Contos Paraenses

By João Marques de Carvalho

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Title: Contos Paraenses

Author: João Marques de Carvalho

Release Date: October 27, 2009 [EBook #30341]

Language: Portuguese


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                          J. MARQUES DE CARVALHO

                                  CONTOS

                                 PARAENSES




                                   PARÁ

                        PINTO BARBOSA & C.--Editores
                               Rua 13 de Maio
                                   1889




Obras de Marques de Carvalho

VI

CONTOS PARAENSES




DO MESMO AUCTOR

    O SONHO DO MONARCHA,--poemeto, 1886, Opusculo

    LAVAS, poemeto, 1886, Opusculo

    PAULINO DE BRITO, perfil, com _fac-simile_ e retrato do biographado,
    1887, 1 vol.

    HORTENCIA,--romance naturalista, 1888, 1 vol.

    O LIVRO DE JUDITH,--versos e contos para creanças, 1889, 1 vol


    A PUBLICAR

    HISTORIAS D'AMOR,--contos, 1 vol.

    SOROR MARIA,--romance, 1 vol.

    THEODORICO MAGNO,--perfil, 1 vol.




J. MARQUES DE CARVALHO

CONTOS PARAENSES




PARÁ

PINTO BARBOSA & C.--Editores
Rua 13 de Maio
1889




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           Pará--Typ. dos Editores, rua 13 de Maio.--1889.
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A MEU IRMÂO

Antonio de Carvalho




AO EXM.º SR. COMMENDADOR

Domingos José Dias

Reconhecimento, Amizade, Veneração.




Alegria gauleza

    A José Veríssimo


Emquanto esperavamos o almoço,--aquelle almoço ás pressas encommendado
no mais que modesto _hotel_ do Pinheiro, fômos dar um passeio pela matta,
sob a sombra das grandes arvores copadas.

As senhoras haviam ficado na sala do _hotel_, aguçando o appetite no bom
cheiro de refogado, que lhes chegava da cosinha.

O meu companheiro de passeio era um velhote de 50 annos, grande rosto
quadrado, de longas suissas grisalhas em faces tostadas pelo sol da
America.

Travaramos conhecimento no pequeno tombadilho da lancha que da cidade
nos transportara ao Pinheiro.

Ainda não havia duas horas que nos conheciamos, e já grande
familiaridade se estabelecera entre nós,--essa familiaridade facil,
intima, passageira, das pessoas que viajam.

Estavamos ainda a bordo, e já o meu sympathico companheiro, sentado á
amurada, contara-me ser francez, ha muitos annos residente na provincia
do Pará, onde tencionava ficar até ao fim da vida.

Sentia-me cada vez mais impulsionado para aquelle sujeito cuja
existencia eu ignorava algumas horas antes, e que presentemente, por
motivos que eu não tratava de saber, tão vivamente me attraía a
curiosidade.

Quando saltamos para terra,--emquanto subiamos pela escada da
ponte,--convidei-o para almoçar comnosco, e elle acceitara rindo,--com
um riso bonachão de quem é dotado de alma simples, sem duplicidade.

Fôra elle quem me propuzéra aquella excursão á matta, para darmos tempo
a que o hoteleiro preparasse a refeição, que eu já prevía frugal e
triste, attendendo ás condições da terra em que nos achavamos.

Acceitei-lhe de boamente a proposta, com aquella vivacidade alegre de
quem vive mezes inteiros encadeiado ao cepo do trabalho quotidiano e
toma, de tempos a tempos, um bello dia para descançar um pouco, em a paz
d'uma povoação de arrabalde, refestelando-se preguiçosamente na relva
odorífera dos nossos grandes e soberbos mattagaes.

E fômos por ali fóra, seguindo um carreiro sinuoso, por baixo de
farfalhante cupula de ramos coloridos de um verde-escuro admiravel, cuja
uniformidade era quebrada pelo vermelho vivo, pelo amarello e pelo
branco das varias flôres sylvestres, cujas pétalas encolhiam-se um
pouco, meio-fanadas pelos raios do sol.

Um forte vento refrigerante e consolador vinha do norte, do lado por
onde a vista se perdia no infinito, após o rio que fugia para o mar. O
cheiro acre da marezia andava no espaço, casado ao perfume subtil e
excitante da baunilha, cujas compridas favas pendiam dos escuros e
velhos galhos d'aquellas arvores seculares. Pássaros voavam céleres,
n'um brando ruflar d'azas, soltando pequeninos gritos estrídulos e
alegres. De momento a momento, a curta distancia de nós, lagartos
cinzentos ou verdes fugiam assustados, fazendo estalar o folhedo sêcco
que juncava o sólo. E lá muito ao longe, no alto, sobre pedaços de ceu
de um azul deslavado, que nós entreviamos pelos interstícios das ramas,
urubús recortavam-se muito negros, muito pacificos e espalmados, nos
seus vôos arredondados, pairando como n'uma contemplação enamorada da
terra que os sustenta com suas putrefacções, com seus resíduos infames e
nojentos.

De repente, o meu companheiro disse-me:

--Sentemo'-nos aqui. O sr. ja deve estar cançado d'esta longa caminhada.

Não tinha a minima accentuação estrangeira; fallava como um verdadeiro
paraense.

Alongara-se por cima de uma camada de capim verde pouco espessa, de
bruços, com o pescoço estendido e o grande chapéu de palha do Chile a
descer-lhe para a nuca. Imitei-lhe o gesto, defronte d'elle.

Ficamos calados por alguns minutos.

Elle fitava o solo, com as narinas palpitantes, como sorvendo em longos
haustos sensuaes aquelle bom cheiro acre e sylvestre que a terra
exhalava.

Perguntei-lhe de repente, não achando outra coisa a dizer-lhe:

--O sr. é casado?

Fitou-me bem na menina dos olhos, com uma expressão investigadora de
quem deseja conhecer o fundo do pensamento de seu interlocutor. Depois
respondeu:

--Não... Fui... Agora estou novamente solteiro: sou viuvo.

--Ah!

--É verdade. Sou viuvo e tenho-me dado muito bem n'este novo estado de
quem vive sem as preoccupações do homem casado, que tem uma familia a
sustentar. Bem tolo é quem se casa...

Calou-se, a mirar-se outra vez nos meus olhos.

Um pequeno sorriso enigmatico frisava-lhe o labio superior, traçando nas
duas faces profundas rugas obliquas que, nascendo das azas do nariz,
partiam a perder-se nos longos fios grisalhos da parte inferior das
suissas.

Eu não comprehendia bem o que diziam aquellas palavras, assim
sublinhadas por similhante sorriso.

Elle pareceu-me haver adivinhado a minha duvida, porque disse,
apertando-me as costas da mão direita, como para chamar para si toda a
minha attenção:

--Está curioso, não? Quer talvez saber quem seja esta velha ave de
arribação que vive no seu paiz e que tanta alegria traz sempre no
coração, no rosto,--nos labios e no olhar? É uma historia muito longa a
minha, meu caro senhor. Sou muito franco: deseja ouvil-a? Não perderá
nada com isso; pelo contrario, creio aproveitará alguma coisa com a
moral que tirar das minhas palavras, depois de me dar toda a razão nos
actos que pratiquei. Logo que me ouvir, o sr. verificará que é muito
certo o rifão: _Tristezas não pagam dividas_, e adquirirá a certeza de
que, n'este mundo, o melhor meio de se gosar saúde e viver tranquillo, é
ter o coração calmo como a bonança e grande como a barriga do
dezembargador Delfino. Ora vire p'ra cá as oiças e preste attenção.

Sentei-me. Elle fez o mesmo e começou, sorrindo sempre:


--"Quando cheguei ao Brazil, trazia algumas dezenas de contos de réis,
herança de meu pae, morto quando eu era menino. Estabeleci-me, achando
logo um socio que possuia capital equivalente ao meu. Ganhamos rios de
dinheiro, que o meu socio conscienciosamente gastava, esbanjava com uma
hispanhola réles e velhaca de um hotel da cidade.

"Um bello dia fallimos,--por causa dessas extraordinarias despezas
capazes de desfalcarem os replectos cofres de um Crésus. Cuida que
apaixonei-me por isso, que fiquei triste, abatido, doente, desanimado,
sem vontade para continuar no trabalho honrado? Qual, meu amigo! O meu
espirito é refractario a tristezas,--o meu coração grande de mais para
fazer-se pequenino e mirrado por tão pouca cousa. Um ou dois contos de
réis que pude ganhar em certo negocio, após o naufragio a que fôra
conduzido pela doidice de meu socio, empreguei-os em comprar algumas
joias de ouro falso, em mercadorias de contrabando, e, com um volumoso
carregamento barato, segui para o rio Madeira, afim de explorar em meu
unico proveito a ingênua simplicidade dos seringueiros.

"Não me falharam os calculos: mezes depois voltei ao Pará, e adquiri
maior carregamento, que fui de novo impingir ás remotas regiões do alto
Madeira, onde os jacarés e onças respeitaram-me sempre a delicada
posição de inoffensivo estrangeiro, que carece de protecção, que não
deve ser offendido nunca em um paiz amigo!"

Calou-se. Em sua larga bôcca de expressão franca e descuidosa estava o
eterno sorriso zombeteiro, aquelle sorriso sympathico, que me attraía
para esse homem com toda a enorme força de um robusto affecto nascente.


Accendeu um charuto e continuou:

--"Para encurtar prolixidades: seis annos depois de nossa fallencia, eu
regressava definitivamente ao Pará, trazendo uma solida fortuna amoedada
em bons contos de réis palpaveis, em notas do Thesouro, no fundo da
mala. Tratei logo de cumprir as imposições de um dever: paguei a todos
os crédores da massa fallida, sem excepção de um só! Uma d'essas dividas
da firma era uma anquinha,--uma anquinha!--que meu socio havia comprado
para a sua Venus andaluza! Fiquei ainda com bastante dinheiro, com que
estabeleci-me pela segunda vez,--d'essa feita sem socio, para não mais
ser prejudicado por ninguem.

"Quiz a sorte que eu me apaixonasse por uma formosa rapariga
paraense,--farta carnação morenamente excitante e grandes quadris
arredondados, divinos,--filha de um subdelegado de policia. Casei-me com
ella alguns mezes depois de a ver. Não tinha educação, era estupida, mas
possuía a convicção da belleza nas fórmas, a imponencia da sensualidade
no olhar, e eu amava-a! Que me importava o resto?

"Dois annos vivi eu nos braços de uma felicidade illimitada. Luiza, a
minha captivante mulher adorada, de dia para dia ganhava um palmo em
minha infinita affeição serôdia, e cada vez mais revelava-me um
esplendido segredo de sua magnifica belleza de crioula! Era um delirio,
uma loucura dulcíssima e purificadora, aquelle amor que eu lhe votava
com toda a vibrante virilidade do meu corpo e da minha alma! A pequenina
casa em que viviamos era para mim uma Capua desejada, onde a minha
languidez encontrava tranquillo bem estar, nos braços da seductora
Luiza. O dia seguinte, que para muitos é um enigma atterrador,
apresentava-se-me franca e gostosamente como a fiel reproducção
inalteravel da vespera e do dia presente. Horas suavíssimas de um amor
intenso e bom, como fostes amadas pela piéguice da ingenuidade do meu
espirito!"

Calou-se ainda, com o rosto demudado em uma espiritualisação
prazenteira. Mas fitou-me, e logo o tal sorriso ironico volveu a
arregaçar-lhe a rubra ponta do labio grosso e varonil.

E proseguiu, após haver accendido o charuto que se apagara:


--Eu tinha inteira confiança em Luiza. Jámais a idéa de uma perfidia de
sua parte me passara pelo tranquillo espirito de marido que confia. Como
poderiam enganar-me aquelles olhos tão bellamente claros e brilhantes,
aquella bocca de perfumosos labios que davam beijos tão doces, tão
sensuaes, tão irritantes? Santa simplicidade das almas descuidosas! O
meu espirito era o espelho onde se reflectia o meu coração e onde eu
suppunha ver a alma de Luiza, estava realmente a minha, a minha que em
breve tinha de ser tão rudemente ferida pelos factos!

"É como lhe digo. Luiza era um demonio, longe de ser um anjo, como eu a
phantasiava na benevolencia do meu illimitado amor. De imaginação
creadora e ardente, apaixonara-se por um gordo vaqueiro de Marajó, que
viera á cidade, e um bello dia, quando, ao caír da tarde, regressei a
casa para jantar, não mais a vi: a safardana roubara-me todo o dinheiro
que eu tinha em casa e fugira com o sobredito _cujo_ mencionado
vaqueiro, como vim logo a saber, por informações ministradas pela
visinhança, com grande vergonha dos meus brios de homem robusto,
completo, valente e, na minha valiosa opinião, não de todo incapaz para
o principal fim a que visava aquella ardente mulher material e
voluptuosa.

"E que pensa o senhor que eu fiz para a castigar? Que a persegui com as
leis do seu paiz em punho? Que fui buscal-a ao meio dos touros de
Marajó, onde, por certo, ella repousava, muito languida e sensual, nos
braços do cyclopico vaqueiro? Que expuz á irrisão publica, ás chufas da
plebe, a ignara patifaria de minha mulher e a irreparavel deshonra do
meu nome? Nada d'isso, meu caro! Deixei-a ir, sem me incommodar! Olhe,
mandei-lhe mesmo umas camisas e anagoas de que se esquecera com a
precipitação da fuga! Veja até que ponto fui complacente. Veja que santa
bondade a minha!

"A desgraçada morreu um anno depois, victima de béri-béri; pois bem;
para mostrar a Deus que não sou de todo mau, mandei por alma de minha
mulher resar, na egreja do Carmo, uma triste missa de _requiem_, a que
assisti com respeito e piedade."

Calou-se, sem uma commoção no rosto ou na voz. Falava como se tratasse
do tempo ou da côr do céu n'aquelle momento: com a maxima placidez. E
logo o seu velhaco risinho sarcastico saltou-lhe da bôcca e veiu
espreitar-me de sobre o labio superior,--como se fosse um depoimento
vivo da tranquillidade d'aquella alma em face de todos os
extraordinarios acontecimentos que por cima d'ella haviam passado, sem
conseguirem emocional-a.


O meu companheiro, o meu extranho conviva, ergueu-se e, accenando-me
para que acompanhasse-o, seguiu em direcção ao povoado, cantarolando
esta pandega quadra do _Dia e a Noite_, de Lecocq:

    _Minha mulher, que Deus levou,_
    _Foi-me infiel constantemente;_
    _Nada d'isso me acabrunhou:_
    _Levei o caso alegremente!_




A convalescente

    Ao dr. Alvares da Costa


Estava pallida e triste, encostada levemente á grade do camarote,
n'aquella noite de estréa.

Os seus olhos, negros como a sêda que o seu delicado corpo vestia,
divagavam pela platéa, indecisos, sem fixarem-se em ponto algum. Parecia
uma d'essas melancholicas personagens de George Sand, phantasticas e
idéaes, bellas, todavia, mesmo na falsidade da sua creação,--vivificada
por um mysterio e conduzida áquella sala d'espectaculo, onde
ostentavam-se as formosuras das moças da moda e as austeras sobrecasacas
dos burguezes, sob a intensa luz do gaz.

E ella estava sempre pallida, encostada levemente á grade do camarote.

Nos labios tinha ingênuo sorriso, que espiritualisava-lhe a expressão da
sympathica physionomia.

Um engraçado diabrête, primo d'ella, brincava-lhe com o leque.

Quem binoculisasse aquelle camarote, havia de sentir apoderar-se-lhe da
alma uma commoção de piedade, tal era a melancholica tristeza evolada
d'esse logar, d'onde ella dirigia o seu negro, o seu profundo olhar para
a platéa, cujo ambiente saturava-se mais e mais dos effluvios de lindos
lenços rendados, dos perfumosos lenços discretos das jovens damas....

E aquella encantadora creança que, sempre triste, encostava-se á grade
do camarote, apresentava na pallida physionomia os vestigios do
soffrimento, que tanto a tornava sympathica aos olhos da burguezia
austeramente séria sob a luz intensa do lustre.....




Desillusão

    A Fontes de Carvalho


A sra. d. Joaquina era uma d'essas impagaveis solteironas, que vivem
sonhando amores e descobrindo tímidas paixões nas palavras alegremente
zombeteiras dos moços que fingem cortejal-as por distracção.

Tinha ella a tez,--enrugada e molle como a casca do janipapo
maduro,--salpicada d'essas manchas amarellas a que chamam sardas;
encobria-as, em parte, com grandes e repetidas camadas de pó de arroz,
comprado sempre na _Loja Mariposa_, da qual o co-proprietario
Affonso,--o sympathico Affonso,--vendia-lh'o com muita dóse de
_réclames_ e chamadas de attenção para a superioridade da fazenda.

Usava uns vestidos fóra da moda, mal feitos, com algumas nódoas, nos
quaes primavam os enfeites vistosos,--uma garridice da sra. d. Joaquina.

O rosto d'ella denunciava 45 annos bem seguros entre os refêgos da
engelhada epiderme,--posto que os cabellos, pretos e lustrosos como a
cara suada d'um negro de Minas, mostrassem porventura uma prova de menos
edade.

As pessoas que viviam mais intimamente com ella murmuravam phrases pouco
lisongeiras para os seus brios de "senhora bastante apresentavel e digna
do direito de aspirar a um bom casamento"--como ella pensava e dizia mui
confidencialmente a certas amigas particulares.

