The Project Gutenberg EBook of Ramo de Flores, by João de Deus This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Ramo de Flores acompanhado de varias criticas das Flores do Campo Author: João de Deus Commentator: Alexandre da Conceição Luciano Cordeiro Guiomar D. Torrezão António Cândido de Figueiredo Release Date: March 16, 2008 [EBook #24847] Language: Portuguese *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK RAMO DE FLORES *** Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) RAMO DE FLORES RAMO DE FLORES POR JOÃO DE DEUS * * * * * ACOMPANHADO DE VARIAS CRITICAS DAS FLORES DO CAMPO * * * * * PORTO Typ. da Livraria Nacional 2--Rua do Laranjal--22 1869. RAMO DE FLORES I SÊDE DE AMOR I Vi-te uma vez e (novo Extranho caso foi!) Por entre tanto povo... Tanta mulher... Suppõe Que mãe estremecida Via o seu filho andar Sobre muralha erguida, Onde o fizesse ir dar Aquelle remoinho, Aquella inquietação D'um pobre innocentinho Ainda sem razão! E ora estendendo os braços... Ora apertando as mãos... Vendo-lhe o gesto, os passos, Quantos esforços vãos, O triste na cimalha Faz por voltar atraz... Sem vêr como lhe valha! A vêr o que elle faz! Pallida, exhausta, muda, Os olhos uns tições, Com que, a tremer, lhe estuda As mesmas pulsações... (Porque não é mais fundo O mar no equador, Nem é todo este mundo Maior do que esse amor! Mais vasto, largo e extenso Todo esse céo tambem Do que o amor immenso D'um coração de mãe!) Assim, n'essa agonia... N'essa intima avidez... É que entre os mais te eu ia Seguindo d'essa vez! Porque te adoro!... a ponto, Que ainda hoje, crê! Escuto e oiço e conto Os grãos de arêa até, Que tu, mulher! andando Fazias estalar Já mesmo longe e... quando Deixei de te avistar! II Os olhos são D'uma expressão! Que linda bôca! O pé nem toca, De leve, o chão! Aquelle pé De leve até Nem se elle sente! E sente a gente Não sei o que é... E a graça, o ar, D'aquelle a andar! Que véla passa Com tanta graça Á flôr do mar! Os olhos vêr Um só volver De olhar tão dôce, Que mais não fosse... Era morrer! Os dentes sãos E tão irmãos E tão luzentes! Que bellos dentes! Que lindas mãos! III Estrella, nuvem, ave, Perfume, aragem, flôr! Consola-me! distilla, Da languida pupilla, O balsamo suave De um desditoso amor! Estrella, nuvem, ave, Perfume, aragem, flôr! A flôr, de que és imagem, A flôr, de que és irmã, Sacia-se, e desata O seu collar de prata Aos beijos da aragem, Aos risos da manhã!... A flôr, de que és imagem, A flôr, de que és irmã! A perola que encerra A flôr, é sua? Não. O pranto que a amima, Cahiu-lhe lá de cima Para cahir na terra, Para cahir no chão! A perola que encerra A flôr, é sua? Não! Tu já mataste a sêde, Mata-me a sêde a mim! Se em nuvem piedosa Te refrescaste, rosa! Tambem em ti eu hei de Refrigerar-me!... sim! Tu já mataste a sêde, Mata-me a sêde a mim! É para que me orvalhes Que te orvalhou o céo! O liquido que veio Aljofarar-te o seio Bem é tambem que o espalhes No chão... o chão sou eu! É para que me orvalhes, Que te orvalhou o céo! II LAMENTO Senhor! Senhor! que um ai nunca me ouviste Na minha dôr! Ai vida, vida minha, como és triste!... Senhor! Senhor! Quando eu nasci, o sol cobriu o rosto Mal que eu o vi! Tingiu-se o céo de sangue, e era sol-posto, Quando eu nasci! Pela manhã, a rosa era mais alva Que a alva lã! E o cravo desmaiou á estrella-d'alva, Pela manhã! Ao longe, o mar se ouviu, leão piedoso, Um ai soltar! Pelas praias, se ouviu gemer ancioso, Ao longe, o mar! Oh roixinol! a ti, nasce-te o dia Ao pôr do sol! Mostre-me a campa a luz que te alumia, Oh roixinol! III ENLEVO Não brilha o sol, Nem póde a lua Brilhar na sua Presença d'ella!.. Nenhuma estrella Brilha deante Da minha amante, Da minha amada! A madrugada Quanto não perde! O campo verde Quanto esmorece! Quanto parece A voz da ave Menos suave Que a sua falla! A flôr exhala Menos perfume Do que é costume O seu cabello! Que basta vêl-o, Prende-se a gente! Prende-se e sente Gosto ineffavel! Que riso affavel Aquelle riso! Que paraíso Aquella bôca! Penetra, toca, Enche de inveja Um ar que seja Da sua graça! Onde ella passa, Onde ella chega, Quem lhe não prega Olhos avaros! Ha dotes raros, Rara doçura N'aquella pura Casta existencia! Oh! que innocencia Que ella respira! A alma aspira Não sei que aroma Mal nos assoma Ao longe aquella Pallida estrella, Que rege o mundo!... Nunca do fundo Do oceano Foi braço humano Colher tão linda Perola ainda, Como a formosa Candida rosa Que eu amo tanto! Não sei de santo Que ha no seu gesto! No ar modesto D'aquelle todo... N'aquelle modo... Que tudo esquece, E nos parece Estar no céo! IV SEMPRE! Pensas que te não vejo a ti? Bom era! Gravei tão vivamente n'alma a dôce E bella imagem tua, que eu quizera Deixar de contemplar-te, só que fosse Um momento, e não posso, não consigo! Foges-me, escondes-te e que importa? Esculpes Mais fundo ainda os indeleveis traços! Realça-te o retrato! E não me culpes! Culpa-te antes a ti!... Sigo-te os passos!... Vejo-te sempre!... trago-te comigo!... V ESPERA! Uivaria de amor a féra bruta Que pela grenha te sentisse a mão! E eu não sou féra, pomba! Espera! Escuta! Eu tenho coração! Não é mais preto o ébano que as tranças Que adornam o teu collo seductor! Ai não me fujas, pomba! que me canças! Não fujas, meu amor! A mim nasceu-me o sol, rompeu-me o dia Da noite escura d'olhos taes, mulher! Não me apagues a luz que me alumia Senão quando eu morrer! Eu não te peço a ti que as mãos de neve, Os dedos afusados d'essas mãos, Me toquem estas minhas nem de leve... Seriam rogos vãos! Não te peço que os labios nacarados Me deixem esses dentes alvejar, Trocando, n'um sorriso, os meus cuidados Em extasis sem par! Mas uivando de amor a bruta féra Que pela grenha te sentisse a mão, Eu não sou féra, pomba! escuta, espera! Eu tenho coração! VI ADEUS A ti, que em astros desenhei nos céos, A ti, que em nuvens desenhei nos ares, A ti, que em ondas desenhei nos mares, A ti, bom anjo! o derradeiro adeus! Parto! Se um dia (que é possivel flôr!) Vires ao longe negrejar um vulto, Sou eu que aos olhos d'esta gente occulto O nosso immenso desgraçado amor. Talvez as féras ao ouvir meus ais, As brutas selvas, as montanhas brutas, Concavas rochas, solitarias grutas, Mais se condoam, se commovam mais! E lá d'aquellas solidões se aqui Chegar gemido que uma pedra estala, Que um cedro vibra, que um carvalho abala, Sou eu que o solto por amor de ti... De ti! que em folha que varrer o ar, Em rama, em sombra que bandeie a aragem, De fito sempre n'essa cara imagem Verei, sorrindo, sentirei passar! De ti, que em astros desenhei nos céos! De ti, que em nuvens desenhei nos ares! De ti, que em ondas desenhei nos mares, E a quem envio o derradeiro adeus! VII MELANCOLIA Oh dôce luz! oh lua! Que luz suave a tua, E como se insinua Em alma que fluctua De engano em desengano! Oh creação sublime! A tua luz reprime As tentações do crime, E á dôr que nos opprime Abres-lhe um oceano! É esse céo um lago, E tu, reflexo vago D'um sol, como o que eu trago No seio, onde o afago, No seio, onde o aperto? Oh luz orphã do dia! Que mystica harmonia Ha n'essa luz tão fria, E a sombra que me guia N'este areal deserto! Embora as nuvens trajem De dia outra roupagem, O sol, de que és imagem, Não tem essa linguagem Que encanta, que namora! Fita-te a gente, estuda, (Sem mêdo que se illuda) Essa linguagem muda... O teu olhar ajuda... E a gente sente e chora! Ah! sempre que descrevas A orbita que levas, Confia-me o que escrevas De quanto vês nas trevas, Que a luz do sol encobre! As victimas, que escutas, De traças mais astutas Que as d'essas féras brutas... E as lastimas, as luctas Da orphã e do pobre! VIII SYMPATIA Olhas-me tu Constantemente: D'ahi concluo Que essa alma sente!... Que ama, não zomba, Como é vulgar; Que é uma pomba Que busca o par!... Pois ouve; eu gemo De te não vêr! E em vendo, tremo Mas de prazer!... Foge-me a vista... Falta-me o ar... Vê quanto dista D'aqui a amar! IX 11 DE MAIO Se eu fosse nuvem tinha immensa magoa Não te servindo d'azas maternaes Que te podessem abrigar da agoa Que chovesse das mais! E sendo eu onda, tinha magoa summa Não te podendo a ti, mulher, levar De praia em praia, sobre a alva espuma. Sem nunca te molhar! E sendo aragem, eu, que pela face Te roçasse de rijo, alguma vez Que o Senhor com mais força respirasse, Que magoa immensa... Vês! E a luz do teu olhar que me não lusa Um rapido momento, a mim, sequer, Como a aguia no ar... que passa e cruza A terra sem n'a vêr! Mas que me importa a mim! Se me esmagasses Um dia aos pés o coração a mim, As vozes que lhe ouviras se escutasses, Era o teu nome... Sim! O teu nome gemido docemente Com toda a fé d'um martyr em Jesus, Se acaso já em Christo pôz um crente A fé que eu em ti puz! A fé, mais o amor! Porque elle expira Sem que a ninguem lhe estale o coração, E eu, se essa cruz dos olhos me fugira, Sobrevivia? Não! Assim como em ti vivo, morreria Tambem comtigo, se uma vez (que horror!) Te visse pôr, oh sol!... sol do meu dia! Astro do meu amor! X ATTRACÇÃO Meus olhos sempre inquietos Que posso até dizer, Só acham n'alma objectos Que os possam entreter; Meus olhos... coisa rara! Porque hão de em ti parar Como a corrente pára Em encontrando o mar!? E penso n'isto, scismo... Mas é tão natural Cahir-se no abysmo D'uma belleza tal!... Olhei!... Foi indiscreta A vista que te puz. A pobre borboleta Viu luz... cahiu na luz! Uma attracção mais forte Que toda a reflexão, (É fado, é sina, é sorte!) Me arrasta o coração... XI DESANIMO Que mimos me confortam? Que doce luz me acena? Eu tenho muita pena De ter nascido até! Quizera antes ao pé D'uma arvore frondosa Ter já em cima a lousa E descançar emfim! Alli, nem tu de mim De certo te lembravas, Nem estas feras bravas Me iriam assaltar! Alli, teria um ar Mais puro e respiravel, E a paz imperturbavel De quem, emfim, morreu! D'alli, veria o céo Ora sereno e puro, Ora toldado e escuro... Ainda assim melhor, Que este areal de amor Onde ando ao desamparo, Onde a ninguem sou caro E nem, a mim, ninguem! Alli passára eu bem A noite derradeira Á sombra hospitaleira Que mais ninguem me dá! Tu mesma, que não ha Quem eu mais queira e ame, Quem a minha alma inflamme De mais ardente amor, Os ais da minha dôr A ti o que te importam? Teus olhos nem supportam A minha vista ao pé! Que mimos me confortam? Que dôce luz me acena? Eu tenho muita pena De ter nascido até! XII N'UM ALBUM É esta vida um mar; e n'este mar Qual é o astro que nos alumia? Que norte, estrella ou bussola nos guia? Um olhar de mulher! um terno olhar! XIII O SEU NOME I Ella não sabe a luz suave e pura Que derrama n'uma alma acostumada A não vêr nunca a luz da madrugada Vir raiando senão com amargura! Não sabe a avidez com que a procura Ver esta vista, de chorar cançada, A ella... unica nuvem prateada, Unica estrella d'esta noite escura! E mil annos que leve a Providencia A dar-me este degredo por cumprido, Por acabada já tão longa ausencia, Ainda n'esse instante appetecido Será meu pensamento essa existencia... E o seu nome, o meu ultimo gemido II Oh! o seu nome Como eu o digo E me consola! Nem uma esmola Dada ao mendigo Morto de fome! N'um mar de dôres A mãe que afaga Fiel retrato De amante ingrato, Unica paga Dos seus amores... Que rota e nua, Tremulos passos, Só mostra á gente A innocente Que traz nos braços De rua em rua; Visto que o