conceber do meu caracter um não muito
desfavoravel conceito. Bem vê que não abusei...

--De quê?--perguntou Magdalena, contrahindo a fronte, n'um gesto de
altivez.--É certo que tem em todo esse tempo dado provas de discreção,
no que se mostrou mais contricto que generoso. Pelo menos é assim que eu
interpretei o seu silencio, e approvo-o em vez de agradecel-o.

--Seja contricção, visto que assim o quer. Mas não lhe merecerá ella
alguma misericordia para com o peccádor?

--Escute. Sinto sincera misericordia de si, pode acredital-o. Ella só me
obriga a perdoar-lhe algumas impertinencias, nem sempre demasiado
delicadas, com que me mortifica.

--Está sendo tão amavel!...

--Perdôe, mas a sinceridade tem d'estas exigencias.

--Curvo-me perante as exigencias da sinceridade. Continue, prima
Magdalena.

--Vae mais longe ainda a minha misericordia, porque apesar da rebeldia
do mal, inda não desisti de cural-o.

--Inda bem. E como? Ser-me-ha licito penetrar no segredo do tratamento?

--Ha já agora uma unica maneira de o salvar.

--E é?...

--Apaixonal-o.

--Ah! n'esse caso estou salvo!--exclamou Henrique, n'um impeto, que não
pôde passar sem um sorriso da morgadinha.

--Ouça. É preciso andar com tento na escolha do objecto d'essa paixão,
sob pena de aggravar o mal em vez de minoral-o.

--E como hei de escolher?

-De modo que lisonjeie a opinião que o primo tem de si proprio.

--A opinião que eu tenho de mim! Se pudésse ser mais clara...

--De boa vontade. O primo Henrique tem uma forte necessidade de
persuadir-se de que representa no mundo um grande papel, uma missão
heroica e generosa, quasi providencial. Exigencias de uma vaidade de boa
indole, que se lhe não pode levar a mal. Repugna-lhe a ideia da
inutilidade, da insignificancia da sua existencia. Não se resigna ao
papel de comparsa, ambiciona o de protector. Se o acaso, ou uma
inconsideração de momento, o associasse, por toda a vida, a um caracter
igualmente forte, que, em constante opposicão, pretendesse provar-lhe
que prescindia da sua protecção, grandes desgostos e amarguras o
esperavam no futuro. Uma indole branda, docil, fraca, um d'estes seres
nervosamente delicados, que tremem ao verem-se sós, cheios de poeticas
superstições, que tenha a dissipar; que se lhe apoie ao braço, como se
n'elle encontrasse a coragem que não sente em si, e que, ao mesmo tempo,
domine pela fraqueza e pela doçura, domine sem consciencia do imperio
que exerce e sem vaidade, portanto; um caracter d'estes é que deve
procurar para salvar-se; só d'elle pode esperar a realisação da vaga
ideia de felicidade, que todos concebem na vida.

--E se essa theoria engenhosa fôsse verdadeira, parece-lhe que poderia
encontrar á mão o tal anjo salvador, que precisa do meu braço para se
apoiar?

--Julgo que pode, e que já o teria encontrado, se pensasse sériamente
nas necessidades do seu coração.

Henrique ia a responder, quando entrou na sala um criado com as cartas
do correio.

--Trégoas á nossa conferencia, emquanto eu leio a carta de meu
pae--disse Magdalena, examinando a carta recebida.

--Concedidas, e eu aproveito-as para correr a vista pelos periodicos que
chegaram.

E emquanto Magdalena lia a carta, Henrique passava pelos olhos as folhas
de Lisboa.

Não tinham decorrido muitos instantes, quando a morgadinha interrompeu a
leitura, exclamando:

--Ó meu Deus! mas de que se trata? Que quer dizer isto?

Ao ouvir estas palavras, Henrique desviou para ella os olhos.

Viu-a agitada e lendo com vivacidade e commoção a carta do conselheiro.

--Ha alguma má nova?--perguntou Henrique, ferido por aquella expressão.

Antes, porém, de responder-lhe, a morgadinha seguiu com ardor a leitura
até o fim.

Henrique continuava a observal-a e cada vez mais evidentes descobria
n'ella os signaes de uma funda agitação. Ao findar a leitura, passou a
mão pela fronte como para desviar uma ideia amarga.

--Por amor de Deus, prima Magdalena, que diz essa carta, para assim a
perturbar?--perguntou Henrique, já assustado tambem.

--Não sei bem; não posso ainda dizer a que se refere meu pae; mas
sinto-me interiormente sobresaltada, como se o adivinhasse.

--Mas a final o que se diz ahi?

--Leia, e veja se, melhor do que eu, pode comprehender esse enigma, por
certo doloroso.

Henrique examinou a carta, que a morgadinha lhe passou para as mãos.

N'esta carta queixava-se o conselheiro á filha de ter sido victima de um
abuso de confiança commettido por alguem, que elle ainda não sabia dizer
quem fôsse. N'um periodico de Lisboa fôra publicada por aquelles dias
uma carta dirigida tempos antes ao conselheiro por não menor personagem
politica do que o secretario intimo do ministro.

O proprio conselheiro confessava ser esta carta demasiado
compromettedora, e assim tambem o demonstrava a excepcional irritação
que transparecia em todos os periodos, da que escrevêra á filha. O
periodico que, para fins politicos, fizera a publicação, havia occultado
os nomes, porém muitas circumstancias referidas tornavam inutil a
discreção; e em Lisboa ninguem hesitou em aprontar as personagens entre
quem se passara o facto. Durante uma das suas demoras na aldeia,
recebêra o conselheiro essa carta; alli, no seio da familia, a confiança
que depositava em quantos o rodeavam impediu-o de ser previdente, como
por hábito o era; facil foi portanto o extravio. O conselheiro dizia á
filha que era preciso descobrir o traidor, para evitar futuros abusos; e
por isso, que se lembrasse de que o alcance da carta não era para todos
comprehendel-o, e portanto não se limitasse a indagar entre os da baixa
classe. «A vingança, concluia o conselheiro, de uma maneira mysteriosa,
como de quem deseja e receia, ao mesmo tempo, fazer uma allusão--a
vingança, bem ou mal fundada, obriga ás vezes os mais nobres caracteres
a uma acção baixa e vil; entre os que por mim se possam julgar
offendidos, é natural encontrar o criminoso.»

--Esclareça-me este mysterio! disse Magdalena, consternada.--De que se
trata aqui?

--Alguma correspondencia politica extraviada. Seu pae diz bem; é
necessario descobrir o traidor por cautela. Além de que, para todos os
que, como eu, teem entrada n'esta casa, é isto um mysterio em que a
nossa honra está empenhada, porque v. ex.^{as} teem direito a alimentar
suspeitas.

-Por amor de Deus!--acudiu, interrompendo-o, a morgadinha.--Não
pronuncie essa palavra! Suspeitas! Esse envenenamento moral, que eu até
aqui não conheci, quer meu pae que voluntariamente o contraia.

--Seja envenenamento, muito embora, mas é um envenenamento salvador,
prima, como o da vaccina; é um preservativo de traição.

--Viver para desconfiar! procurar nas palavras que se ouvem um sentido
occulto! nos gestos uma expressão denunciadora! nos affectos uma
intenção egoista! Oh! isto é horrivel! Mas... que carta é essa, meu
Deus? Que correspondencia pode ter meu pae, que não deva vêr a luz do
dia? Meu pae!... Ha por fôrça illusão n'isto! Meu pae não tem crimes;
meu pae não tem acções que o envergonhem; meu pae pode franquear a todos
as portas da sua casa sem receiar-se de indiscreções. Pois não é assim?

--Por certo, prima; mas... na politica ha actos que... sem serem
criminosos...

--A politica! Sim, é isso! Eu devia prevêr que essa palavra viria para
explicar este mysterio! Por politica é-se cruel, por politica
sacrifica-se um amigo, por politica força-se a consciencia, e depois...
ella justifica tudo. Que obras são as obras politicas que precisam da
sombra e do mysterio para se fazerem? Pois para dirigir ou salvar uma
nação, pois para se tratar dos interesses de um povo, é sempre
necessario o disfarce, a dissimulação, o mysterio?

--Quando se não pode contar com a boa fé dos outros, perde sempre quem
fôr escrupulosamente fiel á sua.

--Mais valeria então abandonar por uma vez essa carreira cruel... Oh!
ainda agora reparo... Tem ahi as folhas de Lisboa... deixe-m'as vêr...
quero saber que carta é esta.

Henrique procurou dissuadil-a. Um numero avulso de um periodico, que não
costumava vir ao Mosteiro, havia-lhe já feito suspeitar que era esse o
que publicava a carta em questão. Não fazendo do conselheiro tão subido
e ideal conceito como a morgadinha, achava muito natural que
effectivamente o comprometesse a carta alludida. Conhecendo bastante
Magdalena, sabia quanto seria cruel para o seu extremoso coração de
filha, e para o seu caracter apaixonado por tudo quanto era idealmente
nobre, generoso e justo, o descobrir no pae uma d'essas máculas
frequentes na vida dos homens politicos, por minima e desvanecida que
fôsse. Por isso quiz evitar-lhe a leitura. Não o conseguiu, porém.
Magdalena, com aquella firmeza de resolução que energicamente se lhe
revelava na voz e no gesto, disse, estendendo a mão para receber os
periodicos:

--Deixe-me vêr, primo Henrique. Não é possivel que de meu pae se diga
ahi alguma coisa que não devam ler os olhos de uma filha.

E quasi arrebatou das mãos de Henrique a folha, justamente aquella de
que elle mais receiava.

E, abrindo-a, examinou-a com anciedade quasi febril.

Henrique observava com curiosidade os movimentos e a physionomia de
Magdalena.

Viu-a tornar-se de repente mais attenta á leitura; os olhos, que até
alli vagueavam por diversas secções do periodico, fixaram-se n'um ponto;
contrahiu-se-lhe a fronte; um ligeiro tremor correu-lhe os labios; córou
e empallideceu alternadamente; e no fim, afastando de si a folha com um
movimento nervoso e apaixonado, exclamou, sob o dominio de uma commoção
profunda:

--Ó meu Deus! E não ter um coração, como o d'elle, a fôrça precisa para
fugir d'estes enredos! Isto é de enlouquecer!...

Henrique pegou na folha, que ella arrojou de si com impeto, e
examinou-a.

Tinha conjecturado bem.

O caso devia consternar Magdalena, para quem o conselheiro era um homem
tão perfeito na vida politica e na vida social, como na vida de familia.
Para Henrique, em quem havia muito se inoculára o scepticismo da época,
impedindo-o de divinisar os homens, por mais rodeados de prestigios que
lhe apparecessem, não tinha o facto de que se tratava grande
significação nem gravidade. O caso era o seguinte:

Tempos antes havia-se agitado nas camaras uma importante questão
politica; uma d'estas questões que servem para estremar os campos e
descriminar os programmas dos partidos. Vacillar n'ellas é já trahir os
principios fundamentaes de uma causa, e abjurar um credo politico
inteiro. O pae de Magdalena, militando no partido de mais avançadas
ideias liberaes, tinha de antemão traçado por elle o caminho a seguir
n'esta conjunctura, o circulo, fóra do qual não poderia combater sem
apostasia; mas, como já atraz dissemos, o conselheiro não era já o homem
que fôra nos primeiros tempos da sua carreira publica; perdera a fé nas
utopias e nos principios abstractos, e trocava-os de barato por qualquer
pequena vantagem positiva que pudésse obter, se não para si, para a
localidade de que era representante. A logica partidaria sacrificára-a,
sem remorsos, mais do que uma vez, ao que, em linguagem não sei se
parlamentar, se chama conveniencias politicas.

Déra-se mais um exemplo d'esta flexibilidade de principios no
conselheiro.

Comquanto membro da opposicão, e dos mais temidos pela sua eloquencia,
variados conhecimentos e vigor de discussão, não era elle de tão
espinhosa moral que não tivesse amigos no seio da maioria, sendo até o
proprio ministro um dos mais intimos. No tempo da discussão, de que
falamos, o ministro, que desejava afastar das camaras todos os
adversarios de importancia, não duvidou entrar em ajustes com o
conselheiro. Este, que já não era homem para repellir com indignação
taes factos, teve a astucia precisa para se aproveitar das
contingencias. Entenderam-se.

Chegada a época da discussão, o conselheiro, que sempre se mostrou
ardente adversario da medida ministerial, e de quem se esperava uma
opposicão vigorosa e efficaz, pretextou subitos negocios a chamal-o á
provincia, e partiu, promettendo voltar a tempo ainda de discutir a
questão.

Depois de chegar ao Mosteiro escreveu para os amigos, lamentando que
inesperados negocios de familia o retivessem alli mais tempo do que
contava, e alentando-os de longe á lucta. No entretanto, a questão foi
apresentada nas camaras: oradores tibios e mal escutados acharam-se sós
a combatel-a; apagadores officiaes e officiosos abafaram a tempo a
discussão; e, quando o conselheiro voltou a Lisboa, só pôde protestar
nos circulos politicos contra o resultado da votação e expender as
razões que deveriam fazer repellir a medida.

Em recompensa eram concedidos melhoramentos para o circulo que o elegia;
e entre elles a estrada que vimos principiar. Tal fôra o preço d'ella.

Tudo isto trazia agora á luz a carta desencaminhada, que era do
secretario do ministro, e que no seu conteúdo deixava vêr claramente as
condições do pacto.

Esta publicação causou profunda sensação em Lisboa. A importancia
politica do conselheiro soffreu com isso.

Atacavam-n'o os partidarios do governo, para declinarem d'este, quanto
possivel, a responsabilidade do facto; atacavam-n'o os opposicionistas
declarados, para com o mesmo golpe ferirem o ministerio.

Os influentes politicos teem sempre no proprio partido, a que pertencem,
invejosos que só almejam o primeiro pretexto para os derrubarem, embora
caia com elles o partido a que se filiam.

Aquella carta foi, durante algum tempo, uma arma poderosa nas mãos dos
taes; originou discussões e ataques violentos; e o conselheiro correu
risco de se malquistar por causa d'ella com gregos e troyanos.

Tudo isto se revelava ao espirito de Magdalena e tudo isto a
consternava. O seu muito amor filial fazia-lhe achar no facto uma
significação dolorosa e triste que só desillusões, como as de Henrique
de Souzellas, velhas desillusões de sceptico impenitente, poderiam
attenuar. O conselheiro expiava cruelmente o seu delicto.

A leviandade e doblez do homem politico pagava-a caro o homem de
familia.

É que a moral é uma. O homem não pode dividir-se; os peccados sociaes de
quem é virtuoso nos lares domesticos, pagam-se, expiam-se n'esses mesmos
lares. Os filhos que creou e educou segundo os preceitos da honra e da
virtude, serão mais tarde os seus proprios juizes, e que cruel
julgamento para o coração de um pae! É justo que a patria peça contas
dos crimes de familia e desconfie dos tribunos que não sabem ser paes,
filhos, irmãos e esposos; é justo que a familia exija que se seja fiel á
prática e ás crenças que se professam, e castigue, pelo menos com
lagrimas, como as de Magdalena, as culpas do homem que julgou poder ter
duas consciencias: uma para responder por os actos civicos, outra para
os actos domesticos.

Henrique procurou minorar o effeito que esta leitura tinha produzido no
animo da morgadinha por meio de algumas consolações, que uma indulgente
moral, muito do uso da sociedade, lhe inspirava.

Percebeu porém, que, embora as manifestações do sentimento tivessem
cessado já em Magdalena, não se lhe tinha ainda dissipado a profunda e
penosa impressão que lhe ficára da leitura.

Como para fazer cessar aquelle genero de consolações, a que Henrique se
julgava obrigado, e que a ella eram custosas de ouvir, Magdalena disse,
em tom já apparentemente sereno:

--Bem; visto que é necessario precavermo-nos, vejamos de quem e quaes as
cautelas que temos a adoptar. Meu pae parece suspeitar de alguem, mas
não se pronuncia claramente.

N'isto entrou na sala D. Victoria, carregada de roupa como para uma
viagem aos pólos, e queixando-se do frio, cuja intensidade attribuia em
grande parte aos criados, por se terem descuidado de accender logo de
manhã os fogões da casa.

Quando D. Victoria foi informada do conteúdo da carta do seu cunhado,
levantou um alarido desolador. Por sua vontade ordenava logo alli um
interrogatorio e uma devassa geral a todos os criados da casa, aos
quaes, segundo o costume, attribuia a culpa toda. Magdalena e Henrique
tiveram muito que fazer para a convencerem da inutilidade e
inconveniencia d'esse alvitre e para lhe mostrarem a necessidade de usar
de toda a prudencia e dissimulação n'esta pesquisa.

--Aqui entre nós--dizia Henrique--vejamos em quem se pode, com
plausibilidade, fazer recahir as suspeitas. O sr. conselheiro diz bem;
um criado boçal pode roubar uma joia, subtrahir qualquer objecto de
valor intrinseco; porém os ladrões de cartas como estas, são de outra
especie e de intelligencia mais apurada. Ora entre a gente que frequenta
o Mosteiro...

E parando subitamente, Henrique disse para D. Victoria, que olhava para
elle com um gesto espantado:

--Porém, minha senhora, eu mesmo não me devo excluir da lista dos
indiciados, e n'esse caso deixo v. ex.^{as} livres para me instaurarem
processo.

--Ora essa, primo Henrique!--exclamou D. Victoria.--Era o que faltava!
Nada, nada; não se cance; não tem que vêr. Aquillo foram os criados.

Magdalena estava tão abatida de animo, que nem deu attenção a este
episodio.

Henrique proseguiu:

--Nada de magnanimidades, minha senhora; quem quer ser juiz a ninguem
deve excluir da possibilidade de ser réo. O sr. conselheiro, porém,
alguns indicios nos aponta. Fala, por exemplo, vagamente, de alguem que
n'estes ultimos tempos se pudesse considerar offendido por elle, e que
por vingança... Ora actos capazes de trazer estas animadversões a seu
pae, prima Magdalena, só a questão do cemiterio, mas essa não importa a
ninguem que tenha entrada aqui... Ha tambem as das expropriações,
porém...

Henrique parou, como se lhe tivesse acudido uma ideia, que examinava,
antes de enuncial-a.

--Tive agora um pensamento diabolico; nem quero attendel-o.

--Diga, primo, diga--acudiu logo D. Victoria.

--A expropriação da casa do herbanario... O muito amor que o velho tinha
áquella vivenda... A repugnancia com que viu cortar aquellas arvores
velhas...

--Então julga que foi o Vicente?--perguntou D. Victoria.--Mas elle não
vem ao Mosteiro ha muitos annos, primo.

--Não digo que fôsse elle, minha senhora--disse Henrique, cujo embaraço
augmentava, sentindo que a morgadinha o fitava com um olhar penetrante,
como se lhe estivesse lendo o pensamento.

--Então?--insistia D. Victoria.

--Mas--proseguiu Henrique--o velho exerce certa fascinação na gente da
terra; um verdadeiro prestigio; e certas intimidades entre elle e... e
alguem que tem aqui entrada a todo o momento... Emfim... eu não quero
seguir mais adeante este antipathico pensamento, que talvez fôsse
rejeitado com indignação por quem me escuta e attribuido a mesquinhos
resentimentos da minha parte.

--Faz bem em o abandonar, primo Henrique--disse Magdalena, com
severidade.--Entre ser victima de uma traição e culpada de uma suspeita
injusta, cruel e maligna, prefiro arriscar-me á primeira sorte. Se um
passado inteiro de honra e de probidade, se um caracter provado nas mais
tentadoras situações da vida, se um nome ennobrecido pelo infortunio,
não são garantias bastantes para proteger um homem contra os ataques da
suspeita, não quero entrar n'essa pesquisa inquisitorial que nada
respeita, que é capaz de lançar sacrilegamente a dúvida entre paes e
filhos, entre irmãs e irmãos. Innocente, prefiro aguardar a calumnia;
culpada, o castigo, a sentar-me como juiz n'esse tribunal impio que quer
arvorar.

--Previ essas palavras, prima Magdalena; por isso hesitei. Lamento
sinceramente ter já perdido no uso do mundo uma tão sympathica e
adoravel boa fé nos outros, que é a maior prova de candura que se pode
dar do proprio caracter.

D. Victoria não percebeu nada d'este rapido dialogo; por isso exclamou:

--Mas que estão vossês ahi a dizer? De quem falam? Eu se vos entendo!
Quanto a mim, foram os criados, e d'isto é que ninguem me tira.

Abriu-se n'este momento a porta da sala e appareceu Augusto. Era a hora
das lições dos pequenos.

Comquanto, desde o termo das férias, Augusto viesse todos os dias ao
Mosteiro, era aquella a primeira vez que se encontrava com Magdalena e
com Henrique, depois da scena que entre elles se passára na noite de
Natal.

A morgadinha fitou por momentos n'elle os olhos; pareceu-lhe mais
pallido e triste do que de costume. Desviou-os, porém, como se até
sentisse remorsos de ter escutado as allusões de Henrique sobre o
caracter de um homem que ella se costumára a respeitar. Porque o leitor,
cuja intelligencia é, sem lhe fazer favor, mais perspicaz do que a de D.
Victoria, percebeu de certo que era a Augusto que se referiam os vagos
termos trocados entre Henrique e Magdalena.

--Muito bons dias, sr. Augusto,--disse D. Victoria affavelmente--então
são horas de me vir aturar a pequenada? Não lhe invejo a vida. Sabe? De
manhã até á noite a aturar creanças! Deus me livre!

--Agora já não succede assim, minha senhora. Estou dispensado de parte
das minhas obrigações--disse Augusto, depois de cortejar as senhoras e
Henrique.

--Como?

--Pois v. ex.^a não sabe que já foi nomeado outro professor para o meu
logar?

--Que me diz?

Em todas as pessoas presentes produziu sensação esta noticia.

D. Victoria e a morgadinha fixaram em Augusto um olhar interrogador. O
gesto de Henrique tinha uma expressão particular.

--Recebi ha dias a participação official--continuou placidamente
Augusto.

--Mas--proseguiu D. Victoria--o mano tinha aqui dito que o seu despacho
estava seguro, que, além de ser de toda a justiça, elle o tomaria a seu
cuidado. E então agora... Olhem, sabem que mais? eu cada vez me entendo
menos com esta gente. Isto de politicos...

Magdalena inclinou a cabeça, suspirando.

--Bem vê v. ex.^a--disse Augusto, com leve tom de amargura--que ás vezes
ha grandes interesses sociaes dependentes do despacho de um modesto
professor de instrucção primaria da aldeia, e portanto não se deve
extranhar que um homem politico attendesse a elles antes de tudo.

Magdalena que, ao ouvir estas palavras, levantára os olhos, encontrou os
de Henrique, que parecia procurarem os d'ella com intenção.

A morgadinha desviou os seus com impaciencia e desgôsto, que se lhe
manifestou na contracção da fronte.

--V. ex.^a dá-me licença que principie os meus trabalhos?--disse
Augusto.

--Ai, quando quizer--respondeu D. Victoria.--Os pequenos estão na sala
verde.

Augusto saiu.

D. Victoria entrou no panegyrico do mestre de seus filhos, e não se
fartou de exaltar-lhe os talentos e as virtudes, apregoando o muito que
aproveitavam os pequenos sob tão intelligente direcção.

--Olhe que o Eduardito já escreve e já lê manuscripto como um
homem--dizia ella.--Quer vêr? O sr. Augusto deixou aqui ficar a pasta;
ha de ter alguma escripta do pequeno. Ora tambem vou vêr.

E D. Victoria, cedendo aos impulsos do seu enthusiasmo de mãe, foi
buscar a pasta de Augusto e pôz-se a procurar n'ella a escripta do
filho.

--Não vejo ...--disse ella, remexendo os papeis.--Isto que é?... Ai,
isto é uma escripta de Marianna... Ora veja.

Henrique fingiu examinar com attenção a escripta.

--Aqui estão os themas francezes d'elle. Quer vêr? Eu d'isso não
entendo, mas hão de estar bons.

E passava tambem os themas para Henrique, que os examinava com a mesma
attenção.

--Ora onde estará a escripta de Eduardo? Eu sempre queria que a visse.
Isto... isto é... Ha de ser alguma carta, que elle anda a ler. Ora veja,
primo; olhe que a lettra ainda não é das mais faceis... Eu por mim não a
leio... Quer vêr?

Henrique recebeu, com a maior condescendencia, o novo documento que lhe
ministrava D. Victoria, no sympathico intento de provar a habilidade dos
filhos.

Voltou distrahidamente a primeira folha da carta e pôz-se a lêl-a no
fim; cêdo, porém, começou a examinal-a com grande curiosidade; leu uma e
outras das faces escriptas, e, ao acabar a leitura, estava-lhe nos
labios um sorriso entre de ironia e de triumpho.

Offerecendo á morgadinha a carta que lêra, disse-lhe, com um modo que a
impressionou:

--Veja se comprehende a significação d'esta carta, que estava na pasta
do sr. Augusto, do amigo de seu irmão. A mim parece-me que as creanças
não a comprehenderiam bem.

Magdalena olhou para Henrique e depois para a carta, que principiou a
ler.

Succedeu-lhe como a Henrique; cêdo a dominava uma anciosa curiosidade,
que a obrigou a ler com rapidez até o fim.

Ao acabar, amorfanhou-a com raiva, arrojando-a ao chão; escondeu o rosto
entre as mãos e não pôde reter o pranto que lhe rebentava dos olhos.

D. Victoria parou a olhal-a, estupefacta.

--Que é isso, Lena? Santo nome de Deus! tu que tens, menina?

--É que ha momentos, minha tia,--respondeu Magdalena, fitando-a com os
olhos arrazados de lagrimas--em que eu não sei como se resiste á
loucura; em que, para não duvidarmos de nós mesmos, é necessario duvidar
da Providencia, que dizem que protege os bons.

E levantando-se n'esta agitação nervosa, saiu da sala, suffocada pelos
soluços.

D. Victoria interrogou Henrique a respeito da causa d'este episodio, que
ella não podia comprehender.

Henrique respondeu simplesmente:

--Succedeu, minha senhora, que a carta encontrada na pasta do sr.
Augusto parece-se muito com aquella de cujo extravio o sr. conselheiro
se queixa e que foi publicada nos periodicos de Lisboa.

D. Victoria esteve algum tempo a pensar na verdadeira significação da
resposta.

--Mas... n'esse caso... visto isso...

--Visto isso, só o sr. Augusto pode explicar o mysterio que inda ha
pouco nos preoccupava a todos. Os meus presentimentos malignos tinham
infelizmente um fundo de verdade.

D. Victoria, tendo a final comprehendido, exclamou:

--Pois seria elle! Era d'elle que o primo ha pouco falava? Por esta não
esperava eu! Ora fie-se uma pessoa n'estes santos! Uma coisa assim! Ora
deixa estar que eu vou... Ahi está o pago que se tira de bem fazer! Ahi
está! Veremos a cara com que elle me responde. Ora deixa...

--Eu retiro-me--disse Henrique, pegando no chapéo para sair.

--Fique, primo, fique... Até é bom que ouça...

--Perdão, minha senhora. É melhor que eu não fique. Ha razões para
isso... Tudo deve passar-se entre v. ex.^a e elle, e, se me é licito um
conselho, bom será que não seja demasiado violenta.

Apesar dos pedidos de D. Victoria, Henrique retirou-se.

Não ia satisfeito comsigo o hospede de Alvapenha. E por quê? Não tinha
feito o seu dever? Por acaso não era flagrante o delicto de Augusto e
irrecusaveis as provas que o acaso contra elle ministrára?

Mas em nós todos se deve ter já passado um phenomeno moral, comparavel
ao que se estava dando com Henrique. Occasiões ha em que, apesar de
todos os argumentos da razão, apesar da conspiração de todas as provas a
justificar-nos, persiste em nós uma voz instinctiva a avisar-nos de que
commettemos um mal, formulando uma accusação.

Isto sómente não succede a quem tenha adormecidos os mais generosos
escrupulos da consciencia; e este caso não se dava com Henrique.

D. Victoria ficou só na sala, meditando na maneira de confundir e
castigar o criminoso. Passeiava agitada, elaborando comsigo o dialogo
que se ia seguir, encarregando-se ella propria de responder por Augusto.

Não se passou muito tempo que Augusto não viesse procurar a pasta que
lhe esquecêra na sala.

--Que procura?--disse D. Victoria, que, ao vêl-o, parou junto da mesa.

--Uma pasta que deixei aqui!

--Será esta?--disse D. Victoria, mostrando-a.

--É essa mesma--respondeu Augusto, indo para buscal-a.

--Como vão na leitura do manuscripto os meus pequenos, sr.
Augusto?--perguntou D. Victoria, retendo a pasta.

--Muito bem, minha senhora.

--Já entenderam esta carta?

Augusto pegou na carta, que examinou, superficialmente.

--É provavel que já, minha senhora; ainda que não me lembro de haver
escolhido esta entre as que v. ex.^a me deu.

--Pois escolheu por certo, visto que a tinha na pasta; mas como lhe
pareceu difficil de mais para os pequenos, teve o cuidado de mandal-a
imprimir para elles lerem melhor. Não posso consentir que entre n'esses
gastos por causa de meus filhos; por isso queira dizer a despeza que
fez, para se mandar pagar.

D. Victoria tirava da raiva, que se apossára d'ella, uma ironia superior
aos seus habituaes expedientes de espirito.

Augusto ergueu para ella os olhos, admirado, porque não podia
comprehender aquellas singulares palavras.

--Diz v. ex.^a que...

Em vez de lhe responder logo, D. Victoria pegou no periodico que
Henrique deixára sobre a mesa, e mais exaltada já, accrescentou:

--Veja se saiu exacta. Compare. Talvez precise de fazer alguma emenda.

Augusto olhou para o periodico e para a carta, sem bem saber o que fazia
nem o que queria dizer tudo aquillo.

--Mas, por amor de Deus, minha senhora,--disse elle, já
sobresaltado--que quer dizer tudo isto?

--Quer dizer, sr. Augusto, que, quando para outra vez se lembrar de
atraiçoar mais alguem que o tenha favorecido, seja mais cuidadoso em
esconder as provas da sua villeza.

--Minha senhora!--exclamou Augusto, fazendo-se pallido.

--Fez mal em não nos ter prevenido antes do que tinha descoberto; nós
ainda tinhamos bastante dinheiro para cobrir o lanço e ficarmos com a
carta.

--Oh, meu Deus! pois suspeita-se...

E Augusto, quasi como louco, arrancou das mãos de D. Victoria a folha, e
começava a lel-a; mas as nuvens que lhe passavam pelos olhos, a vertigem
que lhe turbava a cabeça não o deixavam comprehender o que lia.

Emquanto Augusto assim luctava comsigo mesmo, D. Victoria dizia:

--Agora é que eu entendo o que queria dizer o primo Henrique. Sempre é
um homem que sabe o que é o mundo...

Ao ouvir estas palavras, Augusto arrojou de si o periodico, e
scintillou-lhe o olhar de cólera:

--Ah! Foi elle? Sim... Havia de ser. Devia suspeital-o. Era de esperar
que o fizesse. É o pretexto. Minha senhora, ha aqui uma traição infame,
uma traição que eu não ousaria suspeitar de ninguem! Mas juro-lhe que...

--Ha de dar-me licença de ir accommodar meus filhos--disse D. Victoria,
interrompendo-o friamente. E encaminhou-se para a porta.

Augusto viu-a afastar-se, e disse-lhe em tom sereno, mas commovido:

--Vá, minha senhora, vá; mas se tem a essas creanças amor de mãe, não
lhes ensine por ora a suspeitar de um homem que ellas se tinham
habituado a amar e a venerar. Peço-lhe por ellas, mais do que por mim. É
uma triste e prematura experiencia que lhes vae dar; vae-lhes envenenar
para toda a vida o coração e talvez que contra si mesma veja voltar-se a
desconfiança que lhes semeia tão cêdo.

D. Victoria saiu da sala sem lhe responder; é certo, porém, que não
ousou dizer aos filhos coisa alguma em desfavor do mestre. Sob as
singularidades do genio d'aquella senhora havia um fundo de bom senso,
onde perfeitamente calaram as reflexões de Augusto.

É singular; ao entrar na sala immediata, ia a limpar os olhos,
commovida.

Augusto permaneceu abatido e desalentado, como se n'aquelle momento
tivesse visto dissiparem-se todas as esperanças da sua vida. Lagrimas
inflammadas e amargas assomaram-lhe aos olhos ao vêr-se humilhado no
seio de uma familia que elle respeitava, da familia d'aquella a cujos
olhos mais desejaria nobilitar-se, engrandecer-se, revestir-se de todos
os prestigios.

Era uma dor para enlouquecer, a sua! Ao desalento succedeu, porém, a
reacção; n'aquelle caracter havia latente uma energia de homem.

--Agora, mais do que nunca, preciso de alento para não
succumbir;--exclamou elle, erguendo a cabeça e vindo-lhe ás faces o
rubor da exaltação--obriga-me a isso o nome honrado de meu pae, a santa
memoria de minha mãe. A consciencia me dará forças para luctar com a
intriga e com a calumnia, onde quer que ella esteja. Ir-lhe-hei ao
encontro, a descoberto, sem disfarce, nem artificios, como luctador
leal. E se ha justiça no Céo, hei de vencer! Não voltarei mais a esta
casa, sem ser com a cabeça erguida; não pensarei mais em ti, Magdalena,
unica, suave imagem que ainda me offerecia vida, emquanto não saiba que
no teu pensamento o meu nome não é o de um infame.

Ao voltar-se para sair descobriu Magdalena, que o observava da porta.

Augusto estremeceu, mas, fazendo por dominar a turbação, curvou-se
respeitosamente perante a morgadinha, e ia a retirar-se.

--Espere,--disse-lhe ella, estendendo-lhe a mão, e com profunda
melancolia--não saia sem se despedir de uma amiga que, apesar de tudo, o
reputou sempre innocente.

Augusto parou, como se aquellas palavras o ferissem no coração.

Magdalena, com as faces pallidas e as lagrimas nos olhos, continuava a
estender-lhe a mão.

Augusto apoderou-se d'ella e cobriu-a de beijos e de lagrimas.

--Oh! obrigado, minha senhora, obrigado!--exclamou elle--precisava
d'essas palavras para não enlouquecer.

--Vá, Augusto, vá. Dentro em pouco tempo todos lhe pedirão perdão.
Creio-o firmemente.

--E eu não procurarei tornar a vêl-a, senão quando pudér justificar essa
generosa confiança. Juro-lh'o.

As lagrimas de Magdalena não podiam mais tempo conter-se-lhe nos olhos;
iam soltar-se e já ella, para as occultar, desviava o rosto, quando
Christina entrou na sala.

Christina, a quem a mãe acabára de contar o acontecido, parou a ver a
scena e a commoção dos dois.

Augusto não se demorou, saiu sem pronunciar uma palavra.

Magdalena deu largas á tristeza, que lhe pesava no coração, deixando
correr livremente o pranto.

Christina correu a abraçal-a.

--Meu Deus! meu Deus! Lena, isto que quer dizer?--exclamou Christina.

E, approximando os labios do ouvido da prima, murmurou, com adoravel
ingenuidade:

--Pois tu... amaval-o?

Por unica resposta Magdalena apertou-a apaixonadamente ao seio.

E ambas por algum tempo confundiram as suas lagrimas.




XXIII


Dominado por os mais energicos e encontrados sentimentos Augusto saiu do
Mosteiro, ainda sem plano formado, sem tenção definida, mas
comprehendendo vagamente a necessidade de abraçar uma resolução
qualquer.

As palavras que D. Victoria inconsideradamente soltára, tinham-lhe feito
conceber a suspeita de que Henrique não fôra alheio á calumnia que
pesava sobre elle. D'ahi a attribuir-lhe todo o plano da intriga não ia
longe, e justo é confessar que não era destituida de plausibilidade a
ideia.

A especie de aversão reciproca que, desde o primeiro encontro, os
dividira, a maior vehemencia da entrevista na noite de Natal, em que
ficára pendente entre elles uma provocação, só á espera de pretexto,
concorriam para dar vigor a esta supposição.

Por isso, depois de por muito tempo percorrer á tôa os caminhos dos
campos, sem consciencia nem destino, Augusto encaminhou-se resolutamente
para Alvapenha.

Estava ainda pouco senhor de si para meditar nas circumstancias que
occasionaram a sua accusação. Mal poderia até dizer de que era accusado.
Percebeu que se tratava de um abuso de confiança, de uma infamia, mas a
impressão recebida fôra tal que não o deixára investigar os pormenores
do facto. Previa em tudo isto uma traição, e, para a esclarecer,
dirigiu-se á unica pessoa de quem lhe parecia provavel que ella
partisse.

Quando chegou a Alvapenha já tinha alli passado a hora de jantar.

Henrique retirára-se para o quarto, D. Dorothéa e Maria de Jesus,
aquella dobando, esta fiando, aproveitavam o tempo a rezar parte das
suas longas orações quotidianas.

Quando Augusto bateu á porta, estavam ellas de volta com a ladainha, que
D. Dorothéa dizia em latim, a seu modo, e a que Maria de Jesus respondia
no mesmo idioma.

--_Turris e burris, fedilisarca, espeque da justiça, Joannes
asellis_--dizia D. Dorothéa.

--_Orá pér nós_--respondia invariavelmente a criada.

A reza interrompeu-se ao entrar Augusto na sala.

Poucas situações se podem conceber mais exasperadoras de animo do que a
de Augusto n'aquelle momento.

Vir com o espirito dominado por as mais violentas paixões, trazer no
coração uma verdadeira tempestade affectiva, e de subito achar-se na
presença de duas indoles essencialmente pacificas, de dois corações a
que a paixão nunca alterou o rithmo, de duas consciencias de que nunca a
dúvida, o remorso, ou o odio turbaram a celeste serenidade, é um
martyrio cruel.

Augusto teve desejos de recuar, porque previu a tortura que o esperava.

--Ditosos olhos que o vêem!--disse D. Dorothéa, arredando deante de si a
dobadoura, para mais á vontade contemplar o recem-chegado.--Não sei que
mal lhe fizeram n'esta casa!

--As minhas occupações...--balbuciou Augusto, sem saber o que dizia.

Maria de Jesus veio de reforço á ama.

--Isso! fale-nos nas suas occupações, nem que se não soubesse cá que
todos os dias dá o seu passeio ao fim da tarde; sem falar nas
quintas-feiras e domingos...

Augusto não respondeu.

--Pois olhe que todos aqui lhe querem bem--disse D. Dorothéa.

--Assim o creio, minha senhora.

--Eu fui muito amiga de sua mãe, que era uma santa creatura. Inda me
parece que a estou a vêr ahi sentada, com aquella capa rôxa que trazia.
A alegria d'ella, quando o Augustito veio de Lisboa! Vi-a chorar e
agradecer a Deus o filho que lhe tinha dado... Todo o seu desejo era não
morrer antes de o vêr padre; queria pelo menos uma vez commungar das
suas mãos... Coitada!... Não lhe concedeu isso o Senhor, que bem cêdo a
chamou a si.

E continuou para Augusto:

--Quando morreu a morgada, a madrinha da Lenita, e que me contaram aqui
do legado que ella deixára, eu disse logo: «Ora a alma tem ella no Céo
por isto, quando por mais não seja». Porque, emfim... só quem não
conheceu sua mãe é que não diria outro tanto. Verdade é que elle não
chegou a aproveitar... mas... Emfim cada um sabe o que lhe convem e o
que lhe não convem. E eu digo, a vida de sacerdote é muito bonita, isso
é, mas... não havendo inclinação...