Sempre houve maledicentes no mundo (salve a _chapa_!): foi por isso que
uma d'essas amigas, tendo tido uma altercação com ella, retirou-se de
seu trato intimo, e espalhou pelos conhecidos a noticia de que a nossa
personagem pintava os cabellos, que, se não recebessem quotidianamente
os respectivos affagos da esponja embebida em tintura, já deveriam estar
soffrivelmente russos, quando não grisalhos. Parte dos ouvintes duvidou,
suppoz equivaler aquella affirmativa a uma intriga motivada pela recente
inimizade; a outra parte acreditou, naturalmente.

A sra. d. Joaquina possuia uma educação mediocre, apenas sufficiente
para conhecer os seus deveres de "moça solteira", quanto á educação
moral; quanto á intellectual, lia com desembaraço e alguns tropeços
prosódicos as cartas repassadas de sentimentalidade de dois ou tres
namorados que tivera antigamente.

Eram essas leituras um desopilativo benefico para o seu _spleen_ de
senhora entrada em annos e votada á lastimosa condição de _tia_. Ai! A
pobre d. Joaquina lastimava-se com tristeza de não haver em sua mocidade
casado com o Guedes, o ferrageiro abastado, que se apaixonara loucamente
por seus encantos, quando estes, ainda que em pequenina quantidade,
escudavam-se n'uns vinte e dois annos de existencia. Ella não acceitara
o amor d'elle, sonhando desposar um joven barão, muito rico e elegante,
como um que conhecera n'um romance do insípido Ponson du Terrail. O
barão, porém, nunca appareceu. Agora era tarde para remediar o mal: o
Guedes, n'um momento de lucida reflexão, resolvera viver em calmo e
economico celibato, apenas conservando em casa a Belisaria, cosinheira,
mulata gorda como um cevado, a qual ministrava-lhe affagos cheios de
faceiros quindins, nas horas de amor, e bôas tortas de camarões seguidas
de compotas de delicioso bacury, á sobremesa.

Dos outros ex-namorados a sra. d. Joaquina jámais tivera informações
exactas, depois que por espontanea vontade os desenganara. Dizia-se
vagamente que um fôra negociar ao rio Madeira, d'onde nunca regressou,
talvez pela seducção d'alguma _yára_ encantadora. Do outro constava
apenas que partira para seu paiz natal,--Portugal,--afim de ir saborear
á lareira, nos longos serões de inverno,--quando o suão sibila em as
grandes chaminés ennegrecidas,--os succulentos nácos de paios da
Beira,--d'aquelles paios tão glutonamente decantados pelo illustre poeta
João Penha.

Por ess'arte, achava-se a sra. d. Joaquina em disponibilidade, e, a
dizermos tudo, deveremos accrescentar que alimentava agora umas secretas
e dulçurosas esperanças de captivar o rebelde coração do Francisco da
Natividade, o elegante dono d'uma das melhores lojas da rua dos
Mercadores. Este, porém, parecia não partilhar das mesmas intenções,
porquanto ouvia-lhe os suspiros languorosos sem estremecer, sem
pestanejar, sequer, n'uma impassibilidade de mumia. Ella armava-lhe
ratoeiras amorosas: mandava-lhe flôres, fazia-lhe presentes de toalhas
de labyrintho e fronhas bordadas, temperava-lhe o café quando elle ia á
casa da familia d'ella, chegava-lhe phosphoros accêsos aos charutos,
roçando os dedos nos d'elle, para mudamente lhe revelar a sua paixão.

Comtudo, nada o commovia, e a sra. d. Joaquina rebellava-se intimamente
contra o Francisco, quando, a sós, no momento de estender-se na sua fria
rede de velha virgem, passava em revista pela memoria todos os seus
actos relativos ao bom andamento d'aquelle amor.

Tal era o estado do coração da boa senhora na época em que o Natividade
apresentou-lhe um sobrinho seu, recentemente chegado de Portugal.

A fina amabilidade do joven lisboeta, d'uma elegancia tão natural,
attraíu as boas graças da digna solteirona, que logo sympathisou com
elle. Em menos d'um mez o Raul tinha em a sra. d. Joaquina uma amiga
sincera, uma attenciosa admiradora do "seu caracter austero."

Elle, para retribuir-lhe as affabilidades, redobrava de cumprimentos,
desfazia-se nas mais requintadas delicadezas.

Levada pelas erupções d'aquelle seu coração vulcanico, ella começou a
amar ao sobrinho, com o mesmo ardor com que pouco antes amara ao tio, o
Francisco da Natividade. Cedo surprehendeu o bom moço as amorosas
manobras da sra. d. Joaquina, e, julgando-o necessario, inteirou o
parente sobre o affecto d'ella, para obedecer aos dictames do dever.
Ambos riram-se muito da nova asneira da irrisoria senhora.

                                  ----

Ou porque trouxesse de Lisboa os germens d'uma bronchite, ou porque, já
no Pará, apanhasse alguma constipação, Raul adoeceu, ficou pállido,
perseguido por uma pequena tosse, e uma tarde, após o jantar, sentiu uma
suffocação, seguida de agudas dôres na parte interna do thorax, as quaes
communicavam-lhe com as omoplatas. Como tivesse vontade de cuspir,
curvou-se a meio sobre uma escarradeira e expelliu um pouco de sangue vivo.

--Santo Deus, que vejo?!--exclamou o tio, assustado.--Já, um medico,
depressa! continuou, a correr attonito pela sala....

O facultativo chamado receitou-lhe um medicamento adequado, que estancou
o sangue, e retirou-se depois de haver feito duas ou tres recommendações
sobre o tratamento.

Raul melhorou: dormiu bem durante a noite. Na tarde seguinte, porém,
teve uma verdadeira e forte hemoptysia. Lá foi o moleque chamar
novamente o doutor.

Depois de auscultal-o, e interrogar sobre a vida passada e climas em que
habitara, o medico aconselhou-o a partir para Portugal assim que
podesse. Assoberbado por tão assustadora recommendação, o bondoso
Francisco da Natividade tratou logo de mandar o sobrinho pelo paquete
que do Pará saíu seis dias depois.

No momento em que Raul despedia-se da sra. d. Joaquina, esta, chorando
verdadeiras lágrymas de dó e de saudade, tirou do bolso uma carta
lacrada a vermelho e deu-a ao enfermo, dizendo-lhe:

--Tome, seu Raul. Guarde isto. Quando chegar a Lisboa, leia e faça o que
lhe peço. Mas, antes não a abra, pelo amor de Deus!

--Sim, minha senhora.... Os seus pedidos são ordens para mim.... Adeus!

Chegando á cidade do Tejo, estava Raul n'um auspicioso pé de
restabelecimento. Todavia, entrou a medicar-se com cuidado,
resguardando-se de tudo quanto podésse fazer-lhe mal. Estes uteis
entretenimentos levaram-n'o a esquecer-se da sra. d. Joaquina.

                                  ----

Passaram os mezes. Raul ficou curado: estava gordo e forte. Como os
medicos lhe recommendassem que não viesse ao Brazil, tratou de procurar
emprego no continente. Achou um, que pareceu-lhe agradavel. Fez-se
caixeiro viajante d'uma conceituada casa commercial, para ir fazer
cobranças pelas provincias.

Na vespera do dia em que tinha de seguir para a primeira excursão,--ao
Alemtejo,--estava elle arrumando umas roupas, quando, introduzindo a mão
no bolso d'um _paletot_ que só vestia em viagem, encontraram seus dedos
um objecto qualquer. Tirou-o para a claridade e viu uma carta toda
amarrotada e suja. Reconheceu-a logo: era a carta que lhe déra a sra. d.
Joaquina.

--Ah! que esquecimento o meu!--exclamou.--Que juizo não terá feito a meu
respeito a impagavel senhora....

E, cheio de curiosidade, rasgou o sobrescripto.

"Meu bom amigo,--leu.--Devo dizer-lhe uma coisa, que ha muito
_afflue-me_ aos labios, sem todavia sentir-me com animo de fazel-o:
amo-o, amo-o, com todo o ardor de que é capaz o meu ardente coração!
(Isto copiou ella do romance _A Caridade Christã_, de Escrich,--pensou
Raul). Peço-lhe que escreva-me logo, dizendo-me se _fui_ por si acolhido
o meu amor. (Aquelle _fui_ é que era genuinamente d'ella, só d'ella; o
Raul bem o conheceu). Espero _ancioza_ a sua resposta, com a qual o meu
amigo _remeter-me-á_ meia duzia d'AGUA CIRCASSIANA, para eu dar de
presente a uma conhecida minha. Disponha sempre do coração de sua
eternamente,--JOAQUINA."


Raul casquinou uma sonora gargalhada terminando a leitura d'aquelle
_modelo_ d'orthographia, propriedade de termos e syntaxe; mas, logo
fez-se mais serio e:

--Ora bolas!--disse.--Só os cabellos encantavam-me, por serem tão pretos
e lustrosos.... E era falsa aquella côr d'azeviche!.... Que desillusão!....




A "Serenata" de Schubert

    Ao dr. Augusto Meira


I

No seu pequeno quarto modesto de rapaz solteiro, João estava deitado na
rêde, lendo um volume de contos de Armand Silvestre, á luz branda de uma
vela de espermacete. Nove horas soaram as cornetas da outra banda do
Capibaribe, na Casa de Detenção, derramando pelo ar um sôpro de
tranquillidade imponente, que fazia os transeuntes apressarem o passo
dirigindo-se aos respectivos domicilios. O vento norte, que vinha de
Olinda, entrava na sala, e d'esta seguia para o quarto de João, agitando
a luz dentro do _photo-mobile_.

Na invisivel palpitação da brisa, entrou uma voz de piano vibrado na
visinhança. Fanatico adorador da musica, João fechou o livro e prestou
attenção. Eram as primeiras notas da _Serenata_ de Schubert, esse
magnifico poema musical que elle amava acima de todas as composições! De
um pulo, achou-se abaixo da rêde, fóra do quarto, ao balcão de uma das
janellas do seu humilde terceiro andar. E encostou-se á grade, com o
rosto descançado na mão direita, dispondo-se a ouvir a sua peça predilecta.

Na rua, ninguem passava agora. Os reverberos alinhavam-se nos passeios,
como extranhos guardas do socego publico. Um crescente de lua espalhava
no azul-ferrete do céo, por entre multidões de estrellas tremeluzentes,
uma diminuta claridade opalina, deante da qual fugiam mansos grandes
montões de nuvens recortados em figuras indiziveis. E d'uma casa proxima
saíam as vozes do piano, misturadas com a luz do gaz que irrompia pelas
janellas abertas.

Como todas as musicas sentimentaes, a _Serenata_ de Schubert possue isto
de extraordinario: prende o espirito de quem a ouve, e leva-o ao centro
da meditação tranquilla e saudosa das grandes cousas passadas, e que são
sempre, quer dolorosas quer alegres, um grato consolo para a alma.

Foi por isso que João, logo ao principio, deixou fugir um suspiro e, em
seguida, a pouco e pouco, embrenhou-se na vasta floresta silenciosa e
redolente dos seus antigos episodios de amores, quando, ainda no seu
querido Pará, podia ver e ouvir quotidianamente a encantadora donzella
que deve um dia ser sua esposa.[1] Foi tambem porisso que o moço
estudante de direito recordou-se,--e com quantas saudades!--da magistral
execução que a sua noiva sabia dar ao primor do illustre maestro
allemão,--uma execução toda sentida, interpretando os minimos segredos,
com dulcíssimos murmurios voluptuosos, que lhe davam melancholia ao
espirito e suaves langores ao corpo.

Entrou João a imaginar que estava no Pará, ao lado de sua querida
companheira, junto ao piano d'ella, no perfumado socego da sala deserta,
extasiado na audição d'aquella phantasia esplendida! E logo, por uma
transformação imaginativa, o piano da desconhecida vizinha tomou aos
ouvidos d'elle um som particular, intimo, que o commovia todo,
chamando-lhe duas lágrymas aos cantos dos olhos! E, por esta causa
tambem, á sua alma pareceu ver desfilar nas pacificas paredes da casa
fronteira um tranquillo quadro do seu passado, o qual déra-lhe outrora
tantos prazeres, e que tinha presentemente a expressão poetica, porém
saudosíssima, de uma tela de Watteau....

Esse quadro, eil-o:

    [1] Este conto foi escripto em 1886. A donzella de que se trata
    está hoje casada com o heroe da presente narração e póde gabar-se
    de ser a mais piedosa, a mais amoravel, a mais querida e a mais
    leal das esposas... com a vantagem de ser a mais dedicada e meiga
    de todas as mães.


II

Era noite de Natal. Nove horas acabavam de sôar no relogio da varanda.
Um socego inalteravel e feliz pairava pela atmosphera da sala, onde a
familia estava reunida em grupo aprazivel, ao fundo, em torno do sofá.
Das ruas vinham pelas janellas abertas fortes sôpros de brisas cheirosas
e sons de guitarras fugitivas, dedilhadas por alegres grupos de
transeuntes. A espaços, uma voz, um grito chegava até á sala, revelando
que pela cidade havia quem passeiasse, tentando festejar o anniversario
do nascimento de Christo.

Na sala a conversa era geral. Uma creancita formosamente encantadora
sugava a extremidade de um tubo de mamadeira, sobre o cólo de sua
virtuosa mãe, a qual, supposto conversar com o extremoso marido, não
afastava do rosto da filha os grandes olhos expressivos, fluctuando n'um
lago de ternura meiga e immaculavel como um beijo maternal.

Contemplando este quadro rubenesco, João pensava nos santos prazeres do
lar,--elle, que era um mísero orphão, um desgraçado pariá do
amor!--emquanto Dhalia, a sua querida noiva, sentada junto a elle,
falava-lhe compungida ácêrca de uma infeliz mulher que, pela manhã,
recebera de suas pequeninas mãos bemfazejas, roupas e sustento para os
filhinhos. E dominando a todos, no meio do sofá, com a expressão
suavíssima do rosto espiritualisada por um sorriso que venerandamente
lhe frisava os labios, o velho Antonio, de cabellos e longas barbas
sedosos e brancos, dirigia-se ao filho mais moço, ao Theodoro,
aconselhando-o ao trabalho honrado, apontando-lhe como exemplo a seguir
várias scenas a que assistira em sua passada vida commercial.

Uma exhalação de virtude emanava d'aquelle grupo: revelavam os rostos a
tranquillidade invejavel de quem vive contente com a sorte e depõe
muitas confianças no futuro.

De repente, n'um silencio entre duas pontas de dialogo, uma voz
ergueu-se da rua, fazendo-se acompanhar por uma guitarra:

    Folguem todos n'esta noite,
    Venha a festa sem egual:
    --Hoje em nada se repara,
    Porque é noite de Natal.
    Hoje em nada se repara,
    Porque é noite de Natal.

E a guitarra chorava em _tom menor_, fazendo côro ao _ritornello_. A voz
de um agradavel _tenor_ prendeu logo a attenção dos que estavam na sala:

    Esta noite abençoada
    Pertence aos que têm amor;
    No presepe bethlemita
    Veiu ao mundo o Deus-Senhor.

Novo _ritornello_ choroso na guitarra.

    Por isso, moços e moças,
    Entregae-vos ao prazer,
    Emquanto não vem a edade
    Vossa fronte encanecer!

Terceira e ultima plangencia melancholica desferida na guitarra.

Aos derradeiros versos, o velho Antonio levantára a cabeça, n'uma
energia de movimento, com as narinas afflantes, os anneis da cabeça
tremendo-lhe sobre os hombros.

--Tôlo!--exclamou, referindo-se ao cantor, cuja voz perdia-se agora ao
longe, na extremidade da rua.--Pois que venha cá, a ver se os velhos não
têm amores e prazeres!.. Que venha presenciar a este quadro e me dirá ao
depois se eu não amo as minhas queridas filhas, o meu bondoso Braga, o
meu Theodoro e á innocentinha que ahi dorme sob as bençãos do meu olhar!..

Um soluço gemeu-lhe no peito: Dhalia ergueu-se, radiante como a
encarnação do carinho e, muito piedosa e pura,--qual um raio de sol
illuminando a face de uma estatua antiga,--foi beijar amoravelmente a
fronte do ancião....

Que não se affligisse, pediu-lhe affagando-o;--que não désse importancia
a similhantes asneiras. Todos sabiam perfeitamente com que intensidade
elle amava a familia, e que suaves prazeres tirava d'esse amor. E
demais, aquella noite era de festa, como dissera o desconhecido cantor,
não valia a pena entristecer-se....

--Para o lado os pezares!--terminou sorrindo.--Como distracção agradavel
a todos, vou tocar ao piano a _Serenata_ de Schubert.

Já se tinha João levantado, prevendo este desfecho: correu ao piano,
abriu sobre a estante a musica desejada e, accendendo as velas,
sentou-se ao lado do banquinho, que Dhalia veiu occupar.


III

E começaram então as primeiras melodias da _Serenata_.

João cerrou os olhos, extasiando os sentidos na audição da formosa peça,
tão bem executada pela donzella cuja alma eminentemente artistica
comprehendia os segredos de poesia que a musica de Schubert encerra. Uma
figura, ao principio fluctuante e indecisa, mas que logo tomou relevo,
apparecendo em primeiro plano, desenhou-se na tela da imaginação do
moço. E surgiu então um joven de bandolim em punho, debaixo dos balcões
floridos de um elegante castello, que se erguia a meio de uma paizagem
germanica, onde os robles farfalhavam á borda dos lagos tranquillos,
sobre cujas superficies grandes garças deslisavam elegantes, ruflando as
brancas pennas em donosa magestade. E a voz a'elle era meiga qual um
canto magico de yára amazonica, sentida como uma recriminação paternal,
doce como um beijo apaixonado. De seus labios côr de papoula
distillava-se o mel da musica de Schubert, que ia cair com uma suavidade
de balsamo sobre a alma enamorada de uma joven castellã formosa, occulta
entre os refólhos das colgaduras das janellas! A voz do amoroso trovador
tinha um não sei quê de melancholico, um tal cunho de poesia dolente,
que João emocionou-se tanto em face do quadro que a sua imaginação lhe
descrevia, que não pôde deixar de cantarolar baixinho, com um meio
sorriso, acompanhado pela correcta e sentida interpretação de Dhalia:

    _"O Châtelaine,_
    _Entend ma peine!.._"
    ...................
    ...................