laço Que a prende á vida E só aquella Candida estrella Que achou cahida No seu regaço; (Não que lhe importe A ella nada... Que tudo escusa; E até accusa De descuidada Comsigo a morte!) Mão bemfazeja Se por ventura Encontra um dia, Com que alegria, Com que ternura, Ella a não beija!... Mas com mais quanto Amor te escrevo, Soletro e leio Nome de enleio! Nome de enlevo! Nome de encanto! III Como a agua d'um lago--toda um nivel, Vae de circulo em circulo ondeando, Se a andorinha a roça ao ir voando Atraz d'algum insecto imperceptivel; E quebrado esse espelho em mil pedaços (Que a imagem do céo desapparece) Em circulos concentricos parece Tornarem-se a formar novos espaços... Ou como d'entre as notas ineffaveis Dos canticos do céo--todo harmonia-- Mal sôa o dôce nome de MARIA, Pasmam as multidões innumeraveis; E de onda em onda cada vez mais larga, De brisa em brisa cada vez mais pura, O nome d'essa excelsa creatura Por todo aquelle immenso mar se alarga; E tudo quanto cerca o trono eterno Áquella dôce voz desprende o canto, Formando um côro universal, em quanto Reina silencio no profundo inferno... Assim, n'esta paixão que me devora, Se aos labios essas syllabas me assomam, As negras sombras da minha alma tomam Gradualmente o explendor da aurora! Toda a idéa má recua um passo, Aplanam-se os dominios do futuro, E do crystal mais transparente e puro Se me arqueia a abobada do espaço! Desdobra-se o passado á luz do dia, Em valle ameno, aos olhos da memoria; E eu acho não ser perfida, illusoria, A fé que eu punha em certa luz que eu via... Vejo que aquelle informe e negro monte, Que me tapava a mim o fim da vida, Não era mais que a natural subida Para se dominar vasto horizonte!... Esse horizonte és tu, pombinha brava! Tu, cujo peito que aliás encerra O que ha de bello e grande em céo e terra, Só com duas conchinhas se tapava... Mas em quanto não chego áquella altura D'onde se avista a terra promettida, Irei cantando, distrahindo a vida Com essa invocação suave e pura... Invocação de nome tão suave Como esse olhar!... que eu, só de vêr, suspiro! Mas... que invoco em silencio... como admiro A luz da lua, e o olhar da ave!... IV E se algum dia Deres abrigo Ao desgraçado Pobre mendigo Expatriado, Morto de fome, Dize comtigo: «Mais consolado Se elle sentia Lendo o meu nome!» XIV SAUDADE Tu és o cálix; Eu, o orvalho! Se me não vales, Eu o que valho? Eu se em ti caio E me acolheste Torno-me um raio De luz celeste! Tu és o collo Onde me embalo, E acho consolo, Mimo e regalo: A folha curva Que se aljofara, Não d'agoa turva, Mas d'agoa clara! Quando me passa Essa existencia, Que é toda graça, Toda innocencia, Além da raia D'este horizonte-- Sem uma faia, Sem uma fonte; O passarinho Não se consome Mais no seu ninho De frio e fome, Se ella se ausenta, A boa amiga, Ah! que o sustenta E que o abriga! Sinto umas magoas Que se confundem Com as que as agoas Do mar infundem! E quem um dia Passou os mares É que avalia Esses pezares! Só quem lá anda Sem achar onde Sequer expanda A dôr que esconde; Longe do berço, Morrendo á mingoa, Paiz diverso... Diversa lingoa... Esse é que sabe O meu tormento, Mal se me acabe Aquelle alento! Ah, nuvem branca Ah, nuvem d'oiro! Ninguem me estanca Amargo choro; E assim que passes Mesmo de largo... Vê n'estas faces Se ha pranto amargo. Tu és o norte Que me desvias De ir dar á morte Todos os dias; A larga fita Que d'alto monte Cerca e limita O horizonte! Tu és a praia Que eu sollicito! Tu és a raia D'este infinito! Se ha uma gruta Onde me esconda Á força bruta Que traz a onda; Á força immensa D'esta corrente D'alma que pensa, Alma que sente; Se ha uma véla, Se ha uma aragem, Se ha uma estrella, N'esta viagem... É quem eu amo, A quem adoro! E por quem chamo! E por quem choro! XV * * * * Não sei o que ha de vago, Incoercivel, puro, No vôo em que divago Á tua busca, amor! No vôo em que procuro O balsamo, o aroma, Que, se uma fórma toma, É de impalpavel flôr! Oh como te eu aspiro Na ventania agreste! Oh como te eu admiro Nas solidões do mar! Quando o azul celeste Descança n'essas agoas Bem como n'estas magoas Descança o teu olhar! Que placida harmonia Então a pouco e pouco Me eleva a fantasia A novas regiões! Dando-me ao uivo rouco Do mar, n'essas cavernas, O timbre das mais ternas E pias orações! Parece todo o mundo Só um immenso templo! O mar já não tem fundo E não tem fundo o céo! E, em tudo, o que contemplo, O que diviso em tudo, És tu!... esse olhar mudo!... O mundo... és tu... e eu!... FIM * * * * * CRITICAS DAS FLORES DO CAMPO * * * * * FLORES DO CAMPO POR JOÃO DE DEUS João de Deus não é sómente um grande poeta, é um iniciador. A estrophe sahe-lhe do coração não só transparente e limpida, como um veio de crystal, mas espontanea, harmoniosa e originalissima, como todas as creações dos espiritos profundamente caracterisados e essencialmente creadores. João de Deus é um grande scismador e um grande artista. Concebe admiravelmente, e executa melhor ainda. Cada lyrica é uma maravilha, cada estrophe um mimo, cada verso um primor. Reune á intelligencia apaixonada de Platão o delicadissimo senso artistico de Cellini. Ha n'aquella lyra notas e harmonias d'uma frescura e de uma novidade dignas de Homero ou de Wainamoinen. É que o talento poetico de João de Deus é essencialmente espontaneo e primitivo, se me permittem a expressão. Parece que não ha n'aquelles versos nem estudo de modelos, nem influencia de escólas, nem escolha de assumptos. A natureza poetica de João de Deus é sobre tudo virginal, sincera, innocente. Canta, não para que o escutem, mas porque nasceu poeta; chora, não para que o consolem, mas porque nasceu triste; medita, não para que o considerem, mas porque nasceu scismador. É poeta... e não póde ser mais nada; fizeram-n'o deputado talvez para fazerem um epigramma á poesia, que tantos tem feito--epigrammas, entenda-se.--João de Deus deputado é o mesmo... que um deputado João de Deus, duas entidades a rirem-se constantemente uma da outra, como os dois _oraculos_ de que falla Cicero. Um João de Deus nasce feito... não se faz d'elle cousa nenhuma; ha de ser sempre João de Deus, quer o façam rei, quer regedor de parochia. _Ego sum qui sum_, dizia o espirito mais profundamente original da humanidade. João de Deus, e os homens de uma individualidade assim tão caracterisada podem, salvo a irreverencia, dizer o mesmo. A João de Deus deu-lhe para ser poeta; se lhe désse para ser diplomata era Bismark, e tinha a estas horas realisado a união iberica. Foi melhor assim, ao menos para se não acabar com a possibilidade de termos volumes como as _Flores do Campo_. Dizem-me que João de Deus é um excellente tocador de viola, onde improvisa devaneios arrebatadores. Esta prenda caracterisa-lhe o talento artistico. É poeta como guitarrista e quasi improvisador como poeta. Aquella alma é uma lyra: vibra, estremece e canta ás aragens fugitivas da impressão. Natureza profundamente sympathica, tem um riso para cada alegria, uma lagrima para cada amargura, uma consolação para cada infortunio: Despe o lucto da tua soledade E vem junto de mim, lirio esquecido Do orvalho do ceu! Tens nos meus olhos pranto de piedade, E se és, mulher! irmã dos que hão soffrido, Mulher! sou irmão teu. Consolos não te dou, que não existe Quem de lagrimas suas nunca enxuto Possa as d'outro enxugar: Não póde allivios dar quem vive triste, Mas é-me dôce a mim chorar, se escuto Alguem tambem chorar. E não ha artificios n'esta poesia, que é singela como todos os grandes sentimentos, harmoniosa e virginal como um sorriso de creança, suave e consoladora como uma parabola de Christo, serena e luminosa como um dialogo de Platão: Mulher, mulher! quando eu n'um cemiterio Levanto o pó dos tumulos sósinho: Eis, digo, eis o que eu sou, Mas quando penso bem n'esse mysterio Da virtude infeliz: Vae teu caminho; Dois mundos Deus creou. É poesia que se sente e que poucos exprimem, são versos que se admiram e que rarissimos os escrevem. As imagens adejam-lhe em torno frescas, vivas, alegres e graciosas, como um bando de andorinhas em torno dos frisos d'um campanario: Quando em silencio finges, Que um beijo foi furtado, E o rosto desmaiado De côr de rosa tinges, Dir-se-ha que a rosa deve Assim ficar com pejo, Quando a furtar-lhe um beijo O zephiro se atreve. ............................ A bôca é tão vermelha que, em te rindo, Lembra-me uma romã aberta ao meio Quando já de madura está cahindo. ...................................... Quando a sua mãosinha pondo um dedo Em seus labios de rosa pouco aberta, Como timida pomba sempre alerta, Me impunha ora silencio ora segredo. Não ha nada mais gracioso, mais natural, mais espontaneo, mais facil! A gente chega a pasmar de não encontrar todos aquelles dizeres elegantes, todos aquelles versos formosissimos nos outros poetas, tal é a fluencia e a vitalidade d'esta inspiração. Na voz de João de Deus ha as inflexões carinhosas de uma creança; os versos parecem caricias; têm a suavidade affectuosa das orações de uma santa e aquelle tom amavel e triste, mas nunca pretencioso, dos verdadeiros scismadores: Foi-se-me pouco a pouco amortecendo A luz que n'esta vida me guiava, Olhos fitos na qual até contava Ir os degraus do tumulo descendo. .................................. Alma gemea da minha, e ingenua e pura Como os anjos do ceu (se o não sonharam...) Quiz mostrar-me que o bem, bem pouco dura. Não sei se me voou, se ma levaram, Nem saiba eu nunca a minha desventura Contar aos que inda em vida não choraram. Camões não a sentiu mais, nem a escreveu melhor esta poesia da tristeza, esta melancolia suave d'um scismador, esta saudade resignada de uma alma nas soledades do infortunio, nos desterros do isolamento. Ha alli poesia para vinte poemas, ha alli suavidade para vinte idyllios. As rhimas parecem beijos, tão estreitas se enlaçam, tão ardentes se casam, tão apaixonadas se apertam: Que magoa ou que receio Dos olhos te desata Aljofares de prata No jaspe do teu seio? Bem intima ser deve A pena que te opprime, Flôr tenra como o vime, Flôr pura como a neve! ....................... Vós, lobos! ide em bando, Trepae pelo rochedo, Uivae, mettei-lhe medo, Levae-a recuando! Que faz quem se approxima D'um precipicio, diz-m'o? Que buscas tu no abysmo Se o ceu é lá em cima? É só a lyrica intitulada--_Heresta_--que me fornece estes quatro exemplos; podia fornecer-me trinta e dois, porque são trinta e duas as quadras d'essa formosa composição. Ás vezes o verso deixa de ser uma phrase e transforma-se n'um suspiro, a estrophe deixa de ser um canto e converte-se n'um arrulho. Tudo alli é muito amar, profundamente sentir e divinamente cantar: Que é d'esses cabellos d'ouro Do mais subido quilate, D'esses labios escarlate, Meu thesouro! ............................. Que é d'uma flôr da grinalda Dos teus dourados cabellos, D'esses olhos, quero vêl-os, Esmeralda! Que é d'essa alma que me deste! D'um sorriso, um só que fosse. Da tua bôca tão dôce Flôr celeste! Tua cabeça que é d'ella A tua cabeça d'ouro, Minha pomba! meu thesouro! Minha estrella! .......................... E as desgraças, podia prevêl-as Quem a terra sustenta no ar, Quem sustenta no ar as estrellas, Quem levanta ás estrellas o mar. Deus podia prevêr a desgraça, Deus podia prevêr e não quiz; E não quiz, não... se a nuvem que passa Tambem póde chamar-se infeliz. Quem escreve