Augusto estava impaciente com a loquacidade da senhora de Alvapenha.

--O sr. Henrique de Souzellas está em casa?--perguntou elle, logo que
pôde.--Desejava muito falar-lhe.

--Ai, sim? quer falar com elle? Eu acho que... Parece-me... Sim, elle
deve estar no quarto... Ha de estar a ler. Não tem outra vida aquelle
rapaz! Uma coisa assim! Por mais que eu lhe diga: «Henriquinho, olha que
isso faz-te mal...» É o mesmo que nada. Só ler, ler, ler, que é uma
coisa por maior. Ao principio ainda por ahi dava alguns passeios...
Agora, tirando lá as suas visitas ao Mosteiro, elle para ahi fica. Lá ao
Mosteiro sim, para ahi ainda elle vae.

--É que os ares são por alli muito saudaveis--disse maliciosamênte Maria
de Jesus.

--Adeus! ahi vem vossê com as suas coisas. E então que tem? Pois está
claro que um rapaz, como elle, dá-se com a gente nova.

--Pois sim, senhora, eu não digo...

--E as raparigas de lá já não estão bem sem elle... Ora eu confesso,
quando elle está de maré, é um gôsto ouvil-o. Sempre ás vezes tem coisas
que fazem rir as pedras.

--E pondo-se a contar historias? Ih! isso então é que é! Eu não sei onde
elle as vae buscar!--accrescentou a criada.

--Com esta--continuou D. Dorothéa, apontando para Maria de Jesus--é ás
vezes um passo. Eu ainda queria que o Augustito os ouvisse a ambos. É
perdido em pouca gente. Elle põe-se lá a inventar patranhas, e ella a
tôla, que sabe já como elle é, ouve tudo muito séria e fiada, e no fim
então é que são os escarcéos. Emfim, uma coisa é dizer, outra é vêr!

E D. Dorothéa ria, com aquelle rir meio tossido de velha, em que ha não
sei que indicios de uma existencia placida, que consola ouvir.

Augusto forçava-se a sorrir áquellas narrações das duas velhas, a que
elle mal attendia.

--Eu digo--continuou D. Dorothéa--que já nos havia de fazer falta se
saisse d'aqui; quando cá não está parece-me a casa morta.

--Deixe lá, senhora, que este já d'aqui não sae.

--Ora bem sabe vossê d'isso.

--Pois a senhora verá. Ora! Os passeios ao Mosteiro são muito bonitos.

Augusto ergueu-se, devéras resolvido a cortar a conversa por uma vez.

--Se me dá licença, eu vou procural-o ao quarto. Desejava falar-lhe,
quanto antes, para um negocio de urgencia.

Depois de mais algumas reflexões, resignaram-se a deixal-o partir.

Augusto transpoz rapidamente os corredores, que o separavam do quarto de
Henrique, e bateu á porta d'este.

--Entre quem é--disse de dentro Henrique.

Augusto entrou.

O sobrinho de D. Dorothéa estava sentado junto da janella, lendo uma
folha e fumando.

Ao vêr Augusto levantou-se.

A lembrança das scenas d'aquella manhã no Mosteiro, e a expressão de
physionomia de Augusto, fizeram-lhe prevêr a indole da entrevista que se
ia seguir.

Evitando porém o menor indicio, que pudesse revelar a prevenção em que
estava, disse naturalmente, estendendo a mão a Augusto:

--Oh! por aqui! A que devo o prazer d'esta visita?

Em vez de lhe corresponder ao cumprimento, Augusto disse-lhe friamente:

--Assim estende a mão a um miseravel? Ou é tibieza de pundonor, ou
excesso de magnanimidade!

Henrique retirou logo a mão e respondeu com orgulhoso desdem:

--Nem uma coisa, nem outra; simplesmente o juizo bastante para não me
arvorar em superintendente de negocios que me não dizem respeito; é um
sentido especial, que se chama delicadeza.

--É um pouco sujeito a adormecer em si esse precioso sentido--replicou
Augusto no mesmo tom.--Nem sempre são tão observadas pelo senhor, essas
delicadas abstenções, como agora. Sei-o por experiencia.

--Não o são desde que os interessados me ordenam que intervenha, e desde
que a minha intervenção pode ser util a amigos.

--Pois bem; como, por qualquer d'essas causas, se deu o facto em relação
ao objecto que me traz aqui, espero que me explique a natureza da sua
intervenção.

--Mas com que direito me vem o senhor pedir aqui explicações?

--Com o direito que me dá a consciencia, senhor!--respondeu
energicamente Augusto, despojando-se de toda a apparencia de
ironia.--Com o direito que tem todo o homem, calumniado cobarde e
infamemente, como eu fui, de provocar uma accusação aberta e leal.
Direito? É mais ainda do que direito, é dever. É um dever para com a
moral, é um dever para com a consciencia, é um dever para com a memoria
d'aquelles que nos transmittiram um nome honrado.

--Muito bem; mas, admittindo que seja esse direito ou esse dever, e não
lh'o contestarei, por que singularidade acontece que seja eu a pessoa
que tem de responder por tudo isso? Por acaso será este o pretexto, para
depois do qual tinhamos adiado uma entrevista que suppuzemos
necesssaria?

--Se houve pretexto para ella, foi da sua parte, e escolheu-o bem infame
e vil. Não lh'o invejo. Da minha não é pretexto; é uma interrogação bem
positiva e terminante. Todos os motivos anteriores, que podiam
auctorisar-me a procural-o, cessaram ante a impreterivel exigencia
d'este. Preciso de justificar-me, e por isso preciso de conhecer e de
ouvir os meus accusadores.

--E imagina que sou eu quem deve auxilial'o na tarefa? Pelo menos devia
escolher uma hora mais cómmoda. Sabe que na Alvapenha se janta
patriarchalmente ao meio dia.

--Não julgue que com essas ironias de mau gôsto, se esquivará a
responder-me. Juro-lhe que hei de obrigal-o a falar com seriedade.

--E tem meios para isso?

--Faço-lhe a justiça de acreditar que sim; creio que ainda não estará
tão envilecido que receba com um sorriso cynico o insulto que lhe
infligir...

--É provavel que não risse, no caso que diz; mas tambem não falava,
acredite. Ha, para interrogações d'essas, respostas mais adequadas e
discretas. Não tente; aconselho-o... Mas, valha-me Deus, quem lhe disse
que eu não queria dar-lhe todas as explicações que souber? Sente-se,
conversemos placidamente, que é a melhor maneira de vêr claro nas
coisas. Não fuma?

Augusto, indignado com este frio sarcasmo, respondeu com vehemencia:

--Está-me causando tedio e compaixão ao mesmo tempo, senhor. Deve ter já
uma alma bem corrompida para me receber assim. Ainda quando eu fôsse um
criminoso, se no seu caracter houvesse brio, dignidade e sentimento
moral, devia a minha presença ser-lhe um espectaculo demasiado abjecto,
para o não deixar sorrir, ainda que de sarcasmo; mas na incerteza em que
está, em que deve estar por fôrça, a só ideia de que pode calumniar um
homem innocente, devia bastar para lhe fazer sentir toda a gravidade
d'esta entrevista e obrigal-o a attender-me como eu exijo ser attendido.
Para não comprehender isto, para não respeitar esse sagrado direito, que
tem todo o accusado de se defender, é necessario estar corrompido até o
fundo da alma. O scepticismo e a irreverencia para com os outros, só se
dá em quem duvída de si proprio, e a si proprio se não respeita, porque
se conhece. O senhor soube insinuar a calumnia no seio de uma familia,
cujos amigos generosos não a receberam sem dor; e quando o calumniado
lhe vem pedir explicações, porque se trata da sua unica riqueza, porque,
sem familia e pobre, e ámanhã talvez na miseria, precisa de defender o
unico bem que lhe resta, o senhor recebe-o com um sorriso ultrajante,
para occultar talvez a cobardia, que não ousa repetir na face do
accusado as insinuações que contra elle fez na ausencia. Se a
consciencia lhe não exprobra esta infamia, teve razão ao dizer-me que me
enganei procurando-o. A caracteres d'esses não se pede a explicação da
calumnia; é a sua manifestação natural.

E terminando estas palavras, que a mais violenta paixão lhe dictára,
Augusto caminhou para a porta do quarto.

Henrique deteve-o.

No espirito do leviano hospede de Alvapenha passára-se n'este curto
intervallo de tempo uma profunda revolução moral.

Na voz, no gesto e na indignação de Augusto pareceu-lhe perceber
vestigios de sinceridade, em que até alli não acreditára, e desde esse
momento, além dos remorsos pelos desdens com que o recebêra, sentia viva
a necessidade de uma reparação.

Magdalena tinha razão.

No meio de todos os seus defeitos, havia n'este rapaz um não exgotado
fundo de pundonor e de moralidade.

--Não saia--disse elle para Augusto, já sem a menor sombra de
ironia.--Se para isso fôr necessario pedir-lhe perdão, pedir-lh'o-hei.
Que mais quer?... Reconheço-lhe o direito que tem de ser escutado.
Fique. E creia que, apesar das apparencias lhe serem desfavoraveis, eu,
que em bem pouco concorri para ellas, sinto-me já movido a não lhes dar
fé. É já um convencimento tão intimo como o que até agora tinha da sua
culpa, confesso-o. Se na minha mão estiver esclarecer o mysterio, conte
commigo. Fale.

Augusto fitava-o ainda com desconfiança.

Henrique percebeu-o e continuou:

--É justa a dúvida que lhe leio no olhar, mas, como sómente o meu
procedimento futuro a pode desvanecer, peço-lhe que não deixe por isso
de falar.

--Antes de mais nada: de que me accusam?--perguntou Augusto.

--Pois não sabe?!--exclamou Henrique, admirado.

--Vagamente apenas. Sei que ha uma carta extraviada, mas a conclusão em
que fiquei, mal me deixou comprehender...

Henrique contou então tudo o que se passára no Mosteiro, e terminou
dizendo:

--Já vê que eu não fiz mais do que faria outro qualquer em meu logar.
Pesava sobre todos quantos frequentavam aquella casa uma desconfiança
odiosa: esclarecer o mysterio, dissipar as suspeitas, lançar aos hombros
do culpado toda a responsabilidade da traição, era o natural empenho de
todos. A descoberta da carta na sua pasta accusava-o. Essa descoberta
foi occasionalmente feita por D. Victoria. Eu não o conhecia bastante
para que o seu passado me obrigasse a recusar o testemunho das
apparencias. Os motivos de despeito, que as suas mesmas palavras por
aquella occasião confirmaram, explicavam muito bem certas tentações de
vingança... Nada mais natural do que suppôr...

Augusto cobriu o rosto com as mãos, murmurando:

--Accusado!... accusado de uma infamia, e deante de...

Aqui reteve-se, como se a tempo comprehendesse a indiscreção da sua dor.

Henrique cada vez se sentia mais modificado nas suas disposições para
com Augusto; por isso, quando este cortou assim em meio a expressão do
pensamento, elle, que lh'o percebeu, disse-lhe, sorrindo:

--D'ella? Socegue. Tem junto d'esse tribunal, de que se receia tanto,
advogados eloquentes.

Augusto levantou para Henrique um olhar interrogador.

--Diz que...

--Que não deve temer da impressão produzida, por todas as provas d'este
mundo, no animo de quem, através de tudo, acreditará sempre na sua
innocencia.

--Refere-se a...

--Ao seu segredo, que ha muito o não é para mim. Veja como eu estou
virado! Acho-me quasi disposto a sympathisar com elle, quando ha pouco
tempo ainda, sinceramente o confesso, era esta a causa occulta de tal ou
qual antipathia, que sentia pelo senhor... que sentiamos um pelo outro,
digamos assim.

--Mas...

--Vamos, vamos... eu sei que é discreto; nem esta era occasião para
entrar em confidencias. Tratemos do que mais importa... Não sei como é
que iria jurar agora a sua innocencia em toda esta desastrada intriga, e
com o tempo... porque francamente lhe declaro que me é necessario algum
tempo para desvanecer em mim todos os restos de despeito e de...
paixão... porém, com o tempo, talvez venha a ser seu verdadeiro amigo...
sem a menor prevenção.

E depois de um momento de silencio, proseguiu, mudando de tom:

--Mas, com os diabos, sendo o senhor innocente, deve ter grandes
inimigos aqui na terra para o enredarem assim! É preciso esclarecer
isto.

--Inimigos?!... Não os conheço, nem vejo motivos...--disse Augusto,
pensativo. Mas de repente, como se lhe acudisse um pensamento luminoso,
fez um gesto que Henrique percebeu.

--Que é?--perguntou este logo.--Descobriu?... Diga... Uma suspeita é já
um rasto precioso... guia os primeiros passos... Diga... E eu o ajudarei
a seguil-o.

--Lembro-me agora de uma notavel visita, que ha dias recebi. É isso...

E Augusto contou toda a entrevista que tivera com o brazileiro.

--E ainda agora se lembra d'elle?--exclamou Henrique, ao ouvil-o--e inda
hesita?! O senhor é de uma boa fé!... Temos o fio!

--Mas como pôde elle...?

--Isso depois; o mais virá a seu tempo. Agora trata-se de vigiar esse
senhor... E agora me lembra; elle é um dos oradores do club do Canada...
Sondarei esse antro tenebroso... Eu já devia suppor que andava aqui
miseria politica... Estou a achar razão áquella adoravel Magdalena...
Perdão... inda não perdi o habito de a adorar... Tambem, desde que o
consiga, serei seu amigo sem restricções. Até lá, porém, não será isso
motivo para de corpo e alma me não dedicar á sua causa... Eu posso ter
todos os defeitos, menos o de collaborar de boamente n'uma velhacaria;
e, fôsse o meu maior inimigo que eu visse victima d'ella, creia que
procuraria desfazel-a.

--Agradeço-lhe essas palavras, que acredito são sinceras; não posso,
porém, acceitar a intervenção que me offerece. Eu sou que devo
justificar-me. Está empenhada n'isso a minha dignidade.

--Como queira. Em todo o caso espero que uma má prevenção o não
constranja a não recorrer lealmente a mim, se o meu auxilio lhe puder
servir. Agora peço-lhe perdão, se alguma vez o offendi de mais; mas
vamos lá, o senhor tambem não está de todo isento de culpa... E quanto
ao pretexto... adiado mais uma vez, não lhe parece?

Augusto não podia fechar-se áquelle caracter, que se lhe estava
mostrando agora sob uma face nova e sympathica; por isso respondeu,
sorrindo:

--Adiado para sempre.

E estenderam as mãos um ao outro, apertando-as já sem o menor
resentimento.

Eram duas almas generosas, que acabavam de se comprehender.

--É notavel;--pensava comsigo Henrique--estou sympathisando á ultima
hora com este rapaz! Mas como se combina isto com a minha paixão por
Magdalena, a quem elle ama igualmente? Dar-se-ha que ella acertasse, e
que não fôsse paixão o que eu senti! Isto de mulheres teem uma vista tão
apurada para estas discriminações!




XXIV


O processo instaurado contra o Cancella seguiu os seus tramites normaes;
porém, graças ao empenho do conselheiro, a quem a morgadinha escrevêra a
favor do prêso, e apesar da perseguição que lhe moviam os padres,
contava-se que elle fôsse sôlto, e era esperado na aldeia dentro em
poucos dias.

Magdalena não se descuidára de mandar todos os dias ao pobre homem
noticias da filha, a qual, depois de ter por algum tempo inspirado
sérios cuidados á medicina da terra, parecia haver entrado n'um periodo
de convalescença.

Magdalena assim o participou ao Cancella para o animar, mas, sem saber
por quê, ella propria não sentia as esperanças que dava.

Ha espiritos tão instinctivamente sensiveis e perspicazes, que, á
maneira dos medicos experientes, presentem a gravidade ou a approximação
do mal, ainda quando os symptomas tenham perdido toda a feição
assustadora.

Já os sorrisos fluctuam nos labios do doente e um desmaiado rubor de
saude principia a tingir as faces, até então pallidas, e elles sentem-se
ainda estremecer de secretas apprehensões.

Assim acontecia a Magdalena ao contemplar as feições da pequena
Ermelinda.

A frequencia e intensidade dos accessos diminuira; certo colorido de
vida principiára já a animar-lhe o rosto infantil, havia pouco gelado de
terror e pela doença; ás vezes até um sorriso, ainda que melancolico,
distendia-lhe os labios desmaiados, e só de quando em quando raras
nuvens de tristeza, evocadas por uma recordação penosa, parecia
assombrarem-lhe o olhar limpido e meigo; os somnos eram tranquillos, as
vigilias serenas, e apesar de tudo a morgadinha entristecia ao reparar
n'ella.

O facultativo da localidade, apalpando com os dedos robustos o delicado
pulso da creança, assegurára que ella estava já livre da febre; e apesar
d'isso, Magdalena quasi sentia remorsos, quando escrevia ao Herodes a
dar-lhe a boa nova.

E é certo que mais do que justificadas tinham de ser estas apprehensões
da morgadinha.

Na tarde d'aquelle mesmo dia, em que Ermelinda acordára mais tranquilla
e animada, renovaram-se subitamente, e assustadores como nunca, os
indicios do mal profundo.

Um delirio violento, caracterisado por vagos e mal definidos terrores,
gritos angustiosissimos, contracções espasmodicas, que parecia
despedaçarem aquelle corpo fragil e delicado, surgiram de novo, e, ao
dissiparem-se, deixaram, como rastos, uma prostração extrema, uma quasi
completa insensibilidade de funesta significação.

Magdalena, assustada, tomou nos braços a debil e emmagrecida creança, e
trouxe-a para junto de uma janella, d'onde ainda se avistava o sol, já
quasi a esconder-se por detraz de uma collina distante.

Dir-se-ia querer pedir, aos frouxos raios de um quasi crepusculo de
inverno, um pouco de calor para fundir os gêlos da morte, que
principiavam a invadir os membros delicados d'aquella formosa creança;
ao clarão levemente afogueado do horisonte, um pouco das suas tintas
para aquellas faces morbidamente pallidas; á amenidade da paizagem, um
reflexo de sorriso para aquelles labios, onde elle se apagára.

Os olhos de Ermelinda fitaram-se tristemente no sol já vacillante, com a
expressão, cheia de saudade e de poesia, de uma alma joven que se
despede da vida, e, quando o sol desappareceu, desviaram-se lentamente
para o rosto de Magdalena, que a observava com anciedade.

Ermelinda sorriu; um sorriso mais triste do que as mais tristes
lagrimas.

A morgadinha apertou-a ao seio, commovida.

--Que tens tu, minha filha?--disse-lhe com meiguice, afagando-a.

Ermelinda não respondeu, mas continuou a fitar Magdalena com a mesma
expressão de affecto e de tristeza.

A morgadinha approximou os labios dos d'ella para beijal-a.

A pequena doente correspondeu-lhe ainda ao beijo e continuou a fital-a
como d'antes. E durou, e durou este olhar até que pareceu a Magdalena
haver n'elle não sei que estranha fixidez, que a inquietou.

Palpou as mãos da creança; estavam frias; o coração, parado; chamou-a
pelo nome... a mesma fixidez no olhar, a mesma immobilidade nas
feições... estava morta.

Foi assim que se despediu da vida aquelle candido espirito. Foi como o
adormecer de uma alma, que algum anjo invisivel, namorado d'ella,
arrebatasse nas azas para o throno de Deus.

A morte de uma creança como Ermelinda é um facto de ordinario
indifferente na vida social; alguns sorrisos de menos no mundo; uma voz
que emmudece nos festivos córos da infancia; algumas sentidas lagrimas
de mãe sobre um berço vazio; algumas flores sobre um tumulo; e á
superficie das ondas sociaes nem sequer a leve vibração que a rosa
desfolhada imprime á agua tranquilla do lago... eis tudo.

A multidão segue no delirio das festas, na lucta das paixões, na febre
da ambição e das glorias, e o perfume da flor pendida não lhe affecta os
sentidos embriagados.

Ás vezes, porém, não succede assim, e assim não devia succeder com
Ermelinda.

As paixões humanas, que ante o cadaver de uma creança, coroada de flores
candidas e cingida da alva tunica da pureza, deviam abrandar-se, como
deante de uma visão do Céo, tomam-n'o ás vezes por estimulo para mais
furiosas se desencadearem, e proclamarem a lucta, a sedição e a
vingança.

Desde que fôra publicada a portaria, prohibindo expressamente os
enterramentos na igreja, medida tão adversa ao espirito do povo, não
tinha havido na terra uma morte que obrigasse a pôr a medida em
execução.

A ira popular, exacerbada de contínuo pelas secretas instigações de
alguns padres fanaticos ou hypocritas, e dos adversarios politicos do
conselheiro, rugia, havia muito, surdamente, mas não rompêra em explosão
por falta de pretexto.

Notava-se apenas uma maior affluencia de gente na taberna do Canada, um
maior calor nos discursos dos tribunos, e a tendencia á formação de
magotes nas encruzilhadas e nos largos.

Quando porém se espalhou a noticia da morte de Ermelinda, augmentou a
effervescencia dos animos. Era chegado o momento.

A morgadinha, que chorou com lagrimas sinceras a filha do Cancella, quiz
que ella fôsse sepultada no mausoléo da casa do Mosteiro. Cumprindo
assim a lei, prestava-se tambem culto á affeição que todos sentiam pela
creança, companheira de brinquedos de Angelo, que lhe queria como irmã.

Sabendo-se d'esta resolução, rebentou a indignação popular.

No dia seguinte ao da morte de Ermelinda, e n'aquelle, no fim da tarde
do qual devia realisar-se o enterro, havia na taberna do Canada
extraordinario ajuntamento.

O brazileiro, o sr. Joãozinho das Perdizes, o latinista Pertunhas,
alguns padres e lavradores, caseiros e camaradas do sr. Joãozinho,
falavam, berravam e gesticulavam a um tempo.

O morgado das Perdizes, cujo animo fluctuava indeciso entre favorecer e
guerrear o conselheiro, mas que, depois do despacho do professor que
pedira e conseguira, como que sentia remorsos de o atraiçoar, achava-se
agora muito abalado, porque na questão dos cemiterios era intolerante,
não podendo levar á paciencia que quizessem enterrar um homem, como
elle, n'um logar onde chovia e fazia sol, como n'um campo de centeio.

O brazileiro, conscio do valor do voto eleitoral do sr. Joãozinho, não
se cançava de o catechisar, usando para isso de todas as armas e
atacando-o por todos os pontos vulneraveis que lhe conhecia.

Era assim, por exemplo, que sabendo da sympathia e gratidão do morgado
para com o herbanario, insistia muito sobre a dureza do coração do
conselheiro, que privára cruelmente o pobre velho da sua propriedade,
golpe fatal, que dentro em pouco o levaria ao tumulo; e a proposito
contava como o herbanario pedira de joelhos ao conselheiro para lhe
poupar a casa, e como este se rira das lagrimas do velho, porque tinha
interesse em que não fôsse adoptado o outro plano, que lhe cortava uma
grande porção dos proprios bens.

Ouvindo estas coisas, o sr. Joãozinho, que tinha mais de grosseiro e
bestial do que de perverso, dava punhadas sobre a mesa, despejava copos
de quartilho e dizia pragas sacrilegamente eloquentes.

Outras vezes era no tópico do cemiterio que ardilosamente o espirito
tentador do brazileiro insistia. Fazia avivar a ideia ao morgado de que
elle proprio tinha de ser alli enterrado, porque na freguezia de
Pinchões iam tambem ser prohibidos os enterros na igreja, o que este
negava, berrando; e todos affirmavam o mesmo que o brazileiro dizia, o
que dava logar a novas punhadas, novas irritações e a novas pragas do
sr. Joãozinho.

No dia que dissemos, multiplicára o morgado, mais que de costume, as
suas libações de vinho; e com as faces injectadas, os olhos meio
fechados, ouvia com irritação os commentarios dos circumstantes e
distribuia com profusão pragas e murros.

--Com os diabos!--berrava elle, acabando de despejar um copo de
quartilho.--Se me chega a mostarda ao nariz... sou homem para ir á
igreja e obrigal-os a enterrar lá a pequena.

--Isso não se faz assim com essa facilidade e arreganhos--disse
velhacamente o brazileiro, de proposito para o irritar ainda mais.

--Eu lhe diria se se fazia ou não, se se tratasse de coisa que me
dissesse respeito!... Mas, lá com a filha do Cancella... não tenho eu
nada... lá se avenham.

--A questão não é ser filha do Cancella ou deixar de ser;--tornava o
brazileiro--a questão é do exemplo; enterrado o primeiro, enterram-se os
outros.

--Menos eu--exclamou o morgado.

--Se Deus quizer tambem vmc. se ha de lá enterrar.

--Diabos me levem se...

--Pelos modos--disse um padre do lado--elles enterram a rapariga no
tumulo da familia do conselheiro.

--Pois vêdes; se elles são todos da mesma confraria!--ponderou o
Pertunhas.

--E se não, é vêr no outro dia o que o Herodes fez ao missionario! Então
julgam que aquillo não foi combinação?--disse o padre.

--Dizem que o Herodes ganhou vinte soberanos para lhe
bater--accrescentou um lavrador.

--A mim me disseram que trinta.

--Sempre uma pouca vergonha como aquella!

--E verão que não lhe succede mal.

--Pois não, não; elle está alli, está na rua.

--Diz-se que o soltam á fiança.

--Não pode ser; aquelle crime não tem fiança--ponderou um fazendeiro,
que se tinha por muito visto em demandas e coisas de justiça.

--Ora adeus! com o que vossê vem! Querendo elles...

--Aquillo parece uma seita.

--E ainda ahi está? Pois já se sabe que elles são pedreiros-livres.

--E o tal lisboeta?

--Esse, então, é que é d'aquelles!

O sr. Joãozinho pestanejou, ouvindo falar de Henrique.

--Ah! é do tal petimetre que falam? No tal que foi para a igreja caçoar
com o missionario? Sempre vossês são uns homens de lama, tambem! Ó
Cosme--continuou, voltando-se para um alentado camarada que estava ao
lado d'elle--olha aquillo comnosco, hein? Onde estaria o amigo?

O valentão sorriu modestamente, encolhendo os hombros.

--Pois, senhores--proseguiu o brazileiro, que não queria deixar
arrefecer o enthusiasmo e a irritação do publico--hoje decide-se a
coisa... D'aqui a uma hora está enterrada a pequena e depois... o uso
faz lei.

--Isso é que é verdade--secundou o Pertunhas.

--Faz lei emquanto eu me não lembrar de ir desenterral-a--respondeu,
cada vez mais azedado, o sr. Joãozinho

--Não; isso lá mais devagar--acudiu o brazileiro--vossemecê bem sabe
que, estando ella no mausoléo do conselheiro...

--Importa-me cá o mausoléo? O senhor está a ler. Eu com um empurrão
arrumo aquella platafórma a terra. Ó Cosme, olha nós, hein?

O Cosme tornou a fazer o mesmo gesto expressivo.

--Ahi está quando era preciso que houvesse n'esta terra um homem de
vontade, que não deixasse fazer o enterro--disse o padre.

--Era bem feito, para elles saberem tambem que se não brinca assim com o
povo.

--Lá isso era!--repetiram algumas vozes.

--Eu por mim... se alguem fôr...--aventurou um.

--E eu, eu--ouviu-se dizer de alguns pontos da sala.

--Deixem-se de contos,--continuou o padre--elles fazem o que querem,
porque sabem que não ha um homem de coragem, que se ponha á frente do
povo...

--Lá isso é que é verdade.

--Já não ha homens para as occasiões.

O morgado das Perdizes, que tinha presumpções de valente, e se gabava de
ter varrido feiras a varapau, espinhou-se com estas palavras, e
protestou dizendo:

--Então julgam vossês que eu, se me der para ahi, não vou ao cemiterio,
eu só, e ponho tudo aquillo em cacos? hein?

--Isso não se faz com essa facilidade--disse o brazileiro
impertinentemente.

--A quanto aposta vossê?--bradou, cada vez mais afogueado, o sr.
Joãozinho.

--Ora vamos--continuava o brazileiro com os mesmos modos--não que a
auctoridade...

--A auctoridade! Para mim é que elles veem! Olha o regedor! O regedor
commigo! E os cabos? Ó Cosme, hein? Que te parece? Os cabos comnosco?

O Cosme sorriu e resmungou por entre dentes:

--Se queres tentar...

--Com mil demonios!--disse o morgado, exgotando mais um copo--vamos a
isto! anda d'ahi, ó Cosme!

O Cosme levantou-se.

--Nada de imprudencias--aconselhou o brazileiro, de um modo que tinha a
significação contraria ao pensamento que exprimia.

--Quem tiver mêdo, que fique em casa. Ora quero mostrar a esta gente se
ha ou não ha um homem para as occasiões.

E estavam no meio da sala o sr. Joãozinho e os seus arrojados camaradas,
e o brazileiro já conferenciava com o padre, que lhe respondia com
signaes de intelligencia, como quem tinha projectos filiados n'aquelle
movimento, quando entrou na taberna uma nova personagem que, por não
habitual alli, e por outras circumstancias faceis de conjecturar, causou
geral extranheza.

Era Henrique de Souzellas.

Tendo sabido da morte de Ermelinda, e encontrando no Mosteiro todos
occupados com os aprestes do funeral da pequena, Henrique montou a
cavallo e deu um longo passeio pelos arredores.

Na volta achou-se defronte da taberna do Canada.

Chegou-lhe aos ouvidos o rumor das altercações e das pragas que iam lá
dentro, e isto resolveu-o a entrar, cumprindo assim a promessa que
fizera a si mesmo de estudar aquelle terreno, a vêr se encontrava
vestigios que o levassem a provar a innocencia de Augusto.

Apeou-se, prendeu o cavallo ao peão da porta e entrou.

Ao entrar, percebeu que havia causado sensação a sua presença, e até,
pela expressão com que o fitavam, suspeitou que talvez não fôsse
demasiado prudente o passo que dera.

Era tarde, porém, para recuar, e o orgulho impedia-lhe a menor
manifestação de receio.

Sentou-se tranquillamente n'uma banca vazia.

O Canada, como taberneiro attencioso, veio informar-se pressurosamente
do que desejava o recem-chegado.

Henrique pediu vinho, para pedir alguma coisa, e não obstante estar
firmemente resolvido a não lhe tocar.

O Canada trouxe-lhe um copo largo para deante d'elle, e de motu-proprio
associou-lhe algumas azeitonas, que recommendou como excitadoras da
sêde.

Henrique pediu lume para accender um charuto, e pondo-se a fumar correu
a vista pelos grupos que enchiam a sala. A effervescencia dos animos
havia abatido com o chegar de Henrique, como a da agua em que se
lançasse uma pedra de gêlo.

Reinava, porém, um rumor surdo, um cochichar pouco tranquillisador, e
que ameaçava degenerar em maior tormenta.

O brazileiro escondia-se por detraz de uns homens do povo, para não ser
visto; o sr. Joãozinho olhou para Henrique, como se o não conhecesse, e
conversava em voz baixa com o seu camarada Cosme, o qual fitava no
recem-chegado olhares sombrios e ameaçadores.

Henrique, ainda que interiormente não tranquillo, sustentava-os sem
desviar os seus, e continuava fumando quasi provocadoramente. Pouco a
pouco subiu de tom a conversa dos dois, assim como a dos outros grupos.

--É preciso ensinar estes espiões--dizia uma voz audivelmente.

--Que quererá d'aqui este figurão?--perguntava outro.

--Era bem feito que lhe ensinassem a não se metter com a nossa vida...

O morgado, cada vez mais excitado pelo vinho, cruzou os braços sobre a
mesa, e com o corpo inclinado para deante e os olhos abertos para
Henrique, principiou a dizer, retardando-se-lhe já algum tanto a voz nas
fauces:

--Eu se sei que ha alguem que me anda a seguir os passos e a espiar,
sempre lhe dou uma lição, que lhe ha de lembrar toda a vida! Não, que
isto aqui não é Lisboa! Eu não admitto que se olhe para mim com falta de
respeito... Já disse! Eu não gosto de repetir as coisas... Tenho dicto!
O senhor não ouve?

Henrique continuou a fumar, sem desviar os olhos do morgado.

--Ó senhor lá... Faz favor de não olhar para mim d'essa maneira?

Henrique exhalou uma baforada de fumo e sorriu.

--Vossê ri-se!... Elle riu-se, ó Cosme? Pois elle riu-se de mim? Espera!

E o sr. Joãozinho executou um movimento para levantar-se.

O Cosme imitou-o, e os camaradas puzeram-se a postos.

Susteve-os o brazileiro e outros igualmente pacificos.

--Então! então! isso o que é?

--Quero perguntar áquelle senhor de que é que se ri--bradava o morgado,
furioso.

--Para isso não se incommode--respondeu Henrique--eu mesmo d'aqui lhe
respondo. Rio-me da ridicula figura que está fazendo.

--Ah!... ouvem-n'o? Larguem-me, deixem-me, deixem-me... Ó Cosme!...

E o morgado barafustava entre os braços debeis que o retinham. No povo
principiou a subir a maré das murmurações contra Henrique.

--O senhor vem para aqui armar desordens?

--É para espiar?

--Depois queixe-se...

--Não se metta com a gente.

O morgado bracejando, espumando, e largando por pouco a jaqueta nas mãos
que o retinham, conseguiu, graças aos seus musculos robustos, sacudir de
si todos os obstaculos, e correu para Henrique, que por prevenção se
collocou a pé.

O sr. Joãozinho, cego de embriaguez e de raiva, berrava, voltado para
elle:

--O senhor conhece-me?... O senhor sabe com quem fala? Olhe bem para
mim... Quero vêr agora se ainda se ri.

--Por que não? Se cada vez está mais ridiculo!

O morgado deu um urro selvagem e fez um movimento como para se atirar a
Henrique.

Este recuou um passo, e pegando no copo que ainda tinha intacto deante
de si, despejou-o todo sobre aquella figura já avinhada, dizendo
motejadoramente:

--Ahi tem; é isso provavelmente que vem buscar.

O rosto, as mãos e a camisa do sr. Joãozinho ficaram litteralmente
tingidas. Soltando um rugido de fera, levou a mão á faxa da cinta, como
a procurar uma arma. Henrique, percebendo-lhe o movimento, antecipou-se
a segural-o pela garganta, para o reter e afastar de si.

O morgado torcia-se e espumava sob a constricção de Henrique, e já
congestionado e rouco bradou:

--Ó Cosme!... Ó Cosme!... Mata esse maldito!...

A phalange do sr. Joãozinho correu em soccorro do chefe. O varapau do
Cosme girou no ar, produzindo um zunido como o de um enorme zangão.

O braço diligente do Canada, movido pelo empenho de salvar o crédito do
estabelecimento, afastou a tempo Henrique do terrivel embate, que
infallivelmente lhe seria fatal.

A pancada caiu sobre a mesa, que lascou ao comprido.

Henrique estava incólume, e o morgado sôlto.

Mas o perigo não passara para Henrique. O morgado preparava-se com os
seus para nova investida, quando se ouviu a voz do brazileiro e do padre
bradarem:

--Já está a tocar o sino! Ao cemiterio emquanto é tempo!

E no entanto o brazileiro, chamando de lado o Cosme, convencia-o, por
varios generos de argumentos, da conveniencia d'este partido, e tão
convencido o deixou, que elle berrou d'ahi a pouco:

--Deixa o homem para outra vez, João, deixa-o e vamos a elles ao
cemiterio!

--Ao cemiterio, ao cemiterio! repetiram algumas vozes.

--E queime-se a papelada da camara!

--E mate-se o escrivão de fazenda!

--E quebrem-se os vidros do Mosteiro!

--E pegue-se fogo á casa!

Eram de bastante fôrça estes argumentos para convencer o sr. Joãozinho.

--Pois vá lá, rapazes! Com este faremos contas depois. Ao cemiterio!
Atiremos a terra com o tal mausoléo!

E prepararam-se para sair tumultuariamente. Henrique, ouvindo isto,
percebeu do que se tratava, e prevendo sérios riscos para as senhoras do
Mosteiro, desembaraçou-se dos braços do Canada, que teimava em segural-o
e em dar-lhe conselhos de prudencia, e correu a montar a cavallo para se
anticipar aos desordeiros. Effectivamente assim o fez; mas, ao passar
por entre o grupo d'elles, o varapau do Cosme, floreteando outra vez no
ar, caiu sobre a cabeça do cavallo. O animal, atordoado por a pancada,
partiu em galope desenfreado, e apesar de toda a arte de Henrique,
acabou por o arrojar a terra com tal violencia, que o deixou como morto.

Os desordeiros seguiram, capitaneados pelo morgado, o caminho do
cemiterio. O brazileiro, o padre e o Pertunhas, acolheram-se
pacificamente aos lares.

O sino da igreja continuava a repicar.




XXV


Era uma perspectiva profundamente melancolica a do cemiterio da aldeia
por aquella tarde de inverno!

Imagine-se um campo plano e raso, onde vegetavam algumas roseiras de
toda a estação, e a murta e a alfazema, vivendo a custo n'aquelle solo
ingrato, que havia pouco alimentava apenas urzes, tojeiras e pinheiraes.
No centro d'este espaço elevava-se, singello, mas elegante, o tumulo da
familia do Mosteiro, sobre o marmore do qual pousavam tristemente os
ramos flexiveis de um salgueiro chorão, e nos cantos principiavam a
erguer-se, como obeliscos funerarios, quatro jovens cyprestes
ponteagudos. Para além do muro, que circumdava este terreno, estendia-se
um vasto pinheiral, através de cujos troncos, confusamente cruzados, se
podia ainda divisar ao longe uma ou outra casa da aldeia, e o verdor dos
campos e pomares. A igreja parochial erguia, a pequena distancia d'alli,
a grimpa do campanario, e o sussurrar dos desfolhados álamos do adro,
agitados pelo vento, ainda chegava áquella estancia mortuaria.

A tarde tinha um d'estes aspectos ameaçadores, que deixam presentir a
tempestade; d'estas serenidades insidiosas, interrompidas, de quando em
quando, por uma subita viração, que faz revolutear na estrada as folhas
sêccas como em espiraes phantasticas. O céo pintára-se do colorido
melancolico e triste, que em alguns quadros de Annunciação tão fielmente
se vê reproduzido. Estava quasi todo coberto; só muito para o occidente
uma estreita zona se conservava limpa de nuvens, mas n'ella mesmo o azul
recebia, do contraste das côres vizinhas, um cambiante quasi esverdeado.
As nuvens inferiores, acima das quaes passavam os raios do sol, tinham o
aspecto rôxo-livido, que o avizinhar da noite ia tornando mais
carregado; no mais alto da abobada, as superiores, illuminadas ainda,
apresentavam reflexos amarellados que cada vez se afogueavam mais.

Para o oriente haviam-se fundido os nimbos em uma massa unica, uniforme,
cerrada, como uma abobada metallica, cujo livor imitava. De quando em
quando cruzava os ares uma ave de vôo rapido, soltando pios angustiosos.

Era a esta hora que devia effectuar-se o enterro de Ermelinda.

Estava já aberto o jazigo da familia do conselheiro, aguardando a
infeliz creança.

Os padres cantavam na igreja, e o sino repicava, como de festa, saudando
a entrada de mais uma alma sem culpas no gremio dos anjos.

Á porta da igreja, no adro e no cemiterio estacionavam alguns ociosos;
muitos acercavam-se do sepulcro, movidos pela curiosidade que a nova
fórma de enterro lhes suscitava.