Dhalia executou o _morendo_ final da Serenata. João acordou da sua
_rêverie_, erguendo os olhos para a pianista, em cujo rosto sympathico
bailava um risinho engraçado.

De pé, encostado ao piano, estava o venerando Antonio, com o semblante
illuminado n'uma expressão de ineffavel ventura. Dos labios entreabertos
parecia escapar-se-lhe uma benção muda, que se completava pelo gesto das
mãos erguidas e espalmadas no espaço!.. Era o pae a abençoar o futuro
feliz dos filhos idolatrados!

.........................................................................


IV

Estava n'este ponto a saudosa recordação do moço estudante, na janella
do seu modesto terceiro andar de uma das ruas do Recife, quando o piano
da vizinha desconhecida gemia tambem o adoravel remate da _Serenata_.

João sentiu-se commovido por aquella musica inspiradíssima, que lhe
avivára tão grata lembrança de seu venturoso passado,--agora que elle
estava ausente do querido sólo natal, onde moravam todos os que
possuiam-lhe a flôr do affecto. Ergueu os olhos ao céo, n'uma
necessidade de soltar livremente o espirito pela amplidão infinita do
vacuo. No firmamento azul tachonado de louras lucilações, o crescente de
lua vogava para o occaso como uma alegria fugitiva; pequeninos flócos de
nuvens seguiam, muito calmos e ethéreos, pelo espaço adeante,
projectando sombras cinzentas sobre o calçamento da rua. Da
margem opposta do Capibaribe, uma voz de soldado ergueu-se
bradando--_alerta!_--á sentinella.

Então, por um impulso de agradecimento, o espirito de João partiu pelo
infinito a fóra, chegou ao Pará, atravessando a cidade, e foi
ajoelhar-se piedoso á modesta pedra gradeada que sella o tumulo
venerando de Antonio, o estremecido pae de sua noiva.




Que bom marido!

    A Juvenal Tavares


        _Não desejarás a mulher do teu proximo._
                            MANDAMENTO DE DEUS.

Havia já tres annos que estavam casados. Não tinham filhos. Viviam
felizes, tranquillos, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente
pintada a cal, onde o sol da manhã brincava alegremente n'umas
scintillações que davam a nota de grande prazer interno ao passeiante
que para ella dirigisse escrutador olhar.

Elle era um velho quarentão, amanuense de secretaría, obeso, rubicundo,
de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que
tivéra,--tempestuosa e poída nas orgias,--encanecera-lhe completamente
os cabellos da cabeça, os quaes desciam para o rosto, onde cruzavam-se
numerosas rugas sobre a pelle côr de ginja.

Ella tinha dezoito primavéras,--para me servir d'uma velha expressão do
romantismo;--ostentava uma carinha faceira, risonha, d'olhos pretos e
marotos. Têz morena e avelludada. Um sorriso excitantemente encantador
descerrava-lhe os labios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais
alvos do que os de um cão da Terra-Nova. O corpo, flexivel como a haste
da angélica, era agil e dotado de seductores meneios, que impressionavam
bem profundamente a mais de meia-duzia de gamenhos vadíos,--d'esses
namoradores enfatuados que abundam por toda a parte.

O seu regimen de vida era, invariavelmente, este: de manhã, ás 8 horas,
depois do respectivo e parco almoço, o sr. Bonifacio escovava com a
manga da sobrecasaca o solenne chapéu alto, dava um _chôcho_ á mulher e
saía para a repartição com o passo do empregado publico:--impassivel e
cadenciado.

Elvira acompanhava o esposo até á porta da rua, fazia-lhe uma pequena
caricia e voltava á varanda, afim de dar algumas ordens ácêrca do
jantar. Dispostas as coisas para a segunda refeição, ía sentar-se á
machina de costura, que dava-lhe não diminuta receita para as despezas
diarias. O ganho d'esses trabalhos e os vencimentos do sr. Bonifacio
formavam uma somma bem razoavel todos os mezes, a qual lhes permittia de
tempos a tempos o luxo d'um camarote no theatro da Paz e um passeio a
_bond_ em noites de luar, um vestido novo para o cyrio de Nazareth,
algumas duzias de pistolas e bixinhas na festa de S. João e mais outras
regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam á encantadora
esposa d'elle ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher
bonita e nova.

Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha
seus adoradores,--rapazes toleirões, aos quaes ella, diga-se a verdade,
não ligava muita importancia. Entre esses moços, quem mais assiduamente
a requestava era um tal Jacyntho,--um _leão_ conquistador que falava
pelos cotovêllos, muito tolo, ignorante de tudo, excepto da arte do
namoro atrevido. Este Jacyntho apaixonára-se por Elvira poucos dias
depois do casamento d'ella, por occasião d'um passeio a Benevides. Desde
essa época, o pobre _namorado sem ventura_ passava todas as tardes pela
casa do Bonifacio, quando Elvira ía para a janella, emquanto o marido,
na varanda, jogava o sólo com o taberneiro da esquina e o visinho da
direita. Ao passar em frente a Elvira, enviava-lhe um sorriso e um
cumprimento. A esposa do honrado amanuense retribuía a este ultimo e
conservava-se muito séria, muito digna, sem corresponder áquelle.
Passavam os dias, passavam os mezes, e Jacyntho era pontual á
entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que tambem não
deixava de ir para a janella assim que, lá na varanda, o sr. Bonifacio,
o taberneiro e o vizinho começavam no _passo_ e no _bólo_. É que a
interessante senhora tinha um espirito ardente, phantasista, que não
podía se contentar com os sós affagos morosos e frios do velho
Bonifacio. Não obstante, nenhum passo mau desejava dar. Entregava-se
áquillo a que chamava "uma distracção", mais para satisfazer uma vaga
curiosidade do que para commetter um crime.

                                  ----

Jacyntho não era um homem que perdesse a paciencia. Assistia tranquillo
a esse esperdicio de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua molle em
pedra dura, tanto dá até que fura." Tinha confiança no futuro, que
resolvería, com vantagem,--aquelle interessante problema de amor.

Uma tarde,--era em meiados de junho, passou o Jacyntho, devéras admirado
por ver que a sua querida não estava á janella. Olhou para os dois lados
da rua e não enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a
apparencia de um velho cemiterio abandonado: nem um só vivente se via.

Constrangido, dispoz-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha
mulata, que saía da casa do sr. Bonifacio. Correu a ella e perguntou:

--Onde está a d. Elvira, minha filha?

A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabeça para o peito, metteu
na bocca o index da mão direita, conservando-se calada.

--Vamos, fala, toma um tostão.... Onde está a d. Elvira?--insistía o
_leão_ fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena.

Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuçados da
fregueza e disse, ainda meio acanhada:

--Está lá dentro....

--E o sr. Bonifacio?

--Saíu.

--Dou-te outro nickel se fôres levar uma carta á tua senhora, queres?

--Eu quero....

Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que,
por cautella, não datára nem assignára. Entregou-a á mulatinha e
conjuntamente outro tostão.

Depois seguiu pela estrada adeante.


Elvira não deu resposta áquella carta, que lhe revelára o grande amor
que por ella sentia o Lovelace paraense. Este não desanimou: deixou de
passar pela estrada de S. Braz durante dois dias, após os quaes voltou,
seguindo pelo passeio, rente á janella. Sacudiu-lhe ao cólo nova
epístola. Repetiu o mesmo jogo por uma semana. Finalmente, Elvira não
pôde resistir mais, mandou-lhe uma carta toda cheia de temores, toda
receiosa, na qual confessava que o Jacyntho não era-lhe indifferente,
mas que devia abrir mãos áquelle amor, porquanto a sua "posição de
mulher casada não lhe permittia tão gratas liberdades."

D'então em deante, apezar d'esses receios continuaram as cartinhas a
passar dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para
os bolsos d'aquelle. É que houve uma tarde em que Elvira entrou a
confrontar o physico do sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto
e as reminiscencias de muitas leituras romanticas deram causa á
correspondencia criminosa.

Havia já alguns mezes que o amor dos dois não tivéra outras expansões
além d'aquellas missivas platonicas. O temperamento de Jacyntho era mais
exigente.

Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bond em frente de casa,
de volta d'uma visita que fôra fazer a seu chefe de secção. Transpondo o
limiar da porta, encontrou a mulatinha que saía apressadamente,
escondendo mal entre as dobras do vestido um objecto que attrahiu-lhe a
attenção de velho curioso.

--Que levas ahi?--perguntou.

--Não é nada....--respondeu a rapariga n'essa voz cantada peculiar aos
paraenses.

--Não mintas! Eu vi não sei quê!--bradou o sr. Bonifacio puxando-a pelo
braço e apoderando-se do objecto.

Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os oculos e leu:


"Meu amigo, depois d'amanhã, á meia noite, meu marido vae ouvir a _missa
do gallo_ em Sant'-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, afim de
conversar comsigo e saber d'essa novidade que prometteu contar-me. Venha
á 1 hora. Acautelle-se bem; que ninguem o veja.

                                                                ELVIRA."

O Bonifacio _subiu ao arame_; ficou da côr da purpura e sentiu uma
violentíssima dôr de cabeça. Teve impetos ardentes de ir assassinar a
esposa infiel; reflectiu, porém, e soccorreu-se d'um alvitre que lhe
appareceu a subitas no espirito com rubros lampejos de sanguinaria
vingança.

--Toma, leva,--disse entregando a carta á rapariga.

E entrou.

                                  ----

Batem as 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgasões de moços
d'ambos os sexos passam pelas ruas de Belém em direcção ás differentes
egrejas onde se deve rezar a _missa do gallo_.

O sr. Bonifacio, que levantou-se á ultima pancada das 11 horas, sae para
a rua, deixando em casa a mulher incommodada "com muita dôr de cabeça...."

Á 1 hora, um vulto appareceu na esquina, approximando-se a passos
ligeiros até chegar em frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o
Jacyntho, que bateu pressuroso e baixinho em uma das janellas.
Respondeu-lhe do interior um leve arruido. Jacyntho estremeceu de
contentamento, pregosando os prazeres que ía fruir na conversação de
Elvira, quando subitamente exhalou um grito, dando um salto para o lado.

Era o respeitavel sr. Bonifacio, que saíndo de traz da mangueira onde
occultára-se, desancava a bom desancar o peralvilho que tivéra a
lembrança de namorar-lhe a mulher.

Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio á
pouca agilidade que ainda possuía e acompanhou-o, continuando a soval-o
fortemente, n'uma agitação febril....

O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os
vizinhos haviam saído para a _missa do gallo_.

Quando cançou, quando os braços negaram-se a continuar, o honrado
amanuense, despedindo olhares terriveis para todos os lados, disse ao
Jacyntho, que achava-se por terra, com os ossos quasi moídos:

--Vá-se embora, seu tratante e tenha mais juiso! Não torne a caír na
asneira de namorar moças casadas!

E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, tranzida
de medo.




Noite de finados

    A Manoel P. de Carvalho


O cemiterio de Santa Isabel estava cheio de visitantes, todos vestidos
de preto, caminhando compassada e vagarosamente por entre as sepulturas.
Eram oito horas da noite sob um céo trevoso como a tristeza d'aquellas
pessoas que ali se recordavam com saudades pungitivas dos parentes e
amigos para sempre occultos debaixo da terra, sobre a qual compridas
filas de vélas accêsas lançavam uma claridade intensa, que ia esbater-se
ao fundo, na escuridão do mattagal.

O ar estava impregnado do perfume das flôres--piedosamente depostas em
cima das sepulturas por mãos amigas,--e do cheiro mystico da cêra queimada.

Ao longe, á direita da ermida, uma banda de musica executava
plangentemente uma funeralesca marcha em tom menor, cujas maviosidades
lugubres faziam suspirar as velhas beatas,--aspirando a uma outra vida
desconhecida, além d'aquelle firmamento negro, no logar onde a
omnipotencia incondicional da Divindade lhes parecia dominar em toda a
sua magestade.

Entretanto, de espaço a espaço, grandes ondas de povo invadiam o
cemiterio. Este, áquella hora, mal podia contel-as; porisso, as pessoas
que receiavam um atropello, saíam enfadadas, murmurando indecencias.

Á porta, do lado exterior, cocheiros desboccados conversavam livremente
com as pretas sentadas em frente das bandejas de doce allumiadas pelas
lanternas que estavam sobre a baeta encarnada. Mendigos repellentes, de
vestes sujas e mal cheirosas, plangiam supplicas, tentando demover em
seu favor a caridade dos visitantes piedosos.

Alguns vadios encostados a um rico mausoleu de marmore assetteavam
olhares torpemente libidinosos ás moças que entravam seguidas de suas
mamães, n'um andar assustadiço e saudando um ou outro conhecido com um
meneio de cabeça. Mais adeante, n'um canto escuro, uma roliça mulata,
com o vestido muito decotado, murmurava amabilidades a um preto de
physionomia horrenda empertigado n'um fato novo e com a cabeça coberta
por um descommunal chapéu alto. Como contraste, não muito longe, estava
uma senhora pobremente trajada, com os cotovellos pousados á grade
ferrugenta d'uma sepultura mal allumiada por duas vélas em castiçaes de
vidro.

Dos olhos d'ella, que estavam fixos em uma corôa de perpetuas rôxas,
corriam lágrymas, que das faces resvalavam-lhe para as delgadas folhas
do capim que vegetava entre as junturas dos azulejos desbotados....

Era sem duvida alguma viuva que pagava á memoria do finado marido alguns
annos de amorosa e suavíssima coabitação na terra...

Á esquerda, contemplando uma photographia em miniatura encerrada em
negro caixilho e suspensa ao centro da cruz d'uma sepultura pequenina e
toda coberta de jasmins, trevos, japanas e madre-silvas, via-se uma
senhora de cabellos grisalhos, immovel, calada--como evocando passadas
scenas de prazer--sem ouvir as plangencias da orchestra, que proseguia
no funeral tristonho....

O céo, no entanto, enchera-se d'uma luz suave e esbranquiçada. Grandes
nuvens escuras retalhavam-se no azul-ferrete do firmamento, para as
bandas da cidade. Um vento frio e murmuroso como um soluço d'almas
penadas fazia farfalhar a matta proxima, causando arrepios de mal-estar
ás supersticiosas moças que estavam no cemiterio.... Agora calára-se a
orchestra.

Subira um prégador para um pulpito armado ao ar livre, sob uma arvore de
grande côma sombria, e recitava em voz cavernosa e com largos gestos
tragicos, uma homilia contristadora sobre a transitoria felicidade
mundana e a perenne bemaventurança celestial.

As mulheres,--mães, filhas, esposas,--que o ouviam, ficavam caladas,
muito sérias, com os olhos grandemente abertos fixos em seu rosto
bronzeado; no intimo, porém, no fundo da consciencia, levantavam um
brado de maldição áquella felicidade que lhes roubára a companhia dos
entes queridos e amoraveis.

Um homem de cabeça encanecida, que vagueava levando pela mão uma creança
de tenra edade,--um lindo e pallido orphãosinho,--voltou-lhe costas
nervosamente, soluçando, e fugiu para junto de um pobre tumulo
tranquillo, em cuja grade se lia este lancinante poema de uma só
phrase:--_Á minha esposa...._

No céo, as nuvens afastavam-se, evolavam-se como alegrias fugitivas ou
prazeres expulsos, erguiam-se n'uns grandes rendilhados phantasticos de
miragens variadas.

A lua appareceu, como uma saudade enorme e cruciante, n'uma serena
magestade tumular, que impoz vago soffrimento ao coração de todos. Os
brandões e vélas perderam o brilho, ficaram como pyrilampos
lantejoulando os sepulchros sob o luar diaphano, a cuja claridade
continuava o pregador a recordar a omnipotencia de Deus.

Os _bonds_ estacionados na praça encheram-se de passageiros. Minutos
depois seguiam pela estrada da Independencia, replectos de homens, de
senhoras tristes, com physionomias de soffrimento.

Chegando ao largo de Nazareth, apearam-se muitos homens. O largo estava
illuminado festivamente, cheio de adornos alegres. Era aquella noite a
penultima da festa annual.

Então, os mesmos homens que estavam rendendo ha poucos minutos uma
saudade á memoria de um amigo, d'um irmão, d'um pae, desciam agora ao
centro da festa popular, procuravam as conversas ruidosas, invadiam as
casas de jogo,--propellidos pela fascinação demoniaca e terrivel da roleta!




Rio abaixo

    (Ao dr. Gaspar Costa)


A canôa seguia mansamente, per si só, impellida pela correnteza.

Sentado á prôa, fumando n'um cachimbo de longo taquary, o caboclo fitava
com o olhar indolente os altos e esguios assahyseiros e as longas folhas
das bananeiras d'um verde-claro alegre, beijados pelos ultimos raios do
sol, que escondia-se por traz da ilha das Onças.

Na pôpa, debaixo d'uma tolda de palha d'ubim, estava o _senhor moço_,
abanando-se com uma ventarola de pennas vermelhas, ao lado da _senhora
moça_, que espreitava para fóra, por um dos pequenos postigos lateraes.
A seus pés, dormitava o cão Mururé, com um pedaço de lingua escarlate
caída para o lado esquerdo, entre os dentes meio visiveis.