d'isto, sente-o. Um homem não arranca ao seu espirito d'estas perolas sem as lá ter em sentimento e em amor. E só o alto calor d'um grande, d'um immenso coração póde _cristallisar_ taes diamantes; o fogo sómente do craneo não produz d'estes milagres d'inspiração: Não se é só pó no fim de tanta magoa, Senão diga-me alguem que allivio é este Que sinto, quando á abobada celeste Alevanto os meus olhos rasos d'agoa. .................................... Ha depois d'esta vida inda outra vida, Não se reduz a nada o grão d'areia, E havia de a nossa alma, a nossa ideia Nas ruinas do pó ficar perdida? Se isto não é inspiração, e alta inspiração, não sei que nome se ha de dar ás maravilhas do genio de Dante, de Shakspeare, de Camões ou de Victor Hugo. Um espirito que se eleva a taes alturas tem obrigação de produzir um _Hamlet_, uma _Divina Comedia_ ou uns _Lusiadas_. Sente-se pela leitura d'este volume que Camões é o auctor predilecto de João de Deus. O livro abre até por uma composição que póde considerar-se uma verdadeira profissão de fé em poesia. A propria fórma poetica da maior parte das lyricas de João de Deus, um certo geito facil e correntio na composição grammatical dos periodos, a suavidade das rhimas, a doçura das expressões, a harmonia cadenciosa dos versos e um certo tom de intima melancolia que se faz sentir até nas idêas as mais graciosas revelam a decidida predilecção que o cantor da _Heresta_ tem pelo desafortunado scismador de Macau. É esta a feição seria, a feição elevada e talvez caracteristica do genio poetico de João de Deus. Como todas as grandes vocações, como todas as naturezas ricas, João de Deus porém não é menos apreciavel, nem menos digno de estudo pelo lado alegre, malicioso e a espaços finamente epigrammatico. Ás vezes chega a ser um observador digno de competir com Molière ou Tolentino. Os _Caturras_ é composição de emparelhar com a _Funcção_ ou com o _Bilhar_ do diabolico professor de rhetorica; e o _Gaspar_ póde pedir meças em ridiculo a qualquer dos _frades_ grotescos da numerosa collecção de Bocage. E o epigramma aqui é tanto mais pungente quanto menos grosseiro, e a caricatura tanto mais graciosa quanto menos exagerada. Ha alli o sal attico de Terencio e não a especiaria acinante de Plauto, a não ser talvez nos versos intitulados--_Uma femea_,--brazileiros no titulo e no sabor, d'um _piquesinho_ de gosto bastante equivoco. E já que entramos no capitulo das maculas, convém dizer-se que João de Deus é por vezes revolucionario de mais em assumptos de metrificação. Eu não gosto de absolutistas nem mesmo em poesia, mas tambem não morro de amores pelos tão republicanos que nos levem á demagogia. É preciso que sejamos um pouco _constitucionaes_ em tudo. Ora a _constituição_ poetica tem artigos que se não podem infringir sem se incorrer no crime de leso bom gosto, porque o bom gosto foi e ha de ser sempre o eterno legislador d'estes codigos. Um verso frouxo ou manco e uma rhima equivoca ou violenta hão de ser perpetuamente defeitos. Quem disser o contrario ou é tolo ou tem ouvidos de cortiça. João de Deus cahe por vezes nestes dous peccadilhos, deixando alguns versos arrastados, e outros duros; estes porém muito menos frequentes do que os primeiros. Mais frequentes são as rhimas violentas, algumas realmente d'um mau gosto insustentavel, taes como: _justiça_ rhimando com pinça, como a paginas 152; _rio_ e _viu_, como a paginas 159, e ainda algumas outras. É da tarifa dizer-se em occasiôes similhantes, como são da tarifa todas as vulgaridades, que não ha livro sem defeitos. Eu creio piamente na sentença, e até creio que um livro sem defeitos, se existisse, devia ser o mais defeituoso de todos os livros, o mais sorna e o mais semsaborão. Eu porém quando abro um livro não é para lhe andar a catar os defeitos pagina por pagina, como quem anda ao _pulgão_ pelos vinhedos. O que busco n'um livro são ensinamentos, calor de vida, fogo de coração e luz de intelligencia; esplendores de espirito e esplendores de palavra; genio, alma e sentimento. Ora um livro de versos onde ha composição como a _Rachel_, _O Musgo_, _Ultimo adeus_, _o Remoinho_, _a Carta_, e trinta outras lyricas de tal novidade e tal merecimento, tem obrigação de ter defeitos, por que sem elles... seria um livro impossivel, uma verdadeira monstruosidade. Diga-se aqui pois, e para se pôr ponto ao aranzel, que o livro de João de Deus tem maculas, mas que estas, como as do sol, desapparecem no meio dos esplendores d'aquella immensa luz de vida, de genio e de inspiração. _Flores do Campo_ é finalmente um livro de versos, como ha poucos n'este paiz, desde que por cá se escrevem versos.[1] Guarda, 4 de fevereiro de 1869. *Alexandre da Conceição.* [1]Jornal do Porto (1869) n.º 33. LIVROS REVISTA CRITICA BIBLIOGRAPHICA Flores do campo, _por João de Deus, publicadas pelo seu amigo José Antonio Garcia Blanco_--Lisboa, typ. Franco-portugueza, 1868--Em casa de Ferin & Robin--1 vol. in-16.º--271. João de Deus é um personagem semi-lendario na tradicção academica, e apesar de homem do nosso tempo, e tão do nosso que até com um diploma de deputado se nos apresentou ha pouco, anda-lhe o nome rodeado de quasi os mesmos fulgores e as mesmas sombras em que uma historia superficial ou mentirosa envolveu os velhos trovadores da Provença. Permittam-me uma digressão. Ha n'esta sociedade portugueza--já agora, ao que parece--condemnada a refocilhar em monturo de sanefas lantejouladas e rotas que lhe deixou o passado, e a dar ao mundo o triste espectaculo d'uma nacionalidade sem _idêa_ que a represente na historia philosophica de amanhã, sem _ideal_ que lhe seja pharol e bussola na tormentosa navegação das sociedades d'hoje; ha, digo, n'esta nossa sociedade amortecida: extraordinarias visões, mysteriosos anceios, esforços convulsivos como que filhos de ignotos impulsos, que bem poderiam passar por agonias e paroxismos annunciadores da proxima dissolução, se um diagnostico escrupuloso não encontrasse antes n'aquillo promessas de reacção proxima, de rejuvenescimento que não vem longe, de evolução fatal, que, em Portugal como em toda a parte, denuncia por aquellas aberrações e anormalidades a sua sublime prenhez d'uma nova idêa, d'uma era nova. Erguem-se no meio da grasnada petulante ou esteril da litteratura, vozes persistentes... doces ou enthusiasticas, sympathicas ou ameaçadoras... frescas, novas, _originaes_--_raræ voces!_--que parece irem na turba desmoralisada pôr em vibração alguma cellulasinha não contaminada do mal. E a turba põe-se a escutar, a applaudir, a aspirar soffregamente os frescores e doçuras, que tão enormemente se distanceiam dos miasmas do ambiente habitual, do sabor da habitual pitança. Alteiam-se, no meio da calaçaria geral, do geral e natural desanimo, vontades energicas que a pedraria da mestrança ignorante, intolerante e madraça não consegue desviar um momento da faina do estudo e da evangelisação scientifica. E a turba vae attentando n'ellas, vae sympathisando com aquelles revolucionarios heroicos do marasmo, vae comparando-os com os idolos anões que, sem ella saber como nem porque se grudaram aos altares da sua admiração, vae fitando os novos horizontes para onde lhe apontam os novos chefes, vae-os seguindo já ao impulso d'uma necessidade indefinivel mas fatal. Ha n'isto, já se vê, alguma cousa d'allucinação infantil. Crê-se que os novos Moysés levam comsigo, completas, as verdadeiras taboas da lei, e rasgarão com a magica varinha as brumas que envolvem a terra da promissão. Engano. Não lhes dão as forças para mais que para um terço do caminho, se tanto. Mas isso mesmo é muito, é o que basta. Hão de apparecer novos guias. A questão é saír da esterilidade do deserto. Citemos porém dois factos, tiremos dois exemplos, apenas, de tantos que podiamos apresentar da revolução litteraria que se realisa surdamente no seio da nossa pequena sociedade. Sejam elles, por hoje, dois poetas: Theophilo Braga e João de Deus; dois verdadeiros revolucionarios como outros de que para o diante terei de fallar. Um, apesar do mal que dizem d'elle, e do mal, que é maior talvez, que elle a si proprio faz, é inegavelmente um dos nossos poucos talentos originaes na concepção e na manifestação litteraria, na _idêa_ e na _fórma_, e se não é marco que no futuro atteste um grande e brilhante progresso na litteratura patria, é como que atrio imperfeito e tosco, mas espaçoso e altaneiro que póde servir d'entrada a _pantheon_ de explendidos engenhos. E grande engenho é Theophilo, de certo. Por entre uma saraivada d'apodos e improperios de _mau gosto_ ou _má fé_, conquistou elle um logar elevado, na poesia portugueza d'hoje, cujos magnates na maxima parte, persistem, com risivel teimosia, em trazer-lhe engastada na corôa á laia de fina joia, o carvão da ignorancia, ou em mascararem-na com um falso e retrogrado _classissismo_. Theophilo porém avançou menos do que devia. O _idealismo_ desvairou-o, o _romancismo_ perdeu-o. Um dia a voz sympathica, insinuante, ora melancholica e dolorida, ora--bem poucas vezes!--alegre e enthusiastica de João de Deus começou de fluctuar por sobre o borburinho cançado e monotono das nossas letras. Não se sabe como nem quando foi. Perdeu-se a chronologia biographica nos encantos do _quasi_--extasis. Sabe-se sómente que a reputação do poeta não nos entrou na terra, dentro do cavallo de pau d'algum chefe _grego_, mestrão consummado n'estas maquinações. Sabe-se tambem que João de Deus não andou por salas e officinas, annunciando a fazenda que tempos depois, atirada ao mercado, podia realisar o caso da _mons parturiens_. João de Deus apparecia-nos uma ou outra vez n'um periodico de Coimbra; ora nos segredava uma estrophe singela e melodiosa pelo postigo de uma typographia alemtejana; ora surgia em um periodico da capital a contar-nos umas duvidas que o magoavam, umas saudades indefiniveis que o pungiam, uns vagos amores que lhe andavam rumorejando lá dentro em vagas harmonias. E ninguem sabia quem era João de Deus. E ninguem procurava saber quem fosse. Ou antes, julgavam todos sabel-o. Conheciam-no todos. Era um cerebro em ebullição, um coração em ataxia permanente, um estomago que valia por uma adega. João de Deus era um doudo que forrava as paredes do albergue com as folhas das _sebentas_, que dormia dentro da enxerga, porque achava mais commodo isto do que dormir-lhe em cima, que se matriculava todos os annos na faculdade em que o secretario-universitario se lembrava de matriculal-o, que fôra de Coimbra a casa, d'algibeira vasia e lapis constantemente occupado em fazer magnificos versos ou magnificos desenhos, que se fizera um dia sachristão, e pozera n'outro, todo um bairro em sobresalto, subindo aos telhados para apostrophar a lua, etc., etc. E as anecdotas galantes succediam-se, e a cada nova poesia annexava-se uma historieta, e quando as poesias escaceavam, attribuiam-se ao poeta novas doudices, novas excentricidades, como a certo honrado e já defuncto general se attribuiam quantos dispauterios o soalheiro burguez produzia. Se eu fosse biographo de João de Deus havia talvez de lavrar aqui um protesto esmagador. Como não sou, limito-me a dizer o que penso do illustre algarviense. _Mais_ ou _menos_ todos somos poetas. N'este _mais_ e n'este _menos_ está, creio eu, o segredo da organisação _sensorial_, se póde dizer-se assim, organisação modificada é certo, mas não completamente transformada pelo _meio_ e pelo _habito_. Tal _sensação_ que n'uns individuos poria o cerebro n'um estado de effervescencia que lhe _exagerasse_ a realidade, a ponto muitas vezes de a substituir por uma concepção puramente subjectiva, em taes outros póde dar apenas o facto funccional em condições normaes e ordinarias, e, concentrando-se, converter-se em reflexão. Precisava isto longo desenvolvimento. Ora como o primeiro modo de ser _sensorial_ póde dar-se em todos, mas com mais ou _menos_ intensidade, com _maior_ ou _menor_ frequencia, digo eu (e dizem bons escriptores) que todos são _mais_ ou _menos_ poetas. Isto quanto ao facto intellectivo. Quanto á expressão, o mesmo se póde dizer sem receio de contestação seria. Pois na concepção como na palavra eu tenho João de Deus por verdadeiro poeta. Dizia Merck, homem de profundo bom senso, a Goëthe, seu amigo: «A tendencia irresistivel do teu genio é a de imprimir a fórma poetica ás cousas _reaes_. Outros procuram uma _soi-disant_ poesia tranformando em realidades, puras _imaginações_, o que só produz disparates.»