As murmurações, comquanto menos manifestas aqui do que na taberna do
Canada, nem por isso faltavam.

Até da porta da igreja para dentro, até de joelhos, até de contas na mão
e olhos fitos no altar, os murmuradores existiam. Velhas beatas clamavam
assim a justiça celeste sobre os impios do seculo, que não queriam
enterrar-se no chão sagrado da igreja. Junto da pia da agua benta,
aspergindo-se, persignando-se sobre a bôca, para que Deus livrasse de
peccar por palavras, n'essa mesma occasião, ellas entoavam os seus
threnos e maldiziam dos reformadores, sobre quem chamavam as penas do
inferno.

Havia tambem no grupo alguns que conferenciavam em voz baixa e se
entreolhavam de maneira mysteriosa, fitando ás vezes os caminhos
proximos, como se d'alli aguardassem alguma coisa.

A morgadinha viera junto ao tumulo despedir-se da filha do Cancella.

Christina ficára a fazer companhia a D. Victoria, que se achára
adoentada.

Segundo o costume de algumas aldeias, Ermelinda devia ser acompanhada á
campa por creanças quasi da mesma idade, vestidas como para festas. Uma
d'ellas era a pequena Marianna, a irmã mais nova de Christina; as
outras, raparigas das vizinhanças, que as senhoras do Mosteiro tinham
por suas proprias mãos vestido e enfeitado. O enterro fazia-se com
extraordinario apparato, não só em honra da familia do Mosteiro, mas
para desvanecer a má impressão dos animos populares por meio da pompa
religiosa.

Era digno do pincel de um artista, a quem a poesia das scenas campestres
ainda inspirasse, o cortejo ao mesmo tempo melancolico e risonho, que,
saindo da igreja, se encaminhava lentamente para o tumulo onde Ermelinda
devia ser sepultada.

O sol quasi a desapparecer sob o horisonte, entrava na estreita zona,
que as nuvens não toldavam.

A paizagem inundava-se agora de luz, mas de uma luz froixa, amarellada,
que dá ao verde da relva e das frondes das arvores uma maior
intensidade.

A cruz de prata que arvorada por um homem de opa, abria o cortejo,
reflectindo aquelles raios amortecidos, brilhava como cingida de uma
verdadeira auréola. Seguiam-se alguns padres de sobrepeliz e batina,
recitando as orações da occasião; entre estes havia um de aspecto
venerando, curvado pelos annos, de physionomia bondosa e pensativa. Era
o cura, santo e respeitavel ancião que, em vez de exacerbar os
preconceitos do povo contra os enterros, no cemiterio, antes
energicamente os combatia e censurava.

Depois vinha em caixão aberto, e no meio de uma numerosa companhia de
creanças, Ermelinda, a quem a pallidez da morte não dissipára a
formosura. Dir-se-ia apenas adormecida. Trazia nos labios o sorriso da
innocencia. As mãos cruzavam-se-lhe naturalmente sobre a tunica
alvissima que a cingia, a mesma com que apparecêra no auto, e a cabeça,
cercada por uma singella corôa de flores, conservava a graciosa
inclinação que lhe era habitual em vida.

As creanças do acompanhamento tinham sido escolhidas, por Magdalena e
Christina, entre as mais gentis da aldeia.

Era uma cohorte de cherubins humanados, qual d'elles mais louro e mais
formoso.

A morgadinha precedêra o cortejo e viera esperal-o junto do tumulo. Com
o braço apoiado na pedra sepulcral, e a fronte encostada á mão, seguindo
melancolicamente com a vista a vagarosa procissão que entrára no
cemiterio, dissera-se uma estatua primorosa, cinzelada por mão de
inspirado artista, para symbolisar junto do tumulo a saudade pelos que
morrem.

Cada vez se ouvia mais perto o latim dos padres; o coveiro viera já
occupar a posição que lhe competia; estreitou-se o circulo dos curiosos
em volta da campa. A cruz parou junto dos degraus do tumulo; os padres
abriram alas e as creanças encaminharam-se, por entre elles, para a
borda da sepultura.

O abbade molhou o hyssope na caldeira, para aspergir a cova.

Uma imprevista occorrencia mudou, porém, o aspecto da scena.

Havia já alguns momentos que começára a ouvir-se um vago rumor, que
tanto podia ser do vento na rama dos pinheiraes, como de multidão que se
approximasse em tropel.

As conferencias solapadas de algumas personagens dos grupos tinham-se
activado ao ouvil-o. Pouco a pouco principiou a mover-se alguma coisa
por entre os troncos do pinheiros; tornaram-se distinctas uma, duas,
tres e muitas figuras de homens, correndo em direcção ao cemiterio,
gesticulando, berrando, soltando ameaças, algumas das quaes já a
distancia a que elles vinham permittia ouvir claramente.

Não era difficil adivinhar a significação d'aquillo. A questão vital do
dia era, para todos os espiritos, a dos enterros, em campo descoberto; a
cada momento se falava em motim prompto a organisar-se e a rebentar.
Ficava pois evidente que tinha chegado a ocasião da crise popular já
antevista.

Cêdo invadia o cemiterio um bando de furiosos, desorientados, de aspecto
feroz, berrando e brandindo ameaçadoramente paus, fouces, chuços, e
todas as peças do extravagante arsenal, a que o homem do povo recorre
sempre ao chamamento da arruaça ou da sedição.

Era o bando dos influentes da taberna do Canada, de cujo proposito
estavamos prevenidos; agora, porém, já engrossado, como a corrente a que
no caminho se incorporam as aguas dos algares.

Entre os primeiros vinha o sr. Joãozinho das Perdizes, e ao seu lado o
_factotum_ Cosme.

Estes, enraivados, correram para o logar onde parára o enterro, bradando
em confusão:

--Alto lá! alto lá! Ninguem se enterra aqui!

--Esperem! Isso não vae assim!

--Não façam a festa sem nós!

--Fóra com os do cemiterio!

--Morram os pedreiros-livres!

--Para a igreja!

--Enterre-se na igreja!

--Olá, sr. abbade, espere por nós!

--Aqui vamos para abençoar a cova!

E n'um momento o cortejo funebre viu-se rodeado de figuras avinhadas,
gesticulando e vociferando pouco tranquillisadoramente.

O cruciferario e os padres, á excepção do velho que dissemos,
abandonaram o posto; as creanças, pousando no chão e abandonando o
esquife de Ermelinda, correram a acercar-se de Magdalena, amedrontadas e
chorosas.

A morgadinha conservou-se junto do tumulo da mãe, olhando com serenidade
para os revoltosos, mas intimamente sobresaltada. E no meio do grupo o
cadaver de Ermelinda, com aquelle sorriso nos lábios, como de anjo que
já de longe estivesse vendo o desencadear das paixões humanas, e rindo
de piedade.

O velho cura foi quem interrogou com voz firme e severa os amotinados.

--Que querem d'aqui?--perguntou elle, fitando-os--com que fins vieram
perturbar, com desordens da taberna, as cerimonias religiosas?

--Não queremos que ninguem se enterre no cemiterio--respondeu o sr.
Joãozinho.

--É verdade! é verdade! ninguem se enterra aqui!--confirmaram
differentes vozes.

--Por quê?--continuou o padre--julgam que Deus não receberá as almas,
cujos corpos não estejam lá dentro, a apodrecer sob os telhados da
igreja e a envenenar o ar que se respira lá?

--Não queremos saber de contos. Não queremos. Já disse!

--Eu não lhes reconheço o direito de querer.

--Ora o padre mestre tem vagares!--disse o façanhudo Cosme--e tu
pachorra para escutal-o, João. Para isso não foi que viemos. Sermões
para a quaresma. Vamos! cante lá os seus reponsos e latinorio, e ande-me
para a igreja. Vamos nós fazer o enterro. Ó Manoel coveiro, traze a
enxada e vem d'ahi.

E dizendo isto, o Cosme já se abaixava para levantar o caixão em que
jazia Ermelinda.

--A justiça de Deus caia sobre o impio, que com as mãos impuras tocar
n'esse cadaver, que está abençoado pela Igreja!--exclamou o velho,
indignado e com um metal de voz vibrante e terrivel.

Na aldeia os homens mais endurecidos não são superiores á intimação
religiosa. O Cosme retirou a mão, como se receiasse que a imprecação do
padre se cumprisse alli mesmo.

Houve uma momentanea quebra no furor popular; um d'estes momentos de
hesitação, que tão fataes são ao exito das revoluções democraticas;
ninguem se sente com coragem de erguer o novo grito, e quasi todos
procuram esconder-se, como envergonhados já do primeiro impeto.

Mas a primeira onda não é a mais temivel; os primeiros bandos populares,
que sáem á rua, soltando o grito de revolta, são ingenuos no meio da sua
quasi selvagem ferocidade; entregues a si, cêdo espontaneamente se
dariam por vencidos; facil seria subjugal-os. Mas, quando esses poucos
momentos, em que tumultuam sem pensamento que os dirija, não são os
precisos para ficarem esmagados sob a repressão do poder; quando o grito
sedicioso, em vez de sacrificar estes revolucionarios, quasi candidos,
mandados por os cautos para tentar a opportunidade da occasião,
apparenta sortir effeito, ou porque satisfaz uma aspiração legitima das
massas, ou porque lisonjeia um falso preconceito d'ellas, vem então a
segunda onda, mais ordenada, mas mais terrivel, porque não é a
embriaguez do motim que a impelle, é a ideia fixa, o pensamento
reservado, o plano de antemão traçado e urdido no mysterio e na sombra.
Vem então reforçar-a primeira, insufflar-lhe o alento que esta não tem
de si, e amparar-se com ella dos golpes dos inimigos. Se a tentativa não
vinga, retiram-se antes que, derrubada a vanguarda, fiquem a descoberto;
mas se a sorte os favorece, deixam cair os primeiros como victimas, e no
campo da victoria adeantam-se então a colher os trophéos conquistados.

Foi assim que, no momento em que o bando capitaneado pelo morgado das
Perdizes, ia ceder, um pouco subjugado pela figura solemne e a palavra
severa do venerando cura, saiu da igreja uma singular procissão.

Á frente vinha o estandarte da confraria erecta pelo missionario; este
seguia-o, e atraz d'elle os seus confrades e sequazes, no numero dos
quaes se encontravam padres e mulheres.

A hoste do sr. Joãozinho sentiu-se reanimar com este refôrço.

Um grito unisono saiu dos labios de todos ao ver a procissão.

--Viva o missionario!

--Viva o santo!

--Abaixo os pedreiros-livres!

E os do bando do estandarte correspondiam a estas saudações, dizendo:

--Abaixo os maçonicos!

--Morram os jacobinos!

--Viva a santa religião!

Mais uma vez este brado augusto, que deveria proclamar o perdão das
injurias, o amor reciproco, a caridade indistincta, era profanado por o
fanatismo e por a hypocrisia, e manchado pelo sophisma de seculos, o
mesmo sophisma que maculou os feitos de armas dos passados guerreiros da
christandade.

A embriaguez da revolução apoderou-se de novo do morgado das Perdizes.
Duas influencias inebriantes lhe disputavam agora o cerebro, que não
fôra nunca dotado, de grande fortaleza contra as paixões.

Palpitava-lhe o coração, quando se imaginava caudilho de um movimento
popular.

Sentia a necessidade de se fazer notavel por um feito heroico.

--Não se consentem aqui enterros, e principiemos já por deitar abaixo
estas pedras--bradou elle, apontando para o tumulo da familia do
conselheiro.

--É verdade! é verdade! Abaixo! abaixo!

--São invenções dos pedreiros-livres!

--É isso, é isso... Pois não vêem que são de pedra!

--Abaixo! Abaixo!

O sr. Joãozinho, arrojando de si o chicote, tirou um machado das mãos de
um homem que lhe ficava proximo, e deu alguns passos para o tumulo.

Magdalena collocou-se deante d'elle.

Já não estava pallida; tinha nas faces o rubor, nos olhos o lampejar da
indignação.

--Afaste-se, senhor!--bradou ella, estendendo a mão para o ébrio, que
parou a fital-a com olhos espantados. Nem sequer pouse os pés nos
degraus d'esta sepultura. Aqui repousa minha mãe. Atraz!

A figura, o olhar, a voz, as palavras de Magdalena exprimiam uma das
resoluções energicas e potentes d'aquella indole sympathica, que aos
affectos e branduras de mulher sabia combinar a firmeza e energia quasi
varonis.

O morgado sentiu uma vaga consciencia da sublimidade d'aquella scena, e
ficou enleado.

Porém o Cosme, o seu genio mau, não sei que lhe murmurou ao ouvido, que
elle desatou a rir a mais alvar gargalhada que ainda escancarou bôca
humana.

Estendendo para Magdalena a mão callosa e grosseira, disse-lhe, com um
sorriso que tinha tanto de cynico como de estupido:

--Está dito! Toque! Gosto d'esse desengano! Toque!

Magdalena repelliu-o com despreso e aversão.

--Ah! ah! Faz-se fidalga!--disse o sr. Joãozinho, despeitado.--Pois não
anda bem.

O missionario inclinou-se ao ouvido de um homem do povo que, depois de
escutal-o, bradou:

--Abaixo com o tumulo dos pedreiros-livres.

--Abaixo!...--repetiram muitas vozes.

--Pois vá abaixo!--repetiu tambem o sr. Joãozinho, adeantando-se com o
machado.

--Para traz!--exclamou outra vez Magdalena, já trémula de exaltação.

O cura, enfiado e convulso, correu para o lado d'ella.

O sr. Joãozinho sorriu.

--Isso é que é mandar! Socegue que não fazemos mal a sua mãe; só lhe
queremos tirar essas pedras de cima d'ella. Devem-lhe pesar!--e soltou,
ao dizer isto, uma gargalhada, que echoou no grupo que o rodeava.

--Abaixo, abaixo!--repetiram ainda as vozes, e o morgado preparou-se
para cumprir o feito. Magdalena sentiu que a razão se lhe perturbava.
Era-lhe preciso defender de uma profanação as cinzas de sua mãe, ainda
que fôsse á custa da propria vida.

Ia para supplicar, para ajoelhar deante d'aquelles homens; já as
lagrimas lhe brilhavam nos olhos, e os labios principiavam a murmurar a
palavra «piedade».

O morgado viu-a assim, e como homem em quem as lagrimas de mulher ainda
achavam caminho para chegar ao coração, hesitou, resmungando:

--Mau! se temos chôro, nada feito.

Mas já não podia hesitar; a onda impellia-o, os gritos redobravam, e
outros braços se agitavam ao seu lado, preparando-se para a obra de
profanação.

O sr. Joãozinho cedeu outra vez e levantou o machado.

Imitaram-n'o muitos.

Magdalena então correu a abraçar-se ao tumulo da mãe para o proteger da
violencia.

Antes de o abater haviam de a ferir a ella.

Os machados, que já se brandiam no ar, suspenderam-se. Alguns
baixaram-n'os, como arrependidos.

O morgado formulou n'uma jura a impressão que lhe estava causando a
scena.

Desviando os olhos, disse, com modo desabrido:

--Tirem essa mulher d'ahi.

Deus sabe que scenas de violencia se seguiriam a esta ordem, se um novo
facto não viesse desviar as attenções e modificar diversamente o animo
popular.

Um homem, que parecia chegar de longa jornada, approximára-se do
cemiterio, cada vez mais pressuroso á medida que se affirmava nos grupos
alli reunidos.

Entrou justamente quando a furia popular crescia mais impetuosa.

A figura da morgadinha, em pé sobre os degraus do tumulo, abraçada a
elle, dominava toda aquella multidão.

Ao descobril-a a distancia, o homem que dissemos soltou uma exclamação,
como de quem tinha comprehendido ou adivinhado a significação d'aquella
scena; e apressando ainda mais os passos achou-se, dentro em pouco, no
logar do motim.

Era tempo.

A populaça allucinada ia talvez exercer algumas d'essas irreflectidas
violencias, que tantas vezes maculam e deshonram a causa do povo nas
luctas em que elle toma parte.

--Que é isto aqui?--disse o homem, rompendo com os braços potentes a
onda que se lhe antolhava.

Á rudeza do impulso ninguem resistiu; em pouco tempo abriu caminho até
ao meio do circulo.

Uma só voz correu por as differentes pessoas do grupo dos amotinados.

--O Herodes... É o Herodes!...--diziam, afastando-se.

Effectivamente era o Cancella o homem que tinha chegado.

Obtendo fiança, graças á intervenção do conselheiro, voltava á terra,
ancioso por ver e beijar a filha, cuja ausencia fôra a unica dor que o
atormentara.

O desgraçado não sabia ainda da sorte d'ella.

Uma carta que Magdalena lhe escreveu, noticiando-lh'a, já não o
encontrára na prisão, para onde fôra dirigida.

Vinha cheio de esperanças o pobre homem, porque eram para animar as
ultimas noticias recebidas.

Vendo de longe o ajuntamento no cemiterio, ouvindo os gritos sediciosos,
conjecturou que havia algum motim popular por causa dos enterros no
adro, que elle sabia serem antipathicos aos espiritos da terra.

Quando descobriu a morgadinha, envolvida pelo tumulto, e no tumulo da
mãe, previu que ella estava correndo perigo, e apressou-se logo a
acudir-lhe.

Ao chegar, porém, ao meio do circulo, que conseguiu romper, e quando ia
a dirigir a palavra a Magdalena, reparou para o cadaver da creança do
esquife, o qual continuava ainda pousado no chão; fitou os olhos
n'aquella pallida e serena physionomia, ainda animada pelo mesmo sorriso
de innocencia, e, apesar da debil claridade da hora, reconheceu a filha.

Nem um só grito de dor lhe saiu dos labios, nem um só movimento de
surpresa; ficou mudo, immovel, com os olhos fitos n'aquella creança
morta, com as mãos juntas e com as faces extremamente pallidas.

Perante esta terrivel manifestação de dor, que toda se concentra, para
n'um momento gastar mais vida do que o perpassar de muitos annos,
calmaram todos os outros sentimentos que dominavam os corações.

Fez-se um profundo silencio. O Herodes, n'uma especie de recolhimento
fervoroso, ajoelhou junto do caixão de Ermelinda, e trémulo, opprimido,
quasi sem alento para chorar, approximou a mêdo as mãos das mãos
cruzadas da creança.

Ao primeiro contacto retirou-as rapidamente por achal-as de gêlo; mas,
tomando-as outra vez, murmurava:

--Jesus, meu Deus! Está morta!... Ermelinda!... Filha!... Isto não pode
ser, Senhor!... Pois minha filha está morta?

A paixão principiava emfim a manifestar-se mais tumultuosa; mas havia no
tom de voz, com que estas palavras fôram pronunciadas, não sei quê tão
intimamente doloroso, que presentia-se que, no curto espaço de tempo que
as precedera, se tinha operado n'aquelle peito uma revolução tremenda,
como se uma intima dilaceração o tivesse destruido. Adivinhava-se lá
dentro já um desalento mortal, um mal de que se não convalesce nunca.
Aquelle homem estava perdido.

--Mataram-me a minha pobre filha! A minha Ermelinda... Que mal lhes
tinha eu feito para m'a matarem?... Ó anjo do Céo! viver eu para te vêr
assim!

E, tirando-a do esquife, cingiu-a contra o peito, cobrindo-a de beijos,
que não conseguiam aquecer o gêlo d'aquellas faces.

Raros olhos ficaram enxutos ante aquella sincera dor. Desvanecera-se a
ira popular; como que uma nobre vergonha, uma vergonha de boa indole,
fazia já renegar aos mais atrevidos os seus excessos passados.

O Cancella continuava:

--Esta frialdade da morte! esta brancura das faces!... isto mata-me,
despedaça-me o coração!... Não me morras assim, filha! Não me morras
antes de dizer-me uma palavra de amor... de perdão. Sim, tu tinhas que
me perdoar antes de morrer! Por que não esperaste ao menos?... Pensar eu
que hei de vêr-te partir, sem que me dês um beijo de despedida!... que
te não hei de ouvir falar! Só! só! Ficar só! Só n'este mundo, Senhor!...
Em que tanto vos offendi, meu Deus, para me castigardes assim!? Em quê?

Magdalena chorava, commovida, ao ouvir estas palavras dolorosas.

O Cancella voltou para ella os olhos já marejados de lagrimas.

--Ó menina Magdalena, pois Ermelinda morreu?... Fale, diga-me. Minha
filha morreu? A que horas?... como?... Falou em mim? pensou em mim?...
Perdoou-me?... Chora, e não responde... Então não me perdoou? Pois minha
filha não me perdoou?

Magdalena respondeu a custo:

--Que tinha ella a perdoar-lhe?

--Não é verdade que eu lhe queria muito? não é verdade que eu vivia por
ella? Agora... que me importa o viver? Como posso eu viver! Ai, se Deus
me matasse agora, assim! abraçado a este anjo! Se Deus me matasse!

E outra vez a estreitava nos braços.

Depois, voltando-se para o povo que se conservava alli, perguntou com
voz alterada:

--Que procuram?... Que querem?... o que fazem ahi armados, ao pé de
minha filha morta?

--Queremos que elles a enterrem na igreja--responderam, já tibiamente,
algumas vozes.

--Na igreja?... Isso é que não! Sabem quem me matou a filha? Foram
elles... Esses que m'a tolheram de mêdos, que lhe roubaram as
alegrias... que fizeram d'ella isto que ahi vêdes... Pois não a
conheciam? Não a tinham visto ahi nos campos, nas novenas e nas
festas?... Viram-n'a nunca com estas côres desmaiadas? viram-n'a sem
aquelles cabellos louros, que tão bem lhe ficavam? e que elles cortaram
sem piedade? E querem-te ainda guardar, desgraçadinha! Não, não te
entregarei. Não, não irás lá para dentro. Quero-te aqui, minha filha;
aqui, debaixo dos olhares de Deus... Eu mesmo te vou deitar como tantas
vezes o fiz quando dormias no berço, que ficará sempre vazio! Ó meu
Deus, que vida vae ser a minha, se te não compadeces de mim, Senhor!...

E suffocado de pranto, que rompia agora abundante, o desesperado pae
ajoelhou junto do esquife, onde depoz com cautela o corpo da filha.

--Obrigado, menina Magdalena, por dar á minha pequena um logar ao pé de
sua mãe; obrigado. Junto d'aquella santa parece-me que dormirá em
socêgo... A minha pobre filha!

E pousando nos labios frios da creança um beijo prolongado, cheio de
paixão e saudade, levantou o esquife nos braços para, por suas proprias
mãos, o descer ao jazigo. Antes, porém, de fazel-o, beijou ainda uma vez
aquella de que mal podia separar-se.

Cêdo baixou sobre o pequeno esquife a pedra tumular.

Nem um só movimento, nem uma só voz tentou oppôr-se áquelle acto, contra
o qual momentos antes se erguia irreprimivel a resistencia popular.

Os influentes mais insoffridos tinham abandonado o campo.

O primeiro que o fizera fôra o missionario. Desde que vira assomar a
figura do Cancella, vieram-lhe ao espirito umas memorias pouco
agradaveis, e julgou avisado retirar a tempo.

Ao terminar esta scena o proprio morgado e o inseparavel Cosme já não
estavam presentes. Sairam desde que viram os animos pouco dispostos a
secundal-os.

Os circumstantes quasi faziam já côro com as arguições do Cancella
contra os excessos do fanatismo e do beaterio.

--A falar verdade--dizia um--este pobre homem tem alguma razão. Isto de
metter scismas ás creanças!...

--E a Rosita do Gaudencio olha que vae por a mesma.

--Tambem é de mais.

--Eu por mim se fôsse a elle... Não sei o que faria.

N'estes e n'outros dizeres se iam retirando do cemiterio.

Não seria difficil a um especulador aproveitar aquelles mesmos braços e
armas para organisar uma sedição sobre uma divisa opposta á que primeiro
os convocára.

Ao vêr cerrar-se a campa sobre o corpo da filha, o Cancella caiu de
joelhos, suffocado em pranto.

As creancas presentes, por contagio da commoção, a que é tão sujeita
aquella idade, choraram tambem.

Magdalena ia a consolal-o, mas o sentimento proprio não a deixou falar.

Só pôde pousar-lhe em silencio a mão no hombro.

O Cancella apoderou-se d'ella e, levando-a aos labios, rompeu em mais
desafogado pranto do que nunca.

A noite crescia; cada vez era mais cerrado de nuvens o firmamento.

Os sons das Avé-Marias vibraram nos ares, prolongados e tristes.

O padre velho pronunciou em voz alta a saudação angelica.
Responderam-lhe as creancas!

Tudo concorria para augmentar a extrema melancolia do quadro.

O Cancella a muito custo se resignou a arrancar-se d'alli.

A morgadinha voltou a casa com o coração oppresso de tristeza.




XXVI


Quando Magdalena voltou ao Mosteiro encontrou a casa em completa
agitação.

Momentos antes havia sido para lá transportado, quasi sem accôrdo,
Henrique de Souzellas, que um criado de lavoura se encarregára de trazer
da taberna, onde o Canada o recolhera, até o Mosteiro, sobre um carro de
herva que vinha guiando.

Ao vêr n'aquelle estado o sobrinho da senhora de Alvapenha, D. Victoria
perdeu totalmente a cabeça, e em vez de tomar as providencias que o caso
pedia, deu em ralhar, em fazer exclamações, em andar de sala em sala, de
corredor em corredor, sem tenção formada, sem methodo, sem direcção.
Levava as mãos á cabeça, ajuntava-as consternada; dava uma ordem ociosa;
mandava logo suspender a execução d'ella; impacientava-se; chamava a
toda a pressa um criado e não sabia depois o que tinha para dizer-lhe;
extranhava a tardança de outro que não mandára chamar, e sem dar a final
expediente a coisa nenhuma, nem saber o que fizesse.

Os criados resentiam se d'esta falta de intelligente direcção; paravam
embaraçados, ou corriam sem saber para onde, nem para quê, e sem
adeantarem serviço.

As creanças concorriam tambem para esta desordem, porque, cheias de
susto, andavam agarradas ás saias de D. Victoria, que nem sequer dava
por ellas.

Christina foi a unica pessoa que conservou a presença de espirito
n'aquella occasião.

Nada do que fazia era inutil: nem uma só ordem dava que pudesse dizer-se
ociosa; graças ao methodo com que procedia ás instrucções que ordenava,
a tudo se providenciou convenientemente, sem que D. Victoria o
percebesse até.

Christina tambem, ao vêr chegar Henrique n'aquelle estado assustador,
sentira-se desfallecer; mas disse-lhe a consciencia que lhe era precisa
toda a firmeza, visto que estava ausente Magdalena, em quem sómente
poderia descançar, e logo achou na necessidade valor, e, com serenidade
apparente, só trahida pela extrema pallidez das faces, a tudo attendeu,
tudo previu, tudo providenciou.

Sem uma exclamação, sem uma palavra de desespero ou de susto, sem nem ao
menos erguer o tom de voz, ou modificar a inflexão affavel, que lhe era
natural, preparou um quarto para Henrique e n'elle todos os aprestes que
o seu grave estado pedia, dirigiu os primeiros soccorros com
intelligencia e efficacia, mandou chamar o cirurgião, enviou a Alvapenha
parte do succedido, e ordenou que procurassem Magdalena, occupando
n'isto a menor gente possivel, e deixando a outra toda como alimento á
impaciencia de sua mãe.

A indole de Christina tinha d'estas energias essencialmente feminis e
sympathicas. Não era para o salão que se formára e educára o ingenuo e
meigo caracter da prima de Magdalena. Ahi tomava-a um acanhamento, que
já não conseguiria vencer, mas nas lides domesticas, na vida do lar era
d'essas corajosas luctadoras, a quem a desventura não derruba, cuja
intelligencia por tudo se reparte; d'estes genios providenciaes, que
pairam sobre o estreito horisonte da familia, activos, laboriosos,
achando nas fadigas um prazer, nos sacrificios estimulos para mais amar,
nos sorrisos que provocam, nas dores que alliviam, nas lagrimas que
enxugam, premio bastante para compensar as penas que soffrem.

Mulheres são estas nascidas para serem esposas e mães, o que é quasi o
mesmo que dizer: nascidas para serem mulheres.

A chegada de D. Dorothéa, que acudiu apressada logo que soube o que
succedera ao sobrinho, não dispensou Christina d'estes cuidados, que
voluntariamente tomára.

Comquanto a senhora de Alvapenha fôsse mais razoavel do que D. Victoria,
e de temperamento menos susceptivel d'aquellas inuteis effervescencias,
em que esta se deixava arrebatar, não era tambem mulher para casos
d'estes.

Na sua longa vida de celibataria sem familia, D. Dorothéa perdera ou
embotára a faculdade preciosa de acertar bom caminho em qualquer
imprevista occorrencia.

Facto que destoasse dos monotonos habitos do seu viver de muitos annos
já a lançava em sérios embaraços. Ella propria confessava que inda havia
pouco tempo principiára a afazer-se á estada de Henrique em Alvapenha, e
a fazer o que era seu costume fazer antes de elle vir.

É pois evidente que D. Dorothéa pouco mais podia fazer do que rezar, e
para isso ninguem estava mais habilitado do que ella. Em relação á côrte
celestial era a boa senhora como esses almanachs vivos, que nos sabem
dizer todos os canaes por onde os differentes negocios poderão ser
melhor conduzidos nas côrtes... terrestres... Conhecia a especialidade
de cada santo e para cada um tinha uma fórmula de requerimento
particular.

Christina não a consentiu por muito tempo no quarto de Henrique, onde,
com as melhores intenções, mais embaraçava o serviço do que auxiliàva;
usando de uma debil violencia foi-a levando para a sala do oratorio,
onde ella encetou uma reza sem fim.

Quando a morgadinha chegou, ainda perturbada com as scenas do cemiterio,
e soube do succedido na taberna, correu, assustada, para verificar a
realidade do que lhe diziam.

Nos corredores encontrou um criado caminhando, apressado, n'um sentido,
uma criada em sentido opposto, emtanto que, na sala proxima, D. Victoria
tocava freneticamente a campainha a chamar por ambos.

Magdalena dirigiu-se para lá.

Quando entrou estava D. Victoria pronunciando uma d'aquellas
interminaveis e arrevezadas objurgatorias, de que só a fecunda
verbosidade feminina é capaz. Em geral as mulheres, seja dito antes em
honra do que em censura do sexo, são oradoras de muito mais folego que
os homens que blasonam de eloquentes. O assumpto mais simples, uma
colhér que se perdeu, uma peça de louça que se quebrou, por exemplo,
fornecem-lhes thema para uma prédica de duas horas.

Encaram o assumpto por todos os lados, paraphraseiam-n'o de mil fórmas e
estendem milagrosamente por muitos periodos aquillo que a um homem a
custo daria para uma magra oração.

--Mas onde estavas tu? Sim, eu quero saber onde é que tu estavas. Faça
favor de me dizer onde é que estava?

Isto dizia D. Victoria a um criado, estatelado deante d'ella com a cara
e postura de réo.

--Eu... senhora...--ia elle a dizer.

--Eu senhora... eu senhora... eu nada. Ora é o que é. Um desafôro
assim!... Eu só quero saber se vossemecê ganha soldada para andar lá por
onde muito bem lhe parece. Por as tabernas... por as vendas... Porque
elle não ha mais... Como o dinheiro se vae roubar á estrada... O que tu
merecias... Estou eu aqui a chamar ha mais de duas horas e vossemecê
apparece-me lá quando é muito do seu gôsto? Isto atura-se? A culpa tem
quem eu sei... Tu cuidas que mandriar não é roubar?

--Mas...

--Cale-se! Ouça e cale-se. Tens a lingua muito prompta para responder.
Ora toma-me cautela, senão vaes já, já pela porta fóra. Pouca vergonha!
Uma pessoa aqui afflicta, com as coisas por fazer, a querer mandar onde
é preciso e não apparecer um criado n'esta casa! A pagar-se aqui umas
soldadas por ahi além, e, quando se quer o serviço feito, tem uma pessoa
de o fazer por suas mãos!... Tu cuidas que isso não é peccado tambem?
Deixa, meu amigo, que tens boas contas a dar de ti. Quem é que lhe deu
licença para sair sem ordem de seus amos? Faz favor de me dizer?

--A sr.^a Christininha...

--Eu não quero saber da sr.^a Christininha, quero saber quem lhe deu
licença para sair?

--Mas é o que eu estou dizendo á senhora.

--É muito padre-mestre. Ora não seja confiado, e veja como responde.

Emfim, este dialogo promettia ser eterno, não obstante a urgencia do
serviço de que falava D. Victoria, serviço que ella propria adiava com
este importuno sermão.

A entrada da morgadinha operou uma diversão. D. Victoria esqueceu-se do
criado, o qual pôde retirar-se sem ser percebido e sem receber as ordens
urgentes para que fôra chamado.

D. Victoria principiou a contar a Magdalena o succedido, conforme ella
propria o soubera do moço do carro em que viera Henrique.

--Andam desaforados--concluiu ella.--Já nem attendem a uma pessoa de
respeito. É porque não ha justiça n'esta terra. Estão para ahi uns
patetas de umas auctoridades, que são outros que taes. Era preciso um
exemplo. Ahi está quando eu, se fôsse rei, não tinha pena nenhuma: havia
de os esquartejar e era bem feito!

Cumpre dizer que D. Victoria não era capaz de bater n'um gato.

A morgadinha contou tambem rapidamente o que succedera no cemiterio.

Então é que trasbordou a indignação da tia.

--Tu que dizes, menina?... Tu estás a falar sério?... Pois elles?... Em
nome do Padre... Que mais teremos ainda de ver?... Oh meu Deus!... E
esses malvados ainda estão na rua?... Deixa que teu pae ha de ainda
saber... Não, isso não fica assim... D'aqui a pouco põem-nos o pé no
pescoço. Nada, nada; para os malvados é que se fizeram as forcas... Ora
deixa que... Isto aqui anda trama.

--Não falemos mais n'isso. Agora vou vêr o estado do ferido.

--Vae, e vê se encontras por ahi alguns criados. Eu não sei onde elles
se metteram. Ha de ser preciso ir á botica, e muitas mais coisas, e não
vejo nenhum!

Magdalena deixou sua tia a tocar outra vez a campainha.

Encontrou-se na sala immediata com Christina, que ia em direcção ao
quarto de Henrique, com um copo de agua acidulada.

--Que ha, Christe?--perguntou-lhe Magdalena.

--Que ha de haver, Lena?--respondeu Christina com tristeza, mas com
serenidade ao mesmo tempo--uma desgraça, mas que Deus ha de permittir
que não seja sem remedio.

--Como está elle?

--Estonteado ainda, mas um pouco mais tranquillo do que quando chegou.
Os balanços do carro fizeram-lhe mal. Com as bebidas calmantes que lhe
tenho dado, achou-se bem.

--E ainda não mandaram chamar o cirurgião?

--Já mandei, já veio, já o sangrou, já...

--Mas tua mãe não o sabe e ia mandar...

--Deixa-a lá, Lena. Deixa-a lá com os criados, que por ora não convem
que venha. Elle precisa de socêgo. Já mandei sair d'aqui a tia Dorothéa,
que não adeantava serviço. Queres vir vêl-o?

Magdalena seguiu a prima, e entraram ambas no quarto de Henrique.

Mantinham-se ainda em Henrique as consequencias da profunda commoção
cerebral, que lhe produzira a quéda. A tendencia ao estado comatoso, que
apresentava, tornava incerto o resultado e melindrosissimo o caso.

Voltára-lhe a razão e os sentidos; mas tardia aquella, e estes sem
possibilidade de longa fixação em qualquer objecto. Sobretudo, o que
n'elle se notava pouco de tranquillisar, era uma indifferença morbida
pelo seu estado e por tudo quanto o cercava.

Acceitou das mãos de Christina a bebida refrigerante, que ella mesma
preparára, com os movimentos quasi instinctivos do somnambulo.

No fim, como se o prazer que o frescor do liquido lhe causára lhe
avivasse por instantes a consciencia, fitou em Christina um olhar de
gratidão, sorriu-lhe, e, pousando a cabeça outra vez no travesseiro,
fechou os olhos para dormir. Esta somnolencia era habitual.

Christina não ficou inactiva; preparava um remedio, arrumava um movel,
desviava os raios da luz da fronte do enfermo; ia ao corredor mandar
calar os irmãos ou os criados, ou desfazer alguma dúvida suscitada por
os ultimos sobre o cumprimento de qualquer ordem; outras vezes parava a
espiar o aspecto do doente e a escutar-lhe o rhythmo do respirar. E
sempre movendo-se agil e sem ruido, diligente e sem confusão.

Magdalena, que se sentára a um canto da sala, quasi subjugada pelas
muitas e violentas commoções d'aquelle dia, contemplava a actividade da
prima e extranhava-a.

Ella propria, que melhor do que ninguem conhecia Christina, nunca a
suppuzera capaz d'aquella firmeza de animo e d'aquelle espirito
methodico e providencial de que estava dando agora irrecusaveis provas.

Apreciára-lhe até então os dotes de creança, a bondade do coração, os
extremos de affecto que possuia; mas ainda a não tinha visto tomando
assim tanto a sério a sua missão de mulher e desempenhando-se d'ella tão
dignamente.

Esta ordem de reflexões conduzia naturalmente a outras o espirito da
morgadinha. Reparando para Henrique, assim derrubado no leito, e como
que sob a protecção de uma timida e debil creança que, mais do que elle,
parecia carecer de amparo, Magdalena não pôde reprimir um sorriso
benigno e pensou:

--Sim; aquella cabeça estouvada pôde até hoje passar por este anjo sem o
conhecer; mas é preciso não ter coração para que, ao erguer-se d'aquelle
leito, não seja o seu primeiro movimento o de ajoelhar deante d'ella
para a adorar. E Henrique não é falto de coração. Lida, lida, minha boa
Christina, que para a tua felicidade lidas. Foi a Providencia que quiz
que tu vencesses com as mais abençoadas armas que concedeu á mulher.
Confio em Deus que vencerás. Deixar-te-hei todas as fadigas, para te
pertencer todo o prazer.

E em harmonia com esta resolução, a morgadinha absteve-se de intervir no
tratamento de Henrique.




XXVII


Foi opinião do facultativo, que tratou de Henrique, que a vida d'este
correra sérios riscos durante a primeira semana, por não sei que
complicação que se lhe manifestou no decurso da molestia. Se se enganou
o prático, não nos compete a nós decidir; acceitemos-lhe a opinião, como
de legitima fonte, e não profundemos materia alheia ao nosso intento.

Ao fim dos oito dias, porém, começaram a manifestar-se melhoras
evidentes, e o proprio facultativo foi o primeiro a assegurar ás
senhoras, que sempre o vinham consultar á saida com anciosa curiosidade,
que «o homem estava salvo».

De facto, nos primeiros periodos da doença, Henrique caira, como já
dissémos, n'um d'aquelles estados de indifferença para tudo e para
todos, de que se não pode agourar nunca bem. Agora, porém, começava já a
manifestar attenção para os cuidados de que era objecto, e a agradecer,
com palavras de sincera gratidão, o tratamento affectuoso que recebia
n'aquella casa e especialmente os desvelos de Christina.

Esta fôra effectivamente sempre incançavel, solícita e carinhosa
enfermeira.

Os cuidados de que o rodeava, como a um irmão, absorviam-lhe todos os
instantes; prevêr-lhe os desejos, adivinhar-lhe as penas, procurar-lhe
allivio ás dores physicas ou moraes, era agora para ella a tarefa de
cada momento, a preoccupacão permanente de todos os seus pensamentos.

