Ubirajara: Lenda Tupi

By José Martiniano de Alencar

The Project Gutenberg EBook of Ubirajara, by José Alencar

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Title: Ubirajara
       Lenda tupi

Author: José Alencar

Release Date: January 5, 2012 [EBook #38496]

Language: Portuguese


*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK UBIRAJARA ***




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  JOSÉ DE ALENCAR




  UBIRAJARA

  [Illustration]


  FRANCISCO ALVES & C.a

  RIO DE JANEIRO
  166, Rua do Ouvidor, 166

  S. PAULO
  65, Rua de S. Bento, 65

  BELO HORIZONTE
  1055, Rua da Baía, 1055


  AILLAUD, ALVES & C.a

  PARIS
  96, Boulevard Montparnasse
  (Livraria Aillaud)

  AILLAUD, ALVES, BASTOS & C.a

  LISBOA
  73, Rua Garrett, 75
  (Livraria Bertrand)

  1911




  UBIRAJARA


  Composto e impresso na Tipografia JOSÉ BASTOS Rua da Alegria,
  100--Lisboa




  J. DE ALENCAR




  UBIRAJARA


  LENDA TUPI

  [Illustration]


  FRANCISCO ALVES & C.a

  RIO DE JANEIRO
  166, Rua do Ouvidor, 166

  S. PAULO
  65, Rua de S. Bento, 65

  BELO HORIZONTE
  1055, Rua da Baía, 1055


  AILLAUD, ALVES & C.a

  PARIS
  96, Boulevard Montparnasse
  (Livraria Aillaud)

  AILLAUD, ALVES, BASTOS & C.a

  LISBOA
  73, Rua Garrett, 75
  (Livraria Bertrand)

  1911


[Illustration]




UBIRAJARA




I

O CAÇADOR


Pela marjem do grande rio caminha Jaguarê, o joven caçador.

O arco pende-lhe ao hombro, esquecido e inutil. As flechas dormem no
coldre da uiraçaba.

Os veados saltam das moitas de ubaia e vêm retouçar na grama, zombando
do caçador.

Jaguarê não vê o timido campeiro; seus olhos buscam um inimigo capaz de
rezistir-lhe ao braço robusto.

O rujido do jaguar abala a floresta; mas o caçador tambem despreza o
jaguar, que já cançou de vencer.

Elle chama-se Jaguarê, o mais feroz jaguar da floresta; os outros fojem
espavoridos quando de lonje o presentem.

Não é esse o inimigo que procura, porém outro mais terrivel, para
vencel-o em combate de morte e ganhar nome de guerra.

Jaguarê chegou á idade em que o mancebo troca a fama do caçador pela
gloria do guerreiro.

Para ser aclamado guerreiro por sua nação é precizo que o joven caçador
conquiste esse titulo por uma grande façanha.

Por isso deixou a taba dos seus e a prezença de Jandira, a virjem
formoza que lhe guarda o seio de espoza.

Mas o sol tres vezes guiou o passo rapido do caçador através das
campinas, e tres vezes como agora deitou-se além nas montanhas da
Aratuba, sem mostrar-lhe um inimigo digno de seu valor.

A sombra vai decendo da serra pelo vale e a tristeza cae da fronte sobre
a face de Jaguarê.

O joven caçador empunha a lança de duas pontas, feita da roxa craúba,
mais rija que o ferro.

Nenhum guerreiro brandiu jámais essa arma terrivel, que sua mão primeiro
fabricou.

Lá estaca o joven caçador no meio da campina. Volvendo ao céu o olhar
torvo e iracundo, solta ainda uma vez seu grito de guerra.

O bramido rolou pela amplidão da mata e foi morrer lonje nas cavernas da
montanha.

Respondeu o ronco da sucurí na madre do rio e o urro do tigre escondido
na furna; mas outro grito de guerra não acudiu ao dezafio do caçador.

Jaguarê arremessou a lança, que vibrou nos ares e foi cravar-se além no
grosso tronco da emburana.

A copa frondoza ramalhou, como as palmas do coqueiro ao sopro do vento,
e o tronco gemeu até á raiz.

O caçador repouza á sombra de sua lança.

       *       *       *       *       *

Salta uma corça da mata e veloz atravessa a campina.

Mais veloz a persegue gentil caçadora com a seta embebida no arco
flexivel.

Ergue-se Jaguarê.

Seu olhar ardente voou, sofrego de encontrar o inimigo que lhe tardava.

Avistando uma mulher, a alegria do mancebo apagou-se no rosto sombrio.

Pela faxa côr de ouro, tecida das penas do tucano, Jaguarê conheceu que
era uma filha da valente nação dos Tocantins, senhora do grande rio,
cujas marjens elle pizava.

A liga vermelha que cinjia a perna esbelta da estranjeira dizia que
nenhum guerreiro jámais possuira a virjem formoza.

A corça veiu cair aos pés de Jaguarê, atravessada pela flecha certeira
da joven caçadora que a seguia de perto.

A virjem reconheceu o cocar da nação que na ultima lua chegára aos
campos do Taari e da qual os pajés tinham dado noticia.

--Guerreiro araguaia, pois vejo pela pena vermelha de teu cocar que
pertences a essa nação valente; se pizas os campos dos Tocantins como
hospede, bem vindo sejas; mas se vens como inimigo, foje, para que tua
mãi não chore a morte de seu filho e tenha quem a proteja na velhice.

--Virjem dos Tocantins, Jaguarê já soltou seu grito de guerra. Elle piza
os campos de teus pais como senhor. Tu és sua prizioneira. Não que
vencer a corça timida seja gloria para o caçador; mas tu chamarás o
inimigo que elle espera.

--Se o veado te der a sua lijeireza, joven guerreiro, elle não te
servirá senão para ver o rasto de meu pé antes que o vento o apague.

A linda caçadora desferiu a corrida pela imensa campina. Após ella se
arremessou Jaguarê, que muitas vezes vencera o tapir.

Mas a virjem dos Tocantins corria como a nandú no dezerto, e o caçador
conheceu que seu braço nunca a poderia alcançar.

Travou do arco e o brandiu. A seta obedeceu-lhe, pregando no tronco do
assaí a faxa que flutuava ao sopro do vento.

--A filha dos Tocantins tem no pé as azas do beija-flôr; mas a seta de
Jaguarê vôa como o gavião. Não te assustes, virjem das florestas; tua
formozura venceu o impeto de meu braço e apagou a cólera no coração
feroz do caçador. Feliz o guerreiro que te possuir.

--Eu sou Arací, a estrela do dia, filha de Itaquê, pai da grande nação
Tocantim. Cem dos melhores guerreiros o servem em sua cabana para
merecer que elle o escolha por filho. O mais forte e valente me terá por
espoza. Vem comigo, guerreiro araguaia; excede aos outros no trabalho e
na constancia, e tu romperás a liga de Arací na proxima lua do amor.

--Não, filha do sol; Jaguarê não deixou a taba de seus pais, onde
Jandira lhe guarda o seio de espoza, para ser escravo da virjem. Elle
vem combater e ganhar um nome de guerra que encha de orgulho a sua
nação. Torna á taba dos Tocantins e dize aos cem guerreiros cativos de
teu amor, que Jaguarê, o mais destemido dos caçadores araguaias, os
dezafia ao combate.

--Arací vai, pois assim o queres. Se fores vencido, ella guardará tua
lembrança, pois nunca seus olhos viram mais belo caçador. Se fores
vencedor, será uma alegria para a virjem do sol pertencer ao mais
valente dos guerreiros.

A virjem disse e dezapareceu na selva. Os olhos de Jaguarê seguiram o
passo lijeiro da formoza caçadora, como o guachimim que rasteja a
zabelê.

Quando ella dezapareceu, o joven caçador recostou-se ao tronco da
emburana e esperou.

       *       *       *       *       *

Do outro lado da campina assoma um guerreiro.

Tem na cabeça o canitar das plumas de tucano, e no punho do tacape uma
franja das mesmas penas.

É um guerreiro tocantim. De lonje avistou Jaguarê e reconheceu o penacho
vermelho dos araguaias.

As duas nações não estão em guerra; mas sem quebra da fé póde um
guerreiro cansado do longo repouzo oferecer a outro guerreiro combate
leal.

Quando o tocantim armou o arco, Jaguarê já tinha brandido o seu e
disparado no ar uma seta, mensajeira do dezafio.

Respondeu o guerreiro disparando tambem uma flecha no ar, para dizer que
aceitava o combate.

Então os dois campeões caminharam um para o outro com o passo grave e
pararam frente a frente.

--Eu sou Jaguarê, filho de Camacan, chefe da valente nação dos
araguaias, que vem de lonje em busca da terra de seus pais. Minha fama
corre as tabas e tu já deves conhecer o maior caçador das florestas. Mas
Jaguarê despreza a fama de caçador; elle quer um nome de guerra, que
diga ás nações a força de seu braço e faça tremer aos mais bravos. Se
tua nação te aclamou forte entre os fortes, prepara-te para morrer; se
não, passa teu caminho, guerreiro vil, para que o sangue do fraco não
manche o tacape virjem de Jaguarê.

--O caraiba guiou teu passo ao encontro de Pojucan, o matador de gente,
guerreiro chefe da terrivel nação tocantim, que enche de terror as
outras nações. Ha tres luas, desde que fujiram espavoridos os barbaros
Tapuias, que Pojucan não combate; e seu tacape tem fome do inimigo. Tu
não és digno dos golpes de um guerreiro chefe; mas Pojucan se compadece
de tua mocidade e consente em combater comtigo. Terás a gloria de ser
morto pelo mais valente guerreiro tocantim. Os cantores de meus feitos
lembrarão teu nome; e todos os mancebos de tua nação invejarão tua
sorte.

--Jaguarê agradece a Tupan que te fez um grande guerreiro e o chefe mais
feroz da terrivel nação tocantim, Pojucan, matador de gente. A tua morte
será a primeira façanha do caçador araguaia e lhe dará um nome de guerra
que se torne o espanto dos seus e o terror das outras nações.

Os dois campeões recuaram passo a passo até que se acharam a um tiro de
arco.

Então soltaram o grito de guerra e se arremessaram um contra outro
brandindo o tacape.

       *       *       *       *       *

Os tacapes toparam no ar e os dois guerreiros rodaram como as torrentes
impetuozas no remoinho da Itaoca.

Dez vezes as clavas bateram, e dez vezes volveram para bater de novo.

Os animais que passavam na floresta fujiram espavoridos, como se a
borrasca ribombasse no céu.

Ainda uma vez encontraram-se os dois tacapes e voaram em lascas pelos
ares.

--O ubiratan é forte; mas ha outro ubiratan que lhe reziste. Como o
braço de Pojucan é que não ha outro braço. Já viste, joven caçador, o
veado nas garras da giboia? Assim vais morrer.

--Se tu fosses a cascavel que sómente sabe morder, Jaguarê te esmagaria
a cabeça com o pé e seguiria o seu caminho. Mas tu és a giboia feroz; e
Jaguarê gosta de estrangular a giboia. Não morrerás pelo pé, mas pela
mão do caçador. Lança teu bote, guerreiro tocantim.

Pojucan estendeu os braços e estreitou os rins de Jaguarê, que por sua
vez cinjiu os lombos do guerreiro.

Cada um dos campeões pôz na luta todas as suas forças, bastantes para
arrancar o tronco mais robusto da mata.

Ambos, porém, ficaram imoveis. Eram dois jatobás que naceram juntos e
entrelaçaram os galhos ligando-se no mesmo tronco.

Nada os desprende; nada os abala. O tufão passa bramindo sem ajital-os;
e elles permanecem quedos pelo volver dos tempos.

Um pajé que passou na orla da mata viu os lutadores e esconjurou-os,
pensando que eram as almas de dois guerreiros prezos no abraço da morte.

Já a sombra se desdobrava pelo vale fóra e o sol despedia-se dos cimos
dos montes, sem que os campeões se movessem.

Por fim afrouxaram os braços e cada lutador recuou para contemplar seu
adversario. Nenhum mostrava no rosto sombra de fadiga.

Conheceram que podiam lutar corpo a corpo, a noite inteira, sem que um
prostrasse o outro.

--Tu és igual na valentia e na força ao guerreiro chefe da nação
tocantim. Mas Pojucan não consente que haja na terra quem rezista a seu
braço. É precizo que tu morras, Jaguarê, para que elle seja o primeiro
dos guerreiros que o sol alumia.

--Pojucan, matador de gente, guerreiro feroz da nação tocantim, Jaguarê
deixou-te viver até este momento para saber se tu eras digno de dar-lhe
um nome de guerra. Agora que te conhece como o primeiro dos guerreiros
que existiram até este momento, elle quer que tua derrota seja a sua
primeira façanha.

Disse, e, arrancando do tronco da emburana a lança de duas pontas,
caminhou outra vez para Pojucan.

--Esta arma que tu vês é a lança de duas pontas. Jaguarê fabricou-a do
rijo galho da craúba, endurecido pelo fogo. Sua mão foi a primeira que a
arremessou e teu corpo é o primeiro cujo sangue ella vai beber. Empunha
a lança de duas pontas, guerreiro chefe, e ataca Jaguarê para receberes
a morte dos valentes.

       *       *       *       *       *

Pojucan repeliu a lança que o joven caçador lhe aprezentára.

--Jámais no combate um guerreiro tocantim atacará seu adversario
dezarmado; nem Pojucan preciza da lança. Ataca tu, Jaguarê, que não tens
confiança em teu braço; o de Pojucan basta para te prostrar.

--O orgulho te cega, guerreiro chefe. A lança conhece Jaguarê que a
inventou e lhe obedece como o arpão á corda do pescador. Aperta-a bem em
tua mão robusta e Jaguarê estará duas vezes mais armado do que tu, que
não sabes manejal-a.

O chefe tocantim cruzou os braços.

--Toma a lança, Pojucan, se não queres que te chame covarde; pois tu
sabes que Jaguarê não te matará dezarmado, mas te abandonará como
indigno de combater com o filho do maior guerreiro araguaia, o grande
Camacan.

O chefe tocantim arrojou-se contra Jaguarê que lhe travou dos pulsos e
outra vez os dois campeões ficaram imoveis.

A noite veiu achal-os na mesma pozição. Tres vezes cessaram a luta, e de
novo a travaram. Mas afinal se convenceram que nenhum derrubaria o
outro.

Então Pojucan disse:

--Guerreiro araguaia, é precizo acabar o combate. A terra não chega
para dois guerreiros como nós. Finca no chão a lança e caminhemos até á
marjem do rio. Aquelle que primeiro chegar, será o senhor da lança e da
vida do outro.

Assim fizeram os dois campeões. Chegados á marjem do rio, dispararam a
corrida. Ao mesmo tempo a mão de ambos tocou a haste da lança; mas
Jaguarê, arremessado pelo impeto da desfilada, não pôde arrancar a arma
que ficou na mão de Pojucan.

       *       *       *       *       *

O guerreiro chefe enrista desdenhozamente a lança e caminha para
Jaguarê. Não vai como o guerreiro que marcha ao combate, mas como o
matador que se prepara para imolar a vitima.

--Guerreiro chefe, Jaguarê não te quer matar como a serpente que ataca o
descuidado caçador. Dez vezes já, se quizesse, elle te houvera ferido
com tua propria mão.

--Abandona a gloria do guerreiro, que não é para ti, nhengaíba. Pojucan
te concederá a vida, e te levará cativo á taba dos tocantins para que tu
cantes as suas façanhas na festa dos guerreiros.

--Cativo serás tu, mas não para cantar os feitos dos guerreiros. Tu
servirás na taba dos araguaias para ajudar as velhas a varrer a oca.

Arremessou-se Pojucan avante e desfechou o golpe; mas a lança rodára e
foi o chefe tocantim quem recebeu no peito a ponta farpada.

Quando o corpo robusto de Pojucan tombava, cravado pelo dardo, Jaguarê
de um salto calcou a mão direita sobre o hombro esquerdo do vencido e
brandindo a arma sangrenta, soltou o grito do triunfo:

--Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro invencivel que tem
por arma a serpente. Reconhece o teu vencedor, Pojucan, e proclama o
primeiro dos guerreiros, pois te venceu a ti, o maior guerreiro que
existiu antes delle.

--Se meu valor, que serviu para aumentar a tua fama, merece de ti uma
graça, não deixes que Pojucan sofra mais um instante a vergonha de sua
derrota.

--Não, chefe tocantim. Tu me acompanharás á taba dos araguaias para
narrar meu valor. A fama de Jaguarê preciza de um prizioneiro como o
grande Pojucan na festa da vitoria.

--Tu és cruel, guerreiro da lança; mas fica certo que, se tua arma
traiçoeira me feriu o peito, o suplicio não vencerá a constancia do
varão tocantim que sabe afrontar as iras de Tupan e desprezar a vingança
dos araguaias.




II

O GUERREIRO


Retumba a festa na taba dos araguaias.

As fogueiras circulam a vasta ocara e derramam no seio da noite escura
as chamas da alegria.

Toda a tarde o trocano reboou chamando os guerreiros das outras tabas á
grande taba do chefe.

Era a festa guerreira de Jaguarê, filho de Camacan, o maior chefe dos
araguaias.

No fundo da ocara prezide o conselho dos anciãos, que decide da paz ou
da guerra, e governa a valente nação.

Os anciãos, sentados no longo giráu, contemplam taciturnos a geração de
guerreiros que elles ensinaram a combater, e têm saudades da passada
gloria.

Suspenso em frente delles está o grande arco da nação araguaia, ornado
nas pontas das penas vermelhas da arara.

É a insignia do chefe dos guerreiros, a qual Camacan, pai de Jaguarê,
conquistou na mocidade e ainda a conserva, pois ninguem ouza disputal-a.

Eil-o, o velho chefe, embaixo do arco, que sua mão tantas vezes brandiu
na guerra. Em pé, arrimado ao invencivel tacape, elle dirije a festa.

De um e outro lado da vasta ocara, está a multidão dos guerreiros,
colocados por sua ordem; primeiro os chefes das tabas; depois os varões;
por ultimo os moços guerreiros.

Vêm depois os jovens caçadores que já deixaram a oca materna e estão
impacientes de ganhar por suas proezas a honra de serem admitidos entre
os guerreiros.

Mas para isso têm de passar pelas provas, e sua juventude não lhes
consente ainda a robustez, que tamanho esforço demanda.

Todos invejam a gloria de Jaguarê que hontem era o primeiro entre elles,
e hoje ali está disputando a fama aos mais valentes guerreiros.

Por detraz da estacada apinham-se as mulheres, que segundo o rito
patrio não podem ser admitidas nas festas guerreiras.

De lonje acompanham silenciozas com os olhos, as velhas aos filhos, as
espozas aos seus guerreiros, e as virjens aos noivos.

Exultam quando ouvem celebrar as façanhas dos seus; mas não ouzam
murmurar uma palavra.

Entre ellas está Jandira, a doce virjem, cujos negros olhos não se
cansam de admirar Jaguarê, seu futuro senhor.

Já lhe tarda o momento de ver aclamar guerreiro ao joven caçador, para
ter a felicidade de servil-o como escrava na paz, e acompanhal-o como
espoza ao combate.

       *       *       *       *       *

No centro da ocara ergueu-se Jaguarê.

Defronte delle, Pojucan, no corpo que a ferida não abateu, mostra a
grande alma, serena em face dos inimigos.

Camacan troou a inubia para ordenar silencio e o filho começou:

--Guerreiros araguaias, ouvi a minha historia de guerra.

«Depois que Jaguarê sofreu as provas do valor, partiu para conquistar um
nome famozo.

«Deixando a taba, viu o falcão negro que despedia o vôo para as aguas
sem fim, e Jaguarê disse:

«O falcão negro é o valente guerreiro dos ares; elle será a fama do
guerreiro araguaia que atravessará as nuvens e subirá ao céu.

«Então Jaguarê marcou o vôo do falcão negro e seguiu por elle.

«O sol despediu-se e voltou; uma, duas, tres vezes. No ultimo sol
Jaguarê encontrou um guerreiro da nação tocantim, senhora do grande rio.

«Guerreiros araguaias, quereis saber qual foi o campeão que Tupan enviou
a Jaguarê para dar-lhe o nome de guerra?

«Elle aí está diante de vós.

«É o grande Pojucan, o feroz matador de gente, chefe da tribu mais
valente da poderoza nação dos tocantins, senhores do grande rio.

«Vós que o tendes aqui prezente, vêde como é terrivel o seu aspeto, mas
só eu que o pelejei conheço o seu valor no combate.

«O tacape em sua mão possante é como o tronco do ubiratan que brotou no
rochedo e creceu.

«Jaguarê, que arranca da terra o cedro gigante, não o pôde arrancar de
sua mão; e foi obrigado a despedaçal-o.

«Os braços de Pojucan, quando elle os estende na luta, não ha quem os
vergue; são dois penedos que saem da terra.

«Seu corpo é a serra que se levanta no vale. Nenhum homem, nem mesmo
Camacan, o póde abalar.

«Pojucan era o varão mais forte e o mais valente guerreiro que o sol
tinha visto até áquelle momento.

«Foi este, guerreiros araguaias, o heróe que ofereceu combate ao filho
de Camacan; e Jaguarê aceitou, porque logo conheceu que havia encontrado
um inimigo digno de seu valor.

«Elle vos contempla, guerreiros araguaias. Se alguem duvida da palavra
de Jaguarê e da força do guerreiro tocantim, chame-o a combate e saberá
quem é Pojucan.»

O chefe tocantim lançou um olhar ameaçador á multidão dos guerreiros;
mas nenhum ouzou aceitar o dezafio.

       *       *       *       *       *

Pojucan alçou a mão em sinal de que dezejava falar; todos escutaram com
respeito o heróe, ainda maior na desgraça.

--Guerreiros araguaias, ouvi a voz de Pojucan, vosso inimigo, que
afronta as iras dos fortes e despreza a vingança dos fracos.

«Pojucan, guerreiro chefe da grande nação tocantim, jámais encontrou
guerreiro que rezistisse á força de seu braço invencivel.

«Mas Tupan, cansado de ouvir celebrar em todas as festas o nome de
Pojucan, como vencedor, emprestou sua força a Jaguarê, o maior guerreiro
que já pizou a terra.

«Eu que senti o impeto de sua corajem, posso dizer-vos que só o sangue
tocantim é capaz de gerar um guerreiro tão poderozo.

«Foi alguma virjem araguaia que vagando pela floresta encontrou Pojucan,
e trouxe no seio fecundo a alma do grande guerreiro.

«Seu braço é como o corisco do céu; e a sua força como a tempestade que
dece das nuvens.»

Calou-se Pojucan; e Jaguarê continuou o seu canto de guerra:

«Quando a sombra começava a decer da crista da montanha, Pojucan e
Jaguarê caminharam um contra o outro.

«Toda a noite combateram. O sol nacendo veiu achal-os ainda na peleja,
como os deixára; nem vencidos, nem vencedores.

«Conheceram que eram os dois maiores guerreiros, na fortaleza do corpo,
e na destreza das armas.

«Mas nenhum consentia que houvesse na terra outro guerreiro igual; pois
ambos queriam ser o primeiro.

«Foi então que o chefe tocantim ganhou na corrida a lança de duas
pontas, que Jaguarê havia fabricado.

«Tres vezes seu punho robusto a brandiu, e tres vezes ella escapou-lhe
da mão, como a serpente das garras do gavião.

«Mais uma vez o grande guerreiro investiu com o bote armado; e a lança,
escrava de Jaguarê, cravou o peito do inimigo.

«Elle caiu, o guerreiro chefe, o grande varão dos tocantins, o valente
dos valentes, Pojucan, o feroz matador de gente.

«E Jaguarê brandindo a arma da vitoria bradou:

«Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, que venceu o primeiro guerreiro
dos guerreiros de Tupan.

«Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro terrivel que tem por
arma uma serpente.»

       *       *       *       *       *

O trocano ribombou, derramando lonje pela amplidão dos vales e pelos
écos das montanhas a pocema do triunfo.

Os tacapes, vibrados pela mão pujante dos guerreiros, bateram nos largos
escudos retinindo.

Mas a voz possante da multidão dos guerreiros cobriu o imenso rumor
clamando:

--Tu és Ubirajara, o senhor da lança, o vencedor de Pojucan, o maior
guerreiro da nação tocantim.

«Os guerreiros araguaias te recebem por seu irmão nas armas e te aclamam
forte entre os fortes.

«Os cantores celebrarão teu nome como os mais famozos da nação araguaia
e Camacan terá a gloria de chamar-se pai de Ubirajara, como foi gloria
para Jaguarê ser filho de Camacan.»

Quando parou o estrondo da festa e cessou o canto dos guerreiros,
avançou Camacan, o grande chefe dos araguaias.

De um salto o ancião alcançou o arco da nação, insignia do chefe na
guerra, e caminhou para Ubirajara.

O arco era de ubiratan, grosso como o braço do mais robusto guerreiro; a
corda trançada de crautá tinha o corpo do dedo que a brandia.

Os mais possantes varões da nação araguaia a custo empunhavam o grande
arco; mas só um tinha força para disparar a seta.

Era Camacan, o chefe dos chefes, que dirijia na guerra os guerreiros
araguaias.

Assim falou o ancião:

--Ubirajara, senhor da lança, é tempo de empunhares o grande arco da
nação araguaia, que deve estar na mão do mais possante. Camacan o
conquistou no dia em que escolheu por espoza Jaçanan, a virjem dos olhos
de fogo, em cujo seio te gerou seu primeiro sangue. Ainda hoje, apezar
da velhice que lhe mirrou o corpo, nenhum guerreiro ouzaria disputar o
grande arco ao velho chefe, que não sofresse logo o castigo de sua
audacia. Mas Tupan ordena que o ancião se curve para a terra até
dezabar como o tronco carcomido, e que o mancebo se eleve para o céu
como a arvore altaneira. Camacan revive em ti; a gloria de ser o maior
guerreiro crece com a gloria de ter gerado um guerreiro ainda maior do
que elle.

       *       *       *       *       *

Ubirajara tomou o arco que lhe aprezentava o pai e disse:

--Camacan, tu és o primeiro guerreiro e o maior chefe da nação araguaia.
Para a gloria de Jaguarê bastava que elle se mostrasse teu filho no
valor como é teu filho no sangue. Mas o grande arco da nação araguaia,
Ubirajara não o recebe de ti e de nenhum outro guerreiro, pois o ha de
conquistar pela sua pujança.

Disse, e arremessando no meio da ocara o grande arco, bradou:

--O guerreiro que ouze empunhar o grande arco da nação araguaia, venha
disputal-o a Ubirajara.

Nenhuma voz se ergueu; nenhum campeão avançou o passo.

O trocano reboou de novo, e no meio da pocema de triunfo, a multidão dos
guerreiros proclamou:

--Ubirajara, senhor da lança, tu és o mais forte dos guerreiros
araguaias; empunha o arco chefe.

Então Ubirajara levantou o grande arco, e a corda zuniu como o vento na
floresta.

Era a primeira seta, mensajeira do chefe, que levava ás nuvens a fama de
Ubirajara.