O cheiro acre da marezia saturava a tolda. Periquitos gritavam nos
mattagaes da ilha proxima; cantos sonoros de passaros chegavam até á
embarcação, n'uma suavidade docemente melancholica, que fazia sorrir de
alegre ternura os dois viajantes.

--Que bonita paizagem, Antonio!

--É certo! Razão tinha eu dizendo-te que gostarias immenso da viagem.

--Quando chegamos ao _sitio_?

--Ás 9 horas, isto é, d'aqui a tres ou quatro.

--É pena chegarmos tão cedo!

--Dizes bem: vamos tão contentes....

E beijaram-se n'um impeto de prazer extraordinario.

O caboclo, que, por acaso estava a olhar para elles desde alguns
momentos, voltou o rosto, embaraçado, sentindo queimar-lhe as tostadas
faces um ardor de sangue equatorial em ebulição. Puxou do cachimbo
demorada _fumaça_, para tranquillisar-se.

Os outros, os dois recem-casados,--porque Antonio e Luiza eram noivos:
tinham-se matrimoniado quinze dias antes,--experimentavam, debaixo da
tolda, uma sensação de ineffavel bem-estar ao verem-se n'aquelle
magestoso socego, sobre o Tocantins, dentro da embarcação.
Felicitavam-se mutuamente,--com o olhar cheio de caricias,--por haverem
podido esquivar-se á vida agitada que levavam em Belém, sempre rodeados
de visitas, cujas conversações banaes, nullas, pouco interesse lhes
davam. Mas agora,--como iriam viver felizes durante aquella quinzena de
fuga, em a tranquillidade bucolica da roça, sosinhos, passeiando sem
companheiros importunos, ao longo do rio, tirando caranguejos da lama,
lavando reciprocamente as mãos na agua azulada e murmurosa dos
igarapés!.... E que festas fariam á hora do jantar, comendo peixinhos
pescados por Luiza, e pacas, roliças de gordas, caçadas pelo Antonio nas
mattas do _sitio_?!....

Suggeridas pelo sopro de socego que parecia rodeal-os no meio do rio,
estas idéas levaram-n'os a conversar animadamente, risonhamente, sem
attenderem a que o sol não mais vibrava os lategos luminosos no dorso da
corrente, e que, portanto, poderiam sair para o centro da canôa, afim de
gozarem da viração fresca e cheirosa que agitava n'um movimento
descompassado as velas mal colhidas ao mastro.

Sempre assentado á prôa, fumando sempre no cachimbo de longo taquary, o
caboclo olhava agora para o poente, como confidenciando mentalmente com
o sol, que deixára um rastro avermelhado no céo, onde agrupavam-se em
desordem nuvemzinhas côr de nácar, violetas, azuladas, plumbeas, côr de
perola. Do lado opposto, levantava-se a noite, n'um andar manso,
mathematico, extinguindo a pouco e pouco o crepusculo bruxoleante.

O gorgeio dos passaros cessára na ilha das Onças, que já tinha ficado
atraz, a longa distancia; só chegavam á canôa os compassos em _andante_
do canto de um carachué que saudava a noite d'uma pequena ilha, rente á
qual passou a embarcação.

--Vê ahi no meu relogio que horas são, José, ordenou Antonio ao caboclo.

--Seis e trinta e oito, _sinhor_.

--Oh! então saiámos d'aqui, filha, vamos tomar fresco.

Vieram para fóra.

Luiza soltou uma exclamaçãosinha, sonora como um soneto de Paulino de
Brito, engraçada como uma satyra de Julio Cezar, com a sua voz d'um
timbre argentino como um filete de agua morna caindo n'uma banheira
d'oiro lavrado:

--Ah!--fez ella.

E deixou-se ficar de pé, encostada ao hombro do marido, extasiada, em
frente ao pittoresco panorama que apresentava-se-lhe aos olhos.

Largo em aquelle sitio, achamalotado pela brisa, o rio abraçava
numerosas ilhotas rasas, cobertas d'uma vegetação opulenta, que
esbatia-se n'uns tons escuros, quasi indecisos, no limite do horisonte.
Um socego de tabernaculo reinava por toda a parte, sob o azul ferrete do
céo, onde as estrellas começavam a scintillar como as pedras preciosas
d'um manto de rainha antiga. Nem uma nuvem occupava n'esse instante um
espaço do firmamento. Ao longe, á direita da terra firme, tremulava uma
pequena luz. A agua do rio, no fim da vasante, esgueirava-se pelo
costado da canôa n'um murmurio dolente. A súbitas, na solemnidade do
silencio, resoou um grito d'ave nocturna.

--Accende a lanterna, José,--disse Antonio ao caboclo, que obedeceu
logo, voltando depois á sua posição habitual na prôa, fumando.

Antonio e Luiza tinham-se assentado sobre a mala que havia no centro da
embarcação, entre dois paneiros de farinha sobrepostos, e uns grandes
jarros com roseiras florídas.

Como tivesse refrescado o vento, Luiza sentiu frio, estremeceu. O marido
foi á pôpa buscar um chale, cobriu-lhe com elle os hombros,
conchegando-lh'o muito ao pescoço, amoravelmente.

Depois sentou-se ao lado d'ella. Era profunda a escuridão. Do logar em
que achavam-se, apenas viam na prôa um ponto vermelho como um
carbúnculo: o tabaco a arder no cachimbo do caboclo. Este se tornára
invisivel na densidade das trevas.

Antonio e Luiza sentiram-se bem n'aquella solidão: entraram a conversar
baixinho, muito unidos, de mil cousas que lhes compunham o passado de
tão agradaveis recordações. Era para ambos uma innarravel felicidade
poderem pairar, assim a sós, das peripecias do curto namôro, dos longos
annos que elle passou a amal-a silenciosamente, das emoções e
impaciencias do dia do casamento, quando approximava-se a hora em que o
parocho de Sant'Anna teria de unil-os.

Soltavam risadinhas indiscretas, acariciavam-se com amor, com delicias,
n'uma excitação dos sentidos. Um movimento instinctivo,--inconsciente,
talvez; cheio de affecto e volupia, com certeza,--uniu-lhes os labios
n'um prolongado beijo de paixão, vibrante como um côro juvenil.

Ouvindo-o, o velho caboclo estremeceu, mudou de posição.

Poz-se a pensar nas passadas e saudosas épocas da sua felicidade, fruída
com a finada mulata, a quem tanto queria, no meio da vegetação selvatica
e cheia de grandiosidade das florestas amazonicas...

E um suspiro profundo, traduzindo uma saudade dolorosíssima, respondeu
áquelle beijo nascido de duas bôccas amantes no silencio de tão linda
noite paraense.

Entretanto, a canôa seguia mansamente, rio abaixo, impellida pela
correnteza.




Ao despertar

    Ao sr. A. R. d'O. Gomes


        _Nem tudo o que luze é ouro._
                  PROVERBIO POPULAR.


I

A alcova nupcial em noite de noivado.

Um perfume suave de flôres volita invisivelmente pela atmosphera da
peça, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde as rosas
variegadas em côres desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e
como espiando curiosas para o leito de alvas cortinas discretamente
cerradas... Uma lámpada com vidros baços, côr de leite, esparze branda
luz em torno, sem crepitação, n'uma solenne impassibilidade, que dá
certo ar magestoso ao silencio do recinto.

Dois pares de pantufos de sêda branca escancaram as cavas como n'um
bocejo, sobre a fina alcatifa azul, aos pés da cama.

Em cima do leito, abandonada, a grinalda de flôres de larangeira repousa
meio escondida sob um lenço de fina baptista com um monogramma bordado.

Ha quinze minutos que a noiva penetrou no quarto, muito pállida e
trémula, seguida pela madrinha, e atirou sobre aquella cadeira
preguiçosa o elegante espartilho e o corpinho de labyrintho....

Ha quinze minutos a joven Paula, toda transida ante os mysterios que se
lhe antolhavam na vida que ia começar em breve, deixou-se escorregar
pelos finos lençóes e descançou a bella cabeça de paraense morena, em
cima do travesseiro macio como a flôr do algodoeiro....

E ha dez minutos apenas que o seu noivo, o seu querido Alfredo, entrou a
passos leves, amoroso, cheio de grandes anceios, com os labios
contrahidos n'um leve rictus de satisfação, de ventura.

Dez minutos antes, elle descerrara as cortinas que se fechavam n'uma
pudicicia, e murmurara baixinho, todo emocionado:

--Permittes?....

E agora, emquanto elles dormitam, amorosamente enlaçados, sonhando
felicidades paradisíacas, um perfume suave de flôres volita pela
atmosphera da peça, exhalando-se dos grandes vasos de porcellana, onde
as rosas multicores desabrocham opulentas, reflectindo-se nos espelhos e
como espiando curiosas para o leito de alvas cortinas discretamente
cerradas.


II

O casamento realisado n'aquelle dia fôra o epilogo de um longo namoro de
seis annos, muito abundante em peripecias interessantes, como
indisposições subitas, brigas e malquerenças de alguns mezes por causa
de nonada, e, depois, de repente, pela influencia de não sei que
espirito benefico, pazes feitas com abundantes expansões apaixonadas,
reconciliações ternas e carinhosas, que os prendiam temporariamente n'um
enlevo.

O pae de Paula era um velho capitalista retirado dos negocios,
brazileiro obeso e rubicundo a destillar suor e essa satisfação do homem
rico que vive contentíssimo da sorte.

Creara para a filha um ideal--um casamento com um bacharel. Similhante
aspiração, incontestavelmente modesta, fizera o velho procurar certa
roda, para a frequentar, quando a filha chegou aos 15 annos. Viuvo,--a
mulher morrera-lhe de parto, ao dar á luz um ente rachítico,
inviavel,--deixava a filha nos salões e ia procurar as mesas de jogo,
para encurtar o tempo.

Assim andaram os dois, por espaço de muitos mezes, em verdadeira
peregrinação á cata de casamento, quando, afinal, a sorte quiz
attendel-os e appareceu-lhes na fórma de um elegante mancebo, que dias
antes chegara de Pernambuco, sobraçando o pergaminho que lhe conferia o
titulo de bacharel em direito. O dr. Alfredo sentiu-se captivo das
graças de Paula. Aquella cutis morena e avelludada; os olhos
d'ella,--duas bólas d'onix engastadas em amendoas de jaspe, sombreadas
por longos cilios sedosos;--os longos cabellos d'ébano, ondeando-se-lhe
pelas espaduas de farta carnação; aquelle bonito torso de opulentos
seios na apojadura da juvenilidade;--tudo n'ella prendia-lhe o enamorado
espirito em os laços d'uma paixão tão sincera quanto profunda. Mas,
sobretudo, o que mais o encantava, aquillo que mais o arrebatava a
grandes êxtases gososos, debuxando-lhe nos labios um sorriso
espiritualisado e prenhe de beatitude, eram os alvos dentes que perlavam
as carminadas gengivas d'ella, quando Paula fitava-o sorrindo, com duas
covinhas sobre as faces, bem junto ao rosto d'elle, como desejando
magnetisal-o.

Uma tarde, após haver contemplado os dentes da noiva por muitas horas,
foi para casa com a alma perfumada pelo prazer e tão enthusiasmado
sentiu-se, que sentou-se á secretária e entrou a fazer uma poesia,--elle
que jámais fizera versos!--uma poesia em que abundavam as
palavras--_seductora virgem_, _divinal espirito archangélico_, em uma
terrivel mescla d'enormes pés quebrados, com grande escandalo das regras
formuladas por A. Feliciano de Castilho.

Finalmente, chegou o almejado momento do enlace matrimonial.

Preparando-se afim de ir para a egreja, Alfredo só pensava nos dentes da
noiva, n'esses bellos dentes muito brancos e pequenos que tanto o
encantavam.

E phantasiava um capricho, cuja lembrança era sufficiente para lhe dar
ao corpo agradaveis tremores e arripios: a si mesmo promettia que o
primeiro beijo que désse á mulher seria nos dentes, bem no meio da bocca!

Afinal, aquelles dentes eram uma obsessão para Alfredo. Para qualquer
parte que volvesse os olhos, parecia-lhe avistar os dentinhos de Paula
sorrindo-lhe amoravelmente, incitando-o a uma tentativa agradavel de
roubo de um ósculo. O colete, que elle enfiava n'esse instante, assumia
a apparencia de uma dentadura mordendo-lhe nos hombros, perto dos quaes
pulsava o coração, arfando em anhelos. E, quando o padrinho appareceu
entre as coiceiras da porta, para lembrar-lhe que já era tempo de ir
para a egreja, estava tão abstracto da vida regular, tão concentrado em
suas phantasiosas meditações, que abraçou-o commovido, murmurando:

--Que bella dentadura, que tens!


III

Na egreja e á ceia opipara que seguiu-se á ceremonia religiosa em casa
do velho pae de Paula, durante a longa e--para elle,--enfadonha
conversação subsequente na sala, sob a claridade dos muitos candelabros,
Alfredo só pensava na dentadura da noiva, enterrado n'uma poltrona, com
a fronte meditativa, que fazia os convidadas murmurarem baixinho, ao
ouvido, com um sorriso eloquente por traz do lenço amarrotado na palma
da mão, opiniões em nada favoraveis á sua reputação de sobriedade em
assumpto de succo de uva....

--Que te parece o _gajo_, hein?--diziam.--Pois isso é lá cousa que se
faça? Embebedar-se no dia do casamento....

--Que escandalo!

--Grande c.... O que elle merecia eu bem sei.

E seguiam por esta norma os commentarios--todos reçumando idéas
gordurosas e indecentes.

                                  ----

Quando retirou-se o derradeiro convidado, Alfredo suspirou de contente,
muito lisongeiado pelas felicitações que lhe foram feitas, com
acompanhamento de expressivos beliscões pelos braços e nas gordas
bochechas. Afinal, somente faltava-lhe descartar-se do velho sogro que,
impassivel como um abbade após a ceia, fumava a um canto, affagando com
amortecido olhar a fumaça do charuto, além de forcejar por combater a
força dos vapores alcoolicos que lhe subiam ao cerebro, em razão do
abuso que antecedentemente fizéra das bebidas, á mesa, quando brindára,
com exuberante vehemencia de gestos e linguagem, ao chefe politico do
partido e ao Manoel do Rosario, o commerciante que não trepidava em
tomar-lhe dinheiro a juros de 30%, nas occasiões de aperto....


Que elle, Alfredo, devia, e com muita razão, sentir a impaciencia
espicaçar-lhe as costas,--ponderou de repente o sogro, sorrindo
malicioso;--que não se enfastiasse, porém, visto como ainda lá estava na
alcova a madrinha de Paula, a preparar-lhe a _toilette_. Era natural
aquillo tudo, elle bem sabia como eram essas coisas, porque tambem por
ellas havia passado.... Que bom tempo aquelle e que bella noite de
hymineu elle tivéra nos braços da sua Sancha, uma odivellense tentadora
como um demonio formoso!.... Coitadinha! quantas saudades lhe fazia a
evocação da memoria da esposa! Como tinham vivido felizes, n'uma pacata
amizade inalteravel, abundante em amorosidades agradaveis e interminas!
Que elle, dr. Alfredo dos Anjos, devia tratar de imital-o, para fazer a
felicidade d'aquella creaturinha innocente e sem defeitos physicos ou
moraes que d'aquelle dia em deante devia ser sua mulher. Que a poupasse,
que lhe não desse trabalho em demasia para não a fatigar: o dóte d'ella
unido ao dinheiro que elle tinha, poderia porpocionar-lhes uma
existencia descuidosa nos braços d'uma indolencia salutar propicia á
gordura....

E entrava em demoradas considerações a respeito da bôa vida,--como
sectario da vadiação, que era.

Appareceu n'esse instante a madrinha, despedindo-se logo, pretendendo
recolher-se ao quarto que lhe fôra destinado para passar a noite em casa
dos noivos.

Alfredo não quiz ouvir mais: ergueu-se de salto, deu um abraço ao velho
e correu á alcova pensando sempre, cada vez com maior insistencia, nos
bellos dentes de Paula.


IV

A alcôva nupcial na manhã seguinte ao dia do casamento.

Pela janella deixada entreaberta, um raio de sol penetra na peça e vae
beijar as rosas de varias côres que, emergindo de grandes jarros de
porcellana, pendem as frontes fanadas, receiosas de se mirarem aos
espelhos, como invadidas por um pudor, em razão dos amorosos ruidos que
durante a noite inteira sairam, por intermittencias de longos socegos,
d'aquella cama honestamente encoberta pelos discretos refolhos das
cortinas cerradas. Ao longe, no quintal, gallos cantam alegremente,
cumprimentando o sol e fazendo a côrte ás gallinhas, que cacarejam
esgaravatando o chão.

E um como effluvio de ventura evóla-se pelo aposento....

E a luz da lampada de vidros fôscos diminúe de intensidade, bruxolêa
palpitante, ameaçando extinguir-se....

Em cima da commoda, a grinalda de flôres de larangeiras occulta-se mais
debaixo do lenço de custosa cambraia, como envergonhada, ou como
enxugando n'elle as lágrymas que o espirito da Pureza houvesse
porventura derramado sobre suas pétalas inodoras....

Aos pés da cama, perfilados sobre a fina alcatifa azul, os pantufos de
sêda branca escancaram as cavas, n'uma expressão de abhorrecimento pela
demorada immobilidade, n'uma expressão de appello aos pés que devem
calçal-os.

De repente sae do leito um suspiro mais profundo, o bocejo de quem
desperta. E o cortinado descerra-se um pouco, para dar passagem ao joven
noivo, em cujos labios se desenha um franco sorriso de satisfação
intima. E lá dentro, na meia sombra que as rendas projectam, dorme ainda
a formosa Paula, semi-núa, no inconsciente despudor de um somno que foi
agitado...