Henrique costumára-se a vêr mover-se no seu quarto aquella meiga e
delicada figura de mulher, creança de hontem, a ouvir-lhe o timbre suave
e ainda um pouco infantil da voz, a cruzar o olhar com aquelle olhar
brando que o fitava com sympathia e meiguice; já se não sentia bem,
longe d'ella, e a cada momento, se estava ausente, dirigia as vistas
para a porta á espera de a vêr apparecer.

Magdalena espiava estes symptomas, notava a influencia crescente de
Christina sobre o animo do rebelde, que até alli fôra insensivel, e
exultava. Muito de proposito a morgadinha afastava-se o mais possivel da
cabeceira do enfermo, por uma razão analoga á que obriga os pintores a
deixar em meias tintas os accessorios de um quadro, para que a attenção
se fixe no objecto principal.

Magdalena estava tambem dispondo uma obra de arte, na qual Christina
devia ser a figura principal.

N'este intento a morgadinha conservava ás visitas que vinha fazer a
Henrique um ar cerimoniatico, que contrastava com a insinuante
familiaridade da prima. Para isso teve Magdalena de suffocar os impulsos
da sua indole de mulher, e de mulher que tão bem comprehendia os deveres
da sua missão, ao mesmo tempo carinhosa e heroica. Apresentava-se o mais
extranha que lhe era possivel a estes pequenos cuidados, que tão
irresistivel influencia exercem no coração do homem que experimenta a
ventura de ser objecto d'elles.

De dia para dia crescia o ascendente de Christina sobre Henrique, e
crescia á custa de Magdalena.

Esta percebia-o e não cabia em si de contente com a descoberta. É
necessario ser dotado de um grande fundo de generosidade, para que um
coração de mulher faça d'estas descobertas, com o intimo contentamento
que Magdalena sentia. É tão natural defeito a vaidade! Não se exprime o
prazer que Henrique experimentava a cada pequeno incidente da vida
domestica, que punha em relêvo o predominio de Christina.

Havia uma hora no dia em que Henrique gosava um d'estes prazeres
placidos, de que tão pouco abundante era todo o seu passado.

Ao fim da tarde, D. Victoria, Magdalena e toda a familia do Mosteiro, e
a propria tia Dorothéa, reuniam-se no quarto do doente para tomarem o
chá. Não era, porém, a presença de nenhuma d'ellas, nem a de Magdalena,
que o consolava e obrigava a suspirar por aquella hora, mas uma pequena
circumstancia, que fará sorrir um homem de sensibilidade embotada,
emquanto o facto se não der com elle. Era que Christina, que em outra
qualquer occasião cedia sempre a Magdalena a direcção dos trabalhos
domesticos, alli dentro não resignava em ninguem essas funcções. Tomava
naturalmente as maneiras de dona de casa, e recebia a mãe, a prima e
todas as outras como visitas de intimidade, sim, mas em todo caso,
visitas.

Não se imaginam os encantos que Henrique achava áquillo. A elle proprio
parecia já que de facto o prendiam a Christina laços mais intimos, laços
mais de familia, do que ás outras senhoras. Era assim que qualquer
pedido, que tinha a fazer, o dirigia sem hesitar a ella, como o faria a
uma irmã; emtanto que naturalmente custava-lhe a incommodar outra
qualquer pessoa, e não o fazia sem as desculpas e cumprimentos do
estylo, que para ella não usava já.

Outra particularidade o enleiava tanto como esta. Era a maneira
despotica por que o governava Christina, fazendo-o cumprir á risca as
dietas e as prescripções do facultativo, recusando-se obstinadamente a
deixal-o lêr, e até ralhando-lhe ás vezes com severidade quasi maternal:
apparencias de dureza, que occultavam thesouros de sensibilidade e de
affecto.

O pobre rapaz, que não conhecera familia, que nunca vira do seu leito de
doença, nas vezes que caira n'elle, o vulto suave e consolador de uma
mãe, de uma irmã ou de uma esposa sorrir-lhe ao despertar, interrogal-o
com essas entonações carinhosas, que nos provocam o cobrir de beijos a
mão que nos estende a taça do mais amargo remedio; elle, que não sabia
ainda o que era sentir-se amparar a fronte, que escalda de febre, pelo
apoio de uma debil mão de mulher, a que o amor dá fôrças
extraordinarias, commovia-se até ás lagrimas agora, e quasi não pensava
sem tristeza na convalescença, que havia de o privar d'aquelles cuidados
affectuosos.

O olhar com que fitava Christina, todas as vezes que ella se lhe
approximava do leito, era mais eloquente de reconhecimento, do que todas
as palavras que lhe dizia, do que todas quantas lhe poderia dizer.

Agora o enleiado e timido era elle, Christina a corajosa.

Um dia em que Henrique parecia soffrer mais do que de costume, e em que
se agitava no leito com a inquietação da febre, Christina, depois de lhe
dar a beber o calmante que lhe prescrevera o medico, perguntou-lhe, com
a mais adoravel candura:

--Não sabe rezar?

Henrique sorriu, respondendo:

--Julgo que desapprendi já as orações que minha mãe me ensinou.

Christina calou-se e ficou tristemente pensativa.

Aquella alma innocente perguntava a si mesma que consolação encontraria
nas provações da vida um espirito que não soubesse recolher-se na
oração.

Henrique, que a viu sorrir, disse-lhe:

--Quer-me ensinar a rezar, Christina?

Christina fitou n'elle um olhar perscrutador, como para sondar a
intenção d'aquellas palavras.

--Juro-lhe que recitarei com o fervor, de que ainda fôr capaz a minha
alma, as orações que me ensinar.

Christina respondeu-lhe gravemente:

--Reze, reze e verá como n'isso acha consolação. Vou emprestar-lhe o meu
livro de orações, quer?

--Por que me não ha de antes ensinar, como minha mãe o fazia?

Christina ouviu com seriedade a proposta.

E o certo é que um dia, em que Henrique passára peor, Magdalena ouviu,
na sala proxima, Christina, recitando uma singela prece á Virgem, e o
doente repetindo-a com docilidade de creança.

Como se ririam d'elle os seus amigos da capital, se n'aquelle momento o
vissem! Mas rir-se-iam de um phenomeno naturalissimo, de uma d'estas
modificações a que todos os caracteres estão sujeitos, quando se dão a
actual-os dois elementos tão poderosos, como se davam em Henrique: a
doença, que quebra a inteireza das indoles mais rijas, e abre o coração
ás doces influencias; e a catechese feminina, a mais poderosa, efficaz e
irresistivel de todas.

Não direi que fôsse com inteira fé que o doente orava; talvez que
houvesse mescla de sentimento profano no prazer suave que experimentava
ao orar assim. É certo, porém, que, desde então, frequentes vezes se lhe
desviavam os olhos para o pequeno crucifixo, que Christina trouxera do
seu quarto para a cabeceira do leito de Henrique.

Outra vez, quando Christina acabava de fazer-lhe tomar um remedio,
Henrique, obedecendo aos impulsos da sua gratidão, beijou-lhe,
commovido, a mão, que ella ia a retirar.

--Que faz?--disse Christina, córando e afastando-a.

--Deixe-me beijar a mão piedosa que me prendeu á vida, á vida que só
agora comecei a amar.

--Ora vamos--acudiu ella, com um meigo tom de reprehensão.

--Como não quer que a adore, Christina, depois de se fazer anjo para me
salvar? Não costuma rezar ao seu anjo da guarda?

--Repare que eu não tenho azas de anjo.

--Mas vôa mais alto ao céo, quando desce assim a velar por um pobre
doente como eu, que nenhuns titulos possue para lhe merecer essa
dedicação, pobre menina! Que vida tem sido a sua ha tantos dias?

--Nenhuns titulos! que diz?--tornou Christina, com um sorriso adoravel.

--Pois quaes?

--Então não somos primos? disse ella, jovialmente.

E saiu do quarto, com aquelle andar ligeiro e facil, que tanto enlevava
Henrique.

Estava já Henrique em convalescença, e o facultativo permittira-lhe
alguns passeios pela quinta, mas ainda não a sua transferencia para
Alvapenha. O logar favorito de Henrique n'estes passeios era á sombra de
umas laranjeiras, que havia a pouca distancia de casa. Das janellas do
quarto de D. Victoria descobria-se o logar. Quando as manhãs estavam
serenas, Henrique ia para alli, com um livro que não fazia tenção de
ler, e apoiando-se ao braço de Christina, que levava a costura para
junto d'elle, para lhe fazer companhia.

D. Victoria seguia-os da janella com as suas recommendações.

--Por ahi não, Christe!... Olha que é muito humido... Dá antes a volta
pela nora... Assim... Cautela com essas hervas, que hão de estar
molhadas... Vê lá que não esteja frio... Olha se esses troncos estão
molhados...

Henrique tornava-se melancolico e sombrio n'estes momentos, a ponto de
uma manhã Christina o interrogar, n'aquelle tom de familiaridade
affectuosa, que principiára a poder ter para com elle, desde que o vira
fraco e doente e a carecer do seu auxilio e protecção.

--Que é isso! Por que está sempre triste, agora que vae melhor?

--Estou triste, porque estou melhor--respondeu Henrique.

--Que está a dizer?!

--A verdade. A poucos doentes terá succedido o que succede commigo. Este
renascer para a vida, este sangue novo que sentimos circular nas veias,
este vigor que de instante para instante conhecemos accumular-se em nós,
que tantos gósos dá aos convalescentes, a mim fazem-me entristecer; como
que estou presentindo já as saudades d'este tempo, que passei prostrado
no leito da doença, Christina.

--Não diga isso.

--E admira-se? Se elle foi o tempo mais feliz da minha vida! Não sabe
que me eram desconhecidos inteiramente os ineffaveis carinhos de familia
que me fez experimentar? Com a saude vão voltar para mim os dias da
solidão, do desconforto, d'aquella vida gelada e inutil que abomino,
desde que principiei a conceber outra... desde que m'a fez conceber,
Christina! Quando penso em voltar para Lisboa...

--E tenciona voltar?

A esta pergunta, feita com a maior naturalidade, Henrique sentiu uma
intima commoção. Ha d'estes effeitos. Ás vezes o olhar menos
significativo, a palavra menos pensada, é pelo coração interpretada de
maneira tal que elle proprio se sente estremecer.

--E queria que eu ficasse, Christina?--perguntou Henrique, sob o dominio
d'essa impressão.

Christina não respondeu logo.

--Deixe-me acreditar que sim; é bastante generosa para isso, para não
vêr partir sem saudade o homem a quem salvou com os seus extremos de
irmã. Esta ideia será a minha consolação; deixe-me partir com ella.

--Partir?... mas... para que ha de partir?

--Então quer que me fique perpetuamente com aquella boa tia Dorothéa,
cuja vida placida vim alterar com os meus habitos cidadãos?

--Pois não lhe custaria a ella mesma vêl-o partir! E depois... que vae
fazer para Lisboa? Adoecer outra vez, ou scismar que está doente, que é
quasi a mesma coisa.

--E dar-me-ha sempre a sua amizade se eu ficar?

--Por que havia de lh'a negar?

--Tempo virá em que outros me disputarão a menor porção de affecto que
me conceder, Christina... e então... então é que eu ficarei mais só do
que nunca... ou mais do que nunca sentirei que o estou.

--Anda só, por que quer... Não ha tanta gente por esse mundo?

--Então a menina não sabe que se está só mesmo em companhia? Quem está
só é a alma. Ai, a alma está só quasi sempre!

--Por que quer.

--Por que desconfiou das companhias que se lhe offereciam, e por que não
obteve a que desejava. Além de que, ha almas tão tristes, que intimidam
outras. E a minha é d'essas. Ora diga, se eu lhe pedisse para fazer
companhia á minha alma, a esta alma melancolica e sombria com que nasci,
não hesitaria? Confesse.

Depois de um momento de silencio e hesitação, Christina respondeu:

--Se a companhia da minha fôsse bastante para desfazer essa tristeza...

--Concedia-m'a?

--E por que havia de negar-lh'a?

Henrique tornou-lhe a mão, apaixonado.

--Christina, sabe que essas palavras podem fazer-me conceber loucuras?
Se o meu coração é tão ousado...

Christina, córando, retirou a mão de que Henrique se apoderou, e
levantando-se, sobresaltada, disse:

--Julgo que são horas do seu remedio. Vou preparar-lh'o.

E fugiu, correndo em direcção de casa.

Scenas mais ou menos analogas a esta reproduziam-se todos os dias
durante a convalescença de Henrique. Reinava o idyllio e uma como
perfumada atmosphera, que exercia profundas revoluções no caracter de
Henrique e de Christina. Elle ia perdendo de dia para dia aquellas
exterioridades artificiosas, que Magdalena por tanto tempo combatera em
vão; ella, Christina, ganhando vida, actividade, soffrendo uma d'essas
metamorphoses analogas ás da vida de borboletas, da infancia, estado de
chrysalida para a imaginação, passava á verdadeira juventude, ao periodo
em que a imaginação ganha azas, em que o coração se completa.

Desde que Henrique se achava em estado de passeiar, não havia razão
possivel para permanecer no Mosteiro; portanto tornou-se inevitavel a
mudança para Alvapenha.

Já se não fez sem lagrimas a despedida.

Choraram as creanças, chorou D. Victoria e a propria Magdalena se sentiu
commovida; só Christina não se achava na sala em que se passou a scena.

Encontrou-a Henrique no patamar da escada por onde tinha de sair.

Seria casual esta circumstancia?

Henrique não perguntára por Christina; dizia-lhe o coração que a
encontraria alli.

--Volto á minha solidão, Christina--disse-lhe, commovido.--Não lh'o
tinha eu dicto?

A pobre menina quiz sorrir, mas do esforço que para isso fez só lhe
resultaram lagrimas.

--Não diga mais nada--disse Henrique, levando aos labios a mão que ella
não retirou.--Essas lagrimas bastam-me.

Escusado é dizer que estas palavras mais lagrimas produziram.

E Henrique desceu do patamar com a vista ennevoada por ellas.

Christina ficou a chorar na varanda.

A morgadinha veio, sem ser sentida, abraçal-a, dizendo:

--Pago-te hoje o abraço que me déste no outro dia; mas eu escuso de te
perguntar... «Pois tu amaval-o?»

--Ai, Lena!...--exclamou Christina, cada vez chorando mais.

--Faltava aos vossos amores este arremêdo de infelicidade, e imaginaram
uma separação de duzentos passos para poderem representar a scena das
despedidas, e chorarem como Paulo e Virginia. Impostores!--dizia
Magdalena, para consolal-a.

Em Alvapenha Henrique passou horas de intensa melancolia.
Impacientavam-n'o as conversas de sua tia e de Maria de Jesus, a qual
taes mudanças notava n'elle, que chegou a aventar á ama a ideia de que a
doença tinha transtornado o juizo ao rapaz, opinião que D. Dorothéa
levou muito a mal.

Outro symptoma que se manifestou em Henrique foi a indignação que lhe
causou a carta de um amigo que, com o maior scepticismo, lhe perguntava
novas dos seus habitos pastoris e das Tirces e Galatéas que o traziam
enlevado. Henrique revoltou-se d'esta vez, com todo o fogo do coração,
contra aquelle tom frio e sarcastico da epistola, e nem lhe respondeu.

Depois teve Henrique uma visão.

Não se assustem os leitores que antipathisam com o maravilhoso. Nada ha
aqui que se pareça com as visões épicas; foi uma visão como muitas, que
nós todos, uma ou outra vez na vida, experimentamos; um d'esses
espectaculos, que nos prepara de quando em quando a imaginação, esta
fertil e poderosissima creadora, que nos acompanha incessantemente. A
quem não terá de facto succedido vêr transformar-se pouco a pouco uma
perspectiva, desvanecerem-se os effeitos da visão exterior,
enfraquecerem as impressões dos sentidos, e avultarem, tomarem fórma,
realidade, vida, as imagens de uma mais intima, espontanea e mysteriosa
visão?

Estava Henrique á janella do quarto que habitava em Alvapenha. Sabemos
já que se gosava d'alli um panorama extenso e amenissimo. A tarde
parecia de primavera. Henrique corria com prazer a vista pelos
differentes logares da quinta de Alvapenha, com as suas noras e mêdas,
colmeias, eiras, cabanas e sebes. Era uma verdadeira quinta rural,
resentindo-se, porém, um pouco de ser a proprietaria d'ella uma senhora
velha, e com pouca actividade para tratar da lavoura.

Pouco a pouco deixára Henrique de vêr a quinta como ella era.

Principiava a visão interior.

As arvores copavam-se de folhagem; messes aloiradas ondulavam nos
campos; numerosos rebanhos cobriam os lameiros extensos; atulhavam-se de
cereaes os celleiros; alastrava-se de grão o chão das eiras; gemiam as
noras e os lagares; soltavam-se ás prêsas os diques, e uma verdadeira
rede liquida envolvia em suas malhas a vegetação dos campos; alvejavam
as camisas dos ceifadores e echoavam nos montes e arvoredos as
cantilenas aldeãs; e os mais caracteristicos e poeticos episodios da
vida agricola desenrolavam-se aos sentidos, deleitosamente allucinados,
do sobrinho de D. Dorothéa. Era uma perfeita georgica! E elle a dirigir
todos os trabalhos, a regular o serviço, verdadeiro patriarcha ao modo
antigo; e ao seu lado, e em toda a parte, á sombra de uma arvore, á
borda do tanque, debruçada no muro, por entre os silvados das sébes
vivas, uma figura suave, casta, adoravel... a figura de Christina!

Quem mezes antes adivinharia que Henrique de Souzellas, o homem
elegante, o homem da moda, em quem estavam encarnadas todas as
qualidades boas e más da sociedade que frequentava, havia de ter uma
visão como esta!

No quasi extase, em que a imaginação o lançára permanecia ainda, quando
soube que o procuravam de mando das senhoras do Mosteiro.

Apressou-se logo a receber a visita.

Era o velho Torquato que vinha saber d'elle, de mando de D. Victoria e
das meninas.

O pobre homem era um dos que ficára com affeição a Henrique depois que
estivera no Mosteiro.

Henrique ouvia-o com uma paciencia, que elle já em poucos encontrava,
contar as longas historias dos seus tempos passados, e isso era o
bastante para o velho lhe querer bem.

--Diga ás senhoras que eu mesmo irei ralhar com ellas, pelo incómmodo
que estão tendo commigo. E vossê tambem, Torquato, na sua idade, estes
passeios.

--Ai, não tem dúvida! Isto faz bem... É exercicio a final... Pois é
verdade. Eu d'antes corria a aldeia toda n'um minuto... agora... Olhe
que eu já tenho os meus annos! Veja lá, se no tempo dos francezes eu era
já homem feito... Inda me lembra...

Seguiu-se um episodio da época, e depois, sem transição sensivel:

--Mas lá emquanto ás senhoras... Isso sempre devo dizer que teem tomado
um cuidado!... Todas!... Até a Christininha!

--Sim? Tambem essa?

--Ora se tambem!... Pois a sr.^a D. Victoria?

--Mas... mas... Christina... a sr.^a D. Christina, então...

--Isso é um coração de pomba. Inda ha pouco, ao sair, já vinha no pateo,
e ella veio ter commigo a correr, e disse-me: «Olhe, ó Torquato, ha de
reparar-lhe para a cara e vêr se tem ar mais triste.»

--Ella disse-lhe isso?

--É verdade. E eu lá lhe vou dizer que o encontrei alegre como...

--Não, não; não lhe diga isso, homem--atalhou Henrique.

--Então por quê?!

--Porque... porque... porque não é verdade... Então eu estou assim tão
alegre como isso?

--Não digo que esteja, mas para a socegar...

--Diga que me achou com saude, mas triste. E não lhe disse ella mais
nada?

--A sr.^a D. Victoria...

--Falo de Christina.

--Nada... Ai... Agora me lembro... mas isso é segredo.

--Diga, diga.

--Não é nada; é uma promessa que...

--Uma promessa? Que promessa?

--Sim, olhe, eu digo-lhe, mas guarde segredo! Quando o senhor esteve
muito mal, que nem o cirurgião dava nada por si, a Christinita prometteu
rezar na capella dos Cannaviaes as estações da meia noite...

--As estações da meia noite?

--Sim; as estações rezadas á meia noite á Senhora que está na capella da
casa dos Canaviaes; É tão milagrosa que, dizem, nunca recusou favor que
se lhe pedisse assim. Contava meu pae...

E vinha um caso comprovativo da tradição popular.

--Sim, lembra-me que já me falaram n'isso--disse Henrique, pensativo.

--É verdade. O peor é que é este seu criado quem tem de a acompanhar até
á quinta, depois d'ámanhã á meia noite...

--Então depois de ámanhã á meia noite?

--Sim, mas não diga nada, que isto é segredo da pequena.

--Esteja descançado.

E depois de mais algumas historias contadas por Torquato, e a que
Henrique não ligou attenção, aquelle retirou-se.

Ao ficar só, Henrique caiu em nova e profunda abstracção.
Elaborava-se-lhe na ideia um projecto. O de ir aos Cannaviaes para
presenciar aquelle acto de fervorosa devoção de Christina, que
supplicára por elle, enfermo, com o ardor da mais pura crença, com a
effusão do mais generoso affecto.

N'este intento tratou de se informar a respeito dos caminhos que
conduziam á quinta, que elle ainda não visitára, e sobre como penetrar
até á capella da casa, onde devia ser cumprida a promessa.

D. Dorothéa, D. Victoria e Magdalena deram-lhe os esclarecimentos
precisos sem que suspeitassem das intenções com que elle lh'os pedia.




XXVIII


A casa e quinta dos Cannaviaes, deshabitadas depois da morte da velha
morgada, madrinha de Magdalena, era uma sombria residencia, situada n'um
dos mais êrmos e melancolicos logares da aldeia.

O tempo, cuja acção não contrastada se exercera livremente n'ellas,
viera augmentar o aspecto soturno que desde a origem apresentava esta
casa, ennegrecendo-lhe as paredes, revestindo-lhe de hervas os telhados,
de musgo as padieiras e as junturas de pedra, e povoando-lhe de morcegos
e de corujas os buracos dos muros. Emfim a superstição popular terminára
a obra fazendo divagar as almas do outro mundo por aquellas salas e
corredores vazios, e nas ruas d'aquella quinta, entregue á natureza.

A defuncta morgada, que não se recolhera á aldeia senão depois de ter
gosado na capital de todos os esplendores da vida das cidades, e
brilhando nas mais concorridas e elegantes salas do seu tempo, gosava
n'esta pequena terra, onde passára o resto da vida, de uma fama de
espirito forte, que em grande parte concorrera para generalisar a
opinião de que a sua alma andava ainda penando por cá.

Contavam-se entre o povo anecdotas absurdas, em relação aos annos da
mocidade da morgada. A imaginação popular fazia a biographia d'aquella
senhora, colorindo-a com as tintas maravilhosas com que costuma
phantasiar a vida dos grandes centros, de que vive afastada.

A morgada, que só renunciou ao mundo quando os espelhos começaram a
falar-lhe da vaidade das glorias que repousam nos encantos da belleza,
passou, como succede muitas vezes, de um extremo a outro extremo, e da
vida elegante ás práticas de devoção.

Nos Cannaviaes ouvia missa todos os dias, confessava-se todas as
semanas, commungava todos os mezes, sem comtudo resignar absolutamente
os habitos de elegancia de que já fizera uma necessidade natural.
Trajava sempre com distincção e esmero, e ao corrente das modas.

Tudo isto e as proprias devoções da morgada, acabaram por convencer o
povo de que havia grandes culpas no passado d'ella, as quaes procurava
remir á fôrça de missas. Dizia-se que a morte a viera tomar antes das
contas saldadas, e que por isso a sua alma voltava á terra penando.

Já se vê que o logar era para apavorar as imaginações timidas, e de
noite pouca gente da aldeia gostava de passar por lá.

Henrique depois de ter dicto em Alvapenha que ia passar a noite ao
Mosteiro, d'onde voltaria tarde, saiu mais cêdo do que a hora devida, e
fazendo obra pelas informações da morgadinha, dirigiu-se para os
Cannaviaes para escolher posição d'onde pudesse, sem ser visto, observar
Christina, não tendo ainda resolvido se lhe appareceria ou se a deixaria
imperturbada na sua piedosa tarefa.

A noite fizera-se escura e ameaçava chuva.

Henrique, alumiando-se com uma lanterna de furta-fogo, já um pouco
habituado aos caminhos estreitos e escabrosos do campo, atravessou a
aldeia, examinando com attenção todos os objectos que lhe deviam servir
de indicadores da estrada.

Pouco passava das dez horas, quando se achou em frente de uma casa que
por apparencia, julgou ser a demandada propriedade.

Era uma casa escura, crivada de pequenas janellas e peitoril, tendo a um
lado um alto portão da quinta, do outro a capella, cuja porta Henrique
achou ainda fechada.

O sussurro dos cannaviaes agitados pelo vento era uma garantia de haver
acertado.

Principiavam a cair algumas grandes gottas de chuva e a escuridão a
fazer receiar grandes aguaceiros.

Henrique achou prudente procurar um abrigo onde pudesse resguardar-se.
N'este intento approximou-se do portão. Com grande espanto seu, achou-o
aberto.

Já teria chegado Christina?... Enganar-se-ia elle na casa?... Estaria
habitada a quinta?

Estas tres explicações do inesperado facto debatiam-se-lhe no espirito,
sem que elle soubesse qual adoptar.

Transpoz o portão e entrou na quinta. Nenhuma apparencia de vida.

A chuva caía com mais fôrça. Para se abrigar, Henrique subiu os degraus
de pedra, no tôpo dos quaes havia um patamar lageado e convenientemente
toldado.

Ao chegar alli achou tambem aberta a porta da primeira sala, e ao fim de
um corredor pareceu-lhe divisar luz.

Henrique parou indeciso.

--Decididamente enganei-me. Não é aqui a casa dos Cannaviaes. Sempre
perguntarei.

E bateu as palmas.

Ninguem lhe respondeu.

Bateu outra vez; o mesmo resultado.

Aventurou-se a entrar, deu alguns passos pelo corredor e bateu.

O mesmo silencio; seguiu até o fim do corredor em direcção á luz; chegou
a uma sala mobilada com antigas cadeiras de alto espaldar, e alumiada
por um candieiro de metal, pousando na pedra da chaminé, em cujo fóco
brilhavam ainda uns carvões candentes.

--Parece uma historia de fadas!--pensava Henrique.--Dar-se-ha que a alma
da morgada goste ainda das commodidades?

Ia a dirigir-se a uma porta para chamar, quando se abriu outra do lado
opposto, e appareceu-lhe uma mulher velha, com um vestuario meio do
campo, meio da cidade, e trazendo uma luz na mão. Henrique voltou-se e
preparava-se para lhe dirigir a palavra, quando ella primeiro lhe disse:

--Procurava alguem, o senhor?

--Peço perdão pelo meu atrevimento. Bati muito tempo á porta, e emfim
como a visse aberta, decidi-me a entrar. Desejava saber onde é aqui a
casa dos Cannaviaes.

--A casa dos Cannaviaes é esta mesma.

--Mas... eu julgava... suppunha ter ouvido dizer, que não morava aqui
ninguem.

--E não o enganaram. Hoje por acaso é que está cá a sr.^a morgada.

--A sr.^a morgada?--perguntou Henrique, sem bem saber o que devia pensar
da resposta e de tudo que via.

--Sim, senhor; a sr.^a morgada, e não tarda aqui. Ella esperava-o.

--Ah! A sr.^a morgada esperava-me?

--É verdade--disse a mulher, sorrindo.--Adivinhou que o senhor vinha
aqui. E o que é que ella não adivinha?

Henrique dava tratos á imaginação para comprehender esta scena.

--Então é a sr.^a morgada em pessoa que...

--Que o convida para tomar uma chavena de chá--disse uma voz por traz
d'elle.

Henrique julgou conhecer o timbre d'aquella voz.

Voltou-se, viu a morgadinha que entrava na sala, com o sorriso nos
labios e a mão estendida, com aquella habitual franqueza de maneiras,
que de tantos encantos a revestia.

Henrique exclamou, admirado:

--A prima Magdalena!

--A morgadinha dos Cannaviaes, se faz favor. Competia-me fazer as honras
da minha propriedade, que pelos modos está para ser muito visitada hoje.
Chamei, para me acompanhar, a Brizida, que viveu muitos annos aqui com a
minha madrinha, e hoje vive em casa sua do rendimento do legado que
aquella senhora lhe deixou. A Brizida é quem se encarrega de vir, de
quando em quando, abrir as janellas d'esta casa, para que os ratos não a
destruam de todo, e os tortulhos lhe não enfeitem as paredes.

--Mas como soube que eu?...

--Isso é um segredo. Não o esperava, porém, tão cêdo, nem imaginei que
nos viesse ter assim ao intimo da casa. Fiquei embaraçada quando o vi.
Ao principio quasi julguei que era a alma de minha madrinha. Mas fez bem
em recolher-se... Ouve?

E com o gesto indicava a chuva, que já batia com fôrça nas vidraças.

--O peor é se isto não espalha e a Christina muda de tenção.

--O vento é do mar, menina; isto são aguaceiros--notou Brizida, como
para desvanecer aquelle receio.

--Pois sabe que Christina vem?

--Eu sei tudo. Ora sente-se ao fogão, que deve vir muito frio. Accendi o
lume, porque estava aqui dentro um ar humido e mofento, muito pouco
hospitaleiro.--Brizida, olhe que se não percebam lá fóra as luzes, que
podem amedrontar Christina. E feche a porta da sala. Abra o côro da
capella e prepare chá para quatro. Aqui mesmo, Brizida, aqui mesmo,
porque a cozinha está pouco habitavel.

Emquanto Brizida cumpria as ordens que a morgadinha lhe dava, esta,
chegando uma cadeira para o fogão, sentou-se defronte de Henrique de
Souzellas.

--Agora conversemos amigavelmente, primo Henrique. E antes de mais nada,
responda-me a uma pergunta! O que o trouxe aqui?

--Pois não diz que sabe tudo?

--Até certo ponto, entendamo-nos. Não vão tão longe as minhas faculdades
que cheguem a devassar intenções, que por ventura á propria consciencia
de quem as fórma, repugne acceitar.

--Não é esse o meu caso; as minhas intenções são reconhecidas e
approvadas pela minha consciencia. Vim para assistir ao espectaculo
commovente de um anjo que ora por mim. É um espectaculo a que ainda não
assistira, prima. Admira-se da minha curiosidade?

--Acho-a natural e até... louvavel. O ponto está que a sua convalescença
esteja bastante segura já. Porque o primo Henrique convalesceu ha dias
de duas doenças.

--De duas?

--Sim; e a mais rebelde não foi a de que o cirurgião o tratou.

--Então?

--A peor, aquella de que eu havia chegado já a desesperar, era a que lhe
tinha descoberto logo na sua chegada aqui, uma doença moral; revelava-se
por uma maneira de vêr as coisas, de pensar e de proceder
verdadeiramente doentia.

--Estou curado d'isso.

--Estará? eu sei!... É certo que já é bom signal admittir que era
doença.

--Dou pelo seu diagnostico, prima, e até pelo tratamento que me
aconselhou em tempo; falou-me na vida campestre, no interesse pelos
negocios locaes... e sobretudo em uma paixão sincera.

--Ah! e experimentou a receita?

--Experimentei e curei-me.

--Ou tomou por fôrças de saude o que era apenas o falso vigor da
convalescença? Convem não abusar; ouço dizer aos medicos que são
perigosas as recaidas.

--Pois teme que eu recaia?

--Por que não? Esta sua vinda aos Cannaviaes a horas mortas... comquanto
motivada por louvaveis intenções... tem ainda assim uma certa feição
romantica... que era bom vigiar... Sempre vim para acudir a algum
accidente.

--É um perfeito medico da época; não tem fé na efficacia dos remedios
que prescreve.

--Tenho; mas não desacompanho a acção d'elles, isso não. Agora fale-me
com franqueza: ao recordar-se de certas ideias com que veio de Lisboa
não se lhe figuram algumas extranhas e inacceitaveis já?

--Confesso que algumas...

--E comprehende agora o que eu lhe dizia? o remedio para o mal do
coração que o minava, tinha-o a seu lado, desde o primeiro dia em que
puzera os pés no Mosteiro, e teimava em ser cego para o não vêr.

--Desde o primeiro dia? Pois Christina...

--Christina deixou de ser creança desde aquelle dia.

--Querido anjo!

--Querido anjo?... Diz bem; deve adoral-a, tal como ella é ingenua,
timida, supersticiosa até, se quizer; mas bondosa, mas adoravel, mas uma
indole talhada para acalmar as paixões demasiado violentas de um
caracter como o seu; para lhe fazer ter mais esperança na vida, mais
coragem e mais fé no futuro.

Henrique, depois de instantes de silencio, disse, sorrindo, para
Magdalena:

--Diga-me uma coisa, prima Magdalena; comprehendendo tão bem as
necessidades do coração dos outros, não pensou ainda nas do seu?

--E quem lhe disse que as tinha?

--Conceda-me tambem um pouco da sua admiravel perspicacia, e não se
julgue tão impenetravel, que não offereça leitura aos olhos que a
observam.

--Ah! Então leu?

--Uma pagina eloquente de sentimentos generosos, prima; uma pagina que
eu só agora estou habilitado para a apreciar como merece; pagina, porém,
tão recatada, que julgo que ainda a não leu bem o principal interessado
n'ella. Cego, como eu fui.

--Não leria?--perguntou Magdalena, sorrindo.--Está certo d'isso?

--E pode ser que lesse, pode; ou pelo menos que por inspiração a
adivinhasse. Ha casos d'esses.

Magdalena tornou, mudando de tom:

--É ainda cêdo para tratar de mim. Quando me resolver a isso, verá que
sou um doente modelo. Não hesitarei ante a violencia do remedio.

--E por que demora o tratamento?

--Pois parece-lhe que será urgente o caso?

--Prima Magdalena, o que vejo é que ha mais fortaleza da sua parte do
que....

--Silencio!--disse a morgadinha, escutando.--Pareceu-me ouvir...

N'este momento a Brizida, que fôra a uma sala immediata, voltou, dizendo
em voz baixa:

--Parece-me que abriram as portas da capella. Devem ser elles.

--Então depressa--disse Magdalena.--Abra-nos o côro; mas antes apaguemos
as luzes. Teve uma feliz lembrança em prevenir-se com essa lanterna de
furta-fogo. Traga-a e siga-me; mas occulte a luz. Não faça barulho.

Apagadas as luzes da sala, Magdalena e Henrique entraram, por um
corredor estreito, no côro da capella, d'onde a morgada costumava ouvir
missa, emquanto mandava patentear ao povo o pavimento inferior.

Quando alli chegaram, com as precisas precauções para não fazer estalar
as tábuas do soalho, havia já em baixo uma luz escassa, que desenhava
longas no pavimento as sombras de duas pessoas, ainda occultas sob a
varanda do côro.

Cêdo se adeantaram para o altar, e claramente se reconheceu serem
Christina e Torquato.

Caminharam silenciosos até ao altar principal. Torquato subiu os tres
degraus, sobre que este ficava elevado e accendeu duas vélas de cera
que, em ennegrecidos castiçaes de madeira dourada, ornavam uma imagem da
Virgem da Soledade. Espalhou-se no recinto uma frouxa claridade, que não
dissipou as sombras dos recantos, nem as que se condensavam no tecto.

Christina fez signal então a Torquato, para que se retirasse; e o velho,
com os passos arrastados e tossindo, caminhou para a porta, que dentro
em pouco se ouviu gemer sobre os gonzos e fechar-se com estrondo.

Tudo ficou depois em silencio.

Christina então ajoelhou deante d'aquella imagem, que era a de que a
tradição popular contava milagres, e em profundo recolhimento ficou
immovel a rezar a devoção promettida.

Henrique de Souzellas sentia-se enlevado por esta scena. Aquella
angelica creatura viera alli agradecer á Virgem o tel-o salvado! Aquelle
anjo amava-o? Havia pois no mundo quem o amasse com um amor puro e
candido, em que elle já nem acreditava. E cabia-lhe a suprema ventura de
gosar um amor assim!

Magdalena via com alegria a commoção de Henrique.

A oração de Christina prolongou-se por alguns minutos.

Henrique murmurou, ajuntando as mãos:

--Deus te recompense, anjo, a consolação que me dás.

--Não peça a Deus o que está na sua mão--respondeu-lhe em voz baixa
Magdalena.

--Que diz?

--Está ou não sinceramente apaixonado?

--Como nunca imaginei que fôsse possivel estar.

--Crê na pureza d'aquelle coração?

--Como na dos anjos.

--Está convencido de que o pode salvar, ella?

--Não ha crédo que professe com mais fé.

--Por que não vae então ajoelhar ao lado d'ella e jurar-lh'o?

--E consente?

A morgadinha respondeu-lhe, conduzindo-o ao principio de umas estreitas
escadas que pela espessura da parede iam do côro para a capella-mór.

--Aqui tem o caminho--disse ella.--Siga-me. E, servindo-se da lanterna
de furta-fogo, foi descendo com precaução. Henrique seguiu-a.

No fim da escada, Magdalena occultou de novo a luz, e, dados mais alguns
passos, parou junto de um reposteiro.

--Agora faça o que lhe dictar o coração--disse ella para Henrique.

Este correu o reposteiro com precaução, e achou-se na capella.

Christina rezava ainda, e como a porta por onde Henrique entrára ficava
por detraz d'ella, não o viu chegar.

Henrique ficou a contemplal-a todo o tempo que ainda durou a oração.

Ao levantar-se, Christina, voltando a cabeça, descobriu-o, e soltou um
grito de susto. A obscuridade que havia na capella não lhe deixou
perceber logo quem fôsse, o que mais lhe augmentou o terror.

Henrique caminhou para ella, dizendo-lhe:

--Não tenha receio, Christina. Sou eu.

Reconhecendo-o, a timida rapariga ficou espantada. Como se explicava a
presença de Henrique n'aquelle logar? Nem tempo teve de imaginar
explicações. Henrique accrescentou:

--Sou eu, Christina: eu a quem a menina salvou e por quem com tanto
fervor veio rezar aqui. Obrigado, mais uma vez lhe digo, obrigado,
Christina. Quiz fazer-me comprehender todos os castos e abençoados
prazeres da familia; depois de me dedicar as suas vigilias, dedicou-me
as suas orações. Deixe-me beijar-lhe a mão com todo o affecto, com toda
a paixão que pode haver na minha alma.

E dizendo isto, levou aos labios a mão, que ella, de enleiada, nem
ousára retirar das suas.

--Agora peço-lhe, Christina, que, já que me fez antever as delicias do
viver da familia, não me condemne para sempre ao supplicio de não as vêr
realisadas. Lembre-se de que não conheci mãe, de que não tenho irmãs, de
que tenho vivido só, e de que cêdo voltarei a essa vida solitaria e
gelada, que me será agora uma tortura. Compadeça-se de mim. Quer vir
occupar no meu coração o logar vago que ha n'elle para as affeições de
mãe, de irmã, e de...

--Henrique!...--murmurou quasi inintelligivelmente a sobresaltada
creança.

--É deante d'esta Virgem, a quem orava com tanto fervor, é pousando a
mão sobre os Evangelhos d'esse altar, que eu lhe prometto mais do que
uma paixão ephemera de rapaz, prometto-lhe a constante adoração, rodeada
de respeito, do homem que as suas virtudes reconciliaram com o mundo.
Acceite, Christina, acceite o offerecimento do meu coração.