Os cantores exaltaram a gloria dos dois chefes: a do velho Camacan, que
trocára a arma do guerreiro pelo bordão do conselho; e a do joven
Ubirajara, que na sua mocidade já se mostrava tão grande, como fôra o
pai na robustez dos anos.

Pojucan teve o consolo de ouvir seu nome, repetido muitas vezes e
louvado a par com o de seu vencedor.

Os cantores celebraram depois os grandes feitos da nação araguaia, desde
os tempos remotos em que os projenitores deixaram a grande taba dos
Tamoios, seus avós.

Quando os nhengaçáras entoaram o canto do triunfo, vieram as mulheres
com vazos cheios do generozo cauim e aprezentaram as taças aos
guerreiros.

Jandira suspirou; ella era virjem, e como suas companheiras, não podia
aparecer na festa dos guerreiros.

Sentiu não ser já espoza, para ter o orgulho de encher de vinho
espumante, por ella fabricado, a taça de seu heróe e senhor.

O guincho agoureiro da inhúma resoava na mata, quando começou a dansa
guerreira que durou até perto da alvorada.




III

A NOIVA


Ao raiar da luz no céu, Jandira abriu os lindos olhos negros.

Seu canto foi o primeiro que saudou o nacer do dia e acordou em seu
ninho a viuvinha.

A doce filha de Majé saltou da rêde que embalára os sonhos castos da
virjem, e despediu-se della como a jaçanan que deixa a moita para
habitar o ninho do amor.

A virjem tocantim acreditava ter dormido a ultima noite na cabana
paterna, que essa manhã ia trocar pela cabana do espozo.

O joven caçador que a amava, Jaguarê, fôra aclamado guerreiro, e entre
todos os guerreiros o chefe da nação.

Como guerreiro elle póde tomar uma espoza; e como chefe pertence-lhe a
virjem de sua escolha, entre as mais formozas da taba.

Ainda que a virjem tenha um noivo, ou que o pai a destine a outro, se o
chefe a dezeja, a vontade de Tupan é que lhe pertença.

Tupan assim ordena para que os grandes chefes possam gerar de seu sangue
os mais belos e valentes guerreiros.

Jaguarê antes de ser aclamado chefe já a tinha escolhido, e Jandira não
aceitaria outro noivo senão o joven caçador a quem amava.

Ella o espera. Logo que o sol alumie a terra, Ubirajara, o grande chefe,
ha de vir buscal-a.

Então a virjem se despedirá de Majé; e irá armar na cabana de seu
guerreiro e senhor a rêde da espoza.

Lijeira e contente corre a banhar-se no rio antes que chegue Ubirajara,
para quem purifica seu corpo e se unje com o oleo fragrante do
sassafraz.

Ella quer que o destemido guerreiro ache seu amor saborozo como o vinho
que espumá na taça, e ferve nas veias.

Tornando á cabana, perfumou de beijoim a larga rêde que tecera dos fios
do algodão entrelaçados com as penas do guará.

Essa rêde tinha duas vezes o tamanho de sua rêde de virjem, porque era a
rêde do cazamento em que devia receber o espozo.

Depois arrumou no urú a louça que havia fabricado para o serviço do
guerreiro, e que devia transportar á sua nova cabana.

Quando terminou todos os preparativos, encostou-se á porta da cabana;
seus olhos impacientes chamavam Ubirajara.

Mas o guerreiro não vinha, e o sol já tinha subido além da crista da
serra.

A luz do dia derramava a alegria pelos campos; e a alegria que lhe
afagára os sonhos da noite fujia agora da alma de Jandira.

Então a filha de Majé partiu em busca do noivo que a esquecera.

       *       *       *       *       *

No mais escuro da mata vaga o chefe dos araguaias.

Seus olhos fojem á luz do dia e buscam a sombra, onde encontram a imajem
que traz na lembrança.

Á noite quando o guerreiro dormia em sua rêde solitaria, Arací, a linda
virjem, lhe apareceu em sonho e lhe falou:

--Jaguarê, joven caçador, tu dormes descansado emquanto os guerreiros
tocantins se preparam para roubar a virjem de teus amores. Ergue-te e
parte, se não queres chegar tarde.

Elle erguera-se para seguil-a; mas a virjem formoza desferiu a corrida
veloz através da campina e dezapareceu na floresta.

Neste ponto do sonho o guerreiro acordára.

Uma estrela brilhante listrava o céu, como uma lagrima de fogo, e
Ubirajara pensou que era o rasto de Arací, a filha da luz.

A jurití arrolhou docemente na mata e Ubirajara lembrou-se da voz
mavioza da virjem do sol.

O guerreiro tornou á rêde, esperando achar ali outra vez o sonho que
vizitára sua alma; porém o sono fujira de seus olhos.

Quando raiou a primeira alvorada, Ubirajara saiu da cabana e buscou no
mais espesso da mata a sombra propicia á saudade.

Seu passo o guiava sem querer para as bandas do grande rio, onde devia
ficar a taba dos tocantins.

É assim que os coqueiros, imoveis na praia, inclinam para o nacente seu
verde cocar.

Ubirajara ouviu o rumor de um passo lijeiro através da mata; de lonje
conheceu Jandira que o procurava.

A doce virjem achára á porta da cabana o rasto do guerreiro e o seguira
através da floresta.

--Que máu sonho aflige Ubirajara, o senhor da lança e o maior dos
guerreiros, chefe da grande nação araguaia, para que elle se afaste de
sua taba e esqueça a noiva que o espera.

--A tristeza entrou no coração de Ubirajara, que não sabe mais dizer-te
palavras de alegria, linda virjem.

--A tristeza é amarga; quando entra no coração do guerreiro, o enche de
fel. Mas Jandira fará como sua irmã, a abelha, ella fabricará em seus
labios os favos mais doces para seu guerreiro; suas palavras serão os
fios de mel que ella derramará na alma do espozo.

--Filha de Majé, doce virjem, ainda não chegou o dia em que Ubirajara
escolha uma espoza; nem elle sabe ainda qual o seio que Tupan destinou
para gerar o primeiro filho do grande chefe dos araguaias.

       *       *       *       *       *

O labio de Jandira emudeceu; mas o peito soluçou.

A virjem conheceu que o amor de Ubirajara retirava-se della, e que de
todo o perderia se o não defendesse.

Então escondeu a dôr no fundo da alma e chamou o rizo a seus labios, a
alegria a seus olhos.

Ella sabia que os guerreiros amam a flôr da formozura, como a folhajem
da arvore; e que a tristeza murcha a graça da mais linda virjem.

--Chefe dos araguaias, Ubirajara, não desprezes Jandira que outr'ora
escolheste para tua noiva. Se então ella era formoza a teus olhos, mais
formoza se fará para merecer teu amor. Tu gostavas de seus cabelos
negros que arrastam no chão; ella os entrançará com as plumas vermelhas
do guará para que te pareçam mais bonitos. Seus olhos negros que te
falavam, ella os cercará de uma listra amarela como os olhos da jaçanan.
Sua boca, que ainda não provaste, Jandira a encherá de amor para que
bebas nella o contentamento.

Jandira esperou a palavra de Ubirajara; mas os labios mudos do guerreiro
não se abriram.

--Teu amor, Ubirajara, ficará em meu seio como a flôr no vale. Jandira
te dará muitos filhos e todos dignos de teu valor. Nestes peitos, que te
pertencem, ella os nutrirá com seu sangue, não menos guerreiro do que o
teu; porque é o sangue de Majé, o maior dos anciãos, depois de Camacan.
Seus braços que outr'ora querias para tua cintura, não servirão
unicamente para te abraçarem, mas tambem para te servirem. Tua espoza te
acompanhará por toda a parte, na taba, como no campo do combate; ella
cuidará de tua cabana; aprontará as mais saborozas iguarias para seu
guerreiro, e fabricará para elle o vinho, que é a alma da festa.

--Jandira é a mais bela das virjens araguaias. Seu amor fará a ventura
de um guerreiro valente. Ubirajara não podia achar para si uma espoza
mais fiel, nem para seus filhos outra mãi tão fecunda. Mas a noite deceu
em sua alma. Só a estrela do dia póde restituir-lhe a alegria que o
abandonou. A filha de Majé merece um guerreiro que tenha olhos para a
sua formozura.

       *       *       *       *       *

Pojucan sentou-se pensativo á porta da cabana.

O semblante, sempre grave, como convém a um chefe, cobre-se de tristeza.

A noite que foje da terra, vencida pelo sol, parece recolher-se na alma
do chefe tocantim.

Não é sua ferida que o faz sofrer. O balsamo suave da embaiba sára
rapidamente os golpes mais profundos; e os varões tocantins aprendem
desde o berço a desprezar a dôr.

É em seu coração de guerreiro, que Pojucan sente as garras do Anhanga.

O revez de ser vencido e cair prizioneiro, elle o suporta como o varão
forte que viu prostrados por Aresqui no campo da batalha os mais
terriveis guerreiros.

A grandeza do vencedor o consola; resta-lhe ainda a gloria de ter
rezistido a um braço, como o de Ubirajara, grande chefe dos araguaias.

Mas elle esperava que depois de haver ornado com sua prezença a festa do
triunfo, o vencedor fosse generozo, e lhe concedesse a honra do
sacrificio.

É o temor de que Ubirajara lhe recuze uma morte glorioza e o retenha
cativo, que nesse momento acabrunha o chefe dos tocantins.

Elle, um guerreiro livre que pizára outr'ora como senhor aquelles
campos, reduzido á condição de escravo?

Elle, um varão chefe que tinha na obediencia de seu arco mais de mil
guerreiros valentes, obrigado a reconhecer um dono?

Elle, que afrontava a cólera de Tupan, quando o deus irado rujia do céu,
curvar-se ao aceno de um homem, fosse embora o mais pujante dos filhos
da terra?

Pojucan estremecia quando se lembrava que podia ser condenado a tão
grande humilhação.

Em seu terror promovia o passo, com o impeto de fujir para sempre da
taba dos araguaias, onde o ameaçava aquella vergonha.

Mas uma força invencivel atava-lhe a vontade. Elle não se pertencia
desde o momento em que Ubirajara lhe calcou a mão direita no hombro.

Esse era o sinal da conquista, que prendia o vencido ao vencedor;
aquelle que violasse a lei da guerra, perderia para sempre o nobre
titulo de guerreiro.

O desprezo do inimigo o acompanharia aos seus campos nativos; e a taba
de seus irmãos não se abriria para o fujitivo que houvesse dezhonrado o
nome de sua nação.

Por isso na cabana solitaria, Pojucan está mais guardado do que se o
cercasse a multidão dos guerreiros araguaias.

Véla elle proprio em si, porque véla em sua fama.

Póde Ubirajara esquecel-o, que na volta o encontrará ali onde o deixou.

Nada o arrancará da cabana; nem a necessidade de buscar o alimento para
o corpo.

Bem vinda será a fome, se durar tanto que prostre seu corpo robusto, e o
entregue ao seio da terra, onde o guerreiro dorme o sono da gloria.

Além rompe da selva Ubirajara, que se encaminha para a cabana com o
passo rapido.

Segue-o de perto Jandira, como a gentil corça acompanha o caçador, que
lhe roubou o companheiro.

Descobrindo o chefe dos araguaias, Pojucan encerrou a tristeza dentro de
sua alma; e chamou ao rosto a altivez dos grandes guerreiros.

O chefe tocantim não queria que seu vencedor se regozijasse de ter-lhe
abatido o animo inflexivel.

       *       *       *       *       *

Quando Ubirajara se aproximou da cabana, Pojucan tomou-lhe o passo.

--Ubirajara, senhor da lança, grande chefe da nação araguaia, não
confessaste tu diante dos anciãos das tabas e de todos os teus
guerreiros, que Pojucan era o varão mais forte e o mais terrivel no
combate, que o sol tinha visto até o momento de ser vencido por ti?

--Ubirajara o disse. É a voz da nação araguaia.

--Desde que tu cruzaste comigo a seta do dezafio até este momento,
Pojucan, guerreiro varão, e chefe de uma taba, na valente nação dos
tocantins, mostrou-se pela sua constancia e valor digno do sangue de
seus avós?

--Pojucan o disse; e a fama o repete.

--Então porque Ubirajara, o grande chefe dos araguaias, não concede a
Pojucan a morte glorioza, que os tocantins jámais recuzaram a um
guerreiro valente, e que sómente se nega aos fracos? Já não serviu
Pojucan á tua gloria na festa do triunfo? Esperas delle que te obedeça
como um escravo? Se aviltas o varão, a quem venceste, humilhas o teu
valor que elle exaltava.

O grande chefe araguaia ouviu sem interromper o prizioneiro, e respondeu
com gravidade:

--Ubirajara não recuza ao bravo chefe tocantim, seu terrivel inimigo, o
suplicio, que não negaria a qualquer guerreiro valente. Elle esperava
que tua ferida se fechasse de todo, para que o grande Pojucan possa no
dia do ultimo combate sustentar a fama de seu nome, e a gloria de um
varão que só foi vencido por Ubirajara.

O grande chefe dos araguaias levou aos labios a inubia de Camacan; a voz
do mando reboou pelo vasto ambito da taba.

Apareceram vinte jovens guerreiros, a quem elle ordenou que chamassem a
conselho os anciãos.

Depois tornou ao chefe tocantim:

--Os araguaias receberam de seus avós o costume das nações que Tupan
creou. Elles destinam ao prizioneiro a mais bela e a mais ilustre de
todas as virjens da taba, para que ella conserve o sangue generozo do
heróe inimigo e aumente a nobreza e o valor de sua nação.

--É esta tambem a lei, que os guerreiros tocantins observam em suas
tabas.

--A mais bela e a mais nobre de todas as virjens araguaias, aquella que
se ergue como a palmeira no meio da campina coberta de flôres, é
Jandira, a filha de Majé, que tem no seio os doces favos da abelha.

Travando então do pulso de Jandira, que ali ficára preza de sua vista,
levou-a ao prizioneiro.

--Recebe-a como espoza do tumulo.

Jandira que ouviu espavorida aquellas palavras, quiz fujir; porém a mão
do chefe araguaia a reteve.

--Ubirajara parte, mas elle voltará para assistir a teu suplicio e
vibrar-te o ultimo golpe. Pojucan terá a gloria de morrer pela mão do
mais valente guerreiro.

       *       *       *       *       *

Ficaram Jandira e Pojucan em face um do outro.

--Virjem dos araguaias, Tupan te rezervou para espoza do mais terrivel
dos inimigos de tua nação. O filho de seu sangue será o mais valente dos
guerreiros; tu sentirás orgulho por havel-o gerado em teu seio.

--Pojucan, chefe tocantim, Jandira nunca será tua espoza.

--Não é Ubirajara o chefe de tua nação, e não te destinou elle para
servir de noiva do tumulo ao guerreiro que vai morrer no suplicio?

--Ubirajara é o grande chefe da nação araguaia; á sua voz cala-se a
palavra dos anciãos; a seu gesto curva-se a fronte dos guerreiros; á sua
vontade obedecem as tabas. Mas no amor de Jandira, ninguem manda, nem
Tupan. Jandira é noiva de Ubirajara, e se elle não quizer aceital-a, o
guanumbí a levará para os campos alegres onde repouzam as virjens que
morreram.

--Pojucan não carece do amor de Jandira. Nas tabas dos tocantins a mais
bela das virjens se regozijaria de pertencer ao mais valente dos chefes,
e de habitar sua rêde. Nas tabas dos araguaias, onde nacem guerreiros
como Ubirajara, não faltarão virjens formozas, que dezejem a gloria de
ser mãi de um filho de Pojucan.

--Jandira seria a primeira, se não conhecesse Jaguarê, o mais belo dos
jovens caçadores, que é hoje Ubirajara, o senhor da lança e chefe dos
chefes. Pojucan merece uma espoza que nunca tenha ouvido o canto de
outro guerreiro, para dar-lhe um filho digno delle.

--Os ritos de tua nação não punem a noiva que rejeita o prizioneiro?

--Jandira sabe que se sujeita á morte; mas a morte é menos cruel do que
o abandono.

--Então foje, virjem dos araguaias, e esconde-te á cólera dos anciãos.
Talvez mais tarde Ubirajara se arrependa e te perdôe.

--Jandira parte. Ella te dezeja uma espoza terna e a morte glorioza.

A filha de Majé penetrou na floresta, e afastou-se rapidamente da taba.

Quando já estava muito lonje, sentou-se á sombra de um manacá coberto de
flôres e cantou:

--Eu fui Jandira, a linda abelha, que fabricava os favos de cêra para
enchel-os de mel saborozo.

«Agora arrancaram-me as minhas azas com que eu voava pela campina
colhendo o pó das flôres; e secou a doçura de meu sorrizo.

«O canto que saía de meu seio era como o da patativa ao pôr do sol,
quando se recolhe em seu ninho de paina macia.

«Agora eu queria ter no coração uma serpente para morder aquella que me
roubou o amor de meu guerreiro.

«Guardei a minha formozura para orgulho do espozo, e inveja dos outros
guerreiros.

«Agora eu trocaria a flôr do meu rosto por um aspeto terrivel que
infundisse pavor.

«Meus seios mais lindos que os botões do cardo por um peito feroz, e as
mãos lijeiras que tecem os fios do algodão pelas garras do jaguar.

«Eu fui Jandira, o manacá viçozo que se vestia de flôres azues e
brancas.

«Agora sou como a jussara que perdeu a folha, e só tem espinhos para
ferir aquelles que se chegam.»

       *       *       *       *       *

Os anciãos já estavam reunidos na oca do conselho, quando Ubirajara
entrou.

Falou Camacan:

--Ubirajara, senhor da lança, chefe dos chefes, os pais da grande nação
araguaia escutam a tua voz.

O grande chefe tres vezes bateu no chão com a ponta do arco e disse:

--Pojucan, o chefe tocantim, pede a morte do combate; elle a merece,
porque é um grande guerreiro e um varão ilustre. Ubirajara concedeu-lhe
essa honra, como seu vencedor.

--Ubirajara é um inimigo generozo; respondeu Camacan.

Todos os anciãos inclinaram gravemente a cabeça encanecida para
exprimirem sua aprovação ás palavras de Camacan.

Proseguiu Ubirajara:

--É tempo de escolher para o prizioneiro uma espoza digna de acompanhar
em seus ultimos dias ao heróe inimigo, e de ser mãi do marabá, o filho
da guerra.

Todos os abarés dezejavam para si a gloria de oferecer uma filha ao
prizioneiro.

--Ubirajara destinou-lhe Jandira, filha de Majé. Ella o merece por sua
formozura, e pelo sangue do grande guerreiro que gira em suas veias.

--Ubirajara é um grande chefe, disse Camacan.

Os anciãos aprovaram outra vez com a cabeça; Majé acrecentou:

--O sangue do velho Majé não desmentirá em Jandira a fama da nação
araguaia.

--Não! disse Ubirajara e todos os anciãos repetiram: Não!

O grande chefe tornou com a voz pauzada:

--Celebrai a ceremonia da entrega da espoza ao prizioneiro. Ubirajara
parte; só estará de volta na proxima lua para assistir ao suplicio de
Pojucan. Se na auzencia de Ubirajara cair na taba a flecha, nuncia da
guerra, conduzi o trocano ao sitio onde se abraçam os grandes rios, e
soltai a voz da nação araguaia. Nesse dia Ubirajara será comvosco.

Os prudentes anciãos, com a cabeça inclinada para melhor ouvir, recebiam
as palavras do grande chefe e as guardavam na memoria.

Quando Ubirajara se calou, Camacan repetiu, ainda mais pauzado, as
recomendações do filho:

--É esta a vontade de Ubirajara?

--Tu o disseste.

--Os anciãos guardaram a palavra do chefe dos chefes? perguntou ainda
Camacan.

--Ella entrou no espirito dos abarés, como a raiz no seio da terra,
observou Majé.

--Bem dito, repetiram todos.

Ubirajara saiu do carbeto; após elle os anciãos se retiraram
lentamente.




IV

A HOSPITALIDADE


Na entrada do vale ergue-se a grande taba dos tocantins.

É a hora em que as sombras abraçam os troncos das arvores e o sol
descansa em meio da carreira.

A floresta emudece, e todos os viventes se abrigam da calma que abraza.

Ubirajara deixa o escuro da mata e caminha para a grande taba dos
tocantins.

Quando chegou á distancia do tiro de uma flecha despedida pelo mais
robusto guerreiro, tocou a inubia.

O guerreiro de vijia respondeu; e o chefe araguaia, quebrando a seta,
alçou a mão direita para mostrar a senha da paz.

Então avançou para a taba; na entrada da caissara que cercava o campo
dos tocantins, atirou ao chão a seta partida.

Os guerreiros que tinham acudido ao som da inubia, deixaram passar o
estranjeiro sem inquirir donde vinha, nem o que o trouxera.

Era este o costume herdado de seus maiores, que o hospede mandava na
taba aonde Tupan o conduzia.

Ubirajara passou entre os guerreiros, e dirijiu-se á cabana mais alta
que ficava no centro da ocara.

A figura do tucano, feita de barro pintado, e colocada em cima da porta,
dizia que era ali a cabana do grande chefe.

Mas Ubirajara já o sabia; pois antes de penetrar na taba, subira á
grimpa do mais alto cedro da floresta para conhecer o sitio onde
habitava Arací, a estrela do dia.

A cabana estava dezerta naquelle instante, mas ouvia-se a fala das
mulheres que trabalhavam no terreiro.

Ubirajara transpôz o limiar, e levantando a voz disse:

--O estranjeiro chegou.

Acudiram as mulheres, e conduziram Ubirajara á prezença do grande chefe
dos tocantins.

Itaquê passava as horas da ardente calma á sombra da frondoza gameleira,
que podia abrigar cem guerreiros em baixo de sua rama.

Repouzando dos combates, o formidavel guerreiro não desdenhava as artes
da paz em que era tão consumado como nas batalhas.

Assim honrava as fadigas da taba, dando o exemplo do trabalho á familia
de que era pai, e a nação de que era chefe.

Nesse momento as mulheres colocadas em duas filas, com as mãos erguidas,
urdiam os fios de algodão, passados pelos dedos abertos em fórma de
pente.

Itaquê manejava a lançadeira, tão destro como na peleja vibrava o
tacape. Sua mão lijeira tramava a teia de uma rêde, que entretecia das
penas douradas do galo da serra.

Quando chegou Ubirajara, o grande chefe dos tocantins, depois de ter
rematado a urdidura, entregou a lançadeira ao guerreiro Pirajá que
estava a seu lado, e veiu ao encontro do hospede.

--O estranjeiro veiu á cabana de Itaquê, grande chefe da nação tocantim,
disse Ubirajara.

--Bem vindo é o estranjeiro á cabana de Itaquê, grande chefe da nação
tocantim.

Então o tuxava voltou-se para Jacamim, a mãi de seus filhos:

--Jacamim, prepara o cachimbo do grande chefe, para que elle e o
estranjeiro troquem a fumaça da hospitalidade.

Os mensajeiros já corriam pela taba, avizando os guerreiros moacaras da
vinda do hospede á cabana de Itaquê.

Os moacaras, revestidos de seus ornatos de festa, se encaminharam com o
passo grave á oca principal afim de honrar o hospede do grande chefe da
nação tocantim.

Ali chegados, cada um dirijiu ao estranjeiro a pergunta da hospitalidade
e deu-lhe a boa vinda.

       *       *       *       *       *

Depois que Itaquê ofereceu a Ubirajara o cachimbo da paz, e com elle
trocou a fumaça da hospitalidade, os cantores entoaram a saudação da
chegada:

«O hospede é mensajeiro de Tupan. Elle traz a alegria á cabana; e quando
parte leva comsigo a fama do guerreiro que teve a fortuna de o acolher.

«Nas tabas por onde passa, e na terra de seus pais, elle conta aos
velhos, que depois ensinam aos moços, as proezas dos heróes que viu em
seu caminho, e de quem recebeu o abraço da paz.

«O hospede é mensajeiro de Tupan. Elle traz comsigo a sabedoria; na
cabana do guerreiro que tem a fortuna de o acolher, todos o escutam com
respeito.

«Em suas palavras prudentes, os anciãos da taba aprendem, para ensinar
aos moços, os costumes dos outros povos, as façanhas de guerra
desconhecidas por elles, e as artes da paz, que o estranjeiro viu em
suas viajens.

«O hospede é mensajeiro de Tupan. O primeiro que apareceu na taba dos
avós da nação tocantim, foi Sumê, que veiu de onde a terra começa e
caminhou para onde a terra acaba.

«Delle aprenderam as nações a plantar a mandioca para fazer a farinha, e
a tirar do cajú e do ananaz o generozo cauim, que alegra o coração do
guerreiro.

«O hospede é mensajeiro de Tupan. Quando o estranjeiro entra na cabana,
o guerreiro que tem a fortuna de o acolher, não sabe se elle é um chefe
ilustre ou o grande Sumê que volta de sua viajem.

«O sabio ensina por onde passa os segredos da paz, e o heróe as façanhas
da guerra; mas ambos deixam na cabana da hospitalidade a gloria de ter
abrigado um grande varão.

«O hospede é mensajeiro de Tupan. Por seu caminho vai deixando a
abundancia e a festa; depois do banquete da boa vinda as arvores vergam
com os frutos, e a caça não cabe na floresta.

«A cabana que fecha a porta ao hospede, o vento a arranca, o fogo do céu
a abraza. O guerreiro que não se alegra com a chegada do hospede, vê
murchar ao redor de si a espoza, os filhos, as mulheres e as roças que
elle plantou.

«Bem vindo seja o estranjeiro na cabana de Itaquê, o grande chefe da
nação tocantim, que teve a gloria de ser escolhido pelo hospede.

«Os guerreiros exultam com a honra de seu chefe, e os cantores te
saudam, mensajeiro de Tupan.»

Emquanto na cabana resôa o canto da boa vinda, Jacamim, a espoza de
Itaquê, chamou as amantes do marido, suas servas, para ajudal-a a
preparar o banquete da hospitalidade.

As servas pressurosas estenderam á sombra da gameleira as alvas esteiras
de palmas entrançadas de airis e colocaram sobre ellas os urús cheios de
farinha d'agua.

Trouxeram tambem os camocins razos, onde se apinhavam as moquecas
envoltas em folha de banana, e peças de carne, assada no biaribí, que
ainda fumegava nos pratos feitos de concha de tartaruga.

Depois suspenderam a caça mais volumoza, veados e antas, assim como as
igaçabas de cauim, nos ramos inclinados da arvore, em altura que o braço
do guerreiro podesse alcançar.

Frutas de varias especies, pencas douradas de banana, cachos rôxos de
assaí, os rubros croás, e os fragrantes abacaxis, enchiam o giráu
levantado no meio do terreiro.

       *       *       *       *       *

Jacamim conduzira o hospede á sombra da gameleira, onde o esperava o
banquete da chegada.

Ao lado de Ubirajara sentou-se Itaquê e depois os moacaras que tinham
vindo para a festa da hospitalidade.

Os guerreiros comeram em silencio. As mulheres dilijentes os serviam,
enchendo de vinho de cajú e ananaz as largas combucas, tintas com a
pasta do crajurú que dá o mais brilhante carmim.