Alfredo olha para todos os lados, muito contente e risonho. Ao ver o
raio de sol que beija-lhe as plantas, estremece de jubilo, gosando a sua
ventura n'um devaneio de grande felicidade por vir.... Mas de subito,
estarrecido, confuso, muito pállido e crispando as mãos, entra a tremer
todo, com as feições demudadas, os cabellos arrepiados na cabeça
encandescida!

Á cabeceira do leito, sobre o elegante _guéridon_ de jacarandá, estava
uma dentadura patenteiando um céo de bôcca postiço e acinzentado, feito
de massa!.....

E aquella monstruosidade era de Paula, elle bem a conhecia pelos
pequeninos dentes eguaes e perfilados correctamente....

Então, sentindo enormes dôres em todo o sêr, com o espirito prostrado
pela emoção violentíssima, Alfredo cambaleou, soluçando, e foi caír á
beira do leito, lavado em lágrymas, a murmurar n'um gemido:

--Estou roubado, estou roubado!




Poemetos em prosa




I

Bidinha

    A Mucio Javrot

Aquelles versos terníssimos, d'uma inspiração ideal e faceira,
haviam-lhe feito comprehender que o poeta amava-a. Sem o sentir bem,
ella começou a amal-o, a amal-o tambem.... Quando, por acaso,
encontrava-o em casa da prima, córava, julgava soffrer e gosar a um
tempo e entrava a fital-o amoravel e longamente, com essa persistencia
abstracta dos verdadeiros extases apaixonados....

O poeta conheceu não ser indifferente áquella moça tão pállida, tão
triste, cujo olhar tinha os fluidos voluptuosos das paixões
ardentíssimas...

E, não sei bem porque, fugiu-lhe: passou um mez sem ir á casa da prima
da Bidinha, para não vel-a. Depois, de si proprio envergonhado, lá foi e
encontrou-a, mais pallida ainda.... e com os olhos,--aquelles
tentadores, faiscantes olhos eloquentes,--mais, muito mais bonitos...
Teve pena d'ella: n'um momento em que ficaram sós na sala,--onde
rescendia o perfume d'um ramo de resêda posto n'um jarro em frente
ao retrato d'uma velha senhora de fronte enrugada e olhar
suave--declarou-lhe amal-a desde muito, intensamente.

Ella, a Bidinha, a pállida donna do álbum que recebêra aquelles
ternissimos versos, d'uma inspiração idéal e faceira, sorriu, estremeceu
e murmurou apenas quasi inintelligivel som.

D'ahi em deante, a felicidade uniu-os sempre em amorosos colloquios
nocturnos, em aquella mesma sala.

      *      *      *      *      *

Tempos depois, teve o poeta de fazer uma viagem. Os protestos de mutua
fidelidade foram longos, como longa deveria ser a ausencia. Dando-lhe o
aperto de mão de despedida, quasi desfallece a Bidinha, tal foi a
angustia que atravessou-lhe o coração!

      *      *      *      *      *

Por um artificio da sorte, o poeta esqueceu-se da encantadora creança a
quem jurara amor perante o retrato da velha senhora de fronte enrugada,
emquanto rescendia na sala o perfume d'um ramo de resêda.

Ella esperou-o durante mezes, durante annos.... Oh! lancinante dôr das
longas espectativas!... Espera-o ainda....

Á tarde, quem fôr ao pequenino quintal da casa d'ella, poderá vel-a
sentada sob um grande jasmineiro estendido ao longo de vasta
latada,--com o olhar suave e tristemente fito nas paginas d'um album,
soluçando baixinho palavras de saudosa recriminação.

Aquelles versos terníssimos, d'uma inspiração idéal e faceira,
haviam-lhe feito comprehender que o poeta amava-a!...


II

Paraphrase ossianica

    A Frederico Rhossard

Ó bella, ó seductora Malvina, sae do teu refugio nocturno, desce do
rochedo sinistro onde o vento-norte ruge em torno de ti. Acerca-te de mim.

Inflammados sulcos os phantasmas dos mortos traçam sobre as nossas
torrentes. Ouço-os passar no meio dos turbilhões e suas vozes fanhosas
são os unicos sons a perturbar o magestoso socego das trévas.

Ó tu, cuja mão branca e delicada desferia melancholicos gemidos nas
harpas de Lutha, tenta ainda consolar-me com teus hymnos poeticos e
dolentes. Desperta essas cordas adormecidas, canta, ó Malvina, e reaviva
o meu genio, cuja chamma foi sopitada pelos annos implacaveis.

Vem a mim, ó Malvina gentil, na obscuridade d'esta longa noite que
entristece-me. Porque privaste-me da meiguice de teus cantos! Quando o
regato cae na colina e róla, depois do furacão, sob a luz radiante do
sol, o caçador escuta-lhe com prazer os suaves murmurios, sacudindo a
humida cabelleira.

Assim a tua sonorosa voz, Malvina, encanta o amigo dos finados heróes.
Infla-se meu peito; o meu coração palpita. Delinêa-se a meus olhos o
passado. Vem, ó Malvina, não divagues mais no meio das ténebras!


III

O parocho da aldeia

    Ao Padre Dr. Leorne Menescal

É a providencia da pobre aldeia aquelle joven sacerdote de tez morena e
olhar carinhoso como um conselho de Jesus.

A sua parca mesa está sempre ás ordens dos mendigos, a sua porta aberta
sempre aos viajantes, a sua bôcca incessantemente murmura consolações ás
pessoas que soffrem.

Muitas vezes, alta noite, vão chamal-o para ministrar os socorros da
religião a algum enfermo, em qualquer das aldeias que formam a serrana
freguezia. Então, levanta-se ás pressas, monta a cavallo e lá vae
montanhas fóra, a galope, ladeando tenebrosos precipícios, sob a chuva,
tiritando de frio, impassivel como um heróe e contente comsigo mesmo,
sentindo-se alegre por ir cumprir um dos mistéres que lhe impõe a sua
profissão, tão bem comprehendida por sua bella alma!

Nada o assusta, nada o intimida, pois tem a certeza de que todos
aquelles montanhezes simplorios amam-n'o sinceros e respeitam-lhe os
conselhos de paz e bondade.

Quando começou o movimento abolicionista na Fortaleza, o recto sacerdote
arvorou-se em defensor dos escravisados na sua modesta parochia da serra
de Baturité. Em poucos mezes, graças a seus esforços e á illimitada
sympathia que a todos inspira, as aldeias sob o seu vicariato não tinham
um sêr captivo: todos eram eguaes!

Quando sae de casa, encaminhando-se á pequena egreja, cuja torre branca
de neve lança-se para o firmamento no alto de verdejante collina, as
creancinhas, que bricam ás portas das casas, acodem a beijar-lhe a mão e
as mães saudam-n'o respeitosas, balbuciando uma benção....

Aos domingos, á prédica do Evangelho, vi-o, por differentes occasiões,
fazer com a uncção de sua palavra, que as lágrymas borbulhassem nos
olhos dos assistentes. Domina-os a todos com o seu irreprehensivel modo
de viver, fertilíssimo em bons exemplos.

Nada possue: dá tudo aos necessitados, sem ostentação, naturalmente!

Ah! bemdito sejas tu, Providencia da pobre aldeia, ó caritativo
sacerdote de tez morena e olhar carinhoso como um conselho de Jesus!....


IV

Ao Sol[2]

    A Fernando A. da Silva

Ó tu, que rolas por cima de nossas cabeças, resplandecente como o escudo
de nossos paes; d'onde saem os teus raios, ó sol? D'onde vem a tua luz?
Caminhas em tua magestosa formosura. Vendo-te, escondem-se as estrellas
no firmamento; pállida e fria, a lua afoga-se nas ondas do occidente.
Ficas sosinho, ó sol: quem poderia acompanhar-te o curso?

Caem os carvalhos das montanhas; as proprias montanhas são minadas pelos
annos; o oceano eleva-se e abaixa-se alternadamente; a lua eclipsa-se no
fundo dos céus; só tu és sempre o mesmo.

Alegras-te sem cessar em tua brilhante carreira. Quando o mundo está
sombrio pelas tempestades, quando o trovão ribomba e vôa o raio, saes
radiante do meio das nuvens e ris do furacão!

Mas, ai! em vão brilhas para mim! O velho bardo já te não vê os raios,
quer fulja a tua doirada cabelleira entre as nuvens do oriente, quer
trema ás portas do poente a tua luz bruxoleante.

Mas talvez, como eu, só possuas uma estação e teus annos terão um termo:
virá talvez um dia em que empallideças no meio da carreira e a aurora
proxima em vão esperará o teu regresso.

Regosija-te, portanto, ó sol, na força da tua juventude! A velhice é
triste e abhorrecida: parece-se com as tíbias claridades da lua, as
quaes perdem-se entre nuvens dilaceradas pelo vento norte, quando este
semeia ao longe as estevas murchas, quando o humido nevoeiro envolve a
collina e o viajante transido tirita nos caminhos desertos....

    [2] Vertido de Ossian.


V

Remember

    A Paulino de Brito


I

Não tens então no peito a minima raiva contra mim?--perguntei-lhe
admirado, fitando-a todo commovido pelo prazer das recentes pazes.

--Não! confirmou a rir, sacudindo a loira cabecinha tentadora, onde os
loucos anneis dos seus cabellos tremulavam faceiros, n'uma opulencia,
n'uma prodigalidade de adoraveis effluvios fascinadores. E toda a sua
pequenina pessoa, delicada e meiga, parecia desabrochar as florescencias
gentis das suas graças, dos seus divinos dotes triumphantes em meio á
pujança da invejavel mocidade!

--Pois bemdita sejas tu, candida e pura, amada e amante virgem, que
tanta bondade tens n'alma, quantas são as seducções capitosas do teu
bello rostinho, coroado d'esses loiros cabellos, cujos anneis, loucos e
faceiros, tremulam opulentos, em adoravel prodigalidade de fascinadores
effluvios!--retorqui arrebatado em grande enthusiasmo, attraíndo-a
castamente para mim, n'um impulso de gratidão, ainda todo commovido pelo
prazer das recentes pazes.

E assim ficou justificado e perdoado o meu primeiro atrevimento, que
manifestara-se no roubo d'um beijo,--d'um pequenino beijo
fugitivo,--áquella bemdita virgem, candida e pura, cujo delicado corpo
como que desabrochava as divinas graças triumphaes em gentis
florescencias de invejavel juventude pujante!

As rosas pareceram agitar-se nos verdes ramos, espreitar maliciosas esse
enthusiasmo da minha amante virilidade em face das seducções capitosas
de tão bello rostinho!..


II

Mas anoitecêra de todo. A latada que nos abrigava com os seus floridos
jasmineiros rescendentes maior escuridão communicava á parte do jardim
onde haviamos feito pazes, após o intemerato roubo de um beijo colhido
nos rubros labios mádidos da minha pequenina amante fascinadora.

Um silencio embaraçador enleiava-nos em tíbia indecisão. A loira
cabecinha d'ella descansava indolente no meu hombro, com os lindos
anneis undiflavando-se-lhe tranquillos, concentrados, ao longo das
correctissimas espaduas.

E uma tentação chegou-me a súbitas, sob a latada que abrigava-nos com
seus rescendentes jasmineiros floridos, entre o silencio
enleiando-nos embaraçadoramente em tíbia indecisão.

Já tinha-se curvado a minha fronte para a loira cabecinha a descançar-me
no hombro, indolente e concentrada, e um desejo de intemerata relapsia
assaltava-me poderoso, induzindo-me a colher novo beijo,--um fugitivo
beijo pequenino e casto,--nos humidos labios da minha gentil e tentadora
amante.

Ella, porém, de salto ergueu-se, vibrante e nervosa, rapida e precavida.
Uma das mãos subiu-lhe célere á altura da cabeça, ameaçadoramente. Bateu
o pésinho, n'uma expansão de enfado incipiente....

--Se reincidir, não perdôo mais!--exclamou, avisando-me, com a voz ainda
repassada de toda a indolente volúpia de pouco antes e fugiu-me das mãos
extendidas nervosamente, mais rapida que esses doces momentos de goso
que me concedeu, emquanto descançava a fronte no meu hombro, com os
formosos anneis da adoravel cabecinha louca undiflavando-se-lhe
tranquillos pelas correctíssimas espáduas.

Deixei-me ficar, triste e concentrado, sob a perfumosa latada, em meio á
escuridão, recordando o prazer das jubilosas pazes feitas após o roubo
de um beijo,--do primeiro beijo, pequenino e casto,--aos ardentes labios
mádidos da minha bemdita virgem.

E as rosas pareceram agitar-se nas verdes ramas invisiveis quasi, n'um
recolhimento compadecido, lamentando a inutilidade da minha juventude em
face do capricho d'aquella pequenina cabeça loira, de triumphantes
graças capitosas, que só admittira e perdoara o meu primeiro
atrevimento... ainda tão innocente e retrahido!...




O preço das pazes

    A J. A. Pinto Barbosa


I

O meu amigo Ernesto accendêra um charuto, concertára o _pince-nes_ sobre
o espirituoso nariz arrebitado; accommodou-se melhor na vasta poltrona,
muito fôfa, em que estava sentado deante de mim e começou:


--Pois vou referir-te o grande caso a que ha pouco alludi, á mesa, sem
poder contar-t'o inteiro, pela importuna presença d'aquellas senhoras.

Afigura-te ao espirito, meu amigo, a mulher mais bellamente divina e
mais divinamente fascinadora que possa existir: alta, esbelta, de corpo
dotado de umas adoraveis redondezas triumphantes; cutis morena,
avelludada; olhos negros e brilhantíssimos,--como duas caçoilas de
mysteriosos philtros embriagadores;--cabellos muito pretos e ondeados,
rescendentes a bôa olencia de selvática baunilha; um donaire, uma
soberania inteira de magestoso porte e fidalga apresentação captivante,
capaz de enleiar-nos em toda a série de crimes que ao humano pensamento
é dado formular em dias de tôrvas reflexões e sinistras ebriedades
peccaminosas: uma revelação pasmosa, um exemplar perfeitíssimo da
mulher-unica, da mulher-incomparavel, o archétypo da elevação dos dotes,
a civilisada manifestação das nossas lendárias yáras amazonicas! E, a
par de tudo isso, um espirito cultivado, uma illustração perfeita de
erudita, conversas seductoras borbulhando entre uns dentes alvíssimos,
pequeninos e eguaes, feitos de puro marfim, d'uma alvura de leite,
engastados em formoso coral, brilhante como os róseos labios humidos da
microscópica boquinha sombreada d'um leve buço,--o complemento da
seducção, o requinte da tentadora volupia d'aquelle delicioso ser.
Imaginaste? Pois bem; assim era a Marócas, a esposa do altivo general
Bandeira, velho quinquagenario d'elevada riqueza materialisada em
appetitosas centenas de contos de réis, depositados nos principaes
bancos do Brazil.

Comprehende agora, depois do que tenho vindo a dizer-te, emquanto a
azulada fumaça d'este charuto caprichosamente descreve espiraes no
espaço, como poderia amal-a o esposo, vendo-a tão nova, a seu lado, toda
entregue a seu amor,--desde os timidos beijos assustadiços
repentinamente dados, ás vezes, no vão de qualquer janella dos aposentos
desertos de enfadonhas testemunhas, até ao completo desnuamento
arrepiado e perfumoso, muito encolhido e cálido, que apresentava-lhe na
mysteriosa liberdade pacifica da recatada alcôva, alta noite, com a sua
elevada estatura de lyrio a erguer-se, entre neves de rendas,
diffundindo aromas que sabia embriagadores, irresistiveis.

Uma fascinação, aquella dupla existencia de accendrado amor. Mutuos
caprichos eram satisfeitos com afan, com orgulho, como quem dedica-se a
todos os sacrificios para conquistar uma estima á força de constantes
provas de louvavel desinteresse.

Confesso não ter ainda visto a repetição d'aquella invejavel existencia
d'affectuoso enlevo,--elle no declinar da vida, ella em toda a
maravilhosa florescencia dos seus vinte e cinco annos. Passava horas
inteiras a contemplal-os, absorto na admiração d'essa alheia felicidade
que fazia-me venturoso,--tanto é certo que uma perfeita harmonia de
suave existencia rica de affectos possue o dom de espalhar ao redor de
si um como jubiloso transbordamento do seu excesso.

Muitos annos haviam já passado, desde que o matrimonio os uniu, quando
Marócas fizéra o seu decimo quinto anniversario,--e nem um só instante o
arrependimento lhes chegára de se terem para sempre ligado por um
prematuro enlace sacramental: era a sua vida actual como a fiel
reproducção do dia em que, pela vez primeira, acordando na penumbra da
discreta alcôva, deram-se, entre dois beijos pouco ousados ainda, o
amoravel tratamento de esposo.

Verdadeiramente admiravel, não achas?


II

Mas houve um dia em que a primeira nuvem d'uma indisposição fluctuou,
soturna e lugubre, no bello ceu, puramente azul, da tranquilla
felicidade jubilosa de ambos.

Foi uma verdadeira desgraça suscitada por um capricho desarrazoado da
formosa mulher do general. Elle tivera o arrojo de negar-se,--pela
primeira vez, é certo,--a satisfazel-o, e a Marócas soffrera em cheio no
coração a dureza da áspera repulsa. Longos fios d'interminaveis lágrymas
deslisaram-se-lhe dos grandes olhos tentadoramente languidos, pisando-os
com força, circulando-os das roxas manchas tristonhas que têm os
infelizes habituados ao pranto.