Christina tremia sem poder responder.

Magdalena entrou por sua vez na capella.

--Não se pode exigir assim uma resposta directa, primo Henrique--disse
ella.

Christina, cada vez mais surprehendida por estas successivas e
inesperadas apparições, correu para a prima.

--Tu, Lena! Tu tambem aqui?!

--Então não me competia receber em minha casa as visitas? Mas vamos,
dize-me aqui ao ouvido a resposta que queres que eu dê por ti ao sr.
Henrique de Souzellas, que me parece acaba de te pedir, muito
terminantemente, a tua mão.

Christina não respondeu, senão cingindo-a mais intimamente ao seio.

--Não responderam os labios, primo,--continuou a morgadinha--mas falou o
coração ao meu na linguagem das pulsações. Estou-o sentindo.

--E disse?...

--Que havia de dizer? Que sim.

E Magdalena, que tinha a mão de Christina na sua, extendeu-a a Henrique,
que a apertou apaixonadamente e a beijou de novo.

Parece-me poder affirmar que d'esta vez já houve correspondencia.

O velho Torquato, farto de esperar de fóra da capella, e achando que as
rezas se prolongavam de mais, resolveu chamar Christina.

Ao entrar divisou porém tres pessoas em logar de uma só, que esperava, e
recuou estupefacto e aterrado.

Suppôz que almas penadas andavam na capella.

O bom do homem não ousava approximar-se.

Magdalena, que o ouvira entrar, animou-o, dizendo:

--Não tenha mêdo, Torquato. A alma de minha madrinha encarregou-me de
fazer esta noite as suas vezes. Sou eu.

O espanto do feitor não era agora menor. Esfregava os olhos, como se
receiasse estar dormindo, e não passava de olhar para Magdalena, para
Henrique e para Christina, sem entrar na explicação do que via.

Custou a fazel-o voltar da sua estupefacção.

Momentos depois entravam todos quatro na sala onde Henrique fôra
recebido por Magdalena, e ahi a velha Brizida lhes serviu o chá.

A antiga criada da morgada fez muita festa a Christina, e, como já
percebera a casta de sentimentos que havia entre esta e Henrique, soltou
algumas insinuações, que a obrigaram a córar, e a rir Magdalena.

Passou-se uma bella noite, conversando-se e rindo-se em perfeita
intimidade.

--Que longe estava eu hoje de pensar n'este delicioso serão!--disse
Henrique.--Decididamente é de maravilhas esta casa; o povo tem razão. A
morgada defuncta foi decerto quem se encarregou de fazer os convites.

--É verdade, como foi que vieram aqui?--perguntou Christina, já mais
desenleiada.--Já sei, foi este Torquato que me não guardou segredo. O
que merecia!...

--Eu, menina?! Ora essa! Eu até...

--N'este Torquato ha alguma coisa mais para receiar do que a
indiscreção--disse Magdalena.

--Que é?--tornou a prima.

--É a discreção.

--Então por quê?

--Torquato é discreto, com umas meias palavras, que exprimem mais do que
a verdade.

--Eu...--ia a dizer o velho, justificando-se, quando Henrique o
interrompeu.

--Mas emfim, expliquemos mutuamente a nossa presença aqui.

--N'esse caso é justo que fale primeiro Christina.

--Que hei de eu dizer?

--Explica a tua presença aqui. Então não ouviste o primo Henrique?

--Ora, já o sabem.

--Mas talvez não lhe seja desagradavel ouvil-o outra vez da tua bôca.

--Não, não, a minha vinda, essa não tem que explicar.

--Que diz, primo Henrique?

--Não tenho coragem para pedir mais do que tenho pedido já.

--Pedido e obtido, pode accrescentar. Bem, Christina veio aqui trazida
por um sentimento de piedade e de...

--Lena!

--Assim mesmo sempre seria curioso ouvir a narração dos sustos que ella
sentiu por o caminho desde o Mosteiro até aqui. O Torquato não era
decerto bastante para lhe limpar a estrada de visões e malfeitores.

Christina poz-se a rir.

--Mas vamos ás explicações da presença dos mais. A Christina avisou o
Torquato, o Torquato avisou o primo Henrique...

--Eu?!

Christina olhou para o velho com um meigo gesto de reprehensão.

--Se eu o soubesse!...

--Eu... eu não disse... eu... só disse...

Henrique tomou a palavra.

--Torquato não é de todo o culpado. Pois acha que não haveria em mim
alguma coisa que me ajudasse a adivinhar? Torquato atraiçoou-se
involuntaria, inconscientemente. Mas quanto á prima...

--Eu? Soube-o tambem do Torquato.

--Pois tambem a ti o disse? Olhem que homem de segredo!

--Isso é que não. Eu não disse á sr.^a D. Magdalena... Ella é que...

--Foi o que eu disse ha pouco. A discreção do Torquato é que revelou o
segredo.

--Como?

--O Torquato falou com o seu velho amigo herbanario.

--Eu a esse não disse.

--Não, a esse quiz occultar, e d'ahi é que veio o mal.

--Ora, ora...

--O que eu sei é que Vicente veio procurar-me á porta do Mosteiro, e
ralhou-me com uma severidade e uma aspereza, como ainda lhe não tinha
merecido nunca. Estava o homem convencido de que eu era a heroina de
umas aventuras romanticas que se verificavam de noite n'esta minha
propriedade dos Cannaviaes. E tão irritado estava, que me não quiz
ouvir, quando eu procurava esclarecer o que para mim era um perfeito
enigma. Ao retirar-se, porém, disse-me que não lhe quizesse occultar a
verdade, porque do Torquato soubera tudo.

--Eu não disse...

--E depois a prima...

--Eu então chamei este senhor, armei-me de toda a minha gravidade, e
exigi que falasse e me dissesse tudo o que havia e tudo o que sabia a
respeito de uns passeios aos Cannaviaes; elle estava pêrro, mas a final
falou.

--Mas sabia tambem que eu vinha?--perguntou Henrique.

--Pois não se lembra de que pela manhã me tinha cançado com perguntas a
respeito do caminho para a casa dos Cannaviaes? Eu já extranhava a
insistencia; depois do que soube, tive uma suspeita. Perguntei ao
Torquato se lhe falára n'isto. A resposta d'elle, apesar da sua
hesitação e ambiguidade, habilitou-me a concluir que teria o gôsto de
receber o primo em minha casa.

--E que disseste no Mosteiro? Sabem que vieste?

--Não. Disse que ia visitar Brizida, onde passaria a noite. Bem me viste
sair. Viemos ambas para aqui ainda com dia para pôr a casa em arranjo.

--São mesmo coisas tuas--disse Christina, rindo.

--Mas eu não disse nada--insistiu Torquato.

--Porém, por que motivo se irritou tanto o herbanario?--perguntou
Henrique.--Que imaginava elle a final?

-Ah!... É porque este sr. Torquato teve a habilidade, com as suas meias
palavras, e reticencias indiscretamente discretas, de arranjar as coisas
de maneira que o velho Vicente chegou a persuadir-se de que havia aqui
um romance em que entrava eu... A discreção do Torquato é das que
respeita os nomes, de maneira que as honras da aventura fôram-me todas
attribuidas... N'este mesmo romance parece que entrava tambem o primo
Henrique...

--Ah! percebo agora--disse Henrique, rindo.--O velho é ciumento por
procuração.

Magdalena abanou a cabeça, sorrindo tambem.

Christina, que já estava habilitada para entender a allusão de Henrique,
sorriu com elles.

O Torquato foi o unico que nada percebeu.

Eram perto de duas horas, quando a morgadinha lembrou a necessidade de
voltarem a casa.

--Choverá?--perguntou Brizida.

--Julgo que não--respondeu Magdalena, e como para assegurar-se correu a
vidraça da janella e examinou o firmamento.

Henrique acompanhou-a.

--A noite está serena--disse ella.--São horas de voltarmos.

--Mal sabe a tia D. Victoria por onde lhe anda parte da familia a estas
horas--disse Henrique, debruçando-se á janella, e continuou:--Mas que
agradavel noite! Não poder prolongal-a por toda a eternidade!

--Vamos, vamos,--respondeu Magdalena--o dia d'ámanhã deve ser feliz
ainda, porque...

N'isto, como se alguma coisa tivesse observado na rua que lhe attrahisse
a attenção, calou-se, mal podendo reter um leve grito.

--Que foi?--perguntou Henrique, que o percebeu.

--Nada--respondeu ella, correndo a vidraça e afastando-se da janella.

--Viu a alma da morgada?--perguntou jovialmente Henrique, vendo-a
preoccupada.

--Não--respondeu Magdalena, meio a sorrir e meio séria.--Pode porém
haver apparições peores.

--Que é, Lena? Que viste tu?--perguntou Christina, assustada.

--Socega, filha, nada que possa transtornar o nosso regresso. Vamos.

E, passados poucos minutos, sairam todos os que até alli animavam
aquella habitação solitaria, e ella permanecia outra vez em trevas, em
silencio e na sua quasi desolação.




XXIX


No dia seguinte, pela manhã, recebeu-se na Alvapenha noticia da chegada
do conselheiro e de Angelo. A impressão profunda que a este ultimo
causára a morte de Ermelinda, tinha resolvido o pae a trazel-o comsigo
para a aldeia a distrahir e robustecer com ares livres do campo. D.
Dorothéa apressou-se, segundo o costume, a visitar o conselheiro;
Henrique acompanhou-a e de caminho pôl-a ao facto do estado do seu
coração, e encarregou-a de communicar isto mesmo a D. Victoria e de
fazer-lhe, em seu nome, um formal pedido da mão de Christina.

D. Dorothéa ficou a principio admirada. Ainda se não desacostumára de
considerar Christina como uma creanca. Havia tão pouco tempo que usava
ainda vestidos curtos!

Reflectindo porém, acabou por achar a coisa natural, vantajosa e
agradavel, e felicitou o sobrinho pela boa escolha que fizera.

Henrique, com o prazer pueril de um verdadeiro namorado, não se fartou
de fazer falar a tia nas qualidades de Christina, e d'esta vez as
habituaes prolixidades da boa senhora não conseguiram enfastial-o.
Estava devéras apaixonado!

Chegaram ao Mosteiro.

O conselheiro recebeu-os com ar de satisfação e apparente tranquillidade
de espirito; mas um exame attento conseguiria descobrir-lhe no sorriso o
que quer que era forçado a revelar certa preoccupação interior.

É que, desde que chegára, tinha sondado melhor o animo do publico da
terra, ou dos influentes que o representavam, e reconhecera que estava
muito arriscada d'esta vez a sua candidatura.

Não lhe sobrava muito tempo para trabalhos; porque d'ahi a dois dias
realisavam-se as eleições. Tudo estava por fazer, emquanto que os seus
adversarios havia muito que tinham tudo feito. Algumas das personagens
politicas, com que contava, falharam-lhe, e até nem o visitaram. As
auctoridades locaes eram-lhe manifestamente hostis, desde o
administrador até o cabo de policia.

Henrique percebeu a violencia que sobre si estava fazendo o conselheiro
para conversar em assumptos alheios á questão que o interessava, para
sorrir e prestar attenção ao que se dizia.

De quando em quando lia ou relia uma carta, tomava um apontamento,
escrevia um bilhete, retirava-se por momentos para receber algum agente
eleitoral que o procurava, despachava um emissario; finalmente não podia
socegar.

Foi na occasião em que elle consultava mais uma vez a lista dos
recenseados d'aquelle circulo eleitoral, emquanto Henrique e Magdalena
faziam por distrahir Angelo, conversando em varios assumptos, que entrou
D. Victoria, a quem acabava de ser formulado por D. Dorothéa, e em nome
de Henrique, o pedido da mão de Christina. D. Victoria trazia bem
visivel na physionomia todo o jubilo que a nova lhe causára. Era muito
amiga de Magdalena, mas desculpem-lhe esta vaidade maternal, o que mais
que tudo a lisonjeára, fôra a preferencia dada por Henrique a sua filha
sobre a morgadinha.

--Tenho muito que lhe ralhar, sr. Henrique--dizia ella.--Estou mesmo
muito arrenegada comsigo.

--Por quê, minha senhora?--perguntou Henrique, sorrindo.

--Pois então isso é coisa que se faça? Já precisa de embaixadores para
se dirigir a mim?

--Perdão, minha senhora! Era meu dever deixar completa liberdade a v.
ex.^a para fazer todas as reflexões que a proposta lhe suggerisse e
discutil-a á vontade, e, por delicadeza, podia v. ex.^a ás vezes, sendo
eu mesmo quem a fizesse, cohibir-se...

--Ai, eu havia de pôr muitas dúvidas! Na verdade um rapaz de tão má
nota! Ora sempre tem coisas!

--Visto isso, posso esperar?

--Da minha parte uma guerra de morte--disse D. Victoria, não resistindo
a dar um abraço a Henrique, já com familiaridade de mãe; abraço que
Henrique retribuiu com affecto.

O conselheiro não dava attenção á scena.

--Então, mano!--bradou-lhe D. Victoria.--Deixe lá essas politicas que
temos negocios sérios em casa.

--Sim?--disse o conselheiro, dobrando os papeis que lia, e simulando um
ar de interesse, que realmente estava muito longe de sentir.--Então de
que se trata?

--De um negocio importante, em que é preciso que seja ouvido.

--Ah! Então é um caso de consciencia?

--E não o diga a rir, que é. Aqui o sr. Henrique de Souzellas acaba de
me fazer um pedido... Isto é, a prima Dorothéa foi que m'o fez.

--Mas por ordem d'elle--acudiu esta.

--Pois sim, o que era escusado.

--Mas então que pede de nós este caro sr. Henrique?

--Nem mais nem menos do que uma das nossas pequenas.

O conselheiro relanceou um olhar para Magdalena. Já, por mais de uma
vez, a hypothese do casamento da filha com Henrique lhe tinha passado
pela ideia, e de modo algum lhe era antipathica. Henrique tinha um bom
nome, rendimentos sufficientes, e, se quizesse, um futuro na sociedade,
e o conselheiro tudo isto invejava para seus filhos.

Magdalena, que percebeu no gesto do pae a ideia que elle tivera, quiz
tiral-o quanto antes da illusão e disse:

--Quem mais razão tinha para protestar era eu. Ha de fazer-me falta a
amizade de Christina.

--Ah!--disse o conselheiro, com um sorriso um tanto contrafeito.--Então
quer-nos roubar a nossa Christina, sr. Henrique?

--É apenas uma restituição que peço, sr. conselheiro, porque não me
posso resignar a viver sem coração.

--Faz madrigal? Está então apaixonado devéras, já vejo--disse o
conselheiro.--Pela minha parte folgo de o vêr assim associado á minha
familia, por tão bom caminho. Mas onde está a thaumaturga, que fez o
milagre de converter este celibatario emerito, que eu conheci em Lisboa
a rir-se do casamento?

--Por piedade, não me recorde esses peccados deante da prima Magdalena,
que é tão rigorosa nos castigos!

--Diga antes, que sou tão excessiva nas recompensas.

--Mas o mano tem razão--disse D. Victoria.--Onde está a Christe?
Admira-me não a vêr aqui!

--Admirar, não me admiro eu--tornou o conselheiro.--É provavel que
soubesse do que se tratava, e eclipsou-se discretamente. Porque isto foi
decerto discutido por as partes interessadas, antes de subir ao nosso
tribunal.

Henrique e Magdalena sorriram.

--Ora se foi! E parece-me que tu, Lena, fizeste d'esta vez de S.
Gonçalo. Deus queira que te não queimes ainda no fogo ao ateares d'estes
fachos.

--Eu vou buscar a Christe--disse a morgadinha, rindo das palavras do
pae; e saiu da sala como para evitar que a conversa seguisse a direcção
que elle lhe deu.

O conselheiro voltou n'este intervallo a consultar papeis e cartas,
emquanto D. Victoria falava com Henrique, e D. Dorothéa tentava
distrahir Angelo, contando-lhe várias historias de creanças, que elle
mal escutava, e que ella tinha a candura de julgar alimento accommodado
á intelligencia d'elle.

Passados momentos voltava Magdalena, trazendo Christina comsigo, a qual
já vinha com o rubor nas faces e com os olhos no chão.

--Aqui está a accusada--disse a morgadinha ao entrar.

O conselheiro tornou a guardar os papeis e disse jovialmente para a
sobrinha:

--Ora venha cá, venha cá, que temos muito que falar.

E passando-lhe a mão por baixo do queixo, para a obrigar a fital-o,
continuou:

--Então assim se trama uma conspiração ás caladas? Surprehender a gente
com uma noticia de tal ordem! Ainda ha pouco demittido um ministerio de
bonecas, e já um golpe d'estado d'esta natureza! Sim, senhora, é
energia. Nunca o esperei. Ora dê cá um beijo, emquanto não tenho quem me
peça explicações por os que lhe roubar.

E o conselheiro, com perfeita galanteria e affecto, beijou-a nas faces
tingidas pelo pejo e pela alegria.

Depois, voltando-se para Henrique, accrescentou, sorrindo:

--São os penultimos.

--Os penultimos?--disse D. Victoria, rindo.--Ora essa! Então para quando
ficam os ultimos?

--Para quando a vir com a grinalda de noiva.

--O que eu nunca esperei é que fôsse a nossa Christe que désse o exemplo
á prima. Não tens vergonha, Lena--disse D. Dorothéa para a morgadinha,
em quem esta reflexão fez nascer um gesto de contrariedade, que trouxe
aos labios d'Angelo o primeiro sorriso d'aquella manhã.

O conselheiro e Henrique sorriram tambem.

--Eu prometto casar-lhe a prima Magdalena, dentro em pouco, tia--disse
Henrique com intenção.

--Não prometta. Esses negocios deixe-os ao meu cuidado. Bem sabe que sou
teimosa e tenho a ingenuidade de acreditar que ainda ha coisas no mundo
que se devem decidir pelo coração sómente.

--E Deus me livre de o não consultar. Seria abjurar os meus proprios
actos.

--O _sómente_ é que veio de mais, filha--disse o
conselheiro.--Attende-se ao coração, embora. Mas só ao coração? Isso era
bom se vivessemos em um mundo de corações.

A chegada de novas personagens desviou a direcção da conversa e
modificou a scena.

Eram influentes politicos, que obrigaram as senhoras a retirarem-se.
Henrique ficou, a pedido do conselheiro. O mestre Bento Pertunhas
entrava no numero dos recemchegados. O papel que alli desempenhava o
latinista era de suspeitosa natureza.

Vinha tambem a alma politica do partido do conselheiro, o Tapadas, que
n'estas épocas não comia, não dormia, não respirava, por assim dizer,
senão eleições, e desenvolvia uma miraculosa actividade, correndo a
todos os pontos perigosos, conquistando votos, um a um, e lidando por
desenredar as meadas politicas dos adversarios e enredar as suas.

--Então que novas temos da campanha, meus senhores?--perguntou o
conselheiro, puxando cadeiras para os seus constituintes, e affectando
um tom de confiança que não sentia.

--Más, sr. conselheiro,--respondeu o Tapadas--muito más. Vejo isto muito
feio.

--Ora a coisa ainda não ha de ser tão má como diz.

--Nada, nada; não me agrada. V. ex.^a descuidou-se. Tenha paciencia, mas
eu bem lh'o disse. Eu sei como estas coisas são. É preciso não as
desacompanhar. V. ex.^a devia vir ha mais tempo.

O Pertunhas acudiu:

--Deixe lá, sr. Tapadas, o sr. conselheiro tem amigos decididos, e os
serviços que fez á terra...

--Ora com o que vmc.^ê vem!--replicou o Tapadas, com modo azedo.--Então
não sabe como é esta gente? Então não os ouve ahi berrar já contra as
estradas, quando até agora berravam por não as terem?

--Meia duzia de garotos--tornou o Pertunhas.

--Não, senhor, não é assim; não estejamos a enganar-nos. Os que não
dizem mal das estradas, sabem muito bem dizer que ao ministerio as
devem, e estamos na mesma. A coisa vae mal.

--Então decididamente o Seabra?...--perguntou o conselheiro.

--Esse é o chefe de todos elles--disse um merceeiro.--Á porta da minha
loja o ouvi eu estar a dizer ao cunhado do administrador que o traçado
da estrada era o peor que podia ser, que se gastava alli um dinheiro
louco, sem utilidade para o povo.

O conselheiro olhou para Henrique, dizendo:

--Lembra-se do que eu lhe disse na noite do Natal, a respeito d'este
traçado e dos pedidos do brazileiro para elle se adoptar? Admire agora o
velhaco.

Henrique sorriu, encolhendo os hombros.

--Arremedos do que se faz em terras maiores--disse elle.--Não extranho.

--E tem razão--respondeu o conselheiro.

--Mas, a final--continuou o conselheiro--o homem não tinha na freguezia
grande influencia. Como é que...?

--Tem-se popularisado ultimamente um pouco mais. Deu em franquear vinho
por ahi a toda a gente, e depois os padres estão bem com elle e de mal
com v. ex.^a.

--Mas como se lhe desenfreou tão de repente esse odio contra mim?
Deixámo-nos em janeiro nas melhores disposições um para com outro...

--Pelos modos que ahi se falou de uma carta do ministro ou ao
ministro...--disse o Tapadas, com maneiras de quem não dera grande
importancia ao objecto a que se referia.

O conselheiro mudou logo de assumpto.

--E os padres? os padres? Que heresia disse eu, que peccado grande
commetti, para me terem esse odio?

--Dizem que v. ex.^a é mação--respondeu um lavrador.

--O diacho da questão do cemiterio...--acudiu o Tapadas.

--Isso acalmou já.

--Não acalmou, não senhor. O povo não está contente. É certo que lhe
passou a furia do principio, depois d'aquella historia com o Cancella,
mas...

--Quando me lembro de que aquella canalha se atreveu a insultar minha
filha!

--É melhor não falar n'isso--aconselhou prudentemente o Tapadas.--O que
lá vae, lá vae. Os homens estão meio arrependidos, e até o missionario
perdeu um pouco entre o povo, porque o Herodes tem por ahi berrado que
foi elle quem lhe matou a filha, e o pobre homem mette pena. Até me
dizem que por causa d'isso o padre já se retirou da aldeia. O que era
bom era vêr até se se falava ao Herodes; porque talvez elle possa agora
ainda arranjar alguns votos--accrescentou o Tapadas, disposto a
servir-se da dôr de um pae como arma eleitoral.

E continuou-se fervorosamente na edificante obra de combinar tramas
politicos. Discutiram-se os diversos processos de angariar as potencias
eleitoraes do circulo. Estudaram-se as ambições de cada uma;
ponderaram-se as exigencias feitas por uns, os desejos adivinhados em
outros, para este o emprego de um afilhado, áquelle o bom exito de uma
demanda, a outro o pagamento de uma divida, ou o resgate de uma
hypotheca, e a alguns até nua e descaradamente o dinheiro. N'esta
empresa de subornar consciencias e sophismar a urna entreteve-se o
conciliabulo, sem que nenhum dos membros d'elle sentisse remorsos por o
que estava fazendo alli.

Entre os discutidos foi o sr. Joãozinho das Perdizes um dos principaes.

--Então sempre é certo que me roeu a corda esse basbaque?--perguntou, ao
falar-se n'elle, o conselheiro.

--É dos mais assanhados--responderam-lhe.

--Mas quem diabo lhe virou a cabeça? Um velhaco a quem tantas vezes
tenho tirado de apuros!

--Tanto lhe atordoaram os ouvidos com a historia dos
cemiterios...--disse o Pertunhas.

--Deixe lá, alli andou tambem um presente que lhe fez o brazileiro. O
morgado está muitas vezes com a corda na garganta--explicou malignamente
o Tapadas, cujo scepticismo, robustecido no uso das demandas e da
politica, não achava explicações tão plausiveis como a corrupção.

--E depois o homem tomou as dores pelo Vicente herbanario--insistiu o
tendeiro.

--Ora adeus!--disse o Tapadas.--Bem me fio eu n'essas compaixões. Quem
não os conhecer...

--E que tem o tôlo com os negocios do herbanario?--insistiu o
conselheiro, de mau humor.

--Então? Deu-lhe para alli.

--Qual historia! Para mim é que vem com isso?!--teimava o sceptico
Tapadas.

--Tambem uma coisa que buliu com elle foi aquillo no outro dia na
taberna com este senhor--disse o Pertunhas, designando Henrique.

--Sinto, sr. conselheiro--disse este--se de alguma maneira concorri...

--De modo nenhum. Aquelle selvagem vae para onde o empurram. Á ultima
hora é capaz de mudar de tenção. E por causa d'elle é que ficou
despachado professor um pateta em vez de Augusto.

Depois de dizer estas palavras, o conselheiro accrescentou, com
despeito:

--Mas até certo ponto foi bom para me desenganar a respeito do caracter
de certos homens. Ha vinganças tão torpes e mesquinhas, que nenhum
aggravo as justifica.

Henrique procurou defender Augusto; achou porém o conselheiro obstinado
na sua crença.

Henrique alludiu ao brazileiro Seabra, como o mais plausivel promotor da
intriga.

--Embora o fôsse--respondeu o conselheiro--mas que tem isso? O Seabra
não veio a minha casa, não suspeitava da existencia de tal carta. Alguem
houve que a leu primeiro e que lh'a foi entregar depois, e já é ser
muito indulgente suppôr que fôram só cegueiras de vingança e não a
sordidez da cubiça quem o moveu a essa infamia.

Henrique viu que perdia o seu tempo em defender Augusto; comtudo jurou
pela innocencia d'elle.

O conselheiro ia a responder-lhe, quando o distrahiu uma altercação
travada entre Pertunhas e o Tapadas.

Aquelle estava sendo fertilissimo em alvitres para vencer resistencias
eleitoraes. O Tapadas, que desconfiou d'elle, disse-lhe subitamente:

--Olá, ó sr. Pertunhas, é melhor parolar menos e fazer coisa que se
veja; ou deixa só as obras para o seu amigo Seabra?

D'aqui protestos energicos do Pertunhas, e a altercação virulenta, que o
conselheiro teve de apaziguar.

A conferencia durou até ás horas do jantar.




XXX


Chegára o prazo e dia assignalado de se dar perante a urna a batalha
eleitoral.

A azáfama politica activára-se n'estes ultimos dias consideravelmente.
De parte a parte tinham-se posto em campo todos os influentes e em
exercicio todas as armas. Promessas, alliciações, pressão de
auctoridades, exigencias a dependentes, subornos, ameaças mais ou menos
declaradas; de tudo se lançava mão.

Ás vezes até o calor das discussões degenerava em pugnas menos
pacificas; os argumentos physicos, que figuram no catalogo das razões
mais convincentes, haviam já sido invocados a pleitear ambas as causas,
berrando-se depois, de um lado contra a violencia e o despotismo do
governo, do outro, contra os manejos sediciosos e anarchicos da
opposição.

Em algumas freguezias que entravam n'este circulo eleitoral, eram os
padres que arvorando a cruz e o estandarte, prégavam a cruzada contra o
conselheiro e instavam com o povo para que não elegesse para
representante um atheu e um pedreiro-livre; em outras eram os agentes do
brazileiro e os da auctoridade, fazendo promessas aos caudilhos
populares, resgatando penhores, levantando hypothecas, remindo dividas,
empregando afilhados, e conquistando assim para o seu partido.

O conselheiro e os seus parciaes não desprezavam tambem nenhum d'estes
mesmos meios, e grossas quantias circulavam a combater as do brazileiro
Seabra.

Os periodicos do Porto e de Lisboa recebiam os echos d'esta batalha.
Havia muito que em longas e diffusas correspondencias os gladiadores dos
dois campos se mimoseavam com as mais descabelladas verrinas,
assignando-se: o _Amigo da verdade_; o _Epaminondas_; o _Vígilante_; a
_Sentinella_; o _Alerta_, etc., e pondo ao soalheiro as máculas da vida
privada uns dos outros, e todas as bisbilhotices da terra,
correspondencias que, felizmente para crédito da humanidade, por ninguem
mais, além dos interessados e dos que já os conheciam, eram lidas.

O brazileiro era um dos mais activos e fecundos collaboradores d'esta
secção periodistica. Os seus communicados eram estirados, compactos,
obscuros e enrevezados tanto ou mais do que os seus discursos. Perdia-se
em minuciosos incidentes; em labyrinthos de orações secundarias, d'onde
a grammatica da principal saía frequentemente maltratada, deixando ficar
por lá o sujeito, o verbo ou qualquer complemento necessario. Mas o
brazileiro imaginava que o paiz inteiro aguardava com ancia os seus
escriptos. Era frequente abrir uma resposta a alguma zargunchada de um
seu adversario, por estas palavras: «Os leitores hão de ter notado o meu
silencio, depois das calumniosas asserções...» Os leitores não tinham
notado nada.

Finalmente a aldeia achava-se em plena fermentação politica.

Eu tenho a fraqueza de a não amar debaixo d'aquelle aspecto.

A vida politica tem isso comsigo. Quanto mais estreito e mais apertado é
o circulo social onde se manifesta, quanto mais vizinhos e conhecidos
são os que vivem d'ella, tanto mais acanhada, mexeriqueira e antipathica
se torna. Se a politica do nosso paiz é já pequena, como elle, e
degenera em desavença de senhoras vizinhas, que fará das terras pequenas
d'este paiz, em que muito acima dos principios e dos partidos estão os
mexericos e as vaidadesinhas que brotam como tortulhos á sombra das
arvores do campanario?!

Que desconsoladora distancia da realidade ao ideal da vida dos povos!

Henrique de Souzellas não ficára indifferente ao movimento politico da
aldeia. Pegára-se-lhe a febre eleitoral. Impedido de votar, auxiliava,
porém, os parciaes do conselheiro com os avisos da sua experiencia. Um
dia lembrou um _meeting_. O conselheiro poz-se a rir.

--Que utopia! Com que especie de eleitores imagina que está tratando? Um
_meeting_, para quê? Não se esqueça de ir domingo á igreja e lá se
desenganará por os seus olhos. O espectaculo não é muito para alegrar,
porque mostra como em geral o nosso paiz está ainda pouco educado no
regimen constitucional. Mas em todo o caso é instructivo.

Os manejos dos amigos do conselheiro e principalmente do infatigavel
Tapadas, conseguiram ainda resultados importantes em relação ao tempo em
que principiaram a operar com mais energia. Algumas freguezias havia com
que já se podia contar.

A eleição, porém, estava muito arriscada ainda. O sr. Joãozinho das
Perdizes devia decidir a contenda. Para onde se inclinasse o morgado,
com todo o peso dos seus comparochianos, desceria o prato da balança.

Contra elle assestou, pois, o conselheiro toda a artilharia; mas sem o
menor resultado. O homem evitava subtilmente encontrar-se com elle, e
aos seus emissarios respondia com insolencia. O Seabra pela sua parte
nunca o largava, vigiava-o como um precioso thesouro, não se descuidava
de o manter nas disposições hostis contra o conselheiro. A todo o
momento fazia-lhe sentir o insulto que recebera na taberna, e a
necessidade que tinha, para se desaffrontar, de infligir uma lição ao
conselheiro, com quem Henrique estava ligado. Depois disse-lhe que o
conselheiro se gabava de ter dinheiro para comprar o morgado e toda a
freguezia.

O morgado, sob estas e analogas instigações, praguejava e jurava
despejar na urna ministerial o suffragio da sua freguezia.

Assim, pois, todas as probabilidades eram a favor do candidato do
governo, homem desconhecido d'este povo, o qual tambem era desconhecido
para elle, um empregado de secretaria, que nunca saira de Lisboa e que
era o primeiro a rir-se do campanario obscuro de que se propunha a ser
representante; creatura dos ministros, que o desejavam eleger a todo o
custo, por terem n'elle um voto complacente e um parlamentar de boa
feição.

Logo pela manhã do domingo, marcado para a grande solemnidade civil, o
adro da igreja parochial apresentava uma animação fóra do costume.
Grupos formados aqui e alli conferenciavam, entreolhando-se com
desconfiança, ou correspondendo-se por signaes de intelligencia,
conforme pertenciam á mesma ou a opposta parcialidade. Os agentes
eleitoraes, os influentes dos dois campos acercavam-se d'este, apertavam
a mão áquelle, segredavam com um, batiam no hombro a outro, discutiam
com um terceiro, e, sempre que era possivel, distribuiam listas ao maior
numero.

O brazileiro era a alma do partido governamental. O Tapadas capitaneava
a phalange do conselheiro. Pertunhas falava com todos, esfregando as
mãos e sorrindo. O regedor passeiava com importancia por entre os
grupos, recommendava ordem e respeito ás auctoridades, e dava de olho
aos cabos, seus subordinados, para que se não esquecessem de cumprir as
instrucções recebidas, votando no candidato ministerial.

Approximava-se a hora, e principiavam os trabalhos para a constituição
da mesa. O parocho, o administrador e o regedor foram occupar o seu
logar. Ficou presidente o brazileiro, e o resto da mesa formou-se
d'entre as duas parcialidades.

Emquanto se organisavam assim os trabalhos, eram discutidas no adro as
probabilidades da victoria.

N'um dos grupos formados, junto da porta da igreja, por os partidarios
do brazileiro, dizia-se:

--Vencemos por uma maioria de mais de duzentos votos; verão!

--Só a freguezia de Pinchões enche-nos ahi a urna.

--E estará bem seguro o morgado?

--O sr. Joãozinho!? Ora! Está de ferro e fogo contra o conselheiro.

--Pois se te parece! Depois d'aquelles mimos que lhe fizeram na taberna,
e do que d'elle se tem dicto no Mosteiro!...

--Não é só por isso. Elle já estava do nosso lado, desde que soube
tinham deitado abaixo a casa do herbanario, e que o pobre homem estava
succumbido de todo.

--É verdade! ahi temos mais um a votar contra o conselheiro d'esta vez.

--Quem? O Vicente? Esse sim. Então não sabes que o pobre velho já se não
levanta da cama?

--Ai, não?

--Andava já muito fraco e doente; mas ha tres dias, sobretudo, tem ido
de peor a peor, e com uma pressa, que, segundo ouvi dizer, aquillo está
por pouco tempo: nem deita a semana fóra.

--Coitado!

--Ahi vem quem ainda hoje o viu. Não é verdade, sr. Pertunhas?

--O quê, meus amigos, o quê? o que é que é verdade? o que é que
dizem?--perguntou o mestre de latim, esfregando sempre as mãos.

--Não é verdade que o Vicente herbanario está a ajustar contas?

--Oh! pobre de Christo! Aquillo corta o coração! Sempre eu digo que uma
crueldade assim, como a do conselheiro!

--Muitos do povo d'aqui veem votar contra o conselheiro, só por causa do
mal que fez áquelle santo velho.

--E com razão.

--E então para quê? senhores, para quê?--continuava Pertunhas.--Para
fazer uma estrada em que se gastam rios de dinheiro, e que a final não
presta! Pois eu passei por a casa do herbanario ha pouco, quero dizer,
por a casa do Augusto, que é onde vive agora o Vicente. O rapaz estava á
porta. Então, sr. Augusto, disse-lhe eu, á urna! vamos á urna! Elle
encolheu os hombros como quem diz: «bem me importa a mim com isso.»

--Ahi está outro, que tambem não é pelo conselheiro.

--Por que não? Pois não é elle todo do Mosteiro?

--Foi, foi--replicou o Pertunhas.--Então vmc.^ê não sabe que o
conselheiro, depois de lhe fazer a fineza de lhe arranjar a demissão,
inda por cima o poz fóra de casa, porque pelos modos o rapaz... fez
publicar umas certas cartas... que compromettiam o homem? A falar
verdade, tambem não foi bonito.

--Fez elle muito bem.

--Mas, como eu dizia, puzemo-nos a falar, e eu estava-lhe dizendo que o
povo o vingaria da affronta que lhe fizera o conselheiro, porque ia dar
a este um cheque de que elle se havia de lembrar toda a vida; quando o
Vicente, que me ouvia de dentro, chamou-me e mandou-me entrar. Foi então
que eu o vi... Parecia-me outro!... Imaginem vossês, outro tanto de
magro e outro tanto de velho... Mettia dó! Poz-se a perguntar-me muitas
coisas, o que havia, o que não havia, por quem estava este, por quem
estava aquelle... Eu disse-lhe tudo; que o conselheiro, por mais que
fizesse, já não podia vencer; que não arranjaria os votos precisos para
cobrir a freguezia de Pinchões. O velho ficou admirado quando eu lhe
disse que o sr. Joãozinho era dos nossos. E lá o deixei a remoer a
noticia. Ao menos resta-me a consolação de lhe ter adoçado com ella os
ultimos momentos.

N'este ponto da conversa viram passar por elles Henrique, que ia ter com
um agente eleitoral, a suggerir-lhe uma ideia para vencer não sei que
eleitor recalcitrante.

--Ahi anda este--disse um dos do grupo, seguindo-o com a vista.--Era bem
feito que lhe dessem outra lição, como a da taberna do Canada.

--Ordem, ordem e prudencia!--disse o Pertunhas.--É preciso manter a
liberdade da urna, senhores, e as garantias constitucionaes!

--Mas que tem este senhor com as nossas eleições?

--Quem o manda metter-se cá n'estas coisas?

--Ora é boa! Então não sabem que elle casa no Mosteiro?--disse o
Pertunhas, que andava sempre informado das vidas alheias.

--Sim?!

--É verdade. Ha pouco, quando eu estava falando com o Augusto, veio a
nós o José Barbeiro, que nos deu essa novidade, que lh'a dissera o
Manoel da Quinta, que a ouvira á Gertrudes, criada do Mosteiro.

--Casa com a morgadinha, já se sabe?

--Pois vêdes! não que a bolada convida! A mim logo me farejou isso,
quando vi chegar esse figurão cá á terra. Mas querem vossês saber uma
coisa engraçada?... Pareceu-me que o Augustito do doutor não gostou da
novidade.

--Não? Então por quê?!

--Vi-o fazer-se de mil côres quando a ouviu... Pois ter-se-lhe-ha
mettido na cabeça... Hein?!

--Tinha graça. Mas olha o milagre!...

--Ah! ah!... Este mundo é muito divertido!

N'isto saiu a correr da igreja um influente politico, e principiou a
olhar para todos os lados, como procurando alguem.

--Que temos nós lá, ó sr. Luiz?--perguntou-lhe o Pertunhas.

--Onde diabo estão os de Pinchões?--perguntou o interpellado.

-Inda não vieram.

--Diabos os levem! Vae-se principiar a chamada, e elles não apparecem. O
morgado é homem para se esquecer a catar os cães.

--Mas vamos nós principiando, e no emtanto elles virão--disse o
Pertunhas, que fôra nomeado para revezador do secretario da mesa.

--Mas a primeira freguezia que vota é justamente a d'elle. O sr. Seabra
está como uma bicha!

E, dizendo isto, o homem voltou para dentro.

A mesa eleitoral, instituida no meio da igreja, com grande escandalo do
beaterio, que pela voz dos padres chamava áquillo artes do demonio, ia
principiar a funccionar. O conselheiro, que viera mais tarde, de
proposito para não formar parte da mesa, requereu, com o relogio na mão,
que se abrisse a urna aos eleitores, visto ser a hora marcada no edital.

Este requerimento, simples e justo como era, suscitou discussão.

O brazileiro allegou que, sendo os de Pinchões os primeiros a votar, em
virtude do artigo 62.^o do decreto eleitoral, que manda votar primeiro a
freguezia mais distante, e não estando na assembléa ninguem d'aquella
freguezia, convinha esperar.