Quando o hospede, depois de satisfeito o apetite, lavou o rosto e as
mãos, Jacamim ordenou ás servas que recolhessem os restos das provizões,
e retirou-se com ellas.

Tambem se afastaram os jovens guerreiros que ainda não tinham voz no
conselho. Só ficaram sentados com o hospede, Itaquê, e os moacaras
senhores das cabanas.

O cachimbo do grande chefe passou de mão em mão e cada ancião bebeu a
fumaça da herva de Tupan, que inspira a prudencia no carbeto.

Então disse o chefe:

--Itaquê dezeja dar a seu hospede um nome que lhe agrade, e preciza que
o ajude a sabedoria dos anciãos.

A lei da hospitalidade não consentia que se perguntasse o nome ao
estranjeiro que chegava, nem que se indagasse de sua nação.

Talvez fosse um inimigo, e o hospede não devia encontrar, na cabana onde
se acolhia, senão a paz e a amizade.

O chefe, que tinha a fortuna de receber o viajante, escolhia o nome de
que elle devia uzar emquanto permanecia na cabana hospedeira.

Foi Ipê quem primeiro falou:

--Tu chamarás ao hospede Jutaí, porque sua cabeça domina o cocar dos
mais fortes guerreiros, como a copa do grande pinheiro aparece por cima
da mata.

Disse Tapir:

--Chama ao hospede Boitatá, porque elle tem os olhos da grande serpente
de fogo, que vôa como o raio de Tupan.

Os moacaras, cada um por sua vez, falaram; e como a voz começava do mais
moço para acabar no mais velho, as ultimas falas eram menos guerreiras e
traziam a prudencia da idade.

Assim Caraúba, que era o segundo antes do chefe, disse:

--Itaquê, o hospede é o nuncio da paz. Tu deves chamal-o Jutorib, porque
elle trouxe a alegria á tua cabana.

Guaribú, cujos anos enchiam a corda de sua existencia de mais nós, do
que tem o velho cipó da floresta, falou por ultimo:

--O viajante é senhor na terra que elle piza como hospede e amigo; e o
nome é a honra do varão ilustre, porque narra sua sabedoria. Pergunta ao
estranjeiro como elle quer ser chamado na taba dos tocantins.

--Bem dito!

Itaquê, aprovando as palavras prudentes do ancião, perguntou a Ubirajara
que nome escolhia; este lhe respondeu:

--Eu sou aquelle que veiu trazido pela luz do céu. Chama-me Jurandir.

Nesse momento, Arací, a estrela do dia, apareceu por entre as palmeiras,
e caminhou para a cabana.

Os mais valentes entre os jovens guerreiros tocantins acompanhavam a
formoza caçadora. Eram os servos do amor, que disputavam a beleza da
virjem.

Os cantores saudaram de novo o hospede pelo nome que elle escolhera:

--Tu és aquelle que veiu trazido pela luz do céu. Nós te chamaremos
Jurandir; para que te alegres ouvindo o nome de tua escolha.

«Tu és aquelle que veiu trazido pela luz do céu. Nós te chamaremos
Jurandir; e o nome de tua escolha alegrará o ouvido dos guerreiros.»

       *       *       *       *       *

De longe Arací viu o estrangeiro, sentado entre os anciãos, como o
frondoso jacarandá no meio dos velhos troncos das aroeiras.

A virgem reconheceu logo o caçador araguaia e adivinhou que ele viera á
cabana de Itaquê para disputar sua beleza aos guerreiros tocantins.

O coração de Arací encheu-se de alegria. Seus negros cabelos
estremeceram de contentamento, como as penas da jaçanan quando presente
o formoso inverno.

O estrangeiro não queria ser conhecido; pois deixára o cocar das plumas
da arara, que era o ornato guerreiro da sua nação. Mas a imagem do jovem
caçador ficára na lembrança da virgem, como fica na terra a verde
folhajem, depois da lua das aguas.

A lei da hospitalidade proíbia á virgem revelar o segredo do
estranjeiro, só della sabido. Nesse momento foi á sua alma que obedeceu
e não ao costume da nação.

Quando Arací chegou ao terreiro, os anciãos se preparavam para ouvir a
maranduba do hospede. Os guerreiros e as mulheres escutavam em silencio.

O estrangeiro começou:

--Jurandir é moço; ainda conta os anos pelos dedos e não viveu bastante
para saber o que os anciãos da grande nação tocantim aprenderam nas
guerras e nas florestas.

«O moço é o tapir que rompe a mata, e vôa como a seta. O velho é o
jabotí prudente que não se apressa.

«O tapir erra o caminho e não vê por onde passa. O jabotí observa tudo,
e sempre chega primeiro.

«Jurandir é moço; mas conhece as grandes florestas, e atravessou mais
rios do que as veias por onde corre o sangue valente de seu pai.

«A primeira agua em que Jaçanan, sua mãi, o lavou, quando elle lhe
rasgou o seio, foi a do grande lago onde Tupan guardou as aguas do
diluvio, depois que as retirou da terra.

«Ainda Jurandir não era um caçador, quando elle se banhou no pará sem
fim, onde os rios despejam a sua corrente e cujas aguas quando dormem se
mudam em sal.

«Duas vezes Jurandir seguiu o pai dos rios desde a grande montanha onde
nace, até á varzea sem fim que elle enche com suas aguas.

«Elle viu o grande rio combater com o mar, no tempo da pororoca. Os dois
chefes tocam as inubias antes da peleja, para chamar seus guerreiros.

«Vem de um lado as aguas do mar, são os guerreiros azues, com penachos
de araruna; vem do outro as aguas do rio, são os guerreiros vermelhos
com penachos de nambú.

«Começa a batalha. Os guerreiros se enrolam, como a corrente da
cachoeira, batendo no rochedo; a terra estremece com o trovão das aguas.

«Mas o grande rio agarra o mar pela cintura. Arranca do chão o inimigo;
carrega-o nos hombros; solta o grito de triunfo.

«Por muito tempo os Tetivas, que habitam sobre as arvores, vêem passar
correndo as aguas do mar; são os guerreiros azues que fojem espavoridos
e vão esconder-se na sombra das florestas.

«Jurandir tambem viu a terra onde habitam as mulheres guerreiras,
senhoras de seu corpo, que vivem em baixo das aguas do grande rio.

«Só ellas sabem o segredo das pedras verdes, que tornam os guerreiros
cativos de seu amor, sem prival-as da liberdade.

«Por isso todas as luas, grande numero de guerreiros as vizitam em sua
taba; e ellas guardam para os mais valentes a flôr de sua beleza.

«Quando chega o tempo de vir o fruto do amor, guardam sómente as filhas;
e enviam aos guerreiros os filhos, de onde saem os maiores chefes.

«Feliz o guerreiro que acha uma terra valente e fecunda para a flôr de
seu sangue. O filho será maior do que elle; e o neto maior do que o
filho.

«Sua geração vai assim crecendo de tronco em tronco; e fórma uma
floresta de guerreiros, onde o ultimo cedro se ergue mais frondozo e
robusto, porque recebe a seiva de seus avós.»

       *       *       *       *       *

Quando Jurandir proferiu as ultimas palavras, seus olhos que tinham
muitas vezes buscado Arací, repouzaram nella.

A virjem tocantim compreendeu que o estranjeiro se referia a si; e não
escondeu sua alegria, como não esconde sua flôr a juquerí que o rio
beija.

A formoza caçadora cantou. Sua voz era limpida e sonora como o gorjeio
do sabiá, quando se deleita com o calor do sol.

--Feliz a terra que recebe a semente do cedro frondozo e robusto; ella
se cobrirá de sombra e frescura. Os guerreiros gostarão de reunir-se aí
para falar da paz e da guerra.

«Ella é como a virjem que um chefe ilustre escolheu para sua espoza, e
que se povôa de uma prole numeroza. As nações a respeitam porque é a mãi
de valentes guerreiros; os anciãos escutam seu conselho na paz e na
guerra.

«As mulheres guerreiras, senhoras de seu corpo, são como a palmeira do
murití, que rejeita o fruto antes que elle amadureça e o abandona á
correnteza do rio.

«A espoza não desprende de si o filho, senão quando elle não chupa mais
seu peito. Ella é como a mangabeira; nutre o fruto com seu leite, que é
a flôr de seu sangue.

«Não é na terra das mulheres guerreiras que o estranjeiro deve buscar a
espoza; mas na taba de sua nação, onde Tupan guarda para seu valor a
mais bela das virjens, aquella que tem o sorrizo de mel.»

O hospede respondeu:

--Jurandir sabe onde encontrará a virjem que dezeja para espoza. A luz
do céu o guia, e nada reziste á força de seu braço.

Depois de responder ao canto de Arací, o estranjeiro continuou sua
maranduba, que todos ouviram silenciozos.

Elle contou o que havia aprendido nas praias do mar habitadas pela
valente nação dos Tupinambás, decendentes da mais antiga geração de
Tupi.

Os pajés dos Tupinambás lhe disseram que nas aguas do pará sem fim vivia
uma nação de guerreiros ferozes, filhos da grande serpente do mar.

Um dia esses guerreiros saíriam das aguas para tomar a terra ás nações
que a habitam; por isso os Tupinambás tinham decido ás praias do mar,
para defendel-as contra o inimigo.

Os guerreiros do mar tambem tinham suas guerras entre si, como os
guerreiros da terra. Então as aguas pulavam mais altas do que os montes;
seu estrondo era como o trovão.

Jurandir contou mais que nas praias do mar se encontrava uma rezina
amarela, muito cheiroza, a qual a grande serpente creava no bucho.

Os Tupinambás faziam dessa goma contas para seus colares; Jurandir
mostrou a pulseira que lhe cinjia o artelho, prezente de um guerreiro
daquella nação.

Essas contas tornavam o pé do guerreiro ajil na corrida, e protejiam o
viajante contra os caiporas da floresta, que se apartavam de seu
caminho.

Muitas outras coizas referiu Jurandir; e os anciãos admiravam-se de ver
o juizo prudente de um abaré no corpo joven de tão forte guerreiro.

Os mais velhos dos moacaras acreditaram que o hospede era o filho de
Sumê, mandado por seu pai correr as terras que o sabio tinha visto em
sua mocidade.

Calaram, porém, seu pensamento, para o comunicarem aos anciãos quando se
reunisse o carbeto da nação.

O sol já decia para as montanhas quando terminou a festa da
hospitalidade na cabana de Itaquê.

Os moacaras partiram. Itaquê voltando á sua ocupação, deixou o hospede
senhor de sua vontade para fazer o que lhe agradasse.

Vieram os jovens pescadores da taba com os anzóes e gequis saber do
hospede que peixe elle preferia.

Depois delles chegaram os jovens caçadores que antes de partir para a
floresta vinham receber os dezejos do hospede.

Por fim aproximaram-se as mulheres que já tinham rompido o fio da
virjindade, mas não eram nem espozas, nem amantes de guerreiros.

Essas eram as mulheres livres, que davam seu amor e o retiravam quando
queriam, mas não recebiam a proteção de um guerreiro nem podiam jámais
ser mãis da prole.

Os filhos concebidos no proprio seio só tinham por mãi a espoza, que o
guerreiro tomou por companheira de sua existencia e raiz de sua geração.

O rito da hospitalidade entre os filhos da floresta manda que se dê ao
estranjeiro amigo tudo que deleita ao guerreiro.

Por isso vinham as moças oferecer a Jurandir sua beleza, para que elle
escolhesse entre ellas uma companheira, que partilhasse sua rêde na
cabana hospedeira.

Todas se tinham enfeitado com seus mais belos ornatos, para agradar aos
olhos de Jurandir; pois não havia para ellas maior gloria do que a de
merecer o amor do estranjeiro.

Umas traziam as tranças urdidas com penas vistozas dos passaros de sua
predileção; outras haviam perfumado da essencia do sassafraz os cabelos
soltos, que derramavam sua fragancia ao sopro da briza.

Chegando diante do estranjeiro, começaram uma dansa amoroza para mostrar
a graça de seu corpo. Aquellas que tinham a voz doce cantavam em louvor
de Jurandir.

Arací fôra buscar seu balaio de palha vermelha, e sentára-se no
terreiro, junto á porta da cabana. Seus dedos ajeis enfiavam as sementes
de jequerití, de que fazia um ramal para seu colo gentil.

Emquanto compunha o colar, a virjem percebia que os olhos de Jurandir
abandonavam os encantos das mulheres, e buscavam seu rosto.

Mas ella voltava-se para a floresta; com o trinado de seus labios
chamava o crajuá, que voava no olho da palmeira. O passarinho iludido
vinha, cuidando ouvir o canto da companheira.

Jurandir apartou as mulheres e disse:

--As moças tocantins são formozas, qualquer dellas alegraria o sono do
estranjeiro. Mas Jurandir não veiu á cabana de Itaquê para gozar do amor
de uma noite; elle veiu buscar a espoza que ha de acompanhal-o até á
morte, e a virjem que escolheu para mãi de seus filhos.

Quando Arací ouviu estas palavras cobriu-se de sorrizos, como o guajerú
se cobre de suas flôres alvas e perfumadas com os orvalhos da manhã.

Jurandir voltou-se então para a virjem caçadora:

--Estrela do dia, Arací, conduze-me á prezença de Itaquê. É tempo que
elle saiba o segredo do estranjeiro.

--Os sonhos disseram a Arací duas noites seguidas, que o joven caçador
chegaria á cabana de Itaquê; ella te esperou. Quando meus olhos te viram
sentado entre os moacaras, logo conheceram que tu vinhas buscar a
espoza.

O estranjeiro respondeu:

--Jurandir chegou á taba dos seus, e recebeu um nome de guerra e o
grande arco de sua nação. Mas a cabana do chefe estava dezerta; e sua
rêde não lhe guardou o sono tranquilo do guerreiro. Elle ouviu tua voz
que o chamava, virjem tocantim, e ergueu-se; tua luz o guiou, filha do
sol, e o trouxe á tua prezença.




V

SERVO DO AMOR


Jurandir, conduzido pela virjem, caminhou ao encontro de Itaquê e disse:

--Grande chefe dos tocantins, Jurandir não veiu á tua cabana para
receber a hospitalidade; veiu para servir ao pai de Arací, á formoza
virjem, a quem escolheu para espoza. Permite que elle a mereça por sua
constancia no trabalho, e que a dispute aos outros guerreiros pela força
de seu braço.

Itaquê respondeu:

--Arací é a filha de minha velhice. A velhice é a idade da prudencia e
da sabedoria. O guerreiro que conquistar uma espoza como Arací terá a
gloria de gerar seu valor no seio da virtude. Itaquê não póde dezejar
para seu hospede maior alegria.

Desde esse momento, Jurandir não foi mais estranjeiro na taba dos
tocantins. Pertencia á oca de Itaquê, e devia, como servo do amor,
trabalhar para o pai de sua noiva.

Os guerreiros, cativos da beleza de Arací, conheceram que tinham de
combater um adversario formidavel; mas seu amor creceu com o receio de
perder a filha de Itaquê.

Jurandir tomou suas armas e deceu ao rio. Era a hora em que o jacaré
boia em cima das aguas como o tronco morto, e a jaçanan se balança no
seio do nenufar.

O manatí erguia a tromba para pastar a relva na marjem do rio. Ouvindo o
rumor das folhas, mergulhou na corrente; mas já levava o arpéu do
pescador cravado no lombo.

Jurandir não esperou que o peixe ferido dezenrolasse toda a linha.
Puxou-o para terra; e levou-o ainda vivo á cabana de Itaquê, onde tres
guerreiros custaram a deital-o no giráu.

As mulheres cortaram as postas de carne, e os guerreiros cavaram a terra
para fazer as grelhas do biaribí.

Jurandir partiu de novo, e entrou na floresta. Ao lonje reboavam os
gritos dos caçadores, que perseguiam a féra.

Pelo assobio o guerreiro conheceu que era um tapir. O animal zombára dos
caçadores e vinha rompendo a mata como a torrente do Xingú.

As arvores que seu peito encontrava caíam lascadas.

Jurandir estendeu o braço. O velho tapir, agarrado pelo pé, ficou
suspenso na carreira, como o passarinho prezo no laço. Nunca até aquelle
momento encontrára força maior que a sua.

Uma vez decera á lagôa para beber. A sucurí, que espreitava a caça,
mordeu-o na tromba. Elle fujia, esticando a serpente; e a serpente
encolhendo-se o arrastava até á beira d'agua.

Assim tornou, uma, duas, tres vezes. Mas o tigre urrou de fome. O velho
tapir disparou pela floresta; e a sucurí com a cauda preza á raiz da
arvore arrebentou pelo meio.

O velho tapir rompeu a serpente como se rompe uma corda de piassaba; mas
não pôde abalar o braço de Jurandir, mais firme do que o tronco do
guaribú.

O estranjeiro tornou á cabana com a caça. Nenhum dos guerreiros da taba,
nem mesmo o velho Itaquê, pôde aguentar com as duas mãos a féra bravia.

Então Jurandir obrigou o animal a agachar-se aos pés de Arací e disse:

--O braço de Jurandir fará cair assim a teus pés o guerreiro que ouze
disputar ao seu amor a tua formozura, estrela do dia.

       *       *       *       *       *

Nunca a abundancia reinára na cabana sempre farta do chefe dos
tocantins, como depois que a ella chegára o estranjeiro.

Jurandir era o maior caçador das florestas, e o primeiro pescador dos
rios. Seu olhar seguro penetrava na espessura das brenhas, como na
profundeza das aguas.

Nada escapava á destreza de sua mão. Onde ella não chegava, iam as unhas
de suas flechas certeiras, que rasgavam o seio da vitima, como as garras
do jaguar.

O estranjeiro soubera de Arací qual era a caça que Itaquê preferia, e
qual o peixe que elle achava mais saborozo. Desde então nunca o velho
chefe sentiu a falta do manjar predileto.

Se não era a lua propria do peixe dezejado, Jurandir sabia onde o podia
encontrar. Não tornava á cabana sem a provizão necessaria para a
refeição do dia.

Depois da caça e da pesca, Jurandir trabalhava nas roças de Itaquê.
Fazia no taboleiro os matumbos, para que Jacamim enterrasse as estacas
da maniva e semeasse o feijão, o milho e o fumo.

Entre os filhos das florestas a plantação devia ser feita pela mão da
mulher, que era mãi de muitos filhos; porque ella transmitia á terra sua
fecundidade.

A semente que a mão da virjem depozitava no seio da terra dava flôr; mas
da flôr não saía fruto. E se era um guerreiro que plantava, o aipim
endurecia como o páu de arco.

Nas vazantes do rio, Jurandir capinava a terra coberta de relva e outras
plantas, e só deixava crecer o arroz, o inhame e as bananeiras.

Quando o estranjeiro partia pela manhã, Arací o acompanhava de lonje
pela floresta.

Sua vontade a levava após elle.

O costume da taba não consentia que a virjem dezejada pelos servos de
seu amor, preferisse um guerreiro antes de saber se elle a obteria por
espoza.

A filha de Itaquê não queria pertencer a outro guerreiro; mas
lembrava-se que a virjem deve merecer o espozo por sua paciencia, assim
como o guerreiro merece a espoza por sua constancia e fortaleza.

Então voltava ao terreiro: emquanto os outros guerreiros espreitavam sua
vontade, ella tecia as franjas para a rêde do cazamento.

Sua mão sutil urdia com o alvo fio do crauatá a fina penujem escarlate.
Os noivos cuidavam que era a do peito do tucano; mas ella sabia que era
do peito da arára e que tinha as côres de seu guerreiro.

Quando o sol chegava ao cimo dos montes, ouvia-se o canto de Jurandir
que voltava da caça. A virjem seguida pelos guerreiros ia ao encontro do
estranjeiro.

Então deciam ao rio. Era a hora do banho. Arací cortava as ondas mais
linda que a garça côr de roza; e os guerreiros a seguiam de perto, como
um bando de galeirões.

Mas nenhum, nem mesmo Jurandir, que nadava como um bôto, podia alcançar
a formoza virjem. Ella parecia a flôr do mururê que se desprendeu da
haste, e passa levada pela corrente.

Uma vez a filha das aguas soltou um grito, e dezapareceu no seio das
ondas. Jacamim cuidou que o jacaré tinha arrebatado a filha de seu seio.
Os guerreiros mergulharam para salval-a; mas não a encontraram.

Todos a julgavam perdida, quando apareceu Jurandir que trazia nos braços
o corpo da virjem formoza. Pizando em terra, ella correu para a cabana,
onde foi esconder sua alegria.

Desde então era no banho que Arací recebia o abraço de Jurandir, sem que
os outros guerreiros suspeitassem da preferencia dada ao estranjeiro.

No seio das ondas ninguem a adivinhava, a não ser o ouvido sutil de
Jurandir, a quem ella chamava com o doce murmurio do irerê.

Encontravam-se no fundo do rio emquanto durava a respiração. Depois
desprendiam-se do abraço e surjiam lonje um do outro.

       *       *       *       *       *

Á tarde, voltando da caça, Jurandir viu na floresta um rasto, que elle
conhecia.

Chegado á cabana, entregou a Jacamim o veado que matára, e saiu para
vizitar os arredores. Nada encontrou de suspeito; o rasto, que o
inquietava, não chegára até ali.

No outro dia, ao romper da alvorada, logo depois do banho os guerreiros
partiram para a caça e para a pesca. Só ficaram na cabana Jacamim e as
mulheres de Itaquê.

Arací tomou o arco e entrou na floresta. A imajem do guerreiro amado
fujia naquelle instante de seus olhos; elles buscaram entre as folhas o
sinal de seus passos e não o descobriram.

Lembrou-se a virjem, que Jurandir gostava da polpa do guaranan adoçada
com o mel da abelha, e colheu os frutos encarnados que pendiam dos ramos
da trepadeira.

Nesse momento a arára cantou no olho do pirijá. Arací precizava de suas
plumas vermelhas para o cocar que ella tecia em segredo.

Era o cocar do amor, com que dezejava ornar a cabeça de seu guerreiro
senhor, no dia em que elle a conquistasse por espoza.

A virjem armou o arco e seguiu a arára rompendo a folhajem. Quando ia
disparar a seta, ouviu ao lado um rumor dezuzado.

Jurandir estava perto della, e segurava o braço de uma mulher, que ainda
tinha na mão a macana afiada.

Arací conheceu a virjem araguaia, pela faxa de algodão entretecida de
penas que lhe apertava a curva da perna; e adivinhou que era Jandira, a
noiva do guerreiro.

--Filha de Majé, tua mão quiz matar a virjem que Jurandir escolheu para
espoza. Tu vais morrer.

--Desde que Ubirajara abandonou Jandira, ella começou a morrer, como a
baunilha que o vento arranca da arvore. Acaba de matal-a, para que sua
alma te acompanhe de dia na sombra das florestas e te fale de noite na
voz dos sonhos.

--A virjem araguaia ameaçou a vida de Arací; ella lhe pertence, disse a
filha de Itaquê.

Jurandir cortou na floresta uma comprida rama de imbê, e atou as mãos de
Jandira.

--Jandira é tua escrava. Não lhe dês a liberdade. Ella tem a astucia da
serpente e seu veneno.

--Eu era a cobra d'agua, amiga do guerreiro, que habita sua cabana e a
guarda contra o inimigo. Quem foi que me fez a cascavel venenoza, que
traz nos labios o sorrizo da morte?

Jurandir não respondeu. Nesse momento elle teve saudade de sua cabana; e
lembrou-se do tempo em que, joven caçador, seguia na floresta a formoza
virjem araguaia.

       *       *       *       *       *

As duas virjens ficaram sós no claro da floresta.

Já o rumor dos passos de Jurandir se apagára ao lonje, e ainda tinham
ambas os olhos cativos uma da outra.

Jandira pensou que ella não podia dar a Ubirajara a formozura da filha
de Itaquê. Arací receiou que o amor do guerreiro se voltasse outra vez
para a linda virjem araguaia.

A filha de Majé preparou-se para morrer á mão de sua rival, mas ella
preferia a morte ao suplicio de contemplar sua beleza.

Arací, a estrela do dia, cantou:

--O amor do guerreiro é a alegria da virjem; quando elle foje, a virjem
fica triste como a varzea que perdeu sua relva.

«Por isso Jandira está triste; o amor do guerreiro fujiu della; e a
deixou solitaria como a nambú, a quem o companheiro abandonou.

«Mas o amor do guerreiro é como o orvalho da noite. Quando o sol queima
a varzea, elle dece do céu para cobril-a de verdura e de flôres.

«Arací está alegre, porque o amor do guerreiro voltou-se para ella; e
Jurandir vai fazel-a companheira de sua gloria e mãi de seus filhos.

«Quando a espoza de Jurandir não tiver mais beleza para dar a seu
guerreiro, ella consentirá que Jandira durma em sua rêde.

«E o orvalho da noite decerá do céu para cobrir a varzea de verdura e de
flôres. E Jandira achará outra vez seu sorrizo de mel.»

Assim cantou Arací, a estrela do dia; e a virjem araguaia respondeu:

--A arvore que morreu não sofre quando o fogo a queima. Jandira prefere
a morte á vergonha de ser tua serva, e á tristeza de ver a cada instante
a formozura da estranjeira que roubou seu amor.

«Arací, a estrela do dia, é mais bela do que Jandira, mas não sabe amar
o guerreiro que a escolheu para mãi de seus filhos.

«Nunca Jandira ofereceria sua rêde de espoza a outra mulher; e aquella
que recebesse o amor de seu guerreiro, morreria por sua mão.

«Ella amaria seu espozo tanto que sua graça nunca se retirasse della;
pois saberia morrer quando não tivesse mais beleza para dar-lhe.

«A nação araguaia nunca levanta a taba do vale onde acampou, senão
quando a terra já não póde dar-lhe mais frutos.

«Assim é o guerreiro. Elle não retira seu amor da espoza que habita,
senão quando ella já não sabe alegrar sua alma.»

Tornou a virjem tocantim:

--A cajazeira, depois que dá seu fruto, perde a folha; o guerreiro busca
a sombra de outra arvore para repouzar.

«Mas vem a lua das aguas e a cajazeira outra vez se cobre de folhas; sua
sombra é doce ao guerreiro.

«A espoza é como a cajazeira. Quando o guerreiro não acha alegria em
seus braços, ella sofre que busque outra sombra, e espera que lhe volte
a flôr para chamal-o de novo ao seio.

«Arací ama seu guerreiro, como Jacamim ama Itaquê. A cabana do grande
chefe dos tocantins está cheia de servas; mas seu amor nunca abandonou a
espoza.

«As servas deram a Itaquê muitos filhos; mas os filhos da velhice, foi
só Jacamim quem os deu ao grande chefe; porque o primeiro amor do
guerreiro não morre nunca.

«Elle é como a grama que nunca mais deixa a terra onde naceu: podem
arrancal-a que brota sempre.

«Arací quer apagar a tristeza de tua alma; e beber o teu sorrizo de mel,
para que o espozo ache mais doces seus labios, quando os provar.

«Tu serás irmã de Arací, e lhe darás um filho de Jurandir, tão valente,
como os que seu amor ha de gerar no seio da espoza.»