[2] Sem concordar incondicionalmente com a primeira phrase do sensato allemão, sem querer acceitar a segunda como lei comprovada de critica litteraria, parece-me que de João de Deus se poderá dizer que reune as duas tendencias, as duas feições designadas, a _idealisação_ (phrase consagrada e porventura inexacta) do _real_, e a personificação, melhor talvez, a realisação plastica do _imaginario_. Como que as sensações sensoriaes[3] n'aquelle cerebro delicado, ou atravez d'aquelle organismo exageradamente impressionavel se destacam algumas vezes do estimulo, ou alteram a natureza da propria objectividade e criam um mundo novo, um mundo mystico, permittam-me a expressão, a que o poeta dá uma realidade objectiva moldando-o pelas manifestações plasticas do mundo em que vive. Acontece porém, poucas vezes, nem podia deixar de ser assim, quando a indole da época e a illustração do poeta se estão oppondo á formação e sustentação d'estas concepções puramente subjectivas. Adivinha-se aqui ou alli a lucta tremenda que vae no cerebro de João de Deus, lucta que é a feição caracteristica do seculo, e que o manto esfarrapado do eclectismo immoral não consegue abafar, lucta entre o velho _crêr_ e a _duvida_, a duvida, que como a hydra da mythologia surge após cada decepamento, e que não é possivel destruir como aquella decepando-lhe o tronco. Ouvide um exemplo: Prestes, se inda na rocha de granito D'onde em tempo me vias, te sentares, Não olhes para a terra, ou para os mares, _Olha sim para o céo, que é lá que habito._ _Lá, tão longe de ti mas não do terno,_ _Bondoso pae que os dois nos ha gerado,_ _Só para magoas não, que bem guardado_ _Nos tem tambem no céo prazer eterno._ Que profunda crença, que certeza _mystica_, se póde dizer-se assim, não rescende a suave _morbidezza_ d'estes versos! Ha alli alguma cousa do cantor da Bice. Vêde porém a tempestade que se annuncia; a duvida atravessou como um relampago o cerebro do poeta. Ouvide: Não se é só pó no fim de tanta magoa. _Senão_, diga-me alguem que allivio é este Que sinto quando á abobada celeste Alevanto os meus olhos rasos d'agua? Mentem os céos _tambem_? Os céos maldigo. Feras, tigres _tambem_ o céo povoam? _Tambem_ os labios lá sorrindo coam Veneno desleal em beijo amigo? _Mas na dôr é que os astros nos sorriem,_ E os homens não sorriem na desdita. Astros! fio-me em vós, e Deus permitta Que os infelizes sempre em vós se fiem. Refaz-se a crença, resurge a esperança consoladora: Ha depois d'esta vida uma outra vida. _Não se reduz a nada um grão d'areia,_ _E havia de a nossa alma, a nossa ideia,_ Nas ruinas do pó ficar perdida? Pobre sonhador! Aquelle segundo verso é um protesto ironico contra o teu ideal mystico, é o _grão d'areia_ que ha de intorpecer e desmandar todo o machinismo psycologico da tua crença! Continúa: _Isso que pensa e quer_ (até me admiro) Isso que a luz nos traz, que a luz nos leva, etc. e accrescenta: _Onde_, não sei eu bem, mas sei que existe Deus remunerador. Depois de mortos Hemos de vêr-nos e um no outro absortos Fartar de glorias este amor tão triste. Tão triste e... (o coração que me adivinha?) N'este supplicio nosso, _este tormento_, Nunca dos labios teus minimo alento Num só beijo bebi em vida minha! Fulge de novo o relampago, baqueia o edificio da crença, vêde que tormento: _E morro sem te vêr!_ Cabeça douda Desasissado amor? sonhar afflicto Um sonho até morrer... Pobre Hamlet! _... the rest is silence_ Um sonho até morrer... Não: resuscito; Morto tenho vivido a vida toda. Pobre Faust! O _insufficiente_ (das Unzuloengliche) atormenta-te, porque te fascina o _inenarravel_ (das Unberchreiblichee). Que tempo precioso perde comtigo o sensato Mephistopheles! Preferes á gargalhada que te chama á realidade da vida, o _chorus mysticus_ que te amargura a existencia com a mentira da miragem! João de Deus é rigorosamente um artista _insaciavel_: «Satiari artis cupiditate non quit,» como diria Plinio. Adivinha-se em cada estrophe d'elle um ancear indefinivel, um vago aspirar, se póde dizer-se assim, uma como que miragem que atráe o poeta, que o alenta umas vezes e o desespera não poucas, que parece enviar-lhe dos visos do horisonte uns suaves frescores envoltos em deliciosos perfumes, e que como a miragem do deserto, lhe foge sempre aos labios sequiosos. E o pobre viandante vae caminhando e cantando sempre. É um descantar dolorido geralmente, como que descantar de saudade do que sonhou e não acha, e não gosa, e não encontra no caminho, como que de _saudade_ do que lhe foge sempre, deixem-me usar a dôce palavra que bem sei eu que não fica ella bem lexicographicamente applicada. E assim com a imaginação embalada por um vago _ideal_ vae João de Deus _poetisando_ como Goëthe na opinião do seu, já citado amigo, tudo o que no caminho encontra. Poucas vezes se lhe altera a harmonia cerebral ao impulso d'uma vibração mais violenta. Os successivos amores--fundem quasi n'uma abstracção, parecem subtilisar-se até no _feminino eterno_ do cantor do Fausto. Hoje Margarida, amanhã Helena, depois... Depois quem sabe? Hoje Marina. É uma recordação. Como esse olhar é dôce! Dôce dâ mesma sorte Como se nunca fosse Toldado pela morte, Como se alumiasse O sol ainda em vida As rosas d'essa face Agora carcomida. Colhesse-as eu mais cedo E logo que alvorece, Já não tivesse mêdo Que a terra m'as comesse. ......................... Se um dia nos meus braços Te desbotasse as côres, Passavam os abraços... Passavam os amores!... Oh não: mil vezes antes No céo lá onde habitas E os rapidos instantes Que vens e me visitas N'este degredo nosso Que tanta gente estima, E eu, só porque não posso Não largo e vou lá cima. Vem tu cá baixo, abala, etc. ....................... Ha uma hora ou mais, Marina! que contemplo A casa de teus paes Que é para mim um templo. É esta vida um mar E bem se póde a gente Marina, comparar A rapida corrente Que vae de lado a lado Por esses valles fóra Sem nunca lhe ser dado Ter a menor demora: Pára quando a engole Aquelle mar sem fundo; Nem pára, é como o sol E como todo o mundo. ....................... Custa a resistir á tentação de transplantar para aqui completas, estas magnificas _singelesas_. Não ha n'aquillo alguma coisa do que é espontaneo e bello na _Vita Nuova_? Mas, como dissemos, o poeta approxima-se tambem do _Faust_ na volubilidade artistica. Maria! vêr-te á porta a fazer meia Olhando para mim de vez em quando É o que n'esta vida me recreia. ................................... E eu pallido, Maria! o pensamento Não é trabalho que nos dê saude, Esta imaginação é um tormento. ................................... É que a gente na sua mocidade Não cabe em si, não pára de contente E assim fui eu na flôr da minha edade. Tu eras n'esse tempo simplesmente A flôr que vae nascendo e mais valia Seres tão terna ainda e innocente. Já esse lindo pé que tens, Maria! Esse quadril tão largo e cinta estreita Me não vinha á ideia noite e dia; Esses encontros de mulher perfeita, Esse peito redondo e arqueado Como a pomba farta e satisfeita; Talvez vivesse então mais socegado Ou já que a minha sorte é sempre triste Ao menos não andasse enfeitiçado. ................................... Depois é Margarida: Oh! que formosos dias, Margarida! Esses, etc. etc. Depois... Ha nomes que não se proferem, que não se denunciam. São como certo nome do Deus judaico. O poeta diz simplesmente: _No leito nupcial._ Um nome depois d'isto fôra mais que uma profanação, fôra uma infamia. Julgaes porém que ides ouvir uma recriminação amarga ou uma indiscripção villã? Dorme, estatua de neve, Vergontea de marfim, Tocar que impio se atreve No que é sagrado assim! Dois são: o mais, mysterio Vedado á terra, Deus Talvez do solio ethereo Nem baixe os olhos seus. Respeita-os, tapa-os, como Japhet e Sem, o pae... Pende sagrado pomo, A vista ergue-se e cáe. Ergue-se e cáe, conforme A lei que o manda assim, _Ergue-se_ e... dorme, dorme, Vergontea de marfim! ....................... Não segue acaso a sombra Teu corpo sempre, flôr? E pois porque te assombra Meu insensato amor? ....................... Depois é Beatriz: Tu és o cheiro que exhala Ao ir-se abrindo uma flôr; Tu és o collo que embala Suas primicias d'amor. Tu és um beijo materno, Tu és um riso infantil; Sol entre as nuvens do inverno, Rosa entre as flôres d'abril. Tu és a rosa de maio, Tua és a flamula azul Que atam á flecha do raio As nuvens negras do sul. ....................... E assim vae cantando sempre, de nome em nome, e de mysterio em mysterio e d'amor em amor, de duvida em duvida, de saudade em saudade, d'anceio em anceio. Não ha Beatriz que o retenha e lhe oiça o _Ecce Deos fortior me veniens dominabitur mihi_. Um dia encontra uma mulher formosa, joven, alegre. Ama. Será amado? Amas-me a mim! perdoa, É impossivel! Não, Não ha quem se condoa Da minha solidão. Como podia eu triste, Ah! inspirar-te amor, Um dia que me viste, Se é que me viste... flôr! ....................... Via-te arfar o seio... Córar... mudar de côr, E embora, ah! não, não creio, Tu não me tens amor! E o sonho foi-se e a visão desappareceu. Como se chamava aquella mulher? Vão lá saber como se chama a estrella cadente que rasga a amplidão do espaço e desapparece n'ella? E foi uma estrella cadente, aquella. Perdoem a indiscripção. Outro dia é o poeta que se afasta, que foge, porque receia macular com o seu halito o puro fulgor da estrella. Tenho-te muito amor, E amas-me muito, creio, Mas ouve-me, receio Tornar-te desgraçada. O homem, minha amada, Não perde nada, gosa; Mas a mulher é rosa... Sim, a mulher é flôr! Ora, e a flôr, vê tu, No que ella se resume... Faltando-lhe o perfume. Que é a essencia d'ella, A mais viçosa e bella, Vê-a a gente e... basta. Sê sempre, sempre casta! Terás... quanto possuo! Vou findar com as transcripções, que bastam as que ficam feitas para comprovar o que ácerca d'estas mimosas poesias e d'este original poeta tenho dito e hei de para o diante dizer. Não posso porém resistir á tentação de citar ainda uns trechos d'uma das mais bellas e caracteristicas composições de João de Deus. Podesse eu transcrevel-a toda! Não tem nome. Chamam-lhe alguns «A vida». Innumeras vezes tem ella feito cessar as alegrias das salas e interrompido