O conselheiro insistiu, dizendo que a lei não mandava esperar por os
eleitores, mas apenas indicava a ordem da chamada, e que portanto
votassem os presentes, e que na segunda chamada, ou nas duas horas de
espera, votariam os ausentes que depois viessem.

Esta questão não se resolveu de prompto. Trocados alguns alvitres, lida
a lei, discutidos os artigos d'ella, consultados os recenseamentos e
mappas, pedidos esclarecimentos ao regedor, ao administrador, e ao
parocho, é que se approvou a proposta do conselheiro e principiou a
chamada.

A freguezia de Pinchões faltou em pêso.

O brazileiro estava perturbado; olhava para a porta, olhava para a lista
dos recenseados, olhava para os amigos, olhava para os adversarios, e
sobretudo para o conselheiro, em cuja insistencia em principiar a
votação julgou descobrir cavillação. Na urna não tinha entrado uma só
lista. Pregoou-se o ultimo nome dos eleitores de Pinchões. Ninguem
ainda!

Passou-se a outra freguezia.

O brazileiro já não estava em si.

Os primeiros votos recolhidos mal os pôde introduzir na urna, de trémulo
e sobresaltado que estava.

O homem suppunha que lhe tinha sido roubada á ultima hora uma freguezia
inteira. Não estava muito longe de acreditar que os agentes do
conselheiro a haviam arrasado completamente.

A freguezia que se seguia na votação era uma das que se conservavam
fieis ao conselheiro, circumstancia que augmentava a indisposição do
Seabra.

A votação ia, porém, correndo, interrompida apenas por algumas
questiunculas sobre a identidade de um ou de outro eleitor e sobre a
regularidade d'esta ou d'aquella lista, graças aos futeis pretextos de
que os contendores lançavam mão para disputarem, voto a voto, o
suffragio popular.

Ia adeantada a votação, quando correu na igreja uma voz, que veio
infundir alento no animo desfallecido do brazileiro.

-Veem ahi os de Pinchões!... Ahi estão os de Pinchões... Ahi vem o sr.
Joãozinho e toda a sua gente!--dizia-se de toda a parte.

Esta nova passou de bôca em bôca, a ponto de produzir um sussurro na
assembléa.

Muitos sairam para ir receber ao adro os annunciados.

Chegára de facto alli o sr. Joãozinho das Perdizes, á frente da sua
freguezia.

Leitor, se tens, como eu, esperança e sincera fé no systema
representativo, perdôa-me o obrigar-te a assistir a uma scena que faz
subir a côr ao rosto de quem, como nós, abençôa os sacrificios por cujo
preço nossos paes nos compraram a nobre regalia de intervir, como povo,
na governação do Estado, as franquias que nos emanciparam da caprichosa
tutela de um homem, revestido de direitos impiamente chamados divinos,
contra os quaes o instincto e a razão igualmente se revoltam. A scena,
porém, humilhante como é, não envolve a minima censura á excellencia do
systema; mas apenas aos que nos quarenta annos que elle quasi tem de
vida entre nós, não souberam ou não quizeram ainda fazer comprehender ao
povo toda a grandeza da augusta missão que lhe cabe executar.

Depois das nossas luctas civis, já muitas creanças se fizeram homens; se
a escola fôsse entre nós o que devia ser, já haveria sobra de eleitores
com perfeita consciencia dos seus direitos civis.

O atrazo e ignorancia d'elles, contristando, sómente devem impellir os
homens de intenções sinceras e puras a applicar os esforços de
intelligencia e de acção para ministrar com a educação a moralidade, e
para acordar a consciencia d'esta entidade social.

Era o sr. Joãozinho das Perdizes á frente da sua freguezia, disse eu.

E é justamente este o espectaculo humilhante de que falava.

Tendes visto um guardador de cabras á frente do seu rebanho, conduzindo
com acenos e assobios todas as barbudas cabeças d'aquelle regimento
quadrupede? Pois vistes o mais perfeito simile da scena que se
presenciava agora no adro da igreja matriz.

O povo, o povo soberano, que n'aquelle dia tinha nas mãos o sceptro da
sua soberania, não era menos docil do que os irracionaes que recordamos.

O dia em que devia mostrar-se orgulhoso, era quando mais se humilhava;
quando podia dispôr dos destinos dos seus senhores, era quando mais
vergava a cabeça sob o pêso que estes lhe assentavam.

Não é similhante esta fôrça inconsciente do povo á do boi robusto e
válido, que uma creança dirige e subjuga? Forte como elle, como elle
docil, como elle laborioso, como elle util, não vê que a mesma fôrça que
emprega no trabalho lhe poderia servir para repellir o jugo. Ou quando o
vê, é quando o desespero e a furia o cegam e o impellem a revoltas
tremendas.

Mas o povo de Pinchões, o povo do sr. Joãozinho, estava muito longe
d'esses excessos.

O morgado vinha, como já disse, á frente.

A barba por fazer, as melenas despenteadas, o lenço do pescoço sôlto,
sem botões o collarinho da camisa, com as mãos mettidas no cós das
ceroulas, o chicote no bolso da jaqueta de pelles, as botas enlameadas
até o joelho, a ponta do cigarro ao canto da bôca, o palito atraz da
orelha, o chapéo sobre o occiput, dois galgos adeante de si, e o
inseparavel Cosme quasi _à latere_. Entrou no adro com ares
triumphantes, sorrindo e piscando os olhos para os seus amigos e
partidarios, como para lhes fazer notar a numerosa procissão que o
seguia e a docilidade dos membros d'ella.

Atraz vinham os eleitores de Pinchões, velhos e moços, ricos e pobres,
mas todos com o olhar timido e estupido, todos com movimentos enleados,
todos com os olhos no caudilho, para saber o que deviam fazer. Se elle
parava a cumprimentar um amigo, paravam todos com elle; a direcção que
tomava, tomavam-n'a todos a um tempo; apressavam ou demoravam o passo,
segundo a velocidade que elle dava aos seus; se ria, sorriam; se
praguejava, tudo ficava sério. O cortejo parou á porta da igreja.

O morgado passou revista á sua tropa, á qual deu instrucções.

Os homens, com os cabellos para deante dos olhos, os braços estendidos e
a cabeça baixa, não ousavam fazer um movimento, e conservaram-se
enfileirados até nova ordem do sr. Joãozinho.

Pareciam envergonhados de serem precisos a alguem.

No bolso de cada um d'estes homens havia um oitavo de papel almaço
dobrado, no qual estava escripto um nome; o nome de um homem que elles
nem sabiam se existia no mundo. No momento devido, cada um d'elles,
chamado pela voz do escrutinador eleitoral, responderia: «presente»;
approximar-se-ia da urna, entregaria ao presidente da mesa aquelle
papel, e retirar-se-ia satisfeito, como se descarregado de um pêso que o
opprimia.

Se lhes perguntassem o que tinham feito, qual o alcance d'aquelle acto
que acabavam de executar, não saberiam dizel-o; se lhes perguntassem o
nome do eleito para advogado dos seus interesses e defensor das suas
liberdades, a mesma ignorancia; se lhes propuzessem a resignação do
direito de votar, acceitariam com jubilo; se, finalmente, lhes dissessem
que n'aquelle dia estavam nas suas mãos e dos seus pares os destinos do
paiz, abririam os olhos de espantados, ou sorririam com a desconfiança
propria dos ignorantes.

Innocente povo!

Querem-te assim os ambiciosos, a quem serves de cómmodo degrau.

Quando disseram ao sr. Joãozinho que já tinha passado a sua vez de
votar, o homem rompeu pela igreja dentro, berrando, bracejando,
ameaçando céos e terra, sem attender a quantos lhe clamavam que tinha de
se proceder a nova chamada, e que portanto socegasse.

O Cosme seguia-o, prompto a ser executor de suas justiças.

Custou a serenar o morgado, e não o fez senão depois de duas pragas
contra as pessoas dos senhores da mesa, pragas que razões politicas
fizeram engulir ao brazileiro, sem nem sequer lhe tirarem dos labios o
sorriso com que saudára a vinda do morgado.

Caindo em si, o sr. Joãozinho deu ordem á sua gente para que entrasse
para a igreja, e ahi a enfileirou a um dos lados d'ella, promptos á
primeira voz.

A chamada proseguia, e a votação não ia já muito favoravel ao
conselheiro, a julgar pelos indicios, que não escapam aos olhos
amestrados dos mirones.

O brazileiro exultava comsigo mesmo, principalmente quando, por sobre as
cabeças dos que se agrupavam em volta da urna, divisava as phalanges do
morgado, compactas e decididas.

O conselheiro ainda tentou uma investida com o sr. Joãozinho, indo
cumprimental-o affavelmente; este, porém, grunhiu-lhe um monosyllabo
sêcco, e voltou-lhe as costas, envolvido n'uma nuvem de parciaes do
brazileiro.

Era caso desesperado.

Passára já a votar a ultima freguezia, que era justamente aquella onde
estava constituida a unica assembléa de que se compunha o circulo
eleitoral, e onde o leitor tem passado commigo todo o tempo que dura a
nossa narração.

Foi então que votou o conselheiro e os outros conhecidos nossos, entre
os quaes o Zé P'reira.

Com este deu-se um episodio comico, que merece menção.

O brazileiro ao receber a lista que elle lhe offerecia, sabendo-o
parcial do conselheiro, recusou-a, allegando que estava marcada, o que
era contra a expressa determinação do artigo 61.^o, § unico, da lei
eleitoral.

Sabidas as contas, a supposta marca era de natureza de que seria quasi
impossivel isentar papel ou objecto qualquer saido das mãos do Zé
P'reira. Era uma nódoa de vinho.

Discutiu-se, ainda assim, se a nódoa era marca ou não era marca, e se
lhe deviam ser applicadas as disposições do § unico do artigo 61.^o.

A discussão intrincada foi cortada por o Zé P'reira, que disse com a
maior candura:

--Se essa está suja, sr. Tapadas, eu tenho aqui mais d'aquellas que
vocemecê me deu.

O proprio conselheiro desatou a rir.

O brazileiro resmungou:

--Então ha suborno aos eleitores? Como se entende isso?

-Ora, não bula na chaga, senão temos muito que ouvir--disse o Tapadas, e
accrescentou:--ande para deante; deite a sua lista, sr. Zé.

Os governamentaes, que iam de cima, mostraram-se tolerantes, e a lista
caiu na urna.

Estava a findar a primeira chamada.

Já se liam os ultimos nomes, segundo a ordem alphabetica.

A gente de Pinchões, á voz do sr. Joãozinho, apromptava-se para breve
entrar em acção na segunda chamada, que ia principiar.

Faltavam uns doze nomes, quando muito, e dos ultimos era o do
herbanario, cuja inicial era um V.

Até alli a victoria podia ainda talvez questionar-se, porque a
actividade do Tapadas tinha expremido as freguezias, que lhe eram
affectas, até deitarem o ultimo eleitor; velhos, doentes, mancos e
paralyticos fôram transportados em cadeiras e em padiolas até a urna
para votarem. Mas a freguezia de Pinchões ia abafar a eleição
inevitavelmente.

O conselheiro perdeu as esperanças, e o proprio Tapadas sentiu-se
desfallecer. O brazileiro estava vermelho e febril de contentamento.

O escrutinador chamou finalmente pelo herbanario.

--Vicente Rodrigues da Fragosa--disse elle, preparando-se já para voltar
o caderno.

--Adeante. Esse vae votar a uma assembléa mais longe--disseram alguns.

E ia-se proceder a segunda chamada, quando se ouviu do fundo da igreja
uma voz trémula, mas sonora ainda, responder:

--Presente.

Voltaram-se todos ao escutar aquella palavra.

Adeantava-se lentamente, pallido, curvado, acabrunhado como nunca, o
velho herbanario, a quem o braço de Augusto servia de apoio.

Dir-se-ia um cadaver resuscitado do tumulo.

Com as faces pallidas, o olhar amortecido, os passos incertos, o
herbanario adeantava-se e trazia já de longe o braço estendido,
segurando a lista que vinha lançar na urna.

Apoderou-se de todos os circumstantes um sentimento quasi de pavor,
perante aquella figura anciã e alquebrada, que se dissera erguida do
tumulo para responder á voz que a evocára. Todos se lhe afastavam do
caminho com respeito, senão com supersticioso terror.

Fez-se alli dentro o maior silencio, silencio só interrompido pelo som
dos passos arrastados do Vicente sobre o lagêdo da igreja.

O conselheiro não pôde mais desviar os olhos do vulto venerando do
herbanario; n'aquelle velho, que fôra seu companheiro de infancia,
parecia-lhe estar vendo agora um severo accusador da sua insensibilidade
politica, a personificação de um remorso pungente, a primeira apparição
de um espectro, que devia perseguil-o no futuro.

Todos os da mesa se levantaram instinctivamente, e, immoveis, viam
approximar-se o velho eleitor, que já suppunham á borda da sepultura.

Aquella assembléa, erguendo-se silenciosa e reverente, á chegada de um
pobre velho, trémulo e enfermo, que seguia apoiado ao braço de um
pallido mancebo, tinha uma apparencia profundamente solemne.

O morgado das Perdizes, devéras affeiçoado ao herbanario, não teve mão
em si, ao vêl-o assim doente e enfraquecido, que lhe não viesse ao
encontro, dizendo commovido:

--Ó tio Vicente! pois n'esse estado?!...

O velho fez um gesto energico para afastal-o de si.

--Arreda-te!--disse com severidade--deixa-me, serpente, que mordes a mão
do teu bemfeitor! Não me appareças, que não quero ter-te na ideia,
quando estiver a expirar!

O morgado ficou transido de espanto e de consternação ao ouvir estas
palavras.

--Ó tio Vicente!...--exclamou, ajuntando as mãos--pois eu que lhe fiz?

--Cala-te. Deixa-me passar, quero, como homem d'esta terra, protestar
contra a iniquidade que tu e os teus praticam hoje, apedrejando aquelle
a quem deveis tudo. Vendei-vos como cães, e ficae-vos com esse remorso:
eu não o quero para mim.

E, caminhando para a urna, parou defronte d'el-la, fitou o brazileiro,
que não pôde sustentar-lhe o olhar com firmeza, e disse-lhe:

--Ahi tem o voto do herbanario, sr. presidente.

O brazileiro recebeu-lhe a lista, e introduzia-a na urna.

Então o herbanario, cada vez mais anciado, correu os olhos pela
assembléa a procurar alguem. Viu o conselheiro que não ousava
approximar-se, olhou-o algum tempo com uma expressão singular e no fim
estendeu-lhe a mão. O conselheiro apertou-a nas suas, commovido.

--Manoel,--disse-lhe o velho em voz sumida--não me cegava tanto o
resentimento, que te negasse esta justiça. Eu era ainda teu amigo.

--E sel-o-has sempre, Vicente.

--Sempre que o seja... por pouco tempo será--respondeu o velho, sorrindo
tristemente.

--Que dizes?... Mas... que tens tu, Vicente? Que sentes?

--Tio Vicente!... exclamaram tambem Augusto, o morgado das Perdizes, e
outros mais.

A physionomia do herbanario transtornára-se assustadoramente; parecia
luctar energicamente para falar ainda, mas a voz embargava-se-lhe na
garganta.

--Já não posso...--murmurou elle.--Queria dizer-te...

E apontando para Augusto, e olhando para o conselheiro, disse-lhe ainda:

--Era... d'este... Elle é... elle está...

Os braços de Augusto, do conselheiro e do morgado das Perdizes,
ampararam-lhe o corpo que ia a cair por terra.

Foi nos braços dos tres que expirou o herbanario, porque estava devéras
morto, quando o fôram a erguer.

O alvoroço foi geral na igreja. Todos a abandonaram, correndo para o
adro, para onde foi levado o velho, a vêr se era possivel reanimal-o.
Todos, á excepção do brazileiro, que ficou a vigiar a urna, e de um
agente do Tapadas, que ficou a vigiar o brazileiro.

Os soccorros prestados ao herbanario fôram inuteis.

Todos se convenceram depressa de que era de facto um cadaver.

Os indifferentes voltaram a continuar a eleição.

Ia principiar a segunda chamada.

O morgado das Perdizes, impressionado devéras por a scena, andava
desconsolado por o adro, e só de má vontade entrou na igreja.

O conselheiro, Augusto e Henrique, e mais alguns homens do povo,
acharam-se sós junto do cadaver.

A commoção tirava a Augusto a frieza de animo para dar as ordens
precisas. Henrique tomou isso a seu cuidado. Houve assim um momento em
que o conselheiro esteve só com Augusto.

N'aquelle instante o coração do homem politico era superior ao
resentimento.

--Augusto--disse elle a meia voz--a morte não deixou este infeliz
completar a ultima recommendação, que parecia querer fazer-me. Eu
adivinhei-lhe porém o sentido, e para prova offereço-lhe a mão de amigo.

E, dizendo isto, estendia-lhe a mão.

Augusto não lhe correspondeu, e disse-lhe, ainda com a voz commovida:

--A mão que v. ex.^a me estende é a mão do homem que esquece e perdôa as
injurias, e eu não posso ser perdoado, porque me não julgo criminoso.
Desde que uma vez v. ex.^a formulou a accusação e se fez juiz, prefiro,
a ter de ser julgado sem provas, uma condemnação a uma absolvição. Fico
mais em paz com o meu orgulho.

A presença de alguns curiosos obrigou a interromper este curto dialogo.

Henrique voltou com os aprestes para a conducção do cadaver.

Augusto acompanhou a casa o herbanario.

O conselheiro, impressionado pelas ultimas scenas, sentia-se pouco
disposto a permanecer alli.

--Fique se quizer--disse elle para Henrique.--Não estou em estado de
receber á queima-roupa a noticia da minha derrota; haviam de attribuir a
mortificação que estou sentindo a essa causa, e eu não lhes quero dar
esse gôsto. Vou para casa; lá me levará a noticia, e não me dará grande
novidade. Adeus.

E, apertando a mão de Henrique, retirou-se para o Mosteiro.

Causou grande pesar alli a nova da morte do herbanario, e das varias
circumstancias que a acompanharam.

Não houve quem fôsse indifferente ao successo, que o conselheiro narrou
ainda sob a oppressiva influencia que elle lhe deixára.

A morgadinha absteve-se da menor allusão á causa que apressára o fim da
vida do herbanario, e evitou sempre que D. Victoria ou Christina
alludissem a ella tambem. Presentia que a consciencia do pae lh'o estava
exprobrando e por um delicado instincto abstinha-se de se applaudir das
suas previsões, infelizmente realisadas.

Passada a primeira commoção, que a lembrança d'aquella scena produzira,
o conselheiro principiou de novo a sentir pungente e vivo o despeito
pela derrota que se lhe preparava na urna.

Fazia o possivel por se mostrar indifferente a isso; mas a affectação
era demasiado transparente, para até nem D. Victoria se illudir.

Assim, por exemplo, dizia elle á filha:

--Ora vão realisar-se os teus votos, Lena; aqui me vaes ter a viver uma
vida patriarchal. Se queres que te diga a verdade, está-me a appetecer;
a vida politica ia-me cançando já.

Mas como dizia elle isto! Com que sorriso contrafeito, com que mal
simulada satisfação!

Pouco a pouco, porém, a impaciencia começou a apossar-se d'elle e nem
estas exterioridades lhe permittia já.

Áquella hora devia estar a proceder-se na assembléa ao apuramento de
votos.

Esta ideia lançava o conselheiro em um d'aquelles estados febris, que só
pode conceber quem já alguma vez soube o que é ter a sorte dependente de
uma votação, e aguardar a cada momento a noticia do resultado d'ella.

Devora-nos uma impaciencia insupportavel; tudo o que ouvimos nos
afflige; as conversas sobre assumptos indifferentes, irritam-nos; se nos
tentam alentar com esperanças, revoltamo-nos contra ellas; se procuram
preparar-nos para um desengano, prevenindo-o, repellimos com energia a
ideia d'elle. O silencio não nos é mais agradavel; as apprehensões
ganham corpo no meio d'elle; falam os presentimentos do mal. Tentamos
sorrir, gela-se-nos o sorriso nos labios. A quietação é-nos tão
intoleravel como o movimento. Anciamos sair da incerteza, e de cada
individuo que chega, trememos de saber a nova fatal. Vae mais longe o
effeito moral d'este estado do espirito; chegamos quasi a querer mal a
todos quantos estão assistindo n'aquelle momento á decisão lenta da
sorte. O nosso egoismo, exacerbado em taes momentos, irrita-se com a
ideia de que os nossos amigos tenham coração para assistir áquillo; e
comtudo não lhes perdoariamos se se retirassem. Sensações d'aquellas
exgotam mais vitalidade, em cada instante, do que annos de vida isenta
d'ellas.

O conselheiro luctava comsigo mesmo para dominar-se; procurava
preparar-se para receber o golpe, que bem podia dizer infallivel. Que
esperava elle! Não lhe era quasi possivel contar, um por um, os votos de
que dispunha? Não ficava, por mais alto que elevasse o cálculo, uma
grande maioria a esmagal-o? Tudo isto era assim, mas o convencimento
prévio recusava estabelecer-se-lhe no espirito, para lhe dar a
tranquillidade da certeza.

É um vivedouro sentimento o da esperança! Não succumbe senão perante um
desengano inevitavel. Por que lhe chamam verde, senão talvez por, como
as plantas exuberantes de seiva, resistir ás mutilações e renovar os
ramos cortados?

O conselheiro, dominado por todos estes tumultuosos pensamentos,
passeiava agitado na sala, olhando ás vezes para a janella, á espera de
vêr assomar ao portão do pateo um dos seus partidarios, cabisbaixo e
melancolico, e armando-se de coragem para lhe dar o desengano.

Apesar de todas as prevenções, o que é certo é que a nova, quando
viesse, feril-o-ia como imprevista.

Sempre assim succede.

No meio de um d'estes passeios agitados que dava em todas as direcções
por o meio da sala, ouviu-se a detonação de algumas duzias de foguetes.

O conselheiro parou e fez-se excessivamente pallido.

Os corações de Magdalena, de Christina, de D. Victoria e de Angelo
bateram precipitados.

A causa estava, emfim, decidida.

A girandola apregoava uma victoria, mas não proclamava o nome do
vencedor; porém, que dúvida podia haver a respeito d'elle?

O conselheiro sentiu fraquearem-lhe as pernas; sentou-se, e, com um
sorriso amargo, disse para a familia:

--Estou desautorado pelos meus antigos mandatarios!

--Quem sabe, mano? Ás vezes...

Isto principiava a dizer D. Victoria, para dizer alguma coisa, quando
Angelo que ficava mais proximo da janella, exclamou:

--Ahi vem um homem a correr a toda a pressa!

--A correr?!--disse o conselheiro, em quem esta simples noticia
infundira novo alento a todas as esperanças, e dissipára a sombra das
pesadas apprehensões; e caminhou pressuroso para a janella.

As senhoras seguiram-n'o alli.

O homem que Angelo vira de longe, divisava-se ainda por entre os
silvados de um atalho, que vinha dar á avenida da entrada do Mosteiro.

--Parece o Domingos, o criado do Tapadas...--disse o conselheiro,
affirmando-se.

--Mas que pressa elle traz!--notou D. Victoria.

--Já nos viu--disse Angelo.

--Lá acenou com o chapéo--exclamaram todos.

--Que quer elle dizer com aquelles signaes?--tornou o conselheiro,
nervoso.

--Querem vêr que é o que eu digo! Olhe que venceu, mano.

--Qual! É impossivel. Pois eu não sei como a votação correu? É
boa!--disse o conselheiro com certo tom irritado, como de quem não quer
que lhe descubram uma esperança.

Passou-se um pouco de tempo, em que o homem se perdeu de vista. Subia
n'aquelle momento a ladeira dos sovereiros.

Os olhos fitavam-se todos no portão do pateo á espera de o vêr surgir
alli. Mal se respirava.

--Eil-o--disseram instinctivamente todas as vozes, quando elle
appareceu.

--Viva! sr. conselheiro, viva!--bradou elle de lá, apesar de esfalfado.

O conselheiro teve quasi uma vertigem.

--Elle que diz?... Como pode...

Não o deixaram continuar as senhoras, que já o beijavam e abraçavam com
frenetico enthusiasmo.

Magdalena, a propria Magdalena, cujos mais ardentes votos eram vêr o pae
desistir da vida politica, deixava-se tomar pela febre do triumpho e
celebrava-o como se n'elle fundasse a sua felicidade. É que, na occasião
da lucta, não ha animo tão indifferente a estimulos, que não abrace um
partido; ao principio frouxamente talvez, mas a incerteza augmenta o
ardor com que se esposa a causa; os gêlos da indifferença fundem-se nos
momentos decisivos, e a anciedade que precede a victoria augmenta a
commoção que esta produz, se se realisa.

O conselheiro queria acalmar aquellas effusões, mas em vão bradava:

--Esperem! esperem! Deixem ouvir! Isto não pode ser... Ha engano...

Mas o animo feminino não entra facilmente na ordem, se chega alguma vez
a sair d'ella.

Só a entrada do mensageiro na sala, é que serenou o tumulto.

O conselheiro interrogou o.

--Então que dizes tu? Que vivas são esses?

--Digo que vencemos--respondeu o moço, usando ingenuamente o verbo na
primeira pessoa do plural.

--Estás a sonhar?

-O sr. Tapadas, o meu amo, foi quem me mandou aqui a toda a pressa para
lh'o dizer. Quando eu saí da igreja tinha vmc.^ê... tinha v. s.^a mais
cento e cinco votos do que o outro, e só havia na caixa uns trinta por
junto. No caminho ouvi a girandola...

--Mas é impossivel! Cem votos!... ahi ha engano. Não pode ser!

--Cento e cinco!

--Estás bem certo no que te disse teu amo?

--Ora se estou. E lá vi a cara do brazileiro. Mettia mêdo.

O conselheiro perdia-se em conjecturas. Agora parecia-lhe irrealisavel
aquillo que lhe annunciavam.

Não pôde mais tempo conter-se. Sobresaltado, ancioso, preparou-se para
ir por seus proprios olhos averiguar do facto.

Mas antes que o fizesse, uma onda popular, trazendo á frente a bandeira
nacional e a philarmonica da terra, invadia o pateo e atordoava os ares
com vivas, hymnos e foguetes. Á frente da musica estava radiante mestre
Pertunhas, embocando a trompa com mais arreganho que nunca!

O conselheiro chegou á janella, e então é que as acclamações fôram
estrondosas.

A desafinação da banda chegou a roçar pelo sublime.

O conselheiro agradeceu ao povo aquella manifestação.

Passados momentos entravam na sala Henrique, o Tapadas, e outros chefes
eleitoraes, e com elles o Pertunhas, sobraçando a trompa.

--Que quer dizer isto?--perguntou o conselheiro, abraçando-os.

--Cento e trinta e cinco votos a maior, sr. conselheiro, nem mais nem
menos--respondeu o Tapadas, rindo ás gargalhadas.

--Cento e trinta e cinco--repetiu o Pertunhas.

--Mas d'onde vieram!

--Ora essa é boa! De Pinchões.

--De Pinchões--repetiu o Pertunhas.

--Como?... Pois o morgado?...

--Votou comnosco como um homem. Ora pudéra!

--É verdade... votou... comnosco--dizia mestre Pertunhas.

--Mas não se viu ainda ha pouco...

--Que estavam com metralha inimiga?--concluiu o Tapadas.--Que tem lá
isso? Mas vão lá á igreja e verão as buxas que estão pelo chão. É um
destrôço! Parece a loja de um farrapeiro.

--Mas explica-me isso, Tapadas.

--Então não ouviu a rabecada que aquelle santo do herbanario, que inda
que não fôsse senão por isso deve estar assentadinho no Céo, deu ao
morgado? Pois aquillo lá resentiu o homem. E quando, depois do Vicente
expirar, elle voltou para a igreja, vinha a dizer: «Diabos me levem, que
se tivesse aqui listas á mão, havia de ensinar os tratantes que me
metteram n'esta dança». Vieram-me dizer isto, e eu que, para o que désse
e viesse, sempre levava um sortimento de listas, cheguei-me por a calada
ao morgado... Hein?... e metti-lh'as assim á cara. Hein!... Ora! Foi um
momento! Emquanto a mesa se senta e abre cadernos, sim, senhores, e se
põe tudo em ordem, estava armada a freguezia de Pinchões á nossa moda.
Agora se se queria rir, era vêr o brazileiro! Como elle encafuava para a
urna as listas que eu tinha trazido no bolso, e com que fogo! E eu a
vêl-o enterrar até ás orelhas e a fazer-me carrancudo! No fim então é
que fôram ellas, quando principiaram a apparecer as nossas listas ás
cargas cerradas. O homem enfiou! cuidei que lhe dava alguma coisa no
fim. Berrou, protestou... fez coisas do arco da velha. Agora chia contra
o morgado, e se o encontra é capaz de o comer... Para coroar a festa, á
girandola, que aqui o mestre Pertunhas tinha preparada para elles,
pegamos-lhe nós o fogo e, estourou que foi um gôsto!

E o Tapadas terminou com outra gargalhada.

O Pertunhas quiz protestar contra a accusação, mas o Tapadas voltou-lhe
as costas, dizendo:

--Ora adeus, meu amigo! O melhor é calar-se.

E elle seguiu o alvitre, limitando-se a dizer a meia voz para os que
estavam proximos:

--Este Tapadas tem cada graça!

Assim pois a victoria do conselheiro era devida ao herbanario.
Tinham-lhe falhado todos os seus cálculos politicos, transigira com
exigencias, nem sempre justas, o que de nada lhe servira, e salvára-o o
elemento que desprezava. Acontece ás vezes d'isto aos homens que muito
calculam.

As senhoras, que estavam sabendo de Henrique o succedido, renovaram as
suas demonstrações de alegria.

O conselheiro, porém, ficou preoccupado no meio das festas de familia e
das festas populares que se faziam no pateo.




XXXI


A morte do herbanario deu muito que falar na aldeia, não só pela
qualidade de homem que era aquelle, como pelas circumstancias, no meio
das quaes o facto succedêra.

O resultado da eleição, comquanto momentoso, não distraía do assumpto as
attenções; pois que, tendo sido successos simultaneos, associavam-se
naturalmente nas conversas e discussões, e um chamava o outro.

O herbanario não fôra colhido desprevenidamente pela morte; havia muito
tempo que fizera as suas disposições e por ellas legára a Augusto tudo
quanto possuia, isto é, alguns livros, entre os quaes a _Polyanthea_, e
o preço, quasi intacto, que recebêra pela casa expropriada.

Logo que estas disposições fôram sabidas, não faltou quem achasse
n'ellas a explicação da amizade desvelada com que Augusto sempre tratára
o velho, e do piedoso acatamento com que o recebêra em casa, assim que
da sua o expelliram.

Nós que, por um direito legitimo e inauferivel, podemos julgar a fundo
do caracter de Augusto, asseguramos que eram inexactos taes juizos.

É uma triste verdade esta da pouca ou nenhuma fé que se tem no
desinteresse dos outros!

Não ha explicação mais difficil de ser recebida do que a que se
fundamenta n'um sentimento nobre de abnegação ou de generosidade.

É preciso que duvidemos muito de nós mesmos, para assim desconfiarmos do
proximo. Porque a final o que é verdade é que a mais exacta e infallivel
sciencia do coração humano só se adquire pelo estudo do proprio coração:
esse é o unico que nos está bem patente. É por isso que as melhores
almas são de ordinario as mais crentes.

Um homem, a quem a desconfiança tenazmente escuda contra todas as
apparencias de virtude, ainda as mais insinuantes, tem já tão inquinado
o coração como suppõe o dos outros.

O enterro do herbanario verificou-se no dia seguinte ao da morte e foi
muito concorrido.

Fez-se no cemiterio, e, por expressa determinação do fallecido, em campa
rasa, e não no tumulo da familia do Mosteiro, como o conselheiro
desejára.

Tudo se passou sem o menor signal de opposição.

Não se explicam bem estas versatilidades da opinião publica. Uma medida
que hoje ateia uma revolução, ámanhã executa-se no meio do
indifferentismo geral, e sem apostolado prévio, sem providencias
repressivas, nem castigos. Mysterios das massas, que mais convem ao
legislador estudar, do que tentar destruil-os; offerecem a resistencia
das leis naturaes.

O conselheiro e toda a familia tomaram lucto como parentes do
herbanario, e receberam as visitas de pêsames, que em parte eram tambem
de parabens pelo exito do suffragio popular.

Ao fim da tarde em que se realisou a cerimonia funebre, quando soavam na
igreja matriz as badaladas das Avé-Marias, Augusto entrou no cemiterio,
já deserto, e approximou-se lentamente da sepultura, inda coberta de
pouco, como o denunciava a terra revolvida.

Elle, cujo coração era decerto o que a morte do herbanario mais
dolorosamente ferira, não recebêra pêsames de ninguem. Passára a tarde
só com o seu pensamento, o qual, como o leitor prevê, lhe não devia ser
muito jovial companheiro.

Quem observasse Augusto n'aquelle momento, seria decerto impressionado
pelo ar abatido, revelador de uma profunda prostração de animo, que lhe
quebrára as fôrças.

Que era feito d'aquella energia, com que se revoltára contra as
perseguições da sorte, e que lhe animára os primeiros passos para obter
a justificação devida ao bom credito do nome que lhe haviam legado sem
mancha? Vimol-o sair do Mosteiro resolvido a luctar, vimol-o repellir
nobremente as ironias de Henrique, vencel-o, obrigal-o a pedir-lhe
perdão; vimol-o recusar o auxilio que este já lhe offerecia, e
considerar-se moralmente obrigado a conquistar elle proprio as provas da
sua innocencia.

Que é feito d'essa energia?

O que é feito d'ella? leitor, talvez o teu coração te possa responder
por mim, se és uma d'essas victimas, para quem a sorte parece
personificada em um espirito malfazejo, que se compraz nos martyrios
lentos.

Quando, uns após outros, se repetem os golpes da adversidade, quando
todos os males parece cairem sobre uma existencia, como uma maldição de
Deus, é raro encontrar-se têmpera de alma tão rija que resista e não
ceda, quasi convencida, como o Jacob dos livros sagrados, de que lucta
com um poder superior.

A razão mais clara deixa-se tomar então da cegueira do fatalismo, e
eivado d'esta grave doença dissipa-se a fortaleza do espirito, como se
extinguem as fôrças do corpo, quando gira no sangue um veneno enervador.

Então encontra-se quasi um d'estes prazeres paradoxaes, a que é tão
sujeita a natureza humana; sente-se uma especie de gôso em succumbir sem
lucta. Experimenta-se, por assim dizer, o orgulho da extrema
infelicidade.

Em poucos dias Augusto conheceu as maiores provações da vida: a miseria
em perspectiva, a ingratidão, o insulto que avilta, a calumnia que
ennodôa, e o infortunio de um verdadeiro amigo. Repellira com dignidade
o insulto e a calumnia: sorrira á miseria e á ingratidão, e dera á
amizade as consolações que a amizade lhe inspirára.

Mas não desfallecêra com tudo isto.

Maior provação lhe estava reservada, porque ha maiores provações para a
alma humana, do que todas estas adversidades juntas. Apagae-lhe de
subito a estrella que a guiava; acordae-a do sonho em que se esquecia,
dormindo no meio de uma desencantada realidade; privae-a da ideia
querida, que havia muito concebêra, que comsigo vivia, que para si
guardava, ciosa dos olhares extranhos, e vêl-a-heis desnorteada,
perdida, louca, contorcer-se em desespero e succumbir.

Se resiste e sobrevive, se não desfallece, nem vacilla, é porque é de
essencia mais elevada do que a humana.

Ás vezes aquella ideia era tão irrealisavel, aquelle sonho tão
chimerico, que a pobre devia estar prevenida para o perder um dia, e
julgou que o estava.

Mas illudira-se. Se nos dermos de coração a uma chimera, se ella, nas
fórmas vagas e aereas que reveste, nos sorrir e namorar, em vão julgamos
têl-a por o que verdadeiramente é; ha sempre um ou outro momento em que
a acreditamos realisavel e até realisada.

E, ao convencermo-nos devéras da sua impossibilidade, sentimos a dor
profunda que nos causa a perda de um objecto querido.

Como certos deuses do paganismo, que nos seus amores com os mortaes
vestiam a fórma humana, assim o impossivel, quando nos apaixonamos
d'elle, apparece, para nos seduzir, sob a feição da realidade aos nossos
olhos namorados.

E ao revelar-se como impossivel, destróe o coração que o abraça, como
Jupiter sacrificou a imprudente Semele, ao apparecer-lhe em toda a sua
gloria de deus.

Qual fôsse a ideia constante, o pensamento recatado de Augusto,
sabem-n'o os leitores: era o amor de Magdalena. A natureza d'esta paixão
dizia elle conhecel-a. Não tinha outra aspiração além de existir, era
como o culto pela Virgem do Christianismo, era que se adora por adorar,
em que na mesma adoração se acha o premio do culto, em que o deixar-se
adorar é o mais que pode pedir-se ao objecto d'elle.

De tudo isto estava sinceramente convencido Augusto.

Mas por que foi que, desde os primeiros momentos em que viu Henrique,
sentiu quasi aversão para elle? por que foi que, amavel e bondoso para
com todos, só para com um desconhecido se mostrou frio e irritante? por
que foi emfim que, ao persuadir-se, por certos indicios, de que
Magdalena e Henrique se amavam, caiu no desalento, em que tantas causas
de infortunio o não tinham lançado ainda? Porque a verdade era que foi
este o golpe que o venceu.

Por quê? porque amava Magdalena, porque este amor não tinha nada
excepcional; era inconscientemente apprehensivo, ambicioso, devaneador e
ciumento, como todos os amores verdadeiros; porque era aquelle o seu
sonho mais querido, e desde que era obrigado a convencer-se de que não
passára de um sonho, não se sentia de animo para fitar a realidade;
porque era aquella a luz da sua alma, e ao vêl-a apagar, vacillou nas
trevas e parou. Desde que não avistava um alvo, não havia para elle
retrogradar nem progredir; era um movimento sem fim, que não valia mais
do que a quietação.

Esta fôra a causa do desalento de Augusto, que só então conheceu que se
illudira com o estado do seu coração, que o que em si se passava era o
verdadeiro amor.

Desde que teve de renunciar a elle, não fez mais um esforço para
justificar-se da calumnia que pesava sobre si. Sentia-se indifferente á
condemnação do mundo. Já nem lhe importava justificar-se para com
Magdalena; era quasi uma vingança, que tirava d'aquella por quem
soffria, obrigal-a a ser injusta.

E a sua consciencia quasi achava voluptuosidade n'isto!

O herbanario fôra victima da mesma illusão de Augusto, e concorrêra
involuntariamente para o levar a este estado moral.

Das explicações dadas por Magdalena na casa dos Cannaviaes, sabemos como
das meias palavras e meias revelações de Torquato, o herbanario
acreditára que a morgadinha combinára imprudentemente com Henrique uma
visita nocturna á quinta dos Cannaviaes. O velho, que suspeitára sempre
da natureza dos sentimentos de Henrique para com Magdalena, julgou vêr
n'aquillo a confirmação das suas suspeitas, e encontrando Magdalena,
reprehendeu-a, e, de irritado que estava, nem escutal-a quiz.

Voltando a casa, o velho lidou por muito tempo com a dúvida, se deveria
ou não revelar tudo a Augusto.

A noite cerrou de todo e deslizou com a lentidão de uma noite de
inverno, sem que elle tivesse resolvido o que faria. O dia seguinte
passou-o na mesma indecisão. Mas a inquietação do herbanario crescia;
desassocegava-o a ideia do perigo a que suppunha exposta Magdalena, cuja
confiança em Henrique a podia perder.