Jandira afastou os olhos da virjem dos tocantins, para desviar della sua
ira.

--Tua palavra dóe como o espinho da jussara, que tem o côco mais doce
que o mel.

«As flechas de teu arco não matam mais do que os sorrizos que o amor do
guerreiro derrama em teu rosto, estrela do dia.

«Ubirajara deixou-me por ti; mas foi a Jandira que elle primeiro
escolheu para espoza, quando ainda era joven caçador.

«Nos campos alegres, onde vão os guerreiros quando morrem, elle me
chamará; e o guanumbí virá buscar a minha alma no seio da flôr do manacá
para leval-a a seu amor.

«Mata-me, ou deixa que eu morra para não ver mais tua beleza, e não
ouvir o canto de tua alegria.»

Arací caminhou para Jandira e dezatou-lhe os pulsos.

--O amor do guerreiro não pertence á mulher que seus olhos primeiro
viram; mas áquella que elle escolheu. Apanha teu arco; e morra aquella
que não souber defender seu amor, e merecer o espozo.

Arací disse, e tirou da uiraçaba uma seta. Jandira ficou imovel, com os
pulsos cruzados, como se ainda estivessem prezos:

--A vontade de Ubirajara atou os braços de Jandira; ella rejeita a
liberdade dada por ti. Arací póde ser preferida, porém não será mais
generoza do que a filha de Majé.




VI

O COMBATE NUPCIAL


Chegou o dia em que os noivos de Arací deviam disputar a posse da
formoza virjem.

Era a hora em que o sol transpondo a crista da montanha estende pelo
vale sua arassoia de ouro.

A grande nação tocantim cerca a vasta campina. No centro estão os
anciãos, que formam o grande carbeto.

Em frente aparece Arací, a estrela do dia, que ha de ser o premio da
constancia e fortaleza do mais destro guerreiro.

Jacamim acompanha a filha; nesse momento remoça com a lembrança do dia
em que Itaquê a conquistou, lutando com os mais feros mancebos
tocantins.

De um e outro lado seguem pela ordem da idade os moacaras. Cada um
cerca-se da espoza, das servas e das filhas, que vieram para assistir ao
combate.

É a unica das festas guerreiras, em que o rito de Tupan consente a
prezença das mulheres, porque se trata da sua gloria.

Contemplando o esforço heroico dos mais nobres guerreiros para
conquistar a formozura de uma virjem, as outras virjens aprendem a
prezar a castidade, e as espozas se ufanam de guardar a fé ao primeiro
amor.

Itaquê, o grande chefe dos tocantins, prezide ao combate, orgulhozo pela
valente nação que dirije, como pela formoza virjem de que é pai.

Quando seus olhos admiram a multidão de guerreiros, servos do amor de
Arací, que se preparam a disputar a espoza, o grande chefe ergue a
fronte soberba como o velho ipê da floresta coroado de flôres.

Os noivos distinguem-se dos outros guerreiros pelo bracelete de contas
verdes, que o guerreiro cinje ao pulso da espoza, quando rompe a liga da
virjindade.

Lá caminha Pirajá, o grande pescador, senhor dos peixes do rio, a quem
obedece o manatí e o golfinho.

Junto delle ergue-se Uirassú, que tomou este nome do valente guerreiro
dos ares, pelo ímpeto do assalto.

Vem depois Arariboia, a grande serpente das lagôas; Cauatá, o corredor
das florestas; Corí, o altivo pinheiro; e tantos outros, ainda mancebos,
e já guerreiros de fama.

Entre todos, porém, assoma Jurandir. Sua fronte passa por cima da cabeça
dos outros guerreiros, como o sol quando se ergue entre as cristas da
serrania.

Os muzicos fizeram retroar os borés, anunciando o começo da festa; e os
servos do amor se estenderam em linha pelo meio da campina.

Então os nhengaçáras levantaram o canto nupcial.

«A espoza é a alegria e a força do guerreiro. Ella acende em suas veias
um fogo mais generozo que o do cauim, e prepara para seu corpo o repouzo
da cabana.

«Por isso o primeiro dezejo do mancebo, quando ganha nome de guerra é
conquistar uma espoza.

«Não basta ser valente guerreiro para merecer a virjem formoza, filha de
um grande chefe; é precizo a paciencia para sofrer, e a perseverança no
trabalho.

«Arací, a estrela do dia, filha de Itaquê, será a alegria e a gloria do
mais forte e do mais valente.

«Os filhos que ella gerar em seu seio, onde corre o sangue do grande
chefe, serão os maiores guerreiros das nações.»

       *       *       *       *       *

Itaquê deu sinal; o combate começou.

Pirajá foi o primeiro que saiu a campo, e clamou esgrimindo o tacape:

--Arací, estrela do dia, tu serás espoza do guerreiro Pirajá, que te vai
conquistar pela força de seu braço.

Avançou Uirassú, e disse:

--A virjem formoza ama ao guerreiro Uirassú e ha de pertencer-lhe.

A noiva cantou:

«Arací ama o mais forte e mais valente. Ella pertencerá ao vencedor, que
vencer a bravura dos outros guerreiros, como venceu a vontade da
espoza.»

A voz mavioza da virjem afagou a esperança de todos os campeões; mas
seus olhos ternos só viam o nobre semblante de Jurandir, o escolhido de
sua alma.

Os dois guerreiros travaram a pugna; os tacapes girando nos ares
encontravam-se como dois madeiros arrojados pelo remoinho da cachoeira.

Afinal Pirajá, ameaçado pelo bote do adversario, recuou um passo do
logar em que se postára. Pela lei do combate estava vencido, e teve de
deixar o campo.

Arariboia tomou seu logar; e o combate proseguiu com varia fortuna até
Corí que, expelindo o vencedor, manteve-se firme contra todos que vieram
disputal-o.

Faltava Jurandir. O estranjeiro avançou gravemente, como convinha a um
grande guerreiro da nação araguaia.

Elle queria dar ao vencedor de tantos combates o tempo precizo para
descansar.

A mão do guerreiro arrastava pelo chão o tacape, que desdenhava erguer
para um combate sem gloria.

Quando Jurandir se achou em face do vencedor, levantou a voz e disse:

--Para merecer Arací, a estrela do dia, Jurandir queria vencer a cem
guerreiros, e não combater um guerreiro fatigado.

«Tu empunhas um tacape; toma outro habituado a vencer; elle restituirá a
teu braço a força que perdeu. Basta a Jurandir esta mão, para te
arrebatar todas as tuas vitorias.»

Disse e arremessou a arma aos pés do adversario.

Corí, pensando que seu rival o atacava, desfechou-lhe o golpe. Mas
Jurandir aparou-o na mão firme e arrebatando o tacape que o ameaçava
arrancou o guerreiro do chão.

Assim o pinheiro que o tufão arrebata, antes de partir o tronco,
desprende a raiz da terra, onde nada o abalava.

Jurandir ficou só no campo. Mas todos os noivos se haviam mostrado
valentes guerreiros; talvez nas outras provas saíssem vencedores.

       *       *       *       *       *

Os muzicos tocaram os borés; e os jovens caçadores trouxeram para o meio
do campo a figura da noiva.

Era um grosso tóro de madeira, no qual a mão destra de um pajé entalhára
com o dente da cotia a cabeça de uma mulher.

Tres caçadores vergavam com o pezo da carga; e foram precizos dez para
trazel-o desde a cabana do pajé até o campo, onde ficou semelhante á uma
mulher sentada.

Na vespera o pajé burnira de novo com a folha da sambaiba o tóro de
madeira, e o esfregára com a banha do teú, para que elle escorregasse da
mão do caçador.

Depois os mancebos guerreiros espalharam pelo campo troncos de arvores
cortadas com as ramas e as folhas, e fincaram cercas de estacas entre os
barrancos da varzea que ia morrer á marjem do rio.

Itaquê deu sinal, e os guerreiros começaram a nova prova, mais dificil
que a primeira.

Era precizo que o guerreiro á disparada levantasse do chão, sem parar, o
tóro de madeira; e se defendesse dos rivais que o assaltavam para
tomal-o.

Esse jogo era o emblema da ajilidade e robustez que o marido devia
possuir para disputar a espoza e protejel-a contra os que ouzassem
dezejal-a.

Na primeira corrida foi Jurandir quem mais rapido chegou. Como o condor
que rebatendo o vôo leva nas garras a tartaruga adormecida, assim o
veloz guerreiro suspendeu a figura da espoza e com ella arremessou-se
pela campina.

Os outros o seguiam ardendo em ímpetos de roubar-lhe a preza. Na
planicie aberta seria vão intento, porque nenhum corria como o
estranjeiro.

Mas Jurandir achava diante de si, para tolher-lhe o passo, as arvores
derrubadas, os barrancos profundos e outros obstaculos de propozito
acumulados.

Não hezitou, porém, o destemido mancebo. Salvou as corcovas, galgou as
caiçaras, e subiu pelos galhos que estrepavam o chão.

Uma vez os guerreiros se aproximaram tanto, que Jurandir sentiu nos
cabelos o sopro da respiração ofegante. Em frente erguia-se a alta
estacada.

Se tentasse subir carregado como estava, os guerreiros com certeza o
alcançariam a tempo de arrancar-lhe a preza.

Então arremessou pelos ares o tóro de madeira, como se fosse o tacape de
um joven caçador; e seguiu após.

Sempre vencedor dos assaltos dos rivais, Jurandir percorreu a vasta
campina, e foi colocar a figura da espoza no meio do carbeto dos
anciãos.

Ali era o termo da correria. O guerreiro que chegava a esse ponto com a
sua carga, saía triunfante da prova.

Elle mostrava como arrebataria a espoza do meio dos inimigos, e a
defenderia contra seus ataques até recolhel-a em um azilo seguro.

De todos os guerreiros só Corí e Uirassú conseguiram ganhar a prova; mas
nenhum com a galhardia de Jurandir.

Corí por vezes foi alcançado, e só á confuzão dos outros deveu
escapar-se. Uirassú recuperou a preza já perdida, porque Pirajá, que a
havia empolgado, falseou na corrida e tombou.

Os tres vencedores entraram de novo em campo para decidir entre si. O
triunfo não se demorou. Jurandir o arrebatou, como o gavião arrebata a
preza que disputam duas serpes.

Soaram os borés; e ao som do canto de triunfo entoado pelos nhengaçáras,
os chefes e os guerreiros saudaram o vencedor dos vencedores.

       *       *       *       *       *

Quando voltou o silencio, Ogib, o grande pajé dos tocantins, estava em
pé no meio do campo.

Junto delle uma das velhas mãis dos guerreiros segurava o camucim da
constancia, que tinha o bojo pintado de vermelho.

O pajé disse:

--Não basta que o guerreiro seja forte e valente, para merecer a espoza.

«É precizo que tenha a constancia do varão, e não se perturbe com o
sofrimento.

«É precizo que elle tenha a paciencia do tatú, e suporte sereno as
mortificações das mulheres e as importunações das crianças.

«O guerreiro que não tem constancia e paciencia, depressa gasta suas
forças.

«O rio que se derrama pela varzea, nunca verá suas marjens cobertas de
grandes florestas.

«Assim é o guerreiro que não sabe sofrer, e derrama sua alma em
lamentações.

«Nunca elle será pai de uma geração forte e glorioza, nem verá sua
cabana povoar-se dos guerreiros de seu sangue.

«Se queres merecer a filha de Itaquê, mostra, Jurandir, que és varão
ainda maior do que o famozo guerreiro que todos admiram.»

O grande pajé levantou o tampo do camucim, e descobriu uma abertura,
bastante para caber o punho do mais robusto guerreiro.

Jurandir meteu a mão no vazo. O semblante sempre grave do guerreiro
cobriu-se de um sorrizo doce como a luz da alvorada; e seus olhos, mais
contentes que dois saís, pouzaram no rosto de Arací.

O camucim da constancia continha um formigueiro de saúvas, que o pajé
havia fechado ali na ultima lua.

Açuladas pela fome de tantos dias, as formigas vorazes se prepararam
para dilacerar a primeira vitima que lhes caísse nas garras.

A dentada da saúva, que anda solta no campo, dóe como uma braza; quando
são muitas e com fome, queimam como a fogueira.

Todas as vistas se fitaram no semblante do guerreiro, para espreitar-lhe
o minimo gesto de sofrimento.

Mas Jurandir sorria; e seus labios ternos soltaram o canto do amor. De
propozito o guerreiro adoçou a voz, para não parecer que disfarçava o
gemido com o rumor do grito guerreiro.

Assim cantou elle:

«A dôr é que fortalece o varão, assim como o fogo é que enrija o tronco
da crauba, da qual o guerreiro fabríca o arco e o tacape.

«A jussara tem setas agudas: mas Arací, quando atravessa a floresta,
colhe o côco de mel, embora a palmeira lhe espinhe a mão.

«O ferrão da saúva dóe mais do que o espinho da jussara; mas Jurandir
acha o mel dos labios de Arací mais doce do que o côco da palmeira.

«Quando Jurandir era joven caçador, gostava de tirar a cotia da toca,
embora o seu dente agudo lhe sarjasse a carne.

«O ferrão da saúva não dóe como o dente afiado; e Jurandir sabe que o
pelo dourado da cotia, não é tão macio como o colo de Arací.

«Jurandir despreza a dôr. Seus olhos estão bebendo o sorrizo da virjem,
mais suave que o leite do sapotí. Sua mão está sentindo o roçar dos
cabelos da virjem formoza.»

Os anciãos deram sinal para concluir a prova da constancia; mas o
guerreiro continuou seu canto de amor.

«A cumarí arde no labio do guerreiro; mas torna mais gostoza a carne do
veado assada no moquem.

«O cauim queima a boca do guerreiro; mas derrama a alegria dentro da
alma.

«A saúva arde como a cumarí e queima como o cauim; porém torna os beijos
de Arací mais saborozos: e o amor de Jurandir espuma como o vinho
generozo.

«Arací ha de sorrir de felicidade, quando o filho de seu guerreiro lhe
rasgar o seio.

«Jurandir não tem corpo para sofrer, quando o sorrizo de Arací lhe enche
a alma de amor.»

Foi precizo quebrar o camucim para que o guerreiro podesse retirar a
mão, de inflamada que ficára.

O grande pajé esfregou na pele vermelha, o suco de uma herva delle
conhecida; e logo dezapareceu a inchação.

       *       *       *       *       *

Faltava a ultima prova, chamada a prova da virjem.

As outras serviam para conhecer o valor, a destreza e robustez do
guerreiro, assim como a força de seu amor.

Nesta era que a virjem podia mostrar seu agrado pelo vencedor ou
livrar-se de um espozo, que não soubera ganhar-lhe o afeto.

Os cantores disseram:

«Tupan deu azas á nambú para que ella escape ás garras do carcará.

«Tupan deu lijeireza á virjem, para que ella fuja do guerreiro que não
quer por espozo.

«Mas a nambú, quando ouve o canto do companheiro, espera que elle chegue
para fabricar seu ninho.

«A virjem, quando a segue o guerreiro que ella prefere, pensa na cabana
do espozo, e corre de vagar para chegar depressa.»

Arací deixou a mãi, e avançou até o meio do campo.

O grande pajé colocou Jurandir na distancia de uma mussurana, que cinje
dez vezes a cintura do guerreiro.

Estrela do dia lançou para as espaduas as longas tranças negras que
voaram ao sopro da briza.

Arqueou os braços mimozos, vestidos com franjas de penas, como as azas
brilhantes do arirama; e quando soou o sinal, desferiu a corrida.

Jurandir seguiu-a. Elle conhecia a velocidade do pé gentil de Arací, que
zombava do salto do jaguar.

Nem que podesse alcançal-a, o guerreiro o tentaria; depois de vencedor,
queria dever a espoza ao amor della e não a seu esforço.

Disputaria Arací não só a todos os guerreiros das nações, como a todas
as nações das florestas; só á vontade da propria virjem não a
disputaria, pois a queria rendida, e não vencida.

Mas sua gloria mandava que elle, o chefe de uma grande nação, se
mostrasse digno da formoza virjem, que o aceitasse por espozo.

Arací voava pela campina. Ás vezes trançava a corrida como o colibri que
adeja de flôr em flôr, outras vezes fujia mais rapida do que a seta
emplumada de seu arco.

Quando mostrou a todos que Jurandir não a alcançaria nunca, se ella
quizesse fujir-lhe, reclinou a cabeça para esconder o rubor.

Jurandir abriu os braços e recebeu a espoza que se entregava a seu amor.

O guerreiro suspendeu a virjem formoza ao colo; e levou-a á cabana do
amor que elle construira á marjem do rio.

       *       *       *       *       *

As ramas de jasmineiro e do craviri vestiam a cabana, e matizavam o chão
de flôres.

Arací foi buscar a rêde nupcial, que ella tecera de penas de tucano e
arara; e Jurandir conduziu os utensilios da cabana.

Então o estranjeiro sentou-se com a virjem no terreiro, e antes de
passar a soleira da porta, revelou a Arací quem era o guerreiro que ella
aceitára por espozo.

--Arací pertence ao grande chefe da nação araguaia. Ella teve a gloria
de vencer ao maior guerreiro das florestas. Ella será mãi dos filhos de
Ubirajara; e terá por servas as virjens mais belas, filhas dos chefes
poderozos.

«A palmeira é formoza quando se cobre de flôres e o vento ajita as suas
folhas verdes, que murmuram; mais formoza, porém, é quando as flôres se
mudam em frutos, e ella se enfeita com seus cachos vermelhos.

«Arací tambem ficará mais formoza quando de seu sorrizo saírem os frutos
do amor, e quando o leite encher seus peitos mimozos, para que ella
suspenda ao colo os filhos de Ubirajara.»

Arací ouviu as palavras do guerreiro, palpitante como a corça; e ornou a
fronte do espozo com o cocar de plumas vermelhas, que tecera em segredo.

Depois, sentindo os olhos de Ubirajara que bebiam a sua formozura, ella
vestiu o aimará mais alvo do que a pena da garça.

A tunica de algodão entretecida de penas de beija-flôr dece das espaduas
até á curva da perna, cinjida pela liga da virjindade.

Quando Arací passava entre os guerreiros que admiravam sua beleza, ella
não córava, porque sua castidade a vestia, como a flôr á sapucaia.

Mas agora em prezença do guerreiro a quem ama e para quem guardou a sua
virjindade, tem pejo, e esconde sua formozura ás vistas de Ubirajara.

--Os olhos do espozo são como o sol, disse o guerreiro: elles queimam a
flôr do corpo de Arací.

--Arací tem medo que os olhos do espozo não a achem digna de seu amor; e
vestiu seus enfeites.

«Arací queria ser como a jurití, e ter no corpo uma penugem macia, que
só a deixasse ver em sua formozura.

«Foi por isso que tua espoza se cobriu com o seu aimará. Os olhos de
Ubirajara não lhe queimarão mais a flôr de seu corpo.

O guerreiro respondeu:

--A flôr do igapê é mais formoza quando abre e se tinje de vermelho aos
beijos do sol, do que fechada em botão e coberta de folhas verdes.

Ubirajara tomou nos braços a espoza, e pôz o pé na soleira da porta.

Nesse momento soou um clamor; chegaram os guerreiros que vinham chamar o
vencedor á prezença de Itaquê.

O carbeto dos anciãos tinha decidido que o vencedor antes de receber a
espoza, devia declarar quem era; pois fôra recebido como estranjeiro, e
ninguem na taba o conhecia.




VII

A GUERRA


Itaquê esperava sentado na cabana, e cercado do carbeto dos anciãos.

Jurandir entrou; Arací ficou na porta, orgulhoza do espozo que a
conquistára e da admiração que elle ia inspirar aos guerreiros da sua
nação.

Itaquê falou:

--Quando o estranjeiro chegou á cabana de Itaquê, ninguem lhe perguntou
quem era e donde vinha. O hospede é senhor.

«Mas agora o estranjeiro saiu vencedor do combate do cazamento e
conquistou uma espoza na taba dos tocantins.

«É precizo que elle se faça conhecer; porque a filha de Itaquê, o pai da
nação dos tocantins, jámais entrará como espoza na taba onde habite quem
tenha ofendido a um só de seus guerreiros.»

O estranjeiro disse:

--Morubixaba, abarés, moacaras e guerreiros da valente nação tocantim,
vós tendes prezente o chefe dos chefes da grande nação araguaia.

«Eu sou Ubirajara, o senhor da lança; e o maior guerreiro depois do
grande Camacan, cujo sangue me gerou. Se quereis saber porque tomei este
nome, ouvi a minha maranduba de guerra.»

Ubirajara contou o seu encontro com Pojucan; o combate em que o venceu,
e a festa do triunfo, até o momento em que deixou a taba dos araguaias.

Terminou dizendo que no seguinte sol partiria, para assistir ao combate
da morte, como prometera ao prizioneiro.

Ninguem interrompeu a maranduba de guerra. Ubirajara ouviu um gemido;
mas não soube que rompera do seio de Arací.

Itaquê arquejou como o rio ao pezo da borrasca.

--Tu és Ubirajara, senhor da lança. Eu sou Itaquê, pai de Pojucan. Tenho
em face o matador de meu filho; mas elle é meu hospede!

«Chefe dos araguaias, tu és um joven guerreiro; pergunta a Camacan que
te gerou, qual deve ser a dôr do pai, que não póde vingar a morte do
filho.»

O grande chefe vergou a cabeça ao peito, como o cedro altaneiro batido
pelo tufão.

Pojucan tinha sua taba mais lonje, na outra marjem do rio. Elle partira
na ultima lua para rastejar a marcha dos tapuias; e voltava senhor do
caminho da guerra quando encontrou Ubirajara.

Seu pai e os guerreiros de sua taba pensavam que elle buscava na
floresta o caminho da guerra. Mal sabiam que a essa hora esperava
prizioneiro na taba dos araguaias o combate da morte.

Anciãos e guerreiros emudeceram. Todos respeitavam a dôr do pai, e não
ouzavam perturbal-a.

Jacamim, a mãi de Pojucan, aproximára-se. O grande chefe ouviu seu
gemido.

--A espoza de Itaquê não chora na prezença do matador de seu filho.

Á voz do espozo, a mãi teve força para esconder no seio sua tristeza, e
mostrar-se digna do grande chefe dos tocantins.

Ubirajara falou:

--A vingança é a gloria do guerreiro; Tupan a deu aos valentes.
Ubirajara venceu Pojucan em combate leal, e aceita o dezafio de Itaquê e
de todos os chefes tocantins.

--Tu és meu hospede; emquanto Itaquê brandir o grande arco da nação
tocantim, ninguem ofenderá o amigo de Tupan na taba de seus guerreiros.

Dizendo assim, o grande chefe ergueu-se e trocou com o estranjeiro a
fumaça da despedida.

--Parte. O sol que viu o estranjeiro na cabana hospedeira o acompanhará
amigo; mas com a sombra da noite, mil guerreiros, mais velozes que o
nandú, partirão para levar-te a morte.

Ubirajara tomou suas armas e disse:

--O hospede vai deixar tua cabana, chefe dos tocantins; tu verás chegar
o guerreiro inimigo.

       *       *       *       *       *

Itaquê seguiu o estranjeiro até o terreiro; em torno delle se reuniram
os abarés, os moacaras e os guerreiros para assistirem á partida.

Ubirajara caminhou com o passo lento e grave até o fim da taba.

Chegado ali, tornou rapido á entrada da cabana, e retrocedeu apagando no
chão o vestijio de seus passos.

A nação tocantim o observava imovel.

Por fim o estranjeiro postou-se no centro da ocara e com o formidavel
tacape vibrou no largo escudo um golpe que repercutiu pela taba como o
estrondo da montanha.

--O hospede passou o lumiar da cabana que o tinha acolhido, e apagou seu
rasto na taba dos tocantins.

«Quem está aqui é um guerreiro armado, que piza senhor a taba de seus
inimigos.

«Itaquê, morubixaba dos tocantins, Ubirajara, o senhor da lança, grande
chefe dos araguaias, te envia a guerra na ponta de sua seta.»

Quando o guerreiro acabou de proferir estas palavras, Itaquê levantou os
olhos e viu cravada na figura do tucano, que era o simbolo da nação, a
seta de Ubirajara.

Mil arcos se ergueram, mil tacapes brandiram. A voz possante de Itaquê
abateu as armas de seus guerreiros.

Disse o morubixaba:

--A lei de hospitalidade é sagrada. A cólera do estranjeiro não deve
perturbar a serenidade do varão tocantim.

Depois voltou-se para o inimigo:

--Ubirajara, grande chefe dos araguaias: Itaquê, o pai da poderoza nação
tocantim aceita a guerra que tu lhe enviaste. Recebe em teu escudo o
penhor do combate.

A corda do grande arco da nação tocantim brandiu, e a seta de Itaquê
mordeu o escudo de Ubirajara.

--Vai buscar teus guerreiros e nós combateremos á frente das nações.

--Ubirajara combaterá até que lhe restituas a espoza; assim como elle a
conquistou a seus rivais, saberá conquistal-a a ti e á tua nação.

O chefe araguaia partiu. No seio da floresta encontrou Arací que o
esperava.

A formoza virjem fôra á cabana do cazamento buscar a rêde nupcial e
preparar-se para acompanhar o espozo.

--Ubirajara parte; mas antes de cinco sóes elle estará aqui para te
conquistar á tua nação.

--A espoza te acompanha. Teu braço valente já a conquistou; e ella
entregou-se a seu senhor. Arací te pertence; deves leval-a.

A virjem tocantim dezejava seguir Ubirajara á taba dos araguaias. Falava
em sua alma a ternura da espoza e da irmã.

Partindo, ella unia-se para sempre a seu guerreiro, e esperava que o
amor o moveria a salvar Pojucan.

Ubirajara pensou e disse:

--Se Ubirajara tivesse rompido a liga de Arací, ella era sua espoza, e
ninguem a arrebataria de seus braços. Mas a virjem tocantim não póde
abandonar a cabana onde naceu sem a vontade de seu pai.

Arací suspirou:

--Ubirajara vai deixar a lembrança de Arací nos campos dos tocantins.
Jandira o espera na taba dos araguaias, e lhe guarda o seu sorrizo de
mel.

--A luz de teus olhos, Arací, estrela do dia, foi buscar Ubirajara na
taba dos seus, onde resoavam os cantos de seu triunfo, e o trouxe á tua
cabana.

«Quando elle partiu encontrou Jandira, e para que a filha de Majé não o
acompanhasse a deu a Pojucan, como espoza do tumulo.»

--O goaná do lago vôa lonje, para banhar-se nas aguas da chuva que
alagaram a varzea; mas logo volta ao seu ninho, e não se lembra mais da
moita onde dormiu.

--Ubirajara é um guerreiro; elle não aprende com o goaná do lago, que
foje do perigo, mas com o gavião, grande chefe dos guerreiros do ar, que
nunca mais abandona o rochedo onde assentou a sua oca.

--Se Ubirajara amasse a espoza, tambem não a abandonaria. Os braços de
Arací já cinjiram o colo de seu guerreiro. O tronco não desprende de si
a baunilha que se entrelaçou em seus galhos.