brilhantes festas como o austero bispo de certa poesia de Thomaz Ribeiro, para mendigar ao sentimento das damas um condoimento de triste sympathia pelas intimas amarguras do poeta. Tem por epigraphe aquellas formosas palavras do Tasso: Cosi trapassa al trapassar d'um giorno, etc. e começa: Foi-se-me pouco a pouco amortecendo A luz que n'esta vida me guiava, Olhos fitos na qual até contava Ir os degraus do tumulo descendo. Em se ella annuveando, em a não vendo, Já se me a luz de tudo anuveava; Despontava ella apenas, despontava Logo em minha alma a luz que ia perdendo. Alma gemea da minha, e ingenua e pura, Como os anjos do céo (_se o não sonharam..._) Quiz mostrar-me que o bem, bem pouco dura. Não sei se me voou, se m'a levaram, Nem saiba eu nunca a minha desventura Contar aos que inda em vida não choraram. Estas linhas fazem recordar Camões. Ha n'este tristuras que se manifestam por versos parecidos, mas eu prefiro estes ao tão conhecido soneto da «Alma minha gentil,» etc. Parece denunciar-se n'esta singelesa _morbida_, se póde dizer-se assim, mais sentimento e espontaneidade. Vamos mais além. Que superabundancia de ímagens! Que riquesa e variedade de _sensação_! Que esplendidos quadros! Que magnificencia de colorido! Ah! quando no seu collo reclinado --Collo mais puro e candido _que arminho_, _Como abelha na flôr do rosmaninho_ Osculava seu labio perfumado; Quando _á luz dos seus olhos_... (que era vêl-os, E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!) Lia na sua bôcca a _Biblia santa_ Escripta em letra _côr dos seus cabellos_: Quando aquella mãosinha pondo um dedo Em seus labios de _rosa pouco aberta_, _Como timida pomba_ sempre alerta, Me impunha ora silencio, ora segredo; Quando, _como a alveloa_, delicada, E linda _como a flôr_ que haja mais linda Passava _como o cysne_ ou _como ainda_ Antes do sol raiar, _nuvem dourada_; ................................... Quando a _cruz_ do collar do seu pescoço, _Estendendo-me os braços, como estende_ _O symbolo d'amor que as almas prende,_ _Me dizia_... o que ás mais dizer não ouço; ............................................... Quando o _ouro da trança_ aos ventos dando E a _neve_ do seu collo e seu vestido --_Pomba_ que do seu par se ia perdido, Já de longe lhe ouvia o peito arfando;[4] Tinha o _céo_ da minha alma as sete cores, etc. ........................................... ........................................... Que é d'esses cabellos d'ouro Do mais subido quilate, D'esses labios escarlate, Meu thesouro! Que é d'esse halito, que ainda O coração me perfuma! Que é de teu collo de espuma, Pomba linda! .............................. .............................. De dia a estrella d'alva empallidece; E a luz do dia eterno te ha ferido. Em teu languido olhar adormecido Nunca me um dia em vida me amanhece. Foste a concha da praia. A flôr parece Mais ditosa que tu. Quem te ha partido, Meu calix de crystal, onde hei bebido Os nectares do céo... _se um céo houvesse!_ Fonte pura das lagrimas que choro![5] Quem tão menina e moça desmanchado Te ha pelas nuvens os cabellos d'ouro! ..................................... A vida é o dia d'hoje, A vida é ai que mal sôa, A vida é sombra que foge, A vida é nuvem que vôa; A vida é sonho tão leve Que se desfaz como a neve E como o fumo se esvae: A vida dura um momento; Mais leve que o pensamento, A vida leva-a o vento, A vida é folha que cáe! A vida é flôr na corrente, A vida é sopro suave, A vida é estrella cadente, Vôa mais leve que a ave; Nuvem que o vento nos ares, Onda que o vento nos mares Uma apoz outra lançou, A vida--penna cahida Da aza da ave ferida, De valle em valle impellida A vida o vento a levou! .............................. .............................. _Talvez_, é hoje a Biblia, o livro aberto Que eu só ponho ante mim nas rochas, quando Vou pelo mundo vêr se a posso vêr; E onde, como a palmeira do deserto, Apenas vejo aos pés inquieta ondeando A sombra do meu ser. .............................. Depois d'isto comprehendeu-se que João de Deus se propozesse a traduzir o _Cantico dos Canticos_. Como, se bem me lembro, diz Herder, os elementos primordiaes da poesia hebraica são a _sensação_ e a _imagem_, e posto que, no meu entender, a boa critica não possa monopolisar aquella feição em favor apenas d'aquella poesia, porque ella é caracteristica de todas as litteraturas na sua genese, e nos primeiros periodos de constituição, em quanto predominam no homem os sentimentos elementares como diz Veron[6], comtudo a poesia hebraica propriamente tal quasi não chega a ultrapassar o periodo d'aquelle predominio. Poderiam talvez accusar-se os versos que acabo de transcrever de certo _garridismo_ que mal iria ao sentimento que exprimem, se a violencia d'esse sentimento, o estado de exaltação sensorial não estivessem justificando o que parece defeito aos leitores que não sintam a transfusão psychologica que muitos hão de experimentar ante aquelles versos magnificos. A poesia de João de Deus é verdadeira musica. Se eu estivesse agora para combater os que julgam como Lamartine[7] que a _versificação_, o rhythmo, a cadencia, a rima, são cousas indifferentes á poesia na «época adiantada e verdadeiramente intellectual dos povos modernos», os que teem tudo isso, como Heine (cit. por Max. Buchon) por completa puerilidade, para valente comprovação me podiam servir os versos do nosso poeta. São elles geralmente como que uma psalmodía. Allia-se a musica e a poesia que tantos querem distancear, como se o rythmo fosse apenas elemento especial d'uma arte. João de Deus como que tem uma rhythmopêa espontanea. Sahe-lhe o verso moldado pela ideia e pelo sentimento, e n'este como n'aquelle a modulação existe pelas fataes variantes dos estimulos e das vibrações cerebraes. Procuraram os gregos systematisar as relações do rhythmo para com a idêa e o sentimento, como se fôra possivel marcar limite numerico aos modos de ser do pensamento, ou aos productos da actividade intellectual e esthetica. Se, pois, em muitos casos, são acceitaveis as velhas regras, geralmente a rhythmopêa deve ser producto espontaneo, e não _canon_ de escóla. E porque se dá o primeiro caso em João de Deus, é que talvez se revela nos seus versos, bem salientemente o cunho da personalidade, condição essencial d'uma obra poetica. É necessario não perder aquella de vista, porque, como diz o critico francez, que atraz citei, o verdadeiro merecimento, na poesia, está antes na esthesia do poeta de que na do leitor. Ora bastam as transcripções que fiz para vêr como a personalidade do poeta, o seu sentir e pensar se patentêam na expressão, na _fórma_, que em outros escriptores mal disfarça com arrebiques e ouropeis a carencia da sensibilidade e inspiração pessoal. Ha mais poesia n'algumas _singelezas_ de João de Deus do que em muitos _versos_ laureados que por ahi correm como modêlos de _metrificação_, e que bem podem sêl-o, o que não basta de certo. Mais poesia em pobre margarida Que aos pés se pisa, enthesourada vejo, Que em muita madreperola polida Que as cinzas guarda de finado arpejo. Toquei eu agora n'uma das melhores poesias de João de Deus, poesia que elle diz ser fragmento, e fragmento que bem faz desejar a apparição da obra toda. Vou ainda transcrever alguns trechos que lançam de certo muita luz sobre o vulto, quasi lendario do poeta, em pontos menos esclarecidos pelas transcripções anteriores. Padre, ministro do Crucificado É bom ferreiro afeiçoando o ferro Com que ha de prestes ir rompendo o arado Os campos d'este secular desterro... .................................... Na montanha da Fé, mulher formosa Se ante mim a meus pés desenrolasse Como o demonio a vastidão pasmosa Que elle dava a Jesus se o adorasse E me pedisse em premio uma só cousa Ás mãos de minha mãe furtar a face; Eu lançava-lhe cuspo... ................................... Vêde-a ao berço, sofrega de vida Que a sua é pouca para dar ao filho; _Ella_ em cama de espinhos, mal vestida, _Elle_ enfaxado, em berço de tomilho; _Ella_ em continua, asafamada lida, _Elle_ vendo se apanha á luz o brilho... _Já descobrindo em tão tenrinha edade_ _Que toda a sua sêde é de verdade._ ................................. ................................. Irmãs da Caridade! A caridade Tem só duas irmãs--a Fé e a Esperança: Não traja as côres só d'uma irmandade, Traja as côres do Arco d'alliança; Leva sósinha o pão da piedade, Tira da roda essa infeliz creança... Roda da vida que anda de tal sorte Que, em se lhe dando, é já contar com a morte. Bemdita sejas tu, victima triste D'um peito amante e d'um amante ingrato! Que nunca á mesma loba lançar viste Inda mamando o cachorrinho ao mato; Bemdita sejas tu, que o que pariste Teu fructo, imagem tua e teu retrato Conservas como espelho onde te vejas; Bemdita sejas tu, bemdita sejas. ................................ ................................ Acaso é só dourada, altiva estola Que liga os corpos em as mãos ligando, Confunde corações e faz em summa Que a Deus se elevem duas almas n'uma? Ahi tendes o apostolo, o campeão social. Não lhe aceiteis, muito embora, a doutrina. Acatae-lhe a generosidade, a grandeza da _ideia_, a robustez da convicção. Que poema enorme, magestoso e bello não será aquelle! Colligir as poesias de João de Deus que por ahi andavam dispersas, mutiladas e perdidas, foi de certo um grande serviço ás patrias letras. Prestou-o o snr. José Antonio Garcia Blanco. Poeta mais original, mais rico, mais verdadeiro do que aquelle, não conheço na litteratura portugueza, e tanto como elle, ha de ser difficil de encontrar entre nós, na litteratura d'hoje. Um certo _mysticismo_ mal definido que recendem as suas poesias, é menos producto da tradicção que originalidade genial. João de Deus é um homem do Meio-dia com o vago ancear d'um poeta do norte. Opprime-o o _insufficiente_ como ao Faust. Se lhe désse para ser philosopho, onde iria parar?... Como poeta tem alguma cousa de Ossian com alguma cousa de Goëthe...[8] *Luciano Cordeiro.* [2] «Goethe et Schiller» por E. Rambert. (Revue Suisse--fev. 1869). [3] Quando digo «sensações sensoriaes», fallo das sensações «externas e internas», como vulgarmente se classificam, e não excluo as que se dão sem realidade objectiva que as provoque, e que constituem o estado pathologico da «allucinação», estado a que porventura se poderia reduzir algumas vezes, creio, o «mens divinior» dos antigos. Esta ultima observação é minha, as anteriores são de Luys (Recherches sur le système nerveux, etc., etc., cit. par Littré) e E. Littré, De la méthode en psychologie (Phil. posit.--Revue--1.^er vol.) [4] Seguia-se a seguinte quadra, que não apparece na collecção e que eu acho não só egual em bellesa ás citadas, mas superior a algumas: Quando _o annel_ da bôcca lusidia, Vermelha _como a rosa cheia d'agua_ Em beijos á saudade abrindo a magua _Mil rosas_ pelas faces me esparzia; [5] Variante: Oh lagrima das lagrimas que choro! [6] Superiorité des artes modernes. [7] Cours fam. de litt. [8] Revolução de Setembro (1869) n.