O herbanario continuava a desconfiar de Henrique.

Chegára a noite, aquella em que Torquato lhe dissera ter com uma das
meninas de visitar á meia noite, por causa de Henrique, a casa dos
Cannaviaes. O velho não pôde mais tempo conter-se e disse a Augusto,
depois de muito luctar comsigo:

--Não devo calar-me. É preciso coragem, meu filho. Arranca do coração a
loucura que lá tens ainda, embora o deixes em sangue, ou estás perdido.

Augusto estremeceu, olhando-o com sobresalto.

O velho proseguiu:

--Tu vaes sair para te desenganares por teus proprios olhos, e se o que
vires te não curar, se é sem remedio esse mal, ao menos sê generoso, e
acode e salva, se fôr possivel, quem, perdendo-te, se perde tambem.

E após estas palavras vagas, cujo mais claro sentido Augusto tremeu de
investigar, o velho mandou-o aos Cannaviaes, n'aquella mesma noite,
recommendando-lhe que fôsse preparado para receber uma grande dor.

Augusto seguiu as indicações do herbanario, e foi.

Era d'elle o vulto que fizera estremecer Magdalena, quando na noite da
piedosa devoção de Christina, a vimos chegar á janella dos Cannaviaes.

A morgadinha reconhecêra Augusto através das sombras nocturnas, e tivera
um presentimento do que significava a presença d'elle n'aquelle logar e
n'aquella occasião.

Por concentrada e discreta que fôsse a paixão de Augusto, não era um
mysterio para Magdalena.

A extranhar alguem esta penetração de vista não será decerto nenhuma das
minhas leitoras.

Magdalena adivinhára havia muito Augusto, e não lhe fôra difficil
explicar até a instinctiva hostilidade com que elle sempre acolhêra
Henrique.

Por isso, ao vêl-o alli, previu que pesava sôbre ella uma suspeita, que
era victima de uma illusão, e que as apparencias a podiam condemnar.

De feito Augusto chegára tarde aos Cannaviaes, porque só tarde o
herbanario vencêra a hesitação que experimentára ao dizer-lhe que fôsse.
Por isso só pôde reconhecer a voz e a figura da morgadinha e de Henrique
no curto dialogo, que entre os dois se trocára, quando vieram examinar á
janella o estado da noite.

As palavras que escutou prestavam-se a ser interpretadas de uma maneira
cruel para o seu coração. Assim as entendeu Augusto, e, sem mais querer
vêr nem ouvir, retirou-se como um louco.

Foi n'essa occasião que Magdalena o viu.

Quando voltou a casa, o herbanario que, ainda acordado, o esperava,
viu-o pallido, e com uma expressão singular no rosto.

--Então?--interrogou-o anciosamente o velho.

--Tinha razão, tio Vicente. Tem sido uma longa e má loucura a minha.
Verei se me curo d'ella.

E, sentando-se, encostou a cabeça ás mãos e permaneceu silencioso.

O velho não lhe perguntou o que se tinha passado.

D'ahi em deante foi em rapido progresso a prostração de animo em
Augusto.

A doença do herbanario que se exacerbou consideravelmente tambem, era o
unico motivo de uma fôrça ficticia que ainda o sustentava. Os seus
desvelos pelo enfermo tornavam-lhe todos os instantes.

A unica voz, echo da vida exterior que lhe chegava aos ouvidos, era a do
cirurgião que tratava do herbanario.

Falador por indole e por cálculo profissional, o facultativo contava á
cabeceira do leito as novidades do dia. Entre essas trouxe uma das que
mais vogavam, que era a de que Henrique casava no Mosteiro com a
morgadinha.

Um equivoco dizer do Torquato, na presença dos criados do mosteiro, uma
das meias discreções do velho, mais perigosas do que a propria
indiscreção originára esta versão.

Augusto escutou a nova sem que o gesto o trahisse: mas o herbanario, que
o fitou com olhos interrogadores, leu claro n'aquelle rosto impassivel.

No dia das eleições, o estado do velho Vicente era mais grave ainda. O
cirurgião prolongou a sua visita e falou da campanha eleitoral.
Assegurou que era certa a derrota do conselheiro, desde que contra elle
se manifestára o sr. Joãozinho das Perdizes.

O herbanario escutou-o com admiração e sobresalto.

Porque a verdade era que o herbanario sentia pelo conselheiro uma
predilecção que a tudo sobrevivia, que nada podia destruir. Similhava o
affecto que alguns paes sentem pelos filhos, de quem só teem recebido
desgostos, affecto que parece robustecer tanto mais, quantos mais
motivos ha para a esfriar.

Pouco depois mestre Pertunhas confirmou a noticia do facultativo.

Foi então que o herbanario, dominado por energia febril, quiz erguer-se
do leito, e, apoiado no braço de Augusto, que em vão tentou dissuadil-o,
se dirigiu á igreja para votar. O resultado sabem-n'o os leitores.

Todas estas causas, e a ultima, a morte do amigo, acabaram por quebrar o
alento a Augusto. Facil é, pois, de conceber qual o estado do seu
espirito ao entrar no cemiterio.

Oração ou meditação, por muito tempo durou aquelle tributo de saudade,
que o aspecto sombrio da tarde e a melancolia do logar e da hora mais
solemne faziam.

Passados alguns momentos, sentiu Augusto que alguem se approximava
d'elle. Voltou-se. Era o Cancella, que tambem viera rezar junto do
tumulo da filha.

Não era o Cancella já o mesmo robusto e alegre aldeão que vimos,
dominado pelo enthusiasmo, sobre o tablado rustico, representar com
applauso o tyranno perseguidor do Messias. Desde a morte da filha
parecia outro. Triste, avelhentado, emmagrecido, nem tinha fôrças para o
trabalho, nem coração para alegrias.

Dir-se-ia que a filha lhe partira com a alma, e que era um cadaver o que
se movia alli.

--Ah! logo vi que era o sr. Augusto--disse o pobre homem, estendendo a
mão, que Augusto apertou com affecto.--Só nós temos amigos aqui.

--É verdade, Cancella. Ou só nós, fóra d'aqui, não temos outros, pelos
quaes esqueçamos estes, que ahi dormem.

--Eu decerto que não! Está-me toda a alegria, está-me todo o coração
debaixo d'aquella pedra--disse o Herodes, apontando para o tumulo da
filha.--Com mais de quarenta annos, que nova vida se pode principiar?

--Ha quem aos vinte já não tenha coragem para principiar outra!

O Cancella olhou fixo para Augusto ao ouvir-lhe estas palavras.

--Fala de si, sr. Augusto?... Não tem razão. Que são as suas dores ao
lado da minha? Se ainda não experimentou o amor e as alegrias de pae,
como ha de imaginar a dor, que a morte de uma filha unica nos traz ao
coração?... A minha pobre Ermelinda!... Parece-me ainda impossivel o
têl-a perdido!... Queria a esse velho, sr. Augusto!... E com razão, que
era seu amigo e quasi um pae para si... mas não é sem remedio a sua
saudade, verá... A minha porém...

Augusto sorriu amargamente.

--Tu sabes lá, homem, o que eu tenho no coração?

N'isto chegou-lhes aos ouvidos um vozear distante, com um rumor de
acclamações e applausos. Eram os clamores dos grupos populares,
celebrando a victoria do conselheiro.

Os sons da trompa do mestre Pertunhas dominavam todos os mais.

--Uns riem, emquanto outros choram--disse o Cancella.--Ha alegria acolá.

E designou com o dedo o Mosteiro, cujos telhados se avistavam d'alli.

--Ha...--respondeu Augusto, pensativo.--Somos de mais n'esta terra, meu
pobre Cancella; nós, os infelizes.

--Por isso parto ámanhã.

--Partes?

--Se eu não posso viver aqui! Se tudo isto me está falando na filha!...
A cada passo estou á espera de vêl-a... É como se a todo o instante me
morresse. Vou para a cidade; dizem que estão engajando por lá
trabalhadores para o Brazil... Quero vêr se o trabalho me mata, antes
que o desgôsto me não tente a morrer de outra sorte.

--E dizes que partes ámanhã?

--De madrugada. Já tenho tudo prompto.

Augusto reflectiu por algum tempo.

--Far-te-hei companhia.

O Herodes olhou-o, admirado.

--O sr. Augusto?! Pois quer?...

--Quero que me batas á porta, quando passares.

--Mas que tenções são as suas, sr. Augusto?

--As mesmas talvez que as tuas. Não dizes,que queres vêr se o trabalho
te mata? Por que não hei de eu tentar o mesmo tambem?

--Mas... não lhe morreu uma filha.

--E cuidas tu que só um amor de filha nos pode prender á vida? que só a
morte de uma creança nos pode ferir no coração?...

O Herodes esteve algum tempo calado, com os olhos em Augusto; depois
disse, com hesitação ainda:

--Não é por certo a morte d'este santo velho que o faz falar assim, sr.
Augusto. Se quizesse desabafar commigo... talvez que lhe fizesse bem.
Bem vê que eu sou infeliz e... havia de entendel-o...

Augusto apertou-lhe a mão, commovido.

--Pobre amigo! Não, não me entenderias; porque não basta ser infeliz
para me entender. É necessario ter sido louco como eu fui.

--Louco?!...

--Sim, louco, meu bom Cancella, louco. Não te lembras d'aquelle
desgraçado do Pé do Monte, que se suppunha rei? Como ria n'aquelle
tempo! Um dia voltou-lhe o juizo, mas ficou tão triste até morrer, que
parece que tinha saudades da loucura! Talvez que lhe devesse os unicos
instantes de felicidade que sentiu na vida.

O Herodes já não comprehendia Augusto, o que lhe fez crêr que o não
entenderia se elle o tomasse por confidente.

Augusto mudou de tom, dizendo-lhe:

--Promettes passar por minha casa esta madrugada?

--Pois sempre quer?...

--Se não partir comtigo, partirei só.

--N'esse caso...

--Espero-te. Aonde vaes agora?

--Ao Mosteiro.

--Ah!... vaes ao Mosteiro?...

--Vou despedir-me d'aquella santa familia, que tão bem me tratou da
filha, e de Angelo, d'aquella alma de cherubim, que ainda se não
consolou tambem da morte da minha pobre Linda.

--Angelo?... É um nobre coração... Espera... Não quero partir sem lhe
dirigir algumas palavras... Devo-lh'as.

--Só a elle?

--Só elle m'as agradecerá.

E Augusto approximou-se do tumulo da mãe de Magdalena, e á frouxa
claridade d'aquella hora escreveu com um lapis em um quarto de papel
estas palavras:


     «Angelo.--Escrevo-lhe sobre a pedra do tumulo, em que repousam sua
     mãe e Ermelinda, duas imagens que serão sempre para o seu coração
     rodeadas de todo o prestigio da saudade. Ouça-me, que em nome
     d'ellas lhe falo. Dentro de algumas horas deixarei para sempre
     estes sitios. Se as memorias da infancia me prendiam aqui, as
     sombras de grandes soffrimentos as offuscaram. Parto quasi sem
     custo. Não o tornando talvez a vêr, Angelo, tinha um dever a
     cumprir para com a sua generosidade. Hão de ensinal-o a
     desprezar-me, Angelo. O seu nobre instincto de creança
     recusar-se-ha a isso ao principio talvez: mas a razão do
     adolescente talvez venha a ser mais docil. Não podendo
     justificar-me, deixe-me ao menos jurar-lhe que parto com a
     consciencia tranquilla. Não é por mim que faço este protesto, é
     para lhe evitar, se fôr possivel, a dúvida no caracter dos homens.
     Para um coração, como eu lhe conheço, deve ser um martyrio. Os mais
     que me condemnem; nem necessidade sinto já de me justificar. Parto
     com um desalentado como eu. O que vou procurar não sei. Tudo
     acceito com indifferença.--Seu amigo, _Augusto_.


Fechando a carta, entregou-a ao Cancella, e ajustando outra vez a hora a
que deviam encontrar-se, separaram-se.

O Cancella dirigiu-se para o Mosteiro e ainda a pensar nas palavras que
ouviu a Augusto, e sem que atinasse com os motivos d'aquelle desalento.

Não pôde, porém, chegar tão depressa ao Mosteiro como esperava;
distrahiu-o no caminho o seu compadre Zé P'reira.

A harmonia do par conjugal de que constituia a parte masculina o nosso
Zé P'reira, estava cada vez mais transtornada.

A beatice azedára o animo da sr.^a Catharina do Nascimento de S. João
Baptista.

A saida precipitada do missionario, que não se sentiu seguro na terra
depois da scena do cemiterio, e do desespero do Herodes, com quem elle
imaginava a cada passo esbarrar, rodeára aquelle santo varão do
prestigio dos martyres perseguidos; e as saudades por elle e devoção
pela sua memoria augmentaram consideravelmente na aldeia.

Se mal corria ha muito a casa e o governo domestico da familia Zé
P'reira, peor se tornou depois d'essa época.

A mulher passava todo o tempo em devoções na igreja. O marido,
desconsolado, procurava lenitivo na taberna.

Descuidou-se cada vez mais de trabalhar. A embriaguez era n'elle estado
habitual, e já menos inoffensiva e pacifica do que nos primeiros tempos.

A miseria ameaçava invadir aquelle lar, até alli remediado.

Tudo isto exacerbára a acrimonia das discussões conjugaes.

Marido e mulher fustigavam-se com os menos amaveis epithetos e
attribuiam-se reciprocamente as honras da ruina do casal.

De noite desencadeiava-se a tempestade domestica e cada vez mais
ameaçadora.

Um dia, o marido, excitado pelo vinho, foi mais além do que a sua
timidez habitual o permittira até alli, e a sr.^a Catharina soube, pela
primeira vez, que o osso de que ella era osso não tinha a brandura que
lhe suspeitava.

Deu-se uma scena escandalosa, em que interveio a vizinhança. D'ahi por
deante fôram frequentes iguaes espectaculos.

Na noite em que o Herodes o encontrou, o Zé P'reira, em completa
embriaguez, acabára de fazer sentir mais uma vez a sua mulher toda a
fôrça da auctoridade marital. Ella revoltou-se e abandonou os penates,
jurando que nunca mais voltaria a elles.

O pobre do homem andava agora perdido nas ruas á procura d'ella,
arrepellando-se, chorando, praguejando, que mettia dó. O Cancella
condoeu-se d'elle, e dando-lhe o braço, para lhe firmar os passos
cambaleantes, conduziu-o a casa, promettendo restituir-lhe a mulher
fugida.

E n'esta tarefa de reconciliação passou grande parte da noite,
conseguindo a final harmonisal-os, mas convencido de que não seria muito
duradoura a paz.

E tinha razão o Cancella em pensar assim. Ao lar domestico, onde uma vez
se passa uma scena d'aquellas, nunca mais volta o anjo da concordia.

O pobre do Zé P'reira estava condemnado a levar assim o resto da sua
vida de familia.

Esta occorrencia demorou o Herodes, que só tarde entrou no Mosteiro a
despedir-se da familia que tanto lhe estimára a filha.




XXXII


Augusto, ao voltar a casa, sentiu que estava inevitavelmente votada á
insomnia aquella noite, a ultima que devia passar na aldeia, não porque
os preparativos da jornada lhe impedissem o repouso, mas a lucta de
tantos pensamentos e paixões encontradas, decerto lhe disputaria o
espirito.

Partir é já uma palavra, que quasi nunca se pronuncia com indifferença;
partir para não voltar é uma ideia afflictiva, que mais violenta
commoção desafia; partir sem esperanças no futuro... poucas torturas de
alma se podem comparar a esta!

Experimentava-a Augusto.

Era quasi uma resolução de suicida a sua. Nenhuma ambição tivera poder
sobre elle para o arrancar d'alli; tivera-o o desespero.

A cada momento, elle proprio surprehendia-se immovel, abstracto, com os
olhos fitos na chamma da véla, com a cabeça entre as mãos, sem saber em
que pensava, sem consciencia de si.

A noite estava socegada, e apenas o som monótono de uma fonte proxima
interrompia o silencio d'aquellas horas adeantadas.

Augusto abria um livro, mas lia como por certo o leitor sabe que se
costuma ler em situações identicas.

Levantava-se para fazer os aprestes da jornada, mas havia em todos os
seus movimentos uma indecisão, uma falta de consciencia, que não deixava
dúvidas sobre o estado do animo que os regia.

Como que a todo o momento estava esquecendo a que fim convergiam as suas
acções; e no meio do cumprimento de uma tenção, perdia a consciencia
d'ella.

Parava defronte de um livro, como se irresoluto em saber se o levaria
comsigo; mas cêdo afastava-o de si com enfado.

Examinou depois os papeis e as cartas; queimou tudo. Vestigios de
passados devaneios, effusão de uma alma sensivel, fructos da juventude e
da solidão, a que a primeira inspirára o enthusiasmo, e a segunda a
melancolia, tudo consumiu; com certo prazer amargo via atear-se a
chamma, desapparecerem as lettras, reduzir-se tudo a cinzas.

Respeitou apenas as cartas de Angelo, que releu commovido. Falava-se em
algumas de Magdalena. O sobresalto do seu coração, ao ler aquelle nome,
era então mais violento que nunca.

N'estas pesquizas veio-lhe ás mãos um pequeno masso, que pertencêra ao
herbanario.

Ia para as queimar tambem, quando a inscripção, que viu por fóra da
cinta que as enfeixava, o fez hesitar.

Liam-se estas palavras:--_Cartas de Magdalena_.

Cartas de Magdalena! Este nome tinha no animo de Augusto o valor de uma
tentação.

Cartas de Magdalena! Era quasi ouvil-a falar, prazer a que já tinha
renunciado; era entrar em communhão de pensamentos com ella, e infeliz
de quem não concebe a casta voluptuosidade d'este gôso.

Mas ao mesmo tempo hesitava.

Pertencia-lhe tambem aquelle legado? Não seria um abuso lel-as? Devia
antes queimal-as, mas... eram cartas de Magdalena. E depois, que mal
poderia vir da indiscreção? Não tinha elle um coração que não devia
abrir-se mais a ninguem? Encerrar alli qualquer segredo era encerral-o
quasi em um tumulo.

E que segredos podiam ser os de Magdalena e Vicente?

De que se poderia tratar alli, a não ser de algum affectuoso cumprimento
da morgadinha ao velho, que sempre tratára com intima familiaridade, ou
algumas meigas reprehensões por a sua porfiada ausencia do Mosteiro?

Augusto recordava-se até do velho lhe ter falado na indole d'estas
cartas.

Nas vesperas de renunciar para sempre á felicidade, devia-se perdoar a
tentação.

Abriu-as.

Não ia muito adeantado na leitura, quando já todos os signaes de
hesitação cediam o logar aos da mais irreprimivel avidez. E terminada a
primeira, abriu, leu ou devorou outra, e após outra e outra, até a
ultima; da ultima voltava de novo á primeira, e cada vez mais profunda
commoção parecia dominal-o.

Transcreveremos algumas d'aquellas cartas, para o leitor julgar de
todas.

Dizia uma:


     «Meu bom amigo.--Hontem, depois que nos separámos, recebi de Lisboa
     a encommenda que esperava. O Angelo não se esqueceu. Mando-lh'a,
     para que mais uma vez faça de feiticeiro, _adivinhando_ os gostos
     do seu amigo.

     «Afianço-lhe que vae acertar com os desejos d'elle. Ha tempos que o
     vejo, emquanto espera na sala por os pequenos, procurar de
     preferencia na estante os livros de historia franceza. Custa-me a
     perdoar-lhe os attractivos que tem para elle a Revolução, mas emfim
     seja feita a sua vontade. Escuso de lhe recommendar discreção. E,
     quando nos virmos, peço-lhe que me não torne a falar nos laços em
     que diz que eu estou a prender o coração. Mette-me mêdo.--Sua
     amiga, _Lena_.»


Esta era uma das mais remotas em data. Outras diziam:


     «Meu amigo.--Hontem separámo-nos de tão mau humor, que hoje acordei
     com remorsos, e não pude socegar emquanto lhe não escrevi para lhe
     pedir perdão. Espero que perdoará a este rebelde genio que tenho.

     «Mas tambem para que me está sempre a ralhar? Não se assuste pelo
     meu coração; o maior perigo que o tio Vicente receia para elle,
     faz-me sorrir.--É o de me apaixonar?--Então que tinha? Não sonhe
     com nuvens, e vá representando o seu papel de _adivinho_, que é uma
     generosa acção que pratica.--Sua arrependida inimiga, _Lena_.»


     «Meu bom tio.--Ahi vão uns livros, de que eu não entendo nada.
     Augusto falou d'elles ao filho do administrador, que veio de
     Coimbra. Conheci n'elle desejos de possuil-os. Tomei nota. O Angelo
     remetteu-m'os hontem. Para Augusto não desconfiar, finja atraiçoar
     um pouco o mysterio, e fale no filho do administrador. Do mais, já
     nada digo.»


A de mais recente data dizia apenas:


     «Tio Vicente.--Pensei no que me disse do estado do coração do
     seu... do nosso amigo. Parece-me que exaggera. Mas, se fôsse
     verdade, podia tranquillisar-se. Eu lhe afianço que d'ahi nunca
     para elle virá a infelicidade. No entretanto, discreção por
     ora.--Sua affeiçoada sobrinha, _Magdalena_.»


Por a amostra, que lhe damos, o leitor não deve estranhar que estas
cartas estivessem causando a Augusto o effeito que dissemos.

Cada uma era uma revelação.

Augusto vivera sem o saber, sob a influencia benefica da morgadinha;
d'ella lhe viera pois grande parte da instrucção que recebera, alli, na
solidão d'aquella aldeia!

O mysterio dos presentes do herbanario, a que tão diversas explicações
dera, esclarecia-se emfim. Havia-os attribuido a Angelo; suspeitára,
pelo menos, que era a elle que o herbanario se dirigia para escolher os
livros.

Nunca, porém, se lembrára de Magdalena; agora, que sabia de que origem
provinham, beijava-os, como sagradas reliquias, venerava-os com
expansões de verdadeira idolatria. Já não tinha coração para se separar
d'elles.

Nas cartas em que Magdalena se referia, mais ou menos jovialmente, aos
cuidados que parecia dar ao herbanario esta sympathia manifesta d'ella
por Augusto, não havia para elle menor encanto. Pelo que tantas vezes
lhe dissera o herbanario, conjecturava de que natureza deviam ser as
reflexões a que Magdalena alludia.

O velho Vicente estava, por assim dizer, no meio d'aquelles dois
corações, estudando-os a ambos, receiando por ambos, lidando por
extinguir n'um e n'outro a sympathia que via crescer e que ameaçava
degenerar em paixão. Toda a sua intervenção consistia em fazer com que
elles se não revelassem; era o meio isolador que impedia que se ateasse
o incendio. Nas suas mãos paravam os dois fios da corrente, só elle a
interrompia.

Esta situação do herbanario era para elle causa de grandes iuctas.

Amando Augusto com sentimento paterno, tinha ambições por o amigo; e, ás
vezes, movido d'ellas, sentia-se tentado a favorecer aquella paixão. Por
outro lado, não estimava menos Magdalena, e prevendo as resistencias e
repugnancias com que ella teria a luctar, e os tormentos a soffrer,
hesitava e desejava poder abafar no coração dos dois os germens de
pesares futuros.

Tivemos occasião de o vêr sob estas diversos impressões. Umas vezes
reprehendendo Augusto, outras quasi deixando-lhe entrever esperanças. A
chegada de Henrique de Souzellas e os successos subsequentes despertaram
no velho uma especie de ciume, e fizeram-n'o mais ardente partidario de
Augusto.

Tudo isto estava agora transparecendo ao espirito de Augusto.

Beijou as cartas da morgadinha, releu-as, apertou-as ao coração, e tão
enlevado estava pelo perfume do affecto que rescendia de todas, que nem
se lembrava já da hora proxima da partida do motivo que a originára.
Motivo que era o desmentido da sua illusão.

Mas esta ideia amarga acudiu a final, e a impressão que produziu foi
dolorosa. Pela primeira vez, n'aquella noite lhe vieram as lagrimas aos
olhos, a fronte pendeu-lhe, quasi desfallecida, sobre os braços, e assim
permaneceu por muito tempo.

Depois levantou a cabeça n'um impeto de desesperação, exclamando:

--Para que me haviam de vir á mão estas cartas? Que espirito diabolico
se compraz de martyrisar-me assim? Saber que um anjo me acompanhava com
a sua vista protectora só quando elle me vae deixar para sempre! E dizia
ella que me não podia vir o infortunio d'aqui!... Não contava com as
mudanças do proprio coração.

Na vidraça da sala terrea, em que se achava Augusto, soaram algumas
leves e rapidas pancadas que o fizeram estremecer.

--O Cancella já?... É pois certo que vou partir?

Levantou-se para abrir, e os passos vacillavam-lhe como os do condemnado
ao caminhar para o supplicio.

Chegára o momento de romper com todas as esperanças.

--Estou prompto--disse elle, abrindo a porta e voltando para dentro, sem
reparar em quem entrava; e poz-se a reunir e a ordenar os papeis que
tinha dispersos na mesa.

--Cuidei que era mais cêdo--continuou elle.--Distrahi-me a ler umas
cartas que estive a pôr em ordem, e o tempo correu. Vamos lá, meu pobre
amigo, deixemos esta terra para os venturosos.

E, dizendo isto, desviou o olhar para o sitio onde julgava que devia
estar o Herodes; mas, em vez d'elle, achou deante de si Angelo e
Magdalena, que, parados no meio da sala, o fitavam com melancolico
sorriso.

Augusto estremeceu, soltando um grito de surpresa, e com o olhar fito em
Magdalena, ficou por bastante tempo n'essa muda contemplação.

Magdalena foi a primeira que falou.

--Admira-se de nos vêr aqui?--disse ella.--Que ha de mais natural?
Angelo recebeu a sua carta e mostrou-m'a. Tivemos ambos o mesmo
pensamento; viemos para dizer-lhe... pelo menos o adeus que lhe
deviamos... visto que vae partir.

E havia n'estas palavras de Magdalena um mal pronunciado tom de
recriminação, que feriu Augusto.

--E é certo que quer partir?--perguntou Angelo.

--Sim... parto...--respondeu Augusto, perturbado.

--Mas por quê? Que significa essa resolução? Lena contou-me ha pouco
tudo. Eu nada sabia. Disse-me que o offenderam com uma suspeita infame,
e em nossa casa! Mas, já resolvemos; ámanhã, eu e Lena, havemos de
falar, havemos de conseguir...

--Não, Angelo. É inutil. Deixe-me com o meu destino. É a elle que eu
obedeço.

--Não fala verdade,--acudiu a morgadinha--diga que obedece á sua
phantasia, e commette uma ingratidão.

Á palavra «ingratidão», Augusto não pôde reprimir um sorriso de
amargura.

--Uma ingratidão, sim--repetiu Magdalena, respondendo com firmeza e
serenidade áquelle sorriso.--Ha dias, depois de uma scena dolorosa para
todos nós, quando saía do Mosteiro subjugado por uma mysteriosa e cruel
fatalidade, encontrou alguem no limiar da porta, que lhe pediu que não
partisse sem se despedir... de quem através de tudo, o acreditaria
innocente. E para esta pessoa não houve uma só palavra na carta de
despedida que mandou a meu irmão! E escreveu-a sobre o tumulo de minha
mãe!

Estas palavras fôram ditas com tão sentida commoção, que Augusto esteve
quasi a lançar-se-lhe aos pés, para pedir perdão; reteve-se, porém, e
respondeu turbamente:

--Porém, minha senhora, por essa occasião eu jurei tambem á pessoa de
quem fala, e a quem serei sempre grato, que não procuraria tornar a
vêl-a, nem falar-lhe antes de me poder mostrar aos olhos de todos digno
da sua generosa confiança.

--Foi isso que jurou, ou antes que não procuraria ser visto?--perguntou
Magdalena, sorrindo.--Veja qual d'esses juramentos será mais em harmonia
com os seus actos.

A lembrança da excursão nocturna aos Cannaviaes, para espiar Magdalena,
tirou a Augusto o animo de responder.

Magdalena comprehendeu aquelle embaraço, e não insistiu.

--Mas supponhamos que assim foi; visto isso, parte para buscar as provas
da sua justificação?

--Não, minha senhora, parto, porque desisto d'ella. Basta-me estar
justificado para com a consciencia.

--Não tem direito para o fazer. Uma alma, que é nobre, deve homenagem a
si propria. Resignar-se á suspeita, é como um suicidio moral.

--Justamente, minha senhora; e não concebe que haja casos em que o
suicidio seja natural?

--Meu Deus, Augusto--exclamou Angelo--como eu o estranho! o que o levou
a esse desespero?

A morgadinha sorria, ao responder ao irmão:

--É uma febre que passa, verás. Quer que lhe fale com franqueza, sr.
Augusto? Tenho um secreto presentimento a dizer-me que, apesar d'essa
descrença, apesar d'essa carta, e apesar de estar por minutos o momento
da partida, não só não partirá, mas até ha de tomar parte na nossa
primeira festa de familia, a do proximo casamento de Christina.

Estas ultimas palavras fizeram impressão em Augusto, que
instinctivamente repetiu:

--Do proximo casamento de Christina?!

--Pois não sabia que Christina vae casar?-perguntou Magdalena com a
maior naturalidade, mas fitando os olhos em Augusto.--É verdade, o sr.
Henrique de Souzellas teve pressa de legitimar o titulo de primos, com
que arbitrariamente nos tratavamos.

Augusto olhou para Magdalena, com indefinivel expressão, dizendo:

--Quê?... pois é com Christina... pois Henrique vae casar com...

Só depois de lhe romperem dos labios estas palavras, é que, reconhecendo
a indiscreção da sua surpresa, accrescentou com mal simulada
indifferença:

--Ah! não sabia!

--Devéras? Pois não tinha ouvido falar d'este casamento? Oh... querem
vêr que suppunha tambem que era eu a que me casava?... Digo isto, porque
o Cancella tambem estava na mesma crença. Parece que correu essa voz na
aldeia. Estes boatos!... E acham logo quem se fie n'elles!

E, mudando de inflexão, proseguiu:

--São dois noivos exemplares, Henrique e Christina, perdidos um por o
outro. Christina, com a sua timidez, exerce um forte imperio sobre
aquelle incorrigivel da capital. Mas para isso foi preciso encontral-o
doente. Tenho orgulho de ser eu a primeira a legitimar, de alguma
maneira, aquella sympathia. Fôram singulares as circumstancias em que
isto se effectuou. Eu lhe conto. Foi de noite, e noite de chuva, na
capella-mór da minha propriedade dos Cannaviaes, onde Christina fôra
rezar, pela saude de Henrique, as estações da meia noite; onde Henrique
foi para seguir e observar Christina, e onde eu fui, com a Brizida, para
os vigiar a ambos e preparar-lhes o futuro; intervenção algum tanto
perigosa, porque podia haver quem me seguisse a mim com menos generosas
intenções de que as de qualquer dos tres, e que, ao vêr-me em tão
extraordinario sitio, a taes horas, não me concedesse a confiança
precisa para acreditar, através de tudo, na minha innocencia.

A allusão era clara, e mais clara a fazia a inflexão com que foi
pronunciada.

Augusto curvou a cabeça e murmurou:

--Tem razão, algum miseravel.

--Ou algum infeliz--corrigiu delicadamente Magdalena.--Os infelizes são
tambem sujeitos a perderem a fé. Mas quem lhes pode levar a mal isso?

Houve alguns instantes de silencio, no fim dos quaes a morgadinha disse
mais jovialmente:

--Mas afiancei ha pouco que não partiria. Acaso me enganei?

Augusto, como o leitor concebe decerto, já não tinha animo nem razão
para dizer que partia. Calou-se.

Angelo, a cuja prompta intelligencia não tinha ficado latente o
verdadeiro sentido d'este dialogo, graças tambem ao conhecimento que
elle tinha, havia muito, do coração de sua irmã e do de Augusto,
respondeu por elle:

--Não te enganaste, não, Lena. Tambem eu já digo que Augusto não
partirá.

E Augusto sem protestar!

Magdalena tornou-se de subito mais séria e grave do que até alli, e a
mesma gravidade tinha na voz, quando de novo se dirigiu ao irmão,
dizendo:

--Para vir aqui, pedi o auxilio do teu braço de creanca, Angelo, como se
fôra o de um homem. Deixa-me considerar-te por mais algum tempo ainda da
mesma maneira, emquanto não termino a minha missão. Ha pouco, depois que
me leste a carta, que a ti tinha sido dirigida, perguntaste-me: «Que
tencionas fazer?» Não é assim?

--Foi, e tu respondeste-me o que eu esperava. Pediste-me que te
acompanhasse aqui.

--Has de já ter percebido que o pensamento que me obrigou a este passo,
que não sei se me deverão censurar, creio até que devem, que esse
pensamento não está cumprido ainda.

--Vejo que não.

--Pois é deante de ti, Angelo, que considero como um homem, como um bom
conselheiro, é deante de ti, como seria deante de quem quer que ahi
estivesse em teu logar a ouvir-me, que eu vou concluir o meu pensamento.

E voltando-se para Augusto, Magdalena accrescentou com firmeza, que só
um demasiado rubor trahiria, se a luz fôsse bastante para o denunciar:

--Augusto, está pobre, sem familia, sem amigos, e, para ultima provação,
até as traições e as suspeitas lhe não pouparam o nome honrado que
herdou. Essa posição dá-lhe direitos que eu sei comprehender, creia. É
uma especie de nobreza, de que se não pode exigir humilhação alguma. Por
isso, sem hesitar, com toda a lealdade, vim aqui em companhia de Angelo
para estender-lhe a mão e dizer-lhe que se, como tenho razão para crer,
as sympathias de uma alma que ha muito o comprehende, Augusto, se essas
sympathias podem bastar ás aspirações da sua, se, para ganhar coragem,
os meus affectos lhe podem servir, conte com o auxilio da minha alma...
e dos meus affectos. É deante de ti, que faço esta confissão, Angelo.
Terás que me ralhar por causa d'ella?

Ao ouvir aquellas palavras, Augusto esqueceu toda a hesitação, e tomando
entre as suas a mão que Magdalena lhe estendia, cobriu-a de beijos
apaixonados.

Magdalena não teve pressa de retiral-a.

Angelo veio tambem beijar as faces da irmã. Era assim que respondia á
pergunta d'ella.

Pobres creanças! Porque a final eram creanças todos tres, creanças a
quem ainda os romances namoram, sem que se lembrem de que, ao
transplantal-os para a vida real, todos os desconhecem e censuram, e só
regando-os de lagrimas é que as mais das vezes se consegue nutril-os.

O olhar de Augusto radiava já com o vivo fulgor da alegria.

--Obrigado, Magdalena, deu-me a vida com essas palavras generosas.
Deixe-me adoral-a, anjo, anjo libertador! Comprehendo os deveres que
tenho a cumprir. Hei de ter fôrça para conquistar as provas da minha
innocencia. Preciso agora d'ellas; hei de obtel-as, e depois...

Aqui reteve-se de subito, e uma nuvem de tristeza toldou-lhe de novo o
rosto.

Magdalena, como se o comprehendesse, concluiu:

--E depois sou eu quem tem o direito de exigir que não pare. Bem vê que,
depois do passo que dei, se algum escrupulo ou orgulho pesasse no seu
coração, Augusto, seria uma dolorosa offensa que me fazia. Acceitou a
mão, que eu com lealdade lhe offereci; a lealdade obriga-o agora a
seguir o caminho do Mosteiro.

Depois de alguns instantes de reflexão, Augusto respondeu outra vez com
firmeza:

--Tem razão, Magdalena. Terei coragem para cumprir o meu dever.

Escusado é dizer que o Herodes teve de partir só.

O bom homem ficou espantado ao encontrar em casa de Augusto tão
inesperada companhia, mas não lhe foi difficil, depois do que viu e
ouviu, conjecturar qual a natureza dos motivos que tinham feito mudar de
resolução o seu companheiro de jornada.

Partiu, desejando todas as felicidades aos seus amigos.

Estes não conseguiram dissuadil-o de partir.

Não havia já estimulo para arrancar aquelle coração ao desalento.

Magdalena e Angelo voltaram ao Mosteiro.

O resto da noite de Augusto passou sob a influencia de tão violentas
paixões, que desisto de descrevel-as.




XXXIII


Na manhã do dia seguinte estava toda a familia de Magdalena, na qual
incluimos já D. Dorothéa e Henrique, reunida em uma das salas do
Mosteiro.

As duas primas, Magdalena e Christina, trabalhavam em costura; Angelo e
Henrique jogavam o xadrez; D. Dorothéa e D. Victoria conversavam a
respeito do preço de umas meadas de linho, que esta tinha dado a córar,
e da pessima qualidade do fiado, effeito evidente, segundo D. Victoria,
das criadas que tinha, que nem para fiar serviam. O conselheiro
examinava distrahido varios memoriaes e cartas de empenho, que recebera,
já a pedir empregos e graças em paga dos serviços eleitoraes, ás vezes
hypotheticos.

A cada passo, porém, Magdalena suspendia o trabalho, para olhar para a
porta da sala, principalmente quando nos immediatos aposentos se
escutava algum rumor; ou trocava olhares com Angelo, que não com menor
frequencia os desviava das pedras do taboleiro para encontrar os da
irmã.

Henrique tambem, de quando em quando, tinha que perguntar a Christina, e
esta, para lhe responder, julgava-se obrigada tambem a afastar os olhos
da costura.

D. Victoria e D. Dorothéa não era raro metterem-se na conversa dos
outros, d'onde facil transição achavam logo para voltarem aos seus
assumptos favoritos: meadas e criados.

O conselheiro interrompia a cada momento a leitura com bocejos, ou fazia
notar alguma mais exorbitante pretensão de tantas que examinava.

Era evidente que todas aquellas cabeças estavam pouco preoccupadas com
os assumptos apparentes das suas cogitações.

--Ó Lena!--dizia Christina, que pela terceira vez chamava a prima, sem
conseguir ser ouvida--que tens tu esta manhã? Que distracções são essas,
que não respondes quando te chamam?

--Pois falaste-me?

--É o que eu digo! Ó menina, ha que seculos te estou eu a perguntar em
que tempo é que as laranjeiras teem flor?

--Ah! Christe!--acudiu o conselheiro do lado, sorrindo.--Esse pensamento
é linguareiro; ficamos todos sabendo aquillo em que tens estado a
scismar.

Christina córou intensamente, ao perceber o sentido das palavras do
conselheiro, e tentou defender-se, dizendo:

--Ora, não era isso, tio. Eu perguntava, porque...

--Socega, quando o véo estiver prompto, a laranjeira não nos faltará com
ramos e flores.

--Não, mano--disse D. Victoria--olhe que se não trata de vêr o que é que
está dando nas laranjeiras, dentro em pouco não ha uma só na quinta. Que
tambem para serem comidas as laranjas pelos criados... Porque quasi que
são só para elles. Não que não faz ideia!...

E continuou com D. Dorothéa a narração dos abusos de que os criados eram
culpados.

D'ahi a momentos foi o conselheiro o primeiro a falar.

--Esta é galante!--disse elle, examinando uns papeis e rindo.--Ora ouça
isto, Henrique. Aqui está um homem que deseja que eu lhe empregue nada
menos do que sete sobrinhos que tem. Sete! É uma geração como a de
Jacob; se estivessemos na côrte de Pharaó!...