Ubirajara calcou a mão sobre a cabeça de Arací:

--Itaquê respeitou a lei de hospitalidade no corpo de Ubirajara,
Ubirajara não deixará a traição na terra hospedeira.

«Arací não deve querer para espozo um guerreiro menos generozo do que
seu pai.»

A virjem emudeceu. Ella sabia que a honra é a primeira lei do guerreiro.

Antes de partir, o chefe consolou a espoza:

--Ubirajara vai pedir ao gavião suas azas para voltar ao seio de Arací.
Elle virá á frente de sua nação, conduzido pela luz de teus olhos.

«As outras mulheres são o premio de um combate entre os servos de seu
amor. Arací terá essa gloria, que ella será o premio da maior guerra que
já viram as florestas.»

O chefe araguaia pôz as mãos nos hombros de Arací; duas vezes uniu o seu
ao rosto della, por uma e outra face, para exprimir que nada os podia
separar.

Quando o guerreiro dezapareceu na floresta, Arací caminhou para a cabana
do espozo, que ficára triste e solitaria.

A virjem fechou a porta; sentou-se na soleira, e cantou sua tristeza.

Dois sóes tinham passado, e viera a noite.

A ultima estrela se apagava no céu, quando Ubirajara pizou os campos dos
araguaias.

Sua mão robusta, vibrando a clava, feriu o trocano. A voz da nação
araguaia derramou-se ao lonje pelo vale, como o estrondo da montanha que
arrebenta.

Com o primeiro raio do sol que subia o pincaro da serra, chegaram á
grande taba os chefes das cem tabas araguaias, com todos seus
guerreiros, convocados á ocara da nação.

Ubirajara mandou que Pojucan, o prizioneiro, viesse á sua prezença:

--Vê o mar dos meus guerreiros que enche a terra, como as aguas do
grande rio quando alaga a varzea. Elles esperam o aceno de Ubirajara
para inundarem teus campos.

«A nação tocantim carece neste momento do braço de seus maiores
guerreiros; vai levar-lhe o socorro de teu valor, para que se aumente a
gloria de Ubirajara, seu vencedor.

«Tu és livre, Pojucan; parte e vôa, que a guerra dos araguaias te segue
os passos.»

O semblante do filho de Itaquê ficou sombrio:

--Pojucan é um chefe ilustre; não merece esta dezhonra. Tu lhe
prometeste a morte dos bravos. Elle exije o combate.

O chefe araguaia contou a maranduba da hospitalidade:

--Ubirajara não sabia que Pojucan era filho de Itaquê; pois elle nunca
pizaria como hospede a cabana de um guerreiro, a quem tivesse decepado
um filho. É precizo que recuperes a liberdade para que não se diga que
Ubirajara surpreendeu a hospitalidade do grande chefe dos tocantins.

Pojucan não respondeu. Elle reconhecera que a honra de seu vencedor
exijia sua volta á taba dos seus.

--Parte. Nós combateremos á frente das nações. Ubirajara pertence a
Itaquê; mas depois delle terás a gloria de ser vencido outra vez por
este braço.

--Ubirajara é um grande chefe e maior guerreiro. Se Tupan não consente
que Pojucan seja vencedor, elle não quer maior gloria do que a de morrer
combatendo Ubirajara.

Pojucan foi á cabana de seu vencedor buscar as armas. Ubirajara
arrimou-se ao tacape, como o rochedo que se apoia ao tronco do ipê, e
meditou.

Quando passou o chefe tocantim que voltava á sua taba, Ubirajara
levantou a cabeça e disse:

--Os olhos de Ubirajara te acompanham; tu és irmão de Arací, e vais para
junto della. Dize á estrela do dia, que seu espozo está com ella.

O conselho dos abarés se reunira para meditar sobre a guerra. O velho
Majé, a quem irritava o dezaparecimento da filha, reparou que sem o voto
do carbeto se convocasse a nação.

Veiu um mensajeiro chamar o grande chefe para o carbeto. Ubirajara
chegou. Antes que falasse a voz dos anciãos, o guerreiro levantou o arco
e disse:

--O conselho dos anciãos governa a taba, e medita nella coizas da paz.
Toda a nação respeita sua prudencia e sabedoria.

«Mas emquanto Ubirajara brandir o grande arco dos araguaias, tem a
guerra fechada em sua mão.

«Quando elle soltar o grito de combate, a voz que falar da paz emudecerá
para sempre, ainda que venha da cabeça do abaré que a lua já
embranqueceu.

«Quem não quizer assim, venha arrancar da mão de Ubirajara este arco
que elle conquistou por seu valor.»

Os abarés estremeceram. Mas o carbeto meditou, e decidiu que a maior
gloria e sabedoria da nação era ter o seu grande arco de guerra na mão
de um chefe como Ubirajara.

Camacan tratou com os anciãos ácerca da defeza das tabas; e o grande
chefe abriu o caminho da guerra.

       *       *       *       *       *

Quando Ubirajara desdobrou sua guerra pela marjem do grande rio, elle
viu que uma nação tapuia se preparava para assaltar a taba dos
tocantins.

O grande chefe tocou a inubia, cuja voz chamava o joven Murinhem,
primeiro dos cantores araguaias.

Correu o nhengaçára á prezença do grande chefe, e delle recebeu a
mensajem que devia levar ao campo inimigo.

Os cantores eram respeitados por todas as nações das florestas, como os
filhos da alegria; pelo que serviam de mensajeiros entre as nações em
guerra.

Elles penetravam no campo inimigo, entoando o seu canto de paz; e nenhum
guerreiro ouzava ofender aquelle a quem Tupan concedera a fonte da
alegria.

Murinhem atravessou rapido a campina e aprezentou-se em frente de
Canicran, chefe dos tapuias.

--Ubirajara, o senhor da lança, que empunha o arco da poderoza nação
araguaia, te manda, a ti quem quer que sejas, e a todos quantos te
obedecem, a sua vontade.

O tapuia rujiu; mas seus olhos viam o mar dos guerreiros araguaias que o
cercava, e na frente o grande vulto de Ubirajara, semelhante ao rochedo
sombrio e imovel no meio dos borbotões da cachoeira.

Os guerreiros de Canicran só conhecem a vontade do seu chefe; e Canicran
afronta a cólera de Tupan e das nações que elle gerou. Dize, mensajeiro,
o que pede Ubirajara, ao grande chefe dos tapuias.

--Ubirajara te manda que encostes o tacape da guerra. A nação tocantim
aceitou a sua flecha de dezafio, e elle não consente que ninguem combata
seu inimigo, antes de o ter vencido.

--Torna e dize ao grande chefe araguaia, que Canicran veiu trazido pela
vingança. Pojucan, um dos chefes tocantins penetrou em sua taba e
incendiou a cabana do pajé, que foi devorado pelas chamas.

«Ubirajara é um grande chefe araguaia; elle que diga se o pai da nação
póde sofrer tão dura afronta. Canicran escuta a voz de sua amizade.»

O chefe tapuia tomou uma de suas flechas; arrancou o farpão e deu ao
mensajeiro a haste emplumada com azas negras do anun, que era o emblema
guerreiro de sua nação.

--Toma; entrega ao grande chefe araguaia o penhor da aliança.

Murinhem partiu e foi á taba dos tocantins levar igual mensajem. Itaquê
escutou o que lhe mandava Ubirajara e respondeu:

--Antes que Itaquê trocasse com Ubirajara a seta do dezafio, Pojucan
tinha levado a guerra á taba dos tapuias.

«Canicran veiu trazido pela vingança; e a nação tocantim não póde
recuzar o combate. Mas Itaquê sabe honrar seu nome; se Ubirajara quer,
elle combaterá juntamente os dois inimigos.»

O mensajeiro tornou ao campo dos araguaias com as respostas dos dois
chefes. Ubirajara ouviu e meditou.

--Escuta a vontade de Ubirajara para leval-a aos inimigos. O grande
chefe araguaia não roubará a Canicran a gloria da vingança; elle
respeita a honra da nação tapuia, mas rejeita sua aliança. Restitue o
penhor que recebeste.

«Itaquê póde aceitar o combate que Pojucan foi buscar; Ubirajara não
ofende o nome de um guerreiro, ainda mais de um morubixaba, e do pai de
Arací.

«O chefe dos araguaias não carece de auxilio para triunfar de seus
inimigos: dezeja que a nação tocantim derrote aos tapuias, para ter elle
a gloria de vencer ao vencedor.

«Se Itaquê não póde repelir os tapuias, Ubirajara toma a si castigar os
barbaros; e depois de varrel-os das florestas, combaterão as duas
nações.

«Se os tocantins necessitam de aliados para rezistir ao ímpeto dos
araguaias, Ubirajara espera que Itaquê os chame e que elles venham.

«Murinhem falará assim a um e outro chefe; a ambos dirá que a cabana
onde estiver Arací fica sob a guarda de Ubirajara; quem nella penetrar
como inimigo, sofrerá a morte vil do cobarde.»

O guerreiro deixou a voz do chefe e falou com a voz de espozo:

--A Arací levarás o canto de amor de Ubirajara. Tu lhe dirás que arme a
rêde nupcial, e não deixe nossa cabana, emquanto Ubirajara não a fôr
buscar.

«Conta-lhe tambem que o canitar que ella teceu, ainda não deixou a
cabeça de seu guerreiro e ha de acompanhal-o sempre.»




VIII

A BATALHA


A um lado da imensa campina move-se a multidão dos guerreiros tocantins,
do outro lado a multidão dos guerreiros tapuias.

As duas nações se estendem como dois lagos formados pelas grandes
chuvas, que se transformam em rios e atravessam o vale.

De um e outro campo levantou-se a pocema guerreira; e os dois povos
arremetendo travaram a batalha.

Itaquê achou-se em frente de Canicran. Ambos se buscavam; dez vezes
tinham combatido; vencedores ambos, nenhum fôra vencido.

Emquanto viverem os formidaveis guerreiros, não é possivel quebrar a
flecha da paz entre as duas nações.

Era precizo que um delles morresse, para que o vencedor encostasse o
tacape do combate, e désse repouzo á sua nação para reparar os estragos
da guerra.

Quando os dois chefes se encontraram, os guerreiros de um e outro campo
ficaram imoveis, contemplando o pavorozo combate.

Ubirajara, de lonje, apoiado em seu grande arco, admirava os dois
guerreiros, e pensava qual não seria o seu orgulho em vencel-os a ambos.

Durára a peleja o espaço de uma sombra. Em torno dos chefes lastravam o
chão os tacapes e escudos que se tinham espedaçado aos golpes de cada
um.

Imoveis no mesmo logar, só ajitavam a cabeça e os braços, semelhantes a
dois condores que, de garras prezas aos pincaros do rochedo, se
dilaceram com o bico adunco.

Um rujido espantoso atroou pela campina, que estremeceu a batalha e
rolou pelas profundezas da floresta.

Paan, a seta, era o ultimo filho de Canicran. Ainda corumim, pelejava ao
lado do irmão, o guerreiro Creban, cujo hombro mal alcançava com o
braço.

Elle tinha nos olhos a vista da gaivota, e nas setas de seu arco, feitas
de espinhos de ouriço, a velocidade e a certeza do vôo do guanumbí.

Quando caçava na floresta, divertia-se em matar as motuças
traspassando-as com suas flechas, que voavam mais rapidas e certeiras
que as vespas venenozas.

Paan saltára sobre os hombros do guerreiro Creban para assistir ao
combate. Admirando o valor de Canicran, teve orgulho e inveja do pai.

Itaquê desfechára tão formidavel golpe, que o tacape e escudo de
Canicran se espedaçaram em suas mãos, deixando-o á mercê do inimigo.

O chefe tocantim arrojou-se, e já sua mão decia sobre a espadua do
tapuia para fazel-o prizioneiro.

O arco de Paan sibilou duas vezes. Os olhos de Itaquê, os olhos do varão
forte que nunca humedecera uma lagrima, choraram sangue.

As setas do corumim tinham vazado as pupilas do fero guerreiro cuja
vista era raio. Assim a jandaia rôe o grelo do procero coqueiro.

Foi então que Itaquê soltou o rujido pavorozo que fez tremer a terra.
Mas o grito de espanto sossobrou no peito dos guerreiros, e rompeu em
um grito de horror.

Itaquê estendera os braços, hirtos como duas garras de condor.

A mão direita abarcou o penacho e a cabeleira de Canicran, a esquerda
entrou pela boca do tapuia e travou-lhe o queixo.

Separaram-se os braços do guerreiro cégo, e a cabeça de Canicran
abriu-se como um côco que se fende pelo meio.

Ajitando no ar o craneo sangrento como um maracá de guerra, Itaquê
arrojou-se contra os inimigos, buscando a morte que lhe fujia.

Quando o sol entrou, não havia na campina a sombra de um tapuia.

O velho heróe voltou á cabana conduzido por Pojucan:

--Tupan viu que Itaquê não podia ser vencido pela mão dos homens, e quiz
vencel-o elle mesmo pela mão de um menino.

Quando Ubirajara viu o exito do combate, lamentou que dos dois grandes
guerreiros não restasse nenhum, para que elle o vencesse.

Seus olhos descobriram Paan que fujia no meio dos destroços de sua
nação. Ergueu a mão, mas não chegou a retezar a seta.

A aguia não persegue a andorinha. Era indigno de um guerreiro, quanto
mais de um chefe, empregar seu valor contra um menino.

O chefe chamou á sua prezença Tubim, um dos jovens caçadores que tinham
acompanhado a guerra para prover o alimento.

--Tubim tem as azas da abelha; se elle alcançar o corumim tapuia que eu
estou olhando, Ubirajara lhe dará o nome de Abeguar.

O joven caçador seguiu o olhar do chefe, e sumiu-se num turbilhão de
poeira. Quando os vagalumes começaram a luzir no escuro da mata, elle
estava de volta no campo dos araguaias e trazia o corumim fechado nos
braços.

Nessa mesma noite Tubim recebeu o nome de Abeguar, senhor do vôo, em
honra da façanha que tinha realizado.

Os cantores entoaram seu louvor; e o joven caçador teve a gloria de
receber os aplauzos dos moacaras de sua nação, e de um chefe como
Ubirajara.

Ao raiar da manhã, Murinhem foi á taba dos tocantins, acompanhado por
vinte guerreiros que conduziam o corumim.

Quando chegou em frente á cabana do grande chefe, o cantor viu Itaquê no
terreiro sentado em uma sapopema.

O guerreiro fitava os olhos no céu, onde o calor lhe dizia que estava o
sol. Mas não encontrava a luz que para sempre o abandonára.

Então o velho guerreiro abaixava os olhos para terra, como se buscasse o
logar do repouzo.

Quando soaram lonje os passos dos estranjeiros, o chefe alongou a fronte
para ver pelo ouvido o que os olhos lhe recuzavam.

Murinhem chegou e disse:

--Ubirajara envia a Itaquê o resto da vingança. Este é Paan, o filho de
Canicran. Elle te roubou a vista; mas não salvou o pai de tua mão
terrivel. Faze do corumim tapuia um mancebo tocantim; e elle será a luz
de teus olhos e caminhará na frente do grande chefe para abrir-lhe o
caminho da guerra.

Paan avançou:

--O filho de Canicran jámais será escravo; naceu tapuia e tapuia
morrerá, como o grande chefe que o gerou. Emquanto o ouriço viver nas
florestas, elle roubará seus espinhos para furar os olhos dos tucanos.

Itaquê pouzou a palma da mão na cabeça do menino:

--O corumim que ama seu pai é filho de Itaquê. Tu és livre, Paan; vai
caçar o ouriço. Quando fôres um guerreiro, acharás cem mancebos do
sangue de Itaquê para castigarem tua audacia.

O chefe voltou-se para o cantor:

--Tupan tirou a luz dos olhos de Itaquê; mas aumentou a força de seu
braço. Ubirajara terá para combatel-o um inimigo digno de seu valor.

Murinhem tornou ao chefe araguaia com esta resposta.

       *       *       *       *       *

Quando partia o cantor, chegaram á cabana de Itaquê os abarés da nação
tocantim.

Os anciãos sentaram-se em torno do guerreiro cégo; e bebendo a fumaça da
sabedoria, formaram o carbeto.

Falou Guaribú:

--O grande arco da nação carece de uma mão robusta para brandir sua
corda, e de um olho seguro para dirijir sua seta. Itaquê é o maior
guerreiro das florestas; seu nome faz tremer aos mais valentes dos
inimigos; seu braço fere como o raio. Mas a luz fujiu de seus olhos e
elle não póde mais abrir o caminho da guerra.

O velho chefe ergueu-se com o passo trôpego. Alcançando o grande arco
dos tocantins abraçou-se com elle e falou-lhe.

--Quando Itaquê te recebeu da mão do grande Javarí elle pensava que só a
morte o separaria de ti, para transmitir-te a um guerreiro de seu
sangue. Mas Itaquê ficou na terra, como um tronco levado pela corrente,
que não sabe onde vai.

Um esguicho de sangue saltou dos buracos, onde o velho tivera os olhos.
Era a lagrima que a desgraça lhe deixára.

Os abarés meditaram. Guaribú falou de novo:

--O grande arco da nação que tu recebeste do grande Javarí, teu pai, não
te abandonará. Elle fica em tua mão invencivel; haverá outro arco na mão
do mais valente guerreiro, que abrirá o caminho da guerra. Mas emquanto
Itaquê viver, sua voz governará a nação que elle defendeu com seu braço.

O semblante do velho chefe cobriu-se de um sorrizo como o negro rochedo
sobre o qual desliza um raio do luar.

--Pais da sabedoria, abarés, olhai aquelle jatobá que se levanta no meio
da campina, e que eu só posso ver agora na sombra de minha alma.

«Elle tem muitas raizes que o sustentam nos ares; tem muitos galhos que
o cercam e estendem ao lonje a sua rama. Mas o tronco é um só.

«As grossas raizes são os abarés que sustentam o chefe com o seu
conselho. Os galhos fortes são os moacaras que cercam o chefe e geram a
multidão de guerreiros mais numeroza que as folhas das arvores. O tronco
é o chefe da nação; se elle se dividir, o jatobá não subirá ás nuvens
nem terá forças para rezistir ao tufão.

«O logar de Itaquê é no conselho. O ultimo dente de seu colar de guerra
foi o que elle arrancou da boca de Canicran. Convocai os guerreiros, e o
que fôr mais forte e mais valente empunhe o grande arco da nação.

O trocano chamou a nação ao carbeto. Vieram os moacaras, conduzindo suas
tribus.

O velho Itaquê contava pelos passos os guerreiros que chegavam. O grande
arco da nação, que elle segurava direito, parecia um dos esteios da
cabana, e tinha a corda tão grossa como a da rêde do chefe.

Os mais famozos guerreiros tocantins se aprezentaram para disputar o
grande arco; muitos conseguiram vergal-o; mas a seta não partiu.

Itaquê escutava com o ouvido atento: o som delle conhecido não feriu os
ares.

--Onde está Pojucan? perguntou o velho chefe.

O valente guerreiro do sangue de Itaquê estava de parte, grave e
taciturno. Algum motivo o separava do arco chefe, que elle devia ser o
primeiro a disputar.

--Teu filho te escuta, respondeu.

--Empunha o arco chefe; se ha um guerreiro tocantim que possa
conquistal-o esse deve ser do sangue de Itaquê.

Pojucan recebeu o arco. Fincando nelle os pés, o guerreiro arrojou-se
para traz como a giboia quando se enrista para armar o bote.

A seta partiu, e foi cravar a cabeça de um chefe tapuia, fincada na
estaca, á entrada da taba.

Itaquê curvára a cabeça. Elle ouviu brandir a arma; não era, porém,
aquelle o zunido da corda do arco, quando o vergava sua mão possante.

Pojucan depôz o arco chefe aos pés de Itaquê e disse:

--Pojucan mostrou que em suas veias corre o sangue generozo de Itaquê.
Mas o grande arco peza em sua mão. Só ha um guerreiro na terra que o
possa brandir como Itaquê: e esse não cinje a fronte com o cocar das
penas de tucano.

--Pojucan negou a Itaquê esta ultima consolação. O arco invencivel do
grande Tocantim que foi o pai da nação, vai sair de sua geração.
Tocantim o transmitiu a seu filho Javarí, que me gerou; mas eu não sube
gerar com seu sangue um guerreiro digno delles.




IX

UNIÃO DOS ARCOS


Os tapuias voltaram; e com elles vinha Agniná á frente de sua nação,
para vingar a morte de Canicran, seu irmão.

Era grande a multidão dos guerreiros; e maior a tornavam a sanha da
vingança e a fama do chefe que a conduzia.

Não eram tantos os tocantins; mas bastaria seu valor para igualal-os, se
não lhes faltasse a cabeça, que reje o corpo.

A poderoza nação estava como o bando de caitetús que perdeu o pai, e
desgarra-se pela floresta, correndo sem rumo.

Os mais valentes moacaras, chefes das tribus, esperavam pelo grande
chefe da nação para abrir-lhes o caminho da guerra.

Os abarés meditaram. Elles não podiam inventar um guerreiro capaz de
suceder a Itaquê; mas não se rezignavam a abater a gloria da nação,
trocando o arco invencivel do grande Tocantim por outro arco mais leve,
que Pojucan manejasse.

Tambem Pojucan anunciára, que não podendo brandir o arco de Itaquê,
jámais empunharia outro arco chefe, menos gloriozo do que o do grande
Tocantim.

Abarés, chefes, moacaras, guerreiros, toda a nação se reuniu em torno do
heróe cégo.

Daquelle que durante tantas luas defendera a nação com a força de seu
braço, e a protejera com o terror de seu nome, esperavam ainda a
salvação.

O velho ouviu a voz dos abarés, a voz dos chefes, a voz dos moacaras, a
voz dos guerreiros, e disse:

--Itaquê ainda póde combater e morrer por sua nação; mas sem a luz do
céu, elle não póde mais abrir a seus filhos o caminho da vitoria.

«O braço de Itaquê defendeu sempre a nação tocantim; quer ella ser
defendida agora pela palavra daquelle, que não tem mais para dar-lhe
senão a experiencia de sua velhice?

«Pensem os abarés, os chefes, os moacaras e os guerreiros.»

Guaribú respondeu:

--A nação pensou. Fala e todos obedecerão á tua palavra, como obedeciam
ao braço de Itaquê.

--A voz do coração diz ao neto de Tocantim, que a gloria da nação que
elle gerou, não se póde extinguir. O sangue de Itaquê, passando pelo
seio de Arací, se unirá a outro sangue generozo para brotar maior e mais
ilustre.

«Assim a terra onde naceu uma floresta de acajás recebe o limo do rio e
gera nova floresta mais frondoza que a outra.

«Jacamim, chama Arací, a filha de nossa velhice. E vós, abarés, chefes,
moacaras e guerreiros, seguí-me.»

O velho heróe atravessou a taba guiado por Arací.

A nação o seguia em silencio.

Quando o guerreiro cégo passava com a mão no hombro da virjem formoza
que dirijia o seu passo incerto, os guerreiros lembravam-se do tronco já
morto que a rama do maracujá ainda sustenta de pé junto ao penedo.

Os cantores iam adiante, e entoavam um canto de paz.

       *       *       *       *       *

Um mensajeiro de Itaquê o precedera no campo dos araguaias.

Ubirajara, cercado de seus abarés, chefes, moacaras e guerreiros, veiu
ao encontro do morubixaba dos tocantins.

A alma do grande chefe araguaia encheu-se da alegria de ver Arací; mas
elle retirou os olhos da espoza, para que o amor não perturbasse a
serenidade do varão.

--Ubirajara está em face de Itaquê; para combatel-o se trouxe a guerra,
para abraçal-o se trouxe a paz.

--Nunca Itaquê pediu a paz ao inimigo que lhe trouxe a guerra, antes de
o vencer; nem teria vivido tanto para cometer essa fraqueza. Elle vem
trazer-te a vitoria para que tu a repartas com seu povo.

O velho heróe avançou o passo:

--Chefe dos araguaias, tu levaste a guerra á taba dos tocantins para
conquistar Arací, a filha de minha velhice.

«Por teu heroismo, e ainda mais pela nobreza com que restituiste a
liberdade a Pojucan, tu merecias uma espoza do sangue tocantim.

«Mas desde que tu ameaçaste tomal-a pela força de teu braço, Itaquê não
podia mais conceder-te a filha de sua velhice, senão depois que abatesse
teu orgulho.

«Elle preparava-se para te combater, e á tua nação; mas fujiu-lhe dos
olhos a luz que dirije a seta da guerra; e não ha entre seus guerreiros
um que possa brandir o arco do grande Tocantim.»

Quando pronunciou estas palavras, a voz do velho guerreiro sossobrou-lhe
no peito:

--O arco de Itaquê é como o gavião que perdeu as azas e não póde mais
levar a morte ao inimigo. As andorinhas zombam de suas garras.

«Empunha o arco de Itaquê, chefe dos araguaias, e tu conquistarás por
teu heroismo uma espoza e uma nação.

«Á espoza farás mãi de cem guerreiros como Itaquê; e á nação conservarás
a gloria que ella conquistou quando o filho de Javarí a conduzia á
guerra.

«Tupan dará a teu braço esta força para que o sangue de Itaquê brote
mais vigorozo e os netos de Tocantim dominem as florestas.»

Ubirajara sorriu:

--Chefe dos tocantins, teus olhos não podem ver o grande arco da nação
araguaia; mas pergunta á tua mão, se o arco que Camacan brandia
invencivel e agora empunha Ubirajara, cede ao arco de Itaquê.

O velho heróe palpou o arco chefe dos araguaias e vergou-lhe a ponta ao
hombro, como se a haste fosse de taquarí.

Ubirajara travou do arco de Itaquê e desdenhando fincal-o no chão,
elevou-o acima da fronte. A flecha ornada de penas de tucano partiu.

O semblante de Itaquê remoçou, ouvindo o zunido que lhe recordava o
tempo de seu vigor. Era assim que elle brandia o arco outr'ora, quando
as luas creciam aumentando a força de seu braço.

O velho inclinou a fronte para escutar o sibilo de sua flecha que
talhava o azul do céu. Os cantores não tinham para elle mais doce
harmonia do que essa.

Ubirajara largou o arco de Itaquê para tomar o arco de Camacan. A flecha
araguaia tambem partiu e foi atravessar nos ares a outra que tornava á
terra.

As duas setas deceram trespassadas uma pela outra como os braços do
guerreiro quando se cruzam ao peito para exprimir a amizade.

Ubirajara apanhou-as no ar:

--Este é o emblema da união. Ubirajara fará a nação tocantim tão
poderoza como a nação araguaia. Ambas serão irmãs na gloria e formarão
uma só, que ha de ser a grande nação de Ubirajara, senhora dos rios,
montes e florestas.

O chefe dos chefes ordenou que tres guerreiros araguaias e tres
guerreiros tocantins, ligassem com o fio do crautá as hastes dos dois
arcos.

Quando o arco de Camacan e o arco de Itaquê não fizeram mais que um,
Ubirajara o empunhou na mão possante e mostrou-o ás nações:

--Abarés, chefes, moacaras e guerreiros de minhas nações, aqui está o
arco de Ubirajara, o chefe dos grandes chefes. Suas flechas são gemeas,
como as duas nações, e voam juntas.