^os 8012, 8015 e 8023. * * * * * FLORES DO CAMPO DE João de Deus É indispensavel crêr na poesia como se crê no Evangelho, como se acredita em Deus. No perpassar d'esta via dolorosa, cortada a todo o passo de agrestes sinuosidades, a poesia luzindo de quando em quando ao viageiro extenuado como um iris de bonança, significa a mais completa redempção da materia pelo espirito. Aguia sobranceira que elevando-se até perder de vista o lodo em que se immergem tantos e tantos seres, vae roçar com a fimbria da aza a crista das nuvens, confundindo os seus arrulhos mysteriosos com as melodias dos seraphins! Creou Deus a poesia para que a primavera com os seus canticos e perfumes, com a sua opulenta vegetação, encontrasse quem a comprehendesse, quem a cantasse: creou Deus a poesia para escarmento ao vicio, distanceando-nos do finito que é o começo do scepticismo, para o infinito que é Deus! Surgiu a poesia para que nas trevas de um mundo que ri de tudo como Democrito, que tudo amesquinha, brilhasse uma luz que só de vêl-a a alma se purificasse e o espirito adejasse para o ideal. Não chamem á poesia trivialidade. Estudem os seculos; contemplem as nações e digam se a poesia teve ou não extraordinaria influencia nos grandes acontecimentos sociaes. Quem, senão Roger de l'Isle, ergueu palpitante toda a França com umas quantas estrophes, a _Marseillaise_? Não foram os versos de Shakespeare, de Milton, de Pope, que poderosamente concorreram a immortalisar a Inglaterra? Portugal não deve a fama da sua gloria aos _Lusiadas_ de Camões? Consintam os homens de algarismos, os materialistas que antepõem a carne ao espirito, que fazem d'ella o seu credo, que os poetas, os sonhadores de chimeras deixem devanear a imaginação por esses horisontes de anil; deixem que reclinados á proa do baixel da vida namorem o azul das aguas depois de terem contemplado o dos céos. Ai da humanidade, se o poeta deixar pender a fronte desalentada ao partirem-se-lhe as cordas da lyra! a prosa invadirá o sanctuario dos mais nobres estimulos, e o sceptico exultará ao soltar a sua risada infernal como a dos condemnados do Dante. Não sei quantas vezes temos lido as _Flores do Campo_, exhaurindo sempre novos e exquisitos perfumes. Tem isso a originalidade, que é o distinctivo d'este poeta. Costumamos dizer com referencia a qualquer notavel escriptor nosso: aquelle talento tem a suavidade de Lamartine, o sentimento de A. de Musset, o mysticismo de Chateaubriand, a ironia de Byron, a energia apaixonada de Victor Hugo. Porque não havemos de dizer que João de Deus tem o cunho original da poesia portugueza na sua mais genuina expressão?! Quem se compraz em parodiar constantemente os usos e idiomas dos de fóra, deve uma vez por outra, ufanar-se do que tem de seu original e portuguez de lei, como o é João de Deus em todos os seus escriptos. Atravez dos versos do mimoso poeta contemplam-se as noites estrelladas de Portugal, o Tejo com as risonhas margens, Coimbra com a sua _Fonte das Lagrimas_, o clima emfim e a vegetação esplendida d'este pequeno eden. Vê-se que este poeta é portuguez de feição, e comprehende-se quanto na patria de Camões e Garrett a poesia se manifesta espontanea e esplendida na fórma e ideia! Começa o livro com a poesia _Camões e Byron_, e termina com o _Cantico dos Canticos_: abre pois com chave de prata para fechar com chave de ouro. Ha estrophes de uma suavidade tão nimiamente infantil, tão peculiarmente despretenciosa, que a ninguem senão a João de Deus poderiam attribuir-se, quando mesmo o seu nome não estivesse engrinaldando luxuosamente o adito d'este livro. Citaremos, entre muitas, estas: Maria! vêr-te á porta a fazer meia Olhando para mim de vez em quando, É o que n'esta vida me recreia. .................................. Esses olhos azues... que olhar! Receio E desejo estar sempre a contemplal-o; Não ha mais doce e mais custoso enleio. .................................. Bem poderas, Maria andar tapada Só com o teu cabello, á similhança Do sol em nuvem de manhã doirada. ................................... A bôca é tão vermelha que, em te rindo, Lembra-me uma romã aberta ao meio, Quando já de madura está caindo. Na poesia _Innocencia_ revela o poeta, a par de uma finura de sentimento e extrema sensibilidade, um preito á virtude, que toda a mulher que a lêr deve necessariamente sentir-se attrahida por um sentimento de gratidão para quem a escreveu: Casta innocencia, de Deus filha e bella Entre as mais bellas! virginal aroma! Rosa ineffavel, que se á luz assoma, Haste e raiz apodreceu com ella! Percebemos tambem que João de Deus pertence ao numero dos crentes, ainda tão mal limitado; prova-o exuberantemente as suas poesias _Luz da Fé_, _Fragmento_, e varias outras. Deus era inda meu pae. E em quanto pude Li o seu nome em tudo quanto existe; No campo em flor; na praia arida e triste, No céo, no mar, na terra e... na virtude! Como o poeta adora a poesia e o quanto tem d'ella feito o seu credo, dil-o eloquentemente esta quadra: Oh! poesia, poesia altissima Como o fecho do impyreo! eu me ajoelho E beijo a tua base, harpa celeste! O coração--a corda que nos deste. Na alma d'este homem que tem na fronte uma estrella de fogo e talvez um martyrio no coração, suspiram ternuras indiziveis que a sua lyra traduz em canticos suavissimos: É do sangue e das mães que eu fallo, e certo, Que ha na vida mais sancto? O sangue é vida; E as mães fontes de vida: eu nunca esperto Esta lampada d'alma, suspendida Na abobada eterna e que tão perto Parece ter a origem.............. ....................senão quando Vejo essa cara imagem suspirando. Querem dizer, e talvez com razão, que João de Deus abusa da rima deixando-a por vezes defeituosa. A meu vêr esta pecha está na razão das manchas que o sol contém, mas que os nossos olhos não descobrem sem o auxilio do telescopio, o que não obsta a que o sol seja o astro do dia. «Marcar balisas á poesia, é impossivel, diz um illustre poeta e critico, a poesia é livre como o pensamento, e grande como a immensidade.» Eis-ahi está o segredo da culpa, e _feliz culpa_! Se João de Deus pertencesse a um certo numero de poetas que esgravatam na areia e folheiam livros alheios primeiro que possam rabiscar algumas insulsas linhas, talvez a rima lhe saísse menos incorrecta segundo a arte, mas acanhada e rachitica segundo o pensamento. A verdadeira poesia, como diz C. de Figueiredo, surge livre como a natureza; irrompe, inunda de luz de fogo, sem muitas vezes poder sujeitar-se aos acanhados moldes da arte. Apparece-nos o poeta, namorado como Bernardim Ribeiro, n'estas dulcissimas estrophes: Não ha existencia alguma Que não tenha amor, nenhuma; Porque o amor, é, em summa, Essencia de todo o ser. Ha sempre quem nos attraia, Mil vezes que a onda caia, Ha uma rocha, uma praia Aonde a onda vae ter. Seria um nunca acabar se fossemos a exarar aqui todas as preciosissimas joias d'esta corôa opulenta que veio enriquecer a nossa litteratura. Apartamo-nos do livro com extrema saudade, recommendando á leitora, que por acaso ainda o não possue, a prompta acquisiçao d'elle para collocal-o ao lado das rosas, jasmins e violetas com que, durante a formosa estação que se avisinha, ha de perfumar o seu _boudoir_.[9] *D. Guiomar D. Torrezão.* [9] Voz Feminina (1869) n.º 60. * * * * * ANNO LITTERARIO DE 1869 CARTAS A J. SIMÕES DIAS Á hora dos phantasmas, á meia noite, escreveste o _Anno litterario de 1868_. A noite é sombria e triste; e por isso as tuas reflexões humoristicas não occultam de todo a descrença, a tristeza e o desanimo, com que espalhaste a vista pelas coisas litterarias da nossa terra. Fundado ou infundado, não chamarei eu esse desalento, porque, de onde em onde, nos encontrariamos, se eu fosse ajustar o padrão da tua critica ao juizo que eu fizesse de producções da arte. Não posso, comtudo, deixar de querer muito a essa franqueza, que é o teu caracter, e a tua regra em materias de critica. E tanto mais lhe quero, quanto eu reconheço que a franqueza, hoje em dia, é fazenda de contrabando nas nossas alfandegas litterarias. Quando o anno de 1868 pertencia já ao passado, scismavas á meia noite sobre o mau rumo que te pareceu levarem as nossas letras. Eu sou um pouco mais crente, e menos atrabiliario: á entrada de 1869, estendo os olhos ao futuro, e espero e creio muito, porque já não são de pouca monta as primicias que nos offerece o anno litterario de 1869. Fallo das _Flores do Campo_ de João de Deus. Com a analyse d'este livro, abro uma serie de apreciações, em que te fallarei das obras poeticas que n'este anno, e em Portugal, se derem á estampa. O meu voto, em materia alguma tem força, nem eu procuro dar-lh'a, para se insinuar no animo do publico: é um voto individual, em que apenas acharás o merito da sinceridade e da franqueza. Direi de caminho que não sigo a trilha que me deixou o teu _Anno litterario_. Não deslembrarei os preceitos da critica analytica, para não apreciar, em synthese, obras que exigem demorado exame das suas partes. Tambem não escolho, para te escrever, a hora lugubre dos phantasmas. Começo a escrever-te ás horas d'uma esplendida manhã, espalhando os olhos por aquellas duas margens do nosso Mondego: a relva rasteira que as veste, e que me falla de vagas esperanças, ha de desentranhar-se em flores e fructos. Deixa-me crêr muito no dia de ámanhã. E porque não virão as flôres da poesia derramar perfumes sob este céo de Portugal, n'este _jardim da Europa_, onde já suspirou melodias Bernardim, Camões, Garrett, Castilho! Não morre a poesia portugueza: a estatua da deusa ainda não tremeu na peanha; e quando os iconoclastas do bello quizessem contra ella erguer braços profanos, a quantos apostolos da arte não teriam de suffocar a voz! Bem-vindos sejam estes sonhadores de chimeras, estes utopistas cheios de alma e coração, luctando de contínuo com o mundo real, e de contínuo erguendo-nos a mundos imaginarios, mas bellos d'uma belleza que não é da terra! Fallo-te da poesia individual, e eu sei bem que lhe não queres tanto como eu. Desejas que a poesia se concentre no mundo estreito dos fins sociaes; entendes que a poesia deve de limitar-se a mostrar o caminho á humanidade que marcha, ou á exaltação dos dogmas do seculo. Por certo que se não desvirtua a poesia, seguindo por taes veredas; mas o genio não tem peias nem limites: veste de luz o lirio dos valles; alumia a estrada ao caminheiro da vida; doira as arestas do serro escalvado; enche a noite de luz; de fulgores inunda o espirito, e não sei por quantos mundos nos leva a alma absorta! Marcar balisas á poesia, é impossivel, porque a poesia é livre como o pensamento. Deixa pois cantar os poetas que levantaram a vista do pó da terra, onde tudo é limitado como a materia, e vil como o gusano das ossadas. Deixa que eu te falle de um poeta, cujo espirito é aguia que raro avisinha a ponta das azas aos marneis da sociedade. A gente pasma da altura a que se eleva aquelle espirito, e acontece ás vezes que a nossa vista não póde acompanhar tão levantados vôos: perde-se elle no vacuo, e, quando divaga em mares de luz, ficamos nós em trevas, sem vêr a direcção que elle toma... João de Deus não canta para a sociedade, canta para si. Quer discorra por vergeis de poesia singela e perfumada, quer se eleve a alturas desmedidas, não se importa de que lhe não oiçam nem entendam o canto sempre harmonioso. É talvez por isso que elle não publicou, nem publicaria as _Flores do Campo_. Ao amigo que lh'as estampou, muito devemos nós todos os que presamos as nossas boas letras. Agora se me offerece caso para cogitações profundas: as _Flores do Campo_ saíram a lume ha quasi um mez, e, até á data em que