--Se se satisfizessem cada um com uma pasta?... Era um ministerio
completo--disse Henrique.

--Oh! oh!--disse o conselheiro, passados alguns momentos.--Cá está o meu
amigo Pertunhas, teimando com o logar de recebedor.

--Pois o maroto ainda se atreve?

--E que despeza de estylo que faz! É uma ode congratulatoria em prosa.

N'estas entremeadas conversas e dialogos curtos e interrompidos
passou-se o tempo até a chegada do correio, successo que marca época
n'uma manhã passada na aldeia.

N'aquelle dia sobretudo eram esperadas com ancia as cartas e os
periodicos, que deviam trazer noticias do resultado das eleições dos
differentes circulos do paiz.

O conselheiro já por tres vezes consultára o relogio, extranhando que o
correio se demorasse.

Emfim, chegou. O conselheiro poz de lado os memoriaes e requerimentos;
Henrique deu subito desfecho ao jôgo com um lanço absurdo, e ambos se
precipitaram sobre os periodicos e cartas; Angelo veio encostar-se ao
espaldar da cadeira de Henrique.

O conselheiro principiou por ler uma carta.

Henrique rompeu a cinta do primeiro periodico.

--Oh! oh!--disse o conselheiro, logo ás primeiras linhas que leu.--Temos
crise ministerial. As eleições fôram pouco favoraveis ao governo;
perderam-se em quasi toda a parte!

--Assim tambem se deprehende do estylo em que vem escripto este artigo
de fundo--disse Henrique.

--Dizem-me n'esta carta que já se fala em que o ministerio vae pedir a
sua demissão.

--Este artigo allude apenas a uma reconstrucção do gabinete.

-«O governo--proseguiu o conselheiro, lendo,--nem espera pela
constituição da camara e cáe por estes dias, infallivelmente. Quando
vossê receber esta, já talvez elle pertença aos livros findos.»

--«Diz-se que ha para esta noite conselho de ministros para resolver
sobre qual o seu procedimento, visto a indole provavel na futura
camara»--lia Henrique no periodico, que logo em seguida pôz de lado,
para consultar outro.

--«Não imagina--continuava o conselheiro, lendo a carta--o movimento de
ambições que vae já por aqui». Ora se não imagino!

--Um numero do _Suffragio Nacional_!--exclamou Henrique, abrindo segundo
periodico.--Provavelmente é alguma amabilidade que lhe dirigem, sr.
conselheiro; elles que lh'o mandam!

--Sim, decerto. Como da outra vez. Veja lá,--disse o conselheiro,
sorrindo--aos moribundos tudo se perdôa.

Henrique correu a vista pela folha, para saber o que motivára a remessa
d'ella para o Mosteiro, onde não costumava vir.

--Ah! temos correspondencia cá da terra!--exclamou por fim.

--Deve ser isso. Já tardava. É communicado do Seabra. Leia, que são
curiosos. O homem a apreciar as eleições de domingo deve ser soberbo.
Isso não se pode perder. Leia, leia.

--Assigna-se _um eleitor indignado_.

--Justo. É o estylo do homem. Vamos lá a vêr isso.

Henrique principiou a ler em voz alta o communicado do brazileiro.

A peça litteraria, de precioso lavor, em que o sr. Seabra contava ao
mundo os factos eleitoraes da sua terra, muito desejaria eu
transcrevel-a aqui, se, pela sua extensão, não tomasse demasiado espaço,
e se, pela sua unidade e estreita ligação logica, se não subtrahisse á
menor tentativa de fragmentação.

Aquelle communicado era indivisivel.

Apesar d'esta forçada omissão, espero que os leitores farão a justiça de
suppôr o escripto digno do distincto economista, que ouvimos discursar
com tanta proficiencia na taberna do Canada.

O homem escrevia recheado de indignação pela serie de illegalidades,
escandalos, subornos e pressões de todo o genero, de que, dizia elle,
fôra theatro aquella pacifica aldeia do Minho.

Em _linguagem chã e rude_ ia tornar patente, accrescentava, aos olhos de
todos uma _pestifera chaga do organismo social_. _Sophismára-se a urna e
calcára-se aos pés a Carta_. As phrases em italico são d'elle. Depois de
um exordio por esta afinação, em que fazia a conveniente razão de ordem,
entrava o homem na materia. Era um modêlo de impertinente bisbilhotice o
escripto; desfiava-se alli a vida de todos os eleitores com uma
minuciosidade esmagadora.

Contava-se como o compadre de Fulano dissera isto e aquillo ao sobrinho
de Sicrano, e como tal individuo fizera e acontecera; e como tal disse
que havia de fazer, e não fez; e como aquelle nem disse nem fez; e como
aquell'outro dissera e fizera, e assim por deante. Um dos mais
maltratados era o sr. Joãozinho das Perdizes. Dizia o auctor da
correspondencia que o morgado se tinha vendido por vinho; que exercera
pressão sobre os eleitores da sua freguezia; que era homem de pessimos
costumes e moral depravada; jogador, bulhento, beberrão cheio de
dividas, amigo de malfeitores, _et coetera_.

O conselheiro e Henrique seguiam a leitura com gargalhadas.

O communicado passava depois a occupar-se com o mestre Pertunhas.

O brazileiro não lhe perdoára a pressa com que este celebrára a victoria
do conselheiro, á frente da philarmonica que regia.

Por vingança chamava-lhe todos os nomes injuriosos, que a raiva lhe
suggeria, inclusivé o de estafador de trompa, e fechava por estas
memoraveis palavras:

«Para levar á evidencia o caracter infame e intriguista d'este
sevandija, basta que diga que foi elle que, poucos dias antes, subtrahiu
de uma pasta aquella celebre carta politica, que tanto deu que falar no
paiz. E este homem exerce o cargo de administrador do correio. _Proh
pudor!_»

Como o leitor imagina, esta parte da correspondencia produziu sensação
no auditorio.

Logo que Henrique concluiu a leitura, saiu de quasi todas as bôcas uma
exclamação de surpresa ou de alegria.

--Como é?... como é?...--perguntou o conselheiro.--Diz que...?

--É o mysterio que se explica--respondeu Henrique.--A traição
encarrega-se de a si propria se desmascarar.

--Então foi o Pertunhas?!... Mas... diz-se que tirou a carta de uma
pasta!

--Era a de Augusto.

--Mas como estava ella ahi?

--Lá isso sei eu como foi,--disse D. Victoria--fui eu que, por engano,
lh'a tinha dado junta com outras para elle escolher alguma para a
leitura dos pequenos.

Christina celebrou a descoberta, beijando com effusão a morgadinha, e
dizia:

--Venceste, Lena! agora está bem provada a innocencia d'elle, até para
os que mais duvidavam!

--E quem não duvidaria?--acudiu o conselheiro, como para se desculpar da
desconfiança.

--Quem o conhecesse bem, meu pae--respondeu Magdalena, a quem a commoção
recebida dava animação ao olhar e ao semblante.--Eu e Angelo, por
exemplo.

--E então eu?--accrescentou Christina.--Eu não entro na conta?

Esta reclamação valeu-lhe da parte da prima a paga do beijo que
recebera.

--Olhem o pobre rapaz!--dizia D. Victoria, sinceramente consternada.--E
eu que o tratei tão mal! Bem me dizia elle: «Não tenha pressa de dizer
nada a seus filhos, minha senhora, não lhes ensine a duvidar de um homem
que elles se costumaram a amar e a respeitar.» E o caso é que eu, desde
que lhe ouvi dizer aquillo, de um modo tão sério e triste, fiquei
resentida, e não disse nada ás creanças, que todos os dias me
perguntavam ainda por elle.

--Mas...--dizia D. Dorothéa, deveras embaraçada--eu não sei ainda bem do
que se trata. Pois suspeitavam de Augusto?... Mas o quê?...

--Ó tia Dorothéa--atalhou Henrique--por quem é, não insista na pergunta.
Depois que se sabe que uma suspeita é falsa, não ha nada que mais
escalde os labios do que obrigal-a de novo a passar por elles.

--Tens razão, menino. E que precisão tenho eu de saber uma coisa que não
é verdadeira? Mas na verdade! Suspeitaram de Augusto! Ah! Henrique,
está-me a parecer que tambem tu tens esse peccado a pesar-te na
consciencia. Ora anda lá.

--Não, tia. Ha muito que lhe faço justiça. Ao principio não digo que
não. Mas durou pouco tempo e já estava arrependido. Augusto convenceu-me
pela maneira com que me falou, convenceu-me sem provas: e até se, em
expiação, me não puz em campo a auxilial-o a justificar-se, é porque
elle exigiu que me abstivesse d'isso, e depois, o meu desastre... quero
dizer--emendou, olhando para Christina--a felicidade que me procurou sob
a fórma de doença...

Christina pagou-lhe com um sorriso o galanteio.

O conselheiro, que ficára pensativo depois das primeiras reflexões que
lhe ouvimos fazer, disse, suspirando:

--Estou sentindo verdadeiros remorsos pelo mal que por certo causei
áquelle rapaz com as minhas suspeitas. Mas que havia eu de fazer? As
apparencias eram-lhe contrarias!... E depois, n'esta vida de politica,
apprende-se tanto e tão depressa a duvidar! É sorte minha! Homens, a
quem eu estimava devéras, fôram exactamente os que mais fiz padecer!
Senão, vejam: o herbanario, meu companheiro de infancia, e que sempre me
teve amizade, apesar das apparencias rudes de que a revestia,
dispuzeram-se as coisas de modo que o privei da casa em que nasceu e
talvez lhe apressasse com isso a morte... E elle, coitado, vingou-se
nobremente; mas vingou-se, porque nunca mais me sairá da ideia aquella
scena da igreja. Augusto, um rapaz que conheci pequeno, e já então de
viva intelligencia e de sentimentos nobres... pois tudo se conspirou
para o perder, e não só o privei do modesto logar que elle exercia, mas
até levantei contra elle uma accusação infamante, e quasi o expulsei de
minha casa... É triste que a vida politica me tenha obrigado a estas
crueldades! Preciso de compensar de alguma sorte o mal que fiz. De que
maneira lhes parece melhor?

--Eu se fôsse--disse D. Dorothéa--fazia como a morgada, e o rapaz, em
vez de vir a ser só padre havia de se formar em Coimbra, como o reitor
de Friande...

--Isso era se elle quizesse ser padre;--acudiu D. Victoria--mas
parece-me que não quer. Nada, nada, eu o que fazia era demittir aquelle
velhaco do Pertunhas, e dava a este o logar de mestre de latim, e
arranjava que ficasse tambem com o correio. Ora anda, já que o outro foi
tratante!...

O conselheiro sorriu ao expediente da cunhada, e não pôde deixar de
dizer:

--N'esse caso deixava só ao Pertunhas a regencia da philarmonica? E tu,
Lena, qual é a tua opinião?

Magdalena respondeu sem vacillar:

--A minha opinião é que o pae deve ir a casa de Augusto, pedir-lhe
humildemente perdão pela offensa que lhe fez.

--Mas involuntaria--ponderou o conselheiro, em tom de despeito, que não
pôde bem disfarçar.

--Mas offensa--repetiu Magdalena, sem que o sorriso dissipasse
totalmente a fôrça da expressão.

--É um pouco dura de cumprir a sentença, sobretudo esse adverbio
humildemente... Não lhe parece?--perguntou o conselheiro, voltando-se
para Henrique.

--Eu tinha vontade de dizer tambem a minha opinião--respondeu
Henrique;--mas receio certos melindres... Comtudo, parece-me que
encontraria uma recompensa, que poderia fazer esquecer a Augusto a
offensa e dores muito mais pungentes do que as que soffreu em virtude
d'esta desagradavel occorrencia.

--Qual é?--perguntou o conselheiro.

Henrique olhou para Magdalena, respondendo:

--Repito que tenho escrupulos em dizêl-o, porque talvez não seja eu o
mais competente para o fazer.

--Tem razão, primo--disse Magdalena.--Elle proprio o dirá. É mais
natural.

--Mas sábel-o tambem tu, Lena?

--Sei.

--Então dize-nol-o. Melhor para mim, se puder prevenir desejos.

Magdalena hesitou.

--Vamos, Henrique--disse Cristina, sorrindo--não esteja com tantos
escrupulos. Diga o que pensa.

--Pois quer? mas se sua prima me não perdôa?

--Eu o protegerei. Fale.

--Então, Christe?--tornou Magdalena.

--Bem; n'esse caso... Visto que m'o ordena quem pode.

--Fale, fale--disseram a um tempo o conselheiro, D. Victoria e D.
Dorothéa.

--Falarei. A recompensa a que Augusto aspira é a de fazer parte da
familia de... da nossa familia--respondeu Henrique, olhando para
Magdalena, que já não tentava retêl-o.

--De fazer parte da nossa familia?--repetiu o conselheiro.--Mas como?

--Como ha de ser? visto eu não estar resolvido a prescindir de
Christina, e Marianna ser ainda creança, facil é de conjecturar o unico
meio que ainda resta de realisar aquella pretensão.

O conselheiro comprehendeu a final, e fitando Magdalena poz-se a rir,
dizendo:

--Pobre rapaz! Pois metteu-se-lhe isso na cabeça?

--Mas que é a final? eu não entendo--dizia, embaraçada, D. Victoria.

--É uma coisa muito simples--respondeu Henrique.--Augusto sentiu o
effeito dos encantos da minha prima Magdalena, mas sentiu-os a ponto de
ligar a elles a sua felicidade, e de cair em adoração para com a
magnetisadora.

Esta explicação foi recebida com espanto por D. Victoria.

--Ora! está a brincar, primo Henrique? Não ouve aquillo, prima Dorothéa?

--Mas que é, que é?--perguntou esta.

-Diz que o Augusto aspirava...

--Perdão, eu disse que o Augusto adorava e não aspirava. Quem pode tomar
contas a um coração do culto que elle guarda religiosamente em si? A
prima Lena é adorada por aquelle rapaz, isso affirmo eu, porém...

--É possivel!--exclamou tambem D. Dorothéa, espantada.--Por essa não
esperava eu. Olhem para o que lhe havia de dar! Pobre Augusto!

O conselheiro ria ainda da noticia que recebera.

Magdalena córou ao ouvir todas aquellas exclamações de estranheza.
Cedendo ao impulso energico do seu caracter impetuoso e apaixonado,
disse com vivacidade:

--Não sei que haja no que diz o primo Henrique nada que mereça esses
espantos. Pois quem sou eu a final? Que distancia me separa da
humanidade, para que se tenha por um desacato uma affeição que inspire?
É verdade. Julgo que não se enganou o primo Henrique. Tambem eu descobri
esse affecto em Augusto. Nasceu-lhe no coração e não na cabeça, meu pae.
Ha muito que o sei, e nunca a descoberta me causou o espanto que vejo
nos outros. Digo mais, causou-me orgulho. Orgulho, sim, porque é natural
sentil-o por ter inspirado sentimentos d'aquella ordem a um caracter
generoso que, experimentado pelo infortunio, saiu sempre da prova mais
nobre e mais puro do que d'antes.

O conselheiro, que ouvira a filha com impaciencia, acudiu, em tom
profundamente irritado:

--Bem, bem, deixemo-nos de loucuras e de poesias, Lena. Vê lá se me
queres fazer acreditar que a vida da aldeia te estragou o natural bom
senso, até o ponto de tomares a sério phantasias e creancices.

--Não é phantasia nem creancice, é uma resolução de mulher--respondeu
Magdalena, com firmeza.

--Uma resolução de creança, que está na minha mão remediar--tornou o
conselheiro, como quem desejava cortar o incidente.

Porém para o génio de Magdalena já não era possivel recuar nem parar;
replicou:

--Talvez não. E deixe-me então dizer-lhe tudo, meu pae. Augusto nunca me
revelou esse segredo do seu coração. Adivinhei-lh'o eu. Longe de
procurar ser entendido, occultava-se e fugia; ainda hontem estava
resolvido a deixar a aldeia para sempre.

--Mas ficou--notou o conselheiro com ironia.

--Ficou--respondeu tranquillamente Magdalena--porque eu lhe pedi que
ficasse.

O conselheiro, ouvindo estas palavras, estremeceu de surpresa e fitou a
filha com olhar severo e interrogador.

A morgadinha proseguiu com uma serenidade, que occultava um esfôrço
interior:

--Ficou, porque eu lhe disse que o havia comprehendido e que acceitava a
affeição desinteressada e pura que elle guardava no coração; ficou,
porque eu, que só tarde soube do desespero que o obrigava a partir, e
que o sabia tão leal como pobre, tão innocente como perseguido pelo
infortunio, eu, que o vi quasi expulsar d'esta casa, sob o pêso de uma
accusação em cuja verdade nunca pude acreditar, julguei do meu dever ir
eu propria procural-o para lhe estender a mão e dizer-lhe: «fique, e
prometto-lhe que todos lhe farão justiça em breve.»

Quando Magdalena acabou de dizer estas palavras com firmeza e exaltação
crescentes, ninguem ousou falar na sala; e os olhos de todos
dirigiram-se quasi instinctivamente para o conselheiro.

Christina tremia; as outras senhoras pasmavam: Henrique e Angelo
sentiram-se profundamente inquietos.

Todos viram passar por differentes côres as faces do conselheiro, os
labios agitaram-se n'um tremor convulso, e com a voz evidentemente
alterada pela cólera, disse para a filha, passados alguns instantes:

--Pois, saiba, senhora, que para as leviandades de uma rapariga
estouvada, ha meios mais racionaes do que esses que parecem
naturalissimos á sua razão estragada pelos romances. Eu ainda não
prescindi da minha auctoridade paterna, e ella me servirá para corrigir
essas levezas, de que deveria envergonhar-se.

Esta scena de familia augmentava cada vez mais a difficuldade da posição
de todos os que estavam presentes. Ninguem ousava intervir, ou,
desejando-o, ninguem sabia a maneira de o fazer.

Entre as falsas situações, em que nos achamos ás vezes n'esta vida,
poucas se podem comparar no incómmodo que produzem, á de assistir a uma
questão domestica, por qualquer motivo que seja originada.

Quem se conservou d'aquella vez menos inactiva foi Christina, que
prendeu Lena nos braços, não sei se para instinctivamente a defender, se
para reprimir-lhe o impeto de reacção que receiava n'ella.

A morgadinha effectivamente repelliu-a com brandura de si e respondeu ao
pae:

--Ás vezes aos caracteres levianos estão confiadas tarefas generosas.
Cabe-lhes sanar muitas injustiças que por cálculo os mais reflectidos, e
por isso mais desconfiados, praticam sem piedade. Não me envergonho nem
arrependo do passo que dei. Não fiz mais do que salvar do desespêro uma
alma nobre e magnanima, que, se se perdesse, talvez um dia a sua
consciencia, senhor, o accusasse de não ser innocente n'essa perda. Quiz
evitar-lhe remorsos, meu pae. Se isto foi leviandade, que os annos m'a
não dissipem, como dizem que costumam fazer, porque prefiro ser leviana
assim, a ser cruel como...

O pae atalhou-a, e cada vez com mais vehemencia replicou:

--Pois siga, se quizer, a sua phantasia, senhora, mas terá de escolher
entre os seus caprichos e a minha approvação. Fique certa que, com o
consentimento meu, nunca um rapaz pobre, sem familia e sem posição,
especulará com o estouvamento de uma herdeira rica, que, tão esquecida
do que deve a si e aos seus, não hesitou em o procurar na propria casa,
sem reparar que estava sendo victima de uma comedia armada á sua credula
sensibilidade.

Antes do conselheiro concluir estas palavras estava alguem mais na sala.

Era Augusto.

Da sala proxima, onde chegára muito antes, ouvira elle o que o
conselheiro dizia em tom elevado, e o sentido das palavras que ouviu
venceu-lhe toda a hesitação e obrigou-o a entrar.

O conselheiro, reparando de subito n'elle, interrompeu-se e parou.

Augusto, respondeu-lhe então com dignidade e tristeza:

--Esse rapaz pobre, sem posição e sem familia, tem n'esse triplice
infortunio outros tantos titulos para ser respeitado dos felizes, como
v. ex.^a, e eu não prescindo d'esses direitos.

O conselheiro continuava silencioso, como hesitando no que devesse
responder a Augusto. A irritação dictava-lhe uma violenta resposta, mas
já lh'o não permittia a consciencia.

Augusto continuou:

--Sei que v. ex.^a está já convencido de que as suspeitas, que pesavam
sobre mim, eram injustas. N'esse periodico, que ainda tem na mão, veem
as provas da minha innocencia. Vi-o em casa do Seabra, d'onde venho
agora. Procurei-o, decidido a saber toda a verdade por qualquer preço
que fôsse; elle não m'a negou; contou-me tudo. Por isso, ao vir aqui,
sr. conselheiro, ao voltar a esta casa, onde era recebido como amigo,
antes que me expulsassem d'ella como infame, esperava encontrar a
receber-me a justiça e a amizade... Enganei-me; em vez d'ellas, foi o
insulto, mais pungente e menos justificado do que o primeiro, que eu
encontrei!

--Menos justificado?--repetiu o conselheiro, azedadamente.

--Menos justificado, sim, muito menos; porque v. ex.^a podia julgar-me
criminoso, pode julgar-se com direito de duvidar de mim, mas não tem o
de duvidar de sua filha; porque a sr.^a D. Magdalena pedindo a seu irmão
que a acompanhasse a casa de um pobre, que ella sabia ser victima de uma
immerecida accusação, e a quem o desalento e o desespêro faziam
succumbir, não se esqueceu do que devia a si e aos seus; pelo contrario,
aos seus devia aquelle acto de sublime generosidade, porque das mãos dos
seus viera o golpe que me ferira. Eu tinha sido expulso d'esta casa, sr.
conselheiro, como um miseravel e infame; os filhos de v. ex.^a, que
sempre fôram meus amigos, a quem v. ex.^a ensinára a sel-o, vieram á
minha dizer-me: «Não parta, deve á nossa confiança a justiça de ficar».

--É verdade--disse Angelo--eu acompanhei Magdalena. O pae diz-me muitas
vezes que não tenha pressa de principiar a duvidar; eu não podia
principiar por Augusto. Não duvidei.

O conselheiro respondeu a Augusto com reserva e mal disfarçado despeito,
ainda que em tom moderado:

--Sei que fui injusto comsigo, Augusto, e sinto-o do coração, creia.
Ainda que as apparencias o culpassem, arrependo-me de não ter tido mais
fôrça a minha confiança para não ceder. Peço-lhe por isso...
humildemente... perdão. Iria a sua casa pedir-lh'o se não viesse aqui.
Que mais quer? Acha-se com direitos a exigir mais? Será isso motivo para
antevêr realisadas loucuras de rapaz?...

Augusto não o deixou continuar.

--Ouça-me, sr. conselheiro--disse elle placidamente--deante de todas as
pessoas que me escutam, lealmente e sem hesitar, patentearei o meu
coração. É verdade que essas loucuras se apoderaram de mim, que desde
creança até hoje, tenho sido todo d'ellas; mas que importam aos outros,
se eu commigo as guardava? se nunca por ellas regulei os actos da minha
vida? Occorrencias imprevistas me arrancaram este segredo, que eu fiz
sempre por suffocar. Nem ambições me despertou, como meio de realisal-o,
porque nem eu realisal-o pensava. Resignar-me-hia a morrer com elle, sem
o revelar a ninguem; mas adivinhado por quem o fizera nascer, e,
deixe-se-me o orgulho de o dizer, adivinhado e correspondido, que muito
era que me tomasse a vertigem, e que eu por momentos me deixasse cegar
pelo fulgor de imprevistas esperanças? Perdôe-se-me a fraqueza. As
illusões duraram pouco; as palavras de v. ex.^a dissiparam-n'as... um
tanto cruelmente, mas em todo o caso acordei. Creia, sr. conselheiro,
que o ser pobre, sem familia e sem nome, impõe tambem uma certa ordem de
deveres, a que eu serei fiel. Não é o de humilhar-me, é o de manter a
unica dignidade que me resta, a dignidade moral. Já vê v. ex.^a que se
enganou de duas maneiras: nem da parte do rapaz pobre houve especulação,
nem da parte da herdeira rica estouvamento.

E, acabando de dizer estas palavras, Augusto inclinou-se respeitosamente
deante do conselheiro, e ia a sair, depois de lançar a Magdalena um
extremo olhar de despedida.

A morgadinha, porém, ergueu-se, e, apesar dos esforços de Christina para
a reter, veio collocar-se no caminho de Augusto, e estendendo-lhe a mão
disse:

--Não saia, Augusto. Em nome de meu pae lhe peço que não saia.

--Magdalena!--disse o conselheiro com severidade.

--Sim, em seu nome, senhor; porque quero livrar-lhe o futuro de
remorsos; sim, em seu nome, porque hei de fazer-lhe ouvir a voz do
coração, que tantas vezes desattende, arrependendo-se amargamente
depois.

--Magdalena!--repetiu o conselheiro com mais fôrça.

--Minha senhora! disse Augusto.

Porém a morgadinha obedecia agora inteiramente á vehemencia do caracter
apaixonado.

--Sinceramente revelei ha pouco os sentimentos do meu coração; todos me
ouviram; todos ouviram agora Augusto. Fale, senhor, com a mesma
franqueza e lealdade, com que nós o fazemos; poderá confessar a natureza
dos escrupulos que o obrigam a essa resistencia? Não se envergonharia
d'elles? E quer que lhe obedeça! mas obedecer-lhe seria offendel-o,
porque seria acreditar na constancia d'essa má paixão que o domina, e no
seu bom coração não pode ella durar muito tempo.

O conselheiro, no auge da irritação, ia talvez a responder
violentamente. Christina e Angelo tinham-se approximado de Magdalena; as
outras senhoras principiavam a ensaiar em surdina as primeiras
tentativas conciliadoras; Henrique meditava um plano de intervenção, que
elle suppunha já indispensavel, quando um incidente veio interromper
esta scena e modificar a feição critica do caso.

O incidente foi a chegada de um criado de farda, pertencente ao serviço
de um proprietario da villa proxima. Este criado era portador de uma
mensagem para o conselheiro.

O velho Torquato tinha adormecido na sala immediata; o lacaio
dispensou-se de o acordar, e guiou-se pelo som das vozes para chegar á
presença do conselheiro.

A chegada do lacaio acalmou a tempestade domestica, que principiava a
carregar-se.

O conselheiro, conhecendo-o, interrogou-o sobre o fim d'aquella visita.

O criado respondeu:

--Venho para entregar a v. ex.^a esta parte telegraphica, que chegou a
meu amo logo depois que tinham partido as malas do correio, de maneira
que não pôde mandal-a com ellas.

O conselheiro, agitado ainda, pegou no papel, que o mensageiro lhe deu,
e correu-o com a vista.

Immediatamente um raio de alegria lhe fuzilou nos olhos.

Acabando de ler, disse ao criado, que esperava resposta:

--Dize a teu amo que recebi, e que pode responder que sim.

O criado saiu.

N'este meio tempo as senhoras e Christina rodeavam Magdalena e
combinavam um projecto de harmonia domestica; Angelo e Henrique
desempenhavam-se junto de Augusto de quasi identica tarefa.

O conselheiro estendeu a Henrique a parte telegraphica, emquanto que uma
visivel satisfação se lhe desenhára no semblante.

--Leia e admire--disse elle.

Henrique leu, e não reteve uma exclamação de surpresa.

A parte dizia:

«Avise o conselheiro Manuel Bernardo para quanto antes se apresentar em
Lisboa. Estou encarregado de organisar ministerio e quero que elle
acceite uma das pastas.»

Assignava-a um dos mais notaveis vultos politicos do paiz.

Henrique, que sabia o valor de certas opportunidades, e a quem a
surpresa da noticia não fez esquecer a crise domestica a que assistira,
disse, logo que acabou de ler, e dirigindo-se a Magdalena:

--Prima Magdalena, compete-lhe ser a primeira a dar ao novo ministro os
emboras pela sua nomeação.

A palavra «ministro» produziu sensação na sala. D. Victoria exclamou:

--Ministro! Pois quem é que está ministro? O mano?... Ora, sim senhor!
acertou sua magestade!...

--Mas... valha-nos Deus! O ponto está que não façam por ahi alguma
revolução para o deitar abaixo--acudiu D. Dorothéa, em cujo animo os
factos das nossas dissenções civis tinham deixado sinistras ideias
ligadas á palavra ministro.

Magdalena, Angelo e Christina correram a abraçar o conselheiro; Henrique
reteve, porém, os dois ultimos dizendo:

--Primeiro Lena. Talvez tenha a pedir alguma mercê a s. ex.^a, e á
primeira não ha caracter de ministro que não ceda.

O conselheiro sorriu já.

Magdalena beijou-lhe a mão, e o pranto, provocado pela violencia das
scenas anteriores, e até alli a custo reprimido, rebentou agora
abundante, banhando as mãos do pae.

Henrique afastou-se a conversar com Augusto, para o não deixar sair da
sala.

O coração do conselheiro não era de pedra. Duas causas poderosissimas
conspiravam-se para abrandal-o. Como homem politico, havia a satisfação
da maxima ambição de todos, a noticia de ser chamado ao ministerio. Nos
momentos em que vemos satisfazer-se qualquer ardente desejo do nosso
coração, abrimo-nos ás sympathias para com os desejos dos outros; se de
nós depende realisal-os, cedemos de boa vontade. Como pae, havia as
lagrimas da filha a convencel-o, e a eloquencia d'este argumento das
lagrimas em olhos de mulher, é geralmente sabida: quanto mais se a
mulher é joven e bella! quanto mais se a mulher é filha!

Sem o menor vestigio da irritação anterior, o conselheiro ergueu
Magdalena, apertou-a ao seio e disse-lhe meigamente:

--Por que choras tu, Lena? Creança! Então promettes-me ser muito feliz,
se eu te deixar fazer as tuas loucuras?

Magdalena respondeu-lhe, abraçando-o affectuosamente, e beijando-o.

Ha argumento mais convincente do que este? Conhecem arma mais poderosa
contra as severidades de um pae?

O conselheiro beijou tambem paternalmente nas faces a filha, e
voltando-se depois para Augusto, disse-lhe, em tom de voz quasi
affectuoso:

--Augusto, vou confiar-lhe a minha felicidade, confiando-lhe a
felicidade da minha Lena. Vingue-se da injustiça e do mal que lhe fiz,
tornando-m'a venturosa. É a unica vingança á altura da sua alma.

Augusto não teve tempo para responder. Se uns restos de orgulho
tentassem luctar ainda com o amor, suffocal-os-hiam os esforços
combinados de Christina, de D. Victoria e de D. Dorothéa, que o
arrastaram quasi para junto do conselheiro.

E toda aquella familia, em que não havia n'aquelle momento um só coração
triste, confundiu-se por algum tempo no mais desordenado, pueril e
pathetico grupo, que pode desenhar um artista.

Para mais tocante confusão ainda, as creanças, que voltavam dos seus
brinquedos na quinta, entraram então na sala, e de boa vontade se
associaram áquella manifestação de alegria, sem querer saber o que a
motivára,

São assim as creanças. Alegres por instincto, saudam as scenas alegres
sempre que as vêem, sentem-as antes de as explicarem.

Fôram innumeraveis os beijos, os abraços, as palavras de affecto, os
sorrisos, as lagrimas, as exclamações pueris que se trocaram entre os
diversos actores d'esta scena de familia.

Chegado a este ponto da minha narração, nada melhor posso fazer do que
deixar á imaginação dos leitores concluil-a.

Haverá algum tão malfadado, que na sua vida não tenha visto representada
uma scena assim?

Esse mesmo, se existe, obriga-me a não proseguir.

O quadro que reproduzisse, exacerbar-lhe-hia o desconsolo da alma, de
que por certo é victima.

Paremos aqui, para que nos fique nos ouvidos este jovial rumor de
beijos, de risos e de vozes de alegria, porque, a prolongarmos mais a
narração, vêl-o-hiamos abafado pelos sons revolucionados e anarchicos da
philarmonica da terra, que não tardará a festejar a nomeação do
conselheiro, e sobretudo pelo estridor da tuba do mestre Pertunhas, tuba
verdadeiramente épica, e capaz de mudar a côr ao gesto, como a de que
fala o poeta.

Fechemos pois aqui a historia, dando apenas succinta conta dos
acontecimentos ulteriores.




CONCLUSÃO


O conselheiro partiu no dia seguinte para Lisboa, para tomar parte na
pilotagem da nau do Estado. Estive tentado a dizer, para satisfação de
animo dos meus leitores, que, sob a direcção dos talentos e aptidões do
novo estadista, se locupletou a fazenda publica, prosperou a agricultura
e a industria, refulgiram as artes e as lettras; e que Portugal, como a
Grecia, sob Pericles, causou o assombro das nações do mundo.

Mas receiei que, phantasiando no nosso paiz um governo fecundo e
prospero, a inverosimilhança do facto prejudicasse no espirito dos
leitores a dos outros episodios narrados, e, lhes entrasse com isto a
desconfiança no chronista. Resolvi pois ser franco, declarando que sob a
direcção do conselheiro e dos seus collegas, Portugal regeu-se, como se
tem regido sob as duzias de ministerios, que nós todos havemos já
conhecido.

O conselheiro, já ministro, voltou tempos depois á aldeia, para assistir
aos casamentos de Magdalena e de Christina, que se verificaram no mesmo
dia.

Christina e Henrique foram viver para Alvapenha, para condescender com
D. Dorothéa, que não podia resignar-se a viver só.

Sob a superintendencia do novo administrador, transformou-se
completamente a quinta, e é hoje uma das mais rendosas e bem geridas
propriedades d'aquelles sitios.

Henrique, o elegante do Chiado, o frequentador do Gremio e de S. Carlos,
está um rico e laborioso proprietario rural. Apaixonou-se pela
agricultura, e promette realisar o typo do antigo patriarcha.

Cumpriu-se a sua visão.

Das mil e uma molestias, com que saira de Lisboa, já nem memoria lhe
resta.

Christina, além de ser adorada pelo marido, vê-se rodeada pelo amor e
carinhos de D. Dorothéa e de Maria de Jesus, as quaes, sem o menor
despeito, a viram tomar o sceptro da realeza domestica, que usa com
adoravel brandura, desenvolvendo de dia para dia os seus talentos de
mulher.

No Mosteiro não correm peor as coisas, sob os cuidados de Augusto e de
Magdalena, que ahi ficaram, por exigencias de D. Victoria. Augusto, além
de se occupar de agricultura, alimenta a imaginação, já não a fazer
versos, mas em outra fórma de poesia: a organisar a escola sob bases
mais racionaes, e dotação mais fecunda; a generalisar e educar os
processos agricolas; a implantar industrias novas.

É assim que a sericultura, graças aos seus cuidados, é hoje alli
cultivada com bons resultados, e outras já principiam a ensaiar-se.

Magdalena é sempre a mulher que foi; se é que as nobres qualidades já
reveladas nos seus actos de juventude, não se vão caracterisando inda
melhor, á medida que de mais graves deveres se incumbe a sua missão de
mulher. Intelligencia temperada por um bom senso natural, que a educação
esmerada não estragou, como a tantas acontece, caracter apaixonado, mas
de trato affavel e insinuante, meiga sem indolencia, grave sem
severidade, acompanha-a o encanto que a todos prende, que não faz sentir
a ninguem o peso da obediencia.

É hoje quem tudo dirige no Mosteiro; querida pelos primos, querida por
D. Victoria, adorada pelo marido e abençoada pelo povo, que soccorre com
esmolas e conselhos, pode bem dizer-se que reina n'aquelles sitios.

D. Victoria resignou na sobrinha todos os encargos domesticos, salvo o
direito de ralhar com os criados, que ella sustenta serem os peores do
mundo; prompta sempre a intervir a favor de qualquer d'elles, quando
despedidos.

Em relação ás personagens secundarias d'esta historia pouco teremos a
dizer.

O brazileiro fez as pazes com o conselheiro, porque este, logo que
entrou para o ministerio, mandou lavrar o decreto em que se nomeava
visconde de não sei quê o seu antigo inimigo. Foi este o primeiro acto
politico do gabinete, que o paiz ingrato teve a sem-razão de não
applaudir.

O brazileiro, em paga, entrou com Augusto em competencia de
melhoramentos locaes, com grande proveito da aldeia.

O sr. Joãozinho, em vista d'esta fusão de partidos, achou-se encorporado
na liga, e em pouco tempo teve occasião de demonstrar de novo a sua
influencia eleitoral, trazendo compacta á urna a freguezia de Pinchões,
para reeleger o conselheiro que, pela sua nomeação, perdera o logar de
deputado. D'esta vez ninguem lh'o disputou, e era edificante vêr o
brazileiro ao lado do Tapadas, esquecidos antigos odios, votando de
commum accordo e de boa harmonia.

A reconciliação entre dois adversarios commove sempre a alma.

O sr. Joãozinho não mudou de habitos, e cada vez tem mais dividas, mais
cães e mais bebedeiras.

O Pertunhas foi perdoado, e continua imperturbavel nas suas funcções de
ensino e na commissão do correio, odiando os irmãos Virgilios e
desafogando as suas mágoas na embocadura da trompa.

O homem queixa-se de ter sido victima de uma vingança. Confessa que por
brincadeira tirára uma carta da pasta de Augusto, mas que a tornára a
collocar no seu logar e por isso...

A familia Zé P'reira vae em rapida decadencia; o homem já nem tem fôrça
para fazer resoar o zabumba. É esta uma das que mais deve á caridade de
Magdalena.

O conselheiro, ainda hoje no gôso imperturbado dos votos unanimes
d'aquelle circulo eleitoral, vem de quando em quando retemperar o animo
exhausto nas fadigas parlamentares e nas diversões da capital, no seio
da sua feliz familia, e volta melhor.

Angelo, logo que principiam as ferias dos seus estudos superiores, corre
com alvoroço de creança a gosar na aldeia os dias que elle já presente
terem de ser os mais felizes de toda a sua vida.

A quinta dos Cannaviaes, á qual andam ligadas suaves recordações dos
dois venturosos pares, que os incidentes d'esta historia reuniram, foi
transformada por Magdalena n'uma habitação de recreio, onde as duas
familias celebram, durante o anno, algumas festas em commum.

Estes melhoramentos vieram confirmar o titulo de que Magdalena havia
muito estava de posse.

E hoje é ella ainda entre a gente do povo conhecida pelo nome de
«Morgadinha dos Cannaviaes».


FIM DO SEGUNDO E ULTIMO VOLUME




Lista de erros corrigidos


Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


  +----------+---------------------+----------------------+
  |          |      Original       |      Correcção       |
  +----------+---------------------+----------------------+
  | Volume I |                     |                      |
  |#pág.  144| precipios           | precipicios          |
  |#pág.  162| se se sentem        | se sentem            |
  |#pág.  169| a seu seu vêr       | a seu vêr            |
  |#pág.  264| uma uma explicação  | uma explicação       |
  |          |                     |                      |
  | Volume II|                     |                      |
  |#pág.   27| glo['r]ia           | gloria               |
  |#pág.   68| examimal-a          | examinal-a           |
  |#pág.   95| encontrassse        | encontrasse          |
  |#pág.  148| coisapor            | coisa por            |
  |#pág.  200| ovialmente          | jovialmente          |
  |#pág.  215| fregrezia           | freguezia            |
  |#pág.  218| principalte         | principalmente       |
  |#pág.  248| saparámo-nos        | separámo-nos         |
  +----------+---------------------+----------------------+





End of Project Gutenberg's A Morgadinha dos Cannaviaes, by Júlio Dinis

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Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
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1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

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electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
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1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
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License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
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that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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