Ambas as cordas brandiram a um tempo. A seta araguaia e a seta tocantim
partiram de novo como duas aguias que par a par remontam ás nuvens.

Quando se calou a pocema do triunfo, Ubirajara caminhou para a filha de
Itaquê:

--Arací, estrela do dia, tu pertences a Ubirajara que te conquistou pela
força de seu braço. Agora que é senhor, elle espera tua vontade.

A formoza virjem rompeu a liga vermelha que lhe cinjia a perna, e atou-a
ao pulso de seu guerreiro.

Ubirajara tomou a espoza aos hombros e levou-a á cabana do cazamento.

O jasmineiro semeava de flôres perfumadas a rêde do amor.

       *       *       *       *       *

O outro sol rompia, quando os tapuias estenderam pela campina a multidão
de seus guerreiros.

Na frente assomava Agniná, a montanha dos guerreiros, ainda mais feroz
do que o irmão, o terrivel Canicran.

De um lado e do outro seguiam-se os chefes, cada um á frente de seus
guerreiros.

Ubirajara escolheu mil guerreiros araguaias e mil guerreiros tocantins,
com que saiu ao encontro dos tapuias.

Depois que desdobrou sua batalha pela campina, o chefe dos chefes
caminhou só para o inimigo.

Quando chegava a meio do campo, os tapuias levantaram a pocema de
guerra, que atroou os ares, como o estrépito da cachoeira.

Um turbilhão de setas crivou o longo escudo do heróe, que ficou
semelhante ao grosso tronco da jussára, erriçado de espinhos.

Ubirajara embraçou o escudo na altura do hombro, e com o pé brandiu sete
vezes a corda do grande arco gemeo.

As setas vermelhas e amarelas subiram direitas ao céu e se perderam nas
nuvens.

Quando voltaram, Agniná e os chefes que obedeciam a seu arco, tinham
cada um fincado na cabeça o dezafio do formidavel guerreiro.

Enfurecidos mais pelo insulto, do que pela dôr, arremessaram-se contra o
inimigo que os esperava coberto com seu vasto escudo.

Agniná era o primeiro na corrida, e o primeiro na sanha. Após elle
vinham os outros, a dois e dois, lutando na rapidez.

Quando o espozo de Arací viu que elles se estendiam pela campina, como
dois ribeiros que se aproximam para confundir suas aguas, o heróe
empunhou a lança de duas pontas e soltou seu grito de guerra que era
como o bramir do jaguar, senhor da floresta.

Seu pé devorou o espaço; e a lança de duas pontas girou em sua mão, como
a serpente que se enrosca nos ares silvando.

Caiu Agniná do primeiro bote; após elle caíram aos dois os chefes
tapuias, como caem os juncos talhados pelo dente afiado da capivara.

Então o heróe soltou seu grito de triunfo, que era como o rujido do
vento no dezerto:

--Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro invencivel que tem
por arma uma serpente.

«Eu sou Ubirajara, o senhor das nações, o chefe dos chefes, que varre a
terra, como o vento do dezerto.»

O heróe estendeu a vista pela campina, e não descobriu mais o inimigo,
que se sumia na poeira.

Ubirajara lançou-lhe seus guerreiros, que tinham fome de vingança; porém
o terror de sua lança dava azas aos fujitivos.

Desde esse dia nunca mais um tapuia pizou as marjens do grande rio.

       *       *       *       *       *

Ubirajara voltou á cabana, onde o esperava Arací.

A espoza despiu as armas de seu guerreiro, enxugou-lhe o corpo com o
macio cotão da monguba, e cobriu-o do balsamo fragrante da embaiba.

Encheu depois de generozo cauim a taça vermelha feita do côco da
sapucaia; e aplacou a sêde do combate.

Emquanto nas grandes tabas se preparava a festa do triunfo e o heróe
repouzava na rêde, Arací foi ao terreiro, e voltou conduzindo Jandira
pela mão.

--Arací, tua espoza, é irmã de Jandira. Ubirajara é o chefe dos chefes,
senhor do arco das duas nações. Elle deve repartir seu amor por ellas,
como repartiu sua força.

A virjem araguaia pôz no guerreiro seus olhos de corça.

--Jandira é serva de tua espoza; seu amor a obrigou a querer o que tu
queres. Ella ficará em tua cabana para ensinar a tuas filhas como uma
virjem araguaia ama seu guerreiro.

Ubirajara cinjiu ao peito com um e outro braço, a espoza e a virjem.

--Arací é a espoza do chefe tocantim; Jandira será a espoza do chefe
araguaia; ambas serão as mãis dos filhos de Ubirajara, o chefe dos
chefes, e o senhor das florestas.

       *       *       *       *       *

As duas nações, dos araguaias e dos tocantins, formaram a grande nação
dos Ubirajaras, que tomou o nome do heróe.

Foi esta poderoza nação que dominou o dezerto.

Mais tarde, quando vieram os caramurús, guerreiros do mar, ella campeava
ainda nas marjens do grande rio.




  FIM




NOTAS

ADVERTENCIA


Este livro é irmão de Iracema.

Chamei-lhe de lenda como ao outro. Nenhum titulo responde melhor pela
propriedade, como pela modestia, ás tradições da patria indijena.

Quem por desfastio percorrer estas pajinas, se não tiver estudado com
alma brazileira o berço de nossa nacionalidade, ha de estranhar entre
outras coizas a magnanimidade que resumbra no drama selvajem e lhe fórma
o vigorozo relevo.

Como admitir que barbaros, quais nos pintaram os indijenas, brutos e
canibais, antes féras que homens, fossem sucetiveis desses brios nativos
que realçam a dignidade do rei da creação?

Os historiadores, cronistas e viajantes da primeira época, se não de
todo o periodo colonial, devem ser lidos á luz de uma critica severa. É
indispensavel sobretudo escoimar os fatos comprovados das fabulas a que
serviam de mote, e das apreciações a que os sujeitavam espiritos
acanhados, por demais embuidos de uma intolerancia rispida.

Homens cultos, filhos de uma sociedade velha e curtida por longo trato
de seculos, queriam esses forasteiros achar nos indijenas de um mundo
novo e segregado da civilização universal uma perfeita conformidade de
idéas e costumes. Não se lembravam, ou não sabiam, que elles mesmos
provinham de barbaros ainda mais ferozes e grosseiros do que os
selvajens americanos.

Desta prevenção não escaparam muitas vezes espiritos graves e bastante
ilustrados para escreverem a historia sob um ponto de vista mais largo e
filozofico.

Entre muitos citarei um exemplo. Barloeus referindo as justas que se
faziam entre os selvajens para obterem em premio de seu valor a virjem
mais formoza, não se esqueceu de acrecentar este comento--_finis
spectantium est voluptas_.

Narrados com este pessimismo, as cenas da cavalaria, os torneios e
justas não passariam de manejos inspirados pela sensualidade. Nada
rezistiria á censura ou ao ridiculo.

Por igual teor, senão mais grosseiras, são as apreciações de outros
escritores ácerca dos costumes indijenas. As coizas mais poeticas, os
traços mais generozos e cavalheirescos do carater dos selvajens, os
sentimentos mais nobres desses filhos da natureza, são deturpados por
uma linguajem impropria, quando não acontece lançarem á conta dos
indijenas as extravagancias de uma imajinação desbragada.

Releva ainda notar, que duas classes de homens forneciam informações
ácerca dos indijenas: a dos missionarios e a dos aventureiros. Em luta
uma com outra, ambas se achavam de acôrdo nesse ponto, de figurarem os
selvajens como féras humanas. Os missionarios encareciam assim a
importancia de sua catequese; os aventureiros buscavam justificar-se da
crueldade com que tratavam os indios.

Faço estas advertencias para que, ao lerem as palavras textuais dos
cronistas citados nas notas seguintes, não se deixem impressionar por
suas apreciações muitas vezes ridiculas. É indispensavel escoimar o fato
dos comentos de que vem acompanhado, para fazer uma idéa exata dos
costumes e indole dos selvajens.

       *       *       *       *       *


Paj. 5

_Grande rio_.--Os tupís chamavam assim ao maior rio que existia na
rejião por elles habitada: e daí rezultou ficarem tantos rios com essa
dezignação na lingua orijinal ou traduzida.

O rio grande de que se trata nesta lenda é o Tocantins, em cujas marjens
se passa a ação dramatica.


Paj. 5

_Jaguarê_.--Nome composto de _Jaguar_, a onça e o sufixo _ê_ que na
lingua tupí reforça emfaticamente a palavra a que se liga. _Jaguarê_,
significa, pois, a onça, verdadeiramente onça, digna do nome, por sua
força, corajem e ferocidade.


Paj. 5

_Uiraçaba_.--Nome que davam os tupís á aljava, de _uira_--seta e
_aba_--dezinencia exprimindo o logar, modo e instrumento; literalmente
«o que tem a seta.»

Os selvajens a faziam, ou do tubo de taquarussú, ou da casca de certas
arvores, guarnecida de fios embebidos de rezina, o que as tornava muito
rezistentes.


Paj. 6

_Nome de guerra_.--«Mal nacia a criança logo se lhe punha nome. Hans
Stade achou-se prezente numa dessas ocaziões. Convocou o pai aos mais
proximos vizinhos de dormitorio, pedindo-lhes para o filho um nome viril
e terrivel; não lhe agradando nenhum dos propostos, declarou que ia
escolher o de um de seus quatro antepassados, o que daria fortuna ao
rapaz, e repetindo-o em voz alta, fixou a escolha. Ao chegar á idade de
ir á guerra, dava-se outro nome ao mancebo que aos seus titulos ia
acrecentando um por inimigo que trazia para caza a ser imolado. Tambem a
mulher tomava adicional apelido quando o marido dava uma festa
antropofaga. De objetos viziveis se tirava o cognome, determinando o
orgulho ou a ferocidade a escolha. O epiteto _grande_ frequentemente se
compunha com o nome. Southey, _H. do Brazil_, tom. 1o, cap. 8o, paj.
336.

Póde-se ler tambem a este respeito o que diz Gabriel Soares, cit. no
cap. 160, ácerca do nome que tomava o tupinambá quando matava o
contrario, e no cap. 164 onde acrecenta: «Acontece muitas vezes cativar
um tupinambá a um contrario na guerra, onde o não quiz matar para o
trazer cativo para sua aldêa, onde o faz engordar com as ceremonias já
declaradas para o deixar matar a seu filho quando é moço e não tem idade
para ir á guerra, o qual o mata em terreiro, como fica dito, com as
mesmas ceremonias; mas atam as mãos ao que ha de padecer, _para com isso
o filho tomar nome novo e ficar_ armado cavaleiro e mui estimado de
todos.»

A este trecho de Gabriel Soares é precizo dar o devido desconto ácerca
da engorda do cativo, e do papel insignificante que reprezenta o
mancebo. Devemos crer que entre gente, cuja alma era a guerra, o titulo
de guerreiro não se conferia ao mancebo que não fizesse prova real de
seu esforço e corajem.

Ives d'Evreux, cap. XXI, trata minuciozamente da graduação que a idade
estabelecia entre os tupís. Havia para os guerreiros seis classes: 1o
das crianças até dois anos, _mitanga_, que significa chupador ou
mamador; 2o _curumim mirim_, isto é o pequeno que balbucia; compreendia
os meninos até sete anos; 3o _curumim_ simplesmente, correspondia á
segunda infancia de 7 a 15 anos; 4o _curumim-guassú_, era a
adolecencia, em que os rapazes se empregavam na caça e na pesca; 5o
_aba_--o homem, indicava o principio da virilidade, o qual logo que se
cazava tornava-se apiaba, o varão, ou como diz d'Evreux, _mendarama_, o
cazado; 6o _tijubaê_, o ancião ou veterano, o homem de experiencia,
guerreiro consumado.


Paj. 6

_Jandira_.--O nome é _jandaíra_, de uma abelha que fabrica excelente
mel; Jandira é uma contração mais eufonica daquelle nome, que tambem por
sua vez é contração de _Jemonhaíra_, que fabrica mel.


Paj. 6

_Aratuba_.--Palavra que se compõe de _ara_--o sol e _tuba_--infinito do
verbo _ajub_--estar deitado. Vem a ser a significação _leito do sol_,
aplicada pelos indios á montanha do poente, onde o sol se esconde no seu
ocazo.


Paj. 6

_Lança_.--O uzo da lança não era comum aos selvajens, que empregavam de
preferencia o arco, o tacape, a macana, e a igarapema, especie de remo,
que fazia as vezes de partazana. Outros escrevem _iverapema_; mas o nome
é aquelle de _igara-pema_, espada da canôa; basta ver-lhe a fórma para
compreender seu duplo destino.


Paj. 6

_Craúba_.-É a mesma _carabiuba_ dos indios, assim contraída pelo uzo dos
nossos sertanejos. Madeira roxa, excessivamente rija, que não cede ao
páu-ferro no pezo e na dureza.


Paj. 7

_A liga vermelha_.--Era este um dos mais curiozos e interessantes ritos
dos tupís.

Quando a menina atinjia a puberdade, depois de sua purificação, da qual
tratam os autores, especialmente Orbigny e Thevet, a mãi punha-lhe nas
pernas, abaixo do joelho, uma liga de fio de algodão tinta de vermelho,
de tres dedos de largura, e tecida no proprio logar de modo que uma vez
fechada, não era mais possivel tiral-a. Vide Gabriel Soares, cap. 153.

A essa liga chamavam _tapacora_, e não a podia trazer senão a virjem, de
modo que se acontecesse quebrar a castidade havia de rompel-a, para que
todos conhecessem sua falta. Eis como Gabriel Soares se exprime a este
respeito no cap. 152: «E como o marido lhe leva a flôr, é obrigada a
noiva a quebrar estes fios para que seja notorio que é feita dona; e
ainda que uma moça destas seja deflorada por quem não seja seu marido,
ainda que seja em segredo, ha de romper os fios de sua virjindade, que
de outra maneira cuidará que a leva o diabo, os quais dezastres lhes
acontecem muitas vezes, etc.»

Este simples traço é bastante para dar uma idéa da moralidade dos tupís,
e vingal-a contra os embustes dos cronistas, que por não compreenderem
seus costumes, foram-lhes emprestando gratuitamente, quanto inventavam
exploradores mal informados e prevenidos.

Em que sociedade civilizada se observa tão profundo respeito pela união
conjugal, a ponto de não consentir-se que a mulher decaída conserve o
segredo de sua falta, e iluda o homem que a busque para espoza?

A rezignação com que a moça culpada rompia a liga da virjindade, e fazia
confissão publica de seu erro, é um exemplo da lealdade do carater tupí
e da veneração que inspiravam os ritos de sua relijião.

Nega Southey, cap. VIII, que a liga vermelha e o respeito que ella
inspirava indicassem guarda da castidade, porquanto a castidade como a
caridade é virtude da civilização; do mesmo modo considera o amor uma
delicadeza da vida civilizada. São paradoxos de escritor. Sentimentos
naturais á creatura humana, dezenvolvem-se nella em qualquer estado e
condições.

Não é possivel negar a castidade da mulher tupí; além desse recato da
virjindade, prova-a de modo cabal a continencia que homens e mulheres
guardavam em certas circumstancias. Assim, nenhum homem tinha relações
com a mulher inubil, nem ella o consentia; o proprio marido não violava
essa lei, embora tivesse a espoza em seu poder. Gabriel Soares cit.
Durante a gravidez e a amamentação interrompia-se absolutamente o
ajuntamento conjugal. (Barloeus 2a edic.)

Onde está a sociedade civilizada, que observe leis tão rigorozas, e
refreie os instintos sensuais com a severidade uzada pelos tupís?

Poderiamos fazer muitas outras observações que rezervamos para um estudo
especial ácerca dos selvajens brazileiros.


Paj. 7

_Tocantim_.--Compõe-se de _tocano_ e _tim_; literalmente o nariz, o
rostro do tucano. Nome que tomou um guerreiro por trazer na cabeça o
despojo de um tucano com o grande bico da ave; e que transmitido a uma
nação selvajem, ficou dezignando o rio a cujas marjens vivia.


Paj. 7

_Taarí_.--Rio que despeja no Tocantins, pouco depois da confluencia do
Araguaia. Indica o logar da cena.


Paj. 7

_Araguaia_.--O nome é araguara, de _ara_ e _guara_, literalmente, os
guerreiros das araras, porque uzavam nos seus ornatos das penas
encarnadas daquellas aves. Conservei a versão que ficou no nome do rio.


Paj. 8

_Arací_.--Esta palavra tupí compõe-se de _ara_, dia, e _ceí_ ou _cejí_,
grande estrela. Este ultimo nome davam os indijenas ás pleiades, que
lhes serviam para contar os anos.


Paj. 8

_Cem dos melhores guerreiros_.--Nesta e outras frazes identicas, os
numerais cem ou mil não reprezentam algarismo exato, que não os tinham
os tupís para exprimir numero tão elevado. Traduzem apenas esses termos
a dezinencia _tiba_, com que os tupís dezignavam cópia e multidão.


Paj. 9

_Canitar_.--Enfeite de cabeça. Adotei esta dezignação empregada pelos
autores sob a autoridade de Hans Stade por me parecer mais eufonica. A
exata lição pede _acanga atara_.


Paj. 9

_As duas nações não estão em guerra_.--As nações tupís não viviam em um
estado perene de guerra, como propalaram alguns escritores. A guerra era
frequente; mas não constante. As nações faziam a paz e nella se
mantinham até que sobrevinha alguma cauza de rompimento. Então não
começavam as hostilidades senão depois de anunciada a guerra ao inimigo,
o que se fazia lançando-lhe uma flecha na taba, ou levando-lhe um
guerreiro o dezafio.

É uma prova do carater leal dos selvajens. Foi depois da colonização,
que os portuguezes, assaltando-os como a feras, e caçando-os a dente de
cão, ensinaram-lhes a traição que elles não conheciam.


Paj. 10

_Pojucan_.--Contração de uma fraze tupica._I-pojuca_;--significa: eu
mato gente. Essas contrações não são arbitrarias; ellas eram da indole
da lingua e conformes ao seu sistema de aglutinação. Todas as vezes que
os indijenas compunham uma palavra, cerceavam as sílabas dos vocabulos
que entravam na compozição, para ligal-as mais eufonicamente.

Lemos em Alfred Maury _La Terre et l'homme_, cap. VIII, o seguinte
trecho:

«Nas linguas americanas, não é sómente uma sinteze que concentra em uma
palavra todos os elementos da idéa mais complexa; ha ainda engrazamento
(enchevêtrement) das palavras umas nas outras; é o que M. F. Lieber
chama _incapsulação_, comparando a maneira por que as palavras entram na
fraze a uma caixa na qual se conteria outra que a seu turno conteria
terceira, esta uma quarta, e assim por diante. A incorporação das
palavras é por vezes levada á extrema exajeração nesses idiomas, o que
produz a mutilação dos vocabulos incorporados.»

Esta observação é da maior justeza e conforma-se de todo o ponto com a
indole da lingua, como se vê nas seguintes palavras--_A-por-u_--como
gente--_A-poro-tim_--enterro gente--_A-po-çub_--vizito a gente. (Vide
Figueira, _Gramatica da lingua do Brazil_, paj. 51.)


Paj. 10

_Tapuia_.--de _taba_ e _puir_, o que foje das tabas. Davam os indijenas
esse nome a povos mais barbaros e de lingua diversa. Segundo as ultimas
investigações etnolojicas, pertenciam esses povos a uma raça diversa da
tupí, e muito aproximada, senão conjenere do tipo mongolico. Entretanto
Orbigny, _L'Homme Américain_, sustenta a identidade das duas raças,
tapuia e tupí.


Paj. 10

_Tacape_.--Davam os tupís o nome de _apem_, a um corpo alongado de fórma
analoga á espada, e como ella cortante. Daí vinha chamarem a
unha--_po-apem_, espada do dedo; e á raiz que surje da terra e se eleva
como um galho--_sapopema_--raiz espada.

Á sua principal arma de guerra chamavam _ita-ca-apem_, espada de
páu-pedra; ou _ita-qui-apem_, machado comprido de pedra, por ter sido
dessa materia que primeiro o fabricaram, antes de aprenderem a lavrar a
madeira.

Ácerca da força dessa arma e da destreza com que a manejavam, diz Lery
que um tupinambá com ella armado daria que fazer a dois soldados de
espada.


Paj. 10

_Guerreiro chefe_.--Para compreender-se bem a força dessa dezignação,
diremos alguma coiza ácerca da hierarquia selvajem.

Como a relijião, era simples o governo dos tupís; mas não careciam
delle, segundo inculcam os cronistas: antes o tinham, e bem regulado
para o seu estado de civilização.

Podemos distinguir na taba selvajem uma sociedade civil e uma sociedade
politica; a primeira reduzida á familia, e a segunda excluziva á
subzistencia, defeza e guerra.

A sociedade civil era constituida pela _oca_, a caza, onde o varão,
_aba_, morava com suas mulheres, sua prole, os servos que trabalhavam
para granjear as filhas em cazamento, os cativos que fazia na guerra, e
os parentes que agregava a si.

O dono da caza, ou literalmente o que fazia a caza, _moacara_, era a
perfeita imajem do patriarca. Elle governava a sua gente; e formava uma
sociedade independente, no seio da grande sociedade politica, de que era
membro e para cuja defeza concorria não só por interesse proprio, mas
pela honra da nação.

_Moacara_ nos dicionarios significa fidalgo. A tradução resente-se da
preocupação do homem civilizado; mas havia realmente uma distinção entre
o _moacara_, chefe da oca, pai de muitos guerreiros, e o simples
individuo que ainda não possuia uma familia.

A sociedade politica, _taba_, era a reunião das ocas. Essa denominação
vem de _tama_, a patria, o berço, a terra natal, e _aba_ dezinencia que
indica o logar, modo, instrumento da coiza. Assim, _taba_ significa
literalmente onde ou o que faz a patria, isto é, aldeia natal.

O governo da _taba_, essencialmente democratico, rezidia no conselho dos
_moacaras_, entre os quais predominava a experiencia dos anciãos, que se
chamavam _abarés_ ou _abaetês_; isto é, varões egrejios.

Nações essencialmente guerreiras, tinham um chefe para governal-as nas
jornadas e batalhas. A estes davam o nome de _tuxava_, ou _tauxaba_, o
dono da taba, _morubixaba_, o que governa o povo; de _moro_, gente, e
_aba_, dezinencia.

Quando as nações eram grandes e não cabiam numa taba, destacavam-se
alguns _moacaras_ com suas familias e formavam novas tabas, sujeitas á
taba mãi. Daí se orijinaria a diferença das duas dezignações, vindo
então _tauxaba_ a dezignar o simples chefe de uma taba; e _morubixaba_ o
chefe da taba primitiva, ou da nação, _moro_.

Tambem acontecia que muitas vezes um _moacara_ poderozo separava-se de
sua nação por cauza de alguma dissenção intestina, e constituia-se
independente com seus decendentes, e os guerreiros a elle sujeitos pelo
parentesco. Essa _oca_ independente, chamava-se _moroca_, isto é, oca de
gente, de tribu e não mais de familia. O termo _moloca_ tão frequente
nos cronistas não é senão corruptela daquelle, e póde corresponder ao de
tribu ou horda.

A nomeação do chefe participava da natureza dessa sociedade democratica
e guerreira. O mais audaz e o mais forte impunha-se: a permanencia de
sua autoridade, bem como sua extensão, dependia do respeito que elle
conseguia infundir a seus guerreiros.

No momento em que surjia outro ambiciozo a disputar o poder, este
tornava-se o premio do mais valente. Acontecia então que o vencido com
seus sectarios revoltava-se; e daí as frequentes guerras intestinas, que
aniquilaram a raça indijena, ainda mais talvez do que a crueldade dos
europeus.

Na morte do _morubixaba_ ocorria igual pleito. O filho apossava-se do
poder pelo direito de herança; e o conservava se não aparecia algum
emulo mais poderozo que lh'o arrebatasse.

Falando com as nossas teorias da civilização, podemos dizer que a baze
desse poder executivo era, como nas republicas, o sufragio universal.
Mas era o sufragio sempre ativo e vijilante, pronto a inclinar-se ao
merecimento superior, onde elle se revelasse.

Entre o chefe guerreiro (poder executivo), e o conselho dos _moacaras_
(poder lejislativo) os conflitos eram inevitaveis. Morubixaba haveria,
como o celebre Cunhanbebe, que era um verdadeiro despota. O tacape de
muito heróe tupí ha de ter governado tão absolutamente como a espada de
Cezar ou de Napoleão.

Outros conflitos tambem se deviam dar frequentemente entre a influencia
dos _pajés_ e o poder do chefe ou dos anciãos. Aquelles sacerdotes,
cercados do respeito dos guerreiros, fortes pelo prestijio de seus
augurios e sortilejios, tentariam insuflados pela ambição governar a
taba, ou pelo menos fomentar a rezistencia ao chefe.

Eis em escorço as paixões que deviam ajitar aquella sociedade politica,
depois da guerra que era a maior preocupação.

Além das ocas, ou familias, havia na taba uma especie de oca mais vasta
e comum. Nessa parece que moravam aquellas pessoas, que já não tinham
oca, e estavam a cargo da nação; tais eram as _velhas_, e por este nome
devem-se entender as mulheres sem companhia de marido, nem parentes; os
orfãos, aos cuidados daquellas mãis emprestadas; e finalmente as moças
que não faziam vida conjugal.

Vejamos agora a sociedade civil, tal como a podemos induzir dos
acanhados esclarecimentos que nos deixaram os cronistas.

O cazamento, baze da familia, devia ter alguma ceremonia simbolica,
ainda que não passasse da simples entrega da noiva ao varão. Essa minha
supozição funda-se no fato de haver entre esses povos um cazamento bem
caracterizado, e não simples coito.

A mulher lejitima distinguia-se pelo nome. O marido a chamava
_temireco_, isto é, a verdadeira mãi de meus filhos; emquanto que ás
outras mulheres, suas amantes, chamava _aguaçaba_. O marido tinha tambem
um nome especial _menda_, que o distinguia do simples amante.

Acrece que para obter a noiva o varão sujeitava-se a certas condições, e
até mesmo a provas de corajem; donde devemos inferir com boa razão, que
não era esse um ato insignificante para os selvajens, a ponto de não o
distinguirem com uma fórmula qualquer, elles que em outros pontos eram
tão ceremoniozos, como na recepção do hospede, na declaração da paz ou
da guerra.

Os cronistas, porém, não se ocuparam disso e todo seu tempo foi pouco
para lamentarem a poligamia dos tupís, tirando logo dalí argumento para
pintarem os selvajens vivendo a modo de cães.

É uma falsidade. Os tupís tinham moralidade conjugal, e até muito
severa. O adulterio era punido de morte; e tambem por isso permitia-se o
divorcio por mutuo consentimento.

A poligamia dos tupís foi da mesma natureza da que existiu entre os
hebreus; era uma poligamia patriarcal, filha das condições da vida
selvajem, e não a poligamia sensual dos turcos e outros povos do
oriente, produzida unicamente pelo requinte da libidinajem.