Mas esta manifestação de fraqueza apenas algumas horas durou,--emquanto
o velho general, encerrado no seu quarto particular, trilhava a passos
desmarcados o soalho, já meio arrependido da quasi brutal violencia com
que resistira ao serpentino ataque fascinador da idolatrada esposa.

Depois veiu a reacção, em seguida á crise hysterica dos abundantes
prantos silenciosos. Uns assomos de magestosa indignação, muito
concentrada e muda, chegaram-lhe por fim, segredando-lhe mentalmente
duros meios de infligir ao marido memoraveis ensinamentos de justas
represalias.

E a Marócas prometteu elevar-se acima de si propria, ser tão rispida
como brutal havia sido o incivil do general.

Ai, meu caro amigo! Foi severa a licção! O pobre general Bandeira mais
d'uma vez sentiu-a espicaçando-o, quando o despeito da Marócas, ao fim
da primeira semana, obrigava-o ainda a passar as noites sosinho em seu
quarto,--n'uma triste solidão de viuvez frigidissima...

Tentou o velho militar soffrer a dura necessidade, resistir-lhe com
valentia, refreal-a dominada no fundo de seu sêr. Seria possivel que não
tivesse a força de vencer-se, elle, o illustre soldado de quem tanto
temiam os paraguayos, annos antes, nas selváticas solidões onde o nosso
exercito ferira tão sanguinolentos combates contra as guerrilhas do
valente Lopez?

Mas, pouco depois, aquellas enthusiastas resoluções enfraqueceram, como
cae uma véla, enrugada e palpitante, ao longo do mastro, ao faltar-lhe
subitamente o preciso bafejo galerno de murmurosa brisa.

O general desejou capitular, ne extrêmo das forças. Um arrependimento,
cujo peso a necessidade tornava insupportavel, chegou-lhe após essas
momentaneas resoluções de superiores resistencias... impossiveis
n'aquelle pobre e velho espirito d'homem tolamente embeiçado pelas
captivantes graças da mulher.

Com effeito, capitulou.

Uma noite, quando os corredores abandonados não repercutiam mais os
passos das escravas e uma luz baça côava-se pelos fôscos vidros de
lampadas discretas, saíu cauteloso da sua alcôva e, com o coração a
pulsar violento, dirigiu-se ao quarto da mulher.

Á porta, parou, indeciso.

Um rumor d'agua revolvida vinha pelo intersticio das folhas de madeira
entre-cerradas, em mescla a um suave aroma de japana e mangerona
sensualmente esmagadas em opoponax, diluidas na doce tepidez da agua.

Marócas tomava o costumado banho da noite, com a porta aberta, na
simples ingenuidade descuidosa da sua tranquilla innocencia de mulher
que em nada de mau pensa.

Quiz o velho retroceder, porventura ruborisado do passo que estava
dando. Sem o desejar, espreitara pela frincha da porta, e um bello
corpo, feito d'ámbar e leite, emergia da banheira, no meio do quarto,
vaporisando a tépida emanação subtil das suas frescas, rosadas carnes
bellamente seductoras e deliciosamente juvenis.

Um desejo brutal incendiou-lhe o sangue, ao tempo que as narinas,
afflando precípites, aspiravam com vigor o aroma das excitantes plantas.
Empurrou a porta, correu para junto da mulher e lançou-se-lhe aos pés,
choroso, supplicante, todo caricias e doces palavras bondosas,
impetrando o perdão, solicitando um armistício, pedindo pazes selladas
com a ardencia d'uma deliciosa e suprema compensação!

Ella, porém, a Marócas, impassivel e impertubavel--ao tempo que
envolvia-se toda em fino lençol de transparente cambraia, n'um gracioso
rubor de impeccavel donzella,--estendeu o braço para a porta e,
mostrando-lh'a, disse ao general estarrecido:

--Retire-se, cavalheiro! Seja digno de mim, conquiste-me, se quizér
apparecer n'este quarto no caracter de esposo idolatrado.

E elle teve de saír,--ao reconhecer a impossibilidade de persistir n'uma
resistencia, que só poderia ser-lhe prejudicial.


III

O velho Bandeira, nos dias subsequentes, dava-se a perros para descobrir
um meio bastante forte, pelo qual podesse alfim rehabilitar-se perante a
mulher, sem, todavia, encontrar um expediente, que triumphantemente o
salvasse da terribilíssima colisão.

Presentes, fez-lhe, e muitos e valiosíssimos: sêdas, joias e finas
pedrarias em todo o Pará não houve, que logo as não comprasse
profusamente, para amimar a caprichosa Marócas, reclusa em forte
baluarte de duras reservas embaraçadoras. Nada conseguia, senão
augmentar o proprio desespero, em que tambem dissolvia-se uma pontinha
de enrubecida vergonha, pela capitulação a que estava a sujeitar-se, com
toda a mesquinhez das pequeninas baixezas.

Um caso fortuito, porém, veiu livral-o d'apuros, quando o soffrimento
pesava-lhe já como a brutalidade esmagadora d'um bloco de granito atado
aos hombros desformados de mísero anão corroído por toda a série das
enfermidades secretas.

Aconteceu que, n'aquelle mesmo tempo, fôra o general Bandeira convidado
para examinador de mathematicas, durante os exames da commissão especial
da delegacia geral da instrucção secundaria do municipio da côrte,--essa
creação absorvente e desconchavada, que tira toda a força autonómica dos
nossos lyceus provincianos, reduzindo-os ás simples e modestas
proporções de insignificantes escholas de primórdios scientificos e
litterarios, destituidos do mínimo valor perante as academias superiores
do Imperio...

Mas dispensemos esta tirada pedagógica, meu excellente amigo, e
continuemos na exposição dos acontecimentos que prometti referir-te.

O general acceitára e convite com extraordinario gaudio do delegado
especial, a quem eram familiares os inflexiveis rasgos de rude
_catonismo_ do Bandeira. Disposto a conservar as suas tradições de
severo examinador, preparava-se para dirigir-se ao Lyceu, no dia
marcado, quando--oh! admiração!--appareceu-lhe no quarto a mulher, a
Marócas, arrastando um longo penteador de batista, ornado de finas
rendas sobre o cólo, por cima das mais appeteciveis redondezas túrgidas
que é possivel imaginar.

Trémulo, o velho, que n'esse mesmo instante havia accendido um charuto,
esqueceu-se do lado em que lhe transmittira a luz do phosphoro e
enterrou-o desgeitosamente na bocca, em sentido opposto áquelle de que
deveria servir-se para fumar satisfactoriamente.

O contacto do fogo na lingua obrigou-o a dar enorme pulo, que
estabeleceu entre elle e a Marócas uma distancia consideravel.

A Bandeirinha sorriu do ridiculo do acontecimento; mas, cravando logo os
dentes nos diminutos labios vermelhos como papoulas, conservou a
necessaria seriedade e acercou-se mais do marido, reconquistando o
espaço que approximava-a d'elle.

Depois, disse, estendendo-lhe um cartão de visita:

--Váe hoje examinar mathematicas, general?

--Vou... sim...

--Pois então, este moço irá fazer exame por mim...

--?...

--Ouviu...?

--Sim.

--Veja lá como se porta. As mathematicas não são o _meu_ forte. _Eu_ não
estou muito _habilitada_.

E, sem attender ao general, que tentava protestar por aquelle assédio,
por similhante reclamação de um escandalo impossivel á sua severidade, a
bella Marócas fugiu a correr nos bicos dos pés, arrastando a cauda do
penteador, diffundindo no quarto um cheiro innominado de roupas brancas,
essencias boas e rijas carnes feminís e jovens.


IV

Chegando ao Lyceu, o general consultou furtivamente o cartão que lhe
entregara a mulher:

_Antonio da Silva Larangeira_

Encaminhou-se ao grupo de examinandos e perguntou pelo sr. Larangeira.
Apresentou-se-lhe um rapazelho espigado e pallido, de cabellos á
quirirú, olhos arregalados e unhas sujas, orladas de escoriações na
derme. Que era elle proprio, sim senhor. E uma vóz fanhosa, cheia de
bajulações servilíssimas, resmoneou a pequena phrase affirmativa,
solicitando ali, em sua exaggerada affabilidade, a complacencia do
examinador.

O general voltou-lhe costas, com a garganta apertada pela commoção, mal
resistindo ao desejo de esbofetear sem clemencia aquelle vadio que
tivéra o arrojo de ir apadrinhar-se com a sua Marócas, para induzil-o ao
crime d'uma indignidade--arrastal-o a quebrar os seus votos de severa
justiça de indomavel rispidez com os estudantes.

D'ahi a pouco, foi chamado ao exame oral o sr. Larangeira, cuja prova
escripta não poderia ser peor. Escusado é dizer-te que o pequeno
espesinhou a sciencia com toda a coragem d'um preparatoriano ignorante.
Como, porém, desempenhava ali as altas funcções de representar a bella
Marócas, á falta de Minerva, o general deu-lhe boa nota e muito
empenhou-se para que a indulgencia dos demais examinadores salvasse da
guilhotina o infeliz.

Ao regressar a casa, encerrava-se o general em seu quarto, quando
appareceu-lhe a esposa, sempre seductora e rescendente a gratos perfumes
finíssimos, _Couro da Russia_, e _jasmim do Cabo_.

--Então?--perguntou ella meio-rindo.

--Approvado, affirmou o general deixando pender a cabeça,
desfallecido,--talvez envergonhado da sua fraqueza, córando porventura
de não haver opposto resistencia á tentação.

--Oh! bello! bello!--gritou a Marócas, lançando-se-lhe ao pescoço,
beijando-o com frenesi, apresentando-lhe á flor do rosto--á ponta do
nariz--os lindos pomos entumecidos, alvejando sob o fino tecido das
rendas que ornavam o penteador sobre o peito.

Elle abriu os braços, recebeu-a como dentro de si proprio, n'um grande
amplexo nervoso--a manifestação penultima do seu intensíssimo desejo de
reconciliar-se com a mulher.

Ella impellia-o, devagarinho porém incessantemente, para o sofá
perfilado junto á secretária do general, acarinhando-o com o olhar, com
a voz, com os labios estendidos em titubeante murmurio voluptuoso.

Mas o velho deteve-se de repente, como transformado em estatua. Immovel,
silencioso! So as palpebras tremiam-lhe precipitadamente. Afinal, duas
grossas lágrymas escorreram-lhe dos olhos, muito grandes, muito lentas.

--Que tens? inquiriu ella, assustada, beijando-o sobre uma orelha,
amimada e tentadora, infantilisando a voz, que logo tomou dulcíssima
harmonia.

--Penso que muito caras custaram-me estas pazes, meu amor. Um escandalo,
aquella approvação!

--Ah! volveu ella, abraçando-o com força, reconquistando-o,
reconduzindo-o para o sofá, espiritualisada de prazer, sorrindo
extranhamente.

E após um instante empregado em oscular a fronte encanecida do
esposo,--caíndo ambos para o sofá hospitaleiro--murmurou-lhe ao ouvido,
entre um _rugeruge_ de roupas:

--O que é bom custa caro!




Historia incongruente

    Ao dr. Franklin Tavora


I

Desde alguns dias andava triste, apprehensivo e taciturno o coronel
Fonseca.

A paizagem alegre que cercava a fazenda já não tinha o poder de
evocar-lhe aos labios aquelle seu antigo sorriso prazenteiro, com que
todas as manhãs saudava o nascer do sol, da janella do seu vasto quarto.

As pessoas da casa andavam escrutando o motivo d'aquella transição
subita no animo do velho. As conversas a meia-voz no copiar, á hora da
sesta não traziam nenhum resultado elucidativo d'aquellas tristezas sem
causa apparente. Todas as interrogacões, que os olhares apresentavam,
iam embotar-se na fria reserva do ancião, que persistia n'um silencio
desanimador.

E não havia razão para andar assim tristonho o coronel Fonseca: a
fazenda progredia, graças ao magnifico tempo que, havia dois annos,
reinava, o gado engordava e todos os vaqueiros viviam contentes, com
disposição para o trabalho.

O Thiago, filho unico do coronel, não reparara ainda n'aquellas
concentrações do pae. Vivia todo entregue a uma paixão tão ardente como
sincera, para ligar attenção a qualquer coisa que se passasse em outra
parte que não fosse no proprio coração.

E a Venancia, a formosa donzella que todos os dias obrigava-o a ir á
villa proxima, bem merecia aquella dedicação egoistica, porém desculpavel.

Filha de um velho fazendeiro, era ella d'uma bondade proverbial e d'uma
honradez reconhecida, sem precedentes de macula. Trabalhadora, vivia a
cuidar dos irmãosinhos mais novos que ella, a fazer-lhes a roupa, a
apaparical-os, a rodeal-os de cuidados, interessando-se muito pelo
bem-estar physico do todos aquelles pequeninos sêres a ella confiados
pela mãe, na occasião de morrer.

Entretanto, quem podesse perscrutar a alma do coronel, veria com pasmo
que era justamente o amor do filho a origem das suas tristezas.

É certo: Fonseca sentia grande contrariedade em ver que o Thiago de dia
para dia mais se ligava de amizade á _Venancia da villa_, como á
rapariga chamavam os da fazenda. E quem se approximasse da _maqueira_ do
coronel, quando elle dormia os seus curtos somnos nocturnos, poderia
muitas vezes ouvil-o pronunciar estas palavras:--"É impossivel
similhante casamento!"


II

Uma tarde, quando o coronel Fonseca, encerrado no quarto, escrevia ao
seu correspondente da capital, appareceu-lhe o Thiago, dizendo-lhe que
necessitava falar-lhe com urgencia.

O velho estremeceu, prevendo talvez que o filho ia acercar-se d'um
assumpto ao qual elle fugia ha muito tempo.

Foi a fazer um violento esforço sobre si mesmo que murmurou:

--Fala quando quizeres.

Thiago sentou-se na beira da rede e guardou silencio por momentos.

O velho Fonseca olhava para elle com as palpebras escancaradas em uma
expressão de curiosidade e pavôr. Tremia ligeiramente, com os nervos
todos irritados.

--O diabo da gotta quer visitar-me! pensou.

No entanto, Thiago enxugava o pescoço com o lenço e começava em seguida:

--Meu pae, o negocio a respeito de que venho falar-lhe é importante de
mais, para que eu estrague tempo e palavras em rodeios desnecessarios.
Vou ser breve, mesmo porque estou morto por saber qual será a resposta
de meu pae.--Desejo casar-me.

Conteve o coronel um gesto de indignação e disse, mostrando indifferença.

--Pois casa-te, rapaz. Eu não me opponho.... Contanto que seja a moça
escolhida merecedora de ser tua mulher....

--Oh! se tal é a condição que apresenta, posso affiançar-lhe que
brevemente me casarei. Bôa e séria, meiga e honesta, trabalhadora e
cheia de dedicação, creio que poucas moças como ella encontrei no Pará
durante os seis annos que lá estive a estudar no seminario e no lyceu.

--Felicito-te, por isso, disse ainda o coronel, sentindo fortes
dôres nas fontes, com o coração accelerado, porém a affectar
tranquillidade.--Mas então quem é a rapariga?

Thiago sorriu indizivelmente,--com uma beatifica expressão de
intensíssima felicidade no semblante, e exclamou:

--É a _Venancia da villa_, a minha querida Venancia!

O velho ergueu-se impellido pela commoção. Suppondo tal acção um meio de
que o pae servia-se para testemunhar-lhe a sua acquiescencia, Thiago
ergueu-se tambem e correu a abraçal-o.

Mas o velho, fazendo um lento signal com o braço estendido,
paralysou-lhe a vivacidade do movimento e murmurou, tremendo todo:

--Attende-me, Thiago, meu filho! Ha muitos annos que sei de teus amores
com a Venancia. Grandes motivos, que talvez conhecerás um dia,
impediam-me de favorecer a esses amores, assim como inhibiam-me de
oppôr-me a elles desassombradamente. Fingí ignorar tudo, na esperança de
que os annos lançassem o tédio sobre as vossas almas captivas uma da
outra por aquillo que eu pensava ser o enthusiasmo pela novidade. Com
immensa dôr verifiquei o meu engano, porquanto foste fiel á tua palavra,
do mesmo modo por que Venancia o foi á sua. Isto seria uma grande
felicidade se não fosse uma enorme desgraça. Quer dizer, seria um
apreciavel penhor da tua ventura por vir, se o objecto da tua paixão
fosse qualquer outra mulher, que não a Venancia..... Olha, Thiago, sem
procurares inquirir qual o verdadeiro e imperioso motivo que assim me
fórça a magoar-te o coração, esquece essa rapariga, deixa de visital-a,
ausenta-te de Marajó, vae para a capital, ou para o Rio de Janeiro, ou
para qualquer cidade longinqua, onde julgues ser-te facil achares uma
mulher a quem possas offerecer a mão....

--Mas porquê, meu pae? interrogou Thiago assombrado, com o coração
oppresso debaixo d'uma tristeza incalculavel, sentindo que as palavras
do pae minavam-lhe o edificio da felicidade por tantos annos construido
com um profundo amor expurgado de malicia.

--Porque assim é necessario,--redarguiu o velho, n'uma vehemencia de
gesto e de entonação.

--Pois fique sabendo que, se não explicar satisfactoriamente a causa de
similhante opposição, só tomarei as suas palavras como originarias d'uma
razão que a edade torna vacillante e digna de piedade!--bradou Thiago já
fóra de si, ferido n'essa grande porção de egoismo que todo o homem tem
comsigo.

--Ingrato, murmurou o velho, deixando-se caír sentado e chorando
copiosamente.--Pois assiste á morte do teu coração, visto assim o
desejares: ouve-me!