te escrevo, dormem os nossos criticos a bom levar, sem que uma palavra lhes haja irrompido dos labios, sobre o merecimento d'este magnifico livro. Aqui, ha por força caso virgem, mas... ponto em bôcca. E pois que os criticos não querem, ou não ousam, pronunciar o seu _veredictum_, vou eu mostrar-te o valor em que tenho as _Flores do Campo_, por que me digas ao depois se não são ellas, para a nossa litteratura, prenuncios d'um outono avergado de fructos. Quando o visconde de Chateaubriand trabalhava por agremiar em torno da cruz as multidões, que ainda sentiam nos ouvidos a voz tentadora de Robespierre e Mirabeau, surgia na Inglaterra um homem extraordinario, personificação pasmosa do genio e do scepticismo--lord Byron. Ninguem como o cantor do _Childe Harold_, pôde jámais aliar uma alma de poeta ao scepticismo, á duvida, á frieza, que ressumbram de cada verso do _Don Juan_: For me, I know nought; nothing I deny, Amit, reject, contemn; and what knew you, Except perhaps that you were born to die? And both may after all turn out in true. Mas... na mente de Byron reflectia-se uma das tendencias mais caracteristicas da sociedade contemporanea; o scepticismo apresentou-se revestido com a aureóla do genio, ergueu-se como chamma incendiaria, e lavrou pela litteratura do seculo. Que restava aos adeptos da poesia? O maior numero, como os companheiros de Ulysses, deixou-se arrastar pelos cantos da sereia, e, se não abordou á ilha encantada, d'onde lhe acenava a gloria, mediu a profundeza do abysmo que a tentação lhe abriu aos pés...; outros, refugiram á attração, e velejaram alegres por onde os não batessem os pampeiros da descrença e do scepticismo. A poesia que abre o livro de João de Deus é o emblema dos dous rumos por onde tomam os argonautas da arte, e estrema o scepticismo e crença, _Camões_ e _Byron_. Não sei se esta composição vale muito aos olhos dos mestres; para mim, é das mais somenos de João de Deus, e, se não fôra collocada alli para denunciar, talvez, as crenças litterarias do auctor, não a quizera vêr á entrada d'este livro. A arte exige para um edificio primoroso um portico lavrado a primor. Na composição alludida, se a ideia é grande e original, a fórma que a reveste não, não é perfeita; sem fórma, não concebo arte, e sem arte não se traduz o sentimento do bello. Não vás porém julgar que estou dando lições de poetica a um poeta como João de Deus. Mais do que ninguem, conhece elle por ventura os defeitos do seu livro, e, se os poupou, ao limar os seus versos, é que não teve em tanta conta, como geralmente se tem, certas exigencias da arte. Que vês?--Sóes, de tal sorte Que os crêra tochas _pallidas_, Quando as guedelhas, _madidas_ De sangue, arrasta a morte. ........................... --Falla.--Deus! que harmonia! Aqui a alma _exalta-se_; A alma aqui _dilata-se_... _Camões!_--É a poesia. Nem a critica imparcial tanto exige, nem eu tenho logar bastante para transcrever aqui todas as estrophes, em que as rimas se me deparam defeituosas e erradas. Cito-te de passagem _queime_ e _geme_, _deixe_ e _feche_, _confesso_ e _immenso_, _cuides_ e _virtudes_, _outro_ e _encontro_, _géra_ e _inteira_, _teimo_ e _supremo_, _prega_ e _negra_, _avaro_ e _ara_, _sêde_ e _hei-de_, _põe_ e _foi_, _vê_ e _adorei_, _inteiro_ e _quero_, etc. E comtudo João de Deus parece brincar com as maiores difficuldades da rima. Para não fallar na poesia _Boas Noites_, basta apontar-te aquelle trecho da poesia _O Musgo_: Um dia, não sei que tinha... Uma tristeza tamanha! E lembra-me ir á montanha Que temos aqui visinha, Onde em tempo me entretinha Horas e horas sósinha, Quando ainda não se extranha Que n'uma teia de aranha Se prenda uma innocentinha, Ou atrás d'uma avesinha Se cance a vêr se a apanha. Em metricação tambem as _Flores do Campo_ nos offerecem provas de que João de Deus não é, n'este ponto, nimiamente escrupuloso. Assim ficou errado este decassyllabo: Chamando-os com enternecimento, e aquelle septissylabo que vae sublinhado: Que é a torre exactamente _De David n'esses ares,_ para não citar passagens como estas: _Adeus tranças côr de ouro,_ Adeus peito côr de neve. _Tornaram-se-me em estrellas_ _As lagrimas de dôr._ Versos ha tambem nas _Flores do Campo_ defeituosos pela disposição dos accentos predominantes. Bastam tres exemplos em versos decassyllabos: Ha puros sonhos de imaginação. E eu digo, digo á luz scismadora. Expôz aos coices... leão moribundo. Mas um verso completamente errado, e que por certo não sahiu assim da penna de João de Deus, é aquelle Que fez tremer as abobadas do inferno. Não é necessario ser auctor das _Flores do Campo_, para condemnar um verso tal. Descuido do impressor, e falta de cuidado na revisão, occasionaram aquelle erro, a que de prompto se obviaria com a suppressão de dous _ss_ inuteis. O que para alguém não será defeito, mas que para muitos torna inintelligiveis algumas passagens, do livro, é, por vezes o abstruso da ideia, velada por sombras impenetraveis. Dá-me tu, se podes, a chave d'este enigma: Oh! ha tres vistas com que as coisas vêmos; Ha tres rasões que as coisas determinam; Uma a dos olhos; outra a que escondemos N'isso ante que os álamos se inclinam; Outra a que dentro no coração temos, Que os limites do espaço só terminam: Coube a primeira em sorte á borboleta; A outra ao homem; a terceira ao poeta. E quando João de Deus, á vista d'um retrato, exclama: És tu! Amo-te e muito! O que fluctua Na fornalha que o sopro eterno acende, Não beija a mão do anjo que o suspende Com mais amor que eu beijo a sombra tua!» Quem é que fluctua na fornalha acesa pelo sôpro eterno? Será o sol? Especialmente n'aquelle fragmento que principia na pagina 130, mais alguns pontos se me deparam, para cuja interpretação me não sinto com forças. Não te faço mais citações, a este proposito, porque bem póde ser que toda a gente penetre o que para mim é escuro. Demais d'isto, parece-me que o poeta nem sempre tem obrigação restricta de moldar os vôos da sua imaginação pela myopia dos que só podem curvar-se diante das nuvens que velam a sarça ardente... Agora, vaes talvez esquecer as manchas que divisastes n'esta joia litteraria, para festejares comigo quadros esplendidos de poesia originalissima, rica de sentimento, de graça e de harmonia. Originalidades litterarias, poucos ha, já agora, que n'ellas creiam. Escorre de vez em quando, por ahi uma sanie de novidade tão asquerosa pelas folhas volantes da nossa litteratura de hoje, que os apreciadores de pituitaria melindrosa, não ha quem os desatrelle da sentença de que _tudo o que é novo é mau, e que tudo o que é bom é velho_. _Nihil sub sole novum!_--cantava o Gessner biblico, asseguravam os juizes de Galileu, e rouqueja Boileau com os demais amphyctiões da litteratura. Respeitemos o talento; mas aos que duvidam da grandeza do genio, e pedem ao passado a chave do futuro, atiremos-lhe á face com a resposta de Galileu:--_E pur si muove._-- Admittida a originalidade, moldada pelo bom gosto, devemos saudal-a em João de Deus, o poeta mais original que eu conheço entre os nossos homens de letras. Estudo João de Deus, dês que leio versos, e ainda não pude encontrar o segredo d'aquella harmonia tão sua, d'aquella elegancia tão despretenciosa, d'aquelle sentimento que tanto nos captiva a alma, sem sabermos como. Ou eu me engano muito, ou da poesia de João de Deus me vêm uns aromas que não desdizem d'aquella fragrancia que o esposo dos _Canticos_ aspirava nos jardins da Sulamite biblica; d'aquella gravidade scismadora que resaltava das cordas do psalterio de David; d'aquelle adejar sublime e vago da aguia de Páthmos. Tranemos agora o mar dos seculos, ponhamos ao lado das _Flores do Campo_ as fantazias de Schiller a Laura, e verás que muitos arrojos da imaginação do bardo portuguez não desmerecem a companhia dos do bardo do norte. Mas, sobretudo, o que mais me enfeitiça nas _Flores do Campo_ é aquelle mimo e suavidade que matizam estrophes como estas: Ah! quando no seu collo reclinado --Collo mais puro e candido que arminho,-- Como abelha na flôr do rosmaninho Osculava seu labio perfumado; Quando á luz dos seus olhos... (que era vêl-os, E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!) Lia na sua bôca a Biblia Santa Escripta em letra côr dos seus cabellos; Quando a sua mãosinha pondo um dedo Em seus labios de rosa pouco aberta, Como timida pomba sempre álerta, Me impunha ora silencio, ora segredo; ..................................... Quando em balsamo d'alma piedosa Ungia as mãos da supplice indigencia, Como a nuvem nas mãos da Providencia Um lagrima estila em flôr sequiosa; Quando a cruz do collar do seu pescoço Estendendo-me os braços, como estende O symbolo d'amor que as almas prende, Me dizia... o que ás mais dizer não ouço; ........................................ Tinha o céo da minha alma as sete côres, Valia-me este mundo um paraizo, Distillava-se a alma em dôce riso, Debaixo dos meus pés nasciam flôres. É assim que João de Deus se recorda da visão fugitiva que lhe doirou os sonhos de poeta e moço. Mais adiante, parece esquecer o lucto da saudade, mas não perde a doçura da harmonia: Como os teus pés são lindos! como é doce A curva do teu peito! Oh! se o meu coração fosse o teu leito, E o teu amado eu fosse! Que preciosas perolas descobre Teu meigo, humilde labio! E virgem! como Deus foi justo e sabio Em te deixar tão pobre! .................................... ........................ Tu não tens mais do que uma pobre saia, E essa, curtinha e leve. Onde o corpo te alteia, a saia avulta; Onde te abaixa, desce... És como a rosa! A rosa nasce e cresce, Não para estar occulta. O que te falta, pois? os teus desejos Quaes são? de que precisas? Ah! não ser eu o marmore que pisas... Calçava-te de beijos! Ao terminar a transcripção d'este mimosissimo trecho, sinto não poder attribuir a João de Deus a chave que o fecha. O aprimorado e suave oratoriano Manoel Bernardes já tinha dito na sua excellente _Luz e Calor_, fallando a Jesus menino: «Menino da minha alma, meu eterno nascido de ainda agora, meu gracioso molhinho de amores perfeytos, minhas bellezas encantadoras do coração humano: faze-me Serafim, para que te ame muito: dá-me limpeza grande em meus labios _para calçar teus pésinhos de mil osculos santos_: deyxa cahir das conchinhas de teus olhos hua lagryma sobre meu peyto, etc.» (Pag, 556, ediç. 1724.) Mas que importa isso? Prouvera a Deus que os plagiatos, de que a litteratura anda eivada, se pautassem por este! Vivacidade de expressão, galanteria e graça, podes vêr d'isso um modelo no madrigal, epigramma, ou como quizeres chamar-lhe, feito _A uns olhos azues_: Cáe a folha da rosa pudibunda, Cáe a rosa da face virginal, Cáe das nuvens a aguia moribunda, Cáe o sol na montanha occidental. ................................. Cáe do céo a centelha incendiaria, A nuvem cáe, se um sopro Deus lhe dá, Cáe ante o dia a noite solitaria Como o falso Dagon ante Jehovah. Cáe tudo, flôr! cáe tudo; eu só não caio: Mais do que um rei, que o sol, egual a Deus, Cahir, mulher! só posso á luz d'um raio Se elle cahir do céo dos olhos teus! De vez em quando, o poeta apparece-nos pensador e philosopho; mas, ainda assim, a razão não vence o sentimento: Irmãs da Caridade! A Caridade Tem só duas irmãs--a Fé e a Esperança: Não traja as côres só d'uma irmandade, Traja as côres do