Compreende-se que no estado selvajem ou primitivo, a mulher, fraca para
rezistir aos perigos que a rodeavam, tinha necessidade de acolher-se ao
amparo e proteção do homem. Por outro lado cada varão, no interesse não
sómente de sua gloria, como de seu poder, carecia rodear-se de uma
familia numeroza, e de gerar do seu proprio sangue, os seus guerreiros.

Entretanto, e é isto que distingue a poligamia patriarcal, a posse de
muitas mulheres não destruia a instituição da familia, bem caracterizada
pela preeminencia da primeira mulher ou a verdadeira espoza; e pela
adoção dos filhos nacidos das outras mulheres, que se tornavam todos
filhos da espoza, ou da verdadeira mãi, _temireco_.

Muita coiza poderia dizer ácerca da educação dos filhos e da condição da
mulher, mas não cabe esse estudo em uma nota. Mais tarde e a propozito é
possivel que o faça.

Para a intelijencia do texto basta saber-se que além da espoza,
_temireco_, mãi da familia, das amantes, _aguaçabas_, que faziam parte
da familia na condição de servas, havia--1.o as virjens, _cunhantem_,
mulheres debalde, que pertenciam á familia, e se destinavam para espozas
dos guerreiros que as obtivessem pelas provas de esforço e denodo; 2.o
as velhas, ou mulheres já privadas de seus maridos, e que ficavam sob a
proteção da comunhão, incumbidas da educação dos orfãos, e dos filhos
anonimos; 3.o as _moças_ ou mulheres que desprezavam o cazamento e
viviam livremente aceitando o amor do guerreiro que lhes agradava, e do
qual tinham filhos, que não pertenciam á familia, mas á tribu; eram
estas as mulheres que ofereciam seu amor como penhor de hospitalidade ao
estranjeiro que chegava á taba; 4.o finalmente, a classe infeliz,
abandonada de todo o sentimento e de todo o pudor, á qual davam o nome
de _morixaba_, literalmente coiza de todos; ou, segundo o testemunho de
Ives d'Evreux, _menondere_, que equivalia a ladra; porquanto entendiam
os selvajens que a mulher roubava seu primeiro amante dando ou vendendo
a outro o amor que lhe pertencia.

Ainda nesta ultima escala, se estão manifestando as leis severas do
recato e fidelidade da união sexual entre os selvajens. Além do
cazamento lejitimo, havia o concubinato, como existiu entre os romanos,
produzindo direito e obrigação reciproca. A mulher que traía a fé
conjugal, ou o concubinato, era uma adultera, isto é, uma ladra e decia
á ultima infamia. O marido tinha o direito de matal-a; o amante
entregava-a ao desprezo da tribu.


Paj. 10

_Jaguarê agradece a Tupan_.--Não achando entre os aborijenes templos e
idolos, ainda que alguns cronistas atestam a existencia dos ultimos,
foram os colonizadores peremptoriamente declarando ateus a esses povos.
Mas logo, com incoerencia flagrante, reconheciam a existencia de uma
superstição, que outra coiza não é a relijião na infancia da humanidade.

Os tupís adoravam uma excelencia superior, Tupan, que se manifestava
pelo raio e pelo trovão; donde se induz o grande poder que atribuiam a
essa divindade. Seu nome de raça aprezenta uma afinidade que faz
prezumir a crença de uma decendencia celeste.

Tambem temiam os tupís o espirito do mal, personificado em Anhanga, o
fantasma, que habitava as trévas, e a quem referiam um poder funesto.
Para conjurar essa divindade malefica, tinham sacerdotes, os pajés, que
buscavam sua força e virtude no fumo da planta sagrada, o tabaco.

Além disso contava a mitologia tupica genios bons e máus, que habitavam
as florestas e os rios, e percorriam as solidões montados em caitetús,
ou transformados em certos animais. Entre estes mencionarei o caipora e
a mãi d'agua, cuja abuzão transmitiu-se á raça conquistadora, e de que
ainda se encontram vestijios entre as populações do norte.

Não ha contestar que aí está uma relijião bem caracterizada. Mas como
faltassem templos e idolos, os decendentes dos barbaros gaulezes, godos,
francos e celtas não podiam admitir na America uma relijião sem culto
regular, qual a tiveram aquelles selvajens europeus.

Entre os viajantes que mais tarde percorreram a America havia espiritos
superiores, dedicados ao estudo da humanidade, que investigavam sem
prevenções a orijem e indole das raças indijenas do novo mundo. Na
primeira plaina destes sabios figura Alexandre de Humboldt.

O eminente naturalista assinalou a cauza dessa auzencia de culto dos
aborijenes do Brazil, quando observou que o antropomorfismo da divindade
se manifesta por dois modos: da terra ao céu, como na Grecia, ou do céu
á terra, como na America. _Voyage au Nouveau Continent_--8.o volume,
paj. 243.

Quando a imajinação do homem personificando a divindade á sua imajem a
faz subir ao céu, como os numes pagãos da Grecia, ella é levada
naturalmente a oferecer-lhe uma constante adoração com que mantêm o
vinculo da creatura ao creador. Daí a necessidade de idolos, que
simbolizem esses numes, e a tenham prezente aos olhos mortais.

Diverso, porém, é quando, concebendo a divindade á sua imajem, o mortal
a humana inteiramente, transportando-a do céu á terra. Então o homem
figura-se não a creatura, mas o decendente, o filho de seu deus.

Dezaparece a necessidade dos idolos, pois a verdadeira reprezentação da
divindade na terra é o mesmo homem que a continúa. Cada um tem o seu
nume em si. A adoração transforma-se naturalmente no culto da propria
individualidade, nessa exajeração prodijioza do estalão humano, que
distingue as idades heroicas.

É pela ostentação da corajem, da força, da grandeza de animo, que o
selvajem se elevava até o deus, seu projenitor; e não pela adoração,
pelas preces e oferendas uzadas no paganismo grego, o qual estava bem
lonje da humildade evanjelica do cristianismo. Os tupís não careciam,
pois, de orações e sacrificios; as façanhas com que se mostravam dignos
de sua orijem celeste eram as melhores oblações do seu culto.

Tal era o respeito que o selvajem professava pela dignidade humana, que
matava as pessoas mais caras quando não se podiam curar da enfermidade.
Essa implacavel sujeição ao mal, abatia e humilhava uma raça forte e
guerreira.

Muitos outros exemplos podia aprezentar dessa elevada conciencia da
individualidade, que distinguia no mais alto ponto o selvajem
brazileiro.

Eis o que não souberam ver os cronistas, quando taxaram de ateus aos
indijenas americanos.

Abstraindo da moral absoluta em que só ha uma verdade, a do
cristianismo, e tomada a questão no ponto de vista da arte, não se póde
recuzar a essa relijião tupí, que nivela o homem á divindade, certo
cunho de grandeza selvajem e um vigorozo sentimento da individualidade.

O paganismo grego lhe fica inferior nesse ponto da dignidade humana; ao
passo que elle tornava a raça de Japeto escrava submissa dos deuzes, e
vitima de seus caprichos e vinganças, na mitolojia americana o homem é o
filho e o emulo da divindade.

Á parte as ficções graciozas do espirito helenico, a mitolojía grega só
tem uma creação que reveste a majestade da relijião tupí; é a creação
dos semi-deuzes, em que se operava o antropomorfismo terrestre da
divindade, qual se deu na America.

Considerando-se divino, o selvajem americano acreditava-se combatido por
um ente malefico, antagonista do deus de quem decendia. Nos achaques e
mizeria que aflijem a humanidade via as manifestações desse poder
funesto. Os sacerdotes o esconjuravam por sortilejios; os heróes, porém,
rezistiam-lhe pela constancia e o afrontavam.

Á essa relijião simples e sem aparato, como devia ser uma relijião das
florestas, professada por povos caçadores e guerreiros, coroava a crença
profunda e inalteravel da imortalidade da alma, revelada pela veneração
ás cinzas dos mortos, e pelas ceremonias da inhumação.

Os indijenas encerravam suas mumias em tumulos especiais, a que davam o
nome de _Camucins_; e as acompanhavam não só das armas e objetos de uzo
proprio, como de alimentos para a viajem aos campos alegres, onde iam
reviver os guerreiros e suas mulheres.

Basta este rapido esboço para dar idéa da relijião dos tupís, e avaliar
o criterio daquelles que os consideravam estranhos a qualquer noção da
divindade.

Um povo que mantinha as tradições a que aludimos, não era certamente um
acervo de brutos, dignos do desprezo com que foram tratados pelos
conquistadores. E quando, através de suas falsas apreciações, a verdade
pôde chegar até nossos tempos, o que não seria, se espiritos
despreocupados e de vistas menos estreitas, vivendo entre essas nações
primitivas, se aplicassem ao estudo de suas crenças, tradições e
costumes?

Os jezuitas, que podiam melhor realizar esse estudo, eram induzidos a
exajerar a ferocidade e ignorancia dos selvajens, no interesse de tornar
indispensavel sua catequeze. Já imbuidos da intolerancia relijioza, a
politica exajerava ainda mais sua suspeição.


Paj. 11

_Ubiratan_.--Páu-ferro; literalmente _ubira_--madeira, e _atan_--duro.
_Atan_ não é senão a palavra _ita_ com a terminação _ana_, que na lingua
tupí servia para a formação dos adjetivos. _Itana_, o que tem a natureza
de pedra. Assim, de pedra fizemos nós pedregozo. Rigorozamente
_ubiratan_ é _páu-pedra_; pois que os indijenas não conheciam o ferro.
Era dessa madeira que faziam os tacapes.


Paj. 13

_O chefe tocantim_.--Os autores empregam em geral os termos maioral,
principal, para dezignar o cabeça de uma tribu ou nação indijena.
Alguns, como Southey, serviram-se do termo cacique adotado dos
Araucanos; Barloeus chamou-os classicamente de reis.

Neste livro, como em _Iracema_, preferi traduzir o termo indijena
_tuxaba_, por _chefe_; e fui levado pela razão de ser, além de muito
apropriado e vulgar, um termo nobre e sucetivel de entrar no estílo o
mais elevado, sem laivos de afetação. Ao _morubixaba_ pela mesma razão
chamei chefe dos chefes.


Paj. 14

_Calcou a mão sobre o hombro esquerdo_.--Ácerca desse modo simbolico de
assegurar o vencedor seu imperio sobre o cativo, é curiozo o que referiu
e notou _Ives d'Evreux_, cap. XIV.

«Então eu soube que era uma ceremonia de guerra praticada entre essas
nações, que quando um prizioneiro cae na mão de algum, aquelle que o
toma, bate-lhe com a mão na espadua dizendo-lhe: «Eu te faço meu
escravo»; e desde então esse pobre cativo, por maior que seja entre os
seus, se reconhece escravo e vencido, segue o vitoriozo, o serve
fielmente, sem que seu senhor se importe com elle; tem liberdade de
andar por onde lhe pareça, não faz senão o que quer e ordinariamente
espóza a filha ou irmã de seu senhor, até o dia em que deve ser, morto e
comido.»

Depois o missionario lembra as palavras de Isaías cap. 9--_Factus est
principatus super humerum ejus_--e cap. XXII--_Dabo clavem dominis David
super humerum ejus_; e mostra a conformidade desse rito dos tupís com as
tradições dos hebreus e outros povos primitivos.


Paj. 15

_Ubirajara_--senhor da lança, de _ubira_--vara e _jara_--senhor;
aportuguezando o sentido, vem a ser lanceíro.

Com este nome existia ao tempo do descobrimento, nas cabeceiras do rio
S. Francisco uma nação de que fala Gabriel Soares--Roteiro do Brazil,
cap. 182.

«A peleja dos Ubirajaras, diz esse escritor, é a mais notavel do mundo,
como fica dito, porque a fazem com uns páus tostados muito agudos, de
comprimento de tres palmos pouco mais ou menos cada um, e tão agudos, de
ambas as pontas, com os quais atiram a seus contrarios como com punhais,
e são tão certos com elles que não erram tiro, com o que têm grande
chegada; e desta maneira matam tambem a caça que, se lhe espera o tiro,
não lhe escapa; os quais com estas armas se defendem de seus contrarios
tão valorozamente como seus vizinhos com arcos e flexas, etc.»

Desta arma e da destreza com que a manejavam proveiu o nome de
_bilreiros_ que lhe deram os sertanistas, significando assim que tanjiam
suas lanças com ajilidade e sutileza igual á da rendeira ao trocar os
bilros.


Paj. 15

_Preciza de um prizioneiro_.--Era entre os selvajens maior honra
conduzir da guerra um prizioneiro, para ornar o seu triunfo e a festa de
vitoria, do que matal-o em combate. Veja Gabriel Soares--cit. na nota
4a.


Paj. 15

_Chamas de alegria_.--Metafora tupí. Chamavam a alegria e a festa
_toríba_, literalmente, grande quantidade de fogueiras.


Paj. 17

_Historia de guerra_.--Os tupís para exprimirem historia, ou narrativa,
diziam _maranduba_, conto de guerra, de _mara_--guerra--_nheng_--falar e
_tuba_--muito; falar muito de guerra.

Depois aplicaram os indijenas essa palavra a toda narrativa, se é que
não crearam para as outras historias o termo analogo de _poranduba_,
composto de _poro_, _nheng_, e _tuba_--falar muito da gente.

Os indios eram muito apaixonados dessas narrações, em que mostravam sua
natural eloquencia. Informa-me o Dr. Coutinho, incansavel explorador do
vale do Amazonas, que ainda hoje nenhum indio chega de viajem, que não
diga a sua maranduba, que é o recito circumstanciado de quanto viu e lhe
aconteceu em caminho.

Ás vezes traduzo o termo; outras o emprego orijinal para mais incutir no
livro o espirito indijena. Do mesmo modo procedi ácerca de outros termos
eufonicos tais como _tuxaba_, _moribixaba_, _moacara_, _nhengaçara_,
_etc_.


Paj. 21

_Os cantores_.--Os tupís eram muito dados á muzica e á dansa.

Lery fala com entuziasmo da doçura de seus cantos; e Ferdinand Denis,
paj. 21, afirma, não sei com que fundamento, que a imitação dos Chataws
da America do Norte, certas nações do Brazil gozavam do privilejio de
fornecer poetas e musicos aos outros povos, como sucedia com os tamoios
entre os tupís.

Gabriel Soares--cap. 162--descreve os cantos, improvizos e dansas dos
tupinambás, concluindo com estas palavras:

«Entre este gentio, os muzicos são muito estimados e por onde quer que
vão, são bem agazalhados e muitos atravessaram já o sertão por entre
seus contrarios, sem lhes fazerem mal.»


Paj. 24

_Como chefe pertence-lhe a virjem_, etc, Barloeus--2.a edic. paj.
483.--Quotquot luta, hastarum concursu ac venatu proecellunt,
eminentiores habentur et ut hoeroum numero, qui ob virtutis
fortitudinisque excellentiam ab ipsis virginibus ambire moerentur, cum
meliores ex melioribus nasci opinentur, nec vanum esse nobilitatis
nomen, sed cum sanguine transfundi.»--Quantos disputam em jogos de lança
e caça; os eminentes são tidos no numero dos heróes; os quais pela
excelencia da virtude e fortaleza merecem possuir as mesmas virjens; por
quanto pensam que os melhores nacem dos melhores; nem é vão nome a
nobreza, pois se comunica pela transfuzão do sangue.


Paj. 25

_Purifica o corpo_.--Os selvajens distinguiam-se pelo apurado asseio.
Ives d'Evreux diz a este respeito: «Ils sont fort soigneux de tenir leur
corps net de toute ordure: ils se lavent fort souvent tout le corps et
ne se passe jour qu'ils ne jettent sur eux force eau et se frottent avec
les mains de tous côtés et en toutes les parts, pour oster la poudre et
autres ordures. Les femmes ne manquent de se peigner souvent.»


Pag. 25

_Urú_.--Tinham os indijenas varias especies de moveis para guardar
objetos. O _urú_ era um cesto aberto. _Panacum_ era um cesto maior com
tampa. _Samburá_ era cesto com orelha, corrupção de _nambi_ e _urú_,
literalmente cesto de orelha. Tinham ainda os selvajens o _patiguá_ ou
_patuâ_, que era uma caixa de palha ou couro; e o _mocô_, pequeno surrão
da pele felpuda do coelho. Todos estes nomes ainda são uzados no norte
para dezignar os mesmos objetos, produtos da industria indijena,
aproveitada pelos colonizadores.


Paj. 26

_Coqueiros_.--Ao que disse em nota de Iracema ácerca do indijenismo
desta planta acrecentarei a noticia que della nos deixou Guilherme
Piso--_Historiæ Rerum Naturalium Brasiliæ_, Liv. 8o, p. 138.

«_Inaiá Guacuiba_ cujus fructus _inaiaguacu_ brasiliensibus; in congo
vocatus _Ejaquiambutu_ et fructus _Quetiniga quiambutu_: Palma nucifera,
lusitanis _coqueiro_ et fructus illius _coco_; qui tribus suis
foraminulis lavam representat. Arbor caudice raro recto, sed plerumque
incurvato, quatuor, quinque sex aut etiam septem pedes crasso, triginta,
quadraginta et interdum quinquaginta pedes alto.»

É esta mesma palmeira que os Mexicanos chamavam _Cogolli_. Piso viu em
1640 na cidade Mauricéa (Recife) transplantarem-se pés que tinham mais
de 24 anos.


Paj. 28

_Cabelos_.--Pelos cabelos costumavam distinguirem-se as diversas nações
indijenas. Southey--I, cap. 8o. Das mulheres diz Barloeus:--_Foeminis
coma promissa nisi per luctus tempora aut absens marito_.--paj. 36.
Traziam as mulheres a madeixa longa, salvo no tempo do luto ou auzencia
do marido.

Mais um traço do carater e costumes indijenas. Durante a auzencia do
marido, a mulher trazia uma especie de luto, ou mostra de tristeza e
saudade, que era simbolizada pelo sacrificio das longas tranças dos
cabelos.


Paj. 28

_Braços que tu querias para tua cintura_.--Metafora da lingua tupí, que
exprime o amor; _aguaçaba_, a amante, literalmente, o que se tem á
cintura.


Paj. 31

_Escravo_.--Acerca das leis do cativeiro entre os indios leiam-se os
dois capitulos XV e XVI, que a este assunto consagrou Ives d'Evreux,
citado.

Os cativos viviam em plena liberdade na taba de seus senhores, e era
muito raro que fujissem, porque se consideravam ligados por um vinculo
desde o momento em que o vencedor lhes calcava a mão sobre a espadua.
Quebrar esse vinculo, era por elles considerado uma dezhonra.

Até os prizioneiros destinados ao suplicio, preferiam a morte glorioza
a se rebaixarem pela fuga no conceito de seus inimigos. «Muitas vezes as
mulheres tomavam substancias que provocavam o aborto, não querendo
passar pela mizeria de verem trucidada a prole; não raro favoreciam a
fuga dos tristes maridos de alguns dias pondo-lhes comida nos bosques e
até escapulindo-se com elles. Frequentemente sucedeu isto a prizioneiros
portuguezes; os indios brazileiros, porém, julgavam dezhonroza a fuga,
nem era facil persuadil-os a tomal-a.» Southey--cap. VII onde
cita--Noticias do Brazil, II, 69 e Herrera 4, 3, 13.

Abbeville ainda é mais explicito:--Et bien que estant desliez et libres
comme ils sont, ils puissent fuir et se sauver, si est ce que ils ne
font jamais encore qu'ils soient assurez de estre tuez et mangez au bout
de quelques temps. Car si quelqu'un des prisionniers s'etait eschapé
pour retourner em son pays, non seulement il serai tenu pour un _couaen
eum_, c'est a dire poltron et lasche de courage; mais aussi ceux de sa
nation mesme ne manqueroient de le tuer avec mille reproches de ce qu'il
n'aurait pas eu le courage d'endurer la mort parmi ses ennemis, comme si
ses parents et tous ses semblables n'etaient assez puissants por venger
sa mort, etc. pag. 290.

As leis da cavalaria no tempo em que ella floreceu em Europa não
excediam por certo em pundonor e brios a bizarria dos selvajens
brazileiros. Jámais o ponto de honra foi respeitado como entre estes
barbaros, que não eram menos galhardos e nobres do que esses outros
barbaros, godos e arabes, que fundaram a cavalaria.

Alí está uma pedra de toque para aferir-se o carater do selvajem
brazileiro, tão deprimido por cronistas e noveleiros, avidos de
inventarem monstruozidades para impinjil-as ao leitor. Nem isso lhes
custava; pois a raça invazora buscava justificar suas cruezas rebaixando
os aborijenes á condição de féras, que era forçozo montear.


Paj. 32

_O suplicio_.--Outro ponto em que se assopra a ridicula indignação dos
cronistas é ácerca da antropofagia dos selvajens americanos.

Ninguem póde seguramente abster-se de um sentimento de horror ante essa
idéa do homem devorado pelo homem. Ao nosso espirito civilizado, ella
repugna não só á moral, como ao decoro que deve revestir os costumes de
uma sociedade cristã.

Mas antes de tudo cumpre investigar a causa que produziu entre algumas,
não entre todas as nações indijenas, o costume da antropofagia.

Disso é que não curaram os cronistas. Alguns atribuem o costume á
ferocidade, que transformava os selvajens em verdadeiros carniceiros, e
tornava-os como a tigres sedentos de sangue. A ser assim não faziam mais
do que reproduzir os costumes citas, que sugavam o sangue do inimigo
ferido,--quem primum interemerunt, ipsis é vulneribus ebibere. Pomponius
Moela. Descrip. da Terra.--Liv. 2o cap. 1o.

Outros lançam a antropofajia dos americanos á conta da gula, pintando-os
igual á horda bretã das Gallias, os Aticotes, dos quais diz S. Jeronimo
que se nutriam de carne humana, regalando-se com o ubere das mulheres e
a fevera dos pastores. (_S. Hieronimo IV.--paj. 201, adv. Jovin.--Liv.
2o_.)

O canibalismo americano não era produzido, nem por uma nem por outra
dessas cauzas.

É ponto averiguado, pela geral conformidade dos autores mais dignos de
credito, que o selvajem americano só devorava o inimigo, vencido e
cativo na guerra. Era esse ato um perfeito sacrificio, celebrado com
pompa, e precedido por um combate real ou simulado que punha termo á
existencia do prizioneiro.

Simão de Vasconcelos, Cronica da companhia, 1 § 49, alude a uma velha
que sentia entojos por não ter a mãozinha de um rapaz tapuia para
chupar-lhe os ossinhos: e Hans Stade, paj. 4, cap. 43 e seg., conta a
historia de dois individuos moqueados pelos tupinambás, e guardados para
um banquete.

Não exajeremos, porém, esses fatos izolados, alguns dos quais podem não
passar de caraminholas, impinjidas ao pio leitor. Os costumes de um povo
não se aferem por acidentes, mas pela pratica uniforme que elle observa
em seus atos.

Se os tupís fossem excitados pelo apetite da carne humana, elles
aproveitariam os corpos dos inimigos mortos no combate, e que ficavam no
campo da batalha. A guerra se tornaria em caçada; e em vez de montear as
antas e os veados, os selvajens se devorariam entre si.

Não ha, porém, escritor sério que deixasse noticia de fatos daquella
natureza; e não me recordo de nenhum que referisse exemplos de serem
devoradas mulheres e meninos; salvo quanto aos ultimos, o filho do
prizioneiro de guerra (Not. do Brazil.--II, 69), do que tenho razão para
duvidar.

Parece-nos, pois, que a idéa da gula deve ser repelida sem hezitação. Se
em algumas tribus ou malocas se propagou o apetite depravado, essa
dejeneração foi por ventura devida ao contajio dos Aimorés, cuja invazão
é posterior ao descobrimento. Em todo o cazo é uma exceção que não póde
preterir o rito da relijião tupica.

Tambem pela contraprova, havemos de excluir a ferocidade, como razão do
canibalismo americano.

Se o instinto carniceiro dominasse o tupí, elle se lançaria sobre o
inimigo como o cita, ou o sarraceno de que fala Am. Marcellinus, para
sugar-lhe o sangue da ferida, e trincar-lhe as carnes ainda vivas e
palpitantes.

Mas, ao contrario, vemos que o guerreiro tupí tinha por maior bizarria
cativar seu inimigo no combate, e trazel-o prizioneiro, do que matal-o.
Chegado á taba, em vez de o torturar dava-lhe por espoza uma das virjens
mais formozas, a qual tinha a seu cargo nutril-o e tornar-lhe agradavel
o cativeiro.

Releva notar que a idéa da antropofajia já era comum na Europa, antes do
descobrimento da America; não só pelas tradições dos barbaros, como
pelas crendices da média idade, nas quais figuravam gigantes e bruxas,
papões de meninos. Que tema inexgotavel para a imajinação popular não
veiu a ser a primeira noticia, senão conjetura, sobre o canibalismo do
selvajem brazileiro?

Cronista ha que nesse costume, onde se está revelando a força
tradicional de um rito, não enxergou senão o zelo do glotão, que engorda
a preza para saboreal-a. Mas essa ridicula supozição nem ao menos se
conforma com o teor da vida selvajem, a qual desconhecia a industria da
criação.

O selvajem comia a caça como a encontrava no mato, gorda logo depois do
inverno, e magra na força da seca. Não se dava ao trabalho de a
engordar. Porque motivo se havia de afastar desse uzo ácerca do homem,
se o homem fosse para elle uma especie de caça?

E por ventura faria parte do processo da engorda do bipede, o acessorio
de uma companheira formoza e na flôr da idade, qual invariavelmente a
davam ao prizioneiro?

É obvio que esse uzo tinha outra razão mui diversa. Não se tratava de
engordar o prizioneiro, mas de fortalecel-o, para que elle morresse com
honra no dia do sacrificio, que devia ser o seu ultimo combate.

Ainda nessa ocazião, os vencedores ostentavam sua gravidade, deixando
que o prizioneiro exaltasse o proprio valor e os afrontasse com seu
desprezo. Só chegado o momento depois de celebrada a ceremonia, o
abatiam com um golpe de tacape.

A ferocidade não se coaduna com a calma e comedimento desse proceder.
Póde-se explicar o sacrificio humano dos tupís por um intenso e profundo
sentimento de vingança; mas não por sanha brutal.

Ferdinand Saint-Denis (_Univers_, _Brésil_, pag. 30) diz com muito
criterio:--_En accomplissant ces sacrifices, les tupinambás
n'obéissaient pas, comme pourraient le croire quelques personnes, à un
goût depravé qui leur aurait fait préférer la chair humaine à toutes les
autres; ils étaient mus avant tout par un esprit de vengeance que se
transmettait de génération en génération, et dont notre civilisation
nous empêche de comprendre la violence_.

Não era, porém, a vingança a verdadeira razão da antropofajia. O
selvajem não comia o corpo do matador de seu pai ou filho, se acontecia
matal-o em combate. Abandonava o cadaver no campo, e apenas cortava-lhe
a cabeça para espetal-a em um poste á entrada da taba, e arrancava-lhe o
dente para troféu.