Pela janella aberta, via-se o vastíssimo campo do lado oeste da fazenda,
coberto d'uma vegetação uniforme de capim crestado pelo sol. Vitellos
saltavam ás cabriolas e grandes bois mansos, muito gordos e vagarosos,
pastavam tranquillamente os fios de curto capim secco, abanando as
longas caudas n'um compassado movimento automatico. Ao longe, um toiro
preto, perfilado e sério, olhava para a linha escura do horisonte,
entretido em lamber as ventas lustrosas de ranho com a flexivel lingua
côr de cinza de charuto. Um cheiro almiscarado d'erva sêcca e de
excremento de boi subia até ao quarto. Vaqueiros zangarreavam n'umas
flautas campestres, muito rudimentares, feitas de talos de mamãoseiro.
Urros melancholicos de vaccas chamando pelas crias casavam-se com essas
faceis melodias bucolicas, vibravam pelo espaço em propagações suaves
que, dilatando-se cada vez mais, perdiam-se no ar como um suspiro flebil
de extrema ternura. E da linha do horisonte, que recortava-se muito
distante sobre o azul escuro do ceu, levantava-se vagarosamente a noite,
magestosa e tranquilla em sua imponencia seductora.

O velho enxugou as lágrymas e começou a falar.


III

--Como sabes, tinhas dois dias quando tua santa mãe nos faltou. Até
agora não sei como possivel me foi resistir a essa desgraça, que eu a
principio reputei capaz de tirar-me a existencia. Tres annos passei
encerrado n'este quarto, sem visitar as nossas fazendas, sem receber
ninguem, apenas gozando em tuas innocentes caricias um pallido reflexo
d'aquelles grandes affagos que a tua idolatrada mãe fazia-me
constantemente. Passados esses tres annos, comprehendi que o teu futuro
exigia-me impozesse silencio á minha dôr, e cuidasse de nossos bens,
para dar-te uma bôa educação e, depois da minha morte, fazer-te herdeiro
de uma riqueza sufficiente á tua manutenção. Saí, pois, do quarto,
pedindo mentalmente á alma de tua mãe tomasse este sacrificio como feito
por amor de ti e, por consequencia, por amor d'ella. Negocios meus
exigiam que eu fizesse frequentes viagens á villa, onde, ha vinte e tres
annos, isto é, quando tinhas cinco, encontrei-me com uma senhora
amazonense, mulher d'um velho amigo meu, fazendeiro em Chaves e morador
da villa. Essa senhora era o retrato vivo de tua mãe. Por um phenomeno
de impressionismo,--sem o querer, sem o sentir--fui-me enlevando das
graças d'ella, até chegar ao ponto de pensar que tua bôa mãe tornára á
vida e volvêra a amar-me como d'antes!

Quando eu ia á villa, hospedava-me em casa d'esse antigo companheiro.
Tal convivencia maior augmento deu ao meu amor, que transformou-se em
grande paixão, toda enthusiasmos e vehemencia. As fazendas de Chaves
faziam com que o marido d'ella se ausentasse muitas vezes da villa,
deixando-me ao lado da mulher que.... poupa-me a vergonha de
communicar-te que.... titubeou o coronel, muito triste, com os olhos
mareados de lágrymas, a arfar do peito e a contrahir o rosto n'uma
visivel agonia causada pelos remorsos.

--Emfim,--disse com energia e, desta feita, dando expansão ao pranto,--o
resultado d'essa criminosa, d'essa infame e baixa paixão, foi o
nascimento d'uma menina, que o meu velho amigo ingenuamente suppoz ser
sua filha....

--E essa menina é... Ve..nan..cia?--inquiriu Thiago com os olhos
arregalados, os cabellos crispados, as mãos fechadas fortemente,
sentindo fraquejar-lhe o espirito ao embate de tamanha commoção.

--Sim, Thiago, sim, é Venancia, fructo da minha infamia, a filha do
crime, a filha d'um amigo traidor e d'uma esposa miseravel que não soube
resistir á minha tentação! É Venancia, a mulher com quem te queres unir
pelo.... casa...mento! É tua irmã, insensato!...

E caíu redondamente para traz, agitado nas convulsões da gotta, da sua
molestia habitual, ao mesmo tempo que o filho rolava sobre a rêde de
maqueira, fulminado pela morte, que providencialmente o livrou d'uma
vida que d'ahi em deante só poderia ser de tormentos e angustias
indiziveis.




A licção de "Paleographo"

    A Heliodoro de Brito


I

A escrava Josepha teve, n'aquelle dia, um grande sentimento. Sua alma
confrangeu-se toda, ante-soffrendo as trêdas amarguras do largo e
profundo golpe que breve teria de receber-lhe o amantíssimo coração de
mãe.--O commendador Pereira de Castro, que d'ali a dias seguiria para a
Europa, de concomitancia com toda a familia, annunciara-lhe a sua
resolução de levar comsigo a pequena Isaura, a sua querida filha, a
mulatinha amimada, cria de casa, prenda favorita de todas as pessoas
d'aquella abastada familia actualmente em vesperas de viagem.

E ella, a mãe extremosa, que só vivia do tenro affecto suavíssimo da
filha, na tenebrosa passividade do seu captiveiro,--não obstante a
bondade com que era tratada por todos,--teria de ficar no Pará, separada
do pequenino ente que deslaçava-lhe o espirito em fulgidas chiméras de
loiras phantasias, em meio ao triste vegetar da sua existencia!

Uma dôr profunda empolgou-lhe tyrannamente a alma e seus olhos, outrora
privados de lágrymas sob o látego inclemente do seu primeiro senhor,
antes de ser vendida ao velho Pereira de Castro, verteram largo pranto
silencioso por toda a noite passada em claro após a declaração ouvida
pela manhã.

Só a lembrança de tão rude separação fazia-a soffrer tanto; o que não
seria a crua realidade?

Mas o commendador, ao vel-a concentrada e soluçando a furto, no dia
seguinte,--com os olhos, mudamente cheios de quérulas expressões, fitos
na rapariguinha,--acercou-se-lhe paternal e, com a voz molhada de
benevolencias, consolou-a a meio.

--Que se não affligisse, ponderou. A pequena voltaria com elle e com a
familia, d'ali a annos. E com quanta vantagem para ella! Promettia
trazer-lh'a instruida, educada, elegante e feliz,--uma verdadeira
senhora. Até ella, Josepha, se arrependeria então da sua tolice actual,
porque reconheceria os beneficios que tinham querido fazer-lhe á filha.
Pois não era certo que todos ali tratavam-n'as tão bem, á mãe e á filha
e que esta era tida menos como uma _ingênua_ do que como se, realmente,
fosse originaria do casamento d'elle commendador com sua esposa?
Confiasse a Josepha em seus senhores e o futuro mostrar-lhe-ia com
exuberancia a justeza do seu proceder.

Estas palavras acalmaram um tanto a febricitante agonia da escrava.
Eliminal-a, porém, d'alma, era impossivel, que não póde um coração de
mãe deixar que a sorte, em qualquer de suas innumeraveis manifestações,
lhe roube o ente dilecto por excellencia, sem estalar todo nos loucos
frémitos delirantes da mais intensa dôr.


II

A familia do commendador Pereira de Castro seguiu viagem e, com ella, a
pequena Isaura.

Josepha, a escrava, transportada ao cumulo das grandes e mudas
afflicções, não pareceu viver desde a partida da filha. Viam-n'a as
outras escravas atravessar calada os aposentos desertos, alheiada de
tudo, olhando em frente, como se divisando estivesse nos curtos longes
do horisonte limitado uma visão, só para ella creada, a attrair-lhe
poderosamente o olhar, a absorver-lhe todas as forças vivas do espirito
e da razão.

Mas um dia, trez annos depois, o socio do commendador mandou chamal-a ás
pressas. Acudiu indifferente, sem mau modo nem solicitude na expressão
do rosto, como quem está acostumado a pensar e agir por vontade de outrem.

O socio e procurador do velho Castro entregou-lhe, a sorrir, uma carta.
Bateu desusadamente o coração da preta. Aquelle papel não poderia ser
senão da sua Isaura: o commendador, de tempos a tempos escrevendo ao
socio, pedia-lhe sempre informasse á Josepha estar a filha d'esta com
saude, muito desenvolvida e bastante adeantada nos estudos. Segurou a
carta a tremer, e ficou-se a olhar longamente aquelle homem, que
sorria-lhe docemente, compadecidamente.

--Anda, vae, disse elle; é uma carta de tua filha.... escripta por ella
propria.

Escorreram lágrymas jubilosas dos olhos da escrava. Uma alegria sem fim
dava-lhe precipitados pulos ao coração. Conservou-se, todavia, immovel
deante do _branco_, e olhava para elle, como desejando dizer-lhe alguma
coisa.

Elle pareceu comprehendel-a:

--Queres que a leia?

--Sim, sinhô, respondeu Josepha, entregando-lhe apressada a carta e
preparando-se para ouvil-a, para saborear-lhe o gosto transcendente dos
sentidos, a divina musica ignorada das dôces palavras escriptas pela mão
infantil da filha.

O socio do Castro leu:


                                                    MINHA QUERIDA MÃE,

Escrevo-lhe de Paris, onde estou aprendendo n'um collegio e d'onde lhe
envio milhares de beijos n'esta carta, a primeira que por meu punho
escrevo, para lhe contar, se podesse, as muitas saudades que tenho da
minha santa mãe e o grande desejo que sinto de estudar muito, para
voltar depressa para onde está a mãesinha do meu coração. Ante-hontem
fiz dez annos e o meu protector offereceu-me uma bonita penna d'ouro,
dizendo-me que com ella deveria escrever-lhe esta carta, minha boa mãe.
Tenho passeado muito e gostado immenso d'esta bella cidade, onde o meu
prazer seria completo se a senhora aqui estivesse junto da sua filha.

Abençôe-me e receba mil beijos que lhe envia


                                                            ISAURA.

Paris, 30 de dezembro de 1887.


Josepha chorava, soluçando, quando ouviu o nome que rematava a
carta,--simples linhas banaes, cheias de phrases feitas, possuidoras,
comtudo, do grande merecimento de virem de parte da sua querida Isaura.


III

Era o dia 13 de maio de 1888. As ruas do Pará tinham festiva apparencia,
transbordando de povo rejubilado pelo conhecimento da lei que extinguira
a escravidão no Brazil. Cruzavam-se no ar o esfusiamento de grandes
girandolas de foguetes e o écco ingente de milhares de vozes bramindo
enthusiasmadas louvores e vivas em honra ao glorioso successo.
Galhardetes e corêtos erguiam-se pelas ruas. Bandas marciaes diffundiam
no espaço alegres harmonias de cálidos hymnos excitantes.

Da casa do commendador Pereira de Castro correram para a rua todos os
pretos, afim de lhes ser dada a parte a que tinham direito no geral
regosijo.

Alguem ficou, todavia, indifferente aos sons exteriores do contentamento
publico. Uma preta deixou-se estar na cosinha e espreitava agora para
todos os lados, temendo fossem surprehendel-a.

Quando teve a certeza de estar bem só, esboçou nos roxos labios um
sorriso espiritualisado e, tirando do seio um velho _Paleographo_,
abriu-o nas primeiras paginas murmurando commovida:

--Vamo' estudá a licção. Nhô Manduca, disse que p'r'ó mez que vem já
posso lê a carta da minha filhinha. Quando chega esse dia, meu Deus?

E curvou a cabeça para o livro, na obstinação das grandes vontades
vencedoras.




Ao soprar á véla

    Ao Sr. José Feijó d'Albuquerque


I

Ás 8 horas da noite, quando chegou o marido, veiu a Candida, a saltar
alegremente, recebel-o á porta da varanda, arrastando a longa cauda
rendada do penteador de cambraia branca.

Quanto se demorára elle! .... Porque não voltou mais cedo? A sua
Candinha já sentia tantas saudades!.... Elle não imaginava o que era
estar uma pobre mulher mettida em casa, durante uma tarde inteira, sem
ter a seu lado o esposo querido, o seu idolatrado amigo!....

E affagava-o amorosamente, fazia-lhe cafunés pelo alto da cabeça,
causando-lhe uns arripios sensuaes pelas costas, eriçando-lhe os
cabellos dos braços e pernas.

Que não podera vir mais depressa,--objectava o marido, sentando-se n'uma
poltrona e cofiando o negro bigode sedoso, com um olhar de
concupiscencia para a mulher.--Bem esforços fizera, mas inutilmente.
Encontrara-os a jantar, ainda no começo; teve de esperar no jardim por
espaço de meia hora, brincando com as creanças, para entreter-se. Os
pequenos são altamente endiabrados: sujaram-lhe as calças brancas com as
mãos gordurosas.... Depois, tinha ido para a sala, falar ao dr. Martins
e á mulher.

--E acceitaram?--interrogou a Candida, saltando para as pernas do
marido, a rir muito, com os labios abertos lindamente, frisando-se
graciosos e mostrando os pequeninos dentes alvos como o jasmim.

--Qual! Responderam-me que não cediam a escrava por dinheiro algum,
maximè sabendo que nós a desejavamos para a libertar. Aquella gente está
cada vez mais negreira! Emfim, escolhe-se outra qualquer, comtanto que
seja o dia de teus annos digna e liberalmente solennisado por mim.
Continuemos, porém. Estava eu disposto a saír, bem arrufado com o dr.
Martins, quando chegou o Quirino, o velho Quirino, aquelle sujeito
vermelhudo, cuja cabeça está mais limpa de cabellos que os teus joelhos....

--Deixa-te de tolices....

--Agarraram-me para um solo manhoso, que durou até agora, e isso mesmo
porque levantei-me e saí á viva força!.... Agora,--concluiu
sorrindo,--aqui tem você o seu Roberto, cheio d'amor e paixão, disposto
a matar as saudades da sua mulherzinha com um longo beijo ruidoso, a
querer-lhe muito, a fazer-lhe as vontades todas!..

Sempre sentada sobre as pernas d'elle, Candida semi-cerrou os olhos
n'uma vertigem lubrica, e estendeu para a bocca de Roberto os seus
labios frescos e perfumados d'esse olôr exquisito e bom, peculiar ás
mulheres que se tratam.

Mas ergueram-se de subito, n'um enleio: apparecera á porta que dava para
o corredor o moleque Euzebio, com o bule de chá....


II

Depois do chá, Roberto accendeu um charuto, foi buscar um livro e,
accommodando-se n'uma grande _voltaire_, poz-se a ler. Ficou a Candida
defronte d'elle, a miral-o.

Vinha do jardim uma brisa cheia de perfumes, sacudindo as luzes dos dois
bicos de gaz encerrados em globos de crystal finamente lavrado. Com os
cotovellos sobre a mesa, o rosto de mento saliente e narinas afflantes
descançando nas palmas das mãos, Candida continuava a olhar para o
marido com uma expressão extranha, suave, repassada de ternuras
dulcíssimas.

Parecia lançada á contemplação da propria felicidade. Era justamente
aquillo que, annos antes, phantasiára a sua sonhadora imaginação de
burguezinha estragada pelos mimos de seus paes extremosos e pacóvios:
viver honesta ao pé de um marido bonito e de bom coração; estar sempre
junto d'elle, para o consolar em todos os desgostos, rir com elle nas
horas de alegria, ser-lhe sempre de uma fidelidade irreprehensivel e,
sobretudo, contemplal-o a todo instante, silenciosa, longamente,
envolvel-o nas sentimentaes suavidades do seu enlanguescido olhar de
creoula amoravel! Nunca sentira-se tão feliz como depois de seu
casamento com o Roberto, havia quasi dez mezes. Nem uma só contrariedade
tivera após aquella noite commovente, em que recebeu o primeiro beijo do
noivo no silencio de uma discreta alcôva toda cheia de flôres, rendas,
fitas e perfumes! E com que alegria, com que assomos de risonha
infantilidade não ficou, na manhã immediata, quando leu no _Diario de
Noticias_ as linhas seguintes, que decorou á força de as repetir
baixinho?--"Uniram-se hontem á noite em matrimonio, na egreja de
Nazareth, o Sr. Roberto da Silva Pereira, honrado commerciante da nossa
praça, e a Exma. Sra. D. Candida Annunciada Seixas, filha do nosso amigo
sr. Pandolpho Seixas, proprietario abastadíssimo. Foram padrinhos os
srs. Silvino Cunha e Anthero de Mendonça e suas exmas. consortes. Aos
jovens conjuges desejamos o mais ridente porvir enaltecido das
felicidades a que têm jus por seus dotes distinctissimos." Ficou a nadar
em jubilo, toda desvanecida por ver o nome nos jornaes, commovidíssima
pela lembrança de que, áquella hora, a cidade inteira estava sabedora da
realisação de seus intimos desejos de moça apaixonada!.... D'ahi em
deante começaram a viver como dois anjinhos, como ella queria. Roberto
era sempre de uma delicadeza affectuosa e séria para com a sua Candinha,
que tambem, valha a verdade, contribuia, segundo seu poder, para
tornar-lhe suave e alegre a vida. Ella achava impossivel que duas
pessoas que se amaram quando noivas brigassem depois de casadas _por dá
cá aquella palha_... Entretanto, assim acontecia ás vezes. Ahi estava,
mesmo no Pará, a d. Clotilde que, no dizer das más linguas, era uma
jararaca para o marido. O Pedro de Andrade, esposo da d. Estephania, era
outro: passava a vida pelas casas de jogo, embriagava-se e, ao chegar ao
domicilio, esbordoava a mulher que era mesmo uma dôr de coração! Mas com
ella assim não succedia, graças a Deus! O Roberto era pontual como um
cobrador á hora de recolher ao lar: ás 5 da tarde mandava fechar o
armazem, tomava o _bond_ e vinha logo para junto d'ella, de onde não se
arredava senão ao outro dia pela manhã, afim de ir novamente para o
trabalho. Havia de continuar sempre assim tal norma de vida: ella
conhecia de mais o genio do marido para receiar qualquer mudança futura.
Agora, principalmente, ia o Roberto ficar preso pelos beiços, com a
importante noticia que ella tinha para lhe dar. Era verdade! fazia-se
necessario contar-lhe tudo... Porém como? A vergonha apertava-lhe a
garganta assim que ella abria a bocca para falar... Mas hoje diria,
estava resolvida! Quando? agora?--Agora não; deixal-o com a leitura, que
está tão entretido.... Mais logo, quando se fossem deitar. Oh! como
ficaria satisfeito o Roberto! Que prazer para elle!... para elle, que
era tão lindo, tão bom, tão amado!....