Arco da Alliança; Leva sósinha o pão da piedade; Tira da roda essa infeliz criança... .................................... Mais longe iria eu, se me propozesse trancrever tudo o que nas _Flores do Campo_ se apresenta digno dos mais levantados encomios. Assim, por não alongar em demasia a presente carta, recommendo-te a leitura da _Heresta_, da _Rachel_, do _Ultimo adeus_, da _Marina_, do _Remoinho_, do _Leito nupcial_, da _Innocencia_, da _Joven captiva_, e, muito especialmente, do _Cantico dos canticos de Salomão_. Lamennais e Renan haviam traduzido esplendidamente o _Cantico dos canticos_; João de Deus inspirou-se da pastoral de Sulem, e fez um poema quasi seu: seu pela fórma, pelo colorido, e pela disposição das scenas. O _Cantico dos canticos_ pertence, como sabes, ao numero dos livros sagrados, e é ponto inconcusso, entre os padres da Egreja, que os desposorios de que falla Salomão exprimem a união mystica do Verbo incarnado com a natureza humana, com a Egreja e com as almas justas. Os presidentes da synagoga judaica prohibiam a leitura d'este livro a quem não tivesse mais de trinta annos; e, ainda em tempos do piedoso João Gerson, nem os doutores o liam antes d'essa edade. E de feito nem Theocrito nem Florian deram jámais aos seus idylios aquelle perfume voluptuoso que, por entre flôres de poesia immorredoira, livremente se respira no idylio de Salomão. Theodoro Mopsueste teve o ousio de ligar a esse idylio um sentido exterior, e não mystico, interpretando-o litteralmente, mas foi condemnado pelo segundo concilio de Constantinopla. Hoje não ha temor de que a Egreja condemne João de Deus, e todos os que separam da poesia o dogma, talvez porque a Egreja, boa mãe, não quer vêr o mundo coalhado de herejes. E que importam ao leitor as convicções de João de Deus? A alma piedosa que se edificava na contemplação dos amores da Sulamite, pela versão de S. Jeronymo, que perde ella contemplando-os na lingua de Camões? «Para um coração puro, tudo é puro.»--É palavra de Deus, com que o poeta se auctorisa para trazer a lume a interpretação litteral do _Cantico dos canticos_. Já agora, apezar da extensão d'esta carta, deixa-me ainda expôr á tua vista algumas das paizagens mais seductoras d'este paraizo de amor, onde a volupia oriental se escoa semi-nua por ondulantes pradarias em flôr. Ouve: A SALUMENSE. Sou trigueira, mas formosa, Moças de Jerusalem! Senão, vêde o pavilhão Que arma em campo Salomão, Se ha coisa mais preciosa, E por fóra a cór que tem; Vêde as barracas dos moiros, Por dentro tantos thesoiros, Por fóra, negras tambem. Não vos dê pois isso pena Ter assim a côr morena: Minha mãe mandou-me pôr, Por culpa de meus irmãos, De guarda á vinha; o calor Queimou-me o rosto e as mãos E eu, a vinha, é escusado Dizer-vos que nem eu tinha Senão agora o cuidado De estar a guardar a vinha. Oh! para que banda vás Com o gado, meus amores! E pela folga onde estás? Bem vês os outros pastores, E a gente não adivinha. Eu não hei de andar atrás D'esses rebanhos sósinha. ......................... SALOMÃO. Que enlevo! que formosura! A pomba não tem de certo No olhar tanta doçura: E fóra o que anda encoberto. O cabello, em quantidade E tamanho, é singular; E não me lembra senão Das cabras de Galaad Ques lhes roja pelo chão Em ellas indo a andar. Os dentes, em tu abrindo A tua boca, que lindo! Nem um rebanho de ovelhas Todas brancas e parelhas Quando em sendo tosquiadas Vêem sahindo do banho D'uma em uma, enfileiradas, E atrás d'ellas cada uma Seus dois gemeos d'um tamanho, Sem ser maninha nenhuma. Pois a boca é comparada A uma fita encarnada. A voz, ouvil-a é um gosto. Parte a romã pelo meio Verás as rosas do rosto; E fóra no que eu receio Fallar, que me não é dado. O pescoço, pensa a gente, Em o vendo de collares, Que é a torre exactamente De David n'esses ares, De baluartes, e toda, Lá cima, escudos á roda. Os peitos, é um casal De corcinhas, que o seu pasto São açucenas do valle: Nada mais timido e casto. E deitam um cheiro á gomma Da myrrha mais do incenso, A ponto que ás vezes penso Que elles são duas collinas Por onde aquellas resinas Espalham aquelle aroma. Se a esta hora me não accusasses de abuso de paciencia, ainda te repetia toda aquella mimosa _carta_ que principia: Maria! vêr-te á porta a fazer meia, Olhando para mim de vez em quando, É o que n'esta vida me recreia. Acordo até de noite, suspirando Por que rompa a manhã, e tenha o gosto De te vêr já tão cedo trabalhando. Desde pela manhã até sol posto, Que não tens de descanço um só momento; Por isso tens tão bella côr do rosto! E eu pallido, Maria! o pensamento Não é trabalho que nos dê saude, --Esta imaginação é um tormento!...[10] Mas... basta. O livro de João de Deus tem defeitos: escaceia a revezes a ligação dos pensamentos, a clareza das ideias, a exactidão do metro, a perfeição da rima, e não metteria uma lança em Africa o linguista que nas _Flores do Campo_ descortinasse, uma vez por outra, impureza e incorrecções de linguagem. Se, porém, eu mirasse a comprovar, n'esta rapida e singela revista, com os versos de João de Deus a sympathia e a admiração que elles me devem, não seria este o espaço que abrangesse tudo o que alli me pareceu filho d'uma inspiração verdadeira e original. Demais, o poeta não lucraria com estas transcripções a esmo, sobre não poderes fazer do livro uma ideia exacta, á mingua de apreciador conspicuo. Alexandre Herculano diz bem: a critica em Portugal é impossivel. Mas se nós todos cruzarmos os braços diante dos Ananias da litteratura que introduzem a mercancia do encomio, o servilismo e a chocarrice no santuario das letras, quem expulsará ámanhã os vendilhões, do templo? Já que me não ouvem, prega tu a estas multidões que não sabem o que amam, nem o que detestam; e praza a Deus que a tua voz não seja a voz do que bradava no deserto. Post-scriptum Bem avisado andei eu, quando, a proposito dos versos obscuros de João de Deus, tive a franqueza de conceder que toda a gente penetrasse o que para mim era obscuro. Os versos nublosos que lá citei, eram, pelo que me dizem, claros como agua. Um amigo nosso, optimo charadista ao que parece, pôz-me tudo em pratos limpos; e, pelos modos, o nosso OEdipo tem artes para desdar o nó aos mais envencilhados enigmas da mais implacavel Sphynge. Ora eu, que respeito o mysterio mas desadoro o enigma, e a quem nunca charadas desvelaram as noites, não pasmei de vêr luz onde se me antolhavam trevas. O discipulo amado de Jesus não jubilaria tanto, se visse quebrar os sete sêllos do livro que elle viu na visão do Apocalypse, como eu jubilei quando, a par de outras revelações, soube que o individuo que _fluctua na fornalha accêsa pelo sopro eterno_ é o anjo que as lendas piedosas figuram no purgatorio, dando a mão aos que lá se purgam das culpas temporaes para subirem ás regiões do premio eterno. Pelo que vejo, a decifração não era para fazer suar o cabello; mas confesso-te que, se cem braços eu tivera, como Briareu, para revolver o embotado escalpello da minha critica, cem braços me desfalleceriam diante dos cem olhos d'estes Argos que espreitam maliciosos o rumo indeciso dos mineiros obscuros da justiça e da verdade... Seguiu-se-me noite de insomnia. Visões estranhas vieram povoar-me o leito. Sobre o meu travesseiro dormiam comigo as magestosas _Torrentes_ de Theophilo Braga, livro de que, em seguida ás _Flores do Campo_, eu contava fallar-te. Por cima de mim, por cima do livro, emtorno do meu leito, adejavam uns demoniosinhos, microscopicos como os lilliputianos de Gulliver: uns expediam risadinhas agudas, como de feiticeiras em noites de S. João; outros folheavam o livro e dobravam os joelhos por baixo das estrophes de mais levantada inspiração; estes murmuravam monotono kyrie em volta do livro, arrancando-m'o da mão, como da mão d'um profano se arranca a hostia sacrosanta; aquelles desfaziam o livro em tiras, entreteciam com ellas uma corôa, e collocavam-n'a na cabeça. Se me voltava para a direita, os da esquerda escouceavam-me com um arreganho diabolico; se me voltava para a esquerda, os da direita afiavam a pequenina dentadura, e arranhavam-me as pantorrilhas. O equilibrio era impossivel: esmagava-me um pesadelo! Acordei. Sobre a minha meza de trabalho estava um livro, notavel pela despretenção e suavidade do estylo, e pelo primor da versificação, sobre ser escripto em portuguez sem mistura; mas apenas no frontispicio li o nome de Antonio Feliciano de Castilho, passou-me pela mente a visão das _Torrentes_, e os lilliputianos da noite acercaram-se do _Medico á força_, reproduzindo os sarcasmos ou as ovações, os afagos ou as mordeduras, consoante as tendencias de cada qual. Estava entre a bigorna e o martello, entre a cruz e a caldeirinha. Quem me salvaria de posição tão melindrosa? Um esforço supremo: fechar as _Torrentes_ e o _Medico á força_, e não aventurar juizo sobre estes notaveis livros. Suspendo, pois, a revista do anno litterario de 1869, em quanto me vier á ideia aquella visão aterradora. Sinto-me com algumas forças para luctar com os lilliputianos da visão, mas não me sinto com paciencia para lhes soffrer os motejos e os tripudios, as risadinhas e as beliscaduras. Quero dormir a somno solto, e levar estas noites de Coimbra a sonhar sem pesadêlos, em paz com anjos e demonios, e até com os individuos das mais infimas classes animaes. Não quero luctar como Chatterton. Chatterton luctou, mas teve depois Vigny que o cingiu de louros, immortalisando-o. A troco da immortalidade, ainda eu me atiraria á lucta: ve lá se queres ser o meu Alfred de Vigny.[11] *Candido de Figueiredo.* [10] Já que ao generoso critico merece especial menção a _carta_, advertiremos que o primeiro verso da ultima quadra é assim: Nas asas da ventura atravessando. [11] A Folha, (1869) n.º 7, 8, 9 e 10. Fim das criticas das "Flores do Campo." * * * * * INDEX RAMO DE FLORES I--Sede de amor 5 II--Lamento 13 III--Enlevo 15 IV--Sempre 19 V--Espera 21 VI--Adeos 23 VII--Melancholia 25 VIII--Sympathia 29 IX--11 de Maio 31 X--Attracção 35 XI--Desânimo 37 XII--N'um Album 41 XIII--O seu nome 43 XIV--Saudade 51 XV--* * * 57 Criticas das Flores do Campo Flores do Campo, por Alexandre da Conceição 63 Livros--Revista critica-bibliographica, por Luciano Cordeiro 75 Flores do Campo, por D. Guiomar D. Torrezão 105 Anno litterario de 1869, por Candido de Figueiredo 113 FIM DO INDEX. * * * * * Á VENDA NA LIVRARIA INTERNACIONAL DE ERNESTO CHARDRON Obras de fundo e edições: *Memorias* de Fr. João de S. Joseph Queiroz, bispo do Gran-Pará. Com uma introducção e muitas notas illustrativas, por C. C. Branco. 1 volume. 500 *Poesias e prosas ineditas* de Fernão Rodrigues Lobo Soropita, com uma introducção e notas por Camillo Castello Branco. 1 volume. 500 *Ponson du Terrail.*--Os Filhos de Judas, Tomo 1.º Um conto das mil e uma noites.--2.º O amor fatal. 2 volumes. 1$000 *Estudos de Escripturação Mercantil*, por J. M. Outeiro. Segunda edição consideravelmente augmentada. 1 vol. 1000 End of the Project Gutenberg EBook of Ramo de Flores, by João de Deus *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK RAMO DE FLORES *** ***** This file should be named 24847-8.txt or 24847-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/4/8/4/24847/ Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. 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