A vingança, pois, esgotava-se com a morte. O sacrificio humano
significava uma gloria insigne rezervada aos guerreiros ilustres ou
varões egrejios quando caíam prizioneiros. Para honral-os, os matavam no
meio da festa guerreira; e comiam sua carne que devia transmitir-lhes a
pujança e valor do heróe inimigo.

Este pensamento resalta dos mesmos pormenores com que os cronistas
exajeraram o cruento sacrificio.

Morto o inimigo, não era devorado; antes as mulheres tratavam o corpo e
o curavam, moqueando as carnes. Essas eram guardadas; e distribuidas por
todas as tribus, incumbindo-se os que tinham vindo assistir á ceremonia,
de leval-as ás tabas remotas.

Os restos do inimigo tornavam-se, pois, como uma hostia sagrada que
fortalecia os guerreiros; pois ás mulheres e aos mancebos cabia apenas
uma tenue porção. Não era a vingança; mas uma especie de comunhão da
carne, pela qual se operava a transfuzão do heroismo.

Por isso dizia o prizioneiro:--«Esta carne que vêdes não é minha; porém
vossa; ella é feita da carne dos guerreiros que eu sacrifiquei, vossos
pais, filhos e parentes. Comei-a; pois comereis vossa propria carne.»
Deste modo retribuia o vencido a gloria de que os vencedores o cercavam.
O heroismo que lhe reconheciam, elle o referia á sua raça de quem o
recebera por igual comunhão.

Algumas nações tinham outra comunhão, inspirada no mesmo pensamento.
Era a dos ossos dos projenitores que reduziam a pó, e que bebiam
dissolvidos no cauim em festas de comemoração. Este fato, assim como o
sacrificio tremendo da mãi, que devia absorver em si o filho que lhe
nacera morto, bem mostram que por modo algum naceu do espirito de
vingança o chamado canibalismo.

Transportemo-nos agora, não como homens e cristãos, mas como artistas,
ao seio das florestas seculares, ás tabas dos povos guerreiros que
dominavam a patria selvajem; e quem haverá tão severo que negue a fera
nobreza desse barbaro e tremendo sacrificio?

A idéa repugna; mas o banquete selvajem, tem uma grandeza que não se
encontra no festim dos Atridas; e está bem lonje de inspirar o horror
dessa atrocidade que entretanto não foi desdenhada pela muza classica.

No Brazil é que se tem dezenvolvido da parte de certa gente uma aversão
para o elemento indijena de nossa literatura, a ponto de o eliminarem
absolutamente. Contra essa extravagante pretenção lavra mais um protesto
o presente livro.

Para concluir com este ponto, observaremos que nem todas as nações
selvajens eram antropofagas; e que em minha opinião esse costume, bem
lonje de ser introduzido pela raça tupí, foi por ella recebido dos
Aimorés e outros povos da mesma orijem, que ao tempo do descobrimento
apareceram no Brazil.


Paj. 32

_Espoza do tumulo_.-Este rito selvajem é muito conhecido e dispensa-me
de transcrever o que ácerca delle escreveram os cronistas.

Mais uma prova do carater generozo e bizarro do selvajem brazileiro.
Lonje de torturarem seu prizioneiro, ao contrario se esforçavam em
alegrar-lhes os ultimos dias pelo amor; davam-lhe uma espoza; e tão
grande honra era esta que o vencedor a rezervava para sua filha ou irmã
virjem; e se não a tinha, para a filha de algum dos principais da taba.

Falam alguns autores da _cunhãmembira_, como de uma ceremonia em que se
devorava o filho que por ventura a espoza do tumulo concebia do
prizioneiro morto. Duvido da generalidade desse fato, que me parece
adulterado, e seria especial aos tamoios.

_Cunhãmembira_, dizem esses autores, significa _filho da mulher_; e daí
diz Southey, copiando Lery, tiravam elles uma horrivel consequencia, que
era devorarem a criança.

Ora, _cunhãmembira_ significa saído do ventre da mulher. A lingua tupí
não tinha outro modo de dezignar a maternidade: taíra--isto é, saído do
sangue, diziam do filho ácerca do pai; e _membira_, diziam do filho
ácerca da mãi. Na expressão _cunhãmembira_ não ha senão a antepozição do
substantivo _cunham_ (mulher) que os indios suprimiam por superfluo;
assim como suprimiam na outra palavra dizendo simplesmente _taíra_ e não
_aba-taíra_ saído do sangue do varão.

Se o nome de _cunhãmembira_ indicasse estar a criança destinada ao
suplicio, então todos os nacidos da taba se achariam no mesmo cazo, pois
todos eram em relação ás mais, _membiras_ ou _cunhã membiras_.

Ainda mais, se a criança era condenada ao suplicio pela razão de ser do
sangue inimigo, parece que o nome a ella dado devia exprimir esse fato
importante e derivar-se antes desta fraze: _miauçubtaíra_--o gerado do
sangue do cativo.

A estes filhos dos prizioneiros chamavam os indijenas _marabá_, gerado
da guerra, nome honrozo, que revelava o apreço em que tinham essa prole,
saída de um sangue heroico. E tanto assim era que destinavam para
conceber essa prole o seio da virjem mais ilustre da taba.

Se os selvajens, que nada praticavam sem uma razão justificativa, só
tinham em mira devorar os filhos do cativo, para que dar-lhe uma espoza
ilustre? Mais sagazmente procederiam adjudicando-lhe diversas mulheres
para terem maior criação a matar.

Está-se conhecendo que o tal banquete não passa de um invento de
cronistas, que entenderam as outras palavras dos indios tão bem como a
de _cunhãmembira_ que elles diziam significar filho do inimigo.

_Cunhãmembira_ creio eu ser a festa que se fazia pelo parto da mulher; e
talvez acontecendo nacer morta a criança, se orijinasse a fabula do
sacrificio que então se praticava entre algumas nações de ser a mãi
obrigada a absorver em si esse fruto goro de sua fecundidade.


Paj. 33

_Guainumbí_.--«Persuadem-se os brazilienses haver uma ave, que chamam
colibri, a qual leva e traz noticia do outro mundo.» Santa Rita
Durão--Notas ao Caramurú.

Tambem chamavam os indios esse passaro, _Guaraciaba_--cabelos do sol; e
Arati, ou Arataguaçú segundo Marcgraff, 197. Quanto ao nome de
Guainumbí, ou mais corretamente Guinambí, penso eu que significa o
brinco das flôres. Os selvajens tiraram naturalmente essa dezignação do
modo por que o colibri tremula, como suspenso á flôr para chupar-lhe o
mel, semelhante ao movimento das arrecadas suspensas ás orelhas, e que
elles chamavam _nambípora_.


Paj. 35

_Jussara_.--«Nas povoações feitas em terra têm muitas nações guerreiras
a providencia de as segurarem e munirem com fortes muralhas, não de
pedra, mas de estacas do páu duro como pedra. Outros as fabricam de
palmeira, que chamam jussara, cujos espinhos são tão grandes e duros,
que servem a muitos de agulhas de fazer meias; e as trincheiras feitas
de _jussara_ são mais seguras que as mais bem reguladas fortalezas;
porque de modo nenhum se podem penetrar e romper senão com fogo por
crecerem não só cheias de grandes estrepes ou agudos espinhos, mas tão
enlaçadas e enleadas umas com outras que se fazem impenetraveis.
(Tezouro descoberto no rio Amazonas, Part. 2a, cap. 1o, no 2o vol. da
Rev. do Instituto, paj. 350.)

O nome da palmeira é em tupí _jussara_, de _ju_--espinho e _ara_
dezinencia.


Paj. 36

_Carbeto_.--Assim chamam Ives d'Evreux e Abbeville ao conselho dos
velhos entre os selvajens. Este nome deriva-se naturalmente de
_caraiba_, varão ilustre e _ipê_, logar onde.


Paj. 37

_Hospede_.--A virtude da hospitalidade era uma das mais veneradas entre
os indijenas. Todos os cronistas dão della testemunho; e alguns, como
Lery e Ives d'Evreux, descrevem com particularidade o modo liberal e
generozo por que os selvajens brazileiros a exerciam.

É certo que não escapou tambem á malevolencia dos cronistas, essa
excelencia e nobreza do carater indijena. Gabriel Soares cit. cap. 168
depois de falar do como os tupinambás agazalhavam os hospedes,
acrecenta: «e lançam suas contas se vem de bom titulo ou, não; e se é
seu contrario, de maravilha escapa que o não matem, etc.» Southey cit.
cap. 8o faz coro com essa versão que nos parece suspeita.

É possivel que depois da colonização, os selvajens vitimas das
perfidias dos aventureiros relaxassem suas tradições; mas a
hospitalidade foi sempre entre elles uma coiza sagrada, como atestam em
geral os escritores, que não referem aquella exceção.

Basta refletir sobre o modo por que exerciam os selvajens a
hospitalidade para reconhecer que não é admissivel a suspeita de Gabriel
Soares. Em verdade, aquelles cuja porta estava aberta sempre ao
viajante; que franqueavam o ingresso de sua cabana por tal modo que o
estranjeiro nella entrava como senhor, ainda mesmo na auzencia do dono;
que sem perguntar o nome de quem chegava nem de onde vinha o agazalhavam
com a maior liberalidade; esses que assim acolhiam o hospede, não podiam
ocultar a intenção perfida de o matar, no cazo de ser contrario. Ha uma
tal contradição entre esse desfecho e as circumstancias precedentes, que
não se póde acreditar nelle pelo simples dizer de um cronista, que em
muitas outras inexatidões caiu.

Se ha traço nobre do carater selvajem é essa hospitalidade, que o
estranjeiro não pedia e sim exijia como um direito sagrado, com esta
simples formula--_Vim_; ao que o dono da cabana respondia--_Bem vindo_.

O epizodio da deliberação do conselho sobre o nome do estranjeiro está
justificado pelo trecho seguinte de Ives d'Evreux, cap. 50.

«Aprés ces paroles il vous dit--_Marapé derere_? comment t'appelles-tu?
quel est ton nom? comme veux-tu que nous t'appellions? Quel nom veux-tu
qu'on t'impose? Où faut-il noter que si vous ne vous estes donné et
choisi um nom, lequel vous leur dites alors et desormais estes appellé
par tout le pays de ce nom, les sauvages du village ou vous demeurez
vous en choisiront um pris des choses naturelles, qui sont en leurs pays
et ce le plus convenablement qu'il leur sera possible, selon la
phisionomie qu'ils verront en votre visage, ou selon les humeurs et
façons qu'ils reconnaitront en vous..... Eh bien quel nom donnerons nous
a un tel ton compére? Je ne sais, il faut voir; lors chacun dit son
opinion et le nom qui rencontre le mieux et est reçu de l'assemblée, est
imposé avec son consentement si c'est quelque homme d'honneur.»

Ainda nessa circumstancia se revela a delicadeza da hospitalidade do
selvajem.


Paj. 38

_Artes da paz_.--É ainda de Ives d'Evreux, cap. 18, esta curioza
informação. «Je raconterai ici une jolie histoire. Un jour je m'allois
visiter le grand Theon, principal des Pierres Vertes Tabaiares: comme je
fus en sa loge et que je l'eus demandé, une des ses femmes me conduit
soubs une belle arbre qui estoit au bout de sa loge, qui la couvrait du
soleil; lá-dessous il avait dressé son mestier pour testre des licts de
coton et travaillait après forte soigneusement; je m'étonnai beaucoup de
voir ce grand capitaine, vieil colonel de sa nation, ennobli de
plusieurs coups de mousquets, s'amuser à faire ce mestier et je ne peus
me taire que je ne sçusse la raison espérant apprendre quelque chose de
nouveau en ce spectacle si particulier. Je luy fist demander par le
truchement qui estoit avec moy, à quelle fin il s'amusait à cela? il me
fit response: «Les jeunes gens considérent mes actions et selon que je
fais ils font; si je demeurais sur mon lit à me branler et humer le
petim, ils ne voudraient faire autre chose; mais quand ils me voient
aller au bois, la hache sur l'épaule et la serpe en main, ou qu'ils me
voient travailler à faire des licts, ils sont honteux de rien faire,
etc.»


Paj. 38

_Lançadeira_.--Os indijenas tinham um tear que é descrito por Lery, cap.
18. Uzavam tambem de um fuzo comprido e grosso, que as mulheres faziam
girar entre os dedos, atirando ao ar, como ainda agora fazem as velhas
fiandeiras do sertão.


Paj. 43

_Jurandir_.--Contração da fraze _Ajur-rendipira_--o que veiu trazido
pela luz.


Paj. 45

_Jabotí_.--Contou-me o Dr. Coutinho que o jabotí para os indios do
Amazonas é o simbolo da gravidade, prudencia e sabedoria, e prometeu-me
dar um apologo, em que elles celebram essas virtudes, contando a
historia de um jabotí, que venceu na lijeireza ao veado, na força á onça
e assim aos mais animais.


Paj. 45

_Tetivas_.--Os Tetivas habitam nos olhos das palmeiras e de outras
arvores: põem-lhes terra e acendem fogo. Humboldt cit., paj. 283.


Paj. 46

_Mulheres guerreiras_.--Aluzão ás Amazonas cuja existencia é tão
controvertida. Eu acredito na sua existencia, embora reconheça que houve
exajeração de Orellana.

Não é este o momento de elucidar este ponto da historia, ou antes
mitolojia do Brazil selvajem. Proponho-me a fazel-o quando publicar uma
lenda que tenho esboçada ácerca do assunto. Nessa ocazião direi o que
entendo ácerca da memoria do Dr. Gonçalves Dias, publicada na _Revista
do Instituto_.


Paj. 46

_Senhoras de seu corpo_.--Metafora tupí. No varão a parte nobre era o
sangue; pelo que elle dizia do filho--_taíra_, o filho do meu sangue; e
para indicar a independencia diziam _taíguara_, que os dicionarios
traduzem _livre_, mas que literalmente significa, _senhor do seu
sangue_.

A mulher que dizia do filho _membira_--o gerado de meu ventre, devia
pela mesma razão uzar de expressão analoga para exprimir sua liberdade,
e dizer _membijara_--senhora de seu ventre, que eu por elegancia traduzo
menos literalmente, _senhora de seu corpo_.


Paj. 47

_Pará sem fim_.--Par, diz Humboldt cit. paj. 285, é uma radical guaraní
e exprime agua. Pará creio eu que significou a grande abundancia de
agua, e foi primitivamente empregado para dezignar os lagos e por
ventura as vastas inundações do vale do Amazonas. Mais tarde os
selvajens acrecentaram-lhe o verbo _nhane_ correr, e disseram
_pará-nhanhe_--donde _paranãn_ para dezignar as grandes massas de agua
corrente, isto é, os rios caudalozos.

Os dois maiores rios da America do Sul, o Amazonas e o Prata, ambos se
chamavam _Paranãn_, assim como outros muitos do Brazil. O mesmo radical
se encontra já composto em Paraíba, Parnaíba, Paranapanema, etc.

Foi a substituição do _p_ pela analoga _m_ que produziu o nome de
_Maranhão_, ácerca de cuja etimolojia se inventaram tantas
extravagancias.


Paj. 48

_Guerreiros do mar_.--Tradução da palavra tupí _caramurú_ com que os
tupinambás da Baía dezignaram Diogo Alvares Correia.

Caramurú é composto de _cara_, alteração de Pará--mar e _moro_, gente;
homem do mar. Os selvajens acreditavam que as aguas eram habitadas, e
daí naceu a lenda da mãi d'agua, que se transmitiu á raça invazora. Nada
mais natural do que chamarem ao primeiro homem branco, que lhe apareceu
surjindo do oceano, Caramurú--o guerreiro do mar.


Paj. 48

_Rezina cheiroza_.--É o ambar, que os tupís chamavam _Piraoçurepoti_, e
de que ao tempo do descobrimento abundavam as ribeiras do mar, nas
provincias do norte.


Paj. 49

_Moças_.--É dificil, senão impossivel, determinar atualmente, e pelas
informações tão falhas quão malignas dos cronistas, a condição da mulher
entre os selvajens.

Do que tenho lido coliji as idéas, a que no texto se alude mui
lijeiramente, e a que em outro logar démos maior dezenvolvimento.


Paj. 51

_Para servir a Itaquê_.--«E quando o principal não é o maior da aldeia
dos indios das outras cazas, o que tem mais filhas é o mais rico e
estimado e mais honrado de todos, porque são as filhas mui requestadas
dos mancebos que as namoram; os quais servem os pais das damas dois e
tres anos primeiro que lh'as deem por mulheres e não as dão senão aos
que melhor os servem, a quem os namoradores fazem a roça e vão pescar e
caçar para os sogros que dezejam de ter, e lhes trazem a lenha do mato,
etc.» G. Soares, cit. cap. 152.

Aí está a lenda biblica de Jacob servindo a Labam 7 anos para obter por
espoza a Sara. Não consta, porém, que os selvajens uzassem da esperteza
do pai de Lia, para descartar-se de uma filha defeituoza; se tal
acontecesse entre os tupís, de que ridiculas indignações não se
encheriam os cronistas?


Paj. 52

_Manatí_.--È o peixe-boi, de cujo couro mais forte que o do touro os
indios fazem escudos. Anunciam a chuva, saltando acima d'agua.
Gumilha--Orenoco ilustrado, paj. 276.


Paj. 52

_Biaribí_.--Um dos modos porque os indios assavam a caça, e consistia em
enterral-a envolta em folhas de banana, e acender em cima o fogo, cujo
calor penetrando no chão cozia a carne, concentrando-lhe o sabor.

_Moquem_ era simplesmente o assado envolto em folha e feito sobre a
braza; daí vem _moqueca_ de que tirámos os verbos moquear e amoquecar.

_Bucan_, supõem alguns que seja alteração de _moquem_; mas eu o
considero termo distinto que exprimia apenas a operação de secar a carne
ao fumeiro para conserval-a. Neste sentido é que Lery e Ives de Evreux
empregam constantemente o termo francez _boucaner_, derivado da palavra
tupí.


Paj. 54

_Pela mão da mulher_. Refere Gumilla, cap. 45, que estranhando aos
indios sobrecarregarem as mulheres com os trabalhos agricolas, elles
retorquiram que as mulheres sabem dar fruto, o que não sabem os homens,
e por isso na mão dellas as sementes naciam e se multiplicavam.


Paj. 56

_Pirijá_.--Uma especie de palmeira chamada palmeira real; é espinhoza e
tem frutos semelhantes ao pecego. Humboldt cit., paj. 257 e 262.


Paj. 58

_Nunca Jandira ofereceria sua rêde de espoza_, etc.--Arací reprezenta o
amor da virjem tupí, segundo o costume tradicional de sua nação, que
admitia a comunidade e partilha do amor, como um privilejio do guerreiro
ilustre. Ser amada excluzivamente, significava para a mulher selvajem,
ser amada por um guerreiro obscuro.

Jandira reprezenta o excluzivismo do amor, que muitas vezes devia lutar
com a lei tradicional; porque é um impulso da natureza, a qual não é
dado ao homem aniquilar embora muitas vezes a sopite.


Paj. 61

_O combate nupcial_.--Este rito, de ser a virjem requestada o premio do
valor e da corajem, é atestado por grande numero de escritores.

Barloeus, paj. 420:--«Lucta et hastarum concursu decertare gloriosum,
finis spectanctium voluptas est, presertim amantium foemina de cujusque
fortitudine et victoria pronuntiat, sic in proximo pignora, pugnandi
irritamenta sunt fortitudinis præcones, ciborum administræ.»


Paj. 65

_A figura da noiva_.--Esta prova de destreza era muito uzada pelos
selvajens. Marcgraff descreve a especie de torneio que elles faziam
divididos em duas turmas, a ver qual levava mais depressa o seu tóro ao
logar destinado para acampamento. Naturalis Historia Brazilia, liv. 8o,
cap. 12.

Conclue com estas palavras:-«qui deinceps tempus terunt hastilibus
certando, luctando, currendo; quibus certaminibus duæ fæminæ ad id
selectoe proesident et judicant de singulorum virtute et victoribus.

Estes certamens guerreiros, esses jogos de luta, combate e carreira,
prezididos por mulheres que julgavam do valor dos campeões e conferiam
premio aos vencedores, não cedem em galanteria aos torneios da
cavalaria.

Ácerca da prova a que acima nos referimos, escreveu o Dr. Gonçalves
Dias--_Brazil_ e _Oceania_, cap. 10, _Revista do Instituto_, tom. 30,
parte 2a, paj. 153:--Um tóro de barrigudo em um cabo delgado e de facil
preensão, semelhante aos soquetes ou massetes de que ainda entre nós se
uza em muitas partes para bater a terra das sepulturas, posto que mais
poderozo que este, ou um grande pedaço de tronco de palmeira, era
colocado no meio do terreiro. Vinha o guerreiro correndo, tomava o
tronco, continuava a carreira, saltava fossos, subia elevações,
arrojava-se ás vezes ao rio com elle e quem chegava primeiro e levava
mais lonje a carga, esse ganhava a palma e a mulher que tinha de ser
espozada. Explicou-se esse costume, de que trata Barloeus, Marcgraff e
outros, e que ainda conservam algumas tribus do Piauí, pela necessidade
que tinha o guerreiro de defender a mulher, e para que em ocazião de
perigo a podesse salvar fujindo.»


Paj. 67

_O camucim da constancia_.--Lê-se no _Tezouro do Amazonas_, cit. tom. 3
da _Revista do Instituto_, paj. 169. «O 5o predicado que tambem, como
muitas outras nações conservam os Arapiuns, é a prova da valentia quando
cazam; é um exame prévio ou o primeiro principio, como se diz nas
Universidades, a suas bodas, e uma experiencia ou tentativa de seu valor
para mostrarem que posto cazem não é por afeminados, mas por valentes.
Ha diversos generos dessa prova de valentia; mas uma mui ordinaria nos
indios Arapiuns é encherem uns grandes e compridos cabaços das formigas
que chamam saugas (_saúvas_) grandes e mui bravas; ferram na carne com
tanta ou mais valentia que os cães de fila, com proporção á grandeza
destes e pequenez daquellas; porque os cães assim vêm a largar; mas as
saugas não largam ainda que as matem e antes perderão a cabeça ficando
com as troquezes cravadas na carne do que soltarem ellas preza; por isso
uzam dellas alguns cirurjiões quando querem cozer alguma cicatriz com
segurança, sem uzarem pontos, como adiante dizemos. Cheios, pois, os
cabaços de saugas, não só famintas, mas quando estão com fome talvez de
dias ... e sobre isso bem enraivadas com sacudidelas, prezentes todos os
velhos e graves da missão, sae a terreiro o noivo examinando,
destapam-se os cabaços nos quais intrepido mete os braços, a que logo
acodem as filas, já para saciar a fome, já para dezabafar a ira, e já
para provar e castigar o bacharel, o qual posto que as dôres o façam
mudar de côres, torcer a boca, tremer o corpo, levantar as sobrancelhas
e arrebentar as lagrimas, tenha paciencia, que se quer, ha de aturar a
bucha, emquanto os examinadores já bebendo-lhe á saude e já dando voltas
em bailes se vão regalando á sua custa, etc.


Paj. 73

_Igapê_.--É o nenufar na lingua tupí, de _Ig_, _ipe_ e _potira_--flôr
d'agua. Os portuguezes corromperam essa palavra transformando-a em
_aguapé_, nome por que é vulgarmente conhecida. Penso eu, porém, que
devemos restaurar o nome indijena, até mesmo porque _aguapé_ tem diversa
significação em portuguez.

Uma dessas nímféas, a rainha das flôres, a que os indios chamavam milho
d'agua, ou a flôr jaçanan, por servir de ninho a essas aves paludais,
nace branca e com a luz do sol vai rozeando até se tornar escarlate.

Em uma noticia publicada pelos jornais li que o nome dessa flôr _napê
jaçanan_ significa, forno das jaçanans, do que duvido. O genitivo
exprimiam os indios com antepozição do nome rejido por esse cazo; assim
_napê jaçanan_ significaria jaçanan do forno. Demais nem _napê_ quer
dizer forno; nem forno indica a idéa que se pretende de pouzo ou ninho.

_Uapê_ aí é o mesmo _igapê_ com a simples diferença de figurar-se a
vogal indijena por _u_ em vez de _ig_ adotada pelo geral dos autores.


Paj. 82

_Murinhem_.--Palavra composta de _morib_ afavel e _nheng_
falar.--Veja-se a respeito dos cantores, _nhengara_, o que se disse na
nota a paj. 117.


Paj. 86

_Paan_.--Palavra da lingua Macaulí que significa seta--_Creban_
significa homem alvo; e _Agniná_, monte.


Paj. 97

_Tomou a espoza aos hombros_.--Era entre as mulheres selvajens prova de
amor, suspenderem-se ás costas daquelles que preferiam, quando as
requestavam com cantos e dansas. Assim o atesta Marcgraff cit. «Ubi
vespera advenit, coeunt adolescentes in varias cohortes et castra
perambulantes cantillant ante tuguria adolescentula autem quæ juvenibus
delectantur, produnt et cantillantes atque tripudiantes sequuntur
adolescentes _et á tergo consistunt eorum quos amant, id enim ipsis
amoris testimonium est_. _Paj. 280_.»

Escaparam-me algumas notas que a intelijencia do leitor suprirá. Todavia
rezumirei as de que me recordo neste momento.

Á paj. 44, quando diz Jurandir que conta os anos pelos dedos, quer
dizer que não tem mais de vinte, pois tantos são os dedos das mãos e
pés.

Á paj. 45, o grande lago que recolheu as aguas do diluvio é o _Manoa_,
em cujas marjens se fabulou o _El-Dorado_. _Manoa_ em achagua é diluvio,
segundo Gumilha, 2.o vol., 7; palavra homologa ao vocabulo tupí
_amana_, que significa chuva.

Á paj. 45, o combate que Jurandir figura entre o mar e o Amazonas é a
descrição da pororoca. Elle chama as aguas do mar-guerreiros azues-por
causa da côr das vagas, e as aguas do rio-guerreiros vermelhos-porque a
corrente do rio é então barrenta.

Á paj. 45, onde se diz que os anos de Guaribú enchiam a corda de sua
existencia alude-se ao costume que tinham os selvajens de contar os anos
pelos nós que davam em um cordel, outros pelos frutos do colar.

Á paj. 40 faz-se referencia á lenda de Sumê, já muito conhecida. Foi
Sumê que ensinou aos tupís a agricultura e os primeiros rudimentos das
artes.

Á paj. 54 fala-se de _matumbos_. São as leivas que se fazem no norte
para a plantação da mandioca.




INDICE


      I--O caçador               5

     II--O guerreiro            15

    III--A noiva                24

     IV--A hospitalidade        37

      V--Servo do amor          51

     VI--O combate nupcial      61

    VII--A guerra               74

   VIII--A batalha              85

     IX--União dos arcos        92

         Notas                 101


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electronic work or group of works on different terms than are set
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both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
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property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
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of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
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LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
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LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
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DAMAGE.

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in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
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that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected].  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     [email protected]


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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