Tudo isto pensava ella, continuando a fitar o esposo n'um enlevo
apaixonado.


III

De tempos a tempos, desviando a vista do livro para sacudir a cinza do
charuto, Roberto fitava a mulher, sorrindo bondosamente. Surprehendida,
a Candida pendia para o peito a formosa cabeça, disfarçava fingindo ler
n'um livro que estava sobre a mesa. Em seguida, quando calculava que o
marido continuava na leitura, tornava a pregar no rosto d'elle o seu
ardente olhar, como se desejasse cobril-o com toda a vehemencia da paixão.

Ouvindo soarem no sino de Sant'Anna as 10 horas, Roberto fechou o livro.

--Vamos dormir?--propoz.

Candida estremeceu e levantou-se.

O moleque veiu fechar as portas e janellas e apagar o gaz.

No entanto, haviam os dois penetrado na pequena alcôva. Em cima do
velador, uma véla côr de rosa ardia n'um castiçalzinho de porcellana de
Sévres com pinturas allegoricas de Amores alados e Chiméras volitantes.
No centro, uma _causeuse_ de setim azul estava cheia de laços, corpinhos
de renda, brochuras esparralhadas, n'um abandono adoravelmente
dissymétrico. Vidros de perfumarias com rôlhas de crystal reluziam em
cima do toucador de jacarandá, lançavam scintillações cambiantes ao
espelho inteiriço do grande guarda-roupa que havia no meio de uma das
paredes lateraes.

Ao fundo erguia-se a cama,--pudicamente occulta entre as rugas de um
cortinado de labyrintho finíssimo, suspenso do tecto por uma passadeira
doirada.

Levantava-se d'aquella cama um quê de evaporação de felicidade
inenarravel, que penetrava no espirito dos dois esposos pelos sentidos
do olfacto e da vista. Parecia-lhes acharem-se deante do tabernaculo de
seu amor, do altar de sua existencia feliz e encantadora. Para Candida,
sobretudo, ella tinha uma importancia transcendental: evocava-lhe uma
recordação agri-dôce, que fazia-a sorrir bondosamente depois de nove
mezes de agradabilíssima co-habitação conjugal....

                                  ----

Quando iam deitar-se, Candida enlaçou a cabeça do marido com os braços
descobertos,--mal vestida, apenas velada por uma curta camisinha de
cambraia enfeitada de rendas do Ceará.

Roberto beijou-lhe as carnes, aspirando-lhes os mornos effluvios,--essas
queridas exhalações de mulher amada,--n'um enlanguescimento concupiscente.

--Olha, murmurou ella conservando-se na mesma posição, beijando-o na
testa.--Quero dar-te uma noticia muito bôa....

--Qual é?--perguntou Roberto estreitando-a nos braços.

--Tenho tanta vergonha!....

Esta exclamação pronunciou-a Candida desprendendo-se do amplexo do
marido e dando um pulo para o leito.

--Anda, fala, menina, que tolice é essa?

--Então apaga a luz, primeiro; póde ser que ás escuras eu me sinta mais
animosa! ....

Roberto soprou a luz da véla e disse deitando-se:

--Agora....

Candida ficou por um momento silenciosa, afagando a fronte do marido com
as pontas dos frios dedos trémulos. Depois, a subitas:

--É que,--murmurou com umas brégeiras risadinhas reprimidas,--é que
eu.... estou grávida!

Um beijo sonoro, prolongado, ardente como o fogo dos grandes amores,--o
beijo com que o esposo tenta revelar a indizivel alegria de vêr
convertido em realidade o seu mais persistente anhelo,--respondeu
áquella confissão prazenteira, na propicia escuridade da alcôva
matrimonial....




No baile do commendador

    Ao sr. Ulderico Souza


Desculpe, mas descreio, doutor, da sinceridade das suas palavras!

E a bella Arcelina tapou os rubros labios, entreabertos em zombeteiro
sorriso, com as rendas finíssimas do seu leque amarello-canario, de
varetas de madreperola.

--E porque, não me dirá? insistiu o doutor Machado, debruçado sobre a
cadeira da interlocutora, a settear-lhe os seios semi-visiveis com um
ardente olhar vibrado atravez o crystal do monóculo petulante.

--Porque--?, respondeu ella, com uma curta gargalhada de chasco, a
fital-o bem na menina dos olhos, falando-lhe por cima do hombro
esquerdo, polvilhado de rescendente velutina; porque.... a vida é uma boa
mestra, doutor, e eu tenho recebido d'ella bem duros, bem crueis exemplos!

--Apezar de ser tão nova assim?

--A vida não escolhe discipulos entre aquelles que apresentam a cabeça
encanecida. Bem ao contrario, parece que aos moços dá, por vezes,
preferencia, como compensando-os de não terem o discernimento preciso
para bem conhecer e evitar os revezes da sorte.

--Mas--é maravilhoso tudo quanto estão a dizer-me os seus divinos labios
com a musica angelical da sua voz, minha adoravel senhora! Se já não
sentisse por sua pessôa--e pelo seu espirito--este indomavel affecto de
que falei-lhe ha pouco, penso que deveria experimental-o agora--e bem
profundamente!--depois de ouvir-lhe tão razoaveis e inesperados conceitos.

--Devéras?

--Por certo.

--Oh! é muito amavel....

--Digo a verdade.

--E, todavia, continuo a descrêr...

--Faz muito mal!

--Porquê?

--Ah! já faz perguntas?--Porque quem confessa descrença em similhante
assumpto, deseja crêr, ou, pelo menos, não quer descrêr...

--O que redunda no mesmo. Errou, porém, estabelecendo até mim a regra
geral, doutor. Difficilmente se engana a mulheres como eu, convença-se.
O mundo tem sido para mim uma grande eschola, sr. dr. Machado. Lições
bem rispidas tenho recebido n'elle, para agora, sem discrepancia das
suas opiniões, fazer que o sr. acredite nas suas proprias illusões
phantasiosas. Pois que! Persuade-se acaso de que jámais poderei tomar ao
sério as banalidades da confissão que me cantou ha instantes o seu
lyrismo? Estará o sr., effectivamente, tão enamorado de si mesmo, que se
julgue irresistivel, fatal? Vaidade sem razão, doutor!

--Como é cruel, minha senhora!

--Não sou cruel, não, cavalheiro: sou justa apenas. E porque
sympathisei inexplicavelmente com o sr., é que desejo trabalhar para
extorquir-lhe do espirito esse orgulho desarrazoado que lhe embota o
sentimento.--Permitte-me a liberdade d'uma franqueza?

--Ora essa! Porque não?...

--Muito bem: pretendo matar-lhe n'alma o seu illimitado.... pedantismo.

--Como diz?

--Ouça bem: o--seu--illimitado--pedantismo.

--E.... mas....

--Olhe, sente-se aqui, a meu lado--Assim. Conversaremos com
tranquillidade, emquanto essa quadrilha d'Offenback absorve todas as
attenções da sala. Escute-me.

                                  ----

Eu era menina, dez annos apenas, uma simples creança insignificante.
Seriam nove noras da noite. A chuva caía sem parar desde que anoitecêra;
uma triste chuva hibernal, que dava arripios intercadentes, sob a luz
oscillante do gaz. Estavamos ao serão, reunidos na varanda, umas dez
pessoas: eu, minhas duas irmãs, algumas escravas, e uma preta velha,
muito velha e alquebrada, que o trafico da escravatura arrancara aos
sertões africanos para transplantar no Brazil.

Costuravam umas, outras faziam rendas. Eu e minhas duas irmãs
brincavamos a vassourinha, formando circulo sobre a mesa, em torno da
qual trabalhavam as escravas.

De repente, um silencio operou-se na varanda inteira e nós interrompemos
o brinquedo, ao tempo que as raparigas erguiam as cabeças, detinham no
ar a mão que empunhava a agulha, ou descançavam cautelosas os bilros
sobre as almofadas onde pregavam-se as rendas incipientes.

A velha Eufrasia annunciára que ia contar uma historia da _cabanagem_, o
que era o sufficiente para lhe hypothecarmos a mais absoluta
tranquillidade. Porque, fique desde já sabendo, a Eufrasia era
auctoridade na materia! A sua narração tinha alguma coisa de lugubre, de
compungente, de parceria com certo tom veridico e muito expressivo na
concatenação dos factos e na flagrancia da nota, ou épica ou bucólica,
de que pretendia occupar a attenção dos ouvintes.

Todos aconchegaram-se mais, fitando os olhos da velha, illuminados d'uma
fulguração estranha, que parecia o reflexo derradeiro dos bellicosos
tempos de que ella ia tratar.

Estabelecido o mais completo silencio, tanto quanto era possivel
obter-se com o ruido da chuva a desabar nas telhas,--a bôa preta começou
a referir a pequena historia que passarei a expôr á sua attenta bondade,
succintamente, para o não enfastiar com imprudentes delongas.

                                  ----

Da outra banda do rio, á margem esquerda d'este mesmo Guajará que róla
suas turbidas aguas aos pés de Belém, uma roça havia, n'aquelle
tempo,--em 1835,--que era o abrigo d'uma simples familia de modestos
caboclos agricultores: pae, mãe e um filho, rapaz esbelto, no pleno
vigor d'uns 20 annos sadíos e bem desenvolvidos.

Viviam todos na mais lata felicidade que poderiam almejar em sua
simplicidade mediocre de lavradores remediados. A farinha da sua roça
era a mais afamada na praça de Belém e a seriedade com que tratavam
negocios tinha-lhes aberto largo crédito em casa do seu correspondente
na cidade.

O rapaz, Aniceto, andava de casamento justo com a Thomazia, uma rapariga
da margem opposta do rio, moradora n'um sitio quasi fronteiro á roça.
Pelo São João deveriam vir á capital da provincia, effectivar perante um
padre a mais persistente aspiração que em peitos amazonicos jámais
palpitou e que dava-lhes, na sua só lembrança, uma como ebriedade
olympica de soberanas venturas transcendentes.

Uma vez por semana, aos sabbados, a pequena montaria do joven caboclo
rasgava, cheia de vigor, o claro seio do rio e transportava-o rejubilado
á pequenina casa da venturosa amante sitibunda de mirar-lhe as suaves
transparencias do olhar e ouvir-lhe a incomparavel meiguice das longas
falas singellas e apaixonadas.

Horas inteiras, de intensíssimo contentamento, eram as que passava ao
lado da rapariga, a tecer com ella o gracioso dibuxo da sua risonha
existencia por vir, quando, a sós no copiar, de mãos entrelaçadas e o
olhar perdido ao longe, nas aquosas sinuosidades esbatidas nas sombras
do fundo, compraziam-se em acastellar illusões, n'umas inflorescencias
de amplas phantasias admiraveis.

Similhante existencia, parecia abençoal-a o ceu, na sua clemente bondade
rejubilada pelo edificante espectaculo de tão acrisolada paixão.

Mas houve um dia em que a sorte,--sempre inclemente e cynica,
doutor!--pareceu querer zombar da voz geral, corrente a respeito
d'aquella invejavel bonança de duas vidas felicíssimas.

A cabanagem assolava esta parte da provincia. As aguerridas guerrilhas
dos revoltosos percorriam sanguisedentas povoados e roças, buscando e
fazendo victimas por toda a parte, com o desabrimento impudico da mais
ousada barbaridade.

Em taes condições, a casa dos paes de Thomazia não poderia escapar á
visita dos desalmados. Esta foi subjeitada á mais torpe violencia que se
póde intentar contra uma donzella, e os paes da rapariga, por haverem
querido dissuadil-os da infamia,--após assistirem á perpetração
selvática do attentado sem nome, soffreram inermes a pena ultima,
dependurados, um defronte do outro, em dois galhos de sombrosa sumahumeira!

Escaparam ao rábido furor dos revoltosos Aniceto e seus paes, que
embrenharam-se precavidos nos profundos recessos da floresta. De sua
casa haviam presenceado o que passava-se na róça fronteira e nem um só
momento o rapaz, aquelle mesmo namorado férvido da vespera, sentiu um
assomo de correr a vingar o ultrage a que tinham-lhe submettido a noiva!
Admire que sinceridade a d'aquella paixão, doutor, dias antes
apresentada em _labiosas_ florituras de phantasticos arremessos
idyllicos! Que grande coração, o d'aquelle homem!

Fugiu, poltronamente, cheio de medo, sem um remorso que, exprobrando-lhe
a indignidade, propellisse-o a ir morrer no sitio onde haviam insultado
a sua noiva,--sem ir arrebentar os miólos de um dos abjectos infames,
ainda mesmo quando tivesse a certeza de ser feito pedacinhos pela tropa
dos sicarios!

Annos depois, quando estabelecera-se a pacificação na provincia, a
Eufrasia encontrou-o em casa, muito satisfeito e cynico, a viver na
companhia de torpe mulata animalisada por uma vida de largas
materialisações soezes e gordurosas.

Ainda podia rir, ainda tinha canções para zangarrear ao som do cavaquinho!

Lá defronte, porém, a roça, tão florescente d'antes, convertera-se em
mattagal e a infeliz Thomazia,--apatetada e envelhecida, coberta de
andrajos e chorosa,--tinha simplesmente, como testemunha da sua
desgraça, uma creança inconsciente, um filho que dentro d'ella semeára a
hedionda selvageria dos revoltosos.

      *      *      *      *      *

Calou-se a bella Arcelina, offegante e ruborisada. Vibrando toda de
emoção, teve um momento de silencio empregado em fitar longamente o
rosto do dr. Machado. Depois, abrindo o leque amarello-canario,
agitando-o vagaroso, com uma certa magestade de soberana vencedora,
perguntou sorrindo ironica:

--E crê, depois d'isto, que eu acredite na existencia d'um só homem
sincero e verdadeiramente amante, capaz de effectuar todas essas
palavrosas mentiras que o sr. cantarolou p'ra 'hi?




NOTAS


A CONVALESCENTE.--Achava-se impressa a folha contendo esse pequenino
_croquis_ ousadamente dedicado ao sr. dr. Alvares da Costa, quando s.
s.ª levado por intrigas vis e a proposito de algumas phrases a seu
respeito externadas por mim n'um estudo critico das _Primeiras Rimas_,
de João do Rego, rompeu commigo, n'um artigo sobremódo aggressivo, todo
pessoal e rancoroso.

Não quiz, então, riscar o nome que a amizade gostosamente inscrevera em
uma das paginas do meu livro e hoje, para provar-lhe a minha lealdade,
apresento-a tal qual m'a deu o prélo, antes do inesperado desabrimento
de s. s.ª


QUE BOM MARIDO!--Este conto, regeitou-o, em dezembro de 1885, o _Diario
de Belém_, declarando-o immoral. Entretanto, esse mesmo exaggerado zelo
entibiava-se lamentavelmente quando os jornaes do sul... e a tesoura
davam-lhe ensejo de estampar as _moralíssimas_ "grivoiseries" de Catulle
Mendès... É o caso mais flagrantemente pífio de criterio e coherencia
que tenho conhecido!

No dia seguinte, _A Provincia do Pará_ publicava esse trabalho.


HISTORIA INCONGRUENTE.--Foi publicada n'_A Arena_ essa narração, em
1887: ainda existia o infortunado homem de letras a quem tive a honra de
dedicar o meu trabalho e do qual recebi, por esse motivo, lisonjeira
carta muito affectuosa e benevolente.




INDICE

                                   PAGINAS

    ALEGRIA GAULEZA                     10

    A CONVALESCENTE                     21

    DESILLUSÃO                          23

    A "SERENATA" DE SCHUBERT            33

    QUE BOM MARIDO!                     45

    NOITE DE FINADOS                    55

    RIO ABAIXO                          61

    AO DESPERTAR                        69

    POEMETOS EM PROSA:

        I--_Bidinha_                    81

        II--_Paraphrase ossianica_      84

        III--_O parocho da aldeia_      86

        IV--_Ao sol_                    89

        V--_Remember_                   91

    O PREÇO DAS PAZES                   95

    HISTORIA INCONGRUENTE              109

    A LICÇÃO DE "PALEOGRAPHO"          119

    AO SOPRAR Á VÉLA                   127

    NO BAILE DO COMMENDADOR            137

    NOTAS                              147




ERRATAS

Os mais notaveis erros são es seguintes:

Pags.       Linha       Erro       Emenda

61       5       caximbo       cachimbo

93      15       embaraçadoramente       enleiando-nos
                 enleiando-nos           embaraçadoramente

93       33       estendidas       extendidas

107       33       inqueriu       inquiriu

114       29       vacillanto       vacillante









BREVEMENTE

será dado á estampa o novo romance de Marques de Carvalho

SOROR MARIANA

Grande téla descriptiva dos costumes paraenses e servindo de relêvo a um
dos mais notaveis escandalos contemporaneos. A obra formará um forte
volume de de 300 paginas impressas a capricho.






End of Project Gutenberg's Contos Paraenses, by João Marques de Carvalho

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS PARAENSES ***

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Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
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including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


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